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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA MISTERIOSA / Linda Cook
A DAMA MISTERIOSA / Linda Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Inglaterra, 1164

Ele sacrificaria a confiança da esposa para salvar o amor de ambos?

Após três longos anos lutando pelo rei de seu país, chegara a hora de William retornar para casa e para a esposa cujo rosto não esquecera nem por um momento sequer. Mas William tem certeza de que o reencontro de ambos não será tão excitante quanto espera, pois ele carrega um pesado fardo: a amante grávida do rei, a quem ele tem de proteger de espiões galeses. Desesperado para manter a amada esposa e a filha em segurança, William precisa ocultar a verdade sobre a mulher que está levando com ele, mesmo que isso lhe custe o amor e a confiança da esposa que tanto ama!

 

 

 

 

Novembro de 1164

Nordeste de Nottingham

Pouco antes do anoitecer, em meio ao vasto vale à frente do rio, as plantações de Lundale flamejavam sob o céu cinzento. A fumaça invadia o ar parado, tornando ainda mais escuro o firmamento. O forte odor de queimado atingia a pequena elevação, onde William de Macon havia parado seu cavalo para apreciar as fabulosas terras de sua esposa.

Já alcançara a curva da estrada, e logo percorreriam a trilha estreita que contornava a extremidade leste da grande floresta e o levaria a um abrigo.

— Algum problema? — indagou uma voz suave. William olhou a luxuosa liteira, cuja cobertura ocultava o passageiro, e ergueu o braço para que os soldados não avançassem. Então respondeu:

— Não. Nenhum.

Ao longe, figuras minúsculas se destacavam diante das chamas ardentes de Lundale, montando guarda entre a aldeia e o corredor de fogo que cobria a terra outrora fértil. Para além da queimada, a pequena fortaleza recebia os últimos raios de sol e a chaminé da lareira da velha moradia saxônia expelia uma fumaça pálida que se elevava, lenta.

Mulheres caminhavam entre os demais habitantes, que vigiavam a plantação. Catherine não estava com elas. Mesmo a distância, William teria reconhecido o andar gracioso que só ela possuía. Na Normandia, enquanto se recuperava dos severos ferimentos de guerra, vira por entre as frestas da tenda pássaros moverem-se com a mesma elegância.

— É o povo de sua esposa que está queimando o solo? William soltou um suspiro e voltou a olhar para Lundale.

Esquecera, por um breve período de tempo, a tarefa em mãos.

— Sim, é.

— Todo o território? De uma só vez?

Atrás de William, os cavalos selados e as mulas que puxavam o vagão de suprimentos se tornaram irrequietos devido ao frio seco de outono. Pesadas nuvens aglomeravam-se no horizonte, cobrindo o sol poente.

— Não há muito perigo.

— Então, não está zangado? William fez que não.

— Minha esposa sabe quando esperar e quando agir. Nunca corre riscos muito graves.

Ele escutou uma risada suave.

— Nesse caso, ela é capaz de reconhecer uma ameaça. William virou-se na sela. Atrás dele, uma coluna silenciosa de batedores em suas montarias formava uma linha fechada. Devido ao excelente treinamento, não deixavam à mostra nenhuma superfície de metal sob a luminosidade, que poderia brilhar, atraindo a atenção de outros.

Quarenta soldados, bem pagos para esquecer o que veriam naquele inverno, aguardavam em silêncio. William os escolhera com cuidado e os recompensara muito bem. Não podia permitir nenhum imprevisto naquela jornada, tampouco nos meses seguintes.

Assim, abaixou-se para falar com a acompanhante:

— Eu não seria tão imprudente, minha senhora. Acredite-me, estará segura e também sozinha, como deseja estar. Cada um desses homens jurou sobre a própria espada protegê-la.

— E sua mulher? Se ela me descobrir, não irá me mandar embora?

— Catherine não a verá ou tomará conhecimento de sua presença. Fiz uma promessa em Winchester. Ninguém a trairá, milady.

Mais uma vez, William fitou a terra em chamas e, em seguida, acenou para os três soldados a pé, que se encontravam ao final da coluna de batedores, chamando-os. Dois deles seguraram as rédeas dos cavalos que puxavam a liteira. O terceiro posicionou-se ao lado da cobertura com uma das mãos na espada e a outra na lateral do veículo.

— Perdoe-me, senhora, devemos prosseguir. Temos apenas uma hora antes do anoitecer, e precisamos chegar ao abrigo sem o uso de tochas para iluminar nosso trajeto.

Lady Mathilde, a filha caçula do barão de Pandulf, abriu a cortina, fitou-o e sorriu.

— Então, é melhor nos apressarmos. Não quero sofrer nenhum contratempo.

William sacudiu a cabeça em negativa.

— Iremos devagar, como sempre. E, quando alcançarmos o abrigo, suas criadas já deverão estar lá, prontas para servi-la.

— Sua gentileza, lorde William, será recompensada. — Então, a cortina se fechou, escondendo o rosto que fascinara a corte do rei.

William ergueu o braço e liderou o séquito ao longo do terreno acidentado da trilha acima de Lundale. A medida que cavalgava, o sol se punha, derrubando uma vasta sombra sobre a grande floresta.

Catherine de Lundale, a esposa de William de Macon, ergueu a filha para beijá-la.

— Ela não é linda, primo?

Rindo, Robert recostou-se no espaldar e avaliou, franzindo o cenho, os traços da parente mais nova.

— Será linda, sem dúvida. Alflega tem os traços da mãe e os cabelos dourados do pai.

— É verdade. — Catherine acomodou a filha no colo e aproximou-se do fogo. — Os cabelos dela ficarão tão claros quanto os de William.

O olhar sombrio de Robert pousou sobre a criança.

— Surpreende-me saber que ainda se lembra da cor dos cabelos de seu marido, prima. Quando foi a última vez que o viu?

Catherine afagou a filhinha.

— William está guerreando a serviço do rei. Por isso, fica tanto tempo ausente. Você sabe disso.

— É lógico.

— A última vez em que William esteve aqui foi quando Alflega nasceu. Veio especialmente para conhecê-la.

— E partiu poucas horas depois, segundo me disseram. Catherine sentiu a menina adormecer em seus braços.

— Ele cavalgou de Londres até aqui só para ver o nascimento da filha — repetiu. — William tinha apenas um dia, pois precisava retornar a Inglaterra a fim de cuidar dos despachos do rei.

Catherine abraçou mais forte o bebê.

Fora na primavera, oito meses atrás, que William percorrera estradas tortuosas apenas para estar com ela. Catherine acordara dois dias depois do parto ainda com a lembrança do rosto do marido, marcado por uma nova cicatriz, fitando fascinado a recém-nascida que ela segurava.

Hadwen e os outros lhe haviam contado sobre a visita rápida e apressada de William. Se não fosse por eles, Catherine teria relegado a imagem do marido a um sonho bom, perturbado apenas pela estranha cicatriz. Em seus sonhos reais, William voltaria sem ferimentos e com as faces intocadas pelas batalhas. Não haveria marca de uma flecha francesa que quase acabara com sua vida.

O silêncio se prolongou. Sob a luz da lareira, o semblante de Robert adquiria um ar ainda mais sombrio.

Catherine exalou um suspiro.

— William não teve escolha. Ganhou nossas terras porque lutou com bravura nas guerras de Henrique Plantagenet, e não pode. parar agora. Creio que arriscou muito para vir conhecer a filha que acabara de nascer.

— De fato, seu marido se arrisca demais. Henrique Plantagenet aprendeu a depender de William quando as lutas se tornam mais ardorosas. — Robert observou as criadas da cozinha alimentarem o fogo da imensa lareira e sussurrou: — Não acha estranho, prima, que a esposa do guerreiro mais confiável do rei não tenha um lugar de honra na corte entre as damas da rainha?

Catherine chamou Hadwen e entregou Alflega aos cuidados da boa mulher, antes de voltar-se para Robert.

— Venha, primo. Quero saber o que o perturba. Ele assentiu e levantou-se.

— Há algo que desejo lhe dizer, Catherine. E tem de ser em particular.

De um dos cantos do salão, houve exclamações de protesto entre os homens da guarnição militar quando John ergueu-se. Robert encarou o homem, exacerbado.

— O cão de guarda de seu marido está irrequieto. Mantenha-o longe de nós, por favor.

Catherine achou graça.

— Ele não sairá do salão. É com o bebê que John se preocupa. Apenas com o bebê.

O olhar de John passou de Catherine para Robert e, em seguida, para Alflega, aconchegada no colo de Hadwen.

— Não fique tão perto do fogo — ele avisou a criada. — Ela não gosta de dormir com o rostinho voltado para o calor.

— Vá polir sua espada, velho. Não sabe nada de bebês.

— Sei que é muito desajeitada, mulher, e capaz de tropeçar na própria saia. Afaste-se do fogo, já disse!

Os insultos seguintes foram trocados sob risadas divertidas. Brincadeiras e chacotas surgiram de ambos os lados.

— Sua filha consegue dormir com essa algazarra, prima?

— Alflega escuta essa barulheira desde o dia em que nasceu.

— Catherine sacudiu a cabeça. — Meu povo e eu nos acomodamos neste salão de banquetes, e os homens de William moram com John no alojamento do feudo. John seria capaz de levar o berço de Alflega para a sala da guarda, se necessário.

Juntos, Robert e Catherine passaram pelas portas gastas e saíram para a noite. Para além da paliçada, a fumaça da queimada erguia-se no obscuro céu noturno. Só a lua, em sua totalidade, iluminava o caminho.

Pararam perto das muralhas e observaram as árvores enegrecidas pelo fogo, enquanto a brisa movia-se pelo campo. Das quarenta almas que assistiram ao fogaréu naquele dia apenas três restavam para ver as últimas brasas morrerem.

Catherine levou o primo para a extremidade da queimada, longe dos sentinelas.

— Diga-me logo, Robert, William está bem? Não adoeceu por causa dos ferimentos?

— Não, seu marido é forte, ouvi dizer. Não foi nada grave.

— Robert chutou algumas raízes queimadas, formando uma chuva de fagulhas sobre o solo negro. — O que andam comentando por aqui a respeito das façanhas do rei?

— Dizem que lutou contra rebeldes na Normandia e em Anjou. E que em breve haverá paz.

— O rei está oscilante. Perdeu o controle sobre Thomas Becket, e alguns comentam que os padres logo deixarão o país. E há problemas nas fronteiras. Talvez, perto da primavera, o rei envie um exército a Gales.

Ansiosa, Catherine respirou fundo.

— William irá participar também dessa guerra?

O olhar de Robert pousou sobre ela.

— Fale, primo. Ele já partiu para iniciar outra refrega?

— Ainda não. — Robert recuou um passo e observou a lua. — O soberano está na Inglaterra há um mês. Os boatos contam que passará o inverno no sul, preparando o exército, vigiando seus barões.

— Então, William poderá voltar para casa.

— E se ele voltar... Catherine falou com altivez:

— Quando voltar, será bem recebido. William é um bom marido para mim.

— Se voltar — Robert insistiu —, deverá levá-la à corte do rei, na época de Natal. Casou-se com William para recuperar suas terras, Catherine. A traição de nosso avô e o ataque de seu pai contra os Plantagenet fazem parte do passado. É hora de você assumir seu lugar entre os favorecidos de Henrique.

— William caiu nas graças do rei, Robert. Henrique Plantagenet confia nele. Você disse...

— Mas nós podemos confiar em William?

De repente, a noite pareceu esfriar ainda mais. As palavras de Robert despertaram imagens temerosas que ela vira certa vez, durante um sonho estranho. Pelo bem do marido, devia esconder tais receios do primo temperamental.

— Eu confio nele — Catherine afirmou, veemente. — Por que não deveria confiar?

Robert começou a retornar ao castelo.

— Faz dois anos que está casada e já deu uma filha ao homem. Ele é o senhor daqui. Você retornou a Lundale não como senhora do feudo, mas no papel de esposa de William de Macon. E seu marido nada fez para introduzi-la na corte.

— Moro aqui porque quero. William me deu ouro para restaurar o castelo e a aldeia. Os aldeões começaram a vir para Lundale. Em breve, outros virão para trabalhar nos campos outra vez. Tivemos uma boa colheita este ano.

— E você gerou a filha de seu marido. Sim, vejo que há poucas chances de olhar para além deste lugar e pleitear sua causa. Mas o rei retornou à Inglaterra, e não pode mais continuar sendo uma estranha para Henrique Plantagenet, Catherine. Não quando sua terra e seu nome ainda representam uma traição.

Um dos sentinelas virou-se ao escutar a voz exaltada de Robert. Catherine acenou para afastá-lo e tocou o braço do primo.

— A rebelião aconteceu anos atrás, quando ainda éramos crianças. Por enquanto, temos a proteção do nome de William e a boa-fé que o rei deposita nele. Estamos muito melhores que nossos pais poderiam imaginar estar, naquela época.

— E se William morrer na próxima primavera, nas fronteiras de Gales? Henrique Plantagenet permitirá que Catherine de Lundale, a filha do homem que quase o matou, permaneça aqui? Acredito, prima, que você retornaria aos cuidados da abadessa na primeira quinzena após a morte de seu marido. E Alflega também. E é provável que o próximo homem a receber estas terras do rei não queira desposar a filha de um traidor a fim de trazê-la de volta ao lar.

Diante dos olhos de Catherine, o solo tornou-se vermelho devido às chamas, e então feneceu, como se a imagem fosse o sopro de um aviso.

— Lembra-se do que me falou ao aceitar casar-se com William de Macon? Disse-me que seria a última chance para um de nós obter a graça do rei a fim de recuperar Lundale. Certifique-se, prima, de que seu casamento seja uma garantia.

Com dificuldade, Catherine ocultou os temores.

— Robert, meu marido me tratou até agora com bondade e honra. Prometa-me que nunca irá maldizê-lo. Suas suspeitas ficarão guardadas comigo. — Respirou fundo. — Seus irmãos e meu tio, embora estejam no exílio, não podem atentar contra William quando ele retornar. Não os jogue contra meu marido, por favor.

— E você, prima? O que irá me prometer?

— Não esquecerei seus conselhos. Quando William estiver aqui, pedirei que ajude todos nós a conquistar o favor de Henrique Plantagenet. No Natal, se possível. Em outra ocasião, se necessário for. E pedirei que leve você conosco, se o rei concordar em ter-me na corte.

— Minhas terras não voltarão para mim, Catherine. Restam poucos de nós, e somente aqueles que deixarem este lugar irão prosperar. Você tem a oportunidade de progredir. Faça com que seu marido abrace sua causa.

— Minha causa é a dele. Quando William tiver voltado...

Robert segurou a mão dela.

— Escute-me e seja forte. Farei o que prometi e não fomentarei discórdia. Vim aqui, Catherine, para lhe dizer que William vem voltando há semanas. Eu o vi mês passado em Winchester, na comitiva real. Entretanto, ele não enviou a você ou a John nenhuma mensagem. Tem certeza de que seu marido está satisfeito com o casamento? Que se alegrou pela filha que lhe deu? Ou teria ele decidido, uma vez que obteve estas terras, procurar uma esposa cuja família não manche seu nome? — Ele... William é um homem de honra!

— E com nenhuma posse exceto o que lhe pertence, Catherine. Seu marido lhe contou que o próprio pai perdeu tudo durante uma revolta contra Luís Capet? Que. para se salvar, ele e a família fugiram para a Normandia a fim de servir Henrique Plantagenet? Disse-lhe que tem uma boa razão para entender a situação difícil da filha de um rebelde?

— Sim. William me revelou tudo isso tão logo nos casamos.

Robert meneou a cabeça.

— Não estou dizendo que ele irá abandoná-la. Mas cuide bem de seu próprio destino. E do futuro de sua menina.

 

Quando atingiram a entrada daquela facção antiga do feudo, pouco antes do cair da noite, encontraram os batedores e as criadas de Mathilde no meio da estrada, longe do olhar atento dos sentinelas de Lundale. Como fora ordenado, teriam de retornar ao grupo, caso percebessem algum sinal de problema.

William enviou dez homens à paliçada a fim de descobrir quem eram aqueles que acampavam perto da muralha. Ele aguardou do lado de fora com os outros soldados, formando um círculo protetor ao redor de lady Mathilde e de duas criadas.

Três batedores voltaram trotando e carregando galhos queimados do incêndio.

— Então?

— Não são viajantes, senhor. Muito menos escravos fujões. Trata-se de cinco habitantes de Lundale que vieram restaurar o telhado e a paliçada da moradia. Não querem criar confusão. O segundo batedor deu um passo à frente.

— Estão apavorados e não se importam com nossa identidade. Querem apenas que os libertemos. Disseram que voltarão a pé a Lundale ainda esta noite.

William suspirou.

— Impossível. Eles avisarão minha mulher de que estranhos invadiram o feudo e, antes do amanhecer, ela estará aqui, acompanhada de todos os homens de Lundale para nos expulsar. Não, não podemos permitir que nossa preciosa carga seja descoberta.

De repente, Mathilde e as mulheres começaram a sussurrar entre si, como se conspirassem contra eles. A mais alta das duas, Ghislaine, abriu caminho entre os soldados, dirigiu-se a William e falou:

— Minha senhora está cansada e com frio. Precisa abrigar-se. Faça o que for necessário e o mais rápido possível.

William suspirou, revelando cansaço. Conseguira, durante os vagarosos dezesseis quilômetros que tinham percorrido apenas naquele dia, conter a impaciência e oferecer uma resposta gentil e cada pergunta que lhe era feita. Tal qual jurara fazer. E como deveria continuar fazendo.

Nos últimos dois quilômetros, enfim, tivera a ideia de que a solução seria acomodá-las na casa velha do feudo, mandar os guardas acamparem em outro lugar e convocar os sentinelas para a vigília. Assim, quando a lua estivesse alta, ele tomaria a densa trilha da floresta, rodeada de seres noturnos e à espreita, encontraria o ponto mais raso do rio e cruzaria as águas frias para ir a Lundale. Catherine, sem dúvida, estaria dormindo, tendo a criança a seu lado. Ela despertaria ao escutar os vigias abrindo os portões. Os lindos cabelos negros estariam soltos e caídos sobre a túnica vermelha, que realçava as curvas daquela que ele tornara mulher. William jamais esqueceria aquela primeira noite...

Houvera uma brisa suave que soprava entre as colinas verdejantes para refrescar os amantes. Ao escutar os gemidos de prazer de Catherine, William experimentou verdadeiro triunfo, a glória da união entre homem e mulher. Nunca fora tão intenso e especial com outras, e William tivera muitas.

O murmúrio das acompanhantes de Mathilde aumentou, despertando William de seus devaneios. Ele chamou o primeiro batedor.

— O que disseram aos cinco homens que encontraram na paliçada?

— O que milorde ordenou: nada, exceto que deveriam permanecer onde estavam, perto do acampamento. E, se obedecessem, não sairiam machucados.

— Esperem aqui. Eu os levarei para os fundos da casa, de onde não poderão enxergar a porta de entrada. A meu sinal, conduzam a dama e as mulheres para dentro da morada. Em seguida, fechem a porta e escondam a liteira. Lembro-me de haver um estábulo próximo ao muro.

— Sim. Eles têm dois cavalos nas baias.

— Deixem os animais onde estão. Quando lady Mathilde e as mulheres estiverem dentro da residência, feche a porta. Esconda a liteira atrás do estábulo e empilhe selas e alforjes diante do veículo para ocultá-la.

William esporeou o cavalo e passou pelos portões da propriedade, o dote da mãe de sua esposa, que fora tomado do pai rebelde de Catherine por Henrique Plantagenet e mantido longe do alcance dela durante anos pelo rei furioso. Teria Catherine contado aos vassalos que, ao restaurar a paliçada, estariam ajudando sua senhora a reacender as chamas da traição?

Os cinco homens de Lundale, agrupados sob os olhos atentos dos batedores de William, não estavam armados. O mais jovem deles, um rapazola magricela, pegou um galho e o acendeu às chamas da fogueira, improvisando uma tocha.

William ignorou o gesto insignificante. Desmontou e começou a aproximar-se do fogo para aquecer as mãos.

— Por que estão aqui?

Um longo silêncio se seguiu. William estranhou. Sofrera para aprender a língua regional e não seria privado do discurso diante de gente tão simples e alheia à política da corte. Repetiu a pergunta, mais devagar dessa vez:

— Minha senhora nos mandou.

— Por quê?

O jovem o encarou.

— Sabemos que as terras pertencem ao rei. Não estávamos caçando na floresta. Viemos consertar as vigas do telhado e o muro da paliçada. Nossa lady não quer que a moradia principal apodreça. Ela diz que um dia seu senhor assumirá a terra.

William obrigou o rapaz a repetir as palavras até conseguir entendê-las. Sabia que sua esposa não queria recuperar a terra só para manter o povo ocupado e evitar que infringisse a lei real. No ano anterior, Catherine o conduzira a Lundale para ver o feudo decadente e abandonado, o dote que ela herdara da mãe. Após o fracasso da rebelião, Henrique se apossara das propriedades férteis da família de Catherine. Dois anos depois, ele deu a William uma parte da propriedade e manteve a floresta para si.

— Não somos ladrões — alegou o jovem.

— Acredito em você. Já terminaram o trabalho?

— O telhado está pronto.

William tivera quase certeza de que o lugar estaria deserto. O povo da floresta, antigos habitantes das aldeias de Lundale que não ousaram voltar a seus lares após o massacre cruel do rei, abandonou a pequena fortaleza por medo de Henrique Plantagenet. Aquela velha casa era o lugar mais seguro e mais abandonado que existia para esconder Mathilde.

William avaliou o terreno da paliçada e dirigiu-se ao mais velho.

— Vocês chegaram a usar o poço? A água é potável? O homem assentiu, mas não falou.

— Ele quer dizer sim — o jovem traduziu, com a tocha na mão. — Bebemos dessa água nos últimos três dias.

Havia cobertores ao redor da fogueira. William indicou-os.

— Por que estão dormindo do lado de fora? O rapaz fitou os outros e deu de ombros.

— A senhora disse que não podíamos usar a casa. "Consertem o telhado e o muro e saiam de lá". Foi o que ordenou.

William examinou o moço que falava pelos outros, mas não o reconheceu.

— Sua lady é Catherine de Lundale?

— É.

Ele devia pertencer ao povo da floresta, o qual Catherine tentava coagir a voltar para a aldeia.

William apontou a tocha que o rapaz segurava.

— Traga isso e venha comigo. Você e os outros vão me mostrar o que é preciso ser feito na paliçada.

Pretendia manter os homens de Lundale com ele, do outro lado da residência, até que as mulheres se acomodassem. Nesse ínterim, tencionava avaliar o estado dos muros.

Os homens de Lundale realizaram um bom trabalho nas vigas do telhado e cortaram madeira suficiente para restaurar e tapar os doze buracos da paliçada. Se acharam estranho o fato de quarenta soldados normandos aparecerem ao anoitecer para ocupar o feudo, mantiveram suas questões para si mesmos. E, depois de se acomodarem para dormir, não fizeram menção de se aproximar da entrada, guardada por sentinelas.

Em pouco tempo, os soldados do rei montaram acampamento ao redor da paliçada com a destreza e agilidade de verdadeiros guerreiros, acostumados a qualquer tipo de terreno e clima. Eram homens leais a Henrique, que já haviam participado de inúmeras batalhas e conquistas. William confiava neles, e ainda mais no ouro que tinham recebido como pagamento para cumprir à risca aquela missão que lhes fora imposta.

Naquela noite, William cochilou perto dos cinco homens de Lundale, acordando de quando em quando para certificar-se de que não tentariam nenhum truque.

Ao amanhecer, juntou-se aos sentinelas diante do portão para ouvir o relatório dos acontecimentos.

— Não houve problemas, milorde. Mas, quando o dia raiou, os habitantes de Lundale saíram para conversar. O mais velho falou que querem voltar à aldeia ainda hoje. Parecem um tanto assustados.

— Entendo. Depois que restaurarem a paliçada, dê a eles algum dinheiro e mande-os a Lundale. Diga-lhes para passarem o inverno na aldeia e não chegar perto daqui até vocês partirem, na primavera. E, quando estiverem na estrada, vá à casa da floresta e avise a dama.

— Senhor?

— Avise-a quando os homens de Lundale tiverem partido. Ela ficará escondida dentro da moradia até os aldeões irem embora. Não se esqueça de avisá-la.

— Mas...

Desconfiado, William encarou o sentinela.

— Sim?

— O senhor não estará aqui para falar com ela? — Havia um tom de pânico na voz do guerreiro.

— Não tenha medo de falar com as mulheres. Elas não mordem. A menos que você desafie a mais alta de cabelos amarelados. E tente não encarar a dama nos olhos.

— Mas o senhor voltará?

— Amanhã. Estarei morando do outro lado do rio com minha esposa. — Sorriu ao ver confusão do soldado. — Lady Mathilde sabe onde me encontrar. E mandará me chamar, caso precise.

William tocou o ombro do homem.

— Descarregue a carroça e veja que suprimentos serão necessários para este inverno. Você jurou, todos juraram, proteger a dama e suas acompanhantes durante os próximos meses e garantir-lhes privacidade e conforto. O povo de Lundale, incluindo esses cinco trabalhadores e os outros no vale, nada saberá a respeito da dama. Nem minha mulher ficará sabendo dela. Você faz parte do exército do rei Henrique e está alojado aqui a fim de treinar para a guerra em Gales. Essa é a história. E só isso o que as pessoas devem saber.

As faces do sentinela ruborizaram com perguntas não verbalizadas. Por mais curioso que estivesse, o soldado jamais questionaria as ordens do rei, expressas através de William, o guerreiro de confiança de Henrique Plantagenet.

Do outro lado da paliçada, emergiu o som de machados colidindo nas tábuas do muro.

— Fique atento à estrada. Ninguém, além de mim, deve entrar aqui.

William observou a primeira patrulha de batedores rumar em direção à estrada, antes de se preparar. Minutos depois, sob as sombras do estábulo, ele ajeitou o alforje na sela, preparando-se para partir.

Devia ser o frio da manhã que fazia suas mãos tremerem, ao tocar o couro que abrigava os presentes oriundos de suas jornadas. Agora que a esposa e a filha estavam próximas, os prêmios que conseguira das guerras na Normandia pareciam insignificantes e maculados devido à proveniência pecaminosa.

Como a senhora de Lundale o veria? William não passava de um marido cansado e a serviço do rei, que voltara munido de quinquilharias, cicatrizes e um grupo de soldados famintos.

Seus homens não participariam da limpeza do solo para a próxima colheita de Lundale, viveriam à margem do lindo vale, consumiriam suprimentos trazidos de Nottingham e não ofereceriam ajuda à guarnição que guardava e protegia o feudo.

Como conseguiria convencer Catherine, sua esposa impulsiva e praticamente uma desconhecida, já que o início da vida de casados fora curto, a ficar longe da casa dá floresta que ela amava tanto a ponto de mandar restaurá-la? E como explicaria o motivo de ter alojado os soldados do rei para passar o inverno atrás das muralhas antigas de Lundale?

Naquela manhã fria, o esquema arrojado que William aceitara conduzir em Winchester parecia apenas loucura. Dentro de uma hora, estaria diante de Catherine e contaria a história que ensaiara durante uma semana, ao escoltar os segredos do rei Henrique até ali.

Mirou o próprio reflexo na superfície da água do poço e espantou-se com a cicatriz demarcada e a barba por fazer. A aparência negligenciada assustaria a criança? Catherine não sentira repulsa pela marca na pele, na última vez em que ele estivera a seu lado, na noite peculiar em que a filha deles nascera.

Quando sentiu um estremecimento no joelho ferido, hesitou para montar. Se não enfrentasse de imediato a esposa que jurara enganar, teria outra noite tumultuada, repleta de pensamentos conflitantes, tal qual ocorrera nos últimos meses, imaginando se a mãe de sua filha ficaria feliz com o retorno do marido.

Passou pelos sentinelas com um gesto breve de adeus e cavalgou em direção à trilha, onde rumaria ao norte, a caminho de Lundale.

A penumbra misteriosa da grande floresta de carvalhos havia diminuído com o nascer do sol. William sentiu que o frágil calor do novo dia começava a aquecê-lo, uma bênção calorosa para o duro inverno que ainda estava por vir.

Tirou o capuz do manto e deixou que ao raios do astro-rei atingissem a cicatriz da face. Quando se aproximasse de Lundale, alguns habitantes na certa o reconheceriam.

Nas primeiras semanas do casamento, houvera poucas pessoas reconstruindo suas cabanas na aldeia, dispostas a morar onde o rei só deixara destroços e pobreza. Na véspera, vira muitos queimando os campos. Catherine devia estar reconquistando a confiança dos aldeões para que eles a ajudassem a recuperar e fazer prosperar o feudo.

William tocou a linha marcante que percorria metade do rosto até a boca. Exausta devido ao parto, Catherine mal notara a marca na breve estada do marido em Lundale. Ficaria horrorizada diante do ferimento?

Houvera um momento, durante os quinze dias em que ele vivera com a esposa no último verão, que imaginara ter visto a paixão brilhar nos olhos de Catherine. Agora, com aquela deformidade, o joelho ferido e quarenta soldados na casa da floresta, ela mostraria tão-só irritação, e não desejo em seu belo semblante.

Um grito estridente, seguido das vozes alteradas dos batedores do rei, chamou-lhe a atenção. Um segundo grito fez seu cavalo empinar. William controlou a montaria e continuou na trilha a galope.

No cruzamento das estradas, o garanhão de William desviou-se do aglomerado de soldados e passou rápido pelo cavaleiro solitário que enfrentava os batedores. Fez a volta e parou a poucos metros do desconhecido, avaliando o cenário. Não seria possível que... Era Catherine!

— Querem mandar mais comparsas para bloquear minha estrada? Quantos mais vocês pensaram em chamar? Mande todos! — a esposa de William berrava. — Vou acrescentar o nome deles aos de vocês, e meu marido castigará a todos!

O forro vermelho-escarlate do manto cintilou quando Catherine ergueu o braço e apontou o caminho de Lundale.

Há uma guarnição na torre que se prepara para seguir viagem a Nottingham. Por esta mesma estrada. Devem estar se aproximando, enquanto esbravejo com vocês. Retirem-se de minhas terras agora e viverão para ver o amanhã!

Um dos batedores agarrou o punho da espada, furioso.

— Ninguém passará por nós. Ninguém está autorizado a aproximar-se da casa da floresta. Homem ou mulher, nós o faremos voltar. Temos ordens de...

— Esta é minha propriedade, e cinco membros de meu povo estão na casa da floresta! Se ousaram machucá-los, desejarão nunca ter nascido. Mande-os até mim, os cinco, e saiam da floresta. Vocês não têm o direito de estar aqui. Só o rei pode circular nesta região. Vão embora até o meio-dia. Se não obedecerem, vou avisar...

— ...seu marido.

Catherine baixou o braço e virou-se devagar em direção a quem falara. Por um breve momento, William achou que a esposa escorregaria da sela devido ao choque, e preparou-se para ampará-la. Mas, segurando-se no couro gasto da sela, permaneceu montada, fitando-o, perplexa.

— William?

Ele esfregou o queixo. Devia ter se barbeado antes de sair para encontrá-la. E precisaria ter cortado os cabelos, para parecer o homem decente que se mostrara no dia do casamento. Deveria...

Calada, Catherine esperava com os olhos arregalados de surpresa. Ou medo.

William tentou sorrir, mas desistiu ao sentir a cicatriz repuxar o canto da boca. Onde estavam as palavras que ensaiara durante a longa jornada?

— Catherine, eu voltei.

Atrás dela, o soldado mais próximo soltou-lhe o punho. Ela tornou a olhar a fileira de batedores.

— Se ferirem este homem, o rei Henrique se vingará de todos vocês. — Fez uma pausa e elevou a voz: — O rei enviará um exército para caçá-los e matá-los por traição. Por enquanto, fiquem na casa da floresta. Meu marido irá ter com vocês em breve.

— Catherine...

— Hoje, não. Eles são muitos, e você ainda não viu Alflega... .— ...são meus homens.

Os soldados entenderam o gesto rápido de William e se foram para a floresta a galope.

— Catherine...

— Há cinco moradores de Lundale nesta estrada, reparando a paliçada do feudo. Peça a seus soldados que não os machuquem.

— Os moradores estão bem, e terminando o serviço que você os mandou realizar.

O olhar firme de Catherine não vacilou.

— Você os viu?

— Sim. Ontem à noite.

Ela soltou uma ligeira exclamação de surpresa.

William fitou o céu cinzento e blasfemou. Não havia necessidade de contar a sua mulher que passara a noite na região. Catherine se sentiria, no mínimo, desprezada e sem importância, visto que o marido não fora encontrá-la no momento em que chegara a Lundale.

— Eles estão em segurança.

— Obrigada. — Lentamente, Catherine tirou o capuz e o estudou, em silêncio.

Não perguntou por que os homens haviam bloqueado a estrada, tampouco como William encontrara os aldeões. Não fez sequer um movimento para se aproximar.

— Catherine...

Ela ajeitou as rédeas e empinou o queixo.

— Sim, William?

Os olhos pareciam maiores e ainda mais verdes. Existiam sombras sob eles agora, onde houvera apenas beleza. Seria possível que os cabelos fossem, meses atrás, tão negros quanto naquele momento? E como, num rompante de ira, ela podia se tornar mais maravilhosa do que antes?

Não eram perguntas às quais ela gostaria de responder. Mais tarde haveria tempo para as frases amorosas que William criara e esquecera.

— Quem é Alflega? Catherine respirou fundo.

— Sua filha, William. Alflega é o nome dela.

— Então, a criança está bem?

Ela sorriu, revelando a mãe afetuosa que era.

— Está ótima. Fica linda quando ri. Alflega se parece com você.

— Ainda não tinha escolhido o nome dela quando parti... O sorriso feneceu.

— Alflega tinha apenas poucas horas de vida quando você se foi para encontrar o rei.

William sentiu o rancor dela ao mencionar aquele dia.

— Pensei em batizá-la com o nome de minha avó — ele confessou.

— Nesse caso, devia ter ficado para o batismo da menina.

— Precisei ir, Catherine. Havia despachos de Henrique que deviam ser confiados somente a mim.

— Eu sei.

William imaginara, durante a viagem, que Catherine ficaria zangada por os soldados tomarem a casa da floresta, ou chorosa diante das cicatrizes, ou ávida para mostrar-lhe a criança, ou impaciente para saber das guerras. E, acima de todo, curiosa quanto à corte do rei. O comportamento quieto e cauteloso soava pior que a mais negra expectativa.

— Qual era o nome dela? — Catherine quis saber.

— De quem?

— De sua avó.

— Rosewitha.

Catherine cerrou as pálpebras.

— Alflega é melhor.

O coração de Catherine pressentira a presença de William antes mesmo de escutá-lo falar ou de ver a barba e a cicatriz, que agora marcavam as linhas do rosto.

No instante em que ele surgiu a galope, mais um homem armado entre tantos, a pulsação dela diminuíra, e Catherine se viu envolta por uma tranqüilidade inédita, apesar do suposto perigo que enfrentava.

Em princípio, não soube explicar a sensação, teve apenas a certeza de que tudo ficaria bem. Tratou-se de um sentimento originado na mais pura intuição. Catherine confiava em seu sexto sentido e no próprio discernimento. Afinal, vinha administrando o feudo e cuidando de seu povo desde que lhe fora oferecida a graça de retornar ao lugar onde nascera, na companhia de um homem generoso como William.

Tudo estava bem agora, tal qual previra. A despeito do discurso inútil, ela já soubera de antemão que, de alguma forma, estariam salvos. Pois William havia retornado.

Quando ele falou, quando ouviu aquela entonação grave e melodiosa, Catherine, enfim, soube ser William. Tão logo sentiu que o marido poderia brandir a espada contra aqueles soldados, a calma, ainda assim, prevaleceu para que ela pudesse ameaçar os intrusos, impedindo-os de atacá-lo.

A voz sonora a atingiu da mesma maneira que meses atrás, quando passara horas em trabalho de parto para dar à luz Alflega, naquela noite primaveril. William aparecera, de repente, e, ao pronunciar seu nome, amenizara as apreensões de Catherine. Ele segurara sua mão, afastando os medos que consumiam a energia do corpo enfraquecido.

Logo no início do casamento, ao ver os quatro soldados partirem pela primeira vez sob o comando silencioso de William, Catherine teve vontade de perguntar como ele ousava ir. Ouvira-se tantas vezes recriminando William e condenando-o pela longa ausência... Catherine ficara mortificada de vergonha devido ao egoísmo e à infantilidade. A fiel Hadwen, mesmo quando criticava o marido por passar o dia ao lado do barril de cerveja com camaradas, nunca usara palavras tão vis.

William dissera querer batizar a menina com o nome da avó. Rosewitha. No dia do nascimento, Catherine teria concordado em dar à criança o nome de alguma meretriz, se isso o tivesse agradado. Contudo, permaneceu resoluta, optando por Alflega.

William apenas sorriu.

— Alflega. É um nome difícil para uma criança pronunciar.

— Ela conhece o próprio nome. Quando o escuta, olha para você e sorri.

— Duvido que ela sorria ao olhar meu rosto. Um arqueiro deixou uma marca medonha em minha pele.

— Ainda dói?

— Não.

Catherine sentiu as lágrimas brotarem. Sentiu uma dor abrupta no peito ao imaginar o momento pavoroso em que a flecha o atingira. William podia ter morrido. Podia ter sucumbido ao golpe, sem conhecer a própria filha e, de fato, conhecer a procria esposa. Existiam muitos perigos envolvidos nos serviços que ele prestava a seu rei. Valeriam o esforço e a possibilidade de ser morto?, Catherine perguntava-se.

Sua esposa analisava, apreensiva, aquela marca. A dor havia cessado, mas o calor da lembrança, não. Aquela cicatriz estaria sempre com ele, recordando que sua vida e a dos entes queridos poderiam ser tiradas ou salvas em questão de segundos. Ou pelo tremor do pulso de um arqueiro.

— Quando aconteceu?

— No ano passado.

No último dia de batalha, diante das muralhas de Chinon, o destino lhe permitira viver. Contudo, deixara a trilha eterna do trajeto de uma flecha em seu rosto.

— Agora eu lembro. A cicatriz já estava aí quando você voltou... quando o bebê nasceu.

— Sim, aconteceu antes do parto. Quer cavalgar comigo, Catherine? Seus homens na floresta virão depois. Estão em segurança, eu garanto.

Prosseguiram em silêncio, atentos aos buracos deixados pelas chuvas de outono. Perto do declive do rio, os córregos convergiam a um pequeno riacho que seguia paralelo à estrada, que bordejava os campos agora queimados de Lundale.

A trilha barrenta alargava-se ao norte do rio e se elevava em direção ao terreno atingido pela queimada. Era difícil cavalgar ou caminhar naquele solo, com os cascos dos cavalos escorregando, forçando o cavaleiro a despender mais atenção à montaria.

O inverno seria árduo naquele ano, William refletiu, pesaroso. Rezava para que nada de anormal ocorresse até que sua missão estivesse completa.

Parou na elevação de terra. Ao longe, três homens trabalhavam nos limites da aldeia. Um outro, a cavalo, sem demonstrar muita pressa, passava por eles. Ninguém reparou que William e Catherine se aproximavam da torre.

— Você enfrentou meus homens sozinha, Catherine. Por que não tinha uma escolta? Onde está John?

— Preferi sair antes. — Catherine indicou o cavaleiro solitário que se aproximava na trilha. — John vem vindo.

O cavaleiro já havia atravessado a aldeia. Sobre o platô da velha torre, apenas um sentinela vigiava os velhos portões da paliçada, por onde três mulheres, carregando potes, passavam para ir à aldeia.

Teria sido melhor deixar sua família sob o cuidado de freiras, William pensou com ironia. A guarnição que selecionara com esmero não cumpria o único dever que lhe fora incumbido: o de proteger Catherine e o bebê.

— Se aquele é, de fato, o velho John, precisa ser substituído. Se os soldados que encontrou na encruzilhada fossem saqueadores, você já estaria morta, o feudo, em chamas, e seu gado seria roubado. E a criança... só Deus sabe o que teria acontecido à menina. — A cicatriz de William começou a arder e latejar.

Catherine aproximou-se e tocou-lhe o braço.

— William, olhe de novo. Os homens que deixou aqui para nos proteger estão vigiando o feudo. As mulheres sabem o que fazer com o bebê, se John soar o alarme. Os homens estão perto da torre, e o gado, seguro no pasto.

— E minha mulher, que cavalgava sozinha na trilha da perigosa floresta, ainda seria morta pelas mãos de bandidos. John não agiu bem. Vou substituí-lo por alguém mais jovem antes de eu partir.

— Não o mande embora.

Surpreso, William encarou a esposa. No ano anterior, quando trouxe dez guerreiros selecionados para defender Lundale, Catherine previu que os homens nada fariam a não ser consumir a colheita e espantar os aldeões. Agora ela defendia o mais idoso e o mais temperamental de todos.

William apontou o cavaleiro que se aproximava. Ele agora se apressava, esporeando o cavalo.

— Olhe para John, Catherine. É um inútil. E lembro de que você não gostava dele.

— Não o mande embora. Alflega o adora. John é o único que consegue acalmá-la quando está irritada. — Catherine afastou-se do cavalo de William e encarou o marido com desconfiança. — Quem são aqueles que bloquearam a estrada? Por que os mandou de volta à mata, se são seus guardas?

Perturbado, William endireitou-se na sela.

— São homens do rei. Passarão o inverno aqui. Você não precisa fazer nada por eles, a não ser enviar-lhes grãos. Vão caçar...

— Onde?

Na floresta, é claro. Permanecerão na casa durante o inverno e...

A expressão de espanto de Catherine gelou o sangue de William. Estaria ela ofendida ou pretendia rebelar-se contra a decisão real?

— Sim, Catherine, na casa principal. No antigo dote de sua mãe. Henrique ficará grato por dar-lhes abrigo e comida no inverno.

De soslaio, William observava o lento progresso de John. Aquele preguiçoso nunca os alcançaria para distrair as perguntas de Catherine?!

— Quantos?

Ele preferiria que a esposa elevasse o tom de voz, berrasse e revelasse o que lhe passava pela cabeça. A tranqüilidade fria de Catherine era quase insuportável.

— Quarenta — William afirmou com displicência para não levantar suspeitas. — Quarenta homens e uma mulher ou duas.

Catherine virou-se na sela para olhar a estrada, como se esperasse ver um pequeno exército de guerreiros armados até os dentes.

— William...

— Há ouro em meu alforje. O suficiente para alimentá-los por meses, se necessário.

— Ouro do rei?

— Lógico que sim.

Havia um tom de cautela na voz, algo que ele jamais percebera no comportamento da esposa. Catherine respirou, aliviada.

— Ótimo.

William notou o medo desaparecer no rosto dela, e logo entendeu o que ela pensara desde o início da conversa.

— O que imaginou, Catherine? Que eu sustentaria o exército de outrem que não do rei?

— Sou a filha de um rebelde fracassado, meu marido. Fui criada para formular todo tipo de dúvidas e questionamentos.

E porque sua mulher era a filha de um homem que morrera tentando assassinar Henrique Plantagenet, William nunca lhe revelaria o teor de sua missão naquele inverno. Não a tentaria com a verdade. Não arriscaria perder sua família e o lar que Catherine começava a reconstruir por causa dos esquemas políticos e pessoais do rei Henrique Plantagenet, o maior inimigo do povo dela.

— Se eu jurar que sou leal ao rei, esquecerá essas questões para que possamos chegar em casa?

— Não precisa jurar, meu marido. Só de saber que você se manteve a servido de Henrique durante toda sua ausência, estou certa de que é leal a Plantagenet.

William ergueu as rédeas e hesitou.

— Diga-me... meu rosto irá assustar nossa filha? Catherine sorriu.

— Não, se você aprender a pronunciar o nome dela e usá-lo com frequência.

Um grito distante ecoou pelos campos. John chegara perto o bastante para reconhecer seu senhor. William o saudou, acenando, e virou-se para Catherine.

— Diga-o de novo, por favor.

— Alflega. Ela sorrirá, se a chamar de Alflega.

 

William tomou a dianteira, guiando a montaria entre as árvores, que começavam a ressecar, anunciando a presença marcante do outono e demarcando a passagem, onde a estrada atravessava o rio.

Catherine soltou as rédeas e deixou que seu animal seguisse o cavalo de William. Não conseguia desviar a atenção do homem desconhecido que era seu marido. Até então, morara com ele por pouco mais de vinte dias no percurso do casamento. As lembranças que mantivera vivas nas duas últimas estações não se assemelhavam àquele soldado fatigado.

As diferenças atuais transmitiam mais estranhamento que as cicatrizes que ele teria para sempre. Havia algo estranho no modo como o corpo magro, mas ainda musculoso, movia-se para acompanhar o passo lento do cavalo. William segurava as rédeas com muito mais pressão do que mandavam os padrões do exército do rei. E, tal qual Catherine recordava tê-lo visto fazer, não descansava a mão na sela enquanto falava.

Um pássaro voou entre as árvores, assustando o animal de William, que pisoteou o solo enlameado e recuou para fora da trilha. Naquele instante, Catherine notou o sofrimento físico a0 marido. Com o movimento brusco do cavalo, o manto de valiam foi jogado para trás, revelando a faixa suja e esgarçada que envolvia um dos joelhos.

Ela se aproximou.

— Você está machucado.

— Sim, mas o ferimento já está sarando. — Sorriu, como se quisesse distraí-la. — Tive sorte. Meu braço está melhor que antes, e ainda posso montar.

A barra do manto permanecera sobre a anca do animal, deixando à mostra a bainha da espada. Gasto e puído, o couro não mais se parecia com o fino adereço que William portara quando conhecera Catherine, dois anos antes. A sela também estava surrada e escurecida devido ao uso excessivo.

Notando o olhar arguto da esposa, ele puxou o manto para encobrir detalhes tão reveladores.

— Não é tão ruim quanto parece, Catherine. Eu sobrevivi, tal qual minha montaria.

— Este cavalo?

Catherine observou o animal, cujo torso parecia macio e sem marcas. Aquele cavalo não participara de batalha alguma.

— Não, o tordilho. Eu o deixei em Hereford, numa abadia, onde comprei este aqui com o ouro do rei. O animal está sob os cuidados de padres generosos.

— Aconteceu em Hereford?

A oeste de Hereford. — William ergueu as rédeas e moveu o pé no estribo, como se quisesse mostrar que a perna ainda estava boa.

Lutava contra os galeses?

— Não. Cavalgava a leste de Hay. Foi um rapaz ainda jovem de surgiu dos arbustos e atacou minha perna. Eu o golpeei com a espada para afugentá-lo, e, quando o menino se foi, percebi o estrago que o safardana havia feito com um simples punhal. O marechal mandou dois homens atrás do rapazola, pensando ser um assassino que me confundira com o rei.

— E os homens o pegaram? — Catherine perguntou, aturdida.

— Não, ele escapou. Tratava-se de uma região selvagem, repleta de obstáculos naturais, onde um homem pode mover-se a pé mais rápido que um cavalo.

Cruzaram a passagem do rio e logo atingiriam o local onde John os aguardava.

— Espere — ela pediu. — Conte-me mais, William.

— Ainda está curiosa, Catherine?

Sim, sem dúvida. Queria saber por quanto tempo William viajara sentindo dores no joelho. Um ferimento profundo como aquele devia sugar-lhe as forças a cada quilômetro percorrido. E a fronteira galesa era longe de Lundale. Deviam ter sido muitos dias de viagem no lombo de seu garanhão.

— Não. Esperarei até que cheguemos em casa. William acenou para cumprimentar John, antes de dirigir-se a Catherine.

— Ainda me lembro de que você é incapaz de abster-se de formular perguntas por mais de uma hora. Portanto, fale agora, antes que não mais nos vejamos a sós.

Catherine olhou o outro lado do rio e percebeu que não haveria muitos momentos de privacidade entre ambos. Não antes do anoitecer.

— Você disse que o jovem assassino o confundiu com o rei. William, é esse o trabalho que faz para Henrique Plantagenet? Enfrenta perigos e ameaças de morte no lugar dele?

Ele baixou o rosto a fim de ocultar a preocupação. Aquela indagação o perturbou sobremaneira. Sendo assim, devia possuir um fundo de verdade.

Catherine chegou ainda mais perto do marido.

— Há os que dizem que se parece muito com o rei, e que

Henrique Plantagenet confia em você sem reservas. O soberano espera que se exponha a riscos para que ele próprio se proteja?

Quando William ergueu o queixo. O semblante tornava a revelar aquela expressão meio zombeteira que Catherine conhecera nos primeiros dias de sua união.

— Meus cabelos são semelhantes aos do rei e as pessoas podem nos confundir a uma certa distância. Mas qualquer assassino decente veria a diferença antes de atacar.

— Há, então, uma diferença explícita entre vocês dois?

— Uma muito óbvia, Catherine. — Ele agora sorria. — O rei não é tão bonito quanto eu — brincou. — Foi o que me disseram.

William tocou a cicatriz.

— Aquele arqueiro, de certa forma, trouxe-me boa sorte no último inverno. Nenhum assassino me confundirá com Henrique Plantagenet, agora que minha pele está marcada.

O sorriso continuava, como se ele estivesse falando de assuntos triviais. Contudo, a mão um tanto trêmula ainda traçava a prova de que esbarrara com a morte.

Catherine preferiu cavalgar ao lado do marido ao atravessar o rio. Queria conhecer melhor aquele homem, saber que aventuras perigosas tivera de enfrentar.

— A cicatriz vai diminuir com o tempo, mas trará má sorte para você, se continuar a zombar dela.

— Então, colocarei minha sorte sob seus cuidados, se você o quiser.

A voz soava baixa e suave, tal qual ela escutara na noite em que a filha nascera. Mesmo naquela manhã outonal, a entonação de William conjurava lembranças excitantes da noite chuvosa de primavera. Como casal, eles tiveram poucos momentos de intimidade nos primeiros meses de casamento. Catherine contara dia após dia em sua cama solitária. Sonhara acordada, imaginando outras noites de paixão a acrescentar àquelas que já tinham vivido. E não haveria muitos encontros no futuro, se perdesse William nas guerras de Henrique Plantagenet.

Ou poderia perdê-lo em breve por total negligência, já que ele não cuidava dos ferimentos.

— Não devia ter viajado com essa perna machucada...

— Não pude esperar.

— Por que não? O rei não permitiu que você repousasse alguns dias antes de invadir a casa da floresta com seus guardas? Ou uma nova guerra está para se formar?

— Catherine, não seja tola. Precisei ir para o norte e fui, porque esse é meu dever. Voltei vivo, e isso deveria bastar.

O cavalo de William, arisco e assustado, escoiceou ao ver folhas caindo da árvore mais próxima. Ele o acalmou e guiou-o para o banco do rio. O sol surgiu entre as nuvens, refletindo seus raios na água corrente.

No limite dos campos de Lundale, John acenou.

William correspondeu ao gesto.

— Vamos, esposa. Imprudente ou não, realizei a jornada segurança. Não será agora que cairei no rio para me afogar. Pretendo ficar em casa durante o inverno. Não está feliz em me ver, Catherine?

Ela tocou-lhe a mão.

— William, estou feliz, sim. Muito feliz... — Catherine desviou o olhar para piscar algumas lágrimas.

A mão de William acariciou a dela.

— Não haverá mais perguntas?

— Só uma. — Catherine enxugou o rosto. — Por que estava enfrentando assassinos galeses no mês passado? Pensei que estivesse em treinamento com o exército do rei na Normandia.

— Se perguntas fossem flechas, Catherine, eu estaria morto a esta hora. Você nunca pára de atirar?

— Tive seis meses de solidão para elaborar centenas de questões, William. Sua ausência deixou marcas em meu coração e suscitou minha curiosidade. Vai me dizer por que estava em Gales?

O sorriso desapareceu.

— É uma longa história, recente demais para ser contada. William se tornou frio. Ele fitou o rio, como se preferisse estar com qualquer um, menos com a esposa. Se não fosse a mão quente que ainda a tocava, Catherine pensaria que ele se arrependera de ter voltado. Paciente, ela forçou-se a sorrir.

