País de Gales, século14.
Lady Genevieve precisava desesperadamente de ajuda! E o charmoso galês Dylan DeLanyea pareceu uma resposta, às suas preces. No entanto, ao fazer os votos solenes diante dos nobres convidados, podia apenas esperar que seu belo marido algum dia a perdoasse pela armadilha em que o fizera cair para se casarem.
A esposa de Dylan era uma mulher de muitos talentos.
Na verdade, aquele casamento não planejado com a bela castelã começava a lhe parecer agradável... com muito mais paixão do que ele imaginara! Mas tudo estava parecendo, perfeito demais. E Dylan sabia que a perfeição não existia!.
- Não diga bobagens! - exclamou Dylan DeLanyea, sorrindo travesso para o primo. Com as mãos à nuca aninhando a cabeça, cruzava os tornozelos sobre a grande cama preparada para uso durante a visita ao tio, no castelo de Craig Fawr. - Só estou brincando e ela sabe disso. Podia ter-se poupado ao trabalho e ficado no salão com sua esposa.
- Como pode ter tanta certeza do que ela sabe? - questionou Grifíydd, de braços cruzados sobre o amplo peito musculoso. - Se eu não o conhecesse bera, diria que está cortejando Genevieve Perronet com o propósito de casamento.
Dylan balançou a cabeça, os olhos brilhantes de divertimento. - Todo mundo sabe que não estou pre¬parado para o casamento e, além disso, sou muito novo.
- Talvez não esteja pronto, mas é mais velho do que eu - observou Griffydd.
- O fato de você já ter arranjado uma esposa não significa que todo mundo está pensando em se casar. Eu só desfrutava da companhia da moça.
- Lady Genevieve Perronet já está comprometida.
- Viu?! - exclamou Dylan, triunfante, sentando-se na cama. - Ela não pode estar me levando a sério.
- Já se desmancharam compromissos antes e ouvi dizer que você tem feito mais do que só conversar com a jovem - admoestou Griffydd, olhando para Dylan ainda mais sério.
Dylan enrubesceu.
- Ninguém pode ser acusado de tentar romper um noivado só por dar uns beijinhos castos - defendeu-se, imaginando se um dos criados do castelo o flagrara com a moça e fizera comentários a respeito.
- Para você, talvez, mas Genevieve Perronet pode pensar diferente. A moça leva uma vida bastante re¬clusa com lady Katherine.
- Mas agora está livre, por algum tempo. Não vejo nada de errado em distraí-la.
- Diga isso ao pretendente dela. Lorde Kirkheathe pode ver de outra forma.
- Bem, como cavaleiro honrado, eu jamais me co¬locaria entre um homem e sua futura esposa - afir¬mou Dylan, com genuína convicção.
- E tem sido honrado, não?
- Deus do céu, o que quer dizer com isso?
- Não está tentando seduzi-la?
- Pensei em fazer isso.
- Dylan!
- Mas só pensei - assegurou Dylan, descontraído. - Trata-se de uma moça de família, comprometida, por quem tenho grande respeito. Como se isso não bastasse, há o tio dela, normando até os ossos, todo lugubridade e ambição. Eu detestaria ver-me do lado errado dele.
- Ainda bem que percebeu isso. Acho que ele não seria condescendente, se seus planos para a sobrinha fossem ameaçados.
- Não serão, embora eu considere um desperdício casar uma jovem com um homem tão velho. Kirkheathe deve ter... uns sessenta?
- Quarenta.
Dylan espreguiçou-se como uma pantera.
- Está fazendo tempestade num copo d'água, Griffydd.
- Você é que está menosprezando os sentimentos dela - advertiu o primo. - Não se brinca com os sentimentos de uma mulher.
- Estamos ambos nos divertindo, isso é tudo - insistiu Dylan. - Mesmo que ela fique um pouco triste ao partir, não vejo nada de errado. Também lamentarei a separação.
- Quer dizer que gosta dela?
- Claro que sim. Por que não gostaria: Ela é jovem, bonita e ri quando conto uma piada. - Dylan adotou um tom conspirador. - É a mulher mais bem-feita de corpo que já vi e seus beijos, ainda que castos, são muito gostosos.
- Você não tem salvação - grunhiu Griffydd.
- Deixe de bobagem, não fiz nada que requeira salvação!
- Contou-lhe sobre seus filhos? Dylan franziu o cenho,
- Não tive a oportunidade. Divertimo-nos de ma¬neira inocente, antes que ela despose aquele cavaleiro de idade avançada, isso é tudo.
- Tem absoluta certeza de que ela entende que é assim que você se sente?
Dylan desviou o olhar.
- Já disse que sim. Jamais lhe dei motivo para pensar de outra forma.
- Espero que esteja certo. Eu detestaria ver um incidente atrapalhando as comemorações. É o momento de Trystan. Ele se esforçou muito para conseguir o título de cavaleiro e só faltava você estragar a festa dele por não conseguir manter a braguilha fechada.
Dylan ficou bravo.
- Já disse que não fiz nada de errado! E, por falar em Trystan, por que não vai ver se seu irmãozinho já se recuperou da vigília e das provas? Já é tarde e ele ainda dormia na última vez em que verifiquei. Espero que ele esteja em condições de participar do banquete desta noite.
Griffydd ergueu uma sobrancelha, surpreso.
- Vai comparecer? Dylan sorriu malicioso.
- Talvez prefira dar um pulo na taverna do vilarejo, matar as saudades de Bertha...
O primo balançou a cabeça, levantando-se da banqueta.
- Você não tem jeito.
- Só estava brincando, juro! - afirmou Dylan, en¬quanto o primo batia a porta.
Dylan ficou sério por um segundo, o que não era de seu feitio, mas a seguir sorriu contente.
Levantando-se da cama, começou a assobiar. Estava quase na hora de seu encontro com a bela lady Gene¬vieve no jardim de sua tia.
Genevieve apertou contra o corpo seu manto debrua¬do de peles. Tremia, apesar do rico agasalho, pois era um dia frio no início de março. Ainda se viam restos de neve no caminho de pedra e nos canteiros, e os galhos nus das roseiras arranhavam o muro do jardim.
Imaginava se devia estar ali. Talvez devesse ter per¬manecido em sua câmara, onde o tio acreditava que ela se encontrava.
Devia estar entregue às orações, não à espera de um rapaz no meio de um jardim enlameado.
Um rapaz muito bonito e charmoso.
Vira Dylan DeLanyea pela primeira vez no pátio, no meio de outros cavaleiros. Todos guerreiros, volta¬ram-se para ver o cortejo de seu tio.
Seu olhar caíra de imediato sobre o homem de olhos escuros e cabelos negros roçando os ombros. De pé, ele observava a tudo de braços cruzados, o peso do corpo jogado sobre uma das pernas esguias.
Tinha em mente as advertências de lady Katherine com relação a rapazes maus, que só pensavam numa coisa, no que se referia às mulheres. Tratava-se, a julgar pelo tom de lady Katherine, de algo que uma moça não devia querer.
O perigoso objetivo masculino permanecera um mis¬tério até a noite em que as moças mais velhas entre¬gues aos cuidados de lady Katherine resolveram ins¬truir as mais novas. Genevieve lembrara-se imediata¬mente de certos trechos do fascinante relato, tentando ignorar o belo estranho de sorriso maldoso e olhar di¬vertido. Não conseguira. O tio ordenara aos homens que desmontassem. Meio temerosa, meio esperançosa, imaginara se o rapaz se aproximaria. Isso não acon¬teceu, mas ela não tardou a descobrir que tratava-se de Dylan DeLanyea, sobrinho do barão DeLanyea, o senhor de Craig Fawr.
O que seu tio diria se a flagrasse naquele jardim recluso à espera de Dylan?
Não conseguia nem imaginar a intensidade da ira dele. Eram hóspedes no castelo, em breve pausa numa jornada rumo ao norte e aproveitando para testemu¬nhar a sagração do filho mais novo do barão como cavaleiro. Não obstante, o tio não hesitaria em conde¬ná-la diante de todos, se a considerasse culpada de um comportamento vergonhoso.
Quanto à reação de lady Katherine, não tinha a menor dúvida, pois passara os últimos oito anos sob seu teto, aprendendo todas as tarefas e deveres de uma castelã.
Lady Katherine diria que Dylan DeLanyea, com aquele sorriso e bela aparência, não era de confiança.
Mas Genevieve não concordava com a tutora. Dylan era um homem nobre e totalmente confiavel.
De fato, ele a beijara, mesmo sabendo que ela estava comprometida. Três vezes. Uma no rosto, duas na boca.
Seu coração já acelerava as batidas. Durante as te¬diosas provas de Trystan DeLanyea em busca do título de cavaleiro, notara que Dylan olhava-a, com frequên¬cia. Sorridente. E ele continuou a fazê-lo na festa que se seguiu.
Veio então a dança. Pensara que desmaiaria quando Dylan se aproximara convidando-a para ser seu par. Ele lhe tomara a mão, e ela mal conseguira respirar.
Felizmente, graças aos ensinamentos de lady Ka¬therine, executara os passos, ainda que encontrasse extrema dificuldade em se concentrar.
Depois, Dylan DeLanyea a acompanhara de volta ao tio. Mas achegara-se de novo, convidando-a para dançar mais uma vez.
Desta vez, finda a música, ele não a levara para junto do tio, este bem entrosado numa conversa com o barão e seu filho mais velho, Griffydd. Conduzira-a para uma parte menos movimentada do salão, mas ainda à vista de todos, claro, para não ser acusado de comportamento impróprio.
Afinal, tratava-se de uma moça comprometida... ainda que com um homem idoso o bastante para ser seu pai.
Enrubescia só de recordar o que se passara em se¬guida. De algum modo, sem saber como, fora parar nas sombras. Tampouco lembrava-se do que falavam, pois, de repente, Dylan DeLanyea inclinara-se e a beijara.
Já não sentia mais frio, entregue às reminiscências da sensação dos lábios quentes e macios dele roçan¬do-lhe a face, tocando-lhe a boca.
- Finalmente, uma rosa desabrocha. Genevieve sobressaltou-se ao ouvir a voz galesa, musical.
De pé, observou Dylan transpor o portão e fechá-lo devagar antes de fitá-la no rosto, sorridente.
Seus cabelos rebeldes agitavam-se à brisa fria. Ele não parecia sentir frio, embora não usasse uma capa. Trajava uma camisa aberta ao pescoço sob uma túnica de couro ajustada por um grosso cinto de espada. A túnica lhe alcançava as coxas musculosas protegidas pela calça. Acessórios de pele cobriam-lhe as canelas e as botas.
Ele se vestia com simplicidade, mas era de uma beleza arrebatadora. Um príncipe não a teria impres¬sionado mais, não quando Dylan lhe dispensava aquele sorriso íntimo, aquele olhar brilhante.
- Eu estava com medo de que não viesse - co¬mentou ele, aproximando-se.
Genevieve fitou o chão congelado.
- Talvez não devesse mesmo. - Eu teria ficado muito triste. Ela arriscou um olhar para Dylan.
- Verdade?
- Eu juro. Venha, sente-se ao meu lado.
Dylan acomodou-se no banco de pedra do qual Gene¬vieve acabara de se levantar. Com o coração aos pulos, certa de que ele conseguia ouvir as batidas, ela hesitou e, por fim, sentou-se, o mais afastada possível dele.
Ainda que não houvesse resistido à tentação de estar sozinha com ele no jardim, ela era uma dama e tinha que observar certas regras.
Mas essa não parecia ser a preocupação dele. Ou¬sado, imediatamente tomou-lhe a mão enluvada.
Ela sabia que não devia permitir tanta intimidade, mas as palavras de protesto não chegavam.
- Soube, pelo barão DeLanyea, que você parte ama¬nhã - comentou Dylan, pesaroso.
Genevieve confirmou. Ele suspirou.
- Lamento muito.
Envolvida pelo jeito e pelas palavras dele, ela o encarou.
- Eu também.
Dylan sorriu melancólico.
- Quer dizer que se casa mesmo em um mês?
- Sim, em um mês. - Genevieve já não disfarçava o desalento ante o destino inevitável. - Com um ho¬mem mais velho.
- É quase sempre assim - replicou Dylan, grave -, um velho com uma jovem esposa.
- Por que tem que ser assim? Não é justo... - Genevieve percebeu que seu desabafo surpreendia Dy¬lan. - Sei que esse tipo de arranjo não é incomum e que meu casamento com lorde Kirkheathe agrada meu tio, que é meu tutor agora, no entanto gostaria de não estar comprometida.
Dylan apertou-lhe a mão, parecendo tão triste quanto ela.
- Mas está.
- Queria poder ficar...
- Também gostaria que pudesse - afirmou ele, carinhoso, tocando o rosto dela.
- Não podemos fazer nada?
- Receio que não, minha senhora. Devemos nos despedir. Vamos fazê-lo aqui, quando estamos a sós.
Genevieve sentiu os olhos cheios de lágrimas.
- Não quero me despedir.
- Então, não se despeça - sussurrou Dylan, incli¬nando o rosto para beijá-la.
Por um breve instante, Genevieve considerou que não devia permitir tal liberdade.
Contudo, não poderia detê-lo, nem a si mesma. Lan¬çando os braços em torno dele, perdeu-se nas sensações maravilhosas que os lábios másculos lhe proporcionavam.
Dylan achegou-se mais, introduzindo as mãos por baixo da capa da jovem a fim de estreitá-la com força. Acariciou-a nas costas esguias ao mesmo tempo que aprofundava o beijo.
Entregue ao prazer do abraço, Dylan vagava num mar de percepções agradáveis. A maciez dos lábios da moça. Suas costas levemente curvadas. O aconchego do debruado de peles em contato com suas mãos.
Genevieve entreabriu os lábios um centímetro e Dy¬lan não precisou de mais incentivo para introduzir a língua gentilmente. Ele aproveitou o momento para encaixar a mão na carne macia do seio dela.
Ousada, ela entrelaçava a língua com a dele, emi¬tindo gemidos e lamentos brandos.
O som quebrou o encanto, fazendo Dylan lembrar-se de quem e o que era aquela moça.
Ainda que muito receptiva, tratava-se de lady Ge¬nevieve Perronet, noiva de lorde Kirkheathe, sobrinha do severo lorde Pomphrey Perronet, prestes a se casar.
Mais relutante do que seria capaz de admitir, Dylan afastou-se e tentou sorrir para a moça. O halo de cachos dourados em torno do rostinho em forma de coração estava meio desgrenhado. Acima das bochechas rosa¬das, seus olhos azuis fulgurantes o hipnotizavam, dei¬xavam-no sem fala.
E o atiçavam com um desejo ardente.
Ele não queria falar, muito menos dizer adeus.
Puxou-a para seu colo. Desta vez, não a beijou terna, timidamente, mas tomou-lhe a boca com paixão. Ela respondeu com igual fervor, agarrando-se como se nun¬ca mais fosse soltá-lo. Cada vez mais desejoso, ele a afagava e acarinhava, arrancando novos gemidos e sus¬piros, que o incentivavam. Os movimentos do corpo dela aumentavam sua excitação viril.
Normalmente, Dylan ia com mais calma, deleitan¬do-se com cada etapa do processo de sedução. Agora, porém, nos braços daquela jovem que parecia tão ino¬cente, mas beijava ávida em total abandono, simples¬mente não podia esperar.
Sempre beijando-a, Dylan tentou desatar as tiras da capa de Genevieve, até que, tomado de desejo e frustração, rompeu-as, arrancando-a de seus ombros. Fez o mesmo com os cordões do espartilho, afrouxan¬do-o, a fim de introduzir as mãos e apossar-se da carne quente e macia.
Genevieve engoliu em seco ao ser tocada, mas então ofereceu-se mais, deixando escapar mais um gemido.
Ele a beijou no pescoço fino.
- Dylan... - sussurrava ela, febril, os seios arfan-tes. - Eu... preciso ir embora.
Apesar da declaração, ela tomou o rosto dele nas mãos e o cobriu de beijos.
- Fique - implorou ele, revolvendo os quadris em resposta à pressão das nádegas dela.
Dylan deixou uma das mãos escorregar de dentro do corpete, alcançando o tornozelo da moça. Sem pres¬sa, começou a erguer-lhe a saia, deslizando a mão pela perna esguia, desnuda.
Tinha que possuí-la.
O sino que convocava os criados para servir a ceia começou a tocar.
Dylan petrificou-se ao dar-se conta do que estivera para fazer. Com uma moça comprometida. No roseiral da casa de sua tia.
Não planejara nem mesmo beijá-la. Quisera apenas despedir-se, breve e adequadamente, ali no jardim, an¬tes do banquete.
Fora franco em cada palavra que dissera ao primo Gríffydd. Seu flerte com Genevieve Perronet não pas¬sava disso: um flerte. Um passatempo sem significado, nos dias que passavam em Craig Fawr.
Simplesmente, não estivera preparado para a inten¬sidade nos olhos azuis da moça, nem para a tristeza na voz dela ao confirmar que partiria no dia seguinte. Tampouco previra o fogo da paixão no beijo ávido da moça casta.
Ele, um homem que já se relacionara intimamente com um sem-número de mulheres, e até tido filhos com algumas delas, jamais cogitara que a tímida e recatada Genevieve Perronet tivesse o poder de seduzi-lo.
Perplexo com sua falta de autocontrole, Dylan tirou a moça de seu colo e levantou-se.
- Perdão, minha senhora.
Com os cabelos mais desgrenhados do que nunca, os lábios inchados dos beijos dele, as faces coradas, e o espartilho frouxo em torno do corpo, a jovem o fitava confusa.
Ele ajeitou a túnica e caminhou até o portão. Com a mão no trinco, voltou-se, certificando-se de que Ge¬nevieve recolocara a capa sobre os ombros.
- Adeus - murmurou. Então, abriu o portão e deixou-a.
A noite, durante a festa, Genevieve procurava Dy¬lan DeLanyea ansiosamente com o olhar. Tinha que ser discreta, pois estava sentado ao lado do tio. Ainda que ele parecesse mais interessado em discutir as¬suntos de Estado com outros nobres, o tutor não se esquecia dela.
O salão confortável contava com a presença de finos cavaleiros acompanhados das esposas, tanto norman-dos quanto galeses: o barão DeGuerre, sir Urien Fitz-roy, sir Hu Morgan, sir Roger de Montmorency, para citar só alguns. O anfitrião era um nobre respeitado e um tanto amedrontador, achava Genevieve, com aquela cicatriz no rosto, tapa-olho e andar manco.
As mulheres de Craig Fawr eram simpáticas e afe-tuosas, com exceção, talvez, da esposa de Griffydd De¬Lanyea. Grávida novamente, Seona parecia atravessar um momento difícil. Ela engravidara logo após ter o primeiro filho, que ainda não completara um ano. Ape¬sar de tudo, Genevieve a invejava, ansiosa pelo dia em que seria mãe também.
Também Lhe causava inveja a anfitriã, que parecia ser tudo o que lady Katherine ensinara que uma cas¬telã devia ser: gentil, competente, agradável. Em Craig Fawr, tudo parecia funcionar muito bem. Genevieve suspirou, esperando sair-se bem quando chegasse sua hora de assumir tais deveres.
Mas o centro das atenções naquela noite era, sem dúvida, Trystan DeLanyea. A exemplo dos demais ho¬mens da família, era bonito, de cabelos castanho-es-curos encaracolados alcançando os ombros, imitando o pai, o irmão e o primo Dylan. Juntos, lembravam um bando de celtas selvagens. Trystan tinha lábios sensuais, mas não sorria muito, e exibia os mesmos olhos cinzentos, sérios, do irmão mais velho.
Sim, tratava-se de um rapaz bonito, concluiu Gene¬vieve, porém não a fascinava. Não como Dylan.
Era espantoso que Dylan ainda não tivesse se casado. Talvez não houvesse encontrado a mulher certa, consi¬derou Genevieve, com um sorriso secreto, satisfeito.
Mas onde estaria ele? Sabia que ele continuava hos¬pedado em Craig Fawr, pois teria ouvido sua tropa de dez homens atravessando o pátio, caso tivessem par¬tido. Se bem que o castelo dele, Beaufort, não ficava muito longe dali...
Tinha que ser amor o que sentia por aquele homem, afligia-se Genevieve. Derretia-se sempre que ele a fi¬tava com aqueles olhos escuros, apaixonados, e quando a beijava. Oh, não havia palavras para descrever o que sentia naquele momento!
E ele devia amá-la também, a julgar pela força com que a abraçara lá no jardim.
Sem dúvida, talvez tivessem ido um pouco longe demais, mas o acontecido apenas provara que Dylan também a amava. Mostrara-se tão pesaroso ao afas¬tar-se, e ainda mais ao se despedir. Não tinha dúvida de que ele não comparecera ao banquete por considerar a situação de ambos irremediável, uma vez que ela estava comprometida com lorde Kirkheathe.
- Partiremos à primeira luz - informou o tio, ti¬rando Genevieve de sua busca silenciosa, por um ins¬tante. - Esteja pronta.
- Sim, senhor.
- A viagem até as propriedades de lorde Kirkheathe deverá durar uma semana.
Genevieve aquiesceu. Então, seu coração parou, por¬que Dylan estava lá, meio oculto por um pilar, do outro lado do salão. Não era de admirar que não o tivesse avistado antes.
Olhando para Dylan DeLanyea, Genevieve teve a cer¬teza de que não poderia mais desposar lorde Kirkheathe. Quis erguer a mão para acenar, mas lembrou-se do tio ao lado e achou melhor não fazer nenhum sinal.
Estava convicta, mas seu tio era um homem ambi¬cioso e frio que jamais entenderia seus sentimentos. Tinha que fazer algo para evitar aquele casamento arranjado.
Mais uma vez, seu olhar atraiu-se para o guerreiro de cabelos escuros. Com um simples sorriso, ele fazia seu coração disparar, trazendo à tona as lembranças dos lábios másculos sobre os seus.
Genevieve prendeu a respiração quando Dylan olhou em sua direção. Só que ele não a fitou nos olhos. Em vez disso, desviou o rosto, o cenho franzido de perturbação.
Ele estava tão contrariado quanto ela ante a pers¬pectiva de que aquele casamento de conveniência se concretizasse, disso Genevieve não tinha dúvida. Devia sentir-se tão desolado que nem conseguia encará-la.
Sim, era preciso agir para que o casamento dela com lorde Kirkheathe não se realizasse. Mas Dylan era um homem honrado e não podia fazer nada.
Sendo assim, ela tomaria uma atitude.
- Por Deus, vou matá-lo! Ainda meio adormecido e com-pletamente nu, Dylan rolou na cama e viu lorde Per¬ronet furioso à porta de sua câmara.
O homem tinha o rosto vermelho feito cereja e, o que mais surpreendia, tentava sacar sua espada da bainha.
Completamente desperto agora, Dylan buscou sua própria arma, que deveria estar ao lado da cama. Pa¬ralisou-se, chocado, ao tocar num volume inesperado.
O volume se mexia.
- Tio?! - Genevieve Perronet sentou-se na cama, cobrindo-se com os lençóis.
Era evidente que, debaixo das cobertas, ela estava tão nua quanto Dylan.
- Seu infame! - rugia lorde Perronet. - Vou matá-lo pelo que fez! - Por fim, sacava a espada.
Percebendo que o homem iria mesmo atacá-lo, Dy¬lan saltou da cama e começou a procurar sua arma freneticamente.
Onde a deixara na noite anterior?
Ou melhor, o que fizera na noite anterior?
Avistou o cinto da espada sobre a cadeira no canto e correu a pegá-la, ao mesmo tempo que lorde Perronet avançava.
Genevieve gritou. Dylan agarrou o cinto e desem¬bainhou a espada, girando o corpo e pulando da frente de lorde Perronet sem perda de tempo.
- Tio, espere! - implorou a moça. - Por favor! Pare!
- Cale-se, mulher! - berrou Perronet.
Dylan agachou-se numa postura defensiva, ignoran¬do Genevieve, os olhos fixos no oponente. Via-se que lorde Perronet não manejava a espada havia algum tempo. Entretanto, mesmo um homem destreinado po¬dia ser perigoso com uma espada pesada.
- Dylan, meu amor, não o machuque!
Dylan olhou para Genevieve e novamente para o tio irado dela.
- É melhor guardar a arma, meu senhor, pois, ad¬virto, eu me defenderei.
- Seu profanador de mulheres! - acusou Perronet.
- Verme desprezível! Eu devia ter sabido! Seu pai era igualzinho, e o pai dele também!
Dylan sentiu um músculo nervoso no queixo.
- Cuidado com o que diz, velho! Não quero machu¬cá-lo, mas o matarei se me insultar novamente!
- Foi você que insultou a honra de minha família! - rugiu Perronet. - Pois a sua família não tem honra há mais de cem anos!
- Cale-se, Perronet, ou, Deus me ajude, o farei em pedaços!
- Dylan! Tio!
- Pensa que todos já se esqueceram do infame do seu pai? - questionou Perronet, rosnando, enquanto circundavam um ao outro. - Todos conhecemos as histórias de seus estupros, roubos e desonras! Um bil¬tre de uma linhagem de biltres... e você é igualzinho!
Com um rugido de urso zangado, Dylan brandiu a espada para atacar.
- Por favor, não! - implorou Genevieve.
Ante o apelo desesperado, Dylan hesitou, e Perronet aproveitou para escapar de seu alcance.
- O que, em nome de Deus, se passa aqui? - in¬dagou o barão DeLanyea, à porta.
Os combatentes ignoraram a pergunta, continuando a se circundar cautelosamente.
- Barão DeLanyea! - gritou Genevieve, aliviada com a chegada do castelão, pois com certeza seu tio e o homem que amava não se atracariam se ele intercedesse.
O barão olhou-a surpreso, e ela modestamente puxou as cobertas até o queixo.
Genevieve previra algum tipo de confronto entre seu tio e Dylan. Era necessário. Mas nunca imaginara que Perronet tentaria matar seu amado.
- Perguntei o que se passa aqui! - repetiu o barão, a voz dura e fria como aço.
- Seu sobrinho seduziu minha sobrinha! - respon¬deu Perronet. - Esse bastardo a arruinou!
O barão olhou para Genevieve novamente, mas desta vez ela pensou ver algo além de surpresa e desalento. Desrespeito?
Ela enrubesceu à idéia. O fato era que não tivera escolha. Tinha que romper o compromisso com lorde Kirkheathe e esgueirar-se para a cama de Dylan lhe parecera a maneira mais fácil.
Naturalmente, não atingiria o objetivo sem algum dano a sua reputação, mas isso teria acontecido qual¬quer que fosse o plano engendrado para desmanchar aquele noivado.
- Dylan, é verdade? - questionou o barão, com uma calma surpreendente, dadas as circunstâncias.
- Não! Não tenho a menor idéia de como a moça foi parar na minha cama!
- Jura que não?
- Bastardo mentiroso! - protestou Perronet.
- Repita isso e o matarei! - desafiou Dylan. Enrolando-se nos lençóis, uma vez que suas roupas encontravam-se dobradas sobre uma arca do outro lado do aposento, Genevieve saiu da cama.
- Por favor, não briguem! Podemos resolver tudo...
- Vejam isso! - gritou Perronet, apontando para as gotas já secas do sangue que Genevieve espremera de seu dedo no lençol de baixo. - De que outras provas precisam?
- Basta nos casarmos - sugeriu ela.
- O quê?! - Dylan baixou a espada e fitou-a de olhos arregalados, como se estivesse... horrorizado?
Genevieve sentiu um nó no estômago.
- Isso mesmo. Você me ama. Eu te amo. Nós... passamos a noite juntos. Temos que nos casar.
Dylan balançava a cabeça, contrariado.
- Não, nada disso!
Desalentada e temerosa, a moça tartamudeou:
- Você... me beijou e...
- Cale-se, Genevieve! - ordenou o tio dela, marchando até o barão. - Seu sobrinho, que é também seu filho adotivo, aproveitou-se de minha sobrinha da forma mais baixa, enganando-a. O que vai fazer a respeito?
- Nada... por enquanto - replicou o barão, sempre calmo. - Sugiro que os deixemos se vestir para então discutirmos esta... situação... em tom mais racional, ou seja, sem espadas.
- Ela está certa - concordou Perronet. - Eles têm que se casar. Lorde Kirkheathe...
O barão ergueu a mão, calando-o.
- Por favor, lorde Perronet, vamos nos dar um tempo para nos acalmar. Depois, decidimos qual o melhor procedimento.
Perronet hesitou, mas finalmente embainhou a es¬pada, ainda olhando para Dylan com desprezo.
- Porque está me pedindo, barão. Mas este infame terá que se retratar!
Com isso, agarrou a sobrinha rudemente pelo braço.
- Vamos, menina! - rugiu, arrastando-a para a porta.
- Meu vestido...
- Esqueça-o!
Dylan ergueu novamente a espada e avançou um passo.
- Deixe-os ir - ordenou o barão. - Você me ouviu, Dylan? Deixe-os ir.
Dylan olhou para o próprio corpo nu. Sem dizer pa¬lavra, atirou a espada na cama e pegou a calça, que estava no chão. Ao procurar a túnica, reparou nas rou¬pas dobradas sobre a arca.
Era o vestido que Genevieve usara na noite anterior, durante o banquete, quando ele fizera de tudo para evitá-la.
Viu a túnica em cima da cadeira e pegou-a.
- Não importa o que a moça fez, Perronet não devia tratá-la com tanta brutalidade - protestou, vestindo-se.
- O tio tem o direito de tratá-la como bem entender - opinou o barão, adentrando o aposento. - O que foi que andou fazendo?
- Nada do que imagina! Não sei como Genevieve veio parar na minha cama!
Com o coração pesado, Dylan observou o barão, cé-tico, acomodar-se na cadeira. Parecia um rei pronto a dispensar julgamento.
Gostaria que a esposa do barão estivesse presente. A serenidade de lady Roanna contribuiria sobrema¬neira para aliviar a tensão. Mas ela andava ocupada, cuidando da velha ama-seca do barão, muito adoen¬tada, quando não se envolvia com o preparo das co¬memorações em torno da sagração de Trystan como cavaleiro.
- Chamou-se me bastardo, o desaforado - resmun¬gou Dylan, defensivo.
- E você é - opinou o barão.
- Eu sei! - respondeu Dylan. - Mas isso não lhe dá o direito de contestar minha honra.
- Ele acredita que sim, e as provas são todas contra você.
- Não acha que eu me lembraria de ter tido nos braços uma beldade como Genevieve Perronet? - pro¬testou Dylan, com as mãos nos quadris. - Não fiz amor com ela!
- Sente-se - ordenou o barão, apontando para a cama.
Dytan não apreciou a frieza na voz do tio.
Não obstante, mandaram-no sentar-se, o que lhe dava algum conforto. Na infância, ao levar sermão, era obrigado a ficar de pé.
Naturalmente, sua nova falta nem se comparava a roubar maçãs ou escapulir do castelo à noite, até por¬que não contava mais dez anos de idade.
Quando Dylan se acomodou, o barão recapitulou:
- A moça estava nua em sua cama.
- Só que não a toquei. Não ontem à noite.
O barão coçou a cicatriz logo abaixo de seu tapa-olho.
- E antes? O que pretendia fazer com Genevieve Perronet?
- Nada... nada demais. Com certeza, nunca disse que queria que ela desmanchasse o noivado e, Deus é testemunha, jamais a convidei a partilhar minha cama. Tem que acreditar em mim, tio. Nunca seduzi uma mulher com promessas de casamento.
- Que ótimo, ou teria se casado aos catorze anos. A observação do barão, ainda que severa, permitiu a Dylan relaxar um pouco mais.
- Francamente, não sei como a moça veio parar na minha cama, nua ou de qualquer outro jeito.
- Eis o que mais me surpreende. E possível que a tenha trazido aqui sem que se lembre? Bebeu muito ontem à noite?
- Tomei um pouco de vinho e cerveja e estava muito cansado, mas me lembraria de ter feito amor.
De fato, recordando a brancura perfeita dos ombros de Genevieve, sua maravilhosa cabeleira loira, sabia que teria se lembrado.
- Ela deve ter-se esgueirado para minha cama de¬pois que adormeci.
- E possível - concordou o barão, ainda duvidoso. - Mas como explica o sangue no lençol?
- Não tenho explicação. Posso ter-me ferido sem perceber e sangrado.
- E possível. Deu uma olhada?
- Ainda não.
- Lorde Perronet vai querer ver esse ferimento, se ele existir.
Dylan encarou o barão.
- Ele não precisava ter tentado me matar, nem maltratado Genevieve daquele jeito.
- Ponha-se no lugar dele, Dylan. Ele consegue pro¬meter a sobrinha a um dos homens mais poderosos do norte da Inglaterra e então a flagra em sua cama.
- Mas eu não...
O barão assentiu, impaciente.
- Eu acredito em você. O problema é Perronet. Ele mal o conhece.
- Mas parece saber muito de mim, ou de minha família - replicou o rapaz, azedo.
- Seu avô era bem conhecido, e seu pai...
- Era um infame - completou Dylan.
- Era. Sua família não tem mesmo boa reputação. Quando viu a sobrinha em sua cama, o coitado pro¬vavelmente quase morreu de choque. Deus do céu, eu mesmo quase tive uma síncope quando cheguei aqui.
- Como foi que ele veio parar aqui? - questionou Dylan, desconfiado. - Quem lhe contou que a sobrinha estava comigo?
- Acho que não foi ninguém. Ontem à noite, ficou muito evidente, pois ela mal conseguia tirar os olhos de você.
- Eu não incentivei. Não dancei com ela, não lhe dirigi a palavra.
- Talvez, mas um homem descobre que a sobrinha sumiu, uma moça que não disfarça a atração que sente por um certo rapaz. Que conclusões acha que ele vai tirar?
Com um suspiro profundo, Dylan correu os dedos pelos cabelos grossos.
- Eis por que tratei de ignorá-la durante a festa.
- Lamentavelmente, sua atitude não surtiu o efeito desejado. - O barão inclinou-se para o sobrinho. - O que aconteceu entre vocês dois antes de ontem à noite, Dylan? E óbvio que ela pensou que, rompendo o compromisso, vocês se casariam. Você deu a entender que quereria desposá-la, se ela fosse livre?
Dylan deu um tapa na testa.
- Deus do céu, era isso o que ela pretendia: romper o noivado!
- Sem dúvida. Mas você a levou a isso?
- Juro que não! Disse apenas que lamentaria vê-la partir, ou algo assim.
- Que mais?
- Mais nada!
- Mas fez alguma coisa?
- Eu... a beijei - murmurou Dylan, fitando os pés.
- Beijou?
- Apaixonadamente.
- Mas só beijou?
- Fiz mais umas coisinhas.
- Que coisinhas?
Frustrado, Dylan ergueu o olhar e encarou o barão.
- O senhor é homem. Pode imaginar. Mas nunca fiz amor com ela, nem cheguei perto disso.
- Dylan, você nunca pára para pensar? Lady Ge-nevieve passou os últimos oito anos com lady Katherine DuMonde. Duvido de que tenha sequer falado com ho¬mens esse tempo todo. Está viajando para se casar com um homem que nunca viu e que, ela sabe, não é jovem. Durante a pousada aqui, quem ela vem a co¬nhecer? Você.
Dylan suspirou.
- Não vou lhe dizer nada de que já não saiba: é o rapaz mais bonito que essa moça provavelmente jamais irá encontrar, com uma diabrura descontraída que eu também tinha na sua idade, o que o torna ainda mais atraente, bem o sei.
- Não tenho dúvida de que você subestimou o efeito que causaria na moça - concluiu o barão, sério. - Ela pensou que você gostasse dela mais do que você pretendeu e viu nisso uma maneira de escapar de um casamento que não desejava.
- Eu devia ter ouvido Griffydd - tartamudeou Dylan.
- O que tem Griffydd a ver com isto? Dylan deu de ombros.
- Ele tentou me alertar, mas eu...
- Sim, devia ter-lhe dado ouvidos - replicou o ba¬rão. - Mas agora é tarde. A questão agora é: como aplacar a ira do tio da moça?
- Não me casarei com ela só para salvar-lhe a hon¬ra, que ela comprometeu - advertiu Dylan.
- Sabe que não aprovo uniões forçadas, por qual¬quer motivo - declarou o barão. - Precisamos des¬cobrir uma maneira de fazer com que o casamento de Genevieve com lorde Kirkheathe se realize conforme o planejado.
O barão olhou sensível para o jovem que conhecia desde o nascimento.
- Você quer que Genevieve se case com Kirkheathe? Dylan deu de ombros novamente.
- Claro que sim. Acontece que lorde Perronet fez tamanho escândalo que a reputação da sobrinha pode já estar arruinada. Talvez Kirkheathe a repudie.
- É verdade - O barão suspirou.
- A menos que eu consiga convencer lorde Perronet de que não fiz amor com a sobrinha dele, não havendo motivo para que ela não despose Kirkheathe.
- Acha que consegue?
Sentindo-se um pouco culpado pelo que fizera com Genevieve, Dylan decidiu:
- Tentarei.
- Quer dizer que não há mesmo nenhum motivo para Genevieve não se casar com Kirkheathe?
Dylan levantou-se e encarou o pai adotivo.
- Se há, é só na cabeça dela.
- Ou no coração, talvez.
- Talvez.
- Sugiro, então, que não perca mais tempo. - O barão levantou-se. - Quanto mais tempo lorde Per¬ronet passar em fúria, mais dano sofrerá a reputação de lady Genevieve.
Dylan assentiu e voltou-se para a porta. O barão pousou a mão em seu ombro.
- Ela parece uma boa moça, ainda que confusa. Não a condene demais pela insensatez.
Dylan abriu seu sorriso sedutor.
- Uma vez que ela clama estar apaixonada por mim, serei o cavalheirismo em pessoa quando lhe falar.
Ao deixar o aposento, porém, fez uma carranca.
- Quanto ao tio dela, não posso prometer nada.
Vestida de preto, Genevieve fitava as mãos unidas no colo. O tio a procuraria a qualquer momento, e esforçava-se para recobrar a compostura.
Não era fácil. Na verdade, se tivesse como sair de Craig Fawr e lançar-se aos confins da Europa, seria o mais afortunado dos seres.
Infelizmente, não havia milagres à vista.
Contudo, não eram a vergonha e o pesar que inun¬davam seu coração no momento. Tomava-se de raiva, por ter-se deixado enganar por um rapaz ladino ocu¬pado apenas em se divertir.
Jamais devia ter confiado nos beijos de Dylan De-Lanyea, em seus sorrisos, em suas tristes palavras ao se despedir. Devia ter-se lembrado das advertências de lady Katherine: os rapazes eram, na maioria, uns tratantes dissimulados, lascivos.
E pensar que acreditara que ele a amava! Que seus beijos apaixonados traduziam um sentimento profundo. No entanto, para seu horror e vergonha, descobrira que ele estivera apenas brincando, divertindo-se à sua custa.
