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FRAN E LARRY SENTARAM-SE À MESA da cozinha da casa de Stu e Fran, bebericando café. No andar de baixo Leo dedilhava sua guitarra, que Larry o ajudara a escolher na loja Earthly Sounds. Era uma bela Gibson de 600 dólares, com o braço tendo acabamento em cerejeira. Numa ideia repentina, Larry pegara para o menino um fonógrafo de pilha, bem como uma boa quantidade de álbuns de música folk/blues. Agora Lucy estava com Leo, e uma imitação espantosamente boa de "Backwater Blues", de Dave van Ronk, subia até a cozinha.
Choveu à beça por cinco dias
e o céu ficou negro como a noite...
Há encrenca se armando
no braço de rio esta noite.
Pelo arco de comunicação com a sala de estar, Fran e Larry viam Stu sentado em sua poltrona favorita com o livro de Harold no colo. Estivera sentado naquela posição desde as quatro da tarde. Já eram nove horas e escurecera de todo. Stu nem quisera jantar e virou outra página enquanto Frannie o observava.
Lá embaixo, Leo terminou "Backwater Blues" e houve uma pausa.
- Ele toca bem, não é mesmo? - comentou Fran.
- Melhor do que eu - disse Larry e bebericou seu café.
Do andar de baixo chegou subitamente uma batida familiar, um rápido tamborilar que progrediu para um blues não de todo padronizado, que fez Larry parar com a xícara no ar. Então ouviram a voz de Leo, baixa e insinuante, adicionando o vocal ao ritmo lento e compulsivo:
Ei, garota, pintei no pedaço esta noite
E não vim aqui para brigar
Só quero que me diga se puder,
Diga uma vez e entenderei,
Garota, você saca o seu homem?
Ele é um cara legal,
Garota, você saca o seu homem?
Larry derramou seu café.
- Epa! - exclamou Fran e levantou-se para pegar um pano de prato.
- Eu limpo - disse ele. - Acho que balancei quando só devia estremecer.
- Não, fique aí sentado. - Ela pegou o pano de prato e enxugou a mancha rapidamente. - Lembro-me dessa música. Fez sucesso pouco antes da gripe. Leo deve ter pegado o compacto lá na cidade.
- Creio que sim.
- Como era o nome do cara? Do cara que a compôs?
- Não me lembro - disse Larry. - Música pop vem e vai com muita rapidez.
- Sim, mas era um nome um tanto familiar - replicou ela torcendo o pano na pia. - Engraçado a gente estar com o nome na ponta da língua, não é?
- É isso aí.
Stu fechou o livro com uma batida suave e Larry ficou aliviado ao ver Frannie olhar para ele, que entrava na cozinha. Os olhos dela foram primeiro para a arma na cintura de Stu. Ele a vinha usando desde que fora eleito xerife e fizera um bocado de piadas acerca de ser baleado no pé. Fran não achava graça nenhuma nas piadas.
- E então? - perguntou Larry.
O rosto de Stu estava profundamente perturbado. Pôs o livro sobre a mesa e sentou-se. Fran começou a empurrar-lhe uma xícara de café, mas ele fez que não com a cabeça e pousou a mão no braço dela.
- Não, obrigado, meu bem. - Olhou para Larry de uma maneira ausente, alheada. - Li tudo e agora estou com uma dor de cabeça danada. Não estou acostumado a ler tanto. O último livro que li de cabo a rabo, em uma assentada, falava sobre coelhos. O título era Watership Down. Era para um sobrinho meu, e mal comecei a lê-lo...
Ele se interrompeu por um momento, pensando.
- Também li esse livro - disse Larry. - Achei ótimo.
- Havia aquele bando de coelhos - continuou Stu -, e eles levavam uma vida mansa. Eram grandes, bem alimentados, e sempre viveram num só lugar. Havia algo de errado ali, mas nenhum dos coelhos sabia o que era. Parecia como se não quisessem saber. Apenas... apenas, vejamos, havia aquele fazendeiro...
- Ele deixou a coelheira em paz - acrescentou Larry -, de modo que pudesse ter um coelho para o ensopado, sempre que quisesse um. Ou talvez para vender. De qualquer modo, era uma fazendola para criação de coelhos.
- Isso mesmo. Pois havia aquele coelho, chamado Silverweed, que compunha poemas sobre o fio brilhante... o laço de arame que o fazendeiro usava para pegar os coelhos, que usava para pegá-los e estrangulá-los. Silverweed compunha poemas sobre isso. - Ele sacudiu a cabeça em lenta e cansada incredulidade. - E Harold faz com que me lembre disso. Do coelho Silverweed.
- Harold está doente - disse Fran.
- Isso mesmo. - Stu acendeu um cigarro. - E perigoso.
- O que devemos fazer? Prendê-lo?
Stu tamborilou com os dedos sobre o livro-razão.
- Ele e Nadine estão planejando fazer algo para que sejam bem-vindos quando forem para o oeste. No entanto, este livro não diz o quê.
- O livro menciona um bocado de gente que não é do agrado de Harold - disse
Larry.
- Vamos prendê-lo? - perguntou Fran novamente.
- Sinceramente, não sei. Gostaria primeiro de discutir o assunto com o pessoal do comitê. O que há para amanhã à noite?
- Bem, a reunião será dividida em duas partes: atividades públicas e atividades privadas. Brad quer falar sobre a sua Turma do Desligamento. Al Bundell quer apresentar um relatório preliminar do Comitê Legal. Vejamos... George Richardson falará sobre horários de consulta em Dakota Ridge, em seguida será a vez de Chad Norris. Depois disso, eles irão embora e só ficaremos nós.
- Se pudermos convencer Al Bundell a permanecer lá e lhe falarmos a respeito desse caso de Harold, podemos ter certeza de que ficará de bico fechado?
- Tenho certeza de que sim - disse Fran.
Stu comentou, melancólico:
- Eu gostaria que o juiz estivesse aqui. Tive empatia com aquele homem.
Ficaram em silêncio por um momento, pensando no juiz, imaginando onde ele estaria naquela noite. Lá debaixo veio o som de Leo tocando "Sister Kate", tal qual Tom Rush.
- Mas se tiver de ser Al, que seja. De qualquer modo, só vejo duas escolhas. Precisamos tirar aqueles dois de circulação, mas não quero botá-los na cadeia, droga!
- Que outra opção nos resta? - perguntou Larry.
Foi Fran quem respondeu:
- Exílio.
Larry voltou-se para ela. Stu assentia lentamente, olhando para seu cigarro.
- Simplesmente mandá-lo embora? - perguntou Larry.
- Ele e ela - completou Stu.
- Mas Flagg irá aceitá-los? - perguntou Frannie.
Stu ergueu os olhos para ela.
- Fran, isto não é problema nosso.
Ela concordou e pensou: Ah, Harold, eu não queria que isto terminasse assim. Jamais, em um milhão de anos, eu desejaria que terminasse desse jeito.
- Tem alguma ideia do que eles estariam planejando? - perguntou Stu.
Larry deu de ombros.
- Você tem que botar todo o comitê matutando sobre isso, Stu. Mas posso pensar em algumas coisas.
- Tais como?
- Talvez sabotagem na usina de força. Ou uma tentativa de assassinato contra você e Frannie. São estas as duas primeiras coisas que me ocorrem.
Fran pareceu pálida e abatida.
Larry prosseguiu:
- Embora ele nada dissesse, acredito que tenha ido à procura de Mãe Abagail com você e Ralph, daquela vez, apenas esperando encontrá-lo sozinho e matá-lo.
- Ele teve chance - comentou Stu.
- Talvez tenha se acovardado.
- Por favor, querem parar com isso? - disse Frannie, sem entusiasmo. - Por favor!
Stu levantou-se e retornou à sala de estar. Lá havia um FC ligado a uma bateria Die-Hard. Após algumas tentativas, ele conseguiu fazer contato com Brad Kitchner.
- Brad, seu safado! Aqui é Stu. Escute, será que poderia reunir alguns caras que montassem guarda na usina esta noite?
- Claro - veio a voz de Brad. - Mas para quê, em nome de Deus?
- Bem, é um assunto meio delicado, Bradley. Ouvindo aqui e ali, fiquei sabendo que alguém poderia tentar alguma sabotagem lá.
A resposta de Brad foi um monte de palavrões.
Stu assentiu ao microfone, sorrindo de leve.
- Sei como se sente. Será apenas por esta noite e talvez a noite de amanhã, pelo que sei. Depois, creio que as coisas voltarão ao normal.
Brad respondeu que poderia recrutar uma dúzia de homens sem andar dois quarteirões, e que alguns deles ficariam contentes em pegar qualquer pretenso sabotador.
- Isto tem algo a ver com Rich Moffat?
- Não. Nada relacionado a Rich. Ouça, logo estarei falando pessoalmente com você, certo?
- Tudo bem, Stu. Colocarei homens para vigiar.
Stu desligou o rádio e voltou para a cozinha.
- Os outros não nos deixam ser tão reservados quanto desejaríamos. Isso me assusta, sabiam? O velho sociólogo careca está certo. Poderíamos nos instalar aqui como reis, se assim quiséssemos.
Fran colocou a mão sobre a dele.
- Quero que me prometam uma coisa. Vocês dois. Prometam que isto será resolvido em definitivo na reunião de amanhã à noite. Só desejo que tudo termine.
Larry assentiu em concordância.
- Exílio. Tudo bem. Isso nunca me passou pela cabeça, mas pode ser a melhor solução. Bem, vou pegar Lucy e Leo e voltar para casa.
- Verei você amanhã - disse Stu.
- OK - respondeu Larry e saiu.
Pouco antes do alvorecer de 2 de setembro, Harold parou à borda do anfiteatro Aurora e olhou para baixo. A cidade era um fosso de escuridão. Nadine dormia atrás dele. na pequena tenda para dois que haviam recolhido numa loja, junto com outros apetrechos de acampar, quando se esgueiraram para fora da cidade.
Nós voltaremos, porém. Dirigindo carruagens.
Mas, lá no fundo, Harold duvidava disso. A escuridão o envolvia em mais de um sentido. Os escrotos nojentos lhe haviam roubado tudo - Frannie, seu amor-próprio, depois seu diário e agora sua esperança. Ele se sentia afundando.
O vento era forte, ondulando seu cabelo, fazendo a rígida lona da tenda se agitar de um lado para outro, com um som constante de rajadas de metralhadora. Atrás dele, Nadine gemeu no sono. Era um som assustador. Harold deduziu que estava tão perdida quanto ele, talvez mais. Os sons que ela fazia dormindo não eram os de quem está tendo sonhos felizes.
Mas posso manter minha sanidade. Posso fazer isso. Se puder descer até o que me espera, seja lá o que for, mantendo a mente em perfeitas condições, isso já será alguma coisa. Sim, alguma coisa.
Imaginou se eles lá embaixo, Stu e seus amigos, estavam agora cercando sua casinha, esperando que ele chegasse a fim de encarcerá-lo. Ele entraria para os livros de história - se ainda restasse algum daqueles babacas dignos de pena para escrevê-los - como o primeiro a ser encarcerado na Zona Franca. Bem-vindo aos tempos duros. EXTRA, EXTRA, FALCÃO CAPTURADO, leriam a seu respeito. Bem, eles iam esperar muito tempo. Embarcara na sua aventura e recordara claramente como Nadine passara a mão pelos cabelos brancos, dizendo: É tarde demais, Harold, seus olhos assemelhando-se aos de um cadáver.
- Tudo bem - suspirou Harold. - Vamos com isso até o fim.
À volta e acima dele, o vento escuro de setembro tamborilava através das árvores.
A reunião do Comitê da Zona Franca teve início 14 horas mais tarde, na sala de estar da casa que Ralph Brentner e Nick Andros partilhavam. Stu ocupava uma poltrona, batendo na beirada da mesa com a borda de sua lata de cerveja.
- Muito bem, pessoal, acho melhor começarmos logo.
Glen e Larry sentavam-se na mureta encurvada da imponente lareira, de costas para o modesto fogo que Ralph acendera. Nick, Susan Stern e o próprio Ralph ocupavam o sofá. Nick segurava a caneta e o bloco inevitáveis. Brad Kitchner estava de pé junto à porta, tendo uma lata de Coors na mão, e falava com Al Bundell, que bebericava uísque com soda. George Richardson e Chad Norris sentavam-se junto à enorme parede envidraçada, olhando o sol se pôr acima das Flatirons.
Frannie sentava-se com as costas apoiadas confortavelmente na porta do armário onde Nadine escondera a bomba. Sua mochila, contendo o livro-razão de Harold, estava entre suas pernas cruzadas.
- Ordem, peço ordem! - disse Stu, batendo com o martelo. - Esse gravador está funcionando, careca?
- Está ótimo - disse Glen. - Vejo que sua boca também está funcionando a contento, Texano Oriental.
- Eu a lubrifico um pouco e ela simplesmente fica ótima - respondeu Stu, sorrindo. Seu olhar percorreu as 11 pessoas agrupadas em torno da grande área combinada de sala de estar e de jantar. - OK... temos coisas importantes a tratar, mas primeiro eu gostaria de agradecer a Ralph por proporcionar o teto sobre nossas cabeças, a bebida e os biscoitos...
Ele está realmente ficando muito bom nisso, pensou Frannie. Tentou avaliar o quanto Stu mudara desde o dia em que ela e Harold o haviam encontrado e não conseguiu. Ficamos demasiado subjetivos sobre o comportamento de pessoas com quem temos contato íntimo, concluiu. Mas ela sabia que, quando o conhecera, Stu ficaria alarmado à ideia de presidir uma reunião de quase uma dúzia de pessoas... e provavelmente saltaria direto para o céu a sugestão de presidir uma assembleia pública da Zona Franca, reunindo mais de mil pessoas. Agora ela olhava para um Stu que jamais teria existido se não fosse a epidemia.
A tragédia libertou você, meu querido, pensou. Posso chorar pelos outros e ainda assim me sentir tão orgulhosa de você, amá-lo tanto...
Aprumou melhor o corpo, recostando-se com mais firmeza contra a porta do armário.
- Nossos convidados irão falar primeiro - anunciou Stu. - Em seguida, teremos uma curta reunião fechada. Alguma objeção a isto?
Ninguém objetou.
- OK - prosseguiu Stu. - Passo a palavra para Brad Kitchner, e todos vocês procurem ouvi-lo com atenção, porque ele é o homem que irá devolver as pedras de gelo ao uísque de vocês dentro de uns três dias.
Isto gerou uma rodada sincera de aplausos espontâneos. Enrubescendo extremamente, dando puxões na sua gravata, Brad caminhou até o meio da sala. Por pouco não tropeçou em uma almofada em seu caminho.
- Estou. Realmente. Feliz. Por estar. Aqui - começou Brad num tom entrecortado e monótono. Parecia como se achasse que ficaria bem mais feliz em qualquer outro lugar, até mesmo no pólo Sul, presidindo a uma convenção de pinguins. - A... hã... - Fez uma pausa, examinou suas anotações e depois se animou. - A energia elétrica! - exclamou com o ar de um homem fazendo uma grande descoberta. - A energia está quase restaurada. Certo.
Remexeu um pouco mais em suas anotações e continuou:
- Ontem pusemos dois geradores em funcionamento e, como sabem, um deles ficou sobrecarregado e queimou até os miolos, por assim dizer. O que quero deixar claro é que ele ficou sobrecarregado. Inteiramente. Bem... vocês sabem o que é isso.
Um risinho se espalhou entre eles, o que pareceu deixar Brad mais à vontade.
- Isso aconteceu porque, quando a epidemia atacou, muita aparelhagem ficou ligada nas casas e não dispúnhamos de geradores de reserva que assumissem a sobrecarga. Podemos eliminar o risco de sobrecarga pondo para funcionar o resto dos geradores... até mesmo três ou quatro absorveriam a carga sem dificuldade... mas isso não eliminaria o risco de incêndios. Assim, precisaremos desligar o máximo de aparelhagem que pudermos. Queimadores de fogão, cobertores elétricos, toda essa coisa. De fato, estive pensando uma coisa: a maneira mais rápida, talvez, fosse entrarmos em todas as casas vazias para desligar as tomadas ou então as chaves do registro geral, entendem? Ora, quando estivermos prontos para religar a energia, acho que devemos tomar algumas precauções elementares contra incêndio. Tomei a liberdade de vistoriar o posto de bombeiros na área leste de Boulder e...
O fogo crepitava confortavelmente na lareira. Tudo ia dar certo, pensou Fran. Harold e Nadine iriam embora sem qualquer insistência dos demais e talvez fosse melhor assim. O problema ficava resolvido e Stu via-se livre deles. Pobre Harold, senti pena de você, mas no fim senti mais medo do que pena. Ainda existe pena, e receio pelo que lhe possa acontecer, mas fico contente por sua casa estar vazia, por você e Nadine terem partido. Fico satisfeita por nos deixarem em paz.
Harold sentou-se sobre uma mesa de piquenique, tão tomada por inscrições entalhadas que mais parecia o manual zen de algum lunático. Tinha as pernas cruzadas. Seus olhos estavam distantes, nevoentos, contemplativos. Tinha ido para aquele lugar frio e desconhecido onde Nadine não poderia segui-lo e ela ficara amedrontada. Mantinha nas mãos o walkie-talkie gêmeo daquele que deixara na caixa de sapatos. As montanhas despencavam diante deles em abismos extasiantes e ravinas repletas de pinheiros. Vários quilômetros a leste - talvez 15, talvez 60 - o terreno nivelava-se no Meio-Oeste americano e se espichava para o difuso horizonte azulado. A noite já caíra sobre aquela parte do mundo. Atrás deles, o sol acabara de desaparecer por trás das montanhas, deixando-as com uma auréola dourada que esmaeceria e se dissolveria.
- Quando? - perguntou Nadine. Ela estava terrivelmente perturbada, tendo de ir ao banheiro diversas vezes.
- Muito em breve - disse Harold. O sorriso dele se transformara num riso brando. Era uma expressão que não conseguia classificar ao certo, porque nunca a notara no rosto de Harold. Precisou de alguns minutos para situá-la. Harold parecia feliz.
Por unanimidade, o comitê deu a Brad os poderes para arregimentar os vinte homens e mulheres que formariam sua Turma de Desligamento de Energia. Ralph Brentner concordara em encher dois velhos caminhões-pipa do corpo de bombeiros no reservatório de Boulder e deixá-los na usina de força quando Brad ligasse a eletricidade.
Chad Norris foi o próximo. Falando com tranqüilidade, as mãos enfiadas nos bolsos da calça caqui, discorreu sobre o trabalho efetuado pelo Comitê de Sepultamentos durante as últimas três semanas. Contou-lhes que haviam sepultado a incrível quantidade de 25 mil cadáveres, mais de 8 mil por semana, acreditando agora que houvessem ultrapassado mais da metade.
- Tivemos sorte ou fomos abençoados - disse ele. - Este êxodo em massa... não sei como classificá-lo de outro modo... realizou para nós a maior parte do trabalho. Em qualquer cidade do tamanho de Boulder levaríamos um ano para completar o serviço. Até 1º de outubro esperamos sepultar outras 20 mil vítimas da epidemia. É provável que continuemos encontrando vítimas isoladas durante muito tempo depois disso, mas quero dizer a vocês que o trabalho vem sendo feito e que não precisamos nos preocupar demais sobre doenças produzidas nos corpos dos mortos insepultos.
Fran modificou a posição a fim de contemplar o final do dia. O dourado que circunda os picos começava a esmaecer para uma cor de limão menos espetacular. De repente, sentiu uma onda de saudade do lar antigo, totalmente inesperada e quase nauseante em sua intensidade.
Faltavam cinco minutos para as oito horas.
Se não fosse no mato, ela terminaria urinando nas calças. Contornou alguns arbustos, agachou-se e urinou. Quando voltou, Harold continuava sentado sobre a mesa de piquenique, com o walkie-talkie seguro frouxamente na mão. Ele tinha erguido a antena.
- Harold - disse ela. - Está ficando tarde. Passa das oito.
Ele a fitou com indiferença.
- Eles continuarão lá por metade da noite, dando tapinhas nas costas uns dos outros. Quando chegar a hora certa, puxarei a alavanca. Não se preocupe.
- Quando?
O sorriso vazio de Harold aumentou.
- Assim que escurecer.
Fran conteve um bocejo enquanto Al Bundell se postava confiantemente ao lado de Stu. Aquilo ainda ia demorar bastante, e de repente ela desejou estar de volta ao apartamento, apenas eles dois. Não se tratava apenas de fadiga, e tampouco era exatamente aquela sensação de saudades de casa. De repente, ela percebeu que não queria estar ali, no apartamento de Ralph. Não havia motivos para tal sensação, porém o desejo era intenso. Queria sair dali, queria que todos os outros saíssem também. Simplesmente perdi todos os meus pensamentos otimistas para esta noite, disse para si mesma. Mulheres grávidas ficam melancólicas, isso é tudo.
- O Comitê Legal teve quatro reuniões nesta última semana - dizia Al - e tentarei ser o mais breve possível. O sistema por que optamos é uma espécie de tribunal. Seus integrantes seriam escolhidos por sorteio, tal como os jovens eram certa vez selecionados para alistamento militar...
- Xô! Fora! - exclamou Susan e houve risos amistosos.
Al sorriu.
- Porém eu ia acrescentar: creio que o serviço num tribunal assim deveria ser muito mais agradável para aqueles que fossem convocados para servir. O tribunal consistiria em três adultos, acima dos 18 anos, que serviriam por seis meses. Seus nomes seriam tirados de uma grande uma contendo os nomes de cada cidadão adulto de Boulder.
Larry fez um aceno pedindo um aparte.
- Eles poderiam ser dispensados por motivo de força maior?
Franzindo um pouco o cenho a esta interrupção, Al replicou:
- Eu já ia chegar a este ponto. Teria de haver...
Fran remexeu-se, inquieta, e Sue Stern piscou para ela. Fran não retribuiu. Estava assustada - e temerosa de seu próprio medo infundado, se tal coisa fosse possível. De onde vinha aquela sensação de confinamento, de claustrofobia? Fran sabia que a melhor maneira de lidar com sensações infundadas era ignorá-las... pelo menos no mundo de outrora. Mas e quanto aos transes de Tom Cullen? E quanto a Leo Rockway?
Saia daqui, a voz interior gritou subitamente. Faça com que todos saiam!
Mas isso era loucura. Remexeu-se de novo e decidiu nada falar.
- ... uma breve alegação da pessoa que espera ser dispensada, mas não acho...
- Alguém está chegando - disse Fran subitamente, levantando-se.
Houve uma pausa. Todos podiam ouvir motos roncando Baseline acima, em direção a eles. Soavam buzinas. E, de súbito, o pânico em Frannie transbordou.
- Ouçam - disse ela. - Todos vocês!
Rostos se voltaram para ela, surpresos, preocupados.
- Frannie, você está... - Stu seguiu em direção a ela.
Fran engoliu em seco. Parecia haver um peso enorme em seu peito, sufocando-a.
- Temos que sair daqui. Agora... imediatamente!
Eram 8h25. A última luz do dia abandonara o céu. Era chegada a hora. Harold sentou-se um pouco mais ereto e aproximou o walkie-talkie da boca. Seu polegar descansava levemente sobre o botão TRANSMITIR. Ao pressioná-lo, mandaria todos eles para o inferno, dizendo...
- O que é aquilo?
A mão de Nadine em seu braço, distraindo-o, apontando. Muito abaixo, serpenteando pela Baseline, havia uma fileira de luzes. No grande silêncio, podiam ouvir o ronco distante de muitas motos. Harold sentiu uma pontada de inquietação, mas repeliu-a.
- Não me distraia. Chegou a hora - disse ele.
A mão de Nadine caiu do ombro dele, e seu rosto virou um borrão alvacento na escuridão. Harold apertou o botão TRANSMITIR.
Ela jamais soube se foram as motos ou suas palavras que puseram todos em movimento. No entanto, eles não se moveram com rapidez suficiente. Fran ficaria com isso para sempre em seu coração: não se moveram com rapidez suficiente.
Stu foi o primeiro a chegar à porta. O rugido e o eco das motos eram enormes. Elas cruzaram a ponte sobre o pequeno córrego seco abaixo da casa de Ralph, os faróis brilhando intensamente. Num gesto instintivo, Stu levou a mão à coronha da arma.
A porta de tela se abriu e ele voltou-se, pensando que fosse Frannie. Não era; era Larry.
- O que está havendo, Stu?
- Não sei. Mas é melhor que eles saiam.
As motos então abriram caminho para a entrada de carros e Stu relaxou um pouco. Pôde ver Dick Vollman, o garoto Gehringer, Teddy Weizak e outros que conhecia de vista. Agora podia permitir-se reconhecer o que tinha sido seu medo principal: que por trás das luzes brilhantes e do ronco das motos pudesse ter estado a ponta de lança das forças de Flagg, que a guerra tivesse começado.
- Dick - falou Stu -, que diabo está acontecendo?
- Mãe Abagail! - gritou Dick acima do ruído dos motores. Mais e mais motos enchiam o pátio enquanto os integrantes do comitê saíam da casa. Lá fora havia um carnaval de faróis acesos que se moviam e sombras que eram como carrosséis.
- O quê?! - gritou Larry. Atrás dele e de Stu, agruparam-se Glen, Ralph e Chad Norris, ao pé dos degraus.
- Ela voltou! - Dick precisou berrar para se fazer ouvir acima do ronco dos motores. - Ah, está em péssimas condições! Precisamos de um médico... Meu Deus, precisamos de um milagre!
George Richardson abriu caminho através deles.
- A velha senhora? Onde está?
- Monte logo, doutor! - gritou Dick. - Não faça perguntas! Por Deus, temos de agir rápido!
Richardson subiu na garupa da moto de Dick Vollman. Dick fez uma curva fechada e começou a abrir caminho para a rua através do aglomerado de motos.
Os olhos de Stu encontraram os de Larry, que parecia tão atordoado quanto ele... mas havia uma nuvem se formando na cabeça de Stu, e de repente uma terrível sensação de tragédia iminente o engolfou.
- Nick, venha! Venha! - gritou Fran, agarrando-lhe o ombro. Nick estava parado no meio da sala, o rosto quieto, imóvel.
Não podia falar, mas de repente ele soube. Ele soube. Vinha de lugar nenhum, ao mesmo tempo vinha de toda parte.
Havia algo no armário. Ele deu um tremendo empurrão em Frannie.
- Nick...!
VÁ! Ele acenou para que ela se fosse.
Ela obedeceu. Nick se virou para o armário, escancarou a porta e começou a remexer loucamente no emaranhado de coisas lá dentro, suplicando a Deus que não fosse demasiado tarde.
De repente, Frannie estava junto de Stu, o rosto pálido, os olhos esbugalhados. Agarrou o braço dele.
- Stu... Nick ainda está lá dentro... alguma coisa... alguma coisa...
- Frannie, do que está falando?
- Morte! - ela gritou para ele. - Estou falando de morte e NICK AINDA ESTÁ LÁ DENTRO!
Nick puxou para um lado um monte de echarpes e luvas de inverno. Então, sua mão tateou algo. Uma caixa de sapatos. Agarrou-a e, ao fazê-lo, a voz de Harold Lauder, como maligna necromancia, falou de dentro dela.
- E quanto a Nick? - gritou Stu, agarrando Fran pelos ombros.
- Temos que tirá-lo de lá... Stu... vai acontecer alguma coisa, alguma coisa terrível...
Al Bundell gritou:
- Que diabo está havendo, Stuart?
- Não sei - replicou Stu.
- Stu, por favor, temos que tirar Nick de lá! - gritou Frannie.
Foi então que a casa explodiu atrás deles.
Ao ser pressionado o botão de TRANSMITIR desapareceu a estática que havia ao fundo, substituída por um sombrio e uniforme silêncio. Um vácuo, esperando que de o preenchesse. Sentado de pernas cruzadas na mesa de piquenique, Harold procurou empertigar-se.
Então ergueu o braço e da sua extremidade um dedo brotou do punho fechado, e naquele momento ele foi como Babe Ruth, já velho e quase exaurido, apontando para o local onde completaria o circuito das bases no Wrigley Field, calando para sempre os que o tinham considerado acabado para o beisebol
Falando com firmeza no walkie-talkie, porém não demasiado alto, ele disse:
- Aqui fala Harold Emery Lauder. Faço isto por minha livre e espontânea vontade!
Uma faísca branco-azulada acompanhou o Aqui fala. Um jato de chamas elevou-se em Harold Emery Lauder. Um estrondo fraco, uniforme, como o de uma bombinha explodindo dentro de uma lata, chegou aos seus ouvidos em faço isto, porém a esta altura ele já pronunciara as palavras minha livre e espontânea vontade e já jogara fora o walkie-talkie, cuja finalidade terminara. Então, um fogaréu desabrochou na base da montanha Flagstaff.
- Companheiro na escuta, tudo entendido, câmbio e desligo - disse Harold suavemente.
Nadine agarrou-se a ele, da maneira como Frannie se agarrara a Stu apenas alguns segundos antes.
- Precisamos ter certeza. Precisamos ter certeza de que eles foram apanhados!
Harold olhou para ela e depois apontou para a nascente destruição que desabrochava abaixo deles.
- Acha que alguma coisa sobreviveria àquilo?
- Eu... não sei... Harold, acho que vou... - Nadine se virou, apertando o ventre, com ânsias de vômito. Era um som profundo, constante, áspero. Harold fitou-a com ligeiro desdém.
Nadine virou-se por fim, ofegante, pálida, limpando a boca com um lenço de papel. Ainda esfregava a boca ao perguntar:
- E agora?
- Agora creio que iremos para oeste - disse Harold. - A menos que você pretenda descer até lá, para analisar o estado de ânimo da comunidade.
Nadine estremeceu.
Harold escorregou para fora da mesa de piquenique e pestanejou de ansiedade quando seus pés tocaram o chão.
- Harold... - Nadine tentou tocá-lo, mas ele a evitou. Sem olhar para ela, começou a desmontar a tenda.
- Pensei que íamos esperar até amanhã... - começou ela timidamente.
- Claro - zombou ele. - Para que vinte ou trinta deles decidam vasculhar a área em suas motos e nos capturar. Nunca soube o que fizeram com Mussolini?
Ela piscou. Harold enrolava a tenda. Depois recolheu as cordas que a prendiam ao chão.
- Não nos tocaremos mais. Isso terminou. Demos a Flagg o que ele queria. Acabamos com o Comitê da Zona Franca dessa gente. Eles estão liquidados. Podem até restabelecer a eletricidade, mas como grupo organizado estão liquidados. Ele me dará uma mulher que fará você parecer um saco de batatas, Nadine. E você... você o terá. Dias felizes, certo? Só que, se eu estivesse no seu lugar, estaria tremendo pra caramba.
- Harold... por favor... - Ela chorava, arrasada. Ele podia ver-lhe o rosto ao brilho difuso da fogueira e sentiu pena. Ele a expulsara de seu coração como um bêbado indesejável que tentava entrar num barzinho de subúrbio onde todos se conheciam. O fato irrevogável do assassinato estava para sempre em seu coração, aquele fato brilhava doentiamente em seus olhos. Mas e dai? Isto estava nele também. Em tudo e por tudo, pesando como pedras.
- Procure se acostumar - respondeu Harold brutalmente. Colocou a tenda na traseira de sua moto e começou a amarrá-la. - Está acabado para eles lá embaixo, acabado para nós e acabado para todos que morreram na epidemia. Deus ausentou-se em uma excursão celeste de pescaria, e ausente ficará por muito tempo. A treva é total. O homem escuro está no volante agora. Ele. Portanto, acostume-se com isso.
A garganta de Nadine produziu um ruído chiado e lamentoso.
- Vamos, Nadine! Isto deixou de ser um concurso de beleza dois minutos atrás! Ajude-me a embalar essa merda. Quero estar bem longe daqui antes do alvorecer.
Após um momento, Nadine virou as costas para a destruição abaixo, um espetáculo que parecia quase inconseqüente devido àquela altitude, e o ajudou a embalar o resto dos apetrechos de acampamento, colocando-os nas sacolas laterais da moto de Harold e no seu próprio bagageiro de arame. Quinze minutos depois, deixaram para trás o incêndio que subia aos céus e viajaram na escuridão fria e ventosa, a caminho do oeste.
Para Fran Goldsmith, o final daquele dia foi simples e indolor. Sentiu um empurrão de ar quente em suas costas e, de repente, estava voando através da noite. Tinha perdido suas sandálias.
Que porra é essa?, pensou.
Aterrou sobre o ombro, com força, mas ainda não sentia dor. Estava na ravina que corria na direção norte-sul, ao pé do pátio dos fundos da casa de Ralph.
Uma cadeira desabou diante dela, perfeitamente, sobre as quatro pernas.
Que PORRA É ESSA?
Alguma coisa pousou no assento da cadeira e rolou para o chão. Algo que gotejava. Com um vago e clínico horror, ela viu que era um braço.
Stu? Stu? O que está acontecendo?
Um som contínuo e rugente a engolfou, enquanto choviam coisas de todos os lados. Pedras. Pedaços de madeira. Tijolos. Um pedaço de vidro com rachaduras que pareciam teias de aranha (a estante de livros da sala de estar de Ralph não era feita de vidro como aquele?). Um capacete de motocicleta, com um buraco horrível e letal na parte posterior. Ela podia ver tudo claramente... demasiado claramente. Estava tudo escuro apenas alguns segundos antes...
Ah, Stu, meu Deus, onde está você? O que está acontecendo? Nick? Larry?
Pessoas gritavam. Aquele rugido triunfante continuava. Agora estava tudo tão claro como se fosse meio-dia. Cada seixo lançava uma sombra. Coisas ainda choviam a toda a sua volta. Uma tábua de assoalho, com uma ponta metálica sobressaindo uns 15 centímetros da madeira, caiu diante de seu nariz.
...o bebê!...
Na esteira desse pensamento surgiu outro, uma reprise de sua premonição, foi Harold quem fez isso, foi Harold, Harold...
Algo bateu em sua cabeça, no pescoço, nas costas. Uma coisa enorme que pousou do seu lado como um caixão acolchoado.
AH MEU DEUS AH MEU BEBÊ...
Então as trevas sugaram-na para baixo, para um lugar em parte alguma onde nem mesmo o homem escuro poderia chegar.
PASSARINHOS.
Ela podia ouvir os passarinhos.
Fran permaneceu deitada na escuridão, ouvindo os pássaros por um longo tempo, antes de compreender que a escuridão não era tão escura assim. Era avermelhada, em movimento, serena. Fazia-a pensar na infância. A manhã de sábado, sem aula, sem igreja, o dia que se tinha para dormir até tarde. O dia em que se podia acordar um pouco de cada vez, sem pressa. Você mantém os olhos fechados sem ver nada, a não ser a escuridão avermelhada, que era o sol de sábado filtrado através da tela delicada dos capilares em suas pálpebras. Escutava os passarinhos nos velhos carvalhos lá fora, e talvez sentisse o cheiro de maresia, porque seu nome era Frances Goldsmith, tinha 11 anos, numa manhã de sábado em Ogunquit...
Passarinhos. Ela podia ouvir os passarinhos.
Mas ali não era Ogunquit; era
(Boulder)
Ela ficou perplexa por isso, na escuridão vermelha, por um longo tempo... e, subitamente, lembrou a explosão.
(Explosão?)
(Stu!)
Abriu os olhos abruptamente. E sentiu um terror repentino.
- Stu!
E Stu estava sentado ali, ao seu lado, na cama, com a bandagem branca envolvendo um antebraço, um corte feio na face, o sangue ressequido, parte dos cabelos queimada. Mas era mesmo Stu, e estava vivo; e quando ela abriu os olhos, ele exibiu uma expressão de alívio profundo.
- Frannie! Graças a Deus!
- O bebê...
Ela sentia a garganta seca, e a voz saiu como um sussurro. Como Stu se mantivesse impassível, o medo cego envolveu-a. Um medo frio e atordoante.
- O bebê... - repetiu ela, forçando as palavras pela garganta que parecia uma lixa. - Perdi o bebê?
A compreensão aflorou no rosto de Stu. Ele abraçou-a, meio sem jeito, com o braço ileso.
- Não, Frannie, não... você não perdeu o bebê.
Ela começou a chorar, lágrimas escaldantes escorrendo pelas faces. Abraçou-o bem apertado, sem se importar se todos os músculos de seu corpo pareciam gritar de dor. E continuou a abraçá-lo. O futuro viria mais tarde. Agora, as coisas que ela mais precisava se encontravam ali, naquele quarto ensolarado.
E o canto dos passarinhos entrava pela janela aberta.
Mais tarde, Fran pediu:
- Conte tudo. Foi mesmo horrível?
Ele tinha uma expressão angustiada e relutante.
- Fran...
- Nick? - sussurrou ela. Engoliu em seco, sentindo um estalido na garganta. - Vi um braço, um braço cortado...
- Talvez seja melhor esperar...
- Não! Preciso saber. Foi terrível?
- Sete mortos. - A voz de Stu era baixa e rouca. - Acho que tivemos sorte. Poderia ter sido muito pior.
- Quem, Stuart?
Ele segurou as mãos de Fran, desajeitado.
- Nick foi um deles, meu bem. Havia um painel de vidro... aquele vidro iodado... e... - Ele hesitou. Olhou para as mãos, antes de tornar a fitá-la. - Só conseguimos fazer a identificação por determinadas cicatrizes...
Stu desviou os olhos. Fran deixou escapar um suspiro estridente. Depois de um momento, ele foi capaz de continuar:
- E Sue... Sue Stern. Ela ainda estava lá dentro quando explodiu.
- Isso... não parece possível, não é mesmo? - Fran sentia-se atordoada.
- Mas é verdade.
- Quem mais?
- Chad Norris.
Fran deu outro suspiro estridente. Uma única lágrima deslizou do canto do olho: ela removeu-a, quase distraída.
- Esses eram os únicos três lá dentro. É como um milagre. Brad diz que devia haver oito ou nove bananas de dinamite naquele armário. E Nick quase... quando penso que ele podia estar com as mãos naquela caixa de sapato...
- Não pense - murmurou Fran. - Não havia como saber.
- Isso não ajuda muito.
Os outros quatro eram pessoas que haviam vindo da cidade em motocicletas: Andrea Terminello, Dean Wykoff, Dale Pedersen e uma jovem chamada Patsy Stone. Stu não contou a Fran que Patsy, que estava ensinando Leo a tocar flauta, fora atingida e quase decapitada por um pedaço que veio girando do gravador Wollensak de Glen Bateman.
Fran moveu a cabeça e sentiu uma dor intensa no pescoço. Quando mudava a posição do corpo, mesmo que apenas um pouco, todas as costelas pareciam gritar de dor.
Vinte pessoas haviam sido feridas na explosão. Uma delas, Teddy Weizak, do Comitê de Sepultamento, não tinha qualquer chance de se recuperar. Um homem chamado Lewis Deschamps perdera um olho. Ralph Brentner perdera o terceiro e quarto dedos da mão esquerda.
- Qual é a gravidade dos meus ferimentos? - perguntou Fran.
- Sofreu uma contusão grande nas costas e quebrou um pé. Foi o que George Richardson me informou. A explosão lançou-a para o outro lado do pátio. Quebrou o pé e sofreu a contusão nas costas quando o sofá caiu em cima de você.
- Sofá?
- Não lembra?
- Lembro de uma coisa parecida com um caixão... um caixão acolchoado...
- Era o sofá. Eu mesmo arranquei-o de cima de você. Estava transtornado e... acho que histérico. Larry veio me ajudar e acertei um soco em sua boca. Isso mostra como eu estava perturbado.
Fran tocou no rosto dele, que pôs a mão sobre a sua.
- Pensei que você tinha morrido, Fran. Lembro que pensei que não sabia o que faria se você morresse. Acho que enlouqueceria.
- Eu amo você.
Ele abraçou-a - gentilmente, por causa do problema nas costas -, e assim permaneceram por algum tempo.
- Harold? - perguntou ela mais tarde.
- E Nadine Cross - confirmou Stu. - Eles nos feriram fundo. Mas não tanto quanto queriam. E se os pegarmos antes de se afastarem muito para oeste...
Ele estendeu as mãos, arranhadas, com crostas de feridas. Fechou-as num movimento brusco, que fez as articulações estalarem. Os tendões saltaram na parte interna dos pulsos. Um sorriso súbito e frio aflorou em seu rosto, que deixou Fran com vontade de estremecer, de tão familiar.
- Não sorria assim - murmurou ela. - Nunca mais.
O sorriso desapareceu.
- As pessoas têm vasculhado as montanhas à procura dos dois desde que o dia amanheceu. Eu disse que não se afastassem por mais de 80 quilômetros a oeste de Boulder, e imagino que Harold foi bastante esperto para insistir que fossem além. Seja como for, já sabemos como eles fizeram. O explosivo estava ligado a um walkie-talkie...
Fran soltou um grito. Stu fitou-a com a maior preocupação.
- Qual é o problema, querida? Suas costas?
- Não.
Ela compreendia agora o que Stu quisera dizer quando falara que Nick estendia as mãos para a caixa de sapato quando o explosivo fora detonado. Subitamente, compreendia tudo. Em voz pausada, informou-o sobre os pedaços de fio e a caixa de walkie-talkie debaixo da mesa.
- Se tivéssemos revistado toda a casa, em vez de aceitar o que havia em seu livro, poderíamos encontrar a bomba. - A voz se tornou abafada e trêmula. - Nick e Sue estariam vivos e...
Ele apertou-a.
- É por isso que Larry parece tão deprimido esta manhã? Pensei que era por causa do soco que lhe dei. Como você poderia saber, Frannie, como poderia imaginar?
- Deveríamos imaginar! Deveríamos saber!
Ela comprimiu o rosto contra a boa escuridão do ombro de Stu. Mais lágrimas, quentes e escaldantes. Ele continuava a abraçá-la, inclinado, numa posição incômoda, porque o mecanismo elétrico para levantar o leito do hospital não estava funcionando.
- Não quero que se culpe, Frannie. Simplesmente aconteceu. Não havia a menor possibilidade de que alguém, exceto talvez um perito do esquadrão antibombas, pudesse tirar qualquer conclusão de pedaços de fio e uma caixa vazia. Se tivessem deixado duas ou três bananas de dinamite ou um detonador, seria diferente. Mas não foi o que aconteceu. Não culpo você, e tenho certeza de que ninguém na Zona vai culpá-la.
Enquanto ele falava, duas coisas se juntavam, lentamente, com algum atraso, na mente de Fran.
Esses eram os únicos três lá dentro... é como um milagre.
Mãe Abagail... ela voltou... está em péssimas condições... precisamos de um milagre!
Com um pequeno uivo de dor, ela se empertigou um pouco, a fim de fitar o rosto de Stu.
- Mãe Abagail... Todos estaríamos lá dentro no momento da explosão se não viessem nos dizer...
- É como um milagre - repetiu Stu. - Ela salvou nossas vidas. Mesmo que ela...
Ele se calou.
- Stu?
- Ela salvou a vida de todos nós ao voltar naquele momento, Frannie. Salvou nossas vidas.
- Mas ela morreu? - Fran pegou a mão dele e apertou-a. - Stu, ela também morreu?
- Ela voltou à cidade por volta de 15 para as oito. O garoto de Larry Underwood levava-a pela mão. Ele perdera todas as palavras. Você sabe que isso acontece quando ele fica excitado. Mas levou-a até Lucy. E assim que chegou lá, ela desmaiou.
Stu sacudiu a cabeça.
- Não sei como ela conseguiu andar tanto... e o que pode ter comido ou feito... Posso lhe garantir uma coisa, Fran. Há mais coisa neste mundo, e fora dele, do que jamais sonhei quando estava em Arnette. Acho que aquela mulher é de Deus. Ou era.
Fran fechou os olhos.
- Ela morreu, não é? Naquela noite. Voltou para morrer.
- Ela ainda não morreu. Deve morrer, e George Richardson diz que isso acontecerá muito em breve. Mas ainda não morreu. - Stu fitou-a nos olhos. - E tenho medo. Ela salvou nossas vidas ao voltar, mas tenho medo dela... e tenho medo do motivo para a sua volta.
- Como assim, Stu? Mãe Abagail nunca faria mal...
- Mãe Abagail faz o que Deus determina - disse ele, incisivo. - E é o mesmo Deus que assassinou o próprio filho, pelo que me disseram.
- Stu!
O fogo se extinguiu nos olhos dele.
- Não sei por que ela voltou, ou se ainda tem alguma coisa para nos dizer. Simplesmente não sei. Talvez ela morra sem recuperar a consciência. George diz que é o mais provável. Mas sei que aquela explosão... e a morte de Nick... e a volta de Mãe Abagail... tudo contribuiu para tirar os antolhos desta cidade. Estão falando sobre ele. Sabem que foi Harold quem provocou a explosão, mas acham que ele obrigou Harold a fazer isso. Também penso assim. E também há muitos que insistem que Flagg é o responsável pela volta de Mãe Abagail do jeito como ela está. Não sei dizer. Não sei de nada, é o que me parece, mas estou apavorado. Com o pressentimento de que tudo vai acabar mal. Não me sentia assim antes, mas é o que sinto agora.
- Temos de pensar em nós - murmurou Fran, quase suplicante. - Em nós e no bebê, não é mesmo? Ainda estamos aqui, não é?
Ele não respondeu por um longo momento. Fran já pensava que ele não ia responder. Mas, depois, Stu indagou:
- É verdade... mas por quanto tempo?
Quase ao crepúsculo, no terceiro dia de setembro, as pessoas começaram a seguir, lentamente, pela Table Mesa Drive, na direção da casa de Larry e Lucy. Sozinhas, em duplas, em trios. Sentavam nos degraus da varanda das casas que tinham na porta o x feito por Harold. Sentavam no meio-fio e nos gramados, que estavam secos e castanhos ao final daquele longo verão. Fumavam cigarro e cachimbo. Brad Kitchner estava ali, um braço envolto por uma volumosa bandagem branca e apoiado numa tipóia. Candy Jones também estava. Rich Moffat apareceu, com duas garrafas de Black Velvet numa bolsa de jornaleiro. Norman Kellogg sentou-se ao lado de Tommy Gehringer, as mangas da camisa enroladas, para deixar à mostra os bíceps sardentos e queimados pelo sol. O garoto Gehringer também enrolou as mangas, em imitação. Harry Dunbarton e Sandy DuChiens sentaram-se juntos num cobertor, de mãos dadas. Dick Vollman, Chip Hobart e o jovem Tony Donahue, de 16 anos, sentaram numa passagem coberta entre duas casas, a meio quarteirão da casa de Larry, uma garrafa de Canadian Club passando de mão em mão, acompanhada por Seven-Up quente. Patty Kroger sentou-se ao lado de Shirley Hammett. Havia um cesto de piquenique entre as duas. O cesto estava cheio, mas elas quase não comiam. Por volta de oito horas, a rua estava repleta de pessoas, todas observando a casa. A motocicleta de Larry estava estacionada na frente, tendo ao lado a enorme Kawasaki 650 de George Richardson.
Larry observava da janela do quarto. Por trás dele, em sua cama e de Lucy, Mãe Abagail continuava inconsciente. O cheiro seco e nauseante que ela irradiava entrava pelas narinas de Larry, deixando-o com vontade de vomitar - detestava vomitar -, mas ele não se mexeu. Era a sua penitência por escapar, enquanto Nick e Susan morriam. Ouvia vozes baixas por trás, a vigília da morte em torno da cama. George partiria para o hospital dali a pouco, para verificar como estavam os outros pacientes. Havia apenas 16 agora. Três haviam recebido alta. E Teddy Weizak morrera.
O próprio Larry saíra completamente ileso.
O mesmo Larry de sempre - mantendo a calma, enquanto os outros ao redor perdiam a cabeça. A explosão lançara-o através do caminho de carros, em cima de um canteiro de flores. Mas ele não sofrera um único arranhão. Os estilhaços haviam chovido ao redor, mas nenhum o atingira. Nick morrera, Susan morrera, mas ele saíra ileso. Isso mesmo, o velho Larry Underwood...
A vigília da morte na casa, a vigília da morte lá fora. Ao longo de todo o quarteirão. Pelo menos seiscentas pessoas. Harold, você devia voltar com uma dúzia de granadas de mão para completar o trabalho. Harold... Ele seguira Harold por todo o país, seguira uma trilha de papel de chocolate Payday e hábeis improvisações. Larry quase perdera os dedos ao tirar gasolina em Wells. Harold descobrira o tubo de transferência e usara um sifão. Fora Harold quem sugerira a participação nos vários comitês da população. Fora Harold quem sugerira a aceitação total do comitê ad hoc. Harold, o esperto. Harold e seu livro-razão. Harold e seu sorriso.
Stu podia dizer que ninguém seria capaz de adivinhar o que Harold e Nadine planejavam por uns poucos pedaços de fio largados em cima de uma mesa. Só que essa linha de raciocínio não tinha o menor valor para Larry. Ele já testemunhara antes as brilhantes improvisações de Harold. Uma delas fora escrita no telhado de um galpão, em letras com quase 6 metros de altura, por mais incrível que pudesse parecer. O inspetor Underwood era ótimo em descobrir papel de bala e chocolate, mas não tão eficiente quando se tratava de dinamite. A bem da verdade, o inspetor Underwood era um tremendo idiota.
Larry, se você soubesse...
A voz de Nadine.
Se você quisesse, eu ficaria de joelhos e suplicaria.
Fora outra chance de evitar o assassinato e a destruição... sobre a qual nunca poderia falar com ninguém. Já estava tudo planejado desde então? Era bem provável. Se não os detalhes específicos da bomba de dinamite, ligada ao walkie-talkie, pelo menos algum plano geral.
O plano de Flagg.
Isso mesmo... ao fundo, havia sempre Flagg, o sinistro mestre das marionetes, puxando os cordões de Harold, Nadine, de Charles Impening, só Deus sabia de quantos outros. As pessoas na Zona Franca poderiam linchar Harold com a maior satisfação, mas era tudo obra de Flagg... e de Nadine. E quem enviara Harold, se não Flagg? Mas antes de se encontrar com Harold, ela procurara Larry. E ele a dispensara.
Como ele poderia ter concordado? Havia sua responsabilidade para com Lucy. Eia importante demais, não apenas por causa de Lucy, mas também dele próprio... pois sentia que só precisava de mais uma ou duas concessões para que isso o destruísse como um homem para sempre. Por isso, ele recusara. Supunha que Flagg estava bastante satisfeito com o trabalho da noite anterior... se Flagg era mesmo o seu nome. É verdade que Stu ainda estava vivo, e falava pelo comitê... era a boca que Nick nunca poderia usar. Glen também continuava vivo, e Larry supunha que ele era o homem de vanguarda no pensamento do comitê. Mas Nick fora o coração do comitê; e Sue, junto com Frannie, servia como sua consciência moral. Isso mesmo, pensou ele, amargurado, em tudo e por tudo, um bom trabalho para o desgraçado. Ele deveria dar uma boa recompensa a Harold e Nadine quando chegassem lá.
Larry virou-se da janela, sentindo um latejamento intenso por trás da testa. Richardson verificava o pulso de Mãe Abagail. Laurie mexia nos tubos de soro no suporte em forma de T. Dick Ellis estava de pé ao lado. Lucy sentava-se junto à porta, olhando para Larry.
- Como ela está? - perguntou Larry.
- A mesma coisa - respondeu Richardson.
- Ela vai sobreviver a esta noite?
- Não sei, Larry.
A mulher na cama era um esqueleto coberto por uma pele tênue, esticada, pálida, quase cinza. Parecia sem sexo. Perdera a maior parte dos cabelos. Os seios haviam desaparecido. A boca pendia, entreaberta, e a respiração era áspera. Para Larry, ela parecia com as fotos das múmias do Yucatán... não deteriorada, mas murcha, curtida, seca, sem idade definida.
Era justamente isso que ela se tornara agora, não mais a mãe, mas uma múmia. Só restava aquele suspiro rouco da respiração, como uma brisa ligeira passando pelo restolho do feno. Como era possível que ainda estivesse viva? Larry não podia deixar de especular... e pelo que Deus a fizera passar? Com que propósito? Só podia ser uma piada, uma brincadeira cósmica. George comentara que já tivera conhecimento de casos similares, mas nunca um tão extremo, e ele próprio nunca imaginara que poderia deparar com algum. De certa forma, Mãe Abagail estava... comendo ela própria. O corpo continuara a funcionar muito tempo depois do que deveria ter sucumbido à desnutrição. Ela começava a entrar em colapso, partes do corpo, que deveriam ser resistentes, se desfazendo por causa da desnutrição. Lucy, que a levara para a cama, contara para ele, em voz baixa e espantada, que ela parecia não pesar mais que a pipa de uma criança, uma coisa esperando apenas por um sopro do vento para ser levada para longe... para sempre.
E, agora, Lucy falou de seu canto, junto da porta, surpreendendo a todos:
- Ela tem uma coisa para dizer.
Laurie murmurou, indecisa:
- Ela está em coma profundo, Lucy... a chance de recuperar a consciência...
- Ela voltou para nos dizer uma coisa. E Deus não permitirá que morra até que diga.
- Mas o que pode ser, Lucy? - perguntou Dick.
- Não sei - respondeu Lucy. - Mas tenho medo de ouvir. Sei disso. As mortes não acabaram. Apenas começaram. É o meu medo.
Houve um longo silêncio, que foi finalmente rompido por George Richardson.
- Tenho de ir para o hospital. Laurie, Dick, vou precisar de vocês.
Não vai nos deixar sozinhos com esta múmia, não é?, Larry quase fez a pergunta. Teve de comprimir os lábios para se conter.
Os três se encaminharam para a porta. Lucy pegou seus casacos. A temperatura não passava de 15° naquela noite, e andar de motocicleta só de camisa era desagradável.
- Há qualquer coisa que possamos fazer por ela? - perguntou Larry a George.
- Lucy já sabe sobre o soro. E não há mais nada. Pode ver...
A voz de George definhou. Claro que todos viam. Estava na cama, não é mesmo?
- Boa-noite, Larry, Lucy - disse Dick.
Eles saíram. Larry voltou à janela. Lá fora, todos haviam se levantado, observando. Ela estava viva? Morta? Agonizante? Talvez curada pelo poder de Deus? Dissera qualquer coisa?
Lucy passou o braço por sua cintura, provocando um pequeno sobressalto.
- Eu amo você - murmurou ela.
Larry abraçou-a. Baixou a cabeça e começou a tremer, descontrolado.
- Eu amo você - repetiu Lucy, calmamente. - Está tudo bem. Deixe que saia, Larry.
E ele chorou. As lágrimas eram quentes e duras como balas.
- Lucy...
- Não diga nada.
As mãos de Lucy em sua nuca eram tranquilizadoras.
- Por Deus, Lucy, o que é tudo isso?
Ela continuou a abraçá-lo, tão apertado quanto podia, sem saber, ainda sem saber, enquanto Mãe Abagail respirava com dificuldade na cama, nas profundezas do coma.
George seguiu pela rua devagar, dando o mesmo recado, várias vezes. Ela ainda estava viva. O prognóstico era o pior possível. Ela não dissera nada, e era mais provável que não falasse coisa alguma. Podem ir para casa. Se acontecer alguma coisa, vocês saberão.
Só aceleraram quando chegaram à esquina, seguindo na direção do hospital. O barulho do cano de descarga das motocicletas ressoava, ricocheteando nos prédios e voltando para eles, antes de se desvanecer no nada.
As pessoas não foram para casa. Permaneceram de pé, retomando as conversas, avaliando cada palavra de George. Prognóstico... o que isso podia significar? Coma. Morte cerebral. Se o cérebro morrera, então era o ponto final. Podia-se esperar que uma lata de ervilhas falasse tanto quanto uma pessoa com morte cerebral. Ou talvez fosse assim se aquela fosse uma situação natural; mas não se podia mais considerar as circunstâncias como naturais, não é mesmo?
Tornaram a sentar. A escuridão veio. Os lampiões foram acesos na casa em que a velha estava. Iriam para casa mais tarde, deitariam e continuariam acordados.
As conversas se desviaram, hesitantes, para o homem escuro. Se Mãe Abagail morresse, isso não significaria que ele era mais forte?
O que está querendo dizer com "não necessariamente"?
Acha que ele é Satã, pura e simplesmente.
O Anticristo, se quer saber minha opinião. Estamos vivendo o Livro do Apocalipse em nosso tempo... como você pode duvidar? "E os sete frascos foram abertos..." Pois eu acho que é a grande praga.
Ora, as pessoas também disseram que Hitler era o Anticristo.
Se os sonhos voltarem, eu me matarei.
No meu sonho, eu estava numa estação de metrô, e ele era o bilheteiro, só que eu não podia ver seu rosto. Fiquei apavorado. Saí correndo pelo túnel do metrô. Podia ouvi-lo correndo atrás de mim. E diminuindo a distância que nos separava.
No meu, desci ao porão para pegar um pote de pedaços de melancia em conserva. Vi alguém ao lado da fornalha... apenas um vulto. Sabia que era ele.
Grilos começaram a cantar. Estrelas espalharam-se pelo céu. O frio no ar foi comentado. As pessoas beberam. Cachimbos e cigarros luziam no escuro.
Ouvi dizer que o pessoal da Energia já partiu para dar um jeito.
Ainda bem. Se não restaurarem a luz e o aquecimento muito em breve, ficaremos numa situação crítica.
Murmúrios baixos, as vozes agora anônimas na escuridão.
Acho que estamos salvos durante o inverno. Com toda a certeza. Ele não tem como passar pelos desfiladeiros. Estão bloqueados pelos carros e pela neve. Mas na primavera.
E se ele tiver algumas bombas atômicas?
A bomba atômica não é nada; e se ele tiver uma daquelas bombas sujas de nêutrons? Ou outros seis dos sete frascos de Sally?
Ou aviões?
O que podemos fazer?
Não sei.
Também não sei.
Não tenho a menor ideia.
Cavar um buraco, entrar e puxar a terra por cima.
Por volta de dez horas, Stu Redman, Glen Bateman e Ralph Brentner circularam entre as pessoas, falando em voz baixa e distribuindo nossa circular. Pediam a todos que falassem com as pessoas que não se encontravam ali naquela noite. Glen mancava um pouco, porque um fragmento do fogão arrancara um pedaço de carne de sua perna direita, na explosão. A circular mimeografada dizia: REUNIÃO DA ZONA FRANCA * AUDITÓRIO MUNZINGER * 4 DE SETEMBRO * 20 HORAS.
Parece que foi o sinal para as pessoas se retirarem. Começaram a se dispersar, em silêncio, pela escuridão. A maioria levou a circular, mas umas poucas foram amassadas em bolas e jogadas para longe. Todos foram para casa, a fim de tentar dormir da melhor forma possível.
Talvez sonhar...
O auditório estava lotado, mas em total silêncio, quando Stu abriu a reunião na noite seguinte. Larry, Ralph e Glen sentavam por trás dele. Fran tentara se levantar, mas ainda sentia muita dor nas costas. Alheio à macabra ironia, Ralph a manteve a par de tudo o que acontecia através do walkie-talkie.
- Há algumas coisas sobre as quais precisamos conversar - declarou Stu, a voz contida e suave, numa atitude deliberada. Embora apenas um pouco amplificada, a voz podia ser ouvida com clareza por todos. - Acho que não há ninguém aqui que ainda não saiba da explosão que matou Nick, Sue e os outros. Nem que ignore que Mãe Abagail voltou. Precisamos conversar sobre essas coisas, mas primeiro gostaríamos de dar algumas boas notícias. Quero que escutem o que Brad Kitchner tem a dizer. Brad?
Brad encaminhou-se para o pódio. Não estava tão nervoso quanto ficara duas noites antes. Foi recebido com aplausos apáticos. Chegando lá, virou-se para a audiência e anunciou:
- Vamos religar a eletricidade amanhã.
Os aplausos foram muito mais altos desta vez. Brad ergueu as mãos, mas os aplausos persistiram, passando por cima dele, como uma onda. Prolongaram-se por trinta segundos ou mais. Mais tarde, Stu disse a Frannie que, não fosse pelos acontecimentos dos dois últimos dias, era bem provável que Brad fosse tirado do pódio e carregado pelo auditório nos ombros da multidão, como um jogador de futebol americano que marca o touchdown da vitória no último minuto de jogo. Ocorrera tão próximo do final do verão que, de certa forma, fora isso mesmo que ele fizera.
Mas, finalmente, os aplausos cessaram.
- Vamos fazer a ligação ao meio-dia, e gostaria que cada um de vocês estivesse em casa nessa ocasião, à espera, preparados. Preparados para o quê? Quatro coisas. Quero que prestem toda a atenção, porque é muito importante. Primeiro, apaguem todas as luzes e os aparelhos elétricos que não estejam usando. Segundo, façam a mesma coisa nas casas desocupadas ao redor. Terceiro, se sentirem cheiro de gás, procurem descobrir de onde vem e tapem o vazamento. Quarto, se ouvirem uma sirene de incêndio, sigam para o local... mas de uma maneira segura e sã. Não queremos ninguém com o pescoço quebrado num acidente de motocicleta. Agora... alguma pergunta?
Havia várias, todas servindo para confirmar os pontos originais de Brad. Ele respondeu a cada uma com a maior paciência. O único sinal de nervosismo era a maneira incessante como ele revirava entre as mãos o caderninho de anotações preto. Quando as perguntas minguaram, Brad declarou:
- Quero agradecer às pessoas que se empenharam ao máximo para que pudéssemos voltar a funcionar. E quero lembrar que o Comitê de Energia não está sendo dispersado. Há linhas que foram cortadas, problemas na transmissão, reservas de gasolina para buscar em Denver e trazer para cá. Espero que todos continuem em seus postos. O Sr. Glen Bateman diz que podemos ter 10 mil pessoas aqui antes do degelo, e muito mais na próxima primavera. Há estações de energia em Longmont e Denver que terão de entrar em linha antes que o próximo ano...
- Não se aquele maluco conseguir fazer o que quer! - gritou alguém, a voz rouca, no fundo do auditório.
Houve um momento de silêncio angustiado. Brad apertava o pódio com toda a força, o rosto branco. Ele não vai conseguir acabar, pensou Stu. Mas logo Brad continuou, a voz sob um controle espantoso:
- Meu problema é a energia, quero explicar para a pessoa que falou, quem quer que seja. Mas acho que continuaremos aqui por muito tempo depois que o outro cara estiver morto e esquecido. Se eu não pensasse assim, estaria consertando motores do seu lado. Quem se importa com ele?
Brad afastou-se do pódio, enquanto outra pessoa berrava:
- Você tem toda a razão!
Desta vez os aplausos foram intensos e decididos, quase agressivos. Mas transmitiam alguma coisa que não agraciou a Stu. Teve de bater com o martelo por muito tempo para recuperar o controle da reunião.
- O próximo item na agenda...
- Que se foda sua agenda! - gritou uma jovem, a voz estridente. - Vamos falar sobre o homem escuro! Vamos falar sobre Flagg. Eu diria que já estamos atrasados!
Rugidos de aprovação. Gritos de "Pela ordem!". Murmúrios de desaprovação pela escolha das palavras. O som de conversas paralelas.
Stu bateu no bloco de madeira com tanta força que a cabeça do martelo se soltou.
- Estamos numa reunião! - gritou ele. - Vocês terão a oportunidade de falar sobre qualquer coisa que quiserem, mas enquanto eu estiver presidindo a reunião, quero... ter... alguma ORDEM!
Ele berrou tão alto que a última palavra percorreu todo o auditório como um bumerangue. As pessoas finalmente se aquietaram.
- Agora - disse Stu, a voz deliberadamente baixa e calma -, o próximo item é o relato do que aconteceu na casa de Ralph na noite de 2 de setembro. Acho que cabe a mim fazer esse relato, porque sou o agente da lei eleito.
Ele tinha a atenção de todos outra vez; mas, como os aplausos que haviam saudado os comentários finais de Brad, aquela era uma situação que não lhe agradava. Todos inclinavam-se à frente, atentos, as expressões ansiosas. A circunstância deixava-o inquieto e aturdido, como se a Zona Franca tivesse mudado radicalmente ao longo das últimas 48 horas e ele já não a conhecesse mais. Fazia com que se sentisse da maneira como ficara ao deixar o Centro de Epidemias de Stovington... uma mosca presa e se debatendo numa teia de aranha invisível. Havia tantos rostos ali que ele não reconhecia, tantos estranhos...
Mas não havia tempo para pensar a respeito agora.
Ele descreveu de forma sucinta os acontecimentos que levaram à explosão, omitindo a premonição de Fran no último minuto; com o ânimo em que todos estavam, não precisavam disso.
- Ontem de manhã, Brad, Ralph e eu subimos até lá. Passamos três horas ou mais procurando entre as minas. Descobrimos o que parecia ser uma bomba de dinamite, ligada a um walkie-talkie. Ao que tudo indica, essa bomba foi deixada no armário da sala. Bill Scanlon e Ted Frampton encontraram outro walkie-talkie no anfiteatro Aurora, e presumimos que a bomba foi acionada de lá. É possível...
- Presumimos porra nenhuma! - gritou Ted Frampton, da terceira fila. - Foi mesmo aquele desgraçado do Lauder e sua puta!
Um murmúrio apreensivo espalhou-se pelo auditório.
Esses são os mocinhos? Eles estão cagando para Nick, Sue, Chad e os outros. São como uma turba de linchamento. Só estão preocupados em pegar Harold e Nadine para enforcá-los... como um amuleto contra o homem escuro.
Os olhos de Stu por acaso fixaram-se em Glen, que lhe ofereceu um pequeno dar de ombros, com uma expressão cética.
- Se mais alguma pessoa interferir sem que tenha sido dada a palavra, vou declarar a reunião encerrada, e todos poderão conversar entre si - disse Stu. - Não estamos numa reunião informal. Se não respeitarmos as regras, o que pode acontecer?
Ted Frampton fitava-o com raiva, e Stu sustentou seu olhar. Depois de um momento, Ted baixou os olhos.
- Desconfiamos de Harold Lauder e Nadine Cross. Temos alguns bons motivos, provas circunstanciais bem fortes. Mas ainda não há provas concretas contra eles, e espero que não se esqueçam disso.
Um turbilhão de conversa irritada ondulou e desapareceu.
- Eu só disse isso para poder acrescentar uma coisa - continuou Stu. - Se por acaso eles voltarem à Zona, quero que sejam trazidos à minha presença. Serão presos e Al Bundell providenciará para que sejam julgados... e um julgamento significa que poderão contar sua versão, se tiverem alguma. Nós... nós somos os supostos mocinhos aqui. Acho que sabemos onde estão os bandidos. E ser os mocinhos significa que temos de ser civilizados.
Stu correu os olhos pela multidão, esperançoso, mas viu apenas ressentimento e perplexidade. Stuart Redman vira dois de seus melhores amigos morrerem numa explosão, diziam aqueles olhos, mas agora ele defendia os culpados.
- Pelo que vale para vocês, acho que são eles os culpados - continuou Stu. - Mas tudo tem de ser feito da maneira certa. E estou aqui para dizer que assim será.
Os olhos pareciam penetrar fundo em Stu. Mais de mil pares de olhos, e ele podia sentir o pensamento por trás de cada um: Mas de que merda está falando? Eles foram embora. Seguiram para oeste. E você se comporta como se tivessem saído numa viagem de dois dias para observar pássaros.
Stu serviu-se de um pouco de água e bebeu, na esperança de livrar-se da secura na garganta. O gosto de água fervida levou-o a fazer uma careta.
- Seja como for, é essa a situação - acrescentou, hesitante. - Agora, acho, temos de preencher os lugares que ficaram vagos no comitê. Não faremos isso esta noite, mas vocês devem começar a pensar nas pessoas que querem...
Alguém levantou a mão. Stu apontou.
- Pode falar. Só peço que se identifique, para que todos saibam quem é.
- Sou Sheldon Jones - disse um homem enorme, com camisa de lã axadrezada. - Por que não escolhemos logo, esta noite, os dois novos membros do comitê? Eu indico Ted Frampton.
- Apoiado! - gritou Bill Scanlon. - Sensacional!
Ted Frampton cruzou as mãos por cima da cabeça e sacudiu-as, sob aplausos dispersos. O sentimento de desespero e desorientação tornou a dominar Stu. Deveriam substituir Nick Andros por Ted Frampton? Era como uma brincadeira de mau gosto. Ted experimentara o Comitê de Energia e descobrira que era trabalho demais. Passara para o Comitê de Sepultamento, que lhe parecia mais conveniente. É verdade que Chad comentara para Stu que Ted era uma dessas pessoas que pareciam capazes de prolongar o intervalo para o café numa hora de almoço, e uma hora de almoço em feriado de meio expediente. Fora rápido em aderir à caçada por Harold e Nadine no dia anterior, provavelmente porque proporcionava uma mudança. Ele e Bill Scanlon haviam encontrado o walkie-talkie no Aurora por pura sorte (e, para dar o crédito a Ted, ele admitira isso). Desde a descoberta, no entanto, ele exibia uma arrogância que não deixava Stu nem um pouco satisfeito.
Agora, os olhos de Stu tomaram a se encontrar com os olhos de Glen. Quase pôde ler o pensamento de Glen, em sua expressão cética, um canto da boca um pouco franzido: Talvez pudéssemos usar Harold para acabar com este também.
Uma palavra usada por Nixon aflorou de repente na mente de Stu. Ao absorvê-la, compreendeu a fonte de seu desespero e sentimento de desorientação. A palavra era "mandato". O mandato deles havia desaparecido. Fora perdido há duas noites, em meio ao clarão e estrondo da explosão.
- Você pode já saber quem deseja, Sheldon, mas imagino que as outras pessoas gostariam de tempo para pensar - declarou Stu. - Mas vamos fazer uma votação. Aqueles que querem eleger dois novos representantes esta noite digam sim.
Houve apenas uns poucos sim.
- Aqueles que preferem ter cerca de uma semana para pensar digam não.
Os não foram mais altos, porém não demais. Muitas pessoas abstiveram-se de votar, como se o assunto não lhes interessasse.
- Muito bem - disse Stu. - Voltaremos a nos reunir aqui, no Auditório Munzinger, daqui a uma semana, dia 11 de setembro, para indicar os candidatos ao preenchimento de duas vagas no comitê e votar.
Um epitáfio de merda, Nick. Desculpe.
- O Dr. Richardson está aqui para falar sobre Mãe Abagail e as pessoas feridas na explosão. Doutor?
Richardson recebeu aplausos firmes ao se adiantar, ajeitando os óculos. Informou que nove pessoas haviam morrido em conseqüência da explosão, três se encontravam em estado crítico, duas em estado grave e oito em estado satisfatório.
- Considerando a força da explosão, acho que tivemos sorte. Agora, vamos falar de Mãe Abagail.
As pessoas inclinaram-se à frente.
- Creio que uma declaração sucinta e uma breve explicação devem ser suficientes. A declaração é a seguinte: não posso fazer nada por ela.
Um murmúrio espalhou-se pela multidão, mas o silêncio logo foi restabelecido. Stu percebeu que havia infelicidade, mas não surpresa.
- Fui informado por membros da Zona que já estavam aqui que a dama alegou, antes de sua partida, que tinha 108 anos. Não posso garantir isso, mas posso dizer que ela é a pessoa mais velha que já conheci e tratei. Também fui informado de que ela passou duas semanas ausente. Pela minha estimativa... não, palpite... sua dieta durante esse período não incluiu nenhum alimento preparado. Ela parece ter sobrevivido de raízes, ervas, capim e outras coisas de natureza similar. - Ele fez uma pausa. - Só teve uma evacuação, pequena, desde que voltou. Continha gravetos e fragmentos de folhas.
- Meu Deus! - murmurou alguém, e foi impossível determinar se era homem ou mulher.
- Um braço está coberto por queimaduras de sumagre venenoso. As pernas apresentam diversas ulcerações, que estariam sangrando se a sua condição não fosse tão...
- Ei, será que não pode parar? - berrou Jack Jackson, levantando-se, o rosto branco furioso, angustiado. - Será que não tem um pingo de decência?
- Decência não é a minha preocupação, Jack. Só estou relatando sua condição atual. Ela está em coma, desnutrida, e acima de tudo é muito idosa. Acho que vai morrer. Se fosse qualquer outra pessoa, eu diria isso com certeza absoluta. Mas... como todos vocês, sonhei com ela... ela e o outro.
O murmúrio baixo de novo, como uma brisa de passagem. Stu sentiu os cabelos da nuca se arrepiarem. Recobrou sua atenção.
- Para mim, sonhar com configurações opostas parece místico - continuou George. - O fato de que todos partilhamos esses sonhos parece indicar uma capacidade telepática, no mínimo. Mas deixo de lado a parapsicologia e a teologia, assim como a decência, e pelo mesmo motivo: nenhuma das duas coisas se situa em minha área de conhecimento. Se a mulher é de Deus, ele pode optar por curá-la, eu não posso. Direi que o simples fato de Mãe Abagail ainda estar viva parece-me uma espécie de milagre. Esta é minha declaração. Alguma pergunta?
Não havia. Todos fitavam-no, aturdidos. Algumas pessoas choravam abertamente.
- Obrigado.
George voltou para sua cadeira, num mar morto de silêncio.
- É a sua vez - sussurrou Stu para Glen.
Glen encaminhou-se para o pódio sem uma apresentação.
- Já falamos sobre tudo, menos sobre o homem escuro - disse ele.
O murmúrio de novo. Vários homens e mulheres fizeram o sinal-da-cruz, numa reação instintiva. Uma mulher idosa, no lado esquerdo, passou as mãos rapidamente pelos olhos, boca e ouvidos, numa fantástica imitação de Nick Andros, antes de cruzar os braços sobre a volumosa bolsa preta em seu colo.
