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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA DO GUERREIRO / Margaret Wilkins
A DAMA DO GUERREIRO / Margaret Wilkins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

No enorme salão do castelo do rei em Winchester, lady Anne Delasaine partiu um pouco do pedaço de veado que se encontrava numa bandeja, diante dela, e deu-o ao podengo. O enorme animal de pêlo castanho, cujas costelas tremiam de expectativa, esticou- se para apanhar o saboroso manjar dos dedos de lady Anne. Depois de o engolir, pareceu sorrir, à espera de mais. Ela devolveu-Lhe o sorriso e tirou outro pedaço. Podia desculpar-se ao restante dos cortesãos que faziam parte do banquete por pensarem que, para lady Anne, mitigar o apetite do cão tornava-se um di vertimento agradável que requeria toda a sua atenção feminina. Mas; na realidade, lady Anne ouvia com atenção a conversa dos seus meios-irmãos, sentados ao seu lado.

- É o que te digo, é só uma questão de tempodizia firmemente Damon, o mais velho, numa voz baixa e conspiratória. Os seus olhos castanhos reluziam debaixo das sobrancelhas espessas, que pareciam partidas por causa da proeminência abrupta do nariz. - Henrique deve compreender que só faria bem em dar ouvidos a Leonor e à familia. Devemos fazer parte do conselho.

 

 

 

 

Enquanto dava outro pedaço ao podengo, Anne tentou fazer com que o desagrado e a pena causados pelo tom arrogante e pela ambição desmedida do irmão não transparecessem no seu rosto. No fim de contas, não estava a falar de uma familia nobiliária qualquer, senão da do rei e da rainha de Inglaterra.

O jovem Henrique tinha-se casado recentemente com Leonor de Aquitânia, num desposório político que já estava a causar mais tensões do que aquelas que já tinham sido ultrapassadas. Anne e os seus irmãos eram parentes afastados de Leonor, por parte do seu falecido pai, e Damon tinha tentado de imediato tirar proveito desse vínculo ténue, abrindo caminho por meio de astúcias no ambiente social de Leonor e na corte de Henrique. Inclusive tinha conseguido incluir o resto da familia nesse ambiente, se bem que para proveito próprio.

- Se não compreendem, nós faremos com que eles compreendam - dizia entre dentes Benedict, o irmão mais novo e mais corpulento. Empunhando uma fáca com os seus dedos grossos, levantou-a e cortou de um golpe só a maçã que estava à sua frente, como se fosse uma cabeça caindo sob o movimento do machado. - Toda a gente sabe que os ingleses enlouqueceram.

- Este não é o lugar para tal comentário - rosnou Damon. - Se ainda não reparaste, o salão está cheio de nórmandos mais leais a Henrique do que, ao próprio rei de França.

- Tanto me faz o que eles possam pensar Amanhã, no torneio, iremos mostrar-lhes que somos os melhores.

- Pára de falar dos ingleses - ordenou Damon, fazendo-o calar e obedecer como fazia désde a morte do seu pai, há três anos. Benedict, como de costume, submergiu-se num silêncio carrancudo e o assunto ficou, aparentemente, esquecido. Fingindo que a sua atenção se fixava no cão; Anne não precisava de ver a cara de Damon para imaginar o seu sorriso arrogante, Já o tinha visto sorrir frequentemente daquela maneira; quando castigava os irmãos, pois, desde a morte do pai; Damon governava a família com úma mão de ferro, como antes tinha feito Delasaine:

- Hem, espero ter oportunidade de experimen tar a minha nova espada - balbuciou Benedict passádo um momento. - Talvez se embote, mas antes terei cortado umas quantas cabeças inglesas.

- É bom que não a partas a destruir demasiados elmos. Não estou a fazer conta de pagar a um ferreiro para a arranjar - replicou Damon. - Deverias ter comprado uma menos dispendiosa, se era esse o teu plano.

- E quem comprou um escudo novo, quando o velho ainda servia perfeitamente? - disse Benedict com aspereza.

Anne deixou de os ouvir quando começaram a falar sobre as armas novas e luxuosas que tinham comprado antes de seguirem viagem para Winchester, pois aquele assunto tinha pouca influência na sua vida na corte e no seu possível futuro, assuntos que Damon nunca discutia directamente com ela.

Cerrou os dentes, pois conhecia bem as razões do irmão: ela era apenas uma mulher, de maneira que tinha de fazer tudo o que o irmão lhe mandava fazer. No ano seguinte, por esta altura, queria já estar casada com um nobre qualquer escolhido por Damon e ter um filho. O seu casamento serviria unicamente para aumentar o poder e a influência de Damon e seria o cumprimento que, segundo ele, era o único propósito da vida dela. Esta esperava tristemente aquele destino desde que, ao fazer doze anos, Damon se apercebeu de que a sua meia-irmã, aquela rapariga magra, desajeitada e de olhos grandes, se transformaria afinal numa beleza. Desde então, vigiava-a com a mesma ferocidade com que guardava os seus bens mais valiosos, e tratava-a da mesma maneira: como se não tivesse vontade própria, coração ou capacidade de compreender e julgar.

Dando um suspiro de cansaço, Anne deixou que o seu olhar vagueasse pelo enorme salão magnificamente decorado para comemorar o dia de São Edmundo, o Confessor; de quem o rei Henrique fez o seu santo padroeiro. Henrique celebrava sempre a sua festa, a treze de Outubro, com um grande banquete.

Lindas toalhas de linho e bandejas de prata cobriam as mesas. As tochas ardiam, encostadas aos castiçais das paredes, e as chamas vacilantes das velas de cera de abelha aumentavam a iluminação. Grandes bandeiras estavam penduradas, suspensas no tecto, e os músicos da galeria tocavam suavemente, apesar de a música ser quase sufocada pelas vozes e os risos dos convidados de Henrique.

Anne observou as damas elegantes com os seus vestidos e os seus penteados magníficos, os homens ricamente adornados de cetim, de veludo e de peles e dispôs-se a desfrutar da música dos trovadores e dos saborosos manjares preparados de formas novas, surpreendentes e variadas.

Do outro lado do salão, um grupo de jovens cavaleiros alegres e irrequietos, e sem dúvida bêbedos, divertia-se à grande engolindo a comida do rei, bebendo o seu vinho e desfrutando das atenções das jovens damas que pareciam com toda a certeza cativadas por eles.

Não era de estranhar, visto serem bonitos e de constituição vigorosa. Os dois de cabelo preto e encaracolado eram os mais bonitos. Possivelmente eram irmãos, a julgar pela cor da pele e pela parecença do nariz e da boca. Os outros três, com as queixadas fortes, os rasgos finos e o cabelo castanho em tons que variavam entre o louro escuro e o castanho intenso, também eram, sem dúvida, da familia. Eram tão largos de costas e tão robustos como os outros dois, mas a sua beleza era menos convencional.

O mais alto parecia ser o mais velho, pois havia na sua postura algo de distante e imponente que faltava aos outros. O mais novo do grupo parecia ter poucos anos a mais do que o irmão mais novo de Anne, Piers; que tinha feito catorze anos.

Todos eles pareciam estar satisfeitos consigo mesmos. O que sem dúvida era normal, mimados como eram os filhos da nobreza.

Anne sentiu no peito uma pontada de amargura. O que sabiam eles sobre privações e castigos? De jejuar à força ou de sofrer com o açoite de um junco por algum erro insignificante? Provavelmente nada, e muito menos o saberiam aquelas raparigas estúpidas e risonhas que de maneira tão óbvia tentavam chamar a sua atenção.

A amargura e a inveja dissolveram-se lentamente, enquanto dava outro pedaço de veado ao cão. Aquelas raparigas alegres seriam, sem dúvida, vendidas em matrimónio, o mesmo que lhe aconteceria a ela. Podia ela desaprová-las, caso procurassem inofensivamente agradar um pouco aos homens quando tinham oportunidade? Por acaso não o faria ela também, se não fosse pela vigilância constante dos irmãos? Se acreditasse que não corria nenhum risco, talvez fosse a mais buliçosa de todas, sabendo que tinha pouco tempo para se permitir semelhante ligeireza.

- Ficaste surda, Anne? - pergúntou-lhe asperamente Damon ao ouvido.

Ela ergueu os olhos e viu que ele a fixava furiosamente, como fazia muitas vezes. Sabia, já há muito tempo, que a melhor maneira de se relacionar com os irmãos agressivos era comportar-se com a maior placidez possível. e esmurrar a sua almofada mais tarde, a sós.

- O que se passa, Damon?

- Ali está lord Renfrew - Damon assinalou com a cabeça um homem robusto e de idade avançada, ataviado com uma túnica larga de veludo vermelho que lhe dava um aspecto de enorme gusano vermelho. - É muito rico, e a sua terceira esposa faleceu em São Miguel. Se olhar para ti, dá-lhe um sorriso. Se te pedir para dançares com ele, dança. Entendido?

- Sim, Damon, entendido.

Ele semicerrou os olhos como se não pudesse acreditar nela.

Na realidade, Anne não tinha a menor intenção de desobedecer. Se lord Renfrew olhasse para ela, esboçar-lhe-ia um sorriso muito frio, muito desagradável, que deixaria claro que preferia antes comer estrume do que falar com ele. Se lhe pedisse para dançar, aceitaria, pisar-lhe-ia imediatamente os pés e faria como se não ouvisse nada do que ele dizia. Embora, por outro lado, talvez fosse preferível evitar por completo essa situação, caso o nobre lord fizesse queixa dela a Damon.

Levantou-se, levando uma mão à cabeça.

- Infelizmente, Damon, dói- me a cabeça. Penso que deveria retirar-me - Benedict e Damon olharam para ela com desconfiança. - Quereis que mostre a minha melhor cara, não é? - perguntou-Lhes. - Isso não acontecerá, se ficar. Além do mais, não credes que seja boa ideia dotar-me de um certo mistério? Marquei a minha presença e os meus possíveis pretendentes já me viram. Agora, permiti que os deixe intrigados. Certamente, deveis permanecer aqui. Pode ser que ainda tenham oportunidade de relembrar à rainha Leonor de que somos parentes.

Anne deixou escapar um suspiro de alívio quando, após um momento de reflexão, Damon assentiu, dando-lhe permissão para se retirar.

- Vai directamente para os teus aposentos - ordenou com o sobrolho franzido. - E não fales com ninguém.

- Nem sequer com lord Renfrew?

Damon lançou-lhe um olhar ressentido.

- Se se dirigir a ti, podes falar com ele. Com mais ninguém.

Anne esteve prestes a perguntar-lhe o que devia fazer se fosse o rei que se dirigisse a ela, mas por fim pensou que seria mais sensato ir embora antes que Damon e Benedict decidissem acompanhá-la, perspectiva tão prazenteira como ter lobos matreiros e ferozes como gúardiães.

Depois de abandonar rapidamente o salão, abrandou o passo e percorreu lentamente o corredor iluminado pelas tochas cujo fumo escapava pelas janelas compridas e estreitas, abertas à perturbação atmosférica. Cruzou os braços sobre o peito e estremeceu, apesar do vestido espesso com bro cado de veludo que trazia, pois a noite de Outubro era fria. Alegrar-se- ia de chegar aos seus aposentos, aquecidos por uma braseira cheia de brasas reluzentes. Meter-se-ia na cama e lembraria tudo o que tinha visto antes de desaparecer no sono.

Pensaria nos esplêndidos vestidos e nos magníficos tecidos. Imaginaria ser uma daquelas raparigas alegres, mas, no seu sonho, trocaria palavras tão engenhosas com os jovens cavaleiros que os deixaria boquiabertos.

Perguntava-se quem eram aqueles jovens e de onde provinham. Seriam ingleses ou franceses, ou talvez de outra nacionalidade? Seriam filhos de grandes senhores ou de nobres de pouca monta? Seria um deles casado? Quem era o que parecia o mais maduro de todos?

De repente, ouviu um ruído atrás dela e virou-se para ver o que era. Um rato, quem sabe, ou o vento.

Entre as sombras, um homem permanecia de pé.

Anne assustou-se, mas então lembrou-se que estava no castelo do rei, e que havia muitos soldados de guarda. Só tinha de gritar e ouvi-la-iam.

Como bem sabiam os seus meios-irmãos, ela era capaz de gritar muito alto.

O homem saiu de entre as sombras para a luz vacilante das tochas. Era o mais velho daquele grupo alegre que estava no salão, o de cabelo castanho-escuro. O mais distante e soberbo. De pé, o seu aspecto era ainda mais esplêndido do que sentado. Tinha umas pernas compridas e musculadas que Anne não se atrevia a ver. O gibão negro, sem adornos, chegava-lhe até metade da coxa e cobria os seus largos ombros. A camisa branca que vestia debaixo fazia com que o seu tom de pele moreno parecesse ainda mais viril.

Mas o mais raro e misterioso nele eram os olhos: de cor cinzenta e emoldurados por pestanas negras-, produziam um contraste de efeito tão estranho com a sua pele bronzeada que pareciam cintilar à luz das tochas. O seu nariz era particularmente delicado e os seus lábios, tão carnudos que Anne se perguntou como seria beijá-los. Ideia audaciosa e caprichosa.

Os restantes cavaleiros que estavam no salão de banquetes não podiam comparar-se com ele. Os jovens de cabelo encaracolado eram uns querubins, mas aquele homem parecia um arcanjo: São Miguel, talvez. O guerreiro de Deus.

Ele aproximou-se um pouco mais e o coração de Anne começou a disparar com mais força, até ao ponto em que a sua palpitação Lhe aturdiu os ouvidos. Aquela situação era nova para ela, e excitante. Mas, sobretudo, aquele encontro era impróprio.

Não obstante, os seus meios-irmãos estavam no salão, sem dúvida discutindo por uma razão qualquer. Piers estava nos seus aposentos, zangado por Damon o ter proibido de assistir ao banquete como castigo por não ter conseguido dar brilho suficiente à armadura. Anne era livre da única maneira que podia ser, se bem que por um momento.

Uma emoção estranha, forte e perigosa atravessou-lhe o corpo ao imaginar um encontro clandestino com aquele homem. Estremeceu ao ver na sua imaginação desbocada as cenas que podiam ocorrer num corredor deserto: um abraço, um beijo apaixonado, gemidos, suspiros, as suas pernas despidas à medida que uma mão forte e musculada lhe levantava a saia.

Corou, acalorada de vergonha pelas vívidas imagens da sua fantasia, enquanto ele continuava a olhar fixamente para ela, sem arrogância nem lascívia, como se fosse incapaz de desviar o olhar.

Nunca ninguém tinha olhado assim para ela, nem olhar algum a fez sentir-se tão amada e tão cheia de medo ao mesmo tempo. Mas não temia que aquele homem pudesse fazer-lhe mal, pois esse medo já o conhecia muito bem. Em vez disso, não conseguia reconhecer o sentimento impetuoso que brotava dentro dela.

- Quem sois? - perguntou, tentando aparentar tranquilidade.

- Ia fazer-vos a mesma pergunta. Rogo-vos que me digais o nome da mulher mais bonita da corte - disse o desconhecido numa voz suave e profunda, muito diferente das vozes ásperas dos seus irmãos. Quando falavam, Damon e Benedict pareciam ridículos. A voz daquele homem, pelo contrário, era como a de um majestoso veado, se os veados falassem.

O seu olhar parecia intensificar-se, cheio de curiosidade, e Anne compreendeu por fim o que sentia: desejo. Um desejo que se propagava dentro dela como os raios do sol quando as nuvens desapareciam.

A razão aconselhava-a a ter cautela.

Por muito atraente que aquele homem fosse, ou por muito carinho que ela sentisse pelas suas atenções, ela era uma dama e não uma simples camponesa, nem sequer uma daquelas criaturas versáteis do salão do rei. Aquele jovem não tinha o direito de a seguir nem de falar com ela, e devia sabê-lo tão bem quanto ela. Se pensava que não se iria importar, ou talvez até que receberia de bom grado as suas insinuações, que opinião poderia ele ter dela?

Talvez devesse fugir... mas fazê-lo seria um acto de cobardia, e ela não era nenhuma cobarde.

De modo que, em vez de fugir, Anne ergueu os ombros e disse altivamente:

- Quem sois vós para me seguir de maneira tão insolente e perguntar- me o meu nome?

Oh, Deus", pensou Reece ao sentir que o seu rosto aquecia. Oxalá tivesse ficado no salão e ignorado o impulso, estranho nele, que o tinha levado a seguir aquela beleza loura. Devia ir embora, mas voltar atrás naquele momento seria fugir como um cobarde. E embora fosse certamente tímido com as mulheres, não era cobarde. Não obstante, sabia bem que lhe faltava o encanto, a eloquência e o físico atraente dos seus amigos. Contentava-se sempre em ficar de parte, esperando pacientemente, temendo abrir a boca para não parecer um idiota. Até a esta noite, quando viu aquela mulher serena e loura do outro lado do salão, com um vestido com um brocado verde irisado que resplandecia com primor à luz das velas. Não podia estar casada, pois tinha o cabelo comprido e dourado solto, apanhado em duas tranças com as pontas atadas com bronze. O seu cabelo reluzia à luz como uma auréola, e ela parecia-se com um anjo, tão serena e distinta das outras jovens da corte. De forma que, levado por um im pulso louco, Reece seguira-a para fora do salão.

A sorte estava lançada, pensou, havia de chegar até ao fim.

Mas, por favor, meu Deus", rezou fervorosamente, que não repare que estou corado como um menino".

- Desculpai-me, senhora - disse, arrependido, inclinando a cabeça. - Não pretendia ofender-vos.

Ficou surpreendido pelo facto de ela não ter dado meia volta de imediato e não se ter afastado, e porque os seus lábios perfeitos deram um leve sorriso.

Era como acreditar que a lança que carregava estava partida e descobrir, pelo contrário, que continuava inteira.

- Embora pareçais um impertinente - disse ela - não me haveis ofendido.

- No entanto, dir-me-eis o vosso nome, apesar da minha impertinência?

Ela ergueu inquisitoriamente as sobrancelhas bem desenhadas.

- Só quereis saber o meu nome?

Na realidade, queria saber tudo sobre ela, mas já tinha conseguido mais do que esperava, e não se atrevia a esperar nada mais.

- Talvez isto seja tudo, a não ser que descubra que estais casada, ou prometida.

Ela observou-o, baixando as sobrancelhas, e encolheu-se por dentro. Obviamente, as suas palavras não tinham sido prudentes.

- Não estou casada, mas este não é o momento nem o lugar para fazer as apresentações, senhor.

Aproximou-se um pouco mais, como se fosse arrastado até ela por um fio invisível. Talvez existisse o tal fio, pois isto explicaria a sensação de tensão que notava no peito.

Como que tocado por inspiração divina, recordou algo que Blaidd Morgan tinha dito a uma mulher numa certa ocasião. Blaidd atraía as mulheres como as flores recém-abertas atraíam as abelhas.

- Por favor, não vos compadecereis de mim e dir-me-eis o vosso nome? Se não o fizerdes, arrisco-me a cair ferido no torneio de amanhã, pois passarei a noite em branco perguntando-me por vós e estarei demasiado cansado para lutar.

As sobrancelhas dela, um pouco mais escuras do que o cabelo, ergueram-se de novo e os seus olhos verdes, que já brilhavam como esmeraldas, pareceram cintilar ainda mais e, segundo lhe parecia, com júbilo.

- Então, se não vos disser o meu nome, e se por acaso vos ferirdes amanhã, a culpa será minha? - ele viu com desalento que o seu olhar bri lhante vacilava e que franzia a testa, entristecendo o seu rosto. - Não quero tamanha responsabilidade. Garanto-lhe, senhor cavaleiro, que já tenho peso suficiente aos ombros.

O tom triste da sua voz tocou o coração de Reece.

- Perdoai-me, minha senhora, se de alguma forma aumento as vossas tristezas. Não queria compendiar-me às preocupações que já tendes.

Os belos olhos de Anne aumentaram, como se a resposta a tivesse apanhado desprevenida.

- É raro o homem que se preocupe com as tribulações de uma desconhecida.

Reece corou novamente, pois o tom de voz daquela mulher estava cheio de assombro e admiração.

Sem demora, aquele fulgor maravilhoso parecia voltar a iluminá-la por dentro.

- Além do mais, vós também não me haveis dito o vosso nome - levantou os ombros e proferiu um desafio encantador. - Se me disserdes o vosso nome primeiro, humilde cavaleiro, dir-vos-ei o meu.

O coração de Reece começou a palpitar, como palpitava quando se preparava para avançar com a lança, e uma nova esperança pareceu despertar a vida nele. Ao fim e ao cabo, talvez ela não o considerasse completamente louco.

- O meu nome é sir.

- Anne! - bramou de repente a voz de um homem, ecoando pelas paredes do corredor.

A bela desconhecida ficou rígida, como se acabassem de a surpreender a perpetrar um crime

monstruoso.

Que o céu o proteja: estava tão empenhado em saber quem ela era que não tinha reparado no que os outros podiam pensar se os surpreendessem ali juntos. Antes de poder falar, ela disse:

- Ide! - ordenou-lhe como se fosse um soldado raso. Indicou a porta do outro lado do corredor. Deixai-me, que enfrento o Damon.

Quem, pelo amor de Deus, era Damon? E que direitos tinha ele sobre ela? Era irmão? Primo? O seu prometido?

Esperava fervorosamente que não fosse o último.

Fosse quem fosse, aquele homem de cabelo preto precipitou-se até eles, seguido de outro homem também moreno, no entanto mais corpulento. Era evidente que não podia permitir que aquela jovem cativante enfrentasse aqueles homens sozinha.

Se alguém tinha culpa, não era ela. Ela não o tinha encorajado, nem o tinha atraído até ali, e ele deixaria isso bem claro a estes homens.

Quando estavam mais perto, viu que eram os homens que estavam sentados ao pé dela no salão do rei. Visto que ela não lhes prestava atenção, e como era loura enquanto eles eram morenos, Reece tinha pensado que não eram parentes, nem estavam unidos por qualquer laço afectivo.

Evidentemente, tinha-se enganado, e não o teria feito se Blaidd não o tivesse distraído justamente antes de Anne abandonar o salão do banquete. Talvez a tivesse visto falar com eles. Infelizmente, Blaidd começou a repreendê-lo por olhar fixamente para aquela mulher. Reece tinha virado a cabeça para dizer ao amigo galês para se calar, uma vez que ele próprio tinha fama de se distrair continuamente com as mulheres. Se Anne tinha falado com aqueles dois homens, ele não tinha visto.

A mulher, Anne, como agora sabia que se chamava, empurrou-o como ninguém o tinha feito antes.

- Será melhor que deixeis que eu me entenda com eles, senhor cavaleiro.

- Não o farei - disse ele com firmeza. - Fui eu e só eu quem se comportou impropriamente.

Enfurecidos, os dois homens detiveram-se bruscamente em frente dele e o hálito empapado em vinho repugnou-o. Sem dúvida, a sua reacção desproporcionada diante de uma impropriedade tão insignificante estava sustentada pelo vinho.

Reece tomou a ofensiva, enquanto eles tentavam recuperar o fôlego.

- Quem sois?

- Somos os seus irmãos - resmungou o mais corpulento, cerrando as suas mãos carnosas. Quem diabo sois vós?

- Sei quem é - declarou o mais alto, curvando a boca com indolência. - Esse é o filho bastardo. Este que estava a importunar Anne.

Reece sentiu um arrebatamento de cólera a atravessar-lhe o corpo. Os olhos do gordo aumentaram e um brilho estranho apareceu nos seus olhos. Então, ele também tinha ouvido falar de Reece Fitzroy, ou do seu pai, o homem de quem se dizia ser o melhor mestre de cavaleiros de Inglaterra, e de quem de facto Reece era filho ilegítimo.

- Sir Reece Fitzroy - disse asperamente, sem tentar dissimular o desprezo que sentia. - Com quem tenho a honra de falar?

O alto parecia gabar-se.

- Sou sir Damon Delasaine de Montbleu, este é o meu irmão Benedict e esta dama que estivestes a incomodar é a minha irmã.

Reece sentiu-se como uma gaita-de-foles com uma fenda pela qual se escapava o ar. Tinha ouvido falar dos famosos Delasaine. Eram os pri meiros na lista das familias nobiliárias que úm homem com ambições honrosas devia evitar. Mal podia acreditar que aquela mulher formosa e valente, tão diferente de qualquer outra que tivesse conhecido, fosse irmã deles.

- Meia-irmã - declarou Anne, como se quisesse deixar clara aquela distinção de uma vez por todas. Depois, dirigiu-se a Damon Delasaine. Não estava a incomodar-me, Damon. Estávamos apenas a conversar.

- Cala-te e vai-te embora, Anne - resmungou ele em resposta, - antes que decida dar-te a mesma sova que lhe vamos dar.

Reece sentiu outro arrebatamento de fúria, misturado com indignação e rancor. Deu um passo em frente e, talvez forçado pela sua expressão agreste, Damon voltou para trás.

- Ouvi falar dos Delasaine, e temo que tudo quanto tenho ouvido seja verdade - rezingou. Sois um cobarde repugnante, pois só um cobarde bateria numa mulher. - Enquanto Damon olhava incrédulo, Reece virou-se para a Anne. - Obrigado, minha senhora, por me defender, mas sei travar as minhas próprias batalhas. Ide, como vos dizem, e deixai que eu resolvo isto.

- Sim, vai-te embora - balbuciou Benedict, empurrando-a bruscamente.

Ao ver isso, Reece perdeu a cabeça. Agarrou Benedict pelo braço e puxou-o com tanta força que esteve a ponto de o desmontar.

- Deixai-a em paz, ou juro por Deus que vos arrependereis!

Benedict tropeçou, quando Reece o soltou, mas recuperou-se prontamente e os seus olhos brilharam com malícia e regozijo, com uma expressão própria de um homem que se diverte vociferando ou batendo em mulheres.

- Ah sim?

Reece assentiu.

- Oh, sim, acreditai em mim.

Benedict esticou os braços e fez gestos de que se ia aproximar.

- Então vamos, tentai, canalha.

- Reece, atrás de ti! - gritou Anne.

Antes de se poder virar, Reece sentiu uma dor aguda e inesperada nas costas, ali onde a adaga de Damon deslizava pelas suas costelas. Caiu ajoelhado e o punho pesado de Benedict bateu na sua cara, enquanto Anne deixava escapar um grito intimidante.

 

Vozes. Sussurros. Palavras murmuradas na escuridão.

Reece sentia uma dor na cabeça, como se tivesse um saco de vinte libras de cereais em cima dela. No flanco sentia uma dor aguda, como se lhe tivessem cravado um ferro incandescente.

Que diabos se passava...

Então surgiram as memórias, difusas ao início, tornando-se cada vez mais claras. Lady Anne. Os irmãos. Não, meios-irmãos. Apesar de apenas ter falado com lady Anne, Damon Delasaine tinha-o atacado pelas costas, da maneira mais perversa e cobarde.

Delasáine pagaria por isso e, se tivesse ousado magoar a irmã, pagaria ainda mais caro. Reece queria levantar-se e investigar o que tinha acontecido e onde raios estava.

Abriu os olhos com dificuldade. O tecto trabalhado e as paredes de pedra pareciam-lhe familiares.

Estava no castelo real, nos aposentos que partilhava com os irmãos, e não havia muita luz. As suas pálpebras hesitaram e voltaram a fechar-se.

- Reece?

Era a voz do irmão, Gervais.

- Está acordado.

Aquele era o irmão mais novo, Trevelyan.

- Não, não está - disse Gervais, tentando sussurrar, mas sem sucesso. - Apenas gemeu a sonhar.

Que horas seriam? perguntou-se Reece ao ten tar humedecer os lábios ressequidos para conseguir falar. Mexeu-se para se levantar e a dor tres passou-o de novo, arrancando outro gemido à sua garganta seca.

- É como te digo, está acordado. Devíamos chamar o médico - murmurou Trev, cuja voz parecia tensa, e não só pelo esforço de baixar o tom, já de si agudo. - Disse que o avisássemos quando ele acordasse.

- Primeiro temos de ter a certeza - replicou Gervais, sempre cauteloso. - Não quero que atravesses o castelo a correr para nada.

Reece abriu novamente os olhos e levou a mão ao flanco. Tinha o peito nu, envolto em pano. Era sem dúvida uma ligadura, e na parte onde a dor era mais intensa parecia estar húmida. Olhou para baixo e, ao tentar levantar-se, viu o sangue.

Gervais empurrou-o suavemente para que se voltasse a deitar.

- Fica quieto, irmão - ordenou, tentando manter a voz baixa. A sua voz era tão firme como a de um general, mas parecia carregada de alívio. Perdeste muito sangue, e os canalhas também te bateram na cara.

Sim, lembrava-se disso. Sentiu uma pontada de raiva, acompanhada de um sentimento de humilhação. Devia ter sido mais cauteloso com Damon De lasaine: Assim tê-los-ia vencido aos dois, mesmo sendo dois contra um. Isso não interessava.

- Consegues ver? - perguntou Gervais. Reece assentiu e tentou esquecer por momentos a raiva e a vergonha.

- O que aconteceu a lady Anne depois de eu ter sido atacado?

Gervais não respondeu de imediato. Deu a volta à cama, inclinou-se para a frente e cobriu suavemente o olho esquerdo de Reece com a palma da mão.

- E agora?

- Sim. E lady Anne...

- Abençoado seja Deus! - exclamou Gervais, suspirando ao afastar-se para se sentar no catre. Receávamos que te tivessem deixado cego do olho direito. Como está a tua cabeça?

- Dói-me - Reece estendeu a mão e agarrou Gervais pelo braço. Aquele movimento causou-lhe uma súbita pontada de dor no flanco que o fez gemer, mas mesmo assim perguntou com firmeza: - O que aconteceu a lady Anne?

- Está fechada nos aposentos, segundo os irmãos - disse Trev, sentado aos pés da cama, lembrando a Reece que estava ali.

Reece não gostou do que ouviu. Ou lady Anne evitava sair dos aposentos por se sentir envergonhada, ou tinha outras razões para estar escondida. Como o corpo magoado, por exemplo.

Se os irmãos dela á tivessem magoado de alguma forma, iriam arrepender-se daquele dia, assim que a ferida no flanco estivesse suficientemente sarada para que ele os derrotasse em combate, juntos ou à vez. Já conhecia o carácter traiçoeiro deles.

- Maldito sejas, Reece, larga-me. Vais partir-me o braço.

- Desculpa - murmurou e, soltando Gervais, deitou-se de novo, sentindo a dor a dissipar-se. Foi há quanto tempo?

- Que te atacaram? - perguntou Gervais. Reece assentiu. - Estamos a meio da manhã do dia seguinte.

- Os malditos Delasaine apunhalaram-te pelas costas - disse Trev, e a sua voz ecoou muito alto no silêncio do quarto.

Não foi bem pelas costas, pensou Reece, embora isso não tornasse menos cobarde a acção de Damon.

- Quando os guardas do rei chegaram, já estavas inconsciente - continuou Trev.

Gervais olhou para Reece com compaixão, como se ele fosse uma criança doente.

- Ainda bem que o punhal deslizou pelo flanco. Não tens nada de grave. Apenas necessitas de tempo e repouso para ficares curado. Não voltes a pensar no torneio. Haverá outros.

Reece deixou escapar outro gemido, desta vez de raiva e desilusão. Tinha planeado distinguir-se no torneio do rei e já não o poderia fazer, graças aos Delasaine.

- E tu? - perguntou a Gervais, que também ia competir.

O irmão encolheu os ombros.

- Como te disse, haverá outros. Queria ficar contigo.

De modo que tinham arrancado a ambos a oportunidade de alcançar honra e glória.

- E foi uma sorte ele ter ficado contigo, para desmentir os boatos que esses Delasaine começaram a espalhar esta manhã - afirmou Trev. - Não vais acreditar no que esses nojentos andam a dizer.

- Deixa isso, Trev, até ele estar melhor - ordenou Gervais.

Reece estava dorido, mas isso não o impedia de perceber a preocupação que o semblante de Gervais transmitia.

- O quê? - perguntou, tentando levantar-se novamente. -O que dizem?

- Não tens de te preocupar com nada, só em curar-te - ordenou Gervais, empurrando-o outra vez para que se deitasse, com um pouco mais de brusquidão. - Nós vamos haver-nos com esses canalhas.

Os Delasaine eram um problema dele, não de Gervais, e certamente muito menos de Trevelyan.

- Deixa-os em paz.

- Mas, Reece...

- Até que esteja recuperado.

Um olhar de compreensão transpareceu nos ólhos preocupados de Gervais.

- Queres tomar a vingança nas tuas próprias mãos, é isso?

Reece concordou, apesar de vingança, não ser o termo mais adequado para o que planeava fazer. Lição parecia uma palavra bem mais apropriada. A fúria dos Delasaine talvez fosse justificada, mas o ataque não, nem a brutalidade. Ele iria ensinar-lhes o castigo apropriado para tal crime, um por um. E se tivessem tocado num só fio de cabelo de lady Anne, ensinar-lhes-ia outra lição.

Trev exclamou de repente:

- Por todos os santos, . tenho de chamar o médico! Não esperou que os irmãos mais velhos lhe dessem autorização: saiu a correr do quarto como um coelho assustado.

Apesar dos esforços de Gervais para que permanecesse deitado e da dor de cabeça, Reece con seguiu finalmente levantar-se.

- Agora diz-me, que andam ao certo os Delasaine a espalhar por aí?

Gervais franziu o sobrolho e, ao olhar para ele, Reece lembrou-se do rosto do pai quando algo não lhe agradava.

- Preferia que não falássemos sobre isto até estares recuperado.

- Conta-me.

- Dizem que estavas... a ameaçar. a irmã deles.

- A ameaçá-la?

Aquilo já era suficientemente mau: Mas, por azar, Reece percebeu pelo tom de Gervais Que ainda havia mais. Gervais encolheu os ombros, como se o que fosse dizer não tivesse importância.

- A atacá-la.

- Atacá-la?

Reece sentiu o coração acelerar. Aquela era

uma acusação muito grave. Uma acusação que justificava o seu castigo" e, por conseguinte, os isentava de culpa. Ninguém podia agredir um ca valeiro sem uma boa razão. Uma simples impertinência não era motivo suficiente: O semblante de Gervais carregava uma expressão resignada que confirmava as suspeitas de Reece.

- Sim, é isso que dizem para justificar o Que fIzeram. Mas ninguém acredita...

- E o rei? - interrompeu Reece, referindo o único homem cuja opinião realmente interessava naquele assunto e que tinha poder para absolver, castigar ou acusar, conforme o seu critério. - De certeza que Henrique não acreditará nisso.

- Não sabemos qual é a opinião de Henrique Gervais aclarou a garganta. - Infelizmente, os Delasaine são parentes de Leonor. Distantes, mas parentes.

ì Aquelas notícias não eram boas. A rainha Leonor talvez protegesse os Delasaine devido ao seu vínculo familiar.

Reece apoiou-se na parede que estava atrás do catre e fechou novamente os olhos. Tudo aquilo estava errado. Era terrível. Por causa de um só acto impulsivo, talvez tivesse posto em perigo todo o seu futuro.

Durante toda a vida, Reece tinha tido um sonho: pertencer à corte do rei, ao seu círculo privado, ser um dos conselheiros de confiança. Podia representar a baixa nobreza, cujos antepassados não provinham das famílias nobres da Normandia, e provinham sim de origens mais humildes, ganhando os seus títulos devido à habilidade ou inteligência, não só por nascimento.

Mas ao ganhar a inimizade dos parentes da rainha, talvez tivesse destruído todas as suas oportunidades.

E o pior de tudo era que se se tivesse dado ao trabalho de investigar quem era aquela beleza loura, ter-se-ia mantido afastado dela e dos irmãos.

- Os franceses não reclamaram das acusações dos Delasaine, decerto devido à sua relação com Leonor. Mas todos os outros se recusam a acreditar neles. Já houve várias discussões, e acho que o Blaidd Morgan já se meteu em três rixas.

- Oh, meu Deus!

- Pois, Reece, isto não tem bom aspecto... mas foram eles que começaram.

- Fui eu que comecei - murmurou Reece. Não devia tê-la seguido.

- Não fizeste mal nenhum.

- Claro que fiz.

Gervais observou-o atentamente, como se tentasse ler os seus pensamentos.

- Nem parece teu falar com uma mulher que não te foi apresentada, nem com uma que te foi apresentada, Reece - passou a mão pelo cabelo, que Lhe dava pelos ombros. - Por Deus, irmão, não é próprio de ti falar com mulher alguma, e muito menos com uma tão bela como esta. O que te passou pela cabeça?

- Oxalá pudesse dizer que foi do vinho do reimurmurou Reece, corando ao lembrar-se dos palavrões de Blaidd. - Não sei - disse, por fim. En colheu os ombros, fazendo de imediato uma expressão de dor.

- Pelo menos deves dizer-nos onde ias. Reece alçou uma sobrancelha.

- Para que gozem mais comigo? - Gervais não tentou convencê-lo. - Não deveria ter ido e ponto final.

- Bem, já não dá para voltar atrás. Mas o nosso pai não vai achar piada nenhuma. Vai ter um ataque quando vir a tua cara e souber que te apunha laram.

Gervais era um mestre das suposições. O pai ia pensar que ele tinha perdido o juízo e agido como um louco. Quanto às feridas, a mãe ia querer examiná-lo da cabeça aos pés e começaria a andar de volta dele como se ele tivesse seis anos.

Tocou suavemente na cara inchada, questionando-se que aspecto teria.

- Estou assim tão mal?

- O inchaço vai demorar a desaparecer, e tens um derrame no olho, está vermelho como o de um demónio. O médico diz que recuperarás as forças em breve, uma vez que és... - Gervais adoptou um ar pomposo e ilustre, - um jovem saudável na flor da idade - voltou a assumir a sua pose normal. Os nossos pais vão ficar contentes por não teres morrido, claro, mas acho que quando lhes contarmos o que aconteceu, será melhor não mencionar Anne Delasaine.

- E como poderemos fazer isso?

- O que interessa é que te atacaram brutalmente por causa de algo insignificante.

Reece abanou a cabeça.

- Cometi um erro, e não faz sentido mentir a respeito disso.

- Não estou a dizer para mentirmos - replicou Gervais, ofendido. - Apenas estou a sugerir que deixemos a dama fora disto por agora.

- E que razão lhes vou dar para explicar a sova? A menos que planeies amordaçar toda a corte ou fazê-los jurar que vão guardar segredo, vão acabar por saber, de qualquer maneira. Será melhor que fiquem a saber por mim.

Gervais franziu o sobrolho e observou a expressão decidida do irmão.

- Não pensas dizer-lhes que mereceste, ou coisa parecida?

- Os Delasaine erraram ao atacar-me como fizeram, mas eu errei ao seguir lady Anne e falar-lhe a sós. Direi isso a quem me perguntar ou falar do ocorrido.

- Maldito seja o teu honrado orgulho - murmurou Gervais, batendo no cobertor de Reece. Devia ter imaginado que era inútil sugerir-te que não dissesses toda a verdade. No final, o pai vai fazer com que se arrependam, digam o que disserem.

Reece ficou rígido.

- Esse assunto é meu, Gervais. Sou eu que lhes vou ensinar uma lição.

Os olhos castanhos de Gervais cintilaram com a aprovação de um guerreiro.

- Imaginei que dissesses isso.

- Então deixarás que trate disto como achar oportuno?

Gervais levantou-se e fez uma vénia.

- Farei como ordenar, meu senhor.

- Ainda bem - murmurou Reece, sabendo que podia confiar na palavra de Gervais. - Assegura-te de que Trev também o entende.

- Farei isso, irmão, farei isso.

De pé junto à janela do aposento que lhe tinha sido destinado durante a estadia da familia no castelo real de Winchester, Anne contemplava o pôr-do-sol. Tinha passado uma noite e um dia inteiro desde o seu encontro com sir Reece Fitzroy I no corredor.

Fechando os olhos, voltou a ver o traiçoeiro golpe de Damon. Ela agarrou-o pelo braço e tentou afastá-lo, mas Damon desembaraçou-se dela como um cão se desembaraçaria de um coelho. Felizmente, nessa altura chegaram os guardas do rei.

Damon, ajudado por Benedict, deu-lhes uma explicação enquanto outros soldados levavam sir Reece inconsciente. Ao ver que Reece se encontrava a salvo e que os irmãos estavam ocupados, escapuliu-se para os aposentos sem ninguém a ver. Desde então não voltara a ver Damon nem Benedict, mas alguém tinha metido a chave na fechadura da porta dos seus aposentos nessa noite, trancando-a.

As horas tinham passado lentamente enquanto Anne esperava que as feridas de Reece não pusessem a vida dele em perigo. Tinha perdido sangue, a mancha na sua roupa provava isso, e uma contusão começava a formar-se por baixo do olho da última vez que o tinha visto.

Anne também tinha relembrado outras coisas. Sobretudo a emoção. Nunca se tinha sentido assim em toda a sua vida, e provavelmente nunca mais voltaria a fazê-lo. Duvidava que o marido que o irmão tinha escolhido para ela conseguisse produzir-lhe um só instante de desejo ou paixão. Ainda por cima, se sir Reece sobrevivesse, e rogava a Deus que assim fosse, tinha a certeza que não voltaria a querer saber dela.

Ignorava quanto tempo Damon pensava mantê-la ali sem comida e água, mas não estavam em Montbleu, e sim no castelo do rei, onde a sua ausência prolongada seria mais difícil de explicar. Sem dúvida, não poderiam mantê-la ali fechada por muito tempo.

Anne sobressaltou-se ao ouvir a chave na porta, e ficou rígida ao ver Damon entrar. Esperava Lisette, a aia da casa da rainha que tinham posto ao seu serviço à chegada; pois Damon era demasiado sovina para levar na sua comitiva criados de Montbleu. E, para dizer a verdade, Anne preferia a alegre e vivaça Lisette à velha e ríspida aia que se ocupava dela em casa.

O meio-irmão observou o aposento, fazendo girar uma pesada chave de ferro entre os dedos. Aquele quarto era, sem dúvida, muito mais bonito e luxuoso do que o pequeno aposento que Anne tinha em casa. Para além da cama ampla com colchão de penas, havia um aparador e um arquibanco, uma cadeira e tapeçarias de cores vivas nas paredes. A colcha da cama era de seda, e as velas da mesa eram de cera de abelha. Num canto estava um baú grande que continha as roupas novas que Damon Lhe tinha comprado antes de partirem para Winchester: uma plumagem nova para apanhar um marido rico, por isso tinha-se mos trado tão estranhamente generoso.

- Tens fome? - perguntou Damon ao sentar-se na cadeira, afastando um almofadão. Sem deixar de rodar a chave pelos dedos, passou uma perna por cima do braço da cadeira e apoiou o cotovelo no outro.

Anne tentou manter uma expressão indiferente, ocultando o seu alívio.

- Pela despreocupação que mostras, devo supor que não mataste sir Reece, ou estarias sem dúvida muito ocupado a preparar a tua defesa perante o tribunal do rei.

Damon esboçou o seu sorriso malicioso.

- Claro que não morreu. Queria feri-lo, não matá- lo.

Damon, tal como ela, não tinha subtileza ou habilidade para agir de uma forma tão calculista, mas Anne escondeu o cepticismo, juntamente com as outras emoções.

- Terás fome, naturalmente - disse ele, pendurando a chave no cinturão largo que lhe rodeava a cintura. - Mas esta noite também não vais comer.

Assim aprenderás a não falar com um homem indigno e a não interferir com o seu merecido castigo.

Apesar de estar a arder de indignação por dentro, Anne olhou para o irmão com uma expressão neutra e manteve um silêncio estóico. Damon era um idiota arrogante e ambicioso que ignorava a dimensão das possíveis consequências dos seus actos da noite anterior, os quais perturbavam Anne e a tinham impedido de dormir. Era impossível que o irmão entendesse a gravidade dos seus actos, ou não se mostraria tão seguro de si mesmo.

Anne olhou-o fixamente e tentou fazer com que a raiva não transparecesse na sua voz.

- Para quem levou tanto tempo a calcular o meu valor, pareces ignorar as consequências que terá o teu ataque contra sir Reece. O facto de um cavaleiro atacar outro assim; e nada menos do que no castelo do rei, significa uma provocação extremamente grave. Então, o que pensará a corte sobre o que se passou entre mim e sir Reece? À partida, não deveria ser uma simples conversa. Vão pensar que ele chegou consideravelmente mais longe. o que será então do meu valor como donzela?

Damon não parecia nada consternado.

- Temos toda a razão, pois ver o Fitzroy a assediar-te com toda a insolência produziu-nos uma sensação terrível. Mas não tenhas medo, Anne. Já te transformei numa mártir. Na verdade, devias agradecer-me por tudo o que disse em tua defesa.

Ela conseguia imaginar as mentiras e embustes que teria espalhado para justificar o que tinha feito sem dúvida retratando-a como vítima indefesa.

- Quer dizer que, segundo a tua versão, devo agradecer-te por me fazeres parecer um frágil cordeirinho nas garras de um lobo faminto.

- És muito esperta.

Ele, nem por isso.

- Então como explicaste a minha reclusão? perguntou, cruzando os braços sobre o peito, como se assim pudesse controlar a sua fúria. – Devias contar-me, não achas? Ou pensas manter-me prisioneira até à altura de regressar a Montbleu?

O sorriso de Damon tornou-se mais amplo e os seus olhos cintilaram com maldade.

- Disse a toda a gente que as atenções indevidas de sir Reece te afectaram tanto que ficaste de cama.

Anne não duvidava que muita gente acreditasse naquela explicação:

- Sem criadas para me servirem?

- Sim, claro, és uma mulher com uma sensibilidade tão delicada que não suportas que ninguém te veja depois do que aconteceu ontem à noite embora não tenhas feito nada de mal. Só queres falar comigo, e eu estou a fazer os possíveis para te convencer a sair. Porque estás tão abatida que nem queres comer. Asseguro-te que todas as damas e cavalheiros da corte, excepto os irmãos de Fitzroy e os seus amigos galeses, sentem uma grande compaixão por ti.

Damon era cruel, avarento e embusteiro, mas Anne tinha de reconhecer que a sua explicação pareceria sem dúvida plausível a quem não os co nhecesse.

- Não estávamos a fazer nada de mal, Damon repetiu ela.

- O jejum faz bem à alma.

É por isso que nunca jejuas, não tens alma, . Damon pôs os pés no chão e as mãos em cima dos joelhos. Inclinou-se para a frente e fitou-a fixamente.

- Que te disse esse filho de um bastardo?

- Apenas queria saber o meu nome. E infelizmente já o sabe.

Damon deixou escapar um sopro de desdém. Parecia ter recuperado o bom humor, e recostou-se na cadeira.

- Imagino que sim; e creio que jamais o esquecerá - lançou-lhe um olhar malicioso e sagaz. - O Piers está muito abalado.

Ao ouvir o nome do seu querido irmão, Anne ficou tensa.

Damon e Benedict eram filhos da primeira esposa do seu pai. Anne e Piers eram filhos da segunda, que morreu a dar à luz a Piers, quando Anne tinha sete anos. Desde então, Anne tinha sido uma mãe para ele, e o seu amor por Piers era tão intenso como o de uma mãe.

- Preferia ter sido eu a explicar-lhe o que aconteceu - disse, tentando fazer com que Damon não percebesse a sua cólera.

- Não podia permitir tal coisa - disse Damon esboçando um sorriso arrogante.

Não, ele queria pintar o próprio quadro e dar aos seus actos desprezíveis uma aura de honra.

Imaginar os rumores e boatos que circulavam pela corte produzia em Anne uma terrível sensação, mas pensar que Piers acreditava em todas aquelas mentiras era quase insuportável.

- Que lhe disseste ao certo?

- A verdade: que a honra da nossa familia foi manchada e que castigámos o responsável.

- E de mim? O que disseste de mim?

- O mesmo que aos outros: que sir Reece se estava a exceder do modo mais insolente. Contei-lhe, como a todos os nobres, que foste uma vítima inocente do descaramento dele - o seu semblante ficou obscuro. - Que nem te passe pela cabeça contradizer uma única palavra minha quando te deixar sair amanhã, nem sequer a Piers ou já sabes o que te espera.

Sim, Anne sabia: Damon andava a proferir a mesma ameaça há anos, desde que ela atingiu a idade para se casar ou entrar para um convento.

Se não lhe obedecesse, Damon trataria de fazer com que ela nunca mais voltasse a ver Piers.

- Muito bem, Damon - respondeu, sentindo a sua repugnância a aumentar, como cada vez que o irmão a ameaçava.

Damon fez-lhe sinal com o dedo e sorriu.

- Ainda não nos perguntaste como correu o torneio.

- Não é preciso - Dava para ver pela expressão triunfante no rosto dele. - É óbvio que não estás ferido, por isso suponho que ganhaste:

- Ganhei um bom prémio. Quase chega para cobrir o que gastámos contigo.

Damon falava como se ela tivesse levado a familia à falência, mas tendo em conta o pouco que tinham gasto com ela antes de decidirem que era altura de a mostrar à corte, Anne não acreditava que os gastos tivessem sido muitos.

Damon deu uma palmada nos braços da cadeira e levantou-se.