Devia ter sido uma sobrinha obediente e honrado o compromisso de casamento, em vez de subir na cama de um galês que dormia nu, a sono solto, que lhe pro¬metera... nada.
E não devia, de jeito nenhum, ter cortado o dedo para dar a impressão de que sangrara. Uma das outras moças aos cuidados de lady Katherine lhe contara que isso aconteceria na primeira vez que se deitasse com um homem. Ela perdera a virgindade pouco antes, com um soldado a serviço de seu pai.
Como desprezara Cecily Debarry ao saber de sua falta! Pois era assim que as pessoas a veriam agora, como uma criatura pecadora e imoral... e tudo por culpa de Dylan DeLanyea!
- Está vestida? - indagou o tio, do outro lado da porta.
- Estou - respondeu Genevieve.
Levantou-se rija, preparada para enfrentar a ira do tio. Tentaria convencê-lo da verdade, de que continua¬va virgem, bem como os motivos daquela farsa, mas tinha pouco esperança de que ele ouvisse.
O fiapo de esperança desvaneceu-se quando lorde Perronet adentrou a câmara. Ele continuava furioso, as feições de falcão transtornadas, os olhos castanhos cuspindo fogo, ao bater a porta com força.
De nada adiantariam explicações. Como escapar de tanta ira?
Sem perder tempo, Genevieve ajoelhou-se diante do tio, humilde, contrita, disfarçando a própria raiva, de cabeça baixa e mãos unidas, como se rezasse... de fato, rezava, implorava a Deus que a tirasse da lama em que se jogara.
- Tio, eu imploro seu perdão por minha conduta ver¬gonhosa -murmurou, aflita. - Estou muito arrependida.
- Ainda bem.
Ele não parecia muito zangado e Genevieve arriscou um olhar. Viu uma brecha no sólido muro da ira.
- Fui fraca e tola.
Por pensar que ele me amava.
- Todas as mulheres são fracas e tolas - observou o tio, rosnando. - E sua natureza.
- Lamento ter pecado tão gravemente. E confiado nele.
- Não pôde evitar, suponho - considerou o tio, um pouco mais brando. - A exemplo de Eva, atiçada pela serpente.
Genevieve ergueu o olhar novamente.
- Imagino que o compromisso com lorde Kirkheathe esteja rompido? - especulou, em convincente tom de remorso.
Nunca vira o homem, não o conhecia... mas casar-se com ele a teria feito sentir-se pior?
- Ele fazia questão de uma virgem - murmurou o tio, olhando através da janela, sem nada ver.
Genevieve engoliu em seco. Saber da exigência não fazia o homem parecer mais atraente. Mas que alter¬nativa tinha?
- Terá que se casar com DeLanyea. Genevieve contemplou a figura do rio.
- Depois do que ele fez?
Lorde Perronet voltou-se da janela.
- Não temos muita escolha.
- Lorde Kirkheathe mora muito longe daqui. Os boatos talvez não o alcancem. Ele não precisa saber que...
A expressão feroz do tio a calou.
- Acontece que eu sei, e dei a ele minha palavra de que você era virgem. Além disso, Kirkheathe ficará sabendo, de um jeito ou de outro. Uma vez que você não é mais pura, a honra exige que eu rompa o con¬trato, assim como exige que DeLanyea se case com você, considerando o que fez.
- Mas eu não quero mais me casar com ele!
- Você o quis o bastante ontem à noite para se desonrar - observou o tio, severo.
- Eu... eu estava iludida. Cometi um erro. Não devia ter feito...
- Menina, ponha uma coisa em sua cabeça: sua reputação está irremediavelmente destruída... a menos que o despose.
Genevieve levantou-se.
- Tio, ainda sou virgem. Criei essa farsa para rom¬per o noivado. Esgueirei-me para a casa de Dylan on¬tem à noite quando ele já dormia.
Lorde Perronet estreitou o olhar.
- Aquele bastardo a instruiu para dizer isso?
- Não, é verdade! Acreditei que ele me amava e quereria se casar comigo se eu fosse livre. É evidente que me enganei - concluiu a moça, amargurada.
- Redondamente - replicou o tio, severo. - Você pode até ter sido idiota, mas não se trata de uma estripulia infantil, de fácil conserto. De fácil perdão.
Lorde Perronet deixava claro que não acreditava no relato da sobrinha.
- Só há uma maneira de você sair desta situação com um pingo de honra: casando-se com Dylan DeLanyea, e eu lhe garanto que assim será.
Ele foi para a porta.
- Prefiro morrer!
Lorde Perronet estacou, voltou-se devagar e olhou-a frio, como se fossem estranhos.
- A janela é logo ali. Pule.
Genevieve apenas fítou-o, em choque ante tamanha insensibilidade.
- Achei que não teria coragem - gabou-se o tio, deixando-a.
A porta se fechou e ouviu-se um barulho de chave. Largando-se na cadeira, Genevieve apoiou a cabeça nas mãos.
Amaldiçoava-se por ser idiota.
- Meu senhor! - exclamou Dylan, após quase colidir com lorde Perronet nos degraus que levavam à câmara de Genevieve.
- DeLanyea - rosnou o nobre, com um olhar fulminante.
Dylan tentou ficar calmo, ou ao menos tão calmo quanto conseguira manter-se desde que despertara abruptamente logo cedo. Preferiria ter conversado com Genevieve primeiro, mas até que seria bom acabar logo com a pior parte.
- Gostaria de falar-lhe, meu senhor.
- Perfeitamente - concordou o homem. - Mas não aqui.
Dylan tentou não fazer cara feia. Era evidente que não discutiriam aquele assunto na escadaria.
- Seria melhor no solar de meu tio.
- Mostre-me o caminho.
Sem uma palavra, Dylan girou nos calcanhares. Des¬ceram a escada e atravessaram o salão, ignorando o castelão e seus filhos, que tomavam o desjejum, até alcançar uma torre recém-construída. As dependências inferiores eram usadas como escritório pelo adminis¬trador da propriedade e seu assistente. O solar do barão ficava no segundo andar e a câmara nova em folha que ele dividia com a esposa ocupava todo o terceiro pavimento.
Dylan esperou lorde Perronet entrar na sala e o seguiu, fechando a porta atrás de si.
- Por favor, sente-se. - Oferecia a cadeira do barão atrás da grande escrivaninha de madeira.
- Prefiro ficar de pé.
Dylan deu de ombros e acomodou-se na cadeira do castelão. Lorde Perronet pareceu irritar-se ainda mais com a atitude, mas ele já não ligava. Se o homem queria ficar de pé feito ura humilde pecador diante do senhor das terras, só tinha a si mesmo para culpar.
A exemplo da sobrinha.
- Você a desonrou e agora terá que desposá-la - declarou lorde Perronet, sem preâmbulo.
- Não a desonrei e não me casarei - replicou Dy¬lan. - Não sei o que foi que ela lhe contou, mas eu nem sabia que ela estava em minha cama até que o senhor invadiu minha câmara nesta manhã. Se houve desonra, não pode atirá-la aos meus pés.
- Não foram seus pés que a desgraçaram! - rugiu lorde Perronet. - Ela estava em sua cama com sangue nos lençóis, homem! Isso basta para provar o que fez.
- Isso prova apenas que alguém sangrou por algum motivo. Caso contrário, é a minha palavra contra a dela.
- A palavra de minha sobrinha contra a de um...
- Bastardo? - Dylan encarou-o bravo. - Devo di¬zer, meu senhor, que me espanta sua insistência em nos casar, dada sua péssima opinião de minha família.
- Você não me deixou opção. - O nobre franziu o cenho. - Talvez esse tenha sido seu plano... receber o dote dela, ao mesmo tempo que entraria para minha família.
- Se eu a tivesse desonrado, como acusa, essas se¬riam minhas últimas motivações. Não preciso do dote de sua sobrinha e com certeza não desejo ligar-me ao senhor de forma alguma.
0 nobre franziu ainda mais a carranca.
- Então, por que o fez? Para destruir minha aliança com Kirkheathe?
- Não ligo a mínima para suas alianças - garantiu Dylan. - São todos normandos, só pensam em dinheiro e poder.
- Seu...
- Galês - completou Dylan.
Se o homem voltasse a insultá-lo, provavelmente perderia o pouco controle que lhe restava, e as conse¬quências seriam terríveis.
- Ou melhor, mais galês do que normando, feliz¬mente - corrigiu-se. - Diga-me, meu senhor, o que foi que a moça disse? Por acaso afirma que fiz amor com ela prometendo casamento?
Lorde Perronet nem hesitou.
- Exatamente.
Dylan engoliu em seco. Genevieve mentira como o mais vil charlatão, atirando-lhe a culpa.
- Trata-se de uma mocinha ingênua engabelada por um rapaz de boa lábia.
Dylan lembrou-se dos olhos de Genevieve no ins¬tante do beijo apaixonado.
Não, não se tratava de uma mocinha ingénua, mas de uma mulher. Uma mulher apaixonada.
E capaz de mentir sem levantar suspeitas.
Dylan levantou-se e encarou lorde Perronet.
- Independente do que eu possa ter feito, não serei chantageado para me casar.
Pela primeira vez, lorde Perronet pareceu dar-se conta de que não poderia obrigar Dylan a desposar Genevieve sob tais circunstâncias, ou qualquer outra.
- Espero que tenha consciência de que a arruinou - observou o nobre. - Nada lhe restará senão o con¬vento... um bem isolado.
- Isso não é da minha conta.
- Que mais se poderia esperar de você? - ralhou Perronet. - É igualzinho a seu pai, não? Pouco lhe importam as consequências, desde que consiga o que quer. Egoísta até os ossos!
- Se for sábio, morderá a língua antes de falar de meu pai novamente - advertiu Dylan, saindo de trás da mesa.
Cauteloso, lorde Perronet recuou um passo.
- Não sou eu o egoísta aqui, meu senhor - asse¬gurou Dylan, no mesmo tom brando porém ameaçador.
- O que perderá se o compromisso entre sua sobrinha e Kirkheathe for rompido? Dinheiro? Poder? Influên¬cia? As três coisas? Em algum momento pensou na felicidade dela, ao arranjar-lhe esse casamento?
Lorde Perronet recuava mais e mais, conforme Dy¬lan avançava como um leão encurralando a presa.
- Talvez, se tivesse pensado nela, ela não houvesse contestado a minha honra só para não ter que se casar contra a vontade.
- Eu... ela...
- Você sacrificaria a felicidade de sua sobrinha por dinheiro - acusou Dylan.
- Seu... seu impertinente! - protestou lorde Perronet.
- Dobre a língua, meu senhor! Ou devo dizer tio? O nobre arregalou os olhos.
- Por que a surpresa? Não é o que está exigindo? Que eu despose sua sobrinha? Estou considerando a idéia. Ela me quis, afinal de contas, um dado impor¬tante. E você é rico e poderoso.
- Você não se atreveria! - preveniu lorde Perronet.
- Você parece pensar que sou capaz de tudo. Por que não de um casamento honrado? Diga-me, meu se¬nhor, qual o montante do dote de Genevieve?
- É... não é da sua conta! Nunca o terá!
- Talvez este seja o momento adequado para observar que minha família não é tão insignificante - prosseguiu Dylan. - Ao mesmo tempo que concordo que meu pai e meu avô eram monstros desprezíveis, meu tio e os filhos dele estão entre os nobres mais dignos de toda a Inglaterra. O barão DeLanyea se equi¬para ao senhor quanto a amigos influentes, assim como em riqueza. Sendo assim, como vê, meu arrogante normando, talvez eu não veja o casamento como um destino apenas um pouco mais desejável do que a vida num convento isolado. - Por isso, repito a pergunta: quanto é o dote da moça?
O barão DeLanyea olhou para a entrada da torre, onde ficava seu solar, e voltou a saborear o pão e a cerveja de seu desjejum.
- Deus do céu, esta situação me deixa nervoso, podem crer - murmurou aos filhos, sentados um de cada lado seu.
- Será um milagre se ele não decepar a cabeça do homem - comentou Grifiydd.
- Nesse caso, seria bom alguém ir lá cuidar para que ele não o faça - opinou Trystan.
- Ele não vai atacar o homem - afirmou o barão, só um tantinho duvidoso. - Não seria tão burro.
- Ele não se tem mostrado muito inteligente ulti¬mamente - observou GriíTydd.
- Isso é verdade.
Trystan levantou-se de repente.
- É melhor alguém ir ver o que eles estão fazendo.
- Sente-se - ordenou o barão. - Se for preciso, interferiremos... mas não antes que seja absolutamente necessário.
- Ele só vai piorar as coisas. Será que já não causou estrago suficiente?
- Ele jura que não - lembrou o pai.
- Vi o jeito como ele olhava para ela - replicou Trys¬tan. Olhou para Griflydd. - Você também viu. Sei que até lhe chamou a atenção quanto àquele comportamento.
- Pensei que ele tivesse me ouvido.
- Ele disse que ouviu - contou o barão. - Parece que nem dirigiu a palavra a ela no banquete ontem à noite, correto?
- O que não significa que seja inocente - contra-atacou Trystan.
- Eu sei - admitiu o barão. - Mas não vamos culpar ninguém sem termos certeza. - Enrijeceu-se. - Psiu! Vem vindo alguém do solar.
Em expectativa, os três observaram lorde Perronet sair da torre, atravessar o salão e sair. Trocaram olhares confusos.
- Ao menos, não está morto - aliviou-se Griffydd.
- Mas parecia zangado - comentou Trystan, apreensivo. - O que acham...?
Caíram em silêncio quando Dylan apareceu, de ca¬beça baixa, como que perdido em pensamentos, a se¬riedade tomando-lhe o rosto normalmente sorridente, até que reparou nos parentes.
Ele sorriu, então, mas todos perceberam que não estava feliz de verdade.
- Cumprimentem-me, cavalheiros. Vou me casar.
Griffydd e Trystan, boquiabertos, viram o pai levantar-se.
- O que foi que disse?
- Que vou me casar com Genevieve Perronet. Hoje. O barão sentou-se pesadamente.
- Por quê? - questionou Griffydd, severo. - Afir¬ma que não a desonrou.
Por fim, uma faísca de alegria reluziu nos olhos es¬curos de Dylan.
- Talvez por estar em idade de me casar.
- Tem certeza de que é uma decisão acertada? - indagou o barão. - Lorde Perronet não o constrangeu...?
- Ele? Constranger-me a fazer algo? - zombou Dylan. - Eis algo que gostaria de ver.
- E lady Genevieve? - lembrou Trystan.
- Foi idéia dela, não foi? Ainda que tenha me in¬formado de sua intenção de tornar-se minha esposa de uma maneira bastante incomum.
Dylan voltou-se para o barão.
- O senhor mesmo a ouviu confessar que me ama, tio. Claro que é uma mulher inteligente e ninguém pode negar que é bela.
- Tem absoluta certeza disso? - insistiu o barão.
- Tio, acredita mesmo que algum homem, ou mu¬lher, me obrigaria a me casar contra a minha vontade?
- Não.
- Griffydd?
- Não.
- Trystan?
- Não. - O cavaleiro mais jovem tinha o olhar tão intenso quanto o do pai. - Mas você a ama?
- Ainda não, mas amarei, a começar esta noite. Agora, se me dão licença, devo iniciar os preparativos para meu casamento.
Dylan deixou o salão assobiando uma melodia alegre, como se se casasse todos os dias, deixando os três pa¬rentes com a sensação de ter voltado para casa sem ver o inimigo após preparar-se para uma batalha intensa.
Trystan cerrou os punhos debaixo da mesa.
Genevieve encara o tio incrédula.
- Meu o quê?
- Seu vestido de noiva. Tire-o do baú e arrume-o. Você vai se casar hoje.
- Casar-me? Mas com quem? O tio fitou-a desgostoso.
- Com quem poderia ser? Sir Dylan DeLanyea, lor¬de de Beaufort, é claro.
- Mas, e meu compromisso com lorde Kirkheathe?
- É evidente que foi desfeito, graças a seus es¬forços. Descobrirei um meio de me retratar. Talvez consiga convencer sua prima Elizabeth a desposá-lo em seu lugar.
- Tio!
Genevieve levantou-se da cadeira e enfrentou o tutor.
- Reconheço que cometi um grave erro, mas não me redimirei desposando aquele homem.
- Ah, vai, sim! - rosnou o tio. - Como ousa re¬cusar-se? Depois do que fez, devia estar feliz por sa¬far-se ainda com alguma reputação. As fofocas já cor¬rem soltas. Quanto ao que lorde Kirkheathe irá pensar, prefiro nem cogitar. Devia dar graças a Deus por eu não expulsá-la de casa só com a roupa do corpo.
- Preferiria isso a me casar com Dylan DeLanyea. O tio olhou-a furioso.
- Você estava nua na cama dele, Genevieve!
- Do que me arrependo amargamente. Preferiria me casar com lorde Kirkheathe.
- Isso agora é impossível e sabe muito bem disso! Case-se com DeLanyea, ou, Deus me ajude, eu a des¬pacharei para o convento mais remoto que conseguir achar para que apodreça lá!
Ante o rosto irado do tutor, Genevieve convenceu-se de que ele cumpriria a ameaça. Seria exilada, conde¬nada a uma existência pouco melhor que uma morte em vida, sem marido e sem chance de ter filhos.
- Lorde Perronet?
Era a esposa do barão, à porta da câmara.
Alta e magra, Lady Boanna trajava um vestido sim¬ples de fina lã vermelha, ajustado com cinto de couro bege-claro. Tinha os cabelos cobertos por uma touca vermelha e um lenço branco.
Olhava-os placidamente, o rosto pálido dando sinais de cansaço, mas sua voz, ainda que branda, era tão autoritária quanto a do marido.
Genevieve fez uma reverência, atenta ao tio sempre orgulhoso e pomposo. No momento, ele se mostrava tão humilde e contrito quanto uma criança perdida.
- Lorde Perronet, fui informada do casamento pró¬ximo de meu sobrinho e gostaria de falar com sua sobrinha a sós, se me permitir. De mulher para mulher, se é que me entende.
Diante daquela voz e daquela expressão, Genevieve duvidou de que alguém fosse capaz de negar um pedido daquela senhora, incluindo o rei.
Como que para confirmar aquela impressão, o tio aquiesceu, dócil como um cordeiro.
- Certamente, minha senhora. - A porta, ele olhou por sobre o ombro para Genevieve. - A cerimônia será ao meio-dia.
Assim que o nobre se retirou, lady Roanna adentrou o aposento.
- Posso me sentar? - indagou, e Genevieve aliviou-se com sua mudança de tom. Estava bem mais simpática.
- Claro que sim, minha senhora.
Lady Roanna acomodou-se numa cadeira e gesticu¬lou para uma outra.
- Por favor.
Genevieve sentou-se também.
A castelã pousou os vibrantes olhos verdes sobre Genevieve, olhos que pareciam exigir sinceridade.
- Quer dizer que irá desposar meu sobrinho e não lorde Kirkheathe.
- Foi o que me disseram - replicou a moça, não sem um traço de amargura.
- Não me parece feliz.
Genevieve não respondeu. Não poderia, não sob o escrutínio de lady Roanna.
- Suponho que seu tio tenha um bom motivo para estabelecer esta mudança.
- Flagraram-me na cama de seu sobrinho.
Lady Roanna alterou levemente a expressão, de um jeito que fez Genevieve enrubescer.
- Dylan nega que a tenha seduzido.
Tudo o que Genevieve pôde fazer foi fitar o chão, corada como uma criança surpreendida na mais ver¬gonhosa mentira.
- Ele a seduziu? - indagou lady Roanna, gentil. Incentivada pela simpatia da mulher mais velha,
Genevieve encarou-a e balançou a cabeça.
- Não, minha senhora. E contei isso a meu tio. Lady Roanna abriu um pequeno sorriso.
- Entendo. Suponho que tenha planejado isso para escapar do casamento com lorde Kirkheathe?
Genevieve confirmou, os olhos inchados por lá¬grimas quentes. De repente, sentia-se tola, estú¬pida e envergonhada.
- Saiba que foi muito bem-sucedida. Mas, diga-me, você não foi consultada quanto a comprometer-se com lorde Kirkheathe? Não concordou com isso?
- Não, minha senhora. Ou melhor... não discordei abertamente. Achei que não tinha escolha, até que conheci Dylan. - Genevieve tinha a voz trêmula. - Comportei-me muito mal, não?
A castelã tomou-lhe a mão e apertou-a.
- Acho que agiu como uma jovem desesperada que acredita no amor. Contudo, estou surpresa com sua relutância em desposar meu sobrinho, uma vez que deve ter desconfiado de que essa seria a última con¬sequência de seu plano. Será que ouviu histórias sobre a família dele que a desagradaram?
Embora não tivesse refletido muito a respeito, Ge¬nevieve lembrou-se dos insultos que o tio lançara a Dylan, que reagira com igual hostilidade.
- Parece que meu tio despreza o pai e o avô dele, mas não sei por quê.
Lady Roanna suspirou profundamente.
- O pai e o avô de Dylan eram homens egoístas, cruéis e vingativos que só pensavam em poder. Fizeram coisas terríveis a fim de conquistá-lo. Felizmente, Dy¬lan não é como eles.
- Meu tio o chamou de bastardo.
- E ele é. Sua mãe era uma criada em Beaufort. Genevieve espantou-se.
- Mesmo assim, ele herdou a propriedade?
- Herdou - confirmou lady Roanna, com um sor-risinho perspicaz. - Os galeses não ligam muito para a legitimidade, o que é ótimo, pois do contrário meu marido não seria o senhor de Craig Fawr, tampouco. Ele também é bastardo.
- Oh, minha senhora, desculpe-me. Eu não sabia.
- Não precisa se desculpar. Contei-lhe apenas para que não menospreze Dylan por conta de seu nascimento.
- Não, eu não o repudiaria por causa disso - as¬segurou Genevieve. Encheu-se de orgulho. - Fui en¬ganada da pior maneira, minha senhora. Pensei que ele me amasse.
- O que a levou a pensar assim?
Genevieve não estava preparada para uma pergunta tão direta, mas, se lady Roanna queria saber, responderia.
- Ele sempre foi gentil comigo, lisonjeiro. Nenhum homem nunca tinha me olhado daquele jeito. Então, ele me beijou, mais de uma vez, com muita paixão. Quando nos despedimos...
Suas palavras se perderam num silêncio constran¬gedor. Se falasse mais, talvez revelasse em exagero seus próprios sentimentos feridos e isso seu orgulho não permitiria.
- No entanto, parece-me que ele nunca lhe disse que a amava e que queria casar-se com você.
- Não, minha senhora. Mas me abraçava tão afe-tuoso... pensei que ele gostasse de mim de verdade.
- Dylan é um homem de paixões - confirmou lady Roanna. - Às vezes, age sem pensar.
- Ele concordou com o casamento porque meu tio o obrigou? - quis saber a jovem, desconfiada.
Lady Roanna sorriu.
- Se eu não conhecesse bem Dylan, minha querida, poderia até pensar que sim. Mas conheço-o bem de¬mais. Ninguém jamais poderia obrigá-lo a algo assim.
- Sendo assim, o que o fez mudar de idéia, con¬cordar em me desposar?
- Francamente, não sei - replicou a castelã. - Mas ele me parece decidido. - Inclinou-se para a fren¬te, analisando o rosto de Genevieve. - O que eu quero
saber é: você quer ser a esposa dele? Se não quiser, diga-me. Nem meu marido, nem eu acreditamos em casamentos forçados. - Ficou pensativa um instante. - Por bons motivos. Sendo assim, se prefere não ca¬sar-se com Dylan, diga-me e não haverá casamento.
- Meu tio ameaçou mandar-me para um convento bem distante se eu me recusar - afligiu-se Genevieve.
- Nós o convenceríamos a não fazer isso. Apesar da convicção de lady Roanna, Genevieve não
acreditava que conseguiriam mudar o pensamento de seu tio teimoso.
Cabia-lhe, portanto, decidir:
Ou se casava com Dylan DeLanyea, que horas antes deixara bem claro que não a queria como esposa.
Ou se deixava confinar num convento, para nunca se casar, nem ter filhos.
Em algum ponto dos obscuros recessos de sua mente, Dylan sempre soubera que um dia se casaria. No entanto, vislumbrara o evento sob circunstâncias bem diferentes.
Quando quer que dedicasse um instante a vislum¬brar a futura esposa, imaginara uma bem-humorada galesa de compleição voluptuosa capaz de entender a respeito dos filhos que ele tivera com outras moças.
Com certeza, jamais cogitara desposar uma loira pá¬lida de sangue normando, ainda mais uma que se es¬gueirara para sua cama, refletia Dylan, de pé no salão com os parentes, mais os hóspedes do barão e os criados do castelo.
Todos aguardavam a chegada da noiva e a bênção de um padre convocado às pressas.
Naturalmente, também presumira que estaria lou¬camente apaixonado pela moça, um sentimento que ultrapassaria em muito qualquer outro que já houvesse experimentado com relação às mulheres já conhecedo¬ras de seu afeto e sua cama.
Genevieve Perronet era bonita, sem dúvida, e fogo¬sa... só que não a amava. Bolas, mal a conhecia!
Daí, surgia o maior dos problemas. Zangado e frus¬trado, propusera o matrimônio sem considerar a vontade da moça, só para atormentar o tio arrogante e pomposo dela.
Ao menos, Genevieve ficaria feliz, consolou-se, seu otimismo natural voltando a se impor. Ela ficaria sa¬tisfeita em se casar, salvando a honra danificada. Afinal, ela afirmara que o amava. Uma esposa grata e apaixonada com um dote de quinhentas moedas de ouro não era algo para se des¬prezar sem reflexão. Quanto aos filhos dele, simples¬mente teria que lhe explicar que os galeses não eram tão hipócritas no que se referia a nascimentos ilegíti¬mos. Aos olhos galeses, um filho era um filho, fosse nascido no casamento ou não.
Se ele e Genevieve tivessem um filho, esse primo¬gênito herdaria Beaufort, de acordo com a lei norman-da. Trefor, seu filho ilegítimo mais velho, receberia terras fora daquela propriedade, bem como seu outro filho bastardo, Arthur, que tinha direitos iguais aos do meio-irmão.
Genevieve teria que aceitar o fato. O barão mexeu-se, arrancando Dylan dos devaneios. Pelo salão, os convidados e criados trocavam olhares cautelosos.
- Toda noiva se atrasa - murmurou o barão. - Querem estar o mais bonitas possível. Sabe como são as mulheres.
Dylan aquiesceu. Sim, conhecia as mulheres e seria paciente.
- Lady Roanna assistirá à cerimônia?
- A velha Mamaeth está muito mal, porém... - O barão interrompeu a explicação ao ver uma comoção na entrada do salão.
Dylan reteve o fôlego. Ao descobrir o motivo da agi¬tação, relaxou.
Era lady Roanna e a velha babá do barão, esta sen¬tada numa cadeira carregada por dois servos fortões, à maneira dos potentados orientais.
- Não perderia a cerimónia - comentou a anciã, animada. - Estava mesmo na hora de esse diabinho se casar e parar de espalhar suas sementes por toda Gales.
Dylan sorriu, divertido. Valorizava o esforço de Ma¬maeth para assistir a seu casamento e estava feliz também com a presença de lady Roanna, que era como uma mãe para ele.
O problema era que Mamaeth não tinha papas na língua, principalmente quando estava alegre, sem o menor senso de decoro.
- Mas onde está a noiva? - indagou a anciã, em tom estridente. - Espero que não tenha mudado de idéia, após tanto escândalo. Quase tive um ataque do coração.
As pessoas no salão trocavam sorrisos um tanto tensos.
- Ainda bem que ela está atrasada - observou Dylan, menos animado do que queria fazer crer. - Do contrário, você teria se atrasado.
- Bah! - zombou a velha criada, caindo num si¬lêncio pouco comum, para alívio de Dylan.
- Ah, chegaram - anunciou o barão, gentil. Dylan olhou de novo para a entrada do salão... e engoliu em seco, fascinado.
Genevieve exibia um vestido de seda branco cujas mangas, debruadas com samito dourado, quase alcan¬çavam o chão. Por cima, uma túnica também dourada. Um cinto ornado de ouro e prata realçava-lhe a cintura fina, dando uma volta em suas costas, assentado frou¬xamente sobre seus quadris.
De braço dado com o tio severo, ela se aproximava a passos lentos do grupo à espera na plataforma, o cinto brilhante realçando sua graça sensual.
Excitado no meio da multidão, Dylan engoliu em seco e fitou o rosto da noiva. Sobre a cabeça, ela exibia uma faixa com trabalho semelhante ao do cinto, fixada por um lenço de seda branco cujas pontas prendiam-se dos dois lados da coroa, passando sob seu queixo.
Sem a profusão de cachos dourados em torno do rosto, Genevieve parecia mais velha e mais feminina.
Dylan sentiu o coração se acelerar.
A noiva aproximou-se o bastante para que ele ana¬lisasse sua expressão.
Ele nunca vira ninguém, nem Griffydd, tão triste. Mais parecia um prisioneiro condenado rumo ao cepo do que uma mulher que usara de artimanha para pro¬vocar seu próprio casamento.
Se não queria se casar com ele, por que comparecera?
Confuso, e de orgulho ferido, pois jamais esperara ver sua futura esposa tão pesarosa, Dylan olhou para lady Roanna. Sabia que ela conversara com Genevieve. Teria a jovem confidenciado seus sentimentos à boa castelã?
Lady Roanna sorria serena, como se se tratasse de um evento feliz e ela estivesse feliz por participar.
Sem dúvida, ela não estaria tão tranquila se acre¬ditasse haver algum problema.
Dylan olhou então para o barão, que parecia ura tanto preocupado, a exemplo dos filhos.
Os demais convidados murmuravam intensamente, olhando-o como se o reprovassem, ao mesmo tempo que dedicavam a Genevieve uma certa... piedade?
Bolas, era tudo culpa dela! Viviam a consequência de seu esquema tresloucado. Não admitiria que pen¬sassem que Genevieve estava sendo obrigada a se casar!
Ou que ele estava sendo obrigado, completou, o or¬gulho se impondo.
Dylan deixou a plataforma ao encontro da bela e traiçoeira noiva. Ao alcançá-la, tomou-a nos braços e, ousado, beijou-a com extrema paixão.
A atitude inesperada de Dylan deixou Genevieve sem fôlego, ameaçando privá-la da dignidade que lhe restava diante de todos os convidados.
Ela até que tentou não sentir nada, com exceção da raiva, mas no instante era que os lábios de Dylan to¬caram os seus, sentiu a pulsação se acelerar selvage-mente, bem como as pernas bambas.
Por fim, ele encerrou o beijo, mas continuou segu¬rando-a com mão de ferro, deslizando os lábios por seu rosto até o ouvido, enquanto ela tentava recuperar o fôlego.
- Isto é mais culpa sua do que minha, minha se¬nhora, portanto, sorria - sussurrou, áspero. - Ou, juro por Deus, irei embora deixando-a aqui.
Com ou sem beijo apaixonado, Genevieve sabia que ele falava sério. Iria mesmo embora deixando-a ali. Voltaria a humilhá-la e ainda teria a ousadia de afir¬mar que ela era a única culpada.
Entretanto, ela não era a única responsável pela realização daquele casamento. Recusara-se a desposar Dylan, até que o tio a ameaçara.
Se Dylan a abandonasse ali, após tudo o que aconte¬cera, com certeza seria despachada para um convento. Sendo assim, Genevieve estampou um sorriso no ros¬to e nem vacilou quando o noivo lhe tomou a mão possessivamente e a conduziu rumo ao barão.
O homem mais idoso foi ao encontro de ambos e a moça sentiu a força de seu olhar de um olho só.
- É o que quer, lady Genevieve? - indagou ele, em tom baixo, de modo que somente ela e Dylan pu¬dessem ouvir.
- Sim, é - afirmou ela, resignada ao destino. Nem olhou para Dylan, que se vestira todo de preto, bem de acordo com a ocasião.
- E você, Dylan?
- Claro que sim.
A despeito das assertivas, uma expressão preocupa¬da dominou o rosto do barão. Ele olhou para a esposa, que anuiu. Com um suspiro, recuou e convocou o padre.
O rechonchudo religioso de sorriso brando, beatífico, adiantou-se.
- Trouxe a aliança, meu filho? - indagou a Dylan, gentilmente.
O noivo fez que sim e tirou do cinto uma grossa aliança de ouro. O padre a pegou e abençoou com o sinal da cruz, devolvendo-a era seguida.
- Coloque-a no dedo dela - instruiu. Genevieve estendeu a mão trêmula. Dylan tomou-a
na sua, quente e calejada, e colocou-lhe a aliança. Enquanto isso, o padre entoava:
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que Deus abençoe esta união. Que frutifiquem e se multipliquem. Que nenhum homem se coloque entre vocês. Eu agora os declaro marido e mulher aos olhos de Deus e de todos aqui.
O salão estremeceu sob os aplausos e votos de felicidades, Genevieve enrijeceu-se a fim de receber mais um beijo daquele que era agora seu marido.
Só que não houve beijo, pois Dylan deu meia-volta para receber os cumprimentos de todos, aparentemente indiferente ao amuo da jovem esposa.
Genevieve achava incrível a capacidade de Dylan de mostrar-se alegre quando não se sentia assim. Na verdade, ele estava longe de apreciar a situação, mas com certeza morreria antes de confessar o fato a quem quer que fosse em Craig Fawr.
E Dylan sustentava a farsa enquanto progredia a festa em comemoração às núpcias inesperadas, entre¬tendo os convidados com piadas, canções e histórias, dando à noiva toda a atenção que achava necessária, de modo que ninguém desconfiasse de seu desagrado quanto àquela união.
Quanto aos possíveis pensamentos e sentimentos de Genevieve, ele dizia a si mesmo que não importavam no momento. Quando estivessem a sós, quando che¬gasse a hora de ele reclamar seu direito como marido, então se preocuparia com isso.
Finalmente, chegou o momento de a noiva se retirar. Com comentários adequados e significativos olhares de esguelha, Dylan despachou-a com as mulheres.
Várias criadas foram destacadas para acompanhar Genevieve até a câmara. Embora considerasse todo o aparato desnecessário, ela não comentou nada, certa de que a deixariam à soleira da porta.
Mas não foi o que aconteceu. Elas a acompanharam até o interior do grande cômodo na torre, alvoroçadas e falantes, entre risos, distraíram-na o tempo todo.
Genevieve tentou livrar-se da companhia excessiva, mas a atitude só atraiu olhares significativos e pro¬vocou mais risadinhas e sussurros entre as criadas em seu dialeto nativo.
Desistindo, a noiva passou a ignorá-las e prestou atenção ao seu novo quarto.
Dispunha de uma bacia e jarro d'água sobre uma mesa, um aparador cheio de velas de cera de abelha acesas, outra mesinha com uma garrafa de vinho e duas taças de prata e uma cama.
Uma cama imensa, com luxuosa colcha de cetim.
Genevieve deu as costas ao móvel extravagante, en¬quanto as criadas mencionavam o nome de Dylan outra vez, com mais risadinhas. As moçoilas tinham os olhos brilhantes de excitação nos rostos enrubescidos.
Então, uma delas começou a remexer a bagagem da noiva. Antes que Genevieve pudesse reclamar, a criada encontrou e retirou sua melhor camisola, confecciona¬da especialmente para a noite de núpcias.
E aquela era sua noite de núpcias.
Genevieve agarrou a peça, enrubescida, odiando-se por sentir-se constrangida, e dirigiu-se rispidamente às serviçais.
- Detesto pôr fim a sua diversão, mas não preciso mais de ajuda.
As moças olharam-na com todo o entendimento de uma manada de ovelhas.
- Vão! - ordenou Genevieve, apontando para a porta. As criadas estavam atônitas com o tom da senhora,
tanto quanto com sua ordem, mas Genevieve não se importava. Queria-as, com seus risinhos e sussurros galeses, fora dali.
As serviçais trocaram olhares cautelosos e foram para a saída do aposento. Quando a última saiu, Ge¬nevieve fechou a porta com força.
Dispondo da chave, teria se trancado.
Infelizmente, não a tinha.
Sem a presença das criadas obrigando-a a portar-se com dignidade, Genevieve sentiu o tremor e o desalento retornando. O que podia esperar de Dylan agora, não imaginava, nem desejava descobrir.
Como evitá-lo? Era seu marido agora. Tinha todo o direito de...
Todo o direito.
Rubra de exasperação, apreciou a bela cama com seus ricos acolchoados, pensando na intimidade que estava para partilhar legalmente com Dylan.
Já haviam se relacionado intimamente, de certo modo. Aquecia-se só de recordar a imagem dele nu enfrentando seu tio enfurecido.
Que Dylan tinha um corpo do qual nenhum homem se envergonharia era ponto pacífico. Alto, musculoso, ombros largos, cintura e quadris esguios. Uma estreita faixa de pêlos escuros nascia junto ao umbigo e descia, os fios engrossando-se e ondulando-se.
Tudo nele era impressionante.
De repente, cogitou o que ele faria com o corpo dela.
Não que isso importasse, pois era irrevogavelmen-te sua esposa, assim como ele era seu marido. E logo ele estaria ali. Ficariam a sós. Ele a levaria para a cama e...
Franziu o cenho, séria. Não sabia bem quais eram seus deveres conjugais. Infelizmente, ninguém nunca se dispusera a lhe contar. Toda a informação de que dispunha lhe chegara via sussurros no escuro na mo¬rada de lady Katherine.
Sabia que haveria sangue, não muito, mas algum, e também dor. Ele a penetraria com a virilidade... em algum lugar dela. Imaginava saber qual, embora uma ou duas das garotas tivessem discordado da opinião geral afirmando que era no umbigo. Apesar da zom¬baria da mundana Cecily, elas continuaram agarradas à idéia.
Quanto a Genevieve, ainda não estava preparada para descartar a possibilidade.
Respirando fundo a fim de acalmar o coração, apro-ximou-se do baú. Fora arrumado de qualquer jeito, na pressa de transferir seus pertences do outro aposento! para a câmara de Dylan, e a criadinha fizera ainda mais bagunça ao procurar a camisola. Até que não demorou a encontrar a escova de cabelos.
Sentou-se na banqueta e começou a desembaraçar, os cabelos, certa de que assim se acalmaria. Mas per¬deu a esperança em menos tempo do que levara para encontrar a escova.
Quando os homens no salão percebessem que as cria- das tinham sido dispensadas, quanto tempo Dylan le¬varia para procurá-la?
Com dedos trêmulos, despiu o vestido e a camisa de linho para vestir a de seda. Ansiosa, olhou ao redor pelo quarto, imaginando se um gole de vinho a tranquilizaria. Não queria que o marido notasse seu tremor.
Encheu a taça até a metade, contemplou-a e despe¬jou mais bebida até quase a borda. Com as mãos ins¬táveis, levou-a aos lábios e sorveu. Era um ótimo vinho.
Bebeu sofregamente, esvaziando o cálice, e sentiu a tensão no corpo diminuir. Na verdade, começava a sentir-se até... bem.
