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A DAMA DE MONSOREAU Vol.I - P.2 / Alexandre Dumas
A DAMA DE MONSOREAU Vol.I - P.2 / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DE MONSOREAU

Volume I

Segunda Parte

 

         COMO SUCEDEU QUE CHICOT, SENDO OBRIGADO A FICAR DENTRO DA IGREJA, VIU E OUVIU COISAS PERIGOSÍSSIMAS DE VER E OUVIR

Chicot desceu do púlpito a toda a pressa e tratou de se confundir com os últimos frades, a ver se lobrigava a senha que servia para a saída.

Alcançou, com efeito, um grupo que ia mais atrás, e, espreitando por cima dos ombros dos indivíduos de que ele se compunha, conseguiu ver que a senha para a saída era uma moeda talhada à feição duma estrela.

O nosso gascão trazia no bolso diferentes moedas, mas infelizmente nem uma única tinha aquele recortado particular, completamente desusado, por isso que a moeda assim inutilizada Ficava excluída da circulação.

Chicot avaliou imediatamente todas as dificuldades da sua situação. Chegado que fosse à porta, e não podendo apresentar a sua moeda estrelada, estava imediatamente descoberta a fraude; e como provavelmente as investigações haviam de dar em resultado ser ele tratado como espião, visto que o cargo de bobo do rei que Chicot exercia lhe dava muitos privilégios no Louvre e nas demais residências reais, perdia muito do seu prestigio na Abadia de Santa Genoveva, e naquelas circunstâncias especialmente; tomou pois o gascão a deliberação de retroceder, e Foi esconder-se à sombra duma coluna, encostada a um confessionário que estava junto à mesma coluna.

E depois, dizia Chicot consigo, se me descobrem, está perdida a causa do toleirão do meu soberano, de quem não posso deixar de ser amigo, apesar das travessuras que Lhe faço e das insolências que Lhe digo. Não há dúvida alguma que o partido mais decoroso que eu podia tomar era voltar para a hospedaria da Cornucópia, a fim de restituir o hábito a Frei Gorenflot, que deixei despido; mas ninguém pode ser obrigado a Fazer coisas impossíveis.

E ao passo que ia dizendo isto a si próprio, isto é, ao interlocutor que mais dados tinha para avaliar o peso das suas reflexões, Chicot procurava ocultar-se entre o canto do conFessionário e as molduras do pilar.

Ouviu então um menino do coro, que gritava do adro:

- Já não está mais ninguém lá dentro? Vamos fechar as portas.

Ninguém respondeu. Chicot espreitou, e viu que efectivamente não havia pessoa alguma na capela, à excepção dos três frades, os quais se conservavam sentados em cadeiras que lhes tinham trazido para o meio do coro.

Bom, pensou Chicot, contanto que não fechem as janelas, o mais não me importa.

- Passemos revista à capela - disse o menino do coro para o irmão porteiro. Cos demónios! disse Chicot, o tal fradinho sempre tem lembranças muito engraçadas! "

O irmão porteiro acendeu uma tocha, e, acompanhado do menino do coro, começou a revistar a igreja.

Não havia um instante a perder. O irmão porteiro havia necessariamente de passar a dis tância de quatro passos de Chicot, o qual não podia deixar de ser descoberto.

Chicot girou com destreza de roda do pilar, conservando-se na sombra à medida que a sombra também girava, e, abrindo o confessionário, que estava fechado com uma tranqueta unicamente, encaixou-se para dentro, e puxou a porta para si depois de se ter sentado.

O irmão porteiro e o menino do coro passaram a quatro passos de onde ele estava, e através da grade esculpida Chicot viu reflectir-se no seu hábito a luz da tocha que levavam.

Ora bem! disse Chicot a si mesmo, o irmão porteiro, o menino do coro e os três Frades não hão-de ficar eternamente dentro da igreja; logo que eles saiam, passo a amontoar as cadeiras sobre os bancos e salto pela janela. Ah! sim. pela janela, replicou Chicot respondendo a si próprio: porém, quando tiver saído pela janela, achar-me-ei no pátio, e o pátio não é a rua. Parece-me que o mais acertado será passar a noite no confessionário. O hábito de Gorenflot agasalha-me bem; sempre passarei aqui uma noite menos profana do que teria passado em qualquer outra parte, e ficar-me-á já isto por conta dos meus pecados para a minha salvação. "

- Apaga as lâmpadas - disse o menino de coro -, para que todos lá de fora vejam bem que está acabado o conciliábulo.

O porteiro, pegando num imenso apagador, afogou logo a luz das duas lâmpadas da nave, a qual ficou assim imersa numa escuridão que tinha o seu tanto de fúnebre.

Em seguida, apagou a lâmpada do coro.

A igreja Ficou sendo alumiada pelos pálidos raios do luar que a custo penetrava pelas vidraças de cores.

Depois de apagadas as luzes, cessou todo o ruído.

O relógio da torre deu meia-noite.

Safa! disse Chicot, Fechado numa igreja à meia-noite! Que medo não teria o meu filho Henriquinho se estivesse aqui no meu lugar. Ainda bem que eu não sou tímido. Vamos a isto, Chicot, meu amigo; estimarei que passes muito bem a noite!

Chicot, depois de ter dado as boas-noites a si próprio, encostou-se com a maior comodidade possível dentro do confessionário; correu o ferrolho que havia pela parte de dentro da porta, e fechou os olhos.

Havia dez minutos, pouco mais ou menos, que ele tinha cerrado as pálpebras e que os primeiros vapores do sono iam começando a invadir-lhe o espírito, quando o som duma lâmina de cobre ecoou pela igreja e foi-se perdendo gradualmente pelas suas profundidades.

Olé! disse Chicot abrindo os olhos e aplicando o ouvido, que quer isto dizer? Ao mesmo tempo tornou-se a acender a lâmpada do coro porém com uma luz azulada, e o seu primeiro reflexo mostrou a Chicot os mesmos três frades, ainda sentados da mesma maneira, no mesmo sítio e sempre imóveis.

Chicot não deixou de sentir certo temor supersticioso: o gascão, apesar de muito valente, era homem da sua época, e a sua época era a das tradições fantásticas e das lendas terríveis.

Benzeu-se devagarinho, resmungando:

- Vade retro, Satanás!

Porém, como as luzes se não apagaram quando ele fez o sinal da redenção, o que não teria deixado de suceder se fossem clarões infernais, e como os três monges não desapareceram dos seus lugares apesar do vade retro, o gascão começou a acreditar que as luzes eram naturais e que os homens que ele via, se não eram frades na realidade, pelo menos era gente de carne e osso.

Chicot, entregue ainda àquela espécie de arrepio que sente o homem que acorda, combinado com o tremor que acomete o que tem medo, procurou então vencer de todo o sono.

Naquele momento, uma das lajes do coro levantou-se vagarosamente e ficou erguida sobre a estreita base. Apareceu um capuz cinzento saindo daquela abertura, e logo depois o corpo todo dum monge, que se Firmou sobre o mármore, enquanto que a laje tornava a fechar-se devagarinho por detrás dele.

Chicot, quando isto viu, esqueceu-se da experiência que acabava de fazer e deixou de ter confiança no conjuro que ele julgava decisivo. Arrepiaram-se-Lhe os cabelos e figurou-se-Lhe que todos os Piores abades e deões de Santa Genoveva, desde Oprat, falecido em 533, até Pedro Boudin, predecessor do superior actual, tinham ressuscitado dos seus túmulos, situados na capela subterrânea onde jaziam outrora as relíquias de Santa Genoveva, e se dispunham à imitação daquele frade, a levantarem as lajes do coro com os descarnados crânios.

Não esteve porém muito tempo nesta suposição.

- Irmão Monsoreau - disse um dos três frades do coro ao indivíduo que acabava de aparecer por um modo tão singular -, já chegou a pessoa que esperamos?

- Sim, meus Senhores - respondeu aquele a quem a pergunta era dirigida -, e está à espera.

- Vá abrir-lhe a porta, e diga-lhe que se aproxime.

Bem disse Chicot, a comédia, segundo me parece, tinha dois actos, e eu só tinha visto representar o primeiro. Dois actos! E má... distribuição.

E apesar de estar assim a gracejar consigo mesmo, nem por isso deixava Chicot de sentir ainda alguns arrepios, chegando-lhe até a parecer que no banco de pau em que estava sentado tinham nascido de repente milhares de bicos de alfinetes. Entretanto, o irmão Monsoreau, descendo por uma das escadas que davam serventia da nave para o coro, tinha vindo abrir a porta de bronze que deitava para a capela subterrânea colocada entre as duas escadas.

Ao mesmo tempo, o monge que estava no centro dos outros dois deitava o capuz para trás descobrindo assim a grande e honrosa cicatriz que Lhe sulcava o rosto, e pela qual era conhecido dos Parisienses o homem que naquele tempo era o herói dos católicos, e que estava destinado a ser um dia seu mártir.

O grande Henrique de Guisa em pessoa! O mesmo que Sua Majestade muito toleirona julga entretido no cerco de La Charité, disse Chicot. Ah! Agora já vou percebendo. O que está à direita dele, e que deitou ainda agora a bênção aos circunstantes, é o cardeal de Lorena enquanto que o que está à esquerda, a falar com o fedelho do menino do coro, há-de ser o meu simpático amigo duque de Maiena; mas onde está, no meio de tudo isto, mestre Nicolau David?

E, com efeito, os dois monges da direita e da esquerda, como para darem imediatamente a razão às suposições de Chicot, tinham deitado os capuzes para trás, deixando ver a cabeça inteligente, a testa elevada e o olhar penetrante do famoso cardeal, e a muito vulgar carantonha do duque de Maiena.

Ah! Bem te conheço, disse Chicot, trindade pouco santa, mas muito visível. Vejamos agora o que fazem, todo eu sou olhos. Vejamos o que dizem, todo eu sou ouvidos."

Naquele mesmo instante o Sr. de Monsoreau tinha chegado à porta da capela subterrânea e estava-a abrindo precipitadamente.

- Julgavas que ele viria? - perguntou o Acutilado' a seu irmão o cardeal.

- Não somente julgava, mas tinha até tanta certeza que ele havia de vir – respondeu

 

' Acutilado, alcunha do duque de Guisa.

 

este -, que trago aqui debaixo do hábito os objectos necessários para substituir a Santa Âmbula.

E Chicot, cujo esconderijo ficava tão próximo à trindade, como ele Lhe chamava, que podia com facilidade ver e ouvir tudo, divisou ao reflexo baço da lâmpada do coro o brilho duma caixinha de prata dourada com lavores em relevo.

Toma! disse Chicot, parece que vão sagrar alguém. E eu que sempre tive tanto desejo de ver uma sagração. eis chegado o momento de satisfazer a minha curiosidade!

Durante este tempo, uns vinte frades, com as cabeças envolvidas em imensos capuzes, iam saindo pela porta da capela subterrânea e tomando lugar na nave.

Um único, guiado pelo Sr. de Monsoreau, subiu a escada do coro e foi colocar-se à direita do Sr. de Guisa numa das cadeiras, ou, para melhor dizer, de pé sobre o degrau da cadeira.

O menino do coro, que também tornara a aparecer, foi com todo o respeito receber as ordens do frade da direita, e sumiu-se.

O duque de Guisa correu os olhos pela assembleia, muito menos numerosa que a primeira (de onde se podia inferir que era provavelmente uma reunião de pessoas escolhidas), e, tendo-se certificado de que toda aquela gente não só estava ouvindo, mas até estava esperando com impaciência que ele falasse:

- Amigos - disse ele -, o tempo é precioso, por isso me abstenho de preâmbulos. Ouviram ainda há pouco - presumo que estavam presentes à primeira reunião -, ouviram ainda há pouco, digo, no relatório de alguns dos membros da Liga Católica, as queixas dos indivíduos pertencentes à associação, que acusam de frouxo, e mesmo de mal-intencionado, um dos principais de entre nós. - O príncipe que mais próximo se acha do trono. Chegou o momento de fazermos justiça a esse príncipe e de Lhe mostrarmos o nosso respeito. Vão ouvi-lo os senhores mesmos, e então julgarão, os senhores, que têm a peito preencher o fim principal da Santa Liga, se os vossos cheFes merecem as acusações de frouxidão e de inércia que lhes fez um dos irmãos da Santa Liga, o monge Gorenflot, a quem não julgamos conveniente admitir em nossos segredos.

Chicot, quando ouviu no seu confessionário o nome de Gorenflot proferido pelo duque de Guisa com uma intonação que dava bem a conhecer a pouca conta em que tinha o belicoso frade, não pôde resistir a um acesso de hilaridade, a qual, se bem que muda, não deixava por isso de ser intempestiva em atenção à elevada categoria das pessoas que lhe davam assunto.

- Meus irmãos: o príncipe de quem nos tinham prometido o adjutório, o príncipe de quem nós apenas nos atreviamos a esperar, não direi a presença, mas o simples consentimento esse príncipe, meus irmãos, aqui o têm.

Todos volveram os olhos com curiosidade para o frade colocado à direita dos príncipes lorenos, e que ainda se conservava de pé sobre o degrau da cadeira.

- Meu Senhor - disse o duque de Guisa dirigindo-se ao indivíduo em quem naquela ocasião se concentrava a atenção de todos -, parece-me que está bem manifesta a vontade de Deus, pois se consente que Vossa Alteza se una a nós, é porque o que fazemos é bem feito. Agora, pedirei a Vossa Alteza que se sirva deitar para trás o seu capuz, a fim de que os seus fiéis partidários vejam por seus próprios olhos que Vossa Alteza cumpriu a promessa que Lhes fizemos em seu nome, e que lhes parecia tão lisonjeira que nem se atreviam a acreditar nela.

A misteriosa personagem a quem Henrique de Guisa acabava de se dirigir, levou a mão ao capuz e deitou-o para cima dos ombros; e Chicot, que estava à espera de achar debaixo daquele hábito algum outro príncipe loreno de quem ainda não tivesse ouvido falar, viu, com grande pasmo, aparecer a cabeça do duque de Anju, com um rosto tão pálido que à luz daquela lâmpada sepulcral parecia o duma estátua de mármore.

Oh! oh! disse Chicot, o nosso mano de Anju! Visto isso, ainda não está farto de fazer pontaria ao trono com as cabeças dos mais.

- Viva Sua Alteza o Senhor Duque de Anju! - gritaram todos os circunstantes. O duque tornou-se ainda mais pálido do que estava.

- Não tenha receio, meu Senhor - disse Henrique de Guisa -, esta capela é surda, e as portas estão bem Fechadas.

Medida muito acertada, não há dúvida disse consigo Chicot.

- Meus irmãos - disse o conde de Monsoreau -, Sua Alteza pretende dirigir algumas palavras à assembleia.

- Sim, sim, que fale - exclamaram todos à uma -, estamos ouvindo! Os três príncipes lorenos voltaram-se para o duque de Anju, e inclinaram as cabeças. O duque encostou-se aos braços da sua cadeira; parecia próximo a cair.

- Meus Senhores - disse ele com voz tão surda e tão trémula, que mal se ouviram as primeiras palavras que proferiu -, creio que Deus, que às vezes nos parece invisível e surdo às coisas deste mundo, conserva, pelo contrário, o Seu olhar penetrante constantemente fito em nós, e que, se na aparência ostenta mudez e indiferença, é para remediar um dia, por meio de algum acontecimento estrondoso, as desordens a que dão causa as loucas ambições dos homens.

Este princípio do discurso do duque era, como o seu carácter, sofrivelmente tenebroso; por isso todos ficaram esperando que algum raio de luz viesse esclarecer os pensamentos de Sua Alteza, para os desaprovarem ou aplaudirem.

O duque prosseguiu com voz um tanto mais Firme:

- Eu também lancei os olhos para o mundo, e, não podendo com o meu fraco olhar abranger toda a sua superfície, detive a minha vista sobre a França. Que vi eu então por todo o reino? A religião santa de Cristo abalada em seus augustos fundamentos, e os verdadeiros servos de Deus dispersos e proscritos. Então sondei a profundidade do abismo aberto há vinte anos a esta parte pelas heresias que minam nas crenças com o pretexto de se elevarem mais seguramente até Deus, e a minha alma, como a do proFeta, ficou inundada de dor.

Um sussurro de aprovação correu por toda a assembleia.

O duque acabava de manifestar a sua simpatia pelos soFrimentos da Igreja; e isto era já quase uma declaração de guerra a todos os autores de semelhantes sofrimentos.

- Quando me achava entregue a esta aflição profunda - continuou o príncipe -, chegou-me aos ouvidos a notícia de que vários cavalheiros da nobreza, piedosos e aferrados aos usos dos nossos maiores, procuravam consolidar o altar abalado. Olhei em redor de mim, e pareceu-me que já estava presenciando o juízo derradeiro, e que Deus tinha separado em dois grupos os réprobos e os eleitos. Para uma parte estavam aqueles, e deles fugi com horror; da outra estavam os eleitos, e vim logo lançar-me em seus braços. Meus irmãos, aqui me têm.

Amén! " disse Chicot baixinho. Era escusada semelhante cautela.

Chicot podia ter falado em voz alta que ninguém o teria ouvido, por certo, no meio dos aplausos e bravos que retumbaram pelas abóbadas da capela.

Os três príncipes lorenos deram tempo a que se acalmassem aqueles transportes de admiração que eles mesmos tinham excitado, e logo o cardeal, que era o que Ficava mais próximo do príncipe, dando um passo para ele, disse-Lhe:

- Entrou para o nosso grémio por sua livre vontade, príncipe?

- Por minha livre vontade, Senhor.

- Quem lhe deu conhecimento deste santo mistério?

- Um amigo meu, homem zeloso pela religião, o Senhor Conde de Monsoreau.

- Agora - disse o duque de Guisa tomando a palavra -, que Vossa Alteza pertence à nossa associação, pedimos-lhe que tenha a bondade de nos dizer o que tenciona fazer em prol da Santa Liga.

- Tenciono servir a religião católica, apostólica e romana em todas as suas exigências respondeu o neófito.

Declaro por minha alma, disse Chicot, que me parece uma asneira muito grande esconder-se a gente para dizer semelhante coisa. Porque não propõem eles isso abertamente a el-rei? É o único meio de fazer com que o nobre príncipe tenha fillhos. Estou com meus desejos de sair deste confessionário e de me apresentar também; pois o meu querido duque de Anju comoveu-me deveras!. Prossegue, anda, digno irmão de Sua Majestade, prossegue meu nobre tolo. "

E o duque de Anju, como para obedecer à incitação, prosseguiu, com efeito:

- Contudo - disse ele -, o interesse da Religião não é o único fim que devem ter em vista homens cavalheiros como nós. No meu entender, ainda há outro motivo mais poderoso que nos deve obrigar a sair a campo.

Deveras? disse Chicot, eu também sou cavalheiro, por consequência tenho tanto interesse em sabê-lo como os mais; fala, Anju, fala.

- Meu Senhor, estamos escutando Vossa Alteza com a maior atenção - disse o cardeal de Guisa.

- E a esperança faz palpitar nossos corações ao escutarmos Vossa Alteza - disse o Sr. De Maiena.

- Explicar-me-ei, pois - disse o duque de Anju, sondando com olhar inquieto as pro fundidades tenebrosas da capela, como para ter a certeza de que as suas palavras só chegariam a ouvidos dignos da sua confiança.

O Sr. de Monsoreau percebeu a hesitação do príncipe, e tranquilizou-o com um sorriso e um olhar muito significativo.

- Ora bem: todo o cavalheiro, depois de pensar no que deve a Deus - prosseguiu o duque de Anju, abaixando involuntariamente a voz -, pensa no que deve ao seu.

Que novidade!. Ao seu rei! pensou Chicot; isso é sabido.

país - continuou o duque de Anju -, e trata de examinar se o seu país goza na realidade de toda a honra e de todo o bem-estar que lhe estavam destinados por sorte; porque todo o bom cavalheiro deve a sua existência a Deus, em primeiro lugar, e depois ao país de que é filho.

A assembleia aplaudiu com furor.

Esta é nova. disse Chicot; e então o rei, onde Fica. Visto isso há ninguém se lembra do pobre monarca?. E eu que julgava que ainda se costumava dizer, conforme está escrito na pirâmide de Juvisy: Por Deus, pela honra, e pelas damas"

- Pergunto, pois - prosseguiu o duque de Anju com as maçãs do rosto animadas por uma espécie de vermelhidão febril -; pergunto, pois, se a minha pátria goza da paz e da ventura de que é merecedora esta terra tão agradável e tão bela chamada França, e vejo com mágoa que não se dá esse caso. E, com efeito, meus irmãos, o Estado acha-se dilacerado por vontades e gostos difenrites, todos eles igualmente poderosos, graças à fraqueza duma vontade superior, a qual, esquecendo que deve dominar tudo para o bem dos seus súbditos, somente se lembra deste princípio régio quando lhe dá na fantasia, e sempre tão fora de propósito, que os seus actos de energia só têm lugar para fazer mal, e sem dúvida alguma só ao fatal destino da França, ou à cegueira do seu chefe, tal desgraça deve ser atribuída. Mas, se bem que ignoremos a verdadeira origem deste mal e que só possamos formar vagas conjecturas, a desgraça nem por isso tem menos realidade, e eu atribuo-a, ou aos crimes cometidos pela França contra a Religião, ou às infidelidades cometidas por certos amigos fingidos do rei ainda mais do que pelo próprio rei. Em qualquer destes casos, Senhores, cumpria-me, como servidor do altar e do trono, reunir-me aos que buscam por todos os meios a extinção da heresia e a ruína dos conselheiros pérfidos. Eis aqui, Senhores, o que tenciono fazer em prol da Liga, associando-me convosco.

Oh! oh! murmurou Chicot com os olhos espantados de admiração, lá deixou ver uma ponta da orelha, e não é uma orelha de burro, como julguei a princípio, mas sim de raposa.

Este exórdio do duque de Anju, que pareceu talvez algum tanto extenso aos nossos leitores, a quem três séculos separam da política daquela época, tinha causado tal impressão nos Ouvintes, que a maior parte deles se havia aproximado do príncipe para não perder uma única sílaba daquele discurso proferido com uma voz que se ia tornando ininteligível à medida que o sentido das palavras se tornava mais claro.

O espectáculo estava sendo curioso. Os circunstantes, em número de vinte e cinco ou trinta tinham abaixado os capuzes, deixando ver rostos nobres, ousados e inteligentes; e, animados pela curiosidade, apinhavam-se por baixo da única lâmpada que então alumiava a cena.

As sombras imensas que eles projectavam espalhavam-se por todo o resto do edifício, que parecia, por assim dizer, estranho ao drama que se estava representando naquele único ponto.

No centro do grupo divisava-se o pálido rosto do duque de Anju, com os olhos encobertos pelos ossos frontais, e fazendo lembrar, quando abria a boca, o riso sinistro duma caveira.

- Meu Senhor - disse o duque de Guisa -, agradecendo a Vossa Alteza as palavras que acaba de proferir, cumpre-me advertir-lhe que está cercado de homens dedicados, não somente aos princípios que acaba de professar, como também à pessoa de Vossa Alteza Real e espero que, antes de finda a sessão, Vossa Alteza se convencerá da veracidade do que assevero.

O duque de Anju inclinou-se, e, quando tornou a erguer a cabeça, correu os olhos com desconfiança pela assembleia.

Oh! oh! murmurou Chicot, se me não engano, tudo isto que até agora tenho presenciado não passa dum preâmbulo, e esta gente está aqui para algum negócio mais importante do que todas estas frioleiras que tem dito e feito até agora.

- Meu Senhor - disse o cardeal, a quem não tinha escapado o olhar do príncipe -, se porventura Vossa Alteza ainda conserva algum receio, estou certo de que bastará dizer-Lhe Os nomes das pessoas que aqui estão presentes para que se tranquilize. Eis aqui o Senhor Governador de Aunis, o Sr. de Entragues Júnior, os Srs. de Ribeirac e de Livarot, jovens cavalheiros que Vossa Alteza conhece talvez e que têm tanto de valentes como de leais. Aqui está também o Senhor Vidama de Castillon, o Senhor Barão de Lusignan, os Srs. de Crucé e Leclerc; todos eles apreciam como devem a prudência e sabedoria de Vossa Alteza Real, e dar-se-ão por muito ditosos se puderem empreender debaixo de seus auspícios a emancipação do trono e da Santa Religião. Receberemos pois com gratidão as ordens que Vossa Alteza nos quiser dar.

O duque de Anju não pôde disfarçar um movimento de orgulho.

Os Guisas, tão soberbos e que a ninguém se dobravam, falavam em obedecer!

O duque de Maiena continuou:

- Vossa Alteza, pelo seu nascimento e pela sua sabedoria, é o chefe natural da Santa União a quem compete indicar-nos o procedimento que devemos ter para com os amigos fingidos

de el-rei, de quem há pouco se falou.

- O remédio para os males que lamentamos é muito simples - respondeu o príncipe com aquela espécie de exaltação febril que substitui o valor nos homens tímidos -; quando alguma planta parasítica e venenosa cresce no meio do campo fértil, é preciso arrancá-la imediatamente pelas raízes. El-rei está cercado não de amigos, mas de cortesãos que o estão perdendo e excitando um escândalo perpétuo na França e em toda a cristandade.

- É verdade - disse o duque de Guisa com voz sombria.

- E demais, esses cortesãos a que aludiu - replicou o cardeal - obstam a que nós, verdadeiros amigos de Sua Majestade, possamos aproximar-nos dele, como nos compete pelos nossos cargos e nascimento.

- Deixemos, pois - disse arrebatadamente o duque de Maiena -, aos partidários vulgares, aos homens da primeira Liga, o cuidado de servirem a Deus. Servindo a Deus, servem os que lhes falam em Deus. Nós, que aqui estamos, tratemos dos negócios. Há uns poucos de homens que nos incomodam; mofam de nós, insultam-nos, faltam continuamente ao respeito que é devido ao príncipe que mais veneramos e que é nosso chefe.

Aqui tornou-se escarlate a testa do duque de Anju.

- Aniquilemos, pois - prosseguiu o duque de Maiena -, essa raça maldita, que el-rei enriquece com os fragmentos das nossas fortunas; e basta para isso que se comprometa cada um de nós a tirar a vida a um deles. Estamos aqui trinta homens, contemo-los.

- Disse muito bem - respondeu o duque de Anjo -, e o Sr. de Maiena já fez o seu dever.

- O que já está feito não entra em linha de conta - respondeu o duque.

- Contudo, é preciso que nos deixe alguns para nós, meu Senhor - disse d'Entragues

- ; eu encarrego-me de Quélus.

- Eu, de Maugiron - disse Livarot.

- E eu, de Schomberg - disse Ribeirac.

- Bem, bem - disse o duque -; e ainda nos resta Bussy, o meu valente Bussy que também há-de tomar conta de alguns.

- E nós! E nós! - bradaram os demais membros da Liga.

O Sr. de Monsoreau adiantou-se:

Ah!. ah! disse Chicot, o qual já não ria, depois que tinha visto o caminho que iam tomando as coisas.

Aí vem o monteiro-mor pedir um osso também. "

Chicot enganava-se.

- Senhores - disse ele levantando a mão -, peço um instante de silêncio. Todos quantos aqui estamos somos homens de resolução e, contudo, temos receio de falar com franqueza uns aos outros. Somos homens inteligentes, e detém-nos um vão escrúpulo. Vamos, Senhores um pouco de ânimo, um pouco de franqueza! Não se trata aqui dos favoritos do rei Henrique, não se trata da dificuldade que encontramos quando queremos chegar à sua presença.

Vamos lá! disse Chicot, esbugalhando os olhos dentro do seu confessionário e aplicando o ouvido para não perder uma palavra do que se dizia, vamos lá! Anda depressa, que estou à espera.

- A nossa questão, agora, meus Senhores - replicou o conde -, é vencermos a dificuldade que nos faz recuar. Esta realeza que temos não pode ser aceite pela nobreza de França: é uma reunião de ladainhas, de despotismos e de orgias; muita prodigalidade para funções que fazem rir de dó toda a Europa, e excessiva parcimónia para tudo quanto diz respeito à guerra e às artes. Não é ignorância, não é fraqueza; uma semelhante conduta, meus Senhores, é demência.

Seguiu-se um silêncio fúnebre às palavras do monteiro-mor. A impressão que elas haviam causado era tanto maior quanto cada um dos indivíduos presentes pensava no seu particular o mesmo que ele acabava de dizer em voz alta, de forma que cada um deles estremeceu, como se estivesse ouvindo o eco das próprias palavras.

O Sr. de Monsoreau, que muito bem conheceu que aquele silêncio era motivado por um excesso de aprovação, prosseguiu:

- E devemos continuar a ser regidos por um rei louco, inerte e ocioso, no momento em que a Espanha vai acendendo as fogueiras, em que a Alemanha vai acordando os antigos heresiarcas que dormem à sombra dos claustros, e quando a Inglaterra, com a sua política inflexível, vai decepando as cabeças e as ideias? Todas as nações vão empreendendo algum trabalho glorioso. Nós, meus Senhores, estamos dormindo, perdoem- me se Lhes digo isto na presença dum grande príncipe, que há-de censurar talvez a minha temeridade, por isso que me refiro a uma pessoa da sua família; meus Senhores, há quatro anos a esta parte já não é um rei que nos governa, mas um frade.

A estas palavras, a explosão habilmente preparada e ainda mais habilmente reprimida havia uma hora pela circunspecção dos chefes, rebentou com tanta violência, que ninguém diria que aqueles energúmenos eram os mesmos calculadores prudentes e frios da cena precedente.

- Fora o Valois! - gritavam eles. - Fora Frei Henrique! Tomemos para chefe um príncipe cavaleiro um rei guerreiro, um tirano, se for preciso, mas nada de frades!

- Meus Senhores - disse o duque de Anju com hipocrisia - suplico-Lhes que perdoem a meu irmão, que está enganado, ou, para melhor dizer, que se deixa enganar. Ainda espero meus Senhores, que as nossas prudentes admoestações, que a intervenção eficaz do poder da Liga, o farão voltar ao bom caminho.

Silva, serpente! disse Chicot, anda, silva! "

- Meu Senhor - disse o duque de Guisa - Vossa Alteza ouviu a expressão sincera do pensamento desta associação. Não se trata aqui de formar uma liga contra o Bearnês, espantalho dos tolos; não se trata duma liga para sustentar a Igreja, a qual muito bem se pode sustentar sem que nós a ajudemos; trata-se, meu Senhor, de tirar a nobreza da França da posição abjecta em que se vê colocada. O respeito que por Vossa Alteza professamos deteve-nos até ao presente, e o amor que Lhe conhecemos pela sua família nos obrigou a dissimular. Porém já não era possível demorarmos por mais tempo a execução do nosso plano. Agora fica Vossa Alteza sabendo tudo, e em seguida vai assistir à verdadeira sessão da Liga, sendo isto que acaba de se passar apenas um preâmbulo.

- Que pretende dizer, Senhor Duque? - perguntou o príncipe, o coração ao mesmo tempo de receio e de ambição.

- Meu Senhor, nós estamos aqui reunidos - prosseguiu o duque de Guisa -, como muito judiciosamente observou o senhor monteiro-mor, não para discutir questões já safadas da teoria, mas para proceder com eficácia. Escolhemos hoje um chefe capaz de dar honra e proveito à nobreza de França; e como era uso entre os antigos Francos, quando escolhiam o chefe, dar-lhe um presente digno dele, vamos oferecer como presente ao chefe da nossa escolha...

Todos os corações palpitavam, mas não tanto como o do duque.

Entretanto conservou-se mudo e imóvel, e só na palidez do rosto dava mostras da comoção que sentira.

- Meus Senhores - continuou o duque de Guisa, tirando da cadeira que Lhe ficava atrás um objecto bastante pesado que levantou ao ar -, meus Senhores: eis aqui o presente que, em nome de todos, eu deposito aos pés do príncipe.

Uma coroa? - exclamou o duque, podendo apenas conservar o equilíbrio. – Uma coroa para mim, Senhores?

- Viva Francisco Iii! - bradou com um clamor que fez tremer as abóbadas o bando compacto dos cavaleiros arrancando das espadas.

- Eu? Eu? - balbuciava o duque, tremendo ao mesmo tempo de alegria e de terror.

- Eu? Isso é impossível! Meu irmão ainda está vivo, meu irmão é o ungido do Senhor.

- Depomo-lo - disse o duque de Guisa -, enquanto Deus não sanciona, tirando-lhe a vida, a eleição que acabámos de fazer; ou por outra: enquanto algum de seus súbditos cansado deste reinado sem glória, não antecipa pelo veneno ou pelo punhal a justiça de Deus!

- Meu Senhor - atalhou então o cardeal -, eis a nossa resposta ao nobre escrúpulo que Vossa Alteza acaba de exprimir; Henrique III era o ungido do Senhor, mas nós depusemo-lo; deixou de ser o eleito de Deus, e vai sê-lo Vossa Alteza. Este templo onde estamos é tão venerável como o de Reims, porque jazeram aqui as relíquias de Santa Genoveva, padroeira de Paris; aqui foi enterrado o corpo de Clodoveu, nosso primeiro rei cristão; pois bem, meu senhor, neste templo santo, à face da estátua do verdadeiro fundador da monarquia francesa, eu, príncipe da Igreja, e que ainda um dia posso vir a ser seu chefe, digo-Lhe que está aqui, para substituir o santo crisma, um óleo bento que nos foi enviado pelo papa Gregório XIII.

Queira Vossa Alteza nomear o seu futuro arcebispo de Reims e o seu condestável, e dentro de um instante será Vossa Alteza sagrado como nosso rei; e seu irmão Henrique, se não Lhe entregar o trono, ficará considerado como um usurpador. Ó Menino, acenda as tochas do altar.

No mesmo instante, o menino do coro, que estava evidentemente à espera daquela ordem saiu da sacristia com uma luz na mão, e num momento cinquenta tochas brilhavam sobre o altar e no coro.

Viu-se então sobre o altar uma mitra em que resplandeciam pedras preciosas, e uma comprida espada adornada de flores-de-lis.

Era a mitra arquiepiscopal e a espada do condestável.

Ao mesmo tempo, do meio das trevas que a iluminação do coro não tinha podido desvanecer, ressoou o órgão e ouviu-se o Veni Creator.

Esta espécie de peripécia preparada pelos três príncipes lorenos, e que o próprio duque de Anju estava longe de esperar, causou profunda impressão em todos quantos estavam presentes.

Os valentes ficaram ainda mais exaltados, e os fracos mesmo sentiram- se fortes.

O duque de Anju ergueu a cabeça, e, com mais firmeza do que dele se poderia esperar, foi direito ao altar, pegou com a mão esquerda na mitra, e com a direita na espada, e voltando

para onde estavam o duque e o cardeal, que já de antemão esperavam por aquela honra, pôs a mitra sobre a cabeça do cardeal e aFivelou a espada à cinta do duque.

Foi logo unanimemente aplaudida aquela acção decisiva, tanto mais inesperada, quanto todos conheciam o carácter irresoluto do príncipe.

- Meus Senhores - disse o duque de Anju para os circunstantes -, dêem os vossos nomes ao Senhor Duque de Maiena, grão-mestre das Ordens militares de França; no dia em que eu for rei, fá-los-ei a todos cavaleiros.

Redobraram os aplausos, e os circunstantes vieram todos, uns após outros, dar os nomes ao Sr. de Maiena.

Cos demónios! disse Chicot, que bela ocasião para eu pedir uma comenda. Nunca mais se me torna a apresentar outra igual por certo; que pena não poder aproveitá-la!

- Agora, para o altar, meu Senhor - disse o cardeal de Guisa.

- Sr. de Monsoreau, coronel das minhas guardas; Srs. de Ribeirac e d'Entragues, capitães, Sr. de Livarot, tenente do mesmo corpo: venham ocupar no coro os lugares que Lha competem em virtude dos cargos para que os nomeio.

Cada um dos indivíduos que acabavam de ser designados foi tomar o lugar que segundo a etiqueta lhes teria pertencido numa verdadeira cerimónia de sagração.

- Meus Senhores - disse o duque de Anju virando-se para o resto da assembleia - cada um dos senhores me dirigirá um requerimento, e eu farei com que todos Fiquem contentes.

Durante este tempo, o cardeal tinha ido para trás do tabernáculo vestir os ornatos pontificais. Não tardou em tornar a aparecer com a santa âmbula, que depositou sobre o altar.

Fez então um sinal ao menino do coro, o qual trouxe o livro dos Evangelhos e a cruz. O cardeal pegou em ambas as coisas, pôs a cruz sobre o livro dos Evangelhos, e ofereceu-o ao duque de Anju, que Lhe pôs a mão em cima.

- Na presença de Deus - disse o príncipe -, prometo ao meu povo que hei-de manter e honrar a nossa santa religião, como cumpre ao Rei Cristianíssimo e filho mais velho da Igreja. E assim me ajude Deus e os seus Santos Evangelhos!

- Amén! - responderam à uma todos os circunstantes.

- Amén! - replicou uma espécie de eco que parecia sair das profundidades da igreja. O duque de Guisa, que desempenhava, como já dissemos, as funções de condestável, subiu os três degraus do altar, e depositou em frente do tabernáculo a espada, que o cardeal benzeu.

O cardeal então desembainhou-a, e, pegando-Lhe pela folha, apresentou-a ao rei, que Lhe pegou pelo punho.

- Senhor - disse ele -, tome esta espada que lhe entrego com a bênção de Deus, a Fim de que por meio dela e pela força do Espírito Santo, possa resistir a todos os seus inimigos, proteger e defender a Santa Religião e o reino que lhe é confiado. Tome esta espada, e, auxiliado por ela, exercerá a justiça, protegerá as viúvas e os órFãos, e emendará os abusos; finalmente, praticando todas as virtudes que o hão- de cobrir de glória, procure tornar-se digno de reinar com aquele de quem é a verdadeira imagem sobre a Terra, e que reina com o Pai e com o Espírito Santo por todos os séculos dos séculos.

O príncipe abaixou a espada de maneira a tocar no chão com a ponta, e, depois de a ter oferecido a Deus, restituiu-a ao duque de Guisa.

O menino do coro trouxe uma almofada, que pôs no chão defronte do duque de Anju, e este ajoelhou.

O cardeal, em seguida, abriu a caixinha de prata dourada, e com a ponta duma agulha de ouro tirou uma parcela de óleo santo e estendeu-a sobre a patena.

Pegando depois na patena com a mão esquerda, disse duas orações.

Acabadas as rezas, pegou no santo crisma com o dedo polegar e traçou uma cruz no alto da cabeça do duque, dizendo:

- Ungo te in regem de oleo sanctifcato, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. O menino do coro limpou logo a unção com um lenço bordado de ouro. O cardeal, então, pegou na coroa com ambas as mãos e levou-a à altura da cabeça do príncipe, mas sem lha pôr. O duque de Guisa e o duque de Maiena aproximaram-se imediatamente, e sustentaram a coroa, um de cada lado. E o cardeal, segurando-a com a mão esquerda, unicamente disse, deitando a bênção ao príncipe com a direita:

- Deus coroa-te com a coroa da glória e da justiça.

Logo, pondo-a sobre a cabeça do príncipe:

- Recebe esta coroa - disse ele - em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

O duque de Anju, enfiado e a tremer, assim que sentiu a coroa sobre a cabeça, agarrou-a instintivamente com a mão.

A campainha do menino do coro retiniu então, e obrigou todos os circunstantes a curvarem as cabeças. Porém não tardou que as tornassem a erguer, brandindo as espadas e gritando:

- Viva el-rei Francisco III!

- Senhor - disse o cardeal para o duque de Anju -, é desde hoje rei da França; porque foi sagrado pelo próprio papa Gregório XIII, de quem eu sou representante.

Com a breca! disse Chicot, sempre é forte desgraça não padecer eu de escrófulas!

- Meus Senhores - disse o duque de Anju erguendo-se com altivez e majestade - nunca olvidarei os nomes dos trinta cavaleiros que foram os primeiros que me julgaram digno de ser seu rei; e agora adeus meus Senhores Deus os tenha em sua santa guarda! O cardeal inclinou-se, bem como o duque de Guisa; porém Chicot, que os estava vendo de lado, percebeu que enquanto o duque de Maiena ia acompanhar o novo rei, os dois prín cipes lorenos olhavam um para o outro sorrindo- se com ironia.

Ufa! disse o gascão, que quer isto dizer? e de que serve o jogo, se todos trapaceiam?...

O duque de Anju, entretanto, tinha chegado à escada da capela subterrânea, e em breve desapareceu, assim como todos os circunstantes, que tomaram o mesmo caminho uns depois dos outros; ficando na igreja unicamente os três irmãos, que voltaram para a sacristia, enquanto o irmão porteiro apagava as luzes do altar.

O menino do coro tornou a fechar a porta da capela subterrânea depois de todos saírem e a igreja ficou alumiada por aquela lâmpada, única que se não apagava, e que parecia um símbolo desconhecido do vulgo, noticiando aos eleitos alguma iniciação misteriosa.

Uma antiga tradição popular atribuía aos reis de Frrança o dom de curarem os escrofulosos, tocando-lhes com o dedo quando acabavam de ser sagrados.

 

                   COMO SUCEDEU QUE CHICOT, JULGANDO OUVIR UM CURSO DE HISTÓRIA OUVIU UM CURSO DE GENEALOGIA

Chicot pôs-se de pé dentro do confessionário para desentorpecer as pernas. Estava persuadido de que aquela sessão era a última; e como já eram quase duas horas da madrugada, queria tratar de fazer as suas disposições para ali passar o resto da noite.

Viu, porém, com grande admiração, que os três príncipes lorenos, depois de terem ouvido ranger a chave da porta da ermida duas vezes na fechadura, saíam da sacristia; com a única diferença que dessa vez tinham largado os hábitos e vinham com os seus fatos usuais.

Ao mesmo tempo que eles apareciam, o menino do coro deu uma tão estrepitosa gargaLhada, que o contágio chegou a Chicot, o qual começou a rir também, sem saber de quê.

O duque de Maiena aproximou-se da escada com vivacidade.

- Tome sentido com o seu riso, mana! - disse ele. - Ainda não vão longe, e podem ouvi-la.

Mana? disse Chicot passando de surpresa para surpresa, então o menino do coro é uma mulher? "

E, com efeito, o noviço deitou o capuz para trás, e descobriu assim uma cabeça de mulher, mais espirituosa e mais encantadora do que nenhuma das que Leonardo da Vinci pintou nas suas telas.

Eram uns olhos pretos, brilhantes de malícia, e que quando dilatavam as meninas, alargavam o seu disco de ébano e tomavam uma expressão quase terrível à força de séria.

Tinha uma boquinha vermelha e fina, um nariz rigorosamente correcto; e, finalmente, uma barbinha redonda, rematando o oval perfeito dum rosto algum tanto pálido, no qual sobressaíam, como dois arcos de azeviche, as bem traçadas sobrancelhas.

Era a Sr. de Montpensier, irmã dos Srs. de Guisa, perigosa sereia, que disfarçava com habilidade, debaixo do hábito grosso de menino do coro, a imperfeição que tanto lhe notavam dum ombro mais elevado do que o outro, e a curva pouco elegante da perna direita, que a obrigava a coxear levemente.

Graças a estas imperfeições, a alma dum demónio tinha vindo habitar naquele corpo, a quem Deus havia dado uma cabeça de anjo.

Chicot conheceu-a por tê-la visto mais de vinte vezes por ocasião dela ir cumprimentar a rainha Luísa de Vaudemont, sua prima, e logo desconfiou que aquela reunião dos três irmãos com a irmã, depois de todos se terem retirado; encobria algum mistério.

- Ah, mano cardeal - disse a duquesa com um espasmo de hilaridade -, que santo homem que é, e que bem que fala em Deus! Digo- lhe, na verdade, que cheguei a assustar-me, pois julguei que tomava o caso a sério. E ele a deixar-se engodar e coroar!. Oh! como estava feio com aquela coroa na cabeça!

- Não importa - disse o duque -, conseguimos o que queríamos, e agora não poderá Francisco desdizer-se; o Monsoreau, provavelmente para algum fim oculto que Lhe diz respeito, levou as coisas tão longe, que podemos agora ter a certeza que não nos há-de abandonar a meio caminho do cadafalso, como fez com La Mole e Cocunás.

- Oh! oh! - disse Maiena - não é fácil empresa obrigar príncipes da nossa raça a tomarem esse caminho, e sempre a distância há- de ser menor do Louvre à Abadia de Santa Genoveva, do que dos Paços do Concelho à Praça das Execuções.

Chicot percebeu que tinham caçoado com o duque de Anju, e como detestava aquele príncipe, teve fortes tentações de ir agradecer aos Guisas a peça que lhe tinham pregado, abraçando-os a todos, à excepção de Maiena, ainda que fosse preciso duplicar a dose à Sr. a de Montpensier.

- Tratemos dos nossos negócios, meus Senhores - disse o cardeal. - Está tudo bem fechado, não está?

- Oh, posso afirmar-Lhe que sim - respondeu a duquesa -; mas se quer, tornarei a ir ver.

- Nada - disse o duque -, que o meu querido menino do coro deve estar por força cansado.

- Creia que não estou; diverti-me imenso.

- Maiena, não me disse há pouco que ele está aqui? - perguntou o duque.

- Disse.

- Mas eu não o vi...

- Creio bem; se ele está escondido!...

- Onde?

- Num confessionário.

Estas palavras soaram aos ouvidos de Chicot como as cem mil trombetas do Apocalipse:

Quem é que está num confessionário! perguntou ele a si mesmo, dando um pulo dentro

do seu esconderijo; cos demónios! Não sei que esteja aqui ninguém senão eu! "

- Nesse caso então viu e ouviu tudo? - perguntou o duque.

- O que tem isso? Não é ele dos nossos?...

- Traga-o aqui, Maiena - disse o duque.

Maiena desceu uma das escadas do coro, parou para se orientar, e dirigiu-se em linha recta para o confessionário ocupado pelo gascão.

" Chicot era valente; mas, desta vez, tremeu-Lhe o queixo com susto e sentiu a testa alagada de suor frio.

Ora esta! disse ele consigo, procurando ao mesmo tempo soltar a espada das dobras do hábito; não quero, contudo, morrer como um malvado aqui dentro desta caixa. Saiamos a arrostar a morte, coa breca! E já que se oferece tão boa ocasião, matemo-lo ao menos a ele antes de eu morrer.

E para poder executar o seu animoso projecto. Chicot, que tinha achado finalmente o punho da espada. já ia para levantar a tranqueta da porta, quando ouviu a voz da duquesa:

- Não é nesse, Maiena - disse ela, não é nesse; no outro, à esquerda... adiante, no fim da igreja.

- Ah! muito bem - disse o duque. que já se dispunha a ir abrir o confessionário onde estava Chicot; mas obedecendo à indicação da irmã, virou logo na direcção do outro confessionário.

Safa! disse o gascão, dando um suspiro capaz de causar inveja a Gorenflot; já era tempo!

Mas quem diabo está então no outro!

- Saia, mestre Nicolau David - disse Maiena -, estamos sós.

- Aqui estou, meu Senhor - disse um homem saindo do confessionário.

Bom! disse o gascão, Faltavas tu para a festa, mestre Nicolau; andava à tua procura por toda a parte, e achei-te finalmente quando já te não procurava!

- Viu e ouviu tudo, Nicolau, não é verdade? - perguntou o duque de Guisa.

- Não me escapou uma única palavra do que se passou, e pode Ficar descansado, meu Senhor, que não me há-de esquecer nenhum dos pormenores.

- Ficou pois habilitado a contar tudo ao enviado de Sua Santidade Gregório XIII? perguntou o Acutilado.

- Tudo, sem omitir circunstância alguma.

- Há pouco disse-me meu irmão de Maiena que o senhor fez prodígios em nosso favor.

Conte-nos pois o que fez.

O cardeal e a duquesa aproximaram-se com curiosidade. Os três príncipes e a irmã formavam então um único grupo.

Nicolau David, em quem dava em cheio a luz da lâmpada, estava à distância de três passos deles.

- Cumpri o que tinha prometido, meu Senhor - disse Nicolau David -, isto é, descobri um meio para sentar o Senhor Duque de Guisa sem contestação sobre o trono de França.

Eles também? exclamou Chicot. Então que é isto? toda a gente quer ser rei de França?

Os últimos são os melhores, não há dúvida.

Como se vê, a alegria tinha renascido no espírito do honrado Chicot. Esta alegria era proveniente de três circunstâncias.

Em primeiro lugar, acabava de escapar duma maneira inesperada a um perigo iminente; em segundo, tinha descoberto uma famosa conspiração; e finalmente, com a descoberta da conspiração, oferecia-se-Lhe o meio de deitar a perder os seus dois maiores inimigos: o duque de Maiena e o advogado Nicolau David.

Querido Gorenflot! murmurou ele logo que acabou de coordenar estas ideias no cérebro - mal sabes tu a ceia que tenciono dar-te amanhã para te pagar o aluguer do hábito!

- Contudo se a usurpação for muito flagrante, é preciso abstermo-nos desse meio disse Henrique de Guisa. - Não quero ter à perna todos os reis da cristandade procedentes do direito divino.

- Esse escrúpulo Foi por mim previsto - disse o letrado, cortejando o duque e encarando

O triunvirato com afoiteza. - A minha habilidade não se limita somente à arte da esgrima meu Senhor, como os meus inimigos têm espalhado, talvez para me roubarem a sua confiança.

Se bem que enfronhado em estudos teológicos e legais, consultei, como é dever de todo o bom casuísta e sábio jurista, os anais e os decretos que dão todo o peso à minha asserção, segundo os nossos costumes para a sucessão do trono. O caso todo estava em provar a legitimidade e eu descobri que os senhores são os legítimos herdeiros, e que a casa de Valois não é senão um ramo parasítico e usurpador.

A confiança com que Nicolau David proferiu este pequeno exórdio causou um vivo contentamento à Sr. a de Montpensier, uma grande curiosidade ao cardeal e ao duque de Maiena e quase que amenizou o austero semblante do duque de Guisa.

- Entretanto - disse ele -, parece-me que a casa de Lorena, apesar de muito ilustre dificilmente poderá disputar preferência com a de Valois.

- E contudo aqui estão as provas, meu Senhor - disse mestre Nicolau arregaçando o hábito para tirar um pergaminho da algibeira dos amplos calções, e descobrindo com aquele movimento os copos duma comprida espada.

O duque tomou o pergaminho das mãos de Nicolau David.

- Que é isto? - perguntou ele.

- A árvore genealógica da casa de Lorena.

- Cujo tronco é.

- Carlos Magno, meu Senhor.

- Carlos Magno? - exclamaram os três irmãos, com um ar de incredulidade que não era, contudo, isento duma certa satisfação; - é impossível! O primeiro duque de Lorena foi contemporâneo de Carlos Magno, porém chamava-se Ranier e não tinha parentesco algum com o grande imperador.

- Espere um pouco, meu Senhor - disse Nicolau. - Não julga decerto que eu vá levantar uma dessas questões a que se põe termo com uma simples negação, e que qualquer rei-de-armas destrói. O que é necessário é um bom processo, que dure muito tempo, que ocupe a atenção do parlamento e do povo, e durante o qual possa reduzir ao seu partido, não direi o povo, porque esse já é seu, mas o parlamento. Veja, pois, meu Senhor, isto é assim mesmo: Ranier, primeiro duque de Lorena, contemporâneo de Carlos Magno. Gilberto, seu filho, contemporâneo de Luís, o Benigno.

Henrique, Filho de Guilberto, contemporâneo de Carlos, o Calvo. "

- Porém. - atalhou o duque de Guisa.

- Tenha um bocado de paciência, meu Senhor, já lá vamos; repare bem: Bona.

- Sim - disse o duque -, filha de Ricin, segundo filho de Ranier.

- Bem - replicou o letrado -; com quem foi ela casada?.

- Quem, Bona?

- Sim.

- Com Carlos de Lorena, filho de Luís IV rei de França.

- Com Carlos de Lorena, filho de Luís IV, rei de França - repetiu David. - Agora acrescente: irmão de Lotário, que foi esbulhado da coroa de França pelo usurpador Hugo Capeto, que a tirou a Luís V.

- Oh. oh! - disseram ao mesmo tempo o duque de Maiena e o cardeal.

- Continue - disse o Acutilado -, já vou percebendo o negócio.

- Ora bem: Carlos de Lorena devia herdar de seu irmão Lotário pela extinção da sua raça. E, achando-se extinta a raça de Lotário, os senhores são os únicos e verdadeiros herdeiros da coroa de França.

Por Deus! exclamou Chicot, o réptil é mais venenoso do que eu pensava!

- O que diz a isto, meu irmão? - perguntaram ao mesmo tempo o cardeal e o duque de Maiena.

- Digo - respondeu o Acutilado - que existe infelizmente em França uma lei, a que chamam a Lei Sálica, que destrói todas as nossas pretensões.

- Chegou onde o esperava, meu Senhor - exclamou David com todo o orgulho do amor-próprio satisfeito -; qual é o primeiro exemplo da Lei Sálica?

- A elevação de Filipe de Valois ao trono, em prejuízo de Eduardo de Inglaterra.

- Em que data teve isso lugar? O Acutilado pensou um instante.

- Em 1328 - respondeu sem hesitar o cardeal de Guisa.

- Isto é, trezentos e quarenta e um anos depois da usurpação de Hugo Capeto, duzentos e quarenta anos depois da extinção da raça de Lotário. Em vista do que, havia já duzentos e quarenta anos que os seus maiores tinham direito à coroa, quando se inventou a Lei Sálica.

Ora é bem sabido por todos que nenhuma lei tem efeito retroactivo.

- É um homem muito hábil, mestre Nicolau David - disse o Acutilado, olhando para o advogado com uma admiração que não era isenta de algum desprezo.

- E muito destro - disse o cardeal.

- É belo! - disse Maiena.

- É admirável - disse a duquesa -; eis-me feita princesa real!... Já não quero para marido senão algum imperador da Alemanha.

Deus, Senhor meu! disse Chicot, lembra-te da única coisa que te tenho pedido nas minhas Orações: Ne nos inducas in tentationem et libera nos advocatis.

Só o duque de Guisa tinha ficado pensativo no meio do entusiasmo geral.

- E pensar eu que semelhantes subterfúgios são necessários a um homem da minha qualidade! - murmurou ele. - Lembrar-me que os povos, antes de obedecerem, olham para um pergaminho como este, em vez de lerem a nobreza do homem no relampejar dos olhos ou no fulgurar da espada!

- Tem razão, Henrique, tem razão. E se a escolha se fizesse pelos rostos - disse a duquesa - , o senhor seria rei entre os reis, visto que os demais príncipes, segundo todos dizem, parecem povo comparados com o mano. Porém o essencial para subir ao trono é, como disse mestre Nicolau David, um bom processo; e quando lá tivermos chegado, ver-se-á, como O senhor disse, que o brasão da nossa casa não é menos ilustre do que os outros soberanos da Europa.

- Visto isso, esta genealogia está boa - prosseguiu Henrique de Guisa com um suspiro - , e aqui tem os duzentos escudos de ouro que meu irmão de Maiena me pediu para o senhor, mestre Nicolau David.

- E aqui estão outros duzentos que eu Lhe dou - disse o cardeal ao advogado, cujos olhos brilharam de satisfação ao encafuar o dinheiro nas imensas bragas -; estes são a paga da nova missão de que vamos encarregá-lo.

- Fale, meu Senhor, estou inteiramente às ordens de Vossa Eminência.

- Nós não podemos incumbi-lo de ir pessoalmente a Roma entregar ao nosso Santo Padre Gregório XIII esta genealogia, que precisa de ser por ele aprovada. Não é homem a quem se abram as portas do Vaticano.

- Infelizmente - disse Nicolau David -, assim é! Tenho o ânimo grande, mas a minha Origem é obscura. Ah! Se eu fosse um simples cavaleiro, bastava.

Cala-te aí, truão! disse Chicot.

- Mas não o é - prosseguiu o cardeal -, e é uma desgraça. É forçoso, por consequência, que encarreguemos Pedro de Gondy dessa missão.

- Dê-me licença que lhe observe, meu irmão - disse a duquesa -, que os Gondys são Gente de talento, mas sobre quem nós não temos poder algum. O único fiador que deles temos é a ambição, e eles tanto podem satisfazer a sua ambição com o rei Henrique como com a casa de Guisa.

