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A DAMA DO FALCÃO - P.2 / Marion Zimmer Bradley
A DAMA DO FALCÃO - P.2 / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DO FALCÃO

Segunda Parte

 

O serviço noturno do Solstício do Inverno em São Valentim das Neves era famoso pelas Hellers; pessoas vinham de todas as partes para ouvir o canto em Nevarsin. Romilly já ouvira parte da música antes, mas nunca tão bem cantada; teria apreciado ainda mais o serviço se não estivesse tão perturbada pela preocupação óbvia de Orain. Ele insistiu que sentassem no fundo; e quando ela perguntou onde Dom Cario se encontrava e por que não comparecera ao serviço, Orain fechou a cara e recusou-se a responder. Ele também advertira Alaric a não entrar na capela. Mas quase ao final do serviço, quando houve um hiato momentâneo, ele sussurrou para Romilly:

— Ainda não há sinal de Lyondri Hastur. Talvez tenhamos sorte. — O rosto se contraindo, Orain acrescentou: — Teríamos mais sorte ainda se ele caísse de algum penhasco e jamais chegasse a Nevarsin! E como Caryl dissera, alguma magia com o tempo fora realizada. Nunca imaginei que o tempo pudesse melhorar tão depressa.

Ela viu Caryl, exuberante, na primeira fila do coro, a boca se abrindo como um pássaro enquanto cantava; parecia a Romilly que sua voz se elevava acima de todo o coro. Talvez não houvesse problemas se Dom Cario estivesse presente, exceto pelo temor de Orain. O homem alto e magro dava a impressão de que não conseguia ficar imóvel por muito mais tempo, e assim que o serviço terminou ele se levantou e se encaminhou para a porta da capela. Foi para o estábulo com ela e ocupou as mãos na inspeção dos pássaros-sentinelas. Romilly ficou contrariada... Orain pensava que ela não era capaz de cuidar direito dos pássaros? Mais tarde soube o que ele procurava, o motivo pelo qual providenciara para que tudo ficasse perto, a fim de poderem recolher tudo depressa e partir de um momento para outro. Naquele instante, porém, sentiu-se apenas exasperada e imaginou se Orain ainda estava bêbado ou pensava que ela é que estava embriagada demais para cuidar corretamente dos pássaros. Ele também verificou os chervines e cavalos, levantando cada casco, ajeitando mantas e selas, até que Romilly pensou que ia gritar de nervosismo por tanta agitação. Ou ele permanecia ali para descobrir se Lyondri Hastur já chegara ao mosteiro? Mas Orain finalmente suspirou e virou-se.

— Um bom Festival para você, rapaz. — Ele deu um abraço rude em Romilly. — Se estiver muito frio aqui no estábulo, pode dormir na cama de Dom Cario. Ninguém perceberá a diferença...

— Acho que é melhor eu ficar perto dos pássaros — murmurou Romilly, evitando seu olhar.

Não que não confiasse em Orain, exatamente; vivera no acampamento entre os homens e se seu verdadeiro sexo ainda não fora descoberto era improvável que isso acontecesse agora, mesmo que partilhassem um quarto. Mas se ele descobrisse... Romilly ficou trêmula e abalada ao pensar nessa possibilidade. Orain não era um cristoforo e não se sentiria reprimido pelo Credo da Castidade. Durante toda sua vida ouvira muitas histórias sobre a depravação dos homens das terras baixas. Mas, de alguma forma, não podia imaginar que ele tentasse se impor a ela. Ainda assim, ficava contrafeita ao contato de Orain e desvencilhou-se tão depressa quanto pôde, recordando o sonho que tivera...no sonho em que ele a abraçara e acariciara, como se ela fosse a mulher que não sabia que era...

Romilly afundou no feno, ainda um pouco tonta do vinho que tomara, e não demorou a dormir. Sonhou, como já sonhara antes, que voava com asas de falcão ou pássaro-sentinela, que alguém voava a seu lado, que lhe falava com a voz de Orain, que a acariciava... afundou no sonho, jamais pensando em resistir...

Despertou abruptamente na semi-escuridão, ouvindo o clamor de sinos... seria alguma advertência dos monges cristoforo para o Festival? Ela sentou para deparar com Orain, branco como a morte, parado na porta do pequeno cômodo.

— Rumai! Dom Cario está com você? Este não é o momento para o recato...

— Dom Cario? Há dias que não o vejo! O que está querendo dizer, Orain?

— Houve uma ocasião... não, vejo que nem mesmo entende o que estou querendo dizer. Maldição! — Ele cambaleou, encostou-se na parede. — Eu esperava contra toda a esperança... não é possível que ele tenha sido capturado! Que Aldones permita que ele tenha sido avisado a tempo e conseguido escapar... escute!

Orain gesticulou e Romilly tornou a ouvir o repicar dos sinos de alarme.

— Fomos traídos, alguém o reconheceu, ou a mim... eu sabia que ele não deveria se arriscar a descer até lá hoje! — Orain bateu com o punho na parede. — Levante-se depressa, rapaz, e procure na casa de hóspedes! Eles sabem que onde eu estou, Carolin... ou seus homens... não podem estar muito longe! O Padre Mestre pode não violar o santuário, mas não confio em Lorde Hastur para respeitá-lo, ainda mais se o Senhor da Luz surgiu diante do seu nariz e deu uma ordem...

Orain estava completamente sóbrio agora; parecia doente e angustiado, o rosto encovado, mas os olhos brilhavam de raiva.

— Aquele menino de Lyondri... acha que ele falou com os colegas? O filho de Lyondri... tal cão, tal filhote! Eu seria capaz de passar o menino por minha adaga e acharia o mundo um lugar mais seguro se o filhote não crescesse para se tornar como seu abominável pai!

Romilly encolheu-se e Orain amarrou a cara.

— Não, creio que eu não faria mal a um menino, mesmo sendo o filho de Lyondri... Ponha as botas, rapaz! Precisamos sair daqui às pressas, sair da cidade... Se formos apanhados, nossas vidas não valerão nada! Vá e chame... não, pode deixar que avisarei Alaric e os outros! Apronte os cavalos!

Subitamente Romilly teve a impressão de que o rosto de Dom Cario flutuava no ar à sua frente... Mas ele não estava ali! Ainda assim, parecia que podia ouvi-lo dizer: Pegue os pássaros, atravesse o mosteiro até o portão mais alto, até a passagem secreta por cima das celas ocultas na geleira.

— Depressa, rapaz! — gritou Orain. — O que está olhando desse jeito?

A voz trêmula, Romilly repetiu as palavras de Dom Cario.

— le estava aqui, pude ouvi-lo; sua própria voz...

— Sonhos!

Orain sacudiu a cabeça impaciente e Romilly teve a sensação de que a voz de Cario soava em sua mente: Diga a ele para se lembrar de um certo cinto de couro vermelho pelo qual brigamos e ensangüentamos o nariz um do outro. Ela pegou a manga de Orain no momento em que ele se virava para sair.

— Juro, Orain, que ouvi Dom Cario... Alguma coisa sobre um cinto de couro vermelho pelo qual vocês ensangüentaram o nariz um do outro.

Orain piscou, aturdido. Fez um gesto rápido, supersticioso, antes de dizer:

— Você tem laran, não? Foi o que pensei. Esse cinto era uma brincadeira entre nós por alguns anos. Vou chamar os homens. Apronte tudo o mais depressa possível.

Romilly descobriu que suas mãos estavam firmes ao selar os animais, vestir o manto que ganhara de presente de Orain — grata pelo forro de pele — e encher dois alforjes com grãos e forragem para os animais de montaria e outro com o alimento fétido para os pássaros-sentinelas. Encapuzou-os — seria impossível mexer com eles daquele jeito no meio da noite sem despertar todo o mosteiro, mas encapuzados, pelo menos ficariam quietos — e prendeu um poleiro em sua sela e outro na de Orain, ajeitou o terceiro pássaro no chervine de Alaric. E pouco depois levantou os olhos para deparar com Alaric trabalhando a seu lado.

— Algum miserável nos traiu! — ele disse, a voz trêmula, escutando o clamor distante dos sinos... que agora se aproximava mais e mais. — Estão revistando a cidade, casa por casa, quando chegarem ao mosteiro vão verificar em cada buraco, as celas dos monges, até mesmo a capela! Qual é a situação, rapaz? Você está a par das decisões de Orain... vamos sair em disparada pelos portões?

— Não estou a par das decisões de ninguém — respondeu Romilly. — Mas ouvi falar de um portão secreto, na parte mais alta...

— E enquanto perdemos tempo à procura de caminhos secretos, os homens de Lyondri nos descobrem e eu danço na ponta de uma corda? — indagou Alaric.

— Não acredito que Dom Cario nos abandone assim — protestou Romilly, com firmeza. — Confie nele.

— Acontece que o vai dom é um Hastur e, no final das contas, o sangue é mais grosso do que o vinho, como costumam dizer...

— Alaric! — Romilly fitou-o, tão chocada que mal podia falar. Demorou um pouco para recuperar o controle e dizer: — Não pode acreditar que Cario ficaria do lado de Lorde Hastur contra... ora, contra nós e Orain...

— Não contra Orain — concordou ele. — Mas como posso ter certeza? Provavelmente você também é um deles...

Alaric deixou a insinuação no ar, indeciso.

— Termine de aprontar os animais e não diga mais bobagem! — ordenou Romilly bruscamente. — Quer me ajudar com este saco de grãos? Não consigo levantá-lo sozinho...

Ele ajudou-a a pôr o pesado saco no lombo do chervine e depois deixou o estábulo com o animal. Uma mão agarrou o pulso de Romilly, apertando com força. Ela já ia gritar, mas reconheceu, sem saber como, a pressão de Orain, mesmo no escuro.

— Por aqui — ele sussurrou.

Conhecendo sua voz, mesmo no sussurro abafado, Romilly relaxou e deixou que ele a conduzisse pela passagem escura. Ouviu os outros, tentando se esgueirar sem barulho, apenas pequenos rangidos e murmúrios. Alguém bateu com a ponta do pé na parede rochosa e praguejou baixinho. E no instante seguinte ela ouviu uma voz infantil:

— Milorde Orain...

— Ah, é você, filhote do demônio...

Caryl gritou, um guincho abafado.

— Não estou querendo lhe fazer mal... — ele balbuciou, ofegante. Romilly não podia ver no escuro, mas sentiu, pela aflição na voz do menino, que Orain o agarrara brutalmente.

— Eu só queria... guiá-lo pela passagem secreta... Não quero que meu pai descubra... descubra o vai dom... ele ficará zangado, mas...

— Largue-o, Orain — murmurou Romilly. — Ele está dizendo a verdade.

— Está certo... confiarei em seu laran, rapaz.

Ela ouviu um pequeno suspiro de alívio quando Orain soltou o menino. E depois de um momento, ele acrescentou:

— Conhece uma passagem secreta? Pois então nos leve. Mas se estiver mentindo... Criança ou não, vai conhecer minha adaga.

Continuaram pela passagem estreita, aglomerados, esbarrando-se, os pássaros-sentinelas soltando guinchos inquietos na escuridão. Alguém praguejou baixinho e Romilly viu o brilho de pederneira contra aço, mas Orain ordenou rispidamente:

— Apague isso!

A luz desapareceu, com alguém resmungando e praguejando.

— Silêncio! — disse Alaric.

Não houve mais qualquer som, além dos ruídos apreensivos dos animais na estreita passagem de pedra. Houve um trecho que tiveram de atravessar um a um e um dos chervines carregados ficou entalado. Alaric e outro homem tiveram de descarregar o animal, às pressas, praguejando em sussurros, enquanto levantavam e empurravam. Mais adiante chegaram a um trecho em que o ar era sufocante, como se saísse do centro sulfuroso da Terra. Nem mesmo Romilly foi capaz de reprimir a tosse. Caryl murmurou:

— Sinto muito... este trecho é pequeno, mas precisam tomar cuidado com os passos aqui, há muitos buracos e fendas, alguém pode quebrar a perna.

Romilly tateava pelo caminho no escuro, arrastando os pés lentamente, devido à possibilidade de pisar em alguma fenda invisível. Finalmente todos passaram e houve uma lufada de ar gelado da geleira e um pouco de vento; estavam a céu aberto, sob a luz das estrelas. A face pálida de uma única lua, a pequena Mormallor, cor de pérola, pairava um pouco acima do pico, a claridade mal conseguindo iluminar um pouco a escuridão; e por baixo havia o gelo pálido e escorregadio.

— Ninguém usa esse caminho — sussurrou Caryl —, exceto alguns irmãos, que praticam seu controle sobre as provações vivendo aqui, nus; e mesmo que descobrissem a presença de vocês aqui, não saberiam quem são nem se importariam com isso. Pensam apenas nas coisas dos reinos celestiais, nunca em reis e guerras. Mas devem tomar muito cuidado... há perigos...

— Que perigos? — indagou Alaric, agarrando-o pela garganta. Caryl gemeu baixinho, mas não gritou.

— Não perigos do homem — explicou ele. — Os pássaros-espíritos vivem aqui. Nossos irmãos têm um pacto com eles. Dizem que foi um acordo feito por São Valentim das Neves, quando pregou para eles e chamou-os de pequenos irmãos de Deus...

— Levou-nos para um ninho de pássaros-espíritos, filhote do demônio? — perguntou Alaric.

Orain interveio:

— Largue-o, homem! Toque outra vez nesse menino e lhe darei uma lição que nunca mais esquecerá! A presença dos pássaros-espíritos não é culpa dele, achou que devia nos avisar, o que é mais do que o Padre Mestre julgou que devia fazer!

— Não ponha mais as mãos no menino, Alaric! — ordenou uma nova voz. — Está louco?

Dom Cario surgiu entre eles. Romilly não viu de onde ele saíra; apenas apareceu de repente. Mais tarde ela concluiu que Dom Cario devia ter vindo por outra passagem ou túnel secreto, mas no momento foi como se aparecesse num passe de mágica. Caryl soltou um pequeno grito de surpresa. Os olhos de Romilly estavam se ajustando à escuridão agora e ela pôde ver o rosto do menino. Ele estendeu os braços para Dom Cario para um abraço de parente, murmurando:

— Tio, estou contente por vê-lo são e salvo.

— Meu coração se alegra por saber que não é meu inimigo — disse Cario, não como se falasse a um menino, mas a outro nobre, seu igual em posição e idade. Ele beijou as faces de Caryl. — Ande na Luz, rapaz, até nos encontrarmos de novo.

— Vai dom... — A voz estridente de Caryl tremeu subitamente. — Sou seu amigo, não seu inimigo. Mas, eu lhe suplico, se meu pai cair em suas mãos, poupe-o, por mim.

Dom Cario pôs as mãos nos ombros do menino, gentilmente.

— Eu gostaria de poder lhe prometer isso, filho. Juro uma coisa, pelo Senhor da Luz, a quem eu sirvo, como você serve ao Portador dos Fardos: não lutarei com Lyondri enquanto ele não lutar comigo. Quanto ao resto, torço com toda a força do meu coração para que Lyondri permaneça longe de mim; eu lhe desejo muito menos mal do que ele me deseja. Ele já foi meu amigo e a desavença não foi culpa minha. — Dom Cario tomou a beijar Caryl e soltou-o. — E agora volte para a cama, criança, antes que seu pai saiba que saiu esta noite ou o Padre Mestre procure puni-lo. Que os Deuses o acompanhem, chiyu.

— E a você também, milorde.

Caryl virou-se e começou a voltar para a entrada escura da passagem secreta. Foi nesse instante que Alaric passou o braço por sua cintura. Ele debateu-se, mas um golpe rápido de Alaric fê-lo cair inerte, com um pequeno suspiro.

— Estão loucos, vai dom'yn? — perguntou Alaric. — O filho de Lyondri está em nossas mãos como refém e o deixam escapar livre? Com este filhote em nossas mãos podemos negociar a saída das próprias garras de Rakhal, para não falar da segurança contra Lyondri Hastur!

— E você o recompensa assim por nos guiar para a segurança? — protestou Romilly, indignada.

Mas Alaric exibia uma expressão dura e determinada.

— Você é um tolo, rapaz. E os milordes também, se me perdoam — ele acrescentou para Orain e Dom Cario. — O menino pode ter nos conduzido honestamente — quem desconfiaria de um pequeno com rosto de anjo como este? Mas seus superiores têm laran... Mesmo que o menino não nos queira qualquer mal, como podemos saber que eles não nos seguirão através de seu laran? Não farei mal a um único fio de seus cabelos, mas ele fica conosco até estarmos a salvo da geleira e dos homens de Lyondri! Podemos deixá-lo em Caer Donn ou algum outro lugar!

— Se você o machucou... — murmurou Dom Cario, com uma suave ameaça.

Romilly torceu para que a ira daquele homem nunca se virasse contra ela. Dom Cario sentiu a testa do menino, antes de acrescentar:

— Eu não recompensaria assim a lealdade de uma criança! Mas não podemos deixá-lo aqui, inconsciente, para morrer no frio. Leve-o com você, se precisa; não podemos atrasar a partida à espera de que ele se recupere. Conversaremos sobre isso mais tarde, Alaric.

Ele virou as costas ao homem, chamou Romilly e disse:

— Ponha o menino num cavalo. E você, Rumai, monte atrás, pois ele não poderá se manter na sela como está agora; e não me agrada amarrá-lo, como um prisioneiro. E agora vamos embora. Depressa!

O corpo inconsciente e inerte de Caryl foi levantado para a sela e Romilly, montando atrás, teve de se esforçar ao máximo para evitar que ele caísse, na irregular e gelada trilha. Subiram e subiram em silêncio, sem qualquer som além dos gritos abafados e inquietos dos pássaros-sentinelas encapuzados. Cavalgando no escuro, segurando Caryl, pequeno e inerte, Romilly pensou em Rael dormindo em seu ombro; e sentiu saudades do irmão, com muita intensidade e amargura. Algum dia tornaria a vê-lo?

A trilha estreita era tão íngreme que enquanto subiam Romilly tinha de se inclinar para a frente na sela; estava gelada e tinha de se empenhar ao máximo para sustentar o peso inconsciente de Caryl. Mas os homens também enfrentavam dificuldades para controlar os nervosos chervines e os pássaros-sentinelas, que se mostravam irrequietos e mesmo encapuzados soltavam pequenos guinchos e tentavam bater as asas e pular em seus poleiros. Isso deixava os cavalos e os chervines ainda mais nervosos; ela especulou sobre o que seus sentidos aguçados estariam vendo e pensou em entrar em contato para descobrir, mas tinha de se concentrar, na trilha íngreme, em se manter na sela e evitar que o menino inconsciente caísse.

Houve um momento em que um gemido estridente soou, um som assustador, que fez o sangue de Romilly congelar. Seu cavalo estremeceu e relinchou nervosamente, ela lutou para controlá-lo. Os pássaros-sentinelas remexeram-se em seus poleiros, batendo as asas em pânico. Romilly nunca ouvira antes um grito assim, mas não precisava que ninguém lhe dissesse o que era: o grito de um pássaro-espírito, o enorme animal que não podia voar e que habitava as regiões acima da linha da neve, completamente cego, mas sentindo o calor do corpo de qualquer coisa viva, com garras tão poderosas que podia estripar homem ou cavalo com um único golpe. E era noite, quando na verdade podiam ver um pouco, embora fossem cegos à claridade do sol vermelho. Os gritos terríveis, ela ouvira dizer, visavam paralisar a presa pelo pavor; ouvindo agora, à distância, ela torceu para que jamais tivesse de se encontrar com um desses pássaros.

Ao som, Caryl soltou um pequeno gemido angustiado e mexeu-se, levantando as mãos para o caroço na cabeça. O movimento provocou um sobressalto no cavalo, cujos cascos quase escorregaram no caminho gelado. Romilly inclinou-se para a frente e sussurrou apressada:

— Está tudo bem, mas você tem de ficar quieto; a estrada é perigosa neste trecho e o cavalo pode cair se você assustá-lo... e nós também cairíamos. Fique quieto, Caryl.

— Ama Romilly? — ele sussurrou.

Ela ficou irritada.

— Cale-se!

Ele se calou, fitando-a. Os olhos de Romilly haviam se ajustado à escuridão agora e podiam divisar o rostinho assustado de Caryl. Ainda tateando cauteloso o caroço na têmpora, ele piscou e Romilly torceu para que não chorasse. Caryl sussurrou:

— Como vim parar aqui? O que aconteceu? — E depois ele se lembrou. — Alguém me golpeou!

O menino parecia mais surpreso do que zangado. Romilly calculou que ele, um mimado menino das terras baixas, nunca fora golpeado antes, jamais ninguém lhe falara de outra maneira que não gentilmente. Ela apertou-o em seus braços e sussurrou:

— Não tenha medo. Não deixarei que o machuquem.

Romilly sabia, ao dizer isso, que haveria de interferir se Alaric fizesse alguma outra ameaça contra o menino. Caryl contorceu-se pare assumir uma posição mais confortável na sela; agora podia sentar-se empertigado e não era mais um peso morto que tinha de ser sustentado para não cair, o que tornava mais fácil controlar o cavalo.

— Onde estamos? — sussurrou Caryl.

— Na estrada para a qual você nos levou. Dom Cario resolveu trazê-lo porque não podia deixá-lo inconsciente para morrer no frio, mas não lhe tenciona qualquer mal. Alaric queria mantê-lo como refém, mas Orain não permitirá que ele o ataque de novo.

— Lorde Orain sempre foi bom para mim, mesmo quando eu era bem pequeno — murmurou Caryl, depois de um momento. — Gostaria que meu pai não tivesse brigado com ele. E o Padre Mestre ficará muito zangado comigo.

— A culpa não foi sua.

— O Padre Mestre diz que tudo o que acontece é sempre culpa nossa, de um jeito ou de outro. Se não merecemos nesta vida, então com certeza merecemos em outra. Se é bom, fizemos jus e podemos desfrutar; mas se é ruim, devemos também acreditar que de alguma forma merecemos; e nem sempre é possível saber o que é o quê. Não sei direito o que isso significa — ele acrescentou, ingenuamente —, mas ele disse que eu compreenderia quando fosse mais velho.

— Nesse caso devo ser também muito jovem. — Romilly foi incapaz de reprimir uma risada; conversar sobre a elevada filosofia cristoforo, naquela estrada tão perigosa, com os homens do rei, pelo que sabiam, a persegui-los! — Pois confesso que não compreendo absolutamente!

Orain ouviu a risada, parou o cavalo e esperou que eles o alcançassem, num trecho em que o caminho se alargava um pouco.

— Está desperto, jovem Caryl?

— Eu não estava dormindo! — protestou o menino, franzindo o rosto. — Alguém me golpeou!

— É verdade — confirmou Orain, muito sério. — E pode estar certo de que ele ouviu poucas e boas de Dom Cario por causa disso. Mas agora, eu lamento, você deverá nos acompanhar até Caer Donn; não pode voltar sozinho por esta estrada. Tenho certeza que você não nos trairia, mas sei que Lyondri tem laran e poderá ler em seus pensamentos para que lado seguimos. Dou minha palavra, que jamais quebrei, ao contrário de seu pai, que assim que alcançarmos Caer Donn você será enviado de volta para ele, sob uma bandeira de trégua. Ele... — Com um significativo dar de ombros, Orain indicou Dom Cario, que seguia à frente. — ... não lhe deseja qualquer mal. Mas nesta companhia devo adverti-lo a controlar sua língua.

— Milorde... — começou Caryl.

Mas Orain balançou a cabeça em advertência e apressou-se em dizer:

— Se acha que ficaria mais confortável montado atrás de mim, pode mudar, assim que deixarmos esta trilha, que não é um bom lugar para se trocar de cavalos. Ou se me der a palavra de um Hastur de que não tentará fugir, providenciarei para que monte um dos animais de carga, viajando sozinho.

— Obrigado, mas prefiro ficar com... — Ele fez uma pausa, engoliu em seco. — ... com Rumai.

Romilly ficou atônita com a presença de espírito de Caryl; nenhum outro menino, ela tinha certeza, haveria de se lembrar, naquelas circunstâncias, de não revelar seu segredo.

— Pois então siga com todo cuidado e guarde-o bem, Rumai — recomendou Orain.

Ele se afastou e Romilly, ajeitando Caryl à sua frente tão confortavelmente quanto era possível — seria mais fácil se ele pudesse sentar atrás, mas não havia como parar e trocar de posição agora —, refletiu que ele a protegera mesmo quando nada tinha a ganhar com a manutenção de seu segredo e poderia criar um tumulto entre seus captores. Era mesmo um menino excepcional e mais esperto do que Rael, por mais desleal que ela se sentisse em relação ao irmão por pensar isso.

Ele sabia que ela era mulher. Mas ela já pensara algumas vezes que Dom Cario também sabia e nada revelava por seus próprios motivos, quaisquer que fossem. E foi então, pela primeira vez — as coisas haviam acontecido muito depressa desde que despertara —, que se lembrou das palavras exatas de Orain quando a procurara. Cario está com você? Este não é o momento para recato! Isso significava que Cario confidenciara a Orain que sabia que ela era mulher; e sabendo disso achava que ela podia ser generosa com seus favores e seria possível encontrar Cario em sua cama? Mesmo no frio intenso, Romilly sentiu o calor da vergonha nas faces. Mas vestindo roupas de homem e montando com eles, que espécie de mulher Orain poderia julgar que ela era?

Ora, se ele sabia, muito bem; e se assim a julgava, que pensasse o que quisesse. Pelo menos ele fora bastante gentil para não espalhar a notícia entre seus rudes homens. Mas ela começara a gostar muito de Orain!

Dos penhascos acima deles veio outra vez o assustador grito de um pássaro-espírito; soou mais próximo agora, e Romilly sentiu que o uivo vibrava por todo o seu corpo, como se os próprios ossos estremecessem. Compreendeu como a presa natural do pássaro devia se sentir; parecia deixá-la completamente paralisada, apagar o mundo ao redor, de tal forma que nada havia além da vibração horrível, que deixava seus olhos toldados e escurecia tudo. Caryl gemeu e comprimiu as mãos contra os ouvidos, com um tremor de agonia. Romilly viu os homens à frente se esforçarem para controlar as montarias apavoradas. Os pássaros-sentinelas bateram as asas e os chervines soltaram seu estranho grito, se viraram, quase empinaram aterrorizados na trilha gelada. Um deles tropeçou e caiu, derrubando o homem que o montava, que escorregou antes de conseguir fincar os calcanhares no gelo e se levantar, fazendo o maior esforço para segurar a montaria; outro animal esbarrou nele e houve uma tremenda colisão. Praguejando, os homens lutaram para controlar a situação. Os gritos e bater de asas dos pássaros-sentinelas encapuzados aumentavam a confusão e outra vez o apavorante berro do pássaro-espírito soou nos penhascos acima deles, sendo respondido por outro grito. Romilly deu uma pequena sacudidela em Caryl.

— Pare com isso! — ela exigiu, furiosa. — Ajude-me a acalmar os pássaros!

A respiração de Romilly era ofegante, ela podia vê-la se vaporizando no ar gelado, mas projetou a mente com seu sentido especial, irradiando pensamentos de calma, paz, alimento, afeição. Ainda podia alcançá-los; enquanto sentia os pensamentos de Caryl se juntarem aos seus, um após outro os enormes pássaros se aquietaram, ficaram imóveis em seus poleiros nas selas. Cario e seus homens puderam recuperar o controle das montarias. Cario gesticulou para que ficassem juntos. O caminho se alargava naquele ponto o suficiente para que três ou quatro animais pudessem ficar emparelhados, e eles se agruparam.

Os penhascos acima começavam a sobressair contra o céu que clareava; nuvens rosas e púrpuras ressaltavam a escuridão dos rochedos no desfiladeiro. O amanhecer estava próximo. A trilha em frente voltava a se estreitar e atravessava a geleira; e mesmo enquanto olhavam, uma sombra desgraciosa deslocou-se pelos rochedos, o grito terrível tornou a soar, acompanhado por outro, mais acima. Orain comprimiu os lábios estreitos e disse, amargurado:

— Justamente o que precisávamos... dois desses malditos pássaros! E ainda falta uma hora para o amanhecer... E mesmo depois que o sol surgir, não poderemos escapar! Também não podemos esperar; se estamos sendo perseguidos, precisamos deixar a trilha antes do dia clarear, e nos embrenharmos pela floresta no outro lado, onde não poderão nos encontrar. Até um cego poderia acompanhar nossas pegadas no gelo e Lyondri com certeza vem com meia dúzia de seus malditos leroni!

— Estamos na própria boca da armadilha — murmurou Cario. Ele adotou uma expressão distante, permaneceu em silêncio por algum tempo. — Não há perseguição, pelo menos ainda não... não preciso de leronis para me dizer isso. Você foi um idiota ao trazer o menino, Alaric... com ele para seguir, Lyondri poderá acompanhar nossa pista por todos os nove infernos de Zandru! E agora ele tem um segundo motivo, pessoal!

— O menino estando conosco — respondeu Alaric, entre os dentes semicerrados —, poderemos pelo menos comprar nossas vidas!

Caryl empertigou-se na sela e declarou, furioso:

— Meu pai jamais comprometeria sua honra pela vida de um filho, e eu não gostaria que ele fizesse isso!

— A honra de Lyondri? — resmungou um dos homens. — O doce bafo do pássaro-espírito, o clima acolhedor do nono inferno de Zandru!

— Não permitirei que digam... — começou Caryl.

Romilly agarrou-o pela cintura antes que ele pudesse saltar da sela e atacar o homem que falara. Cario apressou-se em interferir:

— Já chega, Caryl. Um sentimento apropriado para o filho de Lyondri, mas não temos tempo para discussões. Precisamos atravessar este caminho de qualquer maneira. Não tenho a menor intenção de machucá-lo, mas se não conseguir manter a boca fechada acho que terei de amordaçá-lo. Meus homens não estão com ânimo para ouvirem a defesa daquele que fixou um preço por nossas cabeças. E vocês, Garan e Alaric, também ficarão de boca fechada; não se deve escarnecer de uma criança por causa da honra de seu pai, e temos um árduo trabalho pela frente, não podemos perder tempo discutindo com um menino!

Ele tornou a levantar os olhos, enquanto o grito estridente do pássaro-espírito soava mais uma vez, abafando suas vozes. Romilly percebeu que todo o corpo de Cario ficava tenso, no esforço de dominar o medo puramente físico que o grito criava nas mentes de todos. Ela apertou Caryl com toda força, sem saber se era para confortar o menino ou aquietar seus próprios temores, sussurrando:

— Ajude-me a aquietar os animais.

Era bom proporcionar alguma coisa para Caryl pensar que não fosse seu próprio terror. Mais uma vez, a tranqüilizante vibração espalhou-se. Romilly compreendeu que seu próprio talento, laran ou como quer que o chamassem, era reforçado pelo já poderoso dom do pequeno Hastur. Enquanto o silêncio se restabelecia, Alaric disse, com a mão na adaga:

— Já cacei pássaros-espíritos, vai dom, consegui matar muitos.

— Não duvido de sua coragem, homem, mas perdeu o juízo se pensa que pode enfrentar dois pássaros-espíritos numa passagem estreita, sem perder algum homem ou montaria — respondeu Cario. — Não temos cães-surdos, nem redes e cordas. Talvez, se conseguirmos nos manter entre os cavalos e chervines, possamos escapar com um cavalo para cada pássaro, mas também ficaríamos a pé na pior região das Hellers. E se ficarmos aqui, deixaremos que a armadilha se feche sobre a gente.

— Melhor o bico do pássaro-espírito do que a suave misericórdia dos homens de Lyondri — comentou um dos viajantes, adiantando-se para a vanguarda do pequeno cortejo. — Também enfrentarei o que tiver de enfrentar, milorde.

— É uma pena que sua habilidade com os pássaros não se estenda a criaturas como aquelas — disse Orain, fitando Romilly com um sorriso insinuante. — Se pudesse acalmar aqueles pássaros como faz com o falcão e o pássaro-sentinela, nada teríamos a temer de qualquer Lorde Hastur e seus leronis.

Romilly estremeceu ao pensamento... penetrar nas mentes daqueles cruéis carnívoros que vagavam pelas alturas? Ela balbuciou

— Espero que esteja brincando, vai dom.

— Por que esse laran não poderia operar contra um pássaro-espírito da mesma forma como funciona com qualquer outro pássaro? — indagou Caryl, empertigando-se na sela. — Todos são criaturas da Natureza e se Ro... se o dom de Rumai pode aquietar os pássaros-sentinelas, com a ajuda de meu laran talvez possa também atingir os pássaros-espíritos e convencê-los de que não devemos ser sua refeição.

Romilly sentiu outra vez um tremor perceptível percorrer todo seu corpo. Mas diante dos ansiosos olhos do pequeno Caryl, ficou envergonhada de confessar seu medo. Cario disse suavemente:

— Reluto em entregar nossa segurança nas mãos de duas crianças, quando homens adultos se mostram impotentes. Contudo, se puderem nos ajudar... parece não haver outro meio e acabaremos todos mortos se ficarmos aqui. Seu pai não lhe faria qualquer mal, meu jovem Carolin, mas receio que todos nós morreríamos, e não de uma maneira rápida e sem dor.

Caryl piscou com força.

— Não quero que nenhum mal lhe aconteça, senhor. Não creio que meu pai compreenda que é um bom homem; talvez Dom Rakhal tenha envenenado a mente dele contra sua pessoa. Se eu puder fazer qualquer coisa para ajudar, a fim de que ele tenha tempo para pensar mais sensatamente sobre toda essa discórdia, terei o maior prazer em contribuir com tudo o que estiver ao meu alcance.

Mas Romilly notou que ele também estava um pouco assustado. E enquanto se adiantavam, lentamente, o menino sussurrou:

— Tenho medo, Rumai... eles parecem tão ferozes que é difícil lembrar que também são criações de Deus. Mas tentarei recordar que o abençoado Valentim das Neves firmou um pacto de amizade com esses pássaros e chamava-os de pequenos irmãos.

Acho que eu não gostaria realmente de ser irmão de um pássaro-espírito, pensou Romilly, exortando seu cavalo a seguir em frente com um estalido da língua e a pressão dos joelhos, empenhando-se em projetar pensamentos tranqüilizadores para atenuar o pavor do animal. Mas não podia pensar assim. Devia lembrar que a mesma Força que criava os cães e cavalos que tanto amava, seus adorados falcões, também criara o pássaro-espírito para seus próprios desígnios, mesmo que ela não soubesse quais eram. E os pássaros-sentinelas, que antes lhe pareceram tão ferozes, eram gentis e afetuosos como os pássaros de gaiola, depois que passara a conhecê-los; amava sinceramente Prudência e até por Temperança e Diligência sentia verdadeira afeição.

Se o pássaro-espírito é meu irmão... e por um instante ela sentiu uma alegre emoção aflorando, que reconheceu como histérica. Seu gentil irmão Ruyven, o tímido Darren, o querido Rael, na mesma posição dos horrores que gritavam no penhasco?

Ela ouviu Caryl sussurrar para si mesmo; as únicas palavras que captou foram Portador dos Fardos e Abençoado Valentim... e compreendeu que o menino estava orando. Apertou-o com força, comprimindo o rosto contra seu ombro e fechando os olhos. Seria virtude autêntica ou apenas absurda presunção pensar que de alguma forma suas mentes podiam alcançar a mente de um pássaro-espírito... se é que os pássaros-espíritos possuem algum tipo de mente, ela pensou, forçando-se a reprimir a histeria outra vez. Ninguém sabia que era mulher, não podia chorar e gritar aterrorizada! Ela refletiu, sombriamente, que tanto Orain quanto Dom Cario também pareciam assustados, não precisava se sentir envergonhada por seu medo!

Tornou a fechar os olhos e tentou formular uma oração, mas não conseguiu recordar nenhuma. Portador dos Fardos, sabe que quero rezar e agora devo tentar fazer o que puder para salvar a todos nós, ela disse num sussurro, depois suspirou.

— Vamos tentar, Caryl. E agora entre em contato comigo...

Romilly projetou sua mente, consciente de seu próprio corpo apenas o suficiente para mantê-lo empertigado na sela, acompanhando os passos inquietos do cavalo. Projetou — e sentiu os cavalos estremecendo interiormente enquanto caminhavam, lentamente, por lealdade a seus cavaleiros; sentiu os pássaros-sentinelas assustados com o barulho, mas calmos porque ela e Caryl, em cujas vozes mentais confiavam, haviam determinado que permanecessem calmos. Projetou-se ainda mais longe, sentiu alguma coisa fria e aterradora, sentiu outra vez o grito estridente, ressoando por toda a criação, mas persistiu, as mãos apertando firmemente as de Caryl, penetrou na mente estranha.

A princípio teve consciência apenas de tremendas pressões, uma fome tão intensa que lhe comprimia a barriga, um frio assustador a impeli-la para o calor, que parecia como luz, lar e satisfação, o contato do calor inundando seu corpo com uma fome quase sexual; e soube, por um fragmento mínimo, que ainda era Romilly, que alcançara a mente do pássaro-espírito. Pobre coisa faminta e fria... apenas procura calor e alimento, como toda a Criação... Seus olhos ficaram bloqueados, não podia ver, apenas sentir, ela era o pássaro-espírito e por um momento travou uma encarniçada batalha, toda a sua mente pulsando com a necessidade de se lançar sobre o calor, rasgar e estraçalhar, experimentar a sensação profundamente deliciosa do sangue quente esguichando... sentiu as próprias mãos se contraindo no calor de Caryl e depois, com uma distante lembrança de si mesma, compreendeu que era humana, mulher, com uma criança para proteger e outras pessoas dependendo de sua habilidade...

Ligada a Caryl, sentiu seu tranqüilizante contato mental, como um murmúrio suave. Irmão pássaro-espírito, você está unido a toda a vida e unido a mim. Os Deuses criaram você para estraçalhar sua presa, eu o louvo e amo como os Deuses fizeram você, mas há bestas por aqui que não conhecem o medo, porque os Deuses não lhes concederam consciência. Procurem por sua presa entre essas bestas, meus pequenos irmãos, e me deixem passar... Em nome do abençoado Valentim, eu lhes peço que suportem seus fardos e não procurem encerrar minha vida antes do momento designado. Abençoado seja aquele que abate sua presa e abençoado seja aquele que concede a vida a outro...

Não lhes tenciono qualquer mal, Romilly acrescentou seu apelo suave ao do menino, procurem em outra parte por seu alimento.

E por um momento, no enorme fluxo de consciência em que ela, o cavalo que montava, o corpo macio da criança em seus braços e o pássaro-espírito com sua fome desvairada e em busca de calor eram uma só coisa, uma onda transcendental de alegria envolveu-a; os raios vermelhos do sol nascente encheram-na de calor e uma felicidade indescritível, o calor de Caryl contra seu peito era um fluxo de ternura e amor; e por um instante perigoso ela pensou, mesmo que o pássaro-espírito me tome como sua presa, ficarei ainda mais unida com sua maravilhosa força vital. Mas também quero viver e me regozijar com a luz do sol. Romilly jamais conhecera tanta felicidade. Sabia que havia lágrimas em seu rosto, mas não importava, era parte de tudo que vivia e respirava, parte do sol e das rochas, até mesmo o frio da geleira era de certa forma maravilhoso, porque aguçava sua percepção do calor do sol nascente.

E depois o vínculo mágico foi rompido e desapareceu. Desciam pelo outro lado do desfiladeiro e lá em cima o vulto enorme e desajeitado de um pássaro-espírito se encaminhava para a entrada de uma caverna, sem lhes prestar a menor atenção. Caryl chorava nos braços de Romilly, apertando-a com força.

— Oh, estava com fome e nós o privamos de sua refeição!

Ela afagou-o, abalada demais para falar, ainda dominada pela experiência. Cario disse, a voz rouca:

— Obrigado, rapazes. Não gostaria de ser a refeição do pássaro-espírito, mesmo que o pobre coitado estivesse faminto. Pode procurar sua comida em outra parte.

Os homens olhavam para os dois com todo respeito. Orain disse, a voz trêmula, tentando romper o encantamento:

— Você é muito grande e duro para o apetite delicado de um pássaro-espírito... tenho certeza de que ele prefere um tenro coelho-da-neve.

Todos riram. Romilly sentia-se fraca, ainda sob o encantamento profundo que haviam criado com seu laran. Dom Cario vasculhou em seus alforjes e disse bruscamente:

— Não dá para dizer o quanto devo a vocês dois. E lembro que os leroni sempre ficam com fome depois de um trabalho assim... tomem isso.

Ele estendeu carne-seca, frutas secas e bolachas de pão de viagem. Romilly começou a cravar os dentes na carne e nesse instante sentiu a náusea aflorando.

Isto era carne viva, respirando, como posso convertê-la em minha presa? Ou não sou melhor do que um pássaro-espírito? Esta carne-seca já foi a carne viva de todos os meus irmãos. Ela engasgou, desfez-se da carne, enfiou uma fruta seca na boca.

Isto também faz parte da vida de todas as coisas, mas não tinha respiração e não me repugna com o conhecimento do que foi outrora. O Portador dos Fardos criou alguma vida sem propósito que não o de renunciar à sua vida para que outros possam se alimentar... e enquanto sentia a doçura da fruta entre os dentes, o êxtase voltou por breve instante, que aquela fruta pudesse abrir mão de sua doçura para que ela não mais sentisse fome...

Caryl também mastigava vorazmente um pedaço do pão duro, mas ela notou que o menino também se abstivera da carne, embora deixasse no pedaço as marcas de seus dentes afiados. Portanto, ele partilhara sua experiência. Vagamente, como algo que poderia ter sonhado há muito tempo, Romilly pensou se algum dia voltaria a comer carne.

Mesmo quando armaram acampamento, com o sol alto no céu, a fim de dar cereais aos cavalos e carne aos pássaros-sentinelas, ela comeu apenas pão e fruta, misturou um pouco de água na farinha do mingau e consumiu uma tigela cheia. Para sua surpresa, no entanto, não se incomodou quando os pássaros-sentinelas estraçalharam vorazmente a carne que carregavam para eles; era a natureza deles, eram como haviam sido criados.

Romilly percebeu que os homens ainda mantinham cautelosa distância. O que não a surpreendia. Se visse duas outras pessoas enfrentando um pássaro-espírito que atacava, também ficaria em silêncio reverente. Ela própria ainda não podia acreditar no que fizera.

Ao terminarem a refeição e selarem de novo as montarias, ela olhou para Dom Cario, alto e empertigado, parado nos limites da clareira, com uma expressão distante, à escuta. Já era agora bastante competente no uso do laran para saber que ele projetava sua percepção mental pela trilha de trás, na direção do desfiladeiro.

— Até agora não estamos sendo seguidos — ele disse finalmente. — E as trilhas são tantas que se Lyondri não estiver com uma horda de leroni não creio que consiga descobrir nossa pista. Devemos manter a cautela habitual, mas creio que agora podemos seguir para Caer Donn em segurança.

Ele estendeu os braços para Caryl e perguntou, como se falasse com um adulto e seu igual:

— Quer viajar agora atrás da minha sela, parente? Há coisas que preciso lhe dizer.

Caryl olhou para Romilly, depois se controlou e respondeu cortesmente:

— Como quiser, parente.

Ele subiu na sela. Enquanto viajavam, Romilly percebeu que os dois conversavam em voz baixa e descobriu que sentia saudade do peso quente do menino na sua frente. Houve um momento em que viu Caryl sacudir a cabeça, muito sério, umas poucas palavras alcançaram seus ouvidos:

— ... oh, não, parente, eu lhe dou minha palavra quanto a isso... Subitamente ciumenta daquela intimidade, Romilly desejou poder ouvir o que eles diziam. Seu laran se encontrava agora tão próximo da superfície que uma idéia lhe ocorreu.

Talvez eu precise apenas me projetar para saber.

E ficou chocada consigo mesma. Como podia pensar uma coisa assim? Afinal, fora criada numa Grande Casa, aprendera a cortesia devida a iguais e inferiores. Ora, isso seria tão terrível quanto escutar atrás de portas, bisbilhotar como uma criança desagradável, o que seria totalmente indigno dela.

Ter o poder do laran certamente não significava que tinha o direito de saber o que não era da sua conta! E depois, franzindo o rosto enquanto entrava na fila, com Prudência em sua sela, para que Dom Cario pudesse levar Caryl, ela se viu refletindo sobre o comportamento apropriado com o laran. Possuía o poder e talvez o direito de impor sua vontade aos falcões que treinava, aos cavalos que montava e até mesmo, para salvar sua vida, ao pássaro-espírito nos penhascos. Mas até que ponto esse poder deveria ir? Até que ponto tinha o direito de usá-lo? Podia exortar seu cavalo a suportar sela e freio porque ele a amava e aprendera de bom grado o que o tornaria mais próximo de sua dona. Sentira o amor profundo de Preciosa, que a levara a voltar por sua livre e espontânea vontade, mesmo depois que Romilly a libertara.

E havia angustia nisso. Será que algum dia tomaria a ver Preciosa?

Mas havia limites ao poder. Talvez fosse certo aquietar os cachorros que a amavam, a fim de que não despertassem a casa para sua saída.

Mas havia problemas também, um profundo conflito. Podia pressionar a presa no bico do falcão que caçava, talvez pudesse forçar o estúpido coelho-da-neve para as bocas expectantes dos cachorros, mas certamente esse não era o desígnio, não era parte da natureza, seria uma vantagem nitidamente injusta para se ter numa caçada!

Os olhos ardendo, Romilly inclinou a cabeça e pela primeira vez na vida descobriu que orava com toda sinceridade.

Portador dos Fardos! Não pedi esse poder. Por favor, por favor, ajude-me a usá-lo, não para propósitos errados, mas apenas para tentar a união com a vida... Atordoada, ela acrescentou: Como aconteceu, por um breve momento, esta manhã, quando soube que estava unida a tudo o que vivia. Como deve ser seu caso, Ó Sagrado. Ajude-me a decidir como usar esse poder sabiamente. E depois de mais um momento, ela fez outro acréscimo, num sussurro: Pois agora eu sei que sou parte da vida... mas uma parte bem pequena!

 

O problema continuou a perturbá-la durante toda a longa viagem para Caer Donn. Quando caçava para os pássaros-sentinelas, pensava em seu laran e receava usar o poder para o mal, o que fazia com que às vezes deixasse a caça escapar, sendo censurada pelos homens. Usava sua percepção para procurar coisas mortas, na colina e na floresta, que pudesse aproveitar para alimentar os pássaros — não tinham mais uso para seus corpos, certamente não podia ser errado utilizar uma criatura morta para alimentar uma viva. Sentia como se quisesse fechar sua nova habilidade num lugar onde nunca mais pudesse ser acionada, embora tivesse de usá-la para controlar os pássaros. Não podia ser errado demonstrar a afeição que sentia por eles, não é mesmo? Ou seria errado, já que a usava para aquietá-los, por conveniência própria?

Havia ocasiões em que tentava manipulá-los sem invocar o dom MacAran, que agora sabia ser um laran; quando os pássaros gritavam e se rebelavam, Dom Cario indagava:

— O que está acontecendo com você, rapaz? Faça o trabalho para o qual está sendo pago e mantenha esses pássaros quietos!

Tinha de usar seu laran então e viver novamente o conflito se era correto ou não o que fazia.

Gostaria de poder conversar com Dom Cario; ele possuía laran e talvez tivesse sofrido as mesmas preocupações quando era da sua idade e aprendia a usá-lo. Fora isso o que Ruyven tivera de superar? Não era de admirar que ele fugisse de uma propriedade de criação de cavalos e se refugiasse por trás das paredes de uma Torre! Romilly descobriu que invejava Darren, que não possuía o dom MacAran; ele podia temer e odiar falcões e cavalos, mas pelo menos não se sentia tentado a se intrometer em suas mentes, a fim de demonstrar seu poder sobre os animais! Ela não podia conversar sobre isso com Caryl, pois ele era apenas um menino e usava seu poder com prazer; também agira assim desde que descobrira que possuía uma habilidade especial com cavalos, usando-a para treiná-los. E sempre que tentava comer a carne de uma caça recém-abatida tinha a impressão de que podia sentir a vida e o sangue do animal morto vibrando em sua mente, engasgava e não conseguia engolir; limitava suas refeições a mingau, frutas e pão, sentia uma fome intensa no frio inclemente das trilhas na montanha. Mas mesmo quando Dom Carlo lhe ordenava que comesse não podia fazê-lo. Uma ocasião, quando ele se postou à sua frente, engoliu relutante um pedaço do lombo de um chervine selvagem que haviam abatido para a refeição, mas sentiu uma repulsa tão terrível que se afastou e vomitou tudo.

Orain viu-a voltando de trás da moita, pálida e trêmula. Romilly foi tentar cortar as vísceras e o resto da carne do chervine, com as mãos desajeitadas, ele se aproximou. Era difícil encontrar cascalho naquela região de neve e por isso ela tinha de misturar pêlos e lascas de ossos com a carne, ou os pássaros-sentinelas teriam dificuldades para digerir.

— Deixe que eu cuido disso — murmurou Orain.

Ele levou o alimento para os pássaros, presos em seus poleiros, acima da neve. Voltou, deixando-os a devorar a carne, e perguntou:

— Qual é o problema, rapaz? Não está se alimentando direito, não é mesmo? Cario quer o seu bem, apenas se preocupa por você não estar comendo o suficiente neste clima horrível.

— Sei disso — ela balbuciou, sem fitá-lo.

— O que o aflige, rapaz? Posso ajudar em alguma coisa?

Romilly sacudiu a cabeça. Achava que ninguém poderia ajudá-la. A menos que pudesse de alguma forma conversar com o pai, que devia ter travado também aquela batalha em sua juventude, pois de que outro modo poderia assumir seu Dom? Ele podia odiar a própria palavra laran e proibir que alguém a pronunciasse em sua presença, mas possuía a coisa, como quer que quisesse chamá-la ou deixar de chamar. Com uma intensidade súbita e saudosa, ela recordou o Ninho dos Falcões, o rosto do pai, afetuoso e gentil, depois o mesmo rosto contorcido pela raiva, enquanto a espancava... Romilly cobriu seu rosto com as mãos, tentando desesperadamente reprimir um acesso de soluços, que certamente revelaria sua identidade de mulher. Mas estava cansada, muito cansada, mal conseguia conter as lágrimas... Á mão de Orain em seu ombro era gentil."

— Calma, calma, filho, não se preocupe... não sou daqueles que pensam que lágrimas não são coisa de homem. Está doente e cansado, isso é tudo. Chore se quiser, não vou recriminá-lo por isso.

Ele apertou o ombro de Romilly num gesto tranqüilizador e foi até o fogo. Misturou algumas de suas prezadas ervas numa caneca com água quente e pôs na mão de Romilly.

— Beba isto, vai assentar seu estômago.

A beberagem era aromática, com tênue e agradável amargo, e fez realmente com que ela se sentisse melhor.

— Se não pode comer carne agora — acrescentou Orain —, eu lhe trarei pão e fruta. Mas não pode passar fome neste frio.

Ele serviu um pedaço de pão duro, em que espalhara a gordura do chervine; Romilly sentia tanta fome que engoliu tudo e depois ainda comeu as frutas que Orain providenciou, enquanto ajeitavam os cavalos para a noite. Ele estendeu seus cobertores lado a lado. Caryl não tinha nenhum e por isso vinha dormindo no manto de Romilly, aconchegado nos braços dela. Ao tirar as botas para deitar, ela sentiu uma pontada de dor no fundo da barriga e secretamente começou a contar com os dedos; isso mesmo, já haviam decorrido quarenta dias desde que fugira da cabana de Rory, precisava esconder outra vez o incômodo periódico! Mas que droga ser mulher! Permanecendo acordada entre Caryl e Orain, ainda tremendo, ela especulou sombriamente como poderia disfarçar seu estado naquele clima. Por sorte fazia bastante frio para que ninguém se despisse por completo no acampamento; ao contrário, as pessoas dormiam com todas as roupas e cobertores que possuíam. Romilly vinha dormindo não apenas com o manto forrado de pêlo que Orain lhe dera, mas também com o que trouxera da cabana de Rory, envolvendo-se com ambos, Caryl em seus braços.

Precisava pensar. Não tinha panos de sobra ou trajes que pudesse rasgar para substituí-los. Havia uma espécie de musgo grosso que crescia em profusão pelas encostas mais altas, tanto ali quanto no Ninho dos Falcões; já o vira, mas não lhe dispensara maior atenção — embora soubesse que as mulheres mais pobres, que não tinham panos de sobra, usavam aquele musgo como fraldas de criança e também para atender às suas necessidades sanitárias mensais. A alma escrupulosa de Romilly podia sentir certa repulsa, porém seria mais fácil enterrar o musgo na neve do que lavar panos naquele clima. Procuraria algum no dia seguinte; ali, na região da neve, pelo menos não estaria coberto de terra ou lama, não precisaria ser lavado. Como era desagradável ser mulher! O frio era tão intenso que todos deitavam juntos, como cães dormindo amontoados; quando o acampamento despertou, pela manhã, Alaric escarneceu, no momento em que Orain se levantou do lado de Caryl e Romilly:

— Ei, homem, está dirigindo um asilo para crianças?

Mas a presença de Orain era confortadora para ela e, Romilly podia sentir, para Caryl também. Era um homem gentil e paternal, Romilly não o temia. Na verdade, se surgisse a necessidade, não tinha a menor dúvida de que poderia confiar em Orain, sem qualquer perigo real; ele poderia ficar chocado ao descobrir que ela era mulher, naquela região inóspita e de clima difícil, mas não lhe criaria problemas daquele tipo, como seu pai ou irmãos. De alguma forma, ela sabia que Orain não era o tipo de homem que pudesse estuprar ou ofender alguma mulher.

Romilly afastou-se para atender suas necessidades pessoais em particular — fora o alvo de algumas zombarias por isso a princípio, comentaram que era melindroso como uma mulher. Mas ela sabia que os homens pensavam que só agia assim por ser cristoforo; eles eram conhecidos como pudicos e recatados nessas coisas. Tinha certeza que nenhum deles desconfiava e Caryl, que sabia — além de Dom Cario, que ela sentia que também sabia —, preferia não dizer nada.

Tentaria manter seu segredo por tanto tempo quanto fosse possível. Ao chegar a Caer Donn talvez não fosse tão fácil quanto em Nevarsin encontrar trabalho como guardador de falcões ou treinador de cavalos, mas certamente era possível e talvez Orain, ou o próprio Dom Cario, poderia lhe conceder boas referências, como trabalhador disposto e competente.