Não admirava que os homens bebessem em excesso, considerando-se aquela deliciosa sensação de flutuar. Serviu-se de mais uma taça, satisfeita por ver que as mãos já não lhe tremiam. A garrafa balançou um pouco quando a pousou, mas não derramou-se nem uma gota.
Esvaziou aquela taça também, mas não tão rápido quanto a primeira. Em meio ao torpor, percebia que estava quente demais e cambaleou um pouco a cami-nho do aparador de velas.
- Opa! - exclamou, branda, dando risadinhas ao se aprumar. - É uma senhora casada agora, Gene-vieve, portanto, demonstre dignidade.
Olhando fixamente para as velas acesas, surpreen¬deu-se com o movimento bruxuleante das chamas.
- Talvez estejam enfeitiçadas - considerou, em voz alta. - Pouco me importa.
Após vários sopros, conseguiu apagar todas as velas, menos uma, lançando a câmara em penumbra.
Endireitou-se. O quarto todo parecia balançar, ou talvez fosse ela, pois parecia haver algo errado com suas pernas.
- E só cansaço - convenceu-se, a voz rouca. - Muito, muito cansaço. E pouco me importa onde ele esteja, ou o que está fazendo.
De queixo erguido, tomou uma rota sinuosa até a cama. O colchão era muito alto, mas por fim conseguiu subir e acomodar-se. Num instante, caiu em sono pro¬fundo e sem sonhos.
Dylan atirou-se numa cadeira ao lado de Trystan e apossou-se de seu chifre de boi, do qual sorveu um bom gole de vinho, ignorando a irritação do primo.
- Vai me negar um drinque? - questionou, lim¬pando a boca com as costas da mão. - Você está azedo como uma velha de dentes cariados.
- Quer ficar bêbado na sua noite de núpcias? - ralhou o rapaz.
- Bêbado? Que exagero. Estarei mais que apto a fazer o que se espera de um marido, com uma mulher daquelas, garoto.
- Não me chame de garoto.
Dylan recostou-se e apreciou o jovem cavaleiro.
- Ah, quer dizer que já é crescido? Quem é que chamava a mãe aos prantos quando eu não o deixava entrar nas brincadeiras?
- Isso faz muito tempo.
Dylan sorriu, mas era como se alertasse.
- Quer dizer que já se acha maduro o bastante para me criticar?
Trystan não respondeu, olhando fixo à frente.
- Pois então, ouça, sir Trystan DeLanyea, recém-sagrado cavaleiro, filho de um bastardo galês - pro¬vocou Dylan, ignorando a onda de raiva dominando as faces do rapaz. - Continuo mais velho que você, e mais forte, e melhor lutador, portanto, morda essa sua língua, ou serei obrigado a derrubá-lo.
Trystan olhou-o fulminante.
- Não duvido de que possa me derrotar numa luta, mas isso não significa que tenha que admirar tudo o que você faz.
Dylan controlou um surto de cólera,
- Mas o que se passa aqui? Um cachorrinho se atreve a desafiar um cão de guarda?
- Trata-se de um cachorrinho que sabe distinguir o que é honrado do que não é.
Dylan empurrou a cadeira para trás e olhou irado para o jovem primo.
- Do que me acusa? No que fui desonrado? Trystan levantou-se também, e Dylan percebeu não havia medo em seus olhos.
- Sei o que é certo e o que é errado, e seu casamento com Genevieve está errado.
Dylan pousou a mão no cabo da espada à cintura.
- Quem pensa que é para me dizer tal coisa? - questionou, as palavras ressonando no amplo salão.
Cônscio do silêncio, olhou em torno para os amigos do pai adotivo. Os músicos haviam interrompido a me¬lodia no meio. O barão correu até os dois.
- Qual é o problema aqui?
- Seu filhinho teve a ousadia de me dizer que não aprova meu casamento!
- Não sou criança! - protestou o primo, igualmente raivoso.
- Trystan! - repreendeu o barão, severo. - Não cabe a você aprovar ou desaprovar. Dylan não o con¬sultou antes, nem está consultando agora.
Paternal, apertou a mão no ombro do filho mais novo.
- Imagine como se sentiria se Dylan tivesse desa¬provado sua sagração como cavaleiro após a efetivação do ato. O casamento já é um fato e estamos todos comemorando, por isso você vai pedir desculpas a seu primo. E vamos encerrar este assunto.
Trystan desvencilhou-se da mão do pai, relutante, mas viu-se presa do olhar duro do barão e respirou fundo.
- Peço desculpas por contrariá-lo no dia de seu casamento - murmurou, olhando o chão.
Era evidente que Trystan não acreditava ter agido errado e Dylan teve o impulso de esmurrá-lo. No en¬tanto, uma disputa entre quase irmãos desagradaria demais ao barão, a quem admirava e amava como a um pai. Cuidaria do primo num outro dia qualquer, se ele fosse tolo o bastante para repetir o desafio.
- Considerando que é o dia do meu casamento, estou disposto a perdoar - declarou, forçando um sor¬riso magnânimo.
Um suspiro de alívio coletivo varreu o salão e os músicos voltaram a tocar. O barão sorriu, embora per¬manecesse com os ombros tesos.
- Aliás, não está na hora de o noivo se recolher? - sugeriu, em tom quase jovial.
De repente, a opinião de Trystan quanto àquele ca-samento parecia de importância mínima e os pensa-mentos de Dylan alçaram à câmara nupcial, onde a bela Genevieve o aguardava. .
- Desejem-me boa noite, então - conclamou à pla¬teia. - Ao primo Trystan sorriu sarcástico. - Embora eu tenha a certeza de que será maravilhosa, quer você queira, quer não.
Com isso, saltitou rumo à porta, recebendo alegre os bons votos, cumprimentos, incentivos e conselhos sutis dos convidados.
O barão voltou-se para o filho caçula com expressão reprovadora.
- Pelo amor de Deus, Trystan! Onde é que estava com a cabeça?
O rapaz tinha o cenho tão franzido quanto o do pai.
- Ele não a merece.
O barão demonstrou compreensão pelo olhar, mas continuou com voz severa e irredutível.
- Ela é mulher de Dylan e não há nada que possa, fazer para mudar isso. Não precisa gostar do fato, mas; tem que aceitar. Está entendendo, meu filho?
- Sim, eu entendo, pai.
Visivelmente decepcionado, Dylan apoiou-se no cotovelo para contemplar a esposa adormecida.
Ela estava linda e inocente no sono, com os macios cachos loiros emoldurando o rosto delicado. Os cílios fartos pairavam sobre as faces rosadas e a boquinha estava meio aberta, como que convidando a um beijo.
Em contrapartida, Genevieve roncava alto, e expi¬rava um mau hálito capaz de engasgá-lo.
Deixou-se cair de costas na cama, sem medo de des¬pertar a mulher. Na noite anterior, após tentar acor¬dá-la sem sucesso, descobrira a garrafa de vinho vazia e não precisara raciocinar muito para concluir que ela se embebedara.
E pensar que ele, Dylan DeLanyea, encontrara a distinta esposa inconsciente na cama em plena noite de núpcias. Quanto seus amigos não se divertiriam ao saber disso!
Se ficassem sabendo.
O que quer que tivesse que fazer para disfarçar o estado da mulher quando ela acordasse, faria, pois não seria motivo de chacota.
Com expressão azeda, Dylan levantou-se e espre¬guiçou-se, ponderando que ninguém teria cogitado que ele dormiria totalmente vestido em sua noite de núp-cias, tampouco. Foi até o aparador, despejou um pouco de água na bacia e molhou o rosto.
Sentindo-se bastante refrescado, voltou-se e recosto se na mesinha, contemplando Genevieve pensativo.
Mesmo que ela passasse mal, partiriam para Beau-fort naquele dia mesmo, decidiu. Tinha responsabili-dades e deveres que não podiam esperar que a dama se recuperasse.
Genevieve suspirou e mexeu-se, lembrando-o do cor-po formoso sob as cobertas, que ele admirara à noite. ao cobri-la com os lençóis. Ela exibia seios perfeitos uma cintura fina, quadris esguios e nádegas deliciai samente redondas.
Na verdade, ficara tentado a tomá-la enquanto dor-mia, mas não era tão egoísta. Podia esperar um pouco para agradá-la. Afinal, estavam casados agora.
Genevieve gemeu, um som que terminou em gru-nhido. Dylan deu um sorrisinho, conhecedor. Ao mes-mo tempo que despertava, sua querida esposa percebia que beber demais não era uma atitude inteligente. Ela rolou de costas e protegeu os olhos com o antebraço.
- Bom dia, Genevieve - cumprimentou Dylan. Por ora, iria poupá-la de reprimendas. Ela já era castigada o bastante, a julgar pelos gemidos.
- Dylan?
- Eu mesmo.
- Eu... eu estou passando mal.
Ele se aproximou da cama e olhou-a solidário.
- Não, está apenas sofrendo as consequências tomar o excelente vinho do barão em demasia.
- Não - murmurou ela, tentando se sentar. Não estou nada bem... Acho que... acho que vou...
Rápido, Dylan agarrou a bacia, jogou a água no chão e segurou-a sob o queixo de Genevieve. Quando ela terminou, pousou o utensílio e foi molhar um pano com a água fresca do jarro. A seguir, gentil, enxugou o rosto muito pálido da esposa.
Ela o considerou com olhos injetados.
- Desculpe-me - murmurou.
- Isso também não é inesperado após se ingerir vinho demais - observou, irônico.
Genevieve recostou-se no travesseiro, parecendo tão miserável que dava pena. Dylan pegou a bacia.
- Vou cuidar disto e já volto. A esposa anuiu fracamente.
Ele completou logo a tarefa e ao voltar, encontran¬do-a de olhos fechados, concluiu que adormecera no¬vamente. Foi para a porta sem fazer barulho. Talvez pudessem adiar a viagem para depois do almoço.
- Dylan?
Ele se voltou. Genevieve abria os olhos turvos.
- Sim?
- Chame o padre... Acho que vou morrer.
- Não creio - replicou ele, calmo, reprimindo o riso. Sua esposa estava mesmo péssima, o que era bem feito, por tê-lo privado da noite de núpcias. Felizmente, haveria outras noites.
- Minha cabeça lateja... e minha boca está tão seca... - lamuriava-se ela, debilitada. - Temo que seja a praga.
- Você está de ressaca, Genevieve - explicou Dy¬lan, condescendente. - Logo se sentirá melhor.
Ela estreitou o olhar.
- Tem certeza?
- Absoluta. E precisamos ir para casa.
- Para casa? - repetiu ela, tonta, levando a mão à testa.
- Para Beaufort. Não fica muito distante. Genevieve balançou a cabeça bem devagar.
- Não posso...
- Vou providenciar um remédio para a dor de ca-beça, e algo para você comer.
Ela suprimiu uma ânsia.
- Não me fale em comida... Dylan sorriu afetuoso.
- Precisa se alimentar. Depois, destacarei a égua mais mansa do estábulo do barão para você montar.
- Amanhã... - implorou Genevieve, com incrível determinação na voz fraca.
- Não. - O marido estava ainda mais determi¬nado. - Não posso me ausentar de minha proprie¬dade por mais tempo. É época de recolher as ovelhas para parirem.
- Se me obrigar a viajar, morrerei com certeza.
- Infelizmente, é um risco que terei de correr. Com a cabeça latejando como que pisoteada por uma manada de cavalos e o estômago revirado, Genevieve viu o marido sair pela porta e fechá-la com um estrondo que a fez estremecer.
Bem devagar, com cuidado, sentou-se. Céus, havia anos não se sentia tão mal, se um dia se sentira, e Dylan, ao mesmo tempo que demonstrava solidarie¬dade, cruelmente recusava-se a estender a estadia em Craig Fawr.
Seu olhar caiu sobre as roupas de cama amarrotadas.
Estava de camisola. Ele saíra de túnica preta, calça e botas. Ela dormira feito uma pedra, E ele dormira... ali?
Não tinha como saber. Não se lembrava de nada após ter tomado o vinho.
Com movimentos cautelosos, receando o que pudesse ver, afastou as cobertas e examinou o lençol de baixo.
Nem uma gota de sangue.
Moveu as pernas. Nenhuma sensação dolorida, ne¬nhuma rigidez que indicasse que ele a amara.
Levantou a camisola e examinou a área em torno do umbigo. Nada ali, tampouco.
Temera que ele a tivesse tomado mesmo inconscien¬te. Como não havia vestígios disso, talvez ele não fosse o canalha desonrado e lascivo que imaginara.
Ou, talvez, seu marido também tivesse exagerado no vinho, considerou, esgueirando-se para debaixo das cobertas outra vez.
Genevieve acordou com um barulho e abriu um olho, pensando que era Dylan retornando.
Em vez do marido, porém, viu três criadas. Uma levava uma bacia de água fumegante, outra, toalhas limpas, e a terceira parecia não ter motivo para estar ali além da curiosidade.
Sem querer provocar fofocas, Genevieve observava-as de olhos semicerrados. Felizmente, elas permane¬ciam caladas.
Ocorreu-lhe então que, em Beaufort, as criadas não falavam sua língua. Como entenderiam suas ordens e instruções? Fechou os olhos e conteve o impulso de grunhir novamente.
- Minha senhora?
Genevieve lançou o olhar estreitou sobre a mulher curvada que falava um francês razoável. A preocupa¬ção lhe marcava as feições de meia-idade.
- Sim?
- O barão DeLanyea nos pediu que a ajudássemos a se preparar para a jornada.
Genevieve suspirou. Se o barão queria que partis¬sem, não tinha opção.
- Logo chegará o pão, e água fresca. Gostaria de se lavar?
Genevieve virou-se e pousou os pés no chão. Até esse movimento simples pareceu drenar toda sua vitalidade.
- Ele disse que a senhora não se sente bem. Deve estar cansada, sem dúvida...
A serviçal olhou por sobre o ombro para as outras, que riam baixinho.
- Como não estaria, na companhia do homem mais bonito entre Craig Fawr e Londres? Está com dificul¬dade para andar, não?
Genevieve olhou-as desgostosa.
- Considere um cumprimento, à senhora e ao jovem barão DeLanyea - apressou-se a criada mais velha em acrescentar.
Genevieve piscou. O jovem barão DeLanyea?
- Meu marido é barão? A mulher mais velha riu.
- Sim, embora não goste de usar o título. Diz que não quer parecer tão velho quanto o tio.
Que boa surpresa, pensou Genevieve, saindo deva¬gar da cama.
Seu estômago estava um pouco melhor, mas a boca continuava seca e a cabeça, latejante.
Percebeu então que as serviçais olhavam-na de um jeito estranho. Talvez não devesse ter deixado trans¬parecer sua ignorância quanto ao título do marido.
- Nunca falamos de títulos quando estávamos jun¬tos - explicou.
As criadas sorriram de novo e Genevieve sentiu al¬gum alívio. Durante os preparativos para a partida de Craig Fawr, porém, ficou imaginando o que mais ainda não sabia a respeito do homem com o qual agora estava casada.
Dylan saltitava rumo ao estábulo apreciando o céu sem nuvens, satisfeito com a promessa de um dia agra¬dável. Ordenara que preparassem para a viagem seu cavalo e uma das éguas do barão.
O tio lhe emprestara o garanhão sem hesitar, além de oferecer uma mula extra para a bagagem de Ge¬nevieve. O animal seria de grande utilidade, conside¬rando o tamanho do baú que vira no quarto na noite anterior. Sua pobre mula com certeza sucumbiria car¬regando tanto seus pertences quanto os de sua esposa.
Se bem que ela ainda não era sua esposa de fato.
A despeito do pensamento frustrante, Dylan atra¬vessou o pátio alegremente, cônscio de que cada homem por perto o observava, do cavalariço mais humilde ao cavaleiro mais nobre, a exemplo do sério Griffydd, que fingia ajeitar a sela de sua montaria.
Sua escolta de dez homens já estava reunida, pronta para partir. A julgar pela aparência desleixada deles, Genevieve não fora a única a exagerar na bebida na última noite.
Com alívio, Dylan notou que Trystan não estava por ali. Ora, tinha mais em que pensar além das tolas opiniões do jovem primo sobre um assunto no qual era totalmente ignorante.
- A cilha quebrou? - indagou a Griffydd, aproximando-se.
- Parece que sim - respondeu o primo. Dylan sorria afetado.
- E como está sua esposa? Griffydd continuava circunspecto.
- Melhor, disse ela.
Embora o primo se mostrasse inescrutável, Dylan sabia que ele amava a mulher apaixonadamente e se preocupava muito com ela.
Griffydd abandonou o pretexto de examinar a sela.
- Ainda pretende partir hoje?
- Por que não?
O primo indicou o salão, às costas de Dylan.
- Ela não está doente?
Por sobre o ombro, Dylan viu Genevieve saindo a passos lentos da grande construção, de braço dado com o tio. Estava meio esverdeada, mas ainda era a mulher mais bela que ele já vira.
Esperava que a jornada não fosse penosa demais para ela e que chegassem a Beaufort antes do anoi¬tecer. Não obstante, a possibilidade de passar a noite com ela sob as estrelas tinha um certo encanto. Apre¬ciou de novo o céu azul limpo. Ainda fazia um pouco de frio, com certeza, visto que estavam no início de março, mas dormir ao ar livre não seria insuportável se ficassem abraçados...
Atrás de Genevieve e o tio seguiam as criadas com os pertences dela, e Dylan alegrou-se ainda mais com a mula extra. O baú que vira no quarto constituía apenas parte da bagagem, aparentemente. As três ser¬viçais carregavam ainda duas caixas de madeira me¬nores e uma grande valise de couro.
Reparou também que o cinto de lorde Perronet se re¬tesava ao peso de uma bolsa cujo tilintar se ouvia alto.
Felizmente, Beaufort ficava perto, do contrário, se¬riam alvo de todos os salteadores num raio de vinte quilômetros.
Apesar de preocupado com a possibilidade de assal¬to, Dylan manteve o sorriso ao replicar ao primo:
- Ela só exagerou um pouco no vinho. Divertimo-nos muito ontem à noite.
Griffydd não respondeu e Dylan pensou detectar um certo ceticismo em seu rosto.
Felizmente, não se demorariam muito mais por ali, aliviou-se Dylan, indo ao encontro da esposa e seu tio.
- Bom dia, meu senhor - cumprimentou, estacan¬do diante de lorde Perronet. - Vim ver se os cavalos e as mulas já estavam prontas.
- E estão? - grunhiu o homem, olhando bravo para o estábulo.
- Estão - confirmou Griffydd, às costas dele.
Dylan olhou por sobre o ombro para a porta do es¬tábulo. Um cavalariço e um menino ajudante saíam com as montarias já seladas. Só faltava carregar a bagagem de Genevieve na mula.
Dylan ordenou a tarefa e voltou-se para a esposa.
- Espero que esteja se sentindo melhor - comen¬tou, cônscio da platéia.
Griffydd era discreto, mas não se podia dizer o mes¬mo dos criados.
- Estou - murmurou Genevieve, soltando o braço do tio.
Como ela parecia instável, Dylan quis apoiá-la, mas ela recuou um pouco, como se não quisesse que ele a tocasse.
Ele tentou não se abalar com isso.
Mas não conseguiu.
- Eis seu dote - declarou lorde Perronet, abrupto. Desgostoso, tirou a bolsa do cinto e estendeu-a. Dylan deu seu sorriso mais charmoso ao aceitar o
ouro, e fez uma mesura.
- Obrigado, meu senhor. Lorde Perronet aquiesceu.
- Tome conta dela, DeLanyea - recomendou, rabugento.
- Tomarei, meu senhor.
O normando anuiu novamente e então voltou-se para a sobrinha. Abrandou a expressão por um breve instante.
- Adeus, Genevieve. Desejo-lhe felicidades.
A momentânea expressão de compaixão não devia ter passado de um tique nervoso, pois o tom de lorde Perronet era de quem esperava que os recém-casados não tivessem um pingo de felicidade pelo resto da vida.
- Seremos muito felizes, meu senhor - assegurou Dylan. - Todos os dias e... todas as noites.
Ante a sugestão, Genevieve olhou-o com um sem¬blante que não revelava nada senão desgosto. Dylan ficou satisfeito por merecer ao menos seu olhar, bem como com o choque do lorde.
- Não tem senso de decoro? - questionou Perronet.
- Muito pouco, receio - replicou Dylan, irônico. - Agora, se me dá licença, vou ver se já carregaram a mula e partiremos em seguida.
Genevieve observou Dylan pegar a bagagem e carregá-la pessoalmente na mula, em vez de chamar os criados.
Tentava ignorar o olhar intenso e indecifrável de Griffydd DeLanyea, bem como o escrutínio de todos os que se achavam no pátio.
Adoraria deixar aquele lugar, afastar-se de todos os que sabiam o que ela fizera, com a esperança de que a notícia de sua vergonha não chegasse ao castelo de Dylan antes deles.
Era nisso que pensava quando o tio lhe deu um beijo frio na bochecha.
- Cuide-se, Genevieve.
- Tio, lamento todos os problemas que lhe causei - sussurrou ela. - Deus o abençoe.
Ele aquiesceu formal, girou nos calcanhares e foi-se. Deixando-a sozinha com toda aquela gente estranha.
- Quer dizer que já vai? - dirigiu-se uma voz mas¬culina a poucos passos.
O barão aproximava-se do estábulo.
Embora já estivessem de partida, Genevieve confor¬tou-se com a presença do anfitrião. De repente, per¬cebia que sentiria mais falta do barão DeLaneya e esposa do que de seu próprio tio.
Apesar de o barão observá-la com uma expressão um tanto perspicaz. Se lhe dissessem que ele sabia exatamente o que acontecera entre ela e o marido na¬quela noite e pela manhã, acreditaria.
- Minha esposa lamenta não poder vir se despedir, mas é que minha velha babá amanheceu muito mal.
- Espero que ela se recupere sem demora.
O barão balançou a cabeça, um sorriso desolado no rosto cheio de cicatrizes.
- Ela já tem bastante idade. Duvido de que sobre¬viva ao verão.
Ele voltou a parecer perspicaz.
- Você mesma não me parece muito bem...
- Eu... estou cansada, meu senhor - justificou Genevieve.
Já fizera escândalos demais em Craig Fawr. Não se humilharia mais um pouco admitindo que se embebedara.
- É mesmo?
Genevieve sorriu em resposta.
Dylan achegou-se e cumprimentou o tio.
- Estou feliz que toda a... negociação não tenha sido um desperdício, garoto - comentou o barão. - Deixe a pobre moça repousar esta noite, ouviu?
- Não prometo nada - replicou Dylan, com voz sedutora, olhando a esposa de um jeito que a fez fra¬quejar. - Agora, é melhor pormos o pé na estrada, tio. Pretendo seguir para Beaufort em passos lento.
Ele continuava falando em tom sedutor, como se seus planos para a viagem incluíssem... o que não ti¬nham feito na noite de núpcias.
Genevieve já temia passar o resto da vida com o rosto vermelho feito beterraba. Como se não bastasse a cabeça latejante como que povoada de demónios e o estômago ainda se revirando, apesar de vazio. Tinha que ficar constrangida, para completar?
- Vamos, então, Genevieve - chamou Dylan, es¬tendendo a mão.
Ela pôs a mão sobre a dele tentando ignorar os mús¬culos quentes. Olhou para o barão e para Griffydd, que se postara ao lado do pai.
- Adeus, e que Deus os abençoe. Transmita meus agradecimentos a lady Roanna.
- Vá com Deus, minha cara - despediu-se o barão, afetuoso.
- Vá com Deus - repetiu Griffydd, não tão caloroso.
- Isto parece um enterro! - repreendeu Dylan, olhando desdenhoso para o primo enquanto conduzia Genevieve a sua montaria. - Só estamos indo para casa.
- E, eu sei - grunhiu Griffydd.
- Este é um bom lugar para des- cansarmos e nos refrescarmos - observou Dylan, virando-se na sela para falar com Genevieve.
Ela ergueu a cabeça meio zonza, pois estivera mais que meio dormindo, e viu que haviam chegado a uma ponte construída sobre um córrego borbulhante num vale arborizado. Olhando por entre os galhos, calculou que passava do meio-dia. Podia ouvir a água batendo nas pedras, correndo para algum rio desconhecido.
Fora isso, tudo era silêncio.
- Onde está a escolta? - indagou, percebendo que estavam a sós.
- Mandei-os à frente.
- Talvez não seja seguro pararmos. Ele riu descontraído.
- Mais seguro, impossível, minha senhora. A escolta era mesmo mais para impressionar.
O marido parecia tão confiante que Genevieve não ousou discordar. Agora que estava bem desperta, an¬siava por desmontar da égua. Apesar de seu passo suave e regular, a movimentação não contribuía para diminuir seu enjôo. Felizmente, talvez devido ao ar fresco, sentia a cabeça bem menos latejante.
Dylan saltou agilmente e postou-se ao lado da égua para ajudar a esposa a descer.
Genevieve não recusou a oferta. Pousando as mãos nos ombros largos dele, permitiu que a segurasse pela cintura e levasse com cuidado para o chão.
Ficaram com os corpos bem próximos, e Dylan não afastou as mãos. Ela também não se mexeu, fitando-o detidamente no belo rosto moreno.
Por um instante, Genevieve pensou que o marido fosse beijá-la, até que percebeu que ele a olhava como um médico olhava uma paciente.
- Sente-se melhor? - indagou ele, afastando-lhe um cacho loiro da testa. Também falava como um mé¬dico examinando uma paciente.
- Um pouco.
- Ótimo. Trouxe alguma coisa para comer?
- Não.
Genevieve dava-se conta de que ambos, apesar do casamento, eram pouco mais que estranhos.
- Foi o que pensei. Eu trouxe um lanche de Craig Fawr. O novo cozinheiro do barão faz um pão maravilhoso.
Dylan foi até a mula atada a seu cavalo, que car¬regava sua bagagem, e começou a revirar uma grande bolsa de couro.
- Primeiro, vamos arranjar um lugar para você se sentar, ou vai molhar todo o vestido.
Genevieve apreciou a própria roupa. Escolhera um de seus melhores vestidos, pois desejara causar boa impressão. Na família do marido.
Não nele, em especial.
- Pronto - anunciou ele, estendendo uma capa.
- Não devia estar usando-a? - questionou ela, pois, embora o sol brilhasse, estava frio no vale e uma brisa gelada agitava os ramos desfolhados das árvores, bem como os cabelos compridos dele.
- Não estou com frio - garantiu Dylan. - Estou acostumado ao clima daqui. - Olhou-a de soslaio en¬quanto esticava a peça da lã escura sobre a relva junto ao córrego. - Nunca viajei para longe de Gales.
- Nunca esteve em Londres?
De costas para a mulher, Dylan alisava bem a capa.
- Não.
- Oh...
Genevieve imaginou o marido naquela cidade, entre os cavaleiros do rei. Um homem tão valoroso certa¬mente seria bem recebido lá.
- Tudo pronto, minha senhora - avisou Dylan, le¬vantando-se. - Sente-se enquanto pego o pão e o vinho.
A caminho da mula, deu-lhe um sorriso maroto.
- Pensando bem, talvez deva tomar água. Trouxe um copo.
Voltou a remexer na bolsa, a cabeça desaparecendo lá dentro.
- Posso mesmo me sentar na sua capa?
- Não vai machucá-la - replicou Dylan, a voz aba¬fada. - É feita de boa lã galesa.
- Pois bem.
Com cuidado, a fim de não estragar a peça, apesar do que ele dissera, ela obedeceu.
- Ah! - exclamou Dylan, triunfante. Sorridente, mostrou um pão e um copo e tirou a
cabeça de dentro da bolsa, como um mágico puxando uma moeda de trás da orelha. Parecia tão satisfeito, com os cabelos tão desgrenhados, que Genevieve teve de sorrir.
Ele se aproximou, os olhos cintilantes de diverti¬mento ao servir o pão.
- Ah, é muito bom vê-la sorrir. Será que a cabeça parou de latejar e o estômago se acalmou? Imagino que esteja morta de sede...
Ela confirmou.
- Como sabe?
- Já estive nesse seu estado mais de uma vez - confessou Dylan, rindo, e tomou o rumo do córrego balançando o copo na mão.
Ele tinha um andar interessante, notou Genevieve. Atlético, viril, mas também gracioso, como se seus joe¬lhos não fossem feitos de ossos e nervos, mas de algo mais macio.
Agachado na margem, ele se inclinou para encher o copo.
Então, Genevieve percebeu que os pés dele escorre¬gavam na relva molhada, na direção da água.
- Dylan! - alertou, levantando-se.
Ele ouviu, largou o copo e tentou se segurar.
Tarde demais.
Berrando feito um touro raivoso, ele perdeu o equi¬líbrio e caiu no córrego.
Genevieve correu em seu socorro, já imaginando-o morto por afogamento. Viu então que ele tentava se equilibrar em meio à forte correnteza, emitindo o que ela desconfiava serem imprecações em galês.
- Aqui! - chamou, estendendo a mão. - Deixe-me ajudar...
Com as roupas e os cabelos ensopados, Dylan olhou-a desolado e continuou balançando, como se fosse um pássaro esquisito tentando voar.
- Pegue a minha mão!
Com cautela, ele acatou a sugestão e fechou os dedos esguios em torno dos dela. Ela tentou puxá-lo, mas então sentiu os próprios pés escorregando.
- Não! Pare!
No instante seguinte, Genevieve também caía nas águas geladas. Felizmente, não submergiu por com¬pleto, pois o marido a segurou e manteve ereta. Mas seus pés e pernas ficaram imersos, bem como a barra do vestido.
Dylan fitou-a com um sorriso diferente, e ela se cons-cientizou ao extremo da sensação dos braços fortes a seu redor.
Percebia também que devia estar parecendo uma idiota, desprovida de toda a dignidade. Então, para completar o embaraço, começou a bater os dentes.
- E melhor nos secarmos - considerou Dylan. - E nos aquecermos. Como eu ficaria se você caísse doen¬te em apenas um dia sob meus cuidados?
Enregelada demais para falar, Genevieve apenas aquiesceu.
- Não! - protestou, quando o marido a ergueu nos braços. Ele deu um passo incerto à frente. - Ponha-me no chão! - gritou, desesperada.
- Não vou deixá-la cair, minha senhora...
Mas uma pedra sob seu pé deslocou-se. Ele estendeu a mulher como se fosse uma espécie de oferenda aos deuses, ambos caíram de novo nas águas agitadas do córrego.
Expelindo água pela boca, Genevieve lutou para se levantar, o vestido e a capa ensopados num emara¬nhado de tecidos pesados, o gorro e o véu imundos.
- Eu lhe disse para me pôr no chão! - vocife¬rou, irada, olhando para o companheiro igualmen¬te encharcado.
- Eu só tentava ser cavalheiro - replicou Dylan, instavelmente de pé. - Não queria que se molhasse por completo...
- É óbvio que fracassou, meu senhor! Ele parecia suprimir o riso.
- Creio que sim.
Fungando desdenhosa, Genevieve agarrou as saias e se arrastou na direção da margem.
- Cuidado! - avisou o marido, às costas.
Ela o olhou zombeteira por sobre o ombro, já quase em terra firme.
- Sugiro que siga seu próprio conselho.
- Tentarei.
De gatinha, Genevieve foi rastejando para fora da água. Trêmula, sentou-se sobre a capa que Dylan es¬tendera sobre a relva pouco antes e contemplou deso¬lada seu vestido todo sujo.
Dylan sentou-se a seu lado, ergueu as pontas da capa e envolveu-a com a lã macia do jeito que as mães embrulhavam os filhos à noite.
- Vou fazer uma fogueira.
- Por favor.
- Nesse ínterim, seria melhor você tirar essas roupas.
- Onde?
- Onde o quê?
- Onde vou tirá-las?
- Em qualquer lugar. Não tem ninguém olhando. Genevieve encarou-o incrédula.
- A céu aberto? Com certeza pegarei um resfriado! O marido sorriu condescendente.
- Considero a modéstia uma qualidade muito atraente numa mulher...
Genevieve reparou então que Dylan não estava nem arrepiado, enquanto ela se sentia congelada até o tu¬tano dos ossos.
- E eu acho a vaidade um atributo deplorável num homem.
O marido já não se inclinava tanto a divertir-se com o estado dela.
- Trouxe outro manto? - indagou, solícito.
- Sim, o de inverno. Está no baú grande. Dylan foi até a mula atada à montaria da esposa.
Ela não podia ver o que ele fazia, mas imaginava que reviraria seus pertences sem a menor consideração pelo cuidadoso trabalho de arrumação das criadas.
- Espero que não deixe tudo em desordem - resmungou, alto o bastante para o marido ouvir.
- Prefere esperar?
Uma vez que nunca sentira tanto frio na vida, Genevieve não reclamou mais.
Dylan encontrou o manto debruado de peles, o mes¬mo que ela usara no jardim. Se recordava a última vez que o vira, quando a fizera acreditar que a amava, não deu mostras. Impassível, foi até os galhos baixos de um carvalho e sobre eles estendeu o manto, que pendeu como uma cortina.
- Pronto, minha senhora. Pode cultivar sua modéstia aí atrás.
Embrulhada na capa dele, que cheirava a cavalo, couro e homem, Genevieve levantou-se.
- Viu meu vestido verde-escuro? Aquele com borda¬dos dourados? Vou usá-lo. E uma camisa e meias secas também, claro. Preciso também da escova de cabelo...
Dylan estreitou o olhar.
- Mais alguma coisa, minha senhora? Talvez um vinho quente e um cozido de faisão?
Ela ergueu o queixo e seguiu rumo ao carvalho.
- Seria ótimo, mas me contentarei com as roupas secas e a escova.
Carrancudo, Dylan retornou ao baú para pegar os itens requeridos. Genevieve o tratava como se fosse um criado. Bolas, era seu marido, e estava enregelado até as botas! Ela parecia ter-se esquecido de que ele caíra no córrego primeiro e ficara na água por mais tempo. E nem lhe agradecera por ter improvisado um lugar reservado onde pudesse se trocar, quando a prio¬ridade ali era fazer uma fogueira.
Para completar, sua dileta esposa levara a única capa de que ele dispunha, que devia estar também molhada agora e da qual ele teria precisado para se aquecer após vestir roupas secas. Algum senso se gra¬tidão teria acesso àquela linda cabecinha normanda? Aparentemente, não.
Abafando uma imprecação, encontrou o tal vestido. Era um belo traje, mas frágil e leve demais para a ocasião. O tecido verde diáfano adequava-se mais a uma festa num salão aquecido do que a uma cavalgada numa fria tarde de primavera. Revirando o baú, ana¬lisou outros vestidos e escolheu um mais adequado, de pesada lã marrom, liso e sem enfeites. Pegou tam¬bém uma camisa e meias. Como os calçados dela lhe pareceram frágeis demais, tirou um par de botas de sua própria bagagem.
Ao voltar-se, abafou outra imprecação, pois captou a breve imagem da perna despida de Genevieve. Uma longa perna bem torneada cuja visão o excitava e lem¬brava-a de que ainda não fizera amor com a esposa. Trêmulo, de frio, claro, Dylan aproximou-se da cor¬tina improvisada.
- Eis suas roupas secas - anunciou, estendendo as peças no espaço reservado.
Ela nem se mexeu para pegá-las.
- Não vou usar isso! E de onde vieram essas botas horrorosas? Alguém deve tê-las colocado em meu baú por engano!
- E o vestido mais quente que encontrei e as botas são minhas. Não pode andar por aí de chinelos.
- São grandes demais para mim! E quero o vestido verde. E não estou vendo a escova!
- O vestido verde é fino demais. Vai pegar um resfriado.
- Quero o verde! - teimou Genevieve. Frustrado, Dylan atirou o bolo de roupas no chão,
agarrou o manto e arrancou-o de cima dos galhos.
- O que está fazendo? - guinchou Genevieve. Não estava nua, não de todo, mas enrolada na capa
molhada dele.
- Vou lhe dizer o que não vou fazer - especificou o marido, tentando ignorar a sedução daqueles alvos ombros desnudos e a expressão irada da esposa. - Não vou buscar-lhe outro vestido como se fosse um criadinho. Trouxe-lhe uma roupa quente e prática e é a que vai usar. Também calçará minhas botas sem mais reclamação. E, se quiser a escova, vá buscá-la você mesma. Agora, vou vestir minhas roupas secas e nos poremos a caminho em seguida.
Genevieve tinha o rosto rubro e continuava desafiadora.
- Disse que ia fazer uma fogueira.
- Mudei de idéia. Vamos logo retomar a jornada. Com isso, Dylan girou nos calcanhares e marchou
até a mula com seus pertences.
Lá, começou a livrar-se das roupas molhadas, sem se importar se Genevieve o observava ou não.
Genevieve não ficou olhando. Tratou logo de vestir a camisa e as meias secas e calçar as botas, antes que morresse congelada. Então, pegou o horroroso vestido marrom, grunhiu resignada e o vestiu.
Dylan estava zangado demais para que ela se arriscasse a contrariá-lo. Afinal, estava totalmente à mercê do marido no selvagem território de Gales.
Por fim, Genevieve cobriu-se com o manto debruado de peles, pegou a capa molhada e só então olhou para Dylan.
Ele trajava outras roupas, mas o novo conjunto de calça e túnica também era negro. No momento, aga¬chado, amarrava as botas, os cabelos molhados enca¬racolados em torno do belo rosto.
Confortavelmente quente agora, ela se aproximou dele com cautela. Ele se endireitou e fítou-a com um olhar tão frio quanto as águas do córrego.
- Parece que criou juízo, afinal - aprovou. Genevieve estendeu-lhe a capa. Ele a puxou com
rudeza e estendeu por cima do cavalo.
- Onde está o pão? - indagou ela, agindo como se nada desagradável tivesse acontecido.
- Oh, não! - rosnou Dylan, zangado, esquadri¬nhando a área onde haviam estendido a capa. - Não o pegou?
- Não.
- Lá está.
Ele deu alguns passos e pegou o pão todo sujo de terra. Começou a espaná-lo.
- Não podemos comer isso - protestou Genevieve.
- Eu posso. Se prefere dispensar, fique à vontade.
- Prefiro.
- Como queira.
- Não como!
Dylan enterrou os dentes na massa e arrancou-lhe um grande naco.
Genevieve reaproximou-se do córrego.
- Aonde pensa que vai? - questionou o marido, de boca cheia.
- Ver se encontro aquele copo...
- Não vá cair de novo!
- Tentarei não cair - assegurou Genevieve, dentes cerrados, mantendo-se afastada da margem. - Não estou achando...
- Deve ter ido com a correnteza. Pedirei aos pas¬tores que tomam conta desta porção de minhas terras que fiquem de olho.
A esposa voltou-se.
- Estas são suas terras?
- Desde aquela primeira bifurcação vindo de Craig Fawr, estamos em minhas terras.
- Oh.
Dylan comeu todo o pão, lambeu as migalhas das mãos e foi de encontro a Genevieve.
- Sou um barão, sabia?
