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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA DESEJADA / Margaret Moore
A DAMA DESEJADA / Margaret Moore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Sir Henry era um cavalheiro capaz de realizar autênticas proezas no campo de batalha… e na cama. Um dia encontrou a duas belas irmãs esperando-o em seu quarto; uma incrivelmente bela e a outra inteligente e segura de si mesma. Henry escutou atentamente sua proposta: ofereciam-lhe uma generosa quantia em dinheiro em troca de que comandasse seus homens em uma batalha para salvar suas terras.

Seduzido pela beleza de Giselle, mas incrivelmente atraído também pela inteligência de Matilde, Henry aceitou a oferta. Mas os invasores se aproximavam e Matilde, uma mulher tão complexa como quanto os segredos que guardava, ia ter que confiar em seus desejos mais profundos… e no homem que estava disposto a lutar com todas suas forças para demonstrar sua honra…

 

 

 

 

       Londres, dia de San Miguel, 1243.

Com a face de asco, sir Roald de Sayres saltou os desperdícios que havia no beco que separava os pátios de matança de Smithfields da enorme igreja de St. Bartholemew.

     Consciente da espada que levava no flanco esquerdo, levou a mão à adaga que pendurava do lado direito do cinturão ao mesmo tempo em que percorria o beco com o olhar, em busca do homem com o que devia encontrar-se.

     —Sir Roald! —chamou-o uma voz de maneiras ordinárias.

     Em seguida apareceu no beco à figura de um homem corpulento vestido com uma túnica e uma capa não muito gasta.

     Roald tentou vê-lo bem apesar da pouca luz.

     —Martin?

     —Sim, senhor — respondeu o homem movendo a emaranhada cabeleira.

     Roald se relaxou um pouco, mas não afastou a mão da adaga.

     —Não disse a ninguém que iria encontrar comigo aqui?

     —Não, senhor — disse o que foi o comandante das tropas do castelo de seu tio.

     —E não disse a ninguém em Ecclesford que vinha a Londres?

     —Não sou tolo, senhor — assegurou Martin com uma gargalhada.

     Possivelmente não fosse tolo, mas tampouco muito inteligente, pensou enquanto observava ao pobre traidor.

     —Cumpriste o prometido? A guarnição…?

     —Serão como cordeirinhos entrando no matadouro. Não lhes ensinei nada e suas armas são mais velhas que minha mãe. Disse a lorde Gaston, que não distinguiria uma espada em condições de uma lança, que eram os melhores. Os que ficam tampouco saberão como organizar uma defesa adequada.

Martin seguiu fanfarronando sem se importar minimamente a sorte que corressem seus antigos companheiros de armas.

     — Se os atacar correrão de um lado a outro como pintinhos.

     —E suas filhas? Desfeitas de dor, suponho.

     Martin assentiu, rondo como o tolo que era.

     —Choravam e gritavam quando parti. Acreditam que seu pai era todo um santo— voltou a sorrir com malícia.

   — Disse-lhes que não aceitaria ordens de nenhuma mulher… e muito menos dessa lady Mathilde.

     Roald não se importava com a desculpa que desse para abandonar as suas primas, sempre e quando não o implicasse.

     —Então não disse a ninguém que iria encontrar comigo esta noite?

     —Não, milord.

     Satisfeito de que sua aliança com aquele traidor seguisse sendo um segredo, Roald meteu a mão por debaixo da elegante túnica de lã e tirou uma bolsinha de couro. Não tinha nenhuma necessidade econômica imediata graças aos prestamistas, que estavam encantados de ajudá-lo assim que se inteiravam de que era o herdeiro de lorde Gaston de Ecclesford e iminente proprietário de uma das terras mais prósperas de Kent.

     Como de costume, não eram só a fortuna e o poder o que o alegravam; o que mais o satisfazia era a ideia de como ia humilhar essa harpia de Mathilde antes de encerrá-la em um convento para o resto de sua vida. Quanto a Giselle… sentia uma tensão na virilha com apenas recordar sua etérea beleza. Casá-la-ia com quem estivesse disposto a oferecer mais por ela, mas não imediatamente. Não, não imediatamente.

     Martin pigarreou, sem dúvida estava ansioso para receber sua recompensa.

     Roald estendeu a bolsinha enquanto analisava mentalmente seu potencial e seus pontos débeis. Possivelmente fosse um guerreiro treinado, mas todos os homens eram vulneráveis em algo. Os maiores se moviam com lentidão e os parvos eram aos que mais fácil resultava vencer.

     Depois de agarrar a bolsa de couro, o soldado a esvaziou na palma de sua mão cheia de calos. As moedas brilhavam sob a luz da lua. Aquele torpe começou a contar uma a uma, com uma parcimônia que fez que Roald apertasse os dentes.

     —Acredita que tentaria te enganar, Martin?

     Martin levantou o olhar franzindo o cenho. Titubeou uns segundos antes de devolver à bolsa todas as moedas, a metade das quais tinham menos valor de que deviam.

     —Não, milord.

     Roald apalpou o punho da adaga.

     —O que vai fazer agora que é tão rico?

     Martin sorriu.

     —Me divertir um pouco e depois buscar uma mulher. Pode ser que também compre uma estalagem.

     —Nunca é demais um soldado bem treinado — sugeriu Roald.

     Mas Martin negou com a cabeça.

     —Sinto muito, milord, mas isso já é história. Já não sou tão jovem nem tão rápido. Chegou o momento de reunir tudo o que ganhei e sentar a cabeça.

     —Como um cavalo ao que deixaram pastar tranquilamente, verdade?

     Martin não gostou muito da comparação, mas assentiu de todos os modos.

     —Sim, poderia dizer que sim.

     —Pois é uma lástima, claro que se for o que você prefere… - disse Roald com tom amistoso. — Te desejo boa noite, Martin. E se houver algo que possa fazer por ti, não duvide em me pedir isso.

     O soldado sorriu e se despediu com uma reverência antes de começar a caminhar para a entrada do beco.

     Não chegou a alcançá-la porque, com a rapidez de uma víbora, Roald o agarrou por trás e afundou a adaga sob as costelas.

     Martin começou a mover-se como um peixe fora d’água, tentando escapar dele. Desgraçadamente para ele, embora não era nem alto, nem musculoso Roald era forte. E muito resolvido. Segurando-o ainda pelo pescoço com um braço, tirou a adaga de seu corpo só para voltar a inundá-la nele.

     O sangue emanava sem parar e Martin não demorou em desabar ao fétido chão assim que Roald por fim o soltou. Seu corpo fez um ruído surdo ao cair.

     Com a respiração entrecortada e um gesto de asco no rosto, Roald limpou a adaga na túnica do homem, sem dúvida cheia de pulgas, e a guardou.

     —Deveria levar uma cota de malha, estúpido - murmurou enquanto tirava a bolsinha de couro.

     Aqueles vinte Marcos valiam o sacrifício. Sua ambiciosa amante levava tempo pedindo um presente ao novo senhor de Ecclesford; daria a ela um anel ou alguma outra bagatela e a puta ficaria satisfeita. Depois de tudo, não havia necessidade de voltar correndo a suas terras, Mathilde e Giselle ainda estariam muito desgostadas pela morte de seu pai para fazer outra coisa que não fosse chorar durante dias.

     Quanto ao Martin, quando encontrassem o corpo, todo mundo acreditaria que era outro pobre tolo que ia a Londres e morria assassinado.

     E assim era.

 

     A Raposa e o Cão, no condado de Kent, encontravam-se a quinze quilômetros do castelo de Ecclesford, junto ao caminho que conduzia a Londres. Era uma estalagem pequena, mas cômoda, com um pátio cercado por um muro e um bar frequentado pelos granjeiros da zona, onde a comida era ligeiramente melhor do que estava acostumado a ser nesse tipo de lugares. Dentro do edifício estava o bar já mencionado, impregnado de uma fragrância a umidade, cerveja, vinho barato, fumaça procedente da enorme lareira e carne assada. A luz natural penetrava entre as portinhas de madeira, fechadas para evitar que entrasse o frio úmido daquela manhã dos últimos dias de setembro.

     Cinco dias depois de que Roald de Sayres tinha matado o ex-comandante da guarnição do castelo de Ecclesford, duas mulheres subiam desvencilhada escada que conduzia às estadias de hóspedes da estalagem. Uma delas, loira e formosa, tremia um pouco mais com cada passo que as aproximava das estadias. A outra ia diante e parecia cheia de segurança e convicção, caminhando alheia ao ranger dos degraus e ao pó que esfregava no ar a seu redor. Nada ia dissuadir lady Mathilde de cumprir sua missão, nem sequer os acelerados pulsados de seu coração.

     —Mathilde, isto é uma loucura! —sussurrou a bela lady Giselle agarrando sua irmã pela capa com tal força que a ponto esteve de tirar o véu de linho branco da cabeça.

     Mathilde segurou o véu com a mão e se voltou para olhar sua nervosa irmã. O certo era que sabia que o que estavam fazendo era uma barbaridade, mas não estava disposta a perder tal oportunidade. O filho do hospedeiro, que estava a par dos problemas e necessidades que apressavam às duas irmãs, foi a elas no dia anterior para falar do jovem nobre que tinha chegado sozinho a Raposa e o Cão, tratava-se de um bonito cavalheiro normando com muito poucos recursos.

     A Mathilde não importava nem um pouco o aspecto que tivesse, de fato teria preferido que fosse feio. Mas seu interesse era que tivesse pouco dinheiro fazendo com que Mathilde albergasse a esperança de que estivesse interessado em ganhar umas moedas, embora não tivesse o menor interesse por sua justa causa. O altivo irmão e igualmente altivo amigo que tinha mencionado o cavalheiro também lhe dava esperança de que aquele homem fosse à resposta as suas preces.

     —O que outra coisa podemos fazer? —perguntou a sua irmã no mesmo tom discreto. — Sentar-nos a esperar que Roald nos tire Ecclesford? Se este cavalheiro for quem diz ser, poderia ser exatamente o que necessitamos.

     —Pode ser que Roald não questione a vontade de nosso pai - arguiu Giselle, como fazia sempre que Mathilde mencionava seus planos para conseguir que Roald não tentasse sequer fazer-se com algo que não lhe pertencia. — Ainda não chegou e…

     —Sabe tão bem como eu quão ambicioso é — recordou Mathilde. — De verdade acredita que aceitará perder Ecclesford sem fazer nada? Eu não. Poderia aparecer hoje mesmo e nos exigir que entreguemos as terras. Devemos estar preparadas para isso.

     Giselle seguiu sem se mover do degrau no que se deteve.

     —E o que te faz pensar que esse cavalheiro quererá nos ajudar?

     —Rafe diz que é pobre. Ofereceremos a ele dinheiro. Ao fim, tampouco vamos pedir que ponha em perigo sua vida.

     —Mas por que temos que subir à estadia? —perguntou Giselle com gesto lastimoso. — Deveríamos ficar no bar; asseguro que não demora em despertar e baixar.

     —Levamos esperando muito tempo - assinalou Mathilde. — Não podemos perder todo o dia no bar com tudo o que temos que fazer em casa. Não viu as nuvens que vêm pelo sul? Se não nos pusermos a caminho logo, a tormenta nos pegará antes de chegarmos em casa.

     —Não sabemos nada desse homem à margem do que nos contou Rafe - insistiu Giselle. — E só estava repetindo o que lhe contaram sobre o normando. Pode ser que esse normando só estivesse fanfarronando. Sabe que os homens são capazes de dizer algo depois de um par de taças.

     Possivelmente o jovem estivesse bêbado, ou tivesse exagerado, ou inclusive mentido; se fosse assim, evidentemente, não seria o homem que necessitavam. Mas se não tinha mentido, Mathilde não estava disposta a deixar que lhe escapasse um cavalheiro parente de um nobre normando e amigo de um senhor igualmente poderoso. Tinha ao menos que lhe pedir ajuda.

     —Se tiver aspecto de mentiroso ou de patife, partiremos imediatamente.

     —E como saberemos se é honesto?

     —Eu saberei.

     —Você? —perguntou Giselle e se ruborizou imediatamente.

     A vergonha se refletiu no rosto de Mathilde porque sabia que Giselle tinha motivos para desconfiar de seu bom julgamento no que se referia a jovens cavalheiros.

     —Sinto muito — se desculpou Giselle olhando-a com lástima enquanto Mathilde lutava contra as lembranças que se amontoavam em sua mente.

     —Equivoquei-me uma vez, mas aprendi a lição — assegurou Mathilde e depois sorriu para demonstrar que não estava desgostosa apesar de estar. — Mas me alegro de que esteja aqui para me ajudar se por acaso me equivoco com ele.

     Mathilde não esperou que sua irmã dissesse nada por medo de que a dúvida de Giselle fizesse duvidar a ela também, agachou-se para passar sob uma grossa viga de carvalho e depois bateu na porta de uma das duas estadias. Cada uma delas teria camas feitas com cordas atadas sobre as que se colocava o colchão cheio de palha. Os colchões eram o bastante grandes para que dormissem neles ao menos dois homens adultos, possivelmente inclusive três. Naquelas estalagens havia pouca privacidade, mas o pai de Rafe lhes assegurou que o normando era o único hóspede que ainda estava na cama.

     —Pode ser que já saiu - sussurrou Giselle com tom esperançoso ao ver que ninguém respondia à chamada de Mathilde.

     —O hospedeiro nos diria ou o teríamos visto sair - respondeu Mathilde ao mesmo tempo em que chamava de novo.

     —Possivelmente tenha partido durante a noite - sugeriu então Giselle.

     —Ou possivelmente esteja morto - murmurou Mathilde.

     —Morto!

     Ao ouvir a exclamação de sua irmã, Mathilde lamentou havê-lo dito.

     —Não, não acredito - retificou enquanto levantava o passador da pesada porta. — O mais provável é que esteja bêbado e, se for assim, não nos será de nenhuma utilidade.

     —Mathilde! —protestou sua irmã enquanto se ouvia o chiado das dobradiças da porta ao abrir-se. — Espera!

     Mas já era muito tarde. Mathilde já tinha entrado na estadia mobiliada com três camas, uma mesa e um banco sobre o que havia vários objetos de roupa. Na mesa havia uma jarra de vinho vazia e um atoleiro de cera que antes tinha sido uma vela. O enorme leito seguia ocupado por um homem que dormia escancarado sobre as mantas.

     Estava completamente nu.

     Mathilde deu meia volta para sair correndo dali, mas então viu o rosto de preocupação de Giselle.

     O que diria Giselle se fugia agora? Sem dúvida pensaria que Mathilde se equivocou, que efetivamente seu plano era uma loucura inviável, que o que deviam fazer era esperar para ver o que fazia Roald antes de empreender algum tipo de ação.

     Mathilde não desejava nada disso, assim respirou fundo e recordou a si mesma que aquele homem simplesmente estava convexo na cama, profundamente adormecido ou inconsciente por culpa da bebedeira. Sem nenhuma arma à vista e possivelmente sem conhecimento, parecia completamente inofensivo, embora tivesse nas costas uma boa quantidade de cicatrizes, marcas de torneios e batalhas.

     Também se fixou em que não havia um grama de gordura em todo seu corpo. Mas claro todo mundo sabia que os normandos eram uma estirpe de guerreiros, descendentes de piratas escandinavos sem nenhum tipo de cultura, assim que outra coisa caberia esperar?

     —Está vivo? —sussurrou Giselle a suas costas.

     —Certamente respira - respondeu Mathilde aproximando-se com cautela. O aroma de vinho era inconfundível. — Deve ter perdido os sentidos de tanto beber.

     A tão pouca distância, Mathilde pôde observar o formoso rosto do homem. Parecia um verdadeiro anjo, embora um anjo muito viril, de maçãs do rosto marcadas, lábios carnudos, nariz reto e mandíbula forte. O cabelo, sensualmente comprido, caía sobre os largos ombros.

   Depois deu uma olhada às roupas que havia sobre a cadeira. Agora estava sozinho, mas não devia ter estado a noite anterior. Mathilde se perguntou aonde teria ido à moça e se ele teria se precavido sequer de que se partiu.

     Não, certamente não. Como a maioria dos homens, certamente só tinha pensado em suas próprias necessidades.

     Deu meia volta com um gesto de desprezo.

     —Não é o tipo de homem que necessitamos-disse a sua irmã.— Vamos, Gis…

     Uma mão a agarrou nesse momento e a atirou sobre a cama. Mathilde jogou mão à faca que se colocou sob o cinturão enquanto com a outra golpeava ao homem que a agarrava.

     —Por Deus, moça - gritou ele enquanto se incorporava na cama. — Não precisa despertar a toda a casa - por fim se cobriu até o ventre com os lençóis. — Diga a seu marido, a seu pai ou o que queira que seja teu hospedeiro, que paguei toda uma noite de alojamento e que me levantarei quando tiver vontade, não antes.

     —Nos desculpe cavalheiro - disse Giselle dos pés da cama após sua irmã se afastar dele. — Não deveríamos tê-lo incomodado.

     O cavalheiro olhou a Giselle e, como estava acostumado a passar a todos os homens nada mais observar a beleza da irmã de Mathilde, abriu os olhos de par em par. Giselle baixou o olhar com as bochechas tão ruborizadas como sempre que tinha que enfrentar ao escrutínio masculino.

     Sem olhar a Mathilde, o normando ficou em pé com o lençol enrolado à cintura. Deveria ter tido um aspecto ridículo, mas o certo era que parecia um príncipe que estivesse recebendo a algum emissário.

     —Posso perguntar o que te traz a minha habitação, milady? —perguntou com a elegância de quem estivesse no salão de sua casa. — Porque é evidente que é você uma dama, a julgar pela doçura de sua voz.

     Giselle pediu ajuda a sua irmã com o olhar.

     —Necessitamos os serviços de um cavalheiro - anunciou Mathilde com firmeza e sem soltar a adaga. — Mas…

     —Seriamente? —perguntou o normando com os olhos brilhantes, como se acabassem de lhe oferecer um presente. — Que agradável surpresa - continuou dirigindo-se a Giselle. — Embora deva confessar que normalmente prefiro escolher pessoalmente minhas companheiras de cama. Claro que, em seu caso, milady, estou disposto a fazer uma exceção.

     Que presunçosa arrogância!

     —Não é isso ao que me referia - espetou Mathilde apertando com força o punho da faca.

     O cavalheiro se voltou para olhá-la.

     —Por que estão tão zangadas? Eu deveria ser o ofendido. Foram vocês as que invadiram meus aposentos estando eu dormido e desarmado.

     —Mas não para isso!

     —Não há por que dissimular se assim fosse - respondeu com um sorriso nos lábios e sem fazer o menor caso de sua adaga. — Não seria esta a primeira vez que uma dama procurasse minha companhia na cama, embora seja certo que não costumam vir aos pares.

     —É você um descarado! —gritou Mathilde, horrorizada por tão desagradável comentário.

     Quando viu que se dirigia a porta, o normando se interpôs em seu caminho.

     —Nos deixe partir! —exigiu ela, disposta a lutar, enquanto Giselle se escondia em um rincão.

     —Estarei encantado, assim que me expliquem o que estão fazendo aqui - respondeu o cavalheiro, despojado de toda amabilidade ou alegria.

     Enquanto falava, tinha agarrado seu pulso, e em seguida, obrigou-a a soltar a faca. Soltou-a após ter afastado a arma de um chute, mas seguiu olhando-a duramente.

     Com a vista fixa em seus olhos, a Mathilde não resultava difícil acreditar que pertencesse a uma família poderosa.

     —Acaso é uma armadilha? —perguntou arqueando uma sobrancelha. — Não aparecerá agora um pai ou um irmão ultrajado que me exija que me case com alguma das duas? Se for assim, levará uma boa decepção. Poderia aceitar uma dama em minha cama, mas jamais deixarei que me obriguem a contrair matrimônio.

     Giselle olhou a ambos com desespero.

     —Mathilde, diga a ele o que viemos fazer aqui — suplicou o rosto tão vermelho como a túnica de um cardeal.

     —Se dissermos, deixar-nos-á partir? —perguntou Mathilde, cheia de receio. — Ele assentiu levemente. — Então explicarei-assegurou ela. Olhou-o fixamente, decidida a acabar com aquilo o quanto antes. — Necessitamos de um cavalheiro e, como ouvimos que você não tem muito dinheiro, nos ocorreu que possivelmente…

     —Pareço um mercenário? —interrompeu-a com uma fúria que se refletia em seus olhos.

     —Neste momento quão único parece é um homem meio nu - respondeu Mathilde, que de algum modo conseguiu mostrar-se muito mais tranquila do que em realidade estava. — Possivelmente se levasse um pouco de roupa, seria mais fácil julgar.

     O cavalheiro soltou uma gargalhada.

     —Ah, parece que você é a serena - comentou apoiando as costas na porta e cruzando os braços sobre o peito. — Assim necessitam um cavalheiro, e para que se não for por prazer?

     Mathilde sentiu vergonha ao ouvir a resposta, mas continuou com valentia.

     —Para que esteja ao nosso lado se por acaso vier nosso primo tentar nos tirar as terras que nos deixou nosso pai.

     —Querem um cavalheiro que lute com esse primo por umas terras?

     —Não é para lutar - se apressou a dizer Giselle.

     —E para que querem um homem treinado na batalha se não é para lutar?

     —Para assustá-lo — respondeu Mathilde. — Para fazê-lo ver que temos intenção de defender nossos direitos e que dispomos dos meios para fazê-lo.

     —Só me querem para aparentar? —perguntou com indignação.

     —Esperamos que assim Roald pense bem antes de tentar nos arrebatar a herança.

     —Roald é um nome pouco comum. É possível que o tenha conhecido na corte?

     Era possível, pensou Mathilde; portanto, devia falar com cuidado porque poderia ser que aquele homem fosse amigo de Roald, se um ser tão egoísta podia ter amigos.

     —Nosso primo é sir Roald de Sayres.

     O normando esboçou um sorriso zombador.

     —O que eu pensava. Assim são parentes desse canalha?

     —Conhece-o?

     —Conheço e o odeio.

     Arrastando o lençol igual a uma dama miserável a cauda de seu vestido, o normando se dirigiu à mesa, de onde levantou a jarra de vinho e apurou dela as últimas gotas.

     Mathilde olhou Giselle. Se realmente odiava Roald, possivelmente…

     —Por que o detesta tanto?

     —Preferiria não dizê-lo diante da dama - respondeu o cavalheiro devolvendo a jarra à mesa.

     A dama pensou Mathilde. E o que acreditava que era ela?

     —Sou lady Mathilde de Ecclesford — firmou com força. — E esta é minha irmã, lady Giselle.

     O cavalheiro a olhou de cima a baixo, notando-se em suas modestas roupas.

     —É você uma dama? Tinha-a tomado pela faxineira.

     —Pois não o sou.

     —Perdoe o engano — respondeu sem muito arrependimento enquanto levava a mão à cintura e ao lençol.

     —O que faz? —perguntou ela dando meia volta.

     —Quero saber mais sobre seu problema, assim acredito que deveria me vestir. Não crê?

     O certo era que seria muito mais fácil seguir falando com ele estando vestido, por isso Mathilde não protestou. Entretanto, não havia motivo para que elas estivessem presentes enquanto se vestia, mas bem havia motivos mais que suficientes para que não estivessem, assim Mathilde recuperou sua adaga e se dirigiu à porta. Por desgraça, Giselle parecia estar fascinada com o que via.

     —Já estou apresentável - anunciou o cavalheiro enquanto Mathilde ainda estava tentando estabelecer contato visual com sua irmã.

   Assim era. O normando pôs umas singelas calças de lã, uma camisa branca e uma túnica de pele sem mangas atada à cintura com um cinturão de que pendurava a espada. Também tinha posto umas botas que não pareciam novas precisamente, embora estivessem limpas e bem cuidadas.

     Uma vez liberada da distração que supunha sua nudez, Mathilde se concentrou em seu rosto e em seus formosos olhos castanhos… embora o único que deveria ter pensado era em como poderia ajudá-las.

     —É certo que Roald é nosso parente — começou a dizer com a intenção de centrar-se no que devia— mas asseguro que nos é tão querido como pode ser para você, e não só porque temamos o que possa fazer. Fez muito mal no passado e acredito que possa seguir fazendo-o no futuro. É um homem sem honra e sem piedade.

     —Sem dúvida falamos do mesmo Roald - assentiu o normando.

     —Nosso pai morreu recentemente - continuou explicando Mathilde, tentando não deixar-se levar pela dor que ainda provocavam sortes palavras. — Em seu testamento deixou Ecclesford a Giselle e a mim em partes iguais, e a Roald legou uma pequena soma de dinheiro. Mas há muitos que seguem acreditando que a herança deve passar ao homem sem ter em conta nenhuma outra coisa. Isso significaria que Roald se converteria no novo senhor de Ecclesford. Estou segura de que ele tentará que assim que seja possível nos arrebatar o que nos pertence legitimamente.

     —E certamente para casá-las depois com alguém com quem pode estabelecer algum tipo de aliança que o beneficie - acrescentou o cavalheiro como prova de que estava a par da cobiça de Roald. — O que vocês querem é um cavalheiro que o espante e o impeça de levar a cabo tais exigências, não é certo?

     —Sim. Conforme nos disseram, você é irmão do senhor de Dunkeathe, da Escócia, e amigo do senhor de Tregellas, de Cornualles. É assim?

     —Tenho a honra de ser ambas as coisas, sim - respondeu o normando com uma fina reverência e com um sorriso que o fazia ainda mais bonito. — Devo dizer milady, que neste momento não tenho obrigação alguma nem nada que empregue meus serviços; será um prazer fazer tudo o que esteja em minha mão para desbaratar os planos de Roald de Sayres. Como, além disso, é meu dever de cavalheiro ajudar qualquer dama em apuros, estarei encantado de fazê-lo. E é obvio, não espero receber pagamento algum.

     —Então, cavalheiro…

     —Mathilde — interrompeu Giselle. — Poderia falar um momento contigo? A sós?

     A Mathilde não gostava nada o sorriso que apareceu nos lábios do cavalheiro ao ouvir o pedido de Giselle, mas preferiu não pensar nisso.

     —Claro - respondeu ao tempo que se encaminhava à porta da estadia.

     Uma vez nas escadas, Giselle começou a falar como se não pudesse esperar mais tempo.

     —Mathilde, acredito que não devemos tomar nenhuma decisão agora. Deveríamos pensar tranquilamente.

     —Pode ser que amanhã já não esteja aqui. Além disso, o que tem que pensar? —respondeu Mathilde, fazendo um esforço por controlar sua impaciência. — Quantos cavalheiros estariam dispostos a nos ajudar com tanta urgência? Quantos odiariam Roald tanto como este?

     —Mas ainda não sabemos nada dele - protestou Giselle. — Nem sequer sabemos seu nome.

     Deus, nisso tinha razão. Mesmo assim, não era tão importante como seus contatos.

     —Seja qual for o nome do normando, devemos aceitar a ajuda que nos oferece.

     Giselle a olhou com gesto incômodo.

     —É um homem muito bonito.

    Mathilde não podia culpar sua irmã por estar preocupada. Tinha razões para desconfiar do bom julgamento de Mathilde em relação aos homens e aquele sem dúvida era bonito e provavelmente muito persuasivo. Não obstante, Giselle também deveria pensar que tinha aprendido de seu engano.

     —Não tema, Giselle - disse Mathilde com firmeza. — Estarei em guarda, assim como estará você também, e se nos parece que não se comporta como deveria fazer um cavalheiro honrado, pediremos que parta. Diga-me, aceitará agora sua ajuda?

     Giselle suspirou e assentiu, embora sem muito convencimento.

     —Posto que não tenha um plano melhor, farei... Com a condição de que se te pedir que parta, não discuta comigo.

     —Prometo - disse Mathilde abraçando sua irmã.

     Encontraram o cavalheiro sentado na cama assobiando uma alegre melodia. Ao vê-las entrar se levantou e lhes dedicou um sorriso.

     —Vocês dirão. Vou a Ecclesford ou não?

     —Se assim o desejar, senhor…

     O normando pôs-se a rir e baixou a cabeça a modo de reverência.

     —Deus, desculpem minhas maneiras. Suponho que se deve às incomuns circunstâncias nas que as conheci. Sou sir Henry D’Alton, cavalheiro do reino, protetor de damas e meninos, guardião da fé, irmão de Nicholas de Dunkeathe, cunhado do chefe do clã Taran e companheiro de armas de lorde Merrick de Tregellas.

     Parecia que seus contatos eram ainda mais importantes do que lhes disseram. Mathilde estava sinceramente impressionada. Mas o cavalheiro parecia dar tanto valor a si mesmo, que esteve tentada de lhe baixar as fumaças. Finalmente decidiu não fazê-lo como agradecimento porque tivesse aceitado ajudá-las.

     —Estou impressionada, sir Henry. Quando estiver preparado, esperamos no pátio.

     —Por favor, peçam ao hospedeiro que sele Apolo - disse ao mesmo tempo em que abria a porta. — E, se tiverem intenção de ficar em marcha imediatamente, peçam também que me prepare algo de comer para o caminho.

     —Essa intenção temos sim - Mathilde não estaria tranquila até estar de volta em casa, pois, embora não sabia com certeza, Roald poderia apresentar-se ali em sua ausência.

     Sir Henry sorriu.

     —Estou desejando ver o rosto de Roald quando chegar ao castelo e me encontrar ali.

     Mathilde não disse nada, mas o certo era que ela preferia não ter que voltar a ver Roald nunca mais e esperava que todas aquelas precauções não fossem necessárias.

     Mathilde e sua irmã esquivaram os atoleiros deixados pela chuva da noite anterior para chegar até sua escolta. Alguns soldados esperavam apoiados na parede do estábulo, outros sentados sobre os montões de feno, mas todos eles, sem exceção, tinham na mão uma jarra de cerveja que o hospedeiro deveria ter dado.

     Cerdic foi o primeiro que as viu e, automaticamente, deu ordem a seus homens de ficar em pé e preparar-se para partir.

     Assim como o cavalheiro, Cerdic era todo um exemplo de guerreiro de ombros largos e braços fortes e poderosos. Como muitos de seus ancestrais saxões, Cerdic era um perito no uso do machado e, embora não era tão arrumado como sir Henry, não era absolutamente feio. Com sua túnica escura, o broche de bronze que pertenceu a seu pai e ao pai de seu pai e uma pele de lobo sobre os ombros, tinha sem dúvida uma imagem imponente.

     —É como Rafe nos tinha contado - assegurou Mathilde com um sorriso de satisfação. — O cavalheiro normando é irmão de um importante escocês, cunhado de outro e amigo do senhor de Tregellas. Mas o melhor de tudo é que sir Henry aceitou nos ajudar.

     Cerdic franziu o cenho porque, assim como Giselle, nunca havia sentido muito entusiasmo pelo plano de Mathilde.

     —O que farão se este sir Henry não consegue espantar Roald? —perguntou.

     Embora não tinha esperado outra coisa, o certo era que sua desaprovação doeu em Mathilde.

     —Eu não questiono suas habilidades como guerreiro Cerdic — disse ela com certo ressentimento— assim eu gostaria que não te apressasse a questionar meu plano, sobretudo tendo em conta que espero que ajude a salvar as vidas de muitos de seus homens. Mas fique tranquilo que sei que se meu plano falhar e nos vemos obrigados a lutar, nossos homens não nos decepcionarão.

     Aquelas palavras arrancaram um sorriso de Cerdic, um sorriso que desapareceu assim que viu aparecer sir Henry. Pôs uma grossa capa negra e levava uma bolsa de couro sobre o ombro. De seu interior saía um tilintar metálico que fazia supor que dentro levava a cota de malha e outro tipo de armaduras.

     —De verdade creem que esse homenzinho vai assustar Roald? —perguntou Cerdic com assombro.

     Só Cerdic haveria descrito sir Henry como «homenzinho». Mathilde sabia que naquele corpo havia músculos mais que suficientes e, embora não fosse tão alto como Cerdic, era mais alto que a maioria de seus soldados, especialmente que os morenos celtas.

     —Se não o conseguir sozinho - disse ela— fará a reputação de sua família e de seus amigos.

     Sir Henry devia ter visto o gesto contrariado de Cerdic e, entretanto sorriu ao chegar junto a eles como se acreditasse que estavam lhe dando à bem-vinda.

     Ou possivelmente faziam graça seus homens? Acaso se acreditava superior a eles? Acreditaria que os normandos eram melhores guerreiros por natureza?

     O certo era que seus homens pareciam cansados após a longa espera no pátio e a Cerdic não teria ido mal um bom corte de cabelo… mas sir Henry levava o cabelo muito comprido para um normando e não ia vestido como um nobre precisamente. Mas parecia um mercador endinheirado, só com espada.

     Claro que possivelmente aquele sorriso fosse simplesmente sua atitude habitual quando se encontrava em presença de mulheres, especialmente se havia uma tão formosa como Giselle.

   - Sir Henry, este é Cerdic, chefe de nossa escolta e da guarnição de Ecclesford - anunciou a modo de apresentação.

     —Suponho que tem antepassados saxões - disse sir Henry em tom amigável— a julgar pelo cabelo e pelo machado.

     —Eu soube que era normando pelo rosto bonito.

     Sir Henry seguiu sorrindo, embora Mathilde visse que seu olhar se endureceu e tinha os punhos apertados. Também os tinha Cerdic. Por um momento parecia estar diante de dois machos caibros a ponto de pôr a prova suas gargalhadas. Mathilde não queria que brigassem porque Cerdic era seu amigo e necessitavam a ajuda de sir Henry. Por isso decidiu falar o quanto antes.

     —Cerdic, sir Henry será nosso convidado em Ecclesford.

     Cerdic mostrou clemência e soltou o braço de sir Henry, que se pôs a rir com aparente bom humor.

     —Bom o que me diz amigo, pomo-nos a caminho? Se não me equivoco, vem ai uma boa tormenta e eu preferiria não me molhar.

 

     A fresca brisa de outono transportava o aroma da chuva próxima enquanto o grupo cavalgava para o castelo do Ecclesford. Henry estudava seus companheiros de viagem e analisava o giro que tinham tomado os acontecimentos. Não era todos os dias que ao despertar encontrava duas damas observando-o, embora como já disse, tampouco era a primeira vez que descobria mulheres em seu dormitório. As mulheres levavam perseguindo-o desde os quatorze anos, o que significava que ditos encontros já não supunham tanta adulação nem tanto prazer; o certo era que se aborreceu ao vê-las ali o olhando, sobre tudo depois de outra noite sem pregar o olho.

     Tampouco tinha mentido ao afirmar que não teria se importado compartilhar cama com lady Giselle porque sem dúvida não tinha visto mulher mais formosa em sua vida. Tinha uns traços perfeitos, a pele pálida embora com um ligeiro rubor nas bochechas e o cabelo loiro e brilhante. Levava um elegante manto de lã azul preso com um broche de prata sob o que aparecia um vestido igualmente elegante, também azul e com um cinturão de couro. O véu era de seda branca e flutuava grácil aos lados de seu rosto, ocultando ligeiramente seu olhar modesto como a de uma noviça.

     Sua irmã, entretanto… era totalmente diferente. Não era uma mulher formosa, sobre tudo quando enrugava o rosto com raiva e desaprovação, e, além disso, ia vestida de um modo muito mais austero. Comportou-se como um jovem, um jovem forte, a julgar pela energia com a que o golpeou quando Henry cometeu o engano de lhe agarrar à mão. Por tudo isso, não era para menos que a tivesse tomado por uma moça de serviço.

     Atuou como se tivesse sido ele o que penetrou na estadia delas. Seus olhos marrons se encheram de desagrado e apertou os lábios até quase fazê-los desaparecer.

     A pesar do aborrecimento, que Henry se esforçou em ocultar diante de lady Giselle, tinha havido um momento em que tinha recordado que as mulheres atrevidas e fortes estavam acostumadas a serem magníficas amantes porque não tinham problemas em dizer o que gostavam e perguntar suas preferências a ele.

     Mas assim que se inteirou de que lady Mathilde era de berço nobre, a atenção de Henry havia retornado a centrar-se em lady Giselle. Henry era perfeitamente consciente do deplorável estado de sua economia, de sua falta de terras e de sua idade. Já não era tão jovem, por isso tinha começado a considerar a ideia de casar-se e começar uma família, mais ainda desde que tinha os exemplos de seu irmão, sua irmã e de seu amigo Merrick, que contavam as maravilhas da vida doméstica. Viajar de um local a outro durante anos, sendo sempre hóspede, também ia perdendo a emoção.

     Seu irmão certamente o teria aconselhado que cortejasse e finalmente, se pudesse casar-se com lady Giselle. Era rica, jovem e bela… o que lhe faltava então? Só uma coisa, mas naquele momento não parecia que pudesse ser um grande obstáculo. Henry prometeu que estaria apaixonado pela noiva quando se casasse.

     Em seus lábios apareceu um sorriso ao fixar-se no corpo de lady Giselle sobre a cadeira de montar. Sem dúvida seria singelo apaixonar-se por tão bela mulher e Henry tinha confiança em poder provocar o mesmo sentimento nela, para isso contava com seu aspecto e com anos de experiência com as mulheres. Certamente valeria a pena qualquer esforço que fosse necessário para ganhar o amor de uma mulher que contribuiria com terras e riqueza com seu dote.

     Além disso, se conquistasse à formosa Giselle, Nicholas teria por fim algo bom a dizer sobre seu irmão mais novo. Já não poderia seguir acusando Henry de levar uma existência de folgado.

     Por que não começar o cortejo então? Pensou Henry ao mesmo tempo em que esporeava Apolo para fazer subir o ritmo e poder assim alcançar as damas.

     —Temos que ir muito mais longe? —perguntou lady Giselle com o melhor de seus sorrisos. — Não sei quanto mais ficará sem chover.

     —Já não falta muito - respondeu lady Mathilde enquanto sua irmã ia cavalgar junto a Cerdic.

     Já fosse por modéstia ou por outro motivo, o certo era que ao Henry não fez nenhuma graça que o deixasse atrás desse modo, junto a lady Mathilde, que em seguida lhe lançou um olhar inquisitivo e perguntou:

     —Por que odeia Roald?

     Deus era tão atrevida como sua irmã tímida.

     —Não tema ferir minha delicada sensibilidade, sir Henry — disse ao ver que não respondia. — De Roald, acreditarei algo.

     Apesar da curiosidade que ela mostrava e da segurança de que seus motivos não lhe incomodariam, Henry não estava disposto a contar aquela história a nenhuma dama.

     —Qualquer homem de honra o detestaria.

     Mas ela não afastou o olhar nem um momento.

     —Também pode ser ardiloso e encantador e tem mais influência na corte da que nós jamais teremos. Se você não o odiar tanto como acredito, poderia decidir que não vale à pena arriscar-se a ofendê-lo. Pode ser que inclusive diga que prefere ajudá-lo.

   Era um insulto que sequer insinuasse que ele seria capaz de arteiro comportamento.

     —Hei dito que as ajudaria e isso é o que farei, mas embora não o houvesse dito, Roald jamais se atreveria a me propor nada e, se o fizesse, eu nunca o aceitaria. Odeia-me tanto como eu a ele.

     Lady Mathilde lhe lançou um sagaz olhar com o que sem dúvida tentava avaliá-lo, mas de um modo que lhe resultou adulador.

     —Então suponho que o motivo será uma mulher.

     Não se afastava muito da verdade, mas a advertência surtiu efeito contrário.

     Em lugar de seguir enfrentando ao interrogatório, Henry decidiu contar o acontecido, embora sem dar muitos detalhes.

     —Estando ambos na corte, um dia o descobri tentando forçar uma moça do serviço. —     Como de costume, a bílis subiu à garganta ao recordar o rosto de pavor da menina, por que era tão somente uma menina de não mais de onze anos, mas seria melhor economizar a lady Mathilde tal informação. —Obriguei-o a soltá-la a ponta de espada, assim, como compreenderá Roald não me tem muito carinho precisamente.

     Por um momento acreditou ver uma triste satisfação no rosto da dama, mas em seguida o observou com um olhar penetrante e incômodo como aquele com que estava acostumado olhá-lo seu irmão.

     —Quando ocorreu isso?

     —Faz dois anos.

     —E não foi acusado de violação?

     Henry fez um gesto de dor ao ouvir a dura embora certeira palavra. Resultava desconcertante ouvir uma dama falar de um modo tão direto.

     —Não.

     —Então você o descobriu cometendo um delito e mesmo assim o deixou escapar?

     Henry sentiu que lhe avermelhavam as bochechas, pois ainda se sentia culpado por muito daquela noite, e também depois, houvesse-se dito mil vezes que não tinha feito nada do que sentir-se culpado.

     —Você não viu a moça, milady, não ouviu como soluçava e me pedia chorando que não chamasse os guardas. Estava completamente segura de que ninguém acreditaria em sua palavra contra a de Roald; ele haveria dito que a faxineira o tinha provocado e sua reputação teria ficado arruinada para sempre. Eu não podia lhe assegurar que não fosse ser assim, por isso sim, deixei-o escapar.

     A dama seguiu observando-o atentamente uns segundos mais.

     —Muitos nobres não teriam intervindo sequer, pois teriam acreditado que o corpo de uma faxineira pertence aos senhores por direito próprio, esteja disposta ela ou não.

     —Eu jamais pensaria algo assim - assegurou com firmeza e total sinceridade. — Eu jamais tomaria uma mulher contra sua vontade, sendo ela de berço nobre ou modesto, e nunca em minha vida fiz chorar a uma mulher ou a deixei ferida, nem sangrando.

     Lady Mathilde olhou para diante, onde sua irmã seguia cavalgando com Cerdic, e Henry lamentou ter falado com tanta força. Deveria ter recordado que apesar de sua aparência ou de seu modo de comportar-se, seguia sendo uma dama.

     —Essa moça teve muita sorte de que você estivesse ali — disse lady Mathilde com voz tranquila e cheia de sincera compaixão.

     Henry notou também um toque de amabilidade e compreensão que resultou inesperado e nada desagradável.

     Inspirado a continuar com dita amabilidade, Henry saudou com a cabeça Cerdic, que havia voltado para olhá-los. O saxão levava uma espada pendurada do cinturão e um impressionante machado de batalha atado às costas.

     —Não é usual ver um inglês em uma posição de tanta confiança e responsabilidade — comentou.

     Para ser sincero, nenhum nobre normando dos que conhecia teria dado tanta responsabilidade a um Inglês, ou o teria considerado amigo. Tinham passado quase duzentos anos da Conquista, mas a inimizade persistia.

     —A família de Cerdic era da realeza antes que chegassem os normandos — explicou lady Mathilde.

     Era evidente que sentia admiração pelo saxão e Henry não pôde evitar perguntar-se até que ponto o admiraria, se isso incluía algo mais íntimo. Claro que isso não lhe importava. Não tinha o menor interesse na descarada lady Mathilde.

     —São vocês de Provenza, verdade? —perguntou, apoiando-se no acento com o que falavam.

     —Sim, nascemos ali e passamos a maior parte de nossa infância.

     Igual a rainha a que Henry tanto detestava, a mulher que estava provocando a rebelião de seus compatriotas com esse empenho egoísta de subir a sua própria família.

     —Como a rainha Eleanor- comentou enquanto se perguntava como reagiria ela.

     Lady Mathilde fez um gesto com o que deu a entender que odiava à rainha tanto como ele.

     —Se for certo o que pai dizia de sua família, é uma desgraça para a Inglaterra que se casou com o rei.

     Muito interessante.

     —O que dizia seu pai de sua família?

     —Que o único que contribuíam a este mundo era mulheres formosas e que quão único faziam bem era conseguir bons matrimônios.

     A descrição era tão acertada, que Henry pôs-se a rir. Depois fez um comentário muito próprio dele:

     —A família da rainha não é a única capaz de dar ao mundo mulheres formosas.

     Lady Mathilde franziu o cenho.

     Obviamente, aquele comentário estava muito errado. Nunca conseguiria impressionar aquela mulher com adulações que possivelmente só servissem para lhe recordar que sua irmã era bela, mas ela não.

     —Ao meu pai tampouco gostava dos normandos - acrescentou ela, possivelmente a modo de vingança. — Dizia que só queriam brigar e que não apreciavam nem a música nem a arte.

     Sem dúvida a incomodou com seu comentário. Como Henry sabia por experiência o que era que alguém o comparasse com um irmão a quem se sentia inferior, não se deixou ofender pela resposta.

     Além disso, a observação que fez era, infelizmente, acertada em seu caso. Henry não apreciava muito a arte ou a música, à exceção de alguma canção inteligente e procaz. Mas nunca ninguém tinha feito que visse tal falta de apreciação como um defeito.

     —Alguém tem que defender o reino - respondeu.

     —Acaso Guillermo estava defendendo a Inglaterra quando a invadiu?

     Suas palavras teriam resultado muito mais divertidas se lady Mathilde não as tivesse pronunciado com tanta petulância.

     —Bom, às vezes nos deixamos levar… e às vezes se necessita desse tipo de homens para defender a terra.

     Agora era ela a que se ruborizava e o fez de tal modo que quase desapareceram as sardas que salpicavam ligeiramente seu rosto.

     —Não pretendia ofendê-lo, cavalheiro - disse ela após um momento. — Além disso, não tenho por que estar necessariamente de acordo com o que meu pai opinava dos normandos. Havia coisas que admirava por seus compatriotas… a Carta Magna, por exemplo, que serve para pôr limite ao poder do rei. Esse é o motivo pelo que papai renunciou a reclamar suas terras francesas a seu irmão maior, o pai de Roald, em troca de Ecclesford. Foi então quando descobriu que a corte inglesa não é muito diferente a da França. Sentiu-se muito decepcionado.

     Henry não podia dizer o contrário. Ao fim, os nobres eram homens antes que nobres, por isso estavam acostumados a levar suas ambições e desejos a corte.

     —Retirou-se a Ecclesford e não quis voltar para a corte nunca mais.

     Isso explicava por que Henry nunca tinha visto ali aquelas duas damas e nem sequer tinha ouvido falar delas.

     —Por isso não temos nenhum amigo nobre ao que pedir ajuda, já vê. De outro modo, não teria tido que recorrer a um completo desconhecido.

     De repente se sentiu um caipira por haver-se incomodado com ela por algo que houvesse dito ou feito. Sua irmã e ela eram duas damas que necessitavam ajuda; isso era o único que devia importar. Possivelmente aquele fosse um bom momento para começar a fazer o que Nicholas o recomendava sempre: manter a boca bem fechada.

     Assim, continuou cavalgando em silêncio junto a lady Mathilde, ouvindo como os soldados riam e conversavam animadamente a suas costas. Resultava estranho, pois pareciam mais um grupo de homens de caça que uma escolta. O homem que tinha treinado a Henry e a seus amigos na arte da guerra jamais teria tolerado tal falta de disciplina. Podia imaginar perfeitamente o que sir Leonard de Brissy haveria dito de estar ali, e as maldições com as que teriam adornado suas palavras.

     —Ecclesford está ao outro lado desse bosque - anunciou lady Mathilde após um par de quilômetros em silêncio.

     Levantou um forte vento e as nuvens estavam cada vez mais escuras por isso Henry esperou que a chuva não começasse até que tivessem chegado ao castelo. Por muito cavalheiro que fosse não queria chegar empapado até os ossos.

      

     A chuva não demorou em chegar e Henry estava impregnado até os ossos antes inclusive de chegar ao castelo de Ecclesford. Mal via por onde ia, embora sim alcançasse a distinguir que a fortaleza estava rodeada por um fosso seco, salvo onde se encontrava o caminho que desembocava no portão de madeira. Só havia um muro exterior. Certamente não era aquele o castelo mais seguro que tinha visto em sua vida.

     Uma vez no pátio de pedra, toda a comitiva se apressou a desmontar e os moços do estábulo se fizeram cargo dos cavalos. Os animais sopravam e golpeavam o chão com as patas, nervosos pela tormenta, enquanto os soldados protestavam ao pisar nos atoleiros.

     Em meio de tal clamor, ouviu-se a voz forte e clara de lady Mathilde.

     —Me siga, sir Henry — ordenou caminhando já para o interior do castelo.

     Henry não necessitou mais; de fato, a teria agarrado o braço para apressá-la ainda mais.

     Não era só porque tivesse o cabelo e a roupa empapados, o que realmente o impulsionava a correr era o aroma da pedra molhada… o que lhe recordava as largas horas que tinha passado naquela fria e úmida masmorra pensando que em qualquer momento iriam buscá-lo para executá-lo. Aquele aroma o fazia reviver os golpes e, ainda pior que qualquer surra, o terrível descobrimento de que o homem ao que tinha jurado lealdade não acreditou nele.

     Já longe da intensa chuva, Henry deu a capa a um servente e depois se agitou como um cão molhado, com a esperança de poder desfazer-se assim não só da água, mas também das tristes lembranças.

     E o conseguiu, ao menos em parte. Então pôde fixar-se no lugar no que se encontrava enquanto lady Mathilde dizia algo de uma estadia e de comida.

     O salão em si era pequeno, mas estava mobiliado de modo cômodo e acolhedor; a um lado havia bancos e inclusive tapetes sobre o assoalho. Sobre uma parede lateral estavam apoiados os tabuleiros bem limpos das mesas que sem dúvida se colocavam para as comidas. O muro atrás do assoalho estava adornado com tapeçarias nos que se representavam cenas de caça e que isolavam o lugar do frio das paredes de pedra. A iluminação procedia de umas tochas colocadas em suportes de bronze e que tinham manchado as vigas do teto com a fumaça acumulada ao longo dos anos.

     Mas o melhor do lugar era o enorme fogo que ardia na lareira central. Henry foi direto ali para esquentar-se. A madeira que ardia devia proceder de uma macieira porque desprendia um agradável aroma.

   Enquanto ele entrava em calor, lady Mathilde ia de um lado a outro, dando ordens como um general no campo de batalha. Lady Giselle tinha desaparecido escada acima, impaciente sem dúvida por chegar a seus aposentos e colocar uma roupa seca. Cerdic e o resto da escolta não demoraram a entrar e colocar-se também junto ao fogo. Todos e cada um deles lançaram olhadas hostis a Henry enquanto faziam lugar para receber calor.

     Henry fez caso omisso a sua atitude, pois estava acostumado a receber olhadas, sendo elas especulativas ou hostis.

     Por ali passou também uma formosa faxineira de busto generoso e embelezada com um vestido que parecia ter sido desenhado para moldar sua curvilínea figura. A moça não ocultou seu interesse por Henry e sorriu às escondidas e com coquete acanhamento.

     Aquilo era algo que também estava acostumado e dava por feito que a jovem iria a sua cama se ele o desejasse. Mas Henry não o desejava. Nunca foi assim, apesar do que muitos acreditavam: primeiro, porque não era seu hábito deitar-se com uma moça que lhe chamasse a atenção. Segundo desde o fechamento na masmorra, as poucas vezes que se deitou com uma mulher bastou para descobrir que fazer amor não só não lhe dava sono, como também de fato o desvelava ainda mais. E por último, não acreditava que a encantadora e modesta lady Giselle aceitasse como pretendente um cavalheiro que se deitasse com uma de suas faxineiras diante de seus narizes.

     Quanto às díscolas fantasias que passaram pela cabeça com respeito à lady Mathilde, sem dúvida foram provocadas pelo cansaço e pelos estranhos acontecimentos do dia. Realmente era uma mulher atrevida e cheia de força, mas absolutamente do tipo que ele preferia. Não, lady Mathilde era muito audaz para seu gosto e, enquanto estivesse ali, Henry se manteria afastado dela.

     Justo nesse momento apareceu lady Giselle. Pôs um vestido de veludo azul que fazia jogo com a cor de seus olhos. O virginal véu branco que lhe cobria a cabeça tinha também alguns fios azuis e se mantinha em seu lugar graças a um delicado diadema de ouro trançado.

     Aquela dama era o arquétipo de beleza e, enquanto a via baixar as escadas, Henry pensou que seria um estúpido se não tentasse cortejá-la com a esperança de finalmente convertê-la em sua esposa.

     —Não quer trocar de roupa? —perguntou lady Mathilde tirando-o de sua fantasia.

     Encontrou-a olhando-o de um modo que, se alguém dissesse naquele momento que lady Mathilde possuía a habilidade de ler a mente, acreditaria sem dúvida.

     —Seus aposentos estão preparados — acrescentou ela.

     Consciente de que lady Giselle estava aproximando-se do fogo, Henry decidiu que já não estava tão molhado.

     —Obrigado, milady, mas estou bem.

     Lady Mathilde recebeu aquela pequena mentira franzindo os lábios… e depois seus olhos se iluminaram como uma fogueira na noite de San Juan.

     —Pai Thomas! —exclamou ao tempo que se punha a correr para um padre de meia idade que acabava de entrar.

     Possivelmente lady Mathilde tivesse intenção de fazer-se monja. Se assim era, Henry duvidava muito que nenhum convento estivesse preparado para ela, que era o mais afastado de uma dócil noviça.

     Para desilusão de Henry, lady Giselle não chegou até a lareira, mas sim preferiu sentar-se em uma das cadeiras que havia no recinto. Passou pela cabeça a ideia de ir sentar-se junto a ela, mas lady Mathilde ia para ele acompanhada pelo padre, que a seguia serenamente com um amável sorriso no rosto.

     —Sir Henry, apresento pai Thomas, capelão de Ecclesford, embora se nega a viver aqui — explicou com voz relaxada e feliz.

     Henry não estranhou vê-la rir. Estava tão distinta, que resultava difícil acreditar que fosse a mesma mulher que enfrentou a ele fazia tão pouco tempo.

     De repente sentiu lástima que não fosse uma faxineira, uma mulher que estivesse encantada de aproveitar a oportunidade de passar uma noite com ele.

     Deus devia estar mais cansado do que tinha acreditado.

     Pai Thomas olhou Henry com um beatífico sorriso.

