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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA MISTERIOSA / Amanda Quick
A DAMA MISTERIOSA / Amanda Quick

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA MISTERIOSA

 

Capitulo 1

A FILHA SERIA A ARMA DA SUA VINGANÇA. Havia meses que o tinha compreendido. Através dela, conseguiria vingar-se de todo o clã Faringdon, pois dos quatro homens culpados pelo que lhe acontecera havia vinte e três anos, Broderick Faringdon era o pior. Ela seria o meio pelo qual conseguiria recuperar o seu direito de primogenitura e castigar aquele que lho tinha retirado.

 

Simon Augustus Traherne, conde de Blade, deteve o enorme alazão castanho num local junto a uns salgueiros nus e sentou-se, olhando silenciosamente para a grande casa. Não via St. Clair Hall havia vinte e três anos, mas aos seus olhos pensativos parecia igual ao dia em que a deixara.

 

A fraca luz do sol do fim do Inverno fazia cintilar as paredes de pedra da mansão com o brilho frio do mármore cinzento. A casa era forte e graciosa e não uma longa mistura arquitectónica como tantas residências semelhantes. Fora construída no estilo palladiano, muito apreciado no século anterior, que lhe conferira uma grave e remota dignidade.

 

A casa não era tão grande como algumas, mas havia uma inabalável embora fria elegância de linhas desde as janelas até à larga escadaria que conduzia à porta principal.

 

Simon reparou que, enquanto a casa não tinha sido alterada, a paisagem mudara completamente. Tinha desaparecido o extenso panorama de verdes relvados ocasionalmente salpicados por fontes clássicas. A substituí-los havia jardins floridos. Muitos jardins floridos. Era óbvio que alguém perdera a cabeça a plantá-los.

 

O efeito suavizante da casa era óbvio, mesmo no meio do Inverno. Na Primavera e no Verão, as frias paredes cinzentas de St. Clair Hall erguiam-se de entre uma calorosa agitação de flores brilhantes, cascatas de vinhas e sebes elegantemente cortadas.
Era caricato. A mansão nunca fora uma casa quente e convidativa. Não deveria estar rodeada por jardins alegres e luminosos, nem por sebes aparadas com formas ridículas. Simon tinha um palpite de que sabia quem deveria culpar por aquele ofensivo panorama.

 

O cavalo castanho empinava-se, inquieto. O conde acariciava-lhe distraidamente o pescoço com a mão enluvada - já não falta muito Lap Seng - murmurou ao animal, enquanto puxava as rédeas - Em breve darei conta daqueles bastardos dos Faringdon. Vinte e três anos depois, conseguirei finalmente vingar-me. E a filha era a chave.

 

Não que Miss Emily Faringdon fosse exactamente uma menina inocente saída de um colégio. Tinha vinte e quatro anos e, de acordo com a sua anfitriã, Lady Gillingham, a jovem estava plenamente consciente de que tinha muito poucas possibilidades de contrair um bom casamento. Houvera referências veladas a uma espécie de escândalo no passado desta jovem, escândalo esse que lhe retirara as esperanças de uma aliança respeitável.

 

Esse facto tornava Emily Faringdon extremamente útil,

 

Ocorrera a Simon que, tendo vivido durante tantos anos entre as estranhas culturas das índias Orientais, já não pensava exactamente como um inglês. De facto os seus amigos e conhecidos muitas vezes o acusavam de enigmático e misterioso.

 

Talvez fosse verdade. Por exemplo, a vingança já não era para ele um conceito simples e directo, mas antes envolvia uma preparação e cuidado especiais. À maneira oriental, requeria a destruição de toda uma família e não apenas de um único membro.

 

Um cavalheiro inglês, decente, de origem nobre, nunca sonharia usar uma jovem na sua busca de vingança. Mas Simon descobriu que não tinha o mínimo escrúpulo em o fazer. De modo nenhum.

 

De qualquer forma, se os rumores fossem verdadeiros, a senhora não seria exactamente inocente.

 

Uma satisfação gelada instalou-se dentro de Simon, enquanto este cavalgava velozmente de volta para a casa de campo dos seus anfitriões. Depois de vinte e três anos de espera, a vingança e St. Clair Hall estavam finalmente ao seu alcance.

 

Emily Faringdon sabia estar apaixonada. Nunca se encontrara com o objecto da sua afeição, mas esse facto não a diminuía de modo algum.

Sabia pelas suas cartas que Mr. S. A. Traherne era um homem com quem a sua alma comunicava num plano elevado. Era um modelo entre o seu sexo, um homem de sensibilidades interiores refinadas, um homem de visão e inteligência, um homem de forte carácter.

 

Em resumo, era perfeito.

 

Era uma infelicidade que as possibilidades de o vir a conhecer e, ainda mais, de desenvolver com ele uma ligação romântica, fossem infinitamente piores que as de um jogo de azar.

 

Emily suspirou, colocou os seus óculos de aros de prata e tirou a carta de S. A. Traherne de um monte de correspondência, jornais e ilustrações que chegara essa manhã no correio. Nos últimos meses tornara-se especialista em vislumbrar a caligrafia grande e graciosa de Traherne, bem como o seu selo com uma invulgar cabeça de dragão. A sua numerosa correspondência e grande variedade de assinaturas de publicações resultava sempre numa enorme quantidade de correio empilhado sobre a secretária de mogno; porém conseguia sempre avistar uma carta de S. A. Traherne.

 

Utilizou um corta-papéis com grande cuidado para não danificar o precioso selo. Todas as partes de uma missiva de S. A. Traheme eram muito importantes e dignas de serem guardadas numa caixa especial que Emily comprara para o efeito.

 

Quebrava delicadamente o selo de lacre vermelho quando a porta da biblioteca se abriu e o irmão entrou.

 

- Bom dia, Em. já vejo que estás atarefada, como de costume. Não sei como o fazes, minha querida irmã.

 

- Olá, Charles.

 

Charles Faringdon beijou ao de leve a face da irmã e em seguida afundou-se graciosamente numa cadeira do outro lado da enorme secretária. Fez-lhe um sorriso descuidado e atraente, que era a marca dos homens Faringdon, enquanto cruzava as pernas metidas em calças elegantes.

 

- Claro que não sei o que faríamos todos, se tu não gostasses de te enterrar aqui debruçada sobre toda esta correspondência tão aborrecida. Emily pousou com certa relutância a carta de S. A. Traherne na

 

secretária e tapou-a disfarçadamente com o último número de The Gentleman’s Magazine. As cartas de Traherne eram particulares e pessoais e não deveriam ser deixadas abertas onde por acaso pudessem atrair a atenção de um ou outro membro da família.

 

- Pareces estar de excelente humor - disse ela, satisfeita. Calculo que já tenhas recuperado do aborrecimento das tuas recentes perdas ao jogo e penses voltar em breve para a cidade. - Espreitou o seu irmão através das lentes redondas dos óculos, consciente de uma familiar mistura de irritação e afecto.

 

Emily adorava Charles, tal como adorava Deviin, gémeo deste, e o seu pai, sociável e despreocupado. Mas não havia maneira de negar que existia uma certa corrente de irresponsabilidade e despreocupação, por vezes bastante cansativa, nas atitudes dos homens Faringdon. Até a sua bela mãe, morta havia já seis anos, se tinha queixado frequentemente disso.

 

Mesmo assim, Emily tinha de admitir que, com a notória excepção da sua pessoa, os Faringdon eram um grupo muito bem-parecido. Naquela manhã, Charles estava magnífico, como sempre, no seu

 

fato de montar. O casaco tinha sido cortado por West’on. Emily sabia-o, pois tinha acabado de pagar a conta. Os calções tinham sido perfeitamente talhados para realçar a sua excelente figura e as botas cintilavam. Emily quase conseguia ver nelas o seu reflexo.

 

Alto, com o cabelo tão claro, que ao sol mais parecia ouro e com os olhos tão azuis como o céu de Verão, Charles era um Faringdon típico. Juntamente às feições de jovem Adónis, tinha também o encanto da família.

 

- Acontece que já recuperei - garantiu-lhe Charles alegremente. - Parto para Londres dentro de minutos. Está um belo dia para montar. Se tens algumas ordens para Davenport, posso transmiti-las. Vou passar à frente do correio. Para dizer a verdade, fiz até uma aposta com Pearson nesse sentido.

 

Emily abanou a cabeça.

 

- Não. Não tenho nada para Mr. Davenport. Talvez para a semana, quando os meus correspondentes do Essex e do Kent me tiverem informado dos seus planos para a colheita estival do feijão, já possa tomar decisões.

 

Charles franziu o bonito nariz.

 

- Feijões. Como te podes interessar por coisas como a produção de feijões, Emily? Uma coisa tão enfadonha!

 

- Não é mais enfadonha do que os pormenores acerca do fabrico do ferro, da produção de carvão ou da colheita de trigo - retorquiu. Surpreende-me que não mostres um pouco mais de interesse por estes assuntos. Tudo aquilo de que te gozas nesta vida, desde as lindas botas ao belo cavalo que compraste no mês passado, é um resultado directo do facto de eu dar atenção a pormenores de coisas como a produção de feijão.

 

Charles sorriu, ergueu as mãos com as palmas para fora e levantou-se.

 

- Não me faças mais sermões, Em. Ainda são mais enfadonhos do que os feijões. De qualquer modo, o cavalo é um animal fantástico. O pai ajudou-me a escolhê-lo no Tattersall’s e sabes que ele tem olho para as raças.

 

- Sim, mas foi um animal muitíssimo caro, Charles.

 

- Pensa nele como um investimento. - Charles deu-lhe outro beijo rápido na face. - Bom, se não há recados para Davenport, vou andando. Volto quando precisar de outro descanso das mesas de jogo. Emily sorriu-lhe de modo tristonho.

 

- Dá saudades minhas ao pai e a Deviin. Quase desejava ir para Londres contigo.

 

- Que absurdo! Dizes sempre que estás muito melhor aqui, no campo, onde tens que fazer o dia inteiro. - Charles dirigiu-se à porta.

- De qualquer modo, é quinta-feira. Esta tarde tens a reunião da tua sociedade literária, não é verdade? Não vais querer faltar.

 

- Não, acho que não. Adeus, Charles.

- Adeus, Em.

 

Emily esperou até que a porta da biblioteca se fechasse atrás do irmão antes de erguer The Gentleman’s Magazine de cima da carta de S. A. Traherne. Sorriu com um prazer secreto ao começar a ler a elegante caligrafia que cobria o papel:

 

Cara Miss Faringdon

 

Receio que esta missiva vá ser muito curta e rogo-lhe que me perdoe quando lhe exponha as razões para a minha pressa. Muito em breve chegarei perto de si. Vou ser hóspede da casa de campo de Lorde Gillingham, que penso ser um vizinho seu. Creio não estar a ser inconveniente ao dizer-lhe que tenho esperança que me proporcione a oportunidade de a conhecer pessoalmente, enquanto aí estiver.

 

Emily sentiu-se gelar de surpresa. S. A. Traherne vinha a Little Dippington.

 

Não conseguia acreditar no que os seus olhos viam. Com o coração a bater de entusiasmo, agarrou na carta e leu de novo as primeiras linhas. Era verdade. Ele iria ser hóspede dos Gillingham, que tinham uma casa de campo a pouca distância de St. Clair Hall. Com dedos trémulos, Emily poisou cuidadosamente a carta e obrigou-se a respirar várias vezes, de modo a dominar a excitação que a invadia e que ao mesmo tempo estava eivada de receio.

Em parte desejava conhecer pessoalmente S. A. Traherne, o que estava em oposição ao seu receio de o encontrar. A tensão daí resultante fazia-a sentir-se um pouco tonta.

 

Numa tentativa desesperada de se ater ao seu bom senso, Emily obrigou-se a recordar de que nada de natureza romântica poderia advir de um tal encontro. De facto, arriscava-se a perder a tão apreciada correspondência que nos últimos meses estava a ser tão importante para ela.

 

Havia o risco terrível de S. A. Traherne ouvir falar no Infeliz Incidente do seu passado enquanto passeasse pelas redondezas. Lady Gillingham, a sua anfitriã, conhecia tudo a respeito da terrível mancha na reputação de Emily. O mesmo acontecia com toda a gente nas vizinhanças de Little Dippington. Tudo aquilo acontecera cinco anos antes e já ninguém falava no assunto, mas decerto não era segredo.

 

Emily tentava ser realista. Mais cedo ou mais tarde, se S. A. Traherne se mantivesse tempo suficiente nas vizinhanças, alguém haveria de lhe mencionar o Incidente.

 

- Que raio! - exclamou Emily, energicamente, no silêncio da biblioteca. Estremeceu ao escutar as palavras tão pouco femininas. Uma das desvantagens de passar tanto tempo sozinha naquela enorme casa, tendo apenas os criados por companhia, era o facto de estar a apanhar maus hábitos. Por exemplo, tinha a liberdade de praguejar como um homem e habituara-se a fazê-lo. Emily disse a si própria que teria de ter tento na língua enquanto se encontrasse perto de S. A. Traherne. Tinha a certeza de que um homem com a sua refinada sensibilidade poria objecções ao ouvir aquela linguagem na boca de uma mulher.

 

Emily gemeu. Seria difícil manter-se ao elevado nível de S. A. Traherne. Com alguns remorsos, perguntou a si própria se não o teria enganado um pouco acerca do seu grau de refinamento e intelecto.

 

Pôs-se de pé num salto e dirigiu-se à janela sobranceira aos jardins. Honestamente, não sabia se haveria de se sentir alegre ou desesperada com a carta de Traherne. Sentiu-se à beira de um alto precipício.

 

S. A. Traherne vinha a Liffie Dippington. Não conseguia convencer-se. As possibilidades e riscos perturbavam-lhe a imaginação. Ele não dissera quando chegava, mas provavelmente seria em breve. Possivelmente dentro de semanas ou no mês seguinte.

 

Talvez devesse inventar uma visita apressada a um parente distante. Mas Emily não conseguiria suportar perder tal oportunidade, mesmo correndo o risco de estragar tudo. Era horrível sentir-se tão aterrorizada, na iminência de um encontro com o homem amado.

 

Com mil raios! - disse Emily de novo. Depois apercebeu-se

 

que sorria como uma idiota, embora lhe apetecesse chorar. O emaranhado de emoções era quase superior às suas forças. Voltou para a enorme secretária e leu o resto da carta de S. A. Traherne:

 

Muito obrigado por me ter enviado uma cópia do seu último poema Pensamentos nas Horas Sombrias antes da Madrugada. Li-o com enorme interesse e devo dizer-lhe que fiquei particularmente emocionado com os versos em que explora as notáveis semelhanças entre uma urna rachada e um coração partido. Muito comoventes. Espero que quando receber esta carta, já tenha obtido resposta positiva de um editor.

 

Sempre seu, S. A. Traherne.

 

Emily sabia que não podia desaparecer de repente para ir visitar

 

um parente imaginário. Acontecesse o que acontecesse, não poderia resistir à oportunidade de conhecer um homem que tão bem compreendia os seus poemas e achava os seus versos muito comoventes.

 

Dobrou cuidadosamente a carta de S. A. Traherne, metendo-a depois no corpete do seu vestido azul pálido, de cintura subida. Uma olhadela ao relógio mostrou-lhe que eram horas de voltar ao trabalho. Havia muito a fazer, antes de sair para a reunião com os membros da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira.

 

Emily recebeu a última carta de rejeição do editor, apenas quando já se encontrava a meio do monte de correspondência. Reconheceu-a imediatamente, pois já tinha recebido muitas outras. Mr. Pound, obviamente um homem de limitado intelecto e pouca sensibilidade, parecia não considerar a sua poesia muito comovente.

 

Porém, a notícia de que S. A. Traherne se encontrava na vizinhança suavizou enormemente o golpe.

 

- Que diabo, Blade não percebo porque quer ir a uma reunião da nossa sociedade literária. - As sobrancelhas hirsutas de Lorde Gillingham ergueram-se, enquanto olhava para o seu hóspede.

 

Ele e Simon encontravam-se no pátio diante da casa dos Gillingham, aguardando que lhes trouxessem os cavalos.

 

- Pensei que seria divertido. - Simon bateu ao de leve na bota com o chicote de montar. Começava a ficar impaciente, agora que estava a poucos minutos de conhecer Miss Emily faringdon.

- Divertido? O meu amigo é muito estranho. Talvez seja devido a todos esses anos que passou no Oriente. Digo-lhe que não é muito bom passar tanto tempo no meio de estrangeiros. Um homem fica com ideias estranhas.

 

- Mas também consegue amealhar uma fortuna - recordou-lhe Simon secamente.

 

- Bom, lá isso é verdade. - Gillingham pigarreou e mudou de assunto. - Disse às Misses Inglebright que estaria presente. Imagino que vá ser mais do que bem recebido, mas devo avisá-lo que a sociedade não passa de um grupo de solteironas de meia-idade que se juntam uma vez por semana para conversar a respeito de meia dúzia de poetas. As mulheres são muito inclinadas para esse tipo de tolices românticas, sabe?

 

- já ouvi dizer. Porém, sinto curiosidade em ver como as pessoas se distraem aqui no campo.

 

- Como queira. Vou consigo até Rose Cottage e apresento-o, mas depois fica por sua conta. Não se importa que eu não o acompanhe, pois não?

 

- Claro que não - murmurou Simon, enquanto um moço das cavalariças fazia avançar os cavalos. - A ideia foi minha e estou preparado para arcar com as consequências.

 

Simon saltou com leveza para a sela de Lap Seng e seguiu em galope brando ao lado do seu anfitrião. A ansiedade que sentia aumentava, fazendo-o sentir um nó nas entranhas. por se dominar. Orgulhava-se de possuir um autocontrole férreo.

 

Simon poucas dúvidas tinha de ser bem recebido pelas Misses Inglebright, bem como pelo grupo de solteironas apreciadoras da leitura de poesia. Podia não ser bem-parecido ao estilo tornado popular pelos Lordes Byron, Ashbrook e outros, mas afinal era um conde.

 

Simon estava também consciente que esse simples facto, juntamente com a sua enorme riqueza e poder, era perfeitamente capaz de apagar uma multidão de defeitos na aparência física de um homem, bem como de obliterar uma larga variedade de pecados, faltas de juízo e vários outros defeitos de carácter.

 

As senhoras da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira tinham sem dúvida ficado encantadas ao saber que o conde de Blade desejava deslocar-se ao seu humilde salão.

 

De facto, Rose Cottage era humilde. Tratava-se de uma casinha situada junto a um pequeno atalho próximo da aldeia, rodeada de um pequeno jardim de rosas.

 Duas mulheres pequenas, grisalhas e de idade indeterminada,

 

encontravam-se ao portão para receber outras três que acabavam de chegar a pé. Todas elas se tinham agasalhado contra o frio com as suas capas e peliças já gastas e antiquadas, todas elas com a mesma cor monótona. As suas toucas fora de moda estavam firmemente atadas debaixo do queixo.

 

Simon observou as senhoras junto ao portão, enquanto cavalgava ao lado de Lorde Gíllingham. Teve a impressão imediata de se ir confrontar com um bando de pombas cinzentas muito nervosas. Praguejou em voz baixa, imaginando qual daquelas aves seria Emily Faringdon. Sentia-se estranhamente desapontado, apercebendo-se que ao mesmo tempo estava surpreendido.

 

De qualquer modo, segundo as cartas dela não a imaginara como aquelas severas mulheres de meia-idade. Esperara uma jovem com uma mistura de energia viva e romantismo exagerado.

 

Cinco pares de olhos cautelosos espreitavam debaixo das antiquadas toucas. Nenhum daqueles olhares parecia pertencer a alguém com menos de quarenta anos. Simon franziu a testa. Tinha a certeza absoluta de que Miss Faringdon seria muito mais jovem. E mais bonita. Os Faringdon eram conhecidos pela sua beleza e pelos seus modos fúteis.

 

- Boa tarde, minhas senhoras. - Gillingham tirou o chapéu com galanteria e sorriu jovialmente. - Trouxe comigo o vosso hóspede desta tarde. Permitam que vos apresente o conde de Blade. Voltou recentemente das índias Orientais. Quer saber o que se passa nos círculos literários aqui de Inglaterra.

 

Simon estava a retirar o seu chapéu de pêlo de castor, preparando-se para a tarefa que se iria seguir, quando de súbito se apercebeu de que não havia o mínimo sinal de boas-vindas nos cinco pares de olhos que tinha diante de si.

 

Semicerrou os olhos enquanto Gillingham fazia as apresentações. Não havia a mínima dúvida. As senhoras da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira não estavam interessadas em vê-lo. De facto, iria jurar que via aborrecimento e suspeita nos seus rostos. Poder-se-ia mesmo pensar que as bondosas senhoras da Sociedade prefeririam que ele ali não estivesse.

 

Gillingham terminou rapidamente as formalidades:

 

- Misses IngIebright, Miss Bracegirc[le, Miss Hornsby e Miss Ostly. - Todas elas responderam educadamente e sem entusiasmo às apresentações. Simon apercebeu-se de que não havia qualquer Miss Faringdon. Esperava que estivesse simplesmente atrasada.

- Foi muita bondade sua em ter vindo visitar-nos hoje, Senhoria - disse friamente Miss Bracegirê[le, mulher alta, magra e de rosto comprido.

 

- Sim, claro - disse com ar afectado a mais velha das duas irmãs Inglebright. Parecia preferir que ele tivesse ido à caça. - É muito simpático da sua parte ter-se interessado pela nossa pequena sociedade literária. Porém, receio que nos vá encontrar bastante desinteressantes. Nada que se pareça com os brilhantes salões de Londres.

 

- Não, não, nada como as reuniões da capital - chilreou Miss Ostly, gorducha e pouco elegante. - Aqui estamos muito atrasados, Senhoria.

 

- Não encontrei salões especialmente brilhantes em Londres ripostou suavemente Simon, curioso com a recepção que estava a obter. Qualquer coisa não estava aqui como deveria ser. - São apenas grupos de senhoras conversadoras e jovens elegantes que preferem discutir o último escândalo, em vez das últimas obras literárias.

 

As cinco mulheres olharam umas para as outras pouco à vontade. A mais nova das Misses Inglebright aclarou a voz.

 

- Acontece que de vez em quando também nós nos entretemos com conversas desse tipo. Vossa Senhoria sabe como é, aqui no campo. Esperamos sempre que as pessoas da cidade nos tragam os melhores mexericos.

 

- Então talvez eu pudesse fornecer-lhes alguns dos últimos on dits - retorquiu Simon, quase divertido. Não seria fácil verem-se livres dele. Partiria quando lhe apetecesse.

 

As mulheres olharam umas para as outras, parecendo mais desconfiadas e aborrecidas que nunca. Naquele momento o ruído dos cascos de um cavalo a bater no caminho chamou a atenção de todos.

 

- Oh, aí vem Miss Faringdon - disse Miss Hornsby, mostrando pela primeira vez sinais de verdadeiro entusiasmo.

 

Porfim, a esquiva Miss Faringdon. Simon espreitou por cima do ombro e viu uma égua cinzenta malhada galopando em direcção ao pequeno grupo. Sentiu um nó no estômago.

 

A primeira coisa em que reparou foi que a mulher que montava a égua a fazia à cavaleiro e não sentada de lado. A segunda foi de que certamente esta não era uma Faringdon loura. Caracóis vermelhos esvoaçavam livremente por baixo de uma touca de palhinha colocada de lado.

 

Qualquer coisa lhe cintilava no rosto. Simon estava profundamente intrigado. Emily Faringdon usava um par de óculos de aros de prata. O facto prendeu-lhe, por segundos, a atenção. Nenhuma outra mulher dos seus conhecimentos consentiria em ser vista em público com óculos Postos.

 

- Miss Emily Faringdon - segredou baixinho Lorde Gillingham.

- A família é bastante agradável, creio eu, mas são todos jogadores. Toda a gente lhes chama os Frívolos e Volúveis Faringdon, sabe. Isto é, com excepção de Miss Emily. Só é aborrecido ter o tal Infeliz Incidente no seu passado.

 

- Ah, sim. O Incidente. - Simon recordou a maledicência que a sua anfitriã gentilmente lhe fornecera. Fora uma informação extremamente útil. Embora ainda não tivesse todos os pormenores, sabia o suficiente do passado de Emily para considerar que tinha uma vantagem táctica na campanha que estava prestes a lançar.

 

Não podia afastar o olhar de Emily Faringdon. Viu, espantado, que meia dúzia de sardas lhe polvilhava o pequeno nariz. Os olhos por trás das lentes brilhantes eram muito verdes. Incrivelmente verdes.

 

Lorde Gillingham tossiu discretamente tapando a boca com a mão.

- Não devia ter dito nada - resmungou. - Aconteceu quando tinha apenas dezanove anos, pobrezinha. Já tudo passou. Naturalmente que ninguém fala nisso. Confio em que o meu amigo também não o faça.

- Claro que não - murmurou Simon.

 

Lorde Gillingham endireitou-se levemente na sela e sorriu a Emily com ar bondoso.

 

- Boa tarde, Miss Emily.

 

- Boa tarde, Senhoria. Lindo dia, não é verdade? - Emily imobilizou a égua e sorriu calorosamente para Gillingham. - Veio visitar-nos esta tarde? - Começou a desmontar sem qualquer ajuda.

 

- Permita-me, Miss Faringdon. - Simon saíra já da sua sela, atirando as rédeas para Gillingham. Apreciou rapidamente Emily, enquanto avançava. Ainda nem queria acreditar que por fim caçara a sua presa. Todos os Faringdon que conhecia eram altos, louros e invulgarmente belos.

 

Olhando agora para Emily, Simon poderia apenas concluir que, vinte e quatro anos antes, uma fada malévola a tinha trocado no quarto de crianças dos Faringdon. Emily parecia-se um pouco com um elfo. Para começar, esta Faringdon não era uma deusa escultural. Era muito baixa, muito esguia e não tinha um busto famoso. De facto, tudo nela parecia pequeno e delicado, desde o nariz arrebitado, à curva suave das ancas, quase indiscernível sob o pesado tecido do seu fato de montar muito usado e fora de moda.

 

A luz do Sol reflectiu-se de novo nos óculos de Emily, quando esta voltou a cabeça para observar Simon. Ele deu por si preso debaixo daqueles olhos verdes e inquisidores. Era um olhar belo e cheio de brilho, com uma mistura curiosamente refrecante de viva inteligência e inocência bem-disposta.

 

Naquele momento, Simon concluiu que Miss Emily Faringdon seria tudo, menos aborrecida. Obviamente um pouco antiquada, mas decididamente nada aborrecida. Pensou que afinal era exactamente como as suas cartas. A senhora era uma original.

 

Simon estendeu os braços e fechou as mãos sobre a cintura estreita de Emily. Sentiu-a ágil e leve sob os seus dedos e também forte para o seu tamanho. E cheia de vitalidade feminina.

 

Maldíção. Estava a ficar excitado, só de lhe tocar. Simon franziu a testa e instantaneamente recuperou o seu autodomínio.

 

Gillinghara começou a fazer apressadamente as apresentações, mas Emily nem ouvia atentamente.

 

- Muito obrigada, Senhoria - disse, um pouco ofegante, quando começou a deslizar de cima da égua. A sua atenção concentrava-se na bolsinha que estava presa à sela.

 

- Disse Blade? Meu Deus, não estamos habituadas a receber condes nas tardes de quinta-feira.

 

- O meu nome é Simon. Simon Augustus Traherne - disse ele, intencionalmente. - Creio que me conhece como S. A. Traherne, Miss Faringdon.

 

Emily Faringdon abriu a boca, chocada, e os seus olhos enormes abriram-se ainda mais devido a um horror óbvio por trás das lentes dos óculos.

 

- S. A. Traherme? Não, o senhor nunca poderia ser Mr. Traherne. Recuou para se livrar das mãos dele, como se estas queimassem.

 

- Cuidado, Miss Faringdon - disse rapidamente Simon ao ver a égua erguer a cabeça subitamente assustada.

 

Mas o aviso veio tarde de mais. O pé de Emily calçado com uma bota, bateu acidentalmente no ventre arredondado da égua. O pobre animal não gostou daquele tratamento e afastou-se para o lado com um movimento súbito. A bolsinha bateu-lhe no flanco.

 

Os óculos começaram a deslizar do nariz de Emily. Esta tentou empurrá-los para o devido lugar e ao mesmo tempo esforçou-se por controlar a montada. já estava quase a descer de cima do animal quando este resfolegou de novo fazendo outro movimento abrupto para o lado. Emily começou inevitavelmente a cair.

 

- Valha-me Deus! - gritou Miss Bracegirdle. - Ela vai cair do cavalo.

 

- Senhor! - exclamou Lorde Gillingham preocupado.

 

Uma das Misses Inglebright avançou a correr para agarrar as rédeas da égua.

 

Foi a gota de água para a égua. O animal empinou-se, erguendo as patas no ar.

 

- Com mil raios - resmungou Emily ao perder completamente o equilíbrio, caindo directamente nos braços de Simon, que a aguardavam.


Capitulo 2

MILY DESEJAVA QUE O CHÃO DE ROSE COTTAGE se abrisse por baixo da sua cadeira e a engolisse completamente. Sentia-se mortificada. Sentia-se humilhada. Sentia-se entregue às garras da

 

angústia emocional. Daria qualquer coisa para poder sucumbir a um desmaio. Infelizmente, a sua sensibilidade não era assim tão delicada. Estava, sobretudo, furiosa. Era perfeitamente intolerável que o

 

grande amor da sua vida tivesse vindo ter com ela e a encontrasse tão lamentavelmente preparada para uma tão importante ocasião.

 

Bebeu um gole de chá para acalmar os nervos, escutando as senhoras da sociedade literária, que faziam esforços confusos para discutirem os últimos artigos da edição mais recente da Edinburgh Revíew. Havia uma notória falta de entusiasmo ligada ao assunto.

 

A chávena bateu no pires quando Emily a colocou sobre ele. O som fê-la perceber quão tensos estavam os seus nervos. Por aquele andar, pouco faltava para que salpicasse o tapete de chá.

 

- Suponho que não deveria surpreender-me com a crítica da última tentativa de Southey, - A voz calma e profunda de Simon interrompeu a conversa ligeira sobre uma obra enfadonha de John MacDonald, intitulada Memória Geográfica do Império Persa. - Como sempre, os editores são perfeitamente despropositados nos seus comentários. Ignoram simplesmente como considerar Southey. É evidente que também não sabem como hão-de considerar Wordsworth ou Coleridge, não é verdade? Poder-se-ia dizer que têm uma vendetta contra os Poetas do.

 

A fraca discussão que começara com alguma dificuldade, interrompeu-se imediatamente. De novo.

 

* Poetas do Lago: Wordsworth, Coleridge e Southey, assim chamados por residirem no Lake District. [N. da T.]

 

Simon sorvia o chá, olhando expectante à sua volta. Ao ver que ninguém dizia nada, tentou corajosamente reatar a conversa.

 

- Claro, o que se poderia esperar desse grupo de escoceses que se intitulam a si próprios críticos? Tal como Byron afirmou há uns anos, os críticos da Edinbiírgh são gente mesquinha e insignificante. Sinto-me inclinado a concordar. O que pensa este pequeno grupo?

 

- Vossa Senhoria refere-se a uns versos de Byron, intitulados English Bards and*Deviin*? - conseguiu perguntar educadamente Miss Hornsby.

 

- Exactamente! - A voz de Simon estava agora entrecortada pela impaciência.

 

Miss Hornsby empalideceu como se tivesse sido mordida, Uma ou duas das senhoras da sociedade literária aclararam as gargantas e olharam nervosamente umas para a as outras.

 

- Mais um pouco de chá, Senhoria? - perguntou corajosamente Lavinia Inglebright pegando no bule.

 

- Muito obrigado - respondeu Simon. secamente.

 

Emily estremeceu ao ouvir o aborrecimento e a frustração do conde, quando de novo a conversa a nada levava. Mas não pôde resistir a um fugaz sorriso. O efeito paralisante que Simon exercia sobre a Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira era de certo modo divertido.

 

Era como se tivessem um dragão dentro da sala. Sabiam que teriam de ser extremamente delicadas, mas ignoravam o que havia a fazer com o animal.

 

Sentado num local importante, perto da lareira, S. A. Traherne parecia ocupar todo o espaço possível na pequena sala enfeitada e feminina. De facto, enchia-a com a sua masculinidade avassaladora e subtilmente perigosa.

 

Emily sentia-se arrepiada de emoção, ao observá-lo disfarçadamente. O conde era um homem alto, rijo, esguio e de ombros largos. As suas coxas fortes eram claramente acentuadas pelos justos calções de montar. Emily sentia que Lavinia Inglebright lançava olhares ansiosos à frágil cadeira onde o conde estava sentado. A pobre Lavinia provavelmente receava que a frágil peça de mobiliário se partisse. Aproximava-se um desastre social.

 

* Bardos e Críticos Ingleses. Depois de, em 1808, ter sido severamente criticado pela Edinburgh Review, Lorde Byron respondeu com esta sátira, em 1809. [N. da T.]

 

Ora, a visão do conde entre as ruínas da cadeira de Lavinia Inglebright haveria de ser muito interessante, dizia Emily para consigo. Logo a seguir achou que deveria estar a ficar histérica. Aquela tarde interminável não teria fim?

 

Sufocou um gemido e, semicerrando os olhos, tentou localizar a mesa mais próxima onde pudesse poisar em segurança a chávena e o pires. Sem óculos tudo não passava de uma névoa colorida. Claro que os tinha tirado e metido na bolsinha logo que o conde a pusera no chão. Mas o mal estava feito. Ele vira-a com eles.

 

Depois de tantos meses de ansiedade e secretas esperanças, tinha conhecido por fim o grande amor da sua vida com os óculos postos. Era mais do que conseguia suportar.

 

Mas as desgraças não ficaram por aí. Blade tinha-a visto também montada no cavalo e não sentada de lado na sela. E apanhara-a com uma antiquada touca de palhinha e o mais velho dos seus fatos de montar. E claro que não se preocupara em empoar as sardas antes de sair de St. Clair Hall naquela tarde. Quando estava no campo não se preocupava com o pó-de-arroz. Toda a gente em Little Dippington sabia já como ela era.

 

Meu Deus, que fiasco!

 

Por outro lado, Simon Augustus Traherne, conde de Blade, era absolutamente perfeito, tal como calculava que fosse. Era verdade que fora,apanhada de surpresa pela frieza do seu olhar estranho e dourado, mas disse para consigo que dos olhos de um dragão tinha de se esPerar um brilho gelado.

 

Nem conseguia deixar de se espantar pela inesperada aspereza das suas feições. Certamente Blade não tinha culpa por não haver delicadeza ou suavidade no seu nariz ousado, malares altos e maxilar ameaçador. Era um rosto com forte carácter, pensou Emily. Um rosto que reflectia uma enorme força de vontade. Um rosto extremamente masculino, a face de um modelo entre os homens.

 

Que infelicidade que afinal fosse um conde. A diferença entre eles era agora muito maior do que quando fora simplesmente S. A. Traherne.

 

A chávena e o pires estremeceram perigosamente na mão de Emily, quando esta se inclinou.

 

- Deixe-me pegar na sua chávena, Miss Faringdon. - Os dedos fortes e quentes de Simon tocaram nos dela ao retirar-lhe habilmente a chávena das mãos.

 

- Obrigada. - Emily mordeu o lábio e voltou a sentar-se. A sua mortificação não tinha agora limites. Certamente estaria prestes a colocar a chávena e o pires no colo de alguém, possivelmente no dele. Com mil raios. Recitou uma prece, desesperada para se ver livre daquele pesadelo acordado.

 

- Sugiro que ponha os óculos, Miss Faringdon - murmurou Simon à parte, quando as senhoras voltaram a discutir com pouco entusiasmo acerca da justiça dos críticos da Edinburgh. - Não há razão para que ande por aí às cegas. Somos velhos amigos, a senhora e eu. Não precisa de se preocupar com a moda ao pé de mim.

 

Emily suspirou.

 

- Suponho que tem razão. De qualquer modo já me viu com eles, não é verdade? - Procurou os óculos na bolsinha e pô-los. Focou imediatamente as feições cinzeladas e os olhos estranhamente frios de Simon. Apercebeu-se de que ele a observava intencionalmente e julgou conseguir ler-lhe os pensamentos. - Não sou exactamente o que pensava, não é verdade, Senhoria?

 

A boca dele torceu-se, fugazmente divertida.

 

- Ainda é mais interessante em pessoa do que nas suas cartas, Miss Faringdon. Garanto-lhe, que não estou minimamente desapontado. Só espero que possa dizer o mesmo.

 

Emily abriu a boca de espanto, mas fechou-a rapidamente.

 

- Desapontada? - gaguejou. - Não! Nem pouco mais ou menos, Mr. Traherne, quero dizer, Senhoria. - Corou, lembrando-se de que tinha vinte e quatro anos e não era uma menina tola, saída da escola. Além do mais havia meses que se correspondia com aquele homem.

 

- Bom, assim estamos a fazer progressos. - Simon parecia satisfeito. Bebeu outro gole de chá e qualquer coisa no gesto dos lábios a informou subtilmente que não aprovava a mistura.

 

Decidida a comportar-se como a adulta que era, Emily obrigou-se a participar na conversa elaborada que decorria à sua volta. Os outros tinham finalmente conseguido desenvolver uma pouco inspirada discussão acerca da influência dos Poetas do Lago e Emily fazia os possíveis por ajudar nesse esforço. Durante algum tempo, o conde bebeu o seu chá em silêncio.

 

Emily estava já a sentir-se mais normal quando, de repente, Simon poisou a chávena e deixou cair a bomba dentro da salinha.

 

- Por falar em Byron e no seu grupo - disse calmamente alguém teve possibilidade de ler a última obra de Lorde Ashbrook-, O Herói de Melíana? Achei que era uma má imitação do próprio Byron. O que nem é dizer muito. Simplesmente, o homem nem sequer é tão interessante como Byron, não acham? Tem falta do sentido de ironia.

 

Mas não há dúvida de que neste momento, em muitos círculos ele é bastante popular. Tenho curiosidade em saber a vossa opinião.

 

O impacto do comentário, aparentemente inócuo, foi imediato. As Misses Inglebright suspiraram em uníssono. A boca de Miss Bracegirdle tremeu com o choque. Miss Hornsby e Miss Ostly olharam-se, cada uma delas do seu lado da sala. Emily observou as mãos que tinha entrelaçadas no colo.

 

Até Simon, com toda a sua calma sofisticação, pareceu um pouco espantado com o silêncio de chumbo que descera sobre a salinha. Era muito diferente dos outros que o tinham precedido. Esses tinham sido desagradáveis; este era perfeitamente hostil e acusatório.

 

Simon olhou à sua volta com uma expressão levemente preocupada.

- Creio então que não tiveram oportunidade de ler o épico de Ashbrook?

 

- Não, Senhoria, não tivemos. - Emily desviou os olhos, consciente do enorme calor que sentia nas faces. Pegou de novo na chávena e no pires, num esforço desesperado de ocupar os seus dedos trémulos.

 

- Garanto-vos que não se perdeu grande coisa - disse Simon languidamente. Os seus olhos doirados estavam perigosamente curiosos, como os de um dragão que avistara a sua provável presa.

 

As senhoras da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira voltaram à vida. Como se a simples menção do nome de Ashbrook as tivesse galvanizado para entrarem em acção, encarregaram-se completamente da conversa. Ergueram as vozes, enchendo a sala com uma discussão longa e prosaica de uma recente obra intitulada Patronage, de Maria*Deviin*. Até a Edinburgh, que normalmente bajulava Miss Edgeworth tivera dificuldades em encontrar alguma coisa de bom para dizer acerca do livro. As senhoras do salão das Tardes de Quinta-Feira fizeram-no em tiras.

 

Com um sorriso frio e enigmático, Simon encostou-se na cadeira e deixou a discussão correr à sua volta.

 

- Perdoe-me - murmurou para Emily. - Parece-me que disse alguma coisa infeliz.

 

Emily engasgou-se com o chá.

 

- De modo algum, Senhoria - disse por entre duas golfadas de ar. Tinha os olhos húmidos. - Só que aqui não estamos muito familiarizadas com as obras de Lorde Ashbrook.

 

* Romancista irlandesa (1767-1849), também autora de histórias infantis. [N. da T.]

 

- Percebo. - Simon estendeu o braço e, como que por acaso, deu a Emily uma pancada entre os ombros.

 

Emily estremeceu com a força do golpe, conseguindo depois equilibrar-se e recuperar o fôlego.

 

- Obrigada, Senhoria - conseguiu dizer.

 

- De nada. - Torcendo os lábios num gesto sardônico, o conde pôs-se de pé. Instantaneamente outro silêncio caiu na sala, desta vez distintamente esperançoso. Ele ergueu uma sobrancelha. - Perdoai-me senhoras, mas tenho de ir andando. Disse a Lady Gillingham que voltaria cedo. Espero voltar a ter o prazer de as encontrar. Garanto-vos que foi uma tarde extremamente elucidativa.

 

Seguiram-se alguns minutos de caos educado, enquanto Simon era apressadamente conduzido à porta da rua. Curvou-se delicadamente e percorreu o pequeno atalho até ao portão, onde tinha preso o cavalo. Montou, levou a mão ao chapéu e desceu o caminho a trote.

 

O alívio invadiu de imediato Rose Cottage. As cinco mulheres voltaram-se ao mesmo tempo para Emily.

 

- Pensei que nunca mais se ia embora - resmungou Priscilla Inglebright deixando-se cair numa cadeira. - Lavinia, por favor, serve-nos outra chávena de chá.

 

- Com certeza. - A irmã ergueu o bule enquanto as outras retomavam os seus lugares. - Que susto quando Lorde Gillingham mandou dizer que Blade queria cá vir hoje. Não podíamos recusar. Gillingham disse-me que o conde é um homem extremamente poderoso em Londres.

 

- Blade estará muito bem nas suas coisas, penso eu - disse a irmã. - Mas não se adequa muito ao nosso grupinho.

 

- Pois não - suspirou Miss Hornsby. - É como ter de receber um animal enorme que nos entrou pela sala adentro.

 

- Um dragão - sugeriu Emily em voz baixa.

 

- Um dragão é uma descrição bastante adequada - concordou imediatamente Miss Ostly. - Blade é um homem de aspecto perigoso, não acham? Há qualquer coisa naqueles olhos estranhos, que me põem extremamente receosa. Tem um olhar assustador.

 

- Deveríamos sentir-nos lisonjeadas por um conde nos vir visitar e estou certa de que é assim que todas nos sentimos, mas para falar com franqueza, estou enormemente aliviada por se ter ido embora. Homens assim não se adequam a salinhas de província como a nossa - declarou Priscilla Inglebright. - É tão cansativo ter aqui um homem destes.

 

- Creio que a família dele viveu aqui em tempos - informou Lavinia com a testa franzida.

 

Emily ficou espantada.

 

- Tem a certeza?

 

- Claro que sim. já foi há mais de vinte anos. Priscilla e eu tínhamos acabado de nos mudar para cá. Lembro-me que a família do conde possuía aqui muitas terras. - Lavinia deteve-se subitamente, com uma expressão estranha no olhar. - Mas, como disse, isso passou-se há mais de vinte anos e não me recordo dos pormenores.

 

- Bom, tenho de confessar que foi especialmente desconcertante vê-lo aparecer aqui, logo hoje - afirmou Miss Hornsby. - Aqui estamos ansiosas à espera de um relatório de Emily e tivemos de passar a última hora discutindo as mais recentes críticas literárias. Foi extremamente frustrante. Mas agora, por fim, podemos passar aos negócios. - Voltou os olhos mortiços e ansiosos Para Emily. - Então, minha querida? Que tal correu?

 

Emily empurrou os óculos para que ficassem mais firmemente seguros no nariz e pegou na bolsinha. Agora que S. A. Traherne tinha partido, sentia a cabeça muito mais desanuviada.

 

- Senhoras da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira, tenho o prazer de vos dar boas notícias. - Enquanto falava, remexia dentro da bolsa e tirou de lá uns papéis. - As acções que comprámos do canal navegável foram vendidas com um lucro considerável.. Recebi o relatório de Mr. Davenport no correio desta manhã. Já entregou as ordens de pagamento ao banco e depositou-as nas vossas contas.

 

- Valha-me Deus - disse Miss BracegirdIe, com os olhos brilhantes. - Pode ser que afinal já tenha dinheiro para comprar aquela casinha ao fundo do caminho. Que alívio saber que posso ter um tecto sobre a minha cabeça, quando para o ano o último dos meus pupilos partir para o colégio.

 

- É tão emocionante - declarou Miss Hornsby. - Veja bem, Martha - acrescentou para Miss Ostly -, vamos a caminho de conseguir assegurar uma pensão decente para todas nós.

 

- Ainda bem - retorquiu Martha Ostly -, já que é bem claro que nenhum dos nossos patrões se vai preocupar com isso. Que alívio não termos de esperar passar a velhice numa elegante pobreza.

 

-  Por este andar, eu e Lavinia em breve teremos dinheiro para abrir o nosso pensionato para meninas - disse, satisfeita, Priscilla lnglebright. - Durante tanto tempo pareceu um sonho impossível e agora está quase ao nosso alcance.

 

- Graças a Emily - acrescentou Lavinia Inglebright com um sorriso caloroso dirigido ao membro mais novo do grupo.

 

- Estremeço só de pensar o que poderia ter acontecido a todas nós se não tivesse sugerido este plano maravilhoso de juntar o nosso dinheiro e investi-lo em fundos e acções, Emily! - Miss Hornsby sacudiu a cabeça. - Por mim, temia ter de me tornar dama de companhia de uma das minhas parentas idosas. São muito mesquinhas, as minhas parentas. Todas elas. Exigem dez vezes a paga de cada favor.

 

- Estamos salvas e devemo-lo a Emily - disse Miss Bracegirdle. Se houver alguma maneira de lhe podermos pagar, Emily, diga-nos imediatamente.

 

- já me pagaram mil vezes, ao serem minhas amigas - garantiu-lhes Emily, francamente. - Nunca esquecerei o que fizeram por mim quando fiz figura de idiota há cinco anos atrás.

 

- Que disparate, minha querida - respondeu Miss BracegirdIe. Limitámo-nos a insistir para que continuasse a frequentar o nosso grupo das Tardes de Quinta-Feira, como de costume.

 

E assim tornaram bem claro a toda a gente que as pessoas decentes de Líttle Dippington não iriam ostracizar Miss Faringdon simplesmente devido ao Infeliz Incidente, pensou Emily invadida por uma onda de afecto. Estaria sempre grata às senhoras da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira.

 

Lavinia Inglebright pôs-se de pé com os olhos brilhantes.

 

- Sabem? Creio que isto pede uma celebração. Priscilla, que tal se eu fosse buscar aquela garrafa de clarete que temos estado a guardar?

- Uma ideia maravilhosa! - exclamou Priscilla.

 

Simon foi obrigado a fazer o cavalo andar sem destino por entre as árvores durante mais de meia hora, antes da sua presa fazer o favor de aparecer. O conde mantinha-se num silêncio irritado. As coisas não se tinham passado tão suavemente como idealizara, quando combinara visitar o salão das Tardes de Quinta-Feira. Obrigado a encenar uma retirada estratégica, decidira ficar à espera de Emily quando esta voltasse para St. Clair Hall.

 

Esperava que a reunião da sociedade literária terminasse pouco tempo depois de ele ter partido, mas obviamente, as senhoras do grupo tinham por fim encontrado um assunto sobre o qual conversar depois dele ter saído. Estava a ficar com um frio terrível, embora a tarde estivesse invulgarmente agradável para a época do ano. Afinal não se podia esquecer que estavam no fim de Fevereiro.

 

Lap Seng resfolegou e arrebitou as bonitas orelhas. Simon deixou

 

de andar de um lado para o outro e pôs-se à escuta. À distância ouviu o som de um cavalo que trotava pelo atalho.

 

- já não era sem tempo - resmungou, voltando a montar. Depois franziu a testa ao ouvir a voz de Emily cantando em tom bem alto e desafinada uma alegre canção.

 

De que serve agora um homem, pergunto-vos, belas damas. Se tivéssemos juízo, enviá-los-íamos para o inferno.

 

Dizem que todas as criaturas têm préstimo, até as sanguessugas, Mas, minhas amigas, para descobrir o préstimo dos homens, Uma mulher tem de olhar para dentro das suas calças.

 

Apesar do seu mau humor, Simon deu por si a sorrir. Parecia que, depois da sua partida, os membros da sociedade tinham tomado alguma coisa um pouco mais forte que o chá.

 

Puxou as rédeas para fazer sair Lap Seng de entre as árvores e levá-lo para o meio da estrada. Estava preparado quando, um momento mais tarde, o cavalo malhado de Emily apareceu na curva.

 

A princípio esta não o viu, pois estava muito concentrada na canção brejeira. Os óculos cintilavam-lhe ao sol e os caracóis vermelhos saltitavam ao ritmo da música. Simon foi invadido por um súbito desejo de saber como seria aquela massa de cabelo cor de fogo sem os ganchos a prendê-lo e espalhado pelos ombros dela.

 

- Maldição - resmungou em surdina enquanto esperava que Emily se apercebesse de que estava no meio do seu caminho. A última coisa que desejava era sentir-se fisicamente atraído por aquela mulher. Precisava manter as ideias em ordem, de modo a executar aquilo a que se propusera. Uma vingança fria requeria pensamentos frios.

 

- Boa tarde, Miss Faringdon!

 

Espantada, Emily fez parar repentinamente a montada.

 

- Senhoria, mas que diabo faz aqui? - Tinha o rosto corado e havia um susto ansioso nos seus olhos de elfo. - Perdeu-se? A casa dos Gillingham fica logo a seguir àquela pequena elevação. Só precisa de voltar à esquerda no ribeiro e subir a colina a direito.

 

- Obrigado - disse Simon. - Mas garanto-lhe que não estou perdido. Estava à sua espera. Começava a recear que tivesse tomado outro caminho para voltar a casa.

 

Ela olhou para ele sem perceber.

 

- Disse-me que estavam à sua espera em casa dos Gillingham.

 

- Confesso que foi uma desculpa para poder sair mais cedo. Tive a nítida impressão de que a minha presença estava a aborrecer as senhoras da sociedade literária.

 

Emily pestanejou como um mocho.

 

- Receio que tenha razão, Senhoria. Não estamos habituadas a receber dragões... - pareceu horrorizada e tentou imediatamente remediar as coisas. - Quero dizer, condes, nas tardes de quinta-feira.

 

- Com que então um dragão? É assim que me vê, Miss Faringdon?

 

- Oh., não, Senhoria - assegurou-lhe ela rapidamente. - Bom, talvez haja uma leve semelhança nos olhos.

 

Simon sorriu malévolo:

- E que tal nos dentes?

 

- Apenas um leve grau de semelhança. Mas garanto-lhe, Senhoria, que não é significativa. De resto, o senhor é exactamente como eu o imaginava pelas suas cartas.

 

Simon respirou lentamente, tentando furiosamente manter-se paciente.

 

-  Quer dar um passeio comigo? Temos muito que discutir.

 

-  Ah, sim?

 

-  Claro. Somos velhos amigos, não é verdade?

 

-  Somos?

 

-  Corrija-me se me engano, Miss Faringdon, mas tenho a impressão de nos termos vindo a corresponder há já vários meses.

 

Ela corou instantaneamente.

 

- Claro que sim, Senhoria. Certamente que sim. Sem dúvida. Os caracóis ruivos de Emily balançaram por baixo da touca, enquanto sacudia a cabeça num gesto de concordância. - Sinto que o conheço há séculos.

 

- A sensação é mútua.

 

- O caso é que na realidade nunca esperei conhecê-lo pessoalmente.

 

- Compreendo. Que me diz a uma volta junto ao rio? - Simon desmontou e caminhou determinado em direcção a ela, levando Lap Seng pelas rédeas.

 

Ela olhou-o com evidente desgosto.

 

- Gostaria muito, Senhoria, mas não creio que seja apropriado.

- Que absurdo. Quem nos verá? E mesmo que alguém repare que estamos juntos, dificilmente nos poderá criticar. Afinal fomos devidamente apresentados numa reunião da sociedade literária aqui da terra.

 

A sua momentânea hesitação logo desapareceu. Lançou-lhe um brilhante sorriso.

 

- Tem razão, Senhoria. Devo dizer-lhe que mal acredito que nos tenhamos finalmente conhecido. É o culminar de todas as minhas esperanças.

 

Começou a descer da égua e Simon. estendeu a mão para a ajudar. Desta vez não perdeu o equilíbrio, nem se deixou cair nos braços dele. Ele apercebeu-se que ficara desapontado com isso. Em Parte desejava sentir de novo aquele corpo femínino, macio e esguio contra o seu.

 

- Lamento tê-la apanhado desprevenida esta tarde - disse ele, conduzindo os cavalos para as árvores. - Esperava surpreendê-la. Sei como gosta de surpresas.

 

- Foi muito atencioso da sua parte - garantiu-lhe ela. - Realmente gosto de surpresas - fez uma pausa. - A maior parte das vezes.

 

Ele fez um meio sorriso.

- Mas nem sempre.

 

- Era só que gostaria de estar mais bem arranjada quando nos encontrássemos - admitiu. - Não pode imaginar os pensamentos agonizantes que tive acerca deste acontecimento, desde que esta manhã recebi a sua carta. Pensei que teria semanas para me preparar. Não que tivesse feito grande diferença, suponho.

 

Ele olhou-a, percebendo que ela apenas lhe chegava ao ombro. Era pequena, mas havia uma atraente e etérea graciosidade nos seus gestos.

- Permita-me que lhe diga que o seu aspecto é muito belo, Miss

 

Faringdon. De facto, fiquei encantado desde o momento em que a vi.

- Ficou? - enrugou nariz, espantada com aquele comentário.

- Completamente.

 

Os olhos dele brilharam de prazer.

 

- Obrigada, Senhoria. Garanto-lhe que fiquei igualmente encantada. Por si, quero dizer.

 

Isto, pensou Simon ia ser demasiado fácil.

 

- Mas não quis perturbá-la a si ou às senhoras da sociedade literária. Tem de me perdoar.

 

- Sim. Sabe, hoje não contávamos realmente discutir poesia nem as últimas críticas - explicou Emily, enquanto caminhava com passo leve ao lado dele.

 

- O que tencionavam então discutir?

 

- Investimentos. - Fez um pequeno gesto com a mão, a dar Pouca importância ao assunto.

 

Ele olhou-a com ar perspicaz.

 

- Investimentos?

 

- Sim. Entendo que deve pensar que é um assunto tremendamente enfadonho. - Olhou para ele com ar ansioso. - Garanto-lhe que não é costume. Tinha excelentes novidades para dar acerca dos investimentos que fiz em nome das minhas amigas. Estão preocupadas com as suas pensões. Não podemos censurá-las.

 

- Está a tratar-lhes das futuras pensões?

 

- Tenho alguma habilidade para assuntos financeiros, assim, faço o que posso. As senhoras que conheceu hoje foram muito boas para mim. Era o mínimo que podia fazer para lhes retribuir. - Fez um sorriso tranquilizador. - Mas garanto-lhe que normalmente nos dedicamos a animadas discussões acerca de livros e de poesia. Olhe, a semana passada fizemos uma análise muito intensa do romance de Miss Austen, Orgulho e Preconceito. Ia escrever-lhe uma carta a respeito do assunto.

- Que tal achou o romance?

 

- Bom, creio que, de certo modo, é muito agradável. Quero dizer, Miss Austen é certamente muito boa escritora. Tem um dom maravilhoso para caracterizar certos tipos, mas...

 

- Mas? - Mesmo sem o querer sentia-se curioso.

 

- O problema é que o tema é muito comum, não concorda? Escreve acerca de pessoas e acontecimentos tão vulgares.

 

- Miss Austen não é Byron, isso garanto-lhe eu.

 

- Certamente que não - concordou Emily num ímpeto entusiasmado. - Os seus livros entretêm muito, mas faltam-lhes as qualidades exóticas das obras de Byron, para não falar do seu espírito de aventura e excesso de paixão. A sociedade literária acabou de analisar o Giaour*****.

 

- E creio que gostaram.

 

- Oh, sim. Tem uma atmosfera maravilhosa, aventuras notáveis e o sentido emocionante das paixões sombrias. Gostei tanto, como de Childe Harold. Nem consigo esperar pela próxima obra de Byron.

 

- A senhora e a maior parte de Londres.

 

- Diga-me, Senhoria, ouviu dizer como se deve pronunciar exactamente o G em Giaour? Será duro ou suave? Passamos muito tempo a discutir o assunto na quinta-feira passada e nenhuma de nós tinha a certeza, porém Miss BracegirdIe, que tem um fantástico domínio da história antiga, crê que deve ser suave.

 

* Obra de carácter oriental, escrita em 1813. [N. da T.]

 

- Tanto quanto sei, é um tópico que ainda não foi resolvido afirmou vagamente Simon. Ainda não tivera oportunidade de ler o poema e não tinha tenções de o fazer. Apenas mergulhara na literatura e poesia românticas o tempo suficiente para estender a sua armadilha. Agora, que esta se ia fechar, não lhe faria diferença não voltar a ler qualquer outro poema épico de amor e aventura. Tinha maneiras mais proveitosas de ocupar o tempo.

 

- Acho que não terá grande importância - garantiu-lhe Emily tacitamente. - Estou a falar do G.

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Imagino que para Byron, terá. - Tinham chegado junto ao ribeiro e estavam agora em segurança, longe da vista de quem passasse no atalho. Ele voltou-se automaticamente e começou a caminhar para a direita, em direcção à nascente.

 

Emily ergueu as saias do seu desbotado fato de montar com uma graça despretensiosa que de certo modo o imbuiu de mais estilo do que realmente tinha. Ela olhou curiosamente para a paisagem à sua volta.

 

- Perdoe, Senhoria, mas parece saber para onde vai. Recorda-se deste caminho de quando era criança e vivia aqui?

 

Simon lançou-lhe um olhar oblíquo. Claro que ela haveria rapidamente de obter aquela informação.

 

- Como sabe que a minha família tinha casa aqui?

- Lavinia Inglebright falou no assunto.

 

- já lá vai muito tempo, desde que vivi aqui nas redondezas disse Simon, cauteloso.

 

- Mesmo assim, é uma coincidência espantosa, não é verdade? Imagine, Senhoria, quando inicialmente se começou a corresponder comigo porque descobriu por acaso que eu partilhava do seu grande interesse pela literatura romântica. Depois soubemos que em criança viveu perto de Little Dippington. E agora conhecemo-nos. É incrível.

 

- A vida está cheia de estranhas coincidências.

 

- Prefiro pensar que é o destino. Sabe, consigo vê-lo em rapazinho, correndo por aqui, perto do ribeiro, talvez com um cão. Tinha um cão, Senhoria?

 

- Creio que sim.

 

Emily acenou afirmativamente.

 

- Bem me parecia. Também eu venho aqui frequentemente. Lembra-se do meu poema intitulado Versos num Dia de Verão junto ao Lago?

 

- Nitidamente.

 

- Escrevi-o, ali sentada, junto àquele pequeno lago - disse-lhe com orgulho. - Talvez se lembre de alguns dos versos?

 

Simon reparou na expressão esperançosa dos seus olhos verdes e deu por si a procurar desesperadamente no cérebro as palavras do poema doce, mas nunca inesquecível, que ela cuidadosamente lhe enviara numa das suas cartas mais recentes. Ficou imensamente aliviado quando a sua excelente memória veio em seu auxílio.

 

Declamou os dois primeiros versos:

 

Olhai aquele lago onde gotas de luz do sol cintilam e rebrilham. Contém tesouros tão maravilhosos para mim, que me contento

 

[em sonhar aqui sentada.

 

- Lembrou-se! - Emily parecia tão entusiasmada, como se ele lhe tivesse oferecido uma fortuna em pedras preciosas. Depois corou e acrescentou em tom de confidência: - Sei que deveria reformular algumas partes. Não liguei à rima. Se calhar, deveria tê-lo feito, não acha?

 

- Bom - respondeu Simon cauteloso -, é difícil de dizer.

 

- Não que isso tenha grande importância neste momento - disse-lhe com ar feliz. - Estou a trabalhar num grande projecto e só daqui a muito tempo voltarei a escrever Versos num Dia de Verão junto ao Lago.

 

- Um grande projecto? - Simon apercebia-se que o tema da conversa se lhe escapava.

 

- Sim. Vou chamar-lhe A Dama Misteriosa. Será um longo poema épico de aventuras e paixões sombrias, à maneira de Byron. - Olhou-o timidamente. - Para além dos membros da sociedade literária, o senhor é a primeira pessoa a quem falo disto.

 

- Sinto-me honrado - declarou Simon. - Aventuras e paixões sombrias, é?

 

- Sim. É sobre uma jovem com o cabelo da cor do pôr do Sol que parte em busca do amado que desapareceu. Iam casar, sabe? Mas a família dela não aprovava o enlace e proibiu-os de se verem. Ele foi obrigado a partir. Mas antes, ofereceu-lhe um anel e garantiu-lhe que voltaria para a levar e casar com ela apesar do que a família pudesse dizer.

 

- Mas alguma coisa correu mal no plano?

 

- Sim, o amado não voltou e a heroína sabe que ele se encontra em apuros e precisa dela desesperadamente.

 

- Como o sabe ela? - inquiriu Simon.

 

- Ela e o herói são tão íntimos, tão unidos pela paixão pura e nobre que sentem um pelo outro, que são capazes de comunicar num plano mais elevado. Ela sabe que ele se encontra em apuros. Abandona a casa e a família para ir em busca dele.

 

- Uma acção um pouco arriscada. Talvez ele tenha utilizado simplesmente a recusa dos pais dela para a abandonar. Talvez se tenha cansado dela, e, ser posto fora pela sua família fosse a melhor maneira de se furtar a embaraços de uma ligação que não queria. - Assim que disse estas palavras, Simon teve vontade de bater em si próprio. A expressão estupefacta de Emily era suficiente para lhe causar remorsos na pouca consciência que ainda possuía.

 

- Oh, não - suspirou Emily. - Não foi nada disso.

 

- Claro que não - disse Simon, forçando um sorriso sinistro. Estava apenas a brincar consigo. Como haveria de conhecer a história que está por trás do seu poema? A senhora é que o está a escrever.

 

- Precisamente. E prometo-lhe que terá um final feliz. Prefiro finais felizes, sabe?

 

- Diga-me uma coisa, Miss Faringdon. Se alguém hoje lhe oferecesse dez mil libras, que faria com esse dinheiro?

 

O entusiasmo etéreo desapareceu como que por magia. Por trás das lentes dos óculos, o olhar sonhador de Emily tornou-se abruptamente arguto ao ouvir aquela inesperada pergunta. Uma inteligência aguçada cintilou como fogo verde nos seus olhos de elfo.

 

- Compraria diversas acções da nova empresa do canal de que ouvi falar, compraria também uns papeis bancários e investiria alguma coisa em papéis do Estado. Porém, com estes últimos teria cuidado. Esta aborrecida guerra contra Napoleão vai terminar em breve e o valor dos fundos pode bem descer. Temos de nos mover rapidamente, quando se trata de dinheiro do governo.

 

- Excelente - murmurou. - Só queria ter a certeza que era a mulher certa. Por momentos pensei que me tivesse enganado.

 

Emily pestanejou.

- Como disse?

 

- Não importa. É uma brincadeira particular. - Simon sorriu-lhe. - O seu conselho financeiro faz muito sentido, Miss FaringdonA sua estratégia e a minha são praticamente iguais.

 

- Oh, joga na Bolsa?

 

- Entre outras coisas. Tenho uma enorme variedade de interesses financeiros. - Deteve os cavalos e atou as rédeas a duas árvores próximas. Depois deu o braço a Emily e guiou-a até uma pedra enorme junto ao lago.

 

Viu-a sentar e arranjar graciosamente as pesadas saias do fato. Por momentos, ficou distraído com os movimentos das mãos dela ajeitando as pesadas dobras. Mas voltou imediatamente a si.

 

É altura de regressar ao assunto entre mãos, pensou Simon.

 

- Não imagina o que isto significa para mim - afirmou, enquanto se sentava a seu lado e observava o lago. - Muitas vezes imaginei este local. E quando o fazia imaginava-a sempre junto a mim. Depois de ler o seu poema, percebi que apreciava este lugar tanto como eu.

 

Ela olhou à volta, franzindo a testa e concentrando-se nas margens cobertas de erva e no lago baixo e rodeado de pequenas pedras.

- Crê que me exprimi bem, Senhoria? Tem a certeza de que reconheceu este local exactamente devido à descrição dos meus versos? Simon. seguiu-lhe o olhar, lembrando-se de todas as vezes que aqui viera durante a sua solitária juventude, procurando refúgio do seu frio e tirânico pai e paz das infindáveis exigências da mãe, de espírito fraco e constantemente doente.

 

Sim, Miss Faringdon. Reconheceria este local em qualquer lado. É tão belo. Venho aqui muitas vezes para estar sozinha e pensar no meu poema épico A Dama Misteriosa. Agora, que sei que dantes o senhor costumava vir sentar-se e meditar aqui, o local terá para mim ainda mais significado.

 

- Lisonjeia-me.

 

- Digo simplesmente a verdade. É ou não é estranho? - Voltou-se para ele com as sobrancelhas juntas, numa expressão franca. - Mas senti-me muito próxima de si desde o momento que li a sua primeira carta. Não acha que o facto de nos termos descoberto através do correio é o mais extraordinário golpe do destino?

 

- Um golpe extraordinário. - Simon pensou nas muitas semanas que levara investigando a melhor abordagem a tomar com Miss Emily Faringdon. Uma carta que lhe escrevera com o pretexto de ter tido conhecimento do seu interesse pela poesia, parecera ser o modo mais rápido e fácil de meter o pé na porta de St. Clair Hall.

 

- Soube logo, desde a sua primeira carta, que seria alguém muito especial, Senhoria.

 

- Fui eu que tive a impressão de me corresponder com uma mulher extraordinária. - Com galanteria Simon pegou-lhe na mão e beijou-lha.

 

- Sonhei durante tanto tempo com uma relação como a nossa confessou, ela sorrindo.

 

Ele lançou-lhe um olhar avaliador. Cada vez mais fácil. Aquela mulher estava quase apaixonada por ele. De novo, Simon bateu com a porta à incómoda sensação de culpa que lhe aparecia num canto distante do espírito.

 

- Diga-me, Miss Faringdon, como vê a nossa relação? Ela corou, mas tinha o olhar brilhante de entusiasmo.

 

- Uma relação muito pura, Senhoria. Uma relação formada num plano superior. Entende o que quero dizer?

 

- Um plano superior?

 

- Sim. Como a vejo, a nossa relação é intelectual. É uma coisa nobre nascida no espírito, uma relação que tem lugar num plano metafísico. Uma amizade baseada em sensibilidades partilhadas e pompreensão mútua. Poder-se-ia dizer que temos uma comunhão espiritual, Senhoria. Uma união sem a mancha de considerações e pensamentos baixos. As nossas paixões são de uma ordem superior.

 

- Com mil raios! - exclamou Simon.

- Senhoria?

 

Olhou-o com uma inocência tão cheia de interrogações, que ele teve vontade de a abanar. Apesar da sua poesia, não poderia ser tão ingénua. Afinal tinha vinte e quatro anos e havia aquele assunto do Infeliz Incidente, que Gillingham tinha mencionado.

 

- Creio que infelizmente exagerou as minhas mais nobres virtudes, Miss Faringdon - disse francamente. - Não vim aqui ao Hampshire para criar uma sombria ligação metafísica com a senhora,

 

O brilho desapareceu-lhe instantaneamente dos olhos.

- Perdão, Senhoria?

 

Simon rangeu os dentes e voltou a pegar-lhe na mão.

 

- Vim aqui com um objectivo bem mais mundano, Miss Faringdon.

- Qual é, Senhoria?

 

- Vim aqui pedir a seu pai a sua mão em casamento.

 

A reacção não foi de modo algum aquela que ele esperava de uma solteirona com um passado nebuloso, que deveria ter ficado encantada ao saber que um conde ia falar com o pai para a pedir em casamento.

- Com mil raios! - guinchou Emily.

 

Simon perdeu a paciência com a estranha mulher que tinha a seu lado.

 

-  Pronto - anunciou. - Creio que o que é necessário aqui, Miss Faringdon é um meio de cortar toda essa parvoíce romântica acerca do amor num plano superior com que se tem alimentado todos estes meses.

 

- Senhoria, de que está a falar?

 

- De paixões sombrias, como é evidente, Miss Faringdon. - Chegou-se a ela e puxou-a para os seus braços. - Sinto-me subitamente consumido pela curiosidade de ver se realmente as aprecia.

 

Capitulo 3

EMILY FICOU ABISMADA ao ver-se presa dentro de um inquebrantável abraço. Havia já cinco anos que um homem a segurara de um modo tão íntimo. E o facto de ser logo Simon que a estreitava daquela maneira, estava para além de toda a compreensão. Simon era o seu companheiro no reino metafísico, o seu amigo nobre, sensível e de espírito elevado, o seu companheiro de alma intelectual.

 

Apenas nas horas mais tristes da noite e nos seus sonhos mais secretos, se permitira fantasiá-lo como um amante de carne e osso.

- Oh, Simon - suspirou, olhando-o com um ar maravilhado e

desejo tão violento que a fez tremer nos braços dele.

 

Ele não respondeu. Os seus olhos doirados cintilavam com uma intensidade que em qualquer outro homem teria sido inquietante. Porém, parecia haver neles mais uma impaciência enfadada do que uma doce afeição. Mas, poderia tratar-se apenas da sua imaginação.

 

Sem pronunciar palavra, ele retirou-lhe os óculos e a touca, colocando-os na pedra ao lado do seu chapéu. Em seguida a sua boca desceu lenta e deliberadamente sobre a dela e Emily esqueceu tudo, excepto o calor excessivo e imperioso do seu beijo.

 

Isto foi tudo aquilo com que ela sonhara durante as horas quietas e Sombrias da noite, quando se permitira entregar-se a sonhos sem esperança.

 

Era, na verdade, mais do que pensara. Nunca pudera imaginar Completamente a sensação da boca dele na sua, porque nunca experimentara nada como aquilo. Não era como os beijos que recebera cinco anos antes. A sensação dos braços de Simon à sua volta, da espantosa intimidade da sua boca, quebravam completamente as frágeis ilusões românticas de uma vida e, apenas naquele momento ardente, ensinavam-lhe o verdadeiro significado da paixão.

 

A mão de Simon que se curvara na cintura dela começou a deslizar-lhe em direcção ao seio. Emily tinha a leve sensação de que deveria ordenar-lhe que se detivesse imediatamente, mas fazê-lo parecia-lhe estar para além das suas forças. Este era S. A. Traherne, o homem que colocara sobre um pedestal, o homem que amara de longe, com uma paixão pura e nobre... o homem dos seus sonhos.

 

Agora, num ofuscante momento de clareza sensual, Emily apercebeu-se de que o amor de Simon era recíproco. O espanto de o saber era avassalador.

 

Os dedos de Simon continuaram a subir em direcção ao corpete do seu fato de montar até o seio leve e macio de Emily lhe descansar na mão. Emily ouviu-o gemer, enquanto ele seguia o contorno da suave curva com o polegar. O mamilo ficou subitamente duro debaixo do pesado tecido de lã. Emily estremeceu e a palma da mão de Simon fechou-se possessiva sobre o seu seio.

 

- Vem cá, elfo - murmurou Simon em voz rouca e áspera puxando-a para o seu colo. Estreitou-a junto ao peito com um joelho erguido e os braços de ferro. A força dele deveria ter assustado Emily, mas tal não aconteceu. Era o seu dragão e ela sabia que com ele estava em segurança.

 

Encostou a mão ao seu peito e as unhas cravaram-se ansiosas no tecido do casaco. Cheirava bem, pensou. Uma combinação de cabedal, cavalo e calor masculino. O aroma que dele provinha era curiosamente embriagador e ela deu por si a aconchegar-se mais ao seu calor.

 

- Abra os lábios para mim - insistiu Simon em voz baixa. Emily obedeceu instintivamente. Sem qualquer aviso, a língua dele deslizou ousadamente para dentro da sua boca. O choque fez Emily ofegar e afastar-se. Ficara subitamente consciente do vulto pesado da masculinidade de Simon sob a sua coxa. Sabia que corava.

 

- Meu Deus, Emily!

 

O mundo pareceu deter-se por um momento. Ela mal podia respirar e muito menos reagir.

 

- Emily, abra os olhos e olhe para mim.

 

Com ar sonhador, Emily ergueu as pestanas e olhou para o rosto pesadamente esculpido de Simon. Estava tão próximo, que conseguia vê-lo mesmo sem a ajuda dos óculos. Ficara fascinada pelo calor esplendoroso que afastara a frieza dos seus olhos. O fogo iluminava agora o seu belo olhar doirado com uma chama selvagem de desejo masculino que mantinha sob um rígido controle.

 

- Dragão - murmurou baixinho, tocando-lhe na face dura com dedos delicados. - O meu dragão de olhos doirados.

 

Ele fitou-a com os olhos semicerrados.

 

- Os dragões têm uma reputação perigosa junto das donzelas. Ela sorriu-lhe delicadamente.

 

- Não vale a pena soprar fogo e fumo para me assustar, Senhoria. Sei que consigo estou em segurança.

 

- O que a faz estar tão certa disso?

 

- Conheço-o muito bem. Li e reli todas as cartas que me enviou. Mesmo assim, tenho de admitir que não posso crer que isto se esteja a passar.

 

- Nem eu. - Mudou abruptamente de posição, fazendo-a deslizar do seu colo. Passou a mão pelo cabelo negro.

 

- Deus do Céu, devo ter perdido o juízo.

 

- Sei a que se refere. Tenho a certeza de que esta sensação é aquilo a que os poetas se referem como um doce e feroz excesso de emoção. É bastante emocionante, não acha? - Emily endireitou-se, sentindo-se um pouco envergonhada e trémula, mas, à parte isso, maravilhosamente.

 

- Emocionante é uma boa definição. Mas posso lembrar-me de outras,

 

- Tais como?

- Estúpida.

 

Emily franziu a testa ao ouvir o tom sardônico.

 

- Passa-se alguma coisa, Senhoria? - Procurou os óculos porque ele se afastara demasiado para que ela lhe vislumbrasse claramente a expressão do olhar.

 

- Estão aqui. - Impaciente, meteu-lhe os óculos nas mãos e ela pô-los.

 

Emily viu imediatamente que Simon estava com um ar realmente zangado.

 

- Passa-se qualquer coisa. O que é, Senhoria? Ele lançou-lhe um olhar, oblíquo e zombeteiro.

 

- Pergunta-me a mim? Depois do que quase aconteceu há uns momentos?

 

Emily inclinou a cabeça de lado, observando-o.

 

- Beijou-me. Foi maravilhoso. A experiência mais maravilhosa da minha vida. Porque haveria de haver algum problema?

 

- Raios, mulher, mais cinco minutos e estaríamos... Diabos! Não importa.

 

- Mais cinco minutos e andaríamos talvez à deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor?

 

- Valha-me Deus. Não é altura para eufemismos poéticos! Simon olhou para as águas calmas do lago. Começou a dizer qualquer coisa, mas franziu os lábios. Um instante depois, apareceu-lhe na boca severa um sorriso malicioso que logo se desvaneceu. - À deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor? De que obra retirou esse verso?

 

- Criei-o eu mesma - disse-lhe Emily, não sem uma ponta de orgulho. - É um verso do poema épico em que lhe disse estar a trabalhar, A Dama Misteriosa. Ainda ando em busca de uma rima apropriada para «amor».

 

- Já experimentou «horror»? Ela sorriu.

 

- Está a troçar de mim. Diga-me a verdade, Senhoria. O que pensa do verso?

 

Ele olhou-a por cima do ombro, com os olhos dourados cintilantes com o que deveria ser paixão, mas Emily receava que fosse troça.

 

- É extremamente adequado, Miss faringdon. Venha cá.

 

Ela voltou de boa vontade ao abraço dele, embora desta vez, Simon se limitasse a beijá-la ao de leve na testa e na ponta do nariz, antes de a afastar.

 

- Tome atenção, Miss faringdon, pois tenho uma coisa extremamente importante para lhe dizer.

 

- Sim, Senhoria?

 

- Daqui em diante, sempre que fiquemos ameaçados de andar à deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor, quero que me dê uma bofetada. Percebe?

 

Ela olhou-o espantada.

- Não farei tal coisa.

 

- Fará, sim, se tiver algum bom senso.

 

- Certamente que não ultrapassará aquilo que é apropriado, Senhoria.

 

- Já ultrapassei - disse ele por entre os dentes cerrados e já sem se sentir divertido.

 

- O facto é que, Senhoria - disse ela franzindo um pouco a testa, pensativa -, não tenho a certeza de podermos confiar no bom senso numa situação destas. Garantiram-me que, nestes assuntos, não o possuo. Assim, teremos de confiar no seu sentido de honra e decoro. Não se preocupe, Senhoria, tenho a certeza de que sabe exactamente como se há-de comportar.

 

- Mas, em nome de Deus, o que quer dizer com isso de não ter bon, senso nestes assuntos?

 

- Oh, nada.--- de facto, nada - disse ela apressadamente, sem querer explicar-lhe o Infeliz Incidente, a menos que fosse absolutamente necessário. Afinal, assim que Simon tivesse conhecimento daquilo que se passara quando tinha dezanove anos, ver-se-ia obrigado a terminar aquela maravilhosa conversa acerca do amor. - Apenas que a minha família acha que eu fui afectada de maneira bastante negativa pelo meu amor pela literatura romântica - explicou de modo pouco convincente. Não estava a faltar completamente à verdade.

 

- E foi mesmo? - Os seus olhos doirados eram imperscrutáveis, Emily corou e olhou-lhe para o nó impecável da gravata, que não parecia ter sido perturbado pelo recente acesso de paixão.

 

- Deveria saber a resposta, Senhoria. Conhece-me melhor do que qualquer pessoa.

 

- Através das suas cartas? - Pegou-lhe delicadamente no queixo com a ponta dos dedos e obrigou-a a olhá-lo nos olhos. - Sabe? Pode ter razão. Tenho a nítida impressão de que é uma jovem tristemente incompreendída. Mas será um erro concluir que sabe tanto sobre mim quanto eu sei sobre si.

 

- Nem por um momento penso que seja um erro, Senhoria. Olhou-o com ar franco. - Através das nossas cartas, desenvolvemos, o senhor e eu, o mais perfeito companheirismo de espírito intelectual e espiritual. Tenho a certeza de que a nossa comunicação, que tem lugar no mais elevado dos planos, nos levou à verdadeira compreensão um do outro...

 

- Basta - interrompeu-a bruscamente. - Miss Faringdon, é sempre um erro concluir que pode confiar completamente num homem, quando   se trata de assuntos de paixão.

 

Ela sorriu serenamente, sabendo que ele estava enganado,

 

- Não creio, Senhoria. No seu caso, não. Confiar-lhe-ia o meu coração e a minha vida.

 

- Raios! - Simon abanou lentamente a cabeça e deixou de lhe segurar no queixo. - A sua família parece ter razão. Não tem ponta de bom senso nestes assuntos. Pelos vistos, não se importa com os riscos dos jogos do amor?

 

Ela estremeceu ao de leve.

 

- Descendo de uma longa linha de jogadores, Senhoria. Está-me no sangue,

 

- E quantas vezes já correu esta espécie de riscos em particular? perguntou ele num tom súbito, vagamente ameaçador.
Emily olhou para o pequeno lago, escolhendo cuidadosamente as palavras. Sabia que a honra exigia que fosse honesta, mas não podia arriscar-se a arruinar aquele idílio contando-lhe toda a história.

 

- Nunca antes estive apaixonada. De maneira alguma. Sei-o agora. Uma vez, há muito tempo, pensei estar, mas acabei por descobrir que foi engano. Desde aí, não existiu mais ninguém por quem tenha querido correr tal risco.

 

- Que interessante!

 

Pouco à vontade, Emily voltou a cabeça, para constatar que ele a fitava com olhos frios e avaliadores.

 

- Senhoria?

 

Ele disse qualquer coisa em surdina e levantou-se.

 

- Não ligue. É claro que neste momento não consigo pensar com clareza. Imagino que seja o resultado de navegar muito perto de uma margem doirada e transcendente. Venha. Vou consigo até St. Clair Hall estar à vista.

 

- Disse alguma coisa que lhe desagradasse, Senhoria?

 

- De modo algum. Creio que, a partir de agora, tudo vai correr suavemente entre nós. Precisava simplesmente de adquirir certas informações antes de continuar e já as consegui.

 

- Percebo. Muito inteligente. - Emily descontraiu-se e sorriu-lhe, sem se preocupar em esconder o coração do seu olhar. Sabia muito bem que não haveria futuro para eles, mas havia um presente e estava disposta a gozá-lo o máximo tempo possível. - Na sua carta mais recente dizia-me que se sentia muito afectado pelos meus versos a respeito de urnas e corações despedaçados.