- A mana tem razão, Luís - disse o duque de Maiena com a sua costumada brutalidade não podemos fiar-nos em Pedro de Gondy como nos fiamos em Nicolau David, que nos pertence, e que podemos mandar enforcar dum instante para o outro.

Esta descaída do duque, lançada assim à queima-roupa na cara do letrado, produziu um efeito extraordinário no infeliz legista; soltou uma risada convulsa, que bem mostrava o enorme susto que dele se tinha apoderado.

- Meu irmão Carlos está a gracejar - disse Henrique de Guisa para o advogado, que ainda estava a tremer -; nós bem sabemos quanto nos é fiel; já o tem mostrado em bastantes ocasiões.

E especialmente no caso sucedido comigo, pensou Chicot, ameaçando ao mesmo tempo com o murro o seu inimigo, ou por outra, os seus dois inimigos.

- Fique descansado, Carlos: sossegue, Catarina; já tomei as minhas medidas com toda a segurança. Pedro de Gondy há-de levar esta genealogia a Roma, mas há- de ir confundida com outros papéis, e nem ele há-de saber o que leva. O papa há-de aprová-la ou desaprová-la sem que Gondy tenha conhecimento da aprovação ou desaprovação. Finalmente, sempre ignorando o que traz, voltará para França com a genealogia aprovada ou desaprovada. Nicolau David partirá quase ao mesmo tempo que ele, e esperá-lo-á em Chalon, em Lião ou em Avinhão, conforme os avisos que Lhe mandarmos para se demorar em alguma destas cidades. Desta forma, só o senhor saberá o segredo do negócio. Assim, bem vê que fica sendo o nosso único homem de confiança.

David inclinou-se.

E sabes com que condições, meu caro amigo? murmurou Chicot; é com a condição de seres enforcado se não andares muito direito; mas deixa estar: juro-te por Santa Genoveva, aqui presente em gesso, em mármore ou em madeira, e talvez mesmo em osso, que estás colocado neste momento entre duas Forcas, mas que a que está mais próxima de ti, meu bom amigo, é a que eu te hei-de arranjar.

Os três irmãos apertaram as mãos uns aos outros e abraçaram a duquesa, que acabava de Lhes trazer os três hábitos de frades que tinham ficado na sacristia; a irmã ajudou-os a vestirem os trajes monásticos, depois deitou o capuz para a cara, e foi andando adiante deles até ao portão, onde os esperava o irmão porteiro, e por onde desapareceram, acompanhados por Nicolau David, a quem os escudos de ouro tiniam a cada passo que dava.

Depois de eles saírem, o irmão porteiro correu os ferrolhos, e, voltando para a igreja, apagou a lâmpada do coro; uma escuridão compacta invadiu logo a capela e renovou aquele horror misterioso que já por mais duma vez tinha feito eriçar o cabelo de Chicot.

No meio daquela escuridão ressoava ainda a bulha das alparcas do frade sobre as lajes, mas este rumor mesmo foi diminuindo gradualmente, e muito em breve deixou de se ouvir. Passaram-se cinco minutos, que a Chicot pareceram dum comprimento imenso, sem que ruído algum quebrasse aquele silêncio e aquela escuridão.

Bom, disse consigo o gascão, quer-me parecer que desta vez se acabou tudo realmente; estão representados os três actos, e foram-se embora os actores. Tratemos de sair também; basta de comédia para uma só noite.

E Chicot, que já tinha mudado de tenção a respeito de esperar pelo dia na igreja, desde que tinha visto que os túmulos se moviam e que os confessionários eram habitados, levantou a tranqueta devagarinho, empurrou a porta com cautela, e deitou o pé fora da caixa.

Durante os passeios do menino do coro, Chicot tinha reparado numa escada de mão que estava a um canto, e que era destinada a limpar os vidros coloridos das janelas. Não perdeu tempo.

Com as mãos estendidas e sem fazer bulha, foi andando até ao canto onde estava a escada pegou-lhe, e, orientando-se conforme pôde, foi arrumá-la a uma janela.

Chicot, à luz do luar, viu que não se enganara no seu cálculo: a janela dava para o cemitério do convento, e o cemitério era paralelo à Rua Bordelle.

Chicot abriu a janela, escarranchou-se no parapeito, e, puxando a escada a si, passou-a da interior para o exterior.

Depois de descer, escondeu a escada por detrás duma Fileira de ciprestes que havia ao pé da parede, foi caminhando encoberto com os túmulos até ao muro que ficava próximo à rua, e por ali saltou arrastando consigo algumas pedras.

Chicot, assim que se viu na rua, parou um instante para respirar com descanso.

Tinha conseguido safar-se, com algumas arranhaduras somente, duma ratoeira onde por mais duma vez tinha julgado que deixaria a vida.

Logo que sentiu que o ar já lhe circulava com mais liberdade nos pulmões, deitou a correr para a Rua de S. Tiago, e só parou à porta da hospedaria da Cornucópia, à qual imediatamente bateu sem hesitar.

Mestre Cláudio Bonhomet, que bem sabia que todo o incómodo tem o seu preço, e contava mais com os acontecimentos extraordinários para enriquecer do que com os ordinários, veio em pessoa abrir.

Conheceu logo Chicot à primeira vista, apesar de este ter saído vestido de secular e voltar feito frade.

- Ah! é o meu fidalgo - disse ele -; bem- vindo seja.

Chicot deu-Lhe um escudo.

- E Frei Gorenflot? - perguntou ele.

Um imenso sorriso assomou aos lábios do estalajadeiro; foi direito ao gabinete, e empurrando a porta:

- Veja - disse ele.

Frei Gorenflot estava ressonando no mesmo sítio onde Chicat o deixara. À fé de quem sou, meu respeitável amigo, disse o gascão, mal pensas tu no pesadelo que acabas de ter! "

 

         COMO SUCEDEU QUE O SR. E A SR. A DE SAINT LUC VIAJANDO JUNTOS, FORAM ALCANÇADOS POR UM COMPANHEIRO DE JORNADA

No dia seguinte, à mesma hora, pouco mais ou menos, a que Frei Gorenflot acordava, já agasalhado no seu hábito, o nosso leitor, se por acaso viesse de jornada pela estrada de Paris para Angers, teria encontrado, entre Chartres e Nogent, dois cavaleiros - um fidalgo e o seu pajem -, montados em cavalos pacíficos, que mansamente caminhavam ao lado um do outro.

Aqueles dois cavaleiros tinham chegado a Chartres na véspera, à mesma hora pouco mais ou menos, em cavalos cobertos de espuma; um dos dois cavalos caíra mesmo morto de cansaço no largo da catedral, e como era a horas a que os fiéis iam para a missa, não dera pouco que cismar aos burgueses de Chartres verem expirar aquele magníFico corcel, do qual os donos fizeram tão pouco caso como se fosse um vil sendeiro.

Alguns até tinham notado, porque os burgueses de Chartres sempre foram muito dados a indagar as vidas alheias; alguns, dizíamos, até tinham notado que o mais alto dos dois cavaleiros havia dado um escudo a um rapaz que os fora conduzir, a ele e ao companheiro, a uma estalagem próxima, e que dali a meia hora os dois viajantes tinham saído por uma porta traseira da mesma estalagem que deitava para o campo, indo ambos montados em outros cavalos, e mostrando no avermelhado das faces que tinham provado o vinho da casa.

O mais alto dos dois cavaleiros, logo que se viu no campo, ainda deserto e frio naquela época do ano, mas já adornado de certo matiz esverdeado, precursor da Primavera, chegou-se ao mais baixinho e disse- Lhe, abrindo os braços:

- Minha querida mulherzinha, abraça-me agora com sossego, porque presentemente já nada temos que recear.

Então, a Sr. de Saint-Luc, porque era ela efectivamente, inclinou-se graciosamente para o marido, abrindo o amplo capote em que vinha embuçada; e, deitando-Lhe os braços à roda do pescoço, deu-Lhe o beijo que ele Lhe pedira, sem despregar os olhos dele.

O resultado daquele dito de Saint-Luc à mulher, ou talvez mesmo do beijo por esta dado ao marido, foi pararem eles naquele dia numa estalagem da aldeia de Caurvilie, situada a quatro léguas apenas de Chartres, e a qual, pela sua posição isolada, portas bem vedadas, e a imensidade de quartos que tinha, oferecia aos dois esposos todas as garantias de segurança. Ali se conservaram todo o dia e toda a noite, misteriosamente metidos num quarto, no qual, depois de terem almoçado, se fecharam por dentro, recomendando ao dono da casa que visto o muito caminho que tinham andado e o grande cansaço com que estavam, não os cha masse antes do romper do dia seguinte, recomendação que foi executada à risca.

Era, pois, na manhã desse dia que encontrámos o Sr. e a Sr. a de Saint-Luc na estrada de Chartres para Nogent.

Ora, naquele dia, como estavam ainda mais descansados do que na véspera, já não viajavam como fugitivos, nem mesmo como amantes, mas sim como rapazes de escola, desviando-se a cada instante da estrada para treparem a algum outeirinho, onde um deles se expunha à admiração do outro como uma estátua equestre sobre o seu pedestal, cortando os primeiros rebentões das árvores, procurando musgos, ou apanhando alguma flor, que, qual outra sentinela avançada da Primavera, tinha rompido por entre a neve já próxima a derreter-se, e admirando com infinita alegria o reflexo dum raio de Sol nas pernas de algum pato bravo, ou a corrida duma lebre por entre o mato.

- Por Deus! - exclamou de repente Saint-Luc. - A liberdade sempre é uma coisa muito boa! Gozaste alguma vez da tua liberdade, Joana?

- Eu - respondeu a noiva com voz alegre -, nunca; é esta a primeira vez que gozo do ar e do espaço à minha vontade. Meu pai era desconfiado. Minha mãe era muito caseira. Eu nunca saía à rua sem ir acompanhada por uma mestra, duas aias e um criado, de forma que não me lembra de ter corrido nem mesmo sequer sobre um tabuleiro de relva, desde o tempo da minha meninice, quando, na companhia da minha querida Diana, pulava pelos bosques de Méridor. Porém tu, meu muito amado Saint-Luc, tu sempre tiveste toda a liberdade.

- Liberdade, eu?

- Sem dúvida, como homem.

- Pois estás muito enganada. Fui criado na companhia do duque de Anju, que me levou consigo para a Polónia, e com quem voltei para Paris; as regras inflexíveis da etiqueta condenavam-me a não me tirar nunca de ao pé dele, e logo que me afastava via-me perseguido por uma voz de lamentação, que me gritava sem cessar: Saint- Luc, meu amigo, estou muito aborrecido; anda partilhar do meu aborrecimento. Liberdade!. pois sim! - E o cinto que me comprimia o estômago; e a imensa coleira engomada que me esfolava o pescoço; e o cabelo encaracolado artificialmente, que se desgrenhava com a humidade e se sujava com o pó; e o barretinho, finalmente, pregado à cabeça com alfinetes!. Oh, não, minha boa Joaninha! parece-me que ainda tinha menos liberdade do que tu. E por isso trato de aproveitar o tempo, como vês, agora que estou livre. Viva Deus! Sempre é muita boa coisa! E não sei como há quem queira privar-se de semelhante ventura.

- E se nos apanharem, Saint-Luc? - disse a noiva olhando para trás com alguma inquietação. - Se nos mandarem para a Bastilha?

- Se lá nos fecharem juntos, minha Joaninha, nunca o mal há-de ser muito grande; parece-me que apesar de termos estado encerrados no mesmo quarto durante todo o dia de ontem, como se fôssemos presos de Estado, nem por isso nos enfastiou muito a reclusão...

- Não te Fies nisso, Saint-Luc - disse Joana com um sorriso repleto de alegria e de malícia -; se nos apanharem, duvido que nos fechem no mesmo quarto.

E a encantadora rapariga corou, por ter querido dizer tanto dizendo tão pouco.

- Pois então escondamo-nos bem - disse Saint-Luc.

- Oh, Fica descansado - respondeu Joana -, a esse respeito nada temos que recear, e havemos de ficar bem escondidos; se tu soubesses o que é Méridor!. com os seus carvalhos enormes, que parecem as colunas dum templo que tem o céu por abóbada, as suas matas sem-fim, os seus riachos preguiçosos, que no Verão correm por baixo de sombrias arcadas de verdura, e de Inverno sobre camadas de folhas secas; e depois, os imensos lagos, os campos de trigo, os canteiros de flores, as extensas relvas, e as torrinhas, donde saem a todo o instante milhares de pombos, esvoaçando e zumbindo como abelhas de roda duma colmeia; e depois, ainda não fica aqui, Saint-Luc; no meio de tudo isto, ainda há a rainha daquele reinozinho a feiticeira daqueles jardins de Armida, a linda, boa e incomparável Diana, um coração de diamante engastado em ouro. Hás-de ser amigo dela, Saint-Luc.

- Já gosto dela sem a conhecer só porque foi tua amiga.

- Oh, estou bem certa que ainda o é e que sempre o há-de ser, Diana é muito constante nas suas amizades. Não te parece que havemos de levar uma vida muito feliz naquele ninho de flores e de verdura, que tão lindo há-de ser na Primavera? Diana assumiu o governo da casa do pai, de sorte que este não nos há-de incomodar. O velho barão é um guerreiro do tempo de el-rei Francisco I, e actualmente está tão fraco e pacífico, quanto foi em outro tempo forte e valoroso, e só conserva uma lembrança do passado, que é o vencedor de Marignan e o vencido de Pavia, e um amor no presente e uma esperança para o futuro, que é a sua muito querida Diana. Podemos estar o tempo que quisermos em Méridor sem que ele o saiba, e até mesmo sem que ele dê pela nossa presença. E se o souber, tornar-se-á nosso amigo, logo que lhe dissermos que a sua Diana é a rapariga mais linda do mundo, e que o rei Francisco I foi o mais ilustre de todos os cabos-de-guerra.

- Tudo isso há-de ser muito bonito - disse Saint-Luc -, mas já antevejo grandes altercações.

- Como assim?

- Do barão comigo.

- Por que motivo? Por causa do rei Francisco I?

- Não. Concedo-lhe que fosse o primeiro de todos os cabos-de-guerra; mas quanto a ser a filha a rapariga mais linda do mundo.

- Eu já não entro em linha de conta, visto ser tua mulher.

- é verdade! - disse Saint-Luc.

- Não se te Figura já na imaginação a existência que ali vamos ter, meu amiguinho: perguntou Joana. - Logo que amanhecer havemos de sair a passeio pela portinha do pavilhão, que ela nos há-de dar para morarmos. O pavilhão é meu conhecido: são duas torrinhas unidas uma à outra pelo corpo principal do edifício, construído no tempo de Luís XII e duma arquitectura admirável, de que tu hás-de gostar, tu que morres por florões e rendados. E as janelas? Delas avistam-se as imensas matas com os seus arvoredos tapados, e lá muito longe, por entre as árvores, algum gamo ou cabrito-montês erguendo a cabeça à menor bulha; do lado oposto teremos por perspectiva planícies douradas aldeias matizadas de telhados vermeLhos e paredes brancas, o Liger reflectindo os raios do Sol e todo ele povoado de barquinhos.

Teremos mais, dali a três léguas, um lago com um boce para nele navegarmos, cavalos e cães, que nos servirão para irmos montear nas matas, enquanto que o barão, não sabendo que tem hóspedes em casa, há- de dizer, quando ouvir os latidos longínquos:

- Olha, Diana, não ouves? dir-se-ia que Astreia e Flégeton andam à caça. - Pois se andam à caça, meu papazinho - há-de responder Diana -, deixá-los divertir.

- Anda depressa. Joana - dizia Saint-Luc -; tomara já ver-me em Méridor! E ambos chegavam as esporas aos cavalos os quais, assim excitados, devoravam o espaço durante duas ou três léguas; depois paravam de repente, para darem ocasião a que os donos continuassem a conversa que tinham interrompido ou corrigissem algum beijo que tivesse sido mal dado.

Assim andaram o caminho que vai de Chattres acé Mans, onde se demoraram um dia - no imediact, depois da outra estação, entranharam-se nos pinhais areentos que existiam naquela época desde Guécélard até Écommoy, com a Firme tenção de chegarem naquela mesma noite a Méridor.

Se ali conseguissem chegar sem transtorno, considerava-se Saint-Luc livre de todo o perigo, pois conhecia perfeitamente o génio arrebatado e ao mesmo tempo indolente do rei, o qual conforme a disposição de espírito em que se achasse na ocasião da partida de Saint-Luc, ou havia de ter expedido vinte correios e cem guardas em perseguição dele e da mulher, com Ordem de lhos levarem mortos ou vivos, ou se tinha limitado a suspirar, estendendo os braços fora da roupa da cama mais uma polegada do que o costume, e murmurando:

- Ah, traidor Saint-Luc, porque não te conheci eu melhor?

Ora, como os dois fugitivos não tinham sido alcançados por correio algum, nem tinham avistado coisa que se parecesse com guardas, era muito provável que o rei, na ocasião de saber da partida deles, estivesse revestido do seu génio indolente.

Era isto o que dizia Saint-Luc, lançando de vez em quando a vista para a estrada solitária que acabavam de percorrer, e onde não via apontar o menor vestígio de perseguidores.

Bom, dizia ele consigo, a tempestade toda desabou provavelmente sobre a cabeça do pobre Chicot, o qual, apesar da sua loucura, ou talvez por isso mesmo, me deu um conselho tão prudente... Fico livre desta a troco de algum anagrama mais ou menos chistoso.

E Saint-Luc recordava-se então dum anagrama terrível que Chicot Lhe tinha feito no dia em que ele havia começado a ser valido da rei.

De repente sentiu Saint-Luc que a mão da esposa lhe agarrava no braço.

- Que é? - perguntou ele.

- Olha - respondeu Joana.

Saint-Luc voltou-se, e viu na linha do horizonte um cavaleiro que seguia a mesma direcção que eles, e que de longe parecia vir incitando quanto podia o cavalo.

O cavaleiro tinha chegado ao alto da estrada; o seu vulto destacava-se em escuro sobre a cor baça do céu, e, em virtude de certa ilusão da perspectiva que os nossos leitores terão decerto notado algumas vezes, parecia naquela posição muito maior do que o natural.

Esta coincidência pareceu a Saint-Luc de mau agoiro, ou fosse por causa da disposição em que tinha o espírito, ou porque receasse realmente o resultado de alguma lembrança fantástica do rei Henrique III.

- É verdade - disse ele, enFiando sem querer -, vejo com efeito além um cavaleiro.

- Fujamos - disse Joana chegando esporas ao cavalo.

- Nada - respondeu Saint-Luc, que, apesar do receio que dele se havia apoderado, não tinha perdido a presença de espírito -, nada; aquele cavaleiro vem só, segundo me parece, e não devemos fugir dum homem só. Encostemos para o lado e deixemo- lo passar; depois de ele ter passado para diante de nós, continuaremos o nosso caminho.

- Porém se ele parar ao pé de nós?

- Pois se ele parar, então veremos o que nos quer, e procederemos como nos parecer acertado.

- Tens razão - disse Joana -, e nada devo recear, visto que o meu Saint-Luc está ao meu lado para me defender com energia.

- Não importa, fujamos sempre - disse Saint-Luc, olhando outra vez para o desconhecido, o qual, apenas os avistara, metera o cavalo a galope -; porque em cima daquele ch vejo uma pluma, e, por baixo do chapéu, um colar de folhos, o que me dá algum cuidado.

- Oh, meu Deus, como é que uma pluma e um colar podem causar-te tamanho cuidado?

- perguntou Joana, acompanhando o marido, que Lhe tinha pegado na rédea do cavalo e a encaminhava para dentro do pinhal.

- Porque a pluma é duma cor que está hoje muito em voga na corte, e o colar dum feitio muito moderno; ora, como os cavaleiros desta terra não usam por certo daquelas pedras, que a sua cor torna muito caras, nem daquelas coleiras, que dão muito trabalho a engomar, já se vê que o homem que vem em nosso alcance não é nenhum compatriota daquelas paragens de que Chicot é tão guloso; chega as esporas ao cavalo, anda, Joana; está-se-me figurando que aquele cavaleiro é algum emissário do rei, meu amo e senhor.

- Depressa! - disse a noiva a tremer só com a ideia de ser separada do marido. A coisa, porém, era mais fácil de dizer do que de executar. Os pinheiros eram muito juntos e formavam uma verdadeira parede de ramada. Além disso os cavalos enterravam-se até aos peitos na areia.

Durante esse tempo o cavaleiro ia-se aproximando como um raio, e o som do galope do cavalo retumbava pelo declive da montanha.

- Jesus - gritou Joana -, é para nós que ele se dirige!

- Pois bem - disse Saint-Luc parando o cavalo -, se o caso é connosco, vejamos o que ele nos quer, porque ainda mesmo que se apeasse, sempre nos havia de alcançar.

- Lá parou - disse Joana.

- E está-se apeando - disse Saint-Luc -; lá entra no pinhal. Ora adeus! Ainda que seja o Diabo em pessoa, quero ir-Lhe ao encontro.

- Espera - atalhou Joana detendo o marido -, espera! Parece-me que está chamando. E com efeito, o desconhecido, depois de ter preso o cavalo a um dos primeiros pinheiros ia entrando pelo pinhal a gritar:

- Olá, meu cavaleiro! Meu cavaleiro, não Fuja de mim, com todos os diabos! Trago-Lhe aqui um objecto que perdeu.

- O que está ele dizendo? - perguntou a condessa.

- Parece-me - respondeu Saint-Luc - que está dizendo que perdemos alguma coisa.

- Ó Senhor! - prosseguiu o desconhecido -, aquele senhor, o mais baixinho, deixou uma pulseira na estalagem de Courville. Com o demónio! É preciso mais cautela com retratos de mulheres! E demais a mais que este é o retrato da respeitável Sr. de Cossé. Peço-lhe, em nome da querida mamã, que não me obrigue a esfalfar-me para o alcançar! - Eu estou conhecendo aquela voz! - exclamou Saint-Luc.

- E falou no nome de minha mãe.

- Perdeste efectivamente a pulseira, querida amiga?

- Não há dúvida nenhuma, e só esta manhã dei pela falta dela. Não me podia lembrar onde a tinha deixado.

- É o Bussy! - exclamou Saint-Luc de repente.

- O conde de Bussy? - replicou Joana com alegria. - O nosso amigo?

- E decerto que é nosso amigo - disse Saint-Luc, correndo para ele com o mesmo ardor com que até ali tinha procurado fugir-lhe.

- Saint-Luc!. Então nunca eu me tinha enganado - disse a voz sonora e alegre de Bussy, galgando num pulo a distância que ainda o separava dos dois esposos. - Muito bons - dias, minha Senhora - prosseguiu ele, dando uma gargalhada e oferecendo à condessa a pulseira que realmente ela esquecera na estalagem de Courville, onde, como já dissemos, os dois noivos tinham passado a noite.

- Traz porventura ordem de él-rei para nos prender, Sr. de Bussy?. - disse Joana sorrindo.

- Eu, não, minha Senhora; a amizade de Sua Majestade para comigo não chega a ponto de me incumbir das suas missões de conFiança. Não; achei a sua pulseira em Courville; por ela conheci que seguia este caminho. Apertei mais com o cavalo, até que avistei dois vultos e logo desconfei quem eram, e, sem querer, meti-lhes este grande susto. Desculpem-me. - Visto isso - disse Saint-Luc ainda com alguma desconfiança -, é por simples acaso que seguia a mesma estrada que nós?.

- Por acaso, unicamente; e agora, que os encontrei, direi que foi por uma mercê da Providência.

Um resto de dúvida que ainda existia no espírito de Saint-Luc desvaneceu-se à vista do olhar tão Franco e do sorriso tão sincero do galante cavaleiro.

- Pelo que vejo, anda viajando. - disse Joana.

- É verdade - disse Bussy montando novamente a cavalo.

- Mas não como nós?

- Infelizmente não.

- Quero dizer, não é por estar mal visto na corte?

- Eu sei. muito bem visto não estou eu.

- E para onde vai?

- Vou na direcção de Angers. E os senhores?

- Nós também.

- Sim, bem percebo. Brissac fica daqui a umas dez léguas, entre Angers e Saumur; vão procurar um asilo no solar paterno, como pombas perseguidas pelo abutre; parece-me isso muito bonito, e era capaz de invejar a vossa felicidade, se a inveja não fosse um pecado tão feio.

- Pois, Sr. de Bussy - disse Joana com um olhar repleto de gratidão -, case-se, e será tão feliz como nós somos; juro-Lhe que a Felicidade é coisa que muito facilmente se consegue quando duas pessoas se amam deveras.

E olhou para Saint-Luc com um sorriso, como para Lhe pedir que confirmasse o que acabava de dizer.

- Minha Senhora - disse Bussy -, eu não creio em felicidades dessa natureza; nem a todos é dado casar como os senhores, com o privilégio de el-rei.

- Qual história! E então o senhor, de quem todas as mulheres gostam!.

- Quando todas gostam muito dum homem, minha Senhora - respondeu Bussy com um suspiro -, é como se nenhuma gostasse.

- Pois bem - disse Joana piscando o olho para o marido -, consinta que eu trate do seu casamento; em primeiro lugar, Ficarão assim descansadas uma imensidade de maridos ciumentos que eu conheço, e em segundo, gozará então dessa felicidade em cuja existência não acredita.

- Eu não nego que a felicidade exista, minha Senhora - replicou Bussy suspirando outra vez -; nego unicamente que me seja possível encontrar ventura neste mundo.

- Quer que eu o case? - repetiu a Sr. de Saint-Luc.

- Se me casar segundo o seu gosto, não; se me casar à minha vontade, sim.

- Está-me dizendo isso como um homem resolvido a conservar-se solteiro!

- Talvez.

- Nesse caso está então namorado de alguma mulher com quem não pode casar?

- Conde, peço-lhe por favor - disse Bussy -, que diga a sua esposa que não me martirize, cravando mil punhais no coração.

- Cuidado, Bussy, por pouco não vou julgando que é por minha mulher que está apaixonado!

- Pois se assim fosse, havia de convir pelo menos que sou um amante muito delicado e que o marido que tivesse ciúmes de mim faria muito mal.

- Ah! é verdade - disse Saint-Luc, recordando-se que fora Bussy quem Lhe tinha levado a mulher ao Louvre. - Mas, não importa, confesse que o seu coração ficou agarrado algures.

- Confesso, sim - disse Bussy.

- Por amor, ou por passatempo? - perguntou Joana.

- Por uma paixão, minha Senhora.

- Hei-de curá-lo.

- Não o creio.

- Hei-de casá-lo.

- Duvido.

- E hei-de fazer com que seja tão feliz quanto merece.

- Ah, minha Senhora, a minha única ventura na actualidade é ser infeliz!

- Desde já o previno que sou muito teimosa - disse Joana.

- E eu também - replicou Bussy.

- Conde, há-de consentir...

- Deixemo-nos disso, minha Senhora - respondeu o mancebo -, e viajemos como

bons amigos. Tratemos primeiro de sair para fora deste areal, e depois, se lhe parecer, iremos

ficar esta noite naquela aldeiazita tão linda em que além está dando o sol.

- Pois sim; naquela, ou em qualquer outra.

- Pouco me importa, eu não escolho.

- Então sempre vai na nossa companhia?

- Até ao sítio para onde eu vou, se não lhes causar transtorno.

- Nenhum, por certo. Porém, faça outra coisa: venha para onde nós vamos.

- E para onde vão?

- Para o Castelo de Méridor.

Bussy sentiu que lhe subia o sangue todo ao rosto e que logo Lhe refluía ao coração. Até se tornou tão pálido que teria dado por certo a conhecer o seu segredo, se Joana naquele momento não estivesse distraída a olhar para o marido.

Bussy teve pois o tempo necessário para tornar a si, enquanto os dois esposos, ou, para melhor dizer, os dois amantes, iam entretidos a olhar um para o outro, e para excitar ainda mais a curiosidade da jovem condessa, teimou em Lhe ocultar o fim da sua jornada.

- Para o Castelo de Méridor, minha Senhora - disse ele, logo que se sentiu com ânimo de proferir este nome. - Que sítio é esse, não me dirá?

É o nome da terra duma das minhas íntimas amigas - respondeu Joana.

- Duma íntima amiga sua?... e... - prosseguiu Bussy - ela está no tal castelo?

- Sim senhor - respondeu a Sr. a de Saint-Luc, que ignorava completamente os acontecimentos que tinham tido lugar em Méridor havia dois meses -; nunca ouviu falar do barão

de Méridor, um dos mais ricos proprietários de Anju, e...

- E... - repetiu Bussy, vendo que Joana tinha estacado.

- E de sua filha, Diana de Méridor, a mais formosa de todas as baronesas?

- Não, minha Senhora - replicou Bussy, quase sufocado pela comoção que sentia.

E enquanto Joana olhava para o marido com uma expressão muito singular, perguntava Bussy a si próprio por que feliz acaso tinha ele vindo encontrar, sem mais nem menos, no meio duma estrada real, gente que se lembrava de lhe falar de Diana de Méridor, servindo assim de eco ao único pensamento do seu coração.

Seria alguma surpresa? Não era possível; seria algum laço? Era quase impossível. Saint-Luc já não estava em Paris quando ele tinha entrado em casa da Sr. de Monsoreau, e era ali que tinha sabido que ela se chamava Diana de Méridor.

- E esse castelo ainda fica muito distante daqui, minha Senhora? - perguntou Bussy.

- Parece-me que ainda dista daqui sete léguas, e não se me dava de apostar que é lá que vamos ficar esta noite, e não na tal aldeia para que há pouco apontou. Vem connosco, não é assim?

- Sim, minha Senhora.

- Muito bem - disse Joana -, assim dará o primeiro passo ao encontro da felicidade que eu há pouco lhe propunha.

Bussy inclinou-se, e continuou a caminhar ao lado dos dois noivos, os quais, lembrados das obrigações que lhe deviam, o tratavam com a maior consideração. Durante algum tempo conservaram-se todos calados. Finalmente, Bussy, que ainda precisava saber muita coisa, abalançou-se a fazer algumas perguntas. Era um dos privilégios da sua posição, parecia resolvido a usar dele.

- E esse tal barão de Méridor, que dizia ser o mais rico proprietário de Anju, que qualidade de homem é? - perguntou ele.

- Um perfeito cavaleiro; um guerreiro tão esforçado, que se tivesse vivido no tempo do rei Artur, teria alcançado por certo um lugar na Távola Redonda.

- E - perguntou Bussy, comprimindo os músculos do rosto e a comoção da voz - com quem é casada a filha?

- Casada, a filha?

- Sim.

- Diana, casada?

- Seria alguma coisa extraordinária?.

- Não; mas Diana não está casada; se o estivesse, teria eu sido decerto a primeira pessoa a quem ela desse parte do casamento.

O coração de Bussy entumeceu-se, e um sentido suspiro a muito custo lhe saiu do peito.

- Nesse caso, então, a Menina de Méridor está vivendo no castelo com o pai? - perguntou ele.

- Está, e temos toda a esperança de lá a encontrarmos - respondeu Saint-Luc, carregando nestas últimas palavras para dar a entender à mulher que tinha percebido o seu plano e que estava pronto a coadjuvá-la.

Houve outro instante de silêncio, durante o qual cada um deles Ficou entregue aos seus pensamentos.

- Ah! - exclamou de repente Joana, levantando-se sobre os estribos. - Acolá estão as torres do castelo. Olhe, Sr. de Bussy: não vê no centro daquele imenso bosque sem folhas, mas que tão verdejante há-de ser daqui a um mês. não vê lá uns telhados de lousa?

- Oh, sim, bem vejo - disse Bussy, com uma comoção tal que Lhe custava a reprimir o arfar do peito -; sim, bem vejo. Aquele é então o Castelo de Méridor?

E por uma reacção natural do pensamento, à vista daquele país tão fértil, mesmo no tempo da miséria da natureza; à vista daquele solar senhorial, lembrou-se da pobre prisioneira enterrada no nevoeiro de Paris e naquela casinha tão abafada da Rua de Santo António.

Desta vez ainda tornou a suspirar, mas não era inteiramente de aflição. A Sr. de Saint-Luc tanto Lhe tinha prometido torná-lo feliz, que ele começava a nutrir alguma esperança.

 

         O VELHO BUFÃO

A Sr. de Saint-Luc não se tinha enganado; dali a duas horas estavam em frente do Castelo de Méridor.

Depois das últimas palavras que tinham trocado os viajantes, e que já repetimos, Bussy perguntou a si próprio se não seria conveniente contar aos seus amigos a aventura que obrigava Diana a viver longe de Méridor. Mas lembrou-lhe que, uma vez encetado o capítulo das revelações, era preciso narrar-lhes não somente aquilo que eles em breve haviam de saber, mas também o que só ele, Bussy sabia, e não queria confiar em pessoa alguma. Hesitou, pois, em fazer uma confissão que havia de dar lugar naturalmente a muita interpretação e a muitas perguntas.

E demais, Bussy queria apresentar-se em Méridor como um homem completamente estranho. Queria ver o Sr. de Méridor sem que estivesse prevenido, e ouvi-lo falar acerca do Sr. de Monsoreau e do duque de Anju; queria convencer-se, finalmente, não da sinceridade da narração de Diana (nem pelo pensamento Lhe passava que aquele anjo de pureza fosse capaz de mentir), mas de que ela se não enganara em ponto algum, e de que aquela narração, que tanto o interessara, era a interpretação fiel dos acontecimentos.

Bussy conservava, como se vê, dois sentimentos que mantêm o homem superior na sua esfera dominadora, mesmo no meio dos desvarios do amor; os dois sentimentos a que nos referimos eram: circunspecção para com pessoas estranhas, e o mais profundo respeito pela pessoa a quem amava.

O resultado foi que a Sr. de Saint-Luc, iludida, apesar da sua perspicácia feminina, pelo poder que Bussy tinha sobre si mesmo, ficou persuadida de que o mancebo acabava de ouvir pela primeira vez o nome de Diana, e que, não tendo aquele nome despertado nele nem recordações nem esperança, ia convencido de que havia de encontrar em Méridor alguma provinciana muito lorpa e muito envergonhada quando visse os hóspedes que o acaso Lhe

trazia, e Dispunha-se por consequência a gozar da surpresa que lhe ia causar.

Havia contudo uma coisa que Lhe dava que entender, e era que, tendo o guarda dado sinal que chegavam visitas, tocando na trompa conforme o costume, não via aparecer Diana sobre a ponte levadiça, como era seu hábito sempre que ouvia aquele sinal. Mas, em lugar de Diana, viram sair pelo portão principal do castelo um velho curvado pela idade, encostado a um pau.

Trazia vestido um sobretudo de veludo verde forrado de peles de raposa, e da cintura pendia-lhe um molho de chaves e um apito de prata.

O vento da tarde fazia-lhe ondear sobre a testa os compridos cabelos, que eram brancos de neve.

Atravessou a ponte levadiça, acompanhado de dois cães de raça alemã, que o seguiam devagar e a passos iguais, com as cabeças baixas e conservando-se ambos na mesma linha. Logo que o ancião chegou ao pé do parapeito:

- Quem está aí? - perguntou ele com voz sumida; - quem vem honrar a casa dum pobre velho?

- Sou eu, sou eu! Sr. Agostinho - exclamou a noiva com voz alegre. Joana de Cossé chamava assim ao velho barão para o diferençar do irmão mais novo, que se chamava Guilherme, e tinha morrido havia apenas três anos.

Porém o barão, em vez de responder com alguma exclamação de alegria, como Joana esperava, ergueu vagarosamente a cabeça, e fitando nos viajantes os olhos amortecidos:

- Os senhores. - disse ele - daqui não posso ver. quem são?

- Oh, meu Deus - exclamou Joana -, já não me conhece? Ah, é verdade, estou disfarçada.

- Perdoe-me - disse o velho -, mas é porque estou quase cego. Os olhos dos velhos não são feitos para chorar, e por isso, quando choram muito, as lágrimas queimam-nos.

- Ah, meu caro barão - respondeu a noiva -, vejo com efeito que tem a vista perdida, porque se assim não fosse, ter- me-ia conhecido, apesar do meu traje de homem. Vejo que é indispensável que Lhe diga o meu nome.

- Não há dúvida - replicou o velho -, pois torno a dizer-Lhe que apenas lhe distingo daqui o vulto.

- Pois bem, vou dar-lhe que cismar, Sr. Agostinho: sou a Sr. a de Saint-Luc.

- Saint-Luc? - repetiu o ancião. - Não conheço.

- Porém o meu nome em solteira - disse a noiva rindo-se - era Joana de CossE- Brissac.

- Ah, meu Deus! - gritou o velho, procurando abrir a grade com as mãos trémulas

- ah, meu Deus!

Joana não podia perceber qual seria o motivo duma recepção tão extraordinária e tão diferente da que ela esperava, e que só podia atribuir à decadência das faculdades intelectuais do barão, motivada pela sua provecta idade; como viu, porém, que ele tinha acabado por conhecê- la, apeou-se rapidamente e foi-se-lhe lançar nos braços, como era o seu costume; mas quando o abraçou percebeu que ele tinha as faces húmidas: estava a chorar.

É de contentamento, pensou ela. Está bom! O corpo está velho, mas o coração conserva- se moço.

- Venha - disse o velho, depois de ter abraçado Joana.

E como se não houvera reparado nos seus dois companheiros, começou a andar na direcção do castelo com passo igual e vagaroso, sempre acompanhado pelos dois cães, os quais somente se tinham tirado de ao pé dele o tempo preciso para cheirarem e examinarem os recém-chegados.

O castelo apresentava um aspecto de tristeza que dava na vista; as portas das janelas estavam todas fechadas, parecia um imenso túmulo.

Os criados que andavam dum lado para outro, estavam todos vestidos de preto.

Saint- Luc olhou para a mulher como para Lhe perguntar se era assim que ela esperava encontrar o castelo.

Joana entendeu-o, e como também estava desejosa de esclarecer as dúvidas que Lhe tinham ocorrido, chegou-se ao barão, e pegando-lhe na mão:

- E Diana? - disse ela. - Acaso não está cá?

O velho parou como assombrado por um raio, e olhando para a noiva com expressão do maior terror:

- Diana! - exclamou ele.

E logo que proferiu este nome, os dois cães, erguendo os focinhos para o dono, soltaram um lúgubre gemido.

Bussy arrepiou-se involuntariamente. Joana olhou para Saint-Luc, e este parou, sem saber se havia de seguir para diante ou voltar para trás.

- Diana! - repetiu o velho, como se lhe houvesse sido preciso todo aquele tempo para entender a pergunta que lhe tinham feito. - Mas. então não sabem.

E a voz do barão, já de si fraca e trémula, morreu de todo, abafada por um suspiro que Lhe saiu do fundo da alma.

- Mas o que é! Que foi que sucedeu! - exclamou Joana em extremo comovida e junt ando as mãos.

- Diana morreu! - gritou o velho, levantando as mãos ao Céu com um gesto de desesperação, e vertendo uma torrente de lágrimas.

E, dizendo isto, deixou-se cair sobre os primeiros degraus da porta de entrada, onde naquele momento tinham chegado. Escondeu a cabeça entre as mãos, balançando ao mesmo tempo o corpo como para repelir a fúnebre recordação que sem cessar o atormentava.

- Morreu? - exclamou Joana, tornando-se pálida como um espectro.

- Morreu? - disse Saint-Luc, ternamente compadecido do velho.

- Morreu. - balbuciou Bussy - Fez-lhe acreditar a ele também que ela tinha morrido! Ah, pobre velho, como tu hás-de ser um dia meu amigo!.

- Morreu! morreu! - repetiu o barão. - Mataram-na!

- Ah, meu caro Senhor - disse Joana, que, depois do golpe terrível que recebera, tinha achado nas lágrimas o único recurso que obsta a que o desgosto despedace o fraco coração das mulheres.

E desatou a chorar aos soluços, alagando o rosto do velho, a cujo pescoço acabava de deitar os braços.

O velho fidalgo levantou-se a tropeçar.

- Não importa - disse ele -; a casa, apesar de deserta e triste, não deixa de ser hospitaleira como dantes; entrem.

Joana enfiou o braço do ancião no seu e atravessou com ele o peristilo, a antiga sala dos guardas, transformada em casa de jantar, e entrou no salão.

Um criado, que bem mostrava no parecer transtornado e nos olhos avermelhados quanto era afeiçoado ao amo, ia adiante dele abrindo todas as portas; Saint-Luc e Bussy seguiram mais atrás. Chegados que foram ao salão, o velho, sempre amparado por Joana, sentou-se, ou para melhor dizer, deixou-se cair na sua enorme poltrona de madeira lavrada.

O criado abriu uma janela para ventilar a casa, e, sem sair do salão, retirou-se para um canto.

Joana não se atrevia a quebrar o silêncio. Receava agravar as feridas do velho fazendo-lhe perguntas; e, contudo, como jovem e feliz que era, não podia resolver-se a considerar como verdadeira a desgraça de que Lhe acabavam de dar conhecimento.

Há uma idade na vida em que se não pode medir o abismo da morte, porque não se crê nela.

. Foi o barão quem veio ao encontro do seu desejo, renovando a conversa.

- Disse-me que estava casada, minha querida Joana; este senhor é pois seu marido?

E apontava para Bussy.

- Não, Sr. Agostinho - respondeu Joana -; meu marido é este - e apresentou o Sr. de Saint-Luc.

Saint-Luc cortejou com todo o respeito o infeliz pai. Este saudou-o paternalmente e até diligenciou sorrir-se; e depois, virando-se para Bussy:

- E este senhor - disse ele -, é seu irmão, seu cunhado, ou algum parente seu?

- Não, meu caro barão, este senhor não é nosso parente, é nosso amigo. o Sr. Luís de Clermont, conde de Bussy d'Amboise, gentil-homem do Senhor Duque de Anju.

O velho, a estas palavras, ergueu-se como se fora movido por uma mola, e lançou a Bussy um olhar terrível; mas logo, como se aquela provocação muda lhe houvera exaurido as forças, deixou-se cair novamente na poltrona soltando um gemido.

- Que é isso? - perguntou Joana.

- O barão conhece-o, Sr. de Bussy? - perguntou Saint-Luc.

- É esta a primeira vez que tenho a honra de ver o Senhor Barão de Méridor - disse em toda a serenidade Bussy, único das pessoas presentes que sabia o motivo da impressão que o nome do duque de Anju tinha causado ao velho.

- Ah, é gentil-homem do Senhor Duque de Anju - disse o barão -, é gentil-homem daquele monstro, daquele demónio, e atreve-se a confessá-lo, e tem o descaramento de se apresentar em minha casa?

- Estará ele doido? - perguntou Saint-Luc baixinho à mulher, olhando ao mesmo tempo para o barão com olhos espantados.

- Pode ser que os desgostos Lhe transtornassem o juízo - respondeu Joana muito assustada.

O Sr. de Méridor tinha acompanhado as palavras que acabava de proferir, e que faziam com que Joana duvidasse que ele estivesse em seu juízo, dum olhar ainda mais ameaçador do que o primeiro; porém Bussy, sempre impassível, conservou-se na atitude do mais profundo respeito e não respondeu coisa alguma.

- Sim, daquele monstro - prosseguiu o Sr. de Méridor, cuja cabeça parecia turbar cada vez mais -, daquele assassino que matou minha filha!

- Pobre homem! - murmurou Bussy.

- Mas. o que está ele dizendo? - perguntou Joana admirada.

- Então não sabe, o senhor, que está olhando para mim tão espantado? – exclamou o Sr. de Méridor agarrando nas mãos de Joana e nas de Saint-Luc e reunindo-as nas suas. Então não sabe - repetiu - que o duque de Anju matou a minha Diana? Sim, a querida filha foi morta pelo duque de Anju!

E o ancião proferiu estas últimas palavras com uma expressão tão dolorosa, que os olhos do pobre Bussy se arrasaram de lágrimas.

- Sr. de Méridor - disse Joana -, ainda que assim fosse, e confesso-lhe que não concebo como é possível que o duque fosse a causa de semelhante desgraça, não devia criticar o Sr. de Bussy, o mais leal e generoso de todos os fidalgos. Atenda-me, meu bom pai, o Sr. Bussy é alheio a tudo isso que diz; o Sr. de Bussy partilha do nosso pesar. Acaso teria ele vindo aqui, se lhe tivesse dado motivo para o tratar por essa forma? Ah, meu querido Sr. Agostinho, peço-Lhe, pelo nome da sua Diana muito amada, que nos conte como aconteceu essa desgraça.

- Então não sabe o que sucedeu? - disse o velho dirigindo-se a Bussy. Bussy inclinou- se sem responder.

- Como quer que lho diga - replicou Joana -, se nenhum de nós sabia de tal acontecimento?

- A minha Diana morreu, e a sua melhor amiga não sabia do seu falecimento? não admira! Nem escrevi, nem dei parte a pessoa alguma; parecia-me que o mundo devia acabar no instante em que Diana tinha deixado de existir; julgava que todo o Universo devia andar de luto por Diana.

- Conte, conte-nos tudo; assim aliviará a sua saudade - disse Joana.

- Pois bem! - disse o barão com um soluço - saibam que aquele príncipe infame, que nasceu para desonra da nobreza de França, viu a minha Diana, e como se agradou dela por ser tão formosa, mandou-a roubar e fê-la conduzir para o Castelo de Beaugé, para a desonrar como se fora a Filha de algum servo. Porém Diana, a minha Diana, tão nobre e santa, preferiu a morte. Atirou consigo ao lago, e o único vestígio que dela se encontrou foi o seu véu boiando ao de cima da água.

E o velho acompanhou esta última frase de lágrimas e soluços, mostrando uma tal aflição, que chegou a comover deveras Bussy, homem de guerra, acostumado a derramar e a ver derramar sangue.

Joana, quase desmaiada, olhava também para o conde com uma espécie de terror. - Oh, conde - exclamou Saint-Luc -, é um caso horrível, não é verdade? Conde, é preciso que abandone esse príncipe infame, conde, um homem de brio como o senhor não pode continuar a ser amigo dum raptor e dum assassino.

O velho, a quem as palavras simpáticas de Saint-Luc tinham consolado até certo ponto, esperava a resposta de Bussy para formar o seu juízo acerca dele.

Porém Bussy, em vez de responder à interpelação de Saint-Luc, deu um passo para o conde de Méridor.

- Senhor Barão - disse ele -, quer conceder-me a honra duma conversa em particular?

- Ouça o Sr. de Bussy, meu caro Senhor - disse Joana -, verá que tem muito bom coração e que é muito capaz de o servir.

- Fale, Senhor - disse o barão a tremer, porque pelo olhar do mancebo já ele tinha percebido que ia ouvir alguma confidência muito extraordinária.

Bussy voltou-se para Saint-Luc e sua esposa, e olhando para eles com amizade:

- Dão licença? - disse ele.

Os dois noivos saíram pelo braço um do outro. À vista do imenso infortúnio do barão julgavam-se eles duplamente felizes.

Depois de eles saírem e de fechada a porta, Bussy aproximou-se do barão e cumprimentou-o respeitosamente.

- Senhor Barão - disse Bussy -, acaba de acusar na minha presença um príncipe, a quem eu sirvo, e acusou-o com uma veemência tal que me obriga a pedir-lhe uma explicação. O velho fez um movimento.

- Oh, peço-Lhe que não se engane relativamente ao sentido muito respeitoso das minhas palavras; é com a maior simpatia que Lhe estou falando, e com o mais ardente desejo de suavizar a sua mágoa que lhe digo: Senhor Barão, narre-me, com todos os pormenores, a triste catástrofe que há pouco contou ao Sr. de Saint-Luc e a sua esposa. Vejamos: ter-se-á tudo passado como julga, e parece-lhe realmente que se acabou toda a esperança?

- Senhor - disse o velho -, ainda cheguei a ter um vislumbre de esperança. Um cavalheiro nobre e leal, o Sr. de Monsoreau, amava a minha pobre filha e interessou-se por ela.

- O Sr, de Monsoreau. pois bem! - replicou Bussy - Diga-me qual foi o seu comportamento em todo este negócio?

- Ah, ele portou-se em tudo como homem de bem, e, apesar de Diana ter recusado a sua mão, foi ele o primeiro que me avisou dos projectos infames do duque. Foi ele quem me indicou o meio de os frustrar; só me pedia um favor para salvar a minha filha, e nisso mostrava a nobreza e rectidão da sua alma; pedia- me, no caso de conseguir arrancá-la do poder do duque, que lha desse em casamento, a fim de que ele, homem moço, activo e afoito, pudesse defendê-la dum príncipe poderoso, empresa esta que seu pobre pai não podia tomar sobre si.

Anui gostosamente; mas por infelicidade minha já era tarde, e quando ele lá chegou, achou a minha pobre Diana livre de desonra pela morte!

- E desde esse momento fatal - perguntou Bussy -, o Sr. de Monsoreau nunca mais lhe deu novas suas?

- Há apenas um mês que estes acontecimentos tiveram lugar - disse o velho -, e o pobre cavaleiro não terá tido ânimo de me aparecer, depois do malogro da sua generosa tentativa.

Bussy baixou a cabeça; já compreendia tudo.

Só agora percebia como o Sr. de Monsoreau conseguira tirar do poder do príncipe a donzela que ele tanto amava, e como fizera acreditar ao pobre pai que ela tinha morrido, receoso que o príncipe descobrisse que ele se achava casado com ela.

- Então que me diz, Senhor? - perguntou o velho, vendo que o mancebo se conservava meditabundo e com os olhos fitos no chão.

- Digo-lhe, Senhor Barão - respondeu Bussy -, que fui encarregado por Sua Alteza o Senhor Duque de Anju de o conduzir a Paris, onde Sua Alteza deseja falar-lhe.

- Falar-me, a mim? - exclamou o barão. - Pois eu hei-de ver-me cara a cara com aquele homem depois da morte de minha filha? E que terá aquele assassino que me dizer?.

- Quem sabe. talvez queira justificar-se.

- E ainda que se justificasse - exclamou o velho -, nem por isso poderia dar vida a minha filha. Não, Sr. de Bussy, não irei a Paris; e além de tudo o mais, não tenho ânimo para me afastar para tão longe da fria sepultura onde jaz a minha filha querida.

- Senhor Barão - disse Bussy com voz firme -, dê-me licença que inste para que me acompanhe; estou incumbido de o conduzir a Paris; foi para isso unicamente que vim aqui.

- Pois sim, irei a Paris, se assim querem - gritou o velho, trémulo de raiva -; porém que se guardem de mim os que foram a causa da minha desgraça! El-rei há-de ouvir-me, e se não me atender, hei-de apelar dele para todos os fidalgos da França. A minha mágoa - murmurou em voz baixa - fez-me esquecer que tenho entre as mãos uma arma de que até agora ainda não soube servir-me. Sim, Sr. de Bussy estou pronto a acompanhá-lo.

- E eu, Senhor Barão - disse Bussy pegando-Lhe na mão -, recomendo-lhe que tenha a paciência, a serenidade de ânimo e a dignidade próprias dum fidalgo temente a Deus. A misericórdia de Deus é infinita, e não pode saber o que ela lhe destina em sua sabedoria. Peço- Lhe também que enquanto não chega o dia em que há-de aparecer o efeito da misericórdia divina, não me considere no número dos seus inimigos, porque não sabe o que eu tênciono fazer para o servir. Até amanhã, pois, Senhor Barão, e logo que for dia, pôr-nos-emos a caminho.

- Consinto - respondeu o barão involuntariamente, e comovido pelo modo por que Bussy tinha proferido estas palavras -; mas entretanto, amigo ou inimigo, é meu hóspede e é preciso que eu vá conduzi-lo ao quarto onde há-de ficar.

O barão, dizendo isto, pegou num candelabro de prata com três velas que estava sobre a mesa, e, acompanhado de Bussy de Amboise, subiu pesadamente a escada principal do castelo.

Os cães quiseram segui-lo, mas ele deteve-os com um aceno: atrás de Bussy iam dois criados, também com luzes.

O conde, quando chegou ao limiar da porta do quarto que lhe era destinado, perguntou o que era feito do Sr. de Saint-Luc e de sua esposa.

- O meu velho Germano tomou provavelmente conta deles - respondeu o barão.

Adeus, Senhor Conde, muito boa noite.

 

         POR QUE MANEIRA RÉMY LE HAUDOUIN, NA AUSÊNCIA DE BUSSY, TINHA CONSEGUIDO RELACIONAR-SE COM A GENTE DA CASA DA RUA DE SANTO ANTÓNIO

O Sr. e a Sr. de Saint-Luc não podiam acreditar no que viam. Bussy aos segredos com o Sr. de Méridor; Bussy dispondo-se a partir para Paris com o velho barão; Bussy, finalmente aparecendo de repente encarregado da direcção de negócios a que no princípio parecia alheio era para eles um fenómeno inexplicável.

Quanto ao barão, o mágico poder do título de Alteza Realtinha produzido nele o efeito que era de esperar; um fidalgo do tempo de Henrique III não tratava de bagatela como o nascimento rém e as qualificações heráldicas.

e Alteza Realsignificava para o Sr. de Méridor, assim como para qualquer outro que não fosse o rei, um caso de força maior, isto é, raios e tempestades.

Logo pela manhã, o barão despediu-se dos seus hóspedes, que deixou de posse do castelo; porém Saint-Luc e sua mulher, avaliando as dificuldades da situação, resolveram sair de Méridor assim que pudessem, e passar para as terras de Brissac, que eram adjacentes, logo que tivessem obtido o consentimento do tímido marechal.

Bussy, em menos dum segundo, justificou o seu estranho procedimento, dizendo em voz baixa algumas palavras au ouvido da encantadora esposa de Saint-Luc, que o escutava com avidez.

- Apenas ele acabou de falar, o rosto de Joana tornou-se risonho e corou-lhe as faces o mais lindo carmim. Os seus dentinhos brancos e brilhantes como madrepérola apareceram-lhe entre o coral dos lábios, e quando o marido, espantado, olhou para ela para a interrogar, fez-lhe sinal que se calasse, e fugiu a pular, enviando com a mão um beijo de agradecimento a Bussy.

O velho não tinha reparado nesta pantomina tão expressiva; estava com os olhos fitos no seu solar e acariciava maquinalmente com a mão os dois cães, que pareciam resolvidos a não se separarem dele. Deu algumas ordens, em voz chorosa, aos criados, que tinham vindo despedir-se; e depois, montando a muito custo, ajudado pelo escudeiro, num cavalo malhado que muito estimava e que tinha sido o seu cavalo de batalha durante as últimas guerras civis, despediu-se, com um aceno, do Castelo de Méridor, e pôs-se a caminho sem proferir uma única palavra.

- Bussy com os olhos radiantes de contentamento, correspondia aos sorrisos de Joana e voltava-se repetidas vezes para dizer adeus aos noivos. Joana, ao despedir-se dele, tinha-lhe dito ao ouvido:

- Sempre é um homem muito singular, Senhor Conde! Eu tinha-lhe prometido que acharia a felicidade no Castelo de Méridor. e Foi o senhor, pelo contrário, que restituiu a Méridor a felicidade que daqui tinha fugido.

Méridor fica longe de Paris; e muito longe especialmente para um velho barão, crivado de cutiladas e de balas nas guerras mortíferas daqueles tempos, em que as feridas eram na proporção da rudeza dos guerreiros.

E a distância também parecia maior, andada no respeitável cavalo malhado de que falámos, o qual se chamava Jarnac, e que quando ouvia este nome erguia a cabeça escondida pela espessa crina, deixando ver por baixo das cansadas pálpebras uns olhos ainda fogosos.

Bussy logo que se viu a caminho, começou a estudar o modo de captar, a poder de carinho filial, o coração do velho, que a princípio lhe tinha mostrado tanta aversão; e é de crer que conseguisse o seu fim, porque ao sexto dia, pela manhã, quando entravam em Paris, o Sr. de Méridor dirigiu ao seu companheiro de jornada estas palavras que denotavam a mudança que durante a viagem se Lhe tinha operado no espírito:

- É coisa célebre, conde! Eis-me chegado ao sítio onde existe o causador da minha desgraça, e contudo estou menos triste hoje do que estava quando me pus a caminho.

- Daqui a duas horas, Sr. Agostinho - disse Bussy -, terá formado a meu respeito o juízo que desejo que forme.