     —Temo que lady Mathilde nunca me perdoará que prefira viver entre os aldeãos — explicou com voz que denotava que era um homem culto, possivelmente o filho mais novo de uma família nobre do sul da França.— Eles me necessitam mais —acrescentou encolhendo-se de ombros com singela elegância.

     —Mais que os soldados? —perguntou Henry cordialmente. Sempre tinha admirado de maneira instintiva aos membros do clero, ao menos a muitos deles. — Eu pensei que os soldados são dados ao pecado.

     Os olhos do padre pareciam revelar um conhecimento do mundo que poucos homens possuíam.

     —Todos os homens são vítimas da tentação, meu filho, mas ao menos um soldado sabe que tem alojamento e comida. Os pobres aldeãos, entretanto não têm essa segurança, embora as damas de Ecclesford sejam tremendamente generosas — acrescentou com um suspiro. — Mas como diz nosso Senhor, os pobres sempre estarão conosco e suas vidas são difíceis.

     Embora Henry não ignorasse quão dura era a vida para os pobres, raramente pensava no destino dessas pessoas, coisa que, estando frente ao padre, fez que se sentisse envergonhado por isso.

     —O pai Thomas diz que não houve notícias de Roald — disse lady Mathilde. — À medida que os dias passam sem que dê sinais de vida, aumenta minha esperança de que tenha aceitado o desejo de meu pai.

     O sorriso que viu aparecer aos lábios de lady Mathilde fez que Henry pensasse em outro tipo de desejo que nada tinha a ver com seu defunto pai. De repente apareceu em sua mente a imagem de lady Mathilde na cama, sorrindo e suspirando de prazer enquanto faziam amor.

     —Bom, vamos comer — anunciou lady Mathilde, fazendo-o voltar a realidade. — Sir Henry, ocupe a cadeira de meu pai. Giselle, você sente-se a sua esquerda e você, pai Thomas, a sua direita.

     Como se fossem soldados a suas ordens, todos ocuparam os lugares designados. Lady Giselle o fez sem levantar um momento à vista do chão nem dirigi-la para ele nem por um décimo de segundo.

     Durante a comida, Henry se esqueceu de lady Mathilde, que se sentava ao outro lado do pai Thomas, e se concentrou em tentar entreter e impressionar lady Giselle. Com o passar do primeiro prato, que consistia em um prato de robalo em molho de poró e açafrão, contou-lhe suas melhores anedotas sobre os homens que tinha conhecido na corte.

     Lady Giselle não sorriu. Nem sequer uma vez.

     Quando chegou a vitela cozida com cebola, salsinha e sálvia, Henry optou por falar dos torneios que participou e os cavalheiros aos que derrotou. Contou histórias sobre seus amigos. Merrick, senhor de Tregellas e sir Ranulf, comandante da guarnição de dita propriedade. A dama fez gestos de assombro e comentários de horror quando escutava as descrições do combate, mas ambas as coisas pareciam meras amostras de cortesia com as que pretendia demonstrar que estava atenta, mas sem a menor paixão. Com o bolo de carne picada, ovos, nata e pimenta, Henry desviou a conversa para sua irmã e seu romance com um escocês com o que tinha escapado para casar-se.

     Por fim então obteve uma reação espontânea de lady Giselle que abriu os olhos de par em par ao tempo que ruborizavam as bochechas.

     —Sua família deve ter passado muito medo por sua culpa — murmurou. — E deve ter sido muito difícil também para você.

     —Bom, o certo é que eu não estava ali — admitiu Henry, encantado de ter recebido por fim algum tipo de resposta por sua parte.

     Mas depois disso, lady Giselle voltou a guardar completo silêncio durante o resto do jantar e ao Henry não ficou mais remédio que resignar-se a tamanha falta de interesse. Algo que jamais lhe tinha acontecido.

     Aquilo não pressagiava nada bom.

     Possivelmente não fosse tão má ideia ver se aquela faxineira era tão simpática como parecia, embora Henry soubesse que sexo não era garantia de poder dormir. Por outra parte, possivelmente servisse ao menos para apagar da mente as ridículas fantasias sobre lady Matilde que não tinham deixado de atormentá-lo até enquanto falava com lady Giselle.

     Uma vez que retiraram todos os pratos, lady Giselle ficou em pé.

     —Se me desculpam — disse em voz baixa olhando sua irmã e pai Thomas. Só lhe dedicou uma rápida olhada. — Acredito que vou retirar-me já.

     —Foi um dia exaustivo — assentiu lady Mathilde apesar de que ela não parecia absolutamente cansada.

     —Obrigado pela comida deliciosa, milady — disse o padre ficando em pé também. — Se me desculparem, irei recolher os restos para dar aos que esperam fora.

     —Claro pai — respondeu lady Mathilde. — foi um prazer desfrutar de sua companhia, como sempre. Se houver algo mais que possa fazer, só tem que me dizer isso    

     —Obrigado, milady, que Deus benza a você e a todos os que aqui vivem — pai Thomas se voltou para Henry, que também se levantou da cadeira. — Obrigado, meu filho, por vir ajudar estas duas damas em um momento de apuro — disse com uma expressão tão amável que parecia uma bênção.— Deus o premiará por sua generosidade.

     —É uma honra para mim, pai — respondeu Henry sem poder olhá-lo aos olhos, consciente de que seus motivos não eram plenamente desinteressados.

     Ao ver partir ao clérigo, Henry pensou que chegou o momento de retirar-se também.

     —Também deveria ir dormir milady —«ou ao menos a tentá-lo». — Foi um dia muito longo e um tanto incomum.

     A formosa faxineira apareceu de repente com um farol na mão, como se tivesse estado esperando aquele momento.

     —Eu lhe indicarei o caminho, milady.

     Lady Mathilde tirou o farol da mão da jovem.

     —Melhor ficar para ajudar na cozinha, Faiga. Eu mostrarei o caminho a sir Henry. Se for tão amável, sir Henry.

     E ficou a caminho para a escada, segura de que Henry a seguiria igual tinha feito antes o padre. Enquanto ia atrás dela, o cavalheiro se deu conta de que lhe divertia a atitude de sua anfitriã. Possivelmente pensou que Faiga necessitava que a protegessem do bonito convidado, embora Henry duvidasse que a faxineira tivesse estado de acordo. Claro que possivelmente lady Mathilde pensou que Faiga foi muito direta.

     Em qualquer caso, a bonita faxineira desapareceu imediatamente da mente de Henry, a quem de repente resultava difícil afastar o olhar do atrativo traseiro de lady Mathilde e do rebolado de seus quadris ao subir os degraus. Sorriu ao recordar a alegria com a que apresentou ao pai Thomas e o modo em que aceitava que o padre preferisse viver junto aos mais necessitados.

     Ao chegar ao andar superior, lady Mathilde se deteve ante a primeira porta.

     —Este será seu aposento durante sua estadia em Ecclesford. Era a estadia de meu pai, por isso é s mais cômoda. Espero que goste.

     O tom de sua voz dava a entender que estava segura de que assim seria.

     —Tendo em conta os lugares nos que me vi obrigado a dormir em ocasiões — respondeu com sinceridade— estou seguro de que estarei encantado.

     Ela não respondeu enquanto abria a porta.

     Uma enorme cama com dossel dominava a estadia em que também havia uma bacia com água e umas toalhas limpas e, junto à janela coberta com grossas cortinas de veludo escuro, pôde ver uma cadeira e uma mesa sobre a que daria o sol durante o dia. O ar cheirava à lavanda, não sabia se pelos lençóis ou pelo sabão que havia ao lado da bacia; procedesse de onde procedesse, era uma fragrância muito agradável que recordou a Henry momentos melhores de sua vida, antes de ter sido acusado de traição.

     Fora a chuva caía com força e o vento golpeava as ameias. Henry não invejava aos homens que estavam de guarda essa noite, se é que havia homens de guarda. Depois do que viu até o momento, não teria estranhado descobrir que abandonavam seus postos para fugir do mau tempo.

     Lady Mathilde acendeu a grossa vela que havia em uma lateral da cama sobre um suporte de bronze. Havia outras menores em um candelabro que Henry pôde ver em outro rincão.

     Por um momento pareceu ver que a Mathilde tremiam as mãos, mas as ocultou nas mangas do vestido antes que pudesse estar seguro.

     Por que teriam que lhe tremer as mãos? Sem dúvida não era porque tinha medo dele.

     —Aí está sua bagagem — disse ela, assinalando a bolsa que alguém tinha deixado junto à cama.

     —Obrigado — respondeu ele com um sorriso. — A estadia é magnífica.

     Henry acreditou que lady Mathilde se iria então, mas não se moveu.

     Por que não? O que estaria esperando, sobre tudo se estava tão incômoda em sua presença? Sem dúvida era impróprio de uma dama ficar a sós com um cavalheiro.

     A menos que o que estivesse sentindo não fosse medo a não ser outra coisa que também fazia tremer às mulheres. Possivelmente não fosse ele o único que estava tendo fantasias luxuriosas.

     —Deseja algo mais de mim, milady? —perguntou em um tom cautelosamente neutro no caso de estar equivocado.

     Lady Mathilde o olhou aos olhos com determinação e firmeza.

     —Deveria o advertir, sir Henry, que se lhe passou pela cabeça a ideia de seduzir minha irmã, será melhor que o pense duas vezes.

     Henry estava tão atônito que inclusive deu um passo atrás. O que tinha pensado não era seduzi-la, a não ser casar-se com ela, se a dama e ele chegavam a se gostar, mas lady Mathilde fazia que parecesse uma espécie de pervertido.

     —Milady, só jogo à sedução com aquelas que desejam ser seduzidas — respondeu. — Se uma mulher não sente o menor interesse por mim, não trato de conquistá-la, por muito bela que seja.

     —Não estou cega, sir Henry — replicou a dama cruzando os braços sobre o peito. — Vi como tentava impressioná-la. Não digo que seus planos sejam seduzi-la unicamente; ao fim, Giselle é uma herdeira e o homem que se case com ela será rico.

     O orgulho pedia que refutasse aquela acusação, mas sua moral o impedia porque aqueles motivos mercenários eram precisamente os seus.

     —Me proíbe que fale com ela?

     Lady Mathilde o olhou com certa lástima, como se pensasse que era estúpido, mas não pudesse dizê-lo por cortesia.

     —Absolutamente. Você se ofereceu a nos ajudar a nos defender de Roald e é nosso convidado.

     —Mas não obstante me acusa de pretender seduzir sua irmã mais nova.

     —Suponho que espera poder casar-se com ela e receber seu dote, por isso não quero mais que lhe evitar um esforço inútil. Giselle é formosa, mas não é nenhuma parva; posso assegurar que não sucumbirá a palavras melosas. Por certo, eu sou a mais nova das duas, não Giselle.

     Henry tinha dado por sentado que lady Mathilde era a maior pelo modo em que levava a casa. Sem dúvida se comportava como se o fosse. Tratou de recuperar-se rapidamente da surpresa.

     —Se quisesse propor algo a sua irmã, faria por amor. Prometi a mim mesmo que quando me casar o farei apaixonado por minha futura esposa. — O gesto de lady Mathilde revelou seu ceticismo. —Não acredite se não quiser — disse encolhendo-se de ombros— mas asseguro que meu matrimônio será como o de meus irmãos; ambos estão profundamente apaixonados por suas companheiras e são muito felizes. Por que haveria de me conformar com menos?

     Lady Mathilde o observou uns segundos com esses olhos tão perspicazes que tinha.

     —É você um cavalheiro muito incomum.

     —E você é uma dama igualmente incomum.

     Nem o próprio Henry teria sabido dizer se aquelas palavras pretendiam ser um elogio ou não, quão único sabia era que era verdade.

     —Impressiona-me que se preocupe tanto por sua irmã — acrescentou ao tempo que se aproximava dela.

     Lady Mathilde se tornou para trás como se o temesse. A ele? Era ridículo… não deu o menor motivo para pensar que podia supor perigo algum.

     —O marido de Giselle será algum dia senhor de Ecclesford, assim compreenderá você que devo protegê-la dos cavalheiros bonitos e encantadores cujo único propósito é fazerem-se ricos.

     Henry a olhou com gesto zombador.

     —E se ela é a mais velha… não poderia proteger-se sozinha?

     A dama se ruborizou, mas não afastou o olhar. Tinha os lábios entreabertos e seus peitos subiam e baixavam ao ritmo de sua respiração. Um ligeiro movimento deu a entender a Henry que sentia a mesma curiosidade e o mesmo desejo que ele.

     Deixando-se levar por tal sensação, pôs as mãos nos ombros e a aproximou para si. Com ela o aroma a lavanda.

     De repente a viu abrir os olhos de par em par com verdadeiro temor.

     —Não me toque!

     Henry retirou as mãos imediatamente, surpreso pela força de sua reação.

     —Não era minha intenção assustá-la.

     —Ia me beijar! —acusou-o como se seu beijo pudesse havê-la matado.

     Henry não era tão vaidoso para pensar que todas as mulheres deviam sentir-se atraídas por ele, mas o certo era que nunca antes lhe tinham feito sentir-se tão desagradável, e isso feria seu orgulho. Ela também havia sentido a tentação de beijá-lo e ele ia mostrá-la.    

     —Pensava que queria que a beijasse — disse com sua voz profunda com a que às vezes tinha feito que outras mulheres se atrevessem a expressar livremente seus desejos.

     Entretanto lady Mathilde lançou um olhar com o que teria podido fulminá-lo.

     —Mas não é assim, arrogante luxurioso!

     Henry sentiu algo que não tinha sentido em anos, o calor do rubor da vergonha. Não obstante, reuniu as forças necessárias para responder como o cavalheiro que era.

     —Se deseja que parta de Ecclesford agora mesmo, só tem que me dizer isso.

     Por um momento acreditou que ela diria que sim, mas então a viu negar com a cabeça e ruborizar-se tanto ou mais que ele.

     —Me perdoe sir Henry — disse apertando o tecido de seu vestido entre os dedos.— Às vezes me zango com muita facilidade.

     De repente Henry se deu conta de que recordava aquela reação. Lady Mathilde era como um cavalo a que maltrataram e que depois se assustava de qualquer que se aproximasse dele. Era evidente que algum idiota foi muito bruto com ela, mas certamente não teria obtido dela mais que um beijo, porque uma mulher como lady Mathilde não duvidaria em rechaçar com força qualquer insinuação não desejada. Era uma lástima, mas o dano já estava feito.

     O aborrecimento deixou passo ao arrependimento.

     —Não, milady, sou eu o que deve desculpar-se por ser tão presunçoso — respondeu com uma reverência. — Posso assegurar que não voltará a acontecer.

     —Muito bem — murmurou ela.

     Depois se dirigiu a porta sem mal olhá-lo, como se o mero feito de vê-lo resultasse repugnante.

     —Boa noite, sir Henry — disse já a ponto de sair.

     —Boa noite, milady — respondeu ele enquanto ela fechava a porta.

     Uma vez só, Henry aproximou a vela à mesa, tinha sido uma tolice acudir a Ecclesford, por muito que as irmãs o necessitassem. Certamente Nicholas lhe haveria dito que era um estúpido por fixar-se sequer em lady Giselle.

     Bom, não teria sido a primeira vez que seu irmão o considerava um parvo, pensou enquanto se despia. Mas lady Giselle não estava completamente fora de seu alcance.

     No momento.

        

     Depois de deixar sir Henry, Mathilde se deteve no alto da escada e se apoiou na parede. O coração pulsava com tal força que parecia que ia escapar do peito. Por que ficou tanto tempo em sua estadia? Por que não se teria limitado a lhe dizer que não fosse atrás de Giselle e depois partir rapidamente?

     Porque aquele cavalheiro era bonito, amável e encantador. Porque tinha temido e esperado que a beijasse. Porque era débil e luxuriosa e sir Henry tinha despertado nela um desejo tão incontido que resultou muito difícil resistir a ele apesar do que dizia o sentido comum.

     Ao menos agora tinha algo claro: não podia voltar a ficar a sós com o bonito sir Henry nunca mais.

 

     À manhã seguinte, após outra noite cheia de pesadelos da masmorra, das surras e da dor que lhe infligiu seu amigo, Henry lavou o rosto com água bem fria e se perguntou se alguma vez poderia voltar a dormir bem. Já tinham passado várias semanas da terrível experiência, as feridas se curaram. Por que então seguia sem poder dormir? Por que apareciam em seus sonhos aquelas imagens tão reais que o faziam acreditar que voltava a estar encadeado aquele muro desesperado, porque Merrick um homem ao que tinha jurado lealdade até a morte, apressou-se tanto a acreditar que o traiu?

     Naquele momento alguém bateu na porta brandamente.

     Quando convidou a entrar a pessoa que chamava, fez esperando que fosse lady Mathilde, mas em seu lugar se encontrou com a opulenta moça de serviço, que levava uma bandeja e um coquete sorriso.

     —Bom dia, milord — disse alegremente. — Mathilde me disse que embora você não seja muito madrugador, já fazia horas da missa e devia despertá-lo. Também me pediu que trouxesse algo de comer.

     A noite anterior lady Mathilde parecia ter acreditado que Henry era a personificação da luxúria, por isso o surpreendia tanto que tivesse escolhido precisamente aquela faxineira para que despertasse… a menos que fosse uma espécie de prova. Ou possivelmente se tratasse de uma armadilha com a que pretendia demonstrar a sua irmã a lasciva natureza do convidado e abortar assim qualquer esperança de matrimônio.

     Muito inteligente, mas condenada ao fracasso.

     —Que horas são? —perguntou enquanto secava o rosto.

     —Quase meio-dia, milord — respondeu a moça ao tempo que deixava a bandeja sobre a mesa sem afastar o olhar dele.

     —Obrigado.

     —Meu nome é Faiga.

     Henry inclinou a cabeça como se estivesse ante uma dama.

     —Obrigado, Faiga.

     O gesto provocou o delírio da jovem.

     —Aqui tem pão e mel, milord. Um mel excelente não como outros que se encontram por aí.

     —Estupendo. Já pode partir.

     A donzela pôs um rosto que só poderia haver-se descrito como careta e depois se dirigiu a porta com evidente desinteresse, mas Henry já tinha posta toda à atenção no delicioso pão com mel que certamente era magnífico.

     Após tomar o café da manhã se expôs os planos para o dia. Não tinha obrigação alguma em Ecclesford salvo a de esperar que aparecesse o canalha de Roaldd. Ao olhar pela janela comprovou que a tormenta se afastou durante a noite; o céu estava claro e o sol brilhava como se ainda fosse verão, assim Henry saiu para dar um passeio pelo castelo.

     Não viu nenhuma das duas damas no salão principal. Lady Mathilde certamente estava dando ordens por aí. Quanto à lady Giselle, possivelmente estivesse provando algum vestido ou escovando o cabelo ou o que fosse que fizessem as mulheres formosas enquanto suas irmãs organizavam tudo.

     Deteve-se nos degraus que conduziam ao pátio e observou a fortaleza de Ecclesford. A torre de comemoração quadrada, achaparrada e velha, encontrava-se no extremo sul, mas havia outras edificações dentro dos limites da muralha. Os estábulos estavam a sua direita e sobre eles deviam estar às moradias dos soldados, a julgar pelos objetos que se viam ali pendurados.

     No rincão oposto aos estábulos havia outro edifício que devia ser a capela, onde o bom pai Thomas poderia ter passado seus dias placidamente; ministrando a missa uma vez ao dia e desfrutando do resto das horas fazendo o que desejasse. O certo era que o clérigo parecia um homem verdadeiramente honesto ao que Henry esperava voltar a ver.

     A cozinha devia ser a construção que se unia ao salão por um corredor coberto que, em caso de um incêndio, impediria que o fogo chegasse à moradia principal. De onde estava Henry podia sentir o maravilhoso aroma do pão recém-assado.

     O primeiro que tinha pedido nada mais abandonar o cativeiro tinha sido vinho, mas o que tinha desfrutado até mais que isso tinha sido o primeiro bocado de pão recém-feito. Ainda relacionava aquele sabor com a liberdade.

     Afastou seus pensamentos daqueles dias e se fixou no poço que havia perto da cozinha, o que significava que se o castelo sofria um longo assédio, a água seria um problema. A menos que o inimigo conseguisse lançar o corpo podre de um animal morto e tivesse a sorte de penetrá-lo no poço.

     Como estava acostumado a ocorrer em todas as partes, ao redor do poço se congregou um grupo de mulheres que tiravam água e, certamente, comentavam as fofocas do castelo e do povo. Henry se perguntou o que diriam dele e de sua presença ali.

     Levantou a vista para o alto da muralha para ver quantos homens vigiavam das ameias. Não o suficiente, disso estava seguro, mas, além disso, descobriu que muitos deles estavam juntos e pareciam muito mais interessados no que ocorria no pátio que em vigiar o povo e o caminho que conduzia ao castelo.

     Sir Leonard de Brissy os teria castigado duramente por isso e também o teria feito ele… mas aquele não era seu castelo nem aqueles homens sua guarnição. Henry não era mais que um convidado, por isso devia guardar suas opiniões. Não queria nem imaginar como reagiria lady Mathilde se tentasse fazer a menor sugestão a respeito.

     Assim que começou a cruzar o pátio todo movimento desapareceu por um instante porque todos aqueles que estavam trabalhando ou indo de um lado a outro se detiveram para olhar o normando. As mulheres reunidas ao redor do poço o olhavam com aprovação, enquanto que os operários que estavam arrumando a base da muralha junto ao portão pareciam muito menos impressionados.

     Uma vez mais, Henry fez caso omisso a seus olhares e seguiu fixando-se nos guardas que havia na porta, se é que se podia chamá-los assim, porque mais que vigiar estavam apoiados em suas lanças e conversando como se estivessem passando o momento em um botequim. Apenas o olharam.

     Deus, se ele estivesse ao mando, esses dois teriam sofrido um bom castigo. Não era de estranhar que Roald não tivesse acudido ainda a reclamar as terras; certamente pensava que poderia simplesmente apresentar-se ali quando o desejasse e tomar o castelo porque ninguém seria capaz de impedir. Como não tinha nada melhor que fazer, Henry caminhou pelos arredores.

     O que Henry não entendia era como era possível que lady Mathilde acreditasse que aquela guarnição pudesse derrotar Roald…

     Mal que tinha atravessado o portão das muralhas, deteve-se em seco. Na esplanada que havia entre o fosso seco e o povo, Cerdic e outro homem ambos nus de cintura para cima, brigavam com paus. Outros os observavam, animando-os e oferecendo conselho de vez em quando. Ambos os competidores pareciam completamente concentrados na briga e decididos a vencer ao outro, mas não se percebia o menor ódio, por isso Henry deduziu que não eram inimigos.

     Estariam praticando? Depois de tudo, possivelmente alguém estivesse tentando treinar aqueles homens de algum modo. O que não entendia era por que praticavam com paus.

     Os que observavam a briga não demoraram a ver Henry e avisar aos outros de sua presença, assim que uns segundos depois, inclusive Cerdic e seu competidor tinham parado para olhá-lo.

     Como não tinha nada melhor que fazer, Henry se cercou a eles.

     —O que busca, normando? —perguntou Cerdic.

     —Perguntava-me o que faziam com esses paus.

     Cerdic e seu rival trocaram um olhar zombador.

     —Praticamos com paus em lugar de com machados para não nos cortar nenhum dedo — explicou Cerdic. — As espadas as deixamos para homens mais delicados.

     O saxão parecia ter decidido odiá-lo.

     —Então não se incomodarão se fico olhando e aprendo algum truque.

     —Por quê? Seus patrícios não utilizam machados.

     —Me ensinaram a utilizar qualquer arma que pudesse haver no campo de batalha. Sir Leonard estava acostumado a dizer que as lanças podiam romper-se e podiam nos arrebatar a espada assim que um cavalheiro inteligente devia aprender a lutar com o que tivesse à mão.

     No olhar de Cerdic apareceu um brilho desafiador.

     —Eu adoraria ver um normando brigar com um machado.

     Á Henry acelerou o coração, como ocorria sempre que alguém o desafiava.

     —Será um prazer. O que te parece aqui e agora?

     Ouviu-se um murmúrio de excitação entre os homens enquanto no rosto de Cerdic se desenhava um sorriso.

     —Com estes brinquedos ou com machados de verdade?

     —Não gostaria de perder um braço, assim que me inclino pelos paus — Henry tinha intenção de derrotar Cerdic, mas não era tolo. Também praticando podia alguém sofrer acidentes e era evidente que Cerdic não o considerava simpático precisamente.

     —Muito bem, normando. Com os brinquedos então.

     Cerdic fez um gesto ao homem com o que esteve lutando para que desse seu pau a Henry. O outro obedeceu à contra gosto e com umas palavras que Henry não entendeu, mas que certamente não era nenhum elogio.

     Possivelmente Cerdic os chamasse «brinquedos», mas aqueles paus podiam romper ossos sem muito esforço, pensou Henry enquanto comprovava o peso. Enquanto o movia a um lado e a outro e depois em círculos por cima da cabeça, Henry observava Cerdic pela extremidade do olho. Não seria fácil derrotá-lo, era forte e demonstrava uma segurança que só dava o saber-se um perito lutador. Henry não acreditava que o saxão fosse matar ou ferir de gravidade um convidado das damas de Ecclesford, mas não queria arriscar-se a que lhe quebrasse um braço ou uma perna.

     —Até que um dos dois implore clemência — propôs Henry. O saxão assentiu. — Você gostaria de apostar quem será? —perguntou.

     Cerdic voltou a sorrir.

     —Dez piniques de prata que será você.

     —Feito — disse Henry e depois olhou ao resto dos homens. — Me pergunto por quem apostarão.

     —Por mim — confirmou Cerdic em voz baixa.

     A seguir, o saxão foi correndo para ele com um grito que teria gelado o sangue a qualquer, levantando o pau para estampar-lhe na cabeça. E o teria feito se Henry não tivesse reagido com os reflexos que tanto tempo levava educando para escapar de golpes como aquele. Ao tempo que saltava a um lado, Henry golpeou Cerdic com o ombro e o jogou ao chão.

     O saxão amaldiçoou entre dentes e se levantou de um salto. Encontrou Henry preparado, com o pau entre ambas as mãos e o corpo ligeiramente curvado para dar o seguinte golpe, que foi direto às panturrilhas de seu oponente.

     Cerdic deu um salto para trás, com os braços abertos em um gesto de surpresa.

     — Quer me quebrar os tornozelos?

     —Você poderia ter quebrado minha cabeça se tivesse acertado. Se isto tivesse sido um machado, teria ficado sem pés.

     Cerdic levantou sua arma de novo com um olhar de ódio cravado em Henry, que titubeou sem saber se devia voltar a golpeá-lo ou tratar de lhe tirar o pau. A decisão custou caro porque o saxão arremeteu contra ele e a ponto esteve de jogá-lo ao chão, mas Henry voltou a ficar em guarda quase de maneira imediata e arrumou para se defender do seguinte golpe.

     Henry voltou um par de passos, mas os homens que os rodeavam fecharam o círculo e se deu conta de que tinha menos espaço de que acreditava. O único que sabia era que não ia se render; ia vencer e demonstrar a aqueles soldados que podia lutar com outra arma que não fosse uma espada.

     Sir Leonard estaria orgulhoso dele.

     Enquanto a determinação acelerava o coração viu que Cerdic o espreitava como um falcão espreitaria a um rato e gritou aos homens para que abrissem um pouco mais o círculo. Fizeram-no a contra gosto.

     —Não necessito mais espaço para te derrotar — disse Cerdic sem afastar o olhar de seus olhos. — É que não pode lutar em lugares fechados?

     —Claro que posso — respondeu Henry escondendo-se para saltar.

     Então mudou o pau de mão apesar de ser destro, algo que sem dúvida Cerdic não esperava e que demonstrou que não estava preparado para defender-se de um golpe desse lado. O pau do saxão saiu voando de suas mãos, com a má sorte que deu em um dos que observavam a briga.

     Isso ensinaria a não colocar-se tão perto, pensou Henry enquanto arremetia contra Cerdic com tal força que o jogou ao chão. O saxão aterrissou com os braços e pernas abertos e sem nenhuma arma com a que defender-se.

     Henry aproveitou seu desamparo para lhe pôr um pé no pescoço.

     —Você dirá amigo — disse sem soltar o pau no caso do saxão conseguir liberar-se e o agarrasse pelo tornozelo como teria feito ele em sua situação.

     Mas a Cerdic não deve ter ocorrido esse movimento e se limitou a grunhir.

     —Rendo-me.

     Henry retirou o pé e ofereceu uma mão para ajudá-lo a levantar, uma oferta que o saxão rechaçou.

     —Não disse que era ambidestro — balbuciou enquanto se levantava por seus próprios meios.

     —Não nasci sendo-o — respondeu Henry em tom amistoso. — Aprendi a sê-lo. Não é fácil, mas qualquer pode fazê-lo com muita prática.

     Cerdic se limitou a grunhir outra vez enquanto ia para onde estava sua roupa e agarrava um pequeno porta-níqueis. O resto dos homens observavam Henry com desconfiança e, com um pouco de sorte, possivelmente com um pouco de respeito.

     Não sabia se ganhou o respeito daqueles homens com a vitória, mas certamente sim teria servido para que Cerdic o odiasse ainda mais que antes. Claro que quando alguém o detestava por algo que não era culpa dele, já fosse sua procedência, sua fila ou seu aspecto, havia pouco que fazer a respeito.

     Henry tinha seu orgulho; entretanto, se tivesse tido intenção de passar ali mais tempo, possivelmente tivesse se deixado vencer para assegurar um pouco de simpatia por parte dos integrantes da guarnição de Ecclesford.

     —Aqui tem — disse Cerdic lhe dando os dez peniques de prata.

     —Obrigado — respondeu Henry, que realmente se alegrava de haver-lhe ganho.

     Como bem informou a lady Mathilde, seu porta-níqueis estava virtualmente vazio e, embora não estava disposto a aceitar pagamento algum por ajudar às damas, não ia rechaçar um dinheiro que ganhou de maneira justa e não sem esforço.

     —Agora, se me desculparem, vou dar um passeio para conhecer o povo.

     Pelas caras dos presentes, Henry haveria dito que aqueles homens estavam seguros de como gastaria aquele dinheiro. Mas se equivocavam. Henry gostava do vinho e das mulheres, mas não dedicaria seu tempo e seu dinheiro a sortes diversões havendo uma mulher perto a que queria cortejar.

     Assim, um Henry satisfeito e ligeiramente mais rico entrou no povoado de Ecclesford fixando-se nas casas, no mercado e fazendo caso omisso de todos os que se detinham para olhá-lo. Podia imaginar o que diriam dele no botequim e no poço quando se inteirassem de que tinha vencido Cerdic, e sabia que não seria nada bom. Mas posto que sua presença ali não durasse muito tempo, não ia preocupar-se o mínimo por sorte hostilidade.

     Ecclesford parecia um lugar bastante próspero no que se vendiam e compravam multidão de produtos. Havia também uma estalagem e, a julgar pelo som que fazia um martelo ao golpear contra a bigorna, em algum rincão da aldeia havia um ferreiro muito ocupado. Fixou-se assim mesmo no moinho que funcionava sem parar. Deteve-se junto à represa do dito moinho para descansar e foi então quando se deu conta de que emprestava a suor. Necessitava um bom banho.

     Estava considerando a ideia de voltar para o castelo e pedir aos serventes que lhe preparassem um banho quando se lembrou da amável Faiga. A briga com Cerdic o cansou e não se sentia com forças para fazer frente às insinuações da donzela.

     O lago tinha um aspecto muito apetecível, mas Henry sabia que não podia banhar-se ali, à vista do povo inteiro.

     Assim, procurou um rincão mais recôndito, que encontrou entre os ramos de uns salgueiros chorões que molhavam suas folhas nas águas do rio. Sim, aquele era o lugar perfeito para refrescar-se, pensou enquanto tirava a roupa.

     Já completamente nu, meteu-se no rio pouco a pouco, pisando com cuidado as pedras da borda até que a água chegou às coxas, momento em que mergulhou nela.

     O frio comprimiu os músculos um instante, mas Henry continuou nadando como se nada o incomodasse. Sir Leonard tinha insistido em que os homens que treinava aprendessem também a nadar. Todos eles o tinham conseguido com maior ou menor estilo; Henry sempre tinha se sobressaído em tal destreza enquanto que Merrick, que por outra parte era um magnífico guerreiro, tinha resultado ser bastante torpe na água.

     A lembrança daqueles dias felizes nos que Merrick, Ranulf e ele tinham passado horas treinando e rindo na água o fez sorrir enquanto flutuava de costas na água. Inclusive o introvertido Merrick tinha desfrutado daqueles momentos de camaradagem. Agora Merrick era um grande senhor, casado e com um filho a caminho. Quanto a Ranulf, Henry se perguntou uma vez mais o que lhe teria ocorrido àquela vez que tinha ido a corte sem eles; seu amigo havia retornado daquela viagem convertido em um homem frio e cínico.

     Certamente teria sido algo relacionado com uma mulher. Quem entendia às mulheres? Eram umas criaturas misteriosas e incompreensíveis, atrevidas e altivas um momento e temerosas e inseguras ao seguinte…

     Que demônio lhe ocorria? Desde quando lady Mathilde se converteu no modelo de mulher? Em todo caso era justo o contrário do que devia ser uma dama… discreta, recatada, amável… aborrecida e sem espírito.

     Era ridículo. Se havia uma mulher a que valia a pena tratar de conquistar era a formosa lady Giselle que, felizmente, ainda não tinha sido prometida em matrimônio.

     Henry se perguntava por que seria isso. Se lady Mathilde tivesse sido a mais velha, como ele acreditava, teria dado por feito que seu pai tinha sido da opinião de que a filha mais nova não devia casar-se até que o fizesse a mais velha. Sem dúvida seria uma árdua tarefa encontrar um homem disposto a casar-se com a descarada e enérgica lady Mathilde. Mas, dado que lady Giselle era a mais velha das duas irmãs, possivelmente não houve nenhum pretendente adequado para nenhuma das duas.

     Henry saiu da água disposto a não fazer caso dos rebeldes pensamentos relacionados com a mais jovem das damas de Ecclesford. Secou-se como pôde e colocou a roupa para voltar em seguida ao virtualmente indefeso castelo.

     —Sir Henry?

     Ficou imóvel ao ouvir a voz de lady Mathilde. Que demônio estaria fazendo ali? Teria o visto nu… outra vez? Henry não estava acostumado a ser um homem muito modesto, mas não gostava da ideia de que aquela mulher pudesse examinar seu corpo livremente.

     Por sorte, lady Mathilde estava bastante longe, por isso certamente não teria podido vê-lo sair do rio. Graças a Deus.

     Levava a cabeça ao descoberto e o cabelo recolhido em uma única trança que caía pelas costas até a cintura. Com aquele singelo vestido marrom, sem véu e uma cesta na mão, parecia uma aldeã a mais.

     A mulher com a que Henry fez amor pela primeira vez tinha sido uma aldeã, a leiteira.

     Deus. Fazia anos que não pensava em Elise e na emoção do primeiro encontro sexual que tinha desfrutado entre seus acolhedores braços. Sem dúvida foi àquela recordação o que fez que acelerasse o pulso e sentisse um profundo desejo.

     Por muito aspecto de aldeã que tivesse lady Mathilde, não era nenhuma leiteira desejosa de instruí-lo na arte do amor.

     —Milady — disse ele com uma reverência, agradecido de que a camisa o cobrisse até as coxas.

     Lady Mathilde o olhou com perplexidade.

     —Banhou-se no rio?

     —Faz muito bom dia — respondeu ele— e pensei que assim economizaria a seus serventes a moléstia de me preparar um banho. Cerdic me desafiou a lutar e aceitei o desafio, por isso depois precisava me lavar bem.

     Dessa vez franziu o cenho com preocupação.

     —Espero que Cerdic não lhe tenha feito mal.

     Henry não pôde evitar sorrir.

     —Foi ele o que acabou no chão.

     —Derrotou Cerdic? —sua incredulidade era evidente.

     —Disse que podia brigar com outra coisa que não fosse uma espada — disse encolhendo-se de ombros modestamente. Ela começou a caminhar para o castelo, mas o ritmo de seus passos revelava seu nervosismo. —Teria preferido que fosse eu o derrotado?

     —Não sei por que teve que participar de uma briga — espetou com gesto de chateio.

     —Não tinha nada melhor que fazer. Nem sua irmã nem você estavam no castelo para me sugerir um modo de passar o tempo.

     Deixou cair à insinuação de que não se comportaram como boas anfitriãs.

     —Pensei que Giselle estaria no salão quando por fim você se dignasse a levantar-se — contra-atacou sutilmente ela. — Normalmente costura ali e hoje não tinha que dedicar-se a seus outros afazeres.

     —A outros afazeres? —perguntou Henry com curiosidade e tentando não incomodar-se pelo tom de lady Mathilde que, uma vez mais, não falava como uma dama.

     —Minha irmã cuida dos doentes do castelo e do povo.

     «Excelente qualidade para a esposa de um cavalheiro», pensou Henry. Sem dúvida sua recente recuperação teria sido muito mais agradável com tão bela doutora.

     —E você, milady? —perguntou cortesmente. — É você igualmente prendada em ditos cuidados?

     —O aroma da enfermaria me revolve o estômago e não suporto ver uma gota de sangue.

     Tão gráfica como sempre, uma razão mais pela que aquela dama nunca seria uma esposa adequada.

     —Então deduzo que não vem de visitar nenhum doente do povo — comentou assinalando sua cesta.

     —Não — respondeu vagamente, mas logo esboçou um misterioso sorriso.— Fui visitar a esposa de um granjeiro que acaba de ter um bebê.

     Henry estava escutando sua resposta quando viu na nuca de lady Mathilde uma pequena marca de nascimento que parecia o local perfeito para um beijo… um pequeno beijo, apenas o roce dos lábios contra a pele antes de dirigir-se a sua boca…

     Pelo amor de Deus, que demônio lhe ocorria?

     —Não deveria ter saído sozinha do castelo — disse em tom zangado, embora não com ela.

     —Por que não? Se pode saber? —perguntou. — Estas são minhas terras.

     Era evidente que tinha acreditado que estava molesto com ela porque, depois de tudo, não podia lhe ler a mente e dar-se conta de que com quem estava zangado era consigo mesmo. Não obstante, não deveria haver falado com tal brutalidade.

     —Ambos sabemos que Roald é um homem sem escrúpulos nem honra, por isso não acredito que duvidasse em sequestrá-la para conseguir o que deseja.

     Quando lady Mathilde voltou para olhá-lo, sua expressão era tão dura como a de qualquer homem.

     —Ao Roald não serviria de nada cometer tal estupidez.

     —Não? —respondeu Henry com sarcasmo. — Acaso acredita que sua irmã não lhe daria tudo o que pedisse se disso dependesse sua vida, milady?

     Lady Mathilde ficou em silêncio só um segundo antes de responder.

     —Não, não o faria — assegurou em tom desafiante.

     —Pois eu acredito que sim, não porque seja uma mulher e se supõe que é débil, mas sim porque vi mais de uma vez como o amor converte em vulnerável até ao homem mais forte — respondeu recordando que Merrick tinha estado a ponto de matá-lo a golpes porque tinha acreditado que tinha tentado sequestrar sua esposa.

     —Não penso me encerrar no castelo como uma menina assustada — esclareceu lady Mathilde com firmeza. — Não penso viver atemorizada por Roald.

     —Não estou dizendo que se encerre. Milady — assegurou enquanto tentava, em vão, imaginar aquela mulher assustada. — O que sugiro é que saia sempre escoltada do castelo. Não é tão horrível, não parece?

     —Não — admitiu com repentino cansaço.

     —Sei que não quer que ninguém pense que está assustada — disse enquanto caminhava junto a ela — Mas meu velho professor, sir Leonard, estava acostumado a dizer que uma coisa era ser valente e outra temerário; a temeridade pode lhe custar à vida. Eu recomendaria que tivesse precaução, milady.

     —Me perdoe — murmurou baixando a cabeça em um gesto mais próprio de sua irmã. — Uma vez mais tornei a me deixar levar pelo mau gênio. Não deveria me haver zangado quando você só pretendia me dar um bom conselho.

     Ao Henry também custava receber conselhos de alguém, fossem bons ou maus, e devia admitir que se comportou de um modo brusco, algo que não estava acostumado a fazer com as mulheres. O problema era que frequentemente via lady Mathilde como uma igual e não como uma mulher. Agora, entretanto se via obrigado a dar-se conta de que era uma dama, e jovem, além disso.

     —Não, milady, é você a que deve me perdoar. Não deveria lhe falar desse modo. Suponho que é culpa do calor, ou possivelmente a briga com Cerdic me tenha alterado o ânimo. — Isso a fez sorrir. Não era o sorriso mais alegre do mundo, mas ao Henry gostou de ver a de todas as maneiras. —Quando voltarmos ao castelo, milady — começou a dizer lhe oferecendo o braço— contarei como consegui derrotar seu corpulento amigo. Asseguro que ficará impressionada.

     Lady Mathilde segurou seu braço, outro gesto que Henry considerou como um triunfo.

     —Depois pedirei a Cerdic que me conte sua versão — prometeu ela com um sorriso que lhe dava razões para acreditar que podiam ser amigos, se não o eram já. — Mas suponho que a verdade estará a meio caminho entre ambas as histórias.

     Henry se pôs a rir, contente por ter feito as pazes com ela.

     —Ofende-me, milady… mas certamente tem razão.

 

     Sir Roald de Sayres cambaleava por uma rua mal iluminada cantarolando fragmentos de canções obscenas. Felizmente para ele, a lua cheia contribuía com sua luz e além aquilo era Westminster onde vivia o rei, e não os subúrbios. Um homem bem vestido e armado como ele não tinha motivos para temer que ninguém fosse atacá-lo ou o roubar por aquelas ruas.

     —Diga o que queira, eu gostarei do que diga — cantava desafinando.

     Mas não o importava se soava bem ou mau porque tinha a cabeça ainda no bordel de que acabava de sair. Só desejava ter podido ficar mais tempo, mas para isso deveria ter levado mais dinheiro consigo para pagar a essa deliciosa criatura de peitos grandes e pernas intermináveis que tinha estado disposta a dar prazer a qualquer um. Ou à encantadora morena que fazia algo se pagava o dinheiro suficiente.

     Quanto desejava ser rico para poder ir ali noite após noite.

     De repente recordou com satisfação que era rico. Bom, quase. Quão único tinha que fazer era reclamar Ecclesford. Iria ali muito em breve. Fazia já cinco… ou seis dias que tinha matado Martin. Possivelmente ainda tivesse dinheiro para uma noite mais antes de…

     De repente apareceu dentre as sombras um homem coberto dos pés a cabeça com uma capa e ficou em seu caminho. Em meio da escuridão parecia um ogro ou alguma outra criatura sobrenatural.

     —Sir Roald de Sayres? —disse uma voz áspera e profunda.

     Não era nem um ogro nem o demônio, disse Roald a si mesmo ao tempo que procurava a espada com a mão. Só era um homem. Um homem muito grande, mas mortal ao fim, um homem ao que o guarda não demoraria para capturar ou inclusive matar se o pedia um nobre como ele.

     O homem soltou uma gargalhada que resultava mais aterradora que sua voz.

     —Não se incomode em chamar o guarda. Não podem ajudá-lo. Desaparecerei antes que eles cheguem.

     Roald viu o brilho de uma espada que saiu de repente dentre as dobras de sua capa e cuja ponta sentiu depois no peito.

     —Não tenho dinheiro!

     —Sinto-o por você.

     O misterioso homem obrigou Roald a retroceder até ficar contra a parede mais próxima e a espada ainda no peito, então retirou o capuz da capa e deixou ver seu rosto… um rosto horrível cheio de feridas e cicatrizes. Deviam lhe haver quebrado o nariz ao menos duas vezes e faltava a maior parte de uma orelha.

     —Deve muito dinheiro ao Grêmio de Joalheiros.

     —Tudo isto é por uma dívida?

     A espada se deslocou lentamente ao coração de Roald.

     —Uma dívida muito grande, conforme ouvi. Tanto que estão dispostos a me pagar para que o obrigue a satisfazê-la.

     Esses pestilentos mercados.

     —Pagarei — assegurou Roald com altivez, seguro de que aquele vilão não o mataria. — Têm minha palavra.

     Mas a espada não se separou dele nem um milímetro.

     —Parece que acreditam que sua palavra não vale muito. Por isso me enviaram.

   —É que não ouviram que meu tio morreu? —replicou Roald, que parecia ligeiramente desesperado. — Agora tenho uma propriedade em Kent, assim podem estar seguros de que pagarei.

     A ponta da espada subiu até roçar o queixo de Roald.

     —A notícia chegou a seus ouvidos, mas se essa propriedade é sua, como é que não foi ali ainda?

     —Porque não vi necessidade de fazê-lo — respondeu Roald com toda a dignidade que pôde fingir tendo o fio da espada tão perto do rosto.

     De repente, a enorme mão esquerda daquele homem agarrou seu pescoço e o apertou contra a parede.

     —Tem duas semanas para pagar se não quiser que lhe corte um dedo e depois uma mão — a espada baixou até a virilha. — E depois outra coisa, assim até que salde a dívida. Entendeu milord?

   —Sim!—conseguiu dizer Roald.

     —Bem.

     Assim que o homem retirou a mão, Roald caiu ao chão de joelhos; as frias pedras da rua arranharam suas mãos e as pernas.

     —Quem demônio é você?

     —Não sabe? —disse o homem roendo-se. — Sou sir Charles De Mallemaison.

     Roald sentiu que gelava o sangue nas veias. Charles De Mallemaison era o mercenário mais temido de toda a Inglaterra, e possivelmente de toda a Europa. Tinha aparecido ao serviço de um senhor de Shropshire assegurando ser um cavalheiro de Anjou. Só um homem se atreveu a pôr em questão a nobreza de Mallemaison, e o tinham encontrado cortado em pedaços junto a um caminho; ninguém havia tornado a fazê-lo após.

     —Duas semanas — repetiu Mallemaison desaparecendo entre as sombras. — Mais vale que tenha todo o dinheiro ou começará a perder partes do corpo.

        

     Enquanto Roald voltava para casa apavorado pelo encontro com Charles De Mallemaison, Giselle dormia placidamente na enorme cama que compartilhava com sua irmã. Mathilde, entretanto caminhava de um lado a outro da estadia embelezada com uma camisola, uma bata e umas suaves sapatilhas de couro.

     A Giselle não atormentava os maus sonhos, pensou Mathilde. Nenhum remorso a impedia de dormir, nem a vergonha alterava seu descanso. Nenhum desejo luxurioso perturbava sua paz. Giselle era boa e estava livre de pecado; entretanto ela…

     Que outra coisa poderia sentir por sir Henry se não luxúria? Aquele dia junto ao rio só tinha tido que vê-lo com o cabelo molhado e a camisa ainda sem fechar para recordar, com incrível claridade, a imagem de seu corpo nu sobre a cama da estalagem… suas costas, suas nádegas firmes e suas pernas largas e fortes. A ideia de vê-lo nadar no rio levava dias sem deixá-la dormir.

     Mathilde tinha rido como há muito tempo ouvindo-o contar a história de seu falso combate com Cerdic. Sir Henry se esforçou por lhe fazer acreditar que sua vitória sobre o saxão tinha sido só questão de sorte, mas Mathilde estava segura de que não tinha sido assim. Tinha podido ver no brilho de seus olhos que estava orgulhoso de sua destreza de guerreiro e que se empenhou em vencer. Habilidade e determinação, uma combinação infalível.

     Consciente de sua própria debilidade, Mathilde se esforçava por recordar a si mesma que aquele jovial cavalheiro cuja mera imagem resultava tão excitante não estaria ali sempre… a menos que conquistasse o coração de Giselle. Por isso tinha tomado a decisão de manter-se a distância e assegurar-se de que sempre tivesse algo que fazer, algo que o afastasse dela e de sua irmã; seguindo esse plano, encarregou-se de que sir Henry passasse os últimos dias caçando ou passeando pela propriedade.

     Tinha insistido em que fosse sempre acompanhado de um guarda, assim como tinha pedido que fizesse ela. Conforme lhe explicou, ele também era vulnerável a um possível ataque. Sir Henry não se ofendeu por isso, limitou-se a rir desse modo tão encantador e depois disse que se alegrava de que se preocupasse tanto por ele.

     O certo era que sim se preocupava com ele… muito. Era tão bonito, que mal podia deixar de olhá-lo enquanto ele passeava pelo castelo ou falava com Giselle ou com o pai Thomas.

     Depois passava as noites acordada, rezando por apagar de sua memória a imagem de seu corpo e de seu rosto sorridente. Pedia a Deus que lhe desse forças para aplacar o desejo, um desejo que acreditava teria desaparecido para sempre após o engano cometido no passado, mas que, conforme tinha comprovado não tinha feito mais que ressurgir com mais intensidade e que lhe atormentava quando via sir Henry… e também quando estava só. Como era possível que sentisse tal tentação até sabendo o que ocorreria se se deixava levar por dito desejo?

     Mas assim era. Tinha estado a ponto de beijá-lo na primeira noite; o teria feito se o pânico não se apoderasse dela e não a tivesse obrigado a comportar-se como uma cria assustada.

     Aproximou-se da janela com um suspiro de resignação e olhou ao pátio iluminado pelas tochas. Os vigias estariam vigiando o caminho para avisar a todos se Roald se aproximava de Ecclesford.

     Fazia o suficiente para preparar-se para sua chegada?

     Tinham todos quão soldados podiam permitir-se e sem dúvida Cerdic os organizaria muito melhor que Martin, a quem Mathilde teria despedido imediatamente se ele houvesse dito antes que não estava disposto a receber ordens de uma mulher. Se seu pai tivesse estado mais forte no ano anterior, Mathilde lhe teria pedido que procurasse um chefe melhor para a guarnição, mas tinha estado muito doente para fazer algo e ela não tinha querido lhe dar mais problemas.

     Mathilde tinha desejado ser mais forte. E tinha desejado também que Roald não tivesse aparecido no ano anterior levando o desastre a Ecclesford.

     Aproximou-se da tina para lavar o rosto com a esperança de que a água fria afastasse de sua mente os pensamentos sobre Roald e sobre sir Henry, mas não havia água. Não importava, iria procurar na cozinha.

     Saiu ao corredor e olhou para a estadia de seu pai, que temporariamente era a de sir Henry. Comprovou com surpresa que saía luz por debaixo da porta.

     Estaria ainda acordado? Possivelmente tinha ficado dormido com uma vela acesa. Uma vez um convidado de seu pai tinha posto fogo a uma estadia por ter deixado uma vela acesa perto das cortinas.

     Fosse como fosse, não ia entrar naquela estadia na metade da noite sabendo que sir Henry estaria na cama e possivelmente… nu. Assim, dirigiu-se para as escadas com o empenho de não deter-se até chegar à cozinha.

     Mas ao passar pela estadia senhorial ouviu um gemido. Deus. Acaso tinha levado alguma mulher à cama? Seria tão libidinoso como Roald? Seria Faiga?

     Tentou convencer-se de que, enquanto as ajudasse a defender-se de Roald, não era assunto dela se se deitava com as faxineiras. Certamente Faiga teria ido gostosa com ele; Mathilde viu o modo em que a donzela cuidou de sir Henry no primeiro dia.

     Estava a ponto de começar a baixar a escada quando ouviu outro gemido que a fez pensar que sir Henry pudesse estar sofrendo algum tipo de dor. Estaria doente? Possivelmente tinha levado alguma enfermidade a Ecclesford.

     Pôs a mão sobre o passador da porta e abriu lentamente. Não havia fumaça, só tinha uma vela acesa sobre a mesa. Sir Henry estava na cama, mas sozinho, com os lençóis enrolados no corpo e o cabelo empapado em suor.

     Poderia ter algum tipo de febre. Claro que também era possível que se tratasse de um simples pesadelo. Quantas vezes ela tinha despertado empapada em suor por culpa de um mau sonho?

     Devia averiguar se estava doente pelo bem de todos os habitantes do castelo; não podia arriscar-se a que lhes contagiasse algo.

     Aproximou-se dele lentamente, caminhando nas pontas dos pés para não fazer ruído e, com a mesma precaução, pôs a mão no pulso.

     Não tinha febre, graças a Deus.

     Sir Henry abriu os olhos de repente e a agarrou pelo braço com força.

     —Constance! —gritou olhando-a fixamente. — Está a salvo?

     Mathilde sentiu que parava o coração para depois voltar a pulsar de maneira acelerada quando se deu conta de que não estava realmente acordado. O sonho continuava.

     —Sim, estou bem — sussurrou Mathilde perguntando-se quem seria essa Constance ao tempo que tentava escapar de sua mão. — Descanse sir Henry.

     Mas em lugar de relaxar, ele a apertou com mais força. Piscou várias vezes e então sim despertou.

     Mathilde se soltou dele e saiu correndo para a porta.

     —Não, não, nada disso! —exclamou ele lhe puxando pela bata até deitá-la sobre a cama.

     O pânico lhe deu forças para lutar contra ele, mas sir Henry pôs uma perna por cima das suas de maneira que ambos ficaram deitados de lado e olhando um ao outro.

     —Não vou fazer lhe mal! —disse brandamente. — Não se preocupe milady, não vou te machucar.

     Mathilde demorou vários segundos em assimilar aquelas palavras e conseguir tranquilizar-se. Finalmente o olhou aos olhos, ainda com a respiração acelerada.

     —Prometo que não vou fazer nenhum dano — repetiu ele.

     —Então me solte!

     —Encantado — disse lhe soltando as mãos e retirando a perna.

   Mathilde ficou de pé de um salto e se voltou de novo para a porta, mas ele foi atrás dela uma vez mais.