 

Ele torceu levemente a boca, enquanto lhe dava o braço e a conduzia ao cavalo.

 

- Sentia-me, sim, Miss faringdon.

 

- Bom fico contente por se mostrar interessado - disse, satisfeita. - Mr. Potind, o livreiro e editor, não se mostrou assim. Recebi outra rejeição da sua parte no correio desta manhã.

 

- É evidente que Mr. Potind tem ainda menos gosto literário que os críticos da Edinburgh Review.

 

Emily riu, deliciada.

 

- Tem toda a razão. - Fez mais uma vez uma pausa, com uma expressão mais comedida, visto sentir alguns remorsos. De facto, deveria avisá-lo da natureza impossível das suas intenções. - Senhoria?

 

- Sim, Miss Faringdon? - Simon estava ocupado a desamarrar a égua malhada.

 

Estava a falar a sério quando disse que estava aqui para... falar com o meu pai a respeito do pedido da minha mão?

 

- Sim, Miss Faringdon. Não poderia falar mais a sério. - Ajudou-a a subir com leveza para a sela.

 

Ela tocou-lhe na mão, quando esta lhe largou a cintura. Sentia os olhos rasos de lágrimas.

 

- Há-de ver que é completamente impossível. Mas quero que saiba que lhe fico eternamente grata por este momento. Conservarei por toda a minha vida a sua recordação bem dentro do meu peito.

 

- Mas, que diabo.........? - Simon olhou-a com ar zangado.

 

Emily não conseguia suportar manter-se junto dele mais tempo. Iria perguntar-lhe a razão das lágrimas. Batendo ao de leve com os calcanhares nos flancos da égua, voltou-se e afastou-se dele a trote, seguindo em direcção à estrada de St. Clair Hall...

 

A brisa gelada secou as gotas que lhe corriam pelas faces.

 

Simon conseguiu conter a enorme curiosidade que sentia até Lady Cillingham, como sempre graciosamente vaga, se erguer da mesa para deixar os cavalheiros a tomar o seu porto digestivo.

 

Assim que a dama se afastou, os cavalheiros descontraíram-se. Encostaram-se nas cadeiras, estenderam as pernas para debaixo da mesa e pegaram nos copos. Lorde Gillingham acendeu um charuto.

 

Simon preparou-se para fazer aquilo que inconscientemente os cavalheiros têm feito desde tempos imemoriais: comentar uma senhora na companhia de uma garrafa de vinho do Porto. Esperou por uma oportunidade que rapidamente se apresentou. Gillingham estava falador, tendo já consumido uma avantajada quantidade de elarete durante o jantar.

 

- Gostou da visita à nossa sociedade literária? - perguntou Gillingham, semicerrando os olhos devido ao fumo azulado do charuto.

- Achei-a interessante. - Simon fazia girar na mão o cálice de

 

cristal, vendo a luz brincar nas suas faces. - É óbvio que o furor pela nova poesia romântica se espalha para fora de Londres. Pelo menos entre as senhoras.

 

- Não se sabe no que vai dar - disse Gillingham, abanando severamente a cabeça. - Todo esse romantismo absurdo deve ter muito mau efeito sobre as damas.

 

- Certamente não sobre as senhoras de Little Dippington?

 

- Bom, certamente não fará mal nenhum às mais velhas, como as irmãs Inglebright e a outras, mas não é saudável para as jovens.

 

- Como Miss Faringdon? - perguntou delicadamente Simon.

- Esses disparates poéticos foram a ruína dessa pobre menina. Mas também, que possibilidades teria, crescendo num ninho de jogadores e esbanjadores de dinheiro. Era só uma questão de tempo, meter-se em sarilhos depois da morte da mãe.

 

- A mãe morreu há seis anos, não é verdade?

 

- Uma mulher encantadora. Bela, claro, Todos os frívolos Faringdon. são bem-parecidos, homens e mulheres. Excepto Miss Emily. O cabelo ruivo e as sardas não são lá muito belos, e ainda por cima usa aqueles óculos. Poderia ocultar os defeitos o tempo suficiente para aparecer durante a temporada, mas a pobre menina nunca teve possibilidades de o fazer.

 

- Por causa da morte da mãe?

 

- Seguida do Infeliz Incidente - explicou tristemente Cillingham.

- Como foi esse Infeliz Incidente? - perguntou Simon, em tom cauteloso. Pensou que já era tempo de descobrir os pormenores sórdidos.

 

- Bastante mau, segundo o pai. Pobre criança.

- Passou-se há cinco anos? - insistiu Simon.

 

- Acho que mais ou menos. Miss Faringdon tinha dezanove anos, nessa altura. Tinha perdido a mãe mais ou menos um ano antes. O maldito do pai e os malandros dos irmãos estavam sempre fora, deixando-a só naquele casarão enorme. Sabe que não se consegue afastar um Faringdon das casas de jogo durante muito tempo. De qualquer modo, Miss Faringdon era mais ou menos deixada entregue a si própria, tendo apenas os criados por companhia. Sozinha, sem dúvida. Ninguém com quem se aconselhar. Pobrezinha, estava pronta para a desgraça.

 

Simon pegou na garrafa de vinho do Porto e encheu o copo do seu anfitrião.

 

- E esta aconteceu?

 

- A desgraça? Pode ter a certeza. Naturalmente na pessoa de um jovem canalha. É sempre assim, não é verdade?

 

- Sim. - Simon bebia o seu porto, perguntando a si próprio porque seria que lhe apetecia parar a conversa naquela altura. Adivinhava a continuação da história e não tinha qualquer desejo de ouvir mais. Mas havia muito tempo que sabia serem informações deste tipo indispensáveis, quando se planeia uma vingança. - E esse jovem? Continua por aqui?

 

- Ashbrook? Caramba, não! Nunca mais o vi depois do Incidente.

 

ouvi dizer que há uns anos recebeu o título. Agora é barão. E poeta. Anda pelos salões de Londres há tanto tempo, que me espanta que não o tenha encontrado. Se calhar já o avistou numa função qualquer. É o que está a fazer furor hoje em dia.

 

os dedos de Simon agarraram involuntariamente o cálice. Abriu-os cuidadosamente sem querer quebrar o frágil cristal.

 

À menção do nome de Lorde Ashbrook, recordou-se clara e subitamente de cinco pares de olhos acusadores voltados para ele, naquela tarde, quando mencionara por acaso a última obra épica do poeta, A extensão do seu faux pas fê-lo estremecer.

 

- Então foi Ashbrook que arruinou Em... isto é, Miss Faringdon?

- Convenceu-a a partir com ele. Uma tristeza.

 

- Uma fuga?

 

- Pobre Miss Faringdon, acreditou que assim era. Mas, pessoalmente, duvido que Ashbrook alguma vez tivesse intenção de casar com ela. Faringdon soube logo no dia seguinte e diz-se que Ashbrook não esperou para enfrentar o pai ofendido. Mas nessa altura o mal já estava feito, claro. Faringdon disse-me em particular que o casal passara a noite numa estalagem.

 

- Percebo.

 

- Muito triste. Emily é adorável. Ninguém perto dela fala no Infeliz Incidente. Ninguém gosta de a magoar. Gostava que o meu amigo também não lhe falasse no assunto.

 

- Claro! - Simon teve uma súbita visão de Emily a tentar explicar-lhe porque seria impossível ele pedir a sua mão. Era certo que estava convencida, tal como os outros, de que fora socialmente arruinada. O máximo que poderia esperar naquela altura, no que dizia respeito a romance, seria uma ligação pura, nobre e espiritual, mantida através do correio. Não admira que tivesse ficado estupefacta ao vê-lo aparecer em pessoa.

 

Simon recordou-se de que tinha encontrado Ashbrook uma ou duas vezes nos salões de baile de Londres. O homem fizera um esforço enorme para projectar a sua imagem de ardente sensualidade e gostos enfadonhos e cínicos. As senhoras que andavam à sua volta achavam-no, sem dúvida, fascinante. Não era segredo que o viam como símbolo do novo estilo romântico tornado popular por Byron.

 

- Por que razão Faringdon não insistiu para que Asl-ibrook casasse com a filha? - perguntou Simon.

 

- Provavelmente, tentou-o. Decerto que Ashbrook recusou. Não se pode exactamente obrigar uma pessoa, sabe? É uma questão de honra e tudo o mais. Como Faringdon não era assim tão importante na escala social... Claro que não detém uma verdadeira posição. Broderick Faringdon. é vagamente aparentado com um barão arruinado de Northumberland, nada mais.

 

- Então Faringdon deixou as coisas desse modo?

 

- Receio bem que sim. A nossa pequena Miss Faringdon não era assim tão formosa, nem tinha fortuna para que o interesse de Ashbrook fosse suficiente para um compromisso permanente. Receio que o jovem estivesse apenas a brincar com os afectos da menina e esta pagou o preço da sua indiscrição, tal como tantas vezes acontece às jovens senhoras.

 

Simon observou o seu cálice de porto.

 

- Estou surpreendido por nem Broderick Faringdon, nem os gêmeos terem tentado chamar Ashbrook a cumprir as suas responsabilidades.

 

- Os Faringdon tentam a sorte nas mesas de jogo, mas não arriscam o pescoço.

 

- Compreendo.

 

- Uma pena, afinal - concluiu Gillingham, pegando no cálice. - Graças a Deus que existem as senhoras da nossa sociedade literária. Simon ergueu os olhos.

 

- Porque diz isso?

 

- São um grupo aborrecido, mas muito respeitável. Juntaram-se e levaram Miss Faringdon para o grupo. Esclareceram logo que não a iriam pôr de parte, mesmo que tivesse a reputação arruinada aos olhos do mundo. Se quer saber, creio que não há uma única que não inveje a jovem. Trouxe alguma emoção às suas vidas monótonas.

 

Simon pensou que o comentário era extraordinariamente perspicaz da parte do seu anfitrião. Perguntou a si próprio se Gillingham saberia que Emily pagara às suas benfeitoras, assegurando-lhes confortáveis pensões para a velhice.

 

- Com que então, Miss Faringdon nunca casou devido ao escândalo. Sabe, custa-me a acreditar que por aqui não haja ninguém pronto a esquecer o assunto e a pedir a mão dela. É uma coisinha bem intrigante.

 

- Bom, há sempre Prendergast - ripostou Gillingliam, pensativo. Simon franziu a testa.

 

- Quem é Prendergast?

 

- Nobreza rural. É dono de muitas terras aqui na zona. A mulher morreu-lhe há um ano e já esclareceu que está disposto a esquecer o Incidente no passado de Miss Faringdon. Não é precisamente o sonho  de uma jovem, mas Miss Faringdon também não é precisamente uma menina. E também não tem grande escolha.

 

Várias horas depois, Simon desistiu de tentar adormecer. Lançou para trás os pesados cobertores, saiu da cama, vestiu as calças, calçou as botas e pôs uma camisa. Depois apanhou o sobretudo e saiu para o corredor.

 

A inquietação invadira-o, desde que se retirara para o quarto. Talvez um passeio ajudasse.

 

A casa estava escura e gelada. Simon pensou acender uma vela, mas desistiu da ideia. Sempre vira bem no escuro.

 

Desceu silenciosamente a escada coberta por uma passadeira, seguindo depois pelo corredor que conduzia às cozinhas. Momentos mais tarde, saía para a noite clara e cheia de geada.

 

Ao luar, foi bastante fácil encontrar o caminho para St. Clair Hall. Tinham passado muitos anos desde que percorrera aquelas terras à noite, mas não esquecera o caminho.

 

Passados dez minutos, Simon percorria o caminho longo e bem arranjado que levava à mansão, com as botas rangendo no chão gelado. Deteve-se junto à elegante escada, voltou-se e atravessou os jardins até chegar ao lado da casa. Ficou espantado ao ver luzes acesas na janela da biblioteca.

 

Sentiu o estômago apertado, As luzes também tinham brilhado naquela noite, vinte e três anos antes, quando entrara ali para encontrar o pai estendido com o rosto numa poça de sangue.

 

Simon sabia agora o que o tinha atraído naquela noite para a janela da biblioteca. Tinha vindo ver se o fantasma do pai ainda ali pairava, junto à secretária de mogno.

 

Uma parte distante do seu espírito esperava ver ainda a pistola na mão do conde defunto, o sangue, a carne ferida e a massa cinzenta espalhada pela parede, por trás da cadeira. Vivera durante anos com essa terrível imagem.

 

Mas, em vez do fantasma do homem que tudo perdera e utilizara uma solução cobarde, deixando que um filho de doze anos se arranjasse sozinho, viu Emily.

 

Estava sentada na beira de uma enorme cadeira, parecendo muito pequena e etérea ao inclinar-se industriosamente sobre a grande secretária de mogno. À luz da vela, o seu belo cabelo ruivo cintilava como o Pêlo de Lap Seng ao sol.

 

Trazia uma pequena touca de renda e um robe muito formal com gola de folhos. Os pés, metidos debaixo da cadeira, estavam calçados com macias chinelinhas de cetim. Estava ocupada a escrever com uma pena num volume de capa de cabedal.

 

Ocorreu a Simon que uma pessoa tão romântica como Emily, deveria escrever um diário. Se assim fosse, ele figuraria decerto na entrada daquela noite.

 

Ou talvez compusesse novas estâncias para A Dama Misteriosa. Observou-a durante mais alguns minutos, dizendo a si próprio que deveria ir-se embora. Mas não se voltou, nem se dirigiu ao bosque que levava a casa dos Gillingham, até Emily pousar a pena. Viu-a estender o braço para apagar as luzes e sair da sala, pegando numa vela para iluminar o caminho ao subir as escadas.

 

A biblioteca ficou às escuras.

 

Simon. apercebeu-se de que ainda ali estava, olhando para a sala cheia de profundas sombras. Por fim, obrigou-se a voltar e partir em direcção a casa dos Gillingham.

 

Apercebeu-se de que não vira aquilo que ali o levara. O fantasma do pai, que deveria ocupar a biblioteca, fora banido por aquela Titânia ruiva e de olhos verdes que estava sentada à secretária.

 

Durante toda a semana, Emily flutuou como se estivesse numa nuvem. Nunca os versos lhe tinham saído com tanta facilidade. Sentia-se inspirada por tudo aquilo que via ou em que tocava, principalmente por Simon. E via muitas vezes o conde.

 

Sabia que essa tal nuvem na qual se elevava, em breve ficaria feita em farrapos e que, nessa altura, cairia na terra com pesado estrondo. Mas estava decidida a gozar a viagem o máximo de tempo possível. Absorvia uma experiência transcendental que lhe perduraria toda a vida.

 

Emily estava apaixonada e durante aquela semana parecia que o seu amado conseguira estar sempre onde ela se encontrava. Encontrou Simon em casa dos Hathersages, onde costumava jogar

às cartas, Fizera par com ela ao whist e tinham vencido. Naturalmente. Quem poderia derrotar uma tal equipa, afirmara Emily mais tarde. Fora ao sarau musical dos Sewards, na segunda-feira à tarde.

 

Emily trocara com ele um olhar secreto e risonho, quando a filha mais nova saltou uma nota ao tocar Mozart. No fim, aplaudiram os dois de tal forma, que a jovem resolveu bisar.

 

Simon estava na aldeia quando Emily foi às compras. Insistiu em parar para conversar com ela.

 

Parecia andar a passear na estrada que levava a St. Clair Hall sempre que Emily ali passava a cavalo.

 

Quase no fim da semana, Simon materializou-se junto ao portão do jardim do vicariato justamente quando Emily se despedia de Mrs. LudIow, esposa do vigário. Cavalgava o alazão castanho, chamado Lap Seng. Cumprimentou Mrs. LudIow com a devida cortesia, desmontou e ficou algum tempo a conversar com as duas senhoras.

 

Por fim desejou-lhes um bom-dia e voltou a subir para a sela, sorrindo para Emily.

 

- Confio em que me vai prometer uma dança amanhã à noite no baile dos Gillingham, Miss Faringdon - disse ele, puxando as rédeas do cavalo.

 

- Oh, sim, claro! - respondeu Emily, ofegante. Seria a primeira vez que iriam dançar, pensou enquanto o via trotar pelo atalho. Mal podia conter a emoção.

 

- Ora, ora - disse a esposa do vigário com um olhar entendido. Blade anda a mostrar um nítido interesse em si, minha menina. Emily corou, horrivelmente consciente daquilo que Mrs. LudIow

 

deveria estar a pensar. A esposa do vigário era uma pessoa bondosa. Sem dúvida sentia pena de Emily, pois toda a gente sabia que, mais cedo ou mais tarde, Blade tomaria conhecimento do Incidente e seria o fim do namoro.

 

- O conde tem sido muito gentil nas suas atenções - disse Emily em voz fraca e ficou surpreendida com o que Mrs. LudIow disse a seguir:

- A família dele vivia aqui - disse esta pensativa. - Há mais de vinte anos, creio eu.

 

Emily, que estivera à espera de um delicado aviso de que aquelas atenções não teriam futuro, pestanejou surpreendida.

 

- Foi o que Miss Inglebright disse.

 

- O rapaz e a mãe partiram depois do pai ter morrido. Foi uma situação muito desagradável. - Mrs. LudIow parecia estar disposta a dizer mais, mas mudou abruptamente de ideias. Abanou firmemente a cabeça. - Não tem importância, minha querida. Já tudo passou há muitos anos e, certamente, nada significa hoje em dia. Bom, Emily, tem de tratar de pôr o seu vestido mais bonito amanhã à noite, está bem?

 

Emily sorriu, interrogando-se se o sermão e os avisos viriam agora.

- Tenciono fazê-lo - disse com um leve toque de desafio no seu tom de voz.

 

- Sim, senhora! Os jovens devem divertir-se sempre que possam. Vá então e tenho a certeza de que os pobres de Little Dippington ficarão muito agradecidos pelas roupas que trouxe esta tarde.

 

Então não haveria qualquer aviso. Emily ocultou um suspiro de alívio, enquanto se dirigia ao local onde deixara atada a égua. Mesmo assim era espantoso. Ninguém parecia pensar que ela não devia namorar o conde. E parecia até que ninguém se sentira obrigado a avisar Blade a respeito do Infeliz Incidente.

 

Emily perguntava a si própria se as pessoas de Little Dippington não estariam à espera que o romance tivesse um final feliz. Mas, mais tarde ou mais cedo, alguém se sentiria obrigado a dizer-lho.

 

Quando Simon apareceu para a reunião seguinte da Sociedade Literária das Tardes de Quinta-Feira, Emily foi finalmente forçada a admitir que o assunto estava numa fase pouco confortável. No seu íntimo, sabia que não poderia deixar que Simon a cortejasse abertamente, uma vez que não havia a menor esperança.

 

Os remorsos começavam a incomodá-la. Sabia que não poderia deixar aquilo continuar por muito tempo. O escândalo vinha sempre à tona, mais cedo ou mais tarde. Se ninguém ia dizer o que tinha de ser dito, então teria de ser ela a encarregar-se da horrível tarefa.

 

Receava o momento da verdade, mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas recordava a si própria de que soubera desde o princípio que o amor que sentia pelo conde de Blade estava condenado. Era altura de terminar aquela mascarada romântica.

 

Capitulo 4

EMILY CHEGOU AO FIM DA DANÇA, sabendo que se estava a rir exageradamente e sentindo-se demasiado afogueada. Estava com um humor invulgarmente alegre e sabia a razão. Fortificava-se para a tarefa que tinha diante de si.

 

A sua consciência não lhe permitiria continuar a ocultar o escândalo a Simon.

 

Naquela noite, enquanto se vestia para a festa dos Gillingham, jurara a si própria fazer, sem mais demora, o que teria de ser feito. Embora gostasse muito da fantasia que estava a viver, Emily sabia que não poderia atrever-se a continuar à espera que o machado lhe caísse sobre a cabeça. Tinha de terminar o assunto. Quanto mais tempo as coisas assim continuassem, mais o haveria de lamentar quando Simon descobrisse por fim a verdade e partisse, aborrecido.

 

Decidira deliberadamente usar o seu melhor vestido, confeccionado pela costureira da aldeia. Naquela noite era a primeira vez que vestia musselina verde pálida, enfeitada com fitas amarelas e vários folhos. As lunetas oscilavam, discretamente presas ao vestido por uma fita.

 

As lunetas eram um aborrecimento, mas Emily recusou-se a usar óculos naquela noite.

 

O ousado decote do vestido de cintura alta fora feito para revelar um colo magnífico. Quando Emily o encomendara esperava que fizesse aumentar as suas curvas pouco impressionantes. Porén, ao vesti-lo naquela noite, receou que apenas conseguisse chamar a atenção para a pequenez da sua figura.

 

- Nada disso - insistira Lizzie, a sua criada, ao admirar deliciada a sua ama. - Dá-lhe um ar leve e delicado, menina. Como se pudesse voar à luz da Lua.

 

Emily esperava que ela tivesse razão. Não se sentia particularmente leve e delicada naquela noite. Sentia no estômago uma bola de chumbo que parecia aumentar a cada minuto.

 

O pequeno salão de baile dos Gillingham estava cheio como um ovo, com a nobreza da região nos seus melhores trajes, Lorde e Lady Gillingham eram conhecidos por serem bondosos e convidarem os vizinhos menos elegantes uma ou duas vezes por ano. A presença de Simon em sua casa fora a desculpa para aquele acontecimento. Servia-se champanhe e um buíffet de doces e iguarias.

 

Simon transformara-se, juntamente com Emily, no centro das atenções, ao abrir o baile com ela. Sem os óculos e perdida numa bruma romântica, Emily fora capaz de ignorar os muitos e curiosos olhares que sabia ir receber juntamente com o conde. Simon, como de costume, não parecia reparar neles, o que se devia ao facto de não condescender em reparar nessas coisas.

 

Emily não imaginava coisa alguma que pudesse alterar a calma confiança de Simon. Essa sensação de força interior e segurança, que fazia de tal forma parte dele, podia ser por vezes assustadora, mas era certamente impressionante.

 

Emily ergueu as lunetas durante alguns segundos e observou disfarçadamente a multidão, até descobrir Simon a conversar com o vigário. Concluiu que Blade era, sem sombra de dúvida, o mais belo homem daquela noite. Claro que estava a ser um pouco tendenciosa. Mas não valia a pena negar o facto de que o seu austero fato de noite preto e branco era perigosamente atraente, numa sala cheia de casacos e coletes coloridos.

 

- Boa noite, Miss Faringdon. Permite que lhe traga um copo de limonada?

 

Emily sufocou um gemido ao ouvir o desagradável som da voz de Elias Prendergast. Baixou as lunetas, não precisando de auxílio para ver o rosto familiar, gordo, rubicundo e de grandes suíças.

 

Nem precisava de óculos para ver que, para a ocasião o enorme Mr. Prendergast se tinha enfiado num dos seus espartilhos. Ouvia-se estalar quando ele se mexia.

 

- Não, muito obrigada - murmurou Emily pensando que o que de facto precisava era de um copo de champanhe. Abriu o leque e começou a abanar-se diligentemente quando Prendergast se inclinou mais para ela. O homem cheirava como se não se tivesse preocupado em tomar banho antes da festa. Prendergast era da velha escola e desconfiava violentamente da nova moda que preconizava o uso frequente do sabão e da água. Preferia antes utilizar uma boa quantidade de perfume.

 

- Estava a pensar visitá-la, agora que terminei o luto, Miss Faringdon - disse Prendergast com ar importante. - Creio que há umas coisas que temos de discutir.

 

Emily sorriu educadamente.

 

- Estou convencida que não seria correcto, senhor. Decerto quererá esperar até o meu pai se encontrar em casa.

 

- É exactamente isso, caramba - disse Prendergast com notório aborrecimento. - O seu pai não passa muito tempo aqui no campo. É imprevisível nas suas idas e vindas, não é verdade?

 

- Está muito ocupado com os seus negócios na cidade. Linda festa, não acha? - Emily agitou o leque num arco gracioso que abrangia a sala brilhantemente iluminada. - Mas afinal Lady Gillingham é sempre uma anfitriã maravilhosa.

 

As sobrancelhas hirsutas de Prendergast juntaram-se numa expressão enfadada. Pigarreou. Emily sentiu-se aflita. Adivinhava o que ele lhe iria dizer.

 

- Minha cara Miss Faringdon, sinto que a devo aconselhar, já que o seu pai se encontra fora - disse Prendergast num tom agoirento.

- E é do meu conhecimento que temos um visitante nas redondezas que a tem visto muito, ultimamente.

 

- O senhorDeviin. Não tinha ideia de que desse atenção aos mexericos da terra. Creio que deve ser muito cansativo preocupar-se com essas coisas.

 

Prendergast resfolegou e sorriu de modo intimidante. Era sabido que, enquanto vivera, Mrs. Prendergast fora uma criatura medrosa, que nunca se atreveria a fazer afirmação tão arrogante.

 

- Bom, minha menina, eu sei perfeitamente que a cabeça de uma mulher pode ficar perturbada por atenções românticas, tais como as que Blade lhe dispensa, Miss Faringdon, se é que não se importa que lho diga.

 

- Mas eu importo-me, sim, senhor. Importo-me até muito. - O sorriso de Emily aumentava, belo e arguto como a raiva que se acendia dentro dela, Prendergast ia a caminho de lhe estragar o pouco tempo que ainda lhe restava com Simon.

 

O rosto pesado de Prendergast imobilizou-se numa expressão trovejante que Emily conseguia ver perfeitamente sem as lunetas.

 

- Só digo isto porque me preocupo profundamente com a sua reputação, Miss Faringdon.

 

- Toda a gente sabe que a minha reputação já não tem remédio. Por favor, não se preocupe com ela.

 

- Ora, ora, não deve ser tão severa consigo própria - admoestou-a Prendergast. - É verdade que há um feio escândalo no seu passado. Mas a senhora era jovem e tola, e cometeu um erro. Essas coisas acontecem às jovens. Eu, que sou um homem do mundo, com alguma experiência em aconselhar mulheres fogosas, não me importo de ignorar o Incidente.

 

É muita bondade sua.

 

Sim, realmente é. Naturalmente, Blade não o poderá fazer. Tem de pensar no seu nome de família e no título, sabe?

 

Os dedos de Emily agarraram com força o leque.

 

- Por favor, não se incomode em dar-me mais conselhos. Prendergast endireitou-se em toda a sua altura. Pairava sobre Emily e o seu espartilho gemia.

 

- Miss Faringdon, a senhora deixou que uma vez as suas paixões excessivas a ultrapassassem e, ao fazê-lo, arruinou-se socialmente. Decerto não esqueceu a lição desse infeliz momento.

 

- Garanto-lhe que nada esqueci - disse Emily entredentes. Mas o senhor está a começar a aborrecer-me.

 

- Miss Faringdon, não me interprete mal. As minhas intenções são muito honradas. Apenas desejo oferecer-lhe uma saída respeitável para as suas fogosas tendências. - Pegou-lhe na mão e esmagou-a entre as suas, húmidas e gordas.

 

- Por favor, devolva-me a mão - disse Emily, enquanto tentava em vão retirar os dedos das garras suadas.

 

Prendergast ignorou os seus esforços e apertava-lhe dolorosamente os dedos. Inclinou-se mais, até que o mau hálito e o perfume pesado quase venceram a sua vítima. Depois baixou a voz para um tom de confidência.

 

- Miss Faringdon, compreendo perfeitamente como deve ser difícil para uma mulher de grandes paixões como a senhora, ser obrigada às severas restrições da sociedade. Tenho a certeza de que seria muito mais feliz casada. Dentro da santidade do leito nupcial poderia soltar esses impulsos que é agora obrigada a controlar.

 

- Se o senhor não me largar imediatamente, serei forçada a tomar medidas drásticas.

 

Mas Prendergast estava agora extremamente empenhado na sua missão.

 

- Precisa de um homem que lhe possa acomodar os seus excessos de emoção, minha querida. Garanto-lhe que esse homem sou eu. Além do mais, tenciono visitar o seu pai na primeira oportunidade, para lhe expor as minhas intenções.

 

- Não - murmurou Emily ofegante, horrorizada com a ideia.

- Com essa finalidade - continuou Prendergast, como se não tivesse percebido o susto na voz de Emily - escrevi-lhe uma carta, informando-o dos riscos que actualmente a senhora corre e garantindo-lhe que olharei por si até que ele volte para a proteger das atenções de Blade.

 

- Trate das suas coisas. Não desejo ser protegida dessas atenções.

- Ele está apenas a brincar com os seus afectos, minha querida. Tal como fez o outro patife há cinco anos.

 

Por fim, Emily perdeu a cabeça. Com um movimento seco fechou o leque e fê-lo descer com força sobre as costas da mão de Prendergast. A pancada foi tão forte que as varas estalaram.

 

- Ai! - Prendergast libertou-lhe imediatamente os dedos esfregando as costas da mão. Tinha as faces gordas muito coradas. - Ah, Miss Faringdon, a senhora é de facto uma criatura de grandes paixões. Mal posso esperar que nos casemos. Garanto-lhe que darei bem conta de si, minha querida, mesmo muito bem.

 

- É melhor não se pôr à espera desse acontecimento - avisou-o Simon, no seu tom de voz frio e severo.

 

Emily sobressaltou-se e, ao voltar-se, viu que o conde se materializara junto a si. Sorriu encantada para o seu dragão. Este era satisfatoriamente grande e feroz e tinha bastantes dentes, fortes e brancos. Para mais, eram seus e o mesmo não se poderia dizer dos de Elias Prendergast,

 

- Como está, Senhoria? - disse Emily com ar feliz. - Parece-me que se está a divertir.

 

- Muito. Pensei que precisasse disto! - Entregou-lhe um copo de champanhe.

 

- Como é perspicaz, Senhoria. - Agradecida, Emily fechou os dedos à volta do copo.

 

- Miss Faringdon prefere limonada - declarou Prendergast.

 

- Engana-se. - Emily bebeu um gole. - Neste momento o que Miss Faringdon realmente prefere é um copo de champanhe. Prendergast olhou furioso para o ar atrevido de Emily.

 

- Discutiremos o assunto numa altura mais apropriada, Miss Faringdon.

 

- Que assunto? A minha preferência por champanhe? Garanto-lhe que nada há a discutir.

 

- Referia-me a outras preocupações mais urgentes - sussurrou Prendergast. Inclinou a cabeça num movimento brusco. - Se me desculpam, tenho de ir falar a um amigo. Partiu, mostrando grande dignidade, que era até certo ponto frustrada pelo ranger do seu espartilho,

 

Emily sufocou um pequeno suspiro. Embora fosse ridículo, tinha razão numa coisa. Não podia continuar por mais tempo a enganar Simon. Bebeu outro gole de champanhe e olhou para o conde. Estava perto dele o suficiente para ver a divertida troça que lhe brilhava no olhar.

 

- Dir-se-ia que tenho um rival para a sua mão - murmurou Simon. Emily abanou rapidamente a cabeça, fazendo saltar os caracóis.

- Não dê atenção a Mr. Prendergast. Tem sido um aborrecimento,

 

desde que a sua pobre mulher se finou. Simon, tenho de falar consigo.

- Tem toda a minha atenção.

 

- Não. Aqui não. Agora não. - Olhou furtivamente à volta, semicerrando os olhos para ver se havia alguém demasiado próximo.

- Simon tenho de falar consigo em privado.

 

- Parece prometedor.

 

- Receio que não seja caso para graças, Senhoria. É até muito sério. Por favor, quando posso estar consigo? Já passou tempo suficiente e há... - Emily interrompeu-se, erguendo as lunetas para voltar a olhar em seu redor e acrescentou em voz baixa e infeliz: - Há coisas que tenho de lhe dizer.

 

- Ah.

 

- Tenho estado em falta, por não o informar desses assuntos em particular logo no início da nossa relação. Foi cobarde da minha parte, mas pensava que alguém desempenhasse essa tarefa por mim.

 

- Está a alarmar-me, minha querida. Sinto-me como a personagem de um romance. Creio que começo a tremer com o Difícil Receio do Desconhecido,

 

- Senhoria, sabe muito bem que nada o pode fazer tremer de medo -- disse Emily zangada. - Digo-lhe que já é bastante difícil. Por favor, não troce de mim.

 

- Nunca pensaria fazê-lo. Muito bem, se não sou autorizado a tremer de medo, mostrarei a minha coragem e enfrentá-la-ei nessa terrível confissão. Que tal na sua biblioteca, digamos, à uma hora da manhã? Com certeza já se encontrará em casa e os seus criados estarão deitados.

 

Sobressaltada, Emily deixou cair as lunetas.

 

- Na minha biblioteca? Quer dizer que vai a St. Clair Hall? Esta noite?

 

- Consegue estar sozinha na biblioteca a essa hora?

 

- Bom, sim. Claro que sim. Trabalho com frequência na biblioteca depois dos criados terem ido para a cama. - Franziu a testa, preocupada com os problemas práticos. - Terei de deixar a porta destrancada para que possa entrar.

 

- Não é preciso. - Tomou um gole do seu champanhe e observou os pares que se passeavam entre as danças. - Veja lá se está na biblioteca à uma. Vou lá ter consigo.

 

Emily ergueu as lunetas para lhe olhar para o rosto. Como de costume, pela expressão, não conseguia dizer nada a respeito daquilo que ele estava a pensar. Achava perfeitamente espantoso que conseguisse disfarçar a sua natureza sensível e apaixonada tão completamente, por trás daquela fachada de frio desprendimento.

 

- Muito bem, Senhoria. À uma hora.

 

Emily teria de admitir que embora a noite fosse terminar com um desgosto, o modo misterioso com que Simon preparava o seu derradeiro encontro clandestino, era maravilhosamente intrigante. Mas, afinal, nada do que rodeava o conde de Blade era vulgar. Toda a vida haveria de recordar o breve namoro e essas espantosas recordações poderiam inspirar-lhe a escrita e os sonhos durante muitos anos,

 

Alguns minutos antes da uma hora da manhã, Emily sentou-se à secretária de mogno, a olhar fixamente para a garrafa de brandy. Voltara a pôr os óculos, mas estava pronta para os retirar e esconder na gaveta de cima da secretária, assim que Simon chegasse.

 

A garrafa de brandy parecia-lhe muito convidativa. Estava cheia e Emily tinha frio, devido ao nervoso e à ansiedade. Na última meia hora tinha-se interrogado se deveria ou não servir-se de um cálice fortificante.

 

Os ponteiros do mostrador do relógio alto junto à lareira moviam-se com tanta lentidão que Emily começava a perguntar a si própria se teriam parado completamente, Ali próximo cintilavam duas velas, que eram a única iluminação do quarto. A lareira estava preparada para ser acesa de manhã, mas não se atrevia a fazê-lo naquela altura. Um dos criados poderia reparar que se deitara de novo muito tarde e preocupar-se-ia a pensar que estava a trabalhar de mais. Como resultado, o compartimento estava a ficar gelado.

 

Com um sobressalto, Emily sentiu os braços arrepiados quando atrás de si uma fria corrente de ar invadiu a sala. Estremeceu no seu robe cheio de folhos, perguntando a si própria se não teria sido aberta uma janela. Ergueu-se lentamente da cadeira.

 

No mesmo instante sentiu outra presença ali.

 

Emily pôs-se de pé num salto, com os lábios já abertos para gritar, enquanto agarrava um corta-papel que se encontrava sobre a secretária.

 

Mas não soltou o grito. Uma enorme mão de homem poisou-lhe firmemente sobre a boca e Emily foi puxada rapidamente contra um forte corpo masculino.

 

Quase perdeu as forças, tão aliviada se sentiu ao perceber quem a agarrara.

 

- Sentir-me-ia muito mais bem recebido se poisasse esse corta-papéis - disse Simon, retirando-lhe a mão da boca. Apagou a vela que trazia consigo.

 

- Simon. Que raio! - Emily pôs de lado o corta-papéis e deu a volta para o olhar através dos óculos. - Pregou-me um susto enorme. De onde saiu? Como diabo apareceu, assim tão furtivo? Há tanto tempo que olho para a porta.

 

Simon abriu o sobretudo e afastou-se. Apontou como que por acaso na direcção de uma parte da estante que voltava lenta e silenciosamente ao seu lugar encostada à parede. Abrindo muito os olhos num contentamento espantado, Emily viu a entrada escura aberta na pedra.

 

- Uma passagem secreta. Simon, que maravilha. - Passou diante dele e espreitou para a abertura que desaparecia rapidamente. Todas as ideias de uma confissão há muito planeada desapareciam diante da promessa de uma grande aventura.

 

- Contenha o seu entusiasmo, Miss Faringdon! - Simon pegou-lhe no braço, impedindo-a de continuar. - A estante fecha-se sobre si. É demasiado pesada para ser aberta manualmente. Tem de se usar uma alavanca escondida.

 

- Que alavanca escondida? Onde fica? Oh, que emocionante! É exactamente como naqueles romances de gelar o sangue de que há bocado falou. Nem consigo acreditar. Pensar que vivi aqui quase toda a minha vida e nunca soube deste segredo.

 

- Acalme-se! - Divertido por aquele entusiasmo incontido, Simon olhou à volta pelo quarto, até que descobriu a garrafa do brandy. Atirou com o pesado sobretudo para cima de uma cadeira. - Há duas alavancas explicou, enquanto se dirigia para a mesinha onde se encontrava o brandy.

- Duas?

 

- Uma na passagem por trás da parede e outra escondida dentro da própria estante. - Serviu dois cálices enquanto falava. - O homem que construiu St. Clair Hall gostava de fazer saídas de emergência.

 

- Mas como sabia o senhor da passagem secreta? - Emily olhava com pena a estante que se fechava de novo contra a parede.

 

- Ainda não percebeu? Espanta-me. Conheço a passagem porque vivi aqui.

 

Esta frase abarcou-lhe toda a atenção. Emily voltou-se rapidamente

 

e viu que ele estava encostado à secretária com ar lânguido, bebendo o brandy, Apercebeu-se de que tinha despido o traje de noite. Estava vestido mais à vontade com umas calças, botas e camisa de linho. Nem sequer trazia gravata. Tinha o ar de um homem que se descontraía na sua própria casa.

 

A sua própria casa.

 

Sem pronunciar palavra, Simon ofereceu-lhe o outro cálice de brandy. Tal como se elefôsse o anfitrião e eu a visita, pensou de súbito Emily.

- St. Clair Hall era a casa de campo da sua família? - Emily

 

pegou no cálice com as duas mãos, procurando olhá-lo no rosto. - Que espantosa coincidência.

 

- Outra para a senhora anotar no seu diário. - Engoliu o brandy. Emily mordeu o lábio inferior sem perceber em que tom estava ele a falar.

 

- Deveria ser um rapaz muito novo, quando saiu daqui.

- Doze anos.

 

- Porque não me disse que esta casa tinha sido sua? Ele encolheu os ombros.

 

- Não me pareceu especialmente importante.

 

Emily tomou um gole de brandy, franzindo de novo a testa. Tinha a nítida impressão de que lhe escapava qualquer coisa, mas não conseguia perceber de maneira nenhuma o que era. A imaginação romântica apoderava-se de novo dela.

 

- É claro que esta estranha coincidência é mais um elemento espantoso na nossa predestinada relação, Senhoria - afirmou finalmente Emily.

 

Simon lançou-lhe um olhar arguto.

 

- Disse predestinada? Confesso que não estou tão ao facto dos elementos da literatura romântica como a senhora. Talvez não se importe de me explicar?

 

Emily bebeu outro gole de brandy e começou a andar de um lado para o outro na sala. As chinelinhas macias não faziam ruído no tapete.

- Devo dizer-lhe, Senhoria, que para nós não poderá haver final feliz. E tudo por culpa minha.

 

Ele observou-a, com os olhos baixos e semicerrados.

- Então, porquê?

 

Emily agarrou com tanta força o pé do cálice de brandy que ficou com os nós dos dedos brancos. Não conseguia olhar de frente para Simon quando se voltou no outro extremo da sala e começou a caminhar de novo em direcção à secretária. É melhor dízê-lo rapidamente e terminar de uma vez com tudo - decidiu.

 

- Senhoria, tenho de lhe confessar que o enganei vergonhosamente. Namorei-o o mais ousadamente possível, iludi-o de maneira incrível e permiti-lhe que acreditasse que aceitaria a sua proposta de casamento.

 

Das vizinhanças da secretária veio um silêncio curto e pesado. Depois, Simon perguntou friamente:

 

- Está a querer dizer-me que não receberia bem a minha oferta?

- Oh, não, Senhoria. Não se trata disso. - Lançou-lhe um olhar angustiado, e dirigiu-se corajosamente para o outro canto da sala. - Garanto-lhe que estou profundamente honrada com essa proposta. Profundamente honrada. Mas não posso permitir que a faça e ficar de consciência tranquila.

 

- Como tenciona impedir-me?

 

- Contando-lhe a verdade a meu respeito. Uma verdade que esperei durante todo este tempo que outra pessoa lhe contasse. Emily franziu a testa por instantes. - De facto, não consigo entender porque ninguém lhe mencionou, o Infeliz Incidente antes, mas, já que a boa gente de Little Dippington parece decidida a ficar de boca calada, tenho de ser eu a confessar tudo.

 

- A confissão deve ser realmente muito interessante, para ter de ser feita em segredo e a estas horas da noite.

 

O som suave do tilintar do vidro veio da mesa das bebidas. Emily atreveu-se a lançar uma rápida olhadela e viu que o conde se tinha servido de outro brandy. Passou-lhe pela cabeça que também ela poderia beber outro.

 

- Senhoria, vou tentar dizer isto com a maior brevidade possível, de modo a poder voltar para os seus assuntos. - Emily respirou fundo e tomou coragem. - A horrível verdade é que não poderá pedir a minha mão, pela simples razão de que sou uma mulher arruinada.

 

- Arruinada, como? A mim parece-me de excelente saúde. Saudável como um cavalo.

 

Emily fechou os olhos com força e deteve-se diante das estantes, do outro lado da sala.

 

- Não me está a perceber, Senhoria - disse calmamente. - Estou a tentar dizer-lhe que estou socialmente arruinada. Para ser franca, há um grande escândalo no meu passado.

 

- Um escândalo?

 

- Um escândalo que inclui um homem. É de tais proporções, que a minha família me garantiu que nenhum homem decente, principalmente se tivesse um título de nobreza, como o senhor, poderia querer casar comigo.

 

Pronto, pensou desolada. Está dito. Esperou pela tempestade que não tardaria em chegar. O conde de Blade não apreciaria o facto de ela o ter defraudado durante mais de uma semana.

 

- Estaremos por acaso a discutir aquela tolice que aconteceu quando a senhora tinha dezanove anos? - perguntou brandamente Simon.

 

Emily sentiu-se instantaneamente confusa.

- Ouviu falar do Incidente, Senhoria?

 

- Descanse minha amiga, tento sempre documentar-me com a maior quantidade possível de informações antes de dar micio a um projecto. É um velho hábito meu. Adquiri-o durante os anos que passei no Oriente.

 

Ela voltou-se para o olhar, sem perceber como podia dar tão pouca importância ao facto.

 

- Senhoria, não foi um caso sem importância, foi uma fuga. Ou antes, deveria ter sido. Receio ter-me rendido imbecilmente a um excesso de paixão romântica e, por isso, paguei o preço.

 

- Isto está a ficar cada vez mais interessante.

 

- Com mil raios, Blade, não se trata de uma brincadeira. Não percebe? Fugi com um homem. O meu pai apanhou-nos, mas já era... tossiu um pouco, para aclarar a voz. - já era tarde de mais.

 

- Tarde de mais? - O conde espetou uma orelha sem parecer minimamente preocupado.

 

- Fomos obrigados a passar a noite fora - resmungou Emily, evitando o olhar brilhante de Simon. - O meu pai só me encontrou na manhã seguinte.

 

- Percebo. Diga-me uma coisa, Emily. Porque é que tenho a nítida impressão de que a senhora não lamenta completamente esse Incidente? Emily voltou a caminhar de um lado para o outro.

 

- Garanto-lhe que agora lamento. Mas confesso que, na altura, foi a coisa mais emocionante que me aconteceu - suspirou pesarosa.

- Mas o meu pai logo me explicou que seria a coisa mais emocionante que me haveria de acontecer em toda a vida, pois nenhum homem decente me quereria. Trouxe-me para casa e disse-me que deveria dedicar a minha vida aos estudos da bolsa de valores e dos investimentos.

- E gosta desses estudos?

 

- Oh, sim, por vezes. Há uma certa fascinação em tudo isso, sabe? - Acenou vagamente com a mão. - Mas nada de especial.

 

Respirou fundo. Senhoria, compreendo que, à luz destas informações, tenha, é claro, de retirar a sua proposta de casamento.

 

- Raramente abandono as minhas intenções, Emily. Sou conhecido por terminar tudo aquilo que começo. Pergunte a quem quiser, em Londres.

 

- Bom, será difícil fazê-lo, no que diz respeito a este assunto retorquiu ela. - Os homens da sua posição não se casam com mulheres de reputação arruinada. Senhoria, fiz-lhe uma confissão e, se não ficou completamente desgostado comigo, gostaria de lhe dizer mais outra coisa.

 

- Garanto-lhe, Emily, que não me vou embora. Sinto-me fascinado e tenho de ouvir seja o que for que me queira dizer.

 

- Então, muito bem. Decerto se interroga qual a razão por que vesti o robe para este encontro clandestino.

 

- Concluí que foi por estar gelada e por este ser bem mais quente do que o encantador vestido que tinha há bocado. Esta sala foi sempre muito fria.

 

Emily gemeu. Perguntou a si própria, pela primeira vez, se o conde de Blade não seria um pouco denso na compreensão de alguns assuntos. Continuou com os olhos fixos na estante e obrigou-se a continuar.

 

- Vesti o robe porque estou prestes a oferecer-lhe uma ligação ilícita de natureza romântica.

 

- Receio não entender, minha querida. Já temos uma ligação legítima de natureza romântica.

 

Ela voltou-se, completamente exasperada.

 

- Pensei que fosse um homem do mundo, Senhoria. Por favor, preste atenção. Como não há qualquer possibilidade de casamento entre nós e eu apaixonei-me desesperadamente por si, tive a ideia de lhe oferecer... uma ligação.

 

- Uma ligação? - Olhou-a com ar intrigado.

 

- Estou a oferecer-me para ser sua amante, idíota! - Emily inspirou horrorizada ao aperceber-se daquilo que tinha dito. Fechou os olhos, mortificada. Tinha o rosto a arder. - Perdoe-me, Senhoria, não tive a intenção de lhe chamar idiota. Receio ter os nervos em franja e tenho de confessar que tenho muito génio. De vez em quando não me consigo controlar.

 

- Não há dúvida que é uma mulher de fortes paixões, tal como Prendergast afirmou.

 

- E não há dúvida que o senhor é um homem que parece divertir-se com coisas muito estranhas. - Poisou o cálice de brandy. Certamente  já bebera de mais. Meteu as mãos nos bolsos do robe. - E então? perguntou teimosa. - Que diz à minha oferta.

 

O conde endireitou-se lentamente e pousou o cálice vazio. Atravessou a sala até onde ela se encontrava e agarrou-lhe os ombros com as mãos fortes.

 

- Emily, minha querida, pode ter a certeza de que fico profundamente honrado com a sua oferta.

 

Ela ficou desapontada.

- Mas?

 

- Mas como creio que é uma criatura de paixões excessivas e possui um temperamento vivamente romântico, seria melhor se deixasse ser eu a conduzi-la nesse assunto.

 

- Porquê? - perguntou ela francamente. - Acha que pode mostrar tanto sangue-frio neste assunto, como tenta mostrar em todos os outros?

 

- Quem me conhece dir-lhe-á que posso e que, de facto, trato todos os assuntos com sangue-frio. já está avisada, Emily.

 

- Conversa. É apenas uma atitude que aparenta. Não vale a pena falar-me do seu sangue-frio, pois conheço a verdade. Não esqueça que aprendi muito com as suas cartas, Senhoria. Os nossos pensamentos encontraram-se e misturaram-se num plano mais elevado. Olhámos profundamente para o interior das nossas almas.

 

- Acredite no que quiser, minha querida. Permita-me porém que lhe diga, que pelo menos sou mais velho e tenho mais experiência do mundo.

 

- Sem dúvida. Toda a minha vida estive metida em Little Dippington.

- Então vai conceder-me a vantagem de uma maior experiência e permita-me que tome as decisões no que diz respeito ao decurso da nossa futura relação.

 

- Ah, sim?

 

- Sim, Emily - disse ele delicadamente. - Vai. - Curvou a cabeça e beijou-lhe a ponta do nariz. - Estou convencido de que será melhor se esperar até à sua noite de núpcias, antes de se render completamente a outro surto de excessiva paixão romântica.

 

- Então esperarei para sempre, Senhoria - disse ela bruscamente.

- Certamente não tenciono casar com Elias Prendergast e ele é o único que parece pretender-me.

 

- Não, minha querida, não é. Eu pretendo-a. Peço a sua mão assim que o seu pai voltar a Little Dippington.

 

Emily ergueu os olhos, sem o compreender.

 

-  Vai pretender-me? Mas, Senhoria, acabei de lhe explicar que sou uma mulher arruinada.

 

- Creio - disse Simon friamente -, que não voltaremos a discutir o Infeliz Incidente do seu passado.

 

- Ah, não?

 

- já começa a entender. - Passou levemente a boca pela dela e depois afastou-se com um leve sorriso.

 

Ela prendeu-lhe as mãos enormes entre as suas, tão pequenas.

 

- Simon, está a falar a sério? Tenciona de facto pedir a minha mão, independentemente do grande escândalo do meu passado?

 

- Claro que sim, Emily. Tenciono pedi-la ao seu pai.

 

Ela mal podia acreditar. Uma alegre emoção ameaçava invadi-la.

- E não pretende começar esta noite uma ligação romântica ilícita?

- Naturalmente que é difícil resistir a uma mulher com paixões

 

tão calorosas como as suas, Emily, mas tenciono esperar até à nossa noite de núpcias para consumar a nossa união.

 

- Oh.

 

Simon riu baixinho do triste desapontamento que se lia nos olhos dela. Levou-lhe a mão aos lábios e beijou-lhe o pulso sem afastar os olhos dos dela.

 

- Isso não quer dizer, minha querida, que não possamos provar um pouco do fruto proibido.

 

Ela sorriu-lhe e lançou-lhe os braços ao pescoço.

- Quer dizer que vai beijar-me?

 

- Entre outras coisas. - Baixou a cabeça, com os olhos de dragão da cor de ouro líquido. A sua boca quente beijou-lhe a curva do pescoço.

- Oh, Simon.

 

- Gosto de a ouvir dizer o meu nome desse modo. Gosto mesmo muito. Quase tanto como da maneira como estremece, quando lhe toco. Agarrou-a firmemente pela cintura e ergueu-a do chão. Ela olhou-o

 

com uma sensação de espanto, colocando-lhe as mãos nos ombros, enquanto ele a levava para a secretária de mogno.

 

Simon sentou Emily na beira da secretária e depois começou deliberadamente a desapertar o seu invólucro de chintz. Não afastava os olhos dos dela enquanto abria lentamente o roupão para revelar por baixo dele uma camisa de dormir de musselina bordada, com o decote subido.

 

Emily sentiu-se corar da cabeça aos pés. Sem dúvida que ele conseguia ver como os seus mamilos se erguiam contra o tecido fino. Recordou-se de que era uma mulher arruinada e que ele esperaria da sua parte alguma sofisticação em relação àquele tipo de coisas.  Aclarou a garganta.

 

- Senhoria, é a isto que chama beijar? - perguntou num tom que esperava ser adequadamente desprendido.

 

- Não, a isto chamo provar o fruto proibido. - Sorriu, olhando-a nos olhos e curvou a cabeça para cobrir a boca dela com a sua. A mão deslizou para o seio dela.

 

Emily ficou rígida com o choque, mas depois gemeu baixinho. Apertou os braços à volta do pescoço dele. O polegar de Simon movia-se sobre o seu mamilo, transformando-o num duro botão de desejo. A boca deslizava pesadamente sobre a dela. O calor do corpo encostado ao dela afastava o frio da sala.

 

Perdida no espanto e excitação dos beijos de Simon, Emily mal deu porque as mãos dele estavam nas suas pernas. Subiu-lhe a camisa de dormir até às coxas, agarrando-lhe firmemente os joelhos, para a seguir, num movimento íntimo e assustador, se meter ousadamente entre elas. Emily abriu rapidamente os olhos.

 

- Senhoria... Simon, eu...

 

- Silêncio, minha querida. - Não ergueu a boca da dela enquanto falava. Os dedos percorriam-lhe o interior das coxas com gestos aparentemente ao acaso.

 

- É muito macia. Como seda quente.

 

Instintivamente, Emily tentou fechar as pernas, mas encontrou entre as suas as coxas fortes e musculosas de Simon. Sentia a textura áspera das calças dele contra a sua pele nua e a sensação invadia-lhe o corpo num arrepio assustado.

 

- Feche os olhos e não pense naquilo que estou a fazer - ordenou Simon. em voz baixa.

 

As mãos dele aproximavam-se dos sítios mais secretos de Emily. Ela fechou os olhos, faltando-lhe repentinamente o fôlego.

 

- Beije-me, Emily. - Simon falava em voz rouca e insistente. Emily deu conta, com algum receio culpado, que toda a sua atenção estava presa aos movimentos das mãos dele. Deveria sem dúvida estar mais atenta a retribuir-lhe o beijo.

 

Ansiosa de não o desapontar, pegou-lhe no rosto com as mãos e colou rapidamente a sua boca à dele até que os dentes se chocaram.

- Muito melhor, minha querida - murmurou Simon encorajando-a. - Mas tem de se descontrair um pouco. Abra a boca para mim. Estremecendo, Emily obedeceu. A língua de Simon forçou imediatamente a entrada, ao mesmo tempo que os dedos dele encontravam o calor líquido entre as suas pernas.

 

Emily ficou imóvel. Tentou falar, mas não conseguiu. Tentou respirar fundo, mas não conseguiu. Tentou pensar em como reagiria uma mulher sofisticada e de reputação arruinada a uma tal intimidade, mas não conseguiu, Era tudo demasiado avassalador, Os seus sentidos vacilavam.

 

Simon parecia não esperar dela, mais do que os pequenos arrepios que a percorriam da cabeça aos pés. Tinha a boca colada à dela, enquanto os dedos a acariciavam com uma intimidade assustadoramente doce.

 

Emily começou a esquecer que tudo aquilo lhe era estranho, quando uma onda de calor e tensão se ergueu na parte inferior do seu corpo. Os seus dedos cravaram-se com força no tecido da camisa de linho de Simon.

 

- Simon - conseguiu finalmente dizer, libertando a boca e olhando-o com enormes olhos inquiridores.

 

- Agarre-se a mim, elfo - aconselhou-a docemente. - Prometo que tudo acabará em bem. Lembre-se do que dizem os poetas. Devemos abrir-nos ao mundo da experiência sensual, se queremos conhecer a verdade acerca da natureza do mundo metafísico. Abra-se, Emily. Entregue-se a mim.

 

Sem saber que outra coisa fazer, sentindo-se completamente à deriva numa onda de espantosas e estranhas emoções, Emily obedeceu. Fechou os olhos e agarrou-se a Simon como se disso dependesse a sua vida.

 

Os dedos dele estavam agora húmidos e deslizavam com facilidade sobre as delicadas pétalas que protegiam os segredos dela. Depois, suaves e tentadores pareceram encontrar um sítio muito especial. Emily arqueou as costas, impotente em relação à sensação premente que ameaçava explodir dentro dela. Tinha uma necessidade desesperada de qualquer coisa, mas não sabia o que era. Finalmente, concluiu que era do toque de Simon. Abriu instintivamente as pernas, implorando em silêncio mais sensações espantosas.

 

- Sim. - Simon beijou-lhe o pescoço e continuou a mover a mão sobre Emily. - Sim, meu amor. Pronto, Emily. Mostre-me como é uma criatura apaixonada. - Um dedo deslizou-lhe para dentro da fenda húmida.

 

Emily ofegou. Abriu a boca para soltar um grito agudo de excitação enquanto o seu corpo se agitava convulsivamente. A boca de Simon desceu sobre a dela, abafando o seu grito suave e feminino de libertação.

 

Durante vários segundos, Emily sentiu-se pairar sobre aquilo que poderia ser descrito como um verdadeiro plano metafísíco para depois esmorecer lentamente sobre o peito de Simon.

 

- Com mil raios - murmurou em surdina, contra o ombro dele.

 

Simon emitiu um pequeno ruído abafado, que poderia ter sido um riso ou um gemido. Era impossível dizer.

 

- Ah, Emily, não há dúvida de que é uma criatura de grandes paixões. - Lentamente, retirou as mãos de entre as pernas dela e compôs-lhe delicadamente a roupa.

 

Emily ergueu lentamente a cabeça do ombro dele. Ainda se sentia aturdida e parecia ter dificuldade em se concentrar no rosto dele. Depois apercebeu-se que, num dado momento, ele lhe tinha retirado os óculos.

- Oh, Simon.

 

- Oh, Emily. - Beijou-lhe a ponta do nariz e entregou-lhe os óculos com elegância e delicadeza. Quando os pôs, viu apenas que ele tinha no rosto aquele leve e indecifrável sorriso. Mas tinha os olhos baixos e brilhantes de fogo amarelo. Nunca parecera mais perigoso nem mais constrangedoramente atraente. Então Emily olhou para baixo e viu um vulto inegável nas suas calças justas.

 

- Simon?

 

Parte do fogo desapareceu-lhe do olhar enquanto seguia o dela tristemente consciente do que lhe estava a acontecer.

 

- Não se preocupe, Emily, que eu fico muito bem. Mas para evitar continuar a render-me a esta deliciosa tentação que me oferece esta noite, creia que o melhor será partir. O longo caminho até casa no ar frio da noite encarregar-se-á do meu problema actual. - Afastou-se dela e pegou no sobretudo.

 

- Vou vê-lo em breve? - Desejava desesperadamente que ele não precisasse de partir.

 

- Se bem me recordo, eu e os outros membros da sociedade literária aceitámos um convite para tomar chá aqui em St. Clair Hall amanhã à tarde. Estou desejando.

 

Emily lançou-lhe o seu mais radioso sorriso e saltou da secretária. Vacilou e teve de se agarrar ao canto, para conseguir equilibrar-se. Tinha os olhos cheios de alegria e apercebeu-se, de súbito, que se sentia extraordinariamente bem, embora a humidade entre as coxas fosse desconcertante.

 

- Sim, é verdade. Chá, amanhã. Senhoria, se não se sente inclinado a provar mais do fruto proibido esta noite, poderia fazer-me um enorme favor?

 

Ele olhou-a, divertido e cauteloso, enquanto se metia dentro do casaco grosso.

 

- E qual seria esse favor?

 

- Mostra-me como abrir a entrada para a passagem secreta?

 

O conde sorriu malicioso.

 

- É óbvio que descobrir o segredo de uma passagem escondida é tão emocionante para si como render-se a uma noite de paixão ilícita. Emily receou tê-lo ofendido. Deu-lhe umas pancadinhas na mão para o acalmar.

 

- É que gosto de coisas como as passagens secretas, Senhoria. E adorava poder usar esta, no meu poema A Dama Misteriosa. Juro que se adaptaria perfeitamente à história.

 

- Quem sou eu para me interpor no caminho da sua musa literária? Simon pegou-lhe na mão e conduziu-a até à estante.

 

Capitulo 5

EMILY FRANZIU A TESTA, ao ler a carta de Mr. Davenport, contabilista de seu pai.

 

Cara Miss Faringdon

Venho informá-la que segui as suas instruções para vender as Anuidades dos Mares do Sul e os Títulos da índia. Decerto gostará de saber que o preço final de ambos foi o mais satisfatório possível.

 

Por favor diga-me qual a sua decisão a respeito dos investimentos das minas que mencionou na última carta.

 

Seu humilde servo B. Davenport.

 

Emily sorriu de satisfação e rabiscou um recado para informar

Davenport que deveria continuar a investir no projecto mineiro de Northumberland. Quando acabou, estendeu a mão para o cordão da campainha, que se encontrava ao lado da secretária. Duckett, o mordomo, apareceu quase de imediato.

 

- Oh, ainda bem que veio, Duckett. - Emily sorriu satisfeita. Por favor, informe o pessoal que as anuidades dos Mares do Sul e os títulos da índia deram bons lucros. Os vossos investimentos obtiveram um bom lucro e foram vendidos na segunda-feira. A ordem de pagamento já está no banco.

 

As feições severas de Duckett iluminaram-se de gratidão e prazer.

- O pessoal vai ficar encantado, Miss Faringdon. Para falar verdade, menina, profundamente encantado. Por favor, aceite os nossos mais profundos agradecimentos. Nem imagina o enorme alívio que é, podermos contemplar uma reforma segura. - Hesitou um pouco. Sendo as circunstâncias como são.

 

Emily franziu o nariz.

 

- Há muitos anos que nos conhecemos, Duckett. Podemos ser honestos um com o outro. Sei perfeitamente que se o pessoal da casa espera que o meu pai ponha alguma quantia de lado para as vossas pensões de reforma, morrerão todos de fome ao chegar a essa altura.

 

- Uma afirmação muito dramática, mas provavelmente verdadeira. - Duckett permitiu-se o mais breve dos sorrisos. - De qualquer modo, estamos-lhe extremamente agradecidos pelos conselhos e serviços financeiros que a menina nos tem prestado, Miss Faringdon.

 

- Eu é que vos estou extremamente grata, Duckett - disse Emily, muito séria. - Todos vós tendes tomado muito bem conta de mim. Não sei o que faria sozinha. Por certo que me sentiria muito solitária.

 

- Muito obrigado, Miss Faringdon - disse delicadamente o mordomo. - Fazemos os possíveis.

 

Emily sorriu.

- E conseguem-no perfeitamente. Ch, Duckett, só mais uma coisa, antes de se ir embora.

 

- Sim, menina?

 

Emily fez uma pausa, procurando as palavras certas. Detestava ofender fosse quem fosse.

- Será que Mrs. Hickinbotham tem algumas... uh... perguntas a fazer, a respeito dos preparativos para esta tarde?

 

Os olhos de Duckett suavizaram-se.

 

- De modo algum, Miss Faringdon. Garanto-lhe que no decorrer do seu anterior emprego, Mrs. Hickinbotham teve uma enorme experiência a servir chá a convidados.

 

Emily ficou de imediato embaraçada, por ter questionado as capacidades da governanta.

 

- Sim, é claro. Acho que estou um pouco ansiosa. Recebemos tão pouco aqui, em St. Clair Hall. E nunca antes tivemos um conde a tomar chá.

 

-  Creio que Mrs. Hickinbotham uma vez disse que há uns anos tinha supervisionado um chá oferecido a uma marquesa.

 

- Maravilhoso - disse Emily, em tom humilde e aliviado. - Muito obrigada, Duckett.

 

- De nada, Miss Faringdon, garanto-lhe que tudo correrá bem esta tarde.

 

- Com certeza que sim. Só mais uma coisa. Importa-se de perguntar a Mrs. Hickinbotham se temos ainda chá Lap Seng? Se assim for, preferia servi-lo, em vez da mistura Congou.

 

- Lap Seng? Vou perguntar.

 

- Muito obrigada. É para o conde, sabe? Alguma razão teve para chamar Lap Seng ao cavalo, de modo que calculo que tenha uma forte preferência por esse tipo especial de chá Souchong.

 

- O cavalo? - Duckett pareceu levemente espantado, mas recompôs-se imediatamente. - Compreendo. Vou falar imediatamente com Mrs. Hickinbotham, Miss Faringdon. - O mordomo saiu calmamente da biblioteca.

 

Emily viu a porta fechar-se, pensando que um dia haveria de perguntar a Simon porque dera ao seu alazão castanho o nome de Lap Seng. Tinha tanto para lhe perguntar, pensou, tantos tópicos fascinantes à espera de serem discutidos. Ia ser maravilhoso casar com um homem com quem poderia partilhar uma ligação intelectual, com quem poderia comunicar num plano mais elevado e transcendental, um homem de refinada sensibilidade.

 

Claro que a sua comunicação num plano mais físico e mundano ia também ser muito emocionante. Emily sentia-se aquecer, embora o lume da lareira se encontrasse apagado.

 

Por um momento olhou sonhadora, pela janela. Nunca na vida tinha experimentado nada semelhante àquela sensação de liberdade perturbadora como a que tivera na noite anterior na biblioteca. Dera-lhe uma visão interior completamente nova de certas passagens poéticas escritas pelos seus autores favoritos.

Dera-lhe também uma compreensão completamente nova da expressão excesso de paixão.

 

Um pequeno estremecimento de felicidade pura, e não adulterada, percorreu-a como o choque de uma das máquinas eléctricas usadas para experiências científicas. Tudo aquilo lhe parecia incrível. Era quase demasiado, para poder ser compreendido.

 

Não estava habituada à boa sorte em nada senão nos assuntos financeiros.

 

- Com mil diabos - murmurou Emily. Depois repreendeu-se imediatamente. Teria de deixar de praguejar de um modo tão pouco próprio para uma senhora. Em breve seria condessa e tinha a certeza que elas não praguejavam.

 

Esperava que os elevados e nobres padrões de Simon não o obrigassem a insistir num longo noivado. Os noivados prolongados não eram invulgares na classe alta. Geralmente havia muitos pormenores a resolver, o tipo de pormenores a que chamavam vagamente «preparativos». Emily não acreditava conseguir esperar um ano inteiro.

 

Relutante, Emily voltou a sua atenção para as cartas, jornais e recados, que se encontravam sobre a sua secretária. A última coisa que lhe apetecia fazer naquela manhã era trabalhar nos investimentos. Mas, com a velocidade que os Faringdon do sexo masculino esbanjavam dinheiro, era essencial uma atenção constante às suas finanças. A mãe sempre lhe explicara que alguém teria de olhar pelo pai e pelos gêmeos. De facto, Mrs. Faríngdon voltara a transmitir essa ideia a Emily no seu leito de morte.

 

Com pouco entusiasmo, Emily pegou na última edição de The GentIeman’s Magazine e abriu-a no resumo mensal dos preços das acções da bolsa. Estudou as flutuações dos títulos do canal, da índia, dos bancos e dos fundos, tirando rapidamente algumas notas para si, antes de voltar a página.

 

Depois percorreu com a ponta do dedo o resumo dos preços recentemente pagos pelo trigo, aveia, cevada e feijão, nos condados do interior, comparando-os com os preços dos condados junto à costa. Pegou de novo, na pena, e tomou uma ou outra nota. A seguir verificou os preços médios da farinha, açúcar, feno e palha do mês anterior, procurando as variações.

 

Quando terminou de anotar os números mais recentes, Emily voltou-se para o quadro mensal da meteorologia. Lançou-lhe apenas um olhar superficial. Ainda era Inverno e as temperaturas diárias e taxas de pluvíosidade não eram tão importantes para os seus cálculos, como o seriam na Primavera ou no Verão. Dentro de alguns meses começaria a observá-las cuidadosamente, numa tentativa de antecipar as colheitas.

 

Quando terminou de observar o que podia de Uie Gentleman’s Magazine, voltou-se para a correspondência. Sir Alfred Churnley tinha novidades acerca da sua empresa mineira e uma tal Mrs. MiddIeton escrevera, a perguntar-lhe se estaria interessada num navio que em breve partiria para as índias Ocidentais. Esperava-se que voltasse com um considerável lucro, tal como acontecera com o último.

 

Mrs. Hickinbotham descobriu o chá Lap Seng.

 

Emily observou ansiosamente Simon, enquanto este bebia o primeiro gole da bebida exótica e fumegante. Quando ele lhe sorriu por sobre a borda da chávena, lançando-lhe um olhar aprovador, apeteceu-lhe ir dar um abraço a Mrs. Hickinbotham. Os olhos da governanta cintilavam, mas a sua expressão manteve-se apropriadamente comedida, enquanto fez uma reverência e saiu, deixando os membros da sociedade literária entregues aos seus assuntos.

 

Emily mudara três vezes de ideia acerca do vestido que deveria usar, antes que Lizzie a convencesse a vestir o de musselina com gola franzida e folhos. Era amarelo pálido com pequenas riscas brancas e Lizzie afirmava que punha em evidência a cor de cabelo de Emily. Esta não estava de modo algum convencida de que seria boa ideia pôr o cabelo vermelho ao alto, mas Lizzie ultrapassou os receios da ama.

 

As senhoras da sociedade literária tinham chegado com ar de grande expectativa. Nos últimos tempos estavam a ficar habituadas a ter um conde entre elas e as atenções que ele prestava a Emily não tinham passado despercebidas. As senhoras estavam todas secretamente encantadas pelo generoso romance que florescia entre elas e recebiam agora Simon com acolhedora cordialidade.

Como de costume, uma vez sentado entre elas, parecia um animal escuro, de olhos dourados, rodeado por um grupo de alegres pássaros pipilantes. Simon não parecia preocupar-se com o contraste. Mas afinal, era claro como água para Emily que o conde era absolutamente imperturbável.

Toda a reunião, incluindo os refrescos e a conversa, continuou com um tão fácil à-vontade, que Emily começou a suspeitar que tinha talento para receber coisa que até então desconhecia. Tinha de o fazer mais amiúde, decidiu, quando a discussão se tornou interessante.

- E como vai o seu poema, Emily? - perguntou Miss Bracegirdle, depois de terem concluído um acalorado debate acerca dos méritos das conferências de Samuel Coleridge sobre Shakespeare. Nenhum dos presentes tinha assistido a elas, mas tinham circulado relatos, e a conclusão geral era de que não tinham sido do alto calibre esperado deste autor.

- Estou a trabalhar de modo a expandir os versos e a incluir uma nova aventura - anunciou Emily. Olhou para Simon e uma leve cor rosada coloriu-lhe as faces. - Tenho uma ideia maravilhosa para uma passagem secreta.

- Que interessante. - Miss Ostly, que adorava romances mais do que todas as outras, ficou claramente interessada. - E talvez um fantasma? Adoraria um fantasma.

As sobrancelhas de Emily ergueram-se por cima dos óculos, enquanto meditava sobre a adição de um fantasma à Dama Misteriosa.

- Os fantasmas são sempre uma coisa excelente numa história de aventura e romance. Mas é difícil encontrar palavras que rimem com essa. Acabamos sempre com pasma ou ectoplasma.

 

- Ou «cataplasma» - sugeriu Simon.

 

Miss Hornsby, que tinha aceite um cálice de xerez, em vez de chá, deu uma gargalhadinha. Lavinia Inglebright lançou-lhe um olhar de censura. Ia abrir a boca para sugerir outra rima possível, mas foi interrompida pelo som das rodas de uma carruagem e por cascos de cavalo no caminho. Olhou para Emily surpreendida.

 

- Creio que tem visitas.

 

Emily ficou imóvel, olhando para o rosto imperturbável de Simon. Quase nunca tinha visitas e toda a gente na sala o sabia.

 

- Sem dúvida são o meu pai e os meus irmãos.

 

A carta de Elias Prendergast tinha afinal chegado a Londres com o resultado esperado.

 

- Não os esperava. - Agora não. Não tão cedo.

 

Mas Simon, que sabia perfeitamente aquilo em que ela estava a pensar, limitou-se a mostrar o seu imperscrutável sorriso e a beber uns goles do fumegante Lap Seng.

 

Ouviu-se o bater de pés calçados com botas no vestíbulo, o som de vozes masculinas e, no momento a seguir, a porta da sala era aberta de par em par.

 

Os três magníficos Faringdon entraram, qual três redemoinhos doirados. Altos, belos e impecavelmente vestidos com os mais modernos fatos de montar, pareciam todos elegantemente desalinhados, depois da jornada. Os gêmeos, Deviin e Charles, observaram rapidamente o grupo em busca de um belo rosto feminino e, não encontrando nada do seu agrado, olharam para Simon.

 

Broderick Faringdon, pai de Emily, estava a ficar calvo e o que lhe restava do cabelo transformara-se de ouro em prata, mas mesmo assim conseguia manter a mesma aparência cheia de estilo dos filhos. O nariz de falcão e olhos azuis, juntamente com o ar desordeiro e de dissipação tornavam-no ainda muito atraente para as mulheres.

 

- Boas tardes, minhas senhoras, Blade.

 

Enquanto as senhoras murmuravam as suas saudações educadas, Broderick Faringdon inclinou bruscamente a cabeça na direcção de Simon.

 

Emily sentiu um frio súbito entrar na sala. Alguma coisa estava errada. O seu instinto dizia-lhe que ali havia mais do que um pai enfadado com um incómodo pretendente. Os olhos dela dirigiram-se para os de Simon.

 

Mas o dragão limitou-se a retribuir a saudação do pai dela com uma inclinação trocista de cabeça e voltou a sorver o seu Lap Seng.

 

O Pai - Emily pÔs-se de pé num salto. - Não mandou recado! Não estávamos à sua espera.

 

- Não mandei recado, pois sabia que iria chegar antes do correio. Tenho um novo alazão que consegue vencer tudo o que tem quatro patas. Venha cá cumprimentar o seu pai como deve ser, minha menina!

 

Obediente, Emily dirigiu-se a ele e deu-lhe o requerido beijo na face. Depois afastou-se, fitando-o de olhos semicerrados. Agora, que já tinha passado o primeiro susto, sentia-se incomodada por lhe terem interrompido a festa.

 

- Realmente, meu pai, penso que me deveria ter avisado.

 

- Esta casa é minha, menina. Porque haveria de me fazer anunciar, como se fosse uma visita?

 

Por trás de Emily, o grupo de senhoras da sociedade literária erguia-se rapidamente, preparando-se para partir.

 

- Temos de ir andando - disse Priscilla Inglebright. - Muito obrigada por nos ter recebido esta tarde, Emily.

 

- Sim, foi óptimo - disse corajosamente Miss BracegirdIe pegando na sua bolsa. Depois disso, as despedidas foram rápidas e imediatas. Emily ficou à porta com um sorriso determinado, enquanto interiormente se sentia furiosa. O pai e os irmãos tinham estragado tudo. Apenas Simon demorava a sua partida.

Lá fora, no vestíbulo, as senhoras vestiam rapidamente os casacos e atavam as toucas. Logo a seguir todas elas entravam na carruagem que Emily tinha posto à sua disposição para as levar às respectivas moradas.

 

Um silêncio frio e perigoso desceu sobre a sala.

 

Raios, pensou Emily, voltando-se para enfrentar o pai.

 

- Muito bem, meu pai, a que devo a honra desta súbita visita.

- Pergunta a Blade. Espero que ele saiba qual a resposta à tua pergunta. - Broderick Faringdon olhou para Simon, que terminava calmamente o seu chá. - Mas que diabo pensa o senhor que está a fazer?

 

Simon ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

 

- Pensaria que é óbvio, Faringdon. Fui convidado para o chá e agora saboreio uma chávena de óptimo Lap Seng.

 

- Não tente enganar-me com esse disparate do chá. O senhor tem alguma coisa em mente, Blade.

 

Simon dirigiu-lhe o seu sorriso mais frio e poisou a chávena vazia. Nos olhos tinha um brilho, que tanto poderia ser de satisfação como de triunfo.

 

- Nesse caso, venho visitá-lo amanhã às três para discutirmos o assunto.

 

- Nem pense - disse bruscamente Faringdon. Emíly ficou sobressaltada pelo feio tom vermelho que cobria as faces do pai. Deviin. e Charles olhavam-na como se pela segunda vez tivesse atraído para si própria desgraça e ruína.

 

- Sim, certamente que virei. - Simon pôs-se de pé com perigosa elegância, mais alto ainda do que os Faringdon, que também o eram. Até amanhã, Faringdon. - Dirigiu-se a Emily, pegou-lhe na mão e beijou-lha com um brilho no olhar.

 

- Muito obrigado pelo chá, Miss Faringdon. Gostei muito. Mas afinal, gosto de tudo na sua presença.

- Adeus, Senhoria. Muito obrigada por ter vindo ao nosso salão esta tarde. - Emily sentia um súbito desejo de o agarrar pelas lapelas do casaco azul, elegantemente cortado, e impedi-lo de sair da sala. Não queria enfrentar sozinha o pai e os irmãos. Mas não havia nada a fazer.

 

Momentos depois, Simon recebia das mãos de Duckett o seu chapéu de pêlo de castor e luvas castanhas e dirigia-se para a porta principal, onde o esperava o trem dos Gillingham. Ouviu-se um bater de cascos e rodas e partiu.

 

Emily juntou as mãos e olhou para o pai e para os irmãos.

 

- Espero que estejam todos satisfeitos. Estragaram o meu chá. Estávamos muito divertidos, até entrarem aqui sem se fazerem anunciar.

- já te disse que a casa é minha, menina. Não tenho de pedir

 

licença para entrar na minha sala. Mas que diabo se passa aqui, Emily?

- Broderick Faringdon enfrentou a filha de mãos nas ancas. - Recebi uma carta de Prendergast dizendo-me que estavas a ser cortejada pelo conde de Blade, por amor de Deus!

 

- E estou. Pensava que ficaria satisfeito e orgulhoso, meu pai.

- Orgulhoso? - serviu-se de um copo de clarete de uma garrafa que fora preparada para Simon. Lançou um olhar de comiseração à irmã. - Perdeste o juízo, Em? Sabes o que acontecerá quando Blade souber do Incidente? Mas afinal o que te levou a enganá-lo? Sabes como isto poderá terminar.

Charles abanou a cabeça.

- Como deixaste chegar as coisas a este ponto, Em? Vai ser uma cena embaraçosa. Vais ter de novo toda a lama remexida e hás-de sentir-te como uma perfeita idiota.

 

- Ele já sabe do escândalo - gritou Emily, fechando com força as mãos pequenas. - Já sabe e não se importa. Ouviram? Não se importa nada.

Houve um silêncio pesado. Depois, com ar cansado, Faringdon pai, serviu-se também de um copo de vinho.

- Então é esse o jogo - disse calmamente Broderick. - Sabia que ele estava a executar um esquema qualquer. Esse homem é terrivelmente perigoso. Toda a gente em Londres o sabe. Quem me dera que tivesse ficado nas índias. Porque diabo haveria de ter voltado?

- Que esquema? - perguntou Emily. - De que fala, meu pai? Ele vai pedir-lhe a minha mão. Sabe que estou socialmente arruinada, mas mesmo assim gosta de mim.

- Emily, minha querida. És tão ingénua. - Broderick atirou-se para cima do sofá e bebeu o vinho. - Os homens como Blade não casam com mulheres como tu. Porque haveriam de o fazer? Com o seu título e a fortuna que fez nas índias, Blade pode escolher entre todas as virgenzinhas casadoiras que aparecem todas as temporadas. Porque haveria de ficar com a mercadoria defeituosa?

 

Emily corou, lutando contra a sua antiga humilhação.

 

- Ele não parece preocupar-se com essas coisas, meu pai.

 

- Todos os homens se preocupam com essas coisas - disse Charles com fraterna franqueza.

 

- Ah, sim?- exclamou Emily furiosa. - Então porque te dás ao trabalho de seduzir todas as pobres e desgraçadas que encontras e as transformas em mercadoria defeituosa?

 

- Espera aí - ripostou imediatamente Deviin. - Charles e eu somos cavalheiros. Não andamos a seduzir jovens senhoras de boas famílias.

 

- São as jovens inocentes das más famílias? Aquelas que não têm escolha? Suponho que pensais que o facto de pertencerem a uma classe inferior tira a importância a essas coisas?

 

- Basta! - rugiu Broderick Faringdon. - Estamos a afastar-nos do assunto. Emily, vou ser franco. Tens-nos numa situação muito grave e só agora suspeito aquilo que nos poderá custar.

 

- Porque lhe há-de custar alguma coisa? - gritou ela. - Vou-me casar. Que mal tem isso?

 

O pai bateu com toda a força na mesa com o copo que tinha na mão.

- Diabos, menina, não vês o que se passa? Blade não tenciona casar contigo! Nunca na vida!

 

- Então porque mo pediu?

 

Broderick Faringdon ficou por momentos em silêncio. Era um homem que se tinha habituado a ler as intenções dos seus adversários em jogos de altas paradas.

 

-  O que ele quer é, sem dúvida, propor um negócio.

 

- Que diabo, tem razão, meu pai! - Charles serviu-se de mais clarete.

 

- Raios! Claro! já deveríamos ter calculado - resmungou Deviin. Emily olhou fixamente para o pai.

 

- Um negócio? Mas de que está a falar, meu pai? Broderick abanou a cabeça.

 

- Não entendes, menina? Blade não quer casar. O que tenciona fazer é ameaçar fugir contigo, a menos que eu lhe dê o que ele quer.

- Lançou um olhar aborrecido à volta da sala. - E penso que sei o que irá exigir em troca do grande favor de sair das nossas vidas. Deviin olhou-o com ar arguto.

 

- O que quer ele, meu pai?

 

- St. Clair Hall. - Broderick bebeu de um só gole o resto do vinho que ainda tinha no copo. - O patife detesta-me. Esperou vinte e três anos para conseguir vingar-se e arranjou agora maneira de o fazer.