Ainda sentia alguma repulsa em comer carne, embora soubesse que isso era tolice. Afinal, a natureza determinava que alguns animais fossem presas de outros. Mas mesmo sabendo que a intensidade de sua repulsa começava a diminuir, ainda preferia o mingau e o pão à carne. Cario (Orain teria lhe falado a respeito?) não mais a exortava a comer, limitava-se a lhe conceder uma ração maior de mingau e frutas. Alaric escarnecera dela uma vez, mas Dom Cario ordenara que se calasse.

— Quanto menos carne para ele, homem, mais sobrará para o resto de nós. Deixe-o comer o que mais aprecia e você trate de fazer a mesma coisa! Se todos os homens fossem iguais, há muito que você teria virado comida do pássaro-espírito; o mínimo que devemos a ele é deixá-lo ser como preferir.

Viajavam há nove dias desde a partida de Nevarsin, pelos cálculos de Romilly, quando avistaram um pássaro circulando no alto, procedente das colinas distantes. Romilly alimentava os pássaros-sentinelas no momento e notou como tentavam se livrar das peias, enquanto o pequeno pássaro descia para o acampamento. Dom Cario ficou imóvel, os braços estendidos, o rosto vazio, o olhar silencioso dos pensamentos focalizados pelo laran. O pássaro foi pousar em sua mão, tremendo um pouco.

— Uma mensagem de nosso pessoal em Caer Donn — anunciou Cario.

Ele procurou a cápsula sob a asa, abriu-a e leu rapidamente. Romilly estava espantada — sabia dos pássaros-mensageiros que podiam voar de volta a suas gaiolas através de florestas desconhecidas, mas nunca ouvira falar de algum que fosse capaz de encontrar um homem em particular, cujo paradeiro era ignorado pelo remetente!

Cario levantou a cabeça, com um sorriso de satisfação.

— Devemos nos apressar para Caer Donn, homens! — ele gritou. — Daqui a dez dias vamos nos reunir abaixo de Aldaran e Carolin estará à frente de um grande exército que ali se concentra, a fim de marchar para as terras baixas. E agora vamos ver o que Rakhal será capaz de fazer!

Todos aclamaram e Romilly acompanhou-os. Apenas Caryl permaneceu em silêncio, baixando a cabeça e mordendo o lábio. Romilly já ia indagar qual era o problema, mas conteve-se a tempo. O menino não podia se regozijar por um exército reunido contra seu pai, que era o principal conselheiro de Rakhal. Seria injusto esperar isso. Contudo, ela compreendera que Caryl amava Dom Cario como um parente... e tinha certeza que eram mesmo parentes, embora talvez distantes; ouvira dizer que todos os Hastur das terras baixas eram parentes e estava convencida agora, pensando nos cabelos vermelhos de Cario, sua aparência que a fazia lembrar de Alderic, que ele era de fato um Hastur, superior em posição a qualquer outro homem que conhecia. Se Orain, que era o irmão adotivo do rei, tratava-o com tanta deferência, ele não podia deixar de ser muito importante.

Chegaram a Caer Donn ao final da tarde seguinte e Dom Cario virou-se para Orain, assim que passaram pelos portões da cidade, dizendo:

— Leve os homens e os pássaros para uma boa estalagem e peça para todos os meus fiéis servidores o melhor jantar que o dinheiro puder comprar; eles tiveram uma jornada árdua e pagaram caro seu apoio aos exilados. Você sabe para onde eu vou...

— Claro que sei.

Cario sorriu e apertou a mão de Orain, murmurando:

— Um dia virá...

— Que todos os Deuses permitam — disse Orain.

Cario afastou-se pelas ruas da cidade. Se não tivesse conhecido Nevarsin, Romilly poderia pensar que Caer Donn era uma grande cidade. No alto da encosta da montanha, acima da cidade, havia um castelo. Orain comentou, enquanto cavalgavam:

— O lar de Aldaran de Aldaran. Os Aldaran são da família Hastur dos tempos antigos, mas não se envolvem nas discórdias das terras baixas. Mas os vínculos de sangue sempre são fortes.

— O rei está lá? — perguntou Romilly.

Orain sorriu e deixou escapar um profundo suspiro de alívio.

— Está, sim. Voltamos a uma região em que Rakhal não é admirado e Carolin ainda é o verdadeiro rei. E os pássaros que trouxemos serão entregues aos leroni do rei dentro de poucos dias. É uma pena que você não tenha o treinamento de um laranzu, rapaz, pois possui o toque. Pode estar certo de que prestou um grande serviço e o rei não será ingrato quando subir ao trono.

Ele olhou pelas ruas.

— Agora, se a memória não me falha, lembro de uma estalagem perto da muralha da cidade, onde os pássaros podem ser alojados e nossas montarias alimentadas, onde é possível obter aquela boa refeição de que Cario falou. Vamos procurá-la.

Enquanto seguiam pela rua estreita, Caryl adiantou-se.

— Lorde Oran, você... o vai dom prometeu que eu seria enviado de volta para meu pai sob uma bandeira de trégua. Ele vai cumprir essa promessa? Meu pai... — A voz do menino titubeou. — Meu pai deve estar temeroso por mim.

— Isso é demais! — explodiu Alaric. — Deixe-o sentir um pouco do que eu senti com meu filho e sua mãe mortos... às mãos de seu pai...

Caryl fitou-o com os olhos arregalados e levou algum tempo para conseguir falar.

— Não o tinha reconhecido, Mestre Alaric, mas agora eu me lembro. Está sendo injusto com meu pai, senhor. Ele não matou seu filho. O menino morreu da febre. Meu próprio irmão também morreu naquele verão e as curandeiras do rei trataram dos dois com o mesmo desvelo. Foi triste que seu filho morresse longe da mãe e do pai, mas juro por minha honra, Alaric, que meu pai não teve qualquer participação na morte do menino.

— E o que me diz da minha pobre esposa, que se jogou da janela para a morte quando soube que o filho morrera longe...

— Eu não sabia disso. — Havia lágrimas nos olhos de Caryl. — Minha própria mãe ficou fora de si com o pesar. Eu não queria deixá-la sozinha, com medo de que ela pudesse causar algum mal a si mesma de tanto sofrimento. Lamento muito... ah, como lamento, Mestre Alaric!

Ele abraçou o homem, acrescentando:

— Se meu pai soubesse disso, tenho certeza que não o perseguiria e não o culparia por sua desavença com ele!

Alaric engoliu em seco; permaneceu imóvel, abraçado pelo menino, enquanto murmurava:

— Deus me conceda que meu próprio filho também me defendesse assim. Não posso culpá-lo pela lealdade a seu pai, meu rapaz. Ajudarei Lorde Orain a providenciar para que você volte são e salvo para ele.

Orain deixou escapar um enorme suspiro de alívio.

— Não o enviaremos para o perigo nas terras baixas sem um exército por trás, Alaric. Ficará aqui com o exército. Mas nesta cidade existe um abrigo da Irmandade da Espada; minha prima é uma dessas guerreiras, e podemos contratar duas ou três para escoltarem o menino são e salvo para o sul, até Thendara. Conversarei com Dom Cario a respeito e talvez Caryl possa partir depois de amanhã. E talvez seja possível também enviar um pássaro-mensageiro para seu pai em Hali, Caryl, informando que você está bem e será escoltado ao seu encontro.

— É muito gentil comigo, Lorde Orain. Gostei da viagem, mas não me agrada pensar no sofrimento de meu pai ou de minha mãe, se ela souber que não estou a salvo em Nevarsin, onde pensa que continuo.

— Tomarei as providências necessárias assim que chegarmos à estalagem — garantiu Orain.

Ele conduziu o pequeno cortejo para um prédio comprido e baixo, com estábulos nos fundos e uma placa com um falcão pintado toscamente.

— Aqui, no Signo do Falcão, podemos jantar bem e descansar depois dessa miserável viagem pela neve. E quantos de vocês gostariam de tomar um banho também? Há fontes quentes na cidade e uma casa de banhos a menos de dez portas da estalagem.

Isso provocou outra aclamação, mas Romilly pensou sombriamente que sua situação era terrível; não podia se arriscar a entrar numa casa de banho para homens, embora se sentisse imunda e ansiosa em se banhar. Mas não havia nada que pudesse fazer. Ela foi providenciar para que os cavalos e chervines ficassem bem alojados, cuidou dos pássaros-sentinelas, depois lavou o rosto e as mãos da melhor forma possível e entrou na estalagem para a lauta refeição que Orain encomendara. Ele reservara quartos para todos dormirem e declarou que o melhor seria para o jovem Caryl, como sua posição exigia.

— E terei o maior prazer que você partilhe meus aposentos, Rumai.

— É muita gentileza sua — respondeu Romilly, cautelosa —, mas prefiro ficar no estábulo. Os pássaros-sentinelas podem se tornar irrequietos num lugar estranho.

Orain deu de ombros.

— Como quiser. Mas terei de lhe pedir outra coisa durante o jantar.

— O que desejar, senhor.

Foram para o refeitório; havia pão fresco e raízes cozidas, roliças e douradas, além de alguns pássaros assados e um ensopado de legumes. Todos comeram muito, depois das parcas refeições na viagem. Orain também pedira muito vinho e cerveja. Mas não permitiu que Caryl tomasse vinho, e com uma advertência gentil e paternal franziu o rosto para Romilly quando ela se preparava para beber a segunda caneca.

— Sabe muito bem que não tem cabeça para isso, Rumai. Garçom! Traga uma sidra com raízes para os meninos.

— E depois Mamãe Orain vai levar seus meninos para a cama e entoar uma canção de ninar para fazê-los dormir, enquanto nós vamos nos recuperar da longa viagem na casa de banho? — zombou Alaric, bem-humorado para variar.

— Nada disso — respondeu Orain. — Também vou para os banhos com vocês.

— E para uma casa de mulheres em seguida! — gritou um dos homens, enfiando na boca uma colherada das frutas cozidas que encerraram a refeição. — Só Zandru sabe há quanto tempo não olho para uma mulher!

— Também vou e tenciono fazer mais do que olhar! — gritou outro homem.

Orain protestou:

— Façam o que quiserem, mas isso não é conversa na presença dos meninos.

— Também quero um banho — disse Caryl. Mas Orain sacudiu a cabeça.

— A casa de banho aqui na cidade não é como a do mosteiro, meu rapaz, mas sim um ponto de encontro de prostitutas e coisas assim. Posso cuidar de mim mesmo, mas não é lugar para um rapaz respeitável da sua idade. Pedirei que levem uma tina com água para o seu quarto, onde poderá se lavar, depois deitar e descansar. E você também, Rumai. É muito jovem para as pessoas rudes que encontrará na casa de banho. Cuide para que o menino aqui lave os pés direito e depois peça um banho para você. Seria presa fácil para as pessoas terríveis que freqüentam tais lugares, tanto quanto se fosse uma jovem e respeitável donzela.

— Por que mimar tanto o garoto? — indagou Alaric. — Deixe-o conhecer alguma coisa da vida, como sem dúvida você fez quando tinha a idade dele, Lorde Orain!

Orain amarrou a cara.

— O que posso ter feito não é a questão; o menino está sob meus cuidados, assim como o filho de Lyondri. Não é certo que um Hastur fique sem atendimento. Permaneça na estalagem e cuide do rapaz, Rumai, ponha-o na cama. E depois tome seu banho.

— Enfrente-o por seus direitos, rapaz, não se deixe tratar como uma criança! — gritou um dos homens, que já tomara vinho além da conta. — Não é um criado do filhote Hastur!

Romilly disse, aliviada pela solução:

— Para dizer a verdade, prefiro ficar aqui. Sou cristoforo e não sinto a menor atração por essas aventuras.

— Ah, um cristoforo preso ao Credo da Castidade! — escarneceu Alaric. — Fiz o melhor que podia por você, rapaz, mas a decisão é sua se prefere continuar escondido por trás das saias do santo Portador dos Fardos! Está na hora, pessoal! Quem vai comigo para a casa de banho?

Um após outro, os homens levantaram-se e foram para a rua, meio trôpegos. Romilly levou Caryl para cima e pediu o banho prometido; quando a criada o trouxe, ela queria tomar banho junto, como fazia com Rael, mas Caryl fitou-a com o rosto vermelho.

— Não vou dizer nada aos homens, mas sei que é mulher e já sou muito grande para que até minha mãe ou irmã me lavem... e sei tomar banho sozinho! Vá embora, ama Romilly. Mandarei que levem um banho para você também, está certo? Lorde Orain saiu e com certeza ficará nos banhos pela metade da noite, pode estar procurando também uma mulher... como pode ver, sou bastante velho para saber dessas coisas. Assim, você pode tomar banho no quarto dele e ir para sua cama depois.

Romilly não pôde deixar de rir.

— Como quiser, milorde.

— E não ria de mim!

— Eu nem sonharia com isso — respondeu Romilly, tentando manter uma expressão compenetrada. — Mas Lorde Orain incumbiu-me de cuidar para que você lave os pés direito.

— Venho tomando banho sozinho no mosteiro há mais de um ano — disse Caryl, irritado. — Saia logo, ama Romilly, antes que a água do meu banho esfrie. Mandarei levarem uma banheira para você no quarto de Lorde Orain.

Romilly sentiu-se grata por essa solução — na verdade, ansiava por um banho quente. Foi ao estábulo para pegar seus alforjes, enquanto as criadas carregavam uma tina de madeira para o quarto e despejavam água fumegante nela, além de levarem enormes toalhas felpudas e uma caixinha de madeira com erva-sabão. Uma delas demorou-se além do necessário, arregalando os olhos para Romilly e murmurando, num tom sugestivo:

— Gostaria que eu ficasse e o ajudasse, jovem senhor? Seria um prazer lavar seus pés e esfregar suas costas; e por meia moeda de prata ficarei por tanto tempo quanto quiser, e também partilharei sua cama.

Romilly teve de fazer outra vez grande esforço para dissimular um sorriso: era uma situação embaraçosa. Será que parecia mesmo um rapaz tão bonito ou a mulher queria apenas ganhar algum dinheiro? Ela sacudiu a cabeça.

— Estou cansado da viagem. Quero apenas tomar um banho e dormir.

— Quer que eu mande chamar então uma massagista, jovem senhor?

— Não, não preciso de nada... pode sair e me deixar tomar o banho. — Romilly falou com firmeza, mas deu à mulher outra moeda pequena e agradeceu por seu trabalho. — Volte dentro de uma hora para levar a tina.

Finalmente segura da privacidade, ela despiu-se e entrou na tina.

Esfregou-se vigorosamente com a erva-sabão, deitou-se na água quente com um suspiro de satisfação. Lavara-se toda pela última vez na cabana da velha, quando fingia que tencionava casar com Rory. Em Nevarsin lavara-se da melhor maneira que pôde, mas não se atrevera a usar a casa de banho do mosteiro nem ousara tentar encontrar uma casa de banho para mulheres na cidade, embora devesse haver algumas. Não podia ser vista saindo de tal lugar.

Que coisa esplêndida era um banho! Ela continuou deitada na água quente, desfrutando o prazer, até que finalmente a água esfriou. Saiu, enxugou os cabelos com todo cuidado, colocou as roupas de baixo mais limpas. Olhou ansiosa para a cama de Orain, já preparada pelas criadas; com certeza ele terminara de se lavar na casa de banho, encontrara uma mulher em algum lugar para a noite e aquela boa cama seria desperdiçada, enquanto ele dormia no leito de alguma mulher das ruas. Romilly percebeu que sentia uma pontada de ciúme — recordou o sonho em que Orain a acariciara no sono e ficara feliz porque ele a tocara —, será que realmente invejava a desconhecida em cujo leito ele passaria aquela noite?

Mas agora devia chamar a criada para levar a tina e ir para seus alojamentos no estábulo; havia bastante feno para mantê-la aquecida, cobertores em quantidade suficiente, podia até pedir mais, e também tijolos quentes, se quisesse. Ela vestiu o culote e chamou a criada, depois foi bater na porta de Caryl. O menino já estava na cama, meio adormecido, mas sentou para abraçá-la como se fosse sua irmã, desejou-lhe boa-noite e no instante seguinte voltou a se estender, dormindo. Era uma cama grande, dava para três ou quatro pessoas, Romilly sentiu-se tentada a deitar e dormir ao lado do menino. Afinal, já haviam dormido juntos várias vezes, durante a viagem. Mas ela compreendeu que Caryl ficaria embaraçado se a encontrasse ali pela manhã — ele já tinha idade bastante para ter consciência dela como mulher. Não teria muita importância, ela pensou, bocejando e relutando em sair para o estábulo, se deitasse para dormir um pouco — com certeza Orain não voltaria à estalagem antes do amanhecer, e se aparecesse antes estaria tão bêbado que não a notaria ali, não se importaria se fosse uma mulher ou um cachorro. Ele nunca saberia que ela era mulher, se viajara em sua companhia durante todo aquele tempo e não descobrira. Além disso, Orain não possuía o inconveniente laran que a traíra para Caryl e talvez para Dom Cario.

Dormiria um pouco ali... poderia despertar e ir para o estábulo se ouvisse Orain subindo a escada. A cama era sedutora demais, depois de tanto tempo na estrada. A criada, quando fora buscar a tina, esquentara os lençóis com uma panela de carvões em brasa, que exalavam uma convidativa fragrância de frescor. Romilly não hesitou mais. Deitou-se vestida, puxou as cobertas e começou a cochilar. No fundo de sua mente, cautelosa, pensou: não devo cair em sono profundo, preciso ir para o estábulo, Orain pode voltar antes do momento que imagino... e no instante seguinte mergulhou em profundo sono.

A porta rangeu, Orain entrou no quarto sem fazer barulho, tirando as roupas e bocejando, instalando-se na beira da cama. Romilly sentou, chocada e surpresa por ter dormido tanto. Ele sorriu.

— Ora, rapaz, fique onde está — murmurou Orain, sonolento. — A cama é bastante grande para dois.

Ele andara bebendo, Romilly percebeu, mas não estava embriagado. Estendeu a mão e passou-a de leve pelos cabelos de Romilly.

— Tão macios... deve ter tomado um bom banho.

— Vou sair agora... Orain sacudiu a cabeça.

— A porta externa da estalagem está trancada. Não pode mais sair. — A voz adquirira outra vez o sotaque suave das terras baixas. — Fique aqui, rapaz... já estou quase dormindo.

Ele tirou as botas e os trajes externos; Romilly, afastando-se para o outro lado da cama, enfiou a cabeça sob as cobertas e adormeceu.

Ela nunca soube o que a despertou, mas teve a impressão de que foi um grito: Orain remexeu-se na cama, virou-se, soltou um grito e sentou-se, empertigado.

— Ah, Carolin... vão pegar você...

Ele olhava fixamente para o quarto vazio, a voz tão cheia de terror que Romilly compreendeu que sonhava. Puxou-o pelo braço e disse:

— Acorde! É apenas um pesadelo!

— Ah... — Orain respirou fundo e a racionalidade voltou a seu rosto. — Vi meu irmão, meu amigo, nas mãos de Rakhal, Zandru lhe mandou açoites de escorpião...

Seu rosto ainda estava transtornado, mas ele tornou a deitar-se. Romilly, enroscando-se, tentou voltar a dormir. Após um momento, porém, sentiu o braço de Orain envolvê-la, puxá-la suavemente. Ela se desvencilhou, assustada. E ele murmurou, com sua voz mais gentil:

— Não sabe como me sinto, rapaz? É tão parecido com Carolin quando éramos meninos juntos... cabelos vermelhos... e tão tímido e retraído, mas tão corajoso quando há necessidade...

Romilly pensou, tremendo: Mas não há necessidade disso, sou mulher... ele não sabe, mas está tudo bem, direi a ele que está tudo bem... Ela tremia embaraçada, inibida, mas ainda assim a profunda afeição que sentia por Orain levou-a a pensar que não era como quando Dom Garris a apalpara nem quando Rory tentara possuí-la à força...

Romilly sentou na cama abruptamente, abraçou-o, encostou a cabeça em seu ombro.

— Está tudo bem, Orain, está tudo bem... — ela sussurrou, os lábios quase roçando o rosto dele. — Você sabia durante todo o tempo, não é mesmo? Eu... eu...

Ela não podia dizer. Pegou a mão de Orain e conduziu-a para dentro de sua túnica, contra o seio.

Ele sentou bruscamente, desvencilhando-se, o rosto pegando fogo.

— Pelo fogo do inferno! — Orain balbuciou, num constrangimento incrédulo, chocado, com horror, uma real consternação. — Pelo fogo do inferno, você é mulher!

Ele saltou da cama e ficou parado ao lado, fitando-a fixamente, ajeitando o camisolão, atordoado, logo desviou os olhos, numa reação de recato.

— Mil perdões, damisela... humildemente suplico que me perdoe... nunca, nunca... nunca imaginei por um momento sequer... pela misericórdia de Avarra, damisela, não posso acreditar! Quem é você?

Ela respondeu, sacudida por calafrios, todo o corpo tremendo com o choque da rejeição:

— Romiliy MacAran.

E desatou a chorar.

— Oh, Deuses abençoados! — exclamou Orain, inclinando-se para envolvê-la com o cobertor. — Eu... não chore, alguém pode ouvi-la... eu não faria qualquer mal, damisela...

Ele engoliu em seco e recuou, balançando a cabeça consternado.

— Que terrível confusão e como banquei o rematado idiota! Perdoe-me, damisela, nunca lhe encostaria um dedo...

Romilly chorou ainda mais do que antes e ele tornou a se inclinar, tentando gentilmente aquietá-la.

— Ah, não chore, damisela, não há motivo para chorar... fique calma... somos amigos de qualquer maneira, não é mesmo? Não me importo que seja uma garota, devia ter seus motivos...

Esforçando-se para conter as lágrimas de Romilly, ele limpou seu nariz suavemente com o lençol e sentou na cama.

— Calma, calma, seja uma boa moça, não chore... não acha que seria melhor se me contasse tudo, minha querida?

 

A ESPADACHIM

 

A neve caíra perto do amanhecer e as ruas de Caer Donn estavam cobertas por um lençol branco. Mesmo assim, havia uma suavidade no ar que revelava a Romilly, criada no campo, que o degelo da primavera se aproximava e aquele era o último sopro do inverno.

O pai sempre disse que apenas o louco ou o desesperado viaja no inverno; e agora já atravessei o pior das Hellers depois da noite do Solstício do Inverno. Por que estou pensando nisso agora?

Orain afagou seu ombro com a mesma deferência desajeitada que demonstrava desde a noite anterior. E que a deixava com vontade de chorar pelo antigo e descontraído companheirismo perdido. Deveria saber que ele não gostaria tanto dela como mulher; quando pensava melhor sobre o assunto, podia perceber que estava escrito nele e devia ser evidente para todos no grupo, menos para ela.

— Aqui estamos, damisela.

Ela reagiu com irritação:

— Meu nome é Romilly, Orain, e não mudei tanto assim.

Os olhos de Orain, ela pensou, pareciam os de um cachorro escorraçado. Ele murmurou:

— Aqui é o abrigo da Irmandade.

Ele subiu os degraus, esperando que Romilly o seguisse. A partir do momento em que sabia... é claro que não podia permitir que ela enfrentasse os perigos da vida no acampamento e nas trilhas pela floresta. Sempre estaria consciente agora de seu sexo indesejável. E, afinal, aquela era a melhor solução.

Uma mulher de rosto duro, com mãos fortes e calejadas, que pareciam mais apropriadas para empunhar um forcado, recebeu-os na sala da frente... ou, pensou Romilly, recebeu-os não era a palavra adequada, mas pelo menos deixou-os entrar. Orain disse:

— Por gentileza, informe a Ama Jandria que o primo dela veio visitá-la.

Sua voz era outra vez impecavelmente cortês, a voz refinada do cortesão, com o último vestígio do sotaque rural oculto com o maior cuidado. A mulher fitou-os desconfiada e disse:

— Sentem ali.

Ela apontou para um banco como se os dois fossem moleques das ruas que vinham esmolar. Saiu por um corredor. Romilly podia ouvir vozes de mulheres na outra extremidade do prédio. Em algum lugar um martelo batia numa bigorna — pelo menos era o que parecia — e o som familiar e amistoso reduziu um pouco a apreensão de Romilly. Todas as portas da sala da frente estavam fechadas, mas enquanto eles se encontravam ali, duas jovens, usando túnicas escarlates, os cabelos metidos sob gorros vermelhos, passaram de braços dados. Não eram obviamente o que a madrasta de Romilly chamaria de damas: uma possuía enormes mãos vermelhas, como as de uma leiteira, usava uma calça comprida e larga, por cima das botas.

No fundo da sala outra mulher apareceu. Era esguia e bonita, Romilly calculou que tinha mais ou menos a idade de Orain, quarenta anos, ou por aí, os cabelos escuros e rentes, com fios brancos nas têmporas.

— E então, parente, o que quer conosco? — Ela tinha o sotaque rural que Orain aprendera a ocultar. — E o que o traz aqui no inverno? Negócios do rei, pelo que ouvi dizer... e como ele está?

Ela se aproximou e deu-lhe um abraço rápido e jovial, "um beijo casual em algum lugar da face dele".

— O rei está bem, Aldones seja louvado, com os Aldaran no momento — respondeu Orain suavemente. — Mas tenho dois pupilos para entregar aos seus cuidados, Janni.

— Dois? — As sobrancelhas grisalhas se altearam numa careta cômica. — Em primeiro lugar, o que é isso, rapaz ou moça... ou ainda não se decidiu?

Romilly, com um rubor escaldante, baixou os olhos para o chão; a zombaria jovial da mulher parecia descartá-la como coisa inútil.

— Seu nome é Romilly MacAran — informou Orain. — E não zombe dela, Janni. Viajou conosco pelo pior clima e região das Hellers e nenhum de nós, nem mesmo eu, percebeu que era mulher. Cumpriu toda a sua parte e cuidou de nossos pássaros-sentinelas, o que eu nunca soube que uma mulher podia fazer. Trouxe-os vivos e em boas condições, assim como os cavalos. Achei que ela era um rapaz competente, mas a situação é ainda mais extraordinária do que imaginei. Por isso eu a trouxe para você...

— Já que não tinha uso para ela depois que descobriu que não era um dos seus rapazes — comentou Jandria, com um sorriso irônico.

Ela fez uma pausa, fitando Romilly.

— Não pode falar por si mesma, menina? O que a levou para as montanhas em roupas de homem? Se foi para melhor procurar um homem, então pode sair, pois não queremos entre nós mulheres que possam nos trazer a alcunha de meretrizes disfarçadas. Viajamos com os exércitos, mas não somos vivandeiras, que isso fique bem claro! Por que deixou sua casa?

O tom ríspido pôs Romilly na defensiva.

— Saí de casa porque meu pai pegou o falcão que treinei pessoalmente, com minhas próprias mãos, e deu-o a meu irmão; e achei que isso não era justo. Também não queria casar com o Herdeiro de Scathfell, que me obrigaria a ficar sentada dentro de casa, bordando almofadas e criando seus horríveis filhos!

Os olhos de Jandria pareciam penetrar no seu interior.

— Tem medo do casamento e parto, hem?

— Não, não é isso — respondeu Romilly bruscamente. — Mas gosto de cavalos, cachorros e falcões, e se algum dia me casar... — Ela não sabia o que ia dizer até que falou. — ... gostaria de casar com um homem que me queira como sou, não como uma boneca pintada que ele possa chamar de esposa sem pensar no que ou quem ela é! E prefiro casar com um homem que não pense que sua masculinidade está ameaçada se a esposa for capaz de sentar numa sela e carregar um falcão! Mas não desejo casar, ou pelo menos não agora. Quero viajar, conhecer o mundo, fazer coisas...

Ela parou. Estava se saindo muito mal. Parecia uma filha descontente e desobediente, não mais do que isso. Mas era assim e não de outra forma, se Ama Jandria não gostasse... Ora, já vivera como homem em segredo antes e poderia muito bem fazê-lo de novo, se fosse preciso!

— Não estou pedindo sua caridade, Ama Jandria, e Orain me conhece melhor do que isso!

Jandria riu.

— Meu nome é Janni, Romilly. E Orain não sabe nada sobre as mulheres.

— Ele gostou muito de mim até descobrir que eu era mulher — comentou Romilly, espicaçada outra vez pela lembrança.

Janni riu de novo.

— É isso o que eu estava querendo dizer. Agora que ele sabe, nunca mais a verá da mesma maneira. Sempre achará que deveria estar usando saias e fazendo coisas de mulher, a fim de não ser levado a confiar contra a vontade. Baixou a guarda para você antes, não duvido, pensando que era seguro, agora nunca a perdoará por isso... não é mesmo?

— Está sendo muito dura comigo, Janni — murmurou Orain, contrafeito. — Mas tenho certeza que pode compreender que Ama MacAran não tem condições de continuar a viajar com homens e levar uma vida árdua de acampamento, ainda mais com os homens rudes que eu comando.

— Apesar de ela ter feito isso durante dez dias — comentou Jandria, com a insinuação de um sorriso irônico. — Mas tem razão, este é o lugar para ela; e se é mesmo competente com cavalos e pássaros, sempre podemos aproveitá-la, se estiver disposta a viver conforme nossas regras.

— Como posso saber enquanto não conhecê-las? — indagou Romilly.

Jandria soltou uma risada.

— Gosto dela, primo. Pode deixá-la comigo, não vou mordê-la. Mas espere um pouco... disse que tinha dois pupilos para mim...

— Isso mesmo. O outro é o filho de Lyondri Hastur, Carolin. Ele era estudante no mosteiro em Nevarsin e caiu em nossas mãos como refém... não importa como aconteceu, é melhor se você não souber. Mas dei minha palavra de que o menino será enviado para Thendara sob uma bandeira de trégua, ileso, assim que as passagens estiverem abertas. Não posso acompanhá-lo pessoalmente...

— Não, claro que não pode. Por mais que sua cabeça esteja recheada de besteiras e seja feia como o pecado, ainda adorna seus ombros melhor do que adornaria a ponta de uma lança nos portões do covil de Lyondri. Está certo, levaremos o rapaz para Thendara por você; eu mesma posso ir. Lyondri não vê meu rosto desde que dançávamos juntos em festas de crianças e não lembraria dele sem os cachos compridos e as fitas nos cabelos. — Ela riu, como se fosse uma piada particular. — Qual é a idade do jovem Carolin agora? Deve ter oito ou nove...

— Acho que doze anos, e é um bom menino — disse Orain. — É uma pena que tenha se envolvido em tudo isso, mas salvou meu pescoço e os de meus homens. Carolin tem todos os motivos para ser grato a seu afilhado. Por isso, Janni, guarde-o bem.

Ela assentiu.

— Eu o levarei para o sul assim que as passagens estiverem abertas; pode mandá-lo para cá. — Jandria riu mais uma vez e tornou a abraçar Orain. — E agora deve ir embora, parente... o que será da minha reputação se souberem que recebi um homem aqui? Ou, pior ainda, o que dirão de você se se espalhar a notícia de que é capaz de falar cortesmente com uma mulher?

— Ora, Janni, pare com isso... — Mas Orain levantou-se para partir. Olhou embaraçado para Romilly, estendeu a mão. — Desejo-lhe boa sorte, damisela.

Desta vez ela não se deu ao trabalho de corrigi-lo. Se Orain não podia perceber que ela era a mesma, estivesse com as roupas de um homem ou assumindo o nome de uma Grande Casa, tanto pior para ele; não parecia mais o seu amigo Orain. Romilly sentiu vontade de chorar de novo, mas não o fez, pois Janni a observava, como se a avaliasse. Depois que Orain se retirou e a porta estava fechada, ela indagou:

— O que aconteceu? Ele tentou atraí-la para a cama e recuou horrorizado quando descobriu que você era mulher?

— Não foi exatamente assim — protestou Romilly, saindo em defesa de Orain, sem saber por quê. — Foi... ele me tratou muito bem, pensei que sabia que eu era mulher e me queria assim... Não sou uma vagabunda. Uma vez quase matei um homem que queria me possuir contra a minha vontade.

Ela estremeceu e fechou os olhos; pensara que estava livre do horror angustiante da tentativa de estupro de Rory, mas isso não ocorrera.

— Mas Orain foi bom e eu... eu gostava muito dele, apenas pensei em ser gentil, se era o que ele queria tanto.

Janni sorriu e Romilly se perguntou, na defensiva, o que podia ser tão engraçado. Mas a mulher mais velha limitou-se a dizer, suavemente:

— E você ainda é donzela, não duvido.

— Não me envergonho por isso!

— Como você é melindrosa! Vai viver de acordo com nossos regulamentos?

— Só poderei responder se me explicar quais são.

Janni tornou a sorrir.

— Muito bem. Será irmã de todas nós, qualquer que seja a posição que cada uma possa ter? Pois deixamos as posições para trás quando ingressamos na Irmandade; não será Dama ou damisela aqui, e ninguém saberá que nasceu numa Grande Casa, ou se importará com isso. Deve realizar sua parte de qualquer trabalho que tivermos e nunca pedir clemência ou consideração especial porque é mulher. E se tiver ligações amorosas com homens, deve conduzi-las numa decente privacidade, para que nenhum homem jamais possa dizer que a Irmandade é uma companhia de vivandeiras. A maioria jurou viver em celibato enquanto seguirmos os exércitos e a espada, embora seja uma coisa que não impomos a ninguém.

Parecia exatamente o que Romilly desejava. E foi o que ela disse.

— Mas é capaz de jurar?

— Com o maior prazer.

— Deve jurar então que sua espada estará sempre pronta para defender qualquer uma de nossas irmãs, na paz ou na guerra, caso algum homem ponha as mãos em uma que não o deseje.

— Eu teria o maior prazer em jurar isso, mas não creio que minha espada seria de alguma utilidade, pois nada sei de esgrima.

Janni sorriu e abraçou-a.

— Nós lhe ensinaremos. E agora pegue suas coisas e vamos para a sala interna. O tolo do Orain lembrou-se de lhe servir um desjejum ou estava com tanta pressa de livrar-se de você que esqueceu que as mulheres também sentem fome?

Romilly, ainda magoada com a rejeição e a angústia, não queria acompanhar Janni na diversão à custa de Orain, mas era tão próximo ao que de fato acontecera que não pôde deixar de rir.

— Estou mesmo com fome — ela confessou.

Janni pegou um dos seus fardos.

— Tenho um cavalo no estábulo da estalagem — informou Romilly.

— Mandarei uma das irmãs buscá-lo, em seu nome. Vamos para a cozinha, o desjejum foi servido há muito tempo, mas sempre podemos conseguir algum pão e mel... E depois furaremos suas orelhas para que possa usar nosso símbolo, e as outras mulheres saberão que é uma de nós. Poderá prestar o juramento esta noite. Apenas por um ano, a princípio, mas depois, se gostar da vida, por três anos. E quando tiver vivido entre nós por quatro anos, pode decidir se deseja assumir um compromisso pela vida inteira, se prefere continuar sozinha ou voltar para sua família e casar.

— Nunca! — exclamou Romilly, com a maior veemência.

— Treinaremos esse falcão quando as penas de suas asas estiverem crescidas. Por enquanto, pode tomar a espada conosco e se tiver alguma habilidade com falcões e cavalos será ainda mais bem acolhida. Nossa velha treinadora de cavalos, Mhari, morreu da febre dos pulmões neste inverno e as mulheres que trabalhavam com ela estão com os exércitos no sul. Nenhuma das mulheres no abrigo neste momento sabe sequer montar direito, muito menos domar os cavalos para a sela. Pode fazer isso? Temos quatro potros prontos para serem domados e muitos mais em nosso abrigo próximo a Thendara.

— Fui criada no Ninho dos Falcões — disse Romilly. Mas Janni levantou a mão em advertência.

— Nenhuma de nós tem família ou passado além de nossos nomes. Devo avisá-la de novo que não é dama ou damisela MacAran entre nós.

Censurada, Romilly ficou calada.

Mas não importa qual o nome que eu me dê, ainda sou Romilly MacAran, do Ninho dos Falcões. Não estava me gabando de minha linhagem, apenas explicando como pude ser treinada — dificilmente aprenderia essas coisas em qualquer lugar nas colinas! Mas se ela prefere pensar que eu queria me gabar, nada do que eu disser poderá mudar essa opinião, e ela deve pensar o que quiser. Romilly sentia-se como se fosse velha, cética e experiente, tendo obtido grande sabedoria. Seguiu Janni em silêncio pelo corredor e através das grandes portas no final dele.

Sua linhagem também deve ser boa, apesar de toda sua recusa em falar a respeito, já que falou em ter dançado com Lyondri Hastur em festas de crianças. Talvez ela também tenha sido advertida para não comentar seu passado.

 

Foi um dia longo e movimentado. Romilly comeu pão, queijo e mel na cozinha, foi enviada para praticar combate desarmado com um grupo de moças, todas mais competentes do que ela — não entendia um único dos movimentos que tentavam lhe ensinar, sentiu-se desajeitada e tola. Mais tarde, ainda naquele mesmo dia, uma mulher de rosto duro, na casa dos sessenta anos, deu-lhe uma espada de madeira, como as que ela e Ruyven brincavam quando eram crianças, tentou ensinar-lhe os movimentos defensivos básicos, mas Romilly sentiu-se completamente perdida nisso também. Havia tantas mulheres — ou pelo menos pareciam muitas, embora descobrisse na hora do jantar que havia apenas dezenove mulheres no abrigo — que ela não podia sequer recordar seus nomes. Posteriormente ela pôde fazer amizade com os cavalos no estábulo, para onde o seu fora levado — descobriu ser mais fácil lembrar os nomes dos animais —, e havia também uns poucos chervines. E depois Janni furou suas orelhas e pendurou pequenas argolas de ouro.

— Apenas enquanto os furos estiverem cicatrizando — ela explicou. — Depois terá o emblema da Irmandade. Por enquanto, deve ficar girando as argolas para que os furos cicatrizem sem infecção e lavá-los três vezes por dia com água quente e folha de espinheiro.

Depois, na presença das mulheres reunidas, apenas rostos indefinidos para os olhos cansados de Romilly, Janni conduziu-a no juramento da Irmandade. Até o degelo da primavera do ano seguinte Romilly estava presa por juramento à Irmandade da Espada. Isso feito, as mulheres começaram a lhe fazer perguntas, que ela hesitou em responder, diante da proibição de Janni de fazer comentários sobre sua vida passada. Deram-lhe uma camisola bastante usada e remendada, e ela foi para um quarto comprido, com meia dúzia de camas, ocupadas por moças de sua idade, ou mais jovens. Teve a impressão de que mal adormecera quando foi despertada pelo som de uma sineta, estava lavando o rosto e se vestindo num quarto com meia dúzia de moças, todas correndo de um lado para outro semidespidas e brigando por causa das bacias com água.

Durante os primeiros dias Romilly experimentou a sensação de que estava sempre ofegante atrás de um grupo de mulheres correndo para algum lugar e que precisava acompanhar de qualquer maneira. As aulas de combate desarmado assustavam-na e confundiam-na... e a instrutora tinha uma voz ríspida e furiosa. Uma tarde, porém, quando foi mandada para auxiliar na cozinha, onde se sentia mais à vontade, a instrutora, Merinna, apareceu e pediu uma xícara de chá, pôs-se a conversar cordialmente depois de servida, o que levou Romilly a desconfiar que seu rigor nas aulas era uma atitude assumida para forçar todas a prestarem absoluta atenção no que faziam. As aulas de esgrima eram mais fáceis, pois ela algumas vezes tivera permissão para assistir às lições de Ruyven e chegara a praticar com ele — quando tinha oito ou nove anos o pai achava engraçado vê-la empunhando uma espada, embora quando ficara mais velha ele a proibira de assistir às aulas ou sequer tocar numa espada de brinquedo. Pouco a pouco ela se recordou daquelas antigas lições e começou a se sentir bastante confiante, pelo menos com os bastões de madeira usados nos exercícios.

Onde Romilly se sentia mesmo completamente à vontade era com os cavalos no estábulo. Realizava aquele trabalho desde que tinha idade suficiente para esfregar erva-sabão numa sela e poli-la com óleo.

Polia arreios um dia quando ouviu uma algazarra na rua e logo depois uma das moças mais jovens entrou correndo para chamá-la.

— O, Romy, venha... o exército do rei está passando pelo final da rua e Merinna nos deixou sair para olhar! Carolin marchará para o sul assim que as passagens estiverem abertas...

Romilly largou o pano oleoso e correu para a rua, acompanhando Lillia e Marga. Elas se postaram numa porta e ficaram assistindo. A rua estava repleta de cavalos e homens, a multidão de espectadores aclamava Carolin.

— Olhem, olhem, lá vai ele, sob a bandeira prateada com o pinheiro azul dos Hastur... Carolin, o rei! — gritou alguém.

Romilly esticou o pescoço para ver, mas só conseguiu vislumbar um homem alto, com um perfil forte e ascético, não muito diferente de Cario, um momento antes do manto se levantar, deixando à mostra apenas os cabelos avermelhados.

— Quem é aquele homem alto e magro que está logo atrás do rei? — indagou alguém.

Romilly, que o teria reconhecido mesmo no escuro e com o rosto escondido, respondeu:

— Seu nome é Orain, e ouvi dizer que é um dos irmãos adotivos de Carolin.

— Eu o conheço — disse uma das moças. — Ele foi visitar Jandria, alguém me contou que era parente dela, mas fiquei sem saber se devia ou não acreditar.

Romilly observou os cavalos, homens e bandeiras passando, com desprendimento e pesar. Poderia estar ainda cavalgando com eles, se fosse para sua cama no estábulo naquela noite; ainda estaria ao lado de Orain, ainda seria tratada como seu amigo e igual. Mas era tarde demais para isso agora. Ela virou-se abruptamente e disse:

— Vamos entrar e terminar nosso trabalho... já vi muitos cavalos antes e um rei é um homem como os outros, Hastur ou não!

Os exércitos, ela fora informada, estavam se deslocando para uma vasta planície nos arredores de Caer Donn. Poucos dias depois ela foi chamada por Janni. Quando entrou na sala de frente, onde se encontrara com Janni pela primeira vez, deparou com Orain e Caryl.

Orain cumprimentou-a com algum constrangimento, mas Caryl correu para seus braços no mesmo instante.

— Oh, Romilly, como tenho sentido saudades de você! Ora, está vestida de mulher, isso é ótimo, agora não preciso estar sempre me lembrando que devo lhe tratar como se fosse um homem!

— Dom Carolin — disse Janni formalmente, atraindo a atenção do menino.

— Estou escutando, mestra — murmurou Caryl, usando o mais polido dos termos para uma mulher inferior em posição.

— Lorde Orain incumbiu-me de escoltá-lo até Hali e devolvê-lo a seu pai, sob salvo-conduto. Há duas opções: estou disposta a tratá-lo como um homem de honra e indagar suas preferências, em vez de tomar as decisões por você. Tem idade bastante para me escutar a sério, responder com sensatez e manter sua palavra?

O rostinho de Caryl estava tão sério quanto nos momentos em que ele cantava na capela em Nevarsin.

— Tenho, sim, mestra Jandria.

— A situação é simples. A outra opção será tratá-lo como prisioneiro e mantê-lo constantemente vigiado... e não se engane, somos mulheres, mas não seremos negligentes com você, não permitiremos que escape.

— Sei disso, mestra — ele respondeu polidamente. — Tive uma governanta que era muito mais rigorosa comigo do que qualquer dos mestres e irmãos no mosteiro.

— Pois então pode responder agora. Será nosso prisioneiro ou nos dará sua palavra de que não tentará fugir, a fim de que possa cavalgar ao nosso lado e desfrutar a viagem na medida do possível? Será uma viagem árdua e tudo se tornará mais simples se pudermos permitir que siga sem ser vigiado a cada momento do dia e da noite, sem precisar amarrá-lo à noite. Não hesitarei em aceitar o compromisso de um Hastur, se me der sua palavra de honra.

Caryl não respondeu imediatamente, indagando primeiro:

— São inimigas de meu pai?

— Não particularmente — respondeu Janni. — De seu pai, meu rapaz, sei apenas o que me contaram. Mas sou inimiga de Rakhal, de quem seu pai é amigo; portanto, não confio nele. Mas também não foi a ele que pedi a palavra de honra. Estou tratando com você, Dom Carolin, não com seu pai.

— Romilly irá conosco?

— Pensei em entregá-lo aos cuidados de Romilly, já que ela viajou com você antes, se isso for do seu agrado.

Ele sorriu.

— Eu gostaria muito de viajar com Romilly. E com o maior prazer darei minha palavra de honra de que não tentarei escapar. O que quer que aconteça, não poderia viajar sozinho pelas Hellers. Prometo que acatarei suas ordens até ser devolvido às mãos de meu pai, mestra.

— Muito bem — disse Janni. — Aceito sua palavra, assim como deve aceitar a minha de que o tratarei como a uma das minhas irmãs e não lhe imporei qualquer indignidade. Quer me dar a sua mão para selar o acordo, Dom Carolin?

Ele estendeu a mão e trocaram um aperto. Depois, Caryl disse:

— Não precisa me chamar de Dom Carolin, mestra. Esse é o nome do antigo rei, que é inimigo de meu pai, embora não seja meu. Sou chamado de Caryl.

— E você deve me chamar de Janni, Caryl. — Ela sorriu finalmente. — Será nosso hóspede, não um prisioneiro. Romy, leve-o para o quarto de hóspedes e providencie tudo o que ele precisar. Orain, partiremos amanhã, se o tempo permitir.

— Eu lhe agradeço, prima. E a você também — acrescentou Orain, virando-se para Romilly e inclinando-se cerimonioso sobre sua mão como um cortesão, ela pensou.

Magoada, ela refletiu que poucos dias antes Orain a teria envolvido com um rude abraço. E torceu, de forma súbita e intensa, para que nunca mais se encontrassem.

Deixaram Caer Donn na manhã seguinte, bem cedo, é já estavam há uma hora na estrada quando o sol vermelho surgiu, enorme e gotejante com a neblina. Caryl cavalgava no pônei que Jandria preparara para ele, ao lado do cavalo de Romilly; atrás, seguiam seis mulheres da Irmandade, conduzindo uma dúzia de bons cavalos para os exércitos no sul, segundo informaram. Não explicaram que exércitos e Romilly teve a precaução de não perguntar.

Era bom viajar outra vez ao sol, sem o frio e as tempestades do início da jornada através das Hellers. Pararam ao meio-dia para alimentar os cavalos e descansá-los um pouco; depois, seguiram em frente. Armaram acampamento ao final da tarde e, por ordem de Jandria, um dos cavalos de carga foi descarregado. Enquanto duas mulheres acendiam o fogo, Janni chamou Romilly.

— Venha até aqui me ajudar a montar esta tenda, Romy...

Romilly não tinha a menor idéia de como se montava uma tenda, mas obedientemente esticou cordas e cravou pinos onde Janni mandava; não demorou muito para que uma lona grande impermeável estivesse pronta para ser usada. Os cobertores foram estendidos no interior da tenda. A chuva fina do anoitecer não afetou o fogo do jantar sob a cobertura de lona. Logo o caldo estava pronto, quente e saboroso, com fatias de cebola fritas na gordura de uma ave assada. As mulheres sentaram de pernas cruzadas em seus cobertores, comendo em tigelas de madeira.

— Está tudo ótimo — comentou Caryl, com admiração. — Os homens nunca armam um acampamento tão confortável.

Janni riu.

— São tão bons para cozinhar e caçar quanto as mulheres e lhe diriam isso, se perguntasse; mas talvez pensem que não é viril procurar o conforto nos acampamentos e prefiram condições difíceis, porque isso faz com que se sintam duros e fortes. Quanto a mim, não me agrada dormir na chuva, e não sinto a menor vergonha em admitir que gosto de conforto.

— Eu também gosto — concordou Caryl, roendo uma das pontas de seu osso. — Assim é melhor, Janni. Obrigado.

Uma das mulheres, Lauria, que Romilly não conhecia muito bem, pegou uma harpa e começou a tocar. Sentaram em torno da fogueira, cantando baladas das montanhas, por cerca de meia hora. Caryl ficou escutando, os olhos brilhando, mas acabou recostando-se, sonolento, meio adormecido. Janni gesticulou para Romilly e disse:

— Pode tirar as botas do rapaz e ajeitá-lo no cobertor?

— Claro.

Romilly começou a remover as botas de Caryl, mas ele sentou no mesmo instante e protestou, sonolento. Lauria interveio, irritada:

— Deixe que o menino cuide de si mesmo, Romy! Janni, por que uma de nossas irmãs deveria servir ao rapaz, que é nosso prisioneiro? Não somos súditas nem servas dos Hastur!

— Ele é apenas um menino — respondeu Janni, apaziguadora. — E estamos sendo bem pagas para cuidar dele.

— Ainda assim, a Irmandade não tem escravas para um desses homens — insistiu Lauria. — Fico espantada, Janni, que por dinheiro você aceitasse a missão de escoltar um menino pelas montanhas...

— Menino ou menina, ele não pode viajar sozinho e não precisa ser envolvido nas desavenças dos adultos! — respondeu Janni. — Além do mais, Romilly está disposta a cuidar dele...

— Não duvido — comentou uma das estranhas, com uma risada desdenhosa. — Uma dessas mulheres que ainda pensam que seu dever na vida é servir algum homem... ela desgraçaria seu brinco...

— Cuido do menino porque ele está com sono demais para cuidar de si mesmo! — explodiu Romilly. — E porque ele tem mais ou menos a idade do meu irmão menor! Não cuidaria de seu irmãozinho, se o tivesse... ou se considera superior demais para cuidar de alguém que não seja você mesma? Se o Sagrado Portador dos Fardos pôde carregar o Mundo-criança em seus ombros através do Rio da Vida, por que não posso cuidar de qualquer criança que caia em minhas mãos?

— Ah, uma cristoforo! — escarneceu uma das mulheres mais jovens. — Recita o Credo de Castidade antes de dormir, Romy?

Romilly já ia dar uma resposta furiosa — não fazia comentários grosseiros sobre os Deuses das outras, era melhor que não falassem de sua religião —, mas percebeu que Janni franzia o rosto e limitou-se a comentar, suavemente:

— Posso pensar em coisas piores para dizer em vez disso.

Ela virou as costas à jovem irada e foi estender o cobertor de Caryl ao lado do seu.

— Vamos deixar que um macho durma em nossa tenda? — indagou a moça que protestara antes, furiosa. — Essa é uma tenda só para mulheres!

— Cale-se, Mhari! — respondeu Janni, irritada. — O menino não pode dormir na chuva, junto com os cavalos. Os regulamentos da Irmandade visam o bom senso e ele é pouco mais que um bebê! É bastante tola para pensar que ele será capaz de estuprar uma de nós?

— É uma questão de princípio — insistiu Mhari. — Porque o pirralho é um Hastur vamos permitir que se intrometa num lugar da Irmandade? Eu sentiria a mesma coisa se ele não tivesse mais que dois anos!

— Espero que você nunca tenha o mau gosto de gerar um filho em vez de uma filha — disse Janni, irônica. — Por uma questão de principio, iria se recusar a amamentá-lo no seio? Vá dormir, Mhari; o menino ficará deitado entre Romilly e eu, e protegeremos sua virtude.

Caryl abriu a boca para falar, mas Romilly cutucou-o nas costelas e ele não disse nada. Ela percebeu que o menino fazia um esforço para não rir. Parecia tolice, mas ela calculou que as irmãs tinham regras e princípios, da mesma forma que os irmãos em Nevarsin. Deitou ao lado de Caryl e dormiu.

Descobriu-se sonhando, sonhos bem nítidos, como se estivesse voando, ligada mentalmente a Preciosa, sobrevoando as colinas verdes e ondulantes de sua terra. Despertou com um aperto na garganta, recordando a paisagem do longo vale dos penhascos do Ninho dos Falcões. Algum dia tornaria a ver seu lar, a irmã e os irmãos? Os furos nas orelhas doíam. Sentia saudades de Orain e Cario, até mesmo do rude Alaric. E ainda não fizera amizade entre aquelas estranhas mulheres. Mas estava ligada a elas por um ano pelo menos, não havia como evitá-lo. Prestou atenção a Caryl, serenamente dormindo a seu lado, escutou a respiração das mulheres na tenda. Nunca se sentira tão sozinha em toda a sua vida, nem mesmo quando fugira da cabana de Rory na montanha.

Seguiram para o sul por cinco dias e chegaram ao rio Kadarin, a tradicional barreira entre os Domínios das terras baixas e os contrafortes das Hellers. Parecia a Romilly que deviam dar mais importância ao ingresso em território estranho, mas para Janni era apenas a travessia de outro rio. Cruzaram-no sem problemas, num vau em que a água mal alcançava os boletos dos cavalos. As colinas não eram mais tão altas e pouco depois alcançaram um platô ondulante. Caryl ficou radiante; mantivera-se animado durante toda a viagem e agora estava exultante. Romilly imaginou que ele se sentia contente por estar perto de casa e porque a aventura interrompera seus estudos.

Contudo, ela estava apreensiva sem montanhas ao redor; experimentava a sensação, enquanto cavalgava pela terra plana, sob o céu aberto, de que era alguma coisa pequena, exposta; a todo instante esquadrinhava os ares, assustada, como se temesse que alguma ave de rapina pudesse de repente baixar e arrebatá-la em suas garras poderosas. Sabia que era ridículo, mas mesmo assim continuou a examinar o céu pálido, povoado por nuvens violetas, como se alguma coisa a vigiasse. Caryl, viajando a seu lado, finalmente percebeu o ânimo dela, com seu laran sensível.

— Qual é o problema, Romy? Por que fica olhando para o céu desse jeito?

Ela não tinha uma resposta objetiva e tentou explicar com uma evasiva.

— Eu fico apreensiva sem montanhas ao redor... sempre vivi nas colinas e me sinto exposta aqui.

Romilly fez um esforço para soltar uma risada, tornando a contemplar o céu desconhecido. Lá no alto, uma pequena mancha pairava, nos limites de seu campo de visão. Tentando ignorá-la, ela baixou os olhos para a relva, coberta apenas por uma camada mínima de geada.

— Sabe que espécie de falcoagem existe aqui nas planícies?

— Meu pai e seus amigos têm falcões verrin. Sabe alguma coisa sobres eles, Romy? Existem falcões verrin no outro lado do rio ou apenas aqueles enormes e feios pássaros-sentinelas?

— Eu sei caçar com um falcão verrin, que treinei pessoalmente...

Romilly tornou a olhar ao redor, apreensiva, sentindo a pele arrepiar.

— Você mesma? Uma mulher?