- Disseram-me. Ele franziu o cenho.
- Quem contou?
- As criadas de Craig Fawr.
- Que mais elas contaram?
- Nada. Como não entendo galês, não tenho idéia do que falavam. Deram a entender que eu deveria estar feliz por ter você como marido.
Ele sorriu.
- Naturalmente.
Quando o marido a olhava assim, Genevieve encon¬trava dificuldade em encará-lo.
- Dylan, eu... - Respirou fundo. - Lamento o que aconteceu.
- Não é a primeira vez que caio num córrego.
Genevieve ergueu o olhar e, desta vez, encontrou forças para sustentá-lo.
- Estou falando do casamento.
Dylan apagou o sorriso e franziu o cenho.
- Não foi como pensei que aconteceria - confessou, a voz tão séria quanto a expressão. - Mas o que está feito está feito. Estou disposto a me esforçar para fazer dar certo, se você estiver.
Ela aquiesceu.
Ele abriu de novo seu costumeiro sorriso bondoso. Afinal, devia haver noivas piores do que Genevieve Perronet, ainda que ela se mostrasse mais teimosa do que ele esperava.
- Ótimo. Agora, vamos montar e seguir para Beau-fort. Não falta muito agora.
Ela olhou para o vestido marrom, o ar petulante de volta, e resmungou qualquer coisa.
- O que foi? - quis saber ele. Genevieve adotou expressão de vítima.
- Ainda quero usar o vestido verde... - Antes que o marido repreendesse, apressou-se: - Quero causar boa impressão quando chegar a sua casa. Estou pare¬cendo uma camponesa neste... saco.
- Por que não explicou quando lhe entreguei o vestido? As mãos cruzadas às costas, Genevieve mirava o chão e fez um trejeito com os ombros finos. O movi¬mento simples foi de incrível graciosidade e sedução.
- Podemos parar quando estivermos quase lá, para você colocar o vestido verde - sugeriu Dylan. - Está bem assim?
Ela ergueu o rosto e fez que sim, assemelhando-se ao tio desagradável. Felizmente, era muito mais bonita do que ele.
- Como se sente? - indagou o marido, brando. Genevieve arregalou os grandes olhos azuis, surpresa.
- Bem melhor!
- Nada como o tempo e um mergulho no córrego para clarear a cabeça de uma ressaca - concluiu Dy¬lan, a caminho das montarias.
Genevieve imaginava já ter tido surpresas suficien¬tes por um dia, mas teve outra, quando alcançaram o topo de uma colina e viu o castelo à beira do grande rio no vale lá embaixo.
Não esperava que a morada de Dylan fosse tão gran¬de e imponente. Um próspero vilarejo rodeava o cas¬telo, as casinhas enfileirando-se ao longo das três es-tradínhas como folhas nos galhos de uma árvore. As colinas vizinhas, algumas verdejantes, outras desma-tadas, pontilhavam-se de carneiros. Nos campos, os trabalhadores semeavam.
- Eis Beaufort - anunciou Dylan, orgulhosa e des¬necessariamente, manifestando-se pela primeira vez desde que haviam atravessado a ponte.
Não olhava para Genevieve, mas reto à frente, com um sorriso satisfeito... e um inesperado ar matreiro, como se inspecionasse as atividades.
Ela nunca o vira como o senhor de uma proprie¬dade, no entanto, fitando-o agora, percebia que era exatamente do que se tratava; o senhor de tudo o que observava.
- É muito impressionante, meu senhor - elogiou Genevieve, sincera.
O marido olhou-a com um sorriso contagiante.
- Não é mesmo? - Então, suspirou. - Não tão impressionante quanto poderia ser, mas dê-me tempo.
Ela nunca o imaginara um homem ambicioso, tampouco.
- Quando alcançarmos aquele arvoredo próximo à aldeia, poderá colocar o vestido verde e impressionar a todos.
Genevieve concordou, feliz por ele ter-se lembrado.
- Ah, já nos viram! - exclamou Dylan, acenando com a mão.
Genevieve acompanhou o olhar do marido e de fato notou um certo azáfama além dos merlões nas mura¬lhas do castelo.
Dylan impulsionou o cavalo e ela, a égua. Juntos, per¬correram mais um trecho da estrada bem cuidada, até chegarem ao bosquete. O local não oferecia muita pri¬vacidade, pois as árvores não se encontravam folhosas.
- Eu... não posso me trocar aqui. O marido olhou em torno.
- É a última parada antes das casas. Acho que está linda com esse vestido, mas, se quiser mesmo trocar pelo outro, terá que ser aqui.
Genevieve enrubesceu ante o elogio, mas a sensação não obliterou sua ansiedade por adentrar Beaufort como a inesperada e desconhecida esposa do senhor.
- Vou me trocar.
Dylan desmontou e foi ajudá-la, mas ela já saltava da égua sozinha.
- Espero que não esteja muito amassado... - co¬mentou Genevieve, mordiscando o lábio a caminho da mula.
- Não sou criada para saber arrumar bagagens. O marido falava como se a preocupação dela não
passasse de um capricho infantil.
Com movimentos desajeitados, Genevieve tentou de¬satar o nó que amarrava o baú ao lombo da mula.
- Não precisa fazer isso - adiantou-se Dylan. Tomando o lugar dela, abriu a tampa do baú num
piscar de olhos, pois a peça encontrava-se presa à mula não pela corda circundando-a, mas por amarras pas¬sadas através das alças laterais.
- O vestido verde está bem em cima.
Ele o pegou e estendeu. Aliviada, ela não notou mais pregas do que as que se teriam feito se o vestido tivesse sido guardado por uma zelosa criada.
- Sugiro atrás do arbusto, minha senhora. Genevieve olhou por sobre o ombro e avistou uma
planta densa em galhos.
- Está ótimo.
Quando ela tentou pegar o vestido, Dylan o reteve por um segundo.
- É preciso mais que uma roupa para se fazer uma dama.
- Mas um belo vestido ajuda - replicou Genevieve, indo para trás do arbusto.
Queria que todos em Beaufort soubessem que ela provinha de uma distinta e abastada família. Não pas¬sara oito longos anos com lady Katherine aprendendo a ser uma castelã para apresentar-se feito uma pere¬grina nos domínios do marido.
Queria que todos a respeitassem, também.
Sabia que suas características físicas não a favore¬ciam nesse aspecto, com aqueles cabelos loiros, os olhos azuis e a tez rosada. Durante muito tempo, na casa de lady Katherine, as outras garotas a trataram como uma espécie de animalzinho de estimação, tratando-a com condescendência e mimando-a ao extremo, o que muito a agradara. Até a rígida e severa lady Katherine afrouxara um pouco as regras quando se tratava da queridinha Genevieve.
Ao atingir a idade adulta, porém, dera-se conta de que o excesso de zelo e mimo a transformara numa criança eterna, incapaz de decisões maduras.
Era possível que tivesse se convencido dessa inca¬pacidade, ponderou, escondendo-se atrás das folhas verde-escuras pontiagudas, ou teria encontrado forças para repudiar o compromisso de casamento imposto pelo tio, em vez de recorrer ao expediente lamentável que acabara unindo-a a Dylan.
Despiu o detestado vestido marrom e jogou-o em cima do arbusto, considerando seriamente abandoná-lo ali mesmo. Enquanto ajeitava no corpo o vestido verde, porém, achou por bem levá-lo.
Só faltava atar as fitas do corpete às costas, mas isso não era nada fácil. Retesava-se e contorcia-se feito uma enguia num saco quando ouviu uma sequência de chamados e exclamações.
Eram vozes infantis, concluiu, deixando para trás o azevinho espinhoso, a tempo de ver Dylan defenden¬do-se de dois meninos maltrapilhos que pareciam ten¬tar derrubá-lo. Uma menina de uns cinco anos pulava sem parar, aplaudindo a contenda com entusiasmo.
- Pare! Pare! - gritou Genevieve, aflita. Outras moças deixadas aos cuidados de lady Katherine teriam reconhecido o tom que Genevieve in¬conscientemente imitava, contendo-se de imediato.
Os meninos, de cerca de dez e oito anos, e Dylan endireitaram-se. O senhor de Beaufort sorria meio aca¬nhado e seus olhos cintilavam de alegria reprimida.
Os meninos, ambos morenos, fariam boa presença se estivessem limpos, considerou Genevieve, constran¬gida com o olhar desconfiado deles. Já a garotinha, de cabelos ruivos um tanto chamativos, fitava-a com indisfarçada curiosidade e um dedo na boca.
- Que se passa aqui? - questionou Genevieve, ima¬ginando como os pequenos aldeões podiam ter tido a ousadia de se comportar daquela maneira deplorável.
Dylan pousou a mão no ombro do menino mais velho, de olhos castanhos.
- Este é Trefor.
A seguir, afagou os cabelos do menino de olhos cinzentos.
- Este é Arthur.
E sorriu para a menina.
- E aquela belezura é Gwethalyn. Encarou Genevieve.
- São meus filhos.
Dylan apertou a mão no ombro de Trefor com tanta força que o garoto se retorceu. Não que Dylan se envergonhasse de seus filhos, ab¬solutamente, no entanto, esperara contar sobre eles a Genevieve à sua maneira.
Na verdade, planejara inteirá-la dos fatos durante a viagem para Beaufort, mas ela estivera indisposta, recuperando-se da ressaca. No meio do caminho, ainda caíram no córrego, com o que ela se enfurecera bas¬tante. Certamente, não se tratava do estado de humor mais favorável para a ilustre dama normanda desco¬brir que o homem com o qual acabara de se casar já tinha três filhos, de três mulheres distintas, nascidos fora do casamento.
Decidira, então, contar tudo quando se aproximas¬sem do castelo. Infelizmente, não imaginara que as crianças estariam a sua espera no caminho, apesar do adiantado da hora.
Aquela hora do dia. Desviando o olhar do rosto es¬tarrecido da esposa, Dylan observou o filho mais velho. - Como é que sua mãe o deixa vir ao bosque com o sol quase se pondo, hein? E as mães de Arthur e Gwethalyn, também? Será que alguma delas pensou no que poderia acontecer se eu me atrasasse, ou decidisse ficar mais um dia em Craig Fawr? Ficariam sozinhos no mato no escuro!
- Mães? - repetiu Genevieve, ainda mais atônita. Dylan conteve uma imprecação. Devia ter falado com as crianças em galês.
- Quem é ela? - indagou Gwethalyn, em galês infantil, sem tirar os olhos da formosa dama e, prin¬cipalmente, de suas vestes.
- É lady Genevieve - respondeu Dylan, também na língua nativa, - Notou que Genevieve estava tão pasma que nem percebia que tinha o corpete ainda desatado e o decote, aberto. - Minha esposa.
- O quê?! - exclamaram os filhos, todos juntos, incrédulos.
- Conto tudo quando chegarmos em casa.
- Mães... mais de uma - tartamudeou Genevieve, tentando raciocinar.
- Eu explico - adiantou-se Dylan.
- Que ótimo.
Ele ficou meio amuado, porém, quase ao mesmo tempo, ela percebeu que estava com a camisa aparecendo, agar¬rou o corpete e o puxou, o rosto tingido de vermelho.
- Preciso de ajuda, meu senhor - declarou, altiva. - Não posso alcançar os cordões.
Dylan olhou para os filhos, que fitavam Genevieve com um misto de choque, desalento e curiosidade.
Bem, não podiam ter tido outra reação diante de uma moça loira, ricamente vestida, a qual, para com¬pletar, era esposa de seu pai.
- Ela é uma princesa? - indagou Gwethalyn, fascinada.
- Não, é uma normanda - corrigiu Dylan, indo ajudar Genevieve. Postou-se atrás dela. - Meninos, podem pegar meu cavalo, se quiserem.
Esforçava-se por se concentrar em atar os cordões do corpete, tentando ignorar o pescoço e as costas des¬nudas à frente, que pareciam implorar por um beijo ou carícia.
Os meninos pararam de olhar e correram para o garanhão. Trefor chegou primeiro, pois tinha as pernas mais compridas, mas custou a subir na montaria. Arthur, o eterno competidor, puxava-lhe a perna.
- Trefor, ajude seu irmão a subir - ordenou Dylan. - Você vai na frente metade do caminho, depois troca de lugar com ele... e sem resmungos, ou falarei com suas mães.
A contragosto, Trefor estendeu a mão para Arthur. Genevieve caminhou até sua égua e montou sem esperar ajuda.
Dylan ergueu a filhinha nos braços.
- E você vai pode ir na mula - comentou, doce, acomodando-a no lombo da besta. - Se procurar bem nessa bolsa, vai achar uma coisa que lady Roanna mandou para você.
O sorriso de Gwethalyn era como o sol após a chuva. Genevieve também tinha um belo sorriso, refletiu Dy¬lan, mas levaria algum tempo para revê-lo, a julgar por sua atitude.
- Partimos num instante - anunciou, correndo para trás do arbusto. Pegou o vestido marrom e o man¬to da esposa. - Acho que está se esquecendo de algo, minha senhora.
- Mas o senhor se mantém atento, ao que parece.
Dylan aproximou-se da égua e, sem alerta, atirou-lhe as roupas. Ela as pegou com destreza, para des¬gosto dele, ainda que fosse ficar chateado se tivessem caído no chão, também,
A frente da égua, tomou-lhe as rédeas.
- Vá na frente, Trefor - ordenou ao primogénito, tentando não soar zangado, pois não era com os filhos que estava de mau humor. - Arthur, fique de olho em Gwethalyn.
Então, em francês normando, começou a se explicar para Genevieve.
- Não me esqueci de meus filhos.
- Só de me contar sobre eles - retrucou a esposa, segurando com força o monte de roupas para que não caísse no chão.
Não estava nem um pouco satisfeita com mais aquele lembrete, e que lembrete!, do quão pouco sabia sobre o marido.
- Qual o problema? - questionou Dylan. - Não gosta de crianças?
- Claro que gosto - respondeu Genevieve, ríspida, tentando lançar o manto sobre os ombros.
- Ótimo, pois vamos ter muitas.
Rubra de constrangimento, ela tentava atar o laço do manto com dedos trêmulos.
Descobrir que Dylan já era pai de três filhos, os quais tinham mães diferentes, a abalara profundamen¬te. Contudo, tinha que saber de tudo.
- Já foi casado três vezes?
Ele deu uma gargalhada. Olhou-a rapidamente por sobre o ombro e concentrou-se de novo na trilha.
- Nunca fui casado. A mãe de Trefor é Angharad, costureira do vilarejo. Arthur é filho de Mair, que faz cerveja, e a mãe de Gwethalyn é Llannulid, que re¬centemente casou-se com meu administrador.
- Então, essas crianças são todas...?
- Bastardas? - completou Dylan, com uma pon¬tada de amargura, olhando-a de novo por sobre o om¬bro. - Sim, como o pai.
- Pois acho que você, dentre todos os homens, de¬veria ter motivos para evitar produzi-las.
Ele estacou e a encarou.
- Há algo que precisa entender de uma vez por todas, minha senhora. Em Gales, não é pecado amar uma mulher e, se nasce uma criança em consequência, nem mãe, nem filho sentem vergonha, haja casamento ou não, desde que o homem não fuja às responsabilidades com relação a eles.
- É claro que seu senso de responsabilidade não inclui o casamento pela lei.
Dylan voltou a caminhar, sem responder.
Genevieve odiava ser ignorada, como se não fosse digna de resposta, mas naquele caso interpretou o si¬lêncio arrogante como uma evidência de que Dylan, ao mesmo tempo que não considerava seu comporta¬mento vergonhoso, nem quanto a si, nem quanto às mulheres, nem quanto aos filhos, aceitava que ela pen¬sasse de modo bem diferente.
- Talvez seja sua intenção aumentar a população de sua propriedade sozinho...
Ele girou nos calcanhares e, em dois passos, pos¬tou-se ao lado da esposa.
- As crianças aprendem sua língua, mas até o mo¬mento foram poupadas da arrogância normanda, de modo que eu pensaria duas vezes antes de falar, se fosse você. Logo descobrirão o que os normandos pen¬sam dos bastardos, como eu descobri, mas eu as pou¬parei desse conhecimento enquanto puder.
Genevieve baixou os olhos. De fato, não pensara nem um pouco nas crianças.
De certa forma, Dylan tinha razão. As crianças não tinham culpa pelo que o pai era, ou por suas mães se importarem tão pouco com a honra e com sua própria
felicidade. Claro que tinham ficado tristes quando Dy¬lan as deixara por outra mulher. O que pensariam dela, sua esposa?
- Estou feliz que tenha enxergado seu comporta¬mento errado - murmurou Dylan, interpretando o silêncio dela corno capitulação.
Retomaram a viagem pela estrada.
- Mas você enxerga o seu? - sussurrou Genevieve, pensando não apenas nos filhos ilegítimos dele, mas também nas mães das crianças, que deviam ter ficado arrasadas quando sua ligação com Dylan terminou.
A chegada de Dylan e Genevieve causou grande al¬voroço no vilarejo, com calorosas trocas de cumprimen¬tos tanto por parte dos aldeões quanto de Dylan e seus filhos. Quanto ao vilarejo em si, era bastante prós¬pero, ainda que construído meio ao acaso, sem praça central ou outro local de reunião.
Talvez o pátio do castelo desempenhasse tal função, pensou Genevieve.
No entanto, ela foi ficando mais desolada à medida que se aproximavam do maciço edifício de pedra cin¬zenta que dominava o vilarejo e o rio abaixo.
Vistos do alto da colina próxima, o castelo e aldeia anexa pareceram limpos e organizados. Olhando bem, porém, tratava-se de uma ilusão.
Adentravam o vilarejo seguidos por uma multidão de aldeões e aquilo que parecia um grupo de soldados desertores de seus postos de sentinela. Observando as construções, Genevieve as comparava às do castelo de seu tio e de outros que já visitara. O castelo de Beaufort agradava mais visto de longe.
Os principais prédios de Beaufort eram excelentes, bem construídos em pedra, amplos e sólidos. Já os anexos de taipa precisavam de reparos urgentes e melhor manutenção. A área junto ao estábulo estava imunda, a tampa do poço, decrépita, e um monte de lenha atravancada a entrada do que devia ser a cozinha.
Mais espantoso, porém, foi o súbito aparecimento de todos os servos e empregados do lugar. Não teriam deveres a cumprir?
Dylan, por sua vez, não parecia ver nenhum incon¬veniente naquela festa improvisada. Cumprimentava a todos alegremente e Genevieve não o via tão feliz desde... que se casaram.
Apreciando a população reunida, era como tentasse distinguir, pela idade e feições das moças, quem seriam as mães dos filhos de Dylan, mas isso Genevieve jamais admitiria nem a si mesma.
Perto do estábulo, Dylan atirou as rédeas da égua ao ajudante e seus filhos saltaram da montaria. Era evidente o quanto apreciavam tanta atenção.
Genevieve esperou que o marido a assistisse.
Mas ele foi primeiro tirar a filha Gwethalyn de cima da mula. A menina correu para os braços de uma moça de cabelos e olhos castanho-escuros, que sorria para Dylan.
Devia ser a mãe da pequena, aquela de nome es¬tranho, impronunciável, concluiu Genevieve.
Imaginou se os meninos também correriam para suas respectivas mães, mas então Dylan chamou-lhe a atenção postando-se ao lado da égua.
- Posso ajudá-la, minha senhora? - ofereceu-se ele, polido.
Ela aquiesceu de forma régia e estendeu os braços para o marido. Crivada por olhares curiosos, não foi difícil ignorar a sensação das mãos másculas em sua cintura, ainda mais estando determinada a compor¬tar-se com toda a dignidade possível.
Dylan sorria, mas ela percebeu seu olhar interro¬gativo antes que lhe tomasse a mão e se voltasse para o povo.
Genevieve não tinha idéia do que ele dizia, com ex-ceção de seu nome, mas foi fácil adivinhar, pela sur¬presa em cada expressão. Ele acabava de anunciar que chegava com sua esposa.
Ela tentou não se trair. Parecer composta. Agir como se desposasse galeses morenos, sedutores e imorais todos os dias.
Então, após o que lhe pareceu um século, a popu¬lação começou a aplaudir e gritar:
- Dy-lan! Dy-lan!
Sorridente, ele olhou Genevieve de soslaio e aper¬tou-lhe a mão.
- Sorria - admoestou, num sussurro. - Parece que acabou de acordar.
- Está me machucando - queixou-se Genevieve, dentes cerrados, mas obedeceu.
Dylan afrouxou um pouco a mão e fitou-a, mas agora ela não conseguia ler a mensagem nos olhos castanhos.
- Bem-vinda a Beaufort, minha senhora.
Dylan não esperara ver Genevieve em profundo de¬leite com a chegada a Beaufort. No mínimo, as cir¬cunstâncias mais que incomuns em que ocorrera o ca¬samento deles garantiria o mau humor de sua jovem e bela esposa.
Mas por que aquela expressão de quem preferia es¬tar em qualquer outro lugar do mundo? Como se a recepção dos aldeões, que tanto o agradara, fosse mo¬tivo de desprezo?
Ainda que não tivesse tantos motivos quanto ele para se alegrar com a calorosa acolhida do povo, Ge¬nevieve não tinha razão para se mostrar tão desgos¬tosa, tampouco.
Enquanto introduzia a esposa no salão, Dylan foi examinando o castelo. Certamente, poderiam ser feitas melhorias, mas tratava-se de uma excelente moradia, bem construída e quase inexpugnável.
Sem dúvida, Genevieve levara um grande choque ao tomar conhecimento de seus filhos Trefor, Arthur e Gwe-thalyn, mas equivalia ao susto que ele tomara ao encon¬trá-la em sua cama, já sob a mira de seu tio em fúria.
Ou, talvez, aquela altiva normanda estivesse acos¬tumada a ser o centro das atenções, de modo que es¬taria invejosa da recepção dedicada a ele.
Bem, pois Genevieve teria que se acostumar com isso. Afinal, se alguém ali tinha o direito de cultivar mau humor, seria o homem logrado para se casar, não a mulher que o lograra.
Além disso, para uma mulher que afirmara querer causar boa impressão, Genevieve mostrava-se bastante ignorante na arte de cativar as pessoas.
Adentraram o salão. Em torno da lareira ao centro, as mesas desnudas já estavam postas para a refeição noturna, arrumadas sem muito capricho. Toalhas de linho teriam causado um bom efeito sob os puídos guar¬danapos, mas não se podiam culpar os criados. Foram informados com pouco tempo de antecedência que seu senhor levava para casa a esposa.
Não se podia reclamar, tampouco, do fogo um tanto enfumaçado. Chovera muito nos últimos dias e talvez não tivessem encontrado lenha seca.
Sobre a plataforma, havia uma única cadeira. Gene¬vieve teria que se contentar com a ponta de um banco.
Um delicioso cheiro de rosbife e de guisado escapava da cozinha. Dylan sorriu. Genevieve podia detestar a mobília de seu salão e a pobreza das mesas postas, mas seria obrigada a elogiar o cozinheiro.
Não teve tempo para pensar em mais nada, pois o povo os acompanhava pelo salão. Enquanto as criadas corriam a cumprir seus deveres, os homens instala¬vam-se às mesas, prontos para o banquete.
Dylan chamou uma das moças e deu uma ordem antes de escoltar Genevieve até a plataforma.
O magro e grisalho padre Paulus abriu caminho en¬tre a gente ruidosa e cruzou as mãos. O salão caiu em silêncio enquanto ele dava graças em latim, com certeza para agradar a nova castelã.
Genevieve olhava para padre Paulus como se nunca tivesse visto um religioso antes.
- O que foi agora? - sussurrou Dylan, irritado.
- O que ele está dizendo?
- Acaba de dar graças, para podermos comer.
- Mas falou em galês?
- Não, em latim.
Genevieve estreitou o olhar, cética.
- Não era latim. Nem grego. Nem francês. Nem italiano.
- Devo supor que fala todas essas línguas?
- Sim, falo.
Dylan olhou bem para o padre.
- Faz tempo que não vai a Roma, ou a Canterbury.
- Se é um que um dia esteve nesses lugares.
- O que está insinuando?
- Nada, meu senhor, exceto que ele está enganado, se diz que fala latim.
- Quer dizer que ele mente?
Genevieve deu de ombros ao mesmo tempo que o padre acabava de dar as graças, ou o que quer que fosse, e a população voltava a tagarelar ajeitando-se nos bancos, ansiosa para comer.
- O padre Paulus se sentará ao meu lado - anun¬ciou Dylan, um tanto defensivo, esperando que a es¬posa protestasse. Tratava-se, porém, da etiqueta ade¬quada com relação a um religioso.
O padre já se postava ao lado do castelão.
- Bem-vindo ao lar, meu senhor -: declarou o padre, na voz mais profunda que Genevieve já ouvira. - Bem-vinda também, minha senhora.
Cônscia do olhar cauteloso do homem, ela inclinou a cabeça em cumprimento e sentou-se na ponta do banco perto do centro da enorme mesa toda riscada e sem adornos.
O suposto padre acomodou-se no bando do outro lado de Dylan. Naquele instante, foi servido o primeiro prato.
Não era pão. Nem sopa. Era uma travessa de fran¬go assado.
O pão devia ser o primeiro alimento, e o vinho já devia ter sido servido.
Genevieve olhou para Dylan, mas ele conversava com o padre e parecia não ver nada de errado com o serviço da refeição, que prosseguia na sequência es¬tranha. As travessas sucediam-se sem a menor ordem, em mesas aleatórias, de modo que algumas chegavam já frias à mesa principal, a qual deveria ser servida primeiro, sempre.
Os guardanapos de linho estavam encardidos, man¬chados, e o dela tinha até um remendo. Gostaria muito de saber o que acontecera com o vinho, pois, após en¬cherem-se as primeiras taças, nem mais uma gota che¬gara à mesa.
A ceia era interrompida com frequência por homens que se aproximavam para falar com Dylan. Educado, ele os apresentava à esposa. Infelizmente, porém, eram tantos e seus nomes, tão estranhos, que Genevieve não os gravava.
Na verdade, ela conseguiu decorar apenas um nome, dentre todos os apresentados: Thomas-y-Tenau. Foi fácil porque tratava-se do administrador do castelo e, por¬tanto, o novo marido da mãe da pequena Gwethalyn.
Quanto ao teor das conversas, Genevieve concluiu tratar-se de negócios, mas não podia ter certeza, uma vez que não entendia galês.
Podia ser bem pior. Podiam ser mulheres cercando e adulando seu marido.
Mais de uma vez, reparou nas criadas sorrindo para Dylan e não pôde deixar de imaginar se seu marido tinha só aqueles três filhos ilegítimos mesmo. Tentou localizar Trefor e Arthur no salão, de modo a identificar suas mães, mas não os viu.
Parou de esquadrinhar o espaço quando a mãe de Gwethalyn lançou-lhe um olhar solidário, o qual não se dignou reconhecer.
Genevieve concluiu que a refeição terminara quando se passou um tempo considerável sem que novos pratos fossem servidos. Simplesmente deliciara-se com a co¬mida de Beaufort.
Dylan ouvia atento o administrador, que o procurara novamente. De queixo apoiado na mão, considerava seriamente alguma questão.
Não havia dúvida de que Dylan comandava aquele castelo.
A cabeça pendente para o lado, Genevieve conside¬rou qual personagem preferia: o estranho sedutor, ou o senhor de uma fortaleza?
Lembrou-se então de que tais divagações eram perda de tempo. Qualquer que fosse o personagem adotado, uma coisa era certa: tratava-se de seu marido, legal¬mente, e ele não a ignoraria.
Genevieve pigarreou discretamente. Nenhum dos homens dignou-se olhá-la.
Ela tossiu.
Ele continuaram mergulhados na conversa.
Ela tossiu de novo, mais alto.
Sem resposta.
Por fim, ela puxou a manga de Dylan.
Arrancado da discussão, o marido encarou-a surpreso.
- Meu senhor, não podem servir mais vinho? - indagou Genevieve.
Ele deu o sorriso mais sedutor que ela já vira no rosto dele.
Quanto à expressão em seus olhos... aqueceu-a. Tan¬to, que teve que desviar o rosto.
- Já bebeu o bastante - considerou Dylan, brando. - Não quero que durma cedo demais esta noite.
Genevieve engoliu em seco e levantou-se.
- Se me dá licença, meu senhor, acho, acho que vou me recolher.
- Fique à vontade. - Com um gesto, Dylan chamou uma das criadas. - Cait a conduzirá a nossa câmara.
Finalmente sozinha, Genevieve apreciou a câmara desorganizada que a jovem criada lhe mostrara.
A primeira coisa a lhe chamar a atenção foi a vasta e imponente cama com as cobertas amontoadas, como se não tivesse sido tocada desde a última vez que Dylan dela saíra.
Enrubesceu ao lembrar-se dele nu, pulando da cama em Craig Fawr.
Voltou a reparar na mobília, que incluía um braseiro de bronze, sem carvões, um aparador de velas com espaço para seis delas, uma banqueta e um grande baú de madeira. A única janela alta e estreita cobria-se com uma cortina de linho. Um luar pálido iluminava o tecido.
Sua bagagem e parte da que vira na mula de Dylan tinham sido empilhadas num canto. Devia ter pedido à serviçal que a ajudasse a tirar seus pertences, mas não sabia se ela falava alguma língua além do galês. Em vez de indicar o que queria e, de repente, muito desejosa de ficar a sós, pedira à criada que se retirasse e fechara a porta atrás dela.
Agora, devia preparar-se para instalar-se naquela ampla cama e... dormir.
Encontrou sem dificuldade a camisola confeccionada para sua noite de núpcias com lorde Kirkheathe.
Por que não? Era sua noite de núpcias.
Com dedos mais que trêmulos, Genevieve despiu o vestido verde e a camisa de linho, vestindo a camisola de seda. A textura lisa e macia acariciou-lhe a pele como nenhum roupa jamais fizera antes.
Ou, talvez, fosse a ansiedade sensibilizando-a para o contato com o tecido e o cheiro da cera quente das velas. Captando vozes masculinas no andar inferior, tentou distinguir os vários timbres, procurando o de Dylan.
Acabou desistindo e foi procurar no baú um pequeno frasco de perfume, presente de despedida de lady Ka-therine. Quase desejou estar de volta à morada da querida preceptora, com as outras garotas.
Quase.
Encontrou o perfume e o destampou, libertando um agradável aroma de rosas.
Fora num jardim de rosas que Dylan a beijara com desejo desenfreado.
Com mãos ainda trêmulas, perfumou-se levemente e iniciou então a escovação dos cabelos. Alisou os fios até que não restasse nenhum emaranhado. A seguir, apagou as velas com um sopro, exceto uma, e deitou na cama.
Se estivesse à espera de lorde Kirkheathe, estaria tão nervosa?
Provavelmente, sim.
Ao mesmo tempo, sabia que havia algo além do ner¬vosismo, algo que aumentava sua tensão.
Estava excitada, exultante com as mesmas emoções que a fizeram acreditar-se apaixonada por Dylan De-Lanyea e querer desposá-lo a todo custo.
Agora, estava casada com ele, e dali a pouco ele entraria no quarto. Naquela cama. E a tornaria sua esposa de fato.
A menos que houvesse decidido passar a noite com outra mulher.
Um arrepio de medo combinado com raiva percor¬reu-lhe a espinha. Claro que Dylan não...
Ficou ainda mais tensa quando a porta se abriu.
Dylan pareceu levar uma eternidade para entrar na câmara. Deu uma olhada na cama e só então fechou a porta, devagar. Voltou-se e fitou-a, o rosto meio oculto nas sombras, a expressão inescrutável.
Por fim, ele se aproximou-se da vela acesa rema¬nescente. Seu olhar continuava na sombra, mas o sor¬riso era bem visível, um sorriso que se alargava, que fazia Genevieve estremecer de expectativa... e medo. Ele tivera tantas amantes e ela, nenhum. E se ele a considerasse insuficiente?
Ante tal pensamento, Genevieve sentiu lágrimas nos olhos e mirou as cobertas, para que o marido não as visse, e esforçou-se por recuperar o autocontrole.
- Cait me disse que você a dispensou - comentou Dylan.
- Eu não precisava de ajuda - explicou Genevieve.
- Ele receou tê-la ofendido. Erguendo o rosto, Genevieve respondeu:
- Não, não ofendeu.
- Cait é muito sensível - concluiu o marido, em tom crítico. - Mas deve ter-lhe dito algo. Ela está achando que você a odeia.
- Achei que ela não me entenderia.
- A maioria dos criados fala um pouco da língua dos normandos. Cait teria entendido um "obrigada".
- Oh - sussurrou Genevieve, pesarosa. Dylan saltitou até a cama.
- Ficará mais fácil quando você aprender um pouco de galês.
- Acha que devo aprender a língua deles? Ele franziu o cenho, chateado.
- E a minha língua, também, e você vive em Gales agora.
Seu marido tinha razão, claro. Simplesmente, a idéia não lhe ocorrera.
- Está bem - concordou, desviando o rosto do olhar penetrante dele.
Dylan foi até o aparador com água.
- A melhor pessoa para ajudá-la de início seria Llannulid, creio...
- A mãe de Gwethalyn?
Genevieve não se entusiasmava nem um pouco com a perspectiva de contar com a ex-amante do marido para o que quer que fosse.
Dylan despiu a túnica, revelando as costas musculosas.
- Ela mesma.
Ela não replicou, observando-o lançar água fria no rosto. Que havia a dizer? Dylan provavelmente não compreenderia seus sentimentos quanto a essa ques¬tão, considerando tudo o que argumentara antes.
Ele enxugou o rosto e olhou-a.
- Não precisa ficar com ciúme. Nosso relaciona¬mento terminou antes de Gwethalyn nascer.
- O fato de você ser volúvel deveria me encorajar?
- Não - declarou Dylan, compreensivo. - Eu só queria tranquilizá-la.
Aproximou-se da cama, o peito desnudo reluzente à luz escassa.
Genevieve prendeu o fôlego quando o marido se sen¬tou a seu lado. Ele lhe tomou a mão.
Estaria sentindo seus tremores?, preocupou-se Ge¬nevieve, enquanto ele lhe beijava as costas da mão. Dylan fitou a esposa detida e seriamente.
- Genevieve, vamos encerrar esta questão nesta noite, de uma vez por todas. Acredite quando lhe digo que ninguém jamais teria me obrigado ao casamento contra a minha vontade. Meu tio não teria insistido, e as ameaças de seu tio teriam sido inúteis.
Não ouviu nenhum comentário vindo da esposa. En¬tão, continuou:
- Quanto às mulheres que amei, isso é passado. Pretendo ser fiel a minha esposa, não importa como viemos a nos casar. Está entendendo?
Genevieve encarou-o com firmeza.
- Não consigo entender como pode ter amado tantas mulheres.
- Amei-as, ou assim pensei na época, e elas senti¬ram algo por mim. Com o passar do tempo, os senti¬mentos mudaram. Esfriaram, ou se alteraram, como queira, de modo que tanto elas quanto eu soubemos que era hora de rompermos.
- Você não me ama.
- Isso pode mudar.
- Não o amo, tampouco.
Uma leve preocupação tomou as feições de Dylan.
- Pensei que fosse por isso que tinha ido à mi¬nha cama.
- Acreditei que você me amava e... - O sussurro dela terminou num suspiro desolado.
O marido roçou os lábios na palma de sua mão.
- Acha que nunca será capaz de amar, bela Genevieve? Ela retirou a mão, para raciocinar melhor.
- Eu... eu não sei.
- Não sei o que sinto por você, tampouco - confessou Dylan, com um sorriso peralta. - Podemos ten¬tar descobrir, minha esposa?
Ele se inclinou para a frente e soltou as cobertas de suas mãos tensas. Em seguida, beijou-a com toda a paixão de antes.
Entregue à deliciosa sensação dos lábios do marido sobre os seus, Genevieve esqueceu-se das outras mu¬lheres na vida dele. Cedia ao desejo que crescia em seu íntimo desde que ele adentrara o quarto, ou me¬lhor, desde havia muito, convencida de que ele devia gostar dela para beijá-la com tanta paixão.
Dylan deslizou as mãos por seus braços e segurou-a pelos ombros, estreitando-a contra si. Genevieve sentiu que o marido desatava o laço no decote de sua camisola, soltando-a.
Ele introduzia a língua em sua boca agora. Ela já experimentara a sensação... no entanto, era diferente, ali, à noite, na cama.
Não tinham por que parar agora, não precisavam constranger-se, envergonhar-se.
Exceto por um motivo.
Genevieve desvencilhou-se, tímida.
- Não sei o que fazer - murmurou, humilhada.
Dylan sorriu para a linda esposa, de rosto tão ino¬cente e reações tão sedutoras. Céus, nunca conhecera uma mulher como ela, que o inflamasse tanto!
- Não é difícil - assegurou ele, num riso rouco, puxando-a contra si, de modo que se deitassem lado a lado. - Vamos bem devagar, para que você possa aprender.
Ela aquiesceu, muito séria, os cachos dourados for¬mando um halo em torno do rostinho em expectativa. O marido afastou uma mecha de sua testa.
- É verdade, Genevieve -jurou, solene. - Como é minha esposa, serei fiel a você. Portanto, esqueça os temores e saiba que sou feliz.
- Você... você é?
- Não foi o que eu disse?
- Mesmo?
- Mesmo.
Ela abraçou-o e o beijou tão apaixonadamente que ele desejou ter feito a declaração antes. O beijo aumentou em calor e desejo.
- Vou me esforçar ao máximo para ser uma boa esposa - prometeu Genevieve, sentindo os lábios dele em sua orelha.
Dylan respondeu com um murmúrio incoerente, su-gando o lóbulo com avidez, imprimindo a língua em brincadeiras.
Genevieve agarrava-se ao marido, ofegante. Ele in¬troduziu a mão por sob a camisola e tomou-lhe um seio. Enquanto lhe acariciava o mamilo com o polegar, foi puxando a camisola, até expor o seio a seus lábios e língua gulosos.
Genevieve arfava, o som excitando Dylan ainda mais. Quando ela sussurrou seu nome, excitada, sur¬presa e deleitada, ele se sentiu exultante como nunca.
Com agilidade, ele se livrou das botas usando só os pés, sem deixar de agradar a mulher com os lábios, a língua e as mãos. Num movimento ágil, despiu a calça e ficou nu.
Entretanto, continuava separado de Genevieve por camadas de lençóis, mais a camisola dela. Rápido, le¬vantou-se da cama e, diante dos olhos arregalados da esposa, puxou as cobertas.
Com o olhar obscurecido de desejo, Genevieve ar¬rancou a camisola do corpo, revelando-se gloriosa aos olhos famintos de Dylan.
Ela era perfeita, do alto da cabeça loira à ponta dos pés.
Ele conhecera muitas mulheres e as apreciara por seus vários atributos. No entanto, se lhe pedissem que descrevesse a mulher ideal, teria reproduzido Gene-vieve em todos os detalhes.
Ela estendeu os braços para ele, e ele não precisou de mais incentivo para juntar-se a ela na cama.