 

Emily sentia-se aturdida. Afundava-se numa cadeira de brocado, sem nunca afastar os olhos do pai.

- Creio que o melhor é o senhor explicar tudo, meu pai. Vá. Broderick olhou durante um longo momento para os três filhos e suspirou pesadamente.

 

- Quem me dera que a vossa mãe ainda estivesse connosco. Costumava sempre tratar deste tipo de situações desagradáveis. Tinha muito jeito. Poderia encarregá-la de tudo isto.

 

Deviin olhou para Charles e a seguir directamente para o pai.

 

- Charles e eu entendemos parte de tudo isto. Sabemos que Blade vai tentar usar Emily, seja como for. Mas que tem isso com St. Clair Hall? Porque quereria ele esta casa em troca de não fugir com Em? O homem é extremamente rico. Poderia comprar uma dúzia de mansões melhores que esta.

 

Emily apertou os dedos com força.

 

- Ele disse-me que antigamente esta era a sua casa - disse ela lentamente. - Viveu aqui quando era pequeno.

 

Broderick mostrou uma expressão estupefacta.

- Ele disse-te isso?

 

- Oh, sim, meu pai. Somos muito chegados. - Emily semicerrou os olhos por trás das lentes dos óculos.

 

- Chegados, como? - perguntou abruptamente Deviin. - Intimamente chegados? Por amor de Deus, será que o patife já te seduziu, Em? Será por isso que pensa que vais fugir com ele?

 

- O conde foi um perfeito cavalheiro - informou Emily, orgulhosa.

 

- Bom, pelo menos podemos dar graças por o homem ter ainda alguns laivos de consciência - observou Broderick com ar triste. - Porém, duvido que me sirvam de muito.

 

- Meu pai - exigiu Emily -, vai explicar-me imediatamente tudo isto.

 

Faringdon pai acenou, enfadado.

 

- Terias de o saber, mais cedo ou mais tarde. Blade tratou de o garantir, esse patife sem escrúpulos. Resumindo a história, eu não comprei St. Clair Hall depois de um golpe de sorte, como te disse uma vez. Ganhei-a, num jogo de cartas, há vinte e três anos, ao pai de Blade, juntamente com a maior parte da sua fortuna. O conde pagou a dívida, como cavalheiro que era.

 

- E? - perguntou Emily irritada. - Sei que há mais alguma coisa, meu pai.

 

- E depois o imbecil voltou cá e meteu uma bala na cabeça. Emily fechou os olhos horrorizada.

 

- Santo Deus!

 

- Não vejo onde está o problema - disse Charles. - Foi uma dívida de honra e ele pagou-a. O facto de se ter suicidado, não nos diz respeito.

 

Emily estremeceu.

 

- Como podes ser tão frio? Não entendes o que deve ter acontecido?

 

Broderick praguejou,

 

Pouco mais há a contar. O rapazinho e a mãe abandonaram a casa e foram viver algures para o Norte. Tanto quanto sei, a mãe não voltou a aparecer em sociedade. Creio que morreu há alguns anos.

 

- E Blade? - perguntou Deviin. - O que lhe aconteceu?

 

- Uma parenta, uma tia, creio, conseguiu por fim dinheiro suficiente para lhe comprar uma nomeação para o exército. Provavelmente para se ver livre dele. Blade foi para as Guerras Peninsulares durante alguns anos. Depois vendeu tudo e partiu para as índias Orientais.

 

- Porque não tinha fortuna própria - concluiu Emily irritada.

- Porque o senhor lhe roubou a herança, o despojou dos seus legítimos direitos de propriedade e fortuna. Depois do pai se ter suicidado, Simon e a mãe foram expulsos da sua casa sem um tostão. Ficaram dependentes da caridade de parentes. Como Blade deve ter odiado tudo isso. É tão orgulhoso. Como pôde o senhor fazer tal coisa, meu pai?

 

Broderick lançou-lhe um olhar fulminante.

 

- Ganhei tudo num jogo limpo. Não te esqueças disso, menina. O mundo é assim mesmo. Um homem não tem nada que jogar, se não pode pagar as suas dívidas.

 

- Meu pai!

 

- De qualquer modo, Blade tratou bem de si. Diz-se nos clubes que viveu como um paxá numa ilha qualquer. Fez alguns favores à Companhia das índias Orientais que o recompensou com uma fatia do comércio do chá, Tem agora uma bela fortuna. Só Deus sabe que não precisa de nada que seja nosso.

 

- Mas acha que o senhor lhe deve St. Clair Hall? - perguntou Deviin.

 

Broderick acenou afirmativamente.

 

- Patife vingativo! Nestes anos todos, vi-o apenas algumas vezes. Procurou-me antes de partir para a guerra e depois, antes de viajar para o Oriente. Das duas vezes tudo o que me disse foi que um dia eu haveria de pagar o que eu lhe tinha feito a ele e à família. jurou que a minha família sofreria tanto como a sua. Também garantiu que St. Clair Hall lhe seria devolvida. Pensei que seriam tudo patranhas.

 

- E agora pensa que arranjou maneira de o obrigar a devolver-lhe a casa - disse Charles, olhando para a irmã. - Mas se é tão rico, porque não se propõe simplesmente comprá-la?

 

- Suponho que seja uma questão de princípios. Pensa que eu tenho de lha dar. já vos disse que deseja vingança. E, provavelmente, calcula que eu não a venderia, mesmo se me fizesse uma oferta razoável.

 

- Porque não? - perguntou Charles impaciente. - De qualquer modo, quase nunca cá estamos. Excepto Emily, evidentemente. Broderick olhou de novo à sua volta, saboreando o mobiliário daquela bela sala.

 

- Por amor de Deus, esta é a melhor casa que algum Faringdon alguma vez possuiu. Melhor do que alguma coisa que o meu pai possa ter adquirido, ou o meu avô, ou o próprio barão, esse patife somítico. Fiz mais do que qualquer deles. O primeiro Faringdon a chegar a alguma coisa. Esta casa é prova disso.

 

Deviin semicerrou os olhos na direcção do rosto pálido de Emily.

- De facto, isto pode ficar muito feio. Blade não é do tipo de fazer bluff. Emily, decerto não foste assim tão estúpida que te apaixonasses por Blade.

 

-  Claro que foi - resmungou Charles. - Olha para ela. Pensa que esse filho da mãe quer mesmo casar com ela. E será isso que lhe vai dizer, quando a convidar a fugir com ele. Vai acreditar, tal como acreditou em Ashbrook. Jesus, que confusão. Teremos de a encerrar.

 

- Não sejas imbecil - disse Emily. - Consigo fugir de todas as divisões desta casa. - Ergueu-se orgulhosa, com a raiva a correr-lhe nas veias, como fogo vermelho. - Mas vão ver. Blade vai pedir a minha mão e eu vou casar com ele.

 

- Ele não te quer, menina. Nunca para sua esposa. Não percebeste ainda? - Charles abanou a cabeça exasperado. - Não virá cá amanhã às três, para te pedir ao pai. Vai vir sim para fazer chantagem.

 

- Raios! Há-de vir fazer uma proposta respeitável - retorquiu Emily num tom de voz elevado e tenso. - Eu conheço-o, que inferno! Broderick suspirou profundamente.

 

- Não, Emily, não o conheces. Ninguém conhece Blade. Não sabes o que se diz dele pelos clubes. O homem está coberto de mistério. É também imensamente poderoso. Dizem que até homens como Canonbury e Peppington se lhe submetem. Aquilo de que toda a gente tem a certeza, é que ele é muito rico e perigoso.

 

- Não lhe diga essas coisas, meu pai - murmurou Deviin. - Só conseguirá intrigá-la ainda mais. Conhece bem a sua imaginação romântica.

- Escuta-me, Emily, és uma rapariga sensata, quando se trata de

 

finanças - disse Broderick num tom lisonjeiro. - Espero que o mesmo se passe com este assunto. Não se trata de uma novela romântica. Isto é real. Trata-se do teu futuro. O jogo de Blade já é antigo, embora te garanta que não é normalmente praticado por homens da sua categoria. O processo mais vulgar, é um meliante arruinado dizer que deixa de cortejar a menina de boas famílias em troca de uma grande soma de dinheiro.

 

- A única diferença aqui - disse Charles - é que Blade não está arruinado.

 

- Estou convencida de que estão todos enganados - disse Emily entredentes. - O pedido do conde será sincero e eu vou aceitá-lo, mesmo que o senhor não dê a sua permissão, meu pai. Não poderá impedir-me.

 

Broderick massajou as têmporas.

- Lembra-te daquela desgraça de há cinco anos, minha filha. Não podes querer passar de novo por aquela humilhação e pelo mesmo desgosto. Lastimaste-te tempos sem fim.

 

- Não é o mesmo - exclamou Emily. - O conde vai casar comigo.

- É o mesmo, raios te partam - ripostou Broderick. - E Blade nunca casará contigo. Mas quando deres por isso, estaremos todos já...

- interrompeu abruptamente.

 

- Estarão todos quê, meu pai? - mas Emily acabara de se espantar com o que de súbito tinha percebido. Quando se tratava de assuntos financeiros, raramente o romance a cegava. Abriu muito os olhos ao compreender. - Ah, creio que estou a começar a perceber a completa extensão da ameaça do conde. Ele é muito inteligente, não é verdade?

 

- Escuta, Em, não vais preocupar a tua cabecinha com estes pormenores - disse Charles rapidamente. - Deixa o pai tratar de tudo.

- Trocou um olhar preocupado com Deviin, que já franzia a testa zangado.

 

- Não é apenas a ameaça à minha reputação que vos preocupa, não é verdade? - perguntou lentamente Emily. - Afinal já haveis sofrido uma vez essa provação. Não, os verdadeiros riscos são que Blade pode de facto levar-me por algum tempo. Talvez meses. Talvez um ano ou dois. E, uma vez privados das minhas habilidades financeiras, vós três perdereis St. Clair Hall e tudo mais, nas mesas de jogo.

- Maldição, Emily, não é nada disso. É contigo que estou preocupado, menina. Pensas que quero ver-te arruinada pela segunda vez? Broderick olhava para a filha.

 

Emily cruzou os braços diante do peito e acenou com satisfação.

- De facto, muito inteligente. Calculo que, sem mim para reparar periodicamente a vossa fortuna na bolsa, seríeis os três incapazes de manter esta casa e os vossos dispendiosos cavalos por um ano que fosse.

 

- Não é verdade - disse imediatamente Charles. - É contigo que estamos preocupados. A tua reputação e felicidade são aqui o mais importante.

 

- Muito obrigada - disse secamente Emily. - É muita bondade vossa.

 

- Olha, Emily, escuta... - começou Deviin. furiosamente.

 

- Sabe, meu pai - disse Emily, pensativa -, a questão mais interessante será saber como o conde conseguiu perceber como eu sou crucial para a vossa situação financeira.

 

- É realmente uma boa questão - resmungou Broderick, enquanto se servia de outro copo de clarete. - Porém, não quero dizer que o teu irmão não tenha razão - acrescentou rapidamente. - Estou preocupado contigo, menina. Muito preocupado.

 

- E nós também - garantiu-lhe Charles. - O dinheiro nada tem a ver com isto.

 

- Fico aliviada ao ouvir tal coisa - murmurou Emily. - É muito bom saber que a família se preocupa comigo. - Levantou-se e saiu da sala.

Por trás dela Broderick Faringdon servio-se do resto do vinho. Ele e os filhos mergulharam num lúgubre silêncio.

 

Emily foi direita ao seu santuário, que era a biblioteca. Aí se sentou por trás da enorme secretária de mogno, olhando para os jardins, sem os ver. Não se mexeu durante muito tempo. Depois abriu a gaveta e retirou lá de dentro a bonita caixa que continha as cartas de Simon, cuidadosamente atadas.

 

Era tempo de sair da bruma romântica em que vinha vivendo nos últimos dias. O pai tinha razão numa coisa: todo o seu futuro estava em jogo. Era tempo de pensar seriamente no problema com que se defrontava.

 

De facto, era tempo de aplicar a mesma inteligência arguta que normalmente utilizava nos assuntos financeiros à situação na qual se encontrava. Emily abriu a primeira carta do maço. já a lera vezes sem conta e poderia citá-la de memória.

 

Minha cara Miss Faringdon:

 

Tomo a liberdade de me apresentar pelo correio porque tive conhecimento de que a senhora e eu temos alguns interesses intelectuais em comum. Soube que aprecia certos poemas que foram recentemente publicados por um livreiro de nome Pound. Mr. Pound foi muito gentil e deu-me a sua direcção...

 

Uma hora depois de estar a reler as cartas e a repensar tudo o que fora dito entre ela e Simon nos últimos dias, Emily obrigou-se a enfrentar algumas inevitáveis conclusões.

 

A primeira, era que a família tinha razão. Simon estabelecera uma relação com ela com a única intenção de a utilizar para conseguir a vingança contra o seu pai. Toda a cadeia de acontecimentos que atribuíra a um benévolo destino, tinha agora uma lógica terrível e implacável.

 

Mas Emily chegara a uma segunda conclusão, depois de reler as cartas de Simon. O homem que escrevera aquelas missivas sensíveis e inteligentes não poderia ser o monstro que o pai afirmava ser.

 

A terceira e inevitável conclusão, era que estava apaixonada por aquele misterioso dragão oriental de olhos dourados.

 

Descendia de uma longa linha de apostadores, recordou-se Emily. Era tempo de arriscar, em nome da sua futura felicidade.

 

Puxando para si uma folha de papel, pegou na pena e escreveu a seguinte nota:

 

Caro Senhor.

 

Tenho de o ver imediatamente. Por favor, faça-me a cortesia de se encontrar comigo, em segredo, no local em que discutimos pela primeira vez a dificuldade de encontrar rimas para o meu poema. Peço-lhe que seja discreto e cauteloso, não falando disto a ninguém. Muita coisa está em jogo.

 

Sempre sua amiga.

 

Emily franziu a testa enquanto dobrava a nota e tocava a campainha para mandar chamar um criado. Esperava que as palavras fossem suficientemente vagas para nada darem a conhecer, no caso da mensagem ser interceptada. Era preciso muito cuidado quando se marcavam encontros clandestinos.

Simon esperava-a junto ao lago. Emily soltou um enorme suspiro de alívio, quando viu o alazão castanho frouxamente preso a um ulmeiro.

 

O dragão saiu de entre as árvores e veio ter com ela, com o seu firme olhar doirado. Emily tomou coragem.

- já vê que recebi o seu recado, Miss Faringdon. - O conde estendeu a mão para a ajudar a desmontar.

 

- Obrigada, Senhoria. - Emily mantinha deliberadamente o tom de voz formal e completamente desprovido de emoção. O calor das mãos dele ultrapassava o tecido do seu fato. Assim que os seus pés tocaram no chão, afastou-se de Simon. Começou a caminhar rapidamente em direcção ao regato.

- Não vou ocupar-lhe muito tempo. Está a fazer-se tarde.

- Está sim. - Ele seguiu-a, sem que as suas botas negras fizessem ruído no macio tapete de folhas secas que cobria o chão.

Emily sentou-se com ar afectado sobre o bloco de pedra onde Simon a beijara pela primeira vez e arriscou lançar-lhe um olhar rápido por baixo da aba da sua touca de palhinha. Ele não sorriu. Limitou-se a apoiar um pé na pedra, descansando o cotovelo no joelho, e ficou à espera.

 

Este homem sabe esperar, apercebeu-se Emily. Aguardara vinte e três anos a sua vingança.

 

Estive a conversar com o meu pai e com os meus irmãos. Várias coisas se tornaram claras - começou Emily lentamente.

 

- Não me diga.

 

Ela olhou para o regato.

 

- Senhoria, quero que compreenda que percebo perfeitamente as suas razões para essa bizarra vingança que se decidiu levar a cabo. No seu lugar, teria provavelmente tentado uma coisa igualmente drástica. Nalgumas coisas não somos muito diferentes.

 

- já vejo que o seu pai estava muito falador.

 

- Explicou-me o que aconteceu há muitos anos atrás. Como a minha família tinha adquirido St. Clair hall. E acerca da terrível tragédia da morte de seu pai. Tem o direito de querer vingar-se.

 

- É muito compreensiva, minha querida.

 

Ela perguntou a si própria se ele estaria a troçar. Era impossível dizê-lo, ao ouvir o seu tom tão calmo. Emily respirou fundo e continuou. Agora estava decidida.

 

- Entendo que não tenha verdadeira intenção de legitimar o pedido da minha mão. Planeia ameaçar fugir comigo e manter-me como sua amante alguns meses, a menos que o meu pai lhe entregue St. Clair Hall. Sem dúvida vai manter-me emocionalmente hesitante durante esse tempo, prometendo-me casamento.

 

- Apenas alguns meses? Emily acenou afirmativamente.

 

- O tempo suficiente para se certificar de que a minha família atinja um desastre financeiro bastante grave para os obrigar a entregar a mansão. Sem mim para os aconselhar nos investimentos e restringir os seus excessos, como fazia a minha mãe, não deveria levar muito tempo. Principalmente, se tratar de os atrair para uma mesa de jogo. Uma vez que tenha de novo St. Clair Hall, sem dúvida poderá enviar-me de volta em desgraça, para a minha família.

 

- Que maquiavélico da minha parte.

 

- De facto é um plano brilhante, - Emily sentiu-se obrigada a reconhecer o que era devido.

 

- Muito obrigado - disse Simon em voz baixa. - Mas concluo que agora não dará em nada, já que descobriu o esquema.

 

- Oh, não. Pode ainda fazê-lo resultar. Só necessita da minha cooperação. E sabe muito bem que poderá contar com ela, Senhoria.

- Está a dizer-me que se dispõe a fugir comigo e a viver algum

tempo como minha amante? - Apanhou um pequeno ramo e pôs-se a brincar com ele.

 

Emily juntou as mãos.

 

- Sim, se for essa a minha única opção. Sabe que os meus sentimentos por si são muito profundos, Senhoria. Porém, preferia casar consigo. Gostaria de viver consigo para o resto da minha vida e não apenas alguns meses, ou um ano.

 

- Compreendo.

 

- Sei que o casamento não era a sua primeira intenção, mas gostaria que considerasse certos aspectos deste assunto que podem não lhe ter ainda ocorrido.

 

Simon não respondeu durante alguns segundos. Depois o ramo estalou-lhe nos dedos.

 

- Que aspectos? Emily não o olhou.

 

- Entendo não ser precisamente aquilo que um homem da sua posição deseja para esposa. Não tenho beleza nem posição social para lhe oferecer e, neste momento, o senhor não pode sentir afecto por qualquer dos Faringdon. E depois, é claro, há o Infeliz Incidente no meu passado. Mas creio que poderei suprir essas deficiências de várias maneiras.

 

- Miss Faringdon, a senhora não deixa de me espantar. Mal posso esperar para ouvir o resto.

 

- Estou a falar muito a sério, Senhoria. Primeiro, gostaria de lhe fazer notar que, se se casar comigo, terá conseguido o seu objectivo de vingança, com tanta eficácia como se fugíssemos ambos. Eles apenas teriam acesso às minhas capacidades de investimento pedindo-lhe autorização para me consultar. Não seria uma vingança adequada?

 

É uma ideia interessante.

 

Poderia manter todos os Faringdon em suspenso, como planetas, dos seus fios financeiros.

 

Simon tinha um ar pensativo.

- Lá isso é verdade.

 

Emily mordeu ansiosamente o lábio.

 

- Por favor, Senhoria, pense também noutra coisa. Creio que vai descobrir que serei uma excelente esposa. Eu compreendo-o, sabe. Sinto que o conheço muito bem através das suas cartas. Intelectualmente, temos muito em comum. Teremos uma ligação e poderemos conversar, coisa de que a maior parte dos casais nunca é capaz.

 

- Resumindo, não me vai aborrecer depois do jantar. É isso?

 

- Estou certa de que através dos anos encontraremos muitos interesses mútuos sobre os quais conversar. Decerto que esse tipo de companheirismo será muito recompensador para um homem com a sua natureza intelectual.

 

- Está a propor-me que a nossa relação continue no plano elevado que desde o início a caracterizou? Antevê a nossa união como uma sociedade intelectual de duas pessoas com espírito idêntico?

 

- Precisamente - disse Emily entusiasmando-se ao ver que ele lhe prestava atenção. - Senhoria, compreendo agora que não esteja apaixonado por mim. Sabendo isso, também entendo que não aprecie um excesso de paixão romântica da minha parte e garanto-lhe que não o pressionarei nesse aspecto.

 

- Miss Faringdon, a senhora choca-me!

 

- E o senhor está a troçar de mim - retorquiu ela, ofendida.

- De modo algum. Pergunto-me meramente o que a levou a concluir que não apreciaria um excesso de paixão da sua parte.

 

Ela baixou os olhos para as mãos, com o rosto a arder.

 

- Uma análise pormenorizada aos acontecimentos de ontem à noite na biblioteca, Senhoria.

 

- O que tem ontem à noite?

 

Ela sufocou um pequeno suspiro.

 

- Na altura pensei que recusava a minha oferta de um caso ilícito por estar a ser nobre e galante. Concluí que tinha interrompido o seu amor porque não tinha coragem de se aproveitar de uma mulher de quem gostava, mesmo tendo já um passado sórdido.

 

- Por outras palavras, concluiu que eu me comportava como o cavalheiro que afirmo ser.

 

Ela acenou rapidamente com a cabeça.

 

- Sim, entendo agora que rejeitou o meu desavergonhado oferecimento por não estar apaixonado por mim.

 

- Compreendo.

 

- E como realmente não tencionava casar comigo e seria pouco provável ter de fugir comigo, já que o meu pai certamente cederia às suas exigências, não havia necessidade de fingir uma paixão que não sentia. De facto, dadas as circunstâncias, comportou-se como um cavalheiro, - Franziu a testa, pensativa. - Isto é, como um cavalheiro que planeia uma vingança se deve comportar. Acredito que possui uma nobreza e uma generosidade inatas, Blade.

 

- Agora lisonjeia-me.

 

- Senhoria, deixe-me terminar o assunto. Vou resumir as vantagens que terá se se casar comigo. Terá atingido o seu objectivo de se vingar da minha família de um modo excelente. Vai adquirir uma esposa com quem poderá comunicar num plano superior. Vai receber a garantia de que não o aborrecerei com a minha desgovernada paixão romântica. E há mais uma coisa.

 

- já estou abismado com a minha sorte, mas por favor, continue, Emily ergueu o queixo para olhar para ele. Esperava que aquele último item fosse para ele irresistível.

 

- É óbvio, Senhoria. Terá todos os lucros das minhas capacidades financeiras.

 

Os olhos de Simon cintilaram por breves momentos.

- Certamente que é uma ideia interessante.

 

- Reconsidere, Senhoria - disse Emily com toda a franqueza, Sei que é muito rico, mas gostaria que não esquecesse que até a maior das fortunas está sujeita à desgraça. Decisões mal tomadas a respeito de alguns investimentos, umas noites de paródia nas salas de jogo, uma má tendência nos fundos e tudo pode ficar arruinado.

 

- Mas, consigo junto a mim, terei a certeza de que serei capaz de recuperar as perdas que possa sofrer nos anos futuros, não é verdade? As esperanças de Emily aumentaram. Sentiu que tinha conseguido fazer o negócio.

 

- É exactamente isso, Senhoria. Veja o caso como se fosse casar com uma herdeira. Os meus talentos na bolsa em relação a outros assuntos financeiros, constituirão para si uma espécie de segurança económica, tal como aconteceu com a minha família nos últimos anos.

 

- Por outras palavras, minha querida, está a querer dizer-me que casar consigo seria um investimento particularmente perspicaz da minha parte.

 

Emily sentiu-se descontrair pela primeira vez desde o chá que lhe tinham estragado. Sorriu alegremente.

 

- Precisamente, Senhoria. Casar comigo será o melhor investimento da sua vida. - Fez uma pausa, pois a honestidade vencia nela. O sorriso desapareceu. - Há, é claro o Infeliz Incidente a considerar. Entendo que é um senão em meu desfavor. Mas talvez ninguém repare, se ficar no campo e não tentar entrar na sociedade.

 

- Miss Faringdon, garanto-lhe que o Infeliz Incidente é a menor das minhas preocupações.

 

- Acredita que conseguiremos esconder o escândalo? - perguntou ansiosa.

 

- Posso prometer-lho com toda a certeza, Miss Faringdon, que, se nos casarmos, o escândalo deixará de existir.

 

Capitulo 6

CASAR COM ELA? Caramba, homem, não pode estar a falar a sério. Mas que jogo do inferno anda a fazer agora? - Broderick Faringdon, barricado por trás da enorme secretária de mogno

 

da biblioteca, fitava o seu visitante com a boca aberta de espanto. Ambos sabemos que um homem com um título não casa com uma mulher com passado.

 

- Creio que deverei avisá-lo para ser muito cuidadoso no modo que fala da minha noiva. O facto de ser pai de Emily não me impediria de o desafiar para um duelo. Francamente, dar-me-ia enorme prazer.

- Simon dirigiu-se à garrafa de brandy e serviu-se de um cálice do líquido ambarino.

 

Sabia que o acto, simples mas muito familiar, irritaria ainda mais o confuso e irado Broderick Faringdon.

- Desafiar-me? Desafiar-me? Com mil diabos, Blade, não acredito no que estou a ouvir. Não faz sentido, o que se passa, caramba. Conheço as suas intenções originais. Planeava fazer chantagem comigo para que lhe entregasse St. Clair HalI, com a ameaça de tornar a minha filha sua amante.

 

- Mas quem diabo lhe deu essa ideia? Garanto-lhe que as minhas intenções são muito honradas.

 

- O diabo, é que são! já ouvi falar de si. É conhecido por ser um homem misterioso. Passa-se alguma coisa de estranho aqui. Porque haveria de querer casar com a minha filha?

 

Simon observou a vista da janela, enquanto bebia o brandy.

 

- As minhas razões não lhe dizem respeito. Digamos que estou convencido que ela e eu nos daremos muito bem juntos.

 

- Se pensa magoá-la de algum modo, há-de pagar por isso. juro.

- Alivia-me ouvir que tem por ela sentimentos paternais. Mas não se preocupe. Não tenciono bater-lhe. - Simon olhou para trás na direcção da estante. - Isto é, só se me causar excessivos sarilhos acrescentou, erguendo levemente a voz.

 

- Pensa que vou dar-lhe St. Clair Hall como dote? É esse o jogo? perguntou Broderick. - Se assim é, desengane-se.

 

- Oh, há-de dar-me St. Clair Hall, Faringdon. Tenciono levar a sua filha e a mansão.

 

- O diabo é que leva. Como se propõe fazer-me entregar a casa e também a minha filha?

 

- Porque vou dar-lhe a oportunidade de ver Emily de vez em quando, como isco. Sabemos ambos que se perceber que tem alguma possibilidade de comunicar com ela, fará o que eu disser. Por outro lado, se eu proibir terminantemente qualquer contacto, o que, como marido, posso fazer, o senhor e eu sabemos bem qual será o seu destino. St. Clair Hall estará no mercado em três meses. Seis, no máximo.

 

- Posso manter esta casa sozinho. Fi-lo enquanto ela crescia disse Broderick com ar de desprezo.

 

- Claro que sim. A princípio achei o facto espantoso. A primeira coisa que fiz quando voltei para Londres, foi saber como tinha conseguido manter as coisas até os notáveis talentos de Emily começarem a surgir. Acontece que o meu contabilista conhece o seu. Davenport explicou-lhe tudo uma noite depois de vários copos de clarete.

 

- Como se atreve a espiar os meus negócios particulares?

 

- A resposta é simples - continuou Simon, fazendo girar o brandy no cálice. - O senhor precisou de vários anos para ficar com a fortuna de meu pai ao jogo, graças aos esforços da sua esposa para o evitar. Nessa altura, os seus filhos eram também muito jovens e ainda não tinham copiado os seus hábitos irresponsáveis.

 

- O seu pai perdeu a herança num jogo limpo, caramba. Depois de a ganhar, a fortuna já não era dele, mas minha.

 

- Não tenho muita certeza que o jogo tivesse sido limpo. Broderick ficou lívido.

 

- O senhor está a acusar-me de fazer batota?

 

- Acalme-se, Faríngdon. Não estou a acusá-lo. Nada posso Provar, depois de tantos anos. Apenas admito ter algumas dúvidas. O meu pai era um excelente jogador, afinal de contas, e nunca antes apostara em excesso. Uma pessoa fica a pensar...

 

- Maldito seja.

 

Simon sorriu ao de leve do tom de raiva impotente na voz de Broderick.

 

- Nem a fortuna Blade se aguentava para sempre. Mas quando estava de novo prestes a contemplar o desastre financeiro, surgiu-lhe outro golpe de sorte. E foi a morte da tia materna de Emily, não é verdade? A senhora morreu muito convenientemente, deixando à sua filha uma grande soma de dinheiro. Mas cometeu o erro de o nomear tutor da sobrinha. Gastou a herança de Emily quando esta tinha apenas dezasseis anos. Depois as coisas ficaram um pouco desesperadas por uns tempos, não é verdade?

 

- Fala como se eu tivesse dissipado a herança da minha filha, seu canalha.

 

- E foi o que fez.

 

- Gastei-a com ela e com esta casa, que é a casa dela - disse Faringdon em voz áspera.

 

- E na sua vida em Londres, nos seus excelentes cavalos, roupas caras e dívidas de jogo que já se amontoavam antes da sua filha sair da escola. Duvido que tivesse conseguido arranjar o suficiente para lhe oferecer uma temporada, mesmo que se sentisse inclinado a tentar. O que, claro, não se sentiu, pois nessa altura ela começara a mostrar os seus notáveis talentos. Davenport falou também deles ao meu homem, bem como do modo como o senhor os capitalizava.

 

- Não havia possibilidade de a levar para uma Temporada. Não é do tipo de atrair grandes atenções de quem ande à procura de um bom casamento.

 

- E decerto o senhor não quis aumentar-lhe as possibilidades de um bom casamento dando-lhe um dote decente, não é verdade?

 

- Que raio, a mãe morreu no ano seguinte. Estávamos de luto. Não havia possibilidades de temporada. Depois ela tratou de fugir com aquele meliante, Ashbrook. Impossível apresentá-la depois disso.

- Faringdon franziu as sobrancelhas, lançando um olhar arguto à sua Nemésis. - Ficou arruinada. Faço-me entender? Completamente arruinada.

 

- Isso é uma questão de opinião. - Simon poisou o cálice vazio.

- Escute, quero que o senhor e os seus filhos saiam de St. Clair Hall, no dia do casamento. Creio que marcaremos a data para a primeira semana de Abril.

 

Broderick ofegou.

 

- Faltam menos de seis semanas.

 

- Não vejo necessidade de atrasar as coisas. já tratámos da parte financeira. Não creio que Emily se sinta inclinada a um noivado longo e formal. Desejo passar a lua-de-mel aqui em St. Clair, de modo que nessa altura, o senhor e os seus filhos deverão já ter partido. O pessoal pode ficar. Emily parece gostar muito deles e parecem todos bem treinados.

 

- Há o problema dos acordos - disse Broderick desesperado. Simon lançou-lhe um sorriso ameaçador.

 

- Não haverá acordos. Terá de confiar em mim para cuidar da sua filha.

 

- Não acredito que isto esteja a acontecer. - Broderick parecia um peixe retirado de dentro de água. Tentava respirar e tinha o rosto manchado com uma cor pouco natural.

 

- Não pode casar com ela. Não, depois do escândalo de há cinco anos. Pense no seu título, homem!

 

A boca de Simon endureceu.

 

- Avisei-o para não dizer mais nada a esse respeito, Faringdon. Era a sério. Pronto. Creio que temos o assunto encerrado.

 

- Não, não temos, por amor de Deus. Falarei com Emily. É uma jovem esperta, embora se sinta tentada a ceder a loucas fantasias românticas. Hei-de convencê-la de que as suas intenções não são boas.

- Está à vontade para o tentar, claro, mas duvido que tenha sorte e a faça mudar de ideias - disse Simon confiante. - Adnita-o. A sua única possibilidade de voltar a ver Emily, é fazer aquilo que eu quero.

 

- Raios, isto é um assunto diabólico. É a minha única filha. Fá-la-ei ver a razão.

 

- Quanto a isso, faça como entender. Porque não perguntamos a Emily se ela concorda com a sua maneira de pensar? - Simon dirigiu-se à estante, procurou a alavanca escondida no fundo do armário e carregou.

 

A estante deslizou da parede sem qualquer ruído e Emily, que obviamente estava do outro lado, com o ouvido encostado à madeira, apareceu numa trouxa colorida junto às botas de Simon.

 

- Mas que inferno - resmungou Emily.

 

- Que se passa, meu Deus? - Broderick olhava estupefacto, primeiro para a abertura na parede, depois para a filha.

 

Emily sentou-se, tentando apagar a vela que trazia, arranjar as saias e endireitar os óculos, tudo ao mesmo tempo. Espreitou para Simon, que se erguia por cima dela.

 

- Como sabia que eu estava aqui, Senhoria?

 

- Minha querida, deve atribuir o meu estranho conhecimento ao facto de, obviamente, comunicarmos num plano superior. No reino metafísico, as coisas como a comunicação mental fazem parte das ocorrências de todos os dias. Teremos de nos habituar a essa experiência.

 

- Oh, claro. - Emily sorriu encantada.

 

Simon estendeu a mão, ajudou-a a levantar-se e a pôr-se de pé com toda a leveza. Sorriu ao seu olhar brilhante e perguntou a si próprio se deveria acrescentar que a presença dela do outro lado da estante fora um palpite seguro da sua parte. Naquela altura já a conhecia bastante bem, para saber que ela seria incapaz de resistir a uma oportunidade de se pôr à escuta. Principalmente quando havia uma passagem secreta para que o pudesse fazer convenientemente.

 

Emily suspirou filosoficamente ao sacudir o pó do seu vestido de musselina cor de pêssego.

- Lá se vai a minha dignidade. Mas pelo menos o assunto está encerrado, não é verdade? - Olhou para ele cheia de esperanças. - já estamos noivos?

 

- Claro que estamos, minha querida - garantiu-lhe Simon. Tenho muitos defeitos, como sem dúvida em breve vai descobrir, mas não sou estúpido. Não poderia de modo algum deixar passar a oportunidade de fazer o melhor investimento da minha vida.

 

Duas semanas depois, numa manhã feia e húmida, Simon estava sentado na biblioteca da sua casa em Grosvenor Square, lendo uma carta de Emily que chegara à hora do pequeno-almoço. Continha, como sempre, um vivo relato das discussões da última reunião da sociedade literária, discussões essas, que pareciam de novo ter sido dedicadas a Byron. Havia também um longo parágrafo descrevendo os novos versos acrescentados à Dama Misteriosa e algumas confusas considerações a respeito do tempo.

 

Quando Simon terminou a leitura, sentiu-se vagamente consciente de uma leve ponta de desilusão. Era evidente que Emily lutara valentemente para resistir à tentação de escrever fosse o que fosse na sua missiva, que pudesse ser interpretado como um excesso de paixão.

 

Simon voltou a dobrar delicadamente a carta e sentou-se fitando o lume. Depois de um momento de contemplação, pegou no belo bule chinês esmaltado, que se encontrava numa mesa ali perto. Deitou o Lap Seng para uma chávena fina e brilhante, decorada com um dragão verde e doirado. Fez uma pausa ao erguê-la para observar a figura do mítico animal.

 

Emily chamara-lhe dragão. Ao fazê-lo tinha os olhos cheios de espanto e paixão, bem como de uma doce adoração feminina.

 

Simon olhou à sua volta, observando a sala onde se encontrava sentado. Quando visse a casa dele, sem dúvida a consideraria uma toca apropriada a um dragão.

 

Toda a casa estava arranjada em tons ricos e exóticos que aprendera a apreciar enquanto vivera no Oriente: cores chinesas, como vermelho, verde-escuro, negro retinto e dourado brilhante.

 

A exuberante biblioteca estava cheia de recordações das estranhas terras por onde viajara. O tapete, de ricas tonalidades orientais, servia adequadamente de fundo aos armários de laca negra com motivos de fábula. O sofá de teca e os cadeirões, pesadamente entalhados, estavam cobertos de veludo vermelho, rematado com borlas douradas.

 

A secretária era enorme, com entalhes complicados, feitos por mestres marceneiros. Mandara fazê-la em Cantão. Urnas de incenso, vindas da índia, enchiam a sala de uma fragrância preparada em Bombaim segundo as suas pormenorizadas indicações. Enormes almofadas de brocado de seda doirada, com tamanho suficiente para servirem de camas, estavam dispostas perto da lareira.

 

Por todo o lado se viam dragões, imagens maravilhosamente esculpidas dessas ferozes criaturas míticas pertencentes ao folclore do Extremo Oriente. Eram verdes, negros, vermelhos e doirados, cada um deles tendo incrustada uma fortuna em pedras preciosas. Para onde quer que se olhasse na biblioteca, viam-se animais fantásticos com olhos de esmeralda e rubis, escamas doiradas, garras de ônix e caudas incrustadas de topázios.

Simon tinha o palpite de que aquelas criaturas seriam do agrado de Emily.

 

Aspirou o fumo do chá aromático, encostando a cabeça à almofada escarlate da cadeira, pensando no seu próximo casamento. Não sabia muito bem quando se decidira a casar com Emily Faringdon. Quando vários meses antes, traçara os planos originais não tivera certamente intenções de o fazer. Mas, aprendera com os anos, que a vida tinha maneira de reformular as intenções dos homens.

 

Compunha mentalmente uma resposta à carta de Emily, quando o seu mordomo, singularmente feio, anunciou a chegada de Lady Araminta Merryweather. Simon pôs-se de pé, quando uma animada mulher de quarenta e muitos anos irrompeu pela sala, envolta numa nuvem de perfume caro.

 

Lady Merryweather estava, como de costume, vestida no último grito da moda. Trazia hoje um fato de lã de merino azul-claro, com mangas compridas e justas, e um folho delicado. A sua altura, invulgar para uma mulher, dava-lhe uma nobre aparência. O chapéu era uma pequena confecção elegantemente inclinada sobre os caracóis grisalhos. Os olhos eram da mesma cor amarelada que os de Simon. Trazia as feições, patrícias e belas, coradas do frio.

 

- Simon, acabei de chegar à cidade e já ouvi a notícia do teu noivado. Com uma Faringdon, nem mais nem menos. Vim imediatamente, é claro. Não posso acreditar. Perfeitamente espantoso. Nunca me disseste nada. Tens de me contar tudo, menino.

 

- Olá, tia Araminta! - Simon beijou-lhe as costas da mão, convidando-a a sentar-se diante do lume. - Agradeço que tenha cá vindo hoje, Acontece que amanhã iria visitá-la.

 

- Não conseguiria esperar até amanhã - garantiu-lhe Araminta.

- Ouve, quero saber exactamente o que se passa. Como diabo ficaste noivo de Miss Faringdon?

 

Simon lançou-lhe um leve sorriso.

 

- Não estou muito certo do que me aconteceu. Miss FaringéLon é uma estranha criatura.

 

Araminta olhou-o com ar especulativo.

 

- Mas tu és demasiado esperto para te deixares apanhar em enredos femininos.

 

- Sou?

 

- Claro que és. Simon, não brinques comigo. Sei que estás a preparar alguma. Estás sempre. Juro que és a criatura mais tortuosa que conheço e não há na cidade uma única pessoa que não concorde comigo. Mas sabes que podes confiar em mim.

 

Simon fez um leve sorriso.

 

- A senhora é a única pessoa em toda a Inglaterra em quem confio plenamente, Araminta. Sabe muito bem.

 

- Então sabes que eu nunca diria uma palavra acerca dos teus planos. Criaste algum esquema monstruoso para deitar por terra todos os Frívolos e Volúveis Faringdon?

 

- Houve algumas modificações ao plano original - admitiu Simon. - Mas vou recuperar St. Clair Hall.

 

Araminta ergueu as sobrancelhas finas e elegantes.

- Ah, sim? E como conseguiste?

 

- A casa será o dote da minha esposa.

 

- Valha-me Deus. Sei que tens estado obcecado com essa casa, desde que o teu pai morreu, mas será que vale a pena prenderes-te a uma Faringdon só para a conseguires?

 

- Emily Faringdon não é uma simples Faringdon. Em breve nem será uma Faringdon. Será minha esposa.

- Não me digas que é um casamento por amor - exclamou Araminta.

 

- É mais um investimento comercial. Ou, pelo menos, foi o que me disseram.

 

- Um investimento comercial. Isso é demais, Simon, que diabo andas a fazer?

- Tenho trinta e cinco anos. - Simon observou as chamas na lareira. - Sou o último da minha linhagem. É a minha tia quem me tem dito que deveria cumprir o meu dever e começar a ter descendência.

- Exactamente, Mas tu és o conde de Blade e amealhaste nos últimos anos uma considerável fortuna. Podias escolher quem quisesses, entre as donzelas casadoiras. Porquê ir logo preferir Miss Faringdon? As sobrancelhas de Simon estremeceram.

- Creio que foi exactamente o contrário. Foi ela quem me escolheu.

- Deus do Céu. Não acredito no que estou a ouvir. Suponho que pelo menos tenha a beleza do Faringdon. É alta e loira?

- Não. É baixa, tem cabelo ruivo, brilhante, sardas, nariz arrebitado e quase nunca pode ser encontrada sem um par de óculos. Parece um elfo inteligente e tem o costume de dizer com mil raios», sempre que fica perturbada.

- Valha-me Deus! - Lady Merryweather estava genuinamente espantada. - Simon, que fizeste?

- De facto, tia Araminta, creio que fará sensação, quando a tia a apresentar à sociedade.

- Queres que eu a apresente? - Araminta parecia horrorizada, a princípio, e depois muito íntrigada pelo desafio. - Queres que transforme um elfo num triunfo social?

- Não consigo pensar numa pessoa mais apropriada para essa tarefa. Será um assunto

delicado, receio. Emilly necessitará algumas indicações, pois nunca entrou na sociedade, mas não quero que lhe acabe com a alegria nem que a sofoque com demasiadas regras e restrições. A senhora, minha tia, é capaz de apreciar as suas invulgares qualidades, arranjar maneira de as pôr em evidência e delas tirar partido.

- Simon, não tenho a certeza de que haja uma maneira adequada para tratar um elfo ruivo e baixo que diz coisas como com mil raios quando está perturbado.

- Que absurdo. Vai encontrar maneira de o fazer. Tenho plena confiança em si.

- Bom, certamente que farei o meu melhor. Só Deus sabe que é o minimo, depois de tudo o que fizeste por mim, Simon. Ainda estaria agarrada àquele monte de pedras em Northumberland, se não me tivesses salvo da doce pobreza em que vivia.

 

- Nada me deve, Araminta - respondeu Simon. - Eu é que lhe deveria estar eternamente grato por me ter ajudado a cuidar da minha mãe e por vender o resto das suas jóias de modo a conseguir-me uma nomeação para o exército.

 

Araminta sorriu.

 

- Dar-te um início de vida foi o melhor investimento que alguma vez fiz. As jóias e roupas que agora posso comprar, valem muito mais do que as poucas e insignificantes que tinha naqueles tempos.

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Mereceu-as, minha tia. Agora escute, em relação a apresentarmos a minha esposa à sociedade. Como lhe disse, vou deixar em grande parte o projecto nas suas mãos. Mas tratarei de esmagar o único problema que se apresenta no horizonte.

Araminta olhou-o com cautela.

 

- Qual é a natureza desse problema potencial, Simon?

 

- A minha noiva é de um género bastante impetuoso e parece que teve um Infeliz Incidente aqui há uns anos atrás.

 

Um incidente? - perguntou Araminta num tom claramente agoirento. - Esse incidente foi muito mau?

 

- Emily costuma explicar que foi temporariamente vencida por um excesso de paixão romântica e fugiu com um jovem.

 

Araminta encostou a cabeça à almofada e fechou os olhos de horror.

 

- Valha-me Deus! - Recompôs-se imediatamente, lançando ao sobrinho um olhar arguto. - Foi muito grave? O pai impediu o casal de chegar à fronteira?

 

- Tenho todas as indicações de que o homem em questão não tinha verdadeiras intenções de chegar a Gretna Green. De qualquer modo, Emily acabou por passar a noite com ele numa estalagem. No dia seguinte, Faringdon encontrou-a e levou-a para casa.

 

- No dia seguinte? Só a encontrou no dia seguinte? - Araminta sentia-se agora completamente chocada. Inclinou-se para diante, com os olhos furiosos, - Simon não podes estar a falar a sério. É uma partida bizarra que estás a querer pregar à tua pobre tia. Confessa.

 

* Aldeia escocesa, na fronteira com Inglaterra, onde até os casamentos podiam realizar-se sem o cumprimento das leis inglesas; muitos jovens fugiam para lá, a fim de poderem casar sem, ou contra o consentimento das famílias. N. da T.

 

- Não é nenhuma partida, tia Araminta. Vou casar com uma senhora com passado. Mas não precisa preocupar-se, Vou tratar que ele deixe efectivamente de existir.

 

- Valha-me Deus, Simon, como?

 

Ele encolheu os ombros, despreocupado.

 

- O meu título e fortuna serão um eficaz tira-nódoas, Ambos o sabemos. Tratarei pessoalmente de quaisquer restos que possam ainda surgir.

 

- Deus do céu, Estás a gostar disto, não é verdade? - Araminta olhou-o com uma súbita compreensão. - Estás a meter-te noutra grande aventura.

 

- Emily consegue temperar a vida de uma pessoa, como sem dúvida perceberá, minha tia.

 

- Simon, vou ser franca. Essa jovem pode ser original, e sei que te sentes atraído pelo que é ínvulgar. Mas tens de pensar no que vais fazer. Ambos sabemos que não podes casar com uma jovem que não seja virgem, por muito encantadora que seja. Uma coisa é uma mulher ter uns casos discretos depois de ter sido casada, outra é ter estado envolvida num escândalo com um homem, antes do casamento. És o conde de Blade. Tens de pensar no teu nome e na tua posição.

 

Simon afastou os olhos do lume e lançou à tia um olhar divertido e enigmático.

 

- Não entendeu, tia Araminta - disse delicadamente. - Não há qualquer dúvida em relação à inocência da minha esposa. Garanto-lhe que ela é pura como a neve.

 

- Mas acabaste de me dizer que houve um enorme escândalo no seu passado. Que ela tinha fugido com um jovem e que passara a noite com ele.

 

- Ainda não sei exactamente o que se passou naquela noite afirmou Simon. - Mas tenho a certeza de que Emily não dormiu na mesma cama que o tal jovem.

 

- Como podes ter tanta certeza? - retorquiu Araminta, erguendo depois as sobrancelhas. - A menos que já tenhas estado tu na cama com ela.

 

- Não, não estive, embora o lamente. Asseguro-lhe que estou desejoso da noite de núpcias. Estou convencido de que será uma experiência muito interessante.

 

- Então como podes ter a certeza de que está inocente? - perguntou Araminta, exasperada.

 

Simon sorriu para consigo.

 

- É muito difícil de explicar. Só lhe posso dizer que eu e Emily estabelecemos um modo especial de comunicação, que tem lugar num plano mais elevado.

 

- Num plano mais elevado?

 

- Refiro-me ao mundo metafísico. O problema é que a senhora, minha tia, não lê poesia moderna. Deixe que lhe garanta que certas coisas são muito claras num nível transcendente, quando dois espíritos se encontram num excesso de emoção pura e intelectual.

 

Lady Merryweather olhou para ele, abismada.

 

- Desde quando te preocupas com planos elevados e emoções puramente intelectuais? Conheço-te há tempo suficiente para saber que estás metido num assunto obscuro, Blade. Pressinto-o.

 

- Ah, sim? Fascinante. Talvez tenha também acesso a um plano mais elevado do conhecimento, tia Araminta.

 

Lorde Richard Ashbrook não frequentava habitualmente os mesmos clubes que Simon. Assim, era necessário procurar o jovem e elegante poeta num dos mais pequenos, em St. James, onde os dândis se costumavam reunir.

 

Simon acabou por localizar a sua presa numa sala de jogo. Ashbrook jogava com o descuido e inconsciência que estavam tão em moda.

Assim que o viu, Simon     percebeu que o poeta era certamente o sonho de qualquer jovem, se estas não se preocupassem com a fraqueza do seu queixo e olhos. Ashbrook era inegavelmente bonito, à maneira de Byron: cabelo preto, pensativos olhos negros e um jeito cansado e quase petulante da boca.

 

Simon esperou calmamente num cadeirão, entretendo-se com uma garrafa de vinho do Reno e o jornal até que a sua presa deixou a mesa de jogo, perto da meia-noite. Ashbrook juntou-se a um companheiro e, juntos, encaminharam-se para a porta do clube, resmungando qualquer coisa acerca de irem em busca de divertimento mais interessante nas casas ilegais.

 

Simon ergueu-se e seguiu-os lentamente, demorando os seus movimentos, até Ashbrook ter chamado uma carruagem e saltado para ela. Quando o companheiro do poeta se dispunha a segui-lo, Simon avançou e bateu-lhe no ombro. O homem, que se voltou aborrecido para o enfrentar, era mais velho e tinha um ar mais dissipado que Ashbrook. Estava também muito embriagado. Simon reconheceu-o como um jogador chamado Crafton, que frequentava casas de fama duvidosa.

 

- Que se passa? Quem é o senhor? - perguntou Crafton em voz grosseira e arrastada, com o seu belo rosto contorcido de irritação.

- Gostaria de dar uma palavra a Lorde Ashbrook. Receio que o

 

senhor tenha de esperar por outra carruagem. - Simon deu a Crafton um ligeiro encontrão, que foi o suficiente para o fazer recuar hesitante.

- Maldito - disse, em tom de desprezo, enquanto tentava manter o equilíbrio.

 

- Grosvenor Square - indicou Simon ao cocheiro, entrando na carruagem e batendo com a porta.

 

Dentro da carruagem escura, Ashb£ook afastou-se mais para as sombras e perguntou, zangado:

 

- Mas que demónio é isto? O senhor é Blade, não é verdade?

- Sim. Sou Blade. - Simon sentou-se, enquanto a carruagem avançava pela rua cheia de gente,

 

- Que fez a Crafton? Eu e ele tínhamos coisas combinadas para esta noite.

 

- Não vou demorá-lo. Pode voltar para apanhar o seu amigo depois de me deixar em casa. Entretanto, o senhor e eu teremos de chegar a um acordo acerca de um pequeno assunto.

 

- Mas de que está a falar? Que acordo? - Parecendo quase vencido pelo aborrecimento, Ashbrook retirou do bolso uma pequena caixa de rapé de onde extraiu uma pitada.

 

- Pode felicitar-me, Ashbrook. Para o caso de ainda não ter conhecimento, vou casar.

 

Ashbrook olhou-o com maior cautela.

- já ouvi dizer.

 

- Ah, então deve estar também ao facto de que o nome da jovem com quem vou casar não lhe é totalmente desconhecido.

 

- Emily Faringdon! - Ashbrook voltou a cabeça para olhar pela janela do trem.

 

- Sim. Emily Faringdon. Parece que o senhor e a minha noiva partilharam há uns anos uma pequena aventura.

 

Ashbrook voltou rapidamente a cabeça.

- Ela contou-lhe?

 

- Emily é uma jovem muito honesta - disse Simon delicadamente.

- Não creio que soubesse mentir, mesmo que quisesse. Sei também que nada de natureza, digamos que íntima, ocorreu entre os dois naquela noite. Ashbrook resmungou e voltou o olhar para as ruas escuras.

 

- Foi um fracasso desde o princípio.

 

- Emily pode ser imprevisível.

 

- Sem ofensa, senhor, mas Emily Faringdon não é imprevisível, é perigosa. Suponho que lhe tenha contado tudo.

 

- Tudo - repetiu Simon, em voz baixa.

 

- Doeu-me a cabeça durante três dias com a pancada que me deu com o bacio.

 

- Não me diga! Emily é muito forte para o tamanho que tem.

- Quase me matou de frio, obrigando-me a passar a noite numa enxerga do vestíbulo. O canalha do estalajadeiro disse que não tinha outro quarto. Pessoalmente, penso que foi a mulher que o obrigou a dizer ísso- Só Deus sabe porque resolveu proteger Miss Faringdon. Nunca a tinha visto antes daquela noite.

 

- Muita gente sente que deve proteger Miss Faringdon. Tem muitos amigos. Mas, a partir de agora, será meu privilégio protegê-la e pode ter a certeza de que o farei.

 

Ashbrook lançou-lhe um olhar rápido.

 

- Está a tentar dizer-me alguma coisa, Blade?

 

- Desejo meramente dizer-lhe que se o assunto da sua aventura com Miss Faringdon surgir numa conversa, o senhor esclareça que não se tratou disso.

 

- Quer que eu finja que nunca aconteceu?

- Precisamente.

 

- Mas aconteceu. Garanto-lhe que não tenho a mínima intenção de o discutir, mas é difícil fingir que não ocorreu.

 

- Ficaria espantado com o que pode desaparecer, quando se tem poder, fortuna e título. E alguma cooperação de certas pessoas. Ashbrook olhou-o fixamente.

 

- Pensa que pode simplesmente fazer desaparecer um escândalo?

- Claro que sim. Posso fazê-lo desaparecer.

 

Ashbrook hesitou, parecendo momentaneamente pouco à vontade. Depois sorriu insolente, e cheirou outra pitada de rapé.

 

- Que espera que eu diga se alguém mencionar o assunto?

 

- Se alguém for tão impertinente que faça perguntas, quero que o informe que não estava sequer perto de Little Díppington nessa altura e que nada sabe a respeito de escândalo. Dirá que estava em Cumberland, adorando as pegadas de Coleridge, Wordsworth e outros Poetas do Lago.

 

- Tenho de o fazer? - perguntou Ashbrook, arrastando a voz. São pessoas tão aborrecidas.

- Sim, receio bem que sim.

 

Ashbrook olhou-o em silêncio durante alguns tensos segundos, tentando medir Simon.

 

- Dizem que o senhor é um homem misterioso, Blade. Cheio de esquemas obscuros, que os outros só descobrem quando é tarde de mais. Deve andar a fazer alguma. Que jogo é esse com Miss Faringdon?

 

- Os meus planos não lhe dizem respeito, Ashbrook.

 

- Porque haveria eu de o ajudar, mentindo acerca do que aconteceu há cinco anos?

 

- Se assim não acontecer, farei o que um dos Faringdon deveria ter feito há cinco anos. Desafio-o para um duelo.

 

Ashbrook endireitou-se com um gesto brusco.

- Isso é que era bom!

 

- Se confirmar com as pessoas que praticam na Galeria Manton, vai ver que tenho uma excelente pontaria, Agora passe uma boa noite, Ashbrook. Foi um bocadinho muito elucidativo. - Simon usou a bengala para bater no tecto da carruagem. O veículo deteve-se.

 

Ashbrook inclinou-se para diante, enquanto Simon abria a porta. De súbito apareceu um ar intencional nos seus olhos escuros.

 

- Não sabia, pois não? Até lhe falar no bacio e lhe dizer que tinha dormido no vestíbulo, o senhor não sabia que nada tinha acontecido naquela noite entre mim e Emily. Era tudo bleuff.

 

Simon fez-lhe um sorriso passageiro, enquanto saía para a rua.

- Engana-se, Ashbrook. Sabia desde o princípio que nada de sério acontecera. A minha noiva gosta de aventuras, mas está longe de ser estúpida. Simplesmente não tinha conhecimento de todos os pormenores do incidente. A propósito, agradeça ao bacio.

 

Porquê?Deviin,

 

É a única razão por que o deixo vivo.

 

Ashbrook encostou-se de novo às almofadas e pegou na caixa de rapé. Os olhos brilharam-lhe de raiva, nas sombras, enquanto olhava para Blade,

 

- Maldição. É verdade aquilo que dizem a seu respeito. O senhor é um canalha insensível. Sabe? Acredite que tenho pena da pequena Emily.

 

Dez dias mais tarde, Simon encontrava-se de novo sentado na sua biblioteca infestada de dragões, saboreando uma carta de Emily, quando  foi mais uma vez interrompido pelo mordomo, que lhe anunciou a chegada de visitas inesperadas.

 

- Estão lá fora dois cavalheiros, que dão pelo nome de Faríngdon e querem ver Vossa Senhoria. Vossa Senhoria está em casa? - perguntou Greaves, com ar agoirento. As suas feições naturalmente ferozes eram acentuadas por uma variedade de antigas cicatrizes incluindo uma interessante facada que lhe abrira grande parte do maxilar. Simon fora a única pessoa capaz de lhe coser a ferida e fizera-o o melhor possível. Porém, fora o primeiro a admitir que, embora os seus pontos tivessem sido funcionais não tinham grande arte.

 

Simon dobrou a carta de má vontade.

 

- Manda-os entrar, Greaves. Tenho estado à espera deles. Momentos depois, Charles e Deviin Faringdon entravam na sala, parecendo tão decididos e determinados quanto era possível serem-no dois homens tão belos.

 

- Ah, os meus futuros cunhados. A que devo a honra desta visita? - indicou aos dois jovens as cadeiras em frente à sua.

 

- Decidimos que seria imperioso falar consigo pessoalmente, Senhoria - anunciou Deviin. - Temos plena consciência de que está a levar a cabo um jogo diabólico com este absurdo do seu noivado com Emily. Pensámos que mostrasse as cartas antes de continuar com o noivado.

 

- Mas agora parece estar realmente decidido a casar com ela concluiu Charles pouco satisfeito.

 

- Certamente que estou decidido a fazê-lo. - Simon descansou os cotovelos nos braços escarlates do cadeirão e uniu os dedos. Fitou os dois Faringdon com os olhos semicerrados.

 

- Nunca sonharia fazer uma coisa tão pouco cavalheiresca, como não cumprir as promessas. Assim, se for essa a vossa preocupação, podeis estar descansados que o noivado irá decorrer conforme o planeado.

 

- Bom, escute - disse Deviin. - Charles e eu somos homens do mundo. Não nos engana, Blade. Sabemos que vai fazer alguma. Já pensámos bem no assunto e chegámos à conclusão que há apenas uma razão para desejar casar com Emily.

 

- E essa razão é...? - inquiriu Simon em voz baixa. Charles ergueu o queixo em ar de desafio.

 

- Chegou à conclusão de que ela pode fazer-lhe uma segunda fortuna a jogar na bolsa, Assim ficará com tudo, não é verdade? St. Clair Hall, a sua vingança contra o nosso pai e a promessa de uma nova fortuna com as acções.

 

- Planeia utilizar a nossa irmã de um modo que mostra poucos princípios - anunciou Deviin. - E ela, pobre menina é tão tola e tão inclinada ao romantismo, que não tem ideia das suas verdadeiras intenções.

 

Simon reflectiu algum tempo.

 

- O que os faz pensar que eu não caso com a vossa irmã simplesmente porque gosto muito dela e cheguei à conclusão de que será uma óptima esposa?

 

- Não Pega, Blade - disse bruscamente Deviin. - Não está apaixonado por ela. Só a promessa de ela lhe providenciar uma segunda fortuna pode tê-lo convencido a ignorar o escândalo do seu passado.

- É verdade, não somos imbecis, sabe? Poderia arranjar melhor que uma jovem que fugiu e se arruinou - acrescentou Charles, em tom de confidência masculina. - Não será muito bonito de dizer, mas a nossa pobre Emily é uma mercadoria estragada.

 

Simon pôs-se de pé languidamente e avançou dois passos em direcção da cadeira onde Charles estava sentado. Estendeu o braço, fechou a mão sobre a sua gravata imaculadamente arranjada e puxou o jovem, obrigando-o a ficar de pé. Charles abriu desmesuradamente os olhos.

- Mas que diabo...?

 

O resto do comentário perdeu-se enquanto Simon girava rapidamente, executando os movimentos graciosos da antiga arte marcial que aprendera no Oriente. Sabia que o método, pouco ortodoxo e potencialmente perigoso, causaria espanto entre os jovens que praticavam boxe na Academia Gentleman Jackson. Ficariam ainda mais perplexos se conhecessem as técnicas elaboradas que estabeleciam a disciplina mental e o controle, que os monges ensinavam juntamente com as habilidades físicas.

 

Charles girou violentamente em direcção à lareira. O jovem Faringdon foi de encontro à prateleira sobre ela, partindo o queixo no mármore negro. Com um olhar estupefacto nos belos olhos, Charles caiu lentamente no tapete.

 

- Valha-me Deus, Senhoria! - Deviin pôs-se rapidamente de pé e deu um passo em direcção ao irmão. - O que lhe fez?

 

Simon apanhou-o a meio caminho e fê-lo voar de modo infame atrás do irmão. Deviin bateu na parede, dobrou-se emitindo um grito abafado e depois caiu no tapete ao lado de Charles.

 

Os dois irmãos, aturdidos e furiosos, olharam para Simon, enquanto envidavam esforços para se recomporem.

 

- Para que foi isso, seu canalha? - perguntou Deviin em tom sibilante, enquanto tentava pôr-se em pé.

 

- Por insultarem a vossa irmã, claro. Porque outra razão pensavam que seria? - Simon compôs distraidamente a gravata. Estava perfeita. - Creio que foi também por não terem pedido contas a Ashbrook, como deveriam ter feito há cinco anos,

 

- Emily não deixou - resmungou Charles, esfregando o queixo enquanto cambaleava para junto de uma cadeira, onde depois se sentou pesadamente. - Disse que tudo aquilo fora tanto culpa dela como dele. Dísse-nos que um dia iria ser uma grande poetisa e que não deveriamos privar o mundo do seu talento.

 

- Emily nada deveria ter de dizer a esse respeito. - Simon olhou as duas belas crias com ar de desagrado. - O vosso dever era terem tratado do assunto.

 

- O nosso pai disse que o assunto deveria ser o mais possível silenciado. Se desafiássemos Ashbrook, o escândalo seria ainda maior

- murmurou Deviin.

 

- Acontece que Emily tomou boa conta da sua honra naquela noite. Mas afinal, Emily sempre teve de se valer a si própria, não é verdade?

 

Devin olhou para Simon, com ar zangado.

 

- De que está a falar? Ela passou a noite com ele, por amor de Deus. Perdeu a honra.

 

- Não, não perdeu. Bateu na cabeça de Ashbrook com um bacio e obrigou-o a dormir no vestíbulo.

 

- Bom, sabemos que foi isso que realmente aconteceu - disse Charles impaciente. - Emily explicou tudo, na manhã seguinte. Mas o prejuízo na sua reputação estava feito, e pronto. Foi o que disse o nosso pai.

 

- Pois a partir de agora - disse Simon friamente - esse íncidente nunca aconteceu. E eu destruirei pessoalmente quem quer que seja, quem quer que seja, que o contradiga. Estou a ser suficientemente claro, cavalheiros?

 

Os gêmeos olharam-no com a boca aberta e em seguida trocaram olhares divertidos um com o outro.

 

- O senhor não pode fazer com que desapareça essa mancha enorme da reputação dela - arriscou finalmente Charles, em tom cauteloso.

 

- Então vejam - respondeu Simon.

 

Capitulo 7

- NÃO É PRECISO MAIS NADA, Higson. Pode retirar-se. - Simon ouviu a pouco característica impaciência na sua própria voz, enquanto mandava embora o criado. Franziu a testa. O facto daquela ser a sua noite de núpcias não deveria de modo algum ter afectado o seu férreo autocontrole.

 

- Se não é preciso mais nada, Senhoria, posso tomar a liberdade de o felicitar pelo seu casamento? - Higson, um homem baixo, sólido, de constituição forte, parecido com um buldogue e que se mantinha ao serviço do conde havia dez anos por ter muitos dos valiosos atributos deste animal, parou à porta. Não mostrou qualquer sinal de se ter ofendido com o tom abrupto de Simon. De facto, havia mesmo um brilho divertido nos seus olhos claros. Um homem que tinha já lutado contra piratas, lado a lado com o seu amo, podia por vezes tomar algumas liberdades.

 

- Muito obrigado, Higson - disse Simon em poucas palavras.

- Senhoria. - Higson inclinou a cabeça e saiu para o vestíbulo. O olhar de Simon dirigiu-se imediatamente para a porta que ligava o seu quarto ao de Emily.

 

Qualquer coisa se contraiu dentro dele. Não houvera quaisquer vestígios de actividade nos últimos minutos. Certamente a esposa estava na cama à espera dele.

 

A esposa. Simon olhou para a porta de ligação, lembrando-se de Emily, quando nessa manhã entrara na igreja da aldeia. Percorrera cautelosamente a nave central, devido à terminante recusa de usar óculos. Mas a leve hesitação dos seus passos, juntamente com a tímida emoção dos seus olhos verdes, dera-lhe uma aura de princesa das fadas, aventurando-se num estranho mundo novo. O vestido branco, debruado com uma fita prateada, enaltecera o efeito. Simon ficara espantado por se sentir ao mesmo tempo, muito protector e extremamente possessivo.

 

Toda a aldeia aparecera com os seus melhores fatos. Não havia dúvidas de que Little Dippington aprovara a aliança. Não havia um único par de olhos secos entre os membros da sociedade literária.

 

O seu inesperado fascínio com a noiva, tinha feito com que praticamente ignorasse a presença de Broderick Faringdon e dos dois irmãos de Emily. Todos três tinham observado a cerimónia com expressões satisfatoriamente lúgubres, como se Emily fosse ser transportada para a Austrália, em vez de se ir transformar numa rica condessa.

 

Enquanto se encaminhava para a porta de ligação, Simon recordou-se que, como era evidente, para todos os efeitos, Emily estava agora tão perdida para os Faringdon como se a tivessem levado para o outro lado do mar. Depois daquela noite pertenceria completamente ao marido. Deixaria de ser uma Faringdon. Simon estava decidido que nenhum dos outros se esquecesse de tal.

 

Com a mão no puxador da porta, Simon olhou à volta do quarto de casal, que fora em tempos ocupado pelo pai. Invadiu-o uma sensação de exaltação. St. Clair Hall e tudo o que lá estava dentro, encontrava-se de novo nas mãos de um Traherne.

 

-- Descanse que não vou perdê-la do mesmo modo que o senhor, meu pai - jurou Simon ao fantasma que lhe pairava no fundo do seu espírito. Vinte e três anos fora uma longa espera, mas valera a pena. E a

 

vingança só agora começara. Ver os Faringdon a deslizar inevitavelmente para o desastre financeiro iria satisfazê-lo tanto como naquele dia o fora retomar St. Clair Hall.

 

Simon abriu a porta e entrou no quarto contíguo ao seu.

 

- Emily? Porque não mandaste a tua criada acender uma vela? Estás envergonhada, minha querida? - Simon avançou pelo quarto, deixando os olhos habituarem-se às sombras. - Não é preciso. Eu e tu comunicamos a um plano mais elevado, lembras-te?

 

Deteve-se aos pés da cama de dossel, franzindo a testa ao aperceber-se que não havia qualquer elfo ruivo debaixo das cobertas.

 

- Emily?

 

Depois viu a nota cuidadosamente dobrada, sobre a almofada. Sentiu-se invadido por uma onda de receio. Simon deu a volta à cama e arrancou o papel. Levou-o para junto da porta aberta de modo a poder lê-lo à luz que se escoava do seu quarto.

 

Meu querido Simon:

 

Se encontraste esta nota é porque te sentiste obrigado a cumprir os teus deveres conjugais. Só mesmo tu para seres impelido pelos ditames da honra e da responsabilidade, mesmo quando as tuas inclinações pessoais são contrárias! Mas juro-te que isto é inteiramente desnecessário.

 

Por favor, fica descansado que não tenho qualquer intenção de te sobrecarregar com as minhas paixões excessivas nesta ou em qualquer outra noite até ao momento em que sejas capaz de sentir por mim uma centelha de verdadeira emoção e afecto. Estou perfeitamente preparada para esperar o que for necessário, mesmo que leve anos.

 

Tua mulher.

 

- Pelas chamas do Inferno! - Simon amarrotou o papel com a mão. Depois um sorriso magoado passou-lhe pelos lábios, tomando o lugar da irritação. Bom, já sabia que a sua noite de núpcias prometia ser certamente fora do vulgar. Os elfos eram criaturas imprevisíveis.

 

Interrogou-se acerca de onde um deles se poderia esconder e lembrou-se que este elfo, em particular, não resistiria à tentação de escrever o seu diário, logo naquela noite.

 

Simon saiu para o corredor escuro e dirigiu-se às escadas. Naquela noite a casa estava muito quieta e silenciosa. Excepto ele e Emily, estavam lá apenas os criados que havia muito se tinham retirado.

 

Simon recusara permitir que a família da mulher passasse mais uma noite que fosse debaixo do seu tecto. Dissera aos três Faringdon que teriam de encontrar outro alojamento, logo após a cerímónia do casamento. Simon não se preocupara muito com o local onde ficariam. Porém, tivera a impressão de que tinham partido os três para Londres e isso bastava-lhe. Quanto mais depressa voltassem às casas de jogo, mais depressa haviam de se desgraçar.

 

Simon chegou ao último degrau e viu luz sob a porta fechada da biblioteca. Atravessou rapidamente o vestíbulo de mármore, com um sorriso fugaz nos lábios. Apanhar uma esposa esquiva, não seria assim tão difícil.

 

Simon abriu a porta da biblioteca e entrou. Emily estava sentada atrás da enorme secretária, escrevendo furiosamente num livro. Levantou os olhos ao ouvir a porta abrir-se. Vestia o seu robe de chíntz e tinha o cabelo preso dentro de uma touca de folhos. Ao vê-lo, abriu muito os olhos por trás das lentes dos óculos.

 

- Simon.

 

- Boa noite, minha querida. Não achas que é um local muito estranho para passares a tua noite de núpcias? - Simon fechou a porta e dirigiu-se à lareira apagada. Ajoelhou para acender o lume que ali fora preparado. - Não é tão confortável como o teu quarto.

 

- Simon, que estás aqui a fazer? - Emily pôs-se de pé num salto. - Encontraste o meu recado?

- Oh, sim, encontrei o teu recado. - Simon tirando do bolso o papel amarrotado. Lançou-o às chamas que acabara de acender. Depois voltou a cabeça e sorriu a Emily por cima do ombro.

 

- Foi muito amável da tua parte, minha querida, teres em consideração as minhas delicadas sensibilidades acerca deste assunto. Emily corou e baixou os olhos para o tampo da secretária.

 

- Só não desejo sobrecarregar Vossa Senhoria com o peso excessivo das minhas paixões.

 

Simon encostou o braço à lareira, contemplando a mulher. Tinha uma noiva que se convencera estar a correr o risco de intimidar o marido com a sua paixão. Só Emily, para ter tais ideias na noite de núpcias.

 

- Deveria dizer-te, minha querida, que não considero as tuas paixões um peso. Estou desejando cumprir as minhas obrigações de marido.

 

- É muita bondade tua, mas parece-me óbvio que esta noite apenas estarias a cumprir o teu dever se fizesses amor comigo e não poderia suportá-lo.

 

- Percebo. E pensaste que não poderias explicar-mo pessoalmente? Tiveste de me deixar um recado escrito?

 

- Pensei que fosse mais fácil se simplesmente deixasse essa nota, informando-te não esperar nada de ti. - Apertou as mãos e baixou os olhos. - Entenda que me sinto pouco à vontade para falar de tais coisas pessoalmente, Senhoria.

 

- Certamente que entre nós não há esses problemas - disse delicadamente Simon. - Como já me fizeste notar, a nossa comunicação realiza-se em planos mais elevados. Tu e eu podemos discutir assuntos a que outros casais apenas podem aludir em termos muito vagos.

 

- Achas, Simon? - Ergueu os olhos para os dele.

 

Simon viu neles ansiedade e esperança, e sorriu de modo a esconder uma onda de calma complacência. A senhora estava prestes a cair-lhe na mão como um pêssego maduro.

 

- Sim, Emily. Tenho a certeza. - Dirigiu-se à mesa das bebidas e pegou na garrafa. - Pensei que também o soubesses. Afinal foste tu que me explicaste.

 

-   Bom, tinha esperanças que fosse verdade - disse candidamente Emily. - Mas depois de ter percebido exactamente as razões porque casaste comigo, não podia ter a certeza de que experimentavas a mesma sensação de comunhão pura e metafísica do que eu. Pelo menos, neste momento.

 

- Mas tinhas esperanças de que eu a experimentasse?

 

- Oh, sim, Simon. Tenho muitas esperanças que tal aconteça. Foi precisamente por isso que te convenci a casar comigo. Mas, entretanto, não quero que te sintas de qualquer modo obrigado a cumprir o teu dever de marido. Já foi mau ter-te coagido a entrar nesta sociedade.

Simon tossiu, quando um gole de brandy seguiu pelo caminho errado.

- Garanto-te que não me senti coagido a casar-me contigo, Emily. Raramente faço alguma coisa que não deseje.

 

- Acredito, Senhoria, mas neste caso tem de concordar que lhe apresentei argumentos bastante fortes para uma aliança entre nós. Não gostaria que me pesasse na consciência que eu também lhe exigia que, ainda por cima, cumprisse os seus deveres de marido, na cama. já me deu muito, apenas ao oferecer-me o seu nome. Seria injusto e incrivelmente ganancioso da minha Parte esperar mais de si.

 

- É muita bondade sua minha querida.

 

Simon olhou-a com solene respeito. Parecia-lhe tão tragicamente determinada a tomar um caminho nobre e a resistir à sua doce paixão. Entretanto, apenas o facto de a ver, excitava-o como nenhuma outra mulher o fizera em muitos anos. Fez o que pôde para controlar o impulso selvagem de empurrar Emily para o tapete e torná-la sua ali mesmo.

Percorria-o uma onda de violento desejo. Simon espantou-se, ao aperceber-se de que o seu inalterável autocontrole poderia correr sérios riscos. Nunca o perdera junto a uma mulher.

 

- Simon, passa-se alguma coisa?

 

Ele abanou a cabeça e poisou cuidadosamente o cálice meio de brandy. Maldição. Ali, quem mandava era ele. Fora ele que tomara a decisão do casamento, apesar do que Emily pudesse pensar. Fora ele que decidira aquele tipo de vingança. Uma vingança que deitaria abaixo uma família inteira. Meter Emily na cama, era apenas a fase seguinte do processo. Broderick Faringdon deveria estar naquele momento a ranger os dentes. Afinal era homem e pai. Compreenderia que na manhã seguinte, a sua filha pertenceria completamente ao inimigo, do mesmo modo que uma mulher pertencia a um homem. Estaria para sempre perdida para os Faringdon.

 

Mas primeiro, lembrou-se Simon, teria de insistir para que o elfo se rendesse à sua encantadora paixão.

 

- Não minha querida - disse com ar pensativo. - Reflectia simplesmente num facto que pareces ignorar.

 

- Qual é?

 

- Afirmas que somos capazes de uma rara forma metafísica de comunicação.

 

Acredito nisso do fundo do coração, Simon. De contrário, nunca teria insistido no casamento. juro.

 

Ele acenou afirmativamente.

 

-  E desejavas que esta comunicação única entre nós se aprofundasse e acentuasse, não é verdade?

 

-  Oh, claro que sim, Senhoria. - Os olhos brilhavam-lhe como pedras  preciosas. - Desejo-o do fundo do coração. É o meu último objectivo e estou preparada para trabalhar muito e conseguir realizá-lo.

- Um objectivo muito digno e asseguro-te que partilho contigo essa meta.

-  Simon, nem imaginas quão feliz me fazes, ao dizê-lo.

- Escuta. Pensei algum tempo acerca do problema. Parece-me que faria bem em considerar como método de, digamos, realçar a nossa invulgar relação metafísica, seria o mais rapidamente possível ao plano físico.

Emily olhou-o.

 

- Estendê-la ao plano físico, Senhoria?

 

- Precisamente. Parece lógico, não é verdade, que o físico e o metafísico devem estar intimamente ligados. Não concordas?

 

Emily franziu a testa, concentrando-se.

 

- Pensas que os acontecimentos a nível metafísico possam ser sombras daquilo que acontece no plano físico? É uma ideia fascinante. E tem Vossa Senhoria muita razão. Há uma certa lógica em tudo isso.

 

- Tendo em conta essa teoria, proponho que consideres os méritos de me permitir desempenhar esta noite os meus deveres de marido.

- Oh, mas, Simon, eu não poderia...

 

Ele ergueu a mão para a calar.

- Não por ti, mas por mim.

 

- Por ti? - Ela parecia estupefacta com a ideia.

 

- Precisamente. Se eu tiver razão, o resultado final apenas poderá servir os melhores interesses de ambos. Os nossos poderes de comunicação transcendental ficarão enormemente aumentados. Estou também desejoso de fortificar a nossa união metafísica, Emily.

 

Os belos olhos de Emily encheram-se com uma comovedora expressão de profundo desejo feminino. Tinha as mãos tão apertadas que os nós dos dedos estavam brancos. A boca suave estremecia-lhe.

 

- Simon, acreditas verdadeiramente que seria esse o resultado?

 

Simon percebeu que nunca na sua vida uma mulher o tinha olhado

 

com uma vontade tão franca. Todo o seu corpo lhe reagia com força violenta. O desejo corria-lhe nas veias como uma droga potente. Recordações da noite em que lhe tinha provocado o primeiro e trémulo clímax, ardiam-lhe no espírito. Ela era sua e em breve todo aquele calor feminino e paixão lhe pertenceriam irrevogavelmente.

 

- Sim, Emily, acredito que seja esse o resultado. - Simon apercebeu-se que estava a ficar com voz rouca e que as palavras eram mais profundas. - Garanto-te, minha querida, que não ponho quaisquer objecções a tal experiência. Vamos tentar e ver o que acontece?

 

- Oh, Simon! - Emily deu rapidamente a volta à secretária e atirou-se-lhe nos braços. - Vossa Senhoria é tão nobre e generoso. Nem posso acreditar na sorte que tive ao casar consigo.

 

Simon sorriu, encostando a boca aos caracóis ruivos que saíam da touca de renda branca. A ansiedade fazia-o latejar de desejo.

 

- Eu é que sou o felizardo, Emily.

 

- Não, não! Sou eu. Provavelmente não mereço um marido tão maravilhoso como tu, depois do modo como me arruinei há cinco anos, mas agora tenho-te e sinto-me muito grata. Deve ser o destino.

 

- Provavelmente. - Beijou-lhe a testa e retirou-lhe cuidadosamente a touca e os óculos. O cabelo dela caiu como fogo à volta dos ombros. Depois beijou-lhe as pálpebras. As pestanas adejaram levemente como pequenas borboletas.

 

- Simon? - Ela olhou-o, agarrando-se às bandas do seu roupão de brocado negro.

 

- Silêncio, meu amor. já conversámos muito esta noite. Chegou a altura de aprendermos a comunicar de outro modo. - A boca dele fechou-lhe os lábios entreabertos e ele ouviu o pequeno gemido que se lhe sufocava na garganta.

 

Simon gemeu baixinho’, enquanto fazia entrar a língua na boca de Emily. O desejo era tão forte dentro dele, que nem conseguia pensar com clareza. Apercebeu-se vagamente de que deveria pegar na mão da noiva e levá-la lá para cima, mas, por qualquer razão, o quarto parecia-lhe demasiado distante. Queria-a agora. Nunca quisera uma mulher com tanta intensidade. Sentia-se em fogo de desejo.

 

E ela desejava-o. Sentia-o. O doce desejo que Emily experimentava fazia-a estremecer nos braços de Simon. Esse estremecimento e o facto de ela se sentir cheia de desejo tornavam-no extremamente poderoso.

 

Desapertou-lhe o roupão, fazendo-lho deslizar dos ombros. Emily não recuou ao ver que a roupa lhe caía aos pés. Simon olhou para baixo e viu os pequenos círculos dos seus mamilos escuros e erectos, empurrando a musselina fina da camisa de noite.

 

- Tu queres-me - murmurou ele contra o pescoço dela.

 

- Mais do que tudo neste mundo. Amo-te, Simon. - Lançou-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-lhe timidamente o queixo. - Vou ser para ti uma boa esposa, juro.

 

- Vais, sim, elfo. Tenho a certeza de que vais.

 

Ele fê-la deslizar para o tapete diante da lareira. Ela deixou-se ir, agarrando-se a ele e enterrando-lhe o seu rosto corado no roupão. Simon conseguia ouvir a sua respiração entrecortada enquanto ela estremecia de novo.

 

- Tens frio? - perguntou estendendo-se a seu lado.

 

- Não! - Ela levantou os olhos, velando-os imediatamente com as pestanas. - Não. O lume está bastante quente. Não tenho frio, mas seja lá porque for, sinto-me um pouco nervosa.

 

Ele sorriu, fazendo subir a mão por baixo da camisa de dormir. Depois curvou a cabeça e beijou-lhe a base do pescoço.

 

É uma reacção bastante compreensiva, dadas as circunstâncias. Achas que sim? - O olhar dela era ansioso.

 

É que não estás habituada a este tipo de comunicação no plano físico.

 

- E tu estás?

 

Simon ficou sobressaltado com a pergunta e mais ainda com a resposta.