Os dois viajantes entraram em Paris pelo arrabalde de S. Marçal, entrada usual naquela época, porque aquele bairro horrendo, que hoje é o mais feio de Paris, parecia elegante naquele cempo, pelas suas numerosas igrejas, milhares de casas pitorescas, e pontes lançadas sobre fétidas enxurradas.

- Onde vamos nós? - disse o barão. - Ao Louvre, provavelmente.

- Não senhor - disse Bussy -; quero primeiro levá-lo a minha casa, para que descanse durante alguns minutos e se prepare para visitar a pessoa a casa de quem tenciono conduzi-lo.

O barão anuiu a tudo; Bussy levou-o em direcção ao Palácio da Rua de Grenelle- Saint-Honoré.

Os fâmulos do conde não o esperavam, ou, para melhor dizer, já não o esperavam. O conde, na noite da partida, entrara em casa por uma portinha de que só ele tinha a chave, e, depois de aparelhado o cavalo por suas próprias mãos, tornara a sair sem ser visto por pessoa alguma, à excepção de Rémy le Haudouin.

Já se vê, pois, que o seu desaparecimento instantâneo, os perigos a que escapara na semana anterior e de que Lhe resultara aquela ferida, como todos em casa sabiam, o seu génio aventureiro, de que nunca se emendava, levaram muita gente a pensar que teria caído em alguma cilada armada pelos seus inimigos; que a fortuna, que até ali tanto o havia favorecido, se tornara finalmente adversa, e que Bussy, de quem já não havia notícia, morrera de alguma punhalada ou de algum tiro.

De forma que os mais íntimos amigos de Bussy e os seus mais fiéis criados já tinham começado novenas para que ele ressuscitasse, enquanto que outros, mais positivos e não esperando encontrar senão o seu cadáver, tratavam de proceder a minuciosas pesquisas nos canos, nas casas suspeitas, nas pedreiras dos arredores, na ribeira de Biévre ou nos fossos da Bastilha.

Uma única pessoa respondia, quando lhe perguntavam notícias de Bussy:

- O senhor conde está bom.

Mas se alguém procurava levar mais adiante o interrogatório, nada mais respondia, porque também era isto unicamente o que sabia.

A pessoa que a todos dava esta resposta satisfatória, mas pouco explícita, era mestre Rémy le Haudouin, que levava todo o dia a entrar e a sair do palácio, parecendo entretido em executar missões misteriosas, e de cada vez que aparecia, que era sempre para comer e com insólito apetite, reanimava os ânimos abatidos da casa.

Laudouin entrava no palácio de volta de uma das suas misteriosas ausências, no momento em que no pátio principal ressoavam os gritos de alegria dos criados, que todos à porfia

queriam agarrar nas rédeas do cavalo de Bussy e servir-lhe de escudeiros, porque o conde, em vez de se apear, tinha-se conservado a cavalo.

- Está bom! - dizia Bussy. - Vejo que estão satisfeitos de me verem vivo; obrigado. Querem contudo verificar se sou eu na realidade, ou se é a minha sombra, Sou eu, sim, olhem, apalpem, aviem-se! Muito bem; agora ajudem este respeitável fidalgo a apear-se, e tomem sen tido, que eu tenho por ele mais consideração e respeito do que se fosse um príncipe. A recomendação de Bussy não foi inútil. os criados até ali apenas tinham reparado no barão, julgando, pelo seu vestuário simples e fora de moda, e pelo cavalo malhado, a que eles, acostumados como estavam a lidar com os cavalos de Bussy, logo deram o devido valor, que era algum antigo escudeiro que vivia retirado na província, e que o aventuroso fidalgo trazia daquele desterro como dum outro mundo.

Porém, apenas Bussy proferiu aquelas palavras, todos eles rodearam o barão. Le Haudouin contemplava toda aquela cena com um risinho de escárnio, que logo desapareceu do rosto alegre do jovem doutor apenas Bussy o encarou com toda a seriedade. - Um quarto imediatamente para o Senhor Barão - bradou Bussy. Qual há-de ser? - perguntaram logo cinco ou seis vozes.

- O melhor de todos, o meu.

E, dizendo isto, ofereceu o braço ao velho para subir a escada, procurando assim pagar-lhe com usura as atenções com que o barão o tinha recebido no castelo.

O Sr. de Méridor cedeu a tanta delicadeza e urbanidade sem oposição alguma, e quase maquinalmente, como nos entregamos às vezes ao domínio de certos sonhos que nos levam às regiões fantásticas de que se compõe o reino da imaginação e da noite. Trouxeram ao barão a taça de ouro do conde, e Bussy quis encher-lhe por suas mãos

o copo de vínho, símbolo da hospitalidade.

- Obrigado, obrigado, Senhor Conde - dizia o velho -; mas, quando vamos nós ao nosso destino?

- Não tarda nada, Senhor Barão, confie em mim; há-de ser um momento de muita felicidade, não só para o senhor, como para mim também.

- Que está dizendo? E por que motivo me fala continuamente num estilo que eu não entendo?

- Digo, Sr. Agostinho, que já Lhe falei na misericórdia da Providência, e que se vai aproximando o momento em que hei-de dirigir uma súplica à Providência em seu nome.

O barão olhou com espanto para Bussy; mas este, fazendo-lhe com a mão um respeitoso aceno, que queria dizer: Volto daqui a um instante, saiu do quarto com gesto risonho. Le Haudouin estava de sentinela à porta, conforme ele esperava; pegou-lhe no braço e levou-o para um gabinete.

- Então, meu caro Hipócrates? - prosseguiu ele. - Que há de novo?

- Onde?

- Boa pergunta! Na Rua de Santo António.

- Meu Senhor, posso asseverar-lhe que chegámos a um ponto que segundo presumo muito, lhe há-de agradar. Não há porém novidade.

Bussy respirou.

- Visto isso, não voltou o marido?. - disse ele.

- Voltou, sim senhor; mas não conseguiu coisa alguma. O desfecho da peça está dependente, segundo me consta, dum pai por quem se espera, e que há-de ali cair das nuvens mais dia menos dia.

- Está bom! - disse Bussy; - mas como sabes tu isso?

- Eu Lhe conto, meu Senhor - disse Le Haudouin com a costumada jovialidade e franqueza -; como a sua ausência tornou momentaneamente o meu emprego em sua casa numa sinecura, quis utilizar em seu serviço a ordem que me deu.

- Vejamos, o que fizeste? Conta-me tudo, meu caro Rémy, todo eu sou ouvidos.

- O caso foi o seguinte: logo que o Senhor Conde daqui partiu, levei dinheiro, alguns livros e a minha espada para um quarto que tinha alugado na casa que faz esquina para a Rua de Santo António e para a de Santa Catarina.

- Bem.

- Dali via eu a casa que sabe, desde as frestas da adega até ao cume do telhado.

- Muito bem.

- Apenas tomei posse do meu quarto, fui logo pôr-me à janela.

- Excelente ideia.

- É verdade, mas havia contudo um inconveniente.

- Qual era?

- Era que, assim como eu via, também me viam a mim, e que afinal poderia causar alguma desconFiança um homem entretido sempre a olhar para a mesma perspectiva; o resultado de semelhante obstinação seria ficar eu em breve tido por um ladrão, por um amante, por um espião, ou um doido, ao cabo de dois ou três dias.

- Discorreste muito bem, meu caro Le Haudouin. Mas então que fizeste?

- Oh! então, Senhor Conde, capacitei-me que era preciso recorrer a meios decisivos, e confesso-lhe.

- O quê?

- Confesso-lhe que me apaixonei!

- Hem? - disse Bussy, que não podia perceber qual era a utilidade que Lhe poderia resultar da paixão de Rémy.

- tal qual como tenho a honra de Lhe dizer - respondeu o jovem doutor com toda a seriedade -; estou apaixonadíssimo, mesmo louco de amores.

- Por quem?

- Por Gertrudes.

- Por Gertrudes, a aia mais dedicada da Sr. de Monsoreau?

- Sim senhor! Isso mesmo, de Gertrudes, aia da Sr. de Monsoreau. Então que remédio tinha eu, meu Senhor?. Não sou fidalgo, não posso namorar as amas. sou um pobre médico obscuro, e tenho por junto um único cliente, o qual espero em Deus que me há-de dar muito pouco que fazer; vejo-me portanto obrigado a fazer as minhas experiências in ani vili, como se diz na universidade.

- Pobre Rémy! - disse Bussy. - Acredita que dou o devido valor à tua dedicação.

- Sempre Lhe direi, meu Senhor - respondeu Le Haudouin - que o caso também não é para ter tanto dó de mim. Gertrudes é uma mocetona que tem mais duas polegadas de altura que eu, e que sem custo me levantaria ao ar pegando-me pela gola do casaco. A extraordinária força muscular de que é possuidora faz com que eu tenha por ela uma veneração que muito lisonjeia o seu amor-próprio; e como estou sempre por tudo quanto ela quer, nunca temos desavenças; e demais, possui uma prenda muito preciosa.

- Qual é? - meu Rémy.

- Conta perfeitamente qualquer coisa que se quer saber.

- Ah, deveras?

- Sim senhor; de forma que sei por ela tudo quanto se passa em casa da ama. Hem? que me diz a isto?. pensei que não deixaria de estimar que eu estivesse relacionado com alguém da casa.

- Le Haudouin, tu foste o génio bom que o acaso, ou, por outra, a Providência, colocou no meu caminho; pelo que vejo chegaste com Gertrudes a ponto.

- Puella me diligit - respondeu Le Haudouin, balanceando o corpo com fatuidade afectada.

- E tens entrado em casa?

- Entrei ontem pela primeira vez, à meia-noite, nos bicos dos pés, e por aquela célebre porta sua conhecida que tem um postigo no meio.

- E como conseguiste tamanha ventura?

- Confesso-Lhe que foi sem muito custo.

- Conta-me lá isso.

- Dois dias depois da sua partida, e no imediato àquele em que tomei posse do quarto, esperei à porta que a dama de meus futuros pensamentos saísse para ir às compras, passatempo este em que ela se entretém todos os dias, desde as oito até às nove horas da manhã. Às oito e dez minutos apareceu a bela; saí logo do meu observatório, e fui-me fazer encontrado com ela.

- E ela conheceu-te?

- Conheceu-me tão bem, que deu um grito e deitou a fugir.

- E então?

- Então corri atrás dela, e a muito custo a alcancei, porque corre muito bem; mas as saias como sabe, sempre tolhem os movimentos.

- Santo nome de Jesus! - exclamou ela.

- Santo nome de Maria! - disse eu.

Esta minha exclamação deu-Lhe de mim uma ideia favorável; qualquer outro homem, que não fosse tão religioso como eu sou, teria exclamado: cos demónios! ou cos diabos!

- É o médico! - disse ela.

- É a linda aia! - respondi eu".

Ela sorriu-se, e tornou logo:

- O senhor está enganado, não o conheço.

- Pois eu conheço-a muito bem - retorqui eu -, porque há três dias que não vivo, que não existo, adoro-a! E tanto assim que já não moro na Rua Beautreillis, mas sim na Rua de Santa Catarina, e o fim para que mudei de casa foi para poder vê-la quando entra e sai; quando, pois, precisar de mim para curar as feridas de algum galante mancebo, fará favor de me procurar na minha nova morada e não na antiga.

- Cale-se! - disse ela.

- Ah! bem vê que não estava enganado! - repliquei eu.

E eis como travámos, ou, para melhor dizer, como renovámos conhecimento.

- De forma que és actualmente.

- Tão feliz quanto um amante o pode ser. Com Gertrudes, bem entendido, tudo é relativo; porém considero-me sobremaneira feliz por ter conseguido o fim que tinha em vista para utilidade sua. - se ela desconfiar?.

- Nada; nem sequer lhe falei no senhor. Como era possível que o pobre Rémy le Haudouin conhecesse um fidalgo como o Sr. de Bussy?. Apenas lhe perguntei com indiferença:

- E aquele rapaz, seu amo, já está melhor?

- Que amo?

- Aquele cavalheiro que eu curei em sua casa.

- Não era meu amo - respondeu ela.

- Ah! É porque como ele estava deitado no leito da sua ama, pensei - repliquei eu. - Oh, não, não - disse ela com um suspiro -; o pobre mancebo nenhum parentesco tinha com a senhora; nem o tornámos a ver senão uma única vez desde aquela saudosa noite.

- Visto isso, nem mesmo sabe como ele se chama? - perguntei eu. - Lá isso sei.

- É porque podia ter-Lhe ouvido o nome e esquecer-se.

- Não é nome que se esqueça.

- Como se chama então?

- Já ouviu falar alguma vez do Sr, de Bussy?

- Sem dúvida! - respondi eu. - Bussy, o valente Bussy.

- Pois bem! É esse mesmo.

- Então, a dama.

- Minha ama é casada, Senhor.

- É casada, é fiel ao marido, e aposto que pensa algumas vezes no galante mancebo que ela viu, ferido e desmaiado, deitado sobre a sua cama.

- Para Lhe falar com franqueza - respondeu Gertrudes -, não posso negar que minha ama pensa nele de vez em quando.

Um vivo rubor assomou às faces de Bussy.

- Dir-Lhe-ei mais - acrescentou Gertrudes -: sempre que estamos sós, conversamos a respeito dele.

- Excelente rapariga! - exclamou o conde.

- E que diz a respeito dele? - perguntei eu.

- Conto as suas proezas, e não tenho muito trabalho para as saber, porque não se fala em Paris senão das estocadas que ele dá e que leva. Até já ensinei à minha ama uma cantiga que por aí anda muito em voga.

- Ah, bem sei - respondi eu -, é uma moda que os rapazes cantam, narrando os feitos do Sr. de Bussy de Amboise.

- Exactamente! - exclamou Gertrudes. - De forma que a minha ama já não canta outra coisa. "

Bussy apertou a mão do médico; um indizível estremecimento de felicidade acabava de lhe correr pelas veias.

- Nada mais? - disse ele, tão insaciável é o homem em seus desejos.

- Só isto, meu Senhor. Oh, hei-de saber mais alguma coisa com o perpassar do tempo; é impossível saber tudo num dia, ou, para melhor dizer, numa noite.

 

                   O PAI E A FILHA

A conversa de Rémy tinha tornado Bussy muito feliz, pois dera-Lhe a saber duas coisas: a primeira, que o Sr. de Monsoreau ainda era pela mesma forma odiado; e a segunda, que ele, Bussy, já ia sendo mais estimado.

E demais, aquela amizade de que o mancebo Lhe dava provas, alegrava- lhe o coração e duplicava-Lhe o júbilo que sentia.

Bussy julgou pois que não havia tempo a perder, e cada arrepio da dor que fazia estremecer o coração do velho era quase um sacrilégio actualmente: um pai carpindo a perda duma filha, oferece um tal transtorno das leis da natureza, que todo aquele que o pode consolar dizendo uma única palavra, merece as maldições de todos os pais se o não fizer.

O Sr. de Méridor, quando chegou ao pátio, encontrou um dos cavalos de Bussy, que este tinha mandado aparelhar para o seu hóspede. Montaram ambos e saíram, acompanhados de Rémy.

Chegaram à Rua de Santo António, com grande admiração do Sr. de Méridor, que não vinha a Paris havia vinte anos, e atordoado pelo tropear dos cavalos, pelos gritos dos lacaios e pela concorréncia muito maior de carruagens, achava a capital muito diferente do que era no reinado do rei Henrique

 

Apesar, porém, dessa admiração, que chegava quase a ser espanto, o barão nem por isso deixava de se conservar entregue a uma profunda tristeza, que ia aumentando à medida que se aproximava do termo ainda por ele ignorado da sua jornada.

Que recepção encontraria ele no duque? Quais seriam os novos pesares que de tal entrevista haviam de resultar?

E de vez em quando, olhando com pasmo para Bussy, a si próprio perguntava por que fatalidade tinha ele consentido acompanhar, quase cegamente, aquele gentil-homem dum príncipe que tinha sido a origem de todos os seus desgostos.

Se não teria sido mais conforme com a sua dignidade desobedecer ao convite do duque de Anju, e, em lugar de acompanhar assim Bussy onde este quisesse conduzi-lo, ir direito ao Louvre lançar-se aos pés do rei. Que poderia o príncipe dizer-lhe? Como poderia consolá-lo?

Chegaram por fim à Rua de S. Paulo.

Bussy como hábil general, tinha mandado na sua frente Rémy, com ordem de explorar o caminho e preparar o meio de ele se introduzir na praça.

Este último foi ter com Gertrudes, e voltou a dizer ao conde que nem chapéu de homem, nem espada, obstruíam a porta, a escada e o corredor por onde se entrava para a casa da Sr. de Monsoreau.

Esta informação, como bem se pode julgar, era dada em voz baixa a Bussy por Le Haudouin.

O barão, entretanto, olhava muito admirado para todos os lados.

- Pois quê? - dizia ele. - Aqui é que mora o duque de Anju?

E a humilde aparência da casa começou a inspirar-Lhe certa desconFiança.

- Com efeito, não é esta a sua morada - respondeu Bussy sorrindo -; mas é a casa duma senhora de quem ele já gostou muito.

A fronte do fidalgo turvou-se.

- Senhor - disse ele parando o cavalo -, nós os provincianos não estamos acostumados a tanta sem-cerimónia; estes usos de Paris confundem-nos por tal forma, que não sabemos viver no meio dos seus mistérios. Parece-me que se o duque de Anju tem empenho em falar com o barão de Méridor, deve ser no seu palácio, e não na casa duma das suas amantes. E demais - acrescentou o velho com um suspiro -, por que motivo quer o senhor, que me parece um homem honrado, pôr-me cara a cara com uma dessas mulheres? Será para me dar a entender que a minha pobre Diana ainda viveria, se, como a dona desta casa, tivesse preferido a desonra à morte?.

- Vamos, vamos, Senhor Barão - disse Bussy com aquele sorriso tão leal que tinha sido até ali o seu meio de convicção mais seguro para com o velho -, não forme falsas conjecturas. Pela minha fé de cavaleiro Lhe assevero que não se dá aqui o caso que supõe. A dama que vai ver é perfeitamente virtuosa e merecedora de todo o respeito.

- Mas quem é ela?

- É. é a esposa dum fidalgo muito seu conhecido.

- Deveras? Mas então, Senhor Conde, por que motivo diz que o príncipe já gostou dela?

- Porque eu não costumo faltar à verdade, Senhor Barão; entre, e convencer-se-á por seus próprios olhos, quando vir que eu cumpri a minha promessa.

- Veja bem, Senhor Conde; olhe que eu chorava a morte da minha filha muito querida, e o senhor disse-me: Console-se, Senhor Barão, que a misericórdia de Deus é grande; essa consolação que prometeu à minha dor era quase como se prometesse um milagre.

- Entre, Senhor Barão - repetiu Bussy com o mesmo sorriso que sempre seduzia o velho. O barão apeou-se.

Gertrudes tinha vindo abaixo, e conservava-se pasmada no limiar da porta, olhando para Le Haudouin, para Bussy e para o velho, sem poder adivinhar por que combinação da Providência ali se achavam reunidos aqueles três homens.

- Vá avisar a Sr. de Monsoreau - disse o conde - que o Sr. de Bussy está de volta e precisa já falar-Lhe. Mas, pela sua vida! - prosseguiu ele falando-Lhe ao ouvido. - Não lhe diga uma única palavra a respeito da pessoa que vem comigo.

- A Sr. de Monsoreau? - disse o velho estupefacto. - A Sr. de Monsoreau?

- Vá adiante, Senhor Barão - disse Bussy empurrando o Sr. Agostinho para o corredor. Enquanto o velho ia subindo a escada com passos mal seguros, ouviu-se a voz de Diana, que respondia toda trémula:

- O Sr. de Bussy? Dizes, Gertrudes, o Sr. de Bussy? Que entre!

- Que voz é aquela?. Oh! meu Deus, meu Deus!.

- Vamos, suba, Senhor Barão - disse Bussy.

No mesmo instante, e quando o barão, a tremer, procurava segurar-se ao corrimão, olhando em redor de si, apareceu de repente Diana no alto da escada, alumiada por um raio de Sol que Lhe dava de chapa, radiante de formosura e com gesto risonho, se bem que não esperava ver o pai.

O velho, assim que a avistou, julgando que era alguma visão mágica, deu um grito horrível, e, com os braços estendidos e os olhos espantados, apresentava uma tão perfeita imagem do terror e do delírio, que Diana, pronta já a saltar-lhe ao pescoço, suspendeu esse movimento, espantada também e estupefacta.

O barão, quando estendeu os braços, encontrou o ombro de Bussy e a ele se encostou.

- Diana!. Ainda viva!. - murmurou o barão de Méridor; - Diana! A minha Diana que me disseram ter morrido!. Oh, meu Deus!

E o robusto guerreiro, esforçado actor das guerras estrangeiras e das guerras civis que sempre o tinham poupado; o carvalho idoso que o raio da morte de Diana não tinha podido derrubar; o atleta que tinha lutado com valentia contra a dor; esmagado, despedaçado e aniquilado agora pela alegria, recuou, faltando-lhe as pernas, e se não fora Bussy, teria caído redondamente pela escada abaixo à vista daquela imagem tão querida, que Lhe aparecia vagamente diante dos olhos turvos dividida em átomos confusos.

- Oh, meu Deus, Sr. de Bussy! - gritou Diana, descendo apressadamente os degraus da escada que ainda a separavam do velho. - Que tem meu pai!

E a dama, assustada por ver aquela repentina palidez e o singular efeito que produzia uma entrevista para a qual ela pensava que o pai vinha preparado, ainda interrogava mais com os olhos do que com a voz.

- O Senhor Barão de Méridor julgava que a senhora tinha morrido, e lamentava a sua perda, como cumpre a um pai tão terno como ele é, lamentar a falta duma filha como a senhora.

- Como assim? - exclamou Diana. - Pois ninguém o tinha desenganado?

- Ninguém.

- Oh, não, não, ninguém - exclamou o velho acordando do seu letargo momentaneo

- , ninguém! Nem mesmo o Sr. de Bussy.

- Ingrato! - respondeu o conde em tom de terna repreensão.

- Oh! sim - respondeu o velho -, sim, tem razão, porque este momento compensa tudo quanto sofri. Oh, minha Diana, minha Diana muito querida! - prosseguiu ele, agarrando com uma das mãos na cabeça da Filha de encontro à boca, e estendendo a outra a Bussy.

Porém, logo erguendo a cabeça como se uma lembrança dolorosa ou um novo receio lhe houvera penetrado no coração, apesar da armadura de alegria, seja-nos permitida a expressão, com a qual acabava de o resguardar:

- Mas não me disse, Sr. de Bussy, que eu ia ver a Sr. a de Monsoreau?. onde está ela?

- Ah, meu pai!. - murmurou Diana.

Bussy procurou revestir-se de todo o seu ânimo.

- Ei-la aqui presente - disse ele o conde de Monsoreau é seu genro.

- Como se entende isso? - balbuciou o velho - o Sr. de Monsoreau é meu genro, e toda a gente. tu, Diana, ele mesmo! Todos mo têm deixado ignorar?

- Receava escrever-lhe, meu pai, porque a carta podia ir parar às mãos do príncipe. E de mais, julgava que sabia tudo.

- Mas qual foi o fim de tudo isto - perguntou o velho -, para que servem tão extraordinários mistérios?

- Oh, sim, meu pai, pondere tudo isto - exclamou Diana -: por que motivo procurou o Sr. de Monsoreau fazer-lhe crer que eu tinha morrido? Qual foi a razão por que não lhe participou que estava casado comigo?

O barão, tremendo como se estivesse com receio de perscrutar aquelas trevas, interrogava a medo com a vista os olhos fogosos da querida filha e a inteligente melancolia de Bussy.

Durante este espaço de tempo tinham caminhado gradualmente até à sala.

- O Sr. de Monsoreau meu genro!. - balbuciava continuamente o barão de Méridor.

- Não sei porque se admira - respondeu Diana em tom de amigável exprobração -; não me ordenou que o recebesse por marido, meu pai?.

- Sim, se ele te salvasse.

- Pois bem, salvou-me - disse com voz surda Diana deixando-se cair sobre uma cadeira ao lado do seu genuflexório. - Livrou-me, não da desgraça, mas da desonra pelo menos.

- Então porque me deixou ele persuadir que tinhas morrido, vendo que eu chorava tão amargamente a tua perda? - repetiu o velho. - Porque me deixava ele morrer de desespero quando bastava uma única palavra para me tornar à vida?

- Oh, aqui anda alguma cilada encoberta - exclamou Diana. - Meu pai, nunca mais me deixará. Sr. de Bussy, há-de proteger-nos, não é assim?

- Infelizmente, minha Senhora - disse o mancebo inclinando-se - já não posso continuar a intrometer-me nos segredos da sua família. Quando soube do estranho procedimento de seu marido, quis procurar-lhe um defensor que pudesse legalmente protegê-la. Esse deFensor de que necessitava, fui buscá-lo a Méridor. Está ao lado de seu pai, agora cumpre que eu me retire.

- Tem razão - disse o velho com tristeza -; o Sr. de Monsoreau teve medo do ressentimento do duque de Anju, e o Sr. de Bussy tem o mesmo receio...

Diana olhou para o mancebo com um modo que queria dizer:

- Será possível que tu, a quem chamam o valente Bussy, tenhas medo do Senhor Duque de Anju, como pode ter o Sr. de Monsoreau?

Bussy entendeu o olhar de Diana, e sorriu-se.

- Senhor Barão - disse ele -, peço-lhe que desculpe a pergunta algum tanto extraordinária que vou fazer-Lhe, e também, minha Senhora, digne-se desculpar-me, em atenção ao grande desejo que tenho de poder servi-la...

Ambos esperavam olhando um para o outro.

- Senhor Barão - prosseguiu Bussy -, peço-lhe que pergunte à Sr de Monsoreau...

E carregou nestas últimas palavras, que fizeram descorar a dama. Bussy conheceu a pena que estava causando a Diana, e continuou:

- Pergunte a sua filha se o casamento que lhe aconselhou, e no qual ela consentiu, a tornou ditosa.

Diana uniu as mãos, e suspirou. Foi a única resposta que pôde dar a Bussy. Mas também nenhuma teria sido mais positiva e mais eloquente.

Os olhos do velho barão arrasaram-se de lágrimas, porque já ia começando a conhecer que a sua amizade, talvez demasiadamente inconsiderada, pelo Sr. de Monsoreau, havia contribuído muito para a desdita da filha.

- Agora diga-me - prosseguiu Bussy é bem verdade, Senhor, que por sua livre vontade concedeu a mão de sua Filha ao Sr. de Monsoreau, sem que a isso fosse obrigado por ardil ou por violência?

- Concedi, sim, no caso de ele a salvar.

E ele salvou-a, efectivamente. Visto isso, é escusado perguntar- lhe, Senhor, se tenciona cumprir a sua palavra...

O cumprimento duma promessa é um dever para todo o homem, especialmente se é cavaleiro, e o senhor melhor do que ninguém deve sabê-lo. O Sr. de Monsoreau salvou a vida

a minha Filha, segundo ela mesma confessa, por consequência, minha filha pertence ao Sr. De Monsoreau.

- Ah - murmurou a dama -, porque não morri eu naquela noite!

- Minha Senhora - disse Bussy -, bem vê que me assistia razão quando lhe dizia ainda há pouco que nada mais tinha que fazer aqui. O Senhor Barão dá-a ao Sr. de Monsoreau e a senhora própria lhe prometeu que, no caso em que tornasse a ver seu pai são e salvo, se entregaria a ele.

- Ah! não me dilacere o coração, Sr. de Bussy! - exclamou a Sr. a de Monsoreau aproximando-se do mancebo; - meu pai não sabe quanto eu temo aquele homem; meu pai não sabe que o odeio; meu pai teima em o considerar como meu salvador, e eu, eu, que sou guiada pelo meu instinto, teimo em dizer que aquele homem é o meu verdugo!

- Diana, Diana. - exclamou o barão - foi ele quem te salvou!.

- Sim - exclamou Bussy, saindo dos limites em que até ali se contivera por prudência e delicadeza -, sim; mas se o perigo não fosse tão iminente como pensava, se fosse fictício, se. que sei eu!. Ouça-me, barão, há em tudo isto um mistério que ainda está por descobrir, mas que eu hei-de descortinar. Contudo, o que posso asseverar-lhe é que, se tivesse tido a felicidade de me achar no lugar do Sr. de Monsoreau, também teria livrado da desonra a sua formosa e inocente filha; mas, por Deus que me ouve, nunca teria exigido que ela me pagasse semelhante serviço!

- Ele amava-a - disse o Sr. de Méridor, o qual bem conhecia quanto era odioso o comportamento do Sr. de Monsoreau -, e é preciso desculpar um excesso de paixão.

- E eu! - exclamou Bussy. - Julga porventura.

Porém Bussy deteve-se, assustado por ver que tinha estado a ponto de confessar involuntariamente o segredo do seu coração, e foram seus olhos unicamente que concluiram a Frase interrompida sobre os seus lábios.

Diana entendeu-a melhor talvez do que se ele a tivesse completado, e disse corando: - Pois bem, entendeu-me, não é verdade? Ora pois, meu amigo, meu irmão, reclamou estes dois títulos, e eu dou-lhos; mas então, meu amigo, meu irmão, se pode proteger-me, proteja-me.

- Mas o duque de Anju?. O duque de Anju?. - murmurou o velho, que sempre via à distância, como um raio ameaçador, o ressentimento da Alteza Real.

- Não sou desses que receiam o ressentimento dos príncipes, Sr. Agostinho - respondeu o mancebo -; e ou eu estou muito enganado, ou não devemos temer semelhante ressentimento. Se quiser, Sr. de Méridor, posso Fazer com que o príncipe se torne por tal Forma seu amigo, que ele mesmo o há-de proteger contra o Sr. de Monsoreau, que é de quem Lhe provém o grande perigo, e tanto mais quanto é invisível.

- Porém, se o duque souber que Diana é viva, está tudo perdido! - disse o velho.

- Está bem - disse Bussy -; vejo que apesar de tudo quanto lhe tenho dito sempre dá mais crédito ao Sr. de Monsoreau que a mim. Não tratemos mais deste assunto; recuse o meu oferecimento, Senhor Barão, recuse o auxílio tão poderoso que eu desejava chamar em seu amparo. Lance-se nos braços do homem que se mostrou tão digno da sua confiança. Já disse: desempenhei a minha missão, nada mais tenho que fazer aqui. Adeus, Sr. Agostinho, adeus, minha Senhora! Nunca mais me verá, retiro-me, adeus!

- Oh! - exclamou Diana, agarrando na mão do mancebo - acaso me viu já hesitar um instante, ou julga que eu tenha mudado de parecer a respeito dele?. Não! De joelhos lhe peço que não me abandone!

Bussy apertou as lindas mãos suplicantes de Diana, e todo o seu ressentimento se desvaneceu da mesma forma que a neve no cume das montanhas se derrete com o brando calor do Sol de Maio.

- Visto que assim o quer - disse Bussy -, assim seja, minha Senhora! Sim, aceito a missão sagrada que me confia, e por estes três dias - porque me é preciso o tempo necessário para ir ter com o príncipe, o qual, segundo dizem, foi numa romaria a Chartres, com el-rei, por estes três dias, digo, ou há-de ver grandes novidades, ou eu hei- de perder o meu nome de Bussy.

E aproximando-se dela com ternura:

- Concluímos uma aliança contra Monsoreau - disse ele ao ouvido de Diana -; lembre-se de que não foi ele quem lhe trouxe seu pai, e não me seja inFiel.

E apertando uma última vez a mão do barão, saiu apressadamente da sala.

 

         COMO ACORDOU FINALMENTE FREI GORENFLOT E QUAL FOI A RECEPÇÃO QUE LHE FIZERAM NO CONVENTO

Deixámos o nosso amigo Chicot extasiado à vista do não interrompido sono e do esplêndido ressonar de Frei Gorenflot; fez sinal ao estalajadeiro que se retirasse e que levasse consigo a luz, depois de lhe recomendar muito particularmente que não dissesse palavra ao estimável irmão com referência à sua ausência desde as dez horas da noite até às três horas da madrugada.

Como mestre Bonhomet tinha observado que nas relações existentes entre o bobo e o frade, era sempre o bobo quem pagava, dava por isso grande consideração a este último e fazia muito pouco caso do frade.

Prometeu por conseguinte a Chicot que por caso algum havia de abrir bico a respeito dos acontecimentos da noite, e retirou-se, deixando os dois amigos às escuras, conforme acabava de lhe ser recomendado.

Chicot não tardou em notar uma circunstância que Lhe excitou a admiração; era que Frei Gorenflot ressonava e falava ao mesmo tempo.

Este facto indicava, não, como alguém poderia julgar, uma consciência atormentada pelos remorsos, mas um estômago sobrecarregado de comida e de bebida.

Entretanto Chicot conheceu que, se se conservasse assim às escuras, havia de lhe ser muito custoso efectuar a restituição que ainda tinha a fazer, para que Gorenflot, quando acordasse, não desconfiasse de coisa alguma; e, com efeito, podia pisar inadvertidamente alguma parte do corpo do frade e causar-lhe uma dor tal que o acordasse do seu letargo.

Chicot, portanto, pôs-se de joelhos e assoprou as brasas do fogão, para alumiar a cena. Gorenflot, quando ouviu o sopro, deixou de ressonar, e murmurou:

- Meus irmãos! Não sentem este vento tão impetuoso? É o sopro do Senhor, é o espírito que me inspira!

E continuou a ressonar.

Chicot esperou um instante para que o sono recobrasse toda a sua influência, e começou a desembrulhar o frade da toalha em que o tinha envolvido.

- Apre - resmungou Gorenflot -, sempre está muito Frio! Este ano não amadurece a uva!

Chicot parou no meio da operação, e continuou dali a um instante.

- Conhecem o meu zelo, meus irmãos - prosseguiu o munge -, não só por tudo quanto diz respeito à Igreja, como pelo Senhor Duque de Guisa.

- Forte canalha! - disse Chicot.

- Essa é a minha opinião - replicou Gorenflot contudo, é certo.

- É certo o quê? - perguntou Chicot, levantando o frade para lhe envergar o hábito.

- É certo que o homem tem mais força do que o vinho; Frei Gorenflot lutou contra o vinho, como Jacob contra o Anjo, e foi Frei Gorenflot quem venceu o vinho.

Chicot encolheu os ombros.

Este movimento intempestivo obrigou o frade a abrir um dos olhos, e viu, acima da sua cabeça, o sorriso de Chicot, que parecia lívido e sinistro à claridade duvidosa do fogão.

- Ah, nada de fantasmas, vamos, nada de duendes - disse o monge como quem se queixava a algum demónio familiar que esquecia o que tinham convencionado.

- Está perdido de bêbado - disse Chicot, acabando de enrolar Gorenflot e puxando-lhe o capuz para a cabeça.

- Ora ainda bem! - resmuneou o frade. - O sacristão já fechou a porta do coro, agora não se sente o vento.

- Acorda, se quiseres - disse Chicot -, que presentemente pouco me importa.

- O Senhor ouviu a minha súplica - murmurou o frade -, e aquilo que tinha mandado para gelar as vinhas transformou-se em brando sopro.

Amén! - disse Chicot.

E fazendo dos guardanapos travesseiro, e um lençol da toalha, depois de ter arrumado as garrafas vazias e os pratos sujos, adormeceu ao lado do companheiro.

A claridade do dia, que lhe dava na cara, e a voz desabrida do estalajadeiro ralhando com os bichos da cozinha, conseguiram finalmente dispersar o denso vapor que obstruia as ideias de Gorenflot.

Ergueu a cabeça, e com o auxílio das duas mãos pôde, depois de alguns esforços baldados estabelecer-se a prumo sobre a parte do corpo que a previdente natureza destinou para o centro de gravidade do homem.

Depois de vencidas todas as dificuldades e de se achar assim colocado, começou Gorenflot a contemplar a confusão e desordem em que estava a louça, e depois lançou a vista para Chicot, o qual, deitado com um dos braços graciosamente curvado por cima da cabeça, via tudo não Lhe escapando um único movimento do frade; Chicot fingia dormir, e ressonava com uma tal naturalidade, que muita honra fazia ao famoso talento de imitação de que já por vezes temos falado.

- Já é dia claro! - exclamou o monge; - com a breca! Dia claro!... Penso que passei a noite aqui!.

E depois, coordenando as ideias:

- E a abadia! - disse ele. - Oh, oh!

E começou a apertar o cordão do hábito, que Chicot havia deixado solto.

- Estimo bem ter acordado - disse ele -, porque tive um sonho muito singular: parecia-me que tinha morrido, e que estava embrulhado numa mortalha cheia de nódoas de sangue.

Gorenflot não se enganava de todo: de uma das vezes que tinha acordado durante a noite pareceu-lhe, tonto como estava pelo sono e pelo vinho, que a toalha em que se achava envolvido era uma mortalha, e as manchas de vinho nódoas de sangue.

- Ainda bem que foi sonho - disse Gorenflot, olhando novamente em redor de si.

Neste exame os olhos fitaram-se-lhe outra vez em Chicot, o qual percebendo que o frade o observava ressonou com mais força ainda.

- Que belo espectáculo nos oferece um bêbado! - disse Gorenflot contemplando Chicot com admiração. - Que homem tão feliz - acrescentou ele -, que assim pode dormir descansado! Ah, bem se vê que não está na minha posição...

E soltou um suspiro, que podia servir de acompanhamento ao ressonar de Chicot, e que decerto teria acordado o gascão, se este estivesse dormindo deveras.

- Estava capaz de o acordar para lhe pedir o seu parecer. - disse o monge - ele é homem de bom conselho.

Chicot triplicou a dose, e os roncos, que já tinham chegado ao diapasão dum órgão, passaram a ser uma trovoada.

- Não - prosseguiu Gorenflot seria dar-lhe demasiada confiança. Eu sempre hei-de inventar alguma mentira sem que ele me ajude. Porém, seja qual for a mentira - continuou o monge -, parece-me que não escaparei ao calabouço. Contudo, não é o calabouço que me mete medo, mas o pão e água com que lá me hão-de obsequiar. Se ao menos eu possuísse algum dinheiro para seduzir o irmão carcereiro!.

Chicot, ouvindo isto, tirou com toda a subtileza da algibeira uma bolsa sofrivelmente recheada, e escondeu-a debaixo da barriga.

Esta medida preventiva foi tomada muito a tempo, pois Gorenflot, com a maior contrição, chegou-se ao amigo e murmurou estas palavras:

- Se ele estivesse acordado, estou certo de que não me havia de negar um escudo; porém o seu sono é sagrado para mim. e por isso não tenho remédio senão tirar-lho.

Depois de proferir estas palavras, Frei Gorenflot, que, depois de ter estado um instante sentado, acabava de ajoelhar, debruçou-se por cima de Chicot e introduziu-lhe a mão na algibeira.

O gascão não julgou necessário, apesar do exemplo que Lhe havia dado o companheiro, fazer uma interpelação ao seu demónio familiar; deixou-o apalpar à vontade as duas algibeiras do gibão.

- É coisa célebre - disse o frade -, nada nas algibeiras!. Ah, no chapéu, talvez. Enquanto o monge ia em busca do chapéu, Chicot despejou o conteúdo da bolsa na mão, e meteu-a, assim despejada e chata, na algibeira dos calções.

- Nada no chapéu também! - disse o frade. - Admira-me isto. O meu amigo Chicot, que é um doido de muito talento, não costuma sair de casa sem dinheiro! Ah, meu galo velho! - exclamou ele com um sorriso que Lhe dilatou a boca até às orelhas - lá me iam esquecendo os calções.

E, metendo a mão na algibeira dos calções de Chicot, tirou para fora a bolsa vazia.

- Santo nome de Jesus! - murmurou ele. - E quem há-de pagar a despesa?. Esta lembrança produziu no monge mui séria impressão, pois imediatamente se pôs de pé, e com passos ainda mal seguros, mas muito apressados, dirigiu-se para a porta, atravessou a cozinha sem dar cavaco ao estalajadeiro, que procurava entrar em conversa com ele, e pôs-se logo a andar.

Chicot tornou então a meter o dinheiro na bolsa, e esta na algibeira; e encostando-se à janela, onde já ia dando o sol, esqueceu-se de Gorenflot e ficou entregue a profundo meditar.

Entretanto, o irmão do peditório, com a sacola às costas, prosseguia no seu caminho com o espírito fortemente preocupado, porque Gorenflot ia dando tratos à imaginação para fabricar uma daquelas mentiras magníficas, próprias dum frade que volta duma patuscada ou dum soldado que faltou à chamada, mentiras que têm sempre o mesmo fundo e que só, diversificam no bordado, que é trabalhado segundo a fantasia dos que se vêem precisados de recorrer a elas.

As portas do convento pareceram de longe a Gorenflot mais sombrias do que o costume, e pareceu-Lhe também de mau agoiro a presença de vários frades que estavam conversando no adro e olhando ansiosamente de vez em quando para os quatro pontos cardeais.

Apenas ele desembocou da Rua de S. Tiago, o movimento que fizeram os frades no mesmo instante em que o avistaram, causou-Lhe o maior susto que experimentara na sua vida.

É de mim que estão Falando, disse lá consigo; apontam para mim, estão à minha espera! Fui procurado decerto esta noite; a minha ausência foi motivo de escândalo. Estou perdido!

Esta ideia transtornou-Lhe o juízo; lembrou-se de fugir; mas já vários religiosos vinham ao seu encontro, haviam de segui-lo provavelmente.

Frei Gorenflot não se iludia a seu próprio respeito; conhecia que não era apto para correr com velocidade; havia de ser agarrado, amarrado, e arrastado para o convento; preferiu resignar-se.

Adiantou-se, pois, cabisbaixo, para os seus companheiros, os quais pareciam hesitar em Lhe falar.

Ai de mim! disse Gorenflot, fingem que não me conhecem, está visto que estão receosos de se comprometerem. "

Finalmente um deles sempre se atreveu, e chegando-se a Gorenflot:

- Pobre irmão muito querido! - disse ele.

Gorenflot suspirou e levantou os olhos ao Céu.

- Já sabe que o prior está à sua espera? - disse outro.

Ah! Deus meu!

- É verdade - acrescentou um terceiro -; disse que o levassem à sua presença logo que voltasse ao convento.

Era isso mesmo que eu receava disse Gorenflot.

E mais morto do que vivo, entcou para dentro do convento, cuja porta logo se fechou.

- Ah! - exclamou o irmão porteiro - depressa! O Prior José Foulon está esperando pelo senhor.

E o irmão porteiro, agarrando na mão de Gorenflot, conduziu-o, ou, para melhor dizer, arrastou-o, até ao quarto do prior.

Ali também as portas se fecharam.

Gorenflot baixou os olhos, receando encontrar o olhar irado do abade; sentia-se só, abandonado por todos, e na presença dum superior que devia estar, com toda a razão, muito irritado contra ele.

- Ah, é o senhor, finalmente! - disse o abade.

- Meu Reverendo. - balbuciou o monge.

- Que desassossego em que temos estado por sua causa! - disse o prior.

- Como hei-de agradecer-lhe tanta bondade, meu padre? - replicou Gorenflot, pasmado de ver a indulgência com que o abade o tratava.

- Teve receio de voltar para o convento depois da cena desta noite, não é assim?

- Confesso que não me atrevi a voltar - disse o monge, cuja testa se ia humedecendo de suor frio.

- Ah, meu caro irmão, meu caro irmão! - disse o abade. - O passo que deu foi muito imprudente e irreflectido.

- Permita que eu Lhe explique, meu padre.

- Para que me servem as suas explicações? A sua saída.

- Não quer que eu Lhe dê explicações? - disse Gorenflot; - melhor, porque na realidade nem eu sei o que hei-de dizer.

- Eu avalio perfeitamente o motivo que o induziu a falar daquela maneira. Foi um momento de exaltação; arrastou-o o entusiasmo; a exaltação é uma virtude muito santa, e o entusiasmo um sentimento sagrado; mas as virtudes, quando são levadas ao excesso, degeneram quase em vícios; os sentimentos mais louváveis, sendo exagerados. tornam-se repreensíveis.

- Peço perdão, meu padre - disse Gorenflot -, ainda não percebo bem a que pretende aludir. Qual é a saída em que me fala?

- Da que fez a noite passada.

- Para fora do convento? - perguntou o frade com timidez.

- Não; aqui mesmo no convento.

Gorenflot coçou a ponta do nariz. Ia começando a desconfiar que estava jogando com o prior o jogo dos disparates.

- Eu prezo-me de ser tão bom católico como o senhor, e contudo a sua audácia assustou-me.

- A minha audácia? - disse Gorenflot. - Visto isso, mostrei-me muito audaz?.

- Foi mais do que audácia, meu filho, foi temeridade!

- Desculpe, meu padre, atendendo a que fui impelido por este meu génio fogoso, que ainda não consegui domar completamente; mas prometo que me hei-de emendar.

- Sim, mas entretanto não posso deixar de recear as consequências que de uma tal estralada venham a resultar para o senhor e para nós. Se o negócio tivesse sido só entre nós, pouco importava.

- Como? - disse Gorenflot. - Pois é coisa que se saiba no público?.

- Que dúvida! Bem sabia que estavam ali mais de cem seculares, a quem não escapou uma única palavra do seu discurso.

- Do meu discurso? - exclamou Gorenflot cada vez mais admirado.

- Confesso que o discurso era bom, conheço muito bem que os aplausos deviam necessariamente causar-Lhe certa embriaguez, e que a aprovação unânime da assembleia havia de exaltar-Lhe por força a imaginação; mas chegar ao ponto de propor uma procissão pelas ruas de Paris!. Ao ponto de se oferecer para vestir uma couraça e chamar às armas os bons católicos, apresentando-se com o capacete na cabeça e a partazana às costas, há-de convir comigo que foi excesso de zelo!

Gorenflot olhava para o prior abrindo muito os olhos, que Lhe iam passando por todas as gradações da admiração.

- Ora pois - prosseguiu o prior -, há um meio de conciliarmos tudo. Essa seiva religiosa que fermenta no seu coração generoso, ser-Lhe-á nociva em Paris, onde tanta gente mal-intencionada o espreita. Desejo que passe a ir gastá-la.

- Onde, meu padre? - perguntou Gorenflot, persuadido de que ia dar um passeio até ao calabouço.

- Na província.

- Um degredo! - exclamou Gorenflot.

- Se aqui Ficar, poder-Lhe-á suceder muito pior, caríssimo irmão.

- E que julga pois que poderá suceder-me?

- Um processo-crime, do qual Lhe resultará, com toda a probabilidade, uma prisão eterna, se escapar à pena última.

Gorenflot enFiou por uma maneira espantosa; não podia compreender como era que se achava incurso nas penas de prisão perpétua ou de morte por se ter embriagado numa taberna e ter passado uma noite fora do convento.

- Caríssimo irmão, este degredo, ao qual lhe peço que se resigne, não somente o livrará do perigo iminente de que está ameaçado, mas também Lhe proporcionará uma ocasião de plantar o estandarte da Fé na província; o que Fez e disse a noite passada é muito perigoso, e mesmo impossível, aqui debaixo das vistas de el-rei e dos seus favoritos, mas na província é empresa de fácil execução. Vá pois quanto antes, Frei Gorenflot; até receio que já seja tarde, e que os quadrilheiros tenham recebido ordem para o prender.

- Ora essa, meu Rev. o Padre, que está dizendo? - balbuciou o monge, esbugalhando muito os olhos, porque à medida que o prior, de quem ele a princípio tanto tinha admirado a placidez, ia Falando, espantava-se das proporções gigantescas que havia tomado um pecado muito venial, afinal de contas. - Os quadrilheiros, disse o senhor; e que tenho eu com os quadrilheiros!

- O meu irmão não tem nada com eles; mas pode muito bem ser que eles tenham alguma coisa com o senhor.

- Então houve quem me denunciasse - disse Frei Gorenflot.

- Era capaz de apostar que assim foi; vá pois, vá...

- Quer que eu parta, meu Reverendo? - disse Gorenflot consternado. - Isso é muito fácil de dizer; mas como hei-de eu viver depois de sair daqui?

- Não há coisa mais fácil. É o irmão do peditório deste convento; eis aí os seus meios de existência. O seu peditório serviu até ao dia de hoje para sustentar os mais; servirá de ora em diante para o seu sustento. E demais, fique descansado a esse respeito, porque o sistema que nos apresentou há-de granjear-Lhe tantos partidários na província, que estou certo de que lhe não há-de Faltar coisa alguma. Mas vá, por Deus, vá, e sobretudo não volte sem ser avisado.

E o prior, depois de ter abraçado Frei Gorenflot com muita ternura, Foi-o levando brandamente, mas com uma persistência que Foi coroada do melhor êxito, até à porta da cela.

Ali estava reunida toda a comunidade, à espera de Gorenflot.

Apenas o avistaram, todos correram para ele, procurando cada um dos frades tocar-lhe nas mãos, no pescoço ou no fato. Alguns levavam a veneração a ponto de lhe beijarem a fímbria do hábito.

- Adeus - dizia um deles, apertando-o de encontro ao coração - adeus! É um santo homem, lembre-se de mim nas suas orações.

Era o que me Faltava ouvir! dizia Gorenflot consigo, um santo homem, eu? ainda agora tal sei.

- Adeus - dizia outro, agarrando-Lhe na mão -, valente campeão da Fé, adeus! Godefroy de Bouillon foi um ente insigniFcante em comparação com o nosso irmão!

Adeus, pobre mártir! - dizia um terceiro, beijando-Lhe a extremidade do cordão; ainda vivemos aqui nas trevas, mas um dia há-de vir em que a luz brilhará.

E Gorenflot, assim abraçado, beijado, e obsequiado com vários epítetos, foi chegando insensivelmente até à porta da rua, que se fechou apenas ele a transpôs.

Gorenflot olhou um instante para a porta com uma expressão indefinível, e acabou por sair de Paris recuando, como se o anjo exterminador o fosse repelindo com a ponta da espada chamejante.

As únicas palavras que Lhe escaparam quando se afastou da porta, foram estas:

- Ou o diabo me leve, ou todos eles estão doidos E se o não estão, misericórdia, meu Deus porque então Fui eu que endoideci!

 

         COMO SUCEDEU QUE FREI GORENFLOT FICOU CAPACITADO DE QUE ERA SONAMBULO, E O DESGOSTO QUE LHE CAUSOU SEMELHANTE ENFERMIDADE

Até ao dia nefasto a que chegámos, dia que vira começar tão inesperada perseguição contra o pobre monge, Frei Gorenflot levara sempre uma vida contemplativa em toda a acepção da palavra; isto é, saía de manhã cedo quando queria andar pela fresca, mais tarde, quando desejava tomar o sol; e, confiando sempre em Deus e no cozinheiro da abadia, não tinha outras distracções a não ser as que ia procurar de vez em quando na estalagem da Cornucópia: essas mesmas distracções estavam sujeitas ao capricho dos fiéis, por isso que para elas corriam as esmolas de dinheiro dos que Frei Gorenflot obrigava a fazerem alto quando passavam pela Rua de S. Tiago; acabada a estação, prosseguiam as mesmas esmolas no seu caminho para o convento, mas sempre diminuídas da soma que Frei Gorenflot tinha extraviado. Também o desinquietava às vezes o seu amigo Chicot, o qual gostava de bons jantares e de convivas folgazões; mas Chicot era muito extravagante no seu modo de viver.

O frade encontrava-o às vezes três ou quatro dias a fio, e depois passavam-se quinze dias, um mês, ou seis semanas, sem que tornasse a aparecer, ou fosse por estar fazendo companhia ao rei, ou por ter ido com ele a alguma romaria, ou finalmente por ter empreendido alguma digressão por sua própria conta e risco.

Gorenflot era pois um daqueles frades para quem (à semelhança de certos soldados Filhos do regimento) o mundo começava no superior da casa, ou por outra, no coronel do convento, e acabava no caldeirão do rancho. E por isso, aquele soldado da Igreja, aquele filho do hábito, se nos é lícito aplicar-lhe a expressão pitoresca de que há pouco nos servimos falando dos defensores da pátria, nunca tinha imaginado que havia de chegar um dia em que Lhe seria preciso pôr- se a caminho para encetar a árdua carreira das aventuras.

Ainda se tivesse algum dinheiro à sua disposição, vá; mas a resposta do prior ao seu pedido tinha sido muito simples e sem ornatos apostólicos, como um fragmento do Evangelho de S. Lucas:

- Procura e encontrarás.

Gorenflot, quando se lembrava que havia de ser obrigado a ir procurar o sustento muito longe, sentia-se cansado mesmo antes de começar.

Contudo, o essencial para ele era pôr-se quanto antes a salvo do perigo de que estava ameaçado, e que não deixava de ser muito sério, segundo tinha coligido das palavras do prior.

O pobre frade não era homem que pudesse disfarçar o seu físico e escapar às investigações a favor de alguma metamorfose engenhosa; resolveu pois retirar-se quanto antes, e, pondo logo em prática tão acertada resolução, saiu com passo apressado pela Porta Bordelle, passou com toda a cautela pela estação dos guardas nocturnos e pelo corpo de guarda dos suíços sempre receando que os quadrilheiros em que lhe tinha falado o abade de Santa Genoveva o prendessem.

Porém, apenas se viu ao ar livre e a quinhentos passos das portas da cidade, tendo dos lados da estrada, à maneira dum grande sofá, a primeira camada de erva da Primavera; quando viu o Sol radiante no horizonte e uma completa solidão à direita e à esquerda, só interrompida pelo longínquo murmúrio da cidade, sentou-se à borda da estrada, encaixou a dúplice barba na gorda e alentada mão, coçou com o dedo índex da outra mão a extremidade quadrada dum nariz de cão dogue, e entregou-se a uma profunda meditação acompanhada de gemidos.

À excepção da cítara, que não tinha, Frei Gorenflot fazia lembrar um daqueles hebreus que, suspendendo as harpas nos salgueiros, serviram de texto, no tempo da desolação de Jerusalém, ao famoso versículo Superflumina Babylonis, e de assunto a miríades de painéis melancólicos.

A aflição de Gorenflot subia de ponto ao ver que estavam quase dando as nove da manhã, hora a que no convento costumava almoçar; porquanto os frades, sempre em atraso da civilização, como é próprio de gente que morreu para o mundo, observavam ainda, no ano do Senhor de 1378, os usos do bom rei Carlos V, o qual almoçava às oito horas da manhã, logo depois da missa.

Mais fácil tarefa seria contar os grãos de areia levantados pelo vento à borda do mar num dia de tempestade, do que enumerar as ideias contraditórias que vieram, em chusma, desabrochar no cérebro de Gorenflot assim em jejum.

A primeira de todas, e a que mais lhe custou a repelir para longe de si, foi a de voltar para Paris, ir direito ao convento, declarar ao abade que preferia o calabouço ao degredo, e que estava pronto a consentir, se preciso fosse, que lhe dilacerassem a pele com umas disciplinas, ou mesmo com um azorrague, e que o metessem até num in pace, contanto que lhe jurassem que lhe haviam de dar de comer, resignando-se ele, se assim o exigissem, a comer cinco vezes ao dia unicamente.

A esta ideia tão teimosa, que ocupou durante mais dum quarto de hora a imaginação do pobre frade, seguiu-se outra um pouco mais razoável; era ir à estalagem da Cornucópia mandar recado a Chicot, caso não o encontrasse ainda lá a dormir, e expor-Lhe a deplorável situação a que o haviam reduzido as suas sugestões, a que ele, Gorenflot, tinha tido a fraqueza de anuir; e tratar de obter daquele generoso amigo uma pensão alimentícia.

Este plano ocupou Gorenflot durante outro quarto de hora, porque o frade tinha um espírito muito judicioso, e a ideia não era desprovida de mérito.

Ocorreu-lhe finalmente outra lembrança, que tinha o seu tanto de atrevida: era rodear os muros da capital, tornar a entrar em Paris pela Porta de S. Germano, ou pela Torre de Nesle e continuar clandestinamente o seu peditório.

Ele já conhecia os bons sítios, os cantos férteis, as travessas onde certas comadres criavam apetitosas galinhas e sempre tinham de parte alguma que tinha morrido afogada pela gordura que reservavam para deitar na sacola do irmão do peditório; via também, no grato espelho das suas recordações, certa casa apalaçada onde costumavam fabricar, durante o Verão, doces de toda a qualidade, com o único fim (pelo menos, Frei Gorenflot assim imaginava) de atirar para dentro da sacola do peditório, em troca da bênção paternal do portador, uma porção de marmelada bem seca, uma dúzia de nozes cobertas, ou uma caixa de maçãs passadas, cujo cheiro só por si era capaz de fazer crescer água na boca a um moribundo.