- Amanhã vais voltar a juntar-te à corte. Não sou tão cruel a ponto de te impedir de ver o teu querido Piers no dia do seu primeiro torneio.

Anne sentiu um aperto no coração. Embora procurasse esconder os seus receios do resto da família, estava preocupada com o primeiro torneio de Piers, pois teria de competir com cavaleiros muito experientes. Damon e Benedict tinham-lhe ensinado tudo o que sabiam, mas não eram bons professores e as suas aulas não eram muito proveitosas. Eles confiavam na força bruta para alcançar a vitória, não na astúcia ou destreza.

Anne temia que Piers, mais frágil que os meios-irmãos, descobrisse da pior maneira possível que precipitar-se e esgrimir às cegas não era exactamente um bom método para vencer.

Damon estendeu um braço e agarrou-a pelo queixo, apertando-a com tanta força que Anne deixou escapar lágrimas de dor.

- Assegura-te de sorrir para lord Renfrew quando o vires, Anne. Está muito preocupado com o teu estado e extremamente impressionado com o teu recato - a sua expressão ficou mais dura. – E lembra-te disto: não desmintas nada do que dissemos sobre o que aconteceu ontem à noite, ou irás arrepender-te, como Reece Fitzroy.

Ao recordar a agressão cobarde que sir Reece tinha sofrido, Anne sentiu a sua ira regressar.

- Estás a estragar a mercadoria, Damon - disse entre dentes, apesar da pressão exercida pelo irmão. Ele começou a rir-se e soltou-a.

- Mercadoria... Isso agrada-me - comentou, dirigindo-se para a porta. Enquanto Anne esfregava o queixo dorido, ele parou e virou-se para trás. - Um

bem para vender ou trocar, é exactamente isso que és e a única coisa para que serves. Nunca o esqueças, Anne, por mais idiotas jovens com quem fales.

 

- Oh, lá lá, milady! - exclamou Lisette enquanto lhe atava os laços do espartilho, na manhã seguinte. - Toda a corte fala de vós.

Reconfortada pelo queijo, pelo pão e pela cerveja que Lisette lhe tinha trazido da cozinha, pois, segundo dizia o irmão, continuava tão abatida que não podia assistir à missa nem quebrar o jejum na sala de banquetes, Anne não fez questão de afogar um suspiro. Sabia que era objecto da curiosidade e da especulação dos cortesãos e era tentador ficar nos seus aposentos de livre vontade, quanto mais não fosse porque, por uma vez, Damon tinha mantido a palavra e porque ela queria estar presente no salão, à espera de Piers, quando o torneio dos escudeiros acabasse. Não podia assistir ao torneio, porque era considerado impróprio para uma dama. Era comum achar que a imagem de dois grupos de combatentes armados a chocar uns com os outros, ainda que fosse com armas sem ponta, fosse demasiado perturbador para a sensibilidade delicada das mulheres nobres.

- Não há razão para ficar triste, milady disse-Lhe Lisette com simpatia enquanto ajustava as ombreiras da capa verde-esmeralda de Anne. O vestido que trazia por baixo era de um verde mais escuro, com bordados de ouro em relevo. - Ninguém vos culpa pelo que aconteceu na outra noite.

Anne aproximou-se do toucador e sentou-se no banco para que Lisette lhe penteasse o cabelo.

Agarrou o espelho muito caro que Damon, apesar dos seus protestos, lhe tinha comprado na mesma.

Anne estava certa de que o tinha feito só para impressionar a criada, que sem dúvida falava com as criadas de outras senhoras, que por sua vez o diriam às suas amas. Damon queria que toda a corte acreditasse que eram mais ricos do que na verdade eram.

Anne fingiu examinar os seus olhos, mas, na verdade, estava a olhar para Lisette para apreciar melhor as suas reacções.

- O que dizem do que sir Reece fez?

A criada corou enquanto empunhava o pente feito de marfim.

- Não sei.

Anne não acreditou.

- Não me ofenderei se me falares dele, Lisette.

Na realidade, precisava de saber algo mais sobre o homem que tinha saído em sua defesa. Naturalmente sir Reece tinha cometido um engano ao abordá-la, mas Anne já o tinha perdoado por isso.

Os olhos castanhos de Lisette recuperaram o brilho habitual.

- Dizem que deve ser um mal-entendido, milady, porque sir Reece é um homem honrado. Mas é jovem e por isso talvez... - Lisette vacilou um momento, procurando a palavra adequada, tenha ficado nervoso e deixou-se levar pelo desejo. A vossa beleza salta à vista, milady.

- Isso acontece muitas vezes com sir Reece? Já se tinha deixado levar pelo desejo, como dizes, em alguma outra ocasião?

Lisette abanou a cabeça energicamente.

- Oh, não, milady. Por isso é que as outras damas estão a falar tanto. Isto nunca tinha acontecido. No entanto, sir Reece é tão bonito, tão forte, tão calado e misterioso, que certamente não há nem uma só dama casadoira que não sonhe que ele a corteje - sorriu maliciosamente. - E penso que mais de uma dama casada, também.

Forte, calado e misterioso, palavras exactas para descrever sir Reece. Ele não se mostrava ansioso por alardear os seus méritos, nem cuspira comprimentos repugnantes à sua beleza. No entanto, o olhar dele era tão sério, tão intenso, que nenhum homem a tinha feito sentir-se tão bela e desejável e tudo isto antes de dizer uma só palavra.

- O que dizem do que fizeram os meus irmãos?

Lisette franziu o sobrolho.

- Que eles também são impetuosos e que levaram o zelo ao extremo no desejo de protegerem a irmã.

Anne franziu levemente as sobrancelhas. Os dedos de Lisette moviam-se com rapidez e com grande habilidade, entrançando o seu cabelo louro.

- São jovens arrebatados, milady. O que podemos fazer senão desculpá-los?

Anne não estava com humor para desculpar Damon e Benedict, mas não queria continuar a falar deles.

- O nome de sir Reece soa-me vagamente familiar, mas não consigo lembrar-me onde o ouvi antes.

- O pai é sir Unen Fitzroy, famoso por formar cavaleiros - respondeu Lisette. - Treinou muitos filhos de nobres, de modo que, naturalmente, sir Reece e os irmãos são bem recebidos na corte.

- Ah, sim.

Aqueles dois jovens que se pareciam com ele - deviam ser os irmãos, pensou Anne.

- Anne pensou no que o irmão tinha dito quando enfrentou sir Reece.

- Sir Unen não é de berço nobre, pois não?

Lisette abanou a cabeça vigorosamente, enquanto agarrava uma fita para atar as tranças de Anne por cima dos ouvidos.

- Dizem que é um bastardo. mas Guilherme, o Conquistador, também o era.

- Reparei que, na outra noite, sir Reece estava com outros jovens, além dos irmãos. Eles também foram treinados pelo pai dele?

Lisette começou a rir, corando.

- Oui. Esses são os Morgan, de Gales. O pai deles é um grande amigo de sir Unen, e sim, foi ele quem os treinou. São muito divertidos e muito simpáticos. Sobretudo o mais velho. Chama-se Blaidd. Disse-me que em galês significa lobo, mas pode ser que só estivesse a brincar comigo. Com os olhos que tem, tão alegres e apesar...

De repente bateram à porta com força e ambas se sobressaltaram.

Talvez Piers estivesse ferido e a chamassem ao campo de batalha!

Anne correu para a porta e escancarou-a. No umbral estava um criado de cabelo grisalho que vestia um gibão de lã vermelho.

- Sim? - perguntou quase sem fôlego.

- Milady, queira acompanhar-me; se fizer favor.

- Porquê?

Ele pestanejou.

- Não sei, milady. O rei disse-me que a conduzisse ao salão e eu obedeço.

- Não é pelo meu irmão?

O homem não mostrou confusão.

- Não, milady.

Lisette puxou-lhe a gola do vestido. - O rei! O salão! Oh, lá lá, milady, temos que acabar de a arranjar!

O homem franziu um pouco as sobrancelhas quando viu que Anne voltava para o toucador.

- O rei Henrique pediu que vos conduzisse à sua presença de imediato - disse secamente. - Mon Dieu, não pode ir com o cabelo como uma rata! - exclamou Lisette, agarrando no lenço que condizia com o vestido de Anne.

Esta levantou-se.

- Não devo fazer esperar o rei. Deixa o lenço, Lisette.

A criada olhou-a como se tivesse decidido apresentar-se perante o rei com uns andrajos sujos e insistiu para que arranjasse as mangas, pusesse o lenço e beliscasse as faces para lhes dar cor, já que estava muito pálida.

Com um nó no estômago, Anne ignorou as recomendações da criada. Não tinha vontade de realçar a sua malfadada beleza e estava certa de que era uma insensatez fazer esperar o rei. E quanto à razão por que Henrique a chamava esta não era difícil de adivinhar: tinha sabido do que acontecera com sir Reece. Se ao menos os irmão tivessem deixado sir Reece ir embora só com uma advertência... E se ele tivesse ficado na sala de banquetes em vez de a seguir.

Disse a si mesma que teria sido pior se o criado lhe tivesse levado a mensagem que tanto temia: que Piers estava ferido. Mas, ainda assim, não conseguia acalmar o formigueiro nervoso que sentia no estômago, nem espantar o medo, enquanto o criado a conduzia pelas escadas abaixo, até ao pátio.

Ameaçava chover, reparou Anne vagamente, sentindo-se reconfortada pelo cheiro fresco do ar depois de passar tanto tempo fechada nos confins estreitos do seu quarto. A brisa puxava-lhe o vestido como se não quisesse que saísse do lugar.

Uma boa sugestão, pensou, que desejava seguir. Mas, quando o rei ordenava, ela tinha que obedecer.

Depressa chegaram à entrada do salão. O criado abriu as portas de carvalho magnificamente lavradas e indicou-lhe que entrasse. Ela vacilou no umbral ao ouvir um murmúrio de vozes, algumas curiosas, outras críticas e muitas de admiração, precipitando-se. sobre ela como ondas no mar. As tochas estavam acesas, embora fosse de dia, para iluminar o salão, que de outro modo era tão escuro como uma catedral. A luz permitia-Lhe ver a multidão reunida, que pareceu abrir- se como o Mar Vermelho diante de Moisés, ao perceber a presença dela. Toda a corte se tinha reunido e esperava, à excepção dos escudeiros, que ainda estavam no campo.

Todos os sentimentos do coração de Anne a impulsionavam a fugir, salvo um: o orgulho. O orgulho exigia-lhe que aceitasse os castigos e desplantes dos meios-irmãos com silenciosa dureza. O orgulho aconselhava-a a que nunca fizesse nada que pudesse envergonhar Piers ou a ela mesma. O orgulho ordenava-lhe que agisse como se não se passasse nada fora do normal e o rei requeresse a sua presença todos os dias.

Enchendo-se de dignidade, mas com a cara corada de vergonha pela mentira que Damon tinha contado e que por certo repetiria, começou a andar em frente. Um sorriso de alívio e alegria aflorou aos seus lábios ao ver sir Reece, até que reparou na terrível contusão que tinha na face e no olho negro, e sentiu o olhar inquiridor dele. Teria ouvido a versão de Damon sobre os acontecimentos? Pensaria que ela tinha participado de boa vontade nas mentiras que Damon tinha espalhado? Quem dera pudesse explicar-Lhe tudo em particular.

Anne afastou o olhar e viu que Damon e Benedict estavam de pé, à esquerda da rainha, enquanto sir Reece e os amigos estavam à direita do rei.

A sala não era grande, tendo em conta que estavam no castelo do rei, no entanto pareceu-lhe que entre a porta e o estrado onde o rei estava sentado no trono, com a rainha a seu lado, distavam muitas milhas.

Por fim chegou ao estrado. Fez uma vénia ao rei e aguardou que falasse.

Henrique inclinou a cabeça para olhar para ela. Parecia um homem ardiloso e astuto, ainda que este último pudesse dever-se ao efeito que as pálpebras caídas produziam. Estava, como sempre, sumptuosamente vestido com um gibão brocado de marfim que lhe chegava aos joelhos e cujas mangas deixavam ver uma bonita camisa de linho. As calças eram castanho-escuras e as botas decoradas com um desenho ondulante, igual ao cinto, brilhavam lustrosas. A rainha estava vestida com riqueza idêntica, com um vestido de damasco azul-claro.

- Milady - começou a dizer o rei com voz majestosa, apesar da sua juventude, - fui posto ao corrente de uma situação extremamente inquietante. - Inclinando-se um pouco para a frente no trono de madeira lavrada, cujo assento estava coberto por uma almofada, assinalou sir Reece, que deu um passo em direcção a ela. - Levantou-se uma acusação muito grave contra este jovem e desejamos estabelecer a verdade dos factos.

- Sir, disse-vos a verdade - declarou Damon, aproximando-se um pouco mais. No entanto, não olhou para o rei, a quem supostamente se dirigia, mas sim para Leonor, sua parente afastada. - Este homem atacou-a.

Um murmúrio escandalizado ressoou na sala e de entre os amigos de sir Reece elevou-se um sussurro de indignação. Mas sir Reece permaneceu em silêncio, com uma expressão tão impenetrável como a de Anne.

- Isso foi o que dissestes, sir Damon - respondeu Henrique, lançando-lhe um olhar estranhamente receoso, como se não estivesse disposto a acreditar nele sem mais provas.

Se o rei suspeitava que Damon estava a mentir não seria mais sensato da parte de Anne cingir-se à verdade, como a honra exigia? Não deveria pôr-se ao lado de Henrique e de sir Reece, em vez de apoiar Leonor e os seus meios-irmãos?

Mas e se Damon cumprisse a sua ameaça? No fim de contas, tinha poder sobre a vida de Piers de modo que podia assegurar-se de que ela nunca mais voltasse a ver o seu amado irmão.

- Sir Reece negou a acusação - continuou o rei. - Por isso, estamos empatados. Creio que agora é altura de ouvir a versão de lady Anne.

- Meu senhor, a minha irmã está demasiado impressionada para falar sobre o que aconteceu - disse Damon ao rei suavemente. - É, ao fim ao cabo, apenas uma mulher fraca.

Anne sentiu que a justa indignação que sentia fortalecia a sua decisão. Talvez Damon pudesse mentir ao soberano. Mas ela, não.

Apesar disso, devia agir com muita prudência pois Damon tinha poder sobre ela e Piers. Não se atreveria a proclamar a sua mentira naquele lugar tão notório, nem em nenhum outro. Devia justificá-lo dizendo que a ira o cegara e que era melhor esquecer aquele incidente.

Seria difícil, mas o facto de estar junto de Piers fá-la-ia encontrar a maneira de dizer tudo aquilo.

No entanto, a ideia de o fazer diante da corte, e especialmente diante de sir Reece, aumentava o mal-estar até a um ponto quase intolerável. Tinha que tentar falar a sós com o rei.

De repente ocorreu-lhe uma ideia e pô-la em prática imediatamente. Damon tinha dito que era fraca. E, nesse momento, podia aproveitar-se disso.

Anne fingiu desmaiar graciosa e lentamente. Por sorte, alguém a agarrou pelos ombros e a deitou suavemente no chão, evitando a vergonha de cair. Abriu um pouco os olhos e viu sobre ela o bonito e maltratado rosto de sir Reece. Os lábios finos e o queixo firme estavam tão próximos dela que quase Lhe tocavam e uma expressão de preocupação franzia- lhe o sobrolho.

Anne sentiu que a respiração se acelerava e cedeu à tentação: deixou que a tomasse nos braços.

Apesar disso, não lhe pareceu o suficiente. Desejava estender a mão e acariciar-Lhe a face, sentir a sua aspereza debaixo da palma de mão. Queria explicar-lhe que não sabia que Damon ia lançar uma acusação tão grave contra ele e que não tinha feito parte das suas maquinações. Queria deslizar a mão por trás da cabeça dele e atraí-lo para ela para lhe dar um beijo.

Outra pessoa esfregava-lhe a mão vigorosamente. O rei pediu a uma criada que trouxesse água e uma voz com sotaque galês ordenou a toda a gente que se afastasse e abrisse espaço.

Depois de um oportuno espaço de tempo quando se reduziu o burburinho que tinha seguido o seu desmaio, Anne abriu os olhos lentamente como se acabasse de recuperar a consciência.

- Respirai fundo, milady - ordenou sir Reece bruscamente. - Não é preciso esfregá-la com tanta força, Gervais.

Ela olhou para baixo e viu que um dos jovens que supunha ser irmão de sir Reece tinha agarrado na mão dela. Parou de esfregar e deixou-a cair.

- O que aconteceu? - murmurou ela, olhando de novo para sir Reece.

- Haveis desmaiado.

Já não parecia preocupado com o seu estado.

Pelo contrário, os estranhos olhos dele estudavam-na como se fosse um juiz que acabava de a apanhar a roubar.

- Já... estou... melhor - murmurou ela, dizendo a si mesma que não era mentira: de facto, sentia-se melhor, estando nos braços dele. - Foram as pessoas, as perguntas...

Deu-se conta de que o rei aguardava junto do irmão de Reece. Damon estava atrás dele, com o sobrolho franzido.

- Perdão, sir - murmurou ela.

- Devia ter tido em conta que seria árduo para vós responder às minhas perguntas diante de tal audiência - disse Henrique com um sorriso amistoso. - Se estais melhor, minha querida, podemos retirar-nos para o meu escritório para acabar esta conversa.

- Creio que terei forças suficientes; senhor - murmurou ela, satisfeita por o seu plano ter dado certo.

- Sir Gervais, sir Blaidd, ajudai-a - ordenou o rei.

- Como ordenais, senhor - disseram as vozes em uníssono. Umas mãos fortes com pêlos negros na parte de cima dos dedos agarraram-na pelo braço direito, enquanto outras o faziam no lado esquerdo. Sentiu-se levantada no ar até que estava de pé. Entretanto, sir Reece levantou-se e alisou o gibão negro, fazendo uma leve careta de dor.

Anne tinha esquecido momentaneamente a ferida nas costas dele. Magoara-se, sem dúvida, ao agarrá-la. E apesar disso, o seu rosto não tinha deixado antever nem um assomo de dor até àquele pequeno sinal.

Se tivessem sofrido uma ferida assim, Damon e Benedict teriam passado semanas inteiras a gemer e a queixar-se, exigindo que os criados os servissem em tudo.

- Vós os dois, ficai aqui com os outros - ordenou o rei. - Eu escoltarei lady Anne e vós, sir Reece, dai o braço à rainha. Não precisamos de mais ninguém.

Anne desejou ver a cara dos meios-irmãos enquanto saía da sala de braço dado com o rei. Mas em todo o caso, podia imaginar e ao fazê-lo teve que suster um sorriso de satisfação.

Seguido de Leonor e sir Reece, Henrique conduziu-a em direcção a uma porta pesada que oculta atrás de um tapete, se abria para uma câmara mais pequena e muito mais confortável do que o salão. Este tinha inclusive uma lareira encrostada, um invento muito moderno, na qual o fogo crepitava alegremente. Junto dela havia cadeiras cobertas com almofadas de seda brilhante e sobre uma mesa maravilhosamente ornamentada estava um jarro e copos de prata. Dois criados esperavam de pé, direitos como sentinelas. Nas paredes estavam colocadas tapeçarias com unicórnios e outras criaturas fantásticas.

Dando um suspiro, o rei sentou-se perto da lareira. Leonor, por sua vez, sentou-se numa cadeira semelhante a um trono, ao lado do marido.

- Sentai-vos, querida - disse Henrique a Anne indicando-lhe uma cadeira em frente à sua, - antes que desmaieis outra vez. Thomson, vinho para a senhora.

Anne sentou-se na beira da cadeira e aceitou o vinho, reparando que sir Reece permanecia de pé com os pés juntos e as mãos atrás das costas como se também estivesse de guarda.

Depois de um delicado trago, devolveu o copo ao criado e esboçou um sorriso tímido.

- Sinto-me muito melhor, sir. Obrigada.

Henrique assentiu e cruzou os braços sobre o peito.

- Agora, dizei-me, lady Anne, o que aconteceu na noite em que sir Reece foi ferido? - a rainha apoiou a mão suavemente sobre o braço do marido. - Ou castigado - corrigiu o rei depois de um rápido olhar a Leonor, - como determinaremos antes que sucedam maiores desgraças na nossa corte.

Anne humedeceu os lábios antes de responder.

- Sir, exactamente, de que acusa o meu irmão sir Reece?

Os olhos do rei abriram-se um pouco. A pergunta pareceu surpreendê-lo. Ou talvez não estivesse habituado a que lhe fizessem perguntas.

- Sir Damon acusou sir Reece de tentar violar-vos.

Ela reprimiu uma maldição digna de Damon. Tinha vontade de gritar de ira. Como podia ter dito tal coisa? Aquela acusação não só destruiria a reputação de sir Reece, mas também a dela. Ainda que as pessoas presentes no salão esquecessem os detalhes do acontecido, o nome de Anne ficaria para sempre ligado a uma violação e o de sir Reece também.

Por isso, deveria ilibar sir Reece de tão terrível delito... mas com muita delicadeza, para seu próprio bem, para que não a separassem de Piers.

Olhou para sir Reece. O rosto estóico dele não revelava qualquer emoção, ainda que tivesse, sem dúvida, que sentir alguma coisa. Raiva, provavelmente.

- Sir - disse ela, decidindo dirigir-se unicamente ao rei, pois pisava terreno escorregadio. Se prestasse demasiada atenção a sir Reece, o rei e a rainha podiam pensar que o encontro não tinha sido inocente. Concluiriam que, talvez, na verdade, não tivesse havido violação, mas pelas razões erradas e a sua honra sofreria da mesma maneira. - Os meus irmãos chegaram a uma conclusão errada quando viram sir Reece a falar comigo no corredor do castelo. Sir Reece não estava a agredir-me. Estávamos simplesmente, a conversar. Ele nem sequer me tocou. Por azar, levados pelo zelo, os meus irmãos nem nos deram oportunidade de nos explicarmos.

Sir Reece não a forçou de modo nenhum a aceitar a suas intenções?

- Não, sir. Seguiu-me ao sair do salão e dirigiu-se a mim quando estava sozinha no corredor o que foi, sem dúvida, impróprio, mas não houve nenhuma violência.

A rainha voltou a apoiar delicadamente a mão sobre o braço do marido.

- Mas, tinham razões para se zangarem? disse ele.

- Sim - admitiu ela.

Henrique inclinou-se para Leonor e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Ela franziu o sobrolho e respondeu-lhe em voz baixa. Depois ambos olharam para sir Reece e depois para ela.

Anne procurou manter a calma. Tinha dito a verdade e falado com toda a prudência. Não podia fazer mais nada a não ser ouvir o que o rei decidiria.

Apesar disso, perguntava-se o que pensaria sir Reece. Apreciava a sua defesa? Tinha alguma ideia do risco que corria por dizer a verdade? Pois quando Damon soubesse que não tinha confirmado a mentira ponto por ponto, ficaria, sem dúvida, louco de raiva. Estar fechada no seu quarto um ou dois dias talvez fosse o menor dos castigos.

Quando a sua paciência começava a acabar, os reis deixaram, finalmente, de murmurar e olharam de novo para eles.

- Estamos inclinados a acreditar em vós, lady Anne - anunciou Henrique.

Anne deixou escapar um suspiro e deu-se conta que sir Reece tinha feito o mesmo. Olhou para ele, mas ele continuava a olhar fixamente para a frent, aparentando estar tão alheio a ela como ela a ele.

- No entanto - prosseguiu o rei, - está claro que a ira dos Delasaine estava em parte justificada.

Sir Reece ficou rígido, mas não disse nada. Aquele silêncio parecia pior do que se tivesse gritado. Era como estar perante uma grande massa de água contida por um fraco dique de madeira.

- Consideramo-vos um cavaleiro de honra, sir Reece, e, como tal, estais obrigado a comportar-vos sempre de uma maneira exemplar – disse o rei Henrique. - Haveis defraudado o cavalheirismo que esperamos de vós, especialmente sendo filho de sir Unen Fitzroy. Foi muito impróprio da vossa parte dirigir-vos a lady Anne quando estava sozinha. Por outro lado, parece que os parentes da dama reagiram com mais violência do que a situação requeria.

O rei, que não parecia um jovem, mas sim o que era, o rei de Inglaterra, pôs-se de pé majestosamente.

- Cometeram-se vários erros. Surgiu animosidade entre duas casas nobiliárias. Suscitou-se uma acusação que manchará a reputação de ambos. No entanto, ocorreu-me um modo de garantir a reconciliação e de prevenir futuras querelas.

Lady Anne, sir Reece, tereis que casar-vos.

 

- Sir, devo protestar. Só vi esta mulher uma vez - disse sir Reece, tentando ocultar a raiva e a frustração.

O destino de Lady Anne tinha-o preocupado, particularmente quando Gervais o informou que tinha passado o dia seguinte ao encontro fechada no quarto, e sentiu um grande alívio ao vê-la entrar no salão do castelo.

Ou antes, algo mais que alívio. Enquanto ela se aproximava do trono do rei, cheia de orgulho e dignidade, tinha voltado a sentir aquele arrebatado fascínio que tinha sentido ao vê-la pela primeira vez. Como fulgurava o seu espírito naqueles olhos verdes!

No entanto, fossem quais fossem as emoções que ambos tinham sentido no corredor, antes da chegada dos irmãos de lady Anne, entre eles nunca poderia haver mais nada.

- O casamento é uma maneira de sanar desentendimentos entre famílias que conta com larga tradição. Mais de uma noiva nobre conheceu o esposo no dia do casamento - respondeu Henrique olhando para a mulher. - O que não tem que ser necessariamente penoso.

- Senhor - começou de novo sir Reece, tão decidido a conseguir o futuro que esperava que se atrevia a replicar, - lady Anne deixou claro que não a desonrei. No entanto, as pessoas pensarão que temos de casar porque, de facto, a agredi. A nossa reputação será destruída na mesma.

A rainha Leonor fixou nele um olhar de aço e Reece lembrou-se por que os homens do conselho de Henrique a temiam, e à sua influência, mais que ao jovem rei.

- Não vos aproveitastes dela? - perguntou. Não a tratastes como se fosse uma criada em vez de uma dama nobre da minha corte? Cometestes um erro grave, sir Reece.

- Com efeito, e lamento-o profundamente respondeu ele, contraído.

No entanto, não podia casar-se com lady Anne que continuava ali sentada, tão calada que podia ter morrido se não fosse o seu olhar intenso. Reece sentia os olhos dela cravados nele cada vez que falava e enquanto procurava manter a atenção fixa nos reis e encontrar uma maneira de sair daquele dilema, uma imagem dançava tenazmente no limiar da sua consciência: Anne Delasaine na sua cama, nos seus braços, nua, enquanto faziam amor apaixonadamente.

- Mas, majestade - continuou com voz firme, apesar do tumulto dos seus pensamentos e das imagens que lhe cruzavam a cabeça, - obrigar-nos a contrair matrimónio fará, por certo, com que muita gente acredite que parte das acusações dos Delasaine era verdade.

- Para isso basta a vossa cara magoada, sir Reece - replicou Leonor. - Dá a impressão de que vos castigaram devidamente pelo vosso acto vil. Ou por acaso acusais os meus parentes de se comportarem como selvagens?

Até Henrique pareceu surpreendido pela dureza da pergunta da esposa ao dirigir-se de novo a Reece.

- Não desejo que haja pendências entre os Fitzroy e os Delasaine. Seja como for, a situação é perigosa e vou remediá-la antes que ameace envenenar a nossa corte como uma ferida infectada. Assim, sir Reece, a escolha é vossa. Casai com esta dama e sem receber dote, ou enfrentai um processo de tentativa de violação perante o tribunal de Londres.

Reece compreendeu que estava preso e sentiu que o coração parava. O facto de o rei proferir tal ameaça demonstrava até que ponto estava decidido a efectuar aquele casamento.

Henrique voltou o olhar na direcção de Anne.

- Se pensais em protestar, milady, sabei que também acusarei os vossos irmãos de tentativa de assassinato por atacar sir Reece. Deveriam sentir-se aliviados por não ter que pagar o vosso dote.

- o rei olhou para ambos da forma majestosa que convinha ao cargo e falou com convicção firme. Tal como o meu pai, manterei a paz na minha corte de um modo ou de outro.

Pelo canto do olho, Reece viu que lady Anne se levantava e se aproximava do rei, tão serena e encantadora como um anjo. Apesar da sua atitude aparentemente humilde, havia algo no modo como levantava o queixo que lhe sugeria desafio:

um desafio que Reece sentia, mas que não se atrevia a expressar em voz alta.

No entanto, não pensava aceitar a sentença do rei como se fosse um destino implacável. Não podia casar-se com uma mulher aparentada com os Delasaine, conhecidos pela cobiça, maldade e temperamento traiçoeiro. Dadas as suas próprias ambições, não podia relacionar-se com tais homens de maneira nenhuma.

O pai tinha-lhe ensinado há muito tempo atrás que quando o primeiro plano de ataque parecia impossível, tinha de tentar outro. E mais outro se fosse necessário, até dar com um que funcionasse; e isso era o que pensava fazer.

Anne ajoelhou-se diante de Henrique e inclinou a cabeça, tão humilde como antes parecia decidida.

- Sir, sendo vossa leal súbdita como sou, estou obrigada a cumprir os vossos desejos e assim o farei - disse. - No entanto, queria fazer-vos um pedido ou suplicar-vos um presente de casamento, se assim o quiserdes chamar.

Então sorriu e a sua beleza pareceu simplesmente deslumbrante. Não havia outro modo de descrevê-la.

Como era de esperar, pois Henrique não era um homem em vão, o rei devolveu-Lhe o sorriso e levantou inquisitoriamente uma sobrancelha. Leonor, por sua vez, não parecia tão impressionada, mas sim intrigada por saber o que Anne lhes ia pedir.

- Bom, lady Anne, o que deseja? - perguntou Henrique.

- O pai de sir Reece é sir Unen Fitzroy, se não estou em erro.

Enquanto o rei inclinava a cabeça para assentir, Reece ficou tenso. Não sabia o que tinha o pai a ver com tudo aquilo. Ela não parecia disposta a queixar-se por ter de se casar com o filho de um bastardo, ainda que tal bastardo tivesse vingado no mundo graças à sua destreza com as armas.

- Desejo pedir-vos que déis licença ao meu irmão mais novo, Piers, para ter aulas com sir Unen, cuja fama nesse campo é conhecida por todos.

Reece relaxou, ainda que se perguntasse se aquele outro irmão seria como os mais velhos. Se assim fosse, preferia convidar uma víbora para a casa do pai.

- Uma excelente ideia, lady Anne, que além do mais contribuirá para emendar este desafortunado incidente.

O rei parecia muito satisfeito, de modo que Reece também não ousou expressar qualquer objecção àquele plano.

Além disso, um rapaz sozinho não podia causar problema nenhum. O pai já tinha brigado com ignorantes muitas outras vezes. A sua reputação provinha em parte do facto de ser capaz de treinar até os jovens mais caprichosos e incorrigíveis.

Poderia, certamente, entender-se com Piers Delasaine, se fosse o caso.

Melhor do que o filho se entendeu com os outros Delasaines, pensou Reece, tentando ignorar a pontada de vergonha que lhe causava aquela ideia. Tinha de encontrar alguma maneira de evitar aquele casamento.

O rei levantou-se e estendeu a mão a Leonor.

- Deixar-vos-ei sozinhos para que faleis do casamento, que terá lugar amanhã.

- Amanhã? - perguntou lady Anne, tão surpreendida como Reece.

- Amanhã - respondeu o rei. - Quero sanar este assunto com toda a rapidez, antes que parentes e amigos tentem adiá-lo - ou o noivo e a noiva, pensou Reece. - Ao meio-dia, como é tradição. E, dado que é por nossa vontade, pagaremos o banquete nupcial.

Se é que vai haver tal banquete", pensou Reece enquanto fazia uma vénia, pois ainda não estava resignado a que o casamento fosse inevitável.

Henrique e Leonor saíram, deixando os futuros esposos sozinhos.

Reece tinha mil coisas para dizer a Anne, mas não sabia por onde começar até que a olhou de frente e viu o quanto estava pálida.

- Sentis-vos mal? - perguntou, tão preocupado como quando tinha desmaiado, e nesse momento recordou a sensação que lhe tinha dado abraçar-Lhe o corpo.

Ela abanou a cabeça.

- Não. A verdade é que não desmaiei. Queria falar com o rei sem que toda a corte estivesse presente.

Tinha enganado o rei? Pelas chagas de Cristo, que mulher tão espantosa!

- Confesso que me senti muito aliviada ao ver que a minha mentira funcionava - esboçou um leve sorriso. - Obrigada por amortecerdes a minha queda. Podia ter-me magoado se não me tivésseis agarrado.

Também a tinha abraçado, apertando o corpo cálido dela contra ele. Reece reprimiu a vontade que tinha de aclarar a garganta, pois parecia ter um nó.

- E os vossos irmãos? Castigaram-vos? Encolheu os ombros. Nela até aquele gesto parecia gracioso.

- Passei um dia e uma noite sem comer: Mas não foi grande suplício. Tinha jejuado à força muitas outras vezes antes.

Parecia que ela não dava nenhuma importância, mas Reece acrescentaria aquela falta à lista de crimes dos Delasaine e vingar-se-ia devidamente quando o momento chegasse.

- Sois muito amável em vos preocupardes comigo, sir Reece - sorriu de novo e de novo ele se sentiu tão deslumbrado e tão desastrado como um rapaz a tentar roubar o primeiro beijo.

Mas ele tinha sido demasiado tímido até para isso, pois temia que algumas das raparigas da aldeia, que as criadas ou que as jovens damas que visitavam a sua casa se rissem dele se o tentasse.

Ele não era como Blaidd ou como Kynan, que sem dúvida teriam rido com elas. Ele teria sentido vontade-de morrer de vergonha.

Nunca tinha beijado uma mulher até a filha do conde de Beaumont o ter levado para um canto escuro num Natal. E também lhe tinha ensinado outras coisas.

Então lembrou-se de um plano. Um plano que consistia em adiar o casamento ordenado por Henrique. Não era fácil, mas tendo em conta o pouco tempo que faltava para o casamento, era a única coisa qe poderia funcionar.

Reece ergueu-se como um guarda diante das portas do castelo e procurou concentrar-se no que tinha de fazer para sair daquela embrulhada. Porque era uma embrulhada, por mais bela que fosse lady Anne, ou por muito que lhe desgostasse pensar que teria que voltar para aqueles safados dos irmãos.

- Lady Anne, lamento profundamente ter-vos seguido e falado - disse com toda a formalidade.

- Não esperava que os meus actos tivessem consequências tão desastrosas.

Ela levantou a cabeça para olhar para ele e reparou no quanto os seus olhos eram verdes, como os rebentos de uma árvore ou a erva de um prado na Primavera.

- Lamento se os meus irmãos vos feriram. Ele ficou rígido. Não queria que tivesse pena, nem que lhe recordasse que tinha levado uma tareia monumental.

Ela estendeu o braço e tocou-Lhe no ombro. Foi um gesto inocente e outras mulheres tinham tocado em Reece de cem maneiras diferentes, mais íntimas, depois de Claire, mas nunca o simples toque de uma mão sobre o ombro lhe tinha causado uma impressão tão profunda. Da mão de Anne parecia irradiar um calor que se estendeu pelo corpo até mais abaixo do cinto, de onde pendia a espada.

Não, o plano não deixava de ter defeitos sérios, se é que não decidia esquecer o seu objectivo final e ceder ao desejo que o embargava.

- Sir Reece, os meus irmãos têm tanta culpa como vós - disse ela. - Se se tivessem comportado como cavalheiros, o facto de me teres seguido não teria passado de um encantador encontro depois de uma festa.

Encantador? Ela achava-o encantador, como as mulheres achavam Blaidd e Kynan Morgan?

Reece temia que os seus sentimentos pusessem em perigo o seu plano. Talvez devesse encontrar outra solução... se tivesse mais tempo e o rei não tivesse proferido tão terrível ameaça e ela não estivesse a olhar para ele com aqueles brilhantes olhos verdes.

- Por azar, Damon não o verá desse modo continuou ela. - Ficará furioso e culpar-vos- á.

Falava como se Reece tivesse que temer a ira do seu meio-irmão.

- Não tenho medo dele, nem de nenhum outro homem.

Mas, no fim de contas, o que lhe importava o que ela pensava dele? Simplesmente, não podia unir-se a uma Delasaine para o resto dos seus dias.

- Milady, dado que nenhum dos dois deseja este casamento, tenho um plano para nos livrarmos dele.

Ela permaneceu estranhamente silenciosa e cruzou os braços lentamente. Aquele gesto fez com que Reece lhe reparasse no peito, coberto por um luxuoso vestido verde. O desejo ameaçava roubar-lhe a razão e nunca tinha precisado tanto dela como nesse instante.

Para se afastar dos seus olhos cintilantes e do corpo sensual de Anne, aproximou-se da cadeira do rei. Quando pensou ter tomado de novo as rédeas do desejo que sentia, voltou-se e olhou-a de novo.

- Dada a insistência do rei, temos que passar pela cerimónia - disse com a calma que conseguiu.

- Sim.

Ela parecia tão serena como Reece esperava.

- No entanto, não há razão para ficarmos casados.

Ela continuou com os olhos penetrantes, sagazes, fixos nele e aguardou pacientemente que se explicasse.

Aquilo era um suplício, mas Reece sabia que tinha de falar se queria levar a cabo o seu plano. Não pensaria nela como uma mulher bonita, mas sim como um dos soldados a seu mando. Ou, talvez, como o rei de França.

- Ao fim de um tempo - disse sem a olhar nos olhos, - quando os ânimos estiverem mais calmos, especialmente o do rei, podemos pedir a anulação.

- Como? Com que justificação? - perguntou ela, arqueando ligeiramente as sobrancelhas. Não parecia surpreendida. Talvez confiasse nele para encontrar uma solução para o problema comum. Ou talvez a sua tranquilidade fosse tão superficial como a de Reece, um mero reflexo sobre águas turbulentas. - Fareis com que um clérigo descubra que, na realidade, somos parentes e que portanto, a consanguinidade desaconselha o nosso casamento?

O que ela sentia ou deixava de sentir não importava, desde que estivesse de acordo com o plano.

- Entre as nossas famílias não pode haver relação de nenhum tipo, nem real nem fictícia. Deste modo, a dissolução tem que basear-se noutra razão.

O semblante de Anne ficou ensombrado.

- Que outra razão?

- A não consumação.

Desta vez, Reece teve a impressão de que uma expressão de surpresa cruzava o rosto dela.

- Então, devemos casar-nos mas não fazer amor? - ele assentiu com firmeza. - Pensais que a igreja vai conceder a anulação apesar de nos casarmos por vontade do rei?

- Não vejo razão para que não seja assim.

- No entanto, o rei pode não gostar.

- Sim, esse é o principal problema - respondeu ele. - Mas, embora o meu pai careça de influência na corte, tem amigos influentes e poderosos. Estou certo que Henrique acabará por se aperceber de que não será conveniente ofendê-los com alguma das suas decisões. Pode ser que isso convença o rei de que este casamento não foi uma boa ideia. Estou certo de que os vossos irmãos estarão de acordo. Sem dúvida que este casamento lhes causará tanto mal-estar como a nós, ainda que não tenham que entregar o dote. Assim, talvez Henrique não tenha resolvido o conflito que tanto deseja evitar. Pode ser que entenda que é melhor dissolver o nosso casamento. Entretanto, a única coisa que temos a fazer é cumprir a sua ordem e ter paciência.

- E não fazer amor.

- Sim.

- Um plano muito astuto - astuto não era a única coisa que lhe ocorria. - Quanto tempo teremos que evitar a tentação? - perguntou ela suavemente.

- Tanto quanto seja preciso - respondeu ele. Creio que o melhor será que partamos para Bridgeford Wells ao amanhecer do día seguinte ao casamento.

- Bridgeford Wells?

- A casa da minha família.

- Ah, claro.

- Não devemos permanecer na corte, debaixo do olhar curioso de Henrique e de todos os cortesãos intrometidos.

- Muito bem, sir Reece - murmurou ela, pousando-lhe a mão suavemente sobre o braço. - Direi ao meu irmão que também se prepare.

Ele tinha-se esquecido de Piers Delasaine. Ela pareceu perceber a sua curiosidade acerca da petição que tinha feito ao rei, depois disse:

- Preocupa-me muito o meu irmão, sir Reece. Tenho sido uma mãe para ele desde que a nossa morreu ao dá-lo à luz. Só quero o melhor para o Piers. Por isso pedi ao rei que permitisse que nos acompanhasse. O Damon e os outros não são modelos de coragem, nem bons exemplos para ele. Quero que aprenda com o melhor dos homens; não com o pior.

Satisfeito por aquele cumprimento ao pai, Reece cobriu ligeiramente a mão de Anne com a sua.

- No entanto, o que o vosso irmão disse era verdade, milady. O meu pai é filho ilegítimo. Só uma geração me separa da lama.

Os olhos de Anne resplandeceram e a sua força repentina apanhou Reece desprevenido.

- Eu não julgo as pessoas por causa do seu nascimento, sir Reece. Não sou tão estúpida. Se para ser um bom cavalheiro bastasse ter nascido em berço nobre, os meus meios-irmãos seriam exemplos de cavalheirismo. E, no entanto, muitos camponeses são mais cavalheiros que eles.

Os olhos dela brilharam de novo e os aconteci mentos que tinham unido os destinos deles pareciam ter desaparecido. Sir Reece tornou-se um homem que olhava para uma mulher bonita cheia de inteligência e compaixão e livre dos preconceitos que caracterizavam muitas damas da nobreza.

Reece desejou expressar aquela ideia diante dela, ou dizer-lhe o quanto o impressionava, mas as palavras não saíram.

Ela afastou a mão e dirigiu-se para uma porta que não conduzia de volta à sala onde aguardavam os irmãos de Reece, os amigos e os meios-irmãos de Anne, sem dúvida, já ao corrente da decisão do rei Henrique. Todos estariam ansiosos por falar do assunto e dar um conselho, quer o pedissem quer não.

Reece não podia culpar Anne por sair por outra porta e decidiu fazer o mesmo.

Depois de ela se ir embora.

Gervais olhava para o irmão ferido como se este acabasse de anunciar de surpresa que ia ingressar num mosteiro.

- Concordaste? Deste o teu consentimento? Vais casar-te com essa mulher?

Reece olhou para o resto dos homens que se tinham reunido no seu quarto depois de abandonar o salão do rei. Blaidd Morgan estava apoiado no parapeito da janela, com os braços e os tornozelos cruzados, como se nada fosse. Kynan, o irmão, estava sentado numa das camas, com os cotovelos apoiados nos joelhos, os dedos entrelaçados, com uma atitude igualmente despreocupada, enquanto Trev permanecia sentado no chão, de cócoras, como um passarinho. A sua expressão, como a de Gervais, delatava o que estava a pensar: que o irmão mais velho devia estar a sofrer de um acesso de loucura temporário se tinha aceite casar- se com lady Anne Delasaine. Reece não duvidava que os Morgan pensavam o mesmo. Simplesmente, dissimulavam melhor os seus sentimentos.

- Não tive escolha - respondeu. – Henrique mostrou-se inflexível e é o rei - os outros entreolharam-se. - O que se passa? Por acaso vocês teriam começado a discutir com ele? – assim tê-los-ia castigado. - Protestei - continuou, - mas Henrique não estava com humor para discórdias pareceu-me mais sensato obedecer ao que ordenava.

- Podias ter-Lhe dito que não podes casar-te sem o consentimento do teu pai – comentou Blaidd.

- Como se tivesse a idade do Trev? Não, creio que não - Reece cruzou os braços sobre o seu peito largo. - Eu não Lhe disse que gostava desta situação.

- Como fico contente por ouvir isso! - exclamou Kynan, com sotaque galês, e a sua cara iluminou-se com um sorriso. Os olhos castanhos tinham uma expressão de alívio. – Estava preocupado contigo, rapaz, talvez tivesses caído no feitiço dessa mulher. Primeiro segues uma mulher que não conheces como se tivesses a idade do Trev - ignorou o protesto que Trev murmurou, logo depois deixas que te dêem uma tareia e, por fim, deixas que te casem com uma Delasaine.

- Admito que cometi um erro.

- Um erro! - exclamou Gervais. - Isso é pouco.

- Sou eu quem vai pagar por isso, não tu.

- Se te casares com uma Delasaine, ficaremos unidos a esses velhacos - disse Gervais.

- Pensas que eu não sei disso? - perguntou Reece, fechando os punhos enquanto tentava refrear a sua ira. Gervais, mais jovem do que ele, fazia parecer que Reece não se dava conta das implicações do seu compromisso matrimonial com lady Anne. Parecia pensar, como Kynan, que Reece tinha caído no feitiço de uma mulher. - No entanto, não estarei casado muito tempo. Farei com que anulem o casamento o quanto antes.

Os outros pareciam espantados, e com razão. Trev foi o primeiro a expressar a sua incredulidade.

- Anulado?

- Sim, legalmente acabado. Dissolvido - explicou-lhe Reece.

- Então, vais casar-te com ela para anular o casamento depois? - repetiu Blaidd, como se tentasse compreender o plano.

- Sim, foi isso que eu disse.

- E como?

- Não por questões de consanguinidade, isso é certo - respõndeu Reece.

- O que é isso? - perguntou Trev, sentado no chão.

- Aos olhos da igreja, o casamento entre parentes de sangue até a um determinado grau é ilegítimo.

- Mas nós não somos parentes dos Delasaine, pois não?

- Não, graças a Deus - respondeu Reece, lançando a Gervais um olhar severo. - E não quero que sejamos de modo nenhum, por isso a razão que darei para pedir a anulação é outra.

- Então... - começou Gervais, e os seus olhos arregalaram-se como rosas florescentes. - Não vais...

- Não.

Blaidd e Kynan pareceram igualmente incrédulos ao compreender o plano.

- És de pedra, rapaz? - perguntou Blaidd depois de um grande e pesado silêncio.

- Não, mas estou decidido. Quando Henrique estiver mais calmo e se o meu pai e os nossos amigos o conseguirem convencer de que não devíamos ter casado, creio que o rei permitirá a anulação. Só quer paz na corte e não creio que os Delasaine considerem este casamento como um favor, de modo que o rei não obterá paz desta maneira.

- Não, não gostam - disse Gervais. - Olhavam para o rei como se lhes estivesse a propor despojarem-se das suas rendas, apesar de que... é verdáde que não haverá dote?

Reece assentiu e Gervais assobiou.

- Corre o boato de que queriam casar a irmã com o lord Renfrew - disse Blaidd.

Reece não sabia nada daquilo e não gostou de ouvir.

Lord Renfrew era demasiado velho, demasiado gordo e, se metade do que diziam sobre ele era verdade, demasiado viciado para lady Anne. Ou para qualquer outra dama.

Talvez Reece pudesse falar com Henrique e sugerir-lhe que lhe procurasse um bom marido, um homem que fosse digno dela, que a amasse e cuidasse dela e reconhecesse o seu valor.

Um homem que, em parte, sempre invejaria.

- Então, eles também vão querer a anulaçãodisse. - Se Henrique realmente procura a paz, dará o seu consentimento. Agora está demasiado chateado e seguro da sua decisão. Quando passar um pouco mais de tempo, com a cabeça mais fria, compreenderá, sem dúvida, que cometeu um erro.

- Ainda não percebo - disse Trev, coçando o queixo. - O que é que não vais fazer?

- Que o matrimónio seja completamente legal - respondeu Reece. Apesar do carácter prático e necessário do seu plano e de estar decidido a cumpri-lo, a vergonha fazia-lhe um tal calor que parecia estar sentado sobre um braseiro cheio de brasas.

- Como...

- Não vai amar a mulher - explicou Gervais.

- Pois claro que não. Conheceu-a ontem. Como ia amá-la tão depressa?

Blaidd olhou para Kynan com uma expressão dramática constrangida.

- Creio que a educação de certa pessoa tem sido muito descuidada.

- Nós não somos galeses - replicou Gervais. Somos um pouco mais... circunspectos... sobre alguns assuntos.

Blaidd sorriu maliciosamente.

- É evidente.

Desconcertado, Trev pôs-se de pé.

- O que é que eu não sei?

Reece suspirou e decidiu que era melhor expli car-lhe ou Trev não o deixaria em paz até saber.

- O que quero dizer é que não vou fazer amor com lady Anne. O casamento não é completamente legal até que seja consumado e se não o fizer, posso conseguir que o anulem.

Trev corou. Parecia muito jovem.

- Ah!

- Trev, rapaz, não sei quanto aos teus irmãos, mas a mim calhava-me bem um pouco de vinhodisse Kynan. - Importas-te de trazer um jarro?

- De acordo - Trev saiu apressadamente do quarto. Parecia ansioso por ir-se embora e deixá-los sozinhos com a conversa deles.

- Por todos os santos, pensava que te tinham dado cabo da cabeça. Parecias tão dócil e resignado quando chegámos aqui... - disse Gervais, rindo, quando a porta se fechou. - Eu esperava que estivesses furioso por ter de roer esse osso.

- Dócil e resignado? - repetiu Reece, ofendido.

- Eu não sou dócil, nem me resigno com facilidade.