A pergunta inocente reabriu um ferimento antigo e ela respondeu bruscamente:

— Por que não deveria? Fala da mesma forma que meu pai, como se eu não tivesse inteligência ou espírito só porque nasci para usar uma saia em volta das pernas!

— Não tive a intenção de ofendê-la, Romy — murmurou Caryl, com uma gentileza que o fazia parecer muito mais velho do que era. — Acontece apenas que não tenho muito contato com moças, a não ser minha irmã, que ficaria apavorada se tivesse de tocar num falcão. Mas se você é capaz de controlar um pássaro-sentinela e acalmar um pássaro-espírito, como fizemos juntos, então certamente não teria dificuldades para treinar um falcão.

Ele virou-se para fitá-la, observando com a cabeça um pouco inclinada para o lado, semelhante a um pássaro, os olhos brilhantes e inquisitivos.

— De que tem medo, Romy?

— Não tenho medo de nada — ela respondeu, apreensiva sob o olhar do menino. — Apenas... tenho a sensação de que alguém me vigia.

Ela não sabia o que ia dizer até ouvir suas próprias palavras. Compreendendo agora como era absurdo, tratou de acrescentar, na defensiva:

— Talvez seja apenas porque... a terra é muito plana.. . eu me sinta... completamente exposta.. .

E seus olhos tornaram a esquadrinhar o céu, ofuscados pelo sol, onde ainda pairava uma pequena mancha, nos limites entre o visível e o invisível... Estou mesmo sendo observada!

— Isso não é incomum — comentou Janni, aproximando-se. — Na primeira vez em que fui às montanhas tive a sensação de que estavam se fechando, que podiam se aproximar e tocar minhas saias enquanto eu dormisse. Agora estou acostumada, mas ainda assim quando desço para as planícies tenho a impressão de que um enorme peso foi removido, e posso respirar mais facilmente. Acho que é isso, mais do que todos os reis ou costumes, o que separa os habitantes das colinas dos moradores das terras baixas. Ouvi Orain dizer a mesma coisa, que sempre que se afasta de suas montanhas sente-se nu e com medo sob o céu aberto...

Romilly quase podia ouvi-lo fazendo o comentário, no seu tom gentil, meio irônico. Ainda sentia saudades de Orain, seu companheirismo descontraído, ela parecia como um peixe numa árvore entre todas aquelas mulheres. Suas vozes a irritavam e às vezes pensava que, apesar de toda a habilidade com a espada e o cavalo, pareciam muito com sua irmã Mallina, tolas e tacanhas. Apenas Janni dava a impressão de estar livre da mesquinhez que sempre encontrara nas mulheres. Mas isso só ocorria porque Janni era como Orain e não como uma mulher típica? Ela não sabia e ainda se sentia muito magoada para pensar sobre o assunto agora.

Contudo, ela pensou, contrariada consigo mesma: há quarenta dias eu cheguei à conclusão que gostava da companhia dos homens ainda menos do que da companhia das mulheres. Não estou contente em parte alguma? Por que não posso ficar satisfeita com o que tenho? Se estarei sempre descontente, poderia muito bem ter permanecido em casa e me casado com Dom Garris; e seria descontente no conforto, entre coisas familiares!

Sentiu o contato suave e inquisitivo do laran do menino em sua mente; como se lhe perguntasse qual era o problema. Ela suspirou e sorriu, fez uma sugestão:

— Vamos apostar uma corrida pela campina? Nossos cavalos são iguais e assim o resultado indicará quem monta melhor.

Os dois partiram, lado a lado, tão depressa que Romilly teve de concentrar toda a sua atenção em não cair, parando de pensar no que a perturbava. Alcançou o objetivo determinado um corpo inteiro à frente de Caryl, mas Janni, aproximando-se mais devagar, censurou os dois imparcialmente — não conheciam o terreno, poderiam machucar os cavalos em alguma pedra invisível ou num buraco de animal escondido na relva!

 

Mas naquela noite, ao armarem o acampamento — os dias eram mais longos agora, de forma perceptível, ainda estava claro quando jantaram —, Romilly experimentou outra vez a nítida sensação de que era observada, como se fosse algum pequeno animal, uma presa se encolhendo sob os penetrantes olhos de um falcão. Esquadrinhou o céu que escurecia, mas nada avistou. E depois, para sua incredulidade, surgiu uma sensação familiar de contato, delirante, fugaz. .. e mal pensando no que fazia, ela levantou a mão, sentiu o bater de asas e a pressão das garras.

— Preciosa! — ela gritou, enquanto as garras se fechavam em seu pulso nu.

Abriu os olhos para contemplar o brilho preto-azulado das asas, os penetrantes olhos, foi envolvida pela velha sensação de intimidade. Contra toda e qualquer esperança, além de tudo que se podia acreditar, Preciosa de alguma forma a encontrara depois que saíra da região de geleira, seguira-a pelas colinas desconhecidas até as planícies.

Ela estava em boas condições, esguia, brilhante, bem alimentada. Havia mais caça naquelas planícies do que nas Colinas Kilghard, onde ela fora criada. Uma satisfação sem palavras fluiu entre as duas por longo tempo, Romilly permanecendo sentada, com o falcão na mão.

— Ei, olhem só para isso! — gritou uma das moças, sua voz interrompendo a mútua abstração. — De onde veio o falcão? Ela está enfeitiçada!

Romilly respirou fundo. E disse a Caryl, que a observava em silêncio, extasiado:

— É meu falcão. De alguma forma, ela me seguiu até aqui, tão longe de casa, tão longe...

E parou de falar, chorando tanto que não podia continuar. Perturbada pela emoção, Preciosa bateu as asas, tentando se equilibrar no pulso de Romilly; depois voou para os galhos de uma árvore próxima, onde pousou, olhando para as pessoas sem qualquer indício de medo. Mhari perguntou:

— É seu próprio falcão... o que treinou?

E Janni disse, em voz suave:

— Tinha me contado que seu pai a tirou de você, deu a seu irmão...

Romilly teve de fazer um esforço para controlar a voz.

— Acho que Darren descobriu que Preciosa não era de meu pai para que ele pudesse dá-la.

Através das lágrimas, ela olhou para o galho em que Preciosa estava pousada e outra vez o contato se estabeleceu em sua mente. Ali, entre mulheres estranhas, em terra estranha, com tudo o que já conhecera para trás, e além da fronteira de um rio estranho, olhou para Preciosa e experimentou o familiar contato mental, compreendendo que não estava mais sozinha.

 

Viajaram por mais três dias e entraram numa região quente, de verdejantes e ondulantes colinas, ar suave, apenas com a mais tênue precipitação de geada. Até o final de sua vida Romilly iria se lembrar daquela primeira incursão pelas Planícies de Valeron — pois Caryl dissera que assim eram chamadas —, verdes e férteis, as colheitas desabrochando pelos campos e árvores, sem sequer as ervilhas-de-neve como flores noturnas. Ao longo da estrada havia uma profusão de flores, vermelhas, azuis e prateadas-douradas. O sol vermelho, quente e enorme, naquele céu meridional, projetava sombras púrpuras pela estrada. O próprio ar parecia doce, eufórico. Caryl estava extasiado, apontando pontos de referência para Romilly a todo instante.

— Eu não esperava voltar para casa antes do próximo Solstício do Verão. Ah, como estou contente por voltar...

— E seu pai mandou-o desta região quente e acolhedora para as neves de Nevarsin? Ele deve ser mesmo um bom cristoforo.

Caryl sacudiu a cabeça e naquele momento seu rosto parecia distante, fechado, quase adulto. E ele murmurou:

— Sirvo ao Senhor da Luz, como melhor convém a um Hastur.

Então por que... Romilly quase fez a pergunta, mas aprendera que era melhor não interrogar o menino sobre o pai dele. Mas Caryl captou a indagação em sua mente e acabou explicando:

— Os cristoforos em Nevarsin são sábios e homens de bem. Desde que os Cem Reinos foram criados que há guerra e caos nas terras baixas, e os conhecimentos que se pode adquirir são mínimos; meu pai desejava que eu aprendesse em paz, longe das guerras e a salvo das hostilidades entre os Hastur. Ele não partilha o culto dos Irmãos, mas respeita a religião deles e o conhecimento de que são homens de paz.

Ele se calou e Romilly, respeitando esse silêncio — que cenas de guerra e pilhagem aquele menino testemunhara, longe das colinas protetoras que mantinham os homens a salvo em suas casas-fortalezas? —, seguiu em frente pensativa. Ouvira histórias de guerra, à distância, em suas montanhas pacíficas. Recordou que aquela região verde e tranqüila fora devastada. Parecia agora, para sua percepção hipersensível, manchada com o preto do sangue sob o sol vermelho, tudo escuro, o próprio solo chorando pelo massacre dos inocentes e os horrores de exércitos pisoteando as plantações. Ela estremeceu e abruptamente a cena desapareceu. Romilly compreendeu que estivera partilhando a consciência do menino.

O pai fez muito bem em enviar o filho para a segurança entre os penhascos frios e imperturbáveis da Cidade das Neves; um tempo de descanso, um tempo de curar as feridas de uma criança com laran, sensível e consciente de todos os horrores da guerra. Com súbita e intensa saudade, Romilly sentiu-se grata por sua infância de paz e pela obstinação que mantivera O MacAran como um homem independente, sem aderir a qualquer das facções que arrasavam a terra em sua ânsia de conquista. O que era mesmo que ele costumava dizer? Às forjas mais profundas de seu Deus Zandru com as duas famílias...

Oh, pai, será que algum dia voltarei a vê-lo?

Ela olhou para Caryl, mas ele continuava a avançar em silêncio ao seu lado, sem ver. Romilly compreendeu que ele se encontrava envolto por sua própria angústia, sem perceber a dela ou pelo menos cego no esforço para criar um bloqueio. Como pude chegar a esse ponto, ter de recorrer a um menino de doze anos, não muito mais velho do que meu próprio irmão caçula, em busca de conforto, quando não consigo suportar o destino que eu mesma escolhi? Viajava entre pessoas estranhas e especulou por um momento se cada uma das mulheres ao redor se sentia assim, vergada ao próprio peso extenuante, sustentando sua quota dos fardos impostos à humanidade. É por isso que os homens invocam o Portador dos Fardos como se ele fosse não apenas um mestre de sabedoria, mas também um Deus... para que possamos ter Deuses que suportem nossos fardos, porque de outra forma são pesados demais para a humanidade agüentar?

Ela não podia suportar a tristeza no rosto de Caryl. Pelo menos era uma mulher adulta, podia arcar com seu fardo, enquanto ele não passava de uma criança. E interrompeu o devaneio de Caryl, indagando gentilmente:

— Devo chamar Preciosa do céu para viajar com você? Acho que ela se sente solitária...

Assoviando para Preciosa e ajeitando-a na sela de Caryl, ela foi recompensada quando o peso adulto desapareceu do rosto infantil e ele voltou a ser apenas um menino, observando alegremente um falcão voar para sua sela.

— Quando essa guerra acabar, Romy, quando a terra estiver em paz outra vez, poderei ter você como meu mestre falcoeiro e me ensinará tudo sobre o treinamento de falcões? Ou será que uma moça não pode ser mestre falcoeiro? Então você será minha mestra falcoeira um dia, está bem?

Ela respondeu suavemente:

— Não sei onde qualquer de nós estará quando a guerra terminar, Caryl. Seria um prazer ensinar a você tudo o que sei sobre falcões. Mas lembre-se de que muito do que sei não pode ser ensinado. Você deve descobrir em algum lugar no seu íntimo, em seu coração e no seu laran... — A beira da consciência, Romilly compreendeu que agora se sentia inteiramente à vontade com aquela palavra estranha. — ... para conhecer os pássaros e amá-los, ter noção de seus hábitos.

E ela descobriu que era fácil acreditar que aquele menino tão sensato, com sua percepção sensível de homens e animais, com a seriedade dos monges entre os quais fora criado e a sedução dos Hastur, talvez um dia se tornasse rei. Pareceu por um instante que ela podia ver o brilho luminoso de uma coroa sobre os cachos avermelhados... e depois eliminou a visão indesejável. Estava aprendendo depressa, refletiu, a manipular o dom que lhe fora concedido, e suspendê-lo quando queria.

Fora assim que seu pai aprendera a sobreviver, fora de uma Torre, ela especulou, bloqueando todo o laran que não podia usar em seu trabalho de treinamento de cavalos? E ela teria capacidade de bloquear toda essa nova parte de si mesma? Suportaria tê-la... ou não tê-la? Era um dom aterrador e acarretava algumas penalidades. Não era de admirar, agora, as velhas histórias que circulavam nas montanhas de homens levados à loucura quando seu laran aflorava...

E como Caryl poderia se tornar rei? Seu pai não era rei, mas um vassalo sob juramento de Dom Rakhal; não importava quem ganhasse aquela guerra, Rakhal ou Carolin, Lyondri Hastur não seria rei. Ou será que ele se mostraria falso para Rakhal, como fizera com Carolin, na ambição de criar uma dinastia de seu próprio sangue?

— Romilly... Romy! Está dormindo na sela? — A voz alegre de Caryl interrompeu o devaneio dela. — Posso ver se Preciosa caçará para mim? Precisamos de algumas aves para o jantar, não é mesmo?

Ela sorriu para o menino.

— Se ela quiser caçar para você, então caçará, mas não posso prometer que caçará para qualquer outra pessoa além de mim. Mas primeiro deve perguntar a Dama Jandria se precisaremos de aves para o jantar; é ela quem está no comando desta expedição, não eu.

— Desculpe — disse Caryl, sem qualquer arrependimento, a palavra uma mera formalidade. — Mas é difícil lembrar que ela é uma nobre e não me ocorre naturalmente lembrar de lhe pedir, enquanto com você sempre estou consciente que tem o sangue dos Hastur.

— Acontece que eu não tenho — respondeu Romilly. — E Janni, caso não saiba, é prima de Lorde Orain; portanto, o sangue dela é no mínimo tão bom quanto o meu.

Caryl ficou subitamente assustado.

— Gostaria que não tivesse me falado, pois isso a torna uma das maiores inimigas de meu pai e não quero que ele a odeie...

Romilly censurou-se por sua imprudência; o menino estava abalado. Ela se apressou em dizer:

— A posição não tem o menor significado na Irmandade e Jandria renunciou aos privilégios proporcionados pelo nascimento nobre. E eu também, Caryl.

E ela percebeu que o menino parecia aliviado, embora não entendesse o motivo.

— Perguntarei a Jandria se vamos precisar de caça para o jantar — acrescentou Romilly. — E você voará Preciosa, se ela obedecer ao seu comando. Tenho certeza de que Jandria não vai objetar se você quiser uma ave para seu jantar... a menos que tente fazer com que uma de nós a depene e cozinhe para você.

— Posso fazer isso pessoalmente — declarou Caryl, orgulhoso, depois sorriu e baixou os olhos. — Se me ensinar como se faz...

Romilly riu e Caryl a acompanhou.

— Eu o ajudarei a cozinhar a ave em troca de um pedaço... combinado?

 

Três noites depois começaram a percorrer a margem de um lago entre as colinas. Caryl apontou para uma casa grande, que não chegava a ser um castelo, situada na cabeceira do longo vale.

— Ali fica Hali e o castelo de meu pai.

Romilly achou que parecia mais um palácio do que uma fortaleza, mas não fez qualquer comentário. Caryl acrescentou:

— Ficarei contente em rever meu pai e minha mãe.

Romilly especulou: até que ponto o pai poderia se sentir contente por ver um filho mantido como refém pelos homens de seu pior inimigo, tirado da segurança de Nevarsin, para onde o mandara? Mas ela não fez qualquer comentário. Naquela manhã, voando através dos olhos de Preciosa, esquadrinhara toda a vasta extensão das Planícies de Valeron, com exércitos se concentrando e movimentando nas fronteiras. A guerra em breve estaria nas terras baixas, mais uma vez.

E durante todo aquele dia viajaram por uma terra devastada pela guerra; fazendas em ruínas, enormes torres de pedras em que não restava uma pedra sobre outra, apenas escombros diversos, como se algum movimento monstruoso, talvez um terremoto, as tivessem arrancado de suas próprias fundações; que exército, que arma terrível fizera aquilo? Houve um momento em que precisaram fazer um desvio, pois ao chegarem ao topo de uma elevação depararam com uma aldeia em ruínas no vale em frente. Um estranho silêncio pairava sobre as terras, embora as casas permanecessem intactas, serenas e pacíficas, sem fumaça se elevando nas chaminés, sem o barulho de cascos de cavalos, crianças brincando, martelos batendo em bigornas ou as canções de trabalho das mulheres enquanto fiavam. Um silêncio assustador envolvia a aldeia e agora Romilly pôde divisar um tênue brilho esverdeado, como se as casas estivessem banhadas em algum miasma terrível, um trágico nevoeiro quase concreto. Ela compreendeu subitamente que, no momento em que a noite caísse, a rua e as casas brilhariam na escuridão com uma estranha luminescência.

E mesmo enquanto olhava, avistou o vulto esguio e faminto de um predador se esgueirando silenciosamente pela rua; e passou a se movimentar mais devagar, caiu, ficou estendido na terra, ainda se mexendo debilmente, sem qualquer grito. Jandria disse bruscamente:

— Pó-da-morte. Onde a substância foi lançada, do ar, a terra morre, as próprias casas morrem; se passássemos por ali, não estaríamos em situação melhor do que aquele gato-da-floresta em poucas noites. Vamos sair daqui... é melhor nem ficar perto. Esta estrada se encontra fechada como se um ninho de dragões a guardasse; ou pior ainda, pois sempre podemos de alguma forma lutar até com os dragões, mas contra isso não há como combater. Durante dez anos ou mais esta terra ficará amaldiçoada e os próprios animais da floresta nascerão disformes. Já vi um gato-das-montanhas com quatro olhos e um chervine das planícies que tinha dedos no lugar dos cascos. Horrível! — Ela estremeceu, fazendo uma volta com seu cavalo. — Vamos passar o mais longe possível deste lugar. Não tenho o menor desejo de ver meus cabelos e dentes caindo e meu sangue se transformar em água nas veias.

O amplo desvio acrescentou dois ou três dias à viagem, e Janni advertiu Romilly para que não deixasse Preciosa caçar.

— Ela morreria se comesse alguma caça contaminada por essa substância usada na guerra, mas não tão depressa para poupá-la de grande sofrimento; e se nós comêssemos, também poderíamos perder os cabelos e dentes, se não nos acontecesse coisas piores ainda. A contaminação perdura por muito tempo em toda a região ao redor, espalha-se nos corpos de predadores e animais inofensivos que vagueiam pela terra empesteada. Ela pode jejuar por mais um ou dois dias, é mais seguro do que se arriscar a caçar muito perto desse lugar.

E assim, por dois dias, Romilly manteve Preciosa em sua sela; embora tivesse jurado a si mesma que nunca mais confinaria seu falcão liberto, cedeu ao medo finalmente e amarrou peias em suas pernas.

Não ouso deixar você voar pois comeria uma caça que a mataria, foi a mensagem que ela tentou transmitir, formando em sua mente, para que Preciosa pudesse compreender claramente, uma imagem da caça luzindo com um brilho insalubre e venenoso. Não teve certeza se fez contato com a mente do falcão, que se manteve na sela numa atitude soturna e retraída, mas pelo menos não lutou contra as peias, viajando com a cabeça enfiada sob a asa. Romilly podia sentir a intensa fome que Preciosa experimentava, mas ela parecia disposta a permanecer presa daquele jeito, para sua própria proteção.

Finalmente parecia que estavam fora de perigo, embora Janni advertisse a todas as mulheres que se punhados de cabelos começassem a cair ou dentes se tornassem frouxos deveriam avisá-la imediatamente; achava que haviam feito um círculo bastante amplo em torno da terra contaminada, mas...

— Nunca se pode ter certeza com essa substância mortífera.

Janni mantinha uma expressão determinada e furiosa e houve um momento em que comentou para Romilly, com a expressão sortuna e os olhos rápidos que fizeram-na lembrar de Preciosa:

— Orain foi criado naquela aldeia. E agora nenhum homem poderá viver ali por vários anos. Que todos os Deuses amaldiçoem Lyondri e suas armas diabólicas!

Romilly lançou um olhar rápido para Caryl, mas o menino não ouvira ou então soube disfarçar bem. Como devia ser pesado o fardo que ele carregava!

Acamparam um pouco cedo naquela noite. Enquanto as mulheres armavam a tenda, Janni chamou Romilly para se afastarem um pouco do acampamento.

— Venha comigo. Preciso conversar com você. Não, Caryl, você não.

O menino ficou para trás, como um filhote de cachorro escorraçado. Janni afastou-se com Romilly e fez sinal para que ela se sentasse, depois também se acomodou, de pernas cruzadas, na relva macia.

— Algum sinal de dentes afrouxando e cabelos caindo?

Romilly exibiu os dentes num sorriso, levantou a mão e deu um puxão nos cabelos curtos.

— Nem um pouco, Janni.

A mulher mais velha deixou escapar um suspiro de alívio.

— Evanda seja louvada por proteger suas donzelas! Descobri alguns fios soltos esta manhã quando escovei os cabelos, mas estou ficando velha e isso pode acontecer com a idade. Ainda assim, não pude deixar de temer que não tivéssemos nos desviado o suficiente daquele lugar amaldiçoado. Que louco destruiria a própria terra de seus vassalos? Claro que já lutei na guerra, posso aceitar o incêndio de uma fazenda, embora não me agrade matar os humildes por causa das guerras dos grandes e poderosos, mas uma fazenda queimada pode ser reconstruída, as plantações arrasadas podem ser novamente cultivadas quando a paz se restabelece. Mas destruir a própria terra para que nenhuma planta nasça ali durante uma geração? Talvez eu seja escrupulosa demais para uma guerreira.

Ela ficou em silêncio por um momento, antes de indagar:

— Teve algum problema com seu prisioneiro?

— Não — respondeu Romilly. — Ele está contente por voltar para casa, mas tem cumprido sua palavra.

— Foi o que pensei, mas fico satisfeita por ouvir você confirmar.

Ela afrouxou os fechos de prata do manto e abriu-o, suspirando enquanto o vento desmanchava os abundantes cabelos. O rosto estava vincado e cansado. Romilly murmurou, com súbita compaixão:

— Está exausta, Jandria. Deixe-me assumir sua parte do trabalho no acampamento esta noite, vá para a tenda e descanse. Levarei seu jantar assim que ficar pronto.

Janni sorriu.

— Não é o cansaço que me aflige, Romilly. Sou veterana e calejada para viajar e acampar, já dormi em lugares muito mais desconfortáveis sem a menor lamúria. Estou perturbada, isso é tudo, pois o bom senso me diz uma coisa e a honra me diz outra.

Romilly especulou qual poderia ser o problema que atormentava Janni. A mulher sorriu e pegou sua mão.

— O jovem Carolin está sob meus cuidados e a honra determina que seja eu quem o entregue ao pai. Mas pensei que poderia mandar você escoltá-lo pelas muralhas da cidade de Hali e entregá-lo nas mãos de Lorde Hastur.

O primeiro pensamento de Romilly foi o de que assim teria a oportunidade de conhecer a grande cidade das terras baixas; o seguinte, de que lamentaria muito se separar de Caryl. Só depois é que compreendeu que também teria de se encontrar com o grande vilão que era Lyondri Hastur.

— Por que eu, Janni?

Jandria suspirou profundamente.

— Por um lado, você conhece a etiqueta e os costumes de uma Grande Casa. Sinto-me uma traidora da Irmandade ao dizer isso, pois jurei que deixaria para trás as posições sociais. Mhari, Reba, Shaya... todas são boas mulheres, mas conhecem apenas os modos rudes das fazendas de seus pais e não posso enviá-las nessa missão de diplomacia. E mais do que isso, pela segurança de todas nós.

Ela fez uma pausa, com um sorriso tenso, pouco mais que uma careta.

— Não importa o que eu disse a Orain, Lyondri Hastur me reconheceria mesmo que eu usasse as penas do pássaro-espírito e fizesse a dança do Ya num Vento Fantasma! Não tenho o menor desejo de ser pendurada na forca de um traidor. Carolin e Orain também estavam entre os que Lyondri mais amava e agora figuram entre os que ele persegue com a maior fúria. Carolin, Orain, Lyondri e eu... nós quatro fomos criados juntos.

Janni hesitou, suspirou de novo e acrescentou:

— Orain não sabe disso; nunca desejou conhecer o que acontece entre homem e mulher... ora, pelo fogo do inferno! Por que me envergonha dizer que Lyondri e eu deitamos juntos mais de uma vez, antes mesmo de eu me tornar uma mulher completa? Agora que me afastei dele, acho que Lyondri teria o maior prazer em me enforcar, se minha morte causasse angústia a Carolin. Também não suporto a perspectiva de encontrá-lo... que Avarra me ajude, mas não consigo deixar de amá-lo, quase tanto quanto o odeio!

Ela fez uma pausa, engolindo em seco, olhando para o chão e apertando ainda mais a mão de Romilly.

— Sabe agora por que me sinto tão covarde com a possibilidade de encontrá-lo, por mais que ele jure que aceitará a bandeira de trégua... ele pode me poupar por causa do nosso amor antigo, mas não tenho certeza...

— Não precisa se preocupar, Janni — murmurou Romilly, percebendo a angústia da mulher mais velha. — Terei o maior prazer em ir. Você não deve se arriscar.

- Vendo você, pode compreender isso Romilly, Lyondri e Rakhal verão apenas uma estranha e, mais do que isso, uma estranha que Caryl ama muito, alguém que foi gentil com seu filho; e sabem apenas que você é uma enviada da Irmandade, não uma rebelde ou alguém que jurou fidelidade a Carolin. Falando claramente, Romilly, estou mandando-a para o perigo... é possível que Lyondri não honre sua promessa de segurança para a pessoa que lhe levar seu filho; mas você pode se arriscar a algo pior do que a prisão. Lyondri é capaz de matá-la; tenho certeza de que não perderia uma oportunidade de se vingar de mim.

O perigo, para ela, contra a morte certa para Janni? Romilly hesitou apenas um instante e Janni acrescentou, cansada:

— Não posso lhe ordenar que assuma esse risco, Romilly. Só posso pedir. Não é possível enviar Caryl sozinho para a cidade; jurei que ele seria entregue são e salvo nas mãos do pai.

— Pensei que ele tivesse jurado que daria salvo-conduto...

— E jurou mesmo, mas não confio em Lyondri. Assim que ele percebe que pode tirar proveito de uma situação, como sempre fez...

Ela cobriu o rosto com as mãos. Romilly sentia-se fraca e assustada. Mas a Irmandade a aceitara quando estava sozinha, abrigara-a e alimentara-a, acolhera-a com amizade. Devia isso a elas. E prestara um juramento. Apertando a mão de Janni, ela murmurou:

— Eu irei, minha irmã. Confie em mim.

Antes de partirem para a cidade, Caryl lavou-se com o maior cuidado num córrego, pediu um pente a uma das mulheres e ajeitou os cabelos, depois cortou as linhas. Tirou de um alforje suas roupas, um pouco esfarrapadas — durante os últimos dias usara refugos das mulheres, a fim de poder lavar seus trajes e se apresentar limpo no retorno à corte, embora nada pudesse fazer para que se tornassem uma vestimenta adequada a um príncipe.

Ele comentou, pesaroso:

— O pai me mandou um traje novo para o Festival antes da noite do Solstício do Inverno e tive de deixá-lo no mosteiro por ter partido abruptamente. Porém não se pode fazer mais nada agora, isto é o melhor que tenho.

— Cortarei seus cabelos, se quiser — propôs Romilly.

Ela aparou seus cabelos encaracolados num comprimento normal e escovou-os até brilharem. Caryl riu e disse que não era um cavalo para ser tão escovado, mas contemplou-se com satisfação no córrego.

— Pelo menos pareço outra vez um cavalheiro: detesto me apresentar esmolambado como um vagabundo. Mestra Jandria não vai conosco? Meu pai não poderia ficar zangado com uma pessoa que foi tão gentil com seu filho.

Jandria sacudiu a cabeça.

— Houve desavenças antigas entre Lyondri e eu antes de você ser concebido ou Rakhal procurar o trono de Carolin, meu caro rapaz; por isso, prefiro não me encontrar com seu pai. Romilly o levará.

— Ficarei contente por seguir com Romilly e tenho certeza de que meu pai se mostrará grato a ela.

— Em nome de todos os Deuses dos Hastur, meu rapaz, espero que assim seja. — Quando Caryl inclinou-se sobre sua mão de uma maneira cortês, ela acrescentou, como as mulheres das colinas: — Adelandeyo. Viaje com os Deuses, meu rapaz, que todos o acompanhem, e a Romilly.

Apenas Romilly, observando a tensão no queixo de Janni, o tremor em seus olhos, sabia o que ela estava pensando: Que os Deuses a protejam, menina, e cuidem para que escape sã e salva das mãos de Lyondri Hastur.

Romilly subiu na sela. Com uma clareza que não lhe era habitual, a não ser quando se encontrava em contato com seu falcão, vendo tudo através de seu laran e não dos olhos, contemplou o céu pálido, a tenda da Irmandade; ouviu as pancadas fortes do lugar em que Mhari e Lauria praticavam com os bastões de madeira que usavam como espadas, viu duas outras mulheres empenhadas no treinamento dos movimentos defensivos do combate desarmado, um ritual semelhante a uma dança que condicionava os músculos a reagirem sem pensamento. Ainda podia ver a fumaça da fogueira do desjejum, sentiu-se alerta e assustada — cheiro de fumaça quando não havia comida cozinhando? — antes de se lembrar que não estavam mais na floresta e que não havia ali, na campina verdejante, a menor possibilidade de fogo no mato.

Vestira-se de modo tão impecável quanto podia, com seu melhor manto, o que Orain lhe comprara no mercado em Nevarsin — embora agora se sentisse contrafeita com o presente, mas não tinha mais nada tão bom e tão quente —, e tomara emprestada a túnica mais limpa que conseguira encontrar no acampamento. Estava consciente dos brincos que ainda ardiam nas orelhas, revelados pelos cabelos curtos. Ora, ela disse a si mesma, na defensiva, eu sou o que sou, uma mulher da Irmandade da Espada — embora ainda não seja capaz de usá-la com eficiência —, e Lyondri Hastur pode muito bem me aceitar como uma emissária com salvo-conduto; por que deveria me preocupar se pareço uma dama? O que Lyondri significa para mim? E, no entanto, uma vozinha que parecia com a de Luciella dizia em sua mente, com uma censura afetada: Romy, que vergonha, botas e culote, montada como um homem, o que diria seu pai? Ela ordenou bruscamente que a voz se calasse.

Murmurou para seu cavalo e acenou com a cabeça para Caryl, que conduziu sua montaria para um trote leve ao lado de Romilly.

Hali era uma cidade sem muralhas, com ruas largas que pareciam estranhamente macias sob os pés; à sua expressão de perplexidade, Caryl sorriu e explicou que haviam sido feitas pela tecnologia de matriz, sem o trabalho de mãos humanas. Romilly assumiu uma expressão cética e ele acrescentou:

— É verdade, Romy. O pai me mostrou uma vez como pode ser feita, a fixação das pedras com as redes de matriz, operadas por dez ou doze leroni ou laranzu'in. Um dia serei também um bruxo e trabalharei entre os transmissores e telas!

Romilly permaneceu cética, mas não havia o menor sentido em contestar o que um menino ouvira do pai, e por isso se manteve calada.

Caryl orientou-a pelas ruas e ela teve de fazer o maior esforço para não olhar ao redor a todo instante, como uma caipira; Nevarsin era uma boa cidade e Caer Donn também, mas Hali era completamente diferente. Em vez das ladeiras calçadas com pedras e das casas de pedra bem juntas como se estivessem se comprimindo sob os penhascos das Hellers ou do Castelo de Aldaran, havia ruas largas e habitações baixas e abertas. Romilly nunca vira uma casa que não fosse construída como uma fortaleza para ser defendida e imaginou como os cidadãos podiam dormir seguros em suas camas à noite; a cidade nem ao menos era murada.

E as pessoas que andavam pelas ruas pareciam de uma raça diferente dos habitantes das montanhas, que eram corpulentas, envoltas por pele e couro contra o frio intenso, pareciam duras e ferozes; ali, naquela aprazível cidade das terras baixas, homens e mulheres bem vestidos circulavam pelas ruas largas em trajes coloridos: túnicas bordadas, saias pintadas e véus para as mulheres; casacos compridos e calças para os homens, mantos finos de cores brilhantes, mais para adorno do que proteção.

Uma ou outra pessoa nas ruas parava e olhava para a cabeça vermelha flamejante do menino e para a mulher esguia, de calça comprida e brincos nas orelhas que cavalgava a seu lado, exibindo o escarlate da Irmandade e usando um antiquado manto de pele das montanhas, de fabricação doméstica. Caryl murmurou:

— Eles me reconhecem. E acham que você também é da família Hastur, por causa dos cabelos vermelhos. O pai pode pensar a mesma coisa. E você deve ser dos nossos, Romilly, com seus cabelos vermelhos e o laran também.

— Não penso assim. Acho que cabeças vermelhas nascem em famílias nas quais nunca apareceram antes, assim como às vezes também surge um sangrador ou um albino marcado desde o útero, sem qualquer precedente na historia da família. Os MacAran têm sido ruivos desde quando posso me lembrar... lembro que os cabelos de minha bisavó, que morreu antes que eu aprendesse a montar, embora claros por cima pela idade, eram mais vermelhos do que os meus nas raízes.

- O que prova que devem ter sido outrora parentes dos filhos de Hastur e Cassilda — insistiu o menino.

Mas Romilly sacudiu a cabeça.

— Acho que não prova nada disso. Sei pouco sobre os seus Hastur...

Com o maior tato, ela reprimiu as palavras seguintes que afloravam à sua língua: e o pouco que sei não me agrada muito. Mas sabia que o menino ouvia as palavras não pronunciadas tão bem quanto escutava as enunciadas; ele baixou os olhos para sua sela e não disse nada.

E agora, ao se encaminharem para uma Grande Casa no centro da cidade, Romilly começou a se sentir um pouco assustada. Afinal, ia se encontrar com a besta que era Lyondri Hastur, o homem que seguira o usurpador Rakhal e exilara Carolin, matara e expulsara de suas terras muitos dos partidários do rei deposto.

— Não precisa se assustar — disse Caryl, estendendo a mão entre os cavalos. — Meu pai ficará grato a você porque me trouxe de volta. Eu lhe garanto, Romy, que ele é um homem generoso. E soube que prometeu uma recompensa quando a mensageira da Irmandade me levasse à sua presença.

Não quero recompensa, pensou Romilly, exceto a de escapar sã e salva, com a pele inteira. Contudo, como a maioria dos jovens, ela era incapaz de conceber que daí a uma hora poderia muito bem estar morta.

Diante das enormes portas um guarda saudou Caryl com surpresa e satisfação.

— Dom Caryl! Fui informado de que seria devolvido hoje! Então viu a guerra e tudo o mais! É um prazer tê-lo de volta em casa, meu rapaz!

— Olá, Harryn. Também estou contente por vê-lo. — Caryl sorriu. — E esta é minha amiga Romilly, que me trouxe de volta...

Romilly sentiu os olhos do homem percorrerem seu corpo de alto a baixo, da pena no gorro de tricô às botas, mas tudo o que ele disse foi:

— Seu pai está à sua espera, jovem amo; eu o levarei a ele imediatamente.

Romilly sentiu que era a oportunidade de escapar sem mais delongas, e se apressou em dizer:

— Vou deixá-lo nas mãos do guarda de seu pai...

— Essa não, Romilly! — protestou Caryl. — Deve entrar e conhecer meu pai, tenho certeza de que ele está ansioso em recompensá-la...

Posso imaginar, pensou Romilly; mas Janni estava certa. Não havia motivo concreto para que Lyondri Hastur quebrasse a palavra empenhada e aprisionasse uma espadachim anônima e desconhecida, contra quem não tinha qualquer ressentimento pessoal. Ela desmontou, viu seu cavalo ser levado, e acompanhou Caryl pelo interior da Grande Casa.

Lá dentro, uma espécie de funcionário de voz suave — tão elegantemente vestido, tão afável, que chamá-lo de servo parecia inadmissível para Romilly — informou a Caryl que o pai o esperava na sala de música. Caryl disparou por uma porta, deixando Romilly para segui-lo mais devagar.

Então este é o Lorde Hastur, a besta cruel de quem Orain falou. Não devo pensar isso; como Caryl, ele também deve ter o laran, é capaz de ler minha mente.

Um homem alto e esguio ergueu-se das profundezas de uma poltrona, onde mantinha uma pequena harpa nos joelhos; largou-a, inclinou-se para a frente, na direção de Caryl, pegou suas mãos.

— Está de volta, Carolin? — Ele puxou o menino, beijou-o na face; parecia ter tido de se abaixar muito para fazê-lo. — E está bem, meu filho? Parece bastante saudável; pelo menos a Irmandade não o deixou com fome.

— Ao contrário — declarou Caryl. — Alimentaram-me muito bem e trataram-me com a maior gentileza; quando passávamos por uma aldeia, uma delas sempre me comprava bolos e doces, enquanto outra me emprestava um falcão para caçar se queria aves frescas no jantar. Esta é a que tinha o falcão.

Ele soltou as mãos do pai e pegou Romilly, puxando-a para a frente, antes de acrescentar:

— Ela é minha amiga. Seu nome é Romilly.

E, assim, finalmente, Romilly se encontrava frente a frente com o Lorde Hastur; era um homem esguio, de feições contraídas, dando a impressão de que não relaxava um instante sequer. Sua boca estava cerrada e os olhos, cinzentos, sob as pestanas claras, pareciam com os de um falcão.

— Fico agradecido por ter sido boa com meu filho — disse Lyondri Hastur, a voz controlada, neutra, indiferente. — Pensei que em Nevarsin ele estaria fora do alcance da guerra, mas os homens de Carolin, não tenho a menor dúvida, julgaram que tê-lo como refém era uma boa idéia.

— Não foi idéia de Romilly, pai — interveio Caryl.

Romilly compreendeu que o menino pensara a respeito e rejeitara a possibilidade de comunicar ao pai que Orain ficara furioso com sua detenção; não era o momento oportuno para mencionar o nome de Orain. E Romilly compreendeu também, pela maneira quase imperceptível, com que Lorde Hastur cerrou os dentes, que ele ouvira perfeitamente o que o filho não dissera; e parecia que uma sombra de sua voz, distante e fantástica, dizia quase alto na mente de Romilly: Outra conta a acertar com Orain, que foi meu partidário sob juramento antes de passar para o lado de Carolin.

Eu deveria manter esta mulher como refém; ela pode saber alguma coisa do paradeiro de Orain... e onde Orain estiver, Carolin não pode estar longe.

Mas àquela altura o menino era capaz de ler o pensamento não enunciado e fitou o pai com profundo horror. E disse, num sussurro:

— Deu sua palavra... a palavra de um Hastur.

Romilly quase que pôde ver a brilhante imagem que o menino tinha do pai romper-se e desmoronar diante de seus olhos. Lyondri Hastur olhou do filho para a mulher e declarou, em voz seca:

— Espadachim, sabe onde Orain está neste momento?

Ela sabia que não poderia mentir com os olhos implacáveis de Lyondri observando-a, pois ele lhe arrancaria a verdade em poucos momentos. E foi com imenso alívio que compreendeu que não precisava mentir.

— Vi Orain pela última vez em Caer Donn, quando ele levou Caryl... Dom Carolin. ao abrigo da Irmandade. E isso aconteceu há mais de dez dias. Imagino que agora ele está com o exército.

Embora tentasse, ela não pôde evitar em sua mente a imagem do exército passando pela rua, com a bandeira dos Hastur, azul e prateada, Orain cavalgando ao lado do rei invisível. Lyondri não o consideraria rei, mas um usurpador...

Fiz promessas que não podia cumprir — nada sabia do homem a quem servia, acabei me tornando o carrasco e opressor de Rakhal —, e foi com um choque que Romilly compreendeu que estava mesmo recebendo tais pensamentos do homem à sua frente; ou não seria absolutamente isso, apenas o interpretava como fazia com os animais, pelos movimentos mínimos dos olhos e corpo, coordenando-os de alguma forma com seus pensamentos? Sentiu-se profundamente contrafeita com o contato e aliviada quando cessou de repente, como se Lyondri Hastur percebesse o que acontecia e tratasse de bloquear.

Tenho lido pensamentos, mais ou menos, durante a maior parte da minha vida, por que isso deveria me perturbar e confundir agora?

Lorde Hastur declarou com suave formalidade:

— Devo-lhe uma recompensa pelos cuidados que dispensou a meu filho. Concederei qualquer coisa, exceto armas que possam ser usadas contra mim nesta guerra injusta. Declare o que deseja como resgate por meu filho, com essa única exceção.

Jandria a preparara para isso e Romilly respondeu com firmeza:

— Devo pedir três sacos com suprimentos médicos para os abrigos da Irmandade, ataduras, a geléia que ajuda a coagular o sangue e o pó karalla.

— Creio que se pode chamar tais coisas de armas, pois sem dúvida serão usadas para ajudar a curar os feridos na rebelião contra seu rei. — Mas Lyondri Hastur deu de ombros e acrescentou: — Terá o que pede. Darei ordens a meu intendente para que providencie tudo, e terá ainda um animal de carga para transporte até seu acampamento.

Romilly deixou escapar um suave suspiro de alívio. Não seria aprisionada, não ficaria ali como refém.

— Acreditou que eu poderia fazer isso? — indagou Lyondri Hastur em voz alta, secamente, depois soltou uma risada curta.

Romilly tornou a ler sua mente, dois telepatas não podiam mentir um para o outro. Ela era afortunada porque Lyondri não queria desiludir o filho em relação a sua honra.

Romilly subitamente descobriu estar grata por não ter se encontrado com Lyondri Hastur sem a presença de Caryl ou num momento em que ele não se interessasse em manter a admiração do filho.

— Pai, esta é a mulher do falcão, que me deixou caçar com seu animal... posso ter meu próprio falcão? E gostaria que um dia Ama Romilly fosse minha mestra falcoeira...

Lyondri Hastur sorriu; era um sorriso seco, distante, mas mesmo assim um sorriso, e ainda mais assustador do que sua risada.

— Muito bem, Espadachim, meu filho gostou de você. Há integrantes da Irmandade a meu serviço. Se quiser ficar aqui e instruir Carolin na arte da falcoaria...

Romilly queria apenas fugir. Por mais que gostasse de Caryl, jamais conhecera alguém que a aterrorizasse tanto quanto aquele homem seco e ríspido, com uma risada gelada e os olhos empapuçados. Procurando uma desculpa honrosa, ela balbuciou:

— Eu... eu já assumi outros compromissos, vai dom.

Ele inclinou ligeiramente a cabeça, aceitando a desculpa. Sabia que era uma desculpa, sabia o que Romilly pensava a seu respeito e sabia que ela sabia.

— Como quiser, mestra. Carolin, despeça-se de sua amiga e vá cumprimentar sua mãe.

O menino se adiantou e estendeu a mão, da maneira mais formal. E depois, impulsivamente, abraçou Romilly, fitando-a com olhos ansiosos.

— Talvez, quando esta guerra acabar, eu possa tornar a vê-la, Romilly... e a seu falcão. Dê minhas lembranças a Preciosa.

Caryl fez uma reverência, como se estivesse diante de uma dama da corte, e retirou-se apressado, mas não antes que Romilly percebesse o surgimento de lágrimas em seus olhos. Ele não queria chorar na frente do pai; ela sabia disso. Lyondri Hastur tossiu e disse:

— O animal de carga e os suprimentos médicos serão levados para a porta lateral, perto do estábulo. O intendente mostrará o caminho.

Romilly sabia que a audiência com Lorde Hastur estava encerrada. Ele gesticulou para o funcionário, que se aproximou e disse suavemente:

— Por aqui, mestra.

Romilly fez uma reverência.

— Obrigada, senhor.

Ela virou-se e já começava a seguir o intendente quando Lyondri Hastur tossiu novamente.

— Ama Romilly...

— Pois não, vai dom!

— Diga a Jandria que não sou o monstro que ela pensa. De jeito nenhum. Isso é tudo.

E enquanto deixava a sala, Romilly especulou, tremendo da cabeça aos pés: O que mais esse homem sabe?

 

Quando Romilly transmitiu a mensagem de Lyondri Hastur - "Diga a ela que não sou o monstro que ela pensa" -, Jandria não disse nada por um longo tempo. Romilly sentiu, por seu silêncio (embora fizesse um esforço deliberado, o primeiro que fazia, para não usar o laran), que Jandria tinha várias coisas que gostaria de dizer, mas não para ela. E, finalmente, Janni indagou:

— E ele entregou os suprimentos médicos?

— Entregou; e também um animal de carga para transportá-los.

Janni foi examiná-los e depois comentou, com os lábios contraídos:

— Ele foi generoso. Quaisquer que sejam os defeitos de Lyondri Hastur, a avareza nunca foi um deles. Eu deveria devolver o animal de carga, não quero favores de Lyondri, mas a verdade objetiva é que vamos precisar dele. E custa menos para ele do que comprar um saco de balas no mercado para o filho; não preciso ter problemas de consciência por isso.

Ela mandou três das mulheres cuidarem dos suprimentos médicos e disse a Romilly que poderia voltar a seus cavalos. Como um pensamento posterior, quando Romilly já passava pela porta, pediu-lhe que voltasse por um instante e acrescentou:

— Obrigada, chiya. Eu a enviei numa missão difícil e perigosa, para a qual não tinha o direito de despachá-la, você a cumpriu tão bem quanto qualquer diplomata poderia fazer. Talvez eu devesse encontrar um trabalho mais apropriado para você do que trabalhar com animais irracionais.

Romilly pensou: prefiro trabalhar com cavalos do que partir em qualquer missão diplomática! Ela assim falou e Jandria, sorrindo, murmurou:

— Então não a afastarei do trabalho que sei que você ama. Volte para os cavalos, minha cara. Mas com meus agradecimentos.

Romilly foi para o curral e pegou o cavalo que começava a domar para a sela. Não estava trabalhando há muito tempo quando Mhari apareceu e disse:

— Romy, sele seu cavalo e apronte dois animais de carga, imediatamente. Sele também o cavalo de Jandria. Ela deixará o abrigo esta noite e disse que você deve acompanhá-la.

Romilly ficou olhando fixamente, com uma das mãos aquietando o cavalo nervoso, que não gostava da manta já atada a seu lombo.

— Partir esta noite? Por quê?

— Quanto a isso deve perguntar diretamente a Janni — respondeu Mhari, um pouco irritada. — Eu teria o maior prazer em ir a qualquer lugar que Janni quisesse me levar, mas ela escolheu você e me mandou providenciar um fardo com suas roupas e rações de viagem para quatro dias.

Romilly franziu o rosto um pouco contrariada; começava a obter algum progresso em amansar aquele cavalo e já tinha de interromper seu trabalho? Fizera um juramento na Irmandade, mas isso a deixava à mercê do capricho de uma mulher? De qualquer forma, ela gostava muito de Jandria e não se sentia propensa a contestar suas decisões. Deu de ombros, trocou a guia comprida de treinamento por uma rédea curta de comando e levou o cavalo de volta ao estábulo.

Acabara de selar o cavalo de Jandria e ajeitava uma manta de montaria no seu quando Janni, com um manto e botas de viagem, entrou no estábulo. Romilly notou, chocada, que seu olhos estavam avermelhados, como se ela tivesse chorado, mas limitou-se a perguntar:

— Para onde vamos, Janni? E por quê?

— O que Lyondri lhe disse, Romy, era uma mensagem; ele sabe que estou aqui, com certeza mandou segui-la para descobrir onde fica o abrigo da Irmandade nos arredores de Hali. Pela minha simples presença aqui, ponho em risco a Irmandade, que não teve participação nesta guerra. Mas sou parente de Orain e ele pode pensar que de alguma forma será possível descobri-lo por meu intermédio. Também pode pensar que sei mais dos planos de Orain, ou de Carolin, do que na realidade. Devo partir imediatamente. Assim, se os homens de Rakhal, sob o comando de Lyondri, vierem me procurar aqui, elas poderão dizer a verdade e sustentar, mesmo que sejam interrogadas por uma leronis capaz de ler seus pensamentos, que não têm o menor conhecimento do lugar para onde fui ou do lugar em que os homens de Carolin e Orain possam estar reunidos. E levarei você comigo, por receio de que Lyondri possa pegá-la também. As outras mulheres, bem, ele nada sabe sobre elas e se importa ainda menos; mas você já atraiu sua atenção e acho melhor que permaneça longe de seu alcance — prefiro que não continue tão perto dos portões de Hali. Além do mais... — O sorriso era tênue. — Ainda não sabe? Uma mulher da Irmandade não viaja sozinha, deve ter sempre a companhia de pelo menos uma de suas irmãs.

Romilly não pensara nisso — Jandria era parente de Orain e Lyondri Hastur poderia tomá-la como refém também, mesmo que não tencionasse, como ela temia, promover sua morte.

— A ves ordres, mestra - ela disse formalmente, acabando de selar seu cavalo.

— Entre no abrigo, pegue um pouco de pão e queijo, Romy. Poderemos comer enquanto viajamos. Mas trate de se apressar, irmãzinha.

Há necessidade de tanta pressa ou Jandria está com medo sem razão? Mas Romilly não questionou; fez o que lhe fora ordenado e voltou com um pão grande e um enorme pedaço de queijo branco, que guardou no alforje — não estava com fome agora, a mensagem de Jandria acabara com seu apetite, mas sabia que mais tarde ficaria contente em ter o alimento. Também levava um saco de maçãs que a cozinheira lhe entregara. E perguntou, enquanto tiravam os cavalos do estábulo para montá-los:

— Para onde vamos, Janni?

— Acho que será mais seguro se você não souber disso, pelo menos por enquanto. — Romilly percebeu um medo real em seus olhos, enquanto Jandria acrescentava: — Vamos logo, irmãzinha.

Romilly registrou que se afastaram da cidade seguindo para o norte, mas o caminho logo fez uma curva e Jandria enveredou por uma estrada pequena e pouco usada, quase que uma trilha deixada pelos chervines das montanhas, que subia cada vez mais pelas colinas, em espiral. Não demorou muito para que Romilly perdesse toda e qualquer noção de direção, mas Jandria parecia nunca hesitar, como se soubesse exatamente para onde seguiam.

Logo começaram a viajar sob a cobertura da floresta nas encostas e Jandria pareceu relaxar um pouco; depois de uma hora mais ou menos, ela pediu um pedaço de pão e queijo, comeu com o maior apetite. Romilly, mastigando o pão, recomeçou a especular, mas não fez qualquer pergunta. Finalmente, tornando a montar e pegando a guia do animal de carga, Jandria disse:

— Nem mesmo um pássaro-sentinela pode nos espionar aqui. Não sei se Lyondri tem esses pássaros treinados para seu uso — afinal, não são tão comuns assim —, mas achei melhor nos mantermos sob cobertura até nos distanciarmos bastante e não ser mais possível nos descobrirem. Que todos os Deuses me guardem de levá-lo direto aos exércitos de Carolin!

— É para lá que estamos indo?

— A Irmandade tem uma corte de soldados ali e sua habilidade pode ser necessária no treinamento de cavalos para o exército. E não duvido que a Irmandade com o exército de Carolin possa me aproveitar, de um jeito ou de outro. Se Lyondri sabia que eu me encontrava no abrigo, e devia saber ou não teria enviado aquela mensagem, então pode chegar à conclusão — ou Rakhal chegar por ele — que se me vigiasse eu acabaria levando-o ao encontro de Carolin; mesmo que ele não pudesse arrancar a informação sobre o ponto de encontro de minha mente sem uma leronis para ajudá-lo. Por isso, apressei-me em sair de lá e entrar na cobertura da floresta, antes que ele mandasse vigiar o abrigo e desse ordens para me seguir. É possível que eu tenha agido mais depressa do que ele, pelo menos uma vez; e talvez já estejamos seguras.

Mas ela olhou apreensiva pela trilha por onde haviam subido e depois, ainda mais apreensiva, para o céu, como se mesmo agora os pássaros-sentinelas de Lyondri pudessem estar pairando lá no alto para espioná-las. E seu medo também deixou Romilly assustada.

Naquela noite elas acamparam ainda ao abrigo da floresta e Jandria proibiu até fogueira para cozinhar; comeram pão e queijo, amarraram os animais sob uma enorme árvore. Estenderam os cobertores sob outra árvore, dois cada uma para ficarem bem agasalhadas (embora Romilly, criada nas montanhas, achasse que estava relativamente quente). Romilly dormiu depressa, cansada da viagem. Despertou uma vez durante a noite, ouvindo ruídos suaves, como se Jandria chorasse. Desejou, desconsolada, poder dizer alguma coisa para confortar a companheira, mas era um problema muito além de sua compreensão. Acabou tornando a dormir, mas acordou cedo para descobrir Jandria já de pé e selando os cavalos. Seus olhos estavam secos, sem lágrimas, o rosto era uma barreira impenetrável, mas suas pálpebras estavam vermelhas e inchadas.

— Acha que podemos nos arriscar a uma fogueira esta manhã? — perguntou Romilly. — Eu gostaria de comer alguma coisa quente, e se não estamos sendo perseguidas a esta altura é porque já devemos ter escapado.

Jandria deu de ombros.

— Acho que não faz a menor diferença. Se Lyondri quer mesmo me encontrar, tenho certeza de que não precisaria de batedores, já que foi capaz de ler meus pensamentos à distância. De qualquer forma, não seria Lyondri quem nos perseguiria, mas Rakhal.

Ela ficou em silêncio por um momento, depois suspirou.

— Muito bem, acenda uma fogueira e farei um caldo quente, irmãzinha. Não tenho o direito de tornar a viagem ainda mais árdua para você por causa de meus medos e apreensões infundados. Já viajou muito, enfrentando as maiores dificuldades, Romy, e eu lhe pedi que partisse de novo quando pensava ter encontrado um lugar para descansar.

— Não tem problema — murmurou Romilly, sem saber o que dizer. Ela preferia viajar com Jandria do que permanecer no abrigo com as estranhas entre as quais ainda não fizera nenhuma amiga. Ajoelhou-se para acender o fogo. Enquanto comiam o caldo quente e os cavalos pastavam na relva à vontade, ela indagou, hesitante:

— Lamenta por... por Lyondri?

O que Romilly especulava era o seguinte: Lyondri fora seu amante e ela ainda estaria apaixonada? Jandria pareceu perceber o que ela queria saber e suspirou, com um sorriso triste.