— Não importa. Teremos os meses do inverno antes de você partir outra vez para as guerras do rei. Não se apresse, marido. Poderá me contar na primavera, quando os campos estiverem mais uma vez verdejantes. — Hesitou. — Graças a Deus, não voltará ao sul antes disso.

Ficarei para o inverno, se você me quiser. — E soltou a mão dela. — Não se preocupe, Catherine. Não cheguei perto da morte.

Catherine diminuiu o passo e observou o marido avançar. No dia seguinte, após cuidar dos ferimentos e dormir, usaria suas artimanhas femininas para tirar a verdade de William.

Aquela chegada seria bem melhor que a primeira, William deduziu. No ano anterior, quando ainda eram recém-casados, ele percorrera a estrada sul para atingir Lundale e fora recebido pela animação dos dez homens que recrutara a fim de formar a guarnição. Os aldeões, havia pouco saídos da floresta, largaram suas foices e outros instrumentos agrícolas para retornar à segurança da mata, devido ao medo que sentiram do novo senhor.

Durante os dez dias que se seguiram, Catherine pedira àqueles que ficaram para dizer aos companheiros que não mais existia perigo no feudo. Explicaram que o novo senhor e os dez soldados não queriam ferir os aldeões, e que uma guarnição na torre de Lundale serviria para avistar a aproximação de intrusos e proteger a aldeia. A prosperidade no vale de Lundale mais uma vez seria possível.

Mas William tivera de partir para juntar-se ao exército do rei na Normandia, deixando John e mais nove soldados de prontidão em Lundale. Foi nessa época, apesar do pouco tempo de convivência, que Catherine começou a sentir falta do marido que mal conhecia.

Ao nascer da primavera, mais aldeões saíram da floresta para consertar suas cabanas abandonadas e voltar a morar no vilarejo. Limparam o solo, que não era arado desde a época do rei Stephen, muito antes da guerra que matara o antigo lorde de Lundale e destruíra a propriedade.

E depois que a terra foi tratada e as ovelhas vieram do sul para pastar no pasto fértil, Catherine entrou em trabalho de parto. William apareceu naquela noite e desapareceu antes que 0 sol anunciasse outro dia.

Frustrada, ela teria devolvido cada aldeão à floresta, se assim pudesse manter William a seu lado e com ele ver a filha crescer. Uma mulher em trabalho de parto, segundo Hadwen lhe dissera, freqüentemente era dada a pensamentos tolos e egoístas.

William aprendera o idioma local em algum lugar no transcorrer de suas viagens. Por isso, surpreendeu Catherine ao parar nos portões da paliçada de Lundale para falar aos aldeões que ali se encontravam.

Catherine escutou as frases mal pronunciadas do marido, tão diferentes do perfeito discurso normando. Aos poucos, começou a entender o sentido do que ele tentava dizer aos aldeões.

Os mais próximos ao cavalo de William tinham dificuldade para compreender a péssima pronúncia. Outros, mais ao fundo, sussurravam e riam. Um menino gargalhou, e a mãe o repreendeu com presteza.

William fez uma pausa, como se esperasse uma resposta. Então, sorriu e repetiu as palavras em voz alta, fazendo movimentos amplos com os braços diante dos rostos atônitos daquele povo. Parecia dizer algo a respeito do rei e da próxima temporada, que traria prosperidade a Lundale.

Catherine fitou Hadwen e fez um gesto sutil e desesperado. Hadwen murmurou algo ao ouvido do ferreiro, que passou para a mulher ao lado dele. Momentos depois, todos começaram a assentir e sorrir para o senhor. William ficou radiante.

— Você viu? Dessa vez, não fugiram de pavor. Agora posso me comunicar com eles sem problemas.

— Muito bem, marido.

— Estão surpresos — John comentou. — E gostariam de ficar para ouvi-lo outra vez.

Catherine encarou John, que piscou para ela. E ambos acompanharam William depois que ele passou pelos portões. Para proteger o joelho machucado, William pousou a mão sobre a perna a fim de evitar roçá-la no poste de sustentação dos portões.

Catherine apeou e tocou a perna do marido.

— Consegue desmontar?

— Fui sincero, Catherine. Já sarou. — William desmontou com facilidade e pegou um alforje pequeno. — Há alguém para cuidar dos cavalos?

John ficou vermelho.

— Cada um cuida da própria montaria, milorde. E há um jovem que nos auxilia quando não está tão ocupado.

— Não importa. — William olhou ao redor, como se buscasse um rosto familiar. Com as palavras que praticara nos muitos dias de viagem, destacou o filho de Hadwen para cuidar de seu animal. — Neste inverno — disse a John —, você treinará dois rapazes para serem cavalariços. Com poucos homens na guarnição, precisamos de cada um deles para vigiar as estradas e praticar artilharia. Não podemos desperdiçá-los com serviços no estábulo.

— Não é culpa dele, William — Catherine disse. — Não há aldeões suficientes, mesmo agora, para arar o campo. A maioria dos homens, até os mais novos, trabalhou no verão. Eu pedi a John que mandasse os soldados tratar do estábulo.

William ficou consternado.

— Perdoe-me. Deixei-a com um bebê nos braços e sem auxílio para cuidar do feudo. Irei à floresta para procurar as pessoas que ainda temem voltar à aldeia e convencê-las de que Lundale já não mais inspira perigo e destruição.

Ali, sob os olhares curiosos dos aldeões, não era o local mais adequado para dizer a William que as tímidas almas que viviam na floresta possuíam lembranças e motivos legítimos para desconfiar dos homens de Henrique Plantagenet.

— Temos de conversar hoje à noite, meu marido. Ele olhou-a, afetuoso.

— Amanhã, você poderá tagarelar o dia inteiro e me dizer o que fazer com a terra. A noite de hoje está reservada a outros assuntos menos maçantes.

Catherine sentiu-se aquecer ao imaginar o que aconteceria entre ambos na cama. A seu redor, as vozes e o barulho do pátio pareciam insignificantes devido às imagens sensuais que surgiam em sua mente e incrementavam a necessidade física.

Devagar, William tocou-lhe o ombro e sentiu-a estremecer de desejo.

— Se estiver disposta, é óbvio.

John voltou para ver o que os atrasava.

— O bebê está aqui — disse a William.

A porta do antigo salão de Lundale, John abriu passagem entre as mulheres próximas à lareira, que conversavam sem Parar. As mais novas, que saíram da floresta na época da colheita, ficaram assustadas ao ver um rosto normando.

John praguejou em silêncio, desviando-se das toras que elas derrubaram devido ao susto súbito. Tentou repreendê-las com um gesto impaciente e chamou William.

— Venha ver a pequena Alflega. Veja o bebê mais lindo da cristandade.

William segurava a mão de Catherine, caminhando em meio à confusão.

— O velho John fala como se fosse dono daqui.

— E é, de certa forma — Catherine retrucou.

William aproximou-se da mesa e da lareira, onde se achava o berço. Ajoelhou-se, agilmente, sem a menor preocupação com o ferimento.

— Jesus...

— Seu joelho — Catherine advertiu-o.

William nem sequer a escutou. Tocou o berço e o embalou bem devagar.

— Santo Deus! Veja como nossa criança dorme...

— Acorde, menina. — John puxou o cobertor do bebê. — Seu pai voltou para casa. Não tem um sorriso para ele?

Catherine conteve-se e permitiu que John pegasse o bebê. Já havia desistido de persuadir o sargento a ocupar-se de outros deveres militares, e não de Alflega.

— Olhe para ela, milorde. Vê como a garota mexe a mãozinha? Esta criança é forte. Tinha apenas dois meses quando começou a fazer isso com o braço. E olhe esse sorriso. Sei que há um dente em algum lugar dessa boca.

Alflega riu ao som da voz de John, e respondeu com um balbucio.

— Pode segurá-la — Catherine disse a William. — Não tenha medo.

— Dê algum tempo à menina. Ela precisa conhecer o pai.

— Vai chorar se não ficar no berço.

— Ela não chorará, John. E, se isso acontecer, não tem problema- Meses já se passaram desde o dia em que William a carregou... quando Alflega nasceu.

John acatou, a contragosto.

— Não a faça chorar. Ela sabe berrar, essa pequena Alflega.

William ofereceu a mão para o bebê. Alflega agarrou-a e sorriu.

Catherine murmurou uma prece, grata por ver que a menina não acordara com fome e cumprimentara o senhor do feudo sem a gritaria que Lundale acostumara-se a escutar.

A criança inspecionava o dedo do pai com extremo cuidado.

— Veja, Catherine. Ela não tem medo de mim! — O sorriso de William se alargou. E parecia não notar que a cicatriz repuxava o lábio. Ergueu a mão e deu risada quando a filha a puxou. — Viu, Catherine? Nossa filha é um tourinho.

Hadwen apareceu ao lado dela e puxou-lhe a manga.

— Venha — a criada pediu. — Deixe-os e me acompanhe. A exploração de Alflega distraía William e John. Hadwen poderia derrubar um caldeirão que eles nem ao menos notariam. Catherine afastou-se do berço e levou Hadwen para o lado.

— O que é?

— Osbert e os outros chegaram. Estão no estábulo. Precisam falar com a senhora. — Hadwen inclinou a cabeça grisalha em direção a William e John. — Não diga nada a eles.

Naquele instante, William estendeu-lhe a mão. — Obrigado, Catherine. Ela é linda.

Catherine precisou de muita força de vontade para rejeitar o gesto gentil. Aquele cenário decorara seus sonhos durante meses a fio.

— Tenho de ir.

— Fique conosco — William pediu-lhe. — O problema não pode esperar?

— Lamento, marido. É uma pequena confusão na cozinha. Voltarei logo.

Uma breve tristeza passou pelo semblante marcado. Mas William assentiu e tornou a se concentrar no bebê.

Capítulo IV

o maior de todos, o líder deles, atravessou a paliçada, dispensou os demais e tentou falar conosco. Mas é normando e não conhece nosso dialeto. Por isso, o maior de todos que não sabe falar nos reuniu e nos levou aos fundos, longe do acampamento. Achei que o homem ia nos matar — contava, atrapalhado, um dos aldeões que Catherine enviara à casa velha.

— Isso mesmo — outro confirmava, ansioso. — Ele tinha uma espada gigantesca, senhora.

O mais jovem, Radulf, ergueu os braços para brandir um galho seco e queimado que segurava.

— Mas não soltei esta tocha. Estava acesa, e o normando nos deixou usá-la quando fomos para o lado mais escuro da moradia. Nesse momento, acreditei de verdade que o homem iria nos matar.

— E pediu para ver o trabalho que tínhamos feito e o que ainda restava a fazer.

— E não nos matou.

— Mas se tivesse tentado — disse Radulf—, eu o golpearia com este galho e nós fugiríamos pelos buracos da paliçada e atravessaríamos os recônditos da floresta para vir contar tudo à senhora, e nos preparar para a guerra.

— E os soldados do homem nos cortariam ao meio antes de conseguirmos sair da mata — Osbert, o pai de Radulf, concluiu. — Havia muitos deles. Tivemos sorte por nos permitirem partir esta manhã. Rezo para que não venham atrás de nós, senhora. E melhor irmos embora antes que eles cheguem até aqui. Vamos nos refugiar com os outros na floresta.

Radulf meneou a cabeça.

— E largar a cabana que construímos agora que o inverno se aproxima? Não, meu pai. Iremos congelar até a morte, se ficarmos na mata sem abrigo e proteção contra o frio.

O rapaz se apoiou no galho queimado, tal qual vira os soldados fazerem após o treinamento exaustivo.

Com esforço, Catherine conseguiu conter o riso diante da atitude beligerante de Radulf.

— Nada disso será necessário, eu lhes asseguro. Estarão seguros aqui. Sei quem...

— Temos de ficar e enfrentá-los, se resolverem nos atacar. Cuidaremos do maior de todos e...

— O homem nos libertou com vida, Radulf. Esqueça. Para que provocá-lo?

— Porque foi ele quem ordenou a invasão da casa da floresta. Percebeu que eu não morreria com facilidade ao ver que eu não o deixaria escapar ileso. Se tentasse algo, hoje seria uni normando cego.

Catherine esfregou a testa e tentou não imaginar o que William de Macon e seus homens teriam feito a Radulf, caso o rapaz levasse seu plano a cabo.

— Chega. Agora escutem...

— Não se aflija, milady — Radulf a tranquilizou. — Não deixaremos indefesa, apenas com aquele velhote do John e guarnição de preguiçosos para proteger as terras. Eu ficarei de vigília na floresta, e se eles aparecerem na estrada...

— Chega!

Sete rostos encararam Catherine no silêncio que se seguiu. O queixo de Radulf começou a tremer.

— O grande cavaleiro, o que tentou falar com vocês, é meu marido. Seu senhor. Ele é normando e ainda não fala o idioma regional.

— Mas acredita que sabe falar. Alguém deveria lhe dizer que...

— Silêncio. — O pai de Radulf beliscou a orelha do filho. Catherine elevou o tom para se fazer ouvir:

— Os soldados no feudo, quarenta no total, são homens do rei. E passarão o inverno aqui.

— Por quê?

— Jogue esse galho seco no chão. — Catherine esperou que Radulf se livrasse da arma de mentira. — Meu marido, o novo lorde de vocês, retornou com aqueles homens. Somos obrigados, como súditos de Henrique Plantagenet, a hospedar os quarenta soldados, e assim o faremos. O rei lhes permitiu caçar na floresta, e temos de fornecer o que vierem a precisar.

Catherine fez uma pausa e olhou para cada um dos aldeões.

— Não haverá matança de cervos do rei enquanto os soldados estiverem por aqui. Sei que vocês andam caçando na floresta, mas agora devem parar. Se tivermos sorte, eles sairão na Primavera e dirão a Henrique que os tratamos bem. E se tivermos muita sorte mesmo, lorde William será recompensado e nós prosperaremos. Pedirei a meu marido que fale com Sua Majestade para que possam caçar no próximo verão.

— E depois também? Catherine sorriu.

— Depois também. Se tudo der certo. Osbert coçou a cabeça.

— Será difícil alimentar todos eles.

— Meu marido trouxe ouro do rei para comprar o que não tivermos. Antes que a neve comece a cair, mandarei vocês e alguns rapazes da guarnição a Nottingham para buscar os suprimentos necessários. O ouro é mais que suficiente.

— Há mais de quarenta homens, milady. Muito mais. E mulheres. Ninguém contou as mulheres.

— Que bobagem é essa, menino?! — Osbert ralhou. — Não vimos nenhuma mulher.

— Eu as ouvi, pai. Um pouco antes do amanhecer, elas conversavam dentro da casa, e as escutei através das madeiras soltas.

— Você ficou espiando pelas frestas! — o pai esbravejou, nervoso. — Arriscou seu pescoço, idiota!

— Elas não valiam a pena — Radulf resmungou. — Exceto uma, que...

— Quieto! — Catherine tinha escutado o comando de William ecoando dentro do estábulo.

Osbert puxou a manga do filho.

— Se temos de ficar longe da floresta, como entregaremos a oferenda do solstício ao poço sagrado?

Ela havia esquecido o solstício.

— Verei o que podemos fazer. Eu mesma levarei a oferenda, necessário. Prometa-me, Osbert, que me deixar cuidará disso. O aldeão piscou para ela e acomodou-se sob o sol, que penetrava entre as tábuas. Catherine, então, voltou-se para William, que a esperava na porta do estábulo.

— Lembrem-se do que eu disse e não espalhem histórias sobre seu senhor — ela os advertiu e foi encontrar o marido.

William tocou-lhe o rosto e olhou para dentro.

— Eles não virão falar comigo?

— Ainda estão assustados, William.

— Como prometi, seus carpinteiros voltaram sãos e salvos. Eles entenderam que não podem entrar na floresta?

Catherine deduziu que fora essa a mensagem que William tentara passar a eles.

— Sim, entenderam.

— Sendo assim, vamos para o salão. Temos de discutir o problema dos soldados do rei com John, e ele não sai de perto do berço. É sempre assim?

— Desde o dia em que ela nasceu.

— E o que o velho faz por você? As minhas ordens foram para que a protegesse.

— E John cumpre suas ordens à risca.

A noite chegava e, para Catherine, terminava a última hora de solidão no quarto de dormir, localizado nos fundos do antigo salão de banquetes.

Houvera vinte e quatro dias e vinte e três noites de convivência antes daquela. Catherine marcara esses primeiros dias bordando a colcha de linho, guardada dentro do único baú que trouxera da abadia.

Embora estivesse casada com William por mais de um ano, ambos conseguiram apenas um mês em vida conjugal. E, se contasse as ocasiões em que se sentira de fato esposa de William, partilhando o mesmo leito e o conforto que um homem podia oferecer, o total seria de só doze dias. Estiveram juntos como homem e mulher por doze míseras noites de verão.

Catherine pegou a colcha de linho e desprendeu dela a pequena agulha, que enrolava em fios de seda. O instrumento de costura, precioso ao extremo para emprestar a Hadwen e estreito demais para bordados em algodão, era adequado ao mais fino linho. Usara aquela agulha para marcar as noites que William passara com ela.

Existiram outros pequenos tesouros que Catherine deixara para trás, naquela tarde agitada em que aceitara William como marido e casara-se à porta da abadia. Fora preciso, uma vez que começaria uma vida nova como senhora do lugar em que nascera.

Uma semana mais tarde, depois do repentino casamento e já de volta às terras que acreditara nunca mais rever, vira seu marido partir. Então, no mesmo instante, entregou-se à tarefa de arrumar e restaurar o salão de banquetes de Lundale.

No primeiro mês, Catherine persuadira alguns aldeões a voltar, e concordara em deixar os dez soldados recuperarem a velha torre ao lado do antigo salão.

Portanto, oito pontos verdes, tão pequenos quanto as flores da falsa primavera, registravam os primeiros dias do casamento com William.

Assim, após a metade do verão, ele surgira na estrada da floresta na figura de um cavaleiro solitário a galope, assustando os tímidos aldeões que tiveram coragem de retomar a vida em Lundale.

Catherine sorriu ao recordar o dia da primeira chegada de William. As quatro mulheres que teciam no salão haviam desaparecido ao cair da noite, deixando Catherine a sós com o marido, sob as vigas do teto que, séculos antes de os normandos aparecerem, abrigara os lordes de Lundale e seu povo.

William trouxera vinho em seu alforje e oferecera-lhe a bebida. Em seguida, perguntara, com aquela voz que parecia reservar apenas à esposa, se ela não desejava, agora que estava instalada, tornar-se sua mulher de verdade. E os olhos de William transmitiam sinceridade. Embora possuísse direitos de marido, não exigiu nada de sua jovem esposa.

Catherine segurara-lhe a mão e caminhara com ele até o cômodo improvisado, no qual o casamento se consumara durante quinze dias.

Tornou a dobrar o linho e guardou-o no baú. William estava em casa. Os santos foram bons para ela. O marido sobrevivera a guerras sangrentas.

— Está dormindo?

Era Hadwen quem lhe falava, atrás da grossa cortina pendurada à entrada.

Catherine puxou a cortina e olhou para além do ombro dela.

— Ele está ali — indicou Hadwen. — O que quer que façamos? —perguntou.

William dormia ao lado do berço. Os cabelos dourados cintilavam sob as luzes da lareira, e a cicatriz não mais parecia assustadora, dada a tranqüilidade do semblante adormecido.

— Posso chamar John para ajudar a carregá-lo até a cama. — Não, Hadwen. Deixe-o onde está. — Catherine levou o próprio manto brilhante para cobri-lo, pois o fogo morreria antes do amanhecer, tornando a noite fria.

Alflega dormia a sono solto, aconchegada sob as mantas de algodão. Sobre as cobertas, aos pés do bebê, jazia uma faixa verde de soldado, puída devido ao uso.

Hadwen fez menção de tirar o pano sujo.

— Ela vai assar com tantas cobertas.

— Deixe-a assim — Catherine sugeriu. — Nada acontecerá a Alflega enquanto William estiver aqui.

Catherine esperou mais alguns minutos, para o caso de ele acordar de repente. Sentia-se ávida por uma noite de carícias e afagos.

Apesar da longa ausência de William, sabia que o marido era um homem gentil. Ele a apresentara aos prazeres da carne, mostrando-lhe maravilhas. Catherine nem sequer sabia que certas partes de sua anatomia poderiam suscitar sensações tão abrasadoras.

Sim, rezaria e pediria aos santos que permitissem uma estada maior dessa vez. E, se tivesse sorte, conseguiria evitar que seu marido se fosse para outra guerra.

Suspirando, notou que William mergulhara no sono profundo da exaustão. Resignada, voltou à cama solitária.

 

Assim que os primeiros raios de sol surgiram, William acordou ao lado do berço da filha e viu a luz pálida penetrar pelas rachaduras das paredes seculares de Lundale. A seus pés, o longo buraco da lareira continuava aquecendo o salão. A fumaça das brasas passava pelos caibros enegrecidos e atingia a estreita abertura no topo do telhado.

Vários habitantes de Lundale dormiam perto do fogo, tal qual os ancestrais deles haviam feito durante séculos antes que os normandos aparecessem.

Os normandos, os homens do norte, eram também chamados de vikings no Ocidente, e tinham origem dinamarquesa, norueguesa e sueca. A expansão dos normandos se deveu sobretudo a superpopulação, ao amor à guerra e ao fabuloso prestígio militar. Porém, o gosto pela aventura, somado ao descontentamento político devido às rivalidades entre os grandes reis, estimulou os guerreiros normandos à imigração em busca de novas terras.

Além disso, a criação de uma técnica de construção naval Permitiu-lhes construir barcos com quilhas e velas, com os quais percorriam longas distâncias. Desse modo, conseguiriam estabelecer-se não só na Inglaterra, mas também na França e na Itália.

William contou um total de vinte pessoas acomodadas pelos chão. Catherine não dissera que as cabanas aglomeradas do lado de fora dos portões da paliçada tinham sido reparadas e estavam prontas para os aldeões? Existiria algum tipo de ameaça ou perigo que obrigava o povo de Catherine a dormir dentro do grande salão?

Com um braço estendido em direção ao berço, John roncou em seu catre. O idoso militar achava-se muito longe da torre para vigiar ou até mesmo escutar os sentinelas que ele jurara supervisionar. Hadwen dormia perto dele e diante da entrada do único cômodo. William sabia, sem precisar puxar a cortina, que Catherine lá se encontrava, atenta a qualquer ruído do bebê.

O bebê...

No berço, apenas silêncio.

William ergueu-se para espiar o rosto da filha e a viu adormecida como um anjo. Rosinha. Rosewitha. A menina devia ter recebido um nome melhor, um que ele pudesse pronunciar e que lhe surgisse à memória sem hesitação. Rosewitha. Rosinha.

Quando tivesse tempo para considerar a questão, Catherine concordaria que a filha era, na verdade, uma diminuta rosa, não uma criança que carregaria o fardo de um nome oriundo de um dialeto gutural. William nem sequer recordava a pronúncia. Antes de Catherine despertar, teria de pedir a John que o lembrasse da estranha palavra usada para chamar sua menininha.

Uma criança podia trocar de nome depois de batizada? Sem dúvida uma boa soma em ouro poderia persuadir um padre a isso.

O vento frio penetrou pelas fendas da parede mais próxima. Quando William puxou a coberta, reconheceu o manto macio de Catherine. O tecido ainda continha o perfume adocicado de sua esposa.

Seu desejo renasceu. Mas, por ser tarde demais e estar muito sujo para juntar-se à esposa, dobrou o manto e deixou-o de lado.

O saco que continha presentes para Catherine, frutos de barganhas, e não de saques, jazia esquecido junto com o alforje, onde repousara a cabeça muitas noites atrás.

Resolveu guardar o pacote de novo no alforje. Mais tarde haveria a oportunidade de presentear Catherine e contar-lhe como encontrara aqueles tesouros.

Ao espreguiçar-se, deu-se conta de que ficaria com Catherine e a menina nos meses frios que estavam por vir. Passaria a temporada de Natal naquele lugar decadente que sua mulher tanto amava. Sorriu. Guardaria os presentes para oferecê-los durante as festividades.

Com certa dificuldade, levantou-se e esfregou a perna machucada até a dor cessar. Em seguida, apanhou o alforje e caminhou com cuidado entre as formas adormecidas, para não despertá-las tão cedo.

No pátio central, como já amanhecesse, alguns aldeões começavam a acordar para o novo dia. William saiu, notando que a estreita porta de carvalho estava aberta.

O poço muito limpo, ao redor do qual o avô de Catherine construíra a pequena fortaleza de Lundale, ficava a poucos passos da porta. Logo à frente, um braseiro aceso cintilava sobre um leito de areia. A despeito da negligência de John, os soldados ainda cumpriam os horários que William estabelecera no ano anterior e, portanto, achavam-se de pé, cumprindo suas obrigações.

Seguindo o comando de William, os homens tiraram água do poço para encher o caldeirão e depositá-lo sobre o braseiro. Enquanto a água esquentava, ele retornou à entrada e vistoriou a velha moradia que abrigava sua esposa e filha.

Retornara em boa hora para alojar Catherine e o bebê nas dependências da torre. John deveria ter feito isso tão logo terminara a colheita. Era um bom homem, mas estava ficando velho demais para organizar a defesa da propriedade.

Mesmo naquele momento, Catherine e Rosinha deveriam . dormir no quarto mais alto da torre para ficarem protegidas de salteadores. John ocuparia um nível abaixo delas, onde ele e mais três soldados poderiam bloquear qualquer tentativa de invasão.

Como se adivinhasse o pensamento de seu senhor, John apareceu no pátio e se aproximou de William. Ele encontrou uma banheira de madeira encostada na parede e chamou dois homens para colocá-la ao lado do braseiro.

— Tragam lenha — John ordenou, inserindo a mão no caldeirão. — A água está mais fria que um sorriso de bruxa. Esse fogo não será suficiente para fervê-la. — Bufou e dirigiu-se ao barril de cerveja sobre uma mesa.

William acomodou-se perto do braseiro. John ofereceu-lhe uma caneca da bebida.

— O povo daqui pode ser esquisito, milorde, mas sabem como preparar uma boa cerveja.

— Gosto daqui — William comentou. — Já vi lugares bem piores.

John ergueu a caneca, ensaiando um brinde.

— Bem, sua boa esposa está aqui. Sua lady Catherine é uma mulher justa e tem bom senso, quando consegue pensar antes de agir.

O que o bom senso lhe teria aconselhado, caso ela houvesse tido um mês ou dois para considerar o pedido de casamento? Com sorte e sempre atento aos caprichos de Plantagenet, William esperava fazer de Lundale uma terra fértil e próspera, e nunca criar motivos para Catherine se arrepender da decisão apressada.

— Por que Catherine e a criança dormem no velho salão de banquetes, John?

— Ela jamais se acomodaria na torre, milorde. O cômodo está pronto e, com exceção dos sentinelas que fazem a vistoria, o local nunca foi usado. Milady gosta do salão, e é difícil fazê-la mudar de ideia. Em relação a qualquer coisa, posso lhe garantir.

— Catherine e a criança irão para a torre antes do Natal. — William baixou o tom de voz, cauteloso. — Há motivos para estarmos preparados, John.

— Refere-se aos homens que estão na floresta?

— Eles também fazem parte disso. Talvez eu tenha trazido sérios problemas para casa, mas não havia meios de evitar.

O sargento considerou as palavras de William por alguns instantes.

— Já sei do que se trata. Mais uma das peripécias políticas do vaidoso rei?

O caldeirão começou a ferver. William pegou um balde e se pôs a encher a banheira.

— De certa forma, sim. Foi algo que o rei fez. Um problema dos grandes.

Ele mergulhou o balde na água quente e, antes de despejar o líquido na banheira, sugeriu:

— Mais tarde, iremos cavalgar juntos e eu lhe contarei tudo. A guarnição não deve saber. Só você, eu e os homens da floresta saberão. — William parou para considerar sua decisão. — E talvez Catherine. Acho que ela deve ficar a par.

— Se tem a ver com o rei, é melhor ser muito precavido, milorde. Aquele primo de sua mulher esteve aqui duas vezes no verão, e de novo ontem. E é capaz de voltar antes que a neve comece a cair. Robert não gosta de Henrique Plantagenet. Vive relembrando a rebelião que houve aqui e como o avô morreu. Catherine o considera e escuta tudo o que o rapaz diz. Talvez até demais.

William esvaziou o balde na banheira. Seu fardo, tanto mental quanto consciente, de repente tornou-se mais pesado.

— Esse primo Robert... é algum tipo de rebelde, pronto para dar continuidade à história de rebelião da família?

— Pode ser. Ele não fala quando estou por perto, mas tem sempre muito a dizer à senhora. Catherine sabe o que o primo está pensando. Devia perguntar-lhe. — John terminou a caneca de cerveja. — Ou talvez não queira perguntar nada.

William começou a retirar a bandagem da perna.

— E o que ela diz quando você menciona o rei?

— Nada. Não me surpreende, se considerarmos o que aconteceu aqui quando era menina. Contudo, a senhora se mostra feliz na maior parte do tempo.

O coração de William quase parou.

— E o que acontece quando ela não está feliz?

— Catherine anda muito calada desde a última visita do primo. Aliás, isso acontece cada vez que ele vem a Lundale. — John despejou outro balde de água na banheira. — Se eu fosse milorde...

Anos atrás, William aprendera a ouvir John quando a entonação do idoso sargento tornava-se sombria.

— O quê?

— Se eu fosse meu senhor, vigiaria as idas e vindas do primo. Se Robert atormentar Catherine com planos de vingança contra Henrique, mande matá-lo antes que haja problemas maiores.

— Não — William respondeu de pronto. — Não faça nada sem minha autorização. Entendeu? Catherine já perdeu muitos familiares. Se o primo morrer por nossa causa, nunca haverá paz aqui.

John suspirou.

— Se o homem se tornar um aborrecimento, há meios de nos livrarmos dele sem alertarmos Catherine.

— Não. — William entrou na banheira e começou a massagear o joelho machucado. — Não faça nada com ele. Não considere essa possibilidade, a menos que eu mande executá-la.

— Não quero que um maníaco encha a cabeça de Alflega com ideias traiçoeiras, meu senhor.

— A criança só tem alguns meses de idade. Serão necessários anos para que considere uma rebelião — William comentou, rindo.

John não achou graça.

William fechou os olhos. Catherine falara a verdade quando lhe contara que o mundo de John agora se restringia ao bebê.

— John, se algo de ruim acontecer ao primo de Catherine ela lembrará que você não gosta do rapaz e, devido à desconfiança, poderá mandá-lo embora — William ameaçou, para minar qualquer ideia mirabolante do soldado.

— Milorde não permitiria, não é?

— Sabe que Catherine pode ser teimosa. Portanto, não crie problemas com o primo dela.

— Até que o senhor mude de ideia.

— Sim.

Uma hora depois, enquanto William olhava o próprio reflexo num escudo polido e fazia a barba, Catherine apareceu. Ao ver o rosto pálido da esposa, ele largou a lâmina.

— O que houve?

Ela levou a mão à testa e respirou fundo.

— Você — afirmou, ofegante.

William sentiu um aperto no coração. Por um momento, imaginou que tudo estava perdido e ela havia lido seus pensamentos em relação a Robert.

— Catherine, eu não pretendia lhe trazer preocupações...

— Como assim? — Ela o encarou, confusa. — Não o vi quando acordei e tampouco avistei seu alforje. Achei que tivesse partido outra vez.

Ele a tomou nos braços, tal qual quisera fazer nos últimos meses e durante as noites insones.

— Eu falaria com você, Catherine, se tivesse de ir. Achou mesmo que tinha partido sem comunicá-la?

Ela o fitou, um tanto entristecida.

— Foi assim da última vez. Eu acordei e você tinha ido embora. Pensei que sua imagem ao lado da cama na noite em que Alflega nasceu tivesse sido um sonho.

— Catherine, o cansaço a fez dormir o dia inteiro. Troquei poucas palavras com você naquela noite.

— Não me lembro...

William traçou o canto dos lábios carnudos.

— Eu lhe agradeci pelo bebê. — Ele recordou o dia com certa saudade. — Cheguei a Lundale ao anoitecer e a peguei em trabalho de parto. Falei com você várias vezes naquela noite. E, sempre que ouvia minha voz, me mandava para o inferno.

— Não acredito. Eu jamais...

— É verdade. — William sorriu, sem guardar mágoas ou ofensas. — Você resmungava e me acusava de ser o responsável pela dor quase insuportável que sentia.

— Não sabia que tinha verbalizado meus pensamentos. Nesse caso, tenho de lhe pedir perdão.

— Na verdade, fui eu quem pediu o perdão de Hadwen, depois que tudo terminou e você estava bem.

— Oh, sim! Hadwen me contou que a chamou de meretriz incompetente porque o bebê demorava a nascer. Ela me mostrou as moedas de prata que você lhe deu para redimir-se, assim que Alflega foi acomodada no berço.

— Sim. Hadwen tem boa alma e cobra caro o próprio perdão. Catherine tocou a cicatriz dele.

— Lembro-me de ter visto esta marca. Pressenti que alguém unha entrado no quarto e. quando ergui as pálpebras, enxerguei você com esse ferimento na face.

— Eu a assustei.

— Achei que fosse uma visão que surgira das trevas para me dizer que morrera em batalha, William. Mas, ao perceber que segurava minha mão, senti o calor de um homem vivo que sobrevivera à guerra sanguinária.

William beijou-lhe a ponta dos dedos.

— E aí, sua dor voltou e você me mandou para o inferno. Catherine fez o sinal-da-cruz e murmurou uma prece.

— Agradeço aos santos pela proteção.

— Blasfêmias não contam quando proferidas por um homem ferido ou por uma mulher em trabalho de parto.

— Veio de tão longe e ouviu apenas minhas palavras rudes...

— Ela olhou a perna de William e recuou. — E agora está machucado de novo. Eu deveria ter cuidado dessa perna ontem.

William esfregou a bandagem limpa que cobria as novas cicatrizes.

— Não dói.

Catherine avistou o alforje ao lado do barril.

— Disse que ficaria para o inverno...

— Sim, é verdade. Durante a jornada, contei os dias em que estivemos juntos. Não são muitos, Catherine. Uma semana no início e uma quinzena no último verão.

— Vinte e dois dias ao todo. Vinte e uma noites. Eu contei. Ele sorriu, feliz por Catherine também considerar a importância que havia na união de ambos.

— Se eu pudesse escolher, teria ficado com você.

— Sei disso. — Mais uma vez, ela tocou a cicatriz do rosto.

— Um dia, o rei o mandará para casa de uma vez por todas. Rezo para que seja logo, enquanto você ainda está vivo. Já adquiriu muitas cicatrizes nessas guerras.

Após dois anos de tormento, William não ousara sonhar em voltar para o lar com todos os membros intatos e ainda saudável- Parecia-lhe pedir demais após ver conhecidos e companheiros de campanha sendo mutilados e assassinados nas guerras de Henrique Plantagenet para conquistar territórios e aumentar fortunas.

Catherine sacudiu a cabeça, como se quisesse apagar algum sonho impossível.

— Temos sorte, eu acho, porque iremos passar o inverno juntos.

— Sim. É mais do que eu havia esperado.

Durante todo o verão, William pensara em Catherine ao final de cada dia, quando agradecia por ter saído ileso de uma refrega ou emboscada. Nessas horas, abençoava o entardecer, quando a escuridão encobriria os despojos e deixava-o livre para sonhar com a esposa, que começara a conhecer. Imaginava-a bem e com a criança nos braços. Tais cenas o ajudavam a superar a miséria das aldeias invadidas e o massacre dos povos.

— É menos do que pedi em minhas preces. Muito menos. As palavras de Catherine o trouxeram ao presente. Notou algo em sua expressão que não notara antes, uma espécie de tristeza doce. William tocou a pele alva.

— Milady, sou mais um estranho que um marido para você. Talvez me conheça melhor quando chegar a primavera. Espero que, com o passar dos dias, não me rejeite. — E tomou-a nos braços de novo. — Serei tão carinhoso que esquecerá como blasfemar.

— Poderia começar — Catherine brincou — decidindo se quer sua barba feita de ambos os lados do rosto. — Pegou a lâmina e sorriu. — Posso continuar?

Quando lhe ofereceram as opções de sair a cavalo ou ficar diante da lareira com o berço de Alflega a seu lado, John não titubeou.

— A senhora sua mulher lhe mostrará tudo o que ela e os habitantes fizeram na aldeia e nos campos. — O sargento olhou o céu cinzento e estremeceu. — Hadwen pode precisar de mim para cuidar de Alflega. O clima não está bom para minhas juntas.

William tocou o ombro de John.

— Nesse caso, por favor, tome conta da criança. — E saiu sob o nevoeiro matinal.

Examinou a construção de pedra. Errara ao deixar John encarregado de orientar a guarnição. Por sorte, não houvera necessidade de os soldados defenderem as fortificações sem a mão forte de um sargento para planejar estratégias.

John envelhecera no conforto das últimas estações em Lundale. Catherine e as outras mulheres foram generosas com o soldado idoso, permitindo que ele se sentasse diante da lareira com a criança que amava. O presente do rei para William, as terras de Lundale, oferecera a John um lugar para chamar de lar nos próximos invernos. E Catherine, pelo que William observara, tornara possível a John aceitar tal conforto.

William comentou o fato com ela, ao cavalgarem sob as brumas.

— John me ajuda muito, William. E é o único que sabe acalmar Alflega quando não estou por perto. E ele se reúne com os soldados uma vez por dia.

— Precisarei encontrar outra pessoa antes de partir. Quem quer que seja, terá de responder a John para manter a paz. Os dois serão necessários aqui, quando eu não estiver.

Catherine olhou-o de um jeito estranho.

— Já pensou em dizer ao rei que não quer mais combater? Ele riu.

— Ah, esse seria um dia inédito...

— Vai esperar a velhice, como John, ou até que o rei esteja velho demais para lutar?

— Henrique Plantagenet nunca será velho demais para lutar. Mas um dia, antes que fique aleijado, desistirei das batalhas dele.

Catherine apontou a perna machucada.

— Está quase aleijado, William. Pode considerar a possibilidade de ficar em casa em vez de ir para a guerra em Gales?

— É tentador imaginar a possibilidade de permanecer aqui por muitos meses. O que planeja para minha longa estada invernal? — Sorriu.

— Espere e verá. Será uma tentação, posso garantir.

— Estou ansioso para ver seus esforços.

Catherine achou graça, e seu corpo se aqueceu de desejo.

— Darei o melhor de mim.

A queimada já terminara, mas o calor da terra enegrecida pelo fogo em contato com o frio da manhã formava vapores no ar. O nevoeiro baixo o fez lembrar-se dos mares que atravessara da Normandia à Inglaterra e das ocasiões em que o rei Henrique necessitara enviar uma mensagem a Winchester.

Ao recordar essas viagens, as palavras de Catherine lhe voltaram à memória. Existia uma razão especial para Henrique Plantagenet ter escolhido como mensageiro um homem semelhante a ele para navegar sob sua bandeira e cavalgar suas melhores montarias pelas estradas inglesas?

As relações políticas, William sabia, eram temporárias e baseavam-se em contratos e no princípio de reciprocidade. O soberano devia comportar-se com justiça, e seus guerreiros lhe deviam obediência. Quem não cumprisse tais obrigações pagava caro pelo erro.

Portanto, mais uma vez, concluía que não tivera escolha. Em todo caso, ao longo do inverno, refletiria a respeito e conversaria com Catherine.

Entretanto, tinha uma tarefa muito mais assustadora em mãos, para qual não podia pedir a ajuda da esposa. Seria difícil realizá-la. Seria ainda mais complicado impedir que John se atracasse com o primo impaciente de Catherine.

— Conjecturas tristes, William?

— Não perderei meu tempo com elas.

William olhou para a frente. A densa névoa tornava-se mais branca e movia-se com a brisa. Catherine parecia flutuar nas brumas, enquanto cavalgava.

— Não é o melhor dia para vistoriar os arredores — ela comentou.

— Posso ver onde você mandou limpar a terra. O campo está maior, agora. Como conseguiu, tendo tão poucos homens para trabalhar?

— Muitos saíram da floresta no verão e voltaram para lá ao final da colheita.

De onde se achava, William podia enxergar a mata, que rodeava Lundale por todos os lados, exceto o lado sul. Lá, o rio fazia uma curva abaixo da elevação que demarcava o fim da propriedade e o começo das terras que Catherine perdera.

William não via nenhum sinal de passagem, nenhuma trilha entre as árvores, salvo onde a estrada passava e continuava para o norte, atravessando a vegetação.

— Em que parte da floresta mora seu povo, quando eles fogem de Lundale?

— Eles não fazem isso, William. Não são fugitivos. Nós... meu pai nunca os proibiu de passar o inverno onde desejassem. Alguns se sentem seguros na floresta, longe dos salteadores.

— Fitou-o, cautelosa. — Os soldados que estão na velha casa deveriam saber que o povo da mata não é um bando de ladrões.

O coração de William disparou.

— Há pessoas vivendo perto da casa?

— Eles fazem suas cabanas onde querem. Não os vigio ou espiono. Muitos tornarão a morar na aldeia se acreditarem que Henrique não virá lutar aqui. Os mais velhos lembram-se de quantos morreram no dia em que Sua Majestade veio guerrear com meu avô.

— Então, não gostarão de ver quarenta homens armados morando na casa da floresta.

Com um pequeno comando, Catherine virou a égua para encarar William.

— Por favor, mande os homens do rei para outro lugar. A uma cidade. Nottingham sempre necessita de soldados em dias de feira, e a abadia não consegue espantar os ladrões de estrada. Mande-os a um lugar em que não possam assustar meus aldeões. Eu lhe imploro, William.

— Não posso. O rei os quer aqui.

— Porque ele não sabe o estorvo que representam para nós. O que farão naquela extremidade da mata? Por que Henrique °s quer em Lundale durante toda a estação?

— Catherine, há motivos. Não se trata de um capricho do soberano.

— E quais são?

— Você saberá, mais tarde. Na primavera. Antes que eu leve os homens a Shrewsbury, onde nos juntaremos ao exército real que irá a Gales.

Houve um longo silêncio.

— Você não confia em mim, William.

— Se tudo correr bem, o rei lhe devolverá as terras que pertenciam ao dote de sua mãe, ou seja, a casa da floresta de que você tanto gosta.

Ela não desistiria com facilidade.

— Diga-me por que eles têm de ficar aqui. Conte-me os motivos, se confia em mim.

Caso William houvesse desejado uma esposa dócil e submissa, não teria se casado com aquela mente teimosa e sagaz. Catherine tinha razão ao pressioná-lo. Henrique Plantagenet deveria ter devolvido a Catherine as terras do dote dois anos atrás, quando ela desposara um homem em quem o rei depositava total confiança.

Como William esperava que Catherine aceitasse quarenta homens perigosos morando do outro lado do rio? E de que modo ela iria pedir ao povo que ficasse longe dali, se não podia explicar o porquê?

William respirou fundo.

— Catherine, tem de jurar que nunca mencionará nada a sua gente. Nem mesmo a Hadwen ou às pessoas que vivem perto da casa velha. Do contrário, não lhe revelarei nada.

Ela endireitou-se na sela.

— Juro que nunca falarei, nem mesmo a Hadwen. Ou a John.

William não teve coragem de contar-lhe que John já sabia de tudo. E também que ele ouvira certas coisas... das quais Catherine jamais deveria ficar a par.

Um som distante e um arrepio na nuca fizeram com que William segurasse o punho da espada. Do outro lado do campo, um cavaleiro se aproximava em alta velocidade.

— Fique atrás de mim, Catherine, para que eu possa protegê-la. — E puxou a espada, examinando a figura veloz, ponderando o grau de perigo que podia representar.

Um brilho prateado cintilou na mão do cavaleiro. Ele empunhava uma espada e preparava-se para atacar. Mortal ou não, aquela criatura trazia consigo intenções maquiavélicas.

— Fuja, Catherine! Vá embora! — William avançou para enfrentar o cavaleiro em disparada.

Homem ou fantasma, o intruso não encostaria um dedo sequer em Catherine.

 

Catherine virou-se e avistou um cavaleiro solitário, galopando em meio à neblina sobre o solo queimado. No mesmo instante, viu que William empunhava a espada.

O desconhecido avançava rápido, tendo o torso inclinado sobre o pescoço do cavalo preto. O homem nem sequer escutou o grito de William. Apesar do denso nevoeiro, ela divisou o brilho prateado de uma lâmina acima da cabeça do atacante. Atrás de Catherine, do alto da paliçada de Lundale, um dos sentinelas soou o alarme.

— Fuja, Catherine! — William gritou, temendo pela vida frágil da esposa. — Vá para os portões e mande fechá-los.

— Venha comigo, William. Você está ferido. Não pode lutar... O cavaleiro ergueu-se na sela e emitiu um berro gutural, como se alguma selvageria bárbara se apossasse dele. Catherine lembrou-se das histórias violentas que ouvira na infância acerca das invasões germânicas na Inglaterra.

Porém, aquele que se aproximava a galope não lhe pareceu um bárbaro.

— William, deve ser...

— Não há tempo, Catherine. Saia daqui, droga!

O homem tornou a gritar quando a distância se tornou menor.

Era Robert. Catherine pôde avistá-lo. O primo temperamental galopava depressa demais pelas brumas. E, ao ver a arma de William, empunhou a própria espada, esperando pelo pior.

William avançou, bloqueando a visão de Catherine.

— Pare, William! É Robert! Não!

Com uma força monumental, William puxou as rédeas do cavalo para detê-lo.

— Quem?

Catherine esporeou a égua e passou pelo marido a fim de impedir o ataque de Robert, que ainda avançava.

— Idiota! — ela berrava. — Volte!

A montaria de Robert desviou-se de Catherine, fazendo uma curva à frente dela. Blasfêmias e o som de patas de cavalo informavam a Catherine que William mais uma vez preparava-se para o ataque.

Palavras não deteriam nenhum dos dois.

Mais uma vez, Robert se precipitava na direção da prima com o olhar mordaz fixo em William. No instante em que passou por ela, Catherine segurou a barra do manto de Robert e o derrubou da sela com um puxão.

O cavalo de Robert prosseguiu, passando sozinho por William e dirigindo-se aos portões de Lundale.

Uma dor aguda percorreu o braço de Catherine. Ela pegou as rédeas, mas não conseguia mantê-las. Olhou para baixo e viu que o dedo mínimo não estava onde deveria estar. Intrigada, desejou que ele voltasse ao lugar devido.

Nada aconteceu.

— William!

O marido, muito próximo, vigiava Robert, que se achava deitado na terra enlameada. A ponta da espada de William roçava o pescoço do primo dela.

A longa lâmina estremeceu quando William notou a palidez repentina de Catherine.

Era importante, ela pensou, explicar tudo antes que a escuridão a invadisse.

— Ele é meu primo. — Catherine divisou a espada brilhar sob as brumas, um segundo antes de William gritar seu nome.

Os portões de Lundale, imperiosos e fortes, surgiram no campo de visão de Catherine, que aos poucos sentiu que voltava a si e recordava o que ocorrera. Ela virou o rosto e apoiou a cabeça sobre o ombro de William.

— Meu primo Robert — murmurou. Era importante pronunciar bem as palavras.

— Eu sei — William disse. — É seu primo Robert. Não se mexa agora. Vou desmontar.

Catherine ergueu a cabeça e viu Radulf e Osbert atravessando o pátio com uma serra gigantesca. William ditou ordens quando os dois se aproximaram.

— Eles não podem entendê-lo, William.

— Quieta. Feche os olhos.

— Não... não entendem o que diz, William. Fale comigo e eu traduzirei.

William resmungou mais ordens e então suspirou, resignado.

— Diga-lhes para trazer o banco e ficarem preparados para pegá-la, se você cair.

O pátio pareceu girar quando Catherine divisou os cabelos ruivos de Radulf. Ela não conseguia organizar as palavras, sua língua parecia não querer obedecê-la.

— Diga ao senhor para soltá-la, e nós a tiraremos do cavalo com segurança — sugeriu o rapaz.

Hadwen surgiu ao lado de Radulf. Catherine respirou, aliviada. Hadwen sabia falar o idioma normando.

— Lorde William, sua perna está machucada. Solte minha senhora e esses dois a segurarão.

— Ela quebrou o dedo, Hadwen.

— Bem, isso não a torna mais pesada ou mais leve. Desista dessa ideia de banco e deixe-os cuidar de milady.

Catherine viu o chão se aproximar, mas ainda sentia os braços de William em sua cintura. De repente, o jovem Radulf apareceu e carregou-a. O braço esquerdo de Catherine, o do dedo quebrado, permanecia sob os cuidados de William.

Hadwen deu um passo à frente para ampará-la e, no instante seguinte, William já se achava do outro lado.

— Posso andar — Catherine avisou.

— Claro. — Mesmo assim, William a carregou. Havia algo errado.

William parou quando percebeu o semblante preocupado de Catherine.

— Está sentindo dor?

Ela olhou os arredores. Poucas pessoas estavam no pátio, observando a cena ou ocupadas com as próprias atividades.

— Onde está Robert?

— A caminho — E William a levou em direção ao grande salão.

— Como? O cavalo dele fugiu.

Passaram por John, que cochilava ao lado do berço da pequena Alflega.

— Deixe-os dormir, Catherine. O bebê adora brincar com dedos. — Ele tentava distraí-la.

— Onde está Robert? Alguém tem de ajudá-lo. Os soldados podiam ir...

— Ele vem a pé.

William levou-a ao quarto e deitou-a na cama. Hadwen apareceu em seguida.

— Meu primo está ferido?

William e Hadwen pareciam ter assuntos mais importantes a discutir e, por isso, não responderam à pergunta de Catherine. Enfim, William se aproximou, parecendo agora concentrado na esposa.

— Meu primo Robert machucou-se ao cair, William?

— Não.

Catherine sentiu a mão de Hadwen tocar-lhe o braço.

— Olhe para mim, querida. Seu primo está vindo a pé. Deve chegar antes do anoitecer, dada a velocidade com que se move.

— William! Tem de mandar alguém...

Com um gesto ligeiro e preciso, Hadwen colocou o dedo errante no lugar. Catherine gritou e, segundos depois, Hadwen enfaixava os dedos sobre um pedaço de madeira estreito. A dor era intensa, mas a tontura havia desaparecido.

— Descanse — Hadwen pediu-lhe.

— Não enquanto não mandarem alguém buscar Robert. Ele caiu.

— Não se preocupe, Catherine. Eu mesmo vou buscá-lo. Agora, durma.

— Não, William. Qualquer um pode ir buscá-lo, menos você. Ele esperou até que Catherine se acomodasse entre os travesseiros e a cobriu.

—- Irei buscá-lo e o tratarei com toda a gentileza que seu primo merece.

Catherine gemeu. William beijou-lhe a testa e abaixou-se para sussurrar algo em seu ouvido.

— Vou tratá-lo bem porque é seu primo. Robert terá uma segunda chance.

Depois que William se foi, Catherine virou-se para Hadwen.

— Siga-o e não o deixe matar Robert.

— Vou pedir isso a um daqueles soldados inúteis, milady.

— Não. Só você conseguirá impedi-lo de acabar com meu primo.

— Talvez.

— Não deixe que ele e Robert lutem, se houver uma briga. E preste atenção a tudo o que disserem. Cada palavra.

— Certo, senhora. — E Hadwen saiu do quarto quando Catherine fechou os olhos.

— Não se preocupe com o bebê. John nunca sai de perto dela até a hora de dormir. E milorde tem razão, Alflega gosta de brincar com dedos — Hadwen dizia.

— Sendo assim, sente-se e conte-me o que aconteceu lá fora.

Hadwen soltou um suspiro exasperado.

— Fiz o que me pediu. Calcei minhas botas para caminhar pelas cinzas úmidas e as arruinei. Seu cavalo voltou sozinho, e lorde William estava na metade do caminho quando saí. Vi Robert vindo para cá, segurando duas espadas.

— Oh, não!