- Pois será melhor que o sejas, rapaz - disse Blaidd, - se dizes que não vais tocar numa mulher como essa.

Kynan assentiu, muito sério.

- Estás certo de que dará resultado, Reece?

- Sim - disse. Não estava disposto a admitir dúvida, nem sequer a si mesmo. - Henrique é um homem caprichoso e penso que só está chateado. Quando passar o aborrecimento, estou certo que se mostrará mais razoável.

- Desde que Leonor esteja de acordo - murmurou Kynan sobriamente.

- O rei é o Henrique e não ela - declarou. Reece, apesar de saber que Leonor parecia ter o marido sob controlo.

Se assim era, a sua presença na corte como um dos vassalos leais a Henrique podia ser ainda mais importante.

- Lady Anne é uma mulher muito bonita - comentou Blaidd.

- Uma mulher linda - acrescentou Gervais, que também parecia duvidar dos planos de Reece.

Acaso todos pensavam que não tinha vontade própria? Ou controlo no desejo? Ele, que nunca se sentira atraído de verdade por uma mulher?

Até agora", murmurou-lhe uma vozinha na cabeça.

No entanto, afugentou as dúvidas, pois havia demasiadas coisas em jogo para ceder ao desejo que Anne, sem dúvida, despertava nele.

- Asseguro-vos que, tendo em conta que a alternativa significa uma união entre as nossas familias, consigo manter- me afastado dela, e é o que farei.

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- Pareces já muito decidido - disse Blaidd, sentando-se na beira da cama.

- E estou - os outros três trocaram olhares incrédulos. - Pareço-vos tão fraco? - perguntou, desejando, por uma vez, que os galeses não dissessem o que pensavam.

- Tem o cabelo louro - disse Gervais, apoiando-se contra a parede. - Foi o cabelo dela que te meteu neste problema, não foi?

Reece não estava disposto a confessar que o cabelo louro de Anne fora a primeira coisa que lhe tinha chamado a atenção.

- Tu o disseste. É linda.

- Estás a ver? Aí tens. Temos razões para nos preocuparmos - disse Kynan. - Vais ter essa mulher na tua cama todas as noites, homem. Terias que ser um santo para ter essa preciosidade deitada a teu lado e não lhe tocares.

As palavras de Kynan invocaram na mente de Reece uma imagem tão clara que o seu corpo reagiu como se Anne estivesse nua na cama, a seu lado, nesse mesmo instante.

- Pode ser que não seja um santo - disse, cruzando as pernas, - mas sei controlar-me.

- Como estás a fazer agora mesmo, suponho replicou Blaidd.

Reece corou como um menino ao dar-se conta do que significava aquela alusão ao seu corpo e os galeses olharam para ele com compaixão.

- Olha, Reece, se alguém o pode fazer, esse alguém és tu. Mas será uma tarefa difícil.

Vendo que o seu amigo estava realmente preocupado, a zanga de Reece apaziguou-se.

- Pode ser que tenha imposto este castigo a mim mesmo por causar toda esta confusão. Se me tivesse controlado, não estava nesta embrulhada. Isto significa que tu, Gervais, tens de ficar na corte para defender os nossos interesses. Lady Anne e eu devemos afastar-nos da corte e dos falatórios dos cortesãos.

Gervais tentou mostrar-se desiludido, mas não conseguiu:

- Enfim - observou Kynan com ar de filósofo a reflectir sobre os mistérios do universo, - ao fim e ao cabo, és só um homem, não é verdade? Se nos obrigassem a casar com as mulheres que seguimos num momento ou noutro, ou às que dizemos coisas impróprias no calor do momento, todos já estaríamos casados há muito tempo. Não mataste ninguém, nem fizeste nada de grave, Reece. Nesta confusão, os irmãos dela têm mais culpa do que tu.

- Meios-irmãos - corrigiu-o Reece automaticamente. Enquanto aquelas palavras deslizavam dos seus lábios, perguntou- se o que o teria impulsionado a dizê-las. Talvez a necessidade de manter a pequena distância que havia entre Anne e a família.

- Seja o que for - disse Kynan; agitando a mão despreocupadamente. - Todos sabemos que a ordem do rei é demasiado severa para uma falta tão insignificante e no final Henrique acabará por recuperar a razão.

- Só espero que o meu pai também o entenda disse Reece, olhando para Gervais. O pai não era um homem de carácter colérico, mas era preferível evitar que se zangasse, em parte porque a sua fria desaprovação èra mais difícil de suportar do que a ira.

- Estou certo que sim - respondeu o irmão, tentando parecer convencido: - A mamã, pelo menos, ficará contente por Trev voltar para casa são e salvo depois do primeiro torneio.

- Sim, é verdade - disse Kynan. - A nossa mãe agarrou-se ao pescoço do Blaidd a chorar quando ele regressou do primeiro torneio.

- Não é verdade!

- É verdade, sim senhor. Lembro-me perfeitamente.

Ignorando os galeses, Gervais agarrou o ombro de Reece.

- Brevemente tudo terá passado. Vais ver. Reece assentiu, sorrindo, e disse a si mesmo que seria assim.

Desde que pudesse tirar da cabeça a imagem de Anne, nua, na sua cama.

 

De pé junto à janela do seu quarto, Anne brincava distraidamente com uma pedrinha e olhava ausente para o pátio de armas que se estendia mais em baixo. Por sorte, Lisette não estava no quarto quando voltou da audiência com o rei. Já tinha sido suficientemente penoso ter de passar depressa entre os cortesãos que não estavam no salão, ávidos por notícias.

Tinham acontecido tantas coisas em tão pouco tempo que não conseguia compreendê-las. Ia casar com o viril e enigmático sir Reece Fitzroy, que, sem dúvida, não a amava.

Para ele aquele encontro no corredor não tinha sido mais do que uma brincadeira inofensiva. Ela tinha que ter seguido as indicações que lhe dava a razão e ter fugido quando o viu sair das sombras, mas não o fez. A aparição repentina dele, o mistério que o rodeava, era a coisa mais emocionante que lhe tinha acontecido em toda a vida.

E depressa tinha chegado o desastre.

Atirou a pedra pela janela e sentiu um novo acesso de cólera. Damon e Benedict eram uns estúpidos, incapazes de prever as consequências da sua cobarde agressão a um cavaleiro da corte real: A torpeza deles tinha convertido o que não era mais que uma simples impertinência num pro blema político e sir Reece e ela teriam que suportar o castigo.

Ou, pelo menos, sir Reece considerava aquele casamento forçado um castigo. Isso era o que Damon planeava para ela de qualquer modo: um casamento com um homem que ele escolheria e não ela. Sem dúvida, Damon escolheria um homem rico e influente como lord Renfrew ou, ainda pior, um velho rico e luxurioso que abusaria do seu corpo e lhe exigiria um filho.

Sir Reece era jovem, bonito, viril e, ainda que tivesse cometido uma imprudência ao segui-la, não era lascivo. O olhar e o toque dele não faziam com que se sentisse manchada, como com outros.

Era muito fácil imaginar-se a partilhar a cama de sir. Reece. Ao imaginar-se nos seus braços fortes, agarrada por um abraço poderoso, beijada pelos seus lábios suaves e ardentes, sentia que o desejo a inundava.

Ainda assim, o que sabia dele realmente? Sir Reece tinha-a seguido até ao corredor com toda a insolência e tinha falado com ela, ainda que não se tivesse mostrado abertamente lascivo. Pelo contrário, tinha sido amável e cordato.

Mas talvez devesse recordar mais os actos do que as palavras. Talvez fosse essa a verdadeira prova do carácter de um homem.

E sem dúvida aquele casamento só ia piorar as coisas. Damon ficaria furioso por ver os seus planos destruídos. Ainda que parte da culpa fosse da sua torpeza, nunca o reconheceria. Culparia sir Reece, ela, inclusive Henrique, e procuraria a vingança de um modo ou de outro.

No entanto, se o casamento fosse anulado, ela teria que voltar para Montbleu e os seus meios-irmãos poderiam casá - la de novo com alguém que escolhessem.

Pelo menos, fosse o que fosse que o destino lhe preparava, tinha conseguido algo bom: tinha separado Piers da influência de Damon e Benedict. Como tinha dito a sir Reece, desejava que Piers crescesse entre homens de coragem.

A maçaneta da porta mexeu-se. Talvez o torneio dos escudeiros tivesse acabado e Piers regressasse por fim.

Mas, de novo, foi Damon quem entrou e Anne viu de seguida que nem sequer a ausência de dote o tinha apaziguado, como pensava o rei.

Ela apoiou-se no parapeito, tentando afastar-se dele o mais possível, enquanto o irmão atravessava o quarto a passos largos.

Levantou o punho e bateu-lhe no ombro com uma pancada tão forte que Anne cambaleou para o lado.

- A que diabos estás a brincar, Anne? - perguntou, furioso.

- Não sei a que te referes - disse ela, levantando-se com a mão no ombro. - Eu não estou a brincar a nada.

Ele amaldiçoou-a asperamente e depois amal diçoou sir Reece com termos ainda piores.

- Não tenho escolha, Damon. Tenho de me casar com sir Reece - disse, tentando ocultar a raiva. - Não podia opor-me à vontade do rei, não achas? E depois, quando disse que não haveria dote, pensei que ficarias contente.

- Por casar a minha irmã com um Fitzroy? De veriam ser eles a pagar por esse privilégio!

- Não devias ter dito a toda a gente que sir Reece tentou violar-me. A maneira como te enfureceste com ele fez com que pensassem que tinha conseguido. Pode ser que agora nenhum homem me queira. Ou não tinhas pensado nisso?

Anne reparou que as suas palavras faziam mossa no irmão. Ao atacar sir Reece, Damon era o responsável por tudo o que sucedera depois e Anne queria que entendesse. Assim talvez pensasse duas vezes antes de recorrer de novo à força bruta.

Mas ele não parecia nada constrangido quando a rodeou, olhando-a fixamente, com passo lento e medido.

- Isso não explica porque é que o Piers tem de ir contigo.

- Eu pedi ao rei - Damon franziu o sobrolho. Como te queixaste tantas vezes de que é um estorvo.

- Não tinhas o direito de lhe pedir isso - disse Damon, agarrando-a pelos ombros. - Eu decido onde o Piers vai e com quem.

Anne livrou-se dele.

- Pensas dizer isso ao rei? - Damon não respondeu, mas franziu ainda mais o sobrolho. - É bem sabido que sir Unen Fitzroy é um excelente mestre de cavaleiros. Porquê não dar ao Piers a oportunidade de aprender com tal mestre e estar na companhia de jovens de algumas das familias mais importantes de Inglaterra? - continuou, dando-lhe razões que não podia contestar.

- Muito bem. Deixarei que o rapazito vá. Anne sentiu um alívio profundo, até que notou que os olhos negros e brilhantes de Damon tinham uma expressão astuta calculista.

- Pode ser que o teu casamento com o Fitzroy não seja um completo desastre - disse. - Tens razão. O Fitzroy treinou muitos filhos da nobreza, homens que gozam de grande poder e influência na corte... e que são seus amigos. Quando estiveres na casa dele, poderás conhecê-los a todos. Se se reúnem, quando e onde. Com quem se aliam e quem consideram inimigos. O que pensam do rei e da rainha e esse tipo de coisas.

Anne experimentou uma desagradável sensação de derrota e desalento. Devia ter contido a língua. Não queria servir de espia para Damon, nem ajudá-lo nas suas toscas ambições de alcançar o poder. Sentiu que o suor começava a escorrer-lhe pelas costas, debaixo da seda do vestido.

- E se não o fizer? - perguntou.

- Levamos o Piers e nunca mais voltas a vê-lo.

- O próprio rei disse que o Piers vai treinar com o Unen Fitzroy.

- Esse rapazito não importa nada ao rei - replicou Damon, esboçando um sorriso desdenhoso e confiante. - Sobretudo, se lhe disséssemos que preferíamos que fosse educado em França, no lar da familia. A leonor vai dar-nos razão, por isso duvido que Henrique se oponha. Não quererá brigar com a esposa por uma criança como o Piers.

Nisso provavelmente tinha razão. Anne tinha notado como Henrique olhava para Leonor. Sem dúvida que o rei não quereria ter desavenças com a mulher por culpa de um menino.

- A vida na corte está cheia de perigos, se ignoramos as amizades e as alianças - disse Damon com um sorriso frio. - E tu queres que estejamos a salvo, não é?

A salvo de quem pudesse descobrir os perversos planos que, sem dúvida, tramavam, queria ela dizer ao meio-irmão.

Tinha que haver alguma maneira de se livrar das repugnantes maquinações de Damon.

- Eu não sei escrever. Não me deixaste aprender. Como vou fazer-te chegar essa informação?

Damon ficou a pensar um pouco e Anne começou a pensar que talvez tivesse encontrado o ponto fraco do seu plano. Mas depressa aquele brilho conspirador voltou aos olhos negros de Damon.

- O Benedict seguir-te-á até Bridgeford Wells. Assim poderás contar-lhe tudo o que descobrires.

- Esperas que seja bem recebido em casa de sir Reece depois do que fizeram?

- Claro que não.

- Então quando vou encontrar-me com ele?

- Ele esperará na aldeia, fingindo ser um soldado que volta para casa. Podes encontrar algum pretexto para lá ir. Vais procurá-lo e ele procura-te a ti. Tu és uma rapariga esperta, Anne. Vais encontrá-lo de uma maneira ou de outra, porque já sabes o castigo que te espera se não o fizeres.

Era um plano muito vago que podia fracassar facilmente. E se assim fosse, não seria Damon quem sofreria mais.

- E se me descobrem? Ou ao Benedict? Damon encolheu os ombros.

- Não há nada de mal que um irmão vá ter com a irmã para ver se está a ser bem tratada, sobretudo dadas as circunstâncias.

Anne não pôde evitar que o desprezo que sentia lhe impregnasse a voz.

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- Qualquer um que conheça o Benedict saberá que isso é mentira.

- Mentira ou não, não podem demonstrá-lo... a não ser que tu fales desta conversa, o que é claro que não farás, porque depois saberão que és uma espia e uma traidora. É um delito muito grave que uma esposa espie o marido. Na melhor das hipóteses, prendiam-te.

Damon tinha razão. Anne sentiu vontade de gritar ao compreender que a armadilha se fechava em seu redor. O irmão levantou-se e aquele sorriso odioso e cruel voltou a aparecer-lhe nos lábios, enquanto a olhava de alto a baixo.

- Não tens por que te preocupar, Anne. Só tens que seduzi-lo e dar-lhe um filho. Assim estarás a salvo da ira do teu marido. E, se conseguires que te ame, confiará ainda mais em ti. És uma mulher bonita. Não creio que te dê muito trabalho - agarrou-a pelo vestido e atraiu-a para ele. O hálito quente roçoú a cara de Anne. Os olhos eram ferozes como os de um lobo faminto. - O que importa é que faças o que digo, ou assegurar-me-ei de que nunca voltes a ver o teu queridíssimo maninho: Como descobrir o que quero saber, ou como te protegeres da cólera do teu marido, é assunto teu - soltou-a e ela retrocedeu, a cambalear. Damon começou a rir em voz baixa. - Por Deus, o Henrique ajudou-nos muito mais do que pensa.

Dizendo isto, aproximou-se da porta e fechou-a bruscamente atrás das costas.

Anne deixou-se cair na cama. E pensar que, quando o rei tinha proposto o casamento com sir Reece, esta tinha-lhe parecido uma ocasião para alcançar um pouco de liberdade, ou ao menos que teria por certo um futuro muito melhor do que o que Damon tinha previsto para ela... Agora, pelo contrário, parecia-lhe uma armadilha espantosa que lhe tiraria a honra e que talvez lhe custasse a única relação de afecto que tinha conhecido na vida.

E quanto a seduzir o marido, como sugeriu Damon... De certa forma, parecia tentador, mas se sir Reece descobrisse o que estava a fazer, ficaria, sem dúvida, furioso porque tentara frustrar o seu plano para conseguir a anulação. Anne conhecia demasiado bem a ira dos homens para saber que devia evitá-la.

Mas o que iria fazer?

A porta do quarto abriu-se outra vez com tal força que bateu contra a parede. Sobressaltada, Anne levantou o olhar, esperando encontrar Damon, armado com uma nova ideia para o plano.

Mas em vez de Damon viu Piers, vestido com uma cota de malha que lhe estava grande, pois era de Benedict, e uma expressão indignada no seu jovem rosto. Embora tivesse apenas catorze anos, já era mais alto do que ela. No entanto, a cara continuava a ser mais de menino do que de homem e o corpo era fino como um rebento de árvore. Tinha a pele escura como Damon e Benedict e a sua expressão parecia escurecê-la ainda mais.

- É verdade o que ouvi? - perguntou. A voz era a única coisa, para além da altura, que lembrava que estava a crescer. - Vais casar-te com Reece Fitzroy?

Anne tinha subestimado a celeridade com que corriam os rumores na corte.

- Entra e explicar-te-ei.

Enquanto o irmão mais novo se aproximava dela, Anne procurou ansiosamente vestígios de sangue ou contusões, mas não viu nenhuma prova de que estivesse ferido e respirou aliviada.

Perguntava-se se devia explicar-Lhe tudo, até que ele fixou os seus vivos olhos azuis nela. Era ainda muito jovem para entender que o casamento e as relações familiares podiam ser uma arma perigosa. Ela não podia angustiá-lo com as maquinações, os planos e as tramas políticas que havia em seu redor. Ainda não.

- Não vi o Trevelyan Fitzroy no torneio - começou Piers, - e quando o disse ao moço dos estábulos, ele disse-me que o Trevelyan tinha tido que se retirar do torneio por causa de um assunto familiar. Então descobri que os meus irmãos e tu também tinham sido chamados à presença do rei. Imaginava a razão. Foi pelo que aconteceu com sir Reece, não é verdade? - Ela assentiu. - Eu também sou teu irmão. Porque é que não fui avisado?

- Não sei - respondeu ela sinceramente. - Talvez o Damon tenha pensado que era melhor que continuasses no torneio.

- Ou talvez quisesse tirar-me do meio. Todos me tratam como se fosse uma criança inútil.

Anne não podia desmentir aquela afirmação. Ela não era mais bem tratada.

- O rei decidiu que a melhor maneira de resolver a inimizade que surgiu entre os nossos meios-irmãos e Reece Fitzroy é casar-me com ele - explicou-lhe.

Piers bateu com o punho contra a palma da outra mão.

- Não podes. A não ser que. - corou do pescoço até à raiz do cabelo.

- Não, não o fez.

- Graças a Deus - A expressão de Piers endureceu. - Mas a ordem do rei faz com que pareça que o fez.

- Eu sei, e isso não agrada nem a sir Reece nem a mim. - Anne indicou-lhe o banco e esperou que se sentasse. - É inegável que o que sir Reece fez teve consequências muito graves e imprevisíveis, mas, apesar de tudo, seguir-me não foi um delito tão grave. Se Damon e Benedict o tivessem deixado ir embora com uma admoestação, em vez de se lançarem sobre ele e feri-lo gravemente, tudo tinha acabado ali. Mas agora o rei está empenhado em que nos casemos porque deseja assegurar a paz entre as nossas famílias, de modo que não temos escolha. Diz-me, quem achas que é mais culpado da decisão do rei, sir Reece ou os nossos parentes? Por azar, como mulher, não posso decidir a respeito disso. Devo casar-me, porque o rei mo ordena. No entanto, sir Reece tem um plano para anular o casamento. Não consumaremos a nossa união.

Os olhos de Piers cintilaram de espanto.

- Está disposto a deixar-te em paz?

- Sim. Como te disse, foi ideia dele - apressou-se a continuar, pois não queria contar a Piers quais eram as razões para sir Reece se opor àquele casamento, não fosse ficar com o orgulho ferido. - O rei acedeu a que venhas comigo para a casa de sir Reece para seres treinado pelo pai dele. Toda a gente em Inglaterra ouviu falar de sir Unen Fitzroy e da sua destreza no treino de cavaleiros. Fico contente que tu ao menos possas tirar algum proveito desta situação.

- Eu não. Isto é terrível, Anne. O pai desse homem não é mais que o bastardo de algum camponês...

- Seja qual for a sua origem, sir Unen é um respeitável cavaleiro do reino, o que é ainda mais impressionante, pois, com o seu esforço, conseguiu elevar o seu posto e a sua consideração. Tu deverias guardar-lhe o merecido respeito e apreciar esta oportunidade que o rei te dá. Um homem sábio aproveita as suas oportunidades o melhor que pode - Piers olhou para as botas. Tentando aliviar-lhe o desgosto, Anne estendeu o braço e beliscou-lhe maternalmente a face. - Agora deves ir e fazer a mala, pois o casamento celebrar-se- á amanhã ao meio-dia. Depois o rei oferece um banquete de casamento. Iremos para Bridgeford Wells, onde vive sir Reece, ao amanhecer do dia seguinte.

Piers levantou os olhos na direcção dela e Anne sentiu uma pontada no coração ao perceber a ânsia no seu olhar.

- O Damon aceitou deixar-me ir?

Damon não era exemplo para Piers, mas este ainda era demasiado jovem para se aperceber e ainda continuava cego pela admiração pelo irmão mais velho, que, era inegável, costumava ganhar as brigas em que se metia.

Brigar era a única coisa que o seu meio-irmão fazia na perfeição. Em tudo o resto, os seus dotes de cavaleiro eram terrivelmente deficientes. No entanto, Anne não queria ferir Piers revelando-lhe o pouco que os irmãos mais velhos pensavam no destino do rapaz.

- Estamos todos sujeitos às ordens do reidisse, sem mentir, mas deixando-o livre para que interpretasse as suas palavras como quisesse.

Piers levantou-se.

- Quando for cavaleiro, Anne, cuidarei de ti e prometo que não terás que fazer nada que não queiras fazer.

Ela levantou-se e abraçou-o imediatamente com o coração cheio de amor por ele.

- Anima-te, Piers. Podia ser pior e ambos sabemos disso: O Damon podia fazer com que me casasse com esse gordo seboso do lord Renfrew.

Os olhos do irmão arregalaram-se.

- Parece que ficas contente por te casares com o Fitzroy.

- Tento ver o lado positivo das coisas, Piersrespondeu ela, - e tu deves aproveitar a tua estadia em Bridgeford Wells. Há muitos jovens nobres que venderiam a armadura para ter esta oportunidade.

- Suponho que sim.

Ela lembrou-se de algo mais.

- Disseste que o Trevelyan Fitzroy não estava no torneio: Estavas à procura dele por algo em particular?

Ele deu meia volta.

- Verás, Anne, tenho coisas para fazer...

Ela pôs-lhe a mão no ombro e obrigou-o a voltar-se para Lhe ver a cara.

- O que pensavas fazer se o encontrasses, Piers? - O irmão corou e evitou olhá-la nos olhos. - O Damon e o Benedict já se vingaram. E em excesso, tendo em conta a falta de sir Reece - disse ela com

severidade. - Henrique ameaçou acusá-los de tentativa de assassinato se negassem consentir o casamento. Não há razão para que te relaciones com os Fitzroy, para além de aprender o que o sir Unen possa ensinar-te. Ouviste-me, Piers?

Ele assentiu. Nesse momento, parecia o menino pequenino que ela tinha criado e os seus olhos azuis transbordavam de amor e devoção, o que compensava de sobra qualquer sacrifício que Anne fizesse por ele.

Mais tarde, nessa noite, Damon entrou numa taberna da cidade de Winchester, agarrou Benedict pela gola do gibão manchado de vinho e obrigou-o a pôr-se de pé. A mesa estremeceu e as moedas ganhas no jogo de dados caíram entre os desperdícios empapados de cerveja espalhados pelo chão.

- Que diabos... - Gritou Benedict enquanto os outros homens sentados à mesa desengonçada rebuscavam as moedas. - Solta-me! Estou a ganhar!

Damon ignorou Benedict e tirou-o de rastos daquele antro abarrotado e cheio de fumo que tresandava a cerveja e caldo de vitela.

Damon empurrou o irmão contra a fachada da taberna com tanta força que Benedict esteve quase a cair. Erguendo- se, Benedict olhou para o irmão, mais fraco e musculoso do que ele, com os olhos injectados de sangue.

- Mas o que se passa? - balbuciou, aos tropeções por causa do vinho.

Damon olhou-o fixamente, com os braços abertos.

- Quanto perdeste, imbecil?

- Já te disse! Estava a ganhar!

- Quanto perdeste, hoje? - Benedict não respondeu. - Tudo o que te dei?

Benedict encolheu os ombros.

Enfurecido, Damon levantou o pùnho para lhe bater, mas acabou por empurrá-lo em direcção à rua.

- Se volto a apanhar-te a jogar, juro que te arrancarei a pele às tiras.

- As rendas das nossas terras também são mi nhas - gemeu Benedict. - Tratas-me como se fosse uma criança.

- Porque ages como tal e tu sabes - ao chegarem à frente de outra taberna de que Damon gostava, este empurrou Benedict pela porta.

Ao aperceber-se de onde estavam, Benedict parou de se queixar e sorriu.

- Beberei uma cerveja.

- O tanas! Já bebeste mais do que o suficiente - Damon sentou-se no banco do canto e puxou o irmão para que se sentasse ao seu lado. Não fazendo caso dos fregueses esfarrapados do lugar, Damon fez um sinal à criada, uma mulher de ancas largas e de idade madura, com poucos dentes e tão rude como os marinheiros dos molhes de Dover.

- Vinho para mim, Mary - ordenou. - E não me tragas esse vinagre rebaixado com água que tentas fazer passar por vinho - olhou para o irmão. - Para ele, nada.

Benedict franziu o sobrolho e tirou a algibeira de couro quase vazia que guardava debaixo da capa.

- Posso pagar!

- Fecha o bico e escuta! - gritou-lhe Damon, indicando a Mary que fosse embora. Quando já estava longe, inclinou- se para a frente e disse em voz baixa: - E ouve-me bem, maldito boçal. Trata-se do Fitzroy.

- Essé filho da...

- Esse filho de um homem com amigos importantes, cretino - Benedict ficou de boca aberta, a olhar fixamente para o irmão. - Sim, foi um erro enfurecer-me por causa da decisão de Henrique. O nosso ilustre soberano fez algo que talvez nos seja de grande proveito - Benedict pestanejou, tentando compreender. Damon suspirou, exasperado; e acrescentou: - Anne vai casar com o filho de um homem que tem amigos influentes na corte. Ela pode descobrir quem são e o que tramam. Nós podemos aproveitar essa informação ou para os prejudicar ou em nosso benefício. Saberemos a quem vigiar, a quem evitar, a quem agradar... Esse tipo de coisas.

Os olhos turvos de Benedict arregalaram-se.

- Mas tu odeias o Reece Fitzroy. O pai dele não é mais que um bastardo de baixa estirpe.

Damon esboçou-um sorriso falso.

- Isso agora não importa. Convém-nos que Anne entre numa casa da qual pode extrair para nós toda essa informação. E não é só isso. Além do mais, livramo-nos dela sem pagar dote.

Mary regressou com o vinho. Damon atirou uma moeda na direcção dela e um sorriso desenhou-se na sua cara ao ver que tinha que se agachar para a recolher de entre as imundices.

Benedict olhou com ansiedade para o vinho e lambeu os lábios enquanto Damon bebia do jarro de barro.

Ao dar-se conta de que Damon não pensava partilhar o vinho com ele, Benedict aproximou- se um pouco mais dele, em atitude de conspiração. - E a Anne? Está de acordo?

- Por acaso isso importa?

Benedict soltou um riso baixo e cruel.

- Suponho que não.

- Exactamente - Damon deixou o vinho e limpou a boca com as costas da mão. - Isto é o que tens de fazer. Seguirás a Anne até Bridgeford Wells, onde ela te dirá o que descobriu.

- Bridgeford Wells?

Damon fez uma careta de desdém ao ouvir a pergunta do irmão.

- Onde vivem os Fitzroy. Sabes, em Castle Gervais.

- Ah, sim, claro.

- Ah, sim, claro - repetiu Damon desdenhosamente. - Ninguém deve saber que és irmão dela. Dirás às pessoas que és um soldado que se dirige para casa. Ela vai procurar-te quando for ao mercado da aldeia, ou a alguma feira, e dir-te-á o que souber. Então regressarás à corte e informar-me-ás - Benedict sorriu. - Se vais viajar, hospedar- te-ás em estalagens e poderás divertir-te com as estalajadeiras - disse Damon com sarcasmo. - Mas se gastares o dinheiro que te vou dar para a viagem a apostar, ficarás sozinho e sem nada.

- Então, por que não vais tu? - perguntou Benedict, queixando-se de novo.

- Porque devo ficar na corte.

- Para quê, pode saber-se?

- Porque tenho planos, irmão, que assim o requerem.

- Que planos?

- Os meus planos - os olhos de Damon adquiriram um brilho de superioridade. - Ainda não convém que os saibas. Conseguirás fazer o que te peço, certo? Lembrar-te-ás de tudo o que a Anne te disser... ou tenho de contratar outro?

- Eu posso fazê-lo!

Damon sorriu.

- Era o que eu pensava. É melhor manter isto em família - estendeu-lhe o jarro de vinho. Toma, acaba-o.

Benedict agarrou o jarro e bebeu-o de um trago. Quando acabou e voltou a pô-lo em cima da mesa, viu que Damon estava a olhar para ele com olhos duros e frios.

- Mas se me falhas nisto, Benedict -disse Damon num gélido sussurro, - se te descobrem ou se não te lembrares do que a Anne te disser, deixar-te-ei completamente sozinho. Não voltarei a dar-te dinheiro, nem a ajudar-te quando te meteres em problemas - inclinou-se um pouco mais para ele. - Nem voltarei a afundar no rio os corpos dos homens em quem bates até à morte, nem pagarei às mulheres a quem violas para que não apodreças na prisão como um vulgar foragido. Entendido?

Benedict empalideceu, pois conhecia bem aquele tom de voz e aquele brilho nos olhos do irmão. Damon falava a sério e, se decidisse cumprir a sua ameaça, nada o deteria.

- Sim, irmão, entendido.

 

Vestida com a melhor roupa que tinha, uma capa de veludo azul-escura de mangas compridas com aberturas que deixavam ver o vestido de seda azul-claro e com o cabelo louro apanhado numa rede, Anne permanecia de pé junto de sir Reece diante do altar da capela real, enquanto o padre, um idoso que sibilava ao falar, abençoava a união deles. Ela olhava fixamente para a frente, fingindo-se absorta nas palavras do idoso. Mas, na realidade, estava atenta a sir Reece e ao seu corpo musculoso e forte.

O noivo, alto de ombros largos, estava ricamente vestido com uma capa negra bordada a ouro, calças escuras e botas negras. Anne sentia o odor das botas de couro altas e polidas e do cinto suspenso por cima das ancas que sustinha a es páda. Sir Reece ainda tinha um olho vermelho escarlate.

O rei, a rainha e toda a corte, os Fitzroy, Piers e os meios-irmãos de Anne contemplavam-nos. Perguntava-se o que cada um estaria a pensar apesar de ter esquecido essa preocupação de imediato. Ao fim de uns instantes, quando o padre deixasse de balbuciar em latim e concluísse a cerimónia, sir Reece teria que beijá-la para selar os seus votos.

O sacerdote calou-se finalmente e ela conteve a respiração. Sir Reece agarrou-lhe na mão esquerda. A aliança, claro. Isso era antes do beijo.

Ela não conseguia evitar tremer, nem olhar para a cara magoada e para o olho arroxeado de sir Reece enquanto ele Lhe punha uma simples aliança de ouro no dedo. Reparou que os seus dedos compridos e finos e, no entanto, fortes punham delicadamente a aliança no sítio enquanto o padre entoava a bênção final que os convertia em marido e mulher.

Já estava feito. Estavam casados, pelo menos aparentemente. Tinha chegado o momento do beijo.

Sir Reece agarrou-a pelos ombros e ela estre meceu ao sentir o contacto dele: Pôs a cabeça para trás e ao olhar nos olhos de sir Reece viu... o quê? Resignada aceitação por um dever cumprido? A obediência de um cavaleiro em relação ao seu soberano? O fogo do desejo, fraco mas, ainda assim, presente?

Anne não pôde distinguir que emoção jazia debaixo daqueles enigmáticos olhos cinzentos.

E então os lábios de sir Reece tocaram nos seus com a suavidade e a delicadeza de uma brisa primaveril.

Ao princípio. Por um instante. Depois, apertou-a com mais força e voltou a beijá-la, com mais urgência desta vez. A boca dele cobriu firmemente a de Anne, beijando-a de verdade.

Completamente: Deliciosamente... Tanto que todo o seu corpo parecia despertar para a vida sob os lábios de sir Reece.

Ele atraiu-a para si e abriu a boca; ela sentiu o doce roçar do corpo dele, a sua força, o seu poder. O desejo, aquela sensação completamente nova para ela, apoderou-se de Anne. Um prazer carnal como nunca tinha conhecido nem imaginado.

Imediatamente, pela primeira vez, compreendeu por que algumas mulheres quebravam as leis de Deus e do mundo para estarem com um homem.

Reece afastou-se dela bruscamente e retrocedeu. O peito dele subia e descia tão rapidamente como o dela e Anne perguntou-se se ele também teria sentido aquela impressão surpreendente. No entanto, não distinguia nada no seu rosto enigmático.

O rei, pelo contrário, parecia muito satisfeito, pois começou a aplaudir.

- Vamos desfrutar do banquete de casamentodisse, levantando a voz e, agarrando a mulher pelo braço, abriu a comitiva.

Anne achava que não conseguia comer nem um pedaço.

- Vamos, Anne? - disse Reece, agarrando-a pelo braço para a conduzir ao salão, onde se ia celebrar o banquete nupcial.

Anne. Tinha-lhe chamado Anne. O seu nome parecia maravilhoso quando o pronunciava com aquela voz profunda e aveludada.

Oh, quem dera que Damon não tivesse tramado aquele plano duvidoso! Se o meio-irmão não controlasse a vida de Piers como controlava a sua... Se pudesse casar-se verdadeiramente com aquele homem e Piers e ela se vissem livres de Damon para sempre...

No entanto, não eram livres e até que chegasse esse dia, devia obedecer a Damon.

Obrigou-se a agir como se tudo estivesse bem, ou ao menos como se não estivesse angustiada, nem chateada. Tal como Reece, não queria que ninguém descobrisse os seus sentimentos.

Por isso, tentou concentrar-se no festim, embora soubesse que aquela mostra de abundância se devia mais à necessidade de fazer alarde da prodigalidade do que a generosidade em relação ao casal que tinha sido forçado a contrair matrimónio.

Por sorte, Damon e Benedict não se sentaram na mesa principal, nem nenhum dos amigos e parentes de sir Reece. Piers estava sentado entre Damon e Benedict, mas, por uma vez, aquilo não a preocupava. Depressa estaria longe deles e em melhor companhia.

Apesar daquele magnífico desfile de manjares, Anne não conseguia comer. Em vez de o fazer, observava disfarçadamente o noivo. Os seus dedos com pridos e finos curvavam-se em torno do copo e levantávam-no para os lábios maravilhosos. Havia nos movimentos dele uma fluidez que a cativava. Ele não engolia a comida como fazia Benedict; nem a debicava, como Damon.

Reece agarrou numa pequena carcáça de pão branco e lentamente foi fazendo pedaços mais pequenos com gestos deliberados e uma espécie de graça masculina.

Anne começou a imaginar aquelas mãos sobre o seu corpo. Tocando-a. Acariciando-a. Excitando-a.

- Anne!

Sobressaltada, viu que Reece estava a olhar para ela fixamente.

- A rainha está a falar convosco, Anne - disse ele suavemente.

Muito bem, Anne", pensou ela para si própria com ironia. Parecia tonta. E ela que se atrevera a sonhar em ser a rainha da sagacidade!

Leonor olhou para ela com uma expressão indulgente, como se fosse uma menina.

- Estava a dizer, querida, que deveis levar Lisette para o vosso novo lar.

Anne ficou desconcertada.

- Majestade:

- Afeiçoou-se muito a vós. Creio que seria uma pena separá-la de vós. Imagino que não tereis inconvenientes, não é verdade, sir Reece?

Ele abanou a cabeça estoicamente.

- Claro que não, Majestade.

Leonor recostou-se.

- Era o que me parecia.

Anne olhou para Reece com inquietação. Forçado a casar, forçado a aceitar Piers na sua casa e por último forçado a manter uma criada de que provavelmente não precisava. O que pretendia a rainha? Enfurecê-lo? Dificultar-Lhes ainda mais a vida de casados? Ou pensava que lhe estava a fazer um favor? Sem dúvida que ela gostava de Lisette e não podia fazer reparos ao seu trabalho, mas, ainda assim, custava-Lhe a pensar que Leonor não tivesse nenhum motivo subsequente. Tinha visto como a rainha parecia dominar Henrique.

Talvez tivesse prazer em exercer o seu domínio na vida das pessoas. Talvez a satisfizesse ver um nobre inglês casado à força. Talvez a divertisse.

Aquela ideia fez com que Anne estremecesse. Uma coisa era ver-se forçada a casar por ordem de um irmão mais poderoso ou do rei, por razões políticas, outra bem distinta era fazê-lo para que outra pessoa se divertisse.

Esperou até que a rainha se pôs a falar com o rei e se inclinou para Reece.

- Gosto muito da Lisette - murmurou, - mas se não desejais tê-la em vossa casa...

Ele olhou para ela com os seus olhos frios e cinzentos.

- Nisto tenho tão pouca liberdade como para escolher a minha esposa. Henrique ordenará o que a rainha desejar e eu devo obedecer.

Não parecia zangado e isso tranquilizou-a em parte. Com efeito, a ideia de ter a alegre Lisette como companhia era cada vez mais agradável, agora que sabia que não ia incomodar Reéce.

Os criados tiraram as sobras do banquete e os músicos começaram a tocar uma melodia mais viva para iniciar o baile.

- Sir Reece, deveis juntar-vos a nós na dançadisse o rei, pondo-se de pé e agarrando a mão de Leonor.

Reece rangeu os dentes e instantaneamente esboçou um sorriso forçado. O rei mandava naquilo como em tudo o resto e eles obedeciam, mas preferiria enfrentar uma horda de sarracenos a gritar do que tocar novamente em Anne.

Depois da cerimónia, ao beijá-la para selar a união, tinha sentido um arrebato de desejo tão forte que tinha estado a ponto de se perder, incapaz de se separar dela. Com efeito, ao tocar nos lábios de Anne, tinha sentido como se o mesmo espírito da paixão se apoderasse da sua mente e do seu corpo. Esqueceu-se que era uma Delasaine e de que se casava com ela forçado. Esqueceu-se da anulação e da sua promessa de não fazer amor com ela. Mas um instante depois, a sua resolução reafirmou-se. Tinha que se livrar dela porque era uma Delasaine e nenhum beijo, por muito apaixonado e delicioso que fosse, ia mudar isso.

Decidido a fazer o que devia, levantou-se e estendeu a mão para escoltar Anne ao centro da sala; de onde tinham retirado rapidamente as mesas para deixar espaço para o baile. Calada e inexpressiva, Anne deixou-se levar e ele procurou não fazer caso da deliciosa sensação que lhe dava a sua mão cálida e fina.

Ao fim e ao cabo, não era nenhum -rapazinho. Quando o seu casamento acabasse, poderia acariciar outras mãos. Mas nenhuma tão bela, tão cativante. Nenhuma que, tão facilmente, pudesse imaginar a percorrer-Lhe o corpo excitado pelo desejo...

Tinha que acabar com aquilo!

Enquanto os que iam dançar formavam um cír culo, reparou inquieto que todos olhavam para ele com atenção, especialmente os Delasaine e os seus amigos. Apertando os maxilares, procurou ignorar os olhares enquanto a sua bela e aprazível esposa deslizava em redor do círculo como se costumasse dançar em vez de andar como os outros mortais.

Refrearia a absurda excitação que se tinha apoderado do seu corpo e que o impulsionava a executar uma dança mais primitiva e tão antiga como a própria humanidade. Deixaria de ouvir o bater do tambor, que parecia marcar a cadência do seu coração apaixonado. Prestaria tão pouca atenção a Anne quanto lhe fosse possível.

Como mandava a dança, bateu palmas e rodopiou, encontrando como companheira para os passos seguintes a rainha. Esboçou-lhe o seu melhor sorriso e perguntou-se como se teria sentido ela ao casar com Henrique. Saberia por acaso que não tinha sido a primeira opção do rei?

Levado pela sua juventude, o rei apaixonara-se pela irmã do rei da Escócia, mas tal união tinha sido considerada politicamente desfavorável. Leonor importar-se-ia, ou só lhe importava ter, por fim, conseguido Henrique? Fosse como fosse, parecia decidida a governar Henrique, senão todo o reino. E, como tinham demonstrado sobejamente os últimos acontecimentos, já o tinha conseguido até certo ponto.

Isso sem dúvida devia inquietar os barões do reino, que tinham conseguido estender o seu poder devido à debilidade de João, o pai de Henrique, e durante a subsequente menoridade deste. Os barões não cediam de bom grado à sua influência e muito menos a uma mulher francesa.

Outra palmada e rodopiou outra vez, encontrando-se de novo cara a cara com Anne, o que era sem dúvida uma perspectiva muito mais agradável, ainda que talvez não menos carregada de consequências políticas, pelo menos até que conseguisse a anulação.

A dança exigia que se tocassem, juntando as mãos, enquanto rodopiavam. Reece via o perfil de Anne à medida que se moviam. O nariz recto. Os lábios grossos e sensuais. As sobrancelhas delicadamente desenhadas, que pareciam formar sempre uma pergunta. A curva do maxilar. O pescoço esbelto, onde palpitava o coração.

Aquela belíssima mulher era sua esposa, para quem podia olhar, mas não amar.

Apercebeu-se de que suava como um rapazito que dançava com uma rapariga bonita pela pri meira vez e que, como um rapazito, pensava que não se notava.

Ridículo. Completamente ridículo.

Por fim acabou a música. Dando um suspiro de alívio, fez uma rápida vénia a Anne e virou-se para se inclinar diante da rainha. Quando voltou a olhar para Anne, descobriu que Blaidd Morgan estava junto da sua esposa.

- Senta-te, rapaz - ordenou-Lhe alegremente Blaidd. - Qualquer um diria que estás prestes a desmaiar. Doem-te as costas, não é verdade?

- Não, não me doem. - Muito. Por mais afável que fosse, Blaidd Morgan não tinha o direito de lhe dar ordens, nem de lhe chamar "rapaz" como se tivesse dez anos. - Estou bem, rapaz.

Blaidd sorriu e olhou-o de cima a baixo com cepticismo.

- A sério? Bom, bom, então tenho que confessar simplesmente que quero dançar com a mulher mais bela da corte... à parte da rainha, claro - acrescentou quando Leonor e o rei passaram a seu lado.

Para além de ordenar ao amigo que não dançasse com a sua esposa, Reece não podia fazer nada a respeito disso.

Olhou para Anne. A sua expressão era... Enfim, a sua cara não parecia expressar nada. Muito menos prazer, pensou e, portanto, tentando refrear o seu absurdo arrebate de ciúmes, decidiu ir sentar-se.

E quanto às intenções de Blaidd, podia adivinhá-las facilmente. Tinha-as confessado há pouco: queria dançar com a mulher mais bela da corte.

Surpreendeu-o que Blaidd não tivesse reparado nela antes e que não tivesse tentado alguma coisa, como segui-la até a um corredor solitário. Perguntava-se como teria reagido Anne se tivesse sido o alegre e encantador Blaidd que a tivesse abordado e não ele.

Duvidava que os Delasaine tivessem reagido de outro modo, pois o pai de Blaidd Morgan era pastor até que um senhor galonormando, de quem Reece tinha recebido o nome, o tomara sob sua protecção. Ainda que o Barão Emryss DeLanyea fosse um homem respeitado, aos Delasaine só importaria que Hu Morgan era só filho adoptivo e que, portanto, não tinha sangue real nas veias. Como o pai de Reece, Hu Morgan tinha alcançado o seu posto por méritos próprios, não por nascimento.

Reece pretendia representar diante da corte homens como aqueles, quando se livrasse da sua inconveniente esposa, objectivo ao qual devia dedicar todos os seus pensamentos.

Ao aproximar-se de Gervais e dos outros, estes fizeram-Lhe sinais para que se juntasse a eles. Não queria sentar-se à mesa principal com o rei e a rainha mais do que o imprescindível e, de qualquer forma, os reis estavam a falar com outros nobres, por isso, acabou por se sentar com os irmãos.

- O que te parece o nosso plano? - sussurrou- lhe Kynan em tom de conspiração quando se sentou no banco entre Gervais e o galês.

- Que plano é esse? - sussurrou-lhe Reece.

- Qual será? Mantê-la afastada de ti esta noite - respondeu Kynan. - Ou, digas o que disseres, a ti dela.

- Sim - disse Gervais, sorrindo ironicamente. Eu pensava que querias a anulação.

- E quero.

- Pois não parecia. Não deixaste de olhar para ela durante todo o banquete e o báile.

- Só olhei para ela uma ou duas vezes - protestou Reece.

- Sim, para a cara. Mas para o resto dela... Reece praguejou para si mesmo e sentiu que voltava a corar. Mas, ao fim e ao cabo, era só um homem. E que homem não olharia para uma muLher tão bela como Anne, ainda que não fosse sua mulher?

- Não é que o reprovemos - disse Kynan. Tem as...

- Estás a falar da minha esposa - resmungou Reece, que não queria que Kynan, nem ninguém, falasse dos atributos pessoais da sua esposa. Pelo menos por enquanto.

Blaidd passou a dançar ao seu lado, rodeando Anne pela cintura. Sorria como um idiota e, por todos os santos, ela ria-se! Tinha um riso lindo, como se água deslizasse alegremente sobre as rochas de um ribeiro no degelo primaveril, depois de um Inverno longo e frio.

- Enfim, decidimos que precisas de ajuda - disse Trev. - Blaidd, Kynan, Gervais e eu vamos fazer turnos para dançar com ela.

Reece olhou fixamente para o irmão mais novo.

- Tu? Pensava que odiavas dançar - Trev afastou o olhar, ficou corado e murmurou algo. - O que dizes?

- Disse que isso era antes de chegar aqui - respondeu Kynan, sorrindo, - e ver todas estas jovens encantadoras e de elas o verem a ele - o galês deu uma palmada no ombro de Trev. - Mas não penses em seguir nenhuma, rapaz. Já sabes que é perigoso.

- Creio que todos sabemos - murmurou Reece.

- Não é preciso que o repitas uma e outra vez; sempre a bater na mesma tecla.

A dança acabou e Gervais pôs-se de pé.

- Agora sou eu.

Parecia que se dirigia para a sua própria morte e Reece riu-se para dentro. Anne não se ria a dançar com Gervais. O irmão tinha pés de chumbo.

Mas então, quando Blaidd voltou a ocupar o seu lugar no banco, os reis ordenaram uma balada e fez-se um momento de calma no baile. E assim, Reece teve que ver Gervais sentado do outro lado da sala, junto de uma risonha Anne. Enquanto Gervais lhe dava um copo de vinho, um jovem fraco começou a entoar uma estúpida cançoneta sobre o amor eterno.

- Que bem que dança a tua esposa - disse-lhe Blaidd depois de beber um gole de vinho. Move-se com a suavidade de um junco empurrado pela brisa.

- Era por isso que sorrias como um palhaço?

- Sim, por isso e porque tinha o braço à volta da mulher mais bonita da sala.

- Que pena, então, que não te tenham obrigado a casar com ela.

- Bem, se fosse só por ela, lembro-me de desti nos bem piores - reconheceu Blaidd sem vacilar.

Reece teve vontade de lhe dar um murro. Não para o magoar. Isso nunca. Só para que reconsiderasse as suas palavras.

- Mas, por azar, estão os meios-irmãos dela no meio - concluiu Blaidd, restabelecendo assim a sua amizade.

- Parece que caíste nas boas graças dela - comentou Reece, em tom sarcástico.

- É fácil fazer rir uma mulher - respondeu Blaidd, agitando a mão despreocupadamente. Não é preciso mais do que dizer-lhe que tenho medo de falar com ela.

- Disseste-lhe isso? À Anne? Que tinhas medo de falar com ela?

Blaidd sorriu e encolheu os ombros.

- Fi-la rir, ou não?

- Se o que queres é que uma mulher se ria de ti, suponho que é um bom conselho - resmungou Reece.

- É um começo - comentou o galês.

- Eu não preciso de começo nenhum. É minha esposa, lembras-te?

- E não o será por muito tempo, se bem me lembro. - Blaidd ficou sério. - Mas não há mal nenhum em fazê-la um pouco feliz, não achas? Ih não és o único que está a sofrer, sabes?

Reece ficou sem fôlego. Anne estava a sofrer?

- Não faças essa cara, rapaz. Não é que esteja a suportar os suplícios do inferno. Mas deverias pensar um pouco mais nela. Tudo isto não deve ser fácil para ela, depois do que andaram a contar por aí esses idiotas dos parentes dela.

- Tens razão - admitiu Reece, decidido a ser mais atento com Anne. Ela era tão vítima da situação como ele.