— Creio que lamento apenas por mim mesma. E pelo homem que pensei que Lyondri era... o homem que ele poderia ter sido, se Rakhal não o seduzisse com a idéia do poder. Aquele homem, o homem que eu amava, está morto... morto há tanto tempo que nem mesmo os Deuses puderam chamá-lo do lugar para onde vão nossas esperanças perdidas, qualquer que seja. Ele ainda deseja minha admiração, esse é o sentido da mensagem ou advertência, mas talvez não seja mais do que vaidade, que sempre foi forte nele. Não creio que ele seja... completamente mau.

Jandria hesitou um momento, antes de continuar.

— A culpa é de Rakhal. Mas a esta altura ele já deve saber o que Rakhal é, e ainda o segue. Por isso não o considero inocente de todas as atrocidades cometidas em nome de Rakhal. Romilly perguntou, timidamente:

— Conheceu os dois... Carolin e Rakhal? Como Rakhal pôde conquistar o trono?

Mas Jandria sacudiu a cabeça.

— Não sei. Deixei a corte quando Rakhal ainda se declarava o súdito mais leal de Carolin, aceitando todos os favores que lhe eram concedidos pelo rei, como o primo mais querido com quem fora criado.

— Carolin deve ser um homem de bem para inspirar tanta devoção a Orain. E... — Romilly hesitou. — ... em você.

— Não conheceu Carolin quando estava com Orain? — perguntou Jandria.

Foi a vez de Romilly sacudir a cabeça.

— Soube que o rei se encontrava em Nevarsin, mas não o encontrei.

Jandria alteou as sobrancelhas, mas limitou-se a dizer:

— Acabe o caldo, criança, depois lave os pratos no córrego e vamos partir.

Em silêncio, Romilly cumpriu suas tarefas, aprontando os cavalos, guardando o que restava dos alimentos. Mas quando montaram, Jandria comentou, muito depois de Romilly ter quase esquecido o que perguntara:

— Carolin é um homem de bem. Seu único defeito é confiar na honra dos Hastur sem razão; e cometeu o erro de confiar em Rakhal. Nem mesmo Orain podia dizer a ele o que era Rakhal; nem eu. Carolin achava que Orain estava apenas com ciúme... Orain com ciúme!

— E como é Rakhal?

Mas Jandria apenas, balançou a cabeça.

— Não posso falar a seu respeito com justiça, pois o ódio me deixa cega. Mas enquanto Carolin ama a honra acima de todas as coisas e depois ama o saber e ama seu povo, Rakhal ama somente o sabor do poder. É como um gato-das-montanhas que experimentou o gosto de sangue. — Ela subiu na sela e acrescentou: — Hoje você puxará a guia do animal de carga e eu seguirei na frente, já que sei para onde estamos indo.

Depois que saíram da proteção da floresta, Romilly experimentou outra vez a sensação de que era vigiada; um fio de percepção em sua mente dizia-lhe que Preciosa a observava. Não desceu para sua mão, mas uma ou outra vez ela vislumbrou Preciosa pairando alto no céu e compreendeu que não estava sozinha. O pensamento animou-a de tal forma que não mais sentiu qualquer medo ou apreensão.

Ela e eu somos uma única coisa; Preciosa juntou sua vida à minha. Romilly tinha uma noção vaga de que o casamento devia ser assim, indissolúvel, um vínculo que penetrava fundo no corpo e no espírito. Não tinha um vínculo assim com seu atual cavalo, por exemplo, embora ele a transportasse fielmente e ela lhe desejasse o melhor e pensasse com freqüência em seu bem-estar.

O cavalo é meu amigo. Preciosa é algo mais, quase como uma amante.

E isso a levou a pensar, timidamente e quase que pela primeira vez, em como seria ter um amante, ter um vínculo com alguém tão profundo quanto tinha com Preciosa, uma ligação de mente, espírito e até corpo, mas alguém com quem pudesse se comunicar, não como os MacAran faziam com seus cavalos, cães e falcões, através do vasto abismo que havia entre homem e cavalo, mulher e falcão, criação e cachorro, mas com o vínculo íntimo da mesma espécie. Dom Garris a desejara, mas seus olhares lúbricos nada lhe haviam despertado além de repulsa; e a repulsa dobrara com Rory, que poderia ter cortado sua garganta pelo cavalo, manto e algumas peças de cobre, mas depois quisera também levá-la para a cama.

Orain a desejara, pelo menos enquanto ainda acreditava que era um rapaz. E enfrentando deliberadamente algo que não compreendera com clareza na ocasião, ela o desejara. Embora, quando acontecia, não percebesse o que significavam seus estranhos sentimentos. Mesmo assim, preferia ter Orain como amigo do que como amante; estivera disposta a aceitá-lo como amante quando pensava que ele a reconhecia como mulher e a desejava assim, a fim de mantê-lo como amigo. Mas nunca pensara a sério em qualquer homem nesses termos? Certamente com nenhum dos meninos com os quais fora criada, os amigos de seus irmãos — não podia imaginá-los como amantes nem como maridos, e um marido era a última coisa que poderia querer.

Acho que eu poderia ter casado com alguém como Alderic. Ele me falou como um ser humano, não apenas como a tola irmã mais moça de seu amigo Darren. Também não se mostrou como o tipo de homem que se sentiria na obrigação de me controlar a cada momento, temendo que eu voasse para longe como um falcão selvagem se me tirasse das peias por um momento.

Não que eu o quisesse tanto como marido. Mas talvez pudesse tomar a decisão de casar se o marido tivesse sido primeiro meu amigo.

Durante todo aquele dia, e o seguinte, sempre que desviava os olhos da trilha Romilly podia avistar, no ponto mais distante de seu campo de visão, que Preciosa continuava por lá. Sentia o precário vínculo de comunicação do falcão, a estranha visão dividida, contemplando a trilha em frente, consciente de seu corpo na sela, mas alguma parte indefinível de seu ser voando livre com o falcão, muito acima do solo e das encostas. Jandria dissera-lhe que viajavam agora pela região conhecida como Colinas Kilghard.

Não eram como as colinas do lugar onde ela nascera — desoladas e áridas, com enormes penhascos rochosos e solo pobre, cada trecho cultivável sendo aproveitado com o maior empenho para a produção de alimentos; e pareciam ainda menos com as amplas e férteis Planícies de Valeron, que haviam cruzado a caminho de Hali. Aquelas colinas altas e escarpadas eram ocupadas pela floresta virgem, às vezes com moitas emaranhadas tão densas que precisavam voltar atrás e dar enormes voltas. Mas não faltava caça. Havia ocasiões, antes do pôr-do-sol, em que Romilly, cochilando na sela, sentia parte dela voando livre com o falcão, descendo velozmente, partilhando com Preciosa o sobressalto da vítima, o golpe rápido e fatal, o ímpeto do sangue fresco em suas veias... Cada vez, porém, era como uma nova experiência, excepcionalmente satisfatória.

Uma ocasião, ela calculou que no sexto dia de viagem, voava na mente com Preciosa quando o cavalo pisou numa toca de coelho-da-lama, tropeçou e caiu, ficou se contorcendo e relinchando. Romilly, projetada dos estribos, permaneceu estendida no chão, ofegante, machucada e abalada. Quando recuperou a consciência o suficiente para sentar, Jandria já desmontara e ajudou-a a levantar.

— Em nome dos infernos congelados de Zandru, onde estava com a cabeça, você que é tão boa num cavalo, para não ver o buraco? — ela indagou, irritada.

Romilly, chocada pelos relinchos do cavalo, foi se ajoelhar ao lado dele. O animal tinha os olhos vermelhos, a boca manchada pela espuma da agonia. Entrando em contato com ele, Romilly sentiu a dor lancinante em sua própria perna, viu o osso branco e fraturado projetando-se através da pele. Não havia nada que se pudesse fazer; chorando de horror e dor, ela tateou no cinto à procura da faca e encontrou num instante o ponto em que a grande artéria passava logo abaixo da pele; cortou-a com um golpe rápido e profundo. Um estremecimento final e convulsivo, um momento de dor total e medo... e depois tudo ficou quieto, atordoado, o cavalo com seu medo desapareceu, deixando-a vazia e fria.

Atordoada, Romilly limpou a faca na relva e tornou a guardá-la na bainha. Não era capaz de levantar o rosto e enfrentar os olhos de Jandria. Seu maldito laran custara a vida do cavalo, pois se estivesse atenta ao caminho certamente teria visto o buraco. Jandria perguntou:

— Era necessário?

— Era.

Romilly não deu detalhes. Jandria não possuía laran suficiente para compreender e não havia motivo para onerá-la com os sentimentos de culpa da própria Romilly, a raiva contra seu dom que a levara a esquecer o cavalo e procurar o falcão lá no alto. Engolindo em seco para reprimir as lágrimas e dissolver o caroço na garganta, ela amaldiçoou seu dom.

— Sinto muito, Janni. Eu... eu deveria ter sido mais cuidadosa.

Jandria suspirou.

— Eu não estava censurando, chiya; é um infortúnio, mais nada. Aqui estamos com um cavalo a menos, na parte mais profunda das colinas, e eu esperava podermos alcançar Serrais amanhã, ao cair da noite.

— É para lá que estamos indo? Por quê?

— Não lhe falei pois podíamos estar sendo seguidas; o que você não sabia, não seria capaz de revelar.

Então Jandria não confia em mim. Nada mais justo; parece mesmo que não mereço confiança... e com certeza meu pobre cavalo não me achou tão... Mesmo assim, ela protestou:

— Eu não a trairia...

Jandria respondeu, gentilmente:

— Nunca pensei nisso, querida. Quis dizer apenas... o que você não sabia não poderia ser arrancado pela tortura ou descoberto em sua mente por uma leronis armada com uma pedra-da-estrela. Compreenderiam num instante que você não sabia de nada. Mas agora, de qualquer maneira, você ficaria sabendo de tudo dentro de mais um ou dois dias.

Ela ajoelhou-se ao lado de Romilly e começou a puxar as correias da sela.

— Pode continuar a viagem num dos chervines de carga; eles não podem viajar com a mesma rapidez de seu cavalo, mas o outro pode suportar toda a bagagem. Viajaremos mais devagar, no ritmo dos chervines, do que com dois bons cavalos, mas não se pode fazer nada.

Ela começou a descarregar o chervine mais próximo, viu que Romilly permanecia imóvel e acrescentou bruscamente:

— Venha me ajudar com isto!

Romilly olhava para o cavalo morto. Insetos já começavam a zumbir sobre o sangue coagulado em torno da perna quebrada.

— Não podemos enterrá-lo?

Jandria sacudiu a cabeça.

— Não há tempo, não temos ferramentas. Deixe-o para alimentar as coisas selvagens. — À expressão chocada de Romilly, ela acrescentou, num tom mais brando: — Cara criança, sei o que esse cavalo significa para você...

Não, não sabe, pensou Romilly, com veemência, nunca poderia saber.

— Acha que tem alguma importância para ele se o corpo é deixado para alimentar outras coisas selvagens ou se tem um funeral digno de um Hastur? Afinal, ele não está mais em seu corpo.

Romilly engoliu em seco.

— Sei disso... Faz sentido quando você fala assim, mas...

Ela parou de falar, engolindo em seco outra vez. Jandria pôs a mão em seu braço, gentilmente.

— Há animais nesta floresta que dependem dos corpos das coisas mortas para sua alimentação. Deveriam ficar com fome, Romy? Isso é apenas sentimento. Não sente angústia quando seu falcão mata para comer...

Para os sentimentos melindrados de Romilly, parecia que Jandria a censurava por sua desatenção, que a acusava por estar longe, partilhando a caça com seu falcão e assim provocando a morte do cavalo. Desvencilhou o braço de Jandria e murmurou, amargurada:

— Não tenho opção, não é mesmo? A ves ordres, mestra.

Ela começou a transferir a carga de um chervine, para outro. Em sua mente, angustiante, acusadora, havia a lembrança dos pássaros-sentinelas, para os quais procurara carniça. Agora seu cavalo se tornaria presa do Kyorebni e talvez devesse mesmo ser assim, mas ela sentia que não suportaria a cena, sabendo que sua negligência custara a vida da fiel criatura.

Como se em busca de conforto, ela olhou para o céu, mas Preciosa não se encontrava em parte alguma.

Talvez ela também tenha me deixado...

Próximo do anoitecer a terra mudou; os campos verdes foram substituídos por platôs arenosos e as estradas se tornaram de argila socada. Os chervines eram criaturas das florestas e colinas e avançavam lentamente, filetes de suor traçando linhas verticais nas densas pelagens. Romilly enxugou o suor de sua testa com a manga, tirou o manto grosso e amarrou numa trouxa na sela. O sol era mais forte ali, ao que parecia, ardia na intensidade sem nuvens de um céu pálido. O crepúsculo começava a cair quando Jandria apontou.

— Ali está Serrais e o abrigo da Irmandade em que dormiremos esta noite, e talvez por mais dez dias. Ficarei contente por dormir outra vez numa cama decente... e você?

Romilly concordou, mas secretamente lamentou que a longa viagem chegasse ao fim. Passara a gostar cada vez mais de Jandria e a perspectiva de dormir com uma porção de estranhas deixava-a assustada. Além disso, ela refletiu, agora que se encontrava numa das sedes regulares da Irmandade teria de voltar às terríveis aulas de esgrima e combate desarmado.

Mas fora sua opção o juramento à Irmandade, devia fazer o melhor possível para atender a essa posição na vida, a que fora levada pela providência. Portador dos Fardos, ajude-me a suportar os meus como você agüenta o peso do mundo! E ela ficou surpresa consigo mesma. Não podia se lembrar, antes daquele tempo, de pensar tanto em orações, mas agora parecia estar sempre recorrendo a uma ou outra. É isso o que o Livro dos Fardos chama de Dhe shaya, uma graça de Deus, ou é apenas uma espécie de fraqueza, um sentimento nascido da solidão, por não ter mais ninguém a quem recorrer? Jandria era sua amiga, ela pensou, mas não partilharia seus medos. Janni gostava da vida da Irmandade e não se sentia aterrorizada ao mero pensamento de guerras e batalhas; coisas como a aldeia devastada pelo pó-da-morte a enfureciam e horrorizavam, mas não a enchiam com aquele tipo de terror. Janni parecia completamente livre desse medo pessoal!

Entraram na cidade quando o crepúsculo já caíra, e avançaram pela rua larga e estranha, as casas antigas de pedra esbranquiçada, brilhando com uma pálida luminosidade ao luar. Romilly estava quase dormindo na sela, confiando que o caminho seria bastante firme sob as patas de seu chervine. Despertou um pouco quando Jandria parou diante de um grande portão em arcada do qual pendiam um sino e uma corda, que ela puxou. Após algum tempo uma voz sonolenta indagou:

— Quem está aí?

— Duas mulheres da Irmandade chegando de Hali — respondeu Janni. — Jandria, Espadachim, e Romilly, aprendiz de Espadachim, unidas pelo juramento e aqui procurando abrigo.

A porta se abriu com um rangido e uma mulher espiou para a rua.

— Entrem, Irmãs. Deixem os animais no estábulo, ali; podem lhes servir um pouco de forragem, se quiserem. Estamos todas no jantar.

Ela apontou para uma mesa na área coberta. Romilly e Jandria desmontaram, levaram os exaustos animais para o estábulo. Romilly piscou aturdida ao contemplar o lugar à fraca luz da lanterna; não era grande, mas em algumas baias no fundo ela avistou vários cavalos, alguns dos melhores que já vira. Que lugar era aquele e por que deixavam tantos cavalos em um estábulo tão pequeno? Transbordava de perguntas, mas era tímida demais para formular qualquer uma. Pôs seu chervine numa das baias menores, levou o cavalo de Jandria para outra, pegou sua bagagem e acompanhou a mulher para a casa.

Havia um agradável odor de pão fresco e os aromas fortes e desconhecidos de algum alimento sendo preparado. Numa sala comprida, ao lado do vestíbulo em que deixaram a bagagem, havia duas mesas longas, em que quatro ou cinco dúzias de mulheres estavam instaladas, tomando sopa em tigelas de madeira. Havia tanto barulho de louça, tantas conversas gritadas de uma extremidade para outra, e de uma mesa para outra, que Romilly involuntariamente se encolheu... depois do silêncio pelos caminhos da floresta e deserto, o barulho era quase ensurdecedor.

— Há dois lugares ali — disse a mulher que abrira o portão. — Sou Tina. Depois do jantar eu as levarei à presença da diretora, a fim de que ela possa lhes providenciar camas em algum lugar. Estamos lotadas aqui, como podem perceber. Parece que alojaram metade da Irmandade conosco, embora eu deva ressaltar que não esquecem de mandar rações do exército para alimentá-las. Não fosse por isso, todas estaríamos vivendo das nozes do ano passado! Podem sentar ali e comer... é o que devem estar querendo, após uma viagem tão longa.

Parecia não haver qualquer espaço na mesa que ela indicara, mas Jandria conseguiu encontrar um lugar em que o aglomerado era um pouco menos intenso e com a ajuda de alguns empurrões e apertos joviais elas conseguiram se espremer no banco. Uma mulher, circulando pelas mesas com um caldeirão e uma concha, despejou sopa em suas tigelas e indicou duas fatias de pão. Romilly tirou sua faca do cinto e cortou dois pedaços. A mulher espremida ao seu lado, risonha e jovial, sardenta, os cabelos escuros presos nas costas, quase na cintura, empurrou um pote de pasta de fruta na direção dela.

— Estamos sem manteiga agora, mas isso fica ótimo no pão. Deixe a colher no pote.

A pasta parecia de maçãs temperadas, cozidas até se dissolverem. A sopa estava cheia de nacos de carne impossíveis de serem identificados, e estranhos legumes, mas Romilly, faminta, comeu sem se importar de que era feita. Ao terminar a sopa, a mulher ao seu lado disse:

— Meu nome é Ysabet, mas a maioria das pessoas me chama de Betta. Vim para cá do abrigo de Thendara. E você?

— Estivemos em Hali e antes disso em Caer Donn — respondeu Romilly.

Os olhos de Betta se arregalaram.

— Para onde o rei fugiu? Viu seu exército ali?

Romilly assentiu, recordando Orain e uma bandeira, numa rua estranha.

— Ouvi dizer que Carolin acampou ao norte de Serrais e que marchará para Hali outra vez, antes das neves caírem — comentou Betta. — O acampamento fervilha com rumores, mas esse é mais forte do que a maioria. Qual é sua habilidade?

Romilly balançou a cabeça.

— Nada de especial. Treino cavalos e às vezes falcões, já cuidei de pássaros-sentinelas.

— Disseram-nos que uma especialista em treinamento de cavalos estava para chegar de Hali! — exclamou Betta. — Deve ser você, a menos que seja sua amiga ali... qual é o nome dela?

— Jandria — respondeu Romilly.

Os olhos de Betta tornaram a se arregalar.

— Dama Jandria! Já ouvi falar a respeito dela, se é a mesma, disseram que é prima do próprio Carolin. Sei que não devemos falar em posições sociais, mas vejo que ela tem cabelos vermelhos e a aparência dos Hastur... Disseram que mandariam uma Espadachim de Hali e também uma mulher competente no treinamento de cavalos. Vamos precisar. Já viu os cavalos no estábulo? E há muitos mais no curral. Foram trazidos como uma contribuição da terra de Alton, nas Colinas Kilghard, e agora precisam ser domados para os exércitos de Carolin para que a Irmandade cavalgue para a batalha por Carolin, nosso verdadeiro rei... — Ela fez uma pausa, olhando desconfiada para Romilly. — Você é a favor ou não de Carolin?

— Viajei desde antes do amanhecer e até depois do anoitecer, hoje e pelos últimos sete dias — disse Romilly. — A esta altura, mal sei meu próprio nome, muito menos o do rei.

Parecia que o calor era intenso na sala e ela mal conseguia manter os olhos abertos. Mas depois, lembrando que haviam escapado da possibilidade de serem seguidas por Lyondri Hastur, ela acrescentou:

— Mas somos a favor de Carolin.

— Como eu disse, metade da Irmandade parece estar alojada conosco aqui — comentou Betta. — E há muitos rumores. Há duas noites tínhamos aqui mulheres dormindo em cima das mesas e até por baixo, mesmo com aquelas que vivem no abrigo dormindo duas em cada cama e entregando as camas desocupadas às recém-chegadas.

— Já dormi no chão muitas vezes — disse Romilly. — Também posso dormir no chão aqui.

Pelo menos estaria livre da chuva, sob um teto.

— Mas tenho certeza que arrumarão uma cama para Dama Jandria em algum lugar — garantiu Betta. — Você é amante dela?

Romilly estava muito cansada e confusa até para compreender direito o que Betta indagava.

— Não, claro que não.

A pergunta, ela refletiu, até que era razoável. Por que uma mulher haveria de procurar a vida de uma Espadachim, quando podia muito bem se casar? Houvera uma outra ocasião, desde que ingressara na Irmandade, em que começara a especular se sua constante rejeição à idéia de casamento não significaria que no fundo era amante de mulheres. Não sentia qualquer repulsa particular à possibilidade, mas também não experimentava a menor atração. Por mais que passasse a sentir afeição por Jandria durante os últimos dias, nunca lhe ocorreria procurá-la como fizera com Orain. Mas agora que sua atenção fora levada de volta ao assunto, ela não pôde deixar de especular outra vez: É por isso que nunca desejei realmente um homem e mesmo com Orain foi apenas uma questão de simpatia e gentileza, não de desejo concreto?

Estou cansada demais para pensar claramente sobre qualquer coisa, muito menos algo tão importante quanto isso! Mas sabia que deveria refletir sobre isso algum dia, especialmente se pretendia passar o resto da vida na Irmandade.

Uma a uma, ou em pequenos grupos de três e quatro, as mulheres da Irmandade deixavam as mesas e iam se deitar. Cobertores guardados num canto da sala grande foram desenrolados no chão, com alegres disputas pelos melhores lugares, perto do fogo. Tina veio chamá-las e levou-as para um quarto com três camas, duas já ocupadas.

— Podem dormir ali — ela comunicou. — E a diretora quer lhe falar, Dama Jandria.

Janni disse a Romilly:

— Vá se deitar e trate de dormir. Só virei mais tarde.

Romilly sentia-se tão cansada que, embora dissesse a si mesma que seria difícil dormir num quarto com quatro outras mulheres, algumas das quais certamente roncavam, pegou no sono antes mesmo que a cabeça batesse no travesseiro. Não se lembrou depois a que horas Jandria veio para a cama.

Na manhã seguinte, quando estavam se vestindo, ela disse a Jandria:

— Elas pareciam saber quem você era e estavam nos esperando. Como pôde enviar uma mensagem que chegou mais depressa do que nós?

Jandria levantou os olhos, com uma meia na mão.

— Há uma leronis minha conhecida no exército de Carolin; por isso é que eu não podia cair nas mãos de Lyondri. Sei demais. Transmiti o aviso e pedi que a notícia fosse encaminhada ao abrigo da Irmandade, a fim de que ficassem à nossa espera. Acha mesmo que abririam os portões após o anoitecer numa cidade cheia de soldados se aprontando para a guerra?

Parecia a Romilly que todos os dias aprendia alguma coisa nova em relação a Jandria. Então ela também tinha laran? E um laran daquele tipo insólito, que podia transmitir mensagens através de léguas? Sentiu-se inibida e confusa outra vez... Janni poderia ler o que ela estava pensando, conhecer toda a sua rebelião, seus medos? Manteve a mente afastada das possíveis implicações.

— Se tenho de domar cavalos aqui — ela murmurou —, acho que é melhor ir imediatamente para o estábulo e começar.

Jandria soltou uma risada.

— Acho que haverá tempo para fazer o desjejum antes. A diretora me disse para dormir tanto quanto quisesse depois da longa viagem. Creio que dormimos bastante tempo para encontrar algum lugar nas mesas do refeitório para comer sem derrubar as dorminhocas. Esse foi o único motivo para eu não querer dormir no chão lá... sabia que as cozinheiras e ajudantes do turno de dez dias entrariam para acordar todo mundo ao romper do dia, a fim de começarem a preparar o desjejum!

E, de fato, quando elas terminaram de se vestir, o refeitório já se esvaziara, apenas umas poucas velhas ainda permaneciam, tomando leite quente com pedaços de pão encharcados. Elas serviram-se de mingau do caldeirão e comeram, pouco depois Betta apareceu procurando-as.

— A diretora está à sua espera, Dama Jandria — ela avisou. — E Ama Romilly deve ir para o estábulo...

Jandria soltou uma risada alegre.

— Chame-me apenas de Jandria, ou Janni. Esqueceu os regulamentos da Irmandade?

— Está certo, Janni — respondeu Betta, mas ainda falando com alguma deferência. — A prática de combate desarmado será ao meio-dia, na quadra de grama; e o exercício de esgrima na quarta hora depois. Tornaremos a nos encontrar lá.

No estábulo e curral Romilly encontrou diversos cavalos; cavalos negros das Colinas Kilghard, os melhores que ela já vira. Seria um prazer e um privilégio treinar aqueles cavalos para a sela, ela pensou.

— São necessários para o exército, o mais depressa possível — disse Tina, que a levara até o local — E devem ser treinados para a sela, para um ritmo firme, e para suportar os mais altos ruídos. Posso lhe conseguir tantas ajudantes quantas quiser, mas não temos nenhuma experiente e Dama Jandria nos informou que você possui o dom MacAran. Por isso estará no comando do treinamento.

Romilly olhou para os cavalos; havia pelo menos duas dúzias.

— Algum deles já foi domado para andar na guia de treinamento?

— Cerca de uma dúzia — respondeu Tina. Romilly balançou a cabeça.

— Ótimo. Providencie doze mulheres que possam treiná-los com a guia e mande-as para o curral. Enquanto isso, começarei a conhecer os outros.

Quando as mulheres chegaram, ela observou que Betta era uma delas, cumprimentou-a com um aceno de cabeça e um sorriso. Mandou-as trabalharem por alguns minutos fazendo os cavalos correrem em círculos nas guias, firmando seus ritmos; depois, foi ao estábulo para escolher o cavalo com que trabalharia pessoalmente.

Resolveu entregar cada cavalo aos cuidados da mulher que o exercitara naquele dia; seria mais fácil se formassem um vínculo íntimo com o cavalo.

— Assim o animal confiará em cada uma de vocês e fará as coisas para agradá-la — ela declarou às mulheres. — Mas não pode ser uma ligação unilateral. Enquanto o cavalo ama e confia, cada uma deve amá-lo também. E preciso haver confiança absoluta, pois o cavalo pode perceber o amor em sua mente; e não se pode fingir, pois ele sentirá a mentira num instante. Devem também se abrir aos sentimentos do cavalo. E outra coisa...

Romilly gesticulou para os chicotes curtos de treinamento que as mulheres seguravam.

— Podem estalar os chicotes, se quiserem, a fim de atrair a atenção dos cavalos. Mas se atingirem os animais com força suficiente para marcar, então não são treinadoras; se eu deparar com um chicote sendo usado para valer, a responsável pode cair fora e ir praticar esgrima!

Ela ordenou às mulheres que dessem início ao trabalho e por um momento escutou seus comentários enquanto saíam.

— Não usar os chicotes? Para que servem, então?

— Não compreendo essa mulher. De onde ela é? Das montanhas distantes? Fala de uma maneira estranha...

Romilly pensava que a fala delas é que era estranha, lenta e ponderada, como se mastigassem cada palavra uma dúzia de vezes antes de pronunciá-la; por outro lado, parecia-lhe que sua fala era absolutamente natural. Mesmo assim, após ouvir os comentários de cerca de doze mulheres, alegando que não conseguiam entender o que dizia, ela resolveu falar mais devagar, com o que lhe parecia uma lentidão afetada e antinatural.

Se elas estivessem no Ninho dos Falcões, todos achariam, sua fala tola, estranha, afetada. Suponho que é tudo uma questão de costume.

Romilly concentrou-se nos cavalos com incontestável alívio. Com eles, podia pelo menos ser ela própria; além disso, não criticariam sua fala, ou suas maneiras.

Os cavalos falam minha língua, ela refletiu, com satisfação.

Havia muitos e de todos os tipos, dos vigorosos pôneis peludos das montanhas, como o que ela matara na viagem, aos pretos iguais ao que seu pai criava. Entrou na baia e circulou entre os cavalos (para intenso horror de Betta, que parecia tão transtornada como se ela estivesse numa jaula com carnívoros gatos-das-montanhas), procurando o animal certo para começar. Tinha de fazer um esplêndido trabalho de treinamento, porque sabia ter havido alguns protestos — ela era jovem demais, alegavam algumas mulheres, que ficariam atentas para registrar o menor erro.

Não sou tão jovem e venho trabalhando com cavalos desde os nove anos de idade; mas elas não sabem disso!

Enquanto ela caminhava pela baia, um cavalo recuou contra a cerca de tábuas e se pôs a escoicear; Romilly notou que os olhos dele reviravam e os beiços se repuxavam sobre os dentes.

— Saia daí e fique longe desse cavalo, Romilly! — gritou Tina, ansiosa. — Ele é um matador... estamos pensando em devolvê-lo ao exército, a fim de ser levado para o pasto e usado na reprodução. Ninguém conseguirá montar esse aí... É velho demais para ser domado para a sela!

Mas Romilly, concentrada e absorta, sacudiu a cabeça. Ele está assustado quase até a morte, nada mais do que isso. Não vai me machucar.

— Traga-me uma guia e um freio, Tina. Não precisa entrar na baia, se está com medo, pode me entregar por entre as tábuas.

Tina assim procedeu, o rosto pálido, apreensivo. Romilly, com a corda na mão, manteve os olhos fixos no cavalo negro.

E então, meu belo, não acha que podemos nos tornar amigos?

O cavalo recuou nervosamente, mas parou de escoicear. Mas que idiota o meteu nesta sala apinhada? Calma, Negrinho, calma, não vou machucá-lo; não quer ir para o sol? Ela projetou uma imagem nítida do que pretendia fazer e o cavalo, bufando indócil, deixou-a puxar sua cabeça, colocar o freio e a corda guia. Ouviu Tina prender a respiração, espantada, mas estava agora tão profundamente absorvida com o cavalo que não podia dispensar qualquer pensamento à mulher.

— Abram o portão — ela ordenou, mantendo contato permanente com a mente do garanhão. — Já é o suficiente. Venha agora, meu negrinho lindo... Estão vendo? Quando se trabalha direito, nenhum cavalo é feroz; apenas sentem medo, e não sabem o que se espera deles.

— Mas você tem laran — disse uma das mulheres, de má vontade. — Nós não temos; como podemos fazer a mesma coisa que você?

— Com ou sem laran, se todo seu corpo e cada pensamento estiverem impregnados de medo, como esperar que o cavalo não perceba, não fareje? É preciso agir como se confiasse no animal, falar com ele, projetar em sua mente uma nítida imagem do que se deseja fazer... Quem sabe, talvez os cavalos tenham alguma espécie de laran próprio. E, acima de tudo, é preciso fazer com que o cavalo saiba com certeza absoluta que você não tenciona machucá-lo. Ele sentirá e verá isso em cada movimento que se fizer, em cada respiração, se a pessoa está com medo ou lhe deseja algum mal.

Romilly tornou a concentrar sua atenção no cavalo.

— E agora, meu querido amigo, vamos para o sol, dar um pulo no curral. Venha comigo. Não, não assim, tolinho, não vai querer voltar ao estábulo...

Ela falou em voz meio alta, dando um puxão nas cordas. No curral, meia dúzia de mulheres faziam cavalos correr em círculos nas guias, falando com eles e de um modo geral mantendo um ritmo suave. Romilly fez uma rápida verificação do que estava acontecendo — nenhuma estava se saindo muito mal, mas também com certeza haviam escolhido os animais mais dóceis para treinarem primeiro —, e foi para um canto relativamente isolado; uma égua ou mais de uma, podiam estar no cio, e ela não queria que seu garanhão fosse distraído. Ela recuou, segurando a guia, falou com o cavalo.

Era um animal forte, grande e pesado; por um instante Romilly quase foi derrubada quando ele começou a galopar, descobriu a corda que restringia seus movimentos, explorou seus limites, pôs-se a correr no círculo mais amplo. Ela puxou com força e o cavalo reduziu o galope para um ritmo constante, dando voltas e mais voltas. Após algum tempo, quando tinha certeza de que o animal captara a idéia, deixou-o movimentar-se um pouco mais depressa.

Seus passos são sensacionais; um cavalo feito para o próprio Carolin. Ah, que animal glorioso!

Ela deixou o cavalo correr quase uma hora, habituando-o à sensação do freio, depois deu um puxão. Ele resistiu um pouco, surpreso, e Romilly podia compreendê-lo; não o culpava, pois refletiu que também não gostaria de ter uma coisa fria, de metal, colocada em sua boca.

Mas é assim que tem de ser, meu belo, vai acabar se acostumando, e depois poderá andar com seu dono...

Ao meio-dia ela levou o cavalo de volta ao estábulo, sugerindo a uma das mulheres que pusesse seu cavalo mais dócil na baia maior, com os outros animais, deixando a baia menor para o garanhão negro. Já podia ver a nebulosa figura do Rei Carolin entrando em Hali naquele esplêndido cavalo.

De seu trabalho, que achou fácil — isto é, não exatamente fácil, mas familiar e agradável —, ela foi despachada para o combate desarmado. Não se importava muito de ter de aprender a cair sem se machucar — afinal, caíra de um cavalo mais vezes do que podia se lembrar, enquanto aprendia a montar, e calculava que a habilidade necessária era similar —, mas a série de chaves, socos e projeções parecia excessivamente complexa, e a impressão era a de que todas as mulheres ali, inclusive as principiantes com que tinha de praticar os movimentos básicos, sabiam mais do que ela. Uma das mulheres mais velhas, observando-a por um momento, acabou gesticulando para que ela se retirasse do exercício, mandou que as outras continuassem, e perguntou:

— Há quanto tempo está na Irmandade, menina?

Romilly tentou se lembrar. As coisas haviam acontecido tão depressa nas últimas luas que não tinha realmente uma noção precisa. Deu de ombros, desolada.

— Não sei direito. Algumas dezenas de dias...

— E não percebe muito motivo para esse tipo de treinamento, não é mesmo?

Romilly procurou responder com o maior tato:

— Tenho certeza de que deve haver algum motivo, pois é ensinado em todos os abrigos da Irmandade.

— Onde você foi criada, e qual é o seu nome?

— Romilly. E às vezes sou chamada de Romy. Fui criada nos contrafortes das Hellers, próximo ao Ninho dos Falcões.

A mulher balançou a cabeça.

— Dava para adivinhar, por sua maneira de falar. Mas quer dizer que foi criada no campo, nunca viveu perto de uma cidade grande, nunca se encontrou com um estranho?

— Isso mesmo.

— Pois vamos supor que está andando por uma rua de cidade grande, num dos distritos mais apinhados e sujos.

Ela fez um sinal e Betta, a moça que sentara ao lado de Romilly no jantar na noite anterior, aproximou-se.

— Está andando por uma rua cheia de ladrões, num lugar em que os homens pensam que todas as mulheres são como as vagabundas das tavernas — disse a mulher mais velha.

Betta deu de ombros e começou a andar junto do muro, a mulher mais velha atacou-a subitamente, apertando-a pela garganta. Romilly ficou aturdida quanto Betta girou a parte superior do corpo, jogou a mulher para a frente e a fez cair de joelhos, imobilizando seu braço nas costas.

— Ai! Você exagerou um pouco, Betta, mas creio que Romy compreende agora qual é a intenção. E agora me ataque com uma faca.

Betta pegou um pequeno bastão de madeira, mais ou menos do tamanho de um canivete. Avançou para a mulher, com a "faca" em posição para o golpe fatal. Tão depressa que Romilly nem pôde perceber o que acontecera: a "faca" estava nas mãos da outra mulher e Betta caída de costas no chão, com a outra fingindo chutá-la.

— Cuidado, Cléa — advertiu Betta, rindo e se desviando, depois agarrando subitamente o pé da mulher e derrubando-a.

Rindo também, Cléa levantou-se e disse a Romilly:

— Compreende agora como isso pode lhe ser útil? Ainda mais numa cidade como esta, em que estamos à beira das Terras Secas e provavelmente existem homens que pensam nas mulheres como objetos que podem ser acorrentados e aprisionados. Mas mesmo numa cidade civilizada como Thendara você pode encontrar quem não tenha respeito nem cortesia por homem ou mulher. Todas as mulheres que ingressam na Irmandade devem aprender a se defender e... - O rosto risonho tornou-se de repente muito sério. — ... quando você assumir um compromisso com a Irmandade por toda a vida, como eu, usará isto.

Ela pôs a mão na adaga em sua garganta e acrescentou:

— Tenho a obrigação de matar antes de me deixar ser possuída pela força; matar o homem, se puder; a mim mesma, se não puder!

Um calafrio percorreu a espinha de Romilly. Não sabia se seria capaz de fazer isso. Estava disposta a ferir Rory gravemente, se fosse preciso, mas matá-lo? Isso não a tornaria tão ruim quanto ele?

Enfrentarei o problema se e quando fizer o juramento pelo resto da vida com a Irmandade. A esta altura talvez eu já saiba o que posso ou não posso fazer.

Cléa percebeu sua expressão perturbada e afagou seu ombro.

— Não se preocupe, você aprenderá. E agora trate de praticar. Betta, leve-a e ensine os primeiros movimentos, a fim de que ela não fique confusa; haverá tempo suficiente depois para incluí-la num grupo de principiantes.

Agora que alguém se dera ao trabalho de informar a Romilly o que estavam fazendo, e por quê, tudo correu melhor. Ela começou a perceber, naquele dia e nos subseqüentes, que ao enfrentar outra mulher nas sessões podia ler, pelos movimentos do corpo e dos olhos, o que a oponente ia fazer, tirando proveito da informação. Mas saber isso não era suficiente; também tinha de aprender os movimentos precisos, todos os golpes usados, a força certa para usar sem chegar a machucar ninguém.

E no entanto, em roupas de homem, viajei pelas Hellers. Prefiro viver assim, sem me preocupar com a possbilidade de me tornar presa de algum homem.

Mas havia orgulho também em saber que era capaz de se defender e nunca precisar pedir misericórdia a ninguém. Mais tarde, as aulas de esgrima também pareceram mais fáceis, mas fizeram com que outro medo aflorasse à superfície de sua mente.

Não havia problemas em praticar com bastões de madeira, quando a única penalidade para um golpe falho era uma dolorosa equimose. Mas poderia enfrentar as armas afiadas sem terror, seria mesmo capaz de golpear alguém com uma espada de verdade? O simples pensamento de cortar carne humana deixava-a angustiada.

— Não sou uma Espadachim, não importa o que me chamam. Sou uma treinadora de cavalos, uma pessoa que lida com pássaros... lutar não é meu ofício.

Os dias foram passando, ocupados pelas aulas e pelo trabalho árduo. Quando já estava ali há quarenta dias, ela percebeu que o Solstício do Verão se aproximava. Dentro em pouco faria um ano inteiro que estava ausente de casa. Sem dúvida o pai e a madrasta julgavam-na morta há muito tempo e Darren era forçado a tomar seu lugar como Herdeiro do Ninho dos Falcões. Pobre Darren, como ele odiava tudo aquilo! Ela torcia, pelo bem do pai, que o pequeno Rael se mostrasse capaz de substituí-la, de aprender alguns dos dons dos MacAran... Se Rael fosse o que o pai chamaria de "um verdadeiro MacAran", talvez Darren tivesse permissão para voltar ao mosteiro. Ou talvez ele fosse embora como ela fizera, sem permissão.

Um ano antes o pai a prometera a Dom Garris. Quantas mudanças em um ano! Romilly sabia que se tornara mais alta - tivera de jogar todas as roupas que usava ao chegar ali na caixa de refugos e descobrir outras que se ajustassem melhor a seu corpo. Os ombros estavam mais largos e, por causa dos exercícios constantes de esgrima e do trabalho com os cavalos, os músculos nas partes superiores dos braços e das pernas haviam se tornado duros e marcados. Como Mallina escarneceria, como a madrasta deploraria... Você não parece uma dama, Romilly. E não sou mesmo uma dama, mas sim uma Espadachim, Romilly respondeu silenciosamente à voz da madrasta.

Mas todos os seus problemas desapareciam a cada dia quando trabalhava com os cavalos, em particular com o garanhão negro. Nenhuma outra mão além da sua o tocava, pois sabia que seria um dia uma montaria digna do próprio rei. Um dia se seguia a outro, uma lua a outra, uma estação a outra; o inverno chegou e havia dias em que ela não podia trabalhar nem mesmo com o garanhão negro, muito menos com os outros cavalos. Mesmo assim, orientava os cuidados necessários. O tempo e a convivência haviam convertido os rostos estranhos do abrigo em amigas. O Solstício do Inverno chegou, com pão condimentado e presentes trocados entre as mulheres da Irmandade. Algumas poucas tinham famílias, e foram visitá-las; mas quando perguntaram a Romilly se não desejava partir para visitar sua casa, ela respondeu com firmeza que não tinha família. Era mais simples assim. Mas não pôde deixar de pensar: como o pai a receberia, se aparecesse em casa para uma visita, sem pedir nada, uma Espadachim profissional em sua túnica escarlate e o símbolo da Irmandade na orelha furada? Ele a repeliria, diria que não era sua filha, que nenhuma filha sua podia ser uma daquelas mulheres assexuadas da Irmandade? Ou a acolheria com orgulho, sorriria em boas-vindas e até aprovaria sua independência e a força que demonstrara ao construir uma vida longe do Ninho dos Falcões?

Não sabia. Não podia sequer adivinhar. Talvez um dia, dali a anos, se arriscaria a tentar descobrir. Mas, de qualquer forma, não podia viajar pelas profundezas das Hellers em pleno inverno: a maioria das mulheres que pediram licença para visitas tinha famílias que não viviam mais distante do que Thendara ou Hali, o que representava no máximo sete dias de viagem.

Naquela região desértica havia poucos sinais da primavera. Num dia estava frio, ventos gelados sopravam e a chuva caía pelas planícies; no dia seguinte, ao que parecia, o sol brilhava, quente. Romilly refletiu que lá longe, nas Hellers, os caminhos estavam sendo inundados pelo degelo da primavera. Quando pôde voltar a trabalhar com os cavalos, tirava o manto e os treinava de culote e com uma túnica toda remedada.

Com a primavera surgiram rumores de exércitos na estrada, de uma batalha distante entre forças de Carolin e as tropas de Lyondri Hastur.

Depois souberam que Carolin fizera um acordo de paz com a Grande Casa de Serrais, e que seus exércitos se concentravam outra vez nas planícies. Romilly prestava pouca atenção a tudo isso. Todos os seus dias eram ocupados pelos novos cavalos que haviam sido trazidos no início da primavera; improvisaram um abrigo para esses animais e alugaram um novo curral, fora dos muros da propriedade da Irmandade, para onde Romilly ia todas as tardes, com as mulheres que estava treinando. Seu mundo se reduzira a estábulos e currais, à planície fora da cidade para onde seguiam, dois ou três dias em cada dez, a fim de trabalhar e exercitar os cavalos. Uma tarde, quando passavam pelos portões, deixando a cidade, Romilly deparou com tendas, homens e cavalos, uma multidão atordoante.

— O que é isso? — ela perguntou.

Uma das mulheres, que saía todas as manhãs para comprar leite e frutas frescas, respondeu:

— É a guarda avançada do exército de Carolin; vão instalar seu acampamento aqui, de onde partirão outra vez pelas Planícies de Valeron, a fim de dar combate ao Rei Rakhal... — O rosto da mulher contraiu-se em aversão e ela cuspiu.

— Quer dizer que você é partidária de Carolin? — indagou Romilly.

— Se sou partidária de Carolin? Mas claro que sou! — A veemência da mulher era intensa. — Rakhal expulsou meu pai de sua pequena propriedade nas Colinas Venza e entregou suas terras a um acólito daquele demônio ganancioso chamado Lyondri Hastur! A mãe morreu pouco depois de deixarmos nossas terras e o pai está com o exército de Carolin... Partirei amanhã, se Cléa me conceder permissão, tentarei descobrir meu pai, pedirei notícias de meus irmãos, que fugiram quando fomos expulsos de nossas terras. Estou aqui com a Irmandade porque meus irmãos foram para os exércitos e não podiam mais me proporcionar um lar. Arrumaram-me um homem para casar, mas o homem escolhido fora deixado em paz por Lyondri e seu amo Rakhal, e eu jamais casaria com qualquer homem que ficasse no conforto de sua casa enquanto meu pai era exilado!

— Ninguém pode culpá-la por isso, Marelie — comentou Romilly. Ela pensou em suas viagens pelas Hellers com Orain e Cario e os outros exilados, como Alaric, que sofrerá ainda mais de Lyondri Hastur do que a família de Marelie.

— Também sou partidária de Carolin, embora nada saiba a respeito dele, exceto que homens em cujo julgamento confio sempre o consideraram um homem de bem e um bom rei.

Ela pensou se Orain e Dom Cario estariam no acampamento. Poderia acompanhar Marelie, quando ela fosse procurar o pai no acampamento. Orain fora seu amigo; mesmo ela sendo mulher, esperava que ele tivesse passado são e salvo pelo inverno de guerra.

— Olhem! — exclamou Cléa, apontando. — Lá está a bandeira Hastur, azul com o pinheiro prateado! O Rei Carolin está no acampamento... O próprio rei!

E onde Orain está, Carolin não está muito longe, — lembrou Romilly. Naquela noite na taverna, quando Orain quis que ela distraísse os outros fregueses, o vulto furtivo com quem ele conversara teria sido o próprio Carolin?

E Orain ficaria satisfeito com sua visita? Ou apenas a acharia embaraçosa? Romilly decidiu que assim que Jandria voltasse ao abrigo — ela passara o ano inteiro viajando, no serviço de mensageira entre Serrais, Dalereuth e Temora, as cidades ao sul — pediria a opinião dela.

Deveria ter se lembrado que quando a mente de um telepata era atraída de forma inesperada para alguém que não via há algum tempo não se tratava provavelmente de coincidência. No dia seguinte, quando terminava seu trabalho com o garanhão negro e o levava de volta ao estábulo — após um ano de trabalho ele estava perfeitamente treinado, dócil como uma criança; ela conversara com a diretora sobre a possibilidade de oferecê-lo ao próprio rei — Romilly deparou com Jandria na entrada da baia.

— Romy! Eu tinha certeza de que a encontraria aqui! Ele percorreu um longo caminho desde aquele primeiro dia em que a vi pegá-lo e todas estávamos convencidas de que a mataria.

Jandria vestia-se como se tivesse acabado de chegar de uma longa viagem: botas empoeiradas, máscara contra a poeira como as que eram usadas pelos habitantes das Terras Secas, pendurada no lado do rosto. Romilly correu para abraçá-la.

— Janni! Não sabia que você voltara!

— Não estou aqui há muito tempo, irmãzinha.

Jandria retribuiu ao abraço com entusiasmo. Romilly alisou seus cabelos suavemente com as mãos encardidas e disse:

— Deixe-me desencilhá-lo e depois teremos algum tempo para conversar antes do jantar. Ele não é maravilhoso? Dei-lhe o nome de Estrela-Sol... É assim que ele pensa de si mesmo, como me disse.

— Ele é mesmo lindo — concordou Jandria. — Mas não devia dar a cavalos nomes tão sofisticados nem tratá-los com tanto cuidado. Irão para soldados e devem ter nomes simples, fáceis de lembrar. E acima de tudo, não deve se afeiçoar tanto aos cavalos, pois lhe serão tirados muito em breve. São para o exército, embora alguns devam ser montados por mulheres da Irmandade, se acompanharem os homens de Carolin, quando levantarem acampamento. Já viu o acampamento? Sabe que está próximo o momento em que todos esses cavalos irão para o exército. Não deve se envolver tão profundamente com eles.

— Não posso deixar de me afeiçoar — respondeu Romilly. — É assim que os treino; conquisto seu amor e confiança, eles fazem o que eu quero.

Jandria suspirou.

— Precisamos desse seu laran, mas detesto ter de usá-lo assim, criança. — Ela afagou os cabelos macios de Romilly. — Orain me contou, quando a levou para nós, que você tem conhecimento dos pássaros-sentinelas. Devo levá-la ao acampamento de Carolin, a fim de que você ensine a um novo operador como deve tratá-los. Vá se aprontar para a montaria, minha cara.

— Vestir-me para a montaria? O que acha que estive fazendo durante toda a manhã?

— Mas não fora do nosso abrigo — respondeu Jandria, com severidade.

Romilly viu-se subitamente através dos olhos de Janni: os cabelos emaranhados e com pedaços de palha, a túnica larga desabotoada porque fazia calor e ela suava, deixando à mostra a curva dos seios. E ela pusera um culote velho e remendado, muito justo, que encontrara na caixa de refugos que a Irmandade mantinha para os trabalhos internos. Romilly corou e soltou uma risadinha.

— Está certo, vou trocar a roupa. E voltarei em um minuto.

Ela se lavou rapidamente na bomba, correu para o quarto que agora partilhava com Cléa e Betta, penteou os cabelos desgrenhados. E depois vestiu seu próprio culote e uma camisa de baixo limpa. Enfiou pela cabeça a túnica escarlate da Irmandade, pôs o cinto com a adaga. Sabia que agora não parecia com uma mulher em roupas de homem, nem mesmo como um rapaz ou uma criança das ruas, mas como membro da Irmandade, uma Espadachim profissional, soldado dos exércitos de Carolin. Não podia acreditar totalmente que era ela própria naquele traje formal. Mas era o que ela era.

Jandria sorriu aprovadora quando ela apareceu. Janni também usava a túnica escarlate formal de Espadachim, uma espada no cinto, uma adaga na garganta, o pequeno símbolo faiscando na orelha esquerda. Lado a lado, as duas atravessaram os portões do abrigo e encaminharam-se para a cidade murada de Serrais.

 

Romilly pôde agora examinar mais atentamente o acampamento dos homens de Carolin, a bandeira prateada com o pinheiro azul dos Hastur tremulando sobre a tenda central, que ela calculou que devia ser o alojamento pessoal do rei ou o quartel-general de seu estado-maior. Avançaram pelo acampamento, passando por estábulos bem organizados, uma cozinha onde caldeirões do exército borbulhavam com alguma coisa que exalava um apetitoso aroma, e um campo cercado por uma corda em que uma Espadachim que Romilly conhecia apenas ligeiramente dava aulas de combate desarmado a um grupo de recrutas com a barba por fazer; alguns pareciam irritados e descontentes, e Romilly desconfiou que não gostavam de receber instruções de uma mulher; outros, esfregando equimoses nos pontos com que haviam caído no chão, derrubados por ela, observavam com a maior atenção.

Um guarda estava postado perto da parte central do acampamento e mandou que elas parassem. Jandria fez uma saudação formal e disse:

— Espadachim Jandria e Aprendiz Romilly, procuro Lorde Orain, que mandou me chamar.

Romilly tentou se fazer pequena, supondo que o guarda diria alguma coisa desdenhosa ou descortês, mas o homem se limitou a retribuir a saudação e chamou um mensageiro, um rapaz mais ou menos da idade de Romilly, pedindo-lhe que fosse avisar Lorde Orain.

Ela reconheceria o vulto alto e magro, com o queixo fino e comprido, em qualquer lugar; mas agora ele vestia as elegantes cores dos Hastur, usava um pingente de pedras preciosas e uma boa espada. Romilly compreendeu que se o visse assim ao conhecê-lo ficaria impressionada demais para falar. Ele fez uma reverência formal para as mulheres e sua voz tinha o refinado sotaque do nobre, sem qualquer vestígio do rude dialeto camponês, quando disse:

— Mestra'in, é muita gentileza atenderem à minha convocação tão depressa.

Jandria respondeu, do mesmo jeito formal, que era um prazer e um dever servir ao rei. Um pouco menos formalmente, Orain acrescentou:

— Lembrei que Romilly tem experiência de treinamento não apenas de falcões, mas também de pássaros-sentinelas. Temos um laranzu que veio conosco de Tramontana, mas ele não teve qualquer experiência com pássaros-sentinelas. E os que temos são seus conhecidos, damisela. Poderia fazer o favor de instruir nosso laranzu nas habilidades para manipulá-los?

— Terei o maior prazer, Lorde Orain... — Romilly hesitou por um instante e depois explodiu: — ... mas apenas se parar de me chamar de damisela nesse tom!

Um rubor irregular espalhou-se pelo comprido rosto de Orain. Ele não a fitou nos olhos.

— Desculpe... Romilly. Quer me acompanhar?

Ela seguiu Jandria e Orain, que foram andando de braços dados. Jandria perguntou:

— Como ele está?

Orain deu de ombros.

— Muito melhor pelas notícias que você mandou, querida. Mas esteve frente a frente com Lyondri?

Romilly viu o movimento negativo da cabeça da mulher mais velha.

— No final, fui covarde demais; mandei Romilly em meu lugar. Se o confrontasse naquele momento... — Ela hesitou. — Não sei se você viu aquelas aldeias ano passado, ao longo da estrada do norte. Ainda empestadas, todas elas...

Jandria fez uma pausa, estremecendo; mesmo à distância, Romilly pôde percebê-lo.

— Fico contente por ser uma honesta Espadachim e não uma leronis. Se tivesse participado da devastação daquela boa terra, não sei como poderia outra vez levantar os olhos para o dia claro!

Seria esse, especulou Romilly, o motivo pelo qual O MacAran brigara com as Torres, por que Ruyven tivera de fugir e o pai expulsara a leronis de sua casa sem permitir que testasse Romilly e Mallina para determinar seu laran? A guerra de laran, mesmo o pouco que ela pudera observar, era terrível. Orain comentou, muito sóbrio:

— Carolin já declarou que não travará esse tipo de guerra, a menos que seja usado contra ele. Mas se Rakhal tiver laranzu'in para lançar contra seus exércitos, então ele terá de fazer o que for necessário. Sabe disso tão bem quanto eu, Janni. — Orain suspirou. — Seria melhor você contar a ele pessoalmente o que descobriu em Hali, mesmo que as notícias o deixem pesaroso. Quanto a Romilly...

Orain virou-se e contemplou-a por um momento em silêncio, antes de acrescentar, apontando:

— Os alojamentos dos treinadores de pássaros ficam ali. O mestre treinador e seu aprendiz ocupam aquela tenda e sem dúvida encontrará os dois na parte de trás. Vamos embora, Janni.