Porque, é forçoso confessá-lo, todas as ideias de Frei Gorenflot eram principalmente tendentes aos prazeres da mesa e às doçuras do descanso, de forma que não podia deixar de pensar de vez em quando, com algum receio, nas armas que a sua conduta ministrava aos dois advogados do Diabo, chamados preguiça e gula, que no dia de juízo haviam de pleitear contra ele.

Entretanto, o estimável monge sempre ia seguindo, apesar dos seus remorsos, a florida vereda que termina no abismo sem fundo onde aqueles dois pecados mortais urram sem cessar, à semelhança de Caríbdis e Cila.

Este último plano era o que mais Lhe agradava, por ser o género de vida a que ele se julgava destinado pela natureza; mas para o pôr em execução e seguir este modo de vida, precisava conservar-se em Paris, expor-se a encontrar a cada passo os quadrilheiros, os beleguins e as autoridades eclesiásticas, sociedade muito perigosa para um frade vagabundo.

E, além destes, ainda se oferecia outro inconveniente: o tesoureiro do Convento de Santa Genoveva era um administrador tão previdente, que não havia de deixar por certo de preencher o lugar de irmão do peditório; Gorenflot ia arriscar-se, por conseguinte, a encontrar cara a cara um colega que viria a ter sobre ele a incontestável superioridade de se achar no legítimo exercício das suas funções.

Esta lembrança fez estremecer Gorenflot, e não foi sem alguma razão.

O frade tinha chegado a este ponto dos seus monólogos e dos seus temores, quando viu apontar ao longe, por baixo da Porta Bordelle, um cavaleiro que em breve a transpôs a galope.

O homem em questão apeou-se ao pé duma casa situada a cem passos, pouco mais ou menos, do sítio onde Gorenflot estava sentado; bateu à porta; abriram-lha, e tanto o cavalo como o cavaleiro desapareceram para dentro da casa.

Gorenflot notou esta circunstância, porque tinha invejado a felicidade daquele cavaleiro, o qual possuía um cavalo, e por consequência podia vendê-lo.

Porém, passado um instante, o mesmo cavaleiro, que Gorenflot muito bem conheceu pelo capote, saiu da casa, e encaminhando-se para um grupo de árvores que ficava a alguma distância e diante das quais havia um monte de pedras, entrincheirou-se entre as árvores e aquele baluarte de nova espécie.

Aquilo é por certo alguma espera, murmurou Gorenflot. Se eu não me tivesse tornado tão suspeito aos oficiais de justiça, iria avisá-los; e se fosse mais valente, eu mesmo me havia de opor. "

Naquele momento, o homem emboscado, que só tirara os olhos das portas da cidade para examinar os arredores do sítio onde estava com certa inquietação avistou, num dos rápidos olhares que lançava para a direita e para a esquerda, Frei Gorenflot, sempre sentado e com a barba encostada à mão.

Aquela aparição pareceu causar-lhe algum constrangimento; e Fingiu que andava passeando com indiferença por detrás das pedras.

Aquele modo de andar, disse consigo Gorenflot, aquela figura. está-me parecendo que já vi aquele homem. mas não, é impossível.

Naquele instante, o desconhecido, que estava de costas voltadas para Gorenflot, abaixou-se de repente como se Lhe tivessem faltado as pernas.

Acabava de ouvir o estrondo de ferraduras de cavalos que vinham saindo das portas da cidade.

E com efeito, três homens, dois dos quais pareciam lacaios, três alentadas mulas e três malas volumosas, vinham caminhando vagarosamente para fora de Paris pela Porta Bordelle.

O homem que estava por detrás das pedras, apenas os avistou, abaixou-se ainda mais, e andando quase de rastos, meteu-se por entre as árvores e escondeu-se atrás da maior, na posição dum caçador à espera.

A cavalgada passou sem o ver, ou pelo menos sem reparar nele, enquanto o homem emboscado, pelo contrário, pareceu querer devorá-la com os olhos.

Fui eu que obstei a que se perpetrasse um crime, pensou Gorenflot, e a minha presença aqui na estrada, precisamente nesta ocasião, foi uma manifestação da vontade divina; bem precisava eu de outra igual que me desse em resultado um almoço.

Logo que passou a cavalgada, o espreitador voltou para a casa de onde saíra.

Bom, disse Gorenflot, se não me engano, eis uma circunstância que me há-de dar em resultado os meios de satisfazer o meu apetite. O homem que espreita não deseja ser visto.

É um segredo de que Fico possuidor, e ainda que não me renda senão seis dinheiros, estou resolvido a fazê-lo pagar!

E Gorenflot, sem mais demora, dirigiu-se para a casa; mas à medida que se ia aproximando vinha-Lhe à lembrança o garbo militar do cavaleiro, a comprida durindana que Lhe batia nas barrigas das pernas, e o olhar terrível que ele lançara aos homens que acabavam de passar; e concluía dizendo consigo:

Parece-me afinal que me enganei, e que o homem não é têmpera tal que tenha medo de mim. "

Quando chegou à porta, já Gorenflot ia de todo convencido, e não era a ponta do nariz que coçava, mas sim a orelha.

De repente brilharam-Lhe os olhos.

Ocorre-me uma ideia" disse ele consigo.

A aparição duma ideia no cérebro obtuso do frade era um tal acontecimento, que ele mesmo se admirou que ela Lhe tivesse ocorrido; mas já naquele tempo se costumava dizer que a necessidade é mãe da indústria.

Ocorre-me uma ideia, repetiu ele, e é uma ideia que não deixa de ser engenhosa. Hei-de dizer-lhe: Senhor, todo o homem tem os seus projectos, os seus desejos, as suas esperanças; dê-me alguma coisa, que eu prometo orar a Deus pelo bom êxito dos seus projectos. Se os seus projectos são maus, como eu estou convencido que são, há-de carecer necessariamente de que peça a Deus por ele, e, para o conseguir, dar-me-á uma esmola. E eu hei-de submeter este caso à consideração do primeiro teólogo que encontrar. Porque não estou certo se é licito orar a Deus em favor do bom êxito de projectos que nos são desconhecidos, quando desconfiamos que não são louváveis. Farei depois o que me disser o teólogo; por conseguinte não ficarei sendo eu o responsável, mas sim ele; e se não encontrar nenhum teólogo, então, nesse caso, como fica subsistindo a minha dúvida, abster-me- ei. Entretanto, irei almoçar com a esmola do homem mal-intencionado.

Em consequência desta resolução, Gorenflot encostou-se à parede e esperou.

Dali a cinco minutos abriu-se outra vez a porta, e tornaram a aparecer o cavalo e o cavaleiro.

Gorenflot aproximou-se.

- Senhor - disse ele -, se julga que cinco pais-nossos e cinco ave-marias possam contribuir para o bom êxito dos seus projectos...

O homem voltou-se para Gorenflot.

- Gorenflot por aqui? - exclamou ele.

- O Sr. Chicot!... - disse o frade muito espantado.

- Onde diabo vais tu assim, compadre? - perguntou Chicot.

- Nem eu mesmo sei; e o senhor, onde vai?

- Eu sei muito bem para onde vou - respondeu Chicot -, vou caminhando sempre em frente.

Até muito longe?

- Até parar. Porém tu, compadre, visto não quereres dizer-me para que fim estás neste lugar, dás-me motivo a desconfiar duma coisa.

- Que é?

- É que me estavas espreitando.

- Santo nome de Jesus! Eu, fazer de espião? Deus me livre de tal! É verdade que o vi, e mais nada.

- Viste-me, quando?

- Quando estava à espera de ver passar as mulas.

- Estás doido.

- Pois não estava por detrás daquelas pedras olhando atentamente para os homens que passavam?.

- Enganas-te, Gorenflot; eu te digo porque ali fui: tenho tenção de mandar construir uma casa fora de portas para minha habitação; aquela pedra de alvenaria pertence-me, e estava-me certificando se era de boa qualidade.

- Então já o caso muda de Figura - replicou o frade, o qual não engoliu contudo a peta que Lhe pregou Chicot -; foi engano meu.

- Mas tu, finalmente, que fazes por aqui, fora da cidade?

- Ah! Sr. Chicot, estou proscrito - respondeu Gorenflot com um enorme suspiro.

- Hem? - disse Chicot.

- Estou proscrito torno a dizer.

E Gorenflot, traçando o hábito, empertigou o curto e reforçado busto e balanceou a cabeça de diante para trás com o olhar imperioso do homem a quem uma grande catástrofe autoriza a reclamar a compaixão dos seus semelhantes.

- Os meus irmãos rejeitaram-me do seu grémio - prosseguiu ele -; fui excomungado, anatematizado.

- Deveras? E por que motivo?

- Ouça-me, Sr. Chicot - disse o frade levando a mão ao coração -: ou me acredite, ou não, juro-Lhe, à fé de Gorenflot, que não sei por que foi.

- Quem sabe se foi por teres sido encontrado em alguma casa a maganear a noite passada, compadre.

- Isso é uma graça pesada - disse Gorenflot o senhor sabe tão bem como eu o que tenho feito desde ontem à noite.

- Sei muito bem - replicou Chicot - o que fizeste desde as oito horas até às dez; mas não desde as dez até às três.

- Como? Desde as dez horas até às três?

- Decerto, pois saíste às dez horas.

- Eu? - exclamou Gorenflot olhando muito admirado para o gascão.

- Tanto assim é que até te perguntei onde ias.

- Onde ia? Fez-me essa pergunta?.

- Fiz, sim!

- E eu respondi-lhe?

- Respondeste-me que ias proferir um discurso.

- Há seus vislumbres de verdade em tudo isso. - murmurou Gorenflot.

- Boa dúvida! É tão verdade, que me recitaste parte do teu discurso; era muito extenso.

- Era dividido em três partes, segundo as regras de Aristóteles.

- Havia mesmo no tal discurso algumas frases terríveis contra el-rei Henrique III.

- Qual história! - disse Gorenflot.

- Tão terríveis, que não me admiraria por certo se te mandassem prender como excitador de tumultos.

- Sr. Chicot, acabou agora de me abrir os olhos; pareceu-Lhe que eu estava acordado quando lhe falei?

- Devo confessar-te, compadre, que estavas com uma aparência muito singular... o teu olhar, especialmente, tinha uma fixidez que chegou a assustar-me; dir-se-ia que estavas acordado sem o estar, e que falavas a dormir...

- Contudo - disse Gorenflot -, estou muito bem certo de ter acordado esta manhã na estalagem da Cornucópia; não foi sonho meu.

- Então achas que isso seja alguma admiração?

- É, sim, motivo de admiração para mim, visto dizer que saí da estalagem às dez horas.

- É verdade, mas voltaste às três horas da madrugada; e para prova, dir-te-ei que deixaste a porta aberta, em virtude do que eu rapei um grande frio.

- E eu também - disse Gorenflot -; lembro-me dessa circunstância.

- Ora aí está! - replicou Chicot.

- Se isso que diz é verdade...

- Como? Se o que te digo é verídico, compadre? É a verdade pura! Vai perguntar a mestre Bonhomet.

- A mestre Bonhomet?

- Sem dúvida, pois foi ele quem te abriu a porta. Dir-te-ei mais, que vinhas inchado de Orgulho quando voltaste, e que eu te gritei: A soberba, compadre, está mal a todo o homem e muito pior ainda a um frade. "

- E qual era o motivo da minha soberba?

- Era o acolhimento que tinha tido o teu discurso, e os parabéns que te tinha dado

O duque de Guisa, o cardeal e o Sr. de Maiena, a quem Deus guarde! - acrescentou o gascão tirando o chapéu.

- Agora já fico percebendo tudo - disse Gorenflot.

- Ora ainda bem; confessas, pois, que foste à tal reunião... que diabo de nome Lhe davas tu?... Ah, agora me recordo, a assembleia da Santa União. Era isso mesmo.

Gorenflot deixou pender a cabeça sobre o peito e soltou um gemido.

- Sou sonâmbulo - disse ele -; há muito tempo que desconfiava disso.

- Sonâmbulo? - repetiu Chicot - que quer isso dizer?

- Quer dizer, Sr. Chicot - respondeu o monge -, que no meu indivíduo o espírito domina a matéria, a ponto tal que, enquanto a matéria dorme, o espírito vela; e que então

O espírito impera na matéria, obrigando-a a obedecer-lhe apesar de estar adormecida.

- Pois, compadre - disse Chicot -, isso assemelha-se muito a magia; se acaso estás possesso, diz-mo com franqueza; um homem que anda a dormir, que gesticula a dormir, e que ainda a dormir recita discursos hostilizando o rei, não é coisa natural; fora daqui, Belzebu!

Vade retro, Satanás!

E Chicot, dizendo isto, obrigou o cavalo a pular para o lado oposto.

- Visto isso - disse Gorenflot -, também me abandona, Sr. Chicot...

Ah... ah, um tal procedimento não esperava eu encontrar no senhor!

E o monge, no auge da desesperação, procurou fingir um soluço.

- Chicot teve dó daquela imensa desesperação, que parecia mais terrível ainda por ser reprimida.

- Vamos lá - replicou ele -, que me disseste tu?

- Quando?

- Ainda agora.

- Confesso que já não me lembra; parece-me que endoideço, sinto a cabeça pesada e o estômago vazio; guie as minhas ideias, Sr. Chicot.

- Falaste-me em viajar.

- É verdade, disse-lhe que o Rev. Prior me tinha convidado a ir viajar.

- Para onde? - perguntou Chicot.

- Para onde eu quisesse - respondeu o frade - E para onde te diriges tu?

- Não sei.

Gorenflot levantou as mãos ao Céu.

- Entrego-me à mercê de Deus! - disse ele. - Sr. Chicot, empreste-me dois escudos para ajuda da minha jornada.

- Farei mais do que pedes - disse Chicot.

- Ah, diga-me, que pretende fazer?

- Eu também vou de jornada, como já te disse.

- Não há dúvida, assim mo disse.

- Queres ser meu companheiro de viagem?

Gorenflot encarou o gascão com desconfiança, como não se atrevendo a acreditar em semelhante felicidade.

- Mas há-de ser com a condição de teres mais juízo; e em troco dou-te licença para cometeres quantas impiedades te lembrarem. Aceitas a minha proposta?

- Se aceito - disse o monge -, se aceito!. Porém, julga que teremos dinheiro suficiente para a jornada?

- Olha - disse Chicot puxando por uma bolsa muito sofrivelmente recheada. Gorenflot deu um pulo de alegria.

- Quanto está aí dentro? - perguntou ele.

- Cento e cinquenta peças de ouro, de dez francos cada uma.

- E onde vamos nós?

- Tu verás, compadre.

- Quando almoçaremos?

- Imediatamente.

- Mas em que hei-de ir montado? - perguntou Gorenflot.

- Não há-de ser no meu cavalo, por certo, que eras capaz de o rebentar.

- Mas então - disse Gorenflot algum tanto perplexo -, como há-de ser?

- Deixa o caso por minha conta; tens uma barriga tamanha como a de Sileno, és bêbado como ele. Para te pareceres com ele, comprar-te-ei um burro.

- É o meu rei, Sr. Chicot; é o meu sol. Escolha um burro algum tanto reforçado. É o meu deus! Agora diga-me, onde vamos nós almoçar?

- Aqui, com o demónio, aqui mesmo. Olha para o letreiro que está por cima daquela porta, e lê-o, se é que sabes ler.

E com efeito, estavam em frente duma espécie de estalagem. Gorenflot seguiu com a vista a direcção que Chicot Lhe indicava com o dedo, e leu:

Aqui vendem-se presuntos, ovos, empadinhas de enguias, e vinho branco. Não é fácil descrever a transformação que se manifestou no parecer de Gorenflot quando acabou de ler; o rosto animou- se-Lhe, os olhos esbugalharam-se-lhe, a boca escancarou-se-lhe, deixando ver duas fileiras de dentes brancos e esfaimados.

Finalmente levantou ao ar os dois braços em sinal de agradecimento, e, balanceando o enorme corpo com cadência, começou logo a entoar uma cantiga imprópria da boca dum religioso, e a que só poderia servir de desculpa o transporte de alegria a que estava entregue.

- Muito bem! - exclamou Chicot. - Mas para não perdermos tempo, senta-te já à mesa, meu caro irmão. Vou mandar que te tragam o almoço, e depois irei em procura dum burro para ti.

 

         COMO FOI QUE FREI GORENFLOT VIAJOU MONTADO NUM BURRO CHAMADO PANURGO, E VEiO A SABER DURANTE A JORNADA MUITA COISA QUE IGNORAVA

O motivo por que Chicot se mostrava indiferente para com o próprio estômago, que ele tratava sempre com a maior consideração, apesar da sua loucura, verdadeira ou fingida, era porque tinha almoçado copiosamente antes de sair da estalagem da Cornucópia.

E além disso, diz o ditado que as grandes paixões sustentam: e Chicot estava naquele momento devorado por uma grande paixão.

Mandou portanto sentar Frei Gorenflot a uma das mesas da estalagem, sobre a qual lhe apresentaram presunto, ovos e vinho, que o frade começou a aviar com a celeridade do costume.

Chicot tinha ido entretanto indagar pela vizinhança se haveria um burro que servisse para o seu companheiro; encontrou finalmente em casa duns camponeses de Sceaux, entalado entre um boi e um cavalo, o jumento pacífico, objecto dos desejos de Gorenflot; tinha quatro anos; era de cor pardacenta, e possuía um lombo bastante redondo, posto sobre quatro pernas delgadas como fusos. Naquele tempo, um burro assim valia vinte libras.

Chicot deu por ele vinte e duas, e aquela pobre gente ficou pasmada de tanta generosidade. Quando Chicot voltou com a sua aquisição, que introduziu no mesmo quarto térreo onde estava almoçando Gorenflot, este, que então acabava de engolir a metade duma empada e de despejar a terceira garrafa, entusiasmado à vista da sua cavalgadura, e, além disso, disposto à ternura pela quantidade de vinho generoso que tinha absorvido, saltou ao pescoço do burro; e depois de lhe ter beijado as duas queixadas, meteu entre elas uma comprida côdea de pão, que fez zurrar o animal de contente.

- Oh! oh! - disse Gorenflot - que linda voz que tem este jumento! Havemos de cantar alguns duetos de vez em quando. Obrigado, amigo Chicot, obrigado.

E passou logo a baptizar o burro com o nome de Panurgo.

Chicot correu os olhos pela mesa, e conheceu que, sem receio de ser tachado de tirano, podia exigir que o seu companheiro fizesse ponto a respeito do almoço.

Disse-Lhe, pois, com aquele tom de voz a que Gorenflot não sabia resistir:

- Vamos; a caminho, compadre, a caminho. Jantaremos em Melun. O tom de voz de Chicot era tão imperioso, e ele tinha misturado tão destramente uma promessa consoladora no meio daquela ordem tão terminante, que Gorenflot, em lugar de lhe fazer alguma reflexão, repetiu:

- Vamos até Melun! Vamos até Melun!

E sem mais demora, Gorenflot, com o auxílio duma cadeira, trepou para cima do burro cujos arreios consistiam numa simples almoFada de couro, da qual pendiam duas correias que serviam de estribos.

O frade introduziu as alparcas nas correias, pegou com a mão direita na arreata do jumento encostou o punho esquerdo à anca, e saiu da estalagem com um ar tão majestoso como o deus da fábula a quem Chicot com alguma razão o havia comparado.

Quanto a Chicot, esse cavalgou com o desembaraço próprio dum perfeito cavaleiro, e logo ambos tomaram a trote o caminho de Melun.

Andaram assim quatro léguas duma tirada, e depois pararam para descansar um instante.

O frade tratou imediatamente de se estender ao sol, sobre a relva, para dormir.

Chicot entreteve-se em fazer um cálculo de distâncias, o qual lhe deu em resultado que, para andar cento e vinte léguas na razão de dez léguas por dia, precisava gastar doze dias.

Panurgo pastou desdenhosamente uma moita de cardos.

Dez léguas era o mais que razoavelmente se podia exigir das forças combinadas dum jumento e dum Frade.

Chicot abanou a cabeça.

Não é possível, murmurou ele olhando para Gorenflot, que dormia sobre a beira do fosso com tanta placidez como se fora numa foFa cama de penas, não é possível; se o mono do frade quiser acompanhar-me é indispensável que ande pelo menos quinze léguas por dia.

Já se vê que os pesadelos estavam formando parte da sina de Frei Gorenflot.

Chicot empurrou-o com o cotovelo para o acordar, a fim de lhe comunicar a sua observação.

Gorenflot abriu os olhos.

- Já chegámos a Melun? - disse ele. - Estou com muita fome.

- Não, compadre - disse Chicot -, ainda não, e é esse exactamente o motivo por que te acordei; é preciso que lá cheguemos quanto antes. Temos andado muito devagar, com a breca, muito devagar!

- E então, faz-Lhe pena que andemos devagar, meu caro Sr. Chicot? A estrada da vida é uma ladeira, visto que vai dar ao Céu, e as subidas sempre cansam. E demais, quem corre atrás de nós? Quanto mais tempo gastarmos no caminho, mais tempo estaremos na companhia um do outro. Acaso não ando eu viajando para a propagação da Fé, e o senhor para se divertir? Pois bem, quanto menos nos apressarmos, melhor se propagará a Fé, e mais o senhor se divertirá. Por exemplo: sou de parecer que nos demoremos alguns dias em Melun; tenho ouvido dizer que se fazem lá excelentes pastéis, e não se me dava de comparar conscienciosamente os pastéis de Melun com os das outras terras. Que me diz a isto, Sr. Chicot?

- Digo - replicou o gascão - que o meu parecer é, pelo contrário, que tratemos de caminhar o mais depressa que pudermos, que nos deixemos de jantar em Melun, reservando-nos para cear em Montereau, a fim de recuperarmos o tempo perdido.

Gorenflot olhou para o seu companheiro de jornada como quem não percebia bem.

- Vamos, a caminho, a caminho! - disse Chicot.

O frade, que estava estirado ao comprido, com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, limitou-se a sentar-se no mesmo lugar onde estava, e deu um gemido.

- E demais - prosseguiu Chicot -, se quer ficar para trás e viajar com todo o seu vagar compadre, não me oponho.

- Não senhor - disse Gorenflot, assustado com a ideia de se tornar a ver entregue ao mesmo abandono de que acabava de escapar milagrosamente -, não senhor! Quero acompanhá-lo, Sr. Chicot; sou demasiadamente seu amigo para o deixar.

- Pois então trate de montar, compadre, trate de montar.

Gorenflot puxou o burro para junto dum pedregulho, e conseguiu trepar para cima dele; desta vez, porém, não se escarranchou, mas sentou-se de lado à moda das senhoras; dizia ele que assim ficava mais comodamente para poder conversar. Mas o facto era que o monge tinha previsto que a cavalgadura ia ser obrigada a andar com maior velocidade, e sentando-se da quela forma ficava com dois pontos de apoio: as orelhas e o rabo.

Chicot meteu o cavalo a trote largo; o burro seguiu-o a zurrar.

Os primeiros movimentos causaram um choque terrível a Gorenflot; mas, por felicidade sua, a parte sobre a qual ele descansava tinha uma tal superfície, que não Lhe custava tanto como a qualquer outra pessoa a conservar o seu centro de gravidade.

De vez em quando, Chicot levantava-se sobre os estribos, examinava a estrada, e, não vendo no horizonte o que procurava, apressava ainda mais o trote do cavalo.

Gorenflot ia tão preocupado com o cuidado de se conservar sobre o jumento, que deixou passar estes primeiros sinais de investigação e de impaciência sem indagar a causa deles.

Mas quando finalmente se foi acostumando àquela andadura para ele tão desusada, e que pôde tomar o fôlego, vendo que Chicot continuava com o mesmo manejo, disse:

- Então que é isso que procura, meu caro Sr. Chicot?

- Nada - replicou este. - Estou vendo para onde vamos.

- Parece-me que vamos para Melun; o senhor mesmo o disse, e até acrescentou.

- Isto não é andar, compadre, isto não é andar! - disse Chicot, chegando as esporas ao cavalo.

- Como, isto não é andar? - exclamou o frade; - ainda não deixamos de trotar!

- A galope! A galope! - disse o gascão, Fustigando as pernas ao cavalo. Panurgo, levado do exemplo, também meteu a galope, mas com uma raiva mal disfarçada e que não era de bom agoiro para o cavaleiro.

As sufocações de Gorenflot aumentaram.

- Ora diga-me, Sr. Chicot, diga-me - gritou ele assim que pôde falar -: o senhor chama a isto uma digressão muito divertida?. pois eu declaro-Lhe que a mim não me diverte nada.

- Vamos para a Frente! Vamos para a Frente! - respondia Chicot.

- Mas a subida é muito áspera!

- Os bons cavaleiros só galopam nas subidas.

- Sim, porém eu não tenho a pretensão de ser bom cavaleiro.

- Pois então fique para trás.

- Isso não faço eu - bradou Gorenflot -, por nada deste mundo!

- Muito bem, então, como Lhe ia dizendo, vamos para a frente! Para a frente! E Chicot fustigou novamente as pernas ao cavalo.

- Olhe que Panurgo não pode já respirar! - gritou Gorenflot. - Olhe que fica parado!

- Nesse caso, adeus, compadre - disse Chicot.

Gorenflot teve vontade de lhe responder do mesmo modo; porém ocorreu-lhe logo que aquele cavalo que ele amaldiçoava de todo o coração, e que levava às costas um homem tão extravagante, levava também a bolsa na algibeira do homem. Resignou-se e batendo com os calcanhares na barriga do enfurecido jumento, obrigou-o a galopar também.

- Hei-de acabar por matar o meu pobre Panurgo! - exclamou o monge com voz lastimosa, para ver se despertava a sensibilidade de Chicot com o receio da perda do burro. Morre rebentado decerto!

- Pois deixa-o rebentar - respondeu Chicot sem abrandar o galope, apesar desta observação que Gorenflot julgava tão importante -; se ele morrer, compraremos uma mula.

O burro, como se houvera entendido estas palavras tão ameaçadoras para ele, saiu do centro da estrada, e começou a correr à desFilada por uma vereda lateral muito enxuta, mas pela qual ninguém se atreveria a caminhar a pé.

- Acuda-me! - bradava o frade. - Acuda-me, que vou cair ao rio!

- Não há perigo - disse Chicot -; se cair ao rio, afianço-lhe que há-de boiar sobre a água.

- Oh! - murmurou Gorenflot - desta feita morro por certo. E lembrar-me eu que isto me acontece por ser sonâmbulo!.

E o monge ergueu os olhos para o Céu com um modo que queria dizer: Senhor! Senhor, qual foi o crime que eu cometi, para ser castigado com esta enfermidade!

De repente, Chicot, que já tinha chegado ao Fim da subida, parou o cavalo com tamanha violência, que ele estacou imediatamente, curvando as pernas quase a ponto de tocar com o quarto traseiro no chão.

Gorenflot, que estava longe de ser tão bom cavaleiro como Chicot, e que, demais a mais, ia governando o jumento com uma arreata em lugar de rédea, prosseguiu no seu caminho.

- Pára, com todos os diabos, pára! - gritou Chicot.

Porém o burro tinha feito tenção de galopar, e é geralmente quando um burro é teimoso.

- Paras ou não! - bradou Chicot; - olha que se não paras, pela minha fé de cavaleiro, mando uma bala de pistola em tua procura!

Que diabo tem este homem? dizia consigo Gorenflot, e qual seria o cão que o mordeu? Mas como a voz de Chicot se tornava de momento para momento mais terrível, e ao monge já Lhe parecia ouvir sibilar a bala com que ele o ameaçara, tratou logo de executar uma manobra que Lhe era muito fácil do modo por que ia montado, que foi deixar-se escorregar do jumento para o chão.

- Ora aí está! - disse ele, deixando-se cair com toda a galhardia sobre o traseiro e agarrando-se com as mãos ambas à arreata do burro, que ainda o arrastou alguns passos assim, mas acabou por parar.

Gorenflot procurou com os olhos Chicot, para gozar dos sinais de satisfação que ele não podia deixar de mostrar no rosto, em vista duma manobra tão habilmente executada.

Chicot estava escondido por detrás dum rochedo, e dali continuava a fazer-lhe sinais e ameaças.

Tanta cautela deu a entender ao frade que havia alguma novidade. Olhou para a sua frente, e viu, à distância duns quinhentos passos, três homens que iam caminhando muito sossegadamente montados em mulas.

Logo à primeira vista conheceu que eram os viajantes que tinham saído aquela manhã de Paris pela Porta Bordelle, e que Chicot tinha estado a espreitar escondido atrás duma árvore.

Chicot conservou-se na mesma posição até que desapareceram os três viajantes; e só então voltou para junto do companheiro, o qual se tinha conservado sentado no mesmo sítio onde caíra, e sempre com a arreata de Panurgo na mão.

- Ora pois - disse Gorenflot, que começava a perder a paciência -, não me explicará, meu caro Sr. Chicot, que modo é este de fazer jornada? Ainda há pouco queria que corrêssemos a toda a brida, e afinal paramos aqui!

- Meu querido amigo - respondeu Chicot -, eu queria certificar-me se o seu jumento era de boa raça e se não tinha sido um roubo levarem-me por ele vinte e duas libras; está concluída a experiência, e estou muitíssimo satisfeito.

O frade, como bem se pode imaginar, não engoliu esta pílula, e dispunha-se a declará-lo ao companheiro; porém a sua preguiça natural prevaleceu, aconselhando-Lhe ao ouvido que não entrasse em discussão alguma.

Limitou-se pois a responder, sem ocultar o mau humor:

- Não me importa; estou muito cansado e com muita fome.

- Pois bem, não seja essa a dúvida - replicou Chicot dando uma palmada no ombro do frade. - Eu também tenho vontade de comer, e na primeira estalagem que encontrarmos.

- Que diz? - perguntou Gorenflot, custando-Lhe a acreditar na felicidade de que eram precursoras as palavras do gascão.

- Que digo? - replicou este. - Havemos de mandar fazer umas costeletas de carne de porco, ou dois frangos de fricassé, e havemos de beber um pichel do melhor vinho que houver na adega.

- Deveras? - perguntou Gorenflot; - isso sempre será certo, desta vez?

- Já te disse que sim, compadre.

- Muito bem, então - disse o frade levantando-se do chão -, tratemos quanto antes de procurar a tão desejada estalagem. Anda cá, Panurgo, hei-de dar-te sêmeas.

O burro zurrou logo de contente.

Chicot tornou a montar a cavalo. Gorenflot foi levando o burro pela arreata. A estalagem que procuravam em breve se ofereceu à vista dos dois viajantes; era situada entre Corbeil e Melun; mas, com grande surpresa de Gorenflot, que já de longe ia admirando o aspecto atraente da casa, Chicot determinou ao frade que tornasse a montar no burro, e começou a descrever um círculo sobre a esquerda para passar por trás da casa; Gorenflot, cuja compreensão ia fazendo rápidos progressos, logo percebeu num relance de olhos o motivo de semelhante extravagância; as mulas dos três viajantes, de quem Chicot parecia seguir o rasto, estavam paradas defronte da porta.

Visto isso, pensou Gorenflot, é a vontade daqueles amaldiçoados viajantes que dispõe os sucessos da nossa jornada e regula as horas da nossa comida. É triste coisa!

E suspirou profundamente.

Panurgo, porém, vendo que o afastavam da linha recta, que toda a gente, mesmo os burros, tem em conta de mais breve, estacou de todo, e firmou-se sobre as quatro patas, como se estivesse resolvido a não se mover do lugar onde se achava.

- Vê? - disse Gorenflot em tom de lamento. - Nem mesmo o burro já quer andar.

- Ah, não quer andar?. - disse Chicot. - Espera, espera!

E chegando-se a um zambujeiro, escolheu uma vara de cinco palmos de comprimento, da grossura duma polegada, rija e flexível ao mesmo tempo.

Panurgo não era daqueles quadrúpedes estúpidos que não prestam atenção ao que se passa em torno deles e que só dão fé dos acontecimentos quando os sentem de perto. Tinha seguido com a vista a acção de Chicot, por quem começava provavelmente a ter a consideração de que ele era merecedor, e logo que desconFiou das suas intenções, começou a mover as pernas e abalou a passo dobrado.

- Já anda, já anda! -, gritou o monge para Chicot.

- Não importa - respondeu este -, quem viaja em companhia dum frade e dum burro, sempre deve andar prevenido com um pau.

E o gascão acabou de cortar a vara.

 

         COMO FOI QUE FREI GORENFLOT TROCOU O BURRO POR UMA MULA, E A MULA POR UM CAVALO

Entretanto, as tribulações de Gorenflot estavam quase a finalizar, por aquele dia pelo menos; acabado o rodeio que tinham ido procurar, tornaram para a estrada real, e foram apear-se a uma estalagem que ficava distante da primeira três quartos de légua. Chicot pediu um quarto com janela para a estrada, e encomendou a ceia, que Lhe trouxeram ao quarto mas bem se conhecia que a nutrição era para Chicot uma preocupação muito secundária. Comia por de mais, e estava num contínuo desassossego, levantando-se ao menor rumor para ir espreitar à janela. Esta preocupação durou até às dez horas; porém como até então Chicot nada tivesse visto nem ouvido, deu-se por satisfeito, e determinou ao criado que deitasse dobrada ração de cevada ao seu cavalo e ao burro do frade, e que os tivesse aparelhados logo ao romper do dia.

Gorenflot, que parecia ter adormecido havia já uma hora, mas que estava apenas entregue à doce sonolência que resulta duma boa ceia acompanhada de razoável quantidade de vinho generoso, suspirou quando ouviu dar esta ordem tão decidida.

- Ao romper do dia? - perguntou ele.

- Então que admiração é essa? - replicou Chicot. - Deves estar acostumado a levantar- te antes do dia.

- Para quê? - perguntou Gorenflot.

- E as matinas?.

- Tinha uma dispensa do meu superior - respondeu o frade.

- Chicot encolheu os ombros, e a palavra mandriões veio expirar-lhe nos lábios.

- Seremos mandriões, muito embora - disse Gorenflot -, e por que não havemos de sê-lo?.

- O homem nasceu para os trabaLhos - respondeu sentenciosamente o gascão.

- E o frade para o descanso - replicou o monge o frade é uma excepção do homem. E, satisfeito deste argumento, que pareceu convencer o próprio Chicot, Gorenflot, saindo do quarto com dignidade, foi meter-se na cama que Lhe estava destinada, e que Chicot, provavelmente com receio que o frade cometesse alguma imprudência, mandara fazer no mesmo quarto em que tinha a sua.

No dia seguinte, logo ao romper da alva, se Frei Gorenflot não estivesse dormindo a sono solto, teria visto Chicot levantar-se da cama, chegar à janela, e postar-se em observação por detrás da cortina.

De repente, Chicot, apesar de que ninguém lhe podia ver o rosto, recuou rapidamente; e se Gorenflot, em vez de continuar a dormir, estivesse acordado, teria ouvido retinir sobre a calçada as ferraduras das três mulas.

Chicot foi direito a Gorenflot, e tanto lhe sacudiu o braço que este abriu os olhos.

- Não será possível que eu goze na minha vida dum instante de sossego?. - balbuciou Gorenflot que acabava de dormir dez horas a Fio.

- Alerta! Alerta! - disse Chicot. - Toca a vestir, e já a caminho!

- E o almoço? - perguntou o frade.

- Está esperando por nós na estrada de Montereau.

- Para que banda fica essa tal estrada de Montereau? - perguntou o frade, que era pouco forte em Geografia.

- Montereau - respondeu o gascão - é o lugar onde vamos almoçar; estás satisfeito com esta explicação?

- Estou - respondeu laconicamente Gorenflot.

- Pois então, compadre - tornou o gascão -, eu vou para baixo pagar a nossa despesa e a das cavalgaduras; e daqui a cinco minutos, se não estiveres pronto, abalo sem ti.

Os atavios dum frade não levam muito tempo a compor; contudo Gorenflot gastou seis minutos para se vestir.

E por isso, quando chegou à porta, viu que Chicot tinha cumprido o que dissera com pontualidade militar, e que já ia caminhando pela estrada fora.

O monge escarranchou-se no Panurgo, e este, animado pela duplicada ração de feno e de cevada que Chicot acabava de lhe mandar administrar, meteu a galope de seu moto próprio, e em breve se perfilou com o cavalo do gascão.

O gascão ia levantado sobre os estribos e com o corpo direito como um espeque. Gorenflot também se levantou, e viu no horizonte as três mulas e os três cavaleiros, que se iam sumindo por detrás dum outeiro.

O frade suspirou, por se lembrar quanto era triste que uma influência estranha tivesse tanto poder sobre o seu destino.

Chicot, desta vez, teve palavra e foram almoçar a Montereau.

O resto do dia assemelhou-se muito ao da véspera, e o imediato também apresentou, pouco mais ou menos, a mesma série de acontecimentos.

Pouparemos pois a descrição dos pormenores, e só diremos que Gorenflot se ia acostumando gradualmente aos inconvenientes da vida errante, tão nova para ele.

Quando chegou a tarde do terceiro dia, notou o frade que Chicot ia perdendo pouco a pouco toda a sua jovialidade; a causa desta mudança era que, desde o meio-dia, nunca mais tinha visto os três viajantes que seguia, nem sombra deles; e o resultado foi cear de mau humor e dormir pessimamente.

Gorenflot comeu e bebeu como dois, e entoou as suas mais lindas cantigas. Chicot conservou-se impassível.

Ainda bem não era dia, já ele estava a pé sacudindo o companheiro; o frade vestiu-se, e logo à saída da estalagem meteram a trote; mas este em breve se transformou num galope frenético.

Porém debalde correram: nada de mulas no horizonte.

Pela volta do meio-dia, nem cavalo nem burro já podiam dar um passo. Chicot foi directo a uma barraca onde se cobrava o direito de passagem do gado na Ponte de Villeneu-le-Roi.

- Viu acaso - perguntou ele ao recebedor - três viajantes montados em mulas, que devem ter passado por aqui esta manhã?

- Esta manhã, meu fidalgo, nada; - respondeu o recebedor - foi ontem que os vi.

- Ontem?

- Sim, ontem, pelas sete horas da noite.

- Reparou neles?

- Reparei que eram viajantes.

- Pergunto se está lembrado que qualidade de gente era.

- Parece-me que um deles era amo, e os outros dois criados.

- É isso mesmo - disse Chicot.

E deu um escudo ao recebedor.

Depois, falando consigo:

Ontem, às sete horas da noite, murmurou ele; com o demónio! Levam-me uma dianteira de doze horas. Ânimo, pois, vamos adiante! "

- Ouça-me, Senhor - disse o frade -, pela parte que me diz respeito, ainda tenho ânimo; mas pela que toca a Panurgo, acabou-se.

E com efeito, o pobre animal, estafado do muito que tinha andado os dois últimos dias, estava todo trémulo, e comunicava a Gorenflot a agitação em que tinha o corpo.

- E o seu cavalo também - prosseguiu Gorenflot -, veja o estado em que está.

E assim era; o cavalo de Chicot, apesar de todo o seu fogo, ou talvez por isso mesmo que era muito fogoso, estava branco de espuma e deitava nuvens de fumo pelas ventas, ao passo que os olhos pareciam próximos a saltarem-lhe fora das órbitas.

Chicot examinou num relance os dois animais, e pareceu conformar-se com a opinião do companheiro.

Gorenflot já começava a respirar, mas de repente:

- Ora pois, irmão do peditório - disse Chicot -, Trata-se agora de adoptarmos uma grande resolução.

- Há já uns poucos de dias que não fazemos senão adoptar resoluções! - exclamou Gorenflot cujo parecer logo se transtornou, se bem que ainda não sabia o que Lhe iam propor.

- É preciso tratarmos de nos separar - replicou Chicot sem mais preâmbulo.

- Bom - disse Gorenflot -, aí vem outra vez a mesma brincadeira. Separarmo-nos porquê?

- Porque caminhas muito devagar. compadre.

- Essa só pelo Demónio!. - respondeu Gorenflot; - eu tenho andado com uma velocidade tal que nem o vento me excede! Ainda esta manhã galopámos cinco horas a fio!

- Mas isso não é ainda bastante.

- Pois então partamos já outra vez; quanto mais depressa andarmos, mais breve chegaremos ao nosso destino; porque, enfim, eu presumo que havemos de chegar um dia.

- O meu cavalo já não pode mais, e o teu burro nega-se a ir para diante - E nesse caso, que temos a fazer?

- Vamos deixá-los aqui, e levá-los-emos quando regressarmos.

- E nós? Tenciona por ventura continuar a jornada a pé?

- Montaremos em mulas.

- E onde estão elas?

- Comprá-las-emos.

- Vamos lá - disse Gorenflot com um suspiro - mais esse sacrifício.

- Visto isso.

- Visto isso, iremos em mulas.

- Bravo, compadre! Vejo que vai começando a aperfeiçoar-se; recomende pois Bayard e Panurgo ao cuidado do estalajadeiro. que eu vou tratar das nossas compras.

Gorenflot desempenhou conscienciosamente a missão de que havia sido incumbido: pelas relações que durante aqueles quatro dias tivera com Panurgo, o frade pudera avaliar, não diremos as suas qualidades, mas os seus defeitos, e observara que os três defeitos principais do jumento eram os mesmos a que ele próprio era inclinado, a saber: preguiça. luxúria, e gula.

Esta observação sensibilizava-o sobremaneira, e Gorenflot sentia saudades ao separar-se do burro; porém Gorenflot não era só preguiçoso, luxurioso e guloso, era também egoísta e antes queria separar-se de Panurgo do que apartar-se de Chicot, por isso que Chicot, como já dissemos, levava consigo a bolsa.

Chicot voltou trazendo duas mulas, com as quais andaram os dois amigos naquele dia vinte léguas; de modo que ao anoitecer teve Chicot a satisfação de avistar as outras três mulas à porta dum ferrador.

- Ah! - disse ele respirando pela primeira vez.

- Ah! - suspirou também o monge.

Mas a vista perspicaz do gascão não divisou nem os arreios das mulas, nem o dono delas, nem os criados; as mulas estavam simplesmente adornadas de seus trajes naturais, isto é, estavam perfeitamente em osso: o dono delas e os lacaios tinham desaparecido.

Ainda mais: de roda das três cavalgaduras estavam homens que as examinavam e pareciam querê-las experimentar; era um alquilador em primeiro lugar, e depois o ferrador e dois

franciscanos; faziam voltar as mulas em todos os sentidos, viam-Lhes os dentes, os cascos, as Orelhas; punham enFim em prática todas as formalidades que precedem a compra de bestas.

Chicot sentiu um arrepio por todo o corpo.

- Vai andando adiante - disse ele para Gorenflot -, chega-te aos franciscanos; chama-os de parte, interroga-os; é de crer que não haja segredos de frade para frade; indaga jeitosamente de quem eram as mulas, o preço que pedem por elas, e o que é feito dos donos; e depois volta a dar-me conta de tudo.

Frei Gorenflot, a quem estava dando muito cuidado o desassossego em que via o amigo partiu a todo o trote da mula, e voltou daí a um instante.

- Já sei a história toda - disse ele. - Em primeiro lugar, sabe onde estamos?

- Estamos na estrada de Lião - disse Chicot -, é a unica coisa que me importa saber.

- Não é tal; também muito Lhe importa saber, segundo me disse, pelo menos o que é feito

dos donus das mulas.

- Sim, é verdade.

- que parece um cavaleiro...

- Bem.

O que parece um cavaleiro tomou aqui para a estrada de Avinhão, por um atalho que

poupa muito caminho, e que passa por Château-Chinon e Privas.

- Foi só?

- Como só?...

- Pergunto se foi só ele que tomou por essa estrada...

- Ia com um criado.

- E o outro?

- O outro criado seguiu o seu caminho.

- Para Lião?

- Para Lião, sim senhor.

- Muitíssimo bem. Mas para que vai aquele cavaleiro para Avinhão? Eu julgava que ele

ia a Roma. Porém - prosseguiu Chicot como falando a si próprio - estou-te perguntando

coisas que tu não sabes.

- Sei... sim - respondeu Gorenflot. - Ah, está admirado?

- Diz lá, o que sabes tu?

- Sei que vai a Avinhão porque Sua Santidade o Papa Gregório XIII mandou a Avinhão

um legado munido de seus plenos poderes.

- Bom - disse Chicot -, já entendo... E as mulas?

- As mulas estavam estafadas; venderam-nas a um alquilador, e este quer vendê-las agora aos franciscanos.

- Quanto quer por elas?

- Quinze peças de ouro de dez libras cada uma.

- E como continuaram eles a jornada?

- Em cavalos que compraram.

- A quem?

- A um capitão de cavalaria que está aqui tratando da remonta.

- Com a breca, compadre - exclamou Chicot -, sempre és um homem muito precioso! Agora é que vou começando a conhecer o teu merecimento.

Gorenflot empavesou-se.

- Agora - prosseguiu Chicot - conclui a obra que tão bem encetaste.

- Que hei-de eu fazer?

Chicot apeou-se, e enfiando a rédea no braço do frade:

- Pega nas duas mulas e vai oferecê-las por vinte peças aos franciscanos; devem preferir-te a ti.

- E hão-de preferir - disse Gorenflot -, quando não, vou denunciá-los ao superior.

- Bravo, compadre, vais-te aperfeiçoando!

- Ah, é verdade - perguntou Gorenflot -: como havemos de continuar a nossa jornada?

- Iremos a cavalo.

- Essa só pelo diabo! - disse o frade coçando a orelha.

- Então o que tem isso? - replicou Chicot. - Um picador como tu pode lá ter medo!

- Está bom! - disse Gorenflot - será mais queda ou menos queda. Mas onde irei eu encontrá-lo?

- Na praça principal aqui do lugar.

- Vá para lá esperar por mim.

O frade encaminhou-se com gesto desembaraçado para onde estavam os franciscanos, enquanto que Chicot, metendo-se por uma travessa, se dirigia para a praça central da aldeia.

Ali encontrou Chicot, na estalagem do Galo, o capitão de cavalaria ocupado a despejar uma garrafa de vinho de Auxerre, que os bebedores de segunda ordem confundiam com o vinho de Borgonha; obteve dele novas informações que confirmaram o que Lhe tinha dito Gorenflot.

Chicot concluiu imediatamente a compra de dois cavalos, a que o oficial deu logo baixa na sua relação como tendo morrido no caminho, e, em consequência deste desastre, pôde vender os dois por trinta e cinco peças de ouro.

Só restava entrar em ajuste a respeito de selas, rédeas e demais aparelhos, quando Chicot viu desembocar o frade duma ruazinha lateral, trazendo as duas selas e as duas cabeçadas nas mãos.

- Oh, oh! - disse ele. - Que é isso, compadre?

- O que há-de ser! - respondeu Gorenflot. - São as selas e as rédeas das nossas mulas.

- Então não as entregaste aos compradores? - perguntou Chicot desatando a rir.

- Era o que faltava! - respondeu o frade.

- E por quanto vendeste as mulas?

- Por dez peças cada uma.

- Pagaram-te?

- Aqui está o dinheiro.

Gorenflot, dizendo isto, bateu no bolso, que vinha cheio de dinheiro de toda a espécie.

- Sabes que mais? - exclamou Chicot. - És um homem insigne, compadre.

- Assim é que eu desempenho as incumbências que me dão - disse Gorenflot com afectada modéstia.

- Vamos à nossa empresa - disse Chicot.

- Porém estou com muita sede - interrompeu o frade.

- Pois então bebe, enquanto eu vou aparelhar os nossos cavalos; mas não bebas muito.

- Pois seja uma garrafa.

Gorenflot despejou duas, e depois veio entregar o resto do dinheiro a Chicot. Chicot lembrou-se de deixar na mão do frade as vinte peças, já diminuídas do preço do vinho que ele bebera, mas logo reflectiu que, no instante em que Gorenflot se visse possuidor de dois escudos, imediatamente cessaria o seu poder sobre ele.

Pegou portanto no dinheiro, sem que o monge chegasse mesmo a dar fé do instante de hesitação que ele tinha tido, e montou a cavalo.

Gorenflot montou também, ajudado pelo oficial de cavalaria, que era um homem temente a Deus, e por isso se prestou a segurar o estribo do monge; em paga deste serviço, Gorenflot deitou-lhe a bênção apenas se viu empoleirado no cavalo.

- Agora com a tua bênção é que aquele patusco fica mesmo um santinho - disse Chicot metendo o cavalo a galope.

Gorenflot, vendo correr a ceia na sua frente, largou o cavalo atrás de Chicot; o frade já ia estando mais adiantado na arte equestre; em vez de agarrar a crina com uma das mãos e a cauda com a outra, como fazia ao princípio, segurou-se com ambas as mãos ao arção da sela, e com este único ponto de apoio, foi correndo enquanto Chicot quis.

Até que acabou por desenvolver ainda maior actividade do que o seu protector, porque todas as vezes que Chicot mudava de andadura ou sopeava o cavalo, o frade, que achava mais cómodo o galope do que o trote, seguia para a frente animando o cavalo com a voz.

A perseverança dos dois amigos merecia por certo uma recompensa; no dia seguinte, ao anoitecer, um pouco adiante de Chalon, Chicot tornou a avistar mestre Nicolau David, ainda disfarçado em trajes de lacaio, e não o perdeu mais de vista até Lião, onde entraram todos três à noitinha do oitavo dia depois de terem saido de Paris.

Era pouco mais ou menos ao mesmo tempo que, por uma estrada oposta, Bussy, Saint-Luc e a esposa deste, chegavam, como já dissemos, ao Castelo de Méridor.

 

         COMO FOI QUE CHICOT E O SEU COMPANHEIRO FORAM HOSPEDAR-SE NA ESTALAGEM DA CRUZ, E POR QUE MANEIRA OS RECEBEU O ESTALAJADEIRO

Mestre Nicolau David, conservando sempre o seu disfarce de lacaio, encaminhou-se para a Praça dos Terreaux, e escolheu a principal estalagem da mesma praça, que era a da Cruz.

Chicot viu-o entrar, e conservou-se um instante em observação, para se certificar se ele tinha achado quarto e se se estabeleceria ali.

- Tens alguma dúvida em Ficar na estalagem da Cruz? - disse o gascão para o seu companheiro de jornada.

- Nenhuma - respondeu este.

- Muito bem; então vai já para lá; ajusta um quarto em lugar retirado; hás-de dizer que estás à espera de teu irmão, e esperar-me-ás com efeito à entrada da porta; eu vou passear e voltarei logo que for noite fechada; quando regressar quero encontrar-te no teu posto; e como terás tido tempo para conhecer bem os cantos à casa, hás-de levar-me para o quarto sem que eu encontre pelo caminho certas pessoas que não quero que me vejam. Percebes-me?

- Perfeitamente - respondeu Gorenflot.

- Escolhe um quarto grande, alegre, de fácil acesso, e contíguo, se for possível, ao daquele viajante que entrou agora para lá; será bom que tenha janelas para a rua, para eu poder ver as pessoas que entrarem ou saírem; não fales no meu nome por caso nenhum, e promete rios de dinheiro à gente da cozinha.

- Tudo isso farei.

Gorenflot desempenhou efectivamente a sua incumbência às mil maravilhas. Depois de escolher o quarto, foi para a porta da rua esperar que anoitecesse de todo, e, logo que Chicot

chegou, pegou-Lhe pela mão e levou-o para o quarto.

O frade, manhoso como são todos os padres, por muito estúpidos que a natureza os tenha criado, fez notar a Chicot que o quarto que tinha tomado, apesar de dar para outro corredor que o de Nicolau David, ficava contudo contíguo ao aposento deles, do qual era apenas separado por um tabique em que facilmente se poderia fazer um buraco.

Chicot escutou o monge com a maior atenção, e qualquer pessoa que estivesse prestando atenção ao orador e vendo o auditor, teria podido conhecer a satisfação que a este causavam as palavras daquele.

E depois, quando o frade concluiu:

- Tudo isso que acabas de me dizer merece uma recompensa - respondeu Chicot -; prometo-te que hás-de ter esta noite vinho de Xerez para a ceia, Gorenflot; sim, hás-de tê-lo, com o demônio! Tão certo como ser eu teu compadre.

- Nunca me embebedei com esse vinho - disse Gorenflot -, mas penso que deve ser coisa agradável.

- Dou-te a minha palavra - replicou Chicot tomando posse do quarto - que o hás-de provar dentro de duas horas; sou eu que to afirmo.

Chicot mandou chamar o estalajadeiro.

Este, porém, mandou-Lhe dizer que tivesse paciência e esperasse um pouco, porque estava a Falar com um viajante que chegara primeiro do que ele e, por isso, tinha direito a ser atendido também em primeiro lugar.

Chicot logo desconfiou que o tal viajante era o advogado.

- Em que estarão eles conversando? - perguntou Chicot.

- Desconfia porventura que o dono da casa e o seu homem estejam segredando?

- Certamente, visto que aquela cara insolente que encontrámos à entrada, e que, segundo penso, é a dele.

- Sem tirar nem pôr - disse o frade.

desce da sua dignidade para conversar com um homem vestido de lacaio.

- Ah! - acudiu Gorenflot. - Já mudou de fato; vi-o há pouco; agora está todo vestido de preto.

- Mais uma razão - disse Chicot. - Parece que ele também entra na intriga.

- Quer que eu trate de Lhe confessar a mulher? - perguntou Gorenflot.

- Não - respondeu Chicot -; antes quero que vás dar um passeio pela cidade.

- Pois sim, e a ceia?. - replicou Gorenflot.

- Eu a mandarei preparar para estar pronta quando vieres; toma lá, aqui tens um escudo para te divertires.

Gorenflot aceitou o escudo com gratidão.

O frade tivera sempre sua propensão para excursões nocturnas, mas depois que saíra do convento ainda com mais furor se entregava a este passatempo, Gorenflot, depois que havia abandonado a clausura, respirava liberdade por todos os poros, e tinha chegado a ponto tal, que o convento somente se lhe apresentava à lembrança debaixo do aspecto duma prisão.

Saiu pois, com o hábito arregaçado para o lado e com o escudo na algibeira. Apenas Gorenflot saiu do quarto, Chicot, sem perder um momento, procurou uma verruma, e fez um buraco no tabique à altura dos olhos. Não podia ver distintamente pelo furo as diversas partes do quarto, porém, aplicando o ouvido à abertura, ouvia distintamente as vozes.

Contudo, pela disposição dos indivíduos e pelo lugar que ocupavam no aposento, quis o acaso que Chicot pudesse ver o estalajadeiro, que estava conversando com Nicolau David.

Algumas palavras não chegavam ao ouvido de Chicot; mas o que ele apurou da conversa bastou para Lhe provar que David fazia grande alarde da sua fidelidade para com o rei, falando até duma missão de que tinha sido encarregado pelo Sr. de Morvilliers.

Enquanto assim falava, o estalajadeiro ouvia-o respeitosamente, mas com um sentimento que muito se assemelhava a indiferença, porque pouco lhe respondia. Chicot julgou mesmo divisar, tanto no olhar como na intonação da voz do dono da casa, uma ironia bastante expressiva cada vez que o hóspede proferia o nome do rei.

ah, disse Chicot, dar-se-á o caso que o dono da casa seja membro da Liga? Veremos isso.

E como a conversação que tinha lugar no quarto de mestre Nicolau David já não lhe oFerecia interesse algum, Chicot deixou de escutar e esperou que o estalajadeiro o viesse também visitar.

Finalmente abriu-se a porta.

O estalajadeiro trazia o barrete na mão e apresentava a mesma fisionomia chocarreira que havia dado na vista a Chicot quando espreitava a conversa dele com o letrado.

- Sente-se, meu caro Senhor - disse-Lhe Chicot -; e primeiro que concluamos defini tivamente o nosso ajuste, faça-me o favor de ouvir a minha história.

Este exórdio pareceu não agradar muito ao estalajadeiro, e com um aceno de cabeça deu a entender que desejava conservar-se de pé.

- Esteja à vontade, meu caro Senhor - replicou Chicot.

O estalajadeiro fez outro aceno, que queria dizer que para estar à sua vontade não carecia de licença de ninguém.

- Viu-me na companhia dum religioso. - prosseguiu Chicot.

- Sim senhor - respondeu o estalajadeiro.

- Caluda! Não diga a ninguém que ele está aqui. aquele religioso está proscrito.