Não, mais ainda, pois ela não tinha feito nada salvo chamar-lhe a atenção. Nessa noite, no salão, não se tinha insinuado abertamente, nem tinha brincado com ele, nem lhe tinha pedido um encontro clandestino e, no entanto, obrigaram-na a casar-se. Como ela mesma dizia, não tinha culpa de ser bonita. Mesmo nesse instante, estava alheia ao facto de que os seus claros olhos verdes, a sua tez e os seus deliciosos lábios faziam com que o coração de Reece se acelerasse e com que o mero toque desses lábios o exaltassem até ao ponto em que mal conseguia respirar.

O fraco e desajeitado jogral acabou por fim a sua toada e os restantes músicos voltaram a agarrar nos seus instrumentos. Sem dizer uma palavra, Kynan levantou-se de um salto e dirigiu-se ao outro lado da sala. Uns momentos depois, começou a dançar com Anne num círculo.

Reece permaneceu sentado sobre o duro banco de madeira, dizendo a si mesmo que aquele tormento não duraria muito e tentando pôr boa cara.

 

Sentada no banco, diante do toucador, enquanto Lisette a penteava, Anne tentava refrear o bater do seu coração. As dúvidas acerca do que ia acontecer nessa noite não paravam de assaltar a sua mente atribulada.

Juntou as mãos no colo e procurou desfrutar das passagens do pente, dos suaves puxões no couro cabeludo e da tranquilidade de se ver livre de Damon e dos outros.

Parecia que tinham passado só uns instantes desde que se retirara do banquete de casamento entre os murmúrios e os risos, os olhares compreensivos e os sobrolhos franzidos das pessoas. Antes disso, pareceu-Lhe ter dançado uma eternidade, apesar de só ter dançado uma vez com Reece.

Não deveria surpreendê-la que ele não quisesse dançar com ela, dados os seus sentimentos em relação a este casamento, mas mesmo assim isso perturbou-a, sobretudo depois daquele desconcertante beijo.

Nessa noite, Reece não podia manter-se afastado dos seus aposentos, ou o rei ficaria a saber e talvez adivinhasse o que estava a tramar, o que aumentaria a sua zanga. E visto que Reece era muito cauteloso nesse aspecto, Anne duvidava que se arriscasse a tanto.

Então iria aos seus aposentos... e depois? Dormiria no chão? Se nessa noite ficassem um pouco sozinhos, ainda que fossem só uns minutos, as pessoas pensariam que tinham consumado o casamento. E Reece não queria que isso acontecesse.

Então, o que ia fazer, dar a entender ao rei que tinha cumprido os seus deveres de esposo e ao mesmo tempo, permitir que as pessoas pensassem que não o tinha feito?

- Mon Dieu, que suspiros - disse Lisette, rindo.

- Mas não me admiro, milady; com um marido assim. Quantas jovens damas estarão a maldizer este dia! Eu vos digo: algumas tinham esperança de que Henrique mudasse de opinião e anulasse o casamento. Ouvi dizer que mais de uma pensava ir visitar sir Reece ontem à noite para ter uma última oportunidade de estar com ele antes que se casasse - ainda que Lisete falasse despreocupadamente e, sem dúvida, brincasse, Anne sentiu uma pontada de ciúmes. - Mas no fim não se atreveram. Não queriam arruinar as oportunidades de caçar os irmãos dele ou os amigos.

Anne desprezou os seus ciúmes estúpidos.

- Apesar de sir Unen Fitzroy não ter berço?

- O que importa isso sendo os fillhos dele homens tão bonitos e gentis? Asseguro-vos que aaparência e a riqueza compensam a origem plebeia do pai. E como ia ser de outra maneira? Reparai, o pai dos Morgan também era um plebeu e não há uma só mulher solteira na corte que não se considere afortunada por ser olhada por aqueles olhos lindos.

Pode ser que não, pensou Anne, mas uma coisa bem diferente era que as familias dessas mulheres aprovassem semelhante casamento.

Lisette sorriu sonhadoramente e Anne observou a sua imagem no espelho.

- Tu considerar-te-ias afortunada se um Fitzroy reparasse em ti?

Lisette desatou a rir e as suas faces coraram como se Anne acabasse de lhe oferecer descaradamente um marido.

- Mon Dieu, não!

- Mas parecem-te bonitos, não? Como a todas as mulheres da corte?

Lisette deixou o pente e suportou o olhar fixo da sua ama.

- Bonitos, sim. Mas, para mim, são antes de tudo soldados, chefes de homens. Eu, senhora, quero um homem que seja como barro nas minhas mãos. Suave e doce. Prefiro um amante a um soldado.

Anne viu a sinceridade nos olhos da jovem e acreditou nela.

Então pensou no beijo de Reece. Os seus lábios eram suaves e doces. Talvez Reece fosse melhor amante que soldado, a avaliar pelos seus beijos. Mas isso não disse a Lisette.

- Isso não significa que, para outras, não sejam os amantes perfeitos, senhora - continuou Lisette.

- Sobretudo para uma mulher que, como creio, gosta de ter um guerreiro na cama - talvez Lisette fosse demasiado astuta, pensou Anne. - Já estais pronta, milady.

Para ir para a cama. Corando, Anne ficou com calor ao imaginar Reece na cama, nu, coberto unicamente por uma colcha de seda.

Reprimindo um arrebato de desejo, levantou-se e fez girar em círculo o cabelo comprido e solto, que lhe chegava à cintura.

- Que tal estou? - perguntou, tentando em vão não parecer preocupada enquanto Lisette a observava como se fosse uma obra de arte e ela, a artista.

- Como um anjo, senhora.

- Então por que franzes o sobrolho?

- Porque um homem gosta de encontrar na sua cama uma mulher apaixonada, não um anjo.

Sem dúvida, Reece preferiria que ela fosse uma criatura sobrenatural. Assim poderia anular o casamento por razões sobrenaturais.

Fosse como fosse, Lisette não devia conhecer os seus planos, pois era um facto que todas as criadas coscuvilhavam e Reece não queria que o seu plano chegasse aos ouvidos da rainha ou do rei.

- Todas as minhas camisas de dormir são brancas.

- A vossa pele não é.

Anne corou ainda mais.

- Eu... não posso despir-me - disse.

- Não é preciso que tireis tudo - disse Lisette com um sorriso maldoso. - Um ombro bastará. Além de mais, ouvi dizer que a curva de um ombro pode ser mais excitante que um seio.

Anne olhou, surpreendida, para a sua criada.

- Onde ouviste tal coisa?

- A criada de uma dama ouve muitas coisas assim - Lisette franziu o sobrolho. - Escandalizei-vos, milady?

- Não, não. Mas para dizer a verdade, nunca tinha pensado muito nessas coisas.

Ao ouvir ruído de passos, Lisette deixou escapar um risinho e os seus olhos castanhos iluminaram-se de emoção.

- O noivo Vem aí!

Seria possível alguénì esquecer-se de respirar? De pensar? De andar? Parecia que o seu corpo estava totalmente dormente, a não ser a ânsia que fervia dentro dela.

- Para a cama, rápido! - ordenou Lisette enquanto arrumava apressadamente o toucador. - E não se esqueça do ombro, milady - ao ver que Anne não se mexia, começou a gesticular ansiosamente, como se quisesse espantar um bando de gansos. - Para a cama, senhora! E o ombro!

Saindo bruscamente do seu aturdimento mo mentâneo, Anne aproximou-se da cama e meteu-se debaixo da colcha. Retrocedeu até que ficou sentada com as costas apoiadas na cabeceira. Uma vez assim, alargou o nó da fita da gola da camisa de dormir até que se soltou e sacudiu-a até deixar o ombro direito a descoberto.

- O cabelo, milady!

Ela levou a mão à cabeça.

- O que tem! - exclamou, assustada.

- Tem que ser como uma cortina, espalhada sobre os almofadões.

Sem se deter para perguntar porquê, ansiosa e excitada de igual modo, Anne espalhou o cabelo. Depois, com a garganta seca e o corpo tenso, como um veado assustado ao ouvir os batedores no monte, engoliu em seco e alisou a colcha sobre o seu colo. Não podia estar mais tensa e ansiosa, nem que Reece fosse mesmo fazer amor com ela nessa noite.

A porta abriu-se de repente e um grupo de homens entrou no quarto, o rei entre eles. Consciente do seu ombro nu, só parcialmente oculto pelo cabelo, Anne apercebeu-se de que Piers e os seus meios-irmãos não estavam com Henrique. Por sorte. Eram as últimas pessoas que desejava ver nessa noite.

O rei deteve-se rindo e olhou-a como se ficasse surpreendido por encontrá-la assim. Mas o que esperava? Era ele quem a tinha casado.

Anne sentiu imediatamente vontade de tapar os seios com a colcha e deslizar para debaixo das mantas. Mas ficou imóvel como uma pedra, incapaz de fazer o que fosse e cheia de assombro; enquanto Reece parava aos pés da cama.

Que bonito estava com a roupa preta, apesar da nódoa negra na face e do olho roxo. O seu olhar intenso e misterioso pousou sobre ela e Anne sentiu que o estômago se encolhia e que seu corpo vibrava sob a investigação abrasadora de Reece. Apesar do seu plano e das razões que o alentavam, Anne desejava afundar-se no colchão de penas, com Reece entre as suas pernas, e agarrar-se a ele com todas as suas forças.

Humedeceu os lábios secos e afugentou aquela imagem. Mas era impossível.

- Trazemo-vos o noivo, milady - declarou finalmente Henrique.

Sem deixar de olhar para ela, Reece fez uma vénia.

Evidentemente, vê-la assim, por mais que tivesse desnudado o ombro, não parecia afectá-lo. Ou talvez acontecesse algo de estranho com ela, pois parecia sentir muitas coisas enquanto ele não sentia nada.

O rei, que nesse instante parecia muito jovem, soltou uma gargalhada ébria que chamou a atenção de Anne.

- Pelas chagas de Cristo, homem, que fazeis? perguntou, dando a Reece uma palmada nas costas com tanta força que Anne fez uma careta de dor. - Ficais aí parado como um raio de um eunuco e sei perfeitamente que não o sois. Se não é esta a visão que faz aquecer o sangue de um homem, não sei o que será!

Anne apertou os lábios e procurou não se ofender, ainda que o rei falasse dela como se fosse um objecto inanimado, como um banco ou uma mesa. Estava habituada, mas isso não significava que gostasse.

Henrique franziu o sobrolho, olhando para Reece, que parecia ter-se tornado mármore, de tão quieto que estava.

- Estais morto? Sois um cadáver? Não fiqueis aí, homem!

Reece resfolegou. Deixou de olhar para Anne e cravou o olhar no rei: um olhar que qualquer soldado temeria encontrar nos olhos do inimigo no campo de batalha. A sua voz soou firme e clara, apesar daquela expressão áspera que em seguida desapareceu de novo.

- Asseguro-vos, sir, que estou vivo e bem vivo. O rei deu uma gargalhada.

- Mas espantado com a beleza dela, não é? Como os outros. Alguns homens matariam por uma mulher assim. Meu Deus, Reece, deveríeis pôr-vos de joelhos e agradecer- me.

- Obrigado, sir - disse Reece, inclinando de novo a cabeça diante do rei.

- De nada, homem!

Anne tinha vontade de gritar. Ou de lhes dizer que se fossem todos embora, todos, menos Reece.

Henrique olhou para o resto dos homens, incluindo os irmãos de Reece e os seus amigos galeses, que a observavam tão atentamente como ele.

- Agora - disse, levantando a voz, - retiremo-nos e deixemos que o casal feliz descanse.

O rei saiu primeiro, rindo-se da sua própria piada. Enquanto os outros iam embora, o olhar de Reece deslizou do rosto de Anne para o ombro nu, que parecia mais quente que o resto do seu corpo.

O que ia acontecer? Quem falaria primeiro?

Por fim, quando o silêncio ficou tenso como um arco, Reece aclarou a garganta e disse:

- Sois muito bela, milady. Hoje sou invejado por toda a corte.

Ela engoliu em seco.

- Eu também.

O olhar de Reece pareceu tornar-se ainda mais intenso ao contemplá-la e os olhos escureceram. O corpo de Anne entendeu o que aquilo significava antes que a mente o fizesse. O bater do coração, errático e enlouquecido, estonteava- lhe os ouvidos. Os mamilos sobressaíam pontiagudos debaixo da camisa de dormir.

- Se eles soubessem... - murmurou Reece.

Era o que devia esperar e, no entanto, dentro de Anne ressoou um silencioso gemido de tristeza e desilusão, até que algo se moveu atrás de Reece e lhe chamou a atenção:

Lisette, que tinha permanecido no fundo do quarto, dirigia-se silenciosamente para a porta.

- Bonsoir, milady - murmurou ao dar-se conta de que Anne a tinha visto.

Reece deu a volta bruscamente.

- Quem diabos és tu?

- A... a criada de milady - gaguejou Lisette, mais sobressaltada do que Anne esperava da alegre francesa. - Ia embora agora...

- Não. Fica. Sou eu quem vai.

- Ma... mas senhor...

Reece passou junto de uma aturdida Lisette e a porta fechou-se com força atrás dele. Boquiaberta, Lisette ficou a olhar para a porta e voltou-se lentamente para olhar para Anne.

- Não entendo, milady - disse, com os olhos arregalados como pratos. - Eu ia-me embora. Porque é que não ficou? - mal tinha acabado de falar quando deixou escapar um gemido e tapou a boca com a mão. - Ah, claro. Doem-lhe as feridas! Pobrezinho! E vós, minha pobre ama! Ter que esperar até que se recupere...

Apesar das emoções que tinham tomado conta dela, Anne ficou surpreendida ao ouvir a conclusão a que Lisette chegou. Fazia sentido e com um pouco de sorte os outros pensariam o mesmo. Não adivinhariam automaticamente o que Reece planeava, nem pensariam que se passava algo de estranho com ela.

Lisette sorriu. Uma expressão lasciva e maliciosa bailava-Lhe nos olhos.

- Mas quando se recuperar... oh lá lá; milady! Será como uma fera à solta!

Deus misericordioso, que imagens invocavam aquelas palavras!

- Pensava que não era o teu tipo - respondeu Anne, parecendo mais tranquila do que estava.

- Para fazer amor? - Lisette sacudiu a cabeça com decisão. - Não, não gosto. Mas isso não quer dizer que não saiba apreciar até de longe um homem assim.

Anne sentiu-se muito cansada e deslizou para debaixo da colcha.

- Vamos logo ao amanhecer, por isso, boa noite Lisette:

- Bonsoir, senhora.

Quando a criada se foi embora, Anne fechou os olhos e tentou dormir. Tinha sido um dia atarefado e o seguinte sê-lo- ia ainda mais. Mas, enquanto jazia sozinha debaixo da sedosa colcha, não deixava de pensar em Reece Fitzroy apaixonado e excitado até à loucura, fazendo amor com ela de forma selvagem.

Na manhã seguinte, Reece observava, mal-humorado, como carregavam as últímas malas da bagagem.

Teria estado de melhor humor se não tivesse tido que ver como os seus amigos dançavam com a sua esposa.

Teria estado com um ânimo excelente se tivesse conseguido dormir.

E o seu humor teria melhorado ainda mais se a sua esposa não fosse uma daqueles malditos Delasaine. Assim teria podido fazer amor com ela na noite anterior. E por Deus que o teria feito. Com o ombro descoberto, Anne parecia ao mesmo tempo inocente e mundana e aquele contraste tinha-o agitado como uma tempestade furiosa nas montanhas.

Tinha passado a noite a dar voltas, a pensar nela. No que faria. Em como começaria. Recordando o sabor suave da sua boca, o peso do seu corpo esbelto e gracioso entre os seus braços, a espantosa visão do ombro nu entre a cortina do seu lindo cabelo. Ao ver Anne na cama, tão frágil e vulnerável, um desejo apaixonado tinha ofuscado os seus outros sentimentos, deixando-o tão paralisado que mal podia mexer-se ou pensar. Se o rei não lhe tivesse falado, talvez ainda lá estivesse a olhar para ela boquiaberto.

Desde então, tinha desejado ser, de facto, mais que uma vez, um eunuco, para tirar da cabeça aquele desejo impossível e conciliar o sono.

- Bom dia, sir Reece.

Ele voltou-se sobressaltado e viu Anne a seu lado. À luz ténue do amanhecer, vestida com uma suave capa verde, da cor das folhas do castanheiro, cujo carapuço mascarava o seu belo rosto, parecia uma ninfa ou uma sílfide, uma delicada criatura mitológica do princípio do mundo. Umas madeixas de cabelo louro ocultavam-lhe a testa e enrolavam-se em redor das orelhas, oferecendo a perturbadora imagem de quem acabava de se levantar da cama. Ao olhar para baixo, Reece viu o punho branco de outra peça de roupa e o seu corpo respondeu imediatamente ao compreender que por baixo só vestia a fina camisa de dormir da noite anterior.

Engolindo em seco, cerrou os dentes, tentou mostrar-se desembaraçado e levantou os olhos até à cara dela. O que não serviu de muito, pois ao olhar para os seus olhos brilhantes, observou de novo aquele cativante contraste de inocência e sabedoria mundana. Apesar do intenso desejo que sentia, tentou que a sua voz parecesse calma.

- Bom dia, milady.

- Parece que está um bom dia para viajar - comentou ela.

Ele olhou para o céu em direcção a Este, por onde o profundo azul da noite começava a ceder ao cor-de-rosa, ao alaranjado e ao amarelo da manhã. Não havia nuvens e soprava uma brisa ligeira.

- Sim - mudou de postura, como um cavalo que mudava o peso do corpo de uma pata para a outra, ou como um rapaz agitado. - Estais vestida para a viagem?

Ela assentiu.

- Acordei cedo para acabar de fazer a bagagem. Quando acabei, fui à janela e vi-vos aqui. Então dei-me conta de que ontem, no banquete, esqueci-me de vos perguntar algumas coisas.

- Quais? - disse ele.

- Bridgeford Wells é muito longe?

- A uns cinco dias de viagem em direcção ao Nordeste.

- Ah. E os caminhos? São bons?

- Sim.

- Vamos hospedar-nos em estalagens ou tendes amigos pelo caminho que nos ofereçam a sua hospitalidade?

- Em estalagens - santo Deus, parecia um tonto com a língua presa, pensou Reece. Ou um bruto. - Quero chegar a casa o quanto antes e se nos hospedássemos em casa de amigos, demoraríamos mais uns dias.

- Tendes muitos amigos pelo caminho?

- Uns quantos - ela olhou para o chão e Reece desejou de novo ter a lábia de Blaidd. - Preferis ir a cavalo ou na carroça? - perguntou ele.

Anne sorriu e o coração de Reece pareceu brin car- lhe no peito. Tinha jurado que não podia ser mais bonita, mas aquele sorriso amplo e honesto demonstrou-lhe que estava enganado.

- Adoraria ir a cavalo - respondeu ela. - Em pequena, tinha um pónei e passava o dia montada nele, desde que não chovesse: Mas os meus meios-irmãos não me permitem esse prazer há muito tempo, por isso precisarei de um cavalo muito manso.

Reece imaginou uma menina pequena e loura a galopar pelo campo num pónei, com o cabelo a esvoaçar atrás dela.

- Pode ser que estivessem preocupados com a vossa segurança.

Uma expressão de cepticismo cruzou a cara de Anne e desapareceu rapidamente, mas ainda assim revelou com toda a clareza como a tratavam os parentes. Aquilo fez com que Reece decidisse assegurar-se de que sofria o menos possível por culpa de uma desafortunada volta do destino que a sua irresponsabilidade tinha causado.

- Tenho a montada perfeita para vós, uma égua chamada Esmeralda - prosseguiu, sem esperar a sua resposta. - Segundo a minha mãe, tinha que ser a montada do Trevelyan para o torneio de escudeiros. Mas antes de virmos, o meu pai chamou-nos à parte e disse que o Trev devia montar o cavalo do Gervais, ou o meu, pois nenhum homem que se prezàsse quereria aparecer num torneio montado na pobre e velha Esmeralda.

Anne sorriu suavemente e Reece ficou con tente por ser a causa do seu riso. Desejou também que Blaidd estivesse ali para ver que não é preciso rebaixar-se para fazer rir uma mulher.

- A pobre e velha Esmeralda parece perfeita para mim, então - disse ela, e os seus olhos brilharam como o orvalho num prado ao sol de Verão.

Os olhos de Reece pousaram-se nos lábios entreabertos dela. Um impulso primitivo impelia-o a cobri-los com os seus e beijá-la apaixonadamente, até que nenhum dos dois ficasse com ar nos pulmões. Por sorte foi capaz de ignorar aquele desejo.

- O Piers tem o seu próprio cavalo - disse éla, assinalando com a cabeça os estábulos, no outro lado do pátio de armas.

Reece afastou os olhos da boca dela e ao seguir a direcção do seu olhar viu uma versão mais jovem, magra e sem dúvida mais atraente de Damon Delasaine, a selar um cavalo castanho-escuro.

Reece quase já tinha esquecido o pedido que Anne tinha feito ao rei.

- Está bem - lançou um olhar a Anne. - O que lhe parece a ideia de nos acompanhar?

- Está contente por ter a oportunidade de aprender com o vosso pai.

Reece percebeu um vacilo na voz dela e sus peitou que Piers Delasaine não ficou particularmente contente com aquela oportunidade. Ainda que ela não tivesse preconceitos contra os que não tinham berço, o irmão mais novo talvez não partilhasse esse ponto de vista. De qualquer forma, não seria o primeiro jovem que chegava a Castle Gervais cheio de desdém pelo seu pai, só para descobrir que estava enganado ao albergar tal preconceito.

Anne observou o pátio em seu redor.

- Onde estão os vossos irmãos? Não vêm connosco?

- Só o Trevelyan - respondeu. - O Gervais fica na corte.

- Ah, para nos avisar quando Henrique se mostrar com melhor disposição.

Reece não tinha pensado nisso. Ou não exactamente assim, em todo o caso.

- Sim.

- Então, onde está o vosso irmão mais novo? assinalou com a cabeça em direcção do jovem que continuava ocupado com a sela. - O Piers já está pronto.

O rapaz apercebeu-se que estavam a olhar para ele. Anne indicou-lhe que se aproximasse e ele obedeceu, cruzando o pátio tão devagar que os nervos de Reece se crisparam. Parecia um defeito comum aos rapazes prestes a serem homens, pois Trev também andava tão devagar como se tivesse todo o tempo do mundo.

Piers chegou finalmente junto deles e parou ao lado de Anne, com uma atitude receosa e protectora. Parecia sentir por ela um afecto de que obviamente careciam os irmãos mais velhos.

Kynan, Blaidd e Gervais apareceram por outra porta. Kynan e Blaidd pareciam estranhamente frescos, apesar de se terem deitado de madrugada. Gervais, por seu lado, parecia tão exausto como Reece.

- Bom, aqui está o casal feliz - disse Blaidd, ao aproximar-se, olhando para Reece de cima a baixo. - Estás feito num caco.

- Tu também - replicou ele, embora não fosse verdade. Como se lembrava de dizer aquilo à frente de Anne

- Bom, admito que já estive mais descansado respondeu Blaidd alegremente, piscando um olho a Anne com tal familiaridade que o sangue de Reece começou a ferver.

Ainda que fosse sua esposa só de nome, Blaidd não tinha o direito de brincar com ela.

- Prontos para partir? - perguntou Gervais, rompendo o silêncio tenso.

- Sim, se é que o Trevelyan se digna a descer.

- Ao que parece, há uma dama de companhia de quem queria despedir-se - disse Blaidd. - Já se sabe, os jovens e o amor. Mas sendo um Fitzroy, é certo que ficará com a língua presa e demorará um bom bocado.

- Enquanto tu serias a eloquência em pessoa, suponho - replicou Reece, ligeiramente exasperado. Nem ele nem Gervais eram particularmente eloquentes com as mulheres e Trevelyan também não. Mas, por outro lado, quem o era, comparado com Blaidd Morgan?

Blaidd teve a audácia de piscar o olho, outra vez, a Anne.

- Mas é claro. Por acaso não sou galês? Ela corou e ao vê-la tão bonita e tímida, Reece

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franziu o sobrolho. Blaidd sorriu, divertido, o sa fado.

- Viemos dizer-te que Henrique continua na cama, assim podes escapar-te antes que saiba da vossa partida.

Reece não gostou que falasse em escapar. Ele não ia fugir. Simplesmente, não era conveniente, nem sensato, permanecer na corte se não pensava dormir com a mulher que o rei tinha escolhido para ele. Além de mais, tinham que esperar por Trev e pela criada francesa de Anne, cuja presença lhe tinha sido tão útil na noite anterior.

- Ei! - Gritou Trevelyan da porta da cozinha, cumprimentando-os com a mão.

- Onde te meteste? - perguntou Reece, cruzando os braços.

- Que culpa tem um homem que as mulheres não o deixem ir embora? - respondeu o irmão a sorrir.

- Há que estar sempre pronto, sejam quais forem as circunstâncias, e não fazer esperar os amigos - disse Reece asperamente. - Não quero que se faça de noite nos bosques e que sejamos presa dos bandidos.

A criada de Anne saiu apressadamente por outra porta, transportando um grande fardo do que pareciam ser lençóis. Todos voltaram a cabeça ao vê-la cruzar o pátio.

- Mille pardons! - disse, sorrindo, deixando o fardo na carroça. - Tive que brigar com a lavadeira para que me desse os lençóis.

Óh, Deus, os lençóis! Do mesmo modo que as manchas de sangue nos lençóis eram a prova do desfloramento de uma virgem, a ausência delas demonstraria que Reece não tinha dormido com a esposa. Ou, pensou de imediato com desagrado, que esta não era virgem. Sem dúvida que muita gente na corte chegaria a essa conclusão e a repútação de Anne ficaria mais manchada ainda.

- Trouxe os meus de casa - disse Anne suavemente ao seu lado. - Ainda que esteja no castelo do rei, prefiro saber que estão limpos. Por isso disse à Lisette que os trouxesse.

Ele deixou escapar um suspiro de alívio e lançou-lhe um sorriso breve.

- Já que estamos todos, podemos partir. Enquanto se preparavam para seguir caminho, Reece procurou não prestar atenção à esposa. Entretanto, reparou que Trevelyan e Piers Delasaine olhavam disfarçadamente para Lisette e olharam um para o outro, ao surpreenderem-se a observar a rapariga.

Pelo sangue de Cristo! Não precisava que sur gisse uma rivalidade absurda entre os dois jovens por causa dos afectos de uma criada. Já tinha problemas suficientes e a viagem prometia ser um suplício.

- Um momento, antes de vos irdes embora Reece - disse Blaidd, agarrando-o pelo braço e levando-o para um lugar mais afastado do pátio. Reece ficou desconcertado ao ver uma expressão sombria no rosto habitualmente alegre do amigo.

- O que se passa?

- Olha, sei que é linda e que parece ser bastante inofensiva, mas não deves confiar na tua esposa - disse Blaidd com a voz tão grave como a sua cara.

- De que estás a falar?

O amigo olhou-o com pena.

- Sei que acreditas que podes resistir-lhe, e espero que assim seja, mas é uma mulher excepcional, Reece. Apercebi-me só de dançar com ela.

Convenceria até os deuses a que Lhe revelassem os seus segredos, bastando apenas olhar para eles com aqueles olhos. No entanto, é uma Delasaine e são tão perigosos como os cães raivosos. Não estou a dizer que seja má, Reece, mas quem sabe como é de verdade? Nós não, isso é certo, e não deves confiár nas aparências.

Reece respirou fundo. Sabia que o amigo falava de boa-fé. No entanto, doía-lhe dar-se conta de que tinha razão. A crua realidade devia afugentar qualquer fantasia que albergasse no coração.

- Não o farei - prometeu.

Blaidd assentiu e agarrou-o pelos ombros.

- Dá recomendações aos teus pais.

- Claro.

- Boa viagem, amigo.

Reece sorriu.

- Cuida-te. E mantém-te afastado das casadas, Blaidd.

- Não é o que faço sempre?

- Há sempre uma primeira vez - respondeu Reece, voltando à sua comitiva.

Blaidd, com expressão preocupada, viu o seu amigo montar.

- Sim, amigo, há sempre - murmurou, - como Adão e a maçã.

 

Noutras circunstâncias, Anne teria desfrutado daquele passeio a cavalo pelo campo. O dia continuou alegre e os caminhos eram excelentes, nem demasiado barrentos, nem demasiado poeirentos. As suaves colinas produziam uma reconfortante sensação de amparo e, de vez em quando, ao chegar ao alto de uma colina, avistavam uma paisagem de beleza espantosa.

Mas por azar, Anne não esquecia as circunstâncias que a tinham colocado sobre a sela da tranquila égua, nem parava de pensar no silencioso e altivo cavaleiro que cavalgava junto a ela, aquele jovem bem-posto que era o seu esposo. Lembrava-se também do seu encontro com Damon e o que o irmão queria que fizesse. A todo o instante tinha vontade de olhar para trás, temendo ver Benedict no caminho, atrás deles.

Mas não tinha que olhar para saber que estava ali, em algum sítio. Damon tinha-lhe dito que a seguiria e assim seria, sem dúvida, ainda que Benedict não quisesse obedecer-lhe. As coisas entre eles eram sempre assim, pois Damon controlava Benedict, tanto quanto a ela e a Piérs. Anne ignorava o poder que Damon tinha sobre ele, mas não vivia isolada numa cela solitária, como um eremita. Em Montbleu ouvia coisas, rumores acerca de actos violentos e mulheres feridas ou coisas piores ainda. Os dois irmãos mais velhos eram homens irascíveis e tão cobiçosos que Anne sus peitava que não aceitavam com resignação o não de uma mulher. Damon, não obstante, sabia controlar melhor a sua raiva, ainda que nele se convertesse em algo frio e traiçoeiro. Benedict, pelo contrário, descontrolava-se, como tinha acontecido com sir Reece. Tinha levado, sem dúvida, demasiado longe os seus acessos de cólera e Damon utilizava o medo do castigo da lei ou a recompensa para vergar a vontade de Benedict.

Anne estremeceu, pois ela mesma tinha sentido a ira de Benedict. Era fácil imaginá-lo a descarregar a sua fúria contra uma mulher que o tivesse rejeitado.

- Tendes frio?

Ela sobressaltou-se e olhou para Reece.

- Não, milord.

- Está bem.

Ele voltou a olhar fixamente para o caminho, recuperando a sua expressão enigmática. Iam à frente da comitiva; atrás deles avançava a carroça com a bagagem, onde. Lisette ia sentada ao lado do condutor. Piers, Trevelyan e os soldados da guarda cavalgavam atrás.

Anne suspirou e remexeu-se, colocando-se mais comodamente sobre a Esmeralda, que realmente era um exemplo de tranquilidade. Era tão tranquila que Anne se perguntava o que aconteceria se tivesse que galopar. A égua provavelmente ficaria quieta, voltaria a cabeça e lançar-lhe-ia o mesmo olhar que tinha posto sir Reece quando o rei lhes ordenou que casassem.

- De que vos ris?

Sobressaltada, ela puxou as rédeas sem se aperceber. A Esmeralda protestou suavemente. Anne acariciou-Lhe a crina clara e olhou para Reece.

- Estava a pensar que, se por algum motivo, tivéssemos que apressar o passo, a Esmeralda não acharia graça nenhuma.

Ele olhou para ela.

- Pode galopar se for necessário, mas não acha graça nenhuma. Em todo o caso, espero que não seja necessário. O caminho é bastante seguro e vamos bem escoltados.

De repente, Anne pensoú que aquele era o tipo de oportunidade que Damon Lhe diria que aproveitasse. Deus do céu, detestava ser a espia de Damon, mas o irmão não lhe tinha dado opção.

- Meu senhor, noutra ocasião falastes de amigos da vossa familia poderosos e influentes que podem ajudar-nos na corte. Quem são?

- Em primeiro lugar, o barão DeLanyea.

- Creio que ouvi falar dele. Foi ferido nas Cruzadas e só tem um olho, creio eu.

- Sim. É meio galês, meio normando e conta com o respeito de ambos os povos e com o do rei. A sua opinião tem um grande peso na corte, apesar de raramente a visitar. É demasiado idoso para viajar.

- Como chegou o vosso pai a travar amizàde com um nome tão importante?

- Isso não parece um bom princípio para uma amizade.

As pontas das orelhas de Reece ficaram vermeLhas, como se ficasse com vergonha.

- O meu pai depressa se apercebeu do tipo de homem que o tinha contratado e pôs-se ao lado do barão. Além do mais, treinou todos os filhos do barão e o sobrinho. Se uns ou outros precisarem de ajuda, basta pedir e a ajuda será prestada de bom grado.

Anne pensou nos irmãos mais velhos. Estes conheciam homens a quem ela chamaria aliados, mas não tinham amigos e muito menos dos que ajudavam nos momentos de crise. Damon, em particular, traía qualquer um em proveito próprio se pudesse e a gente com quem se dava era igual.

- São também o barão DeGuerre, sir Mor gan, sir George de Gramercie e sir Roger de Montmorency, para nomear uns quantos. O meu pai lutou ao lado deles ou treinou os filhos.

Sim, com efeito, os Fitzroy tinham amigos poderosos e influentes. Aqueles eram guerreiros ilustres, todos eles célebres por cuidar zelosamente da sua honra. E também eram completamente fiéis à coroa. Não era de estranhar que Damon quisesse saber o quanto pudesse deles, pois homens como aqueles eram seus inimigos naturais.

Se os amigos de sir Unen Fitzroy falassem em favor da anulação, o rei concederia a sua permissão, sem dúvida. Anne suspirou lentamente ao pensar no que aconteceria depois.

- Estais cansada? Percorremos um grande caminho.

Damon nunca lhe fazia essa pergunta quando viajavam. Ele decidia quando e onde parar e o que comiam.

- Não muito. Fizemos a viagem de Montbleu a Winchester em dois dias. O Damon não gosta de parar nas estalagens. Diz que os estalajadeiros são demasiado cobiçosos e que a comida é horrível. O Benedict discute sempre com ele e chama-o de forreta. - E é?

- Não sei se lhe chamaria forreta exactamente.

Se é um gasto que em seu entender esteja justificado, gasta com abundância, mas se o preço lhe parece injustificado ou excessivo, queixa-se como se Lhe tivessem pedido que desse o braço direito e não umas moedas.

- Acredito em vós. No entanto, alguns pensariam que é um homem sensato.

- Pois teriam que ouvir as discussões dos meus irmãos - respondeu ela, contente por poder falar com Reece daquela maneira amigável acerca de algo que não estava relacionado com o plano de Damon. - O Benedict adora alojar-se nas estalagens... ou pelo menos, adora divertir-se com as criadas e não faz caso do dinheiro. Devo confessar que por esta altura, certamente, o Benedict teria arruinado a minha familia se o Damon não o tivesse impedido - Reece franziu o sobrolho. - Pode ser que não goste nem aprecie o meu meio- irmãodisse ela, - mas isso tenho que admitir.

Reece lançou-lhe um olhar duvidoso.

- Sois muito justa. Não sei se ele faria o mesmo se estivesse na vossa situação.

Ela corou perante aquele cumprimento e ficou contente ao pensar que, por uma vez, os olhos de Reece tinham deixado espreitar os seus pensamentos.

- Provavelmente não - disse Anne. - Sempre me odiou, porque odiava a minha mãe. Diz que se intrometia demais. Mas acho que teria odiado qualquer pessoa que afastasse dele a atenção do meu pai.

- Sim, isso também acho.

- O que me dizeis vós dos vossos irmãos, sir Reece? Eles invejam a vossa posição de primogénito?

- Pode ser - admitiu ele, - mas duvido. Os nossos pais tratam-nos com bastante igualdade, apesar de tudo.

- Apesar de tudo?

- Como filho mais velho, esperam que eu dê o exemplo, tal como Henrique espera que os seus cavaleiros se comportem como tal. Está claro que ultimamente falhei em ambas as coisas.

A camaradagem pareceu desaparecer de repente e Anne suspirou, abatida, enquanto submergiam noutro silêncio até que Reece levou a mão às costas.

- Dado que fostes sincera comigo, eu também o serei convosco. Confesso que a ferida das costas começa a doer-me. Creio que eu também deveria descansar um pouco.

Com isto, e antes que Anne pudesse responder, Reece levantou a mão para deter a comitiva. Assinalou uma pequena clareira de um lado do caminho, debaixo de uns castanheiros. Anne ouviu o ruído de ùm ribeiro perto.

- Pararemos aqui um pouco para descansar e dar de beber aos cavalos.

O condutor da carroça, um homem robusto, estalou a língua e dirigiu-se para a clareira. Piers, Trevelyan e os soldados desmontaram e a sua alegre conversa misturou-se com o bulício geral.

Anne observou as costas de Reece enquanto este desmontava lentamente, com sumo cuidado. Não se viam vestígios de sangue, de modo que Anne, acreditando que a ferida não tinha começado a sangrar outra vez, pensou que Reece se mostrava simplesmente precavido.

Anne pensou de novo nos meios-irmãos, que ao sentir a mais leve pontada de dor, começavam a queixar-se e mandavam buscar a anciã da aldeia versada em saberes médicos. Temendo que a obrigassem a converter-se em enfermeira deles se aprendesse a arte de curar, Anne evitava sempre a proximidade da anciã. Agora, pela primeira vez, lamentava a sua ignorância.

Reece chamou Trevelyan e fez-lhe um sinal com a cabeça, indicando-lhe que ajudasse Anne a desmontar, mas Piers adiantou-se.

- Vem, Anne, permite-me - disse, levantando os braços.

Ela apoioa as mãos nos ombros dele e deu-se conta de que o irmão não olhava para ela. Estava cara a cara com ela, mas pelo canto do olho observava Lisette, que tinha levantado um pouco a saia para descer da carroça, deixando a descoberto os seus lindos tornozelos.

- Piers - advertiu-o Anne suavemente, - A Lisette é muito bonita, mas por favor presta atenção. Não quero cair no barro.

Piers sorriu, envergonhado, e fixando a sua atenção nela, ajudou-a a desmontar. Entretanto, Reece aproximou-se dos soldados. Um murmurou algo e sorriu. Reece começou a rir, apesar da dor, com um riso melodioso e agradável como a sua voz, e deu uma palmada no ombro do soldado. Saltava à vista que podia ser simpático e descontraído, embora com ela não.

Naturalmente, ela era quase uma estranha para ele e ele para ela, ainda que a tivesse impressionado profundamente o que, até a esse momento, tinha visto dele e a gentileza com que a tratava.

A voz de Trevelyan Fitzroy atravessou a clareira desde a carroça, chamando a sua atenção.

- Permite-me que te acompanhe ao ribeiro, Lisette. Pode haver bandidos ferozes por estes lados.

Bandidos ferozes que não reparavam numa guarda de vinte homens armados e um cavaleiro? Piers olhou, mal-humorado, para o jovem, que estava apoiado na carroça, sorrindo para Lisette. Era um jovem realmente bem-posto, ainda que não tanto como o irmão, nem mais que Piers.

Anne voltou a olhar para o marido. Este tinha levantado o gibão para ver a ligadura e ela notou com alívio que não estava manchada de sangue.

- Bandidos, o tanas - murmurou Piers asperamente, chamando a sua atenção. - Só quer estar sozinho com ela.

Lisette e Trevelyan dirigiram-se ao ribeiro e Anne observou-os enquanto se afastavam.

- Vê bem o quanto ela vai longe dele - comentou. - E parece que o único que fala é ele. Isso, te garanto, não é próprio da Lisette - Anne sabia que o maior desejo de Piers era converter-se num grande campeão nos torneios, por isso lançou-lhe um sorriso tranquilizador e acrescentou: - Não tenhas ciúmes do Trev. Ela disse-me que queria um amante e não um soldado. Não creio que tenhais hipóteses com ela, nenhum dos dois.

Mas, fosse o que fosse que Piers planeava para o seu futuro, por azar, tornou-se claro de imediato que não pensava permitir que Trevelyan Fitzroy triunfasse sobre ele no que respeitava a Lisette.

- Ela não recusou a oferta dele.

- É o filho do seu novo amo. Não quererá ofendê-lo.

Os olhos de Piers semicerraram-se.

- Creio que não deveriam ficar sozinhos. Não confio nele. Olha o que o irmão fez.

Como se ela precisasse que lho recordasse! Anne procurou ignorar a pontada de desgosto que sentiu enquanto Piers se encaminhava em direcção ao ribeiro com tanta decisão que, temendo que fizesse alguma asneira, começou a andar atrás dele.

- Milady?

Deteve-se e, ao voltar-se; viu que Reece se aproximava dela. Não sabia o que fazer, se esperar por Reece ou continuar atrás de Piers. A celeridade com que Reece atravessou o espaço entre eles decidiu por ela.

- Os homens estenderam uma manta em cima da erva - disse, assinalando o lugar onde uns quantos soldados estavam a tirar cestas e odres de vinho da carroça. Anne sentiu o delicioso cheiro do pão fresco.

- Vou já - disse. - Queria esticar um pouco as pernas primeiro.

E seguir Piers.

- A mim também me sabia bem.

Reece estendeu o braço e Anne não teve outro remédio senão agarrar-se a ele. De novo, apesar de se preocupar com a hipótese de que Trevelyan e Piers se metessem numa briga, o contacto com o corpo de Reece causou-lhe um agradável estremecimento. Mal podia imaginar o que sentiria se fizesse amor com ele. No entanto, a sua fértil imaginação esforçava- se para tentar, de tal forma que sentiu o calor do rubor nas faces.

- Quereis que passemos junto do ribeiro, milady? - perguntou ele; tão sereno como um dia sem vento, enquanto ela tentava ignorar as sensações que lhe provocava.

- Sim, quero.

Reece seguiu o caminho que tinham tomado Piers, Trevelyan e Lisette. Talvez ele também tivesse notado a rivalidade que reinava entre os dois rapazes e, por isso mesmo, tinha escolhido essa rota.

Devia falar-lhe disso ou deixá-lo, assim? perguntava-se Anne. No fim de contas, tendo em conta o que lhe tinha confiado Lisette, certamente não havia motivo para se preocupar. Se bem que, por outro lado, Lisette era jovem como eles e os dois rapazes eram bem-postos e de familia nobre. Não seria a primeira criada, nem a última, que se deixava levar pelos seus desejos.

Anne descontraiu-se ao ver que Piers estava agachado na borda, fingindo que ia beber, enquanto Trevelyan e Lisette falavam muito longe dali.

Reece parou.

- Não há motivo para preocupação. O Trevelyan é um cavalheiro.

Então, tinha mesmo adivinhado a razão do passeio até ao rio. Talvez não devesse surpreendê-la, nem ser causa de aborrecimento, mas havia algo no tom de voz dele de que Anne não gostou. Afastando o braço, olhou-o de frente e levantou o queixo.

- Piers também é.

- Fico contente por isso - murmurou ele, percorrendo-a suavemente com o olhar.

Apesar da indignação que tinha -sentido um momento antes, aquele olhar despertou nela uma onda de desejo. De imediato, sentiu-se como na noite do casamento, nervosa e tão cheia de emoções que lhe faltava o ar.

Procurou concentrar-se no problema que tinham.

- Talvez devêsseis falar com o vosso irmão. Não quero que tente seduzir a minha criada. Não permitirei que use Lisette para adquirir experiência, como fazem muitos jovens nobres com as criadas das suas casas.

Imediatamente se arrependeu de ter falado tão asperamente. Aquele tom teria enfurecido Damon. Mas, então, deu-se conta que Reece não parecia chateado. Parecia... impressionado.

- A preocupação que mostrais pela vossa criada honra-vos, milady - disse mansamente, com a voz suave e íntima que Anne imaginava que utilizaria quando estivesse na cama com uma mulher. - Mas, como vos dizia, o Trevelyan é um cavalheiro. Não a trataria pior que a uma dama - os seus lábios curvaram-se num sorriso. - Além disso, quando chegarmos a Castle Gervais e começarem a treinar, vão estar ambos demasiado cansados para pensar em mulheres.

A sua suave resposta impulsionou Anne a fazer-lhe outra pergunta que a inquietava.

- Tenho estado a perguntar-me como pensais explicar o facto de dormirmos separados quando paramos de noite, pois suponho que não pensais partilhar a minha cama.

- Pois, é claro que não. Não deve haver dúvida de que nunca... de que não. de que o casamento não foi consumado - respondeu ele. - E é possível que precisemos de testemunhas.

Ela lembrou-se do que tinha dito Blaidd Morgan acerca dos Fitzroy, que se lhes travava a língua com as mulheres. Nesse momento, tinha-lhe parecido mais uma das suas graças, mas agora começava a perguntar-se se seria verdade. Isso explicaria o silêncio de Reece e as suas respostas soltas.

Mas, como devia interpretar que, em certos momentos, falasse mais livremente? Como um sintoma de que se sentia bem com ela ou de que não lhe importava o que pensasse dele?

- Lisette pensou que no dia do casamento fostes embora por causa das vossas feridas - disse, oferecendo-lhe uma desculpa. Sem dúvida que ninguém acharia isso estranho.

Por mais que tentasse concentrar-se unicamente num problema mais angustiante, não podia separar a ideia de fazer amor com ele do que Lisette lhe tinha dito. A fera à solta.

Mesmo nesse momento, ali de pé, junto do ribeiro, com a ferida nas costas, havia nele um ar de vitalidade contida. E, ao dar-se conta disso, como sempre, perguntou- se o que aconteceria se aquela contenção desaparecesse algum dia.

- Esperemos que toda a gente chegue à mesma conclusão, porque não tenho vontade de dar explicações aos estalajadeiros nem a mais ninguém e não gosto de mentir.

Ela ficou surpreendida que tivesse escrúpulos por mentir a um estalajadeiro ou a qualquer outro plebeu.

Damon e Benedict, sem dúvida, não os tinham. Eles mentiriam ao próprio rei se conviesse aos seus propósitos. Como já tinha acontecido.

Anne olhou para as costas de Reece.

- Incomoda-vos a ferida?

- Não.

- Já não sangra, pois não?

- Não.

- Lamento não saber a arte da cura para poder ajudar-vos.

- Não quero a vossa ajuda.

As suas palavras bruscas, inesperadas, depois do modo como tinha falado, bateram em Anne como um doloroso raio. De imediato, deu meia volta e encaminhou-se em direcção à clareira. Ele agarrou-a por um braço para a deter. Anne voltou- se para olhar para ele, tentando reprimir as lágrimas. Não queria que soubesse que a tinha magoado. Não lhe daria o poder que Damon tinha sobre ela.

- Eu também sou um cavalheiro, Anne - disse Reece em voz baixa e áspera. - Mas, que Deus tenha pena de mim, nunca nenhuma mulher me tentou tanto como tu.

 

Anne levantou na direcção dele os seus olhos verdes, brilhantes e inquisitivos, e a determinação de Reece estremeceu como uma pequena árvore no meio de um vendaval. Oh, Deus, como desejava beijá-la!

Um instante depois, não pôde resistir por mais tempo ao impulso que o embargava e, esquecendo-se de Trevelyan, de Piers e da alegre criada, tomou Anne nos braços e beijou-a apaixonadamente.

A esposa, aquela mulher bela e desejável, a mulher cuja presença a seu lado constituía uma tortura, deixou escapar um leve gemido, semelhante aos que as mulheres faziam no momento alto da paixão. Um som que Reece desejava escutar tendo-a nua entre os seus braços, apesar da impossibilidade de tal coisa.

Ela pôs a cabeça para trás como se tivesse sede e bebesse com vontade e a sua boca moveu-se com delicadeza e sensualidade. As mãos dela deslizaram pela cintura e pelas costas dele; puxando-o para si com uma força que ele não imaginava que possuísse. O beijo fez-se mais suave e doce e Reece abriu caminho entre os lábios entreabertos de Anne e deslizou na cálida humidade da sua boca.

Aquilo foi demasiado, ou demasiado precipitado, ou talvez ela recordasse melhor que ele a razão pela qual não deviam ficar juntos, pois afastou-se dele e olhou-o fixamente.

Reece amaldiçoou-se de novo por ser tão fraco de vontade. Era como se a sua sensatez se dispersasse como palha ao vento quando estava com Anne.

Ela não disse nada, mas o que havia para dizer? Mais uma vez a culpa era dele e só dele. Olhou rapidamente para Lisette e para os rapazes.

Não os tinham visto. Nem sequer sabiam que Anne e ele estavam ali, ocultos pela sombra das árvores. Graças a Deus.

- Sinto muito, Anne - disse asperamente. Não voltará a acontecer. Vinde. Devemos voltar para junto dos outros.

Antes que pudesse responder, Reece chamou Trevelyan e regressou com passo rápido para a clareira, deixando-a para trás.

Nem sequer voltaria a dar-lhe a mão. Se queria que o plano desse certo, devia manter-se afastado dela e ela dele. Não devia tocá-la, nem ficar sozinho com ela, nunca mais.

A menos que quisesse que a sua família ficasse vinculada aos odiosos Delasaine e que o seu futuro caísse aos seus pés.

- Então o duque disse mas, senhor, essa é a minha mulher! " - concluiu Lisette, rindo alegremente.