- Temos conversado a seu respeito em reuniões fechadas do comitê - continuou Glen, a voz calma e coloquial. - Foi levantada a questão se deveríamos ou não levar tudo ao conhecimento do público. Foi apresentado o argumento de que ninguém na Zona parecia querer falar a respeito, não depois dos sonhos que todos tivemos no caminho para cá. Que talvez houvesse necessidade de um período de recuperação. Agora, acho, é o momento de levantar o assunto. Trazê-lo à luz, por assim dizer. Na polícia, há um equipamento portátil chamado Ident-i-Kit, que um desenhista usa para criar o retrato falado de um criminoso, de acordo com as recordações de várias testemunhas. Em nosso caso, não temos nenhum rosto, mas contamos com uma série de recordações, que formam pelo menos um esboço do nosso Adversário. Conversei com algumas pessoas, e gostaria de apresentar agora meu retrato falado.
Glen fez uma pausa.
- O nome do homem parece ser Randall Flagg, embora algumas pessoas tenham associado também os nomes Richard Frye, Robert Freemont e Richard Freemantle. As iniciais R.F. podem ter algum significado, mas, se têm, nenhum de nós no Comitê da Zona Franca o conhece. Sua presença, pelo menos em sonhos, produz sentimentos de medo, inquietação, terror, horror. Em caso após caso, a sensação física associada com ele é de frio.
Cabeças balançavam em concordância. O zumbido excitado de conversa tornou a irromper. Stu pensou que pareciam meninos que haviam acabado de descobrir o sexo. comparavam observações e ficavam excitados ao descobrir que todos os relatos punham o receptáculo mais ou menos no mesmo lugar. Ele cobriu um ligeiro sorriso com a mão e lembrou a si mesmo para guardar essa observação para contar mais tarde a Fran.
- Esse Flagg está no oeste - continuou Glen. - Iguais números de pessoas já o "viram" em Las Vegas, Los Angeles, San Francisco, Portland. Algumas pessoas... inclusive Mãe Abagail... alegam que Flagg é um crucificado que saiu da linha. Todos parecem acreditar que há uma confrontação em preparo entre esse homem e nós, e que Flagg não vai se deter diante de nada para nos destruir. E não se deter diante de nada inclui muita coisa. Força blindada. Armas nucleares. Talvez... a praga.
- Ah, como eu gostaria de pôr as mãos nesse miserável! - gritou Rich Moffat, a voz estridente. - Eu lhe daria uma boa dose de sua praga!
Houve uma explosão de gargalhadas, aliviando a tensão. Rich exultou. Glen sorriu, satisfeito. Dera a Rich sua deixa e sua frase meia hora antes da reunião. Rich interviera com uma veemência admirável. O velho careca estava tão certo quanto a chuva sobre uma coisa, como Stu descobrira agora: os conhecimentos de sociologia eram sempre oportunos em grandes reuniões.
- Muito bem, já relatei o que sei sobre ele - continuou Glen. - Minha última contribuição, antes de abrir o assunto para discussão, é a seguinte. Acho que Stu tem razão ao dizer que devemos lidar com Harold e Nadine de uma maneira civilizada, se forem capturados. Mas, como ele, creio que isso é improvável. E também como ele, estou convencido de que fizeram tudo por ordens de Flagg.
Suas palavras ressoaram pelo auditório.
- Teremos de enfrentar esse homem. George Richardson disse que o misticismo não é seu campo de estudo. Também não é o meu. Mas posso lhes dizer uma coisa: acho que essa velha agonizante representa as forças do bem, assim como Flagg representa as forças do mal. Creio que o poder que a controla, qualquer que seja, usou-a para nos reunir. Não acredito que esse poder tencione nos abandonar agora. Talvez precisemos conversar a respeito, revelar um pouco desses pesadelos. Talvez devamos começar a decidir o que fazer com Flagg. Mas ele não pode entrar nesta Zona e assumir o controle até a próxima primavera, não se vocês se mantiverem vigilantes. Agora passarei o comando da reunião de volta para Stu, que vai orientar a discussão.
A última frase foi abafada pelos aplausos. Glen voltou a seu lugar, sentindo-se satisfeito. Atiçara-os com um espeto grande... ou a frase seria outra, tocara-os como um violino? Não tinha importância. Estavam mais furiosos do que assustados, prontos para um desafio (embora pudessem não se mostrar tão ansiosos em abril, depois do longo inverno para esfriar) e, acima de tudo, estavam dispostos a falar.
E foi o que fizeram, durante as três horas subsequentes. Algumas pessoas foram embora depois que a meia-noite chegou e passou, mas não muitas. Como Larry desconfiara, não surgiu nenhum bom conselho na discussão. Houve sugestões desvairadas: um bombardeiro e/ou um arsenal nuclear deles, uma reunião de cúpula, um pelotão de assassinos profissionais. Houve poucas ideias práticas.
Durante a hora final, uma pessoa depois de outra se levantou e relatou seu sonho, para o fascínio que parecia interminável dos outros. Stu lembrou, mais uma vez, das intermináveis conversas sobre sexo de que participara (na maior parte como ouvinte) quando era adolescente.
Glen sentiu-se ao mesmo tempo espantado e encorajado pela crescente disposição em falar e pelo clima carregado de excitamento que prevalecera sobre a apatia do início da reunião. Estava ocorrendo uma profunda catarse, há muito atrasada. Ele também se lembrou de uma conversa sobre sexo, mas de uma maneira diferente. Falam como pessoas que esconderam os segredos de suas culpas e inadequações por muito tempo, pensou ele, apenas para descobrir que essas coisas, quando verbalizadas, tinham apenas o tamanho normal da vida, no final das contas. Quando o terror semeado no sono era finalmente colhido, naquela maratona de discussão pública, o terror tornava-se mais controlável... talvez até passível de ser dominado.
A reunião terminou à uma e meia da madrugada. Glen saiu com Stu, sentindo-se bem pela primeira vez desde a morte de Nick. Tinha a sensação de que haviam dado os primeiros passos concretos para o campo de batalha em que entrariam.
Sentia esperança.
A energia foi restabelecida ao meio-dia de 5 de setembro, como Brad prometera.
A sirene de ataque aéreo no alto da sede do condado tocou com enorme estridência, assustando muitas pessoas, que saíram para as mas e olharam para o céu azul, à procura da força aérea do homem escuro. Algumas correram para seus porões, onde permaneceram até que Brad descobriu uma conexão com defeito e desligou a sirene. Só então as pessoas subiram, constrangidas.
Houve um incêndio causado por um curto-circuito na Willow Street, e bombeiros voluntários, cerca de uma dúzia, prontamente correram até lá e extinguiram o fogo. Uma tampa de bueiro foi projetada para o ar na esquina da Broadway com a Walnut. Subiu por quase 15 metros e caiu no telhado da Oz Toyshop, como um enorme disco de brinquedo.
Houve uma única fatalidade, no que a Zona passou a chamar de Dia da Energia. Por alguma razão desconhecida, uma oficina de lanternagem na Pearl Street explodiu. Rich Moffat estava sentado numa porta no outro lado da rua, com uma garrafa de Jack Daniels na bolsa de jornaleiro. Foi atingido por um fragmento de aço corrugado. Teve morte instantânea. Não quebraria mais vidraças.
Stu estava com Fran quando as lâmpadas fluorescentes zumbiram e acenderam no teto do quarto de hospital. Ele observou as lâmpadas faiscarem várias vezes, antes de se firmarem. Continuou a olhar para o brilho intenso por quase três minutos. Quando tomou a fitar Fran, descobriu que ela tinha os olhos cheios de lágrimas.
- O que aconteceu, Fran? Está sentindo muita dor?
- É por causa de Nick... É completamente errado que Nick não esteja vivo para ver isto. Abrace-me, Stu. Quero orar por ele, se puder. Quero tentar.
Stu abraçou-a, mas não sabia se ela orava ou não. Subitamente, ele se descobriu a sentir ainda mais saudade de Nick e a odiar Harold Lauder ainda mais do que antes. Fran tinha razão. Harold não apenas matara Nick e Sue; também lhes roubara a luz.
- Psiu, Frannie, psiu...
Mas ela chorou por um longo tempo. Quando as lágrimas finalmente secaram, Stu usou o botão para levantar a cama. Acendeu o abajur na mesinha-de-cabeceira, para que ela pudesse ler.
Stu estava sendo sacudido para acordar, mas mesmo assim demorou bastante. Sua mente projetou uma lista lenta e que parecia interminável de pessoas que poderiam tentar lhe roubar o sono. Era sua mãe, dizendo que estava na hora de levantar, acender a estufa e se aprontar para a escola. Era Manuel, o leão-de-chácara no bordel ordinário em Nuevo Laredo, dizendo que já consumira seus 20 dólares e teria de pagar mais 20 se quisesse passar a noite. Era uma enfermeira toda de branco, que queria verificar sua pressão e tirar uma cultura da garganta. Era Frannie.
Era Randall Flagg.
O último pensamento despertou-o como um balde de água fria no rosto. Não era nenhuma dessas pessoas. Era Glen Bateman, com Kojak.
- Você é um homem difícil de acordar, Texano Oriental - comentou Glen. - Tem um sono de pedra.
Ele era apenas um contorno vago na escuridão quase total.
- Poderia ter acendido a luz, para começar.
- Eu tinha esquecido que a luz já voltou.
Stu acendeu o abajur na mesinha-de-cabeceira. Piscou pela súbita claridade. Pegou o velho despertador de corda. Faltavam 15 minutos para as três da madrugada.
- O que veio fazer aqui, Glen? Eu estava dormindo, caso não tenha notado.
Ele deu a primeira olhada em Glen, ao largar o relógio. Ele estava pálido, assustado... e parecia muito velho. As rugas eram mais acentuadas, e ele parecia angustiado.
- O que foi, Glen?
- Mãe Abagail.
- Morreu?
- Deus me ajude, mas eu quase gostaria que sim. Ela quer falar conosco.
- Nós dois?
- Nós cinco. Ela... - A voz saiu áspera. - Ela sabia que Nick e Sue haviam morrido, e que Fran foi para o hospital. Não sei como descobriu, mas ela sabia.
- E quer falar com o comitê?
- O que restou. Está morrendo, e diz que tem de nos contar uma coisa. E não sei se quero ouvir.
Lá fora, a noite era fria... mais do que fria, gelada. O casaco de Stu era grosso e confortável, e ele puxou o zíper até o pescoço. Uma lua esbranquiçada pairava no céu, fazendo-o pensar em Tom, que tinha instruções para voltar e relatar tudo assim que fosse lua cheia. Aquela lua apenas passava um pouco do primeiro quarto. Deus sabia onde essa mesma lua iluminava Tom, Dayna Jurgens ou o juiz Farris. E Deus sabia também que a lua era testemunha das coisas estranhas que ocorriam ali.
- Falei com Ralph primeiro - informou Glen. - Pedi que fosse ao hospital para buscar Fran.
- Se o médico deixasse Fran se levantar e andar, ela já teria voltado para casa - disse Stu, irritado.
- Este é um caso especial, Stu.
- Para alguém que não quer ouvir o que a velha tem a dizer, você parece ter muita pressa para o encontro.
- Tenho medo de não me apressar - respondeu Glen.
O jipe parou na frente da casa de Larry dez minutos depois das três horas da madrugada. O lugar estava todo iluminado... não com lampiões de gás agora, mas com as boas lâmpadas elétricas. Um em cada dois lampiões na rua estava aceso, não apenas ali, mas por toda a cidade. Stu observara-os durante toda a viagem no jipe de Glen, fascinado. Os últimos besouros do verão, lentos com o frio, batiam languidamente nos globos de sódio.
Saltaram do jipe no instante em que outro par de faróis virava a esquina. Era a velha e barulhenta picape de Ralph, que parou ao lado do jipe. Ralph saltou. Stu deu a volta para o lado do passageiro, onde Frannie estava sentada, encostada numa almofada de sofá quadriculada.
- Oi, meu amor - murmurou ele.
Ela pegou a mão de Stu. Seu rosto era um disco pálido na escuridão.
- Sente muita dor? - perguntou Stu.
- Não muita. Tomei um Advil. Apenas não peça para me apressar.
Ele ajudou-a a descer da picape. Ralph pegou o outro braço de Fran. Ela estremeceu ao pôr os pés no chão.
- Quer que eu a carregue?
- Não precisa. Basta me amparar com o braço, está bem?
- Claro.
- E ande devagar. Nós, as vovós, não podemos nos apressar.
Atravessaram a rua por trás da picape, mais se arrastando do que andando. Quando chegaram à calçada, Stu avistou Glen e Larry parados na porta da casa, observando-os. Contra a luz, pareciam figuras pretas recortadas em papel.
- O que você acha que é? - murmurou Frannie.
Stu sacudiu a cabeça.
- Não sei.
Subiram pelo caminho. Era evidente que Frannie sentia dor agora. Ralph ajudou Stu a levá-la para dentro da casa. Larry, como Glen, parecia pálido e preocupado. Usava um jeans desbotado, a camisa meio para fora da calça, abotoada no lugar errado, mocassins, sem meias.
- Lamento muito fazer com que viesse até aqui, Fran - disse ele. - Fiquei junto de Mãe Abagail durante todo o tempo, cochilando de vez em quando, de vigília. Você compreende, não é?
- Claro que compreendo - respondeu Frannie.
Por alguma razão, o termo vigília a fez pensar na sala de sua mãe... e sob uma luz mais gentil e clemente do que ela jamais pensara antes.
- Lucy passou cerca de uma hora na cama. Saí do meu cochilo e... Posso ajudá-la, Fran?
Ela sacudiu a cabeça. Sorriu com um esforço evidente.
- ... e ela olhava para mim. Não pode falar acima de um sussurro, mas dá para compreender tudo o que diz. - Larry engoliu em seco. Os cinco estavam agora parados no corredor. - Ela me disse que o Senhor a levaria para casa ao amanhecer. Mas que Deus já a teria levado se não precisasse falar conosco antes. Perguntei o que queria dizer com isso, e ela respondeu que Deus já havia levado Nick e Sue. Já sabia.
Ele deixou escapar um suspiro trêmulo. Lucy apareceu na extremidade do corredor.
- Fiz um café. Está pronto quando vocês quiserem.
- Obrigado, amor - murmurou Larry.
Lucy parecia indecisa.
- Devo entrar com vocês? Ou é confidencial, como as reuniões do comitê?
Larry olhou pra Stu, que disse:
- Venha também. Tenho a impressão de que não há mais nada confidencial.
Seguiram pelo corredor até o quarto, bem devagar, por causa de Fran.
- Ela nos dirá - declarou Ralph subitamente. - Mãe Abagail nos contará tudo. Não precisamos nos afligir.
Entraram juntos. Mãe Abagail fitou-os, com os olhos brilhantes e agonizantes.
Fran sabia da condição física da velha, mas mesmo assim foi um choque terrível. Nada restava de Mãe Abagail, a não ser uma membrana de pele e os tendões que seguravam os ossos. Não havia sequer um cheiro de putrefação e morte iminente no quarto; em vez disso, havia um cheiro de sótão seco... não, um cheiro de sala de visita. Metade da extensão da agulha do soro pendia para fora de seu braço, simplesmente porque não havia por onde penetrar.
Os olhos, no entanto, não haviam mudado. Eram afetuosos, gentis e humanos. O que era um alívio, mas ainda assim Fran experimentou uma espécie de terror... não estritamente medo, mas talvez algo mais santificado, um temor reverente. Seria isso? Um sentimento de iminência. Não de tragédia, mas como se uma tremenda responsabilidade pairasse sobre suas cabeças, como uma pedra.
O homem propõe... Deus dispõe.
- Sente-se logo, menina - sussurrou Mãe Abagail. - Está sentindo dor.
Larry levou-a para uma poltrona. Fran sentou-se, deixando escapar um suspiro de alívio, mesmo sabendo que voltaria a sentir dor naquela nova posição, depois de algum tempo.
Mãe Abagail ainda a observava, com aqueles olhos brilhantes.
- Está com criança - sussurrou ela.
- Estou... mas como...
- Não fale...
Houve silêncio no quarto, um silêncio profundo. Fascinada, hipnotizada, Fran olhava para a velha agonizante, que entrara nos sonhos deles antes de entrar em suas vidas.
- Olhe pela janela, menina.
Fran virou o rosto para a janela, onde Larry parara dois dias antes, olhando para as pessoas reunidas lá fora. Não viu uma escuridão sufocante, mas sim uma claridade suave.
Não era um reflexo do quarto; era a luz da aurora. Ela olhava para o reflexo tênue, um pouco distorcido, de um quarto de bebê, com cortinas axadrezadas. Havia um berço... mas estava vazio. Havia um cercado... vazio. Borboletas de plástico coloridas num móbile... movimentado apenas pelo vento. O medo comprimiu seu coração com mãos geladas. Os outros viram em seu rosto, mas não compreenderam; não viam nada através da janela, apenas uma parte do gramado, iluminado por um lampião.
- Onde está o bebê? - perguntou Fran, a voz rouca.
- Stuart não é o pai do bebê, menina. Mas a vida da criança se encontra agora nas mãos de Stuart e nas mãos de Deus. O bebê terá quatro pais. Se Deus deixar que ele respire.
- Se deixar...
- Deus escondeu essa parte de meus olhos.
O quarto de bebê vazio desapareceu. Fran viu apenas a escuridão. E, agora, o medo cerrou suas mãos com toda a força, o coração batendo forte entre elas. Mãe Abagail sussurrou:
- O Diabrete chamou sua noiva e tenciona deixá-la com criança. Ele deixará que sua criança viva?
- Pare com isso! - suplicou Fran, levando as mãos ao rosto.
Silêncio no quarto, um silêncio profundo como a neve. O rosto de Glen Bateman era como um refletor velho e um tanto opaco. A mão direita de Lucy subia e descia pela gola do roupão. Ralph tinha seu chapéu nas mãos e passava os dedos pela pena na faixa, distraído. Stu olhava para Frannie, mas não podia ir ao seu encontro. Não agora. Ele pensou por um instante na mulher na reunião, que pusera as mãos sobre os olhos, os ouvidos e a boca à menção do nome do homem escuro.
- Mãe, pai, esposa, marido - sussurrou Mãe Abagail. - Contra eles, o Príncipe dos Lugares Altos, o senhor das manhãs escuras. Pequei por orgulho. E todos vocês fizeram a mesma coisa, pecaram por orgulho. Não ouviram dizer que não se deve entregar sua fé a senhores e príncipes deste mundo?
Eles não desviavam os olhos.
- A luz elétrica não é a resposta, Stu Redman. O rádio FC também não é, Ralph Brentner. A sociologia não vai acabar com isso, Glen Bateman. A sua penitência por uma vida que é há muito um livro fechado não vai impedir que aconteça, Larry Underwood. E seu bebê também não vai evitar, Fran Goldsmith. A lua ruim surgiu. Vocês nada propõem aos olhos de Deus.
Ela fitou cada um.
- Deus vai dispor como achar conveniente. Vocês não são o oleiro, mas a argila do oleiro. Talvez o homem no oeste seja a roda em que vocês serão destruídos. Não tenho permissão para saber.
Uma lágrima, espantosa naquele deserto agonizante, derramou do olho esquerdo e rolou pela face.
- Mãe, o que devemos fazer? - perguntou Ralph.
- Tratem de se aproximar, todos vocês. Meu tempo é curto. Vou para a glória, e nunca houve um ser humano mais disposto do que me sinto agora. Fiquem perto de mim.
Ralph sentou-se na beira da cama. Larry e Glen ficaram ao pé da cama. Fran levantou-se, com uma careta, e Stu empurrou sua poltrona para o lado de Ralph. Ela tomou a sentar e pegou a mão de Stu, com os dedos frios.
- Deus não reuniu vocês para formar um comitê ou uma comunidade - disse Mãe Abagail. - Trouxe-os até aqui apenas para enviá-los mais longe, em uma busca. Quer que vocês localizem e destruam esse Príncipe das Trevas, esse Homem de Léguas Distantes.
Um silêncio opressivo. Mãe Abagail suspirou.
- Pensei que era Nick quem deveria conduzi-los. Mas Ele levou Nick... embora nem tudo de Nick tenha ido embora, ao que me parece. Isso mesmo, nem tudo. Mas agora você deve liderar, Stuart. E se for a vontade de Deus levar Stu, você deve assumir o comando, Larry. E se Ele também levá-lo, caberá a você, Ralph.
- Parece que estou sendo arrastado - começou Glen. - O que...
- Conduzir? - indagou Fran, friamente. - Para onde?
- Para o oeste, menina - respondeu Mãe Abagail. - Oeste. Você não vai. Só os quatro.
- Não! - Fran levantou-se, apesar da dor. - O que está querendo dizer? Que os quatro devem se entregar nas mãos dele? O coração, a alma e a coragem da Zona Franca? - Os olhos de Fran ardiam intensamente. - Para que ele possa crucificá-los, vir para cá no próximo verão e matar todo mundo? Não quero ver meu homem sacrificado para seu Deus assassino. Ele que se foda!
- Frannie! - balbuciou Stu.
- Deus assassino! Deus assassino! Milhões... talvez bilhões... mortos na peste. Outros milhões depois. Nem mesmo sabemos se as crianças viverão. Ele ainda não acabou? Tem de continuar, até que o mundo pertença apenas aos ratos e às baratas? Ele não é Deus. É um demônio, e você é sua feiticeira.
- Pare com isso, Frannie.
- Não tem problema. Já acabei. Quero ir embora. Leve-me para casa, Stu. Não para o hospital, mas para casa.
- Vamos ouvir o que ela tem a dizer.
- Como quiser. Escute por nós dois. Eu vou embora.
- Menina...
- Não me chame assim!
Mãe Abagail estendeu a mão abruptamente e segurou o pulso de Fran, que ficou rígida. E fechou os olhos. Inclinou a cabeça para trás.
- Não... não... AH, MEU DEUS... STU...
- Ei! O que está fazendo com ela? - perguntou Stu.
A velha não respondeu. O momento foi passando. Parecia se prolongar num bolsão de eternidade. Depois, Mãe Abagail soltou o pulso de Frannie.
Devagar, atordoada, ela começou a massagear o pulso. Não havia círculo vermelho ou depressão na carne para indicar que fora aplicada uma pressão excessiva. Os olhos de Fran ficaram arregalados.
- O que foi, meu bem? - perguntou Stu, ansioso.
- Sumiu - murmurou Fran.
- O que... do que está falando?
Stu olhou para os outros, num apelo trêmulo. Glen apenas sacudiu a cabeça. Tinha o rosto pálido e tenso, mas não incrédulo.
- A dor... a dor nas minhas costas... desapareceu... - Ela olhou para Stu, aturdida. - Sumiu por completo. Veja isto.
Ela inclinou-se e tocou de leve nas pontas dos dedos dos pés, não apenas uma vez, mas duas. Depois, inclinou-se pela terceira vez e pôs as palmas das mãos no chão, sem dobrar os joelhos.
Tornou a se empertigar e fitou Mãe Abagail nos olhos.
- Isto é um suborno de seu Deus? Porque, se for, Ele pode pegar sua cura de volta. Prefiro sentir a dor se Stu ficar comigo.
- Deus não oferece subornos, criança - sussurrou Mãe Abagail. - Ele apenas dá um sinal e deixa as pessoas aceitarem como quiserem.
- Stu não vai para o oeste.
Mas Fran parecia agora confusa, além de assustada.
- Sente-se - disse Stu. - Vamos escutar o que ela tem a dizer.
Fran sentou, chocada, incrédula, desorientada. A todo instante estendia as mãos para as costas.
- Vocês vão para o oeste - sussurrou Mãe Abagail. - Não devem levar comida nem água. Partam hoje mesmo, e com as roupas que usam agora. Seguirão a pé. Estou prestes a saber qual de vocês não chegará a seu destino, mas não sei qual vai cair. O resto será levado à presença do homem chamado Flagg, que não é um homem, mas um ser sobrenatural. Não sei se é a vontade de Deus que vocês o derrotem. Não sei se é a vontade de Deus que vocês tornem a ver Boulder. Não me cabe ver essas coisas. Mas ele está em Las Vegas, e vocês devem ir até lá. Tomarão uma posição firme em Las Vegas. Não devem fraquejar, porque terão o Braço Eterno do Senhor Deus das Legiões para ampará-los. Com a ajuda de Deus, vocês manterão sua posição. - Ela balançou a cabeça. - Isso é tudo. Já falei o que tinha de dizer.
- Não... - murmurou Fran. - Não é possível.
- Mãe... - A voz de Glen saiu rouca. Ele limpou a garganta. - Mãe, não estamos a caminho da compreensão, se entende o que estou querendo dizer. Não somos... não somos abençoados com a sua intimidade com seja quem for que controla essas coisas. Não cabe a nós. Fran tem razão. Se formos até lá, seremos massacrados pelos primeiros que nos encontrarem.
- Você não tem olhos? Acaba de ver Deus curar a aflição de Fran, por meu intermédio. Acha que o plano de Deus é deixar que sejam capturados e mortos pelos lacaios do Príncipe das Trevas?
- Mas, Mãe...
- Não! - Ela ergueu a mão, estancando o fluxo de palavras. - Não cabe a mim argumentar com você, ou convencê-lo, mas apenas expor para vocês o plano de Deus. Escute, Glen.
E, subitamente, da boca de Mãe Abagail saiu a voz de Glen Bateman, assustando a todos. Fran encolheu-se contra Stu, soltando um grito.
- Mãe Abagail chama-o de peão do demônio - disse a voz forte, masculina, originária do peito consumido da velha, passando por sua boca desdentada. - Talvez ele seja apenas o último mago do pensamento racional, utilizando os instrumentos da tecnologia contra nós. Talvez ele seja algo mais, algo mais sinistro. Só sei que ele é. E não penso mais que a sociologia, a psicologia ou qualquer outra logia poderá detê-lo. Creio que só a magia branca será capaz de fazer isso.
Glen ficou boquiaberto.
- Isso é uma coisa verdadeira ou as palavras são de um mentiroso? - perguntou Mãe Abagail.
- Não sei se é verdade ou não, mas as palavras são minhas - respondeu Glen, tremendo.
- Confiança. Todos vocês devem confiar. Larry... Ralph... Stu... Glen... Frannie. Você em particular, Frannie. Confie... e obedeça à palavra de Deus.
- Temos opção? - perguntou Larry, amargurado.
Ela virou-se para fitá-lo, surpresa.
- Uma opção? Há sempre uma opção. Esse é o caminho de Deus, e sempre será. Mas sua vontade ainda é livre. Faça como quiser. Não há grilhões para obrigá-lo. Mas... é isso o que Deus quer de você.
O silêncio de novo, como neve profunda. Finalmente rompido por Ralph.
- Diz na Bíblia que Davi enfrentou Golias. Eu irei, se diz que é certo, Mãe.
Ela pegou a mão dele.
- Eu também irei - acrescentou Larry.
Ele suspirou e pôs as mãos na testa, como se doesse. Glen abriu a boca para falar. Mas antes que pudesse fazê-lo, soou um suspiro pesado e cansado no canto, acompanhado por um baque.
Era Lucy, que todos haviam esquecido. Ela desmaiara.
A aurora alcançou a beira do mundo.
Eles sentavam-se à mesa da cozinha de Larry, tomando café. Eram dez para as cinco quando Fran veio pelo corredor e parou na porta. Tinha o rosto inchado de tanto chorar, mas os passos eram firmes. Estava mesmo curada.
- Acho que ela está morrendo - avisou Fran.
Foram todos para o quarto, Larry com o braço em tomo de Lucy.
A respiração de Mãe Abagail era pesada, estertorante, reminiscente da epidemia. Reuniram-se em tomo da cama, sem falar, em profunda reverência e medo. Ralph tinha certeza de que alguma coisa aconteceria ao final que faria com que Deus surgisse para eles, nu e revelado. Mãe Abagail partiria num súbito clarão. Ou veriam seu espírito, transfigurado em radiância, saindo pela janela e subindo para o céu.
Mas, no final, ela simplesmente morreu.
Houve uma respiração final, a última de milhões. O ar foi aspirado, preso por um instante, depois expelido. O peito não subiu outra vez.
- Ela se foi - murmurou Stu.
- Deus tenha misericórdia de sua alma - acrescentou Ralph.
Ele não tinha mais medo. Cruzou as mãos de Mãe Abagail sobre o peito frágil, derramando lágrimas por cima.
- Eu irei - declarou Glen, subitamente. - Ela tinha razão. Magia branca. Isso é tudo o que restou.
- Stu... - sussurrou Frannie. - Por favor, Stu, diga não.
Todos olharam para ele.
Agora você deve liderar, Stuart.
Ele pensou em Arnette, o velho carro levando Charles D. Campion e sua carga de morte, batendo nas bombas de Bill Hapscomb, como alguma terrível caixa de Pandora. Pensou em Denninger e Deitz, como começara a associá-los em sua mente aos médicos sorridentes que haviam mentido e mentido, para ele e sua esposa, sobre a condição dela... e talvez também mentissem para si mesmos. E em Mãe Abagail, dizendo: Isto é o que Deus quer de você.
- Tenho de ir, Frannie - declarou ele.
- E morrer.
Ela fitou-o, amargurada, quase com raiva. Olhou para Lucy, como se pedisse apoio. Mas Lucy estava atordoada, distante, não tinha condições de ajudar.
- Se não formos, também morreremos - disse Stu, tateando através das palavras. - Ela tinha razão. Se esperarmos, então a primavera chega. O que acontece então? Como poderemos detê-lo? Não sabemos. Não temos a menor ideia. Nunca tivemos. Também escondemos a cabeça na areia. Não podemos detê-lo, a não ser como Glen diz. Magia branca. Ou o poder de Deus.
Ela começou a chorar, desolada.
- Não chore, Frannie - murmurou ele, tentando pegar sua mão.
- Não me toque! - gritou ela. - Você é um morto, um cadáver! Não toque em mim!
E todos continuaram postados em torno da cama, enquanto o sol nascia.
Stu e Frannie foram para as montanhas Flagstaff por volta de onze horas. Estacionaram no meio do caminho. Stu levou o cesto, enquanto Frannie carregava a toalha de mesa e o vinho Blue Nun. O piquenique fora ideia de Fran, mas reinava um silêncio constrangido entre os dois.
- Ajude-me a estender a toalha - pediu ela. - E fique atento aos espinhos.
Estavam numa pequena clareira, inclinada, 300 metros abaixo do anfiteatro Aurora. Roulder estendia-se lá embaixo através de um nevoeiro azul. Hoje era verão de novo. O sol brilhava com força e autoridade. Os grilos zumbiam pela relva. Um gafanhoto saltou, e Stu pegou-o com um movimento rápido da mão direita. Podia senti-lo sob seus dedos, agitado e assustado.
- Cuspa e eu solto.
Era a velha fórmula da infância. Ele olhou para ver Fran exibir um sorriso triste. Com uma precisão feminina, rápida, ela virou a cabeça e cuspiu. Stu sentiu um aperto no coração.
- Fran...
- Não, Stu. Não fale a respeito. Não agora.
Estenderam a toalha branca, que Fran tirara do Hotel Boulderado. Com uma economia de movimentos (Stu sentia-se estranho ao observá-la fazer tudo com a maior agilidade, como se não tivesse sofrido qualquer ferimento nas costas), ela amimou o almoço: uma salada de pepino e alface, temperada com vinagre; sanduíches de presunto; o vinho e uma torta de maçã como sobremesa.
- Boa comida, boa carne, bom Deus, vamos comer - disse Fran.
Ele sentou-se ao lado de Fran. Pegou um sanduíche e um pouco da salada. Não sentia fome. Sentia-se doído por dentro. Mas comeu mesmo assim.
Depois que acabaram de comer os sanduíches e a maior parte da salada, além de uma pequena fatia de torta de maçã, Fran perguntou:
- Quando você parte?
- Ao meio-dia.
Stu acendeu um cigarro, protegendo a chama com as mãos em concha.
- Quanto tempo vai levar para chegar lá?
Ele deu de ombros.
- Andando? Não sei. Glen não é mais jovem. Nem Ralph, diga-se de passagem. Se conseguirmos percorrer 50 quilômetros por dia, acho que podemos chegar até 1º de outubro.
- E se a neve tiver caído mais cedo nas montanhas? Ou em Utah?
Stu tomou a dar de ombros.
- Mais vinho? - perguntou ela.
- Não. O vinho me provoca acidez. Sempre foi assim.
Fran serviu-se de outro copo. Bebeu.
- Ela era a voz de Deus, Stu? Era?
- Não sei, Frannie.
- Sonhamos com ela. Sabia que tudo isso faz parte de um jogo estúpido, Stuart? Já leu o Livro de Jó?
- Nunca fui de ler a Bíblia.
- Minha mãe sempre lia. Achava que era muito importante que meu irmão Fred e eu tivéssemos alguma formação religiosa. Nunca explicou o motivo. O máximo que fez por mim, pelo que lembro, foi que sempre tive a capacidade de responder às perguntas bíblicas daquele programa de televisão chamado Risco. Lembra de Risco, Stu?
Ele sorriu e disse:
- E aqui está seu anfitrião, Alex Trebeck.
- Isso mesmo. Era um programa invertido. Eles davam a resposta, e você tinha de adivinhar a pergunta. Quando envolvia a Bíblia, eu conhecia todas as perguntas. Jó foi uma aposta entre Deus e o Diabo. O Diabo disse: "Claro que ele o idolatra. Sempre teve uma vida mansa. Mas se cuspir na sua cara por bastante tempo, ele acabará mudando." Deus aceitou a aposta. No final, Deus ganhou. - Ela sorriu. - Deus sempre ganha. Posso apostar que Deus é um torcedor do Boston Celtics.
- Talvez seja uma aposta, mas é a vida de todo mundo, daquelas pessoas lá embaixo. E do ser que está dentro de você. Como foi mesmo que ela o chamou?
- Ela não quis fazer nenhuma promessa sobre ele. Se fizesse... apenas isso... seria um pouco mais fácil deixá-lo partir.
Stu não pôde pensar em nada para dizer.
- Falta pouco para meio-dia, Stu. Ajude-me a arrumar tudo.
O resto do almoço voltou para o cesto, junto com a toalha e a garrafa de vinho pela metade. Stu olhou ao redor e pensou que só havia umas poucas migalhas para indicar onde haviam almoçado... e os passarinhos logo acabariam até mesmo com esses poucos vestígios. Quando ele levantou os olhos, descobriu que Fran o fitava, chorando. Ele se adiantou.
- Estou bem, Stu. É um problema da gravidez. Sempre fico com os olhos lacrimejando. Não consigo evitar.
- Está certo.
- Stu, faça amor comigo.
- Aqui? Agora?
Ela acenou com a cabeça, sorrindo.
- Não será problema... se tomarmos cuidado com os espinhos.
E eles tomaram a estender a toalha.
Na base da Baseline Road, ela pediu que Stu parasse no que fora a casa de Ralph e Nick até quatro dias antes. Todo a parte dos fundos fora destruída. O jardim estava coberto de destroços. Havia um relógio digital arrebentado em cima da sebe preta esfrangalhada. Ali perto estava o sofá sob o qual Frannie ficara imobilizada. Havia uma mancha de sangue ressequido nos degraus. Ela olhou para a mancha.
- Acha que é o sangue de Nick?
- De que adianta saber, Frannie? - perguntou Stu, apreensivo.
- É?
- Não sei. Mas suponho que seja possível.
- Ponha a mão em cima, Stu.
- Ficou doida, Frannie?
Ela franzia a testa, na expressão eu-quero, que Stu conhecera em New Hampshire.
- Ponha a mão!
Relutante, Stu pôs a mão na mancha de sangue. Não sabia se era ou não o sangue de Nick (e achava que provavelmente não era), mas o gesto deixou-o todo arrepiado.
- Agora, Stu, jure que voltará.
O degrau parecia bastante quente ali, e ele queria tirar a mão.
- Fran, como posso...
- Deus não pode cuidar de tudo! Não de tudo! Jure, Stu, jure!
- Frannie, juro que tentarei.
- Acho que terei de me contentar com isso, não é mesmo?
- Temos de ir para a casa de Larry.
- Sei disso. - Mas Fran continuou a abraçá-lo, mais firme ainda. - Diga que me ama.
- Sabe que a amo.
- Claro que sei, mas diga mesmo assim. Quero ouvir.
Ele pôs as mãos nos ombros dela.
- Fran, eu a amo.
- Obrigada. - Ela encostou o rosto no ombro de Stu. - Acho que agora já posso me despedir. Acho que posso deixá-lo partir.
E eles se abraçaram em meio aos destroços da explosão.
DOS DEGRAUS DA CASA DE LARRY, ela e Lucy observaram a partida sem drama de sua expedição. Os quatro ficaram parados na calçada por um momento, sem mochilas, sem sacos de dormir, sem equipamento especial... segundo as instruções. Todos calçavam sapatos fortes para caminhada.
- Adeus, Larry - disse Lucy, com o rosto pálido e reluzente.
- Lembre-se, Stuart - disse Fran. - Lembre-se do que prometeu.
- Sim, vou lembrar.
Glen enfiou os dedos na boca e assobiou. Kojak, que tinha ido inspecionar um bueiro de esgoto, chegou correndo.
- Vamos, então - disse Larry. Tinha o rosto tão pálido como o de Lucy, os olhos incomumente brilhantes, quase cintilando. - Antes que eu perca a coragem.
Stu soprou um beijo através do punho fechado, algo que não recordava ter feito desde os dias em que sua mãe o via partir no ônibus escolar. Fran acenou de volta. As lágrimas voltaram, cálidas e ardentes, porém ela não as deixou cair. Eles começaram a andar. Estavam agora na metade do quarteirão e, em algum lugar, um pássaro trinou. O sol do meio-dia era quente mas não exagerado. Chegaram ao fim do quarteirão. Stu se virou e tornou a acenar. Larry acenou também. Fran e Lucy retribuíram. Eles atravessaram a rua. Desapareceram. Lucy tinha uma aparência quase doentia, pela perda e pelo medo.
- Meu Deus - disse ela.
- Vamos entrar - convidou Fran. - Quero tomar um chá.
Entraram e Fran pôs a chaleira no fogo. Começara a espera para elas.
No decorrer da tarde, os quatro seguiram lentamente para sudoeste, sem trocar muitas palavras. Rumavam para Golden, onde acampariam nesta primeira noite. Passaram pelos sítios de sepultamento, que já eram três agora, e por volta das quatro da tarde, suas sombras começando a alongar-se atrás deles, o calor do dia ia diminuindo. Chegaram ao marco que indicava os limites da cidade, situado ao lado da estrada, na orla sul de Boulder. Por um momento, Stu teve a impressão de que todos eles estavam prestes a dar meia-volta e retornar. À frente, estavam a escuridão e a morte. À retaguarda, havia um pouco de calor, um pouco de amor.
Glen tirou uma bandana de estampado azulado do bolso traseiro, torceu-a em corda e amarrou-a em volta da cabeça.
- Capítulo Quarenta e Três: O Sociólogo Careca Coloca sua Faixa Contra o Suor - comentou em voz monótona.
Kojak estava mais adiante, na divisa para Golden, farejando prazerosamente o seu caminho através de uma extensão de flores silvestres.
- Puxa, cara - disse Larry e sua voz era quase um soluço. - Tenho a sensação de que isto é o fim de tudo.
- É isso aí - disse Ralph. - É o que também me parece.
- Alguém quer dar um tempo? - perguntou Glen sem muita esperança.
- Ora, vamos - disse Stu com um ligeiro sorriso. - Vocês pretendem viver para sempre, soldados?
Prosseguiram, deixando Boulder para trás. Por volta das nove daquela noite estavam acampados em Golden, a meio quilômetro de onde a Rodovia 6 inicia seu sinuoso e torcido curso ao longo do córrego Clear, para entrar no pétreo coração das Rochosas.
Nenhum deles dormiu bem naquela primeira noite. Já se sentiam distantes do lar e sob a sombra da morte.
A RESISTÊNCIA
7 de setembro de 1990 - 10 de janeiro de 1991
O HOMEM ESCURO INSTALARA SEUS POSTOS de guarda ao longo de toda a fronteira leste do Oregon. O maior ficava em Ontário, onde a I-80 atravessa o estado de Idaho. Ali havia seis homens, alojados no trailer de um enorme caminhão Peterbilt. Fazia mais de uma semana que estavam ali, jogando pôquer o tempo todo, apostando notas de 20 e 50 tão inúteis como dinheiro do jogo de Monopólio. Um deles já ganhara quase 60 mil dólares de mentira e outro - um homem cujo salário no mundo pré-epidemia tinha sido de cerca de 10 mil dólares por ano - tinha mais de 40 mil apostados.
Chovera quase toda a semana, e os ânimos no trailer estavam ficando acirrados. Eles tinham vindo de Portland e queriam voltar para lá. Havia mulheres em Portland. Pendendo de um gancho havia um potente rádio bidirecional, transmitindo somente estática. Eles esperavam que o rádio transmitisse apenas uma simples palavra: Voltem. Isto significaria que o homem que esperavam tivesse sido capturado em algum outro lugar.
O homem que estavam procurando tinha cerca de setenta anos de idade, era atarracado e ficando calvo. Usava óculos e dirigia um veículo pintado de branco sobre azul com tração nas quatro rodas, talvez um jipe ou um utilitário International-Harvester. Quando localizado, seria um homem morto.
Eles estavam ficando nervosos e entediados - a novidade de paradas altas de pôquer por dinheiro sem valor se esgotara dois dias atrás, mesmo para o mais bronco deles -, mas não entediados o suficiente para simplesmente voltar para Portland por conta própria. Tinham recebido ordens do Turista Andarilho em pessoa, e mesmo após instalada a claustrofobia induzida pela chuva, permanecia o terror que sentiam dele. Se fracassassem na missão e ele descobrisse, que Deus tivesse piedade deles.
Assim, ficavam ali sentados, jogando cartas e se revezando na vigilância, através da fenda de observação que haviam aberto na parede de aço do trailer. A I-80 aparecia deserta em meio à chuva monótona e persistente. Mas se o Scout surgisse por ali, seria visto... e detido.
- Ele é um espião do outro lado - dissera-lhes o Turista Andarilho, com aquele sorriso horrível repuxando-lhe os cantos da boca. Por que era tão horrível, nenhum deles saberia dizer, mas, quando se dirigia a alguém, a pessoa sentia o sangue transformar-se em sopa de tomate quente nas veias. - Ele é um espião e poderíamos recebê-lo de braços abertos, mostrar-lhe tudo e depois mandá-lo de volta, ileso. Mas eu o quero. Quero os dois. E enviaremos suas cabeças pelas montanhas antes que a neve desapareça. Que as masquem por lá durante todo o inverno. - A seguir gargalhara eufórico para as pessoas que reunira numa das salas de conferência do Centro Cívico de Portland. Elas sorriram de volta, mas eram sorrisos frios e inquietos. Em voz alta poderiam congratular-se por terem sido escolhidas para tal responsabilidade, mas no íntimo desejavam que aqueles olhos terríveis, felizes, semelhantes aos de uma doninha, se fixassem em qualquer outra pessoa que não eles.
Havia outro posto de guarda bem ao sul de Ontário, em Sheaville. Aqui havia quatro homens em uma pequena casa à beira da I-95, que serpenteava na direção do deserto de Alvord, com suas estranhas formações rochosas e seus córregos escuros e soturnos.
Os outros postos eram guarnecidos por duplas de homens, e havia mais de uma dúzia, estendendo-se da pequena cidade de Flora, junto à Rodovia 3 e a menos de 100 quilômetros da divisa com o estado de Washington, por todo o caminho até McDermitt, na divisa Oregon-Nevada.
Um velho dirigindo um veículo azul e branco, com tração nas quatro rodas. As instruções a todos os sentinelas eram as mesmas: Matá-lo, mas não atingir-lhe a cabeça. Não deveria haver sangue ou lesões acima da garganta.
- Não quero devolver mercadoria danificada - dissera-lhes Randy Flagg, soltando de novo sua horrível risada.
A fronteira norte entre Oregon e Idaho é marcada pelo rio Snake. Quem seguisse o Snake partindo do norte de Ontário, onde os seis homens no trailer jogavam carteado por dinheiro sem valor, finalmente chegaria à distância de uma cusparada de Copperfield. Ali o rio Snake faz uma curvatura que os geólogos chamam de meandro, e perto de Copperfield as águas do rio foram represadas, formando a Represa do Meandro. E naquele sétimo dia de setembro, enquanto Stu Redman e seu grupo seguiam caminhando pela Auto-Estrada 6 do Colorado, mais de 1.500 quilômetros ao leste e para o sul, Bobby Terry estava sentado no interior da loja de miudezas Copperfield, tendo ao lado uma pilha de revistas em quadrinhos, perguntando-se quais seriam as condições da Represa do Meandro e se as comportas tinham sido deixadas fechadas ou abertas. Lá fora, a Auto-Estrada 86 do Oregon passava diante do estabelecimento.
Ele e seu parceiro, Dave Roberts (agora adormecido no apartamento do andar de cima) haviam discutido exaustivamente a represa. Estivera chovendo por toda a semana. O rio Snake estava alto. E se a velha Represa do Meandro cedesse? Más notícias. Uma gigantesca muralha de água de abateria sobre Copperfield, levando de roldão o velho Bobby Terry e o velho Dave Roberts por todo o trajeto até o oceano Pacífico. Eles haviam discutido uma ida à represa para ver se havia rachaduras, mas no fim não tiveram coragem. As ordens de Flagg haviam sido específicas: Fiquem escondidos.
Dave assinalara que Flagg podia estar em qualquer lugar. Era um viajante compulsivo e havia boatos de que podia aparecer de repente num insignificante vilarejo isolado, onde só havia um grupo de pessoas reparando linhas de energia elétrica ou recolhendo armas de algum arsenal do Exército. Ele se materializava como um fantasma. Só que este era um fantasma negro e sorridente em botas empoeiradas com saltos gastos. Às vezes, estava sozinho, em outras ocasiões Lloyd Henreid o acompanhava, ao volante de um enorme automóvel Daimler, preto como um rabecão e tão comprido quanto. Às vezes estava caminhando. Em dado momento, não estava presente, no momento seguinte, estava. Podia estar um dia em Los Angeles (assim diziam os boatos) e aparecer em Boise um dia mais tarde... a pé.
Entretanto, conforme Dave também observara, nem mesmo Flagg podia estar em seis lugares diferentes ao mesmo tempo. Um deles bem que podia ir dar uma olhada na maldita represa e voltar depressa. As probabilidades em favor eram de mil por uma.
Muito bem, então vá você, dissera-lhe Bobby Terry. Tem a minha permissão. Mas Dave recusara a sugestão com um sorriso nervoso. Porque Flagg tinha uma forma de saber das coisas, mesmo sem estar presente. Alguns diziam que possuía um poder sobrenatural sobre os predadores do reino animal. Uma mulher chamada Rose Kingman alegava tê-lo visto estalar os dedos para vários corvos pousados num fio telefônico. Então os corvos tinham voado para os ombros dele, dissera esta mulher, e depois garantira que os corvos crocitavam sem parar: "Flagg... Flagg... Flagg..."
Isso era simplesmente ridículo, e ele sabia disso. Os tolos podiam acreditar, mas a mãe Delores de Bobby Terry jamais criara quaisquer tolos. Ele sabia que tais histórias se espalhavam, sendo exageradas de boca em boca. Tal como sabia que o homem escuro devia estimular histórias deste tipo.
Contudo, aqueles boatos davam-lhe um pequeno estremecimento atávico, como se no âmago de cada um houvesse uma pepita de verdade. Alguns diziam que ele podia invocar os lobos ou introduzir seu próprio espírito no corpo de um gato. Um homem em Portland afirmara que ele carregava uma doninha, uma marta ou qualquer outro animal, naquela sua surrada mochila de escoteiro quando estava caminhando. Tolices, tudo aquilo. Só que... apenas supondo-se que ele pudesse falar com animais, como um satânico Dr. Doolittle? E supondo-se que ele ou Dave fossem dar uma espiada naquela maldita represa, em desobediência franca às suas ordens, e fossem vistos?
O castigo para a desobediência era a crucificação.
Bobby Terry preferiu então crer que a velha represa não cederia.
Tirou um Kent do maço sobre a mesa e acendeu, com uma careta de asco para o sabor quente e seco. Dentro de mais seis meses nenhum dos malditos cigarros estaria em condição de ser fumado. Talvez até fosse melhor assim. De qualquer modo, aquela porra só levava à morte.
Suspirou e pegou outra revista da pilha. Aquela era uma porra ridícula chamada As Jovens Tartarugas Ninjas Mutantes. As Tartarugas Ninjas supostamente deviam ser "heróis de meia-tigela". Ele arremessou Raphael, Donatello e seus companheiros feitos nas coxas através da loja e a revista que eles habitavam foi pousar em forma de tenda em cima da caixa registradora. Eram babaquices como aquela revista, ele pensou, que faziam a gente acreditar que o mundo bem que merecia ser destruído.
Pegou a próxima revista, um Batman - ali estava um herói ao qual, pelo menos, se podia dar algum crédito -, e estava justamente virando a primeira página quando viu o Scout azul passando em frente â loja, seguindo para oeste. Seus enormes pneus esparramavam lençóis lamacentos de água de chuva.
Bobby Terry ficou olhando de queixo caído para o lugar onde o carro tinha passado. Ele não podia acreditar que o veículo pelo qual todos estavam procurando acabara de passar justamente por seu posto. Para ser franco, lá no seu íntimo, desconfiava de que tudo aquilo não passava de um detalhe de merda.
Correu para a porta e escancarou-a. A seguir correu para a calçada, ainda segurando o Batman. Talvez houvesse sido apenas uma alucinação. Pensar em Flagg provocaria alucinações em qualquer um.
Mas não eram alucinações. Ele ainda captou um vislumbre do teto do Scout enquanto o veículo descia a encosta íngreme, saindo da cidade. A seguir viu-se correndo através da loja deserta, gritando por Dave a plenos pulmões.
O juiz aferrava o volante com ar sombrio, procurando fingir que não existia uma coisa chamada artrite e que, se existisse, ele não padecia disso - e, se padecesse, ela jamais o acometera no tempo úmido. Não tentou levar a ideia mais adiante porque a chuva era um fato, um fato consumado, como diria seu pai, e que só havia esperança no Monte Esperança.
Ele tampouco estava conseguindo afastar-se muito do resto da fantasia.
Estivera dirigindo debaixo de chuva pelos últimos três dias. Às vezes ela diminuía para uma simples garoa, mas em geral consistia em um velho e bom aguaceiro torrencial. E isto era também um fato consumado. As estradas estavam a ponto de inundar em alguns trechos e, na próxima primavera, várias delas estariam intransitáveis. Ele havia agradecido encarecidamente a Deus pelo Scout várias vezes, durante esta pequena expedição.
Nos primeiros três dias, avançando penosamente pela I-80, convencera-se de que não alcançaria a Costa Oeste antes do ano 2000 se continuasse seguindo por estradas vicinais. A Interestadual se apresentara inteiramente deserta em longos trechos. E em alguns lugares ele tivera de ziguezaguear em meio ao tráfego engarrafado em segunda marcha, mas por tantas vezes que ele se vira forçado a aplicar o guincho do Scout ao pára-choque traseiro de um carro e rebocá-lo para fora da estrada a fim de abrir um espaço por onde pudesse seguir em frente.
À altura de Rawlins, já tivera o suficiente. Virou para noroeste, contornando a Grande Bacia Divisora, e dois dias mais tarde acampara na quina noroeste de Wyoming, a leste do Yellowstone. Até ali as estradas estavam quase inteiramente vazias. Cruzar Wyoming e a parte leste de Idaho tinha sido assustador, uma experiência irreal. Ele não pensara que a sensação de morte pudesse impor-se com tanto vigor naquela terra vazia e tampouco em sua própria alma. Contudo assim era - uma quietude maligna sob aquele grande céu ocidental, onde outrora tinham reinado os alces e os Winnebagos. Estava ali nos postes telefônicos que haviam caído, não sendo reparados; estava ali na fria e expectante imobilidade de pequenas cidades atravessada por seu Scout: Lamont, Muddy Gap, Jeffrey City, Lander Crowheart.
A solidão cresceu com sua percepção do vazio, com sua internalização da sensação de morte. Ficou cada vez mais certo de que nunca mais tomaria a ver a Zona Franca de Boulder ou as pessoas que lá viviam - Frannie, Lucy, o jovem Lauder, Nick Andros. Começou a pensar que sabia como Caim devia ter se sentido quando Deus o exilara para a terra de Nod.
Só que a terra ficava a leste do Éden.
O juiz estava agora no oeste.
Sentiu isto mais intensamente ao cruzar a fronteira entre Wyoming e Idaho. Entrou em Idaho através de Targhee Pass e parou à beira da estrada para um almoço ligeiro. Não havia nenhum som senão o soturno borbulhar da água das altitudes num riacho próximo e um estranho ruído rangente, que lembrava uma dobradiça de porta enferrujada. Acima, o céu azul estava começando a ficar ocupado por nuvens encarneiradas. O tempo úmido se aproximava, e junto com ele a artrite. Até então sua artrite se comportara, apesar do exercício de dirigir por longas horas e... ... e o que era aquele som rangente?
Terminado o almoço, ele pegou o rifle Garand no carro e caminhou até a área de piquenique junto ao riacho - que deveria ter sido um agradável lugar para refeições com um tempo mais ameno. Havia ali um pequeno bosque com várias mesas situadas à sombra. E pendendo de uma das árvores, seus sapatos quase tocando o solo, estava um homem enforcado, a cabeça vergada grotescamente, a carne já quase toda bicada pelas aves de rapina. O som rangente e estalante era o da corda oscilando de um lado para o outro, já quase toda esfiapada.
Foi dessa maneira que soube que estava no oeste.
Chegou a Butte City dois dias mais tarde, com a dor nos dedos e joelhos aumentando a tal ponto que fez uma pausa pelo dia inteiro, abrigado em um pequeno quarto de motel. Estendido na cama de motel em profundo silêncio, com toalhas quentes enroladas em tomo das mãos e joelhos, lendo Law and the Classes of Society, o juiz Farris parecia um singular cruzamento entre o Velho Navegante e um sobrevivente de Valley Forge.
Com um bom suprimento de aspirina e conhaque, procurando pacientemente por estradas secundárias, usando a tração nas quatro rodas do Scout e abrindo seu lamacento caminho, sempre contornando os veículos avariados, em vez de usar o guincho e evitar o flexionamento e curvatura do corpo que esta tarefa exigia. Nem sempre era possível. Aproximando-se das montanhas Salmon River em 5 de setembro, dois dias atrás, ele fora obrigado a guinchar um enorme caminhão da companhia ConTel e rebocá-lo por 4 quilômetros em marcha a ré antes que o acostamento sumisse de um lado e ele pudesse jogar aquela porcaria num rio do qual não conhecia o nome.
Na noite de 4 de setembro, um dia antes do caminhão da ConTel e três dias antes que Bobby Terry o visse passando em frente à loja Copperfield, ele havia acampado em New Meadows, e uma coisa um tanto desconcertante aconteceu. Ele havia parado no Ranchhand Motel, conseguido uma chave para um dos quartos na recepção do motel e havia encontrado um bônus - um aquecedor a bateria, que instalou ao pé da cama. O crepúsculo já o encontrara realmente aquecido e confortável pela primeira vez em uma semana. O aquecedor emitia um fulgor forte e gostoso. Ficou só de cuecas, recostado em travesseiros, lendo um caso sobre uma negra iletrada em Brixton, Mississippi, que fora condenada a dez anos por um pequeno furto em loja. O promotor-assistente e mais três jurados eram negros, e Lapham parecia estar indicando que...
Tap, tap, tap. Batidas na janela.
O velho coração do juiz saltou em seu peito. O livro de Lapham voou de suas mãos. Agarrando o Garand e apoiando-o no espaldar de uma cadeira, ele o apontou para a janela, disposto a tudo. Passou em disparada por sua mente a história que acobertaria sua presença ali, como folhas secas sopradas pelo vento. Era isso, eles queriam saber quem era ele, de onde tinha vindo.
Era um corvo.
O juiz relaxou, aos poucos, e conseguiu esboçar um pequeno e trêmulo sorriso.
Apenas um corvo.
Estava pousado no peitoril, sob a chuva, suas penas grudadas comicamente, seus olhinhos espiando pela vidraça gotejante, espiando para um jurista muito velho e o espião mais amador do mundo, deitado numa cama de motel de Idaho, usando nada mais que cuecas com a inscrição LOS ANGELES LAKERS impressa em púrpura e dourado, com um grosso livro jurídico atravessado sobre sua enorme barriga. O corvo quase parecia rir do que vira. O juiz relaxou afinal e sorriu de volta. Tudo bem, a piada sou eu. Entretanto, após duas semanas viajando sozinho através do país, ele se sentia no direito de ficar um tanto sobressaltado.
Tap, tap, tap.
O corvo, batendo na vidraça com seu bico. Batendo como tinha batido antes.
O sorriso do juiz vacilou. Havia alguma coisa no modo como o corvo o fitava que não lhe agradava nada. O pássaro parecia quase rir, mas era um riso desdenhoso, uma espécie de zombaria.
Tap, tap, tap.
Como o corvo que voara para o poleiro acima do busto de Palas. Quando é que descobrirei as coisas que eles precisam saber e voltarei para a Zona Franca? Nunca mais. Terei alguma ideia do tipo de rachadura que possa haver na couraça do homem escuro? Jamais.
Voltarei são e salvo?
Jamais.
Tap, tap. tap.
Olhando para ele, o corvo parecia rir.
O juiz então foi invadido por uma certeza visionária, capaz de encolher os testículos de um homem, de que aquilo era o homem escuro, sua alma, seu ka, de algum modo projetados no corvo sorridente e encharcado pela chuva que o fitava avaliadoramente.
Ficou olhando para o corvo, fascinado.
Os olhos do corvo pareceram aumentar. Estavam orlados de vermelho, conforme notou, de uma viva tonalidade escura de rubi. A água da chuva escorria e gotejava, escorria e gotejava. O corvo inclinou-se à frente e, deliberadamente, bicou a vidraça.
O juiz pensou: Creio que está me hipnotizando. Talvez esteja mesmo, um pouquinho. Mas talvez eu é que esteja velho demais para essas coisas. E supondo... claro que é uma tolice, mas supondo que seja ele. Poderei pegar aquele rifle num movimento brusco e rápido. Faz quatro anos desde que participei de um concurso de tiro aos pratos, mas fui campeão em 76 e de novo em 79, ainda tendo uma boa colocação em 86. Não fui dos melhores, nada de medalhas este ano, por isso desisti, meu orgulho era muito maior do que minha visão. embora ainda fosse bom o suficiente para ser o quinto colocado entre 22 participantes. E essa janela está muito mais perto do que a distância regulamentar para o tiro aos pratos. Se fosse ele eu conseguiria matá-lo? Capturar o seu ka - caso exista tal coisa - dentro do corpo de um corvo agonizante. Seria demasiado inadequado um velhote acabar logo com toda essa história, através do mero assassinato de um pássaro preto, na região oeste de Idaho’
O corvo sorriu para ele. O juiz agora teve plena certeza de que estava sorrindo.
Com um movimento súbito, sentou-se na cama e levou o rifle Garand ao ombro, com um gesto rápido e seguro - fez isso melhor do que jamais imaginaria. Uma espécie de terror pareceu acometer o corvo. Suas asas encharcadas farfalharam, respingando gotas de chuva. Seus olhos pareceram dilatar-se de medo. O juiz o ouviu proferir um caw! estrangulado e teve um instante de triunfal certeza: aquilo era o homem escuro! Ele havia subestimado o juiz, e o preço disso seria sua vida miserável...
- TOME ISTO! - trovejou o juiz e apertou o gatilho.
Só que o gatilho não se moveu porque estava travado. E no segundo seguinte a janela estava vazia, só restando a chuva.
O juiz baixou o Garand para o colo, sentindo-se aturdido e idiota. Disse para si mesmo que, afinal, era apenas um corvo, um momento de diversão para animar o entardecer. E se houvesse estilhaçado a vidraça, deixando a chuva entrar, só teria a chateação de sair e procurar outro quarto. Era de fato um sortudo.
Não obstante, dormiu mal aquela noite, e várias vezes acordou sobressaltado para olhar a janela, certo de ter ouvido ali uma bicada espectral. Bem, se o corvo tornasse a pousar ali, desta vez não iria escapar. Ele agora deixara o rifle destravado.
Mas o corvo não voltou.
Na manhã seguinte continuou dirigindo para oeste, sua artrite nem pior nem melhor. Pouco depois das onze, havia parado numa pequena lanchonete para almoçar. E enquanto terminava seu sanduíche e uma xícara térmica de café, tinha visto um enorme corvo esvoaçando para baixo até pousar num fio telefônico a meio quarteirão ma acima. O juiz ficou observando-o, fascinado, com a xícara térmica vermelha a meio caminho entre a mesa e sua boca. Não era o mesmo corvo, claro que não. A esta altura deveria haver milhões de corvos, todos gordos e bem nutridos. Era um mundo de corvos agora. Mas, mesmo assim, ele sentiu que era o mesmo corvo e teve um pressentimento de fatalidade, uma confirmação sub-reptícia de que tudo estava terminado.
O juiz perdeu a fome.
Seguiu em frente. Alguns dias depois, ao meio-dia e quinze, agora em Oregon e seguindo para oeste pela 86, atravessou a cidadezinha de Copperfield, sem sequer olhar para a loja de miudezas de onde Boddy Terry o via passar, os olhos esbugalhados de espanto. O Garand repousava no banco, ao lado dele, destravado, junto a uma caixa de munição. O juiz decidira atirar em todos os corvos que visse.
Apenas por precaução.
- Mais rápido! Não pode fazer esta porra correr mais rápido?
- Pare de pegar no meu pé, Bobby Terry. Só porque você dormiu no ponto isto não é motivo para encher meu saco!
Dave Roberts estava ao volante do jipe Willis International que ficara estacionado ao lado da loja de miudezas com o motor voltado para a frente. Naquele momento, Bobby Terry havia acordado Dave. Até que ele se vestisse, o velhote no Scout conseguira uns dez minutos de dianteira. A chuva agora era torrencial e a visibilidade péssima. Bobby Terry segurava um Winchester sobre o colo e tinha um Colt .45 enfiado no cinto.
Dave, que usava botas de cowboy, jeans, uma capa impermeável amarela e nada mais, olhou de relance para ele.
- Se continuar pressionando o gatilho desse rifle, acabará abrindo um buraco em sua porta, Bobby Terry.
- Eu só quero que você pegue o velho - disse Bobby Terry e resmungou para si mesmo. - As tripas. Baleá-lo nas tripas. Nada de acertar a cabeça. É isso aí.
- Pare de falar sozinho. Gente que fala para si mesma está fingindo para si mesma. É isso que eu acho.
- Onde está ele? - perguntou Bobby Terry.
- A gente pega o velho. A menos que você tenha sonhado essa porra toda. Se sonhou, eu não queria estar na sua pele, meu irmão.
- Não foi sonho. Foi aquele Scout... mas e se ele pegou um desvio?
- Desvio onde? Ao longo desta rodovia só há estradas de terra de fazendas. Ele não progrediria nem 20 metros por uma delas sem ficar atolado até os pára-lamas, com tração nas quatro rodas e tudo... Fica frio, Bobby Terry.
Bobby disse, deploravelmente:
- Não posso. Continuo me perguntando como me sentiria em ser pendurado até secar em algum poste telefônico no meio do deserto.
- Pára com isso!... Ei, veja lá! Está vendo ele? Estamos sentindo o cheiro do rabo dele agora, por Deus!
À frente deles havia uma tremenda colisão, já durando meses, entre um Chevrolet e um enorme e pesado Buick. Os dois carros jaziam sob a chuva, bloqueando a estrada de uma margem a outra, como os ossos enferrujados de dois mastodontes insepultos. A direita, marcas recentes de pneus estavam impressas no acostamento.
- É ele - disse Dave. - Aquelas marcas foram feitas há menos de cinco minutos!
Manobrou o Willis para uma guinada em tomo da colisão e sacolejaram loucamente pela margem inclinada. Dave retornou à estrada pelo mesmo ponto que o juiz utilizara antes, e ambos viram as lamacentas impressões em espinhas de peixe, feitas no asfalto pelos pneus do Scout. No topo da colina seguinte avistaram o Scout, que acabava de desaparecer numa curva 3 quilômetros adiante.
- Oba! - gritou Dave Roberts. - Ele já está no papo!
Pisou fundo no acelerador e o Willys arremeteu para 90. O pára-brisa era um borrão prateado de chuva que os limpadores não conseguiam clarear. Tornaram a avistar o Scout no topo da curva, agora mais perto. Dave acionou o interruptor dos faróis dianteiros e começou a pressionar o redutor de luz com o pé. Após alguns instantes, as lanternas traseiras do Scout piscaram.
- Muito bem - disse Dave. - Vamos agir amistosamente. Faça-o descer e nada de besteiras, Bobby Terry. Se fizermos tudo certinho, teremos duas suítes no MGM Grand, em Vegas. Se federmos tudo, vamos ter nossos rabos arrancados. Portanto, não faça merda. Vamos, faça o velho descer.
- Ah, meu Deus, por que ele não passou por Robinette? - gemeu Bobby Terry. Suas mãos aferravam o Winchester.
Dave bateu em uma delas.
- Você não vai descer com esse rifle.
- Mas...
- Cale a boca! E mostre um sorriso, porra!
Bobby forçou um sorriso. Era como o sorriso de um palhaço mecânico num parque de diversões.
- Você não convence - rosnou Dave. - É melhor ficar no maldito carro.
Tinham parado ao lado do Scout, que também parara com duas rodas sobre o pavimento e duas sobre o acostamento de terra, o motor ligado. Sorrindo, Dave saiu. Tinha as mãos nos bolsos do Impermeável, No bolso esquerdo havia um .38 Special da polícia.
O juiz desceu cuidadosamente do Scout. Também usava um impermeável amarelo. Caminhava com cautela, movendo-se tal como se moveria um homem carregando um vaso frágil. A artrite o atacara como um bando de tigres. Ele tinha o rifle Garand na mão esquerda.
- Ei, não está pretendendo usar isto contra mim, está? - disse o homem do Willys com um sorriso amistoso.
- Acho que não - respondeu o juiz. Os dois falavam acima do ruído da chuva que caía. - Vocês devem ter estado lá em Copperfield.
- Sim, estivemos. Sou Dave Roberts. - Ele estendeu a mão direita.
- Meu nome é Farris - disse o juiz e ofereceu a mão direita. Ele relanceou para a janela do passageiro do Willys e viu Bobby Terry inclinando-se para fora, segurando o .45 com as duas mãos. A chuva pingava do cano da arma. O rosto dele, lívido como o de um cadáver, ainda exibia o sorriso maníaco de parque de diversões. - Ah, o sacana - murmurou o juiz e puxou sua mão do aperto escorregadio de chuva de Roberts no instante em que este disparou, através do bolso do impermeável. A bala penetrou no meio do corpo do juiz, logo abaixo do estômago, achatando, girando, alargando a trajetória, para sair à direita de sua espinha, onde deixou um buraco do tamanho de um pires de chá. O Garand caiu de sua mão sobre a estrada e ele foi arremessado contra a porta aberta do Scout, no lado do motorista.
Nenhum deles notou o corvo que voejara para um fio telefônico do outro lado da estrada.
Dave Roberts deu um passo à frente para terminar o serviço. Enquanto o fazia, Bobby Terry disparou da janela do passageiro do Willys. Sua bala acertou Roberts na garganta, dilacerando-a. Uma fúria de sangue cascateou pela frente do impermeável de Roberts, misturando-se à chuva. Ele se virou para Bobby Terry, o queixo se movendo sem produzir som, mostrando um espanto agonizante, os olhos arregalados. Deu dois passos cambaleantes à frente, e então o espanto sumiu de seu rosto. Desapareceu qualquer expressão. Ele tombou morto. A chuva caía e tamborilava nas costas do seu impermeável.
- Ah, merda, olhe só para isto! - gritou Bobby Terry em absoluto desalento.
O juiz pensou: Minha artrite se foi. Se eu vivesse poderia explorar a profissão médica. A cura para artrite é uma bala nas tripas. Ah, meu Deus, eles estavam à minha espera. Terá Flagg contado a eles? Deve ter contado. Que Jesus ajude quem mais o comitê enviar para cá...
O Garand jazia na estrada. O juiz inclinou-se para ele, sentindo que suas tripas tentavam escapar para fora do corpo. Era uma curiosa sensação. Não muito agradável. E daí? Ele pegou o rifle. Estaria destravado? Estava. Começou a erguê-lo. Parecia pesar uma tonelada.
Bobby Terry finalmente afastou o seu olhar apavorado de Dave, bem a tempo de ver que o juiz se preparava para baleá-lo. O juiz estava sentado na estrada. Seu impermeável, vermelho de sangue do peito até a bainha. Havia pousado o cano do Garand no joelho.
Bobby disparou um tiro e errou. O Garand enviou um trovão gigantesco e vidro estilhaçado salpicou o rosto de Bobby Terry. Ele gritou, certo de que estava morto. Então viu que a metade esquerda do pára-brisa se fora e compreendeu que ainda continuava dono de si.
O juiz corrigia sua pontaria penosamente, girando o Garand talvez uns dois graus sobre o joelho. Bobby Terry, com os nervos totalmente em destroços agora, disparou três vezes em rápida sucessão. O primeiro tiro abriu um buraco na lateral da cabine do Scout. O segundo atingiu o juiz acima do olho direito. O .45 é uma arma de grande porte, e a curta distância produz estragos enormes e desagradáveis. Esta bala arrancou boa parte do cocuruto do juiz, arremessando tudo contra o Scout. A cabeça dele vergou radicalmente para trás, e a terceira bala de Bobby Terry entrou um centímetro abaixo de seu lábio inferior, explodindo os dentes para dentro da boca, de onde foram aspirados em seu estertor final. O queixo e o maxilar se desintegraram. O dedo do juiz comprimiu o gatilho do Garand numa convulsão agonizante, mas a bala foi se perder velozmente no céu branco e chuvoso.
E baixou o silêncio.
A chuva tamborilava nos tetos do Scout e do Willys. Nos impermeáveis dos dois homens mortos. Era o único som até o corvo alçar vôo do fio telefônico com um grasnido roufenho. Esse grasnido assustou Bobby Terry, tirando-o de seu estupor. Desceu lentamente do banco do carona, ainda aferrando o enfumaçado .45.
- Eu fiz isso - disse confidencialmente para a chuva. - Estraçalhei o rabo dele. É bom acreditar nisso. Foi como o duelo do O.K. Corral. Uma tremenda nota A. O velho Bobby Terry deixou ele tão morto como você queria.
Então, com crescente horror, percebeu que não era o rabo do juiz que havia estraçalhado, afinal.
O juiz morrera inclinado para dentro do Scout. Bobby Terry agora o aferrou pelas lapelas do impermeável e o puxou para a frente, olhando para o que restava das feições do juiz. Nada mais restara senão o nariz. Para dizer a verdade, tampouco o nariz estava em bom estado.
Podia ter acontecido com qualquer um.
E, num sonho de terror, Bobby Terry tornou a ouvir Flagg dizendo: Quero mandá-lo de volta sem danos.
Céus, podia ter acontecido com qualquer um. Era como se ele deliberadamente tivesse feito o contrário do que o Turista Andarilho ordenara. Dois tiros diretos no rosto. Até os dentes tinham sumido.
E a chuva tamborilava, incessante...
Estava tudo acabado ali. Isso era tudo. Ele não ousaria ir para o leste nem ficar no oeste. Ele ficaria pendendo de um poste telefônico com as costas nuas... ou algo pior. Haveria coisas piores?
Com aquele louco sorridente no comando, Bobby Terry não duvidava de que haveria. Então, qual a resposta?
Passando as mãos pelos cabelos, ainda olhando para o rosto destroçado do juiz, ele procurou refletir.
O sul. Esta era a resposta. Sul. Não havia mais guardas de fronteiras. Do sul iria para o México e, se não ficasse longe o bastante, desceria para a Guatemala, o Panamá, talvez seguindo até a porra do Brasil. Cairia fora daquele caos total. Chega de leste, chega de oeste, agora era só Bobby Terry, são e salvo, tão longe do Turista Andarilho quanto pudesse, até onde seus sapatos gastos pudessem levar...
Houve um novo som na tarde chuvosa.
A cabeça de Bobby Terry ergueu-se.
Era a chuva, claro, batendo seu tambor de aço nas cabines dos dois veículos, bem como o ronco de ambos os motores ligados, e...
Um estranho som tiquetaqueante, como saltos de botas surrados martelando com rapidez ao longo do macadame da estrada vicinal.
- Não - sussurrou Bobby Terry.
Ele começou a virar-se.
O som tiquetaqueante ganhava velocidade. Um passo rápido, um trote, uma corrida, uma disparada, e Bobby Terry acabou de virar-se. Tarde demais. Ele estava chegando. Flagg estava vindo, como algum terrível monstro saído do filme mais apavorante jamais visto. As faces do homem escuro estavam afogueadas, os olhos cintilando de feliz amizade, enquanto um sorriso faminto, enorme e voraz estirava-lhe os lábios sobre os enormes dentes tumulares, dentes de tubarão. E ele tinha as mãos estendidas diante do corpo, e havia reluzentes penas negras de corvo voejando de seu cabelo.
Não, Bobby Terry tentou dizer, porém nenhum som saiu.
- EI, BOBBY TERRY, VOCÊ ESTRAGOU TUDO! - berrou o homem escuro e caiu sobre o indefeso Bobby Terry.
Havia coisas piores do que crucificação.
Eram dentes.
DAYNA JURGENS ESTAVA DEITADA NUA na cama de casal, ouvindo o persistente chiado da água caindo do chuveiro. Olhou para seu reflexo no imenso espelho circular do teto, do exato tamanho e formato da cama que ele refletia. Pensou que o corpo da mulher sempre fica melhor quando de costas, espichado, o estômago achatado, os seios naturalmente eretos, sem o efeito vertical da gravidade puxando-os para baixo. Eram nove e meia da manhã de 8 de setembro. Fazia dezoito horas que o juiz morrera, e bem menos tempo da morte de Bobby Terry - infelizmente para ele.