- Deveras? - exclamou o estalajadeiro. - Será porventura algum huguenote disfarçado. Chicot tomou a atitude dum homem ofendido em sua dignidade.

- Huguenote? - disse ele com enfado. - Quem fala aqui em huguenotes? Saiba que aquele religioso é meu parente, e que eu não tenho parentes huguenotes. Um homem honrado como o senhor deveria envergonhar-se de levantar semelhante aleive.

- Ah, meu caro Senhor - replicou o estalajadeiro -, são desgraças que às vezes sucedem.

- Nunca tal caso se deu na minha família! Aquele religioso, pelo contrário, é o inimigo mais encarniçado que até hoje tem aparecido em campo contra os huguenotes; de forma que incorreu no desagrado de Sua Majestade Henrique III, que os proteje, como sabe.

O estalajadeiro ia começando a interessar-se pela perseguição que sofria Gorenflot.

- Caluda! - disse ele levando o dedo à boca.

- Caluda, porquê, - perguntou Chicot -, tem porventura na sua casa gente de el-rei.

- Desconfio que sim - respondeu o estalajadeiro -; há aqui ao lado um viajante...

- Pois nesse caso - replicou Chicot - vamo-nos já pôr ao fresco, o meu parente e eu, porque ele assim proscrito e ameaçado.

- E para onde quer ir?

- Um estalajadeiro nosso amigo, mestre La Hurière, fez favor de nos inculcar mais duas ou três estalagens desta cidade.

- La Hurière? É conhecido de La Hurière?

- Devagar! Não o diga a pessoa alguma; ficámos relacionados desde a noite de S. Bartolomeu.

- Está bem - disse o estalajadeiro -, já vejo que tanto o senhor como o seu parente são uns santos varões; eu também conheço La Hurière. Até me lembrei, quando comprei esta estalagem, de lhe pôr, como sinal de amizade, o mesmo nome que tem a dele: A Estrela Bri lhante; mas a estalagem era conhecida pelo nome de estalagem da Cruz, e receei que me fizesse mal ao negócio a mudança da tabuleta. Ora pois, dizia, Senhor, que o seu parente.

- Cometeu a imprudência de pregar contra os huguenotes; foi muito aplaudido, e Sua Majestade Cristianíssima, exasperado por ver o bom acolhimento que ele tinha tido, e que lhe mostrava a tendência dos ânimos do povo, mandou-o procurar para o prender.

- E então? - perguntou o estalajadeiro com evidentes mostras de simpatia.

- Eu tirei-me de cuidados e arranquei-o de Paris - disse Chicot.

- E fez muito bem, pobre homem!

- Verdade seja que o Sr. de Guisa se me ofereceu para o proteger.

- Como? O grande Henrique de Guisa? Henrique o Acutilado.

- O santo Henrique.

- Sim, diz muito bem, o santo Henrique!

- Mas eu tive medo de acender uma guerra civil.

- Então - disse o estalajadeiro -, visto ser amigo do Sr. de Guisa, deve conhecer isto. E o estalajadeiro fez com a mão uma espécie de sinal maçónico que servia aos membros da Liga para se reconhecerem.

Chicot, naquela célebre noite que havia passado no Convento de Santa Genoveva, tinha observado não sumente o sinal que lhe fazia agora o estalajadeiro, como também o outro que lhe correspondia; e isto por tê- los visto repetir mais de vinte vezes pelos conjurados ali reunidos.

- Boa dúvida! - disse ele. - E o senhor, conhece isto?.

E Chicot fez logo o segundo sinal.

- Visto isso - disse o estalajadeiro com a maior franqueza -, esta casa é sua; considere-me como um amigo, um irmão; e se não traz dinheiro.

Chicot, como única resposta, sacou da algibeira uma bolsa que apesar de ter já sido encetada, ainda apresentava um bojo muito sofrível.

A vista duma bolsa bem recheadinha é sempre agradável, mesmo ao homem generoso que acaba de nos oferecer dinheiro, e que assim se capacita que não precisamos dele, porque desta forma fica com todo o merecimento da oferta sem ter tido o incómodo de a realizar.

- muito bem - disse o estalajadeiro.

- Dir-Lhe-ei mais - acrescentou Chicot - que a nossa jornada, tem por fim a propagação da Fé, que para isso fomos pagos pelo tesoureiro da Santa União. Indique-nos pois alguma estalagem onde nada tenhamos que recear.

- Por minha fé! - respondeu o estalajadeiro - que em parte alguma poderão estar com mais segurança do que aqui; sou eu que Lhe digo.

- Mas ainda há pouco me falou num homem que está instalado aqui ao lado.

- Sim; mas ele que se guarde de mim, porque se começar com espionagens. palavra de Bernouillet, ponho-o na rua!

- Chama-se Bernouillet? - perguntou Chicot.

- É o meu nome próprio, e muito conhecido dos fiéis; se o não é na capital, é-o na província. Disso me posso gabar. E demais, basta que o senhor me diga meia palavra, e pô-lo-ei imediatamente fora de casa.

- Para quê?. - replicou Chicot. - É melhor ter a gente os inimigos ao pé de nós porque assim torna-se mais fácil vigiá-los.

- Tem razão - disse Bernouillet, muito admirado da esperteza do gascão.

- Porém, que razão tem para supor que aquele homem seja nosso inimigo? Digo nosso inimigo - prosseguiu Chicot com um terno sorriso - porque vejo que somos irmãos.

- Oh, sim, com toda a certeza - replicou o estalajadeiro -; o que me fez desconfiar.

- Sim, que motivo tem?

- É porque chegou aqui disfarçado em trajes de lacaio, e depois vestiu uma espécie de gibão de letrado; ora o homem é tanto letrado como lacaio, pois por baixo dum capote que atirou para cima duma cadeira, vi aparecer a ponta duma comprida durindana. Além disso, falou-me do rei com muito acatamento; e finalmente, confessou-me que estava encarregado duma missão pelo Sr. de Morvilliers, que é, como sabe, um dos ministros do Nabucodonosor.

- Do Herodes, como eu lhe chamo.

- Do Sardanapalo!

- Bravo!

- Ah, já vejo que nos entendemos perfeitamente! - disse o estalajadeiro.

- Não há dúvida - disse Chicot -; e portanto estou resolvido a Ficar.

- Acho que faz muito bem.

- Nem palavra a respeito do meu parente!

- Fique descansado.

- Nem a meu respeito.

- Pode fiar-se em mim. Mas. silêncio, vem alguém!

Gorenflot apareceu à entrada da porta.

- Oh, é ele, é o respeitável homem! - exclamou o estalajadeiro.

E, dizendo isto, foi direito ao frade e fez-lhe o sinal dos membros da Liga. Gorenflot ficou tomado de susto e de espanto.

- Corresponde-lhe, corresponde-lhe, meu irmão - disse Chicot. - Este senhor já sabe tudo, e também é dos nossos.

- É dos nossos?. - perguntou Gorenflot. - Dos nossos quê?

- Da Santa União - respondeu Bernouillet a meia voz.

- Já vês que podes corresponder-Lhe; corresponde, pois.

Gorenflot correspondeu, e assim aumentou a satisfação do estalajadeiro.

- Porém - disse Gorenflot, que estava com pressa de mudar a conversação -, lembre-se que me prometeu um bom vinho de Xerez.

- Vinho de Xerez, vinho de Málaga, vinho de Alicante: todos os vinhos da minha adega estão às suas ordens, meu irmão.

Gorenflot olhou para o estalajadeiro e para Chicot, e depois levantou os olhos ao Céu. Estava admirado do que Lhe sucedia, e era evidente que em sua humildade monacal reconhecia que tamanha ventura era superior ao seu mérito.

Três dias consecutivos se embebedou Gorenflot; no primeiro dia Foi com Xerez, no segundo com Málaga, e no terceiro com Alicante; mas afinal acabou por confessar que a embriaguez mais agradável era a que produzia o vinho de Borgonha, e foi a este que dali por diante se dedicou.

Durante os quatro dias que Gorenflot empregou em fazer as suas experiências vinosas, Chicot não saía do quarto, espreitando desde manhã até à noite o advogado Nicolau David.

O estalajadeiro, atribuindo a reclusão de Chicot ao receio que tinha do suposto realista, esmerava-se em tratar este mal.

Mas era sem resultado algum, pelo menos na aparência. Nicolau David tinha ajustado com Pedro de Gondy que o havia de encontrar na estalagem da Cruz, e não queria sair deste domicílio provisório, com receio de se desencontrar do emissário dos Srs. de Guisa, de forma que na presença do estalajadeiro parecia insensível aos acintes deste. Mas logo que mestre Bernouillet fechava a porta, Nicolau David dava a Chicot, que não se tirava do buraco que havia feito no tabique, o espectáculo bastante divertido dos seus furores solitários.

Logo no dia imediato à entrada na estalagem, tendo observado a má vontade do estalajadeiro, disse de punho cerrado para ele, ou antes, para a porta por onde o estalajadeiro tinha saído:

- Anda, maroto, deixa passar mais cinco ou seis dias, e tu mo pagarás!. Era quanto Chicot queria saber; ficava tendo a certeza de que Nicolau David não sairia da estalagem enquanto não recebesse a resposta do legado.

Porém, quando chegou o sexto dia, que era o sétimo da sua entrada na estalagem, Nicolau David, a quem o estalajadeiro, apesar das instâncias de Chicot, tinha declarado que em breve se veria na necessidade de lhe pedir que despejasse o quarto. Nicolau David, dizíamos, adoeceu de repente.

O dono da casa insistiu com ele para que largasse o aposento enquanto se achava em estado de poder andar; o advogado pediu espera até ao dia seguinte, afirmando que decerto havia de melhorar, mas no dia seguinte encontrava-se pior.

Foi o estalajadeiro que veio dar esta notícia ao seu amigo da Liga.

- Então que me díz? - exclamou ele esfregando as mãos. - O nosso realista, o amigo do Herodes, está para ser inspeccionado pelo almirante! Rataplão cataplão!

Ser inspeccionado pelo almirante queria dizer, entre os membros da Liga, que o sujeito passava deste para o outro mundo.

- Qual! - disse Chicot. - Julga que ele está para morrer?

- Está com uma febre desabalada, meu caro irmão; é uma terça ou quarta, com acessos que o fazem estar aos pulos dentro da cama; os médicos não sabem que doença é; tem um apetite devorador; quis esganar- me e dar pancada nos criados; os médicos declararam que não entendiam a moléstia.

Chicot reflectiu um instante.

- Viu-o? - perguntou ele.

- Vi, sim, se Lhe estou dizendo que ele quis esganar-me.

- Que aspecto tinha ele?

- Estava pálido, agitado, desfigurado, e gritando como um possesso.

- E que dizia?

- Guarde el-rei! Querem fazer mal a el-rei!

- Que malvado!.

- Que maroto! E de vez em quando também diz que está à espera dum homem que há-de chegar de Avinhão, e que Lhe quer falar antes de morrer.

- Muito bem - disse Chicot -; com que então ele fala em Avinhão.

- A todo o instante.

- Com todos os diabos! - exclamou Chicot praguejando na forma do costume.

- Sabe que mais? - replicou o estalajadeiro. - Não se perdia nada se ele morresse.

- Lá isso é verdade - respondeu Chicot -; mas eu não desejava que ele morresse antes da chegada do homem que há-de vir de Avinhão.

- Porquê? Quanto mais depressa ele morrer, mais depressa nos veremos livres dele.

- É verdade; mas o ódio que lhe tenho não chega a ponto de Lhe desejar a perdição da alma e do corpo; e pode ser que o homem que ele espera de Avinhão venha para o confessar.

- Duvido; aquilo há-de ser resultado do delírio e da perturbação que a doença lhe tem causado às ideias; eu estou persuadido que ele não espera pessoa alguma.

- Quem sabe. - disse Chicot.

- Ah, bem se vê que tem o ânimo dum bom cristão - replicou o estalajadeiro.

- Fazer o bem pelo mal, é um preceito da lei divina.

O estalajadeiro saiu completamente edificado.

Quanto a Gorenflot, esse, tendo ficado perfeitamente estranho a todas estas preocupações, ia engordando a olhos vistos; ao cabo de oito dias a escada que Lhe dava serventia para o quarto gemia quando ele trepava, e ia começando a apertá-lo por tal forma entre o corrimão e a parede, que Gorenflot, atemorizado, declarou uma noite a Chicot que lhe parecia que a escada tinha entisicado.

Demais, não se preocupava nem com David, nem com a Liga, nem com o estado deplorável a que tinha chegado a Religião: só tratava de variar a comida e de harmonizar as diferentes qualidades de vinhos de Borgonha com as diversas iguarias que Lhe apresentavam na mesa, enquanto o estalajadeiro, embasbacado, repetia cada vez que o via entrar ou sair:

- Quem há-de dizer que este padre tão rechonchudo é um poço de eloquência!

 

         COMO SUCEDEU QUE, INDO O FRADE PARA CONFESSAR O LETRADO FOI O LETRADO QUEM CONFESSOU O FRADE

Raiou finalmente o dia que parecia destinado a livrar a estalagem da presença do advogado. Mestre Bernouillet entrou arrebatadamente no quarto de Chicot dando tão estrepitosas gargalhadas, que este teve de esperar algum tempo primeiro que conseguisse saber a causa de tamanha hilaridade.

- Está a morrer! - gritava o caridoso estalajadeiro. - Está quase a expirar, rebenta, por fim!

- E é isso que Lhe causa tanta vontade de rir? - perguntou Chicot.

- É, sim senhor; porque a peça teve muita graça.

- Que peça?

- Pergunta-mo? Confesse que foi o senhor quem lha pregou, meu fidalgo.

- Eu? Preguei alguma peça ao doente?

- Sim senhor.

- Conte-me como isso foi; o que sucedeu ao seu hóspede?

- O que Lhe sucedeu? Não está lembrado que ele falava continuamente no homem que havia de vir de Avinhão?

- E depois? Chegou efectivamente o homem?

- Chegou.

- Viu-o?

- Decerto. Julga que entra alguém em minha casa sem que eu veja?

- Que figura tem o tal sujeito?

- O que veio de Avinhão? baixo, delgado, e de rosto rosado.

- ele mesmo! - exclamou Chicot involuntariamente.

- O!h, bem dizia eu que foi o senhor quem o mandou, visto que o conhece.

- Até que enfim chegou o emissário! - exclamou Chicot erguendo-se e retorcendo o bigode. - Cos demónios! Conte-me como isso foi, compadre Bernouillet.

- O caso é muito simples, e se não foi o senhor o autor da partida peço-Lhe que me diga quem seria. Haverá coisa de uma hora, estava eu esfolando um coelho, quando vi parar à porta um homem pequenino. montado num enorme cavalo.

- É aqui que está hospedado mestre Nicolau? - perguntou o homenzinho. É, este, como sabe, o nome que deu aquele infame realista.

- Sim senhor - respondi eu.

- Vá pois dizer-lhe que está aqui a pessoa que esperava de Avinhão. - Com todo o gosto, Senhor, mas devo preveni-lo duma coisa.

- De quê?

- Que mestre Nicolau, como lhe chama, está a expirar.

- Mais uma razão para que o meu recado lhe seja dado sem demora. - Porém talvez não saiba que ele está para morrer em consequência de uma febre maGgna. - Deveras? - exclamou o homem! - Então peço-Lhe que Lhe diga quanto antes que estou aqui.

- Pois quê, ainda insiste?

- Insisto, sim senhor. - Apesar do perigo?.

- Apesar de tudo; digo-lhe que é preciso que eu lhe fale.

- O homenzinho ia-se zangando e falava num tom imperioso que não admitia réplica; levei-o, pois, ao quarto do moribundo.

- De forma que está ali. - disse Chicot estendendo a mão na direcção do quarto do vizinho.

- Está, sim senhor; não olhe, parece coisa célebre?

- Muito célebre, por certo - disse Chicot.

- Que pena não podermos ouvir a conversa!

- E é realmente pena.

- A cena entre os dois deve ser divertida.

- Ao último ponto; mas, quem obsta a que lá entre?

- Já o tentei, mas ele despediu-me.

- Com que pretexto?

- Com o pretexto de que ia confessar-se.

- Que inconveniente acha em ir escutar à porta?

- É verdade! Tem razão - disse o estalajadeiro, saindo apressadamente do quarto.

Chicot correu também para o buraco do tabique.

Pedro de Gondy estava sentado à cabeceira do leito do doente; mas ambos falavam em voz tão baixa, que Chicot não pôde ouvir uma única palavra da conversa.

E demais, pouco teria adiantado, porque a conferência estava no fim, e daí a cinco minutos o Sr. de Gondy levantou-se, despediu-se do enfermo, e saiu.

Chicot correu à janela.

Um lacaio, montado num rabão, segurava pela rédea o enorme cavalo de que tinha falado o estalajadeiro; ao cabo dum instante saiu o embaixador dos Srs. de Guisa, cavalgou, e virou à esquina da rua que ia dar à rua larga de Paris.

Queira Deus que ele não leve consigo a genealogia, disse Chicot; em todo o caso, sempre o hei-de alcançar, ainda que para isso tenha de rebentar dez cavalos. Mas não; isto de letrados são umas raposas muito matreiras, e o meu especialmente; desconfio portanto. Porém não me dirão, prosseguiu Chicot, batendo o pé no chão com impaciência, e ligando provavelmente no espírito esta ideia a outra que Lhe ocorria, não me dirão onde está aquele maroto do Gorenflot?

Nesse mesmo instante voltava o estalajadeiro.

- Então? - perguntou Chicot.

- Foi-se embora! - disse o estalajadeiro.

- Quem, o confessor?

- Que é tanto confessor como eu.

- E o doente?

- Teve um desmaio depois da conferência.

- Está certo de que ele ainda se conserva no quarto?

- Que pergunta! Já não sai de lá senão para o cemitério.

- Muito bem; vá, e mande-me aqui meu irmão logo que chegue.

- Mesmo se vier embriagado?

- Seja qual for o estado em que vier.

- É negócio urgente?

- É para bem da causa.

Bernouillet saiu apressadamente; era um homem cheio de zelo.

Chegou a vez de Chicot também ter febre; estava sem saber se havia de perseguir Gondy ou penetrar no quarto de David; pois se o letrado se achava na realidade tão doente como afirrmava o estalajadeiro, era provável que tivesse encarregado o Sr. de Gondy da condução dos despachos.

Chicot passeava pelo quarto como um doido, batendo na testa e procurando numa ideia entre os milhões de glóbulos que se lhe formavam no cérebro.

Já não se ouvia rumor algum no quarto; e Chicot, do seu observatório, apenas avistava um ângulo do leito coberto com as cortinas.

De repente ressoou uma voz pela escada. Chicot estremeceu; era a do frade. Gorenflot, empurrado pelo estalajadeiro, que debalde procurava obrigá-lo a calar-se, vinha subindo um a um os degraus da escada e cantando com voz rouquenha uma cantiga báquica.

Chicot acudiu à porta.

- Cala-te já, bêbado! - gritou ele.

- Bêbado - disse Gorenflot -, porque bebi uma pinga de vinho?

- Vamos, vem aqui já! E o Sr. Bernouillet lembre-se do que já lhe disse.

- Fique descansado - respondeu o estalajadeiro, fazendo-lhe sinal de ter entendido e descendo os degraus da escada a quatro e quatro.

- Vem cá, já te disse! - prosseguiu Chicot, puxando o frade para dentro do quarto. E Falemos seriamente, se é possível.

- Ora essa! - exclamou Gorenflot - está caçoando comigo, compadre. Eu estou sério como um burro quando está a beber.

- Ou quando acabou de beber - disse Chicot encolhendo os ombros. E em seguida levou o frade para uma cadeira, na qual este se deixou cair soltando um ah! de satisfação.

Chicot Foi fechar a porta, e voltou para junto de Gorenflot com o semblante tão sério, que o frade logo entendeu que era preciso prestar-Lhe toda a atenção.

- Ora pois, que mais temos? - disse o frade, como se a palavra mais resumisse em si todos os incómodos que Chicot Lhe fazia sofrer.

- Temos - respondeu Chicot com aspereza - que é uma vergonha não te lembrares dos deveres da tua profissão; entregas-te à devassidão, e estás sempre a cair de bêbado; e entretanto a Religião abandonada!

Gorenflot olhou para o seu interlocutor abrindo muito os imensos olhos.

- Eu? - perguntou ele.

- Sim, tu, olha, vê o estado indecente em que estás. Trazes o hábito rasgado. e brigaste pelo caminho, pois tens o olho esquerdo pisado.

- Eu? - replicou Gorenflot, cada vez mais admirado por ouvir Chicot dar-lhe estas repreensões, a que não estava acostumado.

- Sim, sim, tu, vens demais a mais cheio de lama até acima do joelho, e de que lama, de lama branca, prova evidente de que te foste embriagar para o arrabalde da cidade.

- E o caso é que disse a verdade - respondeu Gorenflot.

- Desgraçado, um monge de Santa Genoveva!. ainda se fosses franciscano!.

- Chicot, meu amigo: visto isso, sou muito criminoso? - disse Gorenflot enternecido.

- Tão criminoso que merecias que o fogo do Céu te consumisse até às alparcas; toma sentido! Olha que se assim continuas, abandono-te.

- Chicot, meu amigo, tu não hás-de fazer tal.

- Talvez não saibas que também em Lião há quadrilheiros.

- Oh, misericórdia, meu querido protector - balbuciou o frade, desatando, não a chorar, mas a berrar como um touro.

- Fora! Que bicho tão feio! - exclamou Chicot; - e que ocasião escolheste para proceder duma maneira tão irregular! Justamente quando temos aqui ao lado um vizinho que está a morrer.

- É verdade - disse Gorenflot com ar de profunda contrição.

- Diz-me, és ou não cristão?

- Se sou cristão? - bradou Gorenflot levantando-se - se sou cristão? Com a breca! Sou, sim! Sou capaz de o clamar até mesmo sobre as grelhas de S. Lourenço!

- Basta! - disse Chicot, tapando-lhe a boca com a mão para ele não gritar tanto; - pois se te prezas de cristão, não deixes morrer sem confissão um irmão teu.

- Tem toda a razão; onde está esse moribundo, que quero ir confessá-lo - disse Gorenflot -; mas ainda assim hei-de beber alguma coisa primeiro, porque estou com sede.

Chicot entregou ao frade um jarro cheio de água, que este bebeu quase todo.

- Ah, meu filho - disse ele descansando o jarro sobre a mesa -, já se me vão esclarecendo as ideias.

- Ora ainda bem! - respondeu Chicot, resolvido a aproveitar aquele instante de lucidez.

- Agora, meu bom amigo - prosseguiu o monge -, diz-me: quem é que hei- de confessar?

- O nosso infeliz vizinho, que está para morrer.

- Dêem-Lhe meia canada de vinho fervido com mel - disse Gorenflot.

- Não me oponho a que se lhe dê esse remédio, ele porém precisa mais dos socorros espirituais que dos temporais. Tu vais ter com ele.

- Julga que eu já estou suficientemente preparado, Sr. Chicot? - perguntou o frade com timidez.

- Tu? Nunca te vi tão cheio de unção como neste momento! Ajudá-lo-às a bem morrer, se ele tiver pecado, e ensinar-lhe-ás o caminho mais breve para ir ter ao Paraíso.

Vou já a correr.

- Espera um instante; é preciso que eu te ensine o que tens a fazer.

- Quer ensinar o pai-nosso ao vigário? Parece-me que quem é frade há vinte anos deve saber do ofício.

- Sim, mas tu hoje não vais desempenhar somente os deveres da tua profissão, vais executar também as minhas ordens.

- As suas ordens?

- E se executares com pontualidade, percebes, hei-de entregar cem peças de ouro ao dono da casa de pasto da Cornucópia, as quais ficarão à tua disposição para comeres ou beberes, à tua escolha.

- Prefiro que seja para ambas as coisas.

- Pois bem, seja; cem peças, percebes? Se confessares o respeitável moribundo aqui ao lado.

- Hei-de confessá-lo, ou me há-de levar o diabo! Como quer que o confesse?

- Ouve: o teu hábito confere-te uma grande autoridade; falas em nome de Deus e em nome do céu; é preciso que pela tua eloquência obrigues o homem a entregar-te os papéis que acabam de lhe trazer de Avinhão.

- E por que motivo é preciso obrigá-lo a entregar-me os tais papéis? Chicot olhou para o frade com cara de dó.

- Porque assim ganharás mil escudos, grande bruto! - disse ele.

- É exacto - disse Gorenflot -; vou já.

- Espera lá; ele há-de dizer-te que acabou agora mesmo de se confessar.

- Então, se ele já se confessou.

- Hás-de responder-lhe que mente; que o indivíduo que há pouco saiu do seu quarto não é confessor, mas um intrigante como ele.

- Porém se ele se zangar?

- Que te importa a ti, uma vez que está para morrer?.

- Tem razão.

- Muito bem; já percebeste o que tens a fazer; fala-Lhe em Deus, Fala-Lhe no Diabo, Fala-Lhe no que tu quiseres; mas, seja como for, saca-lhe das mãos os papéis que vieram de Avinhão.

- E se ele não quiser entregá-los?

- Nega-lhe a absolvição; amaldiçoa-o, anatematiza-o.

- Ou tiro-lhos então por força?

- Pois sim, se puderes; mas vê lá! Já estás suficientemente em teu juízo para executares com pontualidade as minhas instruções?

- Com toda a pontualidade; o senhor verá.

E Gorenflot, correndo a mão pela imensa cara, pareceu ter apagado do semblante os vestígios superficiais da embriaguez; e depois de ter composto o olhar, a fala e os gestos, dirigiu-se com solenidade para a porta.

- Ouve mais - disse Chicot -: logo que ele te houver dado os papéis, agarra-os bem com uma das mãos e bate com a outra na parede.

- E se ele mos recusar?

- Bate também.

- Visto isso, sempre em qualquer dos casos hei-de bater na parede?.

- Sim.

- Muito bem.

E Gorenflot saiu do quarto, enquanto Chicot, no maior desassossego, ficou com o ouvido pregado à parede a fim de perceber a menor bulha.

Dali a dez minutos, o estalar do sobrado deu-Lhe a conhecer que Gorenflot entrava no aposento do vizinho, e em breve o viu aparecer dentro do círculo que o seu raio visual podia abranger.

O advogado sentou-se na cama, e pôs-se a olhar para aquela estranha aparição.

- Ora muito bons dias, meu irmão! - disse Gorenflot, parando no meio do quarto e equilibrando as alentadas espáduas.

- Que vem aqui fazer, meu padre? - murmurou o enfermo com voz enfraquecida.

- Meu filho, sou um religioso muito indigno; mas constou-me que está perigosamente doente, e por isso venho lembrar-lhe a salvação da sua alma.

- Muito obrigado - disse o moribundo -, mas é escusado incomodar-se. Sinto-me um pouco melhor.

Gorenflot abanou a cabeça.

- Isso é o que pensa - disse ele.

- Ténho a certeza de que assim é.

- É um ardil de Satanás. que deseja vê-lo morrer sem confissão.

- Pois Satanás ficará logrado - disse o doente -, porque acabei agora mesmo de me confessar.

- A quem?

- A um respeitável eclesiástico que veio de Avinhão.

Gorenflot tornou a abanar a cabeça.

- Aquele homem não é eclesiástico - disse ele.

- Como? Não é eclesiástico?

- Não senhor.

- Quem lhe disse isso?

- Conheço-o eu.

- Conhece o indivíduo que daqui saiu?

- Conheço - respondeu Gorenflot com um tal tom de convicção, que, se bem que não seja coisa fácil, em geral, atrapalhar um letrado, este perturbou-se. - E por consequência, como não está melhor - disse Gorenflot -, e visto que o tal homem não é padre, é preciso que eu o confesse.

- É esse o meu desejo - respondeu o advogado com voz mais forte -; porém hei-de confessar-me a quem eu quiser.

- Já não há tempo para mandar buscar outro confessor, meu filho, e visto estar eu aqui.

- Como, já não há tempo?. - gritou o doente com um metal de voz que de instante para instante se ia tornando maisforte; - se eu lhe estou dizendo que me sinto melhor!. Se lhe afirmo que tenho toda a certeza de que hei-de escapar!.

Gorenflot abanou a cabeça pela terceira vez.

- E eu - disse ele com a mesma fleuma - também lhe afirmo, meu Filho, que não conservo esperança alguma a seu respeito; está condenado pelos médicos e pela Divina Providência; sei que isto que Lhe estou dizendo é uma verdade bem cruel; mas enFim, todos nós por aí havemos de passar, mais cedo ou mais tarde; todos havemos de ser pesados numa balança, que é a balança da justiça; e demais, é uma consolação deixar esta vida para ressuscitar na outra. O próprio Pitágoras assim dizia, meu filho, apesar de ser um pagão. Vamos, confesse-se, meu querido filho.

- Porém assevero-Lhe, meu padre, que já me sinto mais forte, e é talvez com a vista da sua santa pessoa.

- Está iludido, meu filho, está iludido - insistiu Gorenflot -; há sempre na proximidade dos últimos momentos uma recrudescência vital: é o mesmo que uma lâmpada que se reanima para brilhar com o derradeiro clarão antes de se apagar. Vamos, pois - prosseguiu o monge, sentando-se junto do leito conte-me as suas intrigas, as suas conspirações, as suas tramas.

- As minhas intrigas? As minhas conspirações? As minhas tramas? - repetiu Nicolau David, recuando ao ouvir as palavras tão extraordinárias que havia proferido aquele monge, que ele não conhecia, e que parecia conhecê-lo tão particularmente.

- Sim - replicou Gorenflot, dispondo com toda a placidez as imensas orelhas para ouvir, e unindo os dois dedos polegares por fora das mãos entrelaçadas -; depois que me houver contado tudo isso, dar-me-á os papéis, e pode ser que Deus permita então que eu o absolva.

- Que papéis? - exclamou o doente, com voz tão rija e vigorosamente acentuada como se estivesse de perfeita saúde.

- Os papéis que o eclesiástico fingido Lhe trouxe há pouco de Avinhão.

- E quem lhe disse que o eclesiástico de que se trata me trouxe papéis? - perguntou o advogado, deitando uma perna fora da cama, e com um modo tão desabrido que despertou Gorenflot da sonolência a que já se ia entregando.

Gorenflot julgou que estava chegada a ocasião de mostrar alguma energia.

- Quem me disse sabe o que diz - replicou ele -; vamos, os papéis: os papéis já, ou nada de absolvição!

- Pensas que me importa para alguma coisa a tua absolvição, meu biltre? - exclamou David saltando para fora da cama e agarrando Gorenflot pelas goelas.

- Então que é isso! - exclamou este - está tresvariado com a febre? Não quer confessar-se, afinal?

O dedo polegar do letrado, comprimindo com destreza e vigor as goelas do frade, interrompeu-Lhe a frase. que ele concluiu com uma espécie de estertor.

- Sou eu que te quero confessar, frade de Belzebu! - bradou o advogado David. E quanto ao tresvario da febre, eu já te mostro se me tirou a força necessária para te esganar!.

Frei Gorenflot tinha uma organização robusta, mas estava chegado infelizmente ao momento da reacção em que a embriaguez actua sobre o sistema nervoso e o paralisa, e que ordinariamente sucede ao mesmo tempo que, por uma reacção oposta, as faculdades morais começam a recobrar o perdido vigor.

Por isso, apenas pôde, reunindo toda a sua força, levantou-se da cadeira, agarrou a camisa do letrado com as mãos ambas, e repeliu-o cem violência para longe de si.

Devemos porém confessar que, apesar de estar com as forças paralisadas, Frei Gorenflot repeliu Nicolau David tão violentamente, que este foi cair estirado no meio do quarto.

Mas logo se ergueu como um furioso, e lançando mão da comprida espada que havia dado na vista a mestre Bernouillet, e que estava pendurada na parede, por detrás do fato, tirou-a da bainha e apontou-a ao pescoço do frade, o qual, exausto por aquele supremo esforço, tinha tornado a cair sobre a cadeira.

- És tu agora quem te hás-de confessar - disse ele com voz surda -, quando não, mato-te!

Gorenflot, tornando de todo ao uso da razão pela impressão desagradável que Lhe estava causando a ponta fria do ferro, avaliou logo a gravidade da situação.

- Oh, - disse ele - pelo que vejo não estava doente! Aquela fingida agonia não passava duma comédia!

- Esqueces-te que não te cumpre interrogar - disse o letrado -, mas unicamente responder.

- Responder o quê?

- Ao que vou perguntar-te.

- Diga.

- Quem és tu?

- Bem o vê - disse o monge.

- Isso não é resposta! - tornou o advogado, carregando mais um quase nada na espada.

- Olá, com o demónio! Toma sentido! Se me matar antes que eu lhe responda, não ficará sabendo coisa alguma!

- Tens razão; o teu nome?

- Frei Gorenflot.

- És pois realmente frade?

- Como? Se sou realmente frade?. Sou, sim.

- Por que motivo estás em Lião?

- Porque fui degredado.

- Quem te trouxe a esta estalagem?

- O acaso.

- Há quantos dias estás aqui?

- Há dezassete dias.

- Para que me espreitavas tu?

- Eu não o espreitava.

- Como soubeste que eu tinha recebido papéis?

- Porque me disseram.

- Quem te disse?

- A pessoa que me mandou aqui ter com o senhor. - Quem foi que te mandou ter comigo?

- Eis aí o que não posso dizer-Lhe.

- E hás-de dizer-mo, contudo!

- Olá! - bradou o frade. - Olhe que eu grito para que me acudam!

- E eu mato-te.

O monge deu um grito; uma gota de sangue tingiu a ponta da espada do advogado.

- Como se chama ele? - repetiu este.

- Ah, por vida minha que não tenho remédio senão dizê-lo! - replicou o monge. Resisti enquanto pude.

- Sim, deixa estar, a tua honra fica salva. O indivíduo que te mandou ter comigo?.

- Foi...

Gorenflot ainda hesitou; estava-Lhe custando atraiçoar o amigo.

- Acabas ou não! - disse o letrado batendo com o pé.

- Ora adeus, suceda o que suceder. Foi Chicot.

- O bobo de el-rei?

- Ele mesmo.

- E onde está ele?

- Aqui estou! - respondeu uma voz.

E Chicot assomou à porta, pálido, sério, e com a espada desembainhada na mão.

 

         COMO FOI QUE CHICOT, DEPOIS DE TER FEITO UM FURO COM UMA VERRUMA, TAMBÉM FEZ OUTRO COM A ESPADA

Nicolau David, quando viu diante de si o homem que ele sabia ser seu inimigo mortal, não pôde reprimir um movimento de terror.

Gorenflot aproveitou-se do movimento que o advogado fez para romper a linha recta que a espada deste estava descrevendo na direcção da garganta.

- A mim, querido amigo! - bradou ele. - Acode-me! Socorre-me! Livra-me deste homem que me quer matar!

- Ah, ah, meu caro Sr. David - disse Chicot -, o senhor por aqui?

- É verdade - balbuciou David -, sou eu, não há dúvida alguma.

- Muito estimo torná-lo a encontrar! - replicou o gascão.

E logo, voltando-se para o frade:

- Meu bom amigo Gorenflot - disse ele -, a tua presença como religioso era muito necessária aqui ainda agora, quando supúnhamos que este senhor estava para morrer; mas actualmente, visto que ele está de perfeita saúde, já não carece de confessor; e por consequência é com um cavaleiro que vai conferenciar.

David deu uma risadinha de desprezo.

- Sim, com um cavaleiro - disse Chicot -, e que há-de mostrar-lhe que é de boa raça. Meu querido Gorenflot - prosseguiu ele, dirigindo-se para o monge -, faz favor de ir postar-te de sentinela no patamar da escada, e não consintas que pessoa alguma venha interromper a minha conversa com este senhor.

Gorenflot estava morrendo por se ver longe de Nicolau David; descreveu portanto com a maior presteza o círculo que para esse fim tinha de percorrer, encostando-se quanto pôde à parede, e, logo que chegou à porta, pulou para fora, pesando-Lhe o corpo menos cem arráteis do que quando tinha entrado.

Chicot fechou a porta depois de ele sair, e sempre com a mesma placidez correu o ferrolho. David tinha considerado a princípio todo este preâmbulo com certo sobressalto que resultara do imprevisto da situação; mas logo tornou a si, fiado na sua conhecida destreza no manejo da espada, e lembrando-se de que, afinal de contas, estava a sós com Chicot, de sorte que o gascão, quando se virou depois de ter fechado a porta, deu com ele encostado aos pés da cama, com a espada na mão e o parecer risonho.

- Vista-se, Senhor - disse Chicot -; tome o tempo que quiser para se compor; não quero abusar da minha posição. Sei muito bem que é um valente esgrimista e que maneja a espada como mestre; mas isso para mim é perfeitamente indiferente.

David deu uma gargalhada.

- Não está má caçoada - disse ele.

- É verdade - respondeu Chicot -; assim me parece a mim, visto ser eu o autor dela; e como é homem de bom gosto, não tarda que Lhe ache ainda mais graça. Quer saber o que venho buscar a este aposento, mestre Nicolau?

- O resto das chicotadas que lhe fiquei devendo em nome do duque de Maiena, naquele dia em que saltou com tanta ligeireza por uma janela?

- Não senhor; essa conta hei-de saldá-la com a pessoa que mas mandou dar. O que aqui venho buscar é uma célebre genealogia que o Sr. de Gondy levou a Avinhão, sem saber o que levava, e Lhe trouxe ainda há pouco, sem saber o que trazia.

David descorou.

- Que genealogia? - perguntou ele.

- A dos Srs. de Guisa, que são descendentes de Carlos Magno em linha recta, como sabe.

- Ah. ah! - disse David. - Visto isso também é espião?. Pensava que só era bobo.

- Meu caro Sr. David, se me permitir, serei ambas as coisas nesta ocasião; espião para o fazer enforcar, e bobo para me rir do senhor depois de enforcado.

- Fazer-me enforcar?

- Sem tirar nem pôr, meu rico Senhor. Estou persuadido que não espera ser degolado. essa prerrogativa só à nobreza pertence.

- E por que forma tenciona conseguir o seu fim?

- Oh, é muito simples: basta que conte a verdade do que sei, e mais nada. Devo dizer-lhe, meu rico Sr. David, que estive presente a certo conciliábulo que teve lugar o mês passado no Convento de Santa Genoveva, e a que assistiram os Srs. de Guisa, e a Sr. a de Montpensier.

- O senhor?

- Sim; eu estava metido no confessionário fronteiro ao seu; são muito incómodos, não é verdade? Para mim, pelo menos, ainda mais incómoda se tornou a reclusão, porque tive de esperar, para sair, que se concluísse tudo, e a Função levou muito tempo. Ouvi pois os discursos do Sr. de Monsoreau, de mestre La Hurière, e de um certo frade de quem me não lembra o nome, mas que me pareceu muito eloquente. Vi a cerimónia da coroação do duque de Anju, que não foi muito divertida; mas a farsa que se Lhe seguiu teve muito chiste: Foi a representação da genealogia dos Srs. de Lorena, revista, aumentada e corrigida por mestre Nicolau David. Era uma obra muito engenhosa, e que só carecia da aprovação de Sua Santidade.

- Ah, já sabe da tal genealogia? - disse David, reprimindo-se a muito custo e mordendo os beiços de raiva.

- Sim - replicou Chicot -, e achei-a muito bem deduzida, especialmente na parte em que trata da lei Sálica. E preciso confessar, contudo, que é uma grande desgraça ter tanto talento, porque é para ir parar a uma forca; e foi por fazer essa reflexão que eu, interessando-me de todo o coração por um homem tão hábil, disse: Pois quê? Hei-de consentir porventura que enforquem o honrado Sr. David, um tão distinto jogador de espada, um letrado de tanto talento, um dos meus melhores amigos, enFim, e isto podendo eu, pelo contrário, não somente livrar-lhe o pescoço da corda, mas ainda em cima torná-lo independente para toda a sua vida, como merece esse honrado letrado, esse perfeito mestre de esgrima, esse excelente amigo, que me deu a conhecer a medida da minha valentia, que me tomou a medida das costas? Não, tal não Farei por certo. E então, como ouvi que tencionava fazer uma jornada, deliberei-me a viajar com o senhor, isto é, atrás do senhor. Saiu de Paris pela Porta Berdelte, não é verdade? Estava à sua espreita; não me viu, mas isso não me admira, porque estava muito bem escondido; desde esse momento sempre o segui, ora perdendo-o de vista ora tornando-o a alcançar, e não me poupando a incómodo algum; finalmente chegámos a Lião; digo chegámos porque uma hora depois de ter entrado nesta estalagem, também eu aqui me achava hospedado, e vivendo, por consequência, não somente debaixo do mesmo tecto, mas até no quarto contíguo ao seu; neste aqui ao lado, que apenas é separado do seu por um simples tabique. Como bem pode julgar, não vim de Paris a Lião sem tirar os olhos do senhor, para o perder de vista aqui; não senhor: fiz um furozinho na parede, pelo qual tenho tido a satisfação de o examinar muito à minha vontade, e confesso-Lhe que nisso me divertia muitas vezes ao dia. Até que por fim adoeceu; o estalajadeiro queria pô-lo fora; o senhor tinha ajustado encontrar-se com o Sr. de Gondy na estalagem da Cruz; receava que ele não desse com o senhor, se se mudasse, ou que perdesse muito tempo em indagações. Era um meio para aqui se conservar, mas que a mim não me enganou, inteiramente; entretanto, como podia muito bem suceder que estivesse doente na realidade, e como todos nós somos mortais, verdade esta de que logo procurei convencê-lo, enviei-lhe um respeitável religioso, meu amigo e companheiro, com ordem de o induzir a arrepender-se dos seus erros e a emendar a sua conduta; mas o senhor, como pecador endurecido que é, quis atravessar-lhe a garganta com a espada, esquecendo assim a máxima do Evangelho, que diz: Quem com ferro mata, com ferro morre. " Foi então, meu rico Sr. David, que aqui vim para lhe dizer: Ora vamos! Conhecemo-nos há muito tempo, somos amigos velhos: arranjemos este negócio pacificamente. Diga-me agora, que já Lhe contei tudo: quer entrar numa combinação comigo?

- E por que forma?

- Pela mesma forma que o negócio se teria concluído se estivesse realmente doente, que o meu amigo Gorenflot o tivesse confessado, e lhe houvesse entregado os papéis que ele lhe pedia. Então ter-Lhe-ia eu perdoado, e até era capaz de rezar de muito boa vontade in manus por sua tenção. Pois bem, não serei mais exigente para com o vivo do que teria sido para com o defunto; e eis o que tenho a dizer-lhe: Sr. David, o senhor é um homem cheio de talento; a esgrima, a arte equestre, a chicana, a maneira de encaixar bolsas muito recheadas dentro de algibeiras muito largas, todas estas habilidades possui em elevado grau. Seria pena que um homem como o senhor desaparecesse de repente do mundo, onde está destinado a ter uma tão brilhante carreira. Pois bem, meu caro Sr. David, deixe-se de conspirações. Fie-se em mim. Quebre as suas relações com os Guisas. Entregue-me os seus papéis, e, por minha fé de cavaleiro, prometo fazer com que el-rei Lhe perdoe.

- E se, pelo contrário, eu não lhos entregar?. - perguntou Nicolau David.

- Ah, se não mos entregar, então muda o caso de figura. Por minha fé de cavaleiro, nesse caso hei-de matá-lo. Ainda Lhe parece muito chistosa a brincadeira, meu caro Sr. David?

- Cada vez mais - respondeu o advogado meneando a cabeça.

- Porém, se consentir em mos entregar - prosseguiu Chicot -, ficará tudo no esquecimento; não me acreditará talvez, meu caro Sr. David, porque tem um carácter perverso e julga que o meu ressentimento adere ao meu coração como a ferrugem ao ferro. Pois não é assim; odeio-o, é verdade, mas ainda tenho mais ódio ao Sr. de Maiena; dê-me os meios de deitar a perder o Sr. de Maiena, e ficará salvo. E demais, permita que acrescente mais algumas palavras em que decerto não acredita, por isso que só tem amor à sua própria pessoa; mas quer que Lhe diga, sou amigo de el-rei; porque el-rei será estulto, devasso e depravado, mas acolheu- me e protegeu-me contra o seu sanguinário amigo Maiena, que se diverte em assassinar de noite, à frente de quinze malfeitores, um fidalgo desarmado e só, no meio da Praça do Louvre; sabe muito bem a quem aludo; é ao pobre Saint-Mégrin; não foi o senhor também dos que tomaram parte nesse assassinato?. Não? Melhor; pensava que sim ainda há pouco, e agora ainda mais capacitado fico de que também concorreu para essa morte. Em resumo: quero que o meu pobre rei Henrique reine sossegadamente, e isso é impossível enquanto houver Maienas e genealogias de Nicolau David. Portanto, entregue-me a genealogia, e à fé de cavaleiro, prometo ocultar o seu nome e torná-lo rico para toda a vida.

Durante esta exposição das suas ideias, que de propósito fizera tão demorada, tinha Chicot observado David com toda a atenção.

Enquanto durou o exame, não viu afrouxar uma única vez as fibras de aço que dilatavam o olhar sinistro do advogado; nem um único pensamento bom brilhou nas suas feições sombrias, e a mão que apertava o punho da espada não aFrouxou um único instante.

- Ora pois - disse Chicot -, vejo que tudo quanto lhe estou dizendo é eloquência deitada ao vento, e que não me dá crédito algum; resta-me por conseguinte um único meio para me vingar do mal que me fez, livrando ao mesmo tempo o mundo dum homem que já não crê em honra nem probidade. Vou tratar de o fazer enforcar. Adeus, Sr. David.

E Chicot deu um passo recuando para a porta, mas sem perder o letrado de vista. Este deu um salto para a frente.

- E julga que o deixarei sair? - exclamou o advogado. - Nada, meu guapo espião; nada, meu amigo Chicot; quem sabe segredos como esse da genealogia, morre! Quem ameaça Nicolau David, morre! Quem entra aqui como tu entraste, morre!

- As suas palavras põem-me perfeitamente à vontade - respondeu Chicot sempre com a mesma serenidade a minha hesitação só provinha da certeza que tenho de que o hei-de matar. Crillon, jogando a espada comigo, haverá coisa de dois meses, ensinou-me uma estocada particular, uma única; mas dou-Lhe a minha palavra de honra que é quanto há-de bastar. Vamos pois, entregue-me os papéis - prosseguiu ele com voz terrível -, quando não, mato-o! E desde já lhe digo como hei-de traspassar-lhe a garganta com a espada; há-de ser no mesmo sítio em que queria sangrar o meu amigo Gorenflot.

Ainda bem Chicot não tinha acabado estas palavras, já David tinha corrido para ele dando uma risada de fera. Chicot esperou-o em posição de defesa.

Os dois adversários eram da mesma estatura pouco mais ou menos; porém o fato de Chicot encobria-lhe a magreza, enquanto que o letrado não tinha roupas que lhe disfarçassem o comprimento e flexibilidade do descarnado corpo. Parecia uma comprida serpente, e a espada, que agitava com incrível velocidade, figurava a língua do réptil; mas Chicot bem o tinha avisado que havia de encontrar nele um rijo adversário; Chicot, com a continuação de jogar a espada quase todos os dias com o rei, tinha-se tornado um dos mais hábeis esgrimidores do reino; e não tardou que Nicolau David se convencesse de que assim era, pois que, de qualquer forma que procurava atacá-lo, sempre encontrava o ferro do seu antagonista.

Deu um passo em retirada.

- Ah, ah! - declarou Chicot. - Já vai percebendo como a coisa regula, não é verdade? Pois bem! Ainda lhe torno a dizer: dê-me os papéis.

A única resposta de David foi atirar-se outra vez ao gascão, e assim travaram nova luta, mais demorada e mais encarniçada de que a primeira, se bem que Chicot apenas se concentrava com aparar os golpes, e ainda não tinha atacado.

O segundo ataque terminou como o primeiro, com um passo de retirada que deu o advogado.

- Ah, ah! - tornou a exclamar Chicot. - Agora eu!

E deu um passo para a frente.

Enquanto avançava, Nicolau David descarregou-lhe o ferro para o deter. Chicot aparou o bote e, enlaçando- Lhe a espada, correu-lhe uma estocada ao sítio que de antemão havia indicado; e enterrou-lhe metade do ferro na goela.

- esta a tal estocada - disse Chicot.

David não respondeu; caiu logo aos pés de Chicot, deitando uma golfada de sangue.

Chegou a vez de Chicot dar também um passo em retirada. A serpente, apesar de estar mortalmente ferida, ainda podia erguer-se e morder.

Porém David, por um movimento natural, procurou arrastar-se para junto da cama como para defender até à última o seu segredo.

- Ah - disse Chicot -, eu pensava que eras matreiro, e vejo que és estúpido. Não sabia o sítio onde tinhas escondido os papéis, e acabas de me ensinar.

E enquanto David se torcia com as convulsões da morte, Chicot foi direito à cama, levantou o travesseiro, e achou debaixo da cabeceira um rolo pequeno de pergaminho, que David, ignorando a catástrofe de que estava ameaçado, não tinha procurado esconder melhor.

No momento em que ele o desenrolava para se certificar se era com efeito o papel que procurava, ergueu-se David com um gesto de raiva, e logo, tornando a cair, deu o último arranco.

Chicot, radiante de alegria e de orgulho, correu os olhos pelo pergaminho que Pedro de Gondy tinha trazido de Avinhão.

O legado do papa, fiel ao sistema de política adoptada pelo Sumo Pontífice desde a sua elevação ao trono, tinha escrito por baixo:

Fiat ut voluit Deus: Deusjura hománumfecit.

Eis aqui um papa, disse Chicot, que não trata muito bem o Rei Cristianíssimo. E dobrou com toda a cautela o pergaminho, introduzindo- o em seguida no bolso mais seguro do gibão, que era o que lhe ficava junto ao peito.

Feito isto, pegou no corpo do advogado, que tinha morrido quase sem derramar sangue, por isso que a natureza da ferida tinha concentrado a hemorragia no interior, colocou-o sobre a cama com o rosto voltado para a parede, e, abrindo a porta, chamou Gorenflot.

Gorenflot entrou.

- Como está enfiado! - disse o frade.

- É verdade - disse Chicot -, os últimos momentos deste pobre homem causaram-me alguma perturbação.

- Então sempre morreu? - perguntou Gorenflot.

- Penso que sim - replicou Chicot.

- Estava de tão boa saúde ainda há pouco!.

- Estava, é verdade; muito bom. Mas teimou em comer coisas que custam muito a digerir, e morreu engasgado como Anacreonte.

- Oh, oh! - disse Gorenflot. - O malvado quis afogar-me; matar um eclesiástico! Foi i sso provavelmente que Lhe acarretou esta desgraça.

- Perdoa-lhe, compadre; lembra-te que és cristão.

- Perdoo, sim - respondeu Frei Gorenflot -, se bem que muito me assustou.

- E ainda é preciso que faças mais outra coisa - disse Chicot -; será bom que acendas as velas, e que fiques a rezar ao pé deste cadáver.

- Para quê?

Era este o estribilho de Gorenflot para tudo.

- Como? Ainda perguntas para quê? Para não seres preso e metido na cadeia da cidade

como assassino.

- Eu? Por assassinar este homem? Essa não está má; foi ele quem quis afogar-me.

- Não há dúvida nenhuma. Mas como não pôde consegui-lo, a raiva reconcentrada apressou-Lhe a circulação do sangue; rebentou-lhe alguma veia no peito, e. boas noites. Bem vês que, afinal, és tu, Gorenflot, a única causa da morte do homem. És uma causa muito inocente, é verdade, mas não importa! Enquanto não conseguisses comprovar a tua inocência, havias de passár mal.

- Parece-me que tem razão, Sr. Chicot - replicou o monge.

- Tenho, sim; e sempre quero prevenir-te de que as autoridades eclesiásticas aqui de Lião não são para graças.

- Jesus me valha! - murmurou o frade.

- Faz pois o que te disse, compadre.

- Torne a dizer-me, o que hei-de fazer?

- Fica neste quarto, recita com a maior devoção quantas rezas sabes, e mesmo as que não sabes, e logo que anoitecer e que ninguém te veja, sai da estalagem, sem ires nem muito devagar nem a correr; estás lembrado onde fica o tronco do mestre ferrador que está à esquina da rua?

- Sei muito bem; foi de encontro a ele que dei esta pancada ontem à noite - disse Gorenflot mostrando o olho pisado.

- Que feliz memória! Pois bem: hei-de dar as providências para que lá encontres o teu cavalo, percebeste? Montarás a cavalo sem dar cavaco a pessoa alguma; e depois, se te parecer, tomas a estrada de Paris; quando chegares a Villeneuve-le-Roi vende o cavalo, e vai buscar o Panurgo à estalagem onde ficou.

- Ah, o pobre Panurgo, diz bem, muito hei- de estimar torná-lo a ver; sou amigo dele. Mas, daqui até lá - acrescentou o monge com cara de lástima -, como hei-de viver?

- Eu quando prometo a minha protecção a alguém, não costumo faltar - disse Chicot

- , e não consinto que os meus amigos peçam esmola, como fazem os frades de Santa Genoveva; aqui tens.

E Chicot, dizendo isto, tirou da algibeira uma mão-cheia de escudos, que passaram para a enorme mão do frade.

- Homem generoso - exclamou Gorenflot chorando de ternura -, consinta que eu fique consigo em Lião. Gosto muito de Lião; é a segunda capital do reino e uma cidade muito hospitaleira.

- Mas sabe uma coisa, meu basbaque! É que eu não fico; vou partir já, e com tanta rapidez, que não te convido a acompanhar-me.

- Seja feita a sua vontade, Sr. Chicot! - disse Gorenflot com resignação.

- Ora ainda bem - disse Chicot -, assim é que eu gosto de te ver, compadre. Em seguida mandou ajoelhar o frade junto do leito; depois foi ter com o estalajadeiro, e puxando-o para um canto:

- Mestre Bernouillet - disse ele -, acaba de ter lugar em sua casa um grande acontecimento, de que não deu fé.

- Deveras? - respondeu o estalajadeiro muito espantado. - Que foi?

- Aquele endiabrado realista, o desprezador da Religião, e abominável fazedor de huguenotes.

- E então?

- Foi visitado esta manhã por um emissário vindo de Roma.

- Forte novidade! Fui eu quem lho disse!.

- Pois bem! O Santo Padre, de quem dimana toda a justiça temporal neste mundo, assim como a justiça espiritual no outro, o Santo Padre, digo, foi quem enviou esse emissário directamente ao conspirador; porém, é muito de crer que este não sabia qual era o motivo por que o outro o procurava.

- E então, qual era o motivo?

- Suba ao quarto do seu hóspede, mestre Bernouillet, levante a roupa da cama, examine-lhe o pescoço, e então verá.

- Olá, assusta-me, na verdade!

- Não lhe digo mais nada. Foi uma honra muito grande que lhe fez o papa, mestre Bernouillet, escolhendo a sua casa para nela se executar um tal acto de justiça.

Ditas estas palavras, Chicot meteu dez escudos de ouro na mão do estalajadeiro, e foi à cavalariça, de onde tirou os dois cavalos.

O estalajadeiro, entretanto, tinha subido a escada com a ligeireza dum pássaro, e entrou no quarto de Nicolau David.

Deu com Gorenflot ajoelhado a rezar.

Aproximou-se então da cama, e, conForme as instruções que Chicot lhe dera, ergueu a roupa.

Viu a ferida, ainda vermelha, no sítio indicado, mas o corpo já estava frio.

- Assim morram todos os inimigos da nossa santa religião! - exclamou ele, fazendo a Gorenflot um sinal de inteligência.

- Amén! - respondeu o frade.

Estes acontecimentos tinham lugar pouco mais ou menos na mesma ocasião em que Bussy entregava Diana de Méridor nos braços do velho barão, que a julgava falecida.

 

         COMO FOI QUE O DUQUE DE ANJU VEIO A SABER QUE DIANA DE MÉRIDOR NÃO TINHA MORRIDO

Tinha-se aproximado, entretanto, o fim do mês de Abril.

A grande Catedral de Chartres estava armada de branco, e, em volta dos pilares, numerosos Feixes de ramos verdes, coisa ainda rara naquela época do ano, supriam a falta das flores.