 

- Não - ouviu-se dizer em voz pastosa. Nunca antes na sua vida sentira um desejo tão violento e incontrolável. - Não, minha querida, isto é novo para mim.

 

Ela respondeu-lhe com um sorriso trémulo.

 

- Então vamos explorar juntos este estranho domínio, viajantes numa misteriosa jornada.

 

- Claro que sim - acedeu ele.

 

Os seus dedos estremeceram levemente ao desfazer-lhe os laços da camisa de dormir, afastando-lha do corpo. Respirou fundo, apoiou-se num cotovelo e olhou para o tesouro que acabava de descobrir. Estava espantado pela curva graciosamente feminina dos seus seios pequenos, fascinado pela forma sensual das suas ancas, hipnotizado pelo esbelto contorno das suas pernas.

 

- Emily, és linda. - Estendeu a mão para delinear o círculo rosado que lhe coroava o seio de cor creme. Pegou depois no mamilo entre o polegar e o indicador, rolando-o delicadamente. Parecia maduro e cheio, como um fruto luxuriante, prestes a rebentar. Incapaz de resistir, Simon curvou a cabeça e capturou o pequeno fruto entre os dentes.

 

Emily ofegante, arqueando-se de encontro à boca dele. Meteu-lhe violentamente os dedos por entre o cabelo.

 

- Simon!

 

Ele teve consciência da tensão que cantava dentro dela e gozou-a. O seu corpo clamava numa reacção frenética. A mão desceu-lhe das ancas, procurando os apertados caracóis vermelhos entre as pernas. Quando encontrou o mel quente e fluido, pensou enlouquecer. Consumia-o agora um violento desejo. Sentia todo o corpo em fogo.

 

- Simon, sinto-me tão estranha.

 

Ofuscado, ele ergueu a cabeça e viu-lhe no rosto uma lânguida sensualidade. Pegando-lhe na mão, guiou-lha para dentro do roupão.

- Eu sei, amor. Eu também. Toca-me, Emily. - Despiu o roupão. -

 

Toca-me. - Empurrou-lhe a mão com firmeza para junto da sua virilidade entumecida.

 

Os olhos de Emily abriram-se muito, de espanto e surpresa.

- Simon, estás bem?

 

- Não, mas tu vais curar-me. - Beijou-lhe os lábios, para a descansar, sem lhe permitir afastar-se. - É tão bom minha querida. Ah, sim fecha a mão à volta. Segura-me. - Movia-se lentamente entre os dedos dela, torturando-se, até se sentir em fogo.

 

Quando ela deixou de tentar afastar os dedos e pareceu antes espantada pela resposta do seu corpo, Simon deixou-lhe a mão. Depois tocou-lhe a pele sedosa das coxas, formando um padrão ao acaso, que terminava nas espessas pétalas que lhe guardavam os segredos. Lentamente meteu um dedo dentro da abertura pequena e apertada. Ao mesmo tempo encontrou com o polegar um bocadinho de pele feminina e sensível.

 

Emily gritou e a mão apertou-se convulsivamente à volta do seu membro. Simon susteve a respiração e o seu autodomínio estalou, quebrando-se sem mais delongas. Foi nessa altura que se apercebeu de que não poderia esperar nem mais um minuto. O efeito dela sobre si era demasiado forte. Não se iria humilhar atingindo o clímax entre os seus dedos, espalhando a sua semente sobre o ventre dela.

 

- Emily, já é altura. Valha-me Deus. não posso esperar. - Passou para cima dela, abrindo-lhe as pernas com a mão. Guiou o seu membro para a sua fenda, pequena e húmida.

 

- Simon?

 

- Confias em mim, pequenina?

 

- Claro que sim, Simon. Completamente. - Olhou-o através das pestanas e os braços dela cruzavam-se-lhe nas costas.

 

- Juro proteger-te sempre, Emily. Lembra-te disso. Aconteça o que acontecer, podes ter a certeza de que sempre cuidarei de ti.

 

- Sim, Simon.

 

Simon olhou-a durante alguns segundos, pensando que nunca vira nada de tão maravilhoso, como Emily à beira da paixão. A ponta da língua percorria-lhe o lábio inferior. Tinha as faces adoravelmente coradas. O corpo dela era firme, flexível e espantosamente erótico. Recordou-se de que deveria ter cuidado com ela. Era virgem e não queria magoá-la.

 

Mas a necessidade de entrar no calor de Emily, ultrapassou-lhe os sentidos. Abríu-a com os dedos, levemente antes de a penetrar. Depois teve de se esforçar para controlar as exigências do seu corpo. O suor brilhava-lhe na testa e humedecia-lhe o peito.

 

- Simon? - Emily parecia confusa. No corpo dela havia agora uma tensão diferente, proveniente mais do receio do que da ansiedade sensual.

- A primeira vez pode não ser muito fácil para ti - conseguiu ele dizer. - És tão pequena e apertada.

 

- Não sei se gosto muito desta parte, Simon. Ele gemeu.

 

- Tenta descontrair-te. Confia em mim, pequenina. Agarra-te a mim e entrega-te.

 

- Acreditas mesmo que isto vai realçar a nossa comunicação num plano mais elevado? - perguntou ela, com um toque de desespero na voz.

- Sim, meu Deus. Sim. - Não iria conter-se mais. Invadiu-a com

 

um movimento impetuoso e impulsivo. Simultaneamente apertou-a contra si, cobrindo-lhe a boca, bebendo o pequeno gemido de espanto saído dos seus lábios. Sentiu as unhas dela nas suas costas.

 

- Com mil raios, Simon! - Os olhos de Emily estavam fechados com toda a força. Respirava rapidamente e todo o seu corpo tremia. Simon esforçou-se por ficar imóvel um momento, respirando enormes golfadas de ar, enquanto esperava que Emily se ajustasse à intrusão. Ela não se moveu. Evidentemente tinha medo de o fazer,

 

- Emily, Emily, meu amor, olha para mim - implorou Simon. Estava no extremo do seu autodomínio. - Magoei-te?

 

As pestanas dela estremeceram e ergueram-se. Todos os traços de sensualidade tinham desaparecido dos seus preciosos olhos, substituídos por um olhar corajoso e determinado.

 

- Terminou?

 

Simon. praguejou baixinho. Era tão pequena, esguia e macia. Sentiu-se grande, pesado e desajeitado, sem conseguir deixar de estremecer sempre que se tentava controlar.

 

- Não - murmurou. - Ainda não acabou.

 

- Bom... - passou a língua pelos lábios - É pena.

 

- Que diabo, Emily. Não fiz bem as coisas, Desculpa. Deveria ter sido mais lento.

 

- Com certeza teria ajudado - concordou, ofegante. - Mas não deves censurar-te, querido Simon. - Acariciou-lhe as -costas para experimentar. - Este tipo de comunicação parece que necessita de um pouco de prática.

 

Simon sufocou uma exclamação que tanto poderia ser uma gargalhada como um gemido. Não tinha a certeza. Os seus sentidos estavam tão tensos como uma manada de cavalos com as rédeas apertadas.

 

- Sim, prática - disse Simon. - Tu e eu vamos praticar bastante.

- Cauteloso tentando utilizar toda a força de vontade que ainda possuía, começou a mover-se dentro dela. Saiu quase completamente da sua apertada passagem, para voltar a entrar lentamente.

 

Simon sentia Emily estremecer, hesitante, debaixo dele, tentando acomodar-se à estranha sensação de ter um homem dentro de si. Aquele pequeno e delicioso movimento era demasiado. Fê-lo descontrolar-se.

 

- Emily, não amor. Não te mexas...

 

Demasiado tarde. Com um grito rouco e abafado, forçou a entrada nela, esmagando-a contra o tapete, segurando-a como se nunca mais a quisesse largar. O calor das chamas que dançavam na lareira parecia combinar-se com o da própria Emily. Simon rendeu-se a um poderoso clímax, perdendo-se, COMO nunca, no corpo de uma mulher.

 

Durante um infindável momento, pairou por cima de Emily e depois, com um gemido em surdina, caiu sobre ela. Aí ficou durante muito tempo, o corpo molhado da transpiração, com todos os músculos descontraídos. Estava vagamente consciente de nunca se ter sentido tão repleto e satisfeito em toda a sua vida. Lentamente, retomou a respiração e abriu os olhos.

 

Emily sorria-lhe, hesitante, com o olhar cheio de curiosidade e espanto inquiridor.

 

- Então? - perguntou quando o viu abrir os olhos. Simon fitou-a sentindo-se extremamente aturdido.

- Então, o quê?

 

- Achas que funcionou?

 

Simon apercebeu-se de que perdera o fio à conversa. Tentou concentrar-se.

 

- Funcionou o quê?

 

- A nossa experiência de realçar a comunicação metafísica. Achas que estás agora mais perto de mim, no plano transcendental, Simon?

- Valha-me Deus! - Pestanejou e rolou para o lado dela, abraçando-a contra o seu corpo nu. Por alguns segundos olhou para o tecto alto, tentando aclarar as ideias.

 

- Simon? - Ela tocou-lhe timidamente nos pêlos do peito.

 

- Pelo fogo do Inferno, claro que sim! - exclamou, pensando que a comunicação metafísica era a última coisa que lhe apetecia contemplar naquele momento.

 

- Ainda bem - disse ela simplesmente, encostando-lhe a cabeça no ombro.

 

Simon olhou para os caracóis vermelhos que cintilavam com a luz reflectida do lume. Como cobre polido, pensou. Depois, a realidade invadiu-o com toda a sua força.

 

- Esta é a nossa noite de núpcias.

- Sim.

 

- A nossa noite de núpcias e eu deitei-te aqui no chão da biblioteca. Da biblioteca, por amor de Deus.

 

- Prefiro pensar que fizeste amor comigo no chão da biblioteca disse Emily, com um enorme bocejo.

 

- Devo ter perdido o juízo. - Simon sentou-se subitamente, passando os dedos pelos cabelos. - Devíamos estar lá em cima, na tua cama. Ou na minha.

 

- Não te preocupes, Simon. não me preocupa particularmente onde passámos a noite de núpcias. - Emily sorria, sonolenta. Se quiseres, posso deixar os pormenores de fora, quando escrever o diário.

 

- Valha-me Deus! Por favor, deixa os pormenores fora desse maldito diário. - Pôs-se de pé e vestiu apressadamente o roupão. A seguir estendeu o braço, ajudou Emily a levantar-se e enfiou-lhe a camisa de dormir de musselina pela cabeça. Viu que estava manchada com os resultados de terem feito amor e da prova da sua virgindade, apercebendo-se de que Emily deveria ter estado deitada em cima dela quando a tinha tomado. Abrigou-a rapidamente no robe de chintz. Sentiu-se invadido por um vago remorso.

 

- Emily, estás bem? Ela enrugou o nariz.

 

- Sinto-me pegajosa. E um pouco magoada. Mas, de contrário, estou bem. E tu? Sentes-te bem, Simon?

 

- Sim, sinto-me muito bem - resmungou ele. Pegou-lhe ao colo e levou-a até à porta.

 

Mas ele não estava bem. Sentia-se muito estranho e não gostava da sensação. Tinha perdido por completo o auttocontrole com aquela mulher. Aquilo nunca antes lhe acontecera. Deveria ter ficado no comando

 

da situação desde o princípio. Deveria ter tratado do assunto de um modo mais refinado. Mas, pelo contrário deixara-se levar por um turbilhão de paixão que lhe retirara o domínio.

 

Simon reconhecera tristemente que o elfo ruivo com quem casara tomara o comando naquela noite, quer o soubesse quer não. Fizera-o andar numa roda-viva, desde o momento em que encontrara a nota sobre a almofada. Simon gostaria de saber se ela tinha a noção do poder que possuíra naquela noite. As mulheres nunca são lentas a entender a sua própria força, e uma Faringdon seria mais rápida ainda, para daí tirar vantagem.

 

Mas ela já não era uma Faringdon, recordou-se Simon. Agora pertencia-lhe.

 

- Simon. - Emily espreitava hesitante, enquanto ele a levava para a escada. - Estás zangado?

 

- Não, Emily - disse-lhe enquanto começava a subir as escadas atapetadas de vermelho. - Não estou zangado.

 

- Tens uma expressão muito estranha no rosto - disse ela, sorrindo serenamente. - Espero que sejam os efeitos secundários dos nossos esforços para comunicarmos simultaneamente no plano físico e metafísico. Fatigante, não é verdade?

 

- Muito fatigante - disse Simon.

 

Capitulo 8

EMILY APRESSOU-SE ANSIOSAMENTE A DESCER para o pequeno-almoço, apenas para se aperceber que o seu novo vestido matinal tinha sido inútil. Simon não estava à sua espera para a cumprimentar pelo folho plissado da gola, ou pelo bordado da saia em que a costureira da aldeia trabalhara diligentemente. Informaram-na de que ele saíra a cavalo, de manhã cedo.

 

Desiludida, Emily sentou-se e, mal-humorada, deixou que o criado lhe servisse o café. Na noite anterior, quando Simon a levara para a cama, dirigindo-se depois para o seu quarto, ficara profundamente desapontada. Mas dissera a si própria que era assim que as coisas se passavam no mundo elegante. Toda a gente sabia que os casais poucas vezes dormiam juntos toda a noite. Os casamentos de conveniência revelavam relações nas quais as pessoas exigiam grande privacidade.

 

Mas, embora soubesse que era culpada de ter coagido Simon a um casamento de conveniência, pelo menos pela parte dele, Emily tivera a certeza de que a sua relação com ele seria completamente diferente. Principalmente depois do que acontecera na noite anterior.

 

Emily sentiu-se invadida por um pequeno arrepio sentimental, enquanto as recordações voltavam. Corou então, pensando em como se sentira nua diante do lume, nos braços de Simon. Os seus nervos latejavam, ao lembrar-se do estranho brilho hipnotizador nos olhos doirados do marido, quando a esmagara no tapete. Fora assustador, porém extremamente excitante aperceber-se de que ele a tinha penetrado, que fizera de facto parte dela.

 

A experiência era totalmente diferente de tudo aquilo que tinha imaginado. Os seus sentidos tinham literalmente cambaleado diante do ataque. Era verdade que não experimentara a emocionante sensação de liberdade que Simon lhe oferecera da primeira vez que a acariciara intimamente, mas o que acontecera na noite anterior era muito mais profundo. Durante algum tempo tinham-se unido num só ser.

 

Simon tivera toda a razão, reflectia Emily, enquanto sorvia o café. Uma união tão física levava ao enaltecimento da sua união no plano transcendente. Era inconcebível que uma coisa tão surpreendente, poderosa e avassaladora, afectasse os acontecimentos do mundo metafísico, Teria de haver ligação entre os dois domínios.

 

Confiava em Simon para a entender e para insistir nobremente no cumprimento dos seus deveres conjugais, em nome da experiência metafísica. Era óbvio que estava determinado a fazer funcionar o casamento. Emily sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por amá-la tão profundamente como ela o amava.

 

Era inevitável, principalmente agora, que a sua comunicação estava a ser enaltecida tanto no plano físico, como metafísico.

 

Ainda que habituada a tomar o pequeno-almoço sozinha, naquele dia o silêncio da salinha parecia inesperadamente lúgubre. Não lhe apetecia ficar por ali, sem fazer nada. Estava tristemente a pensar que teria sido simpático se Simon a tivesse convidado para ir com ele andar a cavalo, quando Duckett entrou na sala. Tinha no rosto frio uma expressão grave de desagrado.

 

- Perdão, minha senhora - disse Duckett com ar austero -, mas o senhor seu pai mandou um rapaz à cozinha com um recado. Parece que requisita a sua presença no jardim sul.

 

Emily ergueu os olhos, espantada.

 

- O meu pai? Mas depois do casamento partiu directamente para Londres com Deviin e Charles.

 

Duckett parecia mais sinistro que nunca, se tal coisa fosse possível.

- Parece que não, minha senhora. Receio que já se encontre no jardim.

 

- Que estranho. Porque não veio ele cá a casa? Duckett aclarou a garganta e disse com leve satisfação:

 

- Creio que Sua Senhoria, o conde, proibiu o senhor seu pai de entrar cá em casa sem a sua expressa autorização, minha senhora. Creio que essa combinação foi feita ontem, depois da cerimónia,

 

Emily abriu muito os olhos, de espanto. Sabia que não havia grande entendimento entre o pai e o marido. Mas os dois homens tinham feito um acordo no dia em que ela estivera à escuta na biblioteca, enquanto os dois decidiam o seu futuro. Simon dera a entender que se o pai de Emily cumprisse as suas exigências, Broderick Faringdon poderia continuar a comunicar com Emily. Tinha a certeza de que fora isso o acordado.

- Deve haver algum mal-entendido - disse Emily ao mordomo. Duckett preferiu ignorar aquele facto indiscutível.

- Quanto a isso, nada posso dizer, minha senhora. Deseja que, alguém vá dizer a Mr. Faringdon que a senhora não está disponível?

- Valha-me Deus, Duckett, claro que não! - Emily pôs-se de pé

num salto. -- Como vê, estou perfeitamente disponível. De facto, fico mesmo muito contente por saber que o meu pai está aqui perto. Ontem não tive oportunidade de me despedir, devidamente, dele nem dos meus irmãos. Estava tão ocupada. Nem sequer reparei que a minha família tinha partido para Londres, até Blade mo ter dito. Nessa altura era já tarde de mais.

- Sim, minha senhora. - Duckett inclinou a cabeça. - Vou mandar Lizzie lá acima buscar-lhe um agasalho. Hoje está muito frio lá fora.

 

- Não vale a pena, Duckett. - Emily olhou lá para fora, para o belo sol de Abril, que entrava pela janela da sala. - Não vou precisar. O dia vai estar muito bonito.

- Como a senhora desejar. - Duckett aclarou a voz. - Eu sei que não é da minha conta dizer alguma coisa sobre o assunto, minha senhora, mas...

- Sim, Duckett? O que é?

- Estava a pensar se a senhora considera apropriado... Enfim.... encontrar-se com Mr. Faringdon no jardim sul.

Emily riu-se.

 

- Valha-me Deus, Duckett, vou encontrar-me com o meu pai, não com um amante ou com um assassino.

 

- Claro, minha senhora. - A expressão de Duckett implicava que ele punha em causa aquela afirmação. - Ocorreu-me simplesmente, que talvez Sua Senhoria possa ter certas ideias acerca da oportunidade da situação.

 

- Ora, por amor de Deus, Duckett. Não faz sentido. Estamos a falar do meu pai. - Emily saiu de trás da mesa. Sorriu para tranquilizar Duckett enquanto passava por ele em direcção à porta.

 

- Não se preocupe com o que Blade possa dizer em relação ao assunto. Ele e eu partilhamos uma forma especial de comunicação, sabe. Entendemo-nos muito bem.

 

- Compreendo - Duckett parecia pouco convencido.

 

Emily não deu mais atenção às evidentes dúvidas do mordomo, Duckett não tinha maneira de saber o que tinha transpirado entre ela e Simon, na noite anterior. Portanto, não poderia começar a compreender a natureza da relação metafísica enormemente enaltecida que Emily partilhava agora com o marido.

 

Emily decidira esclarecer de uma vez por todas a confusão. Certamente Simon nunca teria impedido o pai de a visitar após o casamento. Não haveria necessidade. A ameaça tinha sido um mero instrumento de negociação que Simon empregara esforçando-se por conseguir justiça.

 

De facto, o dia ia ser solarengo, mas o ar estava realmente frio, Toda a sua vida Emily vivera no campo e conhecia os sinais. Aproximava-se uma tempestade. Naquela noite choveria.

 

Com satisfação, olhou à volta do jardim sul, enquanto se aproximava do seu extremo. As margaridas e as primeiras rosas começavam a florir numa vistosa profusão e o ar estava cheio do forte perfume das flores. Uma pequena fonte ornamentada, encimada por um querubim com um regador, formava o centro do jardim. Por trás havia uma sebe alta.

 

Broderick Faringdon esperava-a por trás dessa sebe. Apareceu com uma expressão furtiva, lançando rápidos olhares à direita e à esquerda.

- Meu pai! - Emily sorriu ao seu belo pai, aproximando-se rapidamente. - Estou contente por ter vindo despedir-se. Lamento não ter conseguido ontem dizer-lhe adeus a si e aos gêmeos. Passava-se tanta coisa e havia tanta gente à minha volta. Foi um casamento muito bonito, não acha? Estavam todas as pessoas da vizinhança e pareciam todas felizes por mim.

 

- Oh, Blade manteve-te muito ocupada, não é verdade? - concordou Broderick aborrecido. - Praticamente pôs-te a flutuar, foi o que foi. Dançaste e bebeste, recebeste as tuas visitas, de tal modo que nem reparaste quando ele afastou de ti a tua família. E aqui estou eu, obrigado a rastejar como um ladrão durante a noite, só para me despedir da minha única filha.

 

Emily inclinou a cabeça para o lado.

 

- Afastou a minha família? Mas que diabo está a dizer, meu pai? Broderick abanou a cabeça com um ar de amarga tristeza.

 

- Minha pobre filha, tão inocente. Ainda não tens ideia daquilo em que te meteste, pois não?

 

- Por favor, meu pai, não se preocupe comigo. Sei o que estou a fazer e sinto-me muito satisfeita com o meu casamento.

 

Broderick lançou-lhe um olhar perspicaz.

 

- Ah, estás? Gostaria de saber por quanto tempo assim será. De qualquer modo suponho que o mal esteja feito. Blade não havia de perder uma oportunidade.

 

- Que mal? Meu pai, gostaria que se explicasse.

 

Broderick observou-a de modo especulativo, com uma centelha no seu olhar.

 

- Creio não haver qualquer possibilidade de Blade te ter deixado sozinha ontem à noite, pois não? Não há razões para uma anulação? O rosto de Emily ficou em fogo.

 

- Por amor de Deus, meu pai. Mas que coisa para se dizer.

 

- Pronto, pronto, não é altura para te pores com ofensas de donzela. Trata-se de negócios. - Broderick parecia ainda mais esperançoso.

- Diz-me a verdade, menina. Ainda estás intacta? Porque se o estás, não é tarde. Podemos tratar de voltar tudo isto do avesso.

 

- Com franqueza, meu pai. - O embaraço de Emily transformou-se em irritação. Endireitou-se orgulhosa.

 

- Não vou pedir qualquer anulação. Sou uma mulher casada e muito feliz.

 

- Raios. Então não há qualquer esperança.

 

- Não há esperança para quê? O que está a tentar dizer-me? Broderick suspirou dramaticamente.

 

- É o fim, minha amada filha. Despede-te do teu querido pai, pois nunca mais o verás.

 

- Não seja ridículo. Claro que nos voltaremos a ver. Simon e eu iremos para Londres depois da lua-de-mel. Terei ampla oportunidade de o visitar a si e aos gêmeos. Decerto que o verei mais ainda do que aqui, em St. Clair hall. Afinal, apenas me vinham visitar quando tinham uma época de azar nas mesas de jogo.

 

- Não, Emily, ainda não reparaste no monstro com quem casaste. Blade está disposto a que nada mais tenhas a ver com a tua família.

- Foi um mal-entendido, meu pai - disse Emily, rapidamente.

 

- É verdade que ele insistiu que lhe entregassem St. Clair Hall e usou a ameaça de me afastar de si para reforçar a sua exigência. Mas conseguiu o seu objectivo. Fez-se justiça.

 

Broderick sentou-se mal-humorado, na borda da fonte.

 

- Não o conheces, Emily. Recuperar a casa foi apenas um princípio. Não descansará enquanto não tiver destruído todos os Faríngdon.

- Meu pai, o senhor está preocupado com. as suas finanças - disse Emily, lentamente. - Não precisa de estar. Tenho a certeza que Blade estará já satisfeito com a sua vingança. Pode não aprovar que eu cubra as suas excessivas extravagâncias, mas certamente não porá objecções em que eu continue a tratar dos seus negócios.

 

- Ah, meu cordeiro inocente. Simplesmente não compreendes a natureza da besta que te convenceu a casar. Também eu tive esperanças de que ele nos deixasse continuar como antes. Foi a única razão pela qual concordei com a sua oferta. Mas ontem, depois de te ter bem presa, disse-me que não tencionava deixar-te tratar mais dos negócios dos Faringdon.

 

Emily franziu a testa.

 

- Não ouvi dizer nada a respeito de tal decisão. Não creio que tenha entendido bem, meu pai. Como lhe disse, poderá sem dúvida fazer-me algumas restrições, no que respeita aos seus excessos financeiros, mas certamente não o vai impedir totalmente.

 

- Que menina tola e ingénua és, minha querida filha. - Broderick abanou a cabeça, e depois ergueu-se e abriu os braços. - Pode ser a última vez que esteja a ver o teu doce rosto. Vem dar um beijo de despedida ao teu pai. Lembra-te de mim e dos teus irmãos com bondade, Emily. Gostamos muito de ti.

 

Emily começou a ficar assustada.

 

- Meu pai, gostaria que deixasse de dizer tais absurdos.

 

- Adeus, minha querida. Desejo-te felicidades, mas receio que estejas condenada como o resto da família.

 

- Percebeu tudo mal, meu pai. - Emily afastou-se, pouco à vontade do abraço do pai. - Nunca concordaria em ser separada para sempre da minha família. Sabe-o bem. Simon nunca insistiria em tal coisa.

 

Broderick abraçou-a com força, como se verdadeiramente pensasse não a voltar a ver. Depois libertou-a, para a fitar com os olhos semicerrados.

 

- Emily, se realmente não nos queres abandonar...

 

- Claro que não vos abandonarei - garantiu-lhe impulsivamente. - Adoro-o a si e aos gêmeos, meu pai. Sabe muito bem.

 

- Se o dizes, se tencionas continuar a cumprir o teu dever para connosco, teremos de combinar as coisas práticas - disse imediatamente Broderick. - Temos de arranjar maneira para que continues a gerir os nossos negócios e a enviar instruções a Davenport. Olha, tenho pensado no assunto e creio que o modo mais fácil de tratar do problema é combinarmos encontros secretos com alguma regularidade.

 

- Encontros secretos?

 

- Precisamente. Ouve bem. Ou eu ou um dos gémeos arranjaremos maneira de te contactar duas vezes por mês. Podes enviar instruções para Davenport nessas ocasiões. Teremos de ser extremamente discretos, claro, mas creio que isso se poderá arranjar, principalmente quando estiveres na cidade. Há muito mais oportunidades lá, com parques, teatros e jardins.

 

- Mas, meu pai...

 

- Não te aborreças, Emily. Vai correr tudo bem - disse Broderick alegremente. - Blade em breve perderá o interesse por ti. já fez o necessário e não és exactamente o seu tipo, pois não? Apenas te vê como um meio para conseguir o seu fim.

 

- Que fim? - Indagou ela.

 

- Ora, destruir completamente os Faringdon, claro! Mas nós trataremos dele. Em breve te encontrarás muitas vezes sozinha, o que servirá perfeitamente os nossos planos, não é? As coisas serão exactamente como eram, antes de ele ter aparecido.

 

Emily abriu a boca para dizer ao pai que a sua relação com Simon era muito mais feliz e transcendente do que ele aparentemente imaginava. Mas, antes que o pudesse explicar, foi interrompida pelo próprio Blade.

 

Ela olhou-o, espantada ao vê-lo aparecer como que por acaso por trás da sebe. Depois alegrou-se.

 

- Excelente! Vossa Senhoria voltou. Talvez agora possamos esclarecer este mal-entendido.

 

Simon ignorou-a, fitando o sogro com olhos frios.

 

- Tinha um palpite de que haveria de aparecer, mais cedo ou mais tarde, Faringdon. Veio despedir-se amorosamente da sua filha?

 

O conde parecia enorme e assustador, no seu fato de montar. Tinha os ombros largos e fortes por baixo do casaco justo e os calções acentuavam a esguia masculinidade do seu corpo. Batia distraidamente com o chicote na parte superior das botas negras e brilhantes, enquanto olhava desdenhosamente o pai de Emily.

 

Broderick Faringdon voltou-se, assustado, primeiro com uma expressão sobressaltada e depois zangado.

 

- Escute bem, Blade. Um homem tem o direito de dizer adeus à sua única filha. Na realidade ontem não me quis dar tal oportunidade. Simon sorriu vagamente.

 

- Não o queria por aqui mais tempo do que o absolutamente necessário. Mas hoje, as minhas fontes informaram-me que passou a noite numa estalagem aqui perto e não na estrada para a cidade. Não fiquei particularmente surpreendido quando, há alguns minutos, o meu novo mordomo me disse que Emily recebera um recado seu para ir ao jardim sul. Mas creio que não posso permitir que mantenha este tipo de encontros clandestinos, Faringdon.

 

Emily riu, aliviada.

 

- Era exactamente isso que eu lhe estava a dizer, Simon. Sabia que não o irias impedir de entrar cá em casa. Não há necessidade destas combinações, quando me pode muito bem visitar na sala. Mas o meu pai parece ter a impressão de que não queres que eu o volte a ver. Olharam ambos para ela, tão espantados como se tivesse sido o querubim da fonte a falar.

 

Simon olhou-a friamente.

 

- Provavelmente não será possível evitar sempre a presença do teu pai, principalmente quando estivermos na cidade. Mas em circunstância alguma deverás encontrar-te com ele ou com os gémeos a sós. Nas raras ocasiões em que formos obrigados a estar com a tua família, Emily, sempre. Compreendes?

 

- Mas, Simon... - Ela olhava-o, surpreendida pelo implacável tom da sua voz. - Estás a ir longe de mais. Não há qualquer mal em eu visitar a minha família.

 

- Tens toda a razão - disse imediatamente Broderick, recitando para enfrentar o conde. - Que diabo, homem, somos a família dela.

- Agora já não. Emily tem uma nova família - respondeu Simon.

 

-- E pode ficar certo de que, como seu marido, tomarei conta dela e protegê-la-ei daqueles que dela se quiserem aproveitar.

 

- Com mil raios, Blade - explodiu Faringdon. - Não pode manter a rapariga prisioneira.

 

- Não? - Simon bateu de novo com o chicote na bota. Parecia quase divertido.

 

Emily não gostou da atmosfera entre os dois homens. Assustava-a. Colocou a mão na manga do casaco do pai.

 

- Meu pai, por favor, não discuta hoje com Simon. Estamos em lua-de-mel. Estou certa de que tudo se arranjará, Talvez fosse melhor se partisse hoje para Londres.

 

- Uma excelente ideia, Faringdon. - Simon apoiou a bota na beira da fonte e passou o chicote por entre os dedos. Conseguiu imbuir de ameaçadoras implicações aquele pequeno gesto casual. - É melhor que parta. As mesas de jogo de Londres estão à sua espera, não é verdade? Será divertido ver quanto tempo se conservará membro dos clubes de St. James.

 

- Maldito! - Broderick parecia tenso. - Está a ameaçar mandar expulsar-me dos clubes?

 

- De modo nenhum! - Simon sacudiu um grão de poeira dos calções de montar. - Poderia fazê-lo, claro. Mas não há necessidade de tomar medidas extremas. Em breve o expulsarão, bem como aos seus filhos, quando não conseguir pagar as suas dívidas de honra. E quando a sua sorte falhar nos clubes respeitáveis, será forçado a ir para as casas de jogo ilegais, onde a sorte lhe fugirá ainda mais depressa, não é verdade?

 

- Por Deus, homem! - Faringdon respirou fundo, empalidecendo. Emily estava então verdadeiramente horrorizada. Apercebera-se finalmente de que o antagonismo entre Simon e o pai era muito mais profundo do que ela inicialmente pensara.

 

- Simon? - murmurou, hesitante.

 

- Volta para casa, Emily. Depois falo contigo.

- Simon, preferia falar agora.

 

- Faz isso, Emily. - Broderick enfiou o chapéu de pêlo de castor com toda a força na cabeça, tendo os olhos azuis brilhantes de raiva e frustração. - Entende-te com esse monstro com quem casaste, se puderes. Mas não contes fazê-lo ceder em relação à tua família. Detesta-nos a todos, até aos gêmeos, que nunca lhe fizeram mal. E se assim é, deve também desprezar-te. Afinal, és apenas mais uma Faringdon.

 

- Meu pai, não está a entender.

 

- Mais uma Faringdon - repetiu violentamente Broderick. Pensa bem, Emily, quando ele vier ter contigo a meio da noite e exigir os seus direitos conjugais. Pensa-o enquanto estiveres deitada e ele te fornicar como se fosse um garanhão a cobrir uma égua.

 

Emily ficou verdadeiramente sufocada com o choque. Levou a mão à boca, com os olhos muito abertos por trás das lentes. Nunca nenhum homem falara assim na sua presença, nem sequer os gêmeos, quando a queriam aborrecer.

 

- Saia daqui, Faringdon - disse Simon, com uma voz perigosamente calma. Retirou o pé da beira da fonte. - já!

 

- Desejo-te felicidades no teu leito conjugal, minha querida filha - disse Broderick sarcástico. Deu meia volta e partiu.

 

Emily queria chamar o pai, mas parecia ter perdido a voz. Ficou ali, olhando silenciosamente para ele e, passados momentos, Simon mexeu-se. Ficou mesmo em frente dela, evitando que visse as costas do pai, que se afastava. Tinha os olhos assustadoramente insensíveis.

 

- Oh, Simon, ele não compreende - disse Emily em voz baixa.

- Eu não teria tanta certeza. - Simon deu-lhe o braço e conduziu-a de volta para casa. - Creio que está finalmente a entender tudo muito bem.

 

- Mas ele não percebe que a nossa relação é completamente diferente daquilo que ele pensa. - Lançou um olhar suplicante ao perfil impassível do marido. Pedia-lhe silenciosamente que concordasse com ela. - Está preocupado comigo, porque não conhece a nossa forma especial de união. Não estudou os assuntos metafísicos.

 

- Isso acredito. A única coisa que o teu pai estudou foi uma mão de cartas. Emily, creio que devo tornar muito claro que aquilo que disse há minutos atrás é muito sério. Não quero que fiques uma única vez sozinha com o teu pai ou com os teus irmãos. Quero estar contigo, sempre que os vejas e essas ocasiões serão o menos numerosas possível. Nem deverás enviar mais instruções a Davenport acerca de assuntos financeiros.

 

- Simon, sei que te queres vingar do meu pai, mas decerto estarás satisfeito por ter recuperado St. Clair hall. Sei que o ameaçaste de que não o deixarias ter acesso à minha pessoa, mas certamente não vais concretizar essa ameaça. Logo agora, que conseguiste a mansão.

 

- O que te leva a pensar que eu ficaria satisfeito com o facto de ter recuperado a casa? O teu pai vendeu todas as terras da minha família. Nada poderá substituir as propriedades perdidas. E nada me pode compensar por o meu pai ter metido uma bala nos miolos, devido àquilo que o teu pai lhe fez. Nada me pode compensar do facto de a minha mãe ter começado a declinar, tendo por fim falecido, devido às acções do teu pai. Nada me pode compensar pelo facto de o teu pai ter destruído a minha família.

 

Emily estava estupefacta com a profundidade da raiva e da amargura na voz de Simon. Nunca antes revelara uma emoção tão intensa. Pela primeira vez começou a entender que os sentimentos de Simon em relação à sua família iam para além de uma simples exigência de justiça.

 

- Compreendo e lamento-o profundamente - disse de imediato Emily. - Deves sabê-lo. Mas tudo isso aconteceu há muitos anos. Diz respeito aos nossos pais, não a nós. Foi obra de uma geração anterior à nossa. Agora, que conseguiste reaver St. Clair Hall, tens de te libertar do passado. Se não o fizeres, vais continuar a atormentar-te. Tens de olhar para o futuro, Simon.

 

- Ah, sim? E o que é que propões que eu contemple enquanto olho para o futuro? - perguntou secamente Simon.

 

Emily respirou fundo.

 

- Bom, há a nossa relação - tentou ela sugerir. - Como ontem à noite me fizeste notar ficou consideravelmente realçada pela nossa união física. Partilhamos uma coisa muito especial. Certamente quererás esquecer a tristeza do passado e concentrar-te nas alegrias dos nossos métodos de comunicação agora tão expandidos.

 

Ele olhou-a, com as sobrancelhas erguidas, friamente divertido.

- Estás a sugerir que eu prescinda do resto da minha vingança contra a tua família em favor das alegrias do leito conjugal?

 

Emily sentia-se cada vez mais insegura com o estranho comportamento de Simon. Invadiu-a um profundo pressentimento, enquanto o espreitava por trás dos óculos. Parecia-lhe de súbito muito perigoso; um dragão invadira o jardim sul, um dragão em busca da sua presa.

 

- Ontem à noite - disse lentamente Emily - disseste que para nós os prazeres do leito conjugal seriam únicos. que estariam ligados às puras e nobres paixões do domínio metafísico. Que a nossa união teria lugar no plano transcendental bem como no físico. Decerto esse tipo de relação é muito especial e deve ser conservado e apreciado, não acha Vossa Senhoria?

 

A raiva estalou nos olhos dourados de Simon.

 

- Por amor de Deus, Emily, nem tu podes ser tão ingénua. O que teve lugar entre nós ontem à noite não teve nada que ver com qualquer maldito plano transcendental. Foi simples luxúria.

 

- Simon, não podes estar a pensar tal coisa. Foste tu que me explicaste a ligação entre os domínios físico e metafísico. - Corou, mas não baixou o olhar. Sabia que agora lutava por uma coisa muito importante. - A nossa paixão é transcendental por natureza. Lembras-te como descreveste o modo como o nosso amor do mundo físico deveria realçar a nossa comunicação no domínio metafísico?

 

- Emily, és uma mulher inteligente em muitos aspectos... Ela fez um sorriso trémulo.

 

- Muito obrigada, Simon.

 

- Mas por vezes falas como uma autêntica tola. Passei por todos esses absurdos acerca da ligação mística entre os domínios físico e metafísico, puramente para te aliviar dos teus virginais receios quanto ao leito conjugal. Receios perfeitamente normais, posso acrescentar, dada a tua falta de experiência,

 

- Senhoria, eu não tinha medo de fazer amor. E não sou totalmente desprovida de experiência, como se pode recordar.

 

- Claro que estavas ansiosa - disse ele irritado. - Era óbvio. As noivas muito calmas não deixam recados aos noivos. Esperam na cama, como deve ser. E, quanto à tua tão alardeada experiência, minha querida, é a fingir. Nem por sombras és uma mulher mundana. Se de facto tivesses alguma noção das relações entre homens e mulheres, ontem à noite deverias ter esperado por mim na cama e não a rabiscar no teu diário.

 

- Mas, Simon, já te expliquei que estava preocupada contigo. Não queria que te sentisses de modo algum obrigado a cumprir o teu dever. Simon estalou o chicote no ar e cortou a corola de duas margaridas.
- Pelo fogo do Inferno, mulher. Estavas ansiosa acerca do desconhecido e por isso inventaste todo aquele disparate ridículo e generoso de quereres impor a tua presença. A verdade, Emily, é que necessitavas que eu te sossegasse e limitei-me a dizer o que querias ouvir.

 

Ela mordeu o lábio.

 

- Mentiste-me então acerca de quereres realçar a nossa comunicação metafísica tão especial?

 

- Emily, fiz o que tinha a fazer, para acalmar os teus receios virginais. Tratámos do assunto de um modo razoável e agora não há qualquer possibilidade de anulação.

 

- É só isso que te interessa? Teres a certeza de que esta manhã não houvesse razões para anulação? - perguntou ela em voz baixa. Não pensaste que ontem à noite andámos ambos à deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor?

 

- Com mil diabos. Por amor de Deus, mulher, ímportas-te de acabar com essa conversa acerca de romance e metafísica? Já tenho que chegue de todo esse absurdo romântico. Isto é um casamento, não a estrofe de um poema épico. É tempo de enfrentares a realidade. Já não és uma Faringdon. Agora és minha mulher. Se te lembrares desse facto, conseguiremos dar-nos suficientemente bem.

 

- Será difícil esquecer-me, Simon.

 

- Vê se não esqueces -- disse ele, lançando-lhe um dourado olhar chamejante. - Emily, é tempo de entenderes que eu quero sobretudo uma coisa de ti.

 

- Queres o meu amor? - Desgostosa, Emily apercebeu-se de que uma centelha de louca esperança ardia ainda dentro dela.

 

- Não, Emily - disse Simon brutalmente. - O que quero de ti, o que terei de ter, custe o que custar, é a tua completa e inquebrantável lealdade. Agora és a condessa de Blade. És uma Traherne. Está claro? Morreu nela a última esperança.

 

- Vossa Senhoria foi perfeitamente claro.

 

Emily voltou as costas ao homem que amava de todo o coração e caminhou sozinha em direcção a casa. Ao entrar a porta, resistiu ao desejo de se voltar. As lágrimas ardiam-lhe nos olhos, enquanto se apressava em direcção ao quarto.

 

Sem dúvida, teria de partir. Os seus sonhos e esperanças tinham sido destruídos. Não poderia continuar como esposa de Simon. Fazê-lo, seria troçar das suas puras e nobres paixões.

 

Não poderia suportar todos os dias o olhar de Simon, sabendo que ele nada sentia por ela. Ainda era mais impensável deixar que viesse ter com ela à noite e, tal como o pai lhe tinha afirmado, a fornicasse como um garanhão cobre uma égua.

 

Com este último pensamento, as lágrimas corriam-lhe por entre as pestanas. Tinha de partir imediatamente. Emily correu para o quarto e começou a escolher as peças de vestuário que levaria consigo, ao sair de St. Clair Hall.

 

Capitulo 9

SIMON OLHOU DE NOVO PARA O RELóGIO alto da biblioteca, enquanto andava de um lado para outro diante dele. Eram quase seis horas e Emily ainda não descera para o acompanhar num cálice de xerez antes do jantar.

 

Foi-se apercebendo de que provavelmente a tinha esmagado por completo naquela manhã. Era uma criaturinha tão romântica, completamente dependente de finais felizes.

 

Simon raramente perdia a calma. Orgulhava-se de saber controlá-la tal como controlava as suas outras paixões. Mas alguma coisa estalara dentro dele quando chegara a casa, vindo da sua cavalgada matinal, ao descobrir a noiva falando com Broderick Faringdon de modo furtivo.

 

Essa notícia, que ainda por cima lhe tinha chegado depois das suas confusas emoções acerca da noite de núpcias, fora suficiente para acender as chamas da ira.

 

Simon examinava o cálice de xerez doirado, recordando como Broderick Faringdon. tentara ousadamente falar com Emily, para que esta continuasse secretamente a dirigir-lhe os negócios.

 

Canalha. Simon gostaria de saber se o sogro na realidade pensava conseguir saír-se bem com aquele subterfúgio? Claro que sim. Os Faringdon eram uma gente desonesta e conivente, que tentava, não olhando a meios, sair-se bem sem que ninguém desse por isso. Mas o génio financeiro da filha pertencia-lhe agora e Simon saberia proteger o que era seu.

 

No dia do casamento, gozara a sensação de informar Faringdon que não tinha intenção de permitir que Emily continuasse a fazer investimentos para o pai e irmãos. Fora extremamente satisfatório ver a expressão do rosto do seu velho inimigo, quando retirara o isco que agitara diante dele nas últimas semanas.

 

Era próprio de Broderick Faringdon vir meter o nariz logo no dia seguinte a ter perdido a sua preciosa filha, para ver o que conseguiria salvar do desastre.

 

Simon suspirou. E era próprio de Emily não ter compreendído que o marido tencionava completar a sua vingança.

Tivera mesmo a ousadia de lhe dizer que esquecesse o passado para criar com ela uma união pura, romântica e transcendental.

Simon apercebia-se de que a parte mais infeliz era o facto da esposa acreditar piamente em todas aquelas tolices a respeito do amor num plano mais elevado. Precisara de uma boa dose de realidade e ele perdera a calma e administrara-lha.

 

Porém, fora pouco caridoso da sua parte ter-lhe destruido as doces ideias românticas de forma tão cruel, Por outro lado, tranquilizava-se, pensando que não tivera outro remédio. Depois de ter visto Faringdon com Emily, Simon fora forçado a clarificar-lhe a situação.

Já não era uma Faringdon. Era sua esposa e teria de saber o que isso representava. Tinha muito pouco a ver com as maravilhas românticas do plano metafísico. Era a obrigação de ser completa e indiscutivelmente leal ao marido. Simon não via razão para não poder querer de Emily o mesmo grau de lealdade que exigia aos criados.

 

Olhou de novo irritado para o relógio. Depois puxou o cordão de veludo da campainha.

 

Duckett apareceu instantaneamente, com a expressão mais séria do que de costume.

 

- Vossa Senhoria chamou?

 

- Manda alguém lá acima ver o que se passa com Lady Blade.

- Imediatamente, Senhoria. - Duckett retirou-se, fechando a porta da biblioteca.

 

Simon viu o relógio avançar lentamente. Perguntava-se se Emily iria tornar-se numa daquelas antipáticas mulheres que desatavam a chorar e se metiam na cama com os sais, sempre que um homem lhes mostrava o seu temperamento. Se assim fosse, em breve aprenderia que ele não tencionava permitir-lhe exibições de sensibilidades femininas.

A porta da biblioteca abriu-se. Duckett ali ficou, como se tivesse de anunciar uma morte na família.

 

- Então, Duckett?

 

- Senhor, lamento ter de lhe dizer que a senhora não está. Simon fez um gesto zangado e olhou pela janela.

 

Andará a passear nos jardins a esta hora?

 

Não, Senhoria. - Duckett tossiu, atrapalhado. - Isto é muito difícil de explicar. Parece que esta tarde a senhora mandou vir a carruagem, logo depois de Vossa Senhoria ter saído para ir visitar Lorde Cillingham. Disseram-me que foi visitar as irmãs Inglebright. Mandou Robby de volta com a carruagem, dizendo que viria a pé para casa, mas ainda não voltou,

 

- Valha-me Deus. então terá ido logo hoje discutir poesia romântica com as amigas? Estamos em lua-de-mel!

 

- Sim, Senhoria. Simon. praguejou.

 

- Manda alguém a Rose Cottage e traz a senhora para casa. Duckett tossiu de novo, tapando a boca com a mão.

 

- Creio que há mais alguma coisa, Senhoria. Robby diz que a senhora levava um fato de viagem e duas grandes malas com ela. Simon, sentiu-se gelar.

 

- Que diabo estás tu a dizer, Duckett?

 

- Creio que o melhor será Vossa Senhoria conversar com Lizzie, a criada da senhora - disse Duckett, com toda a franqueza.

 

- Porque havería de o fazer?

 

- A rapariga está a chorar no quarto e parece que tem um recado para lhe entregar pessoalmente.

 

Simon não precisava de poderes psíquicos especiais para adivinhar que iria descobrir que aquela que era sua esposa havia menos de vinte e quatro horas, tinha fugido.

 

- Manda cá a criada imediatamente, Duckett. E manda que arreiem Lap Seng nos estábulos. Quero partir dentro de quinze minutos.

 

- Com certeza, Senhoria. Permita-me Vossa Senhoria que lhe diga, que todo o pessoal está muito preocupado com a segurança da senhora.

- Pairava no ar uma muda acusação. Era evidente que o novo amo de St. Clair Hall era suspeito de ter magoado a delicada sensibilidade da senhora, obrigando-a a fugir.

 

- Muito obrigado, Duckett. Na primeira oportunidade, informo-a desse facto.

 

A senhora, pensou Simon com ar sinistro, enquanto Duckett fechava a porta, terá de se preparar para ter mais do que as sensibilidades magoadas, quando o marído a encontrar.

 

como se atrevera a partir assim? Agora, pertencia-lhe. Fora ela que propusera o negócio do casamento. Bem poderia submeter-se a ele.

 

Emily encontrava-se no meio do pequeno quarto, tendo aos pés os seus insignificantes pertences e quase desatou de novo a chorar. Estava exausta, tinha fome e na sua vida nunca se sentira tão perdida e só.

 

Agora ia ser obrigada a passar a noite naquele quartinho, que parecia que não era arejado ou limpo havia muitos anos. Sentia o cheiro acre do odor corporal masculino que emanava dos lençóis amarelados.

 

Emily nunca antes viajara de diligência. Ficara espantada com o desconforto. Viera esmagada entre um cavalheiro corpulento que ressonara toda a viagem e um jovem cheio de borbulhas, que não tirara os olhos dela. Duas vezes tivera de usar a bolsinha para lhe retirar a mão do seu joelho.

 

O único consolo era saber que no dia seguinte estaria em Londres. O pai e os irmãos sem dúvida ficariam surpreendidos ao vê-la, mas Emíly tinha a certeza de que a receberiam de braços abertos. Claro que não lhe agradava ter de ouvir que tinha agido de modo ridículo, mas não havia nada a fazer. Deveria ter escutado a família e não o seu coração romântico e tolo.

 

Emily baixou-se e puxou uma das pesadas malas para cima da cama. Primeiro, o que era importante. Estava por demais faminta e precisava de manter as forças. Emily começou a preparar-se para a refeição na sala de jantar da estalagem.

Minutos depois, desceu a escada hesitante, perfeitamente consciente de que as senhoras nunca viajavam sós, a menos que fossem extremamente pobres. Só iria atrair problemas se aparecesse na sala sem uma acompanhante ou uma criada. Mas não havia nada a fazer. Não conseguia aguentar ficar mais um minuto que fosse naquele quartinho horroroso. Talvez a convidassem para se juntar a outro grupo de viajantes que incluísse senhoras. Afinal, era agora uma condessa.

 

A primeira pessoa que Emily viu, ao olhar para a sala de jantar, era exactamente aquilo de que andava à procura, uma jovem atraente e bem-vestida, certamente de boas famílias. Emily sufocou um suspiro de alívio. Apresentar-se-ia, explicaria porque se encontrava só e pediria à, senhora para partilhar a mesa com ela. Tudo correria bem.

 

A jovem estava sentada sozinha, junto à lareira da sala, onde havia pouca gente. Emily aproximou-se, cheia de cautelas, e viu sobressaltada que a senhora tinha uma vermelhidão suspeita à volta dos olhos, que indicava um choro recente. Tinha as mãos elegantemente enluvadas apertadas no colo do seu caro vestido de viagem. Parecia que naquela noite havia por ali mais do que uma mulher infeliz.

 

- Peço desculpa, minha senhora - disse Emily hesitante. - Vejo que está só e gostaria de saber se se importaria que dividíssemos a mesa. Chamo-me Emily Faringdon... - fez uma pausa para acrescentar, cheia de escrúpulos - Traherne. - Não pensou ser necessário informar a senhora do seu título recentemente adquirido. Emily era condessa havia apenas um dia, e não se sentia assim.

 

A jovem bela e loura ergueu os olhos sobressaltada; não poderia ter mais de dezanove anos. Depois, um alívio tão grande como o de Emily brilhou-lhe nos olhos cor de avelã.

 

- Por favor, Miss Faringdon-Traherne - pediu - faça-me companhia. - Ficar-lhe-ia muito grata. - Olhou aflita à volta da sala vazia e depois acrescentou em voz muito baixa. - Chamo-me Celeste Hamílton.

 

- Muito gosto em conhecê-la, Miss Hamilton, Está de viagem para Londres? - Emily sentou-se em frente da sua nova amiga.

 

- Para Londres, meu Deus, não. - Celeste soltou um gemido triste. Começou a chorar, procurando rapidamente na bolsinha um lenço já amarrotado. Quem me dera que fosse esse o caso. Oh, Miss Faringdon-Traherne, estou tão infeliz. Cometi um terrível erro. Creio que vou para Gretna Green.

 

Emily estava espantada.

- Vai fugir para casar?

 

- Sim. - Celeste fungou para dentro do lenço.

 

- Mas encontra-se só, Miss Hamilton. Não compreendo. Onde está o seu noivo?

 

- Estará a tratar da carruagem e dos cavalos. Houve um acidente e uma roda soltou-se. Estará de volta a qualquer momento. Para ser franca, fiquei contente, quando ocorreu. Comecei a perceber que tinha cometido um grave erro quando tomei a decisão. Vi o acidente como um meio de escapar.

 

Emily franziu a testa.

 

- Mas não correu tudo bem?

 

Celeste assoou-se delicadamente e abanou a cabeça.

 

- Nevil diz que partiremos logo que a roda esteja arranjada, mas não chegaremos à fronteira, senão amanhã. Serei obrigada a casar com ele, aconteça o que acontecer, pois de contrário ficarei com a reputação arruinada. Que posso eu fazer? Apercebi-me agora de que não o amo.

- Soltou um profundo suspiro. - Para ser franca, já nem sequer gosto muito dele. E os meus pais ficarão tão magoados. Oh, Miss Faringdon-Traherne, preferia morrer, a ter de enfrentar o que me espera.

 

- Minha cara Miss Hamilton. Pode contar com a minha mais profunda solidariedade. - Emily estendeu o braço por cima da mesa e deu umas pancadinhas amigáveis na mão de Celeste. - Sei exactamente pelo que está a passar. Compreendo tudo, incluindo a tragédia de casar com o homem errado. Mas não precisa de se apoquentar. Está destinada a ser mais afortunada do que eu.

 

Celeste olhou-a com uma expressão aflita.

- Que quer dizer com isso?

 

Emily sorriu para a tranquilizar.

 

- Não será óbvio? Estou aqui. Ficará comigo esta noite e de manhã viajaremos ambas para Londres. Os seus pais sem dúvida ficarão muito zangados consigo, mas a sua reputação sobreviverá intacta, pois será do conhecimento geral que andou a viajar tendo outra mulher para a acompanhar durante a noite. - Inclinou-se e acrescentou em tom conspiratório. - Sou realmente condessa, sabe? Condessa de Blade, o que pode ser extremamente útil, dadas as circunstâncias. Poderei compor esta situação como for preciso.

 

Celeste olhou-a, com um brilho de espanto e sobressalto nos olhos.

- Ouvi dizer que o conde tinha casado. A minha amiga é realmente a condessa de Blade?

 

Emily acenou afirmativamente, com ar lúgubre.

- Casei-me apenas ontem, mas o mal está feito.

 

- Deus do Céu, nunca fui apresentada a Blade, mas ouvi o meu pai falar a respeito do seu marido. Blade é conhecido como um homem muito misterioso. Lembro-me perfeitamente de o meu pai uma vez dizer à minha mãe que o conde era um homem extremamente perigoso de se enfrentar - confiou-lhe Celeste, em voz baixa. - Blade passou anos na índia e dizem que trouxe de lá ideias muito estranhas.

 

Quem o diz?

 

As jovens casadoiras, claro! Todas elas tinham medo dele. Principalmente Lucinda Canonbury, a neta de Lorde Canonbury. Uma vez desmaiou mesmo, quando Blade entrou no salão onde ela por acaso se encontrava. Disseram-me que ficou como morta. Creio que pensou que ele lhe fosse pedir para dançar.

 

Emily franziu o nariz.

 

- Que disparate! Blade nunca dançaria com uma mulher dada a desmaios.

 

- Lucinda Canonbury não é a única a temê-lo - disse Celeste.

- Várias jovens admitiam estar aterrorizadas com receio que Blade pedisse a sua mão e que os pais não a pudessem negar. Parece que Blade consegue ser extremamente intimidador. Haverá grande alívio entre as jovens casadoiras quando se souber que ele já deu o nó.

 

- Bah! Esse alívio que exprimem será só inveja - declarou corajosamente Emily, sem perguntar a si própria porque se sentia obrigada a defender o conde. - Garanto que todas as jovens estavam fascinadas por ele e vão ficar desapontadas ao saber que já casou. De qualquer modo, por favor, não me chame Lady Blade. Não me sinto verdadeiramente uma condessa. Trate-me por Emily.

 

- Mas, se se casou ontem, onde está o seu marido? A tratar dos cavalos? Valha-me Deus, Lady Blade... isto é, Emily... deve estar em lua-de-mel.

 

- Não - disse Emily com tristeza, - A minha lua-de-mel terminou. Uma noite de transcendental encanto que terminou de madrugada.

- Hesitou para depois acrescentar francamente. - Bom, uma noite de quase transcendente encanto, tenho de admitir que tudo aquilo não foi exactamente o que eu esperava que fosse. Mas isso agora não vem ao caso.

- Mas apenas uma noite?

 

Emily pensou rapidamente. Apercebeu-se, de repente, que não poderia humilhar Simon, contando a Celeste a verdade a seu respeito.

- Receio que um trágico golpe do destino nos tenha separado.

- Deus! - murmurou Celeste, muito impressionada. Deve ter sido horrível para si.

 

- Sim, muito. Mas a minha infelicidade será a sua salvação anunciou Emily, tomando instintivamente conta da situação. - A partir de agora, e até estar de novo em segurança junto da sua família, tem por companhia uma mulher respeitável e nada acontecerá à sua reputação.

 

O belo rosto de Celeste começou a desanuviar-se, para imediatamente parecer preocupado.

 

-- Mas temos ainda de pensar em Nevil. Não o conhece, Emily. De facto, acontece que também eu não o conhecia. É bastante desagradável e tornou-se muito insistente em relação ao casamento. Confesso que tenho de admitir que o meu pai tinha razão. Nevil planeava casar-se comigo devido à minha herança. E eu confiei nele.

 

O coração de Emily emocionou-se, fazendo-a sentir-se solidária com Celeste.

 

- Sei como se deve sentir. Mas não se preocupe com Nevil.

 

- Não compreende. Ele é muito forte e possui um génio terrível. Não tinha ideia do mau que era, até ocorrer o acidente, Tenho medo dele, Emily. Vai querer arrastar-me consigo quando voltar e a minha amiga não conseguirá detê-lo.

 

Emily lançou um olhar rápido em direcção à porta.

 

- já sei. Vamos as duas para o meu quarto e fechamo-nos à chave esta noite. Talvez eu consiga convencer a mulher do estalajadeiro a mandar-nos de comer. Venha, temos de nos apressar, antes que Nevil apareça.

 

Emily pôs-se de pé de um salto e dirigiu-se rapidamente para a porta. Após um sobressalto de surpresa, Celeste ergueu-se e saiu rapidamente atrás dela. Emily fez uma pausa no longo corredor para pedir à mulher do estalajadeiro uma refeição fria e as duas jovens dirigiram-se lá para cima, para ficarem em segurança.

 

Minutos depois chegou a comida. Não era nada de espantar, consistindo em duas fatias de empadão de caça, pão e queijo. Porém, Emily e a sua nova amiga atacaram-na com um saudável apetite.

 

O temido Nevil chegou algum tempo depois de terem ingerido a espartana refeição. Pancadas furiosas na porta foram a primeira indicação de que o homem não tencionava deixar que o afastassem.

 

- Celeste, sei que estás aí! Que diabo se passa? Vem cá imediatamente! - gritava o homem lá de fora.

 

- Vai-te embora, Nevil! Disse-te que já não quero casar contigo respondeu Celeste. - Não és o homem que eu pensava.

 

- Claro que te vais casar comigo, minha cabra. Não passei por tudo isto para nada. De qualquer modo, é muito tarde para mudares de ideias, minha tola. Tens de te casar comigo, ou ficarás arruinada e sabe-lo muito bem. Sai imediatamente. - Nevil começou com as botas a dar pontapés na porta.

 

- Valha-me Deus! - Com incrível terror, Celeste olhava para a porta que estremecia.

 

- Se não saíres imediatamente, mando vir aqui o estalajadeiro com a chave - afirmou Nevil. A porta estremeceu de novo sob o efeito da sua bota. - Abre, estúpida, cadela maldita!

 

Emily apercebeu-se de que a porta poderia não aguentar. Entrou imediatamente em acção.

 

- Ajude-me a pôr isto debaixo do puxador - ordenou a Celeste, começando a empurrar uma pesada cadeira pelo quarto.

 

Celeste agarrou-se à cadeira, enquanto as pancadas continuavam. Estava de novo quase a chorar. Nevil gritou várias ameaças sobre o que tencionava fazer-lhe, logo que fosse seu marido, continuando ainda a gritaria e os pontapés por algum tempo.

 

- Não lhe dê atenção - disse Emily, ofegante por ter arrastado a cadeira para aquela posição. Começou a empurrar a pesada cómoda para o lado daquela.

 

- Ele vai deitar a porta adentro - disse Celeste, ofegante, pálida de terror.

 

- Não creio que o consiga. - Mas Emily olhava para a porta, receosa. Não parecia ser assim tão forte, mesmo com a cadeira e a cómoda encostadas a ela. - Talvez devêssemos pôr mais alguma coisa murmurou para Celeste.

 

- Não há mais nada, excepto a cama.

 

- Maldita cabra! - gritava Nevil. - Quando saíres daí, vou chicotear-te. Ouves, estúpida? Chicotear-te, juro por Deus. Veremos, então, se continuas a desafiar-me.

 

Depois, ouviu-se uma outra voz no corredor, grossa, intimidadora e dominando perfeitamente a situação.

 

- Que diabo se passa aqui?

 

Emily, que agarrara um atiçador para o caso da porta ceder, voltou-se, para fitar a porta fechada, com um gemido de espanto.

 

- É Simon.

 

- Simon? - Celeste olhou para ela, confusa e aterrorizada. Quem é Simon?

 

- O meu marido. - Emily exultou de alívio. - Não se preocupe, vai tratar de tudo.

 

- Mas dísse-me que tinha sido tragicamente separada dele recordou-lhe Celeste.

 

- Isso é um problema completamente distinto. - Emily ignorou o assunto, com um movimento do atiçador. - O importante, neste momento, é que se vai encarregar de Nevil.

 

- Vai? - Celeste parecia extremamente desconfiada. - Porque haveria de o fazer?

 

- Blade tem uma natureza galante e nobre - garantiu-lhe Emily. A voz de Nevil ergueu-se no corredor.

 

- Olhe lá, bom homem, isto não é nada da sua conta! - Nevil avisou Simon em tom muito alto e ofendido. - A minha noiva fechou-se neste quarto com outra mulher. Não saio daqui sem levar Celeste.

 

- A outra mulher que lá está, de acordo com o estalajadeiro, é a minha esposa - disse Simon com frieza. - Saia de ao pé dessa porta ou parto-lhe o seu maldito pescoço.

 

- Quem pensa que é, para me dar ordens? - guinchou Nevil. Não vou tolerar qualquer interferência. Vou a caminho da fronteira e agradecia-lhe que... Que diabo?

 

Emily alegrou-se ao ouvir o guincho assustado com que Nevil terminou a pergunta. Seguiu-se um berro e um enorme estrondo. Emily poisou o atiçador e voltou-se orgulhosamente para Celeste.

 

- Eu disse-lhe que Simon daria conta de Nevil.

 

- Emily? - A voz de Simon parecia espantosamente calma, do outro lado da porta. - Estás aí?

 

- Sim, Simon, estou aqui! - Emily apressou-se a chegar junto à porta.

- Abre imediatamente. Já basta de disparates.

 

- Só um momento, Simon - respondeu Emily, afastando a cadeira da porta.

 

Celeste encolheu-se.

 

- Não parece muito satisfeito por tê-la encontrado, depois de ter estado tragicamente separado de si.

 

- Pormenores. De qualquer modo, se eu não lhe abrir a porta, pode estar certa de que encontrará um modo de a meter adentro de maneira muito mais eficiente do que o seu Nevil.

 

- Oh, Emily, coitadinha. Ele parece um perfeito animal.

 

- Um dragão, para ser mais exacta. - Emily estava de novo ofegante pelo esforço de afastar a cadeira e a cómoda. Conseguiu finalmente retirá-las da frente da porta.

 

Deu apressadamente volta à chave na fechadura e segundos depois abriu a porta com um sorriso triunfante. Simon estava ali, com um sobretudo húmido, calções de montar e botas salpicadas de lama. Tinha uma expressão calma e completamente controlada, excepto quanto às chamas ardentes dos seus olhos dourados.

 

- Então, Emily?

 

Emily não hesitou. Atirou-se-lhe para os braços.

 

- Simon, salvaste-nos. Bem disse a Celeste que o farias.

 

Simon hesitou, decididamente apanhado de surpresa por aquela recepção. Em seguida os seus braços rodearam-na e apertaram-na com tanta força, que ela não conseguia respirar. Durante um ou dois minutos, Emily ficou sufocada pelas múltiplas camadas de tecido do sobretudo. Quando, finalmente, se viu livre daquilo, olhou para o fundo do corredor e viu um jovem caído no chão, estranhamente imóvel.

 

- Oh, excelente trabalho, Simon! - Olhou para o marido com ar de aprovação. - Não há dúvida de que te encarregaste do maldito homem. Está morto?

 

Simon ergueu uma sobrancelha, ao ver a expectativa no olhar dela.

- És uma mulher sanguinária, não é verdade? Que estranho. Nunca me tinha apercebido. Não, não está morto. Mas creio que, durante algum tempo, não poderá andar aos pontapés às portas.

 

Outra voz soou no cimo das escadas.

 

- Senhoria, que confusão é esta? - O estalajadeiro apressou-se a avançar torcendo as mãos. - Tenho uma casa respeitável. Não posso permitir lutas nos corredores. Os outros hóspedes serão incomodados pelo barulho.

 

Simon lançou um olhar mortífero ao homem.

 

- Nas casas respeitáveis, as jovens senhoras não se vêem obrigadas  a barricarem-se nos quartos.

 

O estalajadeiro olhou nervosamente para Emily e depois para Celeste, que  espreitava da porta do quarto.

 

- Bom, saiba Vossa Senhoria que, quanto a isso, nenhuma destas jovens senhoras viajava acompanhada ou com uma criada e tive de concluir que não eram senhoras como deveriam ser, se é que me percebe.

 

O olhar de Simon tornou-se ainda mais perigoso.

 

- Obviamente, o senhor tira conclusões muito estúpidas. Esta senhora é a minha esposa e a outra senhora é sua amiga. Tinham combinado encontrar-se aqui e esperar por mim. Fui temporariamente atrasado pelo mau tempo. já deve ter reparado que há uma enorme tempestade lá fora.

 

- Sim, Senhoria - concordou imediatamente o estalajadeiro. Chove a cântaros, lá isso é verdade.

 

Simon lançou-lhe um vago sorriso.

 

- Espero que a minha esposa e a sua amiga fiquem aqui em segurança e com todo o conforto, enquanto vou tratar de outras coisas. O pobre estalajadeiro parecia ainda mais atormentado. O seu olhar

 

ansioso desviou-se rapidamente de Emily, que lhe sorria com um ar superior, para Nevil, silencioso e imóvel.

 

- Peço perdão a Vossa Senhoria, por não ter entendido bem a situação. Claro que houve aqui um engano.

 

- É claro! - Simon apontou brevemente para o homem que estava deitado no chão. - Sugiro que o retire imediatamente daqui.

 

- Sim, Senhoria, tratarei disso imediatamente. - O estalajadeiro voltou-se para berrar pelas escadas, chamando um criado. - Owen, vem cá e dá-me uma ajuda, rapaz. Despacha-te!

 

Simon olhou por cima da cabeça de Emily para dentro do quarto, onde Celeste estava quase escondida. Semicerrou os olhos, pensativo. Depois olhou de novo para Emily.

 

- Agora suponho que a senhora e a sua amiga possam vir para baixo para me explicar precisamente o que se está a passar.

 

- Claro, Simon. - Emily sorriu. - É realmente muito simples.

- Seja como for, é difícil acreditar. Por favor, não me faça esperar. - Simon voltou-se em direcção às escadas, com o sobretudo a adejar à sua volta como uma capa elegante.

 

- Sim, Simon, iremos imediatamente - respondeu Emily, atrás dele.

 

Mas Simon ia já a descer e nem se preocupou a ouvir as suas palavras de obediência. Emily recuou até ao quarto e encontrou Celeste, que a fixava com os olhos muito abertos. O lenço que tinha na mão estava todo amarrotado.

 

- Que diabo se passa agora? - perguntou Emily.

 

- Receio que o seu marido esteja muito zangado - respondeu Celeste, em voz fraca. - Talvez me culpe por tê-la metido nesta situação.

- Por amor de Deus, Celeste. Simon não vai acusá-la. É um homem

 

justo e honrado. Em breve tudo estará resolvido. Porém, faríamos melhor em fazer o que ele mandou. Está pronta para descer?

 

- Sim, creio que não há outro remédio. - Celeste limpou os olhos com o lenço. - Quem me dera ter aqui a minha mãe.

 

- Pronto, mas não tem, por isso, teremos de nos arranjar sozinhas. Encarrego-me das explicações. Sou muito boa nestas coisas! - Emily endireitou os óculos, sacudiu as saias e seguiu em direcção às escadas à frente de Celeste.

 

Simon esperava-as numa salinha particular. Tinha despido o sobretudo e tirado o chapéu, encontrando-se sentado diante do lume, com uma caneca de cerveja na mão. Ergueu-se com grave delicadeza, quando Emily e Celeste entraram.

 

Emily apressou-se a apresentar convenientemente Celeste, que parecia mais nervosa que nunca. Simon fez deliberadamente uma pausa, antes de responder às apresentações.

 

- A senhora é filha de Northcote? - murmurou finalmente, com os olhos baixos.

 

Celeste acenou afirmativamente, sem nada dizer. Emily ia perguntar-lhe porque lhe tinha dito que o seu último apelido era Hamilton, mas Simon falou de novo.

 

- Ia fugir para Gretna Green? - perguntou a Celeste. - Suponho que o seu pai terá algumas palavras a dizer a esse respeito.

 

Celeste olhou para o chão.

 

- Sim, Senhoria, provavelmente terá.

 

Emily franziu a testa, enquanto abraçava Celeste para a tranquilizar.

- Não se preocupe, Celeste. Blade vai falar com o seu pai e tudo correrá bem.

 

- Ah, vou? - Simon bebeu um gole de cerveja e olhou para a mulher por sobre a borda da caneca. - E o que sugeres que eu diga ao marquês?

 

Emily pestanejou.

- Marquês?

 

- A tua nova amiga é a filha mais velha do marquês de Northcote.

- Oh! - Emily pensou um pouco. - Creio que sei quem é.

 

- Sem dúvida - disse Simon secamente. - É um dos homens mais ricos e poderosos de Londres. - Olhou para Celeste. - E suponho que  tenha vindo atrás da filha fugitiva.

 

Celeste desatou de novo a chorar.

- O meu pai nunca me perdoará.

 

- Claro que perdoará - disse Emily, acalmando-a. - já lhe disse que Blade lhe há-de explicar tudo.

 

- Neste momento, não tenho o mínimo interesse em explicar seja o que for a Northcote - afirmou Simon. - Acontece que também eu espero algumas explicações, minha senhora.

 

Emily mordeu o lábio inferior.

- Recebeste o meu recado?

 

- Sim, minha senhora, recebi o seu recado. Porém, discutiremos o assunto em privado.

 

- Oh, claro que sim. - Emily não tinha a certeza de se importar muito com o tom de tudo aquilo, mas antes de poder dizer mais alguma coisa, ouviu-se barulho no corredor. Segundos depois, a porta da salinha abriu-se de par em par, revelando um homem de quarenta e muitos anos e feições patrícias e uma senhora elegante, de cabelo escuro, com um fato de viagem extremamente elegante.

 

- Minha mãe! -- Celeste começou de novo a chorar e correu para a senhora de cabelo escuro, que a abraçou com força. - Minha mãe, desculpe-me.

 

- Minha querida filha, tenho estado aflita de tanta preocupação. Estás bem?

 

- Muito bem, minha mãe, graças a Lady Blade. - Celeste afastou-se do abraço da mãe lançando a Emily um sorriso cheio de lágrimas.

- Ela salvou-me de um terrível destino, minha mãe. Devo-lhe mais do que posso dizer.

 

A marquesa de Northcote olhou com alguma incerteza para Emily. Havia uma certa desconfiança no seu olhar.

 

- Lamento não termos sido formalmente apresentadas, Lady Blade - disse, com um ar um pouco rígido. - Mas creio que vou ficar em dívida consigo para sempre.

 

- Não pense nisso, Lady Northcote - disse Emily alegremente. - Não tem qualquer dívida para comigo.

 

O alívio leu-se na expressão da marquesa. O seu olhar dirigiu-se de novo à filha, voltando depois a fitar Emily.

 

- Então está tudo bem?

 

- Muito bem, minha senhora. - Emily riu baixinho. - Celeste teve uma aventura, mas não houve qualquer problema e Blade encarregou-se de Nevil, em vosso nome.

 

O marquês de Northcote lançou à filha um olhar perspicaz, voltando-se depois para Simon. Falou pela primeira vez, com o olhar mais cauteloso e vigilante que o da mulher.

 

- Blade.

 

Simon inclinou a cabeça recebendo o cumprimento de modo casual.

- Northcote.

 

- Parece-me que minha mulher tem razão. Estamos em dívida para consigo.

 

- Para comigo, não - disse Simon calmamente. - Foi a minha mulher que fez amizade com a vossa filha e a manteve fora do alcance desse canalha, até eu chegar.

 

- Percebo. - Northcote fechou a porta e avançou na sala. - Importam-se de me explicar o que se soube aqui?

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Porque não? já me avisaram que ficaria encarregado das explicações.

 

- São assim tão complicadas? - Northcote lançou-lhe um olhar perscrutador.

 

- De modo algum. - Simon tinha uma expressão de frio agrado.

- Porém, sugiro que o senhor e a sua esposa se sentem e mandem vir cerveja. Pode levar algum tempo.

 

Northcote acenou afirmativamente, parecendo tristemente resignado.

 

- Peppington, Canonbury e agora eu. Tem-nos finalmente a todos onde queria, não é verdade, Blade? - perguntou em voz baixa.

 

- Sim - murmurou Simon. - O senhor foi o último. Vou considerá-lo um presente de casamento para a minha noiva.

 

Capitulo 10

DEVO DIZER-TE, SIMON, que trataste de tudo de um modo excelente.

 

Emily estava sentada na cadeira junto ao lume, vendo o marido fechar à chave a porta do quarto que alugara para passar a noite. Tinha deitado um breve olhar ao aposento que fora atribuído  a esposa e a sua boca contorcera-se num trejeito zangado. Mandara preparar imediatamente outro. O estalajadeiro pegara apressadamente na bagagem de Emily, tendo-a mudado para um quarto maior e mais confortável.

 

- Realmente, Simon, fizeste que tudo parecesse perfeitamente normal e casual. Como se simplesmente tivéssemos encontrado Celeste na nossa viagem de núpcias e a tivéssemos tomado sob a nossa protecção.

 

O marquês e a marquesa de Northcote haviam partido para a cidade alguns minutos antes, na sua carruagem rápida e confortável. Se tudo corresse bem teriam Celeste na cama e em segurança, logo de manhã cedo. Concordaram que a abordagem mais simples a todo aquele assunto, seria chegarem a casa de madrugada com a filha, como se estivessem de volta de um baile. Nada mais sensato.

 

- Ainda bem que concordas com o modo como tratei do assunto. Confesso não estar tão habituado como tu a inventar histórias românticas à última hora. - Simon atravessou o quarto e deixou-se cair languidamente na cadeira em frente de Emily. Esticou as pernas diante do lume e fitou a esposa fugitiva, com olhos semicerrados.

 

- Sem dúvida que fizeste um magnífico trabalho - garantiu-lhe Emily, com ar feliz. - Conseguiste mesmo imaginar rapidamente o que eu já tinha dito a Celeste, de modo que as nossas duas histórias coincidiram.

 

- Deste-me várias pistas muito úteis, minha querida. - Simon ergueu as sobrancelhas. - Tragicamente separados na manhã depois do casamento, não é verdade? Tiveste muita sorte que Lady Celeste não tenha perguntado a natureza exacta da tragédia que nos separou.

- Tens razão. - Emily meditou uns momentos sobre o assunto. Gostaria de saber se a mãe vai querer saber.

 

- Duvido. Não creio que haja mais perguntas a esse respeito. Northcote aceitará a minha versão da história acerca de me ter demorado com a carruagem e de te ter enviado adiante por causa da tempestade. Ele e a mulher estavam mais preocupados com o problema da filha do que com o teu.

 

- Pobre Celeste. Pelo menos salvou-se de casar com o homem errado - alegrou-se Emily. - Foi um maravilhoso salvamento, Simon. Exactamente o que eu esperava de ti.

 

- Lisonjeias-me! - Simon apoiou os cotovelos nos braços da cadeira, entrelaçou os dedos debaixo do queixo e fitou fixamente a mulher. - E agora creio que chegou a altura de me dares explicações.

- Explicações?

 

- Aviso-te que não desejo ouvir absurdos como o que escreveste no teu recado a respeito de corações despedaçados e urnas quebradas. Se bem te lembras, já li esse poema em particular. Não foi um dos teus melhores esforços.

 

O entusiasmo de Emily sobre o bem sucedido término da sua aventura com Celeste desapareceu rapidamente, sob a expressão implacável dos olhos de Simon. Baixou o olhar para as mãos que tinha dobradas no colo.

- Uma vez disseste que o poema era muito significativo.

 

- Desta vez deixou-me uma impressão bem diferente. Talvez fossem as  circunstâncias em que o li: a tua criada soluçava para o meu melhor lenço de linho. Duckett pairava por ali como se estivesse num funeral. Mrs. Hickinbotham resmungava e refilava, dizendo que sem duvida  te encontraria na estrada morta por um assaltante. Ou pior.

 

Emíly ficou momentaneamente distraída.

 

- O que poderia ser pior do que levar um tiro de um assaltante?

- Creio que Mrs. Hickinbotham teve visões em que tu aparecias a sofrer um destino pior do que a morte - explicou calmamente Simon. Emily lançou ao marido um olhar rápido e acusador.

 

- Poderia dizer que já o sofri, Senhoria. Simon surpreendeu-a com um leve sorriso.

- Foi assim tão mau, Emily?

 

Ela soltou um sorriso.

 

- Bom, de facto, não foi. Tal como disse a Celeste, foi uma noite de alegria quase transcendental.

 

- Valha-me Deus - resmungou Simon.

 

-  Tenho estado a pensar muito no assunto e decidi que a culpa não era inteiramente tua, por a experiência não ter sido o que devia. Afinal, disseste-me que nunca tinhas feito tal coisa.

 

- Eu disse isso?

 

- Disseste, sim. De modo que imagino que o nosso problema seja o facto de não termos experiência em criar uniões transcendentais. É provável que haja alguns problemas nas primeiras fases. - Lançou-lhe um olhar esperançoso. - Não concordas?

 

- É muito generoso da tua parte, não me culpares inteiramente por não te transportar a um plano mais elevado, minha querida. Emily franziu a testa, detectando algum sarcasmo.

 

- Sim, bom, talvez os problemas com a parte física da nossa união não sejam todos culpa tua, mas isso não desculpa o que aconteceu depois. Foste muito desagradável e deixei-te o recado com os versos do meu poema acerca das urnas, isso porque os achei muito adequados.

 

- Adequados? envolver numa situação potencialmente perigosa, estamos a quilómetros de casa, numa noite chuvosa e extremamente desagradável, somos obrigados a ficar numa estalagem miserável, com má comida e piores camas, tudo porque resolveste ficar amuada. Minha senhora, deixe-me dizer-lhe que não acho adequadas as referências românticas a corações despedaçados e urnas quebradas.

 

- O meu coração estava despedaçado - declarou Emily apaixonadamente. - Despedaçaste-lo esta manhã, quando me disseste que a noite passada nada tinha significado para ti.

 

- Emily, eu não disse isso.

 

- Disseste, sim. Disseste-me que aquilo que eu tomei como sendo uma união transcendental de almas gémeas não passava de luxúria. Todo o ressentimento se erguia de novo dentro dela. - E mais, foste simplesmente horrível para mim, apenas pelo facto de ter ido despedir-me do meu pai ao jardim. Sei que ele tem os seus defeitos, mas é meu pai e não tens o direito de me proibir de o ver, a ele ou aos gêmeos.

 

- Não te proibi de os ver, Emily. Apenas disse que não queria que te encontrasses com eles sozinha.

 

- Não posso permitir que me faças essas restrições.

 

- És minha esposa - recordou-lhe Simon, com a voz perigosamente suave. - Tenho todo o direito de te fazer as restrições que achar apropriadas. As acções que levei a cabo foram para teu próprio bem.

 

- Que tolice! - explodiu Emily. - São para me impedir de continuar a gerir os assuntos financeiros da minha família. Trata-se de mais um elemento do teu plano de vingança, mais nada.

 

- O teu pai há anos que se aproveita do teu talento para essas coisas.

 

- O que significa isso? Casaste comigo devido a esses mesmos talentos. Também tu me queres usar.

 

- Foste tu quem pediu para me casar contigo - disse Simon, entredentes. - Ou já te esqueceste como negociaste comigo naquele dia, perto do ribeiro? Tiveste o que quiseste, Emily. Tens de cumprir a tua parte do acordo.

 

Emily torcia os dedos, enquanto fitava o marido num angustiado desafio.

 

- Não me apercebi de que querias afastar-me totalmente da minha família.

 

- Estou apenas a cortar por completo as ligações financeiras.

- Mas permitiste que o meu pai pensasse que não o estavas a afastar completamente - recordou-lhe ela.

 

Simon sorriu friamente.

 

- Sim, acenei-lhe com esse isco durante algum tempo. Ficou tudo muito mais fácil, sabes.