O chuveiro continuava aberto.
Eis aí um homem com mania de limpeza, pensou ela. Eu gostaria de saber o que aconteceu a ele para ficar meia hora direto debaixo da ducha.
Sua mente voltou-se para o juiz. Quem poderia imaginar? À sua própria maneira, havia sido uma ideia danada de boa. Quem suspeitaria de um velho como ele? Bem, Flagg suspeitara, assim parecia. De algum modo, soubera quando e aproximadamente onde. Uma linha de sentinelas fora posicionada por toda a fronteira Idaho-Oregon com ordens para matá-lo.
O serviço, no entanto, ficara de certa forma prejudicado. Desde a hora do jantar da véspera o escalão superior ali em Las Vegas havia perambulado de um lado para outro com expressões melancólicas e olhos baixos. Whitney Horgan, que era um excelente cozinheiro, havia servido algo parecido com ração canina e demasiado queimado para ter algum sabor. O juiz estava morto, mas alguma coisa dera errado.
Dayna levantou-se, foi até a janela e olhou para o deserto. Viu dois ônibus grandes do Las Vegas High School rumando para oeste, pela Nacional 95, sob o sol escaldante. Iam para a base aérea de Indian Springs, onde, ela sabia, havia um curso diário sobre mecânica e pilotagem de aviões a jato. No oeste havia algumas pessoas que sabiam pilotar, mas, para enorme sorte - da Zona Franca -; nenhuma delas fora licenciada para os jatos da Guarda Nacional em Indian Springs.
Mas eles estavam apenas aprendendo. Ah, como estavam.
O mais importante para ela agora, logo após a morte do juiz, era que eles souberam quando não havia meios para tal. Haveria um espião deles plantado na Zona Franca? Era bem possível, supunha ela; espionar era um jogo que podia ser disputado por dois. Mas Sue Stern lhe dissera que a decisão de enviar espiões para o oeste coubera estritamente ao comitê, e ela duvidava muito que algum daqueles sete estivesse a soldo de Flagg. Mãe Abagail teria sabido se algum integrante do comitê houvesse mudado de lado, para início de conversa. Dayna tinha certeza disso.
Só restava uma alternativa nada agradável. O próprio Flagg apenas soubera.
Fazia oito dias que Dayna se encontrava em Las Vegas e, até onde sabia, tinha sido plenamente aceita como parte da comunidade. Já acumulara informação suficiente sobre as operações locais a ponto de matar de susto todos que tinham ficado em Boulder. Bastaria a notícia sobre o programa de treinamento nos aviões a jato. Porém o que mais a assustava pessoalmente era o modo como as pessoas se esquivavam quando era mencionado o nome de Flagg, o modo como fingiam não ter ouvido. Algumas pessoas até cruzavam os dedos, outras persignavam-se ou faziam o sinal do mau-olhado por trás da mão em concha. Ele era grande Esse/Não-Esse.
Isso durante o dia. À noite, quem apenas se sentasse quietamente no Cub Bar do MGM Grand Hotel ou no Silver Slipper Room, no The Cashbox, ouviria histórias sobre ele, o começo do mito. Eles falavam lentamente, gaguejando, sem olhar um para o outro, bebendo principalmente cerveja. Se alguém bebesse qualquer coisa mais forte, poderia perder o controle da boca, o que era perigoso. Dayna sabia que nem tudo que diziam era verdade, porém já se tornara impossível separar os bordados dourados do tecido da roupa. Ouvira falar que ele mudava de forma, que era um lobisomem, que deflagara pessoalmente a epidemia, que era o Anticristo cuja vinda estava prevista no Livro do Apocalipse. Ouvira falar na crucificação de Hector Drogan, de como ele simplesmente soubera que Heck estava se drogando... o modo como soubera que o juiz estava a caminho, aparentemente.
E naquelas discussões noturnas ele jamais era chamado de Flagg; era como se acreditassem que mencionar seu nome fosse o mesmo que invocar um gênio de uma garrafa. Referiam-se a ele como homem escuro, Turista Andarilho. E Ratty Erwins o chamara de Velho Judas Rastejante.
Se ele soubera sobre o juiz, como é que não saberia sobre ela?
O chuveiro foi desligado.
Controle-se, queridinha. Ele promove a confusão. Isso o faz parecer maior. Talvez ele tenha um espião na Zona Franca - não necessariamente alguém do comitê, apenas alguém que lhe dissera que o juiz não fazia o tipo de desertor.
- Não devia ficar por aí sem roupas, meu bem. Assim, acaba me deixando com tesão outra vez.
Dayna se virou para ele, exibindo um sorriso amplo e convidativo.
- Por que acha que eu estava andando por aí sem roupa?
Ele consultou o relógio.
- Bem, talvez tenhamos quarenta minutos. - Seu pênis já começava a fazer movimentos saltitantes... como uma vareta de rabdomante, pensou Dayna com amargo divertimento.
- Pois então venha. - Ele se aproximou e ela apontou para seu peito. - E tire essa coisa do pescoço. Me dá arrepios.
Lloyd Henreid baixou os olhos para o amuleto, uma espécie de lágrima escura marcada com uma solitária mancha vermelha. Ele o tirou, colocou-o sobre a mesa-de-cabeceira e a corrente fina produziu um som sibilante.
- Está melhor assim?
- Muito melhor.
Ele estendeu os braços. Logo em seguida, estava por cima de Dayna. Um momento depois, estava penetrando nela.
- Gosta disso? - arfou ele. - Gosta de sentir isso dentro, doçura?
- Meu Deus, eu adoro - gemeu ela pensando no moedor de carne, todo em esmalte branco e aço reluzente.
- O quê?
- Eu disse que adoro isso! - gritou ela.
Simulou brevemente um orgasmo, remexendo os quadris intensamente, gritando. Ele gozou segundos depois (ela partilhava a cama com Lloyd há quatro dias agora, e o ritmo de ambos combinava à perfeição) e ela, ao sentir o sêmen dele começar a escorrer por sua coxa, olhou por acaso para a mesa-de-cabeceira.
Pedra negra.
Mancha vermelha.
Aquilo parecia estar olhando para ela.
Teve uma súbita sensação de que estava olhando para ela, que era o olho dele com suas lentes de contato de humanidade removidas, olhando para ela como o Olho de Sauron havia olhado para Frodo das profundezas escuras de Barad-Dur, em Mordor, onde jaziam as sombras.
Aquilo me vê, pensou ela com desamparado horror naquele momento sem defesa antes que a racionalidade se refizesse. E mais: vê ATRAVÉS de mim.
Depois, como Dayna esperava, Lloyd falou. Aquilo também fazia parte do ritmo dele. Punha um braço em torno dos ombros dela, fumava um cigarro, olhava para o reflexo dos dois no espelho acima da cama e contava-lhe o que estava acontecendo.
- Ainda bem que eu não era aquele Bobby Terry - disse. - Não, de jeito nenhum! O chefão queria a cabeça daquele velho peidão sem um arranhão sequer. Queria mandá-lo de volta por cima das Rochosas. E veja só o que aconteceu: aquele debilóide meteu dois balaços de .45 na cara dele. De curta distância. Acho que ele mereceu o que teve, mas ainda bem que eu não estava lá.
- O que aconteceu com ele?
- Nada de perguntas, doçura.
- Como ele soube? O chefão?
- Ele estava lá.
Ela sentiu um calafrio.
- Simplesmente aconteceu de estar lá?
- Certo. Ele sempre aparece em qualquer lugar quando há problema. Meu Deus, quando penso no que ele fez com Eric Strellerton, aquele advogado metido a esperto com quem eu e Lixo fomos a Los Angeles...
- O que foi que ele fez?
Por um longo momento Dayna achou que ele não fosse responder. Em geral, ela conseguia empurrá-lo delicadamente na direção que desejava, fazendo uma série de perguntas suaves e respeitosas; fazia-o sentir-se como se fosse (nas palavras jamais esquecidas de sua irmã caçula) o Rei Merda da Montanha de Bosta. Desta vez, no entanto, teve a impressão de que fora longe demais, até que Lloyd disse, em voz esquisita e contida:
- Ele apenas olhou para o cara. Eric estava despejando toda aquela merda de como queria ver funcionando a operação em Vegas... devíamos fazer isso, devíamos fazer aquilo. O pobre Lata de Lixo... ele não é muito certo da bola, entende... limitava-se a olhar, como se o cara fosse algum astro da TV ou algo assim. Eric andava de um lado para o outro, como se estivesse se dirigindo a um júri, e parecia como se já tivesse certeza de que as coisas seriam feitas da maneira como queria. E então ele disse, em voz absolutamente macia: "Eric." Bem assim. Eric olhou para ele. Eu não vi nada, mas Eric ficou olhando para ele por um longo tempo. Talvez cinco minutos. E seus olhos foram aumentando, ficando cada vez maiores... e então ele começou a babar... e depois começou a rir... e ele riu com Eric, o que me deixou assustado. Quando Flagg ri, a gente sente medo. Só que Eric continuou lá, rindo. E ele disse: "Quando vocês voltarem, larguem ele no Mojave." Foi o que fizemos. Pelo que sei, Eric está perambulando pelo deserto neste exato momento. Ele olhou para Eric por cinco minutos e deixou-o louco.
Lloyd deu uma longa tragada em seu cigarro e o amassou no cinzeiro. Depois pôs um braço em tomo dela.
- Por que ficamos conversando sobre merdas desse tipo?
- Sei lá... Como estão indo as coisas em Indian Springs?
Lloyd animou-se. O projeto Indian Springs era sua menina dos olhos.
- Bem, otimamente bem. No dia 1º de outubro, talvez até antes, teremos três sujeitos preparados para os aviões Skyhawk. Hank Rawson é realmente grande. E esse Lata de Lixo, porra, é um tremendo gênio. Não é muito inteligente para certas coisas, mas quando se trata de armas, o cara é incrível.
Dayna se encontrara com o Homem da Lata de Lixo duas vezes, e em ambas as ocasiões sentira um calafrio percorrer-lhe a espinha, quando os olhos estranhos e turvos do sujeito a percorreram. Houve uma nítida sensação de alívio quando eles se desviaram. Era óbvio que muitos dos outros - Lloyd, Hank Rawson, Ronnie Sykes, o Rato - viam Lixo como uma espécie de mascote, um talismã de boa sorte. Um de seus braços era uma horrível massa de tecido cicatrizado de queimaduras recentes, e ela recordava algo peculiar acontecido duas noites antes. Hank Rawson estivera falando. Ele pusera um cigarro na boca, riscara um fósforo e terminara sua alocução antes de acender o cigarro e apagar o fósforo. Dayna reparou na maneira como os olhos de Lata de Lixo se fixaram na chama do fósforo, o modo como parecera parar de respirar. Era como ver um homem faminto contemplando um jantar de nove pratos. Então Hank sacudira o fósforo e deixara o pedacinho enegrecido de madeira cair num cinzeiro. O momento havia terminado.
- Ele é bom com armas? - perguntou ela a Lloyd.
- O Lata de Lixo? Ele é bom paca. Os Skyhawks carregam mísseis sob as asas, mísseis ar-terra. Mísseis Pica-pau Verde. É estranho como eles batizam toda essa merda, não é? Ninguém imaginava como aquelas porras eram acopladas aos aviões. Ninguém sabia como armar os aparelhos ou controlar a segurança deles. Porra, levamos mais de um dia para descobrir como retirá-los das armações no depósito. Então Hank diz: "Acho melhor a gente trazer Lixo para cá, quando voltar, e ver se ele consegue dar um jeito nisso."
- Quando ele voltar? - estranhou Dayna.
- É, ele é um andarilho engraçado. Só está em Vegas há menos de uma semana e já fala em dar no pé o quanto antes.
- E para onde ele vai?
- Para o deserto. Pega um Land-Rover e simplesmente se manda. É um cara estranho, pode crer. À sua maneira, Lixo é um cara quase tão estranho como o próprio chefão. A oeste daqui, não existe nada além do deserto vazio e uma vastidão esquecida por Deus. Sei o que estou dizendo. Já estive certa vez no oeste, num buraco do inferno chamado posto Brownsville. Não sei como Lixo se vira por lá, mas ele consegue. Procura por novos brinquedos e sempre volta com alguns. Mais ou menos uma semana depois de voltarmos de Los Angeles, ele trouxe um monte de metralhadoras do Exército com visores a laser... metralhadoras que nunca falham, é como Hank as chama. Da última vez foram minas Teller, minas de contato, minas de fragmentação e um caixote de Parathion, um inseticida muito perigoso. Ele disse que encontrou um grande estoque de Parathion. Também trouxe desfolhante para deixar todo o estado do Colorado careca como um ovo.
- Onde ele encontra essas coisas?
- Por toda parte - disse Lloyd com simplicidade. - Ele as fareja, doçura, o que aliás não chega a ser tão estranho assim. A maior parte do oeste de Nevada e leste da Califórnia pertencia à boa e velha América. Era onde testavam seus brinquedos, dos mais inocentei à bomba atômica. Qualquer dia desses, Lixo estará trazendo até uma bomba atômica.
Ele riu. Dayna sentiu frio, um frio terrível.
- A supergripe começou em algum lugar por lá, aposto meu dinheiro nisso. Talvez Lixo acabe descobrindo. Acredite, ele simplesmente fareja a coisa. O chefão diz que basta lhe dar uma pista e despachá-lo. E é essa a função de Lixo. Sabe qual é o seu brinquedo predileto no momento?
- Não - disse Dayna, sem ter certeza de que desejava saber... porém, era para isso que tinha vindo.
- Lança-chamas. Tem cinco deles lá em Indian Springs, enfileirados como carros de corrida de Fórmula 1. - Lloyd riu. - Eram usados no Vietnã. Os soldados os chamavam de Zippos, por causa dos isqueiros. São cheios de napalm. Lixo adora eles.
- Imagino - murmurou ela.
- De qualquer modo, quando Lixo voltou dessa vez, nós o levamos para as Springs. Ele cantarolou e resmungou em volta daqueles mísseis e conseguiu deixá-los armados e montados em cerca de seis horas. Pode acreditar nisso? Eles treinam técnicos da Força Aérea durante uns noventa anos para fazerem o mesmo. Só que não se comparam a Lixo. Nesse negócio, ele é um tremendo gênio.
Idiota sábio, você quer dizer. Aposto que sei como ele arranjou aquelas queimaduras.
Lloyd consultou o relógio e sentou-se.
- Por falar em Indian Springs, terei de ir para lá. Só há tempo para mais uma chuveirada. Me acompanha?
- Não dessa vez.
Ela se vestiu depois que o chuveiro foi novamente ligado. Até então, sempre conseguira vestir-se e despir-se com Lloyd fora do quarto e pretendia que assim continuasse.
Prendeu a braçadeira ao antebraço e fez a lâmina da faca deslizar para seu compartimento de mola. Uma rápida torção do pulso e teria na mão os 25 centímetros daquela lâmina.
Bem, pensou enquanto enfiava a blusa, uma garota precisa ter alguns segredos.
Durante a tarde Dayna trabalhou com a turma de manutenção da iluminação pública. O trabalho consistia em testar as lâmpadas com um aparelho simples e substituí-las se estivessem queimadas ou houvessem sido quebradas pelos vândalos quando Las Vegas estivera no auge da supergripe. Eram quatro pessoas naquela atividade e usavam um caminhão coletor de cerejas que rodava de poste em poste e de ma em rua.
No fim daquela tarde, Dayna estava no alto do caminhão e removia a cobertura de Plexiglass de uma das lâmpadas e pensava no quanto apreciava as pessoas com quem trabalhava, principalmente Jenny Engstrom, uma forte e bonita ex-dançarina de boate incumbida de manejar os controles do caminhão. Era o tipo de garota que Dayna gostaria de ter como melhor amiga e ficava perplexa por ela estar ali, do lado do homem escuro. Isto a deixava tão confusa que não ousava pedir uma explicação a Jenny.
Os outros também eram legais. Ela ponderou que Vegas tinha uma proporção de imbecis bem superior à da Zona Franca, porém nenhum deles exibia caninos aguçados nem se transformava em morcego ao nascer da lua. Além disso, eram pessoas que trabalhavam muito mais duramente que os habitantes da Zona. Em Boulder era possível ver gente perambulando pelos parques a qualquer hora do dia, havendo ainda quem fizesse a pausa para o almoço durar de meio-dia às duas da tarde. Nada de semelhante jamais aconteceria ali em Vegas. Todos trabalhavam das oito da manhã às cinco da tarde, fosse em Indian Springs ou nas turmas de manutenção dentro da cidade. A escola também voltara a funcionar. Havia cerca de vinte crianças em Vegas, com idades variando dos quatro anos (este era Daniel McCarthy, o queridinho de todos na cidade, mais conhecido como Dinny) aos 15. Haviam encontrado dois professores diplomados e havia aulas cinco dias por semana. Lloyd, que abandonara a escola após repetir o primeiro ano do ginásio pela terceira vez, estava muito orgulhoso das oportunidades educacionais disponíveis. As farmácias ficavam abertas e sem vigias. Pessoas entravam e saíam o tempo todo... mas nada levavam de mais forte que um frasco de aspirina ou Gelusil. No oeste não havia problemas com drogas. Qualquer um que testemunhara o que havia acontecido com Hector Drogan sabia qual era a punição para o vício. Também não havia alcoólatras como Rich Moffat. Todos eram amistosos e sinceros. E ninguém se atrevia a beber algo mais forte que uma cerveja.
Alemanha em 1938, pensou ela. Os nazistas? Ah, são pessoas encantadoras. Muito atléticas. Não frequentam cabarés, os cabarés são para os turistas. O que fazem eles? Fabricam relógios.
Era uma comparação justa?, especulou Dayna inquietamente pensando em Jenny Engstrom, de quem gostava tanto. Ela não sabia... mas achou que talvez seria.
Ela testou a lâmpada no capuz padrão. Estava queimada. Retirou-a, colocou-a cuidadosamente entre seus pés e apanhou a última lâmpada nova. Ótimo, estava quase no fim do dia. Estava...
Dayna olhou para baixo e ficou gelada.
Pessoas desciam em uma parada de ônibus, voltando de Indian Springs. Todas olhavam casualmente para cima, do jeito como um grupo sempre olha quando há alguém trepado em alguma coisa. A síndrome do circo grátis.
Aquele rosto, olhando para ela.
Aquele rosto largo, sorridente, inquisitivo.
Meu Deus do céu, aquele é Tom Cullen?
Uma gota de suor salgado escorreu para seu olho, duplicando sua visão. Quando a enxugou, o rosto sumira. As pessoas que desceram do ônibus já haviam percorrido metade da rua, balançando suas marmitas, rindo e fazendo piadas. Dayna olhou para aquele que julgara ser Tom, mas de costas era difícil confirmar...
Tom? Eles teriam enviado Tom?
Certamente que não. Isso era tão irracional que quase chegava a ser...
Quase chegava a ser lúcido.
Ainda assim, não conseguia acreditar.
- Ei, Jurgens! - chamou Jenny energicamente. - Resolveu dormir aí em cima ou está só brincando sozinha?
Dayna inclinou-se sobre o gradil baixo do caminhão coletor de cerejas e olhou para Jenny, que erguera o rosto para cima. Dayna fez um gesto obsceno para ela. Jenny riu. Dayna voltou a atenção para a lâmpada de seu poste, pelejando para colocá-la, e quando finalmente conseguiu já era hora de encerrar o expediente. No trajeto de volta à garagem, ela se manteve em silêncio e preocupada... quieta demais para fazer Jenny comentar a respeito.
- Apenas estou sem assunto, acho - disse-lhe Dayna com um meio sorriso.
Não podia ter sido Tom.
Ou podia?
- Acorde! Acorde! Porra, acorde logo, sua puta!
Ela começava a emergir do sono pesado quando um pé a atingiu na base das costas, chutando-a para fora da grande cama redonda e para o chão. Despertou de imediato, piscando e aturdida.
Lloyd estava ali, fitando-a com uma raiva contida. Whitney Horgan. Ken DeMott. Maioral. Jenny. Só que o rosto geralmente franco de Jenny estava agora frio e inexpressivo.
- Jen...?
Nenhuma resposta. Dayna ficou de joelhos, vagamente cônscia de sua nudez, mais cônscia ainda do frio círculo de rostos baixados para ela. A expressão de Lloyd era a do homem traído que descobriu a traição.
Será que estou sonhando?
- Vista logo a porra da roupa, sua puta mentirosa, espiã!
Tudo bem, não era um sonho. Ela sentiu uma pontada de terror no estômago, que pareceu quase pré-ordenada. Eles tinham sabido sobre o juiz e agora sabiam a seu respeito. Ele lhes contara. Olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira. Quinze para as quatro da madrugada. A Hora da Polícia Secreta, pensou.
- Onde está ele? - perguntou ela.
- Por aí - disse Lloyd, carrancudo. Tinha o rosto pálido e brilhoso. Seu amuleto se mostrava pelo V aberto da camisa. - Em breve você desejará que ele não estivesse.
- Lloyd?
- O que é?
- Passei uma doença venérea para você. Espero que ela o apodreça.
Ele a chutou logo abaixo do esterno, fazendo-a cair de costas.
- Espero que ela o apodreça, Lloyd!
- Cale a boca e vista-se!
- Saiam daqui! Não me visto na frente de homens!
Lloyd chutou-a de novo, desta vez no bíceps do braço direito. A dor foi tremenda e sua boca pendeu num arco trêmulo, porém ela não gritou.
- Sua batata está assando, Lloyd? Por dormir com Mata Hari? - Ela sorriu para ele com lágrimas de dor se formando nos olhos.
- Vamos, Lloyd - disse Whitney Horgan. Tinha visto assassinato nos olhos de Lloyd e agora deu um passo à frente rapidamente, pondo a mão no braço dele. - A gente vai para a sala e Jenny pode vigiá-la enquanto ela se veste.
- E se ela resolver pular da janela?
- Não vai ter nenhuma chance - disse Jenny. Seu rosto estava mortalmente pálido e, pela primeira vez, Dayna notou que ela estava usando uma pistola no quadril.
- De qualquer modo, ela não conseguiria - disse Maioral. - As janelas aqui em cima são apenas para efeito decorativo, não sabiam? Às vezes, os caras que perdiam muito nas mesas de jogo ficavam querendo dar um mergulho do alto, o que seria uma publicidade negativa para o hotel. Portanto, as janelas não se abrem. - Seus olhos baixaram sobre Dayna e mostraram um toque de compaixão. - É isso aí, garota, você é uma grande perdedora.
- Vamos, Lloyd - repetiu Whitney. - Você vai acabar fazendo uma coisa da qual se arrependerá mais tarde... chutá-la na cabeça ou algo assim. É melhor cair fora daqui.
- Está bem. - Eles seguiram juntos para a porta. Lloyd olhou para trás por sobre o ombro. - Ele vai lhe infernizar a vida, sua puta.
- Você foi o pior amante que já tive, Lloyd - disse ela docemente.
Ele tentou voltar para ela, mas Whitney e Ken DeMott o puxaram para trás e o empurraram para a saída. As portas duplas fecharam, com um som grave e surdo.
- Vista-se, Dayna - ordenou Jenny.
Dayna se levantou, ainda esfregando a marca avermelhada no seu braço.
- Você gosta de gente assim? - perguntou ela. - É isso que procura? Gente como Lloyd Henreid?
- Quem andou dormindo com Lloyd foi você, não eu. - O rosto dela exibia uma emoção pela primeira vez: zangada reprovação. - Você acha correto vir para cá e nos espionar? Você merece tudo que vai receber. E vai receber um bocado, irmã.
- Eu estava dormindo com ele por um motivo. E estava espionando por um motivo - respondeu Dayna, vestindo sua calcinha.
- Por que não cala essa boca?
Dayna voltou-se e olhou para Jenny.
- O que pensa que estão fazendo aqui, garota? Por que acha que estão treinando para voar naqueles jatos lá em Indian Springs? E aqueles mísseis... acha que estão aqui para Flagg ganhar uma bonequinha para a namorada numa barraca de tiro ao alvo?
Jenny comprimiu os lábios.
- Isso não é da minha conta.
- Não é da sua conta? E se eles usarem os jatos para voar sobre as Rochosas na primavera e os mísseis para exterminar aqueles que estão do outro lado?
- Espero que façam isso. Somos nós ou a sua gente, é o que ele diz. E acredito nele.
- As pessoas acreditavam em Hitler, também. Mas você não acredita nele; apenas se borra de medo dele.
- Vista-se, Dayna.
Dayna vestiu as calças compridas, abotoou-as, puxou o zíper. Então, levou a mão à boca.
- Eu... eu acho que vou vomitar... Céus! - Agarrando a blusa de mangas compridas, deu meia-volta, correu para o banheiro e trancou a porta. Lá dentro, emitiu ruídos fortes de quem estivesse vomitando.
- Abra a porta, Dayna! Abra ou rebento a fechadura!
- Estou... mal... - Ela produziu outro ruído de vômito. Na ponta dos pés, tateou no topo do armário de remédios, agradecendo a Deus por ter deixado a braçadeira e a faca de mola ali, rezando por mais vinte segundos...
Prendeu a braçadeira. Agora ouvia outras vozes no quarto. Com a mão esquerda, abriu a torneira da pia.
- Só um minuto, estou passando mal, droga!
Mas eles não lhe dariam esse minuto. Alguém deu um pontapé na porta do banheiro, estraçalhando a madeira. Dayna colocou a faca no lugar, que permaneceu ao longo do seu antebraço como uma flecha mortífera. Movendo-se com desesperada velocidade, vestiu a blusa e abotoou as mangas. Jogou água na boca. Deu descarga na privada.
Outro chute na porta. Dayna girou a maçaneta e eles entraram de roldão. Lloyd, com expressão irada, Jenny vindo logo atrás de Ken DeMott e Maioral, empunhando a pistola.
- Eu vomitei - disse Dayna friamente. - Uma pena que não puderam ver, hein?
Lloyd aferrou-a pelo ombro e a empurrou para dentro do quarto.
- Eu devia quebrar-lhe o pescoço, sua escrota!
- Não esqueça a voz do dono. - Ela abotoou a frente da blusa, fitando-os com olhos fuzilantes. - Ele é o deus-cão de vocês, não é mesmo? Babam-lhe o ovo e ficam pertencendo a ele!
- É melhor calar essa boca - disse Whitney, irritado. - Só está piorando as coisas para o seu lado.
Dayna olhou para Jenny, sem entender como a garota alegre e sorridente durante o dia podia transformar-se naquela coisa noturna, de rosto inexpressivo.
- Não percebem que ele está se preparando para começar tudo outra vez? - perguntou a eles, desesperadamente. - A matança, os fuzilamentos... epidemia?
- Ele é o maior e o mais forte - disse Whitney com curiosa gentileza. - Vai exterminar sua gente da face da Terra.
- Chega de falação - disse Lloyd. - Vamos!
Moveram-se para agarrá-la pelos braços, mas Dayna recuou, mantendo os braços às costas, e sacudiu a cabeça.
- Posso caminhar - disse.
O cassino estava deserto, exceto por vários homens armados de rifles, sentados ou parados junto às portas. Pareciam interessados em olhar coisas nas paredes, os tetos e as mesas de jogo vazias, quando as portas do elevador se abriram e surgiu o grupo de Lloyd escoltando Dayna.
Ela foi conduzida à porta ao final da fileira de guichês dos caixas. Lloyd a abriu com uma pequena chave e todos entraram. Guiaram Dayna rapidamente através de uma área semelhante a um banco: havia máquinas de calcular, cestas de papel cheias de fitas gravadas, potes contendo elásticos e clipes. Telas de computadores, agora cinzentas e opacas. Gavetas de caixas registradoras abertas. Dinheiro caído de algumas delas e jazendo no piso de ladrilhos. A maioria eram notas de 50 e 100.
No final da área dos caixas, Whitney abriu outra porta e Dayna foi levada por um corredor acarpetado até um escritório de recepcionista vazio. Decorado com muito bom gosto, com uma bela escrivaninha branca para uma secretária refinada que falecera meses antes, tossindo e expelindo grande quantidade de catarro esverdeado. Havia um quadro na parede que parecia uma estampa de Klee. Um tapete felpudo, em tom castanho-claro. A antecâmara da sala do trono.
O medo infiltrou-se pelos seus poros como água fria, enrijecendo-a, fazendo-a sentir-se desajeitada. Lloyd inclinou-se sobre a mesa e pressionou o botão do interfone. Dayna percebeu que ele suava.
- Nós a trouxemos, RF.
Dayna sentiu uma risada histérica borbulhando dentro de si e não conseguiu sufocá-la - não que isso importasse agora.
- RF! RF! Ah, isso é formidável! Prontos ao seu dispor, FC!
Ela continuou em uma onda de risadinhas sufocadas e, de repente, Jenny a esbofeteou.
- Cale-se! - sibilou ela. - Você não sabe a fria em que entrou!
- Sei, sim - replicou Dayna, olhando para ela. - Você e os outros, vocês é que não sabem.
Uma voz veio do interfone, cálida, satisfeita e alegre.
- Muito bem, Lloyd, obrigado. Mande-a entrar, por favor.
- Sozinha?
- Sim, claro. - Houve um risinho indulgente quando o interfone foi desligado. Dayna sentiu a boca seca ao ouvi-lo.
Lloyd se virou. Suava um bocado agora. Bagas enormes de suor brotavam de sua testa e escorriam pelas faces como lágrimas.
- Você o ouviu. Entre.
Ela cruzou os braços abaixo dos seios, mantendo a faca virada para junto do corpo.
- E se eu me recusar?
- Eu a arrastarei para lá.
- Olhe só para si, Lloyd! Está com tanto medo que não arrastaria nem um filhote de vira-lata lá para dentro. - Ela se virou para os outros. - Vocês estão todos assustados. Jenny, você está praticamente se borrando. Não faz bem para sua pele, querida. Ou para suas calças.
- Pare com isso, sua pervertida nojenta - sussurrou Jenny.
- Nunca senti esse medo na Zona Franca - continuou Dayna. - Sentia-me muito bem lá. Só vim aqui porque queria estimular a boa vizinhança. Não há nada mais político do que isso. Deviam meditar sobre o que estou dizendo. Talvez ele venda medo porque não tem nada mais para vender.
- Moça - disse Whitney em tom escusatório -, eu gostaria muito de ouvir o resto do seu sermão, mas o homem está esperando. Me desculpe, mas se não disser amém e cruzar aquela porta com seus próprios pés, eu a arrastarei. Pode contar sua história para ele depois que estiver lá dentro... isto é, se conseguir reunir muita saliva para falar com ele. Mas, até aqui, você é responsabilidade nossa.
E o mais esquisito, pensou ela, é que ele soava genuinamente sentido. O pior era que estava de igual modo apavorado.
- Não precisará fazer isso.
Ela forçou os pés a dar o primeiro passo, e então ficou um pouco mais fácil. Caminhava para sua morte, tinha plena certeza. Muito bem, que assim fosse. Ainda tinha sua faca. Primeiro para ele, se pudesse, depois para si mesma, se necessário.
Ela pensou: Meu nome é Dayna Roberta Jurgens e estou com medo, mas já senti medo antes. Tudo que ele pode tirar de mim é aquilo que eu algum dia teria que dar, de qualquer maneira - minha vida. Nunca o deixarei me subjugar. Não permitirei que me reduza a menos do que sou, se estiver ao meu alcance. Quero morrer bem... e vou conseguir o que quero.
Ela girou a maçaneta e entrou no escritório... e na presença de Randall Flagg.
O aposento era grande e sem mobiliário. A mesa fora empurrada contra a parede mais afastada, com a cadeira giratória de executivo colocada atrás dela. Os quadros estavam cobertos com pedaços de pano. As luzes haviam sido apagadas.
Do outro lado da sala, um reposteiro fora corrido a fim de descobrir a parede inteiramente envidraçada que dava para o deserto. Dayna refletiu que nunca vira uma paisagem tão estéril e pouco convidativa em sua vida. Mais acima, a lua era como uma pequena moeda de prata, exageradamente polida. Estava quase cheia.
De pé naquele ponto, olhando para fora, estava a forma de um homem.
Ele continuou naquela posição até muito tempo após ela ter entrado, pressentindo a atrás de si com indiferença, antes de se virar. Quanto tempo leva um homem para se virar? Dois, talvez três segundos, no máximo. Para Dayna, contudo, foi como se o homem escuro demorasse uma eternidade para virar-se, aos poucos mostrando mais e mais de si mesmo, como a própria lua que estivera observando. Ela sentiu-se criança de novo, atordoada pela pavorosa curiosidade do medo imenso. Por um momento, viu-se capturada inteiramente pela teia da atração dele, em seu fascínio, e teve certeza de que, quando se virasse por completo, éons ignorados a partir do agora, ela estaria fitando o rosto que surgia em seus sonhos: um monge gótico encapuzado, a forma do seu capuz envolvendo a escuridão absoluta. Um homem negativo sem rosto. Ela o veria e ficaria louca.
Então ele estava olhando para ela, caminhando à frente e sorrindo calorosamente, e o primeiro pensamento chocado de Dayna foi: Ora, mas ele tem a minha idade!
O cabelo de Randy Flagg era escuro e desgrenhado. O rosto era atraente e curtido, como se passasse muito tempo exposto ao vento do deserto. Tinha feições móveis e sensitivas, olhos que dançavam alegremente, os olhos de uma criança de posse de uma importante e admirável surpresa secreta.
- Dayna! - exclamou ele. - Oi!
- O-o-olá. - Ela não conseguiu dizer mais do que isso. Imaginara-se preparada para o que desse e viesse, porém nunca para isto. Sua mente fora nocauteada, derrubada à lona. Ele sorria com o estado confuso de Dayna. Então estendeu as mãos, como se desculpando. Usava uma desbotada camisa estampada com a gola puída, jeans apertados e um surrado par de botas com saltos gastos.
- O que esperava? Um vampiro? - O sorriso de Flagg ampliou-se, quase exigindo que ela o retribuísse. - Um esfolador? O que andaram lhe contando a meu respeito?
- Eles têm medo - disse ela. - Lloyd estava... suando como um porco.
O sorriso dele continuava exigindo uma retribuição e ela teve de recorrer a toda a sua força de vontade para negar-lhe isso. Havia sido chutada para fora da cama por ordem dele. Trazida até ali para... o quê? Confessar? Contar tudo que sabia sobre a Zona Franca? Ela não podia acreditar que ainda restasse muita coisa que ele já não soubesse.
- Lloyd - disse Flagg e riu pesarosamente. - Ele passou por uma experiência bastante amarga em Phoenix quando a gripe grassava. Ele nem gosta de tocar no assunto. Eu o salvei da morte e... - seu sorriso se tomou ainda mais desarmante, se isto fosse possível - de um destino muito pior do que a morte na linguagem popular, creio. Ele me associou largamente com essa experiência, embora o sufoco por que passou não fosse obra minha. Acredita no que digo?
Ela assentiu lentamente. Acreditava nele e viu-se especulando se as constantes duchas de chuveiro de Lloyd tinham algo a ver com "a amarga experiência em Phoenix". Também viu-se sentindo uma emoção que jamais esperaria em relação a Lloyd: piedade.
- Ótimo. Sente-se, querida - disse Flagg.
Ela olhou em torno.
- Onde?
- No chão. No chão será ótimo. Precisamos conversar, e conversar com toda a sinceridade. Mentirosos sentam-se em cadeiras, por isso as banimos daqui. Ficaremos sentados como amigos junto a uma fogueira de acampamento. Sente-se, garota.
Os olhos dele positivamente brilhavam com uma hilaridade reprimida, seus flancos parecendo inflados com um riso que mal era contido. Ele sentou-se, cruzou as pernas e depois ergueu os olhos para ela apelativamente, sua expressão parecendo dizer: Não vai deixar que eu fique sentado sozinho no chão deste gabinete ridículo, não é mesmo?
Após um momento de vacilação, ela sentou-se. Cruzou as pernas e pousou as mãos ligeiramente sobre os joelhos. Podia sentir o peso reconfortante da faca em sua braçadeira.
- Você foi enviada para cá para espionar a área, querida - disse ele. - É uma descrição acurada da situação?
- Sim, é - respondeu. Não havia como negar.
- E sabe como costuma ser o destino dos espiões em tempo de guerra?
- Sim.
O sorriso dele alargou-se como o brilho do sol.
- Então não é uma sorte que sua gente e a minha não estejam em guerra?
Ela o fitou, totalmente surpresa.
- Pois não estamos, você sabe - concluiu ele, em tom sincero.
- Mas... você... - Mil pensamentos confusos rodopiavam em sua cabeça. Indian Springs. Os mísseis. O Lata de Lixo com seus desfolhantes e seus Zippos. O ramo da conversa sempre se desviava quando o nome, ou a presença, deste homem se imiscuía no assunto. E aquele advogado, Eric Strellerton. Vagueando pelo Mojave com o cérebro arruinado.
Tudo quanto fez foi olhar para ele.
- Por acaso atacamos a sua chamada Zona Franca? Realizamos algum movimento belicoso contra vocês?
- Não... mas...
- E vocês nos atacaram?
- Claro que não!
- Não. E não temos quaisquer planos nesse sentido. Veja! - Ele ergueu subitamente a mão direita, formando um tubo com ela. Olhando por esse tubo, ela podia ver o deserto além da parede-janela. - O Grande Deserto do Oeste! - gritou. - Abrangendo Nevada, Arizona, Novo México, Califórnia! Alguns de nós estão em Washington, em tomo da área de Seatle, em Portland, Oregon. Mais um punhado em Idaho e outro no Novo México. Estão dispersos demais para, inclusive, pensarmos em um censo, pelo menos durante um ano ou mais. Somos bem mais vulneráveis do que vocês. A Zona Franca é uma colmeia ou uma comunidade altamente organizada. Nada somos além de uma confederação, que tem em mim seu chefe titular. Há espaço para nós e para vocês. Sempre haverá espaço para as duas partes, mesmo em 2190. Isto é, se os bebês viverem, algo que só ficaremos sabendo dentro de mais cinco meses. Se viverem e a humanidade continuar, que nossos avós lutem por isso, caso se disponham. Ou os avós deles. Só que, em nome de Deus, sobre o que teremos de lutar?
- Sobre nada - murmurou ela. Sentia a garganta seca, sentia-se atordoada. E algo mais... seria esperança? Fitava-o direto nos olhos. Tinha a impressão de que não conseguia desviar o olhar, nem queria. Não ia enlouquecer. Ele não a induziria à loucura, de modo algum. Ele era... um homem bastante razoável.
- Não existem motivos econômicos que nos levem à luta, e tampouco motivos tecnológicos. Nossa política é um tanto diferente, porém isso é de somenos importância, com as Rochosas entre nós...
Ele está me hipnotizando.
Com um enorme esforço, ela conseguiu desviar os olhos dos dele e, por sobre o ombro do homem, contemplou a lua. O sorriso de Flagg esmoreceu um pouco e uma sombra de irritação pareceu cruzar suas feições. Ou seria imaginação sua? Quando tornou a fitá-lo (mais cautelosamente agora), ele tomara a sorrir com gentileza.
- Você ordenou a morte do juiz - acusou ela em tom rude. - Deseja alguma coisa de mim e, quando a obtiver, mandará me matar também.
Ele a fitou pacientemente.
- Havia piquetes por toda a fronteira Idaho-Oregon e seus integrantes estavam à procura do juiz Farris, isso é verdade. Mas não para matá-lo. Tinham ordens de trazê-lo para mim. Estive em Portland até ontem. Queria falar com ele como falo agora com você, minha cara, calma, razoável e lucidamente. Dois de meus homens localizaram o juiz em Copperfield, Oregon. Ele começou a disparar sua arma, ferindo mortalmente um dos rapazes e matando o outro no ato. O homem ferido matou o juiz antes de morrer. Lamento a maneira como isso terminou. Lamento mais do que você possa saber ou compreender. - Os olhos dele se ensombreceram. Dayna acreditou nele... mas provavelmente não do modo que ele queria que ela acreditasse. E ela sentiu de novo aquele frio.
- Não é o que comentam por aqui.
- Acredite neles ou acredite em mim, querida. Lembre-se, porém, das ordens que dei a eles.
Ele era persuasivo, tremendamente persuasivo. Parecia quase inofensivo - mas não era exatamente verdade, era? Aquela sensação só surgia por ver que ele era um homem... ou alguma coisa que parecia um homem. Havia bastante alívio em simplesmente que ele a transformasse em algo como uma inocente útil. Ele tinha uma presença de espírito e a perícia de um político para derrubar todos os melhores argumentos do adversário... mas o fazia de um modo que ela achava por demais perturbador.
- Se sua intenção não é guerra, por que os jatos e todas aquelas armas que tem em Indian Springs?
- São meras medidas defensivas - disse ele prontamente. - Estamos fazendo coisas semelhantes em Seatles Lake, na Califórnia, e na Base Edwards da Força Aérea. Há outro grupo no reator atômico em Yakima Ridge, em Washington. Sua gente deve estar fazendo a mesma coisa... se é que já não fez.
Dayna sacudiu a cabeça muito lentamente.
- Quando deixei a Zona eles ainda estavam tentando religar a eletricidade.
- E eu teria prazer em enviar-lhes dois ou três técnicos, mas já soube que o tal Brad Kitchner deu conta do recado, e muito bem. Houve um breve contratempo ontem, porém ele resolveu o problema com rapidez. Houve uma sobrecarga de energia na Arapahoe.
- Como sabe de tudo isso?
- Ah, tenho meus meios - admitiu Flagg cordialmente. - A velha voltou, por falar nisso. A velha e doce senhora.
- Mãe Abagail?
- Sim. - Os olhos dele estavam distantes e turvos; tristes, talvez. - Ela está morta. Uma pena. Eu realmente esperava conhecê-la pessoalmente.
- Morta? Mãe Abagail está morta?
O olhar turvo clareou-se, ele sorriu para ela.
- Isto realmente a surpreende tanto?
- Não. O que me surpreende é o fato de ela ter voltado. E me surpreende até mais do que você saber.
- Ela voltou para morrer.
- E disse alguma coisa?
Por um breve momento a cordial máscara de controle de Flagg escorregou, mostrando um sombrio e irado despeito.
- Não - respondeu ele. - Pensei que ela pudesse... pudesse falar algo, mas morreu sem sair do coma.
- Tem certeza?
O sorriso dele reapareceu, tão radioso como um sol de verão, desfazendo a névoa rente ao chão.
- Esqueça ela, Dayna. Vamos falar de coisas mais agradáveis, como a sua volta para a Zona. Tenho certeza de que prefere ficar lá do que aqui. Tenho algo para você levar, quando se for.
Enfiou a mão na camisa, tirou um saco de camurça e, de dentro dele, três mapas encontrados em postos de gasolina. Entregou-os a Dayna, que os examinou com crescente perplexidade. Eles mostravam os sete estados do oeste. Certas áreas estavam sombreadas em vermelho. A chave, escrita à mão ao pé de cada mapa, identificava-as como áreas onde a população voltara a agrupar-se.
- Quer que eu leve esses mapas?
- Quero. Sei como sua gente está, e quero que saibam como se encontra a minha. Como um gesto de boa vontade e boa vizinhança. E quero que diga a eles quando regressar: Flagg não pretende causar danos a eles, que o povo de Flagg nada fará para prejudicá-los. Diga-lhes que não enviem mais espiões. Se querem enviar mais alguém, que seja em missão diplomática... ou intercâmbio de estudantes... ou qualquer droga de outra coisa. Mas que venham abertamente. Dirá isso a eles?
Ela sentia-se aturdida, incrédula.
- Claro, direi a eles, mas...
- Isso é tudo. - Ele ergueu de novo as palmas das mãos, abertas e vazias. Ela viu algo e inclinou-se à frente, descontrolada. - O que está olhando? - perguntou ele, a voz cortante.
- Nada.
Mas ela havia visto e soube, pela expressão restrita no rosto dele, que Flagg sabia disso. Não tinha linhas nas palmas das mãos daquele homem. Elas eram tão lisas e uniformes como a pele da barriga de um bebê. Sem linha de vida, sem linha do amor, sem anéis, braceletes ou alças. Simplesmente... lisas.
Entreolharam-se pelo que pareceu um longo tempo.
Flagg então levantou-se e foi até sua mesa. Dayna também se levantou. Na verdade, começara a crer que ele a deixaria ir. Flagg sentou-se e puxou o interfone para perto de si.
- Direi a Lloyd que troque o óleo, os parafusos e o que mais for necessário na sua moto - disse ele. - Também lhe direi para encher o tanque. Agora ninguém mais precisa esquentar a cabeça com escassez de gasolina ou óleo, não é? Há fartura de tudo. Embora tenha havido um dia... lembro disso, e talvez você também, Dayna... em que parecia como se o mundo inteiro pudesse ser engolfado por uma série de bolas de fogo nucleares por falta de gasolina especial. - Ele sacudiu a cabeça. - As pessoas eram estúpidas demais. - Ele pressionou o botão do intercomunicador. - Lloyd?
- Sim, estou aqui.
- Pode abastecer e preparar a moto de Dayna e deixá-la na frente do hotel? Ela está pronta para partir.
- Sim.
Flagg desligou.
- Tudo resolvido, querida.
- Quer dizer que... que posso ir?
- Perfeitamente, querida. Foi um prazer. - Ele ergueu a mão para a porta... mas com a palma voltada para baixo. Dayna alcançou a porta. Sua mão mal havia roçado a maçaneta quando ele disse: - Tem mais uma coisa. Só... um pequeno detalhe.
Dayna virou-se para fitá-lo. Ele sorria para ela, um sorriso amistoso, porém, por um segundo fugaz, deu a impressão de ser um enorme mastim negro, com a língua se projetando acima de dentes brancos e aguçados capazes de estraçalhar um braço como se fosse um pedaço de trapo.
- O que é?
- Existe mais um enviado do seu povo aqui. Quem poderia ser?
- Como diabos vou saber? - perguntou Dayna e sua mente relampejou: Tom Cullen!... Teria mesmo sido ele?
- Ora, vamos, minha cara. Pensei que agora seríamos francos.
- De fato - disse ela. - Olhe bem para mim e verá que estou sendo sincera paca. O comitê me enviou... e o juiz... e quantos outros mais? E eles tomaram essa precaução, só para que um não pudesse denunciar o outro se algo... acontecesse, você sabe.
- Se decidíssemos arrancar algumas unhas?
- Mais ou menos isso. Fui indicada por Sue Stern. Acho que Larry Underwood... ele também é do comitê...
- Sei quem é o Sr. Underwood.
- Sim, tudo bem, acho que foi ele quem recomendou o juiz. Mas se enviaram outras pessoas... - Ela sacudiu a cabeça. - Poderia ser qualquer um. Ou quaisquer uns. Que me conste, cada um dos sete membros do comitê foi responsável pelo recrutamento de um espião.
- Certo, poderia ser, mas não é. Existe só mais um, e você sabe quem é. - O sorriso de Flagg alargou-se ainda mais e agora começava a assustá-la. Não era uma coisa natural. Começou a lembrar-lhe um peixe morto, água poluída, a superfície lunar vista através de um telescópio. Isto fez sua bexiga se afrouxar, inundada de líquido quente.
- Você sabe - repetiu Flagg.
- Não, eu...
Flagg inclinou-se de novo sobre o interfone.
- Lloyd já se foi?
- Não. Continuo aqui. - Era um interfone caro, de reprodução perfeita.
- Aguarde um pouco a respeito da moto de Dayna - disse Flagg. - Ainda temos uma questão pendente - ele olhou para ela, os olhos reluzindo especulativamente - a ser resolvida aqui - concluiu.
- OK.
O interfone foi desligado. Flagg olhou para ela, sorrindo, as mãos entrelaçadas. Ele a fitou por um interminável momento. Dayna começou a suar. Os olhos dele pareciam ficar maiores, mais escuros. Olhar para eles era como olhar para poços muito mais velhos e muito profundos. Desta vez, ao tentar desviar a vista, não teve sucesso.
- Conte-me - pediu ele, em voz muito suave. - Vamos evitar momentos desagradáveis, minha cara.
De muito longe, ela ouviu sua própria voz dizer:
- Tudo isto foi um roteiro, não foi? Uma pequena peça de um só ato.
- Querida, não sei do que está falando.
- Sabe sim. O erro foi Lloyd responder tão prontamente. Quando você diz "sapo", eles começam a saltar por aí. Ele já devia estar na Strip, na metade do quarteirão, trazendo minha moto, só que você disse a ele para ficar do lado do interfone, já que nunca pretendeu me deixar ir.
- Querida, você é um caso terrível de paranóia infundada. Foi a sua experiência com aqueles homens, suponho. Aqueles com o zoo ambulante. Deve ter sido uma coisa terrível. Isto aqui também poderia ser uma coisa terrível, e não queremos que seja assim, não é?
Ela sentia sua energia sendo drenada, parecendo fluir por suas pernas abaixo em linhas perfeitas de força. Num derradeiro esforço de vontade, crispou a mão direita entorpecida e golpeou-se acima do olho direito. Houve um jato de dor dentro do crânio e sua visão ficou instável. A cabeça foi jogada para trás e bateu na porta com um som oco. Seu olhar desviou-se do dele e sentiu sua vontade retornando. E a energia para resistir.
- Ah, você é bom - disse ela esfarrapadamente.
- Você sabe quem é - replicou ele. Deslizou para fora da mesa e começou a caminhar para ela. - Você sabe e vai me dizer. Golpear-se na cabeça não vai adiantar, minha cara.
- E como é que você não sabe? - Dayna gritou para ele. - Você soube sobre o juiz e soube a meu respeito! Como é que não sabe sobre...
As mãos dele baixaram sobre os ombros de Dayna com força terrível, e eram frias como mármore.
- Quem é?
- Não sei.
Flagg a sacudiu como uma boneca de trapo, seu rosto sorridente, feroz e terrível. Suas mãos eram frias, porém o rosto irradiava o calor de fornalha do deserto.
- Você sabe. Diga-me quem é.
- Por que você não sabe?
- Porque não consigo vê-lo! - rugiu ele, empurrando-a através da sala. Dayna caiu no chão, rolando como uma coisa desossada, e quando viu o rosto perscrutador de Flagg inclinando-se para o seu na penumbra, sua bexiga se soltou enviando calor por suas pernas abaixo. O rosto suave, prestativo e razoável se fora. Randy Flagg se fora. Ela estava agora com o Turista Andarilho, o homem alto, o cara grande, e que Deus se apiedasse dela.
- Você vai dizer - insistiu ele. - Vai me dizer o que quero saber.
Dayna o fitou e, lentamente, se pôs de pé. Sentiu o peso da faca jazendo contra o antebraço.
- Está bem, vou lhe dizer - falou ela. - Chegue mais perto.
Ele deu um passo na direção dela, sorrindo.
- Não, um pouco mais perto. Quero sussurrar no seu ouvido.
Ele se aproximou ainda mais. Ela podia sentir o calor de fornalha, assim como o frio congelante. Havia um cântico alto, atonal, em seus ouvidos. Sentiu cheiro de exalação pútrida, intensa, adocicada, enjoativa. Podia sentir o cheiro da loucura, como vegetais putrefatos em uma despensa escura.
- Mais perto - ela sussurrou foscamente.
Ele deu outro passo. Dayna torceu violentamente o punho direito. Ouviu o clique da mola. O peso aninhou-se em sua mão.
- Tome! - gritou histericamente e ergueu o braço num movimento duro, com intenção de estripá-lo, deixá-lo cambalear pela sala com os intestinos pendurados em alças fumegantes. Em vez disso, ele começou a gargalhar, as mãos na cintura, o rosto brilhante voltado para trás, comprimindo-se e contorcendo-se na maior hilaridade.
- Ah, minha querida! - exclamou e teve outro acesso de gargalhadas.
Ela baixou os olhos estupidamente para a mão. Seus dedos seguravam uma firme banana amarela, ostentando o adesivo azul e branco da marca Chiquita. Horrorizada, deixou-a cair no carpete, onde se tomou uma mímica do sorriso de Flagg, amarelo e doentio.
- Você dirá - sussurrou ele. - Ah, claro que dirá.
E Dayna soube que ele estava certo.
Ela girou rápido, tão rápido que até o homem escuro foi apanhado momentaneamente pela surpresa. Uma daquelas mãos lisas se estendeu e agarrou apenas as costas da blusa, deixando-a com nada mais substancial do que um pedaço de seda.
Dayna saltou para a parede envidraçada.
- Não! - gritou Flagg, e ela pôde senti-lo às suas costas, como um vento negro. Apoiou-se nas panturrilhas, usando-as como pistões, e atingiu a vidraça com o topo da cabeça. Houve um baque surdo de algo se estilhaçando e ela viu pedaços de vidro espantosamente grossos caindo no pátio de estacionamento dos empregados. Rachaduras torcidas, como veios de mercúrio, corriam do ponto onde se dera o impacto. O impulso a fez atravessar o buraco com metade do corpo e ali ficou alojada, sangrando.
Dayna sentiu as mãos dele nos seus ombros e perguntou-se quanto tempo Flagg levaria para obrigá-la a falar. Uma hora? Duas? Tinha impressão de que estava morrendo agora, mas ainda não era bom o suficiente.
Quem eu vi foi Tom, e você não pode senti-lo ou qualquer outra coisa, porque ele é diferente, ele é...
Flagg a puxava para trás.
Dayna matou-se, simplesmente jogando a cabeça com violência para a direita. Uma quina do vidro, afiada como navalha, mergulhou fundo em sua garganta. Outra perfurou-lhe o olho direito. Seu corpo enrijeceu por um momento e as mãos bateram contra a vidraça. Então ficou flácida. O que o homem escuro arrastou de volta para a sala não passava de um saco ensanguentado.
Ela se fora, talvez triunfante.
Extravasando a raiva, Flagg a chutou. O movimento frouxo e indiferente do corpo dela o deixou mais enfurecido ainda. Começou a chutá-la através da sala, gritando, rosnando. Fagulhas saltavam do seu cabelo, como se, em algum ponto dentro dele, um ciclotron zumbisse para a vida, formando um campo elétrico e transformando-o em bateria. Seus olhos chamejaram com fogo escuro. Ele extravasava e chutava, chutava e extravasava.
Lá fora, Lloyd e os outros ficaram lívidos. Entreolharam-se. Por fim, foi mais do que puderam suportar. Jenny, Ken e Whitney acharam melhor se retirar, seus rostos brancos como leite talhado exibiam a cautelosa expressão de pessoas que nada ouviram e tampouco se interessavam em ouvir.
Apenas Lloyd esperou - não porque quisesse, mas por saber o que era esperado dele. E, por fim, Flagg o mandou entrar.
Ele estava sentado sobre a mesa ampla, as pernas cruzadas, as mãos sobre os joelhos dos jeans. Olhava para o espaço por cima da cabeça de Lloyd. Havia uma corrente de ar e Lloyd viu que a parede envidraçada fora partida ao meio. As pontas aguçadas do buraco estavam pegajosas de sangue.
No chão havia uma forma enovelada, vagamente humana, enrolada numa cortina.
- Livre-se dessa coisa - disse Flagg.
- Certo. - A voz dele caiu para um sussurro apagado. - Devo retirar a cabeça?
- Leve para a parte leste da cidade, encharque de gasolina e queime. Você me ouviu? Queime isso! Queime essa porra!
- Tudo bem.
- Sim - disse Flagg e sorriu de modo benigno.
Trêmulo, com a boca seca e quase grunhindo de terror, Lloyd pelejou para erguer o volumoso objeto. O lado de baixo estava pegajoso. O corpo fez um U entre seus braços, escorregou através deles e tornou a cair no chão. Lloyd lançou um olhar aterrorizado para Flagg, porém o homem continuava em sua semipostura de lótus, olhando para fora. Lloyd pegou a coisa de novo, acomodou-a e seguiu em direção à porta.
- Lloyd?
Ele parou e olhou para trás, deixando escapar um pequeno gemido. Flagg estava ainda em semipostura de lótus, mas agora levitava uns 20 centímetros acima da mesa, sem parar de olhar serenamente através do aposento.
- S-s-sim?
- Ainda tem a chave que lhe dei em Phoenix?
- Tenho.
- Mantenha-a ao alcance. A hora está chegando.
- Tu-tudo bem.
Ele esperou, porém Flagg nada mais disse. Continuou levitando na penumbra, com seu truque de faquir hindu capaz de confundir uma mente, olhando para fora, sorrindo complacentemente.
Lloyd saiu rapidamente, feliz como sempre se sentia por estar vivo e lúcido.
Era um dia tranquilo em Las Vegas. Lloyd voltou por volta das duas da tarde, cheirando a gasolina. O vento começava a se elevar e lá pelas cinco ululava acima e abaixo da Strip, produzindo ruídos de uivos espectrais por entre os hotéis. As palmeiras, que começavam a morrer sem que a cidade as regasse em julho e agosto, agitaram-se contra o céu, como esfrangalhados e desbotados estandartes de batalha. Nuvens de formatos estranhos obscureciam o céu.
No Cub Bar, Whitney Horgan e Ken DeMott bebiam cerveja e comiam sanduíches de salada de ovo. Nos arredores da cidade, três senhoras da cidade, três senhoras idosas - as Irmãs Excêntricas, como eram chamadas - tinham uma criação de galinhas, mas nunca parecia haver ovos suficientes. Abaixo de Whitney e Ken, no cassino, o pequeno Dinny McCarthy engatinhava alegremente em cima das mesas de jogo de dados, brincando com um exército de soldados de plástico.
- Veja só que gracinha - disse Ken enternecido. - Alguém me pediu para tomar conta dele por uma hora. Eu bem que tomaria conta do garotinho a semana inteira. Por Deus, eu gostaria que fosse meu filho. Minha esposa teve um, mas morreu prematuro, dois meses antes do tempo. Morreu na incubadora, três dias depois de nascido...
Ergueu os olhos quando Lloyd entrou.
- Ei, Dinny! - chamou Lloyd.
- Óid! Óid! - exclamou Dinny.
O garotinho chegou à borda da mesa de jogo, saltou para o chão e correu na direção de Lloyd, que o pegou no colo, girou com ele e o abraçou com força.
- Tem beijos para Lloyd? - perguntou.
O menino o presenteou com beijos ruidosos.
- Trouxe uma coisa para você - disse Lloyd e tirou do bolso um punhado de barras de chocolate, embrulhadas em papel estanhado.
Dinny riu, deliciado, e agarrou as guloseimas.
- Óid?
- O que é, Dinny?
- Por que tá com cheiro de gasolina?
Lloyd sorriu.
- Estive queimando lixo hoje, meu garoto. Agora vá brincar. Quem é que está sendo sua mamãe hoje?
- Angelina. - Ele pronunciou Angeína. - Depois Bonnie de novo. Gosto de Bonnie. Mas gosto de Angelina também.
- Não diga a ela que Lloyd lhe deu doce. Angelina iria bater em Lloyd.
Dinny prometeu e riu ao pensar em Angelina batendo em Lloyd. Em um minuto ou dois estava de volta à linha demarcatória da mesa de dados, comandando seu exército com a boca entupida de chocolate. Whitney se aproximou, usando seu avental branco. Trazia dois sanduíches e uma garrafa de cerveja gelada para Lloyd.
- Obrigado - disse Lloyd. - Parece coisa fina.
- É pão sírio caseiro - disse Whitney, orgulhoso.
Lloyd mastigou por algum tempo.
- Alguém o viu? - perguntou, afinal.
Ken sacudiu a cabeça.
- Acho que se foi outra vez.
Lloyd pensou a respeito. Lá fora, uma rajada de vento com velocidade acima da média uivou violentamente, soando perdida e solitária no deserto. Dinny ergueu a cabeça, inquieto por um instante, e a seguir recomeçou a brincar.
- Acho que ele está em algum lugar por aí - disse finalmente Lloyd. - Por que, não sei. Mas é o que penso. Creio que está esperando alguma coisa acontecer. Não sei o quê.
Whitney comentou, em voz baixa:
- Será que ele arrancou alguma coisa dela?
- Não - disse Lloyd, olhando para Dinny. - Não creio que tenha conseguido. Alguma coisa não deu certo para ele. Ela... ela teve sorte ou pensou mais rápido do que ele. E isso não ocorre com frequência.
- A longo prazo não fará diferença - disse Ken, mas continuou parecendo preocupado.
- Não, não fará. - Lloyd ficou algum tempo ouvindo o uivo do vento. - Talvez ele tenha retornado a Los Angeles. - Mas ele realmente não achava isso, e sua expressão o comprovava.
Whitney voltou à cozinha e trouxe outra rodada de cerveja. Beberam em silêncio, cheios de pensamentos inquietantes. Primeiro o juiz, agora a mulher. Ambos mortos. E nenhum dos dois falara. Nenhum fora deixado sem marcas, como ele ordenara. Era como se os velhos Yankees de Mantle, Maris e Ford tivessem perdido o campeonato; para eles era difícil acreditar, além de amedrontador.
O vento soprou forte a noite inteira.
NO FINAL DA TARDE DE 10 DE SETEMBRO Dinny brincava no pequeno parque da cidade que fica logo ao norte do distrito de hotéis e cassinos de Las Vegas. Sua "mãe" naquela semana, Angelina Hirschfield, estava sentada num banco do parque, conversando com uma jovem que aparecera na cidade cinco semanas antes, uns dez dias depois da própria Angie ter chegado.
Angie Hirschfield tinha 27 anos. A garota era dez anos mais nova, agora trajando uma apertada bermuda jeans e uma miniblusa bem curta que não deixava absolutamente nada à imaginação. Havia algo de obsceno no contraste entre a postura ereta do corpo da jovem e a expressão infantil, amuada, quase vazia de seu rosto. Sua conversa era monótona e aparentemente sem fim: astros do rock, sexo, seu trabalho sujo, limpando protetores de armamentos em Indian Springs, sexo, seu anel de brilhante, sexo, os programas de TV de que sentia tanta falta, e sexo.
Angie desejava que ela fosse fazer sexo com alguém e a deixasse em paz. Também desejava que Dinny tivesse pelo menos trinta anos antes que lhe coubesse aquela garota como mãe substituta.
Nesse momento, Dinny ergueu os olhos, sorriu e gritou:
- Tom! Ei, Tom!
No outro lado do parque, um homenzarrão de cabelos louros cor de palha vinha caminhando, batendo com uma grande marmita contra sua perna.
- Poxa, o cara parece que está de porre - comentou a jovem com Angie.
Esta sorriu.
- Não, aquele é Tom. Ele apenas...
Dinny porém já corria, gritando a plenos pulmões:
- Tom! Espere, Tom!
Tom se virou, sorrindo.
- Dinny! Ei, ei!
Dinny saltou para Tom, que pousou sua marmita e abraçou-o. Girou-o em tomo.
- Faz avião comigo, Tom! Faz avião!
Tom agarrou Dinny pelos pulsos e começou a girá-lo, cada vez mais depressa. A força centrífuga ergueu o corpo do garotinho até suas pernas ficarem paralelas ao solo. Ele ria de empolgação. Após duas ou três rodadas, Tom o colocou suavemente de pé no chão.
Dinny cambaleou alguns passos, rindo e tentando recuperar o equilíbrio.
- Faz outra vez, Tom! Faz outra vez!
- Não. Você vomita, se eu fizer. E Tom precisa ir para casa. Minha nossa, precisa mesmo.
- Tá bem, Tom. Té logo.
Angie comentou:
- Acho que Dinny gosta de Lloyd Henreid e Tom Cullen mais do que de qualquer outra pessoa na cidade. Tom não é muito bom da cabeça, mas...
Angie olhou para sua companheira e interrompeu-se. A jovem observava Tom, os olhos estreitados, pensativa.
- Ele chegou aqui com outro homem? - perguntou ela.
- Quem, Tom? Não, chegou sozinho, há coisa de uma semana e meia. Estava com aquelas outras pessoas lá na tal Zona Franca, mas elas o expulsaram. Prejuízo deles, lucro nosso, é o que acho.
- Então ele não chegou com um mudinho? Um cara surdo-mudo?
- Surdo-mudo? Não, ele chegou sozinho. Dinny adora ele.
A jovem ficou observando Tom até ele desaparecer. Pensou no frasco de Pepto-Bismol. Pensou em um bilhete garatujado, dizendo: Não precisamos de você. Tinha sido lá no Kansas, mil anos atrás. Ela havia atirado neles. Desejava tê-los matado, principalmente o mudinho.
- Julie? Você está bem?
Julie Lawry não respondeu. Continuava a olhar para o ponto em que Tom Cullen desaparecera. Em um instante, começou a sorrir.
O HOMEM MORIBUNDO ABRIU O CADERNO de notas de capa impermeável, retirou a tampa da caneta, fez uma pausa e começou a escrever.
Era estranho: onde uma vez a caneta correra fluida sobre o papel, parecendo cobrir cada folha de alto a baixo por um processo de benigna magia, as palavras agora dançavam e se atropelavam, as letras saíam grandes e deformadas, como se ele estivesse retrocedendo aos dias do curso primário em sua máquina do tempo particular.
Naquela época seus pais ainda tinham alguma sobra de amor para lhe dar. Amy ainda não desabrochara e nem ficara decidido seu futuro como o Garoto Gordo de Ogunquit e Possível Homossexual. Podia lembrar-se de estar sentado à mesa banhada de sol da cozinha, copiando lentamente um dos livros de Tom Swift, palavra por palavra, em um bloco Blue Horse - folhas de papel-jornal e linhas azuis -, tendo uma Coca a seu lado. Podia ouvir as palavras de sua mãe chegando até ele da sala de estar. Às vezes ela falava ao telefone, outras vezes com algum vizinho.
É só gordura infantil, assim diz o doutor. Não há nada de errado com suas glândulas, graças a Deus. E ele é tão inteligente!
Vendo as palavras crescerem, letra por letra. Vendo as frases crescerem, palavra por palavra, vendo os parágrafos crescerem, cada um deles um tijolo nas paredes do imenso bastião que era a linguagem.
"Vai ser minha maior invenção", dizia Tom vigorosamente. "Vejam o que acontece quando puxo a chapa, mas, pelo amor de Deus, não esqueçam de proteger os olhos!"
Os tijolos da linguagem. Uma pedra, uma folha, uma porta não encontrada. Palavras. Mundos. Magia. Vida e imortalidade. Poder.
Não sei a quem ele puxou, Rita. Talvez seja ao avô. Era ministro ordenado e dizem que pregava sermões maravilhosos.
Vendo as letras melhorarem conforme o tempo passava. Observando-as se ligarem uma à outra, a cópia deixada para trás, agora escrevendo. Pensamentos e tramas reunidos. Assim era o mundo inteiro, afinal, nada senão pensamentos e tramas. Ele ganhara finalmente uma máquina de escrever (e à época não restava muito para ele; Amy estava no ginásio, National Honor Society, chefe de torcida, clube de teatro, sociedade de debates, notas A, aparelhos de ortodontia, e sua melhor amiga era Frannie Goldsmith... e seu irmão com gordura infantil ainda não deslanchara, embora estivesse com 13 anos e passado a usar palavras difíceis como autodefesa, e com um horror lentamente em floração ele tinha começado a perceber o que era a vida, o que era realmente, um grande caldeirão de pagãos, sendo ele o missionário solitário dentro dele, cozinhando em fogo lento). A máquina de escrever revelou o resto disso para ele. Seu progresso a princípio foi lento, muito lento, e os erros constantes o frustravam profundamente. Era como se a máquina estivesse ativamente - mas ardilosamente - opondo-se à sua vontade. Mas quando foi melhorando, começou a entender o que a máquina de fato era - uma espécie de conduto mágico entre seu cérebro e a página em branco que ele lutava para conquistar. Quando sobreveio a supergripe, ele conseguia datilografar mais de cem palavras por minuto, e foi capaz de emparelhar com os pensamentos galopantes e passá-los todos para o papel. No entanto, nunca parara inteiramente de escrever à mão, recordando que Moby Dick fora uma obra manuscrita, assim como A Letra Escarlate e Paraíso Perdido.
A escrita que Frannie tinha visto no seu livro-razão fora desenvolvida ao longo de anos de prática - sem parágrafos, sem linhas quebradas, nenhuma pausa para o olho. Era cansativo - chegava a dar cãibras terríveis na mão -, porém era uma obra de amor. Ele usara a máquina de escrever prazerosa e agradecidamente, mas achava que sempre guardara o melhor de si para a escrita à mão.
E agora transcreveria o seu próprio fim dessa mesma maneira.
Ergueu os olhos e viu abutres voando lentamente em círculos no céu, como algo em um filme de matinê de sábado com Randolph Scott, ou em uma novela de Max Brand. Ele pensou nisso, escrito em uma novela: Harold viu os abutres circulando no céu, à espera. Olhou calmamente para eles por um momento, depois voltou a inclinar-se para o seu diário.
Ele tornou a inclinar-se para o seu diário.
No fim, ele se vira forçado a retornar às letras irregulares que tinham sido o melhor que seu vacilante controle motor pudera produzir no princípio. Recordou dolorosamente a cozinha ensolarada, a Coca gelada, o velho e bolorento livro de Tom Swift. E agora finalmente ele pensou (e escreveu) que poderia ter sido capaz de tornar seu pai e sua mãe felizes. Havia perdido sua gordura infantil. E embora ainda fosse tecnicamente virgem, estava moralmente seguro de não ser um homossexual.
Abriu a boca e grasnou:
- É o topo do mundo, mãe!
Estava na metade da página. Olhou para o que havia escrito, depois olhou para sua perna, que estava torcida e fraturada. Fraturada? Era uma palavra muito branda. Ela estava estraçalhada. Fazia agora cinco dias que estivera sentado à sombra daquela rocha. O resto de seu alimento terminara. Teria morrido de sede na véspera ou antes se não fossem dois fortes aguaceiros. Sua perna estava apodrecendo. Exalava um. cheiro pútrido, gasoso, e a carne inchara a coxa que se apertava contra a calça, retesando o tecido caqui até assemelhar-se a um envoltório de salsicha.
Há muito que Nadine se fora.
Harold pegou o revólver que tinha a seu lado e verificou a carga. Já fizera isto umas cem vezes só naquele dia. Durante as tempestades, tomara o cuidado de manter a arma seca. Ainda havia três balas. Ele disparara as duas primeiras contra Nadine, quando ela olhara para baixo e dissera que ia embora sem ele.
Estavam fazendo uma curva fechada. Nadine no lado de dentro, Harold no lado externo, montado em sua moto Triumph. Encontravam-se no Declive Ocidental do Colorado, a uns 110 quilômetros da divisa com Utah. Havia uma mancha de óleo na parte externa da curva, e desde aquele dia Harold meditara bastante acerca da mancha de óleo. Parecia quase perfeita demais. Mancha de óleo de quê? Claro que nenhum veículo passara por ali nos últimos dois meses. Era tempo de sobra para a viscosidade secar. Era como se o olho vermelho dele tivesse ficado observando-os, esperando o momento oportuno para produzir uma mancha de óleo que tirasse Harold de circulação. Harold acompanharia Nadine no trajeto através das montanhas para o caso da ocorrência de algum problema, mas depois seria carta fora do baralho. Ele já tinha, como se diz, servido a sua finalidade.
A Triumph deslizara de encontro ao guardrail, arremessando Harold por sobre a lateral, como um inseto. Houvera uma dor lancinante na sua perna direita. Chegara a ouvir o estalo do osso ao fraturar-se. Gritou. Então o impensável veio ao seu encontro, o impensável de ver-se caindo, em um ângulo inclinado e perigoso, na direção do abismo abaixo. Ele pôde ouvir o rumor de corredeiras em algum ponto lá no fundo.
Harold bateu no chão, subiu alto no ar, gritou de novo, caiu mais uma vez sobre a perna direita, ouviu-a partir-se em mais um lugar, saiu voando novamente no ar, baixou, rolou e, de repente, foi contido por uma árvore morta, tombada por alguma tempestade de alguns anos atrás. Se a árvore não estivesse ali, ele despencaria no abismo, e então seriam as trutas de montanha que se banqueteariam com sua carne, em vez dos abutres.
Ele escreveu em seu caderno de notas, ainda maravilhado pelas letras desordenadas, de tamanho infantil: Não culpo Nadine. Era verdade. Mas antes ele a culpara.
Chocado, abalado, machucado, a perna direita em cruciante agonia, ele se controlara e rastejara um pouco encosta acima. Muito acima dele, viu Nadine olhando por sobre o guardrail. Tinha o rosto branco e diminuto, um rosto de boneca.
- Nadine! - gritou, sua voz saindo em um grasnido rouco. - A corda! Está em meu alforje esquerdo!
Ela limitou-se a ficar olhando para baixo, para ele. Harold começara a pensar que Nadine não tinha ouvido e estava se preparando para repetir quando a viu mover a cabeça para a esquerda e para a direita. Muito lentamente. Ela negava com a cabeça.
- Nadine! Não vou poder subir sem a corda! Estou com a perna quebrada!
Ela não respondeu. Limitava-se a olhar para ele, lá embaixo, agora nem mesmo sacudindo a cabeça. Harold começou a ter a sensação de encontrar-se em um profundo buraco, de cuja borda ela o observava.
- Nadine, me jogue a corda!
De novo o sacudir de cabeça, tão terrível quanto a porta de uma cripta fechando-se lentamente sobre um homem ainda não morto, nas garras de uma terrível catalepsia.
- NADINE! PELO AMOR DE DEUS!
Por fim, a voz dela chegou até ele, distante mas perfeitamente audível na grande quietude da montanha:
- Tudo isto foi arranjado, Harold. Tenho que partir. Sinto muito.
Contudo, ela não fez menção de ir embora; permaneceu junto ao guardrail, olhando para ele. Já havia moscas provando alvoroçadamente seu sangue sobre as várias rochas onde ele batera e deixara partes de si mesmo.