     —Não terminamos milady — disse com voz firme. Sir Henry seguiu seu olhar quando Mathilde comprovou com grande alívio que levava calças. — Desta vez tomei precauções — sussurrou com um pícaro sorriso nos lábios.

     Mas ela não via nada de divertido na situação.

     —Sir Henry, deixe que vá — exigiu embora por dentro se sentisse profundamente envergonhada de estar ali.

     Ele negou com a cabeça.

     —Não até que me diga por que entrou nestes aposentos. Não acredito que fosse me matar, porque suspeito que em tal caso já estaria morto. Acaso se diverte penetrando nas estadias dos homens?

     Mathilde fechou bem a bata tentando recuperar sua maltratada dignidade.

     —Ouvi-o queixar-se de dor de fora e entrei no caso de estar doente.

     —Já vejo — disse tomando uma taça que havia na mesinha. — Quer um pouco de vinho, milady?

     —Não, obrigado — respondeu ela apesar de ter a garganta seca, mas ainda estava tremendo e não queria que ele o notasse se estendia a mão.

     —Desculpe se bebo sozinho, tenho muita sede.

     Ela aproveitou para dar outro passo para a porta.

     —Agora que já sabe por que entrei e sei que não está doente…

     —Sinto se a assustei — a interrompeu cravando nela seu olhar. — Embora você também me deu um susto de morte.

     —Eu? —perguntou, surpreendida de que um cavalheiro admitisse algo assim.

     —Não temo a nada estando acordado, mas quando durmo — encolheu de ombros. — Como eu gostaria não ter que dormir jamais…

     —A mim também.

     As palavras saíram de sua boca antes que pudesse dar-se conta e, ao ver a expressão de sir Henry, desejou haver-se controlado.

     —Também você teve um mau sonho? —perguntou ele ao tempo que jogava mão da camisa que tinha deixado sobre a cadeira.

    —Não, ainda não tinha me deitado — respondeu Mathilde, agradecida de que fosse cobrir-se.

     —Suponho que estará preocupada com Roald — disse ele. — Se me permitir uma sugestão sobre a guarnição, milady…

     Sir Henry era um cavalheiro treinado na arte da guerra, em suas estratégias e técnicas, por isso Mathilde teria sido uma parva se não quisesse escutar sua opinião.

     —Adiante.

     —Seus soldados carecem de disciplina e muito temo que se Roald decida atacar, semearia o caos em Ecclesford.

     —Mas Cerdic é um dos homens mais valentes e fortes de toda a Inglaterra.

     —Não duvido de sua valentia, milady — assegurou sir Henry apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o peito. — Mas tenho a sensação de que é dos que ataca sem seguir a menor estratégia. Muito temo que não tenha a capacidade de ficar na retaguarda e ordenar as tropas.

     Mathilde sentiu um calafrio ao escutar tão desesperançosa descrição de seus homens.

     —Os soldados o querem e o respeitam — disse a modo de desculpa.

   —Pode ser, mas não acredito que temam contradizer ou inclusive desobedecer a suas ordens.

     Aquilo a fez franzir o cenho.

     —Meu pai nunca se valeu do temor para governar sua gente.

     —Não estamos falando de governar, milady — explicou com amabilidade. — No campo de batalha um soldado deve seguir as ordens sem parar para pensar, porque um só segundo pode custar à vida a ele e a muitos mais. Um subordinado deve obedecer não só por medo de perder ou de morrer, mas também por medo a fazer se zangar seu superior.

     —Suponho que esse será o estilo normando — deduziu ela. — Mas Roald não é normando, tampouco nunca dirigiu um exército nem atacou um castelo.

     —Mas pode contratar alguém que sim o tenha feito igual você procurou minha ajuda. Enquanto seus sentinelas passam o dia conversando como se estivessem em um botequim; todos seus homens parecem acreditar que suas principais tarefas são comer, beber e divertir-se.

     O certo era que Mathilde tinha notado a falta de disciplina da que falava sir Henry, mas tinha a esperança de que, chegado o momento, seus homens soubessem reagir como deviam.

     —A disciplina não é algo que alguém tome e deixe conforme seja necessário ou não — disse ele como se tivesse lido seus pensamentos . — O que ocorrerá se Roald aparecer com um exército e seus homens não estão preparados?

     —Temos homens por todos os caminhos que se dirigem a Ecclesford, por isso não é necessário que haja vigilância contínua nas ameias.

     —Isso espero, por seu bem e o de todos os seus — dizendo isso, afastou-se da mesa e deu um passo para ela com uma expressão no rosto que jamais lhe tinha visto. — A margem de que pense que seus homens estão preparados, eu gostaria que deixasse me pôr ao mando da guarnição enquanto estou aqui: eu me asseguraria de que de verdade o estão.

     A oferta a pegou despreparada.

     —Faria isso por nós?

     —Se você me permitir isso. Depois de tudo, não tenho nada que fazer em todo o dia; ninguém pode ficar tanto tempo caçando e passeando — acrescentou com um sorriso.

     Poderia ensinar algo útil aos soldados. Além disso, pensou Mathilde, isso o manteria ocupado e afastado de Giselle todo o dia. Não tinha visto sinal algum de que sua irmã se sentisse atraída por ele, mas era um homem fascinante.

     —De acordo, sir Henry, muito obrigado.

     —Graças a você, milady — disse inclinando a cabeça. — Espero não decepcioná-la nem fazer que lamente sua decisão —terminou com uma piscada de picardia.

     Era tão bonito, tão alegre e encantador, inclusive quando falava de assuntos tão sérios. Aquele homem fazia que sentisse que tudo ia sair bem, igual seu pobre pai.

     O pai cuja morte tinha acelerado com sua vaidade e seu estúpido desejo.

     Dessa vez sim conseguiu chegar à porta e, dali, voltou-se para dizer:

     —Desejo-lhe boa noite, Sir Henry. Espero que possa voltar a dormir.

     —E eu lhe desejo que descanse milady — respondeu ele. Antes que pudesse partir, sir Henry se aproximou dela e pôs uma mão sobre a sua. Sentiu o calor de seu corpo junto a ela. Seu aroma. —Que durma bem, milady.

     Mathilde retirou a mão e saiu da estadia com a completa segurança de que não poderia fazê-lo.

 

     —Vai pôr a esse normando acima de mim? —perguntou Cerdic sem dar crédito ao que acabava de ouvir.

     Mathilde sabia desde o começo que Cerdic não se alegraria de sua decisão, mas isso não tinha feito que resultasse mais fácil comunicar-lhe. O saxão a olhava como se acabasse de lhe cravar uma faca nas costas e Giselle, que tinha chegado com ele à sala, parecia acreditar que tinha perdido a cabeça.

     Apoiado na parede com os braços cruzados sobre o peito e uma atitude de completa relaxação, Sir Henry presenciava a confrontação como se não estivesse comprometido no ocorrido, como se não tivesse sido ele precisamente o que tinha sugerido a mudança de mando à frente da guarnição.

     —É uma medida temporária — assegurou Mathilde a Cerdic, tentando não deixar-se distrair pela presença do normando. — Quando sir Henry partir voltará a tomar o mando.

     —Não pode estar falando a sério! —protestou Giselle levantando-se da cadeira para colocar-se junto a Cerdic. — Que volte a tomar o mando? Por que teria que perdê-lo?

     —Roald poderia aparecer acompanhado de todo um exército para fazer-se com Ecclesford — explicou Mathilde. — Devemos fazer tudo o que esteja em nossa mão para estar preparados. Sir Henry se ofereceu para treinar nossos homens para que saibam como defender a propriedade e eu acredito que devemos aceitar seu oferecimento. Não tome como uma crítica para ti, Cerdic.

     O olhar do saxão se cravou sobre sir Henry com hostilidade antes de voltar para Mathilde.

     —Contou que me derrotou, verdade? Só teve sorte.

     —Pode ser que fosse sorte, mas também pôde ser uma questão de destreza. Sir Henry foi discípulo de um dos cavalheiros mais famosos da Inglaterra. Por que não aproveitar a oportunidade?

     Giselle lançou um olhar assassino a sir Henry e depois se dirigiu a sua irmã.

     —Quanto dinheiro te pediu por esta ajuda extra? —perguntou com venenosa desconfiança.

     —Não pedi nenhum tipo de retribuição — se apressou a responder o aludido com surpreendente calma.

     Mathilde recordava quanto se zangou na estalagem quando tinha cometido o engano de lhe oferecer dinheiro em troca de que as ajudasse, o que queria dizer que não se zangou realmente aquela vez, ou agora estava controlando-se magnificamente. Havia algo em seu olhar que dizia que era o segundo. Em tal caso, Mathilde estava impressionada e aliviada por seu comportamento; teria resultado muito incômodo que ele também começasse a discutir.

     —Não confio nele — admitiu Cerdic sem rodeios.

     —Eu tampouco — disse Giselle, desafiando Mathilde a contradizê-la.

     Mathilde estava decepcionada por sua reação, mas não a surpreendia, pois ela também tinha desconfiado dele ao princípio. E inclusive agora resistia a confiar nele plenamente.

     Sir Henry se encolheu de ombros e disse:

     —Só têm que confiar no ódio que sinto por Roald.

     Mas Giselle juntou as mãos como se fosse ficar a rezar e olhou a sua irmã com gesto suplicante.

     —Pelo amor de Deus, Mathilde, como pode ser tão confiada depois de tudo o que passaste?

     Por um instante, Mathilde temeu que Giselle fosse fazer pública sua vergonha diante de sir Henry.

     —Não sou ambicioso e quando digo que não quero pagamento algum, digo completamente a sério — declarou sir Henry com uma boa dose de indignação que deixou muda a Giselle. — Devo dizer milady, que me resulta interessante que você deixe a sua irmã toda a responsabilidade de levar a casa e a preparação para defendê-la e depois não tenha reparo em pôr em julgamento suas decisões.

     Agora era Mathilde a surpreendida e, embora jamais o teria confessado, também se sentiu satisfeita de que sir Henry tivesse saído em sua defesa.

     Giselle se ruborizou, mas não recuou um ápice.

     —Se Mathilde se faz cargo da casa não é porque eu seja preguiçosa, sir Henry. Depois do que aconteceu a última vez que Roald esteve aqui, pensei que se estava ocupada, não pensaria tanto na infâmia de nosso primo.

     Aquelas palavras provocaram em Mathilde uma pontada de culpa. Era certo que Giselle tinha ido lhe deixando pouco a pouco as tarefas da casa da marcha de Roald, e a ela nunca tinha ocorrido expor-se se realmente gostava de passar tantas horas costurando ou atendendo aos doentes enquanto deixava todo o resto a sua irmã menor… renunciando também ao respeito que suportavam suas obrigações.

     —Giselle, eu não…

     —Te esqueça agora disso — interrompeu sua irmã.— O que importa neste momento é que te dê conta de que sir Henry não deveria ficar ao mando da guarnição. Embora só seja porque é uma afronta a Cerdic.

     —Está disposta a deixar que Roald se apodere do castelo só por não ofender Cerdic? —perguntou então sir Henry. — Lamento insultar sua inteligência, milady, mas deu uma olhada à guarnição ultimamente? Pode ser que lutem bem de maneira individual, mas carecem de toda disciplina e suas armas se encontram em condições lamentáveis. Duvido muito que atendam a qualquer tipo de ordens durante uma batalha; farão o que lhes agrade e acabarão todos mortos. Se isso for o que quer, rechace minha ajuda, mas se não for assim, estará de acordo com sua irmã em que devo me pôr ao mando até que volte Roald.

     —E se não voltar, quanto tempo ficará aqui este normando, comendo nossa comida e bebendo nosso vinho? —perguntou Giselle a sua irmã como se o homem de que falava não pudesse ouvi-la.

     —Ficará até que saibamos com segurança o que pretende Roald ou ele mesmo dita partir — respondeu Mathilde apesar de que sir Henry e ela não o tinham discutido.

     Mas ele não protestou.

     —Os homens não o aceitarão — grunhiu Cerdic.

     Mathilde se deu conta de que estava algo mais tranquilo, embora sem dúvida seguisse zangado, mas possivelmente houvesse esperança de que aceitasse a mudança.

     —Fá-lo-ão se o faz você — disse ela. — Aceite sir Henry como comandante da guarnição, Cerdic, seja o primeiro em fazê-lo.

     Giselle, entretanto, seguia sem estar absolutamente convencida.

     —Como podemos estar seguros de que não tentará nos arrebatar Ecclesford?

     —Como ia fazer tal coisa? —perguntou Mathilde, envergonhada de que sua irmã se atrevesse a dizer algo assim. Depois daquilo, não a teria surpreendido que sir Henry tivesse anunciado que partia. — Inclusive no caso de que fosse capaz de algo tão desonroso, não tem direito algum por lei, nem ninguém que o ajudasse a fazê-lo. A única maneira que teria de fazê-lo seria casando-se contigo.

     Giselle se ruborizou para ouvir tal possibilidade, mas não porque desejasse converter-se em esposa de sir Henry e o tivessem descoberto. Mas bem parecia que jamais tivesse ouvido uma ideia que lhe resultasse menos atraente.

     —Não tenho intenção alguma de me casar com sir Henry.

     —Então não tem por que temer que nos arrebate Ecclesford.

     Mesmo assim, Giselle seguia sem acalmar-se.

     —Você melhor que ninguém deveria saber que um homem sem escrúpulos sempre encontra o modo de conseguir o que deseja.

     —Eu não sou um homem sem escrúpulos — declarou Sir Henry severamente, lhes recordando uma vez mais que era um guerreiro nobre que ganhava a vida lutando e não um cortesão cujo único passatempo era a busca do prazer.

     Agora sim que havia se sentido insultado. Iria e ficariam não só sem sua presença e sem o poder que lhes dava sua posição social, perderiam também a oportunidade de contar com sua ajuda para dirigir à guarnição.

   Foi então quando Cerdic deu um passo adiante e pôs a mão no ombro de Giselle.

     —Pode ser que este normando possa nos ensinar algo. O mais importante neste momento é proteger Ecclesford, sua irmã e a ti.

     Mathilde esteve a ponto de tornar-se a chorar de alegria. Contava com o apoio de Cerdic…

     —Está bem!—acabou por dizer Giselle com gesto de resignação. — Que ele dirija a guarnição se for isso o que querem. Vós dois sabem disto mais que eu.

     E saiu da estadia sem dizer nada mais.

     —Tentarei acalmá-la — sugeriu Cerdic dirigindo-se a Mathilde antes de sair atrás de Giselle.

     Mathilde soltou o ar que tinha estado contendo e se apoiou na mesa.

     —Bom, foi melhor que o esperado — comentou sir Henry de onde se encontrava, junto à janela.

     —Melhor? —repetiu ela com incredulidade. —Foi horrível. Giselle jamais perde os nervos dessa forma e nunca tínhamos discutido.

     —De verdade?—respondeu aproximando-se dela. —Meu irmão e eu sempre estamos discutindo.

     Possivelmente ele não tivesse boa relação com seu irmão, mas Giselle e ela sempre se deram de maneira excelente. Mathilde não estava acostumada a esse tipo de conflitos.

     —Já verá como logo esquece milady — disse em tom tranquilizador. — Se dará conta de que temos razão. Sua irmã está equivocada, atua por lealdade a Cerdic, sei, mas mesmo assim se equivoca. Ao menos ele acabou por nos dar razão.

     —Sim, é certo — e resultava reconfortante que o tivesse feito.

     —Se não consigo que melhorem as coisas, poderá me jogar daqui.

     Sir Henry falava com calma e otimismo, como se não acabasse de presenciar como punham em dúvida sua honra.

     —Sinto muito que o tenham insultado.

     —Ah, não se preocupe — disse lhe tirando importância. — Não é a primeira vez que alguém me faz um desprezo.

     Essa era uma maneira muito suave de descrever as coisas que haviam dito Giselle e Cerdic. Certamente Sir Henry era um homem incrivelmente amável e pormenorizado, especialmente tendo em conta que era um cavalheiro; um cavalheiro bom e generoso.

     Mathilde se separou da mesa e começou a caminhar pela estadia para pôr algo de distância entre sir Henry e ela.

     —De todos os modos, quero lhe pedir desculpas.

     —Aceito-as encantado — respondeu com um tom de voz que a fez sentir… algo que não devia.

     Agarrou-se a uma cadeira para tentar controlar a necessidade que sentia de lhe pedir que partisse dali. Também ela poderia ir, mas então ele teria notado seu desconforto e seu nervosismo e isso era algo que não podia permitir. Não queria que nem ele nem nenhum outro homem pensasse que era uma mulher débil ou assustadiça.

     —O que é o primeiro que fará como novo comandante da guarnição? —perguntou para deixar de pensar.

     Mas não pôde evitar fixar-se em suas mãos enquanto ele refletia. Eram umas mãos fortes e curtidas pelo sol; mãos de guerreiro.

     Mãos de amante, pois sem dúvida teria tido muitas mulheres. Como poderia ser de outro modo com esse rosto e esse corpo?

     Mathilde nunca saberia como seria que um homem assim a cortejasse.

     —Antes de nada deveríamos reunir a todos os homens e lhes dar a notícia.

     —É obvio — respondeu em tom formal apesar da natureza dos pensamentos que se amontoavam na cabeça.

     —Também deveria revisar tudo o que há no arsenal… Terá um arsenal, verdade?

     Até o modo em que arqueava uma sobrancelha ao perguntar resultava atrativo.

     —Na torre de comemoração.

     —Mais tarde comprovarei o que sabem fazer e o que não, e depois disso… — continuou dizendo com um malévolo sorriso que a ponto esteve de fazê-la derreter— terão que correr. E muito.

     —Correr? —repetiu ela como uma parva.

     Ele sorriu com satisfação.

     —Certamente. Acabarão me odiando.

     Sir Henry tinha explicado que os soldados deviam temer a seu superior, mas lhe resultava difícil acreditar que alguém pudesse odiar a um homem tão amável e encantador como ele.

     —De verdade quer que o odeiem?

     —Claro que sim — respondeu com uma gargalhada, mas depois se aproximou dela e baixou a voz como se fosse lhe contar um segredo. — Verá, milady. Quanto mais odeiam ao homem que os treina, mais se unem os soldados entre si. É bom que se acostumem a estar unidos frente a um inimigo comum.

     —Nunca o tinha pensado — de repente se deu conta do perto que estava…

     Perigosamente perto.

     Aterradoramente perto. O coração começou a pulsar com força e se sentiu enjoada.

     —O que ocorre? —perguntou ele, repentinamente sério — Se encontra mal?

     Mathilde levou a mão à testa enquanto tentava apagar de sua mente as lembranças, o pânico. Aquele homem era Henry, não Roald.

     —Não, não. Estou bem.

     —Não é certo, tem muito má cara — insistiu ele. — Senta-se enquanto vou procurar sua irmã.

     —Não! Não é nada — se apressou a dizer ao ver que se dirigia à porta. — Só estou um pouco cansada. Ultimamente não durmo muito bem.

     —Sim, sei — disse brandamente, com uma compreensão que resultava ainda mais atraente que seu sorriso. — Falemos agora com os homens e deixaremos o do arsenal para outro momento, quando não estiver tão cansada e não acabe de discutir com sua irmã.

     Era boa ideia, porque o último que desejava naquele momento era estar a sós com ele, já fosse vendo armas ou em qualquer outro lugar.

     —Vamos, milady? —perguntou tendendo o braço.

     —Obrigado — disse ela agarrando-se a ele, mas tentando não sentir o calor de seu corpo enquanto se deixava levar para o pátio.

        

     Do lugar que ocupava junto à lady Mathilde no alto dos degraus que conduziam ao pátio, Henry observou as caras dos homens que ali tinham reunido. À maioria deles não fazia nenhuma graça o que acabavam de ouvir. Muitos deles se olhavam entre si e vários se mostravam abertamente hostis à notícia, eram esses que teria que vigiar com mais atenção. Se não aceitavam a mudança, teriam que partir. A falta de unidade entre os soldados era como uma enfermidade que podia estender-se até que toda a guarnição estivesse infectada.

     Quanto à dama que tinha ao lado, Henry se perguntava o que pensaria realmente de tudo aquilo. Não duvidava que se sentisse agradecida pelo oferecimento que fez e que a discussão com lady Giselle e com Cerdic a aborreceu profundamente. Mas à margem disso, lady Mathilde era um autêntico mistério para ele; resultava ainda mais difícil compreendê-la que a nenhuma outra mulher que tinha conhecido.

     —Assim, terão que acatar as ordens de sir Henry como acatariam as de lady Giselle ou as minhas — concluiu lady Mathilde.— Se não o fizerem, terão que partir de Ecclesford imediatamente e pagarei o tempo que levem conosco.

     Henry não esperava por isso, assim esperou para ver quem aceitava o oferecimento.

     —E Cerdic, milady? —disse um dos homens. — Aceitará a mudança?

     —Será o segundo ao mando depois de sir Henry.

     Cerdic deu um passo adiante. Apesar da aparente conformidade que tinha mostrado antes, Henry temia que agora se opusesse à mudança: em tal caso sua nova liderança estaria condenada ao fracasso.

     —Sim, o aceito — afirmou Cerdic com voz firme.

     Henry se sentiu aliviado e lhe pareceu que lady Mathilde tinha relaxado um pouco os ombros: por isso deduziu que também a preocupava o que pudesse dizer o saxão.

     —O aceito porque assim o ordena minha senhora e eu sou seu leal servidor — continuou dizendo. — Lutarei até a morte pelas damas de Ecclesford como prometi. Se houver alguém que não vá obedecer ao normando como me obedeceria, deve partir agora mesmo. Se forem deixar que este normando acredite que somos uns covardes, parte. Se não querem aprender as técnicas de combate normandas, aí têm a porta. Eu certamente sim quero. Vamos demonstrar a este normando e também a sir Roald, se aparecer, que estamos à altura de qualquer que queira enfrentar a nós.

     —Sim! —gritaram os homens como se fossem um só e levantando os punhos ao ar. — Sim!

     Henry reprimiu um sorriso de satisfação. Não acreditava que Cerdic pudesse haver dito nada melhor para garantir que os soldados obedecessem e desejassem aprender.

     O saxão se aproximou de Henry e, enquanto os soldados seguiam aplaudindo suas palavras, pôs uma mão no ombro e sorriu como se fossem grandes amigos. Mas lhe disse entre dentes:

     —Nunca confiarei em um normando.

     Henry se sentiu decepcionado, mas não deveria ter ficado surpreso. Depois de tudo, tinha usurpado seu posto. Assim, ocultou a decepção, sorriu também e falou sem mover os lábios.

     —Não o faça. Limite-se a aprender e a obedecer.

     Ao longe se ouviram os sinos da igreja do povo. Soaram três vezes, calaram-se e logo outras três vezes, às que seguiu um silêncio como de morte. Todo mundo ficou imóvel no pátio.

     Henry não sabia o significado daquelas badaladas, mas sentiu um calafrio ao voltar-se para olhar lady Mathilde, que tinha ficado pálida como se aquele som acabasse de anunciar o fim.

     —O que ocorre? O que significam essas badaladas? —perguntou com certo medo.

     —Roald está aqui.

 

     Roald atravessou o povo de Ecclesford escoltado por dez homens e seguido por um carro que transportava todo o necessário para sua maior comodidade. Olhou a seu redor e franziu o cenho.

     Tudo estava deserto, não havia o menor movimento à exceção de umas galinhas que bicavam o chão e o latido ocasional de algum cão. Era como se a peste tivesse arrasado a aldeia matando a todo mundo.

     Sentiu um calafrio até que se deu conta de que se fosse assim, também teriam morrido os donos da estalagem aos que tinha visto há um momento. Não, os aldeãos deviam estar escondidos em alguma parte. Estúpidos populares. O que pensariam que ia fazer com eles, matá-los? Quem trabalharia suas novas terras se fizesse isso?

     A escolta tinha começado a comentar a excessiva tranquilidade reinante. Roald se voltou para olhá-los com fúria.

     —Não pago para que falem.

     Voltou a olhar à frente de novo e se sentiu menos incomodado ao ver ante si o castelo do que logo seria amo e senhor. Era menor que muitos outros, mas era o bastante cômodo. Além disso, o valor de Ecclesford não residia em suas fortificações a não ser nas férteis terras que os rodeavam e sua magnífica localização, perto do caminho que unia Londres a costa. Por não falar das moedas que sem dúvida teria armazenado ali seu tio.

     O portão da muralha estava fechado, o qual era muito estranho porque o defunto senhor de Ecclesford sempre o deixava aberto. Possivelmente essa harpia de Mathilde e sua formosa irmã queriam estar tranquilas durante o duelo pela morte de seu pai, pensou Roald sem compreender a debilidade feminina.

     Mathilde poderia chorar ao velho tudo o que desejasse uma vez estivesse encerrada em um convento. Assim que Giselle… Roald tinha outro tipo de planos para ela.

     Ao chegar junto à muralha, Roald ouviu uma voz que reconheceu imediatamente.

     —Quem vai?

     Esse bruto.

     —Abre imediatamente! —gritou Roald.

     —Ah, é você, sir Roald — respondeu Cerdic. — Não o tinha reconhecido com esse traje tão elegante.

     Roald não baixou o olhar para a luxuosa capa bordada que ainda tinha que pagar.

     —Abre já a porta, estúpido!

     —Encantado, milord… mas só a você. As damas de Ecclesford deram ordens de não deixar entrar seus homens.

     Roald levantou a vista com incredulidade.

     —Exijo que abra as porta imediatamente e nos deixe entrar!

     —Só sigo ordens, sir Roald — respondeu Cerdic com calma. — Não acredito que você queira que desobedeça a minhas senhoras.

     —Eu sou o herdeiro de Ecclesford!

     —Não de acordo com o testamento do defunto senhor.

     Certamente esse bruto só entendia a base de golpes ou de dinheiro.

     —Chame as damas.

     O forte guerreiro cruzou de braços.

     —Temo que não, milord. Suas ordens foram muito claras; devo permitir o passo a você, mas sua cortesia não inclui os homens que tantos problemas causaram a última vez.

     Isso era algo que Roald não podia negar. Tampouco desejava passar mais tempo ali, como um mendigo as portas de seu próprio castelo. Assim, fez um sinal ao chefe da escolta e ordenou que se retirasse com todos seus homens.

     —Agora abre a porta! —exigiu quando os cavalos se afastaram a caminho do povo.

     As enormes portas de madeira se abriram por fim, mas antes que Roald pudesse atravessar a soleira, aproximou-se um homem que se deteve diante de seu cavalo. Um segundo depois apareceu também Cerdic, escudo e tocha em mão.

     —Como já hei dito as damas não desejam ter nenhum problema — anunciou com um sorriso petulante no rosto.

     Algum dia apagaria esse sorrisinho de um golpe, prometeu a si mesmo Roald enquanto se dirigia finalmente para a porta do grande salão; isso sim, escoltado por ambos os homens.

     Ele não era nenhum prisioneiro, era nem mais nem menos que o senhor daquele castelo. Aquelas eram suas terras e o dinheiro que se guardava dentro também lhe pertencia.

     Sem dúvida tudo aquilo era obra de lady Matilde, mas ele a faria pagar por tudo.

     Suas primas iriam lamentar profundamente havê-lo recebido desse modo, mas sobre tudo Mathilde. Encontraria para ela o convento mais espartano, em que a encerraria para sempre. A Giselle a faria suplicar antes de…

     Ninguém lhe abriu a porta do salão, teve que fazê-lo ele mesmo e, nada mais abrir, viu a cadela de Mathilde tratando de fulminá-lo com o olhar do alto do soalho, tão impertinente e orgulhosa como se fosse uma rainha.

     Não tinha se comportado com tanto orgulho a última a vez que a tinha visto, a lembrança aplacou ligeiramente sua fúria.

     A bela Giselle estava ao seu lado, com um vestido cor Borgonha que moldava seu corpo à perfeição. Estava bordado no pescoço e nos punhos. Certamente o teria feito ela, que passava o dia costurando e atendendo a doentes e feridos leves.

     Ao ver o homem que havia junto a elas, Roald teve que reprimir um juramento. Que demônios fazia ali D’Alton? Sem dúvida teria ido ao aroma daquela beleza que pretendia herdar uma fortuna. Esse Henry devia estar louco ou ser ainda mais arrogante do que parecia se acreditava que ele ia permitir uma aliança entre suas famílias.

     —Bom dia, Giselle, Mathilde. Sinto muito a morte de seu pai.

     —De verdade? —perguntou Mathilde arqueando uma sobrancelha.

     Mas, quem acreditava que era essa mulher? Acaso tinha esquecido sua última visita? Tudo o que lhe havia dito. E tudo o que tinha feito.

     —Claro que sinto que tenha morrido, embora já fosse velho e estava doente e todos têm que morrer.

     —Sim — assentiu ela. — Todos devemos morrer, mas alguns merecem morrer antes que outros.

     Roald não tinha ido até ali para discutir com ela.

     —Mathilde…

     —Acredito que já conhece nosso convidado — o interrompeu assinalando o normando.

     —Não acredito que seu primo se alegre de ver-me — sugeriu D’Alton em tom zombador.

     —Pois não, não me alegro — replicou Roald ao tempo que subia ao soalho. — O que faz aqui? —perguntou a Giselle.

     Mas ela não respondeu, só se ruborizou e depois se ocultou atrás de sua irmã e o normando sem terra.

     —Sir Henry veio nos visitar respondendo a nosso convite — respondeu Mathilde.

     —Não sei o que lhes haverá dito este patife para que o convidassem a meu castelo…

     —Eu o convidei, Roald e este não é seu castelo.

     A ira de Roald não fez mais que aumentar.

     —Não te faça à parva, Mathilde. Ecclesford me pertence. Sou o único varão que fica na família, o que me converte em legítimo herdeiro das terras. Como tal, ordeno a este inseto normando que parta imediatamente.

     —Não — se limitou a dizer Mathilde.

     Roald levou a mão à espada.

     —Eu sou o senhor desta propriedade e digo que…

     —Não, não o é — se atreveu a dizer D’Alton interpondo-se entre ambos.

     Um murmúrio as suas costas fez que Roald se voltasse para trás. De onde tinham saído todos esses soldados?

     Voltou a olhar sua insolente prima.

     —Vai atrever-te a me atacar depois de me obrigar a entrar sem meus homens? —perguntou com a suspeita de que tinha caído em uma espécie de armadilha.

     A animação se refletia no olhar de D’Alton e seu tom de voz era tão arrogante como sempre.

     —Estes homens estão aqui para assegurar-se de que não desencape a espada, Roald, assim não te ocorra mostrar o menor sinal de violência ante estas damas.

     Roald olhou o normando de cima a baixo antes de responder.

     —É evidente que minhas primas não estão à par de sua reputação.

     —Sempre me comportei como um verdadeiro cavalheiro com as mulheres, já seja de alta ou baixa linhagem, e não encontrará uma pessoa que diga o contrário.

     Roald soprou com desprezo.

     —Me ocorrem um par de maridos que não estariam de acordo — sorriu ao ver o desconforto que suas palavras provocavam em sua prima. — O que ocorre, Mathilde? É que não te há dito a quantas esposas de outros homens seduziu?

     —Sou perfeitamente consciente de que sir Henry não é casto — afirmou a aludida. — O deixou muito claro a primeira vez que o vi, mas suas relações anteriores não são meu assunto.

     —Seu passado deveria preocupar-te e muito —insistiu Roald— Não acredito que te haja dito que o acusaram de traição por conspirar contra o rei.

     Os olhos de Mathilde revelaram sua surpresa.

     —Se estou aqui agora, é evidente que sortes acusações careciam de todo fundamento — respondeu D’Alton com aparente tranquilidade, e a seguir teve a audácia de olhar Roald como se fosse um inseto ao que desejasse esmagar.

     —Entretanto até seu melhor amigo te acreditou capaz de tal traição — disse Roald com ironia. —Se supunha que fosse uma mulher inteligente, Mathilde. Que te ocorreu? É que não te dá conta de que não se pode confiar nele, que é um patife que só quer casar-se para fazer-se rico? Por que se não teria aceitado o convite para vir aqui?

     —O que me ocorreu? —repetiu Mathilde. — Que me topei contigo. Você me ensinou o que era o engano, Roald, e se houver alguém aqui em quem não se pode confiar, sem dúvida é você.

     —Rompe-me o coração, querida.

     —Você não tem coração… E tampouco tem direito algum sobre Ecclesford! O testamento de meu pai o estabelece claramente e, como pode comprovar, não nos faltam amigos influentes.

     Roald sentiu que avermelhava o rosto. Não ia permitir que aquela harpia pensasse que tinha medo e muito menos daquele inútil normando.

     —Influentes É isso o que há dito? Esse homem não tem mais influência que o moço de quadras do rei.

     —Sua família…

     —Pode ser que seu irmão tenha certo poder na corte escocesa, mas não na da Inglaterra, e sua irmã está casada com um escocês sem a menor importância.

     —É chefe de um clã — corrigiu Mathilde.

     —Então terá certo prestígio… entre os selvagens.

     D’Alton pôs-se a rir.

     —Sua ignorância me surpreende Roald… claro que tampouco te considerei um modelo de sabedoria.

     —A mim o que me surpreende é sua audácia — se mofou Roald. — Como se atreve a nos olhar o rosto e fingir que é minimamente influente?

     Mathilde já não aguentava mais Roald não podia com suas brincadeiras, suas mentiras e nem sequer com sua presença só vendo-o lhe revolvia o estômago e o aroma de seu perfume lhe provocava arcadas. Teve que fazer uso de todo seu autocontrole para não sair correndo.

     —Pode ser que seja o último varão da família, mas meu pai deixou Ecclesford a Giselle e a mim.

     —Sabe tão bem como eu que seu pai estava muito doente quando mudou o testamento, por isso ninguém o considerará válido — replicou Roald. — Suas faculdades mentais não estavam em condições, assim deve prevalecer o testamento anterior, no que me nomeava herdeiro.

     Mathilde deu um passo adiante cravando sobre ele um olhar assassino.

     —Sabe perfeitamente que meu pai tinha bons motivos para mudar o testamento e que estava em condições de saber exatamente o que estava fazendo.

     —Se seu pai estivesse estado em seu são julgamento, te teria expulsado de sua casa por prostituição.

     Roald soube que tinha dado no alvo ao ver o gesto de pavor de sua prima, mas houve outra coisa que alegrou o coração ainda mais. O normando olhou Mathilde de um modo que dava fé de que não tinha a menor ideia da classe de mulher que era realmente.

     —Não te contou nosso pequeno encontro, verdade? —perguntou com atitude triunfal. — Nem por que deseja tanto vingar-se de mim? Neguei-me a me casar com ela… apesar de todos seus esforços.

     Mathilde sabia o que estava a ponto de ocorrer. Roald ia revelar a verdade. Desejava gritar, pedir-lhe que se calasse, mas tinha um nó na garganta que a impedia de respirar e muito menos falar.

     —E vá se fez esforços, certamente que sim, não é assim, Mathilde? —continuou Roald burlando-se de sua vergonha. — Mas eu não quis me casar com ela nem sequer depois de que tivesse vindo aos meus aposentos e se entregou a mim.

   O peito encolheu tanto como a garganta enquanto Roald continuava destroçando sua honra e sua vida.

     —Soluçou e chorou e tentou me obrigar a que tomasse como esposa, mas eu não quis me atar a uma mulher de tão baixa moral. Seu marido seria um cornudo em menos de um mês.

     —Mentiroso! —o grito saiu de boca de Mathilde com a força de um furacão que tinha posto em tensão todo seu corpo. — Velhaco mentiroso e ruim!

     —Ah, por fim vemos a verdadeira Mathilde — a provocou Roald. — A harpia, não a doce amante. Deu-se conta, Henry, de que não nega que veio a minha cama. Porque não pode. Diga-me, também se penetrou já em sua estadia na metade da noite com um aspecto inocente e vulnerável que jamais tem durante o dia?

     Roald observou com deleite o gesto de horror de Henry.

     A Mathilde tinha querido que a tragasse a terra para ocultar sua angústia e sua humilhação. O que pensaria Henry dela? Certamente que não era mais que uma puta, que o tinha levado ali enganado, que era uma mentirosa.

     Quanto tinha desejado que tudo o que estava dizendo Roald tivesse sido mentira. De todas as coisas impetuosas que tinha feito em sua vida, a pior era sem dúvida ter ido aquela noite à estadia de Roald, ter acreditado como uma parva em suas palavras de amor e haver-se convencido de que ela também estava apaixonada.

     Mas, agora que ele já tinha falado, seria ela a que diria toda a verdade. Sim. Tinha ido a seus aposentos, mas com a maior das ingenuidades e acreditando de verdade que ele a amava.

     —O que ocorreu aquela noite foi contra minha vontade — disse por fim, cheia de ódio para ele e para si mesma por sua estupidez.

     —Você queria que te possuísse, por que se não teria vindo a minha estadia em plena noite? —perguntou Roald antes de voltar a dirigir-se a sir Henry, que observava a cena sem a menor expressão no rosto.— E depois, quando me neguei a me casar com ela, foi chorando a seu pai e disse que a tinha violado.

     —Porque isso foi o que fez! —gritou ao tempo que olhava a todos os presentes.

     Giselle a olhava com o rosto branco como a neve e os olhos cheios de compaixão porque sempre tinha sabido a verdade. Tinha sido ela a que tinha cuidado de Mathilde depois de que Roald a atacasse lhe tinha lavado o sangue das coxas e curado suas feridas. Tinha escutado seus intermináveis soluços enquanto lhe contava o ocorrido.

     Cerdic, alto e forte, permanecia imóvel, horrorizado e surpreso. A suas costas, o resto dos soldados murmuravam entre si, mas não a olhavam; era como se já não existisse. Possivelmente a nobre lady Mathilde tivesse morrido para eles. Morta por culpa do desejo, morta pela debilidade.

     —Deixa de te fazer a mártir, Mathilde — se burlou Roald. — Todos sabemos que nenhuma mulher que vá às estadias de um homem pode dar-se a de virtuosa. Não é certo, Henry?

     —Depende dos motivos que tenha para ir — respondeu o normando com gesto frio e triste.

     Embora não a tinha condenado abertamente, sem dúvida a desprezava.

     —E que outro motivo poderia ter a não ser fazer amor comigo? —perguntou Roald — Esse era certamente o motivo de Mathilde. Por isso não se afastou nem protestou quando a beijei.

     —Porque fui uma parva… uma pobre idiota! —exclamou Mathilde, disposta a que sir Henry e todos os outros compreendessem que embora tinha cometido um engano imperdoável por culpa das mentiras de Roald, tinha-lhe arrebatado à virgindade contra seus desejos. — Te acreditei quando me falou de amor e de matrimônio. Pensei que me beijaria e depois me pediria que fosse sua esposa.

     —O que te fez pensar isso? Um par de elogios? Já vê como é, Henry — disse ao normando como se ela não estivesse ali. — Tem sorte de que tenha chegado a tempo de te contar a verdade sobre Mathilde embora reconheça que Giselle é formosa e muito tentadora — seus lábios se curvaram em um sorriso e os olhos iluminaram.— Pode ser que eu mesmo me case com ela.

     Giselle levou uma mão tremente ao peito e teria caído ao chão se Henry não tivesse ido recolhê-la quando perdeu o conhecimento. O normando se ajoelhou e a deixou brandamente sobre o soalho.

     —É um besta! Um monstro desprezível! —gritou Mathilde enquanto corria junto a sua irmã. — Giselle nunca se casará contigo! Nunca!

     Mathilde jamais permitiria que Roald se casasse com sua irmã por muito terríveis que fossem suas ameaças e embora tivesse que morrer para protegê-la dele.

     Quando Faiga foi dar um pouco de água, Henry levantou o olhar para Roald e lhe falou com atitude sarcástica.

     —Devo dizer que isto não é muito prometedor. A simples possibilidade de converter-se em sua esposa tem feito que a dama se desvaneça. Claro que eu não a culpo, é obvio.

     Cerdic abriu caminho entre os soldados com gesto assassino que levou Mathilde a pensar, ao menos por um momento, que ia atacar Roald, mas o que fez foi ir até Giselle e ajoelhar-se a seu lado.

     —Vou levá-la a seus aposentos — disse levantando-a em braços como se fosse leve como uma pluma.

     Mathilde se dirigiu a Roald com a voz quebrada pelo desespero e a vergonha.

     —Saia daqui antes que faça que o tirem daqui a chutes como merece.

     —Já o ouviste Roald. Saia — ordenou Henry com a mão no punho da espada.

     Roald olhou a um e a outro, mas não se moveu.

     —Não te meta nisto, Henry. Não é teu assunto.

     —Como cavalheiro, jurei proteger às mulheres e, pelo que vejo, estas damas estão em grave perigo — deu um passo para ele. — Vai partir ou vou ter que te atravessar com a espada?

     Roald se tornou atrás.

     —É que crê que não vejo o que pretende! Quer Giselle para ti.

     —O que quero é que te parta daqui imediatamente e não volte a incomodar estas damas.

     Os murmúrios de aborrecimento dos soldados se fizeram mais e mais fortes. Com lágrimas nos olhos Mathilde se deu conta de que, apesar de vê-la como uma mulher desonrada para sempre, seguiriam defendendo a ela e a sua irmã.

     —Se arrependerá disto, Mathilde — prometeu Roald abandonando o soalho. — Por Deus que se arrependerá, igual o farão sua irmã, este velhaco normando e esse enorme bruto que lhes serve — depois apontou Henry com o dedo. — Eu se fosse você não me arriscaria a ganhar a inimizade do rei, nem se quer pela formosa Giselle. Não é mais que um cavalheiro sem terra e por muito poder que tenha sua família na Escócia, não será suficiente para te salvar quando voltar. Acaso vais arriscar sua vida por estas mulheres? Vai mesclar seus irmãos em tudo isto?

     —Pensa o que está arriscando você — contra-atacou Henry. — Ameaçando a mim, está ameaçando ao senhor de Dunkeathe, íntimo amigo do rei da Escócia. Recordo-te que sou o melhor amigo do senhor de Tregellas, amigo a sua vez do irmão do rei. De verdade crê que o rei se arriscaria a ganhar a inimizade de todos eles por ti?

     Animada pela presença e a força de Henry, igual pela lealdade de seus homens, Mathilde deu um passo mais para Roald.

     —Ecclesford é nosso por legítimo direito, Roald, e seguirá sendo-o. Tenta fazer o menor movimento em nosso contrário, e estará cometendo um grande engano.

     —Fala com valentia, milady — se burlou Roald enquanto continuava recuando. — É muito dada a fazer promessas. Ainda recordo quando prometeu que me amaria até o dia de sua morte.

     —O que prometo agora é te odiar até o dia que morra!

     Roald soltou uma gélida gargalhada.

     —Tão apaixonada como sempre, né, Mathilde? É uma lástima que seja uma criatura tão feia, de outro modo possivelmente tivesse conseguido me convencer de que me casasse contigo… por um bom dote, é claro.

     Mathilde agarrou o aro de prata que lhe segurava o véu e o atirou a Roald. Ao mesmo tempo, Henry saltou do soalho e foi para ele com o rosto desfigurado pela raiva.

     —Lamentará me haver ameaçado — jurou Roald, embora em sua voz houvesse um ápice de medo que se refletia também no modo em que tinha acelerado o ritmo de seus passos para a saída. — Irei ao rei. Ele me apoiará e se encarregará de que receba o que mereço.

     —Não, Roald — disse Henry com uma voz aterradoramente baixa. — Eu me encarregarei de que receba o que merece.

     —Não! —exclamou Mathilde para detê-lo porque, por muito que odiasse Roald e desejasse vê-lo morto, sabia que era muito bom espadachim e sabia também que aquela causa não era a de sir Henry. Nunca o tinha sido. Nunca deveria lhe haver pedido que as ajudasse. De repente desejou não havê-lo conhecido, mas sobre tudo desejou não ter visto nunca a expressão de seu rosto quando Roald tinha proclamado sua vergonha. —Deixa que se vá — pediu.

     Henry duvidou uns segundos, que Roald aproveitou para sair correndo.

     —Covarde! —gritou Henry correndo atrás dele, mas uns segundos mais tarde se ouviu o trote de um cavalo que se afastava.

     Consciente de que sua vida não voltaria a ser a mesma, Mathilde ficou imóvel como uma estátua quando Henry se voltou para ela.

     Olhou-a fixamente antes de dizer:

     —Acredito milady, que há certas coisas que deveríamos falar, preferivelmente em privado.

 

     Se sir Henry ia denunciá-la por ser uma criatura arteira e falsa que o tinha levado até ali por meio de enganos, ela também preferia que o fizesse em privado.

     —Me acompanhe à sala.

     O cavalheiro assentiu e a seguiu em silêncio. Mathilde podia senti-lo a suas costas e todo seu corpo ardia de vergonha e de pesar.

     No momento que havia sentido como Roald rasgava sua virgindade, tinham desaparecido todas suas esperanças de contrair matrimônio. Soube enquanto chorava e sangrava sem parar em sua cama. Viu a verdade refletida nos olhos de seu pai, a ouviu na voz suave com que Giselle tinha tratado de consolá-la. Tinha chegado a acreditar que o aceitou e embora fosse manter sua desonra em segredo, prometeu que não mentiria a nenhum homem que lhe oferecesse matrimônio acreditando-a donzela.

     Mas, apesar de tudo isso, manteve viva uma faísca de esperança de que o passado e aquele engano não arruinassem por completo seu futuro.

     Essa faísca de esperança acabava de apagar-se.

     Se não tivesse sido tão vaidosa, se não tivesse estado tão desejosa de acreditar que um homem jovem e arrumado pudesse amá-la… Se tivesse sido mais forte…! Se tivesse resistido quando a expressão de Roald se tornou luxuriosa, em lugar de ficar desconcertada pela mudança, por sua repentina brutalidade… Não tinha podido mover-se até que se deu conta de que tinha a camisola subida até a cintura e Roald…

     Se tivesse resistido a acreditar seus elogios e suas doces palavras de amor, ainda agora teria sua honra, seu pai poderia ter seguido com vida e toda aquela dor não teria existido jamais.

     Ao chegar à sala, cruzou a acolhedora estadia decorada com tapeçarias e foi colocar-se atrás da mesa. Com as mãos unidas no colo, viu Henry aproximar-se e ficar frente a ela. Esperou em silêncio, como um prisioneiro que já tivesse sido condenado, para ouvir suas duras palavras.

     Mas antes que dissesse algo, apareceu Cerdic e, por um momento, Mathilde esqueceu sua própria desdita.

     —Como está Giselle?

     —Melhor — respondeu ele. — Estava muito alterada pelas palavras desse descarado, mas se recuperará em seguida, assim que tenha descansado um pouco.

     Mathilde observou o rosto do saxão, ansiosa por descobrir nele o que pensava dela agora que sabia o que Roald lhe tinha feito, porque as únicas pessoas que tinham conhecido o ultraje desde o primeiro momento tinham sido Giselle e seu pai.

     —Me alegro de ouvir isso.

     Cerdic voltou a assentir, mas parecia distante e isso não fez a não ser aumentar a dor de Mathilde.

     —Roald é um mentiroso, milady — disse por fim sir Henry pondo fim ao tenso silêncio com uma voz tranquila e relaxada, como se falasse de algo sem importância. — Jamais acreditaria em suas palavras, mas sua reação parece sugerir que poderia haver dito a verdade sobre o ocorrido entre vocês.

     Mathilde se sentiu maravilhada de que estivesse disposto a lhe conceder o benefício da dúvida, até que não era suficiente para aliviar sua angústia.

     —É certo que fui aos seus aposentos — admitiu ela. — O fiz porque acreditava estar apaixonada por ele e acreditei também que ele me queria e que me pediria que fosse sua esposa. Pensei que nos beijaríamos, que ele diria doces palavras de amor e me pediria que me casasse com ele… nada mais.

     Agora lhe parecia tão absurdo, tão ingênuo. Mas é que assim tinha sido ela; ingênua e inocente. Tinha crescido com um pai que as tinha mantido afastadas da corte e da sociedade dos cavalheiros supostamente corteses.

     Custava-lhe enormemente seguir falando com o nó que tinha na garganta, mas queria que Cerdic e ele soubessem o que tinha ocorrido essa noite e por que não tinha lutado contra isso até que já tinha sido muito tarde.

     —Roald se negava a me soltar. Agarrou-me forte e sorriu quando lhe disse que me machucava. Eu me assustei e então me jogou sobre a cama. Não podia acreditar no que estava passando…

     —Não precisa que diga nada mais, milady — disse sir Henry brandamente, olhando-a com olhos brilhantes. — Sei que não está fazendo tudo isto por ressentimento como ele assegura — o normando olhou Cerdic, que tinha a vista cravada no chão. — Você tampouco sabia nada disto, verdade?

     O saxão amaldiçoou entre dentes antes de dizer:

     —Se o tivesse sabido, esse descarado não teria saído daqui com vida.

     —Imaginava isso — assentiu sir Henry e depois voltou a olhar Mathilde. — Então o delito se manteve em segredo.

     Ela assentiu.

     —Meu pai pensou que meu nome ficaria manchado se o denunciássemos e eu estive de acordo. Como essa faxineira da que me falou, tive medo de que todo mundo acreditasse em Roald e não a mim, porque eu tinha ido a seu dormitório.

     —Seu pai tinha razão — disse sir Henry. — Certamente todas as opiniões teriam ido em seu contrário, ao menos entre os nobres. Nas mesmas circunstâncias, a maioria deles teriam chegado à mesma conclusão que Roald e teriam atuado do mesmo modo, sem ter em conta seus motivos.

     Ele, entretanto não o tinha feito. Sir Henry não tinha pensado nem atuado assim aquela primeira noite.

     —Quanto aos motivos pelos que foi a seus aposentos… —sir Henry se encolheu de ombros. — Tenho a sensação de que Roald pode ser muito persuasivo se o propõe.

     —Sem dúvida — assentiu ela. — E eu fui muito tola.

     —Todos o somos em algum momento de nossas vidas, milady.

     Mas não tanto como ela. Não obstante, agradecia seus esforços por fazer que se sentisse menos estúpida.

     —Agora o que importa é o que vai ocorrer. —Perguntou sir Henry.

     —Você vai e nós lutamos — sugeriu Cerdic com tristeza.

     —Ir? —perguntou arqueando as sobrancelhas. — Não tenho intenção de partir.

     E ela desejava tanto que pudesse ficar…! Acreditava de verdade que podia melhorar a formação de seus soldados e necessitavam sua ajuda, mas…

     —Roald lançou duras ameaças contra você e contra sua família. Não deve ficar por nós.

     Sir Henry a olhou com obstinada determinação.

     —Minha família e meus amigos podem defender-se de Roald de Sayres, mas temo que sua guarnição estaria perdida sem um cavalheiro que os guie. Vocês me necessitam.

     —E o que tem essas acusações de traição? —perguntou Cerdic de repente.

     Assim como sir Henry, Mathilde sabia que Roald era um mentiroso, mas o certo era que ela também sentia curiosidade.

     —Só foi um mal-entendido de meu amigo e, como já disse a Roald, provou-se que não havia motivo para me acusar de nada, de outro modo agora não estaria livre. Estaria na prisão ou morto.

     —Podemos derrotar Roald e a qualquer que envie contra nós sem sua ajuda — afirmou Cerdic, teimoso.

     —De verdade? —perguntou sir Henry, mas não deu lugar a que respondessem. — mudou algo desde que lady Mathilde aceitou meu oferecimento para ajudá-los? Acaso está agora mais seguro da habilidade dos indisciplinados soldados que tem a seu cargo? Poderia adivinhar quando, onde e como atacará Roald? Aprendeu muito ultimamente sobre técnicas de assédio?

     A Cerdic avermelharam as bochechas.

     —Já aceitamos a ajuda de sir Henry e eu lhe estou muito agradecida — recordou Mathilde, segura já de quanto necessitavam de sua assistência e de que, se não a tivessem, tudo estaria perdido.

     Cerdic, entretanto, seguia olhando sir Henry com cara de poucos amigos, como se sua presença ali fosse uma afronta pessoal. Acaso não se dava conta de quão absurdo teria sido rechaçar qualquer conselho que sir Henry pudesse oferecer?

     Desgraçadamente, era evidente que não se dava conta.

     —Eu digo que não necessitamos a este normando atrás das saias de sua irmã — grunhiu o saxão ao tempo que se aproximava de sir Henry. — Se afaste de lady Giselle — disse lhe dando um empurrão.

     O normando lhe agarrou a mão e a separou de si.

     —Inclusive embora a desejasse — disse apertando o dente — o que é mais importante, que pudesse tentar cortejá-la para me casar com ela, ou que possa lhes ajudar a derrotar Roald?

     Embora a desejasse? Que homem não o faria?

     Cerdic o olhou com o rosto avermelhado e as veias do pescoço inchadas, mas negando-se a ceder nem um ápice de terreno.

     —Jamais se casará contigo!

     —É seu pai ou seu irmão para decidir com quem deve casar-se?

     —Já está bem! —exclamou Mathilde antes que chegassem às mãos. — Têm muitos problemas sem que além briguem por Giselle.

     Sir Henry reagiu imediatamente.

     —Desculpe-me, milady — disse com uma reverência. — Tem razão.

     —Eu também o sinto, Mathilde — balbuciou Cerdic esfregando o braço que tinha agarrado o normando.

     —Cerdic, disse que aceitaria a liderança de sir Henry — recordou ela severamente. — Espero que cumpra sua palavra.

     —Farei — disse de novo ruborizado.

     Não foi uma resposta muito entusiasta, mas naquele momento bastou para contentar Mathilde.

     —Muito bem — disse ela então. — Informe aos homens de que sir Henry vai inspecionar os barracões e as armaduras — olhou ao normando.— Não é certo, sir Henry?

     Uma vez que teve recebido a confirmação por parte do que agora era seu superior, Cerdic assentiu e saiu da estadia.