O rei, com os pés descalços, conforme viera desde as portas de Chartres, estava de pé no centro da nave, olhando de vez em quando de roda de si para se certificar se todos os seus amigos tinham concorrido pontualmente à reunião.

Porém muitos destes, com as solas dos pés esfoladas pelas pedras, haviam tornado a calçar os sapatos; outros, cansados e esfaimados, tinham ficado a descansar ou a comer nalguma estalagem contígua à estrada, para onde se haviam recolhido sorrateiramente, e apenas um pequeno número tivera coragem para acompanhar o rei até à igreja e ajoelhar sobre as frias lajes, descalços como vinham de pé e perna, e simplesmente vestidos com compridos hábitos de penitentes.

Começou finalmente a cerimónia religiosa, que tinha por objecto conseguir um herdeiro à coroa de França; as duas camisas de Nossa Senhora, de cuja virtude prulíFra se não podia duvidar, atentos os muitos milagres que se Lhes atribuíam, foram tiradas dos seus relicários de ouro, e o povo, que em massa viera assistir àquela solenidade, inclinou-se deslumbrado pelo esplendor do tabernáculo, quando o abriram para dele tirar as duas túnicas.

Naquele momento e no meio do silêncio geral, ouviu Henrique III um rumor estranho, uma bulha que se assemelhava a uma gargalhada reprimida, e por costume procurou com os olhos a ver se Chicot ali estaria, pois se persuadia que Chicot era a única pessoa capaz de ter o atrevimento de se rir numa ocasião daquelas.

Contudo não era Chicot quem se tinha rido à vista das duas túnicas sagradas; porque Chicot achava-se ausente, o que muito pesar causava ao rei, o qual, como os nossos leitores estarão lembrados, o tinha perdido de vista subitamente na estrada de Fontainebleau, sem que dele tornasse a haver notícia.

Era um cavaleiro que à porta da igreja acabava de se apear dum cavalo escorrendo em suor, e que, apesar dos salpicos de lama de que trazia manchado o fato e as botas, tinha aberto caminho por entre os fidalgos embrulhados em trajes de penitentes, ou cobertos de sacos, e todos eles descalços.

O recém-chegado, vendo que o rei se voltava, conservou-se denodadamente de pé no coro, com aparência de respeito; porque era homem da corte, e bem o mostrava pela atitude ainda mais que pela elegância do seu vestuário.

Henrique, zangado por ver a bulha que fazia o cavaleiro que acabava de entrar e a insolência com que se apresentava sem os atavios munacais que naquele dia eram de etiqueta, olhou para ele com enfado e despeito.

O recém-chegado Fingiu que não percebia, e atravessando umas poucas de lájeas em que estavam esculpidas efígies de bispos, fazendo ranger as botas com o andar, foi ajoelhar junto da cadeira de veludo do Senhor Duque de Anju, o qual, absorto em seus pensamentos mais do que em suas orações, não dava atenção ao que se passava em redor de si.

Entretanto, quando sentiu o contacto desta nova personagem, voltou-se arrebatadamente, e exclamou a meia voz:

- Bussy!

- Muito bons dias, meu Senhor - respondeu o Fidalgo como se se tivesse despedido do duque na véspera, e que desde então nenhum acontecimento notável tivesse ocorrido.

- Segundo penso - disse o príncipe -, estás doido varrido.

- Porque diz isso, meu Senhor?

- Porque saíste do esconderijo onde tens estado metido unicamente para vires a Chartres ver as camisas de Nossa Senhora.

- Vim aqui, meu Senhor - replicou Bussy -, porque preciso falar a Vossa Alteza sem demora.

- Porque não vieste há mais tempo?

- Provavelmente porque me foi impossível.

- Mas conta-me: o que tens feito durante estas três semanas em que desapareceste?

- É sobre isso mesmo que preciso falar imediatamente com vossa Alteza.

- Bem, espera que saiamos da igreja.

- Que remédio tenho senão esperar, e é o que mais me custa.

- Cala-te! Está a acabar a cerimónia; tem paciência, voltaremos juntos para os aposentos que me foram destinados.

- Essa tenção cenho eu, meu Senhor.

E com efeito, o rei acabava de vestir, por cima da camisa de linho Finíssimo, a camisa bastante grossa de Nossa Senhora, e a rainha, ajudada pelas suas damas, estava tratando de fazer o mesmo.

Em seguida o rei ajoelhou e a rainha imitou-o; cada um deles se conservou um instante debaixo dum grande pálio, orando com fervor, enquanto os circunstantes, para agradarem ao rei, batiam com as cabeças no chão.

Concluída que foi a cerimónia, o rei ergueu-se, despiu a túnica santa, cumprimentou o arcebispo e depois a rainha, e encaminhou-se para a porta da catedral.

Mas em meio do trânsito, parou: tinha avistado outra vez Bussy.

- Ah, Sr. de Bussy - disse ele -, pelo que vejo não lhe agradam as nossas devoções, porque não pode resolver-se a abandonar o ouro e a seda, quando o seu rei se veste de burel e estamenha.

- Senhor - respondeu Bussy com dignidade mas empalidecendo, de impaciência ao ouvir a repreensão do rei -, nenhum dos seus súbditos por muito grosseiro que seja o seu hábito, ou por muito feridos que tenha os pés, tem mais a peito do que eu o serviço de Vossa Majestade; porém, apenas esta manhã, quando chegava duma jornada muito trabalhosa, foi que soube da vinda de Vossa Majestade a Chartres. Andei, pois, vinte e duas léguas em cinco horas para vir ter com Vossa Majestade; eis o motivo por que não tive tempo para mudar de traje, e Vossa Majestade não notaria por certo esta minha falta, se eu tivesse ficado em Paris, em vez de vir aqui com toda a humildade juntar as minhas orações às suas.

O rei pareceu contentar-se com esta desculpa; mas como olhara para os seus amigos e alguns deles tinham encolhido os ombros ao ouvirem as palavras de Bussy, receou ofendê-los mostrando bom modo ao gentil-homem de seu irmão, e passou adiante.

Bussy deixou passar o rei sem pestanejar.

- Então que é isso? - perguntou o duque. - Estás cego?.

- Porquê?

- Não viste que Schomberg, Quélus e Maugiron encolheram os ombros quando deste a tua desculpa a el-rei?

- Não tem dúvida, meu Senhor: vi perfeitamente - respondeu Bussy com a maior placidez.

- E então?

- Pois julga-me capaz de matar o meu próximo, ou coisa que o valha, dentro duma igreja?. Prezo-me de ser bom cristão.

- Ah, muito bem - disse o duque de Anju admirado -; pensava que não tinhas visto, ou que não tinhas querido ver.

Bussy também encolheu os ombros, e à saída da igreja, puxando o príncipe de parte:

- Em sua casa, não é verdade, meu Senhor? - disse ele.

- Quanto antes, porque deves ter muito que me dizer.

- Tenho, efectivamente, meu Senhor, e coisas que por certo não espera ouvir. O duque olhou para Bussy com espanto.

- É isto que lhe digo - replicou Bussy.

- Pois bem! Deixa-me ir despedir de el- rei, e já venho ter contigo.

O duque foi despedir-se do irmão, o qual, achando-se provavelmente disposto a ser indulgente por graça especial de Nossa Senhora, autorizou o duque de Anju a regressar a Paris quando bem Lhe parecesse.

Depois, voltando apressadamente para junto de Bussy, conduziu-o aos seus aposentos. - Ora vamos, meu fiel companheiro - disse ele -, senta-te aí, e conta-me as tuas aventuras; sabes que julguei que tinhas morrido?

- Não duvido, meu Senhor.

- Sabes que toda a corte se vestiu de branco em sinal de regozijo por teres desaparecido, e que muitos peitos respiraram desafogadamente pela primeira vez desde que tu sabes manejar uma espada? Mas não é disso que se trata agora; vamos lá: deixaste-me para ires perseguir uma formosa incógnita. Quem era a mulher, e que devo eu esperar?

- Há-de recolher o que semeou, meu Senhor, isto é, muita vergonha!

- Que dizes tu! - disse o duque, mais admirado ainda por ouvir estas palavras tão extraordinárias, do que por ver o modo pouco respeitoso de Bussy.

- Vossa Alteza ouviu - respondeu Bussy friamente -, é escusado que eu repita o que disse.

- Explica-te, e deixa os enigmas e anagramas para Chicot.

- Oh, é coisa facílima, meu Senhor, e limitar-me-ei a invocar as suas recordações.

- Mas quem é a tal mulher?

- Eu julgava que Vossa Alteza a tinha conhecido.

- Então sempre era ela? - exclamou o duque.

- Sim, meu Senhor.

- Viste-la?

- Vi.

- Falou-te?

- Falou, meu Senhor; só os espectros é que não falam. Mas Vossa Alteza estava talvez no seu direito julgando que ela tinha morrido, e na esperança de que assim fosse.

O duque descorou, e ficou como aterrado pelo desabrimento das palavras do seu gentil-homem. - Pois é verdade, meu Senhor - prosseguiu Bussy -; Vossa Alteza procurou martirizar uma donzela de raça ilustre, mas a vítima escapou ao martírio; contudo, não respira ainda, e não se julgue Vossa Alteza absolvido, porque, se ela conservou a vida, sucedeu-Lhe uma desgraça pior do que a morte.

- Que foi, pois, que lhe sucedeu? - perguntou o duque a tremer.

- Sucedeu, meu Senhor, que houve um homem que lhe salvou a honra e a vida, mas que exigiu tal preço pelo seu serviço, que melhor fora que não o houvesse prestado.

- Acaba, anda!

- Pois bem, meu Senhor: a Menina de Méridor, para fugir do poder do Senhor Duque de Anju, de quem não queria ser amásia, a Menina de Méridor, repito, lançou-se nos braços dum homem que abomina.

- Que me dizes?

- Digo-lhe que Diana de Méridor se chama actualmente a Senhora Condessa de Monsoreau.

A estas palavras, a palidez usual de Francisco desapareceu, e o sangue afluiu-lhe com tanta violência ao rosto, que parecia próximo a sair- Lhe pelos olhos.

- Pelo sangue de Cristo! - bradou o príncipe enfurecido; - isso será certo?.

- Que tal está. se sou eu quem lho digo!. - replicou Bussy com a costumada altivez.

- Não era isso que eu queria dizer - acudiu o príncipe -, não desconfio da tua lealdade, Bussy, admirava-me unicamente que um dos meus gentis-homens, um Monsoreau, tivesse a audácia de proteger contra o meu amor uma mulher a quem eu fazia a honra de requestar.

- E porque não? - disse Bussy.

- Visto isso, também tu terias feito o mesmo!...

- Teria feito melhor, meu Senhor: teria lembrado a Vossa Alteza que ia cometer uma

acção que Lhe estava muito mal.

- Espera, Bussy - disse o duque tornando a si -, faz favor de me ouvir: fica entendendo meu caro, que não estou procurando justificar-me...

- Pois faz mal, meu príncipe, porque Vossa Alteza não é mais do que um simples cavaleiro, sempre que se trate de pontos de honra.

- Muito bem! E é por isso mesmo que te peço que sejas juiz do que fez o Sr. de Monsoreau.

- Eu?

- Sim, tu; e que me digas se ele não se portou como um traidor para comigo.

- Para com Vossa Alteza?

- Sim, para comigo, de quem ele sabia todas as intenções.

- E as intenções de Vossa Alteza eram...

- Fazer com que Diana me tivesse amor, não há dúvida...

- Fazer com que ela lhe tivesse amor?

- Sim, mas nunca, em caso algum, usar de violência...

- Era o seu projecto, meu Senhor? - disse Bussy sorrindo-se ironicamente.

- Sem dúvida; e nesta ideia persisti até ao último instante, se bem que o Sr. de Monsoreau a combateu com toda a força da sua eloquente lógica.

- Meu Senhor! Meu Senhor! O que está Vossa Alteza dizendo? Pois esse homem induziu-o a desonrar por meio da violência Diana de Méridor?

- verdade.

- Pelos seus conselhos?...

- Pelas suas cartas. Queres tu ver uma carta dele?

- Oh! - exclamou Bussy. - Se eu pudesse crer em semelhante coisa!.

- Espera aí um segundo, e verás.

O duque correu a uma caixinha que sempre o acompanhava, entregue à guarda dum pajem, e tirou dela um bilhete, que entregou a Bussy.

- Lê - disse ele -, já que duvidas da palavra do teu príncipe. Bussy pegou no bilhete com a mão a tremer-lhe, e leu:

Meu Senhor:

Fique Vossa Alteza descansado: a empresa há-de conseguir-se sem risco algum porque a menina parte esta noite para ir passar oito dias em casa duma amiga que habita no Castelo de Lude; tomo pois o negócio por minha conta, e escusado será incomodar- se. Quanto aos escrúpulos da donzela, acredite que se hão-de desvanecer logo que ela se veja na presena de Vossa Alteza; entretanto vou pôr o plano em execução. e, esta noite. há-de ela ficar no Castelo de Beaugé.

Sou de Vossa Alteza muito respeitoso servo

Bryan de Monsoreau.

- Então?. Que me dizes a isso, Bussy? - perguntou o príncipe depois de o fidalgo ler a carta segunda vez.

- Digo que tem quem o sirva com muita fidelidade, meu Senhor.

- Deves dizer, pelo contrário, que tenho quem me atraiçoe.

- Ah, é verdade! Esquecia-me o desfecho.

- Zombou de mim, o miserável! Fez-me capacitar da morte duma mulher.

- Que ele mesmo lhe roubava; é na realidade uma acção muito feia. Porém - acrescentou Bussy com pungente ironia -, deve-se desculpar o Sr. de Monsoreau, atendendo ao amor que o dominava.

- Ah! parece-te isso?. - disse o duque com o seu pior sorriso.

- Eu sei lá. - replicou Bussy -, é coisa em que não quero emitir parecer; seguirei neste caso a opinião de Vossa Alteza.

- Que farias tu no meu lugar? Mas, primeiro. espera lá: que foi que ele fez?

- Fez persuadir o pai da donzela de que Vossa Allteza tinha sido o roubador. Ofereceu-se para a proteger; apresentou-se no Castelo de Beaugé com uma carta du barão de Méridor; finalmente, aproximou-se num bote das janelas do castelo, e de lá tirou a cativa; e depois de a ter encerrado naquela casa que sabe, compeliu-a, a poder de repetidos sustos, a ser sua esposa.

- E não é semelhante proceder uma deslealdade infame? - exclamou o duque.

- A que Vossa Alteza deu azo, meu Senhor - respondeu o Fidalgo com o usual atrevimento.

- Ah! Bussy. Tu verás se sei vingar-me!.

- Vingar-se? Deixe-se disso, meu Senhor, não há-de fazer tal!

- Como assim?

- Os príncipes não se vingam, meu Senhor, castigam. Lançará pois em rosto a esse Monsoreau a infâmia da sua conduta e castigá-lo-á.

- De que maneira?

- Restituindo a felicidade à Menina de Méridor.

- E posso eu fazê-lo?

- Pode, decerto.

- Como?

- Restituindo-Lhe a liberdade.

- Vamos, explica-te.

- É muito fácil; ela foi compelida a casar: está nulo, por consequência, o casamento.

- Tens razão.

- Faça pois com que seja anulado o casamento, meu Senhor, e assim procederá como cavaleiro honrado e grande príncipe.

- Ah. ah! - disse o príncipe sempre desconfiado. - Que calor que tu tomas pelo negócio!. interessas-te muito por essa menina, Bussy?

- Eu, não, por forma alguma! O único interesse que nisto tenho, meu Senhor, é que não se diga que Luís de Clermont, conde de Bussy, está ao serviço dum príncipe sem honra.

- Pois bem, tu verás. Mas, como se há-de desmanchar o casamento?

- Muito Facilmente: fazendo com que o pai requeira a anulação.

- O barão de Méridor?

- Sim, meu Senhor.

- Mas ele está lá para o fundo do Anju.

- Está aqui, meu Senhor; quero dizer, está em Paris.

- Em tua casa?

- Não, em casa da filha. Fale-Lhe, meu Senhor; diga-Lhe que pode contar com o seu apoio; faça que ele, em lugar de ver em Vossa Alteza, como até aqui, o inimigo, o fique considerando como seu protector, e que em vez de amaldiçoar o seu nome, passe a adorá lo como o seu anjo bom.

- O barão é um fidalgo poderoso na sua terra - disse o duque -, e já me asseveraram que tem grande influência em toda a província.

- É verdade, meu Senhor; porém o que Vossa Alteza deve ter presente primeiro que tudo, é que ele é pai, que sua filha é infeliz, e que a infelicidade da filha o torna a ele desgraçado.

- E quando poderei eu vê-lo?

- Logo que regressar a Paris.

- Está bem.

- Visto isso, está tudo combinado, não é verdade, meu Senhor?

- Está.

- À fé de cavaleiro?

- À fé de príncipe.

- E quando parte Vossa Alteza?

- Esta tarde; e tu, vens comigo?

- Não, vou adiante.

- Pois vai, e espera lá por mim.

- Aos pés de Vossa Alteza. Onde encontrarei eu Vossa Alteza?

- Amanhã ao meio-dia na câmara de el-rei.

- Lá estarei, meu Senhor; muito bons dias.

Bussy não perdeu um instante, e aquela mesma distância que o duque percorreu a dormir na sua liteira e que lhe levou quinze horas a andar, dobrou-a o mancebo no espaço de cinco horas, a fim de poder quanto antes consolar o barão, a quem prometera o auxílio do príncipe, e sossegar Diana, a quem ia dar nova vida.

 

         EM QUE SE NARRA O REGRESSO DE CHICOT AO LOUVRE E A MANEIRA POR QUE FOI RECEBIDO PELO REI HENRIQUE III

Estava tudo a dormir no Louvre, porque eram apenas onze horas da manhã; as sentinelas do pátio passeavam muito tranquilas, e os soldados de cavalaria, que saíam para renderem os que estavam de guarda, iam a passo.

El-rei estava descansando das fadigas da romaria.

Dois homens se apresentaram ao mesmo tempo à porta principal do Louvre: um deles vinha montado num lindo cavalo árabe; o outro num cavalo andaluz branco de espuma.

Pararam em Frente da porta e olharam um para o outro; porque como tinham vindo por dois caminhos opostos, somente ali se encontraram.

- Sr. de Chicot - exclamou o mais moço dos dois cumprimentando o outro com urbanidade - como tem passado?

- Olé, o Sr. de Bussy! Vou passando sem novidade, muito obrigado - respondeu Chicot com igual polidez.

- Vem. para cumprimentar el-rei, Sr. de Chicot? - perguntou Bussy.

- E o senhor também, segundo presumo.

- Não. Eu venho aqui para cumprimentar o Senhor Duque de Anju. Sabe muito bem, Sr. de Chicot - prosseguiu Bussy -, que não tenho a honra de ser valido de Sua Majestade.

- Quem perde nisso é el-rei, e não por certo o senhor!

Bussy cumprimentou novamente.

- E vem de muito longe? - perguntou Bussy - Disseram-me que tinha ido viajar...

- Sim senhor, andei caçando - replicou Chicot. - Mas o senhor, segundo creio, também andou viajando.

- Com efeito, fiz uma jornada à província. Ora pois - continuou Bussy -, quer ter a bondade de me prestar um serviço?

- Com todo o gosto! Sempre que o Sr. de Bussy quiser dispor de mim, seja para o que for - disse Chicot -, dar-me-á muita honra.

- Eu lhe digo o que pretendo: o senhor, que tem privilégio, vai entrar nos quartos do Louvre, enquanto que eu, que o não tenho, hei-de ficar esperando na antecâmara; peço- lhe, pois, que mande dizer ao Senhor Duque de Anju que estou aqui para receber as suas ordens.

- O Senhor Duque de Anju, visto estar no Louvre - disse Chicot -, há-de provavelmente vir cumprimentar el-rei ao levantar da cama; porque não entra comigo para o aposento de Sua Majestade?

- Receio muito os maus modos de el-rei.

- Qual!.

- É que, até hoje, não me acostumou a vê-lo sorrir para mim.

- Fique descansado que não há-de tardar muito que tudo isso mude.

- Ah, ah, é pois nigromante, Sr. de Chicot?

- Às vezes, Mas vamos, tenha coragem; venha comigo, Sr. de Bussy. Entraram aFinal, e dirigiram-se, Bussy para os aposentos do Senhor Duque de Anju, que habitava, como nos parece que já dissemos, nos quartos que outrora havia ocupado a rainha Margarida, e Chicot para a câmara do rei.

Henrique III havia acordado naquele instante, e apenas dera sinal tangendo uma grande chapa de bronze, logo um enxame de criados e amigos invadira o aposento real; já tinham apresentado ao rei o caldo de galinha, o vinho fervido com especiarias, e os pastelinhos de carne, quando Chicot entrou alegremente na câmara do seu augusto amo, e começou, antes de lhe dar os bons-dias, por comer no prato que ele tinha diante de si e beber na taça de ouro.

- Com os demónios! - exclamou o rei, contentíssimo, mas Fingindo-se enfadado - é, se não me engano, o maroto do Chicot! Um desertor, um vagabundo, um patife!

- Então que é isso? Que tens tu, meu filho? - disse Chicot sentando-se sem cerimónia com as botas enlameadas na imensa poltrona bordada de flores-de-lis de ouro em que estava recostado o próprio rei; - já estamos esquecidos daquela retiradazinha da Polónia, em que desempenhámos o papel de veado, enquanto que os magnates faziam de cães?.

- Está bom, voltou o autor das minhas apoquentações - disse Henrique -; preciso ir-me preparando para ouvir continuamente coisas desagradáveis. Estava tão descansado havia já três semanas!.

- Ora adeus - replicou Chicot -, estás sempre a queixar-te; o diabo me leve se não pareces um dos teus próprios súbditos! Vejamos: o que fizeste tu durante a minha ausência meu Henriquinho? Desgovernou-se sofrivelmente este famoso reino de França?

- Sr. Chicot!.

- Os nossos povos já andam de língua de fora, bem?

- Maroto!

- Já foi enforcado algum dos meninos de cabelo encrespado? Ah!. perdão, Sr. de Quélus, que o não tinha visto.

- Chicot, olha que fico de mal contigo!

- Finalmente, há ainda algum dinheiro nas nossas burras ou nas dos judeus? Seria muito para desejar que o houvesse, porque precisamos de distracções; a vida sem divertimentos é coisa sobremaneira enfadonha!

E, dizendo isto, acabou de limpar o prato dourado, engolindo os últimos pastéis. O rei desatou a rir; era sempre o desfecho das suas questões com Chicot.

- Conta-me agora - disse ele - que fizeste tu durante tão longa ausência?

- Ocupei-me - respondeu Chicot - em traçar o plano duma procissão em três actos. Primeiro acto. - Um grupo de penitentes, levando por único vestuário camisa e calções, sobe do Louvre a Montmartre, arrancando os cabelos e socando-se reciprocamente pelo caminho.

Segundo acto. - Os mesmos penitentes, despidos até à cintura e açoitando-se com rosários de espinhos, descem de Montmartre à Abadia de Santa Genoveva.

Terceiro acto. - Finalmente, os mesmos penitentes, nus em pêlo e rasgando-se mutuamente as carnes a poder de chicotadas sobre as omoplatas, voltam da Abadia de Santa Genoveva para o Louvre.

Confesso que também me lembrei de introduzir na minha composição uma peripécia inesperada, que era Fazê-los passar pela Praça de Grève, para que o carrasco os queimasse a todos desde o primeiro até ao último; mas ocorreu-me depois que é muito provável que Deus Nosso Senhor ainda tenha lá no Céu alguma porçãozita do enxofre de Sodoma e do betume de Gomorra, e não quero privá-Lo do gosto de os assar por Suas mãos. Ora pois, Senhores, enquanto não chega o grande dia, tratemos de nos divertir.

- Mas diz-me, primeiro que tudo, onde estiveste metido? - perguntou o rei. - Sabes que te mandei procurar por todos os alcouces de Paris?

- E também mandaste dar busca ao Louvre?

- Foi algum frascário teu amigo que te desinquietou.

- Já não há frascários disponíveis, Henrique: estão todos empregados no teu serviço.

- Visto isso, enganei-me?

- É verdade, enganaste-te completamente, como sempre.

- Querem ver que estiveste fazendo penitência.

- Exactamente. Fiz-me religioso para provar da vida que se leva nas clausuras, e, por minha fé, que me desgostei! Fiquei farto de frades. Fora com tão imundos animais!

Nesta ocasião entrou o Sr. de Monsoreau no quarto do rei, a quem cumprimentou com o maior respeito e atenção.

- Ah, é o Senhor Monteiro-Mor - disse Henrique. - Quando nos proporcionará ocasião de fazermos uma boa montaria, diga?

- Logo que aprouver a Vossa Majestade. Recebi aviso de que apareceram muitos javalis nas matas de Saint-Germain-en- Laye.

- O javali é um animal muito perigoso - disse Chicot. - Sempre me há-de lembrar que el-rei Carlos IX escapou por pouco de ser morto numa montaria aos javalis; e demais, os contos das lanças são ásperos e podem fazer-nos empolas nas mãozinhas. Não é verdade, meu filho?

O Sr. de Monsoreau olhou de revés para Chicot.

- Olha - disse o gascão para Henrique -, ainda não há muito tempo que o teu monteiro-mor viu um lobo.

- Porque dizes isso?

- Porque, à semelhança das nuvens do poeta Aristófanes, conservou a impressão das feições, e sobretudo do olhar da fera; está muito parecido.

O Sr. de Monsoreau voltou-se, e disse muito enfiado para Chicot:

- Sr. Chicot, eu tenho vivido pouco na corte, por isso não estou acostumado às chocarrices dos bobos, e previno-o de que não gosto que me achincalhem diante do meu rei, e especialmente quando se trata do seu serviço.

- Pois, Senhor - replicou Chicot -, é inteiramente às avessas de nós, gente da corte; porque a última chocarrice que aqui houve deu-me muita vontade de rir.

- Qual foi? - perguntou Monsoreau.

- Foi a sua nomeação para monteiro-mor; bem vê que o meu querido Henriquinho, apesar de não ser bobo como eu, ainda é mais louco.

Monsoreau encarou o gascão com um olhar terrível e penetrante.

- Vamos, vamos - disse Henrique, receando alguma desavença -, mudemos de conversa, meus Senhores.

- Pois sim - disse Chicot -, falemos dos milagres de Nossa Senhora de Chartres.

- Chicot nada de impiedades! - disse o rei em tom severo.

- Impiedades, eu? - disse Chicot - era o que faltava! Pensas que sou algum eclesiástico?. Pois estás enganado, sou homem de guerra. Bem pelo contrário, sou eu que te quero prevenir duma coisa, meu filho.

- De quê?

- É que o teu procedimento para com Nossa Senhora de Chartres, Henrique, torna-se muito repreensível.

- Como assim?

- Decerto. Nossa Senhora tinha duas camisas acostumadas a estarem sempre juntas; e tu separaste-las. Eu, no teu lugar, tê-las-ia reunido, Henrique, e assim haveria alguma probabilidade de se conseguir o milagre.

Esta alusão algum tanto brutal à separação do rei e da rainha, fez rir os amigos do rei. Henrique espreguiçou-se, esfregou os olhos, e sorriu-se também.

- Desta vez - disse ele - não há dúvida que é o bobo quem tem razão. E passou a conversar noutro assunto.

- Senhor - disse Monsoreau em voz baixa a Chicot -, quer fazer-me o favor de ir disfarçadamente esperar por mim no vão daquela janela?

- Pois não, Senhor - respondeu Chicot -, vou já com todo o gosto.

- Muito bem, então afastemo-nos daqui!

- Estou pronto a segui-lo, até mesmo ao meio dum bosque, se quiser.

- Basta de gracejos, é tempo perdido, porque aqui não está ninguém que deles se ria - disse Monsoreau mecendo-se para o vão da janela, onde o bobo tinha chegado primeiro.

- Aqui estamos cara a cara, será bom que falemos sem rebuço, Sr. Chicot, senhor truão, senhor bobo; um cavaleiro proíbe-Lhe, percebeu bem esta palavra? Proíbe-lhe que faça dele assunto das suas zombarias, e também o convida a reflectir para outra vez antes de aprazar alguém para se encontrar com o senhor num bosque, porque nos tais bosques para onde há pouco queria ir comigo, costuma haver uma colecção de paus, de cacetes e de varas, muito próprios para figurarem na companhia dos que tão perfeitamente Lhe sacudiram o pó de mandado do Sr. de Maiena.

- Ah! - exclamou Chicot sem se alterar aparentemente, se bem que os seus olhos pretos relampejaram. - Ah, Sr. de Monsoreau, recordou-me os favores que devo ao Sr. de Maiena; deseja pois que eu fique sendo seu devedor como sou dele, que lhe dê o mesmo lugar na minha lembrança, e que Lhe reserve uma parte igual na minha gratidão.

- Parece-me, Sr. Chicot, que na lista dos seus credores escapou-Lhe aquele a quem mais devia.

- Pois admira-me isso, porque me posso gabar de ter excelente memória; mas diga-me: quem é esse tal credor?

- Mestre Nicolau David.

- Oh, se é esse, está enganado - disse Chicot com uma risada sinistra - já não Lhe devo coisa alguma; Está pago.

Neste momento veio tomar parte na conversação uma terceira personagem. Era Bussy.

- Ah, Sr. de Bussy - disse Chicot -, venha aqui em meu auxílio. O Sr. de Monsoreau desencovou-me, como vê, e quer montear-me sem mais nem menos, como se eu fora um veado ou um gamo; diga-lhe que está enganado, Sr. de Bussy, que está fazendo montaria a um javali, e que o javali costuma voltar-se para acometer o caçador.

- Sr. Chicot - respondeu Bussy -, parece-me que ajuíza mal do Senhor Monteiro-Mor, pensando que ele não o tem em conta daquilo que é, isto é, dum verdadeiro cavaleiro. Senhor

- prosseguiu Bussy dirigindo-se para o conde -, tenho a honra de preveni-lo de que o Senhor Duque de Anju deseja falar-Lhe.

- A mim? - perguntou Monsoreau sobressaltado.

- Sim, ao senhor mesmo - replicou Bussy.

Monsoreau lançou ao seu interlocutor um olhar destinado a penetrar-Lhe até ao fundo da alma, mas que não passou da superfície, detido pela serenidade dos olhos e do sorriso de Bussy.

- Não me acompanha? - perguntou o monteiro- mor ao fidalgo.

- Não senhor, vou adiante, para dizer a Sua Alteza que o senhor não tardará em ir receber as suas ordens; entretanto, despedir-se-á de el-rei.

E Bussy voltou logo da mesma forma por que tinha vindo, encobrindo-se, com a costumada destreza, por detrás dos grupos de cortesãos, para não ser visto pelo rei.

O duque de Anju estava à espera com efeito no gabinete, e entretinha-se a reler a carta de que já demos conhecimento ao leitor. Como ouvisse mexer por fora do reposteiro, pensou que era Monsoreau que vinha ao seu chamado, e escondeu a carta.

Apareceu Bussy.

- Então? - disse o duque.

- Então, meu senhor, ele aí vem.

- Não desconfia de coisa alguma?

- E, quando assim fosse, ainda que ele estivesse precavido?. disse Bussy - Não é ele uma criatura sua? Não pode porventura torná-lo a reduzir ao nada de onde o tirou?.

- Não há dúvida - respondeu o duque com certo ar de preocupação que lhe dava sempre a proximidade de acontecimentos em que tinha que desenvolver alguma energia.

- Já Lhe parece hoje menos criminoso de que era ontem?

- Cem vezes mais! O crime que ele cometeu é de natureza tal, que quanto mais nele penso, mais feio me parece.

- E demais - disse Bussy -, o negócio resume-se todo num único ponto: ele roubou, à traição, uma donzela nobre; desposou-a fraudulentamente e por meios indignos dum cavalheiro; deve pedir ele mesmo a anulação do casamento, quando não, pedi-la-á Vossa Alteza em nome dele.

- Muito bem, está tratado.

- E agora, em nome do pai, em nome da donzela, em nome do Castelo de Méridor, em nome de Diana, finalmente, pergunto a Vossa Alteza se me dá a sua palavra de que assim há-de ser.

- Dou, sim.

- Lembre-se Vossa Alteza que eu já os avisei, e que ambos estão esperando ansiosamente o resultado da sua conferência com esse homem.

- A donzela há-de ficar livre dele, Bussy, comprometo a minha palavra.

- Ah, meu Senhor - disse Bussy -, será na realidade um grande príncipe! E pegando na mão do duque, naquela mão que tinha assinado tanta promessa a que havia faltado, que tinha prestado tanto juramento que não havia cumprido, beijou-a respeitosamente.

Naquele momento ouviram-se algumas passadas no vestíbulo.

- Ele aí vem - disse Bussy.

- Mande entrar o Sr. de Monsoreau - exclamou Francisco com um tom de severidade que pareceu a Bussy de feliz agoiro.

O jovem fidalgo, então, julgando-se quase certo de alcançar o resultado que ambicionava, não pôde deixar de cortejar Monsoreau, à sua entrada, com alguma ironia; o monteiro-mor pela sua parte correspondeu à cortesia de Bussy com um olhar vidrento, que lhe servia para ocultar os verdadeiros sentimentos da sua alma, como se fora uma fortaleza inacessível.

Bussy foi esperar para o corredor, o qual estava naquela ocasião atulhado de fidalgos que vinham cumprimentar o duque.

Bussy encaminhou-se para eles, e todos trataram de lhe dar lugar, não só por causa da consideração em que o tinham, como pelo seu valimento para com o duque de Anju.

O mancebo concentrou em si todas as suas sensações, e sem deixar perceber a terrível angústia que Lhe agitava o coração, aguardou o êxito daquela conferência, de que dependia toda a felicidade da sua vida.

A conversação não podia deixar de ser animada. Bussy, pelo conhecimento que tinha do carácter do Sr. de Monsoreau, estava certo de que este não se entregaria sem lutar.

Mas, enfim, bastava que o duque de Anju carregasse nele com a mão, e então, se não quisesse torcer, não teria remédio senão quebrar.

De repente ouviu-se o som bem conhecido da voz do príncipe. Falava em tom imperioso. Bussy estremeceu de alegria.

Ah! disse ele, o duque está cumprindo a palavra que me deu.

Porém mais nada se ouviu, e como todos se calaram, olhando com perturbação uns para os outros, em breve reinou profundo silêncio entre os cortesãos.

Bussy assim interrompido no meio do seu sonho, sentiu decorrer, minuto por minuto, quase um quarto de hora, entregue a todas as alternativas da esperança e do receio.

Neste comenos, abriu-se a porta do aposento do duque e ouviu-se através do reposteiro o som duma conversa muito jovial.

Bussy sabia que o duque estava só com o monteiro-mor, e que, se a conversação tivesse seguido o seu curso ordinário, devia estar bem longe de ser jovial naquele momento.

Aquela demasiada amenidade causou-Lhe um arrepio.

Em breve se aproximaram as vozes, e ergueu- se o reposteiro.

Monsoreau saiu de costas para fora e a cortejar. O duque veio acompanhá-lo até à porta, dizendo:

- Adeus, amigo. É negócio tratado.

Amigo? murmurou Bussy, por Deus! que quer isto dizer?

- Visto isso, meu Senhor -, disse Monsoreau sempre com o rosto voltado para o príncipe -, Vossa Alteza é de parecer que é melhor tornar o caso público agora?

- Sim, sim - respondeu o duque -; todos esses mistérios são bons para crianças.

- Muito bem - disse o monteiro-mor -; apresentá-la-ei a el-rei esta noite mesmo.

- Venha sem receio, que eu preparei tudo.

O duque debruçou-se para o monteiro-mor e disse-lhe algumas palavras ao ouvido.

- Isso já está feito, meu Senhor - respondeu este.

Monsoreau cortejou pela última vez o duque, o qual, sem ver Bussy, que estava encoberto pelas dobras dum reposteiro a que se tinha agarrado para não cair, examinava todos os circunstantes.

- Meus Senhores - disse Monsoreau voltando- se para os fidalgos que estavam à espera de audiência e que já se inclinavam na presença dum valido que parecia próximo a suplantar Bussy -, meus Senhores: dêem-me licença que lhes comunique uma notícia: Sua Alteza autoriza-me a tornar público o meu casamento com a Sr. a Diana de Méridor, que desposei há mais dum mês, e quer que debaixo dos seus auspícios eu a apresente esta noite na corte.

Bussy cambaleou; se bem que o golpe não foi inesperado, era contudo tão violento que por pouco não o aniquilou.

Foi então que deitou a cabeça para diante, e que o duque e ele, ambos enfiados, mas por motivos bem opostos, olharam um para o outro, Bussy com desprezo, e o duque de Anju com terror.

Monsoreau atravessou o grupo dos fidalgos recebendo os cumprimentos e parabéns de todos.

Quanto a Bussy, esse deu um passo como para se chegar ao duque; mas este viu o movimento, e preveniu-o deixando cair o reposteiro; em seguida ouviu-se fechar a porta e o ranger da chave na fechadura.

Bussy sentiu então que o sangue lhe afluía, a escaldar, às fontes e ao coração. Encontrou com a mão a adaga que trazia pendente do cinturão, e desembainhou-a maquinalmente até metade, porque nele as paixões não resistiam ao primeiro impulso; porém o amor, que o havia induzido àquela violência, paralisou todo o seu ardor; uma dor amarga, profunda e lancinante, sufocou-lhe a cólera; e o coração, em vez de se entumecer, Ficou aniquilado.

Naquele paroxismo de duas paixões lutando uma com a outra, sucumbiu a energia do mancebo, assim como caem juntas, quando se chocam na sua elevação, duas ondas furiosas que parecem querer desafiar o céu.

Bussy conheceu que, se se conservasse naquele lugar, ia dar a todos o espectáculo da sua dor insensata; lançou-se pelo corredor, desceu pela escada particular, saiu por uma porta falsa para o pátio do Louvre, montou a cavalo, e tomou a todo o galope o caminho da Rua de Santo António.

O barão e Diana estavam à espera da resposta que Bussy Lhes prometera; viram aparecer o mancebo, pálido, com as feições transtornadas e os olhos vermelhos.

Diana logo entendeu quais eram as novas que ele trazia, e deu um grito.

- Minha Senhora - exclamou Bussy -, despreze-me, odeie-me! Eu pensava que era alguma coisa neste mundo, e conheço agora que não sou mais do que um átomo. Pensava que tinha algum poder, e nem posso arrancar o meu coração do peito. A senhora é inquestionavelmente a mulher do Sr. de Monsoreau; sua mulher legítima, como tal reconhecida por todos, e que esta noite há-de ser apresentada na corte. Eu sou um miserável insensato. ou antes. ou antes, sim! Bem dizia o Senhor Barão: o Senhor Duque de Anju é um cobarde, é um infame!

E deixando o pai e a filha a olharem espavoridos um para o outro, Bussy, desvairado pela dor e pela raiva, desceu apressadamente a escada, montou a cavalo, e, cravando ambas as esporas nas ilhargas do animal e largando-lhe a rédea sem o governar, por isso que só tratava de reprimir com a mão as pulsações do coração, partiu, espalhando por toda a parte por onde foi passando o espanto e o terror.

 

         EM QUE SE VÊ QUAL FOI A CONVERSA DO DUQUE DE ANJU COM O MONTEIRO-MOR

Convém que expliquemos o motivo da mudança repentina que se operou no duque de Anju para com Bussy.

O duque, quando chamou à sua presença o Sr. de Monsoreau, depois das exortações de Bussy estava muito favoravelmente disposto a auxiliar os projectos deste último.

A sua bílis, que facilmente se irritava, trasbordava-lhe do coração ulcerado pelas suas duas paixões dominantes: o seu amor- próprio tinha sido ferido; e o receio da estralada com que o ameaçava Bussy em nome do Sr. de Méridor ainda o tinha encolerizado mais.

Dois sentimentos desta natureza produzem, combinados, explosões espantosas quando o coração que os encerra, à semelhança das bombas saturadas de pólvora, é tão solidamente construído e tão hermeticamente fechado que a compressão duplica a força do estouro.

O Sr. de Alençon recebeu pois o monteiro- mor com um semblante severo, que fazia tremer os indivíduos mais intrépidos da corte, por isso que todos conheciam os recursos de Francisco quando se tratava de vingança.

- Vossa Alteza mandou-me chamar? - disse Monsoreau com muita placidez e olhando ao mesmo tempo para as tapeçarias do quarto; porque aquele homem, acostumado a governar o espírito do príncipe, já tinha avaliado a intensidade do fogo que encobria aquela frieza aparente, e por isso, dirigindo-se aos objectos inanimados, parecia pedir às paredes que Lhe dessem conta dos projectos do seu amo.

- Não tenha receio algum, senhor - disse o duque, que logo o percebeu -; não está ninguém escondido por trás destas armações; podemos conversar com liberdade, e sobretudo com franqueza.

Monsoreau inclinou-se.

- É um criado muito fiel, não é, Senhor Monteiro-Mor de França? E tem muito apego à minha pessoa.

- Persuado-me que sim, meu Senhor.

- E eu estou certo de que assim é; é o senhor que por mais duma vez me tem dado conhecimento de conspirações tramadas contra mim e me tem ajudado nas minhas empresas, esquecendo muitas vezes o seu próprio interesse, e expondo até a vida.

- Senhor.

- Tudo isso eu sei. E ainda ultimamente, é preciso que eu Lho recorde, porque, na realidade, é tal a sua delicadeza, que nunca faz a menor alusão, mesmo indirectamente, aos serviços que me tem prestado; ainda ultimamente, por ocasião daquela desgraçada aventura.

- Que aventura, meu Senhor?

- O rapto da Menina de Méridor; pobre menina!.

- Coitadinha! - murmurou Monsoreau de forma tal que a resposta não era seriamente aplicável ao sentido das palavras de Francisco.

- Também lamenta o que lhe sucedeu, não é verdade? - disse este último chamando-o assim a um terreno mais seguro.

- E Vossa Alteza não lamentaria também essa desgraça?

- Eu? Ah, sabe se tenho tido remorsos por haver cedido a tão funesto capricho! E direi mais: só a muita amizade que lhe tenho, e a consideração que me merece o seu bom serviço, é que pôde fazer-me esquecer que se não fosse o senhor não teria eu roubado a donzela.

Monsoreau sentiu a estocada.

Vejamos, disse consigo, isto serão remorsos somente?

- Meu Senhor - replicou ele -, a sua natural bondade leva-o a exagerar o caso: está tão inocente da morte daquela menina como eu.

- Como assim?

- Decerto, pois estou convencido que não tencionava levar a violência a ponto de causar a morte da Menina de Méridor.

- Oh, não!

- Nesse caso, absolvo-Lhe a intenção, meu Senhor; foi uma desgraça unicamente, destas que o acaso ocasiona todos os dias.

- E demais - acrescentou o duque olhando fixamente para Monsoreau -, a morte envolveu tudo isso em eterno esquecimento.

A voz do príncipe vibrou por tal maneira que Monsoreau ergueu logo os olhos e disse consigo:

Nada, não são remorsos.

- Meu Senhor - disse ele -, Vossa Alteza quer que lhe fale com franqueza?

- Por que motivo hesita? - disse o príncipe com cecca admiração acompanhada de altivez.

- E com efeito - replicou Monsoreau -, não sei porque hei-de hesitar.

- Que pretende dizer?

- Oh, meu Senhor, quero dizer que na presença dum príncipe tão eminente pela inteligência como pela nobreza do coração, deve daqui por diante a franqueza formar a base principal deste colóquio.

- Daqui por diante? Que significa isso?

- É porque Vossa Alteza, logo no princípio da nossa conversa, não julgou dever usar de franqueza para comigo.

- Deveras? - exclamou o duque com uma gargalhada que bem mostrava quanto estava encolerizado.

- Atenda-me, meu Senhor - disse Monsoreau com toda a humildade. - Sei muito bem o que Vossa Alteza me queria dizer.

- Fale pois.

- Vossa Alteza queria dar-me a entender que a Menina de Méridor talvez não tivesse morrido, e que assim escusavam de ter remorsos os que se julgavam causadores da sua morte.

- E deixou passar tanto tempo, Senhor, sem me fazer essa reflexão tão consoladora! Realmente o senhor é um servidor muito fiel! Viu-me triste e aflito; ouviu-me falar dos sonhos fúnebres que desde a morte daquela mulher me perseguiam, a mim, que, graças a Deus, sou dotado de tamanha sensibilidade. e deixou que eu vivesse entregue a tão grande tormento, quando essa simples dúvida bastava para me poupar tanto soFrimento! Como poderei eu qualiFcar semelhante conduta, senhor?.

O duque proferiu estas palavras como não podendo já reprimir a ira.

- Meu Senhor - respondeu Monsoreau -, dir- se-ia que Vossa Alteza está formulando uma verdadeira acusação contra mim.

- Traidor! - exclamou subitamente o duque dando um passo para o monteiro-mor; sim! Formei-a e sustentei-a. Enganaste-me! Tiraste-me essa mulher que eu amava.

Monsoreau enfiou, mas não perdeu a sua atitude serena e quase soberba.

- É verdade - disse ele.

- Ah, é verdade! Atrevido! Velhaco!

- Digne-se falar com mais brandura, meu Senhor - disse Monsoreau sempre com a mesma placidez. - Vossa Alteza esquece-se que está falando com um fidalgo e com um leal servidor.

O duque deu uma risada convulsa.

- Com um leal servidor de el-rei! - prosseguiu Monsoreau conservando a sua impassibilidade.

O duque reparou nestas palavras.

- Que pretende dizer? - murmurou ele.

- Quero dizer - replicou Monsoreau com brandura e respeito - que se Vossa Alteza se dignasse atender-me, não poderia criminar-me por ter roubado aquela mulher, visto que era o mesmo que Vossa Alteza queria fazer.

O duque ficou pasmado, e não achou resposta a um tal atrevimento.

- A minha desculpa é esta - disse humildemente o monteiro-mor -: eu amava apaixonadamente a Menina de Méridor.

- E eu também! - respondeu Francisco com inexprimível dignidade.

- É certo, meu Senhor, que é meu amo, mas a Menina de Méridor não Lhe tinha amor algum.

- E tinha-o a ti?

- Pode ser que sim - murmurou Monsoreau.

- Mentes, mentes! Fizeste-Lhe a mesma violência que eu lhe queria fazer. A única diferença é que eu, teu amo, nada consegui, e que tu, meu criado, conseguiste tudo. E porque eu só tinha a meu favor o poder, enquanto tu tinhas a traição.

- Eu amava-a, meu Senhor.

- Que me importa a mim isso!

- Meu Senhor.

- Ameaças-me, serpente?

- Meu Senhor, tenha prudência! - disse Monsoreau abaixando a cabeça como o tigre quando está para acometer. - Já Lhe disse que a amava, e eu não sou um criado seu, como disse há pouco. A minha mulher pertence-me como me pertencem as minhas terras; ninguém ma pode tirar, nem mesmo o próprio rei. Desejei-a para minha esposa, e por isso Lha tirei. - Deveras?. - disse Francisco, encaminhando-se para tanger a chapa de prata colocada sobre a mesa. - Tiraste-ma? Pois bem, hás-de restituir-ma!

- Está enganado, meu Senhor - exclamou Monsoreau correndo para a mesa a fim de obstar a que o príncipe chamasse. - Afaste esse pensamento que teve de me fazer porque se chegasse a chamar alguém, se me insultasse publicamente.

- Hás-de restituir-me aquela mulher, já te disse!

- Restituí-la?. como, se ela é minha mulher, se a desposei perante Deus! E Monsoreau contava com o efeito que haviam de produzir estas últimas palavras no príncipe.

- Se ela é tua mulher perante Deus - disse ele -, não o é perante os homens! - Que diz? Então já sabe tudo?. - disse Monsoreau.

- Sei, sei tudo. Hás-de desmanchar o teu casamento; quando não, desmanchá-lo-ei eu, ainda que tivesse tido lugar perante todos os deuses que têm reinado no Céu.

- Ah, meu Senhor, está blasfemando. - disse Monsoreau.

- A Menina de Méridor há-de ser restituída a seu pai amanhã; e amanhã mesmo hás-de partir para o degredo que eu te destinar. Quero mais: que daqui a uma hora tenhas vendido o teu ofício de monteiro-mor; são estas as minhas condições; quando não, toma sentido, vassalo, que te hei-de despedaçar como despedaço este copo.

E o príncipe, agarrando num copo de cristal esmaltado que lhe tinha sido dado de presente pelo arquiduque da Áustria, atirou-o com furor na direcção de Monsoreau, que ficou rodeado dos destroços do vidro.

- Não hei-de restituir a mulher, não hei-de desfazer-me do meu ofício, e hei-de conservar-me em França - replicou Monsoreau dirigindo-se para Francisco, que olhava para ele estupefacto.

- Porquê. maldito!

- Porque hei-de pedir perdão ao rei de França: ao rei que foi eleito na Abadia de Santa Genoveva, e estou certo que o novo soberano, que é tão afável, tão generoso e tão grato ao favor divino, de que teve recentes provas, não se há-de negar a atender o primeiro suplicante que Lhe apresentar um requerimento.

Esta resposta terrível tinha sido aeentuada progressivamente por Monsoreau; o fogo dos seus olhos ia passando pouco a pouco para as palavras que proferia levantando cada vez mais a voz.

Francisco enfiou também, deu um passo para trás, foi correr o pesado reposteiro da porta da entrada, e depois, agarrando na mão de Monsoreau, disse-Lhe, entrecortando as palavras como se Lhe faltassem as forças:

- Muito bem. muito bem. conde! Esse requerimento que diz, faça-mo mais baixinho. que eu o escuto.

- Falarei pois humildemente - disse Monsoreau serenando de repente -, como deve falar um criado muito ínfimo de Vossa Alteza.

Francisco deu com todo o vagar volta ao quarto, e cada vez que passava pela frente de alguma cortina levantava-a para examinar se ocultava alguém. Parecia não poder capacitar-se de que as palavras de Monsoreau não tivessem sido ouvidas.

- Dizia então... - perguntou ele.

- Dizia eu, meu Senhor, que um amor fatal foi a causa de tudo o que sucedeu. O amor, meu pobre senhor, é de todas as paixões a mais imperiosa. Para eu poder esquecer que Vossa Alteza tinha lançado as suas vistas sobre Diana, era preciso que eu já não fosse senhor de mim.

- Bem lhe dizia eu, conde: foi uma traição.

- Poupe-me, meu Senhor; eis aqui o pensamento que me ocorreu. Via-o rico, jovem e feliz; via que era o primeiro príncipe da cristandade.

O duque fez um movimento.

- Porque o é na realidade. - murmurou Monsoreau ao ouvido do duque; - entre o lugar supremo e Vossa Alteza existe apenas uma sombra que facilmente se desvanecerá. Via na minha imaginação todo o esplendor do porvir que o espera; e, comparando tão imensa fortuna com o pouco que eu ambicionava, deslumbrado pelo seu brilho futuro, que mal me deixava divisar a pobre florinha que eu cobiçava, eu, ente mesquinho, à vista de Vossa Alteza, meu amo, disse comigo: Deixemos ao príncipe os seus sonhos brilhantes, os seus projectos esplêndidos; é esse o alvo a que ele se dirige; eu só desejo viver feliz a um canto. Ele nem dará pela minha falta, e apenas sentirá cair essa insigniFicante pérola que vou subtrair do seu diadema.

- Conde, conde!. - exclamou o duque, embriagado sem querer pela magia desta pin tura.

- Perdoa-me, não é assim, meu Senhor?

O duque, naquele momento, levantou os olhos. Viu diante de si, pendurado na parede forrada de couro dourado, o retrato de Bussy que ele gostava de contemplar de vez em quando, como gostava noutro tempo de olhar para o retrato de La Mole. A pintura apresentava um olhar tão altivo, um modo tão arrogante, tinha a mão posta com tanta soberba na ilharga, que o duque julgou ver o próprio Bussy com o seu olhar de fogo saindo da parede para o excitar a ter ânimo.

- Não - disse ele -, não posso perdoar-lhe; Deus sabe que não é por minha causa que mostro tanto rigor; é porque um pai aflito, um pai indignamente iludido, reclama a sua filha; é porque uma mulher, que o senhor obrigou a desposá-lo, pede vingança; numa palavra: é porque o primeiro dever dum príncipe é fazer justiça.

- Meu Senhor.

- Digo-lhe que a justiça é o primeiro dever dum príncipe, e hei-de fazê-la.

- Se a justiça - replicou Monsoreau - é o primeiro dever dum príncipe, a gratidão é o primeiro dever dum rei.

- Que diz?

- Digo que um rei nunca deve duvidar-se daquele a quem deve a coroa. Ora pois, meu Senhor.

- E então?

- Deve-me a coroa, Senhor!

- Monsoreau! - exclamou o duque com um terror ainda maior do que o que Lhe haviam causado os primeiros ataques do monteiro-mor. - Monsoreau! - prosseguiu ele com voz baixa e trémula. - Quer porventura atraiçoar o rei como atraiçoou o príncipe?

- Eu agarro-me a quem me sustenta, Senhor! - continuou Monsoreau levantando gradualmente mais a voz.

- Desgraçado!

E o duque tornou a olhar para o retrato de Bussy.

- Não posso!. - disse ele. - É um leal cavaleiro, Monsoreau, e como tal, bem vê que não posso aprovar o que fez.

- Porquê, meu Senhor?

- Porque foi uma acção indigna do senhor e de mim. Renuncie àquela mulher. Meu querido conde. faça-me mais esse sacrifício; meu querido conde, compensá-lo-ei com tudo que me pedir.

- Visto isso, ainda dura a paixão de Vossa Alteza por Diana de Méridor?. - perguntou Monsoreau pálido de ciúmes.

- Não, não! Juro que não!

- Pois se assim é, que escrúpulos pode Vossa Alteza ter? Ela é minha mulher; não serei eu bastante fidalgo?. Com que direito pretende alguém intrometer-se nos segredos da minha vida?

- Porém ela não o ama.

- Que importa isso?

- Faça-me esse favor, Monsoreau.

- Não posso.

- Então. - disse o duque entregue à mais horrível perplexidade - então.

- Reflicta, Real Senhor!

O duque limpou a testa, que se lhe humedecera de suor ao ouvir o tratamento que Lhe havia dado o conde.

- Seria capaz de me denunciar?.

- Ao rei que Vossa Alteza destronou, sim, meu Senhor; porque se o meu novo soberano quiser atacar a minha honra e a minha felicidade, volto para o antigo.

- Isso é uma infâmia!

- É verdade, Real Senhor - disse o monteiro-mor -; mas eu gosto tanto de Diana de Méridor, que por sua causa sou capaz de cometer uma infâmia.

- É uma cobardia!

- Sim, meu Senhor; mas eu amo-a tanto, que me resolvo a ser cobarde. O duque deu um passo para Monsoreau, porém este deteve-o com um simples olhar acompanhado dum sorriso.

- Nenhuma vantagem lhe resultaria da minha morte, meu Senhor - disse ele -; há segredos que sobrevivem aos cadáveres! Sejamos, pois, Vossa Majestade um rei muito clemente, e eu o seu mais humilde servo.

O duque revolvia as mãos, torcendo os dedos e agatanhando-os com as unhas.

- Vamos, vamos. meu bom Senhor: faça alguma coisa em favor do homem que tão fielmente o tem servido em tudo.

Francisco tornou a erguer-se.

- Que pretende de mim? - disse ele.

- Que Vossa Majestade.

- Desgraçado, desgraçado! Queres que eu te suplique que não me dês esse tratamento!

- Oh, meu Senhor!.

E Monsoreau curvou a cabeça.

- Diz! - murmurou Francisco.

- Meu Senhor, há-de perdoar-me, sim?

- Perdoarei.

- Há-de assinar o meu contrato de casamento com a Menina de Méridor?

- Assinarei - respondeu o duque com voz sumida.

- E fará bom acolhimento a minha mulher no dia em que ela for recebida oficialmente pela rainha, a quem tenciono ter a honra de a apresentar?

- Farei - disse Francisco -; que mais pretendes?

- Nada mais, meu senhor.

- Vai pois; tens a minha palavra.

- E o senhor - disse Monsoreau, aproximando-se, ao ouvido do duque - conservará o trono a que eu o elevei! Adeus, Real Senhor.

Desta vez falou tão baixo, que a harmonia da palavra agradou ao príncipe. Agora, pensou Monsoreau, só me resta saber quem foi que veio contar tudo ao duque.