Desde que tinham recomeçado a viagem e Anne tinha decidido ir na carroça em vez de montada em Esmeralda que a criada tinha estado a deliciá-la com histórias sobre a vida na corte francesa. Anne tinha dito, para se desculpar, que estava cansada e preferia a brandura da almofada do assento da carroça, mas na realidade, estava tão confusa por causa do comportamento do esposo e por aquele beijo apaixonado que não desejava continuar montada a seu lado.

O abraço de Reece tinha-a apanhado totalmente desprevenida. Bem, talvez não de todo. Tinha percebido a mudança de expressão dos olhos dele e sentido que o seu próprio coração se acelerava ao vê-lo. Tinha esperado, quase sem fôlego, perguntando-se o que ia dizer ou fazer. E então beijara- a e ela tinha compreendido que beijar Reece era como nenhuma outra coisa no mundo: excitante, maravilhoso, deslumbrante...

Aturdida pela fogosidade do marido e pela sua própria resposta, sentira-se surpreendida, sem esquecer, enquanto isso, que Piers estava muito perto.

Não queria que também enfrentasse Reece, por sair em sua defesa desnecessariamente.

Ou talvez não tão desnecessariamente. Ainda que não parecesse provável, podia ser que Reece a culpasse se o seu plano saísse mal. Mas, a julgar pelas suas palavras, aquela seria a última vez que a beijava, de modo que o mais sensato seria esquecer tudo. Além do mais, Anne devia aproveitar aquela oportunidade para descobrir o que pensava Lisette de Piers e de Trevelyan, para saber com que contar. Sem dúvida que o comportamento dos rapazes não tinha passado despercebido à jovem, nem o que isso significava.

- Lisette?

- Oui, milady? - perguntou a rapariga alegrémente.

- Lisette, reparaste que o meu irmão e o meu cunhado. - era a primeira vez que usava aquela palavra e soou-lhe um pouco estranha, - que o meu irmão e o meu cunhado gostam de ti.

O brilho nos olhos de Lisette não diminuiu.

- Oh lá lá, mas claro, milady. São umas crianças. É natural na idade deles, não é? - continuou Lisette com naturalidade. - Baixas, altas, gordas, magras, gostam de todas.

Anne não era uma especialista em rapazes adolescentes. Só conhecia Piers.

- A sério?

Lisette desatou a rir outra vez.

- Pois sim, a não ser que estejam doentes claro. São como cachorrinhos, sempre a correr. Por isso é natural que falem comigo, que queiram chamar a minha atenção e que resmunguem e briguem como se eu fosse um osso para roer.

Anne também sabia o que era não ser mais do que um objecto por quem os homens brigam e detestava, enquanto que, por estranho que parecesse, isso parecesse divertir Lisette.

- E não te incomoda?

- Por que me incomodaria? É simplesmente a sua natureza, como comer ou dormir. Se não fosse por mim, seria por outra rapariga, ou por um cavalo ou por um par de botas. Haveis visto alguma vez dois veados a chocar de cabeça? Pois os rapazes da idade deles são iguais.

Lisette falava como se tivesse que se mostrar indulgente com eles. No entanto, a rivalidade deles podia causar problemas e por isso devia tirar a limpo quais eram os sentimentos de Lisette.

- Gostas de algum deles?

Lisette ficou séria de repente.

- Para ir para a cama, quereis dizer? Mon Dieu, não, milady! Eu quero um homem, não um menino. De certeza que são os dois virgens, não terão experiência, não saberão nada de nada. Sentir-me-ia como uma professora e asseguro-vos, senhora, que quando estou com um homem não quero dar aulas. Não quero que balbuciem e que duvidem. Quero deixar-me levar pela paixão do meu amante, perder-me no seu abraço, sentindo só desejo e urgência...

- Entendo - interrompeu-a Anne, com a voz um pouco tensa. As descrições de Lisette eram demasiado vívidas. Sobretudo porque pareciam representar na perfeição como Anne se sentia quando Reece a beijava. - Parecia-me que não lhes estavas a dar esperanças, mas queria ter a certeza.

- Pois a senhora pode ficar bem tranquila - replicou Lisette, abanando a cabeça e cruzando os braços.

Anne pôs-lhe suavemente a mão no braço.

- Não queria ofender-te nem incomodar-te, Lisette.

Continuava muito séria, mas Anne viu, com alívio, que a alegria voltava aos seus olhos brilhantes.

- Desculpe o meu aborrecimento, milady. Suponho que uma irmã tem o dever de zelar para que o irmão mais novo não seja seduzido por uma jovem parisiense.

Anne desatou a rir.

- Sim, é isso mesmo. Esse é um dos meus muitos deveres. Como tu dizes, os rapazes são como os cachorros e precisam de muita atenção.

- Tal como os homens - comentou Lisette com um risinho.

Anne suspirou.

- Eu não sei muito de homens.

Desta vez foi Lisette quem lhe deu uma carinhosa palmada no ombro.

- Enquanto ele a desejar, tem tempo de sobra para aprender. E a recompensa vale a penadisse, piscando um olho, - como verá quando o seu esposo se recuperar das feridas.

Anne corou. Nunca saberia as recompensas que esperavam a esposa de Reece, mas desejava sabê-lo. Oh, quanto o desejava!

Reece fez o cavalo dar a volta e dirigiu- se a elas. Anne engoliu em seco, surpreendida. Tê-las-ia ouvido falar? Teria ouvido a última coisa que Lisette tinha dito? Oh, Deus queira que não!

- Pararemos de seguida para passar a noite - anunciou ao chegar a seu lado.

Sem a olhar nos olhos, passou ao longe para dizer aos outros e Anne compreendeu que falava a sério: nunca mais voltaria a tocá- la.

Três dias depois, Benedict entrou numa estalagem do caminho. Não havia outra entre a última e esta. Esse maldito Fitzroy e Anne tinham que ter passado a noite anterior ali.

Depois de tirar a capa empapada e atirá- la para o banco mais próximo, sentou-se e gritou, pedindo cerveja. Tinha estado a chuviscar todo o dia e os caminhos tinham-se convertido em lamaçais. Da janela com gelosia do telhado, caíam gotas sobre o fogo da chaminé que ocupava o centro da divisão. Um cão magro jazia ao seu lado, a dormir. Havia mais goteiras no tecto, mas nenhuma sobre ele.

- Maldito Damon - murmurou Benedict em voz baixa enquanto observava a divisão vazia.

Gritou de novo, cada vez mais zangado. Onde estava o estalajadeiro ou a mulher? Estava a ponto de se servir ele mesmo, quando entrou uma muLher na divisão. Alta e vestida com pobres remendos, avaliou com o olhar a roupa e a espada de Benedict, assim como a algibeira que estava pendurada no cinto. Então, o seu lento sorriso esvaneceu em parte a ira de Benedict, que soube de imediato que aquela mulher oferecia algo mais do que comida e cama para passar a noite.

- Até que enfim, minha linda - disse ele. - O que tem que fazer um homem para que lhe dêem um pouco de cerveja?

Ela aproximou-se lentamente.

- Pagar. E o mesmo se quiser outra coisa. Ele estendeu um braço e ela sentou-se nos joelhos dele. Ela desatou a rir com um riso baixo, gutural e astuto.

Não era tão jovem como parecia à primeira vista e tinha os dentes estragados; mas era uma mulher. Benedict deu uma palmada na algibeira.

- Quanto custa comer e dormir uma noite?

- Três centavos.

- E o resto?

Ela desatou a rir outra vez.

- Cinco centavos.

Ele franziu o sobrolho e afastou-a brusca mente.

- É muito.

Ela não pareceu ofender-se.

- Se tu o dizes. Os outros pagam - lançou- lhe um olhar malicioso. - Eu valho-o.

Benedict tinha estado com muitas pegas, conhecia todas as suas artimanhas.

- Pois que o paguem. Eu conformar-me-ei com a cama e a comida.

- Bom, como sois tão bom moço, pode ser que vos cobre menos.

Ele sorriu, satisfeito. E Damon pensava que era um gastador.

- Está bem. Quanto?

- Um centavos a menos.

Ele assentiu.

- Mas a comida primeiro, não é?

- Claro.

Enquanto a estalajadeira ia buscar a comida, Benedict abanou a cabeça, tentando secar um pouco o cabelo. Procurou um lugar melhor, onde pudesse encostar-se contra a parede.

O Damon podia ir para o inferno se o criticasse por gastar dinheiro com uma pega. Ele que seguisse a Anne e o marido. Que cavalgasse sozinho por todos os caminhos do campo, com frio e calor, seguindo o rasto dela como um cão.

E para quê? Não para conseguir dinheiro; nem jóias, nem prazer. Mas sim somente informação.

Era Damon quem devia estar ali, e não ele, se pensava que o que Ann podia contar era tão importante.

A mulher regressou com um pão e um estufado de vitela que cheirava bem, por estranho que parecesse. Benedict esqueceu por um momento as queixas contra o irmão e comeu com apetite, acompanhando com dois jarros de cerveja.

Uma vez saciada a fome, voltou a atenção para a estalajadeira.

- Como te chamas, linda? - perguntou quando esta lhe levou o terceiro jarro.

- Radella.

- Bom, Radella, como parece que não há ninguém mais por aqui, por que não te sentas a beber comigo?

O que importava um centavo ou dois a mais para ganhar os seus favores? Depois estaria mais complacente e ele gostava de mulheres compla centes. E talvez não se importasse que ficasse um pouco bruto. Ele gostava de ficar bruto.

Radella arqueou as sobrancelhas, assentiu e, servindo-se de um jarro de cerveja, sentou-se junto dele.

- Bom, Radella - disse Benedict, com a boca cheia do último pedaço de pão e molho do estufado, - hoje não há muito movimento por aqui, pois não?

Ela bebeu um longo gole de cerveja e limpou a boca com as costas da mão.

- Não, hoje não.

Benedict pensou que mostraria a Damon que era esperto. Talvez não fosse tanto como ele, mas ainda assim, podia saber das coisas.

- Isto costuma estar tão vazio?

Radella abanou a cabeça e pareceu um pouco ofendida.

- Não. É por causa da chuva. Ontem tivemos muita gente. Um cavaleiro e a esposa, com a guarda - Benedict levantou uma sobrancelha atentamente, enquanto comia o pão. - Era sir Reece Fitzroy - continuou ela depois de beber um outro gole.

- Um bom homem, ouço dizer - disse Benedict depois de arrotar. - E generoso.

Radella franziu o sobrolho e encolheu os ombros.

- Como tem que ser - olhou-o com receio. Vós conhecei-lo?

- Ouvi falar dele. E do pai.

- Ah - continuou a olhar para ele com descon fiança. - E vós quem sois?

- Um cavaleiro que volta para casa - mentiu ele. - A minha mãe está doente.

Sabia que falar de um parente doente resultava com as mulheres de coração terno, mas Radella não parecia especialmente impressionada. Ao que parecia, era dura de roer.

Ele gostava assim. Não se queixavam se as magoassem.

- Dizem que é muito bem-posto - continuou.

Radella encolheu os ombros com aborrecimento.

Benedict adivinhou por que parecia tão chateada. Uma pega como ela teria notado, sem dúvida, a distância que separava Reece e Anne e de certeza teria tentado preenchê-la, ao menos por uma noite. Reece devia ter recusado a sua oferta.

- Tenho ouvido que o obrigaram a casar com a esposa - disse Benedict.

Radella abriu muito os olhos e inclinou-se para a frente avidamente.

- Eu sabia que se passava algo estranho. Disse-me que estava ferido, mas pareceu-me que não era só isso. Mal lhe disse duas palavras em todo o tempo que aqui estiveram.

Então Anne não estava a fazer nenhum progresso. Damon não acharia graça nenhuma a isso.

Mas, fosse o que fosse que acontecia entre Anne e o marido, podia esperar até ao dia seguinte. Aquela mulher queria assegurar-se de que continuava a ser atraente depois de um homem a ter rejeitado. Uma mulher despeitada fazia o que fosse para satisfazer outro homem.

Benedict secou a boca e sorriu.

- E agora, linda - começou, levantando-se e dizendo-lhe exactamente o que queria que fizesse.

Radella levantou-se e retrocedeu.

- Eu não faço essas coisas. Só o normal. Mas Benedict não deixava que nenhuma mulher lhe pusesse condições. Em pequeno tinha odiado a mãe de Anne por tentar dizer- Lhe o que não devia fazer.

- És uma rameira e fá-lo-ás - disse, aproximando-se dela.

Radella retrocedeu, olhando-o com medo e repugnância.

- O meu homem está lá fora, a cortar lenha. Se eu grito, virá logo.

Benedict deu um salto em direcção a ela e agarrou-lhe o pescoço.

- Então, terei que te fazer calar.

 

Reece olhou de soslaio para Anne, que cavalgava a seu lado sobre a tranquila Esmeralda. Nesse dia, como durante quase toda a viagem, Anne parecia tão tranquila como a égua e tão calada e imóvel como se fosse a estátua de uma tumba gravada num bloco de pedra. Ao menos nessa tarde não chovia, como no dia anterior. O céu estava nublado, mas não ameaçava chover.

Bom, Anne não era de todo uma estátua; de vez em quando voltava-se para olhar para o irmão, que ia atrás.

Reece perguntava-se se ainda a preocupava a rivalidade entre os jovens por causa de Lisette. A ele não; pois estava convencido do que tinha dito a Anne: quando chegassem a Castle Gervais, nem Piers nem Trevelyan teriam tempo nem energias para brigar por uma rapariga.

Ele, pela parte que lhe tocava, não entendia a que se devia aquela rivalidade. Sim, Lisette era bonita e alegre, mas ria-se demais e falava pelos cotovelos. De facto, lembrava-lhe as mulheres da corte, que se riam e brincavam quase sem cessar, não como Anne.

Mas, apesar disso, não deveria tê-la seguido ao sair do salão do rei. Não deveria ter-se aproximado dela, nem nessa noite, nem nunca e, pelas chagas de Cristo, não deveria tê-la beijado. A lembrança dos seus lábios suaves aumentava o seu desejo crescente... e a sua frustração.

Afortunadamente, brevemente transporiam as portas de Bridgeford Wells. Sem dúvida, quando estivesse em casa ser-lhe-ia mais fácil evitar Anne, pois estaria entre a sua família e teria outras coisas com que se ocupar.

De repente, ouviu uma voz irada e deu-se conta de que era a de Trevelyan.

- Digo-te que fizeram bem em matá-los - de clarou Piers com vivacidade. - No fim de contas, eram infiéis.

- Não, não fizeram bem - respondeu Trevelyan. - Eram prisioneiros. Ouvi dizer isso ao barão DeLanyea, que estava lá. Mataram-nos como animais e eles comportaram- se como autênticos guerreiros. Mereciam alguma consideração.

Reece conteve um suspiro e, ao olhar de relance para Anne, deu-se conta de que estava muito séria.

- Mas ainda assim eram infiéis - disse Piers, se não os tivessem matado, teriam voltado para lutar contra a Causa Santa.

Uma velha discussão entre soldados, da qual Reece não queria nem ouvir falar. Tinham passado mais de. trinta anos desde essa batalha.

Reece voltou-se na sela e dirigiu-se ao irmão.

- A estalagem fica depois da próxima curva. Vai à frente, Trevelyan, e diz-lhes que vamos.

Piers, como um jovem idiota, lançou-lhe um olhar triunfante. Reece adivinhou por que se mostrava tão satisfeito. Pensava que assim podia ficar com Lisette.

- Piers, vai tu também.

Trevelyan desatou a rir e, esporeando o cavalo, partiu a galope. Piers franziu o sobrolho, esporeou a sua montada e saiu atrás dele.

Não tinha sido uma ideia brilhante, pensou Reece, franzindo o sobrolho ao vê-los passar a todo o galope. Os cascos dos cavalos levantaram barro, salpicando Reece e Anne.

Antes que pudesse gritar-lhe que deixassem de agir como crianças, dobraram a curva do caminho. Depois, um pouco mais adiante, quando já se tinham perdido de vista, ouviu-se um grito.

Reece esporeou e ordenou que metade da guarda ficasse com as mulheres e que a outra metade o seguisse.

Anne não pensava ficar para trás. O grito não parecia de Piers, mas queria assegurar-se de que o irmão não tinha caído, nem estava ferido.

Milagrosamente, ao esporear-Lhe o dorso, Esmeralda saiu a galope.

Dobrou a curva. Os soldados que acompanhavam Reece detiveram-se a curta distância de Piers, Trevelyan e do marido, que tinha desmontado. Os rapazes estavam muito pálidos e Reece estava ajoelhado junto a algo.

Não, junto a alguém.

Jazia um menino no chão. Anne desceu rapidamente do cavalo e correu para junto deles, vendo que Reece ajudava a levantar com muito cuidado uma criança de uns oito ou nove anos, que olhava para os pés. Os seus lábios tremiam e Anne compreendeu que tentava não chorar.

Enquanto isso, do recinto murado que, sem dúvida, era a estalagem, saíram uns homens a correr que pareciam trabalhadores.

- É o tornozelo, não é? - perguntou Reece com voz suave, tocando delicadamente na perna do menino.

Este assentiu enquanto Reece lhe girava o pé com muito cuidado. Anne tranquilizou- se ao ver a sua expressão de alívio.

Perguntava-se o que diria Lisette de um soldado que tinha uma voz tão serena e apaziguadora. Devia falar assim quando estivesse deitado na cama, depois de fazer amor apaixonadamente.

- Ai, Peter, mataram-te? - gritou uma mulher, abrindo caminho entre o grupo de homens e arrastando-se de joelhos junto do pequeno.

- O tornozelo não está partido - disse Reece. Não tenhas medo, pequeno. Tratei de muitos feridos nos torneios. Estou certo que não está mais do que torcido. Vou ligar-te e terás que andar com cuidado durante um tempo, mas não te acontecerá nada.

O menino parecia tão espantado como se o próprio rei se tivesse oferecido para lhe curar a ferida.

Anne pensou que Reece era muito mais impressionante do que o rei e duvidava que Henrique soubesse mais do que ele sobre feridas e lesões.

Reece pegou no menino ao colo tão facilmente como se fosse uma pena.

- Para onde o levo? - perguntou à mulher.

- Para a estalagem. É meu filho - respondeu, mais calma. - Chamo-me Erwina.

- Não tem nada de grave - assegurou-lhe Reece. - Dou-lhe a minha palavra e, naturalmente, compensá-la-ei pelo susto que o meu irmão Lhe pregou.

A mulher ficou boquiaberta.

Trevelyan, que se tinha recuperado do susto, cruzou os braços.

- O Piers foi tão...

Reece fê-lo calar com um olhar.

- Traz o meu cavalo.

Com Peter nos braços, dirigiu-se para a estalagem. Erwina ia atrás dele, como uma galinha espantada.

As palavras cordiais de Reece ouviram-se durante todo o caminho até à porta.

- Olha, isto lembra-me uma vez em que o lord Rothenbury caiu do cavalo. Parecia-se muito contigo, Peter. Era um homem muito forte. Mas acho que tu vais ser mais alto.

Anne pensou que, com tal companhia, o rapaz se esqueceria depressa do tornozelo.

Entretanto, Trevelyan agarrou nas rédeas do cavalo de Reece e nas do seu e começou a andar atrás dele. Anne decidiu averiguar o que tinha acontecido pela boca de Piers, antes de os seguir.

- Íamos a cavalgar pelo caminho - explicou-lhe o irmão, - quando, de repente, o menino saiu desses arbustos ali - assinalou uns teixos e Anne viu um cesto no chão e um monte de castanhas à volta. O menino devia estar a apanhá-las no bosque. - Ficou parado quando lhe gritámos que se afastasse. Quando por fim tentou sair do caminho, caiu. Suponho que foi nessa altura que torceu o tornozelo.

- Então nenhum cavalo lhe bateu?

- Não.

Sentiu alívio por saber que nem Piers nem Trevelyan eram directamente responsáveis pela ferida do menino, mas, imediatamente, zangou-se de novo.

- E tínheis que ir a galope?

Olhando para o chão, Piers encolheu os ombros.

- Foi o Trevelyan que começou.

- Não, não é verdade. Os dois desataram a galopar como duas crianças. Pensas que sir Reece vai ficar impressionado com essas criancices?

- Não me importa o que pense de mim. Anne agarrou o irmão pelo queixo e fê-lo levantar a cara para que a olhasse de frente.

- Pois deveria importar.

Os olhos azuis do irmão brilharam, desafiantes.

- Porquê? Não sou eu quem se casou com ele. Anne deixou cair a mão e retrocedeu.

- Porque ele também pode ensinar-te muitas coisas.

- Desculpa, Anne - disse Piers, vacilante. - Sei que não tiveste escolha. Mas eu também não escolhi estar aqui. Sei que deveria aproveitar esta oportunidade, mas esse Trevelyan é um arrogante e um mimado.

- É o filho de Unen Fitzroy, por isso não é sensato enfrentá-lo - pôs-lhe a mão suavemente no braço. - Sobretudo por uma parvoíce - olhou insistentemente para Lisette quando a carroça dobrou a curva do caminho rangendo.

Piers corou e afastou-lhe a mão.

- Achas que devia desistir e deixá-lo ganhar?

- E o que há para ganhar? A atenção de uma rapariga? Terás tempo de sobra para isso quando tiveres aprendido. E para fazer corridas de cavalos, também. Tens coisas mais importantes para fazer enquanto estiveres com os Fitzroy. Vamos, entremos na estalagem.

- A sério que esse menino saiu do nada, como um fantasma - reiterou Piers enquanto caminhavam até ao édifício murado.

- Estou certa que aconteceu como dizes. Não falemos mais disso.

Aliviado, Piers não disse mais nada.

A estalagem era pobre. O pátio estava sujo, cheio de móveis velhos, e o muro que o rodeava era de pedra tosca, por polir. Uns frangos picavam junto do estábulo e uns porcos grunhiam na pocilga, no outro lado do curral, longe da casa, que era de madeira e não muito grande.

Enquanto Piers se ocupava de Esmeralda, Anne entrou e juntou-se ao pequeno grupo junto ao menino ferido. O chão estava coberto de palha, também suja, e o fogo da chaminé central expelia um fumo denso.

Peter permanecia deitado num banco coberto com almofadões de penas de ganso enquanto Reece lhe ligava o tornozelo. O menino olhava para o seu médico com admiração. Parecia que a entorse já Lhe doía menos, ou talvez a tivesse esquecido por completo, ouvindo as histórias do desventurado lord Rothenbury com que Reece o deliciava: Erwina atarefava-se à volta dele, levando-lhe queijo, pão e cerveja.

Anne sentiu-se completamente desnecessária. Então, Peter viu-a e os seus olhos ficaram ainda maiores, até ao ponto de parecer um bufo assustado. Reece olhou para trás.

- Apresento-vos a minha esposa, lady Anne - disse a Peter, como se este fosse um nobre de alto posto.

- Como estais? - respondeu ela com a mesma formalidade.

Peter parecia demasiado assombrado para responder. Erwina, no entanto, apressou-se a compensar o seu silêncio.

- Bem-vinda! Bem-vinda, milady! - gritou. O que vos apetece comer? O que quiser, milady, desde que o tenhamos, para vós e para o vosso excelente marido. Posso torcer o pescoço a uns quantos frangos num ápice e assá-los no espeto num abrir e fechar de olhos. Também tenho um presunto, curado com as minhas próprias mãos, como não há outro no condado, embora fique mal ser eu a dizê-lo. Ou apetece-lhe um pouco de guisado de vitela? Fi-lo ontem e hoje está ainda melhor. Uma empada de carne? Um pouco de queijo? Maçãs?

- O frango assado vai cair-nos muito bem - disse Anne. - Mas assegure-se que há o suficiente para toda a nossa guarda.

- Claro, claro, milady. Não faltaria mais nada!

- exclamou a mulher, saindo apressadamente. Anne já se tinha sentado noutro banco quando o cacarejo dos frangos a advertiu que a estalajadeira já tinha posto mãos à obra. Entretanto, o resto da comitiva começou a entrar na divisão, de modo que Anne não teve oportunidade de falar com Reece.

Os soldádos estavam ansiosos por beber um pouco de cerveja e, enquanto os frangos estavam a assar, Erwina apressou-se a levá- la.

Enquanto isso, Reece acabou de ligar o tornozelo do menino e, sorrindo, levantou- se e olhou para o seu jovem paciente de um modo que fez com que o coração de Anne se encolhesse no peito.

Assim olharia um pai carinhoso para o filho. Assim olharia Reece para um filho de ambos, se quisesse fazer dela sua esposa de verdade.

Anne deixou escapar um suspiro quando ele se sentou ao seu lado e bebeu o jarro de cerveja que Erwina lhes tinha levado. Primeiro ofereceu-o a Anne sem dizer nada, mas ela abanou a cabeça.

- Não sabia que sabíeis curar feridas - disse ela passado um bocado, tentando romper a tensão causada pela sua proximidade.

Ele encolheu os ombros.

- É natural. O meu pai insiste em que todos os seus pupilos aprendam a reconhecer se um osso está partido ou não. Também Lhes ensina a curar outras feridas que podem sofrer no campo de batalha.

Ela assentiu.

- Foi o vosso irmão quem vos tratou? Reece esboçou um sorriso cansado.

- Não. Não somos tão soberbos para recusar um médico, se houver um por perto - desviou o olhar e, sentando-se mais direito, observou a divisão. - Onde estão os rapazes e a vossa criada?

Pensando nele, Anne esquecera-se deles.

- Não sei.

Reece levantou-se rapidamente e saiu da pousada com Anne atrás.

Lisette estava a atar a lona que cobria a parte de trás da carroça. Tinha aos pés uma pequena arca que continha os adereços de Anne. Um moço levava os cavalos para o estábulo desajeitado. Dos rapazes não havia nem rasto.

Reece virou a cabeça na direcção da cozinha e, então, ela também ouviu: o ruído abafado de uma briga.

Reece correu até à parte de trás da cozinha e Anne saiu atrás dele. Ao dobrar a esquina do edi ficio, tinha um nó no estômago. Reece soltou uma maldição. Piers e Trevelyan rolavam pelo chão, agarrados um ao outro.

Reece desatou a correr para eles e Anne seguiu-o. Não sabia o que o marido ia fazer, mas quanto a ela o seu primeiro impulso era sempre proteger Piers. Parou quando viu que Reece agarrava os dois rapazes pelas costas dos gibões empoeirados e os obrigava a levantar. Ao soltá-los, ambos cambalearam um pouco antes de recuperar o equilíbrio. Anne viu de seguida que nenhum estava ferido. Não havia sangue e, ainda que possivelmente os dois tivessem umas quantas contusões, isso era tudo.

Reece ficou a olhar para eles um bocado, demonstrando uma paciência que surpreendeu Anne, por ser um guerreiro. A resfolgar, olharam um para o outro e depois olharam para Reece.

Pouco a pouco acalmaram-se.

- Pode saber-se que diabo estais a fazer, em nome de Deus? - perguntou Reece finalmente quando os rapazes recuperaram a respiração.

Anne não sabia se havia de ir ou ficar, mas de uma coisa estava certa: dado que Reece não parecia ter intenções de desafogar a sua ira fisicamente, o melhor seria que mantivesse a boca fechada. Talvez Piers se zangasse ainda mais se a irmã se intrometesse.

- E então, Trevelyan? - perguntou com uma voz tão severa e fria que Anne quase sentiu pena pelo rapaz.

- Estamos a tratar de um assunto – declarou Trevelyan, limpando a face cheia de barro com a mão ainda mais suja de barro.

- Por que estais a brigar? - perguntou Reece. Para esclarecer de quem é a culpa de que esse menino tenha estado a ponto de perder a vida? Pelo que me diz respeito, sois os dois igualmente culpados.

Piers ergueu-se.

- Eu estou disposto a aceitar a minha parte da culpa. - disse. - Ao contrário de outras pessoas eu sei admitir que cometi um erro sem que os outros paguem as consequências.

Trevelyan fechou os punhos.

- O que quéres dizer com isso?

- O que disse. Anne teve que casar-se com o teu irmão e era completamente inocente.

Anne desejou que não tivesse dito aquilo.

- Calai-vos os dois - disse Reece.

- Mas, Reece, está a insultar-te! - protestou Trevelyan.

- Se é assim, sou eu quem deve dar-se como ofendido - replicou sem perder a calma. - E não o faço. Não me importa o que esse jovem pensa de mim.

Anne ficou contente por Reece não se sentir ofendido, mas inquietou-se na mesma. Nenhum homem gostava de ouvir que uma opinião ou um pretenso insulto seu fosse levado tão levianamente.

- As brigas incomodam-me - continuou Reece - ordeno-vos que não volveis a brigar. Enquanto estiverdes nesta comitiva ou em Castle Gervais, sois aliados e não inimigos - assinalou o edifício mais próximo. - Agora, entrai os dois ou levar-vos-ei eu mesmo.

Anne pensou que era muito bem capaz de cumprir a ameaça. Mas, ainda que a sua força física não deixasse de a impressionar, ainda a impressionava mais que não favorecesse o irmão. Tratava os rapazes de igual modo.

Isso lembrou-lhe o que tinha dito acerca da igualdade com que os pais os tratavam, aos irmãos e a ele. Ela mostrara-se um tanto céptica a respeito, devido à sua própria familia. Mas agora acreditava... e invejava Reece por isso.

- Eu só disse a verdade! - gritou Piers.

- Piers - disse ela com voz firme, - por favor, faz o que te mandou.

O irmão olhou-a, zangado, por um momento, corado pela raiva e pelo orgulho ferido, como se fosse desobedecer. Mas respirou fundo e as mãos abriram-se.

- Muito bem, Anne. Porque tu me pediste. Dizendo isto, voltou para a estalagem.

- Trevelyan? - disse Reece, arqueando inquisitoriamente uma sobrancelha.

O rapaz vacilou um momento, mas por fim afastou-se sem dizer uma palavra.

Anne suspirou e disse sem parar para pensar:

- Esta poderia ser uma viagem muito com prida.

Reece pareceu surpreendido, como se lhe ti vesse dado uma bofetada, e ela arrependeu-se imediatamente das suas palavras. Mas então ele esboçou um sorriso cansado.

- É evidente que ensinaram o Piers a contro lar-se, não como os irmãos mais velhos. O que deve ser obra vossa, fruto do vosso exemplo.

Aquele cumprimento fez Anne corar.

- Acredito que o vosso exemplo seja igualmente benéfico para ele.

Ele aproximou-se e o seu olhar fez-se mais intenso. O coração de Anne começou a bater como um passarinho assustado que batia as asas para começar a voar.

- Anne, queria.

Nesse instante, Erwina dobrou apressadamente a esquina da casa. Anne sobressaltou-se como se tivesse levado com uma flecha e Reece pareceu igualmente surpreendido.

- Ah; aqui estão, sir Reece e milady - disse Erwina. - A comida está quase pronta e há pão e sopa para começar.

Reece assentiu.

- Agora vamos - disse com calma.

A mulher sorriu com uma expressão alegre nos olhos.

- Não há pressa. Disseram-me que são recém-casados - disse; piscando um olho antes de desaparecer.

Reece tinha uma expressão ilegível.

- Será melhor que não nos demoremos ou scertamente quando chegarmos só restarão os ossos do frango. Trevelyan come por três.

- O Piers também - animada por aquele instante que Erwina tinha interrompido, Anne deixou vagar o olhar pelo seu magnífico corpo. - E atrever-me-ia a dizer que não vos fizestes tão alto e forte a jejuar.

Ele corou e, dando a volta, dobrou a esquina da casa.

E pensar que um elogio seu tinha feito corar un guerreiro! Anne sentiu vontade de rir como uma menina enquanto o seguia para o interior da estalagem.

 

Na manhã seguinte, Reece sufocou um bocejo e saiu para o pátio, onde o aguardavam Trev e Piers. Traziam paus fortes em vez de espadas verdadeiras e pareciam frescos depois de uma noite de sono reparador. Como eles, Reece estava em tronco nu.

Mas, em vez de um pau, empunhava uma larga espada e, depois de passar outra noite sem pregar olho, não precisamente por ter que dormir no chão de terra da estalagem, estava exausto.

Por mais que se esforçasse, não conseguia tirar Anne da cabeça, sobretudo de noite. Aquele cheiro a rosas que parecia fazer parte dela. A maneira como punha o cabelo para trás quando lhe roçava a face. A curva suave dessa face e o casulo rosado dos seus lábios tentadores. O arco das sobrancelhas. A linha do maxilar.

As restantes curvas da sua figura esbelta. Na noite anterior, como em todas as noites desde que empreenderam a viagem, tinha tido que se esforçar para não subir as escadas de madeira da estalagem e abrir com um pontapé a porta do quarto de Anne e exigir-lhe... pedir-lhe... suplicar-lhe que lhe concedesse os seus direitos de esposo.

Para não o fazer, pusera-se a lembrar de todos os exercícios marciais que o pai utilizava, desde o mais simples ao mais complicado, e depois os nomes de todos os homens da guarnição de Castle Gervais e dos seus respectivos cavalos. Depois começou com os cães. Finalmente, adormeceu, mas pareceu-lhe mais uma breve sesta que um autêntico sono nocturno. Nessa manhã, depois de nascer a auróra novamente, tinha decidido começar o treino de Piers Delasaine antes que as mulheres acordassem. Não queria acordar também Trev, mas como o rapaz acordou, preferiu deixar que se exercitassem os dois. De certo, isso permitir-lhe-ia parar de pensar em Anne e cansá-lo-ia o suficiente para poder descansar nessa noite. Além disso, Trev e Piers poderiam descarregar a energia que pareciam dispostos a gastar em corridas e brigas.

- Mantém a espada alta para te proteger a cara.

- disse ao irmão, mostrando-lhe como agarrar a espada diante do peito. - E não comeces a dançar sem motivo. Tens que vigiar o teu adversário - então voltou-se para Piers. - Tu não estejas quieto. És como um alvo no meio do campo.

- Cansar-me-ei se começo a dar saltos como uma pulga - murmurou Piers.

- O que preferes, cansar-te ou morrer? - respondeu Reece. - Não é preciso que te agites como o Trev. Mas não fiques aí pasmado como se estivesses a pousar para que te façam uma estátua. Cumprimenta, inclina-te e põe-te em guarda - ordenou-Lhe, mostrando-lhe o que queria que fizesse. Ao acabar, ergueu-se e afastou-se do alcance das armas deles. - Mantende os olhos bem abertos e inteligência alerta - disse-lhes. - Deveis vigiar o adversário. Agora, começai outra vez.

Observou as suas evoluções enquanto começavam a observar-se um ao outro. Trev empunhava melhor a espada de pau. Piers tentava mover-se. Estava claro que lhe era difícil desprezar a ideia de que simplesmente dando golpes a torto e a direito alcançaria a vitória. No entanto, era um rapaz inteligente e capaz de aprender, de modo que Reece esperava que depressa aprendesse a mostrar-se mais versátil em combate.

Piers era, além disso, muito forte. Reece pensou que não era de estranhar aquela força num Delasaine, mas ainda assim era espantosa, dada a fraca constituição do rapaz.

Perguntou-se se Anne seria também forte. Seriam os braços dela, por acaso, musculosos... ou as suas pernas nuas. envolvendo-lhe o corpo nu e apertando-o contra ela enquanto ele empurrava...

Atrás dele soou um delicado pigarreio. Um pigarreio de mulher.

Voltou-se e viu que Anne estava ali de pé. Parecia tão fresca como o primeiro botão de rosa da Primavera. Reece sentiu-se como um demónio luxurioso por ter tais pensamentos a respeito de uma mulher jovem e virginal que olhava para ele como se nunca tivesse visto um homem em tronco nu.

Corando como uma criança que tinha sido surpreendida pelas raparigas da aldeia a tomar banho nua no rio, agarrou na camisa e meteu-a pela cabeça.

- O que estais a fazer aqui?

- Perguntava-me onde estava Piers.

Não onde ele estava, claro. Anne não era mãe dele para o vigiar e também não era sua esposa de verdade.

- Podemos parar? - perguntou Trev, resfolegando. - Já me doem os braços.

- O pequeno-almoço já está pronto, Anne? perguntou Piers ansiosamente, e Reece sentiu uma pontada de inveja ao ouvi-lo falar com tanta familiaridade com ela.

- Quase. Mas devíeis lavar-vos antes – olhou para Reece. - Se já acabaram, claro.

Quando Reece assentiu, Piers deixou escapar um grito de alegria e atirou o pau para o monte de lenha onde Reece os tinha ido buscar. Trevelyan fez o mesmo, sem gritar, e ambos correram até à estalagem, fazendo uma corrida. Chegaram à porta ao mesmo tempo e os dois tentaram passar simultaneamente. Piers afastou Trevelyan com um empurrão. Trevelyan, por seu lado, esticou a perna e tentou passar uma rasteira a Piers, mas este conseguiu saltar o obstáculo.

- Espero que tenhais razão e que isto acabe quando chegarmos a vossa casa - disse Anne com um suspiro.

Reece reparou que tinha uma expressão preocupada e deu-se conta de que, na verdade, parecia tão cansada como ele. Perguntou-se se ela também tinha dificuldade em dormir e se seria pelas mesmas razões.

Então ela voltou-se para ele com um olhar de desespero tão visível que Reece se alarmou.

- Sir Reece, o que acontecerá quando chegarmos a Castle Gervais? Não acho que os vossos pais fiquem muito felizes por saber que vos casastes.

Tinha razão, é claro, e ele perguntara-se o mesmo. Deixou escapar um suspiro e recostou-se contra a parede da cozinha; dando-se tempo para pensar.

- Depois de vos apresentar aos meus pais, explicar-lhes-ei o que aconteceu e como se pode remediar a situação.

- Fazeis com que pareça muito simples. Assim era, apesar de saber melhor do que ela que não seria fácil confessar- lhes o seu erro, especialmente ao pai. Mas não havia outro remédio.

- Não tendes nada a temer, Anne. Isto não é culpa vossa. Deixá-lo-ei muito claro - franziu o sobrolho. - Devo advertir-vos, não obstante, que o meu pai é como um desses cães que ladram mais do que mordem. Ainda que, na verdade, também não ladre. Ou, pelo menos, não muito frequentemente. Mas temo que vos olhe fixamente e os seus olhares podem ser... enfim, podem fazer-nos sentir como se a nossa alma fosse um livro aberto para ele. Tentar esconder-Lhe um segredo é roçar a estupidez.

Anne pensou que aquilo não eram boas notícias. No entanto, ficava contente por poder falar com Reece sobre a chegada ao lar da sua familia, algo que a inquietava cada vez mais à medida que se aproximavam, embora, até ao momento, Reece não lhe tivesse dito nada que a pudesse reconfortar.

- Com respeito à minha mãe, não vos deveis preocupar: É uma mulher boa e carinhosa que adopta todos a quem conhece. Estou certo que se portará bem convosco, apesar de tudo - parecia tão certo disso que Anne se sentiu um pouco melhor. - E as minhas irmãs estão fora, a visitar uns amigos.

- Irmãs? - ela não sabia nada das suas irmãs.

- Suponho que Trev estava tão ocupado a chamar a atenção de Lisette e a discutir com Piers que não vos falou delas.

- Deveríeis ter sido vós a falar delas.

192

- Estive distraído. Por causa da ferida - olhou para o chão e Anne pensou logo em Piers quando, em pequeno, ela lhe ralhava por alguma coisa e ele se negava a confessar.

- Como são? - perguntou. - É difícil imaginar as vossas irmãs. Vós sois tão...

A voz dela desvaneceu-se. Reece levantou lentamente a cabeça e olhou para ela.

- Tão quê?

- Tão masculino.

Anne notou que fazia um leve gesto de surpresa e a sua falta de vaidade satisfê-la.

- Tenho duas irmãs - disse ele, preferindo não responder ao seu elogio. - Roana nasceu depois de mim e Freya, depois do Gervais. Saíram à minha mãe, assim não se parecem muito com os meus irmãos nem comigo. Gervais, Trev e eu saí mos ao nosso pai - ele olhou para ela atentamente. - Vós também não vos pareceis com os vossos irmãos.

- Pareço-me com a minha mãe.

- Então a vossa mãe também devia ser muito bela.

- Sim - respondeu ela, ainda que não desejasse falar da infeliz existência da sua mãe durante o casamento com Rannulf Delasaine, nem da sua morte.

- Que afortunada.

- Afortunada? - repetiu ela. - A beleza é a única coisa a que os outros dão valor em mim. O Damon e o Benedict ignoraram-me até que fiz doze anos. Em pequena era muito magra, tinha os olhos e a boca muito grandes e podia fazer o que tivesse vontade quando não estava a cuidar do Piers. Mas depois, um dia, Damon olhou para mim como se de repente se desse conta de que tinha passado ao lado de um baú de ouro ou de uma jóia fina. A minha vida não foi a mesma desde então. É como se me tivessem prendido e nunca mais me libertassem.

- É evidente que o Piers vos dá valor por algo mais que a beleza - comentou ele depois de um breve silêncio.

- Sou a coisa mais parecida com uma mãe que conheceu.

- E havei-lo educado bem. Está claro que tem melhores modos do que os vossos irmãos mais velhos e suponho que isso se deve à vossa influência.

As palavras dele agradaram-lhe mais do que qualquer elogio acerca da sua cara ou do seu corpo.

- Acredito que o treino com o vosso pai Lhe seja igualmente proveitoso.

Nos olhos de Reece. apareceu uma expressão fugaz e emocionada que parecia melancolia.

- Deveríamos entrar. Já estamos aqui há muito tempo:

- Sim - concordou ela.

Mas ficaram ambos quietos, imóveis como uma das pedras do muro que havia atrás deles.

Reece inclinou-se para diante, cheio de emoção. Acreditando que ia beijá-la de novo, Anne conteve a respiração ao ver que a agarrava suavemente pelos ombros. Então atraiu-a para ele e beijou-a roçando-Lhe os lábios.

O desejo, libertado como um animal enjaulado, tomou vida, vibrante e avassalador. Anne sentiu-se sem forças para lutar contra ele. Não o queria fazer.

Ele respondeu tão rapidamente como fogo em palha seca. Apesar do que dizia sobre a anulação, desejava-a tanto como ela a ele. Os seus braços poderosos rodearam-na e apertaram-na contra o seu corpo de guerreiro como se estivesse há dias à espera daquele momento, daquela intimidade. O seu beijo tornou-se mais profundo e a sua língua deslizou entre os lábios ardentes de Anne.

Podia possuí-la ali mesmo, nesse preciso instante, e ela permitiria. Sim; permitiria, e isso não teria nada a ver com o que Damon lhe tinha pedido. Saboreando a boca de Reees, roçou lentamente as ancas contra ele e passou os dedos pelo cabelo comprido e pelos ombros largos. Tentando recuperar o fôlego, arqueou-se e Reece começou a beijar-lhe lentamente a curva do pescoço e mais em baixo.

A sua mão roçou suavemente o peito de Anne e aquela leve carícia aumentou o desejo avassalador que ela sentia. Anne agarrou-se aos seus ombros e sentiu que todo o seu corpo se enchia de uma densa paixão e que o palpitar do desejo batia através dele. Apertou de novo as ancas contra ele, notando a sua excitação, e sentiu-se humedecida entre as coxas. Inclinando-se para a frente, beijou-Lhe a coluna rígida do pescoço, muito devagar. Ele deixou escapar um gemido áspero e aquele som fez com que Anne o beijasse com mais ardor. Ele tocou-lhe de novo no peito. Anne gemeu pressionando os lábios contra o suave pêlo do peito de Reece, enquanto ele lhe acariciava o mamilo duro com o polegar. Então, de repente, ficou quieto. - Anne - A sua voz soou áspera e condenatória, como se fosse, de algum modo, culpa dela. - Eu não te pedi que me beijasses! - exclamou ela, zangada e triste ao mesmo tempo. - Nunca te pedi que me abraçasses. Ele passou-Lhe a mão pelo cabelo comprido. - Eu sei. Perdoa-me. A culpa é minha. Dizendo isto, deu meia volta e dirigiu-se para a estalagem com passo firme, deixando-a sozinha no pátio.

- Então, pensais que eu tenho razão? - pergun tou Gervais. - Que o Damon Delasaine está de facto a conspirar contra Henrique?

Estava sentado à mesa, em frente de Blaidd e Kynan Morgan, num canto afastado e escuro de uma taberna da aldeia de Winchester, junto ao rio. Estavam longe do palácio, pois Gervais preferia manter aquela conversa confidencial longe da corte e dos curiosos cortesãos.

A chama do candeeiro que estava em cima da mesa faiscava e vacilava e tresandava a sebo de ovelha. Havia mais uns quantos clientes, na sua maioria mercadores e comerciantes que tinham acabado os seus afazeres quotidianos, mas manti nham-se afastados de Gervais e dos Morgan, pois tudo neles proclamava a sua condição de cavaleiros.

A única pessoa que se aproximava era a estalajadeira, uma mulher roliça e alegre, já não muito jovem, mas que evidentemente gostava de homens jovens, bem-postos e bem vestidos. A mulher olhou atentamente para Blaidd e depois, embora continuasse a atender os outros clientes, de vez em quando o olhar deslizava, de novo, para ele.

- Sim, acho que acertaste em cheio, embora lamente dizê-lo - murmurou Blaidd, concordando.

Kynan, que tinha entre as mãos um jarro de cerveja, também assentiu.

- Esse está a tramar alguma coisa.

- Tenta seduzir a rainha - disse Blaidd suavemente, mas com firmeza e evidente desagrado. E com tanta subtileza como um aríete, por certo. Uma criança recém-saída dos braços da ama faria melhor.

- Achas que conseguirá? - perguntou Gervais.

- Deus do céu, não! - respondeu Blaidd. – Ela está a ser cautelosa, nada mais. Nem lhe dá esperança, nem o desalenta - sacudiu a cabeça e franziu o sobrolho. - Acho que os elogios dele dão-lhe graça, ou a adulam, ou a entretêm, enquanto Henrique está fora. Quando Henrique voltar, o Delasaine encontrará um clima um tanto mais frio na corte.

- A não ser que Henrique pense que o que tramava era traição - disse Gervais.

Blaidd sorriu.

- Não o fará, pois então teria também que acusar Leonor e não quererá fazê-lo. Nem seria apropriado. Digo-vos que as atenções do Delasaine só a divertem, nada mais.

- Quem dera estivesse tão certo como tu!

Kynan desatou a rir.

- Se o Blaidd diz que não há nada de sério entre eles, creio que podes confiar na palavra dele.

O meu irmão é um especialista em mulheres.

Gervais não sorriu.

- Sim, suponho que sim. Mas ainda que o Damon Delasaine pense que está a ganhar o afecto da rainha, isso não explica por que parece tão seguro de si mesmo cada vez que olha para mim quando nos encontramos no palácio. Acaso pensa realmente que pode comportar-se como se já se tivesse metido na cama da rainha?

Blaidd deslizou o jarro para trás e para a frente sobre a mesa, deixando um rasto de humidade.

- Pode ser. É um estúpido, vulgar e arrogante. Kynan ficou pensativo.

- Creio que Gervais tem razão, Blaidd. Vi como olhava para Gervais e pareçia um menino brincalhão. É cõmo se dissesse eu sei algo que tu não sabes. Por azar, não acredita apenas que vai conseguir a coroa deitando-se com a rainha. Quando o rei anunciou que Reece ia casar-se com a irmã, ficou furioso. E, no entanto, agora parece acreditar que se comportou com grande inteligência.

Blaidd franziu o sobrolho, levantou o jarro e bebeu umgole.

- Sim, já estou a perceber o que quereis dizer E por que achais que se sente tão orgulhoso?

- Talvez pelo facto de não ter tido que pagar o dote - sugeriu Kynan sem muita convicção.

Gervais ficou sem fôlego. De repente tinha tido uma ideia.

- Talvez por ter conseguido o que queria desde o princípio. Talvez planeasse casar Anne com Reece - os irmãos Morgan olharam-no, surpreendidos. - Suponhamos que queriam que Reece seguisse Anne. Talvez a Anne se insinuasse a ele de algum modo no banquete. Talvez planeassem surpreendê-los quando estivessem juntos e acusar Reece de se comportar impropriamente para que se visse obrigado a casar com ela. No fim de contas, disseram que tinha tentado violá-la. Isso prejudicava gravemente a reputação da irmã. Já o tinha pensado outras vezes, porque parecia não fazer sentido.

Casá-los foi decisão do rei - assinalou Kynan.

- Estás a dizer que o rei conhecia o plano de Damon?

- Não. Talvez Damon estivesse convencido de que um homem como Reece se sentiria obrigado a casar-se com ela se houvesse um escândalo.

Ainda que ele não o seja, o que um homem de honra deve fazer quando acredita ter sujado o bom-nome de uma mulher inocente é isso. Henrique simplesmente o ajudou sem saber.

- O Reece não achava que ela se tivesse insinuado - disse Kynan. - Pensava que era inocente e dizia-o a quem o quisesse ouvir.

- Já conheces o Reece. Arcaria com a culpa se achasse que é o dever dele - Gervais olhou para o outro Morgan. - Não tem tanta experiência com as mulheres como tu, Blaidd. Se não foi muito descarada, talvez não se apercebesse de que era uma armadilha.

- Pode ser, mas, porque é que quereriam que Anne se casasse com Reece? - perguntou Blaidd.

- Desprezam tudo o que não tenha ao menos várias gerações de sangue nobre a correr nas veias embora não saiba qual o bem que isso lhes fez.