     Mathilde se sentou na poltrona de seu pai. Depois da terrível visita de Roald se sentia esgotada e insegura; todas as incertezas sobre o futuro, toda a vergonha e a humilhação do passado se amontoaram em sua mente e teve medo de que fosse derrubá-la.

     —Certamente é um homem orgulhoso — comentou sir Henry, de novo de pé junto à janela.

     E ele não o era?

     Embora seguisse tendo o olhar circunspeto, dedicou-lhe um sorriso que a fez sentir-se melhor.

     —Lamento que só minha presença não tenha bastado para atemorizar Roald. Possivelmente se fosse maior ou tivesse uma terrível cicatriz no rosto…

     Mathilde agradecia suas tentativas por animá-la, até que não estivessem servindo de muito.

     —Equivoquei-me ao acreditar que seria tão fácil dissuadi-lo, mas esperava… — não chegou a terminar a frase, limitou-se a suspirar e a entrelaçar as mãos sobre o colo.

     —Esperava que entrasse em razão.

     —Sim — disse ela levantando o olhar para ele.

     —O que ocorre com o testamento de seu pai? — perguntou. — É que tinha mais de um?

     Mathilde assentiu.

     —Antes que Roald me atacasse, meu pai tinha intenção de lhe deixar Ecclesford, com a condição de que desse um bom dote a Giselle e a mim. Minha irmã e eu ficaríamos sob a tutela de Roald porque meu pai confiava nele, assim como todos. Mas… depois do acontecido… meu pai redigiu um novo testamento para assegurar-se de que nem suas terras nem suas filhas ficassem em mãos desse homem. Meu pai estava doente, a enfermidade lhe sobreveio por culpa do ocorrido, mas juro que estava em pleno uso de suas faculdades, contra o que afirma Roald. O último testamento que fez é perfeitamente legal e, portanto deve prevalecer sobre o anterior.

     Mathilde se levantou para ir até o aparador que havia na parede de frente, de onde tirou uma caixa de ébano com incrustações em prata. Abriu-a com uma pequena chave que tinha pendurada à cintura junto ao resto das chaves do castelo e tirou um pergaminho enrolado.

     —Este é o testamento de meu pai, marcado com seu selo. Pode ler para comprovar que seus desejos eram muito claros; aqui ficou perfeitamente especificado com o pai Thomas como testemunha — aproximou o valioso pergaminho, mas titubeou antes de deixá-lo em suas mãos. — Sabe ler?

     —Sim. Sir Leonard se encarregou de que todos estudássemos.

     Seus dedos se roçaram só um instante, mas foi suficiente para que Mathilde sentisse que ardia a pele. Não se atreveu a olhá-lo no caso de notar em seus olhos, assim esperou pacientemente enquanto ele lia.

     Pareceu uma eternidade até que por fim terminou de ler e devolveu o pergaminho.

     —Isto se escreveu em agosto — comentou ele.

     —Sim.

     —Quando morreu seu pai?

     —Em cinco de setembro.

     —Quanto tempo levava doente?

     —Desde o ano passado. Mas a enfermidade nunca lhe afetou à cabeça, nem sequer ao final.

     —Acredito- — assegurou. — Mas sem dúvida Roald dirá algo muito diferente.

     Mathilde devolveu o testamento à caixa e depois tirou do aparador material para escrever; pluma, tinteiro e um cilindro de pergaminho que estendeu sobre a mesa.

     —O que faz? —perguntou sir Henry.

     —Vou escrever ao bispo. Estou segura de que estará de acordo em que o testamento é válido.

     Henry franziu o cenho sem compreender.

     —A igreja não tem autoridade alguma para decidir quem herda uma terra. Isso deve decidi-lo a corte real.

     —Sei — disse Mathilde enquanto se sentava para escrever. — Mas sim que tem autoridade em relação à valia de um testamento. Se conto com o apoio do bispo para afirmar que o segundo testamento é válido e, portanto anula o anterior, Roald não terá nada que levar ante o rei —olhou a sir Henry com incerteza. — Roald parece estar convencido de que o rei responderá a suas exigências o que significaria que não custaria nenhum trabalho ganhar também ante um tribunal. Você conhece os reis. Acredita que é provável que ajudem Roald?

     Sir Henry se encolheu de ombros antes de dizer algo.

     —Acredito que se o rei decide oferecer seu apoio a alguém, será aquele que resulte de mais utilidade. Mas Roald é parente da rainha, igual devem sê-lo vocês também.

     —Meu pai nunca teve o menor interesse em investigar dito parentesco como fez Roald.

     Mathilde viu com desespero o gesto de preocupação de sir Henry.

     —Desgraçadamente, temo-me que Roald não esteja disposto a esperar a fala de um tribunal. Parece-me mais provável que reúna um exército dos mais acostumados mercenários e tente tomar Ecclesford pela força.

     —Tenho entendido que está muito endividado — recordou tentando não deixar-se levar pelo medo—, como poderia pagar a tantos soldados?

     —Não será difícil encontrar prestamistas dispostos a apostar por ele, ou que a rainha o apoie e, uma vez que as terras sejam dele, devolva o recebido.

     —Meu Deus! —exclamou Mathilde com voz afogada, pois sabia que o que sir Henry dizia era mais que provável. — Não pode nos arrebatar Ecclesford, mas se o tentar lutaremos com unhas e dentes. Lutaremos e ganharemos!

     Sir Henry curvou os lábios com um sorriso de aprovação que fez fraquejar Mathilde mais que qualquer ameaça de Roald.

     —Tinha a suspeita de que você era uma mulher valente e com determinação — disse com voz suave. — Agora sei que o é.

     Mathilde não podia enfrentar a seu intenso olhar.

     —Também sou uma mulher desonrada que jamais poderá casar-se.

     Acreditou ver a sombra de uma dúvida em seu rosto, mas desapareceu antes que pudesse estar segura de havê-la visto realmente. O que esperava… que dissesse que se equivocava?

     —Me alegro de que fique para dirigir a guarnição — disse depois de um breve silêncio. — Não sei o que faríamos sem sua ajuda.

     —Bom certamente Cerdic e seus homens poderiam se arrumar sem mim — respondeu com o olhar cravado no chão. — Mas haveria mais baixas das necessárias.

     —Eu esperava que não houvesse nenhuma.

     —Farei tudo o que esteja em minha mão para que estejam preparados para um possível ataque de Roald — prometeu levantando o olhar para ela. — Não temos tempo a perder, assim que a deixarei com sua carta e irei comprovar o estado das armaduras e das armas.

     Mathilde assentiu e se dispôs a escrever.

  

     Enquanto atravessava o pátio para os barracões, Henry sentiu uma determinação que não havia sentido antes. Ia encarregar-se de que Roald de Sayres pagasse pelo que tinha feito, a Lady Mathilde, a aquela faxineira e a Deus sabia quantas outras. Aquele homem era uma verdadeira besta e Henry ia destruí-lo.

     Agora compreendia o comportamento de lady Mathilde aquela noite, quando se assustou tanto em seus aposentos. E compreendia também por que ficava em tensão cada vez que se encontravam a sós.

   Ele mal podia aguentar o aroma de pedra molhada desde aqueles dias que tinha passado encerrado em uma masmorra, e o mais leve chiado o recordava o som que faziam os ratos o que o fazia estremecer. Para ela estar a sós com um homem devia ser como para ele estar encerrado em uma estadia pequena e escura… algo insuportável.

     Entretanto não só tinha superado o medo estando com ele, um homem que não a tinha feito o menor dano nem o faria nunca; também tinha reunido o valor de enfrentar ao homem que a tinha atacado tão vilmente lhe provocando tal trauma.

     Agora compreendia por que ficou desse modo quando contou sobre a faxineira e por que o tinha censurado por deixar Roald partir.

     Deteve-se de repente com o estômago revolto. Se aquela noite tivesse denunciado Roald e tivesse feito que o encerrassem por violação, nunca teria atacado Mathilde. Não teria tido que passar por tanto sofrimento.

     Continuou caminhando ainda mais decidido a cumprir sua missão. O devia a Mathilde; tinha que ajudá-la a derrotar Roald, tinha que matar esse bastardo.

     Subiu correndo as escadas dos barracões, abriu a porta de repente e, enquanto os homens se levantavam das camas, ele colocou as mãos nos quadris e gritou:

     —Muito bem, acabaram-se seus dias de ócio, cambada de ociosos. Agora estou ao mando e por Deus vou fazer que desejem não me haver conhecido.

 

     —Quantos carros mais ficam? —perguntou Mathilde sete dias depois enquanto via o filho da taberneira descarregando tonéis e tonéis que metiam na despensa.

     Junto a eles, outros aldeãos e serventes iam de um lado a outro com cestas de provisões, baús com roupa e todo de tipo de objetos necessários em caso de assédio.

     Por cima de todos eles, as sentinelas vigiavam os arredores das ameias, com suas armas recém forjadas ou afiadas, a cota de malha reparada e limpa e a atenção fixa tão somente no dever.

     —Dois milady — respondeu Balwyn. — Minha mãe diz que aqui está virtualmente tudo. O hospedeiro quis deixar um pouco no botequim se por acaso sir Roald não chegasse a vir. Diz que seria um desastre não ter cerveja que servir ali.

     Mathilde assentiu.

     —Sempre e quando estiver disposto a desfazer-se dela se Roald decidisse vir e assediar Ecclesford.

     —É obvio milady — respondeu o moço olhando-a de esguelha e com curiosidade como fazia todo mundo de vez em quando desde que Roald proclamou sua vergonha aos quatro ventos.

     Mas ela seguiu fazendo caso omisso de sua curiosidade.

     —Sua família e você devem vir imediatamente se ouvirem que os sinos da igreja dão o alarme.

     —Sim, milady.

     —Muito bem — olhou a suas costas, ao moleiro que gritava zangado porque alguém tinha derramado a farinha.

     Mathilde levava horas indo de um lado a outro fazendo lugar para toda a comida, a cerveja, o vinho e a forragem para os animais. Tinha ordenado a quão serventes limpassem todos os lugares nos que pudesse alojar uma família, incluindo os estábulos. Outros homens se encarregaram de reunir pedras e subir às ameias para atirar a quão inimigos tentassem escalar a muralha. O ferreiro tinha feito enormes panelas que se colocariam em uns tripés e onde poderiam ferver água ou breu para lançar aos invasores. Dito ferreiro estava agora trabalhando junto ao armeiro do castelo, reparando e afiando as armas que já tinham e fabricando espadas novas.

     Nunca esqueceria a expressão de sir Henry quando tinha visto o arsenal de que dispunham. Tinha observado as armas com gesto de preocupação, mas quando ela tinha comentado as terríveis condições nas que se encontravam, ele tinha se limitado a encolher-se de ombros e dizer:

     —É mais importante contar com homens leais.

     Agora sempre lhe falava desse modo, brusco e conciso, e estranha vez sorria. Mathilde se perguntou uma vez mais que outra coisa esperava dele agora que já sabia…

     —Milady!

     Era o pai Thomas que se dirigia para ela a toda pressa entre a multidão.

     —O bispo Christophus vem para cá — anunciou com uma preocupação que não teria podido ocultar. — Ele e sua comitiva já estão no povo.

     O coração acelerou do mesmo modo que acelerava quando estava junto a sir Henry, mas por um motivo diferente.

     —Crê que já tenha podido tomar uma decisão?

   O pai Thomas não parecia muito seguro.

     —Não acredito. Pode ser que deva falar com você sobre seu pai e seu testamento.

     —Em qualquer caso, estou segura de que não demorará a dar-se conta de que tudo se fez legalmente.

     —Você não conhece o bispo, verdade, milady? — perguntou o padre de um modo que a pôs ainda mais nervosa.

     Mas não ia dar a menor amostra de pavor no meio do pátio, onde todo mundo poderia vê-la.

     —Se me esperar no salão, pai, irei procurar Giselle e nos prepararemos para recebê-lo.

     Desapareceu para ir à busca de sua irmã e colocar um vestido mais de acordo para receber a tão ilustre visitante. Desejou que sir Henry não tivesse levado os homens para treinar no bosque e que Cerdic não tivesse ido com ele; teria agradecido sua companhia no momento de conhecer o homem que tanto podia influir em seu destino. Giselle e ela teriam que enfrentar ao prelado sem sua ajuda, a menos que o fizessem esperar, mas isso não podia fazê-lo.

     Percorreu o salão, a cozinha e os dormitórios, perguntou a todos os serventes, mas ninguém parecia saber onde estava Giselle e antes de poder encontrá-la, Mathilde ouviu uma grande comoção no pátio que anunciava a chegada do bispo.

     Mathilde amaldiçoou entre dentes e olhou o singelo vestido azul escuro que levava. Onde estava Giselle? Sempre era ela a que saía para receber às visitas importantes, já fossem nobres ou clérigos. Ela era a que ia sempre impecavelmente vestida.

     Já não tinha tempo de trocar-se, assim Mathilde recolheu uma mecha de cabelo que se soltou, limpou o rosto com a mão no caso de ter uma mancha de pó e se dirigiu ao pátio a toda pressa. Só se deteve para pedir a Faiga que levasse vinho ao salão para os convidados. Já prepararia as estadias para os convidados mais tarde.

     O cortejo do bispo era surpreendentemente amplo e ia muito bem armado. À frente ia um clérigo alto embelezado com uma elegante capa de cor púrpura, como correspondia a sua fila e o solideo também púrpura sobre o cabelo branco. Sobre o peito levava várias joias douradas que brilhavam sob o sol de outono.

     Além do bispo, havia vários padres e soldados armados com espadas e lanças. Atrás deles estavam os carros com a bagagem e, certamente, com comida e vinho suficiente para todo um exército. Era evidente que o bispo acostumava viajar com todo tipo de comodidades e não confiava nas provisões que tivesse seu anfitrião.

     Seu pai tinha tido tão pouca relação com as altas hierarquias da igreja como com outros nobres e, agora que tinha diante aquele homem cheio de joias e vestido com os tecidos mais caros do mercado, Mathilde compartilhou sua aversão. Acaso não havia dito Cristo que antes passaria um camelo pelo buraco de uma agulha que um rico ao reino dos céus? Não devia isso incluir também a seus serventes na terra?

     Mas, fosse qual fosse sua opinião sobre o bispo Christophus, Mathilde devia ser amável com ele e comportar-se como correspondia a uma mulher. Assim, respirou fundo e saiu para saudá-lo acompanhada do pai Thomas.

     —Bem-vindo a Ecclesford, senhor bispo — disse com uma reverência. — Sou lady Mathilde e este é o pai Thomas.

     O bispo tirou a luva e aproximou a mão para que beijasse o anel. Enquanto o fazia, Mathilde sentiu o peso de seu olhar sobre ela e tentou não deixar entrever nada; nem vergonha, nem raiva, nem medo.

     —Obrigado, milady — respondeu o prelado com voz profunda e suave como o arminho.

     —Se me acompanhar pedi que servissem um refrigério no salão.

     —Encantado — disse ele.  

     Mathilde se adiantou mordendo o lábio e rezando para que tudo estivesse em ordem. Sem dúvida o bispo teria notado que algo importante estava ocorrendo pela agitação que havia no pátio e as provisões que tinha armazenado por toda parte, inclusive no salão.

    Depois de percorrer tudo com o olhar, o pátio, o castelo e as ameias, o bispo a seguiu com passo rápido e, atrás dele, todos os padres que chegaram com ele.

     Uma vez no salão, o bispo se sentou na cadeira do defunto senhor de Ecclesford com a atitude de um homem acostumado a ser tratado com deferência e respeito. Seus subordinados se sentaram nos bancos que os serventes levaram a toda pressa, enquanto o pai Thomas ficou de pé e Mathilde se sentou frente ao ilustre visitante, a pedido dele. Pela extremidade do olho viu o sorriso de ânimo do pai Thomas, um sorriso que se apagou imediatamente ao duro olhar do bispo.

     Faiga, mais recatada do que Mathilde a tinha visto jamais, não demorou em aparecer com uma bandeja com uma taça de prata para o bispo e outras mais modestas para outros.

     —Obrigado, filha — disse o bispo agarrando a taça que não podia ser para outro a não ser para ele enquanto punha a outra mão na cabeça de Faiga em um gesto que parecia uma carícia mais que uma bênção.

     Faiga também deve ter pensar isso a julgar pelo gesto de surpresa que apareceu em seu rosto antes de retirar-se.

     Depois de beber um gole de vinho, o bispo Christophus deixou a taça sobre a mesa que havia junto a ele e olhou Mathilde atentamente.

     —Nos causa pena enormemente, minha filha, que haja o menor conflito por estas terras entre vocês e seu nobre primo.

     —Se houver conflito, senhor bispo — começou a dizer com firmeza, mas também com cortesia— é Roald o que o ocasiona. Os desejos de meu pai com respeito a suas propriedades estão muito claros em seu testamento, como sem dúvida comprovou ao ler a cópia que lhe enviamos.

     O bispo entrelaçou os dedos das mãos e levou os índices aos lábios. O anel de ouro com a enorme pedra púrpura resplandeceu a luz das velas.

     —Seu primo não questiona que o testamento seja autêntico. Entretanto assegura que seu pai estava muito doente quando o escreveu, por isso não teria validez ante a lei.

     Como sabia o que Roald opinava?

     —Recebeu uma mensagem de nosso primo em relação à disputa?

     —Veio à abadia e me explicou sua posição.

     Mathilde se amaldiçoou por não havê-lo previsto e ter mandado muito antes aquela carta. Roald era malvado, mas nada parvo.

     —Pode ser que seja isso o que opina meu primo, mas o pai Thomas pode lhe dizer que meu pai não estava mal da cabeça quando mudou o testamento.

     O olhar do bispo se posou uns segundos sobre o pai Thomas.

     —Sir Roald nos disse também que o pai Thomas é muito leal a sua família.

     Isso era algo que Mathilde não podia, nem queria negar.

     —Sempre foi um bom amigo, milord, mas sobre tudo é um homem de Deus honrado e completamente incapaz de mentir.

     —Claro — sussurrou o bispo. — O pai Thomas é um excelente pastor de seu rebanho, bondoso quase até o excesso.

     —Não nos apoia porque seja bondoso — replicou Mathilde esquecendo-se por um momento com quem estava falando. — O faz porque é a verdade. — O bispo franziu o cenho. —Me perdoe — se apressou a dizer ela— mas eu não gostaria que pensasse que o pai Thomas peca de falta de honestidade por ajudar a um amigo.

     —Se assim fosse, o teria feito por afeto, estou seguro — disse o bispo recuperando a serenidade.

     Não obstante, Mathilde sabia que tinha errado. Aquele homem esperava ser tratado com respeito e não perdoaria aquela falta de controle.

     O pai Thomas voltou a lhe sorrir, mas ela não teve forças para responder do mesmo modo.

     Ao voltar a olhar o bispo viu em seu rosto uma expressão mais dura que não desafinava com a voz com a que falou a seguir, uma voz que tinha perdido toda sua suavidade inicial.

     —Seu primo me falou de outras coisas, milady, coisas que me surpreendeu escutar. Lamento muito que uma dama seja capaz de um comportamento tão libertino.

     Mathilde apertou o tecido da saia com força e respirou fundo tentando não perder a calma. Deveria ter imaginado que Roald descreveria o que tinha ocorrido entre eles como se tivesse sido culpa dela e de sua lascívia. Mesmo assim, era necessário que o bispo o mencionasse ali, em seu próprio salão, e diante de tanta gente?

     —Ele não é inocente. Disse palavras de amor e eu acreditei. Quando fui o fiz acreditando que me proporia matrimônio e quando supliquei que parasse e me soltasse, negou-se a fazê-lo até que teve satisfeito sua luxúria.

     O bispo Christophus a olhou sem tentar sequer ocultar seu desprezo.

     —Pode ser que consiga enganar pai Thomas com essas palavras, milady, mas é você uma mulher, uma criatura da carne, como Eva. Uma pecadora como Maria Madalena. E, apesar de sua falta de beleza, a personificação da tentação, como Salomé. Roald confessou seu pecado humildemente e me pediu a absolvição. Mas você, mulher orgulhosa e pervertida, tem a audácia de culpar a outro de seu próprio pecado.

     Mathilde sentiu como a ira se apoderava dela. Trocou de postura com brutalidade, tentando controlar-se, mas ao fazê-lo atirou a taça de vinho ao chão. Isso ao menos lhe deu tempo a acalmar-se antes de falar.

     —Sei que não estou livre de culpa — disse por fim. — Admito ter pecado ao sentir desejo e ao ter ido a ele. Confessei-me com pai Thomas e cumpri penitência por isso.

     O bispo franziu o cenho de novo.

     —Não parece arrependida.

     Isso era o que lhe parecia mais importante? E o que ocorria com o que Roald tinha feito a ela? Era óbvio que não podia esperar encontrar a mínima compreensão ou piedade nele, assim deixou de tentar explicar o acontecido.

     —Pedi a Deus que me perdoe e tenha misericórdia, suplico o mesmo a você, senhor bispo. Não deixe que isso afete sua decisão, pois se o fizer e fale contra nós, não serei eu quão única sofra as consequências. Roald não será um senhor amável e generoso com sua gente.

     —Está me dizendo que tem o poder antinatural e maléfico de ver o futuro?

     Aquilo não fazia mais que piorar. Estava a ponto de acusá-la de bruxaria.

     —Não, senhor, absolutamente. Isso é o que temo que ocorra.

     —Roald é seu único parente varão. É vontade de Deus que as mulheres estejam submetidas aos homens. Ou vai discutir isso também?

     Mathilde ordenou a si mesma responder com cuidado.

     —E não é a obrigação de uma filha obedecer aos desejos de seus pais? Acaso não deveria lutar para que se cumpra a vontade de meu pai por cima das exigências de outros? Deveria então ceder ante um primo e desobedecer a meu pai?

     O bispo voltou a entrelaçar os dedos e a observou em silêncio. Enquanto, Mathilde tentou ter paciência e esperar a que falasse, coisa que fez pouco depois.

     —Seu primo afirma que lhe arrebataram seu legítimo legado. Assegura também que você atua movida pela raiva e que ele foi vítima da vingança de uma mulher luxuriosa. Acusa-o você de ter cometido um ato frio… embora ao mesmo tempo admite ter ido a seus aposentos e não há perseverança alguma de que apresentasse cargo algum contra ele nos tribunais. Eu diria que fez bem, pois não há um tribunal nestas terras que condenasse a seu primo sabendo que você foi ao seu dormitório livremente e sem a menor vergonha.

     Sem vergonha? Acaso acreditava que não estava envergonhada?

     —Asseguro senhor bispo, que me envergonho profundamente do que fiz. Lamento-o todos os dias e todos os minutos do dia. Lamento e me envergonharei disso durante o resto de minha vida. Mas, embora não posso negar que fui aos seus aposentos, sim nego que me entregasse a ele. Não o acusamos publicamente porque meu pai esperava poder manter em segredo minha desonra.

     —Os pecados da carne sempre acabam sabendo-se — afirmou o bispo com afetação. — Assim é como Deus castiga aos pecadores e faz que sirva de exemplo a todos.

     Falava como se estivesse livre de pecado. Mas, a julgar pelas dimensões de seu ventre, as joias e as roupagens, era culpado de gula, vaidade… e certamente também de soberba.

     —Isso não é tudo o que me disse seu primo — continuou dizendo o prelado. — Tenho entendido que há certo cavalheiro no castelo cuja reputação poderia manchar o nome de sua irmã.

     Não o seu, pensou Mathilde. Mas não era de estranhar, pois para aquele homem, ela era pouco melhor que Jezebel.

     —Esse homem que Roald se apressa em condenar foi em nossa ajuda como bom cavalheiro quando solicitamos sua presença. Encontra-se agora ao mando de nossa guarnição porque o antigo comandante nos abandonou depois da morte de meu pai.

     —Essa não é a explicação que me deu seu primo — assegurou franzindo o cenho.

     —Entre Roald e sir Henry existe uma velha rixa… por uma mulher, conforme acredito — não ia dar mais detalhes; deixaria que o bispo tirasse suas próprias conclusões sobre os motivos que tinham levado Roald a mencionar Henry.

     —Não me parece apropriado ter a um jovem cavalheiro sob seu teto sem nenhum parente varão que cuide de vocês.

     —Sou consciente de que minha honra já foi manchada — respondeu ela friamente— mas suplico que não despreze o de minha irmã ou o de sir Henry sem uma causa justificada.

     O bispo ruborizou ao ouvir sua resposta e, por um momento, Mathilde acreditou ver um brilho de arrependimento em seu olhar, mas se realmente o sentiu, foi por pouco tempo.

     —Sem dúvida é compreensível que seu primo esteja molesto pela situação e pelo conflito existente entre vocês. De fato, está tão preocupado que nos pediu que rezemos por ele e nos prometeu uma nova capela como amostra de sua humilde gratidão a nossos esforços, como corresponde a um bom filho de Deus. Os homens assim merecem o perdão e o apoio da igreja em sua busca de Deus.

     Havia algo implícito nas palavras do bispo que a Mathilde não passou por cima. Certamente Roald tinha prometido algo mais que uma capela se o bispo declarasse nulo o testamento de seu pai… algo mais pessoal, possivelmente ouro ou joias.

     Roald demonstrou ser muito mais habilidoso que ela com esse suborno e, embora a Mathilde revolvesse o estômago só pensar nisso, que alternativa tinha a não ser a de fazer o mesmo?

     —Construir uma capela é um oferecimento muito generoso, algo que sem dúvida poderá permitir o senhor de Ecclesford — observou Mathilde. — Nós também temos intenção de honrar a lembrança de nosso pai dando de presente algo à igreja… sempre e quando se respeitar o segundo testamento de meu pai. Em caso contrário tudo pertenceria a Roald — Mathilde acompanhou suas palavras com um gesto de desconcerto. — O que não compreendo é como Roald pode prometer algo à igreja se ainda não saldou todas as suas dívidas, que conforme temos entendido são muito grandes.

     O bispo não parecia surpreso de que Roald estivesse endividado. Possivelmente ele também tivesse ouvido mencionar as dificuldades econômicas de seu primo e tivesse dúvidas a respeito.

     Isso ao menos era o que esperava Mathilde.

     —Me diga minha filha, considerou a possibilidade de entrar em um convento como mostra de seus remorsos e assim redimir-se aos olhos de Deus?

     Mathilde não tinha esperado essa pergunta, mas certamente encaixava a perfeição com o modo de pensar daquele homem. Se ela se convertia em noviça de Cristo, toda sua herança iria às mãos da igreja. Certamente já podia imaginar a glória que daria ao anunciar que convenceu uma dama rica, que, além disso, era quase uma Maria Madalena, de que se arrependesse de seus pecados e se entregasse a Deus.

     Desgraçadamente para o bispo, ia ter uma decepção. Mathilde preferia viver solteira na aldeia a submeter-se às restrições da vida monacal. Ela devia estar no mundo, não fora dele, e acreditava que isso era também o que Deus desejava para ela; se não fosse assim, não faria que lhe resultasse tão difícil ser uma mulher dócil e discreta.

     Nesse momento se abriu de repente a porta do salão e apareceu sir Henry, que se dirigiu diretamente para o soalho com passo firme, a espada embainhada golpeando a coxa com cada movimento.

     Os integrantes da comitiva do bispo o olhavam como se nunca tivessem visto um cavalheiro, ou possivelmente fosse o aspecto agitado de sir Henry o que os deixou tão desconcertados como a ela. Tinha o cabelo despenteado e a roupa e as botas manchadas de barro como se tivesse acudido cavalgando a toda velocidade.

     Entretanto o modo em que o olhava o bispo parecia denotar uma aversão mais pessoal.

     —É este o cavalheiro do que me falou seu primo? —perguntou.

     Era evidente que já conhecia sir Henry… e que não sentia simpatia alguma por ele. Mathilde teve de repente a terrível sensação de que Ecclesford escapou das mãos no momento em que sir Henry atravessou aquelas portas. Tentou salvar a situação, ou ao menos tentar que não piorasse ainda mais, e para isso fez caso omisso da óbvia aversão do bispo.

     —Sim, é sir Henry D’Alton. Seu irmão é um importante lorde escocês e sua irmã…

     —Meu excelente e corpulento bispo, que surpresa vê-lo! —interrompeu-a Henry ao deter-se no estrado com um sorriso zombador, a que acompanhou uma reverência. — Não pensei que voltaria a vê-lo na Inglaterra. Estava seguro de que sua ambição o levaria a Roma.

     —E eu estava seguro de que seus costumes de folgado o levariam ao cárcere ou ao patíbulo.

     —E, entretanto aqui estamos os dois, igualmente equivocados — respondeu o cavalheiro com genialidade ao tempo que se sentava junto a eles.

     Apesar do tom de sua voz e de sua atitude, Mathilde via o ódio que refletia em seus olhos e se perguntava qual seria a causa. Possivelmente se devesse tão somente a que Henry era um homem do mundo, acostumado a viver desfrutando dos prazeres e sem preocupar-se muito pelo futuro, enquanto que um clérigo levava, ou deveria ao menos levar, uma vida exemplar.

     Mathilde esperava que fosse esse o único motivo da evidente aversão entre ambos e não algo pessoal que pudesse fazer que o bispo se decantasse por ajudar Roald.

     —Não sabia que conhecia o bispo Christophus — comentou ela com a intenção de fazer saber ao prelado que não estava a par de que entre eles houvesse um conflito prévio.

     —Em realidade é seu filho ao que conheço mais — explicou Henry com tranquilidade enquanto aceitava a taça que tinha levado Faiga.

     Seu filho?

     Enquanto Mathilde tentava assimilar tão surpreendentes palavras, viu como ao bispo ruborizava ainda mais as bochechas e seus ajudantes trocavam olhares de assombro. Pareciam escandalizados, como se alguém houvesse dito algo que todos sabiam que era certo, mas do que ninguém se atrevia a falar em público.

     —Sir Roald estava certo ao questionar os motivos deste homem — declarou o bispo.

     Sir Henry observou ao clérigo com frieza antes de falar.

     —Suspeito que os motivos que o trouxeram até aqui não são precisamente desinteressados.

   O bispo falou com Mathilde como se sir Henry não tivesse falado sequer.

     —Sugiro-lhe, milady, que jogue a este sujeito daqui. É um homem mundano que não deveria estar junto a duas damas sem um varão que as proteja — dizendo isso ficou em pé majestosamente. — Voltamos para a abadia — anunciou com igual arrogância. — Bom dia, milady.

     Que desastre! Se o bispo decidia que seu pai não tinha estado em condições para elaborar o testamento, sua última vontade ficaria anulada e Roald teria mais força para reclamar Ecclesford.

     Mathilde ficou em pé para suplicar ao bispo que ficasse, mas antes que pudesse abrir a boca, foi sir Henry o que falou.

     —Se tanto o preocupa o bem-estar destas damas, deveria ficar aqui.

     O bispo se limitou a lhe lançar um último olhar envenenado antes de dirigir-se à porta, seguido de seus coroinhas.

     Mathilde começou a ir atrás dele.

     —Deixe que se vá milady — aconselhou sir Henry sem levantar-se da cadeira. — Uma vez que se acalme, dar-se-á conta de que o que mais o convém é apoiar a vocês e não a Roald. Se sua irmã e você herdam Ecclesford e se casam, o bispo contará com dois poderosos aliados em lugar de um só. Confie em mim, Christophus julga tudo segundo o proveito que possa tirar disso.

     Mathilde ficou pensativa uns segundos, até que o último dos padres saíu do salão e a porta do salão se fechou com um golpe final, definitivo. Quando por fim chegou à porta, o bispo já tinha montado em seu cavalo, amaldiçoando a todos os moços que o ajudaram e deixando bem claro que estava muito furioso para atender a razões.

     Assim, Mathilde fechou a porta com um suspiro de resignação e ao dar a volta, encontrou-se com o pai Thomas.

     —Não se desespere milady — disse o padre. — Deus sempre recompensa aos justos. Como bem diz sir Henry, uma vez que tenha se acalmado graças à oração e a meditação, o bispo pensará de um modo mais razoável.

     Mathilde duvidava muito que o bispo Christophus dedicasse muito tempo à meditação e à oração, e inclusive a pensar de maneira razoável.

     —Ao menos eu rezarei para que assim seja — acrescentou o pai Thomas dando evidência de que tampouco estava seguro de que o prelado fosse atuar com justiça por si só.

     —Esperemos que tenha razão, pai — respondeu ela fervorosamente e depois sorriu porque sabia que o padre estava fazendo tudo o que estava em sua mão para animá-la. — Ficará para jantar conosco?

   —Que Deus a benza por me oferecer isso milady, mas não. O velho Evans está em seus últimos dias e prometi ficar junto a ele esta noite.

     —Claro pai — disse ela. — Diga que rezarei por ele, embora esteja segura de que já há um lugar no céu reservado para um homem tão amável e generoso.

     —O direi e estou seguro de que se alegrará de saber que o tem em suas orações. Que Deus a acompanhe, milady.

     —E a você também, pai.

     Pensar em Evans fazia que se esquecesse momentaneamente de seus problemas, mas ao dar meia volta e encontrar-se com sir Henry sentado na cadeira no soalho como se fosse o senhor do castelo, suas preocupações voltaram com força renovada.

     —Por que não me disse que conhecia o bispo e que eram inimigos inflamados? —perguntou voltando para o soalho.

     Henry se levantou e fez um gesto para que se sentasse, atuando de novo como se aquele fosse seu castelo. Mathilde não protestou porque estava ansiosa por escutar o que tinha que a dizer.

     —Não disse que conhecia Christophus porque quando me disse que ia escrever ao bispo, não mencionou seu nome e, como disse a esse arrogante, não esperava que ainda estivesse na Inglaterra e muito menos em Kent, ou que tivesse a menor relação com a disputa entre Roald e vocês.

     —Alguma vez disse o nome do bispo? —perguntou ela com certa insegurança.

     —Não.

     Então não podia culpá-lo de nada.

     —Oxalá o tivesse feito — disse apoiando o rosto na palma da mão.

     —Sim, eu também o teria preferido — admitiu sir Henry jogando uma perna por cima do braço da cadeira e recostando-se sobre o respaldo. — Se tivesse sabido que era ele, teria ficado aqui com os homens em lugar de sair fugindo ao saber que vinha um bispo. Pretendia ajudá-la, não dificultar tudo ainda mais. Pediu que o subornasse?

     —Não abertamente, mas como se o tivesse feito — confirmou ela. — Parece ser que Roald já lhe prometeu algo — meneou a cabeça em um gesto de reprovação. — Me parece horrível subornar a um homem de Deus.

     —Nem todos os homens da igreja são tão bons como o pai Thomas — respondeu sir Henry. — Christophus é insaciável em muitas coisas. Os clérigos com ambições revistam manter em segredo seus descendentes. Desgraçadamente para Christophus, seu filho é tão parecido a ele que não podia deixar de fanfarronar de ter um pai muito importante.

     —Conhece seu filho?

     Henry se sorriu com suficiência.

     —Seu pai o enviou a sir Leonard. James não aceitava as normas de bom grado; passava o dia se queixando e, o que era pior, era um fanfarrão que não respeitava a ninguém. Um dia me fartei de que se burlasse de Merrick por não falar e o peguei.

     O sorriso se converteu em um gesto de pesar.

     —Só fiz um pouco de sangue no nariz, mas se comportou como se o tivesse quebrado. Christophus se apresentou ali uma semana mais tarde e suponho que pediu a sir Leonard que me devolvesse a casa, como se eu tivesse um lugar ao que voltar.

     Aquela era a primeira vez que sir Henry fazia o menor comentário sobre sua infância e dava a entender os problemas e as tristezas que devia ter passado, mas dos que jamais falava, possivelmente porque desejava esquecê-los igual ela teria apagado certas lembranças de sua mente se tivesse podido.

     —Não sei o que disse sir Leonard — continuou contando— mas o bispo saiu dali pálido como a neve e levou James consigo, para regozijo de todos.

     —E se atreve a me condenar por pecar — murmurou ela com raiva.

     —Esqueça-se do que disse, seja o que for. Esse homem não é mais que um porco glutão.

     Embora apreciasse que Henry saísse em sua defesa com tal ímpeto, Mathilde sabia que não poderia esquecer as palavras do bispo e a dor que tinham provocado porque aquele homem disse em seu rosto o que muitos outros murmuravam a suas costas.

     Sir Henry se sentou reto na cadeira e pôs uma mão no braço.

     —Não deixe que as palavras desse homem a desgostem, milady. Não é mais que um boneco de pano. Seus próprios homens o detestam. Você, entretanto é inteligente e forte e sua gente a adora com razão.

     Então sorriu e aqueles olhos que podiam chegar a resultar duros como uma pedra quando estava zangado a olharam com doçura e compreensão. Mathilde examinou os traços perfeitos de seu rosto até, finalmente, pousar a vista em sua boca.

     O corpo se encheu de calor e de desejo. Se não tivesse sido tão débil, pediria que partisse de Ecclesford porque, se tivessem estado a sós em outro lugar que não fosse o salão, Deus sabia o que teria feito. Nem sequer tinha a força necessária para levantar-se da cadeira e afastar-se dele de fato procurou o modo de retê-lo a seu lado um pouco mais antes que tivesse que voltar para o trabalho.

     —Como vai o treinamento? Está contente com os progressos dos soldados?

     Sir Henry retirou a mão.

     —Aprendem rápido, tenho que reconhecer isso, — disse. — Alguns são imprudentes e estão desejando alardear do que podem fazer, mas um par de golpes e de machucados os ensinarão a ser mais precavidos.

     —E Cerdic? Obedece suas ordens?

     —Sem pigarrear, graças a Deus. Está centrado em aprender tudo o que possa e o certo é que os homens o respeitam e admiram. Ainda fica muito que aprender no uso da lança. Hoje deu um golpe que temi que tivesse quebrado a perna, mas ficou em pé em seguida. De todos os modos, disse que vá ver sua irmã para nos assegurar de que só era uma torcedura.

     Certamente por isso não tinha podido encontrar Giselle; estaria nos barracões atendendo Cerdic.

     Henry se inclinou para ela até ficar muito perto, quase tanto como o dia que esteve a ponto de beijá-la.

     Mathilde tentou não assustar-se nem atuar como se sua proximidade a afetasse, para bem ou para mau.

     —Poderia pedir algo, milady?

     O coração pulsava tão forte que temia que ele pudesse notar com apenas um olhar. Viu que tinha a vista fixa em seu pescoço e se perguntou se se daria conta de quão nervosa estava, assim fez um verdadeiro esforço para que sua voz soasse firme e tranquila.

     —Claro.

     —Estive pensando que deveriam oferecer um pequeno banquete nos próximos dias, como recompensa aos soldados por esforçarem-se tanto em aprender e aos aldeãos como… bom, se por acaso começam os problemas. Tenho entendido que o hospedeiro trouxe cerveja para suportar um assédio de três meses — acrescentou com um sorriso de picardia.

     Um sorriso que era quase irresistível. Não obstante, Mathilde se centrou em suas palavras; era certo que os soldados estavam trabalhando muito e era muito provável que os aldeãos estivessem a ponto de enfrentar momentos difíceis, ganhasse quem ganhasse.

     —Parece-me uma excelente ideia. Tanto, que eu gostaria que me tivesse ocorrido — havia algo naquela proposta que a fazia alegrar-se. — Então não espera que Roald ataque logo.

     —Não sei, mas acredito que uma pequena celebração ajudaria a levantar os ânimos de todo mundo.

     —Então não há mais que falar — resolveu o assunto ao tempo que ficava em pé. — Minha irmã e eu celebraremos uma pequena festa dentro de três dias.

     Ele também se levantou e, antes de afastar-se, tomou a mão e deu um suave beijo.

     —É você amável e generosa. Vou dar a boa notícia.

     Mathilde o olhou afastar-se com passo firme.

     Embora o que sentia por ele estivesse mau, e sem dúvida o estava, devia recordar que muito em breve partiria com igual passo. A única razão pela qual ficaria seria Giselle.

     E isso seria ainda mais duro que vê-lo partir.

 

     Três dias depois, uma tarde fresca de outubro, Henry deu uns tapinhas no pescoço de Apolo, seu cavalo treinado em mil batalhas, para tentar acalmar o animal enquanto esperavam a volta dos homens. A prova consistia em apanhar com a lança um aro de ferro que pendurava de uma corda atada a dois paus.

     Cerdic estava aproveitando seu último turno. Henry teve a sensação de que sua lança se movia muito e de que ele ia muito inclinado para diante. Enquanto o observava, teve que fazer um esforço por não olhar o resto de espectadores… particularmente Mathilde.

     Cada vez resultava mais difícil não deixar-se afetar por sua presença, e não só aquele dia. Quanto mais tempo passava ali, mais admirava sua capacidade de superação, sua força e sua habilidade para organizar e levar uma residência tão grande virtualmente sem ajuda. Chegou a respeitá-la pelo modo em que se preocupava com todos os que trabalhavam para ela ou viviam em suas terras, fosse quem fosse. Henry estava impressionado com sua bondade e generosidade, assim como com a amabilidade com a que se dirigia a todo mundo, fossem ricos ou pobres.

     Entretanto o que mais admirava, respeitava e apreciava dela era sua valentia e determinação. Quantas mulheres teriam se atrevido a enfrentar ao homem que as atacou de maneira tão degradante e teriam feito valer seus direitos? Henry sabia o que era sentir-se humilhado e ultrajado, e sua experiência tinha sido fácil comparada com a de Mathilde. O golpearam e menosprezaram, mas não o violaram como a ela.

     Como não ia considerá-la digna do homem mais importante? O que ele tinha feito em sua vida que pudesse ser comparado com o modo que ela enfrentou Roald?

     Nada. Absolutamente nada. Comparado com ela, Henry era o folgado irresponsável de acordo com seu irmão. Comparado com ela, não era digno sequer de dirigir sua guarnição, e muito menos pensar em…

     Assim, não o pensaria e tampouco se aproximaria dela porque sabia que com apenas roçar seus dedos se via possuído pela paixão e o desejo. Cada vez que se sentavam juntos à mesa, desejava beijar essa pequena marca de nascimento que tinha no pescoço. Não deixava de imaginá-la na cama com ele, fazendo amor; às vezes meigamente e às vezes com ardor. Desejava-a de um modo que era completamente novo para ele, que não se parecia com nada que tinha sentido por outras mulheres. Desejava muito mais que umas quantas noites em sua cama.

     Por isso e apesar de sua determinação de prestar atenção só a Cerdic, sabia perfeitamente que estava junto ao pai Thomas, que levava um vestido cinza, as mãos embainhadas em umas luvas e que uma mecha de seu cabelo castanho escapou do penteado.

     De repente se ouviu um grito vitorioso que atraiu sua atenção. Ao levantar a vista viu Cerdic levantando a lança, na ponta estava o anel.

     —Maldito seja — murmurou. Todos os participantes tinham falhado em um dos turnos, todos menos Cerdic e ele. Se agora falhava, Cerdic seria o ganhador da prova.

     Cerdic voltou para eles com um enorme sorriso que iluminava o rosto. Certamente tinha motivos para estar contente e a Henry não incomodava seu êxito, mas isso não significava que não tivesse intenção de consegui-lo também.

     Ao dar meia volta se fixou em que lady Giselle tinha o olhar cravado em Cerdic e de repente viu algo em seus olhos que reconheceu imediatamente.

     Lady Giselle e o loiro guerreiro? Claro, como não se deu conta antes? Ele que estava acostumado a ter tão bom olho para perceber essas coisas, não se deu conta da atração que havia entre ambos.

     Saberia Mathilde? Se sabia devia aceitá-lo, de outro modo não teria podido ocultar sua desaprovação. Possivelmente estava muito distraída com seus problemas com Roald para ver o amor que nasceu diante de seus narizes.

     Quando o assunto saísse à luz, e o faria cedo ou tarde porque essas coisas sempre acabavam sabendo-se, aprovaria Mathilde a relação de sua irmã? Seria capaz de aceitar que Giselle se casasse com um homem sem posição, nem riqueza, nem terras? Um matrimônio que poderia converter Cerdic em senhor de Ecclesford?

     —Está preparado, sir Henry?

     A pergunta de um soldado o tirou de seus pensamentos.

     —Sim — disse aceitando a lança que lhe dava o outro homem.

     Como aquela era uma competição amistosa e seu «oponente» não era mais que um aro preso a uma corda, Henry não levava armadura nem amparo algum. O mais que podia ocorrer com ele era cair do cavalo e, embora pudesse resultar perigoso, não era nada comparado com o que encontraria em uma batalha. O que fez foi cobrir a ponta da lança como precaução.

     Assim, Henry apertou os dentes e apertou ligeiramente as pernas, o que foi suficiente para que Apolo ficasse ao galope e ele deixasse a um lado todo o resto e se concentrasse tão somente no aro. A distância parecia muito pequeno embora em realidade tivesse uns quinze centímetros de diâmetro. Escolheu um alvo relativamente fácil para seus homens, para que todos tivessem oportunidade de consegui-lo ao menos uma vez.

     Aproximava-se mais e mais, apertando bem os joelhos ao cavalo; não precisava ir mais depressa. Já estava quase aí. Segurou a lança contra o corpo, acostumado a considerá-la quase uma extensão de seu braço.

     De repente um corvo levantou voo em uma árvore próxima e o grasnido atraiu a atenção de Henry, afastando-o do objetivo. Não foi mais que um instante, mas bastou para que passasse de longe a corda e, com ela, o aro.

     Ouviram-se gritos de alegria, mas também de pesar. Depois da decepção inicial, Henry se consolou com a ideia de que ao menos havia alguém entre a multidão que tinha desejado que ganhasse e se recordou que aquela prova não estava pensada para sua glória pessoal, mas sim como recompensa para seus homens.

     O certo era que aquela derrota não era importante para ele. Existia outra coisa que detestaria muito mais perder.

     Perguntou-se o que pensaria ela de seu fracasso, mas em seguida afastou o pensamento de sua mente. Voltou para o outro extremo do campo, onde devolveu a lança a seu lugar e desceu do cavalo para ir junto às damas e Cerdic, que seguia sorrindo.

     Aquela era a última prova do dia, por isso muitos espectadores se levantaram dos bancos e foram comer ou beber algo. Alguns convidados preferiram ver os jogos de longe para não afastar-se da cerveja, mas nenhum deles eram soldados, pois Henry os advertiu que não deviam beber muito. Felizmente, parecia que todos acataram as ordens.

     —Muito bem, Cerdic — disse ao aproximar-se de todos eles. — Embora no último turno pensei que acabaria caindo da cadeira. Estava muito inclinado para diante.

     Cerdic franziu o cenho e também lady Giselle, mas Mathilde esboçou um de seus estranhos e formosos sorrisos.

     —Seguro que podemos passar um dia ao menos sem lição — disse a ponto de tornar-se a rir, algo que encantou Henry porque não era habitual vê-la rir. — Não havia dito que esta festa era para celebrar tudo o que conseguiram os soldados?

     —Tem razão — admitiu Henry de boa vontade. — Se me descuidar acabarei como sir Leonard, que sempre faz que tudo pareça uma aula magistral, até uma simples comida — o imitou com voz tosca — Cuidado como pega essa faca, menino. Se não tomar cuidado, tirará um olho.

     Como recompensa recebeu outra gargalhada de Mathilde, um som delicioso para seus ouvidos.

     —Pensei que admirava seu velho professor — disse ela enquanto todos se dirigiam para a mesa da comida.

     —E o admiro, é o melhor no que faz. Mas devo admitir que lutar com uns moços que se acreditam homens não é o que quero para mim.

     Giselle se voltou para falar com Cerdic.

     —Começaram a dançar. Dança comigo, Cerdic.

     Henry esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao ver o gesto de desconcerto com o que o saxão recebeu o convite.

     —Não sei dançar — murmurou, envergonhado como um adolescente.

     —Claro que sabe — replicou Giselle com indignação. — O ensinamos há anos.

     —Mais vale que dance com ela, Cerdic — disse Mathilde, sem a menor compaixão. — Se não, estará te torturando toda a noite.

     —Me esqueci como dançar — protestou ele.

     —Seguro que se lembra em seguida — insistiu Giselle.

     —Temo que não fica outro remédio que te render, amigo meu — disse Henry. — Estas damas são tão obstinadas que os homens ficam indefesos ante elas.

     —É ele o que está sendo obstinado — opinou Giselle com uma careta encantadora.

     —Está bem, milady — disse por fim o pobre Cerdic. — Mas não te queixe se te piso.

     Giselle pôs-se a rir e não deixou de fazê-lo enquanto se dirigiam para o improvisado salão de baile.

     Henry olhou Mathilde.

     —Quer dançar, milady, ou lhe dá vergonha que a vejam com um homem que não ganhou uma só prova em todo o dia?

     Ela aceitou o braço que ele oferecia com um sorriso que teria sido suficiente para fazê-lo entrar em calor em um frio dia de inverno.

     —Tenho a sensação de que falhou de propósito, sir Henry — disse com paquera.

     —Oxalá fosse assim, milady, mas o certo é que fiz tudo o que pude e mesmo assim fracassei — confessou ele com fingida tristeza. — Sir Leonard teria se envergonhado de mim. Logo irei ao rio para me lamentar em solidão.

     —Ninguém teria ganhado nada se você não tivesse proposto as provas — assinalou Mathilde.

     Estavam chegando à praça em que dançavam os convidados quando Henry pôs a mão em cima da dela, mas a retirou imediatamente. Não queria assustá-la nem despertar más lembranças.

     —Ao menos sei dançar, assim a vergonha será menor.

     Mathilde pensou que não conhecia um homem no mundo que tivesse menos motivos para estar envergonhado de nada. Sua atuação tinha sido brilhante em todas as provas e, possivelmente não tinha perdido de propósito, mas certamente tampouco se esforçou por ganhar tudo o que teria podido.

     Em qualquer caso, divertiam-na os comentários que fazia contra si mesmo. Sir Henry era tão diferente do resto dos homens que conhecia…; não tinha nada a ver com os poucos cavalheiros que tinha conhecido. A maioria ia a Ecclesford em busca de refúgio e todos queriam ficar assim que viam Giselle e o fariam até que seu pai os tinha jogado dali. Aqueles cavalheiros foram homens arrogantes que em nada se pareciam com sir Henry.

     —Cerdic sim que sabe dançar… ou ao menos sabia — disse ela. — Giselle e eu passamos horas o ensinando quando éramos mais jovens.

     —Deve ter passado muito bem com vocês.

     Mathilde sorriu ao pensar naqueles dias de felicidade e inocência.

     —Sempre desfrutou mais da companhia de Giselle, eu me colocava muito com ele.

     —E segue preferindo a companhia de sua irmã à sua?

     Algo no tom de Henry fez que fizesse uma pausa para olhar ao lugar onde Giselle dançava com seu amigo. Cerdic já não parecia tão contrariado pela ideia de dançar; agora ria escutando as instruções de Giselle, suas cabeças quase juntas…

     Pelo amor de Deus, era certo o que via? Como tinha podido estar tão cega para não dar-se conta de algo tão importante?

     Quando seu pai tinha morrido, Giselle se derrubou nos braços de Cerdic e ele acariciou sua cabeça. Os Natais anteriores passavam a Véspera de natal juntos sentados em um tronco sussurrando e rindo. Na festa da primavera ficavam toda a manhã no bosque recolhendo flores.

     Deus, sim que tinha estado cega.

     —Também se deu conta, verdade? —perguntou Henry brandamente. — Não acredito que tivesse oportunidade alguma de ganhar a mão de sua irmã, se é que queria tentar.

     Não parecia decepcionado, pensou Mathilde com entusiasmo. Claro que isso não significava que tivesse interesse algum nela. Nem muito menos, pensar algo assim seria uma tolice…

     —Espero que sua relação não a incomode.

     —Por que teria que fazê-lo? —perguntou, surpreendida por seu tom de preocupação. — Se ela o quiser como marido, deve casar-se com ele. Eu certamente não me oporei. Cerdic é um bom homem. Meu pai o queria muito.

     —Mas não tem posição nem patrimônio.

     —É descendente de reis, embora não normandos. Se amar a Giselle e ela o amar, isso é mais importante que a riqueza. Além disso, Giselle terá terra e dinheiro suficientes para os dois.

     —Se ganharem a disputa contra Roald.

     —Quando ganharmos, sim.

     Um grupo de meninos passou correndo e chamando-se gritos naquele momento. Henry a agarrou pela mão e a separou de seu passo, atraindo-a para o tronco de um carvalho que havia junto à oficina do ferreiro, fechado pela festa.

     O fogo da forja estava apagado, mas ainda se notava o calor. Estavam longe da fogueira e da celebração; tanto que quando se fizesse noite, ficariam às escuras e ninguém poderia vê-los da praça.

     Mathilde podia sentir a presença de Henry tão perto dela que podia notar esse aroma masculino a couro, a cavalo e a cerveja.

     —Decepciona-te que Cerdic se interesse por sua irmã? —perguntou em voz baixa.

     Acaso pensava que ela…?

     —Nem muito menos — admitiu honestamente. — Nunca senti interesse por ele nesse aspecto. Para mim é como um irmão.

     —Alegra-me ouvir isso — disse ele ao tempo que tomava as mãos entre as suas.

     A sensação que transmitiram seus dedos passou das mãos até a cabeça e até os dedos dos pés, uma sensação cálida e palpitante. Até fazia muito pouco estava segura de que nunca poderia suportar que um homem a tocasse; agora, entretanto não queria que Henry a soltasse.

     Ela já não era virgem. Já não dispunha desse presente. O tinham tirado.

     Roubado.

     O que importava então que entregasse seu corpo a outro homem?

     Poderia ficar grávida.

     Por um momento voltou a sentir o pavor que a atormentou durante dias depois do ataque de Roald, aqueles dias nos que tinha rezado para que chegasse a menstruação. Não poderia passar por isso outra vez. Mas… e abraçar-se? E beijar-se?