Jandria e Orain afastaram-se de braços dados na direção da tenda central, onde a bandeira estava hasteada, e Romilly seguiu para a tenda indicada, sentindo-se inibida e apreensiva. Como falaria com um laranzu estranho? Mas ela logo se empertigou, orgulhosa. Era uma MacAran, Espadachim e mestre falcoeira; não precisava ter medo de ninguém. Haviam-na chamado para ajudar, não o inverso. Avistou atrás da tenda um rapaz grosseiramente vestido, com cerca de treze anos, carregando um enorme cesto; e mesmo que não o visse, poderia sentir o cheiro, pois recendia a carniça. E divisou em poleiros as três formas familiares, belas-feias, saiu correndo, rindo.

— Diligência! Prudência, querida!

Ela estendeu as mãos e os pássaros inclinaram um pouco a cabeça; reconheciam-na e o antigo e familiar contato restabeleceu-se, persistiu.

— E onde está Temperança? Ah, aí está você, minha beleza!

— Não chegue muito perto desses pássaros — disse uma voz que parecia familiar por trás de Romilly. — Essas criaturas podem arrancar seus olhos a bicadas; meu aprendiz perdeu a unha de um dedo anteontem.

Ela virou-se e deparou com um homem franzino e barbudo, metido em uma túnica escura, não muito diferente da que era usada por um monge em Nevarsin, fitando-a com uma expressão carrancuda; e depois pareceu que o rosto barbudo estranho se dissolveu, ela reconheceu a voz e gritou, incrédula:

— Ruyven! Oh, eu deveria ter imaginado quando me disseram que era um laranzu de Tramontana. Ruyven, não me reconhece?

Ela ria e chorava ao mesmo tempo, enquanto Ruyven a fitava fixamente, a boca entreaberta.

— Romy! — ele exclamou finalmente. — Irmã, é a última pessoa do mundo que eu esperaria encontrar aqui! Ainda mais nesse traje. — Ruyven fitou-a de alto a baixo, corando por trás da barba estranha. — O que esta fazendo aqui? Como veio...

— Fui mandada para cuidar dos pássaros, seu tolo. Fui eu quem os levou dos contrafortes das Hellers para Nevarsin e de lá para Caer Donn. Veja, eles me reconhecem... — Romilly gesticulou e os pássaros responderam por prazer e reconhecimento. — Mas o que você está fazendo aqui, Ruyven?

— A mesma coisa que você. O filho de Lorde Orain e eu somos bredin; ele me enviou um aviso e vim me encontrar com o exército de Carolin. Mas você... — Ele tornou a contemplar o traje da Irmandade, com surpresa e aversão. — O pai sabe que está aqui? Como obteve seu consentimento?

— Da mesma maneira que você obteve o consentimento dele para treinar seu laran na Torre Tramontana — respondeu Romilly, fazendo uma careta.

Ruyven suspirou.

— Pobre pai! Ele perdeu nós dois e Darren. — Ruyven tornou a suspirar. — Mas o que está feito, está feito. Agora você usa o brinco da Irmandade e eu a túnica da Torre, e ambos seguimos Carolin... Por falar nisso, já viu o rei?

Romilly sacudiu a cabeça.

— Não, mas viajei durante algum tempo com seus seguidores, Orain e Dom Cario do Lago Azul.

— Não conheço esse Cario. Mas você cuida de pássaros-sentinelas? Lembro que sempre teve boa mão com cavalos e cachorros, e suponho que com falcões também; por isso, deve possuir o dom MacAran para cuidar desses pássaros. Teve algum treinamento de laran, irmã?

— Nenhum; desenvolvi-o pelo trabalho com animais de terra e pássaros.

Ruyven balançou a cabeça, consternado.

— O laran destreinado é uma coisa perigosa, Romy. Depois que tudo isso terminar, providenciarei um lugar para você numa Torre. E quer saber de mais uma coisa? Ainda não me cumprimentou direito! — Ele abraçou-a e beijou-a na face. — Conhece esses pássaros? Até agora, excetuando Lorde Orain, não vi ninguém que pudesse controlá-los...

— Ensinei tudo o que ele sabe sobre os pássaros-sentinelas — declarou Romilly.

Ela se aproximou dos poleiros e estendeu uma das mãos; com a outra, desfez o nó. Prudência deu um pulo rápido para se acomodar no pulso dela. Deveria ter trazido uma luva apropriada, mas em algum lugar do acampamento de Carolin tinha de haver uma luva de falcoeiro.

E isso a fez pensar, com súbita angústia, em Preciosa. Não a via desde que haviam entrado naquela região das Terras Secas. Mas também Preciosa já a deixara antes, quando atravessara as geleiras, e voltara a procurá-la quando se encontrava outra vez nas colinas verdes. Era bem possível que Preciosa retornasse outra vez para ela algum dia...

...e se isso não acontecer, ela é livre... uma coisa livre e selvagem, pertencendo aos ventos do céu e a si mesma...

— Pode me arrumar uma luva, Ruyven? Se for preciso, posso cuidar de Prudência com as mãos nuas, porque ela é pequena e gentil, mas os outros dois pássaros são mais pesados e não têm um toque tão delicado.

— Pode haver alguma coisa de delicada nessas criaturas? — Ruyven riu, mas parou ao perceber que ela permanecia séria. — Chamou-a de Prudência, não é mesmo? Muito bem, mandarei meu ajudante buscar uma luva para você e depois deve me dizer seus nomes e explicar como os distingue.

A manhã passou depressa, mas falaram apenas de pássaros; não houve qualquer menção ao passado partilhado ou ao Ninho dos Falcões. Ao meio-dia um sino repicou e Ruyven, anunciando que era a hora do almoço, convidou-a a acompanhá-lo ao rancho do acampamento.

— Há outras mulheres da Irmandade aqui no acampamento — ele informou. — Elas dormem em seu abrigo na cidade, mas tenho a impressão de que você sabe mais sobre isso do que eu. Pode comer na mesa delas, se quiser, e creio que seria melhor, pois elas não se misturam com os soldados regulares, a não ser quando é necessário, e você não pode explicar a todo o exército que é minha irmã.

Romilly entrou numa das longas filas do rancho, levou seu pão e ensopado para a mesa separada onde estavam as sete ou oito mulheres da Irmandade que trabalhavam com o exército — como mensageiras, treinadoras de cavalos e instrutoras de combate desarmado; uma até como instrutora de esgrima! Conhecera algumas no abrigo e nenhuma se mostrou surpresa em vê-la ali. Jandria não apareceu. Romilly calculou que ela ficara com Lorde Orain e os oficiais superiores, que obviamente tinham um rancho separado.

— O que está fazendo aqui? — perguntou uma das mulheres. Romilly respondeu em poucas palavras que fora enviada para trabalhar com os pássaros-sentinelas.

— Pensei que isso era trabalho de leronyn — comentou outra mulher. — Mas você tem cabelos vermelhos, também possui Iaran?

— Tenho jeito para trabalhar com animais. Não sei se é laran ou outra coisa.

Romilly não queria ser tratada com a distante reverência que era dispensada a uma leroni. Após acabar a refeição, ela voltou a se encontrar com Ruyven nos alojamentos dos responsáveis pelos pássaros. Ao final do dia o irmão cuidava dos pássaros com a mesma facilidade que ela.

O crepúsculo estava terminando e eles acomodaram os pássaros nos poleiros, preparando-os para serem levados para dentro da tenda. Ruyven levantou os olhos subitamente e anunciou:

— Lá vem o braço-direito de Carolin. Raramente vemos o rei; as ordens são sempre transmitidas por Lorde Orain. Creio que você o conhece.

— Viajei meses com ele, mas todos pensavam que eu era um rapaz — respondeu Romilly, sem explicar.

Orain aproximou-se e disse a Ruyven, ignorando Romilly:

— Quando os pássaros estarão prontos para serem usados?

— Talvez em dez dias.

— E Derek ainda não chegou — murmurou Orain, franzindo o rosto.

— Acha que poderia persuadir a leronis...

Ruyven declarou bruscamente:

— O campo de batalha não é lugar para Dama Maura. Além do mais, Lyondri é seu parente; ela disse que cuidaria dos pássaros, mas me fez prometer que não lhe pediria para lutar contra ele. Não a culpo; esta guerra que lança irmão contra irmão, pai contra filho, não é lugar para mulher.

Orain exibiu um sorriso seco.

— Nem para homem; o mundo continua como quer e não como você ou eu gostaríamos que fosse. Esta guerra não foi obra minha nem de Carolin. De qualquer maneira, respeito os sentimentos de Dama Maura. Por isso, devemos procurar outra pessoa para treinar os pássaros-sentinelas. Romilly... — Ele a fitou por um momento e havia um vestígio da antiga afeição em sua voz quando acrescentou: — Você poderia treiná-los por Carolin, menina?

Então quando quer alguma coisa de mim ele pode ser um pouco cortês, até mesmo com uma mulher? A ira fez com que sua voz soasse fria:

— Deve perguntar às minhas superiores na Irmandade, vai dom; sou uma aprendiz e minha vontade não decide o que devo fazer.

— Creio que Jandria não criará dificuldades — comentou Orain, sorrindo. — A Irmandade a emprestará a nós, não tenho a menor dúvida.

Romilly inclinou a cabeça, sem responder. Mas pensou: Não se eu tiver alguma influência nessa decisão.

Elas voltaram para o abrigo ao sol poente, o céu claro e sem nuvens; Romilly nunca deixara de sentir saudades da chuva vespertina ou da neve nas colinas. Ainda lhe parecia que aquela região era seca demais, inóspita. Jandria tentou puxar conversa sobre o exército, a região, apontou a Grande Casa de Serrais, empoleirada na encosta baixa, onde os Hastur haviam se instalado, como em Thendara, Hali, Aldaran e Carcosa; mas Romilly manteve-se calada, pouco falando, perdida em pensamentos.

Ruyven não é mais o irmão que eu conhecia; podemos ser amigos agora, mas a intimidade desapareceu para sempre. Eu esperava que ele me compreendesse, os conflitos que me afastaram do Ninho dos Falcões... São iguais aos que ele também teve. Houve época em que ele podia me ver apenas como Romilly, não como sua irmãzinha. Agora... agora tudo o que ele vê é que me tornei uma Espadachim, mestre falcoeira, nada mais do que isso.

Mesmo depois que perdi o Ninho dos Falcões, pai, mãe, lar... pensei que ao reencontrar Ruyven seríamos como no tempo em que éramos crianças. Agora também perdi Ruyven, para sempre.

Nada mais me resta, somente um falcão e minha habilidade com a espada e com os animais. Elas chegaram ao abrigo, onde o jantar há muito terminara, mas uma das mulheres providenciou-lhes um pouco de comida na cozinha. Foram deitar em silêncio; Jandria também estava absorta em seus pensamentos, que Romilly imaginou que deviam ser tão amargos quanto os dela.

Maldita guerra! Isso mesmo, é o que Ruyven disse e Orain também. É possível que o pai estivesse certo... Que importância tem qual o grande patife que está no trono ou que patife ainda maior que tenta derrubá-lo?

Todos os dias Romilly trabalhava primeiro com os outros cavalos, mais simples de controlar por serem menos inteligentes; pareciam ter menos iniciativa. Reservava Estrela-Sol como recompensa para si mesma ao final de uma longa manhã de exercícios com os outros cavalos, orientando suas ajudantes no treinamento e supervisionando pessoalmente a andadura e a velocidade com que podiam ser domados para a sela e arreios. Sabia que era apenas mais um entre os treinadores de cavalos em Serrais que Carolin usava no preparo da cavalaria para seu exército — havia ocasiões em que via alguns dos outros deixando a cidade de Serrais para trabalhar nas planícies próximas. Mas seria uma tola se não soubesse que seus cavalos eram mais bem treinados e mais depressa.

Agora, quase ao final de uma longa manhã, ela circulou por seu pequeno domínio, fazendo um afago no focinho de cada um dos seus cavalos, num momento de longo e feliz contato emocional. Amava cada um, experimentava a certeza, entre amarga e doce, de que em breve teriam de se separar; mas cada um levaria um pouco dela para onde os exércitos de Carolin pudessem ir. Contato após contato, um abraço num pescoço comprido ou um afago num focinho aveludado, cada momento aumentava sua percepção mais e mais, até que se sentiu tonta, com a sensação de correr ao sol, galopar sobre quatro patas, o controle do cavaleiro, que era um fardo, proporcionando uma satisfação particular. No fundo de sua mente, Romilly sentiu que cada um daqueles cavalos sustentando seu cavaleiro conhecia alguma coisa da profunda justiça do Portador dos Fardos, que suportava sozinho o peso do mundo, como constava dos escritos do santificado Valentim. Ela foi cada cavalo, conhecendo sua rebeldia, sua disciplina e submissão, o sentimento de trabalhar em perfeita união com o que lhe era concedido.

Um tanto vagamente, ela pensou: Talvez apenas os cavalos saibam o que a verdadeira fé pode ser ao partilharem com o Portador dos Fardos... E no entanto, eu, apenas humana, fui escolhida para partilhar e conhecer isso. Era mais fácil se deixar levar em união e contato com os cavalos do que com falcões, ou mesmo mais que os brilhantes pássaros-sentinelas, porque os cavalos, ela refletiu, possuíam uma inteligência mais aguçada. Os pássaros, sensíveis como eram, felizes por partilharem o êxtase do vôo, ainda assim só tinham uma percepção limitada, em grande parte concentrada na visão. A percepção sensual era mais intensa nos cavalos porque eram mais organizados, mais inteligentes, um estilo humano de percepção, ao mesmo tempo em que não chegava a ser humano.

E agora, ao final da manhã, depois que os outros cavalos haviam sido recolhidos, ela tirou Estrela-Sol de sua baia. O cavalo trabalhava agora em tamanha união com ela que uma única palavra o convocava. Uma parte de Romilly se projetava em amor, ela era o cavalo, sentia a sela deslizar em suas próprias costas, enquanto ajeitava as correias de couro, numa estranha percepção duas vezes mais ampla.

Ela não sabia se subira na sela ou aceitara o peso estimado em suas próprias costas. Parte dela foi absorvida alegremente na percepção do próprio corpo, mas tudo isso era engolfado na percepção maior de cavalgar livre, correr com o vento... tão equilibrada, tão unida ao cavalo que por longo tempo mal percebia o que era ela própria, o que era Estrela-Sol. Apesar de tudo isso, porém, sentia que nunca fora com tanta precisão e intensidade ela própria, dominada por uma espécie de realidade que jamais conhecera antes. O calor do sol, o suor escorrendo por seus flancos, a delicada inclinação para equilibrar de cima o peso que sentia por baixo, por dentro. O tempo parecia dividido em infinitesimais fragmentos; a cada um ela concedia seu verdadeiro peso, sem pensar no passado ou no futuro, tudo se unindo no presente absoluto.

E depois, pesarosa, ela voltou e separou-se de Estrela-Sol, descendo na cerca do curral, caindo contra ele e passando os braços por seu pescoço lustroso, num êxtase absoluto de amor, entregando-se completamente, com toda a consciência. Não havia necessidade de palavras. Ela era dele; ele era dela; mesmo que nunca mais experimentassem aquele êxtase de consumação mútua, aquele prazer total e delicioso; mesmo que ela nunca mais o montasse nem ele corresse com ela para uma planície sem fim, do prazer alheio a tudo; estariam sempre, em alguma parte de seus seres, unidos integralmente; aquele momento era eterno, e continuaria a ocorrer para sempre.

E depois, com ligeiro pesar — mas apenas tênue, pois em seu estado de exaltação ela sabia que todas as coisas tinham seu momento oportuno e que aquele não podia ser prolongado demais —, ela se deixou resvalar para outro nível de consciência, e era Romilly outra vez, oferecendo aos macios flancos do cavalo uma última carícia de amor e conduzindo-o, separado agora, mas nunca longe, para sua baia. Romilly mal podia sentir os pés sob o corpo ao voltar para o abrigo, mas experimentou uma nítida contrariedade pela voz amistosa de Cléa.

— Como ele é lindo... É esse o garanhão negro de que me falaram? Ele é feroz demais, terão de usá-lo apenas na reprodução? — Alertada por alguma coisa na expressão de Romilly, ela acrescentou: — Você, você estava montando-o?

— Ele é calmo como uma criança — murmurou Romilly, distraída. — Ele me ama, mas uma criança poderia montá-lo agora.

De modo absurdo, ela desejou poder entregar aquele cavalo a Caryl, que certamente o amaria tanto quanto ela, pois ele tinha mais do que apenas um vestígio do mesmo laran. Como não podia ficar pessoalmente com aquela criatura imperial, seria melhor que ele fosse para tão sensível menino. Que era, ela lembrou a si mesma, voltando à realidade com uma pontada de angústia, o filho de Lyondri Hastur, seu inimigo declarado.

— O que você queria, Cléa?

— Eu vinha falar com você sobre sua aula de combate desarmado, mas no caminho encontrei Jandria, que disse que você deve ir de novo ao acampamento do rei. Vai trabalhar com os pássaros-sentinelas, pelo que sei. Leve todas as suas coisas, pois parece que não voltará para cá.

Não voltaria! Então deveria se despedir de Estrela-Sol ainda mais cedo do que imaginara. Mas em seu estado de percepção intensa Romilly sabia que isso não importava realmente. Sempre seriam parte um do outro. Pois agora seria a mestra dos falcões dos exércitos de Carolin — não se deteve a pensar como sabia disso —, e ela, como Estrela-Sol, devia arcar com sua parte específica do peso do mundo.

— Obrigada, Cléa. E obrigada também por tudo o que me ensinou.

— Romy, como seus olhos brilham! Foi um prazer ensinar a você; é sempre um prazer ensinar a alguém que se mostra tão propensa a aprender, e tão rapidamente. — Cléa abraçou-a com uma afeição espontânea. — Lamento perdê-la. Espero que volte ao abrigo algum dia, mas mesmo que isso não aconteça, voltaremos a nos encontrar. As Espadachins estão sempre viajando e invariavelmente acabamos nos encontrando em algum lugar das estradas dos Cem Reinos.

Romilly beijou-a com real afeição, e foi para o quarto recolher seus poucos pertences.

Quando acabou, encontrou Jandria no vestíbulo, vestida para montaria e também com um embrulho, onde estavam todos os seus bens.

— Mandei aprontar Estrela-Sol — disse Jandria. — Os outros cavalos serão levados depois, ainda hoje, mas você investiu tanto tempo e tanto amor neste animal que achei que deveria ter o privilégio de entregá-lo pessoalmente ao Rei Carolin.

Então o momento chegou mais depressa do que eu previa. Mas depois desta manhã Estrela-Sol e eu estaremos sempre unidos.

Ele não aceitou calmamente a rédea de condução. Romilly desejou poder montá-lo, mas não seria correto para um cavalo que ia ser presenteado ao rei. Tratou de acalmá-lo com palavras suaves e, ainda mais, com o contato da mente. Guiado pelo fluxo tranqüilizante de ternura e segurança que Romilly irradiava, ele seguiu dócil, sentindo a solicitude dela conduzindo-o.

Você vai se tornar a montaria de um rei, sabia disso, meu lindo?

O contato entre eles não necessitava de palavras; aquilo não significava coisa alguma para Estrela-Sol, que nada sabia de reis. Romilly, por sua vez, sabia que ele poderia e provavelmente viria a amar Carolin, e a confiar nele, mas nenhuma outra pessoa jamais o montaria com o mesmo sentido de união que ela experimentara. E, subitamente, ela sentiu pena de Carolin. O lindo garanhão negro podia pertencer ao rei, mas ela, Romilly, haveria de possuí-lo para sempre, nos corações de ambos.

 

Havia uma impressão sutilmente diferente no acampamento do exército hoje. A grande tenda central onde antes tremulava a bandeira dos Hastur estava sendo desmontada pelo que parecia ser uma horda de trabalhadores, havia movimento e confusão por todo o acampamento. Deixando Estrela-Sol com Jandria e as outras que tinham vindo ajudá-la com o garanhão, Romilly seguiu apressada para os alojamentos dos treinadores de pássaros. Encontrou Ruyven lá, arrumando os poleiros instalados nos lombos de animais de carga para os pássaros-sentinelas. Os chervines, detestando o cheiro de carniça que aderia aos pássaros, remexiam-se inquietos, resfolegavam, escarvavam a terra.

— Imagino que tudo isso significa que o exército está prestes a se deslocar para o sul e que eu irei com você — comentou Romilly.

Ruyven confirmou com um aceno de cabeça.

— Não posso treinar ou cuidar de três pássaros sozinho e não há outra pessoa qualificada para controlar esses pássaros-sentinelas num raio de cem léguas, a não ser, que Deus nos ajude, as que podem estar entre os batedores e a guarda avançada de Rakhal. Recebemos informações de Hali de que Rakhal está concentrando seus exércitos, sob o comando de Lyondri Hastur. Se ele avançar, como pensamos — e a confirmação dependerá da competência com que você e eu conseguirmos usar os olhos de nossos pássaros —, vamos encontrá-lo perto de Neskaya, nas Colinas Kilghard. Lorde Orain até perguntou se podemos fazer voar os pássaros hoje e descobrir ò que podemos espionar.

— E quando Orain fala, é claro que todo o exército assume posição de sentido — disse Romilly, secamente.

Ruyven ficou aturdido.

— O que há com você, Romy? Lorde Orain é um homem bom e gentil, o principal conselheiro e amigo de Carolin. Não gosta dele? E por quê?

Isso fez Romilly se controlar. Era apenas vaidade ferida; enquanto pensara que ela era um rapaz, Orain a admirara e confiara nela; mas quando soube que era mulher, tudo fora descartado e ela passara a ser apenas outro não-ser, outra mulher, talvez um perigo para ele. Mas isso era problema de Orain, não dela; nada fizera para merecer aquela implacável rejeição de seus afetos. E é ele quem perde com isso, não eu!

— Prezo as qualidades de Orain mais do que você imagina; viajei com ele e trabalhamos juntos por muitas luas. Mas acho que ele não tem o direito de me desprezar só porque sou mulher. Já demonstrei que posso fazer meu trabalho tão bem quanto qualquer homem.

— Ninguém duvida disso, Romy — respondeu Ruyven, num tom tão conciliador que Romilly se perguntou o quanto de sua raiva oculta transparecera no rosto dela. — Mas Orain não ama as mulheres e não recebeu os ensinamentos da Torre... Sabemos em Tramontana que as forças dos homens e das mulheres não são tão diferentes, afinal de contas. Somos a primeira Torre que experimentou uma mulher como Guardiã em um de nossos círculos, e ela é tão eficiente no trabalho quanto qualquer homem, até mesmo um Hastur. Acho que você também pode se beneficiar desse treinamento.

— Eu costumava pensar isso, mas agora sei qual é o meu laran e meu dom. O pai também deve ter um pouco desse dom, ou não seria capaz de treinar cavalos como faz; e tenho certeza agora de que o herdei.

— Eu não me precipitaria tanto a decidir contra o treinamento da Torre, Romy. Também pensava que dominava meu laran, mesmo em Nevarsin, mas descobri que enquanto defendia muito bem a linha de frente da guerra com o mesmo, deixava desguarnecida a fortaleza na retaguarda, por onde quase fui conquistado.

Romilly fez um gesto impaciente; o simbolismo do guerreiro parecia-lhe forçado e desnecessário.

— Se temos de levar os pássaros e fazê-los voar, então é melhor começarmos logo. Afinal, se Orain deu ordens, não podemos deixar à espera o principal conselheiro de Carolin.

Ruyven parecia prestes a protestar contra o sarcasmo, mas acabou suspirando e ficou calado. Em sua túnica preta, parecia muito com um monge, o rosto fino possuía a expressão desligada e impassível que ela associava aos irmãos de Nevarsin.

— Eles virão nos avisar quando quiserem. Pode verificar se as peias de Temperança não estão muito apertadas? Tive receio de que abrissem uma cicatriz antiga na perna dela. Orain disse que ela sofreu alguns ferimentos antes de você aparecer. Acho que seus olhos são mais aguçados do que os meus.

Romilly foi examinar a perna de Temperança, acalmando-a com pensamentos apropriados. Não encontrou nenhum problema mais grave, mas mudou a posição das peias, pois a antiga cicatriz estava avermelhada. Passou no local uma solução de pó de karalla como precaução, depois virou pelo avesso os três capuzes e salpicou de leve o interior com o mesmo pó, como preventivo contra qualquer umidade ou infecção, ou os minúsculos parasitas que às vezes atacavam os pássaros e causavam problemas na muda. Ruyven finalmente disse:

— Lamento usar meus talentos assim, na guerra, quando preferia permanecer em paz na Torre e trabalhar por nosso povo nas colinas. Mas, caso contrário, todos os Reinos podem cair, um a um, à tirania de Lyondri Hastur e do miserável Rakhal, que não tem honra, laran ou qualquer noção de justiça, mas apenas uma implacável sede de poder. Carolin, pelo menos, é um homem honrado.

— É o que você diz, e Orain também. Mas eu não o conheço.

— Pois vai conhecê-lo agora — disse Orain, parado à entrada do alojamento; era evidente que ouvira a conversa. — Jandria me falou de seu presente para o rei e achou que era direito, Ama Romilly, que você o entregasse pessoalmente. Assim, peço que me acompanhe.

Romilly olhou para Ruyven, que disse:

— Irei também.

Tirando a luva, ele foi atrás dos dois.

Por que Ruyven é o mestre falcoeiro do rei e eu considerada apenas como sua ajudante? Sou uma Espadachim profissional e tenho mais competência. Ruyven preferia estar em sua Torre e este trabalho é a vida para mim. Ele próprio diz que na Torre as mulheres têm permissão para ocuparem altos cargos, mas parece que nunca lhe ocorre que eu, sua irmã menor, devo ser tratada com a mesma justiça. E os exércitos de Carolin são dominados pelo antigo preconceito de que um homem deve sempre fazer qualquer trabalho melhor do que as mulheres mais competentes?

Os pensamentos rebeldes foram interrompidos pela visão de Jandria, que segurava Estrela-Sol pela rédea. Ele estava selado, levantou o focinho sedoso e relinchou baixinho reconhecendo Romilly. Ela se projetou outra vez para fazer contato com a mente do cavalo em saudação e amor. Jandria disse:

— É uma honra para a Irmandade poder oferecer este esplêndido presente ao rei, e agradeço a você por isso, em nome de todas nós.

— Eu é que me sinto honrada — respondeu Romilly, em voz baixa. — Foi um prazer trabalhar com Estrela-Sol.

— Lá vem ele, com Lorde Orain — anunciou Jandria.

Romilly viu Orain, vestido para a montaria, aproximando-se em companhia de um homem encapuzado e coberto por um manto. Apertou a rédea de Estrela-Sol, excitada.

— Senhor, concede-nos uma grande honra — murmurou Jandria, com profunda reverência. — A Irmandade da Espada tem o prazer de lhe oferecer este magnífico cavalo, preparado por nossa melhor treinadora, Romilly.

Romilly não levantou os olhos para o rei, mas sentiu que Orain a observava atentamente. E disse, fitando apenas o focinho lustroso do cavalo:

— Seu nome é Estrela-Sol, Majestade, foi treinado para todos os ritmos e andaduras. Ele o levará por amor, jamais experimentou chicote ou espora.

— Se recebeu seu treinamento, Ama Romilly, tenho certeza de que está muito bem preparado — respondeu uma voz familiar.

Ela ergueu os olhos para o rosto encapuzado do rei e deparou com os olhos de Dom Cario do Lago Azul. Ele sorriu de sua surpresa e acrescentou:

— Desculpe ter levado uma vantagem sobre você, Ama MacAran; sabia quem era há muito tempo...

Romilly recordou o momento em que sentira o contato do laran do rei.

— Eu gostaria que tivesse me contado, vai dom — interveio Orain. — Não tinha a menor idéia de que ela era mulher e acabei bancando o tolo.

Dom Cario — não, Romilly lembrou a si mesma, Rei Carolin, Hastur de Hastur, Senhor de Thendara e Hali — fitou Orain com inequívoca afeição.

— Você vê apenas o que quer ver, bredu. — Ele afagou o ombro de Orain e depois acrescentou, para Romilly: — Eu agradeço a você, e à Irmandade, por este magnífico presente e pela lealdade a mim. Pode estar certa de que as duas coisas são muito preciosas para mim. E já soube também que vai continuar a cuidar dos pássaros-sentinelas, cujas vidas salvou quando a encontramos no caminho para Nevarsin. Nunca esquecerei, minha... — Ele hesitou um instante, sorriu e arrematou: — ... Espadachim. Obrigado. Obrigado a todas.

Romilly tornou a tocar em Estrela-Sol, num gesto afetuoso e final de despedida.

— Sirva-o bem — ela sussurrou para o cavalo. — Leve-o fielmente, ame-o tanto quanto eu... quanto eu amo você.

Ela se afastou do animal, observando enquanto o rei pegava as rédeas e montava.

Ele também possui um pouco desse dom. Lembro muito bem. O que significa que Estrela-Sol não vai para um homem brutal ou insensível, mas para alguém que reconhecerá seu verdadeiro valor.

Romilly ainda se sentia perturbada. Dom Cario descobrira que ela era mulher e não a traíra com os homens; mas podia também tê-la poupado da humilhação nas mãos de Orain, advertindo o amigo. Mas depois, refletindo que tinha de ser justa, lembrou a si mesma que ele podia não ter noção de seus sentimentos por Orain, muito menos adivinharia que ela se colocaria daquele jeito à mercê de Orain, na cama dele.

Ora, não tinha mais importância; o que estava feito, estava feito. Ruyven aproximou-se e ela apresentou-o a Jandria.

— Meu irmão Ruyven; Dama Jandria.

— Espadachim Jandria — corrigiu a mulher mais velha, rindo. — Já lhe disse, deixamos as posições sociais para trás quando assumimos a espada. E seu irmão é...

- Ruyven MacAran, Quarto em Tramontana, Segundo Círculo. Já acabou com minha irmã, domna ?

Romilly registrou, automaticamente, que ele tratava Jandria pelo título formal concedido a uma igual ou superior, domna — Dama —, em vez de termo mais simples, mestra, que teria usado com uma inferior social.

— Ela pode se retirar — respondeu Jandria.

Romilly, de rosto contraído, acompanhou o irmão. Acalentara a esperança de que em algum momento daquele dia pareceria natural conversar com Ruyven sobre sua partida do Ninho dos Falcões. Sua intenção inicial — quanto tempo parecia ter passado! — fora a de procurar a Torre em que ele se refugiara. Imaginara que ele a acolheria lá com a maior satisfação. Mas aquele estranho retraído e monacal parecia não ter qualquer relação com o irmão de quem ela fora tão íntima na infância. Não podia se imaginar a lhe fazer confidências. Sentia-se mais íntima de Jandria agora, ou até mesmo de Orain, por mais distante que ele tivesse se tornado.

Ela olhou um instante para Estrela-Sol, trotando imponente com Dom Cario, não, ela precisava recordar, Rei Carolin, na sela. Um breve contato mental renovou a comunicação e Romilly sentiu que sorria.

Estou mais próxima daquele cavalo do que de qualquer ser humano; tenho mais intimidade com ele do que jamais tive com qualquer ser humano.

Depois que os trabalhos do dia estavam encerrados, Jandria apareceu à sua procura.

— Na orla do acampamento há uma tenda onde dormem as Espadachins que acompanham Carolin — ela comunicou. — Venha comigo e lhe mostrarei onde fica, Romilly.

— Devo dormir aqui com os pássaros — respondeu Romilly, dando de ombros. — Nenhum mestre falcoeiro fica longe de seus pássaros o suficiente para não poder ouvi-los. Dormirei aqui em meu manto, não preciso de tenda.

— Não pode dormir entre os homens, e sequer deve pensar nisso — protestou Jandria.

— O mestre falcoeiro do rei é meu próprio irmão — lembrou Romilly, impaciente agora. — Está insinuando que ele pode causar algum dano à minha virtude? E tenho certeza de que a presença de meu irmão mais velho é proteção suficiente.

Jandria declarou com alguma aspereza:

— Conhece as regras para as Espadachins fora dos nossos abrigos! Não podemos avisar a todos no exército que ele é seu irmão, e se por acaso se espalhar a notícia de que uma Espadachim jurada dormiu sozinha com um homem numa tenda. ..

— Suas mentes devem ser como os esgotos de Thendara! — exclamou Romilly, furiosa. — Devo deixar meus pássaros por causa das mentes sujas de alguns soldados que nem sequer conheço?

— Lamento, mas não fui eu quem fez as regras e não posso revogá-las — insistiu Jandria. — E você deve lembrar que jurou obedecê-las.

Espumando de raiva, Romilly acompanhou Jandria para o jantar e depois para dormir na tenda ocupada pela dúzia de mulheres da Irmandade que serviam no exército de Carolin. Encontrou Cléa lá, com uma estranha de outro abrigo; a função das duas era treinar os homens de Carolin em combate desarmado. Romilly não conhecia muito as outras; estavam antes alojadas no abrigo, mas não pertenciam ao mesmo. Eram tratadoras de cavalos, intendentes e conferentes de suprimentos. Uma delas, baixa, morena, forte, falando com o familiar sotaque montanhês das Hellers, era ferreira, com braços grossos e músculos enormes nas costas e nos ombros, o que fazia com que quase parecesse um homem.

Não posso acreditar que a virtude de uma mulher corresse perigo mesmo que ela dormisse nua entre uma centena de soldados estranhos... E ela dá a impressão de que saberia se defender, como os Hali'imyn por aqui dizem, até mesmo contra todos os ferreiros das forjas de Zandru!

E depois ela refletiu, ressentida, que fora mais livre quando viajara em roupas masculinas pelas Hellers, com Orain e Cario — Carolin — e seu pequeno bando de exilados. Trabalhara com os homens, andara sozinha pela cidade, bebera em tavernas. Agora seus movimentos eram limitados ao que as regras da Irmandade julgavam apropriado para evitar problemas ou comentários. Mesmo como uma Espadachim livre, ela não era livre.

Ainda um pouco contrariada, ela se preparou para deitar. Ocorreu-lhe outra vez: mesmo aquelas mulheres livres, como suas vidas pareciam mesquinhas! Amava Jandria, podia lhe falar livremente sem a preocupação de censurar seus pensamentos; mas até mesmo Jandria sentia-se reprimida pela perspectiva do que poderiam pensar os homens do exército se as Espadachins não se mantivessem nos limites de suas regras e não se comportassem como damas, iguais a qualquer donzela casadoura das Hellers! Também respeitava Cléa, por quem sentia sincera afeição, mas ainda assim tinha bem poucas amigas na Irmandade. Mas quando ingressei na Irmandade pensei ter finalmente encontrado a liberdade de ser eu mesma, deixando todos saberem que sou mulher, sem necessidade de me disfarçar de homem.

Não quero ser um homem entre homens e esconder o que sou. Mas também, não aprecio muito a sociedade das mulheres... nem mesmo entre as Espadachins. Por que nunca posso me sentir satisfeita, onde quer que esteja?

Apesar de tudo, porém, ela finalmente realizava o trabalho para o qual fora criada, e se algum homem a insultasse não precisaria temê-lo, como acontecera com Rory. E o próprio rei elogiara seu trabalho com os cavalos. Antes de se acomodar entre os cobertores, ela se projetou, sonolenta, como fizera em todas as noites do ano no abrigo, procurou o contato com Estrela-Sol. Lá estava ele, e satisfeito. O Rei Carolin o trataria bem, com certeza, apreciaria sua inteligência, incrível velocidade, e beleza. Ela se projetou de novo, um pouco mais longe, procurando pelos pássaros-sentinelas em seus poleiros. Todos também estavam bem; e se não estivessem, pelo menos Ruyven dormia por perto, como um bom mestre falcoeiro deve fazer. Suspirando, Romilly mergulhou no sono.

Ela voltou à tenda dos pássaros na manhã seguinte e começou a aumentá-los, com a ajuda do aprendiz de Ruyven, um garoto de cerca de quatorze anos, chamado Garen. Enquanto examinava o ponto enfaixado na perna de Temperança sentiu a presença de um estranho; e no instante seguinte, confirmando-o, os pássaros soltaram estridentes gritos, que indicavam sua inquietação diante de uma pessoa que não conheciam.

Era um jovem oficial, com um manto verde-dourado; os cabelos eram louros, o rosto estreito e sensível.

— Você é o mestre falcoeiro?

— É o que pareço? — reagiu Romilly bruscamente. — Espadachim Romilly, para servir-te. Mestra Falcoeira de Carolin.

— Perdoe-me, mestra, não tive a intenção de insultá-la. Sou Ranald Ridenow e vim aqui por ordem de Sua Majestade; comandarei o destacamento que partirá na frente do corpo principal do exército esta manhã. — A voz era incisiva, mas sem arrogância, o sorriso um pouco nervoso. — Também estou à procura de minha parenta, Domna Maura Elhalyn.

Ele teve de altear a voz acima dos estridentes ruídos que os pássaros-sentinelas faziam.

— Como pode perceber, a dama não está em meu bolso - respondeu Romilly rispidamente. — E também não está, pelo que sei, na cama com meu irmão, mas de qualquer modo você pode perguntar a ele. E agora, Dom Ranald, queira fazer a gentileza de se afastar dos pássaros, já que eles continuarão a fazer esse barulho infernal até você desaparecer...

O jovem não se mexeu.

— Seu irmão, mestra! Onde posso encontrá-lo?

Ele deu um jeito de parecer ansioso, embora estivesse berrando para se fazer ouvir por cima do estardalhaço dos nervosos pássaros. Romilly aproximou-se e empurrou-o para longe. Os sons diminuíram lentamente para arrulhos, em seguida houve silêncio.

— Agora que podemos nos ouvir: nada sei sobre sua parenta — disse Romilly. — Mas lembro agora que meu irmão, o mestre falcoeiro, falou sobre uma certa Dama Maura. Vou chamá-lo e... não, não é preciso, pois ei-lo aí.

— Romy? Ouvi os pássaros... Alguém os está incomodando?

Ruyven avistou subitamente o oficial Ridenow.

— Su serva, Dom... Em que posso ajudá-lo?

— Dama Maura...

— A dama dorme naquela tenda ali — informou Ruyven, indicando um pavilhão próximo.

— Sozinha? Entre os soldados?

As narinas de Ranald Ridenow contraíram-se demonstrando contrariedade, e Ruyven sorriu.

— Senhor, a dama está mais bem guardada por estes pássaros do que por todo um bando de acompanhantes e governantas. Ouviu pessoalmente o barulho que eles fazem à aproximação de qualquer entranho; eu poderia ir em socorro de Dama Maura e despertaria todo o acampamento, se houvesse perigo.

Ranald Ridenow examinou o jovem com a ascética túnica preta e balançou a cabeça em aprovação.

— É um monge cristoforo?

— Não tenho essa graça, senhor. Sou Ruyven MacAran, Quarto em Tramontana, Segundo Círculo.

O jovem oficial com o manto verde e dourado cumprimentou-o com outro aceno de cabeça.

— Então minha prima está em segurança nas suas mãos, laranzu. Perdoe-me pela pergunta. Sabe se a dama já está desperta?

— Eu ia acordá-la, senhor, como ela me pediu... Ou melhor, mandaria minha irmã acordá-la. Romy, pode fazer o favor de avisar a Dama Maura que seu parente a procura?

— Não é urgente, ou pelo menos não neste momento — disse Ridenow. — Mas seria melhor se a despertasse agora. Carolin determinou que partíssemos o mais cedo possível. Tenho ordens...

— Não precisarei de mais de trinta minutos para me aprontar — declarou Ruyven. — Romy, está pronta para montar? Acorde Dama Maura e avise-a...

A presunção de autoridade do irmão deixou Romilly irritada; por causa daquele arrogante nobrezinho das terras baixas deveria se tornar a menina de recados para alguma dama das planícies?

— Não é tão fácil assim — ela protestou bruscamente. — Os pássaros devem ser alimentados e não sou criada da dama; se quer que ela seja acordada e carregada, meu senhor, pode cuidar disso pessoalmente.

Romilly percebeu, horrorizada, que seu forte sotaque das montanhas estava de volta, mesmo depois que um ano inteiro nas planícies parecera quase dissipá-lo. Ora, mas era mesmo montanhesa, que ele pensasse o que quisesse! Era uma Espadachim e não uma mulher das terras baixas para se curvar e balançar a cabeça diante dos Hali'imyn! Ruyven parecia escandalizado, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa uma voz suave interveio:

— Muito bem dito, Espadachim; eu, assim como você, sou uma servidora de Carolin e de seus pássaros.

Uma jovem estava parada na entrada da pequena tenda, coberta da cabeça aos tornozelos por uma grossa camisola, os cabelos vermelhos descendo quase até a cintura.

— Não tive o prazer de conhecê-la ontem, Espadachim; então você é nossa treinadora dos pássaros? — Ela inclinou um pouco a cabeça para Ranald. — Agradeço sua preocupação, primo, mas não preciso de nada, a menos que Carolin tenha me chamado... Não? Nesse caso, se não deseja fazer os laços na camisola para mim, como fazíamos quando tínhamos nove anos de idade, pode avisar a Carolin que estaremos prontos para partir dentro de uma hora, assim que os pássaros forem devidamente alimentados e cuidados. Tornaremos a nos encontrar quando chegar o momento, parente.

Ela acenou com a cabeça, dispensando-o; Ranald se afastou. Dama Maura soltou uma risada jovial.

— Então você é Romy, hem? Ruyven me falou de você no caminho para cá, mas não tínhamos idéia de que iria se tornar nossa tratadora. Enquanto estivermos viajando, não poderia deixar sua companhia de Espadachins e partilhar minha tenda, a fim de ficarmos ambas perto dos pássaros à noite? Sou Maura Elhalyn, leronis, monitora em Tramontana no Terceiro Círculo. Minha mãe era uma Ridenow, por isso tenho um pouco do dom Serrais... conhece esse laran?

— Não — respondeu Romilly. — Conheço pouca coisa de laran.

— Mas deve tê-lo, se é capaz de cuidar dos pássaros-sentinelas, pois eles só podem ser controlados com laran; de outra forma é praticamente impossível trabalhar com esses pássaros. Quer dizer que tem o antigo dom MacAran? Em que Torre foi treinada, mestra! Quem é seu Guardião?

Romilly sacudiu a cabeça.

— Nunca estive numa Torre, domna.

Maura ficou surpresa, mas suas maneiras eram boas demais para deixar transparecer.

— Se me der licença por cinco minutos, vou me vestir... Estava apenas zombando de meu primo Ranald, posso perfeitamente me vestir sozinha... E farei minha parte nos cuidados com os pássaros, como devo. Nunca tive a menor intenção de deixar todo o trabalho para você, Espadachim.

Ela tornou a entrar na tenda, os dedos já ocupados em desatar a camisola. Romilly foi examinar as bandagens na perna de Temperança, constatando com prazer que o ponto machucado estava liso, não havendo qualquer indício de infecção. Enquanto Ruyven ia cuidar de Diligência, ela perguntou, o rosto contraído:

— Teremos de aturar essa dama mandando em nós?

— A leronis sabe o que deve fazer, Romilly. Não está familiarizada com os pássaros-sentinelas, pelo que me disse; mesmo assim, você reparou que eles não gritaram quando ela se aproximou. Ela ajudou a cuidar deles na viagem desde as montanhas. Não pensou que eu pudesse cuidar de três pássaros sozinho, não é mesmo?

— Por que não? Eu cuidei. — Mas a franca cordialidade de Maura desarmara Romilly. — O que é esse laran Serrais de que ela falou?

— Sei muito pouco a respeito. Não é comum nem mesmo nas Torres. O pessoal de Serrais se destacou, no tempo do programa de reprodução entre as Grandes Casas dos Hastur, porque desenvolveu um laran que permitia a comunicação com aqueles que não são humanos — talvez com os homens-gatos, por exemplo, ou... outros além, convocados de dimensões diferentes por suas pedras-estrelas. Se são capazes de fazer isso, a comunicação com os pássaros-sentinelas não deve ser problema. Ela uma vez me disse que era parecido com o dom MacAran, do qual talvez tenha derivado.

— Conheceu-a muito bem na Torre? — indagou Romilly, com uma pontada de ciúme.

Mas Ruyven balançou a cabeça.

— Sou um cristoforo e ela é virgem prometida. Apenas uma mulher assim pode conviver com soldados sem maiores problemas.

Ele poderia contar mais, só que Dama Maura saiu de sua tenda nesse momento, metida num vestido simples, as mangas enroladas. Sem um momento de hesitação, foi até o cesto com o malcheiroso alimento dos pássaros, pegou um punhado, sem qualquer sinal de aversão, e estendeu para Prudência, arrumando suavemente.

— Aqui está seu desjejum, minha bela... Por falar nisso, Romilly, você já comeu alguma coisa? Não, não comeu, como boa tratadora cuida primeiro dos animais, não é mesmo? Não precisamos exercitá-los agora. Terão bastante exercício mais tarde, ainda hoje. Ruyven, seria bom se você pudesse mandar alguém ao rancho para buscar alguma coisa para nós. É melhor comermos aqui, se devemos partir tão cedo.

Enquanto falava, ela dava ao pássaro pequenos pedaços de carniça, sorrindo como se fossem flores fragrantes. Prudência arrulhava de prazer.

Pelo menos ela não é melindrosa, não se importa de ficar com as mãos sujas. Ruyven captou o pensamento e sussurrou para Romilly:

— Foi o que falei. Em Tramontana ela faz voar um falcão verrin que treinou pessoalmente. Para grande consternação, devo acrescentar, de Dama Liriel Hastur, que ocupa a posição mais alta lá, e de seu Guardião, Lorde Doran, que amam os falcões, mas acham que seu treinamento deve caber a um falcoeiro profissional.

— Então ela não é uma dessas damas de mãos macias que desejam ser servidas em tudo — comentou Romilly, com relutante aprovação.

Ela foi concluir o trabalho com Temperança e depois um ordenança trouxe comida do rancho; elas sentaram-se no chão e comeram, Dama Maura sem qualquer melindre, ajeitando a saia por baixo do corpo e usando os dedos para pegar o alimento.

Assim que terminaram, Ranald Ridenow apareceu com meia dúzia de homens e três deles instalaram os pássaros-sentinelas em poleiros nos seus cavalos; o pequeno destacamento atravessou o acampamento que começava a despertar e pegou a estrada para leste, através das terras desérticas, na direção das Planícies de Valeron.

Lorde Ridenow impôs um ritmo acelerado ao destacamento, mas Romilly, Ruyven e os soldados não tiveram qualquer dificuldade para acompanhá-lo. Dama Maura montava uma sela feminina, mas não se queixou e também manteve o ritmo. Porém comentou com Romilly, numa parada para descanso dos cavalos:

— Eu gostaria de poder usar um culote como você, Espadachim. Mas já escandalizei meus amigos e meu próprio Guardião, provavelmente não lhes devo proporcionar mais um motivo para protestos.

— Ruyven me contou que você treinou um falcão verrin — disse Romilly.

— É verdade... E todo mundo ficou furioso. — Maura soltou uma risada. — Mas agora, conhecendo-a, Espadachim, sei que não sou a primeira e não serei a última a fazê-lo. Preferi treiná-la com minha própria mão, em vez de entregá-la a um falcoeiro estranho e depois tentar transferir sua lealdade para mim. Às vezes tenho a impressão de que estou voando com o pássaro, mas talvez seja minha imaginação.

— E talvez não seja - disse Romilly —, pois também tive essa experiência.

Subitamente, com pungente pesar, ela se lembrou de Preciosa. Há mais de um ano que vivia naquela maldita cidade no deserto e Preciosa, sem dúvida, voltara às florestas, acabara por esquecê-la.

Contudo, mesmo que eu nunca mais a veja, pelo resto da vida, os momentos de intimidade que tivemos são tanto parte de mim agora quanto naquela ocasião, e não existe futuro ou passado... Por um momento sua cabeça entrou em vertigem, confundiu o momento de êxtase com o vôo de Preciosa com o momento absorvente em que cavalgara em Estrela-Sol, em união absoluta com o cavalo, voava, corria, estava unida ao céu, terra, estrelas...

— Espadachim...?

Dama Maura fitava-a, perturbada, Romilly retornou à consciência no mesmo instante. E disse a primeira coisa que lhe surgiu na cabeça:

— Meu nome é Romilly e se vamos trabalhar juntas não precisa dizer Espadachim tão formalmente, cada vez...

— Romilly — disse Maura, sorrindo. — E eu sou Maura; na Torre não pensamos em posições sociais separando amigos... E se você é amiga desses pássaros, então sou sua amiga também.

Então as Torres têm alguma coisa em comum com a Irmandade, pensou Romilly. Nesse momento Ranald ordenou que os homens se reagrupassem e elas se levantaram para montar. Romilly especulou por que seguiam tão à frente do exército.

Viajaram durante o dia inteiro e à noite armaram acampamento; os homens dormiram sob as estrelas, mas havia uma pequena tenda para Dama Maura, que insistiu que Romilly a partilhasse com ela. Estavam exaustas da viagem em ritmo acelerado durante o dia inteiro, mas Dama Maura perguntou baixinho, antes de dormirem:

— Por que você nunca foi a uma Torre para treinamento, Romilly? Afinal, tem laran suficiente...

— Se conhece Ruyven e sabe como ele foi para a Torre, então já sabe por que eu não fui.

— Mas saiu de casa, brigou com a família — insistiu Maura. — Depois, eu imaginava que iria imediatamente...

E essa era minha intenção, pensou Romilly. Mas abri meu caminho sozinha e agora não preciso do treinamento que a leronis disse que eu deveria receber. Sei mais do meu próprio laran que qualquer pessoa estranha. Ela se manteve num silêncio obstinado e Dama Maura absteve-se de continuar a interrogá-la.

Viajaram por dois dias e saíram das terras desérticas para uma região verdejante; Romilly soltou um suspiro de alívio quando puderam divisar colinas à distância e sentir a chuva fria ao anoitecer. Era pleno verão, mas naquela época havia geada no chão pela manhã e ela se sentiu feliz por ter seu casaco de pele à noite. No terceiro dia, quando a estrada passava por uma alta colina, de onde se podia descortinar a região por muitas léguas ao redor, Ranald Ridenow ordenou uma parada.

— Este é o lugar certo — ele anunciou. — Estão prontos com os pássaros?

Era evidente que Maura sabia o que ele queria, pois acenou com a cabeça e perguntou:

— Com quem você vai fazer a ligação? Orain?

— Com o próprio Carolin — respondeu Ridenow. — Orain não é cego mental, mas não tem laran suficiente para isso. E as tropas são de Carolin.

Maura piscou rapidamente, dando a impressão de que estava prestes a chorar. E murmurou, mais para si mesma do que para Romilly:

— Não me agrada a situação, espionar os movimentos de Rakhal. Eu... eu jurei que não lutaria contra ele. Mas Lyondri atraiu tudo isso para si mesmo, pois também repudiou seu juramento! Depois do que ele fez, parente ou não...

Ela parou de falar, comprimindo os lábios com força. Depois de breve pausa, acrescentou para Romilly:

— Quer fazer voar primeiro, Romy?

— Mas não sei o que fazer! — protestou Romilly.

— É uma mestra falcoeira...

— Conheço os pássaros-sentinelas, hábitos, dieta e saúde. Mas não aprendi a usá-los na guerra. Não sei...

Maura parecia surpresa, mas apressou-se em disfarçar e Romilly ficou aturdida; ela está sendo polida comigo?

— Precisa apenas fazer voar o pássaro, Romy, permanecer em contato, vendo através de seus olhos. Ranald fará uma ligação com você e transmitirá tudo o que avistar a Carolin, a fim de que ele possa espionar o território à frente e saber quais são os movimentos de Rakhal.

O nome pássaros-sentinelas subitamente fez sentido para Romilly; nunca se detivera para pensar sobre isso antes. Ela tirou Prudência do poleiro, soltando com uma das mãos os nós que seguravam as peias e deixando-a livre; observou-a subir pelo céu. Acomodou o corpo na sela com todo cuidado, reservando uma parte de sua consciência, uma parte bem pequena, para evitar uma queda do cavalo. E depois...

... bem alto no céu, em ventos fortes, subindo cada vez mais...

Toda a terra estendendo-se lá embaixo, como um mapa. Podia avistar a curva da água lá embaixo, estava vagamente consciente de uma presença em sua mente, vendo o que ela via através de seu vínculo com o pássaro. Através dessa mente, que ela reconheceu como sendo de Carolin, começou a perceber o sentido do que via, embora aquilo fosse muito distante e quase inconsciente... A maior parte dela subia com o pássaro, contemplando com aguçada nitidez tudo o que havia lá embaixo.

... Ali as praias do Lago Mirin, e mais além, para o norte, Neskaya, à beira das Colinas Kilghard. E ali... ah, Deuses, outro círculo negro, não a cicatriz de incêndio na floresta, mas o lugar em que os homens de Rakhal fizeram chover o fogo-aderente, lançando-o do céu com suas infernais máquinas voadoras! Meu povo, e ele queima e morre sob os fogos de Rakhal, quando foi dado a mim e jurei com a mão no fogo de Hali que o protegeria contra toda pilhagem e rapina, enquanto me fosse leal... e por essa lealdade as pessoas ardem...

... Rakhal, juro que tanto quanto Aldones vive, queimarei essa mão com que você semeou desgraça e morte sobre meu povo... E Lyondri, será enforcado como um criminoso comum, pois ele perdeu o direito a uma morte nobre; a vida que ele agora leva com Rakhal, o semeador da morte e sofrimento, é mais ignóbil do que a morte nas mãos do carrasco comum...

Sobre as Colinas Kilghard agora, onde as colinas florescem verdes com o verão, as árvores-de-resina ardem ao sol... Lá se ergue outra Torre... Depressa, voe para o norte, pequeno pássaro, para longe dos laranzu'in renegados de Lyondri...

E lá estão os exércitos de Rakhal, onde posso marchar para o leste e surpreendê-los, a menos que possam espionar com olhos como os meus... E creio que não existem mais pássaros-sentinelas, a não ser nas distantes Hellers...

Romilly ouviu o estridente grito do pássaro como se saísse de sua própria garganta; o contato rompeu-se e um momento depois ela estava sentada outra vez em seu cavalo, Carolin desaparecera de sua mente, Ranald Ridenow fora arrancado abruptamente da ligação, fitando-a fixamente. Romilly inclinou-se na sela, balançou, enquanto Maura murmurava:

— Já chega. Ruyven, sua vez, eu acho...