— Sim, a dele e a de lorde William. Aí, seu marido aproximou-se de seu primo, pegou uma das espadas e começou a caminhar ao lado de Robert. Eu estava longe demais para escutar o que diziam, mas o jovem Robert não parecia bravo, e suas costas estavam cobertas de lama. — Hadwen fez uma pausa. — Acho que lorde William não viu razão para tirar vantagem da pobre condição de Robert.

— Graças aos santos!

— Bem, os santos estarão ocupados com lorde William esta noite, porque Robert banhou-se, pegou algumas roupas emprestadas de John e está mais que recuperado da queda.

— Jesus... — Catherine fitou a porta. A cortina cobria a entrada. — Já é muito tarde?

— Está quase anoitecendo. Mandei preparar sopa para a senhora e carneiro assado. Robert ainda não jantou.

— Pode me ajudar? Acho melhor comparecer à ceia antes que os dois se sentem juntos.

— Sim. Se os santos não tiverem tempo para vigiá-los, milady o fará.

Catherine levantou-se da cama e se apoiou no batente para que Hadwen calçasse seus sapatos.

— Sua saia não sujou de lama — a criada comentou. — Milorde a amparou antes que caísse da sela.

Um sorriso surgiu nos lábios de Hadwen.

— E esta é sua melhor saia, não? Por isso, não precisa trocar-se. — Hadwen abriu o baú de roupas e pegou um lenço de linho para enfeitar os cabelos de Catherine. — Agora está pronta para se apresentar a seu marido.

Alflega foi a primeira a vê-la emergir do cômodo. Ao som da risada da filha, Catherine esticou o braço bom em direção a John.

De mãos abanando, John deu de ombros e apontou a longa mesa.

Em pé sobre os joelhos do pai, Alflega pulava sem parar. Do outro lado da mesa, Robert sentava-se diante de uma bandeja repleta de fatias de carneiro assado e de uma caneca de cerveja. Sobre a superfície da mesa, Catherine notou vários pedaços de pão, todos arruinados para divertir Alflega. Ocupou seu lugar junto de William e sorriu para Robert.

— Lembro-me de que você fazia a mesma brincadeira para mim quando éramos crianças. — Catherine jogou uma bola de miolo de pão no primo.

Alflega gargalhou, feliz, e sacudiu as mãozinhas, pedindo mais.

Hadwen colocou fatias diante de Catherine e trouxe-lhe um prato de carneiro assado.

— Seja bem-vinda - William cumprimentou-a, e persuadiu Alflega a não se jogar no colo da mãe, oferecendo o próprio pão à criança.

Catherine examinou os semblantes dos homens. Do primo, que conhecia desde a infância, e do marido, que começava a conhecer. Não havia sinais de animosidade entre eles, mas tampouco a atmosfera era amistosa.

Robert ergueu sua caneca, sorrindo, como se lesse os pensamentos da prima.

— Desculpe-me, Catherine. Lamento por tê-la machucado. Um resmungo foi a única manifestação de William ao escutar as palavras inadequadas de Robert.

— Sou a única responsável, primo. Estou certa de que, se eu não tivesse interferido, vocês dois teriam tido o bom senso de não se matar.

— Qual de nós era o idiota?

— Por que pergunta, Robert? — Catherine fitou-o com certa firmeza a fim de alertá-lo quanto a brincadeiras perigosas.

William continuou entretido com Alflega e ignorou a indagação irônica.

— Quando se postou entre nós, você chamou alguém de idiota, Catherine.

— Não lembro. Tudo que recordo é que não foi difícil derrubá-lo da sela. Lutar em batalhas deve ser fácil, apesar de os homens não admitirem.

William tomou a mão direita da esposa e levou-a aos lábios.

— Não tente esse golpe outra vez. Eu odiaria vê-la quebrar outro dedo.

Alflega viu a mão da mãe nos lábios de William e ofereceu a dela. O pai mostrou-lhe a mesma cortesia e ganhou um sorriso encantador do bebê.

— De acordo — disse Robert. — Jure que nunca mais irá se arriscar.

— Só se jurarem que haverá paz entre vocês dois.

Após um momento de ponderação, ambos concordaram de má vontade.

Catherine preencheu os minutos seguintes com assuntos triviais e ficou grata pelo discurso desconexo de Alflega. Já era um começo ver William e Robert bebendo juntos à mesma mesa. Com sorte, manteriam a paz que prometeram.

À cabeceira, John largou sua caneca e aproximou-se.

— O que o traz de volta, Robert? Achei que estivesse a caminho de Winchester.

Em meio à confusão da chegada de Robert, não ocorrera a Catherine perguntar-lhe a que se devia a súbita visita. Ela notou o rubor nas faces do primo.

Robert encarou William.

— Não pretendo romper a paz entre nós mencionando o fato, mas Catherine deve saber que estão falando de você no mercado de Nottingham, William de Macon. Dizem que trouxe um pequeno exército do norte.

— Entendo.

Robert tomou um gole de cerveja e prosseguiu:

— Percorri os arredores esta tarde, e não vi mais soldados do que o normal. Se os boatos são verdadeiros, os homens não foram trazidos para aumentar a guarnição de Lundale. Sendo assim, deve haver um acampamento não muito longe de Nottingham.

— Por que voltou para cá?

Robert colocou a caneca no tampo, usando mais força que o necessário.

— Para avisar Catherine, é lógico. Nossa família não sobreviveria a uma rebelião ou ao menor sinal de traição.

— Eu já sabia, primo. Quando chegou, William me informou acerca dos soldados. Eles passarão o inverno na velha casa da floresta, segundo as ordens do rei. Robert, não há nada de errado aqui.

As mãos de William permaneciam imóveis na cintura de Alflega.

— Pelo bem desta família, sugiro que não falemos de rebeliões. Não há rebeldes. Não existe nenhuma traição. Se escutou tais boatos, Robert, esqueça-os. Eles surgem na boca dos tolos. O olhar de Robert não se desviava de William.

— Compreendo. Se eu ouvir mais rumores, voltarei para lhe contar.

— Sempre será bem-vindo. Robert se voltou para Catherine.

— Embora tenha quebrado seu dedo, mesmo assim irá me receber?

— É claro.

William chamou John para entregar-lhe a criança. Em seguida, encarou Robert e ergueu a caneca para tomar um gole da saborosa cerveja.

— Por que tem de partir? Algo o aguarda em Winchester? Os olhos de Robert se estreitaram.

— Não. Pensei em oferecer meus préstimos ao rei Henrique. Nossa família, Catherine e eu, há muito encontra-se longe das graças do soberano.

Calado, William bebeu o resto da cerveja.

— Henrique saiu de Winchester no mês passado, Robert. Talvez passe as festividades natalinas em Marlborough, segundo dizem. Ou poderá ficar na fronteira, negociando com aliados. Sua Majestade muda seus planos a cada momento. Aqueles que desejam encontrá-lo, mesmo os mais próximos, têm de cruzar a Inglaterra duas ou três vezes para tentar alcançá-lo.

Robert pegou a jarra e encheu a caneca de William.

— Você deve saber onde achá-lo. Afinal, o rei lhe entregou quarenta de seus melhores homens.

— É o que estão dizendo?

Robert assentiu.

— Disseram quarenta. São muito perigosos devido à aparência que possuem. E com eles veio uma bagagem de onze carroças. E algumas mulheres.

— Se ficar até o fim do inverno, poderá me acompanhar à invasão a Gales, quando a primavera tiver início — ofereceu William. — Mas sob uma condição.

— Qual?

— Permaneça em Lundale durante o inverno todo para proteger Catherine e esqueça os homens do rei. Não se aproxime deles. Se o fizer, podem confundi-lo com um espião.

Robert inclinou-se para encarar Catherine.

— Não vai dizer a seu marido que, como seu primo, tenho o direito de ir aonde quero nestas terras?

Catherine viu a tão recente paz fenecer diante como fumaça.

— As terras da floresta, o dote de minha mãe, pertencem ao rei agora. Foram tiradas de mim quando nosso avô se rebelou. Você não tem o direito, assim como eu, de ir à floresta.

William interveio:

— Com ou sem direitos, prometo-lhe que, se permanecer longe desses soldados durante o inverno, haverá uma boa chance de o rei ficar satisfeito e de, um dia, devolver-lhe sua propriedade. Se houver problemas, Henrique Plantagenet tomará providências drásticas. Sua Majestade está em conflito com os bispos. E tem a invasão de Gales para planejar. Rezem para que ele não doe as terras de vocês a alguma ordem de monges e orem por Henrique nos próximos anos.

William concentrou-se na esposa.

— Você não comeu nada. Fique tranqüila e alimente-se um Pouco. Seu primo e eu agora falaremos de assuntos inofensivos.

Momentos depois, quando Catherine desistiu de mostrar interesse na carne fria, William levantou-se e segurou-lhe a mão enfaixada. Juntos, foram para o quarto, nos fundos do salão. Alflega já dormia nos braços de Hadwen. E Robert observou cada passo do casal até que a cortina foi fechada.

 

Hadwen havia arrumado a cama com o delicado linho feito pelos tecelões da abadia e os cobrira com colchas de algodão.

Sob as cobertas, havia pedras de rio aquecidas na lareira e levadas ao quarto uma hora antes de Catherine e William se recolherem.

— Deixe as pedras — William pediu, ao vê-la fazer menção de tirá-las. — Você terá frio durante a noite.

O coração de Catherine deu um salto.

— Não vai dormir aqui comigo?

A mão enfaixada ainda estava sob a proteção dele. William ergueu a manga da túnica e acariciou-lhe a pele do braço.

— Estarei aqui para aquecê-la, mas as pedras quentes irão ajudar. Ossos quebrados esfriam o corpo.

Catherine notara imperfeições na linha do braço que segurava a espada e vira que a luva de batalha de William fora confeccionada para uma mão não tão perfeita.

— Você deve saber.

— Sim, quebrei os ossos diversas vezes e em vários lugares.

— Aproximou a mão da chama da vela, examinando-a. — John consertou-a para mim. Duas vezes. Ele tem talento para isso.

— Não quero sentir a dor de um osso quebrado outra vez. William guiou-a até o leito.

— Não pense nisso, e nada vai lhe acontecer.

— Essa receita funciona?

Ele esperou que Catherine se sentasse e virou-se para vasculhar seu alforje.

— Para você, pode funcionar. Para mim, ossos quebrados fazem parte do ofício. — Aproximou-se com o cantil de couro.

— Lembro-me disso. É vinho. Tomei na primeira noite em que ficamos juntos.

William tirou a tampa de madeira e ofereceu-lhe a bebida.

— Irá dormir melhor. Catherine tomou um gole.

— Também me lembro de que dormi como um anjo naquela noite.

— Jamais esquecerei os momentos mágicos que vivemos juntos, Catherine.

— Antes daquela ocasião, durante os primeiros oito dias de nosso casamento, cheguei a crer que você não me queria. Afinal, nem sequer me tocava.

William sorriu.

— Então, sei disfarçar muito bem. Você me perdoaria, caso a tivesse possuído poucas horas depois de um casamento tão veloz?

— Não na primeira noite. Mas oito dias depois, quando partiu com apenas um beijo de adeus, achei que quisesse me devolver à abadessa.

— Depois de você ter resgatado os aldeões na floresta e tirado aranhas e ratos do grande salão? Jamais a devolveria. Seria um ingrato idiota, caso o fizesse.

— Deve ter me achado feia após tantos dias lutando contra teias de aranha. Meu rosto estava cansado e sujo.

William chegou mais perto e a beijou. O toque foi tão gentil e repleto de afeto que Catherine sentiu-se levitar. Mais uma vez, as lembranças das noites de amor emergiram. Contudo, William deu um passo atrás, deixando-a ávida de desejo.

— Vou ajudá-la com a saia — ele se ofereceu. Frustrada, Catherine fez menção de desfazer os laços com a mão boa.

— Deixe-me fazer isso, — William soltou cada uma das tiras da túnica e se pôs a desatar os nós que prendiam as mangas ao traje. Traçou a costura acima do pulso enfaixado. — Com este vou precisar de uma faca. — E pegou a vela para trabalhar nas pregas da roupa.

William não tirou a combinação de Catherine. Em vez disso, puxou um dos travesseiros e acomodou a mão machucada sobre ele. E empurrou as pedras para os pés da cama.

— Agora, durma.

— Deixe a vela acesa.

— Como quiser. — Ele se levantou e despiu a túnica. Sob a luminosidade da chama, Catherine pôde perceber que não havia novas cicatrizes nos músculos do tórax.

Sem tirar a calça, William deitou-se e cobriu a ambos.

De repente, a mão machucada de Catherine começou a latejar.

— Já estou lamentando meu voto — William comentou.

— Que voto?

Com cuidado, ele tocou-lhe a face.

— Não o de casamento, mas o juramento de manter a paz com seu primo grosseiro. Se Robert não tivesse voltado, sua mão não estaria quebrada, e nós ficaríamos juntos agora. A noite inteira, na verdade.

Catherine sentiu o sangue ferver nas veias e enrubesceu.

— Não sou mais o que eu era. Ela o ouviu bufar.

— É verdade. Com a mão quebrada e amarrada a um torniquete, está impossibilitada.

— Não é só isso. Depois do parto... William sentou-se.

— Está doente? Sofreu complicações sérias?

— Não. Meu leite secou quando as febres vieram, no verão passado...

— Então, esteve doente.

— Não mais que os outros. Hadwen achou a mulher de um aldeão que não contraíra a febre e a trouxe para amamentar Alflega. É uma das que estava tecendo no salão. É limpa e tinha muito leite para...

— Ótimo! — interrompeu-a, impaciente. — Agora, me diga o que há de errado com você.

— Meu corpo está feio, deformado.

Ele cerrou as pálpebras e se jogou no colchão.

— Por um momento, conseguiu me assustar. — William tocou a bandagem. — Fora esse incidente, seu corpo deve estar como era. Você parece a mesma mulher com que me casei. Não vejo nenhuma deformidade, Catherine.

— Minha barriga está coberta de cicatrizes avermelhadas. Está pior que seu peito, William.

— Nesse caso, deve estar horrenda.

— Não tem graça nenhuma!

Ele parou de rir e acariciou o rosto de Catherine mais uma vez.

— Eu te quero, Catherine. Na Normandia, pensava em você todas as noites e a imaginava em meus braços, suspirando de paixão. Se não fosse aquele seu primo...

— Não foi culpa de Robert.

— Eu não devia ter empunhado minha espada. Mas, se não o tivesse feito e ele fosse o primeiro de um bando de salteadores, a situação ficaria ruim para nós dois. — Tomou a se deitar e cruzou as pernas. — Ambos fomos idiotas. Como você bem disse.

— E fui tola ao me colocar entre os dois. Mas se você o machucasse ou se Robert o atacasse, eu...

— Está chorando? Querida, não chore ou darei em seu primo a surra que ele merece.

O choro se transformou em risadas.

— O vinho é mais forte do que imaginei. — Ele sorriu, matreiro.

— William, se me deseja hoje, deve haver uma maneira de nós dois...

— Não. Mas será em breve.

— Talvez você queira outro bebê. Um menino.

— Quem sabe?

Ela hesitou.

— Eu quero muitos filhos.

— Não disse que não conseguiria suportar a dor de um segundo osso quebrado, Catherine? Está mesmo ávida para dar à luz outra vez?

— Não me lembro da dor do parto. Juro.

— Mas eu recordo suas blasfêmias. — Riu, afetuoso. — Catherine, temos o inverno inteiro para fazer um filho. Vamos esperar.

— Até que minha mão esteja boa de novo? — Catherine torceu o nariz. — Pode levar anos...

— Veremos o que fazer, quando puder movê-la sem desmaiar. Já seria um começo.

— Nesse caso, passaremos nossas noites conversando. Pois bem, fale-me dos soldados na casa da floresta.

— Sabe o momento exato para realizar um ataque, não é? Quando o oponente está distraído, faz seu avanço. Vou levá-la comigo quando for à guerra.

— E você sabe como desviar a atenção do oponente. Irá responder à pergunta, William? Fale-me deles. Por que estão vivendo na floresta e vigiando as estradas?

— Eles não estão aqui porque a situação tornou-se perigosa e estamos sendo ameaçados. Não tive alternativa, Catherine, quando o rei pediu que os trouxesse para o norte.

— Estavam lutando nas fronteiras? Guerreando contra os galeses?

— Alguns, sim.

A naturalidade de William havia desaparecido. E o afeto também.

— Aconteceu alguma coisa, não é? Algo ocorreu nas fronteiras e você teve de tirá-los de lá.

— Sim, algo aconteceu. Mas eu não estava presente e sei muito pouco a respeito. E o pouco que sei jurei manter em segredo. Pelo bem de seu povo e de Alflega, não pergunte mais nada. Mantenha seu primo longe da mata e peça-lhe para parar de espalhar rumores.

Catherine considerou o que o marido dissera. Nunca, nem mesmo no início do casamento, ele lhe parecera tão distante, quase um estranho.

O silêncio cresceu.

— Obrigada por oferecer guarida para Robert neste inverno.

— Fiz isso por você, mas há também outra razão. Robert suspeita de mim e, se ele voltasse a Nottingham, poderia instigar mais boatos. Eu o quero aqui até a primavera. É melhor mantê-lo sob minhas vistas para evitar que se meta em encrencas.

— O que teria feito se ele não aceitasse seu convite? William bocejou, exausto.

— Eu destacaria um dos soldados para segui-lo até os limites da floresta...

— Não. Você não teria coragem de...

— ...a fim de impedir que ele chegasse a Nottingham...

— Não acredito que...

— ...para espalhar a história de que dei a casa da floresta a um bando de escoceses e espiões do exército invasor. Assim, Robert seria trazido para cá no dia seguinte e exigiria ver você. E eu teria apenas de fechar os portões para que não escapulisse outra vez.

Pela voz sonolenta de William era impossível determinar se ele brincava ou não.

— Consegue imaginar isso?

É melhor que um derramamento de sangue. — Bocejando, ele puxou as cobertas.

— Robert pode ser leal.

Somente um resmungo de William ecoou pelo aposento. Alguns minutos se passaram e, através da respiração branda e ritmada, ela percebeu que o marido, enfim, pegara no sono. Exalando um suspiro, Catherine relaxou e adormeceu.

 

Não era a atitude mais honesta a tomar, dadas as circunstâncias. Mas tampouco seria considerada desleal. E, em nome dos cultos sagrados do passado, aquele pequeno gesto não podia ser negligenciado.

O povo de Lundale acreditava que a natureza estava povoada de espíritos maus, que preparavam armadilhas para os homens. Por esse motivo, segundo a tradição, todos os anos, na noite mais longa do inverno, a dama santa, que vigiava a floresta e os protegia das maldades desde que os primeiros vestígios da natureza apareceram no mundo, ficava à espera de oferendas.

Em tempos idos, antes de as tantas espadas de Henrique Plantagenet derrubarem Lundale, muitas pessoas iam a caminho do poço sagrado para oferecer presentes à dama.

Por esse motivo tão especial e sagrado, Osbert esculpira uma pequena maçã num pedaço de carvalho, tal qual o pai lhe ensinara e como, um dia, ele ensinaria ao filho, Radulf.

Porém, com certa dificuldade, Catherine conseguira convencer Osbert e os outros anciãos de que, numa época como aquela, com a aldeia em reconstrução e estranhos armados na casa da floresta, só uma pessoa deveria atravessar o rio, entrar na mata e ir ao poço para entregar o presente à dama protetora. Dessa forma, nenhum dos aldeões correria o risco de ser surpreendido e preso pelos soldados do rei que haviam se apossado das estradas.

Não se tratava apenas de sorte o fato de a temperatura daquele dia em especial estar agradável, dissera Osbert. Era também uma graça abençoada da santa do poço sagrado. Não havia neve para demarcar os passos de Catherine. E William, que a impediria de ir, já saíra para vistoriar seus homens, como fazia a cada dois dias desde que chegara a Lundale.

Radulf contestara os planos de Catherine e dissera ser covardia dos mais velhos permitir que sua lady fosse sozinha à floresta, arriscando-se assim a desagradar lorde William. E como saber se a dama do poço sagrado ficaria satisfeita ao descobrir que o peregrino solitário daquele ano carregava sua oferenda com a mão machucada?

Na véspera, quando o tema viera à tona, Catherine colocara um fim na discussão ao prometer que carregaria a escultura com a mão boa e nunca a tocaria com a outra. E ainda tivera de agüentar a indignação de Radulf, porque ameaçou contar a lorde William, caso ninguém se habilitasse a acompanhá-la.

— O que acha que a dama do poço irá achar se lorde William nos encontrar e ralhar conosco em frente às águas sagradas? — Ela fizera uma pausa para deixar que o teimoso Osbert assimilasse o argumento, e então dissera ao povo de Lundale ser a única capaz de aplacar a ira de lorde William, caso fosse pega em flagrante.

Ao pronunciar as últimas palavras, Catherine cruzara os dedos às costas. A pequena mentira fora necessária.

Sendo assim, cruzou a aldeia e caminhou em direção à extremidade do campo queimado, com a maçã esculpida amarrada na cintura. Parou um segundo para acenar para Osbert, que a observava na porta da choupana.

Embora Osbert não pudesse mais avistá-la depois que atingiu o topo do morro acima do rio, Catherine não trapacearia, enterrando a maçã de madeira na floresta em vez de levá-la às águas cristalinas do poço natural. No ano anterior, fizera a mesma peregrinação com os aldeões e pedira ajuda à dama na hora do parto, para que tudo corresse bem. Daquele dia em diante, Catherine deixara de temer o futuro e entrara em trabalho de parto com a certeza de que William sobreviveria para ver a filha.

E assim acontecera. Alflega nascera saudável e perfeita como uma rosa e, em algum momento daquela noite, Catherine vira William a seu lado. A marca no rosto, mostrando quão perto ele chegara da morte, significava outro sinal de que a dama escutara suas preces para proteger o marido e a filha.

O padre da abadia fora a Lundale durante as festas de Natal, uma quinzena após a procissão do poço, e abençoara a todos. Ele nada dissera da antiga tradição, tampouco questionara a peregrinação anual do povo de Lundale. Osbert contara ao padre que, se as pessoas da abadia não houvessem questionado o ritual da dama do poço, Lundale não teria caído em desgraça ao longo dos anos que seguiram a matança de Plantagenet.

Os aldeões e Catherine interpretaram o silêncio do padre como um sinal de que ele concordara com Osbert e os perdoara pela atenção a uma dama que existia fora de seu universo católico.

Catherine atingiu a beira do rio e olhou para oeste a fim de se certificar de que William e os soldados não a observavam. Não ousaria atravessar aquele local, onde a profundidade do rio era maior e a água chegava a invadir a estrada. Desse modo, desceu a um lugar secreto que apenas algumas almas conheciam.

O rio era estreito, e sua correnteza, perigosa demais. A água gélida fluía naquele trecho, mas havia um lugar, uma única seqüência de pedras próximas à superfície, onde um homem poderia atravessar a cavalo sem precisar nadar. A pé, seria possível cruzar o rio com a água na altura dos joelhos. Contudo, existia um truque para manter-se na linha das pedras, que salvara as vidas de Catherine e Robert anos atrás, quando eram crianças e Plantagenet invadira Lundale com seus homens.

Catherine caminhou ao longo da margem do rio até avistar o grande carvalho na beirada mais distante da água. Seria a árvore certa? Teria o velho carvalho caído após tantos anos e outro crescera para confundi-la?

Colocou-se em oposição à árvore, virou-se para trás e soltou um suspiro de alívio. A outra marcação, uma pedra esbranquiçada na elevação do banco do rio, estava no mesmo lugar. Qualquer um que soubesse para onde olhar descobriria o caminho secreto.

Jogou a barra do manto sobre o ombro, ergueu a saia e a túnica e dirigiu-se à água. As botas de pele de carneiro podiam escorregar, mas impediriam que cortasse os pés nas pedras. Seria mais fácil explicar os sapatos encharcados, se William os notasse, que convencê-lo de que cortara os pés no curso da rotina caseira de Lundale.

Ganhou confiança para atravessar as águas e imaginou que se lembraria daquele trajeto tão peculiar. Como lhe fora ensinado, não devia olhar para baixo a fim de ver a velocidade da água correndo sobre as pedras que a amparavam. Caso se distraísse, em questão de instantes, o rio a engoliria, e ela seria levada pela correnteza.

Sem parar, ergueu ainda mais a saia e percorreu a curta trilha diante do velho carvalho até atingir a terra macia da outra margem. Os pés estavam frios, mas não anestesiados. Embora cultivasse total respeito pela dama do poço, Catherine não queria se demorar.

Certa vez, o padre da abadia sugerira que Catherine construísse uma capela perto do poço para lembrar o povo que a dama da água deveria ser uma santa reconhecida pela Igreja. Ela declinara da proposta, alegando não poder pagar pela construção de uma capela em local tão remoto e tão longe de Lundale. Quando tivesse ouro suficiente para tal, ela a construiria onde o povo pudesse freqüentá-la dia após dia.

Foram essas as palavras dadas ao padre. Mas havia algo mais: Osbert e os outros tinham dito a Catherine que a dama do poço não desejaria ter um altar feito pela mão do homem para marcar o local sagrado. Tal assertiva encerrara o assunto, na opinião de Catherine.

A grande floresta erguia-se diante dela. Atrás de si, a luz do dia brilhava no espaço aberto acima do rio. A frente, viam-se sombras entre os carvalhos desfolhados. Os galhos secos, mais escuros que a terra, agitavam-se com o vento.

Os pés dela agora já estavam adormecidos. Se tropeçasse, poderia cair sobre a mão quebrada e machucá-la ainda mais.

Irreverente, desejou que a dama das águas tivesse sido mais tolerante em relação às marcações para encontrar a nascente. Mais uma vez, pensou na sorte que tivera no ano anterior e ignorou o bom senso, que a aconselhava a deixar a oferenda aos pés de uma árvore qualquer e voltar a Lundale antes que seus artelhos congelassem.

Andou pelo limite da mata, certa de que encontraria a nascente ao final do rio. A velha casa da floresta, o feudo que pertencera às esposas já falecidas de Lundale, localizava-se ao sul, nos profundezas da vegetação, muito longe dos sentinelas da paliçada, que nunca a veriam. No entanto, Catherine permaneceu próxima às águas para saber que caminho tomar, caso escutasse alguém se aproximando.

Enfim, o trajeto ao longo da fronteira tornou-se mais fácil quando uma trilha feita por cervos alargou a passagem. Momentos depois, a densa mata revelou outra passagem ao sul e uma árvore cujo tronco era bem mais largo que os das outras. Aquele era o lugar.

Catherine tomou a direção sul, pisando com os pés trêmulos nas folhas secas do outono. Numa pequena clareira, coberta pelas copas dos carvalhos, encontrava-se o poço sagrado.

O vento parou de soprar quando Catherine aproximou-se, e houve apenas o silêncio ao se ajoelhar sobre a pedra plana que bordejava a nascente. O musgo crescera e amaciara a superfície da pedra, como se esperasse receber os joelhos dos peregrinos. Fiel à promessa, Catherine levantou o braço a fim de proteger a mão quebrada e, com a outra, desamarrou a maçã de madeira. Entoando uma curta prece de reverência, depositou a maçã sobre as águas da nascente e observou a escultura flutuar na superfície.

De súbito, julgou ter visto um brilho vermelho na madeira, como se ela houvesse se transformado numa maçã de verdade. Então, olhou com mais atenção e viu a escultura pálida desaparecer na outra extremidade do poço.

O vento voltou a soprar entre as árvores.

Se não tivesse olhado para cima naquela momento, não teria visto o movimento sutil dos trajes de uma figura ao longe, no interior da floresta. Catherine se pôs de pé e tornou a olhar.

Seria a dama em pessoa que viera pegar a oferenda que Catherine lhe entregara? Estaria ela ofendida porque apenas um peregrino viera homenageá-la? Se Osbert ou Hadwen estivesse ali...

Encostou a mão machucada no peito e recuou um passo. A distância, a dama continuava a se mover, tendo os trajes voando ao vento gélido que cortava o rosto de Catherine. Mas a mulher não caminhava em direção à nascente sagrada.

No instante seguinte, Catherine escondeu-se atrás do grande carvalho, enrolada no manto e observando o trajeto que a mortal fazia. Ela se dirigia à casa velha do feudo com dez homens armados em seu encalço.

A mulher era de carne e osso, não um espírito do além. E andava devagar, olhando para ambos os lados, como se tivesse medo de ir muito longe. Ou como se os dez homens não se importassem com o passo lento ou a total falta de direção.

O vento soprou, feroz, para o norte. A mulher parou e embrulhou-se com o manto verde.

Naquele momento, quando a estranha se voltou, Catherine percebeu por que a mulher caminhava tão devagar. Estava grávida e, na companhia dos soldados, rumava para casinha da floresta, da qual William proibira qualquer ser vivo de se aproximar.

Por sorte, estavam longe demais para escutar a exclamação de Catherine. Teve de cobrir a boca para que o vento não levasse o som aos soldados, e não se mexeu até que a mulher e os homens armados desaparecessem.

Sentou-se ao pé da árvore anciã e fitou as botas molhadas. Se voltasse pelo rio e chegasse a Lundale úmida e quase congelada, William deduziria onde a esposa estivera e saberia que Catherine descobrira a razão de ele manter um pequeno exército ali que não devia ser perturbado por ninguém.

Ergueu-se e começou a andar pelo limite da vegetação. Tinha de sair da mata o mais rápido possível, antes que seus pés ficassem gelados demais, impedindo-a de andar.

A dama que vira não pertencia a nenhum soldado, nem era uma suposta cozinheira do acampamento. Os trajes que usava revelaram-se os mais finos da região. E a cor do manto não se originava de ervas e raízes, era de um verde nítido que só se via na primavera.

Mesmo que a jovem vestisse um manto simples e surrado, Catherine teria percebido tratar-se de uma nobre, pois caminhara de acordo com o próprio ritmo e parou quando quis. Os soldados a seguiram sem nada dizer ou questionar. Estavam a serviço dela, parecia, e lhe demonstravam respeito.

O bebê, que em breve nasceria, não era de um dos soldados. — William... William, que problema sigiloso é esse? — Catherine repetiu a pergunta que não ousaria fazer ao marido quando chegasse a Lundale. Como conseguiria manter-se calada ao lado dele?

Com exceção da única noite que ele passara em Lundale quando Alflega nascera, William estivera ausente por mais de um ano. E aquela única quinzena em que viveram como marido e mulher fora relegada à incerteza das guerras.

William devia ter encontrado conforto com outra nas longas temporadas de guerra na Normandia. Qualquer homem o faria, e William, apesar de toda a cortesia que rendia a Catherine, ainda lhe era um estranho. Um desconhecido que, pelo que tudo indicava, não lhe entregara a fidelidade do coração.

Seria simples para um homem rico deixar a esposa de lado. Reis fizeram isso. Luís da França agira assim. E os mais próximos a Henrique Plantagenet saberiam como fazê-lo.

William não era rico. Antes de Lundale, não possuíra terras. Trouxera ouro para comprar comida e pagar os carpinteiros, refletiu Catherine, naquele primeiro verão. William dissera, dessa vez, ter recebido ouro do rei a fim de sustentar os soldados durante o inverno. Quanto gastaria para subornar um sacerdote com o objetivo de anular o curto casamento com Catherine e unir-se à moça misteriosa, tão protegida por quarenta soldados?

Se não fosse por Alflega, seria melhor voltar à abadia e buscar de novo a paz abençoada que tivera antes de William entrar em sua vida. Lundale se fortalecia e prosperaria sem Catherine. Mas Alflega não possuiria lugar no mundo sem a mãe para lhe garantir direitos de herdeira no domínio de um pai que encontrara outra esposa.

Alcançou o rio e suspendeu a saia. A travessia foi mais fácil na volta, a despeito do peso nos pés adormecidos. Do outro lado do rio, Catherine parou para matar a sede e refrescar o rosto com a água gelada.

Durante toda a vida, soubera avaliar as situações e agir segundo o próprio julgamento. Robert a elogiava, dizendo que possuía bom senso e inteligência, tal qual os pais dela, no passado.

Jogou mais água no rosto. Não podia permitir que o evento daquele dia moldasse o resto de sua vida, e tampouco deveria tirar conclusões precipitadas a respeito do marido. Tinha de confiar na sinceridade que vira William expressar desde o primeiro dia. De nada adiantaria desconfiar do homem que aprendera a amar. Amor...

Era a primeira vez que Catherine considerava o sentimento. Também era a primeira vez que chegava a experimentar verdadeiramente a emoção de amar alguém.

Sempre se perguntara como seria, de que forma poderia ter certeza de que amava um homem. Num mundo tão duro como aquele, mesmo antes de voltar a Lundale, achava não possuir o privilégio de sonhar com amor e beijos ardentes.

No entanto, o beijo suave e terno de William na noite em que quebrara o dedo lhe mostrara que os pequenos gestos poderiam dizer muito mais que meras palavras.

O que fazer?, indagou-se, entristecida. Deveria dar um voto de confiança a William? Sim, talvez.

Piscou para afastar algumas lágrimas e avaliou as nuvens no firmamento. Vira uma mulher e soldados na floresta. Só isso e nada mais. No mínimo, deviam ser viajantes que perderam o rumo da estrada.

Osbert a aguardava na entrada da aldeia, preocupado com a demora de Catherine. Porém, logo em seguida, concluiu que ela não demorara o suficiente e que, portanto, não fizera a oferenda sagrada.

— Realizei o ritual como manda a tradição — afirmou Catherine. — E mantive respeito o tempo todo.

Curioso como sempre, Radulf apareceu ao lado do pai.

— E o que milady viu quando ofereceu o presente?

— Por que pergunta? O que eu deveria ter visto?

— O de sempre — Osbert respondeu. — Um corvo, um coelho. Um cervo. Um peixe no rio. Algum ser vivente que pertença à natureza. O que a senhora viu depois de ter feito o oferecimento?

Catherine considerou as palavras e percebeu, pela primeira vez, que não vira nenhum outro ser vivo na floresta, além da dama e dos soldados.

Encarou Osbert e Radulf, que ainda aguardavam a resposta.

— Não vi nada antes de chegar ao poço.

— Sim, às vezes, isso acontece. Quando vamos à nascente, espantamos muitos bichos por causa do barulho que costumamos fazer. É inevitável. Mas, afinal, o que milady viu?

Se mentisse, mencionando uma das criaturas da floresta, Osbert descobriria? Catherine hesitou e ponderou acerca do valor ambíguo das palavras, algo que jamais fizera antes daquele dia. Nunca mentira para nenhum aldeão. Adorava o povo de Lundale e seria incapaz de traí-los.

— Não vi nenhum bicho, Osbert. Mas, antes de deixar as águas sagradas, ocorreu-me um pensamento...

— Uma visão?

— Não, só um pensamento. Pensei em Maria, mãe de Deus, carregando o filho no ventre.

Osbert assentiu.

— A temporada de Natal está próxima. A dama deve ter lhe enviado imagens do nascimento sagrado.

Radulf parecia frustrado.

— Tem certeza de que não viu pegadas de um lobo? É o que se vê quando os homens pensam em defender suas terras. Já que temos tantos soldados na mata para proteger o feudo, seria isso que eu procuraria.

Catherine olhou as mãos de Radulf. Ele havia recuperado o galho queimado.

— Não vi pegadas de lobo, nem de nenhum outro animal. Tive apenas bons pensamentos de Natal, como disse seu pai, e de paz. Haverá paz em Lundale durante as festividades e ninguém deve perturbá-la. — Catherine arrancou o galho da mão de Radulf.

Um tanto aflita, seguiu para o salão, usando a arma improvisada do rapaz para firmar os passos. Mais do que nunca, precisava segurar Alflega nos braços e beijá-la.

 

Catherine ainda arrastava o pequeno cajado de Radulf, quando adentrou o salão e encontrou Hadwen ralhando com John, porque ele deixou Alflega perto demais da lareira.

Ignorando a rusga dos dois, pôs o galho apoiado na parede e aproximou-se do fogo.

— Venha com mamãe — sussurrou.

Alflega esticou os bracinhos gorduchos e se aninhou no peito de Catherine.

— O que fez em seus pés? — Hadwen apressou-se em enxugar as botas encharcadas de sua senhora. — A barra da saia também se molhou. Por onde andou?

— Fui caminhar ao longo do rio. Parei para beber água e escorreguei na beirada.

— Catherine, você continua tão desajeitada quanto era na idade de Alflega. Não devia sair sozinha por aí, ainda mais com essa mão enfaixada.

— Não posso montar com ela deste jeito.

— Podia ter pedido ajuda a Robert.

— Onde ele está?

A força das palavras assustou Alflega, que cessou o feliz balbucio e olhou a mãe. Catherine beijou a criança.

— Onde está meu primo, Hadwen? — repetiu, com mais calma.

— Na abadia. Robert falou que vai passar o inverno aqui, já que milorde permitiu, e por isso voltou à abadia para buscar o alforje que lá deixou.

John ergueu os olhos.

— Seu primo criaria menos confusão se tivesse deixado o alforje na sela, a fim de parecer um viajante decente. Está velho demais para galopar pelo campo nesse clima. E a senhora perderia mais que o uso da mão, se William e aquele jovem tolo tivessem lutado.

— Milady não teria quebrado o dedo se você estivesse com ela para protegê-la. — Hadwen empurrou John e colocou as botas de Catherine perto da lareira.

— O ferimento de sua senhora é culpa do marido... portanto, minha culpa. Se John prefere aquecer os ossos ao lado do fogo, deixe-o em paz.

Alflega virou-se ao escutar o pai e respondeu com uma série de palavras que só ela compreendia.

William atravessou o salão. Os passos estavam mais firmes naquele dia, como se a perna machucada começasse a sarar. E não havia nada, Catherine notou, que revelasse ser ele um homem de segredos escusos.

Ela escondeu os pés frios sob a saia e tentou sorrir.

— Onde estava, William?

Os olhos continuavam com a mesma sinceridade azul da véspera. A voz gentil não delatava as imagens sombrias que ela encarara na floresta.

— Fui à casa da floresta para ver como os homens estão se saindo.

— Você disse que havia mulheres com os soldados, William. Ele pousou as mãos acima do fogo para aquecê-las.

— Algumas. Três ou quatro, creio.

— Então, há um pouco mais de quarenta pessoas ao todo? Quarenta soldados e algumas mulheres.

— Exato. — Ele a fitou, com certa precaução.

Sim, pensou Catherine, existia algum mistério que envolvia aquela mulher.

— Por quê?

— Estou pensando em como alimentá-los neste inverno, William. Você disse que pretendiam caçar para conseguir carne.

— Sim, eles já caçaram alguns animais.

— E precisam de grãos. Eles têm uma vaca?

— Não. Mas precisarão de queijo e outros alimentos. Já enviei homens numa carroça a Nottingham para comprar a maior parte dos suprimentos. Não se preocupe. Não terá de fornecer muitas coisas, Catherine. E o ouro do rei pagará o que você dispuser.

William sabia que a vida dos trabalhadores dos campos era dura, e a produção de alimentos, advinda da última colheita, não atingia grande quantidade, e nem sempre bastava para alimentar toda a população, incluindo aqueles que moravam nos recônditos da floresta.

— Vão necessitar de pão. Posso pedir a Radulf que leve uma cesta em um ou dois dias — ela sugeriu.

— Não. É melhor manter seu povo longe da mata.

— Se é assim, como vamos alimentá-los?

William sorriu para Alflega.

— Minhas mãos estão quentes. Posso segurá-la?

Ainda com os pés escondidos sob a saia, Catherine não se moveu no banco. Apenas ergueu o bebê e entregou-o ao marido.

— Minha pequena rosa... — Ele se deslocou alguns passos e parou para olhar as chamas. — E onde estão as botas de sua mãe, filhinha?

Alflega deu risada. William sentou-se no banco e acomodou a criança no colo.

— Aquelas botas de pele de carneiro se parecem com as de sua mãe, mas são feias, porque estão encharcadas.

Teria William retornado mais cedo e visto Catherine atravessar o rio?

Teriam os soldados que acompanhavam a dama contado a ele que viram uma mulher num manto brilhante por entre as árvores?

E por que deveria permitir que o marido, um desconhecido que guardava para si segredos pecaminosos, dissesse aonde ela podia ou não ir? Se ele descobrisse a desobediência, tal fato importaria?

Resoluta, Catherine empinou o queixo e enfrentou o marido.

— Fiz um passeio, enquanto você estava na floresta. Percorri o limite da plantação e desci o rio. Se eu pudesse montar com a mão quebrada, não teria estragado as botas.

As palavras o surpreenderam.

— Lamento. Devia ter perguntado, antes de sair, se você queria vistoriar o campo. Amanhã eu a levarei em minha sela aonde quer que deseje ir.

— Diga-me em que dias estará aqui. Não quero atrapalhar suas idas à casa da floresta.

William beijou a cabeça de Alflega e apertou-a entre os braços, como para proteger a menina da raiva contida na entonação de Catherine.

— Falaremos a respeito disso hoje à noite — ele murmurou. As mulheres que teciam cessaram a conversa. Hadwen e

John pararam de discutir acerca do berço perto da lareira. Lundale esperava que o senhor e a senhora amenizassem a tensão que crescia no ambiente.

Catherine ficou de pé e pegou as botas molhadas.

— Não importa mais. — E dirigiu-se ao quarto, fechando a cortina atrás de si.

Lá dentro, parou ao lado da entrada para escutar o silêncio no salão. De repente, Alflega emitiu um som, e William falou com ela. Hadwen recomeçou a discutir com John. Em instantes, tudo voltou a ser como antes. E Catherine, na penumbra do aposento sem o calor do fogo, recriminava-se por ter expressado ira e rancor.

Sentia-se perdida. Não existia viva alma em Lundale que pudesse lhe dizer como agir. Hadwen teria uma opinião, se Catherine ousasse revelar-lhe seus temores. Mas, para tanto, precisaria relatar sobre a mulher que vira na floresta e, decerto, arriscaria a desvendar o segredo de William, humilhando-se diante de seu povo.

Por sua vez, John entenderia, mas tomaria o partido de William em qualquer briga que pudesse ocorrer. Não, o bom homem não serviria como confessor,

A abadessa Alflega, a gentil freira cujo nome Catherine dera

à filha, seria discreta e saberia como proceder nesse dilema atroz. Se William mantivesse a promessa de fazer as pazes e, portanto, se oferecesse de novo para levá-la aonde desejasse, ela pediria para ir à abadia.

No salão, o balbucio de Alflega elevou-se numa risada musical. Catherine suspirou e encostou-se na parede, resistindo à tentação de pedir a William que levassem também a criança à abadia. Dessa maneira, teria a chance de exigir que ele as deixasse lá até que os estranhos saíssem da casa da floresta.

Mais uma vez, descartou a possibilidade de que William pretendia trocá-la por outra. Repetiu para si mesma, em pensamento, as palavras que a tinham acalmado após a visão na nascente sagrada: a imagem de dez pessoas na floresta podia não significar nada. Talvez nunca afetassem a vida dela ou a de Alflega. Ou a de William.

A cortina se abriu. Catherine gritou de susto e virou-se depressa. Com um movimento brusco, bateu a mão machucada na parede e suprimiu um gemido ao sentir a dor repentina.

— Catherine, você está doente? — Os braços de William já estavam ao redor dela, levando-a em direção à cama.

Ambos sentaram-se no colchão, e ele franziu o cenho ao ver a mão enfaixada que ela pressionava de encontro a si.

— Deixe-me ver. — William começou a tirar a faixa que prendia os dedos ao pedaço de madeira.

— Não!

— Quieta. Seus dedos incharam, e a bandagem precisa ficar mais solta.

— Pedirei a Hadwen que o faça. William a encarou, confuso.

— Não confia em mim? Sei o que fazer. — E continuou a retirar a faixa, passando a falar de Alflega. — É uma menina linda. Nos últimos meses, imaginei com quem ela se pareceria e como me olharia pela primeira vez. E tão inteligente, Catherine... mais afetuosa com o velho pai cheio de cicatrizes do que jamais imaginei que seria.

— Está sendo sincero?

— Catherine, o que há com você? Claro que estou sendo franco. Duvida do amor que sinto pela menina? Ela é linda, feliz e...

— Não me refiro ao bebê. Estava sendo sincero quando se ofereceu para me levar aonde eu quisesse?

Ele examinou os dedos arranhados e cobriu-os com um beijo gentil.

— Sim, é lógico. Achei que você tivesse percebido isso. Sairemos amanhã, se quiser.

William tornou a enrolar a bandagem. Catherine moveu os dedos sob o tecido e murmurou palavras de agradecimento. Ele tinha razão. A dor diminuíra.

— Gostaria de ir à abadia para levar presentes às freiras.   .

— Iremos amanhã. John selecionará cinco homens para nos acompanhar.

— Cinco? A abadia está a apenas dez quilômetros daqui, William.

— Temos dez soldados consumindo a comida e o algodão de Lundale. Portanto, precisam trabalhar um pouco. Será ótimo mostrarem serviço ao protegê-la. — William amarrou as extremidades da faixa e colocou a mão de Catherine sobre a cama. — Por favor, não vá para além da paliçada sem mim.

— Então, diga-me o que devo temer. Confie em mim, William. Há uma nova guerra se criando? O que existe de tão perigoso naquela casa para que temamos intrusos em Lundale a qualquer momento?

William meneou a cabeça.

— Acredita mesmo que eu não diria, caso houvesse algo que ameaçasse você ou seu povo? O que lhe peço é prudência, simples precaução. Pode haver perigos na estrada, ladrões de gado ou fugitivos na floresta.

Ele caminhou até a cortina.

— Por favor, Catherine. Ficarei aqui durante o inverno e depois terei de ir a Marches. Em seguida, haverá outra jornada para lutar por Henrique em algum local distante. Talvez mais um ano se passe antes que eu possa revê-la. Peço-lhe que não faça desses meses uma temporada de dúvidas e desconfianças. E não arrisque sua segurança passeando pelo rio, onde não pode ser vista. Se algo lhe acontecesse, eu enlouqueceria.

— Escute seu marido, Catherine. Ele está certo. — Robert puxou a cortina e olhou para ambos. — Hadwen me disse que estavam brigando por causa de um par de botas. Há motivos melhores para suas disputas.

— O que quer dizer?

— A abadessa está furiosa. Mal falou comigo quando fui me despedir e agradecer pelo empréstimo de um cavalo. Parece que ela estava a caminho de Nottingham com mensagens do sul para o xerife, e foi achacada por um bando de salteadores e um padre.

— Bandidos com um padre? — William estranhou. — Eles o tinham como refém?

— Não é tão simples. Bloquearam a estrada e obrigaram a protegida da abadessa a descer da mula, e um dos rufiões arrancou-lhe o manto.

William praguejou.

— Eles a violentaram?

— Essa é a parte mais estranha. O padre se aproximou da abadessa para dizer que não deixaria os homens violentarem a moça. Mas assim que o ladrão tirou o casaco da jovem...

Consternado, William tocou o ombro de Catherine.

— O que houve?

— Ele falou com o padre num linguajar estrangeiro. Então, o padre montou em seu cavalo. O sujeito jogou o manto da garota no chão, montou também em seu cavalo e todos foram embora, sem mais nem menos.

— Não roubaram nada?

— Nada. Nem o dinheiro da abadessa, nem o manto, nem a virtude da moça.

— Sei...

— Essa história é estranha. — Robert coçou a nuca. — Conversei com os jovens que acompanhavam a abadessa. Disseram-me que havia seis homens muito bem armados e a galope. Pareciam ter pressa. Até o padre possuía uma boa montaria. Os garotos nem tiveram chance de impedir o acontecido. Foi um milagre, segundo eles, que tudo tenha terminado sem mortes.

— E a moça? — Catherine quis saber. — O que ela disse? É possível que tenha reconhecido os larápios? Havia algum admirador zangado entre eles?

— Não sei. Os jovens disseram que ela chorou de Nottingham até a abadia.

— Claro. Devia estar apavorada!

— Sim, tinha pavor de que eles voltassem. E talvez estivesse ofendida porque os sujeitos fugiram a galope assim que viram sua combinação.

— Robert!

— Não se apoquente, Catherine. Eu não disse isso à abadessa. — Robert fez uma pausa antes de prosseguir: — Há um padre entre os homens da casa da floresta, William?

— Não. — A mão de William continuava leve sobre o ombro de Catherine, como se ele não desse importância à pergunta de Robert ou desenvolvesse alguma tensão.

— E há algum estrangeiro entre esses soldados? Ou qualquer um que se pareça com um padre?

— Não. — William acariciou o braço de Catherine e marchou em direção à saída. — Fique aqui, minha mulher. Não saia do salão até eu retornar. Robert, faça-lhe companhia.

— Deixe-me adivinhar...

— Irei à casa velha da floresta. Estarei de volta ao entardecer de amanhã.

— Então você imagina que possam ser seus homens. William colocou a espada na cintura e pegou o manto de sobre a cama.

— Não foram eles. Robert, conte aos homens da guarnição tudo o que me falou. E diga-lhes para dobrar os sentinelas. — E retirou-se, sem mais palavras.

 

William retornou no dia seguinte, pouco antes do anoitecer, com gelo nas botas e as faces avermelhadas, devido ao vento muitíssimo frio.

No momento em que o viu atravessar os portões da paliçada, Catherine pensou que havia ferido outra vez a perna, pois segurava o joelho ao cavalgar, como se a dor fosse insuportável.

Um sorriso transformou-lhe o rosto, quando a avistou ao lado do estábulo. William apeou, enxugou as faces com a manga do casaco e, em seguida, tirou a luva para acariciar a pele da esposa.

Catherine o puxou para si e o beijou, absorvendo o frio dos lábios. Sob as mãos, sentiu fragmentos de gelo na superfície do elmo de ferro.

— Está tudo bem, minha querida.

— Você os encontrou? Ele, por fim, tirou o elmo.

— Não. Vasculhamos todas as estradas que levam a Nottingham. Nenhum sinal de confusão, nenhuma história semelhante àquela. Ninguém na cidade se queixava de rufiões estrangeiros pelas ruas. — Mais uma vez, o sorriso largo destacou-se em seu semblante. — Havia muitos engraçadinhos, mas todos pertenciam à população local.

Catherine tocou os cabelos úmidos do marido.

— Tenho certeza de que você deu uma lição que esses safardanas jamais esquecerão.

— Não houve confronto. Apenas fizemos uma busca.

Ela inclinou a cabeça para o lado, a fim de apreciar as linhas másculas.

— Não creio que precise lutar para intimidar um rufião. Atrás deles, os soldados se organizavam, levando suas selas à sala de guarda na torre. Catherine ajudou William a tirar o manto úmido.

— Perdoe-me. Fiquei distraindo você, quando podia já estar diante do fogo.

— Acho que hoje nossa filha vai se assustar com minha aparência. — William olhou ao redor e beijou os lábios de Catherine, como um jovem que se envergonha de mostrar sentimentos diante dos mais velhos. — Vou me encontrar com a guarnição e lavar o rosto antes de me juntar a você no calor da lareira.

Dito isso, desapareceu dentro da torre para as últimas ordens do dia.

Alflega estava irrequieta naquela noite, pois o amado John a deixara com Hadwen e passara o dia na sala de guarda, exercitando a pequena guarnição e fazendo a ronda.

Radulf captara o clima tenso e, por vontade própria, apareceu tão logo amanheceu para alimentar e escovar os cavalos.

Ao meio-dia, ele procurou Catherine e lhe pediu um pedaço de couro, para remendar uma sela.

No final da tarde, Radulf já havia limpado as baias e arrumado as selas para serem usadas em qualquer eventualidade. Catherine devolvera-lhe o galho que ele usara como arma e pedira a John para mostrar ao rapaz como utilizar uma lança.

Osbert e os demais homens da aldeia, ao escutar que estrangeiros haviam atacado a protegida da abadessa, não demoraram a dar grandes proporções à história: saques nos tesouros da abadia, estupro e blasfêmia.

Os portões do pátio permaneceram abertos para os aldeões guardarem o gado, caso salteadores aparecessem. Osbert passara o dia vigiando os campos com os sentinelas, preparado para soar o alarme a fim de alertar a todos.