 

- Está a levar a sua vingança longe de mais, Senhoria.

- Tu, minha querida, nada sabes de vingança.

 

- Mas tu sabes?

 

- Claro que sim - disse Simon em voz baixa. - Levei vinte e três anos a sonhar com ela. Agora já chega deste assunto. A minha ideia de vingança já não te diz respeito. És minha mulher e, a partir daqui, vais conduzir-te de um modo adequado ao teu título de condessa de Blade. Fui claro, Emily?

 

Emily sentiu-se esmorecer.

 

E se eu já não desejar ser a tua condessa?

 

É uma pena, pois é demasiado tarde para mudares de ideias. Rendeste-te aos teus impulsos românticos e paixões excessivas, minha querida, e agora terás de pagar pela experiência.

 

- Mas, Simon, seremos ambos perfeitamente infelizes, se continuarmos assim. Decerto tens de entender.

 

- Que absurdo! - disse Simon impiedosamente. - Não há razão para que este casamento não funcione bem. Se não tivesse chegado a essa conclusão há várias semanas atrás, não teria concordado. Assim que te dispuseres a isso, darás uma bela condessa. De qualquer modo, não podes voltar atrás. Uma anulação é impossível e certamente não permitirei que penses em divórcio. Sei que adoras o teu passado escandaloso, mas um divórcio seria difícil, até para ti. E, claro, tenho de pensar no meu título.

 

- Sim, claro. - Emily estudou as suas mãos apertadas, conscientes de uma culpada sensação de alívio. Evidentemente, um divórcio estaria fora de questão. Estava ligada a Simon para o resto da vida.

 

Para o resto da vida. Emily começou a sentir-se de melhor humor. Muito poderia mudar numa vida, disse para consigo, com renovado optimismo, incluindo a atitude de um homem para com a esposa.

 

Simon fitou-a com um olhar ainda mais severo.

 

- Agora, escuta bem, Emily, porque não quero ver-me obrigado a perseguir de novo uma esposa fugitiva. Não haverá mais fugas para o desconhecido, sempre que te sintas insatisfeita com a tua vida. Não haverá mais poemas tristes entregues à criada. Estou disposto a permitir-te bastante liberdade, mas terás de obedecer às poucas regras impostas por mim, e a principal é que não te encontres com qualquer membro da tua família, a menos que eu esteja presente. Está claro?

 

Emily olhou-o através das pestanas descidas.

 

- Perfeitamente claro, Senhoria. Tudo isso me parece perfeitamente horrível. Nada do que tinha imaginado que seria o nosso casamento.

 

A boca de Simon curvou-se lentamente.

 

- Tens de ver o lado bom das coisas, minha querida. És uma criatura de paixões excessivas. Agora podes dar-lhes liberdade. Concentra-te nessas coisas e o resto irá ao lugar.

 

Aquilo era demasiado. Emily sentia-se irritada pelas palavras condescendentes.

 

- Elias Prendergast ofereceu-me uma vez a mesma oportunidade. Nessa altura não fiquei interessada e continuo sem o estar. Consigo restringir as minhas paixões excessivas até que lhes possa dar largas com alguém que seja capaz de uma verdadeira ligação nobre, espiritual e metafísica.

 

Todos os sinais de complacência desapareceram imediatamente da expressão de Simon. O olhar dourado do dragão incendiou-se subitamente.

 

- Sei muito bem que as mulheres casadas da sociedade têm frequentemente casos, mas tu, nem sequer te passe pela ideia uma ligação com outro homem. Vê se me entendes, Emily. Não divido o que é meu e, com o que aconteceu ontem à noite, és definitivamente minha.

 

Emily fitou-o, pouco à vontade.

 

- Celeste disse que tinhas adquirido ideias estranhas enquanto viveste no Oriente.

 

- Se te servir de consolação, sempre me senti inclinado a guardar o que é meu. O ter vivido no Oriente, apenas serviu para me ensinar as várias maneiras de o fazer mais completamente e com eficiência.

 

Emily acreditou nele. Porém não estava particularmente assustada, pois certamente não entrevia a possibilidade de fazer amor com qualquer outro homem que não fosse Simon.

 

- Vossa Senhoria não precisa de se preocupar. Não fiquei assim tão extraordinariamente impressionada com o que fizemos ontem à noite, que vá já à procura de repetir a experiência com outra pessoa.

 

As perigosas chamas dos olhos de Simon desapareceram. Foram substituídas por uma expressão distintamente enfadada.

 

- Prometo-te que da próxima vez será mais agradável.

 

Emily mordeu pensativamente o lábio inferior e, rebelde, semicerrou os olhos.

 

- Já que mencionou esse assunto, Senhoria, posso também dizer-lhe que não estou interessada em experimentar uma segunda vez.

 

Simon desviou os olhos dela. Estendeu o braço, pegou no atiçador e começou a remexer o lume com movimentos bruscos.

 

- Como já te disse, em breve te sentirás de modo diferente quanto a esse assunto.

 

Emily ganhou coragem.

 

- Não, Senhoria. Não o creio. Simon olhou-a por cima do ombro.

- Que queres dizer com isso?

 

- Simplesmente que não desejo que faças de novo amor comigo - disse Emily, corajosamente. já tinha decidido como haveria de agir. Sabia o que fazer. - Isto é, a menos que haja determinadas condições.

 

- Emily - começou Simon a dizer, com ar agoirento. - Entendo que estejas muito nervosa devido às tuas recentes aventuras, mas aviso-te que não vou tolerar...

 

Ela ergueu a mão para o calar.

 

- Por favor, Senhoria, permita-me que termine. Não quero que faça de novo amor comigo, até termos verdadeiramente estabelecido uma relação pura e transcendental, o tipo de relação que acreditava termos, quando lhe pedi que se casasse comigo. Não me vai enganar de novo para que faça amor consigo, percebeu?

 

- Não te enganei para fazer amor - disse ele entredentes. - Expliquei-te que facilitei meramente as tuas virginais ansiedades, muito normais na noite de núpcias. Algumas pessoas diriam mesmo que me comportei como um marido dedicado e preocupado.

 

- Que tolice! Enganaste-me. E não o farás de novo. Ponto final. Os olhos de Simon brilharam perigosamente, reflectindo as chamas da lareira. Depois pareceu descontrair-se um pouco, tal como um caçador satisfeito com a espera, antes de perseguir a sua presa.

 

- Muito bem, minha senhora.

 

Emily ficou estupefacta com a pronta aceitação da sua ordem.

- Concordas em não me forçar?

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Não tenho qualquer interesse particular em forçar uma esposa pouco disposta. - Baixou o atiçador e voltou a sentar-se. Os dedos tamborilaram algum tempo no braço da cadeira. Houve um demorado silêncio e depois a boca torceu-se-lhe de novo numa expressão fria.

 

Emily não gostou daquele sorriso.

- Em que pensa Vossa Senhoria?

 

- Apenas que me contentarei em esperar que venhas ter comigo, Emily. De facto, creio até que será infinitamente preferível desse modo.

- Acenou, como que a confirmar uma conclusão privada a que tivesse chegado. - Sim, muito melhor.

 

Emíly hesitou, perguntando a si própria se haveria algum erro evidente no seu inteligente plano. A aceitação de Simon fora demasiado rápida.

 

- E se eu não for ter com Vossa Senhoria?

 

- Virás. E muito em breve. - Simon levantou-se e serviu dois cálices de xerez de um frasco que se encontrava sobre a mesa. - Não creio ter muito a esperar, sendo tu uma jovem de paixões excessivas, e tudo o mais. És suficientemente inteligente para saber muito bem que, embora a noite de ontem possa não ter realizado as tuas expectativas românticas, há mais a descobrir no plano físico. Decerto não esqueceste a experiência da noite em que te sentei na secretária, te abri as pernas e te apresentei a tua natureza apaixonada?

 

Emily corou, desviando os olhos.

 

- Não - admitiu em voz baixa. - Não me esqueci.

 

- Imagina o que será percorrer todas essas mesmas sensações comigo dentro de ti - disse Simon deliberadamente. - Pensa em como a experiência teria sido muito mais transcendental. Mais metafísica. Estimulante para a tua sensibilidade. Como seria excitante. Porque, minha querida, será assim da próxima vez que fizermos amor. Posso garantir-to pessoalmente.

 

De repente, Emily começara a sentir-se demasiado acalorada e sabia que isso nada tinha a ver com o lume da lareira.

 

- Estás a tentar enganar-me de novo, Simon. Não quero discutir isso. Tomei a minha decisão e insisto que a respeites.

 

- Como quiser, minha senhora. - Começou a descalçar as botas. -- Nem mais uma palavra a respeito deste assunto, até vir ter comigo e me pedir com toda a delicadeza aquilo de que tem necessidade e que lhe falta experimentar.

 

- Poderá esperar sentado que tal aconteça, Senhoria - ripostou ela. Simon começou a desapertar a camisa. Sorriu com a antecipação de um caçador.

 

- Meu amor, podes ter a certeza que da próxima vez não só mo pedirás, como implorarás mesmo que eu me deite contigo.

 

- Nunca - jurou ela, irritada pela fria certeza masculina de Simon.

 

-- Uma mulher de paixões excessivas deveria ter cuidado ao fazer afirmações tão arrojadas.

 

- Faço as afirmações que me aprouverem. Simon, que estás tu a fazer? - Emily abriu muito os olhos, chocada ao vê-lo despir a camisa de linho, lançando-a descuidadamente para as costas de uma cadeira.

 

- Estou a preparar-me para me deitar. Tive um dia muito difícil, meu amor, como deves saber. - Começou a desapertar as calças.

 

- Mas eu acabei de te dizer que não faço amor contigo. Ele acenou com a cabeça.

 

- Eu ouvi. Tenciono simplesmente meter-me na cama e dormir o melhor possível neste colchão cheio de altos. De manhã vou alugar um trem para nos levar a casa o mais depressa possível. Não tenho a mínima vontade de passar mais tempo aqui, nesta deprimente estalagem.

 

- Vais dormir na cama? - Emily olhou à sua volta, apreciando pela primeira vez aquilo que a rodeava. - Simon, só há uma cama.

- Chega bem para ambos. - Começou a despir as calças. As chamas dançavam nos esguios contornos das suas costas e nádegas. Emily fitava-o, completamente fascinada com a visão do corpo forte e elegante do marido. Despiu-se de costas para o lume mas, na sombra, percebeu que ele estava um pouco excitado. A sua masculinidade destacava-se ousadamente da mata de encaracolados pêlos negros. Lembrava-se de na noite anterior ter tocado naquele largo bastão e da resposta imediata da sua carne. Lembrava-se também de como ele tinha usado aquela parte de si próprio para abrir caminho até ao âmago do seu ser.

 

- Passa-se alguma coisa, Emily? - Ignorando aparentemente o seu longo olhar, Simon atravessou o quarto, dirigindo-se para a cama, e puxou as cobertas. Entrou e dobrou os braços sobre a almofada, por trás da cabeça. - Então?

 

Emily tocou os lábios secos com a ponta da língua.

 

- Não. Não se passa nada. - Tirou os óculos e pô-los sobre a mesa. Era melhor não ser capaz de ver claramente, naquele momento. Pôs-se de pé e puxou um tamborete para a frente do duro cadeirão de madeira.

 

- O que estás a fazer? - perguntou Simon, com curiosidade,

- Não se vê? Estou a preparar um lugar para dormir esta noite.

- Chegou-se à cama, agarrou um cobertor e voltou para a cadeira. Depois sentou-se, ergueu os pés para cima do tamborete e tapou-se com o cobertor.

 

- Essa cadeira vai ficar muito desconfortável até amanhã de manhã. E quando o lume se apagar este quarto ficará extremamente frio - avisou Simon.

 

- Não espero ficar confortável, Senhoria. Espero sofrer. Vou considerar isto um castigo pelos meus crimes de mau juízo e pior sorte. - Emily apagou a vela e instalou-se para meditar sobre o seu triste destino,

 

Meia hora depois, Simon, que continuava acordado devido a pequenos ruídos inquietos e tristes vindos de junto à cadeira, estava deitado a olhar para o tecto. O lume era agora um mero monte de brasas, mas bastava, para revelar a pequena forma de Emily enrolada no cobertor. Estava sem dúvida gelada e Simon disse para consigo que não tinha qualquer desejo de que ficasse doente. Uma mulher enferma seria um verdadeiro aborrecimento.

 

Pensou em qual seria a melhor maneira de meter Emily no calor do leito. Sabia perfeitamente que era apenas o seu orgulho que a mantinha na cadeira, Mas, por experiência própria, sabia que esse sentimento era uma coisa maravilhosa, sendo por vezes tudo o que restava a uma pessoa.

 

Simon concluiu que não havia necessidade de EmilY sofrer naquela noite, sem qualquer justificação. O seu orgulho feminino em breve receberia um rude golpe. Este chegaria quando ela fosse obrigada a admitir finalmente a sua derrota na pequena guerra que havia instigado.

 

Lamentava estar a contribuir para a humilhação que teria de enfrentar, quando finalmente se rendesse. Mas não havia outro remédio. Teria de aprender da forma mais difícil, que ele tencionava ser o senhor da sua casa e da sua cama.

 

De qualquer modo, fora Emily quem delineara as linhas da batalha, quando fizera aquele impetuoso juramento de não lhe conferir os seus direitos conjugais. Na sua cabeça parecia existir ainda muito de Faringdon, para a levar a pensar que o poderia manipular, reflectia Simon, aborrecido. Mas em breve ele erradicaria esse elemento da natureza de Emily, Ficariam ambos mais felizes e contentes, uma vez que Emily aceitasse o seu novo papel na vida.

 

Entretanto, Simon decidira que não desejava ouvi-la mais a estrebuchar na cadeira. Abriu a boca para ordenar a Emily que viesse para a cama. Mas foi interrompido antes de conseguir falar.

 

- Simon? - A voz de Emily era um doce e hesitante fio de som por entre as trevas. - Estás a dormir?

 

- Não.

 

- Estava a pensar numa coisa.

 

Simon sorriu para consigo, muito satisfeito. É claro que seria ainda melhor se, naquela noite, fosse ela a fazer o primeiro gesto. Gostaria de saber se lhe iria pedir imediatamente para ir com ele para a cama, ou tentaria a táctica mais subtil de lhe dizer que tinha frio e precisava meter-se debaixo dos cobertores. De qualquer modo, facilitar-lhe-ia as coisas.

 

Em que estavas a pensar, Emily?

 

É verdade que provocaste um desmaio em Lucinda Canonbury quando entraste num salão de baile?

 

- Mas de que diabo estás tu a falar? - Simon fitou, espantado, a figura sentada na cadeira.

 

- Numa coisa que Celeste me disse que aconteceu em Londres. Disse-me que todas as meninas casadoiras, incluindo Lucinda Canon-bury, estavam aterrorizadas contigo e com a possibilidade de que as pedisses em casamento.

 

- Nunca reparei que alguma dessas tolinhas tivesse desmaiado por eu entrar no salão de baile - resmungou Simon. É claro que o tinham informado de que a menina Canonbury perdera os sentidos, mas na altura não dera atenção. O salão de baile estava cheio de gente. Na escuridão, Emily soltou uma gargalhadinha.

 

- Bem disse eu a Celeste que era só conversa. Tenho a certeza de que todas as jovens casadoiras estavam perfeitamente fascinadas pela tua pessoa e que provavelmente as irritaste horrivelmente ao nem sequer reparares nelas.

 

Ocorreu a Simon que, de facto, Emily não tinha a menor ideia da reputação que ele gozava na cidade. Como sempre, romantizara a situação.

- Tens razão - disse ele distraidamente. - Tudo isso são tolices.

 

- De repente lembrou-se de uma coisa. Brincou algum tempo com a ideia e depois tomou uma decisão. - Emily, queres ir a Londres?

 

- Oh, sim. Muito. Mas achas que devo fazê-lo? O meu pai sempre me disse que não deveria ir muitas vezes à cidade, pois alguém poderia mencionar o escândalo do meu passado. Não queria embaraçar-te, Simon.

 

- já não há escândalo no teu passado, Emily.

- Não há? - Parecia confusa.

 

- Não. Informei algumas pessoas, incluindo Lorde e Lady Gillingham e Prendergast, que tinham conhecimento da tua pequena aventura de há cinco anos atrás, que esta não deverá voltar a ser mencionada. Isto também é para ti. Naquilo que te diz respeito, Emily, não há qualquer escândalo.

 

- Mas, Simon...

 

- Não vamos discutir esse assunto. Não há mais nada a dizer. E se alguém o tentar mencionar de novo, deves dizer-mo imediatamente. Entendes?

 

- Sim, Simon, realmente penso que... Ele acalmou-se um pouco.

 

- Sei que te agarras à recordação do Infeliz Incidente como tendo sido um dos momentos mais emocionantes da tua vida, mas creio que eu te posso fornecer outros bem mais interessantes, para te lembrares sempre.

 

- Bom, também acho que sim - disse ela candidamente. - Foi por isso que te pedi que casasses comigo. Mas agora, já não tenho tanta certeza. Parece que cometi um erro enorme.

 

- Minha querida, o teu único erro é pensares que me podes controlar, como o fazes com os teus negócios. Saiba que não é assim tão fácil dominar-me, minha senhora.

 

- Que coisa horrível de se dizer.

 

- É verdade. Mas em breve remediaremos o problema. Vais vir ter comigo e pedir desculpa por te teres posto contra mim. Depois, vais implorar para que eu te leve para a cama, e fica tudo bem.

 

- Isso é que era bom!

 

- Creio que estávamos a falar de uma viagem a Londres.

 

- Estávamos a falar da tua insuportável arrogância - retorquiu ela.

- Partiremos para a cidade, logo que possível.

 

- Porquê? - perguntou Emily. - Porque temos agora de ir a correr para Londres?

 

- Porque - respondeu Simon, pensando na profunda gratidão do marquês e da marquesa de Northcote - creio ser este o momento mais oportuno para entrares na sociedade. - Northcote, tal como Peppington e Canonbury, estava agora vulnerável. O marquês poderia ser útil e Simon tencionava usá-lo, a ele e à esposa, para apresentar Emily à sociedade.

 

Emily ficou por momentos em silêncio.

- Achas realmente que sim, Simon? Ele sorriu de novo para consigo.

 

- Sim, - Empurrou a roupa da cama e levantou-se.

 

- Bom, acho que estou a ficar com frio e desconfortável. Terei de insistir para que venhas deitar-te e tragas o cobertor contigo.

 

Emily sentiu-se assustada, quando o viu vir direito a ela e agarrou-se ao cobertor. Espreitou-o, cautelosa, por entre as sombras.

 

- já te disse que não vou permitir que faças amor comigo, Simon. Ele estendeu a mão e puxou-a da cadeira.

 

- Minha querida, podes ficar descansada. Trata-se de um assunto prático, que diz respeito à saúde e ao conforto. Dei-te a minha palavra de que não te obrigaria. - Obrigou-a a pôr-se de pé e começou, metódica e eficientemente a despir-lhe a roupa.

 

- Ah! Achas que te vou implorar para fazeres amor comigo assim que me metas na cama? - perguntou-lhe, enquanto se tentava defender das mãos dele, sem resultado. - Achas que tenho assim tão pouca força de vontade?

 

- Não tens pouca força de vontade, meu amor, - Simon atirou o vestido de viagem para cima de uma cadeira, deixando Emily coberta apenas por uma camisa de musselina. - És voluntariosa, apaixonada e impulsiva. Não é a mesma coisa.

 

Emily deixou de lhe bater nas mãos e fitou-o, semicerrando os olhos para mais claramente lhe divisar o rosto.

 

- Achas que sim, Simon?

 

Ele sorriu por um momento, enquanto lhe pegava ao colo para a levar para a cama.

 

- Tenho a certeza absoluta, minha querida. Mesmo estando tu aborrecida comigo, agora sei que não desejas que eu morra congelado esta noite. Como não podemos ambos usar o cobertor, a menos que durmamos os dois na cama, não há escolha possível. Tens de vir para o pé de mim.

 

Emily suspirou, resignada, e meteu-se rapidamente debaixo do lençol. Ficou rígida, deitada do lado direito da cama, olhando para o tecto, enquanto Simon se estendia a seu lado.

 

- Pronto. A bem da nossa saúde, concordo em dividir a cama. Mas não vais fazer amor comigo, Simon.

 

- Não te preocupes, Emily. Não vou para cima de ti enquanto estiveres a dormir. Contento-me em esperar que venhas ter comigo.

- Isso não vai acontecer, até eu estar convencida que o que sentes por mim está de acordo com o que eu sinto por ti, antes de me teres partido o coração ontem à noite - jurou ela.

 

- Veremos, senhora minha esposa. Entretanto, sugiro que durmamos. Teve um dia muito agitado.

 

- Foi tudo muito emocionante - admitiu ela, bocejando. - Devo dizer que foi muito romântico da tua parte ter vindo atrás de mim, como vieste. Creio que há ainda esperança para nós, Simon.

 

Ele endureceu o queixo.

 

- Por ter vindo atrás de ti? Não ponhas demasiadas esperanças românticas nesse facto. Vim atrás de ti, porque me pertences e eu guardo aquilo que é meu. Nunca mais te esqueças, Emily.

 

Apenas lhe chegou silêncio do outro lado da cama. Simon esperou por uma resposta à sua severa admoestação. Quando tal não aconteceu, voltou-se para o lado e olhou para Emily.

 

Esta dormia profundamente.

 

Simon olhou-a um momento por entre as sombras e depois chegou-a cuidadosamente a si. Sem acordar, Emily acomodou-se junto a ele como se houvesse já muitos anos que dormisse nos seus braços.

 

Minutos depois, também Simon adormeceu.

 

Capitulo 11

SIMON ERGUEU OS OLHOS DOS PAPÉIS que tinha sobre a secretária ao ouvir o ruído de uma movimentação no vestíbulo. Parecia

que a tia e Emily tinham regressado da sua expedição às compras. Curioso acerca dos resultados da ida a Oxford Street, Simon levantou-se e atravessou a sala cheia de dragões com pedrarias. Abriu a porta da biblioteca e sorriu, divertido com o que observou.

 

Os dois criados apressavam-se a pegar numa enorme quantidade de embrulhos que se encontravam ao fundo das escadas. Emily, com um dos seus vestidos matutinos em tom pastel, que trouxera do campo, andava de um lado para outro dando ordens em voz excitada. Os seus caracóis vermelhos estavam parcialmente escondidos por uma touca de palhinha enfeitada com flores e tinha os óculos ligeiramente tortos, encavalitados no nariz.

 

Lady Araminta Merryweather encontrava-se de lado, a observar a cena, evidentemente tão divertida como Simon.

 

- Por favor, levem tudo já lá para cima - dizia Emily, inspeccionando todos os embrulhos que saíam da carruagem. - Digam a Lizzie que desembrulhe já as coisas. Vou subir imediatamente para me assegurar de que está tudo em ordem. Oh., Harry, por favor, tenha cuidado com isso. É a sombrinha mais bonita que já se viu. Tem pequenos dragões verdes e dourados.

 

- Sim, minha senhora - disse Harry, lançando à sua ama um sorriso cheio de dentes partidos que era sabido fazer fugir homens aterrorizados. - Não precisa de se preocupar. Vou tomar conta disto como se fosse uma coisa que tivesse palmado para mim.

 

Para além de alguns dentes, havia mais coisas partidas, e a falta de outras no gordo ex-pirata. A lista incluía o nariz partido, que nunca se curara como devia ser e a falta da mão esquerda, que fora substituída por um gancho de aspecto assustador. Devido ao efeito imprevisível que o criado tinha sobre as visitas, Greaves não permitia que servisse à mesa do jantar, nas raras ocasiões em que Blade recebia em casa. Mas quando o mordomo, seguindo as ordens de Simon, destinara cautelosamente Harry ao serviço da nova senhora da casa, Emily mostrara-se perfeitamente imperturbável ao ver o gancho. Harry fora instantaneamente conquistado.

 

- Muito obrigada, Harry. É muita gentileza da sua parte. Emily ofereceu ao criado um brilhante sorriso de gratidão.

 

Simon viu Harry corar e gaguejar como se fosse um menino da escola e perguntou de repente a si próprio se Emily compreendera que palmar era a palavra que os ladrões utilizavam para roubar.

 

Emily voltou o rosto deliciado para Lady Merryweather.

 

- Tive uma manhã perfeitamente emocionante, Araminta. Como posso agradecer-lhe?

 

- O prazer foi todo meu, Emily. - Araminta recuou quando uma caixa particularmente grande foi trazida para o vestíbulo.

 

- Por favor, tenha o maior dos cuidados, George - instruiu Emily a outro criado que subia os degraus com o embrulho e atravessava agora a porta. Ansiosa, apressou-se a verificar as condições da caixa.

- Veio de Mme. Claude e é o chapelinho mais bonito do mundo. Deu pela presença de Simon à porta e os olhos iluminaram-se-lhe.

 

- Espere para ver, Senhoria. O chapéu é à la militaire e encomendei um belo fato de montar a condizer. Tem dragonas, alamares e todo o tipo de pormenores militares, e vai ser absolutamente espantoso.

 

- Estou desejoso de te ver com ele vestido - disse Simon gravemente.

 

George, o criado, um indivíduo com cara de carrasco que levara uma vida atribulada nas perigosas docas do Extremo Oriente, dirigiu-se às escadas transportando a preciosa chapeleira ao colo, como se fosse um bebé.

 

Emily viu ainda outro embrulho a ser descarregado e apressou-se a avançar para vigiar.

 

- São as minhas botas novas - disse a Simon, para trás. - Comprei ainda vários pares de chinelinhas e sapatos. Foi uma despesa incrível, mas a tua tia disse-me que tinha de ter um par diferente para cada vestido.

 

Simon cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, olhando para a sua elegante tia.

 

- Lady Merryweather é que sabe. Araminta fez-lhe um sereno sorriso.

- Comprei também leques e quatro bolsinhas - continuava Emily a dizer, voltando-se, enquanto subia as escadas. - Volto dentro de minutos.

 

Desapareceu na curva do patamar, com as pálidas saias do vestido esvoaçando atrás de si.

 

Araminta enviou a Simon um olhar risonho, enquanto ele a conduzía para a biblioteca.

 

- É um encanto, Simon, um perfeito encanto, E vai parecer uma dama original, quando estiver convenientemente vestida, Ainda precisa que lhe recordem que deve tirar os óculos quando está em público e que lhe amansem os caracóis com uma tesoura, mas já posso prever que o resultado seja espectacular.

 

- Deixo tudo nas suas mãos, minha tia. Mas repare que não autorizo que use no rosto uma dessas estranhas misturas para disfarçar as sardas, feita de água de mercúrio, chumbo ou enxofre.

 

- Não precisas de te preocupar. Sou apologista dos cosméticos feitos em casa com ingredientes de ervas. Parece-me que gostas das sardas.

 

- Sim - disse Simon. - Gosto. Araminta deu uma gargalhadinha.

 

- Devia ter adivinhado que, quando finalmente escolhesses uma mulher, esta teria de ser fora do vulgar. Ainda nem acredito que é uma Faringdon.

 

- Não é uma Faringdon. Agora, já não. - Simon fechou a porta com firmeza e dirigiu-se à secretária.

 

Araminta deitou-lhe um olhar arguto, sentando-se numa das cadeiras de laca ornamentadas e descalçou as luvas.

 

- Parece-me que ela pensa que não é ainda inteiramente tua mulher. O que quer isso dizer?

 

- Ela disse alguma coisa a respeito de não ser minha mulher? perguntou Simon severamente.

 

- Não, exactamente. Qualquer coisa como que ainda não se sente em total harmonia contigo. Creio que fez um vago comentário a respeito de neste momento ambos se situarem em diferentes planos celestiais. Que diabo se passa, Simon?

 

Simon descontraiu-se.

 

- Nada de preocupante. Emily exprime-se muitas vezes de modo estranho. Adora literatura romântica.

 

- Já reparei. Ouvi falar muito de uma obra épica chamada A Dama Misteriosa, em que parece estar a trabalhar. Já leste?

 

- Disse-me que ainda não estava pronta para ser lida - respondeu Simon secamente.

 

- É espantosa, sabes? Já sabe o nome de toda a criadagem e é patente que todos a adoram. Talvez a devas acautelar, para que não se familiarize tanto com este bando de assassinos e malfeitores que trouxeste contigo do Oriente.

 

Simon não se mostrou preocupado,

 

- Toda a criadagem sabe que responderia directamente perante mim se olhassem sequer para ela de modo impróprio. De qualquer modo, nenhum deles lhe tocará num fio de cabelo. Ela já começou a discutir com o meu mordomo acerca de vários esquemas de investimento para eles. Todos ficaram fascinados com a ideia de fazerem tanto dinheiro honestamente.

 

- Deus do Céu! Investimentos? Para o pessoal?

- Sim, bem sei. É uma ideia nova, não acha? Araminta abanou a cabeça espantada.

 

- Como já te disse, é uma perfeita original. Espera até veres os vestidos que comprou, Simon.

 

- Parece que os prefere de corte modesto e em tons suaves e pálidos - disse Simon, mencionando com ar de aprovação o guarda-roupa campestre de Emily.

 

- já não. - Araminta sorriu. - Daqui para a frente até poderia usar a tua libré nas suas aparições públicas, Simon. Tudo o que comprámos hoje é feito naquilo que ela chama as cores do dragão.

 

Simon olhou para a tia.

- As cores do dragão?

 

- Dourado, verde, negro e vermelho, na sua maioria. - Araminta olhou à sua volta para a biblioteca exoticamente decorada. Não faço ideia onde foi buscar a preferência por aqueles tons. E todos os motivos dos bordados, enfeites e desenho de jóias vão parecer-te muito familiares.

- Dragões?

 

- Na sua maioria. Emily decidiu que seria aquele o seu estilo pessoal e parece que tem planos para mergulhar completamente nele.

- Araminta lançou a Simon um olhar especulativo. - Como te disse, poderia até usar a tua libré ou desfraldar uma bandeira que a proclamasse como sendo tua propriedade particular. Claro que já percebeste que toda a gente vai reparar.

 

Simon sorriu, satisfeito.

 

- Não vejo nisso o mínimo problema. Araminta, poderá tê-la preparada na sexta-feira para o seu primeiro baile?

 

Araminta endireitou-se na cadeira, imediatamente alerta.

 

- Creio que sim. já começaram a receber convites?

 

Sem nada dizer, Simon estendeu-lhe o cartão que chegara nessa manhã. Viu o olhar de espanto que apareceu nos olhos da tia, enquanto o lia.

 

-  O baile do marquês e da marquesa de Northcote - murmurou Araminta num tom estupefacto. - Simon, que maravilha! Que golpe para nós! É o local perfeito para apresentar Emily à sociedade. Logo que se saiba que foi recebida por Lady Northcote, todas as portas se abrirão para ela.

 

- Deve servir a sua finalidade - concordou Simon lacónico.

 

- Mas Simon, como aconteceu isso? Não se pode dizer que tu e Northcote sejam amigos. Ainda por cima, depois do que aconteceu há tantos anos. Porque quereria a mulher dele apresentar Emily à sociedade?

 

- A filha deles tornou-se amiga de Emily devido a estranhas circunstâncias. Para mais, o marquês e a esposa estão muito gratos a Emily.

 

- Gratos? Simon, que se passa?

 

- Estou simplesmente a tratar de que a minha mulher entre confortavelmente na sociedade. Se Northcote não tivesse arranjado as coisas, teria encontrado maneira de conseguir o mesmo objectivo.

 

- Ah, sim? - Araminta lançou-lhe um olhar interessado. - Quem terias usado, se Lady Northcote não se tivesse apresentado?

 

Simon reflectiu um pouco e encolheu os ombros.

 

- Sem dúvida, Peppington ou Canonbury. Decerto um dos dois teria convencido a esposa a cooperar.

 

- Mais dois velhos inimigos. - Araminta fitou-o. - Valha-me Deus, Simon. Começo a perceber o que se passa. Ouvi rumores acerca da tua actual ligação com Peppington e Canonbury. Disseram-me que os manobras bem. Diz-se que estão à beira do desastre financeiro. Qual é a verdadeira história?

 

- Duvido que esteja interessada, Araminta. É um assunto aborrecido, que inclui investimentos em minas, num canal e um mau raciocínio da parte de Canonbury e Peppington.

 

- Ah, Simon - disse Araminta, abanando lentamente a cabeça -, as pessoas têm razão quando dizem que és perigoso e cheio de mistério. Tens na mão três dos homens mais importantes de Londres. já os tens a todos, não é verdade? Northcote, Canonbury, Peppington e Faringdon. Andas a brincar ao gato e ao rato com eles.

 

- Foi um jogo que aprendi a jogar bem no Oriente.

 

Araminta estremeceu delicadamente.

 

- Juro que estou muito satisfeita por estar do teu lado, Simon. Por vezes fazes gelar-me o sangue nas veias. Mas não creio que a tua dama elfo perceba que não passa de um peão no teu grandioso esquema. Continua a falar em querer formar com o seu marido uma ligação metafísica, pura e nobre.

 

Simon fez um gesto aborrecido.

 

- Emily é uma mulher bastante inteligente, mas muitas vezes tem o pensamento turvado por disparates românticos. Em breve aprenderá o seu devido papel de esposa.

 

Emily mergulhou com gosto no encanto, emoção e sofisticação do seu primeiro baile na cidade. O brilho dos lustres, os empurrões das pessoas vestidas no último grito da moda, as danças e as conversas espirituosas deixavam-na ofegante e encantada. Parecia-lhe que toda a gente da alta-roda devia ter sido convidada para a importante recepção da marquesa.

 

Com um vestido de seda verde-esmeralda, mais decotado do que qualquer outro que até então tinha usado, Emily sentia-se extremamente elegante. Calçara sapatos verdes de cetim, com pequenos dragões dourados bordados a condizer com o vestido, tendo também um desses deliciosos animaizinhos dourados no seu novo penteado. Os olhos do dragão eram pequenos rubis. Dois outros dragões pendiam-lhe das orelhas.

 

O cabeleireiro de Lady Merryweather apanhara os caracóis ruivos de Emily numa artística cascata, que lhe caía do alto da cabeça até à nuca. Encaracolara-lhe algumas madeixas de ambos os lados das faces. O conjunto era rematado com um elegante leque onde se via um espectacular dragão pintado à mão, que lhe pendia do pulso, seguro por um cordão dourado, juntamente com as lunetas. Lady Merryweather recusou pura e simplesmente a ideia de ela usar óculos num baile formal.

 

Simon estava à espera no vestíbulo, quando Emily desceu as escadas para sair naquela noite. Examinara a mulher da cabeça aos pés e parecia satisfeito com o que via.

 

- Depois vais ter connosco, Simon? - perguntou Araminta, enquanto ele a ajudava a entrar na carruagem.

 

- Vou uma hora ao clube, mas depois irei ter convosco e acompanho-vos a casa. - Olhou para Emily enquanto lhe dava a mão para a ajudar a subir para o veículo. - Diverte-te, elfo. Não há dúvida de que esta noite és um diamante de primeira água e também a criatura mais invulgar que a sociedade alguma vez possa ter visto. Vais inquietar toda a gente elegante.

 

Emily sorriu abertamente.

- Obrigada, Simon.

 

Ele torceu a boca enquanto fechava a porta da carruagem.

- Vê lá se não te metes em sarilhos.

 

Emily encostou-se ao assento assim que partiram.

 

- Não sei por que razão ele se sente sempre obrigado a dizer-me estas coisas. Mas em que sarilhos me poderia eu meter no baile dos Northcote?

 

Araminta sorriu.

 

- Por vezes tenho a impressão de que Blade nem sempre sabe o que há-de esperar de si, Emily. Mas creio que, afinal, isso é bom. De vez em quando precisa de ser um pouco agitado.

 

- Nada agita Simon - disse Emily com orgulho. - É o homem mais calmo que já conheci.

 

- Sim - respondeu Araminta, olhando pela janela para a rua cheia de gente. - Tem essa reputação. Há quem diga que é mais que calmo, que é frio como uma pedra. Há mesmo quem tenha medo dele.

 

- Devem ser pessoas que não o conhecem bem - disse Emily em tom de confidência.

 

- Oh? E a menina conhece-o bem?

 

- Sim, claro que conheço! Como já lhe disse, comunicamos num plano mais elevado. - Emily franziu a testa pensativa, - Por vezes. Talvez as pessoas se sintam um pouco retraídas devido à sua invulgar criadagem. Têm uma aparência algo estranha, mas são extremamente agradáveis e muito interessantes. Gostaria de saber onde Simon os arranjou. Araminta fez um breve sorriso.

 

- Sabe o que Simon fez para a Companhia das índias Ocidentais, não sabe, Emily?

 

- Penso que os ajudou nuns negócios e que a Companhia lhe ficou muito agradecida, tal como seria devido.

 

- Ficou-lhe de facto agradecida. A sua função foi desencorajar os piratas, que eram uma ameaça constante para os navios da Companhia. Simon usou uma abordagem invulgar para resolver o problema. Emily riu baixinho.

 

- Deixe-me adivinhar. Será que por acaso recrutou ex-piratas para tratar dos actuais?

 

- Foi exactamente isso que fez.

 

- Uma ideia brilhante - disse Emily com satisfação. - E alguns deles vieram como seus criados para Inglaterra.

 

- Se é que lhes podemos chamar criados - disse secamente Araminta.

 

Celeste e a mãe foram extraordinariamente encantadoras e hospitaleiras. Apresentaram Emily a toda a gente e as pessoas fizeram fila para a conhecer. Araminta explicou, num breve intervalo das apresentações, que tudo aquilo se devia ao facto da sociedade se sentir fascinada por ir saber que mulher exótica tinha casado com o conde de Blade. Emily deu uma gargalhadinha por trás do leque, achando graça que a considerassem como sendo exótica.

 

O humor exuberante de Emily durou exactamente até ao momento em que ergueu as lunetas para dar uma rápida olhadela à sua volta e por acaso deparou com Richard Ashbrook que vinha na sua direcção. Ficou imóvel por momentos, invadida por antigas recordações.

 

Agora era Lorde Ashbrook, pensou, enquanto deixava cair as lunetas presas à cintura pelo cordão de veludo. Ashbrook tornara-se barão desde a última vez que o vira, cinco anos atrás.

 

Sempre fora muito bem-parecido, mas agora estava o retrato perfeito do poeta romântico, com os seus caracóis escuros artisticamente cortados, o olhar intenso e pensativo e a figura elegante. Reparou que nos últimos anos conseguira a expressão da boca, que implicava uma mistura apropriada de um fatigado enfado com cinismo. Emily não achava o ar particularmente atraente. Mas também se apercebeu, de repente, que já não achava Ashbrook lá muito interessante.

 

Ao lado do dragão que entrara na sua vida, Ashbrook não passava de um cãozinho de estimação vagamente interessante. Emily interrogava-se acerca do que alguma vez vira nele.

 

- É Ashbrook - murmurou Celeste, entusiasmada. - A minha mãe disse que o tinha convidado, mas eu receava que não viesse. Tem entrada em todas as salas e salões de Londres e é muito difícil atraí-lo. Diz que as soirées e os bailes o aborrecem.

 

Emily ia retorquir, mas Ashbrook estava de súbito diante dela, com a boca torcida num sorriso irónico, os olhos escuros velados sob as pálpebras semicerradas. A sua gravata de um branco sem mácula estava atada com um nó elaborado.

 

- Olá, Emily - disse Ashbrook em voz baixa.

 

- Richard... - Emily estendeu-lhe a mão, interrogando-se de

novo acerca da razão que a levara a achá-lo irresistível. Depois de ter conhecido um dragão, Ashbrook parecia muito manso.

 

- Há quanto tempo - disse com galanteria Ashbrook, que curvou a cabeça morena sobre o pulso dela.

 

- Emily, não me disse que conhece o barão - admirou-se Celeste.

- Lady Blade e eu somos velhos amigos - disse suavemente Ashbrook, sem tirar os olhos de Emily. - Não é assim, Emily?

 

- Conhecidos - emendou Emily mordaz. - Agora se me desculpa, Richard...

 

- Decerto não vai ser tão cruel, que me despeça sem me dar a honra de uma dança. Disseram-me que Lady Northcote permitiu uma valsa esta noite. Creio que é agora.

 

- Mas eu...

 

Demasiado tarde. Ashbrook já a conduzia para a pista de dança. Passou-lhe ousadamente o braço pela cintura e Emily foi arrebatada na música deliciosamente escandalosa da valsa. Era uma dança perfeitamente adequada a uma mulher de paixões excessivas. Emily apenas desejava que o seu par fosse Simon.

 

- Mudou muito, Emily.

 

- Nem por isso, Richard. Francamente parece que me transformei numa criatura completamente diferente.

 

- Sim - declarou. - Metamorfoseou-se verdadeiramente num ser de luz etérea e raios cintilantes, uma criatura que vive noutros planos, creio eu.

 

- Richard, por acaso não estará a citar-se?

 

- Trata-se de um ou dois versos de O Herói de Marliana. já leu?

- Não - disse Emily bruscamente. - Não li.

 

Ashbrook acenou afirmativamente, com uma expressão compreensiva.

 

-  Demasiado doloroso para si, imagino. Alguma vez pensa em nós, Emily?

 

- Raramente.

 

Ele sorriu misterioso.

 

- Minha querida, eu penso muitas vezes em si. E naquilo que há cinco anos perdi para sempre.

 

- Também eu perdi alguma coisa - recordou-se Emily.

- O coração?

 

- A minha reputação.

 

Ashbrook pareceu levemente irritado.

 

- Mas parece que o incidente não lhe afectou as perspectivas matrimoniais. Deu boa conta de si, Emily. Um conde, nem mais. E muito exótico e perigoso.

 

- Blade não é perigoso - disse ela impaciente. - Não consigo imaginar de onde tirou essa ideia a seu respeito.

 

- Pelo que vejo a minha amiga não teme o seu marido.

 

- Claro que não. Nunca me teria casado com ele, se o receasse retorquiu.

 

- Porque se casou com ele, Emily?

 

- Somos almas gémeas, que comunicam num plano mais elevado - explicou.

 

- A minha amiga e eu também partilhámos esse modo de comunicação - recordou-lhe Ashbrook num tom de voz intencional.

 

- Ora! Nem pense em tal. Nessa altura eu era bem mais jovem e não conhecia o verdadeiro significado ou a natureza de uma união metafísica.

 

- E é disso que goza com o seu esposo? Perdoe-me, mas custa-me a acreditar que Blade seja capaz de sensibilidades tão refinadas.

 

- Bom, estamos a tratar disso - resmungou Emily. - Leva algum tempo até se conseguir desenvolver uma perfeita comunicação transcendental, sabe...

 

- Segundo me recordo, connosco foi imediato. Pelo menos da minha parte.

 

- O senhor acha que sim? - Emily ergueu orgulhosamente o queixo. - Então diga-me, por favor, porque foi que naquela noite me quis atacar na estalagem?

 

Ashbrook parou repentinamente na pista de dança, pegou-lhe no pulso e levou-a pelas portas abertas até ao jardim. Depois voltou-se de frente para ela.

 

- Não a ataquei - disse bruscamente. - Fui ter consigo naquela noite, porque a senhora me tinha feito acreditar que os nossos corações estavam já unidos para sempre numa ligação espiritual. Pensei que fôssemos um só, no domínio metafísico, e desejava que o mesmo acontecesse no plano físico. Se tivessemos passado a noite juntos, teria sabido a verdade a respeito de uma união realmente transcendental.

 

Emily franziu as sobrancelhas com ar de dúvida, ao lembrar-se da sua noite de núpcias.

 

- já ouvi a teoria de que o que acontece num plano afecta o que se passa no outro, Richard. Também lhe posso dizer que tenho sérias dúvidas sobre a validade dessa filosofia.

 

- Talvez o seu entendimento da ciência metafísica não esteja tão

 

desenvolvido como poderia estar - respondeu Ashbrook. - Diga-me, Emily, ainda faz tentativas poéticas?

 

Ela hesitou.

 

- Acontece que neste momento estou a trabalhar num poema épico.

 

Ashbrook pareceu divertido.

 

- Vai entrar em competição comigo, não?

 

Emily sentiu-se corar de embaraço. Fosse lá quem fosse, Ashbrook era um poeta com obras publicadas e dela nem um único verso aparecera escrito.

 

- Será difícil - murmurou.

 

- E como vai intitular esse épico?

- A Dama Misteriosa.

 

- Parece muito prometedor - acedeu Ashbrook, pensativo, Emíly fitou-o rapidamente, erguendo as lunetas para ver a sua expressão.

 

- Acha que sim?

 

- Definitivamente. - Ashbrook fez uma pausa com um ar intencional. - Um título excelente. Muito apropriado ao género de pessoas que compram esse tipo de obra. Sabe, Emily, posso até dar uma olhadela na sua obra e ver se de facto parece prometedora. Se assim for, apresento-a com todo o prazer ao meu editor, WhittenstalI.

 

- Richard! - Emily ficou estupefacta com a generosa oferta. Está a falar a sério?

 

- Mas é claro - Ashbrook sorriu com negligente confiança. Creio que uma palavra minha ajudará a atrair a atenção de Whittenstall.

- Richard, seria muita bondade sua. Nem posso acreditar que

 

isto me esteja a acontecer. Tenho de voltar imediatamente a trabalhar n’A Dama Misteriosa. Estava a pensar acrescentar à história um fantasma e uma passagem secreta. O que acha?

 

- Fantasmas e passagens secretas são sempre muito populares. Também eu os usei de vez em quando.

 

- Ainda não permiti que ninguém lesse A Dama Misteriosa. Precisa ser mais trabalhado antes que o veja. - Emily recordou-se de todas as alterações, acrescentos e correcções que queria fazer no poema. - Mas vou começar imediatamente. Richard, isto é tão emocionante. Nem sei dizer-lhe o que a sua oferta representa para mim. Dar-se ao trabalho de me apresentar ao seu editor. Isso ultrapassa tudo.

 

- Parece pouca coisa para fazer por uma velha amiga.

 

- Nem sei como lhe agradecer, Richard!

Ele ergueu um ombro para o encolher de modo desprendido.

 

- Não é preciso agradecer-me. Mas, se achar que deve, pode fazê-lo aparecendo num pequeno salão literário que frequento todas as quintas-feiras à tarde.

 

Emily estava encantada.

 

- Um verdadeiro salão literário de Londres? Adoraria. Sinto a falta das minhas reuniões de quinta-feira à tarde na sociedade literária de Little Dippington. - De repente sentiu-se pouco à vontade. - Mas crê que os seus amigos literatos me quererão lá? Provavelmente são muito mais lidos do que eu e infinitamente mais sofisticados. Muito possivelmente vou parecer-lhes uma rústica.

 

- Nem por sombras - murmurou Ashbrook. - Garanto-lhe que Lady Tumbull e os meus outros amigos a receberão lindamente. Sem dúvida vão achá-la... encantadora.

 

Emily suspirou, feliz.

 

- É quase demasiado. O meu primeiro baile importante, a apresentação num salão literário e a oportunidade de que um verdadeiro editor veja a minha obra. Não há dúvida que a vida na cidade é muito mais emocionante do que a do campo.

 

- Sim - disse Ashbrook. - De facto é. E como mulher casada

- acrescentou em voz baixa - a minha amiga vai ver que tem muito mais liberdade em Londres do que acontecia quando era uma solteirona enterrada no Hampshire. A única regra nesta cidade, minha amiga é a discrição.

 

- Sim, sim, claro! - Emily estava completamente despreocupada com o problema da discrição, simplesmente porque não tencionava cometer indiscrições e muito menos com o homem que despreocupadamente lhe arruinara a reputação. Nenhuma mulher casada com um homem como Blade poderia interessar-se alguma vez por uma criatura tão vã como Ashbrook.

 

Emily franziu a testa, pensativa.

 

- Richard, acredita mesmo que o título é bom? Não sou contrária a alterá-lo se pensa que isso tornaria a minha obra mais interessante para um editor.

 

- Discutiremos isso mais tarde, depois de ter tido ocasião de ler o seu poema - disse Ashbrook, olhando por cima da cabeça de Emily para o salão de baile esplendorosamente iluminado. - E por falar de discrição, creio que deveremos voltar para o baile.

 

- Tem toda a razão. Celeste já deve estar a interrogar-se sobre o que me terá acontecido.

 

Emily rodopiou alegremente para voltar para dentro através das

 

janelas abertas, com o espírito a fervilhar de ideias para A Dama Misteriosa. Ergueu as lunetas para lançar um rápido olhar ao salão e quase chocou com o marido, que se materializou junto a ela, como um enorme bloco de pedra vindo de parte nenhuma.

 

- Oh, olá, Senhoria. - Sorriu para ele. - Estava à espera que chegasse. É tudo tão interessante, não acha? Estou a divertir-me imenso. Acabei de falar com... - Fez uma pausa, olhando de um lado para outro através das lunetas, apercebendo-se que Ashbrook não tinha vindo atrás dela para dentro do salão de baile. - Não interessa. Meu Deus, estás espectacular, Simon.

 

Blade, elegantemente vestido com o seu discreto e severo traje de cerimónia, olhou por segundos, pensativo, sobre a cabeça dela para o jardim. Em seguida baixou os olhos para Emily.

 

- Fico contente por estares a dívertir-te, minha querida. Dás-me a honra desta valsa?

 

- Vão tocar outra valsa? Tinha a impressão de que Lady Northcote apenas autorizara uma esta noite.

 

- Fui implorar-lhe que permitisse outra, para poder dançar contigo. - Simon conduziu-a para a pista de dança.

 

- Simon, que maravilha da tua parte. - Emily respirou fundo, perfeitamente encantada com o gesto.

 

- Também fiquei satisfeito com a ideia. - Arrebatou-a nos graciosos movimentos da dança. - E digamos que Lady Northcote foi muito compreensiva.

 

Todas as ideias acerca de A Dama Misteriosa e dos planos para acompanhar Ashbrook ao círculo literário voaram da cabeça de Emily. Dançava a valsa com o seu amado dragão. Nada poderia ser mais perfeito.

 

Simon deslizava calmamente à volta da sala, consciente de que os olhos de toda a gente estavam sobre ele e sobre a sua jovem esposa. Na manhã seguinte, Emily seria o assunto de todas as conversas na cidade. Ele e Emily faziam um interessante contraste na pista de dança, e Simon sabia-o. O facto agradava-lhe.

O que não lhe agradou foi a centelha de ciúme ardente que sentira, ao ver Enjly, que voltava do jardim com Ashbrook imediatamente atrás dela.

 

Capitulo 12

ADORO A TUA CASA, SIMON - declarou Emily, enquanto valsava sozinha pela biblioteca vermelha, dourada, verde e negra.

Ao mesmo tempo rodopiava à volta dos dragões repletos de pedrarias, estendia a mão para lhes acariciar afectuosamente as cabeças selvagens. A saia verde-escura do vestido pairava-lhe por cima dos sapatos.

 

O baile terminara havia uma hora e tinham levado quase todo esse tempo a ir buscar a carruagem e chegar a casa através das ruas cheias de gente, porém Emily parecia não ser capaz de parar de dançar. Sentia-se tonta, efervescente e transcendentalmente viva. Cantarolava os acordes da valsa que dançara com Simon.

 

- Adoro especialmente esta sala - continuou ela com um aceno intencional. - É perfeita, exactamente como eu imaginava que fosse. Exótica, luxuriante e cheia de objectos misteriosos. - Acariciou o dragão negro e dourado, enquanto passava, a valsar pela lareira.

 

- Não estou surpreendido. Tinha o pressentimento de que haverias de gostar. - Simon serviu dois cálices de brandy e entregou-lhe um.

 

- Isso apenas revela como estamos em sintonia. - Recebeu o cálice da mão dele enquanto passava a dançar. - Vês, Simon? Continuo a dizer-te que comunicamos...

 

- Num plano superior - completou ele. - Sim, minha querida, ouvi-te comentar muitas vezes esse facto. - Ergueu o copo numa breve saudação. - À senhora minha esposa que foi um enorme sucesso esta noite.

 

- Graças a Lady Merryweather. - Emily deu uma gargalhadinha e valsou até ao outro extremo da sala. - E a Lady Northcote, que foi tão simpática. Ela e Celeste apresentaram-me a toda a gente e dancei quase sempre, Simon. Por duas vezes foram valsas.

 

- Araminta disse-me que dançaste a primeira com Ashbrook.

 

Emily lançou-lhe rapidamente um olhar enviesado, ao passar por uma das enormes almofadas de cetim. Gostaria de saber se Simon tinha conhecimento de que fora com Ashbrook que ela fugira, cinco anos atrás. E se soubesse, teria ciúmes, perguntava ela a si própria. Não era muito provável. Simon possuía autocontrole suficiente e era demasiado seguro de si próprio para os ter. Mas sabia que ele tinha coração.

 

- Sim. Ashbrook convidou-me para a primeira valsa. Simon, creio que te devo dizer uma coisa acerca dele.

 

- E o que é? - Simon fitava-a, intencionalmente, sobre a borda do copo.

 

Emily deteve-se diante de um delicado quadro chinês que representava uns cavalos gordos e guerreiros estranhamente vestidos. Observou-os através dos óculos.

 

- Richard foi o homem que pensei amar há cinco anos... aquele com quem fugi.

 

- Mas tu não fugiste com pessoa alguma há cinco anos - afirmou calmamente Simon. - Pensei ter-te explicado que, para todos os efeitos, não havia qualquer Infeliz Incidente no teu passado.

 

Emily voltou-se, surpreendida.

 

- Mas, Simon... Oh, já percebo - disse ela, entendendo de súbito e avaliando o que ele estava a fazer. - Faz parte do teu esquema para me apresentares com sucesso à sociedade, não é verdade? Trataremos ousadamente do problema do escândalo. Negaremos simplesmente que alguma vez tenha acontecido.

 

- Precisamente.

 

- Uma abordagem brilhante - franziu as sobrancelhas, pensativa. - Mas, e se Richard disser alguma coisa a esse respeito?

 

- Não creio que o faça.

 

Emily acenou afirmativamente, reflectindo sobre o assunto.

 

- Provavelmente terás razão. Creio que seria embaraçoso para ele.

 

Simon torceu o canto da boca e os seus olhos cintilaram.

 

- Será um pouco mais do que embaraçoso, creio eu. Digamos que talvez perigoso.

 

- Sim, terá de pensar na sua reputação.

- Entre outras coisas.

 

Emily acenou de novo com a cabeça e continuou a valsar. Lançou a Simon outro olhar especulativo.

 

- Não creio que por acaso tenhas ciúmes de Lorde Ashbrook, pois não?

 

- Por causa do inexistente Infeliz Incidente ou por ele ter valsado contigo esta noite?

 

- Por qualquer das razões - disse Emily avidamente. O seu coração saltou, ao pensar em tais possibilidades.

 

- Deveria ter ciúmes? - A voz de Simon não evidenciava a mínima emoção.

 

- Não, nem por um segundo - garantiu-lhe Emily com veemência. - Cometi um erro bastante tolo há cinco anos. Na verdade apercebi-me de que não queria casar com Richard, imediatamente após termos saído de Little Dippington. Foi muito emocionante até chegarmos à fronteira com Richard a recitar-me a sua mais bela poesia. Mas em breve tive de aceitar o facto de que não o amava. Nunca poderia ter casado com ele.

 

- E a valsa desta noite? Descobriste alguns sentimentos pela sua pessoa, quando te tomou nos braços?

 

- Não. - Emily pôs a cabeça de lado, pensando nas suas reacções. - De modo nenhum. Foi como ter encontrado um antigo conhecido que não via há muito tempo.

 

Naquela altura resolveu que não lhe apetecia contar a Simon a generosa oferta de Ashbrook para lhe ler o manuscrito. Pelo menos por enquanto. Afinal nada tinha sido decidido. Ashbrook poderia declarar A Dama Misteriosa absolutamente impublicável. já seria por demais humilhante que Ashbrook a considerasse pouco adequada.

 

- Percebo. Como encontrar um velho conhecido.

 

- Sim. Precisamente. - Emily cantarolou mais alguns acordes da valsa. - Sabes, Simon? É muito estranho, mas parece que não me consigo acalmar esta noite. Ainda estou excitada.

 

- Deverias estar exausta. - Simon inclinou-se sobre a negra secretária de laca. já tinha despido o casaco e tirado a gravata. A tira de seda branca pendia-lhe solta à volta do pescoço.

 

- Eu sei, mas não estou nem um pouco cansada. - Emily sorveu um gole de brandy- O olhar dela caiu sobre a maior das almofadas com borlas. - Diz-me uma coisa, Simon, trouxeste estas almofadas de um harém turco?

- Não. Acontece que as mandei fazer aqui em Londres. - Bebeu um pouco de brandy. - Agradam-te?

 

- São maravilhosas. - Emily assentou o copo e atirou-se ao comprido para a que lhe estava mais próximo, que era de cetim doirado. Deitou-se de costas, tomando aquilo que pensava ser o tipo de posição lânguida e sensual adoptada por uma dama num harém. - Que tal te pareço? Conseguiria passar pela cortesã de um sultão oriental?

 

Os olhos de Simon moveram-se lentamente, desde a ponta dos sapatinhos de cetim verde com dragões bordados até à cascata de caracóis ruivos no alto da cabeça da mulher.

 

- Talvez - condescendeu, por fim.

 

- Não pareces muito convencido. Talvez os óculos estraguem o efeito. - Retirou-os, colocando-os sobre a mesa de laca mais próxima. Em seguida encostou-se de novo sobre a almofada e experimentou um olhar sedutor sob as pestanas. Simon não passava de uma mancha enorme, do outro lado da sala. - Assim está melhor?

 

- Creio que tens um ar mais autêntico.

 

Emily estendeu-se de lado. A saia do vestido subiu-lhe pela perna, revelando as meias. Apertou os lábios tentando dar-lhes a expressão de odalisca.

 

- Pronto. E que tal agora?

 

- Emily, estarás por acaso a tentar seduzir-me? - perguntou Simon em voz baixa.

 

- Bom, quanto a isso... - ajudava-a não conseguir distinguir-lhe claramente a expressão do rosto. Emily sentia o calor subir-lhe às faces, enquanto reflectia cuidadosamente sobre a pergunta. - Sim, creio que sim - susteve a respiração à espera da resposta.

 

- Esta noite estás com uma disposição muito estranha, não é verdade?

 

- Sinto-me feliz, Simon - disse ela acenando com a mão como se quisesse abarcar o mundo inteiro. - Sinto-me como se flutuasse. Tive a noite mais emocionante, mais maravilhosa, de toda a minha vida.

 

- E agora queres concluí-la convencendo-me a fazer amor contigo. Emily suspirou e deixou-se cair de costas, com os braços erguidos por cima da cabeça. Contemplou a mancha que era o tecto.

 

- já te disse, Simon, sou uma criatura de paixões excessivas. Talvez as minhas sensibilidades tenham sido superestimuladas pela excitação de toda esta noite.

 

- É uma possibilidade.

- Simon?

 

- Sim, Emily?

 

Ela respirou fundo.

 

- Da última vez que fizemos amor disseste-me que eu não tinha gozado bem o que havia para apreciar.

 

- Se bem me lembro, disse-te que era preciso prática - murmurou ele.

 

Ela voltou-se para o lado e ergueu-se, apoiada no cotovelo.

 

- Sim. Prática. Creio que gostaria bastante de praticar esta noite. Houve uma leve pausa. Depois ouviu-se a voz de Simon, baixa, velada e sedosa como uma ameaça sensual.

 

- Também te disse outra coisa, Emily.

 

Emily sentou-se na almofada, puxando os joelhos para baixo do queixo, de modo que as saias esvoaçaram à volta dos dedos dos pés. Procurou o cálice de brandy. Quando o encontrou, sorveu um gole enorme, voltando a colocá-lo cuidadosamente sobre a mesa. Depois passou os braços à volta dos joelhos erguidos.

 

- Disseste-me que teria de te implorar para fazeres amor comigo - disse, por fim Emily, apertando os joelhos com muita força.

 

- Basta que me peças com delicadeza. A questão, minha querida, é que não desejo ouvir acusações amanhã de manhã. Não vais poder dizer que te enganei.

 

- Não o direi, Simon! - Ficou à espera, num misto de agonia ansiosa e incerteza. - Simon?

 

- Sim, Emily?

 

- Por favor, fazes amor comigo?

 

Uma estranha quietude estabeleceu-se na sala escura e exótica. Ouviu-se um ligeiro tilintar e Emily apercebeu-se de que Simon acabara de colocar o cálice em cima da secretária. Viu-o aproximar-se dela. Sem os óculos, não conseguia vislumbrar-lhe o semblante, mas sentia em todo o corpo um formigueiro de excitação. Sentia a aura pesada e envolvente da sua masculinidade e sabia que isso apenas se passava porque comunicavam de facto num plano superior.

 

Simon deteve-se junto à enorme almofada de cetim, parecendo o dragão mais poderoso numa sala repleta de tais criaturas. Sem pronunciar palavra, baixou-se ao lado de Emily e tomou-a nos braços.

 

Lenta e deliberadamente, empurrou-a de novo para o brocado dourado. Inclinando-se sobre ela, olhou-a no rosto, Estava agora tão próximo, que Emily conseguia ver o dourado brilhante dos seus olhos.

 

- Tens a certeza de que é isto que queres? - Simon acariciou-lhe a delicada linha do rosto com o polegar.

 

- Sim - murmurou ela, quase incapaz de pronunciar essa palavra, dado o aperto que sentia na garganta. Invadia-a de novo aquela estranha sensação ofegante, como sempre acontecia quando Simon a tomava nos braços. - Por favor, Simon.

 

- Muito bem, Emily. - Curvou a cabeça e beijou-lhe ardentemente o seio exposto pelo grande decote do vestido de baile. - Mas amanhã pela manhã lembra-te de que a ideia foi tua.

 

-  Sim, Simon. - Envolveu-lhe lentamente o pescoço com os braços. Fez depois um sorriso trémulo. - Sabes que não foi assim tão desagradável como provavelmente pensaste que foi.

 

- O que é que não foi assim tão desagradável? - Fez deslizar-lhe pelo ombro a manga fofa do vestido.

 

- Implorar-te que fizesses amor comigo. - O sorriso dela transformou-se numa gargalhada exuberante. - Não foi absolutamente nada desagradável.

 

- Ainda bem. - Simon baixou-lhe o corpete do vestido, libertando-lhe um seio em forma de maçã. Acariciou-lhe o mamilo com o indicador. - Talvez assim me peças outra vez.

 

- Espero que sim - disse Emily, complacente. - Se for uma experiência tão transcendental como prometeste.

 

Simon deu uma risada rouca que se transformou num gemido.

- já estou a ver que desta vez tenho de fazer tudo como deve ser. Emily estremeceu, ao sentir que o dedo dele lhe descrevia um

 

círculo na ponta do seio. Estremeceu, inquieta, deslizando no brocado de cetim. A boca de Simon desceu sobre a dela ao mesmo tempo que ele lhe apertava as coxas com uma das pernas.

 

Emily abriu os lábios e a língua de Simon deslizou para o calor da sua boca. Sentia o sabor do brandy que ele acabara de beber. Simultaneamente, o cheiro dele invadia-lhe o espírito. Apertou os braços à volta do seu pescoço e tentou instintivamente arquear as ancas junto às dele.

 

- Não - murmurou Simon, quebrando o contacto com a boca dela. - Desta vez vamos fazer as coisas muito devagar. - Desapertou-lhe o corpete do vestido, puxando o tecido brilhante até à cintura.

 

Emily tinha agora os olhos fechados, mas sentia o calor dos dele, que lhe fitavam os seios. Ardia, queimando-a e aquecendo-lhe o sangue. A enorme almofada onde se reclinara parecia uma nuvem dourada, extensa e fofa. Afundava-se nela ainda mais, enquanto Simon deixava que parte do seu peso descesse sobre ela.

 

- Tens uma pele maravilhosa, Emily. Suave, delicada, própria para que se lhe toque. Simon salpicou-a de beijos leves e húmidos, desde o pescoço até ao seio. Fechou ao de leve os dentes sobre o mamilo e a mão deslizou-lhe por baixo do corpete já descido do vestido.

 

Emily susteve a respiração. Voltou-se sob a mão dele, desejando já um toque mais íntimo.

 

- Simon?

 

- Não. Ainda não. já te disse que desta vez não vou apressar as coisas. Desta vez vou controlar-me e tu ficarás enlouquecida, elfo.

 

Puxou-lhe o vestido de baile e o fino saiote por cima da cabeça. Depois

 

estendeu a mão e desapertou-lhe habilmente as ligas. Passou-lhe intimamente a mão pelas curvas das pernas, enquanto lhe retirava as meias. Emily voltou o rosto em chamas para a sua camisa branca e pregueada, agarrando-se a ele. Simon riu baixinho, tocou-lhe nas nádegas e apertou-as levemente.

 

Emily tinha consciência do toque do cetim dourado sob as costas e ancas. Era maravilhosamente uma pagã.

 

-- Agora já pareço uma odalisca?

 

Simon sorriu lentamente, passando os dedos pelo triângulo de cabelos ruivos no alto das suas coxas.

 

- Uma dama muito rara e invulgar para se encontrar num harém

- concordou ele. - Atingirias de facto um preço muito alto, se fosses leiloada.

 

Ela ergueu os olhos, fitando-o por entre as pestanas, sentindo-se deliciosamente impúdica.

 

- Vendias-me?

 

- Nunca! - garantiu-lhe ele, com a voz mais severa. Os dedos apertaram-se possessivamente sobre os caracóis ruivos. Depois recuou um pouco.

 

Emily abriu os olhos, ao senti-lo afastar-se.

- Passa-se alguma coisa?

 

- Nada, meu amor. Vou só pôr-me um pouco mais cómodo. Simon despiu a camisa e tirou a gravata que ainda estava pendurada. Em seguida levou as mãos ao fecho das calças. Num instante ficou gloriosamente nu. As chamas da lareira cintilavam nos contornos musculosos dos seus ombros e coxas, mostrando como estava excitado.

 

- Geralmente, os paxás despem-se quando fazem amor com um dos membros do seu harém - disse Simon, voltando para junto de Emily.

 

Esta deu uma gargalhada, ao sentir-se de novo empurrada para a almofada.

 

- Tenho de avisar Vossa Senhoria de que não vou tolerar mais residentes no meu harém particular. Só eu.

 

- Então serei forçado a ter um harém com uma só mulher?

 

- Receio bem que sim. Não faço tenções de vos dividir com outra - sorriu, maliciosa. - Nem penso que tal seja necessário.

 

- Tem então intenções de me manter muito ocupado? - Fez deslizar ardentemente a mão ao longo da coxa e fitou-a com um olhar que provocou uma onda de calor no seu pescoço e seios.

 

- Muito ocupado - prometeu Emily em voz rouca, enrolando os pêlos do peito dele nos seus dedos, adorando sentir a textura áspera e a sensação dos fortes músculos por baixo da sua pele. - Simon, és tão belo - murmurou maravilhada.

 

- Não, elfo, tu é que és bela. Os teus seios são perfeitamente adequados às minhas mãos. - Acariciou um, passando o polegar pelo mamilo até que ela estremeceu. - A tua boca serve perfeitamente na minha. - Beijou-a profunda, completa e embriagadoramente, até ela tentar soltar-se. - E o interior das tuas coxas é mais macio e quente do que qualquer outra coisa que eu tenha visto. - Passou-lhe a mão no interior das pernas.

 

Emily gemeu, ao sentir as pontas dos dedos de Simon tocarem-lhe com intimidade escaldante. Agarrou-se-lhe aos ombros fortes e encostou-se a ele. Uma sensação profunda e dolorosa de necessidade florescia rapidamente dentro dela. Todo o seu corpo começava a desejar a explosão libertadora que já experimentara nas mãos de Simon.

 

- Ainda não - murmurou Simon. Pegou-lhe nas mãos agitadas, passou-lhe os braços para cima da cabeça, agarrando-a pelos pulsos. Em seguida inclinou-se e beijou-lhe as pálpebras. - Juro que desta vez não me vais enlouquecer. Desta vez serei eu a controlar as coisas e aprenderás a apreciar este assunto de fazer amor.

 

- Eu aprecio, Simon. Francamente, aprecio. - Emily ergueu as ancas procurando o seu calor. já o desejava verdadeiramente.

 

- Vai ser ainda melhor - prometeu ele. Continuando a agarrar-lhe os pulsos por cima da cabeça, afastou-lhe as coxas, instalando-se entre as suas pernas.

 

Emily instintivamente e esforçou-se por soltar as mãos, de modo a poder passar-lhe os braços à volta do pescoço e apertá-lo junto a si.

 

Simon olhou-a e sorriu lentamente.

 

- Agora vou largar-te os pulsos, mas não podes mexer-te.

 

- Não sejas parvo. Não posso ficar quieta - disse Emily, ofegante.

- Então vou dar-te uma coisa para te ajudar. - Simon apanhou a gravata de cima do tapete. Passou a faixa de seda pelos pés em forma de garra do pesado sofá que se encontrava mesmo por trás da cabeça de Emily. Depois, colocou as pontas da gravata nos dedos esticados de Emily.

 

- Agarra-as bem - disse-lhe Simon, enquanto os dedos dela se agarravam instintivamente à seda.

 

Confusa, mas ansiosa por continuar com as coisas, Emily obedeceu e agarrou uma ponta da seda branca e engomada, em cada mão.

 

- E agora? - perguntou, impaciente.

 

- Agora tens de puxar com toda a força a minha gravata, sempre que não conseguires resistir ao desejo de te mexeres. Não te preocupes, que não consegues puxar o sofá. É muito pesado e a gravata é feita de seda muito forte.

 

Com os braços esticados por cima da cabeça, Emily olhou para o marido.

 

- Que raio, Simon, não quero brincar com a tua gravata.

 

- Faz o que te disse! - ordenou-lhe com uma gargalhada profunda. - És a odalisca de um harém, lembras-te? As damas dos haréns fazem sempre aquilo que lhes mandam.

 

- Mas, Simon.--- CIM - Emily gemeu e os seus dedos cerraram-se obedientes na tira de seda quando sentiu a língua de Simon no centro da curva macia do seu estômago.

 

- Lembra-te, puxa a gravata com força, quando já não conseguires aguentar. - Simon baixou-se mais, agarrando firmemente as ancas de Emily. Apertou-a com força, enquanto deixava o interior da sua coxa.

- Simon. - Emily ficou imóvel com o choque.

 

- Assim é melhor. Agora não te mexas. Estás esticada e tensa como a corda de um arco. Maravilhosamente curva e vibrando ao meu toque. -- A mão dele moveu-se a todo o comprimento do corpo dela, fazendo-a estremecer. Tinha agora a boca no interior da sua coxa.

 

- Simon!

 

- Puxa a gravata com mais força - ordenou ele em voz baixa. Depois beijou-a de novo, ainda com maior intimidade. - Mais, Emily. O tumulto de sensações que ameaçava inundar Emily era espantoso e confuso. Sentia-se como se fosse afundar-se num mar quente. Mal conseguia respirar, quanto mais pensar. Obedecia cegamente às ordens que Simon lhe murmurava.

 

Emily agarrou ferozmente a seda branca, puxando-a com toda a força. A sensação de aperto e torção na parte inferior do seu corpo tornava-se ainda mais intensa.

 

- Puxa com mais força, Emily. Tens de usar agora toda a tua força. Puxa o mais que puderes. - O dedo de Simon deslizou na sua fenda húmida e chupou suavemente a pequena protuberância erecta de carne feminina extremamente sensível.

 

- Com mil raios! - Emily encontrava-se no centro de uma tempestade sensual. Reagia às ordens murmuradas por Simon, puxando violentamente o bocado de seda. Quanto mais puxava, mais sentia que poderia a qualquer momento explodir em chamas.

 

- Só um pouco mais, Emily. Puxa só um pouco mais. Estás agora muito molhada, muito apertada. Pronta. Estás quase. Acho que tens de puxar um pouco mais a gravata. Sim, é isso mesmo!

 

Emily ofegou ao sentir o membro forte de Simon a tentar entrar-lhe no corpo. Agarrando-se fortemente às pontas da gravata, ergueu os olhos e através das pestanas viu-o sobre si.

- Simon!

 

- Não largues a seda, Emily. - Introduziu-se lentamente dentro dela. - Estás muito apertada, elfo. Mas desta vez não sentes qualquer dor, pois não?

 

- Não, não, oh, Simon, não creio que consiga aguentar isto disse, sufocada. Os seus dedos esmagavam a seda branca.

 

- Não? - Começou a sair de novo de dentro dela.

 

- Simon não me deixes. - Sentia-se em pânico, só de pensar que ele se poderia afastar, deixando-a à beira daquela experiência maravilhosamente transcendental.

 

- Não tenho qualquer intenção de te deixar, elfo. E tu também nunca me deixarás, pois não? - Simon voltou lentamente para dentro dela.

- Não. Nunca. Nunca te deixarei, Simon. Oh, com mil raios!

 

- Aperta mais a gravata, Emily. Só mais um pouco.

 

já estava dentro, invadindo-a, tornando-se parte dela. Emily não aguentava mais. Sentia o corpo convulsivo.

 

- Simon!

 

Ouviu-se o som distante do rasgar da gravata de seda de ponta a ponta. Emily libertou os braços e agarrou-se a ele, enquanto os espantosos tremores da sua libertação a percorriam da cabeça aos pés.

 

Ouviu o grito de satisfação de Simon, rouco e exultante, enquanto o sentia meter-se violentamente dentro dela. Sem pensar, Emily agarrou-o enquanto as ondas de paixão os levavam para o fundo de um mar quente.

 

Muito tempo depois, Emily sentiu Simon agitar-se nos seus braços. Abriu preguiçosamente os olhos, sentindo-se demasiado lânguida para se mexer.

 

-- Parece-me que tenho de ir comprar uma gravata nova - observou Simon, enquanto rolava para o lado. Sorriu, ao pegar nas tiras rasgadas de seda branca de que aquele complemento extremamente elegante tinha sido feito. Agitou as pontas diante do nariz de Emily.

 

- Minha senhora, nem imagina a força que tem.

 

- Parece que não. - Ela riu-se e soprou uma das fitas de seda, que flutuou no ar. - Por acaso não seria uma das suas gravatas favoritas?

- Precisamente. Estou desolado com a perda.

 

Emily deu uma gargalhadinha. Espreguiçou-se, sentou-se e cruzou os braços, descansando neles o queixo.

 

- Vou tentar compensar-te por isso.

 

- Vai fazer falta um enorme esforço da tua parte. - Os dentes de Simon cintilaram, num sorriso malicioso.

 

- Sabes uma coisa, Simon? Creio que darias um belo paxá. Por vezes tens qualquer coisa de bárbaro.

 

- Não sou bárbaro, de maneira nenhuma. - Simon passou-lhe a mão pela nuca, puxou-a para junto de si e beijou-a. - De facto, pode dizer-se que sou até muito civilizado. Até um pouco aborrecido.

 

- Nunca.

 

- Achas que não? Bom, deixa-me dizer-te isto, minha apaixonada esposa. Pelo menos por uma vez, gostaria de fazer amor contigo numa cama, e não no chão da biblioteca. Que tal? Não te pareço sério e sossegado?

 

- Na cama? - Emily franziu a testa. - Parece-me muito normal e pouco imaginativo. Vou corrigir. Afinal, Vossa Senhoria parece-me ser um pouco aborrecido. Que surpresa. Decerto me enganou.

 

- Megera! - Empurrou-a de novo para as profundezas do cetim dourado e beijou-a ruidosamente.

 

O beijo tinha a intenção de fingir ser um castigo, mas transformou-se numa coisa muito mais potente. Emily entregou-se-lhe com alegre abandono, antes que Simon a interrompesse, para a fitar com olhos que já não estavam divertidos. Pelo contrário, tinham-se tornado extremamente vigilantes.

 

- Então, Emily? Foi mais ou menos aquilo que esperavas do acto de amor? - perguntou-lhe em voz baixa.

 

- Claro que sim, Simon. Desta vez senti-me realmente à deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor. - Sorriu timidamente, sabendo que provavelmente o seu coração se lhe reflectia nos olhos. Foi maravilhoso... uma experiência verdadeiramente metafísica. Extraordinariamente estimulante para a sensibilidade. Estou desejosa de repetir. Simon gemeu e deixou-se cair para trás a rir.

 

- já deveria saber que uma mulher de paixões excessivas, como tu, seria perfeitamente insaciável. - Sentou-se e a seguir pôs-se de pé, estendendo a mão para a camisa. - Vem, minha esposa, vamos lá para cima, comportar-nos por uma vez que seja, como um casal civilizado.

 

- Que ideia excelente, Senhoria. - Emily pegou nos óculos e ajustou-os no nariz. - Que bom. Lá no seu quarto há uma gaveta cheia de gravatas.

 

- É verdade! - Simon olhou para a mulher, que apenas tinha em cima os óculos e voltou a sorrir. - Prometo-lhe, minha senhora, que vai ficar positivamente estupefacta com a versatilidade de uma gravata bem feita.

 

Era quase de madrugada e Simon não conseguira adormecer. O corpo esguio e quente de Emily estava aconchegado ao seu e sentia-lhe o perfume misturado com os odores do recente acto de amor. Ainda tinha entre os dedos uma tira de seda branca que atravessava o peito dele.

 

Simon era de opinião que, daquela vez, tinha tratado muito melhor do assunto. Mantivera o juramento de deixar que Emily viesse ter com ele. Ela fizera-o, rendendo-se docemente, com uma graça feminina que o encantara. Mais importante ainda, fora ele quem controlara as coisas até ao momento em que se permitiu satisfazer-se. Tentando manter a cabeça fria e ser objectivo quanto à situação, Simon concluía que a sua relação com a noiva era agora como devia ser. Emily aprendera que ele lhe podia dar prazer quando fazia amor com ela e que também era capaz de um inabalável autodomínio.

 

Fora forçada a reconhecer que, naquela união, a dele era a vontade mais forte. Valera a pena esperar pelo momento exacto. Mostrara ter razão, ao aguardar que ela sucumbisse, quer a sua inevitável curiosidade, quer a um sentimento inicial de paixão. A partir dali, mandava ele e Emily deveria sabê-lo.

 

Era necessário que a mulher respeitasse a força de vontade do marido, principalmente quando se tratava de uma ex-Faringdon.

 

- Simon? - Emily falava em voz lânguida.

 

- Pensei que estivesses a dormir, elfo.

 

- Estava. Mas lembrei-me agora de que te queria dizer uma coisa. Tive uma conversa com Lady Northcote esta noite. - Emily bocejou. Simon ficou imediatamente alerta.

 

- Ah, sim? E o que discutiram?

 

- Bom, estava a agradecer-lhe o ter-me convidado para o baile e ela garantia-me que seria o mínimo que poderia ter feito, pois eu tinha salvo Celeste de Nevil. Também parecia pensar que me devia essa atenção devido a qualquer coisa que acontecera no passado entre o pai de Northcote e o teu.

 

- Ela disse-te isso?

 

- Foi tudo muito vago, mas é evidente que lhe garanti que não precisava de se preocupar mais com isso.

 

Simon ficou imóvel.

 

- O que é que lhe disseste exactamente, Emily?

 

- Apenas que qualquer obrigação que pudesse ter existido no passado fora mais que amplamente paga com a delicadeza de me ter apresentado à sociedade. Foi tão simpática para mim, Simon, que não suporto que pense que me deve alguma coisa. Certamente não quero uma amizade baseada num sentimento de obrigação.

 

- Disseste-lhe então que a dívida estava totalmente paga?

 

- Sim. Precisamente. E devo dizer-te que ficou muito aliviada.

- Com mil raios - resmungou Simon. - Aposto que sim. E decerto não é nada comparado com o modo como Northcote se sente agora.

 

- Bom, espero que sim. São um casal tão simpático. E ele que pensava controlar a situação.

 

Paciência, consolava-se Simon. Northcote fora o menos importante dos quatro. Afinal, fora o pai do actual marquês, e não ele, que ignorara a carta que Simon escrevera havia vinte e três anos.

 

Simon. sentia-se obrigado a admitir que Lady Northcote fizera um óptimo trabalho, ao apresentar Emily. Talvez que afinal a dívida de Northcote estivesse completamente paga,

 

- Emily - disse o mais severamente possível - de futuro, não faças promessas nem assumas compromissos em meu nome sem primeiro me consultares. Está bem?

 

- Perfeitamente, Simon. Mas, neste caso, sabia que não te importarias. Decerto que se tratava de um antigo mal-entendido.

 

- Aí é que te enganas, elfo. Northcote e eu entendemo-nos perfeitamente.

 

Capitulo 13

-ENTÃO, BLADE? - perguntou calmamente o marquês de Northcote. - A minha mulher disse-me que a sua crê que aquela antiga dívida se encontra já saldada. É verdade?

 

Simon baixou lentamente o jornal e fitou Northcote com um olhar frio. Os sons familiares e controlados das conversas masculinas, o ruído dos jornais e o tílintar suave das garrafas atrás de si indicavam uma tarde animada no clube. Mas ele e Northcote tinham aquele canto da sala só para si.