- Talvez fosse pelo meu pai - respondeu Gervais. - Pelos seus amigos e pela sua lealdade ao rei. Porque é senhor de Castle Gervais, uma das principáis fortalezas de Inglaterra - inclinou-se para eles. - Se quisésseis usurpar um reino, quereríeis saber quem são os vossos inimigos e tudo o que pudésseis descobrir sobre eles, não é verdade? Ao casar Anne com Reece, Damon pôs uma espia na casa dos meus pais.

Kynan empalideceu e Blaidd deixou escapar um lento suspiro.

- É possível - murmurou Kynan. - Isso explicaria os seus olhares.

Gervais olhoù para Blaidd.

- E então?

Blaidd afastou o jarro e demorou um pouco a responder.

- Não posso discordar, pois isso sem dúvida explicaria a sua arrogância, e no entanto.

- E no entanto?

- E no entanto, Anne Delasaine não me parece uma mulher astuta e traiçoeira - Blaidd encolheu os ombros. - Vede, não digo que seja impossível. Só digo que não me parece dessas.

- Mal a conheces - respondeu Gervais. - Por teres dançado umas quantas vezes com ela não podes saber do que é capaz ou não.

Blaidd esboçou um sorriso malicioso.

- Surpreender-te-ia saber o que se pode descobrir de uma mulher só com uma dança - ao ver a expressão de Gervais, ficou sério. - Mas, como dizes, não a conheço, por isso acho que, por certo, o melhor será advertir Reece para que tenha cuidado.

Kynan olhou para ambos.

- E o que acontece com o plano de Reece? Achais que terá conseguido manter-se longe dela?

- Sim - disse Gervais com firmeza. - Tem muito a perder se não o fizer e, quando souber das nossas suspeitas, terá mais razões ainda para a evitar como se tivesse peste.

- O que farás, mandar-lhe-ás uma mensagem? - pergúntou Blaidd.

- Ou irei eu mesmo dentro de uns dias. Henrique voltará em breve da caçada no Bosque Novo. Estará de melhor humor, tentarei que me receba antes de ir para ver se parece inclinado a permitir a anulação, sobretudo quando lhe contar o que suspeito acerca de Anne. Enquanto isso, como vós ficareis aqui de qualquer maneira, vigiai Damon e se parecer a ponto de fazer alguma coisa que possa causar problemas maiores, enviai de imediato um recado a Castle Gervais.

 

Ainda mais convicto da sua resolução de se manter afastado da esposa e sem lhe ter dito uma só palavra nesse dia, Reece atravessou, à frente da comitiva, a ponte levadiça, passou debaixo do gradeamento, através das portas de carvalho maciças e engalanadas, e entrou no pátio de armas de Castle Gervais dois dias depois de sair da estalagem de Erwina. Atrás dele ouvia Trevelyan saudar as pessoas que saíam apressadamente para os receber como abelhas numa colmeia.

Donald e Seldon, dois dos primeiros cavaleiros treinados pelo pai, saíram a correr dos barracões onde se hospedava a guarda e os escudeiros. Excelentes amigos, tinham-se distinguido nos torneios e tinham regressado para prestar juramento de vassalagem a sir Unen. Ambos tinham terras nos domínios do pai, mas como nenhum deles era casado, preferiam viver no castelo e ajudar sir Unen na instrução.

Trev era um dos seus favoritos e por azar, talvez o mimassem demais. Donald, enganosamente magro, e Seldon, vigoroso e forte, correram para ele, mas pararam bruscamente ao ver Anne e Lisette.

Reece reparou que Anne olhava em seu redor como se nunca antes tivesse estado dentro de um castelo. Sentiu uma pontada de orgulho, pois Castle Gervais era, de facto, impressionante e mais ainda tendo em conta que o homem que o governava tinha nascido plebeu e bastardo.

Depois de cumprimentar Trev, Donald e Seldon aproximaram-se de Reece:

- Que diabo te aconteceu? - perguntou Seldon olhando para a cara magoada de Reece enquanto desmontava. - E quem diabo são estas mulheres?

Seldon não era precisamente célebre pela sua eloquência, nem pelos bons modos. Talvez devesse ter falado dele a Anne, para que soubesse com o que contar. Ao lançar-lhe um olhar rápido viu que, embora procurasse manter um ar distante, a pergunta brusca e a linguagem de Seldon tinham-na feito corár.

- Onde está o Gervais? - perguntou Donald antes que pudesse responder. Ainda que aparentemente se dirigisse a Reece, tinha o olhar fixo em Lisette, que também tinha corado.

Reece cerrou os dentes para não Lhe dizer que parasse de olhar para ela de uma vez.

- Explicar-vos-ei...

Reece calou-se ao ver o pai, que saía rapidamente do salão, com a mãe atrás. Quando o viram, as suas expressões de alegria mancharam-se e lady Fritha deixou escapar um leve gemido. Reece aproximou-se deles apressadamente.

- Pai, mãe, não me aconteceu nada de grave e o Gervais ficou na corte.

A mãe pareceu aliviada, se bem que um tanto desconcertada. O pai também pareceu ficar contente, ainda que de maneira menos óbvia. Estava igualmente confuso, mas disfarçava melhor.

Para ganhar um pouco de tempo e evitar o olhar fixo do pai, Reece foi ajudar Anne a desmontar. Isso significava tocá-la e causar-lhe-ia um pouco de dor na ferida das costas, mas não via alternativa. E talvez nesse momento, o contacto com o cálido corpo de Anne Lhe fosse reconfortante.

Ao menos não teria que se envergonhar da aparência da esposa, pensou ao pousá-la sobre as pedras do pátio. Fossem quais fossem os seus sentimentos, Anne estava tranquila e encantadora como sempre, se bem que um pouco pálida e com uma leve sombra debaixo dos olhos brilhantes. Levava o abundante cabelo apanhado numa simples trança enrolada em redor da cabeça, debaixo de um lenço de seda verde, tão fino como a asa de uma borboleta e que parecia realçar a sua beleza natural.

Estava ricamente vestida, com uma capa com gola de pele e um vestido de damasco verde-esmeralda. Nessa manhã, ao vê-la aparecer com aquele vestido, Reece tinha estado a ponto de a repreender por escolher uma vestimenta tão pouco prática para viajar. Mas acabara por não o fazer, pois preferira não falar com ela. Agora estava contente por ter guardado silêncio, pois parecia uma princesa, o que diminuiria em parte o desgosto dos pais de Reece quando lhes dissesse quem era.

Reece olhou de novo para os pais e sufocou um suspiro.

- Permiti-me apresentar-vos lady Anne, a minha esposa.

Nunca tinha visto a mãe tão pasmada. Quanto ao pai, como era de esperar, simplesmente os olhou fixamente.

Reece desejou que o pai fosse um homem menos impassível. Que praguejasse, gritasse ou só levantasse a voz. A sua serenidade era tão inquietante como esperar que lhe arrancassem um dente.

- Entremos e explicar-vos-ei - continuou.

O pai levantou as sobrancelhas majestosamente.

- Sim, claro que sim.

Reece olhou para Anne para ver como recebia aquele acolhimento.

Ela permanecia rígida e inexpressiva, como um cavaleiro que se apresentasse diante do rei.

A voz de sir Unen pareceu reanimar a mãe pois lady Fritha deu um saltinho para a frente como se fosse uma menina e não a mãe de cinco filhos e senhora de um imenso castelo.

- Bem-vinda, querida.

Lady Fritha agarrou Anne pelos ombros e beijou-a afectuosamente na face.

Anne não disse nada, mas a sua expressão de surpresa falava por ela. A mãe de Reece podia ser muito efusiva, como demonstrou no instante seguinte ao abraçar Reece tão fortemente que ele esteve prestes a queixar-se. Já não era um menino.

- Anne - disse quando a mãe parou de abraçá-lo; - esta é a minha mãe, lady Fritha, e este é o meu pai, sir Unen Fitzroy.

- É uma honra conhecer-vos, sir Unen - disse Anne, inclinando gentilmente a cabeça e sorrindo de seguida para a mãe dele. - Lady Fritha, agradeço-vos pelo vosso amável acolhimento.

Reece nunca tinha visto Anne sorrir assim, nem sequer para Piers. Quando sorria para o irmão, o sorriso tinha algo de indulgência maternal, como se o rapaz tivesse três anos. Aquele sorriso era mais aberto e sincero, livre de responsabilidade e, talvez por isso, mais belo e natural.

Aquela era a mulher em que tinha reparado no banquete, enquanto dava pedaços de comida ao cão. Sem dúvida, o pai entenderia, em parte, o impulso que o tinha levado a segui-la até ao corredor.

Continuavam a entrar soldados e criados no pátio de armas que tinham sabido da notícia da sua chegada. Alguns jovens tinham interrompido os exercícios, pois suavam copiosamente. Algumas criadas da cozinha reuniram-se junto ao poço rindo e olhando para Trevelyan e para Piers enquanto desmontavam. Alguns dos guardas mais antigos da entrada, apoiados nas suas lanças, observavam-nos, assim como as criadas que saíam à porta da torre de menagem.

Sem fazer caso dos mirones, Anne indicou ao irmão que se aproximasse.

- O meu irmão veio comigo para se treinar com sir Unen, cuja merecida reputação é conhecida de todos.

Aquele elogio era um bom começo. O sorriso da mãe tornou-se mais amplo e as comissuras da boca do pai distenderam-se levemente.

- Sir Unen, este é o meu irmão - Anne vacilou um instante e os seus olhos brilharam com determinação, - Piers Delasaine.

Oh, Deus do céu, não tinha que ter declarado o seu apelido no pátio de armas, à frente de toda a gente. Deveria ter esperado que ele se explicasse para amortecer o golpe que representaria para os pais conhecer a identidade da esposa dele. Não tinha que ter anunciado o pior do seu casamento diante de todo o Castle Gervais.

Entre as pessoas elevou-se um murmúrio de espanto e desgosto e a suavidade das comissuras dos lábios do pai desapareceu, substituída por uma expressão implacável.

- Como vos dizia, pai, lá dentro explicar-vos-ei.

- Sim, acredito que nos explicarás.

Dizendo isto, sir Unen deu meia volta e entrou na torre.

Reece saiu atrás dele a passos largos, preparando-se para o calvário que o esperava e revendo a sua explicação. A mãe ficou para trás com Anne.

Reece alcançou o pai e os criados, pasmados, abriram-lhes caminho. Como seria de esperar, sir Unen não parou no salão do castelo, seguiu antes em direcção ao quarto da torre sul, contígua à torre de menàgem, onde podiam falar em privado.

Com os pés afastados, os braços cruzados e uma interrogação nos olhos negros, o pai parou diante da janela tapada com uma cortina para que o vento outonal não entrasse. Não disse uma só palavra. Nem sequer levantou as sobrancelhas inquisitoriamente. Simplesmente... aguardou.

Nesse momento, naquela divisão cómoda e familiar, aquecida pelo braseiro de carvão e cujas paredes frias de pedra estavam escondidas por tapeçarias coloridas, Reece sentiu que voltava a ter seis anos e tentava explicar ao pai por que tinha cortado o cabelo à irmã. Disse que era uma chatice e ajudei-a.

Reece aclarou a garganta, pronto para começar. Mas, então, a mãe e Anne entraram no quarto. - Por favor, sentai- vos, querida - disse a mãe à esposa.

Oh, Deus Por que tinham entrado? Já era suficientemente difícil explicar aquilo tudo só ao pai.

Anne sentou-se, tão tranquila como se fosse uma simples visita que desfrutasse da hospitalidade do castelo, enquanto ele permanecia dentro do quarto, como um menino mau.

Depois de se sentar, lady Fritha olhou para o filho inquisitoriamente.

- Como fizeste isso? Foi no torneio?

- Não, eu não participei no torneio - os olhos do pai arregalaram-se levemente ao ouvi-lo. Acho que devo começar pelo princípio – ninguém fez qualquer objecção. Reece parou um momento para reunir os seus pensamentos e preparar-se para relatar os acontecimentos que o tinham trazido de novo a casa, de forma tão inesperada. Estava no banquete do rei, a celebrar o dia de São Edmundo, o Confessor, quando vi lady Anne sentada no salão. Ao vê-la despertou-se a minha curiosidade e quis saber quem era. De modo que a segui quando se retirou da sala - por todos os santos, quão absurdo e fútil soava tudo aquilo! - Dirigi-me ao corredor - continuou com determinação, decidido a acabar o quanto antes. – Falámos um pouco. Por azar, os irmãos mais velhos, de quem haveis ouvido falar... - o pai assentiu lentamente uma vez. - Tomaram como ofensa que me tivesse dirigido a Anne e reagiram como fazem os da laia deles. Atacaram-me.

Anne apertou os lábios e corou, mas não disse nada. Lady Fritha tapou a boca com a mão, como se quisesse sufocar um grito de alarme.

- Os dois? - perguntou o pai.

Reece assentiu. Não se incomodou a dizer que Damon o tinha atacado pelas costas.

- Por sorte, os gritos da Anne alertaram os guardas do rei. Chegaram antes que acontecesse algo de maior gravidade. No entanto, enquanto eu me recuperava, disseram a toda a gente que tinha... - Vacilou. Depois; pensando em Anne e na mãe, decidiu usar o termo mais suave: - Disseram que tinha feito mal à Anne.

- Quereis dizer, fazer mal como um rude bêbedo?

- Pai, asseguro-vos que não estava bêbedo e que também não estava a fazer mal à Anne no sentido que os irmãos deram a entender.

- Naturalmente, tendo em conta a educação que te demos - disse o pai secamente.

- Quando o rei soube do que tinha acontecido e das acusações dos Delasaine, chamou-nos, à Anne e a mim, à sua presença. Por azar, os Delasaine são parentes da rainha. Ainda que o seu parentesco seja distante, é suficiente para que contem com o apoio de Leonor e dos nobres franceses que vieram com ela para Inglaterra. Henrique quer manter a paz na corte, por isso, para evitar males maiores, decretou que Anne e eu devíamos casar. Como podeis imaginar, nem ela nem eu acolhemos de bom grado a ideia.

O pai resmungou e a mãe franziu o sobrolho mas nenhum dos dois disse nada. Reece queria acabar sem que o interrompessem, como um médico que pica uma ferida e deixa sair o veneno de uma vez.

- Infelizmente, o rei mostrou-se inflexível.

Apercebi-me de que não havia nada a fazer, salvo obedecer às suas ordens. No entanto, dado que nem Anne nem eu queríamos casar-nos, decidimos pedir a anulação. quando a cólera do rei tiver arrefecido e o que é mais importante, quando os assuntos de estado voltarem a ser a sua principal prioridade.

Os pais olharam para Anne e depois voltaram a olhar para ele. Anne escondia bem as emoções fossem quais fossem, pois só pequenas manchas rosadas nas suas faces delatavam a sua perturbação.

- Que razões apresentareis para solicitar a anulação? - perguntou a mãe.

Ele corou, sentindo-se como um adolescente obrigado a falar da primeira experiência amorosa.

- Que não estamos casados de verdade - disse esperando que isso bastasse.

E assim foi. Reparou pelo corar da mãe e pela maneira como o pai o olhou. Ao fim de um momento, a mãe levantou-se, quebrando o tenso silêncio.

- Seja o que for que se faça, será melhor que trate de acomodar lady Anne. Estais os dois exaustos por causa da viagem - voltou-se para lady Anne com um sorriso cálido. - Vinde comigo, querida, e trataremos da bagagem e de preparar uma refeição leve - ao chegar à porta da divisão, a mãe parou e olhou para trás. - Anne ocupará o teu quarto, Reece. Até que este assunto se resolva, ficarás alojado no quarto de Donald e Seldon. Muda as tuas coisas quando acabares de falar com o teu pai. E quanto ao que diremos aos criados, suponho que o melhor será contar-lhes a verdade - parecia muito tranquila, apesar de Reece ter esperado que se zangasse. - De qualquer das formas, não tem sentido tentar manter a situação em segredo - continuou. - Toda a comitiva sabe que não dormiste com a tua esposa, não é verdade?

Ele corou como um menino a quem tinham apanhado a mentir.

- Sim, sabe.

Assentindo, lady Fritha deu meia volta e saiu da divisão. Anne seguiu-a, olhando para ele só de soslaio.

E o que esperava que fizesse? Dar-lhe um beijo de despedida?

- Pelos raios de Júpiter, Reece - murmurou o pai, esfregando o queixo com a mão forte e robusta, recostando-se na cadeira. Indicou a Reece que também se sentasse. - Meteste-te num grande problema. Não esperava isto de ti. Seguir uma mulher desconhecida assim de qualquer maneira.

Parece uma travessura do Dylan DeLanyea ou do Blaidd Morgan.

A péssima reputação de Dylan, sobrinho do barão DeLanyea, tinha-o conduzido a um casamento forçado. No entanto, as coisas tinham corrido bem, pois Dylan tinha acabado por gostar da esposa. Ela, não obstante, não procedia de uma família como os Delasaine.

- Por todos os santos, pode saber-se o que te aconteceu? - perguntou o pai. - Está claro que é uma jovem linda, mas tu normalmente és o mais sensáto dos meus filhos - os seus olhos arregalaram-se. - Não seria só pelo cabelo dela, pois não?

- Em parte sim -confessou Reece. - E pela beleza dela. Mas o que importa é que não fazia ideia de que fosse uma Delasaine.

- Nunca a tinhas visto com os irmãos?

Aquilo não corria bem.

- Estava sentada ao lado dos irmãos mais velhos no banquete, mas não se parece nada com eles, então dei por certo que era parente de um idoso que estava sentado no outro lado.

O pai franziu o sobrolho.

- Deste-o por certo?

- Sei perfeitamente que nos ensinastes a não fazer suposições. Está claro que nesse momento o esqueci. Se não, não me teria aproximado desta mulher. Foi um erro.

- Isso é evidente.

- Não queria causar problemas e certamente não pensava que me veria forçado a casar.

O pai resmungou de novo.

- Não tentaste convencer Henrique? Reece cruzou as mãos diante do colo.

- Sim, mas disse que, se não me casasse com a Anne, deixaria que um tribunal se encarregasse de julgar as acusações dos Delasaine - inclinou-se para a frente. - Não queria dizer-vos diante da mamã, mas andavam a dizer por aí que tinha tentado violar a Anne.

O pai levantou-se de repente, como se o assento da cadeira estivesse em chamas.

- O quê? - exclamou. - Acusaram-te disso?

Reece retrocedeu, alarmado. O pai estava furioso, não havia dúvida. Nunca tinha visto uma expressão tão zangada no seu rosto, nem aquele olhar abrasador nos seus olhos.

Reece ergueu-se e estendeu as mãos, tentando acalmá-lo.

- Os nobres ingleses não acreditaram - disse com voz serena, como se o pai fosse um cavalo empinado que tentava tranquilizar. - Os Delasaine tiveram que me acusar disso para justificar o que me fizeram. Creio que Henrique não acredi tou na acusação, mas a rainha falou em favor dos Delasaine e Henrique não quer opor-se a ela publicamente. No entanto, disse à Anne que, se os parentes dela se opusessem ao casamento, os acusaria de assassinato por me atacarem.

O pai deixou escapar um lento suspiro.

- Tinha ouvido dizer que se verga perante Leonor mais do que deveria, ou pelo menos, mais do que os nobres desejam. Sem dúvida, deve estar empenhado em manter a paz na corte, se ameaçou os parentes da rainha, por mais distantes que sejam.

Reece assenou.

- Seria preferível que todos os seus agregados desaparecessem da corte. São como veneno. - Acredito que não disseste algo tão imprudente enquanto estavas em Winchester.

Reece corou, envergonhado de novo. - Não.

- Bem. A opinião da esposa preocupa demais Henrique para pedir aos seus agregados que vão embora, quer goste quer não.

- Ignorava que soubésseis tanto da corte – disse Reece. - Nunca lá ides, nem parece interessar-vos.

- O facto de não falar interminavelmente de política não significa que seja um ignorante, ou que não lhe preste atenção. O que está a acontecer afecta todo o reino - o pai sentou-se outra vez. Por isso mandei-te, o meu filho mais sensato, para que fosses os meus olhos e os meus ouvidos – as coisas iam de mal a pior. O pai esfregou meditativamente o queixo, outra vez. - Esse casamento podia fazer com que as pessoas se convencessem da verdade das acusações dos Delasaine, pensando que pretendias restaurar a honra perdida da dama.

Sentindo-se de novo culpado por ter estragado a reputação de Anne, Reece disse:

- Sim, é verdade. A acusação afectava também Anne, mas ao que parece os meios-irmãos não pensaram nisso ou não lhe deram importância.

- Pelo que ouvi dizer deles, só pensam em si mesmos - disse o pai, lançando ao filho um olhar penetrante. - Por isso devias evitá-los a todo o custo, salvo no torneio. E à irmã também.

- Sinto muito, pai. Desonrei a familia e por minha culpa vemo-nos unidos a esse ninho de víboras. Prometo-vos que farei tudo o que possa para reparar o meu erro, dentro do possível, mas sei que traí a vossa confiança e a vossa fé em mim.

Os olhos do pai suavizaram-se um pouco.

- Lamento que não mostrasses mais juízo, Reece, mas os Delasaine não tinham o direito de te atacar e Henrique tinha ainda menos direito de te casar à força. Por sorte; creio que o teu plano tem sentido. Avisarei os meus amigos e verei se lhes ocorre alguma coisa mais. Entretanto, pensas manter-te afastado da tua esposa?

- Sim!

O pai levantou uma sobrancelha e observou-o demoradamente.

- Pareces muito decidido.

- E estou.

- Bem - inesperadamente, mexeu-se como se o incomodasse o que ia dizer. - Um bastardo que abriu caminho nesta vida é visto com inveja e Reece, receio que os seus filhos também o sejam. i Devemos manter-nos acima de todas as suspeitas.

Estar vinculados aos Delasaine dará aos nossos inimigos novos dardos com que nos atacar - suspirou. - No entanto, é uma pena que isto tenha que acabar assim. De algum modo, ela lembra-me a tua mãe.

Reece olhou, surpreso, para o pai.

- Mas se mal disse uma palavra!

Sir Unen olhou para o filho com um levíssimo sorriso.

- Disse-te alguma vez que meças o teu adversário pela maneira como fala? A valentia e a determinação estão nos olhos, meu filho. Tanto nos homens como nas mulheres.

 

Reece vacilou no umbral do seu quarto. Não esperava encontrar ali ninguém. A mãe ainda estava a mostrar o castelo a Anne e tinha visto Lisette no salão há um momento atrás.

No entanto, ali estava a criada, colocando o que pareciam ser os artigos do toucador de Anne, pentes, fitas e coisas semelhantes, numa mesinha que a mãe devia ter encontrado no meio dos móveis velhos.

Atrás dele, Donald aguardava para o ajudar a levar os seus pertences para o quarto que ele dividia com Seldon. Ao princípio, Reece tinha recusado a oferta de Donald, pois esta era tarefa para um criado, mas Donald tinha insistido.

Agora Reece compreendia porquê. Nunca tinha visto Donald olhar para uma mulher como olhava para Lisette. Estava claro que Trev e Piers iam ter mais concorrência, coisa que não lhe agradava minimamente.

Ao menos, explicar a Donald e a Seldon qual era a sua situação com Anne tinha sido mais fácil do que explicá-la aos irmãos, aos Morgan ou aos pais. Donald e Seldon consideravam sir Unen um o homem de extraordinário valor e o respeito reverencial que sentiam por ele estendia-se aos filhos. Deste modo por sorte, sentiram-se menos inclinados a fazer perguntas ou a duvidar da sua palavra de não consumar o casamento.

Na realidade, Donald tinha-lhe feito perguntas sobre Lisette; o que tornava mais evidente ainda o seu interesse pela jovem. Seldon tinha mostrado mais curiosidade pelos cavaleiros da corte, pelas suas proezas no campo de batalha e o que tinha acontecido aos seus velhos amigos e inimigos nos anos anteriores.

Donald pigarreou, chamando a atenção de Reece.

- Ah, sir Reece - exclamou Lisete ao vê-lo no quarto. Erguendo-se, fez-lhe um sorriso radiante.

Não a ele, a Donald, que ia atrás dele. E aquele sorriso era muito mais amável do que os que fazia a Trev e a Piers.

Ao que parecia, a competição tinha acabado e Donald, que para dizer a verdade merecia encontrar uma boa esposa, tinha ganho sem mexer um dedo.

- Vim recolher esse baú do canto - explicou-lhe Reece ao dar-se conta que Lisette estava à espera.

- Assim teremos mais espaço - disse ela. Não parecia nada surpreendida. Anne devia ter-lhe explicado que também não iam partilhar a cama em Castle Gervais.

De facto, no seu quarto, com a larga cama que tinha herdado de lord Gervais, o baú com as suas roupas e o outro que continha a sua armadura, a bagagem de Anne, a mesa e o banco, mal havia espaço para se mexerem. Lisette voltou a sorrir para Donald e este ficou tão corado como uma maçã no Outono.

- Eu levo-o - disse Donald bruscamente e sem vir a propósito, enquanto se aproximava da arca que continha as roupas de Reece.

- O outro teremos que levá-lo os dois - disse Reece.

- Então, esperai aqui. Só demorará um minuto - disse Donald, inclinando-se. Esticou os braços tanto quanto pôde e agarrou nas asas de couro de ambos os lados da arca.

Reece suspeitava que Donald o amaldiçoaria para si próprio se oferecesse ajuda. Estava claro que queria impressionar a rapariga e, como era a primeira vez que Reece via o seu amigo a agir daquela maneira, decidiu não interferir, particularmente ao notar que Lisette olhava para Donald como se fosse o melhor espécimen de homem de Inglaterra. E ainda que o baú fosse desconfortável para ser levado por um homem só, não era pesado.

Reece encolheu os ombros e sentou-se na cama.

- Se tens a certeza, Donald.

- Tenho.

Lisette olhou para Reece inquisitoriamente.

- Não quereis tirar alguma roupa, senhor?

Donald cambaleou e o baú caiu no chão com um ruído surdo. Reece ficou mudo de espanto.

Ter-se-ia enganado por completo com aquela rapariga?

- Do baú - esclareceu Lisette com um risinho ao ver a expressão de Reece. - Precisareis de algúma roupa, não é verdade? Não quereis guardá-la no baú de milady?

Deus do céu, não sabia. Estava claro que Lisette pensava que aquele arranjo era temporário.

Também teria que lhe explicar a situação. Mas aquela rapariga era uma criada. Não requeria uma explicação muito profunda.

- Não voú dormir aqui.

Lisette franziu o sobrolho.

Não importava o que ela pensava, nem o que pensavam o resto das pessoas em Bridgeford Wells.

Reece fixou a sua atenção em Donald.

- Precisas de ajuda?

Donald voltou a apanhar o baú.

- Não - disse, com os tendões do pescoço tensos.

- Se acabaste aqui, podes ir, Lisette - disse Reece, olhando para a desconcertada criada.

- Muito bem, sir Reece - disse ela, saindo apressadamente atrás de Donald.

Quando se foi embora, Reece aproximou-se da janela e olhou para o pátio. Lisette não seria a única que achava estranha a sua relação, ou a falta dela, com a esposa.

- Sir Reece?

Voltou-se ao ouvir a voz de Anne e viu-a no umbral da porta do quarto, olhando-o com curiosidade.

O seu primeiro impulso foi fugir do quarto, mas Donald voltaria a qualquer momento e o que pensaria dele se o visse a descer as escadas a correr, como um cobarde? Sem dúvida poderia ficar uns minutos.

Anne entrou com passo elegante no quarto e olhou-o inquisitoriamente:

- Ouvi dizer que este vai ser o meu quarto e dado que não vamos viver como marido e mulher.

- Vim buscar as minhas coisas.

Ela franziu o sobrolho e não disse nada. Reece sentiu-se ridículo. Tinha-o surpreendido ali, a olhar pela janela; como se não tivesse nada melhor para fazer.

- O baú com a minha armadura é pesado demais para ser levado por um homem só. Estou à espera que Donald volte e me ajude.

Anne pareceu compreender por fim e ele sentiu-se menos ridículo.

- E o Donald é... - perguntou ela, aproximando-se do toucador e tirando o lenço da cabeça.

- Um cavaleiro, um dos vassalos do meu pai.

Um magrito que saiu para nos receber quando chegámos.

- Quem era o outro, o mais robusto?

- Esse é o Seldon - respondeu ele. - Tal como Donald, jurou fidelidade ao meu pai e recebeu um feudo em Castle Gervais.

Ela sentou-se no banco e começou a tirar os ganchos que prendiam as tranças à volta da cabeça com tanta naturalidade como se fossem um casal a falar das pessoas de sua casa.

O pai tinha visto valentia e determinação nos brilhantes olhos verdes de Anne. Ele também tinha visto aquelas virtudes. Mas, além disso, tinha visto desejo, ou pensava que sim. Quem dera pudesse estar certo de que não se enganáva, mas sabia muito pouco de mulheres e, por isso, confiava muito pouco no seu critério.

Anne desatou os laços que prendiam as pontas das tranças. Reece ficou sem fôlego ao ver o cabelo solto sobre os seus ombros elegantes. Enquanto ela passava com um pente de marfim, dedentes largos, pela densa cabeleira, não parava de pensar em afundar as mãos e a cara entre aquelas ondas douradas.

- Estão de visita? - perguntou ela, tirando-o do seu pasmo.

Ele procurou concentrar-se e aproximou-se um pouco dela.

- Vivem aqui e ajudam o meu pai. Entretanto os maiorais cuidam das terras deles - decidido a manter debaixo de controlo os seus pensamentos e emoções, Reece aclarou a garganta e disse: Anne, duvido que nos vejamos frequentemente salvo durante o jantar, enquanto estiverdes aqui.

Estarei ocupado a ajudar o meu pai e vós estareis...

Ela largou o pente e, voltando-se, cravou os seus olhos verdes nele.

- O que vou eu fazer, sir Reece? - ele deu-se conta que não sabia como ia passar os dias. Achais que poderei ajudar a vossa mãe? - perguntou Anne passado um bocado, vendo-o ali, mudo.

- Sim, podeis fazer isso - respondeu, aliviado pela sua sugestão. - Estou certo que gostará que a ajudeis, sobretudo tendo em conta que as minhas irmãs não estão aqui.

- Sim, era o que eu pensava. É muito amável a vossa mãe.

A força do sorriso de Anne bateu-lhe como o punho de um homem. Os seus olhos resplandeciam como as pedras preciosas dos anéis da rainha.

Reece retrocedeu.

- Sim, de facto é.

- O vosso pai foi muito duro convosco quando me fui embora? - perguntou Anne com calma, e a sua frieza pareceu troçar dos esforços de Reece para manter a compostura.

- Não.

- Está de acordo com o vosso plano?

- SIm.

Deus do céu, porque é que tinha que parecer sempre um rude soldado ou um estúpido que tinha a língua presa quando estava com ela?

Talvez fosse, respondeu a sua mente, porque nenhuma mulher tinha olhado para ele com aquela mistura de curiosidade e desejo e certamente nenhuma tinha estado tão próxima da sua cama. Não era virgem, mas sempre tinha procurado o prazer fora de casa.

Devia falar com ela como com qualquer outra dama.

- Não deveis preocupar-vos com a maneira como o meu pai vos trate, Anne. Sabe que não sois responsável por nada.

O semblante dela suavizou-se, adquirindo uma expressão alegre que afligiu o coração de Reece de novo.

- O vosso pai parece um bom homem. Já me sinto mais confortável na sua presença do que me senti alguma vez na do meu próprio pai.

- Suponho que não era um homem amável tendo semelhantes filhos - disse ele, animando-a a continuar.

O sorriso de Anne desvaneceu-se.

- Não, não era - disse suavemente, brincando com o pente. - Não queria filhas - suspirou tão levemente que, se Reece não estivesse a olhar para ela fixamente, não teria notado. - E a minha mãe é que pagou a desilusão que lhe causou o meu nascimento.

- Mas depois a vossa mãe também lhe deu um fillho.

- Depois de sete anos de angústia e sofrimento, e isso custou-lhe a vida - Anne levantou os olhos para olhar para ele. O seu olhar era tão firme e decidido como melancólico um pouco antes. - Estava tão assustada com as consequências que Lhe acarretaria dar à luz outra filha que, durante a gravidez, não conseguiu comer nem dormir adequadamente - a sua expressão endureceu-se um pouco mais. Ele foi tão responsável pela sua morte como se Lhe tivesse espetado um punhal no coração.

- Sinto muito, Anne - as suas palavras soaram fracas, mas não lhe ocorreu nada mais para dizer.

- Não, eu é que sinto - disse ela, dando a volta e deixando o pente em cima da mesa. - Não devo incomodar-vos com estas coisas. Não são problema vosso.

- Não, mas são vosso - ele agarrou-a suavemente pelas mãos e fê-la levantar-se para a olhar cara a cara. - Ainda que não possa ser vosso marido, posso ser vosso amigo.

Para sua surpresa, ela soltou-se e voltou-lhe as costas.

- Mas continuo a ser uma Delasaine.

Reece aproximou-se dela, agarrou-a delicadamente pelos ombros e obrigou-a a voltar-se para que o olhasse. Olhando-a fixamente nos olhos disse-lhe:

- Anne, desde que, pela primeira vez, me dei conta que alguns homens são nobres em virtude dos seus actos e virtudes e outros, unicamente por nascimento, que quis falar por aqueles que ganharam com esforço as suas terras e títulos. Quero ser a voz daqueles que são quase sempre esquecidos e desprezados. Mas, se continuo casado com uma Delasaine, Henrique e aqueles em quem confia talvez não confiem em mim. Nunca me deixarão entrar no seu círculo. E terei que renunciar à coisa mais importante para mim.

- Compreendo - murmurou ela, afastando-se.

- A sério; Anne? - disse ele.

Mas por acaso compreendia ele. Ao vê-la ali de pé, de costas voltadas para ele, a sua meta, o futuro que há tanto tempo planeava, depressa pareceu vacilar e esfumar-se.

Na porta alguém pigarreou. Reece voltou-se bruscamente e viu que Donald estava no umbral.

- Quereis que levemos esse baú agora, ou deixamo-lo? - perguntou com as faces coradas, fosse pelo esforço de subir as escadas ou pelo sobressalto.

- Levamo-lo agora - respondeu Reece, atravessando o quarto e agarrando uma das asas de couro. Donald uniu-se a ele sem dizer uma palavra. Levantaram o baú e saíram do quarto.

Erwina aproximou-se apressadamente do homem corpulento cuja silhueta se recortava na luz do entardecer à porta da estalagem.

- Bom dia, senhor! - exclamou. - Entrai, entrai. Aqui há muito espaço e camas limpas, asseguro-vos.

O homem entrou lentamente, observando com atenção Erwina e a divisão. Peter, que estava sentado junto da lareira, não gostou da cara dele. Era mesquinha e lasciva, com o cabelo negro, olhos pequenos e expressão ressentida.

Erwina olhou mais demoradamente para o recém-chegado, à luz do fogo, e pareceu reconsiderar o seu convite, particularmente quando o homem voltou a olhar para ela de cima a baixo.

- Estás aqui sozinha, mulher?

- Não - respondeu ela de seguida.

- Além do rapaz, quero dizer.

Antes que ela pudesse responder, entrou um barulhento grupo de agricultores que tinham estado no mercado na cidade mais próxima, falando em voz alta sobre o jogral que tinham visto.

Erwina deixou escapar um suspiro de alívio e foi preparar as bebidas, a cerveja e a comida que o desconhecido tinha pedido.

Outro homem que não vivia por ali entrou pela porta, mas Peter sabia quem era. Arwen viajava de cidade em cidade, entretendo as pessoas como os músicos ambulantes e os jograis, mas só que ele ganhava a vida a jogar aos dados. Peter achava agradável aquele meio de ganhar o pão, simplesmente atirando o dado, e não entendia porque é que a mãe parecia sempre um pouco zangada quando o dizia.

- Ah, mestre Peter! - exclamou Arwen, entrando enquanto lançava um olhar aos homens ali reunidos. - Como estais?

- Torci o tornozelo, mas um cavaleiro curou-me - respondeu ansiosamente o menino.

- Não me digas. Um cavaleiro?

Arwen sentou-se no banco mais próximo de Peter.

- Sim, era...

Arwen levantou a mão para calar o menino.

- Logo, Peter, logo contar-me-ás desse cavaleiro que obviamente te causou tão grande impressão. Primeiro, ganharei o que custa uma das deliciosas refeições da tua mãe - Arwen tirou um copo de jogo feito de couro e a pequena bolsa onde guardava o dado e sorriu ao corpulento desconhecido. - Como estais, amigo? Quereis jogar uma partida amigável? - Benedict Délasaine pareceu lutar consigo mesmo. - Ora, vamos, vamos!

- exclamou Arwen. - Só jogaremos uns centavos.

Pouco risco para um fidalgo como vós.

- Como sabe que sou nobre? - resmungou, receoso.

- Pois tudo em vós o proclama! As vossas roupas, as vossas armas, o vosso próprio rosto! E, naturalmente, esse magnífico cavalo que vi no estábulo deve ser vosso.

Se tivesse sido mais perspicaz, Benedict ter-se-ia dado conta de que aquele homem parecia estar a calcular mentalmente o valor de tudo quanto possuía.

Mas Benedict não era perspicaz e os seus olhos iluminaram-se com um brilho ávido e cobiçoso.

- Está bem.

Arwen sorriu e pôs o dado no copo de jogo.

- Está quieto - disse lady Fritha, mal-humorada, enquanto agarrava a cabeça do filho para lhe examinar o olho à luz da manhã, uns dias depois da sua chegada a Castle Gervais.

- Tendes mais força do que alguns dos rapazes - resmungou Reece.

- Se estivesses quieto, não teria que te agarrar com tanta força - respondeu ela. - De todos os meus filhos, nunca pensei que teria que te dizer a ti que estivesses quieto. Sobretudo, na tua idade - lady Fritha estudou um pouco mais a cara do filho. - O roxo quase desapareceu e o olho tem muito melhor aspecto.

- Ainda bem.

- Poderiam ter-te cegado - murmurou ela, sacudindo a cabeça. - E também poderiam ter-te matado, se os guardas não tivessem vindo.

Reece recostou-se na sua cama.

- Sim, foi uma sorte a Anne ter gritado. Foi como um grito de um espírito do Além.

Lady Fritha aproximou-se da cama de Donald e esticou as mantas. Não tinha por que arranjar o quarto. No entanto, apesar do seu título, tinha sido praticamente uma criada quando o pai chegou a Bridgeford Wells e às vezes o seu carácter maternal impedia-a de parar de se afadigar à volta dos outros. Ou era como Reece dizia. Porque achava que não se estava a demorar com o propósito de falar com ele.

Ou talvez, se era assim, não quisesse falar dele mas sim de Donald e Lisette. Durante o dia, Donald olhava para Lisette como um homem que tinha visões celestiais, e estava claro que a rapariga recebia com agrado as suas atenções.

- O Donald parece muito contente - disse ele tentando adiantar-se às dúvidas que a mãe pudesse ter acerca da relação do amigo e da criada. E a Lisette também. Confesso que estava preocupado porque Trev e o irmão de Anne competiam pelos favores dela, mas parecem ter compreendido que perderam este lance. Nunca vi um homem tão apaixonado.

- A sério?

- Sim, nem sequer o Blaidd Morgan a perseguir a sua última conquista.

A mãe parou de mexer na manta de Donald e olhou fixamente para ele. Era evidente que tinha algo a dizer e Reece sabia que não se iria embora até que o tivesse dito.

- Não quero falar das aventuras amorosas do Donald - começou. - A Lisette e ele são adultos e tens razão, parecem os dois muito felizes. Não é a mim que corresponde julgar esse assunto, a menos que a Lisette descure as suas tarefas. O teu pai pensa o mesmo a respeito do Donald. Do que te queria falar era da Anne - Reece não tinha vontade de falar de Anne. Levantou-se, disposto a ir embora. - Reece, senta-te - ordenou-Lhe a mãe com firmeza. Surpreendido, ele obedeceu imediatamente. - Reece, sei que isto pode parecer-te difícil de acreditar, mas às vezes o teu pai esquece-se que já não é um camponês bastardo a lutar para sobreviver num mundo que o despreza. Quando nos conhecemos, estava sozinho há muito tempo e precisava de amigos. Mas já não é esse camponês. É um cavaleiro respeitado e admirado, com muitos amigos que de bom grado lutariam por ele se o pedisse... e até se não pedisse. A situação da nossa família na corte não é tão precária como ele pensa. Tu és um cavaleiro honrado cuja lealdade para com Henrique está fora de questão. Não procuraste uma aliança com os Delasaine. Viste-te forçado a aceitá-la. Muitos nobres casam por conveniência, deste modo, se decidires consumar o casamento, duvido que te critiquem, sobretudo tendo em conta a beleza de

Anne. Para dizer a verdade, se soubessem que ainda não consumaste o casamento, talvez pensassem que estás mal da cabeça - a mãe sentou-se ao seu lado e pôs-lhe o braço por cima dos ombros. - Meu filho, conheci muitas jovens damas na minha vida e nenhuma delas a tinha considerado digna de ti, até agora. Anne é uma mulher

pouco comum, Reece. Não é frívola, nem azeda ; nem maldosa. Faz tudo o que lhe peço sem se queixar nem um pouco e com boa cara. Os criados gostam dela: e tu e eu sabemos que isso é muito importante, especialmente tendo em conta que eles também ouviram falar dos Delasaine. A única coisa que o teu pai e tu têm contra ela é que é meia-irmã desses canalhas.

Reece pôs-se de pé.

- Mas isso é muito, mãe. Se continuássemos casados, a nossa família ficaria unida aos Delasaine por um laço legal.

- O rei e o resto da corte sabem de que lado estão os Fitzroy. Não pode haver nem um só homem em Inglaterra que duvide da nossa lealdade à coroa. Se os Delasaine fizerem alguma coisa condenável, ninguém acreditará que tens algo a ver com isso.

- Tu sabes os planos que tenho para o futuro mãe. Se me unir por casamento a uma familia indigna de confiança, nunca serei admitido no círculo do rei, porque nem Henrique nem os seus conselheiros confiarão em mim.

- Pode ser que te custe a conseguir o que te propões - disse ela, esboçando um sorriso compreensivo, - mas por algumas coisas, como o amor, vale a pena lutar.

Teria razão? Seria possível que continuasse casado com uma Delasaine e que isso não estragasse os seus planos? Semicerrou os olhos. Dentro dele lutavam a esperança e a ambição.

- Então, achas que este casamento é bom?

- Acho que poderia sê-lo. Certamente, não acho que seja uma catástrofe, como parecem achar o teu pai e tu.

- Mas a própria Anne acha que é temporário.

- Reece, lembras-te do que disse acerca de saber quando alguém está apaixonado? Pois referia-me à tua mulher.

Aquilo tinha que ser amor de mãe. As mulheres não gostavam dele como de Blaidd Morgan.

- Se Anne estivesse apaixonada por mim, como sugeres, não aceitaria a anulação.

- Suspeito que o meu teimoso e obstinado filho não lhe deixou alternativa.

Oh, Deus. Era verdade. Não Lhe tinha perguntado o que pensava ou sentia a propósito. Imaginava que os sentimentos de Anne não tinham mudado desde o primeiro dia, apesar de, os dele, sim, terem mudado. Sempre tinha dado por certo que não o queria para marido, porque o casamento tinha sido forçado.

- Nunca te deu sinais de que quisesse ser tua mulher no pleno sentido da palavra? Ou talvez seja melhor perguntar, se estás certo de que não quer, pois asseguro-te que, se não interessasses em absoluto a uma mulher como a Anne, não terias a menor dúvida a respeito - levantou-se e acariciou-lhe a face. - Fala com ela, Reece. Descobre o que sente. Dá-lhe a oportunidade de fazer parte da tua vida. Não desprezes a oportunidade de ser feliz por causa da ambição.

Aturdido, com os sentimentos e as ideias confusos, Reece não queria continuar a falar de Anne nem receber mais conselhos, por muito bem-intencionados que fossem.

- Pensarei no que dizes, mãe.

Ela compreendeu a indirecta e, com um breve adeus, deixou que reflectisse sobre os seus sentimentos, os de Anne e tudo o que tinha planeado.

 

Escondida junto a uma carroça parada no pátio exterior, Anne olhava em seu redor, observando sir Unen, Donald e Seldon a pôr à prova os escudeiros. De Reece não havia nem sinal e, ainda que se perguntasse porquê, imaginava que estaria ocupado noutro lugar. Entretanto, Iculy Fritha estava atarefada a bordar os punhos de um vestido novo e tinha dado permissão a Anne para fazer o que quisesse.

Mas Anne não podia sair do castelo, pois estava certa de que Benedict andava a rondar pela aldeia e desejava adiar aquele encontro enquanto fosse possível.

Anne nunca tinha estado numa casa tão agradável como aquela. Lady Fritha era carinhosa e acolhia com afecto todos quantos chegavam, mas ao mesmo tempo despertava o respeito de todos os moradores em Castle Gervais. E quanto ao tratamento que dispensava à sua nora inesperada

Anne não podia ter imaginado outro melhor, nem teria estranhado receber outro muito pior. Lady Fritha fazia-a sentir-se como uma convidada de honra em sua casa, não como uma intrusa inoportuna. Além disso, os seus gestos não deixavam dúvida de que esperava que toda a gente em Castle Gervais tratasse Anne do mesmo modo.

Anne não desejava ir embora dali e regressar a Montbleu e ao destino que a aguardava. Queria ficar e ser a verdadeira esposa de Reece Fitzroy.

Cada instante que passava o desejava mais. Mas por azar, Reece queria prosperar na corte e tinha razão ao acreditar que o seu vínculo com os Delasaine estorvaria àqueles planos. Eram homens traiçoeiros, cobiçosos e aviltantes que, sem dúvida, acabariam mal.

Mas o lugar de Reece era na corte. Seria um bom conselheiro para o rei, pois era sagaz e paciente e sabia dominar a sua ira. A sua ideia de representar diante da monarquia, a baixa nobreza que tinha conseguido o seu posto por mérito próprio era excelente e valiosa. Era, sem dúvida, preferível que Reece entrasse no conselho real e não Damon.

Deste modo ela não ia ajudar o meio-irmão mais do que o necessário e adiaria isso até que não lhe restasse outro remédio.

Entretanto, como mal tinha visto Piers desde a chegada, tinha decidido assistir aos seus exercícios. Mas não queria que soubesse e se envergonhasse.

Tentando afugentar os seus tristes pensamentos, fixou-se nos jovens que se exercitavam no pátio. Todos eles tinham espadas de pau. No terreno plano entre as muralhas exteriores e interiores tinham colocado armações de madeira que se assemelhavam a homens com os braços cruzados. Um deles tinha um escudo onde devia ter a mão. Os jovens escudeiros deviam bater no escudo com as espadas de madeira e afastar-se rapidamente, pois na outra mão estava pendurada uma bexiga de porco cheia de serradura, pronta para atacar o espadachim que não se mexesse suficientemente rápido.

Os rapazes já estavam a praticar desde o início da tarde. Alguns deles suavam copiosamente e mostravam sinais de dor nos braços de tanto brandir a espada de pau. Sir Unen não parecia importar-se. Passeava-se entre as filas gritando conselhos e advertências como se acabassem de começar um momento antes. Seldon rondava por ali como um boi perdido. Talvez se devesse ao facto de ter levado várias pancadas na cabeça por culpa dos lances enfurecidos dos pupilos. Até sir Unen tinha levado uma pancada. Donald olhava com frequência para a passarela da muralha e, à terceira vez, Anne distinguiu a linda cabecinha de Lisette espreitando entre as ameias.

Evidentemente, ela não era a única que queria assistir ao treino.

Anne voltou a olhar para Piers, a quem pareciam doer os braços devido ao esforço. Damon tinha pouca paciência para os exercícios e Benedict ainda menos e por isso aquele tipo de coisas era totalmente novo para o irmão mais novo. Piers parecia esgotado, mas lutava para dissimular o cansaço, pois, do outro lado do pátio, Trevelyan Fitzroy parecia capaz de brandir a espada até que o sol se pusesse.

Anne perguntou-se o que pensaria Piers da evidente relação entre Lisette e sir Donald. Não tinha podido estar sozinha com o irmão desde a sua chegada e por isso não tinha tido ocasião de falar disso. Mas, dado que Trevelyan Fitzroy também tinha perdido aquele combate, acreditava que o irmão não tivesse muita pena.

Anne não invejava o romance de Lisette. Pelo contrário, desejava que acabasse bem. Donald era um cavaleiro e Lisette não era mais que uma criada, de modo que o casamento deles era impossÍvel. Mas, por outro lado, a julgar pelas histórias que Lisette lhe contava sobre a corte de França e o desembaraço com que as recitava, as aventuras amorosas pareciam meros entretenimentos inofensivos para ela.

Anne afastou o olhar dos jovens que se exercitavam e olhou para a porta principal de Castle Gervais, por onde entravam e saíam criados e aldeões formando um alegre bulício. Toda a gente parecia contente e atarefada. Nem ali, nem na aldeia, nem em nenhuma outra parte do castelo parecia haver sinais de disputa.