Catherine ficara com Alflega nos braços, percorrendo o salão e a torre e perguntando-se por que não inventara um conto de assaltantes bárbaros para inspirar Radulf e os outros rapazes a limpar o estábulo e outras dependências.

William saiu da torre ao cair do dia e aprovou a nova organização das baias e selas. Então, pegou a arma improvisada de Radulf e sugeriu que, se John encontrasse uma lança velha, Radulf poderia guardá-la em sua cabana e levá-la todos os dias ao pátio para praticar.

— O garoto trabalhou bem —- William comentou com Catherine. — E os homens estão treinando muito para estarem preparados. John também não se saiu mal.

— Depois que você capturar os tais estrangeiros e libertar padres, por favor, não conte a ninguém que estamos livres de todo perigo até que a sala de guarda esteja limpa, e as paredes do estábulo, consertadas.

— Alflega perderá o escravo, se esse trabalho se prolongar. E não sei quanto tempo John agüentará antes de retornar ao aconchego da lareira. Ele ficará aliviado quando a busca terminar e a guarnição voltar à rotina.

Só naquele momento, William tirou a cota de malha.

— Não pensei que tornaria a usar a armadura durante o inverno.

Catherine estendeu os braços para apanhar o adereço de batalhas. William preferiu pendurar o traje na cabeceira da cama.

— É pesado — informou, esfregando a perna.

— Piorou? Você machucou o joelho outra vez?

— Tive sorte, hoje. Nenhuma emboscada violenta, nenhum sinal de problema.

— Os bandidos se foram?

— Se eram bandidos, sim, eles se foram. Mandei os guardas do rei patrulharem a estrada da floresta o dia todo. Não encontraram ninguém, muito menos viram sinais de acampamento na mata. Meu palpite é de que os ladrões estavam de passagem e pretenderam em raptar a jovem da abadia. Mas mudaram de ideia quando viram os olhos frios da abadessa.

William esticou os braços e gemeu ao sentir os músculos.

— Eu poderia usar sua abadessa como arma de guerra na Normandia.

— Espero que isso não aconteça.

— Seria interessante utilizá-la em negociações ou para assustar os barões.

— Ela é uma boa mulher e cuidou de mim quando me tornei órfã.

— E agradeci a ela por isso. Duas vezes.

— E poderá agradecer-lhe mais uma, se me levar à abadia. Tenho cinco moedas de prata que consegui no mercado de bois em Nottingham. Se concordar, William, queria de doá-las à madre Alflega.

— Madre Alflega? — indagou, perplexo. — É esse o nome da abadessa? Não acredito que batizou nossa filha com o nome da abadessa?

— É uma mulher bondosa e...

— Eu sei, cuidou de você quando ficou órfã. Mas precisava homenagear a mulher por intermédio de nossa filha? O nome soa estranho demais. Parece o grunhido de um corvo.

— Não, se você pronunciá-lo com suavidade.

— Não há nada de suave a respeito da abadessa, Catherine. Nunca houve, aliás. Não com um nome desses a carregar pela vida toda. Nossa filha devia ter um nome mais doce, como Rosewitha...

— Não.

Ele parou e fitou-a nos olhos.

— Sim. Acho que já entendi tudo. A madre Alflega passou-lhe um pouco do temperamento obstinado ao longo dos anos. Agora que somos casados, começo a perceber melhor certos detalhes. — William sorriu. — Eu a levarei à abadia, quando a estrada estiver segura.

— E a prata? Concorda em doar as moedas?

— Sim. E acrescentarei uma peça de ouro à doação. — William mudou o peso do corpo de uma perna para a outra.

— Seu ferimento piorou. Não negue. Era cedo demais para passar um dia inteiro sobre o cavalo.

— Não faz mal.

— A água quente ajudou muito da outra vez. Quer tomar um banho aqui?

William esquadrinhou o quarto.

— Está quase anoitecendo, e seu povo trabalhou muito hoje. Não pedirei que tragam água quente e a banheira.

— Radulf pode acender o fogo e enchê-la na torre.

— Vai me fazer companhia?

William possuía um jeito sutil de fazê-la corar quando menos esperava.

— Na torre, com toda a guarnição circulando pelos cômodos? Acho que não. Radulf trará a banheira aqui pela manhã. — Catherine pegou uma túnica limpa para William e entregou-lhe.

— Quanto à torre... quero que você e Alflega se mudem para lá e ocupem o cômodo superior.

— Nós decidimos...

— Ano passado, deixei que fizesse do seu jeito. Neste inverno, até que eu tenha certeza de que a floresta está livre de bandidos e outras ameaças, quero você e Alflega na torre. — William observou o quarto e meneou a cabeça. — E um milagre este velho salão ainda estar de pé. Bastaria o inimigo romper a paliçada e jogar uma tocha ou duas no telhado para seu abrigo virar cinzas.

— O salão sobreviveu ao exército de Henrique Plantagenet. William suspirou.

— Já escutei muitas histórias a respeito daquele dia. A batalha ocorreu ao redor da torre e na plantação. Se houvesse homens no salão, os atacantes o teriam incendiado. Foi sorte este espaço ter saído ileso.

Catherine sentiu o próprio sangue esfriar. Sempre lhe custava muito sofrimento lembrar-se da ocasião trágica em que seus pais morreram. O motivo que mais contribuiu para a ruína de Lundale fora, sem dúvida, a invasão impiedosa do exército de Henrique Plantagenet. Mas os guerreiros do soberano não teriam causado tantos estragos fatais se não fosse a incapacidade dos rebeldes de defender suas fronteiras. Tal fraqueza facilitara sobremaneira o assalto final dos soldados.

— A sorte não sorriu para nós naquele dia, William. E a torre, aquela pilha inútil de pedras, não protegeu meu pai das espadas sedentas de Plantagenet. Quando dentro dela, não há meios de escapar. E preciso lutar, senão...

— Onde você estava?

Havia algo no tom de voz de William que lhe deu forças para responder:

— Robert e eu ficamos longe da torre. Escondemo-nos às margens do campo. Nossa plantação era bem maior, naquela época.

— Continue, Catherine. Por favor.

— Papai logo percebeu que, por ser mais numeroso, o exército de Plantagenet ganharia a batalha. O pai de Robert, irmão de papai, morrera na véspera, num confronto perto do acampamento de Plantagenet. O rei Stephen, nosso rei legítimo, não pôde enviar tropas para nos ajudar. Foi o que meu pai disse ao nos levar para o pasto, nos limites da floresta. O último lugar que os soldados iriam vasculhar seria o abrigo de ovelhas, caso os inimigos vencessem. Eles saqueariam o salão, levariam o gado e, por último, roubariam o rebanho. Se víssemos a luta vindo em nossa direção ou se os avistássemos, teríamos de ir à mata e subir numa árvore.

— E assim o fizeram.

— Sim. E lá ficamos, eu e Robert, por um dia e uma noite. Quando os soldados se foram, os aldeões fugiram. Só Osbert e Hadwen voltaram, deixando suas famílias na floresta. Eles nos levaram à abadia, pois temiam que os soldados nos descobrissem. Hadwen achou que não sobreviveríamos sozinhos na mata. E sabia que ela e Osbert não conseguiriam nos alimentar.

— Você tem boas razões para odiar Henrique Plantagenet. Catherine hesitou. Teria revelado demais?

As palavras de Robert lhe voltaram à memória. Haveria um motivo sombrio além do perigo das estradas e do nascimento da filha que impedira William de levá-la à presença do rei? William teria se arrependido de ter se casado com a filha do barão que planejara uma rebelião contra o trono de Sua Majestade?

Ele esperava em silêncio.

— Foi há muito tempo.

— Você perdeu tudo, Catherine. E Robert também.

— Meu primo era uma criança quando tudo aconteceu. Um pouco mais velho que eu, apenas. Não sabíamos contra quem nossos pais lutavam. Somente o nome... Plantagenet. Nós nos escondemos na floresta e não vimos nada.

Ela olhou para cima, notando que William não se mexera nem mudara a expressão.

— Acredita que eu seja uma traidora que vive do passado e planeja vingar-se de seu rei Henrique?

— Não. Nunca me ocorreu tal possibilidade. Prossiga. Conte-me o que houve depois. Você e Robert foram à abadia, e a abadessa os acolheu. Ela sabia quem eram?

— É claro. Nossos pais haviam construído a abadia e doado terras férteis para sustentá-la. O padre era nosso aliado também.

— Ah! Eis o motivo de não haver igreja nenhuma na região.

— Não, havia uma. Uma feita de madeira, um pouco à frente da paliçada. Foi queimada. — Catherine queria esconder as lembranças daquele dia nos confins da mente. — A igreja se foi, mas a paliçada permaneceu, e o salão também. Madeira velha é tão resistente quanto ferro, e não incendeia fácil.

— Mas quando isso acontece, ela pega fogo muito depressa. Amanhã, levaremos a cama para a torre. Você, Alflega e eu dormiremos lá com a guarnição abaixo de nós e os sentinelas acima.

— E deixar Hadwen, Osbert e Radulf...

— Dobrei a vigilância. Soarão o alarme, se algum problema surgir. Osbert e os outros poderão se proteger na torre ou na floresta, como já devem ter feito em outras ocasiões. Você e Alflega são minha família. Um exército de ladrões saberia disso e as tomaria como reféns. Precisamos nos precaver.

— E Robert? O que seria dele? Mesmo em Nottingham, sabem que é seu parente por casamento.

— Eu o quero conosco na guarnição, dormindo na sala de guarda.

— E se ele quiser ficar aqui no salão?

— Deverá ir para a torre, gostando ou não. Do contrário, pode sair de Lundale. A escolha é dele.

Um bando de rufiões insultou uma garota na estrada e, em menos de um dia, William exigia que Catherine pegasse a filha e trocasse aquele salão confortável pela torre de pedra com suas escadas estreitas. Ele queria abandonar aquele quarto tão próximo ao calor constante da lareira para acordar num cômodo escuro com apenas o vento gélido como companhia. Catherine suspirou.

— Você sempre preferiu a torre e desprezou este salão. William, os estrangeiros são tantos e tão perigosos que...

— Sim. Pode haver muitos, e são sem dúvida perigosos. Nós nos mudaremos para a torre amanhã.

— E quanto às mulheres e ao padre da abadia? Os intrusos estavam muito perto daquela região.

— Enviei dez homens do rei para protegê-los.

— Então, nossa madre Alflega terá soldados, os quais você alega serem perigosos demais para o povo de Lundale, acampados ao redor dos muros da abadia.

— É. Foi necessário. Eu não podia deixar a abadia indefesa. Mas adverti os homens quanto a respeitar a abadessa e nunca se dirigirem a ela, se puderem evitar. O que viram nas batalhas da Normandia jamais os preparará para a disposição da madre. — William bocejou. — E os proibi de acampar dentro da floresta, onde haveria apenas lobos para assustá-los.

Olhou para o lado e notou que sua mulher não achara graça de seu tom jocoso.

— Ora, Catherine, nada do que imaginei está acontecendo. Na Normandia, pensava em você todas as noites e sonhava com nosso reencontro. Não podemos chegar a um consenso?

Na véspera, ouvir aquilo de William a faria chorar, pois teria achado que ele se referia a tantas vezes que passara raspando pelas garras da morte. Agora existiam outros medos. William já planejava abandoná-la? Catherine tentou camuflar o pavor.

— Como assim? Não entendi.

— Tenho apenas o inverno, Catherine, antes de retornar à luta.

— Mas vai voltar.

— Voltarei, sim. Se Deus quiser.

Aquele não era um homem que desejava acalmar a esposa, fazê-la acreditar que a morte não os separaria. Catherine estudou o quarto onde havia nascido.

— Quando o rei terminar suas guerras e você vier para mim, poderemos nos instalar no salão outra vez?

— Lógico que sim, Catherine. Assim que o perigo passar. Estamos de acordo?

— As festividades de Natal devem acontecer aqui.

— Todas elas, se quiser. Mas iremos dormir na torre. — William a abraçou e deitou-a na cama. — Não fique triste. Não será ruim ficarmos lá. As paredes são mais grossas, e não estão rachadas, como as do salão.

— As pedras são frias.

— Prometo mantê-la aquecida. E pedirei aos homens que cortem madeira para fazer uma cama. Assim, deixaremos esta aqui para o dia em que você retornar. — Ele ergueu o rosto. — Está rindo?

— Não reparou que esta cama está grudada no chão? Nem o mais forte cavaleiro normando conseguiria movê-la, se tentasse.

William roçou a curva do pescoço dela com os lábios.

— Ainda bem que me contou.

— Sim, mas eu poderia postergar a mudança um pouco mais, se não tivesse contado.

Ele intensificou as carícias no pescoço de Catherine.

— Não, William... — sussurrou, quase desfalecendo. — Todos irão me escutar no salão. Por favor, não me faça rir.

— Na torre, farei você rir sempre que puder. Não haverá ninguém do outro lado da cortina. E quando o céu estiver limpo, subiremos ao platô para apreciar as estrelas.

— E os vigias ficarão espantados quando nos virem passeando no meio da noite.

— Vou suborná-los. Eles não dirão nada a ninguém.

— Ou então, poderá selecionar os mais velhos, que enxergam mal.

— Sim! Essa seria a solução.

— E Alflega estará no berço. Não poderemos deixá-la no salão aos cuidados de Hadwen.

— A criança costuma dormir.

— É verdade. E tem o sono pesado. Dorme quase a noite toda.

— Acho que melhor aproveitarmos nossa última noite aqui — William sugeriu, sentindo o desejo crescer. — Se estiver disposta.

Catherine se aconchegou no marido e puxou a coberta.

— Apague a vela.

— Não. Antes quero ver o ventre que tanto a assusta.

— Você já o viu.

— Não, senhora.

— Sim, na noite em que Alflega nasceu.

— Foi diferente. — William apagou a chama. — A escuridão é melhor para você, Catherine?

Não eram as marcas do parto que ela queria esconder de William.

Ao final da primeira quinzena de verão, Catherine passara a desejá-lo com uma intensidade que não lhe parecia comum. Na escuridão, William não seria capaz de ver quão longe ela iria por desejo. E, após temporadas inteiras de solidão, a necessidade crescera demais para ser exposta à claridade.

— Sim — ela respondeu, num sussurro frágil, quando as poderosas mãos iniciaram um afago tentador.

Mandá-lo afastar-se por causa da mulher desconhecida que vira na floresta seria loucura total.

E como dispensá-lo, se estava tão ansiosa para ser envolvida pelos braços vigorosos de William e fazer amor com ele outra vez?

Quantas noites Catherine também passara insone, sonhando em estar na cama com seu homem? Noite após noite, rolara no leito sem poder pregar os olhos, imaginando as sensações fascinantes de ter William de Macon junto a si.

Por que nunca aceitara essa verdade e nunca cedera à paixão arrebatadora de tê-lo, sem se preocupar com o dedo quebrado ou com a opinião daqueles que estavam no salão?

Catherine não sabia responder. Na realidade, nem sequer pensava na resposta.

Naquele instante, encontrava-se onde sempre desejara estar. Não queria que William partisse para outras guerras. Ávida pelas carícias, rendeu-se ao desejo que clamava em sua alma.

Os cabelos loiros roçaram os braços de Catherine quando abraçou os ombros fortes. Então, pressionou os seios no peito musculoso, experimentando sensações inebriantes.

Os lábios de William cobriram os dela num beijo selvagem e passional.

A união foi ainda mais calorosa que as anteriores. Ele se entregava à paixão primitiva e à intensa luxúria. Naquele instante havia tudo isso e... muito mais.

William parecia mergulhar na tentação sensual e levava consigo Catherine.

— Tomarei cuidado com sua mão.

— Nem me lembrava mais disso. — Catherine sentia o ardor de William movendo-se sobre ela e descendo até a região entre as pernas.

— Faz tanto tempo desde a última vez... Você me perdoará, Catherine, se eu não puder esperar?

— Sim, William. Desde o verão eu almejava este momento.

Ela gemeu, feliz, quando ele a penetrou. Com intensa sinceridade, demonstrou que o queria mesmo dentro de si, amando-a. Completando-a. Fazendo-a crer-se desejada e perfeitamente necessária para William.

Não havia tempo a perder com a ternura hesitante, tampouco palavras suaves de encorajamento ou paciência para carícias gentis.

Catherine aprofundou o beijo, deliciando-se, enquanto deslizava as mãos sob a calça de William. Afagou-o, afoita, movendo-se conforme o marido explorava suas curvas, já em chamas.

Num movimento de extrema urgência, Catherine colou os quadris aos dele e, exultando de satisfação, soltou um gemido apaixonado.

Posicionado entre as pernas esguias, William a beijava e acariciava os seios túrgidos. E, cheia de paixão, ela iniciava uma dança sensual.

William intensificou o ritmo, oferecendo a Catherine o deleite inenarrável de sentir-se uma mulher completa e realizada. Agarrada a ele, incitava-o a expressar movimentos ainda mais instintivos.

Jamais se vira em plena harmonia como naquele instante mágico. Era como se a união estivesse predestinada à perfeição absoluta da natureza humana. De que maneira William poderia adivinhar que afagos suaves em seu pescoço a excitariam tanto ou que um toque na região entre os seios quase a faziam desfalecer de prazer?

Em breve, Catherine precisaria libertar-se, pois o clímax começava a anunciar sua chegada.

A experiência abrasadora de êxtase conduziu-a às nuvens, e ela encontrou um júbilo inacreditável. Estava tão imersa no próprio prazer que demorou alguns instantes para perceber que William também alcançara o auge.

Ofegante, ele levantou o rosto.

— A próxima vez será para você, querida.

— A próxima vez não dependerá só de nós dois.

— Quieta. É você quem se preocupa com as pessoas no salão. Se a escutarem, irá me odiar amanhã.

— Acho que a vida na torre não será tão ruim.

— Prometo que haverá muitas noites como esta.

— William?

— Sim, Catherine?

— Não me faça esperar.

 

Tão logo começou a nevar, o povo de Lundale, incluindo soldados e aldeões da floresta, parou de temer os perigos nos arredores do feudo. Em meio à vastidão esbranquiçada que cobria os campos, não se avistava, a cada manhã, nenhum rastro sobre a neve que delatasse a tentativa de aproximação de invasores. Viam-se apenas as pegadas delicadas de raposas e cervos a oeste.

A leste, a maior parte das ovelhas se mantinha abrigada, e poucas vagavam nas proximidades, à procura de pasto. Para além do rebanho, nenhum sinal de problema marcava a amplidão branca. E, no limite da grande floresta, nem mesmo os lobos ousavam sair de seus esconderijos.

Do topo da torre, no platô, Catherine podia avistar a região e o percurso dos aldeões, quando eles circulavam entre seus estábulos e cabanas. Todos os caminhos deixados no solo convergiam aos portões da paliçada. O grande salão de banquetes era o centro do vasto mundo branco, rodeado pelos campos, limitado pelo rio e moldado pela floresta.

Todas as manhãs, Catherine saía dos novos aposentos na torre e percorria a escadaria estreita até o topo, com Alflega, onde podia ter uma visão excelente de Lundale.

Enrolada em duas mantas e presa ao corpo da mãe, a criança começava a conhecer a região. Alflega parecia entender as palavras, embora não pudesse pronunciá-las ainda, que Catherine usava para indicar a aldeia, a plantação e o rio brilhante que se curvava ao sul dos limites de seu mundo.

Daquele ponto, Catherine conseguia divisar a paliçada da casa velha, mas nada via além da grande floresta. Certa manhã, acreditara ter visto fumaça sair da chaminé da antiga morada. Entretanto, a mancha cinzenta logo desapareceu entre as nuvens carregadas.

Por um motivo que não ousava admitir, sempre olhava em direção ao rio. Em geral, quando o inverno chegava, o tom azulado das águas era substituído por finas camadas de gelo na superfície. A medida que o Natal se aproximava e o aquecimento do sol diminuía, as águas passavam a brilhar tal qual prata a cada amanhecer gélido devido ao congelamento gradual.

Antes que o gelo se tornasse escorregadio demais e cobrisse a passagem secreta, Catherine lutara contra a tentação de retornar à floresta para descobrir, de uma vez por todas, que mulher era aquela que vira caminhar entre os carvalhos sob os olhos atentos dos soldados de William.

A despeito de toda a intimidade que passara a partilhar com o marido, sabia que ele não titubearia quanto a revelar a identidade da hóspede na morada da floresta. William costumava esquivar-se das perguntas com humor ou crítica. Às vezes, ambos. Nunca revelava nada além do que dissera ao chegar: quarenta soldados do rei e algumas mulheres acomodaram-se no feudo, e não sairiam antes da primavera.

Nada mais.

A trilha secreta devia estar um tanto oculta pelos efeitos rigorosos da estação, e não ressurgiria até a primavera. Assim, Catherine deixara de lado a tentação. Nos próximos meses, o mistério que William trouxera da corte de Henrique Plantagenet permaneceria desconhecido e isolado no mundo congelado.

Naquela manhã em particular, os vigias estavam impacientes para serem rendidos pelos colegas, uma vez que o frio doía-lheS os ossos. De quando em quando, olhavam para o lugar onde a escadaria estreita percorria os três pavimentos da torre.

William emergiu da escada, enrolado em seu pesado manto, descabelado e de rosto lavado. Sorriu para Catherine e inclinou a cabeça para divertir Alflega. Em seguida, chamou um dos guardas.

— Tudo calmo?

Um rapaz, cuja juventude causava piedade a Catherine, respondeu depressa:

— Não vimos ninguém, exceto os soldados do rei.

— Onde?

— Na curva do rio, antes de adentrarem _a floresta. William juntou-se a eles no degrau mais alto da plataforma de madeira que circundava todo o platô.

— Eram dois?

— Três, desta vez. Não fizeram sinal, e logo desapareceram na vegetação.

— Bom. — William desceu e foi ao encontro de Catherine, no parapeito. — Está mais acostumada a viver na torre? Tem de admitir que é ótimo acordar e ver este mundo vasto todas as manhãs.

— Sim, é impressionante mesmo. — Catherine olhou o rio pela última vez e entregou a criança a William. — Está esperando algum sinal dos soldados?

Ele aconchegou a filha, protegendo-a do vento.

— Nosso combinado, Catherine, foi de não falar dos homens do rei. Não é bom para nós.

— Um dia, quando estiver velho, vou obrigá-lo a me contar tudo o que já fez por Henrique.

— Quando a época for melhor e o rei estiver em paz, direi tudo o que quiser saber. Juro.

— Sendo assim, cuide-se bem, pois eu o quero vivo para cumprir sua promessa.

Alflega encolheu-se nos braços do pai.

— Ela está com frio — William deduziu. Segurou o braço de Catherine e guiou-a à escadaria. — Cumprirei outra promessa hoje. Osbert está fazendo uma porta. Os sentinelas não nos acordarão durante a noite, quando passarem.

Tomando a dianteira, William desceu os degraus em espiral e entrou nos aposentos que ocupavam quase o pavimento inteiro. A luminosidade diurna entrava pelas seis aberturas verticais das paredes cinza. Do leste, a claridade atravessava o quarto para tombar nas colunas da curva interna das pedras.

— Se mudarmos a cama, teremos a luz do amanhecer em nossos rostos todos os dias, William.

— Seria melhor deixá-la aqui, onde podemos ver a porta. A voz de Osbert ecoou na escadaria. Instantes depois, uma porta de madeira maciça surgiu.

— Que rapidez!

Osbert enxugou o suor da testa e assentiu, obediente, a William.

— Eu não a fiz, senhor. Peguei a porta no depósito de grãos e cortei-a na medida exata.

Catherine deslizou os dedos sobre a madeira marcada.

— E o que irá usar no depósito?

— A porta velha do estábulo. É forte o bastante para manter os animais longe da cabana. Nós a salvamos do incêndio. — Osbert chamou Radulf e posicionou a porta.—Esta é resistente ao fogo. Foi tudo o que restou da capela. Eu mesmo a usei para fazer um abrigo no primeiro inverno depois da batalha.

— Onde? Na floresta?

— Não, milorde. Temíamos que os homens de Henrique entrassem na mata para nos procurar e nos acusar de caçar os cervos do rei.

— Como se esconderam, então?

— Usamos esta porta no abrigo das ovelhas. Nós nos escondemos na pastagem onde dormem os mortos. Achamos que os túmulos assustariam os soldados de Plantagenet. Funcionou, porque estou vivo até hoje. E Radulf também. — Osbert olhou para trás e assentiu. — Ótimo. Os ganchos para barrar a porta ainda estão no lugar. Pensei que estivessem quebrados.

A importância das palavras de Osbert atingiu Catherine no instante seguinte. Sentou-se na cama desarrumada e esforçou-se para não relembrar a razão de a porta do quarto não existir.

William segurou Alflega com o braço esquerdo e pôs-se a ajudar Osbert.

— Volte depois do meio-dia para instalá-la.

— Milorde, eu trouxe todo o material comigo. Posso terminar agora, se...

— Não. Mais tarde.

Osbert olhou para Catherine e deu de ombros.

— Como quiser.

— Obrigado. — William virou-se para sua mulher, depois que o aldeão retirou-se. — Desculpe-me. Não medi as conseqüências quando comecei a questioná-lo.

— A porta deve ter sido destruída no dia em que eles morreram. — Catherine esquadrinhou o cômodo, esperando avistar restos de sangue nas paredes. — Eu não estava aqui e, portanto, não vi como...

— Lamento muito.

— Você também não estava, William.

— Devia ter mandado instalar a porta antes de nos mudarmos para cá. A lembrança agora a faz sofrer. — William colocou Alflega na palha limpa que Hadwen espalhara pelo chão.

A criança ficou sentada, olhando para o pai e a mãe. Pela filha, Catherine ensaiou um sorriso.

— Foi há muito tempo.

— Catherine, se precisar voltar ao salão, daremos um jeito. Dobrarei o número de sentinelas na paliçada.

— Os homens não agüentarão o rigor do inverno, William. Se acha que Alflega está mais segura aqui, vamos ficar. Os fantasmas do passado entenderão.

— Sim. Dentre todas as almas, eles entenderão. — William examinou os ganchos de ferro presos na parede. — Hadwen está no salão?

— Creio que sim.

— Eu a levarei à abadia amanhã, se isso lhe agrada. Pedirei a Hadwen que cuide de Alflega. Não devemos expor a criança a tamanha friagem.

— Ela ficará feliz com Hadwen. — Catherine pegou a filha. — Não é, meu amor? Quer ver Hadwen?

— A cavalgada será difícil, por causa do clima. Suas botas estão secas?

— Penso que sim. Se não estiverem, pedirei emprestado um par de botas para alguém.

— Encontre o melhor par e vista seu manto brilhante. Jurei à abadessa que cuidaria bem de você. Se ela a vir com botas surradas, pode não deixá-la voltar para casa.

— Não se lhe der a moeda de ouro.

— A abadessa aceitará a doação e, em seguida, irá me acusar de ser um marido negligente e pegará você de volta.

— Depois que a conhecer melhor, verá que não é tão severa.

— Catherine, não tenho coragem de conhecê-la melhor. Precisei de todo meu valor para pedir-lhe permissão para me casar com você, naquele dia. As ameaças que a madre fez, caso a maltratasse, poderiam assustar até o rei.

— Acredito. A abadia não foi saqueada após a rebelião.

— Nesse caso, é ela que você precisa consultar, se quiser me roubar das guerras do rei.

Catherine fitou-o, séria.

— E o que pretendo fazer, William. Pode ter certeza disso. A madre Alflega saberá me aconselhar.

 

Catherine acordou uma hora antes do alvorecer e observou William movimentar-se pelo quarto. Sob a fraca luminosidade da lareira, ele quebrou a fina camada de gelo da água no balde e levou o recipiente para perto da grade de ferro. As brasas tornaram-se chamas amareladas quando deu vida às labaredas e inseriu mais lenha.

Em seguida, ajoelhou-se ao lado do balde, jogou água no rosto e secou-se antes de molhar o pano e banhar o corpo. Sob as cobertas, Catherine estremeceu ao escutar o som que os pedaços de gelo faziam ao chocar-se com a parede do balde. Cada vez que o pano gelado tocava William, ela sentia o frio dominá-la. Mesmo assim, não conseguiu desviar o olhar.

Enquanto a lenha queimava, as chamas ressaltava as linhas musculosas do torso viril e sombreava as tantas cicatrizes que Catherine passara a conhecer. A penumbra, mesmo a pior das marcas, a da flecha que quase o matara, não era tão óbvia. Conhecera o rosto de William antes da batalha em Chinon, quando ele usara sua espada pela primeira vez a serviço de Plantagenet.

John contara, numa noite primaveril, como a sorte da família de William mudara devido as questões com o rei Capet, em Paris. O talento do pai de William e dos irmãos mais velhos no campo de batalha proporcionou abrigo a todos no domínio de Geoffrey d'Anjou, e deu a oportunidade ao jovem William de Macon de mostrar a própria habilidade com a espada ao herdeiro d'Anjou, Henrique Plantagenet.

O sargento também revelara que William, em tenra idade, juntou-se a Plantagenet, quando ele atravessara a Inglaterra, dez anos atrás, para impor seu controle sobre o barões ainda fiéis ao falecido rei Stephen. Cedo demais, testemunhou a violência de Plantagenet, que quase destruiu Nottingham e Lundale.

Se William tivesse pertencido ao exército de Plantagenet naquele dia maldito em que Lundale foi massacrada, conseguiriam os aldeões aceitá-lo nesse momento como senhor?

Catherine encolheu-se no calor das cobertas, pensando nos primeiros dias que marcaram o retorno a Lundale. Osbert, Hadwen e os que sobreviveram à devastação do feudo haviam se refugiado na floresta, voltaram por lealdade a ela e com a esperança de que o sustento de todos pudesse ser restaurado. Se Osbert e os demais não houvessem gostado de William de Macon, teriam fugido para a mata logo na primeira semana de restauração de Lundale.

Agora que William estaria em casa durante o inverno e iniciaria a estratégia de defesa que pretendia, os aldeões e os pastores pareciam satisfeitos com o novo lorde. Ninguém desertara o feudo, e falava-se de outras famílias que manifestavam o desejo de retornar.

Catherine suspirou. Ela também estava satisfeita com William de Macon, e confiava tanto nele que deixara de lado as suspeitas relacionadas ao mistério da casa da floresta.

O povo decidira confiar em William de Macon. E Catherine queria dar-lhe o benefício da dúvida.

Por enquanto.

Observou-o vestir a calça e a túnica, e o pesado casaco preto. Ele pegou as botas e andou até a porta, movendo-se em silêncio ao passar pelo berço e pela cama. Catherine fechou os olhos e tornou a dormir.

Do outro lado do quarto, não muito próxima à lareira, Alflega ressonava em seu berço.

Catherine sentou-se, assustada, quando William tocou-lhe os lábios com o dedo, pedindo silêncio.

— Ela está bem — disse ele, ao aproximar-se da filha. — Vamos deixá-la dormindo até que Hadwen venha.

Pelas aberturas verticais das paredes, o vento noturno fazia as chamas da lareira dançar. O ar chegava frio e recendia o odor de neve.

Com os cabelos molhados devido ao banho matutino, William segurava uma ânfora com água quente.

— Vi você tomando banho com água gelada — Catherine confessou. — Não tive ânimo de fazer o mesmo.

— Não foi fácil. Estava frio demais. E eu não suportaria vê-la nessa situação. — Deixou a ânfora ao lado do fogo. — Há pão e queijo lá embaixo, e Hadwen está esperando para vir pegar Alflega.

— Ainda temos um momento, creio.

Um breve instante se passou, antes de ela sentir mãos afoitas agarrando-lhe a cintura.

— Catherine... — William murmurou e, hesitante, cobriu os lábios entreabertos com os dele.

O beijo não foi o que Catherine imaginara. A inusitada sensação causada pelo toque, a princípio suave, propagou-se por todo lado. Era como se as almas de ambos estivessem à mercê de alguma força passional que as fundia em uma única entidade. Catherine nunca mais estaria sozinha. Jamais voltaria a sonhar e imaginar como seria amar alguém ou sentir-se a metade de um todo.

Sem perceber, soltou um pequeno gemido de prazer. William incrementou o beijo, agora devorador, e estreitou o abraço. Com uma das mãos segurou-lhe a nuca, mas a outra permaneceu moldada à cintura fina. Aproximou-se, colando seu corpo no dela.

Nada mais importava para Catherine. Cada dia terrível que vivera, cada momento de solidão desapareceu quando os lábios de William tocaram os dela.

Ele afagava-lhe a cintura, e colou-a junto a si. O beijo tornou-se mais apaixonado, e Catherine estremeceu com a emoção causada pelo contato íntimo. Moveu-se devagar. Escutou-o gemendo, enquanto brumas de volúpia fluíam dentro dela e ao redor, unindo-os em uma esfera de pura excitação.

Ao sentir as mãos se movendo, Catherine percebeu que os laços se soltaram, despindo-a da roupa de linho branco. Dedos ansiosos, ávidos por tocá-la, percorriam a pele nua e acariciavam os seios.

Em um segundo, viu-se na cama, com William sobre ela, passando a explorar-lhe cada curva. Os lábios viajavam pela região sensível do pescoço, descendo até a altura dos seios, onde tremores intensos se originavam fazendo-a sussurrar de prazer. A respiração tornou-se ofegante quando ele sugou seus mamilos.

— William... — o chamado soou como uma súplica para que ele a levasse a lugares inimagináveis.

Para além da realidade da vida, muito além do destino que a aguardava. Tudo o que ela queria era aquele momento único, era senti-lo por inteiro.

Quando Catherine puxou a barra da túnica, William retirou o traje. Os pêlos acastanhados do tórax avantajado roçaram os seios, excitando-os ainda mais. Catherine acariciou-o e, para sua surpresa, notou que William reagia do mesmo modo que ela quando tocado.

No instante em que ela beijou-lhe a pele, ele gemeu.

Um balbucio emergiu do berço. William recuou, ofegante.

Esperou alguns instantes para acalmar as batidas descompassadas do coração. Assim que se sentiu mais calmo, passou a conversar com a filha, como se ela tudo entendesse, dizendo que Hadwen viria buscá-la para o desjejum de mingau e leite.

Catherine escutava-o, enquanto lavava o rosto com água quente e ervas para livrar-se também da louca excitação. Notou que William tomara a criança nos braços e caminhava pelo quarto, cantarolando uma melodia militar que Catherine precisaria, um dia, encorajar a filha a esquecer.

Depois de banhar-se, aproximou-se do braseiro para vestir a saia verde. William levou Alflega para ver a mãe abrir o baú de roupas e vasculhar o conteúdo. Ele colocou a filha na cama e foi pegar as botas secas e limpas de Catherine.

— Hadwen disse que precisou deixá-las horas perto do fogo, pois estavam ensopadas.

— Isso aconteceu há dias. Eu tropecei no rio, só isso. Catherine apanhou as botas e sentou-se para colocá-las. William abaixou-se diante dela.

— Não force a mão machucada. — E passou a auxiliá-la. No leito, Alflega olhou para os pés da mãe e, depois, para os próprios.

— Estava um pouco fora de época para passear no rio, Catherine. Você caiu?

— Pisei numa pedra solta. Nada mais. William segurou a outra bota.

— Quando sua mão sarar e você voltar a montar, talvez não deva cavalgar sozinha pelo rio. É perigoso. Osbert diz que alguém sempre se afoga, uma pessoa por geração.

— É uma lenda antiga. Ninguém morre no rio. E não sou do tipo que se afoga, William. Nem sempre sou desastrada.

— É claro que não.

— Mas, se quiser me levar para passear em sua sela, ficarei muito contente.

— Assim que sua mão sarar, terei de esconder as botas para que não saia sozinha. Fico muito preocupado com sua segurança, Catherine.

— Os salteadores se foram. Não havia sinal deles. Lembra-se de que me garantiu isso?

— Em Nottingham eu saberia algo sobre os sujeitos que achacaram a abadessa. O que me intriga é que nenhum soldado avistou movimento algum na estrada naquele dia. É uma época propícia para problemas, mas não tivemos mais que uma ovelha roubada. Em minha opinião, isso é mais perturbador que os ladrões de sempre.

— Não tivemos problemas ano passado. Devem ter espalhado pela região que você deixou uma guarnição em Lundale.

— Nesse caso, os espiões dos ladrões de gado nos fizeram um favor. Se pegar algum, eu me lembrarei disso.

— Continuará a procurar assaltantes? Na floresta? — Catherine escolheu as palavras com cuidado: — Ainda há pessoas vivendo na mata. Observam o que fazemos e saem para negociar com os pastores, de tempos em tempos. Elas não têm nada a ver com ladrões.

— Quem são?

— Moradores de Lundale que não voltaram à aldeia. Construíram abrigos entre as árvores e lá vivem. Os aldeões trocam pão, grãos e tecidos por carnes e peles que o povo da floresta obtém na campina.

— Estão matando os animais do rei.

— A mata é repleta de bichos. O rei nunca vem aqui, e não sentirá falta do que eles consomem. — Catherine tocou o ombro de William. — Eles viram os homens do rei na casa principal e abandonaram aquela parte. Rezo para que os soldados não os persigam.

— Parece bem informada acerca dos movimentos e intenções do povo, minha mulher. É Osbert quem lhe traz mensagens?

— Não. Ninguém em particular.

— Lógico. Então, espalhe a "ninguém em particular" que preciso saber se algum estranho apareceu na região. Pagarei bem por qualquer informação.

Aquele seria o momento ideal para perguntar-lhe por que uma mulher usando roupas nobres caminhava na floresta com homens armados para protegê-la. Ou guardá-la. Ou escondê-la dos parentes.

Não, a jovem não era o estranho que ele procurava. William a conhecia...

Catherine voltou a atenção ao presente.

— Os soldados não podem se defender sozinhos, William? Quarenta homens não soarão o alarme, se uns ladrões famintos tentarem roubar o pão deles? Deve haver algo mais que o perturba.

— Meu objetivo é evitar derramamento de sangue, Catherine. Não escolhi trazer os homens do rei, mas devemos cumprir tais ordens ou cair em desgraça... ou em perigo maior. Vai me ajudar?

— Irá confiar em mim?

Ele olhou as aberturas nas paredes e meneou a cabeça.

— O sol já está alto e devemos partir.

Alflega ergueu os bracinhos e sorriu, quando o pai a carregou.

Catherine apanhou o manto e seguiu-o. Saíra em desvantagem daquela rápida conversa. Por enquanto, não tinha como saber o que lhe escapara.

Cinco homens da guarnição os acompanhavam, dois à frente e três atrás do cavalo de William. Acomodada no colo do marido e com um cobertor para confortá-la na sela, Catherine apreciava a floresta, ao passar pelas árvores centenárias.

Embora tantas vezes houvesse viajado por aquela estrada, nunca, desde a infância, dera-se ao luxo de ignorar o trajeto e espiar a densa vegetação que permeava os carvalhos sagrados.

Atravessaram o local onde um pequeno desvio levava à moradia da floresta. Os batedores nem sequer viraram o rosto para aquela trilha, tampouco William falou a respeito. Muito menos pareceu surpreso quando alguns homens surgiram, pouco além do desvio.

Deviam ser os soldados do rei. Catherine fitou os três mal-encarados que, em seus cavalos, emergiram das árvores para desafiar qualquer intruso. No dia em que William retornara, os quatro que a bloquearam na estrada pareceram tão ameaçadores quanto aqueles três.

Quarenta homens seriam capazes de apavorar até o mais corajoso dos ladrões. Por isso, os salteadores desistiram dos rebanhos de Lundale.

Após um gesto sutil de William, eles desapareceram na floresta. Um instante depois, tudo ficou em silêncio.

Catherine estremeceu. Não devia imaginar que havia fantasmas em meio à bruma, repreendeu-se.

William esporeou a montaria.

— A guarnição sabe quem são eles?—Catherine perguntou, apontando a passagem onde os soldados haviam estado.

— A guarnição?

— Sim. A guarnição de Lundale e os homens do rei. Como consegue impedir o confronto dos dois pelotões nas estradas?

— Todos sabem que não podem se aproximar — William explicou-lhe. — E se satisfazem com esse comando simples.

— Mas sua esposa, não.

— Minha esposa curiosa, não.

A medida que se dirigiam para o sul, o caminho se alargava. Os raios solares invadiam os espaços entre a copa das árvores. Naquela parte da mata, um viajante poderia passar tranqüilo e uma carroça poderia atravessar livre, sem maiores imprevistos.

— Não gosto desta parte da floresta.

— Eu, sim, William. A luz é forte, e pode-se enxergar qualquer um a distância.

— Os desordeiros pararam a abadessa não muito longe daqui. — Ele olhou para trás. — Está silencioso demais.

— Culpe seus soldados. Aqueles homens carrancudos do rei devem silenciar até os corvos.

William soltou uma risada divertida.

— Se os corvos estão calados é porque a abadessa os espantou há muito tempo.

 

No desvio seguinte, onde um aglomerado de pedras demarcava a estrada da abadia, William fez um sinal para os batedores e liderou o trajeto pela trilha estreita.

— Quando aqui estive pela primeira vez — ele contou —, a chuva caía tão forte que meu cavalo quase trombou na pilha de pedras. John e eu descemos a estrada à procura de abrigo e encontramos a abadia.

William baixou o tom de voz.

— E você estava lá, Catherine. Um dia, descobrirei quem empilhou aquelas pedras e lhe darei uma peça de ouro.

— Não vai esperar para ver se será feliz com a mulher que tomou como esposa?

William hesitou.

— Eu deveria fazê-lo. Em vinte anos, Catherine, lembre-me de decidir entre a moeda de ouro e um bando de corvos.

Vinte anos. As palavras foram pronunciadas com tanta espontaneidade...

— Veja, Catherine! Lá está ela.

No princípio, Catherine pensou ter visto uma criança parada diante dos portões da abadia. Havia esquecido, durante os meses de sua nova vida em Lundale, quão pequena era a abadessa, madre Alflega, e quão delicadas eram suas feições.

— Então, conseguiram chegar até aqui. Passei a manhã inteira perguntando-me se vocês nos tinham virado as costas e nos abandonado à própria sorte.

Sim. Catherine esquecera muitas coisas nos últimos meses. Magra e de uma beleza peculiar. Voz melodiosa e indelicada ao mesmo tempo. E, como sempre, a mulher transmitia segurança, absoluta segurança.

— Sabia que estávamos vindo?

O olhar da madre Alflega fixou-se em William.

— Acha que não consigo informações precisas só porque me encontro longe do centro dos acontecimentos? Tenho meus meios de descobrir certas coisas. Vamos entrar. Está frio.

Catherine riu consigo mesma ao escutar um pedido de desculpas de William.

A abadessa rejeitou a mão que o batedor lhe estendia.

— Estou velha demais para montar numa besta. — Ela deu risada quando notou o semblante aturdido do homem. — Montar num cavalo, rapaz. Como pôde pensar numa barbaridade dessas? William de Macon, fui ofendida por um de seus homens. Agora, entremos.

A madre Alflega caminhou em direção aos portões.

— Minha senhora abadessa, gostaria de ocupar seu lugar junto a Catherine na sela? — William sugeriu, educado.

Ela se virou, impaciente.

— Tornei-me ainda mais velha na última quinzena. Não me sento mais em selas.

— Mas a senhora tem uma boa sela e uma ótima mula — Catherine comentou.

— Não mais. A besta e a sela se foram.

— Os salteadores as roubaram?

— Acredita que eu permitiria tal afronta?

— Não — William respondeu. — Mas tais coisas podem acontecer e...

— Só aos descuidados — advertiu a abadessa. — Vou lhe dizer. Dei a mula ao padre Adelbertus e mandei-o ao sul para ter com o rei.

— Ah...

— Não quer saber a razão, William de Macon?

— Sim, madre.

Catherine jamais vira o marido expressar tamanha submissão. Estava surpresa.

— Eu tinha alguns conselhos a dar a Henrique Plantagenet referentes à problemática com os bispos. Haverá sérios entraves se o rei continuar a interferir nos assuntos dos padres.

— Sim, há problemas chegando — William concordou.

— Eles não chegam aos reis, meu jovem — proferiu a madre Alflega. — Os soberanos os criam, e quando a corda arrebenta, nós é que sofremos as conseqüências.

— Entendo...

Catherine suprimiu um sorriso.

— Se Henrique Plantagenet continuar a brigar com aquele arcebispo de Canterbury, criará mais confusão do que imagina.

A abadessa tirou o capuz. Os cabelos loiros já estavam repletos de fios brancos.

— Por isso, coloquei Adelbertus naquela mula e enviei com ele meu conselho. O rei ouvirá ou não. Se não ouvir, não poderei fazer mais nada. Estou velha, e é um fardo pesado demais me envolver com política. — Fechou o manto, suspirando. — E minha idade não me permite ficar tanto tempo longe do fogo. Preciso retornar à abadia.

A madre Alflega marchou em direção aos portões.

— Não podemos deixá-la andar, enquanto seguimos confortáveis nos cavalos — William protestou.

— Ela quer que desmontemos e puxemos os cavalos — Catherine explicou-lhe. — Por favor, façamos do jeito dela.

— Está bem. Sente-se em meu joelho que eu a ajudo a descer.

— Seu joelho está...

— Recuperado. — William abraçou-a pela cintura. — Mesmo que não estivesse, você e eu teríamos de desmontar de algum jeito para caminhar com sua abadessa. Vamos. Ela parou. Está a nossa espera.

William a sentou no joelho e desceu-a até o chão. Em seguida, ordenou que os batedores permanecessem montados e apeou. Puxando as rédeas do cavalo, ele e Catherine alcançaram madre Alflega.

— Há certos assuntos que precisamos discutir, William de Macon. Eu esperava vê-lo semanas atrás.

— Minha senhora, houve alguns imprevistos. Os guardas de Henrique estão sendo úteis para proteger a abadia?

— Estão, obrigada. São diligentes e educados, e muito me divertem com suas histórias a respeito de guerras e intrigas.

Catherine maravilhou-se ao notar que o sorriso de William não falseou ante tais palavras.

— Vou recomendá-los e pedir-lhes que me contem as histórias que mais divertiram a senhora.

— Sei. — A madre segurou o braço dele e tornou a marchar até os portões. — Há outras questões que envolvem o jovem Plantagenet. Além de ignorar os bispos, ele está planejando a invasão de Gales. Sim, Gales. Mas creio que você já sabia.

William pigarreou.

— Não sei o que se passa na mente do rei, madre. Ele conseguiu acabar com as rebeliões na Normandia, e em Brittany este ano...

— Henrique Plantagenet passou o verão inteiro amuado. Ninguém sabia onde encontrá-lo. Surpreende-me que os barões ainda lembrem o nome dele.

— Isso não é verdade, senhora. O rei mostrou grande interesse pela Inglaterra.

— Como eu disse, Plantagenet se esquivou de seus deveres o verão todo. Podia ter passado mais tempo onde os barões pudessem encontrá-lo, e não vadiando pelo país, como se o povo fosse o caçador, e ele, a presa.

Catherine observava, compadecida, a tentativa de William de tratar a abadessa com respeito, a despeito do comentário subversivo.

— A senhora está a par dos hábitos do rei, madre Tem amigos na corte?

— Não conheço ninguém, exceto aqueles que cavalgam por estas bandas há dez anos, sir William. Nossos encontros não foram cordiais.

Catherine adiantou-se e segurou o outro braço da abadessa.

— William sabe tudo a respeito da invasão de Lundale, madre Alflega.

Enfim, atingiram os portões da abadia. William acenou para os cinco soldados que haviam montado acampamento diante da paliçada e prometeu juntar-se a eles mais tarde.

— Os homens devem ter passado frio esta noite.

— Alguns estiveram no refeitório ontem — a madre Alflega contou. — Não ficaram mais de uma hora, apesar de nossa insistência.

Catherine notou a diversão sutil no semblante de William. Ele a escoltou até a porta da abadia e curvou-se para se despedir. A madre Alflega agarrou-o pelo braço.

— Vamos conversar agora, William de Macon. Ele indicou o cavalo.

— Mais tarde, se a senhora preferir. Tenho de...

— Deixe o animal com seus homens e venha comigo. — Olhou para Catherine. — Vá falar com Alice. Ela agora dorme no cômodo que você ocupava. E irmã Birgetta está no refeitório. Encontre-nos no jardim dentro de uma hora ou mais.

Catherine permaneceu à entrada da abadia, observando o marido guerreiro ser arrastado pela pequena abadessa. Os cincos batedores pareciam indecisos.

— Não se preocupem. — Catherine sorriu. — Seu senhor está perfeitamente seguro.

Catherine atravessou o saguão, onde uma porta dava acesso aos quartos das freiras da abadia e dos órfãos, cujo número crescera na última década. Percorreu a passagem do claustro e escutou os sons familiares das crianças, das ovelhas e das galinhas.

Aquela construção mudara muito pouco no correr dos anos. Catherine dirigiu-se ao humilde cômodo em que vivera desde a infância. Encontrou Alice, a órfã mais nova que fora entregue à proteção da abadessa na época de matança, sentada na cama de palha. Estava tão pálida quanto uma pomba branca.

Desde que a conhecera, Catherine jamais vira Alice enclausurada no quarto. Pelo jeito, a jovem abandonara velhos hábitos.

— Está doente, Alice?

— Catherine!

Ela se sentou e abraçou Alice.

— Nunca a vi tão desanimada. Algo a perturba?

— Agora não mais. Mas não me atrevo a ir ao jardim. Só sairei daqui quando os soldados de seu marido encontrarem os bandidos.

— Era você quem estava com a madre Alflega naquele dia fatídico. — Catherine tentou confortar a jovem. — Eles já devem ter fugido, querida. Os soldados vasculharam todas as estradas da região e não encontraram nada.

Catherine fitou a mocinha nos olhos.

— Eles a feriram? Eu soube que a prenderam por alguns instantes e depois partiram. É verdade?

— A madre Alflega os assustou.

— Não imagino como.

O riso de Alice tornou-se gargalhada e, em seguida, lágrimas.

— Foi horrível, Catherine. Não faz ideia. — Tentou conter o choro. — Ou talvez você possa imaginar, já que agora é casada.

O coração de Catherine se apertou.

— Alice, o homem a violentou?

— Não. Mas arrancou meu casaco e passou a mão em minha barriga, como se eu fosse um dos cachorros de irmã Birgetta à espera de um afago.

Catherine respirou fundo, aliviada.

— Ele fez só isso? Esfregou sua barriga e ouviu um sermão da abadessa? Devia ser louco.

— Não era, não. Era estrangeiro. Afastou-se de mim, disse algo aos companheiros e se foi. O padre também.

— Sim, ouvi dizer que havia um padre. Ele não fez nada para impedir que o homem a tocasse?

— Não. Nem sequer fitou a madre Alflega de soslaio, quando ela cobrou os votos religiosos.

— Alice, não pode passar o resto da vida fechada aqui dentro. Não é seguro passear pelo jardim?

— A madre Alflega disse que não. Ela acha que estão procurando uma jovem parecida comigo e teme que possam me ver a distância e cometer outros ultrajes. Oh, Catherine, estou tão apavorada! A noite, eu os escuto na floresta, do outro lado da paliçada.

— Calma, querida. A madre está conversando com meu marido. Se a abadia estiver desprotegida, ele mandará mais soldados.

— Acho que é o começo de uma guerra, Catherine. Seu marido levou um pequeno exército a Lundale. Deve haver um motivo. Passaremos por tudo aquilo de novo? Perderemos o pouco que nos restou?!

No final, Catherine não esperou uma hora para encontrar a madre Alflega e William no jardim. Em princípio, não os avistou no banco de madeira próximo ao muro que protegia a horta do vento e dos animais silvestres.

— Não há nada mais que precise saber — William dizia.

— Meu jovem, o que quer que esteja fazendo pelo rei, não devia tê-lo começado sem me consultar.

Catherine sentiu-se mais confiante. Mesmo a madre Alflega tinha dificuldades para interrogar William. Manteve-se longe, entre a cerca-viva de alecrim e os arbustos. Perguntou-se quem cuidava dos lilases, agora que morava em Lundale.

— Posso deduzir o que está fazendo na casa da floresta e sei que é algo arriscado. Tenho certeza. Também já corri riscos, mas sempre por uma boa razão.