De novo enlaçada nos braços másculos, Genevieve entregou-se às sensações. O contato entre suas peles nuas revelava-se mais do que ela podia ter imaginado. Acreditara que os seios tinham uma única função. Que delícia descobrir que isso não era verdade.
Dylan começou a afagá-la mais para baixo, sabendo exatamente o que fazer com os dedos para lhe acelerar o coração e latejar o sangue.
Desejosa de agradá-lo tanto quanto ele a agradava, Genevieve começou a acariciá-lo também, deleitando-se em tocar os músculos duros, o queixo áspero, os cabelos grossos alcançando os ombros.
Percebeu que ele introduzia o joelhos entre suas pernas.
E lá... concluiu, vaga, separando-as.
Dylan ergueu-se nos cotovelos, tomou o rosto da es¬posa nas mãos e fitou-a detidamente, muito sério, ain¬da que seus olhos ardessem de desejo e voracidade evidentes.
- Pode doer - advertiu ele, afastando as mãos.
Então, Genevieve sentiu a ponta da masculinidade dele contra si.
Sem deixar de fitá-la um segundo, Dylan deslizou para dentro dela. Engolindo em seco, Genevieve cerrou os olhos à dor súbita.
Dylan beijou-a no rosto e voltou a afagá-la, enquanto começava a se movimentar, bem devagar. Em tom gentil, dizia palavras de carinho que a fizeram imaginar se ele seria meio poeta.
- É só isso que vai doer, e só desta vez - murmurou o marido, sorrindo, mas também preocupado.
Genevieve anuiu, confiando nele. Queria-o, e o desejo aumentava a cada movimento do corpo másculo ligado ao seu.
Passou a corresponder no mesmo ritmo, enquanto a dor diminuía.
Dylan tornou-se ofegante e o suor cobriu-lhes os cor¬pos à medida que o balanço se acelerava.
Por fim, com um grunhido rouco, ele penetrou mais fundo nela. Genevieve mergulhou numa sensação ma¬ravilhosa, como se escapasse ao próprio corpo e conhe¬cesse um lugar novo, lindo demais para ser descrito com meras palavras.
O peito arfante, Dylan beijou-a de leve nos lábios. Ela abriu os olhos, observando-o enquanto ele se re¬tirava lentamente.
O marido se levantou e pegou as cobertas, que ha¬viam caído em pilha ao pé da cama. Após estendê-las sobre a esposa, esgueirou-se para baixo das mesmas, apoiou-se no cotovelo e sorriu.
- Não quero que pegue outro resfriado. Genevieve aconchegou-se junto dele.
- Então, aqueça-me - sugeriu.
- Com prazer, minha esposa, com muito prazer. Ela sorriu, feliz, a cabeça apoiada contra o peito
másculo que subia e descia com vagar.
Não imaginara que seria tão maravilhoso, pensou, com um suspiro contente. Caso contrário, não teria julgado tão mal Cecily, nem as ex-amantes de Dylan. Não podia culpá-las por terem desejado estar com aquele que era agora seu marido.
Seu marido. Que expressão maravilhosa! Agora, ale¬grava-se por ter-se esgueirado para a cama de Dylan em Craig Fawr... Se bem que, se soubesse do que sabia agora, o teria acordado assim que tivesse se juntado a ele!
Contemplou o rosto do marido e percebeu que ele adormecera.
Continuou fitando-o. No sono, ele parecia mais jo¬vem, quase inocente. Assim devia ter-se mostrado à primeira amante. Como se chamava mesmo? Angha-rad, a mãe de Trefor.
Ao menos, presumia que Angharad fora a primeira amante de Dylan. Mas ele podia ter tido outras, quando era ainda mais jovem. Era tão difícil acreditar... ou, talvez, nem tanto.
Ele podia ter tido outras mulheres, que não lhe de¬ram filhos.
Pouco importava, afirmou a si mesma, porque acre¬ditava no que ele lhe dissera.
Pousando a mão no ventre, pensou nos filhos que ela daria ao marido, com toda a alegria.
Apoiado no cotovelo, Dylan contemplava Genevieve no sono, as costas nuas voltadas para ele, o restante escondido debaixo das cobertas. Seu ombro alvo subia e descia ao ritmo da respiração profunda, regular.
Admirou-lhe a coroa de cabelos, mais escuros à luz fraca. Eram macios, a exemplo da pele. Dirigindo o olhar ao ombro delicado, lembrou-se de outras sedu¬toras curvas femininas.
A luz da manhã, difusa através da cortina de linho, transformava a cena quase num sonho primaveril.
Suspirou suavemente. Tudo acontecera de um jeito tão estranho... quase miraculoso.
Sim, miraculoso parecia-lhe a palavra mais adequa¬da. Sem expectativa, sem planejamento, sem nada, ex-ceto, talvez, a orientação de Deus, encontrara uma esposa da qual poderia gostar.
A qual poderia amar.
Mais que entusiasmado com esse pensamento, Dylan deslizou o dedo bem devagar ao longo do braço da esposa, rumo ao ombro.
Genevieve acordou e sentou-se, esfregando o braço, com uma expressão de pânico.
- Desculpe-me! - exclamou o marido, atónito com a reação inesperada, mas também deleitado com a vi¬são dos seios perfeitos. - Não quis assustá-la.
A esposa suspirou e sorriu antes de puxar as cober¬tas, num castigo por tê-la assustado, supunha ele.
- Não está acostumada a dormir acompanhada, é claro...
- Engano seu. Dylan espantou-se.
- Quer dizer que está?
- Na casa de lady Katherine, dormíamos todas juntas.
Uma imagem, terrivelmente imoral, porém incrivel¬mente excitante, invadiu a mente de Dylan. Genevieve ergueu os joelhos e abraçou-os.
- Certa vez, quando eu dormia, uma das garotas pôs um besouro no meu braço. - Fez uma careta eno¬jada. - Quando acordei, o bicho já estava quase no meu rosto. Gritei feito louca. Lady Katherine foi lá correndo, como se a casa estivesse em chamas.
- Ela ficou brava?
Genevieve deu um sorriso torto que o seduziu um pouco mais.
- Eu disse que tinha tido um pesadelo. E tive muitos mesmo, depois daquilo. Sonhava que besouros gi¬gantes me perseguiam. Devoravam-me...
Com um tremor, deu a entender que precisava de conforto e o marido o proporcionou,
- Que garota cruel - comentou, solidário. Genevieve deu de ombros.
- Cecily era assim mesmo. Achava engraçadas es¬sas brincadeiras de mau gosto.
- Mas ela queria que você se encrencasse?
Até a maneira de Genevieve inclinar a cabeça o en¬cantava naquela manhã.
- Não creio - considerou ela. - Cecily não pensava muito além do efeito imediato. Não era uma garota realmente criativa.
- Pois tal comportamento não me parece digno de uma jovem dama.
Genevieve olhou-o surpresa, o cenho levemente franzido.
- Pensei que você tivesse sido um garoto do tipo que prega peças nas pessoas.
Ele negou veemente.
- De jeito nenhum, minha senhora. Sempre fui um anjo.
Ante a expressão duvidosa da esposa, Dylan deixou escapar um sorriso.
- Bem, meti-me em algumas encrencas... mas só por ser um rapaz ousado, corajoso, se me entende.
- Naturalmente - concordou Genevieve, séria, mas seus olhos brilhavam de divertimento. - Acho que era tão corajoso e ousado que nunca se viu punido, e que seu pai secretamente o recompensava.
Sem dizer palavra, Dylan abandonou a cama quente e aconchegante. Genevieve lembrou-se então do pouco que soubera do passado dele e desejou retirar o co¬mentário sobre o pai.
- Desculpe-me! Não quis aborrecê-lo. O marido vestiu a calça, suspirando.
- Não, eu peço desculpas. Nunca lhe falei sobre meu pai. Como poderia saber?
- Lady Roanna contou-me algo.
- Ah, é? O quê, exatamente?
- Que seu pai e seu avô eram egoístas e cruéis.
- E eram, de fato.
- Foram cruéis com você?
Dylan sentou-se na cama e forçou um sorriso fatigado.
- Graças ao bom Deus, nunca tiveram a oportunidade. Não conheci meu pai. Ele morreu antes de eu nascer.
Sem resposta, Genevieve inclinou-se e beijou-o ternamente.
Ao menos, fora essa sua intenção, porém, como sem¬pre, no instante em que seus lábios se tocaram, a paixão apossou-se dela. E ele respondeu na mesma intensidade.
Mais um segundo e a calça dele se amontoava de novo ao lado da cama, enquanto sons brandos de desejo apaixonado ressonavam na câmara de pedra.
- Maldição!
Genevieve abriu os olhos e viu o marido vestindo a calça às pressas. Aos poucos, percebeu o som estranho que chegava do salão lá embaixo.
- O que é isso? - indagou, com um suspiro, ainda lânguida de tanto fazer amor.
- Estão bêbados, todos eles.
Ela se sentou vivaz e olhou pela janela.
- Que horas são?
O marido já pegava a túnica.
- Quase meio-dia, acho. Já ouviu tamanha balbúrdia?
- Eles deviam estar trabalhando - concordou Genevieve.
Dylan olhou-a pasmo.
- Trabalhando? Um dia após o senhor do castelo voltar com a esposa?
- Claro. Pensei que fosse por isso que estava zangado.
- É a cantoria. Terrível! Um insulto aos ouvidos galeses, parecem cães uivando para a lua.
- Oh.
- Vai descer comigo para o desjejum?
- Uma vez que ninguém nos trouxe nada aqui, acho que sim.
- Eu disse a Cait que não queríamos ser incomo¬dados nesta manhã.
- Oh. - Enrubescida, Genevieve desceu da cama. Não ajudava o fato de o marido estar olhando-a.
- Pode me passar uma camisa? - pediu-lhe.
- O que há de errado com a que usou ontem? - Dylan abriu um sorriso bem próximo do lascivo. - Gostei dela...
- E boa demais para o dia-a-dia.
- Mas gosto dela - insistiu o marido, em tom sedutor.
- Temo que você, olhando-me desse jeito, não con¬siga concentrar-se em seus deveres.
- Já aprendeu algo sobre mim - retrucou Dylan, irônico.
- Por favor, arranje-me outra camisa - pediu Ge¬nevieve, a caminho do aparador com água.
- Já que insiste.
- Insisto. E meu vestido azul-escuro com debrum vermelho, se conseguir encontrá-lo.
Genevieve esperara que o marido lhe pedisse para usar aquele vestido marrom horroroso, mas ele não o fez. Deu um pulo quando sentiu as mãos dele afagan¬do-lhe os braços.
- Preferiria que não tivesse que se vestir - sus¬surrou-lhe, beijando-a no ombro.
Ela engoliu em seco.
- Bem, haveria grande agitação no salão se eu apa¬recesse lá nua...
O marido a beijava no pescoço.
- Pode continuar aqui. Na cama. Com um suspiro, ele se recostou nele.
- Mas, então, negligenciaria meus deveres.
- Não temos castelã por aqui desde que minha mãe morreu.
- Agora, têm.
- Ninguém vai sentir sua falta... Genevieve enrijeceu-se.
- Quer me manter presa aqui o dia todo? Dylan a fez voltar-se e encará-lo, parecendo
arrependido.
- Só estava brincando. Não quis ofender. - Deu seu sorriso mais charmoso. - Temo ser uma besta egoísta, mas gostaria de tê-la só para mim.
Era difícil continuar chateada quando o marido a olhava daquele jeito.
- Já que estava só provocando... Mas quero ser uma castelã perfeita, Dylan. Foi para isso que estudei.
Ele a beijou de leve na testa.
- Tenho certeza de que será.
- Pegou minha camisa?
O marido bateu na própria cabeça e passou a andar de costas.
- Bolas, esqueci-me completamente! Num instante, minha senhora...
- Desse jeito, vai cair e se machucar - ralhou a esposa, tentando não rir, o que só incentivaria a mais brincadeiras.
- Sou ágil.
Ele tentou executar um passo de dança, mas trope¬çou na banqueta. Conseguiu reequilibrar-se antes que Genevieve o acudisse.
- Está vendo? - vangloriou-se ele, ofegante. - Um verdadeiro acrobata!
- Eu não tentaria sobreviver dessa arte, se fosse você. Pode deixar que eu mesma pego minhas roupas, enquanto você trata de seus cães uivantes.
- Sim, é preciso silenciá-los - concordou Dylan, o tom sério, mas com olhos risonhos. - Adeus por ora, Genevieve.
- Adeus, oh, esperto acrobata...
Dylan aproximou-se dos homens que ain¬da estavam despertos e cantavam. Mui¬tos já dormiam, debruçados nas mesas ou largados no chão, em poças de cerveja.
Que desperdício, lamentou o castelão, enquanto o salão mergulhava em silêncio.
Thomas, cujas pernas finas pareciam incapazes de sustentá-lo em sua melhor forma, levantou-se camba-leante e fitou Dylan de olhar estreito, provavelmente embaçado.
- Meu senhor?
- Quem mais? O que era aquilo que entoava? Um hino fúnebre?
- Uma balada.
- E mesmo? Não parecia nenhuma balada que eu já tivesse ouvido.
Encararam-se carrancudos.
- E aquela que o barão compôs ao voltar para casa da Cruzada - afirmou Thomas.
- Do jeito que você a canta, tem-se a impressão de que o coitado pereceu em mil agonias. Eu deixaria a cantoria para os momentos de sobriedade, já que entoa tão mal quando está bêbado.
- Estávamos comemorando - explicou um dos ho¬mens, em fala arrastada.
- Eu sei que estavam comemorando, mas será que minha esposa normanda precisava dessa introdução à música galesa?
- Ah! - exclamaram os ébrios, de repente compreendendo.
- Ah! - ironizou Dylan. - Portanto, sem mais cantorias até que possam fazer bonito, está bem?
Todos aquiesceram.
- Agora, Thomas, onde está Llannulid?
- Em casa, espero.
- Chame-a aqui. Quero que ela mostre o castelo a Genevieve.
- Sim, meu senhor.
Ante o andar instável do administrador rumo à por¬ta, Dylan refletiu.
- Thomas, talvez...
- Não, não, meu senhor... é que o chão se inclina um pouco neste local - explicou o empregado, rouco.
O homem devia estar mais bêbado do que um gambá, para achar que um chão plano como aquele estava inclinado, mas Dylan foi condescendente.
- Os demais, vão descansar. De nada me servem neste estado. Confio em que os sentinelas não tenham bebido demais.
- Demais? - retrucou um camarada troncudo cha¬mado Ifor. - Não... de jeito nenhum.
Nem de menos, concluiu Dylan, conformado. Não podia se zangar. Afinal, seus homens se embebedaram para comemorar seu enlace.
Do salão, seguiu para a cozinha. Estava faminto e o cheiro de pão quente fazia seu estômago roncar como um urso logrado.
Adentrou a ampla área dominada por uma imensa la¬reira usada para assar carnes e cozinhar sopas e guisados em grandes caldeirões. Numa das paredes, concentravam-se os fornos de tijolos com portinholas de ferro.
Para sua surpresa, havia apenas uma trabalhadora no local, Elidan, que assava pães e fazia massas. Era uma mulher obesa de pele flácida, como se também fosse feita de farinha.
- Onde estão todos? - indagou Dylan, junto à mesa coberta de farinha de trigo sobre a qual Elidan sovava uma enorme porção de massa. Serviu-se de um dos pães prontos que esfriavam.
- Ainda na cama - respondeu a criada, mal olhando-o.
- Minha esposa deseja algo para comer. Elidan indicou os pães dourados.
- Aí estão.
- Talvez ela queira algo mais.
- Nesse caso, precisarei de ajuda. - Providencie.
A padeira o encarou.
- Agora?
- E só acordar as ajudantes. Elidan voltou a socar a massa.
- Ela é uma normanda. Não sei que tipo de pão ela aprecia.
Dylan voltou-se da porta. A serviçal ergueu o punho forte e bateu com força na massa. Foi um baque es¬trondoso, apesar de abafado.
- Pão é pão - observou Dylan, dando de ombros. A padeira voltou a socar a massa.
- Ela deve apreciar farinha da melhor qualidade, branca como a neve, imagino...
- Seu pão é excelente, Elidan. Tenho certeza de que ela ficará satisfeita.
- Espero que sim, meu senhor.
- Ficará - garantiu ele.
A procura dos ajudantes de cozinha e criadas do salão, esperou não estar muito longe da verdade.
Cogitou também por que Elidan estava tão agressiva com a massa.
- Então, repita para elas mais uma vez - pediu Genevieve a Llannulid, no fim do dia, ambas no salão diante das criadas. - O pão e a manteiga, depois, o vinho, a seguir, os assados ou cozidos, por fim, as fru¬tas. É muito simples.
Llannulid anuiu e repetiu tudo em galês. As subor¬dinadas trocaram sutis olhares de esguelha.
- Elas não entenderam?
- Entenderam, sim, minha senhora - afirmou Llannulid, em tom musical.
Todas tinham lindas vozes, pensou Genevieve. Não ouvira nenhuma desagradável até o momento.
- Ótimo. Devem servir nessa ordem, em todas as refeições. Se houver algum prato além dos costumeiros, darei as instruções quando necessário.
Estampando no rosto algo semelhante ao sorriso de lady Katherine, pequeno e um pouquinho condescen¬dente, para deixar claro quem estava no comando, Ge¬nevieve encarou cada uma das criadas.
Depois que Llannulid terminou de falar, fez um ges¬to, dispensando-as. As moças seguiram para a cozinha, cochichando entre si.
Só então Genevieve reparou na pequena Gwethalyn, sentada numa banqueta próxima, observando tudo.
A menina as acompanhara o dia todo. O fato em si não constituía problema. Infelizmente, porém, Gwe¬thalyn tinha o olhar mais enervante de que Genevieve já fora alvo.
Pensando bem, já encontrara olhar semelhante, sim. Gwethalyn tinha o mesmo olhar intenso do pai. En¬quanto o dele perturbava, o de uma criança tão pe¬quena desconcertava.
- Acho que já acertamos bastante coisas por hoje
- considerou Genevieve, de repente cansada. Passara o dia todo explorando o castelo e seus de¬pósitos. O marido era um castelão próspero, sem dú¬vida, mas a propriedade parecia administrada por crianças. Mercadorias e mantimentos amontoavam-se de qualquer jeito, por toda parte, sem a menor ordem ou justificativa. Qualquer um poderia apossar-se de metade dos guardados sem que alguém desse por falta de um engradado sequer.
Llannulid chamou a filha. Gwethalyn foi correndo e agarrou a mão da mãe, sempre olhando para Genevieve. A ajudante sorriu constrangida.
- Perdão, minha senhora. Ela a olha por pensar que é uma princesa e nada que eu diga a faz mudar de idéia.
- Está tudo bem - afirmou Genevieve, ante uma desculpa tão lisonjeira. Fitou detidamente a mãe da criança. - Ela se parece bastante com o pai, exceto pelos cabelos...
- Sim, ela puxou ao pai - concordou Llannulid.
- Só os cabelos são como os de minha mãe. Desejando ter ficado calada, Genevieve voltou-se e viu uma mulher alta de cabelos pretos junto à entrada, usava um vestido de tecido grosseiro, com as mangas arregaçadas até os cotovelos, revelando antebraços musculosos. Tinha feições fortes, mas não desagradá¬veis. Poderia ser considerada atraente, se se mostrasse menos hostil.
Amazona. A palavra surgiu de repente na mente de Genevieve, recordando a história das mulheres guerreiras. Era fácil imaginar aquela mulher munida de arco e flecha ou espada.
A estranha dirigiu-se a Llannulid em galês, os olhos fixos em Genevieve.
Sem tom de reprimenda para com a mulher imper¬tinente, Genevieve indagou:
- Llannulid, quem é ela?
- Sou Angharad - respondeu a própria, em muito bom francês.
Embora nem se movesse, Genevieve sentiu-se tom¬bar. Após conhecer a meiga Llannulid, não esperara que as mães dos outros filhos de Dylan fossem assim... imponentes.
Como seria a mãe de Arthur? Outra amazona beli¬cosa, ou uma moça gentil como Llannulid?
Afirmou a si mesma que pouco importava, pois era a esposa de Dylan.
- Deseja algo? - indagou, cortês.
Com um sorriso debochado, Angharad negou.
- Não, minha senhora. Só queria vê-la.
- Por quê?
Com seu tom imperioso, Genevieve provocou a cau¬tela nos olhos de Angharad, o que muito a agradou. Era bom aquela mulher ter em mente quem falava mais alto por ali. Não se tratava de uma camponesa aquela que desposara o senhor de Beaufort, mas uma dama de alta linhagem.
Infelizmente, Angharad acautelou-se só por um instante.
- Queria conhecer a esposa de Dylan, nada mais.
- Já que me conheceu, pode ir. Você também pode ir, Llannulid.
Com uma fungada, Angharad girou nos calcanhares e marchou para a porta. Llannulid e Gwethalyn apres¬saram-se atrás dela.
Angharad estava para abrir a porta quando a mesma se escancarou.
- Mair! - ralhou a morena mal-humorada, enquan¬to outra moça adentrava o salão.
Balançando a cabeça, Angharad por fim saiu, se¬guida de Llannulid e Gwethalyn, que cumprimentou a recém-chegada rápida e amigavelmente.
Mair, refletiu Genevieve. Já ouvira esse nome an¬tes... Seria uma palavra ou um nome?
De repente, lembrou-se. Mair era a mãe do pequeno Arthur.
Cruzando as mãos, Genevieve rogou paciência en¬quanto a moça se aproximava. Era bonita, mas de um tipo comum, de cabelos castanhos grossos e ondulados e sardas enfeitando o nariz.
Existiria algum tipo de mulher que não atraísse Dy¬lan DeLanyea?, ponderou Genevieve, amuada.
Mair estacou e estudou a castelã com uma curiosi¬dade que era apenas um pouco mais fácil de tolerar do que a hostilidade de Angharad, a simpatia de Llan¬nulid e a admiração de Gwethalyn.
- Então, é lady Genevieve - manifestou-se a moça, por fím.
- Eu mesma,
- Sou Mair, a mãe de Arthur. Ele me disse que você era bonita e devo reconhecer que é.
- Obrigada.
Mair riu espontânea, o som semelhante ao trinado de um pássaro após um longo e tenebroso inverno.
- Angharad não disfarçou o mau gênio, parece. Es¬pero que não a tenha aborrecido.
Genevieve empertigou-se, orgulhosa.
- Não me aborreceu nem um pouco.
- Verdade? É uma mulher e tanto, nesse caso. Angharad pode ser fria como gelo, mas também agradável como uma primeira nevada - afirmou Mair, com um largo sorriso. - Gosta de mandar em nós porque deu a Dylan seu primogênito.
- E você deu-lhe o segundo.
- É o que ele diz. Mas tenho minhas dúvidas. Estupefata, Genevieve nem conseguiu responder. Mair prosseguia, risonha:
- Eu disse a ele que meu filho podia ser de Morvyrn, ou de Lloyd, ou de Tewdwer. Mas ele acredita que é o pai de Arthur e, se um barão quer assumir meu filho, quem sou eu para negar?
Genevieve ouvira histórias de grandes tempestades no mar, com ventos uivantes e ondas gigantescas. Ago¬ra, sentia-se no meio de uma delas, enquanto Mair apreciava o salão.
- Eu disse a ele que devia se casar. Estou contente que tenha seguido meu conselho.
- Seu conselho? A moça sorriu.
- Meu e de mais umas cem pessoas, imagino. Sentou-se num dos bancos e deu um tapinha na
vaga ao lado, convidando Genevieve, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
- Está quase na hora da ceia - lembrou a castelã.
- Oh. - Mair apoiou as mãos nos joelhos, a fim de se levantar.
Genevieve reconsiderou e fez um gesto para que a moça permanecesse sentada.
- Ainda falta algum tempo. Nem sei onde Dylan se encontra neste instante.
- No ffridd, com certeza.
- No frid? - repetiu Genevieve, confusa.
- O cercado dos carneiros. É época de reunir o rebanho.
- Ah.
Mair sorriu solidária.
- É muita coisa, não é? Genevieve fez que sim.
- E o que acontece, quando nos casamos às pressas. A castelã encarou a moça desconfiada, imaginando
quanto ela saberia.
- Teremos que nos acostumar, creio - prosseguia Mair. - Ele foi participar de uma festa no castelo do tio e, em uma semana, volta casado...
Deu a Genevieve um sorriso aprovador.
- Eis por que acredito que seja uma mulher e tanto. A castelã enrubesceu.
- Ele me conquistou no primeiro instante.
- Claro que sim. É de Dylan DeLanyea que estamos falando.
- Não parece se importar...
O riso de Mair encheu o salão. Genevieve viu Cait espiando do corredor da cozinha e ordenou-lhe:
- Diga aos criados que a ceia será servida daqui a pouco. Eu a chamarei quando chegar a hora.
A serviçal aquiesceu e se foi.
- Acredito que ela teria sido a próxima - revelou Mair, pensativa. Fitou Genevieve. - Não precisa ficar assim. Cait é adulta e, se não quisesse, teria sido o fim. Dylan é um cavalheiro.
- Ele não me falou de você, nem das outras. Mair franziu o cenho, confusa.
- Por que não?
- Terá que perguntar a ele.
- Perguntarei - afirmou a moça, decidida.
- Talvez não seja uma boa idéia - opinou Gene¬vieve, agora em dúvida.
- Oh, não se preocupe. Ele vai dizer que se esqueceu, mas claro que não vou acreditar. Deve ter achado que você não se casaria com ele, se soubesse, sendo uma normanda.
- Estava certo.
- Vê?
- Mas ele não agiu certo escondendo a existência dos filhos.
Mair balançou a cabeça.
- Não, não agiu, mas é compreensível, se queria se casar com você e achou que você o rejeitaria, por causa dos filhos. Ele deve estar loucamente apaixonado por você...
Genevieve enrubesceu. Então, olhou de esguelha para a moça.
- Ele se apaixonou loucamente por você?
- De jeito nenhum. Nem eu por ele, e nenhuma de nós jamais se vangloriou disso.
Mair encarou Genevieve com toda a franqueza.
- Angharad age como uma rainha porque foi a pri¬meira, mas sabia que ele jamais se casaria com ela. Ela não é nobre, para começar. Além disso, ele era jovem demais para assumir um compromisso quando se envolveram. Quanto a mim, sempre fui realista e, diante do homem mais bonito que eu já tinha visto, sugeri que nos tornássemos amantes.
- Você sugeriu?
- Por que o espanto? Ele queria, eu também. Era o bastante.
- Mas você tinha outros amantes.
- Oh, sim. Adoro homens.
"Difícil acreditar", ironizou Genevieve, mas conse¬guiu conter-se. Mair ficou séria.
- Llannulid era um pouco diferente. Reparou que ela fala sua língua muito bem?
- Assim como você.
- Acha mesmo? - alegrou-se a moça. Mas recobrou a seriedade. - Não tão bem quanto Llannulid. Ela foi criada por normandos, no sul. Dylan foi visitar um conde lá e na volta a trouxe. Oito meses depois, Gwethalyn nasceu. A essa altura, Llannulid já não estava mais com ele. Dylan arranjou-lhe uma casinha no vilarejo...
- Depois, ela se casou com o administrador? Mair riu.
- É, com Thomas-y-Tenau... ou Thomas Magricela. Genevieve sorriu.
- Ele é magro mesmo.
- Magro? - desdenhou a moça. - Temo que uma brisa mais forte o carregue...
Mair levantou-se num salto, como se acabasse de ver uma cobra a seus pés.
- Estão chegando, e ainda nem tirei a cerveja da carroça!
Genevieve também ouvira as vozes e risos masculinos lá fora. Levantou-se desanimada, sem energia. Conver¬sara demais. As mesas nem tinham sido postas ainda!
Mair sorriu mais uma vez, a sinceridade patente nos olhos castanhos.
- Desejo-lhe felicidades. Tenha paciência com ele, e conosco, e tentaremos ser pacientes com você. Lem¬bre-se, ele teve amantes, mas foi com você que ele se casou. Lembre Angharad disso, se necessário!
Com isso, a moça saltitou rumo à entrada, cruzando com os homens que chegavam, encabeçados por Dylan.
Ele passara muito tempo fora. O vento embaraçara seus cabelos, tinha o rosto corado.
Estacou ao ver Genevieve, sorrindo discreto.
Como era linda sua esposa, com aqueles cabelos loiros e olhos azuis cintilantes. Parecia uma rainha no centro do salão, a esposa perfeita de um barão, uma castelã irrepreensível, que qualquer normando invejaria.
Só então percebeu que a atrevida e impetuosa Mair lá se encontrava.
Ela se aproximou com um sorriso maroto e o golpeou no braço.
- Escondendo coisas dela, hein? - provocou, em galês. - Não é de admirar que esteja tonta como tou¬peira ao sol. E eu pensando que era com sua destreza que estava fascinada...
- Como vai, Mair? - replicou Dylan, tentando soar indiferente. - Achei que era sua carroça no meu pátio.
- De fato, e acho melhor descarregá-la logo.
A moça olhou para os homens vagando pelo salão.
- Eles parecem mortos-vivos. Deve ter sido uma festa e tanto... e nem me convidou.
- Esqueci-me. Mair riu, sem rancor.
- Entendo por quê. Ela é bonita, para uma nor-manda. E orgulhosa como uma normanda, também.
- Estamos precisando da cerveja.
- É para já. Seus barris devem estar todos vazios. Bom dia, então, meu senhor, e felicidades no casamento.
A moça tomou o rumo da porta e Dylan aproximou-se de Genevieve.
Mair deteve-se só por um segundo junto ao castelão.
- Angharad passou para cumprimentar - infor¬mou, num sussurro.
Dylan aliviou-se ao perceber que Gene¬vieve estava ocupada demais com deta¬lhes de arrumação das mesas para persegui-lo e foi refugiar-se no quarto. Queria se lavar e vestir uma túnica limpa antes de voltar ao salão.
Refrescado, com certeza se sentiria mais seguro para falar de Angharad. E Mair. E Llannulid.
Uma vez na câmara, despiu a túnica e lançou água fria no rosto e nos ombros. Ao menos, o ffridd não pre¬cisava de reparos e poderiam começar a reunir os car¬neiros no dia seguinte. Trariam todos os que estavam no topo da montanha, separando do rebanho as ovelhas com filhotes. O inverno não fora rigoroso, de modo que poderiam contar com animais saudáveis e férteis.
Ouviu a porta se abrir e levantou o rosto, o olhar estreito sob a água que escorria.
- Genevieve?
- Sim.
Dylan pegou uma toalha de linho e enxugou o rosto, sem pressa.
- Vim para pedir desculpas - declarou a esposa, em voz baixa.
Ele pôs a toalha de lado e a encarou. Para sua sur¬presa, ela parecia chateada.
- Por quê?
- Não providenciei a arrumação do salão e agora terão que esperar para comer. Perdão.
Dylan sorriu.
- É só isso? Pois lhe garanto que posso esperar mais um pouco.
Genevieve relaxou um pouco os ombros.
- Verdade?
- Verdade. - Então, Dylan franziu o cenho, fin- gindo consternação. - Apenas garanta que isso nunca mais se repita.
Como a esposa não sorriu, ele foi até ela, tomou-lhe as mãos e fitou com carinho.
- Não foi tão grave, Genevieve. Não estou acostu- mado a ver a refeição servida no instante em que entro no salão.
Ela não pareceu se tranquilizar.
- Isso não justifica meu desleixo.
- Mas também não precisa se repreender, É seu primeiro dia como castelã. Tenho tido isso em mente, caso você não tenha.
- Eu quis que tudo saísse perfeito - lamuriou-se Genevieve.
Dylan tocou-lhe o queixo e a fez encará-lo.
- Que beicinho é esse? Ela deu de ombros.
O marido sorriu.
- É um lindo beicinho, mas conheço uma ótima maneira de acabar com ele - sussurrou, inclinando-se para beijá-la.
Abraçou-a com força enquanto se entregava ao pra¬zer de degustar-lhe os lábios, deslizando a língua para o calor envolvente de sua boca.
Só que Genevieve logo se desvencilhou.
- Vamos descer. Estão todos à espera.
- Que esperem - murmurou Dylan, puxando-a contra si novamente.
Desta vez, a esposa desviou o rosto.
- Genevieve, eles podem esperar.
- Mas não é...
- O que os normandos fazem?
- Isso mesmo. Não é como os normandos educados se comportam.
- Não sou um normando educado.
- Eu... eu sei.
Dylan olhou-a desconfiado.
- Foram Angharad e Mair? Aborreceram-na? Genevieve deu-lhe as costas, indo até a janela.
- Tem que admitir que são um tanto... desconcertantes.
- Principalmente Angharad, não é? - retrucou ele. - Ela é... difícil.
Genevieve olhou-o por sobre o ombro.
- Apesar disso, já gostou dela.
- E ainda gosto. Ela é a mãe de meu primogênito, por isso também a respeito.
- Claro.
- Quer que eu fale com ela?
- Não. Tenho que aprender a lidar com isso... sozinha.
Dylan aliviou-se com a decisão da esposa.
- Mas o que Mair lhe disse? Ela fala pelos cotovelos, mas sem a menor maldade.
- Concordo.
- Genevieve, olhe para mim.
Relutante, ela obedeceu. Vendo a insegurança em seus olhos, Dylan foi sincero, mas gentil.
- Sei que não vai ser fácil para você de início. E sei que lhe apresentei uma realidade muita dura, pelo menos do seu ponto de vista. Vamos ter paciência um com o outro.
- Foi o que Mair aconselhou.
- Ela consegue ser sábia, quando não é impertinente. Dylan aproximou-se da esposa e pousou as mãos
em seus ombros, fitando-a com firmeza.
- Quero que sejamos felizes, e acho que poderemos ser, se deixarmos o passado em seu lugar e olharmos para o futuro. Para o nosso futuro.
Genevieve sorriu fracamente.
- Tentarei.
- Ótimo. Bem, agora, não podemos fazer as pessoas esperarem mais. Vamos descer.
- Vai vestir uma túnica antes, não? - questionou a esposa.
Dylan adorou ver um brilho travesso nos olhos dela.
- Talvez não. Às vezes, os galeses comem seminus. Genevieve arregalou os olhos, e o riso dele ecoou
entre as paredes.
- Não, não somos selvagens. Eu só estava brincando.
- Ainda bem.
- Mas é fato que você tem que me conhecer melhor - observou Dylan, tirando uma túnica limpa do baú.
- Em breve, saberei tudo sobre você.
O marido fítou-a com aquele sorriso indolente e sedutor.
- E eu saberei tudo sobre você.
Genevieve aproximou-se dele, numa compulsão irresistível.
- Talvez possam esperar mais um pouco - cogitou, num sussurro. - Se formos rápidos...
Dylan riu e tomou-a nos braços.
Genevieve nunca imaginara que um homem podia ser tão rápido.
Evidentemente, sabia pouco sobre os homens em ge¬ral e apenas começava a conhecer seu surpreendente marido.
Acomodada à mesa principal, ela suspirou contente, mas logo tornou-se séria, atenta ao trabalho dos cria¬dos, verificando se realizavam as tarefas conforme as instruções.
Até então, o desempenho era satisfatório. As ser¬viçais poderiam deslocar-se com um pouco mais de rapidez, e se deslocariam, se Dylan e os outros ho¬mens não lhes falassem com tanta frequência, em tom de flerte.
Principalmente Dylan, que naquele exato momento distraía Cait com algum tolo comentário em galês, a julgar por seu tom brincalhão.
O marido não fizera o menor comentário sobre a nova arrumação das mesas, que tornava o serviço mais ágil e rápido, nem reparara que os pratos estavam sendo apresentados numa ordem mais adequada.
- Pediu algo à criada, meu senhor? - indagou Genevieve.
Dylan mal olhou-a.
- Não. Perguntei-lhe sobre sua família. O pai é especialista em parto de ovelhas e quis me assegurar de seu pronto atendimento, se precisarmos.
- Oh.
Genevieve deu uma mordida no pão integral e tentou mastigá-lo sem abrir a boca, mas era difícil.
- Qual o problema? - quis saber o marido.
- Este pão... acho que conseguirei comê-lo às migalhas. Dylan franziu o cenho.
- Não gostou?
- É gostoso, mas muito duro.
- Entendo.
- Seus homens flertam com as serviçais o tempo todo?
- Não estão flertando. Estão conversando. Ninguém se acha superior a ninguém aqui, e gosto assim.
Genevieve não pôde ignorar o tom decidido do ma¬rido, nem o aborrecimento em seu olhar.
- Acha que eu estava flertando com Cait? A esposa enrubesceu e mirou o pão à frente. Dylan sorriu.
- Pelo amor de Deus, mulher, será que terei que ficar mudo para que não sinta ciúme?
Genevieve olhou-o de esguelha, tendo em mente a pro¬messa dele de cumprir os votos do matrimônio, e de repente envergonhou-se do próprio coração ciumento.
- Tento evitar.
- Ótimo.
- Amanhã, gostaria de reorganizar os depósitos - declarou ela.
- Faça o que quiser. O castelo é seu.
- Gostaria também de uma farinha de trigo mais fina.
- Como quiser.
- Podemos ter vinho francês?
- Acho que sim. Pergunte a Thomas.
- Gostaria também de conferir o enxoval. Dylan olhou para a esposa, que se mantinha ereta
e rígida à mesa, mais empertigada do que qualquer nobre normando que já conhecera, e muito diferente da mulher com que fizera amor uma hora antes. Es¬taria ainda duvidando da intenção dele de lhe ser fiel?
- Faça como achar melhor. É a nova castelã. Tenho confiança em sua capacidade.
- Mas é o mestre. Preciso de sua permissão. Dylan sorriu.
- Mestre? Gosto da idéia. Quer dizer que tem que fazer tudo o que eu mandar?
Genevieve baixou os olhos, recatada e lindamente enrubescida.
- Isso mesmo.
- Bem, terei que refletir a respeito. Ela levantou o rosto.
- Significa também que não posso tomar decisões sem sua aprovação.
Dylan fez um gesto negligente.
- Pode ser o que lady Katherine lhe ensinou, mas não somos tão rígidos aqui. Pode fazer o que bem en¬tender... dentro do razoável, é claro.
- Mas como saberei o que considera "dentro do razoável"?
O marido fitou-a reflexivo.
- Está bem, Genevieve. Ao menos no começo, acho que terá que me consultar.
- Ótimo.
O marido inclinou a cabeça de lado.
- O que mais a preocupa?
- Nada, meu senhor - assegurou Genevieve, não muito convincente.
- Tem certeza?
- Não é nada importante.
Antes que o marido pudesse pressionar mais um pouco, o administrador Thomas levantou-se da mesa.
- Meu senhor, ficamos tão envergonhados ante sua crítica nesta manhã que gostaríamos de cantar melhor agora para o senhor e sua adorável esposa.
Dylan sorriu.
- Se acham que podem fazer melhor do que aqueles uivos de gatos...