Harold recomeçou a rastejar para cima, arrastando a perna estraçalhada. A princípio não havia ódio, nenhuma necessidade de meter uma bala na mulher. Só parecia vital que chegasse perto o suficiente para ler a expressão dela.
Passava um pouco do meio-dia. Estava quente. O suor escorria-lhe do rosto e caía nas rochas e seixos agudos que ia escalando. Avançou, arrastando-se para o alto apoiado nos cotovelos e impelindo-se com a perna esquerda, à maneira de um inseto aleijado. A respiração saía rascante pela garganta, como um fole quente. Não fazia ideia de quanto tempo levou assim, mas uma ou duas vezes bateu com a perna fraturada em uma pedra saliente, e a onda gigantesca de dor quase o fez desfalecer. Várias vezes havia escorregado para trás, gemendo em desamparo.
Por fim, tomou-se estupidamente cônscio de que não podia mais avançar. As sombras tinham mudado. Já se haviam passado três horas. Ele não conseguia recordar a última vez em que olhara para o alto, na direção do guardrail e da estrada; talvez tivesse sido uma hora atrás. Em sua dor, absorvera-se inteiramente em qualquer progresso, por mínimo que fosse. Nadine já devia ter partido há um bom tempo.
No entanto, ela continuava lá, e embora só tivesse conseguido avançar uns 7 ou 8 metros, a expressão no rosto de Nadine era diabolicamente clara. Mostrava uma tristeza angustiada, porém os olhos eram foscos e distantes.
Os olhos de Nadine estavam com ele.
Foi então que Harold começara a odiá-la. Ele tateou, procurando o coldre de ombro. O Colt continuava ali, firme mesmo durante sua queda rodopiante, preso pela correia através da coronha. Ele abriu a correia, inclinando o corpo maliciosamente de modo que ela não pudesse ver.
- Nadine...
- É melhor assim, Harold. Melhor para você, porque à maneira dele seria muito pior. Entende isso, não? Você não desejaria encontrá-lo cara a cara, Harold. Ele sente que alguém capaz de trair um lado será capaz também de trair o outro. Ele o mataria, mas primeiro o deixaria louco. Ele tem esse poder. Deixou que eu escolhesse. Desta maneira... ou á maneira dele. Preferi esta. Você pode terminar com tudo rapidamente, se tiver coragem. Sabe o que quero dizer.
Ele checou a munição da arma pela primeira vez em centenas (talvez milhares) de vezes mantendo-a na dobra sombreada de um cotovelo lacerado e esfarrapado.
- E quanto a você? - gritou ele. - Não foi uma traidora também?
A voz dela soou triste:
- Eu nunca o traí em meu coração, Harold.
- Acho que foi exatamente onde você o traiu - gritou Harold para ela. Tentou mostrar grande sinceridade no rosto, mas na verdade estava calculando a distância. Ele daria dois tiros, no máximo. Um revólver era, notoriamente, uma arma incerta. - Creio que ele também sabe disso.
- Ele precisa de mim - disse ela - e eu preciso dele. Você nunca entrou nisto, Harold. E se continuássemos juntos, eu poderia ter... poderia ter deixado que fizesse algo em mim. Aquela coisinha. E isto destruiria tudo. Eu não poderia ter corrido o menor risco de que talvez acontecesse depois de todo o sacrifício, todo o sangue derramado e toda a maldade. Vendemos nossas almas juntos, Harold, porém em mim ainda resta o suficiente para dar todo o valor à minha.
- Eu lhe darei todo o seu valor - disse Harold. Conseguiu se ajoelhar. O sol era causticante. A vertigem apoderou-se dele com mãos rudes, turbilhonando o equilíbrio de giroscópio dentro de sua cabeça. Pareceu-lhe ouvir vozes - uma voz - rugindo era protesto surpreso. Puxou o gatilho. O tiro ecoou, retornou, ricocheteou crepitante de uma face à outra do penhasco, estalejando e se desvanecendo. Uma surpresa cômica se espalhou pelo rosto de Nadine.
Harold pensou, numa inebriada espécie de triunfo: Ela não sabia que eu tinha isto comigo! A boca de Nadine pendeu aberta num chocado e redondo O. Seus olhos estavam dilatados. Os dedos de suas mãos retesaram-se e se ergueram, como se estivessem a ponto de tocar alguma melodia anormal em um piano. Foi um momento tão doce que ele perdeu um ou dois segundos saboreando-o, sem perceber que errara o alvo. Quando se deu conta disso, tentou mirar melhor, agarrando o pulso direito com a mão esquerda.
- Harold! Não! Não pode fazer isso!
Não posso? Apertar um gatilho é apenas uma coisinha. Claro que posso.
Ela parecia chocada demais para se mover, e quando a mira do revólver repousou na concavidade da garganta de Nadine, ele sentiu uma súbita e gélida certeza de que era que assim deveria ser o final de tudo, numa curta enxurrada de violência sem sentido.
Agora a tinha morta diante de seus olhos.
No entanto, ao começar a apertar o gatilho, duas coisas aconteceram. O suor escorreu para seus olhos, duplicando sua visão. E ele começou a escorregar. Mais tarde diria para si mesmo que o cascalho solto cedera, ou que sua perna machucada o atrapalhara - ou as duas coisas. Poderia até ser verdade. No entanto parecera... parecera um empurrão. E nas longas noites entre aquele dia e agora, ele não conseguira convencer-se do contrário. O Harold diurno era teimosamente racional até o fim, mas, à noite, a hedionda certeza o envolvia, a certeza de que o próprio homem escuro o empurrara. O tiro que pretendera enfiar na garganta de Nadine se perdeu no vazio, no alto, amplo e belo e indiferente céu azul. Harold começou a rolar até chocar-se com a árvore morta, a perna direita retorcendo-se e saltitando em uma só lancinante agonia que ia do tornozelo à virilha.
Desmaiou ao se chocar contra a árvore. Quando voltou a si, o crepúsculo se fora, e a luz, três quartos cheia, seguia solenemente acima do abismo. Nadine tinha ido embora.
Harold passou aquela primeira noite em um delírio de terror, certo de que seria incapaz de rastejar de volta até a estrada, certo de que morreria na ravina. Ao raiar do dia, recomeçou a rastejar para o alto, suando e dilacerado pela dor.
Começou por volta das sete horas, mais ou menos quando os enormes caminhões cor de laranja do Comitê de Sepultamentos estariam deixando sua base, lá em Boulder. Por fim, às cinco daquela tarde, conseguiu envolver a mão esfolada e cheia de bolhas no cabo do guardrail. Sua moto continuava ali, e ele quase chorou de alívio. Com uma pressa frenética, tirou algumas latas e o abridor de um dos alforjes. Abriu uma das latas e enfiou a boca vorazmente numa presuntada. O gosto, no entanto, estava horrível e, após uma prolongada luta, vomitou o que comera.
Foi então que começou a compreender o fato irrefutável de sua morte iminente. Ficou ao lado da Triumph e chorou, a perna retorcida debaixo do corpo. Depois disso, conseguiu dormir um pouco.
No dia seguinte, ficou encharcado por um forte temporal, que o deixou todo molhado e tiritando de frio. Sua perna começava a exalar um cheiro de gangrena e esforçou-se para não deixar que o revólver molhasse, abrigando-o com seu corpo. Nessa noite começou a escrever no caderno com capa impermeável e, pela primeira vez, descobriu que sua escrita começava a regredir. Viu-se pensando num conto de Daniel Keys chamado "Flores para Algemon". Nele, um bando de cientistas tinha de algum modo transformado um porteiro retardado mental num gênio... por algum tempo. E então O pobre sujeito começou a perder esta qualidade. Como era mesmo o nome dele? Charley alguma-coisa, certo? Claro, pois esse foi o título do filme que fizera, baseado na obra. Charly. Um filme muito bom, mas não tanto quanto o conto, cheio daquela merda psicodélica dos anos 60, tal como se lembrava, mas ainda assim muito bom. Harold ia muito ao cinema nos velhos dias, e tinha visto mais uma porção de filmes no vídeo da família. Naqueles dias em que o mundo tinha sido o que o Pentágono gostaria de chamar de "alternativa viável". Havia assistido à maioria deles sozinho.
Escreveu no caderno, as palavras emergindo lentamente das letras deformadas:
Eu me pergunto se todos do comitê estão mortos. Se estão, sinto muito. Fui induzido ao erro. Trata-se de uma pobre desculpa para meus atos, mas juro, por tudo quanto conheço, que é a única justificativa que importa. O homem escuro é tão real quanto a própria supergripe, tão real quanto as bombas atômicas que ainda repousam em algum lugar, em seus compartimentos forrados de chumbo. E, quando chegar o fim, quando este for tão terrível como os homens de bem sempre souberam que seria, só há uma coisa a dizer quando todos aqueles homens de bem virem-se diante do Trono do Julgamento: fui induzido ao erro.
Harold releu o que havia escrito e passou sobre a testa a mão fina e trêmula. Não era uma boa desculpa; era péssima. Por mais que quisesse dourá-la, ainda cheirava mal. Alguém que lesse aquele parágrafo após ter lido seu livro-razão sem dúvida o consideraria um tremendo hipócrita. Ele vira a si mesmo como o rei da anarquia, porém o homem escuro enxergara através dele e o reduzira facilmente a um trêmulo saco de ossos agonizando penosamente à beira da estrada. Sua perna tinha inchado como uma câmara de ar, fedia como banana podre, e ele sentado ali com os abutres voejando e mergulhando nas correntes termais acima dele, tentando racionalizar o indizível. Caíra vítima de sua própria adolescência sofrida, tão simples assim. Havia sido envenenado por suas próprias visões letais.
Agonizante, ele teve a sensação de que adquirira alguma lucidez e talvez até mesmo uma certa dignidade. Não queria macular isto com desculpas esfarrapadas que saltassem da página manquejando em muletas.
- Eu poderia ter sido alguém em Boulder - disse baixinho, e a simples e terrível verdade teria causado lágrimas se ele não estivesse tão cansado, tão desidratado. Olhou para as letras garatujadas na página, depois para o Colt. De repente, desejou que tudo acabasse e pensou numa maneira de pôr fim à vida da forma mais verdadeira que pudesse. Isto pareceu-lhe mais necessário do que escrevê-lo e deixá-lo para quem quer que o encontrasse, em um ano ou em dez.
Pegou a caneta, pensou e escreveu:
Peço desculpas pelas coisas destrutivas que fiz, porém não nego que as fiz por espontânea vontade. Em meus trabalhos escolares assinei meu nome como Harold Emery Lauder. Assinei meus manuscritos - coisas deploráveis - da mesma forma. Que Deus me ajude. Um dia o escrevi no teto de um celeiro com letras de um metro de altura. Quero assinar isto com um nome que me deram em Boulder. Não poderia aceitá-lo à ocasião, mas agora o aceito de bom grado.
Vou morrer em perfeito estado de lucidez.
Escrevendo caprichadamente no final, ele colocou sua assinatura: Falcão.
Enfiou o caderno no alforje de sua moto Triumph. Pôs a tampa na caneta e guardou no bolso, fixada pelo prendedor. Enfiou o cano do Colt na boca e contemplou o céu azul. Pensou num jogo que disputavam no seu tempo de criança, um jogo no qual sempre implicavam com ele porque não conseguia ir até o fim. Havia uma cascalheira em uma das estradas vicinais e o garoto tinha que saltar da borda, despencando de uma altura assustadora antes de bater na areia, rolar sobre o corpo para finalmente sair dali e repetir todo o processo.
Todos, exceto Harold. Ele permanecia na borda e contava - Um... dois... três! - tal como os outros, porém o talismã nunca funcionava. Suas pernas permaneciam trancadas. Ele não conseguia se impelir a pular. E os outros às vezes o perseguiam até sua casa, gritando para ele, chamando-o de Harold Maricas.
Ele pensou: Se eu pudesse ter me forçado a pular uma vez... só uma vez... talvez não estivesse aqui. Bem, a última vez vale por todas.
Pensou: Um... dois... TRÊS!
Ele puxou o gatilho.
A arma disparou.
Harold saltou.
AO NORTE DE LAS VEGAS SITUA-SE o Vale do Emigrante, e nessa noite, em sua paisagem agreste, brilhava a luminosidade de uma pequena fogueira. Randall Flagg estava sentado ao lado dela, cozinhando soturnamente a carcaça de um pequeno coelho. Girou-a com firmeza no rústico espeto que tinha feito, vendo-a crepitar e gotejar gordura no fogo. Havia uma brisa leve que soprava o cheiro convidativo para o deserto, de maneira que os lobos apareceram. Estavam sentados a duas elevações da fogueira, uivando para a lua quase cheia e para o cheiro de carne em cozimento. De vez em quando Flagg olhava para eles, e dois ou três lobos começavam a brigar, mordendo, arranhando e escoiceando com as fortes patas traseiras, até que o mais fraco fosse banido. Então, os outros recomeçaram a uivar, os focinhos apontados para a lua inchada e avermelhada.
Mas agora os lobos o entediaram.
Flagg trajava o jeans e as botas surradas, além da jaqueta de pele de ovelha com seus dois broches presos nos bolsos: a face sorridente e a legenda COMO VAI O SEU PORCO? O vento noturno agitava sua gola firmemente.
Flagg não gostava da maneira como as coisas estavam acontecendo.
Havia maus presságios no vento, prognósticos malignos, como morcegos batendo as asas no jirau escuro de um celeiro abandonado. A velha tinha morrido, o que a princípio ele julgara uma boa coisa. Apesar de tudo, sentira medo dela. Ela havia morrido e ele dissera a Dayna Jurgens que morrera em estado de coma... porém seria verdade? Ele não tinha mais certeza.
Teria ela falado, no fim? E, se falara, o que teria dito?
O que eles estariam planejando?
Ele desenvolvera uma espécie de terceiro olho. Era como a aptidão para levitar; algo que possuía e aceitava, mas que realmente não compreendia. Era capaz de transmitir, de ver... quase sempre. Mas às vezes o olho ficava misteriosamente cego. Pudera espiar a câmara mortuária da velha, vira o grupo reunido em torno dela, todos ainda com o rabo entre as pernas devido à pequena surpresa preparada por Harold e Nadine... mas então a visão desaparecera e ele retornara ao deserto, enrolado em seu saco de dormir, olhando para cima e nada mais vendo além de Cassiopeia em sua estrelada cadeira de balanço. E dentro dele uma voz tinha dito: Ela morreu. Eles haviam esperado que ela lhes falasse, mas foi em vão.
Mas já não confiava mais na voz.
Havia a perturbadora questão dos espiões.
O juiz, com sua cabeça explodida.
A garota, que lhe escapara no último segundo. E ela sabia, porra! Ela sabia!
Lançou um súbito olhar furioso para os lobos e quase seis deles entraram em luta, emitindo sons guturais como pano sendo rasgado no silêncio da noite.
Ele conhecia todos os segredos deles... exceto o terceiro. Quem era o terceiro? Tinha mandado o Olho repetidamente para espionar e ele nada lhe trouxera senão a face idiota e enigmática da lua. L-U-A, como se soletra lua.
Quem seria o terceiro espião?
Como a garota lhe pudera escapar? Tinha sido pego inteiramente de surpresa, ficando em sua mão nada mais que um pedaço de sua blusa. Soubera sobre o truque da faca, que era uma brincadeira de criança. Mas não previra o repentino salto contra a parede envidraçada. E o sangue-frio com que ela tirara sua própria vida, sem a menor hesitação. Ela se fora num mero intervalo de segundo.
Seus pensamentos se perseguiam mutuamente, como doninhas na escuridão.
As coisas estavam ficando um tanto confusas em seus contornos. E ele não estava gostando disso.
Lauder, por exemplo. Havia Lauder.
Ele havia se saído excelentemente, como um daqueles brinquedinhos de corda com uma chave nas costas. Vá até ali. Vá até lá. Faça isso. Faça aquilo. Mas a explosão matara somente dois deles - todo aquele planejamento, todo aquele esforço estragados pelo retorno daquela velha negra agonizante. E então... depois que Harold fora descartado... ele quase matara Nadine! Flagg ainda sentia uma raiva espantosa quando pensava nisso. E a puta idiota ainda permanecera lá boquiaberta, esperando que ele tentasse de novo, quase como se quisesse ser morta. E quem iria levar aquilo até o fim, se Nadine morresse?
Quem, a não ser seu filho?
O coelho estava no ponto. Ele o fez deslizar do espeto para seu prato.
- Tudo bem, seus fuzileiros escrotos, vão buscar seu rancho em outro lugar!
Isto o fez gargalhar. Teria sido fuzileiro algum dia? Ele achava que sim. Estritamente de variedade Parris Island, porém. Houvera um garoto, um deficiente, chamado Boo Dinkway. Eles tinham...
O quê?
Flagg franziu o cenho, pensando naquela confusão. Teriam eles surrado o velho Boo no chão com aquelas varas acolchoadas? Torcido seu pescoço de alguma maneira? Ele parecia recordar algo sobre gasolina. Mas o quê?
Com súbita raiva, Flagg quase atirou no fogo o coelho recém-assado. Tinha de ser capaz de recordar tudo aquilo, porra?!
- Vão caçar seu rancho, brigões! - sussurrou, mas desta vez só houve uma vaga lembrança.
Ele estava decaindo. Outrora, havia sido capaz de recordar os anos 60, 70 e 80 como um homem olhando para um lance duplo de escadas que descia para um aposento escuro. Agora só conseguia recordar com clareza os eventos. Além disso, tudo consistia em uma névoa que por vezes se erguia um pouquinho, apenas o suficiente para permitir um relance de algum objeto ou recordação enigmáticos (Boo Dinkway, por exemplo... caso tal pessoa tivesse existido realmente), antes de baixar de novo.
A mais antiga lembrança de que agora podia ter certeza era a de caminhar para o sul pela Nacional 51, rumando para Mountain City e a casa de Kit Bradenton.
De ter nascido. Renascido.
Ele não era mais estritamente um homem, se é que já fora um dia. Assemelhava-se a uma cebola, ao perder lentamente uma camada após outra, uma de cada vez, porém eram os adornos de humanidade que nele pareciam ir sendo descamados: reflexão organizada, memória, possivelmente até o livre-arbítrio... caso existisse tal coisa.
Ele começou a comer o coelho.
Em outros tempos, disso tinha plena certeza, faria uma rápida retirada se as coisas começassem a se complicar. Não agora. Este era o seu lugar, sua época, aqui firmaria o seu posto, aqui faria sua resistência. Pouco importava se ainda não conseguira descobrir o terceiro espião ou que, no final, Harold fugisse ao controle, com a colossal afronta de tentar matar a noiva que fora prometida a ele, a mãe de seu filho.
Em algum ponto do deserto estava aquele estranho Homem da Lata de Lixo, farejando as armas que erradicariam para sempre o problemático e preocupante povo da Zona Franca. Seu Olho não podia seguir Lata de Lixo e, em certo sentido, Flagg o achava mais estranho do que a si mesmo, como uma espécie de sabujo humano que farejava cordite, napalm e gelignite com a mortífera precisão de um radar.
Dentro de um mês, talvez menos, os jatos da Guarda Nacional estariam no ar, tendo uma carga inteira de mísseis acoplada debaixo das asas. Então, quando Flagg tivesse certeza de que sua noiva concebera, eles voariam para o leste.
Ele fitou sonhadoramente a lua que parecia uma bola de basquete e sorriu.
Havia uma outra possibilidade. Acreditava que o Olho a mostraria com o tempo. Ele podia ir até lá, talvez como um corvo, um lobo ou um inseto - um louva-a-deus, possivelmente, alguma coisa bem pequena para esgueirar-se através de um tubo de ventilação cuidadosamente escondido no meio de um trecho de deserto relvado. Então saltaria ou rastejaria através daqueles escuros condutos, deslizando finalmente pela grade do condicionador de ar ou pelas hélices paradas de um exaustor.
O lugar era subterrâneo. Bem perto da fronteira, dentro da Califórnia.
Lá haveria béqueres, fileiras de béqueres, cada um com seu nítido rótulo identificativo: supercólera, superantraz, uma nova e melhorada versão da peste bubônica, todos eles baseados na capacidade de mutação antígena que tornara a supergripe quase universalmente mortal. Haveria centenas dessas coisas naquele lugar; sabores variados, como se costumava dizer na propaganda de drops.
Que tal um pouquinho na água que bebem, pessoal da Zona Franca? Que tal uma bela explosão aérea? Uma adorável doença-dos-legionários no Natal? Ou prefeririam uma nova e melhorada gripe suína?
Que tal Randy Flagg, o Papai Noel negro, em seu trenó da Guarda Nacional, deixando cair uma pequena dose de vírus em cada chaminé?
Ele esperaria, saberia o momento certo quando ele afinal se apresentasse.
Alguma coisa lhe diria.
As coisas iam correr muito bem. Nada de retiradas rápidas dessa vez. Ele estava no topo e era lá que ficaria.
O coelho se fora. Flagg se sentiu novamente saciado de alimento quente. Ficou de pé, o prato de estanho na mão, e atirou os ossos remanescentes no ar noturno. Os lobos avançaram para eles, lutaram por eles, rosnando, mordendo e grunhindo, seus olhos girando foscamente ao luar.
Flagg permaneceu de pé, as mãos nos quadris, e gargalhou ruidosamente para a lua.
Bem cedo na manhã seguinte, Nadine deixou a cidade de Glendale e seguiu pela I-15 pilotando sua Vespa. Os cabelos brancos como a neve, soltos, esvoaçavam atrás dela, parecendo muito com um véu de noiva.
Lamentava pela Vespa, que agora chegava ao fim após tê-la servido fielmente e por tanto tempo. A quilometragem e o calor do deserto, a penosa travessia das Rochosas e a falta de manutenção haviam cobrado seu preço. O motor agora soava rouco e laborioso. A agulha RPM começava a tremer em vez de permanecer docilmente contra o número 5X1000. Não importava. Se o motor pifasse antes de ela chegar, caminharia. Ninguém a perseguia agora. Harold estava morto. E, se tivesse de caminhar, ele saberia e mandaria alguém para recolhê-la.
Harold havia atirado nela! Harold tentara matá-la!
Continuava pensando nisso por mais que tentasse evitar. Sua mente preocupava-se com isso como um cachorro se preocupa com um osso. Não era para ser assim, daquela maneira. Flagg lhe surgira em sonhos naquela primeira noite após a explosão, quando Harold finalmente concordara em que acampassem. Flagg dissera a ela que ia deixar Harold acompanhá-la até que os dois alcançassem o Declive Ocidental, quase em Utah. Então ele seria removido em um acidente rápido e indolor. Uma mancha de óleo na pista. Sem estardalhaço, sem sujeira, sem incômodo.
Só que o acidente não fora rápido nem indolor, e Harold quase a matara. A bala passara a centímetros de seu rosto e ela fora incapaz de se mover. Tinha ficado congelada em choque, se perguntando como Harold poderia ter feito tal coisa, como lhe fora permitido sequer tentar semelhante coisa.
Nadine procurara racionalizar isto dizendo a si mesma que era uma maneira de Flagg assustá-la, de lembrá-la de quem era ela e a quem pertencia. Mas isso não fazia sentido! Era loucura! E mesmo que houvesse algum sentido, uma voz firme e conhecedora dentro dela dizia-lhe que o incidente dos tiros simplesmente fora algo para o qual Flagg não estava prevenido.
Tentou expulsar aquela voz, trancar a porta contra ela, tal como uma pessoa lúcida trancaria a porta contra algum indesejável com intentos homicidas. Mas não conseguiu. A voz lhe disse que continuava viva por mero acaso. Que a bala de Harold poderia ter penetrado facilmente entre seus olhos, e que Flagg nada poderia fazer quanto a isso.
Ela chamou a voz de mentirosa. Flagg sabia tudo, até mesmo onde caíra o mais insignificante pardal...
Não, isso é Deus, replicou a voz, implacável. E ele não é Deus. Você está viva por puro acaso, isto significando que todas as apostas estão quitadas. Você nada deve a ele. Pode dar meia-volta e ir embora, se quiser.
Ir embora, voltar, que piada. Voltar para onde?
A voz pouco tinha a dizer sobre isso. Nadine ficaria surpresa se ela dissesse alguma coisa. Se o homem escuro tinha pés de barro, ela descobrira o fato um tanto tarde demais.
Tentou se concentrar na calma beleza da manhã no deserto, em vez de na voz. No entanto, a voz continuava, tão baixa e insistente que Nadine mal a percebia:
Se ele não sabia que Harold seria capaz de desafiá-lo e tentar matá-la, o que mais ele não sabe? E o tiro errará, da próxima vez?
Só que, ah, Deus, agora é tarde demais. Tarde em dias, semanas, até anos. Por que aquela voz esperara tanto, até ser inútil falar aquilo?
Como em concordância, a voz finalmente silenciou e ela teve a manhã para si mesma. Seguiu em frente sem pensar, os olhos fixos na estrada que se estendia diante dela. A estrada que levava a Las Vegas. A estrada que levava a ele.
A Vespa morreu naquela tarde. Houve um som rangente e metálico em suas entranhas e o motor parou. Nadine sentiu o cheiro de algo quente e anormal, como borracha queimada, subindo da caixa do motor. A velocidade caíra dos 65km/h que vinha fazendo para a de uma caminhada. Levou a Vespa para o acostamento e acionou o arranque algumas vezes, sabendo que era inútil. Ela havia matado o veículo. Havia matado muitas coisas na jornada até seu marido. Fora responsável pela eliminação de todo o Comitê da Zona Franca, além dos seus convidados, naquela derradeira e explosiva reunião. Também havia Harold. E, por falar nisso, não podia esquecer o bebê de Fran Goldsmith, ainda por nascer.
Isso a deixou nauseada. Cambaleou até o guardrail e vomitou seu leve almoço. Sentia-se acalorada, indisposta e delirante, a única coisa viva naquele deserto de pesadelo, calcinado pelo sol. Estava quente... quente demais.
Virou-se, limpando a boca. A Vespa jazia caída de lado, como um animal morto. Nadine contemplou-a por um instante e então começou a andar. Já havia passado por Dry Lake. Isso significava que teria de dormir à beira da estrada à noite, caso ninguém viesse buscá-la. Com alguma sorte, chegaria a Las Vegas pela manhã. De repente, teve certeza de que o homem escuro a faria caminhar. Quando chegasse a Las Vegas estaria faminta, sedenta e queimada pelo calor do deserto, cada última porção da vida antiga expulsa de seu organismo. A mulher que lecionara para criancinhas em uma escola particular da Nova Inglaterra iria desaparecer, tão morta quanto Napoleão. Com sua sorte, a pequena voz que sibilava e a preocupava seria a última parte da velha Nadine a expirar. Mas no final, claro, esta parte também iria embora.
Nadine seguiu caminhando enquanto a tarde avançava. O suor lhe escorria pelo rosto. O horizonte cintilava como mercúrio sempre no ponto em que a estrada se fundia ao céu de zuarte desbotado. Desabotoou a blusa fina e a despiu, ficando apenas com o sutiã de algodão branco. Queimaduras de sol? E dai? Francamente, minha cara, estou pouco ligando.
Ao crepúsculo ela exibia uma terrível tonalidade vermelha, quase púrpura, ao longo das bordas salientes das clavículas. O frescor da noite chegou repentinamente, fazendo-a estremecer e recordando-lhe de que deixara o equipamento de acampar na Vespa.
Olhou em torno em dúvida, vendo carros aqui e ali, alguns deles soterrados na areia móvel até os enfeites do capô. A ideia de abrigar-se em alguma daquelas tumbas metálicas deixou-a nauseada - mais indisposta ainda do que se sentia com a terrível queimadura de sol.
Estou delirando, pensou.
Não que isso importasse. Ela decidiu que caminharia a noite inteira em vez de dormir em um daqueles carros. Se pelo menos ainda estivesse no Meio-Oeste, poderia ter encontrado um celeiro, um monte de feno, um campo de trevo. Um espaço limpo e macio. Aqui havia apenas a estrada, a areia, o chão duro e assado do deserto.
Afastou do rosto os cabelos compridos e, melancolicamente, percebeu que desejaria estar morta.
Agora o sol estava baixo no horizonte, o dia perfeitamente situado entre o claro e o escuro. O vento que agora soprava sobre ela era mortalmente frio. Olhou em tomo, de súbito temerosa.
O frio era demais.
As montanhas de flancos rochosos e íngremes tinham se transformado em monólitos escuros. As dunas de areia eram como apavorantes colossos eretos. Até mesmo os cactos gigantescos, os saguaros, pareciam os espinhosos e esqueléticos dedos acusadores dos mortos, emergindo de seus túmulos rasos para a areia.
No alto, girava a roda cósmica do céu.
Um trecho de uma canção de Dylan ocorreu-lhe, fria e desconfortável: Caçado como um crocodilo... pilhado no milharal...
E logo em seguida, outra canção dos Eagles, de repente assustadora: H eu quero dormir com você no deserto esta noite... com um milhão de estrelas em torno...
Subitamente, ela soube que ele estava ali.
Mesmo antes de ouvir-lhe a voz, ela soube.
- Nadine. - A voz suave dele, brotando da escuridão crescente. Infinitamente suave, o final e envolvente terror, que era como estar chegando ao lar. - Nadine, Nadine... como amo amar você Nadine.
Ela virou-se e lá estava ele, como sempre soubera que estaria um dia, tão simples assim. Estava sentado no capo de um velho seda Chevrolet (estivera lá um momento atrás?, não sabia com certeza, mas não achava que estivesse), as pernas cruzadas, as mãos descansando levemente nos joelhos dos jeans desbotados. Olhando para ela e sorrindo docemente. Seus olhos, porém, não tinham nada de gentis. Eram olhos que desmentiam a ideia de que tal homem pudesse ter algum sentimento gentil. Nadine viu neles uma alegria soturna que dançava incessantemente como as pernas de um homem que transpusera há pouco o alçapão de um cadafalso.
- Olá - disse ela. - Estou aqui.
- Sim. Finalmente está aqui. Como prometido. - O sorriso se ampliou e ele estendeu as mãos para ela. Nadine as tomou e, ao aproximar-se dele, sentiu seu calor escaldante. Ele o irradiava, como um tijolo aquecido de fogão. Suas mãos lisas e sem linhas a envolveram... e então se fecharam com força, como algemas.
- Ah, Nadine - sussurrou ele e inclinou-se para beijá-la. Ela virou a cabeça ligeiramente, contemplando o fogo frio das estrelas, e o beijo dele foi no vão abaixo do queixo em vez de nos lábios. Ele não se deixou enganar. Nadine sentiu a curva zombeteira do riso do homem contra a sua carne.
Ele me repugna, pensou ela.
A repugnância, contudo, era apenas crosta escamosa sobre algo pior - uma luxúria reprimida e por muito tempo contida, uma espinha sem idade que finalmente apresentava um botão prestes a esguichar algum líquido fétido, alguma doçura há muito azedada. As mãos dele, deslizando em suas costas, eram muito mais quentes do que as queimaduras do sol. Ela se moveu contra o homem escuro e, de repente, a esguia sela entre suas pernas pareceu mais fofa, mais cheia, mais tenra, mais cônscia. A costura das calças friccionava-a de um modo delicadamente obsceno que a fazia querer esfregar-se, libertar-se da comichão, curá-la de uma vez por todas.
- Diga-me uma coisa - pediu ela.
- Tudo que quiser.
- Você disse "Como prometido". Quem me prometeu a você? Por que eu? E como devo chamá-lo? Nem mesmo isso eu sei. Soube a seu respeito durante a maior parte de minha vida, porém não sei como chamá-lo.
- Pode me chamar de Richard. É o meu nome verdadeiro. Pode me chamar assim.
- Este é seu verdadeiro nome? Richard? - perguntou duvidosa e ele tornou a rir contra seu pescoço, fazendo-a arrepiar-se de aversão e desejo. - E quem me prometeu?
- Nadine - disse ele. - Eu me esqueci. Venha.
Ele escorregou do capo do carro, ainda segurando as mãos dela, e Nadine quase as puxou e fugiu... mas de que adiantaria? Ele a perseguiria, conseguiria alcançá-la e a violentaria.
- A lua - disse ele. - Está cheia. Tal como eu. - Ele baixou-lhe a mão para a braguilha lisa e desbotada dos jeans e havia ali algo terrível, pulsando com vida própria debaixo da chanfradura gelada do zíper.
- Não - murmurou ela e tentou retirar a mão, pensando no quanto isto se distanciava daquela outra noite enluarada, no quão era impossivelmente distante. Estava agora do outro lado do arco-íris do tempo.
Ele firmou a mão dela contra si.
- Venha para o deserto e seja minha esposa - disse ele.
- Não!
- É tarde demais para recusar, querida.
Ela foi com ele. Havia um saco de dormir e os ossos enegrecidos de uma fogueira de acampamento sob os ossos prateados da lua. Ele a fez deitar-se.
- Está tudo bem - sussurrou o homem escuro. - Tudo bem, então. - Seus dedos manejaram a fivela do cinto, depois o botão, a seguir o zíper.
Nadine viu o que ele tinha para ela e começou a gritar.
O sorriso do homem escuro ampliou-se àquele som, enorme, cintilante e obsceno dentro da noite. A lua olhou para baixo estupidamente, inflada e queixosa.
Nadine soltou um grito após outro e tentou arrastar-se para fugir, mas ele a segurou firme. Ela então manteve as pernas fechadas com todas as forças que pôde reunir, mas quando uma daquelas mãos lisas se inseriu entre elas, ambas se separaram como água e Nadine pensou: Ficarei olhando para cima... olharei para a lua... Nada sentirei e isto terminará... terminará... nada sentirei...
E quando a friagem de morte do homem escuro deslizou para dentro dela, o grito se desgarrou das entranhas de Nadine e explodiu livre. Ela forcejou, mas foi uma luta inútil. Ele a penetrou, invasor, destruidor, o sangue gelado esguichou pelas coxas dela. Mas agora ele a penetrara por completo, por todo o caminho até o útero. E a lua refletia-se nos olhos dela, como um fogo frio e prateado, e quando ele ejaculou foi como ferro fundido, ferro-gusa fundido, bronze fundido. Ela foi sacudida pelo orgasmo, seu prazer foi sentido aos gritos, era um prazer indescritível, um gozo em terror, em horror, atravessando os portais de ferro-gusa e de bronze para a terra desértica da insanidade, lançada através deles, catapultada através deles como uma folha, ao estrondo do riso do homem, enquanto via o rosto dele esmaecer para se tomar agora a face de um demônio, pairando acima da sua, um demônio que tinha como olhos brilhantes lâmpadas amarelas, janelas para um inferno jamais considerado. Mas, ainda assim, havia neles aquele horrendo bom humor, eram olhos que tinham espreitado os becos tortuosos de mil tenebrosas cidades noturnas; aqueles olhos faiscavam, cintilavam, e finalmente ficaram vagos. Ele recomeçou... e mais uma vez... depois outra. Parecia insaciável. Frio. Era mortalmente gélido. E velho. Mais velho que a humanidade, mais velho que a Terra. Diversas vezes ele a invadiu com seu riso trovejante, arrepiante. Terra. Luz. Gozo novamente. O último grito estridente que brotou dela foi aspirado pelo vento do deserto e levado às mais longínquas câmaras da noite, onde mil armas aguardavam o surgimento do novo dono para reclamá-las. Uma cabeça desgrenhada de demônio, uma língua pendente, cortada fundo ao meio, bifurcada. O hálito de morte caiu sobre o rosto dela. Nadine agora se achava na terra da insanidade. Os portões de ferro foram fechados.
A lua...!
A lua já quase descera.
Ele havia capturado outro coelho. Caçara a coisinha trêmula com as mãos e lhe quebrara o pescoço. Fizera um novo fogo sobre os restos do antigo e agora o coelho assava, exalando volutas convidativas de saboroso aroma. Não havia mais lobos. Afinal, aquela era a sua noite de núpcias, e a coisa esgazeada e apática, sentada frouxamente do outro lado da fogueira, era sua ruborizada noiva.
Inclinando-se, ele pegou a mão que ela pousara no colo. Ao soltá-la, a mão permaneceu no ar, erguida ao nível da boca. Ele contemplou o fenômeno por um instante e depois recolocou a mão de volta no colo. Os dedos dela começaram a colear lerdamente, como serpentes agonizantes. Ele espetou dois dedos nos olhos de Nadine e ela nem piscou. Aquela expressão apática não desaparecia.
Ele ficou francamente intrigado.
O que tinha feito a ela?
Não conseguia lembrar.
Pensando bem, não importava. Ela estava grávida. Se também estivesse catatônica, que diferença fazia? Aquela mulher era a incubadora perfeita. Ela conceberia seu filho, o traria ao mundo, depois poderia morrer, concluída a sua utilidade. Afinal, era para isso que estava ali.
O coelho ficou pronto. Flagg o partiu em dois. Partiu a porção dela em pedacinhos, da maneira como se prepara o alimento de uma criança pequena. Alimentou-a, um pedacinho de cada vez. Algumas migalhas lhe caíram da boca, mal mastigadas, porém ela comeu a maior parte. Se continuasse assim, ela iria precisar de uma enfermeira. Jenny Engstrom, talvez.
- Estava muito gostoso, querida - falou suavemente.
Ela ficou olhando apaticamente para a luz. Flagg sorriu com delicadeza para Nadine e depois comeu sua ceia nupcial.
Um bom sexo sempre o deixava faminto.
Ele despertou já quase no fim da noite e sentou-se no saco de dormir, confuso e amedrontado... amedrontado da maneira instintiva e desconhecida como um animal sente medo - um predador que sente que ele também pode ser tocaiado.
Teria sido um sonho? Uma visão...?
Eles estão vindo.
Apavorado, ele tentou entender o pensamento, inseri-lo em algum contexto, colocá-lo em algum contexto. Não conseguiu. A coisa ficou pairando no ar como um feitiço ruim.
Eles estão mais perto agora.
Quem? Quem estava mais perto?
O vento noturno sussurrou ao passar por ele, trazendo-lhe um aroma. Alguém estava vindo e...
Alguém está vindo.
Enquanto dormia, alguém passara por seu acampamento, seguindo para leste. O invisível terceiro? Ele não sabia. Era noite de lua cheia. Teria o terceiro escapado? O pensamento trouxe o pânico com ele.
Sim, mas quem está vindo?
Olhou para Nadine. Ela estava adormecida, enovelada em rígida posição fetal, a posição que seu filho assumiria no ventre dela, dali a alguns meses.
Meses?
Novamente aquela sensação de coisas se tornando escamosas nas bordas. Ele tornou a deitar-se, achando que não conseguiria mais dormir esta noite. Apesar de tudo, dormiu. E ao chegar a Vegas na manhã seguinte estava sorrindo de novo e quase esquecera sua noite de pânico. Nadine sentava-se docilmente no carro a seu lado, uma boneca grande com uma semente escondida cuidadosamente em seu ventre.
Dirigiu ao Grand Hotel MGM e lá descobriu o que havia acontecido enquanto dormia. Viu aquela nova expressão nos olhos deles, cauta e indagadora, e tomou a sentir que o medo o tocava com suas asas frágeis de mariposa.
MAIS OU MENOS NA HORA em que Nadine Cross começava a perceber certas verdades que bem poderiam ter sido evidentes por si mesmas, Lloyd Henreid estava sentado sozinho no Cub Bar, jogando um solitário Big Clock e trapaceando. Estava furioso. Naquele dia ocorrera um incêndio súbito em Indian Springs, do qual resultaram um morto e três feridos, um dos quais provavelmente morreria em consequência das queimaduras. Não tinham ninguém em Las Vegas que soubesse como tratar aquele tipo de queimadura.
Carl Hough trouxera a notícia. Estava completamente transtornado e era um homem que devia ser levado com calma. Havia sido piloto da Ozark Airlines antes da epidemia, era um ex-fuzileiro e poderia quebrar Lloyd ao meio com apenas uma das mãos, enquanto misturava um daiquiri com a outra, se assim quisesse. Segundo Carl, ele tinha matado vários homens durante sua longa e atribulada carreira, e Lloyd tendia a acreditar nele. Não que Lloyd o temesse fisicamente; o piloto era corpulento e durão, porém temia o Turista Andarilho mais do que qualquer outra pessoa no oeste, e Lloyd usava o amuleto de Flagg. No entanto, Carl era um dos seus aviadores e, por isso, precisava ser manipulado com diplomacia. Por curioso que possa parecer, Lloyd tinha algo de diplomata. Suas credenciais eram simples, mas respeitáveis: ele passara várias semanas com um certo louco chamado Poke Freeman e sobrevivera para contar a história. Também havia passado vários meses com Randall Flagg sem que parasse de respirar e continuava com a mente lúcida.
Carl aparecera por volta das duas horas de 12 de setembro, levando o capacete de motociclista debaixo do braço. Tinha uma feia queimadura na face esquerda e bolhas numa das mãos. Houvera um incêndio. Feio, mas não tanto como poderia ter sido. Um caminhão de combustível explodira, entornando petróleo por toda a área alcatroada.
- Muito bem - dissera Lloyd. - Informarei ao chefão. Os feridos estão na enfermaria?
- Sim, estão. Não creio que Freddy Campanari resista até o sol se pôr. Isso nos deixa apenas com dois pilotos, eu e Andy. Diga isto a ele quando voltar. E diga-lhe também mais uma coisa: quero que aquele fedido do Lata de Lixo seja expulso. É o meu preço para ficar aqui.
Lloyd olhou fixamente para ele.
- Seu preço?
- Você ouviu perfeitamente.
- Bem, vou lhe dizer uma coisa, Carl - retrucou Lloyd. - Se pretende dar ordens a ele, faça-o pessoalmente.
Carl pareceu subitamente confuso e um tanto receoso. O medo fixou-se estranhamente em seu rosto abalado.
- Sim, entendo sua posição. Só que estou cansado e fulo da vida, Lloyd. Meu rosto dói como o diabo. Não quero criar problemas para você.
- Tudo bem, cara. É para isso que estou aqui. - Às vezes Lloyd preferia não estar. Sua cabeça já começava a doer.
- Mas ele vai ter que ir embora - continuou Carl. - Se eu tiver que dizer isto a ele, direi. Sei que Lixo usa uma dessas pedras negras. Parece que está bem cotado com o chefão. Mas escute aqui. - Carl depositou o capacete sobre uma mesa de bacará. - Lixo foi o responsável por aquele incêndio. Deus do céu, como é que vamos botar aqueles aviões no ar, se um dos homens do chefão está incendiando a porra dos pilotos?
Várias pessoas que passavam pelo saguão do hotel olharam inquietas para a mesa onde estavam Lloyd e Carl.
- Mantenha a voz baixa, Carl.
- OK. Mas você entende o problema, não entende?
- Como pode ter certeza de que foi Lixo?
- Escute - Carl inclinou-se à frente -, ele estava no galpão de mecânica, certo? Ficou lá por um bom tempo. Muita gente o viu, não apenas eu.
- Pensava que ele estivesse em algum lugar no deserto. Você sabe, procurando armamento.
- Bem, ele voltou, certo? Aquele carro próprio para o deserto, que tinha levado, voltou cheio de material. Deus sabe onde Lixo o arranja. Bem, ele deixou todo mundo gargalhando durante a hora do café. Você sabe como ele é. Para Lixo, material bélico é como doce para criança.
- Isso mesmo.
- A última coisa que nos mostrou foi um daqueles detonadores incendiários. A gente puxa a lingueta e surge uma pequena ignição de fósforo. Depois nada mais acontece por meia hora ou quarenta minutos, dependendo do tamanho do detonador. É então que começa um incêndio dos diabos. Pequeno, mas muito intenso.
- Entendo.
- Assim, quando Lixo estava nos mostrando como funciona a coisa, Freddy Campanari comentou: "Ei, quem brinca com fogo mija na cama, Lixo." E Steve Tobin... você o conhece, ele é engraçado como um guarda-chuva todo furado. Bem, Steve diz: "É melhor esconderem seus fósforos, rapazes. Lixo voltou à cidade." Lixo ficou pau da vida. Olhou pra nós e resmungou qualquer coisa. Eu estava sentado perto dele e tive a impressão de ouvi-lo dizer algo como: "Não me perguntem nunca mais sobre o cheque da velha Sra. Temple." Isto faz algum sentido para você?
Lloyd fez que não com a cabeça. Nada relacionado a Lata de Lixo fazia muito sentido para ele.
- Depois disso, ele foi embora. Recolheu o material que estivera mostrando e deu o fora. Ora, nenhum de nós se sentiu muito bem com isso. Afinal, ninguém pretendia magoá-lo. A maioria do pessoal gosta de Lixo. Ou gostava. Ele é como uma criança, sabe?
Lloyd assentiu.
- Uma hora mais tarde, aquele caminhão de combustível explodiu como um foguete. Enquanto recolhíamos as peças, por acaso ergui o rosto e lá estava Lixo em cima de seu carro do deserto, junto ao prédio da caserna, observando a gente com binóculos.
- Isso é tudo que sabe? - perguntou Lloyd, aliviado.
- Não, não é. Se fosse, nem me teria dado ao trabalho de procurá-lo, Lloyd. Mas fiquei matutando na maneira como aquele caminhão explodiu, tal como se alguém tivesse usado nele um detonador incendiário. No Vietnã, os vietcongues explodiram vários de nossos depósitos de munição dessa maneira, usando nossos próprios detonadores incendiários. Eles os enfiavam debaixo do caminhão, no cano de descarga. Se ninguém ligasse o caminhão, ele explodia quando o dispositivo de tempo fosse expelido. Se alguém desse partida no caminhão, ele explodia quando o cano de descarga esquentasse. De qualquer modo, havia um bum!, e o caminhão já era. A única coisa que não se encaixava era que sempre havia uns 12 caminhões de combustível no galpão, e não costumamos usá-los em qualquer ordem específica. Assim, depois que levamos o pobre Freddy para a enfermaria, John Waite e eu retornamos ao galpão. John é o encarregado do galpão de mecânica e estava puto da vida. Tinha visto Lixo lá dentro mais cedo.
- Ele tinha certeza de que era o Lixo?
- Com todas aquelas queimaduras no braço é difícil haver um erro de identificação, não acha? Bem, ninguém estranhou sua presença lá. Lixo estava apenas bisbilhotando, mas faz parte do trabalho dele, não é?
- É, parece que sim.
- Então, eu e John começamos a vistoriar o resto dos caminhões de combustível e, puta merda, havia um detonador incendiário em cada um deles. Lixo os colocou nos canos de descarga, logo abaixo dos tanques de combustível. O motivo de o caminhão que estávamos usando ter explodido primeiro foi porque o cano de descarga estava quente. Os outros caminhões, no entanto, já estavam sendo preparados. Dois ou três começaram a fumegar. Alguns dos caminhões estavam vazios, mas pelo menos cinco deles se encontravam cheios de combustível para jatos. Mais dez minutos e perderíamos metade da maldita base.
Ah, céus, pensou Lloyd pesarosamente. Isso é realmente grave. Mais grave do que se desejaria.
Carl ergueu a mão cheia de bolhas.
- Ganhei isto puxando um daqueles troços quentes. Entende agora por que ele tem de ir embora?
Lloyd disse, hesitante:
- Talvez alguém tenha roubado os detonadores no seu carro do deserto enquanto ele saiu para mijar ou coisa assim.
Carl replicou pacientemente:
- Não foi como aconteceu. Alguém deve tê-lo deixado magoado quando ele estava mostrando seus brinquedos. E aí Lixo tentou queimar todos nós. E, porra, quase foi bem-sucedido! Alguma coisa tem que ser feita, Lloyd!
- Tudo bem, Carl.
Lloyd passou o resto da tarde perguntando por Lixo - alguém o tinha visto ou sabia onde poderia estar? Expressões cautelosas e respostas negativas. A notícia se espalhara. Talvez até fosse uma boa coisa. Alguém que o visse se apressaria em informar, na esperança de cair nas boas graças do chefão. Mas Lloyd tinha um palpite de que ninguém veria Lixo. Ele lhes dera uma pequena queimadura nos traseiros e se apressara em voltar para o deserto, no seu carro especial.
Lloyd olhou para o jogo de cartas espalhado à sua frente e procurou conter o impulso de empurrar tudo aquilo para o chão. Em vez disso, escamoteou outro ás e continuou jogando. Não fazia diferença. O velho Lixo acabaria enfrentando uma cruz, tal como Hec Drogan. Má sorte, cara.
Mas, no fundo do coração, ele especulava.
Ultimamente vinham acontecendo coisas de que não gostava. Dayna, por exemplo. Flagg soubera sobre ela, era verdade, porém a garota nada falara. Conseguira escapar para a morte, deixando-os na estaca zero acerca do terceiro espião.
Essa era outra questão. Como é que Flagg não tinha sabido sobre o terceiro espião? Ele soubera a respeito do velho bundão, e quando voltara do deserto havia identificado Dayna e lhes dissera exatamente como pretendia lidar com ela. Mas não havia funcionado.
E, agora, o Homem da Lata de Lixo.
Lixo não era um joão-ninguém. Talvez tivesse sido nos velhos dias, mas agora não era mais. Usava a pedra do homem escuro, tal como ele também usava. Depois que Flagg espremera o cérebro daquele advogado tagarela em Los Angeles, Lloyd o vira colocar as mãos nos ombros de Lixo e dizer-lhe suavemente que todos os sonhos tinham sido verdadeiros. E Lixo sussurrara: "Minha vida pela sua."
Lloyd ignorava o que mais se passara entre eles, porém parecia claro que ele vagueava pelo deserto com a bênção de Flagg. E agora Lata de Lixo havia pirado.
O que levantava algumas questões muito sérias.
Era por isso que Lloyd estava sentado ali sozinho às nove da noite, roubando a si mesmo no jogo e desejando estar bêbado.
- Sr. Henreid?
O que era agora? Ele ergueu a vista e viu uma jovem de rostinho bonito, um rostinho de garota mimada. Shorts brancos muito justos. Um bustiê que mal cobria o bico dos seios. Evidentemente, do tipo que só pensa em sexo, mas ela parecia nervosa e pálida, quase doentia. Mordia compulsivamente a unha do polegar e Lloyd reparou que todas as outras estavam roídas.
- O quê?
- Eu... eu preciso ver o Sr. Flagg - disse ela.
O vigor sumiu bruscamente de sua voz, que terminou num sussurro.
- Precisa, hein? O que pensa que sou? Secretário social dele?
- Mas... disseram-me... para procurá-lo.
- Quem disse?
- Bem... foi Angie Hirschfield. Foi ela quem disse.
- Como se chama?
- Hã, Julie. - Ela deu uma risadinha, mas foi apenas um reflexo. O ar assustado nunca abandonava seu rosto, e Lloyd imaginou que tipo de merda tinha batido agora no ventilador. Uma garota como aquela não perguntaria por Flagg a não ser que se tratasse de algo muito grave. - Julie Lawry.
- Bem, Julie Lawry, o Sr. Flagg não se encontra em Las Vegas no momento.
- Quando estará de volta?
- Não sei. Ele vem e vai, e não usa um beeper. Também não me dá satisfações. Se tem algo a revelar, fale comigo e providenciarei para que ele receba seu recado. - Ela o fitou com ar de dúvida e Lloyd repetiu o que dissera a Carl Hough naquela mesma tarde. - É para isso que estou aqui, Julie.
- Tudo bem - disse ela e então concluiu, rápida: - Se for importante, diga a ele que quem lhe contou fui eu, Julie Lawry.
- OK.
- Não vai esquecer?
- Não, pelo amor de Deus! Mas do que se trata?
Ela fez biquinho.
- Bem, não precisa ficar zangado comigo.
Lloyd suspirou e pousou sobre a mesa o punhado de cartas que estivera segurando.
- Não, acho que não estou - disse. - Bem, do que se trata?
- Aquele mudinho. Se ele estiver por aqui, acho que está espionando. Achei que você devia saber. - Os olhos dela brilharam perversamente. - O filho-da-puta me ameaçou com uma arma.
- Que mudinho?
- Bem, eu vi o retardado e imaginei que o mudo devia estar com ele, entende? E eles não são da nossa espécie. Desconfio que devem ter vindo do outro lado.
- É o que você imagina, hã?
- É isso aí.
- Bem, não sei por que cargas d’água você está me falando isso. Foi um longo dia e estou cansado. Se não começar a falar algo que faça sentido, Julie, vou para a cama.
Julie sentou-se, cruzou as pernas e contou a Lloyd sobre seu encontro com Nick Andros e Tom Cullen em Pratt, Kansas, sua cidade natal. Falou sobre o Pepto-Bismol. ("Eu só estava brincando com o coitado, e aquele surdo-mudo me aponta um revólver!") Ela até contou sua tentativa de baleá-los quando deixavam a cidade.
- O que isso prova? - perguntou Lloyd quando ela terminou. Ficara um tanto intrigado com a palavra "espião", mas depois passou a um estado de tédio meio sonolento.
Julie tornou a fazer biquinho e acendeu um cigarro.
- Já lhe disse. Aquele debilóide está aqui agora. E aposto que está espionando.
- Você disse que se chama Tom Cullen?
- Sim.
Ele teve uma vaga lembrança. Cullen era um louro grandão, meio ruim da cabeça, mas certamente não tão perigoso quanto esta cadela no cio queria fazer crer. Tentou em vão puxar um pouco mais pela memória. As pessoas continuavam a afluir a Vegas em bandos de sessenta a cem por dia. Estava ficando impossível manter os números sob controle, e Flagg disse que a imigração ia se tornar um pouco mais maciça antes que finalmente houvesse um controle. Lloyd achou que poderia recorrer a Paul Burlson, que estava mantendo um registro dos residentes de Vegas, e descobrir alguma coisa sobre esse tal de Cullen.
- Você vai prendê-lo? - perguntou Julie.
Lloyd olhou para ela.
- Vou prender é você, se não largar do meu pé - disse.
- Que belo sacana é você! - gritou Julie Lawry, sua voz se erguendo descontroladamente. Ela saltou de pé, olhando para ele. Naqueles shorts brancos e justos de algodão, suas pernas pareciam subir até o queixo. - Eu só tentava lhe fazer um favor!
- Irei verificar.
- É, é isso aí. Já conheço essa história.
Ela se retirou, as nádegas gingando em apertados círculos de indignação.
Lloyd observou-a com certo divertimento cansado e pensando que havia um monte de piranhas como ela no mundo - mesmo agora, depois da supergripe, ele apostava que havia uma boa quantidade delas dando sopa. Fáceis de levar para a cama, mas cuidado com as unhadas depois. Parecidas com aquelas aranhas que devoravam seus parceiros depois do sexo. Dois meses já se haviam passado e ela ainda queria desforrar-se daquele mudo. Como se chamava mesmo? Andros?
Lloyd puxou um surrado caderno de notas preto do bolso de trás, molhou o dedo e folheou-o até uma página em branco. Este bloquinho era a sua agenda e estava repleto de bilhetinhos para si mesmo - que iam desde um lembrete para barbear-se antes de se encontrar com Flagg a um memorando para se fazer um inventário de todo o estoque nas farmácias de Vegas antes que faltasse morfina e codeína. Em breve seria hora de arranjar outro caderninho.
Escreveu na sua letra irregular de homem pouco instruído: Nick Andros ou talvez Androtes - mudo. Está na cidade? E abaixo disso: Tom Cullen, verificar com Paul. Enfiou o caderno de volta no bolso. Sessenta quilômetros a nordeste, o homem escuro havia consumado seu relacionamento de longo prazo com Nadine Cross sob as estrelas cintilantes do deserto. Ele gostaria muito de saber que um amigo de Nick Andros se encontrava em Las Vegas.
Mas ele dormiu.
Lloyd olhou preguiçosamente para seu jogo de paciência, esquecendo de Julie Lawry e seu ódio ao mudo e de sua bundinha empinada. Ele trapaceou mais um ás e seus pensamentos voltaram penosamente para Lata de Lixo e para o que Flagg poderia dizer - ou fazer - quando contasse a ele.
Na hora em que Julie Lawry estava deixando o Cub Bar, achando que não fizera nada mais senão o que considerava o seu dever cívico, Tom Cullen estava de pé junto à janela panorâmica de seu apartamento em outra parte da cidade, olhando sonhadoramente para a lua cheia.
Era hora de ir.
Hora de voltar.
Este apartamento não era como sua casa em Boulder. Era mobiliado, mas não decorado. Ele só colocara um único pôster e um único pássaro empalhado pendendo de uma corda de piano. Este apartamento tinha sido somente um dormitório, e agora era hora de partir. Ele estava contente. Detestava este lugar. Havia uma espécie de odor aqui, um odor seco e bolorento que nunca se conseguia identificar inteiramente. As pessoas em sua maioria eram bondosas e Tom gostava de algumas que lembravam o pessoal em Boulder, gente como Angie e aquele garotinho, Dinny. Ninguém zombara dele por causa de sua deficiência. Tinham-lhe dado um emprego, riam com ele, e na hora do almoço costumavam trocar as marmitas por algo mais de alguém que tivesse uma aparência mais saborosa. Eles eram companheiros legais, não muito diferentes dos caras de Boulder, até onde podia dizer, porém...
Porém eles tinham aquele cheiro entranhado.
Todos pareciam estar esperando e vigiando. Às vezes caíam estranhos silêncios entre eles e seus olhos pareciam turvar-se como se todos tivessem o mesmo sonho inquietante. Faziam coisas sem perguntar por que tinham de fazê-las, e qual era sua finalidade. Parecia que usavam máscaras de gente feliz para ocultar faces de monstros. Tom vira um filme sobre isso certa vez. Aquele tipo de monstro chamado de lobisomem.
A lua moveu-se acima do deserto, espectral, alta e livre.
Tom havia visto Dayna, da Zona Franca. Vira-a uma vez, depois nunca mais. O que acontecera com ela? Também estaria espionando? Teria voltado?
Ele não sabia. Porém sentia medo.
Havia uma pequena mochila na poltrona diante do inútil aparelho de TV a cores do apartamento. A mochila estava cheia de presunto embalado a vácuo, torradas Slim Jims e Saltines. Tom pegou a mochila e a ajeitou nos ombros.
Viajar de noite, dormir de dia.
Saiu para o pátio do edifício sem um único olhar para trás. A lua brilhava tanto que ele lançou uma sombra sobre o piso de cimento rachado onde um dia grandes jogadores haviam estacionado seus carros com placas de outros estados.
Tom Cullen olhou para a moeda fantasmagórica que flutuava lá no céu.
- L-U-A, como se soletra lua - sussurrou ele. - Minha nossa, sim, Tom Cullen sabe o que significa.
Sua bicicleta estava encostada na parede de estuque cor-de-rosa do edifício. Ele parou uma vez para ajeitar a mochila, depois acomodou-se no selim e partiu para a estrada. Por volta das onze da noite já havia deixado Las Vegas e pedalava para leste, pelo acostamento da I-15. Ninguém o viu. Nenhum alarme foi dado.
Sua mente passou para um leve ponto neutro, como quase fazia sempre quando as coisas mais imediatas exigiam cuidados. Ele pedalava com firmeza, cônscio apenas da ligeira brisa noturna acariciando seu rosto suado. De vez em quando precisava dar uma guinada para desviar-se de uma duna que se movera no deserto e espichara um braço branco e esquelético através da estrada - eis como minhas obras são poderosas, e desesperem-se, teria dito Glen Bateman à sua maneira irônica.
Às duas da madrugada ele parou para um pequeno lanche de biscoitos e Kool-Aid, com que enchera a grande garrafa térmica presa na traseira da bicicleta. Depois continuou. A lua estava baixa. Las Vegas foi ficando mais para trás a cada volta dos pneus da bicicleta. Isso o fazia sentir-se bem.
No entanto, às 4h15 daquela madrugada de 13 de setembro, um grande vagalhão de medo o envolveu. Um medo ainda mas aterrorizante por ser inesperado, por sua aparente irracionalidade. Tom teria gritado, porém suas cordas vocais ficaram subitamente congeladas, trancadas. Os músculos das pernas que pedalavam se afrouxaram e ele estacionou à beira da estrada, sob as estrelas. O negativo em preto-e-branco do deserto estendia-se cada vez mais lentamente.
Ele estava perto.
O homem sem rosto, o demônio que agora caminhava pela terra.
Flagg.
O homem alto, chamavam-no. O homem sorridente, Tom o chamava em seu coração. Só que quando aquele sorriso baixava sobre alguém, todo o sangue da pessoa parava de correr, deixando a carne fria e cinzenta. O homem que podia olhar para um gato e fazê-lo vomitar os bolos de pêlos que engolira. Se ele caminhasse através de um edifício em construção, os operários martelariam seus próprios polegares, colocariam as telhas ao contrário, caminhariam como sonâmbulos pelas vigas e...
... e ah meu Deus ele estava acordado!
Um gemido escapou da garganta de Tom. Ele podia sentir o súbito despertar. Parecia ver/sentir um Olho se abrindo na escuridão da madrugada, um terrível Olho vermelho que ainda estava estremunhado e pesado de sono. Estava girando na escuridão. Procurando. Procurando por ele. Sabia que Tom Cullen estava ali, mas ignorava onde.
Entorpecidamente, seus pés encontraram os pedais e ele pedalou, cada vez mais rápido, inclinando-se sobre o guidom a fim de reduzir a resistência do vento, ganhando velocidade até quase estar voando ao longo da estrada. Se houvesse algum carro destroçado em seu caminho, Tom teria pedalado vertiginosamente contra ele, talvez até morrendo na colisão.
Porém, aos poucos começou a sentir que a presença escura e quente ia ficando para trás. E o mais maravilhoso de tudo era que aquele terrível Olho se virara em sua direção, passara acima dele sem o ver (talvez porque me inclinei tanto sobre o guidom, raciocinou Tom Cullen incoerentemente)... e então se fechara.
O homem escuro tinha voltado a dormir.
O que sente o coelho quando a sombra do falcão cai sobre ele como um escuro crucifixo... e então segue em frente, sem parar ou diminuir a velocidade do voo? O que sente o rato quando o gato que esteve pacientemente à espreita junto ao seu buraco, o dia inteiro, é erguido pelo dono e atirado sem cerimônia pela porta da frente? O que sente o cervo quando passa cautelosamente por perto do poderoso caçador, que cochila sob o efeito das três cervejas que tomou no almoço? Talvez eles nada sintam ou sintam o mesmo que Tom sentiu quando pedalava para longe da negra e perigosa esfera de influência: uma imensa e quase eletrificante irradiação de alívio; uma sensação de renascimento. E, acima de tudo, a sensação da segurança alcançada por um triz, uma sorte tão grande que, por certo, devia ter sido um sinal dos céus.
Ele pedalou sem parar até as cinco da manhã. À sua frente, o céu adquiria o tom azul-escuro mesclado com o dourado do alvorecer. As estrelas iam desaparecendo.
Estava quase na hora de Tom parar. Ele seguiu um pouco mais à frente, depois localizou um inclinado declive, uns 70 metros à direita da auto-estrada. Empurrou a bicicleta para lá. Consultando os tiquetaques e engrenagens do instinto, recolheu suficiente relva seca e algarobo para cobrir a maior parte da bicicleta. Havia duas enormes rochas, reclinadas uma contra a outra, a uns 10 metros da bicicleta. Tom rastejou para o bolsão de sombra abaixo delas, colocou o blusão sobre a cabeça e adormeceu quase de imediato.
O TURISTA ANDARILHO ESTAVA de volta a Vegas.
Havia chegado por volta de nove e meia da manhã. Lloyd o vira chegar. Flagg também o vira, mas não lhe dera importância. Estava cruzando o saguão do MGM Grand, conduzindo uma mulher. Cabeças se viraram para fitá-la, apesar da aversão quase unânime de todos em olhar para o homem escuro. Os cabelos da mulher eram inteiramente brancos, brancos como a neve. Ela apresentava uma terrível queimadura de sol, tão intensa que Lloyd pensou nas vítimas do combustível em chamas lá em Indian Springs. Cabelos brancos, queimadura horrível, olhos inteiramente vazios, que pareciam fitar o mundo com uma expressão além da placidez, além até mesmo do idiotismo. Lloyd já vira olhos semelhantes uma vez. Em Los Angeles, depois que o homem escuro acabara com Eric Strellerton, o advogado que quisera ensinar a Flagg como conduzir as coisas.
Flagg não olhou para ninguém. Ele sorria. Levou a mulher até o elevador e a fez entrar. As portas deslizaram, fechando-se atrás deles, e os dois subiram para o último andar.
Nas seis horas seguintes Lloyd ocupou-se em organizar tudo, a fim de estar preparado para quando Flagg o chamasse e pedisse um relatório. Concluiu que tudo estava sob controle. O único item a resolver era procurar Paul Burlson e descobrir tudo que ele possuísse sobre o tal Tom Cullen, apenas para o caso de Julie Lawry ter realmente levantado alguma pista. Lloyd não achava isso muito provável, mas com Flagg era sempre melhor prevenir do que remediar. Muito melhor.
Ergueu o fone e aguardou pacientemente. Após alguns momentos, ouviu um clique e a voz de Shirley Dunbar, carregada com sotaque do Tennessee.
- Telefonista!
- Oi, Shirley. Aqui é Lloyd.
- Lloyd Henreid! Como é que vai?
- Não de todo mal, Shirl. Pode tentar o 6214 para mim?
- Paul? Ele não está em casa. Foi para Indian Springs. Acho que posso alcançá-lo para você na Base Ops.
- OK, pode tentar.
- Deixa comigo. E aí, Lloyd, quando é que você vai aparecer e provar do meu bolo de café? Asso um a cada dois, três dias.
- Em breve, Shirley - disse Lloyd, fazendo uma careta. Shirley era uma quarentona... e tinha uma queda por Lloyd. Ele aguentara um bocado de gozação por causa dela, especialmente de Whitney e Ronnie Sykes. Mas Shirley era uma excelente telefonista, capaz de operar prodígios com o sistema telefônico de Las Vegas. Ter os telefones em funcionamento - pelo menos os mais importantes, de qualquer modo - tinha sido a primeira prioridade deles depois da energia elétrica, mas a maioria do equipamento de ligação automática havia queimado, e agora estavam de volta ao equivalente a latas de estanho e montes de barbante encerado. Havia também uma constante inatividade. Shirley lidava com o que havia para utilizar com habilidade excepcional e era paciente com as três ou quatro telefonistas aprendizes.
Não bastasse tudo isso, ainda fazia um excelente bolo de café.
- Muito em breve, mesmo - acrescentou Lloyd e pensou em como seria ótimo se pudesse juntar o corpo firme e bem torneado de Julie Lawry com a perícia e a natureza gentil e complacente de Shirley Dunbar.
Shirley pareceu satisfeita. Houve uma série de chiados e crepitações na linha, bem como um uivo agudo e ecoante, que o fez afastar o fone do ouvido com uma careta. Então ouviu a campainha tocar no outro lado da linha, numa série de roucos zumbidos.
- Aqui é Bailey, Base Ops - disse uma voz diminuta na distância.
- Quem fala é Lloyd - berrou ele ao fone. - Paul está aí?
- Haul o quê, Lloyd? - perguntou Bailey.
- É Paul! Paul Burlson!
- Ah, ele! Sim, está aqui, tomando uma Coca.
Houve uma pausa. Lloyd começou a pensar que a frágil ligação caíra, quando então Paul atendeu.
- Vamos ter que gritar, Paul. A ligação está uma merda. - Lloyd não estava inteiramente certo de que Paul Burlson tivesse capacidade pulmonar para gritar. Era um homenzinho mirrado com óculos fundo-de-garrafa e alguns o chamavam de Sr. Frio, porque insistia em usar terno completo todos os dias, apesar do calor escaldante de Las Vegas. Mas era um bom elemento como funcionário de informação, e Flagg dissera a Lloyd, num de seus estados de ânimo expansivos, que, por volta de 1991, Burlson seria o chefe da polícia secreta. E ele era boooom demais nisso, acrescentara Flagg com um cordial e animado sorriso.
Paul esforçou-se para falar um pouco mais alto.
- Tem o seu registro com você? - perguntou Lloyd.
- Sim. Eu e Stan Bailey estávamos às voltas com um programa de trabalho rotativo.
- Poderia me informar alguma coisa sobre um sujeito chamado Tom Cullen?
- Espere um pouco. - Houve uma segunda pausa de dois ou três minutos e Lloyd começou a imaginar que a ligação caíra. Então ouviu a voz de Paul. - Certo, Tom Cullen... está na linha, Lloyd?
- Estou bem aqui.
- A gente nunca tem certeza, com os telefones neste estado. Cullen tem entre 22 e 35 anos. Nem mesmo ele sabe ao certo. Tem um ligeiro retardo mental. Possui algumas aptidões para o trabalho. Nós o colocamos na turma de limpeza.
- Há quanto ele está em Vegas?
- Pouco menos de três semanas.
- Veio do Colorado?
- Sim, mas temos aqui umas 12 pessoas que tentaram ficar lá e não gostaram. Eles expulsaram este sujeito. Estava tendo sexo com uma mulher normal e, segundo suponho, recearam que transmitisse seu retardo mental a um possível filho - disse Paul, rindo.
- Tem o endereço dele?
Paul forneceu-lhe o endereço e Lloyd o anotou em seu bloquinho.
- Isso é tudo, Lloyd?
- Tenho mais um nome, caso você disponha de tempo.
Paul riu, uma risadinha de homem pequeno.
- Claro, estou em minha pausa para o café.
- O nome é Nick Andros.
Paul respondeu no ato:
- Tenho esse nome em minha lista vermelha.
- Sério? - Lloyd pensou o mais velozmente que pôde, o que distava muito da velocidade da luz. Não fazia a menor ideia do que seria essa "lista vermelha". - Quem lhe forneceu esse nome?
Exasperado, Paul respondeu:
- Quem você acha que foi? A mesma pessoa que forneceu todos os nomes que constam na lista vermelha!
- Ah, claro. - Lloyd despediu-se e desligou. Com toda aquela ligação horrível era impossível conversar banalidades e, por outro lado, ainda tinha muito em que pensar para ficar perdendo tempo.
Lista vermelha.
Nomes que Flagg fornecera a Paul e a mais ninguém, ao que parecia - embora Paul presumisse que Lloyd estivesse a par. Lista vermelha. O que significaria? Vermelho quer dizer "pare".
Vermelho significava perigo.
Lloyd ergueu de novo o fone do gancho.
- Telefonista!
- É Lloyd outra vez, Shirl.
- Bem, Lloyd, você...
- Shirley, não posso bater papo. Estou envolvido numa coisa que talvez seja das grandes.
- OK, Lloyd. - A voz de Shirley perdeu o tom coquete e ela ficou toda profissional de repente.
- Quem está de serviço na Segurança?
- Barry Dorgan.
- Consiga-o para mim. E eu nunca liguei para você.
- Sim, Lloyd. - Ela soava receosa agora. Lloyd também estava com medo, mas igualmente excitado.
Um momento depois, Dorgan estava na linha. Era um bom homem, pelo que Lloyd se sentia profundamente grato. Muitos homens do tipo Poke Freeman gravitavam em tomo do departamento de polícia.
- Quero que capture alguém para mim - disse Lloyd. - Pegue-o vivo. Preciso dele vivo, mesmo que você perca homens nisso. O nome é Tom Cullen e provavelmente você o achará em casa. Traga-o para o Grand. - Deu o endereço de Tom e fez com que Barry o repetisse.
- É importante, Lloyd?
- Muito importante. Faça o serviço direito e alguém maior que eu ficará satisfeito com você.
- OK. - Barry desligou e Lloyd fez o mesmo, esperando que Barry houvesse entendido o contrário: Se estragar a parada, alguém vai ficar muito puto com você.
Barry ligou de volta uma hora mais tarde para dizer que estava certo de que Tom Cullen se escafedera.
- Seja como for - continuou Barry -, o cara é retardado e não sabe dirigir, nem mesmo uma motoneta. Se está indo para o leste, não deve ter passado de Dry Lake. Podemos pegá-lo, Lloyd, sei que podemos. É só me dar sinal verde. - Barry estava babando. Era uma das quatro ou cinco pessoas em Las Vegas que sabia dos espiões, e tinha lido os pensamentos de Lloyd.
- Deixe-me pensar a respeito - respondeu Lloyd e desligou antes que Barry pudesse protestar. Lloyd tivera um poder de raciocínio muito maior do que imaginara possível na época anterior à gripe, mas sabia que a coisa que tinha nas mãos era grande demais para ele. Além do mais, aquela história de lista vermelha o perturbava. Por que não fora informado sobre ela?
Pela primeira vez desde seu encontro com Flagg em Phoenix Lloyd teve a inquietante sensação de que sua posição podia ser vulnerável. Havia segredos que tinham sido guardados. Provavelmente, ainda poderiam capturar Cullen; Carl Hough e Bill Jamieson poderiam pilotar os helicópteros do Exército que estavam no hangar de Indian Springs e, se tivessem que voar, conseguiriam fechar cada estrada que partisse de Nevada para o leste. Afinal, o sujeito não era nenhum Jack, o Estripador, ou o Dr. Octopus; não passava de um retardado em fuga. Mas, droga, se já tivesse sabido sobre o tal Andros, quando Julie Lawry viera procurá-lo, teriam conseguido pegar Cullen em seu pequeno apartamento ao norte de Vegas.
Em algum lugar dentro dele uma porta se abria, deixando penetrar uma gélida brisa de medo. Flagg tinha sido logrado. E era bem capaz de desconfiar de Lloyd Henreid. O que era uma merda federal.
Ainda assim, ele deveria ter sido informado a respeito. Lloyd não pretendia assumir pessoalmente a decisão de dar início a outra caçada humana. Não depois do que tinha acontecido com o juiz. Levantou-se para ir até os telefones internos e encontrou Whitney Horgan, que vinha de lá.
- É o homem, Lloyd - disse ele. - Quer falar com você.