     Por que não?

     Retirou as mãos brandamente e as pôs em seus braços. Rodeou a cintura com os braços e a ela acelerou o pulso, mas não de medo.

     —Quero te beijar, Mathilde — sussurrou ele, acariciando a bochecha com a respiração. — Posso?

     —Sim — respondeu com um suspiro.

     Embora o desejo ameaçasse apoderar-se dele, Henry se conteve. Devia ir devagar, deixar que ela marcasse o ritmo. Devia ser ela a que decidisse até onde queria chegar; Henry não queria despertar medo nela em lugar de desejo.

     Mas não era nada fácil controlar-se a tendo em seus braços e sentindo como relaxava e seus lábios lhe roçavam a boca.

     Nunca, jamais, desejou tanto uma mulher como desejava Mathilde, e não só para satisfazer as necessidades de seu corpo. Queria amá-la como merecia, com ternura e com cuidado além de paixão. Queria entregar-se a ela, não tomar seu corpo com luxúria egoísta.

     Foi ela a que se separou dele e o olhou com gesto ferido.

     —Acreditava que queria me beijar.

     —E quero… não sabe quanto, mas não quero que tenha medo ou acredite que vou ultrapassar o limite. Quero que se sinta segura comigo — acrescentou tomando o rosto entre as mãos.

     —Nunca me senti mais segura, nem mais feliz — sussurrou ela beijando-o na boca e ameaçando-o fazer perder a cabeça por completo.

     Emocionado, encantado e ansioso, Henry a tomou em seus braços e demonstrou o desejo que sentia por ela beijando-a apaixonadamente, mas também com ternura. Quando sentiu que ela entreabria os lábios se atreveu a chegar um pouco mais longe e acariciou a língua com a sua.

     Ela não se retirou.

     Henry penetrou brandamente as mãos por debaixo de sua capa e a apertou com força contra si. Podia sentir seus quadris, o ventre roçando sua masculinidade, assim que se concentrou no beijo. Na suavidade de seus lábios, o sabor de sua boca.

     Ela arqueou as costas de maneira instintiva. Henry baixou as mãos pouco a pouco até suas nádegas. Sua mente dizia que tomasse cuidado para não assustá-la, mas seu corpo não fez caso e reagiu como se estivessem nus e não separados por várias capas de tecido.

     Automaticamente, Mathilde se separou dele e pôs as mãos em seu peito.

     —Para. Não posso… — quebrou a voz como se tivesse a alma partida.

     E então rompeu a chorar.

     —Meu Deus, Mathilde! —exclamou alarmado porque se sentia cruel por ter provocado essa reação nela. Não deveria havê-la atraído; deveria ter sido mais forte e ter esperado. — O sinto. Não pretendia…

     —Não é tua culpa. Não estou zangada nem tenho medo. Sinto muito. Oxalá…

     Henry se deu conta de que tentava não chorar, estava tentando ser forte uma vez mais e isso rompia seu coração. Não sabia o que fazer nem o que dizer. Desejava abraçá-la e oferecer consolo, mas não queria desgostá-la ainda mais. Mas tampouco podia ficar ali sem fazer nada enquanto ela chorava assim a rodeou com os braços muito devagar. Se ela tivesse protestado o mínimo, teria se retirado imediatamente, mas não o fez, mas sim apoiou o rosto em seu peito e seguiu chorando, rasgando a alma com cada soluço.

     Não teria sabido dizer quanto tempo esteve chorando, o único que sabia Henry era que teria passado ali a noite inteira que deixá-la sozinha.

     Finalmente, Mathilde secou o rosto com a mão e respirou fundo ao afastar-se dele.

     —Perdão — disse secando os olhos. — Não chorava assim desde que…

     Henry acreditava que ia dizer desde que Roald a tinha atacado.

     —Desde que me dei conta de que não estava grávida — confessou. — Me senti tão aliviada que comecei a chorar. Caí de joelhos e agradeci a Deus uma e outra vez.

     Henry não podia falar, não tinha palavras, só ocorria amaldiçoar Roald de Sayres pelo que fez. Se Deus era justo, esse descarado arderia no inferno.

     —Suponho que foi como se a um homem ferido lhe dissessem que não ia morrer — disse ela e levantou o olhar para ele tímida e vulnerável. — Ou como essa garota a que ajudou. Foi muito afortunada de contar com um cavalheiro como você e nós também somos.

     Henry tinha recebido muitos elogios ao longo de sua vida, alguns deles merecidos, foi admirado por suas habilidades marciais e desejado por seu corpo, mas nunca antes umas palavras de louvor o fizeram sentir-se tão orgulhoso e ao mesmo tempo tão pouco merecedor delas.

     —Deveria ser muito melhor — disse com voz baixa e sincera porque sabia muito bem quem era e que não merecia tal admiração. — Não sou tão bom cavalheiro, Mathilde. Pode ser que seja hábil na batalha porque me ensinaram bem. À margem disso, sou vaidoso e arrogante, orgulhoso de meu aspecto e de meu corpo, como bem notou no primeiro dia. Sempre invejei os lucros de meu irmão e me deu raiva que meus amigos acreditassem que era capaz de traí-los. Desejei a muitas mulheres, enganei a muitos maridos e me convenci de que se suas mulheres estavam dispostas, o pecado não era meu, embora no fundo sabia que não era assim. Não sou merecedor de admiração alguma.

     Sentia cada uma das palavras que pronunciou. Esbanjou sua vida durante muito tempo, dedicando-a a objetivos muito frívolos. Pela primeira vez, olhava-se com completa e brutal honestidade e se via como realmente era como o que sempre viu seu irmão, um alegre folgado.

     —Quem não sentiu inveja alguma vez? —perguntou ela com um doce sussurro que era como um bálsamo curador. — Durante muito tempo eu invejei a beleza de Giselle e me dava raiva que nenhum homem me olhava como olhavam todos para ela. Inclusive senti ciúmes quando me dei conta de que tinha razão e que Cerdic está apaixonado por ela, embora eu não sinta nada por ele. Não é isso o cúmulo do egoísmo? Você fala de desejo? O que é o que eu senti por Roald a não ser luxúria e desejo. Agora se não era amor, fui uma vaidosa e uma parva por acreditar naquelas adulações ocas.

     Henry pôs o dedo nos lábios para calá-la meigamente.

     —Desejava que a amassem. Quem não?

     —Outras mulheres não ficam em perigo por isso como fiz eu.

     —Equivocou-se, mas já sofreu o bastante. Poderia te dar o nome de muitas mulheres que cometeram pecados muito piores que o teu, Mathilde, e que nunca sofreram castigo algum, exceto possivelmente o que lhes tenha imposto sua própria consciência, se é que a têm.

     —Roald…

     —É um covarde e um vilão desprezível — terminou ele ao tempo que voltava a abraçá-la.— Mathilde, eu não posso apagar o que te fez aquela noite e daria tudo o que tenho por fazer que o esquecesse, mas para mim, não é menos pelo que ocorreu. Não é você a que está manchada ou corrompida… é ele. Conheci a muitas mulheres em minha vida, Mathilde, e fiz amor a mais de uma, mas te juro que por nenhuma delas senti o que sinto por ti. É mais que desejo é mais que afeto. Nunca tinha admirado tanto a uma mulher. Mathilde, eu nunca antes disse a uma mulher que a amava. Eu…

     Mas então pôs as mãos no peito e o separou de seu lado.

     —Não diga nada mais, Henry! —gritou como se a tivesse golpeado em lugar de ter estado a ponto de dizer que a amava.

     Deu meia volta e saiu correndo.

        

     Mathilde voltou para Ecclesford afastando-se da festa e das luzes. Estava com os olhos cheios de lágrimas e mal podia respirar pelos soluços.

     Não deveria haver ficado com Henry na escuridão. Não deveria havê-lo beijado. Não deveria ter escutado suas palavras de amor.

     Henry não podia amá-la. Ele merecia uma noiva virgem, com riqueza e propriedades, as maiores da Inglaterra.

     Não uma mulher que tinha sido violada por Roald de Sayres.

        

     Henry correu atrás de Mathilde com a esperança de que simplesmente a tivesse assustado sua confissão. Não sabia o que diria quando a alcançasse. Mas não a encontrou, desapareceu entre as sombras e, por muito que olhasse aos ainda presentes na festa, não deu com ela.

     Um calafrio de pavor percorreu suas costas. Estava muito escuro e Roald era um homem perverso.

     Pôs-se a correr para o castelo e não se deteve até chegar ao portão.

     —Retornou lady Mathilde? —perguntou às sentinelas, que deram o alto antes de reconhecê-lo.

     —Sim, milord — respondeu um deles. — Faz já um momento.

     Henry assentiu e, uma vez que abriram o portão, cruzou o pátio correndo, disposto a segui-la e… O que? O que ia fazer? Pedir uma explicação? Perguntar por que fugiu? Mathilde era uma mulher livre, não devia a ele nenhum tipo de explicação porque não era nem seu parente nem sua prometida, nem nada. De nada serviria que a seguisse e a pressionasse com suas perguntas.

     Assim, Henry optou por retirar-se a seus aposentos. Fixou-se em que a porta do quarto que Mathilde compartilhava com sua irmã estava fechada. Uma vez em sua estadia, despojou-se de toda a roupa exceto das calças e se deitou na cama com a vela acesa como sempre, perguntando-se se Mathilde iria a ele e desejando que assim fosse.

     Mas não o fez e quando se viram o dia seguinte no café da manhã, foi como se aqueles beijos junto ao carvalho nunca tivessem existido, como se ele nunca tivesse pronunciado aquelas palavras. Mathilde estava tão ocupada como sempre e Henry não viu nada em seus olhos que o fizesse pensar que algo havia mudado entre eles.

     Disse a si mesmo que possivelmente necessitasse de tempo para aceitar que a queria, ou para assegurar-se de que não era um mero capricho. Em tal caso, teria que ser paciente e esperar que ela atuasse.

     Sem importar quanto tempo pudesse demorar a fazê-lo.

 

     Enquanto Henry galopava para o aro de ferro, Roald se ajoelhava ante os reis, sentados em seus tronos em Westminster. Foram necessários vários dias de frustrações até conseguir que o recebessem, apesar de seu parentesco com Eleanor e suas contínuas ofertas de suborno. Mas finalmente conseguiu estar ali e embora não era uma recepção privada, não eram muitos os cortesãos presentes.

     —Majestade! —gritou Roald, aparentemente cativado pela presença de sua prima longínqua, a rainha.

     —Roald — respondeu ela— sempre é um prazer ver alguém de Provenza.

     —Não tão grande como o é para mim vê-la —respondeu incorporando-se a pedido da rainha.

     Seu marido, entretanto, olhava Roald como se nunca tivesse estado tão aborrecido.

     —Temos entendido que tem um assunto importante de que quer falar — disse o rei sem mais demoras.

     —Sim, Majestade, assim é. É em relação às propriedades de meu defunto tio — esquecendo-se da presença de outros cortesãos, mas com cuidado de não abusar da amabilidade dos reis, Roald falou brevemente da enfermidade de seu tio, da ilegítima mudança de testamento e do escandaloso comportamento de suas primas. — Assim, Majestade, minhas primas se negam a renunciar à propriedade, apesar de que é a mim a quem pertence legitimamente — concluiu.

     Roald se alegrou de comprovar que agora ambos o olhavam com interesse.

     —Ouvimos falar destas terras — disse o monarca. — Bem situadas, prósperas, embora o antigo senhor fosse algo… excêntrico.

     —Assim é, Majestade — confirmou Roald.

     —E suas filhas… uma delas é toda uma beleza, não é certo? —perguntou a rainha.

     Roald se deu conta em seguida de aonde se dirigia a conversa.

     —Formosa, mas nem tanto como Sua Majestade — respondeu Roald. — Tem um dote considerável. É obvio, tenho intenção de cumprir a vontade que expunha meu tio no testamento original, segundo o qual tenho que me fazer cargo do dote das filhas.

     —Há mais de uma? —perguntou o rei arqueando uma sobrancelha.

     —Sim, Majestade, mas temo que a mais jovem não seja do interesse de ninguém. É uma harpia e muito feia. Além disso, estou seguro de que foi ela a que planejou este complô para me roubar o que me pertence.

     —Mas de todos os modos terá dote, verdade? —perguntou a rainha.

     —Se é que algum homem a aceita. Não obstante, devo mencionar que seu pai dispôs também que se alguma de suas filhas decidisse entrar em um convento, seu dote iria à igreja.

     Os olhos da rainha se iluminaram ao ouvir aquilo ao imaginar sem dúvida o apoio que conseguiria da igreja se prometesse tal soma de dinheiro. Naquele momento, necessitava de toda a ajuda que pudesse conseguir por parte da igreja para assegurar-se de que o patife de seu tio era renomado arcebispo.

     —Acredita que é possível que a irmã menor escolha esse caminho?

     —Certamente quando Ecclesford for meu, me encarregarei de aconselhar que o faça. Seria isso ou um matrimônio que não seria de seu agrado.

     A rainha não variou o gesto, entretanto o rei franziu o cenho.

     —Não nos agrada que a nenhuma mulher lhe exponha o matrimônio como ameaça.

     —Não, por Deus! — apressou-se a exclamar Roald com gesto inocente. — Por minha honra de cavalheiro, eu jamais a obrigaria a casar-se ou a entrar como noviça em um convento, Majestade. Mas minha prima é tão teimosa como maliciosa, por isso necessitaria… bons conselhos.

     —A outra irmã… a bonita — começou a dizer o rei deixando a um lado o assunto de Mathilde, coisa que Roald agradeceu— alguma vez esteve na corte?

     —Não, Majestade — respondeu Roald fixando-se no duro olhar da rainha para seu jovem marido. — Seu pai vivia como um ermitão.

     —Possivelmente deveríamos conhecer suas primas.

     —Eu acredito que não, meu amor — opinou a rainha brandamente. — Temos muitas coisas que fazer aqui. Para começar, devemos acertar o matrimônio de seu irmão e essa formosa mulher poderia ser uma distração para os homens da corte. Não nos convém que surja uma guerra por culpa de uma mulher.

     —Não, é certo — assentiu o rei.

     Roald admirou imediatamente a facilidade com que a rainha manipulava seu marido.

     —A única mulher em toda a Inglaterra capaz de ser uma segunda Helena de Tróia é você, Majestade — disse Roald com uma reverência.

     Mas o olhar da rainha o pôs em seu lugar e fez ver que deveria ter mantido a boca fechada. Roald ruborizou, pois não queria arriscar-se a despertar o mau gênio de Eleanor.

     —Embora estejamos de acordo em que tem você motivos suficientes para questionar o segundo testamento de seu defunto tio — disse o rei após um breve silêncio— são os tribunais os que decidem estes assuntos. Assim, deverá esperar a ter sua fala.

     A rainha fez um gesto de inconformidade que Roald entendeu imediatamente. Todo mundo sabia que ela teria preferido que a distribuição das terras fosse competência do monarca, ajudado pelos sábios conselhos de sua esposa, é obvio. Naquele momento, Roald também opinava o mesmo porque não confiava nos ingleses e muito menos em seus tribunais.

     Entretanto, assim eram as coisas naquela terra de bárbaros, por isso tinha que proceder com precaução para não fazer se zangar o rei.

     —Sou consciente de que é encargo dos tribunais, Majestade —começou a dizer — mas se soubesse que conto com seu apoio, sem dúvida influiria aos membros de dito tribunal na hora de tomar uma decisão.

     —Um apoio com o que acreditam deve contar — anunciou a rainha para deleite de Roald.

     —De todos os modos — matizou o rei— não podemos ser muito explícitos. Os barões procuram algo que possam utilizar em nosso contrário para fomentar a rebelião.

     Roald sabia que era certo, especialmente depois da recente incursão do rei na França. A missão tinha sido um completo desastre depois do que o rei se viu obrigado a assinar uma trégua de cinco anos.

     Tampouco era nenhum segredo que a rainha não contava com o beneplácito de muitos nobres ingleses, que a viam muito ansiosa por compensar seus parentes a custa da Inglaterra. Também o clero a tinha em pouca estima, pois parecia igualmente empenhada em pagar aos parentes que tinha no clero poder e influências. E se os tribunais eclesiásticos decidiam fazer que Roald pagasse pelos pecados da rainha decretando que o segundo testamento devia prevalecer acima do primeiro…

     Malditas fossem as leis e todos os que as praticavam! Malditos fossem os ingleses e seus tribunais! Malditos fossem todos aqueles que se interpunham entre ele e o que o pertencia!

     O jovem monarca esfregou o queixo com gesto pensativo antes de falar.

     —Somos da opinião de que em assuntos de leis e propriedades, a posse é mais importante que as palavras escritas em um papel embora estejam em latim. Portanto, sir Roald, se de alguma forma, conseguisse fazer-se com o castelo de Ecclesford, me alegro por você. Sempre estamos dispostos a oferecer nosso apoio a um fiel cortesão.

     Roald esteve a ponto de saltar de alegria. O rei virtualmente acabava de dar permissão para tomar Ecclesford pela força.

     Essa fera de Mathilde ia lamentar ter tentado sequer rechaçá-lo! Giselle pagaria também por ter ficado ao lado de sua irmã e por tratá-lo sempre como se fosse um verme. E D’Alton se arrependerá de ter metido os narizes em um assunto que não era de sua incumbência.

     Ao pensar naquele arrogante, Roald adotou uma expressão de pesar e não duvidou em aproveitar a oportunidade que apresentava.

     —Temo que minhas primas encontraram um aliado no irmão do senhor de Dunkeathe.

     Roald esperou ansioso a reação dos reis ao ouvir aquilo. Como suspeitava, não gostaram da notícia. O senhor de Dunkeathe recebeu suas terras das mãos do rei da Escócia, não da Inglaterra, e lorde Nicholas não se esforçava sequer em ocultar o pouco respeito que mereciam os monarcas ingleses. Henry também tinha pecado um par de vezes de falta de cautela na hora de falar dos reis.

     —Lamentaria que ocorresse algum… infortúnio a sir Henry por haver se metido em assuntos que não concerniam —afirmou o rei muito devagar.

     Roald estava seguro de que se D’Alton morresse, os reis não sentiriam nenhuma lástima. Mas também era certo que ao Henry e ao seu irmão não faltava aliados na corte, por isso deviam tomar cuidado ao proclamar sua inimizade.

     O rei ficou em pé.

     —Estamos cansados — declarou olhando sua esposa. — vamos nos retirar já.

     —Bom dia e boa sorte, Roald — disse a rainha dedicando um sorriso de cumplicidade.

     Roald fez uma nova reverência.

     - Sou seu mais humilde servidor, Majestades.

     —Isso esperamos — disse ela antes de partir.

     A Roald já não interessava nada ali. Agora que contava com a aprovação do rei para tomar Ecclesford, o único que interessava era reunir o dinheiro necessário para formar um exército. Ia necessitar mais de dez homens para tomar o castelo.        

     Roald seguia pensativo quando chegou à pequena estadia que tinha alugado junto ao rio. Não esperava encontrar Charles De Mallemaison esperando-o na escuridão daquele quarto sem janelas, com a espada desencapada.

     Automaticamente jogou mão de sua arma, mas antes que pudesse agarrá-la, o fio da de Mallemaison cortou de um só golpe o cinturão em que a levava que caiu ao chão junto com a espada. Então deu meia volta para fugir, mas Mallemaison deu alcance antes de chegar sequer à soleira da porta, que fechou de um chute.

     —Vim em busca do dinheiro… e se não me der isso, levarei algo em troca.

     A Roald gelou o sangue nas veias. Não só não podia pagar as dívidas, mas também precisava pedir mais dinheiro para atacar Ecclesford.

     Mallemaison foi baixando a espada do pescoço para a virilha.

     —O que vai ser?

     Enquanto Roald observava o homem do que se dizia era o mais perigoso mercenário de toda a Inglaterra, surgiu em sua mente uma ideia brilhante que resolveria todos seus problemas. Era tão boa que não entendia como não ocorreu antes.

     —Me ocorre uma maneira em que poderia ganhar mais do que lhe pagam os joalheiros — não sabia de quanto se tratava, mas estava seguro de que seria uma quantidade considerável, pois não acreditava que os serviços de Mallemaison fossem baratos.

     Os olhos do mercenário brilharam de interesse.

     —Os joalheiros me pagam bem e você já está endividado até o pescoço. Se souber uma maneira de conseguir dinheiro, como é que não a pôs em prática?

     —Porque minhas primas são duas loucas teimosas que se negam a me dar o que me corresponde. Mas acabo de falar com o rei, deu-me permissão para tomar posse do castelo utilizando quão meios considere necessários — preferiu omitir o detalhe do testamento de seu tio. — Pensei que você é o homem perfeito para me ajudar a reunir um exército adequado para fazê-lo. Uma vez que tenhamos derrotado minhas primas, serei o bastante rico para pagar seus serviços.

     Mallemaison não parecia impressionado.

     —Eu não trabalho de graça.

     —E asseguro que não o fará. Receberá seu dinheiro quando…

     —Se o consegue — corrigiu o mercenário.

     —Dou minha palavra de que o compensarei pela espera.

     —De verdade espera que confie em sua palavra?

     —Sou cavalheiro do reino — respondeu Roald com arrogância.

     Mas Mallemaison soltou uma fria e asquerosa gargalhada.

     —Sei perfeitamente quem é você, sir Roald, não sou tolo. Ou vejo a metade do dinheiro antes de começar, ou não farei nada — levantou a espada até colocá-la entre os olhos. — Me parece que você não tem meio peni, nem para mim, nem para os joalheiros.

     Roald tentou encontrar algum estímulo com o que convencê-lo para que o ajudasse, pois sabia que com apenas lhe ver o rosto, a metade da guarnição de Ecclesford sairia correndo.

     —Minha prima, uma das duas que se puseram em meu contrário, é uma mulher muito bela, mais bela que a rainha. Ajude-me às derrotar e será tua.

     Não gostava da ideia de ter que renunciar a Giselle, mas devia fazê-lo.

     —A mim qualquer mulher vale na escuridão.

     Pelo amor de Deus, acaso não havia nada que pudesse dizer ou fazer… nada que lhe oferecer?

     Voltou a fixar-se na cicatriz que lhe atravessava o rosto e então recordou que há muito tempo tinha ouvido a história de como a tinha feito. Valia a pena tentá-lo.

     —Minhas primas contam com a ajuda do irmão do senhor de Dunkeathe.

     —Conheço senhor de Dunkeathe — disse o mercenário destacando a cicatriz. — Esse bastardo me fez isto.

     —De verdade? Então suponho que não se importaria de deixar umas quantas cicatrizes em seu irmão.

     Mallemaison embainhou a espada.

     —Eu adoraria matar ao irmão desse bastardo e mandar sua cabeça em uma cesta.

     Roald respirou aliviado. Tinha sorte de haver-se lembrado de que Nicholas de Dunkeathe tinha estado a ponto de matar Charles Do Mallemaison há anos.

     O mercenário sorriu com maldade.

     —Quantos homens necessita e quando saímos de Londres?

        

     Uns dias mais tarde, um cavalheiro solitário cavalgava para Ecclesford cantarolando uma canção de amor sob o sol de uma agradável manhã de outono. Seu corpo magro, mas musculoso estava protegido pela cota de malha, o traje incluía também um capuz que levava baixado, deixando à vista um cabelo avermelhado e um rosto que se assemelhava ao de uma raposa. Como única arma levava uma espada atada à cintura.

     Apesar de sua atitude aparentemente relaxada, o olhar do cavalheiro ia de um lado a outro como o de um falcão em busca de algo que comer. E, embora estivesse sozinho, não se sentia inseguro porque o comandante da guarnição de Tregellas era temível em qualquer enfrentamento.

     Sir Ranulf se fixou em uns homens que trabalhavam cavando para preparar os campos para a chegada do inverno, mas sobre tudo se fixou no castelo que havia ao longe.

     Ecclesford. Onde, conforme tinha entendido, encontrava-se Henry, o alegre e impetuoso Henry.

     Vários camponeses o olharam ao passar, mas em seguida voltaram para o trabalho. Ninguém o desafiou, mas não era de estranhar porque não iam armados. O que despertava sua curiosidade era o recebimento que encontraria no castelo.

     Ao aproximar-se um pouco mais ouviu um som que se assemelhava a um tambor, mas que em seguida reconheceu; era o ruído de muitos homens partindo com passo firme.

     Posto que estivesse sozinho e nem sequer estava seguro de que Henry estivesse ali ou de que o exército que se aproximava fosse amistoso, Ranulf não duvidou em desmontar e esconder-se junto com o cavalo atrás de uns matagais de onde poderia vigiar o caminho. Ranulf não era nenhum temerário, não ia provocar um enfrentamento sem saber antes com quem se enfrentaria.

     Uns minutos depois apareceu um grupo de soldados de cujo aspecto deduziu que levavam treinando um longo momento, pois todos pareciam esgotados.

     —Levantem bem os pés! —disse uma voz que resultava muito familiar e que deu a Ranulf uma das maiores surpresas de sua vida. — Se alguém ficar atrás, não demorará a sentir a espetada de minha lança nas costas.

     Assim Henry estava ali… e parecia estar treinando aqueles homens. Incrível. Isso não o incluíam as notícias que tinham chegado a Tregellas da Escócia.

     Com a segurança de estar a salvo frente a homens que estavam às ordens de Henry, Ranulf saiu de trás dos matagais. Os soldados, ao vê-lo, detiveram-se em seco.

     —Quem lhes há dito que parem? —perguntou Henry da retaguarda.

     —Henry! —exclamou Ranulf sem poder acreditar estar frente a seu amigo.

     —Que demônio está fazendo aqui? —disse Henry correndo para ele com um enorme sorriso.

     —Eu poderia te perguntar o mesmo. Pensei que estivesse a caminho da Escócia.

     —Assim era — respondeu sem poder conter a risada. — O que te traz a Kent?

     —Pois a verdade é que vim te buscar.

     Henry franziu o cenho com preocupação.

     —Houve algum problema em Tregellas? Merrick necessita ajuda?

     —Todo mundo está bem. Quanto a Merrick, é um homem completamente novo. Um dia inclusive o ouvi cantar e quase caio ao chão de susto.

     Henry se pôs a rir.

     —Voltávamos para o castelo — disse depois de olhar seus esgotados homens. — Fica, verdade?

     —Encantado, sempre que não tenha que ir ao passo.

     Henry voltou a rir com a despreocupação e a alegria de sempre.

     —Cerdic, leva-os aos barracões.

     O loiro saxão obedeceu imediatamente e, segundos depois, os soldados se puseram em marcha.

     —Vamos — disse depois Henry a seu amigo dando um tapinha nas costas para levá-lo ao castelo. — Estou ao mando da guarnição de Ecclesford, igual a você em Tregellas.

     —Ah, isso é muito… inesperado.

     —Acaso não me crê capaz de dirigir um grupo de soldados? —perguntou Henry com genuíno aborrecimento.

     Não era próprio de Henry perder os nervos com tanta facilidade.

     —Claro que te acredito capaz. Mas me surpreendeu isso é tudo. Ainda recordo como censurou Merrick por me propor que dirigisse sua guarnição; então acreditava que eu devia me sentir insultado.

     —Sim, bom, suponho que estava equivocado — Henry olhou de repente a Ranulf. — Desde quando leva essa barba? Há-me demorado te reconhecer.

     —Faz umas semanas.

     —Faz-te parecer mais velho.

     —Pois a ti o suor empresta.

     Ambos os amigos puseram-se a rir ao uníssono.

     —Suponho que não terá vindo até aqui para me mostrar sua barba — disse Henry depois de uns segundos.

     —Não — respondeu com seriedade. — Merrick recebeu uma carta de seu irmão em que nos perguntava por ti. Parece ser que um amigo que vive na corte lhe contou que tinha te visto comprometido em um conflito entre Roald de Sayres e seus familiares. Nicholas queria saber se seguia em Tregellas. — Henry se limitou a assentir ao ouvir aquilo, assim Ranulf continuou falando. —Merrick respondeu que tinha partido de Tregellas com a intenção de te dirigir a Dunkeathe e supôs que encontrou alguma «distração» no caminho. Depois me mandou em sua busca para assegurar-se de que não tinha se metido em nenhuma confusão.

     Henry riu de novo, mas dessa vez havia um toque de amargura em sua risada.

     —Seguro que Nicholas me imaginava em algum bordel. Estou muito agradecido a Merrick por dar tal ideia a meu irmão — acrescentou com sarcasmo.

     —Vamos, Henry. Merrick ainda se sente culpado pelo ocorrido. Que outra coisa podia fazer? Tinha que responder à carta de seu irmão.

     —Mas não era necessário que te enviasse em minha busca. Ou é que acredita que necessito uma babá?

     —Preocupou-se ao receber a carta de seu irmão e, devo admitir, eu também. O que faz metido em um conflito familiar de Roald de Sayres?

     —Estou cumprindo com minha obrigação como cavalheiro— respondeu Henry. — Devo ajudar a duas damas em apuros.

     —Ouvimos que é uma disputa sobre uma herança.

     —Entre outras coisas.

     —Sabia que Roald foi ao rei?

     —Imaginava. Sabe o que ocorreu?

     —Parece ser que Roald saiu muito satisfeito do encontro com os reis. Há rumores que está contratando mercenários, e não precisamente jovens sem experiência, pelo que parece conta com o apoio do rei.

     Henry amaldiçoou entre dentes.

     —Quanto faz que Merrick recebeu essa carta de Nicholas?

     —Três dias.

     —Então Roald esteve na corte…

     —Faz uma semana.

     Henry balbuciou outro explícito juramento e começou a caminhar mais rápido para o castelo.

     —Como te viu envolvido em tudo isto? —perguntou Ranulf. — Sei que odeia Roald, mas isto é um pouco exagerado, não te parece?

     —Roald tenta roubar as terras de suas primas. É necessário explicar o destino que espera a duas mulheres nas mãos de Roald?

     —Essas damas… suponho que nenhuma delas estará casada ou prometida.

     —Não… e antes que dê por feito que vim aqui com intenções de me casar com alguma delas, direi que não é certo.

     Ranulf não respondeu. Por um lado, porque efetivamente conhecia Roald de Sayres e estava de acordo em que nenhuma mulher devia ficar em suas mãos.

     E por outro, porque tinha posto o pesado traje de cota de malha, e estava já sem fôlego.

        

     Quando o esgotado e suarento Ranulf entrou no castelo de Ecclesford seguindo Henry, teve a segurança de ter encontrado outro motivo pelo que seu amigo tinha ido ao resgate daquelas duas desconhecidas.

     A mulher que costurava junto a uma das janelas do salão do castelo era o ser mais formoso que Ranulf tinha visto em sua vida. Quando se levantou para recebê-los e a viu mover-se e ruborizar-se ao olhá-los, deu-se conta de que era simplesmente perfeita.

     —Lady Giselle, este é meu amigo da alma, sir Ranulf, de Tregellas.

     Lady Giselle estendeu a mão.

     —Bem-vindo a Ecclesford, sir Ranulf — também sua voz era doce e suave, como cabia esperar. — É um prazer conhecer um amigo de sir Henry. Espero que possa ficar um tempo conosco.

     Ranulf sorriu tanto como pôde antes de tomar sua mão e levá-la aos lábios. Também sua mão era suave, mas fria como um peixe morto.

     De repente apareceu em sua cabeça o rosto de outra mulher, de uma jovem dama que falava muito… mas aquele não era o momento de pensar em Beatrice.

     —É você muito amável milady.

     —Se me desculparem vou lavar-me e me trocar para o jantar — anunciou Henry.— Posso deixar Ranulf a seu cargo?

     A dama se ruborizou de novo.

     —É obvio — disse fazendo um gesto a uma faxineira de corpo exuberante que olhou de um modo a Ranulf que provocou um sorriso completamente distinto.

        

     Deus. Por que tinha tido que meter-se Nicholas justo naquele momento? Pensou Henry enquanto subia as escadas. Acaso não tinha já suficientes preocupações?

     —Tão logo de volta, sir Henry?

     Ao levantar a vista, encontrou-se com Mathilde, que o observava do alto da escada.

     —Chegou uma visita inesperada, milady — disse detendo-se no penúltimo degrau. — Meu amigo sir Ranulf, comandante da guarnição de Tregellas. Temo que traga más notícias. Efetivamente, Roald está reunindo um exército de mercenários, começou a fazê-lo depois de falar com o rei.

     Mathilde cambaleou e, temendo que fosse cair, Henry a agarrou pela cintura. Pôs as mãos nos braços para recuperar o equilíbrio… mas depois não se separou dele.

     Era a primeira vez que a tocava desde a noite da festa e todo seu corpo reagiu imediatamente ao senti-la tão perto.

     —Roald tem o apoio do rei? —perguntou com evidente preocupação.

     —Isso parece — admitiu ele. — Pelo que me disse Ranulf, deduzo que o rei não se comprometeu tanto como Roald teria esperado.

   Mathilde o olhou com os olhos brilhantes e sem afastar-se ainda.

     —Sabe quando chegarão aqui Roald e seus homens?

     —Logo, temo — respondeu enquanto observava como a preocupação lutava contra a determinação no rosto de Mathilde. — Mas estaremos preparados — prometeu com total convicção. — Os homens de Ecclesford são leais e valentes e o castelo está preparado para um possível assédio. Se não puder derrotar a esses mercenários, poderemos aguentar muito tempo.

     Mathilde deu um passo atrás por fim e Henry teve que soltá-la a seu pesar. Depois viu seu olhar… tímido, vulnerável e valente.

     —Tenho fé em você, sir Henry — disse brandamente. — Não posso nem imaginar o que teria ocorrido se não tivesse aceitado a nos ajudar.

     Henry não podia olhá-la aos olhos, sentia-se envergonhado e inseguro. Já não era um cavalheiro orgulhoso. Tão somente um homem que tinha medo de não estar à altura da confiança de sua amada.

     Mathilde aproximou a mão para acariciar seu rosto.

     —Quanto desejaria que tivéssemos nos conhecido antes de Roald.

     Ele desejaria havê-la conhecido depois de ganhar uma propriedade. Desejaria também fazer-se protetor de uma dama como ela.

     Mas antes que pudesse fazer ou dizer algo mais, antes que pudesse tomá-la em seus braços e beijá-la como desejava fazê-lo, Mathilde se afastou dele e o deixou sozinho.

     Como merecia estar.

 

     Essa mesma noite, Ranulf observou seu amigo à luz do fogo do salão. As damas se retiraram fazia já tempo e os serventes tinham desaparecido. Perto deles estavam deitados alguns soldados e serventes em camas de palha nos que roncavam placidamente.

     Durante o jantar Henry contou a Ranulf que a maioria dos que trabalhavam em Ecclesford eram ingleses ou celtas, algo muito incomum, mas também muito conveniente porque significava que, se algum estava ainda acordado, não entenderia o que falassem os dois amigos. Se Henry se dignava a dizer uma palavra.

     Ranulf estava acostumado ao silêncio de Merrick, mas Henry estava acostumado a ser um homem falador e divertido, especialmente depois de um bom jantar junto a uma mulher formosa. Aquela noite, entretanto. Mal pronunciou dez palavras.

     Possivelmente estivesse preocupado por lady Giselle não estar sendo muito amável com ele; possivelmente se iludiu com a dama e essas ilusões não tinham frutificado. Claro que também podia ser que aquele fosse o comportamento habitual da dama, pois depois do primeiro encontro com Ranulf durante o jantar se mostrou muito mais distante. Possivelmente fosse sempre tão calada e modesta quando havia gente.

     Depois estava à enigmática lady Mathilde. Henry a havia descrito como uma mulher de caráter quando se estavam lavando antes do jantar, mas, embora sem dúvida tivesse um rosto expressivo, certamente não era o que Ranulf chamava vivaz. Se de uma coisa estava seguro era de que não era Mathilde o objetivo das intenções amorosas de seu amigo.

     —As damas nos ofereceram um magnífico jantar — se aventurou a dizer Ranulf depois de um longo silêncio, pois sabia que se perguntava diretamente o que queria saber, Henry não faria a não ser fechar-se ainda mais.

     Mas o que recebeu como resposta não foi mais que um leve movimento de cabeça que deu a entender que a conversa superficial não ia ajudá-lo a conseguir seu objetivo. Assim decidiu ser mais direto.

     —Quando aceitou ajudar estas damas, parou para pensar nas consequências que poderia ter isto para ti?

     Isso sim atraiu a atenção de Henry.

     —Só me importou proteger às damas de Roald.

     —Não é tão singelo — disse Ranulf agachando-se para acariciar um cão que se sentou a seus pés e assim poder ocultar a exasperação que sentia.— Ao te colocar neste assunto te arrisca a que o acusem de traição.

     —Outra vez? —mofou-se Henry. — Tornou-se louco?

     —Se o rei ficar a favor de Roald, poderia considerar traição.

     —Disse que falou com ele em privado. Não parece uma aliança muito firme.

     —Tem razão, mas não podemos estar seguros. Roald é parente da rainha e você sempre declarou abertamente a desconfiança que tem de Eleanor.

     —Assim é.

     Ranulf deixou de acariciar o cão e olhou seu amigo.

     —Embora não haja nenhum sinal de inimizade por parte do rei, dá-te conta de que é provável que nunca lhe deem uma propriedade por culpa de tudo isto.

     —A um cavalheiro não deve lhe preocupar o benefício pessoal.

     —Assim é como deveriam ser as coisas — replicou Ranulf com frustração. — Os cavalheiros ricos não têm por que preocupar-se por isso, mas nem você nem eu somos ricos, por isso não podemos nos permitir tal luxo. Ambos vamos necessitar de uma propriedade e a ti agora vai resultar ser muito difícil.

     Henry observou seu amigo com uma expressão crítica que Ranulf não estava acostumado a ver em seus olhos.

     —Não vejo que você se esforce muito em conseguir uma.

     —Porque estou cômodo em Tregellas, mas você…

     —Como está lady B? —interrompeu-o Henry. — Segue sonhando contigo?

     Ranulf apertou os dentes.

     —Não estamos falando de lady Beatrice, estamos falando dos problemas que está ocasionando o que esteja aqui.

     —Que mais dá que o rei não me conceda uma propriedade? —respondeu Henry encolhendo-se de ombros como se realmente não importasse. — Até o momento pude viver sem ela.

     —Está bem — respondeu Ranulf, cada vez mais impaciente. — Deixemos a um lado no que vai afetar a ti tudo isto. Mas o que tem Nicholas, sua irmã e Merrick?

     Henry franziu o cenho.

   —O que tem eles?

     —Se o rei pensar que vai a seu contrário poderia pensar que também o estão eles.

     A preocupação desapareceu de seu rosto.

     —Podem dizer, e sem faltar à verdade, que não sabiam onde estava nem o que estava fazendo.

     —Efetivamente não sabiam, porque você não falou com eles antes de colocar os narizes em um assunto que não te incumbe absolutamente.

     —Não sou nenhum menino que tem que consultar a alguém o que faz ou aonde vai.

     —Não, não é um menino — respondeu Ranulf. — É um homem feito que deveria pensar bem as coisas antes das fazer, algo que parece não compreender. O que acontecerá se o rei não acredita que eles não sabiam que andava metido nesta disputa?

     —O rei pode acreditar no que queira; não é assunto meu que veja complôs e conspirações por toda parte, existam ou não. Se de verdade se o preocupasse uma possível rebelião, não deveria fazer tanto caso a sua mulher.

     —Cala!—pediu Ranulf olhando a seu redor se por acaso alguém tinha ouvido tão feroz e perigosa denúncia.

     Henry ficou em pé.

     —Não penso me calar nem ficar aqui escutando como meu suposto amigo critica o que faço. Ah que amigos tenho! Merrick me acusa de traidor e de ter tentado sequestrar sua esposa, e agora você crê que sou um estúpido egoísta.

     O salão não era o lugar adequado para manter aquela conversa, assim Ranulf agarrou Henry pelo braço e o levou ao corredor que conduzia à cozinha; ali ninguém poderia ouvi-los.

     —Demos por feito que não te importa o mínimo seu futuro, nem o de sua família nem o de seus amigos — disse sussurrando. — Mas o que será das damas se perde contra Roald? —Ranulf levantou a mão para sossegar os protestos de Henry e depois continuou falando — Ambos sabemos que Roald é um ser desumano. Certamente não as mate porque são muito valiosas para ele, mas não precisa ser um gênio para saber que sofrerão algum tipo de castigo por havê-lo desafiado.

     —Precisamente estou aqui porque já as tem feito sofrer muito — replicou Henry. — Além disso, não vamos perder.

     —Ah, agora pode adivinhar o futuro? Maldito seja Henry, você melhor que ninguém deveria saber que em uma batalha pode ocorrer qualquer coisa. Poderiam te matar ou te deixar aleijado. Pode ser que estejam em maior número e lhes derrotem. Qualquer dos dois bandos pode perder. O resultado da batalha está nas mãos de Deus, não nas tuas e ninguém sabe qual é a vontade de Deus.

     —Não acredito que seja sua vontade que nós percamos. É de justiça que…

     —Pelo amor de Deus, Henry, escuta o que está dizendo! A justiça a decidem os que ganham.

     Henry o olhou com uma hostilidade completamente imprópria do homem que Ranulf conhecia da infância.

     —Cala já e me deixe só — pediu dirigindo-se de novo para o salão.

     Mas Ranulf o agarrou pelos ombros e o pôs contra a parede.

     —Por que faz isto, Henry? É óbvio que lady Giselle não está interessada por…

     Henry se revolveu com força, empurrando-o contra a parede de frente.

     —Não estou aqui por ela — assegurou com fúria. — Estou aqui porque sou um cavalheiro, prometi que as ajudaria e por Deus que vou fazê-lo! Assim já pode partir a Tregellas e deixar que faça o que tenho que fazer. E não tema, não vou chamar Merrick e a ti, nem tampouco a meu irmão para pedir que me ajudem. Poderia ser muito perigoso.

     Ranulf devolveu o mesmo olhar de ódio.

     —Agora vai me insultar?

     —Você me insultou ao dar por feito que o único pelo que estaria aqui seria por ambição ou por luxúria… e me insultou muitas outras vezes antes desta. Sempre me trata como se fosse uma espécie de bufão. Henry está bem para rir um momento, mas não para levá-lo a sério. Não tem que me fazer caso, só sou Henry.

     —Por Deus, Henry, é você o que sempre faz piadas de tudo — replicou exasperado. — Poderia contar com os dedos de uma mão as vezes que falaste a sério de algo.

     —Então aqui tem uma, Ranulf — disse dando com um dedo no peito. — Digo completamente a sério que vou ficar aqui e nada que possa me dizer você ou nenhum outro vai mudar tal decisão.

     Ranulf afastou a mão.

     —Vais arriscar-te a pôr a estas damas ainda em mais perigo?

     —Vou protegê-las de Roald embora tenha que morrer por isso, assim volta para Tregellas e diga a Merrick que não volte a se meter em minha vida. Diga também que escreva a meu irmão, posto que são tão bons amigos, e que diga o mesmo a Nicholas. Se tão preocupado estava por mim, poderia ter escrito diretamente a mim em lugar de perguntar a meus amigos no que estou metido como uma velha fofoqueira.

     —Está claro que é impossível colocar um pouco de sentido comum em sua cabeça — disse Ranulf dando meia volta.

     —Se chama sentido comum abandonar às damas de Ecclesford a mercê de Roald de Sayres, sim, é impossível.

     Ranulf se deteve ao final do corredor e se voltou para olhar o homem que mal reconhecia.

     —Partirei a primeira hora da manhã.

     —Muito bem.

        

     Uma vez sozinho Henry apoiou as costas na parede, ofegando como um animal ferido. Deixar Matilde só ante Roald? Jamais. Não lhe importavam os problemas que pudesse causar. Nicholas, Marianne e Merrick sabiam cuidar-se sozinhos; ele ia proteger Mathilde.

        

     Ao entrar no salão à manhã seguinte, após outra noite sem dormir por culpa do desejo, a preocupação e os remorsos por não ter beijado Henry na escada, Mathilde se surpreendeu ao ver Ranulf vestido e, aparentemente, a ponto de partir. Ainda não tinham se levantado a maioria dos homens, só os serventes começaram os trabalhos do dia.

     —Bom dia, sir Ranulf — disse quando ele levantou o olhar para ela — Não estará pensando em nos deixar tão logo?

     Tentou ocultar a alegria de sua voz, mas o certo era que o olhar daquele homem resultava tão inquietante como as notícias que levou a Ecclesford. Tinha a sensação de que poderia adivinhar todos seus segredos e seus medos apenas com o olhar.

     —Temo que assim seja, milady — disse ele. — O dever me chama a Tregellas.

     —Sir Henry lamentará que não possa ficar mais tempo.

     Sir Ranulf sorriu, mas não havia a menor alegria em seu rosto.

     —Seguro que compreenderá que não fique.

     Mathilde percebeu certa amargura em sua voz. A noite anterior viu Henry muito tenso e se perguntou por que estaria tão distante com o amigo do que tanto estava acostumado a falar.

     —Minha irmã sentirá que parta sem poder despedir-se de você.

     —De verdade? —perguntou com os olhos brilhantes.

     —Qualquer amigo de sir Henry é também nosso amigo.

     Quando Mathilde se perguntava se também sir Ranulf esperava conseguir um pouco de Giselle, pediu se podiam falar em privado… sobre Henry. Mathilde assentiu imediatamente e o conduziu à sala com grande curiosidade.

     Uma vez ali, acendeu as velas e aguardou com impaciência e preocupação para ouvir o que tinha a lhe dizer.

     —Milady, como conheceu sir Henry? —perguntou por fim assim que ambos se sentaram frente a frente.

     Mathilde não sabia como responder a tão inesperada pergunta. O que pensaria se contava a verdade? Finalmente optou por dar só uma parte da verdade.

     —Ele estava instalado em uma estalagem próxima e nós necessitávamos um cavalheiro que nos ajudasse a nos defender de nosso primo, assim fomos a sua busca e o pedimos que nos ajudasse.

     —Compreendeu exatamente por que o necessitavam e com quem teria que enfrentar?

     —Sim — disse ela.

     —E vocês sabiam exatamente o que estavam pedindo a ele? —perguntou então, olhando-a fixamente.

     Mathilde se moveu na cadeira com desconforto.

     —Não sei a que se refere.

     —Ninguém parece ter pensado nas consequências que pode ter tudo isto para Henry, para sua família e para seus amigos, nem sequer ele. Sei que vocês se encontravam em uma situação muito difícil, milady, mas Henry não é tão empreendedor para arriscar-se a ganhar a inimizade do rei. Inclusive embora ganhe a batalha e vocês consigam sua herança, sua vida seguiria em perigo. As possibilidades de que o rei lhe conceda uma propriedade depois de tudo isto é muito reduzida. E mais, seu irmão poderia meter-se na disputa se acreditar que Henry está em perigo e o fará se for assim. Igual sua irmã, que quer muitíssimo ao Henry. Também está o senhor de Tregellas, amigo e aliado do irmão do rei, o conde de Cornualles. Não seria de estranhar que o rei visse uma conspiração em tudo isto.

     O certo era que Mathilde não tinha tido em conta nada disso, mas lamentava que aquele homem acreditasse que não se preocupou pelo que Henry estivesse arriscando ao as ajudar.

     —Ninguém obrigou sir Henry a nos ajudar, sir Ranulf. A decisão de vir aqui foi dele. Admito que não pensei em tudo o que poderia significar para ele, mas… O que queria que fizesse? Que entregasse Ecclesford a Roald com a esperança de que tivesse piedade de nós?

     Mas enquanto falava a culpa e os remorsos que tão bem conhecia se apoderaram dela. Convenceu a si mesma de que Henry não correria nenhum risco, embora no fundo sempre soubesse que qualquer um que fosse a sua ajuda ganharia à ira de Roald e possivelmente também a da rainha.

     —Me diga milady — disse então sir Ranulf em tom de amável conselheiro e já não de interrogador — realmente está disposta a deixar que morra ou que arruíne sua vida por vocês? Por seu bem e pelo de sua família e amigos, suplico que peça que parta.

     Aquele homem não tinha a menor ideia do que estava pedindo.

     —Mas nós o necessitamos.

     —Não é certo milady, sua irmã e você podem abandonar o castelo e procurar refúgio em algum lugar. Podem fazer valer seus direitos através da lei.

     Quem era ele para dizer o que devia fazer, especialmente depois de tudo o que ela lutou para evitar uma batalha?

     —É Roald o que provocou esta situação, não eu — declarou ficando em pé bruscamente. — Se sir Henry deseja partir, não serei eu a que o impeça. Mas você deveria estar orgulhoso de ter um amigo como ele, disposto a nos ajudar desinteressadamente, e não deveria tentar que se comportasse como um covarde.

     —Que demônio está fazendo, Ranulf? —perguntou Henry da porta.

     Henry não tinha estado mais furioso em sua vida, exceto uma vez, quando se informou do que Roald fez a Mathilde. Em ambas as ocasiões sentiu como a ira invadia seu corpo. Não entendia como se atreveu seu amigo a falar com Mathilde a suas costas como se ele não fosse mais que um menino. Apesar de seu habitual empenho por ser forte, Henry podia ver a preocupação no rosto de Mathilde e em seus formosos olhos.

     —O que ainda faz aqui, Ranulf? —perguntou cravando sobre ele um olhar que era, mas bem uma adaga. — Acaso pretende arruinar a pouca reputação que me fica depois de que Merrick me chamou de traidor e estivesse a ponto de me matar?

     —Tento evitar que cometa o maior engano de sua vida — respondeu Ranulf ficando em pé.

     —Muito amável, mas você não é precisamente um modelo de virtude. Sua família te abandonou, acaso o esqueceu?

     Ranulf se ruborizou e Henry soube que foi um golpe baixo, mas não se importou. Ainda mais baixo foi o que fez ele.

     —Isso agora não importa — disse. — O que importa é o que você está fazendo e o que poderia te custar. É que não se preocupa o que ocorra a sua família? Acaso é menos importante que o que acontecer com duas damas que até a umas semanas nem sequer conhecia?

     Henry olhou Mathilde, que tinha o rosto lívido e os olhos cheios de dor.

     —Não vou abandoná-las.

     Naquele momento se ouviram os sinos da igreja… três vezes seguidas e logo silêncio… depois outras três.

     —O que? —perguntou Ranulf olhando a ambos. — O que significa isso?

     —Significa meu amigo, que Roald voltou — explicou Henry com ironia. — Assim será melhor que parta daqui agora mesmo.

     —Você vai?

     —Não até que veja Roald derrotado ou morto.

     Ranulf olhou fixamente seu amigo.

     —Então eu tampouco vou. Como você mesmo disse, não tenho família, assim a ninguém importará que fique e, graças a ti, Merrick já está comprometido nesta disputa. E não esqueça que juramos ser companheiros de armas.

     —Não necessitamos sua ajuda — assegurou Henry.

     —Nunca se deve rechaçar a ajuda na batalha, ao menos isso era o que estava acostumado a dizer sir Leonard.

     —Não acredito que…

     Mathilde se interpôs entre ambos.

     —Se deseja ficar, sir Ranulf, minha irmã, meus homens e eu o agradeceremos enormemente.

     Sir Ranulf esboçou um sorriso vitorioso e depois se inclinou ante Mathilde como se fosse um cortesão.

     —Então estarei encantado de ficar. Diga-me o que deseja milady. Você manda.

 

     O pátio estava sumido no caos. Os carros e a gente a pé chegavam sem cessar em busca de refúgio.

     Ao chegar às ameias, Mathilde viu que Giselle e Cerdic já estavam ali, observando juntos o caminho que unia o povo ao castelo. Seguiu seu olhar sem dizer nada, o caminho estava cheio de gente e de animais que se dirigiam ao castelo e ao longe, o exército de Roald com seu estandarte ondeando ao vento.

     Sentiu um calafrio de pavor. Roald tinha conseguido reunir a mais homens do que jamais teria podido imaginar Mathilde em seus piores pesadelos.

     —Quantos crê que são? —perguntou Henry a Ranulf dando voz aos pensamentos de Matilde.

     —Ao menos duzentos — respondeu seu amigo com gravidade. — É fácil reunir um exército prometendo uma recompensa.

   A Mathilde revolveu o estômago ao imaginar o tipo de exército que seria. Só esperava que todos os aldeãos conseguissem chegar ao castelo a tempo.

     Pouco depois, já com o exército mais perto, Henry pôde distinguir alguns dos homens que o formavam.

   —Esse bruto que vai junto a Roald com um capacete emplumado — disse a Ranulf. — É quem acredito que é?

     Ranulf seguiu o dedo de Henry e amaldiçoou entre dentes.

     —Quem? Quem é? —perguntou Mathilde, alarmada por sua reação.

     Henry sorriu, mas não pôde ocultar sua tensão.

     —Não pretendia te assustar. Não deveria me surpreender que Charles De Mallemaison lute junto a Roald.

     —Quem é Charles De Mallemaison?

     —Um mercenário — respondeu Henry sem afastar o olhar do caminho.

     —Um muito famoso — acrescentou Ranulf. — E certamente o resto dos integrantes do exército sejam ladrões e assassinos quando não estão lutando por dinheiro.

     Mathilde sentiu como gelava o sangue nas veias. Pela extremidade do olho viu Giselle dar a mão a Cerdic e desejou não ter perguntado, embora devessem saber a quem enfrentavam. Giselle não era nenhuma menina e Cerdic algum dia seria o senhor de Ecclesford.

     Se antes derrotassem a Roald e ao exército que tinha comprado.

     Deus, quanto teria desejado não chegar a isso! Esperava que Roald voltasse atrás e não quisesse arriscar-se a lutar. Depois esperou contar com a ajuda da igreja, mas tinha resultado que o homem que acreditava que poderia apoiá-las era tão desonesto como seu primo.