— Há uma boa razão, a qual a senhora não pode saber, para tudo o que estou fazendo.

— Já sei o suficiente para alertá-lo de que deve pensar em sua filha antes de aceitar ordens de Henrique Plantagenet.

— Tenho muito apreço por minha filha. Como pode duvidar disso?

— Jurou proteger Catherine, William de Macon. É tudo o que ela tem no mundo, você e aquele primo destemperado.

— Estou comprometido com minha missão pelos próximos meses, e não posso retroceder agora. Na primavera, poderei parar para pensar e farei um planejamento.

—Não estou contente. Devia ter vindo a mim para me contar tudo. Deixei Catherine sob sua responsabilidade.

— E jurei protegê-la. É o que estou fazendo. Catherine e nossa filha não precisam de nada.

A madre Alflega olhou em direção ao alecrim.

— Catherine! Venha sentar-se conosco.

Ela se aproximou do banco, receando escutar as palavras seguintes da abadessa. William permanecia quieto, olhando para os pés.

Ele falara a respeito de provê-la. Estaria planejando deixar a Inglaterra e nunca mais voltar? Ela e a filha estariam destinadas a viver na abadia, abandonadas por William, que insistia em atender o rei sem pestanejar?

— Que expressão séria é essa, Catherine. Encontrou irmã Birgetta?

— Estive com Alice. A pobrezinha está doente de medo. A abadessa fez um gesto de desdém.

— Alice está sempre com medo.

Catherine apelou para a coragem. Não havia momento melhor que aquele para observar a reação de William ao dizer o que lhe ocorria.

— Ela me contou o que aconteceu. Disse que os homens falavam num idioma estrangeiro e que o padre observava um dos bandidos tratar Alice com brutalidade. Ela acreditou que a violentariam.

Naquele instante, o semblante da madre Alflega pareceu mais envelhecido devido à aflição.

— Eu também, filha. Eu também.

— Acredito que havia outra intenção. Eles procuravam uma mulher grávida.

William olhou para cima.

— O homem que achacou Alice tirou-lhe o casaco e apalpou o ventre dela. Em seguida, foi-se sem olhar para trás. Creio que o safardana procurava uma moça grávida.

— E possível.

William dirigiu-se à madre Alflega:

— A senhora entendia o que falavam? Que idioma usavam?

— Não era francês ou flamengo. Nunca escutei palavras como aquelas. Não era latim...

William sorriu.

— Os malditos salteadores não costumam negociar em latim, madre.

— Não blasfeme em minha presença! O sorriso se alargou.

— Vou me lembrar disso.

— Quanto à língua dos ladrões — a madre Alflega prosseguiu — creio ser escocês. Ou galês. Impossível determinar a diferença.

William procurava disfarçar seus temores. Catherine desviou o olhar, não querendo que o marido percebesse que o observava com muita atenção.

William estivera lutando em Gales, embora a guerra do rei ainda não tivesse iniciado. No território selvagem para além de Hereford, obtivera ferimentos profundos numa breve emboscada. E, por fim, com os machucados ainda por cicatrizar, levara um pequeno exército e uma grávida à casa da floresta.

Era quase impossível que William mantivesse a jovem como refém e que os parentes dela houvessem enviado homens armados a Lundale para procurar a filha desaparecida. E grávida.

Não. Embora não conhecesse tão bem William, Catherine não acreditava que seria capaz de raptar uma mulher.

Se, de fato, escondera uma refém no norte, ele o fizera para cumprir as ordens do rei Henrique. Se assim foi, William nada lhe contaria.

Seus pensamentos focaram sua filha e os cinco homens armados que permaneceram em Lundale para proteger a criança. Quantos ladrões aguardariam na floresta, enquanto os companheiros atacavam a abadessa? Quantos seriam necessários para vasculhar Lundale?

A despeito do frio, a cerca de alecrim exalava sua fragrância. Catherine sentia falta daquela essência familiar e da segurança da abadia. Agora precisava rezar para não ser obrigada a voltar a morar perto daquele jardim, que tanto amava.

Em breve, antes que enlouquecesse de medo, teria de confrontar William acerca da grávida da mata.

William levantou-se e tomou o braço da abadessa.

— Está esfriando demais.

— Sim. Lá dentro conversaremos sobre outros temas. — A madre Alflega conduziu-os ao refeitório.

Nos fundos do salão, onde se localizava seu próprio quarto, ela pediu-lhes que aguardassem.

Três órfãs achavam-se sentadas em seus teares nas proximidades da lareira. O som de sussurros e risos reverberava pelo ambiente. William sorriu para elas. Os risos cessaram.

— Sente saudade daqui? — ele perguntou com cortesia, como se não tivesse segredos para a esposa. Como se gostasse dela.

— Sinto, sim, William. Não tive tempo de me despedir, no dia em que nos casamos.

A abadessa retornou e convidou-os para entrar no cômodo. Sob a janela fechada, a mesa encontrava-se arrumada, e na superfície de madeira jazia um saco de couro.

— Sua herança, minha filha. Levei anos, mas consegui, enfim, recuperá-la das mãos dos ourives de Nottingham. Disse-lhes que você havia se casado com um cavaleiro do rei e que era uma vergonha não possuir nenhum dote. — A madre fez uma pausa. — E disse uma coisa ou outra a respeito do judiciário real.

William abriu o saco e franziu o cenho.

— Há prata aqui dentro e algumas peças de ouro. Não é sempre que um homem se casa com uma donzela sem dote e depois torna-se rico.

— Sem dote? — Catherine espantou-se. — Lundale é meu dote.

William fitou-a, confuso. Olhou para a abadessa e, em seguida, para a esposa.

— Lundale teria sido inútil para mim sem você, Catherine. Sua ajuda representou um bom dote.

— Não entendo...

A abadessa ficou nervosa.

— Não remexa no passado, Catherine. Tudo foi feito para o bem.

— Mas a senhora me falou...

— Está casada e de novo em casa. O resto não importa. Tive de obrigar aqueles ladrões de Nottingham a devolver o dinheiro de seu pai. Que mal há nisso?

Ela ergueu o saco, testando seu peso.

— Quinze marcos e duas peças de ouro. No final, os ourives se mostraram honestos.

Catherine cerrou as pálpebras.

— O dinheiro é bem-vindo. Mas no ano passado... eu não fazia parte do contrato de escritura da terra?

William sentou-se ao lado de Catherine e a abraçou.

— Madre Alflega, o que disse a Catherine quando sugeriu que ela se casasse comigo?

Aflita, a abadessa olhou para a porta.

— Estão casados há meses. Têm uma filha. De certo conversaram sobre a escritura e chegaram a um entendimento.

— O que disse a ela no dia em que nos casamos? — William insistiu.

— Que o rei lhe dera Lundale e que você precisava casar-se com Catherine para manter a terra.

— É verdade. — Ele estreitou o abraço. — Sem você, a terra não seria nada para mim. Os aldeões jamais voltariam para atender um estranho.

Catherine afastou-se dele.

— Minha senhora, poderia ser mais clara? Está dizendo que o rei não deu Lundale a William com a condição de que ele se casasse comigo?

— Não examinei a escritura do rei — a abadessa foi evasiva.

— William? Informou à madre que o rei determinara que se casasse comigo?

A surpresa de William não podia ser fingimento.

— Não. Pensei que soubesse...

— Chega! — A madre fechou a porta para as curiosas meninas nos teares não ouvirem. — Vocês dois costumam conversar? Catherine, seu marido não sabia de sua existência quando apareceu na abadia, ano passado. Ele rumava para o norte e parou aqui a fim de perguntar que estrada levava a Lundale. Os assessores do rei em Nottingham leram o contrato e lhe disseram em que direção estavam as terras, mas chovia demais naquela primavera, e as estradas estavam péssimas. William e seu velho escudeiro indagaram-me o caminho. O que eu poderia fazer?

Não houve resposta.

— Deveria ter pedido a um dos meninos que mostrasse o caminho certo a sir William. Mas preferi...

— ...me casar com um desconhecido — Catherine completou a frase e, num rompante, socou a cama com a mão enfaixada.

— Catherine, cuidado com essa...

Ela levou os dedos latejantes ao peito.

— Não doeu.

A abadessa aproximou-se.

— William me pareceu um desconhecido decente, Catherine, e tinha uma escritura selada pelo rei. Certifiquei-me de que não era casado...

— Como?

— Perguntando a ele. E também ao velho... John.

A abadessa empinou o queixo a fim de parecer superior.

— Isso não importa para você. Se importasse, já teriam falado a respeito de quem possui a terra e sob que circunstâncias se casaram. Ambos saíram ganhando com a união. Tiveram uma filha linda, e o povo retornou a Lundale.

Catherine cobriu o rosto. Quantas vezes, nos últimos meses, passara por cima da autoridade de William ao tomar pequenas decisões, certa de que tinha o direito de saber o que era melhor para a recuperação da propriedade? Ele jamais citara o presente do rei, muito menos dissera que ela voltara ao lar porque William assim o quisera, e não por direito legal.

— É um homem muito gentil, William. Nunca me recriminou quando mencionei que as terras eram minhas.

— Catherine, as terras foram suas antes da guerra. E eram inúteis para mim até que você conseguiu tirar os aldeões da floresta para trabalhar na plantação. Tudo isso é a realidade, não gentileza.

William puxou o saco de moedas, aproximando-o dela.

— E agora é uma rica herdeira. Talvez preferisse não ter se casado comigo.

A madre Alflega tocou Catherine.

— Sempre foi rápida ao raciocinar e agir, meu bem. Nunca menti para você. Se tivesse me questionado, eu lhe teria dito o que sabia. Não faz parte de sua natureza, Catherine, lutar contra o que não pode ser mudado.

Ela fitou o semblante imperial da abadessa e os olhos atentos de William. Era piedade que via na expressão do marido?

Se soubesse como examinar as reações de William, Catherine teria reconhecido pena no semblante dele quando se casaram? Compaixão por uma órfã, cuja família escolhera a facção errada numa guerra e passara da prosperidade à morte e desgraça?

Robert pressentira que havia algo estranho. Notara que William a mantivera longe das graças do rei. Longe da corte... Catherine não tinha nada a oferecer além do trabalho com as próprias mãos e a boa vontade dos aldeões.

— Catherine, fale comigo.

— Você tem outra esposa?

— Acha-me um bandido dessa categoria?

— Parece que devo me lembrar de perguntar sempre o óbvio.

— Não tenho outra esposa. Casei-me com você de boa-fé. E cumprirei meus votos.

A imagem da moça na floresta surgiu na memória de Catherine. A dama lhe parecera rica devido às roupas e aos modos. E William a escondera perto de Lundale. Perto dele.

— Já desejou ter outra?

— Por Deus, Catherine...

— Não use o nome do Senhor em vão — ralhou a abadessa.

— Nunca desejei outra mulher. Uma é o bastante. — William depositou o saco de dinheiro na mão boa de Catherine. — Vamos embora. Já passou da hora de começarmos a viagem de retorno.

 

William ordenou que os homens ocupassem as mesmas posições da ida, mas estabeleceu uma distância maior que a anterior.

Se Catherine quisesse conversar, não precisaria ter receio de que alguém a escutasse.

Porém, ela não o quis. Permaneceu sentada na sela com William, mantendo a coluna ereta e o saco de moedas no colo.

Havia esquecido a luva na abadia, e o pano de algodão com o qual aquecera a mão machucada também se perdera. Os dedos da mão boa agarravam o saco de couro, e a pele começava a ficar azulada por causa do frio.

— Eu poderia guardar o saco no alforje da sela — William sugeriu.

Catherine deu de ombros e entregou-lhe o saco.

— É seu William. Faça dele o que quiser.

As palavras soaram cortantes. William amarrou o dinheiro no cinturão da espada e pousou a mão nas costas dela.

— Proteja as mãos sob o manto. Não a deixarei cair.

— Obrigada. Está sendo gentil e lhe sou muito grata.

A fala, distante e formal, era mais assustadora que a quietude de instantes atrás.

— Catherine...

— Poderia, por favor, contar-me o que aconteceu no dia em que nos casamos?

Ele suspirou.

— Nunca quis enganá-la. E eu não sabia que você estava sendo enganada.

— Entendo. Conte-me o que se deu ao conhecer a madre Alflega.

— Se aquela mulher intrometida tivesse ficado calada, estaríamos mais felizes hoje.

— Sei.

William sentiu a espinha de Catherine mais rígida que uma lança nova.

— Quero dizer que a abadessa devia ter ficado quieta hoje. Catherine, se continuar assim, ficará zangada a cada palavra que eu proferir. Só conversaremos se me escutar sem raiva.

— Não estou com raiva de você.

— Então, não fique brava com a abadessa. Ela fez o que achou melhor, e estou feliz por isso. Não me arrependo de estar casado com você. Como poderia? O que me diz, Catherine?

Ela o encarou.

— Estou zangada comigo mesma.

— Por termos nos casado?

— Por não ter me certificado da verdade.

Se, na ocasião, soubesse que o rei não ordenara nosso casamento, teria me aceitado por marido? Catherine tornou a olhar a estrada.

— Creio que sim. E eu me sentiria...

— O quê?

— Agradecida. Humildemente submetida. — Catherine enrolou-se no manto. — Por você.

— Ah...

A zanga de sua esposa diminuía a cada instante. William procurou comentários que traria mais leveza entre eles.

— E para que eu iria querer ficar junto de uma mulher humilde e submissa?

— Para obter paz, conforto, obediência.

— Seria muito bom. Sobretudo obediência.

— Você a terá.

Aquilo foi o pior de tudo. Quando criança na Normandia, William ouvira histórias daqueles que retornavam da morte para ocupar seus lugares diante da lareira. Nunca objetavam quando um ser vivo os tratava sem cortesia. Catherine achava-se num estado semelhante. Por quanto tempo permaneceria fria e quieta?

— Queria saber o que houve quando a vi pela primeira vez?

— Sim, se estiver disposto a me contar.

— Contarei. Foi na primavera. Você lembra?

— Lembro.

— E estava chovendo muito. John e eu apresentamos o contrato de escritura ao administrador do Castelo de Nottingham e solicitamos um guia para nos indicar o caminho para Lundale. Passamos aquela noite no castelo.

William pôs-se a recordar. Fora uma sorte ter parado em Nottingham. A esposa do administrador o visitara à meia-noite e ambos divertiram-se a valer durante a madrugada. Ele obtivera tanto prazer com ela que se sentira satisfeito por um bom tempo- E, por essa razão, havia sido capaz de mostrar respeito a Catherine.

O que teria sido deles, se William houvesse possuído Catherine logo na primeira noite?

— Você pernoitou no castelo — ela repetiu.

O tom de voz o fez recear que talvez Catherine pudesse ter lido seus pensamentos. William pigarreou.

— Sim. E, na manhã seguinte, descobrimos que o guia havia partido em outra jornada.

O rapaz sem dúvida recebera uma oferta melhor. Após a noite de excessos memoráveis, William dormira demais.

— E ninguém estava disponível para nos guiar.

— Quer dizer que você e John resolveram viajar sozinhos.

— Exato. A chuva continuou durante todo o dia, e dormimos numa cervejaria à beira da estrada. Pela manhã, a lama na estrada dificultou a jornada. Conseguimos chegar até o cruzamento da abadia e sentimos cheiro de fumaça. Tomamos aquela trilha, e a madre Alflega nos recebeu à entrada. Deu-nos sopa e falou que pediria a um dos meninos do estábulo para nos mostrar o trajeto a Lundale. Ela se retirou e voltou, pouco depois, sozinha. Então, puxou-me de lado e contou que Lundale estava deserto, que seu povo tinha medo de retornar ao feudo. Temiam que o rei Henrique enviasse um cobrador de impostos. Ou coisa pior.

— Eles testemunharam o pior, quando o exército do rei apareceu.

— Foi o que a madre contou. Disse-me que o povo vivia na floresta e que não haveria ninguém para plantar milho ou cuidar da manutenção dos cômodos. Durante o outono, ela relatou, salteadores dormiam no feudo para assaltar a região.

— E verdade.

William fez uma pausa, procurando os termos adequados.

— Prossiga — Catherine pediu-lhe.

— Bem, a abadessa falou tudo isso duas vezes. E irritou John. Ele sugeriu que eu deixasse o lugar para os vermes e devolvesse a escritura ao rei. Em seguida, a madre Alflega me contou que a filha do antigo senhor vivia ali com ela. E que ficara órfã no último ano do reinado do rei Stephen, durante a empreitada de Henrique Plantagenet para derrubar seus inimigos.

— Os barões tiveram razão ao enfrentar o exército de Plantagenet! — Catherine exclamou. — O rei Stephen jurara entregar a coroa a Plantagenet quando morresse, preterindo seus herdeiros legítimos com esse juramento. Tal promessa representaria o fim das guerras. Porém, Henrique Plantagenet não esperou a morte do velho rei. Quando levou seu exército a Nottingham, não passava de um invasor. Nada mais.

As têmporas de William começaram a latejar. Escutara tais argumentos nas beberagens da sala de guarda quando ainda era um escudeiro.

— Os barões não pretendiam honrar o juramento do rei Stephen. Por isso... — William deteve-se antes que fosse tarde. — Se iniciarmos outra guerra com palavras, não teremos paz em nossa casa. Não tocarei mais nesse assunto.

— Nem eu. — Catherine suspirou. — Pode continuar? Você estava na abadia, e a madre Alflega contou-lhe que eu morava lá.

— Isso mesmo. Indaguei-lhe se você me acompanharia a Lundale para falar com os habitantes e levá-los de volta à aldeia e à plantação. Eu não possuía meios de saber quem eram ou onde encontrá-los. E tampouco tinha esperança de que me escutariam.

— O que a madre respondeu?

— Que não confiaria uma jovem gentil e nobre a mim. Jurei que a trataria com honra e a traria de volta pura e imaculada. Mas a abadessa não acreditou em minhas promessas.

— Não me surpreende.

— Por que diz isso?

— Você era um desconhecido com um documento selado pelo rei. Podia ser um ladrão que roubara o papel de seu dono. Por que ela confiaria em você? — Catherine fez uma pausa. — Mas foi isso o que madre Alflega fez. E eu também.

— Fala como se tivesse sido um erro confiar em mim.

— Não, William. Jamais. Você nunca mentiu para mim. Ainda não.

William endireitou os ombros e puxou Catherine para si. Após uma breve hesitação, ela se acomodou ao tórax musculoso. Para conseguir reconquistar a esposa decepcionada, ele teria de ser cuidadoso.

— Onde parei?

— A madre não confiou em você.

— Certo. Ela me mandou esperar e trouxe um padre para examinar a escritura do rei e nos questionar, a mim e a John, sobre meu passado.

— Refere-se aos problemas de seus pais?

— Sim. Respondi a todas as questões. A rebelião de meu Pai contra o rei Luís da França, sua derrota, nossa fuga para a Normandia e a terra que meu pai lá ganhou. E falei por que o rei me presenteou com Lundale.

— Ela me falou que o rei Henrique deu-lhe o presente por causa de seu valor como guerreiro.

— Esses foram os termos que Sua Majestade usou. Quando a abadessa descreveu-me minhas terras e sua sordidez, passei a entender por que o rei não se livrara de Lundale antes.

Catherine moveu-se na sela. O bom senso dizia a William que ele quase ofendera a própria esposa. Jurou ser mais cauteloso dali em diante.

— Claro, ela não via Lundale fazia anos, e esqueceu-se de quão bem localizado é o feudo e quão fértil é a terra. E muito menos sabia em que estado encontravam-se as construções, após tantos anos.

Era impossível dizer se Catherine estava aborrecida ou não.

— Quer dizer que o padre da abadia leu a escritura?

— Leu, sim, Catherine. E afirmou que o documento fora escrito por um escrivão real e selado pelo rei em pessoa. O padre viu meu nome na escritura e comentou que seria difícil para um ladrão realizar uma falsificação tão perfeita. Fiquei cansado do interrogatório, peguei o documento e disse-lhes que John e eu encontraríamos o caminho sem ajuda. Nesse momento, a abadessa...

— ...sugeriu que nos casássemos?

— Não. Que eu a acompanhasse ao jardim. Só eu. A chuva havia parado, e você estava lá, afofando a terra da horta e dos lilases. Não nos viu, e fiquei calado, pois a abadessa pedira-me silêncio. Em seguida, levou-me ao refeitório e perguntou se me casaria com você e a levaria a Lundale como minha esposa. Se eu queria o retorno dos aldeões, era o que devia fazer, afirmou.

William permaneceu quieto por alguns minutos, desejando que seu esclarecimento o fizesse obter a afeição de que tanto necessitava.

— Não pensava em aldeões e plantação de milho quando aceitei casar-me com você, se assim você desejasse. — Respirou fundo. — Esperei a tarde inteira no refeitório das freiras. John me encontrou e eu lhe falei o que pretendia. Lá ficamos sentados até que ele concluiu que a abadessa devia estar brigando para convencer a noiva a conversar comigo.

— Eu estava coberta de lama. Alice e a madre Alflega esfregaram minhas mãos para tirar a sujeira, esquentaram a água do banho e decidiram que vestido eu deveria usar, e se caberia um véu branco sobre meus cabelos ou não. E, em meio a isso tudo, a abadessa me falava de você e do casamento. Concordei em conversar com você e olhá-lo.

William sorriu.

— Eu me lembro.

— Espiei pelo vão da porta antes de entrarmos, e achei que era um bom homem. E você mostrou respeito ao se dirigir a mim. Não me recordo de nada que a abadessa tenha nos dito.

— Muito menos eu. Olhei para você, aproximei-me para sentir o perfume de flores em seus cabelos e esperei que falasse. E quando afirmou que aceitava se casar comigo, fiquei tão abestalhado de alegria que não encontrei a maneira mais adequada de responder-lhe.

Catherine assentiu.

— Sim. Você pareceu tão aturdido que comecei a achar que unha mudado de ideia. Ainda posso ver como aconteceu. A madre Alflega poderia ter dito que um dragão se apossara do feudo que nós nem sequer prestaríamos atenção a ela. Não naquele dia.

William apertou-a entre os braços.                                    

— Nunca duvide, Catherine, da felicidade que senti ao desposar você. Acredite nisso.

Ela o fitou e tocou-lhe o rosto.

William devia ter percebido. Devia ter mantido as rédeas em mãos a fim de que o bendito cavalo continuasse na estrada para Lundale. Contudo, na encruzilhada o animal rumou para o leste e enveredou pela trilha que levava à casa da floresta.

 

Catherine tirou a mão do rosto de William como se o contato lhe queimasse a pele.

— É melhor virar a montaria ou descobrirei sua arma secreta — ela ironizou.

Embora estivessem no início da trilha, os troncos dos carvalhos eram tão grossos e numerosos que atrapalhavam a visão dos soldados, que prosseguiram no caminho certo. William escutou o chamado deles, quando começaram a procurá-lo. No mesmo instante, puxou as rédeas, guiando o cavalo de volta à estrada.

Segurava Catherine pela cintura, tentava acalmar o garanhão, já assustado por causa do som alterado das vozes dos batedores. Do interior da mata emergiram mais gritos e o ruído de cavaleiros a galope.

Catherine se virou para trás.

— O que é isso? Quantos sentinelas você colocou entre a casa da floresta e esta estrada?

— O suficiente. — William afagou o pescoço do cavalo e respondeu a seus homens.

— E se um dos aldeões, até mesmo Robert, aparecesse aqui por engano, quantos sairiam da floresta para bloqueá-lo?

— O suficiente.

Catherine se calou, quando William ordenou que os soldados retornassem a suas posições e, em seguida, acenou para os batedores voltarem a seus postos.

— Droga de cavalo! — murmurou.

— Não é culpa do animal. Ele sabe que você envereda pela floresta toda vez que passa por aqui.

—- Catherine...

— Não estou brava. Estou dizendo a verdade, embora me desagrade. — Começou a brincar com a crina do garanhão. — Você devia estranhar todas as vezes que reclamei porque o rei não acrescentara a casa de minha mãe ao resto da propriedade. Sabia que eu não tinha direito a essa parte do dote.

— Catherine, nunca imaginei algo parecido. Ela hesitou e virou-se para encará-lo.

— O rei sabe que você se casou com uma órfã de Lundale?

— É lógico. Eu contei a ele quando voltei a Normandia para guerrear.

— E Henrique ficou aborrecido?

— Por que ficaria?

Catherine deu de ombros.

— Uma questão idiota. É óbvio que ele se aborreceu ao saber que se uniu à família rebelde que o desafiou.

— Catherine, o rei não ficou bravo. Se o rei alimentasse rancores contra os filhos de seus velhos inimigos, não haveria paz na Inglaterra.

— Mesmo assim ele enviou quarenta soldados a Lundale.

Henrique se lembra do que aconteceu aqui. Oh, William... o rei ainda deve desconfiar de nós, e você se envolveu nessa confusão por causa do casamento. Se houvesse pedido a permissão dele para se casar comigo, Henrique teria recusado.

— Sou um soldado, não um proprietário de terras ou um homem influente. O rei não espera que eu implore sua permissão para me casar.

Ela ficou tão quieta nos momentos seguintes que William achou que a esposa estivesse dormindo. Mas, quando chegaram ao local que demarcava o início das terras de Lundale, Catherine endireitou-se na sela e pediu para descer.

— Quero caminhar.

— Está frio, e você passou a maior parte do dia ao ar livre. Não gostaria de continuar aqui comigo?

— Sinto vontade de andar. Por favor, ajude-me a descer. William acatou e, depois de auxiliá-la, desmontou também.

— Caminhemos juntos.

— Preciso pensar.

— Nesse caso, ficarei quietinho a seu lado. — Ele puxava o cavalo, e Catherine tomou a direção norte, para a propriedade recuperada de Lundale.

O sol derretera a neve que cobrira a terra negra. William desejava que os raios solares também suavizassem o comportamento de Catherine.

No limite da mata, ela tornou a encará-lo.

— Não diga a Robert que nos casamos sem a permissão do rei.

— Isso importa para ele?

Catherine abaixou-se para livrar a barra do manto, que enroscara num arbusto.

— Prometa-me que não dirá a ninguém o que vou lhe revelar agora.

— Sei guardar segredos.

— Já notei — murmurou, um tanto amarga. — William, há um problema com Robert. Ele está preocupado comigo e com o futuro de Alflega.

— Ah... Ele teme que nossa filha nunca se case por causa do nome que carrega.

— William, não estou brincando. Robert desconfia de você e acredita que me abandonará um dia para casar-se...

Ele não ousou tocá-la.

— Para me casar com outra? Foi isso o que Robert disse?

— Talvez.

— Acha que eu anularia o casamento e desposaria outra mulher? Por que eu faria tal coisa?

Ela apressou o passo.

— Diga-me, Catherine. Que motivo Robert apresentou?

— Você não me levou à presença do rei, nem mesmo quando Henrique e sua corte estavam não muito longe daqui.

— Catherine, eu lutava na Normandia até outro dia. Não pude...

— Sei disso. Mas Robert se preocupa. E não sabe por que você não o conduziu até o rei para mostrar a Plantagenet que agora somos seus súditos leais. Robert crê que essa é a prova de que você não pretende nos ajudar a conquistar a graça real.

Catherine soltou um suspiro.

— Agora sei por que não fez o que Robert desejava, William. Este casamento não pertencia ao plano que Henrique Plantagenet tinha para você, e talvez provocasse a ira do soberano, se me apresentasse a sua corte.

Catherine continuou a andar, marchando sobre os galhos secos espalhados pelo solo.

— E, acima de tudo, Robert teme que você me deixe para se unir a uma jovem abastada, cuja família seja favorecida por Henrique, para lhe dar influência e torná-lo rico.

— Seu primo está equivocado. Seremos ricos, se tudo correr bem no próximo ano. Mesmo sem o saco de dinheiro que a abadessa nos deu, estaríamos em ótima situação.

— Rico ou não, você não terá influência com o rei, se ele não confia na família de sua esposa.

— Influência é algo perigoso. Ela se vira contra você e o morde, caso não a administre da maneira correta. Se Henrique me ignorar, isso me poupará muitos aborrecimentos.

— Robert crê que você almeja tudo isso... riqueza e a boa vontade do rei.

— E essa ideia faz com que seu primo seja perigoso para mim. É isso o que a aflige?

— Duvido que Robert faça algo contra você. Enquanto acreditar que está cuidando de mim e de Alflega, meu primo permanecerá sossegado.

A dor latejante voltara às têmporas de William. Mesmo assim, pressentiu para onde Catherine pretendia conduzir a conversa.

— E o que alarmou Robert a ponto de ele pensar que não lhe sou dedicado?

Catherine ergueu a mão machucada e apontou a floresta por onde haviam passado minutos atrás.

— Seu exército. Robert duvida que o rei Henrique precise alojar seus homens num local tão distante durante o inverno.

Quando esteve no sul, meu primo ficou sabendo dos problemas do rei com os galeses, os normandos e os bispos ingleses. William meneou a cabeça.

— O que seu primo está sugerindo? Que os homens do rei deveriam estar no sul para ameaçar um bando de bispos teimosos? — Sorriu. — Embora não goste de nosso rei Henrique, Catherine, tem de reconhecer que é um pouco mais sutil que seu primo Robert.

Catherine não achou graça. Postou-se diante do marido. Seu rosto mostrava-se ainda mais pálido em contraste com os cabelos negros.

— O que fará, William, quando Robert descobrir a mulher na floresta?

Ela sabia. De alguma maneira, Catherine havia descoberto lady Mathilde. Se queria uma esposa cordata, disse sua voz interior, não deveria ter escolhido aquela. A abadessa afirmara o mesmo quando falara a respeito de Catherine pela primeira vez. Mas William ficara fascinado ao vê-la, e pensara que seria ótimo ter uma esposa com opinião própria.

— É apenas uma questão de tempo, William. O inverno acaba de começar, e eu já a vi. Robert irá descobri-la também.

O aperto que William sentiu no peito causou uma dor tão afiada quanto uma facada.

— Não há nada a descobrir. Eu lhe falei que algumas mulheres estão vivendo na velha casa.

— Cozinheiras e companheiras dos soldados.

— Exato.

Os olhos verdes de Catherine tornaram-se tão escuros quanto as folhas antes dos dias de geada. A cor que antecedia o frio mortal.

— Eu a vi, William. Ela estava passeando na mata.

— Catherine...

— Não se trata de uma criada. Não é uma mulher do povo.

— Ela está grávida. Se meu primo descobrir a existência dessa moca haverá sérios problemas. Se a vir, Robert não se contentará com rumores. Exigirá saber o que você pretende. Com Lundale e comigo.

— Há quanto tempo?

Ela o fitou, confusa.

— Quanto você a viu?

— Perto do solstício. Ela está prestes a dar à luz, William.

Quem quer que seja, a jovem não devia ficar tão longe de certos confortos. Não a deixe nunca em segundo plano. Cuide dela.

Sua esposa não parava de surpreendê-lo. Primeiro, Catherine o acusara de abrigar a amante grávida em Lundale. Em seguida, aconselhava-o a não descuidar de seu bem-estar.

A mente de William clamava por respostas. Defesas. Receios. Pousou a mão no punho da espada e fitou Catherine no fundo dos olhos.

— Não me deixou escolha, Catherine. Só existe um jeito de evitarmos um problema maior. — William puxou a espada e, após erguê-la ao céu, apontou a lâmina em direção à terra preta.

Catherine arregalou os olhos.

— Devo confiar em você — William afirmou. — Juro por esta espada e pela esperança de salvação que o que lhe contarei é a mais pura verdade. Jura, Catherine, guardar segredo e acreditar em mim?

Ela colocou a mão boa sobre o punho da espada.

— Juro por minha honra que nada revelarei a ninguém.

William olhou o horizonte.

— Droga! Seu primo Robert está vindo. Catherine, lembre...

— Eu jurei, William. — E levou as duas mãos à espada para forçá-lo a baixar a lâmina, no momento em que Robert os alcançou.

Catherine encarou o primo.

— Ah, serpente fugiu!

Robert notou que as rédeas do cavalo de William estavam soltas e pendiam para o chão.

— Fugiu?

Catherine soltou a espada e enrolou-se no manto.

— Uma cobra. Estava inerte no meio da estrada. Pedi a William que a matasse, mas ela acordou antes que a golpeássemos. E escapou de nós.

— Uma cobra passeando em pleno inverno? É má sorte. — Robert apontou o cavalo de William. — Sua montaria está calma. Não fugiu ao ver o réptil.

William deu de ombros.

— É um bom animal. Não enxerga nada além do que está a sua frente. — Ele embainhou a espada e estudou a expressão pensativa de Robert.

Então, William afastou-se para buscar o garanhão.

 

Ao observar Robert acalmar sua montaria com afagos, Catherine notou que o marido se afastou para pegar as rédeas do cavalo.

— A cobra se escondeu bem — o primo comentou, olhando ao redor. — Ou talvez você a tenha imaginado.

Catherine esquadrinhou o terreno, fingindo procurar o bicho. Uma espiada rápida em Robert revelou que ele acreditara na história. O primo também continuava a vasculhar o solo sob os cascos do cavalo.

Naquele momento, Catherine começou a sentir certo prazer devido à pequena mentira. Enganara Robert em favor de William. Ora, a mentira não causaria grandes danos. Se conseguia desviar a atenção do primo com tanta facilidade, haveria alguma esperança de evitar que Robert descobrisse o segredo de William.

Era uma habilidade que jamais imaginara vir a aprender. A educação na abadia sempre fora rigorosa, apesar de as crianças Poderem sair para brincar no verão, quando o sol ardente aquecia os campos e coloria a vida. Nessas épocas, Catherine lembrou-se, a madre Alflega costumava sentar-se à sombra de um carvalho para recitar poesias ou contar histórias da Bíblia Sagrada. E, numa dessas reuniões tão singulares, a boa abadessa lhe ensinou a nunca mentir. No entanto, a madre Alflega provara ser uma mentirosa astuta.

— Acho que foi embora mesmo — Robert concluiu. — Mas fique perto de mim, por precaução.

Catherine nunca dissera uma mentira sequer para Robert, nem mesmo na ocasião em que fugiram da chacina de Plantagenet. Muito menos quando estiveram sob os cuidados da madre Alflega, e Robert começara a revoltar-se contra a clausura da abadia. Discutiam com frequência, e Catherine expressara argumentos sinceros para impedir que o primo cometesse algum desatino.

Agora quem cometia o desatino era ela.

William trouxe o garanhão e olhou para Catherine e Robert. Com discrição, piscou para a esposa. Então, desatou o saco de moedas do cinturão e segurou-o no ar.

— Veja, Robert. Parece que tenho uma esposa rica, e você, uma prima abastada.

Robert aproximou-se e testou o peso.

— Onde achou isso, William?

— Na abadia. A madre Alflega entregou-o a Catherine. Disse que foi a Nottingham para cobrar dos ourives a fortuna do pai de minha mulher.

Robert entregou o saco à prima.

— Não pensei que houvesse tantas moedas. William deu risada.

— Talvez sua madre Alflega tenha apavorado tanto o ourives que o pobre homem esvaziou seus cofres na esperança de que ela o poupasse.

Passaram a caminhar lado a lado em direção a Lundale. À frente, colunas de fumaça erguiam-se das cabanas que rodeavam os muros da paliçada.

— Não é a primeira vez que a abadessa nos ajuda dessa maneira — Robert comentou. — Mas duvido que ela fosse tão persuasiva no passado, na época da rebelião. Aqueles primeiros anos... foram difíceis.

Catherine apoiou-se no braço de William para atravessar um trecho congelado de terra.

— Quando Osbert nos levou à abadia, a madre Alflega esperou os soldados de Plantagenet saírem de Nottingham para poder encontrar os ourives. A cidade tinha sido saqueada... como todo o resto.

Catherine sentiu a mão de William sobre a dela e virou-se para fitá-lo.

— Ela conseguiu encontrar o ourives que guardou o ouro de meu pai. O homem falou para a madre que conseguira esconder parte da fortuna antes que os soldados invadissem a casa dele. Estava enterrado embaixo do alpendre. A madre Alflega obrigou o pobre homem a desenterrar o dinheiro e dar-lhe tudo o que havia no buraco. No entanto, acreditava que o resto do ouro fora enterrado no adro de uma igreja. Após todos esses anos, ela deve ter forçado o ourives a entregar cada moeda.

— Duvido que ele o tenha feito por livre e espontânea vontade. Duvido.

Robert gargalhou.

— Começa a entender quão bem Catherine e eu estivemos protegidos todos esses anos, William. Nem um dragão seria tão eficiente.

— Ela obteve o bastante para nosso sustento, o meu e o de Robert. E nos explicou, embora fôssemos crianças, que parte do dinheiro seria destinado para a abadia. A cada ano, a madre Alflega registrava a soma e nos mostrava o que escrevera no livro de finanças.

— A abadia chegou a ser saqueada durante a rebelião?

— Não. De alguma maneira, a madre Alflega conseguiu evitar que Plantagenet invadisse nosso lar. A abadia saiu ilesa da guerra, sem nem sequer perder um grão de milho. A madre precisou do ouro para alimentar e vestir as crianças órfãs. Alguns de nós eram de família nobre, mas a maioria era parente dos aldeões e não conseguiria sobreviver ao inverno na floresta.

Robert meneou a cabeça.

— Havia muitas crianças naquela época. Às vezes, quando falávamos todos juntos, parecíamos um bando de gansos. 0 medo que sentíamos da abadessa foi a única coisa que nos impediu de fugir.

— Mas algumas fugiram — William comentou.

— Sim. Algumas conseguiram escapar e nunca mais tivemos notícias delas.

Chegaram à aldeia antes que o sol desaparecesse. Da cozinha, atrás do salão de banquete, vinha o aroma de carne assada e pão. No salão, as mulheres tinham posicionado os teares perto da parede a fim de abrir espaço para as mesas.

A mesa mais alta, Alflega achava-se em pé na cadeira do pai, brincando com um novelo de algodão. Hadwen sentara-se no banco ao lado do bebê.

   A menina não sentiu falta dos pais. Mas precisaremos mais três lançadeiras para tecer a fim de substituir as que Alflega jogou na lareira. William carregou a garotinha.

— Como conseguiremos criar uma filha tão dispendiosa? _ brincou.

Catherine jogou o saco de dinheiro sobre o tampo. — Isto vai ajudar.

— Sim, tem razão. Isso ajudará, se Alflega não resolver atirar as moedas no fogo também. — William sorriu para a filha.

A menina soltou uma gargalhada.

— Quieto, William. Ela entende tudo o que diz.

— Acha mesmo? — Colocou-a na cadeira. — Precisaremos ter cuidado, não?

— Sim. Hoje à noite, depois que Alflega dormir, nós conversaremos com calma.

William tocou a mão de Catherine.

— Certo. Vou lhe contar tudo.

Alflega pousou a mãozinha sobre as dos pais.

— Sim. Temos de ser muito cuidadosos.

Mas nada aconteceu do jeito que Catherine desejara.

Os sentinelas soaram o alarme duas vezes na hora em que todos estavam reunidos no salão. William pegou a espada e correu com Robert até o pátio. Catherine carregou Alflega e juntou-se a Hadwen à porta para ver a agitação dos homens da guarnição no estábulo, enquanto selavam seus cavalos. Do outro lado da paliçada, ouvia-se o som de ovelhas e confusão.

Hadwen ergueu o saco de dinheiro.

— Vai deixar isto para os salteadores?

— Para a torre! — William gritou. — Corram ao quarto e barrem a entrada!

Ele tirou o cavalo da baia e guiou-o ao pátio. Em vez do animal que utilizara para levar Catherine à abadia, William agora montava um cavalo aflito para correr aos portões da paliçada. Em meio à confusão das tochas, Catherine viu Radulf emergir do estábulo com uma lança afiada em punho.

— Você não! — ela ordenou. William avistou o rapazola.

— Vá para a torre com sua lança. Proteja a porta e sua senhora.

— Estou indo para...

Hadwen agarrou-o no momento em que Radulf aproximava-se dos portões e o golpeou com o saco de moedas. Em seguida, puxou-o pela orelha até a torre.

— Você escutou seu senhor! Tem de ficar aqui e tomar conta de sua senhora!

O rosto de Radulf contorceu-se devido à frustração.

— Eu o escutei. Mas não consigo entender o que ele diz. Solte-me!

Correram pela escadaria em direção à sala de guarda. Em seguida, subiram mais um lance até o terceiro pavimento, onde localizava-se o cômodo. Catherine puxou Hadwen e confiou Alflega à criada.

— Espere aqui. Vou ver para onde estão indo.

— Seu marido disse...

— Sim — Radulf reforçou. — Tem de ficar aqui com a menina e Hadwen para eu montar guarda do lado de fora.

— Quer dizer que entendeu o que seu senhor disse! — Hadwen gargalhou. — Chega de bobagens. Catherine...

— Voltarei logo — ela disse, já na escada.

Catherine chamou o vigia solitário no parapeito e dirigiu-se ao ponto mais alto da passarela. Sob a fraca luminosidade de uma tocha, notou a ansiedade do jovem que havia soado o alarme.

— O que você viu?

— Nada. O homem nos portões soou o alarme, e eu fiz o mesmo. Ovelhas se desgarraram do rebanho, mas o vigia no portão não soaria o alarme por causa disso.

Muito abaixo deles, quatro tochas cintilavam no campo escurecido pela noite. Duas moviam-se a leste da paliçada, e as outras atravessam a plantação em direção a oeste.

Por causa daquelas tochas, Catherine notou a presença de seis homens. Quatro carregavam tochas e dois se orientavam sob a luminosidade das chamas. William, Robert e seus homens adentravam à noite. Seis membros da guarnição e o velho John ficaram para defender Lundale. Dois sentinelas e cinco soldados nos portões.

Catherine estremeceu quando o vento frio a atingiu. A escuridão era vasta abaixo dela e para além das tochas. Nada podia indicar que perigo ameaçaria William. Os aldeões reuniram-se no pátio, seguros atrás dos portões e confiantes de que sete homens armados seriam suficientes.

— O que é aquilo?

O sentinela virou-se em direção ao som que vinha do leste.

— As ovelhas desgarradas — respondeu o rapaz. Catherine ficou imóvel para tentar discernir os movimentos na escuridão. Três cavaleiros seguiram em linha reta e pararam A chama amarela da tocha iluminou o rebanho de ovelhas de Lundale. Um berro ecoou da cena e os outros aproximaram-se

— Olhe! — O vigia se virara para observar os campos a oeste.

Os cavaleiros atingiram os limites da floresta e voltaram-se para o sul.

— A passagem do rio.

— Eles não irão além, milady — deduziu o vigia. — Dali em diante, os homens do rei patrulham a estrada. E se revezam noite e dia.

O que os homens da guarnição sabiam acerca daqueles que se estabeleceram na casa da floresta?

— Por quê?

— A guarda do rei não perderia seus belos cavalos para um bando de ladrões — o jovem conjeturou. — Quem ousaria enfrentar aqueles soldados?

As tochas chegaram à passagem e brilharam sobre a superfície cintilante do rio. Dois homens traçaram um círculo ao redor do banco de areia e rumaram para leste.

— Estão voltando — disse o sentinela.

— Lorde William está com eles?

— Difícil dizer, milady.

Catherine observou o lento progresso dos homens em direção à paliçada. Os cavaleiros ultrapassaram os portões e foram para oeste. Por um longo momento, as chamas iluminaram o abrigo deserto das ovelhas e, então, prosseguiram.

— Eles passarão horas recolhendo as ovelhas — comentou o vigia. — Trabalho árduo, considerando o clima.

— Se vir algum sinal de problema, depois de soar o alarme, favor desça e conte a Radulf o que avistou. — Catherine caminhou até a escada espiral.

— Quem vem lá? — a voz de Radulf ecoou na escuridão.

— Apenas eu — o vigia respondeu.

Ma última curva da escada, antes de avistar a porta do cômodo, Catherine divisou o rosto pálido de Radulf sob a luminosidade de uma única vela.

— Eu a peguei na sala de guarda, senhora. Está escuro demais aqui.

— Agiu muito bem — Catherine aprovou sua iniciativa.

— Precisaremos dela para descer a escada com Alflega, se necessário.

— Certo. Foi por isso que busquei uma vela.

— É claro.

O rosto de Radulf relaxou.

— Montarei guarda a noite toda e manterei a vela acesa para qualquer eventualidade. Chegou a avistar lorde William?

— Vi os homens se movendo. Suba, se quiser, e diga ao sentinela que você quer espiar os campos.

— Não. — A voz dele soou grave, quase o timbre de um homem. — Prometi a meu senhor que a protegeria.

Radulf bateu na porta.

— Abra, Hadwen. Lady Catherine voltou.

Catherine empurrou a porta e, como esperado, encontrou-a destrancada. Alflega estava no berço, e as chamas do braseiro brilhavam sob a estreita chaminé. Hadwen achava-se adormecida na cama.

— Quer dormir perto do fogo, Radulf? — Catherine perguntou, num sussurro.

— Não, milady. Tenho um dever a cumprir. — Dito isso o rapaz fechou a porta.

Quando ela se deitou na cama, o saco de couro que Hadwen escondera embaixo dos travesseiros rolou sobre a coberta. Se prata e ouro pudessem protegê-lo do tipo de perigo que agora enfrentava, Catherine enviaria aquelas moedas todas, sem lamentar, a Henrique Plantagenet para comprar a liberdade de William das guerras e dos esquemas do rei. Mas o mundo não funcionava desse jeito.

Assim, colocou o travesseiro de penas sobre a herança e pegou no sono.

 

William exalava o odor fétido de ovelha misturado ao de couro. Por esse único motivo, deveria ter ido dormir na sala de guarda. Após percorrer o último lance da escada, encontrou o jovem Radulf adormecido à soleira. Ao lado dele, no chão, um toco de vela, cujo pavio insistia em perdurar, ainda queimava, iluminando a entrada do aposento.

Graças aos céus, o rapaz permanecera em seu posto a noite toda, William concluiu, satisfeito. Do contrário, ele poderia tropeçar na escadaria e cair, prejudicando ainda mais o joelho machucado.

Mesmo assim, hesitou por um instante antes de acordar Radulf. O ferimento no joelho doía mais que antes e, sendo assim, descer os degraus acarretaria num sacrifício maior.

Fora tolice convocar metade da guarnição para vasculhar os campos à luz de tochas. Homens a cavalo jamais conseguiriam reunir ovelhas desgarradas, e os animais haviam se espalhado pela noite adentro, causando confusão e mascarando a fuga dos salteadores, que tinham derrubado uma lateral inteira da cabana que as abrigava.

William parecera mais que tolo. No final, fora o primo impulsivo de Catherine, Robert, que, ao ver William trombar no escuro com outro soldado, comentara a prudência de retornar* ao feudo e adiar as buscar até o amanhecer.

Esfregou a perna e suspirou. Estava ficando velho. De seus vinte e cinco anos, dez ele dedicara ao reinado de Henrique Plantagenet. Nos primeiros anos dessa década, os ferimentos de William sararam rápido, e ele não perdera nenhuma campanha ou combate de importância. Aquela última lesão resolvera demorar demais para cicatrizar, e William, antes de chegar a Lundale, tivera de apressar-se para encontrar uma maneira de proteger o joelho a fim de realizar a longa jornada. Conseguira a ajuda de um boticário de Shrewsbury e pagara muito bem pelo serviço do homem, pois Henrique Plantagenet não admitiria jamais que aquela viagem em especial sofresse algum atraso.

Teria o garoto galês que o esfaqueara envenenado a lâmina, causando, assim, uma séria infecção na perna de William?, perguntava-se, preocupado.

Ou seria a idade e a quantidade de batalhas que, de fato, aceleravam a velhice, impedindo-o de cavalgar quarenta quilômetros no período de outono?

Radulf acordou com um grito, assustando a ambos. William pediu-lhe que se afastasse e abriu a porta. Catherine fora descuidada ao não inserir a barra na porta.

— Desça e procure um canto para você dormir junto com os soldados, Radulf. Fez um bom trabalho, montando guarda. — William entrou, fechou a porta e esquadrinhou o cômodo.

Alflega dormia no berço. E avistou uma forma sob uma coberta ao lado de Catherine. Não havia necessidade de acordar a pessoa; no mínimo, devia ser Hadwen, a fiel criada de sua mulher.

Tampouco teria de inserir a barra na porta. A sala de guarda estava repleta de soldados, que, por mais sonolentos, despertariam ao menor sinal de intrusão. Além disso, a ama apareceria em breve para buscar Alflega.

Existia espaço suficiente no leito, do outro lado de Catherine, para que descansasse um momento antes de remover as roupas. Não todas, claro, uma vez que Hadwen poderia acordar e pegá-lo em flagrante.

William bocejou e colou-se à forma adormecida da esposa. Se tirasse a calça, Hadwen ficaria ofendida, e Catherine veria que ele prejudicara o joelho machucado outra vez. O melhor seria deixar a perna coberta. A bem da verdade, não tinha a menor vontade de ver o ferimento à luz do dia. Muito menos desejava obter mais alguma lesão em seu corpo por um longo período. Por uma semana ou mais, se tivesse sorte.

William acordou muitas horas depois do amanhecer para encontrar o quarto silencioso e as cobertas estendidas até seus ombros.

Tornou a fechar os olhos e imaginou o que deveria estar fazendo naquele dia. Por fim, decidiu que toda e qualquer atividade poderia ser adiada. Tudo seria postergado, menos conversar com Catherine.

Cobriu a cabeça e fitou a penumbra abençoada. Prometera a Catherine uma explicação acerca da tarefa que Henrique Plantagenet lhe incumbira, e ela prometera honrar o voto secreto. Naquele mesmo dia, se o primo por casamento permitisse alguma privacidade com Catherine, William cumpriria a arriscada promessa.

Mexeu-se bem devagar, temendo que o movimento causaria de novo a dor aguda. Por algum milagre incompreensível, a perna não doeu. William sorriu e tocou o joelho. Havia bandagens na altura do machucado e um cataplasma úmido sob uma tira de algodão.

Então, jogou as cobertas para o lado e abriu os olhos. Catherine se encontrava no quarto, sentada na abertura estreita da parede, por onde o sol penetrava. Os sedosos cabelos negros brilhavam sob a luminosidade.

— Bom dia — ela o cumprimentou. — Sua perna está doendo?

William a moveu sobre o colchão e sentiu o forte aroma de ervas.

— O que usou para fazer o cataplasma?

— Plantas da floresta e ervas do jardim da abadia. — Catherine se ergueu e caminhou até a porta. — Trarei água quente para lavar o machucado.

— Peça a alguém que me traga um balde ou dois. Posso fazer isso sozinho.

William se jogou no colchão e cerrou as pálpebras por um instante. Minutos depois, Catherine voltou com Radulf e dois baldes de água fervendo.

— Coloque-os aqui — ela pediu ao garoto. — Deixemos que ele durma outra vez.

Ágil, William segurou a mão da esposa.

— Fique, Catherine. Quero conversar com você.

Ela assentiu para Radulf e esperou que o rapaz se fosse.

— Cuidarei de sua perna, enquanto conversa comigo. —

Catherine avaliou o cômodo. — Estamos a sós e seguros aqui durante a próxima quinzena.

— Que crueldade você pretende? — ele brincou.

— É quase Natal. Receberemos muita gente no grande salão de banquetes para festejar. É o que eu espero.

— Espera? — William gemeu, prevendo a confusão. —

Será um enxame de pessoas, isso sim.

— Há rumores de que os aldeões pedirão aos parentes que ainda vivem escondidos na floresta que venham celebrar as festividades natalinas a nossa mesa. Se decidirem ficar na aldeia, conseguiremos limpar o resto do campo depois do inverno e plantaremos duas vezes mais na próxima primavera. É nossa chance, William, de fazer Lundale voltar a ser o que era. E o povo da aldeia ficará ainda mais feliz se seus familiares retornarem.

— Seria muito bom livrar a floresta de todos os aldeões para que só os homens do rei lá permanecessem durante os meses mais frios. Por sorte não houve nenhum conflito entre seu povo e os soldados. Se um dos aldeões derrubar um cervo e chamar a atenção dos guardas que estão lá, serão necessárias minha ínfima influência e toda sua astúcia para impedir que o pobre infeliz seja levado ao tribunal de Nottingham.