Os homens rugiram em protesto, até que Thomas ergueu a mão.
- Chega, rapazes. Vamos provar cantando.
- Que se passa? - indagou Genevieve, irritada.
- Meus homens querem cantar para nós - infor¬mou o marido.
- Mas a ceia ainda não terminou.
- Não faz mal.
Dylan pensou ouvir a esposa bufar. Olhando-a, po¬rém, não tinha uma expressão contrariada.
Devia estar um pouco confusa, concluiu. Queria ou¬vir a nova canção de seus homens, certo de que a tinham composto em retaliação a seu insulto naquela manhã.
Entre gargalhadas, confirmou a suspeita. Simples¬mente subestimará a capacidade deles de arranjar bons versos a propósito. Era ótimo que Genevieve não compreendesse uma palavra de galês, ou estaria hor¬rorizada em sua sensibilidade normanda.
Não que simpatizasse com a tal sensibilidade nor¬manda. Apenas não queria ver a esposa ainda mais aborrecida. Para ser franco, não imaginara como seria difícil para ela sentir-se à vontade em Beaufort, e que¬ria que ela ficasse à vontade, e feliz.
Para isso, entretanto, Genevieve teria que relaxar quanto a tantas regras e planejamentos. Ele não era assim, e jamais seria. Queria sua gente livre, leve e solta, como nunca pudera ser sob o comando de seu pai e seu avô. Avesso à tirania, odiava horários rígidos e planos inflexíveis. Desde que as tarefas fossem cum¬pridas, tudo estaria sempre bem.
Quando a música terminou, com um coro que des¬crevia a masculinidade de Dylan nos termos mais exa¬gerados e coloridos possíveis, ele empurrou a cadeira.
- O que está fazendo? - protestou Genevieve. - Ainda não serviram as frutas!
- Não estou de saída - explicou o marido. - Só vou responder.
Usando a mesma melodia e repetindo algumas das palavras, Dylan começou a cantar sua própria com¬posição, referindo-se a um certo carneiro vigoroso, em vez de si mesmo. Os homens riram e aplaudiram. Ao terminar, Dylan ficou bastante satisfeito com seu desempenho.
Jogou-se na cadeira sorridente.
- Qual era o tema? - questionou Genevieve, des¬confiada.
- Um carneiro - respondeu o marido, inocente.
- Parecia um trovador itinerante.
- Acha mesmo? - alegrou-se Dylan, até perceber a censura no rosto da esposa.
- Se me dá licença, vou em retirar - declarou Genevieve, levantando-se abruptamente.
Mal-humorado, Dylan ironizou:
- Ainda não serviram as frutas.
- Dispenso-as. Boa noite.
Com isso, a castelã abandonou o salão, sem esconder de ninguém o quanto estava zangada.
- Normanda -justificou Dylan, com um sorriso torto. Todos riram e, num minuto, cantavam sobre amor
e honra.
Em sua câmara, certa de todos os seus esforços ti¬nham sido em vão, que sua vontade de ser uma boa esposa não importava ao marido, e que os galeses não eram civilizados, Genevieve sentou-se à janela e con¬templou o luar.
- Genevieve? - sussurrou Dylan, ao esgueirar-se para baixo das cobertas, tarde da noite. - Está acordada?
De costas para o marido, ela não respondeu.
- Genevieve, está acordada? - repetiu ele, afagan¬do-lhe o braço.
- O que é que você quer? - questionou ela, branda, apesar da zanga, enrolando-se no lençol para que ele não pudesse acariciá-la mais.
- Eu sabia que estava acordada.
- Estou tentando dormir.
- Estou tentando pedir desculpas. Genevieve rolou na cama e o encarou.
- Verdade?
- Era tudo brincadeira, Genevieve. Não precisava ficar tão brava.
- Seu comportamento não foi nada digno.
- Quer que eu cante de novo?
Genevieve esperara tudo, menos aquela oferta.
- Eu não entenderia as palavras.
- Posso traduzir enquanto canto - sugeriu Dylan, com um sorriso ladino ao qual era difícil resistir.
A esposa não resistiu.
- Está bem.
Dylan começou a cantar, censurando as partes mais picantes, só por segurança.
Após os primeiros versos, Genevieve abriu um sor¬riso. Ao longo da canção, até riu, uma ou duas vezes, num som delicioso na penumbra da câmara.
- Achou assim tão terrível? - questionou Dylan, ao terminar.
- Não... mas não acredito que tenha traduzido fielmente.
- Minha senhora!
- Meu marido! - exclamou Genevieve, imitando o desalento dele.
- Bem, certos termos não têm tradução literal - justificou Dylan, franco.
- Eu sei, e temo que seja ainda mais lascivo do que imaginei, compondo uma canção assim sobre si mesmo e... seu corpo.
- Não é sobre mim.
A esposa riu, cética, e aconchegou-se nele.
- Mas tem uma linda voz, sabia?
- Nesse caso, posso cantar outra música.
- Do tipo daquela?
- Não - garantiu o marido. - Uma música para amantes.
Então, quando Dylan encerrou a linda canção com sua bela e rica voz, entregaram-se a um outro tipo de música.
Genevieve acordou pela manhã à luz fraca da aurora e percebeu que o marido já estava de pé, movimen¬tando-se pelo quarto.
- O que está fazendo?
Dylan sorriu e continuou a se vestir.
- É uma manhã perfeita para reunirmos os carneiros.
- Mair falou-me disso.
- É mesmo? Pois será um longo dia. Não espere nos ver de volta antes de o sol se pôr.
- Você também? - surpreendeu-se Genevieve, pois presumira que ele apenas supervisionaria os trabalhos.
- Claro. Encabeço a fileira. Há anos.
Embora não entendesse bem do que o marido falava, ela notou o orgulho em sua voz e soube que "encabeçar a fila" era importante para ele.
- A fila? - indagou, sentando-se para melhor vê-lo. Dylan sentou-se na beirada da cama para calçar as botas.
- Subimos a montanha em fila, os homens e os cães pastores. Depois, descemos para o ffridd, juntando o rebanho no caminho.
- Oh. - Genevieve não achava que se tratava de uma ocupação adequada a um barão, porém, se o ma¬rido a apreciava, não contestaria.
- O que vai fazer hoje? - quis saber ele, torcendo o corpo para vê-la.
- O que lhe disse ontem. Os depósitos estão em total desordem. Vou mandar esvaziá-los, lavá-los e en¬tão reorganizar todas as mercadorias.
Dylan aprovou.
- Nesse caso, precisará de Llannulid. Avisarei Thomas, Genevieve abraçou os joelhos, contemplando as cos¬tas largas do marido.
- Ela fala francês muito bem. Mair falou-me um pouco dela.
Dylan voltou a olhá-la por sobre o ombro.
- O que ela disse?
- Que você trouxe Llannulid consigo após visitar um nobre normando, que ela teve Gwethalyn oito me¬ses depois e que você, então, já lhe tinha dado uma casa no vilarejo.
- Só isso?
- Só.
Dylan levantou-se e acomodou-se ao lado da esposa, tomando-lhe a mão.
- Vou lhe contar isto porque confio em você, Ge¬nevieve, mas não pode contar a mais ninguém. Pro¬mete guardar o segredo, ainda mais porque é mais de Llannulid do que meu?
Confusa e um tanto desalentada pela seriedade do marido, Genevieve aquiesceu. Dylan suspirou.
- Gwethalyn não é minha filha.
- Não?! Mas então por que...
Ele lhe selou os lábios com um dedo.
- Na verdade, eu nunca disse que era. Como nunca
disse que não era, tampouco, o povo presumiu que fosse e eu deixei.
- Lá no bosque, você me disse que os três eram seus filhos.
- Confesso que estava aborrecido com você na¬quele momento, por isso não disse toda a verdade. De qualquer forma, penso em Gwethalyn como se fosse minha filha. Fui visitar aquele nobre norman¬do, Pierre de Grieuxville, a quem haviam concedido um castelo e um título, para avaliá-lo... e não precisei de muito tempo para determinar seu caráter. Ele simplesmente odeia os galeses, mas é capaz de amar uma galesa contra a vontade dela. O monstro estu¬prou Llannulid.
Ante a animosidade no rosto normalmente descon¬traído do marido, Genevieve quase se compadeceu do homem que a provocara.
Pensou também na meiga Llannulid. Sabendo como podia ser maravilhoso o amor íntimo, simplesmente não conseguia imaginar o ato imposto com violência e degradação. Com lágrimas de solidariedade, apertou a mão do marido com força.
- Ela me procurou no meio da noite implorando para ajudá-la - contou Dylan, amargurado. - Eu quis matar a besta, mas Llannulid temeu que os ho¬mens dele se vingassem. Por isso, eu a trouxe comigo e revelei a meu tio o que descobrira sobre Pierre.
Sorriu sarcástico.
- Grieuxville não acreditava poder ser desapropria¬do por conta de uma simples carta de um barão galês.
- Mas foi.
- Em um mês, perdeu a propriedade e voltou de mala e cuia para a França.
- E Llannulid ficou aqui.
- Sim, nesta câmara, como se fosse minha amante, mas nunca a toquei.
- O marido dela sabe a verdade?
- Espero que sim.
- Dylan?
- Hum?
- Pode me perdoar por ter pensado que era um biltre egoísta?
Ele lhe acariciou o rosto.
- Em certas coisas, sou egoísta.
A esposa beijou-lhe a palma da mão.
- Mal posso esperar para ter um filho seu.
- Nada me faria mais feliz, Genevieve - sussurrou Dylan, afastando-lhe os cachos dourados com a mão livre. - Infelizmente, não posso me demorar mais hoje, ou só sairíamos daqui ao anoitecer.
- Vá cumprir seus deveres e deixe-me cumprir os meus - ordenou ela, com um sorriso. - Terei a re¬feição pronta quando chegarem.
Ele concordou, deu mais um sorriso e deixou o quarto.
Suspirando, Genevieve aninhou-se nas cobertas por mais algum tempo, imaginando o dia feliz em que daria um filho a Dylan. Ou uma filha.
Griffydd DeLaneya, conhecido pela extrema discri¬ção, não escondeu os sentimentos do pai enquanto via¬javam para Beaufort naquela manhã.
Seu irmão Trystan os seguia alguns metros atrás, entre outros homens, e era dele que Griffydd falava:
- Não acho que foi uma boa idéia deixá-lo vir. O barão olhou sério para o filho mais velho.
- Por quê? Ele sempre ajuda com o rebanho quando está em casa.
- Antes era diferente.
- Por quê?
- Preciso dizer?
- Acho que sim.
- Agora, Dylan está casado com Genevieve Perro-net. Viu o jeito como Trystan olha para ela.
- Vi. Mas ele é meu filho, e um cavaleiro. Tenho fé em que ele se lembrará de que ela está casada com outro e não trará desonra a nossa família.
- Espero que tenha razão.
- Acha que mantê-lo afastado dela esfriará a paixão?
- Quem sabe?
O barão balançou a cabeça.
- Não tenho tanta certeza. Que ele a veja como mulher de Dylan, feliz em sua própria casa, amando o marido.
- Supondo que eles se amem. O barão sorriu para o filho.
- Estejam ou não dispostos a admitir, já estavam apaixonados antes de se casarem, ou não teriam con¬cordado com a união. Conhecendo Dylan, eu diria que já apararam as arestas.
- Espero que tenha razão.
- E eu gostaria que parasse de ver problemas em tudo. Trystan é jovem. Logo terá superado essa paixão, desde que não o mantenhamos afastado de Genevieve como se ela fosse um fruto proibido.
- Tomara.
- Assim será - afirmou o barão, confiante. Infelizmente, não se sentia tão confiante quanto que¬ria fazer crer.
Mais tarde naquele dia, quando o sol se punha atrás das colinas, Genevieve aguardava ansiosa a volta de Dylan e seus homens.
Pela centésima vez, esquadrinhou o salão, certifi¬cando-se de que estava tudo em ordem. As mesas ti¬nham sido lavadas, sendo que a principal mandara cobrir com uma fina toalha de linho que descobrira no fundo de uma prateleira num dos depósitos mais empoeirados. Encontrara também três saleiros e os colocara em uso, dividindo as mesas próximas à pla¬taforma. Teria que perguntar ao marido quem merecia sentar-se sobre o sal. Thomas, certamente, mas quem além dele, nem imaginava.
As criadas perfilavam-se no corredor da cozinha, prontas para servir o pão e a manteiga assim que a castelã lhes desse um sinal.
Abafando um bocejo, Genevieve cogitava quanto tempo mais os homens demorariam. Tivera um dia ocupadíssimo organizando o caos em apenas dois dos depósitos, aqueles que considerara os piores. No dia seguinte, atacaria outros.
Trataria também dos serviços de lavanderia do castelo.
Fez uma careta ao sentir uma cãibra. Normal¬mente, tratava-se de um alerta de que suas regras estavam para chegar. Esperava que, desta vez, signi¬ficasse algo mais...
Finalmente, percebendo um alvoroço no pátio que atribuiu ao retorno dos homens, ajustou o gorro e o véu e alisou a saia. Para aquela noite, escolhera um vestido de lã vermelha ornado apenas com um cinto de couro. O gorro também era vermelho e o véu, branco. Sabia que as cores a favoreciam, e queria tanto estar bonita para Dylan.
Ao distinguir a voz alegre do marido entre as demais, seu coração se acelerou, de felicidade e expectativa, pois ele com certeza repararia nas melhorias no salão.
Ele chegou, enfim, e ela sorriu exultante, admiran¬do-o com novos olhos... até dar-se conta de que o tio e os primos o acompanhavam.
Dylan não a prevenira de que teriam convidados tão importantes! Como pudera ser tão negligente? Com certeza, fariam pousada no castelo, pois já era tarde demais para voltarem a Craig Fawr.
Mil pensamentos, todos no tom reprovador de lady Katherine, pareceram explodir em sua cabeça enquan¬to aguardava a aproximação dos homens, em que câ¬maras os instalaria? Tinha roupa de cama limpa su¬ficiente? A comida daria para todos? E a provisão de vinho, como estaria?
Acima de tudo, pairava a convicção de que Dylan deveria tê-la alertado sobre a chegada dos parentes, permitindo-lhe tomar todas as providências com calma, poupando-a daquele pânico súbito.
- Bem-vindo, meu senhor - cumprimentou Gene¬vieve, indo ao encontro do nobre, mais linda que nunca.
Apesar da aparente calma no semblante da castelã, Dylan a essa altura já conhecia a esposa bem o bas¬tante para reconhecer a aflição em seus olhos.
Seria por estarem atrasados? Prevenira-a quanto a isso.
Talvez Angharad tivesse lhe feito outra visita. Mais tarde, quando estivesse a sós com Genevieve, pergun¬taria a ela qual o motivo do nervosismo e, se fosse Angharad, teria uma conversa com a ex-amante, mes¬mo contra a vontade da esposa.
Por ora, e apesar da exaustão, deu seu melhor sor¬riso, determinado a tranquilizá-la.
Percebeu então que ela não olhava para ele, mas para o barão seu tio.
- É um prazer revê-la, minha senhora - dizia o barão, com seu próprio charme.
Genevieve dirigiu-se aos primos do marido.
- Bem-vindos ao nosso salão.
Só então dedicou um sorriso agridoce ao marido, antes de falar ao barão novamente:
- Espero que nos perdoe qualquer inconveniente, mas é que não fui informada de sua visita.
Então, era isso. A castelã estava perturbada porque o marido não a prevenira da chegada do barão, como se seu tio esperasse ser tratado como um rei.
- Nada de formalidades conosco - replicou o barão. - Viemos ajudar com o rebanho porque o tempo estava bom. Caso contrário, não teríamos vindo.
- Fazem-nos companhia à mesa principal?
- Parece haver espaço bastante - observou o barão, risonho. - Portanto, claro que aceitamos o convite.
- Bem, estamos todos cansados. Vamos logo nos sentar e comer - decidiu Dylan, tomando a esposa pelo cotovelo a caminho da plataforma.
- Não precisa ficar nervosa - sussurrou-lhe. - São só meus parentes, não o rei.
- Devia ter-me dito que eles viriam. Não sei nem onde acomodá-los.
- No salão, como de costume.
- Como se fossem soldados comuns?
- Sim, ou como velhos amigos, e não normandos arrogantes e mal-acostumados.
Alcançaram a plataforma e Genevieve desvencilhou o braço.
- Seu tio se acomoda na cadeira. Eu me sentarei ao lado dele, no banco e você, do outro lado dele. Seus primos ficam um do meu lado, o outro, do seu.
- Eles vão se sentar onde quiserem.
- Não - protestou Genevieve, com inesperada autoridade. - É o certo, e quero tudo certo no meu salão.
- No meu salão. Genevieve franziu o cenho.
- No nosso salão.
Dylan deu uma olhada nos convivas.
- Onde está padre Paulus?
- Parece que... nos deixou. Ele estreitou o olhar.
- Não foi culpa minha - defendeu-se Genevieve.
- Ninguém conseguiu encontrá-lo, e os pertences dele sumiram do quarto. Eu lhe disse que ele não era um padre adequado.
- Talvez tenha sentido que não era bem-vindo aqui
- considerou Dylan, chateado.
Não obstante, tinha que reconhecer que a percepção da esposa com relação ao religioso, ou o que quer que fosse, estava correia. Afinal, nunca procurara confir¬mar a história do padre Paulus, preferindo apenas aceitá-la.
Só que Genevieve deu-lhe as costas antes que pu¬desse responder, tratando de indicar ao barão onde se sentar, bem como a seus primos.
Felizmente, o barão mostrou-se mais divertido do que contrariado ante a presunção da castelã. Griffydd reagiu como sempre, ou seja, com toda a viva¬cidade de uma pedra, ao passo que Trystan, que con¬seguira garantir seu lugar ao lado de Genevieve com uma sutileza de fazer inveja ao próprio Dylan, fitava a anfitriã de um jeito que encheu de ciúme o coração do marido.
Se Trystan não fosse seu primo, Dylan o teria de¬safiado naquele mesmo instante para um duelo, por ousar olhar para sua esposa daquela maneira.
Mas Dylan não disse nada e permitiu o desen¬rolar da ceia, assim que seu tio terminou a breve oração no lugar do padre Paulus. Brincalhão como sempre, gracejou com o tio e criticou o azedo Griffydd, para não perder o hábito, dirigindo-se à es¬posa quando necessário, de olho em tudo o que ela e Trystan faziam.
Genevieve parecia muito mais preocupada com o ser¬viço das criadas do que com as poucas palavras que Trystan tinha a lhe dizer. Se ele emitira mais de dez palavras até então, fora muito.
Dylan lamentou não ter passado mais tempo na com¬panhia do primo mais novo nas ocasiões em que visi¬tara Craig Fawr. Recordava que Trystan sempre fora um garoto reticente, mas nunca tão calado quanto se mostrava agora. Talvez, com o amadurecimento, tor¬nara-se mais parecido com o irmão Griffydd.
Ou, talvez, encontrasse dificuldade em conversar com uma mulher bonita, ainda mais se seus sentimen¬tos por ela eram mais que familiares.
Então, quando a desanimada Cait colocou um cesto de maçãs diante de Trystan, Genevieve levantou-se declarando:
- Se me derem licença agora, meus senhores, irei tratar de suas acomodações.
- Oh, ficaremos muito bem no salão, minha senhora
- adiantou-se o barão. - Além disso, é cedo demais para que nos prive de sua presença.
- Começo a descobrir com quem meu marido apren¬deu a ser tão lisonjeiro - replicou Genevieve, coquete.
- Entretanto, eu me sentiria falha em minhas res-ponsabilidades se permitisse o que sugeriu, o que me leva a implorar que me permitam providenciar aco¬modações mais confortáveis.
- Minha esposa leva seus deveres muito a sério - explicou Dylan.
- Longe de mim fazê-la sentir-se falha - retrucou o barão. - Talvez possa juntar-se a nós novamente quando terminar, minha senhora.
Genevieve respondeu com um mínimo movimento de cabeça.
- Receio estar muito fatigada, de modo que me recolherei. Cait os conduzirá a suas câmaras quando quiserem dormir. Boa noite, barão DeLanyea. Boa noi¬te, sir Griffydd, sir Trystan.
Por último, encarou o marido.
- Boa noite, meu senhor.
- Boa noite, por enquanto, Genevieve - respon¬deu Dylan.
Algum tempo depois, Genevieve afundou na cama em seu quarto e suspirou, tanto de alívio quanto de cansaço, enquanto se livrava do gorro e do véu. Con¬seguira preparar para o barão e seus filhos uma grande câmara, com os melhores móveis e lençóis, só com a ajuda da criada Cait, para que o serviço no salão não fosse prejudicado. Ainda que satisfeita com o resultado, nunca se sentira tão exausta em toda a vida.
Não tinha forças sequer para despir o vestido. Con¬siderou, então, que talvez não devesse mesmo. Queria deixar bem claro ao marido por que estava tão zangada e se sairia melhor totalmente vestida. Se o enfrentasse de camisola, ele provavelmente começaria a beijá-la, acariciá-la, até que ela se esquecesse de tudo, menos do prazer de estar em seus braços.
Contudo, não ficaria em desvantagem se descalçasse os sapatos e aconchegasse os pés maltratados entre as cobertas. Feito isso, recostou-se na sólida cabeceira da cama.
Preparado para as recriminações, Dylan encontrou Genevieve dormindo quando chegou, pouco depois, tão logo a criada Cait levara o barão, Griffydd e Trystan para uma câmara na torre oeste.
Ela parecia tão doce e tranquila, sem vincos na testa, a boquinha serena, os cílios tremulando sobre as faces, que ele sentiu o rancor se esvair, substituído pela ternura.
Com certeza, era culpa da tal preceptora lady Ka-therine que sua esposa se preocupasse tanto com cada detalhe ínfimo. Com o tempo, ela perceberia que podia atenuar as expectativas e padrões elevados e um tanto ridículos que estabelecera para si mesma.
Descalçou as botas e despiu a túnica, retraindo-se ao fazê-lo, pois distendera um músculo ao tentar agar¬rar um carneiro teimoso que correra para o lado errado.
Quando tivesse filhos, ponderou, com um sorriso, sua rigorosa esposa se abrandaria bastante.
Genevieve mexeu-se sob as cobertas e suspirou, des¬pertando ao som de sussurros.
- Dylan? - indagou, sonolenta. Sentada, olhou em torno para o quarto ainda às escuras.
- Sim, sou eu - respondeu o marido, perto da porta. Ela percebeu que ele falava com uma mulher, que estava no corredor. Devia ser Cait.
- O que foi? Qual é o problema?
- Não é nada. Apenas pedi a Cait que me chamasse à primeira luz. Vou acompanhar o barão até Craig Fawr e ajudá-lo com seu rebanho.
- Vai viajar?
- Só por um dia, a menos que o tempo mude. Meu tio tem muitos carneiros para descer das colinas.
- Ele não tem arrendatários para fazer esse trabalho? Dylan dispensou Cait e fechou a porta. Aproximou-se da cama.
- Fazemos isso porque assim conhecemos melhor os arrendatários e pastores, e eles a nós. E assim que se estabelece a lealdade.
- Não tinha pensado nisso.
- Não me agrada percorrer as colinas procurando carneiros - confessou Dylan. - Preferiria mil vezes ficar aqui cora você.
- Mas tem que ir.
- Isso mesmo. Eu teria comentado a respeito ontem à noite, mas você já estava dormindo quando cheguei.
- Oh. - Genevieve olhou para si mesma. - Dormi
vestida?
- Fala como se isso equivalesse a matar alguém - divertiu-se o marido. - Eu não queria acordá-la.
Sentindo uma pontada no quadril, ela se deslocou e puxou o gorro vermelho, todo amassado.
- Eu gostava deste gorro - iamentou.
- Não o vi - replicou Dylan. - Ou o teria tirado daí.
- Devia ter-me acordado para que eu me despisse - ralhou Genevieve. - As marcas no vestido podem nunca sair.
- Você repousava tão tranquila que não tive coragem.
Ela o fitou, encantando-se com seu sorriso e olhos sinceros. Lembrou-se do quanto ficara zangada por ele não ter comentado sobre a possível visita do tio, porém, chegada a manhã, a falta já não lhe parecia tão grave.
- Acho que dormi feito uma pedra. Dylan sentou-se a seu lado na cama.
- Ambos dormimos o sono dos justos. Só espero que nunca um assassino decida esgueirar-se em nossa câmara. Estaríamos perdidos.
- Teme uma tentativa de assassinato?
- Não! Sempre me esforcei para não ter inimigos. - O marido olhou-a zombeteiro. - Acredito que meu único inimigo seja lady Katherine DuMonde, por tê-la tornado tão detalhista.
- Ela nos treina para sermos boas castelãs - cor¬rigiu Genevieve, fazendo beicinho outra vez. - Achei que apreciaria ver o castelo de Beaufort um pouco mais organizado.
- Oh, aprecio... desde que não me tire a liberdade.
- Dylan, a organização de um castelo...
- Psiu! - cortou o marido, silenciando-a com um dedo. - Sei que o castelo estava um caos e que você está arrumando tudo. Também acredito que meu tio e primos estejam tendo uma noite mais confortável lá na torre oeste do que seria possível no salão. Mas acho que os procedimentos adequados não são tão impor¬tantes a ponto de brigarmos por causa deles.
- Dylan...
Ele expressou sofrimento.
- Vamos brigar por causa deles?
- Não, claro que não.
O sorriso dele foi como uma ponta de relva verde após um longo e tenebroso inverno.
- Então, chega dos ensinamentos de lady Kathe¬rine. Não ligamos muito para cerimónias e etiqueta aqui, e você será mais feliz se tiver isso em mente.
Dylan inclinou-se para a frente e beijou a esposa de leve na testa.
- Agora, preciso ir, ou meu tio estará na estrada antes que eu tenha a chance de comer um pedaço de pão.
- Quando volta?
- Tentarei estar em casa à noite, que será de lua cheia. Se chover ou ficar nublado, porém, terei que pernoitar em Craig Pawr, ainda que... - Fez uma pausa de efeito, e deu seu sorriso mais sedutor. - Ainda que valesse a pena arriscar meu pescoço para estar de volta em seus braços ainda hoje.
Genevieve balançou a cabeça.
- Não vale. Não quero ficar viúva tão jovem. O marido riu.
- Sendo assim, talvez tenha que suportar minha ausência por uma noite.
- Tentarei. - Ela teve um pensamento, enrubesceu e desviou o olhar.
- O que foi?
- É indigno e não direi em voz alta. Sei que estou errada...
- Diga - ordenou Dylan. Genevieve teve que obedecer.
- Sou a única que terá que suportar sua ausência? O marido levantou-se abruptamente.
- Não sou casado com mais ninguém, sou? Genevieve ergueu o olhar, sinceramente contrita.
- Perdão, Dylan. Foi algo que Mair disse... mais as outras mulheres.
- O que foi que Mair disse?
- Não fez nenhuma acusação - assegurou Gene-vieve. - Mas insinuou que você e Cait... Desculpe-me.
O marido compadeceu-se.
- Está desculpada. Mas devo ser franco. Se eu não estivesse casado e Cait quisesse, a história seria dife¬rente. Acontece que estou casado e pouco importa a disposição de Cait, porque eu não estou disposto.
Sorriu encorajador.
- E não haverá nenhuma mulher aquecendo minha cama em Craig Fawr, nem em qualquer outro lugar, a não ser aqui.
Ficou mais sério de repente.
- Posso confiar em que não arranjará um amante assim que eu partir?
- Dylan DeLanyea! - exclamou Genevieve, es¬tarrecida. - Eu morreria antes de me desonrar, ou a você!
- Fala a mulher que se esgueirou para minha cama - lembrou o marido, grave.
A esposa saltou da cama e olhou-o fulminante.
- Era diferente. Eu queria me casar com você.
- Nesse caso, perdoarei seu comportamento ultra¬jante, se perdoar meus errinhos - propôs Dylan, sal¬titando para trás, os olhos cintilantes de divertimento.
- Sabe, Genevieve, confio cegamente em você, ou não a teria provocado quanto a arranjar um amante.
Genevieve ficou boquiaberta.
- Oh.
- Oh, de fato - ironizou o marido, os olhos obscuros ao reaproximar-se dela com graça felina.
- Quando me olha assim, tenho que fazer isto - murmurou, envolvendo-a nos braços para um beijo apaixonado.
Era tão difícil permanecer zangada com ele! Não obstante, Genevieve desvencilhou-se um pouco e o admoestou:
- Errinhos, hein? Pois negligenciar contar-me que seus parentes estavam a caminho foi bem mais que um errinho.
- Eles já dormiram em muitos lugares piores do que o meu salão, posso lhe garantir. Desde que a acomodação seja quente e seca, eles se dão por satisfeitos.
A esposa suspirou, e ele roçou os lábios em seu rosto.
- Sei que não liga para a etiqueta, meu senhor, mas pensei que quisesse fazer o desjejum antes de partir com o barão.
Com uma imprecação branda, Dylan separou-se da mulher.
- Etiqueta é uma coisa, pontualidade, outra bem diferente, e o barão preza muito esta última, Sendo assim, por mais que preferisse demorar-me aqui con¬sigo, minha tentação, porei-me a caminho.
Ele a beijou mais uma vez, rapidamente, e correu à porta.
- Tentarei estar de volta à noite, Genevieve, pois agora que sou um maduro homem casado, considero bastante desagradável a perspectiva de dormir numa barraca cheia de soldados.
Infelizmente, o tempo mudou naquela tarde. Nuvens vindas do norte trouxeram não só uma massa de ar gelado, mas também um forte aguaceiro. A tempestade formou-se tão de repente que alguns dos homens, in¬cluindo Dylan, foram surpreendidos nas colinas. Eles se esforçaram para completar a tarefa, mas tiveram que desistir, pois os carneiros refugiavam-se em abrigos de difícil acesso e nem mesmo os cães pastores conseguiam convencê-los a sair.
Para piorar, o dia seguinte amanheceu sem sinais de melhoria no clima.
Não era de admirar o mau humor de Dylan ao aden¬trar o salão do castelo do tio. O barão, Griffydd e vários dos arrendatários e pastores, com seus cães, já se en¬contravam reunidos. Os cães deram uma olhada em Dylan e foram se esconder debaixo das mesas. Apa¬rentemente, ele perdera o desjejum e teria que se con¬tentar com as sobras, a exemplo dos animais.
- Foi bom eu mandar os homens iniciarem o ser¬viço no dia em que fomos a Beaufort - comentava o barão, enquanto Dylan pegava um pedaço de pão e se juntava ao grupo. - Recolheram boa parte das cabeças sem nós.
- Mesmo assim, a chuva vai prejudicar bastante, se continuar - replicou Griffydd, - Os bezerros mor¬rerão afogados ao nascer, num aguaceiro como este.
- Já vi piores - afirmou um dos velhos pastores, após uma cusparada na lareira. - Mais um ou dois dias, e o céu começa a clarear.
- Como Elwyn nunca errou antes, acho que pode¬mos nos fiar - opinou o barão. - Agora... ah, Dylan!
- exclamou, notando a presença do sobrinho. - Dor¬mindo demais agora que se casou?
- Ninguém me chamou -justificou Dylan, atiran¬do o último naco de pão aos cães.
- Além disso, não está acostumado a dormir sozinho
- lembrou o primo Griffydd. - Tanto espaço na cama deve tê-lo confundido.
Dylan ignorou a provocação.
- Parece que não fui o único a perder a hora. Onde está Trystan?
O barão franziu o cenho ao responder:
- Fora.
- Seguindo os passos do primo, talvez, aquecendo-se com alguma beldade por aí? - sugeriu Dylan, que¬brando a tensão inesperada. - É um rapaz de boa presença, ainda que careça de charme. Parecido demais com o irmão mais velho para chamar a atenção das garotas.
Os arrendatários e pastores riram, trocando olhares divertidos. Tratava-se de uma antiga rixa entre os dois jovens fidalgos.
O barão dirígiu-se aos colaboradores.
- Como parece que vai chover o dia todo, podem ir para suas casas. Mandarei chamá-los quando for possível reiniciarmos os trabalhos.
Os homens foram se retirando, até que restaram apenas o barão, Dylan e Griffydd.
- Mas onde se meteu Trystan? - indagou Dylan.
- Foi visitar Hu Morgan - esclareceu o tio. Morgan era um ex-tutelado do barão. Bom cavaleiro,
ele desposara uma nobre normanda e já era pai de três filhos e duas filhas.
- Estou surpreso que o tenha dispensado nesta épo¬ca do ano.
- Ele queria ir e não vi por que não lhe dar permissão.
Parecia razoável, mas Dylan conhecia o tio bem de¬mais para acreditar que não havia nada mais. O barão permitira ao filho mais novo viajar naquela época tão atarefada, ou o despachara, por pensar que era o me¬lhor para ele.
Mais uma vez, a desconfiança e o ciúme dominaram o coração de Dylan, que lutou para não revelar os sentimentos diante do barão, que era como um pai. E diante de Griffydd, cujo alto padrão moral o levaria a ofender-se à menor sugestão de desonra quanto a si ou sua família.
Dylan tinha em mente que o primo Trystan fora criado pelo homem mais honrado que já conhecera. Se os sentimentos do rapaz eram causa de preocupação, deveria confortar-se com o fato de ele estar longe. Quando voltasse ao lar, com certeza já teria superado quaisquer sentimentos impróprios pela esposa do pri¬mo, ou encontrado outra mulher a qual cobiçar.
- Mas onde é que se encontra algo para comer neste castelo? - indagou Dylan, brincalhão.
- Não me diga que já se esqueceu do caminho para a cozinha - retrucou o barão, fingindo espanto. - Você, que costumava distrair as serviçais a ponto de eu ter que expulsá-lo de lá?
- Já não se condena ao banimento, espero.
- Uma vez que se casou, é fato.
- Otimo, pois estou faminto. Com sua licença, meus senhores.
- É melhor não se atrasar mais para as refeições - advertiu Griffydd, enquanto Dylan se afastava.
Dylan fez um gesto fútil e foi direto à cozinha.
De pé à porta do salão, Genevieve contemplava a chuva incessante entre suspiros. Se o clima continuas¬se assim, Dylan não voltaria naquela noite. E se per¬durasse até o dia seguinte, não o veria na noite se¬guinte, tampouco.
De repente, para seu desconsolo, uma mulher alta envolta numa capa e carregando um volume apro¬ximou-se dos portões internos. Ela trocou algumas palavras com os guardas e Genevieve reconheceu a voz.
O que Angharad vinha fazer no salão? O que a fizera sair de casa debaixo daquela chuva?
Genevieve pensou em dar meia-volta e esconder-se em sua câmara, mas Angharad a viu. Pior, a mulher tinha aquele sorriso debochado; convencido, como se soubesse que eraa mais forte ali..
Reforçando o orgulho, Genevieve adentrou o salão e aguardou a chegada de Angharad. Algumas criadas trabalhavam no salão e ordenou-lhes que parassem. Poderiam completar a tarefa mais tarde e, nesse ín¬terim, fariam outros trabalhos, fora do salão.
Tomando posição diante da lareira, cujo fogo alto aquecia todo o salão, Genevieve endireitou os ombros e preparou-se para a batalha.
Batalha que não demoraria. Mais alguns segundos e Angharad entrou no salão. Afastando o capuz, estu¬dou o ambiente e encarou Genevieve com uma imper¬tinência de enfurecer.
Com os grossos cabelos negros emoldurando o rosto, Angharad exibia olhos escuros cheios de vida, comple¬mento perfeito a suas belas feições. Não era difícil en¬tender como um homem se atraía por ela, percepção que não confortava Genevieve.
- Bom dia, Angharad - cumprimentou ela, não obstante, formal.
- Estaria melhor sem essa chuva de afogar, minha senhora - replicou a visitante, aproximando-se.
- Estou surpresa que tenha vindo com este tempo.
- Queria trazer-lhe isto. - Angharad estendeu o volume. - É meu presente de casamento, para a se¬nhora e Dylan.
Genevieve supunha que aquela mulher tivesse o di¬reito de referir-se ao castelão sem o título apropriado, mas não podia deixar de se ressentir. Mantendo-se altiva, aceitou o presente.
Era um corte de lã, tecido com capricho e tingido num belo e raro tom de azul.
Genevieve não pôde evitar lamentar que o material fosse tão excelente.
- Ele foi ajudar com o rebanho em Craig Fawr, não é? - comentou Angharad.
- Foi.
A mulher observava-a detidamente.
- Ainda não está grávida.
- Eu... - Genevieve engoliu em seco. - Não é da sua conta.
Angharad aproximou-se mais, fincando o olhar em Genevieve.
- Você é estéril.
Genevieve apertou as mãos na peça de lã junto ao estômago contraído. Para todo o sempre, o cheiro de lã molhada lhe lembraria aquele momento e da horrível sensação de inevi¬tável profecia que as palavras de Angharad provocaram.
- Não... não sabe do que está falando - tartamu¬deou Genevieve, lívida.
- Será que não?
- Não pode saber - sussurrou Genevieve, a voz um pouco mais firme ao recuperar o raciocínio.
Pela primeira vez, viu piedade nos olhos da mulher, e foi justamente isso que a encheu novamente de pavor.
- Como... como pode saber? É uma bruxa?
- Não, não sou uma bruxa. Mas sei das coisas. Soube que daria a Dylan um filho, e que nosso filho chegaria à idade adulta. Sei que Trefor assumirá seu lugar de direito como senhor de Beaufort. E sei que você nunca terá filhos.
- Fora daqui! - gritou Genevieve, apertando a lã encharcada com tanta força que um fio de água es¬correu para o chão. - Fora e nunca mais volte a este salão enquanto eu for a senhora aqui!
Com um sorriso ao mesmo tempo compadecido e triunfante, Angharad deu meia-volta.
Genevieve observou-a deixar o salão. Então, deixou cair a peça de lã no chão e correu para o quarto, fe¬chando a porta com um estrondo.
Pôs a mão no ventre.
- Ela não pode saber! - afirmou, desesperada. - Sente ciúme e ódio de mim, nada mais.
Genevieve ordenou a si mesma que acreditasse nis- so, a despeito da genuína expressão de pesar nos olhos de Angharad.
Três dias depois, Dylan finalmente voltou. Exausto, saudou os sentinelas e relaxou na sela enquanto os portões se abriam para que entrasse.
Partira de Craig Fawr quando o pessoal de lá aca-bava de recolher os carneiros. Já era fim de tarde quan- do atravessara o campo externo cheio de poças d'água de Beaufort. As nuvens anunciavam mais chuva, mas decidira não passar outra noite fora de casa.
Uma vez no pátio, saltou do cavalo e tomou o rumo do salão. Sentiu que havia algo diferente, mas estava mais interessado em se alimentar, vestir roupas secas e rever a esposa, principalmente rever a esposa.
Antes que alcançasse a entrada do salão, porém, a porta se escancarou e Genevieve correu a seu encontro.