Em Montbleu, as coisas eram diferentes. Os soldados de Damon eram ferozes mercenários recrutados na Saxónia porque, segundo ele, podia confiar neles para lutar. Se não lutassem, não recebiam o salário. Do ponto de vista de Damon, os aldeões prefeririam atirar-se para o chão como cães antes de defender Montbleu. Ela calava-se para não Lhe dizer que, dado que os tratava como cães, não podia esperar outra coisa.

Sir Unen gritou aos rapazes que parassem. Advertiu-os que fossem lavar-se antes de entrar para jantar, porque cheiravam pior que porcos. Ainda que, por outro lado, tivesse acrescentado que estava mais orgulhoso dos esforços dos seus pupilos do que dos porcos. Entreolhando-se, os rapazes desataram a rir e começaram a falar entre eles enquanto se encaminhavam para a enorme porta interior.

Anne ficou contente ao ver que alguns rapazes se juntavam a Piers e caminhavam a seu lado. Como ela, Piers nunca tinha tido amigos da sua idade e saber que ali tinha encontrado alguns alegrava-Lhe o coração. Talvez, se pudesse ficar, ela também fizesse amigas em Castle Gervais.

Mas não podia ficar e certamente o melhor era não pensar mais nisso, pois só conseguiria entristecer-se mais.

- Ah, estais aqui, Anne.

Ela sobressaltou-se e ao voltar-se encontrou-se com o bonito rosto de Reece.

- Que quereis? - disse, alarmada.

- Falar convosco.

Ela engoliu em seco e procurou recuperar a calma. Ao fim e ao cabo, não haveria razão para que Reece não falasse com ela e estavam num sítio público.

- Claro.

- Mas não aqui, nem agora. É quase hora de comer e queria que falássemos em privado - o seu tom era suave e íntimo e o seu olhar, tão intenso que Anne ficou sem fôlego. - Permitis-me visitar-vos no vosso quarto mais tarde?

- No meu quarto? - respondeu ela, como se não soubesse a que quarto se referia. - E o que acontece com o vosso plano? E se alguém vos vê?

- Há passagens secretas em Castle Gervais. Uma delas dá para a escada que há junto ao vosso quarto. Ninguém me verá - uma passagem secreta e um encontro secreto. Com Reece. - Então - dais-me permissão para vos visitar mais tarde quando vos retirardes?

O coração dela batia tão depressa que pensou que ia rebentar no peito.

- Sim - aclarou a garganta. Sim - disse com mais firmeza.

- Bom - os seus lábios curvaram-se num belo sorriso. - Cuidareis para que Lisette não esteja por perto?

- Ela costuma passar quase toda a noite com Donald - assegurou-lhe Anne.

- Era isso que eu pensava, mas queria assegurar-me - o seu sorriso alargou-se mais e os seus olhos pareceram brilhar com uma expressão que acendeu um desejo abrasador dentro de Anne. Então, adeus; Anne. Até logo à noite.

- Até logo à noite - murmurou ela, pois nesse momento não conseguia falar mais alto.

O marido, alto e largo de ombros, afastou-se enquanto Anne se apoiava na carroça, tentando recuperar o fôlego e perguntando-se o que significava aquilo.

Anne revistou o quarto mais uma vez. Tinha corrido as cortinas da cama e acendido todas as velas. Não queria que Reece pensasse que tinha certas... intenções.

Mas, como não ia ter tais intenções ou ao menos tais fantasias, sabendo que ia ficar sozinha com Reece, apesar das condições do casamento?

Abriu a cortina para olhar para o céu nocturno. As estrelas cintilavam no ar gelado e o vento fazia-a sentir-se ainda mais viva do que já se sentia. Respirou fundo e procurou acalmar-se, embora sentisse os sentidos aguçados à espera de lhe baterem à porta.

Mas ele não bateu.

Anne voltou-se e ali estava, de pé junto da porta fechada atrás dele. A sua sombra, projectada pelas velas, dançava no chão.

- As dobradiças devem estar bem lubrificadas - disse ela, tentando afugentar a súbita impressão de que não era na verdade um homem mortal, mas sim algum tipo de espírito com poderes sobrenaturais.

- A minha mãe mantém tudo em excelentes condições - respondeu ele sem se mexer.

Ela aproximou-se da mesa e serviu vinho num copo de prata.

- Fico contente por ter oportunidade de falar convosco sobre o meu irmão - disse, oferecendo o copo a Reece. - O Piers não está habituado a tantas horas de exercício. O Damon tinha pouca paciência e o Benedict, ainda menos.

Reece bebeu um pouco de vinho e assentiu.

- Isso salta à vista - pôs o copo em cima da mesa, ao lado de Anne. - Mas dar-lhe licença para se retirar antes ou dispensá-lo de todo seria realçar a sua debilidade. E ele não gostaria. É um rapaz orgulhoso. Queria triunfar, como o Trev. Se o meu pai o retirasse dos exercícios, sentir-se-ia humilhado. Creio que preferiria continuar até cair para o chão.

- Sim, é orgulhoso, mas prefiro pensar que nem por isso é estúpido.

- Não é mais do que qualquer outro jovem da idade dele que não deseja fracassar. Nisso é como as centenas de rapazes que vieram aprender aqui.

Ela percebeu algo no tom de voz dele que fez com que fosse mais fácil aceitar aquelas palavras.

- Vós éreis igual.

Ele sorriu espontaneamente:

- Como o adivinhastes?

Se estendesse os braços, poderia tocá-lo. Quanto desejava tocá-lo! Quanto desejava ser sua esposa de verdade!

- Continuais a ser um homem orgulhoso.

- Mas não jovem, não é verdade? - perguntou ele, arqueando as sobrancelhas.

- Bom, sois mais velho que o Piers - disse ela, tentando ter paciência e não olhar para a cara dele, para os lábios, para os olhos.

- Sim, sou certamente - ela aguardou que dissesse mais alguma coisa, enquanto Reece olhava para ela com os seus estranhos olhos cinzentos. O Piers está a ir muito bem, dadas as circunstâncias.

- O que quereis dizer com isso?

Reece encolheu os ombros.

- Que não está preparado para combater, nem sequer num torneio. Por isso pedistes a Henrique que o mandasse para aqui, não é verdade?

Ela assentiu e procurou afugentar a pontada de orgulho ferido que sentiu ao saber que o irmão não estava bem preparado.

- Então, está a portar-se bem?

- Melhor do que alguns que estão aqui há mais tempo - reconheceu Reece, passando a mão sobre a mesa em direcção a ela e afastando-a de imediato. - O vosso irmão é um jovem arrebatado.

Deseja triunfar e está disposto a fazer o que for preciso. Nenhum treino pode dar a um homem esse tipo de brios.

- A sério? - perguntou ela, sentindo que o coração se enchia de orgulho.

- A sério. Por isso não aceitaria bem uma interferência da irmã - aproximou-se da janela e olhou para fora como ela tinha feito. Voltou-se e apoiou-se contra o parapeito. - Sois feliz aqui Anne?

Surpreendida pela sua pergunta, ela, não obstante, assentiu.

- Muito - esboçou um sorriso. - Os vossos pais são pessoas justas, como me dissestes.

- Agradais muito à minha mãe. Ela mesma me disse.

Anne corou de prazer.

Reece sentou-se de um salto no largo parapeito; dajanela, como se pensasse ficar um pouco. Anne

sentiu que a garganta Lhe secava, mas disse para si

mesma que devia conservar o seu aprumo. Simplesmente; Reece mostrava-se amável.

Ela também se sentou no banco, diante do toucador.

- Os vossos pais parecem muito felizes juntos. Como se conheceram?

- O meu pai entrou ao serviço de lord Gervais para treinar os homens dele. Ela era filha adoptiva de lord Gervais. No dia em que o meu pai chegou, ela atirou-Lhe um favo de mel.

Anne olhou-o com espanto.

- A sério?

Ele esboçou um sorriso divertido.

- Sim, a sério. Deu-lhe em cheio na cara. Ela podia imaginar uma lady Fritha mais jovem e impetuosa atirando alguma coisa se estivesse zangada. Mas atirá-la a sir Unen...

- Por que fez tal coisa?

- Ele disse algo insolente e ela ofendeu-se. O meu pai diz que, dado que ia vestida como uma criada, foi um erro natural. Ela replica que essas coisas também não se dizem a uma criada.

- O que lhe disse exactamente?

Reece desatou a rir em voz baixa.

A verdade é que nunca me contaram.

- Essa história lembra-me um pouco o modo como vós e eu nos conhecemos, se não fosse pelo favo de mel - disse ela. - Poderia ter-vos atirado um quando vos aproximastes de mim, se o tivesse à mão.

- Fico contente de que não o tenhais feito - levantou-se e aproximou-se dela. A sua expressão mudou. Os seus olhos escureceram e o seu olhar tornou-se mais intenso. - E também fico contente por estar aqui, Anne. Neste quarto. Convosco. Fico contente de vos ter na minha casa - disse em voz baixa e áspera.

Ela levantou-se. Mal podia respirar. Todas as razões que tinha para desejar ficar ao seu lado desapareceram, excepto uma: desejava-o porque era Reece e porque a fazia sentir-se como nenhum outro homem. Porque ninguém agitava os seus desejos e a sua alma como ele.

- Anne - murmurou ele com um leve sussurrar, enquanto ela punha as mãos no seu amplo peito, sentindo os músculos vigorosos debaixo das suas mãos. - Quisera ter-vos sempre aqui. Quisera que fosseis minha esposa. Em todos os sentidos.

Ela estudou ansiosamente a sua cara e com preendeu que estava a dizer a verdade. Mas, ainda assim, mal podia acreditar.

- Quereis que seja vossa esposa? Então e o Damon, o Benedict e os vossos planos na corte?

Ele olhou para ela com os olhos cheios de desejo.

- Tu já não és uma Delasaine, Anne. És uma Fitzroy. O rei e os nossos votos assim o quiseram e esta noite confirmá-lo-ei, se estiveres disposta.

- Disposta? - exclamou ela, sentindo que os seus medos e dúvidas se desmoronavam, dando lugar a uma esperança reedificada. - Nunca estive mais disposta em toda a minha vida!

Para confirmar as suas palavras, pôs-se em bicos de pés e, apertando-se contra ele, apoderou-se da sua boca num beijo apaixonado.

Ele pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama.

- Juro por Deus que farei de ti minha esposa. não consentirei que o medo do futuro me detenha.

Deitou-se junto dela na cama e apertou-a nos braços. As suas bocas encontraram-se de novo. ela esfregou-se contra ele, possuída por uma excitação e uma felicidade que sufocavam qualquer outro sentimento. Reece desejava-a. Podia ser sua esposa! Podia ficar ali e ser feliz e...

Ele acariciou-lhe os seios e o inesperado contácto com as suas mãos apanhou-a de surpresa. Mas só por um instante, pois o seu espanto converteu-se num gozo delicioso quando ele continuou a explorar e a acariciar-Lhe o corpo e a sua língua deslizou dentro da boca de Anne para se entrelaçar na dela.

Anne nunca se tinha sentido tão desejada, nem nada tinha inspirado tanto desejo nela. Era como se tivesse esperado toda a vida para se sentir assim, surpreendida pelas emoções e pela paixão que crescia com cada leve carícia dos dedos de Reece.

Ele deitou-a. Sem deixar de a beijar, desatou desajeitadamente os laços do seu espartilho. Queria que tirasse o vestido. Claro. E ela também gozaria dele nu. De imediato, Anne começou a desatar-lhe os nós do gibão. Acabou antes dele.

- Tira-o - ordenou-lhe, afastando-o para poder sentar-se. Ele olhou para ela um momento. Tinha os olhos turvos pelo desejo e parecia desconcertado. - Tira o gibão - repetiu ela, - e eu tirarei o vestido.

Ele sorriu. Tirou o gibão e a camisa num segundo e atirou-os para o chão. Antes que ela tivesse acabado de tirar o vestido pela cabeça, ele livrou-se das calças, das meias e das botas.

Reece agarrou no vestido e tirou-o, atirando-o também para o chão.

Ela conteve a respiração enquanto Reece a contemplava à luz das velas. Só tinha vestida a fina camisa de dormir de seda branca. Ele estava nu e, enquanto a olhava, Anne deleitava-se observando diante dela o seu poderoso corpo de guerreiro.

- Imaginei isto centenas de vezes - murmurou ele, levantando os olhos até à cara dela. - Eu também - confessou ela.

Sorrindo, ele deitou-se a seu lado em cima da cama e pôs-lhe a mão no ombro. Depois, muito

devagar, baixou-a sobre a camisa de dormir.

- Muito bonito.

- O meu corpo ou a camisa de dormir? - mur murou ela, tentando não rir, pois não queria que

parasse.

- As duas coisas. Mas o teu corpo é mais. Anne rodeou-o com o braço e começou a imitar os seus movimentos, percorrendo com a palma da mão os ombros nus, o peito e as ancas.

- Tens um corpo lindo.

- Tu também - baixou a cabeça e beijou-lhe os seios por cima do fino tecido da camisa de dormir. Encontrou um mamilo e lambeu-o suavemente.

Aquilo ainda era mais delicioso do que quando

a tocava com as mãos. Também o seria para ele? Anne ergueu-se ligeiramente e apertou os lábios

contra o peito de Reece. Lentamente, deslizou a boca sobre os seus músculos, até que reparou no pêlo negro que rodeava o mamilo. Então lambeu-o suavemente. Ao sentir que ele continha a respiração, soube que para ele também era delicioso.

Sentiu uma onda de satisfação e continuou a sua exploração com os lábios e a língua, enquanto ele a acariciava.

Reece deslizou a mão pela sua perna e levantou-lhe a camisa de dormir. Ela abriu as pernas instinúvamente e, quando ele levantou ainda mais a mão, não resistiu. Avidamente, baixou a mão e apalpou a prova de que Reece estava tão pronto e desejoso quanto ela.

Deitou-se e atraiu-o para si, reclamando a sua boca de novo com mais fervor Se tivesse sabido os sentimentos e as sensações que, ao sugerir o seu plano, Reece lhe tinha pedido que sacrificasse, se tivesse sabido o que era fazer amor com ele, nunca teria consentido a anulação do casamento.

Reece apertou a mão contra o seu sexo húmido e inchado pelo desejo e cravou os olhos nela, firmes e seguros.

- Estás pronta para mim, Anne, mas pode ser que te doa um pouco.

- Não me importa: Quero-te dentro de mim.

Os olhos dele cintilaram à luz das velas e os seus lábios esboçaram um lento sorriso enquanto se punha em cima dela.

- Eu também quero estar dentro de ti. Quero ser teu marido.

Seu marido... Aquela palavra nunca lhe tinha soado melhor. Isso foi a última coisa que pensou antes de Reece se agachar para a beijar e a penetrar suavemente. Houve uma leve resistência, uma dor fugaz, depressa dissipada pelo prazer de sentir Reece dentro dela ao unirem-se para além dos laços da lei, carne com carne, para sempre.

Enquanto a sua excitação crescia, Anne rodeou-o com os braços e atraiu-o para si, dizendo-lhe que a dor não era nada. Que não importava. Que já tinha esquecido.

Ele inclinou-se para a frente, pressionando um pouco mais, e o prazer fez com que Anne gemesse com os lábios contra o peito dele. Ele penetrou-a um pouco mais e mais ainda, cada arremetida mais forte do que a anterior.

Levada pelas ondas do desejo, ela agarrou-se a ele, contraindo instintivamente as pernas. Reece tirou com um puxão a camisa de dormir para lhe deixar os seios a descoberto e começou a lambê-los e a beijá-los, enquanto a sua excitação crescia mais e mais.

E de repente aconteceu e um gemido ressoou na garganta de Reece. Anne sentiu-se arrastada por uma incrível onda de prazer que passou lentamente à medida que as investidas de Reece se tornavam mais suaves, até cessar de todo.

Ofegando, ele afastou-se e deitou-se ao seu lado. Deslizou um braço para debaixo dela e a seguir deu a volta para apoiar a cabeça no ombro dela.

Ele afastou-lhe delicadamente uma madeixa de cabelo da cara.

- Fui um tonto, Ánne. Poderás perdoar-me?

Ainda envolta no deleite da paixão, ela lançou-Lhe um cálido e lânguido sorriso.

- Depois disto, acho que poderia perdoàr-te qualquer coisa.

Os olhos de Reece iluminaram-se, alegres.

- Ei, tem cuidado, minha menina! Não me dês ideias. Se te zangares comigo, só terei que fazer isto - murmurou, procedendo a uma demonstração, - e isto. e isto.

Ela levantou-lhe a cara de entre os seios.

- Isso pode ser que funcione, garanto-te. Mas o que vale para a senhora da casa, também valerá para o senhor. Por exemplo, se quiser que me dês autorização para comprar alguma coisa que não consideres necessário, só tenho que fazer isto. E isto... e isto...

Ele gemeu e agarrou-Lhe na mão.

- Por todos os santos, acho que tens razão.

- Achas? Eu estou convencida disso.

Ele desatou a rir.

- Poderíamos passar muito tempo a tentar convencer-nos um ao outro.

- Lembro-me de formas piores de passar um bocado.

Reece pôs-se em cima dela, com os braços flectidos de ambos os lados da sua cabeça para não a magoar.

- Não sabia que pensavas assim.

Ela riu-se alegremente.

- Nem eu, mas adoro. Não preferes que apaguemos as velas? Há muita luz no quarto.

- Creio que nós o iluminamos - sussurrou ele, acariciando-Lhe a face.

Adoçada pelas suas palavras e pelas carícias, ela observou-o enquanto apagava as velas. A luz vacilante fazia resplandecer o seu corpo nu e vigoroso e Anne contemplava deleitada o movimento dos seus músculos. Era um homem magnífico. Mas, não só pela cara e pelo corpo. Era, além disso, um homem bom, sincero e honrado.

Quando Reece acabou, ficaram envoltos na es curidão.

- E agora, minha esposa - disse ele suavemente, deitando-se na cama de novo. - Lembro-me de umas quantas coisas que és capaz de gostar.

- Outra vez?

- Referia-me a outras coisas.

- Há mais?

- Sim e já perdemos muito tempo.

- Então, será melhor que comeces a ensinar-mas.

E foi o que ele fez.

 

Anne mexeu-se ao sentir uma rajada de ar frio. Reece tinha levantado o lençol. Ainda meio a dormir, voltou-se e estendeu o braço para ele.

- O que fazes? Ainda está escuro.

Ele murmurou uma maldição ao tropeçar em alguma coisa.

- Acho que voltei a romper a tua camisa de dormir.

- Vem, volta para a cama, não vás magoar-te.

- Não posso. É quase de dia - os olhos de Anne começaram a habituar-se à claridade. Ele encontrou as calças e vestiu-as. - Não me arrependo em absoluto do que fizemos, mas o meu pai acha que o nosso casamento é um grave erro. Será melhor que lhe explique o que aconteceu. Ninguém gosta de ser posto de lado. Não quero que saiba que passámos a noite juntos por Lisette ou por qualquer outro criado. Pode ser que o Seldon não se aperceba que não dormi no quarto - murmurou outra maldição.

- O que se passa?

- Hoje o meu pai quer começar a treinar com as lanças. Quando toca a lanças, fica sempre com um humor de cão. É o mais difícil de aprender, os rapazes cometem muitos erros e às vezes magoam-se. Talvez devesse esperar até amanhã para falar com ele.

Ela não queria esperar.

- Já te esperei tempo demais, meu amor. Quero estar contigo esta noite também.

- Não vejo razão para que não estejamos juntos, se usar a passagem secreta - disse ele, dando-lhe um beijo na testa. - Mas tenho de falar

primeiro com o meu pai e acho que será melhor esperar o momento certo para Lhe dizer que o meu magnífico plano foi para as urtigas.

- Desde que não seja mais do que um dia ou dois, Reece... Quero que toda a gente saiba o que sinto por

Ele beijou-a suavemente nos lábios, de novo.

- E eu por ti. Também não me apetece conti nuar a fingir, por isso direi ao meu pai amanhã, o mais tardar, esteja com que humor estiver.

Outro beijo e saiu do quarto.

Ao fechar a porta, Anne enrolou-se debaixo das mantas e suspirou. Ainda que desejasse que Reece informasse os pais imediatamente da mu dança que a relação deles tinha sofrido, acataria a sua decisão porque ele conhecia melhor o pai. Além disso, tinha prometido não o adiar mais do que até ao dia seguinte.

Sem dúvida que poderia suportar guardar o amor que sentia pelo esposo mais um dia.

O amor que sentia pelo esposo...

Ela era a mulher de Reece e sentia-se amada e segura. Damon já não tinha poder sobre ela, pois Reece também protegeria Piers.

Sentou-se na cama e abraçou os joelhos, pensando no que tinha que fazer nesse dia. Devia ir à aldeia, encontrar-se com Benedict e dizer-lhe que não continuaria a espiar para Damon.

Pensou em contar a Reece o plano de Damon e adverti-lo da presença de Benedict na aldeia, mas no fim decidiu não o fazer. Já havia antipatia suficiente entre eles e Reece sabia perfeitamente que devia ter cuidado com Damon. Quando Benedict soubesse que não lhes ia obedecer, ir-se-ia embora e, sem dúvida, correria sem demora a reunir-se com Damon.

Por fim, Piers e ela ter-se-iam livrado dos meios-irmãos.

Saiu da cama e recolheu a camisa de dormir rota, examinando o rasgão. Podia coser-se facilmente.

Pô-la em cima da cama e desatou a rir ao imaginar a expressão de Lisette e o seu risinho se soubesse quem a tinha rasgado, como e quando.

A fera à solta, por fim!

- Pai, fazem o que podem - disse Reece enquanto Sir Unen olhava com o sobrolho franzido para a fila de jovens que, montados a cavalo, tentavam manter as lanças direitas.

- Agarrai-as com força por debaixo do braço! Apertai-as contra o corpo quando descansardes! gritou o pai antes de se voltar para o filho. - Já tive bastante por hoje - olhou de novo para os rapazes. - Podeis ir!

Tal como os rapazes, Reece olhou para cima para ver a posição do sol e depois olhou para o pai com incredulidade.

- Tão cedo?

- Sim. Vamos! Ide de uma vez! - sir Unen agitou a mão como se quisesse espantar um bando de pássaros. - Fazei o que quiserdes até à hora do jantar. E não vos atrevais a chegar tarde!

Era tão estranho que o pai deixasse os seus pupilos livres tão cedo que a alma de Reece lhe caiu aos pés. Nesse dia, o pai estava de pior humor do que era de esperar da instrução com lanças. Por conseguinte, aquele não era o momento indicado para lhe contar o que tinha acontecido na noite anterior. Ainda que não lamentasse em absoluto ter, por fim, feito amor apaixonadamente com a esposa, não ia ser fácil explicar ao pai, aos irmãos e aos Morgan que já não era necessário solicitar a anulação. E quanto aos possíveis problemas que lhe podia acarretar estar aparentado com os Delasaine, faria o possível para demonstrar que a lealdade para com Henrique estava fora de questão e que não tinha nada a ver com eles. Tendo em conta como tinham tratado Anne, duvidava que ela também os quisesse tratar como irmãos. A sua lealdade estava agora com o esposo e a dele com ela.

Quando os últimos rapazes e os seus cavalos desapareceram pela porta, Reece olhou para o pai, tentando medir o seu estado de ânimo. Talvez o seu mau humor não durasse muito.

Então ficou boquiaberto de espanto. Na realidade, o pai estava a sorrir. Reece sentiu-se aturdido.

- Pensava que estáveis zangado.

Sir Unen abanou a cabeça e desatou a rir em voz baixa.

- São melhores com a lança do que todos os que temos tido até agora.

- O quê?

- Não fiques aí pasmado como se tivesse dito que sou o rei disfarçado - disse o pai, dirigindo-se para a porta. - Toda a gente diz que com a lança sou um tirano e é isso que os rapazes esperam. Ouviram mil histórias e não duvido que o Seldon Lhes tenha falado daquela vez em que tentou trespassar-me com a lança e eu fiquei ali parado até que ele se desviou. Creio que gosta de representar aquela parte em que eu fico à espera, quieto como uma estátua. De qualquer maneira, quem sou eu para arruinar a minha fama?

Reece apressou-se a acompanhá-lo e seguiu-o caminhando a seu lado, com passos largos. Deus do céu, talvez não houvesse melhor ocasião de lhe dizer o que tinha acontecido nessa noite. Bom pelo menos em traços gerais. Quando chegaram à sombra da muralha, pôs a mão no braço do pai para o deter e olhou-o cara a cara.

- Pai, queria falar convosco um momento.

Sir Unen olhou-o inquisitoriamente.

- Claro, meu filho - mas, antes que Reece pudesse dizer algo, alguma coisa nas suas costas chamou a atenção do pai. - Donald! - gritou. Onde te tinhas metido? Precisava da tua ajuda com as lanças - sir Unen começou a andar de novo para a porta e depois olhou para trás. - Podes esperar, Reece?

Reece preferia não esperar, mas o pai parecia preocupado com Donald. Ainda que sir Unen estivesse de excelente humor, já não lhe parecia que fosse aquele o momento mais propício para lhe fazer aquela revelação de vital importância. Contanto que pudesse dizer-lhe antes de se retirar para o quarto de Anne... o seu quarto...

- Falaremos depois de jantar.

O pai assentiu e seguiu em frente a bom passo saudando de longe lady Fritha e Anne, que nesse momento saíam do castelo cada uma com uma cesta nos braços, sem dúvida cheias de comida para os pobres da aldeia. Anne viu-o e sorriu-lhe. Ele saudou-as com a mão e, enquanto se aproximava delas, lembrou o acontecido na noite anterior. O fulgor do corpo de Anne à luz das velas.

Os seus lábios suaves sobre a pele dele: O cabelo espalhado em cima da almofada. A fina camisa de dormir enrolada em volta da cintura. O desejo nos olhos dela enquanto faziam amor. Os leves gemidos quando a tocava.

- O que fazes aqui? - perguntou a mãe quando chegou junto delas.

Ele olhou para Anne, que parecia tão serena e aprazível como sempre. Não duvidava que ele era a única pessoa no mundo que sabia o quanto podia ser apaixonada.

- O meu pai deixou ir os rapazes mais cedo - a mãe olhou-o com espanto. - Sim, sei que é estranho, mas estava muito contente com eles.

- Contente? - repetiu a mãe. - Pensava que hoje começavam as lanças.

- E assim foi. Mas fizeram-no tão bem que está de excelente humor - pelo canto do olho, viu que Anne corava e os seus olhos cintilavam.

- Bom, com as lanças ladra sempre mais do que é preciso - disse a mãe: - Diz que é o que esperam dele, mas atrever-me-ia a dizer que os pupilos não se importariam que não o fizesse.

- Sim, disse-me o mesmo. Acho que pensa que é uma espécie de recompensa, embora os alunos não pensem assim - baixou a voz. - Eu também acho que gosta de barafustar e fazer-se de mau.

lady Fritha desatou a rir suavemente.

- Acho que acertaste em cheio, meu filho.

- Por azar, tendo tempo livre, certamente depressa terei que mediar umas quantas discussões e não estranharia ter de ir buscá-los às tabernas da aldeia antes da hora do jantar.

- E até lá? - perguntou Anne.

Se a mãe não estivesse ali, Reece teria respondido de outra maneira.

- Tinha pensado ir com vocês à aldeia até chegar a hora de recolher os rapazes desgarrados pelas tabernas.

- Excelente! - disse lady Fritha. - A vaca de Mary tem a pata infectada e vinham mesmo a calhar umas mãos fortes para lhe agarrar a pata enquanto lhe aplico o emplastro.

Quando a mãe deu meia volta e se dirigiu para o caminho que levava ao mercado, Reece olhou para Anne e fez uma careta.

- Se não queres trabalhar como braçal, suponho que podes voltar para o castelo. Encontraremos outras mãos para agarrar a vaca – comentou Anne, e os seus olhos brilharam alegremente.

Ele agarrou-Lhe no braço e fez-lhe, às escondidas, uma carícia enquanto começavam a andar atrás da mãe.

- Por acaso queres livrar-te de mim?

Ele olhou-a de soslaio.

- Quando a tua mãe está connosco, sim.

atraindo-a para si, ele riu-se suavemente. - Estais

de muito bom humor, meu esposo. Isso significa que o teu pai não se incomodou porque o nosso casamento não se pode anular?

Reece ficou sério.

- Ainda não tive oportunidade para lhe dizer.

- Pensava que tinhas dito que estava muito contente com os rapazes - disse Anne, franzindo o sobrolho. - Era, sem dúvida, um bom momento para lhe dizer.

- Era, até que viu Donald, que deveria tê-lo ajudado com a instrução. Pensei que era melhor esperar até depois do jantar - baixou a voz e sussurrou: - Dir-lhe-ei antes que seja hora de se retirar.

Ela mordeu o lábio e franziu ligeiramente o sobrolho.

- Eu não estaria tão impaciente. Se está zangado com o Donald, talvez seja melhor esperar, como tu dizias.

- Não creio que esteja zangado com o Donald. Certamente imaginava tão bem como eu onde estava o Donald e talvez queira saber se a relação dele com Lisette é algo sério. A Lisette agora é uma criada da sua casa e o meu pai leva muito a sério o bem-estar dos seus criados, porque há muito tempo ele também foi um criado. Além disso, também não tem o direito de repreender Donald por não ter aparecido nos exercícios. O serviço de Donald não inclui a instrução. Ajuda porque quer, não porque esteja obrigado a isso.

- Achas que o teu pai desaprova a relação dele com a Lisette?

- Duvido, Donald nunca forçaria uma mulher a aceitar as suas atenções e está claro que a Lisette gosta. Certamente o meu pai quererá assegurar-se de que o Donald a tratará bem, se as coisas acabarem entre eles.

- Por acaso duvidas?

Reece encolheu os ombros e levantou a voz ao passar junto da forja, pois o martelo do ferreiro repicava sobre a bigorna como o sino de uma catedral.

- Ele fará com que a Lisette não tenha que lamentar, aconteça o que acontecer, mas o Donald é um bom homem. Não há razão para que a Lisette lamente ter-lhe dedicado o seu tempo.

Reece notou que Anne parecia aliviada.

- Fico contente por sabê-lo - ele não ficou surpreendido ao saber que se preocupava com o que acontecesse às suas criadas. - Então achas que poderás dizer ao teu pai hoje? - perguntou Anne passado um bocado.

- Sim. Apesar de tudo, acho que estará de bom humor depois de jantar.

- Porque terá comido e bebido bem?

- O meu pai não bebe em excesso.

- Não queria dizer isso - franziu o sobrolho, bem, talvez um pouco. De qualquer maneira, não podes negar que uma boa comida e um bom vinho melhoram o humor de qualquer um.

- Lembro-me de algo ainda melhor.

- Ah, sim? - perguntou ela, olhando-o com aquela mistura de inocência e sedução que agitava os seus desejos. Reece nunca tinha conhecido uma mulher que pudesse ser tão descarada e angelical ao mesmo tempo.

Levou-a para uma azinhaga entre a ferraria e o cerieiro, um espaço necessário para que o calor da forja não derretesse as velas.

- Sim, claro, e a ti também, minha esposa - murmurou ele.

Pretendia dar-lhe um beijo ou dois, mas quando a rodeou com os braços e sentiu a sua boca, um beijo pareceu-lhe pouco. O beijo tornou-se mais profundo e ardente e a sua mão começou a explorar o corpo esbelto da sua mulher por cima das roupas.

- Acho que me caiu a cesta - murmurou ela uns instantes depois, beijando-lhe o maxilar.

- Não importa.

- A tua mãe perguntar-se-á onde estamos.

- De qualquer maneira, antes de mais nada, quererá conversar um pouco com Mary.

- Mas não podemos demorar.

- Não o faremos - agarrou a cara dela entre as mãos e beijou-a com fervor.

Anne afastou-se, ofegante.

- Não podemos. Aqui não.

Ele procurou recuperar o fôlego e prestar atenção às suas queixas. E poderia tê-lo feito, se ela não tivesse olhado para ele daquela maneira.

- A sério que queres que pare, Anne? - perguntou ele com um sussurrar sedutor.

- Não - confessou ela, acariciando-o.

265

- Eu também não.

- Mais um beijo, Reece, e vamos.

- Sim, mais um.

Foi um beijo muito comprido.

Quando finalmente saíram para o caminho que rodeava a praça do mercado, Reece deu a mão a Anne. Desatou a rir suavemente. Tinha vontade de andar de mão dada com ela todos os dias da sua vida. Mas Anne ficou tensa de repente e conteve a respiração.

- O que se passa? - perguntou ele.i;

- As pessoas estão a olhar para nós. Acho que deveríamos soltar-nos.

Reece olhou à volta e viu que a sua observação era, por azar, certa: as pessoas que compravam e vendiam voltavam-se e olhavam-nos com curiosidade.

Reece suspirou com resignação e soltou-a.

- Sim, tens razão. À velocidade que voam as notícias na aldeia, o meu pai saberá que íamos de mão dada antes que cheguemos a casa de Mary.

Mas depois de lhe dizer, e à minha mãe também dar-te-ei a mão sempre que possa - Anne corou mas continuava a parecer preocupada. - Não temas, Anne, tudo correrá bem.

- Assim espero.

Mas disse-o tão baixinho que o marido não a ouviu.

Anne caminhava lentamente pela aldeia, tentando que não se notasse que estava à procura de alguém. Tinha aguardado que Reece fosse embora da casa de Mary com a intenção de recolher os jovens que tinham ido à aldeia e tinha-se separado de lady Fritha, dizendo-lhe que queria voltar para o castelo para remendar uma camisa de dormir.

De facto, tinha que remendar a camisa de dormir, mas sobretudo tinha que falar com Benedict.

Tinha-o visto numa azinhaga, perto da taberna, junto do prado. Ao princípio, sobressaltou-se, assustada, mas depois sentiu uma exaltação triunfante. Por fim, podia dizer-lhe que voltasse para junto de Damon e lhe dissesse que não pensava servir-lhe de espia. Se não gostasse, que tentasse levá-la a ela e a Piers de Castle Gervais. O seu amado esposo impediria, sem dúvida, que isso acontecesse e deste modo as ameaças de Damon não significariam nada.

A figura corpulenta de Benedict permanecia refastelada à sombra da ferraria como se estivesse bêbedo. Anne acelerou o passo até que se assegurou que a tinha visto e, lançando-lhe um olhar penetrante, dirigiu-se para a azinhaga que separava a ferraria do cerieiro. A loja do cerieiro estava fechada e a oficina do ferreiro também.

Benedict apareceu na entrada da azinhaga cambaleando como um borrachola.

- Olha, é a encantadora noiva - balbuciou.

Conseguiste finalmente levar esse eunuco para. a cama?

Estava completamente bêbedo. Mal sabia o que dizia. Anne sentia o cheiro de cerveja que vinha do sítio onde se encontrava.

Tinha que ser cuidadosa. Quando estava bêbedo, Benedict era perigoso. Apoiou as costas na parède e olhou para a saída da azinhaga, calculando como podia passar junto do irmão. Por sorte, quando estava bêbedo, Benedict era também muito lento.

- Baixa a voz! - ordenou-lhe com um áspero sussurro quando ele parou, oscilando. Não queria que a descobrissem com ele.

Benedict corou e aproximou-se um pouco dela.

- Cala a boca! - berrou.

- Tu não tens o direito de me dar ordens. E o Damon também não. Sou a esposa de sir Reece Fitzroy em todos os sentidos, como adivinhaste, de modo que o Damon já não tem poder, nem direitos sobre mim. Portanto, abandonarás este lugar, voltarás para junto dele e dir-lhe-ás que de mim não obterá nenhuma informação acerca dos Fitzroy e dos seus amigos.

Os olhos turvos de Benedict arregalaram-se. Murmurando, aproximou-se mais dela. Anne tentou correr para a saída da azinhaga, mas ele agarrou-a, pondo-lhe as mãos de ambos os lados da cabeça. Inclinou-se parà a frente, de modo que o seu fétido hálito lhe acertou em cheio na cara.

- Quem pensas que és, ranhosa?

Apesar de tudo o que tinha dito, Anne sentiu medo ao ver o seu olhar turvo. Tentando manter a calma, ergueu os ombros e olhou de frente para o homem que a tinha atormentado durante tanto tempo.

- Sou a mulher de sir Reece Fitzroy. O próprio rei me libertou do Damon e de ti e, a menos que tenhas o bom-senso de um mosquito, voltarás para junto de Damon e dir-lhe-ás que corre perigo se continuar a ameaçar-me, a mim ou ao meu marido.

Benedict pestanejou, confuso, como se não compreendesse o que dizia.

Ela libertou-se e afastou-se dele.

- Já não me dais medo, Benedict. Nem tu nem o Damon.

- Então, levaremos o Piers.

- Se o Damon é tão estúpido a ponto de fazer algo contra a esposa de sir Reece Fitzroy, que o tente.

- Se queres que me vá embora, arranja-me dinheiro para comprar um cavalo.

- O que aconteceu ao teu?

- Perdi-o.

Sem dúvida, andava a jogar.

Ainda que Anne não quisesse dar-lhe nem um centavo, não tinha opção, a não ser que quisesse que ele tentasse roubar uma montada. Apanhá-lo-iam, sem dúvida, e teria que dar explicações. Era preferível que se fosse embora o quanto antes e levasse a sua mensagem a Damon.

- Terei que te dar algo para vender.

Ele encolheu os ombros.

- Está bem.

- Vemo-nos aqui amanhã.

- Está bem. Ela vacilou.

- Faças o que fizeres, Benedict, não digas a ninguém quem és.

- Por acaso achas que sou imbecil? - perguntou ele.

Anne foi-se embora sem responder.

 

A divisão principal da estalagem do subúrbio de Bridgeford Wells não era grande e tresandava a cerveja barata e a vinho ainda mais barato. O chão estava coberto de esteiras sujas e de certeza infestadas de pulgas, de ossos e de sobras de comida. Embora o sol ainda brilhasse, as janelas quase não deixavam passar a luz, nem sair o fumo da chaminé. Junto à entrada, jogava-se aos dados com grande bulício. Vários jovens de Castle Gervais tomavam parte nas apostas:

Piers Delasaine tinha ido porque os outros rapazes lhe tinham pedido e sentia-se agradado por isso. Ainda que amasse a irmã, começava a descobrir o prazer da camaradagem entre companheiros de armas.

Ao princípio, não tinha achado graça nenhuma que Anne pedisse ao rei que o mandasse com ela, pensando que a sua falta de destreza seria humilhante. Mas tinha descoberto que era, na realidade, melhor do que muitos daqueles jovens e que com a ajuda de sir Unen, Reece, Donald e Seldon chegaria a ser ainda melhor. Talvez, até, um dia se tornasse num campeão de torneios.

Então podia mostrar aos irmãos mais velhos que se enganavam ao tratar Anne e a ele como um estorvo.

Estava sentado no canto mais escuro e afastado, bebendo devagar um vinho amargo e excessivamente caro para ele, que tinha pago com a maior parte das magras poupanças que reunia há meses, desde que tinha sabido que Damon pensava levá-los para a corte.

Trevelyan Fitzroy, que não fazia apostas mas seguia as evoluções do jogo, afastou-se do grupo e aproximou-se dele.

- O que queres? - perguntou Piers, sem fazer nenhuma tentativa para se mostrar amável ou interessado.

Trevelyan Fitzroy tinha tudo o que queria: uns pais carinhosos, irmãos dignos de admiração, vários amigos, um rosto bonito e modos refinados. Piers estranhava, no entanto, que Lisette não tivesse correspondido aos seus intentos. No entanto, isso fazia com que a falta de interesse que rapariga tinha mostrado nele lhe fosse mais lev:

Se tivesse sabido que Trevelyan estaria ali, teria ficado nos barracões, a polir a armadura.

Para sua surpresa, Trevelyan sorriu e sentou-se no banco em frente a ele.

- Vim em missão de paz.

Piers semicerrou os olhos, receoso.

- Porquê? Eu sou um Delasaine tu, um Fitzroy. Os meus irmãos atacaram o teu. E, além disso, derrotaram-no - acrescentou.

Trevelyan corou.

- Sim, deram-lhe uma tareia vergonhosa e para além disso, foram precisos dois para o vencer - ao ver que Piers fazia tensão de se levantar Trevelyan agarrou-o pelo braço. - Senta-te e escuta. Estou disposto a pôr de lado o que aconteceu. A minha mãe diz sempre que, embora seja necessário prestar atenção às companhias com quem um homem anda, é ao próprio homem que cabe ajuizar. Tu não te dás por vencido facilmente, lutas com dureza, mas com justiça e, se estivesse numa batalha, sentir-me-ia melhor sabendo que estás ao meu lado. Se não quiseres ser meu amigo, não faz mal. Mas não quero ter-te como inimigo.

Piers não duvidou nem um momento da sinceridade dele e sentiu-se agradado e contente. A sua inveja nunca desapareceria, mas não podia recusar aquela oferta de amizade. No fundo, sabia que seria uma necessidade não permitir que o orgulho lhe roubasse aquela oportunidade.

- Se alguma vez nos víssemos numa batalha eu tambem quereria ter a meu lado.

Os dois compreendiam a importância daquele pacto e permaneceram em silêncio uns segundos.

Depois, como se sentia feliz, Piers atirou lenha para a fogueira.

- E, para além disso, a Lisette também não te quer a ti.

Trevelyan desatou a rir A sua gargalhada atraiu

a atenção dos jogadores um instante, mas depressa voltaram a concentrar-se no jogo.

- Não, não me quer. Já tem o Donald, que parece um morto vivo. Fica parvo quando se aproxima dela.

De repente, a porta abriu-se, como que empurrada por uma rajada de vento. Os jogadores pro testaram até que viram a silhueta de Reece Fitzroy na porta.

- Que diabos estais a fazer aqui, seus velhacos? - perguntou, com os braços abertos.

- Rápido, segue-me -sussurrou Trevelyan, contornando a mesa, agachado. - Iremos por trás. Tem cuidado. Agacha-te e não nos verá.

Piers obedeceu sem refilar. Estava claro que Trevelyan tinha escapado clandestinamente da quela taberna outras vezes. Atravessaram a cozinha, passaram junto ao galinheiro e à pocilga e saltaram a vala, saindo numa alameda que havia atrás.

Rindo, aliviado, Trevelyan caiu para o chão.

- Ah, pelas chagas de Cristo, esta foi por pouco! Boa coisa não os espera quando voltarem.

- Suponho que os castigarão.

- Oh, pode ser que lhes dêem um pouco de trabalho extra. O meu pai deixou-nos sair cedo hoje, de certo sabia que alguns viriam para aqui.

Piers pôs-se de pé.

- E mesmo assim vieste?

Trevelyan levantou-se e sacudiu a roupa.

- Claro. É o que esperam, sabes? Para quê estragar a diversão ao Reece?

- Enquanto não te apanharem, não é? Trevelyan desatou a rir.

- Muitas vezes fui demasiado lento e comigo são muito mais duros do que com o resto dos rapazes. Para dar o exemplo, sabes? Mas mesmo assim não é tão mau - olhou para Piers seriamente.

- Tu não estás habituado a divertir-te, pois não? não esperou que Piers respondesse. - Vamos, será melhor voltarmos. Eu irei por Este. Tu, vai por Oeste. Vemo-nos no castelo.

Assentindo, Piers separou-se do amigo. Pouco depois, enquanto cruzava apressadamente a aldeia, viu uma figura que o fez parar de repente. Anne saiu de uma azinhaga próxima à ferraria com a mesma decisão com Que se estivesse a cumprir uma importante missão para o rei.

Aquilo já era bastante surpreendente. Mas, então, Benedict apareceu cambaleando e dirigiu-se para a taberna como um mau presságio de carne e osso.

Reece entrou no salão do castelo, cantarolando uma canção acerca de um ousado cavaleiro e da sua dama. Tinha levado os rapazes para os barracões e, depois de lhes dar uma boa reprimenda, tinha-os deixado sentados nas suas camas, a polir as armaduras para o dia seguinte.

Mas, apesar de tudo, não se tinham portado mal. Nenhum deles estava bêbedo e não tinham perdido muito dinheiro a apostar. Tinha-se certificado disso e o proprietário da taberna sabia que não devia consentir que os pupilos de sir Unen se excedessem demasiado. O próprio sir Unen o tinha deixado bem claro quando ele abriu o estabelecimento em Bridgeford Wells.

Reece perguntou-se, de novo, onde se teriam metido Trevelyan e Piers, confiando que não tivessem voltado a brigar, nem se tivessem metido em nenhum problema. Então o seu olhar pousou-se no estrado do salão. Lá estava sir Unen e também...

- Gervais! - exclamou Reece, aproximando-se deles apressadamente.

Sentiu o bater do coração no peito. Que notícias traria o irmão? Pela sua cara, não pareciam boas. Além disso, parecia exausto, como se não tivesse descansado até chegar a Bridgeford Wells.

Cumprimentaram-se com um abraço.

- Que notícias trazes da corte? – perguntou Reece.

- Trago uma ordem de Henrique. Tens de te apresentar perante ele de imediato – respondeu Gervais.

Reece só se lembrava de uma razão para que Henrique o chamasse de novo à corte: a anulação que já não desejava.

Gervais e o pai olharam para ele fixamente. A expressão das suas caras era tão idêntica que pareciam duas gotas de água.

- Vamos ao escritório - ordenou bruscamente sir Unen depois de olhar em redor. - Não devemos falar disto no salão. A vossa mãe não está em casa, mas reunir-se-á connosco assim que chegar.

Voltou-se e abriu caminho. Reece seguiu-o, com Gervais ao lado. O irmão parecia olhá-lo com estranheza. Notar-se-ia no rosto a mudança que tinha sofrido? - perguntava-se Reece. Gervais, dar-se-ia conta do quanto eram inoportunas as suas notícias, notícias que uns dias antes teriam sido motivo de alegria?

Quando entraram no escritório, sir Unen fechou a porta e sentou-se á mesa, indicando aos filhos que se sentassem.

- Agora, Gervais, começa pelo princípio: Gervais assentiu, mas primeiro tirou metodicamente as luvas de pele. Desatou a capa e deixou-a cair na parte de trás da cadeira. Os preparativos tão característicos nele fizeram com que Reece tivesse vontade de gritar de impaciência.

- Finalmente consegui uma audiência com o rei, quando regressou da caçada no Bosque Novo. Como esperava, estava com um humor excelente e consegui convencê-lo de que o melhor para todos seria anular o teu casamento com a Anne. Concordou e por isso manda chamar-te à corte, a ti e a Anne.

Oh, Deus. O seu plano tinha funcionado. O seu estúpido e desnecessário plano tinha funcionado.

- Não se zangou por isso supor uma crítica implícita à sua conduta? - perguntou o pai.

- Não - Gervais aclarou a garganta e falou, sem olhar para Reece: - O Damon Delasaine não está a comportar-se com discrição e acho que o rei compreende que um homem leal à coroa não deseje ver-se vinculado a essa familia em particular.

- Agora não estás na corte, filho - resmungou sir Unen. - Fala com clareza.

- Os Delasaine são piores do que imagináva mos. Estávamos enganados quanto ao alcance dos seus crimes.

Reece inclinou-se para a frente.

- Que crimes?

- Há histórias de violação e certamente de assassinato. Do caminho até aqui soube que, numa taberna, uma criada tinha sido encontrada morta, e a descrição do homem que viram fugir enquadrava-se com a de Benedict Delasaine.

- Não estava na corte? - perguntou Reece.

- Não. Saiu pouco depois de vocês. E, como se não bastasse, Damon Delasaine parece estar a tentar seduzir a rainha.

Sem dúvida que Gervais se enganava e tinha interpretado os rumores e os falatórios da pior maneira possível, devido à sua ininiizade com os Delasaine.

- Como sabes o que pretende Damon Delasaine? - perguntou Reece. - Suponho que não te terá falado disso.

- É um estúpido presumido e arrogante que não se preocupa em ocultar os seus propósitos. Toda a gente na corte sabe o que tenta fazer.

- Se toda a gente sabe, por que não o acusam de traição?

- Porque isso atingiria a rainha. Henrique ama Leonor e, até agora, ela está livre de culpa. Não deu esperanças a Delasaine. Mas também não o repeliu - acrescentou Gervais com desagrado. No entanto, de momento não cometeu nenhum delito e ele também não, exactamente. Mas o Blaidd diz...

- Oh, vá lá, e o que diz o perito em mulheres tem de ser certo? - perguntou Reece asperamente.

- Por acaso leu o pensamento de Leonor?

- Não, de Leonor, não. De Damon - replicou Gervais.

Reece fechou os punhos, tentando controlar a raiva e a consternação que cresciam dentro dele.

- Queria realçar que, até agora, não há provas de que os Delasaine tenham cometido algum delito. Estou de acordo em que parecem capazes de violar e assassinar e até de cometer traição, mas...

- Mas? - disse Gervais, olhando-o fixamente.

- Mas o quê? O que mais queres? Menos provas tinhas tu da perversidade desse homem quando tomaste a sábia decisão de pedir a anulação do teu casamento com a irmã deles. Os Morgan estão de acordo comigo em que os Delasaine estariam certamente dispostos a assassinar Henrique se o Damon conseguisse tornar-se amante da rainha.