Romilly não percebera, Ruyven soltara Temperança ao mesmo tempo que Prudência. Diligência também desaparecera da sela de Maura. Ela viu Ruyven se curvar — como ela fizera? — , e por um instante era parte de Ruyven/Ranald/Carolin, voando em contato com o pássaro, sobrevoando o exército, alguma coisa dentro dela contando...

Cavaleiros e infantes, tantos... Carroças de suprimentos e arqueiros e... oh, Deuses... que Evanda nos proteja, esse cheiro eu conheço, em algum lugar de suas fileiras estão preparando outra vez o fogo-aderente...

Por pura força de vontade Romilly rompeu o contato, exausta. Não estava interessada nos detalhes dos exércitos de Rakhal. Preferia não saber; o horror que sentira na mente de Ruyven — ou seria de Carolin? — deixara-a tonta e passando mal. Esgotada, arriou na sela, quase dormindo ali, fraca, a cabeça girando. Notou nos limites da consciência que o sol baixara de maneira considerável, quase alcançando a linha do horizonte; a claridade diminuía o suficiente para que se pudesse avistar o enorme disco violeta de Liriel, elevando-se do horizonte a leste, poucas noites antes de ficar cheio por completo. Sentia a garganta ressequida, a cabeça doía e latejava como se uma dúzia de pequenos ferreiros batessem bigornas lá no interior dela.

A escuridão instalou-se tão depressa que Romilly especulou se adormecera na sela: parecia-lhe que num momento contemplava o pôr-do-sol e no seguinte o luar violeta, com Liriel flutuando no céu. Ao recuperar a percepção, descobriu que Ruyven a observava com expressão ansiosa.

— Você está de volta?

— Há algum tempo — ele respondeu, surpreso. — Tome aqui. Os soldados prepararam comida para você.

Ele gesticulou e Romilly desceu do cavalo, cada músculo dolorido, a cabeça latejando. Não viu Maura. Ranald Ridenow aproximou-se e disse:

— Apoie-se em mim, se desejar, Espadachim.

Mas ela se empertigou, orgulhosa.

— Obrigada, mas posso andar sozinha.

Ruyven fez sinal para que ela sentasse na relva e Romilly protestou:

— Os pássaros...

— Já foram cuidados. Maura providenciou tudo ao verificar o estado em que você se encontrava.

— Não estou com fome. — Romilly levantou-se. — É melhor eu ver Prudência...

— Já falei que Maura cuidou dos pássaros e estão muito bem — disse Ruyven, impaciente, pondo uma fruta seca na mão dela. — Trate de comer isto.

Romilly deu uma mordida e largou, com uma careta. Sabia que vomitaria se engolisse alguma coisa. A pequena tenda fora armada, a tenda que partilhava com Maura; ela foi para lá e entrou, consciente em algum lugar do rosto de Ranald Ridenow, pálido, transtornado. Por que ele se preocupava tanto? Romilly jogou-se em sua cama de campanha e caiu pela beira de um penhasco escuro de sono.

Sabia que não despertara realmente porque podia de alguma forma ver através das paredes da tenda, contemplando seu corpo adormecido, transparente como gaze, deixando entrever o coração batendo, as veias pulsando. Acenou com uma das mãos e o coração acelerou um pouco as batidas, as veias se tornaram círculos turbilhonantes. E depois ela se afastou, deixou o corpo para trás, elevando-se sobre planícies e colinas, voando para muito longe, nos ventos fortes, na direção das Hellers. Penhascos gelados elevavam-se à sua frente, e mais além podia avistar as muralhas de uma cidade, uma mulher numa ameia alta, chamando-a.

Seja bem-vinda ao lar, querida irmã, venha para nós, venha para o seu lar...

Mas ela deu as costas a isso também e continuou a voar, sempre para a frente, cada vez mais alto, os picos das montanhas indo lá para baixo, enquanto ela voava além do disco violeta... Não, era uma bola redonda, uma esfera, um pequeno mundo por si mesmo, nunca pensara na lua como um mundo. E depois havia um verde por baixo, o crescente de Kyrrdis, escuro, iluminado apenas na beirada pelo sol vermelho, que de alguma forma ainda brilhava à meia-noite. E ela continuou voando, até que deixou o sol ardente para trás, que se tornou apenas uma estrela entre outras estrelas; estava olhando de algum lugar para o mundo lá embaixo com quatro luas, como um colar de pedras preciosas; alguém disse em sua mente: Hali é a constelação de Taurus e Hali é a antiga palavra terrestre para colar na língua árabe; mas as palavras e os mundos não tinham sentido para ela; baixou de novo, lentamente; a enorme nave estava destroçada contra os picos inferiores das Colinas Kilghard e um vento Espírito soprava pelos picos... e uma voz suave comentava em sua mente: a memória racial nunca foi comprovada, pois há partes do cérebro que ainda são inacessíveis à ciência... E depois ela começou a voar ao longo da beirada das Hellers. Mas as geleiras exalavam seu sopro gelado e suas asas começavam a congelar, o frio terrível comprimia seu coração, reduzindo os movimentos; depois uma asa dura como gelo quebrou-se e se estilhaçou, com um terrível choque de dor em sua cabeça e no seu coração; a outra asa, branca, congelada, rígida, não batia mais; ela caiu, e caiu, gritando...

— Romilly! Romilly! — Dama Maura batia de leve em suas faces. — Acorde! Acorde!

Romilly abriu os olhos; havia uma suave luz de lanterna na tenda, mas ela ainda congelava entre as geleiras, suas asas estavam partidas... Podia sentir as pontas irregulares e pontiagudas perto de seu coração, onde haviam quebrado com o frio e se estilhaçado...

Maura pegou suas mãos, irradiando para elas seu próprio calor. Romilly, confusa, voltou à percepção do seu próprio corpo. Sentiu o contato desconhecido, intrusivo... De alguma forma, Maura estava dentro de seu corpo, tocando com dedos mentais, verificando coração e respiração... Ela fez um gesto de recusa e Maura murmurou:

— Fique quieta, deixe-me monitorá-la. Já teve muitos ataques desse tipo de doença do limiar?

Romilly repeliu-a.

— Não sei do que você está falando; tive um pesadelo, mais nada. Devo estar muito cansada. Nunca tinha feito isso antes com os pássaros, e foi extenuante. Acho que as leroni estão acostumadas.

— Gostaria que me deixasse monitorá-la para ter certeza...

— Não precisa, estou bem.

Romilly deu as costas à outra mulher e ficou imóvel. Um momento depois Maura suspirou e apagou a lanterna. Romilly captou um fragmento de seu pensamento — teimosa, mas não devo me intrometer, ela não é mais uma criança, talvez seu irmão —, antes de adormecer de novo, desta vez sem sonhos.

Pela manhã Romilly ainda sentia dor de cabeça e o cheiro da carniça para alimentar os pássaros deixou-a nauseada — ela disse a si mesma, impaciente: — como se estivesse grávida de quatro meses! Mas o que quer que a afligia, com toda certeza não era isso, pois continuava virgem como qualquer leronis jurada. Talvez fosse a iminência dos ciclos femininos — perdera a noção, com a chegada do exército e seu trabalho intenso com Estrela-Sol. Ou talvez tivesse comido algo que não lhe fizera bem; não tinha o menor apetite para o desjejum. Depois de cuidar dos pássaros, subiu na sela sem o menor entusiasmo; pela primeira vez em sua vida pensou que poderia ser mais agradável sentar dentro de casa e costurar, cerzir ou até mesmo bordar.

— Mas você não comeu nada, Romilly! — protestou Ruyven. Ela sacudiu a cabeça.

— Acho que peguei um resfriado ontem, sentada tão imóvel na sela depois do pôr-do-sol. Não quero nada.

Ele contemplou-a, pensou Romilly, como se ela tivesse a idade de Rael e disse:

— Não sabe o que significa quando não é capaz de comer? Dama Maura a monitorou?

Não valia à pena discutir a questão e Romilly respondeu bruscamente:

— Comerei um pedaço de pão na sela, enquanto viajamos.

Ela aceitou o pedaço de pão com mel que Ruyven lhe estendeu. Deu algumas mordidas pequenas e depois se livrou dele furtivamente.

Ranald montava com a expressão vazia que Romilly agora conhecia bastante para associar com um telepata cuja mente se encontrava em outro lugar. Finalmente ele voltou e disse:

— Preciso saber qual a distância do corpo principal dos exércitos; Carolin se encontrará conosco em algum momento hoje, embora eles estejam bem para trás. Romilly, pode fazer voar seu pássaro e verificar se consegue espiar os exércitos de Carolin, determinar a que distância estão de nós?

Ela sentia alguma relutância após sua última experiência de vôo com os pássaros. Contudo, quando lançou o pássaro no ar e foi atrás com a mente em contato, descobriu que não havia nenhuma desorientação inquietante; para seu profundo alívio, era apenas como fazer voar Preciosa; podia ver com uma estranha visão dupla, mas isso era tudo. O olho do pássaro, mais aguçado do que o seu cem vezes, informou que os exércitos de Carolin se encontravam a meio dia de viagem para trás do lugar em que cavalgava com o pequeno grupo avançado. Pôde sentir, mas sem qualquer sensação de intromissão, que Ranald captara sua posição e a transmitia ao próprio Carolin.

— Acamparemos e esperaremos por ele — anunciou Maura, com autoridade. — Estamos todos exaustos e nossa mestra falcoeira precisa de repouso.

Eu não deveria permitir que me mimasse. Não quero que Ruyven, Orain ou o próprio Carolin pensem que devo ser privilegiada só porque sou mulher. Orain me respeitará se eu me mostrar tão competente quanto um homem...

Lorde Ranald bocejou e disse:

— Também sinto como se tivesse sido arrastado por uma cachoeira, depois de tantos dias de viagem árdua. Ficarei contente pelo descanso. E não precisamos mais deslocar os pássaros.

E ele gesticulou para que os soldados armassem o acampamento.

 

Romilly sabia que o exército principal se aproximava, não pelo que ouvia — embora, ao prestar bastante atenção, deitada na tenda que partilhava com Domna Maura, pudesse escutar um murmúrio distante na própria terra, que sabia ser o ruído da grande coluna em marcha. Mas o que realmente a informava da aproximação de Carolin era uma crescente sensação em sua mente, um sentido de união, um contato que ela conhecia...

Estrela-Sol. Sua mente acompanhava e envolvia o garanhão negro, parecia ser em suas costas que o rei galopava, cercado por seus homens; e por um momento a mente de Romilly se desviou para fazer contato com a de Carolin também, vendo Orain através de seus olhos, com amor e afeição. Depois de observá-los juntos, desejou ter também um amigo assim. Partilhou agora, por um instante, o rápido contato inconsciente entre o rei e seu fiel seguidor, algo sem ser sexual, mais profundo do que isso, uma intimidade que se estendia por todas as suas vidas, uma intimidade de mente e coração, incluindo até uma imagem do primeiro encontro quando crianças, antes dos quatro anos... todas as três dimensões do tempo, assim como teve também uma percepção de Estrela-Sol como um potro, correndo livre pelas colinas do local onde nascera...

Romilly desvencilhou-se abruptamente do contato prolongado e retornou a seu próprio corpo, chocada e aturdida. Não sabia o que estava acontecendo, mas calculou que fosse alguma nova dimensão de seu laran, desenvolvendo-se por si mesma... Para que ela precisa, afinal de contas, de uma Torre?

Mas a primeira pessoa que a procurou, quando trabalhava com os pássaros e analisava fragmentos da percepção visual que conhecera no dia anterior, ao voar com eles, foi Jandria. Depois que as duas Espadachins se cumprimentaram com um abraço, Jandria disse:

— Recebemos sua mensagem através dos pássaros; foi Ele Próprio quem me contou.

Romilly lembrou que era assim que ela sempre se referia ao Rei Carolin quando ele não estava presente.

— Está indo muito bem, Romy. E tenho a permissão das Espadachins no exército para que você partilhe a tenda de Dama Maura, se quiser. E agora vou conversar com ela; fomos criadas juntas.

Romilly nada lhe perguntou; há muito que compreendera que Jandria era de uma posição social muito superior ao que julgara inicialmente, embora houvesse deixado tudo para trás ao prestar o juramento para a Irmandade. Concentrou sua atenção nos pássaros, apesar de poder ouvir, com uma pontada de ciúme, as duas mulheres conversando em algum lugar.

E eu não tenho amiga, não tenho amante, estou sozinha, sozinha como qualquer monge em sua cela solitária nas cavernas isoladas de Nevarsin... E se perguntou por que estava pensando assim, pois naquele instante mesmo sua mente se encontrava povoada pela percepção do grande garanhão negro correndo ao sol, com Carolin montando-o...

Ela fez uma reverência antes de levantar os olhos para o rosto do rei, e não teve certeza se se curvara a Carolin ou a Estrela-Sol, a crina preta agitada pelo vento da colina. Carolin desmontou e cumprimentou-a jovialmente.

— Espadachim Romilly, vim lhe agradecer pessoalmente por sua mensagem, a você e seus companheiros com os pássaros-sentinelas. Devemos marchar amanhã contra os exércitos de Rakhal, e você e o laranzu precisam cuidar de tudo agora, pois prometi à minha parenta Maura que ela não teria de participar em qualquer batalha contra seu parente. — Ele sorriu e acrescentou: — Vamos, criança, não tinha a língua presa quando viajou comigo para Nevarsin. Chamava-me de "Tio" naquela época.

— Fazia isso na ignorância, senhor — balbuciou Romilly. — Não tinha a intenção de qualquer desrespeito, pensava que era apenas Cario do Lago Azul...

— E é o que sou — disse Carolin gentilmente. — Cario era meu apelido na infância, da mesma forma que meu pequeno primo é chamado de Caryl. E minha mãe me deu a propriedade rural conhecida como Lago Azul quando eu tinha quinze anos. E se eu não era o que você me considerava, o mesmo se pode dizer a seu respeito, pois julguei que fosse um cavalariço, um bastardo do MacAran, não uma leronis, como agora sei que é.

Romilly lembrou que ele a vira em roupas masculinas; sentira que Carolin não demorara a perceber que era mulher, mas se mantivera em silêncio, por suas próprias razões. Esse silêncio permitira que Orain se tornasse seu amigo, pelo que se sentia grata.

— Majestade...

O rei acenou com a mão.

— Não aceito cerimônia com os amigos, Romilly; e não esqueci que eu me tornaria refeição do pássaro-espírito se não fosse por você. E agora me diga: fará com que voem os pássaros-sentinelas para que meus conselheiros possam se antecipar aos movimentos de Rakhal, ou de Lyondri, na batalha?

— Será uma honra, senhor.

— Obrigado. E agora preciso falar com minha parenta e dissipar seus temores. E Dama Jandria também, eu acho, ainda tem bastante amor por Lyondri...

— Pelo que ele foi — interveio Jandria, parada à entrada da tenda de Maura —, não pelo que ele é, Cario. Não posso levantar a mão contra ele, mas também não levantarei um único dedo para impedir seu destino. Se eu tivesse bastante laran estaria entre suas leroni hoje, para reprimir o que ele se tornou. Se Lyondri ainda conserva o suficiente do que foi para saber o que é agora, tenho certeza de que ele rezaria por uma morte limpa.

Os olhos de Maura brilhavam com lágrimas.

— Cario, jurei que nunca levantaria a mão ou lançaria meu laran contra meu parente Hastur. Sou Elhalyn e eles são sangue do meu sangue. Mas, como Jandria, também não o impedirei de fazer o que deve.

Ela se aproximou do poleiro em que estava Temperança e baixou a cabeça diante do pássaro; Romilly compreendeu que Maura agia assim por estar chorando.

Esta guerra que lança irmão contra irmã e pai contra filho... Que importância tem qual é o patife que está no trono ou o patife ainda maior que tenta derrubá-lo...? Romilly não tinha certeza se era o pensamento de Ruyven que ouvia ou se o pai falava em sua memória, pois parecia que o tempo não tinha mais existência... Carolin disse, fitando-as com uma expressão de tristeza:

— Ainda assim, jurei proteger meu povo, mesmo que deva protegê-lo dos Hastur que repudiaram esse juramento. Gostaria que vocês pudessem compreender quão pouco desejo o trono de Rakhal, o prazer que teria em cedê-lo, se ao menos ele tratasse meu povo como um rei deve fazer, respeitando-o e protegendo-o...

Mas parecia que ele falava para si mesmo, e depois Romilly não teve certeza se Carolin falara mesmo em voz alta ou se apenas ela imaginara tudo. Seu laran, ao que tudo indicava, começava a fazer coisas estranhas, como se sua mente fosse muito pequena para absorver tudo o que queria se concentrar ali. Sentia-se de certa forma invadida, violada, cheia de coisas estranhas, a impressão de que sua cabeça estava prestes a explodir com tudo isso.

— Posso cumprimentar meu bom amigo, seu cavalo, milorde?

— Claro que pode. Acho até que ele sente saudade de você.

Romilly aproximou-se de Estrela-Sol, cujas rédeas Carolin passara em torno de um poste ao desmontar, passou os braços peço pescoço lustroso dele.

Você pode ser agora a montaria de um rei, mas ainda é meu, ela disse, não em palavras. Sentiu Estrela-Sol em sua mente, projetando-se: meu, amor, juntos, luz-sol/estrela-sol/ sempre juntos no mundo...

E um momento depois descobriu que estava apoiada no poste sozinha; Estrela-Sol desaparecera e Ruyven a tocava, hesitante.

— O que a aflige, Romy? Está doente?

— Não — ela respondeu bruscamente.

E foi cuidar dos pássaros. Mais uma vez, ao que parecia, perdera a noção do tempo. Seria uma nova propriedade de seu laran que não compreendia? Talvez devesse conversar com Maura sobre isso. Ela era uma leronis e com certeza se mostraria disposta a ajudar. Mas podia ouvir Maura em sua mente agora, chorando por Rakhal, que outrora tentara conquistar sua mão; e depois Maura se tornara leronis e uma virgem jurada... lamentava por Rakhal, como Jandria lamentava por Lyondri... e ela pela camaradagem antiga com Orain... não, isso acabara, o que havia de errado com sua mente agora?

Não havia necessidade de usar os pássaros-sentinelas naquele dia e Romilly, ainda fraca e confusa depois dos intensos esforços do dia anterior e dos terríveis sonhos da noite, sentiu-se contente por isso. Contudo, enquanto cavalgava, em posição privilegiada, perto de Carolin e seus conselheiros, ela não estava consciente de si mesma ou de seu próprio cavalo, pois seguia com Estrela-Sol, à frente das tropas. Orain mantinha-se próximo e ela pôde ouvi-lo conversando descontraído e como iguais com Dama Maura e Lorde Ranald.

— Você possui o laran Serrais, Ranald, creio que não teria qualquer dificuldade para aprender a cuidar dos pássaros; é bastante parecido com o dom MacAran, que vi em Ama Romilly durante todas as semanas em que viajamos juntos.

À distância, Romilly recordou como Orain a observava, com ternura, mesclada com algo mais, próximo do amor. Compreendia agora por que Orain a evitava: não podia ver Romilly sem a lembrança angustiada do jovem Rumai que ele pensava conhecer. Orain sentia-se como um tolo, camadas de percepção se sobrepondo e confundindo. Ranald declarou:

— Estou disposto a tentar. E talvez Ama Romilly queira me ensinar. Embora ela seja, como todas as Espadachins, arrogante e de língua ferina...

Maura soltou uma risada jovial e comentou que ele não estava acostumado a mulheres que não o consideravam, logo a ele, um Lorde Ridenow, como uma criação especial para lhes proporcionar satisfação.

— Ora, Maura, não sou tão conquistador assim... Mas se as mulheres foram criadas pela Deusa Evanda para o prazer dos homens, por que eu deveria recusar à Dama da Luz o que lhe é devido, deixando de cultuá-la em sua criação: a beleza das mulheres? — Ranald riu também. — Tenho certeza de que Ela punirá você um dia, Orain, por negar o que lhe é devido.

Orain soltou uma risada jovial e Romilly compreendeu que escutava uma conversa que não se destinava a seus ouvidos. Tentou evitar que isso acontecesse, mas não sabia como, a não ser desviando sua atenção para outra coisa... E estava outra vez cavalgando com Estrela-Sol e consciente da presença de Carolin. Não foi um dia dos mais agradáveis. Ao anoitecer, quando Ranald se aproximou e indagou se podia ajudá-la a desmontar, anunciou que desejava aprender os hábitos dos pássaros para poder fazer voá-los, pois Dama Maura se encontrava impedida de fazê-lo por seu juramento, Romilly tratou-o bruscamente.

— Não é tão simples assim. Mas pode tentar abordá-los; contudo, não venha se queixar a mim se acabar perdendo uma unha ou mesmo um olho!

Ela não gostava do jeito como Ranald a olhava. Lembrava demais Dom Garris, e até mesmo Rory, como se ele apalpasse fisicamente seus seios jovens com as mãos rudes. Sentia-se angustiadamente consciente de seu olhar — nunca me senti assim antes — e do desejo intenso que expressava. Mas Ranald nada fizera, nada dissera, como podia formular algum protesto? Romilly aconchegou-se no manto, como se estivesse com frio, gesticulou na direção dos pássaros.

Ranald baixou os olhos e Romilly compreendeu que ele captara alguma coisa de sua agitação.

— Perdoe-me, mestra, não tive a intenção de ofendê-la.

Da mesma forma que Carolin, ele não podia tentar impor suas atenções a uma mulher relutante, pois partilharia o choque e a aflição da vítima, seu sentido de violação até mesmo por um olhar grosseiro. Mas Ranald não estava acostumado a mulheres que não eram Hastur mas possuíam essa sensibilidade.

Mas uma mulher que não tem laran... É como acasalar-se com um animal irracional, uma coisa que mal está viva... E Romilly percebeu o vermelho escaldante na parte de trás do pescoço de Ranald, desejou saber como dizer a ele que estava tudo bem. Ranald aproximou-se dos pássaros; ela sentiu a maneira como ele procurou alcançá-los, tentando fazer ecoar o senso de inofensividade, projetar seus sentidos apenas com transmissões amistosas. Romilly esperou um momento... e depois Temperança baixou a cabeça e esfregou-a contra o bastão de coçar que estava na mão de Lorde Ridenow.

Ele fará voar os pássaros e estará unido a nós, como Maura esteve... Romilly não sabia por que essa possibilidade a deixava tão perturbada.

Maura devia estar ainda com o exército, refletiu Romilly, não era possível que a tivessem deixado para trás com toda a região assolada pela guerra; mas não a vira naquele dia. Quando se adiantaram com os pássaros, foi Lorde Ranald quem os acompanhou, Temperança em sua sela. Romilly cedera sua predileta, Prudência, a Ruyven, a fim de poder cuidar de Diligência, sempre mais difícil de controlar. Diligência se remexia na maior inquietação, soltava gritos estridentes, mas aquietou-se quando Romilly fez contato com sua mente.

Você também é uma beleza, disse Romilly ao pássaro, sem perceber nada de incongruente em se dirigir assim à enorme e feia criatura.

Mas não houve chamado para seus serviços naquele dia e Romilly sentiu-se contente, pois assim Lorde Ranald teria mais algum tempo para se acostumar com seu pássaro, aprofundar o contato. Depois de uma hora mais ou menos, quando tinha certeza de que não haveria problemas nem necessidade de seus serviços, Romilly deixou que a mente vagueasse outra vez para o contato com Estrela-Sol, avançando com Carolin na vanguarda do exército.

Parecia agora que a região estava deserta, com vastas planícies vazias, apenas uma ou outra fazenda abandonada, poços desmoronados, casas queimadas ou que desabaram pelo tempo. Cavalgando com Estrela-Sol, Romilly não estava realmente consciente de que escutava Carolin e Orain, seguindo juntos, com Dama Maura bem perto. Maura estava envolta por seu manto e falava pouco, mas Carolin comentou, contemplando a região deserta:

— Passei por aqui quando era criança e toda esta região era ocupada por fazendas e plantações. Agora é uma terra devastada.

— A guerra? — indagou Maura.

— A guerra no tempo de meu pai, antes de eu ter idade suficiente para empunhar uma espada... Ainda me lembro como esta terra era verde e fértil. E agora as áreas povoadas estão mais próximas da beira das colinas. Na esteira da guerra sempre há bandidos, homens que ficaram sem casa por causa dos combates e sem consciência por causa dos horrores que testemunharam; devastaram esta região, o que sobrara da guerra, até que os habitantes se deslocaram para mais perto da proteção dos fortes e soldados nas proximidades de Neskaya.

Mas Romilly, a mente absorvida em Estrela-Sol, pensou apenas: como eram verdes e férteis os campos, como eram lindas as pastagens. Acamparam naquela noite junto a um córrego estreito que cascateava por pedras empilhadas e depois fluía tranqüilo e aprazível por uma campina fértil, enfeitada por pequenas flores azuis e douradas.

— Será uma noite perfeita de Alto Verão — comentou Carolin, indolente. — Três das luas aparecerão no céu antes da noite terminar e duas estarão quase cheias.

— É uma pena que não teremos aqui o Festival do Solstício do Verão — disse Maura, rindo.

E Carolin declarou, subitamente sério:

— Prometo a você, Maura... e a você, bredu — ele acrescentou, virando-se para Orain —, que realizaremos nosso Festival do Solstício do Verão dentro das muralhas de Hali, em casa. O que acham, primos?

— Que Evanda conceda — murmurou Maura, também séria agora. — Tenho saudades de casa...

— Nenhum dos jovens naquela torre distante além das montanhas... — Jovialmente, Carolin fez um trocadilho com o nome de Tramontana. — ... conseguiu abalar sua determinação de permanecer virgem para a Visão, Maura?

Maura riu, embora fosse uma risada tensa.

— No dia em que me convidar para ser rainha ao seu lado, Carolin, não terei de despachá-lo desapontado.

Estrela-Sol deu um passo para o lado, irrequieto, enquanto Carolin inclinava-se na sela para roçar o rosto de Maura com os lábios.

— Se o Conselho permitir, Maura, assim será. Temia que seu coração tivesse morrido quando Rakhal a deixou...

— Apenas meu orgulho ficou ferido. Eu o amava, é verdade, como primo, como irmão adotivo; mas sua crueldade me cortou o coração. Ele pensava que podia me conquistar sobre os corpos de minha família e eu o perdoaria por tudo quando visse a coroa que me oferecia, da mesma forma que uma criança esquece um machucado quando ganha um doce. E não podia permitir que dissessem que me afastei de Rakhal e me aproximei de você só porque seria o homem que poderia me oferecer a coroa...

A voz de Maura titubeou e Estrela-Sol sacudiu a cabeça indignado com o puxão nas rédeas que o fez parar, para que Carolin pudesse de novo inclinar-se para Maura; mas desta vez ele sentiu quando seu cavaleiro pegou o corpo esguio da leronis e trouxe para sua sela, mantendo-a ali. Não houve mais palavras, mas Estrela-Sol, assim como Romilly, sentiu um fluxo e transbordamento de emoção, tornando-se ainda mais irrequieto, agitado, até que Carolin censurou-o com um novo puxão nas rédeas. Na mente de Romilly fluíam imagens de flancos lustrosos e corpos sedosos, de uma corrida ao luar que a levou a esfregar a cabeça, como se estivesse febril, as sensações desconhecidas envolvendo todo o seu corpo, a tal ponto que se retirou abruptamente para seu próprio corpo, rompendo o contato para se livrar das estranhas emoções do garanhão.

O que aconteceu comigo, que me sinto tão repleta de emoção, que rio e choro sem uma palavra pronunciada ou um contato?

Carolin falou em sua mente e não estava consciente de que ele não se encontrava ao seu lado: Podemos deixar os cavalos pastar neste campo; você é uma leronis, é capaz de mantê-los aqui sem cerca, que não temos tempo de armar? E Romilly já ia responder quando ouviu a voz de Maura, tão nítida como se ela falasse em voz alta à sua frente:

— Não tenho o dom de Romilly, mas farei o que puder, se quiser chamá-la para me ajudar.

Romilly puxou as rédeas e fez seu cavalo parar. Ruyven virou-se para fitá-la, surpreso, mas ela disse:

— Vamos passar a noite aqui e estou sendo chamada pelo rei e pela leronis.

Foi Orain quem trouxe o aviso, avançando pela massa de homens, cavalos e equipamentos na estrada e gritando:

— Quer me acompanhar, Romilly? O vai dom solicita seus serviços.

— Eu já sabia.

Romilly encaminhou-se para o rei, deixando Orain parado lá atrás, a observá-la, aturdido. Carolin estendeu o braço na direção do vasto campo.

— Vamos armar o acampamento aqui por esta noite. Pode ajudar Maura a pôr os cavalos naquele pasto, impedindo que se desgarrem?

— Claro.

Os homens começaram a armar o acampamento, levando os melhores cavalos para o pasto, inclusive Estrela-Sol. Depois que todos estavam reunidos, Maura disse:

— Agora vamos projetar um abismo que os cavalos verão, embora nós não possamos divisar coisa alguma. Os cavalos têm medo das alturas, e assim não escaparão.

Romilly ligou sua mente com a jovem leronis e juntas criaram uma ilusão, um enorme abismo entre cavalos e homens, cercando o pasto... Romilly, ainda parcialmente ligada na mente com Estrela-Sol, seus sentidos se projetando para seu próprio cavalo e os outros no campo — consciente com eles da presença do enorme garanhão negro — viu, encolhendo-se fisicamente, o vasto abismo pelo qual poderia cair, recuando nervosamente...

— Romilly... — murmurou Maura, muito séria, rompendo o contato. — Você é o que chamamos de telepata selvagem, não é mesmo?

Ela virou-se, irritada com o tom crítico da voz de Maura, e disse bruscamente:

— Não sei o que isso significa.

— O que estou querendo dizer é que você é uma dessas pessoas cujo laran desenvolveu-se por si mesmo, sem a disciplina de uma Torre — explicou Maura. — Sabe que isso pode ser perigoso? Eu gostaria que me deixasse monitorá-la para me certificar de que está sob controle. O laran não é uma coisa simples...

Romilly respondeu ainda mais bruscamente:

— Os MacAran são treinadores de animais, trabalhando com pássaros, cavalos e cães desde o tempo desconhecido; e nenhum deles foi supervisionado pelas Torres.

Um vestígio do sotaque das montanhas retornou à sua voz, como se fosse o eco de seu pai dizendo:

— Os Hali'imyn querem que a própria mente de um homem seja controlada por seus leronyn e suas Torres!

Maura disse, apaziguadora:

— Não tenho o menor desejo de supervisioná-la, Romilly, mas você parece febril e ainda está numa idade em que pode ser sujeita a... a alguns dos perigos do laran sem o treinamento e desenvolvimento apropriados. Se não pode permitir que eu a monitore e descubra o que aconteceu com você, então seu irmão...

Muito menos Ruyven, pensou Romilly; não podia permitir de jeito nenhum que o irmão rigoroso e ascético, tão parecido com um monge cristoforo, lesse os pensamentos que ela mal se atrevia a reconhecer para si mesma. Remexeu-se impaciente, levantando uma barreira contra Maura.

— É muita generosidade de sua parte, vai domna, mas não precisa se preocupar comigo.

Maura contraiu um pouco o rosto e Romilly compreendeu que ela avaliava a ética de uma telepata treinada pela Torre, de jamais se intrometer, em comparação com a real preocupação pela moça. O que deixou Romilly irritada. Afinal Maura não era tão mais velha assim, por que pensava que precisava equilibrar o laran de Romilly?

Deixaram-me por conta própria e agora, quando não mais preciso, mostram-se ansiosos em me oferecer ajuda! Não me ofereceram ajuda quando meu pai queria me vender para Dom Garris, e também não houve ajuda quando quase fui estuprada por Rory ou quando banquei a idiota na cama de Orain. Venci essas batalhas sozinha, sem qualquer ajuda; o que os leva a pensar que preciso de sua maldita condescendência agora?

Maura ainda a fitava, apreensiva, mas finalmente, para alívio de Romilly, suspirou e virou-se.

— Olhem! — disse Carolin, apontando. — Vocês têm certeza de que a ilusão funciona?

Romilly levantou os olhos e sua respiração quase parou: Estrela-Sol aproximava-se a galope, a cabeça erguida, as patas mal parecendo tocar o chão. Maura estendeu a mão e disse:

— Esperem!

Estrela-Sol estacou abruptamente ao chegar nos limites da campina, as quatro patas quase juntas, como se estivesse de fato à beira de um penhasco, a cabeça abaixada, espuma pingando da boca, como se em terror mortal. Estremeceu de medo, depois relinchou, recuou, sacudiu a cabeça e disparou para o outro lado.

— A ilusão os manterá no campo, pelo menos por esta noite — garantiu Maura.

— Mas ele está assustado demais! — protestou Romilly, pingando com o suor de medo do garanhão.

— Não há memória nem imaginação — lembrou Maura, suavemente. — Você tem as duas coisas, Romilly, mas olhe para ele agora.

E Estrela-Sol pastava calmamente; parou de repente, farejou o vento, aproximou-se de um grupo de éguas que também pastava na campina, em silêncio.

— Ele vai melhorar a qualidade dos estábulos reais — comentou Orain, jovialmente. — Qualquer égua que cobrir esta noite terá uma cria digna desses estábulos, não tenho a menor dúvida.

Carolin soltou uma risada.

— Que ele se divirta em seu esporte, velho amigo. Nós, que somos responsáveis por esta guerra — ele tocou gentilmente em Maura, apenas no ombro, mas a expressão que os dois trocaram deixou Romilly corada —, devemos esperar um pouco por nossas satisfações; mas serão ainda melhores por isso, não concorda, meu amor?

Maura limitou-se a sorrir, mas Romilly desviou os olhos fisicamente da intensidade daquele sorriso.

Jandria apareceu naquela noite e perguntou a Romilly se não desejava partilhar de novo o rancho das Espadachins, agora que não seguia à frente com o destacamento especial, levando os pássaros. Era evidente pelo tom de voz que Jandria esperava que Romilly demonstrasse a maior alegria pela oportunidade de se juntar outra vez às suas irmãs. Mas Romilly sentia-se muito cansada e com os nervos à flor da pele para conversar, agüentar o barulho e as risadas das moças da Irmandade. Preferia dormir longe da tenda comunitária e alegou que ainda era necessária entre os pássaros.

— E não precisa recear que eu não seja devidamente protegida — ela acrescentou, em tom azedo. — Entre Dama Maura e meu irmão que parece um monge, estou na mesma situação de uma sacerdotisa de Avarra em sua ilha protegida, que nenhum homem pode alcançar sem a maldição fatal da Mãe das Trevas!

Ela percebeu que Jandria ainda estava perturbada, mas limitou-se a abraçá-la e murmurou:

— Então descanse bem, irmãzinha. Parece cansada demais; exigiram muito de você em bem pouco tempo, e ainda é jovem. Não deixe de comer bem no jantar; já conheci várias leroni, e para reabastecer suas energias após o trabalho, uma jovem pequena e frágil é capaz de comer o suficiente para satisfazer três lenhadores! E tenha um sono longo e profundo, minha cara.

Ela foi embora. Romilly alimentou os pássaros, com a ajuda de Ruyven; até mesmo Lorde Ranald, ela notou com satisfação, não se esquivou à sua parte no trabalho. Mas o cheiro da carniça trazida pelos caçadores do exército deixou-a enjoada outra vez; e embora Carolin enviasse um bom pernil assado de chervine de sua própria mesa, com seus cumprimentos, para os tratadores dos pássaros, ela mal conseguiu comer e limitou-se a empurrar a comida de um lado para o outro do prato.

Já passava em muito do pôr-do-sol quando o acampamento assentou por completo para a noite, iluminada por três luas cheias e a quarta por um crescente pela metade.

— Quatro luas — comentou Lorde Ranald, rindo. — Que loucura faremos? Dizem em Thendara: O que é feito sob quatro luas não precisa ser lembrado ou lamentado...

— As noites assim são sagradas, amigo — disse Ruyven, com fria cortesia. — Passarei a maior parte da minha em sagrado silêncio, meditando. Se os soldados de Carolin...

Ele gesticulou para o lugar em que se podia ouvir o som de uma rryl e vozes altas e desafinadas entoando o coro de uma canção popular de bebida, antes de arrematar:

— ... me concederem um pouco de paz.

— O intendente do rei distribuiu aos soldados uma ração extra de vinho — explicou Ranald —, mas não o suficiente para deixá-los embriagados; ficarão sentados à volta de suas fogueiras e cantarão ao luar, mais nada.

Ele fez uma pausa, depois ofereceu o braço a Romilly e sugeriu:

— Vamos nos juntar a eles em suas fogueiras? Há três ou quatro homens em minha antiga unidade que possuem vozes excelentes e cantam juntos em tavernas. E cantam bastante bem para ganharem toda cerveja que quiserem, e mais ainda. E pode estar certa de que não farão qualquer descortesia com uma Espadachim; ao contrário, ficarão na maior satisfação por saber que está interessada em ouvir sua música.

— As vozes não parecem tão boas assim — comentou Romilly, escutando a dissonância na distante canção.

Ranald soltou uma risada.

— Eles estão apenas se divertindo; os Irmãos Canção do Vento — pois é assim que se intitulam, embora não sejam irmãos, mas quatro primos — não se dão ao trabalho de cantar direito antes que todos estejam reunidos e prestando atenção. Chegaremos lá muito antes de começaram a cantar para valer e os soldados gostam quando os nobres vão até suas fogueiras para participarem das mesmas diversões.

Romilly não podia recusar o convite formulado daquele jeito, embora se sentisse cansada e com dor de cabeça, preferindo ir logo para a cama. Mas sabia que, de qualquer forma, não conseguiria dormir, com as canções e risadas ressoando pelo acampamento; talvez Ruyven tivesse a disciplina necessária para a meditação tranqüila naquela balbúrdia, mas não era o seu caso. E ela aceitou o braço oferecido.

O luar fazia com que a noite fosse quase tão clara quanto o dia, isto é, pelo menos um dia cinzento e chuvoso; Romilly achava que não poderia ler qualquer coisa escrita, e as cores do manto vistoso de Ranald e de sua túnica escarlate eram indistintas, mas havia claridade suficiente para verem por onde iam. Uma parte de Romilly, inconsciente, pastava na campina com Estrela-Sol, mas ainda assim ela se sentia dominada por estranha inquietação. Ao se aproximarem das fogueiras puderam ouvir os soldados entoando uma canção, cuja letra estava longe de ser decorosa, que falava sobre acontecimentos escandalosos entre os nobres.

 

"Meu pai foi Guardião da Torre Arilinn,

Uma chieri seduziu com a flor kireseth;

E três nasceram dessa união;

Dois eram emmasca e o outro fui eu..."

 

— Essa canção faria com que fossem esquartejados se a cantassem em qualquer lugar das Planícies de Arilinn — comentou Ranald. — Mas aqui é diferente, existe antiga rivalidade entre as Torres de Arilinn e Neskaya...

— Acontecimentos curiosos para uma Torre — disse Romilly, cuja imagem de uma Torre ainda era influenciada pelo que vira nos pensamentos disciplinados e austeros de Ruyven. Ranald riu.

— Passei alguns anos numa Torre... apenas o suficiente para aprender a controlar meu laran. Você deve saber como é. Eu tinha treze anos quando começou, às vezes mal conseguia me distinguir de um cralmac na toca, ou entrava no cio com cada cadela da fazenda! Era desconcertante para minha governanta... Eu ainda estudava na época. É verdade que ela era uma víbora velha e de rosto frio. Não vou insultar meu cachorro predileto ao chamar aquela mulher de cadela! Tenho certeza de que muitas vezes ela desejou poder me castrar como os chervines de carga, a fim de poder me dar as aulas!

Romilly riu, apreensiva. Ranald percebeu sua inquietação e tratou de acrescentar, gentilmente:

— Desculpe, tinha esquecido que você é cristoforo e foi criada de acordo com seus costumes. Pensava quando era pequeno que as meninas eram diferentes. Mas tive quatro irmãs e logo descartei as idéias de que as meninas eram diferentes, mais delicadas... E acho que não preciso me desculpar por isso, você é uma mulher das montanhas e sei por seu trabalho com os pássaros que convive com animais há bastante tempo para compreender o que estou falando.

Romilly corou, mas o sentimento não era desagradável. Recordou o verão alto em suas próprias colinas, perto do Ninho dos Falcões, o mundo fervilhando de vida, gado e cavalos se acasalando, a tal ponto que também partilhara desinibida o fluxo da natureza ao redor, embora fosse, com seu corpo de criança, uma percepção indiferenciada, sensual mas nunca pessoal. Sabia que Ranald estava agora zombando, mas não se importava.

— Lá estão os soldados, Romilly!

Todos vestiam uniformes de soldados comuns; quatro homens: um alto e corpulento; outro com cabelos vermelhos-amarronzados, revoltos, e de barba desgrenhada; um baixo e gordo, com rosto rosado e redondo, sorriso torto; o quarto, alto e muito magro, rosto esquelético e mãos vermelhas e enormes — mas de sua garganta saía a mais educada voz de tenor que Romilly já ouvira. Cantarolaram juntos por um momento, para determinar o tom, depois deram início a uma canção popular, que Romilly sabia ser muito antiga.

 

"Aldones, abençoe o cotovelo humano".

E abençoe onde se dobra;

Se pouco, secos ficaríamos,

Se demais, no ouvido beberíamos.

 

Eles arremataram virando as canecas para mostrarem que estavam vazias, e os soldados explodiram em aplausos, encheram as canecas, que os quatro beberam, antes de iniciarem outra canção.

As canções eram rudes, mas não grosseiras, a maioria dissertava sobre os prazeres da bebida e mulheres, as vozes eram esplêndidas; como os demais, Romilly aplaudiu e cantou junto nos coros, até ficar rouca. Isso a fez esquecer seus estranhos sentimentos e sentiu-se grata a Lorde Ranald pela sugestão. Em determinado momento alguém pôs uma caneca em sua mão — era a cerveja forte e fragrante das terras baixas, e ela sentiu-se um pouco tonta após beber; mas sua voz passou a soar bastante boa nos próprios ouvidos — de modo geral, não era capaz de cantar. Sentia-se apenas agradavelmente inebriada, não embriagada ao ponto de baixar a guarda. Finalmente, já bem tarde, os homens começaram a se retirar para suas camas e os Irmãos Canção do Vento, cheios de vinho mas ainda com os pés firmes, entoaram a última canção, sob aclamações e aplausos. Romilly teve de apoiar-se em Ranald ao procurar sua tenda. Ele a puxou para si ao luar claro e sussurrou:

— Romy, o que é feito sob as quatro luas não precisa ser lembrado ou lamentado...

Ela empurrou-o sem muita veemência.

— Sou uma Espadachim. Não quero desgraçar meu brinco. Pensa que sou uma vagabunda só porque nasci nas montanhas? Além do mais, Dama Maura partilha minha tenda.

— Maura não deixará Carolin esta noite — declarou Ranald, muito sério. — Eles não podem casar até o Conselho concordar, e isso não acontecerá enquanto ela for necessária como sua leronis, mas terão o que puderem; acha que ela a culparia? Ou acha que sou bastante egoísta para engravidá-la, enquanto estamos no meio desta guerra e suas habilidades são tão valiosas quanto as minhas?

Ranald tentou puxá-la de novo para seus braços, mas Romilly sacudiu a cabeça e ele largou-a.

— Eu quero... mas não haveria prazer para mim se não houvesse também para você — ele murmurou, beijando a palma da mão de Romilly. — Talvez... ora, não importa. Durma bem, Romilly.

Ele fez uma reverência e foi embora. Romilly sentia-se vazia e fria, quase desejou não tê-lo rejeitado...

Não sei o que quero. Mas não creio que seja isso.

Mesmo dentro da tenda — e Ranald estava certo, Dama Maura não se encontrava ali, seu cobertor continuava enrolado no chão —, ela sentiu que o luar inundava todo o seu corpo. Meteu-se sob as cobertas, tirou as roupas; geralmente ficava com a camisa à noite, mas agora sentia-se tão acalorada ao luar que mal podia suportar o contato do tecido na pele febril. A música e a cerveja ainda faziam sua cabeça vibrar, mas no escuro e no silêncio, a sensação era de que se encontrava lá fora, ao luar, que escarvava a relva em algum lugar, cheiro doce e inebriante elevando-se da terra, uma frenética inquietação aflorando por toda parte de seu ser.

Estrela-Sol também parecia dominado pela inquietação das quatro luas e sua claridade. Agora ela estava ligada no contato mais profundo com o garanhão. Aquilo não era novidade para ela, já sentira antes, em verões passados, mas nunca com toda a intensidade de seu laran despertado, o corpo subitamente alerta... A fragrância da relva, o fluxo de vida através de suas veias, até que era toda uma enorme e ansiosa tensão... doces fragrâncias, com um indício do que lhe parecia sentidos partilhados e dobrados, um cheiro de flores de verão e alguma coisa que nem sequer reconheceu, uma parte arraigada de si mesma, profundamente sexual, derrubando barreiras de pensamento e compreensão... a um só e mesmo tempo estava unida ao grande garanhão no cio e era Romilly, assustada, esforçando-se para romper o contato que partilhara, antes disso, sem pensar; era demais para ela agora, não podia reprimi-lo, estava estourando com a pressão, com a sexualidade pura, animal, sob a estimulante claridade das luas... Sentia seu próprio corpo se contorcendo e revirando, enquanto lutava para escapar, mal sabendo o que tanto temia, mas estava aterrorizada que acontecesse, não suportaria se fosse arrastada para sempre e nunca mais voltasse a seu próprio corpo, que corpo não tinha a menor idéia, era insuportável demais... PAIXÃO, TERROR, CIO... NÃO, NÃO...

Um luar azul inundou a tenda quando a entrada foi aberta... mas ela não viu, estava além da condição de ver, apenas o luar alcançou seu corpo que se debatia, a cabeça balançando...

Ela foi envolta suavemente por braços gentis; uma voz chamava seu nome com suavidade. Mãos gentis a tocavam.

— Romilly, Romy... Romy, volte, volte... aqui, deixe-me segurá-la assim, minha pobre criança... Volte para mim, volte para cá...

E ela viu o rosto de Ranald, ouviu sua voz, chamando-a suavemente; sentiu como se estivesse se afogando no fluxo do que não era, retornou agradecida à percepção do próprio corpo, aconchegou-se nos braços de Ranald. E os lábios de Ranald cobriram os seus; ela estendeu os braços e puxou-o para baixo freneticamente, qualquer coisa agora, qualquer coisa para mantê-la aqui, sã e salva em seu próprio corpo, excluída da insuportável sobrecarga de emoção e sensação física; Ranald envolvia-a com seus braços, Ranald acariciava-a, era ela própria, era Romiily outra vez, mal sabia se era medo, gratidão ou desejo real que levou seus lábios a se comprimirem contra os de Ranald, refugiar-se em seus braços, isolar-se de todo contato indesejável com o garanhão, lembrando-a de que era humana, humana, era real e aquilo... aquilo era o que queria... Podia ler na mente de Ranald que ele estava surpreso e deliciado, mesmo que um pouco atordoado, por sua violenta aceitação, mais espantado ainda por descobri-la virgem, isso porém não tinha importância, naquela violência partilhada do momento, não fazia diferença para qualquer do dois.

— Eu sabia — ele murmurou depois. — Eu sabia que seria demais para você. Não creio que era a mim que você chamava, mas eu estava aqui e sabia...

Romilly beijou-o agradecida, atônita e satisfeita. Acontecera de forma tão natural que agora lhe parecia doce e certo. Um pensamento vago, enquanto resvalava para o sono, levou sua mente à beira do riso.

Nunca teria sido assim com Dom Garris! Eu estava absolutamente certa ao não casar com ele!

 

O exército de Carolin permaneceu acampado à margem do córrego por três dias. No terceiro dia Romilly saiu para fazer com que os pássaros-sentinelas voassem outra vez, acompanhada por Ranald. Estava consciente de que precisava de alguma forma resguardar seus pensamentos de Ruyven; ele não compreenderia absolutamente o que acontecera. Veria apenas que sua jovem e inocente irmã partilhara sua cama com um Ridenow; e para se fazer justiça, Romilly estava mais preocupada que isso pudesse prejudicar a capacidade dos três de trabalharem juntos do que perturbada por qualquer sentimento de vergonha ou arrependimento pelo que fizera. Ruyven certamente pensaria que Ranald assumira o papel de sedutor, e não fora assim de jeito nenhum; ele simplesmente a libertara de uma coisa que Romilly descobrira ser incapaz de suportar. Mesmo agora, ela não sabia por que achara tão insuportável.

— Lembre-me de não olhar para você e sorrir assim — murmurou Ranald, captando sua preocupação de Ruyven descobrir.

Romilly sorriu em resposta. Sentia-se aliviada e feliz, capaz de olhar para o campo à beira do córrego onde Estrela-Sol e os outros cavalos pastavam e restabelecer a antiga e profunda comunhão com o garanhão, sem qualquer sentimento de aversão ou inquietação, sem se desequilibrar com a sensação de união com o animal.

Ranald tornou tudo mais fácil para mim.

Maura me falou alguma coisa a respeito: cavalos não têm memória nem imaginação. É por isso que posso retomar no ponto em que deixei.

Duas vezes, durante aqueles dias, ela foi ao rancho das Espadachins, partilhando a refeição com as mulheres da Irmandade. Cléa zombou um pouco.

— Ainda é uma de nós, apesar da convivência com a nobreza e tudo o mais?

— Seja justa — interveio Jandria. — Ela tem seu trabalho a realizar, da mesma forma que nós, e Dama Maura é uma acompanhante tão boa quanto um abrigo inteiro de nossas irmãs. E além disso, um dos tratadores é o próprio irmão dela. E se os rumores são procedentes... — Jandria fez uma pausa, lançando um olhar inquisitivo para Romilly. — ... essa mesma Dama Maura será um dia nossa rainha. O que sabe a respeito, Romy?

— Não sei mais do que você. E o Rei Carolin não pode casar enquanto o Conselho não der permissão. E uma nobre como Dama Maura não pode casar sem o consentimento paterno. Mas, com toda certeza, se eles puderem impor sua vontade, haverá casamento.

— E se não houver, o rei providenciará um bastardo para criar tantos problemas no reino quanto aquele gre'zuin do Rakhal — comentou Tina, com desdém. — Um belo comportamento para uma leronis... Soube por sua criada que ela passou duas noites na tenda do rei. Que espécie de acompanhante para Romy é essa?

Ranald ensinara-a a se resguardar um pouco; assim, Romilly conseguiu não corar nem desviar os olhos.

— Entre três pássaros feios e meu irmão, acha mesmo que preciso de acompanhante, Tina? Quanto a Maura, ouvi dizer que ela se mantém virgem para a Visão, e não posso acreditar que arrisque isso, nem mesmo na cama de um rei, enquanto a guerra continua. Mas não sou guardiã da consciência dela; ela é uma mulher adulta e uma leronis, não precisa dar satisfações a homem algum.

Cléa soltou um grunhido desdenhoso.

— Então ela pode vender sua virgindade por uma coroa, mas não por amor? Bravo, leronis! — Ela fez o gesto de aplauso. — Aproveite o exemplo, Romy!

Romilly pensara que entre aquelas mulheres, que eram livres para seguir a própria vontade, poderia conversar sobre tudo o que lhe acontecera; mesmo agora, se pudesse falar com Jandria a sós, gostaria de lhe contar... Mas Jandria já se levantava para atender aos conselheiros do rei, e não havia nenhuma outra, nem mesmo Cléa, que julgara sua amiga, com quem sentisse que poderia falar livremente. Não depois de suas palavras desdenhosas. Não, não falaria de Ranald. Elas não compreenderiam.

Romilly sabia que não desgraçara seu brinco nem arrastara a Irmandade ao escárnio. Seu juramento não lhe exigia nada mais além disso; e pelo menos não se vendera a um devasso mais velho como Dom Garris em troca de riquezas e da prosperidade dos negócios de cavalos de seu pai com Scathfell!

Assim, no terceiro dia, quando saiu para fazer voar os pássaros, com Ruyven e Ranald, ela estava animada. O dia era cinzento, caía uma chuva fina, com pancadas mais fortes e esparsas atravessando as planícies; e mesmo quando ocorria uma rara abertura nas nuvens, o vento continuava a soprar forte. Os pássaros-sentinelas encolhiam-se em seus poleiros e guincharam em protesto quando foram levados; não gostavam daquele tempo, mas precisavam de exercício, depois de dois dias de boa alimentação e repouso. Além disso, Carolin tinha de saber para onde se deslocavam os exércitos de Rakhal.

— Precisamos de alguma forma mantê-los bastante baixo para espiarem através da neblina — disse Ranald.

— Eles não vão gostar — protestou Romilly.

— Não estou preocupado com o que eles possam ou não gostar — declarou Ranald, bruscamente. — Não estamos fazendo com que os pássaros voem para nosso próprio prazer, nem para o deles, por enquanto... Esqueceu isso, Romilly?

Ela esquecera, por um momento, de tão ligada que se sentia aos enormes pássaros. Lançou Diligência de sua mão enluvada, entrou em contato com a criatura alada, voando com as asas vigorosas, muito acima das colinas, depois se lembrou, forçou um vôo mais baixo, orientando o pássaro para leste, onde haviam avistado pela última vez os exércitos de Rakhal.

Mesmo assim, e com a visão aguçada extra do pássaro, não podia ver muito longe; a chuva fina reduzia a visibilidade e precisava fazer com que o pássaro voasse bastante baixo para divisar o solo. Aquele tipo de vôo não tinha qualquer relação com o que experimentara na última vez, elevando-se bem alto, circulando, deixando que a imagem lá embaixo fosse transmitida para Carolin, através de Ranald. Agora era um esforço lento e árduo, forçando a vontade do pássaro, contra o desejo obstinado de voltar e se aconchegar no poleiro até o tempo melhorar, forçando contra seu instinto de voar acima das nuvens.

Pássaros-sentinelas; pássaros-espiões. Como todos nós, sou um instrumento para o exército de Carolin atacar. Como o pai dela ficaria furioso! Não apenas o filho fugitivo que ele repudiara, mas também a filha, que julgara uma compensação por um filho fugitivo e outro que só gostava de livros inúteis... Como estaria Darren, ela especulou, teria se resignado a cuidar de falcões e cavalos?