- OK - respondeu Lloyd, surpreso com o tom calmo de sua voz, pois o medo em seu íntimo era imenso. E, acima de tudo, era importante recordar que há muito teria morrido de fome em sua cela lá em Phoenix se não fosse Flagg. Não fazia sentido enganar a si mesmo; ele pertencia ao homem escuro, de corpo e alma.
No entanto, não posso realizar meu trabalho se ele me sonega informações, pensou, caminhando para o elevador. Entrou, apertou o botão da cobertura e o elevador subiu rapidamente. Veio de novo aquela sensação. O terceiro espião estivera lá o tempo todo, e Flagg não soubera.
- Entre, Lloyd. - O rosto indolente e risonho de Flagg surgia de um prosaico roupão de banho em xadrez azul.
Lloyd entrou. O ar-condicionado estava no máximo, e a sensação era de penetrar numa suíte ao ar livre na Groenlândia. Mesmo assim, quando passou ao lado do homem escuro, Lloyd pôde sentir o calor que ele irradiava. Era como estar num cômodo que abrigasse uma pequena mas potente fornalha.
Sentada no canto, em uma cadeira branca de lona, estava a mulher que chegara com Flagg naquela manhã. Seu cabelo fora cuidadosamente penteado para cima e ela trocara de roupa. O rosto era apático e distante. Ao olhar para ela, Lloyd sentiu um forte calafrio. Na adolescência, ele e alguns amigos certa vez tinham roubado um pouco de dinamite de uma obra, que acenderam e jogaram no lago Harrison, onde ocorreu a explosão. Os peixes mortos que afloraram à superfície depois disso tinham nos olhos aquela mesma expressão de terrível e vítrea imparcialidade.
- Eu gostaria de apresentar-lhe Nadine Cross - disse Flagg suavemente atrás dele, fazendo-o sobressaltar-se. - Minha esposa.
Espantado, Lloyd olhou para Flagg, mas encontrou apenas aquele sorriso zombeteiro, os olhos que dançavam.
- Minha querida, este é Lloyd Henreid, meu braço-direito. Eu e Lloyd nos conhecemos em Phoenix, onde ele estava preso e, conseqüentemente, prestes a jantar um companheiro de infortúnio que havia morrido. Confere, Lloyd?
Lloyd enrubesceu sem esboçar reação e nada respondeu, embora a mulher estivesse aturdida ou no mundo da lua.
- Estenda a mão, minha querida - disse o homem escuro.
Como um robô, Nadine estendeu a mão. Seus olhos continuaram a fitar com indiferença um ponto acima do ombro de Lloyd.
Céus, isto é assustador, pensou Lloyd. Uma leve camada de suor cobriu-lhe todo o corpo, apesar do ar-condicionado no máximo volume. Ainda assim, conseguiu articular um canhestro "Muito prazer", e apertou a macia e cálida carne da mão dela. Depois, precisou conter uma forte ânsia de enxugar a própria mão na perna da calça. A mão de Nadine continuou pendendo frouxa no ar.
- Pode baixar sua mão, meu amor - disse Flagg.
Nadine devolveu a mão ao colo, onde começou a se contorcer e a girar. Com algo semelhante a horror, Lloyd percebeu que ela se masturbava.
- Minha esposa está indisposta - disse Flagg e deu uma risadinha abafada. - Também está a caminho de formar uma família, como se diz. Me dê os parabéns, Lloyd. Vou ser papai.
Novamente aquela risadinha: o som era igual a leves pisadas de ratos, precipitando-se em fuga por trás de uma velha parede.
- Parabéns - disse Lloyd através de lábios azulados e entorpecidos.
- Podemos trocar todos os nossos segredinhos na frente de Nadine, não é mesmo, querida? Ela é silenciosa como um sarcófago. Para falar a verdade, é a própria múmia. Bem, o que me diz sobre Indian Springs?
Lloyd pestanejou e tentou manejar suas engrenagens mentais, sentindo-se exposto e na defensiva.
- Está indo tudo bem - conseguiu dizer.
- Indo bem? - O homem escuro inclinou-se para ele e por um momento Lloyd teve certeza de que ele ia abrir a boca e arrancar sua cabeça com uma mordida. Encolheu-se. - Eu dificilmente consideraria isto uma análise profunda, Lloyd.
- Há outras coisas...
- Quando quero falar de outras coisas, eu pergunto por elas. - A voz de Flagg estava se elevando, tornando-se desconfortavelmente próxima de um grito. Lloyd nunca vira uma mudança de temperamento tão radical, e isto o deixou trêmulo de pavor. - Quero exatamente agora um relatório sobre a condição de Indian Springs e espero que o tenha na ponta da língua. Para seu próprio bem, é melhor que o tenha!
- Tudo bem - murmurou Lloyd. - OK. - Tirou o bloquinho do bolso e durante meia hora falaram sobre Indian Springs, os jatos da Guarda Nacional e os mísseis. Flagg começou a relaxar novamente, embora fosse difícil dizer e fosse péssima ideia tomar qualquer coisa como garantida quando se lidava com o Turista Andarilho.
- Acha que os pilotos poderão sobrevoar Boulder em duas semanas? Digamos... por volta de 1º de outubro?
- Imagino que Carl poderia - disse Lloyd duvidosamente. - Quanto aos outros, não sei.
- Eu os quero preparados - murmurou Flagg. Ele se levantou e começou a caminhar pelo aposento. - Quero aquela gente escondendo-se em buracos quando chegar a primavera. Quero atacá-los à noite, enquanto estiverem dormindo. Arrasar aquela cidade de ponta a ponta. Quero deixar Boulder que nem Hamburgo e Dresden na Segunda Guerra Mundial. - Ele voltou-se para Lloyd e seu rosto era um pergaminho branco no qual brilhavam olhos incandescentes. Seu sorriso cortava como uma cimitarra. - Ensinarei a eles o que acontece com quem manda espiões. Estarão vivendo em cavernas quando a primavera chegar. Então, os caçaremos como porcos. Aprenderão no que dá enviar espiões.
Lloyd por fim encontrou sua língua.
- O terceiro espião...
- Nós o encontraremos, Lloyd. Não se preocupe com isso. Pegaremos o sacana. - O sorriso voltou, sombriamente sedutor. Mas percebera um segundo de medo perplexo e irado antes que o sorriso reaparecesse. E medo era uma expressão que jamais vira em Flagg.
- Já sabemos quem é ele - disse Lloyd, baixinho.
Flagg estivera girando uma estatueta de jade nas mãos, examinando-a. Agora suas mãos se imobilizaram. Ele ficou completamente imóvel, e seu rosto foi tomado por uma singular expressão de concentração. Pela primeira vez Nadine Cross desviou os olhos, pousando-os em Flagg e depois afastando-os. O ar na sala pareceu ficar denso.
- O quê?! O que foi que disse?
- O terceiro espião...
- Não - disse Flagg, com repentina decisão. - Você está vendo miragens, Lloyd.
- Segundo me consta, ele é amigo de um cara chamado Nick Andros.
A estatueta de jade caiu por entre os dedos de Flagg e estilhaçou-se no chão. Um momento depois, Lloyd foi erguido da cadeira, agarrado pela peito da camisa. Flagg atravessara a sala em tal velocidade que ele nem mesmo o vira. Então o rosto de Flagg estava quase encostado no seu, aquele terrível e doentio calor o queimava, e os olhos negros de doninha estavam a centímetros dos seus.
Flagg gritou:
- E você fica sentado aí, falando sobre Indian Springs? Eu devia jogar você por aquela janela!
Alguma coisa - talvez fosse o fato de ver o homem escuro vulnerável, talvez fosse apenas a certeza de que Flagg não o mataria até obter toda a informação - permitiu a Lloyd encontrar a língua e falar em defesa própria.
- Eu tentei lhe dizer! - gritou ele. - Você não deixou! E me manteve por fora da tal lista vermelha, o que quer que seja! Se eu tivesse acesso à lista, poderia ter apanhado o maldito retardado ontem à noite!
Então, ele foi arremessado através do aposento até chocar-se contra a parede mais distante. Estrelas explodiram em sua cabeça e ele caiu no piso encerado, aturdido. Sacudiu a cabeça, tentando clareá-la. Havia um zumbido alto em seus ouvidos.
Flagg parecia enlouquecido. Dava passadas nervosas pela sala, o rosto pálido de raiva. Nadine se encolhera em sua cadeira. Flagg se aproximou de uma prateleira de quinquilharias, povoada por um zoológico de animais em jade verde leitoso. Olhou para eles por um segundo, parecendo quase intrigado pelas peças, depois sua mão varreu tudo para o chão, onde os animais se estilhaçaram como diminutas granadas. Chutou os pedaços maiores com um pé descalço, jogando-os para cima. Seus cabelos pretos tinham caído sobre a testa. Ele os jogou para trás com um gesto brusco da cabeça e então se virou para Lloyd. Em seu rosto havia uma grotesca expressão de simpatia e compaixão - as duas emoções, em tudo e por tudo tão reais quanto uma nota de 3 dólares, pensou Lloyd. Caminhou até Lloyd para ajudá-lo a levantar-se. Lloyd notou que ele pisara em vários cacos aguçados de jade quebrado sem qualquer sinal de dor... e sem sangrar.
- Sinto muito - disse ele. - Vamos tomar um drinque. - Ofereceu a mão e ajudou Lloyd a ficar de pé. Como uma criança tendo um acesso de raiva, pensou Lloyd. - O seu é bourbon puro, não é?
- Está ótimo.
Flagg foi até o bar e preparou drinques gigantescos. Lloyd bebeu metade do seu num só gole. O copo chocalhou brevemente no tampo da mesa quando o depositou. Agora, no entanto, sentia-se um pouco melhor.
Flagg começou:
- A lista vermelha é algo que imaginei que você nunca precisaria usar. Havia oito nomes nela... cinco agora. Eram nomes do conselho governante deles mais o da velha. Andros era um deles. Mas está morto agora. Sim. Andros está morto, tenho certeza. - Fitou Lloyd com olhos apertados, malévolos.
Lloyd relatou-lhe a história, recorrendo vez por outra ao bloquinho de notas. Realmente não precisava dele, mas era bom, de vez em quando, para afastar a vista daquele olhar. Começou com Julie Lawry e terminou com Barry Dorgan.
- Você disse que ele é retardado - murmurou Flagg.
- Exatamente.
A felicidade espalhou-se pelo rosto de Flagg e ele começou a assentir.
- Sim, sim - falou, mas não para Lloyd. - Sim, é por isso que não conseguia vê-lo...
Interrompeu-se e foi para o telefone. Momentos depois, estava falando com Barry.
- Os helicópteros. Você e Carl em um e Bill Jamieson no outro. Contato permanente pelo rádio. Mande sessenta... Não, cem homens. Feche toda estrada que parte de Nevada, ao leste e ao sul. Providencie para que tenham a descrição de Cullen. E quero relatórios de hora em hora.
Ele desligou e esfregou as mãos de felicidade.
- Nós o pegaremos. Só gostaria que pudéssemos enviar a cabeça para o seu parceiro Nick Andros. Mas Andros está morto, não é, Nadine?
Nadine apenas ficou olhando estupidamente.
- Os helicópteros não conseguirão grande coisa esta noite - disse Lloyd. - Em mais três horas estará escuro.
- Não se preocupe, Lloyd - replicou alegremente o homem escuro. - Amanhã haverá tempo de sobra para os helicópteros. Ele não está longe. Não, não muito longe, afinal.
Lloyd dobrava nervosamente o bloquinho de um lado para outro, desejando estar em qualquer lugar menos ali. Flagg parecia bem-humorado agora, mas Lloyd achava que não duraria muito, até ele ouvir falar sobre Lata de Lixo.
- Tenho outro assunto a relatar - disse, relutante. - É a respeito de Lata de Lixo. - Perguntou-se, receoso, se isto desencadearia outro acesso de raiva como o que destruíra as peças de jade.
- O bom e velho Lixo... Ele está fora em outra de suas viagens de exploração?
- Não sei onde se encontra. Lixo fez um pequeno truque em Indian Springs antes de tornar a partir. - Lloyd relatou a história conforme a ouvira de Carl na véspera. O rosto de Flagg ficou sombrio quando ouviu que Freddy Campanari ficara mortalmente ferido, mas quando Lloyd terminou, seu rosto estava de novo sereno. Em vez de explodir de fúria, Flagg fez um gesto impaciente com a mão.
- Tudo bem. Quando ele voltar, eu o quero morto. Que seja uma morte rápida e misericordiosa. Não quero que ele sofra. Esperei que ele pudesse... durar mais tempo. Você talvez não compreenda, Lloyd, mas sinto uma espécie de... afinidade com esse rapaz. Pensei que poderia usá-lo e o usei... mas nunca tive certeza absoluta. Até mesmo um mestre escultor pode descobrir que a faca se distorceu em sua mão, se for uma faca defeituosa. Concorda, Lloyd?
Lloyd, que nada sabia sobre esculturas e facas de escultores (pensava que eles usassem malhos e cinzéis), assentiu em concordância.
- Claro.
- E ele nos prestou um grande serviço montando os mísseis. Foi ele, não foi?
- Sim, foi.
- Ele voltará. Diga a Barry que Lixo deve ser... liberto de seus sofrimentos. Sem dor, se possível. Neste exato momento estou mais preocupado com o rapaz retardado a leste de nós. Eu podia deixá-lo ir, mas é uma questão de princípios. Talvez consigamos encerrar isto antes do escurecer. O que acha, meu bem?
Estava agora agachado ao lado de Nadine. Tocou-lhe a face e ela recuou, como se Flagg lhe tivesse encostado um ferro em brasa. Flagg sorriu e tocou-a de novo. Desta vez ela se submeteu, estremecendo.
- A lua - disse Flagg, deliciando, e levantou-se. - Se os helicópteros não o localizarem antes do escurecer, terão a lua cheia esta noite. Ora, aposto que ele estará pedalando uma bicicleta bem no meio da I-15, em plena luz do dia, na esperança de que o Deus daquela velha o proteja. Mas ela também está morta, não está, meu bem? - Flagg riu deliciado, o riso de uma criança feliz. - E o Deus dela também, suponho. Tudo vai correr muito bem. E Randy Flagg vai ser papai.
Voltou a tocar a face de Nadine, que gemeu como um animal ferido.
Lloyd passou a língua pelos lábios secos.
- Acho que vou andando, se me permite.
- Ótimo, Lloyd, tudo ótimo. - O homem escuro não olhou em tomo; fitava o rosto de Nadine, enlevado. - Tudo vai correr bem, muito bem.
Lloyd saiu dali o mais depressa que pôde, quase correndo. No elevador, tudo quanto acabara de acontecer caiu sobre ele de repente e teve de apertar o botão de PARADA DE EMERGÊNCIA quando a histeria o descontrolou. Riu e chorou por quase cinco minutos. Passada a tempestade, sentiu-se um pouco melhor.
Ele não vai desmoronar, disse para si mesmo. Ocorreram alguns probleminhas, mas ele continua no controle. O jogo provavelmente estará encerrado por volta de 1º de outubro, com a máxima certeza até o dia 15. Tudo começa a entrar nos eixos, como ele disse, e pouco importa se quase me matou... pouco importa que pareça mais estranho do que nunca...
Lloyd recebeu a ligação de Stan Bailey, em Indian Springs, 15 minutos mais tarde. Stan beirava a histeria, em sua fúria com Lata de Lixo e o medo do homem escuro.
Carl Hough e Bill Jamieson haviam decolado da base às 18h02, em missão de reconhecimento a leste de Vegas. Um dos outros pilotos treinados, Cliff Benson, acompanhara Carl como observador.
Às 18h12, os dois helicópteros haviam explodido no ar. Chocado ao máximo, Stan enviara cinco homens ao Hangar 9, onde estavam guardados mais dois skimmers e os três grandes helicópteros Baby Huey. Foram encontrados explosivos presos com adesivos em todos os cinco helicópteros remanescentes, bem como detonadores incendiários ligados a simples marcadores de tempo de cozinha. Os detonadores não eram os mesmos que Lixo acoplara aos caminhões de combustível, embora de modelo bastante similar. Não havia muito espaço para dúvidas agora.
- Foi o Lata de Lixo - disse Stan. - O cara endoidou. Só Deus sabe onde mais ele colocou explosivos por aqui.
- Verifique tudo - disse Lloyd. Seu coração batia acelerado, agoniado pelo pavor. A adrenalina ferveu por todo o organismo, e seus olhos pareciam querer saltar da cabeça. - Verifique tudo! Ponha cada homem nessa vistoria, vasculhem a porra da base de ponta a ponta! Você me ouviu, Stan?
- Por que se preocupar?
- Por quê? - gritou Lloyd. - Preciso traçar um quadro para você, cacete? O que o chefão vai dizer se a base inteira...
- Todos os nossos pilotos estão mortos - disse Stan suavemente. - Será que não entendeu, Lloyd? Até mesmo Cliff, e ele não era dos melhores. Temos seis caras que nem sequer receberam treinamento para um voo solo e estamos sem instrutores. Para que precisamos daqueles jatos agora, Lloyd?
Stan desligou, deixando Lloyd abalado com o que ouvira, finalmente compreendendo toda a extensão da coisa.
Tom Cullen acordou pouco depois de nove e meia daquela noite, sentindo sede e o corpo dolorido. Tomou um gole do seu cantil de água, rastejou para fora das duas rochas inclinadas que lhe serviram de abrigo e observou o céu escuro. A lua estava alta, misteriosa e serena. Era hora de prosseguir. Entretanto precisava ser cuidadoso, minha nossa, precisava mesmo.
Porque agora estava sendo procurado.
Ele tivera um sonho. Nick lhe falara no sonho e isso era estranho, porque Nick não podia falar, era surdo-mudo. Precisava escrever tudo, ao passo que Tom mal sabia ler. Entretanto, sonhos eram coisas curiosas, tudo podia acontecer neles, e no seu sonho Nick falava.
- Eles agora já sabem sobre você - dissera Nick -, porém a culpa não é sua, Tom. Você fez tudo certo. Foi apenas falta de sorte. Portanto, agora tem de ser cuidadoso. Tem de deixar a estrada, Tom, mas deve continuar indo para o leste.
Tom entendia sobre o leste, mas seria fácil confundir-se no deserto. Era bem capaz de ficar dando círculos enormes.
- Você saberá - disse Nick. - Mas primeiro tem de encontrar o Dedo de Deus...
Agora Tom recolocou o cantil no cinto e ajustou a mochila. Retornou à auto-estrada, deixando a bicicleta onde estivera. Escalou o terrapleno até a estrada e espiou nos dois sentidos. Correu ao longo da faixa central e, após outra olhada cautelosa, trotou pelas faixas da I-15 com destino ao oeste.
Eles já sabem sobre você, Tom.
Na margem oposta, seu pé ficou preso no cabo do guardrail e ele perdeu o equilíbrio, rolando quase até o final do terrapleno ao lado da estrada. Ficou encolhido um instante, o coração martelando. O único som que ouvia era o da brisa fraca, gemendo acima do solo rachado do deserto.
Ele levantou-se e começou a esquadrinhar o horizonte. Seus olhos eram penetrantes, o ar do deserto estava cristalino. Não demorou muito e o viu, alçando-se contra o céu estrelado à maneira de um ponto de exclamação. O Dedo de Deus. Ao ficar com o rosto voltado para o leste, o monolito situava-se na posição das dez horas. Tom imaginou que poderia alcançá-lo em uma hora ou duas. No entanto, a qualidade cristalina e amplificadora do ar já enganara andarilhos mais experientes do que Tom, de modo que ficou perplexo ante a maneira como o dedo de pedra sempre parecia permanecer à mesma distância. Passou a meia-noite, depois mais duas horas se foram. O grande relógio de estrelas no céu tinha se revolvido. Tom começou a especular se a rocha tão semelhante a um dedo apontado para o céu não seria uma miragem. Ele esfregou os olhos, porém ela continuava lá. Para trás, a auto-estrada mergulhara nas trevas da distância.
Quando tornou a olhar para o dedo, ele lhe pareceu estar um pouco mais próximo. Por volta das quatro da madrugada, quando uma voz interior começou a sussurrar-lhe que era hora de encontrar um bom esconderijo para o dia que se avizinhava, ele teve então certeza de estar mais perto daquele ponto de referência. Contudo, não o alcançaria nessa noite.
E quando o alcançasse (presumindo que não o descobrissem quando o dia raiasse)? O que aconteceria depois?
Não importava. Nick lhe diria. O bom e velho Nick.
Tom mal podia esperar para voltar a Boulder e rever Nick, minha nossa, isso mesmo.
Encontrou um lugar razoavelmente confortável à sombra de uma enorme lombada rochosa, ali adormecendo quase em seguida. Tinha feito quase 50 quilômetros para nordeste nessa noite, aproximando-se das montanhas Mormon.
Durante a tarde, uma enorme cascavel coleou para junto dele, fugindo ao calor do dia. Enrodilhou-se ao lado de Tom, dormiu algum tempo e depois seguiu seu caminho.
Parado à borda do solário da cobertura, Flagg olhou para o leste. O sol estaria despontando em mais quatro horas, quando então o retardado se poria novamente a caminho.
Uma forte e constante brisa do deserto erguia seus cabelos escuros da testa quente. A cidade terminava abruptamente, capitulando para o deserto. Não passava de letreiros luminosos à orla de lugar nenhum. Uma vasta extensão de deserto, com tantos esconderijos... Homens já haviam penetrado antes naquele deserto e nunca mais foram vistos.
- Mas ainda não é hora - sussurrou Flagg. - Eu o pegarei. Eu o pegarei.
Não saberia explicar por que era tão importante capturar o retardado; a racionalidade do problema lhe escapava constantemente. Cada vez mais sentia ânsia de simplesmente agir, mover-se, fazer. Destruir.
Na última noite, quando Lloyd o havia informado sobre as explosões dos helicópteros e mortes dos três pilotos, precisara apelar para todos os recursos ao seu alcance para não bramir em fúria. Seu primeiro impulso fora ordenar a reunião imediata de uma coluna blindada - tanques, lança-chamas, caminhões blindados e tudo o mais. Em cinco dias estariam em Boulder. Toda aquela confusão malcheirosa acabaria em uma semana e meia.
Sem dúvida.
E se houvesse neve prematura nos desfiladeiros das montanhas, isso significaria o fim da grande Wehrmacht. Já estavam em 14 de setembro, o bom tempo deixara de ser algo garantido. Como diabos o tempo passara tão rápido?
Mas ele era o homem mais forte na face da Terra, não era? Talvez houvesse outro como ele na Rússia, na China ou no Irã, porém este era um problema para dali a dez anos. Agora tudo que importava era que estava em ascensão. Flagg sabia disso, podia senti-lo. Ele era forte, isso era tudo que o retardado poderia contar aos amigos... caso não ficasse perdido no deserto ou morresse congelado nas montanhas. Tudo que poderia contar-lhes era que o povo de Flagg morria de medo do Turista Andarilho e que lhe obedecia sem discussão. Só poderia contar-lhes coisas que os deixariam mais desmoralizados ainda. Então por que esta sensação persistente, atormentadora, de que Cullen devia ser encontrado e morto antes que deixasse o oeste?
Porque é o que quero e vou fazer o que quero. Isto é motivo suficiente.
E o Lata de Lixo. Pensara em livrar-se por completo dele. Pensara que Lata de Lixo poderia ser jogado fora, como uma ferramenta defeituosa. Mas ele fora exitoso em conseguir o que toda a Zona Franca não teria feito: jogara areia na infalível maquinaria de conquista do homem escuro.
Eu o julguei mal...
Era um pensamento odioso e ele não permitiria que sua mente chegasse à sua conclusão. Jogou o copo por cima do parapeito e o viu girar entre reflexos de vidro e depois começar a cair. Um casual pensamento malévolo, um petulante pensamento infantil, cruzou sua mente: Espero que atinja a cabeça de alguém!
Lá muito abaixo, o copo bateu no estacionamento e se estilhaçou... tão abaixo que o homem escuro sequer pôde ouvir.
Não haviam encontrado mais bombas em Indian Springs. Toda a base fora virada pelo avesso. Aparentemente, Lixo escolhera as primeiras coisas que encontrara: os helicópteros no Hangar 9 e os caminhões no depósito ao lado.
Flagg reiterara as ordens de que Lixo devia ser liquidado tão logo o encontrassem. A ideia de Lixo perambulando por toda aquela propriedade governamental, onde só Deus sabe o que podia estar armazenado, o deixava visivelmente nervoso.
Nervoso.
Sim, a bela segurança estava se evaporando. Quando se iniciara aquela evaporação? Não sabia dizer com certeza. Tudo que sabia era que as coisas estavam ficando frouxas. Lloyd também sabia disso. Podia saber pela maneira como Lloyd olhava para ele. Não seria má ideia que Lloyd sofresse um acidente antes do fim do inverno. Ele tinha amigos do peito entre os muitos guardas palacianos, gente como Whitney Horgan e Ken DeMott. Até mesmo Burlson, que tinha revelado aquela coisa sobre a lista vermelha. Só por isso ele acalentava a ideia de esfolá-lo vivo.
No entanto, se Lloyd tivesse tido conhecimento da lista vermelha, nada disso teria...
- Cale-se - murmurou. - Apenas... cale-se!
Mas o pensamento não se foi com tanta facilidade. Por que não dera a Lloyd os nomes do alto escalão da Zona Franca? Não sabia, não conseguia lembrar. À época parecera haver uma razão perfeitamente boa, porém, quanto mais tentava apreendê-la, mais ela lhe escapava por entre os dedos. Teria sido apenas uma decisão idiota de não arriscar tudo numa única cartada - uma sensação de que uma só pessoa não devia ser depositária de tantos segredos, mesmo uma pessoa tão estúpida e leal como Lloyd Henreid?
Uma expressão de perplexidade franziu-lhe o rosto. Teria estado decidindo tais idiotices o tempo todo?
E até que ponto Lloyd era fiel, afinal? Aquela expressão em seus olhos...
De repente, decidiu expulsar todos aqueles pensamentos e levitar. Isto sempre o fazia sentir-se melhor. O fazia sentir-se mais forte, mais sereno, e clareava sua mente. Olhou para o céu do deserto.
(Eu sou, eu sou, eu sou, EU SOU...)
Os saltos de suas botas de andarilho despregaram-se da superfície do solário, pairaram, elevaram-se mais 3 centímetros. Mais cinco. A paz veio a ele e, de súbito, soube que poderia encontrar as respostas. Tudo estava mais claro. Primeiro ele devia...
- Eles estão vindo pegá-lo, você sabe.
Flagg aterrou de volta ao som daquela voz macia e sem inflexões. O choque do pouso subiu por suas pernas e espinha e chegou até o maxilar, que estalou. Ele girou como um felino. No entanto, o sorriso que brotava murchou quando viu Nadine. Ela vestia uma camisola branca, metros de tecido transparente que esvoaçava em torno de seu corpo. A cabeleira, tão alva quanto o vestido, caía-lhe sobre o rosto, agitada pela brisa. Ela parecia alguma pálida e alucinada sibila, e, a despeito de si mesmo, Flagg sentiu medo. Ela deu mais um delicado passo à frente. Estava descalça.
- Eles estão vindo: Stu Redman, Glen Bateman, Ralph Brentner e Larry Underwood. Eles estão vindo e irão matá-lo, como se fosse uma doninha que rouba galinhas.
- Eles estão em Boulder - retrucou Flagg -, escondidos debaixo da cama e carpindo sua negra morta.
- Não - disse ela em tom indiferente. - Eles estão quase em Utah agora. Logo chegarão aqui. E vão escorraçá-lo como se fosse uma doença.
- Cale a boca e vá lá para baixo.
- Eu irei para baixo - replicou ela, aproximando-se dele, mas agora era ela quem sorria, um sorriso que o encheu de temor. A coloração de fúria sumiu do rosto dele, e sua estranha e quente vitalidade pareceu segui-la. Por um momento, pareceu velho e frágil. - Irei para baixo... e você também.
- Saia!
- Ambos iremos para baixo - cantarolou ela, sorrindo... era horrível. - Para baixo, para baaixooo...
- Eles estão em Boulder!
- Estão quase aqui.
- Vá para baixo!
- Tudo que você fez aqui está desmoronando, e por que não? A meia-vida eficaz do mal é sempre relativamente curta. Todos estão sussurrando sobre você. Estão dizendo que deixou Tom Cullen escapar, que um reles retardado é esperto o bastante para superar Randall Flagg. - As palavras dela saíam cada vez mais rápido, agora atropelando-se em meio ao sorriso desdenhoso. - Dizem que seu perito em armas enlouqueceu, e que você ignorava que isso fosse acontecer. Receiam o que esse homem possa trazer do deserto, que da próxima vez talvez traga algo para fazer mal a eles e não ao povo da Zona Franca. E estão todos indo embora, sabia disso?
- Está mentindo - sussurrou ele. Seu rosto era um pergaminho alvo, os olhos se esbugalhavam. - Eles não ousariam. E se o fizessem, eu saberia.
Os olhos de Nadine passaram turvamente por sobre o ombro dele, voltados para o leste.
- Posso vê-los - continuou ela. - Eles abandonam os postos na calada da noite e seu Olho não os vê. Eles largam seus postos e fogem. Uma turma de trabalho que parte com vinte pessoas retorna com 18. Os guardas de fronteira estão desertando. Receiam que os pratos da balança de poder estejam desequilibrados. Estão abandonando você, indo embora, e os que ficam não levantarão um dedo quando os homens do leste chegarem para acabar com você de uma vez por todas...
Explodiu. O que quer que houvesse dentro dele explodiu.
- VOCÊ ESTÁ MENTINDO! - bradou. As mãos dele caíram sobre os ombros dela, partindo as duas clavículas como se fossem lápis. Ele a ergueu no ar, acima da cabeça, contra o desbotado céu azul do deserto. Ao girar sobre os calcanhares, ele a arremessou para o alto e para fora, tal como havia atirado o copo. Viu o grande sorriso de alívio e triunfo no rosto dela, súbita lucidez nos olhos, e compreendeu. Nadine o havia provocado para que fizesse aquilo, de algum modo percebendo que somente ele a libertaria...
E ela carregava o seu filho.
Flagg se debruçou sobre o parapeito baixo, quase perdendo o equilíbrio, tentando remediar o irremediável. A camisola dela esvoaçou. A mão dele se fechou sobre o tecido leve e transparente, sentiu-o rasgar-se, deixando-o apenas com uma tira de pano tão diáfana que podia ver seus dedos através dela - o material dos sonhos em vigília.
Então ela se foi, caindo a prumo, os artelhos apontados para a terra, a camisola voejando em volutas até o pescoço, encobrindo o rosto. Ela não gritou. Desceu tão silenciosamente como um foguete avariado.
Quando ouviu o indescritível baque surdo da violenta aterrissagem dela, Flagg lançou a cabeça para trás e uivou.
Não fazia diferença, não fazia diferença.
Tudo continuava na palma de sua mão.
Voltando a debruçar-se no parapeito, viu gente se aproximando às carreiras, como limalha de ferro atraída por um ímã. Ou como vermes para restos de comida.
Pareciam todos tão pequenos, e ele estava tão alto, acima deles.
Decidiu levitar para recuperar a calma.
Contudo, demorou muito tempo antes que os saltos das botas se desligassem do piso do solário. Quando o fizeram, ficaram pairando a apenas 2 centímetros acima do concreto. Não foram mais alto.
Naquela noite Tom acordou por volta das oito, porém havia claridade demais para que se movesse. Esperou. Nick lhe aparecera de novo em sonho e haviam conversado. Era tão bom conversar com Nick.
Continuou à sombra da grande rocha e observou o céu escurecendo. As estrelas começaram a piscar. Pensou nas batatas fritas Pringle’s e desejou ter algumas. Quando voltasse à Zona - se é que voltaria - teria as batatas que quisesse. Ficaria atolado em Pringle’s. E chafurdaria no amor dos amigos. Concluiu que era disso que sentia falta em Las Vegas: simplesmente amor. O pessoal de Vegas não era mau, porém não havia muito amor naquela gente. Porque se ocupava demais em sentir medo. O amor não vicejava muito bem num lugar onde só havia medo, tal como as plantas não se desenvolviam muito bem onde estava sempre escuro.
Apenas os cogumelos vicejavam grandes e gordos no escuro, até mesmo ele sabia disso, nossa, como sabia.
- Eu amo Nick, amo Frannie, Dick Ellis e Lucy - sussurrou Tom. Esta era sua oração. - Amo Larry Underwood e também Glen Bateman. Amo Stan e Rona. Amo Ralph. Amo Stu. Amo...
Era estranha a facilidade com que recordava aqueles nomes. Ora, lá na Zona dava-se por feliz quando conseguia lembrar o nome de Stu ao visitá-lo. Depois pensou em seus brinquedos. Sua garagem, seus carros, seus trenzinhos. Passava horas brincando com eles. Mas gostaria de saber se continuaria a brincar tanto com eles após retornar... se retornasse. Não seria mais a mesma coisa. Era triste, mas talvez também fosse bom.
- O Senhor é meu pastor - recitou suavemente. - Nada me faltará. Ele me faz jazer em pastos verdejantes. Unta minha cabeça com óleo. Ele me dá kung-fu diante de meus inimigos. Amém.
Já escurecera o suficiente agora, e ele recomeçou a jornada. Por volta das onze e meia daquela noite, tinha alcançado o Dedo de Deus e lá parou para uma leve refeição.
O solo era alto ali e, olhando para trás na direção em que viera, pôde ver luzes que se moviam. Na auto-estrada, pensou. Estão procurando por mim.
Olhou de novo para nordeste. Muito além, quase invisível no escuro (a lua, duas noites depois de cheia, já começava a minguar), avistou uma enorme abóbada arredondada de granito. Decidiu ir para lá em seguida.
- Tom está com os pés doloridos - sussurrou para si mesmo, mas não sem certa alegria. As coisas poderiam ter ficado muito piores do que apenas pés doloridos. - L-U-A, que provoca pés doloridos.
Seguiu em frente e as coisas noturnas afastaram-se dele. Quando se deitou, ao alvorecer, tinha coberto mais de 60 quilômetros. A divisa Nevada-Utah não estava muito distante a leste dele.
Às oito daquela manhã, Tom dormia profundamente, a cabeça apoiada no blusão que servia de travesseiro. Seus olhos começaram a mover-se com rapidez, de um lado para outro, por trás das pálpebras cerradas.
Nick chegara, e Tom falava com ele.
Um vinco cruzou o cenho adormecido de Tom. Dissera a Nick o quanto ansiava por tornar a vê-lo.
Entretanto, por alguma razão que não entendeu, Nick dera-lhe as costas e fora embora.
AH, COMO A HISTÓRIA SE REPETE: O Homem da Lata de Lixo estava de novo sendo cozinhado vivo no caldeirão do diabo - mas desta vez não havia esperança de que os chafarizes refrescantes de Cibola o amparassem.
É o que mereço, isto é tudo que mereço.
Sua pele estava queimada, descascada, tornara a queimar-se e voltara a descascar. No fim, não ficara bronzeada, mas sim enegrecida. Era a prova ambulante de que um homem assume finalmente a aparência do que é. Lixo parecia como se o tivessem encharcado com querosene e jogado depois um fósforo aceso. O azul de seus olhos desbotara com a permanente e ofuscante luminosidade do deserto. Olhar dentro deles era como olhar para estranhos e extradimensionais orifícios no espaço. Ele trajava uma estranha imitação do homem escuro - uma camisa xadrez vermelha aberta ao peito, jeans desbotados e botas próprias para o deserto, já arranhadas, amassadas, retorcidas, vincadas. Mas ele jogara fora seu amuleto manchado de vermelho. Não merecia mais usá-lo. Revelara-se indigno dele. E, como todos os demônios imperfeitos, tinha sido desterrado.
Fez uma pausa sob o sol causticante, passando a mão fina e trêmula pela testa. Fora designado para este lugar e momento - a vida inteira tinha sido uma preparação. Atravessara os corredores em chamas do inferno para chegar ali. Suportara o xerife matador-de-pai, suportara aquele lugar em Terre Haute, suportara os gracejos de Carley Yates. Afinal, depois de toda a sua vida estranha e solitária, encontrara amigos: Lloyd, Ken, Whitney Horgan.
E então, ah, Deus, federa com tudo isso. Merecia morrer queimado ali, no caldeirão do diabo. Haveria redenção para ele?
O homem escuro deveria saber. Lata de Lixo não sabia.
Mal podia lembrar agora o que havia acontecido - talvez porque sua mente torturada não quisesse recordar. Ficara mais de uma semana no deserto antes de seu último e desastroso retorno a Indian Springs. Um escorpião o picara no dedo médio da mão esquerda (o dedo vá-se-foder, como diria Carley Yates há muito e muito tempo na Powtanville de tanto tempo atrás, com sua infalível vulgaridade de botequim), a qual inchara tanto a ponto de ficar parecendo uma luva de borracha cheia de água. Um fogo que não era deste mundo tomara conta de sua cabeça. No entanto, ele seguira em frente, dera a volta por cima.
Finalmente voltara a Indian Springs, ainda se sentindo como uma fantasia da imaginação de alguém. Houvera conversas cordiais enquanto os homens examinavam seus achados - detonadores incendiários, minas terrestres de contato; na realidade não grande coisa. Lixo começara a se sentir bem pela primeira vez desde que o escorpião o picara.
E então, sem nenhum aviso, o tempo virara pelo avesso e ele se viu de volta em Powtanville. Alguém tinha dito:
- Gente que brinca com fogo mija na cama, Lixo.
Erguera os olhos esperando ver Billy Jamieson, porém não tinha sido Bill e sim Rich Groudemore, de Powtanville, rindo e palitando os dentes com um fósforo, os dedos sujos de graxa, porque viera do posto Texaco da esquina, no seu horário de almoço, para jogar sinuca. Alguém mais acrescentara:
- É melhor guardar seus fósforos, Richie, o Lixo está de volta à cidade.
Isto soou primeiro como sendo dito por Steve Tobin, mas não foi ele. Era Carley Yates, em seu velho e surrado blusão de motoqueiro com capuz. Com crescente horror, vira que todos eles estavam ali, cadáveres inquietos de volta à vida, Richie Groudemore, Carley e Norm Morrisette e Hatch Cunningham, que estava ficando careca com apenas 18 anos e a quem os outros apelidaram de Hatch Cunilíngua.
E estavam zombando dele. Tudo lhe voltou à mente então, intenso e rápido, através da bruma febril dos anos. Ei, Lixo, por que não tocou fogo na ESCOLA? Ei, Lixinho, já queimou sua costeleta de porco? Ei, Homem da Lata de Lixo, ouvi dizer que você ronca fluido de isqueiro Ronson, é verdade?
E, então, Carley Yates:
- Ei, Lixo, o que disse a velha Sra. Semple quando você queimou o cheque de pensão dela?
Tentou gritar para eles, mas tudo que conseguiu foi um sussurro:
- Nunca mais me perguntem sobre o cheque de pensão da velha Sra. Temple. - E fugiu dali.
O resto foi como um sonho. Pegar os detonadores incendiários e acoplá-los aos caminhões que estavam no depósito. Suas mãos agiram sozinhas, porque a mente estava muito longe, num turbilhão confuso. Pessoas o tinham visto ir e vir entre a garagem e seu veículo do deserto com seus pneus-balão. Algumas até lhe acenaram, mas ninguém se aproximara para perguntar o que ele estava fazendo. Afinal, ele contava com a simpatia de Flagg.
Lixo fez seu trabalho e pensou em Terre Haute.
Em Terre Haute faziam-no morder uma coisa de borracha quando lhe aplicavam choques. O homem nos controles às vezes parecia o xerife matador-de-pai, em outras ocasiões parecia Carley Yates e às vezes Hatch Cunilíngua. E ele sempre jurara para si mesmo que, desta vez, não mijaria nas calças. Mas sempre mijava.
Após colocar os detonadores nos caminhões, Lixo foi para o hangar mais próximo e lá preparou os helicópteros. Quisera detonadores de tempo, de modo a fazer o serviço direito. Então fora à despensa da cozinha da cantina e encontrara mais de uma dúzia daqueles marcadores de tempo baratos, feitos de plástico. Podem ser armados para 15 minutos ou meia hora, e quando chegam ao zero, fazem ding e sabemos que está na hora de tirar a torta do fogo. Só que dessa vez, pensara Lixo, em vez de ding, iam provocar um grande bang! Gostou daquilo. Ia ficar ótimo. Se Carley Yates ou Rich Groudemore tentassem decolar com um daqueles helicópteros, iam ter uma bela e baita surpresa. Ele simplesmente acoplara os mercadores de tempo culinários aos sistemas de ignição dos helicópteros.
Quando tudo ficou pronto, ele teve um momento de lucidez. Um momento de escolha. Olhara em torno para os helicópteros estacionados no hangar ecoante e depois para suas mãos. Cheiravam como um punhado de cápsulas queimadas. Aquilo ali não era Powtanville. Não havia helicópteros em Powtanville. O sol de Indiana não brilhava com a feroz incandescência deste aqui. Estava em Nevada. Carley e sua patota do salão de bilhar estavam mortos. A supergripe acabara com eles.
Lixo tinha se virado e olhado com ar de dúvida para sua obra. O que estava fazendo? Sabotando o equipamento do homem escuro? Era uma insensatez, uma loucura. Precisava desfazer tudo aquilo, e depressa.
Ah, mas ele adorava explosões.
Adorava incêndios. Gasolina chamejante para jatos espalhando-se por toda parte. Helicópteros explodindo no ar. Tão lindo!
De repente, ele jogava fora sua nova vida. Tratou de voltar ao seu veículo para o deserto, com um riso furtivo no rosto escurecido pelo sol. Entrara no veículo e se fora... mas não muito longe. Esperara. Finalmente viu um caminhão de combustível sair do depósito, começando a rodar pelo piso alcatroado, como um grande besouro verde-oliva. E quando ele explodiu, lançando fogo da explosão para todos os lados, Lixo soltara o binóculo e contemplara o céu, sacudindo os punhos fechados em alegria inarticulada. A alegria, contudo, durou pouco. Havia sido substituída por um terror mortal, por uma angústia doentia e pesarosa.
Dirigira seu veículo no deserto rumo noroeste, em velocidade quase suicida. Quanto tempo fazia? Não tinha a menor ideia. Se alguém lhe dissesse que estavam em 16 de setembro, ele se limitaria a assentir, em total falta de compreensão.
Pensou em matar-se, já que nada mais lhe restava. Todos se voltavam contra ele agora, e qual era a surpresa nisso? Quando você morde a mão que lhe dá de comer, é de se esperar que essa mão estendida se feche num punho. Isso não era apenas o modo como a vida funcionava; isso era justiça. Ele tinha três latas grandes de gasolina na traseira do veículo. Bastava encharcar-se com ela e acender um fósforo. Era o que ele merecia.
Mas não tinha feito isso. Não sabia explicar por quê. Alguma força, no entanto, mais poderosa que a agonia de seu remorso e solidão o impedira. Parecia-lhe que se incendiar como um monge budista ainda não era penitência suficiente. Havia dormido. E, ao acordar, descobriu que um novo pensamento se esgueirara para seu cérebro durante o sono. E o pensamento era:
REDENÇÃO.
Seria possível? Ele não sabia. Mas se encontrasse algo... algo grande... e o levasse para o homem escuro em Las Vegas, talvez fosse possível, não? E mesmo que REDENÇÃO fosse impossível, EXPIAÇÃO poderia não ser. Nesse caso, haveria uma chance de poder morrer satisfeito.
O quê? O que poderia ser? O que era grande o bastante para REDENÇÃO, ou mesmo para EXPIAÇÃO? Nada de minas terrestres, de uma frota de lança-chamas, nada de granadas ou armas automáticas. Nenhuma dessas coisas era grande o bastante. Ele sabia onde estavam dois grandes bombardeiros experimentais (tinham sido construídos sem conhecimento do Congresso e pagos com fundos secretos do Departamento de Defesa), porém seria impossível levá-los até Las Vegas e, mesmo que pudesse, não havia ninguém capaz de pilotá-los. Pela aparência deles, teriam de ser tripulados por dez homens ou mais.
Lata de Lixo era como um sensor infravermelho que capta o calor na escuridão e revela aquelas fontes de calor como vagas formas avermelhadas. De uma estranha maneira, ele era capaz de sentir as coisas que haviam sido descartadas naquela vastidão, onde haviam sido levados a cabo vários projetos militares. Podia seguir direto para oeste, para o Projeto Azul, onde tudo havia começado. Mas peste fria não fazia seu gênero, e à sua maneira confusa, porém não inteiramente ilógica, achava que também não faria o gênero de Flagg. A epidemia matava qualquer um, indiscriminadamente. Teria sido melhor para o gênero humano se os patrocinadores originais do Projeto Azul tivessem pensado neste simples fato.
Assim, partira de Indian Springs para noroeste, internando-se na desolação arenosa na Área de Teste Nellis da Força Aérea, parando seu veículo quando precisava cortar cercas altas de arame farpado, marcadas com avisos de PROPRIEDADE DO GOVERNO DOS EUA, NÃO ULTRAPASSE e SENTINELAS ARMADAS e CÃES DE GUARDA, além de CARGA DE ALTA VOLTAGEM PASSANDO POR ESTE ARAMADO. No entanto, não havia eletricidade, bem como cães de guarda e sentinelas armadas. Lata de Lixo seguia em frente, corrigindo o curso vez por outra. Estava sendo levado, atraído para alguma coisa. Ignorava o que seria, mas achava que seria algo grande. Bem grande.
Os pneus-balão Goodyear do veículo para o deserto rolavam uniformemente, levando Lata de Lixo através de leitos secos de rios até encostas tão pedregosas que mais pareciam espinhas de estegossauros semi-expostas. O ar era parado e seco. A temperatura pairava pouco acima de 37. O único som era o ronco do motor Studebaker modificado do veículo.
Lixo alcançou uma elevação, viu o que estava abaixo e pôs o veículo em ponto morto por um momento a fim de dar uma olhada melhor.
Lá embaixo havia um aglomerado complexo de edificações, cintilando como mercúrio através do calor crescente. Construções metálicas pré-fabricadas e prédios baixos em concreto de cinzas. Veículos parados aqui e ali nas ruas empoeiradas. Toda a área era circundada por três cercas de arame farpado, e ele podia ver os condutores de porcelana ao longo da fiação. Não eram os pequenos condutores do tamanho de uma articulação de dedo, capazes de transmitir uma carga fraca; aqueles eram gigantescos, do tamanho de um punho fechado.
Do leste, uma estrada pavimentada de duas faixas levava até uma guarita. Nada de pequenos e astutos avisos por ali, dizendo CHEQUE SUA CÂMERA COM O PM DE SERVIÇO ou SE GOSTOU DE NÓS, DIGA A SEU CONGRESSISTA. O único aviso em evidência era em vermelho sobre amarelo, as cores do perigo, lacônico e preciso: APRESENTE IDENTIFICAÇÃO IMEDIATAMENTE.
- Obrigado - sussurrou Lata de Lixo. Não fazia a menor ideia de a quem estava agradecendo. - Ah, obrigado... muito obrigado. - Seu senso especial o conduzira àquele lugar, porém soubera que ali encontraria o que estivera querendo o tempo todo. Em algum lugar.
Acionou o veículo e começou a descer a encosta. Dez minutos mais tarde, estava na estrada de acesso à guarita. Havia barreiras listradas em preto-e-branco através da estrada e Lixo saltou para examiná-las. Lugares como aqueles dispunham de enormes geradores como garantia de um vasto suprimento de força de emergência. Ele duvidava que algum gerador continuasse produzindo energia por três meses, mas ainda tinha de agir com muita cautela e certificar-se de que tudo estava parado antes de seguir em frente. O que queria estava agora bem perto, ao alcance. Não se permitiria ficar demasiadamente ansioso e acabar tostado como um assado num forno de microondas.
Atrás de um vidro à prova de balas com 15 centímetros de espessura, uma múmia em uniforme do Exército olhava para fora e além dele.
Lixo mergulhou sob a barreira colocada ao lado do acesso para a guarita e aproximou-se da porta da pequena construção de concreto. Experimentou a porta e ela se abriu. Isso era ótimo. Quando lugares como aquele operavam com energia de emergência, supunha-se que tudo ficasse automaticamente trancado. Se alguém estivesse fazendo suas necessidades no banheiro, ficava trancado lá até debelada a crise. Contudo, se a energia de emergência falhava, tudo destrancava novamente.
A sentinela morta exalava um cheiro seco, adocicado e interessante, como uma mistura de canela e açúcar para um brinde. O sujeito não inchara nem apodrecera; secara, simplesmente. Ainda havia manchas negras sob o queixo, a marca registrada distintiva da Capitão Viajante. De pé num canto atrás dele, Lata de Lixo viu um fuzil automático Browning. Pegou-o e retomou para o exterior.
Armou o fuzil para um único tiro, ajustou o visor e então o rumou no vão de seu esquelético ombro direito. Mirou num dos condutores de porcelana e atirou. Houve um som alto de bofetada e um cheiro excitante de cordite. O condutor explodiu em mil pedacinhos, porém não produziu nenhum clarão branco-purpúreo, característico da eletricidade de alta voltagem. Lata de Lixo sorriu.
Cantarolando, ele caminhou até o portão e o examinou. Estava destrancado, tal como a guarita. Empurrou-o até se abrir um pouco e depois o escancarou. Havia uma mina de pressão ali, sob o pavimento. Não fazia ideia de como, mas ele sabia. A mina poderia estar armada; mas também poderia não estar.
Retornou ao seu veículo, colocou-o em movimento e investiu contra as barreiras. Elas se quebraram com um som estilhaçante e rangente, e os enormes pneus-balão rolaram sobre os destroços. O sol do deserto era inclemente. Os olhos peculiares de Lata de Lixo cintilaram de felicidade. Diante do portão, ele saltou do veículo e a seguir o pôs de novo em marcha. O veículo sem condutor rolou à frente e empurrou o portão. Lata de Lixo disparou pela guarita adentro.
Apertou os olhos, mas não houve explosão. Isso era bom; eles realmente tinham se fechado completamente. O sistema de emergência poderia ter funcionado um mês, talvez até dois, mas por fim o calor e a falta de manutenção regular haviam acabado com ele. Ainda assim, teria de ser cauteloso.
Enquanto isso, seu veículo do deserto rolava tranquilamente em direção à parede corrugada de um enorme edifício pré-fabricado. Lata de Lixo trotou para a base depois disso e alcançou o veículo exatamente quando ele subia o meio-fio do que um letreiro anunciava ser a Illinois Street. Ele o botou de novo em ponto morto e o veículo parou. Entrou nele, deu uma ré e o conduziu até a frente do prédio pré-fabricado.
Era uma caserna. O interior sombrio estava impregnado daquele odor de açúcar e canela. Talvez uns vinte soldados se espalhavam entre mais ou menos cinqüenta beliches. Lata de Lixo percorreu o corredor entre eles, perguntando-se para onde estava indo. Nada havia ali para ele, havia? Um dia, aqueles homens tinham sido armas de alguma espécie, porém haviam sido neutralizados pela gripe.
Mas havia uma coisa no final do prédio que despertou seu interesse. Um aviso. Chegou mais perto para ler. O calor ali era tremendo. Fazia sua cabeça latejar e inchar. No entanto, ao postar-se diante do aviso, começou a sorrir. Sim, estava ali. Em algum lugar desta base estava aquilo que estivera procurando.
O letreiro mostrava um cartum de um homem no chuveiro. Ensaboava diligentemente seus genitais, quase inteiramente cobertos por espuma. A legenda abaixo dizia: LEMBRE-SE! É DE SEU MAIOR INTERESSE TOMAR UMA DUCHA DIARIAMENTE!
Mais abaixo havia um emblema em preto-e-amarelo, mostrando três triângulos com a ponta para baixo.
O símbolo para radiação.
Lata de Lixo riu como uma criança, batendo palmas em meio àquela quietude.
WHITNEY HORGAN ENCONTROU LLOYD em seu quarto, deitado na enorme cama de casal redonda, que até recentemente partilhara com Dayna Jurgens. Um grande copo de gim-tônica equilibrava-se sobre seu peito nu. Ele contemplava solenemente seu próprio reflexo no espelho do teto.
- Ora, entre - disse quando viu Whitney. - Nada de cerimônias, pelo amor de Deus! Não se preocupe em bater, seu sacana. - Na sua voz engrolada de bêbado, ele pronunciou sarcana.
- Está de porre, Lloyd? - perguntou Whitney, cauteloso.
- Não. Ainda não. Mas estou chegando lá.
- Ele está aqui?
- Quem? O Intrépido Líder? - Lloyd sentou-se na cama. - Deve estar em algum lugar por aí. O Andarilho da Meia-noite. - Ele riu e tornou a deitar-se.
Whitney disse em voz baixa:
- Precisa tomar cuidado com o que está dizendo. Sabe que não é boa ideia ficar tomando bebida forte quando ele está...
- Que se foda.
- Lembre-se do que aconteceu com Hec Drogan. E com Strellerton.
Lloyd assentiu.
- Você está certo. As paredes têm ouvidos. A porra das paredes têm ouvidos. Já ouviu este ditado?
- Sim, já ouvi uma ou duas vezes. E é um ditado bem apropriado para este lugar aqui, Lloyd.
- Pode apostar. - Lloyd sentou-se de repente na cama e seu drinque voou para o chão. O copo se estilhaçou. - Mais um trabalhinho para o faxineiro, não é, Whitney?
- Você está bem, Lloyd?
- Estou ótimo. Quer um gim-tônica?
Whitney hesitou por um momento.
- Não. Não gosto sem limão.
- Ora, não seja por isso! Tenho limão, sai de um tubo que a gente aperta. - Lloyd foi até o bar e pegou um tubo de Real Lime. - Muito parecido com o testículo esquerdo do Green Giant. Engraçado, não?
- Isso tem gosto de limão?
- Claro - replicou Lloyd lentamente. - Acha que tem gosto de quê? Daquela porra de Cheerios? Então, o que diz? Seja homem e tome um drinque comigo.
- Bem... OK.
- Vamos beber na janela, para apreciar a vista.
- Não - disse Whitney bruscamente, em voz dura.
Lloyd parou a meio caminho para o bar, seu rosto subitamente lívido. Voltou-se para Whitney e os dois se entreolharam por instantes.
- Certo, tudo bem - disse Lloyd. - Desculpe, cara. Foi má ideia.
- Não tem importância.
Mas era claro que tinha, e os dois sabiam disso. A mulher que Flagg apresentara como sua "noiva" tinha dado um mergulho do alto do edifício no dia anterior. Lloyd recordou o Maioral dizendo que Dayna não poderia saltar do balcão, porque as janelas não se abriam. A cobertura, no entanto, tinha um solário. Sem dúvida haviam presumido que nenhum dos grandes jogadores de verdade - árabes, em sua maioria - jamais daria o salto para a morte. Eles sabiam muito bem.
Lloyd serviu o gim-tônica de Whitney e os dois beberam em silêncio por algum tempo. Lá fora, o sol descia para o poente em meio a um clarão vermelho. Por fim, Whitney falou, em voz tão baixa que mal dava para ouvir:
- Acha realmente que ela pulou?
Lloyd deu de ombros.
- Que importância tem? Claro, acho que ela pulou. Quem não o faria, se estivesse casada com ele? Outra dose?
Whitney olhou para seu copo e, com alguma surpresa, viu que estava vazio. Estendeu-o para Lloyd, que o levou ao bar e despejou o gim liberalmente. Whitney sentia uma zoeira agradável.
Tornaram a beber em silêncio por algum tempo, vendo o sol se pôr.
- O que sabe sobre o tal Cullen? - perguntou por fim Whitney.
- Nada, absolutamente nada. Barry também nada ouviu. Nenhuma notícia da Rodovia 40, da 30, das Rodovias 2 e 74 e da I-15. Nada das estradas secundárias. Estão todas sob vigilância e não viram coisa alguma. Ele deve estar em algum lugar do deserto, e se continuar viajando à noite, se souber como prosseguir sempre para leste, acabará escapando. E o que importa, de qualquer modo? O que poderá contar para os outros?
- Não sei.
- Nem eu. Por mim, ele que se vá.
Whitney sentiu-se pouco à vontade. Lloyd estava outra vez ficando perigosamente perto de criticar o chefão de novo. Sua zoeira na cabeça estava mais forte agora, e isso o deixava contente. Talvez logo reunisse coragem suficiente para dizer o que o levara até ali.
- Vou lhe contar uma coisa - disse Lloyd, inclinando-se à frente. - Ele está perdendo a parada. Já ouviu esta porra de frase? O jogo está no finalzinho, ele está perdendo e não há nenhum jogador reserva se esquentando.
- Lloyd, eu...
- Acabou?
- Sim, acho que sim.
Lloyd preparou novos drinques. Entregou um copo a Whitney, e um leve estremecimento o percorreu ao sorver um gole. Era quase gim puro.
- Perdendo a parada - repetiu Lloyd, retomando o fio da conversa. - Primeiro Dayna, depois esse Cullen. A própria esposa dele... se era mesmo esposa... dá um salto das alturas e se vai. Acredita que esse gesto extremo da mulher estava nos planos dele?
- Não devíamos estar falando sobre isso.
- E o Lata de Lixo? Veja só o que o cara fez por conta própria! Com amigos assim, quem é que precisa de inimigos? Eis o que eu gostaria de saber.
- Lloyd...
Lloyd balançava a cabeça.
- Sinceramente, não entendo. Tudo estava indo tão bem... até a noite em que ele chegou e disse que a velha tinha morrido, lá na Zona Franca. Disse que o último obstáculo fora removido. Pois foi a partir daí que a situação começou a virar.
- Lloyd, realmente acho que não devíamos...
- Agora já não sei mais nada. Podemos atacá-los por terra na próxima primavera, acho. Claro que não podemos chegar lá antes disso. Só que, até então, quem sabe o que terão arranjado por lá? Íamos atacá-los antes que pudessem preparar alguma surpresa, mas agora isto está fora de questão. Além do quê, meu Deus, agora temos de nos preocupar com o Lata de Lixo. O cara anda pelo deserto, bisbilhotando, e estou certo pra cacete de que...
- Lloyd - disse Whitney em voz baixa e sufocada. - Ouça...
Lloyd inclinou-se à frente, preocupado.
- O que é? Qual é o problema?
- Eu nem mesmo sabia se teria coragem de falar com você - disse ele, apertando o copo compulsivamente. - Eu, Maioral, Ronnie Sykes e Jenny Engstrom... bem, a gente vai cair fora. Quer se juntar a nós? Céus, eu devo estar louco para lhe contar isto, sendo você tão chegado a ele.
- Cair fora? E para onde vão?
- Para a América do Sul, creio. Brasil. Acho que deve ficar bem longe. - Fez uma pausa, reuniu coragem e prosseguiu: - Há um monte de gente indo embora. Bem, talvez não um monte, mas bastante, com o número aumentando a cada dia. Acham que Flagg não poderá impedir. Algumas pessoas estão indo para o norte, para o Canadá. Para mim, aquilo lá é frio demais. Mas vou cair fora. Iria para o leste, se tivesse certeza de que iriam me aceitar. E se tivesse certeza de que poderíamos passar. - Whitney parou abruptamente e olhou para Lloyd deploravelmente, com a expressão de quem acha que foi longe demais.
- Você está certo - disse Lloyd suavemente. - E não vou cortar o seu barato, velho parceiro.
- É só que... tudo está ficando ruim aqui - concluiu ele, infeliz.
- Quando planejam partir? - perguntou Lloyd.
Whitney olhou para ele com leve desconfiança.
- Ora, esqueça o que perguntei - disse Lloyd. - Outro drinque?
- Ainda não - respondeu Whitney, olhando para seu copo.
- Eu preciso de mais um. - Ele foi até o bar. De costas para Whitney disse: - Eu não poderia.
- Hã?
- Não poderia! - disse Lloyd asperamente e voltou-se para Whitney. - Devo algo a ele. Devo muito a ele. Flagg me tirou de um sufoco lá em Phoenix e estive com ele desde então. Parece mais tempo do que realmente é. Às vezes parece que foi por todo o sempre.
- Aposto que sim.
- Porém é mais do que isso. Ele fez algo por mim, tornou-me mais inteligente ou algo assim. Não sei o que é, porém deixei de ser o mesmo homem, Whitney. Mudei por completo. Antes... dele... eu não passava de arraia-miúda. Agora ele me colocou chefiando as coisas aqui e tenho me saído bem, como se raciocinasse melhor. Sim, ele me tomou mais inteligente. - Lloyd ergueu a pedra manchada que pendia de seu pescoço, olhou para ela brevemente, depois deixou-a cair de novo sobre o peito. Limpou as mãos na calça, como se tivesse tocado alguma coisa suja. - Sei que continuo não sendo nenhum gênio. Preciso anotar tudo que devo fazer em um bloquinho, porque do contrário acabo esquecendo. Só que, tendo ele à retaguarda, posso dar ordens. E, na maioria das vezes, tem dado certo. Antes, tudo que eu fazia era receber ordens e me meter em enrascadas. Eu mudei... e foi ele quem me mudou. Eu o tenho acompanhado desde o início. Parece mais tempo do que realmente é.
"Quando chegamos a Vegas, só havia 16 pessoas aqui. Ronnie era uma delas, bem como Jenny e o pobre Hec Drogan. Estavam esperando por ele. Quando entramos na cidade, Jenny caiu sobre seus belos joelhos e beijou-lhe as botas. Aposto que ela nunca lhe contou isso na cama. - Ele sorriu maliciosamente para Whitney. - Agora ela quer desligar-se e cair fora. Bem, não a censuro por isso, como também a você. Mas, seja como for, não é preciso muita coisa para estragar uma boa operação, não é?"
- Vai mesmo ficar?
- Até o fim, Whitney. Dele ou meu. Devo-lhe isso. - Ele não acrescentou que ainda confiava o suficiente no homem escuro para acreditar que Whitney e os outros terminariam, com quase toda a certeza, crucificados. E havia mais. Ele era o braço-direito de Flagg. Como seria no Brasil? Ora, Whitney e Ronnie eram muito mais inteligentes do que ele. Tal como Maioral, ele voltaria a ser arraia-miúda, o que não era nada do seu gosto. Outrora isto não teria importado, porém as coisas haviam mudado. E quando a cabeça da gente mudava, ele estava descobrindo, em geral essa mudança é permanente.
- Bem, poderia dar certo para todos nós - disse Whitney, desconsolado.
- Claro - replicou Lloyd, mas pensou: Só que eu não gostaria de estar em seu lugar se Flagg acabar descobrindo tudo. Não queria estar na sua pele quando ele finalmente descobrir que foram para o Brasil. Ficar pendurado numa cruz, então, talvez fosse a menor de suas preocupações...
Lloyd ergueu o copo.
- Um brinde, Whitney.
Whitney também ergueu seu copo.
- Que ninguém se machuque - disse Lloyd. - Este é o meu brinde. Que ninguém se machuque!
- Cara, vou beber a isso - replicou Whitney com fervor e os dois beberam.
Whitney saiu logo depois. Lloyd continuou bebendo. Por volta de nove e meia da noite, completamente bêbado, ferrou no sono em sua cama redonda. Foi um sono sem sonhos, quase valendo o preço da ressaca do dia seguinte.
Quando o sol despontou na manhã de 17 de setembro, Tom Cullen acampou um pouco ao norte de Gunlock, Utah. O frio era suficiente para que visse sua respiração congelar diante do nariz. Suas orelhas estavam entorpecidas e geladas. No entanto, sentia-se bem. Havia passado bem perto de uma estradinha ruim na noite anterior e tinha visto três homens reunidos em volta de uma pequena e crepitante fogueira. Todos estavam armados.
Tentando ultrapassá-los através de um terreno emaranhado de elevações - agora se encontrava na orla oeste das terras áridas de Utah -, provocara um pequeno desmoronamento de seixos, que rolaram e foram cair num leito seco de rio. Tom se imobilizou. A urina quente rolou por suas pernas e ele molhou as calças, como um bebê, mas só percebeu quase uma hora mais tarde.
Os três homens se viraram, dois deles empunhando as armas. Tom mal tinha onde esconder-se. Era uma sombra entre sombras. A lua estava atrás de um punhado de nuvens, e se resolvesse surgir naquele momento...
Um dos homens relaxou.
- Foi um cervo - disse. - Acho que estão por toda parte neste lugar.
- Acho que devíamos investigar - sugeriu outro.
- Enfie o dedo no cu e vá você mesmo investigar - disse o terceiro.
Isto encerrou o assunto. Os três voltaram a sentar-se em tomo da fogueira e Tom começou a rastejar para longe dali, tateando cada passada, vendo a fogueira se distanciar em agoniante lentidão. Uma hora depois era apenas uma fagulha na encosta abaixo dele. Por fim, sumiu de vista, e foi como se lhe tirassem um peso imenso dos ombros. Começou a sentir-se a salvo. Continuava no oeste e sabia o suficiente para continuar sendo cauteloso - minha nossa, isso mesmo -, porém o perigo não parecia mais tão intenso, como se nos arredores houvesse índios ou foragidos da lei.
E agora, com o sol nascendo, ele enovelou-se como uma bola em meio a um espesso emaranhado de arbustos, preparando-se para dormir. Preciso arranjar algumas cobertas, pensou. Está esfriando. Então o sono o acometeu, súbita e completamente, como sempre acontecia.
Ele sonhou com Nick.
LATA DE LIXO JÁ TINHA ENCONTRADO O que queria.
Percorreu um corredor enterrado fundo dentro da terra, um corredor tão escuro como um poço de mina. Tinha uma lanterna na mão esquerda e portava uma arma na direita, porque ali embaixo era fantasmagórico. Dirigia uma carreta elétrica que rolava silenciosamente ao longo do amplo corredor. O único som que produzia era um zumbido baixo, quase subaural.
A carreta consistia em um assento para o condutor e em um grande espaço para transporte de carga. Descansando neste espaço estava uma ogiva atômica.
Era pesada.
Lixo não tinha como avaliar seu peso inteligentemente, uma vez que nem ao menos conseguira movê-la com as mãos. Era comprida e cilíndrica. Também era fria. Ao deslizar a mão por sua superfície arredondada, achou difícil crer que uma peça de metal tão morta e fria contivesse potencial para tamanho calor.
Havia encontrado a ogiva às quatro da manhã. Tinha ido à garagem dos veículos e lá descobrira uma grua, que levara para baixo e montara sobre a ogiva. Noventa minutos mais tarde, a ogiva se aninhava aconchegadamente na carreta elétrica, com o nariz para cima. Nele estava impresso A161410USAF. Os duros e resistentes pneus da carreta haviam cedido apreciavelmente com o peso do artefato.
Agora, Lata de Lixo seguia para o final do corredor. Bem à frente, o enorme elevador de carga exibia as portas convidativamente abertas. Era bastante espaçoso para acomodar a carreta, mas, claro, não havia eletricidade. Lixo havia descido pela escada e trouxera a grua pelo mesmo caminho. A grua era leve, comparada à ogiva, pesando apenas 50 quilos. Mesmo assim, fora uma trabalheira descer cinco lances de escada com ela.
Como faria para subir aqueles lances levando a ogiva?
Um guincho impulsionado por força motriz, sussurrou sua mente.
Sentado no banco do motorista e apontando sua lanterna aleatoriamente, Lixo assentiu para si mesmo. Claro, ali estava o macete. Içar a ogiva com o guincho. Instalar um motor em posição dominante e içá-la, degrau por degrau, se necessário. Contudo, onde encontraria 15 metros de corrente, sem emendas?
Bem, provavelmente não encontraria. Mas poderia soldar peças de corrente. Funcionaria? A solda resistiria? Era difícil saber. E, mesmo que resistisse, e quanto a todos os ziguezagues que as escadas faziam?
Ele desceu da carreta e passou a mão acariciante sobre a lisa e mortal superfície da ogiva na escuridão silenciosa.
O amor descobriria um jeito.
Deixando a ogiva na carreta, recomeçou a subir as escadas para ver o que poderia encontrar. Em uma base daquele porte, certamente haveria um pouco de tudo. Ele encontraria o que precisava.
Subiu dois lances e parou para recobrar o fôlego. De repente, perguntou-se: Estarei absorvendo radiação? Eles blindavam todas aquelas coisas, blindavam com chumbo. No entanto, nos filmes da TV, os homens que manipulavam material radioativo estavam sempre usando aqueles trajes protetores e crachás, que mudavam de cor se a pessoa recebesse uma dose. Porque a coisa era silenciosa. Ninguém a via. Ela simplesmente penetrava na carne e nos ossos. Um indivíduo só percebia que estava doente ao começar a vomitar e perder os cabelos e ter que correr para o banheiro a cada poucos minutos.
Era o que iria acontecer com ele?
Lixo descobriu que não importava. Ia levar aquela bomba para cima. Pretendia içá-la de algum modo. E, de algum modo, conseguiria levá-la para Las Vegas. Tinha de fazer isso para reparar aquela coisa terrível que cometera em Indian Springs. Se tivesse de morrer para expiar o que tinha feito, então morreria.
- Minha vida pela sua - sussurrou em meio ás trevas e recomeçou a subir as escadas.
ERA QUASE MEIA-NOITE DE 17 de setembro. Randall Flagg estava no deserto, envolto em três mantas, dos pés ao queixo. Tinha uma quarta manta enrolada em torno da cabeça, numa espécie de albornoz, de maneira que só os olhos e a ponta do nariz eram visíveis.
Pouco a pouco, deixou que todos os pensamentos se fossem. Ficou ainda mais imóvel. As estrelas eram fogo frio, luz enfeitiçante.
Flagg enviou o Olho.
Sentiu-o separar-se dele com um pequeno e indolor puxão. O Olho voou para longe, silencioso como um falcão, elevando-se em escuras correntes termais. Agora, fundia-se ã noite. Era olho de corvo, olho de lobo, olho de doninha, olho de gato. Era o escorpião, a aranha empertigada no alçapão. Era uma mortífera flecha envenenada, deslizando interminavelmente através do deserto. Por tudo o mais que pudesse ter acontecido, o Olho não o abandonara.
Voando sem esforço, o mundo das coisas terrenas desenrolava-se abaixo dele como um mostrador de relógio.
Eles estão vindo... estão quase em Utah agora...
Silencioso, o Olho voou mais alto, em amplidão, acima de um mundo semelhante a um cemitério. Abaixo dele, o deserto jazia como um sepulcro alvacento, cortado pela fita escura da interestadual. Ele voou para oeste, agora cruzando as divisas estaduais, deixando seu corpo muito atrás, olhos cintilantes girando em escleróticas cegas.
A terra agora começava a mudar. Colinas isoladas, de flancos escarpados, estranhos pilares esculpidos pelo vento e mesetas de superfície plana. A auto-estrada corria reta entre elas. As Bonneville Salt Flats jaziam no extremo norte. O Skull Valley ficava em algum lugar a oeste. O som do vento, morto e distante...
Uma águia pousada na mais alta forquilha de um pinheiro antigo abatido por um raio, em algum lugar ao sul de Richfield, sentiu algo passando nas proximidades, alguma coisa de mortífera visão, sibilando através da noite. A águia avançou para aquilo, destemida, sendo afugentada por uma terrível sensação de frio mortal. Atordoada, falhou em seu voo e quase caiu no solo antes de conseguir recuperar-se.
O Olho do homem escuro seguiu para o leste.
Agora a estrada abaixo era a I-70. As cidades assemelhavam-se a torrões amontoados, desertas, com exceção dos ratos, gatos e cervos que já tinham começado a esgueirar-se das florestas ao farejarem que o homem se fora. Cidades com nomes como Freemont, Green River e Sego, Thompson e Harley Dome. Depois um vilarejo igualmente abandonado: Grand Junction, Colorado. Em seguida...
Bem a leste de Grand Junction havia um clarão de fogueira.
O Olho espiralou para baixo.
A fogueira se extinguia. Quatro vultos dormiam à sua volta.
Era verdade, então.
O Olho os avaliou friamente. Eles estavam vindo. Por motivos que não podia avaliar, estavam realmente vindo. Nadine dissera a verdade.
Então soou um rosnado rouco, e o Olho se virou em outra direção. Havia um cão do lado oposto da fogueira, sua cabeça abaixada, o rabo enrolado sobre as partes íntimas. Seus olhos reluziam como gemas ambarinas malévolas. Seus rosnados eram constantes, como um tecido se rasgando interminavelmente. O Olho o encarou. O cão o encarou também, sem medo, os beiços arreganhados, exibindo os dentes.
Um dos vultos sentou-se.
- Kojak - murmurou. - Pelo amor de Deus, quer ficar quieto?
Kojak continuou a rosnar, as orelhas em pé.
O homem que havia acordado - era Glen Bateman - olhou em torno, de súbito inquieto.
- O que é, garoto? - sussurrou para o cachorro. - Tem alguma coisa aí?
Kojak continuou a rosnar.
- Stu! - Ele sacudiu o vulto ao seu lado. O vulto resmungou alguma coisa, silenciando novamente no seu saco de dormir.
O homem escuro que estava agora no Olho escuro já vira o suficiente. Rodopiou para o alto captando apenas um vislumbre do pescoço do cão, levantando-se para segui-lo. O rosnado transformou-se numa série de latidos, altos no início, depois esmaecendo até cessar.
Silêncio e escuridão impenetrável.
Algum tempo desconhecido mais tarde, ele fez uma pausa acima do solo do deserto, olhando para si mesmo. Afundou lentamente, aproximando-se do corpo, depois mergulhou em si próprio. Por um momento, houve uma curiosa sensação de vertigem, de duas coisas fundindo-se em uma. Então, o Olho desapareceu e havia apenas os seus olhos, fitando as estrelas frias e cintilantes.
Eles estavam vindo, sim.
Flagg sorriu. Teria a velha dito a eles para que viessem? Os teria convencido, em seu leito de morte, a cometerem suicídio daquela forma novelesca? Achou que seria bem possível.