- Nem sequer Damon Delasaine pode ser tão estúpido - declarou Reece. - Para começar, não tem sangue real; logo, jamais poderia ser rei.

- Por azar, sim, tem - disse o pai. - Só uma gota, mas pode ser que para ele seja o suficiente para pensar que poderia conseguir. Por outro lado; um homem pode reinar sem coroa.

- Se Henrique corresse um perigo tão grave mandava-o prender e julgar.

- Não queres acreditar, pois não? - perguntou

Gervais.

- Mas é claro que não. O Delasaine é meu cunhado.

- Por agora - disse o pai secamente. - O que nos contou o Gervais faz ainda mais urgente que te livres desse laço. Damon Delasaine tem menos senso do que um cão raivoso e por culpa da sua ambição arrastará os outros na sua queda.

Reece sabia que qualquer laço com um traidor da coroa era um perigo para a família do traidor.

- Então e esses outros crimes, as violações e assassinatos? - perguntou. - Por que não foi acusado deles? Se estivesse na prisão ou fosse executádo não poderia matar o rei.

- Até ao momento, não há provas suficientes para que uma assembleia de nobres condene um cavaleiro num tribunal de justiça.

Reece cruzou os braços.

- E há para que eu anule o meu casamento? O pai observou-o com uma intensidade que, dois dias antes, o teria assustado.

- O que estás a dizer? Reéce? Que já não queres a anulação? - perguntou-lhe; incrédulo.

- A nossa lealdade está fora de questão.

- Um homem poderoso pode ser muito desconfiado se pensar que o seu poder está em perigo - respondeu sir Unen friamente. - Se Henrique se sentir ameaçado, talvez a lealdade que demonstrámos outras vezes não valha nada. Não deves demorar-te. Tens que te apresentar na corte antes que Damon cometa traição. Principalmente, tendo em conta que Henrique parece disposto a permitir a anulação do casamento. Conheci homens como Damon e a paciência não é uma das suas virtudes. Quando o fizer, não quererás estar vinculado a ele.

No fundo, Reece sabia que o pai tinha razão a respeito de Damon Delasáine. Os homens como ele albergavam ambições desmesuradas e, como Ícaro voando até ao sol, acabavam por se destruir. Mas, ao contrário de Ícaro, Damon arrastaria outros com ele.

O semblante do pai enterneceu-se levemente.

- Temia algo assim. Começaste a preocupar-te com ela.

- Sim, é verdade. Não é em vão que é minha esposa - olhou para Gervais. - Se o que dizes for certo, o que acontecerá à Anne se nos separarmos? Toda a família poderia perder as terras e o dinheiro.

- Reece - começou Gervais. - Não queria ter que te dizer isto, mas agora parece-me necessário - uma sombra pareceu cair sobre o coração de Reece ao olhar para o irmão. - Quando vocês se foram embora, cada vez que me encontrava com Damon - disse Gervais com tom amargo, mas firme, - olhava para mim com vaidade, como se fosse um vendedor ambulante que tivesse vendido

algo pelo dobro do seu valor. Era estranho e susci tou as minhas suspeitas. Se estava zangado por causa do casamento, como parecia ao princípio, por que agia assim? Por que parecia tão satisfeito quando antes se opunha?

- Apercebera-se de que não podia fazer nada e pensou que, ao menos, não tinha que pagar o dote - disse Reece.

O semblante de Gervais adquiriu uma expressão ainda mais aflita.

- Ou pode ser que se apercebesse que podia tirar algum proveito deste casamento.

- Um casamento que o vincula a uma família melhor - sugeriu Reece.

- Sim, assim é. Mas onde tinha ido o Benedict Delasaine? Deram-me notícias de um homem que se encaixava na sua descrição em todas as estalagens

do caminho, ainda que ninguém no castelo pareça tê-lo visto. Não veio ver a irmã. Pelo menos, abertamente.

Reece sentiu um nó no estômago.

- Onde queres chegar, Gervais? Como diz o nosso pai, fala com clareza... ou cála-te:

- Estou a dizer que nós somos os inimigos naturais de homens como os Delasàine. Uma esposa descobre muitas coisas e a informação pode ser uma arma. poderia ser por isso que o Damon Delasaine estava tão contente, porque tem alguém em nossa casa que pode passar-lhe informações de grande valor.

Reece levantou-se de um salto.

- Estás a acusar Anne?

Gervais assentiu.

Reece voltou-se para o pai.

- A Anne não é uma espia!

- Tens a certeza absoluta? - perguntou o pai com a voz calma e fria como um nevão.

Anne não podia ser uma espia. Ela nunca o atraiçoaria.

No entanto, embora o seu coração lhe gritasse que não, a sua mente recordava as perguntas que ela tinha feito acerca dos seus amigos e de outras coisas que durante a viagem lhe tinham parecido insignificantes. Apercebeu-se das muitas coisas que podia descobrir a ajudar a senhora do castelo, desde as provisões de que dispunham em caso de ataque, aos pontos fracos dos edifícios que precisavam de reparações. Recordava como Anne tinha olhado para o castelo e que ele mesmo Lhe tinha falado, pelo menos, de uma passagem secreta. De bom grado Lhe tinha dito onde estava, se ela Lhe tivesse pedido. Mas não lhe tinha pedido.

Tinha que ser inocente. Não podia ter-lhe mentido nos momentos de intimidade.

- Sei que esta situação não é fácil para ti, mas, afinal de contas, o melhor é pedir a anulaçãodisse o pai, tirando-o das suas cismas. - Os Delasaine são homens desprezíveis. É preciso cortar todos os vínculos com eles.

Mas e Anne? Que seria de Anne? Da bela e en cantadora Anne, daquela mulher que tinha acabado por amar com todos os sentidos?

Tinha que haver algum erro.

- Pai, Gervais, eu... não posso...

Alguém bateu bruscamente à porta.

- Sir Unen! - gritou Piers Delasaine com voz desesperada. - Sir Unen, tenho de falar convosco!

Reece ia repreendê-lo por aquela interrupção quando o pai levantou a mão.

- Vejamos o que quer, que vem tão alarmado.

Gervais aproximou-se da porta e abriu-a. Piers estava no umbral, pálido e a tremer. Parecia tão abatido como se sentia Reece.

- O que há? Aconteceu alguma coisa? - perguntou sir Unen.

- Tenho que falar convosco - disse Pierce olhando para sir Unen depois de pousar o olhar nos seus dois filhos. Sir Unen indicou-lhe que entrasse. - Vim avisá-los - disse Piers com uma expressão de amarga decisão. - Vi o meu irmão Benedict. Estava a falar com a Anne numa azinhaga na aldeia.

Oh, Deus. Reece procurou uma cadeira e deixou-se cair nela.

- Tens a certeza? - perguntou o pai.

Piers assentiu.

- Reconheceria o Benedict em qualquer sítio.

- Vieste para aqui directamente? - perguntou

sir Unen.

- Sim - Piers engoliu em seco e o seu olhar vacilou, mas apesar de tudo disse: - Se a Anne vos

está a enganar, não quero fazer parte disso - levantou os olhos e olhou fixamente para sir Unen.

- Eu quero ser um homem bom e honrado, como vós.

Reece levantou-se de um salto e aproximou-se

da porta.

- Onde vais? - perguntou o pai.

- Buscar o meu cunhado - berrou Reece enquanto saía.

 

Anne estava a remendar a camisa de dormir quando Lisette entrou no quarto a correr.

- Oh, lá, lá, milady! Estais aí! - franziu o sobrolho ao ver que Anne largava a camisa de dormir, como se perguntasse o que estava a fazer

mas depois distraiu-se de novo.

- O que se passa? - perguntou Anne. - Lady Fritha precisa de mim?

- Non, non. O irmão do vosso esposo voltou da corte.

Anne ficou sem fôlego. Pousou as mãos a tremer em cima dos braços da cadeira e levantou-se. - Quando chegou?

- Há pouco. Está no escritório com o vosso marido e sir Unen. Ou estavam, pelo menos. Cruzei-me com o vosso marido na sala. Parecia com muita pressa... - vacilou, corando. - Devo ir-me.

Anne ficou ainda mais nervosa.

- O que se passa com o meu marido?

Lisette estendeu o braço para a cesta de costura.

- Eu acabarei isto se quereis, senhora.

Anne afastou a cesta bruscamente e a camisa de dormir caiu para o chão.

A rapariga não se atreveu a olhá-la nos olhos.

- Ia muito zangado, milady. Nunca o tinha visto assim. E ouvi que... Bom, a verdade é que ouvi sir Gervais dizer que o vosso marido foi chamado à corte. Anne aproximou-se da janela e olhou para fora sem ver nada. Talvez Gervais tivesse voltado para lhes dizer que Henrique se mostrava disposto a consentir a anulação. Talvez Reece tivesse dito ao irmão e ao pai que o plano já não fazia sentido.

Talvez se tivessem zangado com ele pelo acontecido e tinham discutido.

Mas, fosse o que fosse que tivesse acontecido entre os membros da familia do seu esposo, teriam que ir à corte, se o rei o ordenava. Uma vez lá, Reece teria que dizer ao rei que, no fim de contas, não havia razão para anular o casamento.

E depois? Se sir Unen estava zangado porque o casamento não podia ser anulado, se continuava a pensar nela como um grave perigo, Reece e ela teriam que... que... ir embora dali, quem sabe?

Na realidade, ela não se importava para onde fossem, desde que estivesse com Reece. Mas depois não estariam a salvo de Damon. Sem dúvida o irmão procuraria vingança se os achasse vulneráveis. E o que seria de Piers? Sir Unen deixá-lo-ia ficar para completar a instrução? Quereria Piers ficar?

- Milady?

Anne tinha-se esquecido da presença de Lisette.

- Sim? - perguntou, olhando para trás.

Lisette levantou a camisa de dormir.

- Quereis que acabe de coser isto?

- Sim, por favor, Lisette.

A rapariga sentou-se na cadeira e Anne voltou a olhar pela janela. Onde teria ido Reece? E quando voltaria?

Manter-se-ia vigilante e, quando voltasse, falaria com ele imediatamente. Lady Fritha estaria certamente muito ocupada com a volta do seu outro filho e com a possível querela que tinha surgido no seio do seu lar, para sentir falta da nora que era a causa de tal querela.

Anne suspirou e apoiou a cabeça contra o caixilho da janela. Não queria ser a causa de desavenças naquele lar tão feliz.

- Não lhe deveria ter dito - murmurou Lisette dando um soluço.

Anne voltou-se e viu que estava a chorar.

Aproximou-se dela e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Não te preocupes. No fim de contas, teria sabido na mesma e prefiro saber as más notícias dos lábios de uma amiga.

Lisette esboçou um sorriso trémulo.

- Eu sou vossa amiga, milady?

- Claro que és. E espero que o sejas sempre.

Lisette começou a chorar de novo, inclinando-se sobre a camisa de dormir, enrugada que tinha nas mãos.

Antes que Anne pudesse dizer algo para a consolar, um grito chamou-lhe a atenção, atraindo-a de novo para a janela, pois reconheceu a voz de Reece. Os guardas abriram o postigo da porta interior e Anne esperou ansiosamente ver o seu esposo.

Mas não foi Reece que a atravessou.

Foi Benedict.

Viu com horror que Reece fazia o seu irmão atravessar o pátio aos empurrões, em direcção ao salão.

Os dedos frios do medo atormentaram-lhe o coração. Não tinha previsto que aquilo acontecesse. Mas deveria tê-lo feito. Benedict era um estúpido. Certamente tinha revelado a identidade estando bêbedo.

No entanto, era ela quem tinha a maior parte da culpa. Deveria ter dito a Reece que Benedict estava em Bridgeford Wells. Deveria ter-Lhe contado tudo na noite anterior, incluindo os planos de Damon e a sua decisão de os perturbar. Deveria ter confiado no marido. O que pensaria ele agora?

Aquilo era o pior que podia acontecer, pois vendo-se encurralado, Benedict diria qualquer coisa para se ver livre da culpa, implicaria qualquer pessoa, contaria qualquer mentira...

Ela devia confessar tudo de imediato. Logo de seguida. Reece devia ouvi-lo dos seus próprios lábios.

Decidida, saiu do quarto a correr. Enquanto corria até ao salão, atreveu-se a acreditar que tudo aquilo acabaria depressa e que o indigno acordo com Damon não teria mais consequências. Tinha-se enganado por não ser sincera desde o princípio, mas talvez pudesse remediar tudo.

Devia fazê-lo.

E porque Reece a amava, acreditaria e confiaria nela.

Tinha que o fazer.

Reece e Benedict não estavam no salão. Deviam estar no escritório.

Quando lá chegou, ofegava por causa do esforço. Enquanto tentava recuperar o fôlego, bateu à porta.

Foi sir Unen em pessoa que a abriu. Reece tinha Benedict agarrado por um braço e Gervais permanecia junto da mesa larga, a olhar fixamente para o meio-irmão de Anne. Piers também estava lá, o que era muito estranho.

Ao vê-la no umbral, o rapaz saiu da divisão, empurrando-a sem dizer uma palavra.

O que estava a fazer ali? Por que não lhe dizia nada?

As coisas iam de mal a pior.

A sua decisão vacilou um momento, mas só um momento. Levantando o queixo, entrou na divisão. Sir Unen foi sentar-se atrás da mesa, tão grave e severo como um juiz da audiência real.

Reece soltou Benedict e colocou-se no outro lado da mesa, olhando-os de frente. Anne procurou algum sinal de esperanÇa e viu-o no rosto dele.

Fosse o que fosse que se estava a passar, Reece não estava contra ela. E no entanto... No entanto o seu intenso olhar perscrutava-a cautelosamente como se duvidasse.

Deus do céu, como podia duvidar dela depois da noite que tinham passado juntos?

- Como vereis, temos uma visita inesperada começou sir Unen.

Ela olhou para Benedict, que tremia, acobardado. Cheirava a cerveja e a lodo, as roupas evidenciavam que não tinha chegado ali por vontade própria e toda a sua atitude delatava cobardia, em Castle Gervais, não tinha mercenários, nem Damon para o defender. Ali estava sozinho e só podia confiar nas suas próprias forças.

- Milord - disse Anne, olhando para o sogro, para mim não é tão inesperada e lamento profundamente não vos ter informado antes do plano do meu outro meio-irmão.

Benedict conteve a respiração.

- És capaz de nos atraiçoar a todos, não é verdade? - berrou. - Fizeste o que te disse. Tudo o que te disse, para que confiasse em ti. Fizeste com que.

- Cala-te! - gritou Anne, e a voz dela estalou como um chicote. Ela entregara-se ao marido porque o desejava e só por isso, não permitiria que Benedict afirmasse o contrário, embora acreditasse nisso. - Reece, não lhe ligues. Já sabes que tipo de homem é.

- Sim, sei.

Mas que tipo de mulher és tu? Na realidade, o que sei de ti afinal? Aquelas perguntas ressoavam dentro dele, pois não havia modo de pôr de lado o que Benedict estava a sugerir. Tinham dito a Anne que fizesse o que pudesse para ganhar a sua confiança. Tinham-lhe ordenado que...

Não podia ser. O desejo e o amor de Anne não podiam ser fingidos, embora se conhecessem ainda há pouco tempo. Os seus próprios sentimentos eram sinceros e só a conhecia há uma semana.

Quem pensas que és, rapaz? O Blaidd Morgan? "

Tinha temido que o vínculo com os irmãos mais velhos de Anne fosse um obstáculo para o seu futuro. Não tinha parado para pensar que a própria Anne pudesse ser a causa de conflito Mas a lembrança dos seus beijos apaixonados abrasadores destroçava-lhe agora o coração.

De repente, cada momento que tinha partilhado com ela pareceu retorcer-se e tomar uma nova e espantosa forma. E se tudo o que tinha acontecido, desde o seu encontro com Anne no corredor, tivesse sido um plano perverso de Damon?

Anne dissera-lhe que a sua presença no corredor era uma impertinência e, no entanto, não se tinha ido embora. Se realmente não desejava a sua companhia, por que não lhe tinha dito claramente e tinha seguido o seu caminho?

Damon e Benedict atacaram-no com uma violência injustificável e depois espalharam o rumor de que tinha tentado violar Anne. Ele acreditara que se tratava somente de um modo para justificar a agressão, mas quem sabe tivessem previsto de antemão que o resultado disso seria o casamento, o fim necessário para preservar a honra da irmã.

As perguntas de Anne durante a viagem tomaram um cariz sinistro. Deus do céu, não lhe teria ela dado mostras da sua capacidade de dissimulação quando tinha fingido desmaiar na presença do rei? Ter-se-ia deixado cegar pela tentação, pelo desejo e pelas exigências da carne?

Os fragmentos do seu coração destroçado juntaram-se de novo e recompuseram-se, formando algo ferido e partido, duro e afilado como as arestas de uma pedra arrancada de uma pedreira. Olhou implacavelmente para a esposa.

- Anne, há algum fundo de verdade no que diz esse homem?

Anne juntou as mãos fervorosamente e os seus olhos brilharam com sinceridade. Com uma sinceridade que qualquer mulher astuta podia fingir.

E Anne não era tonta.

- Damon queria que lhe servisse de espia aqui em Castle Gervais - disse, - para o informar do que descobrisse sobre os vossos aliados. Benedict seguiu-nos porque eu devia dar-lhe a informação e ele levá-la-ia a Damon na corte. Ao princípio acedi às exigências de Damon por medo das suas ameaças, mas depois neguei-me.

- Quando te negaste? - perguntou Reece, com voz grave.

- Hoje.

Depois de fazer amor com ele.

De novo os pedacinhos do seu coração tremeram e juntaram-se, agitados pela leve esperança de que se tivesse enganado ao duvidar dela.

E, contudo, o que sabia realmente dela?

Ao princípio, considerara-se um louco por segui-la e fazer, dessa maneira, aquela bola de neve que desastrosamente tinha rolado pela encosta, ameaçando arruinar os seus planos para o futuro. Teria sido ainda mais estúpido por fazer amor com ela, consumando para sempre o casamento?

- O que vos fez mudar de ideias? – perguntou sir Unen.

Anne olhou para Reece e viu a dúvida nos seus olhos, no seu porte.

Por acaso acreditava em Benedict e não nela?

Se a amasse, não confiaria nela? Enganara-o ao não lhe revelar os planos de Damon, mas de tudo o resto era inocente.

No entanto, a única coisa que Reece sentia por ela era desejo, essa paixão carnal que podia destruir um rumor ou uma alusão embaraçosa... a única coisa que queria era partilhar a sua cama porque era uma mulher bonita.

Sentiu que dentro dela aflorava um gemido de dor, até que o seu orgulho o sufocou.

- Perguntar-vos-ei outra vez, milady - disse sir Unen com voz firme. - O que vos fez mudar de ideias?

- Perguntai ao vosso filho.

- Estou a perguntar-vos a vós.

Ela levantou a cabeça. Já que Reece não pensava intervir, já que não ia pôr fim àquele interrogatório confessando o que tinham feito, ela permaneceria sozinha e aguentaria, como tinha feito sempre.

- Decidi que preferiria viver em Castle Gervais e não em Montbleu. Além de mais, não queria casar-me com um homem escolhido pelo Damon. O vosso filho, milord, é jovem e bem-posto e não sei se o marido que Damon escolhesse o seria.

Não Lhe importava que as suas palavras ferissem Reece, cuja desconfiança tinha sido para ela como uma estaca a atravessar-lhe o coração.

- Uma história muito convincente, milady - observou Gervais, com um olhar que parecia uma faca que abria a carne de Anne. - Mas, se não queríei fazer o que Damon vos tinha ordenado, por que não dissestes nada a Reece ou ao meu pai?

- Porque pensei que não era necessário que o soubessem. Disse a Benedict que regressasse para junto de Damon e lhe dissesse que não estava disposta a servir-lhe de espia.

- Isso dizeis agora - disse Gervais, enquanto Reece continuava. calado.

- O que diz é verdade - disse Benedict. - Eu não sei nada: Não fiz nada de mal. Por acaso é um crime falar com...

- Refreia a tua língua! - ordenou-Lhe sir Unen com tal firmeza que Benedict fez uma careta e pareceu encolher-se diante deles, emudecido.

- Se sois tão inocente quanto proclamais - continuou Gervais, - porque é que tivemos que saber do encontro com o vosso irmão por outra pessoa?

Tinha que ter sido Piers, pensou Anne, desesperando-se de novo. Por isso estava lá. Devia tê-los visto nessa tarde, na aldeia. E tinha recorrido a Reece; em vez de recorrer a ela, a mulher que lhe tinha dedicado a vida.

Como era possível que não lhe tivesse dado a oportunidade de se explicar? Por acaso também não confiava nela?

Era tão superficial o afecto dos homens? Era aquela a paga que merecia o seu amor, paixão e entrega? Que o irmão e o marido chegassem tão facilmente à conclusão de que era indigna de confiança e traiçoeira?

Se era assim, tinha desperdiçado a vida toda e os seus sonhos não eram mais do que ilusões enganosas.

Mas, de quem era a culpa? Dela, por amar com todo o coração? Não, deles, porque não o faziam.

A raiva, a determinação e o orgulho estancaram a ferida da sua alma e deram-lhe novas forças. Assim fortalecida, olhou-os decidida.

- Como já expliquei, decidi não servir de espia, acreditando que a ameaça de Damon de levar Piers e de nunca mais me deixar vê-lo, não teria efeito. O Piers estava aqui e vós ajudar-me-íeis a protegê-lo. Ou era o que eu pensava.

Reece levantou-se e nos seus olhos brilhou outra emoção, mas já era tarde demais. Ela olhou para ele fixamente. As suas esperanças, sonhos e amor por ele pareciam cinzas aos seus pés.

- Naturalmente, Damon ameaçou-me utilizando a única pessoa de quem gosto. Se não fosse assim, por que ia aceitar tal coisa? Eu também tenho honra, Reece, embora tu não pensasses nisso quando me seguiste até ao corredor, nem ao acusar-me, tão depressa, da traição mais vil. Mas eu pensava... esperava... enganava-me acreditando que tu me ajudarias contra o meu meio-irmão. Obviamente, estava enganada.

Reece pensava que o tinha traído. Mas, mostraria ele que não era capaz de mentir, admitindo que os fundamentos para a anulação da união deles já não existiam?

- Quando poderá ser anulado o nosso casamento? - perguntou ela, desafiadora. Reconheceria ele que já não tinha motivos para pedir a anulação, ou aproveitaria a oportunidade para se livrar dela, embora significasse enganar a família?

- Fomos chamados à corte imediatamente - respondeu ele secamente.

Então, apesar dos seus discursos sobre o amor e a honra, escolhia a mentira para se livrar dela.

- Se me perdoais, acho que esta conversa acabou - dizendo isto, Anne deu meia volta e aproximou-se da porta. Mas então a sua decisão vacilou, pois não podia esquecer tão facilmente o que até então tinha sido o centro da sua vida. - E o Piers?

A expressão de sir Unen era tão impenetrável como a do filho.

- Se desejar ficar, pode fazê-lo. Mas far-se-á o que vós quiserdes.

- Não, milord - respondeu ela, abrindo aporta.

- Ficará porque já escolheu.

Reece ficou aturdido a olhar para a porta que Anne acabava de fechar. Nessa mesma manhã, o seu futuro parecia tão brilhante como o sol de uma manhã de Verão. Agora, parecia tão negro e sombrio como a noite nas montanhas do norte.

As dúvidas trespassavam-no como facas. Depois das palavras de Benedict e da confissão de Anne, como podia estar certo do que quer que fosse que ela tinha dito ou feito? Especialmente do seu amor.

Benedict remexeu-se; chamando a atenção de Reece.

- Já ouvistes. Eu não fiz nada de mal. Não me disse nada.

- Pode ser que em último caso seja inocente por não ter ajudado o Damon - disse Gervais. Mas existe o assunto da mulher que foi encontrada morta numa estalagem, a caminho daqui.

Benedict abriu a boca, pasmado, e voltou a fechá-la.

- Não sei do que estais a falar.

- Isso terá de ser decidido em tribunal, Delasaine - respondeu Gervais. - Alguém que se parecia convosco foi visto a sair da estalagem, antes de encontrarem o corpo, e sem dúvida sabereis que não é a primeira vez que vos acusam oficiosamente de algo semelhante. Levar-vos-emos de novo para esse condado, onde esperareis a justiça do rei. Agora vinde.

- Mas eu sou inocente - protestou ele, e voltou-se para Reece com um olhar de pânico. Agora somos parentes, Fitzroy. Tens que me ajudar!

Reece sentiu que o nojo e a raiva se apoderavam dele.

- Sim, por agora somos cunhados. E por isso assegurar-me-ei que um bom advogado vos represente perante a corte. Mas, se sois culpado, tereis de pagar o castigo que a lei vos impuser.

Benedict olhou-o fixamente, cheio de espanto e de medo. Então, com um grito, lançou-se sobre Gervais, que estava mais próximo da porta, derrubando-o com um murro.

Sir Unen correu para ajudar Gervais, mas Reece agarrou Benedict antes que alcançasse a porta e derrubou-o como um cão a um veado. Pondo-se em cima dele, cheio de raiva pelo que os Delasaine tinham feito a Anne e a ele, pois sabia que lhes tinham tirado a oportunidade de serem felizes Reece levantou o punho, pronto para bater.

Os olhos de Benedict encheram-se de lágrimas e gritando como um menino aterrorizado, cobriu a cara corada com os braços para aparar a pancada.

Reece baixou lentamente o braço, resfolegando.

- Ficarei satisfeito por te entenderes com a justiça real, Benedict Delasaine, e que Deus tenha pena de ti, apesar de tudo o que fizeste.

Dizendo isto, afastou-se do homem caído, indo para o canto mais afastado da divisão, como se só o seu hálito o repugnasse.

Gervais aproximou-se de Benedict com a espada desembainhada e ordenou-lhe que se levantasse.

- Vem comigo e não tentes nada. Pode ser que Reece não esteja disposto a magoar-te, mas eu estou. Na verdade, adoraria ter essa oportunidade.

Enquanto Gervais o puxava para que se pusesse de pé, sir Unen aproximou-se de Reece.

- O que queres que façamos? - perguntou ao fim de um bocado.

- Que o levem para Londres para que o julguem.

- Refiro-me à Anne:

Reece voltou-se para olhar para o pai.

- Regressaremos à corte, como ordena o rei.

Sir Unen pôs as mãos sobre os ombros do filho.

- Sinto muito, Reece. Deixa-me ajudar-te a...

- Não - disse ele com firmeza. - Anne é minha esposa. Sou eu quem deve resolver esta situação.

Sem saber o que ia fazer, Reece saiu do escritório. Enquanto atravessava o salão e saía para o pátio, sacudindo a cabeça para desanuviar, não sabia para onde ia, até que chegou diante da pequena capela, silenciosa e fresca, que a essa hora do dia estava deserta. Entrou e, apoiando-se contra a porta fechada, inalou o perfume do incenso e da cera das veias. Deslizou lentamente para baixo até se sentar nas lousas frias do chão. Então, rodeou os joelhos com os braços e escondeu a cara. Oh, Deus, gritava para dentro, meio a rezar, meio a suplicar. Que vou eu fazer? "

Então, a lembrança da noite de amor com Anne emergiu. Teria ela mentido naquele instante de suprema intimidade? Embora não tivesse duvidado nem por um instante da sinceridade das emoções da esposa, na noite anterior, as suas inseguranças passadas faziam-no perguntar se se só tinha visto o reflexo do seu próprio amor, porque assim o desejava.

No entanto, enquanto permanecia ali sentado, sozinho e abatido, a esperança e o amor negavam-se a esmorecer. Nas profundezas do seu coração, vivia ainda o amor por ela que o impelia a acreditar na sua versão dos factos.

Lembrou-se dela, uns minutos antes, diante deles, no escritório, olhando-os frente a frente, tão decidida, audaz. e sozinha.

Sozinha. Sim, sozinha, uma mulher abandonada a encarar com valentia três cavaleiros que se empenhavam em acusá-la de um crime terrível. Estava tão sozinha como quando Damon, na corte, a tinha obrigado a cumprir as suas exigências por força das ameaças. O que podia fazer ela senão aceitar ou perder o irmão? Naquele momento não amava o marido, nem ele a ela. Naquele momento, tudo era diferente.

Em muitos sentidos, Anne tinha estado sempre sozinha. E, se ele tivesse estado sozinho toda a vida, a tomar decisões sem ajuda, nem conselho, por acaso não teria dificuldade em pedir ajuda, ou em contar os problemas aos outros? Por acaso não acabaria por pensar que devia e podia enfrentar esses problemas completamente sozinho?

Oh, Deus, o que tinha feito?

 

Subitamente certo do que devia fazer, Reece levantou-se e abriu a porta da capela. Atravessou a correr, o pátio e o salão, ignorando os pais, Gervais, Lisette, Donald, Seldon e a todos os outros ali reunidos, quando, depois de dar uma rápida vista de olhos, se apercebeu que Anne não estava lá.

Subiu, de dois em dois degraus, as escadas que levavam ao quarto e agarrou o trinco. Ao baixá-lo descobriu que a porta estava fechada à chave. Bateu com tanta força que a porta tremeu.

- Anne! Anne! Preciso de falar contigo! Anne! por favor!

Por um instante, enquanto continha a respiração, com o ouvido apurado, temeu que ela não respondesse. Depois a porta abriu-se com força.

Anne estava ali, tão fria e dura como uma estátua de granito no mais rude Inverno.

- Vai-te embora, Reece - a sua voz soou ainda mais fria. - Não quero ouvir nada do que tenhas a dizer.

- Mas, Anne...

- Não! - gritou ela, olhando-o fixamente, e a sua frieza de repente tornou-se fogo. Todo o seu corpo tremia, por causa da raiva acumulada durante tantos anos a ser tratada como um ser insignificante e desprezível. - Já me demonstraste o que pensas de mim! Não podes dizer nada que me faça esquecer que, enquanto tentava explicar o que tinha feito, tu não acreditavas em mim.

- Anne, por favor, eu amo-te...

- Amar-me? - gritou ela, retrocedendo como se aquela palavra fosse uma pancada. - Foi o amor que te fez dar ouvidos a um homem que sabes que é um mentiroso, em vez da tua própria esposa?

Pensava que eras diferente, que me consideravas algo mais que um corpo para levar para a cama.

Pensava que entre nós havia algo melhor, mais forte, mais verdadeiro. Mas agora sei que me enganava. Fui uma estúpida por pensar que me amavas.

- Mas eu amava-te! Amo-te! Estava confuso e...

- E por isso, apesar do amor que me professas apesar do que partilhámos ontem à noite, chegas à conclusão de que sou capaz de te trair - os seus olhos pareciam desprender chamas de fúria e indignação. - Se é essa a tua ideia de amor, não o quero! Não quero ser tua esposa!

Dizendo isto, agarrou na porta e fechou-a bruscamente.

Anne negou-se a falar com Reece durante toda a viagem de regresso à corte. Até Esmeralda, a égua, parecia notar a tensão e mal levantava os cascos ao percorrer o caminho cheio de barro, pois o suave tempo outonal tinha dado lugar a uma chuva de Inverno gélida e cinzenta:

Anne tinha falado muito a sério e ainda continuava a acreditar em tudo o que tinha dito: se Reece a amasse de verdade; não teria pensado tão mal dela tão depressa. Era como os outros homens e ela tinha sido uma estúpida por acreditar nele.

Tentou não se lembrar da solene despedida de Piers. Acontecera o que sempre tinha temido. Tinham-lhe tirado Piers e, embora soubesse que estaria melhor com sir Unen, tinha o coração partido na mesma.

Também fora difícil despedir-se de Lisette. Ao dizer-lhe, sem rodeios, que o seu casamento com sir Reece ia ser anulado, Lisette ficara desconcertada, a princípio, e depois começara a chorar, rogando-lhe que lhe permitisse ficar em Bridgeford Wells. Amava Donald e queria ficar com ele. Ele até Lhe pedira que fosse sua esposa.

Aquilo surpreendeu Anne, pois Donald era um cavaleiro e Lisette, uma simples criada, mas as palavras apaixonadas de Lisette depressa a convenceram de que tinha ouvido bem. Donald ia casar com uma criada porque, explicou-Lhe Lisette, não se importava com o que as pessoas pensassem. Nunca se tinha importado... não como Reece.

Anne tinha dito a Lisette que podia ficar se quisesse, embora, não o tendo confessado à rapariga pensasse que era um pequeno consolo; ao menos que uma delas fosse feliz.

Sir Gervais tinha levado Benedict escoltado, para que prestasse contas perante a justiça pelo assassinato da criada da estalagem. Lady Fritha, por seu lado, tinha permanecido em Bridgeford Wells.

A despedida também fora penosa. Lady Fritha mostrara-se compreensiva, no entanto, sendo o fi lho a sua principal preocupação, tinha mantido uma certa frieza. Anne entendia os seus motivos, mas nem por isso tinha sido menos doloroso. Sir Unen ia com eles. A sua severa presença ensombrava a triste atmosfera da viagem. Quanto a Reece, Anne procurou não Lhe prestar qualquer atenção, nem sequer quando, por fim, chegaram à corte. Damon foi ao seu quarto, enquanto as criadas da rainha a escoltavam até lá, mas Anne negou-se a recebê-lo. Brevemente, voltaria a estar nas suas mãos. Até então, não falaria com ele nem lhe daria qualquer explicação. Que soubesse pelos seus meios o que tinha acontecido a Benedict. Ela devia concentrar todas as suas energias em superar a audiência com o rei, em que Reece pediria a anulação do casamento. Em que ambos se apresentariam perante Henrique e mentiriam.

A ordem chegou de seguida. Anne negou-se a entrar na sala de audiências com o marido e o sogro. Estava sozinha no mundo e ali também estaria. Deu-lhes tempo para chegar e depois atravessou lentamente a enorme divisão. Tal como na outra ocasião, a multidão abriu caminho. Ela não fez caso dos murmúrios e dos olhares curiosos e manteve o olhar fixo no rei e na rainha sentados nos seus tronos. Estavam ricamente vestidos, como sempre, e os olhos de Leonor brilhavam com uma indolência cruel que fez com que o estômago de Anne se revoltasse. Ali, ia expor a sua vida diante dos olhos do mundo, ia decidir-se o seu futuro e a rainha parecia uma criada ávida por segredos vergonhosos.

Reece estava de pé diante do trono, com o pai à direita, vendo-a aproximar-se. Ela endureceu-se para não sentir nada, para não perceber nada. Nem a magnificência do seu porte ali, na sala do rei, como se aquele fosse o seu lugar natural, nem o olhar ávido, nem a rigidez dos seus ombros. Não olharia em absoluto para ele, se pudesse evitar.

Pelo canto do olho, viu Damon, que, por estranho que parecesse; não estava muito contente por a ver ali. Também não olharia para ele.

Os amigos galeses dos Fitzroy estavam no outro lado do trono. Sem lhes prestar atenção, Anne parou e inclinou-se perante o rei e a rainha.

- Bem-vinda de novo à corte, lady Anne - disse o rei. - Como estais, milady? Sentis-vos fraca? Quereis que nos retiremos para o meu escritório?

Ela corou, mas manteve a cabeça levantada.

- Se o desejais, sire.

- Não, não desejo que falemos em privado desta vez - respondeu Henrique, surpreendendo-a pela severidade do tom. - Quero resolver este assunto de uma vez por todas e fá-lo-ei em público, para que não haja hipótese de que os rumores e os falatórios desvirtuem a verdade.

Se tinha que ser em público, ela não podia opor- se.

Henrique voltou-se e dirigiu-se a Reece.

- Ouvi dizer que voltastes com a intenção de solicitar a minha autorização para um certo assunto.

Reece deu um passo em frente.

- Sim, sire. Por isso o meu irmão Gervais vos solicitou esta audiência.

- O vosso irmão informou-me de que queríeis anular o vosso casamento.

Antes que Reece pudesse responder, Damon abriu caminho entre as pessoas.

- Isso é impossível - parou a poucos passos do estrado, vendo o olhar mordaz do rei. - Rogo-vos que me perdoeis, meu senhor - disse, - mas isto é um escândalo. Anular o casamento? É ridículo! Vós mesmo dispusestes este casamento e...

- Sei perfeitamente o que dispus - interrompeu-o o monarca.

- Em que se baseia tal petição, sir? - perguntou Damon, olhando para Reece.

- Na não consumação - respondeu Henrique.

Um murmúrio de surpresa escandalizada elevou-se entre as pessoas, mas Anne continuou a manter a cabeça erguida. Ela era inocente e não se comportaria como se fosse culpada ou tivesse que se envergonhar de algo.

- Isso é impossível! - repetiu Damon. Reece levantou uma sobrancelha suavemente.

- Como sabeis que é impossível? Vós estáveis aqui na corte.

Anne aguardou, contendo a respiração, que Reece declarasse diante de toda a corte que nunca tinham feito amor. Para anular o casamento. Ao fim e ao cabo, era o que ela também queria. Ou não? Era o que esperava. Ou por acaso, não? Era o que Lhe tinha pedido. O que ainda continuava a acreditar que era o melhor: Ou não?

O rei dirigiu-se a ela.

- Bem, milady, há de facto algum fundamento para esta anulação?

Sim, mas não o que Reece alega. O seu casamento devia anular-se porque Reece não a amava realmente, nem confiava nela. Confirmar qualquer outro motivo seria mentir ao rei, seu soberano. Afirmar que não tinham feito amor seria como desonrar-se e converter-se na mentirosa que Reece acreditava que era.

Reece voltou-se para ela, sem dúvida à espera que confirmasse aquela falsidade que os separaria para sempre, como tinha planeado desde o princípio.

Então, no seu rosto apareceu uma expressão de arrependimento e desejo tão grande que Anne mal podia acreditar no que os seus olhos viam. Diante de toda a corte do rei Henrique, sir Reece Fitzroy ajoelhou-se diante dela e baixou a cabeça humildemente.

- Anne - começou a dizer em voz alta e clara para que toda a corte o ouvisse, - sou um estúpido orgulhoso e teimoso. Deveria ter-me dado conta de que a vida te tinha ensinado a esconder os teus verdadeiros pensamentos para te proteger. Que durante quase toda a tua vida não tiveste ninguém em quem te apoiar, salvo tu mesma. Que aprendeste a manter a verdade escondida para evitar o conflito. Ao não me contares nada acerca de Benedict, só tentavas proteger-me, pensando que não havia mal nisso. E como te paguei por tentares proteger-me? Demonstrando-te que o amor não significa confiança, nem fé, nem gratidão. Agi como se o amor pudesse pôr-se de lado ao mais leve vislumbrar de problemas - estendeu um braço, agarrou-lhe as mãos e levantou os olhos suplicantes para ela. - Deveria ter-te ouvido e confiado em ti. Deveria ter compreendido o difícil que era para ti e como o amor para com um irmão podia fazer com que até, uma pessoa tão forte como tu, fosse contra os ditames da honra quando se tratava de proteger o seu ser mais querido. É por isso que, agora, eu te digo, aqui, diante de todas estas testemunhas: amo-te com todo o meu coração, Anne. Não quero a anulação. Quero ser teu marido para o resto da minha vida - sir Unen deu um passo em frente. Reece lançou-lhe um olhar penetrante. - Pai, compreendo a vossa preocupação, mas importa-me menos do que reconquistar a confiança e, espero, o amor de Anne. então Reece esqueceu-se do pai, do rei, do resto da corte e, concentrando toda a sua atenção na mulher que amava, na mulher que tinha traído com a sua desconfiança e sem a qual a sua vida estaria incompleta, disse: - Anne, poderás perdoar-me? Podemos começar de novo?

- Mas tu não confias em mim.

- Não confiava no meu próprio coração. Não tinha fé no meu amor. E estava enganado. Terrivelmente enganado. Poria a minha vida nas tuas mãos sem duvidar um instante. Prometo-te que nunca mais voltarei a duvidar de ti.

- E a minha familia e as tuas nobres ambições?

- Se te tiver a meu lado, é igual se triunfar ou fracassar, desde que tu me reconfortes.

Ao olhar para os seus olhos suplicantes, todo o amor que Anne tinha tentado negar depois da horrível confrontação em Castle Gervais, estalou sem prisões, enchendo-a de felicidade. Então, como os primeiros raios de sol depois de uma noite negra de desespero, os seus olhos brilharam, alentados com vida nova, e os seus lábios curvaram-se num glorioso sorriso.

- Depois de tanta eloquência, como te ia negar uma segunda oportunidade?

Reece tomou-a nos braços e os seus lábios encontraram-se. Anne devolveu-lhe o beijo com toda a paixão que sentia e outro murmúrio levantou-se entre a assistência, como se todas as damas presentes suspirassem ao mesmo tempo.

- Amei-te desde o princípio - murmurou ela, apesar de tudo o que disse e do muito que sofri, não consigo deixar de te amar.

O rei Henrique aclarou a garganta, lembrando- Lhes que não estavam sozinhos.

- Bom, parece que este problema encontrou solução.

- Um momento; sir - disse Gervais. Aproximou- se de Reece, que paroú de beijar Anne, mas continuou a abraçá-la. - Enlouqueceste, Reece? perguntou em voz baixa.

- Estou apaixonado - disse com um leve sorriso de desculpa. - Sinto muito que tenhas desperdiçado tempo e esforço, mas de qualquer maneira o casamento não se pode anular. É tarde demais.

- O quê?

- Já me ouviste. É tarde demais. Consumei o meu casamento antes de sair de casa porque amo a Anne.

Ouviram-se novos suspiros e alguns risos sufocados, assim como murmúrios de aprovação de vários cortesãos. Gervais deu meia volta.

- Pai, como pôde...

- Da maneira habitual, espero eu - disse sir Unen Fitzroy serenamente. - Deixa-o, Gervais. Estão apaixonados e são marido e mulher - levantou a voz para se dirigir a Damon Delasaine, de quem Réece se tinha esquecido por completo. Agora lady Anne está sob a nossa protecção, por isso sujeitai-vos às consequências se vos aproximardes dela. E o mesmo vos digo a respeito de Piers, que tem melhores traços de cavaleiro do que vós alguma vez tereis.

Reece soltou Anne e olhou para o rei com decisão.

- Senhor, se não vedes inconveniente, queria ter uma palavra convosco. Ou, a bem dizer, umas quantas. De advertência.

- Reece...

- Não, pai. Damon é meu cunhado. Deixai que eu trate disto.

- Sir - protestou Damon, com o medo a brilhar nos seus olhos negros, - como sabeis, entre a fanília de Reece Fitzroy e a minha há má vontade...

- Entre Benedict, tu e a minha familia - disse Reece, agarrando a mão de Anne.

Damon olhou-os franzindo o sobrolho e depois sorriu ao rei.

- Este homem fala com malevolência para me causar todo o mal que possa.

- Estais a questionar a minha honestidade e a minha honra? - perguntou Reece. - Pensais que mentirei sobre vós? Ou é a verdade que vos fará mal?

- Leonor - gritou Damon, voltando-se para a rainha, - ides permitir que insultem o vosso parente?

Os olhos da rainha resplandeciam como pedras preciosas.

- Creio que, se sois um homem prudente, sir Damon, ireis para vossa casa de imediato e voltareis muito raramente a esta corte, se é que voltareis. Desse modo, sir Reece não se verá obrigado a defender a honra num combate, pois talvez o meu real esposo decida que é essa a melhor maneira de estabelecer quem tem razão. E, para dizer a verdade, creio que assim seria, de facto. i Reece pôs a mão no punho da espada.

- Estou disposto a fazer frente a sir Damon no campo de batalha, sir, pois tenho uma conta para ajustar com ele.

- Eu não mancharei a minha espada com o sangue do filho de um bastardo - berrou Damon.

- Temo que sobrestimais as vossas habilidades em muitos campos - disse Henrique. - É muito mais provável que seja a espada de sir Reece a manchar-se com o vosso sangue. Um homem prudente, Damon, deve saber quando abandonar o campo. Mas, naturalmente, vós não sois um homem prudente, como não deixaram de assinalar muitos dos meus mais leais súbditos.

- Sir, eu.

Henrique levantou-se, enfurecido.

- Também ouvimos dizer que o vosso irmão

está prestes a enfrentar a justiça por ùm crime repugnante. Sois ambos uma desgraça para a vossa família, para esta corte e para este país. Eu vos despojo do vosso título e de Montbleu – Henrique fez sinal aos guardas. - Levai-o para a torre juntamente com o irmão.

Damon caiu de joelhos, soluçando, e estendeu as mãos para Anne.

- Anne, ajuda-me! Não permitas que me façam isto! Eu cuidarei de ti!

Anne baixou o olhar até ele. Parecia ter mais medo dela do que ela alguma vez tinha tido estando nas mãos dele. Pela primeira vez, teve pena dele. Olhou para o rei.

- Sir, talvez com o desterro...

Henrique franziu o sobrolho; irritado, enquanto os guardas levantavam Damon do chão.

- Os tribunais decidirão o destino dele - declarou com absoluta firmeza e Anne compreendeu que não podia fazer mais nada por ele.

Os guardas levaram Damon de rastos por entre os cortesãos espantados. Os seus gritos e súplicas foram desaparecendo na distância e Anne sentiu vontade de chorar, apesar de tudo o que lhe tinham feito.

- Quanto a Montbleu, milady - disse o rei rompendo o silêncio carregado de murmúrios, concedo-o ao vosso irmão Piers - Anne conteve as lágrimas e esboçou um sorriso trémulo de agradecimento. - Acredito que o governará melhor do que os vossos irmãos mais velhos.

- Fá-lo-á, sir. Prometo-vos.

- Enfim, atrever-me-ia a dizer que pior não poderá fazer - murmurou Henrique: O seu semblante continuou sério, mas a expressão dos olhos aligeirou-se. - Agora acredito que não tenhamos mais razão de queixa de vós; lady Anne, nem do vosso marido, nem do Vosso irmão mais novo.

- De mim não tereis nenhuma, senhor - assegurou-lhe ela enquanto Reece a rodeava com o braço e a apertava contra ele.

- Nem de mim, Majestade - disse ele. - Mas, em relação ao meu cunhado, temo que não posso fazer-vos promessas. Aprendi que é estupidez fazer conjecturas sobre as outras pessoas.

Henrique levantou os olhos para o céu, mas disse, divertido:

- Que Deus me proteja então de Piers Delasaine, se for parecido com a irmã. Acho que nunca conheci uma mulher mais...

Leonor aclarou a garganta e o rei calou-se. Depois corou como um menino enquanto a mulher olhava para Reece com um sorriso.

- Sir Reece, sugiro que leveis a vossa esposa para algum sítio privado e lhe peçais perdão - sorria como se nada de sério se tivesse passado. - O vosso encantador argumento deveria servir de inspiração a todos os jovens. Agora, vós e a vossa familia tendes a nossa autorização para ir embora, de modo que os cortesãos possam coscuvilhar com mais liberdade. Não estais de acordo, Henrique?

Leonor pôs a mão suavemente sobre o braço do rei e inclinou-se para ele; roçando-o ligeiramente com os seios. Murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido e as pontas das orelhas do rei coraram.

- Sim, claro que podem ir - disse, olhando para Leonor com uma expressão que Anne reconheceu de imediato. Politicamente, talvez um rei apaixonado pela esposa não fosse o melhor, mas Henrique não era um menino. Era um homem adulto que tinha que se responsabilizar pelos seus actos, fosse qual fosse a opinião de Leonor.

No entanto, nesse instante, o casamento do rei importava-lhe muito menos do que o seu, por isso, quando Reece Lhe agarrou o braço para a conduzir para fora da sala, acelerou o passo e Reece teve que refreá-la.

- O que pensarão as pessoas, milady? - mur murou Reece.

- Não me interessa - respondeu ela, passando rapidamente junto a um grupo de cortesãos bo quiabertos.

Por azar, não puderam, finalmente, ficar sozinhos, pois Gervais correu atrás deles.

- Podíeis tê-lo dito antes - disse, alcançando-os.

- Haverá tempo para explicações - disse sir Unen, juntando-se a eles no vestíbulo, com os galeses atrás. - Agora deixemos que o Reece e a Anne vão... - Calou-se de repente, corando como um menino. - Recuperar o tempo perdido - concluiu, sobressaltado.

- Sim, Gervais, não os detenhas no corredor todo o dia - disse Blaidd com um sornso malandro e uma piscadela de ólho maliciosa.

- Vê-se logo que, não são galeses - comentou Kynan com o irmão num apárte.

- O meu filho tem um pouco de dignidade - disse sir Unen majestosamente.

- Pobre rapaz - suspirou Blaidd com os olhos a brilhar.

Rindo, Reece tomou Anne nos braços.

- Deixar-vos-ei a discutir sobre a minha dignidade ou falta dela, pois já ouvistes a rainha. Devo pedir desculpa à minha esposa.

- Interessante modo de o dizer - observou Anne com voz divertida mas sensual, rodeando o pescoço do marido com os braços.

- E penso fazê-lo com toda a diligência - prometeu Reece, levantando-a. - Como penso amar-te para o resto da minha vida.

- E eu a ti, meu esposo - sussurrou Anne, aninhando-se nos braços dele, sã e salva, livre e amada. 

 

                                                                                Margaret Wilkins 

 

 

                      

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