 

- A minha mulher divertiu-se muito ontem à noite - disse Simon, sem qualquer inflexão especial. - Lady Merryweather garantiu-me que Emily foi muito bem apresentada à sociedade. Por favor, transmita os meus agradecimentos a sua esposa.

 

Northcote sentou-se no cadeirão ao lado de Simon e estendeu a mão para a garrafa de porto que se encontrava no extremo da mesa. Serviu-se de um copo.

 

- Não falo das nossas esposas e o meu amigo bem o sabe. Estou a perguntar-lhe se os problemas entre nós estão saldados.

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Parece que sim. Um marido tem de honrar as promessas e obrigações da esposa e Emily parece ter tomado a peito que eu o deixasse em paz. - Voltou de novo ao jornal.

 

- Que diabo, Blade, não se ponha com esses jogos comigo. Diga-me apenas se considera saldada a antiga dívida.

 

- Dou-lhe a minha palavra que sim. - Simon não ergueu os olhos da sua busca das últimas notícias da Europa. Mas sentiu o ddecote descontrair-se a seu lado.

 

- Obrigado, Blade. O senhor é conhecido por ser duro como o aço, mas a sua palavra é igualmente sólida. A minha mulher ficou quase histérica naquela noite na estalagem. Estava convencida que Celeste ficara com o futuro destruído por esse caçador de fortunas.

 

- Parto do princípio que se tenha ocupado desse maldito Nevil.

- Nos tempos mais próximos não voltará a Londres - confirmou Northcote, não sem alguma satisfação.

 

- Então está tudo bem. - Simon passou a página.

 

Do outro cadeirão chegou-lhe um prolongado silêncio, enquanto Northcote bebia o porto. Depois disse em voz baixa:

 

- Pode não acreditar, Blade, mas lamento o que aconteceu há muitos anos. Peço-lhe que desculpe o comportamento do meu pai. Simon baixou o jornal e fitou o olhar firme de Northcote. Deixou

 

passar mais algum tempo em silêncio, para depois fazer um curto aceno, surpreendido pelo pedido.

 

- Considere o assunto resolvido.

 

Northcote estendeu as pernas, enquanto observava o cálice de porto.

- Fui o último, não é verdade? Acabou por nos apanhar a todos. Eu, Canonbury e Peppington. E, claro, Faringdon. Foi diabolicamente inteligente da sua parte, Blade. Lamento que o meu pai não tenha vivido o suficiente para apreciar a sua habilidade.

 

- Partilho desse sentimento - disse Simon, com fingida sinceridade.

 

- Levou-lhe bastante tempo a descobrir um modo de exercer pressão sobre mim. Descobrir a minha filha na estalagem naquela noite foi para si um golpe de sorte.

 

- Foi útil - concordou Simon, servindo-se também de um cálice de porto. - Mas, mais tarde ou mais cedo haveria de acontecer alguma coisa. Basta saber-se esperar.

 

- E o meu amigo sabe esperar com paciência. Tenho consciência de que conseguiu sair-se airosamente. Estou aliviado por apenas ter desejado de mim os conhecimentos sociais da minha mulher. Se o meu pai ainda fosse vivo, imagino que teria exigido um pagamento bem maior por aquilo que lhe fez.

 

- Sim.

 

Northcote suspirou.

 

- Se lhe serve de consolação, há dois anos, antes de morrer disse-me para me manter alerta em relação a si. Disse que um dia o meu amigo haveria de voltar e, quando isso acontecesse, seria perigoso. Quando obrigará Canonbury e Peppington a pagar?

 

- Prefiro mantê-los algum tempo na expectativa.

 

- Viver com incerteza financeira é o seu verdadeiro castigo, não é verdade?

 

Simon bebeu do seu porto.

 

- A vingança saboreia-se melhor lentamente, sem exageros.

 

- Uma tortura lenta e firme, - Northcote sorriu tristemente. Uma vingança do tipo oriental, creio eu. Só tenho mais uma vez a agradecer que a sua esposa seja uma mulher impulsivamente generosa.

 

- De futuro vou manter-me vigilante em relação aos seus gestos impulsivos - garantiu Simon secamente.

 

Northcote sorriu.

 

- Lady Blade fez uma deliciosa entrada no mundo social.

- já me disseram.

 

- Blade, devo dizer-lhe que, tanto a minha mulher, como a minha filha gostam sinceramente da sua esposa, apesar de estar casada consigo. Qual o papel dela na sua vingança?

 

- Não está envolvida - disse Simon laconicamente.

 

- Mas é uma Faringdon - fez notar Northcote, com olhar arguto.

- já não - disse Simon.

 

- Não me escapou que ela agora lhe pertence, bem como St. Clair hall. - Northcote hesitou. - O meu pai, Canonbury e Peppington portaram-se mal consigo pois voltaram-lhe as costas a si e à sua família depois da morte do seu pai. Mas os Frívolos e Volúveis Faringdon foram os piores. Foi um Faringdon que causou o suicídio de seu pai; foi um Faringdon que lhe tirou a casa e destruiu realmente a sua família. Mas, no fim, o meu amigo há-de esmagar Broderick Faringdon e o seu clã, não será assim?

 

- É uma conclusão lógica - concordou Simon, em tom neutro. Mas a minha mulher já não pertence a essa família.

 

- Sabe, Blade, sinto-me extremamente grato que a ofensa do meu pai tenha sido relativamente menor e que considere a dívida saldada

- disse Northcote com algum humor, - Neste momento não gostaria de ser um Faringdon-

 

Emily saiu da Livraria Asbury sentindo-se extraordinariamente satisfeita. Seguiam-na Lizzie, a sua criada, e George, o criado de rosto lúgubre, transportando nos braços uma colecção dos últimos romances e obras de poesia épica, que Emily acabara de seleccionar na loja.

 

O pequeno cortejo dirigiu-se ao local onde a carruagem dourada e negra os esperava, junto do passeio. George apressou-se a abrir a porta à sua ama, quando um familiar Adónis louro saltou de um veículo próximo e se aproximou a correr.

 

- Olá, Em. Imagina, encontrar-te aqui.

 

- Deviin! - Emily sorriu de felicidade para o seu belo irmão. Que bom ver-te. Onde está Charles?

 

Deviin lançou um olhar pouco à vontade aos criados e depois deu o braço à irmã, afastando-a um pouco. Baixou a voz.

 

- É por causa de Charles que tenho estado à espera de uma oportunidade para te falar, Em. Aconteceu uma coisa terrível.

 

- Valha-me Deus! - Os olhos de Emily abriram-se desmedidamente de súbito terror. Ocorreu-lhe que nunca Deviin lhe parecera tão preocupado. - Foi ferido? Está doente? Diz-me, Deviin. Está... está morto?

 

- Ainda não - disse Deviin. rudemente. - Mas provavelmente será assim que vai estar dentro de pouco tempo.

 

- Então está doente. Valha-me Deus, tenho de ir imediatamente ter com ele. Rápido, entra na carruagem, Dev. Mandaste chamar o médico? Que sintomas tem ele? - Ia voltar para trás, mas deteve-se, quando o irmão lhe agarrou de novo o braço.

 

- Espera, Em. Não é isso. Charles não está exactamente doente.

- Deviin fez uma expressão zangada aos criados e ao cocheiro. Todos três lha Devolveram. Deviin baixou a voz algumas oitavas. -- Podes bem saber toda a verdade, Em. Vai bater-se em duelo daqui a dois dias.

 

Emily levou à boca a mão enluvada.

- Com mil raios!

 

- Não vai ser nada bom, Em. Claro que Charles e eu praticámos alguma coisa na Galeria Manton, mas só Deus sabe que nenhum de nós tem grande jeito. - Deviin abanou a cabeça. - Sou um dos padrinhos. Andamos à procura do outro.

 

- Não acredito. - Emily estava agitada. - Quem o desafiou?

- Bom, o desafio partiu de Charles - admitiu Deviin. - Foi necessário, sabes, para lavar a honra,

 

- Meu Deus! Mas quem desafiou ele? - perguntou Emily.

 

- Um extremista chamado Grayley. Esse homem já se defrontou duas vezes em duelo e venceu ambos. Feriu gravemente os seus oponentes nas duas ocasiões, mas sobreviveram ambos, de modo que o escândalo não foi grande. O problema é que não há qualquer garantia de que Grayley não mate Charles. Dizem que foi uma sorte os outros dois terem sobrevivido. O homem é um atirador cruel.

 

- Não posso acreditar - murmurou Emily. Deviin olhou-a.

 

- Olha, Em, sei que não devo privar com a tua família, agora que estás casada com Blade. Mas, caramba, és nossa irmã. Pensei que deverias despedir-te de Charles.

 

Emily endireitou os ombros.

 

- Tenciono fazer mais do que despedir-me dele. Tenciono terminar com essa loucura. Leva-me imediatamente ao sítio onde se encontra, Dev. - Voltou-se e dirigiu-se à carruagem.

 

- Deixa-te disso, Em, não há maneira de deter o assunto - Deviin apressou-se a segui-la. - Como te disse, trata-se de uma questão de honra.

- Que absurdo! É uma questão de imbecilidade. - Emily subiu

 

para a carruagem, seguida de Lizzie e do irmão. Sabia que, tanto a criada, como o feroz George olhavam para Deviin com ar reprovador, mas resolveu ignorá-los.

 

- Dá a direcção da tua residência ao cocheiro, Deviin. - disse ela firmemente.

 

Deviin ergueu a portinhola no tecto da carruagem para dar as instruções. Depois deixou-se cair no banco em frente de Emily e Lizzie.

- Com mil demónios. Espero estar a fazer o que é devido,

 

- Claro que estás! - Emily franziu o sobrolho. - Onde está o pai?

- Logo de manhã fui aos aposentos dele, mas não estava. Disseram-me que a casa ia estar fechada esta semana. Tinha ido para o campo com os amigos, Teve má sorte ao jogo. Não há tempo para o encontrar e trazê-lo comigo. - Deviin proferiu um profundo suspiro. Também não haveria qualquer vantagem em o localizarmos.

 

Emily abriu a boca para lhe fazer outra pergunta, mas viu o olhar de aviso da parte de Deviin e deteve-se. Percebeu que o irmão a avisava silenciosamente para não deixar que Lizzie soubesse o que estava a acontecer. Emily encostou-se ao assento e esperou com crescente impaciência que a carruagem chegasse à residência de Charles e Deviin.

 

A porta abriu-se assim que o veículo parou. George parecia mais assustador que nunca.

 

- Com as minhas desculpas, minha senhora, mas tem a certeza de que é aqui que quer ficar?

 

Emily olhou para trás.

 

É esta a direcção, Dev?

 

Sim. - Saltou atrás da irmã, com a bengala na mão. Usou-a para bater de novo no banco do cocheiro.

 

- Espere aqui pela sua ama. Não vai demorar.

 

- Sim, senhor! - Mas o cocheiro parecia ter tantas dúvidas como George.

 

Emily não deu atenção a qualquer dos olhares reprovadores que recebia da criadagem, enquanto subia os degraus, pelo braço do irmão. Momentos depois entrava nos aposentos partilhados pelos gémeos.

 

Olhou com curiosidade à volta do confortável ambiente masculino. Tinha consciência de que os irmãos levavam na cidade uma vida de solteirões descuidados, mas nunca vira o local onde moravam.

 

Da janela redonda avistava-se o parque; duas secretárias estavam cheias de papéis amontoados, havia ainda uma mesa de bebidas e dois enormes cadeirões de cabedal,

 

Charles Faringdon estava descuidadamente sentado numa dessas cadeiras, tentando acabar uma garrafa que tinha a seu lado. Semicerrou os olhos azuis ao ver a irmã e o irmão entrarem pela porta.

 

- Mas que diabo está ela a fazer aqui, Dev? - Charles bateu com toda a força com o copo na mesa.

 

- Que pergunta tão tola, Charles. - Emily sentou-se no outro cadeirão, espreitando ansiosamente o seu atraente irmão.

 

- Tinha de vir.

 

- Dev nunca deveria ter-te trazido. - Charles pôs-se de pé num salto e começou a andar de um lado para outro na pequena sala. - Não é nada contigo.

 

- Tinha de a trazer. - Deviin atravessou a sala, para se servir de uma bebida que tomou de um só gole. - Tem o direito de se despedir de ti.

 

- Ao diabo tudo isto, quem disse que vou bater as botas depois de amanhã? Pode ser que seja Grayley a ir desta para melhor, - Charles olhou primeiro para o irmão e depois para Emily. - Não devias ter vindo, Em. Sei que pensas que me podes convencer a sair disto, mas não há maneira.

 

- Mas por que diabo desafiaste esse tal Grayley para um duelo? perguntou Emily em voz baixa. - Foi por causa de um jogo de cartas?

- Nem penses nisso - resmungou Deviin, servindo-se de outra bebida e fazendo uma pausa dramática. - Foi uma mulher.

 

Emily não acreditava no que ouvia. Fitou Charles com um olhar estupefacto.

 

- Vais defrontar-te em duelo por causa de uma mulher? Que mulher?

 

- O nome dela não deverá ser mencionado - declarou Charles, com entoação solene. - Basta dizer que é tão inocente e pura como um cordeiro recém-nascido e que foi grosseiramente insultada. Não tenho outra opção, a não ser exigir satisfações.

 

- Valha-me Deus! - murmurou Emily, afundando-se mais na cadeira. Esforçou-se por pensar. - Estás apaixonado por ela?

 

- Estou. E, se sobreviver a este confronto, tenciono pedi-la em casamento.

 

- Não te serviria de grande coisa pedir - disse Deviin do seu lugar junto à janela. - já se diz que os nossos dias estão contados. Toda a gente sabe que Blade fechou os cordões à bolsa e tu, eu e o nosso pai estamos sem dinheiro,

 

- Maryann casa-se comigo mesmo que eu esteja sem um tostão. Ama-me.

 

- Bom, a mãe e o pai dela não - disse Deviin abruptamente. Charles lançou um olhar zangado ao irmão.

 

- Preocupo-mo com isso depois. Emily não há-de voltar as costas para sempre à família, pois não, Em? O pai diz que, mais cedo ou mais tarde, hás-de tomar conta dos malditos negócios. Afinal de contas ainda és da família. És uma Faringdon, por amor de Deus!

 

- Neste momento a tua situação financeira é a menor das minhas preocupações - disse rapidamente Emily. - Temos de arranjar maneira de impedir esse duelo. Pura e simplesmente, não te podes defrontar com esse tal Grayley, Charles.

 

- Não tenho outra alternativa - disse Charles com enorme decisão. Pegou na garrafa. - Afinal, trata-se da honra de uma senhora.

- Mas, Charles, podes muito bem ser morto por esse homem

 

horrível. - Emily começou a sentir-se desesperada, ao aperceber-se de que o irmão tencionava levar a cabo aquela acção. - Seja como for, os duelos são ilegais.

 

- Toda a gente o sabe, Em - disse Deviin irritado. - Isso não interessa. A honra de um cavalheiro está acima da lei.

 

Emily olhou primeiro para um, depois para o outro irmão, sentindo-se aflita.

 

- Tencionas levar isto a cabo, não é verdade, Charles?

- Não tenho escolha.

 

- Deixa de dizer isso - retorquiu Emily. - Tens escolha. Decerto poderás pedir desculpas a esse tal Grayley.

 

- Valha-me Deus! Nem sequer sugiras um pedido de desculpas.

- Charles parecia estar verdadeiramente chocado. - Um cavalheiro tem de cumprir o seu dever, quando está em jogo a honra de uma senhora.

 

- Com mil raios! - proferiu Emily, aborrecida. Ergueu-se e dirigiu-se à porta. - já vi que não vale a pena falar contigo a este respeito.

 

- Espera, Emily - disse Deviin, seguindo-a. - Onde vais?

- Para casa.

 

- Adeus, Em - disse Charles em voz baixa, atrás dela. Ela deteve-se e voltou-se para ele.

 

- Charles, não digas isso. As coisas vão correr bem.

 

Charles lançou-lhe o encantador sorriso dos Volúveis e Fracos Faringdon.

 

- Sim, mas para o caso de tal não acontecer, quero que saibas que sempre gostei muito de ti, irmãzinha. E espero que sejas feliz.

 

- Oh, Charles, obrigada. - As lágrimas queimavam os olhos de Emily. Arrancou os óculos e limpou-as com as costas da mão enluvada. Em seguida, atravessou a sala e beijou o irmão ao de leve na face. - Vai correr tudo bem. Verás.

 

Voltou-se apressadamente na direcção da porta, com o cérebro a fervilhar, tentando resolver o que haveria de fazer a seguir. A resposta era óbvia, pensou enquanto George a ajudava a subir para a carruagem. A situação era desesperada. Iria direita a Simon e pediria a sua ajuda. Decerto que ele compreenderia.

 

O seu dragão trataria de tudo.

 

Afinal, Emíly teve de conter os seus ímpetos por mais de uma hora, enquanto esperava que Simon voltasse a casa. Quando Lizzie subiu finalmente e lhe disse que Blade estava na biblioteca, Emily deu um salto e praticamente voou pelas escadas abaixo. Harry, o criado que não tinha mão, saltou, para lhe abrir a porta.

 

- Simon, graças a Deus que chegaste - disse Emily correndo pela sala. - Tenho de falar imediatamente contigo.

 

Simon olhou-a, divertido, enquanto se erguia delicadamente.

 

- já me contaram. Creaves disse que perguntaste por mim de dez em dez minutos na última hora. Porque não se senta, minha senhora, toma fôlego e me diz de que se trata?

 

- Muito obrigada. - Emily afundou-se na cadeira mais próxima, enormemente aliviada. - Trata-se de Charles. Aconteceu uma desgraça, Simon.

 

A divertida indulgência desapareceu do olhar de Simon. Sentou-se, encostou-se na cadeira e tamborilou com os dedos na superfície envernizada da secretária.

 

- Estamos a falar de Charles Faringdon?

 

- Claro. De que outro Charles haveria eu de falar?

 

- Pergunta interessante, dado o facto de eu te ter dito determinadamente que não deves ver a tua família, a menos que eu esteja presente.

 

Emily ignorou a frase com um aceno impaciente.

 

- Oh, isso agora não vem ao caso. Depois de teres ouvido toda a história, hás-de entender que isto agora é muito sério.

 

- Estou desejoso de te ouvir.

 

- Ora bem, encontrei Deviin na rua à porta da Livraria Asbury, e ele levou-me a ver Charles. Disse-me que provavelmente não o voltaria a ver com vida.

 

- Quem? Charles?

 

- Sim, Simon. Aconteceu uma coisa terrível. Charles está a pensar bater-se em duelo com um homem chamado Grayley. É provável que ele mate o meu irmão. Pelo menos, vai ficar gravemente ferido. Deviin. diz que esse tal Grayley já se defrontou em dois outros duelos, baleando os seus oponentes. Tens de o impedir.

 

Simon fitou-a com os olhos semicerrados.

 

- Disse-te para não ires sozinha ver os teus irmãos.

 

- já sei, Simon, mas trata-se de um assunto de vida ou de morte. Entendo que não gostes deles em particular, mas decerto verás que tens de pôr de lado os teus sentimentos pessoais e fazer alguma coisa por esta desgraça.

 

- Porquê?

 

Emily olhou-o perplexa.

 

- Porquê? Simon, Charles é meu irmão. E não percebe praticamente nada no que respeita a defrontar-se em duelos.

 

- Suponho que em breve aprenderá.

 

- Enlouqueceste? Não é uma brincadeira! Tens de o salvar dessa loucura. Pode morrer.

 

- Duvido. Provavelmente Grayley há-de contentar-se em feri-lo. É um atirador suficientemente bom para evitar matar o teu irmão. Não vale a pena. A morte do adversário obrigá-lo-ia a sair do país e não tem qualquer vontade de o fazer.

 

Por um momento, Emily ficou sem fala. Quando finalmente a recuperou, disse em tom fraco:

 

- Simon, por favor, não troces de mim. Tens de me prometer que vais salvar Charles.

 

- Parece-me que a senhora não percebeu uma questão muito importante.

 

- Que questão? - perguntou Emily queixosa.

 

- Não me importo nada com o que aconteça a Charles ou a qualquer outro Faringdon. Parece que o seu irmão vai ser o primeiro da família a chegar ao Inferno e eu não tenho a mínima intenção de lhe impedir o caminho.

 

Os nós dos dedos de Emily ficaram brancos, da força com que se agarrou aos braços da cadeira.

 

- Não podes estar a falar a sério.

 

- Claro que estou, minha querida. Devia ter sido muito claro contigo desde o princípio, mostrando-te que não tenho o mínimo interesse em salvar os Faringdon. Se não te apercebeste, foi por não teres tomado atenção.

 

- Mas, Simon, tinha a certeza de que haverias de salvá-lo.

 

- Ah, sim, minha querida? Talvez pensasses que só porque agora dormes comigo como esposa, me podes manipular? Acreditas que esteja tão confundido com os teus encantos na cama, que te permita controlares-me fora dela? Se pensas assim, tens ainda muito que aprender a respeito do teu marido.

 

O tom gelado da pergunta e a acusação nela implícita invadiram Emily como um vento frio. Ergueu-se, trémula, da cadeira.

 

- Tinha tanta certeza de que haverias de me ajudar - repetiu, incapaz de acreditar naquela rejeição.

 

- Já tomaste conta dos valdevinos dos teus irmãos o tempo suficiente, Emily! - Simon lançou-lhe um olhar aborrecido. - já é tempo de aprenderem a tomar conta de si próprios.

 

- Mas são meus irmãos!

 

- Não lhes deves nada. - Simon pôs-se de pé atrás da secretária, com o olhar mais frio que nunca. - Menos que nada. O duelo em que se haveriam de ter defrontado deveria ter tido lugar há cinco anos. O facto de tal não ter acontecido, não me provoca qualquer inclinação para os ajudar neste.

 

- Não sei de que estás a falar. - Emily dirigiu-se cegamente à porta. - E também não me importa. Não posso acreditar que não me ajudes a salvar Charles. não consigo mesmo acreditar. Tinha tanta certeza...

 

- Emily! - A voz de Blade parecia um chicote a estalar, numa sala cheia de dragões.

 

Emily fez uma pausa com a mão no puxador. Acendeu-se nela uma centelha de esperança.

 

- Sim, Senhoria?

 

- Já te disse uma vez, mas parece que queres que eu repita.

 

É tempo que entendas que já não és uma Faringdon. Ao casares-te comigo, cortaste toda a ligação com a tua família. Agora só farás aquilo que eu te disser.

 

Emíly nem tentou dar resposta àquele espantoso comentário. Saiu pela porta sem pronunciar palavra.

 

Subiu desanimada as escadas e foi para o quarto, onde se sentou numa cadeira junto à janela. Olhando para os jardins, entregou-se por algum tempo à autocomiseração e às respectivas lágrimas.

 

Quando acabou de chorar, dirigiu-se à mesa onde estava colocado o jarro de água, despejou-o na bacia e lavou a cara. Depois olhou-se ao espelho. Tinha de fazer alguma coisa imediatamente.

 

já com os olhos secos, Emily sentou-se à sua pequena escrivaninha e pegou na pena. Distraidamente afiou a ponta com uma pequena faca, enquanto considerava as possíveis soluções para o enorme problema com que se defrontava.

 

Momentos depois, o óbvio tornou-se claro. Tinha de arranjar maneira de se assegurar que Charles não chegasse a esse encontro de madrugada. Tinha de se aplicar a descobrir um plano que o evitasse, tal como se aplicava a inventar o enredo para uma história de romance e aventura.

 

As ideias começaram a chegar-lhe de imediato e Emily delineou rapidamente um esquema particularmente brilhante. Começou a sentir-se muito melhor quando o esboço daquele assunto começou a tomar forma.

 

Pareceu a Simon que o ruído do relógio da biblioteca era muito mais alto do que o costume. De facto, o silêncio da sala tornava-se opressivo. Agora, que pensava no assunto, toda a casa lhe parecia invulgarmente sossegada.

 

Era estranho como ultimamente os humores de Emily pareciam afectar o pessoal. Homens endurecidos, que tinham caminhado com sangue até aos tornozelos, andavam agora a assobiar ou com cara de caso, dependendo de a ama estar alegre ou triste. Era ridículo.

 

Simon levantou-se da secretária e foi para junto da janela. Parecia-lhe que, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável que o elfo percebesse que a sua indulgência tinha limites. Emily tinha uma perturbadora tendência para percorrer jovialmente a vida, aplicando as suas tolas ideias românticas a tudo e todos. Era naturalmente optimista, sempre em busca de finais felizes.

 

Também tinha o mau hábito de acreditar que o podia convencer a fazer tudo o que queria. Essa crença tinha-se tornado consideravelmente mais forte, desde a sessão na noite passada, ali na biblioteca.

 

O olhar de Simon faiscou por segundos, ao olhar para a almofada de cetim onde Emily estivera deitada nos seus braços, com os dedos agarrando desesperadamente a seda branca. Sentiu o corpo excitado com a recordação. Nunca na vida conhecera uma criatura que lhe provocasse tais sensações, como aquele fascinante elfo de olhos verdes.

 

- Senhoria?

 

Simon pestanejou para afastar a imagem e recuperou o domínio sobre si próprio. Voltou a cabeça para olhar para o mordomo, que se encontrava à porta.

 

- Que se passa Greaves?

 

- Peço perdão por incomodar Vossa Senhoria. Bati, mas parece que Vossa Senhoria não me ouviu.

 

- Estava perdido nos meus pensamentos - disse Simon, impaciente. - O que queres?

 

Greaves sorriu discretamente, com o rosto cheio de cicatrizes parecendo mais assustador que de costume.

 

- Creio que há uma coisa de que Vossa Senhoria deve ter conhecimento. Ah... Lady Blade deu certas instruções a George, o criado.

- Que instruções? - Simon voltou para a secretária.

 

- Pediu a George que lhe descobrisse um membro da classe criminosa que fosse especializado na arte de raptar pessoas.

 

Simon ergueu rapidamente o olhar, fitando o mordomo com ar estupefacto.

 

- Raptar? Tens a certeza?

 

- A certeza absoluta, Senhoria. George estava horrorizado, como Vossa Senhoria poderá calcular. Veio imediatamente falar comigo e eu vim logo ter com Vossa Senhoria. Parece que a minha senhora deseja entrevistar um patife de sucesso que ande à procura de emprego temporário. Talvez ande a fazer investigações para o seu poema épico, Senhoria.

 

- E talvez tenha decidido tratar de determinados assuntos pelas suas próprias mãos - resmungou Simon. Sentou-se à secretária e pegou em papel e na pena. Escreveu rapidamente uma nota.

 

Minha Senhora

 

Estou interessado no trabalho que especificou. Poderemos encontrar-nos no Passeio Escuro, em VauxhalI, hoje à meia-noite. Traga um leque branco. e poderemos discutir as condições.

 

Cumprimentos X. P.S. Use a carruagem de seu esposo e faça-se acompanhar pela sua criada.

 

Simon releu a nota, dobrou-a cuidadosamente e entregou-a a Greaves.

 

- Vê lá se Lady Blade a recebe dentro de uma hora. E não te preocupes, Greaves. A situação está controlada.

 

- Sim, Senhoria. - Greaves parecia mais aliviado.

 

Simon esperou que o mordomo abandonasse a sala, antes de se levantar e se servir de um copo de clarete.

 

Era isto que acontecia, quando se permitia tudo às mulheres. As coisas já tinham ido longe de mais. Era tempo de Emily aprender uma lição muito importante.

 

Capitulo 14

OS FOGOS-DE-ARTiFíCIO que iluminavam o céu sobre Vauxhall Gardens eram uma grave distracção, não só para Lizzie, como também para Emily. Esta nunca vira tal espectáculo e, apesar das suas preocupações, parava de vez em quando para olhar as centelhas luminosas. Cascatas de luz desciam dos céus, as explosões sibilavam, abafando parcialmente os crescendos da enérgica orquestra e as aclamações da multidão.

 

Era um espectáculo emocionante e Emily teria ficado absolutamente cativada se não tivesse assuntos mais importantes entre mãos.

- Deus nos acuda, minha senhora. Nunca vi nada assim em Little

 

Dippington. - Lizzie olhava abismada enquanto outro foguete de luz iluminava o céu da noite.

 

- Sim, já sei, Lizzie. É maravilhoso, mas não podemos perder tempo. Temos de encontrar o Passeio Escuro.

 

- É por aqui, lá no fundo do relvado, minha senhora - disse Lizzie imediatamente. - É mesmo muito escuro e estreito, não como este onde estamos. É rodeado por árvores e arbustos. Diz-se que há jovens que são levadas para o bosque e desonradas.

 

Emily lançou à criada um olhar suspeito.

 

- Como sabes tu do Passeio Escuro, Lizzie?

 

- George, o criado, trouxe-me aqui na noite em que os senhores foram ao baile dos senhores marqueses - confidenciou Lizzie com um alegre sorriso. - E comprou-me um sorvete.

 

- Percebo. - Emily apertou com mais força o xaile à volta dos ombros, tentando parecer severa, mas não pôde deixar de lançar um olhar invejoso à sua criada. O pensamento de comer um sorvete e de se passear no Passeio Escuro com Simon era o suficiente para fazer reviver todos os seus impulsos românticos. - Então sabes indicar-me o caminho?

 

- Por aqui, minha senhora.

 

Lizzie saltitou por entre as sombras. Emily seguiu-a, olhando à sua volta, pouco à vontade. Quanto mais ela e a criada se afastavam dos atalhos principais, menos lanternas os iluminavam. Risinhos breves e femininos, bem como gargalhadas masculinas chegavam vindos do bosque, de ambos os lados do caminho.

 

Por fim, Emily e Lizzie chegaram ao Passeio Escuro, limitado por árvores. Por aqui e por ali passeavam casais, perdidos num mundo só seu. Um jovem num atalho adiante de Emily, inclinou a cabeça e disse qualquer coisa ao ouvido duma rapariga. Esta riu, olhou para todos os lados e depois seguiu o seu par para dentro dos arbustos. O casal desapareceu imediatamente.

 

- É como lhe digo, minha senhora. Há assaltantes por todos os lados, à espera de apanharem jovens inocentes - murmurou Lizzie em voz emocionada.

 

- Fica ao pé de mim, Lizzie. Não quero que te apanhem. Onde encontrava eu uma criada tão boa como tu?

 

- Acho que é verdade.

 

Naquela altura já não se via ninguém. Emily olhava à sua volta e apenas via os bosques envoltos na noite. Involuntariamente, chegou-se mais à criada.

 

- Não se esqueça de mostrar o leque, minha senhora - disse Lizzie, parecendo um pouco mais receosa agora, que já se encontravam no Passeio Escuro. - George disse que de maneira nenhuma se esquecesse de o levar. Disse que seria a forma como esse bandido profissional poderia reconhecer a senhora.

 

- Oh, sim. O leque. - Emily abriu apressadamente o leque branco enfeitado com um elegante dragão. energicamente.

 

- Espero que George soubesse o que estava a fazer, quando contratou uma pessoa da classe criminosa.

 

- Sem ofensa, minha senhora, mas espero que a senhora saiba o que está a fazer. Se me dá licença, acho muito estranho estarmos aqui.

- Não sejas impertinente, Lizzie! - Mas a verdade é que Emily

 

começava a concordar com ela. O plano parecera-lhe perfeito quando o delineara, na segurança do seu quarto, mas admitia agora que tinha algumas dúvidas. Não estava assim muito à vontade para tratar com assassinos profissionais. Um súbito movimento lá adiante no atalho sobressaltou-a.

 

- Com mil raios! - Emily abafou um pequeno grito, quando subitamente um rapaz saiu a correr dos arbustos e se deteve diante dela. Lizzie deu um grito de susto e agarrou-se ao braço de Emily.

 

- É a senhora do leque branco? - perguntou o rapaz.

 

- Sim - respondeu Emily, tentando acalmar o seu pulso acelerado. - Quem é o senhor?

 

- Não interessa. Tem de entrar pelos arbustos imediatamente, e sozinha. - O rapaz lançou a Lizzie um olhar significativo.

 

- E eu? - perguntou Lizzie assustada.

 

- A menina fica aqui e espera que a sua patroa volte - disse o rapaz bruscamente. Depois deu meia volta e desapareceu dentro do mato.

 

Lizzie fitou Emily desesperada.

 

- Não quero ficar aqui sozinha, minha senhora.

 

- Acalma-te, Lizzie. Vais ficar bem. Fica aqui no meio do atalho.

- Mas, minha senhora...

 

- Tens de ser corajosa, Lizzie. - Emily deu umas palmadinhas no braço da criada, para a sossegar e depois endireitou os ombros. Desejava que houvesse ali alguém para a acalmar a ela.

 

Precisou de coragem para sair do caminho e entrar no bosque cheio de sombras. A escuridão aumentava, à medida que os ramos baixos se fechavam à sua volta. Emily segurava com força o leque, como se este fosse um talismã, e espreitava com atenção os arbustos cerrados. Não pôde deixar de se lembrar do que lhe dissera a criada acerca dos assaltantes que se escondiam naqueles bosques.

 

Quando a voz masculina profunda e rouca chegou até ela, vinda de trás da enorme árvore que ficava à sua direita, Emily saltou vários centímetros para diante.

 

- É a senhora que quer contratar um raptor?

 

Emily engoliu em seco, consciente da súbita humidade nas palmas das suas mãos.

 

- Exacto. E... presumo que o senhor seja... uh, o vilão profissional à procura de trabalho.

 

- Depende do que a senhora quiser que eu faça.

 

- Nada assim muito difícil - garantiu Emily ao homem da voz rouca. - Um pequeno rapto, como sem dúvida o meu criado já lhe disse. Há um cavalheiro que eu gostaria de ver fora da cidade por uns dias. Não quero que lhe faça mal, mas simplesmente que o esconda por, digamos, cinco dias. Poderá fazê-lo?

 

- Vai custar-lhe caro.

 

Emily descontraiu-se um pouco. Aquele era território familiar. Aparentemente os negócios do mundo do crime eram semelhantes aos da sociedade.

 

- Compreendo. Estou disposta a pagar uma soma razoável, naturalmente. Mas antes que me diga o seu preço, deixe-me esclarecer que não há qualquer perigo neste trabalho. É de facto um trabalho muito simples.

 

- Cinco dias, porquê?

 

- Como disse? - Emily franziu a testa.

 

- Porque quer que esse cavalheiro desapareça durante cinco dias? - repetiu a voz rouca, parecendo já impaciente.

 

- Isso não é da sua conta - disse Emily bruscamente. - Mas é aproximadamente o tempo que imagino vai levar a esclarecer um problema aqui na cidade. Quando as coisas ficarem resolvidas aqui, Charles já poderá... isto é, o cavalheiro poderá, voltar à sua residência.

 

- A senhora não passa de uma mulher. Como planeia tratar desses assuntos para esse tal parceiro? Ou será que também me quer contratar para esse efeito?

 

- Oh, não, não precisarei dos seus serviços para tratar do problema principal - reclamou Emily com ar despreocupado. - O meu marido vai em breve ocupar-se de tudo. Vai encarregar-se dos pormenores. Quando tudo estiver terminado poderá libertar o meu ir... o tal senhor.

 

Houve uma nítida pausa do outro lado da árvore. Quando a voz rouca voltou a falar parecia um pouco espantada.

 

- O seu marido vai tratar das coisas?

- Claro.

 

- Se assim é, porque diabo não está aqui esta noite? Porque não trata ele do rapto?

 

Emily aclarou a garganta.

 

- Bom, quanto a isso, ele está um pouco aborrecido comigo neste momento. Não aprova totalmente os meus esforços para salvar o tal senhor. Mas em breve aparecerá. Só precisa de algum tempo para pensar no assunto.

 

- Maldição, minha senhora. O que a leva a pensar que ele vai mudar de ideias? - perguntou a voz rouca, parecendo irritada. - Pensa que é a senhora que manda nele? Pensa que ele está tão encantado consigo que basta levá-lo para a cama por um dedo e ele faz o que a senhora quiser? Emily endireitou-se com orgulho.

 

- Nada tem a ver com aquilo que ele sente por mim. O meu marido é um homem honrado e fará o que está certo. Só precisa de algum tempo para pensar no assunto. E acontece que eu não tenho muito tempo.

 

- Talvez ele pense que não é muito importante salvar esse cavalheiro - disse a voz bruscamente.

 

- Bom, acontece que é e ele em breve o perceberá. O cavalheiro é um jovem que por acaso se meteu em sarilhos e vai muito provavelmente ser morto antes de conseguir livrar-se do problema. O meu marido não o permitirá.

 

- Raios - murmurou a voz. - Não foi isso que ouvi. Ouvi que o seu marido é muito duro, que não se deixa levar por uma mulher. Parece-me que não vai fazer nada por esse tal cavalheiro, mas que lhe há-de dar uma boa lição, isso sim!

 

- Disparate - disse bruscamente Emily. - O senhor nada sabe do meu marido. É um verdadeiro cavalheiro. Por vezes fica um pouco confundido, mas creio que acontece o mesmo com todos os homens. Vamos agora tratar do nosso negócio. Qual é o seu preço?

 

- Aposto que é mais do que o que a senhora tenciona pagar respondeu a voz.

 

- Quanto?

 

- E se eu lhe dissesse que o preço dos meus serviços era uma voltinha sobre a palha? - A voz parecia subitamente selvagem. Emily ficou gelada, pela primeira vez verdadeiramente assustada naquela noite. Recuou um passo.

 

- Se se atrever a repetir uma coisa dessas, queixar-me-ei ao meu marido, que lhe há-de partir o maldito pescoço.

 

- Ah, sim? - A voz escarnecia.

 

- Pode ter a certeza - declarou ferozmente Emily. - O meu marido  protege o que é seu. Se se atrever a tocar-me, garanto-lhe que ele não terá descanso até o apanhar. Duvido que sobreviva um dia que  seja.

 

- Cristo! Já estou a tremer de medo, senhora. - A voz vacilava.

- E é para estar. - Emily ergueu o queixo. - Se estiver a pensar em cometer alguma traição, saiba que deixei uma carta no meu quarto. Nela conto ao meu marido precisamente o que vim fazer esta noite. Se me fizer mal, ele irá ter com George, que foi o homem que o contratou a si. George revelará a sua identidade. Não terá a mínima possibilidade de escapar à fúria de Sua Senhoria. Entende?

 

- Não - disse Simon em tom lúgubre saindo de trás da árvore.

- Mas começo a acreditar que é meu destino ser incapaz de entender essas tuas estranhas acções.

 

- Simon! - Emily ficou estupefacta com a figura alta e escura envolta no sobretudo. - Que diabo fazes tu aqui?

 

- Raios me partam, se o sei. Creio que tinha uma vaga ideia de te pregar um bom susto e de te dar uma lição, de que bem necessitas, Mas, surpreendentemente, é difícil fazê-lo, quando insistes em ameaçar-me comigo próprio.

 

- Simon, sabia que haverias de me ajudar a salvar Charles.

- Emily atirou-se-lhe nos braços. - Sabia que apenas precisavas de algum tempo para pensar no assunto. Não poderias deixar o meu pobre irmão defrontar-se em duelo.

 

Simon apertou-a contra si, por um momento.

 

- Deveria dar-te uma sova e fechar-te um mês no teu quarto, por teres elaborado este plano louco. Sabes isso, não sabes? Valha-me Deus, mulher, que história é esta de arranjares bandidos profissionais? Tens alguma ideia daquilo em que te ias meter? E logo um rapto.

 

- Sei que Vossa Senhoria está aborrecida comigo - disse Emily com a voz abafada pela lã grossa do casaco dele. - Mas tem de entender que o tempo era essencial. Sabia que acabaria por vir ter comigo, mas tinha de fazer alguma coisa para salvar Charles imediatamente. Estava apenas a tentar ganhar um pouco de tempo, para que caísse em si e entendesse que tinha de me ajudar a salvar o meu irmão.

 

- E suponho que acreditas que será isso que eu vou fazer? perguntou Simon calmamente.

 

Emily ergueu a cabeça para olhar para o seu rosto oculto pela sombra.

- Não acredito que o deixes arriscar-se a morrer, Simon. Não acredito que o odeies. Nada teve com o que aconteceu há muitos anos. Era apenas um rapazinho.

 

- Os pecados dos pais... - citou Simon em voz baixa.

 

- Que absurdo. Se isso se aplica, então é tão verdade para mim, como para Deviin e Charles. E não me tornaste responsável por aquilo que aconteceu há vinte e três anos, pois não?

 

Simon respirou fundo e deu-lhe um suave empurrão em direcção ao atalho.

 

- Discutimos isso depois.

 

Emily olhou para trás, enquanto ele a seguia, e saíam do bosque.

- Que vamos fazer agora, Simon?

 

- Parece que só me resta ver o que posso fazer para salvar esse patifório do teu irmão. já percebi que não terei paz enquanto não o fizer.

- Obrigada, Simon.

 

- É bom que te lembres, elfo, que este é o único favor que tenciono fazer a um Faringdon.

 

- já sei - respondeu Emily suavemente. - Ficarei eternamente grata.

 

- Não quero particularmente a tua gratidão - disse-lhe Simon.

- O que queres então?

 

- A garantia de que nunca mais te metes num assunto destes. Esta noite poderias ter sido roubada, violada ou morta, Emily. Mandar George contratar um bandido foi uma ideia monumentalmente estúpida.

 

Ela agarrou o xaile com mais força, quando passaram para o atalho.

 

- Sim, Senhoria.

 

- Além do mais, de futuro, não deverás... - Simon interrompeu com um impropério o que estava a dizer, quando Lizzie gritou ao vê-los e correu em direcção à sua ama.

 

- Até que enfim que vem, minha senhora. Graças ao bom Deus. Estava tão preocupada. Tinha medo que a tivessem levado e atacado e não saberia que diabo havia de dizer quando Sua Senhoria perguntasse pela senhora; teria sido muito difícil esconder-lhe que a senhora tinha desaparecido. Mais cedo ou mais tarde haveria de reparar e...

- Lizzie deteve-se abruptamente ao aperceber-se de quem estava junto a Emily.

 

- Tens toda a razão - disse friamente Simon. - Mais cedo ou mais tarde teria reparado se a senhora tivesse sido levada.

 

- Oh, Senhoria! - Lizzie fez uma pequena vénia e olhou para Simon, aterrorizada. - É Vossa Senhoria!

 

- Muito observador da tua parte. E se não desejas encontrar a tua pessoa no meio da rua em busca de outro emprego sem o benefício das referências, vais tentar ter a certeza que de futuro a senhora não volte a dar caminhadas pelo Passeio Escuro.

 

- Sim, Senhoria - Lizzie parecia -agora aterrorizada. Emily lançou ao marido um olhar de censura.

 

- Simon, deixa de assustar a pobre rapariga. E tu, Lizzie, deixa de fungar e recompõe-te. Está tudo bem. Sua Senhoria sabia do meu plano desde o princípio. Não foi brilhante da parte dele?

 

- Sim, minha senhora. - Lizzie fitou com ar incerto o rosto zangado de Simon. - Foi brilhante.

 

- E agora - disse Emily alegremente - vais imediatamente para casa na carruagem, Lizzie. Sua Senhoria e eu temos de sair. Temos umas coisas que fazer esta noite. Não esperes por mim.

 

- Um momento, por favor, minha senhora - disse Simon lentamente. - Parece que temos aqui um mal-entendido. A senhora vai voltar imediatamente para casa com a sua criada.

 

- Mas, Simon, a ideia foi minha e quero ver como tudo termina.

- já me envolveu e quando estou metido num plano, prefiro ser eu a mandar. A senhora vai para casa. Vou consigo até à saída dos jardins e meto-a eu próprio dentro da carruagem.

 

- Mas Simon, vais precisar que esteja contigo.

- Isto é um assunto de homens.

 

- Estamos a falar do meu irmão - disse ela, desesperada.

- Entregaste-me o problema para que eu o resolvesse.

 

Emily ignorou-o e mergulhou numa detalhada explicação acerca da necessidade que tinha de o acompanhar enquanto ele ia salvar Charles, mas foi o mesmo que falar com uma parede de tijolo. Simon estava implacável e inamovível.

 

Minutos depois encontrou-se dentro da carruagem juntamente com Lizzie. Simon fechou a porta e deu rigorosas instruções ao cocheiro para seguir directamente para casa. Depois, deu meia volta e entrou na noite sem olhar para trás.

 

- Com mil raios! - Emily agitou-se no assento, abriu o leque, aborrecida, e depois, com um pequeno suspiro, rendeu-se ao inevitável.

 

Momentos mais tarde, sorriu aliviada. Tudo se arranjaria. O dragão estava a comandar.

 

Simon subiu, com emoções confusas, os degraus da residência que os gêmeos Faringdon dividiam entre si. Bateu à porta que foi aberta quase imediatamente por um dos gêmeos que o fitou espantado.

 

- Creio que é Deviin. É assim? - perguntou laconicamente Simon.

 

Deviin recompôs-se.

 

- Sim, Senhoria. Mas que diabo está aqui a fazer, Blade?

 

- Excelente pergunta. Saiba que também eu gostaria de saber. Posso entrar?

 

- Bom, sim, creio que sim. - disse Deviin relutante da porta.

 

-  Muito obrigado - disse Simon secamente. Entrou e atirou com o chapéu, casaco e luvas para cima do criado.

 

Charles Faringdon apercebeu-se já tarde de quem o viera visitar e soergueu-se do cadeirão perto da lareira.

 

- Blade! Em nome de Deus, que vem cá fazer a esta hora?

 

Emily disse-me que vai defrontar-se em duelo com Grayley. Simon. avançou em direcção ao lume para aquecer as mãos.

 

Charles lançou um olhar de esguelha ao irmão.

 

- Bem te disse que não a deverias trazer aqui hoje. Foi a correr contar-lhe a história toda.

 

- Tinha que lhe dar a possibilidade de se despedir de ti - protestou Deviin. - Não poderia fazer mais nada.

 

- Não deverias ter dito coisa alguma. Trata-se de um assunto privado. - Charles deixou-se cair de novo na cadeira.

 

- Concordo que teria sido muito mais conveniente se tivesse tratado de tudo de maneira a conseguir que o matassem - disse-lhe Simon. - Mas já que meteu Emily no assunto, não tenho remédio senão envolver-me.

 

- Não tem nada a ver com isto - resmungou Charles, fitando as chamas com ar aborrecido.

 

- Ah, mas é que tenho. Assustou Emily e perturbou-a muito. Não o posso permitir; além do mais, devo fazer alguma coisa acerca da situação. - Simon imobilizou Charles com um olhar severo. - Agora trate de me contar toda a história de modo a que eu possa resolver o que se há-de fazer.

 

- É uma questão de honra - resmungou Charles, lançando um olhar oblíquo a Simon. - Da honra de uma mulher.

 

- Desde quando é que se preocupam com a defesa da honra de uma mulher?

 

Fez-se um silêncio de morte, antes de Charles pronunciar lentamente:

 

- Deviin e eu temos andado a pensar desde aquele dia em que nos atirou ao chão na sua biblioteca.

 

Ah, sim? - Simon olhou para as chamas.

 

É verdade, Senhoria - disse calmamente Deviin, - Discutimos detalhadamente o assunto. Tem toda a razão. Deveríamos ter desafiado Ashbrook logo após ele ter fugido com a nossa irmã.

 

Simon reflectiu naquelas palavras.

 

- Para ser mais exacto, esse seria o dever do vosso pai.

 

- Sim, pois é. Não nos pareceu correcto não fazer nada naquela altura, mas o pai disse... - Deviin interrompeu abruptamente o que estava a dizer, encolhendo os ombros.

 

- O pai disse que o mal estava feito e não valia a pena morrer por causa disso - finalizou Charles em voz baixa. - E Emily concordou. Disse que, em primeiro lugar, a culpa tinha sido dela própria.

 

- E provavelmente, conhecendo nós como Emily era - disse Deviin pegando no brandy. - Mas Charles e eu decidimos que isso já não vinha ao caso. O mínimo que deveríamos ter feito era dar uma sova em Ashbrook.

 

- Sim. - Simon fitou as chamas doiradas. Começava a ver o problema. Parecia que apenas ele era culpado daquela confusão. - Então surgiu uma oportunidade para que pelo menos aos vossos olhos, um de vocês se redimisse e aproveitaram a ocasião. Quem é a senhora?

 

- Não lho posso dizer, Senhoria - disse Charles, rígido.

 

- Compreendo a sua relutância, mas receio ter de insistir. Não mexerei um dedo enquanto não tiver todas as informações que for possível obter. E nesta altura não vejo que importância possa ter dizerem-mo. Afinal, parece que Grayley sabe e é esse o principal problema.

- Ele tem razão - disse lentamente Deviin. - Diz-lhe.

 

- Maryann Matthews - balbuciou Charles. Simon acenou com a cabeça.

 

- Uma jovem muito agradável. Creio que a família é do Yorkshire.

 

- Exactamente, Senhoria. Tenciono casar com ela - disse Charles, quase em tom de desafio.

 

Simon encolheu os ombros.

 

- Isso é assunto seu. Como foi insultada essa menina? Charles respondeu de semblante carregado:

 

- Nada fez que se lhe pudesse censurar. É uma jovem inocente, com modos encantadores e um ar muito doce. Só que ontem à noite, Grayley chegou ao pé de mim no clube e fez uma insinuação totalmente despropositada sobre o seu carácter.

 

Deviin olhou para Simon.

 

- Grayley disse que ela era apenas uma estouvada provinciana que provavelmente já teria ido para a cama com todos os agricultores do Yorkshire.

 

Simon ergueu as sobrancelhas ao ouvir tal coisa.

- É um pouco extremo.

 

- Foi uma provocação perfeitamente deliberada  anunciou Charles, batendo com o punho no braço da cadeira.

 

- Foi, sim. Parece que Grayley anda à procura de sangue novo.

 

- Que quer dizer com isso? - perguntou Deviin.

 

- Grayley é um daqueles raros indivíduos que apreciam efectivamente a emoção de aterrorizar o adversário no campo de duelo. A boca de Simon endureceu. - É um bom atirador, que retira uma certa excitação de todo o processo. Tem sempre muito cuidado em escolher vítimas que não tenham grande pontaria. Mas a sua reputação já se espalhou e, hoje em dia, é difícil encontrar alguém suficientemente imbecil que se lhe oponha. Quando consegue lançar um desafio, a maior parte dos homens são suficientemente sensatos e enviam os padrinhos com as desculpas mais abjectas.

 

- Eu não envio nenhumas desculpas - garantiu Charles. - Preferia morrer no campo a permitir que a honra de Maryann seja manchada. Simon olhou-o com alguma consideração.

 

- Creio que está a ser sincero.

 

- Não se preocupe em tentar dissuadir-me deste encontro, Senhoria. já me comprometi.

 

- Percebo. - Simon tamborilou pensativamente com os dedos sobre a prateleira por cima da chaminé. - Muito bem, Deviin e eu seremos os seus padrinhos. Venha Dev.

 

Deviin olhou-o.

- Onde vamos?

 

- Ora essa, ter com Grayley, claro. Há muitos pequenos pormenores que temos de acertar.

 

- Mas já sabemos quando e onde vai ser o encontro - esclareceu DevIm.

 

Simon abanou a cabeça, sentindo-se cem anos mais velho que aquelas jovens crias. Reflectiu que Broderick Faringdon tinha muito por que responder.

 

- Têm muito que aprender e, infelizmente, começa a parecer-me que tenho de ser eu a instruir-vos.

 

Simon e Deviin estavam sentados às escuras na carruagem, vigiando a porta do clube até esta se abrir e Grayley aparecer. Sem tirar os olhos da sua presa, Simon bateu com a bengala no tecto da carruagem. Seguindo as instruções, o cocheiro levou o veículo de aluguer directamente para diante de Grayley.

 

Este, um homem de rosto contorcido e lábios finos, com olhos irrequietos de predador, entrou. Atirou-se para o assento, antes de se aperceber que o carro já estava ocupado.

 

- Boa noite, Grayley. - Simon bateu de novo no tecto e o cocheiro pôs a carruagem em movimento.

 

- Mas que raio se passa aqui? - perguntou Grayley olhando, com ar carrancudo, primeiro para Deviin e depois para Simon.

 

- Faringdon e eu somos os padrinhos de Charles Faringdon disse Simon. - Vim esclarecer alguns pormenores sem importância.

- Deveriam era falar com os meus padrinhos, Barton e Evingly.

- Creio que terá um interesse pessoal nestes detalhes. - Simon

 

sorriu sem qualquer humor. - Não creio que queira que Barton e Evingly saibam acerca deles.

 

Grayley fez um ruído de desprezo.

 

- Vieram oferecer-me desculpas em nome de Faringdon?

 

- Claro que não. Compreendo que insultou grosseiramente a dama em questão - disse Simon. - Deve ser o senhor a oferecer as desculpas.

 

Grayley semicerrou os olhos.

 

- Então, por favor, diga-me porque haveria de o fazer?

 

- Porque se não o fizer - explicou-lhe delicadamente Simon eu e Faringdon, aqui presente, seremos forçados a fazer com que os seus investimentos financeiros dêem uma reviravolta muito grave, de modo que não poderá honrar as suas obrigações económicas, muito menos as suas dívidas de jogo.

 

Grayley ficou imóvel.

 

- Blade, maldito seja, está a ameaçar-me?

 

- Sim, creio que sim. Soube que investiu muito numa certa sociedade em que também eu estou envolvido.

 

- E então? Espero fazer uma fortuna.

 

- Vai ser bastante improvável, se eu decidir que o risco não compensa e decidir vender amanhã todas as minhas acções. Ao meio-dia já se espalhou pela cidade que o negócio correu mal. Se eu sair, todos quererão fazer o mesmo. Desaparecerá o mercado para essas acções e o senhor, juntamente com outros investidores, perderá tudo o que investiu no projecto.

 

Grayley olhou-o.

 

- Valha-me Deus! Vai arruinar-me, a mim e a outros.

- Muito provavelmente.

 

- Só por causa de um Faringdon? - perguntou Grayley com perfeita incredulidade. - já ouvi dizer que não morre de amores por ninguém dessa família.

 

- E, parece-me que é por isso que acha que é seguro desafiar um deles. Mas pronto. De vez em quando o destino dá estranhas voltas. Quer que eu apresente as suas desculpas a Charles Faringdon e lhe explique que foi tudo um mal-entendido?

 

Grayley ficou por momentos em silêncio.

 

- Aqueles que o consideram um patife sem coração não se enganam, Blade.

 

Simon encolheu os ombros, olhando distraidamente pela janela da carruagem. Apesar do adiantado da hora, a rua estava cheia de trens que transportavam os elegantes membros da sociedade para cá e para lá, no seu interminável vaivém a caminho das festas.

 

- Então, Grayley? Decerto pode procurar alguém mais fácil noutro lado.

 

- Maldito seja, Blade.

 

- Vá lá, homem - disse Simon em voz baixa. - Não precisa provar a sua pontaria no jovem Faríngdon. Procure outra vítima.

 

- Um destes dias, Blade, vai longe de mais.

 

- É possível.

 

Grayley apertou os lábios. Bateu no tecto para mandar parar o cocheiro. Quando a carruagem se deteve, abriu a porta e desceu.

 

- Apresente as minhas desculpas ao seu irmão - disse em tom breve a Deviin. - Não haverá qualquer confronto ao nascer do dia. Grayley recuou e atirou com a porta. As rodas da carruagem batiam nas pedras da rua. Deviin olhou para Blade com um ar muito aproximado ao da adoração pelos heróis.

 

- Tenho de lhe dizer que foi extraordinário. Conseguiu que Grayley cancelasse tudo aquilo. Nunca ouvi coisa assim.

 

- De futuro, não espero encontrar-me de novo com um caso como este - assegurou Simon bruscamente. - Estamos esclarecidos?

 

- Sim, senhor, perfeitamente esclarecidos. - Deviin estava agora exuberante. - Mas foi extraordinariamente inteligente da sua parte. O homem desistiu do duelo porque o senhor o ameaçou com a possível queda dos seus investimentos.

 

Simon abanou a cabeça a tal ingenuidade.

 

- Faringdon, já é tempo que o meu amigo e o seu irmão aprendam que o verdadeiro poder se baseia no dinheiro e nas informações. Com estas duas armas um homem pode realizar muito mais do que com uma pistola de duelo ou um baralho de cartas.

 

- E se um homem não tiver riqueza? - perguntou argutamente Deviin.

 

- Então terá de se concentrar na procura de informações. Com uma quantidade suficiente desses recursos, em breve arranjará outros.

- Não me esquecerei - disse Deviin em voz baixa. Ficou por momentos em silêncio e depois, mais uma vez, o seu humor melhorou.

- A propósito, Charles e eu temos estado a pensar se não nos quereria mostrar aquela fascinante técnica de combate que usou outro dia connosco na sua biblioteca. Seria pedir muito?

 

- Creio que vos posso fazer uma demonstração. O pior é que eu não compreendo muito bem como foi que me meti nesta situação disse Simon reflectindo.

 

Deviin fez o encantador sorriso dos Faringdon.

 

- Está a falar da salvação de Charles e em mostrar-nos uns truques para podermos sair para o mundo? Espero que tudo isto seja culpa de Emily.

 

Tem toda a razão. Foi culpa dela.

 

É a única pessoa à face da terra que acha que o senhor não é um patife empedernido - disse Deviin.

 

- De vez em quando a tendência que Emily tem para o romântico é um pouco inconveniente.

 

- Bem sei - disse Deviin não sem alguma simpatia. - Desejamos sempre não a desiludir.

 

Capitulo 15

AO OUVIR O SOM DAS RODAS DA CARRUAGEM lá em baixo, na rua, Emily deixou de percorrer o quarto de um lado para o outro. Voou até à janela quando se apercebeu de que o veículo se detinha diante da casa. Puxou para o lado os pesados cortinados, mesmo a tempo de ver Simon descer. O seu enorme sobretudo com capa flutuava-lhe à volta das botas, quando começou a subir os degraus. Abriu apressadamente a janela e espreitou lá para baixo.

 

- Simon - chamou baixinho. - Estás bem? Ficou tudo arranjado?

 

Simon olhou para cima e disse numa voz nitidamente irritada:

- Por amor de Deus, mulher, volta para dentro e fecha a janela. O que pensarão os vizinhos? - Acabou de subir a escada.

 

Tudo deveria ter sido resolvido de modo razoável, pensava Emily, enquanto fechava a janela. As coisas não deveriam estar muito más, já que Simon se preocupava com os vizinhos.

 

Emíly dizia para consigo, com ar feliz que começava a compreender os seus humores muito bem, Bateu no chão com o pé calçado com uma chinelinha e esperou ouvir o som das botas no corredor do primeiro andar. A sua comunhão metafísica com o marido fortalecia-se dia após dia, resultado directo, sem dúvida, da sua ligação melhorada no plano físico.

 

Ouviu os seus passos no corredor e dirigiu-se apressadamente para a porta de comunicação. Mas quando começou a abri-la, ouviu a voz de Higson e percebeu que o criado tinha esperado pelo seu amo, como um cão fiel.

 

Aborrecida com a demora, Emily fechou silenciosamente a porta e voltou à sua caminhada de um lado para o outro, até ouvir o marido dizer a Higson que não precisava mais dele naquela noite.

 

Voltou a correr para a porta de comunicação e abriu-a de par em par.

 

Simon estava sentado na sombra, junto à janela, com um cálice de brandy na mão. Vestira o seu roupão de seda negra. Havia uma vela acesa sobre a mesa junto à cama. Tinha o cabelo negro despenteado e, à luz frouxa da chama, o seu rosto parecia ter sido entalhado na vertente de uma montanha. Fitou Emily, quando esta entrou no quarto, com um estranho brilho nos seus olhos dourados.

 

- Aqui está a minha irreflectida, impulsiva e incómoda mulherzinha. Imagino que estarás a rebentar de curiosidade.

 

- Oh, sim, Simon. Nestas últimas horas, tenho estado à espera numa agonia! - Emily deixou-se cair na cadeira diante dele e observou-o cuidadosamente. - Está tudo bem?

 

- O problema está resolvido, se é a isso que te referes - disse Simon calmamente. - Não haverá duelo. - Bebeu outro gole de brandy e contemplou o cálice. - Mas não tenho a certeza de que tudo esteja bem.

 

Uma nova inquietação invadiu Emily, ao sentir que a disposição do marido estava mais estranha a cada momento.

 

- O que é que não está bem, Senhoria?

 

- O que é que não está bem? - Voltou-se, fazendo girar o cálice entre as mãos e descansando a cabeça nas costas da cadeira. - É difícil de explicar, minha querida.

 

Ela espreitou-o mais uma vez através dos óculos.

 

- Simon, não estarás por ventura ferido, pois não? - perguntou com algum susto.

 

- Não se derramou uma gota de sangue.

 

- Graças a Deus! - De súbito, Emily sorriu. - Não. É a ti e não a Deus que tenho de agradecer por teres tratado do assunto e sei-o bem. Estou-te muito agradecida por teres resolvido a situação.

 

- Estás? - Bebeu novo gole de brandy. Emily mordeu o lábio.

 

Vossa Senhoria está com um humor muito estranho.

 

É verdade, porque será? - perguntou. - Foi uma noite perfeitamente normal, não achas? Nada de sinistro ou invulgar aconteceu. Apenas a rotina. Encontro a minha mulher à meia-noite a deambularno Passeio Escuro, em VauxhalI, procurando encontrar-se com um membro da classe criminosa. Deixo-me convencer a salvar um maldito Faringdon da sua própria imbecilidade. Sou obrigado a arriscar um investimento potencialmente lucrativo, de modo a assustar o jovem mais sanguinário da sociedade. Ao chegar a casa, descubro a minha mulher à janela gritando por mim como uma regateira.

 

Emily suspirou.

 

- Não sei como, mas as pequenas aventuras da minha vida parecem sempre muito piores quando és tu a descrevê-las.

 

- Já reparei nisso. Emily alegrou-se.

 

- Mesmo assim, tenho a dizer-te que achei o teu plano para me apanhar em Vauxhall uma ideia maravilhosa. Foi muito inteligente da tua parte, Simon. Sabes que nunca me ocorreu ter suspeitas, quando recebi a tua nota. Agora percebo que era extremamente improvável que um membro da classe criminosa soubesse ler e escrever.

 

- Os teus louvores acalentam-me, garanto-te. Mas, olhando para trás, chego à conclusão que devo ter estado temporariamente louco para imaginar um esquema assim.

 

- Não, não. Quiseste dar-me uma lição, não foi?

 

- Tinha uma vaga ideia de o estar a fazer, é verdade. - Simon bebeu outro gole de brandy.

 

- E imaginaste um esquema simplesmente brilhante.

 

- Ah, sim? Não me pareceste devidamente contrita. Ficaste ali a regatear como uma feirante com um homem que pensavas ser um patife e quando ele tentou assustar-te, exigindo os teus favores, ameaçaste-o prontamente com a raiva do teu marido.

 

Emily apercebeu-se de que Simon estava genuinamente furioso.

- Olha, Simon, não vejo porque estás tão zangado comigo. Foste tu que arranjaste o encontro em Vauxhall.

 

- Como já te disse, devo ter enlouquecido. - Fez girar no cálice o resto do brandy e engoliu-o de uma só vez.

 

- Penso que realmente foi um elemento profundamente romântico da tua natureza que te levou a imaginar um enredo tão maravilhoso - declarou Emily. - Tal como um incidente numa história de romance e aventura e sabias que eu reagiria a ele. Espero que seja por estarmos tão bem sintonizados um com o outro num plano superior.

 

- Valha-me Deus, Emily, fazes favor de deixar de falar em metafísica e planos superiores? Juro por Deus que, se ainda não estou louco, em breve o estarei.

 

Sem qualquer aviso, Simon pôs-se de pé de um salto e atirou o cálice vazio para a lareira com um violento movimento da mão. Pelo quarto ecoou uma explosão de som aguda e enervante. Os estilhaços cintilantes caíram sobre as cinzas frias.

 

Emily fez um som ofegante e sentou-se muito quieta na cadeira, enquanto o resto do copo caía em cascata pela parede de pedra da lareira. Ficou a olhar para o lume apagado e em seguida ergueu lentamente a cabeça para olhar para Simon.

 

A expressão rígida no seu rosto e o cintilar feroz dos seus olhos disseram-lhe imediatamente que ele estava muito mais assustado com o seu descontrole do que ela. Afinal ela sabia que ele era um homem de paixões profundas. Mas ele nem sempre aceitava a verdade acerca de si próprio.

 

- Maldição! - Simon ficou a olhar para a lareira. Desceu sobre eles um enorme silêncio.

 

As mãos de Emily apertaram-se no colo.

 

- Não quis aborrecer Vossa Senhoria - disse calmamente.

 

- Isto não é natural, não percebes? - Voltou-se para a enfrentar, com o rosto demoníaco à luz bruxuleante da vela. - Não é nada natural.

- O quê, Senhoria?

 

- Esse modo oco em que insistes pensar em mim, como se eu fosse uma espécie de herói. De uma vez por todas, senhora minha esposa, não sou a personagem de um poema épico. Não tomo as minhas decisões nem pratico as minhas acções com a única finalidade de alimentar as suas manias e os seus caprichos frívolos e românticos. Não sou uma criatura de paixões, como a senhora. Cada movimento que faço é cuidadosamente calculado. As coisas são feitas para obter os meus próprios fins. Entende ísso?

 

Emily respirou fundo.

 

- Estás aborrecido comigo porque ontem à noite foste obrigado a salvar o meu irmão.

 

- Aborrecido com a senhora? Isso nem sequer começa a designar o meu estado de espírito. Deixei-a manipular-me e convencer-me a fazer uma coisa que eu jurara nunca levar a cabo.

 

- Ajudar um Faringdon? - arriscou perguntar, fitando-o através das pestanas.

 

- Sim, que diabo! Sim, é exactamente isso. Não sei o que se passou comigo esta noite.

 

- Não creio que as acções de Vossa Senhoria sejam assim tão estranhas - murmurou Emily suavemente. - Agiu como o homem nobre e honrado que eu sabia que era. No seu coração tem consciência de que os meus irmãos não foram responsáveis pelas perdas do seu pai há vinte e três anos.

 

- São Faringdon. São à imagem do pai, por amor de Deus.

 

- Não, Senhoria. O meu pai nunca teria concordado em defrontar-se em duelo pela honra de uma senhora. Charles e Deviin não são assim. Foram criados por ele e seguiram-lhe os passos, só porque não tinham outro modelo a copiar. Mas juro que são diferentes. E algures, já no fundo, compreendes, de contrário não terias ajudado Charles esta noite.

 

- Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre aquilo que eu fiz, Emily. Não podes ter ideia da razão que me levou a agir assim. Nem eu próprio o sei seguramente. - Simon fechou a mão e bateu na prateleira da chaminé. - Há vinte e três anos jurei vingança contra todo o clã Faringdon. Jurei a mim próprio que derrubaria toda a família.

 

- Então porque te casaste com uma delas? - perguntou Emily subitamente furiosa.

 

Simon semicerrou os olhos.

 

- Porque me divertia. Porque cumpria o objectivo de separar o teu pai e os teus irmãos da sua fonte de rendimento. Porque me imploraste que casasse contigo e porque gostei de ter uma mulher Faringdon a beijar-me os pés.

 

Aquilo doeu-lhe.

 

- Não lhe beijei os pés, Senhoria. E se bem se recorda, apresentei-lhe o assunto nos termos de um acordo de negócios.

 

Ele fingiu não ter ouvido.

 

- E por fim, mas não menos importante, porque acho as suas paixões excessivas extremamente divertidas na cama. Pronto, agora já sabe porque me casei consigo. Não foi devido às nossas almas se misturarem no chá num plano mais elevado, que diabo.

 

Emily estremeceu. Naquela noite o dragão soprava fogo. Era a primeira vez que o via com tal disposição e não tinha a mínima dúvida de que a intimidava.

 

- Por favor, Simon, não digas mais nada.

 

- E porque não, diz-me lá? Porque estou a partir o teu tolo coração romântico?

 

- Sim, Senhoria.

 

- Por amor de Deus, precisas de enfrentar a realidade, menina! - Simon voltou-se e começou a percorrer o quarto de um lado a outro. - Não que tenha tido muito sucesso em obrigar-te a fazê-lo.

 

Foi demasiado. Emily pôs-se de pé de um salto.

- Com mil raios, Simon!

 

- Deixa de dizer com mil raios - ordenou. - Essa linguagem não se adequa à condessa de Blade.

 

- Não me importo com o que se adequa à condessa de Blade gritou ela apaixonadamente. - Vais longe de mais quando me dizes que tenho de enfrentar a realidade. Não sabes a realidade que tive de enfrentar em toda a minha vida. Não tens ideia da realidade com que a minha mãe teve de se confrontar. Podes ter a certeza de que houve alturas em que detestei o meu pai tanto como tu deves ter detestado o teu. Simon voltou subitamente a cabeça para olhar para ela.

 

- Mas de que diabo estás tu a falar? Nunca detestei o meu pai. Emily olhou-o.

 

- Como podes não ter ficado furiosamente zangado depois daquilo que ele te fez?

 

- Estás louca! Por amor de Deus, porque haveria eu de o detestar?

- Porque ele encostou uma pistola à cabeça e matou-se, deixando-te cá com a responsabilidade de cuidares da tua mãe. Porque ele escolheu a maneira mais simples de fugir à desgraça que criou e te deixou para a enfrentares sozinho. Porque tinhas apenas doze anos, demasiado jovem para desfazeres o grande mal que te tinha sido feito. Valha-me Deus, Simon, como podes não o ter detestado?

 

Simon parou, com as pernas abertas, fitando Emily como se esta subitamente se tivesse transformado num monstro com cabeça de hidra.

 

- Estás a delirar.

 

Emily voltou-lhe as costas.

 

- Se te servir de consolo, também eu me encontrei na mesma situação.

 

- De que modo?

 

- O dinheiro acabou no ano em que fiz dezassete anos. Nessa altura, o meu pai descobriu que eu tinha cabeça para assuntos de economia e finanças. Ficou extasiado. Era evidente que esperava que eu fosse a salvação da família. Não me importei de estudar os investimentos e tomar decisões. De facto, até certo ponto, era divertido. Mas nem por um momento pude esquecer que a razão de me ter tornado especialista nesses assuntos foi o meu pai ser um gastador irresponsável. Ainda me lembro de como fazia chorar a minha mãe. - Emily limpou com as costas da mão uma lágrima que teimava em aparecer-lhe ao canto de um olho.

- Por favor, Emily, não comeces a fungar.

 

Ela assoou o nariz num lenço que encontrou no bolso do roupão largo.

 

- Ela chorava muitas vezes, sabes? Mas quase nunca ao pé do meu pai. Apesar do que fazia, amava-o. Costumava dizer-me que não valia de nada culpá-lo pelo jogo excessivo. Dizia que lhe estava no sangue.

 

- Emily, as tuas emoções estão alteradas. O melhor seria deitares-te.

- Oh, deixe de parecer tão condescendente, Senhoria. - Emily

 

fungou as últimas lágrimas e meteu o lenço no bolso. - Quando a minha mãe e os meus irmãos se aperceberam de que eu podia manter financeiramente a família, disseram-me que era meu dever fazê-lo. Nunca esquecerei que, no seu leito de morte, a minha mãe me pegou na mão e disse que eu tinha de olhar pelo meu pai e pelos meus irmãos. Sem mim, em breve estariam arruinados e o meu pobre pai não sabia viver sem muito dinheiro.

 

- Não quero ouvir mais disparates, Emily!

 

- Não são disparates. É a realidade. A realidade que dizes que eu nunca enfrento. Bom, Vossa Senhoria pode ficar descansado que toda a vida a enfrentei. E, com os diabos, não gostei nada. Mas não o posso evitar, de modo que continuarei a confrontar-me com ela, sempre que seja preciso.

 

- Incluindo a realidade do nosso casamento? - perguntou ele numa voz assustadora.

 

- O nosso casamento é um assunto muito diferente. É uma união pura e nobre de duas almas, mesmo que ainda não o consigas ver assim.

- Não, Emily, não é puro nem nobre. É perfeitamente real. Tal como os modos devassos do teu pai e a minha vingança. Talvez seja tempo de te confrontar com esse facto.

 

Ela franziu a testa, ao notar o estranho tom destas últimas palavras.

- De que fala Vossa Senhoria?

 

- Falo de te ensinar a enfrentar a verdade, no que diz respeito à razão pela qual casei contigo. Não sou um herói, Emily.

 

- Claro que és! Resistes simplesmente a ver-te sob esse aspecto. Provavelmente porque temes que te faça parecer fraco aos teus olhos e aos dos outros.

 

- Valha-me Deus, mulher, és incrível. Não conheço outra que consiga criar tais fantasias - disse Simon entredentes. - Precisas mesmo de uma lição. - Fez deliberadamente uma pausa e, falou de novo, com a voz mais baixa e rouca que nunca. - Vem cá, Emily.

 

Ela não se moveu. As suas emoções estavam num turbilhão.

 

- Venha ao pé de mim, minha senhora. Esta noite não estou com disposição de acalentar as suas ideias românticas.

 

Ela voltou-se lentamente, ficando de frente para ele. De súbito, sentia-se profundamente cautelosa.

 

- O que quer de mim, Senhoria?

 

A dura boca de Simon curvou-se num sorriso frio e sarcástico.

 

- Que pensas que quero, minha esposa? Já expliquei as razões porque tinha casado contigo.

 

- É verdade, Senhoria. Creio que me disse que o tinha divertido casar-se comigo e que tinha servido bem as suas ideias de vingança.

- Se bem te lembras, houve outra razão. Ainda és muito inocente nas delícias da cama, mas aprendes depressa. E, minha querida, que entusiasmo demonstras! Gostaria que o fizesses agora, por favor. Vem cá e aplica-te aos teus deveres de esposa.

 

A frialdade da ordem era assustadora. Não havia calor nem paixão no rosto de Simon, apenas ira furiosamente controlada.

 

- Estás verdadeiramente raivoso comigo, porque insisti para que salvasses Charles - murmurou Emily. - Senhoria, nunca pensei que o pudesse irritar tanto. Tal fúria apenas pode provir do facto de pensares que mostraste a fraqueza de me contentar. Por favor, Simon, suplico-te que não vejas a ajuda a Charles por esse prisma.

 

- Como gosto que de vez em quando me suplique alguma coisa, pode fazê-lo noutra altura. Agora quero levá-la para a cama.

 

Simon despiu o roupão e atravessou o quarto, dirigindo-se à enorme cama de quatro colunas. Estava completamente nu e a luz cintilava-lhe na pele, acentuando os músculos suavemente esculpidos das suas costas, o estômago liso e esticado e as nádegas duras. A luz suave revelava também a sua masculinidade erguida.

 

Mesmo enquanto Emily olhava pouco à vontade pelo canto dos olhos, a sua haste inchava e endurecia ainda mais, Ela agarrou-se às bandas do roupão com uma das mãos e desviou o olhar.

 

- Estás a ver o efeito que provocas em mim? - perguntou Simon, metendo-se na cama. - Deveria estar satisfeita, minha senhora. É uma forma de poder, não acha, fazer um homem reagir imediatamente aos seus encantos?

 

- Nem toda a gente pensa em termos de poder e manipulação., Senhoria.

 

- Enganas-te, Emily. Como te enganas acerca de muitas outras coisas. Vem cá.

 

Emily hesitou e depois obedeceu muito lentamente. Aproximou-se da cama com grandes precauções, continuando a apertar o roupão contra si. De súbito apercebeu-se de que naquela noite tinha de enfrentar um dragão ferido. Era verdade que as feridas eram antigas, mas tinham sido reabertas recentemente. A dor podia fazer com que a nobreza e o carácter de Simon cortassem fosse o que fosse que estivesse ao seu alcance.

 

Mas, ao mesmo tempo sabia que, naquela noite, o dragão precisava também de amor e ternura. Precisava dela. Embora a pudesse chamuscar um pouco com uma ou outra chama, nunca a magoaria verdadeiramente. Simon nunca a magoaria, nunca na vida. Emily lembrava-se da promessa que ele lhe fizera na noite de núpcias: Juro proteger-te sempre, Emily. Lembra-te disso. Aconteça o que acontecer, podes ter a certeza de que sempre cuidarei de ti.

 

Emily deixou deslizar o roupão para os pés, enquanto se detinha ao lado da cama. Viu os olhos de Simon fitarem-lhe o contorno das ancas por baixo do fino tecido da camisa. O seu olhar quente deslocava-se lenta e deliberadamente para cima, para onde os seus mamilos se encostavam ao delicado tecido.

 

Sentia-se exposta. Estava habituada a ver uma paixão controlada na expressão de Simon, mas não este olhar lacónico e de escárnio. Meteu-se rapidamente na cama, puxando as cobertas até ao queixo. Esperou nervosamente que ele lhe tocasse. Tinha a certeza que uma vez que o fizesse tudo correria bem.

 

Simon não fez qualquer movimento. Cruzou os braços por trás da cabeça, observando-a com ar trocista.

 

- Então, minha senhora, como espera enfeitiçar-me com as suas paixões excessivas debaixo desse monte de cobertores?

 

Emily pestanejou.

 

- Estás à espera que eu faça... que eu faça alguma coisa?

 

- Estou à espera que me mostres o que aprendeste até aqui, como esposa.

 

- Oh! - Emily reflectiu nas implicações do que ele acabara de dizer. Queria que fosse ela a fazer amor com ele. A ideia intrigava-a sobremaneira. Poderia explorá-lo à vontade, se fosse ela a comandar o acto. Poderia satisfazer-se, aprender a senti-lo, mostrar-lhe quanto o amava.

 

Emily voltou-se de lado para fitar Simon. Experimentou estender a mão e tocar-lhe no ombro. Ele não se mexeu. Ela aproximou-se mais debaixo dos cobertores e beijou-lhe o peito nu. O cheiro dele alertou-lhe os sentidos.

 

Emily enrolou meigamente os dedos nos pêlos encaracolados. Aproximou-se ainda mais e beijou-lhe o mamilo raso e masculino. Simon respirou fundo.

 

- Parece que a senhora minha esposa aprende depressa - resmungou.

 

Emily não prestou atenção ao tom cortante.

 

- Adoro tocar-te, Simon. És tão duro, esguio e forte. Como se um dos teus belos dragões de pedrarias tivesse vida.

 

- Não tens medo que te faça em bocados?

 

Ela sorriu levemente, inclinou a cabeça e tocou-lhe com a ponta da língua no peito.

 

- Não o farias.

 

- Estás muito confiante do teu poder, não é verdade? Talvez até um pouco de mais.

 

- Não se trata de poder, Simon. Trata-se de amor.

 

Tornando-se então mais ousada, começou a acariciá-lo lentamente, demorando-se. Sentia-lhe a tensão nos músculos das coxas e apercebeu-se, surpreendida, que tinha de exercer um fantástico domínio sobre si.

 

- Descontraia-se, Senhoria. - Apertava ao de leve os músculos endurecidos. - Está demasiado tenso. Espero que seja o resultado de todos os seus esforços feitos em nome do meu irmão.

 

- Achas-me tenso?

 

- Muito. Pronto, vou ver se consigo acalmar-te.

 

Emily atirou para trás o último dos cobertores e ajoelhou-se ao lado de Simon. Ignorando a haste tremendamente erguida da sua masculinidade, começou a massajar lenta e firmemente os longos músculos das coxas e pernas de Simon.

 

- Mas que diabo estás tu a afazer? - perguntou Simon, fitando-a através dos olhos semicerrados.

 

- Vi o meu pai fazer isto aos cavalos depois de uma corrida longa e difícil. Diz que ajuda a evitar os espasmos. - Emily manteve as massagens e as carícias ritmadas. Lentamente seguia da coxa até ao calcanhar, massajando os músculos da perna esquerda de Simon.

 

Quando terminou, inclinou-se por cima dele e começou com a perna direita. Os folhos brilhantes da camisa flutuavam sobre a masculinidade erguida de Simon.

 

- Com todos os demónios do Inferno - resmungou.

 

- Vossa Senhoria sente-se bem? - Emily fez uma pausa para o observar.

 

- Creio que há sítios onde ainda estou um pouco tenso. Emily sorriu, querendo sossegá-lo.

 

- Em breve estará calmo e aquietado, Senhoria. - Continuou pela perna direita, dando-lhe depois umas pancadinhas suaves. - Volte-se por favor.

 

Ele hesitou, fitando-a, agora com um olhar intenso e quente de excitação.

 

- Volto-me?

 

- Para eu te massajar os músculos das costas. Não reparaste ainda como os ombros de uma pessoa ficam tensos quando tem os nervos perturbados?

 

- Emily, garanto-te que não vou ter nenhum chilique. - Porém, Simon voltou-se de barriga para baixo com alguma relutância. Fez uma careta e ajeitou-se.

 

Emily começou a massajar-lhe os ombros, achou que a posição era pouco cómoda, porque não conseguia exercer a devida pressão e aproximou-se mais. Quando a nova posição também não resultou, levantou a camisa de dormir e ousadamente passou uma perna por cima das ancas de Simon, ficando sobre ele.