O que tinha esquecido era tão incrivelmente simples que chegava a despretensioso: eles também estavam com problemas, eles também estavam amedrontados... e, em consequência, cometiam um erro colossal.
Seria mesmo possível que tivessem sido expulsos?
Ele acalentou adoravelmente esta ideia, mas no fim não acreditou inteiramente nela. Estavam vindo por decisão própria. Estavam vindo envoltos no manto dos justos, como um punhado de missionários aproximando-se da aldeia dos canibais.
Ah, isso era formidável!
As dúvidas terminariam. Os medos teriam fim. O final seria a visão de suas cabeças espetadas em quatro postes diante do chafariz do MGM Grand Hotel. Ele convocaria todas as pessoas de Vegas e ordenaria que fizessem fila e olhassem. Mandaria fotografá-los, imprimiria volantes e os enviaria para Los Angeles, San Francisco, Spokane e Portland.
Cinco cabeças. Também colocaria a do cão em um poste.
- Bom cachorrinho - disse Flagg, rindo em voz alta pela primeira vez desde que Nadine o incitara a atirá-la do solário. - Bom cachorrinho - repetiu, sorrindo.
Dormiu bem naquela noite e, pela manhã, ordenou que as estradas entre Utah e Nevada tivessem a vigilância triplicada. Entretanto, agora já não estariam procurando um homem que seguia para o leste, mas sim quatro homens e um cão que vinham para o oeste. Todos deviam ser trazidos vivos. Vivos a qualquer preço.
Ah, sim.
- SABE DE UMA COISA? - disse Glen Bateman, olhando na direção de Grand Junction à primeira claridade da manhã. - Ouvi dizer durante anos "Isto é uma droga", sem ter realmente certeza do que significa. Agora acho que sei. - Ele baixou os olhos para seu café-da-manhã, que consistia em salsichas em invólucro sintético, e fez uma careta.
- Não, isto é bom - disse Ralph com veemência. - Você devia ter provado a bóia que nos serviam no Exército.
Estavam sentados em volta da fogueira, que Larry tornara a acender uma hora antes. Todos vestiam casacos grossos e calçavam luvas, e já estavam na segunda xícara de café. A tempestade andaria pelos 3, o céu estava turvo e nublado. Kojak cochilava o mais perto possível do fogo, sem queimar o pêlo.
- Terminei de alimentar o homem interno - disse Glen, levantando-se. - Dê-me seus restos, seu faminto. Pensando melhor, dê-me seu lixo. Vou enterrar essa porra.
Stu entregou-lhe seu prato e a xícara de papelão.
- Esta andança é realmente alguma coisa, não é, careca? Aposto que não esteve em tão boa forma desde os seus vinte anos.
- É, já faz uns setenta anos - disse Larry e riu.
- Stu, nunca estive nesse tipo de forma - disse Glen, taciturno, recolhendo os restos da refeição e colocando-os no saco plástico que pretendia enterrar. - Jamais quis estar nesse tipo de forma. Mas não importa. Após cinquenta anos de agnosticismo confirmado, parece ser minha sina seguir o Deus de uma velha negra me lançando às mandíbulas da morte. Se é minha sina, o que posso fazer? Fim de papo. Mas eu preferiria caminhar do que viajar de moto, quando se pensa bem nisso. Caminhar leva mais tempo, de modo que viverei mais... por alguns dias, pelo menos. Com licença, cavalheiros, mas devo proporcionar um sepultamento decente a este lixo.
Os outros o viram caminhar até a borda do acampamento, levando uma pequena pá. Aquela "excursão a pé, do Colorado para o oeste", como dizia Glen, tinha sido a mais difícil para ele próprio. Ele era o mais velho do grupo, tendo 12 anos a mais que Brentner. No entanto, de certo modo, ele amenizava consideravelmente a caminhada para os outros. Sua ironia era constante mas gentil, e Glen parecia em paz consigo mesmo. O fato de conseguir seguir à frente, dia após dia, deixava os outros impressionados, embora isso não fosse exatamente uma inspiração. Ele estava com 57 anos e Stu o vira friccionando as juntas dos dedos nas últimas três ou quatro manhãs frias, fazendo caretas enquanto isso.
- Dói muito? - perguntara Stu na véspera, uma hora após terem começado a andar.
- Uma aspirina resolve isso. É artrite, você sabe, mas não é tão grave como será daqui a cinco ou sete anos. E sinceramente, Texano Oriental, não espero viver tanto.
- Realmente acha que ele vai nos pegar?
E Glen Bateman dissera uma coisa peculiar:
- Não recearei nenhum mal.
E assim terminara a discussão.
Agora, eles o ouviram praguejando enquanto escavava o solo congelado.
- Um grande sujeito, não é? - comentou Ralph. - Sempre achei que esses professores universitários fossem uns frescos, mas esse aí por certo não é. Sabe o que ele disse quando lhe perguntei por que não jogava esse lixo à beira da estrada? Disse que não havia necessidade de recomeçarmos esse tipo de merda. Disse que já começamos com muitas das antigas formas de merda.
Kojak levantou-se e foi ver o que seu dono fazia. A voz de Glen flutuou até eles:
- Ah, aí está você, seu monte de bosta imprestável. Estava começando a pensar que você tivesse morrido. Quer que o enterre também?
Larry sorriu e tirou o conta-quilômetros preso ao cinto. Pegara-o numa loja de material esportivo em Golden. A pessoa o regulava segundo o comprimento da própria passada e então o prendia ao cinto, como uma régua de carpinteiro. A cada anoitecer, ele anotava que distância haviam percorrido naquele dia, garatujando os números em uma folha de papel já muito manuseada e dobrada.
- Posso ver suas anotações? - pediu Stu.
- Claro - disse Larry, entregando-lhe a folha.
No topo da folha, Larry escrevera: de Boulder a Vegas: 1.200 quilômetros. Abaixo disso:
Data
06/09
07/09
08/09
09/09
10/09
11/09
12/09
13/09
14/09
15/09
16/09
17/09
Quilômetros
45
43
42
45
45
47
46
47
51
52
57
60
Total de quilômetros
45
88
130
175
220
267
313
360
411
463
520
580
Stu tirou um pedaço de papel de sua carteira e fez algumas subtrações.
- Bem, estamos fazendo um tempo melhor do que quando começamos, mas ainda temos um bom trecho a percorrer. Merda, não chegamos nem à metade do caminho.
Larry concordou.
- O tempo melhor está correto. Estamos progredindo, pois o trajeto é de descida. Pensando bem, Glen está certo. Por que nos apressarmos? O cara simplesmente vai nos varrer do mapa quando chegarmos lá.
- Simplesmente não acredito nisso, estão sabendo? - disse Ralph. - Podemos morrer, claro, mas isto não vai ser nada simples, nada de favas contadas. Mãe Abagail não nos enviaria se fosse apenas para sermos assassinados e nada mais resultar disso. Ela não faria isso.
- Não acredito que ela foi a única a nos enviar - disse Stu baixinho.
O conta-quilômetros de Larry emitiu quatro pequeninos e distintos cliques quando ele o regulou para o dia. Stu cobriu com terra o que restava da fogueira. Os pequenos rituais matinais prosseguiram. Já fazia 12 dias que estavam na estrada. Stu tinha a sensação de que os dias continuariam eternamente dessa maneira. Glen criticando jovial a comida, Larry anotando a quilometragem em sua surrada folha de papel, as duas xícaras de café matinais, alguém enterrando o lixo da véspera, alguém jogando terra na fogueira apagada. Era rotina, uma boa rotina. Isso fazia com que esquecessem a finalidade da jornada, o que também era bom. Pela manhã Fran lhe parecia muito distante - muito clara, porém muito distante, como uma foto guardada em um medalhão. À noite, no entanto, quando já estava escuro e a lua velejava no céu, Fran parecia muito próxima, quase tão próxima que poderia tocá-la... e era aí, claro, que residia o sofrimento. Em tais instantes, sua fé em Mãe Abagail se transformava em dúvida amarga. Ele tinha vontade de acordar os companheiros e dizer que aquilo era uma empreitada de loucos, que estavam levando lanças de borracha para atacar um letal moinho de vento, que seria melhor pararem na próxima cidade, pegarem motos e retomarem a Boulder. Que seria melhor terem um pouco de luz e um pouco de amor enquanto ainda podiam - porque um pouco era tudo quanto Flagg lhes permitiria.
Isso, no entanto, era à noite. De manhã, continuava parecendo certo prosseguirem. Ele olhava especulativamente para Larry, perguntando-lhe se ele pensava em sua Lucy nas horas mortas da noite. Se sonhava com ela e a desejava...
Glen voltou ao acampamento com Kojak nos seus calcanhares, pestanejando um pouco enquanto caminhava.
- Vamos pegá-los - dizia ele. - Certo, Kojak?
O cão abanou o rabo.
- Kojak diz que agora é ou vai ou racha - explicou Glen. - Vamos pessoal, rumo a Las Vegas!
Subiram o aterro até a I-70, que agora descia para Grand Junction, e iniciaram a caminhada do dia.
No fim daquela tarde, começou a cair uma chuva fria que os deixou enregelados e sem ânimo para conversar. Larry caminhava imerso em seus pensamentos, as mãos enfiadas nos bolsos. A princípio pensou em Harold Lauder, cujo cadáver haviam encontrado dois dias antes - parecia haver uma conspiração não expressa entre eles, impedindo comentários sobre Harold -, mas no fim seu pensamento retornou à pessoa a quem alcunhara de Homem-Lobo.
Tinham encontrado o Homem-Lobo bem a leste do túnel Eisenhower. O tráfego estava terrivelmente congestionado naquele ponto, e o cheiro de morte era doentiamente forte. O Homem-Lobo tinha metade do corpo dentro de um Austin e metade fora dele. Usava jeans tachonados e uma camisa de seda estilo cowboy, enfeitada de lantejoulas. Os cadáveres de vários lobos jaziam em volta do Austin. O Homem-Lobo tinha metade do corpo deitado no banco do carona, com um lobo morto sobre o peito. As mãos do Homem-Lobo estavam fechadas em torno do pescoço do animal, cuja bocarra ensanguentada se virava em ângulo para a garganta do homem. Reconstituindo a cena, pareceu a todos que uma alcateia descera das montanhas mais altas, localizando e atacando aquele homem solitário. O Homem-Lobo tivera uma arma. Conseguira matar vários lobos antes de recuar para dentro do Austin.
Quanto tempo ficara lá antes que a fome o impelisse a abandonar seu refúgio?
Larry não sabia nem queria saber. Mas percebera o quão terrivelmente magro estava o Homem-Lobo. Uma semana, talvez. Fosse ele quem fosse, estava rumando para oeste, ia juntar-se ao homem escuro, porém Larry não desejaria uma sina tão hedionda para ninguém. Falara a respeito com Stu, dois dias após emergirem do túnel, tendo deixado o Homem-Lobo muito para trás.
- Por que um bando de lobos ficaria tanto tempo à espreita, Stu?
- Não faço a menor ideia.
- Quero dizer, se queriam alguma coisa para comer, não poderiam ter encontrado?
- Sim, acho que teriam.
Aquilo era um terrível mistério para ele e ficava matutando a respeito, sabendo que jamais acharia a solução. Quem quer que tivesse sido, coragem é que não faltara ao Homem-Lobo. No final, impelido pela fome e pela sede, abrira a porta do carro. Um lobo saltara sobre ele e lhe rasgara a garganta. Entretanto o Homem-Lobo o esganara e matara, mesmo ele próprio tendo morrido na ação.
Os quatro haviam atravessado o túnel Eisenhower ligados por uma corda e, naquela terrível escuridão, a mente de Larry retornou para seu trajeto através do túnel Lincoln. Só que dessa vez não era assombrado por imagens de Rita Blakemoor, mas sim pelo rosto do Homem-Lobo, congelado em seu esgar final enquanto ele e o lobo se exterminavam.
Foram os lobos enviados para matar aquele homem?
Mas este pensamento era inquietante demais para ser sequer considerado. Tentou expulsar tudo aquilo de sua mente e simplesmente continuar caminhando, mas era algo difícil de fazer.
Acamparam naquela noite além de Loma, perto da divisa de Utah. O jantar consistiu em alimentos pilhados e água fervida, como tinham sido todas as refeições - estavam seguindo ao pé da letra todas as instruções de Mãe Abagail: "Vão apenas com a roupa do corpo. Não carreguem nada."
- A coisa vai piorar em Utah - comentou Ralph. - Creio que é lá que iremos descobrir se Deus, realmente, está nos protegendo. Será uma estirada, mais de 150 quilômetros sem uma cidade sequer, sem ao menos um posto de gasolina ou um bar. - Ele não parecia particularmente preocupado pela perspectiva.
- Água? - perguntou Stu.
Ralph deu de ombros.
- Também não resta muito disso. Acho que vou me deitar.
Lany decidiu pela mesma coisa. Glen continuou de pé, baforando seu cachimbo. Stu ainda tinha alguns cigarros e decidiu fumar um. Os dois ficaram fumando em silêncio por algum tempo.
- Foi um longo caminho de New Hampshire até aqui, careca - disse finalmente Stu.
- Não é exatamente a mesma distância como daqui ao Texas.
Stu sorriu.
- Não, não é.
- Imagino que deva sentir muita falta de Fran.
- É, sinto falta, mas também me preocupo com ela, me preocupo com o bebê. Fica pior depois que escurece.
Glen expeliu fumaça.
- Não há nada que você possa mudar, Stuart.
- Sei disso, mas continuo preocupado.
- É claro. - Glen bateu o cachimbo numa pedra. - Aconteceu um troço curioso a noite passada, Stu. Levei o dia todo querendo descobrir se tinha sido real, um sonho, ou sei lá o quê.
- O que foi?
- Bem, acordei no meio da noite e vi Kojak rosnando para alguma coisa. Acho que passava da meia-noite, porque o fogo estava apagado. Kojak dormia do outro lado da fogueira, mas naquele momento ficou atento, as orelhas em pé. Mandei-o ficar quieto, mas ele nem olhou para mim. Olhava para um ponto alto, à minha direita. Pensei se não seriam os lobos. Desde que vimos aquele sujeito que Larry chamou de Homem-Lobo...
- É, aquilo foi feio.
- Bem, não havia nada. Eu podia enxergar claramente. Kojak rosnava para o nada.
- Ele farejava algum cheiro, é isso.
- Certo, porém a parte mais louca está por vir. Após dois minutos comecei a sentir algo... bem, decididamente espectral. Era como se houvesse qualquer coisa bem perto da rampa da estrada e que estava me vigiando. Vigiando todos nós. Eu quase podia vê-la, achava que se apertasse os olhos da maneira certa, poderia vê-la. Mas eu não quis. Porque achei que devia ser ele. Parecia Flagg, Stuart.
- Provavelmente não foi nada - disse Stu após um momento.
- Estou certo de que pressenti algo. Kojak também.
- Bem, suponhamos que Kojak estivesse vendo alguma coisa. O que poderíamos fazer a respeito?
- Nada. Mas não gosto disso. Não gosto dessa coisa de ele ser capaz de nos vigiar... se é que se trata disso. Estou me borrando de medo.
Stu terminou seu cigarro, apagou-o cuidadosamente ao lado de uma rocha, mas não fez qualquer menção de ir para seu saco de dormir. Olhou para Kojak, que estava deitado junto à fogueira com o focinho entre as patas, observando-os.
- Portanto, Harold está morto - disse Stu por fim.
- É isso aí.
- E foi simplesmente um desperdício. Um desperdício de Nick, de Sue e também dele próprio, suponho.
- Concordo.
Nada mais havia a dizer. Tinham encontrado Harold e sua lamentosa declaração de morte um dia após atravessarem o túnel Eisenhower. Ele e Nadine deviam ter utilizado o Loveland Pass, porque Harold continuava com sua moto Triumph - o que restava dela, pelo menos - e, como dissera Ralph, teria sido impossível alguém cruzar o Eisenhower em algo maior do que um velocípede de criança. Os abutres tinham trabalhado à vontade em Harold, mas Harold aferrava o caderno de notas na mão enrijecida. O .38 estava enfiado em sua boca como um pirulito grotesco e, embora não tivessem sepultado Harold, Stu removera a pistola. Fizera isso com delicadeza. Vendo a eficiência com que o homem escuro havia destruído Harold e a despreocupação com que o pusera de lado após cumprido o seu papel, Stu odiava Flagg ainda mais. Tinha a sensação de que se lançava em uma espécie imbecil de cruzada infantil e, mesmo achando que deviam seguir em frente, o cadáver de Harold, com a perna estraçalhada, o assombrou da mesma maneira como a careta congelada do Homem-Lobo assombrara Larry. Ele havia descoberto que queria fazer Flagg pagar pelo que tinha feito a Harold, bem como a Nick e Susan... porém, cada vez mais, sentia que nunca teria essa chance.
No entanto, você quer vigiar, pensou soturnamente. Quer ficar à espreita, para o caso de eu chegar a uma distância de poder esganá-lo, seu monstro!
Glen levantou-se, piscando de leve.
- Vou dormir, Texano Oriental. Não me peça para fazer-lhe companhia. Na verdade, é uma reunião difícil.
- Como vai essa artrite?
Glen sorriu.
- Não tão ruim - disse, porém mancava enquanto se dirigia ao seu saco de dormir.
Stu decidiu que não fumaria outro cigarro - fumar apenas dois ou três por dia esgotaria seu suprimento no final da semana -, porém acabou acendendo mais um. A noite não estava tão fria, mas tudo indicava que, pelo menos naquela altitude, o verão terminara. Isto o deixou triste, porque tinha o forte pressentimento de que nunca mais viveria outro verão. Quando este começara, ele trabalhava intermitentemente numa fábrica de calculadoras de bolso, numa pequena cidade chamada Arnette. Passara muitas de suas horas de folga no posto Texaco de Bill Hapscomb, ouvindo os outros criticarem a economia, o governo, os tempos difíceis. Stu agora podia dizer que nenhum deles realmente conhecera tempos difíceis. Terminou seu cigarro e o lançou à fogueira.
- Cuide-se bem, Frannie, garotinha - disse e enfiou-se no saco de dormir. E nos seus sonhos pensou que algo se aproximara do acampamento. Algo que mantinha uma vigilância malévola sobre eles. Poderia ter sido um lobo com entendimento humano. Ou um corvo. Ou uma doninha, se esgueirando com o ventre colado ao chão através do mato rasteiro. Ou poderia ainda ter sido uma presença incorpórea, como um Olho vigilante.
Não recearei mal algum, murmurou no sonho. Sim, embora eu caminhe pelo vale de sombras da morte, não recearei mal algum. Mal algum.
Por fim, o sonho se desvaneceu e ele dormiu profundamente.
Na manhã seguinte, estavam de novo na estrada, bem cedo. O marcador de quilometragem de Larry tiquetaqueava enquanto a estrada se espichava preguiçosamente, de um lado e outro, descendo com suavidade a encosta ocidental em direção a Utah. Pouco depois do meio-dia, deixaram o Colorado para trás. Naquela noite acamparam a oeste de Harley Dome, em Utah. Pela primeira vez, o grande silêncio os deixou impressionados, como algo opressivo e maléfico. Ralph Brentner foi dormir naquela noite pensando: Agora estamos no oeste. Saímos do nosso campo e entramos no dele.
E, naquela noite, Ralph sonhou com um lobo que possuía apenas um olho vermelho, que viera do agreste para vigiá-los. Vá embora, disse-lhe Ralph. Vá embora, não estamos com medo. Não temos medo de você.
Por volta das duas da tarde de 21 de setembro, haviam deixado Sego para trás. A próxima cidade de grande porte, segundo o mapa de Stu, era Green River. Em seguida não haveria mais qualquer outra, durante muito tempo. Então, como dissera Ralph, descobririam se Deus estava ou não com eles.
- De fato - disse Larry para Glen -, fico mais preocupado com água do que com comida. Em sua maioria, todos que saem em viagem costumam levar nos carros coisas para beliscar, como biscoitos, bolinhos, essas coisas.
Glen sorriu.
- Talvez o Senhor nos envie aguaceiros de bênçãos.
Larry olhou para o céu azul sem nuvens e fez uma careta ante aquela ideia.
- Às vezes fico pensando que, no fim, ela não estava regulando bem.
- É possível - disse Glen tranqüilamente. - Se você ler sua teologia, descobrirá que Deus com freqüência prefere falar através de moribundos e insanos. Inclusive tenho a impressão, e aqui vai se abrindo o armário jesuíta, de que existem bons motivos psicológicos para tanto. Um louco ou uma pessoa em seu leito de morte são seres humanos com uma psique drasticamente alterada. Uma pessoa saudável poderia estar apta a filtrar a mensagem divina e modificá-la com sua própria personalidade. Em outras palavras, uma pessoa saudável poderia ser um profeta de merda.
- Os caminhos de Deus - retrucou Larry. - Entendo. Estamos enxergando através de um vidro bastante escuro para mim, sem dúvida. O fato de estarmos fazendo toda essa caminhada, quando, motorizados, teríamos coberto todo o trajeto em uma semana, não entra na minha cabeça. Mas já que estamos cometendo uma loucura, tudo bem que a levemos a cabo de uma maneira louca.
- O que estamos fazendo tem todos os tipos de precedente histórico - disse Glen -, e vejo alguns motivos sociológicos e psicológicos perfeitamente adequados a esta caminhada - disse Glen. - Ignoro se tais motivos sejam ou não de Deus, porém fazem um sentido perfeito para mim.
- Como assim? - Stu e Ralph tinham se aproximado também para ouvir.
- Houve várias tribos de índios americanos que costumavam tomar o ato de "ter uma visão" parte integral de seus ritos de masculinidade. Ao chegar a hora de o rapazola tomar-se homem, presumia-se que saísse desarmado para a floresta. Cabia-lhe a tarefa de matar um animal e compor duas canções... uma sobre o Grande Espírito e outra sobre suas proezas como caçador, cavaleiro, guerreiro e fodedor... além de ter uma visão. Não deveria alimentar-se. Tinha de subir para os lugares altos e esperar pela chegada da visão. E, naturalmente, com o tempo, ela chegava. - Glen deu uma risadinha. - A fome é um grande alucinógeno.
- Acha que Mãe Abagail nos mandou aqui para termos visões? - perguntou Ralph.
- Talvez tenha sido para adquirirmos força e santidade por um processo depurativo - replicou Glen. - Como sabem, desfazer-se de coisas é simbólico. Talismânico. Quando nos desfazemos de coisas, estamos também nos desfazendo de outras relacionadas ao eu, as quais são também relacionadas àquelas coisas. Iniciamos um processo de purificação. Começamos a esvaziar o vaso.
Larry balançou lentamente a cabeça.
- Não estou entendendo.
- Bem, tomemos um homem inteligente pré-epidemia. Se quebrarem sua TV, o que ele fará à noite?
- Ler um livro - disse Ralph.
- Visitar os amigos - disse Stu.
- Vai ligar o som - opinou Larry, sorrindo.
- Certo, fará tudo isso - replicou Glen. - Mas continuará sentindo falta do aparelho de TV. Há, em toda a sua vida, um vácuo que era preenchido pela TV. Lá, bem no fundo, estará ainda pensando: Às nove vou pegar umas cervejas e ver o jogo dos Sox na TV. Aí, quando chega e vê o aparelho de TV quebrado, sente uma decepção infernal. Uma parte de sua vida rotineira foi jogada fora, não é mesmo?
- Isso mesmo - disse Ralph. - Nossa televisão certa vez ficou no conserto por duas semanas, e só me senti bem quando ela voltou.
- O vácuo na vida de uma pessoa assim fica ainda maior se ela for fanática por TV, sendo menor só se tivesse o costume de assisti-la de vez em quando. Seja como for, algo se perdeu. Agora vamos tirar todos os seus livros, todos os seus amigos e também seu aparelho de som. Retiremos também todo o seu alimento, exceto o que puder obter ao longo do caminho. É um processo de esvaziamento e também uma diminuição do ego. Dos seus eus, cavalheiros, que irão se transformando em vidraças de janela. Ou, melhor ainda, em copos vazios de bebida.
- Mas qual a finalidade disso? - indagou Ralph. - Por que passar por todo esse processo complicado?
Glen respondeu:
- Se ler a Bíblia, você verá que é inteiramente tradicional todos aqueles profetas se embrenharem no agreste de tempos em tempos... são as Mágicas Turnês Misteriosas do Velho Testamento. O período de tempo estipulado para tais excursões era geralmente de quarenta dias e quarenta noites, uma terminologia hebraica significando "ninguém sabe ao certo quanto tempo ficou fora, mas foi bastante tempo". Isto não faz com que recordem de alguém?
- Claro - disse Ralph. - Mãe Abagail.
- Agora pensem em si mesmos como uma bateria. Na realidade é isso o que somos, vocês sabem. Nosso cérebro funciona através de uma corrente elétrica quimicamente convertida. Por falar nisso, nossos músculos também funcionam graças a pequenas cargas elétricas... uma substância química chamada acetilcolina permite a passagem de comente quando temos de nos mover e, quando precisamos parar, é manufaturada outra substância, chamada colinesterase. A colinesterase destrói a acetilcolina, de maneira que nossos nervos se tomam novamente maus condutores. Aliás, uma boa coisa, caso contrário, se começássemos a coçar o nariz, jamais conseguiríamos parar. Muito bem, a questão é: tudo quanto pensamos, tudo quanto fazemos, tudo isso tende a descarregar a bateria. Como os acessórios em um carro.
Os outros agora o ouviram atentamente.
- Ver televisão, ler livros, conversar com amigos, saborear um grande jantar... tudo isso descarrega a bateria. Uma vida normal, pelo menos como levada pela civilização ocidental, é como dirigir um carro com janelas, freios, assentos, tudo movido eletricamente. Só que, quanto mais acessórios, menos a bateria fica carregada, certo?
- É isso aí - assentiu Ralph. - Até uma Delco de bom tamanho não ficaria sobrecarregada se instalada em um Cadillac.
- Muito bem, o que fizemos foi nos desfazermos dos acessórios. Estamos nos recarregando.
Ralph disse inquieto:
- Se pusermos uma bateria de carro para ficar carregando por tempo demais, ela explodirá.
- Sim - concordou Glen. - O mesmo acontece com as pessoas. A Bíblia nos fala de Isaías, de Jó e dos outros, mas não diz quantos profetas voltaram do deserto com visões que tinham torrado seus cérebros. Imagino que tenha havido alguns. No entanto, sinto um saudável respeito pela inteligência e pela psique humanas, a despeito de uma reversão ocasional ao passado, como nosso amigo Texano Oriental...
- Largue do meu pé, careca - resmungou Stu.
- Seja como for, a capacidade da mente humana é muito maior do que a maior das baterias Delco. Acredito que ela possa aceitar uma carga quase até o infinito. Em certos casos, até além disso.
Caminharam em silêncio por um momento, refletindo a respeito.
- Estamos mudando? - perguntou Stu, baixinho.
- Estamos - respondeu Glen. - Sim, acho que estamos.
- Perdemos algum peso - disse Ralph. - Basta olhar para vocês, caras. Quanto a mim, tinha uma baita pança de cerveja. Agora, posso olhar para baixo e ver novamente os dedos dos pés.
- É um estado mental - disse Larry subitamente. Quando os outros o fitaram, ficou um pouco constrangido, porém prosseguiu: - Venho tendo esta sensação mais ou menos por esta última semana e não entendia o que poderia ser. Talvez possa entender agora. Sinto-me drogado. Como se tivesse fumado meio baseado que é dinamite pura ou cheirado apenas uma carreirinha de coca. No entanto, não existe aquele senso de desorientação que acompanha a droga. Quando nos drogamos, achamos que o raciocínio normal está ligeiramente fora de alcance. No entanto, a verdade é que meu raciocínio está excelente, melhor do que nunca. E continuo a me sentir meio drogado. - Larry achou graça. - Talvez seja apenas fome.
- A fome é parte disso - concordou Glen -, mas não tanto assim.
- Quanto a mim, vivo faminto o tempo todo - disse Ralph -, mas não parece tão importante. Sinto-me bem.
- Eu também - acrescentou Stu. - Fisicamente, não tenho me sentido tão bem em muitos anos.
- Quando a gente esvazia o vaso, esvazia também todo o lixo que flutua nele - afirmou Glen. - Os aditivos. As impurezas. Claro que a pessoa tem de sentir-se bem. Isto é como um enema de corpo inteiro, de mente inteira.
- Você tem um jeito curioso de fazer comparações, careca.
- Pode não ser muito elegante, mas é preciso.
- Isso nos ajudará contra ele? - perguntou Ralph.
- Bem - disse Glen -, a intenção é essa. Não tenho muitas dúvidas quanto a isso. De qualquer modo, vamos ter de esperar para ver, não?
Seguiram em frente. Kojak retornou do mato e os acompanhou por instantes, suas unhas crepitando no asfalto da Nacional 70. Larry abaixou-se e coçou-lhe o pelo.
- Velho Kojak - disse ele. - Sabia que você era uma bateria? Uma enorme bateria Delco com garantia para a vida inteira?
Kojak pareceu não saber ou não se importar, mas sacudiu o rabo para mostrar que concordava com Larry.
Acamparam aquela noite a uns 20 quilômetros a oeste de Sego e, como se para confirmar o que haviam debatido naquela tarde, pela primeira vez não havia nada para comer desde que deixaram Boulder. Glen obteve o último café instantâneo deles numa lanchonete, que dividiram em uma única caneca, passando-a de mão em mão. Haviam percorrido os últimos quilômetros sem ver um só carro.
Na manhã seguinte, dia 22, depararam com uma caminhonete Ford capotada com quatro cadáveres no seu interior - dois deles de crianças pequenas. Havia duas caixas de bolachas em forma de bichos no carro, e uma sacola grande de batatas fritas dormidas. As bolachas estavam em melhor estado. Eles as dividiram para cinco.
- Não rosne para eles, Kojak - admoestou Glen. - Cachorro mau! Onde ficaram suas boas maneiras? E se você não tem boas maneiras... como devo agora concluir... onde ficou seu savoir faire?
Kojak tamborilou com seu rabo e olhou para as bolachas de um modo que provava inteiramente que não tinha mais savoir faire nem boas maneiras.
- Então fuce, avance ou morra - disse Glen e deu a última bolacha que lhe coubera, em forma de tigre. Kojak a devorou vorazmente e depois ficou farejando.
Larry tinha poupado seu zoológico completo - cerca de dez bichos - para comer de uma só vez. E o fez lenta e sonhadoramente.
- Já repararam - disse ele - que bolachas de bichinhos têm um leve sabor de limão? Lembro isso desde que era garoto. Nunca mais pensei nisso de novo até agora.
Ralph estivera passando as duas últimas bolachas de mão em mão e agora engoliu uma.
- É, você tem razão. Há um travo de limão nessas bolachas. Sabem, eu meio que gostaria que o velho Nick estivesse aqui. Eu não me importaria em dividir essas bolachas com mais um.
Stu assentiu. Eles acabaram com as bolachas e prosseguiram a jornada. Naquela tarde encontraram um caminhão de entregas dos Supermercados Great Western, que aparentemente seguia para Green River, estacionado caprichosamente sobre o canteiro central da estrada, o motorista sentado empertigado e morto atrás do volante. O almoço deles foi uma lata de presuntada retirada da carroceria, mas nenhum teve muito apetite. Glen comentou que seu estômago havia encolhido. Stu disse que a presuntada cheirava mal para ele - não que estivesse estragada, mas o odor era muito forte. Carnoso demais. Meio que lhe revirava o estômago. Forçou-se a comer uma única fatia. Ralph disse que em breve se contentaria com mais duas ou três caixas de bolachas de bichinhos. Todos riram. Até mesmo Kojak comeu uma pequena porção antes de se afastar para farejar alguma coisa.
Acamparam a leste de Green River aquela noite, e houve uma garoa de neve nas primeiras horas da manhã.
Passava um pouco do meio-dia de 23 de setembro quando chegaram ao desmoronamento. O céu ficara encoberto o dia inteiro e fazia frio - um frio suficiente para nevar, pensou Stu -, e não apenas lufadas, tampouco.
Os quatro pararam junto à borda, Kojak nos calcanhares de Glen, olhando para baixo e até o outro lado. Em algum ponto ao norte dali, uma represa poderia ter cedido, ou talvez houvera uma sucessão de fortes tempestades de verão. Fosse como fosse, ocorrera uma inundação repentina e violenta ao longo do San Rafael, que, já fazia alguns anos, não era mais que um leito seco de torrente. A inundação arrastara um trecho da pavimentação da I-70. A cratera teria uns 15 metros de profundidade, as margens estavam ruindo, o solo era de cascalho miúdo e rocha sedimentar. Ao fundo comia um tristonho filete d’água.
- Caramba! - exclamou Ralph. - Alguém deveria chamar o Departamento de Estradas de Rodagem de Utah para dar um jeito nisso.
Larry apontou.
- Vejam aqui - disse. Olharam para aquele vazio, que começava agora a ficar pontilhado com estranhos pilares e monolitos esculpidos pelo vento. Cerca de 100 metros abaixo do curso do San Rafael avistaram um emaranhado de guardrails, cabos e grandes placas de asfalto da pavimentação. Uma daquelas placas apontava para o céu nublado como um dedo apocalíptico, ainda exibindo a faixa branca que demarcava as pistas de rodagem.
Glen olhava para baixo, para o solo erodido e juncado de cascalho, as mãos enfiadas nos bolsos, uma expressão ausente e sonhadora no rosto. Em voz baixa, Stu perguntou:
- Acha que vai conseguir, Glen?
- Claro, acho que vou.
- E como está a artrite?
- Já esteve pior. - Ele forçou um sorriso. - E para ser franco, já esteve melhor também.
Não dispunham de corda para se ancorarem um ao outro. Stu desceu primeiro, movendo-se com cuidado. Não gostou da maneira como às vezes o solo deslizava sob seus pés, provocando pequenos desmoronamentos de rocha e areia. Em dado momento, pensou que ia perder por completo o ponto de apoio para um pé, que terminaria deslizando todo o trajeto até o fundo daquele poço. A mão tateante encontrou uma saliência de rocha sólida, da qual ficou pendente enquanto procurava chão mais sólido para os pés. Então, Kojak passou despreocupadamente ao seu lado, lançando pequenos jatos de terra e jogando para baixo pequeninos punhados de solo. Um momento mais tarde, chegava ao fundo e ficava de cauda abanando, enquanto latia amistosamente para Stu, ainda em meio à descida.
- Seu cão exibido de merda! - resmungou Stu, abrindo caminho cautelosamente para baixo.
- Serei o seguinte! - gritou Glen. - Ouvi o que disse sobre o meu cachorro!
- Tome cuidado, careca! Bastante cuidado. A terra está realmente cedendo onde a gente pisa!
Glen começou a descer lentamente, movendo-se com grande deliberação de um ponto de apoio para o seguinte. Stu ficava tenso a cada vez que via a terra solta começar a deslizar debaixo das botas surradas de Glen. Os cabelos dele esvoaçavam como finos fios de prata em tomo de suas orelhas à leve brisa que soprava. Ocorreu-lhe que quando conhecera Glen, pintando um quadro medíocre ao lado da estrada em New Hampshire, os cabelos dele ainda eram praticamente escuros.
Até o momento em que Glen finalmente plantou os pés com firmeza no fundo lamacento da vala, Stu esteve certo de que ele iria cair e quebrar-se em dois. Stu suspirou com alívio e bateu-lhe no ombro.
- Nem deu para suar, Texano Oriental - disse Glen e inclinou-se para acariciar o pelo de Kojak.
- Pois eu suei paca - replicou Stu.
Ralph chegou em seguida, movendo-se cuidadosamente de um apoio ao próximo, saltando os últimos 3 metros.
- Rapaz - disse ele. - Essa merda não podia estar mais solta. Vai ser engraçado se não conseguirmos subir a outra escarpa e tivermos de caminhar uns 8 quilômetros rio acima a fim de encontrar uma rampa menor, não acham?
- Seria bem mais engraçado se viesse outra inundação imprevista enquanto estivermos aqui embaixo - disse Stu.
Larry desceu agilmente e sem percalços, juntando-se a eles menos de três minutos após iniciada a descida.
- Quem sobe primeiro? - perguntou ele.
- Por que não você, já que é tão marrento? - disse Glen.
- Certo.
Subir levou muito mais tempo e por duas vezes o solo traiçoeiro deslizou sob Larry e ele quase caiu. Mas por fim alcançou o topo e acenou para os outros que estavam no fundo.
- Quem é o próximo? - perguntou Ralph.
- Eu - disse Glen e caminhou até a outra margem.
Stu pegou-lhe o braço.
- Ouça - disse. - Podemos caminhar corrente acima e encontrar uma ribanceira menos íngreme... como sugeriu Ralph.
- E perder o resto do dia? Quando eu era garoto poderia ter feito isso em quarenta segundos e com uma pulsação a menos de setenta.
- Você não é mais um garoto, Glen.
- Não. Mas acho que ainda me restou um pouco dele.
Antes que Stu pudesse dizer mais alguma coisa, Glen já começara. Parou para descansar ao vencer a terça parte da subida e depois prosseguiu. Perto da metade do caminho, ele agarrou uma saliência de argila xistosa, que se esfacelou entre seus dedos, e Stu teve certeza de que ele ia cair rolando até o fundo sobre suas juntas artríticas.
- Ah, merda - ofegou Ralph.
Glen agitou os braços e de algum modo recuperou o equilíbrio. Pendeu à direita e subiu mais 3 metros, descansou e voltou a subir. Próximo ao topo, uma saliência rochosa em que estivera se apoiando soltou-se e ele teria caído se Larry não estivesse ali. Ele agarrou o braço de Glen e o puxou para cima.
- Tudo bem por aqui - gritou Glen para baixo.
Stu sorriu com alívio.
- Como está sua pulsação, careca?
- Mais de noventa, acho - admitiu Glen.
Ralph subiu a encosta como um imperturbável cabrito montês, checando cada ponto de apoio, trocando de mãos e pés com grande deliberação. Quando chegou ao topo, Stu começou a subir.
Exatamente no momento da queda, Stu estava pensando que a encosta era de fato mais fácil do que aquela pela qual tinham descido. Os apoios eram melhores, a inclinação um pouquinho mais abrupta. Porém a superfície era uma mistura de solo gredoso e fragmentos de rocha que tinha sido amolecida pelo tempo úmido. Stu pressentiu que isso poderia ser uma armadilha e continuou cautelosamente.
Seu peito estava acima da borda quando a saliência em que apoiava o pé esquerdo desapareceu de súbito. Ele começou a deslizar. Larry tentou agarrar sua mão, porém dessa vez não teve êxito. Stu aferrou a borda pavimentada da estrada, mas ela escapou de suas mãos. Olhou estupidamente para ela por um momento enquanto a velocidade de sua queda aumentava. Ele largou-a, sentindo-se loucamente parecido com o coiote do desenho do Papaléguas. Tudo de que preciso, pensou, é alguém para buzinar enquanto eu me esborracho no fundo.
Seu joelho atingiu alguma coisa e houve uma súbita pontada de dor. Ele agarrou-se à superfície pegajosa da encosta, que agora passava por ele com alarmante rapidez, e continuou caindo sem nada reter nos dedos senão punhados de terra.
Bateu numa saliência de cascalho que parecia uma grande ponta de flecha rombuda e desgovernada, a respiração suspensa. Caiu livremente por uns 3 metros e aterrissou com a perna dobrada. Ouviu o estalo. A dor foi instantânea e imensa. Ele girou e conseguiu dar um salto de costas. Estava comendo terra agora. Seixos pontiagudos rabiscavam estrias sangrentas em seu rosto e braços. Caiu de novo sobre a perna ferida e ouviu-a estalar em outro lugar. Desta vez não gritou. Desta vez uivou.
Deslizou os últimos 4 metros sobre o ventre, como um garoto num toboágua. Parou com as calças cheias de lodo e o coração batendo loucamente nos ouvidos. A perna estava um ferro em brasa e seu casaco e a camisa embaixo dele se franziram até o queixo.
Quebrada, mas com que gravidade? Era muito grave, ao que parecia. Duas fraturas pelo menos. Talvez mais. E a dor no joelho...
Larry vinha descendo a encosta, movendo-se em pequenos saltos que eram quase uma zombaria ao que tinha acontecido com Stu. Larry ajoelhou-se ao lado dele, fazendo a pergunta que Stu já fizera a si mesmo.
- Quão grave é, Stu?
Stu apoiou-se nos cotovelos e olhou para Larry, seu rosto lívido pelo choque e manchado de terra castanha.
- Imagino que estarei andando de novo em cerca de três meses - disse Stu e começou a sentir ânsias de vômito. Olhou para o céu nublado, crispou os punhos e gritou para as alturas. - AHHH, MERDA!
Ralph e Larry encanaram a perna. Glen arranjara um frasco do que chamava "minhas pílulas para artrite" e deu uma para Stu. Este não sabia o que havia nas "pílulas para artrite" e Glen se recusou a revelar, mas a dor na perna se reduziu a um latejar distante. Ele sentia-se muito calmo, até mesmo sereno. Ocorreu-lhe que todos eles estavam vivendo de tempo emprestado, não porque estivessem a caminho para encontrar Flagg, necessariamente, mas porque haviam sobrevivido ao Capitão Viajante, para começar. De qualquer modo, ele sabia o que tinha de ser feito... e providenciou para que fosse feito. Larry tinha acabado de falar. Todos olharam para Stu ansiosamente, para ver o que ele diria. E o que ele disse foi bastante simples:
- Não.
- Stu - disse Glen gentilmente -, você não compreende...
- Eu compreendo. Estou dizendo que não. Nada de voltar a Green River. Nada de cordas. Nada de carro. É contra as regras do jogo.
- Isto não é a porra de um jogo! - gritou Larry. - Você vai morrer aqui!
- E vocês, quase com toda a certeza, morrerão lá em Nevada. Agora prossigam em frente. Ainda restam mais quatro horas de luz do dia. Não há necessidade de desperdiçá-las.
- Não vamos abandonar você - disse Larry.
- Lamento, mas vão sim. Estou mandando.
- Não. Estou chefiando agora. Mãe Abagail disse que, caso lhe acontecesse alguma coisa...
- ... vocês deveriam prosseguir.
- Não. Não. - Larry olhou para Glen e Ralph em busca de apoio. Eles o fitaram de volta, perturbados. Kojak sentava-se nas proximidades, olhando para os quatro com o rabo caprichadamente enrolado em volta das patas.
- Ouça-me, Larry - disse Stu. - Toda esta viagem é baseada na ideia de que a velha dama sabia do que estava falando. Se você começar a ficar contestando isso, vai pôr tudo a perder.
- É, Stu está certo - disse Ralph.
- Não, não está certo, seu babaquara - retrucou Larry, imitando furiosamente o carregado sotaque de Oklahoma de Ralph. - Não foi a vontade de Deus que fez Stu cair aqui, não foi sequer uma obra do homem escuro. Foi apenas terra solta, isso é tudo. Apenas terra solta! Não vou abandoná-lo, Stu. Não costumo deixar gente para trás.
- Sim. Nós vamos abandoná-lo - disse Glen, baixinho.
Larry olhou em torno incredulamente, como se houvesse sido traído.
- Pensava que fosse amigo dele!
- E sou. Mas isso não importa.
Larry deu uma risada histérica e caminhou um pouco ao longo do córrego.
- Você está louco, sabe disso?
- Não, não estou. Fizemos um acordo. Nos reunimos em volta do leito de morte de Mãe Abagail e tomamos essa decisão. É quase certo que vai significar a nossa morte, e sabemos disso. Firmamos o acordo. Agora queremos levá-lo a cabo.
- Bem, eu também quero, pelo amor de Deus! Quero dizer, não implica voltarmos a Green River. Podemos arranjar uma caminhonete, colocá-lo na caçamba e prosseguir...
- Ficou acertado que temos de ir a pé - disse Ralph e apontou para Stu. - E ele não pode andar.
- Certo. Ótimo. Ele tem uma perna quebrada. O que propõe que façamos? Sacrificá-lo como um cavalo?
- Larry... - começou Stu.
Antes que ele pudesse continuar, Glen agarrou Larry pela camisa e puxou-o na sua direção.
- A quem você está tentando salvar? - Sua voz era fria e firme. - Stu, ou a si mesmo?
Larry o encarou, movendo a boca sem falar.
- É muito simples - continuou Glen. - Não podemos ficar... e ele não pode ir.
- Eu me recuso a aceitar isto - suspirou Larry, o rosto mortalmente pálido.
- É um teste - disse Ralph subitamente. - É disso que se trata.
- Um teste de sanidade, talvez - resmungou Larry.
- Vamos votar - disse Stu, do chão. - Meu voto é para que prossigam.
- O meu também - afirmou Ralph. - Stu, sinto muito. Mas se Deus está olhando por nós, talvez esteja também olhando por você...
- Não vou fazer isso - disse Larry.
- Não é em Stu que você está pensando - acusou Glen. - Você está tentando salvar a própria pele. Mas desta vez o correto é prosseguirmos, Larry. Temos de ir.
Larry esfregou lentamente a boca com o dorso da mão.
- Vamos ficar esta noite - disse. - Vamos debater o assunto.
- Não - disse Stu.
Ralph assentiu. Um olhar foi trocado entre ele e Glen, depois Glen tirou do bolso o frasco de "pílulas para artrite" e o pôs na mão de Stu.
- Estas são à base de morfina - disse. - Mais do que três ou quatro provavelmente será uma dosagem fatal. - Seus olhos encontraram os de Stu. - Está entendendo, Texano Oriental?
- Sim, entendi.
- Do que está falando? - gritou Larry. - Que diabo está sugerindo?
- Você não sabe? - disse Ralph com tamanho desdém que por um momento Larry ficou em silêncio. Então tudo disparou de novo diante dele com a velocidade de pesadelo de rostos estranhos enquanto se anda de chicote-queimado no parque de diversões: pílulas, estimulantes, tranqüilizantes, bolinhas. Rita. Virando-a no seu saco de dormir e vendo que estava morta e rígida, com vômito esverdeado saindo rançoso de sua boca.
- Não! - berrou ele e tentou arrebatar o frasco da mão de Stu.
Ralph o agarrou pelos ombros. Larry se debateu.
- Solte-o - disse Stu. - Quero falar com ele. - Ralph ainda agarrava Larry, olhando para Stu com incerteza. - Vamos, pode soltá-lo.
Ralph soltou, mas parecia pronto a agarrá-lo de novo.
- Aproxime-se, Larry - disse Stu. - Agache-se.
Larry veio e se agachou junto a Stu. Olhou deploravelmente no rosto de Stu.
- Isso não está certo, cara. Quando alguém cai e quebra a perna, não se... não se pode simplesmente ir embora e deixar a pessoa morrer. Não sabe disso? Ei, cara... - Ele tocou o rosto de Stu. - Por favor. Pense.
Stu tomou a mão de Larry e segurou-a.
- Você acha que estou louco?
- Não! Não, mas...
- E acha que pessoas em seu juízo perfeito têm o direito de decidir por si mesmas o que querem fazer?
- Ah, cara - disse Larry e começou a chorar.
- Larry, você não tem culpa nenhuma nisto. Quero que prossiga. Se você escapar de Vegas, volte por este caminho. Talvez Deus mande um corvo para me alimentar, quem sabe? Li certa vez num almanaque que um homem pode ficar setenta dias sem comer, caso tenha água.
- Vai ser inverno aqui antes disso. Você estará morto em três dias por exposição ao frio, mesmo que não use as pílulas.
- Isso não é da sua conta. A decisão é minha, Larry.
- Não me mande embora, Stu.
Stu disse com firmeza:
- Estou mandando, Larry.
- Isso dói - disse Larry e se levantou. - O que Fran vai nos dizer? Quando ela descobrir que abandonamos você aos ratos e abutres?
- Ela não vai dizer nada se vocês não chegarem lá e fizerem o jogo dele. Nem Lucy. Nem Dick Ellis. Nem Brad. Ou quaisquer dos outros.
- OK - conformou-se Larry. - Nós iremos. Mas só amanhã. Acamparemos aqui esta noite e talvez tenhamos um sonho... alguma coisa...
- Nada de sonhos - retrucou Stu gentilmente. - Nada de sinais. Isso não funciona assim. Vocês ficam uma noite e não acontece nada, e aí querem ficar outra noite e mais outra... vocês têm que partir imediatamente.
Larry se afastou deles, cabeça baixa, e permaneceu de costas para os três.
- Muito bem - disse por fim em voz quase baixa demais para ser ouvida. - Seguiremos nosso caminho. E que Deus tenha piedade de nossas almas.
Ralph se aproximou de Stu e se ajoelhou.
- Podemos arranjar alguma coisa para você, Stu?
Stu sorriu.
- Claro. Tudo que Gore Vidal já escreveu... aqueles livros sobre Lincoln e Aaron Burr e aqueles caras. Sempre quis ler os sacanas. Agora parece que vou ter tempo de sobra.
Ralph deu um sorriso enviesado.
- Desculpe, Stu. Parece que dei uma mancada.
Stu apertou-lhe o braço e Ralph se afastou. Glen se aproximou. Também estivera chorando, e quando se sentou junto a Stu o choro recomeçou.
- Corta essa, bebê-chorão. Eu vou ficar numa boa - disse Stu.
- Larry está certo. Isso não é direito. Só se age assim com um cavalo.
- Você sabe que tem de ser feito.
- Acho que sim, mas quem realmente sabe? Como está essa perna?
- Nenhuma dor, exatamente agora.
- OK, você tem as pílulas. - Glen enxugou os olhos com o braço. - Adeus, Texano Oriental. Foi danado de bom ter conhecido você.
Stu virou a cabeça para o lado.
- Não diga adeus, Glen. Dizer até logo dá mais sorte. Você talvez escorregue na metade daquela encosta para cair bem aqui. E aí poderemos passar o inverno jogando cartas.
- Não é um até logo - disse Glen. - Sinto isso, você não?
E como ele sentia, Stu virou o rosto para encarar o amigo.
- É, sinto - respondeu e depois sorriu de leve. - Mas não recearei nenhum mal, certo?
- Certo! - disse Glen. Sua voz baixou para um rouco sussurro. - Puxe a tomada se for preciso, Stuart. Não vacile.
- Pode deixar.
- Adeus, então.
- Adeus. Glen.
Os três se reuniram no lado ocidental da encosta e, após mais uma olhada por cima do ombro, Glen começou a subir. Stu acompanhou seu progresso com crescente apreensão. Ele se movia casualmente, quase descuidadamente, até mesmo mal olhando onde pisava. O solo se esfarelou debaixo dele uma vez, depois mais uma. Nas duas vezes ele procurou negligentemente por um apoio, só o encontrando por puro acaso. Quando chegou ao topo, Stu soltou a respiração que estivera contendo, com um longo e áspero suspiro.
Ralph foi o próximo e, quando chegou ao topo, Stu chamou Larry uma última vez. Olhou fixamente no rosto de Larry e refletiu que, de certa maneira, ele era notavelmente parecido com o do finado Harold Lauder - mais notavelmente ainda, tinha os olhos vigilantes um tanto cansados. Um rosto que só transparecia o absolutamente necessário.
- Você está na chefia agora - gritou Stu. - Pode segurar a barra?
- Não sei. Vou tentar.
- Você estará tomando as decisões.
- Estarei? Parece como se minha primeira vez estivesse sobrecarregada. - Agora seus olhos tinham transmitido uma emoção: reprovação.
- É, porém essa é a única que haverá. Escute... os homens dele vão capturar vocês.
- Imagino que sim. Nos capturar ou atirar em nós de emboscadas como se fôssemos cães.
- Não, acho que vão capturar vocês e levá-los até ele. Acontecerá nos próximos dias, acho. Quando chegarem a Vegas, fiquem de olhos abertos. Esperem. Acontecerá.
- O quê, Stu? O que acontecerá?
- Não sei. Acontecerá aquilo pelo qual fomos enviados. Fiquem preparados para saber quando chegar a hora.
- Voltaremos para pegá-lo, se pudermos. Você sabe disso.
- Claro, tudo bem.
Larry escalou a encosta rapidamente e juntou-se aos outros dois. Todos pararam e acenaram para baixo. Stu ergueu a mão e retribuiu. Eles partiram. E nunca mais voltariam a ver Stu Redman.
OS TRÊS ACAMPARAM 25 QUILÔMETROS a oeste do lugar onde haviam deixado Stu. Haviam chegado a outro desmoronamento, este menor. O motivo pelo qual haviam feito tão pouca quilometragem era que pareciam ter perdido um pouco de ânimo. Era difícil dizer se ia ter volta. Os pés pareciam pesar mais. Conversavam pouco. Nenhum deles queria olhar a cara do outro, receando ver seu próprio medo espelhado nela.
Acamparam ao escurecer e fizeram uma fogueira de mato seco. Havia água, mas não comida. Glen socou o resto do seu tabaco no cachimbo e imaginou de repente se Stu tinha algum cigarro. A ideia estragou seu gosto pelo tabaco e ele bateu o cachimbo numa pedra, chutando sem pensar o resto de seu Borkum Riff. Quando uma coruja piou na escuridão poucos minutos depois, ele olhou em volta.
- Escute, onde anda Kojak? - perguntou.
- Ora, é meio engraçado, não é? - disse Ralph. - Não me lembro de tê-lo visto em nenhum momento nas últimas duas horas.
Glen levantou-se.
- Kojak! - berrou. - Ei, Kojak! Kojak!
Sua voz ecoou solitária no agreste. Não veio resposta. Ele tornou a sentar-se, tomado de tristeza. Escapou-lhe um leve suspiro. Kojak seguira-o por quase todo o continente, de um lado a outro. Agora sumira. Parecia um terrível presságio.
- Acha que alguma coisa pegou ele? - perguntou Ralph baixinho.
Larry disse em voz baixa, pensativo:
- Talvez ele tenha ficado com Stu.
Glen ergueu os olhos, surpreso.
- É, talvez - disse, pensando a respeito. - Talvez tenha sido isso que aconteceu.
Larry jogava um seixo de uma das mãos para a outra, sem parar.
- Ele disse que Deus talvez lhe mandasse um corvo para alimentá-lo. Duvido que ainda exista algum por aqui. É bem provável que Ele mande um cão, em vez disso.
A fogueira emitiu um som crepitante, enviando uma coluna de fagulhas para o alto, na escuridão, que turbilhonaram em breves cintilações e a seguir se desfizeram.
Quando Stu viu a forma escura que deslizava ribanceira abaixo em sua direção, recostou-se empertigado contra o montículo mais próximo, a perna estirada rígida ã sua frente. Sua mão entorpecida agarrou uma pedra de bom tamanho. Estava enregelado até os ossos. Larry tivera razão. Dois ou três dias exposto àquela baixa temperatura iriam matá-lo com a mais perfeita eficiência. Só que agora parecia que outra coisa o liquidaria antes disso. Kojak permanecera a seu lado até o pôr do sol e depois se fora, escalando sem dificuldade a ribanceira. Stu não o chamara de volta. O cão saberia encontrar o caminho de volta para Glen e seguiria viagem com o dono. Talvez tivesse seu próprio papel a desempenhar. Agora, no entanto, desejaria que Kojak tivesse ficado em sua companhia um pouco mais. As pílulas eram uma coisa, porém não sentia o menor desejo de ser dilacerado por um dos lobos do homem escuro.
Agarrou a pedra com mais firmeza quando a forma indistinta fez uma pausa a uns 20 metros na descida da ribanceira. Então começou a aproximar-se de novo, uma sombra mais escura dentro da noite.
- Vamos, venha logo! - disse Stu em voz rouca.
A sombra negra sacudiu o rabo e aproximou-se.
- Kojak?
Era ele. E trazia algo na boca, que deixou cair nos pés de Stu. Depois sentou-se nas patas traseiras, abanando a cauda, esperando os cumprimentos.
- Grande cachorro - exclamou Stu, admirado. - Grande cachorro!
Kojak lhe trouxera um coelho.
Stu pegou seu canivete, abriu-o e esfolou o coelho em três movimentos rápidos. Recolheu as entranhas fumegantes e as jogou para Kojak.
- Você quer?
Kojak queria. Stu tirou a pele do coelho. O pensamento de ingeri-lo cru não foi muito convidativo para seu estômago.
- Lenha? - disse para Kojak sem muita esperança. Havia ramos e troncos de árvores dispersos ao longo das margens, derrubados pela inundação, porém nada ao alcance.
Kojak balançou o rabo e não se moveu.
- Você busca? Len...
Mas Kojak sumira. Ele girou, correu para o lado esquerdo da vala e voltou correndo com um pedaço de pau seco nas presas. Pôs-se ao lado de Stu e latiu. Agitava rapidamente a cauda.
- Bom cachorro - disse de novo Stu. - Quero ser um filho-da-puta! Pegue mais, Kojak!
Latindo de alegria, o cão partiu de novo. Em vinte minutos, trouxera de volta lenha suficiente para uma grande fogueira. Stu arrancou com cuidado lascas suficientes para usar como gravetos. Conferiu a situação dos fósforos e viu que tinha uma caixa e meia. Acendeu os gravetos na segunda tentativa e alimentou a fogueira com cuidado. Logo havia uma respeitável chama e ele chegou o mais perto possível, sentado no saco de dormir. Kojak deitou-se do outro lado da fogueira com o focinho sobre as patas.
Quando o fogo baixou um pouco, Stu espetou o coelho e assou-o. O cheiro logo era forte e gostoso o suficiente para fazer sua barriga roncar. Kojak notou e sentou-se, olhando o coelho com grande interesse.
- Metade pra você e metade pra mim, seu grandão, tudo bem?
Quinze minutos depois, tirou o coelho do fogo e conseguiu rasgá-lo no meio sem queimar muito os dedos. A carne ficara queimada em algumas partes, em outras meio crua, mas superou em muito a presuntada do Great Western Markets. Ele e Kojak a devoraram... e quando acabavam, um uivo arrepiante desceu pelo barranco abaixo.
- Nossa! - disse Stu, com a boca cheia de coelho.
Kojak já estava de pé, pêlos eriçados, rosnando. Avançou de pernas rígidas em torno da fogueira e tornou a rosnar. O que havia uivado calou-se.
Stu deitou-se, a pedra do tamanho de um punho ao lado de uma das mãos e a faca de mola aberta do lado da outra. As estrelas estavam frias, altas e indiferentes. Ele voltou os pensamentos para Fran e os afastou com a mesma rapidez. Aquilo doía demais, barriga cheia ou não. Não vou dormir, pensou. Por muito tempo.
Mas dormiu, com a ajuda de uma das pílulas de Glen. E quando as achas da fogueira se reduziram a brasas, Kojak veio dormir junto dele, dando-lhe o seu calor. E assim foi que, na primeira noite depois que o grupo se separou, Stu comeu quando os outros passaram fome e dormiu fácil quando o sono dos outros foi interrompido por pesadelos e a nervosa sensação de uma condenação que se aproximava rápido.
No dia 24, o grupo de três peregrinos de Larry Underwood fez 50 quilômetros e acampou a nordeste do outeiro de San Rafael. Naquela noite, a temperatura caiu para a casa dos 6 abaixo de zero, e eles fizeram uma grande fogueira e dormiram junto dela. Kojak não tornara a juntar-se a eles.
- O que acha que Stu está fazendo hoje de noite? - perguntou Ralph a Larry.
- Agonizando - disse Larry sucintamente, e sentiu quando viu o sofrimento no rosto simples e honesto de Ralph, mas não sabia como atenuar o que dissera. E, afinal, quase certamente era verdade.
Tomou a deitar-se, sentindo-se estranhamente certo de que era o dia seguinte. O que fossem encontrar, estavam quase lá.
Pesadelos nessa noite. Estava numa excursão com um grupo chamado Shady Blues Connection, um dos que lembrava com mais vividez ao acordar. Estavam programados para o Madison Square Garden, e a lotação estava esgotada. Subiram ao palco sob trovejantes aplausos. Larry foi ajustar o microfone, pondo-o na altura certa, e não conseguiu mexê-lo. Dirigiu-se ao do guitarrista principal, mas também esse estava emperrado. Baixista, organista, a mesma coisa. Vaias e aplausos ritmados começaram a vir da multidão. Um por um, os membros do conjunto retiraram-se do palco, com sorrisos furtivos nas altas golas psicodélicas semelhantes às usadas pelos Byrds em 1966, quando Roger McGuinn ainda estava nas alturas. E ainda assim Larry vagava de um microfone a outro, tentando encontrar pelo menos um que pudesse ajustar. Mas estavam todos a pelo menos 3 metros de altura e totalmente emperrados. Pareciam cobras de aço inoxidável. Alguém na multidão começou a berrar por "Garota, você saca seu homem?" Eu não canto mais esse número, ele tentava dizer. Parei quando o mundo acabou. Eles não o ouviam, e começou a erguer-se um coro, a partir das filas de trás e varrendo o Garden, ganhando força e volume. "Garota, você saca seu homem! Garota, você saca seu homem! Garota, você saca seu homem! GAROTA, VOCÊ SACA SEU HOMEM!"
Ele acordou com o coro nos ouvidos. O suor brotara por todo o seu corpo.
Não precisava de Glen para dizer-lhe que tipo de sonho fora esse, nem o que significava. O sonho em que não se alcançam os microfones, não se consegue ajustá-los é comum entre os músicos de rock, tanto quanto o de que você está no palco e não se lembra de um único verso. Larry imaginava que todos os artistas de palco tiveram uma variação desse antes...
Antes de uma apresentação.
Era um sonho de incompetência. Manifestava este único temor que tudo superava: E se você não conseguir? E se você quiser, mas não conseguir? O terror de ser incapaz de dar o simples salto de fé que é o lugar onde qualquer artista - cantor, escritor, pintor, músico - começa.
Faça bonito pro pessoal, Larry.
De quem fora essa voz? Da sua mãe?
Você é um tomador, Larry.
Não, mãe - não sou, não. Não canto mais esse número. Parei quando o mundo acabou. Sério.
Continuou deitado e tornou a adormecer. Seu último pensamento foi que Stu tivera razão: o homem escuro ia pegá-los. Amanhã, pensou. O que vamos encontrar, estamos quase lá.
Mas não viram ninguém no dia 25. Os três caminharam em frente, imperturbáveis sob o luminoso céu azul, e viram pássaros e animais em abundância, mas não gente.
- É espantoso como a vida silvestre retorna - disse Glen. - Eu sabia que seria um processo bastante rápido, e claro que o inverno vai aparar isso um pouco, mas ainda assim é espantoso. Faz só cem dias desde os primeiros brotos.
- É, mas não tem cavalo nem cachorro - disse Ralph. - Não parece direito, sabe? Inventaram um micróbio que matou quase todo mundo, mas isso não bastou. Era preciso levar seus dois animais favoritos também. O micróbio levou o homem e os melhores amigos do homem.
- E deixou os gatos - disse Larry, mal-humorado.
Ralph se animou.
- Bem, tinha Kojak...
- Tinha Kojak.
Isso matou a conversa. As montanhas armavam-lhes carrancas, esconderijos para dezenas de homens com armas e telescópios. A premonição de Larry de que seria nesse dia não o abandonara. Toda vez que chegavam ao topo de uma colina, ele esperava ver a estrada bloqueada lá embaixo. E cada vez que não estava lá, ele pensava numa emboscada.
Falaram de cavalos. De cachorros e búfalos. Ralph dissera-lhes que os búfalos estavam voltando - Nick e Tom Cullen os tinham visto. Não estava tão distante o dia - em seu tempo de vida, talvez - em que os búfalos podiam voltar a escurecer as planícies.
Larry sabia que era verdade, mas também que era cascata - o tempo de vida deles talvez não passasse de mais dez minutos.
Então já quase escurecera, e era hora de procurar um lugar para acampar. Chegaram ao topo de um outeiro final e Larry pensou: Eles vão estar bem lá embaixo. Mas não havia ninguém.
Acamparam perto de um letreiro verde refletor que dizia LAS VEGAS 480. Haviam comido relativamente bem nesse dia: tacos, refrigerantes e dois Slim Jims que dividiram igualmente.
Amanhã, tornou a pensar Larry e adormeceu. Nessa noite, sonhou que ele, Barry Greig e o Tattered Remnants iam tocar no Madison Square Garden. Era a grande chance deles - iam aquecer a plateia para um supergrupo que tinha o nome de uma cidade. Boston, ou talvez Chicago. Todos os microfones tinham pelo menos 3 metros de altura, de novo, e ele começou a correr de um para outro outra vez, com a plateia aplaudindo ritmadamente e a pedir "Garota, você saca seu homem?".
Ele baixou o olhar para a primeira fila e sentiu um súbito jorro gelado de medo. Charles Manson estava ali, o x na testa reduzido a uma cicatriz branca e retorcida, aplaudindo e cantando. Também Richard Speck, olhando-o com olhos arrogantes e impudentes, um cigarro sem filtro tremelicando entre os lábios. Ladeavam o homem escuro. Atrás deles, John Wayne Gacy. Flagg liderava o coro.
Amanhã, tomou a pensar Larry, tropeçando de um microfone demasiado alto para outro sob as quentes luzes de sonho do Madison Square Garden. Vejo você amanhã.
Mas não foi no dia seguinte, nem no outro. Na noite de 27 de setembro, acamparam na aldeia de Freemont Junction, e ali havia muita coisa para comer.
- Fico esperando que isso acabe - disse Larry a Glen nessa noite. - E cada dia não acaba, e piora.
Glen balançou a cabeça.
- Sinto a mesma coisa. Não seria engraçado se fosse apenas uma miragem, seria? Apenas um pesadelo de nossa consciência coletiva?
Larry olhou-o com um exame momentaneamente surpreso. Depois, balançou devagar a cabeça.
- Não. Não acho que seja apenas um sonho.
Glen sorriu.
- Nem eu, meu jovem. Nem eu.
Fizeram contato no dia seguinte.
Logo depois das dez da manhã, chegaram ao topo de uma elevação, e abaixo deles, para oeste, a 8 quilômetros de distância, dois carros se achavam parados frente a frente, bloqueando a auto-estrada. Era exatamente como Larry pensara que seria.
- Acidente? - perguntou Glen.
Ralph protegia os olhos com a mão.
- Acho que não. Não parados daquele jeito.
- Homens dele - disse Larry.
- É, acho que sim - concordou Ralph. - Que fazemos agora, Larry?
Larry tirou o lenço grande do bolso de trás da calça e enxugou o rosto com ele. Naquele dia, ou o verão retomara ou começavam a sentir o vento do deserto. A temperatura subira.
Mas é um calor seco, ele pensou, calmo. Eu só estou suando um pouco. Enfiou o lenço de volta no bolso. Agora que realmente começara, sentia-se bem. Mais uma vez tinha aquela sensação esquisita de que era uma apresentação, um espetáculo a ser apresentado.
- Vamos descer e ver se Deus de fato está conosco. Certo, Glen?
- Você manda.
Recomeçaram a caminhar. Meia hora depois, estavam suficientemente perto para ver que os carros frente a frente haviam pertencido à Patrulha Estadual de Utah. Vários homens armados esperavam por eles.
- Vão atirar na gente? - perguntou Ralph, para puxar conversa.
- Não sei - disse Lany.
- Porque alguns dos rifles são bacanas. Com mira telescópica. Estou vendo o sol se refletindo nas lentes. Se quiserem nos derrubar, vamos estar ao alcance a qualquer momento.
Continuaram andando. Os homens do bloqueio de estrada dividiram-se em dois grupos, cerca de cinco na frente, armas apontadas para o grupo de três que caminhava ao encontro deles, e outros três agachados atrás dos carros.
- Oito, Larry? - perguntou Glen.
- Estou vendo oito, é. Como está você, aliás?
- Estou legal - disse Glen.
- Ralph?
- Desde que a gente saiba o que vai fazer quando chegar a hora - disse Ralph. - É só o que quero.
Larry tomou a mão dele por um momento e apertou-a. Depois pegou a de Glen e fez o mesmo.
Estavam a uns 500 metros das radiopatrulhas agora.
- Não vão atirar em nós direto - disse Ralph. - Já teriam atirado.
Agora eles discerniam rostos, e Larry examinou-os com cuidado. Um tinha uma barba cerrada. Outro era jovem mas quase careca - deve ter sido um vagabundo para começar a perder os cabelos ainda na escola, pensou Larry. Outro usava uma camiseta amarelo berrante com um desenho de um camelo sorridente estampado, e abaixo do camelo a palavra SUPERHUMP em letras tipo pergaminho, antigas. Outro parecia um contador. Mexia numa pistola Magnum .357 e parecia três vezes mais nervoso que Larry; como alguém que ia estourar o próprio pé se não se acalmasse.
- Não parecem muito diferentes dos nossos caras - disse Ralph.
- Parecem, sim - respondeu Glen. - Estão todos com os ferros.
Aproximaram-se a uns 5 metros dos carros de polícia que bloqueavam a estrada. Larry parou, e os outros com ele. Fez-se um momento de mortal silêncio quando os homens de Flagg e o bando de peregrinos de Larry se entreolhavam. Então, Larry Underwood disse suavemente:
- E aí?
O homenzinho que parecia um contador adiantou-se. Ainda mexia na Magnum.
- Vocês são Glendon Bateman, Lawson Underwood, Stuart Redman e Ralph Brentner?
- Escute, seu pateta - disse Ralph. - Não sabe contar?
Alguém deu uma risadinha. O tipo contador corou.
- Quem está faltando?
Larry disse:
- Stu sofreu um acidente a caminho daqui. E acredito que você mesmo vai sofrer um se não parar de mexer nessa arma.
Mais risadinhas. O contador conseguiu enfiar a pistola no cós da calça cinzenta, o que o fez parecer mais ridículo que nunca; um sonho de fora-da-lei de Walter Mitty.
- Eu me chamo Paul Burlson - ele disse - e, em virtude do poder em mim investido, estou prendendo vocês e ordenando que venham comigo.
- Em nome de quem? - perguntou logo Glen.
Burlson olhou-o com desdém... mas um desdém misturado com mais alguma coisa.
- Você sabe em nome de quem estou falando.
- Então diga.
Mas Burlson ficou calado.
- Está com medo? - perguntou-lhe Glen. Olhou para os oito. - Estão com medo daquele cujo nome não ousam dizer? Muito bem. Eu digo por vocês. É Randall Flagg, também conhecido como o homem escuro, também conhecido como o homem alto, também conhecido como o Turista Andarilho. Nenhum de vocês o chama assim? - A voz subira para as oitavas mais altas, mais claras, da fúria. Alguns dos homens se entreolharam nervosos, e Burlson recuou um passo. - Chamem ele de Belzebu, porque esse é o nome dele, também. Chamem de Nyarlahotep, Ahaz e Astaroth. Chamem de Ryelah, Seti e Anúbis. O nome dele é legião, e ele é um apóstata do inferno, e vocês pretendem puxar o saco dele. - A voz tornou a cair para um tom confidencial; ele sorriu de um modo desarmante. - Só pensei em deixar isso claro.
- Peguem eles - disse Burlson. - Peguem eles todos e atirem no primeiro que se mexer.
Por um estranho segundo, ninguém se mexeu e Larry pensou: Eles não vão nos pegar, estão com medo de nós como nós deles, mais ainda, apesar de terem armas...
Olhou para Burlson e disse:
- A quem está querendo enganar, seu putinho? Nós queremos ir. Foi para isso que viemos.
Então eles se mexeram, quase como se fosse Larry quem houvesse ordenado. Ele e Ralph foram jogados no banco traseiro de uma radiopatrulha, Glen no da outra. Estavam atrás de uma tela de aço. Não havia maçanetas internas.
Estamos presos, pensou Larry. Descobriu que a ideia o divertia.
Quatro homens se apertaram no banco da frente. A radiopatrulha deu uma ré, virou e começou a dirigir-se para oeste. Ralph suspirou.
- Com medo? - perguntou-lhe Larry em voz baixa.
- Raios me partam se eu sei. Parece tão bom estar fora do mato que não sei dizer.
Um dos homens da frente disse:
- O velho falastrão. É ele quem dá as ordens?
- Não, sou eu.
- Como é seu nome?
- Larry Underwood. Esse é Ralph Brentner. O outro cara é Glen Bateman.
Olhou pela janela dos fundos. A outra radiopatrulha vinha atrás deles.
- Que foi que houve com o quarto cara?
- Quebrou a perna. Tivemos de deixá-lo.
- Jogo duro, tá certo. Eu sou Barry Dorgan. Segurança de Vegas.
Larry sentiu uma absurda resposta, É um prazer conhecê-lo, subir-lhe aos lábios e teve de sorrir um pouco.
- Qual a distância até Las Vegas?
- Bem, a gente não pode ir muito rápido, por causa dos bloqueios na estrada. Estamos liberando as vias da cidade, mas leva tempo. Estaremos lá em cerca de cinco horas.
- Não é uma coisa? - disse Ralph, balançando a cabeça. - Nós estamos na estrada há três semanas, e apenas cinco horas de carro levam a gente até lá.
Dorgan retorceu-se até poder olhar para eles.
- Não entendo por que vocês estavam a pé. Aliás, não entendo por que até mesmo vieram. Sabiam que ia acabar assim.
- Fomos mandados - disse Larry. - Para matar Flagg, creio.
- Não tem muita chance disso, companheiro. Você e seus amigos estão indo direto para a Cadeia Municipal de Las Vegas. Não passem à frente de Deus, não coletem 200 dólares. Ele tem um interesse especial em vocês. Sabia que estavam vindo. - Fez uma pausa. - Apenas desejem que ele faça a coisa rápido com vocês. Mas acho que não vai fazer. Não tem andado de muito bom humor ultimamente.
- Por que não? - perguntou Larry.
Mas Dorgan pareceu achar que já falara o suficiente - demais até, talvez. Voltou-se para a frente sem responder, e Larry e Ralph ficaram vendo o deserto passar. Em apenas três semanas, a velocidade se tomara uma novidade de novo.