 

         O SR. DE MORVILLIERS COMUNICA A EL-REI QUE HÁ UMA CONSPIRAÇÃO, CUJO CHEFE É O DUQUE DE GUISA

Naquele mesmo dia, o Sr. de Monsoreau, conforme o desejo que manifestara ao duque

de Anju, apresentou a mulher à rainha-mãe e à rainha esposa de Henrique III.

Henrique, sempre pensativo como era o seu costume, fora deitar-se depois de ter sido avisado pelo Sr. de Morvilliers que era preciso reunir o conselho de Estado no dia seguinte.

Henrique não fez pergunta alguma ao chanceler: já era tarde, e Sua Majestade estava com vontade de dormir. Escolheu-se a hora que pareceu mais cómoda para não interromper o descanso nem o sono do rei.

O digno magistrado conhecia a fundo o génio do seu soberano, e sabia que o rei, ao contrário de Filípe de Macedónia, não ouvia com a necessária atenção as comunicações que ele tinha a fazer-lhe quando sucedia estar com sono ou com vontade de comer.

Sabia também que Henrique, em quem as insónias eram muito frequentes (porque o homem que tem de velar pelos mais não pode dormir), havia de lembrar-se pela noite adiante da audiência pedida, e concedê-la-ia logo, movido pela curiosidade de saber qual era a causa que a tornava necessária.

Aconteceu efectivamente o que o Sr. de Morvilliers tinha pensado.

Henrique, depois de ter dormido três ou quatro horas, acordou; recordou-se então do pedido do chanceler; sentou-se na cama, começou a pensar, e afiìnal, já cansado de pensar sozinho, deixou-se escorregar pelo colchão abaixo, enfiou as ceroulas de seda, calçou as chinelas e sem despir o fato de dormir, que o tornava semelhante a um fantasma encaminhou-se à claridade da lâmpada, que já não se apagava desde que o sopro do Padre Eterno tinha ido para o Ar com Saint-Luc. encaminhou-se, dizíamos para o quarto de Chicot, que era o mesmo onde se consumara tão felizmente o casamento da Menina de Brissac.

O gascão dormia a sono solto, e ressonava como um fole de ferreiro.

Henrique puxou-Lhe pelo braço três vezes sem conseguir acordá-lo.

À terceira vez, porém, como o rei acompanhasse o gesto com a voz, berrando pelo nome de Chicot, o gascão abriu um olho.

- Chicot! - repetiu o rei.

- Que mais temos? - perguntou Chicot.

- Oh, meu amigo - disse Henrique -, como é possível que tu estejas a dormir assim tão sossegado quando o teu rei está acordado?

- Ah, meu Deus! - exclamou Chicot fimgindo não conhecer o rei. - Dar- se-á o caso que Sua Majestade tivesse alguma indigestão?

- Chicot, meu amigo - meu Henrique -, sou eu!

- Tu, quem?

- Eu, Henrique!

- Não há dúvida, meu filho, foram as narcejas que te fizeram azia. Eu bem te avisei; atiraste-te a elas com muita sofreguidão, assim como à sopa de caranguejos.

- Não - disse Henrique -, mal as provei.

- Pois então - replicou Chicot - envenenaram-te. Meu Deus, como estás pálido, Henrique!

- É a minha máscara de pano de linho, meu amigo - respondeu o rei.

- Visto isso, não estás doente?

- Não estou.

- Então para que vieste acordar-me?

- Porque me perseguem os desgostos.

- Estás desgostoso.

- Estou.

- Estimo muito.

- Estimas muito? Como assim?

- Sim, porque os desgostos obrigam o homem a reflectir, e tu hás-de necessariamente pensar que quando se acorda um homem de bem às duas horas da madrugada, é indispensável Fazer-Lhe um presente. Que me trazes tu, diz?

- Não te trago coisa alguma, Chicot; venho conversar contigo.

- Isso não é bastante.

- Chicot, o Sr. de Morvilliers veio ontem à noite ao paço.

- Sempre recebes péssimas visitas em tua casa, Henrique; e que veio ele cá fazer?

- Veio pedir-me uma audiência.

- Ah, aí tens tu um homem bem-criado; não é como tu, que entras pelo quarto da gente às duas horas da madrugada sem dizer água vai.

- Que pensas tu que ele queira dizer-me, Chicot?

- Ó desgraçado - exclamou o gascão -, pois foi para me Fazeres essa pergunta que vieste acordar-me?

- Chicot, meu amigo, bem sabes que o Sr. de Morvilliers está à testa da minha polícia.

- Não sabia - respondeu Chicot -, acredita que não sabia.

- Chicot - prosseguiu o rei -, devo dizer-te que tenho sempre achado muito exactas as informações que me dá o Sr. de Morvilliers.

- E lembrar-me eu - disse o gascão -, que podia estar a dormir muito descansado em lugar de ouvir semelhantes baboseiras!.

- Duvidas acaso da vigilância do chanceler? - perguntou Henrique.

- Duvido, sim - replicou Chicot -; e tenho razões para duvidar.

- Quais são elas?

- Se te disser uma só, ficas satisfeito?

- Fico, se ela for boa.

- E prometes deixar-me só, depois?

- Prometo.

- Pois bem: certo dia. não, certa noite.

- Isso nada faz ao caso.

- Pelo contrário, faz muito. Certa noite, pois, dei-te uma sova na Rua de Froidmantel; iam contigo Quélus e Schomberg.

- Deste-me uma sova?.

Sim, dei uma roda de pau em todos três.

- Por que motivo?

- Porque insultaste o meu pajem. Levaste as pancadas, e o Sr. de Morvilliers nunca te disse coisa alguma.

- Pois quê? - exclamou Henrique. - Eras tu, malvado? Eras tu, sacrílego?

- Eu mesmo em pessoa - respondeu Chicot esfregando as mãos -; diz-me, meu filho, não é verdade que dou com alma quando dou?

- Miserável!

- Confessas que é verdade?

- Hei-de mandar-te açoitar, Chicot.

- Não se trata agora disso: é ou não é verdade, responde à minha pergunta?

- Tu bem sabes que é verdade, desgraçado!

- Não mandaste chamar no dia seguinte o Sr. de Morvilliers?

- Bem sabes que mandei, pois estavas presente quando ele veio.

- Não Lhe contaste o desagradável acontecimento que tinha ocorrido na véspera com um fidalgo teu amigo?

- Contei.

- Não lhe ordenaste que procurasse o criminoso?

- Ordenei.

- E ele achou-o?.

- Não.

- Então vai-te deitar, Henrique, bem vês que a tua polícia não presta. E virando o rosto para a parede, sem dar mais resposta, Chicot começou a ressonar novamente com um tal estrondo, que o rei perdeu toda a esperança de o despertar daquele segundo sono.

Henrique voltou a suspirar para a sua câmara, e, à falta de interlocutor, entrou a lamentar com o seu criado Narciso a infelicidade dos reis que só conhecem a verdade à própria custa.

No dia seguinte reuniu-se o conselho. Os membros de que o conselho se compunha variavam conforme as inclinações volúveis do rei. Constava, daquela vez, de Quélus, de Maugiron, d'Épernon e de Schomberg, que eram os mais validos havia cerca de seis meses.

Chicot, sentado na cabeceira da mesa, fazia barquinhos de papel e alinhava-os metodicamente, para formar, dizia ele, a esquadra de Sua Majestade Cristianíssima, à imitação da esquadra de Sua Majestade Católica.

Apareceu o Sr. de Morvilliers.

O chanceler tinha escolhido o seu traje mais escuro, e vinha revestido dum ar muito lúgubre. Depois duma cortesia, que Chicot lhe retribuiu, aproximou-se do rei.

- Estou porventura - disse ele - na presença do conselho de Vossa Majestade?

- Está na presença dos seus melhores amigos. Fale.

- Pois bem, Real Senhor, essa certeza faz-me recobrar o ânimo de que muito careço. Venho denunciar a Vossa Majestade uma conspiração terrível.

- Uma conspiração? - exclamaram todos os circunstantes. Chicot levantou a cabeça e interrompeu a construção duma magníFica galeota com dois toldos, que destinava para nau-almirante da esquadra.

- Uma conspiração, sim, Real Senhor - prosseguiu o Sr. de Morvilliers baixando a voz com o misterioso presságio duma confidência terrível.

- Oh, oh! - disse o rei. - Vejamos: é alguma conspiração espanhola? Naquele momento, o Senhor Duque de Anju, que tinha sido chamado ao conselho, entrou na sala, cujas portas logo se tornaram a fechar.

- Ouviste, meu irmão? - disse Henrique depois de feitos os cumprimentos. - O Sr. de Morvilliers acaba de nos denunciar uma conspiração contra a segurança do Estado!

O duque correu pelos fidalgos que se achavam presentes aquele olhar claro e desconfiado de que já demos conhecimento aos leitores.

- Será possível? - murmurou ele.

- Infelizmente, assim é, meu Senhor - respondeu o Sr. de Morvilliers -; é uma conspiração muito séria.

- Conte-nos isso - acudiu Chicot, metendo a galeota dentro duma bacia de cristal que estava em cima da mesa.

- Sim - balbuciou o duque de Anju -, conte-nos isso, Senhor Chanceler.

- Estou pronto a ouvir - disse Henrique.

O chanceler assumiu a sua voz mais fúnebre, a atitude mais curvada e o olhar mais importante.

- Senhor - disse ele -, há muito tempo que não perdia de vista as intrigas de alguns descontentes.

- Oh - disse Chicot -, alguns? Só?. Tem na realidade muita modéstia, Sr. de Morvilliers!

- Eram, em geral - prosseguiu o chanceler -, indivíduos sem importância. lojistas, homens de ofício, caixeiros. Também havia entre eles alguns frades e estudantes.

- Não eram, segundo vejo, nenhuns príncipes - disse Chicot com a maior serenidade, e principiando ao mesmo tempo a construir outra nau de duas cobertas.

O duque de Anju deu um risinho forçado.

- Quer saber o que fiz, Senhor? - disse o chanceler; - eu sabia que os descontentes sempre lançam mão de duas circunstâncias, principalmente, que são a guerra e a religião.

- Acho esse modo de pensar muito acertado. E depois?

O chanceler, não cabendo em si de contente com este elogio, prosseguiu assim:

- No exército tinha eu oficiais afeiçoados a Vossa Majestade, que me informavam de tudo; mas já não me sucedia o mesmo nas ordens religiosas. Deliberei-me então a pôr em campo agentes meus.

- Fez muito bem - disse Chicot.

- Até que, por fim - continuou Morvilliers -, consegui que os meus agentes induzissem um empregado do preboste de Paris.

- A quê? - interrompeu o rei.

- A ser espião dos pregadores que andam excitando o povo contra Vossa Majestade.

- Oh, oh! - pensou Chicot. - Já descobririam que o meu amigo também é dos tais?

- Toda aquela gente recebe inspirações, não de Deus, meu Senhor, mas dum partido inimigo da coroa. Sei todos os passos dos homens de que se compõe o partido a que aludo.

- Muito bem - disse o rei.

- Perfeitamente - disse Chicot.

- E sei também quais são as esperanças que eles nutrem - acrescentou Morvilliers com certo ar de triunfo.

- Isso é magnífico! - exclamou Chicot. O rei acenou ao gascão para que se calasse.

O duque de Anju não tirava os olhos de Morvilliers.

- Durante mais de dois meses - disse o chanceler - estive pagando por conta de Vossa Majestade a uns poucos de homens de muita habilidade, duma valentia a toda a prova, e de uma avidez na verdade insaciável mas que me era muito proveitosa para o bom serviço de el-rei, de forma que, mesmo pagando-lhes largamente, ainda era eu quem ganhava no negócio.

Soube por eles que, se eu quisesse sacrificar uma soma avultada de dinheiro, haviam de me dar notícia da primeira reunião dos conspiradores.

- Foi muito bem imaginado - disse Chicot -; paga, meu rei, paga.

- Não seja essa a dúvida! - exclamou Henrique; - vamos lá, chanceler. qual é o objecto da conspiração, e a esperança dos conspiradores?

- Trata-se de nada menos, Real Senhor, do que de uma repetição do dia de S. Bartolomeu.

- Contra quem?

- Contra os huguenotes.

Os circunstantes olharam espantados uns para os outros.

- Quanto gastou, pouco mais ou menos, para saber isso? - perguntou Chicot.

- Setenta e cinco mil libras por um lado, e cem mil por outro.

Chicot voltou-se para o rei.

- Se tu quiseres, dir-te-ei, por mil escudos, o segredo do Sr. de Morvilliers - exclamou o gascão.

Este fez um gesto de admiração; o duque de Anju não mostrou na fisionomia alteração alguma sensível.

- Diz lá - replicou o rei.

- É a Liga, pura e simplesmente - disse Chicot -; a liga instituída há dez anos. O Sr. de Morvilliers descobriu aquilo que todo o burguês de Paris sabe como o pai-nosso.

- Senhor!. - interrompeu o chanceler.

- Isto que digo é verdade. e hei-de prová-lo! - exclamou Chicot com os gestos dum letrado.

- Pois se assim é, diga-me qual é o local onde se reúnem os membros da Liga.

- Com todo o gosto: 1. a praça pública; 2. a praça pública; 3. as praças públicas.

- O Sr. Chicot está caçoando - disse o chanceler com um riso amarelo -; e qual é o sinal que serve para se conhecerem entre si?

- Andam vestidos como os Parisienses, e mexem com as pernas quando andam - respondeu Chicot muito sério.

Seguiu-se a esta explicação uma gargalhada geral. O Sr. de Morvilliers julgou conveniente seguir o exemplo dos mais, e riu-se também.

Mas tornando-se logo carrancudo:

- Finalmente - disse ele -, o meu espião esteve presente a uma das sessões, que teve lugar num sítio que por certo não é conhecido do Sr. Chicot.

O duque de Anju descorou.

- Onde foi? - disse o rei.

- Na Abadia de Santa Genoveva.

Chicot deixou cair uma galinha de papel que se dispunha a embarcar na nau-almirante.

- Na Abadia de Santa Genoveva? - exclamou o rei.

- É impossível! - balbuciou o duque.

- Pois foi lá mesmo - disse Morvilliers, gozando do efeito que as suas palavras produziam e olhando triunfante para toda a assembleia.

- E que fizeram eles, Senhor? Que resolveram? - perguntou o rei.

- Que os membros da Liga haviam de eleger os seus chefes; que todos os indivíduos alistados se armariam; que para cada uma das províncias seria mandado um delegado dos insurgentes da capital; e que todos os huguenotes, tão queridos de Sua Real Majestade (estas são as próprias palavras deles).

O rei sorriu.

Haviam de ser assassinados no dia que se convencionasse.

- E mais nada? - perguntou Henrique.

- Irra - disse Chicot -, bem se vê que és bom católico!

- É tudo quanto sabe? - acudiu o duque.

- Não, meu Senhor.

- Essa não está má - disse Chicot -, pois não se havia de saber mais coisa alguma? Se não tivéssemos conseguido mais do que isso a troco de cento e setenta e cinco mil libras, era um grande roubo que se Fazia a el-rei.

- Fale, chanceler - disse o rei.

- Já há chefes.

Chicot viu que o coração do duque batia por tal forma que se lhe conheciam as palpitações por fora do gibão.

- Ora, não há uma coisa assim! - disse Chicot - uma conspiração com chefes? É assombroso! Contudo, ainda precisamos saber mais alguma novidade a troco das nossas cento e setenta e cinco mil libras.

- Os chefes. como se chamam os chefes? - perguntou o rei.

- Em primeiro lugar, um pregador, um fanático, um energúmeno, cujo nome comprei por dez mil libras.

- E fizeste bem!

- É um monge de Santa Genovéva, chamado Gorenflot.

- Pobre diabo! - disse Chicot com verdadeira mágoa. - Era sina dele, aquela aventura sempre lhe havia de ser fatal.

- Gorenflot - disse o rei escrevendo este nome -; muito bem. e depois?

- Depois. - disse o chanceler com alguma hesitação. - Isto é tudo o que sei, Real Senhor.

E Morvilliers tornou a correr pela reunião um olhar indagador e misterioso, parecendo querer dizer: Se Vossa Majestade estivesse só, contar-Lhe-ia muito mais.

- Diga, chanceler; todos quantos aqui me rodeiam são meus amigos. diga.

- Oh, meu Senhor, é que a pessoa cujo nome não me atrevo a proferir, também tem amigos muito poderosos.

- Ao meu lado?

- Por toda a parte.

- Serão acaso mais poderosos do que eu! - exclamou Henrique, pálido de cólera e de inquietação.

- Senhor, um segredo nunca se diz em altas vozes. Desculpe-me, eu sou homem de Estado.

- Tem razão.

- Disseste muito bem - exclamou Chicot -, mas todos nós aqui presentes somos homens de Estado.

- Senhor - disse o duque de Anju - vamos ter a honra de pedir vénia a el-rei para nos retirarmos, se a comunicação não pode ser feita na nossa presença.

O Sr. de Morvilliers ainda hesitava. Chicot espreitava-lhe os mais insignificantes gestos, com receio de que o chanceler, assim mesmo, simples como parecia ser, não tivesse conseguido descobrir alguma coisa mais importante do que as suas primeiras revelações.

O rei fez sinal ao chanceler que se aproximasse dele, ao duque de Anju que ficasse onde estava, a Chicot que estivesse calado, e aos três validos que olhassem para outra parte.

O Sr. de Morvilliers debruçou-se imediatamente ao ouvido de Sua Majestade; mas ainda não tinha feito metade do movimento, regulado segundo todas as leis da etiqueta, quando ouviu imenso alarido no pátio do Louvre. O rei endireitou-se logo na sua cadeira; os Srs. De Quélus e d'Épernon correram à janela; e o Sr. de Anju levou a mão à espada, como se aquele motim tão ameaçador fosse dirigido contra ele.

Chicot, pondo-se nos bicos dos pés, via ao mesmo tempo o que se passava no pátio e na sala em que estava.

- Ora esta, é o Sr. de Guisa - exclamou ele -; o Sr. de Guisa que entra no Louvre. O rei fez um movimento.

- É verdade - disseram os fidalgos.

- O duque de Guisa? - balbuciou o Sr. de Anju.

- Parece-me uma ocorrência bem singular. não é verdade? Esta vinda do Sr. de Guisa a Paris - disse muito vagarosamente o rei, o qual acabava de ler no olhar espavorido do Sr. de Morvilliers o nome que este não tinha tido tempo de Lhe dizer ao ouvido.

- A comunicação que desejava fazer-me dizia respeito, porventura, a meu primo de Guisa?

- perguntou ele em voz baixa ao magistrado.

- Sim, Real Senhor; era ele quem presidia à sessão - respondeu o chanceler no mesmo metal de voz.

- E os outros?.

- Não sei que haja outros.

Henrique consultou Chicot com os olhos.

- Cos demónios - exclamou o gascão tomando uma atitude de rei -, mande entrar meu primo de Guisa!

E chegando-se ao ouvido de Henrique:

- Parece-me que deste já tu sabes o nome - disse ele -, e que não precisas escrevê-lo no teu livrinho de lembranças.

Os porteiros abriram a porta com estrépito.

- Meia porta, Senhores - disse Henrique - meia porta! A porta aberta de par em par é só para el-rei!

O duque de Guisa, que já vinha pela galeria adiante, ouviu forçosamente estas palavras; mas não mostrou alteração alguma no semblante risonho com que se dirigia a falar ao rei.

 

         QUAL ERA O MOTIVO POR QUE O SR. DE GUISA IA AO LOUVRE

Atrás do Sr. de Guisa vinham em grande número oficiais, cortesãos e Fidalgos; e na retaguarda de tão brilhante escolta vinha o povo, que formava uma comitiva menos aparatosa por certo, porém mais segura, e sobretudo mais temível.

Entretanto os fidalgos tinham entrado no paço, enquanto o povo tinha ficado à porta. Era do meio daquele povo que partiam os gritos, ainda no momento em que o duque de Guisa, que ele havia perdido de vista, entrava na galeria.

A guarda real, à vista daquela espécie de exército que formava o cortejo do herói parisiense sempre que ele aparecia na rua, tinha corrido às armas, e os soldados, formados na retaguarda do seu valente coronel, dirigiam para o povo vistas ameaçadoras, e para o triunfador uma provocação muda.

O duque de Guisa tinha notado a atitude dos soldados do comando de Crillon; cortejou com afabilidade o coronel, que estava de espada desembainhada na frente do seu corpo, mas este conservou-se perfilado e impassível, encarando-o com desdenhosa imobilidade.

Aquela revolta dum homem e dum regimento todo contra o seu poder, tão geralmente reconhecido, deu que cismar ao duque. O seu semblante tornou- se por um instante pensativo; porém, à medida que se ia aproximando do rei, foi amenizando o parecer; de forma que, quando chegou à sala onde estava Henrique III, entrou sorrindo como já vimos.

- Ah, é o primo? - disse o rei; - que alarido causou a sua entrada! Não tocaram as trombetas também? Pareceu-me tê-las ouvido.

- Real Senhor - disse o duque -, as trombetas só tocam em Paris para el-rei, em campanha para o general; e a prática que tenho dos estilos da corte e das leis militares nunca me deixaria cometer semelhante erro. As trombetas aqui Fariam demasiado ruído para um súbdito; no arraial, porém, não seriam suficientes para saudar um príncipe.

Henrique mordeu os beiços.

- Sim senhor! - disse ele, depois dum instante de silêncio que empregou em medir o príncipe dos pés à cabeça. - Vem muito guapo, primo! Foi hoje que chegou do cerco de La Charité?

- É verdade meu Senhor, só hoje cheguei - respondeu o duque corando imperceptivelmente.

- Por minha fé, meu primo, que nos dá muita honra a sua visita. muita honra, muita honra.

Henrique III costumava repetir as palavras quando queria encobrir a afluência das ideias, da mesma forma que se condensam as fileiras de soldados na frente duma bateria, enquanto não chega a ocasião de a desmascarar.

- Muita honra - repetiu Chicot com uma intonação tão exacta, que parecia terem sido ainda aquelas duas palavras proferidas pelo rei.

- Real Senhor - disse o duque -, Vossa Majestade quer zombar por certo: como pode a minha visita honrar aquele de quem dimana toda a honra?

- Quero dizer, Sr. de Guisa - replicou Henrique -, que todo o bom católico tem por costume, ao regressar duma campanha, ir adorar a Deus, em primeiro lugar, a algum dos seus templos; o rei está abaixo de Deus. Glorifique a Deus e sirva a el-rei, é este, como sabe, meu primo, um axioma meio religioso, meio político.

Desta vez corou distintamente o duque de Guisa; o rei, que tinha encarado o duque enquanto lhe falava, reparou na vermelhidão que lhe assomou ao rosto, e o seu olhar guiado por um movimento de instinto, tendo passado do duque de Guisa para o duque de Anju, notou que o seu querido irmão estava tão desmaiado quanto o seu guapo primo estava vermelho.

Aquela comoção, que assim se traduzia por dois modos tão opostos, impressionou-o vivamente.

Desviou os olhos sem afectação, e assumiu uma aparência de afabilidade, pois ninguém melhor do que Henrique III sabia encobrir as garras reais.

- Em todo o caso, duque, muito folgo de que escapasse a todas as perigosas vicissitudes da guerra, onde, segundo me consta, procura sempre os perigos com temerário arrojo. Porém os perigos conhecem-no, e fogem do primo.

O duque inclinou-se para agradecer este cumprimento.

- Dir-lhe-ei, contudo, primo, que não seja tão ambicioso de perigos mortais; pois a sua falta grande mágoa causaria a mandriões como nós; que somente servimos para dormir, comer, e andar à caça, e cujas únicas conquistas se cifram em inventar alguma moda, ou alguma oração nova.

- Sim, meu Senhor - respondeu o duque pegando nas últimas palavras -; todos nós sabemos que Vossa Majestade é um rei sábio e religioso, e que nunca, por caso algum, perde de vista a glória de Deus e os interesses da Igreja. E é esse o motivo por que viemos com tanta confiança à presença de Vossa Majestade.

- Olha para a confiança de teu primo, Henrique - disse Chicot mostrando ao rei os Fidalgos que se conservavam respeitosamente da parte de fora do aposento -; deixou uma terça parte dela à porta do teu gabinete, e as outras duas terças partes à entrada do Louvre.

- Com conFiança?. - repetiu Henrique - e acaso não vem sempre com confiança à minha presença, primo?.

- Eu me explico, Senhor: a confiança a que aludo é relativamente à proposta que tenciono fazer-Lhe.

- Ah. ah! Tem a propor-me alguma coisa, primo? Nesse caso, fale com confiança, como diz, com toda a confiança. Que tem, pois, a propor-me?

- A execução da ideia mais sublime que tem aparecido no mundo cristão, desde que as cruzadas se tornaram impossíveis.

- Fale, duque.

- Senhor - prosseguiu o duque levantando a voz de maneira a ser ouvida na antessala

- : o título de Rei Cristianíssimo não é uma palavra vã; obriga a pessoa que dele usa a mostrar um zelo ardente pela defesa da Religião. O Filho mais velho da Igreja, e esse é o seu título, Real Senhor, deve mostrar- se sempre pronto a defender sua mãe.

- Ora esta! - disse Chicot. - O meu primo a pregar com uma imensa durindana ao lado e um capacete na cabeça! Que coisa tão célebre! Já não me admira que os frades queiram ser guerreiros. Henrique, desde já te peço um regimento para Gorenflot.

O duque fingiu não ter ouvido. Henrique cruzou as pernas uma sobre a outra, descansou o cotovelo nos joelhos, e encaixou a barba na mão.

- Estará porventura a Igreja ameaçada pelos Sarracenos, meu caro duque? - perguntou ele. - Ou dar-se-á o caso que o duque aspire ao título de rei. de Jerusalém?.

- Senhor - replicou o duque -, creia Vossa Majestade que o único motivo por que toda aquela afluência de povo me seguia vitoriando o meu nome, era para recompensar o muito ardor e zelo com que defendo a Fé. Já tive a honra de falar a Vossa Majestade, antes da sua elevação ao trono, num projecto de aliança entre todos os verdadeiros católicos.

- Sim, sim - disse Chicot -, sim bem me recordo; a Liga, Henrique; a Liga, por S. Bartolomeu, a Lia meu rei Por minha fé que tens uma memória muito infeliz se já não te lembras duma ideia tão luminosa.

O duque voltou-se ao ouvir estas palavras, e olhou com desprezo para o indivíduo que acabava de as proferir; mal sabia ele o peso que elas tinham no espírito do rei depois das recentes revelações do Sr. de Morvilliers.

O duque de Anju assustou-se, e levando um dedo à boca, fitou os olhos no duque de Guisa, conservando-se pálido e imóvel como a estátua da circunspecção.

O rei, desta vez, não dava fé do sinal de inteligência que ligava entre si os interesses dos dois príncipes; porém Chicot, fingindo que lhe queria espetar uma galinha de papel na cadeia de rubis que tinha no gorro, chegou-se-Lhe ao ouvido, e disse-lhe baixinho:

- Olha para teu irmão, Henrique.

Henrique levantou imediatamente os olhos; o dedo do duque abaixou-se quase no mesmo instante; mas já era tarde. Henrique tinha visto o movimento e adivinhado a recomendação.

- Senhor - prosseguiu o duque de Guisa, que tinha reparado na acção de Chicot mas não pudera ouvir as palavras que ele dissera -, os católicos puseram com efeito à associação de que se trata, o nome de Liga Santa, e o seu fim principal é proteger o trono contra os huguenotes, seus inimigos mortais.

- Disseste muito bem! - exclamou Chicot. - Aprovo pedibus et nutus.

- Porém - continuou o duque - não basta associar-nos, não basta formarmos uma massa, por muito compacta que seja; é necessário dar-lhe uma direcção. Ora pois, num reino como este de França, a reunião de muitos milhões de homens não pode efectuar-se sem o consentimento de el- rei.

- Muitos milhões de homens? - disse Henrique, sem procurar esconder uma admiração que muito se assemelhava a medo.

- Muitos milhões de homens. - repetiu Chicot. - Um insignificante núcleo de descontentes, que se for cultivado, como espero, por mãos de gente hábil, há-de produzir lindos frutos.

O duque, desta vez, pareceu perder a paciência; mordeu os beiços com gesto desdenhoso, e agitando o pé, como quem desejava mas não se atrevia a bater com ele no chão, disse para el-rei.

- Muito me admira, Senhor, que Vossa Majestade consinta que me interrompam tanto a miúdo, quando estou tendo a honra de Lhe falar em negócios tão sérios.

Chicot, ao ouvir esta demonstração, a que pareceu dar o devido peso, olhou enfurecido em volta de si, e, imitando a voz esganiçada do meirinho do Parlamento, exclamou:

- Silêncio, quando não, eu lhes mostrarei quem soú!

- Muitos milhões de homens!. - repetiu o rei, que não podia engolir tamanho algarismo; - isso é muito lisonjeiro para a religião católica; mas, em presença desse muitos milhões de sócios, quantos são então os protestantes que há no meu reino?

O duque pareceu reflectir.

- Quatro - disse Chicot.

Esta nova pilhéria fez desatar numa gargalhada os amigos do rei, enquanto que o duque de Guisa encrespava as sobrancelhas, e os fidalgos que estavam na antessala iam começando a murmurar em altas vozes contra o atrevimento do gascão.

O rei voltou-se vagarosamente para a porta de onde provinham os murmúrios, e como Henrique, quando queria, tinha um olhar cheio de dignidade, cessou logo todo o rumor.

Depois, volvendo os olhos para o duque, e sempre com a mesma expressão, disse:

- Afinal, Senhor Duque, que pretende de mim?. Fale. fale.

- Pretendo, Real Senhor, porque tenho mais a peito a popularidade do meu rei do que a minha própria, pretendo que Vossa Majestade mostre claramente que nos é tão superior no seu zelo pela religião católica como em tudo o mais, e que prive assim os descontentes dum pretexto para tornarem a atear a guerra civil.

- Ah, se é de guerra que se trata, meu primo - disse Henrique -, tenho tropas, e, sem irmos mais longe, parece-me que o duque abandonou, para me dar tão excelentes conselhos, as que tem debaixo das suas ordens, e que são perto de vinte e cinco mil homens.

- Meu Senhor, falei em guerra, mas não expliquei previamente, como cumpria, o meu pensamento.

- Pois explique-se agora, primo; é um hábil general, e não poderá duvidar do gosto que hei-de ter em ouvir discorrer sobre esse assunto.

- Eu queria dizer, Real Senhor, que neste tempo em que vivemos, os reis vêem-se obrigados a sustentar duas guerras: a guerra moral, se me é lícito assim dizer, e a guerra política; a guerra contra as ideias, e a guerra contra os homens.

- Com todos os demónios! - disse Chicot. - Que exposição tão eloquente!

- Silêncio, bobo! - disse o rei.

- Os homens - prosseguiu o duque - são visíveis, palpáveis, mortais; podem ser alcançados, atacados e batidos; mandam-se processar e enforcam-se, ou faz-se-lhes melhor ainda.

- Sim - disse Chicot -, mandam-se enforcar sem os processar; é mais sumário e mais em harmonia com a dignidade da coroa.

- Porém as ideias - continuou o duque -, não é possível alcançá-las assim, meu Senhor; introduzem-se, conservando-se sempre invisíveis; ocultam-se especialmente aos olhos daqueles que pretendem aniquilá-las; abrigam-se no íntimo dos corações, e lá deixam profundas raízes; e quanto mais se decepam os ramos imprudentes que aparecem por fora, mais robustas e inextirpáveis se tornam as raízes internas. Uma ideia, meu Senhor, é um anão gigante, e é indispensável vigiá-la de noite e de dia; porque a ideia que ontem se arrastava aos seus pés, aparecerá amanhã sobranceira à sua cabeça. Uma ideia, Senhor, é o mesmo que a centelha que cai sobre o colmo; é preciso ter muito boa vista para poder conhecer de dia o princípio do incêndio, e eis aí, Senhor, o motivo por que são indispensáveis milhões de vigias.

- Estão bem arranjados os quatro huguenotes existentes em França - exclamou Chicot

- , coitados, tenho dó deles!

- E era para dirigir esses vigias a que me refiro - prosseguiu o duque - que eu queria propor a Vossa Majestade que se servisse nomear um chefe para a Santa União.

- Concluiu primo? - perguntou Henrique ao duque.

- Sim, Real, Senhor, e falei sem rodeios, como Vossa Majestade viu.

Chicot soltou um enorme suspiro, enquanto que o duque de Anju, que já tinha esquecido o susto que tivera, se sorria para o príncipe loreno.

- Então - disse o rei dirigindo-se às pessoas que o cercavam - qual é o vosso parecer, meus Senhores?

Chicot, sem responder coisa alguma, pegou no chapéu e nas luvas, e agarrando numa pele

de leão que estava no meio do quarto, arrastou-a pela cauda para um canto, e deitou-se sobre ela.

- Que estás fazendo Chicot? - perguntou o rei.

- Senhor - respondeu Chicot -, sempre ouvi dizer que a noite dá bons conselhos. E qual é o motivo por que isto se diz? É porque, de noite, dorme-se. Vou dormir, meu Senhor, e amanhã, depois de ter pensado no caso, responderei a meu primo de Guisa.

E, dizendo isto, estendeu-se até às garras da pele.

O duque dirigiu para o gascão um olhar furioso, ao qual este, abrindo um dos olhos, respondeu ressonando com uma bulha que parecia um trovão.

- Então, Real Senhor - perguntou o duque -, qual é o parecer de Vossa Majestade?

- Parece-me, como sempre, que tem razão, meu primo; convoque pois os principais membros da Liga, venha à testa deles, e então escolherei o homem que mais convier para bem da Religião.

- E quando há-de isso ser, meu Senhor? - perguntou o duque.

- Amanhã.

E ao proferir esta última palavra, dividiu habilmente o sorriso com que a acompanhou. A primeira parte foi para o duque de Guisa, e a segunda para o duque de Anju.

Este último ia para se retirar com a corte, mas ao primeiro passo que deu com essa intenção:

- Fique meu irmão - disse Henrique -, tenho que falar-Lhe.

O duque, de Guisa carregou um instante com a mão na testa como para comprimir os pensamentos que Lhe ferviam na cabeça, e logo saiu com toda a sua comitiva, que desapareceu por baixo das abóbadas.

Dali a um instante ouviram-se os gritos da multidão, que o vitoriava à saída do Louvre, como o havia saudado à entrada.

Chicot continuava a ressonar, mas não nos atrevemos a afirmar que dormia deveras.

 

                   CASTOR

Tinha o rei despedido todos os validos, ao passo que dissera ao irmão que ficasse. O duque de Anju, que durante toda a cena precedente tinha conseguido conservar uma atitude de indiferença aos olhos de todos, menos aos de Chicot e do duque de Guisa, aceitou sem desconfiança o convite de Henrique. Ele não tinha reparado no olhar que lhe dirigira o rei em consequência da advertência de Chicot e na ocasião em que havia levado o dedo à boca.

- Meu irmão - disse Henrique, depois de se ter certificado que, à excepção de Chicot, ninguém tinha ficado no gabinete, e andando a passos largos da porta para a janela -, sempre lhe digo que sou um príncipe bem feliz!

- Senhor - retorquiu o duque -, a felicidade de Vossa Majestade, se na realidade Vossa Majestade se considera feliz, não é senão a recompensa que o Céu deve aos seus merecimentos.

Henrique olhou para o irmão.

- Sim, muito feliz - replicou ele -, porque quando alguma ideia luminosa não me ocorre a mim, ocorre a alguma das pessoas que me cercam. Ora esta ideia que acaba de ter meu primo de Guisa é muito luminosa.

O duque inclinou-se em sinal de adesão.

Chicot abriu um olho, como se não ouvisse tão bem com ambos os olhos fechados, e como se procurasse ver o rosto do rei para entender melhor o sentido das palavras que ele proferia.

- E com efeito - prosseguiu Henrique -, reunir em volta da mesma bandeira todos os católicos, transformar o reino todo em defensores da Igreja, armar assim toda a França, desde a Bretanha até à Borgonha, por forma tal que sempre hei-de ter um exército pronto a marchar contra os Ingleses, os Flamengos, ou os Espanhóis, sem que os Flamengos, os Espanhóis, ou os Ingleses possam nunca assustar-se com os meus preparativos, digo-Lhe, na verdade, Francisco, que é um pensamento magnífico!

- Mas não é assim, Senhor?. - disse o duque de Anju, contentissimo por ver que seu irmão abundava nas ideias do duque de Guisa, seu aliado.

- É; e confesso-Lhe que me sinto disposto de todo o coração a remunerar com liberalidade o autor de tão excelente projecto.

Chicot abriu os dois olhos, mas logo os tornou a fechar; acabava de surpreender na fisionomia do rei um daqueles sorrisos imperceptíveis, que só eram visíveis para ele, que conhecia o seu Henrique melhor do que ninguém; aquele sorriso bastava-Lhe.

- Sim - continuou o rei -, ainda repito, esse projecto merece uma remuneração, e não há nada que eu não seja capaz de fazer a favor de quem o concebeu. Diga- me, Francisco, o duque de Guisa é realmente pai de tão sublime obra, porque a obra já está começada, não é assim, meu irmão?

O duque de Anju deu a entender, com um aceno, que efectivamente já o negócio tinha tido um princípio de execução.

- De melhor para melhor - replicou o rei. - Disse-Lhe há pouco que me considerava um príncipe feliz; deveria ter dito demasiadamente feliz, Francisco, porque não somente ocorrem semelhantes ideias aos meus parentes, mas até chega a tal ponto o empenho que têm de serem úteis ao seu rei e parente, que as põem logo em execução; porém, perguntava-lhe eu, meu querido Francisco - disse Henrique pondo a mão no ombro do irmão -, se era realmente a meu primo de Guisa que eu devia agradecer aquele pensamento.

- Não, meu Senhor, o cardeal de Lorena já tinha tido a mesma lembrança há mais de vinte anos, e foi o dia de S. Bartolomeu unicamente que obstou à execução dela, ou pelo menos a tornou inútil momentaneamente.

Ah, que desgraça que é ter falecido o cardeal de Locena. - disse Henrique. - Tê-lo-ia feito eleger Papa quando morresse Sua Santidade Gregório XIII; mas também é verdade - prosseguiu Henrique com aquela admirável candura que o tornava o primeiro cómico do seu reino - que o sobrinho herdou a ideia, e fê-la frutificar. Infelizmente não posso fazê-lo Papa; mas hei-de fazê-lo. o que poderei eu fazê-lo, que ele não seja já, Francisco?

- Senhor - replicou Francisco, perfeitamente iludido pelas palavras do irmão -, está exagerando os merecimentos do primo; a ideia que ele teve não é mais do que uma herança, como bem disse, e houve um homem que muito o ajudou a fazer valer a tal herança.

- Foi o irmão cardeal, não é verdade?

- Não há dúvida que também concorreu; mas não foi esse.

- Então foi o Maiena?

- Oh, Senhor - exclamou o duque -, faz-lhe demasiada honra!

- É verdade. Como é possível que semelhante carniceiro pudesse ter uma ideia política?. Mas a quem devo então agradecer esse auxílio prestado a meu primo de Guisa, Henrique?

- A mim, Senhor - respondeu o duque.

- Ao mano? - exclamou Henrique fingindo-se muito admirado.

Chicot tornou a abrir um olho.

O duque inclinou-se.

- Pois quê? - disse Henrique. - Quando todos estavam em guerra aberta contra mim: os pregadores contra os meus vícios, os doutores da política contra os meus erros; enquanto os meus amigos se riam da minha impotência; enquanto a situação se tinha tornado tão complicada, que eu ia emagrecendo a olhos vistos e criando cabelos brancos, ocorreu-Lhe uma tal ideia, Francisco? Ao mano, que. - devo confessar a verdade, porque o homem é fraco e os reis são cegos - ao mano, que eu nem sempre considerava meu amigo? Ah! Francisco, quanto sou criminoso!.

E Henrique, enternecido e com os olhos arrasados de lágrimas, estendeu a mão ao duque. Chicot abriu os dois olhos.

- Oh - prosseguiu Henrique -, é porque a ideia é triunFante. Eu não podia impor contribuições nem levantar tropas sem dar lugar a clamores; não podia passear, nem dormir, nem namorar, sem que se rissem de mim; eis senão quando, a ideia do Sr. de Guisa, ou, para melhor dizer, a sua ideia, meu irmão, dá-me a um tempo exército, dinheiro, amigos, e descanso! Agora, para que este descanso dure, Francisco, só é necessário uma coisa.

- Qual?

- Meu primo falou, ainda há pouco, em dar um chefe a todo esse movimento.

- Sim, não há dúvida.

- O chefe de que precisa, Francisco, não pode ser nenhum dos meus validos, como muito bem sabe; nenhum deles tem o talento e o ânimo indispensáveis para tamanha empresa. Quélus é valente, mas o desgraçado não cura senão de amores. Maugiron é valente, mas é um presumido que só trata de se embonecar. Schomberg é valente, mas não fura paredes; os meus melhores amigos o confessam. D'Épernon é valente, mas é um hipócrita completo, em quem eu não me Fiaria um único instante, se bem que lhe mostro boa cara. Porém, como sabe, Francisco - disse Henrique tornando-se ainda mais afável -, um dos maiores dissabores dos reis é a necessidade constante em que estão de dissimularem. E por isso - acrescentou Henrique -, quando posso falar com o coração nas mãos, como neste momento, ah, então respiro!

Chicot tornou a fechar os olhos.

- Ora bem, dizia eu pois - prosseguiu Henrique -, que se meu primo de Guisa teve aquela ideia, em cujo desenvolvimento tamanha parte lhe coube, Francisco, é ele que deve ser incumbido de a pôr em execução.

- Que diz, Senhor? - exclamou Francisco arquejando de receio.

- Digo que, para dirigir um movimento de semelhante natureza, é preciso um grande príncipe.

- Senhor, tenha cautela.

- Um bom cabo-de-guerra, um hábil negociador.

Um hábil negociador, sobretudo - repetiu o duque.

- Pois então, Francisco, parece-Lhe que para tal cargo não convém por todos os motivos o Sr. de Guisa?.

- Meu irmão - respondeu Francisco -, o Sr. de Guisa já é muito poderoso.

- Sim, não há dúvida, mas o seu poder contribui para a minha força.

- O duque de Guisa influi no exército e nos burgueses; o cardeal de Lorena tem influência na Igreja; Maiena é um instrumento na mão dos dois irmãos; vai pois reunir-se muito poderio numa única casa.

- É verdade. - disse Henrique -, já me lembrou isso mesmo, Francisco.

- Se os Guisas fossem príncipes franceses, ainda esse passo seria desculpável, pois teriam interesse em engrandecer a casa real de França.

- É verdade; mas, pelo contrário, são príncipes lorenos.

- E duma casa que sempre foi rival da nossa.

- Olhe, Francisco, agora acertou. Juro-Lhe que não o tinha em conta de tão profundo político; pois é verdade, o que me faz emagrecer e criar cãs, é esta elevação da casa de Lorena a par da nossa; não se passa um único dia, Francisco, sem que algum destes três Guisas (porque, como bem disse, todos três podem muito), não se passa um único dia sem que um deles

- ou o duque, ou o cardeal, ou o Maiena, - não me arranque algum fragmento do meu poder, algum retalho das minhas prerrogativas, seja por atrevimento, ou por astúcia, ou por força, ou por manha, sem que eu, pobre, fraco e abandonado como me encontro, possa reagir contra eles. Ah, Francisco, se tivéssemos tido esta explicação há mais tempo, se eu tivesse podido ler no seu coração como estou lendo neste momento, é fora de dúvida que, vendo eu que encontrava apoio no mano, teria resistido muito melhor; mas agora, como vê, já é tarde.

- Porquê?

- Porque seria necessário uma luta, e confesso-Lhe que me aborrece lutar; nomeá-lo-ei pois para chefe da Liga.

- Pois fará mal, meu irmão - disse Francisco.

- Mas quem quer que eu nomeie, Francisco? Quem aceitará um cargo tão perigoso? E depois, viu qual era a ideia do duque? Era que eu o nomeasse para chefe da Liga.

- Mas que tem isso?

- É que ficará olhando como inimigo a todo e qualquer indivíduo que eu nomear em seu lugar.

- Nesse caso nomeie um homem bastante poderoso para que a sua força, apoiando-se na de Vossa Majestade, nada tenha que recear da força e do poder dos três lorenos reunidos.

- Ah, meu bom irmão - disse Henrique como quem desanima -, não conheço pessoa alguma que esteja no caso que aponta.

- Procure em redor de si, Senhor.

- Em redor de mim? Não vejo senão meu irmão e Chicot, a quem eu possa considerar verdadeiramente como meus amigos.

Oh! oh! murmurou Chicot, também me quererá pregar alguma peça das suas, a mim? E tornou a fechar os olhos.

- Então! - disse o duque. - Não percebeu ainda, meu irmão?.

Henrique encarou o duque de Anju, como se lhe tivesse caído uma venda dos olhos.

- Pois deveras? - exclamou ele.

Francisco fez um movimento afirmativo.

- Não é possível - disse Henrique -, nunca tal consentirei Francisco. É uma tarefa demasiadamente árdua; o mano nunca poderá acostumar-se a mandar fazer exercício militar aos burgueses; não quereria ter o incómodo de rever e corrigir os discursos dos pregadores, e, se fosse necessário brigar, não iria por certo fazer de carniceiro pelas ruas de Paris, transformadas em matadouro; é preciso para tudo isto um homem que tenha três corpos num só, como o Sr. de Guisa, com o braço direito que se chama Carlos, e com o esquerdo chamado Luís. Ora, não se pode negar que o duque desempenhou muito bem o ofício de matador no dia de S. Bartolomeu! Que Lhe parece, Francisco?

- Desempenhou-o bem de mais, Senhor.

- Sim, pode ser. Mas não respondeu à minha pergunta, Francisco. Pois quê, não se Lhe dava de levar a vida que acabei de descrever?. Quereria estar em contacto com as couraças amolgadas desses basbaques de Paris, e com as caçarolas que eles encaixam nos toutiços à laia de capacete? Pois quê? Havia de tornar-se popular o primeiro fidalgo da nossa corte! Por vida minha, meu irmão, sempre se muda muito com a idade!

- Nada disso eu seria talvez capaz de fazer por minha causa, Senhor; mas fá-lo-ei decerto para servir a Vossa Majestade.

- Meu bom irmão, meu excelente irmão! - disse Henrique enxugando com a ponta do dedo uma lágrima que nunca tinha existido.

- Visto isso - disse Francisco -, não Lhe desagradaria muito, Henrique, que eu tomasse à minha conta a tarefa de que tencionava incumbir o Sr. de Guisa?

- Desagradar-me a mim? - exclamou Henrique. - Cos demónios! Longe de me desagradar, dá-me pelo contrário muito gosto; de forma que o mano também tinha pensado na Liga. Tanto melhor, meu Deus! Com que então também Lhe cabe uma pequena parte na ideia? Que digo eu? Uma pequena parte. Não: a maior parte, segundo me disse. Coisa admirável! Estou na verdade cercado de gente de espírito superior, e reconheço que sou o maior asno do meu reino.

- Oh, Vossa Majestade está zombando!

- Eu? Deus me livre de tal! A situação é demasiadamente séria. Digo o que penso, Francisco; tirou-me dum grande embaraço, e tanto maior porque há algum tempo a esta parte, meu querido Francisco, sinto-me doente. As minhas faculdades vão perdendo o vigor; o meu médico Miron já por várias vezes me tem dado a entender. Mas, tornando ao negócio de que

estávamos tratando: está definitivamente resolvido a aceitar a nomeação de chefe da Liga?

Francisco estremeceu de contentamento.

- Oh - disse ele -, se Vossa Majestade se dignasse depositar uma tal confiança em

mim!...

- Confiança, disse o mano? Francisco, devo porventura ter algum receio da Liga por não

ser o Sr. de Guisa o seu chefe? Julga que da Liga me poderá provir algum perigo? Fale, meu

caro Francisco, diga-me tudo.

- Oh, Real Senhor!... - exclamou o duque.

- Que loucura a minha! - replicou Henrique; - se assim fosse, meu irmão não se

O fereceria para chefe dessa associação, ou, melhor ainda, logo que meu irmão estiver à testa

dela cessa todo o perigo. Parece-me que isto que digo é lógico, e bem mostro que o mestre

que me ensinou ganhou o seu dinheiro com consciência. Palavra de honra que não tenho

receio algum. E demais, se um dia a Liga me incomodar e eu me resolver a desembainhar

a espada contra ela, estou certo que há-de haver em França muito quem queira acompanhar-me.

- É verdade, meu Senhor - respondeu o duque com uma ingenuidade quase tão bem

fingida como a do irmão -; o rei é sempre o rei.

Chicot tornou a abrir um olho.

- Não há dúvida! - replicou Henrique. - Mas, infelizmente, ocorre-me agora outra

ideia... parece-me incrível como as ideias me fervem hoje na cabeça; há dias em que isto me

sucede.

- Que ideia é essa, meu irmão? - perguntou o duque já inquieto, porque Lhe custava

a crer que tão feliz acontecimento pudesse realizar-se sem algum estorvo.

- É que nosso primo Guisa, que se julga autor da invenção e que imaginou, naturalmente ser o chefe, há-de querer sem dúvida o comando...

- O comando, Senhor?

- Sem dúvida alguma; pois ele, se tanto trabalhou, foi provavelmente com a tenção de

tirar algum proveito do incómodo que teve. Verdade seja, que, segundo o mano diz, também

o coadjuvou. Olhe Francisco ele não é homem que consinta em ser vítima do sic vos non

vobis... Sabe o que diz Virgílio: Nidificatis, aves.

- Oh, Senhor!...

- Francisco, ia apostar que é isto o que pensa. Ele bem sabe quanto eu sou descuidado.

- Sim. Mas logo que Vossa Majestade Lhe significar que é essa a sua vontade, há-de ceder.

- Ou fingirá que cede; e repito o que já lhe disse: tenha cautela, Francisco, que o nosso

primo de Guisa tem os braços muito compridos, e não há outra pessoa em todo o reino, nem

mesmo eu, que possa, como ele, tocar, quando estende os braços, com uma das mãos na Espanha e com a outra na Inglaterra, em D. João de Áustria e em Isabel. Borbom não tinha a espada tão comprida como o braço do nosso primo de Guisa, e contudo bastante mal fez a Francisco I, nosso querido avô.

- Porém - respondeu Francisco -, se Vossa Majestade o julga tão perigoso, é mais uma

razão para me dar o comando da Liga, a fim de o colocar entre o meu poder e o de Vossa Majestade, e, logo à primeira traição que ele quiser fazer, manda-se processar.

Chicot abriu o outro olho.

- Processá-lo? Francisco, processá-lo? Isso era bom para Luís XI, que era poderoso

e rico. Luís XI podia mandar instaurar processos e levantar cadafalsos. Mas eu nem sequer

tenho o dinheiro preciso para comprar a quantidade de veludo preto de que havia de carecer

em tais circunstâncias.

E ao dizer estas palavras, Henrique, tendo-se animado gradualmente, apesar do império que tinha sobre si próprio, deixou escapar um olhar que o duque não pôde suportar.

Chicot tornou a fechar os olhos.

Houve um instante de silêncio entre os dois príncipes.

O rei foi o primeiro que o rompeu.

- É preciso, por consequência, evitar qualquer motivo de discórdia, meu querido Francisco - disse ele -; nada de guerras civis; nada de desavenças entre os meus súbditos. Eu sou filho de Henrique, o Batalhador e de Catarina, a Astuciosa; herdei parte da astúcia de mi nha boa mãe; vou mandar chamar o duque de Guisa, e hei-de fazer-lhe promessas tão lindas que o negócio há-de concluir-se amigavelmente.

- Senhor - exclamou o duque de Anju -, há-de conceder-me o lugar de chefe, não é assim?

- Tenho essa tenção.

- Tem empenho em que eu o aceite?

- Muitíssimo.

- Assim o quer, finalmente?

- É o meu maior desejo; contudo não quero ferir a susceptibilidade do nosso primo de Guisa.

- Pois bem! Fique descansado - disse o duque de Anju -; se é esse o único obstáculo que reconhece à minha nomeação, encarrego-me de arranjar o negócio com o duque.

- E quando?

- Imediatamente.

- Vai pois ter com ele? Vai visitá-lo? Oh! meu irmão, atenda que é uma honra muito grande que lhe faz.

- Não, meu Senhor, não vou ter com ele.

- Como assim?

- É que ele está à minha espera.

- Onde?

- Nos meus aposentos.

- Nos seus aposentos? Mas eu ouvi os gritos do povo, vitoriando-o à saída do Louvre!...

- Sim, mas depois de ter saído pela porta principal, há-de ter tornado a entrar pela porta particular. El-rei tinha direito à primeira visita do duque de Guisa; mas eu tenho direito à segunda.

- Ah, meu irmão - disse Henrique -, quanto estimo que sustente assim as nossas prerrogativas, de que eu tenho às vezes a fraqueza de não fazer caso! Vá, pois, Francisco, e combine com ele.

O duque pegou na mão do irmão, e inclinou- se para a beijar.

- Que quer fazer, Francisco?. Nos meus braços, sobre o meu coração! - exclamou Henrique - é o lugar que Lhe compete.

E os dois irmãos abraçaram-se repetidas vezes; até que afinal, depois dum último abraço, o duque de Anju, restituído à liberdade, saiu do gabinete, atravessou rapidamente as galerias, e dirigiu-se apressadamente para os seus aposentos.

O rei, logo que o irmão saiu, deu um grito de cólera, e, encaminhando-se para o corredor particular que ia dar ao quarto de Margarida de Navarra, onde estava alojado o duque de Anju, foi colocar-se ao pé duma espécie de tímpano de onde podia ouvir a conversa que ia ter lugar entre os duques de Anju e de Guisa, com a mesma facilidade com que o tirano Dionísio ouvia do seu esconderijo as conversas dos seus prisioneiros.

- Cos diabos! - exclamou Chicot abrindo ambos os olhos ao mesmo tempo e sentando-se -, uma cena de família sempre é coisa muito terna! Cheguei a capacitar-me que estava no Olimpo, assistindo à reunião de Castor e Pólux, depois de terem estado separados durante seis meses.

 

         ONDE SE DEMONSTRA QUE QUEM QUISER OUVIR DEVE ESCUTAR

O duque de Anju tinha vindo ter com o seu aliado o duque de Guisa, àquele mesmo quarto da rainha de Navarra onde outrora o Bearnês e de Mouy, falando ao ouvido um do outro, tinham combinado os seus planos de fuga; e falavam assim, porque o prudente Henrique de Béarn bem sabia que no Louvre haviam poucos quartos que não fossem construídos de maneira tal que deixavam chegar as palavras, ainda mesmo proferidas a meia voz, ao ouvido do indivíduo que tinha empenho em as escutar.

O duque de Anju também não ignorava esta particularidade tão importante; mas completamente seduzido pela Lhaneza do irmão, nem tal Lhe lembrou, ou não Lhe deu importância.

Henrique III, como acabámos de dizer, entrou para o seu observatório no mesmo momento em que o irmão entrava no quarto; de forma que nenhuma das palavras dos dois interlocutores escapou ao rei.

- Então que há, meu Senhor - perguntou o duque de Guisa com vivacidade.

- Está fechada a sessão.

- Vossa Alteza estava muito pálido.

- Visivelmente? - perguntou o duque com algum sobressalto.

- Para mim, decerto que sim, meu Senhor.

- El-rei não repararia?

- Acho que não; mas Sua Majestade mandou ficar Vossa Alteza.

- Mandou, sim.

- Provavelmente para Lhe falar acerca da proposta que eu tinha ido fazer-Lhe?

- Foi isso mesmo.

Houve um instante de silêncio; e depois o duque de Guisa prosseguiu, dizendo:

- E qual é o parecer de Sua Majestade, meu Senhor?

- El-rei aprova a ideia; mas por isso mesmo que é um pensamento gigantesco, receia ver um homem como o senhor à testa de uma tal associação.

- Nesse caso já estamos encalhados?

- Parece-me que sim, meu querido duque, e desconfio que será suprimida a Liga.

- Cos demónios! - exclamou o duque; - isso seria morrer antes de ter nascido, acabar antes de ter começado.

- Tanto talento tem um como o outro - disse de manso uma voz estridente, que ressoou ao ouvido de Henrique trepado no seu observatório.