 

- Deixa de te mexeres tanto - resmungou Simon para a almofada.

- Sim, Senhoria.

 

Emily inspirou subitamente, enquanto se inclinava para diante e começava a massajar-lhe os músculos da parte superior das costas. Apercebeu-se de que aquilo era certamente estimulante para uma criatura apaixonada como ela. Conseguia sentir as coxas duras de Simon entre os seus joelhos e a sensação era como se cavalgasse um puro-sangue. Ou um dragão.

 

- Emily, estás a rir?

 

- Não, Senhoria. - Aplicou-se mais intensamente, esfregando, massajando, experimentando e beliscando. Passados alguns minutos não vinha o mínimo som das profundezas da almofada. - Vossa Senhoria está mais calmo? - perguntou finalmente Emily.

 

- Não.

 

Emily ficou desiludida.

- Tem a certeza?

 

- Absoluta. Podes desmontar.

- Como disse?

 

- Ouviste perfeitamente. - Simon mexeu-se e começou a voltar-se. Emily saiu rapidamente de cima dele e voltou a ajoelhar entre as roupas da cama.

 

- Simon?

 

Ele estava deitado, encostado às almofadas e estendeu a mão para ela.

- Vem cá, elfo - murmurou, puxando-a de novo para cima de si. Subiu-lhe a camisa de dormir à altura das coxas. - Se queres cavalgar-me, tens de o fazer como deve ser.

 

- Simon! - Emily ofegou quando ele guiou a larga ponta da sua masculinidade para o local húmido entre as suas pernas.

 

Agarrou-lhe as ancas, imobilizando-a enquanto se erguia, empurrando a resistência natural da entrada do corpo dela e seguiu pela passagem húmida e apertada. Entrou completamente com um só impulso. Emily sufocou uma pequena exclamação de espanto enquanto abria os dedos e encostava as mãos ao peito dele.

 

- Agora pode cavalgar-me, minha senhora. - Os dedos dele apertavam-lhe as coxas. Comforça.

 

Com olhos fechados e a respiração transformada em pequenos gemidos de prazer, Emily obedeceu a esta ordem e rapidamente se ajustou ao ritmo estabelecido por Simon.

 

- Sim. Mais depressa. Com mais força. - A voz de Simon era agora rouca. As suas mãos apertavam-na. - Caramba, sabe tão bem, elfo. Tão bem. Mostra-me que me desejas. Diz-me que me pertences. Diz-me.

 

- Quero-te, Simon. Toda a minha vida esperei por ti. Nunca poderia haver mais ninguém. - As palavras eram arrancadas a Emily em pequenos gritos sufocados. Estremecia necessitando-o, cheia de desejo. Enterrava as unhas no peito de Simon, deixando-lhe pequenas marcas fundas na pele.

 

- É isso mesmo, amor - murmurou. - Entrega-te.

 

- Amo-te - sussurrou Emily. - Amo-te do fundo do coração.

- Depois sentiu-se invadida por uma deliciosa excitação. Ficou rígida e sentiu ao mesmo tempo que Simon a penetrava bem fundo mais uma vez.

 

- Emily, meu Deus, Emily! - As palavras de Simon eram roucas de paixão e alívio. Puxou Emily contra o peito e apertou-a nos braços. Esmagou-a e deixou-se fluir infinitamente dentro dela.

 

O último pensamento coerente de Emily foi que já dominava a nobre arte de cavalgar dragões. Estava desejando tentar de novo, no futuro.

 

Capitulo 16

O RELóGIO DA BIBLIOTECA BATEU AS ONZE. Simon instalou-se no seu cadeirão observando Emily. Dedicava-se a essa tarefa nos últimos vinte minutos, com toda a paciência, enquanto o tempo passava e a chuva caía lá fora.

 

Observar Emily não era uma ocupação desagradável. Parecia extremamente atraente naquela manhã, com um vestido às riscas verde e dourado enfeitado com folhos. Havia vários dragões maravilhosamente bordados junto à bainha. Os caracóis brilhantes estavam apanhados num estilo artístico que dava o efeito de um chuveiro de chamas caindo-lhe em cascata pela nuca.

 

Estava sentada no lado oposto da enorme secretária lacada da biblioteca, com a cabeça inclinada sobre uma lista de nomes. Era evidente que agonizava com o trabalho a que se tinha proposto: seleccionar as pessoas que haveriam de receber o convite para a sua primeira soirée.

 

- Não é preciso por causa disso - disse finalmente Simon em tom aborrecido. - Marca apenas o nome das pessoas que queres convidar. O meu secretário fará o resto.

 

Emily levantou a cabeça com os olhos semicerrados por trás das lentes dos óculos.

 

- Não é assim tão simples como seleccionar investimentos, sabes? Aqui tenho de tomar importantes decisões. Não quero ofender ninguém. Reflectir-se-á directamente em ti, Simon.

 

Simon suspirou e caiu num silêncio mal-humorado. Sentia-se inquieto, pouco confortável e, segundo suspeitava, culpado.

 

A culpa era uma emoção nova e perturbante para ele e não gostara de a sentir. Não havia espaço para ela na sua vida claramente delineada. Nem sequer a conseguia entender. Até então, o seu mundo consistira em conceitos simples e directos tais como a vingança, a justiça, a honra e o dever.

 

O olhar de Simon deslizou para a doce curva dos seios de Emily e apercebeu-se de que tinha de acrescentar a paixão à lista.

 

Não tinha qualquer dúvida. Estava com um humor estranho e desagradável.

 

Encontrava-se naquele estado invulgar desde que acordara essa manhã com a recordação da noite enchendo-lhe ainda o espírito. Num momento observava a sua fraqueza de ter ido salvar o gémeo Faringdon. No seguinte sentia-se cheio de desejo ao recordar a doce e generosa paixão de Emily.

 

Sentia ainda nos ombros as suas mãos suaves e o calor das suas pernas quando se sentara ousadamente sobre ele, encantando-o, enfeitiçando-o até ao ponto de pensar enlouquecer ao tentar controlar-se. Mas recordava principalmente as suas perturbadoras palavras: «Houve alturas em que detestei o meu pai, tanto como tu deves ter detestado o teu. »

 

- O problema, Simon - explicou Emily, franzindo intensamente a testa, resultado da sua concentração -, é que o teu secretário preparou uma enorme lista de nomes para eu escolher. Não conheço muitas destas pessoas e não quero cometer erros. A tua tia explicou-me que era crucial ter as pessoas certas na minha primeira soirée.

 

- Podes ter a certeza de que nessa lista não há pessoas erradas

- resmungou Simon. - O meu secretário é suficientemente esperto para não incluir nomes indevidos. Além do mais, não há absolutamente qualquer risco de ofender pessoas se não as convidares. Apenas acentua e reforça o teu poder como anfitriã.

 

Ela olhou-o, sem saber que fazer.

 

- Nunca pensei no assunto desse modo. Mas não quero ferir os sentimentos de ninguém, Senhoria.

 

Como eu devo ter ferido os teus ontem à noite? Interrogou-se Simon em silêncio.

 

- Se te faz sentir melhor, envia um cartão a todos os nomes da lista.

 

Os olhos de Emily abriram-se de espanto.

 

- Mas não é possível meter toda esta gente cá em casa.

 

- já estiveste em bailes e festas suficientes para saberes que apenas são considerados um êxito se o local estiver a rebentar pelas costuras. As carruagens têm de fazer fila na rua ocupando vários quarteirões. Os convidados têm de parecer um feixe de lenha dentro da sala. Com sorte uma ou duas senhoras haverão de desmaiar com falta de ar. Toda a gente terá de considerar o acontecimento uma enorme multidão e um aperto fantástico. Convida-os a todos, Emily.

 

Ela mordeu o lábio inferior.

 

Não sei, Simon. Parece-me pouco confortável. Seria muito mais fácil conversar e servir os refrescos, se houvesse pouca gente.

 

- Ao diabo a conversa inteligente e o serviço adequado, minha querida. Não é altura nem local para tal. O que importa em tudo isto, como sem dúvida a minha tia te irá explicar é que tenhas um bom começo como anfitriã. Para que isso aconteça, será necessário que as pessoas falem depois da festa. Para que as pessoas falem, terá de ser um acontecimento extremamente grande e ruidoso. Convida toda a gente da lista, Emily.

 

- E Canonbury, Peppington, Adley e Renton? Afinal não conheço nenhum deles e eu....

 

- Muito principalmente Canonbury e Peppington - disse Simon em voz baixa. - Temos de ter a certeza que os dois recebem convite. Emily poisou a folha de papel e olhou para ele, com a cabeça pensativamente inclinada.

 

- Se assim o dizes, Simon. - Depois franziu de novo a testa com uma súbita preocupação. - E se ninguém responder aos nossos convites? Simon sufocou um pequeno sorriso de satisfação.

 

- Acredita, minha querida, que hão-de aceitar. - Inclinou-se sobre a secretária e, impaciente, arrancou-lhe a lista das mãos. - Vou mandar o meu secretário tratar disto e enviar os convites. E agora, Emily, quero falar contigo.

 

- Sim, Senhoria? - Emily ficou alerta, com ar de expectativa.

- Que diabo, tens de me olhar sempre assim, elfo? juro que vais dar comigo em louco com essa estranha combinação de ingenuidade e malícia. Quase me fizeste esquecer que ontem andavas a tentar contratar um assassino.

 

- Peço desculpa, Senhoria - disse Emily não parecendo nada arrependida. - Está a pensar fazer-me um novo discurso sobre o assunto?

- Não. - Simon levantou-se e dirigiu-se à janela, voltando-lhe as

 

costas. Observou o jardim encharcado das traseiras da casa, enquanto organizava os pensamentos. - Tenho diante de mim um trabalho muito difícil, Emíly.

 

- De que se trata, Senhoria?

 

- Desejo pedir-te desculpas - disse em voz baixa.

 

Houve uma pequena pausa antes de Emily dizer, cheia de cautelas:

- Porquê?

 

- Pelo meu comportamento pouco cavalheiresco de ontem à noite resmungou Simon. - Não te tratei bem, elfo. Portei-me de um modo indelicado e rude.

 

- Estás a falar da história de me mandares subir para a tua cama? Que tolice. Por favor Senhoria, não se preocupe - disse Emily alegremente. - Diverti-me muito, depois de lá me meter.

 

Simon abanou a cabeça estupefacto.

- Emily, és espantosa.

 

- Bom, não foste mau nem cruel, Simon. Estavas simplesmente irritado e tinhas razão para isso, considerando que te tinha obrigado a esquecer um juramento de vingança feito há vinte e três anos. Se me tivesse sentido verdadeiramente assustada, teria fugido para o meu quarto e fechado a porta. Não me assustaste minimamente.

 

- Parece que não. - Ficou em silêncio durante algum tempo. - Há outra coisa pela qual devo também pedir desculpa.

 

- Agora é que me estás a assustar, Blade - disse ela com alegria na voz. - Qual foi o teu outro pecado grave?

 

- Subestimei-te, minha querida. Pareceste-me tão ingénua e optimista, tão decidida em ver o lado bom de tudo e todos, tão terrivelmente certa de que eu sou uma espécie de herói quando sei perfeitamente que o não sou, que não acreditei que compreendias perfeitamente a situação da tua família. Deveria ter percebido que, se és tão arguta com os investimentos e o dinheiro, também não deverias ser totalmente cega à natureza humana. Detestaste realmente o teu pai, no passado?

 

- Sim. - A nota alegre desaparecera da voz de Emily.

 

- Tinhas razão, quando disseste que eu deveria ter detestado o meu por me deixar encarregado de remediar as coisas, depois de ter metido a bala na cabeça. - Simon apertou a mão com força e depois obrigou-se a descontrair os dedos todos. - Nem sequer me tinha apercebido do muito que o detestava, antes de ontem à noite mo teres feito notar.

 

- Parece-me uma reacção perfeitamente natural, Senhoria - respondeu meigamente Emily. - Ambos recebemos, muito jovens, responsabilidades de adulto e todos esperaram que reagíssemos como tal. Fomos obrigados a olhar pelo bem-estar de outros, numa altura que, pela ordem natural das coisas, alguém deveria estar preocupado com o nosso bem-estar.

 

- Sim. Não pensei nisso dessa maneira. - Simon fitou a bruma acinzentada. - Estava a chover na noite em que o descobri. Voltara de Londres havia duas horas. Ouvi a minha mãe perguntar-lhe o que se passava. Ele não lhe respondeu. Foi para a biblioteca e ordenou que não o incomodassem a pretexto algum. A minha mãe foi lá para cima e pôs-se a chorar. Algum tempo depois, ouvimos um tiro.

 

- Meu Deus, Simon.

 

- Fui o primeiro a chegar à biblioteca e abrir a porta. Estava deitado sobre a secretária. A arma caíra-lhe da mão. Havia sangue por todo o lado. Vi que tinha deixado um bilhete para mim. Maldita seja a sua alma no Inferno. Não se despedia nem explicava a razão que o levara ao suicídio, nem sequer como deveria eu tratar da confusão que ele tinha gerado. Limitou-se a deixar uma nota dizendo que tomasse conta da minha mãe.

 

- Simon, querido Simon.

 

Ele não a sentiu levantar da cadeira, mas Emily estava ali, por trás dele, passando-lhe os braços pela cintura. Abraçava-o com um feroz sentimento de protecção. Como se o pudesse fazer banir para sempre a imagem dos miolos do pai espalhados pela parede, por trás da secretária.

 

Durante algum tempo, Simon não se mexeu. Permitiu apenas que Emily o abraçasse. Sentia o seu calor e ternura, apercebendo-se de que aquilo era parecido com o que sentia quando fazia amor com ela, mas ligeiramente diferente. Não era paixão que sentia, mas um outro tipo de intimidade, que nunca antes partilhara com outra mulher.

 

Algum tempo depois, apercebeu-se de que estava mais calmo e mais em paz consigo mesmo. Desaparecera a inquietação que o tinha despertado naquela manhã.

 

Fez-se silêncio na biblioteca, até que Greaves bateu na porta para anunciar o secretário de Simon.

 

Emily entrou no parque a trote brusco, seguida pelo moço de cavalariça. A égua que cavalgava era bela e cinzenta, com orelhas sensíveis, narinas delicadas e um aspecto espectacular. O animal fora um presente de Simon, que a tinha surpreendido com ele dois dias antes, após a conversa na biblioteca. Emily e a criada tinham prontamente decidido que o elegante traje novo de amazona à la militaire fazia na perfeição as honras ao animal.

 

- Ah, Emily, então é aqui que a menina está - disse Lady Merryweather, aproximando-se num baio esguio. - Fica fantástica com esse traje preto. - Examinou com ar crítico o debrum vermelho e dourado na gola e nos punhos. - Confesso que tive algumas dúvidas quando o encomendou, mas estou muito satisfeita por ver que fica lindamente à sua pele clara e cabelo ruivo. O efeito é estupendo.

 

Emily sorriu.

 

- Obrigada, Araminta.

 

- Porém, deveria ter tirado os óculos - admoestou Araminta. Não ficam nada bem ao traje.

 

-   Araminta, eu não posso andar a cavalo sem ver o que faço ou por onde vou.

 

- Deve haver um modo qualquer. Temos de pensar no problema.

- Araminta colocou o cavalo a par do de Emily e as duas seguiram pelo atalho, com os moços de cavalariça a uma discreta distância.

 

- Simon não parece importar-se com os meus óculos - fez notar Emily.

 

- Simon tem um estranho sentido de humor. Acha as suas excentricidades extremamente divertidas. E tenho de admitir que não parecem prejudicar o seu sucesso social. Toda a gente está encantada consigo, O seu pobre marido teve dificuldade em obter de si uma dança, ontem à noite, no baile de Lady Crestwood.

 

Emily corou.

 

- Ele sabe muito bem que pode obter todas as danças que quiser.

- Sim, suponho que sabe - reconheceu Araminta com um olhar conhecedor. - Decerto que tem consciência de que a minha amiga, pisaria toda uma montanha de pobres e fiéis admiradores para chegar ao outro lado do salão de baile, mesmo que ele apenas se limitasse a levantar-lhe um dedo. Toda a sociedade se apercebe desse facto.

 

- Francamente, Araminta, está a fazer com que me pareça com um cão, que vai imediatamente para o lado do dono, assim que este o chama.

 

- Bom, a menina tem uma certa tendência em revelar claramente o que sente pelo seu marido. Não é particularmente elegante, minha querida. Para ser totalmente franca, não tenho a certeza de que seja muito sensato. Decerto não quererá que Blade a tome como certa.

 

- Blade não toma nada como certo - afirmou Emily. - Tem verdadeira noção de tudo o que quer adquirir e perfeita compreensão dos custos de tudo o que faz.

 

Araminta deu uma gargalhada.

 

- já vejo que é inútil instruí-la nas vantagens de não revelar os seus verdadeiros sentimentos ao seu marido. Escute, minha querida, tem de me contar os planos para a sua primeira soírée. já enviou os convites?

 

- Ontem. Convidei toda a gente da lista que o secretário de Simon preparou, Araminta. Espero ter feito aquilo que está certo. Vai ser uma multidão incrível.
- É disso que precisa. Confie em mim, minha querida, Tem de ter a certeza de que a casa vai estar tão cheia, que as pessoas levem meia hora só para chegar à porta.

 

Emily fez uma careta.

 

- Foi isso que Simon disse, mas continuo a pensar que é pouco confortável.

 

- Não é uma questão de conforto, mas sim de cimentar a sua posição de anfitriã dentro do haute monde.

 

- Sim, eu sei. Não posso, de modo algum, embaraçar Simon disse Emily francamente. - Acredite-me, Araminta, tenho perfeita consciência de como esta soirée é importante para o meu marido. Como esposa de Blade, é meu dever transformar esse acontecimento num enorme êxito. O mundo social vai observar-me com toda a atenção, para ver com que espécie de anfitriã se casou o conde de Blade e estou decidida a não o humilhar de modo algum.

 

Araminta franziu a testa.

 

- Não creio que tenha compreendido, Emily. É a sua estreia como anfitriã. É a sua festa.

 

-Tudo o que eu fizer reflectir-se-á em Simon - concluiu firmemente Emily. - A soirée tem de ser perfeita ao mínimo pormenor. Já passei horas a rever os planos. Se quer saber a verdade, é muito cansativo.

 

Araminta desistiu e acenou a uma dama que vinha na direcção delas num landau castanho.

 

- Sorria - ordenou a Emily em voz baixa. - É Lady Peppington, Vou apresentar-lha.

 

Enquanto Araminta fazia as apresentações, Emily sorria alegremente à dama de meia-idade, elegantemente vestida. Lady Peppington inclinou a cabeça num aceno gelado e depois desviou o olhar. O landau. partiu bruscamente pelo atalho.

 

Emily sentiu o pânico invadi-la.

- Com mil raios.

 

Araminta ergueu as sobrancelhas.

- Que diabo se passa agora, Emily?

 

- Disse-me que se tratava de Lady Peppington - sussurrou Emily.

- E então?

 

- Está na minha lista de convidados e é óbvio que não gosta particularmente de mim. E se não vier à festa? Simon ficará furioso. Disse-me que desejava especialmente que os Canonbury e os Peppington comparecessem. Que hei-de fazer, Araminta?

 

- Absolutamente nada. Pode ter a certeza de que os Canonbury e os Peppington hão-de vir à festa, juntamente com todos os outros que receberem o convite.

 

Emily lançou um olhar especulativo à sua companheira.

- Como pode ter a certeza, tal como Simon?

 

- Simon não lhe falou de Canonbury e Peppington, pois não? Emily lembrou-se da sinistra expressão do marido, quando a informou de que Canonbury e Peppington viriam à soírée.

 

- Araminta, há alguma coisa que eu deva saber a respeito dessas pessoas?

 

- Não sou eu que lhe devo dizer - respondeu Aramínta, com ar pensativo - mas creio que o vou fazer. É do seu interesse saber no que se está a meter e creio que Simon não terá pressa de a informar. É fortemente propenso a guardar para si os seus segredos.

 

- Deixe-se de rodeios, Araminta. Por amor de Deus, de que se trata?

 

- Os pais de Northcote, Canonbury e Peppington eram todos amigos íntimos e sócios do pai de Simon.

 

- Sim?

 

- Simon tinha apenas doze anos quando o pai se suicidou, mas sabia, por ter ouvido discuti-lo que Northcote, Canonbury e Peppington tinham todos investido juntos com o pai numa sociedade de uma Companhia dos Mares do Sul. Na noite em que se matou, o conde deixou a Simon um bilhete dízendo-lhe, entre outras coisas, que depois de pagas as suas dívidas de jogo, os únicos recursos financeiros que restavam ao filho e à esposa seríamos lucros que essa sociedade comercial realizasse.

 

- Valha-me Deus. - Emily começava a aperceber-se do que estava para vir.

 

- Simon sentou-se e, com a tenra idade de doze anos, escreveu aos três homens, pedindo-lhes que lhe avançassem a ele e à mãe algum dinheiro na base do lucro esperado nas acções do pai.

 

- E eles recusaram?

 

- Nem se incomodaram em responder. Pelo contrário, aproveitaram-se de- uma cláusula do contrato da companhia para vender as acções de Blade a outro investidor. Simon e a mãe foram definitivamente afastados da sociedade. Não receberam um tostão.

 

- Com mil raios!

 

- Compreenda que não houve nada de ilegal naquilo que Northcote, Canonbury e Peppíngton fizeram. Foi apenas um assunto de negócios.

 

Mas Simon e a mãe foram eficazmente privados da sua única fonte de rendimento.

 

- Sim. Simon nunca mais esquecerá ou perdoará. Emily franziu a testa.

 

- Estou surpreendido que não tenha procurado vingar-se de todos eles juntamente com o meu pai.

 

-  Oh, mas procurou, sim, Emily. - Araminta sorriu a outra pessoa conhecida. - Claro que sim. Uma vingança muito subtil. Assegurou-se de que todos eles ficassem de certo modo à sua mercê. Tal como, há seis meses, já tinha Canonbury e Peppington sob a sua alçada, Parece que a minha amiga fez qualquer coisa que lhe entregou Northcote numa bandeja de prata.

 

Os lábios de Emily tremeram de susto, ao recordar o salvamento de Celeste e a fria cautela entre Simon e o marquês, que mais tarde fora evidente.

 

- Com mil raios. Mas o actual marquês é filho do homem que enganou Simon e a mãe, não aquele que vendeu as acções de Blade. A voz faltava-lhe, à medida que recordava o rígido código do marido.

 

- Precisamente - murmurou Araminta. - Simon viveu muito tempo no Oriente. Aos seus olhos, os pecados dos pais caem sobre os filhos e afinal sobre toda a família.

 

- Não admira que Simon tivesse agido de modo tão estranho quando o informei de que dissera a Lady Northcote que as obrigações entre as duas famílias estavam saldadas,

 

- Sim. Imagino que terá sido um choque para Blade. - Araminta torceu a boca divertida. - Porém diz-se que ele honrou o compromisso da minha amiga e perdoou a antiga dívida.

 

- O meu pai disse-me uma vez qualquer coisa a respeito de Simon controlar Canonbury e Peppington. Naquela altura não entendi. Pensei apenas que quisesse dizer que Simon era um homem muito poderoso.

 

- E de facto é. Conseguiu-o, assegurando-se de que sabe sempre os segredos mais profundos e incómodos daqueles com quem tem negócios. Essas informações dão-lhe poder e ele não hesita em consegui-las.

 

- Tal como sabia que eu era o ponto fraco do meu pai - disse Emily quase como se falasse consigo mesma. - O meu marido é um homem extremamente inteligente, não é?

 

- E também muito perigoso. Parece-me que a minha amiga é a única pessoa em Londres que não o receia. É, sem dúvida, uma das razões por que a sociedade a acha fascinante, minha querida. A menina dança alegremente nos caminhos que os anjos temem pisar. Tem a certeza de que não é capaz de andar a cavalo sem óculos, Emily?

 

- Saía imediatamente do atalho e iria chocar contra as árvores garantiu-lhe Emily. Empurrou as ofensivas lentes ainda mais firmemente sobre o nariz. - Vamos embora, Araminta. Estou a ver Celeste ali à frente e nem posso esperar para lhe mostrar a minha égua nova.

 

- Emily, só um momento, por favor. Não há como a menina para mudar de assunto com tanta rapidez. Que está a pensar fazer? Vejo que tem um plano qualquer.

 

- Nada de especial, Araminta. Porém, creio que logo que possível vou convidar Lady Canonbury e Mrs. Peppington para o chá. Não quer vir?

 

- Valha-me Deus! - Araminta fitou Emily. - Certamente que sim. A experiência deve ser interessante.

 

A reunião que teve lugar na tarde seguinte na sala de Lady Turnbull não foi de modo algum o que Emily esperava. Estivera excessivamente ansiosa, desde que recebera o convite, pois sabia que iria conhecer e privar com alguns dos mais sofisticados intelectuais literários.

 

Passara horas escolhendo o vestido e o penteado mais apropriados. Por fim, optara por um estilo clássico e sereno, partindo do princípio que uma multidão de gente interessada em poesia romântica e outros assuntos intelectuais não apreciaria a sua actual tendência.

 

Chegara a casa de Lady Tumbull com um severo vestido, de cintura alta e corte modesto, feito de musselina e enfeitado com dragões negros. Mandou Lizzie pentear-lhe o cabelo à Uantique.

 

Porém, Emily descobriu assim que entrou, que todas as outras damas usavam vestidos com decotes modernos e chapelinhos frívolos jovialmente empoleirados nas cabeças.

 

Duas ou três damas soltaram risinhos quando Lady Tumbull avançou para cumprimentar Emily. Quando esta se sentou, teve a dolorosa consciência da curiosidade e divertimento dos que a rodeavam. Pensou, aborrecida, que era como se tivesse sido contratada para os divertir com os seus modos excêntricos.

 

Começou a interrogar-se se não teria cometido um sério erro ao aceitar o convite para se juntar ao grupo. Naquele momento Ashbrook fechou num ápice uma elegante caixa de rapé de esmalte e afastou-se da lareira, em cuja prateleira estava apoiado com graça negligente, Aproximou-se para beijar a mão de Emily, concedendo-lhe imediatamente a sua distinção. Emily sorriu-lhe, agradecida.

 

Porém Emily ficou de novo desapontada, quando a conversa girou à volta dos últimos mexericos e não da mais moderna literatura romântica. Ouviu impaciente os últimos on dit, perguntando a si própria se se poderia ir embora. Era óbvio que afinal não tinha sido apresentada a um grupo de intelectuais inteligentes. Realmente toda a gente na sala tinha um ar de aborrecimento maravilhosamente elegante e cada palavra dita estava carregada de um cinismo cansado do mundo, mas não havia qualquer interesse em assuntos literários. Do outro lado da sala, Ashbrook piscou-lhe o olho com expressão conspiratória.

 

- A propósito - disse em voz arrastada um cavalheiro que fora apresentado com o nome de Crofton. - Tive o prazer de jogar às cartas com o seu pai, Lady Blade.

 

Emily ficou imediatamente atenta. Olhou-o, surpreendida. Tinha os óculos postos de modo que conseguia ver a expressão cruel e dissipada no rosto de Crofton. Parecia-lhe que teria sido um homem bem-parecido, com as suas ousadas feições saturninas. Mas tinha agora um ar exausto e completamente debochado. Crofton desagradara a Emily no preciso momento em que lhe fora apresentado.

 

- Ah, não me diga - bebeu um pouco de chá, com ar descomprometido.

 

- Sim, para falar verdade, o seu pai nas apostas é ou tudo ou nada.

- Sim - Emily rezou para que ele mudasse de assunto.

 

- Parece que ultimamente está um pouco deprimido - observou Crofton. - Deveria estar a rebentar de entusiasmo devido ao seu excelente casamento.

 

- já sabe como são os pais - disse Emily, sentindo-se desesperada. - Sou a sua única filha.

 

- Creio que a senhora deve ter sido muito importante para ele murmurou Crofton. - mesmo vital ao seu bem-estar.

 

Emíly olhou para Ashbrook, sorrindo com ar esperançoso.

- já leu os últimos escritos de Mrs. Fordyce, Senhoria?

 

- Mrs. Fordyce é uma mulher tola e desmazelada, que infelizmente tem falta de inteligência e talento. - Ashbrook proferiu estas últimas palavras com um ar de total aborrecimento.

 

Emíly mordeu o lábio.

 

- Apreciei muito o seu último romance. Muito estranho e interessante.

 

O pequeno grupo riu-se de modo indulgente com esta exibição de gosto rústico e voltou a discutir as últimas excentricidades de Byron. Emily arriscou-se a olhar para o relógio, desejando que fosse tempo de partir. Escutou a tagarelice que girava à sua volta, chegando à conclusão que a sociedade literária de Little Dippington fazia mais nas suas reuniões das tardes de quinta-feira, do que alguma vez este elegante salão. Como sempre fazia quando se sentia aborrecida ou infeliz, trabalhava mentalmente nas novas estrofes de A Dama Misteriosa.

 

Pensou que seria de facto necessário um fantasma. O Poema precisava de mais melodrama. Talvez que a heroína o pudesse encontrar num castelo abandonado. Tinha de se lembrar de dizer a Ashbrook que tencionava acrescentar um fantasma. Trouxera consigo o manuscrito dentro da malinha, mas perguntou a si própria se lho entregaria tão cedo. Talvez fosse melhor esperar até lhe ter acrescentado o fantasma.

 

A conversa no salão derivara num novo sentido.

 

- Já que falamos de possíveis investimentos - disse portentosamente um cavalheiro enfatuado - não me importo de vos contar a última sociedade em que neste momento estou interessado. Acções de um projecto para construção de um canal no Hampshire.

 

Com alguma relutância, Emily voltou a sua atenção de novo para o presente. Fitou com ar intrigado o cavalheiro que acabara de falar.

- Por acaso não será o projecto do Kingsley Canal?

 

O olhar do cavalheiro voltou-se imediatamente para ela.

 

- Claro que sim. O meu gestor de negócios chamou-me recentemente a atenção para ele.

 

- Se fosse eu não queria nada com essa companhia - disse Emily.

- Sei alguma coisa acerca das sociedades formadas pelo cavalheiro que está por trás do projecto do Kingsley Canal e não passa de um fracasso onde só há perdas.

 

O homem deu toda a sua atenção a Emily.

 

- Acha que sim, Lady Blade? Estou muitíssimo interessado em ter informações acerca desse projecto, pois tenciono em breve investir nele uma importante soma.

 

- Se quiser investir em canais - explicou Emily - sugeria que primeiro investigasse as áreas mineiras do carvão ou as da porcelana. Descobri que sempre que se descobre um produto que necessita de um caminho económico para o mercado, descobre-se a necessidade de um canal. Mas deveremos considerar as pessoas que estão por trás da sociedade com tanto cuidado como a própria sociedade.

 

Ao dizer estas simples palavras, todos os olhos masculinos da sala convergiram em Emily e as mulheres em breve imitavam os homens. Emily pestanejou como um mocho, ao sentir-se sob aquele inesperado escrutínio. Continuara ali na cidade o seu trabalho de investimento. Afinal, as senhoras da sociedade literária de Little Dippington ainda dependiam dela. Mas Emily nunca esperara achar-se a discutir o assunto naquele dia. Viera para falar de coisas mais elevadas.

 

- Diga-me - começou um dos homens, abandonando imediatamente a sua atitude de enfado -, a senhora favorece algum projecto em particular?

 

- Bom - disse Emily lentamente. - Tenho vários intendentes nos condados do interior e dois deles escreveram-me há pouco tempo acerca de um novo projecto. Confesso que ultimamente não tenho dado grande atenção aos assuntos financeiros, mas estou bastante intrigada com este. No passado já me vi em situações muito bem sucedidas, com este grupo de investidores.

 

Todas as pretensões de discussão literária foram postas de lado, quando Emily se tornou o centro de todas as atenções. Viu-se inundada de perguntas e pedidos de mais informações acerca de projectos de investimento. Tratava-se de um terreno familiar, embora pouco interessante e, ansiosa por agradar, concentrou-se nas respostas que dava.

 

Passou uma hora e meia, antes de ter tido de novo oportunidade de olhar para o relógio. Sobressaltou-se ao ver as horas.

 

- Espero que me perdoem - disse à sua anfitriã, enquanto se erguia num salto e pegava na bolsa. - Tenho de ir. Muito obrigada por me ter convidado.

 

- Estamos desejando tê-la de novo connosco no nosso grupo na próxima semana - disse Lady Turnbull, com um olhar rápido e avaliador das expressões fascinadas no rosto dos cavalheiros. - Talvez nos possa dar mais informações a respeito de investimentos e assim.

 

- Sim, volte para a semana - pediu um dos cavalheiros.

 

- Gostaria muito de ouvir a sua opinião acerca da colheita do milho deste Verão - disse outro.

 

- Muito obrigada - disse Emily, dirigindo-se rapidamente para a porta. Tomou mentalmente nota para, se possível, arranjar outro compromisso na semana seguinte. - Se me dão licença...

 

- Eu acompanho-a à sua carruagem - disse Ashbrook com grave galanteria.

 

Emily olhou-o, surpreendida.

- Oh, muito obrigada.

 

Lá fora, na escada, esperou num silêncio tenso que ele lhe perguntasse se trouxera o seu manuscrito. Não queria confiar-lho, a menos que ele lho pedisse.

 

- Fiquei muito contente por ter vindo hoje - disse Ashbrook em voz baixa, quando a carruagem negra e doirada de Blade se aproximou. - Estava à espera que o fizesse. Agora acho que não posso esperar até voltar a encontrá-la. Vai amanhã à noite à festa dos Olmstead?

 

- Creio que sim. - Emily agarrava com força a bolsa, interrogando-se, se por acaso, deveria mencionar o manuscrito. Talvez qualquer coisa encantadoramente despropositada sobre WhittenstalI, o editor de Ashbrook, surtisse efeito. Rebuscou freneticamente na ideia qualquer coisa adequada.

 

- Teve tempo para trabalhar no seu poema épico? - perguntou Ashbrook, ao ver a carruagem aproximar-se da escada.

 

Emily soltou um suspiro de alívio. Afinal não se tinha esquecido.

- Sim, sim, claro que sim. Acontece que o tenho aqui comigo.

- Ah, sim? - Ashbrook sorriu deliberadamente. - Quer que lhe

 

dê uma olhadela para ver se serve para ser publicado?

 

- Oh, Richard, é muita bondade sua. Receava que se tivesse esquecido e não queria ser insistente. - Emily abriu a bolsa e retirou de lá o seu precioso manuscrito. - Decidi definitivamente acrescentar um fantasma - disse ela, enquanto lho entregava com os dedos trémulos. - Deve ter isso em conta, quando o ler.

 

- Certamente. - Ashbrook pegou no manuscrito e sorriu ternamente. - Entretanto, promete guardar-me uma dança para amanhã à noite?

 

- Sim, claro - disse Emily com ar feliz, enquanto Harry a ajudava a subir para a carruagem. - Muito obrigada, Richard. E, por favor, peço-lhe que seja totalmente honesto na sua opinião a respeito da minha obra.

 

A porta da carruagem fechou-se e Emily partiu, antes de Ashbrook poder responder-lhe.

 

Minutos mais tarde, a mesma carruagem detinha-se diante da casa dos condes de Blade. Emily desceu rapidamente e dirigiu-se de imediato lá para cima, para o seu quarto.

 

Passava pela porta fechada do antigo quarto das crianças, que já não era usado quando uma enorme pancada seguida de um claro gemido a obrigou a parar imediatamente,

 

- Mas que diabo? -- Abrindo a porta e espreitando para dentro, Emily ficou estupefacta ao ver Simon e os gêmeos em tronco nu.

 

Charles acabava de se erguer do tapete. Simon estava junto a ele, de pernas abertas, e Deviin observava com uma expressão profundamente concentrada.

 

- Não esmurre com o seu pulso - dizia Simon, com ar sério. Deixe o homem vir directamente ter consigo e depois volte-se ligeiramente para a direita. Ele segui-lo-á instintivamente e, ao fazê-lo, vai desequilibrar-se. O equilíbrio é tudo. Compreende?

 

- Creio que sim. - Charles esfregava o ombro nu. - Deixe-me experimentar de novo.

 

- Mas o que se passa aqui? - perguntou Emily fascinada.

 

Os três homens voltaram-se para olhar para ela, reflectindo os seus rostos um sentido unido de ultraje masculino.

 

- Emily! - gritou Charles.

 

Com expressões horrorizadas, os gêmeos apressaram-se a agarrar as camisas que estavam penduradas logo ali, nas costas de cadeiras.

- Maldição, Emily - disse Simon furioso. - Isto não é sítio para uma mulher. Sai imediatamente! E fecha a porta!

 

- Estás a praticar alguma forma estranha de boxe, Simon? Alguma coisa que aprendeste no Oriente? Adorava observar. Talvez me pudesses dar umas aulas. - Emily olhou para ele com ar esperançoso.

 

- Retire-se imediatamente deste quarto, minha senhora. E feche a porta, quando sair - vociferou Simon.

 

Emily lançou um rápido olhar aos rostos zangados dos irmãos, achando-os igualmente implacáveis.

 

- Oh, muito bem. Mas devo dizer-vos que são os três uns desmancha-prazeres.

 

Emily voltou para o corredor, fechando a porta atrás de si.

 

Capitulo 17

DIGA-ME O QUE ESTAVA A FAZER no quarto das crianças com Charles e Deviin, Senhoria - pediu Emily nessa noite, do outro extremo da mesa. - Estou tremendamente curiosa.

 

A curiosidade não é um traço muito agradável numa mulher. Simon observava o caril indiano exoticamente picante que George colocara na sua frente.

 

Emily lançou-lhe um sorriso malicioso.

 

- Não poderias esperar que eu ignorasse todos esses barulhos, enquanto passava pela porta do quarto das crianças.

 

Simon sabia que Emily estava deliberadamente a troçar dele. Sabia também que Greaves e George ouviam tudo enquanto serviam à mesa.

- De futuro, minha querida, por favor, bata à porta antes de entrar num quarto em que ouve barulhos.

 

- Sim, claro - disse Emily com um aceno de aquiescência. Isto é, nunca se sabe o que se vai encontrar quando se abre uma porta depois de ouvir um barulho ensurdecedor, não é verdade? Pode ser qualquer coisa. Até se podem encontrar três homens sem camisa, ou qualquer coisa igualmente ofensiva.

 

- já chega de conversa sobre o assunto, senhora minha esposa. Lançou a Emily um olhar severo.

 

A resposta foi uma irreprimível gargalhada.

 

- Recuso-me a terminar a discussão, até saber o que estavam a fazer. Estavam a praticar alguma espécie de técnica de luta?

 

Simon desistiu.

 

- Estávamos, sim. Não tenho a certeza como aconteceu, mas seja como for os teus irmãos conseguiram convencer-me a fazer-lhes uma demonstração. Foi uma coisa que aprendi durante os anos que passei no Oriente.

 

- Não me ensinas?

 

Simon ficou verdadeiramente chocado com a sugestão. As encantadoras excentricidades de Emily podiam ser por vezes divertidas, mas havia ocasiões em que passavam definitivamente das marcas.

 

- É claro que não! Não é uma actividade apropriada a uma mulher e não é de modo algum o género de coisa que um homem ensine à esposa.

- Hum. Não tenho muita certeza de que fosse má ideia ensinares-me - continuou Emily sem se intimidar. - Afinal, as ruas de Londres não são lá muito seguras, já para não falar de locais como os Vauxhall Gardens. Nunca se sabe, por exemplo, quando uma pessoa pode encontrar um perigoso assassino num caminho escuro e ser obrigada a defender-se de um destino pior que a morte.

 

- Já basta, minha senhora!

 

George, o criado que naquela noite os servia, foi de súbito vencido por um violento e precipitado ataque de tosse. Saiu da sala a correr. Lá fora, no vestíbulo, a tosse transformou-se numa sonora gargalhada. Greaves, o mordomo, parecia extremamente sofredor.

 

Simon fitou Emily.

 

- Os perigos que há nas ruas são uma das razões pelas quais nunca deves sair na cidade, sem ser acompanhada, minha querida. E por falar em sair, a minha tia disse-me que tinha recebido um convite em teu nome para Almacks.

 

- Ela já me disse - disse Emíly em tom vago, servindo-se do chutney. - Mas francamente, Simon, não tenho qualquer interesse particular em ir a Almacks. Celeste disse-me que as reuniões são horrorosamente aborrecidas. Só lá vai quem anda à procura de marido, coisa que eu já não preciso, não é verdade?

 

- Não, mas a tua presença em Almacks não faria mal nenhum

- disse Simon em tom firme. E seria outra jóia na coroa do recente sucesso social de Emily. - Creio que deverias ir lá na próxima quarta-feira à noite.

 

- Preferia não o fazer. Simon, o teu cozinheiro serve as mais espantosas refeições. Descobriste-o no Oriente?

 

- Sim,Deviin* está comigo há vários anos.

 

* O nome do cozinheiro significa Fumo. [N. da T.]

 

- Porque se chama Smoke? Porque queima a comida?

 

- Não, porque é filho bastardo de uma nativa e de um marinheiro inglês. Ninguém o queria, quando nasceu, e conseguiu sobreviver aprendendo a mover-se e a agir como o fumo. Sempre presente, mas raramente notado. - Um talento particularmente -útil quando se ganha a vida roubando carteiras em sujas cidades portuárias - reflectiu Simon, silenciosamente.

 

- Como o conheceste?

 

Creio que na altura tentou roubar-me - murmurou Simon. Emily riu deliciada.

 

- O que te fez decidir oferecer-lhe emprego de cozinheiro?

 

- Adora fazer a comida que eu aprendi a apreciar no Oriente. Com ele na cozinha não sou obrigado a comer a vulgar comida inglesa, como carneiro duro, salsichas gordurosas e pesados pudins.

 

- Já reparei que comemos muitos pratos com massinha e arroz

- observou Emily. - Devo dizer-te que gosto muito. As especiarias são maravilhosas e muito estimulantes para os sentidos.

 

Simon lançou-lhe um olhar impaciente, consciente de que tentava mudar de assunto.

 

- Vais então a Almacks, minha querida? - perguntou, em tom meigo e deliberado. - Tem de ser? - Parecia deliciosamente despreocupada com

 

tudo aquilo. - Vou falar do assunto com Lady Merryweather. É uma fonte de sabedoria a respeito do comportamento social, não achas? Simon, estou a pensar começar o meu próprio salão literário. Esta tarde estive num e devo dizer que fiquei muito desapontada. Mal tocámos em problemas literários. Toda a gente queria falar de investimentos.

 

Este comentário conseguiu distrair imediatamente a atenção de Simon.

 

- Ah, sim? - Meteu na boca outra garfada de caril e fitou cautelosamente a mulher. - Quem estava lá?

 

- Teve lugar em casa de Lady Turnbull - disse Emily, distraída.

- Havia várias pessoas. Confesso que me esqueci de alguns nomes. Franziu a testa de propósito. - Porém, estava lá um cavalheiro chamado Crofton. Lembro-me, porque não gostei muito dele.

 

Se Crofton lá estava, Ashbrook não andaria muito longe, reflectiu Simon, aborrecido. Decidiu tentar delicadamente obter mais informações.

 

- Creio que conheci Crofton na rua, diante do seu clube. Também não fiquei muito impressionado com ele. Lembras-te de mais alguém que estivesse no salão de Lady Turnbull?

 

- Bom... - Emily lançou-lhe um olhar cauteloso. - De mais uma ou duas pessoas, talvez. Como te disse não fixei os nomes todos. Então Ashbrook tinha realmente lá estado e, por qualquer razão,

 

Emily tentava esconder a informação. Simon sentiu-se gelar de fúria e mandou Greaves sair da sala com um simples olhar. Aguardou até ficar só com a mulher, que mastigava entusiasmada o caril e o chutney.

- Gostaria de saber tudo o que aconteceu hoje no salão de Lady Turnbull, Emily.

 

- O caso, Senhoria é que - disse Emily com toda a franqueza preferia não lhe contar até ter a certeza de que as coisas vão correr bem. Simon fitou-a com raiva e espanto. Com mil raios! Estaria a planear

 

fugir com Ashbrook pela segunda vez? Não podia acreditar em tal ideia, mas ao mesmo tempo o ciúme começava a devorar-lhe as entranhas.

- Exactamente que coisas é que tenciona que corram bem, minha senhora?

 

É segredo, Senhoria. Desejo saber.

 

Se lhe disser não será segredo, Senhoria - fez notar razoavelmente Emily.

 

- Emily, agora és uma mulher casada. Não podes ter segredos para o teu marido.

 

- O problema é que as coisas serão terrivelmente embaraçosas para mim, se não se concluírem de feição.

 

Simon, que pegara no copo de vinho, voltou a pousá-lo antes que acidentalmente se estilhaçasse entre os seus dedos.

 

- Minha senhora, vai já dizer-me do que se trata. Receio ter de insistir em saber.

 

Emily soltou um pequeno suspiro e lançou-lhe um olhar perscrutador.

 

- Dás-me a tua palavra de honra que não contas a ninguém?

- Decerto não tenciono andar a fazer mexericos com a vida da minha esposa.

 

Emily descontraiu-se um pouco. Tinha os olhos brilhantes e parecia cheia de um entusiasmo que aparentemente guardara para si durante toda a tarde.

 

- Não, acho que não o faria. Bem, Senhoria, o segredo é que Ashbrook prometeu ler o meu poema épico e dizer-me se era ou não suficientemente bom para ser mostrado ao seu editor, Whittenstall. Estou tão ansiosa e emocionada, que mal posso suportá-lo.

 

Simon sentiu relaxar a tensão fria nas suas entranhas, ao ver o olhar ansioso de Emily. Claro que não planeara fugir com Ashbrook. Deveria estar louco, para ter considerado tal ideia. Conhecia-a bem demais para isso. Emily estava desesperadamente apaixonada pelo seu marido-dragão.

 

Porém, a sua reacção à improvável ameaça era uma clara indicação

 

da força com que ela afectava o seu autodomínio. Simon ficou aborrecido.

 

Mas agora tinha outro problema entre mãos. Emily poderia não estar a pensar em deixar-se seduzir pelo poeta, mas no espírito de Simon não havia a mínima dúvida de que as intenções de Ashbrook não eram inocentes, Emily estava a chamar as atenções e Ashbrook considerava-se a si mesmo extremamente elegante. Ter uma ligação com a encantadora e excêntrica esposa do conde de Blade seria, sem dúvida, um desafio interessante para o poeta. Provavelmente interrogava-se sobre o que tinha perdido cinco anos atrás, quando Emily lhe batera na cabeça com um bacio.

 

Ashbrook, seu canalha. Adivinhaste imediatamente que o modo de conseguires a atenção de Emily seria mostrar interesse nos seus escritos. Simon decidiu que teria mesmo de se encarregar do poeta, mas entretanto não precisava preocupar-se pois Emily não o abandonaria.

 

Ao mesmo tempo que dizia para consigo que não precisava alarmar-se, Simon via-se obrigado a compreender como Emily se tornara importante para si. Dava voltas a essa incómoda ideia, quando Emily voltou a falar.

 

- Então, Simon, não será uma oportunidade maravilhosa para mim? Ele torceu laconicamente a boca, ao ver o esperançoso entusiasmo nos seus belos olhos.

 

- É realmente muito interessante, minha querida. Emily acenou satisfeita.

 

- Claro que sim; agora já vês porque é que não quero que ninguém saiba enquanto Richard não der a sua opinião. Seria demasiado humilhante, se decidisse que A Dama Misteriosa não serve para ser publicada. Já percebi que a sociedade adora mexericos que humilhem as pessoas.

 

- Tens toda a razão em querer manter o assunto em segredo murmurou Simon. - E creio que seria uma óptima ideia estabeleceres o teu próprio salão literário, em vez de frequentares o de Lady Tumbull. Receio que não seja lá muito conhecida por apreciar genuinamente a literatura. Os seus salões são apenas uma desculpa para certas pessoas se reunirem e comentarem as mais recentes maledicências. Tal como reparaste, a má-língua aqui da cidade pode ser muito cruel.

 

- Sim, foi essa a conclusão a que cheguei. - Emily voltou as suas atenções para o caril. - Logo que possível formo o meu próprio salão. Creio que vou convidar Celeste e a mãe, bem como Lady Merryweather, claro. E há duas ou três senhoras que conheci recentemente e que se mostram muito interessadas no mais moderno estilo literário. Espero que venham.

 

- Tens de me dar uma lista com os nomes das pessoas que tencionas convidar - disse Simon.

 

Emily ergueu rapidamente os olhos com uma expressão cautelosa.

- Não, Senhoria, não dou.

 

Ele pestanejou com o súbito desafio.

- Posso perguntar porque não?

 

Ela esticou acusadoramente o garfo.

 

- Porque descobri finalmente pela sua tia, o modo como Vossa Senhoria quer controlar as coisas. Parece que tem o hábito de intimidar as pessoas para que façam o que o senhor quer. Para ser totalmente franca, não descarto a ideia de o senhor coagir toda a gente da minha lista de convidados a virem ao meu salão.

 

Simon ficou primeiro espantado e depois, com alguma relutância, divertido.

 

- Muito bem, Emily, convida quem quiseres e eu não me meterei no assunto.

 

Ela lançou-lhe um olhar suspeito.

 

- Estou perfeitamente resolvida a isso, Senhoria.

 

- Sim, já reparei. Não te aborreças, Emily- Não assustarei os teus convidados.

 

- Excelente - sorriu de modo aprovador e a testa desenrugou-se-lhe, como que por magia. - Vou então começar imediatamente a tratar das coisas.

 

- Não te esqueças que tens ainda de fazer os preparativos para a tua soirée.

 

Emily ficou imediatamente com uma expressão ansiosa.

 

- Estou a trabalhar muito para isso, Senhoria. Juro que estou a fazer tudo o que posso para que seja um completo êxito. Porém, ainda não percebo como vamos meter toda a gente cá em casa.

 

Simon acabou por descobrir Ashbrook num dos clubes de St. James. O poeta estava instalado numa cadeira perto do lume, com uma garrafa de porto ao lado e aparentemente a descansar dos seus jogos de cartas.

 

- Bom, Ashbrook, mas que circunstância tão conveniente. Simon sentou-se na cadeira em frente do poeta e pegou na garrafa de porto. Servíu-se de um cálice do vinho. - Há mais de uma hora que ando à sua procura. Onde está o seu amigo Crofton?

 

-- Vou encontrar-me com ele mais tarde. - Ashbrook abriu a caixa de rapé com um elegante e negligente gesto da mão, que certamente praticara durante horas.

 

- Estamos a planear uma volta por alguns dos bordéís mais intrigantes.

 

-- Ainda bem que cá não está. - Simon provou o porto. Era demasiado doce para o seu gosto. - Queria falar consigo a sós.

 

Os dedos de Ashbrook apertaram-se à volta do copo.

 

- Não vejo porquê. Respeitei o nosso pequeno acordo. Não disse uma única palavra acerca do escândalo do passado de Emily.

 

Simon sorriu perigosamente.

 

- Não sei do que está a falar. Não há qualquer escândalo no passado da minha mulher. Está a sugerir que possa ter havido algum?

- Valha-me Deus, não! Não estou a sugerir coisa alguma. Ashbrook engoliu o porto. - Que diabo quer de mim, Blade?

 

- Creio que tem em seu poder uma coisa que pertence a minha mulher. Gostaria que lha devolvesse imediatamente.

 

O espanto iluminou por instantes o olhar de Ashbrook, que rapidamente o substituiu por uma expressão indolente.

 

- Creio que estaremos a discutir o seu poema épico.

 

- Estamos! - Simon sorriu sem qualquer traço de humor. Ashbrook, não brinque comigo. Ambos sabemos porque se ofereceu para lhe ler o poema. Afinal não pôde resistir a seduzi-la, pois não? Sem dúvida lhe parece agora muito mais interessante do que há cinco anos. Quanto mais gastos estamos, mais forte é a atracção da ingenuidade e inocência, hum? E pensa então atraí-la elogiando a sua escrita.

 

Ashbrook ergueu uma sobrancelha.

 

- Parece-me que conhece a técnica. Foi assim que a convenceu a casar consigo, Blade? Elogiando-lhe a poesia em vez dos olhos?

 

-- Como me casei com ela não é da sua conta. Só precisa de se lembrar que ela é casada comigo. Aviso-o de que, se tentar atraí-la para a sua cama, trato de que a sua incipiente carreira de escritor termine ainda em botão.

 

- Está a desafiar-me para um duelo, Blade?

 

- Só se for estritamente necessário. Prefiro métodos mais subtis de persuasão. No seu caso, creio que o meu primeiro movimento seria falar com o seu editor, Whittenstall, e convencê-lo de que afinal o meu amigo tem falta de talento.

 

Ashbrook ficou de boca aberta.

 

- Pagava-lhe para não me publicar?

 

- Trataria de que nenhum reputado livreiro ou editor desta cidade pensasse que valia a pena publícá-lo. Estou a ser claro?

 

Ashbrook fechou a boca e encostou-se na cadeira, A sua expressão, inicialmente assustada, era substituída por um olhar de relutante admiração.

 

- Blade, o senhor é incrível. Tinha ouvido rumores de como conseguia o que queria, mas confesso não ter acreditado completamente. Estou impressionado.

 

- Não é necessário que se sinta impressionado. É apenas importante que não tente provocar a minha mulher, agitando diante dela o isco de conseguir publicar-lhe o poema.

 

- Não acredita que o seu trabalho seja suficientemente bom para ser publicado? - perguntou Ashbrook, arguto.

 

- Cheguei à conclusão que a larga gama de talentos da minha mulher se encontra fora do mundo literário, Não me importo que se divirta tentando escrever poesia ou coisas semelhantes. Porém, não permitirei que o senhor ou qualquer outra pessoa utilizem o seu interesse por assuntos literários como meio de lhe chamar a atenção.

 

- Pensa que ela pode ser tão facilmente afastada do seu lado? A boca de Ashbrook abriu-se num sorriso trocista.

 

Simon terminou o porto.

 

- A minha mulher é incapaz de uma infidelidade. Simplesmente porque não está na sua natureza. Mas pode ser ferida por promessas feitas por pessoas que não têm intenções de as cumprir. Tem tendência a pensar o melhor possível de todos.

 

- Acha que eu não faria uma leitura justa de A Dama Misteriosa?

- Não - respondeu SimonDeviin. - Nem por um instante. Espero ver o manuscrito devolvido amanhã de manhã.

 

- Que diabo, Blade, espere lá! Como quer que eu explique isso a Emily?

 

- Diga-lhe que acha que não lhe pode fornecer uma opinião imparcial - sugeriu Simon. - Afinal, trata-se da verdade. Como pode um homem examinar honestamente o manuscrito de outra pessoa, sabendo que a sua carreira literária está em equilíbrio precário?

 

- Pulha! - Mas Ashbrook parecia mais resignado do que provocador. - É melhor tomar cuidado, Blade. Cultivou já vários inimigos. Um dia, um deles pode decidir arriscar a sorte e tentar ultrapassar aqueles assassinos e guarda-costas a que chama criadagem.

 

Simon sorriu.

 

- É pouco provável. Sabe, Ashbrook, não tenho tantos inimigos como pensa. Porque no todo, confiro mais favores do que ameaças. De vez em quando, sei ser útil. Fará o favor de não se esquecer disso.

 

Ashbrook acenou com a cabeça, com olhar especulativo.

 

- Agora já vejo como costuma agir. Não há dúvida que é tão inteligente e misterioso como dizem, Blade. Favores úteis em troca de cooperação, retribuição certa se for traído. Uma técnica interessante.

 

Simon encolheu os ombros e afastou-se, sem se incomodar em responder. Tinha tratado do assunto naquela noite. Era altura de ir ter com Emily. Lembrou-se que ela iria fazer a sua aparição no baile dos Linton. Estava desejando dançar uma valsa com a esposa.

 

Vinte minutos depois, descia da carruagem e subia a escadaria da enorme mansão. Lacaios de libré azul aproximaram-se imediatamente, pegando-lhe no chapéu, conduzindo-o ao vestíbulo e depois lá acima, ao salão de baile.

 

Podiam ouvir-se os acordes de uma dança campestre por cima do ruído de risos e conversas. Simon deteve-se à entrada e olhou à sua volta, procurando sinais de Emily no salão apinhado. Ultimamente não era muito difícil localizá-la. Bastava procurar um enorme grupo de pessoas à volta de um elfo ruivo.

 

O grupo consistia numa variedade de novos amigos e admiradores de Emily. Entre os homens, viam-se alguns cavalheiros de idade, que queriam falar de acções e investimentos, um grupo de aspirantes a poetas, de caracóis despenteados e olhos ardentes, que desejavam discutir poesia romântica e vários jovens dândis, ansiosos por serem vistos a conversar com uma verdadeira original.

 

Havia também outras tantas mulheres no bando que rodeava Emily, Simon já o sabia ao avistá-la e para lá se dirigiu, através da multidão. Havia senhoras que, tal como Emily, apreciavam a moderna literatura romântica e outras ainda, como Lady Northcote e a sua filha Celeste, que consideravam Emily uma amiga encantadora.

 

O grupo incluía ainda algumas mulheres, cujos astutos maridos as tinham encorajado a cultivar a amizade com a nova condessa de Blade. Havia meninas recém-saídas da escola, cujas mães calculavam que uma associação com a nova condessa significava que as filhas entrariam em contacto com vários homens elegíveis. Por fim, e não sendo as menos importantes, havia algumas genuínas intelectuais, que consideravam Emily inteligente e deliciosamente excêntrica.
. Simon encontrava-se já à beira do grupo que rodeava Emily, quando esta pressentiu a sua presença. Um murmúrio varreu a multidão de admiradores, que se afastaram para deixar o marido passar.

 

- Blade! - Emily ergueu as lunetas para rapidamente o fitar e deixou-as cair. Em seguida, fez-lhe um largo sorriso de boas-vindas, com os olhos brilhantes de prazer. - Tinha esperança que arranjasses tempo para vir até cá.

 

- Vim implorar uma dança contigo, minha querida - disse Simon, inclinando a cabeça sobre a mão dela. - Por acaso restar-te-á alguma?

- Não sejas tolo. Claro que sim. - Lançou um olhar de desculpas

 

a um jovem cujo cabelo loiro fora elaboradamente penteado com um ferro de frisar. - Não se importa que adiemos a nossa dança, pois não Armistead?

 

- De modo algum, Lady Blade - disse Armistead, lançando a Blade um olhar respeitoso.

 

Emily voltou o rosto risonho e ansioso para o marido.

 

- Como vês, Blade, estou completamente livre para dançar contigo.

- Obrigado, minha querida, - Simon sentiu-se invadido por uma onda de possessiva satisfação, enquanto conduzia Emily para a pista de dança.

 

Quando o marido a tomou nos braços, os olhos de Emily cintilaram e ele ficou calmamente consciente de que todos na sala sabiam o mesmo que ele.

 

Que Emily era sua!

 

A sociedade saberia também que ele protegia o que lhe pertencia.

 

Dois dias depois, Simon chegou a casa a meio da tarde e ficou espantado quando o mordomo o informou que a mulher recebia três senhoras na sala de estar.

 

- Lady Merryweather, Lady Canonbury e Mrs. Peppington - disse Greaves sem qualquer expressão.

 

- Com mil raios - resmungou Simon, dirígindo-se a passos largos para a sala de estar. - Mas que diabo está ela a pensar fazer?

 

- A senhora ordenou-me que servisse o melhor chá Lap Seng acrescentou Greaves, em voz baixa enquanto abria a porta ao amo. - Pediu a Smoke que preparasse vários bolinhos. Ele ainda se está a queixar.

 

Simon lançou um olhar severo ao mordomo e entrou na sala. Deteve-se de imediato ao ver a mulher conversando muito à vontade com as esposas dos seus dois antigos inimigos. Emily ergueu os olhos e sorriu.

 

- Blade, olá. Não queres fazer-nos companhia? Ia agora tocar para pedir mais chá. Creio que já conheces Lady Canonbury e Mrs, Peppington.

 

- Já nos conhecemos. - Simon cumprimentou as duas senhoras com gelada delicadeza. Estas, por sua vez, pareceram corar e ficar pouco à vontade.

 

- De facto, creio que temos de ir - disse Lady Canonbury, majestosamente do sofá.

 

- Sim. E eu tenho mais compromissos esta tarde - acrescentou rapidamente Mrs. Peppington.

 

- Compreendo. - Emily lançou um olhar furioso ao marido, enquanto as duas mulheres passavam apressadamente para o vestíbulo. Quando a porta se fechou atrás delas, serviu calmamente a Simon uma chávena de chá e entregou-lha, enquanto ele se sentava.

 

- Não havia necessidade de as assustar, a ponto de se irem embora, Simon,

 

Araminta Merryweather deu uma gargalhada.

 

- Simon sai-se sempre muito bem nessas coisas.

 

Simon fingiu não ouvir a tia e fixou com o seu olhar mais intímidativo a esposa, que mantinha uma expressão inocente.

 

- Estou interessado em saber que assunto é que arranjou para falar com estas duas senhoras.

 

- Hum, imagino que esteja. - Emily sorriu agradavelmente. Bom, Senhoria, a verdade é que estivemos a discutir negócios.

 

- Ah, sim? - Pelo canto do olho Simon percebeu que a tia estremecia com a frieza da sua voz, mas Emily parecia nem reparar. - Que espécie de negócios?

 

- Minas - disse Emily. - Parece que, tanto Lorde Canonbury, como Mr. Peppington afundaram consideráveis somas de dinheiro num projecto de minas. Enfrentam agora a perspectiva de quererem levar o minério ao mercado, mas fizeram a espantosa descoberta de que o canal que pensavam utilizar é pertença de um particular. O dono não quer acordar com eles a sua utilização. Há meses que os faz esperar.

- Percebo.

 

- O canal pertence-lhe a si - disse incisivamente Emily. - Nada se move nesse canal sem a sua permissão. Vossa Senhoria tem o poder de transformar esse projecto das minas num desastre financeiro para Canonbury e Peppington. Estão ambos extremamente ansiosos quanto a esse assunto, Uma perda assim, poderia destruí-los. Enterraram muito dinheiro no projecto.

 

Simon encolheu os ombros sem se preocupar em esconder a satisfação que sentia.

 

- E então?

 

- Então, acabei de dizer a Lady Canonbury e a Mrs, Peppington que sem dúvida decidirás vender o canal aos maridos.

 

O chá de Simon agitou-se com violência dentro da delicada chávena de porcelana. Várias gotas, vindas da borda em cascata, salpicaram as suas impecáveis calças claras.

 

- Com mil raios!

 

Emily olhou preocupada as manchas de chá.

- Queres que chame Greaves?

 

- Não. Não quero que chames Greaves, nem ninguém. - Simon bateu com a chávena e o pires sobre a mesa mais próxima. - Mas que diabo pensas tu estar a fazer com todas essas Promessas a Lady Canonbury e Mrs. Peppington? Como diabo esperas cumpri-las?

 

- Ela não espera cumprir promessas porque não as fez - disse Araminta delicadamente com olhar inquieto. - Emily espera que tu o faças, Simon.

 

Simon lançou um olhar furioso à tia antes de voltar a fitar raivosamente Emily. Reparou que a esposa parecia serenamente segura de si. Era óbvio que ultimamente estava a ser demasiado indulgente para com ela.

- Então, minha senhora?

 

Emily aclarou delicadamente a garganta.

 

- Tenho plena consciência de que queres exercer vingança sobre Peppington e Canonbury, Simon. A tua tia explicou-me o problema e tens todo o direito de os castigar.

 

- Que tenhas considerado esse facto.

 

- O problema, Senhoria, e que - continuou meigamente - enquanto falei com Lady Canonbury e Mrs. Peppington, apercebi-me que já sofreram bastante e que não há necessidade de aumentar a sua infelicidade.

 

- Ah, sim? E precisamente, como sofreram elas? - perguntou Simon entredentes.

 

- Parece que Lorde Canonbury tem problemas de coração, Os médicos já lhe disseram que provavelmente não viveria mais um ano. Teve também graves perdas financeiras nos últimos tempos. A sua única alegria é a neta. Lembras-te dela? A que teve um desmaio e caiu para o lado quando entraste no salão de baile?

 

- Lembro-me dela.

 

- Pobre miúda estava terrivelmente assustada, temendo que Blade exigisse a sua mão como vingança ao avô - murmurou Araminta.

- Disparate - continuou Emily- - Conforme disse a Celeste,

 

Blade nunca casaria com uma menina que fosse propensa a chiliques, Pronto, como ia dizendo, a neta é a maior alegria da vida de bury. Deseja utilizar os lucros do projecto das minas para lhe arranjar um dote adequado, Simon, se o arruinares, ela ficará sem um tostão. Sabia que nunca quererias que a pobre menina tivesse de arranjar marido sem um dote apropriado.

 

- Valha-me Deus - resmungou Simon,

 

- Quanto a Peppington, fiquei profundamente entristecida ao saber que perdeu o seu único filho numa queda do cavalo. A esposa diz que, depois disso, nunca mais foi o mesmo. Parece que a única coisa que o mantém vivo é saber que o neto é um jovem belo, inteligente, que mostra grande interesse em adquirir terras. Peppíngton nada quer para além de deixar ao rapaz uma herança decente.

 

- Não vejo porque haveria de ter o mínimo interesse no futuro da neta de Canonbury ou do neto de Peppington - disse Simon, Emily sorriu melancólica.

 

- Eu sei, Senhoria, A princípio também não estava particularmente interessada, mas depois comecei a reflectir sobre a importância dos filhos e netos, em geral. Entende o que quero dizer?

 

Simon fitou-a com um olhar firme.

 

- Não, não sei o que queres dizer. De que diabo estás tu agora a falar?

- Dos nossos filhos, Senhoria. - Emily bebeu recatadamente o chá. Simon ficou por momentos sem fala.

 

- Os nossos filhos? - Conseguiu ele perguntar. Depois invadido por uma onda exultante. - Minha senhora, está a dizer-me que está de esperanças?

 

- Bom, quanto a isso, não posso dizer, Creio que não. Pelo menos neste momento. Mas imagino que em breve estarei, não acha? Mais cedo ou mais tarde, terá de acontecer, com o ritmo que levamos. - Emily corou, continuando, mesmo assim a sorrir.

 

Araminta engasgou-se com um gole de chá e começou a tossir.

- Peço muita desculpa - disse em voz fraca, tentando respirar. Simon não deu qualquer atenção à tia. Naquele momento não conseguia pensar em mais nada, senão na possibilidade de Emily ficar à espera de um filho seu. Espantou-o não ter pensado no futuro, até àquele momento. Todos os seus esquemas, planos e pensamentos se tinham focado no passado, E agora aqui estava Emily, a falar de ter filhos. Os seus filhos.

 

- Pelo fogo do Inferno - murmurou.

 

- Sim, sei o que quer dizer, Senhoria, É por vezes assustador pensar nessas coisas, não é verdade? Mas claro que tem de ser. E confesso que foi o pensar em como nós viremos a amar e a sentir afecto pelos nossos filhos, que me fez desejar não ferir a neta de Lorde Canonbury ou o neto de Peppington. A natureza de Vossa Senhoria, é cruel. Sei bem que é um homem nobre e de coração generoso.

 

Simon ficou ali a olhar fixamente para Emily. Sabia que deveria repreendê-la por se ter imiscuído nos seus assuntos, mas parecia incapaz de se separar da imagem de ter um filho nos braços.

 

- Achas que um filho nosso terá os olhos parecidos com os teus?

- perguntou pensativamente Emily, como se lhe tivesse lido os pensamentos. - já o imagino a correr por todo o lado. Cheio de energia e traquinice. Poderás dar-lhe lições daquelas técnicas de luta que estás a ensinar aos meus irmãos. Os rapazes adoram esse tipo de coisas.

 

- Acho que tenho de ir andando - disse Aramínta em voz baixa, erguendo-se. - Se me dão licença.

 

Simon mal reparou nas despedidas da tia. Quando a porta se fechou devagar atrás dela, que continuava a fitar Emily, imaginando-a com um bebé de cabelo escuro e olhos dourados ao peito. Ou talvez uma menina ruiva, de olhos verdes.

 

- Simon? - Emily pestanejou com ar interrogativo.

 

- Se me dás licença, creio que tenho umas coisas que requerem a minha atenção na biblioteca - disse Simon, erguendo-se com ar ausente. Pensou que nos últimos vinte e três anos se tinha agarrado ao seu

 

passado. Este dera-lhe fortaleza, vontade e força. Mas apercebía-se finalmente que, no dia em que casara com EmilY, adquirira, quisesse ou não, um apoio no futuro.

 

Naquela noite, ao entrar num dos seus clubes, Simon debatía-se ainda com a ideia de Emily rodeada dos seus filhos, sentindo-se também assombrado e estranhamente incerto das suas intenções.

 

Ironia do destino, os dois primeiros homens que viu foram Canonbury e Peppíngton.

 

Vieram-lhe à ideia a imagem da tola neta de Canonbury desmaiando num salão de baile e a do jovem sério que era neto de Peppington.

 

Com um profundo suspiro, atravessou a sala em direcção aos seus dois velhos inimigos.

 

Antes de poder pensar no que quer que fosse, Simon fez a oferta de vender o canal a Canonbury e a Peppington. O susto e o espanto no rosto dos dois homens idosos foram extremamente gratificantes.

 

Canonbury ergueu-se com dolorosa lentidão.

 

- Estou muito grato a Vossa Senhoria, Sei bem que há pouco tempo tinha outras intenções, que nos teriam arruinado, a mim e a Peppington. Permite-me que lhe pergunte o que o fez mudar de ideias?

 

- Não se trata de um novo subterfúgio, pois não Blade? - perguntou Peppington, incrédulo. - Nos últimos seis meses manteve-nos à beira da desgraça. Porque haveria de nos libertar agora?

 

- A minha mulher disse que eu tinha uma natureza nobre e generosa - disse Simon com um sorriso frio.

 

Canonbury sentou-se abruptamente, estendendo a mão para o seu cálice de porto.

 

- Compreendo.

 

Peppington. recuperou o suficiente da sua estupefacção, para fitar Simon com um ar observador.

 

- As esposas são criaturas extremamente estranhas, não é verdade?

- De facto, têm uma certa tendência para complicar a vida de um homem - concordou Simon.

 

Peppington acenou afirmativamente, com ar Pensativo.

 

- Muito obrigado pela generosidade, Senhoria. Canonbury e eu temos consciência de que não a merecemos. O que aconteceu há vinte e três anos foi.--- imperdoável da nossa parte.

 

- Estamos em dívida para consigo, Blade - murmurou Canonbury,

- Não - disse Simon. - Estão em dívida para com a minha mulher. Vejam se não esquecem. - Voltou-se e afastou-se dos dois homens que odiava havia vinte e três anos.

 

Ao sair para a noite, apercebeu-se vagamente de que qualquer coisa dentro dele se encontrava mais livre, solta, menos confinada. Era como se tivesse acabado de abrir uma corrente velha e ferrugenta e soltado uma parte de si, fechada durante muito tempo.

 

A frenética mensagem de Broderick Faringdon chegou no dia a seguir. Emily estava a parlamentar com o cozinheiro de Simon e as negociações tinham-se tornado numa ruidosa discussão.

 

- Não me importo de ter algumas das suas maravilhosas especialidades exóticas do Oriente na minha mesa - dizia firmemente Emily ao estranho homenzinho, que usava uma argola de ouro na orelha. Mas temos de nos lembrar que a maior parte dos convidados estranham essas iguarias estrangeiras. Os ingleses não são lá muito aventureiros nos seus hábitos alimentares.

 

Smoke endireitou-se com ar orgulhoso.

 

- Sua Senhoria nunca se queixou dos meus cozinhados.

 

- Evidentemente que nunca se queixou - disse Emily, tentando aplacá-lo. - Os seus cozinhados são maravilhosos, Smoke. Mas receio que o paladar de Sua Senhoria seja consideravelmente mais cultivado e refinado do que o de muitas pessoas que vai servir na soirée. Estamos a falar do tipo de gente que não considera uma refeição completa, a menos que haja muitas batatas cozidas e um enorme assado de vaca.

 

- A senhora tem toda a razão, Smoke - afirmou a governanta.

- Teremos de servir, talvez rodovalho em aspic, salsichas e também um pouco de língua,

 

- Salsichas! Língua! - Smoke sentia-se insultado. - Não vou permitir salsichas gordurentas ou língua servidas nesta casa.

 

- Muito bem, então presunto frio estaria muito bem - disse Emily esperançosa.

 

Uma pancada ruidosa e urgente na porta da cozinha interrompeu a discussão. Harry, o criado foi à Porta e, depois de alguma conversa com quem lá se encontrava, aproximou-se da ama.

 

- Peço desculpa, minha senhora. Está ali uma pessoa que diz ter um recado para a senhora.

 

Emíly voltou as costas à conversa, com uma sensação de alívio,

- Para mim? De quem?

 

- Está um rapaz à porta, minha senhora. Diz que só pode entregar o recado à senhora. - Harry ergueu o braço do gancho. - A senhora deseja que o mande embora?

 

- Não, não, vou falar com ele.

 

Emily saiu da cozinha e dirigiu-se à porta, onde viu um rapazinho à sua espera.

 

- Então, menino, que queres?

 

O rapaz olhou fixamente o cabelo ruivo e os óculos de Emily para depois acenar afirmativamente, como se estivesse satisfeito por ter conseguido a pessoa certa.

 

- Venho dizer-lhe que o seu paizinho precisa de a ver já. Deu-me este recado para dar à senhora. - Tal como lhe fora ordenado, entregou-lhe um bocado de papel manchado das suas mãozinhas sujas.

 

- Muito bem. - Emily deixou cair uma moeda na palma da mão do rapaz, sentindo-se invadida por um estranho pressentimento, ao olhar para o papel. - Obrigada.

 

O rapaz observou a moeda de perto, experimentou-a com os dentes, fazendo depois um largo sorriso.

 

- Às suas ordens, minha senhora.

 

Harry avançou para fechar a porta da cozinha. O rapaz olhou o gancho com admiração e espanto, e desatou a fugir.

 

- Teremos de terminar a ementa do buffet mais tarde - disse Emily a Smoke e à governanta, enquanto se apressava a sair da cozinha. Subiu as escadas a correr com o papel a queimar-lhe a mão. Temia

 

o pior. Fechou a porta à chave, ao chegar à privacidade do seu quarto, Tremendo de susto, sentou-se para ler o recado do pai.

 

Minha querida e obediente filha:

 

Aconteceu uma desgraça. Nas últimas semanas a sorte tem-me sido adversa. Perdi uma enorme soma de dinheiro ao jogo e tenho agora de vender as poucas acções e títulos que me restam para saldar as minhas crescentes dívidas. Infelizmente não chega para cobrir a totalidade da quantía. Tens de me ajudar, minha querida filha. Imploro-te que nesta hora de necessidade te lembres dos teus laços de sangue e do amor que para sempre nos une. Sabes que a tua querida mãe desejaria que viesses em meu auxílio. Em breve entrarei em contacto,

 

O teu pai. P.S. Em circunstância alguma deverás mencionar este pequeno problema familiar a teu marido. Sabes que ele nutre por mim um ódio profundo e pouco natural.

 

Emily sentiu-se maldisposta, enquanto voltava a dobrar o papel. Sabia que uma coisa destas poderia vir a acontecer, mais cedo ou mais tarde. Tentara fingir acreditar que o pai haveria de mostrar algum juízo na sua maneira de jogar, mas, lá no fundo, sempre soubera que a sua paixão pelas cartas e outros jogos de azar era demasiado forte. Muitas vezes a mãe lhe dissera que ele nunca mudaria.

 

E agora pedia ajuda a Emily, sabendo que, ao fazê-lo a iria obrigar a escolher entre a lealdade para com o marido e as suas obrigações de filha.

 

Era demasiado. De novo a realidade se intrometera no seu mundo, rasgando de alto a baixo a cortina romântica em que tentara envolver-se.

 

Emily deixou cair a cabeça nos braços e chorou.

 

Capitulo 18

ESSA NOITE, EMILY vestia-se para ir ao teatro, quando Simon lhe entrou no quarto pela porta de comunicação. Sobressaltou-se um pouco ao vê-lo, mas depois conseguiu esboçar um sorriso.

 

- Obrigada, Lizzie, podes retirar-te.

 

- Sim, minha senhora. - Lizzie fez uma reverência e saiu. Emily encontrou os olhos de Simon no espelho. Depois afastou os seus. Ficava tão forte e atraente no seu escuro traje de cerimónia.

 

- Vossa Senhoria vai sair?

 

- Vou jantar esta noite no meu clube, enquanto estás no teatro com Lady Northcote e a filha. - O olhar de Simon parecia vigilante.

- Mas vou depois ter contigo a casa dos Bridgeton.

 

Emily fez um rápido aceno e as plumas dançaram-lhe no cabelo. Estava nervosa e sabia que teria de tomar cuidado para que Simon não reparasse que se passava alguma coisa de errado.

 

- Então encontramo-nos lá. já te mostrei os binóculos que comprei ontem? - Pegou na bolsinha e começou a procurar meticulosamente. Tudo para evitar aquele olhar demasiado observador.

 

- Muito bonitos - disse Simon, acenando com ar aprovador ao ver os binóculos delicadamente fabricados.

 

- Dão uma vista maravilhosa. Há bocado usei-os à janela para observar um pássaro e consegui ver os mínimos pormenores das asas

- proferiu Emily corajosamente, tentando mostrar um ar entusiasmado.

 

- Minha querida, não há dúvida que são uns excelentes binóculos de teatro.

 

Emily não gostou do ar interrogativo dos olhos de Simon.

 

- Celeste e a mãe disseram-me que a produção de Otelo que vamos ver esta noite é uma das melhores até hoje apresentadas.

 

- Deve ser muito interessante.

 

- Sim, com certeza. já te disse que hoje tive uma longa conversa com Smoke acerca da ementa para o buffet da festa?

 

- Não, não disseste. Passa-se alguma coisa, Emily?

 

- Não, Senhoria, claro que não. - Conseguiu apresentar-lhe um sorriso radioso e olhá-lo nos olhos por breves momentos.

 

- Estou só excitada com a ida ao teatro.

- Emily...

 

- Tal como te estava a dizer, Smoke está relutante em preparar comida vulgar para os nossos convidados. Diz preferir o estilo de cozinha oriental, que eu já sei ser muito saborosa, mas que temo que os nossos hóspedes achem estranha.

 

- Smoke prepara aquilo que lhe ordenares, se não quiser ir procurar outro emprego - disse Simon distraidamente. Avançou e colocou as suas mãos fortes sobre os ombros de Emily, parecendo obrigá-la a olhá-lo mais uma vez de frente. - Não te preocupes com a ementa do buffet, minha querida. Diz-me o que te tornou tão ansiosa esta noite.

 

Ela sentou-se, muito quieta, olhando para os binóculos com uma expressão angustiada.

 

- Simon, não posso dizer-te. Simon torceu levemente a boca.

 

- Lamento ter de insistir. Comunicamos num plano elevado, de modo que já sei que se passa alguma coisa, minha querida. Se não me contares a verdade, estarei toda a noite atormentado. Queres que eu sofra assim?

 

Emily sentiu uma ferroada de culpa.

 

- Decerto que não, Senhoria. É apenas um... problema pessoal e não quero incomodá-lo com ele. - Suspirou, acrescentando: - De qualquer modo, não há nada a fazer. O destino jogou a última cartada.

 

Mas mesmo ao fazer esta afirmação final, os seus olhos reflectiam um brilho de esperança e soube que Simon dera por ele. As suas mãos apertaram-se um pouco nos ombros dela.

 

- Parece-me que estamos a discutir um jogo de cartas - disse Simon meigamente. - Será o caso?

 

- Receio bem que sejam vários jogos de cartas - confidenciou Emily. - E o último foi um desastre. Oh, Simon, tudo isto é horrível e eu não sei o que fazer. Sei que não posso pedír-te ajuda para este problema. Simon franziu as sobrancelhas.

 

- Elfo, por acaso não terás dívidas? Sei que de vez em quando algumas senhoras jogam forte entre si, mas nunca imaginei que ficasses a dever dinheiro.

 

- Não sou eu que tenho dívidas de jogo, Simon – exclamou Emily. - É o meu pai. Oh, Simon hoje mandou-me um recado dizendo que tinha perdido tudo e mais alguma coisa.

 

Simon não se moveu, mas no espelho os seus olhos faiscavam. As mãos enormes apertavam os ombros de Emily.

 

- Ah, sim? Pois claro! Deveria ter adivinhado. Naturalmente que seria apenas uma questão de tempo, mas sempre esperei que durasse mais que isto.

 

Emily viu a selvagem satisfação no rosto dele e qualquer coisa lhe estremeceu na base do estômago. Soube então que esperava que, apesar de tudo, quando ocorresse o inevitável, Simon se mostrasse mais brando para com o seu pai, tal como o fizera em relação aos gêmeos, a Northcote, Canonbury e Peppington.