   Cometeu muitos enganos. Quantos mais teria que cometer antes que aquela guerra acabasse e quanta gente teria que sofrer por sua culpa?

     Henry deve ter adivinhado sua preocupação porque a olhou com um sorriso que lhe devolveu ao menos um pouco de força.

     —Não importa quem sejam esses homens ou o que tenham feito. Nossos soldados derrotarão a ladrões e assassinos porque um exército assim não sabe lutar unido nem acatar ordens. Seguro que Roald não teve em conta nada disso.

     —Porque não aprendeu com sir Leonard — acrescentou Ranulf, seguro de que isso contribuiria para lhes dar a vitória.

     —Claro que venceremos — afirmou Cerdic aproximando-se deles.

     —É obvio — assentiu sir Ranulf. — Sobre tudo agora que estou com vocês.

     Mathilde não saberia dizer se o dizia ou não a sério e, evidentemente, tampouco Giselle.

     —Mas Cerdic segue sendo o segundo ao mando, não é certo? —perguntou sua irmã a Henry.

     —Não me importa se for o segundo ao mando ou não enquanto ganhemos — declarou Cerdic com orgulho.

     —Não tenho desejo algum de tomar o mando de nada — esclareceu Ranulf humildemente. — Só quero lutar como um soldado mais.

     —Damas de Ecclesford! —gritou Roald do outro lado do fosso.

     Ao ouvir aquela voz que tanto odiava, Mathilde se aproximou da borda do adarve para que Roald pudesse vê-la, mas Henry a afastou dali.

     —Tome cuidado, Mathilde. Certamente há arqueiros te apontando.

     Não pensou nisso.

     —Por que está tão silenciosa Mathilde? —perguntou Roald. — Não acredito que te surpreenda. Já te disse que voltaria e isso fiz, só que agora conto com o apoio do rei e com todo um exército. Tenha um pouco de sentido comum e ponha fim a tudo isto. Abre as portas e deixa que entre com meus homens. Se renda agora e ninguém sairá ferido.

     —Já deixei que me enganasse uma vez, Roald — respondeu ela. — Não vou voltar a cair na armadilha. Por muito exército que tenha conseguido reunir, não poderá te fazer com Ecclesford.

     —Você tem um punhado de soldados sem treinamento algum e um castelo cheio de aldeãos assustados. Não tem nada a fazer contra meus homens.

     —A única maneira de que volte a entrar neste castelo será morto. Diga a seus homens, especialmente a esse bruto que está sentado no traseiro de seu cavalo.

     —Mathilde! —exclamou Giselle enquanto os três homens punham-se a rir.

     Mathilde olhou sua irmã.

     —É certo, Mallemaison está sentado sobre o traseiro de seu cavalo.

     —Puta estúpida! —grunhiu Roald. — Vai pagar por isso e por todos os insultos que lançaste sobre mim! Lamentará me haver privado de meus direitos! Vou fazer que me peça perdão de joelhos!

     Henry agarrou algumas pedrinhas que havia na ameia e as atirou ao ar fazendo que caíssem sobre o capacete de Roald.

     —Por todos os Santos! —exclamou. — Descarado! Vou te matar com minhas próprias mãos!

     —Estarei te esperando — respondeu Henry. — E também a Mallemaison.

     Charles De Mallemaison levantou o protetor que cobria o rosto e Mathilde pôde ver um rosto digno de um pesadelo.

     —Será um prazer, sir Henry — respondeu o mercenário com uma reverência. — Ainda devo algo a seu irmão para pagar esta cicatriz que me deixou no rosto. Você me será muito útil. Também o será essa beleza loira, mas para algo muito distinto.

     Giselle empalideceu imediatamente e fechou os olhos Mathilde foi para ela.

     —Giselle, está…?

     Mas sua irmã se agarrou forte a Cerdic e abriu os olhos.

     —Não vou desmaiar Mathilde. Rezarei para que Deus o mate.

     —Se não o fizer ele, farei eu — prometeu Cerdic. — A esse não o matará você, Henry me deixe isso.

     —Não posso prometer isso amigo. Se tiver oportunidade de fazê-lo, matarei.

     —Não — insistiu Cerdic. — Quero…

     —Me deixe entrar! —gritou Roald de novo pondo fim à discussão. — Me deixe entrar ou juro por Deus que te pendurarei da muralha.

     —Vá embora, Roald — respondeu Mathilde. — Jamais te deixarei entrar, antes prefiro morrer.

     Giselle deu um passo adiante e gritou também:

     —E prefiro me matar antes de deixar que me toque esse bruto.

     Mallemaison se pôs a rir; Roald, entretanto, tinha o rosto vermelho como o traje de um cardeal. Afastaram-se dali sem dizer nada mais.

     Havia algo que Mathilde tinha bem claro: nem Giselle nem ela estariam desarmadas se conseguiam entrar no castelo. Morreriam lutando.

     —Bom Henry, suponho que terá um plano — disse Ranulf como se estivesse falando de uma festa em lugar de uma batalha.

     Henry assentiu ao tempo que jogava um braço pelos ombros.

     —É algo rudimentar e estou seguro de que opinará que necessita algumas melhoras, assim espero que me ajude. Cerdic, vem você também. Senhoras nos acompanham?

     Giselle negou com a cabeça.

     —Eu vou assegurar-me de que os remédios e as ataduras estão preparados.

     —Eu deixarei os planos da batalha para os homens e irei comprovar que todo mundo tenha um lugar onde dormir esta noite.

     —Até mais tarde, então — disse Henry. — Vamos, amigos, temos uma batalha que preparar e me atrevo a dizer que Roald atacará de manhã. Esse homem carece de paciência… e de inteligência.

        

     Essa noite, Mathilde não podia afastar-se da janela de seu dormitório, de onde olhava o campo que se estendia depois da muralha, um território salpicado de fogueiras do inimigo. Ocuparam também alguns dos edifícios do povo e, a julgar pela natureza dos integrantes daquele exército, estariam destroçando tudo.

     Afirmou umas mil vezes que estava convencida de que os derrotariam, mas agora que se aproximava o momento, já não o via tão claro. Chegou inclusive a duvidar de se fez bem opondo-se a seu primo. Possivelmente se equivocou ao pôr em perigo a sua irmã, a seu povo, ao Henry e a sua gente. Possivelmente deveria ter se rendido e, como havia dito sir Ranulf, ter procurado refúgio em algum convento até que resolvesse o assunto da herança.

     O que pensaria Henry? Teria se arrependido de ajudá-las? Estaria acordado como ela, amaldiçoando-se por ter se metido naquela loucura e desejando que houvesse um modo de escapar?

     Certamente não deu mostra alguma de ter dúvidas nas ameias nem depois, enquanto jantavam junto a pai Thomas no abarrotado salão. Mas parecia que estava ansioso para que começasse a batalha.

     Estaria muito nervoso para dormir?

     Precisava estar descansado para ter forças no dia seguinte e que ninguém o matasse ou o ferisse.

     Mathilde recordou de repente uma infusão que sua irmã lhe deu várias vezes quando não podia dormir por culpa dos pesadelos sobre Roald. Foi a sua mesa e encontrou o pequeno frasco com a mescla de papoulas. Sim, essa era.

     Fechou bem a bata que levava sobre a camisola e, com o frasco na mão, saiu da estadia rumo aos aposentos de Henry. Uma vez frente a sua porta titubeou uns segundos, mas em seguida decidiu seguir adiante. Só daria a ele a poção para que pudesse dormir e voltaria para seu dormitório para passar o resto da noite acordada.

     Apesar da suavidade com a que bateu na porta, Henry a abriu quase imediatamente. Levava as calças, uma camisa aberta e os pés descalços.

     —Atacaram? —perguntou olhando-a com nervosismo.

     —Não. Pensei que se não podia dormir e vim te trazer isto.

     —O que é?

     —É uma mescla que prepara Giselle com papoulas. Ajudará a dormir.

     —Você tampouco parece ter dormido ainda.

     —Não, mas eu não tenho que dirigir os homens na batalha amanhã.

     Henry negou com a cabeça.

     —Agradeço isso, mas necessitaria uma dose muito alta para que me fizesse efeito e então estaria sonolento quando chegasse à alvorada. Se quiser me ajudar, me faça companhia — sugeriu abrindo a porta de par em par.

     Mathilde não se moveu. Só vestia uma camisola e uma bata; ele tampouco ia de todo vestido.

     —Só quero falar, milady. Nada mais, prometo.

     Se soubesse o desejo que sentia crescer dentro dela, teria se dado conta de quão perigoso era o que pedia. Mas tampouco podia negar-se depois de tudo o que estava fazendo por elas sem pedir nada em troca.

     Assim, cruzou a soleira da porta e entrou na estadia iluminada com um candelabro de vinte velas. Sobre a cama, estava estendida a cota de malha.

     —Estava comprovando que está em perfeitas condições. Sir Leonard sempre nos dizia para olhar bem a malha antes da batalha porque qualquer argola aberta poderia pôr em perigo nossa vida.

     De repente, Mathilde viu o formoso rosto de Henry desfigurado pela dor, seu corpo ferido no chão do campo de batalha.

     —Sua vida não deveria correr perigo — apertou os punhos e se voltou para olhá-lo. — Não deve lutar. Poderiam te ferir ou te matar.

     —Não tenho intenção de deixar que me firam e muito menos que me matem. Estarei são e salvo quando alcançarmos a vitória.

     A alegria com a que pronunciou aquelas palavras entrou também no coração de Mathilde.

     —Espero que não deixe que Ranulf a preocupe pelas possíveis consequências de tudo isto — disse enquanto a convidava a sentar-se em uma cadeira e ele o fazia frente a ela, na borda da cama. — Me acredite, se Merrick, Nicholas e minha irmã dizem que atuei sem seu conhecimento, todo mundo acreditará.

     —O que me preocupa é que ao nos ajudar crie problemas com seus amigos e com sua família.

     —Não tem por que preocupar-se. A minha irmã não estou acostumada vê-la muito, está muito ocupada com seu marido e com sua família. Com meu irmão nunca me levei muito bem; em realidade é mais um pai muito crítico comigo que um irmão porque é muitos anos mais velho que eu. Quanto a Merrick… — perdeu o olhar no vazio com evidente tristeza —… não teve nenhum trabalho em acreditar que eu pudesse havê-lo traído. Encerraram-me nas masmorras de Tintagel, onde me golpearam e disseram que iriam me executar por traição.

     Ficou em pé e foi até a janela com gesto ausente, como se já não estivesse ali realmente.

     —Se preferir não falar disso… — disse Mathilde brandamente. — O compreendo.

     —Acredito que você mais que ninguém pode compreender o que senti — disse olhando-a de novo. — Traído e perdido. Asseguro que pode entender minha tristeza e minha vergonha.

     Mathilde assentiu com o coração encolhido por sua dor, porque sabia o que era sofrer tal agonia e ter que seguir vivendo com ela cada dia.

     —Cada momento que passei naquele buraco pensava que cada ruído que ouvia significava que vinham para me matar — passou as mãos pelo cabelo com desespero. — Ainda agora, quando sinto aroma de umidade, volto a sentir o medo de então.

     Claro que o entendia. Sabia bem como as lembranças se empenhavam em atormentá-la.

     Henry pôs a mão junto ao candelabro e sorriu com tristeza.

     —Dá-me medo a escuridão.

     Como poderia não amar aquele homem forte e seguro apesar daqueles temores secretos contra os que devia lutar dia e noite? Como não admirar aquela capacidade que tinha para encontrar o lado divertido e alegre da vida apesar de tudo?

     Mathilde ficou em pé e foi junto a ele. Desejava abraçá-lo, mas temia o que isso podia desencadear.

     —Também me dá medo a escuridão — admitiu ela. — E durante o dia, não deixam de me atormentar as lembranças de Roald e do que me fez.

     —Sinto muito, Mathilde.

     —Eu também sinto o que aconteceu com você — sussurrou ao mesmo tempo em que se aproximava para acariciar seu rosto. — Não quero que morra por mim, Henry. Quero que viva.

     —Se morrer, morrerei como deve morrer um cavalheiro; com honra, defendendo à mulher que ama —disse pondo sua mão sobre a dela.

     Tomou o rosto entre as mãos.

     —Sei que é um homem valente e honrado e sei que lutará por nós até a morte… mas não poderia suportar que isso acontecesse. Já ocasionei muitos problemas, muita dor. Se tivesse que enfrentar sua morte, não poderia; não poderia levá-la na consciência — baixou as mãos. — Parte, Henry, por favor — disse com todas suas forças. — Agora. Esta mesma noite.

     Mas ele negou com igual determinação.

     —Não posso Mathilde. Não posso deixar que você e todos os outros enfrentem Charles De Mallemaison e ao resto dos assassinos — acariciou a bochecha. — Seus homens estão preparados para lutar e não tenho a menor duvida de que vamos ganhar. Recorda que estou aqui porque quero estar, e não o esqueça jamais — cravou o olhar em seus olhos antes de acrescentar — Me promete que não o esquecerá?

     —Tentarei — é tudo o que se atreveu a dizer.

     —Porque te amo.

     —Não, não pode. É impossível — disse enquanto dizia a si mesma que não podia ser. Não podia dizê-lo de verdade depois de…

     —Acaso acredita que não conheço meu próprio coração, Mathilde? —perguntou brandamente.

     —Acredito que é bom e amável e…

     —E tolo, porque não sei o que sinto?

   —Não, sinto muito. Não queria dizer…

     Henry agarrou suas mãos.

     —Sei o que sinto por ti, Mathilde. Não acredita que possa amar uma mulher cuja força e determinação são mais formosas que qualquer traço físico? Que possa admirar e desejar uma mulher tão valente como qualquer cavalheiro, tão inteligente como qualquer erudito e cujos beijos desatam em mim um desejo completamente desconhecido para mim? A pergunta deveria ser; como poderia não amá-la?

     Mathilde abriu a boca para protestar, para pedir que partisse, mas em lugar de fazê-lo, seguiu os ditados de seu coração e o beijou. Beijou-o com toda a alma, com toda a paixão que tentou controlar.

     Aquela poderia ser a última vez que estavam juntos. Possivelmente não tivesse outra noite para estar com ele como desejava, para entregar seu corpo além de seu coração. Por isso devia fazê-lo agora.

     Entretanto Henry parecia seguir contendo-se. Certamente tinha medo de assustá-la como havia acontecido a noite da festa, quando saiu correndo como uma menina assustada. Assustou-se, mas não dele, mas sim da força de seus sentimentos, o que acreditou que era amor por Roald não era nada comparado com o que agora sentia por Henry.

     Recordou Roald, o pânico que sentiu a voltar a estar em braços de um homem, mas afastou aqueles pensamentos de sua cabeça. Agora estava com Henry, seu amado, o homem que estava disposto a morrer por ela. Não ia permitir que as sombras do passado turvassem o que estava vivendo com ele. Só existia aquela noite, aquela estadia e aquele homem. Nada mais.

     —Faz amor comigo, Henry, por favor — suplicou sussurrando. — Te desejo tanto…

     Mas ele se afastou.

     —Não, Mathilde. Não posso.

     Ela o olhou desesperada e viu como a angústia e o pesar se refletiam em seu rosto.

   —Deus, eu também desejo estar contigo. Só há uma coisa que deseje mais no mundo, mas é impossível, por isso devo te deixar partir — deu um passo afastando-se dela. — Eu não posso te oferecer matrimônio, Mathilde.

     Matrimônio? Ela nem sequer se atrevia a esperá-lo. Henry devia casar-se com uma mulher sem mancha pelas mãos de outro homem.

     —Eu não disse nada de matrimônio.

     Henry a olhou visivelmente desconcertado.

     —Faria amor comigo sem uma promessa de matrimônio?

     —Sim. Merece uma esposa melhor que…

     —Deus Mathilde, meu amor! —gritou ao tempo que voltava a estreitá-la em seus braços. — Me entendeu mal. Deus, não é isso o que queria dizer.

     Sem atrever-se a albergar esperanças, Matilde se afastou para olhá-lo no rosto e procurar ali a explicação.

     —Sou eu o que não te merece. Sou um cavalheiro sem terras, sem dinheiro sem lar. Não tenho nada que te oferecer.

     —Nada? —repetiu com incredulidade. — É que você não é nada?

     —O que sou a não ser um alegre nômade que conta anedotas divertidas e sabe lutar? — respondeu atormentado.

     —É muito mais que isso, Henry. É o homem que fez que voltasse a me sentir completa quando pensava que o que Roald me fez me destroçou para sempre. Você trouxe risadas e alegria a meus dias mais escuros. Fez que voltasse a me sentir segura. Devolveu-me o desejo. É o homem que amo, Henry, com todo meu coração.

     —Diz a sério? —murmurou como se tivesse medo de acreditar. — De verdade me ama?

     —Amo-te embora não seja digna de ti.

     A fez se calar com um beijo.

     —O que te fez Roald não foi tua culpa — sussurrou enquanto dava mil beijos no rosto, nos lábios, no queixo.— Acreditou que poderia te conquistar, mas você é forte —um sorriso iluminou seu rosto.— E bom, eu tampouco sou virgem.

     Ninguém poderia fazê-la sentir como ele, ninguém poderia fazer desaparecer a carga de seus ombros com apenas olhá-la. Quando estava com ele, Mathilde voltava a ser a mesma de sempre, a de antes que aparecesse Roald.

     —Não deve preocupar-se pelo dinheiro ou as terras — disse ela com alegria e emoção. — Quando nos casarmos, eu contribuirei com ambas as coisas em meu dote — então se deu conta de que possivelmente estivesse se excedendo. — Bom, se nos casarmos.

     —Claro que nos casaremos Mathilde. Desejo me casar contigo mais do que desejei algo em toda minha vida. Desejo-te mais do que desejei a nenhuma outra mulher e te necessito como nunca acreditei que pudesse necessitar a ninguém — dizendo isso ficou de joelhos e tomou uma mão. — Uma vez prometi que quando me casasse, estaria apaixonado por minha futura esposa, mas até agora não tinha encontrado dito amor. Sei que não te mereço, mas… faria-me a honra, Mathilde? Casar-se-á comigo?

     O coração se encheu de júbilo e de amor ao ouvir aquilo.

     —Não deveria aceitar, mas… sou muito fraca para dizer não! —exclamou enquanto o puxava para que voltasse a ficar de pé.

     —Débil você? Isso jamais, meu amor. É muitas coisas, mas fraca certamente não.

     Beijou-a meigamente primeiro e logo com mais e mais paixão.

     —Faz amor comigo agora, Henry, por favor — pediu sem mal afastar a boca de seus lábios.

     Ele deixou de beijá-la e a olhou aos olhos.

     —Ninguém sabe o que pode ocorrer durante a batalha e, embora tenha total confiança na vitória, algo poderia sair mal. Poderiam me matar e você poderia ficar sozinha e grávida…

     —Estaria orgulhosa de ser a mãe de seu filho — disse ela com total sinceridade. — Estejamos ou não casados, seria muito feliz em ter teu filho. Ao fim, todo mundo já conhece minha vergonha, que mais poderiam dizer que não se haja dito já? —fez uma pausa durante o que o viu lutar com sua consciência. — Por favor, Henry — sussurrou acariciando o peito como tantas vezes tinha sonhado podendo fazer. — Não me jogue de seu lado esta noite, por favor.

 

     Com um rugido que era parte rendição e parte desejo, Henry estreitou Mathilde em seus braços e a beijou fervorosamente.

     Ela relaxou por completo, entregando-se ao prazer e à emoção, livre de culpas e remorsos. Possivelmente tivesse só aquela noite para estar com o homem que amava, ou uma vida inteira que viver junto a ele…

     Penetrou timidamente as mãos por debaixo de sua camisa enquanto ele começava também a explorar seu corpo, deixando uma esteira de calafrios em sua pele. Tirou a camisa e pôde observar seu peito nu e cheio de cicatrizes que davam conta de mil batalhas. Inclinou-se sobre ele e começou a beijar todas e cada uma dessas marcas. Ele gemeu brandamente de um modo que acendeu ainda mais a paixão de Mathilde.

     Henry abriu a bata e a agarrou pela cintura com ambas as mãos para pegá-la bem contra seu corpo. Através do tecido da camisola, Mathilde podia sentir sua excitação. Notou a tensão, o pânico…

     —Se quiser que paremos, só tem que dizê-lo, meu amor — sussurrou ele.

     Mas Mathilde decidiu não deixar-se vencer pelo medo.

     —Me beije — pediu. — Me beije, me faça amor e me faça esquecer.

     —Tentarei — prometeu ele docemente. — Porque te amo.

     Amava-a. Henry a amava e suas carícias eram suaves, excitantes e deliciosas. Seus lábios pousaram sobre os dela com a suavidade do veludo. Muito suaves, possivelmente. Mathilde sentia que seguia contendo-se e, embora o amasse por sua generosidade e sua falta de egoísmo desejava desatar a paixão que tanto se empenhava por controlar. Não queria que seguisse tratando-a como um ser frágil com o que não podia expressar seu desejo livremente. Não queria que fosse um escravo do medo como ela.

     Assim que se pegou bem a ele e penetrou a língua entre seus lábios abertos, dando rédea solta a sua própria paixão para que ele fizesse o mesmo. Henry sentiu a mudança nela; finalmente aceitou que, embora não poderia desfazer o medo facilmente, Mathilde desejava que fizesse amor e confiava nele o suficiente para deixar que o fizesse.

     Por fim se deixou levar pelo prazer de tê-la em seus braços, mas em todo momento foi consciente de que não devia ser muito brusco. Por isso não a levantou do chão e a levou a cama, mas sim seguiu beijando-a um pouco mais até que sentiu que era o momento de tomá-la pela mão e levá-la à cama. Deu meia volta para apagar as velas, mas ela o impediu.

     —Quero vê-lo. Quero ver seu corpo e seu rosto.

     Henry sorriu, satisfeito com seu pedido.

     —E eu quero vê-la também.

     Ela mesma desatou a camisola com mãos trementes e a deslizou por seu corpo até que caiu ao chão. Completamente nua, Mathilde se ruborizou como teria feito qualquer outra donzela.

     Como poderia um homem não amá-la, respeitá-la. Admirá-la e desejar o melhor para ela? Como pôde Roald…?

     Não, Roald teria que esperar até amanhã. Aquela noite era só de Mathilde.

     Henry pôs as mãos em seus ombros e observou seu corpo com deleite.

     —É perfeita, Mathilde. Perfeita.

     Voltou a ruborizar-se e o rubor quase alcançou seus mamilos, já endurecidos.

     —Sei que não sou formosa.

     Ele a olhou nos olhos e disse com total sinceridade:

     —Para mim é a mulher mais formosa do mundo e sempre será. Sua beleza nunca se murchará porque emana de seu interior — então sorriu como só ele podia fazer. — E devo confessar que eu gosto que muitos homens não possam ver tanta beleza.

     —Você tampouco a via quando nos conhecemos.

     —Isso é injusto, milady! O que ocorre é que a primeira vez que nos vimos me surpreendeu. Jogava com vantagem.

     —Você me surpreendeu ao me agarrar e me jogar sobre a cama.

     —Tem sorte de que não tirasse a espada — disse com um beijo no nariz.

     —Poderia ter feito mal a você, nu como estava.

     —E então não estaríamos aqui, assim…

     Deixou de falar quando o desejo foi mais forte que suas palavras e se deitou com ela sobre a cama, sobre a mesma cama em que tinha dado mil voltas sem poder dormir desde que estava ali. Ao princípio por culpa das lembranças da masmorra e do medo, e depois porque não podia deixar de pensar em Mathilde.

     Começou a beijá-la brandamente, no rosto, no pescoço e depois mais e mais abaixo. Estava disposto a parar assim que sentisse a mínima tensão ou medo em sua respiração. Mas não foi assim… só sentia seus gemidos de prazer.

     Chegou aos mamilos e os acariciou com a língua, primeiro um e logo o outro enquanto com a mão acariciava as coxas, dirigindo-se lentamente ao centro de seu corpo, com paciência e suavidade apesar dos batimentos do coração que lhe provocava a excitação que sentia apertada contra as calças. Só a tiraria quando estivesse seguro de que ela estava preparada, quando não pudesse esperar mais para possuí-la, e só o faria se ela o desejasse.

     Moveu a mão acima e abaixo enquanto ela abria as pernas de maneira instintiva. Então subiu a mão para o ventre e escutou com alegria um gemido de frustração. Mas ainda não ia inundar-se nela, não até que tivesse a certeza de que estava úmida e preparada, ansiosa por senti-lo.

     Se esperasse o tempo suficiente, Mathilde não sentiria nenhuma dor, já teve o suficiente. Henry só queria lhe agradar e a completa liberdade de parar se assim o desejasse.

     Subiu de novo para lhe beijar a boca. Como aceitava ela seus lábios e sua língua!

     Não podia esperar mais… mas devia fazê-lo.

     Acariciou de novo seus seios até que voltou a baixar para beijá-los e percorrê-los com a língua. Ela gemeu e arqueou as costas para pegar-se mais a ele. Henry baixou a mão pouco a pouco em busca da umidade que confirmaria que Mathilde estava preparada.

     Comprovou com deleite que estava… ou quase. Voltou a tomar sua boca com paixão enquanto se colocava em cima dela, entre suas pernas.

     Então notou que se esticava e viu como abria os olhos; havia medo neles.

     —Mathilde? —sussurrou com certa decepção.

     —Quero que me ame, Henry — disse ela lhe acariciando o rosto. — Não tenho medo. Confio em ti e te amo.

     Ao olhar soube com total segurança que dizia a verdade.

     Então se separou dela o justo para poder tirar as calças. Mathilde se incorporou também e por um momento, Henry pensou que mudou de opinião.

     —Deixa que te ajude — disse. — Quero ver-te nu, como eu.

     Henry se levantou da cama e obedeceu.

     —Será um prazer, milady.

     Mathilde não afastou o olhar dele. Observou seu rosto anguloso e perfeito, o cabelo que lhe dava aspecto de guerreiro, seu corpo forte…

     Voltou a olhá-lo no rosto e estendeu uma mão para que voltasse para a cama com ela, para que a amasse, para que a tomasse com amor e ternura.

     Estava preparada para ele. Para seu amor.

     Henry se colocou entre suas pernas e, com um beijo suave, entrou nela levemente.

     O instinto disse que fechasse as pernas, que se protegesse dele, mas o coração controlou o pânico e recordou que não era Roald, a não ser Henry, o homem que ela amava e que a amava.

     O medo desapareceu quando ele se deteve um instante. Então abriu as pernas um pouco mais e deixou que entrasse nela.

     Sem dor.

     Por um momento pensou que voltava a conter-se, mas ao olhá-lo no rosto soube que não era assim; estava já dentro dela e não doía. Agora só havia prazer, a gloriosa sensação de que seus corpos estavam unidos por completo, de igual a igual.

     Beijou-o apaixonadamente para ele ver que estava bem. Ele respondeu imediatamente com a mesma paixão ao tempo que aumentava o ritmo de suas investidas e com isso o prazer.

     Mathilde o rodeou com as pernas para aproximar-se dele tanto como pudesse. Era Henry, seu amante, seu salvador.

     A tensão aumentou dentro de seu corpo, o sangue começou a pulsar nas veias tão forte como o coração dentro do peito. Então algo estalou dentro dela expulsando toda a tensão com um grito.

     Ao mesmo tempo, Henry jogou a cabeça para trás e rugiu. Enquanto parava pouco a pouco a beijou nos lábios, nas pálpebras, as bochechas… até que finalmente se deteve e se deitou a seu lado, abraçado a ela.

     —Deveríamos nos colocar sob as mantas — disse ele depois de vários minutos de silêncio. — Ou ficaremos gelados.

     —Eu não tenho frio — respondeu ela com um sorriso nos lábios. — E não quero me mover.

     —Pois em algum momento terá que mover-se.

     —Mas agora não — murmurou ela lhe acariciando o peito.

     Henry lhe agarrou a mão e a olhou aos olhos.

     —Antes que desperte todo mundo. O que pensará Giselle se acorda e vê que não está?

     Mathilde pôs-se a rir, comovida por sua preocupação.

     —Nunca estou quando ela acorda. Sempre me levanto muito antes que minha irmã — então ficou mais séria. — Além disso, já não tenho reputação a proteger.

     Ele apoiou o cotovelo na cama e a olhou fixamente.

     —É uma mulher honrada, Mathilde, no sentido mais estrito da palavra.

     —E você é o homem que amo — sussurrou ela ao tempo que o puxava para beijá-lo.

        

     —Pôde dormir? —perguntou Mathilde quando as primeiras luzes da alvorada começavam a apagar as estrelas no céu e depois de passar a noite nos braços de Henry.

     Ela tinha conseguido fechar os olhos um par de vezes, mas pouco mais. Estava cômoda e satisfeita, mas não podia esquecer o que ocorreria pela manhã.

     —Um pouco. Mais do que teria pensado. Normalmente não posso dormir antes de uma batalha ou de um torneio — acompanhou suas palavras com um beijo. — Algo deve me cansar.

     —Espero que não esteja muito cansado — disse ela, maravilhada de que pudesse parecer de tão bom humor em uma manhã como aquela.

     —Nunca antes de uma batalha — se levantou da cama e foi para a tina de água. — Depois estava acostumado a dormir como um bebê.

     —Estava acostumado? —perguntou, alarmada.

     —Bom, não participei de uma batalha desde…

     Desde que tinha estado nas masmorras, supôs Mathilde.

     —Não se preocupe meu amor — disse enquanto secava o rosto. — Não vou ficar dormindo na metade da luta. E tampouco se preocupe pela batalha — acrescentou voltando para a cama para sentar-se a seu lado. — Estamos preparados e temos um bom plano — fez um gesto para a janela. — Cerdic e outros cinquenta homens já estarão postados na porta traseira do castelo, colocaram-se ali durante a noite para que ninguém os veja. Quando Roald ataque a porta principal, eles o rodearão pelas costas.

     —Parece um plano excelente.

     —E pouco arriscado. Bom, meu amor, vai ficar na cama toda a manhã ou quer ser meu escudeiro e me ajudar a me vestir?

     —Encantada — mentiu porque o certo era que se sentia como se tivesse pedido que o ajudasse a colocar a mortalha. Mesmo assim, levantou-se da cama disposta a sacudir a tristeza e o medo e, fingiu estar tão animada e despreocupada como ele. — Por que não tem escudeiro?

     —Porque não posso me permitir, —respondeu enquanto colocava a roupa interior e a atava à cintura. — Só a comida me custaria uma fortuna.

     Mathilde o ajudou a colocar a camisa e não pôde resistir a lhe acariciar o peito enquanto a colocava em seu lugar. Ele pôs-se a rir.

     —Isso jamais faria um escudeiro — brincou ao tempo que lhe acariciava o rosto. — Me ajuda também com as meias?

     —Acredito que poderá só — respondeu coquetemente enquanto ia procurar o traje acolchoado que devia ficar debaixo da cota de malha, mas ao voltar sem encontrá-lo, viu que já o estava pondo. — Necessita ajuda?

     —Não a necessito, mas se me pergunta se a quero, a resposta é diferente — respondeu com malícia.

     —Cavalheiro, deveria ter sido bufão — disse em tom zombador. Apesar de assustada como estava ele conseguia fazê-la rir.

     —Me ate milady — pediu colocando-se frente a ela com os braços abertos e um sedutor sorriso nos lábios.

     —Preferiria te desatar — corrigiu ela pondo a mão na cintura da calça.

     —Está claro que não é meu escudeiro — disse fingindo estar escandalizado.

     —Não, sou sua amante.

     —E logo será minha esposa — acrescentou enquanto a estreitava em seus braços. — Pode ser que não seja o melhor cavalheiro do reino, mas serei o mais carinhoso. E o mais divertido.

     Mathilde se pôs a rir encantada.

     —Estou segura disso.

     Henry voltou a olhar pela janela e então a alegria abandonou seu rosto.

     —Meu amor, temo que não tenhamos mais tempo para graças. Se o ouvido não me enganar, Roald e seus homens estão em marcha.

     Mathilde levava tempo temendo que chegasse aquela batalha, mas agora que tinha chegado o momento, o terror era mais intenso do que jamais teria imaginado.

     —Não se preocupe tanto, amor. Não é minha primeira batalha.

     —Para mim, sim — sussurrou ela com a esperança de que assim Henry não se desse conta de que tremia a voz.

     —Sei. Ajude-me a terminar de me vestir e me despeça com um beijo e com sua bênção.

     Henry sorriu e Mathilde soube que tentava parecer tranquilo por ela. E o quis ainda mais por isso. Mas, apesar de seus esforços, tinha o coração cheio de preocupação enquanto colocava a cota de malha e o capuz. Teve que morder o lábio para não tornar-se a chorar ao pôr o capuz que também protegia o pescoço.

     Depois de pôr o capacete, Mathilde deu um passo atrás para olhá-lo. Seu amante, seu amigo, seu salvador, todo um guerreiro.

     Então Henry levantou o visor e deixou ver seu maravilhoso sorriso.

     —Não tem por que temer, Mathilde — assegurou. — Sabe que estou bem treinado.

     Ela dissimulou seu temor por ele e tratou de sorrir.

     —Sei, assim como sei que contigo ao mando, hoje venceremos.

     —Daria outro beijo a seu cavalheiro, para lhe dar sorte? —perguntou estendendo os braços e olhando-a fixamente aos olhos.

     Mathilde deu um passo para ele e o beijou apaixonadamente para dar sorte, demonstrar sua gratidão e com a esperança de poder beijá-lo de novo quando a batalha tivesse terminado.

 

     Pouco mais tarde, depois de que Mathilde, a maravilhosa Mathilde que se converteria em sua esposa assim que acabasse tudo aquilo, o deixou, Henry subiu às ameias de Ecclesford junto a Ranulf.

     O ar parecia estar empapado de tensão e impaciência, como os homens que esperavam nas ameias junto a Henry. Os aldeãos se apinhavam nos diferentes edifícios que formavam o castelo. Giselle e quão serventes iam ajudar a atender aos feridos estavam no salão preparando tudo e Mathilde estava na cozinha fiscalizando a água que teria que ferver para os feridos e a comida para quando a batalha tivesse terminado. Da capela chegavam às rezas daqueles que pediam a vitória a Deus.

     Henry rezou em silêncio e pediu a Deus que compreendesse que não se separasse das muralhas nem sequer para assistir à missa. Estava seguro de que Roald não demoraria em atacar e também estava seguro de que acreditaria que se esconderiam no interior do castelo, isso fariam… até que chegasse o momento de atacar.

     Os soldados a pé esperavam no adarve para sufocar qualquer fogo que pudessem provocar as bolas de fogo que Roald e seus homens lançariam sem dúvida com suas catapultas. Estavam bem provisionados de pedras e caldeirões com água fervendo para atirar aqueles que tentassem subir os muros. O fosso se encheu com matagais e sarças que dificultariam o avanço do inimigo.

     —De verdade acredita que atacarão hoje? —perguntou Ranulf, vestido e armado para a batalha.

     —Sim, e oxalá o fizessem já — respondeu Henry porque, embora tentasse ter paciência, a espera resultava exasperante.

     Tinha a esperança de que assim que os mercenários de Roald comprovassem que a guarnição de Ecclesford estava bem treinada e disposta a plantar cara, decidiam que não valia à pena arriscar suas vidas pelo que lhes pagou Roald e o abandonariam.

     —Crê que terá maquinaria de assédio?

     —Prefiro acreditar que gastou todo seu dinheiro nos mercenários — respondeu Henry e justo nesse momento distinguiu certo movimento no campo que separava o castelo do povo. — Aí estão.

     Observaram em silêncio enquanto avançavam os homens carregados com as aljavas para as flechas e pequenos arcos ou molas de suspensão nas mãos. Um minuto depois os arqueiros tinham ocupado suas posições e começaram a disparar.

     —Se preparem!—gritou Henry a seus homens, que em seguida se colocaram em seus lugares, alguns amaldiçoando entre dentes, outros beijando ou tocando antes algum amuleto ou cruz.

     —Quando damos o sinal a Cerdic? —perguntou Ranulf sem afastar o olhar das forças inimigas.

     —Assim que Roald tenha adiantado aos soldados a pé — respondeu Henry. — Se abaixe!

     A primeira descarga de flechas passou voando por cima das muralhas do castelo. Um homem caiu junto à porta com um grito de dor, mas seguiu protestando enquanto seus companheiros o retiravam, por isso Henry supôs que só estava ferido gravemente.

     A segunda descarga de flechas não demorou em chegar, no momento em que Henry ordenou disparar aos homens que dirigiam a pequena catapulta que tinham construído nos últimos dias. Imediatamente depois se viram voar pedras que tombaram a alguns homens de Roald, e outras foram muito curtas, por isso Henry mandou ajustar a distância.

     Durante aquela troca de flechas e pedras, os soldados de pé esperavam ansiosos junto às muralhas o momento de sair para lutar corpo a corpo.

     Henry ordenou aos da catapulta que deixassem passo aos arqueiros.

     —Ainda ficam pedras — disse Ranulf.

     —Sei, mas quero que Roald pense que não — respondeu Henry. — Assim fará avançar mais a seus homens.

     —Não deveríamos dar já o sinal a Cerdic?

     —Ainda não — disse Henry, satisfeito de que Cerdic tivesse obedecido a suas ordens de esperar. Como havia dito uma vez a Mathilde, Cerdic parecia dos que se lançavam a lutar precipitadamente, por isso Henry fazia tantos esforços em fazer entender que se atacava muito cedo, seus homens poderiam encontrar-se sós frente aos mercenários. — Esperarão até que estejam mais perto das muralhas.

     De repente se ouviu o estrondo provocado por pesadas rodas de madeira que se aproximavam do povo. Henry reconheceu o ruído imediatamente.

   —Um aríete.

     —Não demorarão em atirar a porta abaixo com isso — vaticinou Ranulf ao ver o enorme tronco de árvore que transportavam sobre quatro rodas.

     —Há quinze dias o teriam conseguido — disse Henry— mas pedi ao ferreiro que reforçasse a portas — então se deu conta das caras de medo de alguns de seus homens. — Não se preocupem, tinha contado com isso. Enquanto os mercenários de Roald tentam atirar a porta e escalar a muralha. Cerdic e seus homens os atacarão por trás.

     Isso serviu para animar um pouco aos seus.

     —Não parece que tenham catapultas — assinalou Ranulf.

     —Graças a Deus — murmurou Henry para si.

     Ecclesford contava tão somente com uma muralha exterior, por isso tinha temido que Roald atacasse com grandes máquinas de assalto com as que lançariam pedras capazes de derrubar a muralha ou ao menos furá-la. Isso teria sido desastroso.

     —Sem dúvida estava muito impaciente para incomodar-se em construí-las — comentou Ranulf.

     Os dois amigos se olharam e citaram ao uníssono as palavras de seu professor:

     —Paciência, homem, paciência.

     Sorriram um instante antes de voltar para o presente de repente por culpa de um enorme gancho de ferro que se enganchou a muralha. Dele pendurava uma corda pela qual os mercenários pretendiam subir, mas os de Ecclesford não demoraram em cortar a corda e fazer com que os que já tinham pendurados dela caíssem ao chão.

     Henry se agachou e se voltou para olhar aos homens que esperavam no pátio com várias pombas nas mãos.

     —As soltem! —ordenou.

     Os homens jogaram os pássaros ao ar. O céu estava completamente limpo, por isso Cerdic veria o sinal sem problema e atacaria imediatamente.

     —Preparados no postigo? —gritou Henry aos homens que esperavam junto à portinhola para sair para atacar aos de Roald corpo a corpo.

     Para tal missão, tinha escolhido aos mais destros com as espadas e as tochas. Henry desejava ir com eles, o sangue fervia nas veias pedindo que participasse da batalha, mas sabia que devia ser paciente e seguir ali organizando a estratégia.

     —Me deixe que guie aos que vão sair — pediu Ranulf, que parecia estar sentindo quão mesmo ele.

     Mas Henry não podia permiti-lo. Aquela não era sua causa; só estava ali por acidente.

     —Sinto muito, amigo, mas não posso — ao ver a raiva refletida em seu rosto, disse — Se te ocorresse algo, Merrick e lady B me matariam.

     Uma escada golpeou o muro junto ao que estavam e Henry se esqueceu um instante de Ranulf para ir jogá-la abaixo, não sem esforço. Uma flecha passou roçando o rosto.

     Onde demônio estava Cerdic? Perguntou-se Henry ao ver que não saía ao ataque após de ter soltado as pombas.

     —Disparem aos que levam o aríete — ordenou aos arqueiros. — Agora! — gritou aos soldados de pé.

     Os homens saíram gritando justo no momento em que uma flecha alcançava ao soldado que estava junto a Ranulf e caiu fulminado. Outro gancho de ferro acertou a enganchou-se na muralha. Henry teve que passar por cima do corpo do soldado para ir cortar a corda, e depois lançou o gancho ao chão, golpeando a um dos mercenários na cabeça. O homem levou as mãos ao rosto cheio de sangue e caiu de joelhos.

     Do povo chegavam mais e mais mercenários. Até sem as catapultas, Roald estava melhor preparado do que Henry tinha pensado.

     Os soldados de pé pareciam ter conseguido deter o aríete, mas os arqueiros de Roald não deixavam de disparar. Onde estava Cerdic?

     Outro gancho penetrou por cima da muralha e dessa vez esteve a ponto de alcançar Henry, que o agarrou antes que caísse e voltou para lançá-lo ao chão.

     Os soldados de pé lutavam com esforço, mas os de Roald pareciam estar obrigando-os a reagir apesar das flechas que chegavam continuamente do castelo.

     —Fica ao mando da defesa — disse Henry a Ranulf ao tempo que baixava o visor do capacete.

     Não podia seguir olhando sem fazer nada. Seguiria guiando seus homens, mas lutando junto a eles. Assim desembainhou a espada e saiu correndo para o postigo com um grito feroz.

        

   Os gritos aterradores da batalha atravessavam os grossos muros da cozinha. Os gritos dos soldados, o estrondo das pedras, os alaridos de dor.

     —Sigam trabalhando! —ordenava Mathilde a quão serventes levantavam o olhar com angústia.

     Por muito horrível que fosse Mathilde não devia parecer assustada ante sua gente. Devia ser forte e valente para que outros fossem também. Todos os meses que levava aprendendo a controlar o medo serviram agora para jogar a um lado os pensamentos negativos e seguir trabalhando como se nada acontecesse. Tinham que ferver muita água para os feridos.

     Havia muitos.

     Mathilde rezou em silêncio para que Henry e seus homens vencessem, para que não acabassem feridos ou mortos.

     Mas sobre tudo rezou para que a batalha acabasse o quanto antes.

        

     Henry abriu caminho entre os homens de Roald em busca do homem que os tinha contratado e que tinha ocasionado tudo aquilo. Os arqueiros se retiraram um pouco para não matar a seus próprios homens, que tentavam escalar a muralha. O aríete teria o abandonado e Henry e os seus seguiam avançando para o acampamento de Roald.

     Henry desejava encontrar com ele e ter oportunidade de matá-lo pessoalmente. Um só golpe e Roald estaria morto. Teria feito justiça por tudo o que tinha feito sofrer a Mathilde. Teria vingado sua dor e suas terras estariam a salvo.

     «Por favor, Deus, traz Roald ante mim».

     Mas antes teria que se desfazer do tipo que havia se interposto em seu caminho; um homem grande e corpulento protegido com um capacete que certamente teria tirado a uma de suas vítimas. Era bom espadachim, melhor que a maioria, mas desgraçadamente para ele, Henry era ainda melhor e, além disso, estava ansioso por lutar.

     Henry avançou sem afastar os olhos do mercenário e agarrando a espada com ambas as mãos, esperando que ele desse o primeiro passo. A paciência tinha sido o máximo lema de sir Leonard.

     O homem levantou a espada para atacar e, no momento, Henry lançou a sua com a rapidez com a que mordia uma víbora. O inimigo deu um passo atrás levando a mão ao lugar no que a cota de malha tinha ficado rachada pelo golpe da espada, e Henry aproveitou o momento para terminar com ele.

     Tirou a espada do corpo caído e continuou avançando sem deixar de procurar Roald e Cerdic, que deveria haver-se unido à batalha fazia já muito. Possivelmente estivesse lutando em um lugar no que não podia vê-lo.

     Um escocês, embelezado com saia e protegido tão somente por um escudo e um capacete, apareceu frente a Henry. Embora não era mais que um moço, não demorou em demonstrar que devia tomá-lo a sério, pois dirigia a espada com verdadeira maestria. Contava além com a vantagem de não levar todo o peso com o que Henry protegia seu corpo, o que fazia que se movesse com rapidez. Henry voltou atrás amaldiçoando o peso da cota de malha; estava acostumado a ser mais rápido que o inimigo, graças ao qual conseguiu muitas vitórias, mas agora não o era…

     De repente apareceu voando uma pedra procedente do castelo, que golpeou ao escocês no braço. Henry atacou aproveitando o momento de confusão, mas o jovem estava bem treinado e pôde escapar e desaparecer rapidamente de sua vista.

     Foi então quando Henry viu Roald pela extremidade do olho e se esqueceu do escocês. Devia ter acreditado que ia ganhando ou não teria se aproximado tanto às muralhas.

     Mas estava a ponto de lamentar tanta arrogância.

     Mal tinha começado a caminhar para ele quando se encontrou frente a frente com Charles De Mallemaison.

     —Não tão depressa, normando — grunhiu Mallemaison ao mesmo tempo em que fazia girar no ar uma maça ensanguentada. Protegia-se com um escudo cônico que segurava com a mão direita; levava a espada ainda embainhada. — Aqui temos por fim ao irmão do senhor de Dunkeathe.

     Roald teria que esperar.

     —Dê suas últimas orações ao demônio ao que adore — respondeu Henry agarrando bem a espada e preparando-se para lutar contra o mercenário mais famoso de toda a Inglaterra.

     Mallemaison se pôs a rir, se aquele som arrepiante podia chamar-se risada.

     —De verdade crê que pode me vencer? Levo matando homens desde os doze anos. Só gostaria de poder ver o rosto de seu maldito irmão quando receber seu corpo.

     —Entretanto não ninguém te chorará quando morrer — replicou Henry observando bem seu inimigo com a esperança de encontrar nele o menor sinal de debilidade.

     Muito perto dele, ouviu-se um grito e Henry se voltou para olhar. Seria Cerdic?

    Cometeu um grave engano ao distrair-se porque, no momento em que girou a cabeça, Mallemaison levantou o maço e o golpeou totalmente no capacete. O metal do visor cedeu e lhe cravou na bochecha e na testa. Henry sentiu uma dor tão atroz, que a ponto esteve de cair ao chão. O sangue lhe nublou a visão e mal podia se mover para levantar o visor e limpar o rosto.

     Em metade da agonia, ouviu o som de uma espada ao ser desembainhada.

     Onde estava sua espada? Não tinha nenhuma arma. A seu lado viu um escudo quebrado e se lançou por ele. Chegou bem a tempo de colocar-lhe diante do rosto para proteger-se da espada doe Mallemaison. Sem afastar o escudo, deu um passo adiante enquanto procurava sua espada sem ver o que tinha diante. Necessitava uma espada, uma maça, algo.

     Aí estava sua espada! Graças a Deus. Agachou-se para agarrá-la, mas antes que pudesse fazê-lo, Mallemaison atacou de novo, direto ao ombro esquerdo e ao que ficava do escudo. A força do golpe fez pedaços o escudo e o fio da espada chegou ao ombro de Henry. A cota de malha o protegeu; de outro modo, teria perdido o braço.

     Henry contra-atacou com desespero, mas mal podia ver e errou. A espada de Mallemaison deu totalmente na sua arrebatando-a das mãos e deixando-o indefeso.

     Era o fim? Ia morrer às mãos daquele homem?

     Não. Não podia morrer ainda.

     Henry se escondeu esquecendo-se da dor e se lançou para o inimigo antes que pudesse levantar de novo a espada. Caíram juntos ao chão e rodaram até que Henry viu uma espada no chão, a menos de um metro. Tratou de ficar de joelhos e arrastar-se até ela.

     Uma bota lhe pisou nas costelas.

     —Nada disso — grunhiu Mallemaison.

     Henry sentiu um chute no ombro ferido.

     Merrick também o tinha chutado como um cão. Mas ele não era um cão e não ia morrer como se fosse. Levantou a cabeça em busca da espada. Tinha que encontrá-la.

     —Já está bem.

     Ouviu a voz de Mallemaison e, ao olhar para ele, viu-o levantar a espada para lhe dar o golpe final.

     Um grito feroz ressonou a seu redor. Mallemaison se voltou para olhar.

     —Cerdic — murmurou Henry e então a dor se fez insuportável e tudo ficou negro.

 

     Mathilde não podia nem ver as caras de terror que a olhavam. Os serventes se assustaram com o estrondo da batalha, mas lhes assustava mais ainda o silêncio que tinha invadido o castelo.

     —Nossos homens devem ter vencido — disse negando-se a sentir medo. — Se não, os homens de Roald teriam entrado…

     Então se abriu de repente a porta do pátio com um ruído que parecia uma explosão.

     Mathilde se voltou para olhar de uma vez os aterrados serventes. Era Ranulf, sem capacete e com o traje manchado de sangue.

     —Graças a Deus! —gritou Mathilde ao ver que não era um mercenário.

     Mas o medo não demorou em voltar a apoderar-se dela ao ver o gesto de preocupação que havia em seu rosto. De quem era o sangue que manchava sua armadura? Onde estava Henry? Por que não estava ali?

     —Milady, conseguimos fazer frente ao ataque — começou a dizer Ranulf. — Mas Henry está ferido.

     Mathilde sossegou o grito de horror que lutava por sair de seus lábios. Não podia mostrar seu desespero diante dos serventes. A única amostra de medo foi apertar os punhos com força como se fosse golpear aquele que tinha ferido Henry.

     E o teria feito se pudesse.

     —Onde está? —perguntou com voz firme.

     —No salão — Ranulf estendeu o braço para acompanhá-la, mas ela o rechaçou.

     Ia demonstrar a sua gente que lady Mathilde de Ecclesford era uma mulher forte. Não choraria como tinha feito depois que Roald a atacou.

     Agora era uma mulher diferente… a mulher a que Henry respeitava, admirava e amava.

     O pátio estava cheio de homens feridos, tudo manchado de sangue e os soldados indo de um lado a outro. Muitos se voltaram para olhá-los e ao ver que era ela, afastaram o olhar de repente. O medo deu voltas no estômago e encolheu seu coração.

     —Está muito grave? —atreveu-se a perguntar e dessa vez não pôde impedir que tremesse a voz.

     —Não sei milady — respondeu Ranulf.

     —Como foi? —tragou saliva. — Uma flecha?

     —Não. Saiu para lutar.

     Mathilde se deteve em seco e olhou Ranulf com horror.

     —Do outro lado da muralha?

     —Viu que a batalha não ia bem e saiu para lutar junto a seus homens deixando a mim a defesa — explicou e depois esboçou um leve sorriso. — É um insensato, mas muito valente milady.

     —É o homem mais valente que conheço — respondeu ela entrando no salão, onde se encontrou com uma cena digna de um pesadelo.

     Estava tudo cheio de sangue e se ouviam os gritos de dor dos feridos. Dessa vez sim jogou mão do braço de Ranulf em busca de apoio enquanto fazia um esforço por não vomitar por culpa do aroma e da imagem que tinha frente a si.

     Tinha que ser forte. Devia fazê-lo por Henry.

     Cerdic apareceu frente a ela. Ao menos ele não parecia estar ferido.

     —Onde está Henry? —perguntou Mathilde. — Está muito mal?

     —Giselle fez que o levassem a seus aposentos e está o atendendo.

     Mathilde tentou convencer-se de que era normal, que isso não queria dizer que a ferida fosse mortal.

     —Não o feriram?

     —Não — por um momento parecia que ia dizer algo mais, mas não o fez e Mathilde não ficou esperando.

     Levantou as saias e correu escada acima.

     Quando desapareceu do salão, Cerdic olhou Ranulf.

     —O que disse?

     —Não tive coragem.

 

     Mathilde se deteve frente à porta da estadia de Henry quase sem fôlego. E se Ranulf e Cerdic mentiram e Henry estava morto? E se suas feridas eram mortais? E se o levaram ali para que os serventes não o vissem e não propagassem a notícia de que sir Henry morreu?

     Disse a si mesma que não teriam feito algo assim…

     Respirou fundo e abriu a porta. Giselle se levantou da cadeira que ocupava junto à cama, mas seguia tampando Henry com seu corpo.

     Mathilde sentiu um medo que não era comparável a nada que tinha sentido em sua vida, nem sequer ao que tinha sentido por Roald. Começou a tremer e os joelhos ficaram tão débeis, que pensou que não poderiam seguir segurando-a.

     —Está… está morto? —conseguiu perguntar apesar de ter a garganta completamente seca.

     —Não — respondeu sua irmã.

     Mathilde soltou a respiração que tinha tido contido, mas o medo seguia obstinado seu coração porque a expressão que via no rosto de Giselle não era nada esperançosa.

     —O que ocorre? —perguntou ao ver que seguia sem tornar-se a um lado. — Por que o esconde?

     Giselle se aproximou dela e a agarrou pelos ombros.

     —As feridas são graves, mas está vivo — disse com ternura infinita antes de mover-se e deixar que visse por fim.

     Henry estava convexo de barriga para cima, o rosto completamente coberto por ataduras à exceção do esquerdo e a boca. Além da respiração, não havia nenhum sinal de vida.

     Um grito de angústia foi a sua boca, mas de novo o emudeceu. Depois de uns instantes de agonia pelo estado no que se encontrava e de esperança porque ao menos estivesse com vida, Mathilde afastou o olhar dele para observar sua irmã.

     —Diga-me tudo, Giselle. Em que estado se encontra?