- Dylan! - lamuriou-se, atirando-se em seus bra- ços, apertando-o com força.
Ele a abraçou também, deleitado com a recepção.
- Sentiu minha falta?
- Claro que sim! - afirmou ela, a respiração quente sobre o peito dele com a túnica aberta.
- Não pensei que fosse me demorar tanto.
- Se soubesse, eu teria implorado que ficasse.
- Bem, estou de volta agora. O barão já recolheu todo o rebanho - contou, afastando-se um pouco para fitar o rosto da esposa.
Franziu o cenho ao ver como estava pálida e fati¬gada. Devia ter voltado antes, apesar do aguaceiro.
- Foi muito difícil para você, comigo fora? - in¬dagou, conduzindo-a ao salão. - Os criados lhe cau¬saram problemas?
- Os criados são muito obedientes - afirmou Genevieve.
- Ótimo.
No salão, Dylan deixou-se envolver pelo calor que emanava da lareira acesa. Antes, sempre que chegava de uma jornada, nunca encontrara um bom fogo a sua espera, nem quando chovia.
De repente, deu-se conta do que estava diferente lá fora.
Já não havia uma pilha de lenha à porta da cozinha, e o poço ganhara uma nova tampa.
- Mandei preparar nossa câmara para sua volta - comentou Genevieve, desviando os pensamentos do marido para uma direcão mais interessante. - E já pedi a Cait que lhe trouxesse algo para comer.
- Deve ter sentido muito a minha falta, realmente, para me querer tão depressa na câmara.
A esposa enrubesceu um pouco, mas não sorriu.
Dylan preocupou-se, mas deixou para descobrir de¬pois o que se passara no castelo durante sua ausência. Apressando o passo, sentiu o aroma das ervas frescas sobre o piso, a ausência das teias de aranha nos cantos de pedra, bem como as mesas reluzentes, enceradas.
Mas nada disso era tão importante quanto estar com Genevieve outra vez.
Num minuto, após passarem por criadas sorriden¬tes e surpreendentemente submissas, Dylan e Ge¬nevieve viram-se em sua câmara. Uma banheira fu-megante aguardava o viajante, com toalhas secas nas beiradas. Sobre uma mesinha havia uma garrafa de vinho, pão, queijo e um cesto de maçãs. Um braseiro proporcionava calor.
Só faltava afastar as cobertas na cama, concluiu Dylan, em expectativa.
Genevieve olhava preocupada para a banheira.
- Espero que a água não tenha esfriado.
- Parece ótima - opinou ele, livrando-se da capa molhada. Começou a se despir sem pressa.
- Se não andar logo, vai pegar um resfriado.
- Não se preocupe - assegurou Dylan. - Sinto-me quente.
Observou a esposa com mais atenção enquanto ti¬rava a calça.
- Você se resfriou? Parece pálida...
- Não estou doente!
- Folgo em saber. Mas parece cansada, também. Não tem dormido bem?
Dylan entrou na água quente com um suspiro gra¬to, sentando-se. Fechou os olhos e recostou-se contra a borda.
- Está perfeito...
Abriu um olho para ver a esposa.
- Confesso que andei dormindo mal, também,
- É mesmo?
O marido fechou os olhos e afundou mais na banheira.
- Sim. Senti sua falta, Genevieve.
- Também senti sua falta - sussurrou ela, próxi¬ma. - Muito.
Ele ouviu um barulho de água e sentiu ondinhas se formando. Abrindo os olhos, viu a esposa de mangas arregaçadas, pronta para ensaboar-lhe o peito.
A sensação era tão deliciosa que ele nem comentou. Simplesmente, entregou-se.
- Se puder sentar-se, posso esfregar suas costas. Dylan obedeceu e grunhiu de puro prazer sob os cuidados da mulher.
- Talvez valha a pena deixá-la de vez em quando, desde que tenha esta recepção ao voltar.
- Preferiria que não se fosse - replicou Genevieve, mas não em tom provocador.
O marido segurou-lhe a mão, fitando-a detidamente. Estava mesmo pálida, e cansada. De repente, pensou em algo que explicaria tudo.
- Genevieve, será está grávida? - indagou, feliz.
- Não. No dia em que você partiu, eu... - Ela respirou fundo. - Não estou grávida.
- Ah. - Tentando disfarçar a decepção, Dylan sor¬riu encorajador. - Não ainda.
Ele voltou a ensaboar suas costas.
- Não ainda.
Como a esposa continuava tensa, Dylan voltou a estudar-lhe o semblante.
- Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora - concluiu. - Algo que a perturbou. O que foi?
- Falamos disso quando estiver se enxugando.
- Então, vou sair agora e me enxugar.
- Não, Dylan...
Genevieve calou-se enquanto o marido se levantava e pegava uma grande toalha seca. Ele saiu da banheira e enxugou-se rapidamente. Ela lhe estendeu uma tú¬nica, uma calça e meias secas.
Quando acabou de se vestir, ele ordenou:
- Agora, fale.
- Deve estar com fome - desconversou Genevieve, sem encará-lo. - Há pão e...
- Não vou nem me sentar enquanto não me contar - advertiu o marido, severo.
Genevieve sofrera cada minuto em que o marido se ausentara, ansiosa para repetir-lhe as palavras de An-gharad. Chegado o momento, porém, tinha medo de falar.
- E então:
- Não foi nada. Um blefe de mulher, nada mais. Não estou acostumada com os galeses, por isso... - A voz faltou-lhe em meio à aflição.
Mais brando, Dylan aproximou-se e tomou-a cari¬nhosamente nos braços fortes. Ela podia ouvir as ba¬tidas suaves de seu coração, um som reconfortante.
- Diga-me o que, ou quem, a perturbou, Genevieve. Ela não pôde resistir ao apelo gentil.
- Angharad.
A pulsação dele se acelerou, e Genevieve sentiu um arrepio de medo na espinha.
- O que foi que ela disse?
- Disse... - Um soluço a sacudiu.
O marido focou-lhe o queixo com delicadeza, fitando-a.
- O que foi que Angharad disse?
- Disse que sou estéril - sussurrou Genevieve, uma lágrima escorrendo pelo rosto.
Dylan nem se moveu. Por um segundo, até seus olhos privaram-se de expressão. Então, ele tentou sorrir.
- Não ligue para o que diz Angharad. Genevieve não se tranquilizou.
- Ela é uma bruxa?
- Não.
Ela segurou o marido pelos ombros e estudou-lhe o semblante, buscando a verdade. Encontrou-a.
- Mas você acredita nela.
Dylan deu meia-volta e passou a mão nos cabelos molhados.
- Não, não acredito.
- Não minta para mim, Dylan. Acha que ela está certa.
Ele foi até a mesa e despejou vinho no cálice.
- Você sabe que ela está certa! - gritou Genevieve. O marido ergueu a bebida, hesitou e, por fim, en¬carou-a angustiado.
- Não, não sei. Mas receio...
- Acha que ela pode estar certa. Ele confirmou.
- Mas garante que ela não é uma bruxa! - Gene¬vieve estava furiosa.
- Ela não pratica magia negra, ou eu saberia.
- É uma vidente, então?
- Diz ela que sim,
Dylan tomou as mãos da esposa.
- Genevieve, talvez ela esteja errada.
- Ela já se enganou antes? Ele deu de ombros.
- Ela tem sonhos e, às vezes...
- Às vezes...?
- Com frequência - corrigiu-se o marido. - Eles se confirmam.
- Quando foi que ela errou?
- Genevieve, só Deus sabe de nossos destinos. Ela olhou para as mãos fortes que apertavam as suas com força. As mãos de seu amor.
- Quero tanto ter um filho seu, Dylan - sussurrou, agoniada.
O marido a abraçou e afagou-lhe os cabelos ternamente.
- Esqueça as palavras de Angharad, meu amor. Nenhum mortal pode saber o que o futuro nos reserva.
A seguir, beijou-a, esforçando-se para ter em mente o que acabara de afirmar.
- O que mais aconteceu enquanto estive fora? - indagou, com um sorriso, voltando à mesa. - Nasceu algum carneiro?
- Não sei.
Dylan franziu o cenho.
- Thomas não a manteve informada?
- Ele me procurou hoje cedo, mas eu lhe disse que, se tinha a ver com o rebanho ou a fazenda, que espe¬rasse por você. Não entendo nada disso.
Dylan demorou-se escolhendo uma maçã.
- Entendo.
- Realmente, não sei nada sobre ovelhas, Dylan. O marido atirou a maçã para o alto e pegou-a na descida.
- Escreverei a lady Katherine dizendo que ela fra¬cassou em educar minha esposa - disse, brincando.
- Mas entendo bastante de lãs, no entanto.
- Ora, fico feliz em saber que não me será total¬mente inútil.
Genevieve retraiu-se ante o comentário humilhante. Arrependido, Dylan atirou a maçã de volta ao cesto e correu para a esposa.
- Perdão, Genevieve! Falei sem pensar...
- Desde que não tenha falado sério - replicou ela, esforçando-se muito para sorrir.
- Asseguro, minha senhora, que está se tornando muito necessária a mim - afirmou Dylan, achegando-se.
Genevieve o abraçou, retribuindo:
- E você a mim.
Na ponta dos pés, ela o beijou apaixonadamente, necessitada de sentir o desejo dele como nunca sentira antes de Angharad procurá-la no salão.
- Vamos fazer um filho, Dylan - sussurrou, dis¬tribuindo beijos no queixo áspero do marido, no pes¬coço, no peito.
- Agora? - Dylan segurou-a pela cintura, enquanto ela continuava a beijá-lo no peito. - Não disse que estava em seu período...?
Genevieve esquecera-se de aquele talvez não fosse o melhor momento.
- Não que eu me importe... - completou o marido.
- Tem razão - concedeu a esposa.
- De qualquer forma, preciso tomar mais conta de minha língua. - Dylan afastou um cacho loiro de sua testa, beijando-a no mesmo lugar. - Temos muito tem¬po, Genevieve, e farei de tudo para lhe dar um filho.
Ela aquiesceu. Acreditava nele. Amava-o. Precisava dele de um jeito que não imaginara três dias antes.
- Agora, vou procurar Thomas e saber do meu rebanho.
- Vou ver como estão os preparativos para a refeição dos homens quando voltarem - declarou Genevieve.
O marido ofereceu-lhe o braço e saíram da câmara. Enquanto desciam a escada, Genevieve comentou:
- Dylan, gostaria de tirar algumas dúvidas com você.
- Tais como?
- Encontrei um carregamento de lã não lavada num dos depósitos. Podemos usá-la, ou pretende vendê-la?
Ele deu de ombros.
- Use-a, se precisar dela, venda-a, se não precisar.
- Mas o que você prefere?
- Vender, acho.
- Alguns criados precisam de roupas. Essa lã...
- Então, use-a.
- O vinho que eu queria comprar é mais caro do que imaginava. Se encomendarmos cinco tonéis, o mer¬cador baixará um pouco o preço, mas trata-se de uma quantidade muito grande, considerando que quase to¬dos aqui bebem cerveja.
- O que acha melhor fazermos? - indagou o marido.
- Gostaria que você decidisse, já que é seu dinheiro que está em jogo.
Dylan fitou a esposa um tanto contrariado.
- Não é um assunto doméstico?
- Quando se envolve gasto de dinheiro, preciso de sua aprovação.
- Então, compre os cinco tonéis - decidiu o marido.
- O vinho pode azedar antes que possamos consu¬mi-lo todo.
Tendo em mente que a esposa mal se recuperara de um aborrecimento recente, Dylan esforçou-se para não responder asperamente. No íntimo, porém, amal¬diçoava lady Katherine por incutir noções tão rígidas na cabeça das pupilas.
- Nesse caso, diga ao mercador que espero um bom preço, ou não compraremos dele.
Adentraram o salão, onde os criados já punham as longas mesas.
- Já falei com ele - prosseguia Genevieve. - Deu um bom desconto para cada barril, em relação ao preço original. É sua melhor oferta.
- Se acha o preço justo, pague, e proceda da mesma forma quanto a outras mercadorias que precise com¬prar - instruiu Dylan, mal disfarçando a frustração. - Agora, vou procurar Thomas.
Oito noites depois, Genevieve aguardava o marido sentada na cama. Vira-o muito pouco desde que ele voltara de Craig Fawr, porque, aparentemente, as ovelhas tinham começado a parir antes da hora. Dylan, Thomas e os outros homens saíam à primeira luz e chegavam muito tarde, tão exaustos que mal cumprimentavam.
Mas esta noite seria diferente, animou-se, pois soubera, por Llannulid, que as duas últimas ovelhas pre¬nhes tinham parido.
Esquadrinhou o quarto. Estava aquecido, com car¬vões ardendo no braseiro, enquanto três velas propor¬cionavam luz. A cortina um pouco aberta deixava en¬trar a perfumada brisa primaveril. A tina de madeira já estava cheia de água e coberta com toalhas, para que o calor não se dissipasse rápido demais. Dylan não quisera se banhar nas noites anteriores, mas na¬quela talvez agisse diferente.
Com dedos meio trémulos, Genevieve ajeitou o decote da camisola e os cabelos, que escovara umas cem vezes.
Então, com o coração acelerado, reconheceu os pas¬sos do marido na escada.
A porta se abriu e ele entrou fechando a porta.
Genevieve reteve o fôlego ao vê-lo de frente.
- Está ferido? - exclamou, vendo sangue em suas roupas. Pulou da cama para acudi-lo.
- Não, é sangue de animal - explicou Dylan, fa¬tigado, esticando os braços num alerta para que ela não se aproximasse. - Encontramos uma ovelha cujo filhote morreu e outra que deu à luz gémeos. - Foi direto para a banheira. - As fêmeas das colinas con¬seguem produzir leite suficiente para uma cria, mas não para duas. Por isso, arrancamos a pele do carnei-rinho morto e a enrolamos num dos gêmeos, o qual colocamos junto da mãe sem filhote. Pelo cheiro, ela vai achar que é seu filhote e o amamentará. Daqui a alguns dias, tiramos a pele e a ovelha já terá aceito o carneirinho como se fosse seu.
Enquanto o marido despia a túnica suja, Genevieve descobriu a banheira, batendo os dentes, pois o chão de pedra era gelado sob seus pés descalços.
- Espero que a água não tenha esfriado.
- Estou cheirando tão mal que não me importaria se estivesse tão gelada quanto a do córrego em que me jogou naquele dia...
- Você escorregou - lembrou a esposa.
- Bem, não me recordo exatamente como aconteceu.
- Você agitou os braços feito um pássaro doido, tentando se equilibrar.
Dylan sorriu sem graça e se apoiou na beirada da tina a fim de descalçar as botas.
- E, foi um dia e tanto. - Endireitou-se e espre¬guiçou-se. - Céus, é bom ter uma ninhada de carnei-rinhos, mas não precisavam nascer todos ao mesmo tempo. Sabia que nasceram seis pretinhos este ano?
- É mesmo?
O marido olhou-a com atenção.
- Seus lábios estão roxos, meu amor. Volte para a cama e se aqueça... a menos que queira tomar banho comigo?
Genevieve engoliu em seco enquanto ele se livrava da calça, sem pressa e sem modéstia.
- Não, prefiro esperar por você na cama.
- Está bem - concordou Dylan, risonho. Prendeu o fôlego e entrou na água. - Céus, está fria...
- Podemos...
A esposa se calou ao ver o marido espalhar água para todos os lados, molhando a toalha, o chão.
- Dylan?
- O quê? - Ele a olhou curioso. Genevieve começou a rir.
- Com esta expressão, mais os cabelos molhados, você parece um carneiro encharcado!
- Acha mesmo?
Num movimento ágil, Dylan saiu da banheira e cor¬reu para a cama, na qual se atirou ensopado e nu.
- Dylan! - A esposa tentou se afastar dele. - Está todo molhado!
- Então, enxugue-me - sugeriu ele, enfiando-se sob as cobertas.
- Mas você vai molhar tudo!
- E dai? - questionou o marido, a voz abafada.
- Dylan... o que está fazendo?
Ele tirou a cabeça de debaixo das cobertas. Tinha um brilho malicioso nos olhos.
- Não me esqueci do que pretendemos fazer esta noite, Genevieve - comentou, puxando-a contra si. - Vamos, mulher, fazer nosso filho.
Mas não fizeram. Nem naquela noite, nem na seguin¬te, em nenhum momento durante todo o ano. Genevieve começava a pensar que as palavras de Angharad não tinham sido uma profecia, mas uma maldição.
Da janela de sua câmara, Genevieve ob¬servava o marido no pátio, alegre ensi¬nando aos filhos Trefor e Arthur como levantar uma espada. Os meninos não portavam armas verdadeiras, mas réplicas de madeira que o próprio Dylan fabricara durante o inverno. Com que amor ele cortara, enta¬lhara e lixara as peças, enquanto ela tecia um tapete para cobrir uma das paredes nuas do salão.
Nos primeiros meses de casada, otimista, Genevieve confeccionara muitas roupinhas de bebê. Ao final do verão, porém, guardara-as, mais o tecido restante, no baú ao canto do cômodo, onde permaneciam até hoje.
- Não, não, não! - instruía Dylan, jovial. - Assim, pés separados. Joelhos dobrados. Braços soltos, não rijos como uma barra de ferro!
Insistia com Arthur naquela posição havia algum tempo, mas continuava paciente.
Contemplando o resto do pátio, Genevieve viu a cria¬da Cait perto do poço, assistindo à aula, um sorriso de admiração embelezando as faces juvenis.
Por que ela não se encantaria com o jovem senhor, do belo rosto másculo às pernas musculosas, com seu riso musical e a virilidade que exsudava a cada respiração?
Ele percebeu que tinha audiência e disse algo a Cait em galês, que Genevieve não conseguiu entender, pois ainda não dominava a língua nativa do marido. O que quer que tenha sido fez a mocinha corar e rir antes de erguer o balde e saltitar de volta à cozinha, rebolando.
Genevieve voltou-se da janela, esfregando as têm¬poras, passando a andar em círculos, o que fazia com frequência atualmente. Não estava com dor de cabeça, nem indisposta. No entanto, passava cada vez mais tempo na câmara, sozinha, andando de um lado para o outro, como se isso fosse fazê-la sentir-se melhor.
Tinha tarefas a cumprir, naturalmente, que a obri¬gavam a comparecer ao salão e outras partes do cas¬telo. Dando ordens e distribuindo serviços, transfor¬mara os depósitos e câmaras de Beaufort num modelo de asseio e ordem em que nem a rigorosa lady Ka-therine encontraria algum defeito.
Acostumados agora, os criados executavam seus de¬veres com perfeição e rapidez, sem a frivolidade que a presença de Dylan parecia incentivar entre eles.
Nada mais natural. Lady Katherine enfatizara inú¬meras vezes que uma castelã tinha que impor respeito para obter obediência e deferência.
O que lady Katherine não explicara, ponderava Ge¬nevieve, amargurada, era que tal atitude angariava a antipatia das pessoas.
Claro, respeito e ordem eram importantes. E Gene¬vieve sabia que, se tivesse um bebê, seria feliz, mesmo que os serviçais não gostassem dela.
De vez em quando, a fim de quebrar a monotonia, recebiam hóspedes em Beaufort, quase sempre o barão e sua esposa.
Genevieve escrevera ao irmão de sua mãe, um bispo, e em consequência um religioso com educação impe¬cável e maneiras mais apropriadas visitara Beaufort. Era verdade que tratava os galeses com uma certa arrogância e condescendência, mas compreendia-se, afinal, o homem já estivera até em Roma.
O bispo parecia não ligar para o fato de ser tratado como um intruso.
Trystan continuava no castelo de sir Hu Morgan, mas o barão esperava ter o filho caçula de volta ao lar ainda naquela primavera.
Angharad nunca mais voltara ao castelo, pelo que Genevieve sentia-se muito grata.
Abriu a porta do quarto, decidida a distrair a mente com alguma tarefa ou, ao menos, descobrir o que pre¬tendia a criada Cait.
Quase trombou com Dylan.
- Opa, calma, minha senhora! - exclamou o ma¬rido, segurando-a pelos ombros.
Ele a fitou detidamente, o que se acostumara a fazer.
- Eu ia tratar da farinha de trigo - comentou Genevieve. - Elidan parece não entender que quero a melhor, não a mais barata. - Percebia a rabugice na própria voz.
- Isso pode esperar - replicou Dylan, conduzindo-a de volta à câmara. - Tenho novidades.
- Ah, é?
O marido não a encarava.
- Llannulid está grávida. Não de Dylan.
Esse foi o primeiro pensamento de Genevieve.
- Que maravilha! - comentou, alegre.
Dylan receara contar-lhe sobre Llannulid, mas logo percebeu que o temor era infundado. Genevieve pro¬longava o assunto sem mostras de desalento, com exceção do olhar aflito que sempre exibia desde a con¬versa que tivera com Angharad.
- Quando o bebê vai nascer?
- No outono.
- Foi Thomas quem lhe contou?
- Não, foi a pequena Gwethalyn. Encontrei-a com a mãe no vilarejo, quando fui verificar por que Arthur se atrasava. Contou-me que iria ganhar uma irmãzi-nha. Mal pode esperar.
Dylan sorriu.
- Ela está tão certa de que é uma menina! Só espero que não se decepcione...
- De qualquer forma, não se decepcionará - re¬trucou Genevieve. - Mas onde estava Arthur?
- Passou a noite com Trefor e Angharad. Mair... tinha companhia.
- Outro amante.
- Acho que sim.
- Quem?
Dylan deu de ombros.
- Nem imagino.
- Ela nunca vai se casar? - especulou Genevieve, sem disfarçar a irritação.
- Diz que prefere ter seis porcos em casa a um marido.
Não obstante, Dylan quase desejou estar com Mair, saudoso de sua franqueza e liberdade no amor.
Não sabia exatamente quando acontecera, pois fora um processo gradual, mas havia algum tempo amar Genevieve tornara-se apenas mais um dever que ela esperava ver cumprido, e com eficiência, como se não passasse de uma tarefa como qualquer outra.
- Ainda bem que ela despacha Arthur quando re¬solve receber um homem... - comentou Genevieve.
- Ela não é uma prostituta - assegurou Dylan. A esposa ergueu o sobrolho.
- Mas se comporta como uma.
Dylan suspirou, cansado. Não estava com disposição para discutir. Desentendiam-se cada vez com mais fre¬quência, sobre questões maiores e menores.
De fato, Genevieve vinha se mostrando tão irascível que ele até já evitava permanecer no salão.
Ainda que imaginasse qual era a causa de tanta irritação, Dylan já se cansava de inventar desculpas.
- Acho que devíamos passar uns dias fora.
- Onde?
- Em Craig Fawr.
- Por quê?
- Não vamos lá desde o Natal.
- Acho que não quero. Dylan cruzou os braços.
- Temos que retribuir as visitas e já adiamos bastante. Genevieve não respondeu. O marido falou-lhe bran¬do, mas firme:
- A esposa de Griffydd quase morreu ao dar à luz os gêmeos. Não acha que devemos visitá-la, e aos bebês? Você se preocupa tanto com deveres e responsabilidades. Pois é nosso dever, e meu desejo, ir lá, e vamos cumpri-lo nesta primavera.
Como a esposa não se manifestava, Dylan enlaçou-a com o braço.
- Genevieve?
Ela se desvencilhou.
- Muito bem, meu senhor, iremos, como é de seu desejo e nosso dever.
- Ótimo.
- Quando partimos?
- Amanhã.
- Vamos precisar de criados? De Cait, talvez...
- Não, vamos só nós... a menos que precise de alguém?
- Eu, não.
Dylan voltou-se para a porta e olhou para a esposa em expectativa, como se esperasse que ela o acompanhasse.
- Tenho mais uma tarefa a cumprir aqui antes de ordenar aos criados que preparem tudo para nossa viagem.
O marido anuiu, satisfeito por ter alcançado seu in¬tento. Iria comunicar ao administrador Thomas que se ausentaria por alguns dias, além de cumprimentá-lo pela chegada do filho.
Sozinha no quarto, Genevieve abriu o baú no canto, vasculhou o fundo e retirou duas roupinhas de bebê que confeccionara. Eram camisolinhas, bordadas e costuradas com todo o esmero, que daria de presente aos filhos gêmeos de Griffydd.
Três filhos em apenas dois anos de casamento...
Deslizou as mãos pelo tecido macio, ao mesmo tempo que se ajoelhava, apertando as roupinhas contra os seios que jamais alimentariam uma criança.
E chorou.
- Quer dizer que Trystan vai voltar para casa? - comentava Dylan com o primo Griffydd, no salão de Craig Fawr, três dias depois. - Já não era sem tempo.
- Ele tinha seus motivos para ficar tanto tempo com Hu, creio. - O rapaz não tirava os olhos do outro lado do salão, onde sua esposa, Seona, aquecia-se junto à lareira.
Dylan também admirou a jovem senhora com o filho mais velho no colo e dois bebês engatinhando dos lados. Lady Roanna lhe fazia companhia, paparicando as crianças e cuidando para que Seona não se esforçasse demais.
- Onde está Genevieve? - indagou Grifíydd, cortês.
- Ainda se vestindo, acho.
- Ela não fez o desjejum no salão.
- Nesse horário, costuma ir à missa.
- Ah.
Dylan encarou o primo.
- O que quer dizer?
- Nada, nada mesmo - assegurou Griffydd, ex- pressando surpresa nos olhos cinzentos.
Dylan recostou-se na cadeira.
- Perdão, Griffydd - pediu, com um suspiro. - Ando meio irritadiço.
O primo olhou-o perspicaz.
- Há algo errado com Genevieve. O que é?
- Só a tensão de estar casada comigo, creio. Griffydd não se deixou levar pelo falso tom de
brincadeira.
- Ela está doente?
- Acho que não.
- Você não parece preocupado.
- Ela leva as responsabilidades muito a sério, por isso parece sempre cansada e preocupada.
- Acho que é mais do que isso...
- Está falando como Angharad.
- Não sou vidente.
- Ainda bem.
- Mas tem algo errado com Genevieve... e com você também.
Dylan irritava-se.
- E afirma não ser vidente!
- Dylan, sua mulher parece que não tem uma boa noite de sono há semanas, e você não está em melhor estado. Vocês...?
- O quê? - rosnou Dylan.
- Ela tem motivos para questionar sua fidelidade? Dylan levantou-se devagar.
- Se outro homem dissesse isso, eu o mataria. O primo também se levantou, encarando-o.
- Não devia se surpreender com a desconfiança dos que conhecem seu passado.
- E o passado dela? Talvez seja infiel e mim...
- Suspeita disso?
- Não.
- Qual o problema, então? - insistiu Griffydd. Dylan franziu o cenho.
- Só diz respeito a mim e a minha esposa. Mas, como é um intrometido, tenho certeza de que fará seu pai me convocar para uma conversa de homem para homem,
- Você parece estar precisando.
- Nesse caso, vou esperar por ele.
Um dos bebês começou a chorar e os dois homens interromperam a discussão. Seona estendeu o filho maior para lady Roanna e levou o bebê inquieto para mamar ao peito.
Grifíydd dirigiu a Dylan seu enervante olhar seguro.
- Ela quer ter um filho.
- Não está satisfeita com três?
- Não estou falando de Seona, e sabe disso. Dylan cedeu.
- Sei o que Genevieve anseia bem melhor do que você.
- Quero ajudar.
- E posso saber como? Já sei. Como tem muitos filhos, talvez possa dispor de um. Seria como dar um carneirinho gêmeo a uma ovelha que perdeu seu fi¬lhote. Infelizmente, não somos animais.
Griffydd cerrou os punhos.
- É um comentário engraçado, vindo de você.
- Ou talvez esteja disposto a tomar meu lugar na cama de Genevieve...
- Não seja idiota!
- Acha que se sairia melhor? - Dylan ponderou. - Tendo sempre criticado tanto meu comportamento com as mulheres no passado, talvez acredite que eu mereça ter agora uma esposa estéril.
Uma voz feminina carregada de dor e incredulidade ecoou no salão:
- Dylan!
Ele se voltou e viu a esposa de pé a pouca distância, mais pálida do que nunca.
- Genevieve...
Ela se afastou correndo, passando por ele, por Grif¬fydd, pelas mulheres e crianças, para fora do salão.
Dylan praguejou e correu atrás dela. Infelizmente, o pátio estava cheio de serviçais, arrendatários, mer¬cadores e trabalhadores aproveitando o belo dia, e não viu para onde ela foi.
Mas tentaria encontrá-la para se desculpar pelo que dissera.
Embora acreditasse que finalmente dera voz à verdade.
Apesar do ar frio e úmido, Genevieve sentou-se num tronco de árvore caído à margem do rio que beirava Craig Fawr. Atravessara todo o vilarejo rumo ao bos¬que cônscia apenas de que queria ficar só, afastar-se de tudo e de todos.
Das mulheres com os bebês.
Dos graves olhos cinzentos de Griffydd.
E, principalmente, de Dylan.
Ouviu os cascos de um cavalo nas proximidades e levantou-se, enxugando o rosto molhado de lágrimas na barra da saia. Como o vilarejo ficava logo ali, po¬deria gritar por socorro caso fosse atacada.
- Genevieve? - chamou o cavaleiro. - Lady Genevieve?
Ela o reconheceu.
- Olá, sir Trystan.
O rapaz desceu da sela e atirou as rédeas da mon¬taria sobre um arbusto.
- Por um segundo, pensei que meus olhos me pre¬gavam uma peça.
- Não esperava encontrá-lo aqui, tampouco.
Ela o observou aproximar-se. Durante aquele ano em que não o vira, ele mudara, de algum modo.
Apresentava a mesma altura e compleição física, os cabelos ainda lhe roçavam os ombros, a exemplo de todos os homens da família DeLanyea.
O rosto dele estava diferente. Parecia ter perdido a aparência de juventude.
- O que faz aqui, e sozinha? - indagou ele, estudando-a.
Incerta quanto ao significado daquela mudança no rapaz, Genevieve esquivou-se.
- Viemos visitar sua família.
- Foi o que pensei - replicou Trystan, detendo-se a poucos passos dela. - Mas perguntei o que faz aqui, sozinha, no meio do bosque?
Ela olhou para o castelo, com os sentinelas bem vi¬síveis nas muralhas.
- Não há perigo algum.
Trystan deu mais um passo ã frente, o semblante sério.
- Onde está Dylan?
- No salão.
- E você aqui sozinha e infeliz. Genevieve olhou para o cavalo dele.
- Só estou cansada. Que tal voltarmos juntos? Sua família ficará muito feliz em revê-lo.
Quando ela tomou o rumo da trilha, o rapaz a se¬gurou pelo braço, detendo-a.
- O que Dylan fez para deixá-la tão triste? Genevieve tirou a mão dele de seu braço e fitou-o
detidamente.
- Nada. Ele não fez nada que me magoasse ou contrariasse.
Ele a encarava firme.
- Mas alguém fez.
- Sir Trystan...
- Trystan.
- Sir Trystan, vamos voltar para Craig Fawr.
- Não vai me contar por que está perturbada? O rapaz parecia solidário e gentil.
- É Angharad.
- Ah. - Ele suspirou. - Ela lhe disse algo desagradável.
- Parece que é vidente.
- Ou assim quer fazer crer.
- Você não acredita.
- Não.
- Por que não?
- Porque o destino que ela me profetizou é sim¬plesmente ridículo e absolutamente impossível.
O ceticismo de Trystan proporcionou a Genevieve mais conforto do que ela experimentava havia um bom tempo.
- Que destino?
- Ela disse que eu me casaria com Mair. Mair! - repetiu, desdenhoso.
Pela primeira vez em dias, Genevieve sorriu.
- Fala como se Mair fosse a mulher mais feia da Cristandade.
- Antes fosse. Mas é uma prostituta imoral, desa¬vergonhada, que não conhece seu lugar.
- Oh, você a tem mesmo em péssimo conceito! - replicou Genevieve, cônscia de que externara a mesma opinião sobre a moça.
Trystan voltou a fitá-la daquele jeito constrangedor. Ela desviou o olhar.
- Creio estar sendo um tanto egoísta, prendendo-o aqui comigo. Vamos logo para o castelo.
Ele concordou.
- Permita-me acompanhá-la, minha senhora. Gos¬taria de montar em meu cavalo?
- Não é longe. Prefiro caminhar.
- Pois bem.
Genevieve olhava o acompanhante de soslaio. Talvez a emoção que pensara ver nos olhos dele fosse fruto de sua imaginação... a exemplo do amor que pensara ver nos olhos de Dylan um ano antes.
Desta vez, esperava que fosse mesmo só imaginação, pois já tinha problemas demais com que lidar.
- Vai voltar para o castelo de sir Hu? - indagou, conforme se aproximavam do vilarejo.
O rapaz fez que não.
- Voltei para ficar.
- Seus pais vão gostar de saber.
- Vão.
- Sentiram muito a sua falta.
- Tive meus motivos para me afastar. Adentravam o vilarejo, sendo notados por alguns
dos moradores. Eles saudaram Trystan, e Genevieve previu que a notícia da chegada do jovem senhor al¬cançaria o castelo antes deles.
- Creio que haverá festa esta noite - comentou ela.
- Imagino.
- Seona está bem melhor.
- Que bom. E minha mãe deve estar louca pelos bebês.
- Está. Mas é seu pai quem parece mais feliz.
- Suponho que sim, porque, certa época, ele pensou que não poderia ter filhos.
Genevieve olhou-o surpresa.
- É mesmo?
- Percebeu como ele manca?
- Percebi.
- Havia outro ferimento... - Trystan sorriu. - E claro que sarou.
- Quem dera que todos os problemas desse tipo tivessem fácil cura - murmurou Genevieve, amargu¬rada, enquanto Trystan cumprimentava um dos fer¬reiros, cujos dentes reluziam no rosto enegrecido.
Então, Dylan apareceu e foi ao encontro dos dois com expressão nada acolhedora. Instintivamente, Ge¬nevieve apertou a mão no braço do acompanhante.
- Genevieve, onde diabo você se...
- Saudações, Dylan - impôs-se Trystan, friamente, pondo a mão sobre a de Genevieve de um jeito possessivo.
Ela se desvencilhou.
- Fui dar uma volta junto ao rio e...
- E por acaso se encontraram - completou o ma¬rido. - Que maravilhosa coincidência.
- Foi exatamente assim - afirmou Genevieve, con¬trariada. - Ainda não deu as boas-vindas a seu primo.
- Bem-vindo, Trystan - disse Dylan, rude. - Precisamos voltar logo, Genevieve. Mandei reunir a guarda para procurá-la. Já devem estar montando nos cavalos.
Com isso, deu meia-volta e tomou o rumo do castelo. Genevieve pediu desculpas a Trystan com o olhar e apressou-se atrás do marido.
- O que há com você, para ser tão agressivo com seu primo? - questionou ela, quando conseguiu al¬cançá-lo nas passadas largas. - Que maneira foi aque¬la de recebê-lo?
- Se estou zangado, culpe a si mesma. Como pôde sumir desse jeito, sem dizer aonde pretendia ir?
- Eu não sabia aonde iria, exceto que seria para bem longe de você!
O marido fitou-a por alguns segundos e então, concentrou-se na trilha que levava aos portões da fortaleza.
- Quer dizer que se encontraram por acaso?
- O que mais poderia ter sido?
Genevieve estacou e agarrou o braço do marido, ob¬rigando-o a parar, sem se importar com o fato de al¬guém observá-los.
- O que mais?
Dylan desvencilhou o braço.
- Não sei - grunhiu, e retomou a caminhada.
- Não me deixe falando sozinha, Dylan! Quero sa¬ber o que pensa!
Ele girou nos calcanhares e lançou-lhe o olhar mais hostil que ela já vira.
- Para uma mulher que preza tanto a dignidade, você parece determinada a dar um espetáculo.
Trystan alcançou-os correndo.
- Não fale com ela desse jeito!
- Fique fora disto, garoto! - advertiu Dylan.
- Do que me acusa? - quis saber Genevieve.
- Sou um cavaleiro - declarou Trystan, exaspe¬rado. - Jamais...
- Dylan tem razão - interrompeu Genevieve, per¬cebendo que chamavam a atenção dos aldeões. - Não vamos resolver nossas diferenças em público.
Ultrapassando o marido, tomou a dianteira no ca¬minho para Craig Fawr.
- Esta deveria ser uma ocasião feliz - observou, por último.
Os dois homens encararam-se raivosos, como cães obrigados a partilhar o mesmo osso.
Quando chegaram ao grande salão, Dylan e Trystan já haviam conseguido disfar¬çar a animosidade sob uma aparência de tolerância, assim como Genevieve. Era como se os três concordas¬sem tacitamente que demonstrar qualquer sentimento além de alegria estragaria a felicidade do barão e da esposa quanto ao retorno do filho caçula.
Mas isso não significava que Dylan não estava an¬sioso para ver-se a sós com a esposa. Infelizmente, teve que esperar o que lhe pareceu uma eternidade até que ela por fim se retirasse do salão.
Primeiro, tiveram que tolerar toda a manifestação de surpresa e alegria com a volta do jovem cavaleiro. Depois, ouviram os relatos de Trystan acerca de sir Hu e sua família, todos gozando de ótima saúde, his¬tórias sobre as pessoas mais maravilhosas do reino etc. etc.
Genevieve prestava a máxima atenção ao que dizia o amigo, mal dignando-se olhar para o marido impaciente.
O que impediu Dylan de exigir que a mulher se retirasse com ele de imediato foi a idéia de que ela já devia ter percebido a gravidade de seu erro ao deixar o castelo sem avisar ninguém, porém, orgulhosa, adia¬va o pedido de desculpas o quanto podia.
Tão logo trancaram-se na câmara, entretanto, após Genevieve pedir licença para trocar de roupa com vis¬tas ao jantar, Dylan constatou o quanto se iludira.
- Nunca mais faça isso! - advertiu ela, irada, as¬sim que fecharam a porta.
- O quê? Esperar pacientemente que você decida se retirar do salão?
- Sabe muito bem do que estou falando! - A esposa olhou-o fulminante. - Nunca mais se atreva a falar comigo do jeito que falou lá, fora do castelo.
- Diga-me, foram as palavras que a perturbaram, ou o local? Foi só o fato de eu tê-la repreendido em público, e não o tema da questão, minha augusta senhora?
- Suas suspeitas idiotas e infundadas não merecem consideração.
Dylan aproximou-se da mulher, o rosto hostil a pou¬cos centímetros do dela.
- É a declaração típica dos culpados.
- Já que falamos de infidelidade, tenho que me curvar a seu conhecimento superior de como deve se comportar um culpado, meu senhor.
- Nunca fui infiel a você, Genevieve.
- Ah, não? Cait parece admirá-lo muito...
- Então, é isso? Muitas mulheres admiram. Isso não significa que durmo com elas.
- Suponho que deva sentir-me grata com o fato de o senhor conseguir se conter.
- Deveria, sim.
- Pois bem, declaro-me feliz por constatar que meu marido honra os votos que fez e nunca deixa a esposa pelo leito de outra mulher, ainda que centenas delas se disponham a recebê-lo de bom grado.