 

- Simon? - murmurou, desesperada,

 

- Tens toda a razão, minha querida - murmurou. - Desta vez não podes pedir-me ajuda. Esperei demasiado tempo por este momento.

- Retirou as mãos dos ombros dela. Olhou-os e franziu a testa, ao ver as marcas vermelhas que deixara na sua pele macia e branca. Tocou suavemente na marca que neles deixara, voltando-se depois para a porta.

 

- Encontramo-nos em casa dos Bridgeton. - Fez uma breve pausa, com a mão no puxador. - Emily?

 

- Sim, Senhoria?

 

- Lembra-te que já não és uma Faringdon. Fechou lentamente a porta atrás de si.

 

Emily sentou-se com as mãos apertadas no colo, dizendo para consigo que não deveria ceder de novo às lágrimas.

 

Mas a verdade é que não se sentia tão desesperada e encurralada desde que a mãe morrera, deixando-a para assumir toda a responsabilidade financeira do pai e dos irmãos.

 

Covent Carden estava cheio de barulhentos apreciadores de teatro provenientes de vários classes da sociedade. A classe alta cintilava nos camarotes e passeava-se nos átrios. Os vulgares mortais enchiam as galerias e a plateia. Todos estavam exuberantes, preparando-se para mostrar aos actores exactamente aquilo que achavam que deveria ser a representação. Muitos tinham trazido cascas de batatas, campainhas e outros objectos que provocassem barulho, para os ajudar a dar a sua opinião.

 

- Trouxe os seus novos binóculos de teatro? - perguntou Celeste, enquanto o pequeno grupo abria caminho por entre a multidão que enchia o átrio. Lady Northcote parou uns instantes para falar a uma pessoa amiga.

 

- Sim, tenho-os aqui. - Emily olhou à volta, sem ver nada, pois tinha enfiado os óculos na bolsinha. Via apenas uma mancha de cor e movimento.

 

Ela e Celeste eram empurradas e Emily ia pôr os óculos para melhor se defender, quando sentiu a mão de um homem agarrar-lhe o braço.

- Mas que diabo...? - Emily voltou-se e viu um vago resplendor de cabelo louro a ficar grisalho. Ficou para morrer, tendo consciência da curiosidade de Celeste.

 

- Meu pai, o que faz aqui?

 

- Acontece que vim assistir à representação e vi-te entrar no átrio - disse Broderick Faringdon, com falsa jovialidade. - Como estás minha querida?

 

- Estou bem, meu pai. Permita-me que lhe apresente uma amiga.

- Emily fez rapidamente as apresentações, rezando para que Lady Northcote aparecesse e as levasse para os camarotes.

 

Broderick cumprimentou Celeste com o habitual encanto dos Faringdon. Depois pegou no braço de Emily.

 

- Se não te importas, gostaria de trocar contigo algumas palavras em particular, minha querida. Há que séculos que não te vejo.

 

- Não posso deixar Celeste sozinha - argumentou Emily desesperada.

 

- Não se preocupe comigo - disse Celeste sorridente. - Vou ter com a minha mãe. O seu pai acompanha-a depois ao camarote.

 

- Sim, claro - disse Emily sabendo que não havia fuga possível. Recompôs-se enquanto Celeste desaparecia por entre a multidão.

 

- Então, meu pai?

 

- Recebeste o meu recado? - perguntou Broderick cortante, abandonando qualquer tom de civismo na sua voz. Estava obviamente sob enorme tensão.

 

- Sim. Lamento, meu pai. Sabe que nada posso fazer. Meu pai, como pode ser tão louco.

 

- Não foi loucura. Apenas uma maré de azar. Acontece. - O pai inclinou-se para lhe murmurar ao ouvido. - Escuta, Em, sei que posso conseguir uma pequena ajuda financeira da tua parte.

 

- Talvez que, daqui a um tempo, Blade abrande a respeito deste assunto. Mas é demasiado cedo para esperar seja o que for da parte dele. O pai deve saber isso.

 

- Pelo fogo do Inferno, Em, não tenho tempo. Tenho de pagar as dívidas.

 

Vendeu realmente tudo?

 

Tudo - confirmou gravemente Broderick. - A questão, Em, é que não dá para cobrir tudo.

 

Mesmo sem querer e conhecendo a destemida maneira de agir do pai, Emily ficou chocada.

 

- Pai, como pôde perder tudo? Trabalhei anos para construir esse fundo de segurança para si e para os gêmeos. É terrível. Mesmo terrível. Que vamos fazer?

 

- Não precisas entrar em Pânico, minha querida. Primeiro tens de conseguir que Blade pague as minhas dívidas, Em.

 

Emily fitou-o, tentando desvendar a sua expressão.

 

Mas, meu pai, sabe perfeitamente que ele nunca o fará.

 

Tem de fazer, Em. Não percebes? É uma emergência. Emily, minha querida, tenho de te dizer que cometi um erro terrível. Uma noite destas, bebi uns copos a mais. Sabes como e quando um homem se embriaga. Fala um pouco à vontade.

 

- Sobre quê e a quem? - Emily estava agora aflita, tentando compreender a nota de tensão no tom de voz do pai. Aquilo parecia pior do que apenas uma horrível perda na mesa de jogo.

 

Uma sombra apareceu junto a Broderick Faringdon.

 

- O seu pai cometeu o erro de falar comigo, Lady Blade - disse uma voz sardônica, sua conhecida.

 

- Mr. Crofton? - Emily voltou os seus olhos vagos para a sombra negra. O medo apoderava-se dela, porém fazia um esforço enorme para se recompor. - Receio não compreender. Que se passa aqui?

 

Crofton aproximou-se,baixando a voz para um tom servil e confidencial,

 

- O seu pai e eu, Lady Blade, tornámo-nos há pouco tempo amigos íntimos. Ele ficou muito aflito depois da sua derrota nas mesas de jogo. Tenho a certeza de que a senhora há-de compreender e solidarizar-se com aquilo que ele deve ter sentido ao ver que não poderia pagar as suas dívidas de honra. Receio que tenha bebido várias garrafas, e por fim, deixou escapar a novidade desse escândalo espantoso no seu passado. Emily sentiu a boca seca. Olhou para o pai.

 

- Meu pai?

 

- É verdade, menina - disse Faringdon lentamente. - Deus me ajude, mas contei-lhe o Infeliz Incidente. Estava bêbado como um cacho, sabes. E algo perturbado pelas minhas perdas. Sei que hás-de compreender.

 

Mas o problema é que ele ameaça espalhá-lo por toda a cidade, se eu não pagar.

 

- Creio que esses desagradáveis mexericos sobre o passado da esposa vão ter um desagradável efeito e arruinar socialmente Blade murmurou Crofton. - Será abandonado por quase toda a gente e ver-se-á sem dúvida obrigado a deixar a cidade e a retirar-se para o campo, E não creio que lhe agradeça por isso, minha querida.

 

- Será mais provável que o destrua por isso, Mr. Crofton - disse Emily ferozmente.

 

- Mas o mal estará feito. As Pessoas vão falar. Pense no escândalo que se seguirá, na mancha do título de Blade, -na humilhação que terá de suportar. O seu marido lutou muito para conseguir o poder e a posição que hoje possui. Mas fez inimigos pelo caminho. Há quem o odeie e não hesite em usar o escândalo do seu passado para o derrubar. E a culpa será sua, Lady Blade.

 

Emily sentou-se, nauseada, mas manteve as suas feições o mais inexpressivas possível enquanto olhava para a mancha escura que era o rosto de Crofton.

 

- O senhor não tem a sua vida em grande conta, pois não Mr. Crofton? - inquiriu friamente.

 

- Não me ameace com o génio do seu marido, minha senhora. Está a enganar-me. Não creio que permita que as coisas cheguem a tal ponto. Seria deixá-las ir longe de mais e o mal estaria feito, não concorda?

- Mr. Crofton...

 

- Vai tratar de que as dívidas de seu pai sejam totalmente pagas, Lady Blade. Toda a gente sabe o muito que adora o seu esposo. Para falar verdade, a senhora tem o hábito encantador de não se coibir de mostrar os seus sentimentos, quando se trata de Blade. Creio que vai fazer tudo para o proteger do escândalo.

 

Emily respirou fundo, para se acalmar.

 

- E como espera o senhor que eu pague as dívidas do meu pai? Recebo uma determinada quantia todas as semanas, que certamente não será suficiente para cobrir essas perdas.

 

Crofton deu uma gargalhada.

 

- Diz-se que Blade é extremamente indulgente para consigo, minha querida. Só Deus sabe porquê, mas é assim. Não é segredo nenhum. Parece que a acha divertida. Não será muito difícil para si, afirmar que as perdas são suas e convencê-lo a pagá-las. Pode dizer que perdeu com Lady Malcohn ou com a esposa de Bridgeton. São ambas conhecidas por jogar forte.

 

- O senhor enlouqueceu? - sussurrou Emily. - Descobriria facilmente que é mentira.

 

- Se não lhe agrada a ideia de obrigar o seu marido dessa maneira, tente uma abordagem mais feminina. Como já disse, sabe-se que Blade é muito indulgente consigo. Pode ter mais êxito, pedindo-lhe um colar de diamantes ou de pérolas. Pode depois mandá-lo copiar e vender o original a um joalheiro discreto.

 

- Nunca daria resultado. Blade reconheceria a cópia da primeira vez que eu a usasse. Tem um excelente conhecimento dessas coisas.

- Então terá de ser mais criativa, minha senhora, se quiser salvar

 

o seu marido da humilhação e do escândalo. Deixe-me ver. Talvez um pequeno roubo fosse melhor.

 

- Roubo?

 

- Sim, porque não? já ouvi histórias acerca de uma fabulosa colecção de dragões cravejados de pedras preciosas que se diz Blade ter trazido das índias Orientais. Dizem que tem as estátuas dos animais espalhadas à vontade pela biblioteca e que valem uma fortuna. Quem daria pela falta de uma delas? Mesmo que dessem, seria muito fácil culpar um criado.

 

- Deus do Céu. Pai, mande-o calar. - Emily voltou-se desesperadamente para Faringdon, sabendo perfeitamente que não lhe viria nenhum auxílio daquela direcção.

 

- Lamento, Em - disse ele, claramente desagradado com o modo como as coisas estavam a decorrer, mas parecendo pronto a sacudir a sua responsabilidade por elas, tal como sempre fizera no passado. - Nada disto teria acontecido, se não tivesses insistido em entregar o teu tolo coração a Blade. Avisei-te, mas tinhas de casar com esse homem.

 

- É triste, mas é verdade - concordou Crofton. - Escute, Lady Blade, tenho uma ideia de como pode levar a cabo o roubo com êxito, sem que haja a possibilidade de ser descoberta ou de ficar com a culpa. Espera pela noite da sua soirée e nessa altura trata de retirar um dos dragões. Toda a cidade estará presente. A casa estará cheia de gente e de outros criados. Quando por fim se descobrir que falta um deles, um desses outros criados poderá ser culpado.

 

- Mas não se pode empenhar uma coisa tão exótica como um dos dragões de Blade - disse rapidamente Emily. - Qualquer joalheiro teria suspeitas.

 

- Não há necessidade de empenhar toda a estatueta. Retirarei simplesmente as pedras incrustadas e vendê-las-ei uma a uma. Crofton soltou uma gargalhada. - Sim, um plano excelente, não acha?

 

- Com mil raios - murmurou Emily, sentindo fecharem-se-lhe todas as portas.

 

- Que linguagem tão colorida, minha querida - disse Crofton com ar trocista. - Não me espanta que Blade a ache tão divertida, Os seus gostos tiveram sempre tendência a ser invulgares. - Inclínou-se com ar irónico para Emily e para o pai. - Pronto, se me desculpam, tenho de ir para o camarote. Otelo é uma peça tão interessante, não acham? O marido enraivecido sufocando no fim a esposa inocente é a minha cena preferida. Claro que, no seu caso, Lady Blade, a situação é bastante diferente. Afinal, a senhora não é assim tão inocente.

 

Emily via com desespero crescente a sombra escura mover-se por entre a multidão. Quando Crofton desapareceu, voltou-se para enfrentar o pai.

- Como se atreve, meu pai? Como se atreve a fazer isto ao meu marido?

 

- Escuta, menina, não podes continuar a culpar-me. - Broderick Faringdon estava verdadeiramente irritado com a acusação. - Foi Blade que criou esta situação quando te arrastou do seio da tua família.

- Ele não me arrastou, meu pai, sabe muito bem.

 

- Foram essas tuas ideias românticas que te fizeram pensar que estavas apaixonada por esse homem. Nenhuma mulher sensata teria feito tal figura de idiota. Toda a culpa desta situação é tua, Em. Sabia que não haveria maneira de manter em segredo o teu passado manchado. Ele também o deveria saber. Francamente, tenho de te dizer que, tanto tu como ele, são os culpados de toda esta confusão. Devia ser obrigado a pagar por isso, que diabo!

 

- Vá para o Inferno! - Emily deu meia volta nos saltos dos seus sapatinhos verdes e, às cegas, afastou-se do pai.

 

Horas depois, Emily estava sozinha na cama, olhando para o dossel bordado. Não conseguira dormir, desde que chegara de casa dos Bridgeton.

 

Ouvira Simon andar pelo quarto uma hora atrás, e muito tensa, esperara que ele viesse ter com ela, como o fazia todas as noites. Mas a porta de comunicação não se abriu. Agora o outro quarto estava em silêncio. Simon deveria ter ido para a cama sozinho. Emily voltou-se de lado e bateu na almofada com frustração e raiva. Tinha o espírito num torbilhão. Ainda não sabia como conseguira assistir a toda a representação de Otelo sem que lady Northcott e Celeste se apercebessem de que algo muito grave se passava. Em determinada altura, Celeste teve de lembrar a Emily que usasse os seus novos binóculos.

 

Quando chegou a terrível cena em que Otelo se vinga da esposa inocente, Emily assistia com terror gelado, com as palavras de Crofton ardendo-lhe no espírito. Afinal, a senhora não é assim tão inocente.

 

Mas não era uma questão de inocência. Era uma questão de escândalo. Blade casara com ela, partindo do princípio que o horrível escândalo não a seguiria desde Little Dippington.

 

E agora parecia que era isso que iria acontecer.

 

Emily sentou-se e voltou a bater na almofada. Depois afastou as cobertas e saiu da cama. Tinha de encontrar um modo de salvar Simon da humilhação e da desgraça que lhe desceria sobre os ombros, se a sociedade descobrisse o seu passado.

 

O pai tinha razão. Era a culpada de toda aquela confusão. Emíly começou a andar de um lado para outro. Fora ela que propusera casamento a Simon. Fizera-o, dizendo-lhe que seria para ele um bom negócio tê-la como esposa. Um forte muro contra o desastre financeiro.

 

Emily tinha vontade de chorar. Simon não precisaria de se acautelar contra os reveses da sua fortuna, mas sim contra a ameaça de escândalo no seu passado.

 

Emily franziu a testa e deteve-se, quando um pensamento a invadiu, Certeza era exactamente o que era preciso aqui, certeza que Crofton se manteria em silêncio.

 

Emily recomeçou a andar de um lado para o outro, agarrando-se à primeira ideia racional e útil que tivera em toda a noite. Quanto mais pensava no problema, mais a resposta se tornava óbvia.

 

Se tinha de proteger Simon do escândalo, precisava de ter a certeza do silêncio de Crofton. Precisava de um plano para se ver livre de Crofton permanentemente.

 

Emily sentou-se abruptamente na cadeira junto à janela. Permanentemente parecia mesmo para sempre. Descobrir maneira de pagar as dívidas do pai não resolveria o problema. Crofton estaria sempre presente, ameaçando arruinar o poder e a posição que Simon tanto lutara para construir para si.

 

Emily pensou muito tempo no assunto, chegando à conclusão de que havia apenas duas opções possíveis, se queria proteger Simon do seu passado.

 

A primeira era tratar de desaparecer para sempre da vida de Simon, deixando que todos pensassem que encontrara uma morte trágica.

 

O problema era que conhecia Simon suficientemente bem, para saber que ele a procuraria até a encontrar a si ou ao seu corpo.

 

A outra opção era fazer desaparecer Crofton para sempre.

 

Esta última ideia tirou, por momentos, o fôlego a Emily. Fazer desaparecer Crofton.

 

Quando conseguiu respirar de novo, começou a pensar com lógica e clareza. No fim, já sabia o que fazer.

 

Depois de longos instantes levantou-se e dirigiu-se à porta de comunicação, abrindo-a com dedos trémulos.

 

O quarto de Simon estava envolvido nas trevas. Sem óculos, mal conseguia distinguir a cama escura. Ficou ali, por um instante, olhando o quarto, sentindo crescer em si uma sensação de feroz protecção e um desejo e amor igualmente fortes.

 

- Hei-de proteger-te, dragão - murmurou.

 

- Emily? - A voz de Simon era um ruído rouco por entre a escuridão.

 

Emily deu um salto.

 

- Perdão, Senhoria. Não queria acordá-lo. - Não lhe falara desde que ele fizera uma breve aparição em casa dos Bridgeton. Não lhe pedira para dançar... de facto, mal lhe dirigira a palavra. Reconhecera a sua presença e depois desaparecera.

 

- Vieste implorar, elfo? - perguntou Simon, sem mostrar qualquer emoção. - Porque se assim é, é melhor que saibas que estás a perder o teu tempo. Não vou salvar o teu pai do mesmo modo que fiz com o teu irmão. Nem o deixarei em paz como o fiz com Northcote, Canonbury e Peppington. Este assunto é completamente diferente.

 

Emily ouviu o implacável tom gelado da voz dele, sabendo que estava a falar verdade.

 

- Não te venho pedir que pagues as dívidas do meu pai, Simon. Sei que seria pedir demasiado.

 

- Seria preferível pedires a Lua. Esperei muito tempo por esta vingança.

 

- Sei isso muito bem, Senhoria.

 

Da cama só chegou silêncio. Momentos depois, Simon voltou a falar com a voz mais rouca que nunca.

 

- Então? Vais ficar aí à porta toda a noite? Pareces um pequeno fantasma com essa camisa de dormir.

 

Instintivamente, Emily olhou para a fina e pálida camisa, que lhe esvoaçava à volta do corpo.

 

- Acha que pareço, Senhoria? Nunca vi um fantasma.

 

- Eu vi - disse Simon simplesmente. - O do meu pai. Juro que esse maldito espectro me assombrou desde os doze anos. Mas por fim vai ser banido. Vai para a cama, Emily.

 

- Sim, Senhoria. - Obediente, voltou para o seu quarto e começou a fechar a porta.

 

- Espera - disse Simon com inesperada urgência.

- Que se passa, Senhoria?

 

- Porque vieste ao meu quarto, se não foi para implorar?

 

- Não sei se te posso explicar - disse Emily em voz baixa. Senti um... um desejo de olhar para ti.

 

- Tens a certeza que não vieste implorar-me que me esquecesse da vingança?

 

- Sei que seria inútil, Senhoria. Tem direito à sua vingança. Só espero que lhe traga a paz que procura.

 

- Que diabo, mulher. Neste momento és a maior ameaça à minha paz de espírito. Foste-o toda a noite.

 

Houve um movimento súbito por entre as sombras da cama, quando Simon afastou as cobertas e se levantou. Dirigiu-se a ela.

 

- Simon? - Confusa, Emily recuou mais um passo. - Estás zangado comigo?

 

- Não. Não estou zangado, - Estendeu-lhe a mão e puxou-a para os seus braços, antes de ela se poder afastar para mais longe. Depois voltou-se e dirigiu-se à enorme cama. - Não sei, nem me importo com o que sinto neste momento. Está aqui no meu quarto e descobri que a quero na minha cama. Para mim é o bastante, senhora minha esposa.

 

Emily não discutiu. Quando ele a instalou meigamente no centro da cama e ficou em cima dela com uma súbita e ardente paixão, ela abriu os braços e puxou-o para si.

 

A boca de Simon fechou-se sobre a sua, impiedosa e exigente. Emily agarrou-se a ele, enquanto ele a reclamava como sua, jurando em silêncio que tudo faria para o proteger.

 

Muito tempo depois, Emily acordou, quando era transportada ao colo para o seu quarto. Mexeu-se um pouco nos braços de Simon, gozando a força e o poder que neles havia.

 

- Não ficas comigo? - perguntou, sonolenta, enquanto ele a pousava entre os lençóis revoltos da cama.
- Não. - Simon endireitou-se ao lado da cama, ficando a olhá-la com uma expressão pensativa. - Creio que não me atrevo, elfo. Esta noite, não. Começo a pensar que os Faríngdon me pregaram uma última partida, convencendo-me a casar com a minha maior fraqueza.

 

- Eu não sou a tua maior fraqueza - disse Emily suavemente. Não tens fraquezas.

 

- Não? Só espero que tenhas razão. De qualquer modo, tenciono ter cautela. Não vou deixar que arruínes tudo o que planeei e por que esperei nos últimos vinte e três anos,

 

- Não o farei, Simon.

 

- Será interessante ver se virás ter comigo à cama com tanta vontade como o fizeste esta noite, depois do teu pai ser obrigado a sair da cidade em desgraça. Muito boa noite, senhora minha esposa.

 

Simon voltou para o seu quarto, fechando deliberadamente a porta atrás de si.

 

Emily ficou acordada até de madrugada, de olhos secos, as ideias muito claras. Os pormenores do seu plano começavam a tomar-lhe forma no espírito. A noite da soiree seria perfeita para o que tinha de fazer.

 

A primeira tarefa seria obter uma pistola apropriada, uma coisa pequena, que pudesse ser escondida numa bolsa ou sob uma capa. Por via das dúvidas, talvez fosse mais sensato arranjar duas.

 

Mas depois, haveria o problema do corpo.

 

Emily sentiu-se subitamente invadida por um tremor incontrolável. Sentia as palmas das mãos húmidas e frias e o coração batia-lhe violentamente. Sentia-se tonta com a perspectiva daquilo que preparava.

 

A heroína de A Dama Misteriosa não seria tão fraca, disse para consigo, tentando controlar-se. E não se considerara sempre aquela mulher corajosa que partira para salvar o seu amado? Dar um tiro em Crofton não seria muito pior do que defrontar-se com um verdadeiro fantasma ou com um monstro.

 

Emily rezou para que na noite da soírée tivesse os nervos mais firmes. Sabia que, se o seu plano não desse resultado, não teria uma segunda oportunidade.

 

Ter a mulher na prisão seria um escândalo tão grave para Simon, como suportar a revelação do Infeliz Incidente do seu passado.

 

Capitulo 19

SIMON ESPEROU QUE EMILY aparecesse na biblioteca. Chamara por ela havia uns momentos. Disse para consigo que seria interessante ver se ela reagia àquela delicada chamada com a costumada alacridade. Normalmente aparecia a voar, pela porta da biblioteca, segundos depois de um elemento da criadagem lhe ter dito que o conde desejava vê-la.

 

Emily ainda não tinha aprendido a arte de fazer esperar o marido. Porém, naquela manhã, Simon não tinha a certeza do que havia de esperar. Depois de, na noite anterior, ter levado Emily para o quarto, ficara acordado durante horas, tentando obter alguma satisfação da sua vitória sobre o pai dela. Apenas conseguira pensar que a enorme cama parecia gelada e vazia, sem Emily a seu lado.

 

Ouviu-se uma rápida pancada na porta da biblioteca e no momento seguinte, Emily, trajando um vestido matutino enfeitado com dragões negros e dourados, entrou na sala. Parecia ofegante e levemente desalinhada. Tinha uma mancha no nariz e uma atrevida touca de musselina, um pouco à banda, sobre os seus caracóis ruivos.

 

- Vossa Senhoria mandou-me chamar? - Deteve-se diante da secretária, empurrando os óculos sobre o nariz, enquanto lhe lançava um olhar inquiridor.

 

- Não queria interromper-te, se estavas a fazer alguma coisa. Simon erguera-se delicadamente quando ela entrou na sala e voltou a sentar-se, com um aceno para que fizesse o mesmo.

 

- Estava a vigiar a limpeza da sala - explicou Emily. - Faltam apenas dois dias para a soirée. Há ainda tanta coisa de última hora a fazer.

- Ah, claro. Mais preparativos para a maldita soirée. Devia ter adivinhado.

 

- Quero tudo perfeito, Senhoria - disse Emily calmamente. Tenho plena consciência de que tudo o que fizer, incluindo o meu comportamento de anfitriã, se reflectirá em si.

 

- Não te preocupes exageradamente, minha querida. A minha posição na sociedade é suficientemente sólida para aguentar a descoberta de algumas manchas nos tapetes da sala ou uma nódoa nos cortinados.

 

Para sua surpresa, Emily empalideceu e afundou-se abruptamente na cadeira.

 

- Algumas manchas e nódoas são particularmente difíceis de esconder, Senhoria. Por vezes somos obrigados a tomar medidas drásticas. Ele franziu a testa ao ouvir o seu tom de voz.

 

- Emily não estarás a trabalhar de mais para esta soirée? Tenho pessoal em número suficiente e espero que faças uso de todos eles. Se alguém não está a cumprir o seu dever, gostaria de ser imediatamente informado. Creaves trata do problema.

 

Ela recuperou rapidamente as energias à implicação de que algum membro da criadagem pudesse estar a descurar as suas tarefas.

 

- O teu pessoal é muito competente, Simon, de certeza que sabes isso. Toda a gente trabalha muito.

 

Ele acenou com a cabeça, sem ter ficado completamente satisfeito com a resposta. Emily estava perturbada por alguma razão e ele sabia que alguma coisa deveria haver. Estava preocupada com o pulha do pai.

 

- Excelente. Agrada-me ouvi-lo. Escuta, pedi-te que viesses aqui para te devolver o teu manuscrito.

 

- O meu manuscrito? - Pela primeira vez, Emily lançou um olhar ao embrulho que se encontrava no canto da secretária. - Não entendo, Senhoria. Porque tem o meu manuscrito. Richard devolveu-o?

 

- Pedi-lhe que o mandasse de volta. Vou ser muito directo, Emily. Ele não teve oportunidade de o ler e eu não pensei ser adequado que o fizesse. Não quero que lhe peças a opinião.

 

- Mas ele é um autor de obras publicadas, Senhoria. Pensei que seria capaz de avaliar se haveria esperança do meu manuscrito poder ser aceite por um editor.

 

- Não creio que a sua opinião não seja tendenciosa - disse Simon, francamente. - Vais ver que ele agora concorda comigo.

 

Emily lançou-lhe um olhar rápido e esperançoso.

 

- Afinal tens ciúmes dele, Simon? Já uma vez te disse que não há qualquer necessidade disso. Garanto-te que a minha relação com Richard é estritamente profissional.

 

- Não tenho ciúmes de Ashbrook. - Simon espaçava as palavras com todo o cuidado. - E espero que tenhas suficiente bom senso para não mos tentares provocar.

 

- Sim, Senhoria, quero dizer, não. Nunca o faria. - Emily mordeu o lábio inferior e olhou para o manuscrito durante alguns segundos. Em seguida pôs-se de pé num salto e agarrou com força no embrulho, Se não queres mais nada, o melhor é eu voltar ao trabalho. Depois da sala estar convenientemente limpa combinei com Smoke rever mais uma vez a ementa do buffet. Depois, quero verificar a despensa com Greaves, para me certificar de que já chegaram todos os mantimentos.

 

- Só um momento, por favor, minha senhora!

 

A meio caminho da porta, Emily voltou-se para novamente o fitar, com o manuscrito apertado contra o peito.

 

- Sim, Senhoria?

 

- Se quiseres deixar-me A Dama Místeriosa, posso tratar de o entregar a Whittenstal, a Pound ou a qualquer um dos outros editores disse Simon delicadamente.

 

Uma expressão que poderia ser de divertimento faiscou nos olhos de Emily.

 

- Nem sonhar permitir-te que leves o meu manuscrito a um editor, Simon.

 

- Confias mais em Ashbrook do que em mim? - perguntou com voz doce.

 

Ela deu uma gargalhada.

 

- Não é isso. A verdade é que te conheço bem de mais. Provavelmente haverias de assustar Whittenstall ou Pound para que aceitassem publicar o manuscrito, ou então pagavas a um deles para que o fizesse. De qualquer das maneiras, não conseguiria saber de certeza se o meu manuscrito era capaz de ser aceite pelos seus próprios méritos. Prefiro tentar a sorte, tal como qualquer outro aspirante a autor.

 

Simon. tamborilou levemente com os dedos na secretária.

- Percebo.

 

- De qualquer modo, embora pudesses ser capaz de conseguir que A Dama Místeriosa fosse publicada, não poderias garantir que o público a comprasse. Há limites até para o considerável poder de Vossa Senhoria, aqui na cidade. Mas agradeço-lhe a oferta. - Emily girou nos calcanhares e saiu da sala.

 

Simon viu a porta fechar-se atrás dela e respirou fundo.

- Com mil raios.

 

Claro que ela tinha razão. Conseguir publicar aquilo não teria sido grande coisa. Whittenstall ou Pound concordariam fazê-lo, sob ameaça ou por um preço. Mas conseguir que o público comprasse o romance épico de Emily, seria já outro problema.

 

Estava a pensar no assunto, quando a porta se abriu de novo e Araminta Merryweather entrou na biblioteca. Simon ergueu-se.

 

- Bom dia, minha tia. Creio que se encontra aqui para oferecer ajuda e conselhos à futura anfitriã.

 

- Prometi-lhe fazer uma análise de última hora ao plano de batalha. - Araminta sorriu enquanto descalçava graciosamente as luvas, ocupando a cadeira que Emily recentemente deixara vaga. -- A tua esposa está decidida a que a soírée seja perfeita, de modo a não seres humilhado diante do beau tnonde.

 

Simon suspirou.

 

- Eu sei. já lhe disse para não se preocupar tanto com isso.

 

- Provavelmente não te ligou nenhuma. A pobre menina está tão apaixonada, que faria qualquer coisa por ti, Blade. E sente uma pressão enorme em não te envergonhar em público. Tens uma séria responsabilidade. Espero que tenhas consciência disso.

 

Simon lançou-lhe um olhar perscrutador.

 

- Garanto-lhe que tenho plena consciência das minhas responsabilidades para com a minha mulher.

 

- Hum. Sim. Ela também acredita que tenhas. Pensa que não podes fazer nada mal feito.

 

- A opinião dela a esse respeito pode ter mudado nas últimas vinte e quatro horas - disse Simon aborrecido. - O inútil do pai já tratou de se arruinar. Com alguns meses de avanço ao previsto, devo acrescentar. Araminta ergueu as sobrancelhas.

 

- Compreendo. E ela voltou-se para ti?

 

- Disse-me que provavelmente não valeria a pena pedir-me que o salvasse e eu respondi-lhe que tinha toda a razão. - Simon bateu com a palma da mão sobre o tampo da secretária e fitou o dragão incrustado de pedrarias que se encontrava no canto da estante. - Não o farei, Araminta. Esperei muito por este momento. Salvar o irmão daquele estúpido duelo e deixar em paz Northcote, Canonbury e Peppington é uma coisa. Salvar Broderick Faringdon é outra. Emily sabia-o desde o princípio.

 

- Sim, mas Emily é dada a ideias românticas e finais felizes. E até agora tens-lhe feito sempre a vontade.

 

- Se tinha falsas esperanças, o problema é dela. Não tem desculpa para as alimentar.

 

- Tens toda a razão, é claro. Não tem desculpa para elas, mas só que te considera extremamente heróico e o marido mais maravilhoso à face da terra.

 

Simon semicerrou os olhos.

 

- Acha isso divertido?

 

- Acho ingénuo - disse Araminta em tom cortante. - Mas suponho que acabarás por lhe destruir as ilusões. Emily é demasiado inteligente para se manter ingénua para sempre.

 

Simon lutou contra a onda de raiva que o invadia.

 

- Não escarneça de mim, minha tia. Isto não é nada consigo.

 

- Talvez não. - Araminta reflectiu um pouco e encolheu os ombros. - Emily estará zangada contigo?

 

Simon ergueu-se e dirigiu-se à mesa do chá. Pegou no bule de esmalte verde e dourado e serviu duas chávenas de Lap Seng.

 

- Para ser totalmente franco, não sei o que se passa hoje com Emily. Está com um humor estranho.

 

- Como assim?

 

Simon entregou a chávena e o pires a Araminta, ficando de pé a beber a sua infusão.

 

- Está distraída, desassossegada. Anda de um lado para o outro como se tivesse assuntos mais importantes na cabeça do que o facto do pai ir ficar em breve arruinado. Mas não parece zangada.

 

- Bom, espero que, no caso de estar furiosa contigo, acabes por descobrir.

 

- E como irei eu descobrir tão fascinante informação? - resmungou Simon.

 

- Pela sua reacção na cama, naturalmente. - Araminta sorriu de modo conhecedor, por sobre a beira da chávena. - Tem-te recusado os seus favores?

 

Simon ficou alarmado ao aperceber-se que estava a corar violentamente.

 

- Que diabo, Araminta, não tenciono discutir consigo a minha vida íntima.

 

- Claro que não.

 

Ele lançou-lhe um olhar fulminante.

 

- Emily não saberia usar o sexo para conseguir o que quer nem para me castigar.

 

- Provavelmente tens razão. - Araminta abanou a cabeça. - A tua condessa é demasiado ingénua para usar tais subterfúgios tipicamente femininos.

 

- Importa-se de deixar de dizer essas coisas? - pediu Simon, furioso. - O facto de Emily não possuir o conjunto habitual de artifícios femininos, não faz dela ingénua, que diabo.

 

-   E quanto ao facto de ela considerar que és um modelo entre os maridos? já fará dela ingénua?

 

- Pelo fogo do Inferno! - Simon ia começar a dizer mais qualquer coisa, mas nesse momento abríu-se a porta da biblioteca e Emily entrou mais uma vez intempestivamente na biblioteca.

 

- Perdoe, Senhoria. Araminta, graças a Deus que está aqui disse Emily ofegante. - Acabei de saber que os músicos gostariam de ter a lista das peças que eu desejaria que fossem tocadas na soírée. Estou a tentar decidír-me. Tem alguma sugestão?

 

- Mozart, minha querida - disse Araminta, pousando a chávena e erguendo-se. - Nunca se pode errar com Mozart. É um compositor muito sofisticado.

 

- Sim, sim, tem toda a razão - concordou Emily imediatamente.

- Quero exactamente peças musicais sofisticadas. Afinal, toda a gente sabe que Blade é um homem do mundo. Estarão à espera que a música esteja à sua altura.

 

- E decerto não desejamos que a sua imagem sofra, não é assim? Araminta sorriu serenamente, enquanto saía da sala, atrás de Emily. Simon ficou só na biblioteca vazia, perguntando a si próprio porque

 

não sentiria a arremetida impetuosa do triunfo e a satisfação que esperava sentir naquele dia.

 

Tratar com um chantagista e planear simultaneamente uma soirée era realmente demasiado para uma mulher só, concluiu tristemente Emily no dia seguinte, quando saiu com alguma relutância para o salão literário de Lady Turnbull.

 

Enquanto a carruagem abanava e sacolejava pelas ruas, vasculhava mais uma vez o espírito freneticamente em busca de um plano alternativo para lidar com Crofton. Mas lá no fundo, sabia que havia apenas uma maneira de tratar com chantagistas, apenas uma maneira de proteger Blade.

 

Decidiu-se definitivamente, no momento em que foi conduzida à sala apinhada e encontrou o olhar maldoso de Crofton. Se não o conseguisse convencer a desistir daquele esquema, teria de tomar medidas drásticas. Arranjaria um modo de o assustar de tal maneira, que ele nunca mais voltaria.

 

Emily engoliu em seco e enfrentou o olhar de Crofton com toda a coragem possível. Este esperou que a conversa se animasse para a chamar à parte. Ficaram junto à janela. Ninguém lhes prestava atenção.

 

- Então, Lady Blade? já fez os seus planos? - Crofton bebia o seu clarete e fitava-a através das pálpebras semicerradas. Com a expectativa, torcia levemente a boca cruel.

 

- Mr. Crofton, amanhã à meia-noite, esteja no atalho do outro lado do muro do jardim de Blade. Vou entregar-lhe o dragão.

 

- Esse atalho é um pouco próximo e as ruas estarão cheias com as carruagens dos seus convidados - murmurou Crofton.

 

Emily ergueu o queixo.

 

- O facto da casa e das ruas mais próximas estarem cheias trar-nos-á vantagem. Ninguém há-de reparar ao ver mais um homem por ali. já tratei de tudo, Mr. Crofton, e tenciono cumprir. Quero este assunto terminado de vez.

 

Crofton encolheu os ombros.

 

- Muito bem, minha senhora. Seja então no atalho. Não importa o ponto de encontro. Estarei a observar de um local seguro. Se tentar trazer mais alguém consigo, digamos que um dos seus irmãos, não aparecerei. E para a próxima, as minhas exigências serão consideravelmente superiores.

 

- Irei sozinha. Mas quero que me jure que o assunto termina aqui. Nunca mais o quero ver, Mr. Crofton. Está entendido?

 

- Claro que sim. Um dos dragões de Blade será mais do que suficiente para cobrir a parte não paga das dívidas de jogo do seu pai. Desaparecerei da sua vida, minha cara.

 

Emily fitou directamente o seu temível olhar e soube que ele estava a mentir. Crofton tencionava voltar uma vez e outra. Tencionava extorqui-la ao máximo, sempre com a ameaça de Blade sobre a sua cabeça. Este nunca mais estaria em segurança.

 

- Até depois, minha senhora. - Crofton inclinou a cabeça com galanteria sarcástica e atravessou a sala para se juntar a Ashbrook e a um grupo de outros convidados.

 

Emily ficou à janela um ou dois minutos, respirando fundo para se recompor. Depois, de queixo erguido com determinação, atravessou a sala para se juntar a um dos pequenos grupos que trocava mexericos a respeito de Byron.

 

Naquela noite, pouco depois das onze, Simon ainda estava furioso consigo próprio pela sua inexplicável fraqueza de ir à procura de Broderick Faringdon numa das salas de jogo clandestinas, perto de St. James. Nem queria acreditar na decisão que tinha tomado, nem naquilo que estava prestes a fazer.

 

Quando a ideia lhe ocorrera pela primeira vez naquela tarde, dissera para consigo que Emily lhe influenciara o espírito, abrandando-a com as suas tolas ilusões e fé ingénua nas suas inexistentes características heróicas.

 

Nas últimas horas discutira consigo próprio, questionando a sua sanidade, bem como a sua inteligência, Tinha ao seu alcance aquilo que queria. Faringdon estava à beira da destruição. Não era altura para se tornar brando.

 

Mas tornara-se.

 

Simon localizou Broderick numa mesa a um canto da sala apinhada e barulhenta. Estava só, tendo aparentemente terminado uma garrafa de clarete e uma rodada de cartas. O irreprimível sorriso dos Faringdon ganhou vida, quando ergueu os olhos e viu a sua Nemésís diante de si.

 

- Um pouco cedo ainda para se regozijar, Blade. Há ainda vida neste velho cavalo.

 

Mesmo sem querer, Simon olhou estupefacto o seu inimigo. Aquele homem deveria mostrar-se desesperado.

 

- Dou-lhe os meus parabéns, Faringdon. Decerto não está com ar de um cavalheiro que não pode honrar as suas dívidas de jogo.

 

- Tenho toda a intenção de cumprir as minhas obrigações. Nada tema.

 

Simon sentou-se lentamente, interrogando-se como diabo conseguiria o homem estar tão confiante, quando era evidente que contemplava a desgraça.

 

- Tenho a certeza que sabe que não pode esperar qualquer ajuda da sua filha,

 

- Emily é uma boa filha. Sempre pude confiar nela. - Faringdon ergueu o cálice de porto e tomou um grande gole.

 

- Desta vez não, Faringdon.

 

- Veremos. - Broderick observava a sala, como que em busca de outros jogadores que estivessem dispostos a mais uma partida. Simon, observou-o.

 

- Significa que não está interessado num acordo, Faringdon? perguntou em voz baixa,

 

A cabeça de Broderick girou rapidamente, com os olhos azuis imediatamente atentos.

 

- De que está a falar?

 

- Estou disposto a pagar-lhe as dívidas sob certas condições.

 

Broderíck tinha o ar de um perdigueiro a farejar um coelho.

 

- Bom Deus, então ela já falou consigo? Convenceu-o a fazer-me aquilo que estava certo? já sabia. É uma boa menina, como eu sempre disse. Tem modos muito doces, não é verdade? Tal como a mãe.

 

- Isto não tem nada a ver com Emily. É entre mim e si, Faringdon. Está interessado?

 

Broderick sorriu.

 

- Claro que sim. Estou sempre interessado numa proposta financeira. O que tem para me oferecer, Blade?

 

-- Pago-lhe as dívidas em troca de um acordo para aceitar a posição de administrador das minhas propriedades no Yorkshire.

 

- Yorkshire? - Broderick ficou sufocado com o último gole de vinho.

- Tenho aí uma criação de cavalos e ocorreu-me que uma das suas inegáveis capacidades é ter visão para os animais de qualidade, Terá de me dar a sua palavra de honra que não voltará a Londres ou aos seus hábitos de jogador. Seria um emprego, Faringdon, e espero que trabalhe nele com a mesma diligência com que sempre jogou.

 

- Não deve estar bom da cabeça - vociferou Broderick. - Enviar-me para o Yorkshíre administrar uma maldita quinta de criação de cavalos? Nem morto, Blade. Sou um homem do mundo, não um camponês. Saia daqui, não preciso da sua maldita oferta de emprego. Posso tratar das minhas dívidas.

 

- Sem a ajuda da sua filha?

 

- Por amor de Deus, quem disse que a minha filha não me há-de ajudar?

 

- Digo eu. - Simon ergueu-se, desgostado consigo próprio por ter feito tal oferta. - Essa parte não muda, Faringdon. Nunca. Nunca permitirei que volte a usar Emily.

 

- Canalha. Veremos.

 

Simon encolheu os ombros, pegou no chapéu e dirigiu-se à porta. Espantava-o, porque é que alguém se sentiria particularmente atraído para o impulso ocasional e inexplícável de perdoar. Era óbvio que o mundo não apreciava tão ingénuas qualidades, e mostrá-las apenas deixava uma pessoa a fazer figura de imbecil.

 

Porém Simon sentia-se bastante satisfeito por ter feito a oferta a Broderick. Resolveu não se esquecer de mencionar a Emíly o seu honroso acto depois da soirée. Ela olhá-lo-ia com a sua costumada adoração e dir-lhe-ía que sempre soubera que ele seria generoso e heróico na vitória. O facto do pai não ter querido aceitar a oferta do Yorkshire era problema de Broderick e não de Simon.

 

Simon não teria já de sentir o aguilhão da culpa, sempre que fitasse os olhos de Emily.

 

Sim, decidiu quando saiu do clube clandestino, já se sentia muito melhor. Gostaria de contar naquela noite a Emily a sua boa acção, mas ela estava atarefadíssima com os preparativos para a soirée. Não seria capaz da gratidão e adoração que ele merecia. Era muito melhor esperar que aparentemente se restabelecesse a calma no seu lar.

 

- Emily pode descontrair-se - murmurou Araminta a Simon na noite seguinte. - A soirée está a ser um êxito estrondoso. A casa está cheia de convidados, a rua apinhada de carruagens, o buffet é uma perfeita combinação de iguarias exóticas e da substancial comida inglesa, a música é de excelente qualidade. Amanhã de manhã, toda a gente chamará a isto o maior acontecimento da temporada.

 

Simon assentiu calmamente, enquanto olhava à sua volta para os salões cheios de gente. A casa estava repleta de risos, conversas e música. A soirée de Emily era, sem dúvida, um impressionante sucesso,

 

- Viu Emily?

 

- Vi-a a conversar com Lady Linton há algum tempo. - Araminta observou a multidão. - Agora não a vejo. Talvez tenha ido falar com Greaves, para ver se o pessoal tem tudo controlado. Preocupou-se com todos os pormenores desta noite. É uma maravilha que não tenha desmaiado de exaustão.

 

Simon franziu a testa, consciente de uma vaga sensação de incómodo. Começara a senti-la alguns minutos atrás e intensificava-se rapidamente.

- Se me desculpar, creio que vou procurá-la.

 

- Boa sorte. Pergunta ao teu mordomo. Ele tem tudo debaixo de olho,

 

-  É isso. - Simon abriu caminho por entre os grupos de pessoas elegantemente vestidas, detendo-se de vez em quando, para trocar cumprimentos e receber elogios acerca do encanto de Emily como anfitriã.

 

Por fim, chegou ao átrio, que estava tão cheio como a sala. Localizou rapidamente Greaves.

 

- Viste Lady Blade? - perguntou Simon.

 

- Há alguns Minutos, Senhoria. - Greaves olhou à sua volta. - Mas agora não a vejo. Deseja que mande um dos criados à procura da senhora? A sensação incómoda estava a piorar.

 

- Sim - ordenou Simon. - Imediatamente. Vou verificar na cozinha.

 

- Duvido que lá esteja, Senhoria. - Greaves franziu a testa com ar de desaprovação. - Aconselhei-a que seria melhor ficar com os convidados e deixar o pessoal tratar da substituição dos pratos.

 

- Talvez esteja a descansar um pouco na biblioteca. Vou experimentar primeiro lá.

 

O incómodo transformara-se numa forte sensação de ansiedade. Simon entrou na biblioteca, que fora vedada aos convidados, e fechou a porta atrás de si.

 

Foi uma espécie de alívio entrar naquele calmo santuário. Porém, Simon viu imediatamente que Emily não se encontrava ali e a ansiedade cristalizou numa genuína sensação de mau presságio.

 

Dirigiu-se às janelas e olhou para os jardins. Da casa vinha alguma luz que revelou o movimento de uma sombra junto às sebes.

 

Simon. imobilizou-se ao reconhecer o esvoaçar da bainha de uma capa sua conhecida.

 

Disse para consigo que era sem dúvida um convidado que fora apanhar fresco, mas mesmo enquanto se tentava sossegar, sabia que havia ali alguma coisa que não estava certa.

 

Agindo por instinto, Simon abriu a janela, passou uma perna pelo parapeito e deixou-se cair com leveza na relva húmida.

 

Momentos depois deslizava silenciosamente na sombra da sebe mais alta. Avistou a sua presa algum tempo depois.

 

Apercebeu-se assustado de que era Emily. Não havia qualquer dúvida. Trazia posta a sua capa de veludo negro.

 

Enquanto Simon observava, abriu o portão e saiu cautelosamente para o atalho escuro. Simon avançou, com o estômago gelado de medo. Deteve-se quando uma voz masculina sua conhecida se ergueu nas trevas, do outro lado do muro.

 

- Ora, ora, ora - disse Crofton em tom de desprezo. - Com que então conseguiu trazê-lo, não é verdade? Espero que tenha tido o bom senso de me ter trazido um dos melhores espécimes de Blade, oculto pela sua capa, minha querida. Não gostaria de ter de a mandar buscar outro tão cedo.

 

- Não haverá mais nenhum, Mr. Crofton - disse Emily ferozmente.

 

- Oh, penso que sim, Lady Blade. A fortuna do seu marido é assunto de muita especulação, mas não há dúvida de que é considerável. Não creio que dê por falta de uma ou duas das suas estranhas estatuetas.

 

- O senhor é um canalha, Mr. Crofton. Crofton soltou uma gargalhada maldosa.

 

- Lembre-se do que pode acontecer, se não cooperar minha querida. O marido que como é evidente, tanto adora, será publicamente coberto de ridículo, devido ao escândalo do seu passado. Será humilhado para sempre por sua causa. Mas sabemos ambos que a senhora tudo fará para proteger Blade, não é verdade? É uma esposa amantíssima.

 

Com a biqueira da bota, Blade encontrou uma saliência e içou-se silenciosamente para o cimo do largo muro de pedra. Acocorando-se na superfície rugosa, olhou para baixo e viu duas figuras fracamente iluminadas pelo luar. Fechou um punho enquanto a raiva o invadia.

 

Emily tinha o capuz da capa puxado para o rosto e as mãos escondidas pelas dobras de veludo. Crofton estava a poucos metros dela, oculto por um enorme sobretudo e com um chapéu puxado para cima dos olhos, de modo a esconder-lhe a cara.

 

- Tem a certeza de que não quer desistir deste terrível esquema?

- perguntou calmamente Emíly. - Há alguma possibilidade de eu apelar à sua natureza?

 

- Absolutamente nenhuma, minha querida. Nenhuma mesmo. Sabe, tornei-me enormemente curioso. Creio que estaria interessado em descobrir porque é que Blade a acha tão interessante. Penso que teremos de combinar muito em breve outro encontro, minha senhora. Num local íntimo, creio eu, onde me possa mostrar como é inteligente e divertida e excêntrica... na cama.

 

- O senhor é um monstro, Crofton.

 

- Ora, ora, minha querida. Lembre-se do que vai acontecer, se não cooperar comigo. Sei que já que é tão excêntrica, provavelmente, não se preocupa com a sua reputação, mas fará o que tiver de fazer para proteger Blade de uma humilhação, não é verdade? E eu quero gozar a experiência de a levar para a cama, minha senhora. Tenho a certeza de que será uma perfeita novidade. Ele já lhe ensinou truques orientais para agradar a um homem?

 

- Está correcto numa coisa, Crofton. Tudo farei para proteger o meu marido.

 

As mãos de Emily saíram de dentro da capa. Simon viu o reflexo do luar na pequena pistola que apertava e apercebeu-se, assustado, daquilo que ela estava prestes a fazer.

 

Emily ia disparar uma bala contra Crofton, para o proteger a ele do escândalo do seu passado.

 

Crofton abriu a boca ao ver a arma. Os olhos abriram-se muito de estupefacção e surpresa.

 

- Maldição, mulher, enlouqueceu? Baixe a pistola.

 

- já lhe dei todas as hipóteses, Mr, Crofton. Esperava, apesar de tudo, que não teria de usar medidas tão drásticas para o fazer desaparecer. Mas o senhor não se quis ir embora. Há apenas uma maneira de proteger de si o meu marido. - Fez pontaria, cerrou os dentes e preparou-se para disparar.

 

- Com mil raios - resmungou Simon. Sim, era um gesto comovente, que guardaria no coração até à morte, mas não poderia permitir que Emily matasse Crofton por sua causa.

 

Simon atirou-se do alto do muro, embatendo em Emily um momento antes de ela disparar a arma.

 

Capitulo 20

EMILY SENTIU-SE COMO SE O JARDIM INTEIRO tivesse caído sobre ela.

- Sou eu, que diabo! - vociferou-lhe Simon ao ouvido quando o impacto do corpo dele a fez cair sobre o empedrado húmido. - Não dispares.

 

- Simon, mas que raio... - A pistola desapareceu das mãos de Emily, que a viu saltar pelo atalho estreito. As dobras esvoaçantes da sua volumosa capa protegeram-na da sujidade e da terra, mas também a cegaram. Por momentos não conseguiu ver nada.

 

- Blade! Então essa cabra disse-lhe, não foi? E eu que a tinha avisado para não o fazer - gritou Crofton. - É louca, mas já vão ver, vou matar-vos a ambos.

 

O Peso de Simon desapareceu subitamente de cima dela, quando este se pôs de pé de um salto. Emily sentou-se rapidamente, afastando do rosto o veludo negro. Livrou-se da capa e apercebeu-se de que nada conseguia ver senão as formas esbatidas dos dois homens. No meio da luta tinham-lhe caído os óculos. Aflita, tacteou e os seus dedos encontraram as delicadas armações de metal. Apercebeu-se, aliviada, que não estavam quebrados.

 

Emily voltou a pôr os óculos a tempo de ver Crofton sacar uma pistola do bolso do casaco e com ela fazer pontaria a Simon.

 

- Não - exclamou Emil

 

Aproximou-se em tom ofegante, esforçando-se por se pôr de pé.

 

Mas, nesse instante, Simon ergueu uma perna e bateu com tal força com o pé na mão de Crofton que se ouviu um estalo e a pistola voou. Os olhos de Crofton dilataram-se de verdadeiro terror, quando

 

Simon se atirou a ele. Recuou, mas não havia tempo para fugir. Atirou à cabeça de Simon uma pedra que agarrara do chão, mas falhou e esta foi bater no muro. Depois mergulhou na direcção da pistola que Emily deixara cair.

 

Num abrir e fechar de olhos, Simon cobriu a distância que o separava do outro, Bateu com a esquina da mão no pescoço de Crofton, justamente quando este se preparava para agarrar a arma.

 

Crofton caiu no chão e ficou imóvel.

 

Emily fitou o homem caído e ergueu os olhos para o rosto verdadeiramente controlado de Simon. Este devolveu-lhe o olhar ardente, à luz pálida da Lua.

 

- Disse-lhe que esta noite traria um dragão comigo - murmurou Emily.

 

- Volta para dentro de casa - disse Simon calmamente. - Vai ter com Greaves. Diz-lhe que me mande aqui imediatamente George ou Harry. Depois volta para junto dos convidados.

 

Emily sacudiu a estranha paralisia que parecia ter-se apossado dela.

- Espera, Simon. Eu tinha um plano muito bem feito.

 

- Ah, sim? - Simon dirigiu-se-lhe com os olhos estranhamente brilhantes.

 

Emily recuou instintivamente.

 

- Sim, Senhoria. Ia fazer parecer que ele tivesse sido atacado aqui no atalho por um salteador. Passei muito tempo a tratar dos pormenores.

- Eu trato dos pormenores.

 

- Está morto?

 

- Não. Não creio que seja preciso matá-lo. Há maneiras de nos vermos livres de pessoas como ele. - Simon pegou-lhe no braço e empurrou-a na direcção do portão do jardim. - Vai voltar para casa e fazer precisamente o que lhe disse. Percebe, minha senhora?

 

- Sim, Simon.

 

Emily olhou para trás e percorreu-a um leve estremecimento, ao ver Crofton estendido no chão húmido. Voltou para a segurança do jardim, apressando-se a seguir em direcção às luzes acolhedoras e aos sons dos risos que vinham de dentro de casa.

 

já era quase manhã quando o último convidado partiu. Antes de ter sido conduzida à sua carruagem, Lady Merryweather chamou Emily à parte e garantiu-lhe que a soirée tinha sido um enorme êxito e que ao meio-dia já ninguém falaria de outra coisa na cidade.

 

Se ao menos ela soubesse como a festa foí de facto emocíonante, pensou Emily enquanto Lizzie, sonolenta, preparava a ama para se deitar e saía do quarto.

 

O som do abrir e fechar da porta do quarto de Simon disseram-lhe que também Higson terminara os seus serviços. Emily saltou da cama, agarrou o roupão e correu pelo tapete para a porta de comunicação. Estava ardendo de impaciência, desde que Simon voltara calmamente para a festa, juntando-se aos convidados.

 

Durante o resto da noite, agira como se nada se tivesse passado e, naturalmente, Emily fora obrigada a comportar-se do mesmo modo. juntos tinham desempenhado o papel de anfitriões durante aquelas horas penosamente longas. Agora, por fim, poderiam falar.

 

Emily abriu a porta e viu Simon junto a uma mesinha que estava num canto. Tinha o roupão vestido e estava a servir-se de um cálice de brandy de um frasco. Olhou para trás, quando Emily irrompeu pelo quarto.

 

- Entre, minha senhora - disse brandamente. - Tenho estado à sua espera.

 

- Simon, estou quase louca. Está tudo bem? Livraste-te de Crofton? Que fizeste com ele?

 

- Por favor, baixe a voz, minha senhora. Não queremos assustar os criados.

 

- Sim, claro. - Admoestada, Emily sentou-se no lado da cama.

 

- Simon, por favor - insistiu num murmúrio. - Tens de me contar tudo.

 

- Não, Emily, creio que és tu que tens de me dar explicações. Simon atravessou o quarto e afundou-se do outro lado da cama. Encostou-se às almofadas e estendeu as pernas. Fitou-a enquanto fazia girar o brandy no cálice. - Desde o princípio, se fazes favor.

 

Emily voltou-se e olhou-o, ansiosa. Soltou um profundo suspiro. É muito difícil explicar.

 

Experimenta. Sim, bom, lembras-te de eu te ter dito que o meu pai estava em maus lençóis?

 

- Lembro-me muito bem - assentiu Simon. - Presumo que Crofton fosse o jogador a quem ele devia dinheiro.

 

- Sim. Encontrei Crofton e o meu pai ontem à noite no teatro.

 

- Onde, sem dúvida, estavam à tua espera.

 

- Provavelmente - admitiu Emily. - De qualquer modo, o meu pai disse-me que estava muito aflito quando se apercebeu que tinha gasto toda a sua fortuna. Parece que nessa noite bebera de mais. Enquanto se encontrava embriagado, falara com Crofton e do Infeliz Incidente do meu passado.

 

- Calculo que te estejas a referir ao inexistente Incidente? Emily franziu a testa.

 

- Bom, sim, mas Crofton sabia que tinha realmente acontecido, percebes?

 

- Chantagista e canalha! - Simon bebeu um gole de brandy.

 

- Crofton disse-me que, a menos que eu ajudasse o meu pai a pagar as suas dívidas de jogo, espalharia a história do meu Incidente pela sociedade.

 

- Percebo.

 

- Claro que por mim não me importava. Há muito tempo que aprendi a viver com essa mancha na minha reputação. E, de qualquer modo, em Little Dippington ninguém dava muita importância ao caso. Mas se a verdade se soubesse aqui na cidade, criaria um terrível escândalo, que resultaria numa incrível nódoa para o teu título. Serias humilhado por minha culpa e eu não o poderia suportar, Simon. Sei que casaste comigo partindo do princípio que poderias esconder o escândalo.

- Então, planeaste matar Crofton.

 

- Sim. Não consegui pensar em nenhuma outra alternativa. Ele ouvira falar dos teus belos dragões. Sabia que um deles pagaria, sem dúvida, as dívidas de jogo do meu pai. Assim, disse-lhe que esta noite, traria comigo uma das estatuetas. Menti. O meu plano era feri-lo gravemente. Queria assustá-lo, percebes?

 

- Tu ias matá-lo para me protegeres da humilhação? - Simon abanava a cabeça, incrédulo. - Deus do Céu. A senhora nunca deixará de me espantar.

 

Um arrepio de medo percorreu-a, ao aperceber-se do estranho tom das palavras dele. Emily recuou um pouco, cruzando as mãos no colo. Observou-o cuidadosamente.

 

- Por fim choquei-te não foi, Simon? - perguntou num murmúrio.

- Sim, Emily, chocaste-me.

 

Emily começava finalmente a aperceber-se da forma que tudo aquilo devia estar a tomar aos olhos de Blade. Não admirava que se comportasse de modo estranho, Sem dúvida sentiria agora nojo e repulsa por ela. Arruinara tudo. Emily ergueu-se lentamente, com os olhos cheios de lágrimas.

 

- Lamento, Senhoria. Confesso que, até agora, não tinha pensado no assunto do seu ponto de vista. Vejo como deve estar desgostado por saber que se casou com uma mulher que é capaz de disparar sobre uma pessoa.

 

- Não que tenha muita importância, Emily. Mas esta noite não disparaste sobre ninguém.

 

- Não foi por falta de tentar.

 

Simon torceu um pouco a boca.

 

- Não. Não foi por falta de tentar. És uma leoa, quando se trata de proteger os teus, não é verdade, minha querida?

 

Emily olhou-o confusa.

 

- Não podia deixar que te humilhassem, Simon.

 

- Não, claro que não. Amas-me. Adoras-me. Pensas que eu sou nobre, generoso e corajoso, um modelo entre os maridos. - Simon tomou mais um gole de brandy. - Por mim, farias qualquer coisa.

 

- Simon? - disse Emily com voz incerta.

 

- Tens de me perdoar por estar confuso neste momento. Para falar verdade é assim que tenho estado nas últimas horas. Em toda a minha vida, nunca ninguém tinha sequer tentado proteger-me, elfo.

 

Emily continuava a olhar para ele, sem conseguir falar.

 

- Desde que me lembro, que tomo conta de mim - continuou Simon. - Quando te conheci, apercebi-me que queria também cuidar de ti. Mas a ideia de alguém estar disposto a arriscar a vida por mim, de alguém estar disposto a disparar sobre um homem para me proteger, fez-me ficar temporariamente confundido.

 

- Simon, estás a tentar dizer-me que, afinal, não sentes repulsa pelas minhas acções?

 

- Estou a tentar dizer-te que provavelmente não te mereço, elfo, mas que mataria quem quer que tentasse levar-te de junto de mim. Os olhos dele faiscaram à luz da vela. - Nesse aspecto, creio que deveremos ser muito parecidos.

 

- Oh, Simon.

 

- Há muito tempo, escrevi três cartas a pedir ajuda.

 

- Escreveste-as a Northcote, Canonbury e Peppington, eu sei disse meigamente Emily.

 

- Quando essa ajuda me foi recusada, jurei nunca mais pedir o que quer que fosse neste mundo ou no outro. Mas agora creio que tenho de quebrar esse julgamento. Por favor, não deixes de me amar, elfo. Se perdesse o teu amor, ficaria destruído.

 

- Oh, Simon. - Os dedos de Emily giravam por entre as dobras do roupão, enquanto a felicidade ameaçava explodir dentro dela.

 

- Amo-te, Emily - disse Simon em voz baixa’       sem nunca afastar os olhos dos dela. - Provavelmente sempre te amei. Só Deus sabe que nada mais poderia justificar grande parte das minhas recentes acções. Mas quando te vi pronta a disparar sobre Crofton para me protegeres, tive a certeza. Soube também que tinha de to dizer.

 

- Simon! - Emily não podia suportá-lo mais. Lançou-se por cima da cama para os braços do marido.

 

Ele apertou-a contra si. O cálice vazio caiu no tapete, enquanto Simon abraçava a mulher com força, enterrando os lábios nos seus cabelos. Apertou-a tanto, que Emily não conseguia respirar. Mas também não se importava.

 

- Diz-me que me vais dar aquilo que eu te pedir - murmurou.

- Diz-me que me amarás para sempre, elfo. - Simon ergueu-lhe o queixo de modo a poder fixar os seus olhos nos dela.

 

- Para sempre, Simon.

 

- Bom, escuta, há mais uma coisa que gostaria de acertar contigo esta noite.

 

- Sim? - Ela olhou-o, cheia de expectativa.

 

- Vais dar-me a tua palavra que nunca mais tentarás fazer nada tão perigoso como este encontro com Crofton - disse Simon em voz rouca.

 

- Mas, Simon, não tive outro remédio. O escândalo... Ele pôs-lhe as pontas dos dedos nos lábios.

 

- O escândalo não existe, Emily. Quantas vezes terei de to dizer?

- Mas Crofton sabia. Teria dito a toda a gente.

 

- Não, meu amor, não se atreveria a dizer a ninguém. Teria sabido que o preço de tal maledicência seria a sua própria vida. E não haveria razão para se arriscar. Teria percebido que eu esmagaria a má-língua com a mesma facilidade com que o teria esmagado a ele.

 

- Simon, és assim tão poderoso?

 

- Sim, Emily, sou. A única esperança que Crofton tinha de usar essa informação, era ameaçar-te com ela. E foi exactamente aquilo que fez.

- Oh! E eu caí na armadilha.

 

- Porque me amas. Mas de futuro vais também confiar em mim o suficiente para vires dizer-me, se alguma vez tiveres de enfrentar um problema assim. Estamos conversados?

 

- Sim, Simon - disse ela com um sorriso trémulo.

 

Ele retirou-lhe cuidadosamente os óculos e depois desceu a sua boca sobre a dela com uma fome avassaladora, que causou arrepios em Emily.

 

Ela gemeu com o beijo dele, entregando-se alegremente ao seu abraço. Com completo abandono e enorme paixão, agarrou-se ao marido.

- Meu Deus, elfo, preciso tanto de ti - murmurou Simon com a voz abafada contra o pescoço dela. - Ama-me. Ama-me.

 

- Não posso fazer outra coisa senão amar-te.

 

Suavemente, ele deitou Emily de costas. Enquanto a despia, as suas mãos percorriam-lhe o corpo, movendo-se com uma urgência terna e possessiva sobre os seus seios e ao longo do interior das suas coxas. A imensa necessidade que sentia, despoletava os desejos dela. Emily estremecia nas mãos do seu dragão.

 

Quando ele se instalou entre as suas pernas, entrando nela com um movimento rápido longo e forte, Emily gritou e agarrou-se-lhe às costas. Simon abraçou-a pelas ancas junto a si e penetrou-a.

 

Depois, perderam-se ambos num mundo maravilhoso que tinham criado para si.

 

Muito tempo depois, Emily mexeu-se, sonolenta, nos braços de Simon.

 

- Então, Senhoria?

 

Simon deu um bocejo enorme. Parecia um dragão preguiçoso, supremamente saciado.

 

- Então, o quê?

 

- Concordas, por fim, que há apenas uma maneira de descrever o culminar da nossa relação amorosa?

 

- Imagino que te refiras ao verso imortal do teu poema épico. Estamos de facto, à deríva nas doiradas e transcendentes margens do amor.

- Realmente - disse Emily, pensativa, enquanto movia os pés

pela perna de Simon. - Creio que a nossa relação amorosa é até melhor que isso. Não creio que o verso capte toda a magnitude do acontecimento.

 

- Tens toda a razão. Não capta.

 

- Terei de acrescentar mais algumas frases ao meu poema.

 

- Talvez a senhora poetisa devesse alargar um pouco mais a amplitude da sua experiência sensual. - Os dedos de Simon acariciavam-lhe calidamente a coxa.

 

Emily voltou-se para ele. Ia beijá-lo, quando se lembrou de uma coisa.

- Simon?

 

- Hum? - Ele estava ocupado a acariciar-lhe o pescoço com o nariz.

 

- Como soubeste que eu ia conduzir aquela cena terrível com Crofton no atalho?

 

Os ombros nus de Simon encolheram-se de um modo negligente. Prendeu-lhe a perna com a sua coxa forte.

 

- Tive apenas um palpite de que qualquer coisa se passava. Procurei-te por entre a multidão e não consegui encontrar-te, de modo que fui à tua procura.

 

- Ah! Bem sabia.

 

- Sabias o quê? - Simon passou-lhe a ponta da língua pelo mamilo.

- Simon, comunicamos num plano metafísico - disse Emily entusiasmada. - Provam-no os acontecimentos desta noite. Como haverias de saber que eu estava envolvida numa coisa terrível, se não tivesses recebido uma mensagem mística no plano transcendental?

 

Simon ergueu a cabeça para a olhar. A princípio pareceu embaraçado. Depois um sorriso malicioso e sensual apareceu-lhe na boca.

 

- Tens toda a razão, meu amor. Mas de futuro, preferia que não confiasses na comunicação metafísica. Para a próxima vez que planeies uma aventura deste género, quero a tua palavra que a vais discutir comigo verbalmente, bem como no domínio metafísico. De acordo?

 

- Como desejares, Simon. Sabes, estou a pensar melhor no meu poema épico.

 

- Ah, sim?

 

- Sim, estou a pensar em alterar o título de A Dama Misteriosa para O Conde Misterioso.

 

Simon gemeu.

 

- Pensa só, Simon. Abre todo o tipo de novas possibilidades para aventuras e cenas emocionantes.

 

- Vem cá emocionar-me, Emily - ordenou Simon, puxando-a mais para junto de si.

 

- Certamente, Senhoria.

 

Simon estava sentado por trás da sua negra secretária lacada, olhando para a biblioteca cheia de Faringdons. Broderick Faringdon ocupava a cadeira mais próxima do frasco do brandy. Deviin e Charles tinham-se colocado um de cada lado da lareira escura, como um belo par de candelabros dourados.

 

Emily, com um vestido enfeitado com dragões, estava gravemente sentada numa cadeira de veludo vermelho, junto à secretária. Simon percebeu o significado da escolha que fizera do seu lugar na sala. Estava ao lado dele.

 

- Mandei-vos chamar hoje aqui aos três, pois chegou a altura de esclarecermos alguns assuntos - disse Simon lentamente.

 

- Muito bem, muito bem! - Broderick Faringdon acenou a sua aprovação. - Tenho de lhe dizer que já era tempo de cumprir as suas obrigações para com a família da sua mulher. Posso dar-lhe imediatamente a conta das minhas actuais perdas e dizer-lhe o excedente que necessito para poder continuar, até Emily recuperar as nossas finanças.

 

Simon tamborilou com os dedos no tampo da secretária, sabendo que Emily mordia de novo o lábio inferior.

 

- Primeiro, discutiremos o futuro de Deviin e Charles. - Simon olhou para os jovens. - Concordam os dois com a minha oferta?

 

- Será melhor dizer que demos saltos de alegria - disse Deviin satisfeito.

 

- Nem posso esperar pela partida para a índia - concordou Charles. - Ainda bem que não cheguei a pedir a mão de Maryann Mathews. Prefiro ir para fora fazer fortuna. A índia é a terra das oportunidades, da aventura e de tudo isso. É provável que volte rico.

 

- Excelente - murmurou Simon, divertido com a expressão surpreendida do rosto de Emily. - Falei com o administrador dos meus negócios e ele arranjou-vos a ambos posições adequadas, em Bombaim. Têm as passagens marcadas num navio de que eu sou um dos proprietários. Parte amanhã, na maré da manhã. O capitão Adams estará a bordo à vossa espera.

 

- Já fizemos as malas e temos tudo pronto, Senhoria - garantiu Deviin com ar satisfeito.

 

Broderick Faringdon fez má cara aos filhos e depois a Simon.

 

- Mas que diabo se passa? Dev e Charles vão para a índia?

 

- Decidiram partir sozinhos em busca de fortuna, sem estarem a contar com a irmã - disse Simon calmamente. - E como pai, tenho a certeza que é exactamente isso que lhes deseja. Sabe como é importante dar o exemplo.

 

Broderick vociferou, chocado e ofendido.

 

- Escute aqui, se se trata de uma nova oferta para me arranjar um emprego inferior na sua criação de cavalos do Yorkshire, pode bem ir para o inferno.

 

- Que oferta foi essa? - interrompeu Emily, curiosa.

 

- O forreta do teu marido veio outro dia ter comigo com a ideia louca de pagar as minhas dívidas, se eu concordasse em administrar a sua maldita criação de cavalos - disse Broderick em tom ofendido. Podes acreditar? Eu? A trabalhar numa criação de cavalos?

 

Emily pestanejou e voltou-se para Simon.

 

- Ofereceste-lhe uma coisa dessas? Simon, foste de uma generosidade maravilhosa. Não tinha ideia de que o tinhas feito.

 

Simon encolheu os ombros.

 

A minha oferta foi imediatamente recusada.

 

É evidente que sim. - Broderick transbordava de justificada indignação. - Não podem esperar que um homem do mundo se vá enterrar no Yorkshire.

 

- A mim parece-me uma excelente sugestão - observou Deviin. O pai sempre teve bom olho para cavalos.

 

- Pensamos que deveria ter aceite - concordou Charles. - Era a perfeita solução para o problema.

 

- Ora essa - berrou Broderick, ao ouvir as palavras traidoras dos filhos. - Nem pensar em tal.

 

- O vosso pai tinha pensado numa outra solução - continuou calmamente Simon. - Mas afinal, não deu resultado. - Fosse porque razão fosse, não lhe apetecia contar a Charles e a Deviin o pulha que o pai era. Emíly tinha razão. Os gêmeos eram diferentes do pai. Tinham-se acomodado, por falta de um exemplo adequado, mas estavam desejosos de crescer e mostrar o que valiam.

 

- Não deu resultado? - Broderick lançou um olhar espantado à filha, franzindo depois a testa para fitar Simon. - Mas de que estão a falar?

- já tratei das coisas para si - disse Simon.

 

Broderíck acenou afirmativamente, parecendo mais calmo.

 

- Sempre pensei que acabaria por fazê-lo. Disse a Emily que ela conseguiria convencê-lo. Não foi o que te disse, menina?

 

- Sim, meu pai. Foi o que me disse - murmurou Emily.

 

- Toda a gente sabe que, espantosamente, Blade faz tudo o que tu queres. E, claro que não queremos mais escândalos. - Broderick sorriu de satisfação. - Escute, Blade, falemos do assunto de me reconstituir o capital.

 

- Sim, claro. - Simon colocou as mãos sobre a secretária, olhando Broderick, que o fitava com ar ansioso. - Vai querer começar o mais depressa possível, pois parece que está neste momento completamente sem fundos,

 

- Exactamente.

 

- Pois então, tomei a liberdade de lhe comprar uma passagem de ida noutro dos meus navios. Porém este não segue para a índia, pois creio que os seus filhos devem ir sozinhos. Pelo contrário, dirigir-se-á a uma pequena ilha das índias Orientais, onde tenho alguns investimentos negociais. Broderick olhou-o espantado.

 

- O senhor deve estar louco.

 

Simon fingiu não ter ouvido.

 

- Espera-o uma posição numa das minhas empresas. Uma vez chegado, pode escolher entre aceitá-la ou rejeitá-la. Não me preocupo particularmente. De qualquer modo, irá para a ilha e não poderá voltar para Inglaterra, a menos que consiga arranjar dinheiro para a sua passagem de volta, que é bastante cara.

 

- Escute lá - irritou-se Broderick, pondo-se de pé -, não vou para o Yorkshire e muito menos para uma maldita ilha das índias Orientais.

- Tem razão em não querer ir para o Yorkshíre. Essa oferta não voltará a ser feita. Quero que saia imediatamente de Inglaterra e pode ter a certeza de que vai estar a bordo do Demónio dos Mares amanhã de manhã, quando este partir. Tem apenas duas opções. Pode ir por sua própria vontade ou mandá-lo-ei amarrar, para seguir para bordo. Escolha.

 

- Não o pode fazer, maldito - disse Broderick em tom de desprezo.

- O Demónio dos Mares é meu e sou patrão de todos os homens a bordo, incluindo o capitão - continuou Simon delicadamente. - Disse ao capitão Conway que o senhor partiria com ele para as índias Orientais. Dois dos seus homens estão já à sua espera na rua. Vão até à sua residência e ajudá-lo a emalar os seus pertences, Vai passar a noite a bordo, de modo a não termos de nos preocupar em que se escape para o campo.

 

Broderick lançou um olhar desesperado a Emily. -- Não podes deixar que ele me faça isto, Em. Emily ergueu-se e enfrentou o pai.

 

- Como de costume, o meu marido foi extremamente generoso, dadas as circunstâncias. Mas, afinal, sempre se sentiu inclinado a fazer aquilo que é nobre. Está-lhe na natureza. Desejo-lhe boa viagem, meu pai. Não se esqueça de escrever, quando chegar.

 

- Emily!

 

- Necessito de um bom correspondente nessa parte do mundo. Sempre senti a falta de informações suficientes das índias Orientais para as decisões a tomar sobre os meus vários investimentos nessa zona. Pode ser-me de grande ajuda, meu pai.

 

- Valha-me Deus - disse Broderick, perfeitamente estupefacto.

- A minha querida filha voltou-se contra o seu amado pai. Não posso acreditar.

 

- Também eu tive alguma dificuldade em acreditar naquilo que permitiu ser feito tendo em vista o pagamento das suas dívidas de jogo

- disse Simon, sentindo-se de novo furioso ao recordar a cena no atalho.

 

- Sabe... sabe disso? - perguntou Broderick pouco à vontade.

- Sei tudo. Emily e eu gozamos de uma invulgar forma de comunicação - explicou Simon.

 

- Valha-me Deus. Não era minha ideia... nunca pensei que chegasse a tanto. Pensei que Emily o poderia convencer a pagar-me as dívidas. Foi Crofton que sugeriu que eu aplicasse as esporas, sabe? Disse que Emily poderia precisar de um incentivo.

 

- Se fosse a si, não diria mais nada - avisou Simon em voz baixa. - Porém, pode estar interessado em saber que não partirá sozinho para as índias Orientais. O seu bom amigo Crofton irá consigo. De facto, já está mesmo a bordo, à espera da sua chegada.

 

Broderick abriu e fechou a boca ao dar-se finalmente conta da fria raiva de Simon. Apercebia-se, obviamente pela primeira vez, que o seu adversário sabia de tudo. O que quer que tivesse visto na expressão do genro, tinha-o convencido de que não havia mais esperança. Broderick voltou-se para Emily, com os olhos suplicantes. Ela devolveu-lhe o olhar, sem qualquer expressão.

 

- Adeus, meu pai.

 

- Proscrito para as índias Orientais. Que destino mais injusto, Quem me dera que a tua mãe aqui estivesse. Saberia o que fazer. - Broderick ergueu-se, dirigiu-se lentamente para a porta e saiu para o vestíbulo.

 

Um longo silêncio desceu sobre a biblioteca. Deviin olhou para o irmão gémeo. Ambos se afastaram da lareira, parecendo subitamente mais velhos e muito mais amadurecidos do que algumas semanas atrás.

 

- É tempo de partirmos - disse Charles em tom decidido. Há muito a fazer antes de partirmos amanhã. - Inclinou-se para dar um afectuoso beijo na face de Emily. Vais ao cais despedir-te de nós, Em?

 

- Claro! - Emily sorriu-lhe.

 

- Vamos escrever-te, Em. - Deviin beijou também a face da irmã, com um enorme sorriso. - Vamos mandar-te todos os nossos ganhos para que os invistas.

 

- Tomem cuidado os dois! - Emily ergueu-se para abraçar os gêmeos.

 

- Claro que sim. - Charles lançou-lhe o encantador sorriso dos Faringdon. - Quando voltares a ver-nos, seremos já uns ricos nababos.

- Voltou-se para Simon. - Adeus, Senhoria, e obrigado por tudo.

 

- Sim - disse Deviin, lançando-lhe um olhar sincero. - Muito obrigado. Sabemos que deixamos a nossa irmã em boas mãos. Tome bem conta dela.

 

- Claro que sim - respondeu Simon.

 

Esperou até a porta se fechar atrás dos gêmeos e em seguida levantou-se para se dirigir ao frasco de brandy. Serviu dois cálices e entregou um a Emily.

 

- Um brinde, senhora minha esposa.

 

Os olhos sorriram-lhe, enquanto ergueu o copo.

- A que brindamos, Senhoria?

 

- A uma Inglaterra livre dos Frívolos e Volúveis Faringdon. Simon tomou um grande gole do brandy.

 

- E eu?

 

- A senhora - disse Simon pousando o cálice. - A senhora não é uma Faringdon. - Atravessou a sala e fechou a porta da biblioteca à chave. - Pelo menos desde o dia em que me casei consigo.

 

- Percebo. - Observava-lhe os movimentos, com os olhos brilhantes. - Simon, tenho de te agradecer tudo o que fizeste pela minha família. Foste extremamente generoso. Nunca vi Charles e Deviin tão entusiasmados com uma coisa, como agora, que vão partir para a índia. E quanto ao meu pai...

 

- Quanto ao teu pai...?

 

- Como te disse, foste extremamente generoso com ele. Não o merecia.

 

- Não, não o merecia.

 

- Simon, és tão bom - disse ela impulsivamente. - Tão generoso, nobre e...

 

Ele ergueu a mão para a fazer calar.

 

- O que fiz foi para me libertar dos Faringdon. Foi perfeitamente egoísta da minha parte.

 

- Não, o que fizeste, fizeste-o por mim - disse ela, tendo consciência do facto. Depois encarou-o com olhos risonhos. - Toda a gente sabe que só fazes o que eu quero, o que é vergonhoso.

 

- E toda a gente sabe que estás desesperadamente apaixonada por mim, totalmente enfeitiçada e completamente à minha mercê. Desapertou o nó da gravata e atravessou a sala.

 

- Parece-me um acordo bastante justo.

 

- Aquilo que o mundo inteiro vai sem dúvida afirmar - disse Simon, retirando do pescoço a tira de seda - é que eu estou tão apaixonado por ti, como tu estás por mim.

 

- Essa possibilidade preocupa Vossa Senhoria?

 

Ele deteve-se diante dela, com a gravata de seda branca pendendo-lhe dos dedos.

 

- De modo algum.

 

- Simon? Que vais fazer com a gravata? - perguntou Emily. Ele lançou-lha sensualmente à volta do pescoço.

 

- O mesmo que fiz da última vez que fizemos amor aqui na biblioteca.

 

- Não me diga. - Depois abriu muito os olhos. - Mas estamos a meio do dia, Senhoria.

 

- Nunca é cedo de mais para andar à deriva nas doiradas e transcendentes margens do amor, minha querida. - Tomou-a nos braços e conduziu-a para cima de uma das enormes almofadas de cetim.

 

Instalou-a no almofadão doirado e deixou-se cair a seu lado. Ela sorriu-lhe, mostrando-lhe o amor ardente nos seus belos olhos.

 

E quando nada mais tinha vestido do que uma tira de seda branca, caiu-lhe nos braços como sempre fizera... com uma paixão enorme, suficientemente forte para durar toda uma vida.

 

Pelo canto do olho, Simon viu um dos dragões cravejados de pedrarias a sorrir-lhe. O conde deu uma gargalhada que se tornou música de dragão e encheu toda a casa.

                                                                                            Amanda Quick

 

 

                      

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