Catherine soltou a tira de algodão que prendia o cataplasma e examinou o joelho.

Marido meu, está na hora de parar de forçar esta perna com tanta frequência. Se permanecer um ano longe das guerras, o ferimento irá cicatrizar e livrá-lo de todo incômodo. — Suspirou. — Não pode dizer a Henrique Plantagenet que faltará às próximas guerras?

William segurou-lhe a mão.

— Só se prometer não mais correr ao encontro do perigo sem pesar as conseqüências. E nunca mais ponha-se entre dois homens empunhando espadas. E fique longe do rio.

— Está certo. Eu prometo. Tem minha palavra. Nunca mais me coloco entre homens empunhando espadas. O que você vai me prometer?

— Não posso prometer faltar às guerras para ficar aqui. A mente de Henrique Plantagenet não é um livro de crônicas. O rei se lembra da última coisa que qualquer súdito faz para ele. Um homem pode lutar em seu exército durante anos a fio com bravura e negligenciar uma questão banal relacionada a impostos, por exemplo. O rei recordará a dívida e esquecerá os anos de fidelidade. Se eu deixar de servir a coroa e ficar aqui pelo resto de meus dias, Plantagenet tanto poderá me esquecer quanto se aborrecer porque não estou disponível para ele. Em ambos os casos o rei terá o direito de oferecer Lundale a outra pessoa.

William indicou o saco de dinheiro ao lado do berço.

— Quando Henrique Plantagenet fica irritado, nem mesmo o ouro de sua herança seria capaz de acalmá-lo, Catherine. Ele o aceitaria e acrescentaria as moedas ao tesouro real, mas continuaria tão zangado quanto antes. Acredite-me. Já vi acontecer.

— E se sua perna infeccionar e você tiver de amputá-la? Nesse caso, Henrique Plantagenet permitirá que fique em casa?

— Não fale assim. Tenho deveres a cumprir para com Sua Majestade.

Ela bufou, exasperada, e ocupou-se com as roupas do baú. William notou as linhas delicadas dos braços, o modo gracioso com que Catherine recolhia os vastos cabelos para que -   a atrapalhassem ao vasculhar o baú.

Pesaroso, desviou o olhar. Aquelas eram lembranças que, um dia, trariam dor e sofrimento.

Não devia ter se apaixonado pela esposa. Contudo, a primeira vez em que se separou dela, na ocasião em que cavalgou para o Sul a fim de procurar homens para a pequena guarnição, viu-se completamente dragado por imagens sensuais e doces de Catherine.

Por conseqüência, na estrada que atravessava a grande floresta, William tornou-se descuidado e não notou a aproximação de salteadores. John os escutou ao longe e o avisou a tempo. Juntos, eles conseguiram afugentar os famintos.

Quase um mês depois, após a quinzena em que fizera de Catherine sua mulher, William deixou John no comando da nova guarnição e partiu sozinho para se juntar ao exército de Henrique Plantagenet na Normandia.

O bom e velho John o atormentou por causa da perda de instinto e o aconselhou a esquecer Catherine tão logo Lundale desaparecesse no horizonte. Durante as semanas em que viajou pela Normandia, William conseguiu se concentrar. Apenas à noite, em cervejarias, acampamentos à beira das estradas e no úmido desconforto do porão de um navio, permitira-se sonhar com ela.

Entretanto, os dias que se seguiram ofereceram pouquíssimo tempo para isso. William perdeu a alegria em batalhas fervorosas e escaramuças vencidas com habilidade. E parou de contar quantas aldeias conseguiu acrescentar à lista de posses do rei Henrique.

John enviou-lhe uma mensagem, anunciando a gravidez de Catherine. E, quando a flecha do arqueiro rebelde chegou perto de perfurar a cabeça de William, ele conheceu um novo medo o pavor de nunca mais voltar a ver sua mulher, jamais saber se ela sobrevivera ao parto, nunca ver o rosto do bebê... Despertou do devaneio ao escutar a voz de Catherine:

— Não vai responder, William?

— Perdoe-me. Não ouvi sua pergunta.

Ela se sentou na cama e testou a temperatura dele, tocando-lhe a testa.

— Eu falei que sua perna não agüentará se voltar a lutar para o rei antes que ela se fortaleça de novo. E perguntei se Henrique Plantagenet merece seu retorno.

— Ele é meu rei. Quando Plantagenet for à guerra, terei de acompanhá-lo.

Catherine estreitou os lábios, irritada.

— Vá com o rei. Sim, deve segui-lo. Mas cuidado para Henrique não o enviar ao perigo que ele próprio não enfrentará.

— O que está dizendo? Você não o conhece. Henrique não é covarde, Catherine. E um senhor justo, e até generoso às vezes. O rei me deu esta terra em pagamento pelas atividades de guerreiro. Se não fosse pelo soberano, nós nunca nos conheceríamos. Jamais teríamos nos casado.

Catherine fitou-o com intensidade.

— Notei que Henrique o tem enviado a missões de grande perigo, William. Está claro para mim, embora eu não tenha presenciado nenhuma batalha ou sinal de agitação. Quando o vi pela primeira vez, você possuía apenas uma cicatriz na testa. Uma só, meu marido. E agora...

William acariciou os cabelos negros.

— Ora, Catherine, se tivesse olhado mais abaixo, veria muito mais que uma.

Ela corou e sacudiu a cabeça.

— Sabe a que me refiro. Desde que recebeu essas terras e voltou a lutar para o rei, você quase foi morto duas vezes seguidas. Cada vez que o vejo, há mais cicatrizes e ferimentos ainda por sarar.

Mais uma vez, William suspirou. Como poderia explicar que o desejo que sentia por ela e a saudade que o dominava a cada jornada distante lhe haviam roubado o talento de guerreiro? Não, não poderia jamais revelar a verdade a Catherine. Estaria vulnerável demais e a tornaria um alvo fácil para os inimigos.

Quando mais jovem, um rapaz sonhador que nem sequer se preocupava em lembrar o nome das mulheres que lhe tinham oferecido carinho na cama, William possuíra o controle frio e calculista necessário para lutar com inteligência. Contudo, no ano anterior, em sua primeira emboscada após uma noite insone pensando em Catherine. descobriu quão perigosa tamanha dedicação poderia se tornar.

E, no momento em que a flecha cortou seu rosto no último verão na Normandia, suas conjecturas tumultuadas continham apenas Catherine e a criança que ela poderia criar como viúva. Se seu escudeiro não o tivesse derrubado no chão, a flecha seguinte daquela emboscada teria atingido o coração de William. Não, nunca diria a Catherine o motivo real de os perigos se multiplicarem.

— Na primavera, mande um aviso ao rei, dizendo que não pode guerrear. Há quarenta homens naquela floresta que podem levar essa mensagem. — Ela fez uma curta pausa. — Ou eles irão para outro lugar quando a primavera chegar? Talvez alguns deles sejam espertos a ponto de perceber que há outras formas melhores de se viver, sem estar subjugado aos caprichos de Plantagenet.

— Tome cuidado com o que diz, Catherine. Pode abrir seu coração para mim, se quiser, mas nunca diga o que pensa sobre isso a outra pessoa. Nem mesmo a Hadwen. Ou a Robert. — William franziu o cenho. — Sobretudo, a Robert.

Catherine começou a escovar os cabelos.

— Já prometi que não vou mais falar dos assuntos do rei. Se algum dia eu vier a saber mais, manterei segredo de tudo.

— Ah... O mistério da casa da floresta.

— Isso mesmo, William. As pessoas que estão lá. Enquanto ele buscava as palavras certas para se explicar, o rosto de Catherine perdeu a cor.

— Conte-me tudo — ela pediu. — Bom ou ruim, não me esconda nada. Conte-me tudo.

— Barre a porta e volte. Falarei em voz baixa para ninguém escutar.

Catherine arregalou os olhos. Ansiosa, passou pelo braseiro sem preocupar-se com o fogo. A despeito da pouca luminosidade, achou a barra sob as sombras e colocou-a nos ganchos da porta.

— Pronto. — E ajoelhou-se ao lado do leito, apoiando os braços no colchão.

William respirou fundo e iniciou pela pior parte:

— O rei insultou o barão Pandulf. Ofendeu o homem que deveria fornecer suprimentos, abrigo e outras coisas para auxiliar o exército de Henrique a tomar Gales.

Catherine aproximou-se mais.

— Ótimo. Nesse caso, ele não fará nenhuma guerra, certo?

— Errado. Não é assim que a política de Plantagenet acontece. Ainda pode haver guerra, dependendo do que ocorrer neste inverno.

— Prossiga, William.

— O barão Pandulf não sabe, e é melhor que nunca venha a saber, como o rei o ofendeu. É meu dever garantir que a situação permaneça nesse estado de ignorância.

— Está escondendo a ofensa do rei?

— Estou abrigando a amante grávida de Plantagenet, Catherine. Uma parente jovem de Ivo Pandulf.

— Adultério real? — Catherine espantou-se. — Mesmo aqui, tão longe dos conselheiros implacáveis do rei, escutamos histórias como essa. É comum um soberano seduzir esposas de seus vassalos ou servas bem-apessoadas. Por que essa jovem em particular resolveu se esconder do mundo?

— Essa jovem em particular não é esposa de nenhuma vassalo ambicioso. É a filha virgem de Ivo Pandulf. Não se trata apenas do que é permitido ou não para o divertimento do rei. Estamos falando de um erro muito grave.

— Tem razão. — Catherine ficou preocupada. — É a mulher que vi na floresta?

— Sim.

— Por que ela viajou em condição tão delicada? Por que não está escondida em algum convento? Arranjos como esse podem ser feitos. A madre Alflega certa vez recebeu uma hóspede que nunca vimos...

William gargalhou, irônico.

— Não duvido disso. Sua madre Alflega conseguiria arranjar qualquer hospedagem secreta.

— Por que então não mandar a moça a um lugar onde ela possa desaparecer entre outras moças? De qualquer maneira, saiu da casa do pai. Por que está aqui?

— Não é tão simples. Catherine suspirou.

— Há mais?

— Muito mais. A jovem é filha bastarda, mas o pai a protege e a idolatra sobremaneira. É galesa por parte de mãe. Possui centenas de parentes na região de Gales e em Marches. De alguma forma, por intermédio de conversas entre criados ou de sua própria indiscrição, a situação da dama chegou aos ouvidos dos senhores galeses.

— A indiscrição dele. O rei é um homem adulto, mais ciente dos caminhos do mundo do que qualquer cristão. É sua responsabilidade...

— Quer ouvir toda a história? — William indagou, impaciente com a esposa.

— Quero. Conte-me, por favor.

— Os galeses souberam que o rei Henrique havia seduzido uma virgem nobre. Portanto, enviaram espiões para descobrir maiores detalhes. Por azar, ficaram sabendo que estava grávida. E também conseguiram a informação de onde encontrá-la.

William suspirou.

— No início, quando a moça disse a Henrique que engravidara, o rei sugeriu que ela mandasse uma mensagem ao pai, dizendo-lhe que iria para o convento onde a mãe falecera. Ela informou a Pandulf que gostaria de passar o inverno rezando pela alma da mãe e aprendendo tapeçaria com as freiras.

— Foi uma boa ideia. O barão não permitiu que a filha fosse para o convento?

— Pandulf mandou sua permissão e ainda deu ao mensageiro ouro para a filha pagar as despesas e doar uma boa soma ao convento. Eu fazia parte do cortejo que a levaria em segredo para a casa religiosa. Houve um problema ao longo do caminho, e descobrimos por um prisioneiro que capturamos numa emboscada que ele e o companheiro procuravam uma nobre gestante. Escoltavam também um padre que conhecia a mulher, para que ele testemunhasse a gravidez e contasse a Pandulf.

— E, assim, Pandulf se voltaria contra o rei.

— Isso mesmo. E a invasão de Gales correria o risco de não acontecer.

— E você não precisaria ir à guerra nesta primavera. William sorriu.

— Você sempre retorna à mesma questão.

Catherine jogou os cabelos para trás e recomeçou a escová-los pacientemente.

— Eu selaria meu cavalo e procuraria esse barão Pandulf...

— Catherine!

— ...se não tivesse jurado guardar segredo. A paz reinaria para muitos, se ele ficasse sabendo de tudo.

— E causaria um estrago tremendo para outros. Se os galeses conseguirem o testemunho do padre e o rei for apontado como pai da criança, a história chegará aos ouvidos da rainha Eleanor. Se a fúria dela for grande o bastante para renunciar ao rei Henrique, ele perderá suas terras em Anjou e Aquitânia também. E precisarei acompanhá-lo para recuperar todas as posses.

Indignada, Catherine meneou a cabeça.

— A rainha não pode tão-só abandonar o marido e tomar as terras dele.

William riu.

— Ela fez isso com Luís de França. Divorciou-se dele e casou-se com Henrique Plantagenet. Tomou as terras de Luís e entregou-as a Henrique. — William respirou fundo. — Não, a rainha Eleanor é o maior perigo de todos. Ela tolera as brincadeiras do rei com criadas e esposas infiéis. Uma jovem nobre de uma família rica é outra história.

— Então, o soberano jogou o problema em suas costas.

— Sim. Ele disse que ninguém, nem mesmo os galeses, imaginariam que o povo daqui esconderia a moça para ajudar Henrique Plantagenet. Lundale, depois de ser devastado e massacrado pelo rei Henrique, é o último lugar na terra onde os galeses procurariam.

— Quer dizer que o rei o mandou esquecer a perna machucada e, durante dias, escoltar a jovem a uma casa deserta e caindo aos pedaços com um pequeno exército para protegê-la dos galeses. Apesar da estupidez do plano, você o obedeceu rei. E está cumprindo sua parte.

As palavras pareciam suscitar revoltas. Traição. Os pais de Catherine haviam perdido tudo por causa de pensamentos semelhantes. Os de William, falando de outro rei em outras terras, também ficaram sem nada. No entanto, a raiva de Catherine era um bálsamo para a alma de William.

Houvera poucas almas, nas últimas semanas, nas quais pôde confiar. Os quarenta homens, que juraram nada ver, ouvir ou comentar a respeito da amante do rei, pouco sabiam acerca da origem de Mathilde. William contara a John alguns detalhes a mais. O idoso guerreiro recebera o segredo com um resmungo de desprazer, e só.

Agora Catherine sabia de toda a verdade. Sozinha, ao ouvir a missão de William, ela ecoara o que ele sentira e jamais confessado nem a si mesmo.

— Foi uma ideia estúpida, William.

— Tem razão, mas não há nada mais a fazer. Se me recusasse a aceitar a missão e ficasse na corte, o rei me culparia se a situação degringolasse em outras mãos. E pensaria, se os boatos começassem, que eu os havia espalhado. Acredite-me, Catherine, fiz o que achei melhor. Não gosto de circular pela corte e, como guerreiro, tive de obedecer às ordens de meu rei.

— Em minha opinião, Henrique, dessa vez, abusou de sua lealdade, William.

— Tentei com todas as forças manter o problema longe de você e de seu povo. Se as coisas piorarem, ninguém em Lundale será dragado pelas conseqüências. Devemos guardar sigilo para evitar problemas futuros.

Ele notou que Catherine piscou para evitar algumas lágrimas.

— Meu marido, devo confessar que o problema é maior do que eu imaginava. A única coisa que não perdôo, se é que há algo para perdoar, é seu bobo segredo. Por que não me falou desde o primeiro dia?

— Por causa de seu primo Robert. Quase lhe contei naquela ocasião, no campo, pouco antes de ele aparecer. Para mim, Robert parece e age como se quisesse criar uma rebelião. — Tocou os lábios de Catherine com o dedo. — Sei que é um bom homem, ciente da própria honra. Mas ele odeia Henrique Plantagenet mais que você. Tem de mantê-lo distante disso, Catherine. É seu segredo agora, um fardo que carregaremos juntos.

— Eu sei. Não vou decepcioná-lo. E o ajudarei com dedicação. Qual é o nome dela?

— Mathilde. Não chegue perto dela, Catherine. Lembre, algo pode sair errado. Há muitas maneiras de tudo ir por água abaixo. E você não deve se envolver.

— Sim, William. Não precisa repetir o mesmo aviso centenas de vezes. Mas tenho de saber se você e seu bom rei Henrique pensaram em trazer uma parteira para auxiliar a pobre moça.

A imagem da esplêndida liteira de viagem, dos cavalos de raça e das duas criadas de luxo ocorreu a William.

— Acho que o rei pensou nisso.

— Bem, certifique-se de que ele o fez. Quando avistei a jovem na floresta, ela me pareceu muito inchada. Se não houver uma parteira, teremos de enviar Hadwen, e o segredo do rei estará perdido. Ou poderemos levá-la à abadia.

— A abadia. — William levou as mãos ao rosto e gemeu. — Tenho de tomar providências em relação aos boatos por lá.

Ele escutou a risada suave de Catherine.

— Boatos são a vida da abadia. Não pode mudar isso, William.

— Com ou sem vida, tenho de interceptar a fonte desses boatos. — William soltou um suspiro profundo. — A madre Alflega já sabe que há uma nobre grávida na floresta. Ontem, antes de você aparecer no jardim da abadia e mencionar o assunto, a madre contou-me que ouviu rumores a respeito. Ela tentava me fazer falar.

Catherine sorriu.

— Quanto a isso, tenho pena de você. Em todos os anos em que vivi na abadia, nunca houve uma história ou boato que a madre Alflega não desvendou por completo.

William levantou-se para procurar as botas.

— Acho melhor mandar um novo lote de guardas à abadia. Os mais velhos e de pior temperamento serão melhores. E vou avisá-los que não podem falar com a abadessa. Nem para dizer bom dia.

— Sabe que é tarde demais.

— Foi meu engano escolher os dez homens mais gentis e simpáticos para proteger a abadia. Se deixá-los mais um dia com a abadessa, ela é capaz de fazê-los trabalhar, levando mensagens a Winchester, espionando...

Catherine deu risada.

— Acho que tem razão.

— Vou até lá agora e voltarei ao anoitecer.

— Vista roupas limpas. Há mais bandagens para sua perna. É o mínimo que pode fazer, já que pretende montar ainda hoje.

William aceitou as peças que ela lhe entregava e ficou parado, enquanto Catherine enfaixava a perna machucada.

— Terá de contar aos homens do rei acerca dos estrangeiros e do padre. E perguntar às criadas de Mathilde se alguma delas sabe o que fazer quando a criança começar a nascer. Não se esqueça.

— Não esquecerei.

William fizera bem em pôr Catherine a par de tudo. Embora houvesse arriscado muito ao revelar o segredo do rei à filha de um rebelde, sentia a alma bem mais leve pela primeira vez, desde que saíra de Winchester.

Não era tão ruim ter as opiniões de sua mulher ecoando em seus ouvidos.

Uma parteira. Teriam Mathilde e suas damas considerado a utilidade fundamental de uma parteira?

 

Os teares foram guardados no depósito para não serem usados durante as festividades de Natal. A pequena Alflega ficou aborrecida ao ver as estruturas desaparecerem e anunciou sua opinião num choro tão alto que poderia atravessar vales longínquos.

— Ela gosta de se apoiar nos teares para aprender a andar — Hadwen comentou. — Por isso, está tão brava.

— Sim. Eu a vi fazendo isso — William disse. — Cheguei tarde demais para impedi-la de jogar a lançadeira de madeira no fogo.

— Vou esculpir mais agulhas como aquela — John se ofereceu. — Só um tear no salão será suficiente para Alflega parar de chorar. Pobre criança. Deve estar com a garganta dolorida.

— Meus ouvidos doem mais. —- William carregou a filha de olhos avermelhados. — Digo-lhe uma coisa, pequena Alflega. Se continuar assim, chamarei a grande Alflega para lhe dar uma lição.

A menina soltou um soluço e encarou o pai. Então, balbuciou algo incompreensível.

— Assim é melhor. — William sorriu. — Ainda bem que não precisamos chamar a senhora. A madre Alflega tem olhos grandes e garras de dragão. E quando ela chega perto...

— Não conte histórias macabras! — John protestou. — Vai assustar a menina, e ela não irá querer visitar a abadia. Alflega entende tudo o que se diz. Cada palavra.

— É uma menina corajosa. Não tem medo de enfrentar a abadessa, certo?

Alflega riu e começou a examinar o queixo do pai.

Palha e ervas, colhidas no verão e desidratadas no sótão do estábulo, haviam sido espalhadas à entrada do grande salão. Do lado de fora, uma garoa constante caía no pátio, formando um lamaçal entre a cozinha e o depósito. As mulheres de Lundale conseguiam proteger as barras das saias da lama pisando nas pedras para circular entre o depósito de grãos e o salão.

Era véspera de Natal. Um padre da abadia aparecera no dia anterior a fim de rezar uma missa para os aldeões e os senhores, e retornara no mesmo dia à segurança do lugar santo. William, Catherine e o povo de Lundale compareceram naquela manhã nebulosa à capela destroçada da aldeia, onde reconheciam-se apenas alguns traços do velho templo, cujas pedras agora estavam cobertas de mato.

E, após a partida do padre, Catherine e o povo caminharam até uma pequena clareira na floresta, onde os mortos repousavam em túmulos sem lápides. Lá, eles rezaram e ofereceram plantas sagradas aos nunca esquecidos. E dos arredores daquele lugar na mata, colheram ramos das árvores para enfeitar o salão.

William carregara a filha à capela arruinada e à morada dos ancestrais, seguindo os aldeões à medida que se deslocavam de um carvalho a outro, reverenciando os seres da natureza e aliviando as árvores anciãs ao tirar seus galhos. O melhor seria deixar o trabalho para aqueles que pertenciam à terra de Lundale. Em vez de tocar as árvores anciãs com mãos desajeitadas, William contentou-se em observar, mantendo a filha segura e aquecida dentro de seu manto.

Em seguida, os homens o fizeram adentrar à parte mais densa da vegetação a fim de procurar um tronco caído para queimar na grande lareira do salão de banquetes. William entregou a filha a Catherine, penetrou na mata para além da campina e buscou a lenha gigantesca o bastante para queimar durante dias e pequeno o suficiente para ser arrastado até o feudo.

Nesse ínterim, William descobriu que conhecia muito pouco do idioma regional. Ao trabalhar com os aldeões, puxando o tronco escolhido, percebeu a confusão que causou quando pronunciou as frases que aprendeu com os camaradas ingleses na Normandia. Tal inconveniência desapareceu nas horas que se seguiram. William não precisou de palavras ao participar da tradição de Lundale.

Naquele momento, à véspera da noite de Natal, o antigo salão e a cozinha representavam o centro da preparação. Os homens da guarnição foram escalados para pendurar guirlandas nas vigas escurecidas do telhado. William, proibido por Catherine de subir nos caibros por causa da perna, recolheu-se a um canto do pátio com Alflega, escutando o balbucio e imaginando que começava a distinguir uma palavra ou outra.

Alflega notou uma cesta repleta de pedaços de bolo de mel nos braços da mãe e lançou-se para pegá-los. William agarrou-a antes que ela caísse e a distraiu com uma pedra arredondada que encontrou no chão.

Nunca viu um Natal como aquele. Tentou rememorar quando fora a última vez em que esteve presente à alegre confusão de um dia festivo. Anos atrás, em Macon, tais festividades ocorriam e agora estavam relegadas à memória infantil de William. Após a fuga assustadora para a Normandia, houvera comemorações natalinas às mesas da companhia de soldados mercenários que o pai de William liderara de um senhor normando a outro.

E então, quando atingiu a idade permitida, William ofereceu sua espada a Henrique Plantagenet. Ele acompanhou o agitado senhor, protegendo-o de traições de um império a outro. Naqueles anos, as festividades não passavam de algumas horas de descanso para um soldado em serviço.

William pegou Alflega quando a menina desapareceu sob uma pilha de feno e tirou os fiapos dos cabelos da criança. Ele poderia ser feliz com aquela vida. Se nunca mais saísse de Lundale, não sentiria falta da animação da corte de Plantagenet ou do exército e das tentações que corroboravam ambos.

Alflega encerrou suas explorações e fitou o pai com os mesmos olhos verdes da mãe. A mãozinha ergueu-se e tocou a cicatriz no rosto de William.

— Nunca tema — ele murmurou à filha. — Um dia, ficarei para sempre aqui, e você e sua mãe estarão sob minha proteção perene.

Alflega sorriu. William também. Tal promessa soou estranha. Após pronunciá-la, cerrou as pálpebras e refletiu. Um dia, em breve, realizaria aquele sonho.

Pouco antes do início das festividades, William deixou Alflega com Hadwen e dirigiu-se ao quarto na torre. Sob a luminosidade da lareira, encontrou Catherine vasculhando as roupas do baú.

A cada dia, o amor que sentia por ela aumentava. Chegava à evidente conclusão de que não conseguiria mais viver sem sua mulher, muito menos longe da filha. Contudo, nem sequer poderia ousar abandonar sua posição como soldado de confiança do rei. Assim, restava-lhe apenas aproveitar ao máximo a companhia da esposa e usufruir dos prazeres inusitados que ambos obtinham na cama. Quando se casou com Catherine, William jamais poderia imaginar que a amaria com tanto ardor.

— O que foi? — ela perguntou ao vê-lo analisá-la. William se aproximou, calado.

Ficou tão próximo que Catherine pôde sentir a respiração quente nas faces, o aroma de couro da túnica.

No mesmo momento, ignorou as batidas aceleradas do coração. William achava-se tão próximo que ela não poderia respirar sem que os seios roçassem o peito musculoso. Se William a tocasse...

— Catherine...

Ela não se movia. Quando as mãos calejadas acariciaram seu rosto, sentiu-se derreter como neve sob o sol causticante. No momento em que os lábios a beijaram, reconheceu a sensação.

Catherine colou-se ao corpo sólido. Afagou os cabelos dele e recebeu o beijo, incrementando o contato sensual.

William gemeu e deslizou as mãos pela cintura fina, causando arrepios de prazer. Deus, como precisava dele... do toque, da presença protetora! William beijou a boca de Catherine, a orelha e a curva do pescoço até atingir a barreira do vestido.

Ela suspirou. Sem hesitar, William soltou o casaco e deixou-o cair. Em seguida, concentrou-se nos botões e laços, um trabalho que finalizou logo.

Embora não sentisse o ar gelado, Catherine tremia, sendo afagada daquela forma. William explorava suas formas nuas com lábios, dentes e língua.

Quando Catherine retirou a camisa dele, os beijos tornaram-se mais ardentes e impetuosos. Os corpos se encontraram, pele com pele, coração com coração.

— Você é minha, Catherine. — William a deitou sobre o leito forrada de cobertas. — Nunca se esqueça disso.

O ato amoroso se revelou através dos toques, das carícias íntimas que a excitavam e a ensinavam como dar-lhe prazer. Catherine deslizou as unhas sobre as costas largas, tateando os músculos, saboreando aquela virilidade. Era como se de novo descobrisse cada parte da anatomia de William, e ele explorava as curvas suaves, provando-a, criando uma turbulência de desejos.

Sensações abrasadoras a envolviam. Estranhas, mas familiares; satisfatórias, mas frustrantes.

Ela necessitava de mais.

Percebendo que estava pronta, William moveu-se, puxou-a e, de repente, Catherine se viu sobre o marido.

Tornaram-se apenas um; as chamas se fundiram, assim como os corpos. Moviam-se em um ritmo secular, uma cadência que exigia ser correspondida. Os corações pulsavam acelerados, a tensão crescia e os músculos flexionavam.

Os sentidos de Catherine clamavam por mais. Ofereceu-se toda e mergulhou na inebriante paixão da alma de William.

Um calor súbito a dominou. Uma sensação selvagem emergiu. A poderosa dança sensual levou-a aos patamares do delírio.

Quando, enfim, William deitou-se sobre ela, um fogo intenso a atingiu. O poder instintivo daquele homem tornou-se dela. Sentia a potência de seu marido dirigindo a união. Escutava a respiração ofegante, os gemidos de satisfação intensa. E, de súbito, uma energia incontrolável irrompeu dentro dela.

Suada, Catherine se juntou a William no fantástico êxtase que os transformou num único ser, numa só alma. A umidade eclodiu pelos poros de ambos e culminou em uma triunfante explosão de emoções.

O retorno à realidade foi lento e suave.

William acariciava o lindo rosto, apreciando a maciez da pele, a leveza do toque. Os olhos de Catherine traduziam o mais puro sentimento de amor.

— Você é um sonho. Eu nunca...

Os pensamentos começaram a ficar perigosos. William viu-se mais uma vez vulnerável perante o sentimento profundo que nutria por Catherine. Só naquele instante descobria os valores para ele eram fundamentais.

Beijou o delicado nariz da esposa, suspirando.

— Acho que temos de descer ao salão de banquetes — ela sugeriu, preguiçosa.

— Sim. Somos os senhores de Lundale. Devemos participar da comemoração.

Começaram a festejar uma hora após o meio-dia e continuavam à mesa quando a noite caiu.

O tronco gigante, arrastado por diversos convivas até o saião, enquanto o gelo derretia, passara a tarde fazendo apenas fumaça, e começou a aquecer o ambiente só ao anoitecer.

As portas do grande salão de banquetes de Lundale permaneceriam abertas a noite toda, pois o fogo de Natal deixara o espaço tão quente como um dia de verão. Aqueles que se reuniram e cozinharam para a festa continuavam sentados a suas mesas, tomando malte com temperos fortes e olhando, de quando em quando, para a escuridão do lado de fora.

Naquela noite, até os portões da paliçada estavam abertos, e os homens da guarnição faziam turnos para vigiar a vasta negritude além das muralhas.

William dissera aos homens para ficarem atentos a cavaleiros armados e permitirem que os pobres entrassem para pedir comida. Alertado por Catherine, ele avisou os sentinelas para não questionar aqueles que pareciam morar na floresta ou bloquear os aldeões que saíam carregando cestas de comida para os famintos que não ousaram comparecer à festividade.

William notara alguns rostos novos em meios à multidão, semblantes que se assemelhavam ao dos aldeões. Catherine reconheceu o primo de Osbert e a irmã caçula de Hadwen, ambos moravam na mata havia dez anos, desde a queda de Lundale. Seguindo o conselho de Catherine, William não abordou os recém-chegados, mas ergueu sua taça para eles da mesa elevada. Se decidissem abandonar os abrigos na floresta e voltar à aldeia, Catherine explicou, mandariam uma mensagem por Hadwen ou Osbert, que iria a William a fim de pedir permissão para restaurar outra cabana. Era assim que deveria ser feito.

Era estranho para um guerreiro, um homem que ganhara a vida resolvendo conflitos com a espada em punho, sentar-se e esperar que os últimos fugitivos de Lundale finalizassem seu longo exílio.

Sem Catherine para orientá-lo, William teria ido à mata para procurar os casebres e trazer consigo os aldeões famintos. Sua esposa estava certa, claro, ao proibir interferências, porque aqueles que não confiavam no lorde de Lundale retornariam à mata e se esconderiam em pontos ainda mais remotos.

Com sorte, se tudo corresse bem, nas próximas festas natalinas, haveria mais famílias na aldeia e mais almas às mesas da ceia. Quando isso acontecesse, William sentiria que conseguira restaurar todo o feudo. E, por amor a Catherine, queria muito estabelecer a paz.

— O que os soldados e as mulheres da casa da floresta farão hoje à noite?

William franziu o cenho. Observando a festa no velho salão, tão aquecido e iluminado, também perguntara-se como o pequeno grupo de estrangeiros estaria festejando no isolamento.

— As mulheres pediram um padre, por isso, mandei os homens buscarem um em Nottingham ontem. Fui até a casa e descobri que tinham encontrado um senhor de idade com olhos turvos e ouvidos surdos. Ele não escutou o que disseram em confissão, tampouco se lembrará dos rostos. Mas se alimentará muito bem... todos eles, aliás. Os guardas tiveram de construir outra cabana para armazenar os suprimentos que trouxemos de Nottingham.

— É um lugar muito ermo para mulheres. William segurou a mão da esposa.

— Para os homens também, Catherine. O inverno torna-se ainda pior quando um soldado está longe de seu lar.

Catherine deixou escapar um suspiro.

— Gostaria de poder trazê-los para cá... Mathilde, as mulheres e os homens só por esta noite.

— Sabe que não podemos.

— Sei, sim. — Catherine fitou a mesa repleta de iguarias e as pessoas reunidas ao redor da lareira. — Espero que estejam se divertindo.

William abraçou-a pelos ombros.

— Você viveu momentos difíceis em outros invernos, suponho. Estou certa?!

— O ano passado foi o pior. Sabia que você se achava na Normandia, mas ignorava como estava ou se ainda vivia. Realizamos as festividades neste salão, contudo, foi um período triste para mim, porque me perguntava se meu marido voltaria para ver a criança que eu gerava.

Ele olhou para a outra extremidade da mesa, onde John mantinha Alflega no colo, alimentando-a com pedaços de bolo de mel.

— Com sorte, estarei em casa no próximo inverno. Catherine ergueu sua taça e bebeu o malte doce.

— Rezarei por isso. E também para que tudo corra bem na casa da floresta.

— Por falar nisso, os desconhecidos que estavam perto da lareira partiram. Seus fugitivos decidiram não ficar?

— Todos sabem que haverá doze dias de comemorações. Podem retornar amanhã e nas noites seguintes. Alguns não precisam andar muito, pois estão alojados perto da campina onde os mortos foram enterrados.

— Achamos o tronco gigante nesses arredores.

Catherine sorriu.

— Isso quer dizer que o povo da floresta devia estar observando você.

Osbert levantou-se e ergueu o copo na direção da mesa principal. Começou a discursar em inglês, elevando o tom de voz e pronunciando frases que William tentava compreender. No final, Osbert terminou com um gesto dramático e tomou um longo gole de malte.

— Ele o homenageou — Catherine explicou-lhe. — Agora você tem de fazer um discurso.

— Você me disse que não entendem quando falo a língua deles. Eu acreditei, Catherine.

Ela achou graça.

— Hoje à noite nada disso importa. O malte faz com que todos se compreendam.

Ao lado de Catherine, Robert se inclinou e encheu a taça.

— Vamos, William. Faça um bom discurso. Caso se atrapalhe, eu me levanto e falo por você.

William ergueu-se com a taça na mão. O excesso de bebida roubou-lhe as frases inglesas que havia aprendido. Os rostos espantados dos aldeões e o murmúrio que se espalhou pelo recinto tornaram impossível para ele permanecer em silêncio.

Assim, respirou fundo e recitou um verso que aprendera com a mãe e os bardos, que haviam cantado no antigo salão de Macon. O povo de Catherine escutou as palavras estrangeiras com cortesia e certo interesse. No final, houve aplausos e gritos para os versos, ou para as jarras de malte que Hadwen acabara de colocar sobre as mesas.

William dirigiu-se a Robert:

— Como foi?

— Não ofendeu ninguém.

— Catherine?

— Eles ficaram contentes, William.

— Devem ter pensando que você prometia uma moeda de ouro para cada um — Robert brincou.

De repente, Osbert levantou-se outra vez e caminhou até a extremidade do fogo. Sua voz se elevou e fez cessar as conversas às mesas. O povo encheu os copos e acomodou-se nos bancos. Todos os rostos voltaram-se para Osbert.

— Algum problema? — William perguntou à esposa.

— Não — ela murmurou.

Osbert começou a recitar em tons guturais, a força do que dizia crescia e diminuía em cadências que agradavam os ouvidos de William, que nada compreendia.

— Um conto de Natal?

— Não de Natal, William. É a história de um rei que foi atacado por monstros, e o valente cavaleiro viajou até aquela terra para enfrentar as criaturas.

— Uma fábula estranha para uma noite de Natal. Costumam contar histórias como essa na Normandia para assustar as crianças no Dia das Bruxas.

— Osbert conta essa mesma história no Dia das Bruxas — Catherine disse. — É a única que ele conhece, mas é muito comprida, e ele escolhe as partes que mais gosta para cada estação. Agora, silêncio ou Osbert ficará irritado.

— Que parte está contando hoje?

— A jornada do cavaleiro e a oferta de ajuda ao rei, rodeado de monstros.

— Ah... Henrique Plantagenet adoraria ouvir esse conto. O que acontece depois?

— No fim? O cavaleiro mata a pior das criaturas, a que produz todas as outras, e morre. E, então, tem um funeral de herói. — Catherine calou-se, escutando Osbert. — Nunca gostei desse final.

William segurou-lhe a mão.

— Ano que vem, trarei um bardo para as festividades, e ele nos oferecerá outra canção.

 

Por volta da meia-noite, William subiu ao posto do sentinela, no alto da torre, e ofereceu ao vigia uma caneca de malte temperado para aquecê-lo.

Catherine acompanhou o marido, levando pão, carne e bolo de mel para o guarda.

— Quando terminar seu turno — ela disse ao homem —, pode buscar mais comida no salão.

William fitou a vastidão das estrelas e envolveu Catherine em seu manto quente. Nunca vira o céu de Lundale tão limpo e tão brilhante. O ar frio caíra sobre a região, banindo o nevoeiro de inverno do firmamento, do rio e das pastagens.

Por causa daquela noite cristalina, William podia enxergar para além da escuridão e contar as fogueiras daqueles que permaneciam em seus abrigos secretos na floresta.

— Noto que ainda restam muitos aldeões na mata que preferem ficar em suas choupanas, Catherine. Pensei que a friagem pudesse atraí-los a nossa mesa farta.

— Eles já enfrentaram muitos invernos por ali, desde que abandonaram a aldeia — Catherine explicou-lhe. — Este ano, os que vieram a nossa mesa podem falar aos outros da paz que reina no momento em Lundale. Ela acariciou a mão do marido.

— Todos estão aprendendo a confiar em você, William. Ele olhou para o sentinela e chamou-o.

— Já é meia-noite. Deixe a bebida e a comida para o próximo guarda e vá ao salão. Há um barril de vinho ao lado do fogo. Farei o resto da vigília.

No instante seguinte, viram-se a sós. Do estábulo era possível escutar vozes e a melodia de uma harpa. A luz das chamas dançava à entrada do salão e, ao longo do teto baixo, a fumaça da lareira escapava pelos buracos do telhado, espalhando o aroma de ervas e temperos pela atmosfera festiva. Das sombras dos muros da paliçada soavam vozes e risadas distantes.

Catherine olhou em direção ao sul.

— Acho que posso ver a luz da casa da floresta. Vê aquela luminosidade mais intensa que as outras?

A distância, erguendo-se no horizonte enegrecido, uma trilha de fumaça saía da casinha e cortava o céu estrelado.

— Estou vendo, sim. Ontem os soldados mencionaram algo sobre uma imensa fogueira para celebrar o Natal.

— Deve ser estranho para aquela pobre jovem passar o Natal longe do lar, na companhia de desconhecidos para protegê-la e apenas com criadas para confortá-la.

— Ela estava bem contente, quando a vi ontem — William garantiu.

— E há uma parteira, afinal?

Ele sorriu e apertou Catherine entre os braços.

— Sim, Mathilde tem uma parteira, querida esposa. Uma das criadas me garantiu que sabe o que fazer quando chegar a hora. A mulher mandará uma mensagem, caso algo saia errado, e terei de pedir a alguém daqui que a auxilie, se isso acontecer.

— Hadwen tem muita experiência. Mas não vai conseguir guardar segredo.

— É um risco que teremos de correr.

— Sim. Rezarei para que tudo saia bem. Tenho certeza de que o bebê nascerá saudável e que Mathilde irá se recuperar a contento. — Catherine tirou o capuz do manto e olhou o horizonte negro. — O que acontecerá a ela e às criadas depois que o bebê nascer e o inverno acabar?

— Enviarei um mensageiro ao rei assim que a criança vier ao mundo. Antes da primavera, a filha do barão voltará a Shrewsbury, onde deverá passará a primavera orando.

— Nesse caso, é preciso encontrar uma ama de leite para o pequeno.

— No mínimo, a criança será adotada ainda bebê. Duvido que Mathilde ou o rei queiram criar o bastardo. Há muitos aspectos políticos em jogo, e a criança já nascerá com um peso enorme sobre a própria origem.

— O rei não lhe disse quem estaria interessado em adotar o bebê?

— Não houve tempo. Após a emboscada na fronteira, Henrique foi nos encontrar no acampamento. As patrulhas galesas aumentaram as buscas e, por isso, receávamos que não existiria segurança para Mathilde em Marches.

— Nenhum lugar é seguro para o segredo vergonhoso do rei, William.

— Por enquanto, a honra de Henrique e a segurança de Mathilde são a mesma questão.

— O rei falou com você após a emboscada?

— Foi até nós. Conversou com Mathilde e, em seguida, pediu-me que viajasse para o norte o mais rápido possível e a escondesse em Lundale, porque os inimigos não pensariam em procurá-la aqui. Eu lhe garanti que a levaria ao norte, mas não a Lundale. Prometi procurar um local melhor.

— Recusou-se a levá-la para onde o rei ordenou?! — Catherine se espantou com a leve rebeldia do marido.

— Para que trazê-la a Lundale, onde todos a veriam e os boatos se espalhariam mais depressa? Os espiões dos senhores galeses seguiriam os rumores e encontrariam Mathilde com incrível facilidade. Os inimigos do rei, galeses e ingleses rebeldes, cercariam nossa casa em menos de uma quinzena.

— Henrique deve ter entendido isso.

— A abadia seria uma péssima escolha pelo mesmo motivo. Então, pensei naquele dia de verão, em que nós dois cavalgamos até a casa da floresta.

— Eu lembro.

William beijou os cabelos perfumados. Naquela quinzena mágica do último verão, ele e Catherine haviam passado o dia na antiga casinha, aproveitando o sossego da morada em abandono, longe dos olhos curiosos dos aldeões de Lundale. Foi quando ele prometeu a sua mulher que pediria ao rei para restaurar a construção e acrescentá-la de novo às terras que a família de Catherine outrora possuíra. E William selara a promessa com mais que palavras.

Catherine suspirou, ao rememorar as carícias ardorosas e a jornada sensual para a qual o marido a levara. Aquele era um dos motivos pelos quais tinha tanto apreço pelo velho dote de sua mãe. As paredes seculares testemunharam a fusão fervorosa de Catherine e William...

— Se falarmos daquele dia, esqueceremos todo o resto e seremos capaz de nos amar aqui mesmo, sob o céu estrelado e o vento gélido — ela brincou, suspirando. — Conte-me o que aconteceu durante a jornada para cá. Você se lembrou da casa na floresta e...

William pigarreou.

— Sim, e deduzi que aquele lugar abandonado podia ser um local seguro. Ao sair de Nottingham, enviei alguns homens à frente para verificar se tudo estava vazio, e eles encontraram seus carpinteiros. O resto você já sabe.

— Aquela moça deve achar que veio parar no fim do mundo.

— Mathilde não se queixa. Trouxe muitas coisas finas na bagagem que lhe proporcionam conforto, e ainda há o ouro do rei para tudo o mais. Mandei solados a Nottingham para comprarem cortinas para cobrir as paredes, uma colchão de penas e outros acessórios necessários.

— Mesmo assim, é um lugar solitário.

— Mathilde tem as criadas para lhe fazer companhia, e os homens acampados ao redor da paliçada para protegê-la. Foi o melhor que pude arranjar. — William olhou as terras envoltas pela escuridão. — Se for até lá no próximo verão, encontrará as choupanas que os homens construíram, uma vez que são muitos para se acomodarem dentro da moradia.

— O rei sabe exatamente onde os instalou?

— Ainda não. Ninguém sabe. Só você. — Ele a abraçou. — Está tremendo...

— Não é por causa do frio, William, mas pelo futuro. Muita coisa poderia dar errado. Aquela pobre moça poderá morrer de parto. E, se isso acontecer, não faço ideia do que será de nós.

— Mathilde é jovem e parece forte. Viajou até aqui na liteira.

Nenhum dano foi causado.

— Você fez tudo o que podia. Mas muitos detalhes podem atrapalhar. Um parto laborioso, os caprichos do rei...

— Os caprichos dele acabaram. Agora estamos lidando com o resultado.

Catherine meneou a cabeça.

— Quando a criança nascer, se for um menino, Henrique desejará que seu herdeiro tenha um lugar no mundo. Se a moça estiver casada, o pequeno terá um nome, pois nenhum marido ousaria deserdar o filho do rei.

— Sendo assim, Henrique encontrará um marido nobre para Mathilde e, pelo bem do filho, ela acatará a decisão do soberano. Na primavera, o rei já terá planejado algo.

— E se o pai dela objetar? O barão pode começar a desconfiar dos motivos de Henrique. E, se descobrir que a filha não passou o inverno no convento, será capaz de renegá-la. Afinal, ela também é uma bastarda. É um fato que sensibiliza a honra do barão, mas que será repudiado, se o galês se zangar.

William hesitou.

— Creio que dirão a Pandulf que o homem escolhido para marido deitou-se com a jovem no último verão, depois de pedi-la em casamento.

— O barão Pandulf acreditará nessa fábula? Duvido. Deve ser um homem do mundo.

— Talvez opte pelo caminho mais simples e aceite a história que lhe for contada. Situações semelhantes já ocorreram antes, mas nunca com alguém tão poderoso quanto o barão Pandulf. — William respirou fundo. — Espero que Henrique Plantagenet tenha visto que, dessa vez, foi longe demais. Ele deve ter aprendido a procurar viúvas e filhas de servos quando não puder conter seus rompantes sexuais. Mathilde pode ser a última de suas conquistas arriscadas, para o sossego de todos nós.

— Rezo para que você não diga isso ao rei. Deixe tudo para o confessor real. É melhor.

William beijou a ponta do nariz de Catherine.

— Olhe para cima, esposa. As estrelas estão mais brilhantes hoje do que em qualquer outra noite.

Sob a luminosidade estelar, os olhos de Catherine pareciam ainda maiores e muito escuros.

— É Natal e há coisas melhores a fazer que pensar no rei e seus esquemas — William declarou. — Em poucas semanas, o bebê de Mathilde nascerá e, na primavera, nossa participação nesse problema estará terminada.

Ela apertou o punho de William.

— Escute com atenção, meu marido. Isso pode não acabar quando a primavera chegar.

Ele sorriu.

— Cedo ou tarde, acabará.

— Já se perguntou por que o rei o escolheu para resolver a questão de Mathilde e do bebê?

Com frequência, se fosse para ser franco. Durante a lenta jornada a Lundale, William passara muitas noites acordado por causa do ferimento na perna, indagando-se como a mente astuta de Henrique Plantagenet não previra que a viagem seria tortuosa e que William era o homem errado para lidar com o dilema de Mathilde. Só naquele instante as artimanhas do rei começavam a fazer algum sentido para ele.

— Ambos sabemos que uma posição de destaque na guarda do rei não é um benefício, Catherine. Quando o problema apareceu, Henrique Plantagenet apontou para o homem mais próximo em que podia confiar. Nesse caso, eu estava presente e fui encarregado da missão.

— Foi assim tão simples?

— Muitas coisas o são, Catherine. Principalmente para um rei que decidiu transferir um problema pessoal para os ombros de outro.

Ela não achou graça. William julgou ter ouvido uma prece sussurrada na escuridão.

— O que está dizendo?

— É possível que exista um motivo oculto na decisão do soberano? Disse-me que, de longe, você se parece com Henrique Plantagenet. Se a emboscada em Gales acabasse mal e Mathilde fosse descoberta, o rei assumiria a responsabilidade?

— Não, de modo algum. Catherine virou-se para encará-lo.

— Acredito que, se a emboscada terminasse a favor dos senhores galeses com sua morte e a captura da filha de Pandulf, o rei apontaria você como aquele que desonrou Mathilde. Testemunhas diriam que viram William de Macon, não o rei, fugindo para se encontrar com a dama. Alguns afirmariam tal coisa por lealdade ao rei e outros acreditariam mesmo que o viram. E, William, o filho do rei pode se parecer com você.

William meneou a cabeça.

— Tudo isso é possível.

— Portanto, concorda que o rei teve a intenção de usá-lo?

— Pode ser. Coisas desse tipo acontecem. — William soube, no dia em que Henrique Plantagenet lhe contou a natureza da missão, que o perigo estava à espreita. — Eu conhecia os riscos que enfrentaria, mas também entendia que seria catastrófico recusar a tarefa. O rei me falou como os galeses poderiam impedir a invasão de Gales. Portanto, ele não permitiria minha abstenção nessa guerra, mesmo sabendo de minha recusa.

Catherine começou a caminhar pela plataforma onde ficavam os sentinelas.

William aprendera, nas últimas semanas, que, quando começava a andar de um lado para o outro, só poderia significar que pensamentos audaciosos ocorriam a sua amada esposa.

Ele a seguiu e segurou-a pelo braço.

— Não há nada a ser feito. Acredite-me, Catherine, pensei e repensei diversas vezes e não encontrei nada que eu pudesse fazer, além de garantir a segurança de Mathilde e esperar que ela não morra durante o parto.

— Você não vê?!

— O quê?

— O problema verdadeiro. — Catherine olhou ao redor, temendo que alguém pudesse ouvi-la. — Você é o homem para quem Henrique Plantagenet confiou Mathilde neste inverno. Se ela tiver um filho, você será o escolhido para criá-lo!

William ponderou sobre aquilo.

— Você se importaria, caso tenhamos de criar a criança?

— Talvez não o façamos juntos, William. Ele sentiu o coração se apertar.

— Que bobagem é essa?

Catherine enrolou-se no manto. Atrás dela, uma estrela cadente traçou um caminho prateado no céu.

— O rei é esperto demais para arriscar a ira do pai de Mathilde, se o barão descobrir que a filha não está no convento. William, caso Pandulf fique sabendo, tudo cairá sobre sua cabeça. Durante o trajeto, várias pessoas o viram com ela. E, se a criança for descoberta, irá se parecer com o rei. E com você. Será nomeado o pai do bebê, meu marido. E terá duas escolhas: lutar contra Pandulf ou casar-se com Mathilde.

— Não acontecerá. Outra jovem foi enviada ao convento no lugar de Mathilde.

— Mas e se acontecer? E se o pai de Mathilde for ao convento e descobrir que a filha desapareceu?

— Nesse caso, terei de enfrentar o barão.

— E o rei o castigará por isso. Não percebe, William? Plantagenet entregou-lhe mais que a segurança de Mathilde. Passou o fardo do próprio erro e todas as conseqüências para suas costas. E você não terá opções quando chegar a hora de decidir.

— Que bobagem'

— Terá de me colocar de lado e casar-se com Mathilde.

— Não, Catherine. Pare e raciocine. Somos casados e temos uma filha. Se Deus quiser, teremos outro bebê ano que vem. Não a abandonarei.

— Pelo rei, se ele ordenar... William a enlaçou.

— Você é minha esposa, Catherine, e não vou deixá-la. Nem por Henrique Plantagenet. Nem mesmo por sua honra. Há limites paia o que um rei pode exigir de seus súditos.

Ela meneou a cabeça e murmurou algo.

— O que é, Catherine?

— Meu pai acreditou que havia limites para o que Plantagenet exigiria de um homem. E sofreu as conseqüências disso. Por favor, William, se a situação chegar a esse ponto, abandone-me e case-se com a moça.

— Catherine...

— Talvez ela não queira morar aqui... com você. Mas se quiser... — Catherine engoliu em seco. — Voltarei à abadia com Alflega. Não estaremos longe e...

— Basta! O rei não pedirá tal coisa. Henrique não é um monstro.

— É, sim. Pergunte a qualquer um daqui.

— Ouça-me. Não vou me separar de você. Somos casados, Catherine, e nenhum homem, nenhum rei irá mudar isso. — William sentiu lágrimas quentes rolarem no rosto dela. — São ideias absurdas, esposa. Humores sombrios em sua cabeça.

Ele tentou amenizar a tensão:

— Talvez já esteja grávida e, por essa razão, imagine desastres, como as mulheres fazem nesse período.

Catherine assentiu e afastou-se, para ajeitar o manto.

— Bem — Catherine falou, com mais determinação —, enquanto especulávamos acerca do que o rei faria ou não, uma centena de lordes galeses poderia avançar e rodear as muralhas. Eu não notaria.