Genevieve apontou para a porta.
- Pois pode procurar suas vadias, se quiser! - autorizou.
Dylan estreitou o olhar.
- Deixando-a livre para tomar outro homem? Ou seria... um garoto?
- Patife vil e desprezível! Meu tio tinha razão! Não sei como demorei tanto a enxergar!
- Sou homem e sei o que vi.
- O que foi que viu? A mim conversando com seu primo, um rapaz gentil que me trata com todo o respeito?
- Sim, com todo o respeito - desdenhou Dylan. - Faça o que fizer, deve exigir respeito.
- Assim como o senhor... mas ao menos tente ga¬nhá-lo. Eu não negligencio meus deveres por achar mais importante que gostem de mim.
- Ainda bem que pensa assim, pois creio que nin¬guém em Beaufort gosta da senhora.
Genevieve enrubesceu.
- Prefiro ter respeito. Não me valho de charme e gentilezas para liderar meu pessoal.
- Uso o método que considero o melhor.
- Método? Chama liderança relapsa, gracejos e lisonjas de método? Saiba que denotam medo.
O marido enfureceu-se.
- O que foi que disse? Ela o encarou desafiadora.
- Isso mesmo que ouviu. Você tem medo de todos eles, de Thomas Magricela ao comandante de sua guar¬da, passando pelo mais humilde ajudante de cozinha ou criada de salão.
- É mentira.
- Teme que eles pensem que você é como seu pai e seu avô, por isso faz tudo para que os subordinados lhe tenham afeto. Não respeito, nem lealdade, mas afeto.
- Isso é ridículo.
- Será?
- É!
Dylan cercava a mulher, como um gato mirando um pássaro distraído.
- Não há dúvida de que Trystan a respeita. - Assim espero.
- Ele já declarou que a ama?
- Ele não me ama.
- Tem certeza?
Genevieve ganhou manchas rosadas no rosto.
- Ele não me disse nada sobre seus sentimentos.
- Mas dirá. E o que lhe responderá? Que eu não a respeito? Que desconfia de que tenho sido infiel? Que lamenta ter-me desposado?
- Se Trystan me declarar algo semelhante, eu lhe direi que pretendo honrar os votos que fiz.
- Quer dizer que é honrada, mas eu, não.
- Já não sei o que pensar de você.
- Genevieve, sou seu marido!
- E eu sou sua esposa estéril!
Antes que Dylan pudesse responder, Genevieve completou:
- Talvez seja hora de reconhecermos nosso erro, Dylan. Casamo-nos às pressas, sem conhecermos o bas¬tante um do outro. Escreverei novamente a meu tio, o bispo. Com certeza, ele encontrará uma justificativa eclesiástica para anular nosso matrimônio.
Era como se ela tramasse acabar com aquele casa¬mento havia semanas.
- Se é o que quer - murmurou Dylan.
- Acho que seria melhor.
Genevieve estava calma, como se desse ordens re¬lativas à próxima refeição, ou à roupa de cama, ou a um vestido novo, enquanto Dylan tinha a impressão de que o chão lhe fugia aos pés.
Agora, ele sabia como Griffydd se sentira ao pensar que perderia a adorada esposa. Preferiria morrer a viver sem o amor de Genevieve.
Contudo, ante a frieza da esposa, ele não daria mos¬tras de seu desalento.
- Pois bem. Faça o que quiser.
- Dadas as circunstâncias, pedirei ao barão que me deixe ficar aqui até que tudo esteja acabado. Pode enviar-me meus pertences quando chegar a Beaufort.
- Se é o que quer.
- É.
Dylan aquiesceu, deu meia-volta e saiu da câmara.
Genevieve permaneceu imóvel por um longo tempo, até que ouviu alguém chamar Dylan no pátio lá em¬baixo. Da janela, viu o marido galopar para além dos portões, surdo aos apelos do primo Griffydd para que voltasse.
Apoiada na esquadria, disse a si mesma que tinha que ser assim.
Dylan DeLanyea precisava de um herdeiro legítimo e ela não podia dar-lhe um.
O barão Emryss DeLaneya conversava com seu ad¬ministrador, Rhys, no solar do castelo quando percebeu alguém à porta. Se ficou surpreso ao ver Genevieve com expressão tão amargurada, disfarçou ao levantar-se atrás da ampla escrivaninha.
- Sendo assim, está tudo preparado para a festa de hoje à noite - comentou, em tom de encerramento.
- Sim, meu senhor - replicou o gordo administra¬dor, levantando-se da cadeira de visitas.
A caminho da saída, cumprimentou Genevieve.
- Minha senhora.
Ela inclinou a cabeça e adentrou o solar.
- Espero não estar incomodando, meu senhor.
- De forma alguma. Sente-se, por favor. Genevieve acomodou-se na cadeira deixada pelo
administrador.
- Nem sei por onde começar.
- Pode começar me contando por que Dylan saiu a cavalo com tanta pressa - sugeriu o bom homem, com um sorriso no rosto cheio de cicatrizes.
- Para Beaufort.
- Algum problema lá?
- Não. - Genevieve engoliu em seco. - Vim pe¬dir-lhe que me hospedasse por mais algum tempo.
- Com prazer. Mas por quê?
- Escreverei a meu tio, o bispo, em Londres. Quero que ele descubra uma maneira de anular meu casamento.
O barão olhou-a perplexo.
- Estão tão mal assim?
- Estamos.
- Genevieve, considerando que permiti a realização deste enlace, sinto-me um tanto responsável.
- Não precisa.
- Pode me contar o que aconteceu? Conheci Dylan a vida toda dele. Talvez possa ajudar.
- Não acredito.
- Deixe-me tentar.
O barão parecia tão inconformado e preocupado, e Genevieve estava tão só que concluiu que seria bom inventar uma desculpa antes que os fofoqueiros de plantão o fizessem em seu lugar.
- Ele é desleixado demais.
- Sabe a razão disso, creio.
- O que não justifica.
- Mas também não condena.
O barão inclinou-se para a frente.
- Genevieve, não é uma crítica, mas acho que não dá a devida importância ao legado que ele enfrenta. O pai e o avô dele foram os senhores mais odiados e desprezados de Gales, e com razão. Não consegue en¬tender que ele quer ser diferente deles?
- Mas precisa ser tão...?
- Sim, precisa, ou não seria Dylan. Genevieve franziu o cenho, imaginando se se enga¬nara quanto à imparcialidade do barão.
- Não quero parecer mesquinha, mas esforcei-me muito para tornar Beaufort um lar agradável, só que meu marido nunca me disse um "obrigado".
- Está certa - replicou o barão. - Parece mesquinha. Genevieve já se levantava da cadeira, mas o castelão
a deteve.
- Não precisa se retirar indignada. É natural es¬perar alguma mostra de gratidão - reconheceu. - Dylan não liga muito para formalidades, mas tenho certeza de que aprecia seus esforços. Se eu falar com ele, reconhecerá seu erro.
Genevieve cruzou as mãos. Talvez, agora que já ti¬nham dito tudo, só tivesse a verdade a lhe oferecer.
- Deixei o mais importante para o final. Não sou uma esposa adequada para Dylan.
O barão DeLanyea recostou-se na cadeira, surpreso.
- Não é uma esposa adequada? Quem se atreveu a dizer esse absurdo?
- Não posso ter filhos.
- Ah. - O barão esfregou a cicatriz sob o tapa-olho. - Parece bem certa disso.
- Já faz um ano.
- Minha esposa lhe diria que, às vezes, demora um pouco mais.
- Temos... nos empenhado.
- Posso imaginar.
- Nunca me feri, meu senhor, de modo que não há nada a curar.
- Se pensa assim, sou solidário com seu dilema. O barão tratava-a tão gentil que ela se arrependeu das palavras de pouco antes.
- Sim, meu senhor, mas há mais.
- Mais?
- Angharad afirmou que sou estéril. O castelão franziu o cenho.
- Ah, Angharad. E acredita nela?
- Até agora, ela provou ter razão.
- O que Dylan pensa disso?
- Disse que não acredita, mas sei que pensa o con¬trário. - Genevieve olhou aflita para o barão. - E o senhor?
- Não importa a minha opinião. O problema é que vocês dois acreditam. Ele soube da profecia de Ang¬harad hoje?
- Não. Temos brigado e discutido muito ultima¬mente, sobre muitas coisas. Hoje foi apenas o fim de uma longa estrada que percorremos. Chegamos ao fim.
- Entendo.
O barão levantou-se, percebendo que a moça não desejava continuar falando desses assuntos.
- Acho melhor informar minha esposa de que per¬manecerá conosco.
Olhando-a solidário, completou:
- Apenas permita-me um conselho, minha senhora. Espere um pouco antes de escrever as tais cartas. Dy¬lan é um homem destemperado e você, uma mulher orgulhosa. Dêem-se algum tempo antes de agir.
- O que não fizemos antes de nos casarmos?
- Se coloca nesses termos, sim.
Genevieve aquiesceu, certa de que tinham se dado um tempo, mas a medida só aprofundara o abismo entre eles.
- Posso ficar mais um pouco aqui em seu solar, meu senhor? - pediu. - O castelo encontra-se em tamanho azáfama com a volta de seu filho que apre¬ciaria esta quietude.
- Certamente, minha cara. Fique o tempo que qui¬ser, pois já completei meus deveres hoje.
O barão foi até a porta, mas voltou-se ainda uma vez.
- Não pense que só o seu casamento tem problemas, Genevieve. É difícil viver a dois.
Ela o observou afastar-se. Então, entregou-se às remi¬niscências da primeira vez que vira Dylan, no pátio da¬quele mesmo castelo. Como o achara lindo e forte! Tinha um sorriso maravilhoso. E tratara-a tão lisonjeiro...
Jovem e tola, enchera-se de sonhos.
- Minha senhora?
Genevieve sobressaltou-se à chegada de Trystan.
- O que faz aqui? - indagou ele.
- Estava pensando - respondeu ela, sincera. - Agora, se me dá licença...
Ele fechou a porta. Genevieve estranhou.
- O que está fazendo?
Ele a fitou com expressão desesperada.
- Preciso falar-lhe.
- Não acredito que gostaria de ouvir algo que tenha a me dizer - ralhou Genevieve, desconfiada.
- Eu a amo.
- Não quero ouvir isso! .
- Mas precisa! - insistiu o rapaz, atirando-se de joelhos diante dela. - Tem de saber como me sinto a seu respeito! Eu a amo desde a primeira vez em que a vi!
- Não devia. Sou uma mulher casada.
- Casada com um homem que não a merece!
- Isto é ridículo, Trystan. Vou embora. - Genevieve foi para a porta.
- Não!
O cavaleiro agarrou-a pelas pernas, quase derrubando-a.
- Trystan, pare com isso!
Ele se levantou e segurou-a pelos braços, fitando-a detidamente.
- Genevieve, afastei-me daqui amando-a, e longe permaneci, certo de que o tempo e a distância me cu¬rariam desse amor. Tudo em vão.
- No instante em que a vi no bosque, soube que nada jamais me curaria desta doce loucura. Eu a amo de todo o coração!
- Sou a mulher de Dylan.
- Um patife lascivo que ousa acusá-la de infidelidade.
- Se o visse aqui, ele teria um bom motivo para me acusar. Solte-me.
- Eu só quero que ouça, que entenda! Eu a amo, e ouvi o que pretende fazer. Escrever a seu tio. Sim, anule esse matrimônio... e deixe-me desposá-la. Serei um marido melhor do que Dylan jamais seria capaz!
- Como descobriu minha intenção? Trystan enrubesceu e desviou o olhar. Genevieve estreitou o olhar.
- Não é nada honrado para um cavaleiro ouvir atrás das portas.
- Um homem desesperado toma atitudes desesperadas.
- Então, se ouviu atrás da porta, sabe por que não posso ser mulher de Dylan.
- Não me importo que seja estéril.
- Mas eu me importo! - gritou Genevieve, libe¬rando toda a tensão acumulada nas últimas semanas. - Se não vou ficar com o homem que amo porque não posso dar-lhe filhos, acha que seria capaz de me casar com outro?
- Você o ama? - sussurrou Trystan, incrédulo.
- Amo - confirmou Genevieve, conscientizando-se do fato só agora, que Dylan se fora. - Amo, sim.
- Pois ele não deve amá-la, se a abandonou aqui.
- Você pode estar certo.
- Ele terá outra na cama em uma semana.
- Espero que sim - mentiu ela. - Quero que ele seja feliz.
- E eu quero que você seja feliz.
Trystan tomou-lhe as mãos, sem saber imitando o gesto que Dylan repetira tantas vezes e que serviu apenas para lembrar Genevieve do homem que se fora.
- Dylan é incapaz de fazer uma mulher feliz por muito tempo - assegurou o cavaleiro.
Genevieve pensou nos primeiros dias de seu casa¬mento, antes que a sombra da esterilidade os enco¬brisse. Incapaz de fazer uma mulher feliz por muito tempo? Jamais teria se cansado dele, de seu riso e vitalidade, de seu bom humor e ternura. E de sua paixão.
- Por favor, Genevieve, não recuse o que tenho a oferecer! Eu te amo!
Delicadamente, ela desvencilhou as mãos.
- Eu não amo você.
- Amará, com o tempo! - implorou ele.
- Não, Trystan - decidiu Genevieve, definitiva, sentindo-se no mínimo vinte anos mais velha do que ele. - Nunca amarei você, nem a nenhum outro ho¬mem, além dele.
Trystan serenou, curvando os lábios em desprezo, como se finalmente entendesse as palavras dela.
- Ele não merece sua lealdade.
- Talvez não, mas tem meu amor. Sempre o terá.
- Nesse caso, julguei-a mal - constatou Trystan, amargurado. - Não é diferente das outras mulheres, engabeladas pela beleza e charme fútil de Dylan.
Ante as palavras ásperas, Genevieve percebeu que não estava diante de um adolescente apaixonado, en¬tregue a uma devoção eterna. Tratava-se de um ho¬mem, com coração de homem, desejo de homem, amor de homem. E raiva de homem.
- Trystan, gostaria que eu fosse insincera ao meu coração? - questionou. - Gostaria que eu o encora¬jasse, mesmo sabendo que jamais poderei amá-lo? Não vê como isso seria cruel, ostentação da pior espécie?
O rapaz não respondeu, então ela continuou:
- Gosto demais de você, respeito-o demais, para fazer-lhe isso. Algum dia, encontrará outra mulher, mais digna, a quem amar, e que lhe retribuirá essa dádiva preciosa.
- Como Mair? - replicou ele, desdenhoso. Genevieve estendeu a mão, desejosa de confortá-lo,
mas ele recuou, como se o toque dela agora fosse veneno.
Trystan saiu do solar. Genevieve ouviu a mãe do rapaz chamá-lo mais de uma vez, mas a única resposta foi o estrondo da porta do salão batendo.
Massageando as têmporas, Genevieve amaldiçoou o tio por um dia tê-la levado a Craig Fawr.
Em seguida, amaldiçoou a si mesma, pois tornara-se uma chaga para aquela boa gente.
Um mês depois, Dylan entrava exausto no salão de Beaufort. Tinha as mãos sujas de sangue, o corpo, suado, e as botas, enlameadas. Seguia-o um desanimado grupo de soldados e pastores, encabeçados pelo administrador Thomas, igualmente cabisbaixo. Entreolhavam-se tensos nas poucas vezes que conseguiam desviar o olhar de seu irado senhor.
- Voltaremos amanhã, até termos liquidado a úl¬tima raposa - rosnava Dylan.
Estacando, levou as mãos à cintura e apreciou o salão em desordem.
As mesas estavam como as haviam deixado pela ma¬nhã. Aliás, fazia tempo que não eram limpas. Uma teia de aranha flutuava no ar a sua frente e, a despeito de sua apresentação menos que recomendável, sentia o mau cheiro dos restos de comida no chão.
- Como disse, meu senhor? - murmurou Thomas, temeroso, atrás dele.
Dylan voltou-se e encarou o subordinado.
- Eu disse que voltaremos amanhã, à primeira luz, e daremos cabo de todas as raposas que encontrarmos.
- Mas os carneirinhos...
- É por causa deles que iremos! - vociferou Dylan, ainda atormentado pela imagem dos três carneiros re-cem-nascidos decapitados, com os corpos estraçalhados. Uma raposa executara a matança, e depois largara os corpos destroçados numa samambaia, como o prêmio selvagem de um conquistador.
- Não terei meu rebanho dizimado por malditas raposas.
- Como quiser, meu senhor.
Dylan reparou na contrariedade do administrador, e ouvia as lamúrias fatigadas dos demais homens, mas nem ligou.
- Cait! - berrou. - Onde está a comida?
A jovem criada apareceu, torcendo o avental nas mãos, nervosamente.
- Por que a comida não está na mesa? - perguntou Dylan, furioso. - Será que muito querer ser alimen¬tado após um dia inteiro nas colinas?
Ergueu os braços, abrangendo o salão.
- E isto aqui está uma vergonha! Só porque minha mulher não está aqui, relaxaram? Pois continuo sendo o senhor de Beaufort, Deus do céu, e espero ser tratado como tal!
Dando meia-volta, suspendeu a mesa mais próxima e deixou-a cair com um estrondo que fez a criada e os homens estremecer.
- Vou me lavar e, quando estiver de volta, quero as mesas limpas e a comida posta, ou vão se arrepender do dia em que nasceram. E amanhã, quero este chão cheiroso e brilhando. Entendeu, vadia?
A mocinha enrubesceu, mas Dylan nem ligou. Era o mestre e senhor ali e teria aquele salão em ordem, como na época em que Genevieve regia.
Impondo asseio e ordem, ela presidia à mesa prin¬cipal com os lindos olhos azuis sempre atentos.
- Bem, mexa-se! - ordenou, ao perceber que a criada continuava olhando-o feito parva.
Com isso, foi direto para a escada e subiu à ala íntima do castelo.
Sua câmara encontrava-se num caos ainda maior do que o do salão, constatou, zangado. Que diabo os serviçais faziam o día todo, enquanto ele cuidava da propriedade?
As criadas nunca tinham se mostrado tão desleixa¬das, nem antes de ele se casar com Genevieve.
Ou estava enganado?
Despiu a túnica, atirou-a na cama desarrumada e foi ao aparador com água. A bacia não fora esvaziada da água fria e suja. Ergueu o jarro e virou-o sobre a bacia. Nem uma gota de água limpa.
Escancarou e porta e berrou:
- Cait!
Passos ligeiros ganharam a escada enquanto Dy¬lan voltava ao aparador e tirava o grosso da sujeira na água usada mesmo. A criadinha chegou ofegante à porta.
- Devia haver água limpa aqui! - ralhou ele, apon¬tando para a tina de banho. - E quente!
- Meu senhor... desculpe-me - tartamudeou Cait, corada, incapaz de encará-lo. - É que... o senhor não falou nada antes de sair, pela manhã.
Ele avançou para a criada.
- Tenho que ordenar o óbvio? Será difícil deduzir que me agrada um banho quente?
Sempre de olhos baixos e rosto avermelhado, Cait balançou a cabeça. Seu peito subia e descia a cada respiração.
Fora um longo mês aquele, um mês inteiro em que Dylan vivera como um monge.
Sem hesitar, puxou a criadinha entre os braços. Ela pousou as mãos no peito másculo e tentou empurrá-lo.
- Meu senhor! - gritou, enquanto ele a abraçava com mais força.
- Você quer isto - desdenhou ele, certo de que a mocinha estava só surpresa. - Você me quer.
Quando ele tentou beijá-la, ela virou o rosto e lutou para se desvencilhar, deixando claro que, se ele a to¬masse, seria contra a vontade dela.
Dylan podia ignorar a verdade. Podia subjugá-la e fazer pouco do medo em seus olhos, tomando o que queria.
Como seu pai e seu avô.
Com um grunhido selvagem, empurrou a criada pela porta.
- Fora daqui! - rosnou. A moça fugiu correndo.
O que acontecera ali? Que se passava com ele des¬de que Genevieve o abandonara, permanecendo em Craig Fawr?
Tornara-se um ogro, um líder que não tinha o afeto, nem mesmo o respeito, dos comandados. Eles agora o temiam.
Deus do céu, transformava-se num monstro, numa criatura zangada e amargurada que só pensava em si e em seus próprios desejos. Apoiou as mãos no apa¬rador e deixou pender a cabeça. Céus, começava a agir como seus predecessores, só porque perdera Genevieve.
Ao mesmo tempo, perdera-se. Estava irremediável, maligna e desesperadamente sozinho, como nunca es¬tivera antes.
Como sempre estaria, a menos que a recuperasse.
Talvez já fosse tarde demais. Sem dúvida, àquela altura, Genevieve já escrevera ao tio bispo, eficiente como na época em que reinara naquele castelo. Talvez o processo de anulação já estivesse em andamento.
E ela já o tivesse rejeitado por completo.
O que faria? O que ainda podia fazer?
Foi até a janela e contemplou o céu que escurecia. Nuvens de tempestade concentravam-se no topo das co¬linas. Relâmpagos brilhantes cortavam a massa negra.
Só um demente se aventuraria num tempo daque¬les, à noite. Só um homem sem o menor orgulho se humilharia diante de uma mulher, implorando seu perdão.
Ou, talvez, só um homem desesperado para recuperar o amor que tão egoísta e estupidamente jogara fora.
Sozinha no solar do barão, Genevieve ouvia as gotas de água caindo no peitoril da janela. Uma terrível tem¬pestade desabara à noite, com raios, trovões e chuva torrencial. Perdurara manhã adentro e, de repente, cessara, como que consumida em si mesma.
Agora, à escrivaninha do barão, diante do pergami¬nho e da tinta, tentava encontrar as melhores palavras para a carta que escreveria.
Decorrido um mês, finalmente chegava a hora de enviar seu pedido ao tio eclesiástico.
Seguira o conselho do gentil barão e usufruíra de sua hospitalidade, mas não podia adiar mais o suplício, pois era evidente que Dylan não voltaria para ela.
Por que voltaria?, ponderou. Sabia que ela estava certa ao pôr fim àquele matrimônio.
Assim como estava certa ao ser franca com Trystan. Desde aquele dia horrível, o rapaz a evitava sempre que se viam na mesma sala, e ela fazia o mesmo. Se os pais dele desconfiavam de algo, guardavam silêncio e continuavam a tratá-la com afeto e delicadeza. No entanto, não poderia permanecer em Craig Fawr para sempre. Por isso, decidira escrever aos dois tios, um para ir buscá-la ali, o outro para destruir seu vínculo legal com Dylan DeLanyea.
Pegou a pena. Em latim, ou não? O latim nunca fora seu forte, e lady Katherine acreditava que os úni¬cos termos que as mulheres precisavam realmente sa¬ber naquela língua eram os jurídicos, em especial os relativos a propriedade, herança e acordos de matri¬mônio. Infelizmente, a preceptora jamais cogitara a anulação de um casamento.
Escreveria na língua materna, portanto.
Mergulhou a ponta da pena no pequeno tinteiro de cerâmica.
Naquele instante, um sentinela gritou da muralha e outro deu sinal de alarme.
Ansiosa, Genevieve esquadrinhou os altos muros e pedra, tentando ver o local em que os soldados tinham se aglomerado.
Deu-se conta, então, de que o alvoroço acontecia no pátio abaixo, em torno de uma carroça cheia de barris que devia ter atravessado os portões naquela hora, visto que ainda estavam abertos.
Genevieve inclinou-se para fora da janela, tentando ver melhor. Uma multidão rodeava a carroça e a mu¬lher de aparência familiar junto ao veículo, que ges¬ticulava animada.
Era Mair! Talvez tivesse sido atacada e assaltada na estrada.
O povo se repartiu quando o barão e Griffydd che¬garam. Os fidalgos deram algumas ordens e então ti¬raram algo... ou melhor, uma pessoa, da traseira da carroça.
- Dylan! - exclamou Genevieve, lívida, como se uma flecha lhe trespassasse o coração, ao ver o corpo imóvel do marido. - Oh, meu Deus, não!
Agarrando as saias, saiu correndo do solar rumo ao salão, ao qual chegou no momento em que carregavam seu marido para dentro. O barão e seu filho foram cercados por criados e trabalhadores enquanto acomo¬davam Dylan sobre um banco.
Genevieve empurrou Mair e, horrorizada, contem¬plou o rosto pálido do marido, os cabelos ensopados, as roupas enlameadas.
E a perna esquerda envolta em ataduras rústicas, imundas.
- Ele está morto? - indagou, a voz embargada, como se sua garganta rejeitasse as palavras medonhas. - Digam-me que ele não está morto!
Antes que alguém respondesse, Dylan abriu os olhos e fitou a esposa com expressão angustiada e feliz ao mesmo tempo.
- Genevieve... - sussurrou. - Você a enviou? Ela se ajoelhou no chão e tomou-lhe a mão fria, mal cabendo em si de alegria ante o que via e ouvia.
- A carta para seu tio... você a mandou? - quis saber ele, numa voz entrecortada que nem se asseme¬lhava a seu maravilhosos tons graves. - Ele respondeu?
- Não! - respondeu Genevieve, chorando de alívio, alheia às pessoas que os cercavam. - Não a enviei. Não pude...
- Graças a Deus! - aliviou-se Dylan, esboçando um sorriso no rosto em agonia. - Graças a Deus, não me atrasei demais. Eu lhe imploro... que me aceite de volta.
O barão pigarreou, mas Genevieve o ignorou.
- Oh, meu amor! - Ela apertou a mão dele contra o rosto. - Aceitar você? Eu é que...
- Sim, você é a mulher certa para mim, Genevieve, e não quero saber de mais nenhuma. Fui burro, teimoso e idiota. Prometa-me que não escreverá ao seu tio...
- Mas...
Ele apertou a mão em torno da dela e olhou-a fundo nos olhos.
- É você que eu quero, Genevieve, mais do que qualquer filho desconhecido, por nascer. Você será mais que suficiente para me fazer feliz. Por favor, acre¬dite... e volte para casa. Não posso viver sem você.
Ela acreditava, e seu coração cantou de alegria ante a declaração sincera.
- Sim, meu senhor - aceitou, a felicidade patente em cada palavra. - Uma vez que o respeito e honro, e... - Passou a sussurrar: - ... tenho me sentido mi¬serável sem você, voltarei de bom grado.
- Graças a Deus!
Com uma careta, Dylan apoiou-se nos cotovelos e olhou em torno, detendo-se em Mair.
- E graças a Deus que não estou morto, ou mori¬bundo, ainda que devesse, após o tratamento brutal que recebi. Mair quase quebrou minha outra perna ao me colocar naquela carroça.
A ex-amante respondeu com um bufo deselegante. Dylan deitou-se de novo e Genevieve acariciou-lhe o sobrolho suado.
- Mas o que foi que aconteceu? Foi atacado? Ele baixou o olhar.
- Gostaria que tivesse sido algo tão grandioso, mas só caí do cavalo.
- Porque é cabeça-dura e insistiu em sair no meio da noite, apesar da tempestade - revelou Mair, brava, mas sem ocultar a admiração. - Eu o teria largado na estrada, se soubesse que ainda me insultaria!
- Sentimento nobre, Mair - ironizou Dylan, con¬traindo-se de dor. Se sentia a perna, ou os ataques de Mair, Genevieve não saberia dizer. Mas ele logo abriu um sorriso. - Sabe que sou grato.
- Quer dizer que o encontrou? - comentou Genevieve.
- Sim, e foi a sorte. - Mair ficou séria. - Deve ter tido um bom motivo para agir tão tresloucadamen¬te, imagino...
- Tive. O amor.
- Conte-me outra.
Lady Roanna adentrou o salão e todos lhe abriram caminho. Com mãos destras, ela começou a desatar as ataduras. Sentindo dores, Dylan apertava as mãos de Genevieve, praguejando baixinho.
- Está quebrada - diagnosticou a dama.
- Foi o que pensei - retrucou Dylan.
- Terei que encaixá-la. Saiam todos, menos Emryss e Griffydd. Genevieve, por favor, vá à cozinha buscar água quente, e diga a Bronwyn que preciso de bastante panos limpos. E seria bom alguém preparar a câmara na torre oeste.
- Não vou sair daqui - declarou Genevieve, deci¬dida, enquanto os criados e trabalhadores deixavam o recinto. - Mair pode ir à cozinha.
- Não vai ser uma cena agradável - advertiu o marido, lúgubre. - Acho que não devia perma¬necer aqui...
- Eu fico. - Genevieve olhou-o firme. - É meu dever.
Dylan franziu o cenho, mas não por causa da dor na perna quebrada.
- E meu desejo - completou a esposa, terna. Dylan a recompensou com um sorriso.
Lady Roanna chamou o marido e o filho.
- Muito bem. Emryss, segure um ombro dele e Grif-fydd, o outro.
Solidária, a boa mulher aconselhou a Genevieve:
- Não olhe, querida.
Genevieve não olhou. Depois, imaginando como Dylan conseguira manter-se calado enquanto lady Roanna lhe acertava a perna quebrada, admirou-o ainda mais.
Agora, sentada numa banqueta ao lado da cama, contemplava o rosto pálido do marido no sono. Certa de que o melhor tratamento era o descanso, lady Roan¬na dera a ele um remédio para dormir e aliviar a dor. Por mais que Genevieve quisesse conversar com o ma¬rido, cedeu à opinião médica da mulher mais velha.
Não se importava mesmo de ficar horas velando o sono do amado, segurando-lhe a mão.
- Minha senhora?
Genevieve olhou para a porta e viu Mair com um copo na mão.
- Trouxe-lhe água, já que não sai do lado dele. Genevieve sorriu.
- Não, nunca mais o deixarei, a não ser que ele me peça.
A moça adentrou a câmara e fitou a figura adorme¬cida de Dylan com expressão solidária, quase maternal.
- Ele parece um anjo quando dorme, mas é um demônio quando está desperto.
- Eu o considero um anjo o tempo todo.
- Céus, minha senhora, só pode estar perdidamente apaixonada para acreditar que Dylan DeLanyea não é a tentação de Satã encarnada quando está acordado e andando por aí!
Sem responder, Genevieve aceitou o copo de água fresca.
- Lady Roanna acha que ele pode ficar manco, pois passou horas sem socorro, até eu encontrá-lo.
- Desde que não infeccione - considerou Genevie¬ve, aflita.
- Oh, eu não me preocuparia com isso - replicou Mair. - Lady Roanna aprendeu tudo o que sabe com a velha Mamaeth, que morreu no último inverno. Não havia nada que ela não soubesse sobre cura.
- Verdade?
A moça sorriu.
- Sim, minha senhora, é verdade. - Seus olhos cintilaram marotos. - O fato de segurar a mão dele deve ajudar, também.
Genevieve desviou o rosto ao ter um pensamento.
- O que foi?
- Oh, nada importante...
- Ah, é, sim - insistiu Mair, contornando a cama a fim de encarar Genevieve de um jeito desconcertante.
- Só estava imaginando se lady Roanna conhece algum tratamento para... para me fazer engravidar.
A moça franziu o cenho.
- Pergunte-lhe, se quiser, mas eu diria que um homem que arriscou a vida para recuperar a esposa também está profundamente apaixonado, podendo ter filhos ou não.
Genevieve sobressaltou-se quando Dylan apertou-lhe a mão. Ele dormia em paz. Talvez estivesse sonhando.
- Há... muito tempo, quero lhe perguntar isto, Mair, porque a considero uma mulher sensata. Acredita nas previsões de Angharad?
- Tento não dar-lhe ouvidos. Genevieve fitou a moça detidamente.
- Mas acredita nela?
- Tem o sinistro hábito de acertar, lamento dizer.
- Oh... até sobre você e Trystan? - questionou Genevieve.
Para sua surpresa, Mair reagiu zangada e desconfiada. - O quê, sobre mim e Trystan?
- Não sabe?
- Não! Nem quero saber. Eu e aquele almofadinha arrogante? É a coisa mais ridícula que já ouvi na vida. Preferiria passar o resto de minha vida sem homem a juntar-me a ele!
- Nesse caso, rezemos para que Angharad esteja errada - intrometeu-se Dylan, alternando o olhar en¬tre as duas mulheres.
- Você devia estar dormindo! - protestou Genevieve.
- Como alguém pode dormir com todo esse falató¬rio? - questionou ele.
Genevieve enrubesceu, enquanto Mair fungava desdenhosa.
- Há quanto tempo está acordado?
- Tempo bastante. Agora, se nos der licença, Mair, eu gostaria de repousar. Parece que lady Roanna apro¬veitou para torcer minha perna ao consertá-la.
- Está bem - concordou a moça, azeda. Da porta, resmungou: - Que bom que não morreu.
O casal ficou a sós.
- Ela não parece realmente contente - opinou Dy¬lan, abafando um bocejo. - Céus, o que havia naquela poção, afinal? - Ao se mexer, fez uma careta, que tentou disfarçar em sorriso.
- Falei sem querer, mas pensei que ela já soubesse o que Angharad previu sobre ela e Trystan - comentou Genevieve.
- Ninguém ousou contar-lhe. Ela odeia Trystan há anos, e ele não gosta dela, tampouco. Agora, venha aqui para junto de mim. Eu a quero o mais perto possível...
- Se eu me sentar na cama, poderei machucar sua perna...
- Que se dane a perna. - O marido sorriu sonolento. - É com meus braços que devia estar preocupada, por¬que vou envolvê-la neles e nunca mais soltá-la.
- Como posso recusar?
Com cuidado, Genevieve sentou-se na beirada da cama.
- Lady Roanna acha que você terá que ficar em repouso por algum tempo.
- Darei um jeito de suportar - retrucou Dylan, com falsa resignação. - Mas estou ansioso para voltar para casa. Só acho que não vai gostar de saber como andaram as coisas por lá em sua ausência...
- Desde que obedeça às ordens de lady Roanna, não me importarei - afirmou Genevieve. - Não quero que piore.
- Mair disse a verdade sobre lady Roanna. Ela tem grande habilidade para curar.
- Fico feliz em saber.
Dylan mexeu-se a fim de fitá-la ternamente.
- Pode tirar sua dúvida com ela, mas, acredite, Genevieve, é você que eu amo e de que preciso.
- Quero tanto ter filhos, Dylan!
- Talvez os tenha. Talvez não os tenha. Seja como for, eu a amarei do mesmo jeito.
- Jura?
- Juro. Eu te amo tanto que sairia sob outra tempestade assim que se formasse, para provar-lhe, de perna quebrada e tudo.
- Prometa-me que não fará isso!
- Pode mudar de idéia, se eu não reconhecer quão agradável tornou Beaufort. Lamento nunca ter-lhe agradecido. Pode me perdoar por isso, também?
- Posso, se me perdoar por ser tão detalhista, exi¬gente e insuportável todo o tempo.
O marido acariciou-lhe o rosto acetinado.
- Você estava preocupada, tensa, e eu devia ter tentado confortá-la, fazê-la ver que seu amor é mais que suficiente para me alegrar.
Ela limitou-se a sorrir.
- Genevieve... de certa forma, ficaria feliz se você não tivesse filhos. Quando me lembro de Griffydd, que quase perdeu Seona...
Uma sutil tosse feminina chamou-lhes a atenção para a porta. Era lady Roanna. com ataduras limpas e um frasco de sonífero.
- Mair contou-me que estava acordado, Dylan, por isso vim trocar as ataduras.
- Posso fazer isso, se me ensinar - ofereceu-se Genevieve.
Lady Roanna aproximou-se da cama com seu sorriso beatífico.
- Claro, ensinarei com prazer.
A aula foi rápida, com apenas alguns grunhidos do paciente enquanto se trocavam as ataduras em sua perna.
- A cor está boa, e ele não tem febre - comentou lady Roanna com Genevieve. - É um homem forte e saudável, Dylan. Só por isso, deveria ser grato.
- Não tenho muito que agradecer - resmungou o pálido e fatigado nobre.
- Nem nós - concordou lady Roanna.
- Tem muita habilidade - elogiou Genevieve.
- Tive uma excelente professora. - Lady Roanna fitou Genevieve, que se constrangeu com o brilho pers¬picaz em seus olhos. - Apesar de ela ser geniosa e pouco paciente.
A castelã inclinou-se sobre Dylan.
- Beba isto, e durma.
- Não quero dormir - teimou o convalescente. - Quero ficar com Genevieve.
- Nem uma perna quebrada o detém! - ralhou lady Roanna.
Genevieve enrubesceu e Dylan sorriu.
- Não me referia àquilo... desta vez.
- Beba - ordenou a castelã, deixando claro que bastava de brincadeiras.
Dylan obedeceu, a contragosto, e recostou-se no travesseiro.
- Que gosto horrível! Se eu não a conhecesse, minha senhora, juraria que está tentando me envenenar...
Ele já sentia as pálpebras pesadas.
- Genevieve, se me ama, peça a ela que arranje um remédio mais gostoso...
- Pedirei, meu amor.
- Ótimo. Sei que posso contar com você...
O resto da frase perdeu-se num suspiro, e ele fe¬chou os olhos. Dentro em pouco, seu peito subia e descia regularmente, enquanto mergulhava em sono profundo.
Lady Roanna olhou para Genevieve.
- Ele vai dormir por algum tempo. Por que não vem ao salão jantar conosco?
- Se não se importa, minha senhora, prefiro ficar com ele - declarou Genevieve.
A castelã sorriu.
- Considerando que lhe ministrei uma dose ca¬valar do sonífero, creio que ele... e você não pode¬rão fazer nada. - Contemplou o filho adotivo. - Mas quem sabe do que Dylan é capaz estando tão apaixonado?
Genevieve corou e decidiu tirar sua dúvida.
- Lady Roanna, Mair disse que eu devia pergun¬tar... até agora não engravidei e... tenho esperança...
A senhora fitou-a solidária.
- Tudo o que sei a respeito é superstição, não me¬dicina. Quando já se disse e fez tudo, minha querida, resta-nos rezar.
Genevieve sorriu serena.
- Rezarei, minha senhora. - Olhou amorosa para o marido adormecido. - Mas, se não for abençoada com filhos, encontrarei conforto em saber que causo mais inveja do que pena, uma vez que Dylan DeLanyea me ama.
Lady Roanna abraçou-a com afeto.
- E é fato uma mulher de sorte, Genevieve, e ele é um homem de sorte. Sou afortunada por conhecer ambos.
Afastando-se, sorriu.
- Deixo-o aos seus cuidados, então. Boa noite, Genevieve.
- Boa noite, minha senhora.
Depois que lady Roanna saiu, Genevieve deitou-se com todo o cuidado na cama ao lado do marido adormecido. Carinhoso, pousou o braço sobre ele, tomou-lhe a mão e apoiou o rosto em seu ombro largo, feliz.
Ele lhe apertou a mão com força, pois, mesmo dormindo, Dylan sentia que não estava mais só. Genevieve estava a seu lado, amando-o tanto quanto ele a amava.
Então, ele sorriu.
Margaret Moore
O melhor da literatura para todos os gostos e idades