Henrique voltou-se, e viu estirado o corpo de Chicot, dobrado ao meio para escutar a outro buraco igual àquele onde estava o rei.

- Vieste atrás de mim, maroto! - exclamou o rei.

- Cala-te - disse Chicot acenando-lhe com a mão -; cala-te, meu filho, que não me deixas ouvir.

O rei encolheu os ombros; mas como Chicot, afinal de contas, era o único ente humano em quem ele depositava plena conFiança, deixou-o ficar, e continuou a escutar.

O duque de Guisa tinha tornado a tomar a palavra.

- Meu Senhor - dizia ele -, parece-me que, dado esse caso, el-rei teria logo negado o seu consentimento; ele recebeu-me tão mal que não podia ter dúvida alguma em me dizer o que pensava. Acaso quererá afastar-me para longe dele?

- Penso que sim - respondeu o príncipe com alguma hesitação. - É capaz de dar cabo da nossa empresa, não é?

- Decerto - replicou o duque de Anju -, e como eu tinha começado o ataque, devia auxiliá-lo com todos os meus recursos, e assim fiz.

- Por que forma, meu Senhor?

- Consegui que el-rei deixasse, por assim dizer, a meu arbítrio reanimar ou matar para sempre a Liga.

- Como assim? - disse o duque loreno, cujo olhar fulgurou involuntariamente.

- Ouça-me; já se sabe que isto que vou dizer fica sujeito à aprovação dos membros influentes, percebe? Se em vez de nos expulsar, de dissolver a Liga, ele nomeasse um chefe favorável à empresa? Se em vez de elevar o duque de Guisa a esse cargo, ele o confiasse ao duque de Anju?

- Ah!... - disse o duque de Guisa, o qual não pôde reter a exclamação, nem comprimir o sangue que lhe subia ao rosto.

- Bom - disse Chicot -, os dois gozos vão brigar por causa do osso!

Porém, com grande admiração de Chicot, e sobretudo do rei, que sabia menos daquele assunto que Chicot, o duque de Guisa deixou de repente de se enfadar, e replicou com voz

tranquila e quase alegre:

- É um hábil político, se acaso conseguiu isso - Consegui - respondeu o duque.

- Com muita rapidez...

- É verdade, mas devo dizer-Lhe que as circunstâncias me ajudavam, e que as aproveitei; contudo, meu querido duque - acrescentou o príncipe -, o negócio não está tratado definitivamente, e eu não quis concluí-lo antes de falar com o duque.

- Por que razão, meu Senhor?

- Porque não sei ainda a que nos conduzirá tudo isto.

- Sei eu muito bem - disse Chicot.

- Parece-me que é uma conspiraçãozinha - disse Henrique, sorrindo-se.

- E da qual o Sr. de Morvilliers, que, segundo tu dizes, está sempre tão bem informado não te tinha falado. Mas deixa-me ouvir, que isto vai-se tornando interessante.

- Pois bem, eu lhe digo, meu Senhor, não a que nos conduzirá tudo isto, porque é segredo que só Deus sabe, mas sim para que nos poderá servir - replicou o duque de Guisa -; a Liga é um segundo exército; ora, como eu governo o primeiro, e o meu irmão cardeal governa a Igreja, ninguém poderá resistir-nos enquanto nós nos conservarmos unidos.

- Sem contar - disse o duque de Anju - que eu sou o herdeiro presuntivo da coroa.

- Ah, ah! - disse Henrique.

- Ele tem razão - disse Chicot -; é por tua culpa, meu filho; tu teimas em conservar separadas as duas camisas de Nossa Senhora de Chartres.

- Pois meu Senhor, apesar de ser herdeiro presuntivo da coroa, calculo sempre o número das probabilidades contrárias.

- Duque, pensa acaso que não as pesei já mais de cem vezes?

- Há em primeiro lugar o rei de Navarra.

- Oh, esse não me mete medo; só cura dos seus amores com a Fosseuse.

- Está enganado, meu Senhor; é esse justamente quem há-de disputar-Lhe a posse até dos próprios cordões da sua bolsa; está sem real, magro e esfomeado; parece-se com os gatos vagabundos que passam uma noite inteira sobre um telhado só porque sentiram o cheiro dum ratinho, enquanto que o gato que tem dono e anda gordo e bem tratado, nem se cansa a deitar as unhas fora do estojo do lustroso pêlo; o rei de Navarra está à espreita, e não perde de vista a Vossa Alteza nem a seu irmão; está com fome do seu trono. Deixe que suceda alguma desgraça à pessoa que nele se senta actualmente, e verá se são ou não elásticos os músculos do gato magro, e se é ou não capaz de armar um pulo de Pau a Paris para lhe fazer sentir as unhas; vê-lo-á, meu Senhor, vê-lo-á.

- Uma desgraça à pessoa que actualmente ocupa o trono?. - repetiu Francisco vagarosamente, e fitando ao mesmo tempo um olhar indagador no duque de Guisa.

- Ah, ah! - disse Chicot. - Ouve, Henrique: o Guisa está dizendo, ou por outra, vai dizer, coisas muito instrutivas, e de que te aconselho que tomes nota.

- Sim, meu Senhor - repetiu o duque de Guisa -, uma desgraça. As desgraças não são pouco frequentes na sua família; o senhor sabe-o tão bem como eu, ou ainda melhor, talvez. Tem-se visto príncipes que estando de perfeita saúde, começam de repente a definhar; outros, persuadidos de que têm ainda muitos anos de vida, acham-se dum dia para o outro à beira da sepultura.

- Ouves, Henrique, ouves? - disse Chicot agarrando na mão do rei, que estava trémula e coberta de suor frio.

- Sim, é verdade - disse o duque de Anju com uma voz tão sumida, que o rei e Chicot tiveram de prestar a maior atenção para o poderem ouvir -, é verdade, os príncipes da minha família nascem debaixo de influências fatais; porém meu irmão Henrique III está, graças a Deus, robusto e são; já em outro tempo andou exposto às Fadigas da guerra, e resistiu a elas. Muito mais facilmente resistirá agora, que a sua vida consta apenas de uma não interrompida série de divertimentos, que lhe causam bem pouco abalo, comparado com o que Lhe causava antigamente a guerra.

- Sim, mas lembre-se duma coisa, meu Senhor - replicou o duque -: é que os divertimentos que servem de distracção aos reis de França nem sempre são isentos de perigo, e tem um exemplo em seu pai, el-rei Henrique II, o qual, tendo escapado felizmente aos perigos da guerra, morreu numa das tais recreações de que fala. O Ferro da lança de Montgomery não tinha ponta, é verdade, e não podia fazer mossa numa couraça, mas pôde vazar um olho; o facto é que el-rei Henrique II morreu, e ninguém deixará de dizer, penso eu, que foi um acaso desgraçado. Dir-me-á que, passados quinze anos depois daquela desgraça, a rainha-mãe mandou prender o Sr. de Montgomery, que se julgava seguro por ter prescrito o tempo legal para se Lhe instaurar processo, e Fê-lo degolar. É verdade, não há dúvida, mas o rei sempre morreu. Pelo que respeita a seu irmão, o defunto rei, Francisco - veja como a sua fraqueza de espírito, divorciando-o do povo, lhe foi nociva -, também morreu muito desgraçadamente esse pobre príncipe. Confesse, meu Senhor, que Foi uma doença muito célebre: uma dor de ouvido!. Quem diabo julgaria que era um desastre?. Pois era, e muito sério. Direi mais: não falta quem assevere lá pelo meu acampamento, e aqui na cidade, e até na corte, que aquela doença mortal tinha sido deitada no ouvido de el-rei Francisco II por alguém a quem fizeram muito mal chamar acaso, porque tinha outro nome muito conhecido.

- Duque! - murmurou Francisco corando.

- Sim, meu Senhor, sim - prosseguiu o duque -; o título de rei tem provado mal há algum tempo a esta parte; a palavra rei é sinónimo de arriscado. Veja António de Borbom: não foi outra coisa senão o título de rei que Lhe acarretou aquele tiro de arcabuz no ombro, desgraça que para qualquer outro que não fosse rei, decerto não teria sido mortal, mas que a ele Lhe ocasionou a morte. O olho, o ouvido e o ombro já foram causa de muito luto em França, e isso me traz à memória que o seu Bussy fez uns versos lindos sobre este mesmo assunto.

- Que versos? - perguntou Henrique.

- Ora essa! - exclamou Chicot - pois não os sabes?

- Não.

- Visto isso, tu és um rei verdadeiro a quem encobrem essas coisas? Pois eu te digo: são uns versos em que se conta que a França perdeu três reis, pelo ouvido, pelo ombro, e pelo olho. Mas caluda! Tenho cá na minha ideia que teu irmão há-de dizer alguma coisa muito mais interessante.

- E a conclusão dos versos?

- Dir-ta-ei mais tarde, quando o Sr. de Bussy houver transformado a sua sextilha numa décima.

- Que queres dizer com isso?

- Quero dizer que ainda faltam duas personagens no quadro da família; mas ouve o Senhor Duque de Guisa vai falar, e ele não se há-de esquecer deles.

E com efeito o diálogo tornou a principiar no mesmo instante.

- Além de que, meu Senhor - replicou o duque de Guisa -, a história dos seus parentes e aliados não se encerra toda nos versos de Bussy.

- Então, que te dizia eu? - disse Chicot acotovelando Henrique.

- Esqueceu-lhe Joana d'Albret, mãe do Bearnês, que morreu pelo nariz por ter cheirado um par de luvas aromatizadas compradas na loja do florentino da Ponte de São Miguel; desgraça aquela que foi bem inesperada, e que causou tanta maior admiração a todos, por se saber quem eram as pessoas que naquele momento podiam tirar proveito daquela morte. Negará, porventura, duque, que a morte daquela senhora muito o surpreendeu?

A única resposta do duque foi um movimento de sobrancelhas, que lhe deu aos olhos encovados uma expressão ainda mais sombria.

- E a desgraça de el-rei Carlos IX, de que Vossa Alteza também se esqueceu? - disse o duque de Guisa e contudo parece-me que também merece especial menção. A este não lhe sobreveio o desastre nem pelos olhos, nem pelos ouvidos, nem pelo ombro, nem pelo nariz: foi pela boca.

- Que diz? - exclamou Francisco.

E Henrique III ouviu ressoar sobre o sobrado o passo que deu o irmão recuando espavorido.

- Sim, meu Senhor, pela boca - repetiu de Guisa -; são muito perigosos os livros que tratam de montaria e que têm as folhas pegadas umas às outras de tal modo, que para os folhear é preciso humedecer o dedo na boca a cada instante; as folhas dos livros velhos corrompem a saliva, e o homem que tem a saliva corrompida não vive muito tempo, ainda mesmo que seja rei.

- Duque, duque! - repetiu por duas vezes o príncipe. - Parece que faz gosto em estar a inventar crimes!.

- Crimes? - repetiu de Guisa. - Quem lhe fala em crimes? Meu Senhor, estou enumerando várias desgraças que têm sucedido, e mais nada; desgraças unicamente, percebeu?. Nem pretendo dar a entender que os desastres a que aludi deixem de ser obra do destino, Não Lhe parece que foi também um acaso bem desastrado o que aconteceu a el- rei Carlos IX andando à caça?

- Toma sentido - disse Chicot - tu, que és caçador, Henrique, hás-de dar valor à história; ouve, ouve, deve ser coisa curiosa.

- Bem sei o que é - disse Henrique.

- Sabes? Mas não sei eu; porque ainda não tinha sido apresentado na corte quando o facto se deu; deixa-me ouvir, pois, meu filho.

- Sabe, meu Senhor, qual é a caçada a que me refiro? - prosseguiu o príncipe lorenorefiro-me àquela caçada na qual Vossa Alteza, com a louvável tenção de matar o javali que voltara atrás a acometer seu irmão, disparou com tamanha precipitação, que em vez de ferir o animal a que apontou, feriu o outro a que não havia apontado. Aquele tiro de arcabuz, meu Senhor, bem mostrou a todos quanto convém estar sempre em guarda contra os acasos na corte. Porque toda a gente sabe quanto é destro em atirar, meu Senhor. Vossa Alteza nunca erra a sua pontaria, e estou persuadido que muito admirado havia de ficar de ter errado naquela ocasião, e muito mais ainda porque deu azo a espalharem as más-línguas que aquela queda de el-rei, que ficou entalado debaixo do cavalo, poderia ter sido a causa da sua morte, se el-rei de Navarra não tivesse morto com tanta felicidade o javali que escapou do tiro de Vossa Alteza.

- E então? - disse o duque de Anju procurando recobrar a serenidade de ânimo que a ironia do duque de Guisa acabava de abalar tão cruelmente. - Que empenho podia eu ter em que morresse el-rei meu irmão, se o sucessor de Carlos IX tinha de ser Henrique III?

- Eu me explico, meu Senhor; já então havia um trono vago, que era o da Polónia. Pela morte de el-rei Carlos IX ficava vago outro, que era o da França. Sei muito bem que seu irmão mais velho teria escolhido incontestavelmente o trono da França. Mas ainda assim, à falta de coisa melhor, o trono da Polónia não era para desprezar; e muita gente há que, segundo me consta, tem cobiçado o pobre tronozito de el-rei de Navarra. E demais, sempre subia assim mais um degrau, sendo por consequência em proveito seu os desastres. El-rei Henrique III voltou de Varsóvia em dez dias; por que razão não teria Vossa Alteza feito, em caso de desastre, já se sabe, o mesmo que fez el- rei Henrique III?

Henrique III olhou para Chicot, que também o encarou com uma expressão de dó e afecto, inteiramente despida da malícia e do sarcasmo que geralmente se notava no olhar do bobo.

- Qual é a conclusão que tira de tudo isto, meu primo? - perguntou então o duque de Anju procurando pôr termo à conferência, na qual o duque de Guisa acabava de patentear dum modo claro e positivo o seu descontentamento.

- A minha conclusão, meu Senhor, é que todo o rei tem o seu desastre, conforme há pouco dissemos. Ora o senhor é o desastre inevitável de el-rei Henrique III, especialmente se for nomeado chefe da Liga, visto que ser chefe da Liga é quase o mesmo que ser rei do rei; e além de tudo isso, com essa sua nomeação para chefe da Liga, fica suprimido o desastre do próximo reinado de Vossa Alteza, isto é, o Bearnês.

- Próximo reinado!. ouves? - exclamou Henrique III.

- Boa dúvida, ouço, sim - replicou Chicot.

- De forma que. - disse o duque de Guisa.

- De forma que - repetiu o duque de Anju - devo aceitar, não é esse o seu parecer?

- Pois não - disse o príncipe loreno -, suplico-lhe que aceite, meu Senhor.

- E o senhor, esta noite?

- Oh, fique descansado; os meus agentes estão em campo desde pela manhã, e Paris esta noite há-de oferecer um espectáculo bastante curioso.

- Que tencionarão fazer esta noite em Paris? - perguntou Henrique.

- Como, pois não adivinhas?.

- Não.

- Oh, sempre és muito pateta, meu filho!. Esta noite assina-se a Liga, publicamente, já se entende; porque há muito tempo que a assinam e tornam a assinar às escondidas; somente se esperava pelo teu consentimento; deste-lo esta manhã, e já esta noite passam a assinar; com o demónio, bem vês, Henrique, que os teus desastres, porque olha que são dois que tens. os teus desastres não esperdiçam o tempo.

- Muito bem - disse o duque de Anju -; até à noite, duque.

- Pois sim, até à noite - disse Henrique.

- Como? - replicou Chicot. - Queres aventurar-te a percorrer as ruas da tua capital esta noite, Henrique?

- Decerto.

- Fazes mal, Henrique.

- Porquê?

- Cuidado com os desastres!

- Hei-de ir acompanhado, deixa estar; e demais, vem comigo.

- Estás brincando! Pensas que sou algum huguenote, meu filho? Pois enganas-te. Eu sou bom católico, e quero assinar a Liga, não só uma vez, mas dez, e cem, se for possível.

As vozes do duque de Anju e do duque de Guisa já se não ouviam.

- Ainda uma palavra - disse o rei detendo Chicot, que se dispunha a retirar-se -; que pensas tu de tudo isto?

- Penso que cada um dos reis teus predecessores ignorava o desastre de que Lhe havia de resultar a morte: Henrique II não tinha antevisto o caso do olho; nem Francisco II o do ouvido; nem António de Borbom o do ombro; nem Joana d'Albret o do nariz; nem Carlos IX, finalmente, o da boca. Levas pois grande vantagem a eles todos, Henrique, porque conheces muito bem teu irmão, não é assim, Real Senhor?

- É, sim - respondeu Henrique e por Deus, não tardará muito tempo que vejam se o conheço.

 

           A NOITE DA LIGA

Paris, como hoje o vemos, apenas apresenta em suas festas um ruído maior ou menor, uma multidão mais ou menos considerável; porém é sempre o mesmo ruído e sempre a mesma multidão; Paris de outrora tinha mais variedade.

Era uma linda perspectiva a que ofereciam, pelo meio das ruas estreitas, guarnecidas de casas com varandas salientes e telhados pontiagudos, e todas diferentes entre si, as miríades de indivíduos dirigindo-se todos para o mesmo ponto, e entretendo-se pelo caminho em olhar uns para os outros, para se admirarem, ou apuparem mutuamente por causa da singularidade deste ou daquele.

É porque, antigamente, os trajes, as armas, a linguagem, os gestos, a voz, o modo de andar, tudo diversificava, e todas essas mil diversidades juntas num só ponto formavam um todo curiosíssimo.

Era, pois, este o aspecto de Paris, às oito horas da noite, no dia em que o Sr. de Guisa, depois da sua visita ao rei e da conversação com o duque de Anju, se lembrou de fazer assinar a Liga pelos burgueses da capital do reino.

Grande número de burgueses, trajando os seus fatos mais ricos como para uma função, ou cobertos das suas melhores armaduras como para uma revista ou combate, dirigia-se para as igrejas; o semblante de todos aqueles homens, movidos por igual sentimento e caminhando ao mesmo fim, era alegre e ameaçador ao mesmo tempo, especialmente quando passavam pela frente de algum corpo de guarda de suíços ou de cavalaria ligeira.

Aquela aparência aterradora, e mais que tudo os gritos, as apupadas e as bravatas que a acompanhavam, teriam incutido algum receio ao Sr. de Morvilliers, se este magistrado não conhecesse tão bem os bons dos Parisienses, gente escarniçadora e desinquieta, mas que nunca é a primeira em agredir, contanto que não sejam impelidos por algum amigo pérfido ou provocados por algum inimigo imprudente.

O que mais ainda aumentava o ruído que fazia toda aquela multidão e dava grande realce ao golpe de vista que apresentava, era que muitas mulheres, não tendo querido ficar em casa num dia tão solene, tinham acompanhado os maridos por força ou por vontade; algumas ainda tinham feito mais, tinham saído acompanhadas duma enfiada de filhos, e era divertido ver os fedelhos agarrados aos mosquetes monstruosos, às espadas gigantescas ou às terriveis alabardas dos pais. Sempre, em todos os tempos, em todas as épocas, em todos os séculos, o gaiato de Paris gostou de arrastar uma arma qualquer enquanto não a pode usar, ou de a admirar nas mãos dos mais quando ainda a não pode arrastar.

De espaço a espaço algum grupo, mais animado do que os outros, punha patentes à luz do dia as ferrugentas durindanas; era sobretudo quando passavam pela Frente de alguma casa que cheirava a huguenote que tinha lugar tão hostil demonstração.

Os rapazes então gritavam quanto podiam: Viva S. Bartolomeu!. meu. meu!. enquanto que os pais gritavam: Ao fogo os hereges! Ao fogo! Ao fogo! "

Estas vozearias atraíam logo às janelas o rosto desmaiado de alguma criada ou de algum padre vestido de preto, e davam lugar em seguida a sentirem-se correr os ferrolhos da porta da rua.

Então o burguês, sentindo-se feliz e orgulhoso como o coelho da Fábula, por ter metido medo a alguém mais pusilânime do que ele, prosseguia na sua carreira triunFante, e levava a outra parte a sua bulhenta e inofensiva ameaça.

Era na Rua da Árvore Seca especialmente que o ajuntamento era maior. A circulação da rua tinha sido literalmente interceptada, e a multidão apressada e tumultuosa dirigia-se para uma lanterna grande suspensa por baixo de um letreiro, que muitos dos nossos leitores hão-de reconhecer, quando Lhes dissermos que o letreiro de que se trata representava um frango ao natural sobre campo azul, com a legenda: A ESTRELA BRILHANTE.

À porta deste estabelecimento, um homem notável pelo seu barrete de algodão, de forma quadrada segundo a moda do tempo, e que encobria uma cabeça perfeitamente calva, perorava e argumentava.

Esta personagem brandia com uma das mãos uma espada desembainhada, e com a outra apontava para um registo que tinha quase todas as folhas já cheias de assinaturas, bradando ao mesmo tempo:

- Venham, venham, honrados católicos! Entrem na hospedaria da Estrela Brilhante onde encontram bom vinho e cara alegre; entrem, meus Senhores, que a ocasião é favorável; esta noite hão-de ser apartados os bons dos maus; amanhã pela manhã há-de estar o trigo limpo do joio; venham, meus senhores! Os que sabem escrever, entrem e escrevam; os que não sabem escrever, entrem também, e confiem os seus nomes e apelidos, ou a mim, mestre La Hurière, ou ao meu ajudante, mestre Croquentin.

Efectivamente, Croquentin, galucho da província do Périgord, vestido de branco como Eliacim, e com o corpo cingido por uma corda, na qual uma faca e um tinteiro ocupavam o espaço compreendido entre a última e a penúltima costela, Croquentin, dizíamos, ia escrevendo já de antemão os nomes dos seus vizinhos, e na cabeça do rol, o nome do seu respeitável patrão, La Hurière.

- Meus Senhores, é pela missa! - berrava o estalajadeiro da Estrela Brilhante. - Meus Senhores, é pela Santa Religião! Viva a Santa Religião! Viva a missa!

E parava, sufocado pela comoção e pelo cansaço, porque aquele entusiasmo durava desde as quatro horas da tarde.

O resultado era que muitos indivíduos, animados de igual zelo, assinavam os seus nomes no registo de mestre La Hurière, se sabiam escrever, ou davam os nomes a Croquentin se não sabiam.

O caso era tanto mais lisonjeiro para La Hurière, por isso que a vizinhança da Igreja de S. Germano L'Auxerrois fazia-Lhe uma concorrência terrível; mas felizmente o número dos Fiéis era grande naquela época, e os dois estabelecimentos, em vez de se prejudicarem um ao outro, eram pelo contrário auxiliares recíprocos; todos aqueles que não tinham conseguido entrar na igreja para irem assentar os nomes ao altar-mor, onde estavam os livros, procuravam chegar aos estrados em que estavam colocadas as duas secretárias de La Hurière, e os que não tinham podido assinar nas secretárias de La Hurière iam para S. Germano L'Auxerrois, na esperança de lá serem mais bem sucedidos.

O dono da Estrela Brilhante logo que viu o seu registo cheio, bem como o de Croquentin, mandou pedir imediatamente outros dois, para que não houvesse interrupção alguma nas assinaturas, e tanto o estalajadeiro como o seu ajudante, exultando com aquele primeiro resultado, que devia dar a mestre La Hurière, no espírito do Sr. de Guisa, a posição elevada a que ele aspirava havia tanto tempo, renovaram os seus convites com maior furor.

Enquanto os signatários dos novos registos entregavam-se aos impulsos dum zelo que ia em contínuo aumento, e refluíam, como já dissemos, duma rua e mesmo dum bairro para o outro, apareceu de repente, no meio da multidão, um homem de elevada estatura, o qual, abrindo caminho a poder de muito soco e pontapé, chegou ao pé do registo do Sr. Croquentin.

Chegado ali, recebeu a pena da mão dum honrado burguês que acabava de escrever o seu nome enfeitado com uma seta tremida, assinou-se em letras de meia polegada sobre uma lauda ainda branca, que logo ficou preta de alto a baixo, e, delineando uma seta heróica ornada de salpicos e intricada como o labirinto de Dédalo, passou a pena a um cidadão que estava atrás dele à espera de vez.

- Chicot - leu o futuro signatário -, safa! Que linda letra tem este senhor! Era com efeito Chicot, o qual, não tendo querido, como já vimos, acompanhar Henrique, andava assinando a Liga por sua própria conta e risco. Chicot, depois de ter firmado o seu nome no registo do Sr. Croquentin, dirigiu-se ao de mestre La Hurière.

Este tinha reparado na vistosa assinatura do gascão, e invejara tão esplêndida firma para o seu livro.

Chicot foi pois recebido por ele, não diremos com os braços abertos mas com o registo aberto, e, tomando a pena da mão dum mercador de lãs da Rua de Béthisy; escreveu segunda vez o nome com uma seta cem vezes mais enfeitada do que a primeira; e logo que acabou de assinar, perguntou a La Hurière se acaso não tinha um terceiro registo.

La Hurière não era para graças, e fora da estalagem tinha muito mau modo. Olhou de revés para Chicot, que o encarou com ar de escárnio.

La Hurière murmurou o nome de herege, e Chicot resmungou o de taberneiro. La Hurière largou o registo para levar a mão à espada, e Chicot abandonou a pena para poder também desembainhar a sua; finalmente, a cena, segundo todas as probabilidades, ia terminar com algumas estocadas, em cujo jogo o dono da Estrela Brilhante teria de Ficar por certo de mau partido, quando Chicot sentiu que lhe tocavam no ombro, e voltou o rosto. O indivíduo que lhe havia tocado era o rei disfarçado em trajes de simples burguês, e acompanhado de Quélus e Maugiron, vestidos como ele, e trazendo cada um, além da espada, um arcabuz ao ombro.

- Então, então! - disse o rei. - Que é isto?. os bons católicos às brigas uns com os outros? Valha-nos Deus! que péssimo exemplo estão dando!

- Cavalheiro - disse Chicot fingindo não conhecer Henrique -, não me deite as culpas a mim; é este maroto que está aqui a berrar para que a gente que passa lhe assine o nome no registo, e depois de apanhar as assinaturas agradece com uma descompostura.

Neste momento a atenção de La Hurière foi distraída pela chegada de mais curiosos, e um empurrão separou do estabelecimento do fanático estalajadeiro Chicot, o rei e os seus dois favoritos, Ficando todos quatro sobranceiros à reunião em consequência de terem trepado para o degrau duma porta.

- Que entusiasmo - disse Henrique de Valois -, e que disposições tão favoráveis para a Santa Religião que há hoje nas ruas da minha boa capital!

- Sim, meu Senhor, mas bem pouco favoráveis para os hereges, e Vossa Majestade bem sabe que o consideram como tal. Olhe para a esquerda. mais, mais ainda; ali; então? O que está vendo?

- Ah, ah! O imenso carão do Sr. de Maiena e o focinho agudo do cardeal.

- Cale-se, meu Senhor; o jogo por ora é seguro, porque nós sabemos onde estão os nossos inimigos, e eles não sabem onde nós estamos.

- Pensas que devo recear alguma coisa?

- Eu sei lá!. num apertão como este, ninguém sabe o que poderá suceder. Encontra-se um homem que traz uma navalha aberta na algibeira, a navalha entra sem querer na barriga do que se aproximou dele; o sujeito solta uma praga e dá a alma ao Criador. Vamo-nos daqui, meu Senhor.

- Já me conheceram?

- Penso que não, mas não tardará que o conheçam, se nos demorarmos aqui mais tempo.

- Viva a missa! Viva a missa! - bradou uma onda de povo que vinha da Praça do Mercado, e entrava, como a maré na enchente, pela Rua da Árvore Seca.

- Viva o Sr. de Guisa! Viva o cardeal! Viva o Sr. de Maiena! - respondeu a multidão estacionada à porta de La Hurière, a qual acabava de conhecer os dois príncipes lorenos.

- Oh, oh! Que gritos são aqueles? - disse Henrique III carregando as sobrancelhas.

- São gritos que mostram que cada qual se deve conservar no lugar que Lhe compete: o Sr. de Guisa nas ruas, e Vossa Majestade no Louvre. Vá para o Louvre, meu Senhor, vá para o Louvre.

- E tu não vens connosco?

- Eu? Não, não vou por enquanto! Tu não precisas de mim, meu filho, tens os teus guardas. Anda, Quélus, anda, Maugiron! Eu por mim quero ver a função até ao fim. Acho-a, além de curiosa, muito divertida.

- Para onde vais então?

- Vou escrever o meu nome nos outros registos. Quero que haja amanhã mil autógrafos meus pelas ruas de Paris. - E estamos chegados ao cais; boa noite, meu Filho; volta para a direita, que eu volto para a esquerda; cada um de nós para o seu destino; desejo ir a Saint-Merry ouvir um pregador famoso.

- Oh, mas que novo alarido é aquele? - disse o rei subitamente. - E por que motivo correrão assim todos para a banda da Ponte Nova?

Chicot pôs-se nos bicos dos pés, mas não viu nada, a não ser um grupo de povo, aos gritos, aos berros, aos empurrões, parecendo trazer um objecto qualquer em triunfo.

De repente abriram-se as ondas dos populares no sítio onde o cais, alargando-se na frente da Rua das Lavadeiras, deu lugar a espalhar-se a multidão para a direita e para a esquerda, e um homem, que parecia ser a principal personagem de cena tão burlesca, foi impelido por aquelas vagas humanas até aos pés do rei.

O homem em questão era um frade montado num burro; o frade Falava e gesticulava. O burro zurrava.

- Cos demónios! - disse Chicot logo que avistou o homem e o animal que acabava de entrar em cena. - Ainda há pouco te falei num pregador famoso que eu ia ouvir a Saint-Merry; já não é preciso ir tão longe, ouves este.

- Um pregador de burro? - disse Quélus.

- E porque não, meu filho?

- Parece-se com Sileno - disse Maugiron.

- Qual dos dois é o pregador? - disse Henrique. - Falam ambos ao mesmo tempo.

- O que está por baixo é o mais eloquente dos dois - respondeu Chicot -, mas o que está por cima é quem fala melhor francês; ouve, Henrique, ouve.

- Silêncio! - gritaram todos à uma. - Silêncio!.

- Silêncio! - bradou Chicot com uma voz que se ouviu acima de todas.

Calaram-se todos. Formaram um círculo à roda do frade e do burro. O frade deu princípio ao exórdio.

- Meus irmãos - disse ele -, Paris é o orgulho do reino de França, e os Parisienses são gente muito espirituosa, nisso concordam todas as cantigas.

O burro, porém, fez um acompanhamento a estas palavras em tão altas vozes e com tanta perseverança, que cortou a palavra ao dono.

O povo desatou a rir.

- Cala-te, Panurgo, cala-te já - gritou o frade -; quando chegar a tua vez, então falarás. Mas deixa-me falar primeiro.

O burro calou-se.

- Meus irmãos - prosseguiu o pregador -, este mundo é um vale de lágrimas onde o homem, a maior parte do tempo, se vê obrigado a matar a sede com o próprio pranto.

- O homem está a cair de bêbado! - disse o rei.

- Está mesmo! - replicou Chicot.

- Eu, que estou aqui falando - continuou o monge - tal qual me vêem, voltei agora mesmo do desterro como os Hebreus, e há oito dias que estamos reduzidos a viver de esmolas e privações, Panurgo e eu.

- Quem é Panurgo? - perguntou o rei.

- É provavelmente o superior do convento - disse Chicot. - Mas deixa-me ouvir, estou com dó do pobre homem.

- E a quem devo eu a minha desgraça, meus amigos? A Herodes. Sabem muito bem quem é o Herodes a que me refiro.

- E tu também, meu filho - disse Chicot -, já te expliquei o anagrama.

- Brejeiro!

- Com quem falas tu? Comigo, com o frade ou com o burro?

- Com todos três.

- Meus irmãos - prosseguiu o frade -, aqui está o meu burro, por quem sinto a mais terna amizade; interroguem-no, e ele lhes dirá que viemos de Villeneuve-le-Roi aqui em três dias, para assistirmos à grande solenidade desta noite. E como viemos nós? Com a bolsa chata e as goelas secas. Porém, nem eu nem Panurgo, recuámos diante de sacrifício algum.

- Mas a quem demónio chama ele Panurgo? - perguntou Henrique, a quem dava que cismar aquele nome tão exótico.

- Viemos, pois - continuou o frade -, e chegámos para ver o que se passava; contudo vemos, mas não entendemos. Que há, pois, meus irmãos? É hoje que obrigam o Herodes a abdicar? É hoje que metem Frei Henrique num convento?

- Oh, oh! - disse Quélus. - Estou com minhas tentações de brocar aquele enorme tonel; que te parece, Maugiron?

- Deixa-te disso! - replicou Chicot. - Enfadas-te com tão pouca coisa, Quélus? Porventura não anda el-rei todos os dias metido pelos conventos? Olha, meu Henrique, se se limitarem a mandar-te para uma clausura, não poderás escandalizar-te por certo; não é assim, Panurgo?

O burro, assim interpelado pelo nome, arrebitou as orelhas, e começou a zurrar duma maneira despropositada.

- Oh! Panurgo; oh! - disse o frade - sempre és muito malcriado! Senhores - prosseguiu ele dirigindo-se aos circunstantes -, saí de Paris com dois companheiros de jornada: Panurgo, que é o meu burro, e o Sr. Chicot, que é bobo de Sua Majestade. Algum dos senhores saberá dizer-me o que é feito do meu amigo Chicot?

Chicot fez uma careta.

- Ah - disse o rei -, ele é teu amigo?

Quélus e Maugiron deram uma gargalhada.

- É lindo o tal teu amigo - prosseguiu o rei -, e parece-me um homem muito respeitável; como se chama ele?

- É Gorenflot, Henrique; aquele honrado Gorenflot de quem o Sr. de Morvilliers já te falou; lembras-te?

- O incendiário de Santa Genoveva?

- Ele mesmo.

- Se assim é, vou mandá-lo enforcar.

- É impossível!

- Porquê?

- Porque não tem pescoço.

- Meus irmãos - continuou Gorenflot -, meus irmãos: vêem em mim um verdadeiro mártir. Meus irmãos, a causa que neste momento defendem é a minha, ou, para melhor dizer, é a de todos os bons católicos. Não sabem o que vai pelas províncias, e o que estão tramando os huguenotes. Vimo- nos obrigados a matar um em Lião, que andava pregando a revolta. Enquanto houver uma única ninhada deles em toda a França, não há-de a gente de bem ter um instante de sossego. Exterminemos pois os huguenotes. Às armas, meus irmãos, às armas!

Umas poucas de vozes repetiram:

- As armas!

- Por Deus! - exclamou o rei - vê se me mandas calar esse beberrão, quando não, vai arranjar-nos um segundo S. Bartolomeu.

- Espera - disse Chicot.

E tirando uma sarabatana das mãos de Quélus, foi por detrás do frade e desandou-Lhe com toda a força uma pancada com o instrumento oco e sonoro sobre a omoplata.

- Ai, que me matam! - gritou o frade.

- Ora esta! Pois eras tu? - disse Chicot metendo a cabeça por baixo do braço do frade.

- Como tens passado, meu masmarro?

- Acuda-me! Sr. Chicot, acuda-me! - gritou Gorenflot. - Os inimigos da fé querem assassinar-me, mas não hei-de morrer sem que se ouçam os meus brados; ao fogo com os huguenotes! À fogueira com o Bearnês!

- Cala-te já, animal!

- Leve o diabo todos os gascões! - prosseguiu o frade furioso. Naquele mesmo instante uma segunda pancada, não de sarabatana, mas de pau, caiu sobre o outro ombro de Gorenflot, que soltou então deveras um grande grito de dor.

Chicot procurou admirado em redor de si; mas apenas viu o pau.

A pancada tinha sido dada por um homem que acabava de se confundir com a multidão, depois de ter obsequiado Frei Gorenflot com aquela correcção volante.

- Oh, oh! - disse Chicot. - Quem diabo se encarregou de nos vingar tão bem? Será algum patrício? É preciso que me certifique se é.

E deitou a correr atrás do homem do pau, o qual se ia esgueirando pelo cais fora, acompanhado de outro indivíduo.

 

         A RUA DA FERRARIA

O nosso gascão tinha boas pernas, e ter-lhe- iam servido perfeitamente para alcançar o homem que acabava de espancar Frei Gorenflot de tal modo que este havia soltado um grito de dor, se uma certa singularidade que se notava no porte daquele homem, e especialmente no do seu companheiro, não lhe houvesse dado a entender que seria perigoso provocar tão precipitadamente um reconhecimento que ele parecia querer evitar a todo o transe.

E, com efeito, os dois fugitivos, caminhando com rapidez, procuravam visivelmente con fundir-se com a multidão, voltando-se unicamente às esquinas das ruas para verificarem se alguém os seguia ou não.

Chicot, cuja imaginação era bastante fértil, como já temos tido ocasião de ver, lembrou-se que o meio de não desconfiarem que ele os ia seguindo, era passar para diante. Caminhavam os dois na direcção da Rua de Santo Honorato pelas Ruas da Moeda e de Tirechape; ao virar desta última, Chicot passou para diante deles, e, correndo sempre, foi emboscar-se no fim da Rua Bourdonnais.

Os dois homens, sem pronunciarem palavra, iam subindo a Rua de Santo Honorato, encostados às casas do lado do terreiro do trigo, e, com os chapéus carregados para os olhos e os capotes de tal maneira puxados até às caras, que era inteiramente impossível distinguir-Lhes as feições, os dois homens, dizíamos, dirigiram-se com passo acelerado, e que tinha algum tanto de marcial, para a Rua da Ferraria. Chicot continuou a andar adiante deles.

À esquina da Rua da Ferraria, os dois homens tornaram a parar para olharem uma última vez para trás, a Fim de se certificarem novamente de que ninguém os seguia.

Durante este tempo, Chicot tinha continuado a ganhar terreno, e achava-se a meio da rua, sem que os dois indivíduos que ele tinha interesse em saber quem eram, suspeitassem que estavam sendo espionados.

Naquela altura, e em frente duma casa velha e arruinada, estava parada uma carruagem puxada por dois alentados cavalos.

Chicot deitou os olhos para o trem, e viu que o cocheiro tinha adormecido sobre a almo fada, enquanto que uma mulher, que parecia assustada, espreitava pelas cortinas; ocorreu-Lhe logo que a carruagem estava provavelmente à espera dos dois homens; deu uma volta por detrás dela, e, protegido pela sombra que o carro projectava combinada com a da casa, escondeu-se por baixo dum grande banco de pedra, que servia duas vezes por semana para a exposição da hortaliça que naquela época se vendia no mercado da Rua da Ferraria.

Ainda bem ele não se tinha escondido, viu aparecer os dois homens ao pé dos cavalos, onde novamente pararam com alguma inquietação; um deles foi acordar o cocheiro; mas vendo-o muito ferrado no sono, deixou escapar um cap dé diou com o mais puro acento gascão, enquanto o outro, que não tinha tanta paciência, Lhe tocou nas costas com a ponta do punhal.

Oh, oh! disse Chicot, vejo que não me enganei, eram patrícios; já não me admiro que desancassem tão bem Gorenflot por estar falando mal dos gascões. "

A senhora, tendo conhecido que os dois homens eram os que ela esperava, debruçou-se rapidamente para fora da portinhola da pesada carruagem; Chicot pôde então vê-la mais dis tintamente; teria vinte a vinte e três anos; era muito formosa e bastante pálida, e se fosse dia claro, teria sido fácil conhecer pelo pisado dos olhos e pela atitude lânguida de todo o corpo, que estava acometida duma doença, da qual os seus frequentes desmaios e a rotundidade da cintura em breve teriam divulgado o segredo.

Porém Chicot só notou três coisas; e foram: ser ela jovem, pálida, e loura. Os dois homens chegaram-se à carruagem, e ficaram colocados entre ela e o banco debaixo do qual Chicot estava agachado.

O mais alto dos dois pegou com ambas as mãos na mão delicada e branquíssima que a dama Lhe estendia pelo postigo, e pondo o pé no estribo, ao mesmo tempo que descansava os dois braços sobre a borda da portinhola:

- Então, minha queridinha - perguntou ele à dama -, meu coraçãozinho, meu amor, como vai isso?

A dama respondeu abanando a cabeça com um triste sorriso, e mostrando-Lhe um frasco de cheiro.

- Ainda continuam os desmaios! Quanto me desesperaria de a ver assim doente, meu querido amor, se não fora eu a causa do seu para mim tão doce incómodo!

- E também para que diabo trouxe esta senhora a Paris? - disse o outro homem com bastante desabrimento; - realmente, parece uma praga, trazer sempre uma saia cosida ao gibão!.

- Meu querido Agripa - disse o que tinha falado primeiro, e que parecia ser marido ou amante da dama -, se tu soubesses quanto custa separar-se a gente da pessoa que ama!.

E trocou com a senhora um olhar repleto de amorosa languidez.

- Por minha alma, que me faz danar quando o ouço falar assim - replicou o rabugento companheiro -; veio porventura a Paris para andar namorando, feito baboso?. Parece-me que o Béarn tem espaço suficiente para os seus passeios sentimentais, e que não era necessário vir galantear para esta Babilónia, onde escapou por mais de vinte vezes de ser desancado esta noite. Regresse para a sua terra, se quer andar dizendo finezas às portinholas das liteiras; mas enquanto aqui estiver, por Deus, não trate de outras intrigas, que não sejam intrigas políticas, meu amo.

Chicot, quando ouviu esta palavra amo teve grandes desejos de levantar a cabeça; mas não podia arriscar-se a fazer semelhante movimento sem ser visto.

- Deixe-o falar, minha queridinha, e não faça caso do que ele diz. Parece-me que se Lhe proibissem de ralhar era capaz de adoecer e ter também como a senhora náuseas e desmaios.

- Mas pelo menos - exclamou o resmungador - suba para a carruagem, se quer dizer ternuras à senhora, e não se exporá tanto a ser conhecido como conservando-se assim na rua.

- Tens razão, Agripa - disse o apaixonado gascão. - E como vê, minha queridinha, ele não é tão mau conselheiro como parece. Ora vamos lá, meu amor, dê-me lugar, se acaso me concede licença para me sentar ao seu lado já que não posso conservar-me aos seus pés.

- Não somente concedo a licença, Real Senhor - respondeu a jovem dama -, mas até desejo imenso vê-lo sentado ao meu lado.

Real Senhor. murmurou Chicot que cedendo a um movimento irreflectido quis levantar a cabeça e deu uma forte pancada no banco de pedra, Real Senhor!. que está ela dizendo?

Mas, durante este tempo, o amante favorecido tratava de aproveitar a licença que havia obtido, e as correias da carruagem rangeram com o aumento do peso.

E logo o som dum beijo muito terno e prolongado sucedeu ao ranger.

- Por Deus! - exclamou o companheiro que tinha ficado fora da liteira. - O homem sempre é um animal muito estúpido!.

Quero que me enforquem se percebo o que isto é - murmurou Chicot; mas esperemos: quem porFia mata caça.

- Oh, quanto sou feliz! - prosseguiu o indivíduo a quem a senhora chamava Real Senhor, sem fazer o menor caso das impaciências do amigo, às quais parecia estar muito acostumado; - hoje é para mim um dia feliz, os bons Parisienses, que me odeiam de todo o coração, e que seriam capazes de me matar desapiedadamente se soubessem onde me poderiam achar, estão trabalhando com todo o afinco para me aplanarem o caminho do trono; e tenho nos braços a mulher que adoro! Onde estamos nós, d'Aubigné? Quero, quando for rei, mandar levantar, neste mesmo lugar, uma estátua ao génio do Bearnês.

Do Bearn...

Chicot deteve-se; acabava de fazer um segundo galo junto ao primeiro.

- Estamos na Rua da Ferraria, Real Senhor, e os ares por aqui não estão bons – disse d'Aubigné, o qual, sempre de mau humor, se voltava contra as coisas quando estava cansado de se voltar contra os homens.

- Parece-me neste momento - prosseguiu Henrique (porque os leitores já decerto reconheceram o rei de Navarra) - estar vendo claramente toda a minha existência; que sou rei que estou sobre o trono, forte e poderoso, mas talvez menos amado do que estou sendo neste instante, e que os meus olhos me descortinam o futuro até à hora da morte. Oh, minha queridinha, repita-me que me consagra todo o seu amor, porque, ao ouvír a sua voz, o meu coração se enternece.

E o Bearnês, entregue a um sentimento de melancolia que por vezes se apoderava dele deixou cair a cabeça sobre o ombro da amante dando ao mesmo tempo um profundo suspiro.

- Oh, meu Deus! - disse a dama muito assustada. - Deu-lhe algum desmaio, Senhor?

- Bom, era o que faltava... - disse d'Aubigué; - bonito soldado, bonito general, bonito rei, que assim desmaia.

- Não, minha queridinha, tranquilize-se -, disse Henrique -, ao seu lado só desmaiaria de prazer.

- Na verdade, Senhor - disse d'Aubigné -, não sei como não vive em melhor harmonia com a Senhora Rainha Margarida, sendo ambos tão ternos e dados ao sentimentalismo.

- Ah, d'Aubigné, por favor! Não me fales na minha mulher. Bem sabes já o ditado; se ela agora nos aparecesse?...

- Apesar de ter ficado em Navarra, não é assim? - disse d'Aubigné.

- E eu, não estou também em Navarra? Ou, pelo menos, não imaginam todos que lá estou? Olha, Agripa, as tuas palavras causaram-me um calafrio; sobe para a carruagem e vamo-nos embora.

- Não vou - respondeu d'Aubigné -; mande andar, que eu irei seguindo a pé; com a minha presença incomodaria a ambos; e, o que ainda é pior, a vossa companhia incomodar-me-ia a mim.

- Fecha pois a portinhola, urso do Béarn, e faz o que quiseres - disse Henrique.

E dirigindo-se ao cocheiro:

- Lavarenne - disse ele -, vamos para onde sabes.

A carruagem afastou-se vagarosamente, seguida por d'Aubigné, o qual, apesar de ter ralhado com o rei, tinha querido velar pela sua segurança.

Aquela partida livrou Chicot dum susto terrível, porque, depois duma tal conversação com Henrique, d'Aubigné não era homem que deixasse viver o imprudente que a tivesse ouvido.

Deliberemos, disse Chicot saindo de gatinhas debaixo do banco; será conveniente ir contar ao Valois o que acaba de se passar? E Chicot, dizendo isto, endireitou-se para restituir a elasticidade às adormecidas pernas. E para que serve ir-lho contar? prosseguiu o gascão falando consigo, são dois homens que se escondem, e uma mulher grávida. Será na verdade uma cobardia. Não, não Lhe direi coisa alguma; e demais, não basta, porventura, que o saiba eu, visto que, afinal de contas, sou eu que governo?

E Chicot deu um salto de alegria.

- Como é bonito ver dois namorados! - continuou Chicot; - porém d'Aubigné tem razão; tanto amor junto não convém a um rei inpartibus, como Henrique de Navarra. Há um ano voltava ele a Paris por causa da Sr. a de Sauve. Hoje vem acompanhado daquela encantadora criaturinha que tem desmaios. Quem demónio será ela? É a Fosseuse, provavelmente. E agora que me ocorre uma ideia: se Henrique de Navarra se lembrou seriamente de aspirar ao trono de França, é muito provável que o pobre rapaz procure dar cabo de qualquer modo dos seus três inimigos, o Acutilado, o cardeal, e o meu querido duque de Maiena. Quanto mais não fosse, bastava-me isso para ser amigo do Bearnês; e estou certo que mais dia menos dia prega ele alguma peça àquele horrível carniceiro loreno. Decididamente, não digo palavra do que vi e ouvi.

Naquele momento passava um grupo de sócios da Liga, embriagados, a gritar: Viva a missa! morra o Bearnês! Ao fogo os huguenotes! À fogueira os hereges!

A liteira, entretanto, ia virando a esquina do muro do Cemitério dos Santos Inocentes, e sumia-se pela Rua de S. Dinis.

Vamos lá, disse Chicot, recapitulemos: já vi o cardeal de Guisa, o duque de Maiena, o rei Henrique de Valois, e o rei Henrique de Navarra; falta-me um único príncipe para a minha colecção: é o duque de Anju; procuremo-lo, pois, até dar com ele. Ora, onde estará o meu Francisco III? Com a breca! Estou ansioso por ver tão respeitável monarca.

E Chicot pôs-se a caminhar para a Igreja de S. Germano L'Auxerrois.

Não era Chicot o único que procurava o duque de Anju e que se admirava da sua ausência; os Guisas também andavam em busca dele por toda a parte, mas sem obterem melhor resultado do que Chicot. O Sr. de Anju não era homem que se arriscasse imprudentemente, e mais tarde veremos quais eram os motivos da cautela que ainda o conservava longe dos seus amigos.

Houve, contudo, um instante em que Chicot se persuadiu havê-lo descoberto, na Rua de Béthisy: tinha-se formado um ajuntamento numeroso à porta dum armazém de vinhos, e no centro do ajuntamento avistou Chicot o Sr. de Monsoreau e o Acutilado.

Bom, disse ele, aqui estão as rémoras: o tubarão não pode estar longe! Mas enganava-se. O Sr. de Monsoreau e o Acutilado estavam à porta da taberna, que se achava recheada de bêbados, ocupados em vazar copo sobre copo a um orador de quem assim excitavam a titubeante eloquência.

O orador era Gorenflot, que estava a cair de bêbado. Gorenflot contava aos circunstantes a sua jornada a Lião, e o seu duelo numa estalagem com um temível fautor de Calvino.

O Sr. de Guisa prestava a maior atenção à narrativa, na qual julgava ver certas coincidências com o silêncio já tão prolongado de Nicolau David.

A Rua de Béthisy estáva repleta de gente; vários cavaleiros da Liga tinham ido prender os cavalos numa espécie de largo circular bastante usual nas ruas daquela época. Chicot parou na extremidade do grupo que vedava a entrada no largo, e aplicou o ouvido.

Gorenflot, gesticulando, vociferando, dando contínuas cambalhotas do seu púlpito vivo para o chão, e logo tornado a sentar sobre o Panurgo pelos espectadores. Gorenflot, dizemos, já não falava senão aos soluços, mas infelizmente ainda falava, e estava sendo vítima de insistência do duque de Guisa e da destreza do Sr. de Monsoreau, que dele sacavam algumas palavras lúcidas e fragmentos de confissões.

Uma tal investigação assustou ainda mais o gascão do que a presença do rei de Navarra em Paris.

Já antevia o momento em que Gorenflot ia proferir o nome dele, Chicot, e era quanto bastava para dar uma luz funesta a todo aquele mistério.

Chicot não perdeu tempo; cortou ou desatou as rédeas dos cavalos que estavam presos às argolas das portas e às grades das janelas do largo, e atirando a dois ou três deles umas poucas de verdascadas, soltou-os para o meio da multidão, a qual, espantada pelo galope e rinchos, abriu para os lados e dispersou em todas as direcções.

Gorenflot assustou-se por causa de Panurgo, os cavaleiros assustaram- se com receio de ficarem sem os cavalos e sem os alforges; muitos deles tiveram receio por si próprios; e o resultado foi debandar o ajuntamento.

O grito de fogo! ressoou ao mesmo tempo, repetido por uma dúzia de vozes. Chicot passou como uma seta pelo meio dos grupos, e chegando-se a Gorenflot com os olhos tão enfurecidos que a embriaguez logo Lhe começou a passar, agarrou na arreata de Panurgo, e, em vez de seguir a multidão, voltou-Lhe costas, de sorte que aqueles dois movimentos executados em sentido contrário, em breve deixaram um amplo espaço entre Gorenflot e o duque de Guisa; espaço que no mesmo instante se encheu com a chusma dos curiosos que acudiam a saber o que tinha sucedido, Chicot então foi levando o frade que ia a cambalear com o jumento, para o fundo dum beco que ficava junto à Igreja de S. Germano L'Auxerrois, e, encos tando-os à parede, Gorenflot e Panurgo, como faria um estatuário para embutir um baixo-relevo na cantaria:

- Ah, bêbado! - disse. - Ah, pagão! Ah, traidor! Ah, renegado! Sempre hás-de preferir um pichel de vinho ao teu amigo?

- Ah, Sr. Chicot! - balbuciou o frade.

- Pois eu dei-te de comer, infame! - prosseguiu Chicot. - Matei-te a sede, enchi-te as algibeiras e o estômago, e atraiçoas o teu senhor?

- Ah, Sr. Chicot! - disse o monge enternecido.

- Divulgas os meus segredos, miserável?

- Querido amigo!

- Cala-te! És um vil sicoanta, e mereces exemplar castigo!

O frade, refeito, vigoroso, enorme, forte como um touro mas completamente domado pelo arrependimento e ainda mais pelo vinho, oscilava, sem se defender, entre as mãos de Chicot, que então o sacudia como um balão cheio de ar.

Apenas Panurgo protestava contra a violência de que era vítima o seu amigo, com coices que não alcançavam pessoa alguma, e que Chicot lhe retribuía com pauladas.

- Castígue-me também a mim - murmurou o monge -, castigue o seu amigo, querido Sr. Chicot!

- Sim, sim, queres que te castigue? - disse Chicot - pois vais apanhar. E o pau do gascão passou num instante da anca do burro para os ombros largos e carnudos do monge.

- Oh, se eu estivesse em jejum!. - exclamou Gorenflot com um movimento de cólera.

- Batias-me em mim, não é assim, ingrato? Em mim. teu amigo!

- Meu amigo, Sr. Chicot? E espanca-me deste modo?.

- Quem muito ama, muito castiga.

- Tire-me pois a vida duma vez! - exclamou Gorenflot.

- Era o que te devia fazer.

- Oh, se eu estivesse em jejum!... - repetiu o frade com um profundo gemido.

- Já disseste isso uma vez.

E Chicot continuou a dar provas de amizade ao pobre frade, o qual desatou a berrar com toda a força.

- Está bom; ainda há pouco davas urros como um touro, agora muges como um vitelo. Ora bem: agarra-te ao Panurgo com unhas e dentes, e vai-te deitar, como um homem de bem, na estalagem da Cornucópia.

- Já não vejo o caminho - disse o frade correndo-lhe as lágrimas dos olhos.

- Ah - disse Chicot -, não era mau que, em lugar de lágrimas, deitasses pelos olhos o vinho que bebeste; talvez assim te passasse a bebedeira. Já vejo que não tenho remédio senão servir-te de guia, ainda por cima.

E Chicot foi puxando o burro pela arreata, ao passo que o frade, agarrando-se com ambas as mãos ao albardão, fazia toda a diligência para conservar o seu centro de gravidade.

Atravessaram assim a Fonte dos Moleiros, a Rua de S. Bartolomeu, a Ponte Pequena, e subiram pela Rua de São Tiago; o frade sempre a chorar, e o gascão sempre a puxar pelo burro.

Dois moços, ajudantes de cozinha de mestre Bonhomet, obedecendo às ordens de Chicot, tiraram o frade de cima do burro e levaram-no para aquele gabinete que os nossos leitores já conhecem.

- Está pronto - disse mestre Bonhomet ao voltar para fora.

- Já está deitado? - perguntou Chicot.

- E já ressona.

- Muito bem! Mas como ele há-de acordar mais bocado menos bocado, lembre-se de que eu não quero que ele saiba como foi que veio aqui parar; não lhe dará explicação alguma; até não seria mau que ele se persuadisse de que não saiu desta casa desde aquela famosa noite em que foi fazer tamanha estralada no convento, e que tomou por um sonho tudo quanto Lhe sucedeu naquele intervalo.

- É quanto basta, Sr. Chicot - respondeu o estalajadeiro -, mas diga-me: que sucedeu ao pobre do frade?

- Uma grande desgraça; parece que teve uma desavença em Lião com um enviado do Sr. de Maiena, e que o matou.

- Oh, meu Deus. - exclamou o estalajadeiro -, de forma que.

- De forma que o Sr. de Maiena jurou, segundo dizem, que havia infalivelmente de o mandar queimar vivo - respondeu Chicot.

- Fique descansado - disse Bonhomet -, não o deixo sair daqui sob pretexto algum.

- Perfeitamente! E agora, prosseguiu o gascão, descansado a respeito de Gorenflot, é indispensável que eu descubra onde está o meu duque de Anju: procuremos. "

E tomou a direcção do palácio de Sua Majestade Francisco III.

 

                                                                                Alexandre Dumas  

 

                      

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