Romilly perdera a trajetória do pássaro e uma intensa sensação de dúvida por parte de Ruyven levou-a de volta ao vôo na chuva, enregelada e machucada pelas geladas rajadas de granizo que a atingiam... ou a Diligência? Devia se arriscar a voar mais baixo, pois nada podiam divisar através da densa cortina de chuva. Estavam ligados pelos três lados e agora ela se empenhou em seguir Temperança, voando à frente, mais forte, na direção de uma abertura nas nuvens. Lá embaixo a terra estava deserta, mas no horizonte Romilly avistou fumaça, que sabia ser do exército de Rakhal, esperando ao abrigo da chuva. Podia sentir por trás o deslocamento de ar, onde Prudência voava em sua esteira. Ao mesmo tempo, uma parte dela era Romilly, equilibrada na sela com o maior cuidado, e uma parte era Carolin, aguardando informações através das mentes dos operadores e seus pássaros.

Um ponto em seu campo de visão rapidamente se torna cada vez maior... Claro, ela deveria ter imaginado que eles também lançariam pássaros-espiões com aquele tempo! Ela — ou seria Diligência? — mudou um pouco o curso, na esperança de passar despercebida do pássaro que se aproximava. Seria o próprio Rakhal ou um de seus conselheiros quem estaria por trás das asas daquele pássaro, preparando-se para interceptar...

Haveria luta? Não podia ter a esperança de controlar o pássaro se o instinto puro prevalecesse; não havia muita dificuldade em controlar a mente do pássaro se tudo corria bem, mas no perigo o instinto predominaria sobre a consciência partilhada. Temperança ainda voava bem à frente, e por intermédio do vínculo com a mente de Ruyven ela também pôde ver os arredores do acampamento inimigo, uma carroça sobre a qual havia algo preto e sinistro... Não tinha certeza se via com seus olhos; estaria percebendo alguma coisa através da mente de Ruyven ou do pássaro? Os pássaros — a frase de Maura, ecoando em sua mente, não têm memória nem imaginação — podiam ver apenas com sua visão física e não podiam interpretar o que viam, a menos que os envolvesse diretamente, como alimento ou ameaça.

Necessitava agora de toda a sua força para manter Diligência no curso. A carroça estava ali, um cheiro estranho e acre parecia arder em seu nariz, ou no do pássaro, não tinha certeza; mas a escuridão era algo que devia estar percebendo através de uma das mentes ligadas no contato com os pássaros-sentinelas. Sentiu-se vagamente curiosa, mas tão absorvida na consciência do pássaro que se contentou em deixar tudo para Carolin interpretar.

Havia alguma coisa no ar agora — perigo, perigo, —, como se um ferro em brasa penetrasse em seu cérebro. Ela desviou-se, gritando, depois sentiu uma lancinante dor no coração. Romilly saiu com um grito do contato, lutando para mantê-lo — dor... medo — em algum lugar; ela sabia, Diligência estava caindo como uma pedra, atordoada, a consciência se desvanecendo, morrendo... Romilly, sentada em seu cavalo, fisicamente comprimiu o peito, como se a flecha que abatera o pássaro-sentinela tivesse penetrado seu corpo também. Era uma dor de pesadelo, aterradora, ela olhou freneticamente ao redor, numa angustiante desorientação. E depois compreendeu o que devia ter acontecido.

Diligência! Ela fizera seu pássaro voar deliberadamente para o perigo daquelas flechas, prevalecendo sobre a própria noção de cautela do pássaro, seu instinto de voar alto e distante do perigo. Culpa e dor disputaram o domínio sobre ela.

Alguém muito longe parecia estar chamando seu nome, e ela saiu do cinzento nevoeiro para deparar com Ranald fitando-a, exibindo no rosto uma expressão perturbada. E Romilly balbuciou, a voz meio estrangulada:

— Prudência... Temperança... tragam-nas de volta...

Ele respirou fundo.

— Elas se afastaram dos soldados; mandei que subissem, fora do alcance... Sinto muito, Romy; você a amava...

— E ela amava a vida! — berrou Romilly, desesperada. — E morreu por sua causa e de Carolin... Ah, como odeio todos vocês, todos os homens e reis, e suas malditas guerras, nenhuma das quais vale uma pena das asas delas...

Ela colocou a cabeça entre as mãos e desatou em soluços incontroláveis. A cabeça de Ruyven ainda estava inclinada para trás, o rosto imóvel no esforço concentrado; ele continuou assim até que uma forma escura saiu das nuvens e baixou para sua mão enluvada.

— Temperança... — sussurrou Romilly, aliviada. — Mas onde está Prudência?

Como se em resposta, um grito estridente soou nas nuvens, respondido por outro; duas formas escuras se projetaram através da neblina e chuva, engalfinhadas, caindo juntas em combate; penas se soltaram, os gritos estridentes cessaram. Um corpo pequeno e escuro caiu inerte perto das patas dos cavalos; outro se afastou em alta velocidade, gritando em triunfo...

— Não olhe! — disse Ruyven. — Ranald, segure-a...

Mas Romilly já saltara de seu cavalo, chorando desesperada, recolhendo o pequeno e ensangüentado corpo de Prudência, ainda inerte e quente da vida que acabara de perder. Comprimiu-o contra o peito, o rosto molhado e furioso.

— Prudência! Ah, Prudência, querida, não você também...

O sangue do pássaro espalhou-se por suas mãos e pela túnica. Ranald desmontou, aproximou-se e suavemente retirou o pássaro de seus braços.

— Não adianta, Romilly, ela está morta. — Ele abraçou-a. — Meu pobre e querido amor, não chore... Não se pode fazer nada, é a guerra.

E isso deve ser uma desculpa para tudo! Romilly sentia que a fúria a dominava. Brincam com as vidas das coisas selvagens e se consideram inofensivos, dizendo que é a guerra... Não questiono o direito de se matarem uns aos outros, mas o que um pássaro inocente sabe ou se importa com um rei ou outro?

Ruyven estava acalmando Temperança em seu pulso, enfiando o capuz em sua cabeça irrequieta. E disse:

— Tente se manter calma, Romilly, ainda temos trabalho a fazer. Ranald, você viu...

— Claro que vi! Em algum lugar do acampamento de Rakhal há fogo-aderente. Não sei onde ele pretende usá-lo, mas Carolin precisa ser avisado imediatamente. O tempo pode ser curto, a menos que queiramos queimar sob aquela coisa... E eu, pessoalmente, não quero que seja usada contra mim ou nas terras por aqui...

— Nem eu - murmurou Ruyven. — Vi o que o fogo-aderente é capaz de fazer, em Tramontana, embora não na guerra. Carolin prometeu que não o usaria contra pessoas que devem viver em suas terras. Mas se for usado contra nós, não sei como ele poderá combatê-lo.

Romilly, ainda de pé, em silêncio, indagou nesse momento:

— O que é fogo-aderente?

— O próprio bafo das forjas de Zandru — respondeu Ranald. — Um fogo que queima e continua queimando enquanto houver alguma coisa para alimentá-lo, através da pele e osso, até a própria pedra... um fogo feito por bruxaria e laran.

Não duvido. Quem é capaz de matar um pássaro inocente pelo simples desejo de algum rei, por que haveria de hesitar em matar pessoas também?

— Você deve ir conosco. — Ranald conduziu-a gentilmente para a sela. — Carolin precisa saber disso e vai precisar de todos os seus leronyn... Maura jurou que não lutaria contra Rakhal, mas tenho certeza de que ela não hesitará em impedir o uso do fogo-aderente contra seu próprio povo, não importa o que ainda possa sentir pelo usurpador!

Romilly seguiu às cegas, as lágrimas ainda escorrendo de seus olhos. Nada sabia, nem desejava saber, das armas usadas por aqueles homens, seus reis e leroni. Percebeu vagamente que Ranald cavalgava a alguma distância, mas se projetou cegamente para o contato com Estrela-Sol, sentindo, na força tranqüilizadora do grande garanhão, afeição e profunda união. Ele era seu e ela estava nele, arrastada para o presente, sem memória nem expectativa, sem imaginação ou emoção, exceto pelos estímulos imediatos; a relva verde, a estrada sob as patas, o peso de Carolin, já amado, na sela. Ela seguiu sem ver porque sua melhor parte se encontrava com Estrela-Sol, a perda e o sofrimento eliminados no momento presente, interminável, intemporal.

Finalmente, um pouco reconfortada, ela saiu do mergulho no mundo do cavalo, meio consciente de que em algum lugar falavam a seu respeito.

— Ela gostava muito dos pássaros-sentinelas, era muito ligada a eles. Assim aconteceu desde o momento em que a vimos pela primeira vez, comentamos como eram feios e foi ela quem nos mostrou que possuiam seu próprio tipo de beleza...

— ... sua primeira experiência com esse tipo de perda; ela deve aprender como se manter um pouco separada...

— ... o que se pode esperar de uma telepata selvagem, alguém que tentou aprender sem a disciplina das Torres...

Romilly pensou, ressentida, se o que ensinavam nas Torres faria com que se mostrasse complacente com as mortes de animais inocentes, que nada tinham a ver com os homens e suas guerras, então estava contente por não ter aprendido coisa alguma!

— Compreendam, por favor — disse Carolin, fitando seus três operadores de pássaros. — Não se pode atribuir culpa a qualquer de vocês, mas perdemos dois dos nossos três pássaros-sentinelas e o que resta deve ser enviado imediatamente, com ou sem perigo. Qual de vocês a voará?

— Eu estou pronto — respondeu Ruyven. — Minha irmã é nova nesse trabalho e está profundamente sensibilizada... Cuidava desses pássaros desde que eram jovens, estava muito ligada a eles. Não creio que esteja em condições agora de trabalhar ainda mais, senhor.

Carolin olhou para Ranald.

— Precisarei de todos os meus leronyn se queremos destruir o fogo-aderente em poder de Rakhal antes que ele consiga usá-lo. Quanto a Romilly...

Ele fitou-a, compadecido, mas ela se eriçou sob sua compaixão e declarou:

— Ninguém mais guiará Temperança, só eu. Sei o bastante agora para não expô-la ao perigo...

— Romilly... — o Rei Carolin desmontou e aproximou-se da jovem, muito sério. — Também lamento pelos pássaros. Mas não pode também ver a situação pelo meu ponto de vista? Arriscamos pássaros e outros animais para salvar a vida de homens. Sei que os pássaros significam mais para você do que jamais poderiam representar para mim, mas devo lhe perguntar uma coisa: preferia que eu morresse em vez dos pássaros-sentinelas? Arriscaria as vidas dos pássaros para salvar suas Espadachins?

A primeira reação emocional de Romilly foi: Os pássaros pelo menos não fizeram qualquer mal a Rakhal; por que os homens não podem travar suas batalhas sem arriscarem os inocentes? Mas sabia que isso era irracional. Ela era humana, sacrificaria pássaros ou até mesmo cavalo para salvar Ranald, Orain, o próprio Carolin ou seu irmão... E ela disse finalmente:

— As vidas deles lhe pertencem, Majestade, para poupá-las ou consumi-las como quiser. Mas também não os levarei de maneira insensata para o perigo sem um bom motivo.

Ela percebeu e especulou por que Carolin parecia tão triste.

— Romilly, criança... — Ele parou e só continuou depois de uma longa pausa. — É isso o que cada comandante de homens e animais deve enfrentar, avaliar as vidas de alguns contra as vidas de todos. Eu gostaria muito mais se jamais precisasse testemunhar a morte de qualquer daqueles que têm me seguido... — Um suspiro. — Mas devo minha vida àqueles que jurei governar. Na verdade às vezes penso que o termo não é governar, mas servir. Vá, conduza seu pássaro.

Após um momento, Romilly compreendeu, chocada, que só as últimas quatro palavras haviam sido pronunciadas em voz alta.

Li seus pensamentos e ele sabia que eu os leria... Não teria falado essas coisas em voz alta na presença de seus exércitos, mas não pode esconder os pensamentos de alguém com laran...

Já era bastante terrível que um rei assim tivesse de levar seu povo à guerra. Ela deveria saber que Carolin não desperdiçaria vidas desnecessariamente. E se pudesse poupar as vidas de alguns de seus partidários enviando os pássaros-sentinelas para o perigo, ele não hesitaria em fazê-lo, devia ser a opção responsável; como o momento em que ela optara por deixar o pássaro-espírito com fome, porque alimentá-lo implicaria a morte para todos. Ela era humana; sua primeira lealdade deveria ser sempre com seus semelhantes. Romilly inclinou a cabeça, afastou-se um pouco de Carolin com Temperança em sua sela e ergueu o pulso enluvado para enviar o pássaro outra vez ao céu nublado.

Ela estava voando, circulando sobre o campo, e não muito longe ouviu o troar de cavalos arremetendo, com o exército de Rakhal descendo do cume da colina, as tropas atacando uma à outra. Houve um tremendo choque e Romilly viu através dos olhos do pássaro...

Cavalos, caindo e gritando, cortados por espadas e lanças... homens estendidos no chão, morrendo... Não podia distinguir se eram homens de Carolin ou de Rakhal, e não tinha importância... e parte dela avançou com o grande garanhão negro, levando o rei. Alguns homens avançaram para o lugar em que tremulava a bandeira azul do pinheiro... Estrela-Sol, leve meu rei para a segurança... E o cavalo se afastou, para um novo grupo compacto, aguardando a carga seguinte.

Chamas pareciam cortar o ar, que ficou impregnado pelo cheiro acre de carne queimando, homens e cavalos gritando, a morte, a morte por toda parte...

Contudo, em meio a tudo isso, Romilly manteve-se imóvel, pairando sobre o campo, levando a imagem dos olhos do pássaro da batalha para os olhos de Carolin, a fim de que ele pudesse orientar seus homens para onde eram mais necessários. Horas, ao que parecia, arrastaram-se, enquanto ela sobrevoava o campo, cansada de tantos horrores, nauseada com cheiro de carne queimando...

E depois os homens de Rakhal desapareceram, deixando apenas os mortos e os agonizantes no campo. Romilly, que permanecera em contato com o pássaro-sentinela restante (sabia agora que fora Ruyven quem pegara as rédeas e levara seu cavalo para um lugar seguro, no topo de uma pequena colina, de onde se podia observar o campo, enquanto ela permanecia em transe no contato com o pássaro), retornou à sua própria consciência, atordoada, chocada.

Cavalos agonizantes. Sete ela treinara, com suas próprias mãos, no abrigo da Irmandade... mortos ou agonizando, e Cléa, a alegre Cléa, que falava tão despreocupada da morte, estendida inerte no campo, o sangue invisível na túnica escarlate de Espadachim... Cléa, morrendo nos braços de Jandria, um lugar vazio, um enorme silêncio onde antes existira um ser humano vivo, respirando, amado e real...

Não havia regozijo no campo de batalha; Carolin sentira perdas demais naquele dia. Silenciosamente os homens sepultaram os mortos, concederam aos cavalos agonizantes o golpe de misericórdia. Ruyven acompanhou os curandeiros no tratamento dos feridos. Romilly, tão chocada que não conseguia falar, armou a tenda auxiliada apenas pelo jovem aprendiz de Ruyven, que sofrerá enorme queimadura no braço do fogo-aderente que chovera sobre o exército. Haviam três poleiros na bagagem, mas apenas um pássaro se acomodou em um; Romilly sentiu-se nauseada enquanto o alimentava... o cheiro de carniça agora os envolvia completamente. Não conseguiu dormir na pequena tenda que partilhara com Dama Maura; procurou pelo acampamento na orla do campo de batalha até encontrar o remanescente da Irmandade, e em silêncio juntou-se a elas. Tantos mortos! Cavalos e pássaros que haviam sido parte de sua vida, em cujo treinamento dedicara tanto tempo, força e amor... A Irmandade a incumbira de treinar aqueles cavalos não para que pudessem viver e servir, mas para que pudessem morrer naquela carnificina sem sentido. E Cléa, a quem Jandria carregara morta do campo de batalha! Duas mulheres da Irmandade chamaram Romilly.

— Irmã, você está ferida?

— Não — balbuciou Romilly, atordoada.

Ela mal sabia; seu corpo ainda se encontrava entorpecido pelas muitas mortes que a invadiram através da mente aberta, que sentira em sua própria carne, para perceber qualquer outra coisa; mas agora constatou que não sofrerá qualquer ferimento, que não havia uma única marca em qualquer parte de sua carne.

— Você possui habilidades curativas?

E quando Romilly disse que não, elas a chamaram para ajudar a fazer uma cova para Cléa.

— Uma Espadachim não pode ficar entre os soldados. Como ela era em vida, também na morte deve ser enterrada em separado.

Romilly se perguntou, com uma dor difusa na cabeça, que importância teria agora para Cléa o lugar onde seria enterrada? Ela se defendera bem, ensinara muitas de suas irmãs a se defenderem, mas o estupro final da morte a pegara desprevenida: estava fria e rígida, parecendo muito surpresa, sem qualquer marca no rosto. Romilly mal podia acreditar que ela não ia rir e se levantar de um pulo, pegando a todas de surpresa, como fizera tantas vezes antes. Ela apanhou uma das pás que uma das Espadachins lhe estendeu. O trabalho físico árduo de fazer a cova era bem-vindo; não fosse assim, sufocaria por tanto sofrimento, tantos homens feridos, gritando, desesperados em silêncio ou em gemidos, a angústia deles abalando-a. Tentou excluir tudo, como Ranald ensinara, mas havia demais, demais...

No campo, vultos negros pairavam no céu batendo asas, esperando. Em seguida um deles sobrevoou o local em que se encontrava um cavalo morto, já inchado, desferindo uma bicada com estridente grito de alegria. Outro desceu, e mais outro, depois dezenas, centenas... banqueteando-se, gritando alegremente uns para os outros. Romilly captou um pensamento em algum lugar, não sabia se de uma das Espadachins ao seu lado junto da cova ou se de alguém fora de vista no acampamento escuro: a derrota dos homens é a alegria para a ave de carniça, onde os homens lamentam o kyorebni faz a festa... e largou sua pá, nauseada. Tentou pegá-la de novo, mas dobrou-se subitamente, vomitando. Nada comera desde aquela manhã; nada subiu além de um pouco de bílis verde, mas ela permaneceu daquele jeito, dobrada, doente e exausta, nauseada demais até para chorar.

Jandria aproximou-se e levou-a para a tenda sem dizer nada. Duas Espadachins cuidavam dos ferimentos de três outras: uma mulher com uma queimadura de fogo-aderente na mão que ainda ardia lá dentro; outra, inconsciente de um talho de espada na cabeça; a terceira, com a perna quebrada quando seu cavalo caíra e rolara sobre ela. Uma levantou os olhos, franzindo o rosto, quando Jandria entrou com Romilly e colocou-a em um cobertor.

— Ela não está ferida... Deveria ajudar a enterrar nossas mortas!

Jandria respondeu bruscamente:

— Há mais de um tipo de ferimento!

Ela abraçou Romilly, embalando-a, afagando seus cabelos, mas a jovem estava alheia ao contato, perdida numa solidão desesperada, onde procurava e procurava pelos mortos...

Romilly vagueava num sonho muito sombrio, como se estivesse numa vasta planície cinzenta, onde via Cléa à sua frente, rindo, cavalgando um dos cavalos mortos, Prudência empoleirada em seu pulso... mas estavam muito à frente, não importava quanto Romilly corresse, seus pés pareciam grudados como se vadeasse em uma calda grossa, não podia alcançá-las, nunca, nunca...

Romilly ouviu uma voz em algum lugar, sentiu que devia conhecer aquela voz, mas não conhecia, dizendo: Ela nunca aprendeu a se fechar. Agora talvez eu consiga lhe proporcionar barreiras, mas realmente não há solução. É uma telepata selvagem e não tem proteção.

Romilly apenas sabia que alguém - Carolin? Dama Maura? — tocava em sua testa de leve, e estava de volta à tenda das Espadachins, a vasta e desolada planície cinzenta da morte desaparecera. Agarrou-se a Jandria, tremendo e chorando.

— Cléa está morta. E meus cavalos, todos os meus cavalos... e os pássaros... — ela soluçou.

Jandria embalava-a.

— Eu sei, minha cara, eu sei... Está tudo bem, pode chorar por eles se quiser, chore, chore, estamos todas aqui com você.

E Romilly pensou, num espanto atordoado: Ela está chorando também.

E não sabia por que isso devia lhe parecer tão estranho.

 

Romilly despertou na manhã seguinte à batalha para um dia cinzento e desolado de chuva forte. Nada se movia no campo, a não ser as onipresentes aves de carniça, indiferentes ao aguaceiro, alimentando-se com os corpos de homens e cavalos.

Não faz diferença para ela agora, pensou Romilly, mas mesmo assim sentiu-se grata por Cléa estar debaixo da terra, o corpo resguardado dos implacáveis bicos dos kyorebni. Contudo, de um jeito ou de outro, o corpo de Cléa voltaria a seus elementos naturais, alimento das pequenas criaturas que rastejavam pela terra, nutrindo relva e árvores. Ela se tornara parte do longo e interminável ciclo da vida, em que aqueles que se alimentavam da terra acabavam se tornando alimento para a terra. Por que, então, devo lamentar? Romilly se perguntou. A resposta veio sem pensar.

Sua morte não ocorreu no momento oportuno, depois que ela esgotasse o curso de seus dias. Ela morreu numa desavença entre reis pela qual não teve a menor responsabilidade. E, no entanto, perturbada, Romilly não pôde deixar de recordar como conhecera Lyondri Hastur. As crueldades de Lyondri eram muitas, enquanto Carolin pelo menos parecia pensar que era seu dever servir e proteger aqueles que viviam nas terras sobre as quais nascera para reinar.

Carolin é como um cavalo — com seu amor a Estrela-Sol e aos outros cavalos, nunca ocorreu a Romilly que estava sendo ofensiva ao rei —, enquanto Rakhal e Lyondri são como pássaros-espíritos, que se lançam contra os vivos. Subitamente, pela primeira vez no ano em que convivia com as Espadachins, Romilly sentiu-se contente por Preciosa tê-la abandonado.

Ela também se lança contra coisas vivas. É sua natureza, e eu a amo, mas não poderia suportar o espetáculo, ser parte dele!

Ela vestiu-se, puxou o capuz do manto grosso e saiu para cuidar de Temperança. Seu primeiro impulso fora deixá-la aos cuidados de Ruyven; sentia que a visão dos poleiros vazios de Prudência e Diligência ressuscitaria todo o horror e medo de suas mortes. Mas jurara cuidar dos pássaros, era a mestra falcoeira do rei, e Ruyven, embora cuidasse com dedicação, não os amava, como ela.

Temperança estava solitária em seu poleiro, encolhida contra a umidade e o frio; os poleiros eram protegidos, mas não havia como evitar o vento, e Romilly decidiu transferir o pássaro para o interior da tenda, onde ela e Maura não dormiam há várias noites. Temperança era o único pássaro-sentinela restante nos exércitos de Carolin, e não poderia voar se pegasse um resfriado com aquela chuva e umidade. Romilly queria evitar a lembrança de seu último vôo, mas sabia que, como seu dever determinava, tornaria a fazer voar o pássaro, mesmo que para o perigo. Não teria satisfação; a alegria anterior fora parte da inocência e desaparecera para sempre. Mas ela o faria, cumprindo seu dever, porque testemunhara a guerra e tivera uma amostra do que aconteceria aos habitantes daquelas colinas sob o severo regime de Lyondri Hastur.

Lyondri não desejava — ela sabia disso pelo breve contato que tivera com ele — ser apenas o carrasco de Rakhal. Avise a Jandria que não sou o monstro que ela me julga, ele dissera. Mas também acreditava que aquele era o único caminho para o poder e, portanto, era tão culpado quanto Rakhal.

Ele é parente de Carolin. Como podem ser tão diferentes?

Enquanto cuidava de Temperança, ela ouviu passos fora da tenda e virou-se para deparar com um rosto familiar.

— Dom Alderic!

Antes que ele tivesse mais do que um momento para fitá-la surpresa, Ruyven correu para cumprimentar Alderic com um entusiasmado abraço de parente.

— Bredu! Eu deveria saber que você se apressaria para nos encontrar aqui... Seu pai sabe?

Alderic Castamir sacudiu a cabeça e sorriu para o amigo.

— Estou vindo do Ninho dos Falcões. Seu pai me deu permissão para partir, embora não de bom grado. Deve saber que Darren retornou ao mosteiro.

Ruyven suspirou e balançou a cabeça.

— Eu cederia meu lugar de herdeiro do pai a Darren com o maior prazer. Esperava que o pai, quando ele não estivesse mais à minha sombra, percebesse seu verdadeiro valor...

— Seu valor pessoal — murmurou Alderic. — Darren não tem muito amor por cavalos ou falcões, não tem nenhum vestígio do dom MacAran. Não pode ser culpado pelo que não é, assim como você também não pode ser pelo que é, bredu. E acho que O MacAran tem de admitir que não se pode forjar um malho de plumas, assim como não se pode fiar seda do precioso cobre. As habilidades de Darren são outras, e O MacAran mandou-o de volta a Nevarsin para concluir seus estudos; um dia ele será o intendente no Ninho dos Falcões, enquanto Rael... já comecei a ensiná-lo a trabalhar com cavalos e falcões.

— O pequeno Rael! — exclamou Ruyven, espantado. — Quando deixei o Ninho dos Falcões ele ainda estava no colo de Luciella, ao que parecia! Mas eu sabia que ele teria o dom MacAran. Creio que fiquei cego em relação a Darren porque o amo e queria muito que ele possuísse o dom, a fim de me deixar livre. Pois agora Darren encontrou seu lugar, como eu descobri o meu.

Alderic aproximou-se e inclinou-se sobre a mão de Romilly.

— Ama Romilly... — ele murmurou, gentilmente. Ela corrigiu-o:

— Espadachim Romilly... E sei o que meu pai diria a respeito; ele não terá essa oportunidade!

— Por favor, Romy — disse Alderic, fitando-a nos olhos. — Seu pai a ama e a lamenta como morta; o mesmo ocorre com sua madrasta. Posso lhe suplicar como seu amigo — e também amigo deles, pois seu pai foi mais do que gentil comigo — que lhes envie o aviso de que está viva?

Ela sorriu, amargurada.

- É melhor não. Tenho certeza de que meu pai preferiria que eu estivesse morta a estar ganhando o pão com a espada ou usando o brinco da Irmandade.

— Eu não teria tanta certeza. Acho que ele mudou depois que você deixou o Ninho dos Falcões; não muito depois curvou a cabeça à verdade e concedeu permissão a Darren para voltar ao lugar em que se sentia feliz. Você deveria ser cega, surda e muda, Romilly, se não sabia que era a predileta entre os filhos, embora ele amasse todos.

— Eu sabia disso — interveio Ruyven, baixando os olhos, a voz estrangulada e áspera. — Nunca pensei que ele se dobraria tanto. Também tenho sido duro e obstinado. Se sairmos vivos desta guerra — Portador dos Fardos, conceda isso! —, voltarei ao Ninho dos Falcões e me reconciliarei com o pai, pedirei que faça a paz com as Torres, a fim de que Rael possa receber treinamento para seu laran, antes que seja tarde demais. E se tiver de me rebaixar para ele, assim farei. Tenho sido orgulhoso demais.

— E você, Romilly? — indagou Alderic. — Ele a tem lamentado tão profundamente que se tornou um velho neste ano.

Ela piscou para reprimir as lágrimas. Dilacerava seu coração pensar no pai envelhecido. Mas insistiu:

— E melhor ele me julgar morta do que pensar numa filha sua a desgraçá-lo ao ponto de usar o brinco...

Alderic sacudiu a cabeça.

— Não posso persuadi-la, mas aliviaria seu coração saber que Mallina casou com Dom Garris no Solstício do Inverno?

— Mallina? Minha irmãzinha? Com aquele... aquele devasso repulsivo? E ainda diz que meu pai mudou?

— Não se precipite no julgamento — advertiu Alderic. — Garris a adora e ela, por todas as aparências, retribuiu... Mesmo antes do casamento, ela me confidenciou que Garris não era tão ruim assim, quando se aprendia a compreendê-lo. Ela disse: "O pobre coitado tem sido tão solitário e infeliz que sua desgraça levou-o a todos os tipos de coisas, mas mudou completamente agora que tem alguém que o ama e cuidará dele!" Devia vê-los juntos.

— Deus me livre! — exclamou Romilly, balançando a cabeça. — Mas se isso torna Mallina feliz, melhor ela do que eu!

Ela não podia conceber como alguém era capaz de suportar aquele homem, mas Mallina sempre fora uma tola, talvez merecessem um ao outro!

— Seja como for, Mallina seria o tipo de esposa dócil e obediente que Garris queria.

— Você diz que gosta muito de meu pai, bredu — interveio Ruyven —, mas por acaso já foi cumprimentar o seu?

— Meu pai pode dispensar minha companhia com a maior satisfação — respondeu Alderic, franzindo o rosto, obstinado. — Ele nunca a procurou; vê apenas a mãe em meu rosto.

Romilly lembrou o que adivinhara antes de deixar o Ninho dos Falcões: Alderic era filho de Carolin! E, portanto, o herdeiro legítimo de todas aquelas terras... Ela inclinou a cabeça e disse:

— Deixe-me levá-lo para seu pai, meu príncipe.

Alderic fitou-a aturdido e depois soltou uma risada.

— Romilly, Romilly, minha jovem amiga, se pensou que eu era o filho do rei, então é melhor saber agora como me julgou errado! Os filhos de Carolin estão sãos e salvos aos cuidados do Hastur de Carcosa. Além disso, ouvi rumores de que Carolin anda cortejando uma certa leronis de Tramontana...

Ele sorriu para Ruyven e acrescentou:

— Isso já estava no ar antes mesmo de você deixar a Torre, meu amigo.

— E Domna Maura prometeu casar com ele, se o Conselho der permissão — confirmou Ruyven. — Isto é, desde que qualquer um de nós escape desta guerra. Rakhal atacou-nos com flechas de fogo-aderente; conseguimos rechaçá-lo, mas ele vai se reorganizar e atacar de novo, só o Portador dos Fardos sabe que arma diabólica de laran ele usará na próxima vez! Por isso, Deric, você deve se apressar a cumprimentar seu pai, pois esta é apenas a calmaria antes da tempestade, e amanhã, a esta altura, poderemos estar lutando por nossas vidas! Saudaria seus Deuses depois da morte com a mácula da desavença familiar? Pois é bem provável que tenha vindo apenas para morrer ao lado de seu pai.

— A situação é tão ruim assim? — indagou Alderic, observando atentamente o rosto do amigo.

Ruyven assentiu, com uma expressão solene.

— Como eu disse, estamos no centro da tempestade; em paz por um momento, não mais do que isso. Carolin precisa de todos os leronyn que puder reunir, Deric.

Romilly interveio:

— Mas o que é, afinal? Se você não é filho de Carolin...

— Meu pai se chama Orain e é irmão adotivo e amigo de Carolin. Fui criado na corte de Carolin.

Ela procurou pela mão de Alderic com súbita confiança. Deveria ter adivinhado, quando ele falara que o pai não suportava vê-lo. Carolin, mesmo num casamento dinástico indesejável, poderia demonstrar cortesia e gentileza com uma mulher; mas, como recompensa por seu momento de tolice, contemplara direto o coração de Orain. Lamentava por Alderic, que não conhecera o amor de um pai; pois agora ela sabia como fora abençoada com esse amor.

— Sou a mestra falcoeira do rei e ele terá necessidade do meu pássaro em breve, se vamos enfrentar Rakhal de novo no campo de guerra. E não duvido que seu pai está com ele.

— Também não duvido — concordou Alderic. — Ele nunca está longe do rei. Quando eu era mais jovem, odiava-o por isso, ressentia-me porque ele gostava mais dos filhos de Carolin e até do filho pequeno de Lyondri Hastur do que de mim. — Alderic deu de ombros e suspirou. — O mundo segue como é, o amor não pode ser forçado, mesmo na família; e para um homem como meu pai, minha própria existência deve ser uma angustiante recordação de um infeliz período de sua vida. Devo a Orain o dever de um filho, e rezo para nunca faltar nisso, porém nada mais. O parentesco, eu penso às vezes, é uma brincadeira que os deuses fazem para nos prender aos que não amamos, na esperança de que possamos algum dia nos reconciliar com eles; mas amigos são uma dádiva e seu pai foi um amigo, quase um pai adotivo para mim. Quando estivermos livres desta guerra... — Ele tocou de leve a mão de Romilly. — Não precisamos falar disso agora. Mas creio que você sabe o que eu diria.

Ela não o fitou. Houve um tempo, é verdade, em que pensara que casaria de bom grado com aquele homem. Mas muita coisa lhe acontecera desde então. Ela desejara o próprio Orain, embora ele não a quisesse. E Ranald... O que acontecera com Ranald não era o tipo de coisa que levava ao casamento, e também era pouco provável que um nobre das Terras Secas casasse com uma Espadachim das montanhas; na verdade ela achava que não casaria com Ranald mesmo que ele a pedisse, e não havia motivo para que ele assim procedesse. Seus corpos haviam aceitado um ao outro com alegria, mas isso ocorrera sob condições excepcionais; ela imaginava que aceitaria qualquer homem que surgisse e lhe oferecesse a salvação do tumulto que a dominava. Mas, além disso, pouco conheciam um do outro. E se Alderic soubesse que ela não era mais a donzela virtuosa que ele conhecera no Ninho dos Falcões, ainda haveria de querê-la?

— Depois que a guerra acabar, Lorde Alderic...

— Pode me chamar de Deric, como faz seu irmão. Ruyven e eu somos bredin e como amigo de seus dois irmãos eu lhe devo sempre uma proteção de irmão, mesmo que nada mais.

— Sou uma Espadachim... Deric. Não preciso da proteção de nenhum homem, mas ficarei satisfeita por sua amizade. E isso, eu acho, já tinha mesmo no Ninho dos Falcões. Quanto a qualquer outra coisa além de amizade, eu penso... — Sua voz, incontrolável, estava tremendo. — Não devemos sequer falar sobre isso até estarmos livres dessa maldita guerra!

— Agradeço sua honestidade, Romilly. Eu não haveria de querer uma mulher que casasse comigo só porque sou filho do principal conselheiro e maior amigo de Carolin. Meu pai casou porque o velho rei queria homenagear o irmão adotivo de seu filho ao casá-lo com uma dama da alta nobreza, mas eles desprezavam-se um ao outro e sofri por isso. Não gostaria que meus filhos fossem atormentados pelo ódio entre os pais e sempre jurei que não casaria com nenhuma mulher se não fôssemos pelo menos amigos.

Os olhos de Alderic, tranqüilos e gentis, encontraram-se com os de Romilly; por algum motivo, a bondade naqueles olhos deixou-a com vontade de chorar.

— Para qualquer outra coisa mais, podemos esperar... Espadachim.

Romilly limitou-se a acenar com a cabeça e murmurar:

— Vamos embora agora para cumprimentar seu pai.

Antes de chegarem à tenda de Carolin, porém, encontraram Orain no caminho, seguindo apressado para o lugar onde os pássaros eram mantidos.

— Ama Romilly, seu pássaro-sentinela é necessário...

Ele parou de falar abruptamente, piscando os olhos, aturdido, à visão do jovem que acompanhava Romilly.

— Pai... — murmurou Alderic, inclinando a cabeça.

Orain envolveu-o por um instante, num abraço rápido e formal. A cena angustiou Romilly, acostumada à afeição rude de Orain. Ela pensou: ele teria me cumprimentado com mais gentileza do que isso!

— Não sabia que estava aqui, meu rapaz — disse Orain. — Carolin precisa agora de todas as pessoas que são hábeis com laran; talvez já saiba que ele nos atacou com fogo-aderente.

— Fui informado assim que cheguei ao acampamento, pai, e já ia oferecer a pouca habilidade de que disponho, pondo-me a serviço de Carolin. Mas primeiro queria cumprimentá-lo, senhor.

— Agradeço sua atitude em nome do rei. Os leronyn do rei estão se reunindo ali... — Orain apontou. — Ama Romilly, pegue seu pássaro, precisamos saber quanto tempo temos antes que Rakhal torne a nos atacar.

— Quer dizer que vamos marchar contra Rakhal? — indagou Alderic. Orain respondeu com uma expressão vaga:

— Apenas para nos livrarmos dos corpos aqui, a fim de podermos manobrar, se houver necessidade. Se Rakhal tem fogo-aderente à sua disposição, não podemos enfrentá-lo nos bosques, ou todo este território, daqui a Neskaya, será destruído.

Romilly olhou para o quartel-general de Carolin e percebeu que a tenda estava sendo desmontada, a bandeira Hastur recolhida por seus guardas. Alderic lançou um olhar rápido para Romilly, mas disse apenas:

— Preciso me juntar aos outros. Cuide-se bem, Romilly.

Ele se afastou apressado. Ela foi se preparar para a partida. Pôs Temperança na sela, deixando para o jovem assistente de Ruyven o trabalho de desarmar a tenda e arrumar as coisas para o deslocamento com o exército. Será que Rakhal seria tão insensato a ponto de disparar flechas incendiárias para os bosques, naquela estação, arriscando um grande incêndio? Era bem possível, pelo que ouvira do homem. Por esse motivo, mesmo que não houvesse qualquer outro, precisavam derrotar aquele inescrupuloso homem que se intitulava rei!

Agora que sabia o que estava procurando, Romilly descobriu que era muito mais fácil enviar o pássaro-sentinela. Por causa da chuva, Temperança relutava em voar, mas desta vez Romilly não hesitou em fazê-la alçar vôo, quase para o fundo das nuvens baixas. Guiou-a lentamente em círculos, gradativamente alargando-os, a fim de poder observar o exército de Rakhal em movimento. Enquanto cavalgava, metade da mente no pássaro, ela se juntou a Carolin e seu grupo de competentes leronyn, homens e mulheres; passou por sua mente, rapidamente, que era um deles, que talvez tivesse afinal encontrado seu verdadeiro lugar.

Ainda sou uma Espadachim. Mas estou grata porque não preciso empunhar uma espada neste combate. Se fosse necessário, acho que poderia fazê-lo, mas estou satisfeita porque minhas habilidades me levam a outras funções. Não quero matar... E depois, sombriamente, ela se forçou a ser realista. Era parte daquela matança, da mesma forma que se empunhasse espada ou arco no campo de batalha; talvez mais, porque os olhos de seu pássaro-sentinela orientavam a matança. Ela ocupou seu lugar, decidida, entre Dama Maura e Ranald. Um ou os dois permaneceram em contato com ela, transmitindo as informações para Carolin e seus conselheiros.

Não deve ser fácil para Jandria lançar-se contra Lyondri desse jeito, sabendo que será um dos instrumentos para sua morte... E agora não há saída para ele, além da morte. Ela não teve certeza naquele momento se o pensamento era seu, de Dama Maura ou até mesmo de Lorde Orain. Estavam todos no pequeno e compacto grupo, em torno de Carolin, inclusive Alderic. No limite de sua percepção, viu Alderic cumprimentar Jandria gentilmente e chamá-la de "Minha tia". Como se fosse algo que sonhara há muito tempo, ocorreu-lhe que se tornaria parenta de Jandria se casasse com Alderic.

Mas, de qualquer maneira, estamos ligadas pelo juramento à Irmandade, não preciso ser sua parenta. Foi Alderic quem disse: parentes nascem, mas amizade é uma dádiva dos Deuses...

Maura fitou-a com uma expressão sugestiva e Romilly lembrou-se de seu trabalho; restabeleceu no mesmo instante o contato com Temperança, que ainda voava em círculos largos sobre a vasta planície. Finalmente avistou, através dos aguçados olhos do pássaro, uma nuvem escura de poeira no horizonte...

O exército de Rakhal, em movimento, avançando rapidamente para a cobertura de floresta das colinas. Enquanto observava, a informação foi logo transmitida para Carolin, e ela captou o pensamento do rei: Então ele pretende se esconder sob a cobertura das árvores, pois sabe que relutarei em usar o fogo-aderente ou mesmo flechas incendiárias comuns onde há perigo de que as árvores-de-resina provoquem um grande incêndio na floresta. Precisamos alcançá-lo antes que chegue à floresta e travar a batalha num terreno por mim escolhido, não por ele. E Romilly sentiu ainda o contato da mente do rei na de Estrela-Sol.

Conduza meus homens, grande cavalo...

Ela viu com uma percepção que se alargava estranhamente, ligada a Carolin, a Estrela-Sol, a todos os homens ao seu redor. Sabia que Ranald pegara as rédeas de seu cavalo e o guiava, a fim de que ela pudesse cavalgar em segurança enquanto se mantinha em contato com o pássaro-sentinela; dispensou-lhe um rápido pensamento de agradecimento. A chuva diminuía e algum tempo depois a claridade do sol, estranha, baixa, difusa, atravessou as nuvens. Ela fez Temperança voar mais baixo, sobre os exércitos, tentando se manter a uma altura suficiente para não ser vista, mas ao mesmo tempo mergulhando e espiando...

Os exércitos de Rakhal pareciam ter encolhido no tamanho, e ao norte ela avistou outra massa de homens e cavalos. Estariam vindo em socorro de Rakhal, agora que a primeira batalha reduzira suas fileiras?

Não, pois partiam do corpo principal do exército de Carolin, tão depressa quanto podiam. E os pensamentos de Carolin eram exultantes.

Os homens de Rakhal estão abandonando-o, agora que sabem o que ele é. Não podem aceitar esse tipo de guerra, da mesma forma que eu...

Mas o exército de Rakhal ainda era formidável; parou na crista de uma pequena colina e Romilly compreendeu, pelo comunicação com as mentes dos homens de Carolin, que Rakhal escolhera o terreno mais vantajoso e ali ficaria para se defender.

Portanto, aquela seria a batalha decisiva. Sob a exortação de Carolin, ela fez o pássaro voar ainda mais baixo; assim, através de seus olhos, os conselheiros de Carolin poderiam avaliar a magnitude das forças que teriam de enfrentar. Rakhal tinha a vantagem, ao que parecia, em números e no terreno.

Precisamos de alguma forma atrair Rakhal para longe daquela colina...

Alderic aproximou-se do pai e lhe falou em tom de urgência por alguns minutos. Romilly, com a pequena parte de sua mente que não se encontrava com o pássaro, ouviu Orain dizer a Carolin:

— Com sua permissão, milorde. Meu filho falou-me de um velho truque usado nas montanhas e temos leronyn em quantidade suficiente para executá-lo. Deixe-me levar uma ou duas dúzias de seus homens, junto com os leronyn, para projetar uma ilusão de que somos quatro vezes mais numerosos, forçando Rakhal a descer para investir contra nós; poderá então aproveitar para atacá-lo pelo flanco.

Carolin pensou por um momento.

— Pode dar certo — ele acabou dizendo. — Mas não enviarei seus leronyn ao perigo; a maioria não sabe sequer manejar uma espada.

Ranald Ridenow interveio:

— Meu laran e minha espada estão a seu serviço, meu rei. Deixe-me comandar esses homens.

— Está certo, escolha os homens... e que Aldones os acompanhe, a todos vocês! Mas é preciso ser cauteloso com o momento oportuno...

— Ama Romilly indicará esse momento para nós — disse Ranald, ainda segurando as rédeas do cavalo de Romilly.

—. Levaria uma mulher para a batalha? — indagou Orain. Romilly, desligando-se por um instante da mente do pássaro, declarou:

— Lorde Orain, sou uma Espadachim! Para onde for meu irmão, irei com ele!

Ruyven não falou nada, mas ela sentiu a efusão que ele transmitia, não em palavras: Bravo, irmã! Sentiu também um contato de apoio de Alderic. O que a fez lembrar, por algum motivo, do dia em que haviam feito voar falcões, no Ninho dos Falcões, no Festival do Solstício do Verão.

Quando eu estiver livre desta guerra, nunca mais tornarei a caçar por prazer, pois sei agora o que é ser caçada... E foi com surpresa que ela compreendeu que a mente que formulava esse pensamento era a de Orain.

Como está próximo do meu próprio pensamento! Romilly experimentou outra vez o amargo pesar pela distância que a separara de Orain. Éramos tão íntimos, em tantas coisas, tão parecidos! Mas o mundo continuaria como tinha de continuar, Orain era como era e não como ela gostaria que fosse. Romilly retornou ao pleno contato com o pássaro-sentinela, deixando Ranald ver através de sua mente e transmitir a Orain e Alderic o que ela via no exército de Rakhal.

Os cavaleiros estavam postados no perímetro do exército, cercando infantes e arqueiros; no centro havia um grande número de carroças, com o cheiro acre que ela sabia agora ser o odor químico do fogo-aderente. Cercavam por completo o topo da pequena colina e seria impossível romper as defesas enquanto eles ali permanecessem.

Mas é exatamente o que devemos fazer, foi o pensamento de Alderic, acompanhando a companhia de duas dúzias de homens, seguidos pelo pequeno bando de leronyn, numa velocidade vertiginosa, na direção da colina; e, subitamente, eles pararam. Agora!

E pareceu de repente a Romilly que uma enorme nuvem de fumaça e poeira avançava para a colina, o troar de cascos em disparada, gritos... que soldados são esses? E depois ela compreendeu que já vira aqueles homens, os homens que haviam abandonado Rakhal e se afastavam... Era como um grande espelho, como se a imagem daquele exército separado fosse lançada diretamente para cima dos homens de Rakhal. Por algum tempo eles se mantiveram firmes, enquanto uma nuvem de flechas caía sobre o bando de soldados e leronyn na base da colina... Mas estavam disparando muito curto, para a imagem dos soldados em disparada.

Juntem-se a nós! Em nome dos Deuses, todos que têm laran, juntem-se a nós para manter essa imagem. E a nuvem de poeira em disparada continuou a avançar, Romilly podia divisar apenas formas indistintas, cabeças de cavalos, como enormes crânios cinzentos, ardentes semblantes de esqueletos, luzindo com o fogo do demônio, dentro da nuvem oculta de poeira e magia...

Ela ouviu uma voz que jamais escutara antes, reverberando no interior de sua mente, bradando:

— Agüentem firmes! Agüentem firmes!

Mas isso não era suficiente diante da investida do exército fantasma; os homens de Rakhal romperam as fileiras e desceram pela colina, avançando direto para a nuvem de imagens mágicas, gritando em terror, depois a linha vacilou, abriu-se em uma dúzia de lugares. O fogo espalhou-se pelo solo, lambendo, enroscando-se, chamas verdes e azuis se elevando... e depois foi como se um rio de sangue subisse pela colina, através das patas dos cavalos, que estacaram abruptamente, relinchando apavorados, empinando. Alguns cavaleiros caíram, alguns poucos homens mantiveram suas posições, gritando:

— Não há cheiro de sangue! Não há cheiro de carne queimando! É um truque! É um truque!

Mas a linha estava rompida; cavalos debandaram em pânico, esbarrando uns nos outros, pisoteando cavaleiros, os oficiais tentando freneticamente recompor a linha rompida, reagrupar os homens em algum arremedo de ordem.

— Agora! Carolin!

— Um Hastur! Um Hastur!

Os homens de Carolin atacaram, o corpo principal do exército, fluindo como água, investindo encosta acima contra as fileiras rompidas de cavaleiros. Passaram direto pelas defesas externas de Rakhal e depois lutavam corpo-a-corpo. Ranald e Alderic avançaram pelo centro dos exércitos, onde se encontrava a protegida carroça de fogo-aderente. Homens se agruparam, rapidamente mergulhando as flechas na substância, mas Alderic, Orain e seu pequeno bando atacaram-nos e se aproximaram da carroça. Rapidamente, como uma maré de energia, eles ligaram as mentes, uma faixa de fogo azul rolou para a carroça que continha o fogo-aderente. Alcançou-a, subiu e depois uma estrondosa coluna de chamas projetou-se para o céu, ardendo tão intensamente que os homens de Rakhal se espalharam e correram para salvar suas vidas. Gotas ardentes caíram em alguns, eles pegaram fogo como tochas vivas, morreram gritando; o fogo espalhou-se pelo exército de Rakhal e os soldados entraram em pânico, debandaram, correram direto para as lanças e espadas de Carolin.

Parte de Romilly ainda se encontrava ligada ao pássaro, mas ela sabia que não havia mais necessidade disso. Descobriu que estava ligada profundamente a Estrela-Sol, enquanto Carolin o incitava a avançar; conheceu o terror do fogo, estremecendo com o cheiro de relva queimada e carne ardendo; mesmo na chuva, que recomeçara a cair na tênue claridade, o fogo-aderente continuava a arder. Mas o grande garanhão, superando bravamente o medo inato, conduziu seu cavaleiro para a frente... ou era a própria Romilly carregando o rei para o meio do inimigo em fuga?

— Descubram para onde Rakhal foge com seus feiticeiros! — gritou Orain. — Atrás deles, homens! Vamos pegá-los agora!

Romilly deixou Temperança voar mais alto, fora do alcance do fogo; ardia para dentro agora, com um círculo onde nada mais havia para queimar — um sucesso absoluto dos leronyn do exército de Carolin; mas ela, com Carolin, estava longe com o garanhão Estrela-Sol, avançando pela colina, onde os últimos remanescentes dos homens de Rakhal, isolados entre o resto do fogo-aderente e Carolin, lutavam de costas para as chamas. Estrela-Sol parecia voar com a vontade de Carolin para levá-lo ao topo, e Romilly sentiu que era ela própria que o carregava para a vitória final...

E de repente ela tropeçou — por um momento Romilly não tinha certeza se não fora ela própria quem tropeçara —, recuperou-se e empinou, a mão de Carolin a conduzi-lo, depois desceu para pisotear o homem que surgira à sua frente, empunhando uma espada. Os grandes cascos eram como malhos golpeando o homem no chão. Romilly sentiu o homem cair, a cabeça partindo como uma fruta madura sob os cascos dela — os cascos de Estrela-Sol —, sentiu Carolin lutar para manter o equilíbrio na sela. E depois outro homem se ergueu com um brilho de aço, ela sentiu Carolin resvalar na sela e cair, e nesse instante Romilly sentiu uma pontada de dor lancinante, enquanto a espada cortava pescoço, garganta e coração, o sangue e a vida se esvaindo...

Ela nunca sentiu a queda no chão.

... a chuva caía, uma chuva forte e fria, ruidosa; o chão estava encharcado e até o cheiro do fogo-aderente se dissipara. O céu estava escuro; era quase o anoitecer. Romilly sentou, tonta, atordoada, nem mesmo agora plenamente consciente de que não fora ela que a espada abatera.

Estrela-Sol! Ela se projetou automaticamente em busca de sua mente, encontrou...

Encontrou o nada! Apenas uma enorme sensação de vazio, o nada onde ele antes estivera. Desvairada, ela olhou ao redor e avistou, caído não muito longe, o corpo do garanhão, a cabeça quase decepada, o homem que o matara por baixo de sua massa. A chuva lavara o sangue e agora havia apenas o enorme ferimento aberto em seu pescoço, pelo qual o sangue se esvaíra e encharcara a terra. Estrela-Sol, Estrela-Sol... morto, morto, morto! Romilly se projetou outra vez, confusa, para o nada. Estrela-Sol, cuja vida ela partilhara por tanto tempo...

E a quem traíra ao levá-lo para a morte numa guerra entre dois reis — nenhum dos quais vale um fio de sua crina preta... Ah, Estrela-Sol... e eu morri com você... Romilly sentia-se tão vazia e fria que não tinha certeza de ainda estar viva. Ouvira histórias de homens que não sabiam se haviam morrido e continuavam a tentar se comunicar com os vivos. Atordoada, isolada de qualquer emoção que não fosse fúria e dor, ela conseguiu sentar.

Ao seu redor havia cadáveres, de homens de Rakhal e de Carolin, mas não havia o menor sinal do próprio Carolin. Apenas o corpo de Estrela-Sol indicava onde Carolin se encontrara antes. Vagamente, sem se importar, ela especulou se todos os homens de Carolin estariam mortos e Rakhal era o vitorioso. Ou será que o grupo de Orain capturara ou matara Rakhal? Que importância tinha?

Que importância tem qual o grande patife que está no trono...

Ela começou a se orientar um pouco. Como antes da batalha, o campo estava coberto pelas formas escuras dos kyorebni, circulando. Um pousou, com estridente grito, na cabeça de Estrela-Sol, Romilly correu em sua direção, agitando os braços e gritando. O pássaro foi embora, mas voltaria.

Estrela-Sol está morto. E eu o treinei com minhas próprias mãos para esta guerra, entregando-o àquele que o montaria para a morte; o nobre cavalo nunca vacilou, trouxe Carolin para este lugar e encontrou a morte! Faria melhor se o matasse pessoalmente, quando ele correu alegremente pelo curral verde por trás do abrigo da Irmandade. Então ele nunca conheceria o fogo, o medo e uma espada em seu coração.

A escuridão caía, mas à distância, na beirada do campo de batalha, uma lanterna balançava, um pouco de luz vagueando pela planície. Ladrões de cadáveres? Carpideiras procurando pelos mortos? Não; intuitivamente Romilly soube quem eram: as mulheres da Irmandade, procurando suas companheiras caídas, que não deviam ficar na cova comum dos soldados de Carolin.

Como se importasse para os mortos onde ficam seus corpos...

Chegariam ali em breve, julgando-a morta... Quando caíra de seu cavalo, atordoada pela morte de Estrela-Sol, sem dúvida haviam pensado que morrera. Agora viriam sepultá-la e a encontrariam viva, haveriam de se regozijar...

E Romilly foi dominada pela dor e pela raiva. Iriam levá-la de volta, reclamá-la como guerreira. Fugira da companhia dos homens, ingressara na Irmandade e o que lhe haviam feito? Puseram-na para treinar cavalos, não para seu próprio bem ou para o serviço dos homens, mas para serem massacrados, abatidos insensatamente naquela discórdia dos homens, que não eram capazes de limitar suas lutas a si mesmos e envolviam pássaros e cavalos inocentes em suas guerras e massacres...

E eu devo voltar para isso? Não, não, nunca!

Com as mãos trêmulas, ela arrancou da orelha o brinco da Irmandade; o fio prendeu e rasgou sua orelha, mas estava inconsciente da dor. Jogou-o no chão. Uma oferenda a Estrela-Sol, um sacrifício oferecido aos mortos! Mal conseguia ficar de pé. Olhou ao redor e viu que cavalos sem cavaleiros vagueavam pelo campo de batalha. Foi preciso apenas um ligeiro contato de seu laran para atrair um cavalo, a cabeça abaixada em submissão. Estava escuro demais agora para verificar se era égua ou castrado, cinzento, preto ou ruão. Subiu na sela e se encolheu, deixando que o cavalo escolhesse o caminho... Para onde? Não importa. Para longe daquele lugar de morte, para longe, amigo. Não servirei mais, nem como soldado nem como Espadachim nem como leronis. Daqui por diante não servirei a nenhum homem ou mulher. Cegamente, os olhos fechados contra as lágrimas quentes, Romilly deixou sozinha o campo de batalha e se afastou pela noite chuvosa.