     —Golpearam-no no rosto, com uma maça, acredito, e também no ombro esquerdo.

     —Mas… e o capacete?

     —Se não fosse por isso estaria morto. O visor lhe salvou a vida, mas cravou no rosto e na testa. Tem a maçã do rosto direita e uma sobrancelha quebradas e perdeu três dentes de cima. O ombro se move muito, por isso temo que tenha algum músculo esmigalhado. Não acredito que possa voltar a segurar um escudo nunca mais. Não sei se o olho direito está afetado pelo golpe. Costurei o corte e tentei colocar a maçã do rosto — os olhos de Giselle se encheram de tristeza e de lástima. — Poderia ficar desfigurado, Mathilde.

     Desfigurado, com um braço inútil e a vista…

     —Só golpearam o lado direito do rosto, o esquerdo…

     —Mathilde, vou ser sincera contigo — disse Giselle tomando ambas as mãos. — Às vezes, embora pareça que só há um olho afetado, o outro…

     —Não! —Mathilde se soltou dela e deu um passo atrás. Não podia ser… Henry tinha medo da escuridão, e se sempre tivesse que viver na escuridão?

     —Me escute, Mathilde — pediu sua irmã com firmeza, com uma firmeza que a fazia parecer à própria Mathilde mais que ela mesma. — Pode ser que só tenha resultado afetado um olho e poderia ser inclusive que os olhos estejam bem. Simplesmente não sei, mas deve ter esperança. Ao menos está vivo.

     Quando despertasse e visse suas feridas, ou se estava cego, possivelmente preferiria ter morrido.

     Tudo por sua culpa… ter ido aos aposentos de Roald aquela noite, seu estúpido plano para assustá-lo, haver-se negado a escutar a Giselle e a Cerdic toda sua obstinação. Se não tivesse sido por ela, Henry teria seguido sendo o mesmo cavalheiro bonito e alegre de sempre.

     E não era só ele o que estava sofrendo.

     —Quantos feridos e quantos mortos há?

     —Vinte feridos e seis mortos — respondeu sua irmã.

     Deus. Mathilde baixou a cabeça, envergonhada e horrorizada de pensar que tudo estava saindo mal. Tentou encontrar um motivo para render-se ao desespero.

     —Ao menos não feriram a Cerdic.

     A expressão de pavor que viu no rosto de sua irmã a fez desconfiar.

     —Vi-o no salão — explicou. — Não parecia ferido.

     —E não o está, graças a Deus, mas dos homens que atacaram Roald pelas costas, só ele retornou com vida. Os outros estão mortos ou têm caído prisioneiros.

     —Que Deus me perdoe — grunhiu Mathilde olhando sua irmã com verdadeiro horror. — O que fiz?

     Afundou o rosto nas mãos e inclinou as costas como se tivesse um grande peso sobre os ombros. Só podia chorar de tristeza e remorsos.

     —Fez o que acreditava que devia fazer — disse Giselle brandamente.

     —Mas me equivoquei. Equivoquei-me em tudo!

     —Teria preferido que entregássemos Ecclesford sem lutar? Acaso acredita que não teria havido mortes e sofrimento se o tivéssemos feito. Acredita que Roald teria sido um senhor compassivo? Não, Mathilde - respondeu ela mesma ao tempo que a abraçava. — Ninguém te culpa do acontecido, todos sabem que a única culpa é de Roald.

     Mathilde se aferrou a Giselle enquanto as lágrimas caíam pelas bochechas. Quantas vezes foi injusta com sua irmã, de obra ou de pensamento, tinha sentido raiva porque era tão formosa.

     Depois de um bom momento, Mathilde respirou fundo e se separou dela.

     —Não perguntei a Ranulf pela batalha ganhamos? Partirá Roald?

     Giselle olhou sua irmã com lástima e compreensão. Não tinha estado tão destroçada nem sequer depois de que Roald a violasse.

     —Ainda não, mas ganharemos — assegurou de maneira incondicional. — Ainda temos à maioria dos homens, e a Cerdic e a Ranulf.

     Mas não a Henry, pensou Mathilde com desespero.

     Pouco depois Giselle voltou abaixo para seguir atendendo a outros feridos e Mathilde ficou junto a Henry, rezando para que despertasse.

     Era o menos que podia fazer por ele.

     Tomou uma mão e a levou a bochecha. Fosse quem fosse o culpado daquele conflito, tinha que acabar imediatamente. Não podiam seguir morrendo pessoas. Nenhuma terra, nenhum castelo valia tanto sofrimento.

     Mas Giselle tinha razão; se Roald se fazia com o controle de Ecclesford, haveria mortes, castigos, fome e sofrimento para todos aqueles que ficassem ali. Não podiam deixar que ganhasse.

     Como detê-lo então sem seguir lutando? Haveria uma maneira de pôr fim aquela guerra sem entregar Ecclesford?

     Tinha que haver e ela devia encontrá-la.

        

     Essa mesma noite, dez homens faziam guarda na porta traseira do castelo de Ecclesford. A metade deles dormitavam sentados no chão, os outros vigiavam com nervosismo, pois sabiam que sir Henry seria muito duro se descobrisse que ficaram adormecidos estando no posto de vigilância.

     —Abram a porta, por favor — disse uma mulher coberta por uma capa com capuz.

     Toft, que estava ao mando do grupo, olhou lady Mathilde com lógica surpresa. Estava tão pálida que parecia um fantasma; entretanto seus olhos estavam tão brilhantes e cheios de determinação como sempre.

     —Não me ouviu? —perguntou a dama impacientemente. — Hei dito que abra a porta.

     —Não pode dizê-lo a sério, milady — protestou Toft desejando que Cerdic ou sir Henry estivessem ali em seu lugar. — Não pode sair do castelo, é muito perigoso.

     E sir Henry ou Cerdic fariam que lhe cortassem a cabeça se acontecesse algo depois de que lhe tivesse aberto a porta em plena noite.

     A expressão do rosto da dama se suavizou ligeiramente quando se aproximou mais para falar em tom confidencial, como se estivesse falando com um igual.

     —Não tema, sir Henry sabe e me deu permissão para sair. Seu irmão e outros homens de Dunkeathe me esperam. Lorde Nicholas mandou alguém para me buscar.

     Seguia parecendo muito perigoso. Quem era esse lorde Nicholas para confiar a sua senhora?

     —Deveria ir acompanhada também de alguém de Ecclesford — disse Toft. — E se um desses…?

     A dama o olhou de um modo que o deixou mudo e com isso deu a entender que estava perdendo a paciência.

     —É que quer que insulte lorde Nicholas dando a entender que não o acredito capaz de me proteger?

     Ao Toft não importava o mínimo o que pensasse um nobre que não conhecia; preocupava-o muito mais o que opinassem sir Henry ou Cerdic.

     —O que lhe parece se faço vir Cerdic, milady?

     —Não acredito que faça nenhuma graça que o incomodem por uma tolice. Já tem muitas preocupações neste momento. Estarei a salvo — assegurou. — Lorde Nicholas e seus homens esperam a só uns metros daqui.

     Toft se sentiu completamente impotente sob o poderoso olhar de lady Mathilde. Ao fim, era sua senhora e se desobedecia e efetivamente a estava esperando lorde Nicholas…

     —Abram — ordenou finalmente.

     A dama agradeceu e saiu à escuridão. Quando voltou a fechar a porta, Erik olhou Toft franzindo o cenho.

     —Ouça, tampouco eu gosto disso — protestou Toft em resposta ao gesto de Erik e de outros companheiros. — Herbert, vá procurar Cerdic e o conte o que acaba de ocorrer. Desperta-o se for necessário.

     Herbert assentiu e saiu correndo.

        

     Enquanto Herbert procurava Cerdic, Mathilde corria todo o rápido que permitiam as pernas para o povo e para Roald. Sabia perfeitamente que Toft não tinha acreditado em sua explicação e certamente trataria de comprovar se cometeu um engano ao deixá-la sair, possivelmente inclusive fosse procurar Cerdic como havia dito. Se fosse assim, Mathilde não tinha muito tempo.

     Felizmente fazia uma noite clara e as estrelas brilhavam imperturbáveis no firmamento. Igual brilhava na noite em que Roald a atacou, quando se perguntou como era possível que o céu seguisse sendo o mesmo, como se nada tivesse ocorrido.

     Ouviu um ruído a suas costas e, quando quis dar-se a volta, tinha uma mão lhe tampando a boca e sentiu que a arrastavam às sombras. Mathilde esperneou e lutou com todas suas forças.

     O pânico a invadiu como uma onda que a arrastava mar adentro, embora dessa vez estivesse preparada; não a agarrou despreparada quando esperava beijos e carícias de amor.

     Mordeu com todas suas forças a mão que a agarrava e quando a soltou, Mathilde saiu correndo. Seu atacante, vestido com saia escocesa, lançou-se sobre ela e a jogou ao chão, a borda do caminho. Mathilde se revolveu entre seus braços, mas não pôde escapar dele. Tinha o cabelo comprido como Henry e também era bonito, por isso por um momento, albergou a esperança de que sua mentira não fosse mentira e que seu irmão tivesse ido a sua ajuda desde a Escócia.

     —É você de Dunkeathe? —perguntou à duras penas.

     O homem a olhou franzindo o cenho e Mathilde se deu conta de que era muito jovem para ser o irmão de Henry.

     —Não — se limitou a dizer. — Aonde acredita que vai? É que não vê o fogo do acampamento, mulher? Vai direto para uns homens que a farão mal — a soltou só o suficiente para olhá-la de cima abaixo. — A não ser que seja uma prostituta, vá daqui.

     —Não sou uma prostituta!

     —Então será melhor que volte para o castelo enquanto possa.

     Apesar de que aquele homem parecia preocupar-se com seu bem-estar, Mathilde assumiu com pesar que tinha que ser um dos mercenários de Roald. Assim se quadrou de ombros e o olhou no rosto do mesmo modo que pensava olhar a Roald.

     —Sou lady Mathilde de Ecclesford — anunciou confiando em que sua posição social e seu parentesco com seu odiado primo servissem para que não fizesse nenhum dano. — me leve ante Roald de Sayres.

     O escocês a olhou sem dar crédito.

     —Para que?

     Para que acreditaria que era?

     —Não tem direito algum a me perguntar isso — respondeu consciente da possibilidade de que Cerdic e alguns de seus homens tivessem ido a sua busca. — Quero falar com meu primo.

     —Como deseja, milady — disse encolhendo-se de ombros justo antes de dar meia volta e ulular como se fosse um mocho.

     Em seguida apareceu outro homem que emprestava a suor e a pescado podre. Era mais baixo que o escocês, só ficavam dois dentes na boca e levava a roupa puída.

     —Quem é esta? —perguntou olhando-a de cima abaixo como se fosse uma prostituta em um botequim.

     O olhar do escocês comparado com aquele parecia um modelo de cortesia.

     —Não vais conseguir nada dele, bonita — disse aquele tipo repugnante. — Tem mulher — depois destacou a si mesmo e acrescentou — Mas eu não.

     Mathilde sentiu náuseas só de pensá-lo.

     —Vou levar esta dama ante sir Roald — disse o escocês sem ocultar o desprezo que sentia por seu suposto companheiro. — Ocupa meu posto na vigilância.

     —Quem morreu deixando-o no comando de tudo? —perguntou o caipira lascivo.

     O escocês levou uma mão à bolsa de couro que pendurava do cinturão e tirou dela uma moeda que deu ao outro.

     —Pelas moléstias — disse ao tempo que se punha a andar. — Me acompanhe, milady.

     Apesar da amabilidade do escocês, Mathilde sabia que não estava nem muito menos fora de perigo. Não obstante, alegrou-se de havê-lo conhecido primeiro e não ao outro.

     —Parece-me que não deveria se juntar com demônios como Roald de Sayres ou Charles De Mallemaison — comentou Mathilde. Possivelmente o escocês se desse conta de que levava razão e abandonasse o exército de mercenários. —Parece um bom homem.

     O escocês respondeu sem olhá-la sequer.

     —Pois não o sou.

     A resposta foi tão contundente que provocou um calafrio, e depois disso não voltou a falar.

     Ao chegar ao povo, Mathilde comprovou que a próspera aldeia estava meio vazia e seus edifícios ocupados por homens rudes que agarrariam o que necessitassem e depois destroçariam o que ficasse. Voltou a alegrar-se de haver-se encontrado com o escocês e não com nenhum desses rudes homens que a fariam encontrar um destino muito negro.

     O que não sabiam esses homens era que ia armada com duas adagas, uma que levava no cinturão e outra escondida na bota. Se alguém tentava lhe machucar, ela responderia com força e não duvidaria em matar a quem fosse necessário.

     O escocês se deteve frente à casa do oficial do povo e anunciou que ali era onde estava Roald. Como não podia ser de outro modo, aquele descarado tinha ocupado a casa do homem mais endinheirado do povo.

     Mathilde assentiu e começou a andar para ali.

     —Tome cuidado milady — disse o escocês.— Não está sozinho aí dentro.

        

     Na estadia principal da casa, à luz do fogo da lareira e das velas de um candelabro de ferro, Charles De Mallemaison se serviu uma taça de excelente vinho francês e a bebeu de um gole sob o olhar desconfiado de Roald.

     Aquele bruto ainda não tirou a armadura apesar de que já fazia horas desde que tinha acabado a batalha. Roald podia sentir o aroma de sangue e suor que emanava dele e teve que fazer um esforço por não pedir que fosse se lavar.

     —Acreditei que havia dito que seria chusma sem treinar — protestou Mallemaison. — Que a guarnição sairia correndo assim que nos visse e que os aldeãos teriam se escondido nas casas. Onde estão? Onde estão as mulheres?

     —No castelo, suponho — respondeu Roald. — As mulheres do povo não estavam incluídas no trato.

     O certo era que ao Roald não importavam o mínimo as mulheres do povo nem nenhuma outra; Mallemaison e os seus podiam fazer o que lhes desejasse muito com elas sempre e quando o ajudassem a fazer-se com Ecclesford.

     —Sempre são parte do trato — insistiu o mercenário.

     —Isto só foi o primeiro dia — disse Roald tentando apaziguá-lo. — Pode ser que a guarnição tenha plantado cara hoje, mas agora que esse bastardo do D’Alton está ferido, ou possivelmente inclusive morto, estarão desanimados. Amanhã a batalha será muito diferente.

     —E se não for assim? Não me paga o suficiente para fazer uma guerra.

     —Acaso crê que merece mais?

     —Não acredito, sei. Deve haver ao menos duzentos homens.

     —Eu nunca disse nada do tamanho da guarnição.

     —Nem de que houvesse homens como esse demônio de cabelo loiro — replicou Mallemaison.

     —Cerdic só sabe lutar com a tocha. Tire-a e verá o fácil que…

     —Disso nada. Dirige a espada como um maldito normando. Ou me paga mais ou dirige o assalto você mesmo. Mas se eu vou, muitos me seguirão; não acreditarão que seja possível ganhar sem mim e se irão em busca de pastos mais verdes.

     Certamente tinha razão, pensou Roald.

     —Está bem.Vou lhe dar cem marcos a mais.

     —Duzentos.

     —Isso é uma fortuna! — Mallemaison se encolheu de ombros e ficou em pé. —Está bem. Duzentos — aceitou Roald a contra gosto. Mais valia que houvesse suficiente nas arcas de seu tio…

     —E também quero a essa beleza, a que disse que se mataria antes de deixar que eu a tocasse.

     —Pensei que todas as mulheres eram iguais na escuridão.

     —Isso era antes de vê-la… e antes que me insultasse.

     Parecia que Mallemaison tinha planos para Giselle, planos que certamente incluiriam algo mais que a violação, possivelmente uma surra. Bom, se era o que queria.

     As damas de Ecclesford procuraram aquele destino com sua obstinação.

     —De acordo — disse Roald.

     Mallemaison esboçou um sorriso repugnante.

     —Devolvê-la-ei depois.

     Roald estremeceu ao pensar nas condições em que ficaria a dama e pensou que então não gostaria nem de tocá-la. Entretanto se limitou a sorrir e assentir.

     Uma chamada na porta interrompeu a conversa.

     Mallemaison ficou em pé de um golpe desembainhando a espada ao mesmo tempo. Roald se levantou também por temor que fosse o anúncio de um ataque noturno, mas em seguida se deu conta de que teriam ouvido mais ruído fora se algo assim tivesse ocorrido.

     —Embainha sua espada, Charles — disse arrogantemente. — Está muito nervoso. Quem é?

     A porta se abriu e apareceu um homem.

     —Aqui há uma dama que diz que quer lhe ver — anunciou com um sorriso.

     Seria uma puta ambiciosa do povo que decidiu provar a sorte com o novo senhor.

     —A faça passar.

     Então entrou essa cadela de Mathilde.

 

     Mathilde necessitou de todo seu autocontrole e até a última gota de força interior para enfrentar Roald. Revolvia-lhe o estômago aproximar-se do homem que a havia possuído com tal crueldade, que riu dela e a tinha desprezado. Antes de Henry, encolhia-se só ouvindo seu nome, mas agora não ia alterar-se sequer, tinha que fazê-lo por sua gente e por Henry. Por eles tentaria fazer que Roald partisse dali para sempre.

     Viu sua surpresa ao vê-la entrar na estadia e soube que era a última pessoa que ele esperava ver aparecer. Também se precaveu da presença de Charles De Mallemaison, que estava de pé junto ao fogo e com a espada desembainhada.

     De perto era ainda mais feio e monstruoso, mas Mathilde fez um esforço por não olhá-lo sequer.

     —Boa noite, Roald.

     Uma vez superada a impressão, Roald arqueou uma sobrancelha e Mathilde esteve a ponto de tornar-se a rir ao ver como tentava dar a impressão de que tinha a situação sob controle e atuar como o teria feito Henry… só que Henry sim teria tido tudo sob controle e teria estado perfeitamente tranquilo.

     —Devo dizer que é um inesperado prazer — disse Roald. — Suponho que não terá vindo sozinha.

     —Não — mentiu ela, pois preferia lhe fazer acreditar que tinha um guarda armado esperando-a na porta. — Nem tampouco vim conversar amavelmente contigo — olhou Mallemaison com certo desdém — nem com seus lacaios.

     —O que tem os teus? — replicou Roald sentando-se de novo. — Como está o bonito sir Henry? Tenho entendido que resultou gravemente ferido — acrescentou com gesto vitorioso.

     —Pois se isso é o que ouviu, está mal informado — assegurou ela. — Só tem um par de cortes; já sabe como sangra até a mínima ferida na cabeça… ou saberia se alguma vez lutasse de verdade — se alegrou ao ver o gesto de aborrecimento de seu primo e também ela se sentiu vitoriosa. — Não, asseguro-te que sir Henry esta perfeitamente; de fato, está desejando voltar para o campo de batalha. Mas eu falei que não devia esbanjar tanto esforço porque está claro que jamais poderá ganhar com a chusma que trouxeste — cravou o olhar no rosto de Roald. — Assim vim para te perdoar a vida, Roald. Por pouco sentido que tenha sua existência, está claro que a perderá se te empenha em voltar a atacar Ecclesford. Vim aceitar sua rendição e para te prometer que deixarei que parta em paz.

     Roald a olhou sem dar crédito ao que ouvia.

     —Tinha-nos subestimado, verdade? —continuou Mathilde aparentando uma total confiança em si mesma. — Esperava uma vitória singela, mas tem descoberto que não vai ser assim. Em realidade, não pode ganhar contra sir Henry e meus homens, assim a menos que seja mais parvo do que eu acredito, aproveitará a oportunidade que estou oferecendo e porá fim a tudo isto agora mesmo. Minha irmã e eu deixaremos que vá sempre e quando prometer que voltará para Provenza e que não voltará a nos ocasionar nenhum problema.

     Desgraçadamente, Mathilde não tinha contado com que Mallemaison soltasse uma sonora e terrível gargalhada.

     —Rendição? Esta mulher está louca!

     —Estou completamente lúcida — respondeu Mathilde com uma voz muito mais firme do que sentia as pernas. — Temo que seja você o que sofre alucinações se acredita que podem conseguir o castelo. A batalha de hoje demonstrou que não há esperança alguma de que possam fazê-lo.

     —Isso crê? —perguntou Roald balbuciando de raiva.

     —É o que acreditaria qualquer pessoa inteligente… o que possivelmente explique por que você não te deste conta disso, nem tampouco este… —enrugou o nariz ao olhar Mallemaison — homem.

     Mas o mercenário voltou a tornar-se a rir ao tempo que se sentava.

     —Esta moça está muito mal — disse olhando-a de cima abaixo. — E, além disso, é feia. Ao menos a outra tem bom aspecto… Sabe o que vou fazer quando lhe jogar as mãos em cima, verdade, milady? Ou é que é muito parva para imaginá-lo?

     Seus insultos não lhe doíam o mínimo, eram as feridas de Henry o que lhe causava dor. Quanto ao que pudesse fazer aquele tipo…

     —De verdade vais aceitar os conselhos deste porco repugnante? —perguntou a Roald, que se aferrou à cadeira como se se aferrasse à vida. — De verdade vais deixar seu futuro em suas sujas mãos? O que perde ele se você cai derrotado? Limitara-se a oferecer seus serviços a qualquer nobre que necessite um assassino. Não será ele o que tenha que enfrentar à ira do rei, nem será excomungado pela igreja por ter ido contra seu julgamento — olhou de cima abaixo ao mercenário deixando a vista o desprezo que sentia por ele. — Provavelmente já esteja excomungado, mas você, Roald, você poderia perder tudo, incluindo a vida.

     Roald ficou em pé com tanto ímpeto, que atirou a cadeira ao chão.

     —O rei está de acordo que Ecclesford me pertence.

     Quanto mais se zangava Roald, mais tranquila estava Mathilde. Com seu medo, ela encontrou a paz.

     —Então por que não recebemos nenhuma mensagem que nos comunique tal decisão? Por que não enviou a nenhum mensageiro?

     —Ecclesford é meu! —gritou Roald. — Seu pai sempre teve intenção de me deixar isso até que você, estúpida puta, o fez mudar de opinião.

     —Eu? Não fui eu que o fez, foi você ao violar sua filha e abusar de sua confiança.

     —Isso não foi mais que uma desculpa! —Roald a olhou com os olhos cheios de ódio. — Seu pai sempre me odiou igual a sua altiva irmã. Mas você não foi muito boa para mim, verdade, Matilde? Ensinei-lhes que não podiam me tratar como se fosse carniça!

     Tinha-a violado por que estava zangado com seu pai e com Giselle? Para ele tinha sido só um veículo para vingar-se, não uma pessoa. Aquilo fez que desaparecesse o último resto de medo por ele.

     —É um ser asqueroso e insignificante — disse com calma.

     —O bispo Christophus me apoiará! —exclamou Roald como se não a tivesse ouvido.

     —Por que o subornou para que o fizesse? —perguntou ela. — Nós também o temos feito.

     —Christophus odeia Henry; nunca lhes apoiará sabendo que esse normando as está ajudando.

     —Vamos Roald, acreditava que fosse um homem inteligente — o repreendeu Mathilde como se estivesse falando com um menino. — É que não te dá conta de que para um homem como Christophus é muito mais importante o benefício que possa obter que o que sente por alguém. É uma espécie de mercenário, só que com túnica em lugar de armadura. E, já que menciona a Henry… esqueceu quem é sua família? O que crê que farão o senhor de Dunkeathe e o de Tregellas quando se inteirarem de que atacaste um castelo que defendia seu irmão? Inclusive depois de ganharmos, crê que esquecerão tal afronta?

     O rosto de Roald ficou lívido de repente.

     —Não irás deixar que esta mulher te assuste, não? —grunhiu Mallemaison lhes recordando que seguia ali. — Esse castelo só tem uma pequena muralha, poderemos nos fazer com ele amanhã mesmo — ficou em pé e foi para Mathilde. — Tudo isto é uma armadilha.

     Mathilde já não temia Roald, mas Mallemaison era outro cantar.

     —Não me toque!

     —Tem-me medo? —perguntou ao tempo que posava sobre ela um olhar lascivo e zombador. — Chama a seus guardas, a esses soldados que tão segura está de que podem vencer aos meus — pôs-se a rir com crueldade. — Vamos, eu esperarei aqui.

     —Muito bem — disse ela dando-se meia volta para a porta.

     Uma gota de suor caiu pela testa enquanto tentava recordar quantos homens tinha visto fora e pensava uma maneira de fugir.

     —Não tão depressa — a deteve Mallemaison ao adiantá-la para abrir a porta ele.

     Mathilde levou a mão à adaga que levava no cinturão.

     —Fora só há um homem — disse ele ao voltar para a estadia.

     —Está escuro — replicou ela.

     —Nem tanto.

     —Mentiu? —perguntou Roald correndo à porta. Ao olhar fora amaldiçoou com força e se voltou para olhá-la. — Como te atreve a tentar me enganar?

     Mathilde deu um passo atrás com a mão no punho da adaga.

     —Como você se atreve a tentar tomar Ecclesford sabendo que não tem direito algum sobre ele?

     —É uma louca muito atrevida — disse Mallemaison com um toque de admiração na voz — mas uma louca ao fim. Agora temos um refém.

     Mathilde tinha sido consciente de que era muito arriscado ir ali, tinha recordado as palavras de Henry quando a recomendou que não saísse sozinha do castelo porque corria o risco de que a sequestrassem, mas preferiu arriscar-se em lugar de pôr em perigo a seus homens os pedindo que a acompanhassem. Por isso tinha a resposta tão preparada como a adaga que tinha na mão.

     —Você sim que está louco se crê que Giselle vai entregar Ecclesford por mim, especialmente a ti. Minha irmã sabe bem a classe de homem que é e a classe de senhor que seria. Sabe que estou aqui e espera que aceite o que propomos. Ecclesford está muito bem abastecido e nossos homens estão dispostos a morrer por nós. Seus mercenários, entretanto acabarão por dar-se conta de que o que lhes prometeste não vale à pena tanto esforço, e menos ainda suas vidas. — Reunindo todas as forças das que ainda dispunha, Mathilde as arrumou para dirigir-se à cadeira maior, levantar as saias e sentar-se com a dignidade de uma rainha. —Se me matas e depois tenta convencer Giselle de que sigo viva, não te acreditará; saberá que é mentira a menos que me veja. Tem que tomar uma decisão, Roald. Pode se render e voltar para Provenza ou tentar pedir um resgate por mim que ninguém lhe dará isso e terá perdido todo seu dinheiro pagando a estes homens que jamais poderão fazer-se com Ecclesford. O que decide?

     Roald moveu os lábios, mas não emitiu som algum. Então Mallemaison se aproximou dele e lhe deu uma bofetada no rosto.

     —Não seja idiota — disse com essa voz profunda e rouca. — Está mentindo. Tem trezentos e cinquenta homens aí fora, capturaste a mais de quarenta deles e matado a quem sabe quantos. O castelo só tem uma muralha. Podemos nos fazer com ele. Quanto a suas ameaças, a quem importa o que possam pensar ou fazer um senhor da Escócia e outro de Cornualles? Você conta com o apoio do rei, verdade?

     —Sim — respondeu Roald imediatamente como se temesse Mallemaison tanto como ela.

     —E o que importa o que diga esse padre? Invade o castelo e fica com ele. Tem os homens necessários — disse antes de voltar-se para olhar Mathilde. — E eu digo que D’Alton está morto.

     —Não está morto! —gritou ela agarrando-se à cadeira.

     Mallemaison se aproximou dela como um lobo que fosse para um cordeiro ferido.

     —Se não estiver ainda, estará logo. Golpeei-o com muita força e vi que lhe tinha amolgado o capacete.

     Mathilde se levantou com a adaga na mão, mas ele não demorou a lhe agarrar a mão e apertar-lhe até obrigá-la a soltar a arma e voltar a sentar-se.

     —Está morto, perderam e ela sabe — disse ainda sem soltá-la. — Não é certo, milady?

     —Não! —disse ao tempo que voltava a ficar em pé.

     Mallemaison pôs-se a rir e o fedor de seu fôlego esteve a ponto de fazê-la vomitar.

     —Te vou dizer uma coisa, de Sayres — disse o mercenário a Roald. — me dê esta no lugar da outra. Parece-me que será mais divertido domar a esta fera.

     —Roald! Não pode fazer caso a este imbecil! —gritou ela enquanto lutava por liberar-se daquelas enormes mãos. — Só o importa o dinheiro, não o que possa passar a ti depois.

     —E sim te importa? —mofou-se Roald aproximando-se dela com um brilho malévolo nos olhos. — Ainda segue tentando me enganar igual enganou seu pai depois de que fizéssemos amor e começasse a dizer que tinha te violado. O rei quer que Ecclesford seja meu e Mallemaison tem razão; o castelo só tem uma pequena muralha e contamos com muitos mais homens que vocês. — Aproximou-se um pouco mais a ela, retirou-lhe o véu do rosto e lhe lambeu a bochecha. Mathilde sentiu um calafrio de asco. —Como eu já te hei possuído, deixarei que o faça Mallemaison.

     —Roald, não!

     —Desfruta dela a seu desejo, Charles — disse ao tempo que se afastava. — Não me importa se vive ou morre.

     —Não! —voltou a gritar Mathilde sem deixar de revolver-se nos braços daquele monstro. Mas Mallemaison parecia ser feito de pedra. —Roald!

     Seu primo se deteve na soleira da porta e se voltou para olhá-la como se não fosse mais que uma moléstia da que estava encantado de poder livrar-se.

     —Adeus, Mathilde. E não se preocupe me encarregarei de que Giselle receba seu corpo. E eu ficarei com o dela.

     —Roald, não…

     Mallemaison lhe deu um golpe que a jogou ao chão. De joelhos e com o cabelo tampando o rosto, olhou ao bruto que tinha diante e comprovou também que Roald tinha saído da estadia. Estava sozinha, mas estava disposta a lutar até a morte antes de deixar que Mallemaison a possuísse.

     —Que classe de demônio é? —gritou. — É que violar mulheres faz que se sinta mais forte? Faz que se sinta um homem? Pois não é mais que uma besta, um animal. Se me violar, Deus terá piedade de mim e te castigará. Não sentirei vergonha porque não tenho que fazê-lo — disse sentindo-o com todo seu coração e sabendo que sempre tinha sido assim, que jamais deveria ter sentido vergonha alguma. — Mas você, você morrerá atormentado pela vergonha de seus atos. É que não tem mãe ou uma irmã que te ensine que não pode tratar assim às mulheres?

     —Não tenho nem mãe nem irmãs — grunhiu Mallemaison enquanto lhe tirava o véu e a punha em pé puxando-a pelo cabelo. — Me abandonaram na rua quando era menino. Algumas destas cicatrizes me fizeram os ratos, que foram os primeiros que me encontraram — voltou a atirá-la ao chão com outro golpe. — Não ponha a prova minha paciência me pedindo clemência só porque é uma mulher.

     Mathilde se arrastou até uma cadeira, agarrou-a por uma perna e golpeou Mallemaison tão forte como pôde. Quando ele se tornou a um lado, aproveitou para fazer-se com a adaga que tinha ficado no chão.

     —Nada disso! —gritou ele antes de tirá-la das mãos.

     Ainda tinha a outra adaga na bota.

     —Não permitirei que me tome — prometeu quase sem respiração. — Antes prefiro morrer!

     Mallemaison atirou a adaga a um rincão da estadia.

     —Vou fazê-la gritar tão forte que poderão ouvi-la no castelo.

     —Arderá no inferno! —disse ela ao tempo que puxava a cadeira maior para lhe bloquear o passo.

     O mercenário amaldiçoou entre dentes enquanto ela corria para a porta, mas ele a agarrou pela perna e a fez cair. Mathilde tentou arrastar-se apesar de que a tinha agarrado o pé onde levava a adaga.

     —Adiante, milady — disse rindo. — Segue lutando o quanto queira, mas deve saber que sempre consigo o que quero.

     «Desta vez não», disse a si mesma. «“ Não me conseguirá “. “Outra vez não».

     Mathilde esperneou com todas suas forças para tentar soltar-se antes que lhe tirasse a bota e descobrisse a adaga.

     —Muito bem, faça-se de dificil — seguia dizendo ele, agora com uma voz empapada em lascívia.

     Ela trocou de estratégia. Deixou de espernear e permitiu que lhe tirasse a bota. Mallemaison voltou a amaldiçoar e foi agarrar a adaga que tinha caído ao chão, enquanto ela ficava em pé e se fez com o candelabro. Que pesava pouco e as velas acesas tampouco desprendiam muito calor, mas ao se chocar com ele na cabeça, o fogo das velas foi direto ao rosto. Levantou os braços para proteger-se, mas Mathilde seguiu golpeando-o com todas suas forças, dessa vez no estômago. Mallemaison caiu ao chão sobre algumas das velas.

     Mathilde soltou o candelabro e correu para a porta. Sentiu sua mão no tornozelo quando quase tinha chegado e a ponto esteve de perder o equilíbrio e cair uma vez mais, mas conseguiu escapar dele. Sentiu aroma de queimado e se voltou para olhar.

     —Está ardendo, imbecil.

     Mallemaison ficou como louco tentando apagar o fogo, momento que ela aproveitou para fugir.

     Já fora, ficou paralisada uns segundos, como um cervo ao que tivessem surpreendido umas luzes. Alguns homens que tinha reunido em torno de uma fogueira levantaram a vista e a olharam com assombro, muito surpreendidos para reagir com rapidez. Mathilde pôs-se a correr de novo sem fazer caso dos gritos. Aos subúrbios do povo teve que esquivar a um tipo enorme que a ponto esteve de apanhá-la.

     Seguiu correndo para a porta da muralha.

     Tinha fracassado uma vez mais. Mas dessa vez não perdeu nada. Tinha tido a esperança de sair com a sua, mas se conseguia chegar sã e salva, ao menos não teria perdido nada.

     Assustou-se ao ver sair um pássaro da copa de uma árvore e justo nesse momento alguém a agarrou e a arrastou para uns matagais.

     Antes de poder sequer lutar, ouviu uma voz que conhecia bem.

     —Mathilde, que demônio está fazendo?

     Apoiou no peito de Cerdic com verdadeiro alívio e só então viu as sombras dos homens que o acompanhavam.

     —Me leve a casa, Cerdic — pediu consciente de que não ficava mais força. — Explicarei tudo quando estivermos a salvo em Ecclesford.

 

     Quando Mathilde voltou a cruzar a porta da muralha, Giselle estava esperando-a ao outro lado; recebeu-a com um grito de alívio e a estreitou em seus braços.

     Consciente de que os guardas aos que tinha mentido observavam a cena, Mathilde se limitou a dizer:

     —Preciso descansar — e agarrou o braço da sua irmã para levar-lhe dali antes que fizesse alguma pergunta que revelasse que lorde Nicholas e seus homens não tinham ido procurá-la nem nada parecido.

     Cerdic as seguiu através do pátio, que estava aparentemente tranquilo, embora todos os homens seguissem em guarda e vigiando qualquer movimento no acampamento de Roald. No alto das ameias, podia-se ver a figura de Ranulf indo de um lado a outro.

     Mathilde rezou para não ter que carregar também com a responsabilidade de sua morte ou de alguma lesão grave.

     —Despertou Henry? —perguntou a Giselle.

     —Não acredito que desperte até amanhã ao meio dia pelo menos— respondeu sua irmã.     — De todas as maneiras, Faiga tem ordem de vir me avisar se acordada se eu não estiver aí. Deixei-a cuidando dele. Ai, Mathilde, estava tão preocupada…! De verdade vai vir o irmão de sir Henry? Por que não me disse isso antes? Onde está?

     —Sinto muito, Giselle — respondeu Mathilde em voz baixa. — Não vai vir. Só foi uma desculpa para que os guardas me deixassem sair. Sinto te haver preocupado.

     —Preocupaste a ela, a mim e a metade da guarnição do castelo — grunhiu Cerdic. — Por que saiu?

     —Explicarei isso — disse Mathilde enquanto subiam os degraus da entrada.

     Dentro, o aroma de sangue, panos úmidos e essência de hortelã que impregnava o ar revolveu o estômago e teve que esforçar-se por controlar as náuseas. Foi a toda pressa a saleta e, uma vez dentro, esperou que Cerdic tivesse fechado a porta para começar a falar.

     —Fui a ver Roald e dizer que devia render-se.

     Ambos a olharam com os olhos totalmente abertos. Cerdic foi o primeiro que se recuperou da surpresa.

     —Foi procurar Roald? Sozinha? E lhe disse que se rendesse?

     —Estive a ponto de consegui-lo — respondeu ela. — Se não tivesse estado com ele Charles De Mallemaison, que o convenceu de que não o fizesse, acredito que Roald teria acreditado quando disse que Henry estava bem e que não tinham possibilidade de ganhar.

     Cerdic se deixou cair sobre uma cadeira.

     —De todas as ideias descabelas que poderiam haver te passado pela cabeça… —murmurou antes de ficar calado.

     Giselle observou o vestido de sua irmã, estava sujo, rasgado e deslocado.

     —O que ocorreu com Roald? — perguntou evidentemente alarmada. — Não te haverá…?

     Mathilde soube imediatamente o que temia que tivesse ocorrido.

     —Não.

     —Graças a Deus!

     —Tenho este aspecto porque me entregou a Mallemaison, mas lhe prendi fogo e consegui escapar.

     —Mãe de Deus! —exclamou Cerdic. — Mallemaison?

     —Como que o prendeu fogo? —perguntou Giselle sem sair de seu assombro.

     — Prendeu a roupa quando caiu sobre umas velas que tinham caído ao chão. Golpeei-o com um candelabro e as velas saíram. Então aproveitei para sair correndo e Cerdic me encontrou.

     Cerdic ficou em pé de um salto como se ele também tivesse fogo debaixo.

     —E se não te tivesse encontrado? E se Roald te tivesse matado?

     —Então agora estaria morta — Mathilde olhou a ambos com gesto suplicante. — Tinha que fazer algo para tentar deter Roald antes que siga ferindo e matando nossos homens — se aproximou de Cerdic e lhe pôs a mão no braço. — Antes que mais amigos teus morram ou sejam sequestrados —olhou também Giselle. — Antes que o homem ao que amas acabe ferido ou morto.

     Giselle ruborizou de repente enquanto que Cerdic ficou pálido.

     —Sabia?

     —Sir Henry o adivinhou. Estava equivocado?

     Giselle ficou em pé e ao voltar a olhá-la Mathilde viu uma determinação em seus olhos que não tinha visto nunca antes.

     —Não. Quero ao Cerdic e ele me quer. Vamos nos casar.

     —Se você não se opõe — acrescentou ele, que a olhava com uma mescla de medo e impaciência que o fazia parecer jovem e inocente e que, por um momento, fez que Mathilde esquecesse que era um valente guerreiro, que sua irmã atendia as feridas mais terríveis sem pestanejar e que todos corriam um grave perigo. De repente voltaram a ser jovens e sem preocupações, como quando ensinaram Cerdic a dançar.

     —Claro que não me oponho! Alegro-me muito por vocês. Cerdic será um magnífico senhor de Ecclesford.

     Giselle olhou a seu futuro esposo com um sorriso luminoso embora também algo petulante.

     —Já te disse que estaria de acordo e que não tinha por que preocupar-se.

     A Mathilde teria gostado de poder desfrutar mais daquele momento, mas não podiam. Roald seguia espreitando-os.

     Foi junto a sua irmã e tomou ambas as mãos entre as suas.

     —Deveria partir de Ecclesford até que tenha terminado a batalha, Giselle. Se perdêssemos…

     —Não vamos perder! —gritaram Cerdic e Giselle ao uníssono.

     —Ninguém pode saber o que pode ocorrer em uma batalha— respondeu pensando em seu amado Henry, inconsciente e ferido. — Por favor, Giselle, faça-o por mim e parte daqui.

     —Quem cuidará dos feridos se eu for?

     —Faiga e as demais, sir…

     —Elas não têm os conhecimentos que tenho eu — declarou com firmeza.— Você tem intenção de partir?

     —Não. Meu lugar está aqui.

     —O meu também. Não tenho medo, Mathilde — disse agarrando a mão de Cerdic. — Tenho fé em nossos homens.

     —Eu também —assentiu Mathilde — mas Roald me há dito quantos homens tem ele e estamos em desvantagem. E se te captura… — olhou a Cerdic. — Se a captura, a fará sofrer.

     Giselle levantou o rosto com gesto desafiante.

     —Se me violar sobreviverei igual fez você. Ensinaste-me que uma mulher pode seguir adiante até depois de ter sofrido quão pior pode lhe fazer um homem. Aconteça o que acontecer, tentarei ser tão forte e tão valente como você porque embora perdêssemos Ecclesford às mãos de Roald, seguiremos lutando contra ele.

     Mathilde esteve a ponto de tornar-se a chorar, mas não de tristeza, mas sim de orgulho e gratidão por sua irmã a ver como forte e valente e não pensasse que não era mais que uma mulher manchada.

     A expressão de Giselle se suavizou um pouco.

     —Cerdic tampouco vai partir daqui. Como eu poderia ir e deixar às duas pessoas que mais quero no mundo?

     —Giselle, possivelmente deveria fazer caso do que diz — opinou Cerdic com suavidade e depois olhou Mathilde com uma expressão suplicante e cheia de remorsos. — Está grávida. Perdoe-me, Mathilde.

     Isso era algo que Henry não tinha adivinhado ou, se o tinha feito, não o havia dito a ela.

     —Não tem por que me pedir perdão — disse Giselle com orgulho. — Eu também posso idear planos, irmãzinha. Eu amava Cerdic e ele a mim, mas acreditava que não me merecia porque não tem título nem terras, assim que me ocorreu um modo de fazer que se esquecesse de todas essas objeções. Como é tão honrado, agora não pode negar-se a casar-se comigo — inclinou a cabeça para olhar ao forte guerreiro. — Porque vai ter que casar comigo, verdade, Cerdic?

     —Deixou que te amasse para que me visse obrigado a me casar contigo? —perguntou ele com incredulidade.

     —Para que se esquecesse dessa tolice de que não é o bastante bom para mim — respondeu sem o menor sinal de culpa. — Porque o é, verdade, Mathilde? Será um magnífico marido e senhor.

     —Claro que sim — disse Mathilde abraçando a ambos.

     Giselle sorriu a Cerdic.

     —Perdoa-me? —perguntou.

     Em lugar de responder, ele se aproximou dela e a beijou.

     Mathilde saiu da estadia em silêncio e foi sentar-se junto a seu amado, a rezar para que tudo saísse bem.

        

     Henry despertou de repente pela dor. Uma dor que sem dúvida significava que estava vivo.

     Recordou a batalha, Mallemaison, a maça…

     Ao menos estava vivo, ou isso acreditava porque a dor era muito intensa.

     —Sinto muito, sir Henry. Devo lhe trocar a bandagem.

     Giselle. Era Giselle. Onde estava Mathilde?

     Deus, aquilo doía muito. Alguém choramingava.

     Era ele.

     —Não parece que haja infecção — ouviu dizer Giselle quando retirou a última atadura. — Graças a Deus. Pode abrir os olhos?

     Devia seguir tendo o olho em seu lugar, o qual era um alívio apesar de que não deixava de suar por culpa da dor.

     —Pode abrir os olhos? —repetiu Giselle.

     Podia fazê-lo? Tentou-o. Conseguiu abrir o olho esquerdo e viu Giselle olhando-o com impaciência. Sim, era Giselle, embora houvesse algo estranho em seu aspecto, era como se estivesse desenhada em uma tapeçaria, sem relevo.

     Não podia abrir o olho direito, tinha a sensação de que estivesse pego por culpa do sangue seco ou do pus, ou possivelmente estivesse muito inchado.

     —Pode ver-me?

     Tentou assentir, mas doía. Tentou falar, mas só conseguiu emitir uma espécie de grasnido.

     —Me aperte à mão se puder entender.

     Isso sim pôde fazê-lo e Giselle disse algo a alguém mais que havia na estadia.

     —Pode ver!

     —Graças a Deus. Deus, muito obrigado! —gritou Mathilde e um segundo depois estava junto à cama e pôde tomar uma mão, que lhe beijou com força.

     Mathilde. Estava aí apesar da aversão que sentia para as feridas e a enfermidade. Mas claro que estava ali, porque estava gravemente ferido. Possivelmente inclusive a ponto de morrer. Nesse caso, devia dizer a Mathilde ou a Cerdic o que deviam fazer…

     Mathilde se deitou ao seu lado e lhe deu de beber a água mais deliciosa que tinha provado em sua vida.

     —Devagar, meu amor, devagar — sussurrou.

     Voltou a deixar que se recostasse e, ao ver que se afastava, Henry tentou seguir vendo-a porque, se ia morrer ela era quão último queria ver em sua vida.

     —Pode mover o braço esquerdo? —perguntou Giselle do outro lado da cama.

     Tentou fazer o que pedia sem afastar o olhar de Mathilde e cortou a respiração por culpa da dor.

     —Temo que o músculo está esmigalhado do osso. Com muitos cuidados poderá recuperar um pouco de mobilidade, mas sempre estará muito débil.

     Um pouco de mobilidade? Sempre débil? Aquele era o braço com o que segurava o escudo. Como poderia lutar sem escudo? Como poderia ganhar dinheiro e possivelmente algum dia uma propriedade?

     E o braço direito?

     Tentou movê-lo e comprovou com alívio que podia fazê-lo. Estava a ponto de levar a mão ao rosto quando Giselle lhe agarrou o braço e impediu que o fizesse.

     —Não deve tocar a bochecha, tem o maxilar quebrado. O coloquei o melhor que pude.

     Tinha o maxilar quebrado? Sabia como curaria aquele osso, pois tinha visto feridas semelhantes; se tinha sorte, o rosto ficaria só ligeiramente deformado, mas se não, seu rosto ficaria monstruoso.

     —Também tinha a sobrancelha cortada, mas a costurei.

     Isso explicava a grande quantidade de sangue. Ficaria uma cicatriz. Maxilar do rosto quebrado, uma cicatriz na sobrancelha, um braço inútil…

     Mas havia algo que o preocupava ainda mais.

     —A batalha? —sussurrou com dificuldade.

     —Acabou no momento — disse Mathilde voltando a aproximar a taça a seus lábios. — Vou te dar algo que acalmará a dor e te ajudará a dormir.

     Henry não queria dormir. Queria saber o que tinha ocorrido.

     —Ranulf…

     —Ranulf está bem — disse Mathilde em seguida. — Por favor, beba isto.

     Não era isso ao que se referia, queria que seu amigo contasse todo o ocorrido na batalha, mas não pôde evitar beber aquilo.

     —Roald…? —conseguiu dizer antes que fechassem os olhos e não pudesse ouvir a resposta. Foi consciente de que alguém enfaixou seu rosto, e depois não sentiu nada mais.

     Quando Henry voltou a despertar, o sol banhava na estadia e Mathilde estava sentada junto à cama, com a cabeça apoiada ao seu lado e os olhos fechados.

     Quanto tempo tinha dormido? Quanto tempo levava ali Mathilde velando seu sono? O que tinha ocorrido com Roald? Teria acabado a batalha? Ganharam?

     Era evidente que não tinham tomado o castelo e que naquele momento não os estavam atacando; de outro modo não teria estado ali, e muito menos tão tranquila.

     Ou ganharam, oxalá fosse assim, ou havia um período de calma na metade da luta.

     Como não podia fazer nada a respeito, dedicou-se a observar Mathilde enquanto ela dormia e se deu conta do quanto a amava. Amava-a e a necessitava. Mas agora não tinha nada que lhe oferecer; nem terras, nem riquezas, nem sequer um rosto formoso e um corpo para poder ganhar a vida lutando. Agora dependeria da caridade de outros e não podia pedir a sua esposa que vivesse desse modo.

     Deve ter feito algum som porque Mathilde se moveu e levantou a cabeça. O sorriso que iluminou seu rosto ao vê-lo acordado rompeu o coração.

     —Está acordado. Dói-te muito?

     Era uma verdadeira agonia, mas o que doía era o coração, não os golpes.

     —Um pouco — respondeu.

     Mathilde começou a levantar-se, mas ele a agarrou pelo braço para que não o fizesse.

     —Ainda não. Não me dê mais disso até que possa falar com Ranulf.

     —Então deveria comer algo. Vou buscar…

     —Depois — no momento só queria olhá-la. — Por favor.

     Voltou a sentar-se e sorriu de novo como se não tivesse os olhos cheios de lágrimas.

     —Supunha-se que não foste lutar — recordou. — Com tudo o que havia dito sobre que Cerdic se lançaria a lutar precipitadamente. Se o tivessem matado — não continuou falando, era como se as palavras lhe tivessem bloqueado a garganta.

     Henry lhe acariciou o cabelo. Parecia muito cansada. Tinha umas enormes sombras sob os olhos, como se levasse noites sem dormir.

     Tinha muita responsabilidade, muitos problemas. Henry teria morrido por ela, desejaria havê-lo feito.

     —Derrotamos Roald?

     Seus olhos lhe deram a resposta.

     —Quanto tempo faz que me feriram? —perguntou antes que ela falasse e confirmasse o que já sabia.

     —Três dias.

     —Me traga Ranulf. Por favor.

     Mathilde assentiu e se levantou, mas não lhe soltou a mão até lhe dar um beijo que ao menos a fez sorrir antes de sair da estadia e deixá-lo sozinho. Desfigurado como estava, certamente devia acostumar-se a estar sozinho porque as mulheres já não o receberiam com sorrisos nem tentariam atrair sua atenção. Todos o olhariam, ou possivelmente retirariam a vista em seguida ao vê-lo.

     A porta se abriu e apareceu Ranulf seguido de Cerdic. Ambos tinham aspecto de não haver trocado de roupa a dias e o aroma o confirmava.

     Henry se perguntou por que Mathilde não teria retornado com eles. Certamente tinha outras coisas que fazer.

     —Não precisava chegar tão longe para te liberar de lutar — brincou Ranulf sorrindo com o cinismo que o caracterizava, como se nada tivesse ocorrido.

     —Roald segue aí?

     Ranulf assentiu e o sorriso desapareceu de seu rosto.

     —Desgraçadamente.

     —Tornou a atacar?

     —Ainda não. Parece ter decidido escavar a muralha.

     Não era de estranhar sabendo que o castelo só contava com um muro e um fosso seco. Roald faria que seus homens escavassem sob a muralha, sujeitariam a parte superior com escoras de madeira e, uma vez que tivessem um bom buraco, encheriam de ramos secos às que prenderiam fogo e assim derrubariam a muralha.

     —Podem impedir-lhe.

     Ranulf olhou Cerdic antes de responder.

     —Temo que seja um pouco complicado. Cerdic e seus homens não se uniram à batalha depois do sinal porque não puderam.

     —Encontramo-nos com alguns homens de Roald que nos impediram de atacar — explicou Cerdic. — Mataram ou capturaram a todos meus homens, só fiquei eu.

     São eles, os capturados, os que Roald pôs a cavar.

     Se tentavam impedir que derrubassem a muralha, matariam a seus próprios homens.

     —Por outro lado, tendo que cavar para o inimigo, certamente demorem muito mais que se o tivessem feito os mercenários — assinalou Ranulf.

     Henry estava de acordo.

     —Não houve mais ataques?

     —Um par de incursões, mas nada digno de contar — disse seu amigo encolhendo-se de ombros. — Tenho a sensação de que Roald lhes prometeu uma vitória rápida e fácil e os mercenários estão perdendo as vontades. O de escavar a muralha é uma maneira de evitar que haja mais baixas até que encontrem uma maneira melhor de ganhar o castelo.

     —E a defesa?

     —A mesma que te teria ocorrido. Pus alguns homens a cavar desde nosso lado para ver se podem encher o oco com pedras antes que Roald coloque fogo.

    —Muito bem. Quantas baixas?

     —Meia dúzia de homens, incluindo os do grupo de Cerdic.

     Não estava mau, tendo em conta a situação.

     Henry olhou Cerdic, que lhe tinha salvado a vida, embora já não fosse poder viver realmente. O saxão tinha acreditado que estava fazendo algo bom.

     —Obrigado. — Cerdic assentiu sem lhe dar importância, como teria feito qualquer bom guerreiro. —Como vão as provisões?

     —Há suficientes. Lady Mathilde se assegurou de que houvesse comida de sobra — respondeu Ranulf. — Devo dizer Henry, que essa mulher é incrível. Sir Leonard ao seu lado parece preguiçoso.

     Henry sorriu, ou ao menos o tentou, porque doía muito o rosto.

     Ranulf se dirigiu a Cerdic.

     —Se não se importa, amigo, eu gostaria de falar um momento a sós com Henry.

     O que queria dizer aquilo? Acaso a situação era pior do que havia dito e não tinha querido desanimar Cerdic e os outros?

     Ou possivelmente fosse que suas feridas fossem mais graves do que deu a entender Giselle e agora pediu a seu melhor amigo que o comunicasse.

     —Te anime normando. Venceremos — prometeu Cerdic com um sorriso ao tempo que começava a dirigir-se à porta. — Luta bem.

     Uma vez que saiu, Ranulf olhou Henry e arqueou uma sobrancelha.

     —Ah, parece que conseguiste impressioná-lo. Temo que terei que seguir me esforçando.

     Mas Henry não estava de humor para brincadeiras.

     —Do que se trata?

     —Não vai gostar — disse Ranulf ao tempo que se sentava junto à cama.

     Apesar do impaciente que estava, Henry observou o rosto de seu amigo atentamente e pareceu que não estava muito preocupado.

     —Mandei um mensageiro a seu irmão para informá-lo de suas lesões e pedir que nos envie alguns homens dos que possa prescindir… antes que te zangue, já não pode impedir que o faça. O mensageiro saiu ao dia seguinte de que Cerdic te trouxesse ferido.

     Ranulf devia ter acreditado que ia morrer para ter avisado Nicholas.