Levaram de fato seis horas para chegar a Las Vegas. A cidade ficava no meio do deserto como uma joia incrível. Havia muita gente nas ruas; acabara o dia de trabalho e todos aproveitavam o frescor do anoitecer nos gramados, bancos de praça e paradas de ônibus, ou sentados na entrada de defuntas capelas matrimoniais e lojas de penhores. Olhavam curiosos os carros de patrulha quando passavam, e depois voltavam ao que estavam conversando.
Larry olhava em volta, pensativo. A eletricidade estava ligada, as ruas limpas e o lixo do saque desaparecera.
- Glen tinha razão - disse. - Ele pôs os trens para rodar no horário. Mas ainda imagino se isso é forma de dirigir uma estrada de ferro. Todo o seu pessoal parece ter os nervos à flor da pele, Dorgan.
Dorgan não respondeu.
Chegaram à cadeia municipal e entraram pelos fundos. Os dois carros da polícia estacionaram num pátio cimentado. Quando Larry saltou, piscando com a rigidez que se instalara em seus músculos, viu que Dorgan tinha dois pares de algemas.
- Ora, vamos - disse. - Francamente.
- Desculpe. Ordens dele.
Ralph disse:
- Nunca fui algemado em minha vida. Já fui preso e posto no depósito de bêbados umas duas vezes antes de me casar, mas nunca fui algemado. - Falava baixo, o sotaque de Oklahoma tornando-se mais acentuado, e Larry percebeu que ele estava completamente furioso.
- Recebi minhas ordens - disse Dorgan. - Não tome as coisas mais difíceis que o necessário.
- Suas ordens - disse Ralph. - Eu sei quem dá suas ordens. Ele matou meu amigo Nick. O que faz você ligado àquele cão do inferno? Parece um cara legal quando está sozinho. - Olhava para Dorgan com uma expressão de raivosa interrogação que o outro balançou a cabeça e desviou a vista.
- É meu trabalho - disse -, e eu o faço. Fim de papo. Ponha os pulsos à frente, se não, mando alguém fazer isso por você.
Larry estendeu as mãos e Dorgan algemou-o.
- O que era você? - perguntou Larry, curioso. - Antes?
- Polícia de Santa Mônica. Segundo-detetive.
- E está com ele. É... me perdoe por dizer, mas na verdade é meio esquisito.
Empurraram Glen Bateman para juntar-se a eles.
- Por que está empurrando ele? - perguntou Dorgan, furioso.
- Se você tivesse de ouvir seis horas de papo furado desse cara, também ia estar empurrando - disse um dos homens.
- Não me importa quanta besteira você teve de escutar, guarde suas mãos para si mesmo. - Dorgan olhou para Larry. - Por que é engraçado que eu esteja com ele? Fui tira por dez anos antes da Capitão Viajante. Vi o que acontece quando caras como vocês estão no comando, tá sabendo?
- Meu jovem - disse Glen, suavemente -, suas experiências com bebês espancados e consumidores de drogas não justificam que abrace um monstro.
- Tirem eles daqui - disse Dorgan, sua voz regular. - Celas separadas, alas separadas.
- Acho que você não vai poder viver com sua opção, meu jovem - disse Glen. - Parece que não há muito de nazista em você.
Desta vez o próprio Dorgan o empurrou.
Larry foi separado dos outros dois e levado por um corredor vazio enfeitado com avisos de NÃO CUSPIR, PARA OS BANHEIROS & DESINFECÇÃO, e um que dizia VOCÊ NÃO É HÓSPEDE.
- Eu gostaria de um chuveiro - ele disse.
- Talvez - disse Dorgan. - Vamos ver.
- Ver o quê?
- Se você vai cooperar.
Dorgan abriu uma cela no fim do corredor e empurrou Larry para dentro.
- E os braceletes? - perguntou Larry, estendendo-os.
Dorgan abriu-os e tirou-os.
- Melhor?
- Muito.
- Ainda quer o chuveiro?
- Claro. - Mais que isso, Larry não queria ser deixado sozinho, ouvindo o eco das passadas afastando-se. Se o deixassem só, o medo começaria a voltar.
Dorgan sacou um pequeno caderno de notas.
- Quantos são vocês? Na Zona?
- Seis mil - disse Larry. - Todos jogamos bingo nas noites de quinta-feira, e o prêmio para uma carteia cheia é um peru de dez quilos.
- Quer o chuveiro ou não?
- Quero, sim. - Porém não achava mais que ia tê-lo.
- Quantos de vocês lá?
- Vinte e cinco mil, mas quatro mil abaixo dos 12 anos e com direito a drive-in de graça. Economicamente falando, um fracasso.
Dorgan fechou o caderno e olhou-o.
- Eu não posso, cara - disse Larry. - Ponha-se no meu lugar.
Dorgan balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso, porque não sou maluco. Por que estão aqui? O que acha que isso vai resultar para vocês? Ele vai matá-los com certeza, amanhã ou depois de amanhã. E se quiser que vocês falem, vocês falarão. Se quiser que sapateiem e toquem punheta ao mesmo tempo, também farão isso. Você deve ser louco.
- Fomos mandados pela velha. Mãe Abagail. Na certa você sonhou com ela.
Dorgan balançou a cabeça, mas de repente não encarava Larry.
- Não sei do que está falando.
- Então vamos deixar por aí mesmo.
- Tem certeza de que não quer falar comigo? E ganhar um chuveiro?
Larry deu uma risada.
- Não me vendo tão barato assim. Mande seu próprio espião para o outro lado. Se encontrar alguém que não pareça uma doninha, o segundo nome de Mãe Abagail será falado, quer dizer.
- Como queira - disse Dorgan.
Voltou pelo corredor sob as luzes protegidas por telas. Na outra ponta, passou por um portão de barras de aço que se fechou às suas costas com um baque oco.
Larry olhou em volta. Como Ralph, já estivera na cadeia em duas ocasiões - embriaguez pública uma vez, posse de uma trouxinha de maconha em outra. Juventude desvairada.
- Não é o Ritz - murmurou.
O colchão no catre parecia decididamente mofado, e ele imaginou um tanto morbidamente se alguém morrera ali em junho ou princípios de julho passados. O toalete funcionava, mas com água cheia de ferrugem na primeira vez que ele deu descarga, um sinal confiável de que não fora usado por muito tempo. Alguém deixara um livrinho de faroeste. Larry pegou-o e tornou a largá-lo. Sentou-se no catre e ficou escutando o silêncio. Sempre detestara ficar sozinho - mas, de certa maneira, sempre ficara... até chegar à Zona Franca. E agora não era tão ruim quanto temia que fosse. Bastante mim, mas podia enfrentar.
Ele vai matar vocês com certeza amanhã ou depois de amanhã.
Só que Larry não acreditava nisso. Simplesmente não ia ser assim.
- Não temerei mal algum - disse para o silêncio mortal do bloco de celas, e gostou da fornia como soou. E repetiu.
Deitou-se e ocorreu-lhe a ideia de que finalmente fizera a maior parte do caminho para a Costa Oeste. Mas a viagem fora mais longa e estranha do que qualquer um poderia ter imaginado. E ainda não acabara.
- Não temerei mal algum - tornou a dizer.
Adormeceu, o rosto calmo, e dormiu um sono sem sonhos.
Às dez da manhã do dia seguinte, 24 horas depois de terem avistado pela primeira vez o bloqueio de estrada ao longe, Randall Flagg e Lloyd Henreid foram ver Glen Bateman.
Ele se sentava de pernas cruzadas no chão da cela. Encontrara um pedaço de carvão debaixo do catre e acabara de escrever a seguinte legenda na parede, entre o entalhe de órgãos genitais masculinos e femininos, nomes, números de telefone e poeminhas obscenos: Eu não sou o moleiro nem a roda do moleiro, mas o barro do moleiro; não é o valor da forma atingida tão dependente do valor intrínseco do barro quanto da roda e da arte do Mestre? Admirava este provérbio - ou era aforismo? - quando a temperatura no bloco de celas deserto de repente pareceu cair muito. A porta no fim do corredor abriu-se com um rumor. A saliva na boca de Glen sumiu de repente e o carvão partiu-se entre seus dedos.
Tacões de botas ressoaram no corredor em sua direção.
Outras passadas, pequenas e insignificantes, estalavam juntas, tentando acompanhar.
Ora, é ele. Vou ver a cara dele.
De repente, sua artrite piorou. Ficou terrível, na verdade. Parecia que os ossos haviam sido subitamente esvaziados e enchidos de vidro moído. E ainda assim ele se voltou com um sorriso interessado e expectante no rosto, quando os tacões pararam diante da cela.
- Ora, aí está você - disse Glen. - E não é nem metade do ogro que imaginávamos.
Parado do outro lado das barras, estavam dois homens. Flagg à direita de Glen. Usava jeans e uma camisa de seda branca que reluzia suave à luz mortiça. Sorria para Glen. Atrás, um cara mais baixo que não sorria de modo algum. Tinha queixo curto e olhos que pareciam grandes demais para o rosto. A cor era daquelas com as quais o clima do deserto jamais seria bondoso; queimara-se, descascara e tomara a queimar-se. Trazia pendurada no pescoço uma pedra negra com uma mancha vermelha, e tinha uma aparência sebosa, resinosa.
- Gostaria que você conhecesse meu auxiliar - disse Flagg com uma risadinha. - Lloyd Henreid, apresento-lhe Glen Bateman, sociólogo, integrante do Comitê da Zona Franca, e único remanescente da assessoria de alto nível da Zona, agora que Nick Andros morreu.
- Prazer - murmurou Lloyd.
- Como está sua artrite, Glen? - perguntou Flagg. O tom era de comiseração, mas os olhos faiscavam com grande alegria e secreto conhecimento.
Glen abriu e fechou rapidamente as mãos, retribuindo o sorriso de Flagg. Ninguém jamais saberia o esforço necessário para manter aquele sorriso delicado.
O valor intrínseco do barro!
- Ótima - respondeu. - Muito melhor por dormir ao ar livre, obrigado.
O sorriso de Flagg cedeu um pouco. Glen captou apenas um vislumbre de estreita surpresa e raiva. Ou medo?
- Decidi soltar você - disse de modo brusco. O sorriso tornou a brotar, radiante e vulpino. Lloyd soltou um pequeno arquejo de surpresa e Flagg se voltou para ele. - Não foi, Lloyd?
- Huumm... claro - disse Lloyd. - Muito claro.
- Bem, ótimo - replicou Glen, descontraído.
Sentia a artrite afundando cada vez mais nas juntas, entorpecendo-as como gelo, inchando-as como fogo.
- Vão lhe dar uma pequena motocicleta e você pode voltar quando quiser.
- Claro que eu não poderia ir sem meus amigos.
- Claro que não. Só precisa pedir. Ajoelhe-se e me peça.
Glen deu uma gostosa risada. Jogou a cabeça para trás e riu muito, e forte. Enquanto ria, a dor nas juntas começou a diminuir. Sentiu-se melhor, mais forte, e de novo no controle.
- Ah, você é um figuraça - disse. - Vou lhe dizer o que vai fazer. Por que não procura um grande monte de areia, arranja um martelo e martela toda aquela areia dentro do rabo?
O rosto de Flagg ensombreceu-se. O sorriso escorregou. Os olhos, antes escuros como a pedra negra que Lloyd usava, agora pareciam fulgir amarelados. Ele estendeu a mão para a fechadura da porta e passou os dedos por ela. Ouviu-se um zumbido elétrico. Fogo saltou entre os seus dedos, e um cheiro de carne queimada pairou no ar. A fechadura caiu no chão, fumegante e negra. Lloyd Henreid deu um grito. O homem de negro agarrou as barras e fez a porta da cela correr sobre o trilho.
- Pare de rir.
Glen riu mais alto.
- Pare de rir de mim!
- Você não é nada! - disse Glen, enxugando os olhos e ainda dando risadinhas. - Ah, desculpe... é só que estávamos todos com tanto medo... fizemos uma imagem de você... estou rindo tanto de nossa tolice quanto de sua lamentável falta de substância...
- Dê um tiro nele, Lloyd. - Flagg voltou-se para o outro homem. Mexia o rosto de uma forma horrível. Cerrava as mãos em garras de predador.
- Ah, me mate você mesmo, se vai me matar - disse Glen. - Certamente é capaz. Me toque com um dedo e pare meu coração. Faça o sinal-da-cruz invertido e me cause uma enorme embolia cerebral. Baixe o raio do bocal de lâmpada e me parta em dois. Ah... ah, Deus... ah, Deus do céu!
Desabou no catre da cela e virou-se de um lado para outro, consumido por gostosas gargalhadas.
- Dê um tiro nele! - rugiu o homem escuro para Lloyd.
Pálido, tremendo de medo, Lloyd sacou sem jeito a pistola do cinto, quase a deixou cair e apontou-a para Glen. Tinha de usar as duas mãos.
Glen olhou-o, sorrindo. Era como se estivesse num coquetel dos professores no Gueto dos Cérebros em Woodsville, New Hampshire, recuperando-se de uma boa piada, pronto para fazer a conversa retomar a canais mais sérios de reflexão.
- Se vai dar um tiro em alguém, Sr. Henreid, dê.
- Dê já, Lloyd.
Lloyd puxou cegamente o gatilho. A arma disparou com um tremendo barulho no espaço fechado. Os ecos ricochetearam furiosos de um lado para outro. Mas a bala apenas tirou lascas do concreto a 5 centímetros do ombro direito de Glen, ricocheteou, bateu em alguma coisa e tornou a desviar-se.
- Não sabe fazer nada direito? - rugiu Flagg. - Atire nele, seu retardado! Atire nele! Está parado bem à sua frente!
- Estou tentando...
O sorriso de Glen não mudara, e ele apenas se encolhera um pouco diante do tiro.
- Repito, se você tem de atirar em alguém, atire nele. Ele não é humano, na verdade, você sabe. Certa vez o descrevi a um amigo como o último mago do pensamento racional, Sr. Henreid. Isso era mais correto do que eu sabia. Mas já está perdendo a magia. Ela está escorrendo dele, e ele sabe disso. E você sabe. Dê um tiro nele e nos poupe sabe Deus quanto derramamento de sangue e morte.
O rosto de Flagg ficou imóvel.
- Dê um tiro em um de nós pelo menos, Henreid - disse ele. - Eu o tirei da cadeia quando estava morrendo de fome. É de caras assim que você queria se vingar. Caras pequenos que falam grande.
Lloyd disse:
- Senhor, não tente me enrolar. É como diz Randy Flagg.
- Mas ele está mentindo. Você sabe que está - retrucou Glen.
- Ele me falou mais verdades do que qualquer outro se deu ao trabalho de fazer em toda a minha vida - disse Lloyd, e atirou três vezes em Glen, que foi arremessado para trás, rodopiou e retorceu-se como uma boneca de trapos.
O sangue voou no ar escuro. Ele bateu no catre, ricocheteou e rolou no chão. Conseguiu erguer-se sobre um dos cotovelos.
- Está tudo bem, Sr. Henreid - murmurou. - Você não sabe de nada.
- Cale a boca, seu sacana falastrão! - berrou Lloyd.
Tornou a atirar e o rosto de Glen Bateman desapareceu. Mais uma vez e o corpo saltou, sem vida. Lloyd deu mais um tiro. Chorava. As lágrimas rolavam pelas bochechas raivosas, queimadas de sol. Lembrava-se do coelho que esquecera e deixara comer as próprias patas. Lembrava de Poke e das pessoas no Continental branco, de George o Magnífico. Lembrava da cadeia de Phoenix, e o rato, e que não conseguira comer os insetos do colchão. Lembrava-se de Trask, e que a perna de Trask começara a parecer como Frango Frito de Kentucky depois de algum tempo. Tomou a puxar o gatilho, mas a pistola emitiu apenas um pequeno estalido.
- Tudo bem - disse Flagg em voz baixa. - Tudo bem. Bom trabalho. Bom trabalho, Lloyd.
Lloyd deixou cair a arma no chão e encolheu-se para longe dele.
- Não me toque! - gritou. - Eu não fiz isso por você!
- Fez, fez, sim - disse Flagg, carinhosamente. - Pode achar que não, mas fez.
Estendeu o braço e tocou com o dedo a pedra negra no pescoço de Lloyd. Fechou a mão sobre ela e, quando tornou a abrir, a pedra sumira. Fora substituída por uma chavinha de prata.
- Acho que prometi isso a você - disse o homem escuro. - Em outra cadeia. Ele estava errado... Eu cumpro minhas promessas, não cumpro, Lloyd?
- Cumpre.
- Os outros estão partindo ou planejando partir. Sei quem são eles. Sei todos os nomes. Whitney... Ken... Jenny... ah, sim, sei todos os nomes.
- Então por que não...
- Ponho um fim nisso? Não sei. Talvez seja melhor que partam. Mas você, Lloyd. Você é meu bom e fiel servidor, não é?
- Sou - sussurrou Lloyd. A admissão final. - É, acho que sou.
- Sem mim, o melhor que você poderia ter feito seriam merdinhas, mesmo que sobrevivesse à cadeia. Certo?
- Certo.
- O garoto Lauder sabia disso. Sabia que eu podia fazê-lo maior. Mais alto. Por isso vinha me procurar. Mas estava demasiado cheio de ideias... demasiado cheio delas. - De repente, parecia perplexo e velho. Depois acenou com a mão impaciente e o sorriso tomou a desabrochar em seu rosto. - Talvez esteja ficando ruim, Lloyd. Talvez esteja, por algum motivo que nem eu entendo... mas o velho mago ainda tem alguns truques, Lloyd. Um ou dois. Agora me escute. O tempo é curto se quisermos parar essa... essa crise de confiança. Se quisermos cortá-la no nascedouro, por assim dizer. Vamos querer acabar tudo amanhã com Underwood e Brentner. Agora me escute com muito cuidado...
Lloyd só foi para a cama depois da meia-noite e só conseguiu adormecer nas primeiras horas da manhã. Falou com Rato. Falou com Paul Burlson. Com Barry Dorgan, que concordou com que aquilo que o homem escuro queria poderia - e provavelmente seria - ser feito antes da luz do dia. A construção no gramado da frente do Grand Hotel MGM começou por volta das dez da manhã no dia 29, um grupo de trabalho de dez homens com ferros de soldar, martelos, rebites e um grande suprimento de longos canos de aço. Estavam arrumando os canos nas carrocerias abertas de dois caminhões diante do chafariz. O ferro de soldar logo atraiu uma multidão.
- Veja, mãe-Angie! - gritou Dinny. - É um espetáculo de fogos de artifício!
- É, mas é hora de todo menino bonzinho ir para a cama. - Angie Hirschfield arrastou o menino com um secreto medo no coração, sentindo que alguma coisa má, talvez alguma coisa perversa como a própria supergripe, estava se formando.
- Eu quero ver! Eu quero ver as faísca! - gemeu Dinny, mas ela o arrastou rápida e firmemente para longe.
Julie Lawry aproximou-se de Rato, o único sujeito em Las Vegas que ela considerava arrepiante demais para dormir com ele... a não ser talvez num sufoco. A pele negra dele luzia no fulgor branco-azulado dos bicos de soldar. Ele estava fantasiado como um pirata etíope - calça de seda larga, faixa vermelha e um colar de dólares de prata no pescoço magricela.
- O que é isso, Ratinho? - perguntou.
- O Rato não sabe, minha cara, mas o Rato teve uma ideia. Teve mesmo. Parece trabalho negro amanhã, muito negro. Como dar uma rapidinha com o Ratinho aqui. O que acha, meu bem?
- Talvez - disse Julie -, mas só se você souber o que é isso tudo.
- Amanhã toda Las Vegas vai saber - disse Rato. - Pode apostar seu doce e deleitável rabo nisso. Venha com o Rato, minha cara, que ele lhe mostra os 9 mil nomes de Deus.
Mas Julie, para grande desprazer do Rato, se escafedera.
Quando Lloyd finalmente adormeceu, o trabalho já fora feito e a multidão desaparecera. Havia duas grandes gaiolas na carroceria aberta do caminhão, com buracos meio quadrados nos lados direito e esquerdo de cada uma. Quatro canos estavam parados próximos, cada um com um gancho de reboque. As correntes serpeavam pelo gramado do Grand, e cada qual terminava pouco adentro dos buracos quadrados nas gaiolas.
Da ponta de cada corrente pendia uma pequena algema de aço.
Ao amanhecer de 30 de setembro, Larry ouviu deslizar a porta na extremidade do bloco de celas. Pisadas aproximaram-se rapidamente, descendo o corredor. Larry estava deitado no catre, as mãos entrelaçadas sob a nuca. Não dormira durante a noite. Estivera
(pensando? rezando?)
Dava tudo no mesmo. Fosse o que fosse, a velha ferida em si mesmo se fechara finalmente, deixando-o em paz. Havia sentido as duas pessoas que encarnara a vida inteira - a pessoa real e a idealizada - fundirem-se num único ser vivo. Sua mãe gostaria deste Larry. Rita Blakemoor também. Era um Larry a quem Wayne Stukey jamais teria de esclarecer sobre os fatos da vida. Era um Larry que seria apreciado até pela higienista oral de tanto tempo atrás.
Vou morrer. Se existe Deus - e agora creio que deve existir -, esta é a Sua vontade. Vamos morrer e, de algum modo, tudo isto terminará como resultado de nossa emulação.
Desconfiava de que Glen Bateman já tinha morrido. Na véspera ouvira tiros no outro bloco de celas, um bocado de tiros. Vinham da direção para a qual Glen havia sido levado, não da de Ralph. Bem, ele era velho, atormentado pela artrite, e fosse o que fosse que Flagg planejara para ele esta manhã, seria muito desagradável.
As passadas chegaram até sua cela.
- Levante-se, Pão de Fôrma - chamou uma voz satisfeita. - O Rato chegou pra fazer você mover esse rabo branquelo.
Larry olhou em tomo. Um sorridente pirata negro, usando um colar de dólares de prata, estava parado à porta da cela, empunhando uma espada. Atrás dele o sujeito de óculos, o que parecia um contador. Chamava-se Burlson.
- O que é? - perguntou Larry.
- Meu caro - disse o pirata -, isto é o fim. O próprio fim.
- Tudo bem - replicou Larry, levantando-se.
Burlson falou rapidamente e Larry percebeu que estava amedrontado:
- Quero que fique sabendo - disse Burlson. - Isto não foi ideia minha.
- De ninguém por aqui, até onde posso ver - disse Larry. - Quem foi morto ontem?
- Bateman - respondeu Burlson, baixando os olhos. - Tentando fugir.
- Tentando fugir... - repetiu Larry. Ele começou a rir. Rato se juntou a ele, zombeteiro. Os dois riram juntos.
A porta da cela se abriu. Burlson se adiantou com as algemas. Larry não ofereceu resistência e estendeu os pulsos. Burlson algemou-o.
- Tentando fugir - disse Larry. - Qualquer dia desses você também será morto tentando fugir, Burlson. - Seus olhos se desviaram para o pirata. - Você também, Ratinho. Baleado tentando escapar. - Ele recomeçou a rir, e desta vez Rato não se juntou ao riso. Olhou para Larry carrancudo e começou a erguer a espada.
- Baixe isso, seu babaca - censurou Burlson.
Seguiram em fila para a saída - Burlson, Larry e Rato. Quando cruzaram a porta no final da ala, mais cinco homens se juntaram ao grupo. Um deles era Ralph, também algemado.
- Oi, Larry - disse Ralph desoladamente. - Você ouviu? Eles lhe contaram?
- Sim, ouvi.
- Os escrotos! Está quase acabado para eles, não está?
- Sim, está.
- Vocês, calem a boca! - grunhiu um deles. - Está quase acabado é para vocês. Esperem só para ver o que os espera. Vai ser uma festa e tanto.
- Não, acabou - insistiu Ralph. - Você não sabe? Não sente?
Rato empurrou-o, fazendo-o cambalear.
- Cale a boca! - gritou. - Rato não quer mais ouvir essa babaquice de vodu! Nunca mais!
- Você está pálido paca, Rato - disse Larry, sorrindo. - É você que parece branqueio agora.
Rato tornou a brandir a espada, mas não havia ameaça no gesto. Ele parecia assustado; todos pareciam. Havia uma sensação no ar, um senso de que haviam todos entrado na sombra de uma coisa enorme que se precipitava.
Uma van verde-oliva, com CADEIA MUNICIPAL DE LAS VEGAS estampado do lado, esperava no pátio ensolarado. Larry e Ralph foram empurrados para dentro. As portas bateram, o motor foi ligado e partiram. Eles se sentaram nos duros bancos de madeira, as mãos algemadas entre os joelhos.
Ralph disse em voz baixa:
- Ouvi um deles dizendo que todo mundo em Las Vegas vai estar lá. Acha que vão nos crucificar, Larry?
- Isso ou alguma outra coisa parecida. - Olhou para o homem grande. Ralph tinha o chapéu manchado de suor enfiado na cabeça. A pena se esfrangalhara e embolara, mas ainda se erguia desafiante da fita. - Com medo, Ralph?
- Morto de medo - sussurrou Ralph. - Eu sou um bebê pra esse negócio de dor. Jamais gostei nem de ir ao médico tomar injeção. Arranjava uma desculpa para adiar, se pudesse. E você?
- Muito. Pode vir se sentar aqui a meu lado?
Ralph levantou-se, as correntes das algemas tilintando, e sentou-se ao lado dele. Ficaram calados durante algum tempo e depois Ralph disse baixinho:
- Fizemos um longo caminho com a porra de uma só remada.
- É verdade.
- Só gostaria de saber para que serviu tudo isso. Vejo apenas que ele vai fazer um espetáculo de nós. Para que todo mundo veja que ele é o chefão. Foi pra isso que percorremos essa distância toda?
- Não sei.
A van zumbia em silêncio. Eles ficaram no banco sem falar, de mãos dadas. Larry estava com medo, mas além desse sentimento dominava um mais profundo, de paz, imperturbada. Ia dar certo.
- Não temerei o mal - murmurou, mas estava com medo. Fechou os olhos e pensou em Lucy. Pensou em sua mãe. Pensamentos aleatórios. Levantar-se para a escola nas manhãs frias. A vez em que vomitara na igreja. Quando pescara uma revista de mulher pelada na sarjeta e a olhara com Rudy, os dois com mais ou menos nove anos. Quando vira a World Series em seu primeiro outono em Los Angeles, com Yvonne Wetterlin. Não queria morrer, tinha medo de morrer, mas fizera com isso o melhor possível. A escolha, afinal, jamais fora sua, e passara a acreditar que a morte era apenas uma área de espera, como os atores esperavam nos bastidores antes de entrar em cena.
Repousava o melhor que podia, tentando preparar-se.
A van parou e as portas se abriram. O sol forte jorrou dentro do veículo, ofuscando-o e a Ralph. Rato e Burlson pularam dentro. Jorrando junto com o sol veio um barulho - um murmúrio baixo e farfalhante que fez Ralph virar a cabeça de lado, cauteloso. Mas Larry sabia que barulho era aquele.
Em 1986, o Tattered Remnants dera seu maior concerto - fazendo a abertura para o Van Halen no Chavez Ravine. E o barulho logo antes de entrarem era como aquele. Assim, quando saltou da van já sabia o que esperar e seu rosto não mudou, embora ouvisse o tênue arquejo de Ralph a seu lado.
Achavam-se no gramado de um imenso hotel-cassino. A entrada era flanqueada por duas pirâmides douradas. Parados sobre o gramado, dois caminhões de carroceria aberta. Em cada carroceria uma jaula feita de canos de aço.
Pessoas os cercavam.
Espalhavam-se no gramado mais ou menos num círculo, paradas no estacionamento do cassino, nos degraus que levavam às portas do saguão, na entrada de carros onde hóspedes que chegavam paravam antes, enquanto o porteiro apitava para chamar um boy. Derramavam-se até a própria rua. Alguns dos rapazes haviam erguido as namoradas nos ombros para uma visão melhor das festividades. O baixo murmúrio era o barulho do animal-multidão.
Larry correu os olhos por eles, e cada olho que encontrava se desviava. Cada rosto parecia pálido, distante, marcado para a morte e parecendo saber disso. E no entanto ali estavam.
Ele e Ralph foram tocados para as jaulas e no caminho Larry notou os carros com as correntes e engates para reboques. Mas foi Ralph quem entendeu o que isso queria dizer. Afinal, passara a maior parte da vida trabalhando com máquinas e em torno delas.
- Larry - disse em voz baixa. - Vão nos fazer em pedaços.
- Vão, entrem - disse o Rato, bafejando um odor azedo de alho no rosto dele. - Suba ali, Pão de Fôrma. Você e seu amigo vão montar no tigre.
Larry subiu na carroceria aberta.
- Me dê sua camisa, Pão de Fôrma.
Larry tirou-a e ficou nu da cintura para cima, o ar da manhã frio e bom em sua pele. Ralph já tirara a dele. Uma onda de conversação correu a multidão e morreu. Os dois estavam muitíssimo magros da caminhada; via-se cada costela.
- Entre na jaula, branqueio.
Larry recuou para dentro da gaiola.
Agora era Barry Dorgan quem dava as ordens. Ia de um lugar a outro, conferindo os arranjos, uma expressão firme de náusea no rosto.
Os quatro motoristas entraram nos carros e os ligaram. Ralph ficou um instante sem entender, depois pegou uma das algemas soldadas que pendiam de sua jaula e jogou-a pelo pequeno buraco. Bateu na cabeça de Paul Burlson e um risinho nervoso percorreu a multidão.
Dorgan disse:
- Não faça isso, cara. Vou ter de mandar uns caras segurar você.
- Deixe que façam o trabalho deles - disse Larry a Ralph. Olhou para Dorgan embaixo. - Ei, Barry. Ensinaram essa a você no Departamento de Polícia de Santa Mônica?
Outra risada percorreu a multidão.
- Brutalidade policial - gritou uma alma ousada. Dorgan corou, mas não disse nada. Enfiou mais a corrente na cela de Larry e este cuspiu nelas, meio surpreso por ter saliva suficiente para fazê-lo. Um pequeno aplauso subiu do fundo da multidão e Larry pensou: Talvez seja isso aí, talvez eles se levantem...
Mas no fundo não acreditava nisso. Os rostos eram pálidos demais, cheios de segredos demais. O desafio do fundo não significava nada. Era o barulho de garotos penetrando num salão de estudos. Havia dúvida ali - e insatisfação. Mas Flagg coloria mesmo isso. Aquelas pessoas iam se esgueirar no meio da noite para parte do grande espaço vazio em que se tomara o mundo. E o Turista Andarilho as deixaria ir, sabendo que tinha apenas de manter um núcleo duro, pessoas como Dorgan e Burlson. Os fujões e esquivos da meia-noite podiam ser reunidos depois, talvez para pagar o preço de sua fé imperfeita. Ali não haveria rebelião aberta.
Dorgan, Rato e um terceiro homem meteram-se na jaula com ele. Rato estendeu as algemas soldadas abertas para os pulsos de Larry.
- Estenda os braços - disse.
- A lei e a ordem não são uma coisa maravilhosa, Barry?
- Estenda, porra!
- Você não parece bem, Dorgan... como está seu coração atualmente?
- Estou mandando pela última vez, meu amigo. Passe os braços por esses buracos!
Larry passou. As algemas foram enfiadas e fechadas. Dorgan e os outros recuaram e a porta fechou-se. Larry olhou à direita e viu Ralph de pé em sua jaula, os braços nos lados dele. Os pulsos dele também haviam sido algemados.
- Vocês sabem que isso é errado - gritou Larry, e sua voz, treinada por anos de canto, rolou para fora do peito com surpreendente força. - Não espero que parem com isso, mas espero que se lembrem. Estamos sendo condenados à morte porque Randall Flagg tem medo de nós! Tem medo de nós e do lugar de onde viemos! - Um murmúrio crescente correu a multidão. - Lembrem-se de como morremos! E que da próxima vez pode ser a hora de um de vocês morrer assim, sem dignidade, como um animal numa jaula!
De novo o baixo murmúrio, crescente e raivoso... e o silêncio.
- Larry! - gritou Ralph.
Flagg descia os degraus do hotel, Lloyd Henreid a seu lado. Flagg usava jeans e camisa quadriculada, a jaqueta jeans com dois broches no bolso da lapela, e as surradas botas de vaqueiro. No súbito silêncio o barulho daqueles tacões descendo o caminho de cimento era o único som... um som fora de tempo.
O homem escuro sorria.
Larry olhou-o. Flagg parou entre as duas jaulas e ficou olhando para cima. Tinha o sorriso sombriamente charmoso. Era um homem em completo controle, e Larry de repente soube que aquele era o momento divisor de águas dele, a apoteose de sua vida.
Flagg deu-lhes as costas e ficou de frente para a multidão. Correu os olhos sobre eles e nenhum olho o encarou.
- Lloyd - disse em voz baixa, e Lloyd, que parecia pálido, acossado e doentio, entregou-lhe um papel enrolado num canudo.
O homem escuro desenrolou-o, ergueu-o e começou a falar. A voz era profunda, sonora e agradável, espalhando-se na quietude como uma única onda de prata num poço negro.
- Saibam vocês que esta é uma verdadeira lei na qual eu, Randall Flagg, apus meu nome neste 13o dia de setembro, do ano de 1990, agora conhecido como Ano Um, ano da peste.
- Flagg não é o nome dele! - rugiu Ralph. Ouviu-se um murmúrio de choque da multidão. - Por que não diz a eles seu verdadeiro nome?
Flagg não tomou conhecimento.
- Saibam vocês que esses homens, Lawson Underwood e Ralph Brentner, são espiões aqui em Las Vegas, sem nenhuma boa intenção, mas antes com motivos odiosos, que entraram neste estado sorrateiramente e sob a capa da escuridão...
- Essa é muito boa - disse Larry -, uma vez que descemos a Rodovia 70 em plena luz do dia. - Ergueu a voz em um grito. - Eles nos prenderam ao meio-dia na Interestadual! Que tal isso como sorrateiramente e sob a capa da escuridão?
Flagg suportou isso com paciência, como se achasse que Larry e Ralph tinham todo o direito de responder às acusações... agora que não faria nenhuma diferença. Então continuou:
- Saibam vocês que as coortes desses homens foram responsáveis pela sabotagem dos helicópteros em Indian Springs, e portanto pelas mortes de Carl Hough, Bill Jamieson e Cliff Benson. São culpados de assassinato.
Os olhos de Larry encontraram os de um homem parado na frente da multidão. Embora ele não o soubesse, aquele era Stan Bailey, chefe de Operações em Indian Springs. Ele viu uma nuvem de perplexidade e surpresa cobrir o rosto do homem, e que ele formava com a boca alguma coisa ridícula, como Lata de Lixo.
- Saibam vocês que as coortes desses homens infiltraram outros espiões entre nós, e eles foram mortos. É sentença pois que esses homens sejam executados de fornia apropriada, ou seja, que sejam esquartejados. É dever e responsabilidade de cada um de vocês testemunhar este castigo, para que o lembrem e contem a outros o que viram aqui hoje.
Flagg lampejou o seu sorriso, destinado a ser solícito nesse caso, porém ainda não mais simpático e humano que o de um tubarão.
- Aqueles de vocês que têm filhos estão dispensados.
Voltou-se para os carros, agora em ponto morto e soltando pequenos pufes de fumaça na manhã. Ao fazer isso, houve uma comoção perto da frente da multidão. De repente, um homem abriu caminho a força até o espaço aberto. Era um sujeito grande, o rosto quase tão pálido quanto seus olhos de cozinheiro. O homem escuro devolvera o rolo de papel a Lloyd e as mãos deste tremeram convulsivamente quando Whitney Horgan chegou à clareira. Ouviu-se o claro barulho de alguma coisa se rasgando quando o documento se rompeu ao meio.
- Ei, vocês, gente! - gritou Whitney.
Um confuso murmúrio percorreu a multidão. Whitney tremia todo, como se tivesse paralisia. Continuava se projetando para cima do homem escuro e desviando-se de novo. Dorgan partiu para cima do cozinheiro e Flagg fez sinal para que ele voltasse.
- Isso não está direito! - berrou Whitney. - Você sabe que não está!
Silêncio mortal na multidão. Era como se todos se houvessem transformado em lápides.
A garganta de Whitney trabalhava convulsivamente. O pomo-de-adão subia e descia como um macaco numa vara.
- Nós fomos americanos um dia! - gritou finalmente. - Não é assim que os americanos agem. Eu não passava, digo a vocês, de um cozinheiro, mas sei que não é assim que os americanos agem, dando ouvidos a uma aberração assassina com botas de vaqueiro...
Um arquejo horrorizado e farfalhante veio dessa nova Las Vegas. Larry e Ralph trocaram um olhar intrigado.
- É isso que ele é! - insistiu Whitney. O suor escorria-lhe pelo rosto como lágrimas das bordas peludas do cabelo cortado rente. - Querem ver esses dois caras rasgados ao meio bem na frente de vocês, hein? Acham que é assim que se inicia uma vida nova? Acham que uma coisa dessas pode algum dia ser certa? Eu lhes digo que vocês vão ter pesadelos sobre isso pelo resto de suas vidas.
A multidão murmurou, concordando.
- Nós temos de parar com isso - disse Whitney. - Sabem? Precisamos de tempo para pensar no que... no que...
- Whitney.
A voz, macia como seda, pouco mais que um sussurro, foi suficiente para silenciar completamente a voz hesitante do cozinheiro. Ele se voltou para Flagg, movendo os lábios silenciosamente, os olhos fixos como os de um peixe. Agora o suor despejava-se pelo rosto em torrentes.
- Whitney, você devia ter ficado calado. - A voz era baixa, mas ainda assim chegava facilmente a todos os ouvidos. - Eu teria deixado você ir embora... por que eu iria querer você?
Whitney mexeu os lábios, mas não saiu som algum.
- Venha cá, Whitney.
- Não - ele murmurou, e ninguém ouviu a recusa, a não ser Lloyd, Ralph e Larry, e talvez Barry Dorgan.
Whitney mexeu os pés como se não tivesse ouvido a própria voz. Seus tênis negros saltados e murchos fizeram barulho na grama quando ele avançou para o homem escuro como um fantasma.
A multidão se tornara um só queixo caído e olho fixo.
- Eu sabia dos seus planos - disse o homem escuro. - Eu sabia o que pretendia fazer antes de você. E eu o teria deixado rastejar para longe até estar pronto para pegá-lo. Talvez dentro de um ano, talvez dez. Mas agora tudo isso ficou para trás, Whitney. Acredite.
Whitney encontrou a voz uma última vez, as palavras saindo num grito estrangulado.
- Você não é um homem de jeito nenhum. Você é uma espécie de... demônio!
Flagg estendeu o indicador da mão esquerda de modo a quase tocar o peito de Whitney.
- É, tem razão - disse tão baixinho que ninguém além de Lloyd e Larry Underwood ouviu. - Sou.
Uma bola azul de fogo, não maior que a bola de pingue-pongue que Leo vivia quicando sem parar, saltou da ponta do dedo de Flagg com um débil estalar de ozônio.
Um vento outonal de suspiros percorreu os que observavam.
Whitney gritou - mas não se mexeu. A bola de fogo bateu em seu queixo. Sentiu-se um súbito cheiro enjoativo de carne queimada. A bola cruzou sua boca, fundindo os lábios e trancando o grito atrás dos olhos esbugalhados de Whitney. Atravessou uma das bochechas, cavando uma trincheira calcinada e na mesma hora cauterizada.
Fechou os olhos.
Parou acima da testa, e Larry ouviu Ralph falando, dizendo a mesma coisa repetidas vezes, e juntou sua voz à dele, tornando-a uma litania:
- Não temerei mal algum... Não temerei mal algum... Não temerei mal algum...
A bola de fogo rolou da testa de Whitney e agora sentia-se um cheiro de cabelo queimado. Rolou para a nuca, deixando uma faixa de escalpo grotescamente calva atrás. Whitney oscilou um momento sobre os pés e emborcou, piedosamente de cara para baixo.
A multidão emitiu um som longo e sibilante: Aaahhh. Era o som que as pessoas faziam no Quatro de Julho quando a exibição de fogos de artifício era particularmente boa. A bola de fogo pairou no ar, maior agora, brilhante demais para se olhar sem semicerrar os olhos. O homem escuro apontou-a e ela se moveu devagar para a multidão. Os da fila da frente - uma Jenny Engstron de rosto lívido entre eles - encolheram-se para trás.
Com voz trovejante, Flagg desafiou-os:
- Alguém mais aqui discorda de minha sentença? Se discorda, que fale agora!
Um profundo silêncio acolheu estas palavras.
Flagg pareceu satisfeito.
- Então vamos...
Cabeças desviaram-se dele de repente. Um murmúrio surpreso percorreu a multidão, depois ergueu-se numa balbúrdia. Flagg pareceu completamente apanhado de surpresa. Agora as pessoas na multidão se punham a gritar e, embora fosse impossível distinguir as palavras com clareza, o tom era de surpresa e pasmo. A bola de fogo mergulhou e girou, incerta.
O zumbido de um motor elétrico chegou aos ouvidos de Larry. E mais uma vez ele captou aquele nome intrigante lançado de boca em boca, jamais claro, jamais inteiro. Homem... Homem da Lata... Lixo... Lixinho...
Alguém varava a multidão, como em resposta ao desafio do homem escuro.
Flagg sentiu o terror infiltrar-se nas câmaras do seu coração. Era o terror do desconhecido, do inesperado. Ele previra tudo, até o tolo discurso de Whitney no calor do momento. Previra tudo, menos aquilo. A multidão - sua multidão - dividia-se, recuava. Ouviu-se um grito, alto e claro, e paralisante. Alguém desatou a correr. Depois outro. E então a multidão, já por um fio de cabelo emocional, disparou num estouro de boiada.
- Fiquem parados! - gritou Flagg o mais que pôde, mas foi inútil. A multidão se tornara um vento forte, e nem mesmo o homem escuro podia deter o vento. Uma raiva terrível, impotente, subiu de dentro dele, juntando-se ao medo e formando uma nova e volátil mistura. Dera errado de novo. No último minuto, de alguma forma, dera errado de novo, como o velho juiz no Oregon, a mulher cortando a garganta no vidro da janela... e Nadine... Nadine... caindo...
Eles corriam, espalhando-se para todos os pontos da bússola, atravessando o gramado do Grand Hotel MGM, a rua, em direção à Strip. Tinham visto o hóspede final, chegado por fim como uma medonha visão saída de um conto de terror. Tinham visto, talvez, a face rubra de um terrível castigo final.
E o que o andarilho que retornava trazia consigo.
Enquanto a multidão se dissolvia, Randall Flagg também via, como viram Larry, Ralph e o paralisado Lloyd Henreid, que ainda segurava o documento rasgado nas mãos.
Era Donald Merwin Elbert, agora conhecido como o Homem da Lata de Lixo, agora e para sempre, infinitamente, aleluia, amém.
Estava atrás do volante de uma comprida e imunda carreta elétrica. O exigido conjunto de baterias do veículo já quase se esgotara. O carrinho zumbia, chiava e avançava aos arrancos. O Homem da Lata de Lixo subia e descia no banco aberto como uma louca marionete.
Achava-se nos últimos estágios da doença da radiação. Perdera os cabelos. Tinha os braços projetando-se para fora dos farrapos da camisa cobertos de feridas abertas escorrendo. O rosto era uma sopa esburacada da qual um olho azul desbotado pelo deserto espiava com uma inteligência terrível, digna de pena. Dentes não havia mais. Unhas também. As pálpebras eram abas esfarrapadas.
Parecia um homem que saíra dirigindo um carrinho elétrico da boca subterrânea escura e ardente do próprio inferno. Flagg viu-o aproximar-se. Desaparecera o seu sorriso. Fora-se sua cor forte e exuberante. O rosto de repente era uma janela feita de pálido vidro branco.
A voz do Homem da Lata de Lixo borbulhou em êxtase de dentro do peito magro:
- Eu o trouxe... Eu lhe trouxe o fogo... por favor... desculpe...
Foi Lloyd quem se mexeu. Deu um passo à frente, depois outro.
- Lixinho... Lixo, querido... - A voz era um coaxar.
O único olho mexeu-se, dolorosamente, procurando Lloyd.
- Lloyd? É você?
- Sou eu, Lixo. - Todo o corpo de Lloyd tremia violentamente, como Whitney tremera. - Escute, que é que você tem aí? É...
- É a Grande - disse Lixo, alegre. - É a bomba atômica. - Pôs-se a balançar para a frente e para trás no banco da carreta elétrica como um convertido num serviço de revivescência. - A bomba-A, a Grande, o grande fogo, minha vida por você.
- Leve-a embora, Lixo - sussurrou Lloyd. - É perigosa. É... é quente. Leve-a embora.
- Faça-o livrar-se dela, Lloyd - gemeu o homem escuro, que agora era o homem pálido. - Mande-o levá-la de volta para onde a pegou. Faça-o...
O único olho útil de Lata de Lixo ficou intrigado.
- Onde está ele? - perguntou, e então sua voz subiu para um uivo agônico. - Onde está ele? Desapareceu! Onde está ele? Que foi que você fez com ele?
Lloyd fez um último esforço supremo.
- Lixo, você tem de se livrar dessa coisa. Você...
E de repente Ralph gritou:
- Larry! Larry! A mão de Deus!
Tinha o rosto arrebatado numa terrível alegria. Os olhos brilhavam. Apontava para o céu.
Larry olhou para cima. Viu a bola de eletricidade que Flagg lançara da ponta do dedo. Atingira um tamanho tremendo. Pairava no céu, tremendo em direção a Lata de Lixo e emitindo fagulhas semelhantes a cabelos. Larry compreendeu vagamente que o ar estava agora tão carregado de eletricidade que tinha cada pêlo do corpo eriçado.
E a coisa no céu parecia uma mão.
- Nããão! - gemeu o homem escuro.
Larry olhou-o... mas Flagg não mais estava ali. Ele teve uma mínima impressão de uma coisa monstruosa de pé na frente de onde Flagg estivera. Uma coisa desmoronada e curvada e quase sem forma - uma coisa de enormes olhos amarelos cortados por escuras pupilas de gato.
Depois desapareceu.
Larry viu as roupas de Flagg - a jaqueta, o jeans, as botas - paradas de pé sem nada dentro. Por uma fração de segundo, mantiveram a forma do corpo que as ocupava antes. E depois desabaram.
O fogo azul crepitante no ar lançou-se sobre a carreta elétrica que o Homem da Lata de Lixo de algum modo dirigira desde Nellis. Ele perdera o cabelo e vomitara sangue, e finalmente os próprios dentes, à medida que a doença da radiação afundava cada vez mais em seu corpo, mas nunca hesitara na decisão de trazer a bomba para o homem escuro... podia dizer-se que jamais esmorecera em sua resolução.
A bola de fogo azul lançou-se no fundo da carreta, procurando o que estava lá, atraída pelo que fosse.
- Ah, merda, estamos todos fodidos! - gritou Lloyd Henreid.
Levou as mãos à cabeça e caiu de joelhos.
Ah, Deus, obrigado, Deus, pensou Larry. Não temerei mal algum. Não...
Uma silenciosa luz branca encheu o mundo. E os justos e ímpios igualmente foram consumidos naquele fogo sagrado.
STU ACORDOU DE UMA NOITE DE SONO interrompido ao amanhecer e ficou deitado tremendo, mesmo com Kojak enroscado a seu lado. O céu da manhã estava azul frio, mas apesar dos arrepios sentia calor. Estava com febre.
- Mal - murmurou, e o cão ergueu o olhar para ele.
Balançou a cauda e saiu correndo para a vala. Trouxe de volta um pedaço de pau seco e o depôs aos pés de Stu.
- Eu falei mal, não pau, mas acho que serve - disse-lhe Stu.
Mandou o cachorro pegar gravetos mais uma dúzia de vezes. Logo os tinha suficientes para acender uma fogueira. Mesmo sentado próximo não conseguia afastar os arrepios, embora o suor lhe rolasse pelas faces abaixo. Era a ironia final. Estava com gripe, ou coisa muito parecida. Gripara-se dois dias depois que Glen, Larry e Ralph o haviam deixado. Por mais dois dias a gripe parecia havê-lo considerado - valia a pena pegá-lo? Aparentemente valia. Aos poucos ele ia piorando. E naquela manhã se sentia muito mal mesmo.
Entre as bugigangas em seus bolsos, encontrou um toco de lápis, seu caderno de notas (todo o material grátis de organização da Zona Franca, que parecera outrora uma coisa vital, agora parecia ligeiramente tolo) e seu molho de chaves. Ficara intrigado com o molho um bocado de tempo, retomando repetidas vezes a ele nos últimos dias, constantemente surpreso com a forte dor da tristeza e nostalgia. Aquela chave era do seu apartamento. Aquela outra do armário. Aquela era uma extra para o seu carro, um Dodge 1977 coberto de ferrugem - até onde sabia, ainda estava estacionado atrás do prédio de apartamentos na Thompson Street, 31, em Arnette.
Também preso no molho de chaves vinha um cartão de endereço envolto em Lucite. STU REDMAN - 31 THOMPSON STREET - F: (713) 555-6283, dizia. Ele tirou as chaves do molho, sopesou-as, pensativo, na palma da mão por um instante, e depois jogou-as fora. Os restos do homem que tinha sido caíram no mato e tilintaram numa moita seca de artemísia, onde iriam ficar, supunha, até o fim dos tempos. Retirou o cartão do Lucite e arrancou uma página em branco do caderno de notas.
Cara Frannie, escreveu no alto.
Contou-lhe tudo que acontecera até ele quebrar a perna. Contou-lhe que esperava tornar a vê-la, mas duvidava que isso fosse provável. O melhor que podia esperar era que Kojak encontrasse a Zona de novo. Enxugou meio ausente as lágrimas do rosto com as costas da mão e escreveu que a amava. Espero que me pranteie e vá em frente, acrescentou. Você e o bebê têm de ir em frente. Isso agora é o mais importante. Assinou, dobrou até ficar pequeno e enfiou o bilhete na fenda do quadrado de Lucite. Depois pregou o molho de chaves na coleira de Kojak.
- Cachorrinho bom - disse quando acabou. - Quer ir dar uma olhada por aí? Pegar um coelho ou alguma coisa assim?
Kojak subiu correndo a encosta onde Stu quebrara a perna e sumiu. Stu viu-o ir-se com uma mistura de amargor e diversão, depois pegou a lata de 7-Up que o cachorro lhe trouxera numa viagem no dia anterior, em vez de um pedaço de pau. Enchera-a com água lamacenta da vala. Com a água parada, a lama descia para o fundo. Dava uma bebida arenosa, mas como teria dito sua mãe, era muito mais arenosa quando não havia nenhuma. Bebeu devagar, matando a sede aos poucos. Doía engolir.
- A vida, claro, é uma megera - murmurou, e então teve de rir de si mesmo. Por um ou dois segundos, correu os dedos pela garganta inchada, logo abaixo do queixo. Depois se deitou, a perna encanada para a frente, e cochilou.
Acordou com um sobressalto cerca de uma hora depois, agarrando a terra arenosa em sonolento pânico. Tivera um pesadelo? Se tivera, parecia ainda estar continuando. O chão se mexia devagar sob suas mãos.
Terremoto? Temos um terremoto aqui?
Por um momento, aferrou-se à ideia de que devia ser delírio, que a febre voltara quando ele cochilava. Mas, olhando o barranco, viu que a terra deslizava em pequenas camadas de lama. Seixos que ricocheteavam e saltavam emitiam lampejos de mica e reflexos de quartzo que o ofuscavam - pareciam abrir à força caminho para seus ouvidos. Um momento depois, arquejava em busca de ar, como se a maior parte houvesse de repente sido expulsa da vala que a inundação repentina abrira.
Stu ouviu um zumbido acima. Kojak lá estava recortado contra a borda oeste do corte, agachado com a cauda entre as pernas. Olhava para oeste, na direção de Nevada.
- Kojak! - gritou Stu em pânico. O impacto o aterrorizara. Era como se Deus houvesse de repente batido os pés no chão do deserto em algum ponto não muito distante.
Kojak desceu correndo a encosta e juntou-se a ele, ganindo. Quando passou a mão pelas costas do cachorro, sentiu-o tremendo. Tinha de ver, precisava ver. Veio-lhe uma súbita sensação de segurança: o que tinha de acontecer estava acontecendo. Naquele instante mesmo.
- Vou subir, garoto - murmurou.
Subiu de rastos até a borda da vala. Era meio íngreme, porém tinha mais pontos de apoio. Durante os últimos três dias ele pensara que poderia subir até lá, mas não vira sentido. Estava abrigado do pior vento no fundo do corte, e tinha água. Mas agora precisava subir até lá. Tinha de ver. Arrastou a perna entalada atrás como um porrete. Ergueu-se sobre os braços e esticou o pescoço para ver sobre a borda. Parecia muito alto, muito distante.
- Não consigo, garoto - murmurou para Kojak e recomeçou a tentar mesmo assim.
Um novo monte de entulho se empilhara no fundo, em conseqüência do... terremoto. O que quer que houvesse sido. Stu guindou-se por cima e começou a subir centímetro a centímetro a encosta, usando as mãos e o joelho esquerdo. Fez uns 10 metros e perdeu 6 antes de poder agarrar um afloramento de quartzo e parar de escorregar.
- Bolas, jamais vou conseguir - arquejou e descansou.
Dez minutos depois, recomeçou e fez mais uns 10 metros. Descansou. Recomeçou de novo. Chegou a um lugar sem ponto de apoio e teve de arrastar-se até encontrar um. Kojak andava a seu lado, sem dúvida se perguntando o que desejaria aquele maluco, deixando sua água e o calor de sua bela fogueira.
Calor. Calor demais.
A febre devia estar subindo de novo, mas pelo menos os tremores diminuíram. Novo suor brotava pelo seu rosto e braços abaixo. Os cabelos, empoeirados e sebosos, pendiam sobre os olhos.
Senhor, estou ardendo! Faça com seja 45, 46...
Olhou casualmente para Kojak. Levou quase um minuto para compreender o que via. Kojak arquejava. Não era febre, ou não apenas febre, porque o cachorro também estava acalorado.
Acima, um bando de pássaros passou de repente, rodando ao léu e grasnando.
Eles também sentem. Seja o que for, eles também sentem.
Começou a rastejar de novo, o medo emprestando-lhe nova força. Passou-se uma hora, duas. Ele lutava por cada palmo, cada centímetro. À uma da tarde achava-se a apenas uns 2 metros abaixo da borda. Via lascas de pavimento projetando-se acima. Apenas 2 metros, mas a inclinação ali era muito acentuada e lisa. Ele tentou uma vez simplesmente rastejar coleando como uma serpente, mas o cascalho solto, base da Interestadual, começara a chocalhar debaixo dele, e agora ele temia que, se tentasse se mexer, desceria de novo até o fundo, na certa quebrando a porra da outra perna.
- Atolado - murmurou. - Que porra de espetáculo. E agora?
O que viria agora se tornou óbvio muito rapidamente. Mesmo sem se mexer, a terra começava a afundar debaixo dele. Ele escorregou alguns centímetros e enterrou os dedos para firmar-se. A perna quebrada batia pesada no chão, e ele não se lembrara de embolsar as pílulas de Glen.
Deslizou mais 5 centímetros. Depois 10. O pé esquerdo pendia agora no espaço. Só as mãos o seguravam, e sob seus olhos elas começaram a escorregar, cavando mais dez pequenos sulcos no chão úmido.
- Kojak! - ele gritou lamentavelmente, sem esperar nada.
Mas de repente Kojak estava ali. Stu passou o braço por cima do pescoço do cachorro, sem esperar ser salvo, mas apenas agarrando-se ao que havia para agarrar, como alguém que se afoga. Cavou mais. Por um instante, ficaram paralisados, uma escultura viva. Então Kojak começou a mexer-se, cavando centímetros, as patas estalando contra pedrinhas e torrões de cascalho. Seixos rolaram sobre o rosto de Stu e ele fechou os olhos. Kojak arrastou-o, arquejando como um compressor em seu ouvido.
Stu entreabriu os olhos e viu que se achavam perto do topo. Kojak tinha a cabeça baixa. As patas traseiras trabalhavam furiosamente. Ganhou mais 15 centímetros, e foi o suficiente. Com um grito desesperado, Stu soltou o pescoço do cão e agarrou um afloramento de asfalto, que se partiu em sua mão. Duas unhas foram arrancadas para trás como decalques molhados, e ele deu um grito. A dor era total, galvanizante. Ele subiu às pressas, impelindo-se com a perna boa, e finalmente - de algum modo - ficou caído a arquejar na superfície da I-70, os olhos fechados.
Kojak estava a seu lado então. Ganiu e lambeu seu rosto.
Lentamente então Stu sentou-se e olhou para oeste. Olhou por um longo tempo, esquecido de que o calor ainda se lançava contra seu rosto em ondas gordas e quentes.
- Ah, meu Deus - disse por fim numa voz fraca, alquebrada. - Veja só isso, Kojak. Larry, Glen. Eles se foram. Deus, tudo se foi. Tudo.
A nuvem de cogumelo se espalhava no horizonte como um punho fechado na extremidade de um antebraço comprido e empoeirado. Estava rodopiando, flocosa nas bordas, começando a se dissipar. Estava iluminada por trás num soturno tom vermelho-alaranjado, como se o sol tivesse decidido se pôr no início da tarde.
A tempestade de fogo, pensou.
Estavam todos mortos em Las Vegas. Alguém falhara, quando ele devia ter acertado, e uma arma nuclear detonara... e uma bomba infernalmente grande, ao que parecia. Talvez toda uma pilha de bombas fora detonada. Glen, Larry, Ralph... mesmo que ainda não houvessem chegado a Las Vegas, mesmo que ainda estivessem andando, certamente estavam próximos o suficiente para serem assados vivos.
Bem a seu lado, Kojak ganiu infeliz.
Precipitação radioativa. Para que lado o vento vai soprá-la?
E importava?
Lembrou seu bilhete a Frannie. Era importante acrescentar o que acontecera. Se o vento soprasse a precipitação para leste, poderia causar-lhes problemas... porém, mais que isso, eles tinham de saber que Las Vegas, que fora a área de estágio do homem de escuro, desaparecera. As pessoas haviam sido vaporizadas com todos os brinquedos mortais que simplesmente estavam por ali, esperando que alguém os pegasse. Tinha de acrescentar tudo isso à nota.
Mas não já. Estava cansado demais agora. A subida o exaurira, e a visão estupenda daquele cogumelo de nuvem a dissipar-se o exaurira ainda mais. Não sentia júbilo algum, só um surdo e arrasante cansaço. Deitou-se na calçada e seu último pensamento antes de adormecer foi: Quantos megatons? Achava que ninguém ia saber nunca, nem querer saber.
Acordou depois das seis. O cogumelo de nuvem desaparecera, mas o céu do oeste era de um verde-rosado, como um forte lanho de carne queimada. Stu arrastou-se até a aléia quebrada e deitou-se, inteiramente exausto de novo. Os tremores haviam voltado. E a febre. Tocou a testa com o pulso e tentou avaliar a temperatura ali. Calculou que beirava os quarenta.
Kojak surgiu do anoitecer com um coelho nas presas. Deitou-o aos pés de Stu e balançou a cauda, à espera de um elogio.
- Cachorrinho bom - disse Stu exausto. - Isso é que é cachorrinho bom.
Kojak balançou mais rápido a cauda. É, eu sou um cachorrinho bom mesmo, pareceu concordar.
Mas continuou a olhar para Stu, parecendo esperar por alguma coisa. Parte do ritual estava incompleto. Stu tentou lembrar o que era. O cérebro andava muito devagar; enquanto dormia, alguém parecia haver despejado melaço em todas as suas engrenagens internas.
- Cachorrinho bom - repetiu e olhou o coelho morto. Então lembrou, embora nem tivesse certeza se ainda havia fósforos. - Vá pegar, Kojak - disse, sobretudo para agradar ao cachorro.
Kojak saiu saltando e logo retomou com um bom feixe de lenha seca.
Ele tinha os fósforos, mas surgira um vento forte e suas mãos tremiam. Levou um longo tempo para acender a fogueira. Conseguiu atear fogo aos gravetos na décima tentativa, e então o vento soprou forte mesmo, apagando as chamas. Stu ateou fogo cuidadosamente, protegendo-o com o corpo e as mãos. Restavam-lhe oito fósforos numa cartela da Escola de Comércio LaSalle. Assou o coelho, deu a Kojak sua metade e só pôde comer um pouco da sua parte. Jogou o que restara para o cachorro, que não o pegou. Olhou-o e ganiu nervoso para Stu.
- Vá em frente, garoto. Eu não posso.
Kojak comeu. Stu olhou-o e teve arrepios. Suas duas mantas achavam-se, claro, lá embaixo.
O sol pusera-se, e o céu do oeste tinha uma cor grotesca. Era o mais espetacular pôr do sol que Stu já vira em sua vida... e era veneno. Ele lembrava o narrador de um cinejomal dizendo entusiasmado na década de 1960 que após um teste nuclear se viam belos crepúsculos durante semanas. E, claro, após terremotos.
Kojak surgiu da vala com uma coisa na boca - uma das mantas de Stu. Jogou-a no colo dele.
- Ei - disse Stu, abraçando-o, instável. - Você é um senhor cachorro, sabia disso?
Kojak balançou a cauda para demonstrar que sabia.
Stu envolveu-se na manta e chegou para mais perto da fogueira. Kojak deitou-se ao seu lado e logo os dois dormiam. Mas o sono de Stu foi leve e inquieto, entrando e saindo do delírio. Algum tempo depois da meia-noite ele acordou Kojak, berrando no sono.
- Hap! - gritava. - É melhor você desligar as bombas! Ele está vindo! O homem escuro está vindo pegar você! Melhor desligar as bombas! Ele está naquele carro ali!
Kojak gemeu, nervoso. O Homem estava doente. Ele sentia o cheiro da doença, e misturado com esse havia um novo cheiro. Negro. Era o cheiro que tinham os coelhos quando saltava em cima deles. Também estava no lobo que ele estripara debaixo da casa de Mãe Abagail, em Hemingford Home. O que estivera nas cidades por onde ele passara a caminho de Boulder e Glen Bateman. Era o cheiro da morte. Se ele pudesse atacá-lo e expulsá-lo do Homem, teria feito isso. Mas estava dentro daquele Homem. O Homem inspirava ar bom e expirava aquele cheiro de morte próxima, e nada se podia fazer senão esperar para vê-la chegar ao fim. Kojak tomou a gemer, baixo, e depois dormiu.
Stu acordou na manhã seguinte mais febril que antes. As glândulas sob o queixo incharam até o tamanho de bolas de golfe. Os olhos eram bolas de gude quentes.
Estou morrendo... É, em definitivo.
Chamou Kojak e retirou o molho de chaves e seu recado do cartão de endereços envolto em Lucite. Escrevendo com força, acrescentou o que vira e substituiu a nota.
Ficou deitado de costas e dormiu. E então, de algum modo, já quase escurecera. Outro pôr do sol espetacular, horrendo, ardia e tremulava no Oeste. E Kojak trouxera um roedor para o jantar.
- Era o melhor que você podia fazer?
Kojak balançou a cauda e deu um sorriso envergonhado. Stu assou-o, dividiu-o e conseguiu comer toda a sua metade. Era duro e tinha um horrível gosto selvagem, e quando acabou, teve um sério ataque de cólicas estomacais.
- Quando eu morrer, quero que você volte a Boulder - disse ao cachorro. - Volte e procure Fran. Encontre Frannie. Tudo bem, seu velho cachorrão burro?
Kojak balançou a cauda, em dúvida.
Uma hora depois, o estômago de Stu roncou uma vez, advertindo. Ele só teve tempo suficiente para rolar sobre um dos cotovelos para evitar sujar-se, antes que sua parte do roedor saísse num esguicho.
- Merda! - murmurou, infeliz, e cochilou.
Acordou nas primeiras horas da madrugada e ergueu-se sobre os cotovelos, a cabeça zumbindo de febre. Viu que a fogueira se apagara. Não importava. Ele já estava quase liquidado.
Um barulho na escuridão o despertara. Seixos e pedras. Kojak subindo a encosta do corte, só isso...
Só que Kojak estava a seu lado, dormindo.
Sob o olhar de Stu, o cachorro acordou. Desgrudou a cabeça das patas e, um momento depois, já estava de pé, de frente para o corte, rosnando baixo.
Pedras e seixos a chocalhar. Alguém - alguma coisa - vinha subindo.
Stu sentou-se com dificuldade. É ele, pensou. Estava lá, mas de algum modo escapou. Agora está aqui, e pretende acabar comigo antes da gripe.
O rosnado de Kojak tornou-se mais forte. Pêlos eriçados, a cabeça baixa. O chocalhar estava mais perto agora. Stu ouvia um arquejo baixo. Veio então uma pausa, o suficiente para o suor sob o braço chegar à testa. Um momento depois, um vulto negro assomou contra a borda do corte, cabeça e ombros encobrindo as estrelas.
Kojak avançou, patas rígidas, ainda a rosnar.
- Ei! - disse uma voz espantada mas conhecida. - Ei, é Kojak! É ele!
O rosnado parou imediatamente. Kojak saltou à frente alegre, o rabo ainda a balançar.
- Não! - coaxou Stu. - É um truque! Kojak!...
Mas Kojak dava pulos sobre a figura que finalmente ganhara o piso da estrada. E aquele vulto... alguma coisa na forma também era conhecida. Avançou para ele com Kojak nos calcanhares. O cachorro soltava rajadas de latidos. Stu lambeu os lábios e preparou-se para lutar se fosse preciso. Achava que podia dar um bom soco, talvez dois.
- Quem é? - gritou. - Quem está aí?
O vulto escuro parou, depois falou:
- Ora, é Tom Cullen, eis quem é, minha nossa, sim. B-E-B-I-D-A, o que forma Tom Cullen. Quem é que está ai?
- Stu - disse ele, e sua voz pareceu vir de longe. Tudo estava longe agora. - Olá, Tom, que bom ver você!
Mas não o viu, não naquela noite. Stu desmaiou.
Voltou a si às dez da manhã de 2 de outubro, embora nem ele nem Tom soubessem que a data era essa. Tom fizera uma enorme fogueira e embrulhara Stu em seu saco de dormir e suas mantas. Ele próprio sentava-se junto ao fogo assando um coelho. Kojak jazia contente no chão entre os dois.
- Tom - conseguiu dizer Stu.
Tom aproximou-se. Stu viu que ele deixara crescer a barba; dificilmente parecia o homem que deixara Boulder para o oeste um mês e uma semana atrás. Os olhos azuis luziam felizes.
- Stu Redman! Você já acordou, minha nossa, sim! Estou contente. Cara, que bom ver você! O que fez com sua perna? Machucou-a, imagino. Eu machuquei a minha uma vez. Pulei de um monte de feno e quebrei-a, imagino. Pergunta se meu pai me deu uma sova? Minha nossa, deu! Isso foi antes de ele fugir com DeeDee Packalotte.
- Também quebrei a minha. E agora, Tom, estou com uma sede terrível...
- Ah, tem água. De todo tipo! Tome.
Entregou a Stu uma garrafa plástica que poderia ter contido leite. A água estava límpida e deliciosa. Sem areia alguma. Stu bebeu-a avidamente e depois vomitou-a toda.
- Devagar e com calma se vai longe - disse Tom. - Este é o segredo. Devagar e com calma. Cara, que bom ver você! Machucou a perna, não foi?
- Foi, quebrei. Uma semana atrás, talvez mais. - Tomou mais água e desta vez segurou-a. - Mas tem mais problema que a perna. Estou muito doente, Tom. Febre. Me escute.
- Certo! Tom está escutando. Basta me dizer o que fazer.
Tom curvou-se à frente e Stu pensou: Ora, ele parece mais alegre. Será possível? Por onde andara Tom? Saberia alguma coisa sobre o juiz? Sobre Dayna? Tantas coisas a falar, mas já não havia tempo. Ele estava piorando. Havia um profundo chocalhar em seu peito, como correntes acolchoadas. Sintomas muito parecidos com a supergripe. Era de fato muito esquisito.
- Tenho de baixar a febre - disse a Tom. - É a primeira coisa a fazer. Preciso de aspirina. Você conhece aspirina?
- Claro. Aspirina. Para alívio rapidíssimo.
- Este é o segredo, claro. Comece a subir a estrada, Tom. Olhe no porta-luvas de todos os carros que encontrar. Procure um estojo de primeiros socorros... com toda a certeza será uma caixa com uma cruz vermelha. Quando encontrar uma aspirina numa delas, traga para cá. E se encontrar um carro com equipamento de acampar, traga uma tenda. Tudo bem?
- Claro. - Tom se levantou. - Aspirina e uma tenda, e aí você fica bom de novo, certo?
- Bem, já é um começo.
- Diga - disse Tom. - Como está Nick? Tenho sonhado com ele. Nos sonhos, ele me diz aonde ir, porque nos sonhos ele fala. Os sonhos são engraçados, não são? Mas quando tento falar com ele, Nick sempre vai embora. - Tom olhava ansiosamente para Stu.
- Agora, não - disse Stu. - Eu... eu não posso falar agora. Sobre isso, não. Só pegue a aspirina, tá bem? Depois a gente conversa.
- Tudo bem. - Mas o medo se instalara no rosto de Tom como uma nuvem cinzenta. - Kojak, quer vir com Tom?
Kojak quis. Saíram andando juntos, rumo ao leste. Stu deitou-se e cobriu os olhos com um dos braços.
Quando Stu deslizou de volta à realidade, era o escurecer. Tom o sacudia.
- Stu! Acorde! Acorde, Stu!
Ele ficou assustado pela maneira como o tempo parecia escorregar em súbitos arrancos - como se o dente na engrenagem de sua realidade pessoal estivesse se desgastando. Tom teve de ajudá-lo a sentar-se, e quando o fez teve de encostar a cabeça entre as pernas e tossir. Tossiu tanto e tão forte que quase tomou a desmaiar. Tom observava-o com alarme. Aos poucos, Stu controlou-se. Puxou as mantas para mais perto do corpo. Tremia de novo.
- Que foi que encontrou, Tom?
Tom estendeu um estojo de primeiros socorros. Dentro havia Band-Aids, mercurocromo e um grande frasco de Anacin. Stu ficou chocado ao constatar que não conseguia abrir a tampa à prova de criança. Teve de passá-la a Tom, que finalmente a destampou. Stu tomou três comprimidos com água da garrafa plástica.
- E encontrei isso - disse Tom. - Estava num carro cheio de material de acampamento, mas não tinha tenda.
Era um saco de dormir duplo, estofado e comprido, de uma cor laranja fluorescente por fora, o forro num desenho vistoso de estrelas e listras.
- É sensacional. Quase tão bom quanto uma tenda. Trabalhou bem, Tom.
- E isto. Estavam no mesmo carro.
Tom enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou meia dúzia de pacotes de papel de estanho. Stu mal podia acreditar no que viu. Concentrados desidratados e congelados. Ovo. Ervilha. Abóbora. Carne-seca.
- Comida, não é, Stu? Tem figuras de comida, minha nossa!
- É comida - concordou Stu. - Exatamente do único tipo que posso comer, imagino. - A cabeça zumbia, e muito longe, no centro do cérebro, um alto Si zumbia sem parar. - Podemos esquentar um pouco d’água? Não temos panela nem chaleira.
- Eu encontro alguma coisa.
- É, ótimo.
- Stu...
Stu ergueu o olhar para aquele rosto infeliz, perturbado, ainda de menino apesar da barba, e balançou devagar a cabeça.
- Morto, Tom - disse em voz baixa. - Nick morreu. Quase um mês atrás. Foi... uma coisa política. Assassinato, creio que diria você. Sinto muito.
Tom balançou a cabeça e, na fogueira recém-acesa, Stu viu as lágrimas dele caírem no colo. Caíam numa delicada chuva de prata. Mas ele ficou calado. Finalmente, Tom ergueu o olhar, os olhos azuis mais luminosos que nunca. Enxugou-os com as costas da mão.
- Eu sabia que estava - disse em voz baixa. - Não quero dizer que sabia, mas sabia. Minha nossa, sabia, sim. Ele vivia dando as costas e indo embora. Era meu melhor amigo, Stu... sabia disso?
Estendeu a mão e tomou a manopla de Tom.
- Eu sabia, sim.
- Era, sim, N-I-C-K, este é o nome de meu melhor amigo. Sinto uma terrível saudade dele. Mas vou vê-lo no céu. Tom Cullen vai vê-lo lá. E ele vai poder falar e eu pensar. Não é verdade?
- Não me surpreenderia, Tom.
- Foi o homem mau que matou Nick, Tom sabe. Mas Deus já acertou esse homem mau. A mão de Deus desceu do céu. - Um vento gelado assobiou sobre o chão dos ermos de Utah, e Stu tremeu violentamente em suas garras. - Acertou-o pelo que ele fez a Nick e ao pobre juiz. Minha nossa!
- Que é que você sabe sobre o juiz, Tom?
- Morto! Em Oregon! Baleado.
Stu balançou a cabeça, cansado.
- E Dayna? Sabe alguma coisa sobre ela?
- Tom a viu, mas não sabe. Me deram um trabalho de faxineiro. E quando voltei um dia, a vi fazendo o trabalho dela. Estava pendurada no ar, trocando uma lâmpada de rua. Ela me olhou e... - Calou-se um instante, e quando tornou a falar era mais para si mesmo que para Stu. - Ela viu Tom? Conhecia Tom? Tom não sabe. Tom... acha... que sim. Mas Tom jamais a viu de novo.
Tom saiu à cata de comida logo depois, levando Kojak consigo, e Stu cochilou. Ele voltou não com uma grande lata, melhor do que Stu esperava, mas com uma panela de cozinhar suficientemente grande para conter um peru de Natal. Aparentemente, havia tesouros no deserto. Stu deu um sorriso, apesar das dolorosas bolhas de febre que começavam a formar-se em seus lábios. Tom contou-lhe que obtivera a panela de um caminhão laranja com um grande u pintado - alguém que vinha fugindo da supergripe com todos os bens terrenos, imaginou Stu. Para muito lhes servira.