Durante toda aquela noite ela cavalgou, deixando que o cavalo a levasse para onde quisesse; nunca soube para que rumo seguiu! O sol surgiu e ela continuava inconsciente, sentada no cavalo como se não tivesse vida, balançando de vez em quando, mas sempre se recuperando antes de cair. Não tinha a menor importância. Estrela-Sol estava morto. Não sabia onde se encontravam Carolin e Orain, mas isso também não importava. Orain nada queria dela... Ela não passava de uma mulher. Carolin, com a Irmandade, queria apenas que ela usasse seu laran para trair outros animais inocentes e levá-los à morte! Ruyven...

Ruyven pouco se importava com ela, era como um monge da amaldiçoada Torre em que aprendiam feitiçaria como fogo-aderente...

Não há ser humano que possa significar alguma coisa para mim agora.

Ela continuou a andar, durante o dia inteiro, através de uma região devastada e deserta, que fora assolada pela guerra. À beira da floresta desceu do cavalo e libertou-o.

— Vá, meu irmão — ela sussurrou. — Não sirva a qualquer homem ou mulher, pois eles só o levarão à morte. Viva livre pelos campos e siga seu próprio caminho.

O cavalo fitou-a por um momento; Romilly fez um afago final e empurrou-o. Imóvel por mais um instante, surpreso, o cavalo logo se virou e galopou para longe, meio desajeitado. Romilly embrenhou-se em silêncio pela escuridão da floresta. Estava encharcada, mas não se importava, assim como o cavalo não se preocupara com a pelagem molhada. Encontrou uma pequena cavidade entre as raízes de uma árvore, meteu-se ali, aconchegou-se com o manto, cobrindo o rosto; enroscou-se como um feto e dormiu como os mortos.

Despertou ao amanhecer ouvindo pássaros chamando e teve a impressão de que podia escutar também, misturado com o canto, os gritos estridentes dos kyorebni, ainda se alimentando com os cadáveres no campo de batalha. Não sabia para onde seguia; para algum lugar longe daqueles gritos. Levantou-se entorpecida e foi andando, sem pensar na direção, embrenhando-se na floresta.

Caminhou durante a maior parte do dia. Não estava consciente da fome; movia-se como uma coisa selvagem, silenciosamente, evitando o que havia em seu caminho e parando sem fazer barulho sempre que ouvia algum ruído. Mais tarde, ainda naquele mesmo dia, quase tropeçou num pequeno córrego, baixou as mãos em concha, recolheu um pouco da água cristalina e bebeu. Deitou-se aos raios de sol que atravessavam a folhagem e deixou secar a umidade remanescente das roupas. Ainda se sentia entorpecida. Enquanto a escuridão caía, enroscou-se sob uma moita e dormiu. Alguma coisa pequena na relva roçou nela e não se virou para ver o que era.

Dormiu até tarde na manhã seguinte e despertou com o calor do sol em suas costas. À sua frente, uma aranha tecera sua teia, faiscando como pedras preciosas com o orvalho; contemplou a maravilhosa complexidade e experimentou o primeiro prazer que sentira em muitos dias. O sol brilhava nas folhas; um saltador-do-mato elevou-se de repente à sua frente, impulsionado pelas pernas compridas, acompanhado por quatro filhotes, as caudas peludas levantadas como pequenas bandeiras azuladas. Romilly ouviu o som de sua risada, e eles pararam, as caudas tremendo, num silêncio total; e depois, como não houvesse mais qualquer ruído, com uma explosão de velocidade as quatro bandeirinhas desapareceram por um buraco na relva.

Como estava tudo quieto ali, no interior da floresta! Não podia haver, com certeza, nenhuma habitação humana nas proximidades, ou o local não seria tão pacífico, as coisas selvagens tão despreocupadas e destemidas.

Romilly esticou indolentemente os braços e as pernas. Estava com sede, mas não havia nenhum córrego por perto; lambeu o orvalho das folhas baixas da árvore sob a qual se encontrava. Num tronco caído encontrou alguns cogumelos e comeu-os, depois descobriu amoras secas em um galho e comeu-as também. Não demorou muito, enquanto vagueava a esmo pela floresta, para descobrir as hastes verdes de uma raiz que sabia ser comestível; arrancou-a com a ajuda de um graveto, limpou a terra na beira da túnica, mastigou devagar. Era fibrosa e dura, o sabor bastante acre para deixar seus olhos marejados, mas aplacou sua fome.

Perdera o ímpeto que a mantivera em irrequieto movimento de um lugar para outro; sentou na clareira do tronco caído durante a maior parte do dia, e quando a noite caiu tornou a dormir ali.

Durante o sono ouviu alguém, chamando seu nome; mas parecia não reconhecer a voz. Orain? Não, ele não a chamaria; quisera-a quando pensara que ela era um menino, mas não tinha uso para uma mulher. Seu pai? Estava longe, além do Kadarin, são e salvo em casa. Ela pensou com angústia nas pacíficas colinas do Ninho dos Falcões. Mas fora ali que aprendera a diabólica arte do treinamento de cavalos pelo qual traíra o amado, levando-o à morte. Em seu sonho, parecia sentar no lombo de Estrela-Sol, cavalgar como o vento através da planície cinzenta que vira uma vez, e despertou com o rosto molhado de lágrimas.

Um ou dois dias depois percebeu que perdera os sapatos e as meias, não se lembrava onde, que os pés já se tornavam calejados ao contato direto com a terra e as pedrinhas do solo da floresta. Vagueou cada vez se embrenhando mais na floresta, comendo frutas, escavando a terra em busca de raízes; de vez em quando refrescava os pés num córrego da montanha, mas em nenhum momento pensou em lavá-los. Comia quando encontrava algum alimento; houve um período em que passou três dias consecutivos sem encontrar nada comestível; sentiu-se vagamente consciente da fome, mas não lhe pareceu nada importante. Não mais se dava ao trabalho de remover a terra das raízes que comia; pareciam-lhe igualmente boas com a camada de terra. Houve um momento em que encontrou pêras numa árvore, e o gosto era tão doce que experimentou um incrível êxtase. Comeu tantas quanto pôde, mas não lhe ocorreu encher os bolsos ou prendê-las na túnica.

Despertou uma noite quando a face púrpura de Liriel pairava no céu, dando a impressão de que a contemplava e censurava. Ela pensou: Certamente estou louca, para onde vou, o que farei? Não posso continuar assim para sempre. Mas esqueceu tudo quando despertou. De vez em quando também ouvia, não com os ouvidos, mas no interior de sua mente, vozes que pareciam chamá-la: Romilly, onde você está? Especulava vagamente quem era Romilly e por que a estavam chamando.

Alcançou o final da floresta no dia seguinte e saiu para as planícies abertas e para as ondulantes colinas. A relva balançante estava coberta de sementes... Toda aquela região devia outrora ser povoada e cultivada, mas ao redor, até o horizonte, que se estendia de leste para oeste, da muralha da floresta por trás às montanhas que se erguiam cinza-rosadas à distância, não havia qualquer habitação humana. Ela colheu algumas sementes, removeu a casca, comeu-as enquanto caminhava.

No céu, bem alto, um falcão apareceu, um único falcão; enquanto ela observava, ele desceu, desceu, desceu, mergulhando em sua direção com as asas dobradas; pousou em seu ombro! Parecia falar em sua mente, mas ela não sabia o que estava dizendo. Contudo, tinha a impressão de que já conhecera aquele falcão, que tinha um nome, que outrora o fizera voar no céu... Não, isso não era possível, embora parecesse que o falcão tinha certeza de que se conheciam. Ela estendeu a mão para tocá-lo, suspendeu o movimento a meio, havia algum motivo pelo qual não devia encostar o dedo... Gostaria de poder lembrar por quê. Mas fitou o falcão nos olhos e desejou saber onde já o vira antes.

Despertou outra vez naquela noite e novamente estava consciente de que certamente enlouquecera, não podia vaguear para sempre daquele jeito. Mas não tinha a menor idéia do lugar onde se achava e não havia ninguém para perguntar. Sabia quem era agora, era Romilly, e o falcão, o falcão que se empoleirava num galho baixo de uma árvore próxima, era Preciosa; mas por que a procurara ali? Não sabia que ela, Romilly, projetava o contato de sua mente em pássaro ou cavalo apenas para treiná-lo a seguir submisso a humanidade para a morte?

Necessitou de cinco dias para atravessar a planície; contou-os, sem pensar, enquanto a face de Liriel se tornava cheia. Quando a lua estivera cheia pela última vez, ela acompanhara Estrela-Sol... Romilly tratou de repelir a lembrança, era dolorosa demais. Havia abundância de sementes como grãos para comer, e água para beber. Em certo momento o falcão trouxe um pássaro do céu e pousou em seu ombro, gritando frustrado; ela olhou para o pássaro morto, dilacerado pelo bico do falcão, e estremeceu. Era a natureza do falcão, mas a visão do sangue deixou-a nauseada, acabou jogando o corpo no chão e seguiu em frente.

Naquela noite chegou à beira de outro trecho de floresta. Descobriu uma árvore carregada com nozes do ano anterior, e a esta altura já recuperara bastante o bom senso para encher os bolsos. Ainda não tinha certeza de seu rumo, mas passara a seguir para o norte sempre que podia. Avançava pela floresta sem fazer barulho, impelida intuitivamente para a frente... sem saber por quê.

Lá no alto, perto do anoitecer, ouviu o grito de aves aquáticas, voando para o sul. Ergueu os olhos, voando com elas em seu vôo vertiginoso, contemplando à distância uma torre alta e branca, o brilho de um lago. Onde ela estava?

As luas foram tão brilhantes naquela noite, quatro luas iluminando-a — Liriel e Kyrrdis, redondas e cheias, as outras duas pálidas e convexas —, que não conseguiu dormir. Parecia-lhe que na última vez em que vira quatro luas no céu alguma coisa acontecera... Não, não podia lembrar, mas o corpo doía de desejo e fome insaciados, não entendia por quê. Após algum tempo, estendida no musgo macio, começou a esquadrinhar, sentindo fome como a sua ao redor...

Uma gata rastejou por um galho e Romilly sentiu a pressão da luz dentro dela também, o fluxo da vida do mundo. Podia ver o brilho dos olhos enormes, seguiu-a com sua mente, enquanto ela contornava a base da árvore. Havia agora uma fragrância doce e intensa no ar e, na mente da gata, ela seguiu-a, sem saber se era ela própria quem se mexia ou apenas a gata... E cada vez mais perto ela se aproximou, ouviu-se um pequeno som, meio rosnado, meio ronrom, de fome e necessidade... Virou-se com um golpe da cauda grande, enquanto o companheiro da gata descia pelo tronco, aos gritos e saltos. Seu corpo doía e ansiava; e enquanto o companheiro se lançava sobre a gata, Romilly contorceu-se no musgo, cravou os dedos na terra, ofegando, gritando...

Ranald... ela sussurrou, no momento antes de se perder no turbilhão incontrolável do cio. A noite parecia povoada pelos rosnados dos grandes gatos em acasalamento e ela ficou em silêncio, sufocada, até que finalmente, com os sentidos e o laran sobrecarregados, perdeu a consciência.

Despertou na manhã seguinte pouco consciente do que acontecera, sentindo-se abatida e exausta. Não sabia por quê, mas seus vagueantes movimentos pela floresta foram acelerados. Devia escapar, escapar... Uma indefinida apreensão a dominava, e quando ouviu, por cima, o mesmo rosnado da enorme gata, estava atordoada demais para ter medo. E depois houve um lampejo escuro, com a gata deslizando para o chão, parando à sua frente, a boca repuxada num rosnado sobre as presas afiadas. Sentiu por trás a presença das pequenas bolas de pêlo marrom, escondidas na cavidade da árvore...

A gata estava protegendo sua cria! E ela, Romilly, invadira o território protegido da gata... Ela cambaleou para trás, resistindo à tentação de virar e correr, correr. Se o fizesse, sabia que a gata atacaria e a alcançaria num instante! Lentamente, furtivamente, ela recuou, cada vez mais, tentando fixar os olhos da gata, pressionar com seu laran...

Paz, paz, não tenho a intenção de causar qualquer mal a você ou a seus filhotes... Em alguma ocasião ela já fizera isso antes, com algo que a ameaçava, frio, feroz, nas neves...

Silenciosamente, silenciosamente, passo após passo, recuando, recuando... paz, paz, não tenho a intenção de causar mal, nenhum mal a seus filhotes...

E depois, quando ela já se encontrava quase na beira da clareira, a gata moveu-se como um raio, um único salto longo, pousou quase aos pés de Romilly.

Paz, paz... A gata baixou a cabeça, quase aos pés de Romilly. E nesse instante o choque atingiu seu pensamento.

Não, não! Eu traí Estrela-Sol para a morte, jurei que não usaria mais o laran, nunca, nunca... não causaria mais a morte de inocentes...

Uma pata golpeou como um açoite; garras rasgaram o rosto de Romilly, o impacto derrubou-a, ofegante; sentiu o sangue escorrer da face e do lábio. Agora que ela derramou meu sangue, vai me matar como um sacrifício a seus filhotes, em expiação pela morte de Estrela-Sol...

O rosnado rouco e suave nunca cessava. Romilly encolheu-se numa bola para proteger o rosto. E depois, quando a gata saltou outra vez, uma fúria de asas atacou, seis garras do falcão golpearam os olhos da enorme gata, um bater de asas atingindo o focinho da atacante.

Preciosa! Ela veio lutar por mim!

Romilly rolou para longe, levantou-se de um pulo e subiu numa árvore próxima. Preciosa pairava um pouco além do alcance das garras mortíferas, atacando com bico e garras, até que a gata, rosnando baixinho, virou-se e desapareceu na relva alta onde os filhotes estavam escondidos. A respiração presa na garganta, Romilly desceu da árvore e correu o mais depressa que podia na direção oposta, com Preciosa em sua esteira; podia ouvir o som das asas e os pequenos gritos estridentes. Parou quando estava fora do alcance, virou-se, estendeu o punho, num gesto tão familiar que nem sequer o fez conscientemente.

— Preciosa! — ela gritou. Enquanto as garras do falcão se fechavam gentilmente em seu pulso, ela se lembrou de tudo e começou a chorar. — Oh, Preciosa, você veio para mim!

Romilly lavou-se num córrego naquela noite, removeu os fragmentos de folhas e terra do manto. Tirou a túnica e a calça, sacudiu-as no ar, tornou a vestir. Perdera em algum lugar o brinco de Espadachim... nunca soube onde. Com o falcão em seu ombro, tentou se orientar.

Calculou que a Torre branca próxima devia ser Neskaya, mas não tinha certeza. Um dia de viagem deveria levá-la até lá, e talvez pudesse transmitir uma mensagem para algum lugar, descobrir o que acontecera a Carolin e o que faziam os exércitos. Ainda se retraía ao pensamento de se juntar a eles outra vez, mas sabia que algum dia teria de voltar ao seu grupo.

Naquela noite estava procurando um lugar seco para dormir e especulando como conseguira sobreviver sozinha por todos aqueles dias — pensou que devia ter passado três dias inteiros na floresta — quando teve a impressão de que alguém a chamava.

Romilly! Romilly!

Procurem-na com laran, precisamos encontrá-la, ela está se escondendo...

Ela não pode estar morta, eu saberia se ela estivesse morta...

Romilly reconheceu vagamente algumas das vozes, embora ainda não fossem muito claras.

Se conseguirem encontrá-la, peçam que volte para nós. Era uma voz que ela conhecia, uma voz que amava: Jandria, lamentando. E apesar de nunca tê-lo feito antes, Romilly sabia como se projetar com sua mente.

Onde vocês estão? O que aconteceu? Pensei que a guerra tivesse acabado.

Acabou e Carolin está acampado diante dos muros de Hali — foi a resposta. Mas há um impasse, pois Lyondri tem Orain como refém em algum lugar da cidade.

E Romilly nem mesmo se deteve para lembrar seu ressentimento e o que era.

Irei o mais depressa que puder.

 

Ela só dormiu um pouco naquela noite, já estava acordada e andando ao amanhecer, projetando seu laran para observar uma habitação humana. Encontrou uma aldeia e procurou um homem que tinha cavalos para alugar.

— Preciso de um cavalo veloz imediatamente. Sou da Irmandade da Espada e estou numa missão urgente para o Rei Carolin. Devo chegar a Hali o mais depressa possível.

— E eu sou o cozinheiro-chefe e o lavador de garrafas de Sua Majestade — escarneceu o homem. — Não tão depressa, mestra; como pretende pagar?

E Romilly viu a si mesma refletida nos olhos do homem, um espantalho esquelético, de culote e túnica esfarrapada, descalça, o rosto todo arranhado e sangrando no lugar em que fora atingida pela gata, o falcão desleixado no ombro.

— Passei pela guerra, e ainda pior.

Ela habitara entre os animais por tanto tempo que esquecera a necessidade de dinheiro. Vasculhou os bolsos fundos da túnica e culote e descobriu umas poucas moedas esquecidas; estendeu-as para o homem.

— Aceite isto como um sinal — ela disse, sem contar. — Juro que mandarei o resto assim que alcançar um abrigo da Irmandade, e duas vezes mais se me providenciar um par de botas e um pouco de comida.

O homem hesitou.

— Quero trinta moedas de prata e um royal de cobre — anunciou ele. — E mais outro como garantia de que devolverá o cavalo.

Os olhos de Romilly faiscaram de raiva. Nem mesmo sabia porque sentia tanta pressa, mas era necessária em Hali.

— Em nome de Carolin, posso confiscar seu cavalo, se for preciso...

Ela apontou para o cavalo mais próximo, que parecia veloz, um enorme e esguio ruão. Um contato de seu laran e o cavalo se aproximou no mesmo instante, baixou a cabeça submisso. O dono soltou um grito de raiva e se adiantou para segurar a guia do cavalo, puxando-o. Mas o animal esquivou-se nervosamente, escoiceou, deu a volta, tornou a se aproximar de Romilly, roçando em sua cabeça com o ombro.

— Leronis... — balbuciou o homem, com os olhos arregalados.

— Isso e muito mais — declarou Romilly, asperamente.

Uma jovem estava observando, retorcendo o avental comprido. Finalmente ela sussurrou:

— A irmã da minha mãe é da Irmandade, mestra. Disse-me que a Irmandade sempre pagará dívidas assumidas por qualquer uma, pela honra de todas. Deixe que ela leve o cavalo, meu marido, e...

A jovem correu para a casa, voltou um instante depois com um par de botas grosseiras.

— Eram de meu filho — ela balbuciou. — Os homens de Rakhal passaram por esta aldeia e um deles matou-o, abateu-o como a um cão, quando pegaram nosso animal de arado e o liquidaram para jantar e ele pediu pagamento. Os homens de Carolin nunca fizeram nada assim.

Romilly calçou as botas. Eram botas das montanhas, forradas com pêlo, macias para os pés. A mulher lhe entregou também a metade de um pão.

— Se puder esperar, mestra, terá comida quente, mas não tenho nada preparado agora...

Romilly sacudiu a cabeça.

— Isto é suficiente. Não posso esperar.

Num instante ela estava no lombo do cavalo, no momento mesmo em que o homem gritava:

— Nenhuma dama pode montar esse cavalo... é o mais arisco...

— Não sou uma dama, sou uma Espadachim.

Subitamente, um novo aspecto de seu laran tornou-se evidente para Romilly: ela se projetou, como fizera com a gata, o homem recuou, fitando-a fixamente, submisso. A mulher interveio:

— Não quer sela, freio... Deixe-me cuidar de seus ferimentos, Espadachim...

— Não tenho tempo para isso. Indiquem-me qual o caminho para Hali.

A mulher balbuciou as orientações, enquanto o homem permanecia em silêncio, fitando-a com os olhos esbugalhados. Romilly cravou os calcanhares nos flancos do cavalo. Montara assim, sem sela nem freio, quando era criança no Ninho dos Falcões, começando a descobrir seu laran, guiando o cavalo apenas pela vontade. Sentiu um pesar breve e intenso: Estrela-Sol! Estrela-Sol e o cavalo desconhecido e anônimo em que ela deixara a batalha e depois soltara à beira da floresta. Não podia haver a menor dúvida de que estivera louca.

O cavalo avançava rápido e firme, as pernas compridas devorando a estrada. Ela mastigou o pão duro; parecia que nenhuma refeição jamais fora tão deliciosa. Precisava de roupas limpas e banho, um pente para os cabelos, mas a urgência do pesadelo a impelia. Orain nas mãos de Lyondri! Houve um momento em que parou, deixando o cavalo pastar e descansar um pouco. E se perguntou: O que penso que posso fazer?

O Lago em Hali era comprido e opaco, com uma Torre se erguendo na praia, as ondas pálidas arremetendo como nuvens de tempestade; o exército de Carolin acampava na outra extremidade, diante de uma cidade de muralhas cinzentas e sombrias. E agora ela estava bastante segura de seu laran para se projetar e sentir a presença do homem que conhecera como Dom Cario e para saber que era seu amigo, rei ou não. Ele ainda era o homem que a acolhera de bom grado, protegera-a entre seus seguidores, mesmo depois de saber que era mulher, guardara o segredo até de seu maior amigo e irmão adotivo.

Ela avançou pelo exército aturdido, ouvindo uma das Espadachins gritar seu nome, no maior espanto. Sabia como devia parecer para todo mundo, consumida e esquelética, a túnica e o culote imundos, os cabelos desgrenhados, as marcas das garras da gata ainda com a crosta de sangue no rosto, montando um cavalo de camponês que não tinha sela nem freio. Poderia se apresentar a um rei daquela maneira?

Mas mesmo enquanto descia do cavalo, Jandria já a envolvia num abraço apertado.

— Romilly, Romy, pensávamos que estava morta! Por onde você andou?

Ela balançou a cabeça, subitamente exausta demais para falar.

— Em qualquer lugar. Por toda parte. Em lugar nenhum. Isso tem alguma importância? Vim tão depressa quanto pude. Quanto tempo já passou desde a batalha? Que história é essa de Orain mantido como refém por Lyondri?

Alderic e Ruyven também se aproximaram, aturdidos, envolveram-na em seus braços.

— Tentei entrar em contato com você — disse Alderic —, junto com Dama Maura, mas não conseguimos...

Jandria gritou:

— O que aconteceu com seu rosto... seu brinco...?

— Mais tarde — murmurou Romilly, tornando a balançar a cabeça, exausta.

E depois o próprio Carolin estava à sua frente, estendeu as mãos.

— Criança... — Ele abraçou-a, como seu próprio pai poderia fazer. — Orain também a amava... Pensei que havia perdido os dois, que me acompanharam não como um rei, mas como um proscrito e um fugitivo! Venha comigo.

Ele levou-a para sua tenda. Gesticulou e Jandria serviu uma taça de vinho, mas Romilly sacudiu a cabeça.

— Não, obrigada. Não comi quase nada, ficaria embriagada se bebesse meia taça agora... Prefiro alguma comida.

O resto de uma refeição foi colocada na mesa tosca e Carolin disse:

— Sirva-se.

Jandria cortou um pedaço de carne e pão, mas Romilly recusou a carne — sabia que nunca mais tornaria a prová-la — e mastigou o pão lentamente. Jandria pegou o vinho rejeitado e lavou as marcas de garras em seu rosto.

— Como isso aconteceu? É preciso chamar o curandeiro, os ferimentos de garras de gato sempre infeccionam; pode até perder a visão de um olho...

Mas Romilly sacudiu a cabeça mais uma vez.

— Não sei direito. Algum dia lhe contarei tudo o que posso lembrar. Mas Orain...

— Eles o mantêm em algum lugar da cidade — informou Carolin. Ele ficara andando de um lado para o outro da tenda, mas agora arriou exausto numa cadeira dobrável. — Não ouso invadir a cidade para procurá-lo, pois já me advertiram... Mas talvez seja uma morte mais fácil para ele do que Lyondri planeja. O exército de Rakhal foi destroçado; a maioria já se submeteu a mim, mas o próprio Rakhal veio se refugiar aqui, acompanhado por Lyondri e uns poucos dos seus homens... e mantêm Orain prisioneiro. Ele se encontra em poder deles desde a batalha. Agora estão usando-o para negociar...

Ela fez uma pausa e Romilly pôde perceber os movimentos de suas maxilas, engolindo em seco.

— Eu lhes ofereci salvo-conduto através do Kadarin ou para onde desejarem ir, assim como suas vidas. Prometi também que deixaria o filho de Lyondri são e salvo em Nevarsin e o criaria como um parente em minha corte, com meus próprios filhos. Mas eles... eles...

O rei parou de falar e Romilly verificou que suas mãos tremiam.

— Deixe-me contar a ela — interveio Alderic, gentilmente. — Enviei o aviso de que me entregaria a eles em troca de meu pai, iria acompanhá-los para onde desejassem ir através do Kadarin, até a segurança, até o refúgio que escolhessem. Também ofereci prata e cobre...

— Em resumo — disse Jandria —, aquela dupla incrível exigiu que o próprio Carolin se entregasse em troca da vida de Orain. Também me ofereci para a troca... pensei que Lyondri poderia concordar. E Maura disse que se entregaria a Rakhal, até mesmo o acompanharia ao exílio, se fosse isso o que ele desejava, a fim de que Carolin pudesse recuperar seu conselheiro. Mas... — A expressão dela era sombria. — Mostrem a Romy a resposta que eles nos mandaram.

Ruyven trouxe um pacote pequeno, embrulhado com seda amarela. Suas mãos tremiam de forma incontrolável. Carolin pegou o pacote e tentou abrir a seda. Maura pôs as mãos sobre as dele, afagou-as por um momento, depois abriu o pano manchado de sangue.

Lá dentro — Romilly pensou que ia vomitar — havia um dedo caloso, uma crosta de sangue na extremidade em que fora cortado da mão; e o horror era que o dedo tinha um anel de cobre, com uma pedra azul, o mesmo anel que ela vira na mão de Orain. E Carolin disse:

— Eles mandaram o aviso... Devolveriam Orain para mim... um pedacinho de cada vez... A menos que eu me entregasse pessoalmente e oferecesse a submissão total de meus exércitos.

As mãos de Carolin tremiam enquanto tornavam a embrulhar o dedo.

— Mandaram isso há dois dias. Ontem foi... foi uma orelha. Hoje...

Ele não pôde continuar; fechou os olhos e Romilly viu que as lágrimas insistiam em sair.

— Por Orain, eu daria minha vida e muito mais, ele sempre soube disso — acrescentou Carolin. — Mas... mas testemunhei o que Rakhal fez com meu povo... Como posso entregar todo o meu povo a ele e a seu carniceiro Lyondri?

— Orain se deixaria cortar em pedacinhos por você e sabe disso... — interveio Maura.

Carolin baixou a cabeça e balbuciou:

— Lyondri também sabe disso. Maldito seja ele! Maldito seja acordado e dormindo. ..

A voz estava estridente, quase histérica.

— Já chega.

Maura pôs a mão sobre a dele, retirou o macabro pacote de seda, largou na mesa. Jandria declarou, sombriamente:

— Juro que não dormirei e não tomarei vinho enquanto Lyondri não for esfolado vivo.

— Nem eu — murmurou Carolin. — Mas isso não salvará Orain de seu destino. Chegou quando já perdemos as esperanças, Romilly, estamos quase prestes a atacar a cidade, a fim de que Orain possa ter uma morte rápida e limpa. Mas precisamos descobrir onde o estão mantendo, e conseguiram proteger a cidade contra o laran. Mas ainda temos um pássaro-sentinela e pensamos que talvez... pudéssemos fazê-lo voar. Mas o pássaro está incontrolável desde a batalha, Ruyven não conseguiu dominá-lo...

— E Ranald morreu na carga final, em que pensamos que você também morrera — acrescentou Maura. — Mas Ruyven garantiu que você não morrera, que sentiria se você morresse... E as Espadachins não encontraram seu corpo. Mas não sabíamos para onde você fora. Se pudéssemos descobrir que parte da cidade eles escolheram para seu trabalho sórdido... Eles ameaçaram que começariam a retalhar Orain até o fim no momento em que entrássemos na cidade e poderíamos encontrar só os pedaços depois de perdermos tempo para descobrir seu paradeiro.

Ela contraiu o rosto de medo e horror, antes de continuar:

— Por isso, não podemos procurar ao acaso e... e de alguma forma os leronyn de Rakhal protegeram a cidade. Mas talvez não percebessem um pássaro...

— Reparariam num pássaro-sentinela imediatamente — disse Romilly. — Os leronyn deles ficariam atentos a essa possibilidade...

— Foi o que eu disse a eles — interveio Ruyven. — Mas parecia uma possibilidade, se você pudesse controlar Temperança...

— Melhor seria se eu mandasse Preciosa — sugeriu Romilly: — Ela não se aproximou do exército comigo, preferiu voar para longe... mas posso chamá-la.

Ela acreditara que nunca mais tornaria a usar seu laran? Estava a serviço de Carolin, como seu corpo e sua vida. Nenhuma terra poderia sobreviver com um gato-da-montanha como Lyondri no seu comando. Não, o gato matava porque era da sua natureza, de fome ou medo, mas Rakhal e Lyondri matavam apenas pelo poder.

— Talvez dê resultado — murmurou Carolin. — Eles podem pensar que é apenas um falcão selvagem... Os Deuses sabem que há muitos na região em torno de Hali. Você poderia descobrir onde Orain é mantido, a fim de que possamos seguir diretamente para lá. Assim, eles terão de entregar Orain ou matá-lo de uma maneira rápida e limpa.

Uma trompa soou em algum lugar; Carolin estremeceu e se encolheu.

— É o amaldiçoado aviso deles... Foi a esta hora, pouco antes do pôr-do-sol, que vieram nos dois dias anteriores. Enquanto fico sentado aqui, tentando tomar coragem para atacar a cidade, Orain. ..

A voz tornou a lhe faltar. A trompa soou outra vez e Carolin saiu da tenda. Um soldado aproximou-se, com uma atitude insolente. Tinha na mão um pequeno pacote de seda amarela. Fez uma reverência e disse:

— Carolin, pretendente ao trono dos Hastur, tenho a honra de lhe devolver outra porção de seu fiel servidor. Deve se orgulhar da bravura dele.

Ele riu, um som rouco e desdenhoso, Alderic deu um pulo para a frente.

— Maldito seja aquele a quem eu honraria se chamasse de cão, pelo menos acabarei com essa risada...

Mas Jandria estendeu os braços para puxá-lo.

— Não, Deric, isso só serviria para que se vingassem em Orain...

O soldado indagou:

— Não quer ver que símbolo mandaram desta vez da bravura e devoção de seu conselheiro?

As mãos de Carolin tremiam. Jandria disse:

— Deixe-me fazer isso.

Ela largou Alderic e abriu o pacote macabro. Lá dentro havia outro dedo. O soldado acrescentou:

— Tenho uma mensagem de Lyondri. Estamos cansados desta brincadeira. Amanhã será um olho; no dia seguinte o outro olho; e depois os testículos. Se ele resistir além disso, será um metro de pele esfolado de suas costas...

— Miseráveis! Filhos de uma prostituta! — berrou Carolin.

Mas o soldado virou-se e, ao som da trompa, encaminhou-se para os portões da cidade.

— Sigam-no com laran — ordenou Carolin.

Ruyven, Maura e Alderic bem que tentaram; Romilly pôde senti-lo, enquanto acompanhava o homem com seus sentidos especiais, mas teve a sensação de que seu corpo esbarrava contra uma muralha de pedra inexpugnável; e assim que o homem passou pelos portões, ela não pôde mais alcançá-lo. Carolin tremia de horror, incapaz de conter as lágrimas derramadas. Maura abraçou-o.

— Meu querido, Orain não permitiria que você se rendesse...

— Avarra me proteja, sei disso, mas se ao menos eu pudesse provocar sua morte rápida...

Voltando ao interior da tenda, ele disse com implacável fúria:

— Não posso deixar que eles o ceguem, castrem e esfolem. Se não conseguirmos pensar em alguma coisa esta noite, amanhã, ao amanhecer, atacarei a cidade com todas as minhas forças. Enviarei o aviso de que não será poupado qualquer cidadão que levantar a mão contra mim. Revistaremos cada casa até encontrá-lo; e pelo menos haverá um fim rápido para o tormento dele. E depois os algozes cairão em minhas mãos.

Mas Romilly sabia, observando-o, que Carolin era um homem decente: não faria nada pior, nem mesmo com Lyondri Hastur, do que matá-lo. Poderia enforcá-lo, de maneira ignóbil, expor seu cadáver como advertência, em vez de efetuar a morte rápida e nobre pela espada; mesmo assim, Lyondri ainda estaria numa situação melhor do que Orain, caso aquele impasse persistisse. Carolin ordenou que o exército se aprontasse para investir contra os portões ao amanhecer.

— Seu falcão pode ver bastante bem no escuro para nos levar ao lugar em que Rakhal se esconde com seus torturadores? Não acredito que ele seja capaz de fazer isso pessoalmente, sozinho...

Carolin gesticulou debilmente para o pequeno pacote.

— Não sei — murmurou Romilly.

Mas enquanto os outros falavam, um plano começara a se definir em sua mente e agora ela perguntou:

— Quantos homens vigiam as muralhas da cidade?

— Não sei; mas eles têm pássaros-sentinelas em toda a extensão, e cães ferozes. Assim, se alguém tentar se esgueirar para a cidade arrombando os portões laterais — já tentamos isso —, os pássaros e cães fazem tamanha algazarra que todos os homens de Rakhal são despertados e se concentram no local.

Carolin parecia desanimado.

— Isso é ótimo — murmurou Romilly. — Não poderia ser melhor.

— Como assim?

— Pense um pouco, milorde. Meu laran é de pouca utilidade contra homens. E diz que os leronyn de Rakhal guardaram a cidade contra o nosso laran, o laran usado por seus homens. Mas eu não temo qualquer pássaro, nenhum cachorro jamais latirá, nada de quatro patas ou que voe com asas é imune ao meu controle. Deixe-me entrar na cidade, sozinha, antes do amanhecer, e procurar o caminho.

— Sozinha? Você, uma garota...

Carolin sacudiu a cabeça. Ele pensou por um momento e depois acrescentou:

— Já provou muitas vezes que é mais do que uma garota, Espadachim. O risco vale à pena. Se fracassar, pelo menos teremos alguma noção antes do amanhecer do lugar onde atacar primeiro, a fim de que eles concedam uma morte rápida a Orain. Mas espere até a noite cair por completo. Além do mais, fez uma longa viagem. Providencie alguma coisa apropriada para ela comer, Jandria, depois faça-a dormir um pouco.

— Eu não conseguiria dormir... — protestou Romilly.

— Então pelo menos descanse um pouco — ordenou Carolin. Romilly baixou a cabeça.

— Como desejar.

Jandria levou-a para a tenda das Espadachins, providenciou comida e roupas limpas.

— Quero também água para me lavar e um pente — suplicou Romilly.

Jandria trouxe água quente das fogueiras do rancho. Romilly lavou-se, penteou os cabelos emaranhados — Jandria, que a ajudou, finalmente teve de cortá-los bem curtos —, vestiu agradecida as roupas de baixo, a túnica e o culote limpos. Não tinha botas além das camponesas que a mulher lhe entregara na aldeia, mas pôs meias limpas. Era um alívio sentir-se limpa, vestida direito, com um alimento quente no estômago, ser humana...

— E agora você deve descansar — disse Jandria. — Carolin assim ordenou. E prometo que a chamarei à meia-noite.

Romilly deitou ao lado de Jandria na manta. A claridade da lua minguante entrava pela tenda e Romilly pensou, com profunda tristeza, em Ranald estendido ao seu lado, quando as quatro luas ficaram cheias pela última vez. Agora ele estava morto, tudo parecia tão triste, tão inútil... Não o amara, mas ele fora gentil, aceitara-o como um homem, sabia que o lembraria e lamentaria um pouco para sempre. Jandria deitava em silêncio ao seu lado, mas ela sabia que a amiga também lamentava; não apenas por causa do perigo de Orain, mas também por Lyondri Hastur, que outrora fora para ela a mesma coisa que Ranald para Romilly: o primeiro a despertar a feminilidade e o desejo. E ela não podia sequer pensar em Lyondri com a doce tristeza dedicada aos mortos; ele se afastara para além de seu alcance, tornara-se um monstro... Romilly abraçou Jandria e sentiu que ela tremia devido ao sofrimento.

Tem havido pesar demais, tudo inútil. Em meu orgulho, também acarretei sofrimento para aqueles que não me fizeram mal algum. Farei tudo o que puder para salvar Orain do destino a que o condenaram; a situação parece insuperável, mas nem tudo está perdido. O que quer que aconteça, porém, se eu ainda estiver viva ao amanhecer, enviarei um aviso ao pai e Luciella de que não morri e não devem lamentar por mim.

O pesar de Jandria é pior do que o meu. Se Orain morrer, eu lamentarei porque ele era meu amigo e porque morreu nobremente por Carolin, a quem ama. Mas quem pode lamentar ou ter qualquer sentimento que não seja de alívio se Lyondri não puder mais causar qualquer mal aos outros?

Ela continuou envolvendo o corpo soluçante de Jandria, e por fim sentiu que resvalava para o sono.

Dormia há uma ou duas horas quando Jandria sacudiu-a suavemente pelo ombro.

— Levante, Romilly. Está na hora.

Romilly lavou o rosto com água fria, comeu mais um pouco de pão, recusou o vinho. Precisava se manter completamente alerta. Carolin esperava-a na tenda dele, o rosto sob controle, uma expressão sombria.

— Não preciso lhe dizer que se conseguir libertar Orain, ou salvá-lo de mais sofrimento, mesmo que deva para isso cravar a adaga no coração dele, pode pedir a recompensa que quiser, até mesmo o casamento com um dos meus filhos.

Ela sorriu ante à sugestão; por que haveria de desejar isso? E disse, falando como se estivesse na presença do Dom Cario que conhecera primeiro:

— Tio, farei o que puder por Orain porque ele foi gentil comigo além do dever, quando me julgava apenas mero aprendiz fugitivo de mestre falcoeiro. Não acha que uma Espadachim e uma MacAran se arriscará pela honra e não pela ganância?

— Sei disso — respondeu Carolin, gentilmente. — Mas vou recompensá-la também para minha própria satisfação, Romilly.

Ela virou-se para Jandria:

— As botas farão muito barulho. Preciso de um par de sandálias macias, por favor.

Depois que Jandria trouxe suas próprias sandálias — eram muito grandes, mas Romilly amarrou-as com firmeza nos pés —, ela prendeu os cabelos num pano escuro, a fim de que nenhum reflexo casual pudesse denunciar sua presença, sujou o rosto com terra para que não brilhasse à lanterna de um vigia. Agora podia entrar furtivamente na cidade e não temia pássaro-sentinela ou cachorro. Àquela hora, com toda certeza, à exceção de uns poucos, todos os homens estariam dormindo. Alderic declarou, num tom que não admitia recusa:

— Eu a acompanharei até o portão lateral.

Romilly concordou. Ele também tinha um pouco daquele laran especial. De mãos dadas, em silêncio, eles deixaram a tenda de Caroün, afastando-se dos portões principais, num largo círculo. Um cachorro latiu em algum lugar; provavelmente, pensou Romilly, projetando a percepção inquisitiva, para algum camundongo nas ruas; mas ela silenciou-o assim mesmo, transmitindo pensamentos de paz e sonolência...

— O portão vai ranger se tentar abri-lo, mesmo que consiga aquietar os pássaros-sentinelas — sussurrou Alderic.

Sem dizer mais nada, ele fez um estribo com as mãos, como se fosse ajudá-la a montar um cavalo alto; ela segurou no topo do pequeno portão lateral e subiu, olhando para a cidade no outro lado, adormecida ao luar.

Irradiou pensamentos para os pássaros-sentinelas, transmitindo paz, sossego, silêncio... Podia vê-los nos muros agora, vultos enormes e feios, com seus tratadores, parecendo estátuas recortadas contra o céu. Um barulhinho e gritariam, despertando todos os soldados de Rakhal...

Paz, paz, silêncio... Através dos olhos dos pássaros, ela observou as ruas banhadas pelo luar, as casas escuras, apenas uma ou outra janela iluminada... E se projetou em uma casa após outra, investigando. O laran comum estava toldado, mas através das mentes dos animais podia sentir o silêncio... por trás de uma janela iluminada, uma mulher se esforçava para dar à luz uma criança, uma parteira se ajoelhava, estendendo as mãos e sussurrando palavras de encorajamento. Uma mãe estava sentada ao lado de uma criança doente, cantando em voz rouca de preocupação e cansaço. Um homem ferido na guerra remexia-se com a febre no coto da perna...

Um cachorro rosnou de uma rua transversal e Romilly percebeu que estava prestes a se lançar em latidos frenéticos... Projetou-se, silenciou-o, sentiu seu espanto, de onde viera o distúrbio...? Ela se esgueirou sem fazer barulho.

Agora estava distante dos muros, os pássaros-sentinelas silenciosos. Teriam se lembrado de proteger o restante da cidade contra o laran? Ou já seria demais para os poucos leronyn à disposição de Rakhal guardar os portões, deixando desprotegido o interior da cidade?

Com extremo cuidado, pronta para recuar a qualquer contato, ela se projetou... Sabia que Orain tinha pouco laran, mas não era cego mental e pôde senti-lo em algum lugar; estava desperto com a dor dos ferimentos... Não podia deixar que ele sentisse sua presença; era possível que ele estivesse sendo monitorado pelos feiticeiros de Rakhal ou Lyondri. E Romilly continuou, silenciosamente, aproximando-se cada vez mais de Orain, quarteirão a quarteirão da cidade antiga, sem que nenhum cachorro latisse, nenhum rato guinchasse mais alto. Silêncio, silêncio, paz na cidade. Cavalos cochilavam nos estábulos, gatos deixaram de perseguir camundongos e cochilavam junto ao fogo, bebês irrequietos se acalmavam sob o poderoso encantamento; de uma extremidade a outra da antiga cidade de Hali nenhuma alma viva sentia qualquer outra coisa além de paz e silêncio. Até mesmo a mulher em trabalho de parto caiu num sono sereno, a parteira cochilando ao seu lado.

Paz, calma, silêncio...

Perto de uma casa silenciosa, quase na muralha oposta — atravessara a cidade inteira sob seu encantamento —, Romilly percebeu duas mentes com que já mantivera contato antes. Orain... Orain estava lá dentro, sonolento sob o encantamento de sono que ela impusera a todas as coisas, mas ainda dava para sentir a dor, o medo, o desespero, uma esperança de que talvez pudesse dar um jeito de morrer. Com todo cuidado, ela projetou uma mensagem...

Mantenha o silêncio, não se mexa, a fim de não alertar ninguém quando despertar. A porta rangeu, mas tudo estava tão quieto que o homem adormecido junto da porta de Orain não se mexeu. Mais além, num cômodo interno, ela sentiu o muro de pedra dos pensamentos de Lyondri Hastur — ele também estava profundamente perturbado. O mais terrível é que Lyondri não é um homem cruel por natureza. Ele nem mesmo assiste o torturador que faz o trabalho brutal. Ele só faz isso pelo poder!

Os pensamentos de Lyondri pareciam vaguear, procurando por um intruso... Romilly rapidamente submergiu sua mente na do gato dormindo junto do fogo e depois de um momento Lyondri Hastur dormiu... O vigia cochilava...

Mesmo que eu o matasse tão depressa que ele não seria capaz de gritar — a mão de Romilly fechou-se no punho da adaga em seu cinto —, ainda assim o grito de morte no pensamento despertaria Lyondri! Mas talvez ele se detivesse para matar Orain com as próprias mãos...

Ela devia. Não havia outro jeito. E foi então que percebeu que o vigia estava mais profundamente adormecido do que ela; com sua imagem tranqüilizante espalhada por toda a cidade, poderia ter conseguido; e sentiu outra mente entrar em contato com a dela. Houve um movimento suave às suas costas e virou-se, alerta, empunhando a adaga...

— Não me mate, Romilly — sussurrou Caryl.

Ele usava uma camisola branca de criança e os cabelos claros estavam desgrenhados, como se tivesse acabado de sair da cama. Adiantou-se e envolveu-a num abraço apertado... mas o encantamento não se reduziu por um instante sequer...

— Oh, Romilly, Romilly, supliquei a meu pai, mas ele não quis me ouvir, não posso suportar o que estão fazendo com Orain... me faz sofrer demais... Você veio buscá-lo?

O sussurro era quase inaudível. Se Lyondri Hastur se remexesse no sono e fizesse contato com a mente do filho, pensaria que o menino estava dominado por um pesadelo.

E Lyondri Hastur fez uma coisa dessas num lugar onde o filho podia saber, sentir...

— Ele disse que isso me deixaria calejado para a necessidade de ser cruel às vezes, quando o bem do reino exige — sussurrou Caryl. — Eu estou... estou enojado... Nunca pensei que meu pai fosse capaz de uma coisa assim...

Ele fez um esforço para conter as lágrimas, sabendo que isso também despertaria o pai. Romilly acenou com a cabeça.

— Ajude-me a manter os cachorros quietos, enquanto eu vou... — Mas ela não podia levar Orain dormindo. Em silêncio, passou pelo vigia adormecido.

— Orain... — ela sussurrou.

E estendeu a mão para tapar sua boca contra um grito involuntário. Lembre-se de que você está sonhando isso...

Orain compreendeu no mesmo instante o que ela estava querendo dizer: se Lyondri despertasse de seu sono leve, pensaria que ele sonhava... Tão silenciosamente quanto Romilly, ele se levantou. Um dos pés sangrava, através de uma tosca bandagem. Romilly não vira o dedo cortado, mas lutou para reprimir seu horror, para manter intenso o encantamento do sono, enquanto Orain atravessava o quarto e metia os pés nas botas, estremecendo.

— Eu não deixaria aquele homem vivo... — ele sussurrou, olhando com implacável ódio para seu carcereiro.

Mas sentiu, tão profundo era o contato, o motivo de Romilly para não matá-lo, e contribuiu com um pensamento irônico:

Quando Lyondri acordar e descobrir que eu escapei enquanto ele dormia, o que fará com o homem será pior do que sua adaga através do coração; por misericórdia, eu deveria matar o homem agora! Mas não sou bastante generoso para isso.

O cheiro no ar informou a Romilly que o amanhecer se aproximava; muito em breve teria de lidar com cachorros despertando por toda a cidade, com os pássaros-sentinelas nas muralhas acordando... E se não acordassem no momento previsto, isso também alertaria seus operadores. Deviam deixar a cidade muito antes. Ela pegou o ombro de Orain. Sua mão também estava envolta por uma tosca bandagem e um pano cobria a orelha cortada, o sangue visível. Afora isso, porém, ele não estava gravemente ferido e seguiu-a sem fazer barulho. Deixaram a casa e Romilly percebeu que Caryl os seguia, silenciosamente, em sua camisola.

— Volte! — ela sussurrou, sacudindo o menino pelo ombro. — Não posso ser responsável...

— Não voltarei! — O tom era determinado, obstinado. — Ele não é mais meu pai. Eu me tornaria pior do que ele se ficasse.

Romilly percebeu que enormes lágrimas escorriam pelas faces do menino, mas ele insistiu:

— Posso ajudá-la a sossegar os guardas.

Ela acenou com a cabeça e fez sinal para que amparasse Orain, que claudicava. Devia agora reduzir a dor dele, manter sob controle o tumulto de seus pensamentos e emoções e... isso mesmo, devia deixar que os pássaros despertassem normalmente, com os gritos normais, em outras partes da cidade, enquanto mantinha os que se encontravam próximos no transe seguro, até que conseguissem de alguma forma escapar.

Alcançaram o portão lateral. Caryl estendeu a mão para a tranca, puxou-a, empurrou o portão. Houve um tremendo rangido da tranca caindo, um barulho de metal e madeira batendo, que se elevou pelo céu; por toda parte, ao que parecia, havia um estrépito partindo das muralhas, mas eles abandonaram toda a cautela e correram, o mais depressa que podiam, atravessando o acampamento e o exército em formação, até a tenda de Carolin... E depois Carolin pegou Orain em seus braços, chorando ruidosamente de alívio e de alegria. Romilly virou-se para Caryl e abraçou-o.

— Estamos salvos! Estamos salvos! Oh, Caryl, nunca conseguiríamos sem você...

Carolin virou-se um pouco e abriu os braços para envolver Romilly e Caryl no mesmo abraço em que mantinha o amigo.

— Escutem! — disse Orain. — O tumulto, eles sabem que escapei...

— Mas nosso exército está aqui para protegê-lo — declarou Carolin calmamente. — Não tornarão a tocar em você, meu irmão, prometo, por nossas vidas. E agora acho que eles terão de se render. Não queimarei a cidade de meu povo e pouparei qualquer homem que se render e me jurar lealdade. Creio que Rakhal e Lyondri encontrarão poucos seguidores esta manhã.

Ele sentiu Orain se encolher quando roçou na bandagem sobre a orelha.

— Meu irmão, deixe-me providenciar curativos para seus ferimentos.

Ele levou-o para o interior da tenda, Maura e Jandria começaram a cuidar dos ferimentos. Enquanto novas bandagens eram colocadas, Carolin sentou, piscando para reprimir as lágrimas.

— Romilly, como podemos recompensá-la?

— Não há necessidade de recompensa. — Agora que tudo acabara, ela tremia de forma incontrolável e ficou agradecida ao sentir o braço de Alderic amparando-a, levando uma taça de vinho a seus lábios. — É suficiente que Lorde Orain saiba agora... — Romilly não sabia o que ia dizer até ouvir as palavras saindo de seus lábios. — ... que mesmo sendo apenas uma moça, não tenho menos coragem ou valor do que qualquer rapaz.

Orain estendeu os braços e envolveu-a num abraço apertado, a bandagem se soltando e o sangue sujando Romilly.

— Minha querida, minha querida... — ele sussurrou, embalando-a como se fosse uma criança. — Não tive a intenção... não podia querê-la assim... mas sempre desejei ser seu amigo... apenas me sentia tão tolo...

Ela sabia que também chorava enquanto o abraçava e beijava seu rosto. Notou que estava no colo de Orain, como uma criança, enquanto ele lhe afagava os cabelos. Ele estendeu a mão livre para Alderic.

— Deram-me a noticia de que você se ofereceu para ficar no meu lugar como refém, meu filho... O que fiz para merecer isso? Nunca fui um pai para você...

— Deu-me a vida, senhor. Devo-lhe isso, pelo menos, já que não teve mais nada de mim em termos de amor e respeito.

— Talvez porque eu não merecesse — murmurou Orain.

Caryl adiantou-se e também abraçou Orain e Romilly. Carolin conseguiu falar, apesar do aperto na garganta:

— Vocês estão todos aqui, sãos e salvos. Isso é suficiente. Caryl, juro que serei um pai para você e será criado com meus próprios filhos. E não matarei Lyondri, se puder evitá-lo. Ele pode não me deixar opção, e não é possível agora confiar em seu juramento de honra; mas se puder, permitirei que ele viva no exílio.

Caryl balbuciou, trêmulo:

— Sei que fará o que for honroso, Tio.

— E agora, se já acabaram com esse festival de amor — interveio Jandria, irritada —, eu gostaria de enfaixar esse homem de novo, a fim de que ele não fique sangrando em cima de nosso desjejum!

Orain sorriu para ela.

— Não estou tão gravemente ferido assim. O homem conhecia seu ofício tão bem quanto qualquer cirurgião do exército. Pelo menos fez um trabalho rápido. Disseram-me, no entanto... — Ele estremeceu subitamente. — Chegou bem a tempo, Romilly.

Ele pegou a mão da jovem com sua mão intacta e acrescentou gentilmente:

— Não posso casar com você, criança. Não está em minha natureza. Mas se Carolin conceder permissão, eu a prometerei a meu filho... — Orain olhou para Alderic. — Já posso perceber que ele está disposto.

— E nada poderia me agradar mais — declarou Ruyven, sorrindo para o amigo.

— Então está acertado — arrematou Orain, sorrindo. Mas Romilly desvencilhou-se, indignada.

— E eu nada tenho a dizer sobre isso? — Ela levou a mão à orelha, de onde arrancara o brinco. — Não estarei livre do meu juramento à Irmandade antes do ano terminar. E também...

Ela fez uma pausa, sorrindo um pouco nervosamente para Ruyven e Alderic.

— Sei agora que meu laran, por melhor que seja, ainda não está devidamente treinado, ou eu poderia ter me saído melhor. Deixei-me abater no campo de batalha, quando Estrela-Sol morreu... Estive perto de morrer com ele, porque não sabia como me manter separada. Se me aceitarem... — Romilly fez outra pausa, olhando de Ruyven para Alderic. — Irei para uma Torre e aprenderei o que é preciso para dominar meu laran, a fim de que ele não me domine. E também preciso fazer as pazes com meu pai e minha madrasta. E depois... — Ela sorriu agora, hesitante, para Alderic. — E depois talvez eu me conheça bastante bem para saber se quero casar com você... ou com qualquer outro.

— Falou como uma Espadachim — comentou Jandria, aprovadora. Mas Romilly não prestou atenção. Alderic suspirou, pegou sua mão e disse suavemente:

— E depois de tudo isso, Romilly, estarei aguardando sua decisão.

Ela cruzou os dedos com os dele, mas apenas por um instante. Não tinha certeza, mas achava que não sentia mais medo. Virou-se para Carolin.

— Milorde, tenho permissão para levar seu parente à tenda das Espadachins e providenciar um culote para ele?

Ela olhou para Caryl, que corou de embaraço e murmurou:

— Por favor, Tio, não posso me apresentar ao exército de camisola.

Carolin soltou uma risada.

— Faça como quiser, mestra falcoeira. Tem sido fiel a mim e às pessoas que eu amo. E depois que cumprir o dever com seu laran, com seus pais e com o homem com quem quiser casar, espero que volte para nós em Hali. — Ele virou-se e pegou a mão de Maura. — Não lhe prometi que teríamos nosso Festival do Solstício do Verão em Hali? E o Solstício será na próxima lua. E se assim desejasse, Dama... eu planejava realizar o casamento da mestra falcoeira ao mesmo tempo que o de sua Rainha.

Ele riu de novo, antes de acrescentar:

— Não sou tão tirano assim. Mas um dia, Romilly, você será mestra falcoeira do rei no poder como foi no exílio.

Ela inclinou a cabeça e disse:

— Eu lhe agradeço, senhor.

Mas sua mente, projetando-se à frente, já procurava a Torre Tramontana.

 

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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