— Nem eu.

William olhou para o norte.

— O povo da floresta peca por falta de cautela. Até um cego poderia avistar aquelas fogueiras.

— Osbert diz que há apenas duas famílias vivendo a norte da plantação. Todos os demais estão a leste e oeste. São muito cuidadosos. — Catherine voltou-se para o norte e esfregou as pálpebras. — Esses fogos são intensos demais.

— Talvez não tenham mais medo de ser descobertos. Quem sabem resolveram confiar em mim...

Uma camada fina de gelo havia se formado sobre o beiral de pedra. A respiração de William tornou-se visível sob a luz das estrelas.

— O sentinela está demorando. Vou montar guarda sozinho, se você quiser voltar.

— Estão se movendo — Catherine avisou. — Os fogos estão se deslocando.

Ao observar com atenção, os pontos distantes de luz, em princípio, pareceram fixos. De súbito, dois deles mexeram-se e desapareceram para surgirem mais à frente dos outros.

— Devem ser tochas — William concluiu.

Ele e Catherine permaneceram em silêncio, examinando os fogos distantes.

— Estão parados, agora — ela afirmou, rígida de frio.

— Não deve ser nada. E você está quase congelada. Vamos descer. Mandarei um vigia subir.

— Por prevenção, é melhor ele ficar atento à parte norte.

— Sim, direi isso ao guarda. Agora, vamos.

No topo da escada espiral, diante do primeiro degrau, Catherine hesitou. Tornou a olhar para o céu.

— Uma noite tão clara como esta é muito rara. Não me agrada deixar as estrelas.

William beijou-lhe os lábios gelados.

— Eu as trarei para nós. Em nosso quarto, elas voltarão a dançar para você. Prometo, Catherine. Hoje à noite e em qualquer noite que escolher, elas brilharão para você.

— Hoje à noite, William. Hoje e para sempre.

Quando se virou mais uma vez para apreciar os corpos celestes, Catherine exclamou, assustada:

— William, veja!

Assim que ergueu o rosto, ele soube que as estrelas não dançariam para a esposa daquela vez.

Os fogos, pontos distantes de luz, voltaram a se mover. A norte, um rio de tochas rumava do leste e do oeste em direção aos acampamentos em campo aberto, para além da floresta.

E tal trilha luminosa percorria a estrada que levava a Lundale.

 

Foi a lealdade que o conduziu àquelas terras havia dois anos. A gratificação de Henrique Plantagenet devido à lealdade de William dera-lhe o direito a Lundale e o atraíra a Catherine. Agora, no final, apenas um ato de deslealdade para com Henrique Plantagenet tornaria suportável a última partida.

Se, cego de obediência, tivesse continuado pela trilha mais estreita e se não houvesse revelado o pecado ridículo do soberano, jamais veria a firme determinação no semblante de Catherine, ao vê-lo preparar-se para encarar o perigo. Aquele podia ser o último dia de William, podia ser a última vez em que ambos estariam juntos.

Contudo, ele quebrara o voto de silêncio e contara-lhe tudo. E abençoava o momento em que se atrevera a tanto. O amor que nutria por Catherine o fizera abrir a alma em todos os sentidos.

Como conseguiria deixá-la no pátio, sabendo que poderia nunca mais voltar? Conseguiria Catherine um dia entender a necessidade de William de cumprir a missão que Henrique Plantagenet lhe impusera?

Sim, conseguiria. Como filha de um rebelde assassinado, ela o tinha influenciado com seu espírito obstinado. Embora William mantivesse os votos de fidelidade a Plantagenet, a dádiva de Catherine, a alma indomável que tanto amava, seria a força de William naquele dia terrível.

O sorriso de sua esposa estava rígido. Ela apontou o jovem Radulf, que se achava prensado num canto do estábulo, entre os homens e suas montarias agitadas. O garoto permanecia ereto, com os olhos fixos em William e a lança em mãos.

— Pedirei ao sentinela para descer — informou Catherine. — Radulf ofereceu-se para assumir o posto de vigia. É um bom rapaz e conhece muito bem a terra. Ele fará um excelente trabalho.

— Preciso deixar alguns homens para defender os portões.

— Radulf me disse que sabe como usar a lança, caso seja necessário, William. E está ávido para lutar. Ansioso demais, eu diria. Se o deixar para trás sem uma tarefa, ele o seguirá a pé, e será inútil impedi-lo.

A voz de Catherine soava calma e baixa, como se ela discutisse a próxima época de semeadura.

— Pois muito bem.

William chamou Radulf e falou com ele em idioma regional.

— Ficará no topo da torre o dia todo, rapaz, se eu lhe der o posto de sentinela?

Radulf assentiu.

— Então, repita o que eu disse, menino. Radulf assentiu de novo.

William encarou Catherine.

— Ele não entendeu nada, certo?

Catherine tocou o ombro de Radulf e conversou com o jovem, utilizando a linguagem que William escutava, mas nunca entendera, em Lundale. O rosto do garoto se iluminou. No minuto seguinte, Radulf assentiu com tanta força que William teve medo de que o rapaz quebrasse o pescoço.

— Radulf jura honrar seu posto de vigia e não desertá-lo jamais. E ele diz que sabe como soar o alarme.

— Muito bom. Que Radulf suba agora ao posto de vigia e mande o sentinela para cá. Preciso de todos os homens.

William usaria cada uma das espadas disponíveis. Contara cerca de cem tochas na véspera, antes do raiar do dia, e receava que o número de inimigos fosse ainda maior. Não calcularia a extensão total da força invasora até atingir o acampamento depois da floresta.

Voltou a atenção à defesa das muralhas de Lundale.

— Confiarei a vigilância da torre a Radulf, Catherine. Mas os guardas nos portões ficarão.

— Claro, William.

— O sentinela pegará o último cavalo no estábulo, salvo sua égua. É melhor não tentar sair, se a situação voltar-se contra nós. Mas o animal ficará aqui. Você decidirá.

— Espero que não seja necessária nenhuma decisão.

— Diga aos aldeões para permanecerem dentro dos muros da paliçada.

— Certo. E o gado também. Osbert os está reunindo.

— E você, fique na torre com as mulheres e as crianças. Se não puder negociar uma trégua quando eles invadirem, se chegar ai

— Se os portões forem derrubados?

— Sim. Se os portões tombarem, fique na torre. Mesmo que ateiem fogo para obrigá-la a sair. Há baldes de água em todos os pavimentos para manter o chão umedecido. Mesmo que empilhem lenha ao redor da torre, não conseguirão muita coisa além de fumaça. Com esse frio, será difícil atearem fogo na porta, uma vez que a madeira está úmida demais. John a está molhando agora. Por mais que eles tentem, haverá muito gelo para postergar as chamas.

— Entendi.

— Se chegar a esse ponto e as portas começarem a queimar, você deve negociar com eles. John a ajudará nisso. Grite do topo da torre, se necessário. Eles a escutarão. Exija passagem livre para todos. Renda-se em qualquer caso e deixe-os levar o que quiserem. Alflega...

— Eu a protegerei.

— Coloque-a junto com as outras crianças para que passe despercebida. Se perceberem que é nossa filha, eles a levarão para exigir um resgate.

Catherine fitou os olhos de William.

— Não chegará a esse ponto.

— Lógico que não. Mas é bom ter um plano, para qualquer eventualidade.

— Sim. Vê-lo retornar são e salvo no final do dia é meu plano.

Do canto mais distante do estábulo, Robert puxou seu cavalo para se juntar à companhia. O velho machado de guerra dos carpinteiros de Lundale estava amarrado à sela, o punho da espada brilhava sob a luz da aurora.

— Irei com você — ele informou a William. — Se assim o quiser.

— Quero, sem dúvida. — William avaliou o céu.

As nuvens não tinham se agrupado. Tudo continuava claro e limpo, como na madrugada anterior. Mesmo sem as fogueiras para direcionar os olhos, seria possível avistar o número e a posição dos intrusos.

— Robert, você conhece bem estas terras. Vá ao posto de sentinela e esquadrinhe a região mais uma vez. Lembro-me de ter visto três acampamentos ao norte. Foi difícil calcular quantos homens. Faça uma última vistoria e veja se eles se deslocaram.

— Certo. — Robert deixou as rédeas com William e correu para a torre.

William observou-o por alguns minutos.

— Seu primo tem braços fortes. Espero que não veja amigos entre os intrusos.

— Ele permanecerá a seu lado — Catherine garantiu. William examinou o firmamento mais uma vez.

— O sol está alto. É hora de partir.

Olhou o rosto de Catherine e viu nele tudo o que sempre desejou: paixão. Uma emoção que William já vira em várias ocasiões, sobretudo nos momentos de maior intimidade, durante a última quinzena. Antes de existir a confiança, tiveram paixão e desejo, sustentados pelo amor. Dentre todas as coisas do casamento, o amor arrebatador tornara-se o maior aliado de ambos.

E agora também existia confiança.

Porque confiava nele e entendia o fardo que o marido carregava, ela naquele momento demonstrava resolução. Se Catherine queria chorar, guardava as lágrimas para o dia seguinte.

— Vamos — William ordenou. — Beije-me para que eu tenha o sabor de seus lábios durante este dia.

— Você só se me trouxer o beijo de volta antes de o sol se pôr, meu marido.

Catherine devia saber quão improvável era o retorno de William. Fora ela quem se preocupara com o ferimento no joelho e lhe dissera que não podia retornar à batalha antes de uma cicatrização completa. Muitos meses teriam de se passar para que a perna voltasse à velha forma. Catherine sabia, e William também, que se tivesse de desmontar para lutar, ele seria inútil em combate no solo. Naquele dia, só os mais talentosos sobreviveriam, se uma refrega irrompesse. E William não estaria entre esses.

Mais uma vez, ele agradeceu por ter traído a confiança do rei e contado a Catherine o que precisava fazer por Henrique Plantagenet. Se William morresse, Catherine lidaria com o fardo do marido a sua própria maneira, e sozinha.

— Os soldados do rei foram na frente?

— Sim. Eles deveriam se reunir ao norte daqui, na estrada que atravessa a floresta. Vinte guerreiros no total.

— Dez ficarão com as mulheres na mata?

— Exato. E dez na abadia. — William tirou a luva e passou a mão nos cabelos.

Dez homens do rei encontravam-se acampados ao redor dos muros da abadia. Antes do amanhecer, ele enviara um batedor para avisá-los que se preparassem para defender a casa da floresta, caso fosse atacada. Sendo assim, a abadia teria de depender das habilidades e da língua letal da madre Alflega como proteção. Ela conseguira se arranjar uma década atrás, durante as rebeliões, e o faria outra vez.

Mais uma dezena de soldados permaneceriam na casa da floresta para vigiar e patrulhar a estrada. Os outros, vinte guerreiros, acompanhariam a guarnição de Lundale ao encontro com o inimigo. Aquela seria a pior perspectiva que William já enfrentara em seus anos de combate.

Teria cometido um sério engano ao mandar tantos homens para defender lady Mathilde? Ou seriam muito poucos?

Catherine aproximou-se.

— A moça e as criadas não estariam mais seguras aqui? — questionou, num sussurro. — Todos nós não ficaríamos mais seguros juntos, William?

— Não. Aqueles homens na mata devem ter vindo para capturar Mathilde. Não quero envolvê-la, Catherine. Eles não se aproximaram da casa e talvez nem saibam que a moradia existe. Se invadirem, vão vasculhar primeiro esta fortaleza.

Catherine segurou-lhe a mão.

— William, vou manter em mente seu conselho de negociar uma trégua. Se a conseguirmos, talvez soframos apenas alguns danos no depósito, caso um rufião resolva procurar a moça.

— E se os homens que patrulham a estrada virem intrusos aqui levarão Mathilde para o mais longe possível. Em ambos os casos há um grave risco, mas foi o melhor plano que pude elaborar. — Naquele instante, ele sentiu a própria decisão falsear. — Catherine, se houvesse um jeito de evitar tudo isso, eu teria...

— Não existe outra maneira de enfrentar o dia de hoje. Fez tudo que podia para nos proteger de qualquer perigo, e agora estamos nas mãos de Deus. Eu, você e Alflega.

Catherine tocou a perna enfaixada dele e afrouxou a bandagem ao redor do joelho. Em seguida, ajeitou o manto, enquanto William abaixava-se para beijar-lhe os lábios. Foi um beijo rápido, o tipo de toque que uma mulher oferecia ao homem quando os olhos dos outros achavam-se sobre eles. Uma carícia breve que mostrava o desejo de um retorno seguro. Um beijo valente.

— Boa jornada, William, e venha para nós. Volte para mim antes do anoitecer.

— Não tem belas palavras para seu primo? — Robert pegou as rédeas da mão de William e montou.

— Tome conta de seu primo por casamento. Quero vocês dois aqui, esta noite.

Robert deu risada.

— Não se preocupe, prima. Não deixarei William nos levar a Nottingham depois da batalha, para celebrar. Voltaremos direto para casa. — Dirigiu-se a William: — Não avistei nenhuma mudança da torre. Ao norte, uma parcela dos soldados de Henrique está a nossa espera na estrada. Ninguém na floresta, exceto os sentinelas um pouco além da passagem do rio.

William ajeitou o cinturão da espada e colocou o elmo. Ergueu a mão para se despedir de John e encarou Robert.

— Não deixemos os homens do rei esperando. — Dito isso, liderou os guerreiros em direção aos portões da paliçada.

Embora sentisse o olhar de Catherine enquanto adentrava os campos gelados de Lundale, William seguiu em frente.

E não ousou olhar para trás.

A espera começara.

A estrada norte permitiria apenas o passo lento naquela época do ano devido às valas profundas criadas por viajantes no outono e às poças de chuva e neve derretida que cobriam as finas camadas de gelo.

Galhos de vários tamanhos, oriundos de árvores que tinham sido derrubadas pelo vento das grandes tempestades, penetraram a terra, misturando-se à lama fria. William e seus homens não conseguiram chegar ao acampamento dos intrusos antes do meio-dia.

Às primeiras horas da manhã, houvera muita distração para Catherine, o que a impedira de pensar em William. Os aldeões, ainda sofrendo os efeitos das festividades da véspera, receberam a notícia de uma eventual invasão, em princípio, com descrença. No decorrer da manhã, Osbert e John persuadiram os habitantes a levar o gado e as melhores ovelhas para o pátio e barrar os portões da paliçada a fim de evitar um ataque surpresa.

Com o sol a pino, a aldeia já estava deserta, e o pátio interno diante do salão de banquetes era uma confusão de vacas, porcos e cestas de algodão.

Catherine tirara os baldes do local para acrescentar mais água à torre e deixara outros ao lado do poço, para qualquer emergência. As aldeãs percorreram cada um dos pavimentos a fim de escolher onde ficar com seus filhos, caso tivessem de passar a noite sitiadas na torre.

No início da tarde, a comoção havia terminado, e os aldeões, homens e mulheres, retornaram ao grande salão de Lundale para aguardar notícias. Lá, John encarregou-se de todas as mulheres e crianças, contando cabeças, preparando-as para correr à torre.

Catherine selecionou carne salgada para a segunda festividade natalina e pediu às mulheres que fossem à cozinha assá-la. Não tinham necessidade, ela lhes dissera, de passar fome no Natal, mesmo em vistas de uma ameaça.

Alflega, fascinada com a agitação, apoiava-se nos joelhos, observando rostos, rindo com crianças nos braços das mães e fatigando John cada vez que atravessava o espaço vasto e repleto de pessoas.

— A única lembrança que ela terá deste dia, minha senhora, será toda essa gente reunida no mesmo lugar.

— Espero que sim, Hadwen. William disse que... se houver algum problema...

— Ele falou comigo, milady. Quer Alflega com as crianças. "Não a separe das outras, a menos que seja estritamente necessário", milorde mandou. É um homem sábio aquele seu marido. Não permitirá que um bando de ladrões se aproxime.

Bando de ladrões. Era dessa forma que o aldeões se referiam àqueles que acampavam depois dos limites da floresta, aos cavaleiros que esperavam além das árvores, tendo o campo aberto a suas costas. Catherine rezava para que seu povo nunca descobrisse que os forasteiros não eram ladrões comuns.

A tarde, após o período de tumulto, as pessoas começaram a se irritar com a monotonia. A esposa de Osbert lembrou-se de que havia deixado sementes de linho no teto da cabana e pediu para abrir os portões a fim de voltar à aldeia para buscar o pequeno tesouro. Osbert a acompanhou e, muito tempo depois, retornaram, trazendo uma cabra por uma corda.

Uma das vacas leiteiras começou a mugir e houve uma certa confusão com os baldes de ordenha. Uma rápida revista pelos arredores não desencantou o balde que continha leite de cabra.

Os portões tiveram de ser abertos mais uma vez para três aldeões buscarem pertences esquecidos.

Um viajante surgiu na estrada a nordeste, galopando, e atravessou a passagem do rio. Os aldeões correram para dentro da paliçada e recolocaram a barra gigantesca nos portões.

O viajante não reapareceu. No campo e na floresta, apenas o silêncio. Na campina a oeste, as ovelhas pastavam, reuniam-se e, em seguida, voltavam a vagar. No interior da paliçada, os carneiros presos ao lado do estábulo chamavam as fêmeas sem parar.

Catherine subiu ao posto de Radulf e notou que o garoto seguia as ordens de seu senhor com energia e orgulho.

— Nosso senhor William está nos limites da floresta, milady. Mas os invasores se afastaram dele. A senhora vê os acampamentos? Eles os abandonaram e foram mais para o norte. Estão com medo de lorde William.

— Consegue discernir quantos são?

— Muitos. Mais de trinta. Esse é o número que lorde William tem. Mas ele os espantou. Assim que os alcançar, os inimigos vão recuar. — Radulf respirou fundo. — Eu queria ter ido com eles...

Catherine tentou calcular quantos cavalos havia na massa de soldados além da floresta. O vento soprava do norte, movendo as flâmulas no topo das tendas. Àquela distância, era possível vê-los quase com clareza. Mesmo as cores das bandeiras eram fortes o bastante para serem visualizadas.

— Devem ser escoceses, senhora. John me disse que os reis escoceses possuem o próprio território há muitos quilômetros daqui.

— Sim, é muito, muito longe, Radulf. Não se aflija. Ninguém jamais viu um escocês. Eles não fazem trajetos tão longos ao sul.

Radulf deu de ombros.

— Que bom. Prefiro os ingleses.

— Está com medo?

— John diz que é bom ter medo, às vezes.

— Ele está certo. Todos nós temos medo.

— Não quando lorde William está aqui.

— É verdade.

— John me falou que lorde William não tem medo de nada, exceto, talvez, da abadessa, a madre Alflega.

— Sim. Se os intrusos vierem do sul, é melhor não passarem perto da madre Alflega.

Radulf virou-se em direção ao sul.

— Não consigo avistar a abadia daqui. Mas às vezes vejo fumaça da casa da floresta.

Catherine recordou a ocasião em que ela e William enxergaram a fumaça cruzar o céu estrelado. Acontecera poucas horas atrás. Quase uma vida inteira.

— E é possível ver os homens do rei a oeste. — Radulf virou-se. — E mais soldados a leste. Pergunto-me por que não estão com lorde William.

Se o sagaz filho de Osbert não sabia que existia uma hóspede ilustre naquela casinha, protegida pelos homens de Henrique, então o segredo de William estava bem guardado.

— Não podem deixar que salteadores roubem os suprimentos.

— Por que não esconderam a comida? Estão muito longe. Vê?

Catherine seguiu o olhar de Radulf. Ao longe, tão distantes que mal pareciam homens a cavalo, figuras moviam-se entre as árvores ressecadas. Deslocavam-se devagar, como se não conhecessem o terreno.

Ela se voltou para o leste e avistou mais homens. Mas estavam longe demais para serem reconhecidos. E o passo também era vagaroso. Devia ser o gelo no solo que os retardava. Ou talvez fosse uma estratégia de invasão.

Catherine fitou o oeste outra vez e começou a contar as figuras.

— São muitos.

— O quê?

— São muitos para serem os homens do rei. Lorde William levou vinte soldados. Vinte ficaram para trás, dez na abadia e dez na casa da floresta. Há muito mais que isso na mata.

Radulf pegou o chifre de boi. Levou-o aos lábios e assoprou com toda a força. Apenas um pequeno ruído ecoou do alarme.

— Tente de novo — Catherine sugeriu. Radulf encheu os pulmões e soprou.

Abaixo deles, as vozes no pátio cessaram. Para além da muralha, as figuras na floresta se detiveram. E, instantes depois, tornaram a avançar.

— Talvez eles não cheguem até aqui, minha senhora.

— É...

— Estão a sul. Muito próximos à casa da floresta. Talvez roubem a comida de lá e partam.

— Quieto.

A região norte revelava que William e seus soldados ainda não tinham saído da mata. As fogueiras dos intrusos ainda queimavam. Nas proximidades, a imagem de cavalos em formação linear era visível. Até aquele momento, não se viam sinais de luta.

— Pode ser que não queiram enfrentar lorde William. Vão roubar um pouco de alimento e fugir.

— Poderia ficar calado, Radulf? — Catherine levou as mãos ao rosto e tentou acalmar a respiração ofegante.

Precisava pensar. Por que era tão difícil raciocinar?

Os estranhos ao norte da torre não pareciam ávidos para guerrear. De leste e oeste, outros avançavam para a casa da floresta. A um pequeno grupo de homens e mulheres indefesas. Aquela jovem, a mais indefesa de todos.

Do leste e oeste, os invasores cercariam a pequena moradia, e seria tarde demais, mesmo se William escutasse o alarme, para os homens de Lundale percorrerem aquele trecho todo a fim de evitar o desastre.

Seria mesmo um desastre?

Catherine baixou as mãos e olhou naquela direção. Homens poderiam morrer lá. E outros também morreriam, se a batalha começasse perto dos acampamentos ou se William rumasse para o sul, a tempo de bloquear os intrusos que se aproximavam de Mathilde.

Se conseguissem chegar à casa da floresta, os inimigos enfrentariam apenas dez homens, que poderiam se render assim que vissem tantos guerreiros ao redor da paliçada.

Caso invadissem a moradia da mata, os inimigos do rei capturariam a filha do barão Pandulf e confirmariam que estava grávida. Diriam ao pai que a jovem fora usada pelo rei.

William dissera... O que ele afirmara? Que sem a boa vontade de Pandulf e dos lordes de Marches, não haveria invasão em Gales.

Catherine começou a andar pelo platô. Uma centena de temores e conseqüências fluía em sua mente. Precisava decidir o que fazer em face dessa nova ameaça.

Se não agisse para prevenir a ação furtiva daqueles que avançavam em direção a Mathilde, William e os homens de Lundale iriam viver. Mathilde partiria, seu dilema seria desvelado. O pecado de Henrique Plantagenet viria à tona. E não haveria motivo para Henrique obrigar William a lidar com as conseqüências de seu tolo anseio. A pequena Alflega jamais saberia quão perto chegara de perder o lar para o filho bastardo do soberano.

Radulf ergueu de novo o chifre e assoprou, rompendo o silêncio.

— Pare.

Ele derrubou o chifre no chão.

— Eles não escutaram!

— Você já deu o alarme. Agora, fique quieto e deixe-me pensar.

Não existia nenhuma boa razão para impedir o que ocorreria na casa da floresta naquele dia. Mas existiam vários motivos para acreditar que os intrusos levariam Mathilde e colocariam um fim no fardo de William para manter em segredo o pecado do rei. Existia cinqüenta homens ou mais cavalgando para aquele ponto da mata e, no mínimo, o mesmo número no acampamento a nordeste.

Se a jovem fosse capturada, o rei não poderia responsabilizar William. E, caso o fizesse, o que adviria? O melhor seria William enfrentar a ira de Henrique do que entrar em combate com a perna machucada.

— Lady Catherine...

— Quieto, Radulf

Não havia nada que pudesse fazer para impedir a invasão da casa da floresta. Nada.

Tudo podia dar errado. Mathilde poderia se esconder entre a vegetação e se ferir. Não conseguiria correr muito. Nenhuma mulher conseguiria, estando a gestação tão adiantada. Contudo, ela tentaria...

E Catherine procuraria, nos dias vindouros, viver com o fato de que assistira a tudo em segurança, na torre de Lundale. E, no ano seguinte, quando o solstício de inverno chegasse, iria se ajoelhar ao lado do poço sagrado e se lembrar da dama que outrora ali caminhara, gerando seu rebento.

Virou-se para a campina, onde os ancestrais jaziam sob as raízes das árvores centenárias. Aquela triste campina, com sua terra pouco aquecida pelo fraco sol de inverno, acolhia covas onde dormiam os resquícios de velhice, doenças e do massacre de Plantagenet. Se os mortos pudessem falar, o que lhe diriam?

Catherine voltou a andar. Seria uma enorme tolice arriscar-se por uma mulher que se entregara ao rei e dele engravidara. Uma jovem descuidada.

Catherine não se lembrara de perguntar a William a idade de Mathilde e o que ela esperava de Henrique após o parto. Quantos anos tinha quando Henrique Plantagenet a vira pela primeira vez? E pudera escolher ao ser tentada a dormir com o rei?

— Lady Catherine, preciso soar o alarme. Não vai me deixar soar o alarme?

Se William fosse poupado, Catherine fitaria os olhos do marido e lhe contaria que, da segurança da torre, assistira à captura de Mathilde. Ele ficaria grato por Catherine ter permanecido protegida pela muralha que mandara restaurar. Se um dia William considerasse o que a esposa havia imaginado ao ver os intrusos avançando, iria se abster de indagar. William, que saíra para lutar com uma perna ferida, nunca faria tais perguntas.

Mas Catherine, sim, a cada noite pelo resto da vida.

— Radulf, largue o chifre. Ficarei vigiando enquanto você vai até o estábulo e sela a égua cinza. Rápido!

Ela começou a desatar a bandagem da mão e removeu a tala que imobilizava seus dedos. O dedo mínimo começava a sarar, e já readquiria a cor natural.

Radulf não saiu do lugar.

— Vá. Sele a égua e deixe-a no estábulo. Não conte a ninguém. Não fale com ninguém.

— Irá procurar William, não é? Irei com a senhora. O garoto pegou a lança e esperou uma resposta.

— Não. Preciso que fique aqui, Radulf. Vigie os campos e soe o alarme, caso o perigo se aproxime. Soe mais de uma vez, se William não escutar. Em seguida, desça até o salão e garanta a segurança de Alflega e das outras crianças. John está com elas e talvez não consiga defendê-las sozinho. Será um trabalho de herói para você. Ficará aqui e cuidará delas para mim?

— Sim.

Podia ter sido o frio ou a mudança de voz que causou um certo tremor no rapaz ao pronunciar a palavra. Radulf curvou-se e correu à escada para cumprir a ordem.

Catherine ergueu a mão, imaginando se conseguiria calçar a velha luva de William. Mordeu o lábio inferior ao tentar flexionar o dedo. Haveria tempo, após aquele dia, para consertar o dedo outra vez.

Ainda poderia galopar até a floresta e avisar os guardas de Mathilde. Caso se apressasse, seria sua única tarefa. Ela atravessaria a passagem do rio e falaria com o primeiro soldado que encontrasse.

Fitou a campina de covas pela última vez e dirigiu-se à escada espiral. Se os fantasmas de seus ancestrais tinham algo a lhe dizer, eles que se manifestassem de imediato. Catherine estava determinada e conhecia muito bem os riscos. Mais tarde, se esse dia lhe reservasse o exílio na abadia ou em outro lugar, pararia para escutar os sermões dos mortos.

O rosto de Radulf surgiu na escada, abaixo dela.

— A égua está pronta. É o único cavalo que sobrou. Catherine fez menção de afagar os cabelos do garoto, mas desistiu. Em vez disso, tocou-lhe o ombro.

— Diremos a lorde William quanto dependi de você hoje. Talvez ele decida que está maduro o bastante para ter a própria espada.

Radulf assentiu e ficou de lado, para Catherine passar.

— Boa sorte, minha senhora.

Catherine continuou a descer e rezou para que aquele dia de Natal não gerasse mais túmulos na campina dos mortos.

 

William havia pensado que o conflito, caso ocorresse, originar-se-ia na estrada a sudeste, pois essa era a direção da qual ele viera de Marches, em Gales. Era a mesma que um batedor ou um pequeno exército teria seguido, caso os boatos apontassem uma mulher viajando a passo lento pela fronteira galesa, rumo ao norte.

Chegou a esperar, após a aparição dos patrulheiros galeses perto da abadia, que os espiões houvessem prosseguido viagem, descartando Lundale. William sabia que recuariam assim que o frio começasse a aumentar. Imaginou que desistiram depois de alguns dias e retornariam às pressas para o sul, para prestar contas aos lordes galeses, sem reconsiderar mais uma busca em Lundale.

Mas não foi assim que aconteceu. Ondas de sorte só existiam em contos infantis, nunca no mundo duro e frio de William.

Os galeses voltavam, mostrando um número considerável em seu pequeno destacamento. A escolha do acampamento, embora inesperada, não foi ruim. Sabiam, talvez, que William não os deixaria em campo aberto, preparados para atacar Lundale, a abadia e a casa da floresta a hora que desejassem, fosse dia ou noite.

Portanto, os galeses armaram suas tendas, compuseram um acampamento e passaram a noite de Natal ao redor das fogueiras, esperando que William os visse e os encontrasse no terreno que eles mesmo escolheram.

William sabia que a intenção primeira fora assustá-lo com a quantidade de cavaleiros. E, para evitar um confronto sanguinário, trocariam Mathilde por uma promessa de paz.

Ao meio-dia, William e seus homens emergiram da mata e saíram numa extensa clareira na extremidade norte. Os vinte soldados do rei chegaram primeiro ao local e, protegidos, aguardaram sob a cobertura da mata. Assim que William apareceu, eles começaram a aquecer suas mãos antes da inevitável batalha e relataram o que tinham observado durante a curta e gélida vigília.

Os galeses constataram estar sendo observados e não pareceram se importar. O odor de lenha queimada e carne assada do acampamento invadira a atmosfera, e os homens de William assistiram à tranqüila refeição dos intrusos. Agora que William chegara com mais companheiros, os galeses iniciavam certa agitação entre as tendas.

Figuras distantes moviam-se entre os cavalos na longínqua fileira. Metade do acampamento montou e se reuniu perto das tendas. Um grupo de arqueiros formou uma linha adiante.

William afastou-se um pouco e examinou o território. Não tinha estômago para aquela batalha. Embora possuísse talento e houvesse ganhado muitas lutas, a vontade de guerrear desaparecera. E começou a sumir no dia em que se casou com Catherine.

Existiram muitas mulheres antes dela, mas nenhuma lhe viera à mente no momento anterior à refrega. Nenhuma o fizera ter medo de morrer ou sentir-se tão ávido pela vida.

E agora, sabendo que Catherine achava-se a poucos quilômetros dali e ameaçada por aqueles intrusos, a obsessão dele piorava. Seria capaz de jogar todo seu ouro e sua armadura na fogueira dos galeses, se assim pudesse garantir a segurança de sua amada.

Se o dia se voltasse contra ele, teria coragem de não delatar o paradeiro de Mathilde em troca da promessa de que os galeses partiriam sem invadir Lundale?

Forçou-se a avaliar a situação presente e a disposição dos arqueiros inimigos. Não sobreviveria muito tempo ao liderar um ataque. Por Catherine, não mais pensaria nela até que o dia terminasse.

Robert aproximou-se.

— Arqueiros. Antes de você chegar, nunca tivemos nada além de ladrões famintos e estranhos caçadores de Plantagenet. Agora vemos arqueiros galeses atravessando quilômetros de distância para nos matar. — Apontou o acampamento. — Estão confortáveis, não acha? Se a batalha acontecer, não entorne o caldeirão ou apague o fogo. Eles devem ter jantado uma de nossas ovelhas ontem à noite, e pretendo cobrar minha parte.

— Veja, Robert. Acho que eles o escutaram.

Os galeses atiçaram suas montarias, dando as costas para a tendas e se deslocando alguns metros à frente do acampamento.

O vento soprou do norte, sacudindo as bandeiras pregadas no topo das tendas desertas. Do lado dos galeses, não havia nenhuma voz de desafio ou bandeira da paz. A linha se mostrava densa e silenciosa, armas preparadas, mas não em mãos. Eles se entediavam, como se tivessem todo o tempo do mundo. William olhou para o céu e tentou avaliar que vantagem eles esperavam com aquela atitude passiva. Não conseguiu ver nenhuma razão que beneficiasse o exército mudo, enquanto o sol se movia para oeste.

Impaciente para acabar com aquela espera, porém atento para não levar seus homens a uma armadilha fatal, William tirou da cota de malha o pano branco que levara como sinal de paz. E sacudiu o tecido no ar.

— Eles vão honrar uma suposta trégua, William?

— Se forem os galeses que conheço, podem tanto ignorar quanto aceitar minha proposta, Robert. Mas não romperiam um acordo de paz.

No instante seguinte, dois cavaleiros avançaram da linha galesa e pararam a pouca distância dos companheiros. Via-se um tecido branco entre eles.

— Irei com você — Robert se ofereceu.

— Não. Fique aqui. Vou sozinho.

— Teme que eu ouça seus segredos? Se eu morrer hoje, quero saber o que causou a vinda dos inimigos. William, você pode precisar de ajuda, se os galeses apearem para negociar — Robert argumentou. — Não servirá para nada, caso tente lutar, com esse joelho danificado.

O primo de Catherine tinha razão tanto na questão da perna ferida quanto no maldito segredo do rei. Um homem devia saber pelo que lutaria.

— Certo, venha comigo — William acatou.—Tem o direito de escutar a conversa. Diga aos outros para ficarem aqui e aguardarem nosso sinal, caso haja problemas.

Ele jogou o manto para trás a fim de liberar os braços, se necessário fosse puxar a espada. Com o pano branco em mãos, acenou para Robert. Os dois avançaram alguns metros e se detiveram no meio do terreno descampado. Em seguida, esperaram a aproximação dos galeses.

— O que quererão de nós?

— Trata-se de uma questão que envolve o rei. Eles não levarão o que vieram buscar.

— Se chegarmos a guerrear, Catherine sofrerá uma perda pela segunda vez por causa de Henrique Plantagenet, William. Primeiro foram os pais dela, na rebelião de dez anos atrás. E agora você.

— O dia ainda não acabou, Robert. Fique de olhos abertos e talvez, assim, consigamos sobreviver.

— Estranhas palavras para um guerreiro com uma perna debilitada que enfrenta seu oponente. Se fizerem um movimento traiçoeiro, faça de tudo para permanecer na sela, William.

— Mantenha sua espada na bainha e não rompa a trégua. Prometi a Catherine que voltaria vivo. Não me faça passar por mentiroso.

Robert suspirou.

— Catherine fez bem em se casar. Começo a acreditar que você a ama.

— É claro que amo. Diga-lhe, se ela tiver alguma dúvida.

— Diga-lhe você. Minha prima me fez prometer quase o mesmo... mantê-lo com saúde. Se não vivo, com saúde.

Os galeses estavam mais próximos. William pôde notar os arreios finos dos cavalos musculosos que os carregavam. E os homens agora também estavam visíveis. Um era baixo e corpulento, e o outro, um garoto. Ambos usavam armaduras de couro e levavam os elmos sobre a sela.

— Madoc — William saudou o galês. — Está bem longe de casa.

— Estou mesmo — disse o galês mais velho. — Mas creio que minha jornada está quase no fim.

— O inverno já começou. Sua viagem estendeu-se demais.

— Meu filho queria conhecer as terras de Henrique Plantagenet. E a amante do rei.

A mão de Robert moveu-se em direção à espada.

— Ousa insultar lady Catherine?

William murmurou palavras de cautela e voltou a encarar Madoc.

— Meu primo por casamento acha um ultraje referir-se dessa maneira a uma inglesa. A qualquer inglesa. E, em especial, a minha esposa.

— Sua esposa? Sabe que não me refiro ela, Macon. Sabe muito bem por que estou aqui.

William deu de ombros.

— Por que não me conta?

O semblante de Madoc tornou-se sombrio.

— Não queremos fazer mal à moça. Há um padre que deseja falar com ela e testemunhar o fato de estar grávida de Henrique Plantagenet. Nós a levaremos a Nottingham e depois à fronteira, onde seu pai saberá que ofereceu lealdade ao homem errado: ao rei idiota que desonrou a filha de um barão. A dama está nas proximidades, William de Macon. Tenho motivos para acreditar que a encontrarei hoje.

Confuso, Robert encarou William.

— Do que ele está falando?

Não havia meios de saber se Madoc blefava ou não para obter o paradeiro da jovem.

— Madoc deve ter feito essa viagem à toa, Robert. Não existe nenhuma filha de barão em Lundale. Ele se enganou. Não há nada aqui que lhe interesse.

O filho de Madoc esbravejou em galês. Com uma palavra do pai, o garoto calou-se e baixou a cabeça.

Madoc olhou o firmamento e, em seguida, encarou William.

— No final deste dia, terei algo para levar a Marches. É impossível me deter, você sabe disso. Se tivermos de lutar, que assim seja.

William fitou o olhar prudente do galês e, depois, a linha de arqueiros.

— Cometeu um engano, Madoc. Não há nada aqui para você. Vá embora. Saia de minhas terras para que não tenhamos de lutar.

Madoc sorriu.

— Se lutarmos, você perderá.

O garoto galês falou outra vez sem esbravejar e apontou a perna de William. Madoc examinou a lateral da sela dele.

— Meu filho diz que o atacou com uma faca em Marches não muito tempo atrás. Ele cortou fundo sua carne e rasgou a sela. Acha que você pagou a bruxas para salvar a perna.

— É seu filho, então? Parece mesmo com o rapaz que me atacou.

Madoc resmungou uma pergunta. O jovem baixou de novo a cabeça e assentiu. —- Era você aquele dia na fronteira. Meu filho sentiu-se cheio de orgulho porque tirou o sangue de um cavaleiro inglês e o deixou aleijado. Ele agiu por impulso, William de Macon. Não pude detê-lo. Meu filho não percebeu, como eu percebi, que você poupou-lhe a vida ao desferir um golpe com o punho da espada, e não com a lâmina.

— Vi que se tratava de um menino, Madoc. Não podia matá-lo. O rosto do jovem galês ficou vermelho de raiva. Endireitou-se na sela, como se quisesse parecer um homem.

— Ele me parece mais velho hoje.

Madoc esmurrou a sela com o punho. O elmo soltou-se e tombou no solo.

— Isso não está dando certo — Robert murmurou.

O garoto apeou e recolheu o elmo do pai. Madoc colocou-o na cabeça e voltou a encarar William.

— Estou em dívida com você. Maldito seja, inglês! Fico de mãos atadas por causa dessa dívida.

— Então, agora pode partir. O galês estreitou os olhos.

— Tem muita coragem, inglês. Minha dívida não é tão grande assim. Não a ponto de eu voltar a meu povo de mãos vazias e dizer que Henrique Plantagenet estará a nossa porta na primavera. Mas não lutarei com você ou seus homens, se mantiverem a trégua.

Dessa vez, o vento soprou com maior intensidade, trazendo mais gelo ao ar. Seria um dia frio demais para lutar e uma noite gélida para feridas expostas.

— Poderíamos esperar até que nossas montarias congelassem, Madoc. Ou você poderia partir e finalizar o dia.

Os lábios de Madoc se abriram num sorriso orgulhoso.

— Em breve, estarei partindo. Está quase na hora, aliás. Há centenas de galeses dispostos a derrubar a imagem impoluta que o barão tem do rei. Meus homens já iniciaram a busca por Mathilde de Pandulf. Setenta estão aqui, e cinqüenta... — Madoc esboçou outro sorriso

— Fale, Madoc.

— Eles estão escoltando a jovem a Nottingham, para mostrá-la aos padres ingleses e avisar ao pai que já pode ir buscar a prostituta do rei. — Ensaiou um gesto exagerado em direção ao sul. — Foi muito esperto ao esconder a moça na floresta, mas aquela casa é grande demais para a filha de Pandulf, a amante desonrada do rei.

Madoc avaliou a posição do sol mais uma vez.

— Sim. Já passou da hora. Sua dama da floresta está a caminho de Nottingham agora, iniciando sua jornada de volta ao lar.

Os batedores galeses conseguiram obter mais informações do que William imaginara. E Madoc mostrava-se muito determinado a ter êxito em sua jornada.

— Se fosse verdade...

— Sabe que é verdade. Eu não minto. William desistiu da pretensa calma.

— Madoc, não pode levá-la. Ela está grávida.

— Claro que está. Por isso o padre deve testemunhar e redigir um documento. Você dificultou a caçada, William de Macon. Tivemos de apressar as buscas. Mais um mês e a jovem já teria dado à luz. Assim, não haveria provas da gravidez e o rei sairia ileso.

— Se a encontrou, escreva a droga do documento e mande-o à Roma, se quiser. Não me importo. A dama deve ficar onde está.

Madoc roçou o queixo.

— Roma? Não tinha pensado nessa possibilidade. Plantagenet perseguiu um dos bispos em campo aberto. Levarei a questão a Thomas Becket para aumentar as queixas.

— Leve Becket a Roma em sua garupa, Madoc, mas deixe a filha de Pandulf aqui. Não pode arrastá-la pelas estradas.

— Você a arrastou até aqui.

— Ela está prestes a dar à luz.

— Se seu rei abrisse mão de Gales, não precisaríamos incitar o barão contra ele. — Madoc estremeceu. — E eu não teria de suportar este clima.

O galês ergueu o braço, sinalizando para os homens atrás dele.

Robert agarrou o punho da espada.

— Vai quebrar o acordo de trégua?

Madoc apontou a espada que Robert tencionava puxar.

— Atente para a própria honra, inglês.

— Está falando de honra? Você, um homem que caça uma jovem próxima a ganhar um filho?

O insulto pairou sobre o silêncio gélido.

— Não, Robert. — William pousou a mão no ombro do primo. Contudo, não tirava os olhos de Madoc. — A trégua precisa acabar. Quando atingir seu acampamento, a trégua estará cancelada.

— Não irei guerrear com você desta vez, Macon. Eu lhe devo a vida de meu filho. O débito está pago. Na próxima vez, cortarei essa sua cabeça inglesa. Vá embora e leve seus homens, antes que eu mude de ideia.

— Vamos, William — Robert chamou-o, puxando as rédeas. — Se escondeu alguém na casa da floresta, não será de serventia ao rei, enfrentando esses homens. Talvez não seja tarde...

— Mas é — Madoc o interrompeu. — É tarde demais para impedir que meus homens peguem a moça. Sabemos como lidar com essas situações em Gales. — Indicou as tendas. — Temos muito o que fazer aqui. Você está me atrasando. Vá em paz. E, na primavera, espero não encontrá-lo em Gales. Diga a seu rei para ficar bem longe de nós.

 

Radulf havia abandonado seu posto. William avistou a figura esguia do garoto agitando os braços no meio do campo. Era difícil escutar o que ele dizia devido ao intenso vento do norte.

A marcha para atravessar a floresta fora árdua, e ainda lhes restava um percurso razoável pela frente. Em breve, a escuridão cairia sobre eles e teriam de continuar até atingir a casa da mata. Portanto, valeria perder algum tempo para buscar tochas em Lundale.

— Siga na frente e consiga tochas com os vigias dos portões, Robert. E diga a Catherine que voltaremos só à noite.

Radulf cessara os gestos tresloucados e agora corria em direção aos homens a cavalo.

— E fale para aquele idiota que não pode ficar saltitando pelo campo. Ele deveria estar no topo da torre.

A escuridão caía rápido. A impetuosa ventania soprara o dia todo, tornando o ar cristalino e gelado. As estrelas brilhariam mais uma vez quando a luminosidade do entardecer fenecesse. Catherine observaria o céu, de novo, do topo da torre.

William estremeceu e puxou o capuz do manto. Queria apenas galopar por aquele terreno, atravessar os portões e jogar-se nos braços de sua mulher. Apenas o dever o mantinha na sela. O dever e a ínfima possibilidade de os homens de Madoc não raptarem Mathilde.

Havia pouca chance, mas talvez os espiões do galês não conseguissem localizar Mathilde. Mesmo assim, William levaria seus homens à moradia da mata e faria o possível para encontrar e resgatar Mathilde.

Não poderiam alcançar a passagem do rio antes do anoitecer, se Robert não se apressasse com as tochas. Ele parou para falar com o jovem Radulf, perdendo minutos preciosos.

Atrás de William, os homens aguardavam calados, protegendo-se do frio. Ninguém se queixou ao ver Robert deter-se no meio do caminho. William podia escutar fragmentos de conversa entre os soldados. Eles admiravam o primo de Catherine. Seria uma noite longa e perigosa, diziam. Contariam com o conhecimento de Robert para percorrer os atalhos.

O primo de Catherine provara ser menos encrenqueiro do que William imaginara. Durante o duro percurso após deixarem o acampamento de Madoc, William esperava que Robert pedisse explicações acerca do que William e o velho galês conversaram sobre a amante de Henrique Plantagenet. Mas Robert guardara as dúvidas para si naquelas longas e perigosas horas, e até se oferecera para cavalgar atrás dos demais a fim de vigiar a retaguarda. Ele acreditava que Madoc poderia trair o acordo de paz.

Se William tivesse confiado em Robert desde o início e revelado a Catherine e ao primo a tarefa que o rei lhe impusera, Mathilde talvez não estivesse em perigo naquele momento.

William fechou o punho, forçando-se a pensar apenas no presente. Nos próximos dias, haveria tempo para arrependimentos e confessar a Catherine que a falta de confiança os levara, todos, àquela confusão.

Robert ainda achava-se escutando o discurso de Radulf, que sacudia os braços em desespero. Robert berrou e virou o cavalo em direção a William.

Naquele momento, o maior temor de William foi a possibilidade de ter havido um ataque surpresa em Lundale, e Catherine...

Não permitiu-se completar a frase. Não havia sinais de depredação na aldeia deserta de Lundale. Os portões se encontravam fechados, e os muros da paliçada não possuíam marcas de violência. Sem dúvida, nada houvera no feudo.

William esporeou o cavalo para encontrar Robert no meio do caminho.

O primo puxou as rédeas e apontou para o sul.

— Catherine saiu há horas!

Não houve palavras. Nenhum grito seria suficiente para amaldiçoar aquele instante. O peito contraiu-se de dor, como se William tivesse recebido o murro do demônio. Como, após sentir o coração parar de bater, poderia viver? Respirou fundo e conseguiu falar:

— Por quê?

Robert indicou a floresta e deixou o braço cair, como se vencido pela vastidão do perigo.

— Nada do que Radulf diz parece coerente, William. Ele e Catherine avistaram cavaleiros nos limites da mata. Ela lhe pediu que selasse a égua e partiu. Radulf a viu pegar a estrada que atravessa o rio pela floresta. Isso foi há muito tempo. Ela ainda não voltou.

Durante as noites em que permanecera acordado, planejando formas de proteger a família, William jamais imaginara algo tão grave. Catherine fora de encontro ao perigo. Talvez não pudesse mais salvá-la.

— Para onde terá ido? — William fitou o rosto do primo e não enxergou rancor.

A raiva de Robert, pelo jeito, surgiria outro dia.

— À casa da floresta. A moça está lá.

Eles esporearam os cavalos e chamaram os homens, que saíram a galope pela estrada que levava à passagem. Os sentinelas não estavam em seus postos. Nenhum sinal de conflito na área.

Diante do grande carvalho à beira do rio, o solo congelado não tinha sido perturbado. Uma única trilha de pegadas de um cavalo atravessava o solo esbranquiçado e virava para a estrada do sul. William procurou, em vão, uma pista de que o cavalo poderia ter retornado.

— É um bom sinal — Robert concluiu. — Há pegadas de um só cavalo. Ninguém a seguiu.

O sol brilhava no oeste, formando largas sombras na estrada. Logo seria impossível seguir os rastros de Catherine.

Luz. Precisavam de fogo. Devido ao pânico, William esquecera-se da tarefa de Robert.

— Pegue dois homens e volte para buscar tochas — William ordenou-lhe. — Traga todas que puder carregar. Continuarei a busca sozinho.

Robert virou-se na sela e examinou a beira do rio. Não era hora para desobediência.

— Vai fazer o que eu disse?

— Mande outro. Acho que sei como Catherine passaria pela floresta, se não quisesse ser vista. Ela sabe onde atravessar a parte mais alta do rio.

— E profundo demais, Robert.

— Mas há um lugar mais raso. É difícil de encontrar.

— Ela nunca me contou nada. Robert deu de ombros.

— Devia ter seus motivos.

A luminosidade do dia morria depressa. William chamou os homens, deu-lhes tarefas e mandou que dessem uma busca na estrada à frente.

— A metade de vocês volta para pegar tochas, e a outra vasculha essa estrada. Irei em seguida. — Encarou Robert. — Mostre-me em que ponto ela atravessou.

— Há uma passagem estreita muito fácil de percorrer no verão, e apenas um pouco mais funda no inverno. Nós a usávamos quando crianças para entrar escondidos na mata.

Juntos, percorreram a margem do rio, atentos ao declive íngreme. Estavam a um passo das águas turbulentas e geladas que corriam pelos bancos de terra quase congelada.

Era um suplício passar ao lado daquela correnteza medonha, imaginando que cada nuança escura podia ser os cabelos de Catherine boiando na superfície.

— Ela atravessou o rio diversas vezes sem cair — Robert disse, aflito. — Hoje, tinha todos os motivos para ser cautelosa. Por você e por Alflega. Talvez não o tenha atravessado ainda.

Se pensasse que havia meios de atravessar, ela tentaria. Um pensamento repentino, um fragmento de memória, ocorreu a William.

— Catherine chegou em casa com as botas ensopadas. Não faz muito tempo.

Por que não a pressionara, exigindo uma explicação?

— Calma, William. Se atravessou o rio, Catherine sabe muito bem que a água sobe a esta hora da noite. Pense nisso. Mantenha esse detalhe em mente.

— Estamos devagar demais. Seguirei na frente.

— Pode desencontrar-se dela. E fará tanto barulho que atrairá todos os galeses para cá. A passagem não deve estar longe...

Como em resposta às palavras proféticas de Robert, um grito feminino rompeu o silêncio.

— Vem lá de cima!

No instante seguinte, um homem chamou e a mulher tornou a gritar.

A égua cinza de Catherine surgiu diante deles, subindo o banco do rio. O animal encarou-os e recuou quando eles se aproximaram.

Aliviado, William divisou duas pessoas na sela.

— Catherine! Graças a Deus, Catherine...

Ainda restava muita luz, logo, foi possível perceber que não era Catherine com Mathilde. Era Ghislaine. Mathilde e Ghislaine. Nenhuma força ou poder conseguiria modificar a verdade. William teria dado a própria vida para ver Catherine aparecer diante de seus olhos, viva e salva na garupa da égua.

Avançou de forma abrupta, assustando a égua e empurrando-a em direção às águas. Robert precipitou-se e segurou as rédeas do animal.

— William, ela está na água! Deste lado!

Em princípio, ele não a viu. Quatro homens do rei já haviam atravessado o rio; um deles colocara Blanche sobre o ombro, para realizar o perigoso trajeto.

De repente, William a avistou. Na margem mais próxima, quase visível sobre a superfície turva, o manto de Catherine boiava na beira, escurecido pela água.

Descer o banco de terra com o cavalo poderia colocar Catherine em perigo. Assim, William desmontou e, meio correndo, meio escorregando, atravessou os arbustos para chegar lá. Devido ao peso das roupas molhadas, Catherine estava sendo puxada para a feroz correnteza. Ela não se virou ao som da aproximação de William. Continuou em pé, encarando a água e esticando o braço para o soldado que carregava Blanche, a fim de tentar agarrar a mão do homem.

A água a puxou. Levou-a tão depressa que Catherine nem sequer virou o rosto quando William berrou seu nome.

Ele não sabia dizer como passou pelas pedras ao mergulhar, muito menos de que maneira conseguiu localizar os cabelos dela na profundidade negra que o rodeava. William não fazia ideia de quanto tempo permaneceram à mercê da corrente gélida antes que sentisse uma dor aguda no ombro.