     Seu irmão sempre havia dito que acabaria pobre se não atuasse com mais sensatez. Quando o visse assim, necessitado e inútil para sempre, saberia que sempre teve razão.

     E, entretanto Henry não se zangou com seu amigo e de repente se deu conta do motivo. Por incrível que parecesse o certo era que não teria querido morrer sem ver seu irmão pela última vez e o agradecer por ter cuidado dele, e teria desejado dizer-lhe a sua irmã também. Se Nicholas podia ajudar, além disso, isso era mais importante que seu orgulho.

     —Tão mau aspecto tinha?

     —Horrível. Devo dizer que não acreditei em lady Giselle quando disse que se recuperaria. Mas, graças a Deus, equivoquei-me. Essa mulher também é uma maravilha. Devo pedir que me explique seus métodos porque é incrível como cura as feridas. Há um bálsamo, por exemplo… — ficou calado e olhou Henry com preocupação. — Te estou cansando com tanto palavrório. Quer que vá?

     —Ainda não. Pediu a Nicholas que envie homens?

     Ranulf se ruborizou.

     —Sabia que você não gostaria, mas pensei que já que ia escrever de todos os modos e já está comprometido em tudo isto através de ti, por muito que você pense que não é assim, não perdia nada perguntando. Eu não sou tão orgulhoso e cabeça dura como você e se há alguém que possa me ajudar quando o necessito, não vejo por que não tenho que pedir-lhe. Além disso, a metade dos homens da guarnição já pensavam que seu irmão estava a caminho e tínhamos que fazer algo para igualar o número de homens de Roald.

     —Me alegro de que o fizesse. Espero que envie muita gente porque a necessitamos.

     Ranulf o olhou sem acreditar no que ouvia, mas em seguida sorriu.

     —Menos mal que recuperaste o sentido comum.

     Mas havia algo que havia dito Ranulf que intrigava Henry.

     —Por que tinha soldados que pensavam que Nicholas já estava a caminho?

     Ranulf ficou em pé com certo nervosismo.

     —Já sabe como são… sempre inventando coisas. Sempre acreditam que aparecerá uma força amiga que os ajudará no último momento.

     —Quem lhes disse que ia vir? —perguntou Henry sem deixar-se enganar. — Foi você?

     —Não! —respondeu imediatamente. — Eu não faria tal coisa a não ser que soubesse que era seguro, não teria querido lhes dar falsas esperanças.

     —Quem foi então?

     Ranulf se levantou e começou a caminhar para a porta como um mercador que queria fugir de um mau negócio.

     —Já dá igual.

     —Quem? —insistiu Henry incorporando-se na cama apesar da dor.

     Seu amigo ficou em silêncio uns segundos, sem dúvida lutando consigo mesmo, até que por fim se deu meia volta e voltou para a cama.

     —Mathilde.

     Henry se deixou cair sobre os almofadões com a boca aberta.

     —Se promete estar tranquilo e não te mover, contarei tudo. Como já disse, essa mulher é incrível.

     Henry assentiu levemente, o justo para fazer entender que ficaria quieto e que Mathilde era incrível.

     Ranulf aproximou o tamborete e se sentou nele. Henry, por sua parte, escutou o relato do acontecido àquela noite.

     Uma vez acabado, Henry ficou imóvel, sem acreditar no que acabava de ouvir. Mathilde mentiu aos guardas para sair sozinha e ir pedir a Roald que se rendesse.

     Claro que, pensando-o bem, Henry podia imaginá-la perfeitamente fazendo algo assim; com o olhar cheio de segurança em si mesma e as mãos obstinadas aos punhos do vestido.

     —Mas Roald não se rendeu — deduziu com pesar, pois de outro modo seus homens não teriam estado escavando a muralha.

     —Por desgraça, não.

     Conhecendo o tipo de homem que era Roald, havia algo que não encaixava naquela história.

     —E a deixou voltar livremente?

     —Não exatamente — Ranulf levantou o olhar e sorriu.— Conseguiu escapar. Uma mulher incrível.

     —O que aconteceu?

     —Voltou sã e salva, assim não há necessidade de que…

     —Conte-me tudo — ordenou agarrando-o pelo peitilho com o braço bom.

     —Não necessita que me maltrate, só tentava te economizar o mau gole. Roald não a tocou.

     Henry sentiu um enorme alívio até que se deu conta de que Ranulf não tinha acabado.

   —A deu a Charles De Mallemaison.

     Mallemaison? Pelo amor de Deus!

     —Mas conseguiu escapar dele e sair correndo — Ranulf sorriu com malícia. — Parece que colocou fogo nele.

     —O que?

     —Golpeou-o com um candelabro depois de que ele tirou suas adagas.

     —Adagas?

     —Não acredita que é tão parva para ir desarmada? Mas inclusive sem armas, defendeu-se com o que encontrou à mão, como nos ensinou a fazer sir Leonard — Ranulf arqueou uma sobrancelha antes de acrescentar — Deve ser muito agradável que uma mulher como essa se preocupe com alguém.

     Era-o… mas também era muito doloroso.

     —Agora vá, Ranulf.

     —Está bem — disse ficando em pé. — De todos os modos, não quero que as damas se zanguem comigo por te deixar cansado. Não quero me arriscar a provocar sua ira.

     Antes de sair, voltou-se para olhá-lo e lançou um sorriso sincero e alegre que Henry jamais tinha visto no rosto de seu amigo.

     —Me alegro muito de que não esteja morto, Henry.

     Henry não disse nada, embora no fundo soubesse que teria sido melhor morrer na batalha defendendo Mathilde que ter que viver sem ela.

 

     Nos seguintes dias, Mathilde passou com Henry todo o tempo que pôde, pois Roald parecia satisfeito com que seus homens seguissem cavando. À medida que lhe curavam as feridas e baixava a inflamação do rosto, Henry foi podendo falar com mais claridade e Mathilde passou horas conversando com ele de todo tipo de coisas. Falaram de sua infância; a dela tinha sido muito feliz, a de Henry, nem tanto.

     Mathilde se inteirou de que o pai de Henry tinha perdido tudo o que tinha no jogo. Nicholas tinha ocupado seu posto à frente da família e, por isso deduzia do modo de falar de Henry, tinha-o feito com mão dura; tinha casado sua irmã contra sua vontade e tinha enviado Henry para aprender às ordens de outro homem. Marianne tinha conseguido frustrar seus planos e agora estava felizmente casada.

     Henry parecia ter desfrutado durante sua formação com sir Leonard, mas a Mathilde parecia que tinha sido um professor bastante severo, o qual fazia que se perguntasse como teria sido Nicholas para que Henry preferisse sir Leonard. Não era de se admirar que depois de uma infância e uma juventude tão fria e completamente sem amor, um jovem bonito como Henry tivesse procurado o calor nos braços das mulheres.

     Mathilde ajudava Giselle a cuidar de suas feridas e, embora não eram tão graves como tinham temido em um primeiro momento, era evidente que não voltaria a ser o mesmo. Henry não falava jamais de suas lesões, preferia perguntar por outros feridos.

     Cerdic ficou responsável pela defesa enquanto que Ranulf guiava aos homens encarregados de cavar ao outro lado da muralha para adiantar-se aos homens de Roald. Henry pediu a Mathilde que o avisasse no momento que uns ou outros conseguissem passar ao outro lado, pois queria ver o enfrentamento da janela.

     Quando não estava com ele, Mathilde fiscalizava a partilha de comida e mediava nos numerosos conflitos que surgiam em um lugar tão pequeno e tão cheio de gente. Todo mundo estava muito tenso e até os animais pareciam estar de mau humor.

     Por isso foi quase um alívio quando Ranulf disse que seus homens estavam a ponto de atravessar a grossura da muralha. Os homens de Cerdic se reuniram nas ameias, preparados para atacar de cima assim que Roald se desse conta do que estava ocorrendo.

   Mathilde correu à estadia de Henry, a quem encontrou de pé junto à cama, com o rosto e o ombro ainda enfaixados.

     —Estão a ponto de consegui-lo, verdade? —perguntou. — Cerdic e seus homens estão nas ameias.

     —Deveria haver me esperado para que te ajudasse a se levantar da cama — o arreganhou tentando não deixar-se levar pela culpa que sentia cada vez que via suas feridas.

     —Não vou ver a batalha daqui.

     —Deixa que te ajude a voltar para a cama.

     —Vou dirigir à guarnição das ameias — anunciou com firmeza. — Quero que os homens me vejam. Quero que Roald me veja e ouça minha voz dando as ordens; quero que saiba que não estou morto.

     Não podia fazê-lo. Ainda estava muito fraco… mas Mathilde sabia que não podia dizer-lhe assim.

     —Ainda não está o bastante bem para estar tanto tempo de pé.

     —Se você pode ir sozinha falar com Roald de Sayres e pedir que se rendesse, eu poderei pôr a cota de malha e dirigir a guarnição da ameia.

     Mathilde se agarrou a um dos postes da cama. Como tinha se informado?

     —Quem te disse isso?

     —Vai negar que é certo?

     —Não, não vou fazê-lo — parecia muito segura para incomodar-se sequer, além disso, não queria mentir a Henry. — É certo que fui pedir que se rendesse. Tinha a esperança de convencê-lo de que não poderia nos vencer.

     —E foi sozinha.

     —Sim — não se envergonhava nem se lamentava de havê-lo feito embora não tivesse funcionado. — Não queria seguir pondo em perigo a tanta gente.

     —Poderiam ter te matado.

     —Sim.

     —Você estava disposta a se arriscar por mim e por Ecclesford e, entretanto pretende que eu fique aqui como um menino, esperando que termine a batalha.

     —Está ferido — disse, tentando ocultar sua preocupação. Não queria que acreditasse que o via como um menino, mas o certo era que não voltaria a ser o forte guerreiro que tinha sido.

     —Sei que estou ferido — respondeu ele com mais suavidade. — E sei que está preocupada comigo, Mathilde. Mas não posso ficar aqui, tenho que fazer algo ou preferirei estar morto. Quero dirigir a guarnição para derrotar ao homem que tanto te tem feito sofrer, que tenta roubar o que é seu por direito e que acredita que pode derrotar a ti e a todos os que a querem — Henry tomou sua mão. — Prefiro morrer defendendo à mulher que amo que viver vinte anos mais — tentou sorrir com a alegria de antes — Quando meu irmão se inteire de como morri, pode ser que por fim se sinta orgulhoso de mim.

     Mathilde o olhou atentamente. Era um guerreiro orgulhoso para quem devia ter sido muito doloroso perder frente a Charles De Mallemaison. Tão humilhante como tinha sido para ela o ataque de Roald. Também o roubaram o orgulho e a dignidade e o fizeram se sentir débil e necessitado. Como poderia lhe negar a oportunidade de recuperar seu orgulho? Não podia. Amava-o e respeitava muito para fazê-lo. Assim como ele a ajudou a recuperar sua auto-estima, ela devia ajudá-lo agora, por muito que a assustasse fazê-lo.

     —Muito bem, Henry — conseguiu dizer apesar do nó que tinha na garganta. — Te ajudarei a se vestir. — Henry sorriu com ternura e a abraçou com o único braço com que podia fazê-lo. —Estou segura de que vê-lo dará força a nossos homens — sussurrou, decidida a não deixar ver o medo que sentia e ser valente enquanto ajudava seu homem a preparar-se para a batalha uma vez mais.

     Enquanto se vestia, Henry mordeu o lábio várias vezes pela dor, mas não disse nada e Mathilde tampouco o fez.

     —Terá que me atar o braço esquerdo — disse quando esteve vestido. Mathilde assentiu em silêncio e lhe pôs uma parte de tecido a modo de tipoia. —Meu capacete? —perguntou depois. — Ou está destroçado?

     —Pedi ao armeiro que o arrumasse — respondeu ela tirando-o de uma cômoda, mas sem olhar aquela parte de metal que ainda dava prova do terrível ataque.

     —Fez um bom trabalho — reconheceu Henry observando o capacete. — O visor tampará a maior parte da bandagem. Não há por que assustar as tropas, não acredita meu amor?

     Que Deus o ajudasse porque o amava com todo seu coração. E temia por ele, mas não diria nada que pudesse dissuadi-lo de fazer o que acreditava que devia fazer. Devia ser valente por ele, igual ele era por ela.

     Henry a olhou com enorme ternura e lhe acariciou o rosto.

     —Sei que isto não é fácil para ti, meu amor, mas devo ir.

     —Quero-te mais do que posso te explicar com palavras — sussurrou ela contendo as lágrimas que ameaçavam transbordando-se.

    —Eu a ti também — respondeu ele ao tempo que se aproximava para beijá-la.

        

     —Sir Henry! É sir Henry!

     As vozes começaram a ouvir-se no salão e continuaram no pátio à medida que Henry, acompanhado de Mathilde, passava junto a seus homens de caminho às ameias. Os homens de Ranulf, ao inteirar-se da notícia, levantaram a vista para comprovar que era certo, mas Ranulf não demorou a lhes recordar que não havia tempo a perder.

     Apesar da determinação de Henry e do apoio de Mathilde, a ascensão até as ameias não foi nada fácil. Doía todo o corpo e mal podia respirar com a bandagem e o capacete, mas quando via a alegria no rosto dos soldados, alegrava-se de ter feito o esforço.

     —Bem-vindo sir Henry — disse Cerdic com um sorriso quando por fim chegaram ao mais alto. — Devo dizer que me alegro de ver-te mais do que jamais teria pensado. E me alegro mais ainda de voltar por fim à batalha. Eu não gosto de me esconder atrás da muralha.

     —Tampouco a mim — respondeu Henry apertando a mão de Mathilde para tentar recuperar o equilíbrio.

     Olhou a sua amada e se deu conta de que tentava ser valente por ele, e por isso a amou ainda mais.

     —Deveria ir, Mathilde. É perigoso que esteja aqui — se inclinou para beijá-la e sussurrou algo com o que esperava acalmar seu temor — Prometo não me afastar das ameias.

     Ao retirar-se, Mathilde esboçou um trêmulo sorriso.

     —Que Deus te acompanhe, Henry, que acompanhe a todos no dia de hoje — disse ela.

     E partiu.

        

     Henry viu com preocupação como os homens de Roald aproximavam o aríete à porta da muralha. Por muito que a tivessem reforçado, duvidava enormemente que pudesse aguentar um segundo arremesso.

     Cerdic, entretanto assegurava que estavam preparados para fazer frente ao ataque e que poderiam conter o aríete até que os homens de Ranulf abrissem passo por debaixo da muralha. Havia várias panelas com água fervendo dispostas para ser lançadas sobre os homens que dirigiam o aríete e os que tentassem escalar a muralha e havia outra com breu para atirá-la sobre o aríete em si e lhe prender fogo mediante flechas acesas que lançariam os arqueiros imediatamente depois.

     Mas ao olhar o aríete, Cerdic amaldiçoou entre dentes.

     —O que ocorre? —perguntou Henry, molesto por não poder ver bem.

     —Pôs nossos homens também ao mando do aríete.

     —Maldito seja.

     —Não podemos lançar o breu sobre nossos próprios homens — disse Cerdic.

     —Pode ser que não tenhamos escolha.

     Cerdic esteve a ponto de protestar, mas finalmente soprou com resignação e assentiu. Ia ser muito duro lançar pedras e água fervendo a homens aos que conhecia, mas seria pior deixar que transpassassem a porta.

     —Cerdic, você vá o pátio e dirige ali aos homens se por acaso vem abaixo a porta.

     Henry ficou onde estava, amaldiçoando suas feridas enquanto tentava adivinhar as intenções de Roald. Esperariam a que a porta caísse para atacar, ou começariam o assalto pela muralha? Possivelmente o propósito do aríete fosse distrair aos homens de Ecclesford enquanto terminavam de escavar a muralha.

     O golpe do aríete contra a porta fez que se esquecesse de qualquer hipótese e se centrasse na defesa. Não tinham feito o bastante para deter o poderoso aríete. Henry apertou os dentes ao ver como tremia o muro pela força do impacto.

     —Lancem as pedras — ordenou quando começaram a afastar o aríete para golpear de novo.

     Sabia que Roald estaria apontando-os com flechas se por acaso algum se negava a seguir as ordens. Seus homens ouviram a ordem, mas não a seguiram, não queriam lançar as pedras sobre seus companheiros.

     —Se Roald atravessar a porta, estaremos todos perdidos.

     Uma pedra cruzou a muralha e logo outra e outra. Os arqueiros de Ecclesford estavam ansiosos por disparar ao inimigo.

     —Ainda não — disse Henry. — Estão muito longe ainda. Paciência, homens, paciência.

     O aríete voltou a golpear a porta e dessa vez Henry teve que agarrar-se à muralha para não cair. Uma flecha passou roçando o rosto e ao olhar comprovou que Roald tinha aproximado os arqueiros.

     —Se creem que podem dar a algum arqueiro, disparem, mas não esbanjem as flechas — ordenou Henry a seus homens.

     Tinha-os treinado bem, por isso fizeram o que pedia: não dispararam indiscriminadamente, mas sim esperaram para ter possibilidades de dar ao inimigo.

     O aríete se aproximava de novo. Henry se aproximou da borda da ameia e pôde ver que, apesar dos reforços de ferro, a porta estava rachada e as fitas de ferro rachadas. Outro golpe e provavelmente cairia.

     —Lancem o breu! —gritou Henry apesar de que era uma ordem que não queria dar. — Prenda fogo ao aríete.

     O escuro líquido, esquentado até ferver, caiu lentamente como uma chuva densa. Henry fechou os olhos uns segundos ao ouvir os uivos de dor dos homens. As flechas acesas caíram um segundo depois e o ar se encheu de fumaça do fogo no que ardia o breu, a madeira e a carne.

     Tornou a olhar e viu com horror que as flechas não tinham acertado ao aríete, mas sim caíam a um lado dele, onde agonizavam os homens. Enquanto, Roald ordenou a seus mercenários que se fizessem cargo do aríete para voltar a golpear a porta.

     Henry amaldiçoou entre dentes antes de dar a ordem de lançar mais pedras. O único positivo era que agora os mercenários eram muito vulneráveis a qualquer ataque, pois Roald não tinha levado reforços para seus homens.

     Apesar de todos os esforços, o aríete voltou a golpear a porta e a muralha tremeu uma vez mais, mas dessa vez se ouviu o ranger da madeira e imediatamente depois um grito procedente do pátio. Roald e seus homens tinham conseguido romper a porta. Ao ver aproximarem-se os mercenários, Henry esqueceu que estava ferido e muito débil, esqueceu inclusive que estava ao mando da guarnição. Quão único sabia era que devia lutar contra os invasores.

     O sangue ardia nas veias o fazendo esquecer a dor. A necessidade de defender Ecclesford era mais forte, assim tirou a espada com a mão direita e deu meia volta para baixar ao pátio.

     —Não milord, não pode fazê-lo!

     Henry olhou ao soldado que se interpunha em seu caminho.

     —Afasta covarde!

     —Prometeu!

     Não era um homem.

     —Mathilde? O que está…?

     Gritou com honra ao ouvi-la chiar e ver como caía em seus braços, com uma flecha cravada nas costas.

        

     —Quanto tempo mais devemos esperar? —perguntou Roald do alto de seu cavalo olhando ao escocês ao que tinham posto ao mando dos homens que estavam escavando a muralha do castelo.

     —Avança-se muito lentamente com prisioneiros — respondeu o escocês encolhendo-se de ombros.

     —Pois mais vale que terminem logo. Estamos a ponto de atravessar a porta. Diga-lhes que se não terminarem quando eu chegue ali, seus corpos estarão entre os ramos quando colocarmos fogo.

     O escocês assentiu e deu meia volta.

     —Não confio nele — murmurou Roald a Mallemaison, que estava ao seu lado.

     —Eu não confio em nenhum deles — respondeu o mercenário. — Será melhor que consigamos entrar hoje mesmo porque se não, parto. Isto já durou muito.

     —Que mais tem que fazer, além de cobrar as dívidas dos mercadores? Estamos a ponto de consegui-lo e dentro há muito ouro — assegurou Roald pensando uma vez mais nos motivos egoístas de Mallemaison dos que falou Mathilde. O que aconteceria se essa cadela tivesse razão e cometeu um engano ao implicar aquele desumano mercenário em sua luta por fazer valer seus direitos?

     Não, não podia ser e sem dúvida, depois de que ela o atacasse, Mallemaison estaria mais desejoso de derrotar as irmãs e fazer-se com Ecclesford.

     —Não quer se vingar de Mathilde?

     —Não tanto como para pôr em perigo minha vida.

     —Não será necessário. Uma vez que estejamos dentro da muralha, a batalha terá acabado. Essa guarnição não está à altura de nossos homens.

     —O outro dia o esteve.

     —Mas isso era quando tinham a esse bastardo de Henry ao mando, mas agora está morto, estou seguro.

     Mallemaison respondeu com um simples grunhido que não fez nada por aplacar as dúvidas de Roald. Possivelmente não tivesse matado D’Alton, possivelmente só estivesse ferido.

     De repente lhe passou pela cabeça se não teria se equivocado ao rechaçar a oferta de Mathilde.

     A risada de Mallemaison tirou Roald de seus pensamentos.

     —Falharam. Atiraram o breu e falharam os muito tolos. Ficarei — anunciou sem deixar de rir. — Mas só se esses estúpidos terminarem de uma vez com a muralha.

     Roald conteve um suspiro de alívio.

     —Apareceram pelo outro lado do muro! —exclamou um mercenário que ia correndo para eles.

     Mallemaison lançou um juramento e começou a avançar para a muralha.

     Roald, completamente pálido, não o seguiu.

    

     —Meu Deus! —gritou Henry ao tempo que tomava Mathilde em seus braços e a deixava brandamente no chão, esquecendo da dor do ombro. — Me Ajude! —pediu ao soldado que estava mais perto. — me ajude a levantá-la. Tenho que levá-la ao salão.

     Henry não podia fazê-lo sozinho, nem sequer podia ajudar com um só braço, assim chamou um segundo soldado.

     Enquanto a levavam para o interior do castelo, amaldiçoou a si mesmo por não haver se dado conta de que estava ali. Se ela morria… ele também desejaria morrer.

     Mas antes faria que Roald se lamentasse até de ter nascido.

     Foi então quando se deu conta de que seria impossível chegar ao salão com Mathilde. Teriam que atendê-la ali o melhor que pudessem.

     —Voltem aqui — ordenou ao tempo que tirava a tipoia e tentava tirar também o capacete, mas não podia fazê-lo. — me ajude a tirar isto — pediu a um arqueiro, que obedeceu imediatamente e ficou boquiaberto ao ver o rosto enfaixado de Henry. — me tire às ataduras e as utilize para conter o sangue da ferida.

     O arqueiro voltou a obedecer, visivelmente contrariado de ver o estado no que se encontrava o rosto de Henry. Mas não o importava que aspecto tivesse ou o que pensasse aquele moço. Não o importavam suas próprias feridas, quão único importava era Mathilde.

     —Não tirem a flecha — disse aos soldados. — Deixem até que Giselle possa fazer cargo dela.

     Começou a baixa-lá as escadas que conduziam ao pátio.

     —Aonde vai, milord? —perguntou o arqueiro que lhe tinha tirado a bandagem.

     —Matar Roald de Sayres.

        

     Mallemaison se deu conta de que não havia esperança no momento que chegou junto à muralha. Havia muitos soldados de Ecclesford saindo por debaixo; não podiam detê-los a menos que retirassem as escoras e não havia modo de fazê-lo com eles ali.

     Maldito de Sayres. Deveriam ter utilizado aos homens que tinha contratado para escavar a muralha, não aos prisioneiros. Eles o teriam feito muito antes.

     Com um juramento nos lábios, Mallemaison deu meia volta ao cavalo e se afastou do castelo. Ao diabo com de Sayres e com sua herança, se é que era sua realmente. Não ia morrer lutando por ele. Prometeu uma vitória fácil e em lugar disso se encontrava tentando assaltar um castelo bem defendido e lutando contra homens bem preparados.

     Quanto às mulheres, nenhuma valia tanto esforço. Tinha-lhe resultado atraente a ideia de golpear lady Mathilde até que pedisse clemência e logo possuir sua irmã, mas não o suficiente para pôr sua vida em perigo. Quanto a D’Alton, essa puta podia dizer o que quisesse, mas ele sabia que o tinha matado…

     —Mallemaison!

     Olhou a suas costas e se encontrou com um homem que ia direto a ele, apontando-o com a espada.

     Não podia ser. Outro soldado devia haver colocado a armadura de D’Alton. Mas esse cabelo comprido e castanho… esses ombros largos.

     D’Alton estava vivo e ia para ele, disposto a atacá-lo. E sem capacete.

     Apesar da surpresa, Mallemaison reagiu como o perito assassino que era. Agarrou a maça e esperou que o inimigo estivesse o bastante perto para golpeá-lo.

     Quando D’Alton esteve ao seu alcance, levantou a maça e a lançou para ele. D’Alton levantou também a espada, a cadeia da maça se enredou nela e o normando puxou lhe arrebatando a maça das mãos e fazendo-o cair do cavalo.

     Mallemaison demorou um momento em voltar a ficar em pé e sair do assombro. Foi então quando se deu conta de que D’Alton não levava escudo. Todo seu corpo estava desprotegido, igual a sua cabeça.

     Correu para ele espada em mão, mas antes que lançasse o ataque, Henry soltou sua espada e saltou a um lado. Ouviu que alguém gritava seu nome.

     Era Cerdic, rodeado por três homens, um deles um escocês.

     —Toma minha tocha! —disse o saxão lançando a arma a Henry, que a agarrou com a mão que não tinha ferida.

     Ao voltar-se para Mallemaison, viu Cerdic tirar uma adaga do cinturão e rezou em silêncio para que Deus ajudasse seu amigo.

     —Olhe seu formoso rosto todo desfigurado — se mofou o mercenário ao tempo que se aproximava dele.

     —Mesmo assim não sou tão feio como você — respondeu Henry ao tempo que preparava a tocha.

     Mallemaison levantou a espada e, no décimo de segundo que demorou em descer para a cabeça de Henry, ele lançou a tocha com todas suas forças e viu como o fio atravessava a cota de malha e o gibão que protegia o peito do mercenário, que começou a andar para trás com a boca e os olhos muito abertos e o sangue caindo a fervuras.

     Não tinha sido suficiente, pensou Henry ao vê-lo levantar de novo a espada, embora com muito menos força. Deu um salto para trás, um salto que acompanhou com um grito de dor.

     —O pobre moço está ferido — balbuciou Mallemaison indo para ele uma vez mais.

     Henry agarrou a tocha com ambas as mãos esquecendo a dor que sentia e pôde parar o golpe da espada, mas a tocha ficou sem manga. Enquanto Mallemaison se preparava para voltar a atacar, Henry lhe lançou o que ficava da tocha.

     O fio lhe cortou a mão e, com ela, a espada caiu ao chão. Mallemaison gritou de dor.

     Ofegando pelo esforço, Henry se aproximou do mercenário, que caiu ao chão e sangrava sem parar, e lhe tirou a espada.

     —Adiante, me mate! —pediu Mallemaison olhando-o aos olhos. Henry deu um passo atrás. —Faz! —insistiu o assassino com desespero. — me mate!

     O que outra coisa ficava a aquele homem se não podia lutar? Assim como Henry, não tinha nada.

     Henry já não sentia raiva. Segurava a espada de Mallemaison quase sem forças, estava muito cansado para prestar atenção aos homens que lutavam junto a ele.

     Mallemaison o olhou enquanto seu sangue seguia caindo ao chão.

     —Que Deus te perdoe — murmurou Henry dando meia volta… e então viu Roald de Sayres afastando-se de Ecclesford.

     De repente voltou a sentir tal força da ira e voltou a aferrar-se à espada apesar da dor que sentia no ombro e na bochecha. Só desejava matar ao culpado de tudo aquilo. Pôs-se a correr torpemente, cambaleando entre outros homens que seguiam lutando. O ombro doía mais do que jamais tinha acreditado possível, palpitava-lhe o rosto e já não via com o olho direito. Provavelmente havia tornado a deslocar os ossos.

     Mas não importava, só necessitava as forças necessárias para chegar até Roald e castigá-lo pelo que tinha feito a Mathilde.

     Estava esgotado, não podia alcançá-lo… Foi então quando apareceu de um nada o escocês com o que tinha estado lutando Cerdic e agarrou o cavalo de Roald pelas rédeas.

     —Sua causa está perdida — disse o escocês enquanto Henry se aproximava. — Nicholas de Dunkeathe está aqui e eu não penso ficar e enfrentar a seus homens.

     Seu irmão estava ali. Graças a Deus. Agora sim ganhariam e Mathilde estaria a salvo.

     Roald levantou a perna e deu um chute ao escocês.

   —Isso é mentira!

     O escocês não se moveu nem um milímetro.

     —É verdade e, além disso, veio outro exército de Cornualles que leva a bandeira do senhor de Tregellas.

     Merrick? Merrick estava ali também? Henry voltou a dar as graças a Deus com todo seu coração.

     —Mentira! —gritou Roald tentando tirar as rédeas do cavalo ao escocês.

     Mas o escocês foi mais forte e conseguiu tirar Roald do cavalo.

     —Matar-te-ei por isso!

     —Não acredito — respondeu o escocês. — Vou daqui e o mesmo fará o resto dos homens — olhou Henry, que seguia indo para eles. — Me dá vontade de te matar eu mesmo, mas aqui há alguém que tem mais direito a fazê-lo.

     E dizendo isso se afastou dali seguido por outros mercenários.

     —Covardes! Voltem aqui! —Roald baixou o olhar, apanhado como um rato e tremendo de medo.

     —A lealdade não se pode comprar — disse Henry levantando a espada e preparando-se para lutar. — Se renda Roald. Perdeu.

     —Não! — gritou Roald tirando a espada com esforço. — Te matarei!

     Voltou-se para ele com a espada em alto.

     Henry se escondeu concentrado no inimigo e esquecendo a dor e a fadiga. Mas apesar do medo, Roald era um bom lutador e estava muito mais forte que Henry. Henry estava débil, tanto que não pôde fazer frente nem ao primeiro golpe e caiu ao chão sem espada. Tentou levantar-se, mas não pôde.

     A risada de Roald retumbou no ar.

     —É uma lástima que te meteu nisto, Henry. Deve estar muito arrependido.

     —Jamais — disse com todo seu coração.

     A voz de sir Leonard ressonou em sua mente ao tempo que sua mão direita se aferrava a uma pequena pedra. «Utiliza algo que tenha à mão».

     Algo.

     Com a pouca força que ficava Henry levantou a mão e lançou a pedra contra Roald. Deu-lhe em pleno rosto, entre os olhos. Roald caiu ao chão com um grito de dor.

     Henry se arrastou até ele e lhe tirou a espada. Estava convexo de barriga para cima, imóvel. Aproximou-se um pouco mais a ele arrastando o braço esquerdo. Tinha os olhos abertos.

     Graças a Deus, estava morto.

     Henry caiu ao chão, a dor e o cansaço se apoderaram dele deixando-o inconsciente.

 

     —Henry está acordado — disse uma voz doce e suave.

     Parecia Mathilde, mas estava ferida. Recebeu uma flecha. Nas costas.

     Alguém lhe segurava a mão direita.

     —Segue dormido.

     Mathilde outra vez? Tentou falar pronunciar seu nome, mas de seus lábios só saiu um gemido.

     —Deveria seguir descansando, senhores. Superou o perigo, mas as feridas são graves e necessita tempo para recuperar-se. Deveríamos deixá-lo descansar.

     Essa era Giselle.

     —Eu fico — sua formosa, maravilhosa e valente Mathilde. Com uma flecha nas costas.

     Mas… possivelmente não estivesse morta… Deus seria possível? Tentou de novo falar e abrir os olhos.

     —Deveríamos ir então, até que…

     Nicholas? Deus, esse era Nicholas. Aquele escocês não tinha mentido.

     —Mathilde? —conseguiu dizer por fim ao tempo que abria os olhos. O primeiro que viu foi o rosto preocupado de sua amada.

     Estava sentada junto à cama e era sua mão que segurava a sua. A estreitou com as poucas forças que tinha e a viu sorrir. Não parecia estar ferida, nem doente. Parecia contente, feliz e tão vivaz como sempre.

     —Pensei que…

     Apareceram duas pessoas mais frente a ele: seu irmão e Merrick. Não havia tornado a ver Nicholas tão preocupado desde que o esteve por sua querida esposa. Como era habitual, o rosto de Merrick não desvelava emoção alguma, mas Henry o conhecia bem e sabia que também estava preocupado.

     —Como te encontra. Henry? — disse a voz de Giselle antes que ele pudesse vê-la.

     —Melhor — disse com muita dificuldade sem soltar a mão de Mathilde e tentando sorrir. — Pensei que havia… a flecha?

     —Se não tivesse ido vestida de soldado com a cota de malha e o gibão certamente agora não estaria viva — respondeu. — A ponta da flecha não se cravou muito fundo — se ruborizou e Henry a viu mais formosa que nunca. — Temo, meu amor, que desmaiei como uma parva, como se fosse a mulher mais fraca do reino.

     —A mais valente — corrigiu ele enquanto voltava a dar graças a Deus por salvar a vida a sua amada. — Não deveria haver…

     —Tinha medo de que fizesse exatamente o que fez — Mathilde franziu o cenho, mas em seus olhos não havia aborrecimento algum. — Me prometeu não lutar.

     —Sempre foi um parvo e um temerário — disse Nicholas.

     Henry olhou seu irmão e levou a maior surpresa de sua vida ao ver que Nicholas estava sorrindo.

     —Pensei que tal temeridade seria sua perdição ou o levaria a glória. Por sorte, demonstrou-me que tenho motivos para estar orgulhoso dele, e o estou.

     Henry fechou os olhos para que ninguém visse que os tinha cheios de lágrimas. Mas devia admiti-lo ao menos ante si mesmo, emocionava ouvir aquelas palavras da boca de seu irmão; levava toda a vida esperando que Nicholas o elogiasse por algo.

     —Qualquer outro o teria pensado duas vezes antes de meter-se nos assuntos de alguém — disse Merrick — depois da surra que lhe dei quando se meteu nos meus.

     —Graças a Deus não o pensou duas vezes antes de nos ajudar — disse Mathilde, tão insolente como sempre. — Você deveria envergonhar-se pelo que lhe fez.

     —Mathilde! —exclamou Henry.

     —Mas é certo, se você não se intrometesse, como diz ele, Giselle e eu e toda Ecclesford estaríamos à mercê de Roald.

     —Tenho a impressão de que a esta dama importa muito meu irmão — disse Nicholas a Merrick. — Devemos recordá-lo quando nos ganhe.

     Henry olhou Mathilde. Teria se atrevido a criticar Nicholas, que não aceitava críticas de ninguém?

     —Disse a seu irmão que deveria haver-se encarregado de que entrasse a trabalhar ao serviço de algum senhor que te pagasse como merece, em lugar de deixar que fosse de um lado a outro como um trovador.

     Parecia que sim o tinha feito. Poderia haver no mundo uma mulher mais incrível?

     E, entretanto devia perdê-la.

     Deus devia estar castigando-o por sua vaidade e todos quão pecados tinha cometido. Quando por fim encontrava uma mulher a que amava de verdade, ficava desfigurado e completamente inútil.

     —Segundo lady Mathilde descuidei por completo minhas obrigações como irmão e deveria estar envergonhado — disse Nicholas, mas, para surpresa de Henry não havia o menor sinal de aborrecimento em sua voz nem em seu rosto. — Quando se puser bem, terei que remediar a situação ou temo que caia sobre mim a ira desta dama —acrescentou com um sorriso.

     Em qualquer outro momento, Henry teria rechaçado a ajuda de seu irmão, agora além não serviria de nada porque ele já não poderia dar o menor serviço a nenhum senhor.

     —E Ranulf e Cerdic?

     —Estão bem — respondeu Mathilde.

     —A história da defesa de Ecclesford logo formará parte das lendas dos trovadores — disse Nicholas com orgulho. — O valente sir Henry se levanta do leito de morte para derrotar ao demoníaco Charles De Mallemaison e ao malvado Roald de Sayres.

     Uma vez morto Roald, a disputa por Ecclesford acabou. Henry poderia consolar-se pensando nisso nos largos dias de solidão que o esperavam.

     —Cavalheiros, agora deveriam partir — disse Giselle com amabilidade, mas com firmeza — Henry, deve descansar. Já poderão falar com ele manhã.

     Nicholas e Merrick estavam acostumados a dar ordens não às acatar. Entretanto ambos assentiram obedientemente e saíram da estadia.

     Henry seguiu sem soltar a mão de Mathilde com a esperança de que ela ficasse um pouco mais. Muito em breve teria que deixá-la, mas até então, queria desfrutar de sua presença.

     Giselle olhou sua irmã como se quisesse pedir que saísse também, mas sabia que não serviria de nada. Finalmente foi para a porta e saiu da estadia.

     Uma vez a sós, Mathilde lhe retirou uma mecha de cabelo do rosto.

     —Dorme meu amor. Eu estarei aqui quando despertar.

     O certo era que estava esgotado, mas antes queria fazer algumas perguntas.

     —Quanto tempo faz que Roald…?

     —Cinco dias. Quando o trouxeram, Giselle te deu uma medicina para que dormisse. Teve sorte de não morrer. Por que se uniu à batalha, Henry? Especialmente depois de me haver prometido que não o faria.

     —Pensei que a mataram.

     —Mas não o fizeram e se tivesse morrido… — afastou o olhar com dor.

     Henry não tinha tido intenção de machucá-la, nem de fazê-la sofrer. Por isso devia deixá-la livre, para que pudesse encontrar um homem melhor para ela, alguém que estivesse a sua altura.

     —Teria querido morrer se tivesse morrido! —sussurrou Mathilde.

     Soltou-lhe a mão para poder lhe acariciar o rosto.

     —Então me alegro de não ter morrido.

     Ela sorriu com os olhos brilhantes.

     —Obrigado por vir, Henry — sussurrou lhe dando um beijo na bochecha. — Obrigado por nos ajudar.

     Aquelas palavras que disse com voz tremente estiveram a ponto de fazer que se tornasse atrás. Não podia suportar tê-la tão perto e ouvi-la dizer essas coisas.

     Fechou os olhos com a intenção de fingir que dormia, mas estava tão cansado que não demorou em ficar adormecido de verdade.

        

     Quando voltou a despertar encontrou Ranulf no lugar de Mathilde. Seu amigo sorriu, por uma vez, sem um ápice de brincadeira.

     —Mandei sua enfermeira que comesse um pouco — disse antes que Henry pudesse falar. — Ela também precisa descansar e não o fará a menos que a obriguemos. Essa flecha fez algo mais que um arranhão. Não foi muito grave — acrescentou em seguida ao ver o gesto de preocupação de Henry. — Mas se forçar muito, poderia demorar mais em recuperar de tudo e poderia ficar cicatriz.

     Henry respirou fundo.

     —A verdade é que eu não vejo a diversão a ver dormir a um homem — comentou Ranulf brincando.

     —Sobre tudo com este rosto — acrescentou Henry.

     Ranulf franziu o cenho.

     —Certamente é uma boa ferida, mas a alternativa era morrer, assim deveria dar graças a Deus por te salvar a vida.

     Que vida teria depois daquilo?

     —Quero ver meu rosto.

     Ao ver que seu amigo não fazia nada, Henry levou as mãos ao rosto e começou a retirar a bandagem.

     —Deixa que o eu faça — disse Ranulf com resignação. — Ou acabará te fazendo mais mal.

     A Henry não importava. Observou o rosto de seu amigo para ver como reagia ao vê-lo. Possivelmente já o tivesse visto antes, porque não pareceu impressioná-lo o mínimo.

     Depois de deixar as ataduras sobre a mesa, Ranulf levou o espelho de prata.

     —Tenha em conta que isto distorce um pouco o que vê.

     Henry assentiu e conteve a respiração enquanto seu amigo levantava o espelho.

     Era como se tivesse o lado direito do rosto de argila e tivesse ficado moldado para sempre pelo golpe da maça. Seguia arroxeado e o corte da sobrancelha coberto por uma crosta.

     Afastou o cacho. O bonito Henry já não era bonito. Seria um milagre se alguma mulher conseguisse olhá-lo no rosto sem estremecer.

     —A Mathilde não importa — disse Ranulf.

     Como não teria que lhe importar? Era tão monstruoso como Mallemaison.

     —Meu braço… não poderei voltar jamais para segurar um escudo.

     —Não — admitiu seu amigo. — Temo que seus dias de guerreiro chegaram a seu fim.

     Aquela era a pura verdade e ambos sabiam.

     —É difícil?

     —Renunciar a lutar? —perguntou Ranulf, confundido. — Devo confessar que se alguém me dissesse que não ia voltar a participar de uma batalha, estaria muito agradecido. Tinha esquecido quão horrível era… a morte, o sangue, o ruído. Henry em certo modo, invejo-te.

     Mas isso era para quão único servia ele.

     —Não é isso ao que me referia. É difícil esquecer à mulher que amas?

     Ranulf o olhou sem acreditar no que ouvia, como se Henry houvesse dito uma completa estupidez.

     —Acredita que Mathilde não o quererá a seu lado? Pelo amor de Deus, deveria conhecê-la melhor a estas alturas.

     —O que posso oferecer? —respondeu Henry com desespero. — Que dama quer por marido alguém com este aspecto?

     —Feriram-lhe lutando por isso. Isso faz que te ame ainda mais.

     —Não quero que se case comigo por lástima ou por gratidão.

     —Então crê que deveria deixá-la livre para que possa casar-se com alguém melhor?

     Resultava muito duro ouvir dizê-lo tão claramente.

     —Sim.

     —E suponho que sendo tão vaidoso, cabeça dura e arrogante como é, não fará caso do que te diga ninguém.

     Como poderia ser vaidoso com esse aspecto? Como poderia ser arrogante agora que já não poderia voltar a lutar?

     Ranulf ficou em pé.

     —Não sou nenhum perito em mulheres e as poucas vezes que tentei te dar um conselho o rechaçou, assim não vou dizer-te o que deve fazer. Só te direi que acredito que te equivoca.

     —Não me equivoco — assegurou Henry. — Mas me alegro que não vai discutir comigo —mas havia algo que precisava perguntar embora para isso tivesse que falar de algo do que a seu amigo não gostava de falar. — Quanto tempo demorou a esquecer à mulher que amava?

     Ranulf o olhou com tristeza.

     —Quem diz que a esqueci?

     Abriu-se a porta e apareceu Mathilde com uma bandeja nas mãos.

     —Espero que tenha comido algo, milady — disse Ranulf.

     —Sim, obrigado — Mathilde foi direto à cama sem deixar de olhar Henry. — Dói muito, meu amor?

     Henry negou com a cabeça e sorriu, mas não como antes.

   —Deixarei vocês sozinhos — disse Ranulf.

     Antes de sair se voltou para olhar seu amigo, em outro tempo o homem mais bonito da corte, e à mulher que o olhava como se seguisse tendo o rosto de um anjo.

        

     Esse mesmo dia, Mathilde recolheu as bandagens sujas de um soldado ferido depois de cuidar de Henry, acostumou-se a ver sangue e já não a afetava o aroma, por isso se devotou a ajudar Giselle com os feridos.

     O irmão de Henry aceitou ficar uns dias, embora estivesse desejoso de voltar junto a sua esposa, a que era evidente que a queria muito, pois lhe iluminavam os olhos cada vez que falava dela. Lorde Merrick tinha intenção de partir à manhã seguinte; sua mulher estava grávida de seu primeiro filho e ele não queria estar fora de casa muito tempo. Também lhe brilhavam os olhos quando falava de sua amada.

     Ranulf voltaria para Tregellas duas semanas depois, uma vez que tivessem acabado as reparações da porta e da muralha. Mathilde disse que ali era mais que bem-vindo se desejasse ficar, mas era óbvio que tinha muita vontade de voltar para Tregellas, assim Mathilde não insistiu.

     Giselle estava tão contente com a ideia de estar grávida e a ponto de casar-se com Cerdic, que não parava de sorrir nem um momento, e Mathilde ainda não compreendia como podia estar tão distraída para não dar-se conta do que estava passando entre sua irmã e seu amigo. Agora, cada vez que os via, lhe enchiam os olhos de lágrimas de alegria.

     Mas nem tudo era perfeito. Mathilde seguia sonhando frequentemente que Roald e Mallemaison a atacavam, mas ao menos agora, quando despertava suando e morta de medo podia pensar em Henry e o medo desaparecia. Qualquer preocupação se desvanecia quando pensava no futuro que a esperava junto a ele. As risadas, o amor, o desejo e, se tinham sorte, filhos que tivessem seu sorriso e seus formosos traços.

     —Milady, poderia falar um momento com você?

     —É obvio — respondeu Mathilde ao ver o gesto de preocupação de Ranulf. Conduziu-o a um rincão do salão onde estariam mais tranquilos.

     —Trata-se de Henry.

     —De Henry? —perguntou com um nó na garganta. Deu meia volta para correr a sua estadia, mas Ranulf a agarrou pelo braço.

     —Não é por suas feridas… Tem a estúpida ideia de que se você se casar com ele, fará só por lástima ou por gratidão. Pessoalmente acredito que você tem outros motivos…

     —Claro que os tenho! —exclamou, horrorizada de que Henry pudesse pensar algo assim. — É obvio que me sinto agradecida, mas o amor que sinto por ele é muito maior que isso.

     —Isso penso — murmurou com um sorriso. — Mas temo que eu sou incapaz de fazê-lo ver.

     —Então terei que fazê-lo eu — afirmou Mathilde pondo-se a andar para a escada que conduzia aos quartos como um general que se dirigia à batalha.

     —Estou seguro de que o fará — respondeu ele rindo…

     Mas então pensou em Beatrice e suspirou.

        

     A chegada de Mathilde o tirou de seus melancólicos pensamentos. Henry conseguiu sorrir, levantando mais um lado da boca que o outro; assim seria como sorriria sempre.

     Mathilde cruzou a estadia e ficou frente à cama, olhando-o com gesto desafiante.

     —Henry, já não me ama?

     Henry se moveu com desconforto na cama. A que vinha essa atitude? Não podia ser que Ranulf… Sim! Esse traidor.

     —Pensei que não te importava o que me fez Roald.

     Como podia pensar isso?

     —E não me importa! —protestou ao tempo que se incorporava na cama. — Não foi tua culpa.

     —Ranulf diz que já não quer se casar comigo. Por que não?

     Maldito Ranulf.

     —Não te há dito por quê?

     —Mencionou não sei que tolice sobre suas feridas, mas estou segura de que você me conhece muito para pensar algo assim. Ao menos isso acreditava Henry. Como se me importasse que não pudesse voltar a lutar! Em realidade, é um tremendo alívio saber que não poderá fazê-lo depois de que rompesse a promessa de não participar da batalha.

     Henry a olhou, estupefato.

     —Mas sou um cavalheiro! Se não puder lutar, não sou nada.

     Mathilde lançou um olhar em que não havia nem um ápice de compreensão.

     —Esse sir Leonard do que tanto fala luta frequentemente?

     —Não… mas não estamos falando dele.

     —Diria que ele não é nada? Que é um inútil por não lutar?

     —Não, mas…

     —E quem idealizou a defesa do castelo? Não foi você?

     —Mathilde, isso não é…

     —Quem foi o que deu forças aos homens para lutar com apenas aparecer nas ameias? Quem nos levou a vitória?

     —Ranulf e Cerdic…

     —Eles receberam suas ordens. Igual nossos homens. Todos eles o fizeram porque sabiam que o que lhes dizia estava certo. Acaso crê que sua única virtude é seu rosto? Ou o braço com o que segura o escudo? Pois não é assim! O melhor que tem é essa mente tão brilhante e isso não recebeu nenhum dano. Suas lesões não o incapacitam para dirigir uma propriedade e preparar sua defesa quando for necessário. Suas feridas não fazem que seja menos homem… porque se for assim, terei que acreditar que o que me fez Roald me faz menos digna de ti e de seu amor.

     Henry não acreditava em nada semelhante nem acreditaria nunca.

     —Não é o mesmo.

     —Por que não? Por que é um homem? —perguntou com os olhos brilhantes. — Acaso crê que sou parva depois de tudo? Pensa que sou tão estúpida para não saber se um homem merece ou não meu amor e meu respeito? Ou me crê tão orgulhosa e altiva para desprezar ao homem que salvou minha casa e tudo o que quero só porque está ferido? Não deve me querer se for capaz de pensar algo assim!

     —Mathilde — suplicou ele.

     Mas ela continuou sem fazer o menor caso.

     —Crê que não pode te casar comigo por que não tem dinheiro? Então acreditará também que Cerdic não merece casar-se com Giselle?

     Henry se sentia apanhado em um torvelinho, um torvelinho apaixonado e maravilhoso que começava a lhe fazer acreditar que tinha motivos para albergar esperanças.

     —Cerdic vai casar-se com Giselle?

     —Sim, e muito em breve porque espera um filho seu — Mathilde observou a surpresa em seu rosto. — Não deve ser tão inteligente se não te deu conta disso. Parece ser que Cerdic era tão estupidamente orgulhoso como você; disse a Giselle que não era digno dela. Mas minha irmã resolveu a situação de um modo admirável e conseguiu que Cerdic aceitasse casar-se com ela… como deveria havê-lo feito nada mais dar-se conta de que estavam apaixonados um pelo outro. Assim, embora não tem terras nem dinheiro, e tomou a minha irmã sem estar casados estou encantada de que vá ser meu cunhado. É tão arrogante para rechaçar você o amor que te ofereço?

     Antes que pudesse tentar explicar-se, viu como se suavizava a expressão de seu rosto e se ajoelhava junto à cama.

     —Porque eu te amo, Henry, com todo meu coração e me romperá o coração se me deixa — tinha os olhos cheios de lágrimas. — Suponho que poderia aceitar o conselho do bispo e entrar em um convento, mas seria a monja mais desgraçada do mundo. É esse o destino que queria para mim quando lutou contra Roald?

   —Deus, Mathilde — disse agarrando-a com o braço bom e a puxando para si. — Só penso em ti, não pode te atar a um homem como eu.

     Ela se afastou e o olhou.

     —Não, Henry, não está pensando em mim. Como pode pensar sequer em me deixar sabendo que com isso me romperia o coração? Quero me casar contigo e não porque sinta lástima por ti, nem por gratidão, embora esteja agradecida por tudo o que tem feito e pelo que me faz sentir. Admiro-te mais do que nunca admirei a ninguém e te respeito. É inteligente, valente… às vezes muito. Faz-me rir. Devolveu-me a alegria e a esperança — acariciou os lábios brandamente com a gema do dedo. — Fez que voltasse a sentir desejo, Henry. Amo-te tal como é e sempre te amarei, aconteça o que acontecer — Mathilde esboçou um sorriso tremente e tímido. — depois de tudo, eu tampouco sou nenhuma beleza. E sou muito insolente. Entretanto acredito que você me deseja apesar de ser como sou. Não me equivoco, verdade?

     Como poderia não acreditar o que dizia vendo o amor que havia em seus olhos?

     Uma felicidade que jamais havia sentido substituiu ao desespero.

     —Tenho a sensação de que, diga o que diga, encontrará o modo de te casar comigo — disse rindo e estreitando-a em seus braços. — Assim certamente o melhor seja evitar que idealize nenhum plano. Lady Mathilde de Ecclesford, far-me-ia a grande honra de ser minha esposa?

     Mathilde sorriu com satisfação e alegria.

     —Sim, Sir Henry.

     —Embora — sussurrou ao tempo que lhe beijava a bochecha— pergunto-me o que te teria ocorrido fazer se não lhe tivesse pedido isso.

     Mathilde se pôs a rir e tomou o rosto entre as mãos.

     —Não teria me rendido até te fazer meu.

     —Graças a Deus já sou teu, para sempre — disse ele com um sorriso e olhando-a aos olhos.

     —Igual é seu meu coração — respondeu ela com um beijo.

 

     As bodas das damas de Ecclesford, fiscalizadas pelo bispo Christophus, a pedido do rígido senhor de Dunkeathe e do triste senhor de Tregellas, tiveram lugar no Natal desse mesmo ano. O rei e a rainha deram seu consentimento, apesar de que não era habitual que um soldado sem terras se convertesse em senhor de uma propriedade importante como Ecclesford. Resultou de ajuda para os jovens amantes que o irmão de sir Henry e o senhor de Tregellas apoiassem o matrimônio com verdadeiro entusiasmo. E, como disse a rainha a seu marido, era melhor ter contentes a cavalheiros tão empreendedores em lugar de tê-los como inimigos.

   Ao longo dos anos, houve muitas mulheres que, ao ver o marido de lady Mathilde, sentiram lástima por ela. Ela tampouco era nenhuma beleza, mas parecia um castigo ter que casar-se com alguém desfigurado. Outras as que tinham conhecido sir Henry em sua juventude, lamentavam que o destino o tivesse convertido em objeto de asco e se maravilhavam de que seguisse brincando como se nada tivesse alterado seu aspecto. Quão nobres frequentemente corriam o risco de sofrer feridas parecidas não sentiam asco algum ao ver o rosto deformado de sir Henry e lhes impressionava muito mais a defesa de Ecclesford contra um exército de mercenários liderado por Charles De Mallemaison. Mais de um se aproximava para lhe perguntar se podia ensinar seus filhos e ficavam depois tão satisfeitos do resultado, que a fama de sir Henry superou a do reputado sir Leonard de Brissy.

     Aqueles que conheciam melhor sir Henry e lady Mathilde sabiam que o casal tinha algo que poucos possuíam: um amor que ia além da aparência exterior, um vínculo que só a morte poderia romper. E à medida que passaram os anos, fez-se evidente inclusive para os mais descrentes que em lugar de sentir lástima da dama ou de seu marido, deviam invejá-los.

 

 

                                                                  Margaret Moore

 

 

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