A voz de Robert o chamava, cada vez mais próxima e mais alta. Sentiu outro golpe nas costas e a dor quando ambos foram puxados das águas.

Divisou outras mãos e escutou o choro de Blanche, enquanto arrastava Catherine pela cintura até a beirada do rio. Então, Catherine foi levada para longe das águas e as mesmas mãos que as retiraram da correnteza puxaram William.

O abençoado som da tosse e da respiração ofegante surgiu dos pulmões de Catherine.

— Está viva! — Robert atestou. — Consegue andar? Ela estava viva!

William jogou-se no solo e tomou a esposa nos braços. "Viva! Está viva!"

De soslaio, William viu um corvo voar de uma árvore e atravessar o rio, rente à superfície. Um sinal de perigo, uma vez que a noite se iniciava.

— Catherine, vou erguê-la. Acha que conseguirá andar? Robert apareceu.

— Deixe-a. Eu a levanto. — Tirou o manto e jogou o algodão áspero nas mãos de William.

Juntos, eles envolveram Catherine no agasalho e começaram a carregá-la para bem longe dali.

Na correnteza, onde tudo se iniciara, o rio já começava a apagar as evidências do acidente. Onde Catherine atravessara e onde fora puxada às profundezas, nenhum sinal prevalecia na negra superfície.

Na lateral mais próxima, porém, meio submerso, estava o manto dela. Ao ver a imagem daquele manto na escuridão das águas, William sentiu lágrimas nos olhos.

— Não vamos deixá-lo aqui.

Ele sentiu a mão de Robert em seu ombro e, em seguida, viu o primo de Catherine descer para pegar o manto. Não existiria nenhum sinal pela manhã de que haviam passado por ali.

Ao percorrerem o caminho que levava a Lundale, escutaram vozes e notaram as chamas de tochas aproximando-se na noite escura. William reparou que Catherine abrira os olhos. Ela tentou, apesar do ranger dos dentes, formular uma palavra.

— Está salva — William sussurrou, sentindo o coração repleto de amor. — E logo ficará aquecida.

Catherine tentou falar de novo. William olhou para trás.

— Estão todos bem, querida. Mathilde, as outras moças e os quatro soldados. Todos conseguiram atravessar as águas. E estão mais secos e aquecidos que você.

— E em melhor forma que você, William — Robert comentou, puxando o cavalo. — Da próxima vez, lembre-se de que a cota de malha não pode flutuar. E que arruinará de vez sua perna ao carregar sua armadura e sua esposa ribanceira acima.

Quando as tochas os alcançaram, várias mãos carregaram Catherine à sela de William e o ajudaram a caminhar ao lado do animal.

A multidão, tanto de soldados quanto de aldeões, não revelaria a ninguém que Mathilde atingira Lundale e que os homens da casa da floresta a seguiram até lá. William examinou o aglomerado de moradores e guerreiros e percebeu que nem Madoc com seu pequeno exército conseguiria ultrapassá-lo.

Mathilde estaria segura em Lundale. Naquela noite, Madoc vasculharia a mata e, antes do amanhecer, dividiria seu exército em pequenos grupos para percorrer várias direções, esperando encontrar Mathilde antes que ela desse à luz. Madoc não permitiria um sério ataque a Lundale.

Catherine inclinou-se na sela para segurar a mão do marido. Eles moviam-se devagar, envolvidos pelo calor das tochas e das pessoas que os rodeavam.

Robert caminhava na frente, puxando as rédeas da égua e fitando Mathilde, como se estivesse tendo uma visão divina.

— Você... viu? — Catherine murmurou.

— Sim — William respondeu.

Ele vira algo além do que o primo de Catherine movimentando-se com uma lentidão absurda e expressando certa gravidade em seu semblante.

William, na verdade, avistou um problema grave: divisou paixão no rosto fascinado de Robert.

Um desastre iminente. A jovem não era para Robert. A filha do barão Pandulf, a amante de Henrique Plantagenet, nunca seria do primo.

William esfregou a testa. Aquela noite seria apenas de alegria e gratidão. No dia seguinte, haveria tempo para explicar a Robert por que Mathilde estava em Lundale e quem a conquistara primeiro. Catherine saberia como falar com o primo. Por enquanto, deixaria Robert sonhar com a visão de anjo sob a luz das tochas.

William levou a mão de Catherine aos lábios e beijou os dedos frios. Era noite de Natal e todos mereciam sonhar.

 

Catherine acordou nos braços de William, aquecida ao extremo sob uma pilha de cobertas e, pelo jeito, todas as peças de roupa que guardava no baú.

Sentiu roçar em seu queixo o linho que trouxera da abadia. Na barra, avistou os pequenos pontos verdes com os quais contara os dias e as noites no início do casamento.

Fitou o bordado de seda verde e perguntou-se o que representavam aqueles vestígios de lembrança na manhã seguinte ao acidente que quase a fizera perder a vida.

A primeira das manhãs, as quais ela poderia nunca mais testemunhar.

Jogou a coberta de lado e sorriu para William.

Não haveria mais costuras verdes. Em vez disso, Catherine rezaria para que os dias de convivência fossem tantos que tais contagens nada significariam.

William sorriu e levantou-se para acrescentar mais lenha ao braseiro.

— Hadwen veio buscar Alflega esta manhã para nos deixar descansar. Está com frio?

Catherine moveu-se sob a pilha de cobertas, derrubando algumas ao pé da cama.

— Estou tão quente que nunca mais sentirei frio outra vez. — Bocejou. — Acho que terei de voltar ao rio para me refrescar um pouco.

— Não vai se aproximar daquele rio. Prometa-me. Catherine meneou a cabeça.

— Não posso prometer, William. É um lugar lindo durante o verão. Levaremos uma jarra de malte até lá, numa tarde ensolarada, sentaremo-nos nas pedras e deixaremos os peixes mordiscarem nossos pés.

William gemeu.

— Odeio aquele rio. Odeio mesmo.

— Se pretende continuar a ser o senhor de Lundale, vistoriar a plantação e vigiar os rebanhos, verá o rio sob uma luz totalmente diferente.

— Sei.

— Sempre haverá águas profundas ali. Lundale sobreviverá, apesar da estiagem.

— Mesmo assim, vou odiar aquele rio para sempre. Meu Deus, Catherine, eu a vi ser levada pela correnteza... — Emocionado, calou-se e respirou fundo. — Não vamos mais falar disso. Nunca mais.

— Mas quero saber, William. É verdade que foi você quem me salvou? Mesmo com sua cota de malha puxando-o para o fundo?

William jogou outro pedaço de lenha no braseiro.

— Seu primo Robert tirou nós dois das águas. Ele e os soldados da casa da floresta. — Houve uma breve pausa. — Se vamos falar disso, terá de me contar como passou pelos guardas de Mathilde e os forçou a atravessar o rio.

Catherine deu risada.

— Creio que devemos esperar a chegada do verão para essa história. Talvez na estiagem.

William aproximou-se de uma das aberturas da parede e espiou o céu cinzento.

— Há dias em que a chuva não cai sobre Lundale? Não acredito que a estiagem aconteça aqui.

— Os mais velhos falam que houve um período de seca, anos atrás. Fique para o verão, William, e verá o firmamento limpo.

— Vou pensar. — Ele se virou. — Eu ficaria aqui durante a primavera, se pudesse, Catherine. Sabe quanto desejo estar com você e nossa filha. Mas, no final, é o rei quem decidirá. Como ela adoraria ter uma hora para conversar com o rei de William!

Catherine espantou o pensamento e levantou-se, pondo-se a procurar a saia amarela.

— Não consigo achar minhas roupas, William.

— Ah... Devem estar entre as cobertas. — Vasculhou a pilha sobre o leito e achou o que Catherine queria. — Acordei no meio da noite e senti frio. Por isso, eu a cobri com o que pude encontrar.

— Não estou doente.

— Você estava gelada, ontem.

Ela tomou-lhe o rosto e o puxou para um lento e excitante beijo.

— Com você para me aquecer, eu poderia me envolver em aventuras semelhantes.

William a apertou entre os braços.

— Se transformar tais aventuras num hábito, terei de prendê-la... a mim.

— Farei o que for necessário para ficar presa a você e mantê-lo aqui.

— Você é tão linda, Catherine!

Envolvido pela forte emoção, William a ajudou a se deitar e pegou um ungüento medicinal que fora preparado por Hadwen a fim de aliviar dores pelo corpo. Em seguida, ajoelhou-se ao lado da cama e um longo momento se passou antes que começasse a aplicar o remédio. Deslizando a mão sob a saia, começou a massagear-lhe a coxa.

Logo, usou as duas mãos para trabalhar ambas as coxas. O corpo inteiro de Catherine fervia ao ser acariciada. Um calor súbito penetrou os músculos, seguido de relaxamento. O alívio começou a dominá-la.

As mãos eram poderosas. Ele pressionava e soltava com extremo cuidado, massageando, estendendo os exercícios aos locais doloridos. Eram também os pontos mais sensíveis a qualquer carícia.

Ela acomodou a cabeça entre os braços, sentindo a massagem nos quadris. Primeiro um lado, depois o outro. Conforme William prosseguia, as sensações aumentavam, semelhantes às que Catherine experimentara na última noite em fizeram amor. Sentiu o ar frio roçar-lhe a pele e deduziu que suas pernas deviam estar expostas. Mordeu o lábio a fim de reprimir o gemido, mas um suspiro de prazer escapou-lhe.

Como William podia continuar sem saber ou entender os efeitos que causava nela? O desejo renasceu, exigindo satisfação. Queria afagos mais sensuais, uma intimidade mais profunda. Precisava sentir o sabor de um beijo, as mãos em seus seios. Não suportaria ficar deitada por muito tempo.

Os movimentos diminuíram. As mãos agora só acariciavam, como se William admirasse cada centímetro das pernas nuas. Os dedos traçavam as curvas, brincavam sobre a pele arrepiada. Sôfrega, Catherine se virou, surpreendendo a ambos.

— William... — Catherine puxou-o para si, e o marido não resistiu.

No corredor, os passos de Radulf subiram alguns degraus e, em seguida, retornaram. O ruído de uma lança tombando no piso ecoou pelas paredes de pedra. O som continuou a descer a escadaria.

— O que está havendo?! — William gritou. Mais passos e uma batida na porta.

— Sou eu, senhor — Radulf disse. — Minha lança caiu.

— De fato.

— Vim lhe dar uma mensagem, milorde. Robert pede para o senhor descer assim que puder. E lady Catherine também, por causa do bebê.

— Ora, o bebê... — William deteve-se, assustado. — Que bebê? Radulf, que bebê?!

— Meu Deus! — Catherine puxou o casco verde da pilha de roupas. — Deve ser Mathilde! Se ela entrou em trabalho de parto por causa da travessia... William tirou a barra da porta.

— Lembre-se, Catherine, de que fez o melhor que pôde. A partir de agora...

— Eu sei. Rezo para que ainda tenhamos sorte. Pelo bem da pobre moça.

O rosto de Robert revelava a feliz novidade. E a pequena criatura aninhada nos braços dele contava o resto.

— É um menino! — Robert afirmou. — Um garoto saudável e com uma voz potente para o campo de batalha. Vocês perderam. Ele acaba de adormecer.

— E Mathilde?

— As mulheres dizem que está bem. Mas não me deixam entrar no quarto. — Robert fitou o restinho rosado envolto no lençol de linho. — Hadwen acha que ele é meu. Ela me viu trazendo Mathilde e concluiu que fui buscá-la na abadia.

O sorriso de Robert feneceu.

— Não a desmenti. Não direi nada até que possamos conversar a sós.

Catherine fitou William. Ele parecia tão preocupado quanto ela.

Robert encarou Catherine e William.

— Estão procurando Alflega? John levou-a para ver Osbert ordenhar.

— Ótimo.

Robert voltou a atenção ao recém-nascido.

— Assim que ele veio ao mundo, Hadwen o trouxe para eu segurá-lo. Então, o acomodei em meus braços e sentei-me aqui. Foi assim.

Ghislaine emergiu do cômodo nos fundos do salão. Ajeitou os cabelos um tanto em desalinho, e, então, sorriu a Robert.

— Minha senhora quer ver o filho.

Robert levantou-se e entregou a criança a Ghislaine.

— Posso vê-la?

Os olhos da criada se estreitaram.

— Hadwen acha melhor deixá-la descansar. Mas direi à senhora que deseja ir até lá. — Caminhou até a cortina e se virou.

— Espere um minuto. — Dito isso, Ghislaine deu meia-volta e entrou no aposento.

— Ela deve ter mais que uma mensagem em mente, Robert

— William comentou, intrigado.

— Quem? Oh, sim... Ghislaine é gentil. — Robert olhou para as mãos vazias e pousou-as sobre a mesa.

William esquadrinhou o salão.

— Estamos a sós, agora. Vamos conversar enquanto pudermos. O menino é filho do rei Henrique. Mathilde veio comigo a Lundale para se esconder até o nascimento da criança.

Catherine segurou a mão do marido e prosseguiu:

— Mathilde é filha do barão Pandulf, Robert. O pai dela não sabe da gravidez. Ou do interesse do rei nessa situação.

— Eu sei. Ela me contou.

William e Catherine se entreolharam, surpresos.

— Quando, primo? Quando ela lhe falou tudo isso?

— Ontem à noite, quando as dores começaram. Hadwen disse que eu deveria caminhar com Mathilde pelo quarto até que a hora chegasse.

— Hadwen o acordou por causa disso?

— Não. Eu estava com Mathilde quando tudo começou. Ela não conseguia dormir, e saiu para se aquecer na lareira. Falamos de trivialidades. Mas, quando as dores tiveram início, ajudei-a a distrair-se e ela me contou a respeito de seu dilema. Toda a história.

William respirou fundo.

— Quando a primavera chegar, o rei enviará uma mensagem. Mathilde voltará ao convento, onde o pai a deixou, ou se casará.

— Há... um noivado?

— Nada havia sido resolvido quando saímos de Nottingham. A essa altura, Henrique já deve ter providenciado uma solução.

O coração de Catherine se apertou. Sabia que noivado seria aquele. A ameaça... a possibilidade de o rei querer William como noivo acabaria com a felicidade de Catherine para sempre. E também poderia magoar demais Robert.

— Primo, é o rei quem vai decidir o futuro de Mathilde. E, se ele nos mandar uma mensagem, devemos obedecê-lo.

O rosto de Robert contorceu-se de raiva.

— Sim. Sabemos o que acontece quando desacatamos a vontade de Plantagenet.

— Mas também não temos de facilitar tudo para ele — William argumentou.

— O que quer dizer?

William abraçou a cintura de Catherine e tocou o ombro de Robert.

— Começaremos jurando, nós três, que guardaremos segredo a respeito desse assunto. E em relação aos espiões galeses. Eu devia ter revelado tudo a vocês dois quando cheguei a Lundale com Mathilde. Arrependo-me de meu silêncio.

— Você não me conhecia. — Robert meneou a cabeça. —

E sabia pouco sobre Catherine também, embora a tivesse desposado. Precisava ser cuidadoso. Catherine sorriu.

— Cuidadoso. A palavra soa estranha em seus lábios, Robert. Ele fitou a prima.

— Há situações em que a prudência é necessária. Agora é um desses momentos.

— Eis o que estou pensando — disse William. — Mathilde e o bebê estarão seguros aqui, se ela e as criadas viverem entre nós como se fossem aldeãs. Usarão roupas simples, e o bebê será tratado como as demais crianças. Se concordar, Robert deixaremos Hadwen e os outros pensarem que o menino é seu filho e que Mathilde é sua amante.

— Mathilde e as criadas podem continuar no quarto do salão — Catherine sugeriu.

Robert gostou da ideia.

— Entendo.

— Os homens do rei ainda ficarão na casa da floresta, mas metade virá para cá para fortalecer a guarnição. Hoje mandarei buscar os baús das mulheres e os guardaremos aqui, como se fossem pertences de Catherine. Direi aos homens para quebrarem a liteira e queimá-la. Os cavalos serão trazidos para o estábulo. Se os galeses quiserem nos espionar, não encontrarão nenhuma pista que os leve a Mathilde ou provas de que uma nobre passou por aqui.

— Sim. — Catherine alisou os cabelos. — Será mais fácil para Mathilde, caso ela queira, retornar ao convento, se não houver boatos a seu respeito em Nottingham. Não podemos deixar que mexericos sobre um bastardo recém-nascido sejam relacionados a ela. Cuidaremos do bebê como se fosse nosso e, se houver perguntas, diremos que é filho de um aldeão.

— Vai dar certo — Robert deduziu —, se o rei esquecer a existência do filho.

William encarou Catherine e o primo.

— O que acham?

— Não gosto da parte sobre a liteira — Catherine confessou. — Eu a vi na casa da floresta. É linda, e seria um desperdício queimá-la.

William meneou a cabeça.

— É perigoso demais guardá-la aqui. E Mathilde não precisa mais dela.

— Já sei por que você quer destruí-la, William. Roubá-la da rainha Eleanor foi tão perigoso quanto emprestá-la para transportar Mathilde.

William ficou vermelho.

— Foi o único jeito de oferecer algum conforto a Mathilde durante a jornada. Ela já estava pesada demais por causa da gravidez. Portanto, não conseguiria montar.

— É lógico. Eu entendo. Mas é uma bela peça. A madre Alflega está envelhecendo, você sabe. Já não pode mais montar naquela mula. E ela adora ir a Nottingham de vez em quando.

— É um transporte sofisticado. Chama a atenção dos outros. Se pudesse encontrar uma liteira mais simples, eu...

Robert riu.

— A madre Alflega gosta de coisas finas. Por que não lhe dar a liteira da rainha e os cavalos treinados para puxá-la?

William ponderava.

— A abadessa desejará saber como a liteira veio parar aqui. Não podemos deixar que o nome de Mathilde chegue à abadia.

Robert deu de ombros.

— Se ela ainda não descobriu o que acontece em Lundale, nunca irá insinuar nada. A madre Alflega sabe guardar segredos. A abadia recebe muitos presentes sempre sem questionar.

Catherine notou um brilho bem-humorado nos olhos de Robert.

— Como sabe disso, primo? Ele apenas riu.

— Certo — William concedeu. — Quando os homens do rei voltarem à mata, irei com eles. Robert, pegue dois soldados e leve a liteira e os cavalos à abadia. Fique atento para qualquer sinal de espiões galeses.

Catherine tocou-lhe a mão.

— Será melhor, Robert, se você nos deixar por um dia ou dois. Verá Mathilde e o bebê quando retornar. Digam-me, alguém perguntou a Mathilde se ela deseja batizar o menino?

Robert sacudiu a cabeça.

— Ela ainda não sabe como chamá-lo. Se a agradar, posso trazer um padre. Quando Alflega nasceu, o padre da abadia disse que não viria a Lundale, onde a capela tornou-se apenas uma ruína. Por isso, fomos à abadia, e Catherine, num rompante de emoção, deu o nome da abadessa à filha, em memória à época em que lá viveu.

Um sorriso sutil curvou os lábios de Robert.

— Cuidado, William. Existem duas mulheres chamadas Wolnutha e um padre chamado Ergesboldus na abadia. Você pode ter dúzias de filhos e nunca aprender a pronunciar o nome deles.

— Vejo que teremos de reconstruir a capela. — William sorria. — Nesta primavera, se Catherine quiser gastar um pouco do ouro que recebeu de herança.

— Que seja antes da colheita no próximo ano, meu marido, antes que estejamos ocupados com uma Wolnutha.

 

Março, 1165

No último dia de Natal, quando as festividades teriam fim, o inverno tornara-se mais ameno. As chuvas começaram, e as correntes de gelo que surgiram no rio desapareceram no ano-novo.

O nível das águas subiu sobremaneira por causa da estiagem. As tempestades e o excesso de lama nas estradas mantiveram os viajantes longe de Lundale na primeira quinzena após a festa de Epifania, no início de janeiro.

Só nessa época, os sentinelas passaram a ver viajantes ao longe. Em princípio, apenas alguns homens a cavalo apareciam. Dias depois, um fluxo considerável de passantes, não mais detidos pelo mau tempo, começou a cavalgar para o norte e para o sul pela estrada que circundava os campos de Lundale.

Entre eles, cavaleiros mais velozes em boa montaria, mensageiros trazendo avisos de Nottingham e York. Com frequência, tais passageiros solicitavam um lugar para se aquecer à frente da lareira. Catherine lhes dava comida para a viagem e, em troca, recebia notícias do mundo, onde um sério conflito crescia entre o rei e seu antigo chanceler, o rebelde bispo de Canterbury.

Catherine e o povo de Lundale se prepararam para tais estranhos que, em geral, pediam acolhida por uma noite. Nenhum forasteiro, nem mesmo o animado grupo de mercadores que falavam em galês entre si, notou a tímida mulher em meio às tecelãs de Lundale, que se recolhia ao quarto do salão todas as noites com outras mães e seus filhos. E ninguém achou estranho o fato de ela permanecer acamada a cada manhã até que o salão estivesse livre de desconhecidos.

O bebê dormia num berço comum, como qualquer outro, não muito longe do tear da mãe. Era mais um dentre tantas crianças que viviam ao lado das mães no canto mais quente do grande salão, vigiadas pelo corpulento guerreiro John, o guarda mais orgulhoso e enérgico.

Para o povo de Lundale, os hábitos de lorde William, do jovem Robert e da guarnição, que patrulhavam e caçavam todos os dias, eram previsíveis e normais.

O trabalho das mulheres com rocas e teares e na cozinha era cuidadosamente organizado para que Mathilde jamais ficasse sozinha na presença de desconhecidos e para que nada inspirasse a curiosidade de algum forasteiro quanto ao filho do rei.

Para qualquer viajante à procura de abrigo que entrasse no grande salão de banquetes de Lundale, o cenário era de uma agradável confusão. Os artifícios utilizados por William e Catherine foram tão bem planejados que nenhum forasteiro jamais saberia a verdade: que sob a superfície de animação reinante, algumas pessoas que pertenciam ao povo de Lundale estavam tão alertas quanto um falcão à espreita.

A chuva caía desde os primeiros sinais da aurora no dia em que os mensageiros do rei chegaram. Era o tipo de clima que obrigava os vigias a se abrigarem em seus postos, entediados pelo vento frio e pela paisagem de lama.

Ao meio-dia, Catherine encheu uma tigela de barro com sopa de cevada, ervas e carne de carneiro, e atravessou o pátio. Percorreu as tábuas que Osbert colocara no solo para que as pessoas não sujassem os pés. Então, subiu a escada da torre para encontrar o sentinela em serviço naquele dia tão úmido.

Para sua surpresa, o vigia achava-se fora do abrigo e à mercê do vento gélido.

— Nosso senhor abateu um javali, milady. Eu assisti a tudo aqui de cima. Vi o animal correr em direção à lança de lorde William. — O guarda notou a tigela de comida nas mãos de Catherine. — Teremos mais do que carneiro hoje à noite.

— Cansou de comer carne de carneiro?

O sentinela tirou o capuz e encarou Catherine.

— Não quis me queixar — disse Radulf, com a voz mais grossa.

Catherine sorriu.

— Não o reconheci, Radulf. Você cresce a cada dia. Eles já o integraram à guarnição?

Os ombros magros do garoto se endireitaram.

— Estou pensando nisso.

— Precisamos de bons fazendeiros em Lundale. Um idoso senhor que mora para além do pasto necessitará de um homem forte para limpar e arar a terra.

Radulf apanhou a lança que John lhe dera de presente e segurou-a na posição vertical.

— Primeiro aprenderei a usar isto. Um homem deve saber defender sua terra.

Catherine entregou-lhe a tigela.

— Seu pai, sem dúvida, terá uma opinião a respeito disso. Radulf levou a tigela aos lábios e começou a beber o líquido cremoso.

Catherine reparou num grupo de homens a cavalo percorrendo o horizonte distante.

— Quantos já passaram hoje?

— Quatro comitivas — Radulf disse, depois de tomar a sopa. — Todas a cavalo. Nenhuma carroça. Os problemas de Henrique devem estar aumentando. Lorde William e Robert foram ter com a primeira comitiva, pouco antes de caçarem o javali.

Os cavaleiros pararam e se reagruparam justo no local onde os campos de Lundale faziam fronteira com a floresta. Eles circularam e formaram uma linha. Catherine apontou em sua direção.

— Onde está milorde?

Radulf indicou a direção sul do rio.

— Robert está trazendo o javali e lidera aqueles três homens. Lorde William não está com eles.

— Deve ter levado o resto deles à caçada — Catherine deduziu, tentando manter-se calma.

A linha de cavaleiros, seis no total, cavalgava em direção aos portões.

— No mínimo, o clima ruim os tirou da estrada.

Ela queria que William mostrasse o mesmo bom senso. Resolveu descer para receber os visitantes, e logo sentiu um arrepio de medo subir-lhe pela espinha ao notar as roupas de tecido fino e o galope descuidado dos homens ao passar pelos portões.

Radulf desceu com ela e atravessou o pátio, abandonando o posto no topo da torre. Catherine não o questionou.

O primeiro a liderar o grupo era um cavaleiro de baixa estatura e olhos sagazes.

— Mensageiros do rei, milady.

— Seja bem-vindo — Catherine o cumprimentou.

— Somos seis. — Os olhos sob a sobra do capuz percorreram o pátio. O homem hesitou ao ver a lança de Radulf e fitou Catherine.

— Todos são bem-vindos — ela reforçou. -— William de Macon?

— O senhor meu marido está caçando e voltará antes do anoitecer.

"Talvez até antes, se os santos ajudarem", Catherine orou em silêncio.

O primeiro mensageiro percorreu o pátio, examinando os muros de pedra, a torre e o estábulo. Então, lançou um olhar nervoso à porta do salão.

— Há fogo?

Ele falava como se as palavras fossem flechas afiadas. Era reticente. Abrupto. Mortal.

— Sim, bem como comida, no grande salão — Catherine informou-o. — O suficiente para todos vocês.

O homem assentiu e desmontou. Largou as rédeas do cavalo e acenou para os outros cinco companheiros.

— Está tudo bem. — E segurou as rédeas do último cavalo para um mensageiro alto e forte apear.

Talvez eles tivessem mostrado mais respeito por Catherine, se a chuva não houvesse recomeçado naquele instante. Cinco deles entraram antes da anfitriã no salão, oferecendo-lhe apenas um aceno vago ao passar. Não disseram seus nomes. Tampouco Catherine desejou saber.

Ela permaneceu à soleira, observando a água da chuva lavar o barro das tábuas. O sexto mensageiro guiou os cavalos, dois a dois, ao estábulo. De repente, ela se deu conta de que ninguém falara ao homem onde os animais deveriam ficar. Catherine, então, atravessou o pátio e sugeriu o que fazer. Um grunhido foi a única resposta que obteve.

No instante em que adentrou o grande salão, ela lamentou não ter acompanhado os mensageiros. Viu que Radulf aproximava-se, de lança em punho, dos dois forasteiros mais altos, que escolheram o canto mais quente do espaço para beber suas canecas de malte. Exatamente onde as mulheres com seus bebês teciam.

Um deles não tirara o manto. Esticou o braço sob o pesado casaco e puxou as luvas. E levou a mão ao berço mais próximo.

John levantou-se do banco. Radulf colocou a lança entre o mensageiro e o bebê.

— Cuidado — Radulf advertiu, com a voz ainda desafinada. — Ele ainda é muito pequeno.

Do interior do capuz, o mensageiro encarou Radulf.

— Então, por que sua lança está tão próxima ao berço? John resmungou e aproximou-se.

— Estou vendo um punhal em seu cinturão. Devia desarmar-se antes de chegar perto de uma criança. Ou da mesa de minha senhora.

— Um idiota imaturo e um velho bêbado — zombou o mensageiro do rei. — Ousam me dizer como portar minhas armas?

Alflega começou a chorar. Catherine precipitou-se até filha e pegou-a. Empurrou Radulf e postou-se, com a filha nos braços, entre o mensageiro e o bebê de Mathilde.

Atrás dela, os outros mensageiros levantaram-se, derrubando o banco.

— Não — ordenou o homem de capuz.

Eles ajeitaram o banco e sentaram-se outra vez, em silêncio.

— Seu bebê? — o mensageiro quis saber. Catherine apertou Alflega entre os braços.

— Sim.

— E quem é a mãe deste aqui?

O homem apontava o filho do rei. Atrás da cortina do quarto, a exclamação de Mathilde foi quase inaudível.

— Meu — Catherine disse. — As duas crianças são minhas.

— É filho de William de Macon?

— Isso mesmo.

— William de Macon estava na Normandia no último verão. — O estranho coçou o queixo.

— Estava, sim.

— Então, como ele fez esta criança? Radulf avançou.

— Não alimentamos safardanas grosseiros! Vá embora.

— Não, Radulf. — John largou a caneca e aproximou-se do berço. — Eu resolvo isso.

— Tire-o daqui ou ele sofrerá as conseqüências — ameaçou o viajante.

Catherine notou que o homem segurava o punho da espada.

— Deixem-nos — ela ordenou. — John. Radulf. Deixem-nos. Não precisam se preocupar. Este homem sabe que milorde William matará o primeiro que ferir sua esposa ou seus filhos. Qualquer um dos filhos.

Sob o capuz, um par de olhos azuis encarou Catherine.

— O bebê é mesmo filho de seu marido?

— Digo que é filho de meu marido. Pode perguntar-lhe quando ele voltar. Todos dirão que o menino é filho de William de Macon.

— Vou falar com seu William de Macon.

— Por todos os santos... — John murmurou.

— Sente-se — convidou-o Catherine. — Se quiser conversar com William de Macon, tire a mão da espada e sente-se nesse banco até meu marido voltar. Se me obedecer, viverá para contar essa história.

— Sim, é uma história interessante... — Ele se sentou, ajeitando o manto. — E falsa. A senhora me toma por um imbecil?

— Não aprecio suas maneiras — Catherine enfrentou-o. — Se ameaçar alguém mais sob este teto, irá dormir no estábulo.

Enfim, o desconhecido tirou o capuz, sacudiu as gotas de chuva dos cabelos loiros e usou a barra do manto para secar a barba avermelhada.

A caneca de John caiu no chão, espalhando malte e ervas pelo assoalho.

— Majestade... Não percebi...

Mathilde puxou a cortina e adentrou o salão.

— Henrique, estou aqui!

— Maldição! — Catherine resmungou.

— Briguenta e adepta a blasfêmias — Henrique Plantagenet constatou. — Eu tinha esquecido que William de Macon havia se casado. Jamais imaginei que escolheria uma mulher tão agressiva para ser a mãe de seus filhos. Ou melhor, de sua única filha.

— Meu marido conversará com Vossa Majestade. Hesitante, Mathilde parou a poucos passos de Henrique

Plantagenet. O rei ainda não tinha cumprimentado a mãe de seu filho, mas parecia ávido para trocar insultos com Catherine. Aquele era o homem a quem William jurara lealdade?

— Não vai me responder? — o rei insistiu. — Então, além de briguenta e adepta a blasfêmias, não preza a verdade. William de Macon foi descuidado consigo mesmo ao casar-se.

Em pouco tempo, ela conseguiu enfurecer o rei. Não havia motivo para desgraçar a si mesma. William a considerava astuta. Estava na hora de provar que ele tinha razão.

— Eu me afeiçoei ao menino. Vossa Majestade não o deixará conosco, se Mathilde concordar?

Henrique Plantagenet levantou-se e passou as mãos pelos cabelos molhados. Enfim, voltou-se para a mãe de seu filho mais novo.

— Mathilde, precisamos conversar em particular. Só eu e você. — Analisou o pequeno Plantagenet no berço. — É um belo menino — disse o rei, e seguiu Mathilde até o interior do quarto.

No momento seguinte, a cortina foi puxada. Então, o povo de Lundale não mais escutou as palavras de Henrique Plantagenet à mulher que ele amara.

Catherine apontou os homens que acompanhavam o rei naquela jornada secreta.

— Eu deveria convidá-los a sentarem-se conosco. William puxou-a para si.

— Deixe-os. O rei escolheu estranhos para essa viagem. Não os conheço, e sei que esquecerão o que Henrique veio fazer aqui.

— Que atitude devo tomar, William?

— Nenhuma. Você já fez tudo isso. — William indicou a toalha de linho que cobria a mesa, onde Catherine mandara servir diversas iguarias para o prazer do rei.

Até a taça de prata, presente que William lhe trouxera da Normandia, ela deixara no lugar de Sua Majestade para que ele a usasse. William, por um instante, ficou tentado a esconder a taça.

Tornou a fitar a esposa e, naquele momento, Catherine esqueceu que a causa de seus temores e a ameaça ao futuro estava a poucos metros.

— Nada é o mais difícil a fazer em situações como esta. -— Ele olhou para o primo de Catherine. — A abadessa não conseguiria imaginar este dia. Ela me disse que a paciência não corre em suas veias, Robert.

Do outro lado da mesa, Robert brincava com uma taça vazia.

— Aprendi com você, William. Para seu próprio bem, tentaremos ser pacientes. Veremos se isso tudo nos servirá para alguma coisa.

William abraçou Catherine pela cintura. Ela fechou os olhos e pousou a cabeça no ombro do marido.

— Se a situação se inverter, faremos o que for necessário, minha querida. Não me separarei de você, Catherine. Nem Robert deve perder Mathilde, se ela o quiser.

Um sorriso frágil curvou os lábios de Robert.

— Um toque de rebeldia, William?

— Aprendi com você e Catherine. E encontrei algo muito mais importante que a boa graça do rei.

Robert assentiu e fitou a cortina inerte da porta do cômodo.

— Há quanto tempo estão lá?

— Uma hora — Catherine calculou. — Talvez menos.

Pela centésima vez, ela agradeceu aos santos o fato de Robert ter chegado após Henrique Plantagenet e Mathilde desaparecerem na privacidade do cômodo. A nova resolução de Robert de pensar antes de agir não teria sobrevivido à expressão pálida de Mathilde quando encarou o rei.

Robert largou a taça vazia na mesa.

— Isso é muito. Alguém devia entrar lá para certificar-se de que Mathilde está bem.

— Nós teríamos escutado qualquer problema, Robert — William tentava acalmá-lo. — Fique aqui e aguarde. O rei é um homem razoável, quando lhe convém. Não ajudará Mathilde em nada, se o enfurecer.

Catherine afastou a taça de Robert.

— Agradeço-lhe por controlar seu temperamento, primo. Rezo para que continue assim. Aqueles que vivem à sombra de um rei devem agir com cautela.

William segurou a mão de Catherine e a de Robert.

— Chegamos até aqui juntos. Juro perante vocês que não ficaremos separados. Por nada neste mundo, nem por alguma recompensa prometida para o próximo. Se for impossível viver à sombra de um rei, procuraremos um lugar onde haja luz e claridade.

 

Sua Majestade exige que vocês se apresentem. Catherine encarou o estranho que tivera a audácia de informar-lhe quando ela podia entrar no quarto onde nascera.

— Como pode ver — disse, com suavidade —, há comida e bebida para o rei. Se ele quiser sentar-se à mesa...

— Não. Sua Majestade deseja lhes falar no pequeno cômodo. Vocês três devem ir.

Catherine manteve um sorriso no rosto e rezou para que Robert e o marido, agora rebelde, acreditassem que lhe agradava obedecer ao soberano. Ela se ergueu, ainda segurando a mão de William.

— Robert, você vem conosco?

Robert já havia se levantado e estava puxando a cortina antes que a prima terminasse de falar.

Henrique Plantagenet, o rei da Inglaterra, senhor da Normandia e da Aquitânia, achava-se em pé e desgostoso, próximo à parede. Mantinha as mãos nas costas, os ombros empinados, como se estivesse pronto para esmagar a primeira criatura que se aproximasse.

Mathilde sentara-se na beirada da cama e torcia os dedos sobre o colo. Olhou para Robert com aflita esperança em suas íris cor de violeta e, em seguida, tornou a se concentrar as próprias mãos.

Na presença de Henrique Plantagenet, a quieta coragem de Mathilde parecia fenecer. Nunca, nem mesmo naquele dia terrível em que ela fugira pela floresta, estivera tão pálida.

Fitou à entrada, focando a atenção no berço humilde onde o filho dormia.

Catherine respirou fundo. William, junto dela, aproximou-se, como se quisesse servir de escudo contra o olhar penetrante de Henrique Plantagenet.

Robert permanecia em silêncio, atento a Mathilde.

Plantagenet não sugeriu que se sentassem.

— Devo lhes agradecer por cuidar da filha do barão Pandulf. — A cabeça leonina do rei virou-se para encarar Robert com intensidade avassaladora. — A jovem deseja ficar com o bebê e casar-se na primavera. O pai dela ficará aborrecido ao saber disso.

O rei Henrique fez uma pausa. Um sorriso contido surgiu sob a barba avermelhada.

— Irei interceder em favor de Mathilde, quando a ocupação de Gales estiver completa. Até lá, Mathilde deve voltar à família com o objetivo de manter a paz entre os barões de minha fronteira com Gales.

Mathilde continuava a fitar as próprias mãos. Catherine notou o rubor nas faces do rei ante o frio silêncio que seguiu suas ordens.

Em vão, ela procurou uma semelhança entre o rosto rígido do soberano e os traços de William. Aqueles que viam William como uma réplica razoável do rei deviam basear-se na opinião de assassinos caolhos, pois não existia nada na prepotência de Plantagenet que lembrasse a dignidade de William. Aliás, seria interessante imaginar que Henrique Plantagenet poderia esforçar-se para possuir uma ínfima semelhança.

— Está sorrindo, senhora?

— Não, Majestade. Não há motivo para risos.

— Talvez para vocês. — O rei respirou fundo, inflando o peito avantajado e se dirigiu de novo Catherine: — A filha do barão Pandulf falou-me da gentileza que demonstrou durante seu exílio neste inverno. Você disse que desejava criar o filho dela. Vou lhe conceder esse desejo e deixar o menino aqui.

Plantagenet falava como se a criação de seu filho ilegítimo fosse uma dádiva sem preço. Catherine suspirou. Alguém precisava ver a realidade. O menino era um lindo bebê, possuía a doçura da mãe e nenhum dos hábitos imperiosos do pai. Até então.

Já que Mathilde tinha de abrir mão do filho, pelo menos saberia onde encontrá-lo.

— Majestade, é uma alegria abrigar o filho de Mathilde. Agradeço-lhe a generosidade — Catherine exagerou.

O rei assentiu e desviou o olhar para Robert.

Iria ele oferecer a Catherine apenas a tarefa de abrigar o filho? Se ela esperasse para solicitar o que queria seu coração, a oportunidade poderia desaparecer.

— Majestade...

Plantagenet arqueou uma sobrancelha, expressando certa surpresa diante da interpelação.

— Sim?

— Muito obrigada por deixar o bebê conosco.

— Sim, sim...

— E juro mantê-lo a salvo. O neto do barão e bom aliado nunca será submetido a riscos.

— É lógico que não.

— Eu lhe pediria, no entanto, que deixasse meu marido comigo para proteger a criança e manter Vossa Majestade informado de todos os acontecimentos referentes ao menino.

— Eu o mandarei para casa. Talvez no próximo verão. Você o terá de volta na época da colheita. Antes disso, tenho uma guerra para realizar e preciso de meus melhores cavaleiros. Todos eles. — O rei fez um gesto de dispensa e voltou a encarar Robert.

— Receio — Catherine prosseguiu — que meu marido não mais seja um de seus melhores cavaleiros, Majestade. Alguns dizem que ele é inútil no campo de batalha.

— O que é isso?! — Plantagenet pareceu irritado.

— William não se recuperou dos ferimentos que adquiriu no último outono a seu serviço. Ao lidar com o... dilema de Mathilde.

A cabeça real baixou devagar. Numa pessoa comum, isso significaria um claro sinal de perigo. Num rei, seria mais que letal.

— Seu marido matou um javali hoje. Entendo tal façanha como uma prova de que está recuperado. — Plantagenet encarou William. — Ainda sabe falar, William de Macon? Ou sua esposa roubou-lhe todas as capacidades?

William abraçou Catherine pelos ombros.

— Majestade, ficarei feliz em colocar minha espada a seu serviço. Mas minha esposa diz a verdade... minha perna sofreu um corte profundo e, até eu recuperar a força nos músculos, sou inútil no campo de batalha. Se Robert não estivesse a meu lado, não teria matado o javali.

— Mas pode sentar-se numa sela.

— Posso.

A situação não estava nada boa. Catherine respirou fundo

outra vez.

— Quando aquele galês, Madoc, veio espionar a floresta, William saiu para nos proteger. E escorregou naquele dia, caindo no rio, e quase se afogou.

William se mostrou surpreso.

— Catherine, você deve se lembrar de que não foi assim. Caí no rio porque...

— Madoc? Madoc o seguiu até aqui?! — O punho pesado do rei esmurrou as tábuas da parede.

Do outro lado da cortina, as vozes no salão cessaram e logo recomeçaram em tom mais baixo.

Ainda assim, Mathilde continuava a fitar as próprias mãos.

— Madoc não permaneceu muito tempo — William explicou ao rei. — Ele nada viu.

— Mas tentou com certa ferocidade — Robert completou.

— Ele ousou invadir meu domínio?! Aquele homem tem coragem! — Henrique Plantagenet esbravejou. — Espalha rumores contra minha honra. Mathilde deve partir antes que Madoc volte. William, leve-a para a fronteira. Ao convento. Amanhã.

— Não!

Todos ficaram espantados. A figura frágil e tensa, sentada na cama, enfim manifestava-se.

— Henrique, eu disse que não quero voltar. Expliquei a você o que desejo fazer. Permita-me, e nunca mais terá problemas comigo. Jamais.

O olhar furioso de Plantagenet fixou-se em Mathilde, Robert, William... e, então, em Catherine.

— Vou pensar. Estou indo para York hoje, mas quando voltar, resolverei assunto. Você... — Plantagenet apontou Robert. — ...pode participar da invasão a Gales em lugar de seu primo por casamento, se bem entendi. Sendo assim, esteja preparado para minha volta.

— Henrique...

— Majestade...

Ele marchou até a soleira e parou.

— Parem de me dizer o que querem que eu faça. Vou refletir a respeito, e vocês farão o que eu decidir. Assim que voltar de York. — O rei puxou a cortina e entrou no salão.

Parou ao lado do berço e colocou um anel de ouro sobre a coberta do filho. E terminou a marcha até a porta. Atrás dele, os cinco mensageiros agarraram seus mantos e o seguiram.

Catherine disparou atrás deles. O rei iria embora sem alimentar-se e experimentar o malte de Lundale? Teria ela enfurecido Henrique de tal forma que o povo de Lundale sofreria as conseqüências?

À porta, Henrique Plantagenet deteve-se e, de braços abertos, virou-se para os seguidores.

— Fui traído! — esbravejou.

Dois mensageiros reais se entreolharam e encararam aqueles que ainda se achavam no salão. Os outros correram até a porta e saíram.

O rei ergueu os punhos.

— Alguém entre vocês me traiu, e eu arrancarei o coração do verme antes que este dia termine!

— Majestade?

— Vejam — Henrique Plantagenet disse. — Vejam o que acaba de passar pelos portões deste lugar miserável. Vejam quem me seguiu até aqui!

Catherine se pôs na ponta dos pés para enxergar a traição que o rei apontava.

A liteira, esplêndida em sofisticação e luxo, estava parada no pátio. Suspensa entre dois cavalos de boa linhagem e conduzida por dois rapazes ricamente vestidos, trouxera a ocupante em total conforto sob a chuva.

— Se mencionar Mathilde e o filho, mandarei seu marido a Gales com a infantaria — ameaçou Henrique Plantagenet. — Aquela é minha esposa. Sua rainha. Não podia estar aqui, mas está. Estou danado...

Henrique marchou com tanta força que as tábuas do chão rangeram. Um sorriso principesco surgiu em seu rosto.

— Eleanor, estou encantado. A cortina da liteira se abriu. Henrique Plantagenet recuou.

— Essa é a madre Alflega — Catherine disse-lhe. — A abadessa do lar religioso que se encontra na estrada a Nottinghan. Madre Alflega, nosso... rei veio ter com William.

A abadessa afastou a cortina e estendeu a mão delicada a Henrique Plantagenet.

— É mesmo o rei? Preciso de ajuda para descer daqui. Do contrário, meus velhos ossos vão quebrar.

A madre aceitou o braço que o rei lhe oferecia e desceu. O cenário era de uma criança ao lado de um adulto gigante, dada a diferença de estatura entre ambos.

— Perdoe-me, Majestade. Estou velha demais para me curvar. Mas abaixarei apenas minha cabeça.

— Não importa. — Henrique Plantagenet franziu o cenho. — A senhora me assustou. Essa liteira se assemelha muito à de minha esposa.

A madre Alflega arregalou os olhos.

— Mas essa era a liteira da rainha. Até o Natal, era dela. Agora é minha. — Um sorriso inocente despontou nas feições suaves da abadessa.

— Ah... A senhora...

A abadessa puxou a manga do rei para desviar a atenção da liteira.

— Seria melhor fazê-la um pouco mais baixa. Sua esposa, a rainha, não está bem servida de carpinteiros. Dirá a ela, Majestade?

O rei ficou pálido.

— Conhece a rainha?

A abadessa encheu o peito.

— Como pode ver, é a liteira dela.

— Entendo.

— Escrevi a Sua Majestade para agradecer-lhe. Foi uma boa carta, repleta de detalhes que se escutam na abadia.

— Boa senhora, madre...

— Alflega. Não é difícil de pronunciar. Alflega.

— Sim, madre... Alflega. Que detalhes? Ela riu e aproximou-se.

— Tive de contar à rainha o que falam do rei por aqui. Todos comentam o conflito com seu antigo chanceler, o arcebispo. Dizem que Canterbury está se escondendo de Vossa Majestade. Há histórias tão esquisitas neste mundo... — Fez uma pausa.

— Agora terei de acrescentar outro trecho à carta, contando que conheci o rei em Lundale, vestido como um mensageiro real.

A madre Alflega inclinou o rosto, sorridente.

— Quando foi a última vez em que esteve aqui... dez anos atrás? Vossa Majestade guerreava na região e nunca fomos apresentados. Na época, foi melhor assim, não? Aqueles que o viram de perto não chegaram a minha idade.

A abadessa riu da própria brincadeira.

— Senhora, eu...

— Não tema, Majestade. Deus compreende a necessidade de tais atitudes. — A abadessa olhou para Catherine e piscou.

— Eu poderia obter um favor do rei? Ou seria pedir demais? Vossa Majestade entregaria a carta à rainha?

O rosto de Henrique relaxou.

— Sim, claro. Levarei a mensagem quando eu retornar do sul.

A madre Alflega delirou com a notícia.

— Escrevi um pequeno pedido. Apenas uma demanda por ouro, a fim de reconstruir a igreja de Lundale. O prédio foi derrubado, como Vossa Majestade deve lembrar, dez anos atrás, durante a batalha. A rainha tem sido tão generosa para com o povo da Inglaterra que pensei em pedir...

Henrique recuou um passo e ergueu as mãos.

— Não é preciso nenhuma carta. Quando eu chegar a York, falarei com o bispo, ordenarei que ele retire uma soma em ouro de meu tesouro e envie alguns carpinteiros e um pedreiro para construir a capela. Não é necessário escrever à rainha.

— Mas Vossa Majestade lhe enviará minhas saudações?

— Sem dúvida.

Atrás de si, Catherine sentiu o peito de William sacudir em silenciosa risada.

— Ela conhece mesmo a rainha? — ele sussurrou.

— Duvido muito. — E Catherine cobriu os lábios para esconder o riso.

— Meu ossos envelhecidos não agüentam este frio... — a madre Alflega queixou-se.

— Estou de partida, boa madre.

— Faça boa viagem, Majestade.

O rei virou-se para ver Mathilde diante da porta e ao lado de Robert.

— Adeus — ele disse, ao se afastar de. madre Alflega. — E quanto a você — dirigiu-se a Robert —, lembre-se de que a filha do barão Pandulf merece um marido de alguma importância. Com terras. Se quiser, vá a Shrewsbury na próxima quinzena e participe da invasão a Gales. Haverá terra e ouro para aqueles que se mostrarem valentes o bastante para ganhá-los.

Catherine prendeu a respiração quando Robert apertou o punho da espada.

— Obrigado, Majestade. Estarei em Shrewsbury na próxima quinzena.

— Muito bem — dizia William. — Agora eu entendi. Rosa deve ser chamada de Alflega e nenhum outro nome servirá.

Ele tocou o ventre de Catherine e começou a acariciar a pele alva sob a qual um novo membro da família começava a crescer.

— Mas me prometa que, se for uma menina, ela se chamará Margaret, ou Eleanor, ou Johanna... Wolnutha não soa bem aos ouvidos.

Catherine afagou os cabelos loiros do marido.

— Talvez tenhamos um menino, William. E como vai ser? Devemos batizá-lo com o nome do rei?

Ele sorriu sob a luz do fogo.

— Seria prudente, após o susto que Vossa Majestade levou. Tal gesto teria certa relevância.

— Claro que eu nunca gostei do nome. E poucas pessoas de nosso povo dariam o nome do rei a algum filho. — Catherine espreguiçou-se e bocejou. — Precisaremos ponderar a respeito, quando não estivermos ocupados com suas carícias, sua magia e... outras qualidades.

— Por falar em carícias...

— O que tem em mente, meu marido?

— Achei que talvez pudéssemos aproveitar minha longa estada aqui para aprimorarmos nosso casamento. Afinal, nós nos casamos às pressas, sem nos conhecermos direito.

— Entendo. — Catherine sorriu, matreira. — Que tal começarmos com um beijo?

Quando os lábios se tocaram, os dias de sofrimento e saudade se dissiparam. Tornavam-se um outra vez, e Catherine pretendia saborear cada minuto. Deslizou as mãos entre os cachos de seu marido, afagou a nuca e colou seu corpo nu ao de William.

O toque era possessivo, e não se comparava ao amante gentil que a cobrira de carinho nas outras vezes em que se amaram. Lábios afoitos se apossavam dos dela, mãos experientes a apertavam. Catherine correspondia, famélica, desejosa, tão impetuosa quanto ele.

Envolvendo os seios, William moveu-se, desesperado, para senti-los. A barba roçava a pele sensível, arranhando-a. Um prazer selvagem dominou-a, e Catherine respondeu com incrível volúpia.

O ferimento de William não era empecilho para o ato frenético de amor. Ele se movia sobre ela, usando mãos, boca, dentes e língua para imprimir sua marca naquele corpo sedutor.

Cada movimento ou toque íntimo a aproximava mais e mais do êxtase total.

Após despir-se, ele a penetrou. Catherine notou o brilho orgulhoso de satisfação em seu olhar. A partir daquele momento, selavam em definitivo o amor que só então os uniria pela eternidade, pois pertenciam mesmo um ao outro.

— Oh, Catherine!

— Mais uma vez, amor.

Eram apenas um, e ela se entregou inteira para receber o que William podia oferecer. Ele se movimentava com uma urgência que parecia aumentar a cada segundo, a cada suspiro. Almas e corpos se fundiram. E, de repente, viram-se absorvidos pela magia inconfundível do verdadeiro amor.

Ela jamais vivera algo tão forte, tão profundo.

William abraçou-a sob o cobertor. Prendeu-a de encontro a si, colando o peito nas costas de Catherine. A respiração ainda ofegante roçava o lóbulo delicado.

Ele ergueu o rosto e beijou-lhe a face.

— Você não daria o nome de Henrique a nosso filho? — perguntou, retornado ao assunto anterior.

— Pedirei um conselho a madre Alflega, se você não se importar. A abadessa tinha um confessor favorito, que ela sempre incluía em suas preces. E seu irmão caçula, Godelief, era um homem de muita integridade. A madre possui uma excelente memória para essas coisas.

— Está brincando! Catherine sorriu.

— Não posso escolher o nome sozinha. São necessários meses para pensar. Quando nossa filha nasceu, fiz o melhor que pude em sua ausência, William. Desta vez...

— Estarei aqui, acredite em mim. Porque eu te amo loucamente, Catherine, estarei sempre aqui. 

 

                                                                                Linda Cook 

 

 

                      

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