Meia hora depois, havia comida. Stu comeu cuidadosamente, atendo-se aos legumes, aguando os concentrados o suficiente para fazer um fino mingau. Segurou tudo dentro e sentiu-se um pouco melhor, pelo menos por enquanto. Não muito após a ceia, ele e Tom foram dormir, com Kojak entre os dois.
- Tom, me escute.
Tom agachava-se sobre o grande saco de dormir inflado de Stu. Era a manhã seguinte. Stu só conseguira comer um pouco do desjejum; tinha a garganta inflamada e muito inchada, todas as juntas doloridas. A tosse piorara e o Anacin não estava fazendo muito efeito para baixar a febre.
- Preciso arranjar algum remédio, se não, vou morrer. E tem de ser hoje. Agora, a cidade mais próxima é Green River, que fica 90 quilômetros a leste daqui. Vamos ter de ir de carro.
- Tom Cullen não sabe dirigir, Stu. Minha nossa, não!
- É, eu sei. Vai ser um trabalho danado pra mim, porque além de estar doente pra caramba, quebrei a porra da perna errada.
- O que quer dizer?
- Bem... deixa pra lá por enquanto. É muito difícil de explicar. Não vamos nem nos preocupar com isso, porque não é o problema principal. O problema principal é arranjar um carro, para começar. A maioria deles está lá há três meses ou mais. As baterias estarão arriadas feito panquecas. Assim, vamos precisar de um pouco de sorte. Temos de encontrar um carro empacado com uma alavanca de marcha padrão no alto de uma daquelas colinas. Podemos conseguir. É uma região bastante montanhosa. - Não acrescentou que o carro teria de ter sido mantido em razoável forma, precisava ter gasolina... e uma chave de ignição. Todos aqueles caras da TV podiam saber fazer uma ligação direta, mas Stu não tinha a menor ideia.
Ele olhou o céu acima, enxameado de nuvens.
- A maior parte disso é com você, Tom. Você tem de ser as minhas pernas.
- Tudo bem, Stu. Quando arranjarmos o carro, vamos voltar para Boulder? Tom quer ir para Boulder, você não?
- Mais que qualquer coisa, Tom. - Stu olhou as Rochosas, uma vaga sombra no horizonte. A neve já teria começado a cair nos altos desfiladeiros? Quase certamente. E se não ainda, em breve. O inverno chegava cedo naquela parte alta e esquecida do mundo. - Talvez leve um tempo - disse.
- Como começamos?
- Fazendo um travois.
- Um o quê?
- Uma padiola índia. - Stu deu-lhe sua faca de bolso. - Você tem de abrir buracos no fundo desse saco de dormir. Um de cada lado.
Levaram uma hora para fazer o travois. Tom encontrou duas varas bem retas para enfiar no saco e fazê-las sair pelos buracos no fundo. Pegou um pedaço de corda do reboque onde conseguira a panela e Stu usou-a para amarrar o saco de dormir nas varas. Quando acabaram, a coisa lembrava a Stu mais um riquixá do que um travois como os que usavam os índios das planícies.
Tom pegou as varas e olhou em dúvida para trás.
- Já entrou, Stu?
- Sim. - Imaginou quanto tempo as costuras aguentariam antes de desfazer-se nos lados do saco. - Está pesado, Tom?
- Nada mau. Posso arrastar você uma longa distância. Pronto!
Puseram-se a caminho. O barranco onde Stu quebrara a perna - onde tivera certeza de que ia morrer - foi ficando lentamente para trás. Por mais fraco que estivesse, Stu sentia uma louca excitação. Não ali, pelo menos. Ia morrer em outra parte, na certa em breve, mas não ia ser sozinho naquela vala lamacenta. O saco de dormir balançava de um lado para outro, embalando-o. Ele cochilou. Tom puxava-o sob as nuvens, que engrossavam. Kojak trotava ao lado deles.
Stu acordou quando Tom o largou no chão.
- Desculpe - disse Tom. - Eu precisava descansar os braços. - Primeiro girou, depois flexionou-os.
- Descanse o quanto quiser - disse Stu. - Devagar e com calma se vai longe.
Sua cabeça latejava. Pegou o Anacin e engoliu dois comprimidos a seco. A garganta parecia forrada com lixa e uma alma sádica riscava fósforos nela. Conferiu as costuras do saco de dormir. Como esperava, estavam se desfazendo, mas ainda nada sério. Achavam-se numa longa e gradual encosta, exatamente o tipo de coisa que ele andara procurando. Numa encosta como aquela, com mais de 3 quilômetros de comprimento, um carro em ponto morto desceria muito bem. Podia-se fazê-lo arrancar no tranco em segunda, talvez mesmo em terceira.
Olhou preocupado para a esquerda, onde um Triumph cor de ameixa se achava enviesado na pista quebrada. Uma coisa esquelética de suéter de lã berrante se encostava atrás do volante. O carro teria transmissão manual, mas não havia como, pelo amor de Deus, ele enfiar a perna quebrada dentro da pequena boleia.
- Que distância fizemos? - perguntou a Tom.
Mas Tom apenas deu de ombros. Fora um bom pedaço, de qualquer modo, pensou Stu. Tom puxara-o por pelo menos três horas antes de parar para descansar. Isso falava de uma força fenomenal. Os velhos marcos de referência haviam sumido na distância. Tom, que tinha a constituição de um touro novo, arrastara-o por uns 9 ou 12 quilômetros enquanto ele cochilava.
- Descanse o quanto quiser - repetiu. - Não se esgote.
- Tom está bem. Tudo-do-bem, o que quer dizer tudo bem, minha nossa, sim, todo mundo sabe disso.
Tom devorou um enorme almoço, e Stu conseguiu comer um pouco. Depois seguiram em frente. A estrada continuava a dobrar-se para cima, e Stu começou a perceber aquela colina. Se transpusessem a crista sem encontrar o carro certo, levariam mais duas horas para chegar à seguinte. Depois escuridão. Chuva ou neve, pela aparência do céu. Uma bela noite de frio no molhado. E adeus Stu Redman.
Chegaram a um Chevrolet sedã.
- Pare - coaxou ele, e Tom largou o travois. - Vá dar uma olhada naquele carro. Conte os pedais no piso. Me diga se são dois ou três.
Tom correu e abriu a porta do carro. Uma múmia de vestido estampado de flores caiu para fora como a piada de mau gosto de alguém. A bolsa caiu ao lado, espalhando cosméticos, lenços de papel e dinheiro.
- Dois - gritou Tom.
- Tudo bem. Temos de seguir em frente.
Tom voltou, inspirou fundo e agarrou os cabos do travois. Uns 400 metros adiante, chegaram a uma Kombi.
- Quer que eu conte os pedais? - perguntou Tom.
- Não, desta vez, não.
A Kombi tinha três pneus arriados.
Stu começou a pensar que não iam encontrar; simplesmente não estavam com sorte. Chegaram a uma perua que tinha apenas um pneu arriado, podia ser trocado, mas como o sedã, Tom viu que tinha apenas dois pedais. Isso significava que era automático, portanto era inútil para eles. Seguiram adiante. A longa subida aplainava-se agora, começando a chegar à crista. Stu via apenas mais um carro à frente, uma última chance. O coração de Stu afundou. Era um Plymouth muito antigo, 1970, na melhor das hipóteses. Por milagre, tinha os quatro pneus bons, mas comido de ferrugem e esbodegado. Ninguém jamais se preocupara muito com manutenção daquela lata velha; Stu conhecia bem o tipo, de Arnette. A bateria seria velha e provavelmente rachada, o óleo mais negro que a meia-noite num poço de mina, mas haveria um forro peludo rosa em tomo do volante e talvez um poodle de pelúcia com olhos de lantejoula e a cabeça a balançar na bandeja de trás.
- Quer que eu dê uma conferida? - perguntou Tom.
- Bem, acho que sim. Pobre não pode ser exigente, pode?
Uma fina neblina fria começava a baixar do céu.
Tom atravessou a estrada e olhou dentro do carro, que estava vazio. Stu ficou deitado, tremendo dentro do saco de dormir. Finalmente, Tom voltou.
- Três pedais - disse.
Stu tentou pensar. O zumbido alto e agridoce em sua cabeça continuava tentando atrapalhar.
O velho Plymouth quase certamente não prestava. Eles podiam chegar ao outro lado da colina, mas depois todos os carros estariam apontando na direção errada, encosta acima, a menos que cruzassem o canteiro do meio... que ali tinha uns pedregosos 800 metros de largura. Talvez dessem um jeito de achar um carro normal, de marchas, do outro lado... mas a essa altura já estaria escuro.
- Tom, me ajude a levantar.
De algum modo, Tom o ajudou a pôr-se de pé sem machucar demais a perna quebrada. A cabeça doía e zumbia. Negros cometas atravessavam seu campo de visão e ele quase desmaiou. Então, tinha um braço passado pelo pescoço do amigo.
- Descanse - murmurou. - Descanse...
Ele não fazia a menor ideia de quanto tempo tinham permanecido assim. Tom apoiando-o pacientemente enquanto ele nadava nos semitons cinzentos da semi-inconsciência. Quando o mundo finalmente retornou, Tom ainda estava pacientemente apoiando-o. A névoa tinha se espessado para uma lenta e fria garoa.
- Tom, me ajude a sair dessa.
Tom passou-lhe um braço pela cintura e os dois cambalearam para o outro lado onde estava o Plymouth no acostamento.
- Abra o capô - murmurou Stu, mexendo na grade do Plymouth. O suor rolava-lhe pelo rosto abaixo. Arrepios devastavam-no. Encontrou a mola do capo, mas não podia erguê-lo. Orientou as mãos de Tom e por fim o capo se abriu.
O motor era mais ou menos o que ele esperava - um V8 sujo e mantido com indiferença. Mas a bateria não estava tão mim quanto temera. Era uma Sears, não do topo de linha, mas dava garantia até fevereiro de 1991- Lutando contra a pressa febril de seus pensamentos, Stu fez as contas e calculou que a bateria era nova em maio passado.
- Vá experimentar a buzina - disse a Tom e encostou-se no carro enquanto o outro se curvava para fazê-lo.
Ouvira falar em afogados que se agarram a palhas e achou que agora entendia. Sua última chance de sobreviver àquilo era um refugo esbodegado de ferro velho.
A buzina deu um ronco alto. Tudo bem, então. Se houver uma chave, arrisque. Provavelmente devia ter mandado Tom verificar isso primeiro, mas, pensando bem, não importava muito. Se não houvesse chave, com toda a probabilidade estariam liquidados de qualquer forma.
Fechou o capo e trancou-o pondo todo o seu peso nele. Depois contornou saltando até o banco do motorista e olhou para dentro, esperando ver a fenda da ignição vazia. Mas as chaves estavam lá, penduradas numa imitação de caixa de couro, com as iniciais A.C. Curvando-se com cuidado, girou a chave para acessórios. Devagar, a agulha do mostrador de gasolina virou para pouco mais que um quarto de tanque. Aí estava um mistério. Por que o dono do carro, por que A.C. parara para caminhar quando podia seguir de carro?
Em seu estado meio aéreo Stu lembrou-se de Charles Campion, quase morto, batendo nas bombas de gasolina de Hap. O velho A.C. tinha a supergripe, séria. Nos estágios finais. Ele pára, desliga o motor - não por estar pensando nisso, mas por ser um hábito há muito entranhado - e salta. Delira, talvez com alucinações. Cambaleia para os ermos de Utah, rindo, cantando e cacarejando, e lá morre. Quatro meses depois, Stu Redman e Tom Cullen passam por acaso e as chaves estão no carro, e a bateria está relativamente nova, e tem gasolina...
A mão de Deus.
Não fora o que Tom dissera sobre Vegas? A mão de Deus se abateu do céu. Talvez Deus houvesse deixado aquele esbodegado Plymouth 70 ali para eles, como maná no deserto. Era uma ideia maluca, porém não mais que a de uma velha negra com mais de cem anos conduzindo um bando de refugiados para a terra prometida.
- E ela ainda fazia seus próprios biscoitos - coaxou. - Até o finzinho ainda fazia seus próprios biscoitos.
- Como é, Stu?
- Deixa pra lá. Chega pra lá, Tom.
Tom chegou.
- Podemos dirigir? - perguntou, esperançoso.
Stu empurrou o banco do motorista à frente, para Kojak saltar dentro, o que ele fez após uma ou duas fungadas cautelosas.
- Não sei. É melhor rezar pra que esse troço pegue.
- Tudo bem - disse Tom, com simpatia.
Stu levou cinco minutos só para se pôr atrás do volante. Sentou-se num lugar inclinado, quase no lugar onde um terceiro passageiro na frente se sentaria. O carro estava juncado de caixas do McDonald’s e embalagens de Taco Bell; o interior cheirava a flocos de milho velho.
Stu girou a chave. O velho Plymouth estremeceu prontamente por cerca de vinte segundos, e o motor de arranque começou a ratear. Stu bateu de novo na buzina, e ouviu apenas um débil coaxar. A depressão de Tom desabou.
- Ainda não acabamos com ele - disse Stu. Estava encorajado; ainda fluía seiva dentro daquela velha bateria Sears. Ele empurrou a alavanca e engatou uma segunda. - Abra a sua porta e empurre.
Tom disse, em dúvida:
- O carro não está virado para o lado errado?
- Agora está. Mas se conseguirmos fazer esta lata velha andar, damos um jeito nisto já.
Tom saltou e começou a empurrar pela coluna da porta. O Plymouth começou a andar. Quando o velocímetro chegou a 8 km/h, Stu disse:
- Salte dentro, Tom.
Tom entrou e bateu a porta. Stu girou a chave de ignição e esperou. A direção era elétrica, não adiantava com o motor desligado, e foi preciso mais que a força em queda do motorista apenas para manter a frente do carro em linha reta estrada abaixo. A agulha do mostrador arrastou-se para 20, 25, 30 km/h. Rodavam em silêncio descendo a colina na qual Tom passara quase toda a manhã arrastando-o para cima.
O orvalho condensava-se no pára-brisa. Tarde demais, Stu percebeu que haviam deixado o travois para trás.
- Não está funcionando, Stu - disse Tom, ansioso.
Cinquenta quilômetros por hora. Rápido o suficiente.
- Deus nos ajude agora - disse Stu e engatou a marcha. O Plymouth refugou e estremeceu. O motor tossiu e pegou, esturrou, falhou, empacou. Stu gemeu, tanto de frustração quanto da pontada de dor que disparou pela perna quebrada acima.
- Merda de fogo! - gritou e tornou a empurrar a alavanca. - Aperte esse pedal, Tom. Use a mão!
- Qual deles? - perguntou Tom, ansioso.
- O comprido!
Tom abaixou-se no chão e bombeou duas vezes o acelerador. O carro voltava a ganhar velocidade e Stu teve de forçar-se a esperar. Já haviam descido mais da metade da encosta.
- Agora! - gritou Stu e engatou a alavanca de novo.
O Plymouth pegou com um ronco. Kojak latiu. Fumaça negra fervilhou do enferrujado cano de descarga e virou azul. E o carro estava andando, aos trancos, dois cilindros falhando, mas realmente andando. Stu passou para a terceira e empurrou a alavanca de novo, atuando em todos os pedais com uma perna só.
- Lá vamos nós, Tom! - berrou. - Agora temos roda!
Tom gritou de prazer. Kojak latia e balançava a cauda. Em sua vida anterior, a vida antes da Capitão Viajante, quando ele fora Big Steve, viajara muitas vezes no carro do dono. Era legal estar rodando de novo, com os novos donos.
Chegaram a um retomo entre as pistas para oeste e leste, cerca de 6 quilômetros mais adiante. SÓ PARA VEÍCULOS OFICIAIS, avisava uma severa placa. Stu conseguiu manobrar a alavanca o suficiente para virar o carro e pegar a pista para leste, havendo apenas um mau momento quando o velho carro falhou, refugou e ameaçou empacar. Mas o motor agora estava quente. Ele voltou à terceira marcha e então relaxou um pouco, respirando forte e tentando alcançar seus batimentos cardíacos, rápidos e tênues. O cinzento queria voltar e inundá-lo, mas ele não ia deixar. Alguns minutos depois, Tom avistou o saco de dormir laranja vivo que fora o improvisado travois de Stu.
- Tchau-tchau! - gritou em alto astral. - Tchauzinho, estamos indo para Boulder, minha nossa, é!
Eu me darei por satisfeito com Green River, pensou Stu.
Chegaram lá pouco depois do escurecer, Stu dirigindo o carro com cuidado em marcha lenta pelas ruas escuras, pontilhadas de carros abandonados. Parou na rua principal, na frente de um prédio que se anunciava como Utah Hotel. Era uma deplorável construção de três andares, e Stu achou que o Waldorf Astoria ainda não precisava preocupar-se com a concorrência. Sua cabeça chocalhava de novo, e ele entrava e saía em clarões na realidade. O carro parecera lotado de gente às vezes durante os últimos 30 quilômetros. Fran. Nick Andros. Norm Bruett. Ele olhara para trás uma vez e parecera que Chris Ortega, o barman do Indian Head, os escoltara.
Cansado. Algum dia estivera tão cansado?
- Chegamos - murmurou. - Temos de passar a noite, Nicky. Estou liquidado.
- É Tom, Stu. Tom Cullen. Minha nossa, é.
- Tom, é. Precisamos parar. Pode me ajudar a entrar?
- Claro. Botar este carro velho pra andar, isto foi sensacional.
- Vou tomar outra cerveja - disse Stu. - Você não tem um cigarro? Estou doido por uma tragada.
Desabou sobre o volante.
Tom saltou e carregou-o para dentro do hotel. O saguão era úmido e escuro, mas havia uma lareira e uma caixa de lenha pela metade ao lado. Tom depôs Stu num sofá puído sob uma grande cabeça de alce empalhada e passou a acender a lareira, enquanto Kojak andava em volta, farejando tudo. A respiração de Stu era lenta e rascante. Ele murmurava de vez em quando, e de vez em quando gritava alguma coisa ininteligível, fazendo gelar o sangue de Tom.
Fez um fogo monstro e saiu para olhar o ambiente. Encontrou travesseiros e cobertores para si mesmo e Stu. Empurrou o sofá para mais perto da lareira e depois se deitou junto a Stu. Kojak estendeu-se no outro lado, de modo que ladeavam o doente com seu calor.
Tom ficou deitado olhando o teto, de estanho ondulado e rendilhado de teias de aranha nos cantos. Stu estava muito doente. Era coisa para preocupar. Se tomasse a acordar, ia perguntar-lhe o que fazer com a doença.
Mas e se... e se não acordasse?
Do lado de fora, o vento ganhara força e passava uivando pelo hotel. A chuva açoitava as janelas. À meia-noite, depois que Tom adormecera, a temperatura já caíra mais vários graus e o barulho passou para o pipocar arenoso do granizo. Muito longe a oeste, as bordas externas da tempestade empurravam uma enorme nuvem de poluição radioativa para a Califórnia, onde outros iam morrer.
Em algum momento após as duas da manhã Kojak ergueu a cabeça e ganiu inquieto. Tom Cullen levantava-se. Tinha os olhos arregalados e brancos. O cão tornou a ganir, mas ele não tomou conhecimento. Foi até a porta e saiu para a noite uivante. Kojak seguiu até a janela do saguão do hotel e ergueu as patas, olhando para fora. Ficou olhando algum tempo, emitindo ruídos baixos e tristes da garganta. Depois voltou e deitou-se de novo junto a Stu.
Do lado de fora, o vento uivava e rangia.
- EU QUASE MORRI, SABIA? - disse Nick. Ele e Tom caminhavam juntos pela calçada vazia. O vento uivava firmemente, um interminável ruído de trem-fantasma através do céu negro. Produzia sons surdos e ululantes nos becos. Espíritos, Tom teria dito, se acordado, e sairia correndo. Mas ele não estava acordado, não exatamente, e Nick estava com ele. Flocos de neve batiam gelados em suas faces.
- É mesmo? - perguntou Tom. - Minha nossa!
Nick riu. Sua voz agora era grave e musical, uma boa voz. Tom adorava ouvi-lo falar.
- É claro que sim. Isso merece um grande "Minha nossa". A gripe não me pegou, mas quase fui levado embora por causa de um arranhãozinho na perna. Veja só isto aqui.
Parecendo ignorar o frio, Nick desabotoou a cintura dos jeans e puxou as calças para baixo. Tom inclinou-se à frente, curioso, como um garotinho a quem foi oferecido o espetáculo de uma verruga encimada por um pelo, um ferimento ou machucado interessantes. Ao longo da perna de Nick havia uma feia cicatriz, parecendo ainda recente. Começava logo abaixo da virilha, na parte interna da coxa, e serpenteava passando do joelho à canela, onde finalmente findava.
- E isso quase matou você?
Nick puxou as calças para cima e tornou a abotoar a cintura.
- Não foi um corte profundo, mas infeccionou. Infecção significa que germes ruins penetram na ferida. Infecção é a coisa mais perigosa que existe, Tom. Foi ela que fez a supergripe matar tanta gente. É a infecção que leva pessoas a querer produzir o germe, antes de mais nada. Uma infecção da mente.
- Infecção - sussurrou Tom, fascinado. Haviam recomeçado a andar, quase como se flutuassem ao longo da calçada.
- Tom, Stu está com uma infecção agora.
- Não... não fale assim, Nick... você está deixando Tom Cullen assustado, minha nossa, está mesmo!
- Sei que estou, Tom, e sinto muito. Mas você precisa saber. Stu tem pneumonia nos dois pulmões. Dormiu ao relento por quase duas semanas. Há certas coisas que você precisa fazer por ele, Tom. E, mesmo assim, é quase certo que Stu morra. Você deve ficar preparado para isso.
- Não, não me...
- Tom. - Nick pousou a mão no ombro de Tom, mas ele nada sentiu... era como se a mão de Nick fosse pura fumaça. - Se ele morrer, você e Kojak precisam seguir em frente. Você tem que voltar a Boulder e contar a todos que viu a mão de Deus no deserto. Se for da vontade de Deus, Stu irá com você... no devido tempo. Se for da vontade de Deus que Stu morra, então ele morrerá. Como eu.
- Nick - suplicou Tom. - Por favor...
- Tive um motivo para mostrar-lhe minha perna, Tom. Existem pílulas contra infecções. Em lugares como este.
Tom olhou em torno e ficou surpreso ao ver que não estavam mais na rua. Estavam numa loja às escuras. Uma farmácia. Havia uma cadeira de rodas suspensa do teto por uma corda de piano, como um fantasmagórico cadáver mecânico. Um aviso à direita de Tom anunciava: PRODUTOS MODERADORES.
- Pois não, senhor? Em que posso servi-lo?
Tom girou nos calcanhares. Nick estava atrás do balcão, envergando um jaleco branco.
- Nick?
- Perfeitamente, senhor. - Nick começou a dispor pequenos frascos diante de Tom. - Isto aqui é penicilina, muito eficaz para pneumonia. Este aqui é ampicilina, e este é amoxicilina, também um excelente medicamento. E este é V-cilina, em geral mais para uso infantil, podendo fazer efeito se os demais falharem. Ele terá que beber muita água, assim como suco de frutas, mas isto talvez não seja possível. Então, dê-lhe isto aqui. São tabletes de vitamina C. Além do mais, precisará fazê-lo caminhar...
- Não vou conseguir me lembrar de tudo isso! - gemeu Tom.
- Receio que terá de lembrar-se. Porque não existe mais ninguém. Você estará sozinho, Tom.
Tom começou a chorar.
Nick inclinou-se à frente. Seu braço rodopiou. Não houve nenhum tapa - novamente a sensação de que Nick era fumaça, que passara em torno dele, e talvez através dele -, mas mesmo assim Tom sentiu a cabeça arremessada para trás. E algo dentro de sua cabeça pareceu estalar.
- Pare com isso! Você não pode ser um bebê agora, Tom! Seja um homem! Pelo amor de Deus, seja um homem!
Tom olhou para Nick fixamente, a mão sobre a face, os olhos arregalados.
- Faça-o andar - recomendou Nick. - Coloque ele de pé sobre a perna boa. Arraste-o se for preciso, mas não o deixe deitado de costas, do contrário ele sufocará.
- Ele está fora de si - explicou Tom. - Ele grita... grita para pessoas que não estão lá!
- Está delirando. Mas faça-o andar assim mesmo. O mais que puder. Faça-o tomar penicilina, uma pílula de cada vez. Dê-lhe aspirina. Mantenha-o aquecido. E reze. São essas as coisas que você pode fazer.
- Tudo bem, Nick. está bem. Tentarei ser um homem, tentarei me lembrar... mas gostaria que você estivesse aqui, minha nossa, gostaria mesmo!
- Faça o melhor que puder, Tom. Isso é tudo.
Nick se foi. Tom acordou e se viu na farmácia deserta, de pé diante do balcão de medicamentos. Havia quatro frascos de pílulas sobre o balcão da farmácia. Tom olhou para eles por um bom tempo antes de levá-los.
Tom voltou às quatro da madrugada, com os ombros congelados pela neve. Lá fora, a noite começava a se recolher, havendo uma tênue linha de alvorecer ao leste. Kojak latiu numa entusiástica acolhida. Stu gemeu e despertou. Tom se ajoelhou ao lado dele.
- Stu?
- Tom? Está difícil respirar...
- Trouxe remédios para você, Stu. Nick me mostrou. Você vai sarar dessa infecção. Precisa tomar um agora mesmo. - Da sacola que havia trazido, Tom extraiu os quatro frascos de pílulas e um vidro grande de Gatorade. Nick se enganara quanto ao suco. Havia um bom sortimento no supermercado de Green River.
Stu examinou as pílulas, aproximando-as bem dos olhos.
- Onde conseguiu isso, Tom?
- Na farmácia. Nick me deu.
- Não, não mesmo.
- Verdade! Verdade! Você tem que tomar a penicilina primeiro, para ver se faz efeito. Qual dos frascos diz que é penicilina?
- Esse aqui... mas, Tom...
- Não, você tem que tomar. Nick disse que tem. E também precisa andar.
- Não posso andar. Estou com uma perna quebrada. E estou doente. - A voz de Stu se tornou teimosa, petulante, uma voz de enfermaria.
- Mas vai ter que andar. Se não, vou arrastá-lo.
Stu perdeu sua tênue noção da realidade. Tom enfiou uma das cápsulas de penicilina em sua boca e Stu a engoliu por mero reflexo, empurrando-a com Gatorade para não engasgar. Ainda assim, ele começou a tossir como um desesperado e Tom lhe bateu nas costas como se para fazer um bebê arrotar. Em seguida, ergueu Stu sobre a perna boa, usando a pura força física, e começou a arrastá-lo, sendo seguidos ansiosamente por Kojak.
- Por favor, Deus - suplicou Tom. - Por favor, por favor, Deus...
Stu gritou:
- Sei onde encontrar uma tábua de lavar roupa para ela, Glen! Há muitas naquela loja de música. Eu as vi na vitrine!
- Por favor, Deus - ofegou Tom. A cabeça de Stu descambou sobre seu ombro. Ele estava quente como uma fornalha, arrastando atrás de si a perna inútil e fraturada.
Boulder nunca parecera tão distante como naquela desolada manhã.
A luta de Stu contra a pneumonia durou duas semanas. Ele bebeu litros de Gatorade, V-8, suco de uva Welch e várias marcas de suco de laranja. Raramente sabia o que estava bebendo. Sua urina era espessa e ácida. Sujava-se como um bebê ao evacuar e, que nem as de um bebê, suas fezes eram amarelas, moles, totalmente inocentes. Tom o mantinha limpo. Tom o arrastava em tomo do saguão do Utah Hotel. E ficava vigiando à noite, querendo ver quando ele acordaria. Não porque Stu delirasse no sono, mas porque sua penosa respiração finalmente se aquietara.
A penicilina provocou uma feia e vermelha urticária após dois dias de uso, de maneira que Tom passou para ampicilina. A 7 de outubro, Tom acordou pela manhã e encontrou Stu dormindo mais profundamente do que fazia em dias. Tinha o corpo todo banhado de suor, porém a testa estava fresca. A febre se fora durante a noite. Nos dois dias seguintes, Stu mal fez outra coisa além de dormir. Tom precisava esforçar-se para acordá-lo, a fim de tomar as pílulas e cubos de açúcar, apanhados no restaurante anexo ao Utah Hotel.
Houve uma recaída em 11 de outubro, e Tom ficou terrivelmente assustado, imaginando que fosse o fim. No entanto, a febre não subiu tanto, a respiração não ficou tão difícil e trabalhosa como nas aterradoras primeiras horas nos dias 5 e 6.
Em 13 de outubro, Tom acordou de um cochilo em uma das poltronas do saguão para encontrar Stu sentado e olhando em torno.
- Tom - sussurrou ele. - Estou vivo!
- Sim - disse Tom alegremente. - Minha nossa, está mesmo!
- Estou com fome. Poderia arranjar alguma sopa, Tom? Talvez com talharim?
Por volta do dia 18, suas forças retornaram em parte. Ele já era capaz de andar pelo saguão uns cinco minutos de cada vez, amparando-se nas muletas que Tom lhe trouxera da farmácia. Havia uma intensa e enlouquecedora comichão na perna fraturada quando os ossos começaram a consolidar-se. Em 20 de outubro, ele saiu pela primeira vez, agasalhado em roupas de baixo térmicas e em um grosso casaco de pele de ovelha.
O dia estava quente e ensolarado, porém com um subtom de friagem. Em Boulder, ainda deveriam estar em meados do outono, com a folhagem das faias ficando dourada, mas ali o inverno estava tão próximo que quase podia ser tocado. Ele podia ver pequenos trechos de neve congelada e granulada em áreas sombreadas onde o sol nunca tocava.
- Não sei, Tom - disse ele. - Acho que poderíamos chegar a Grand Junction, mas depois disso simplesmente não sei. Vai haver um bocado de neve nas montanhas. De qualquer modo, eu não ousaria sair daqui por algum tempo. Preciso recuperar as energias.
- Quanto tempo acha que suas energias demoram para voltar, Stu?
- Não sei, Tom. Só nos resta esperar para ver.
Stu estava determinado a não ir com tanta sede ao pote, não forçar coisa alguma - estivera bastante perto da morte para dar valor à recuperação. Mudaram-se do saguão do hotel para dois quartos intercomunicantes no final do corredor do primeiro andar. O quarto em frente tornou-se a moradia temporária de Kojak. A perna de Stu estava de fato com a fratura consolidada, porém, devido ao encanamento incorreto, nunca mais voltaria a ser reta, a não ser que George Richardson tornasse a quebrá-la e engessasse corretamente. Quando se livrasse das muletas, seria um homem manco.
Não obstante, dedicou-se a exercitar a perna, tentando recuperar o tônus muscular. Devolver à perna uns 75% de eficiência seria um longo processo, mas até onde podia dizer, Stu teria um longo inverno pela frente.
A 28 de outubro, Green River estava com 10 centímetros de neve.
- Se não partirmos logo - comentou ele para Tom, enquanto contemplava a neve -, passaremos todo o maldito inverno no Utah Hotel.
No dia seguinte, levaram o Plymouth até o posto de gasolina nas cercanias da cidade. Parando frequentemente para descansar e usando Tom no serviço mais pesado, trocaram os dois pneus carecas traseiros por dois pneus com rebites, próprios para neve. Stu pensara em arranjar um veículo com tração nas quatro rodas, mas finalmente decidira, de modo inteiramente irracional, que deveriam continuar com aquele que lhes dera sorte. Tom encerrou a operação colocando quatro sacos de 25 quilos de areia no porta-malas do Plymouth. Partiram de Green River no Halloween e seguiram rumo leste.
Chegaram a Grand Junction ao meio-dia de 2 de novembro e, conforme verificaram, não tendo muito mais que três horas de claridade. O céu se tornara cinza-chumbo durante toda a manhã, e quando desembocaram na ma principal, os primeiros flocos de neve começaram a patinar sobre o capo do Plymouth. Tinham encontrado breves nevascas meia dúzia de vezes durante a viagem, porém essa de agora prometia ser séria.
- Escolha o lugar - disse Stu. - Talvez fiquemos aqui por algum tempo.
Tom apontou.
- Lá! O motel com aquela estrela!
O motel com a estrela era o Holiday Inn de Grand Junction. Abaixo do letreiro e da convidativa estrela havia uma enorme marquise na qual estava escrito em grandes letras vermelhas: EM-VINDO AO VERÃO 1990 DE GR ND JUNC ON’S 12 DE JUNHO-4 DE JUL O!
- OK - disse Stu. - Vai ser o Holiday Inn.
Freou e desligou o motor do Plymouth, que, até onde ambos sabiam, nunca mais voltaria a funcionar. Por volta das duas daquela tarde, as rajadas de neve se haviam transformado numa espessa cortina branca que caía muda e aparentemente interminável. Por volta das quatro, o vento brando se transformara num vendaval, impelindo a neve diante dele e empilhando montes que cresciam com velocidade quase alucinatória. Nevou a noite toda. Quando Stu e Tom se levantaram na manhã seguinte, encontraram Kojak sentado diante das grandes portas duplas do saguão, espiando para fora, para um mundo branco quase imóvel. A única coisa que se movia era um gaio pavoneando-se ao redor do que restava de um toldo de verão de uma loja no outro lado da ma.
- Caramba - sussurrou Tom. - Estamos presos pela neve, não estamos, Stu?
Stu confirmou.
- Como vamos poder voltar para Boulder desse jeito?
- Teremos de esperar pela primavera - disse Stu.
- Tanto tempo? - Tom parecia decepcionado, e Stu passou os braços em volta dos ombros do homem-menino.
- O tempo passará - disse, mas mesmo então não tinha certeza de que seriam capazes de esperar tanto tempo.
Stu ficara gemendo e arfando na escuridão por algum tempo. Por fim, deu um grito alto o suficiente para acordá-lo e saiu do sonho para o seu quarto no motel Holiday Inn apoiado nos cotovelos, fitando o nada com olhos arregalados. Soltou um suspiro longo e tiritante e procurou pelo lampião Coleman na mesinha-de-cabeceira. Apertara o interruptor duas vezes antes de voltar à realidade. Engraçado, como era difícil acreditar que a eletricidade tivesse pifado. Ele encontrou o lampião Coleman no chão e o acendeu em vez disso. Quando o teve funcionando, usou o urinol. Depois sentou-se na cadeira junto à escrivaninha. Consultou o relógio e viu que eram 3h15 da madrugada.
O sonho de novo. O sonho com Frannie. O pesadelo.
Era sempre a mesma coisa. Frannie nas dores do parto, o rosto banhado de suor. Richardson postado entre as pernas dela, tendo Laurie Constable a um lado, ajudando. Os pés de Frannie estavam elevados, firmados em estribos de aço inoxidável.
Força, Frannie! Empurre! Está indo muito bem!
Entretanto, quando fitava os olhos sombrios de George, acima de sua máscara, Stu percebia que Frannie não estava nada bem. Alguma coisa estava errada. Laurie lhe passava uma compressa pelo rosto suado e afastava-lhe os cabelos da testa.
Não há passagem.
Quem tinha dito isto? Era uma voz sinistra, grave e monótona, como um disco tocado fora de sua rotação. Não há passagem.
A voz de George: É melhor você chamar Dick. Diga a ele que talvez tenhamos de...
A voz de Laurie: Doutor, ela está perdendo muito sangue...
Stu acendeu um cigarro. Estava terrivelmente mofado, porém qualquer coisa servia de consolo após este sonho. É um sonho causado pela ansiedade, nada mais. Você está com essa típica ideia machista de que nada corre bem sem a sua presença. Ora, Stuart. ela está bem. Nem todo sonho vira realidade.
Porém, um bom punhado deles correspondera à realidade no último meio ano. Não conseguia descartar aquela impressão de que o futuro lhe era revelado nesse sonho recorrente do parto de Frannie.
Apagou o cigarro fumado pela metade e olhou inexpressivo para o brilho constante do lampião. Estavam em 29 de novembro e fazia quase quatro semanas que se achavam alojados no Holiday Inn de Grand Junction. O tempo havia passado lentamente, mas eles conseguiram se manter distraídos com aquela cidade inteira para pilhar, catando bugigangas que os divertiam e entretinham.
Stu havia encontrado um gerador elétrico Honda tamanho médio num depósito da Grand Avenue, e ele e Tom o tinham içado para o Centro de Convenções, em frente ao Holiday Inn, ao colocá-lo sobre um trenó com a ajuda de uma grua, e depois enganchando dois Sno Cats no trenó - movendo-o, em outras palavras, de modo muito semelhante ao utilizado pelo Homem da Lata de Lixo para levar seu presente final para Randall Flagg.
- O que vamos fazer com isso? - perguntou Tom. - Botar eletricidade no motel?
- É muito pequeno para isso - disse Stu.
- O que, então? Isso é para quê? - Tom estava praticamente dançando de impaciência.
- Você verá.
Colocaram o gerador no depósito de equipamento elétrico do Centro de Convenções e Tom prontamente esqueceu dele - o que era justamente o que Stu esperava. No dia seguinte, ele foi no veículo para neve até o Sixplex de Grand Junction e, usando ele mesmo o trenó e a grua, tinha baixado um velho projetor de cinema de 35 milímetros da janela do segundo andar do setor de estocagem, que ele havia descoberto em uma de suas viagens exploratórias. Ele havia sido envolto em plástico... e depois sido simplesmente esquecido, a julgar pela poeira acumulada na capa protetora.
Sua perna estava reagindo otimamente, mas mesmo assim lhe exigira três horas para empurrar o projetor desde a porta do Centro de Convenções até o centro do salão. Ele usou três plataformas móveis e ficou na expectativa de Tom aparecer a qualquer momento, procurando por ele. Com Tom para ajudar, o serviço teria sido muito mais rápido, porém isso estragaria a surpresa. Mas Tom estava ausente, tratando dos seus próprios negócios, e Stu não o viu pelo dia inteiro. Quando ele voltou ao Holiday Inn, por volta das cinco, a face rosada e enrolado num cachecol, a surpresa estava pronta.
Stu tinha trazido todos os seis filmes que estiveram passando no complexo de cinemas de Grand Junction. Depois do jantar daquela noite, Stu disse casualmente:
- Venha comigo até o Centro de Convenções, Tom.
- Para quê?
- Você verá.
O Centro de Convenções ficava defronte ao Holiday Inn através da rua tomada pela neve. Na entrada, Stu entregou a Tom uma caixa de pipocas.
- Para que é isto? - indagou Tom.
- Não dá para assistir a um filme sem pipoca, seu grande pateta - riu Stu.
- FILME?
- Claro.
Tom irrompeu no Centro de Convenções. Viu o grande projetor montado, completamente ligado. Viu a grande tela puxada para baixo. Viu duas cadeiras dobráveis colocados no meio do enorme salão vazio.
- Uau! - exclamou, e sua expressão de puro encantamento era tudo que Stu havia esperado.
- Trabalhei três verões no drive-in Starlite, lá em Braintree - disse Stu. - Espero não ter esquecido de como emendar essa porra se a fita rebentar.
- Uau - repetiu Tom.
- Teremos de esperar para trocar os rolos. Não tive ânimo para voltar lá e trazer um projetor de reserva. - Stu caminhou através da confusão de fios que levavam do projetor ao gerador no compartimento elétrico e puxou o fio de partida. O gerador começou a zumbir alegremente. Stu fechou a porta até onde pudesse abafar o barulho da máquina e apagou as luzes. E cinco minutos depois estavam sentados lado a lado, vendo Sylvester Stallone matar centenas de traficantes em Rambo IV. O som Dolby Stereo berrava para eles dos 16 alto-falantes do Centro de Convenções, às vezes tão alto que ficava difícil ouvir o diálogo (se houvesse qualquer diálogo)... mas eles adoravam.
Agora, pensando a respeito, Stu sorriu. Alguém que não o conhecesse melhor o teria chamado de bobo - ele poderia ter trazido um videocassete muito menor e teriam assistido a centenas de filmes nele, provavelmente ali mesmo no Holiday Inn. Mas ver filmes na TV não era a mesma coisa, nunca tinha sido, no seu modo de pensar. E a questão também não era simplesmente que dispunham de tempo demais para matar... e em certos dias isso era tremendamente difícil.
Seja como for, um dos filmes tinha sido um remake de um dos últimos desenhos de Disney, Oliver e sua Turma, que nunca havia sido comercializado em fita de vídeo. Tom o assistiu várias vezes, rindo como uma criança com as travessuras de Oliver e sua turma que, no desenho, moravam em uma barcaça em Nova York e dormiam numa poltrona de avião furtada.
Além do projetor de filmes, Stu montara mais de vinte modelos, incluindo um Rolls-Royce com 240 partes e que, antes da supergripe, fora vendido a 65 dólares. Tom armava uma estranha mas de certa forma irresistível paisagem, como uma espécie de maquete, a qual ocupava quase a metade da sala de convenções do Holiday Inn; ele usara papier-mâché, gesso-de-paris e vários corantes alimentícios. Chamara a coisa de Base Lunar Alfa. Sim, tinham-se mantido ocupados, mas...
O que você está pensando é loucura.
Stu flexionou a perna. Estava em melhor estado do que jamais esperava, parcialmente graças à aparelhagem para exercícios e levantamento de peso do Holiday Inn. Ainda havia considerável rigidez e certa dor, porém, era capaz de manquejar por ali sem muletas. Poderiam ir devagar, e pouco a pouco. Tinha quase certeza de que poderia ensinar Tom a como manejar uma das motoneves que quase todos os habitantes locais guardavam no fundo das garagens. Fazer 30 quilômetros diários, levar tendas individuais, grandes sacos de dormir, uma profusão daqueles concentrados desidratados...
Tudo bem, e quando a avalanche despencar no Vail Pass, você e Tom acenam para ela com uma embalagem de cenouras desidratadas, dizendo-lhe para dar o fora. É loucura!
Ainda assim...
Ele amassou o cigarro no cinzeiro e apagou o lampião. Mesmo assim, levou muito tempo para pegar no sono.
Durante o café-da-manhã, ele perguntou:
- Tom, você tem muita vontade de voltar a Boulder?
- E ver Fran? Dick? Sandy? Minha nossa, o que mais quero na vida é voltar para Boulder, Stu. Não está achando que deram minha casinha para outra pessoa, não é?
- Não, tenho certeza de que não fizeram isso. O que quero dizer é o seguinte: será que vale a pena a gente correr o risco?
Tom olhou para ele, intrigado. Stu já ia tentar outra explicação melhor quando Tom exclamou:
- Minha nossa, tudo é um risco, não é?
A decisão foi tomada simplesmente assim. Partiram de Grand Junction no último dia de novembro.
Não houve necessidade de ensinar Tom os rudimentos de uma motoneve. Stu encontrou uma máquina monstruosa em uma agência do Departamento Rodoviário do Colorado, a menos de 2 quilômetros do Holiday Inn. O motor era de tamanho exagerado, havia carenagem para quebrar o pior do vento e, mais importante de tudo, havia sido modificado para incluir um grande compartimento aberto para carga. Um dia, sem dúvida, aquela máquina dispusera de todo o tipo de equipamento de emergência. O compartimento tinha espaço suficiente para transportar com conforto um cão de bom tamanho. Sendo grande o número de estabelecimentos comerciais dedicados a atividades ao ar livre, não tiveram dificuldade em encontrar todo o equipamento indispensável à viagem, embora a supergripe houvesse eclodido no início do verão. Eles pegaram tendas individuais leves e sacos de dormir pesados, um par de esquis para cada um (embora a ideia de tentar ensinar a Tom os rudimentos de esqui na floresta fizesse gelar o sangue de Stu), um grande lampião Coleman, lanternas, botijões de gás, baterias extras, alimentos concentrados e um grande rifle Garand com visor.
Por volta das duas da tarde daquele primeiro dia Stu viu que eram infundados os seus temores de ficar bloqueado pela neve em algum lugar ou morrer de inanição. As florestas e bosques pululavam de caça; ele jamais vira nada semelhante em sua vida. Mais tarde, ainda nesse dia, abateu um cervo, seu primeiro cervo desde o ginásio, quando matava aula para caçar com seu tio Dale. Aquele cervo fora um exemplar esquelético, com carne de sabor desagradável, amargoso... por se alimentar de agulhas de pinheiro, explicara o tio Dale. O de agora era um macho adulto, em ótimo estado, pesado, de peito largo. Afinal, pensou Stu enquanto o estripava com uma enorme faca apanhada de uma loja de artigos esportivos de Grand Junction, o inverno mal começara. A natureza possuía seus próprios métodos para lidar com o excesso populacional.
Tom acendeu uma fogueira enquanto Stu esquartejava o cervo o melhor que podia, deixando as mangas de seu grosso capote coladas e salpicadas de sangue. Quando terminou com o cervo, já escurecera, três horas antes, e sua perna latejava tanto que parecia estar cantando a "Ave, Maria". O cervo caçado com o tio Dale tinha sido entregue a um velho chamado Schoey, que morava em uma cabana bem perto dos limites da cidade de Braintree. Schoey esfolara e estripara o cervo por 3 dólares e mais 5 quilos da carne do animal.
- Eu bem que gostaria que o velho Schoey estivesse aqui esta noite - disse ele com um suspiro.
- Quem? - indagou Tom, meio cochilando.
- Ninguém, Tom. Estou falando sozinho.
Como se esperava, a carne era de primeira. Macia e saborosa. Após se fartarem de comer, Stu cozinhou cerca de mais 20 quilos de carne que, na manhã seguinte, foram guardados em um dos compartimentos menores para estocagem na motoneve do Departamento de Estradas de Rodagem. Naquele primeiro dia de viagem fizeram apenas 26 quilômetros.
Naquela noite, o sonho mudou. Ele estava de novo na sala de parto. Havia sangue por toda parte - as mangas da bata branca que usava estavam duras e ensanguentadas. O lençol que cobria Fran estava encharcado. E ela continuava a berrar.
Está vindo, ofegou George. É hora de ele chegar finalmente, Frannie. O bebê está querendo nascer, então empurre! EMPURRE!
E ele veio, veio em um jato final de sangue. George puxou o bebê para libertá-lo, agarrando nos quadris porque ele nascera com os pés para a frente...
Laurie começou a gritar. Instrumentos de aço inoxidável voaram para todos os lados...
Porque era um lobo, com furiosa e sorridente face humana, o rosto dele, era Flagg, sua hora retornara, ele não estava morto, ainda não, continuava caminhando pelo mundo, Frannie dera à luz o filho de Randall Flagg...
Stu acordou, a respiração áspera repercutindo alto nos ouvidos. Teria gritado?
Tom ainda dormia, aninhado tão fundo no saco de dormir que somente a parte loura da cabeça era visível. Kojak se enovelara ao lado de Stu. Tudo estava bem, fora apenas um sonho...
E então um uivo isolado se elevou na noite, altissonante, ululante, um bimbalhar prateado de horror desesperado... o uivo de um lobo, ou talvez o grito de um fantasma assassino.
Kojak levantou a cabeça.
Um arrepio percorreu braços, coxas e virilhas de Stu. O uivo não se repetiu.
Stu dormiu. Pela manhã, levantaram acampamento e prosseguiram. Foi Tom quem percebeu e comentou que as vísceras do cervo haviam desaparecido por completo. Havia uma confusão de pegadas onde elas tinham estado, o sangue que Stu derramara com a matança do animal desbotara para um rosado fosco sobre a neve... mas isso não foi tudo.
Cinco dias de tempo bom permitiram-lhes alcançar Rifle. Na manhã seguinte despertaram para uma intensa nevasca. Stu sugeriu que seria melhor esperarem ali, e então dirigiram-se para um motel local. Tom manteve abertas as portas do saguão, enquanto Stu conduzia a motoneve direto para lá. Conforme disse a Tom, o recinto dava uma ótima garagem, embora a bitola das rodas, feita para serviço pesado, houvesse mascado consideravelmente o grosso tapete do saguão.
Nevou por três dias. Partiram tão logo acordaram na manhã de 10 de dezembro, o sol brilhava intensamente e a temperatura subira alguns graus. A neve estava muito mais profunda agora, dificultando a percepção das curvas da I-70. No entanto, o que preocupava Stu naquele dia claro, ensolarado e cálido não era se manter na estrada. No fim da tarde, enquanto as sombras azuladas começavam a alongar-se, ele reduziu a velocidade, desligou o motor e virou a cabeça, seu corpo inteiro parecendo escutar.
- O que é, Stu? O que... - Então Tom ouviu também. Um som surdo e estrondeante à esquerda deles e à frente, mais acima. O som intensificou-se até um profundo rugido e depois extinguiu-se. A tarde se aquietou de novo.
- Stu? - perguntou Tom, ansioso.
- Não se preocupe - disse Stu e pensou: Eu me preocuparei o suficiente por nós dois.
As temperaturas elevadas se mantiveram. Por volta de 13 de dezembro estavam perto de Shoshone, e ainda subindo rumo ao teto das Rochosas - para eles o ponto mais alto que alcançariam antes de recomeçarem a descer para o Loveland Pass.
Volta e meia tomavam a ouvir o surdo rugido das avalanches, por vezes muito longe, outras vezes tão perto que nada podiam fazer senão olhar para cima, esperar e ter esperanças. No dia 12, uma avalanche cobrira um lugar que haviam deixado apenas meia hora antes, sepultando as marcas deixadas pela motoneve sob toneladas de neve compacta. Stu estava cada vez mais temeroso de que a vibração produzida pelo motor fosse o que finalmente os mataria, provocando um deslizamento que os enterraria a 12 metros de profundidade, antes mesmo de poderem perceber o que acontecia. Mas agora não havia nada a fazer senão prosseguir e esperar pelo melhor.
Então a temperatura caiu de novo, de certo modo reduzindo o perigo. Houve outra tempestade e ficaram retidos por dois dias. Abriram caminho e continuaram... e à noite os lobos uivaram. Os uivos às vezes pareciam bem distantes, outras vezes tão próximos como se os lobos estivessem ao lado das tendas, fazendo Kojak levantar-se e rosnar surdamente no peito, tão retesado como uma mola de aço. Porém as temperaturas continuaram baixas e a frequência das avalanches diminuiu, embora tivessem outra que não os atingiu por pouco no dia 18.
Em 22 de dezembro, nos arredores da cidade de Avon, Stu conduziu a motoneve até o terrapleno da rodovia. Logo eles estavam fazendo uma velocidade constante e segura de 15km/h, expelindo nuvens de neve atrás deles. Tom acabara de apontar para a pequena cidade abaixo, silenciosa como a imagem de um estereocópio dos anos 1980 com seu único campanário de igreja branco e os imperturbáveis flocos de neve subindo pelos beirais das casas. No momento seguinte, a capota da motoneve começou a oscilar para a frente.
- Que porra... - começou a falar Stu e esse foi todo o tempo que teve.
O veículo pendeu mais à frente. Stu reduziu a velocidade, porém era tarde demais. Houve uma peculiar sensação de ausência de peso, a sensação que se tem quando alguém acaba de saltar do trampolim e o empuxo da gravidade simplesmente se adequa à força de seu impulso para cima. Eles foram expelidos da máquina de pernas para o ar. Stu perdeu Tom e Kojak de vista. Neve feia se acumulou no nariz. Quando abriu a boca para gritar, a neve desceu pela garganta. Desceu pelas costas do casaco. Rolando. Caindo. E finalmente vindo a pousar numa profunda colcha de neve.
Buscou seu caminho como um nadador, ofegando fogo quente. Sua garganta fora queimada pela neve.
- Tom! - gritou, pisoteando neve. Por mais estranho que parecesse, do seu ângulo de visão pôde ver com muita clareza o terrapleno da rodovia e o local de onde tinham sido expelidos, provocando sua própria pequena avalanche enquanto caíam. A traseira do veículo projetava-se da neve cerca de 15 metros mais abaixo da encosta íngreme. Parecia uma bóia cor de laranja. Era estranho como a fantasia da água persistia... e, a propósito, Tom tinha se afogado?
- Tom! Tommy!
Kojak deu sinal de vida, parecendo como se estivesse sido salpicado de cabo a rabo com açúcar de confeiteiro, e abriu caminho através da neve até Stu.
- Kojak! - gritou Stu. - Encontre Tom! Encontre Tom!
Kojak latiu e lutou para se virar. Foi na direção de um local mais revolvido na neve e latiu de novo. Pelejando, caindo, comendo neve, seguiu até o local e abaixou-se em torno. Sua mão enluvada bateu no casaco de Tom e ele deu um puxão furioso. Tom emergiu, ofegando e com ânsia de vômito, e ambos caíram de costas sobre a neve. Tom gritava e ofegava.
- Minha garganta! Está toda quente! Minha nossa, como arde...
- É o frio, Tom. Já vai passar.
- Eu estava sufocando...
- Está tudo bem agora, Tom. Nós vamos ficar numa boa.
Deitaram-se na neve, recuperando o fôlego. Stu enlaçou os ombros de Tom para amenizar o tremor do grandalhão. A uma certa distância, ganhando volume e depois diminuindo, estava o som frio e retumbante de mais uma avalanche.
Levou o resto do dia para alcançarem os três quartos de quilômetro entre o local do acidente e a cidade de Avon. Não houve perguntas acerca de resgatar a motoneve ou quaisquer dos suprimentos; era uma ladeira por demais acentuada. Ficariam ali até a primavera, pelo menos - talvez para sempre, do jeito como iam as coisas agora.
Chegaram à cidade meia hora após o crepúsculo, com um tempo frio e ventoso demais para fazerem qualquer coisa senão uma fogueira e encontrar um lugar semi-aquecido para dormir. Nesta noite não houve sonhos - apenas o negror da exaustão completa.
De manhã dedicaram-se à tarefa de se reciclarem. No povoado de Avon as coisas seriam mais dificultosas do que em Grand Junction. Mais uma vez, Stu pensou em parar e hibernar aqui - se ele dissesse que era a coisa certa a fazer, Tom não o questionaria. Já tinham tido uma lição explícita do que acontecia a quem estabelecia sua sorte de um dia para o outro. Mas, por fim, ele repeliu a ideia. O bebê estava previsto para início de janeiro. Ele queria estar lá quando nascesse. Queria ver com os próprios olhos se tudo estava bem.
Ao final da curta rua principal de Avon encontraram uma revendedora John Deere, e na garagem nos fundos do showroom acharam dois veículos para neve usados. Nenhum dos dois se equiparava àquele que Stu pegara no Departamento de Estradas de Rodagem e pusera na rodovia, porém um deles tinha uma banda de rodagem extralarga calçada, e ele achou que serviria. Não encontraram alimentos concentrados e tiveram de se contentar com enlatados. A segunda metade do dia foi gasta saqueando lojas em busca de equipamentos para acampar, uma tarefa que nenhum deles apreciou. As vítimas da epidemia estavam por toda parte, transformadas em uma exposição congelada de corpos grotescamente putrefatos em uma caverna.
Quase no fim do dia, encontraram a maior parte do que precisavam num só lugar: uma grande casa de cômodos afastada da ma principal. Antes da supergripe aparentemente tinha abrigado gente jovem, do tipo que vinha para o Colorado fazer todas as coisas sobre as quais John Denver costumava cantar. Tom, de fato, encontrou uma grande sacola de lixo de plástico verde no espaço apertado sob as escadas, cheia com uma versão muito potente do "Barato das Rochosas".
- O que é isto? Tabaco, Stu?
Stu sorriu.
- Bem, acho que algumas pessoas pensam que é. É maconha, Tom. Deixe isso onde encontrou.
Carregaram a motoneve cuidadosamente, estocando os enlatados, amarrando os novos sacos de dormir e tendas. A essa altura já haviam surgido as primeiras estrelas e eles decidiram passar mais uma noite em Avon.
Dirigindo de volta lentamente sobre a crosta de neve para a casa onde haviam fixado o seu alojamento, Stu teve um pensamento levemente atordoante. No dia seguinte seria véspera de Natal. Parecia impossível acreditar que o tempo tivesse passado tão rápido, mas a prova o fitava do calendário de seu relógio de pulso. Tinham deixado Grand Junction três semanas antes.
Quando chegaram à casa, Stu disse:
- Você e Kojak vão entrar e acender a lareira. Preciso dar uma pequena circulada por aí.
- O que é, Stu?
- Bem, é uma surpresa.
- Surpresa? E eu vou ficar sabendo?
- Vai.
- Quando? - Os olhos de Tom brilhavam.
- Daqui a dois dias.
- Tom Cullen não aguenta esperar dois dias por uma surpresa, nossa, não mesmo!
- Tom Cullen vai ter de esperar - replicou Stu com um sorriso. - Estarei de volta em uma hora. Esteja pronto para partirmos.
- Bem... está certo.
Levou mais de uma hora e meia antes que Stu achasse exatamente o que queria. Tom o acossou pela surpresa pelas duas ou três horas seguintes. Como Stu se mantivesse mudo e o tempo fosse passando, Tom esqueceu tudo a respeito.
Enquanto se deitavam no escuro, Stu disse:
- Aposto que você preferia que ficássemos em Grand Junction, hã?
- Minha nossa, não - respondeu Tom sonolentamente. - Quero voltar para minha casinha o mais rápido que puder. Só espero que a gente não saia da estrada e caia na neve de novo. Tom Cullen quase sufocou!
- Só teremos que ir mais devagar e tentar com mais empenho - disse Stu, sem mencionar o que provavelmente aconteceria a eles se aquilo ocorresse de novo... e não havia nenhum abrigo no raio de uma distância a pé.
- Quando acha que chegaremos lá, Stu?
- Ainda vai demorar um pouco, parceiro. Mas estamos chegando lá. E acho que o melhor no momento é termos um bom sono, concorda?
- Acho que sim.
Stu apagou a luz.
Naquela noite ele sonhou que Frannie e seu horrendo filho-lobo haviam morrido durante o parto. Ouviu George Richardson dizendo, como se de uma grande distância: É a gripe. Não haverá mais bebês por causa da gripe. Gravidez será o mesmo que a morte por causa da gripe. Uma galinha em cada ventre, um lobo em cada útero. Por causa da gripe.
E de algum lugar mais próximo, nos arredores, chegou o riso ululante do homem escuro.
Na véspera de Natal iniciaram um bom percurso de viagem que duraria quase até o Ano-novo. A superfície de neve tinha virado uma crosta no frio. O vento soprava nuvens rodopiantes de cristais de gelo que se empilhavam nas dunas em espinha de peixe pulverizadas, que a motoneve transpunha facilmente. Usavam óculos de sol para protegerem-se contra a cegueira pela neve.
Naquela véspera de Natal, acamparam no topo da crosta situada a 38 quilômetros a leste de Avon, não distante de Silverthorne. Estavam agora na garganta do Loveland Pass, com o engasgado e enterrado túnel Eisenhower em algum lugar lá embaixo e a leste deles. Enquanto esperavam que o jantar aquecesse, Stu descobriu uma coisa espantosa. Usando ociosamente um machado para abrir a crosta, permitindo-lhe escavar com a mão a neve fofa abaixo, tinha descoberto metal azul apenas à distância de um braço de onde estavam. Quase chamou a atenção de Tom para o seu achado, mas depois achou melhor não. A ideia de que estavam sentados a menos de 60 centímetros acima de um engarrafamento de tráfego, a menos de 60 centímetros acima de só Deus sabia quantos cadáveres, era um tanto inquietante.
Quando Tom acordou, faltando quinze minutos para as sete da manhã do dia 25, ele encontrou Stu já de pé e preparando o café-da-manhã, o que era algo incomum. Em geral, Tom se levantava antes dele. Havia uma panela de sopa de legumes pendendo acima do fogo, começando a ganhar fervura. Kojak observava com grande entusiasmo.
- Bom-dia, Stu - disse Tom, puxando o zíper do blusão, enquanto rastejava para fora do saco de dormir e da tenda, já prevendo alguma coisa terrível.
- Bom-dia - respondeu Stu casualmente. - E um feliz Natal!
- Natal? - Tom olhou para ele e esqueceu tudo acerca de suas previsões agourentas. - Natal? - repetiu.
- Manhã de Natal. - Stu apontou um polegar para a esquerda de Tom. - Foi o melhor que pude fazer.
Enfiado no chão incrustado de gelo estava a copa de um pinheiro com meio metro de altura. Havia sido enfeitado com guirlandas prateadas que Stu encontrara nos fundos de uma loja de miudezas.
- Uma árvore! - sussurrou Tom, enlevado. - E presentes! São presentes, não são, Stu?
Havia três embrulhos na neve, debaixo da árvore, todos feitos com papel de seda azul-claro e adornados com sininhos de prata para decoração em casamentos - não encontrara nenhum papel de presente para o Natal na loja de miudezas, nem mesmo no depósito dos fundos.
- São presentes, claro - disse Stu. - Para você. Trazidos por Papai Noel, imagino.
Tom olhou indignado para Stu.
- Tom Cullen sabe que Papai Noel não existe! Minha nossa, não! Os presentes são seus. - De repente, começou a parecer desolado. - E eu nem lhe dei nada! Esqueci... Não sabia que era Natal... Sou um imbecil! Imbecil! - Crispou o punho e bateu no meio da testa. Estava à beira das lágrimas.
Stu acocorou-se sobre a crosta de gelo ao lado dele.
- Tom - falou -, você já me deu seu presente de Natal com antecedência.
- Não, senhor. Não dei, esqueci. Tom Cullen não passa de um burro. B-U-R-R-O! Com todas as letras!
- Mas você já me deu, sabe disso. O melhor presente de todos. Estou vivo. Teria morrido se não fosse você.
Tom o fitou, sem entender.
- Se você não tivesse aparecido naquela ocasião, eu teria morrido junto àquele barranco, a oeste de Green River. E se não fosse você, Tom, eu teria morrido de pneumonia, de gripe, ou sei lá o quê, quando ficamos no Utah Hotel. Nem sei como você pegou os remédios certos... se foi coisa de Nick, de Deus, ou apenas a velha e pura sorte. Mas você conseguiu. Não tem que se chamar de burro. Se não fosse por você, eu jamais teria visto este Natal. Devo-lhe isto.
- Ah, mas não é a mesma coisa - disse Tom, mas, assim mesmo, irradiava felicidade.
- Claro que é a mesma coisa - replicou Stu, sério.
- Bem...
- Vamos lá, abra os seus presentes. Veja o que ele trouxe para você. Estou certo de ter ouvido o trenó dele no meio da noite. Creio que a gripe não alcançou o pólo Norte.
- Você ouviu ele? - Tom agora o fitava atentamente, tentando descobrir se Stu não o estava enganando.
- Sim, ouvi alguma coisa.
Tom pegou o primeiro embrulho e o abriu cuidadosamente. Era um jogo eletrônico, montado em Lucite, uma criação recente que havia sido o sonho de todas as crianças no Natal anterior, movido a pilha e com garantia de dois anos. Os olhos de Tom brilharam quando o viu.
- Ligue-o - sugeriu Stu.
- Não, quero ver o que mais ganhei.
Havia uma suéter com a figura de um esquiador sem fôlego, descansando sobre os esquis tortos e apoiando-se nos bastões.
- Aí diz: EU ESCALEI O LOVELAND PASS - contou-lhe Stu. - Nós ainda não o escalamos, mas estamos chegando lá.
Tom prontamente despiu sua parka, vestiu o suéter e depois recolocou a parka.
- Grande! Grande, Stu!
O último pacote, o menor, continha um simples medalhão de prata em uma fina corrente também de prata. Para Tom parecia o número oito deitado de lado. Ergueu o medalhão, revelando perplexidade e admiração.
- O que é isto, Stu?
- É um símbolo grego. Aprendi o que significava muito tempo atrás, num seriado médico de TV chamado Ben Casey. Quer dizer infinito, Tom. Para sempre. - Aproximou-se de Tom e segurou a mão que sustinha o medalhão. - Acho que vamos chegar a Boulder, Tommy. Acho que tínhamos de chegar lá desde o princípio. Gostaria que usasse isto, se não se importa. E quando precisar de um favor, quando não souber a quem pedi-lo, olhe para o medalhão e lembre-se de Stu Redman, certo?
- Infinito - disse Tom, revirando o símbolo na mão. - Para sempre.
Então, passou o medalhão em torno do pescoço.
- Lembrarei disso - falou. - Tom Cullen se lembrará disso.
- Merda! Quase esqueci! - Stu foi até sua tenda e de lá retirou outro embrulho. - Feliz Natal também para você, Kojak! Só me deixe abri-lo para você.
Abriu o embrulho e exibiu uma caixa de biscoitos para cães. Espalhou um punhado sobre a neve. Kojak devorou tudo no ato e depois retornou a Stu, sacudindo o rabo como se quisesse mais.
- Mais tarde - disse Stu, guardando a caixa. - Tenha boas maneiras em tudo que você fizer, meu velho, como diria... um velho careca. - Ele ouviu sua voz ficando rouca e sentiu lágrimas aflorando. De súbito, havia perdido Glen, perdido Larry, perdido Ralph, com seu chapéu de aba caída. De repente tinha perdido todos eles, sentia uma falta terrível de todos que se foram. Mãe Abagail dissera que iriam chapinhar em sangue antes que tudo acabasse, e estivera certa. No seu coração, Stu Redman a amaldiçoava e abençoava ao mesmo tempo.
- Stu? Você está bem?
- Sim, Tommy, estou ótimo. - De súbito, ele abraçou Tom fortemente, e este retribuiu. - Feliz Natal, garotão.
Tom perguntou, hesitante:
- Posso cantar uma música de Natal antes de irmos?
- Claro, se você quiser.
Stu preparou-se para ouvir "Jingle Bells" ou "Trosty Snowman", entoadas na voz desafinada e monocórdia de uma criança. No entanto, o que ouviu foi um trecho de "The First Noel", cantada em voz de tenor surpreendentemente agradável.
- "O primeiro Natal" - a voz de Tom se deixou levar através das vastidões brancas, ecoando e retornando com suave doçura -, "contaram os anjos, foi para alguns pobres pastores... que estavam nos campos... nos campos... guardando seus rebanhos... em uma noite tão fria de inverno..."
Stu juntou-se a Tom no estribilho. Sua voz não era tão boa quanto a de Tom, mas elas se fundiram bem, para o gosto de ambos. Então, o velho e harmonioso hino pairou nos ares, indo e vindo, no profundo silêncio de catedral daquela manhã natalina:
- "Natal, Natal, Natal... Cristo nasceu em Israel..."
Enquanto suas vozes se extinguiam na distância, Tom disse, um tanto sem jeito:
- É a única parte que consigo lembrar.
- Foi ótimo - disse Stu. As lágrimas ameaçavam aflorar de novo. Se as deixasse escorrer, isto incomodaria Tom. A custo conseguiu contê-las. - Precisamos ir andando, para aproveitar o que resta da luz do dia.
- Claro. - Tom olhou para Stu, que recolhia sua tenda. - Foi o melhor Natal que já tive, Stu.
- Fico contente, Tommy.
Pouco depois, estavam viajando novamente, seguindo para leste e para o alto, sob um radioso e frio sol de Natal.
Nessa noite acamparam perto do cume do Loveland Pass, a quase 3.600 metros acima do nível do mar. Dormiram os três numa só tenda, enquanto a temperatura descia para 27 negativos. O vento açoitava sem parar, frio como a lâmina de uma afiada faca de cozinha. E nas sombras altas dos rochedos, com a lunática profusão de estrelas do inverno, parecendo próximas o bastante para que pudessem ser tocadas, os lobos uivavam. O mundo se assemelhava a uma cripta gigantesca abaixo deles, tanto a leste quanto a oeste.
Na madrugada do dia seguinte, antes mesmo das primeiras luzes, Kojak os acordou com seus latidos. Stu rastejou para a frente do abrigo, empunhando o rifle. Pela primeira vez os lobos estavam visíveis. Tinham descido do território e postavam-se num círculo sinuoso em torno do acampamento, agora sem uivar, apenas olhando. Seus olhos exibiam profundas cintilações verdes, e todos pareciam rir impiedosamente.
Stu disparou seis tiros ao acaso, dispersando-os. Um deles saltou alto e caiu como um amontoado. Kojak foi até ele, farejou-o, e depois, erguendo a pata, urinou sobre o animal morto.
- Os lobos ainda são dele - disse Tom. - Sempre serão.
Tom ainda parecia meio sonolento. Seus olhos estavam drogados, lentos e sonhadores. Stu percebeu de súbito o que era: Tom havia caído de novo naquele transe hipnótico.
- Tom... ele está morto? Você sabe?
- Ele nunca morre - respondeu Tom. - Ele está nos lobos, minha nossa, está mesmo. Nos corvos. Na cascavel. Na sombra da coruja à meia-noite e do escorpião ao meio-dia. Ele se pendura de cabeça para baixo com os morcegos. É cego como eles.
- Ele voltará? - perguntou Stu, ansioso. Sentia frio por toda parte do corpo.
Tom não respondeu.
- Tommy...
- Tom está dormindo. Ele foi ver o elefante.
- Tom, você consegue ver Boulder?
Lá fora, surgia no céu uma amarga linha de alvorecer contra os topos denteados e estéreis das montanhas.
- Sim. Eles estão esperando. Esperando por alguma notícia. Esperando pela primavera. Tudo está calmo em Boulder.
- Você pode ver Frannie?
O rosto de Tom se iluminou.
- Frannie... posso. Ela está gorda. Acho que vai ter um bebê. Lucy vai ter um bebê, também. Mas o de Frannie vem primeiro. Só que... - O rosto de Tom ficou sombrio.
- Tom? Só que... o quê?
- O bebê...
- O que há com o bebê?
Tom olhou em torno, incerto.
- A gente estava atirando nos lobos, não estava, Stu? Eu peguei no sono, Stu?
Stu forçou um sorriso.
- Só um pouquinho, Tom.
- Tive um sonho com um elefante. Não é engraçado?
- Sim, é. - E quanto ao bebê? E quanto a Fran?
Stu começou a achar que não chegariam a tempo, que aquilo visto por Tom, fosse o que fosse, aconteceria antes que pudessem chegar.
O bom tempo foi interrompido três dias antes do Ano-novo, obrigando-os a uma parada de dois dias na cidadezinha de Kittredge. Estavam agora tão perto de Boulder que o atraso foi um amargo desapontamento para ambos - até mesmo Kojak parecia agitado e inquieto.
- Não podemos acelerar, Stu? - perguntou Tom, esperançoso.
- Não sei - disse Stu. - Mas espero que sim. Se ao menos tivéssemos mais dois dias de bom tempo, creio que poderíamos. Droga! - Ele suspirou, depois deu de ombros. - Bem, talvez sejam apenas lufadas.
Mas acabou sendo a pior tempestade de inverno. Nevou por cinco dias, empilhando monturos que em certos lugares chegavam a 3 ou até mesmo 4 metros de altura. Quando eles se desenterraram no dia 2 de janeiro, para ver o sol tão achatado e pequeno como uma moeda de cobre sem brilho, todos os letreiros indicativos tinham sumido. A maior parte do pequeno centro comercial tinha não só sido enterrada mas também sepultada.
Montes e dunas de neve haviam sido esculpidos em formas sinuosas pelo vento. Eles sentiam-se como se em outro planeta.
Seguiram em frente, porém a viagem era mais lenta do que nunca; encontrar a estrada passara de um aborrecimento contínuo para um problema sério. A motoneve atolava repetidamente e tinham de desencavá-la. E no segundo dia de 1991, o estrondo de trem-cargueiro das avalanches recomeçou.
No dia 4 de janeiro, chegaram ao local em que a Nacional 6 se desligava da estrada principal para buscar seu próprio caminho para Golden, e, embora nenhum dos dois soubesse - não houvera sonhos ou premonições -, foi nesse dia que Frannie entrou em trabalho de parto.
- Tudo bem - disse Stu quando pararam junto ao desvio. - Finalmente não teremos mais problemas para encontrar a estrada. Ela agora segue através da rocha maciça. Porém tivemos uma sorte danada em encontrar o desvio.
Permanecer na estrada foi fácil, o difícil foi a travessia dos túneis. Em alguns casos precisaram escavar a neve solta para descobrir a entrada, em outros os restos compactos de antigas avalanches. A motoneve rugia e chocalhava deploravelmente, rodando pela estrada nua adentro.
Pior do que tudo era o ambiente assustador dos túneis - como Larry ou o Homem da Lata de Lixo poderiam ter-lhes contado. Eram negros como galerias de minas, exceto pelo cone de luz lançado pelo farol da motoneve, porque ambas as extremidades estavam compactadas de neve. Penetrar nos túneis era como estar trancados em uma geladeira às escuras. O avanço era penosamente lento, sair na outra extremidade era um exercício de engenharia, e Stu sentia fortes temores de que talvez encontrassem um bloqueio que fosse simplesmente intransponível, pouco importando o esforço despendido para desobstruí-lo. Se isto acontecesse, teriam que dar meia-volta e retornar à Interestadual. Perderiam pelo menos uma semana. Abandonar a motoneve não era uma escolha boa; fazer isto seria uma dolorosa maneira de cometer suicídio.
E com Boulder exasperantemente tão perto!
A 7 de janeiro, umas duas horas depois de terem escavado sua saída do interior de outro túnel, Tom ficou de pé na traseira da motoneve e apontou.
- O que é isso, Stu?
Stu estava cansado e rabugento. Os sonhos haviam cessado, mas, perversamente, isso era algo mais amedrontador do que tê-los.
- Quantas vezes já lhe disse para não ficar em pé quando estivermos rodando? Você pode cair para trás, bater de cabeça na neve e então...
- Tudo bem, mas o que é isso? Parece uma ponte. Passamos sobre um rio em algum lugar, Stu?
Stu olhou, viu, diminuiu a velocidade e desligou o motor.
- O que é isso? - perguntou Tom, ansioso.
- Um viaduto - murmurou Stu. - Eu... não posso acreditar.
- Viaduto? Viaduto?
Stu se virou e agarrou os ombros de Tom.
- É o viaduto de Golden, Tom! Aquela é a Rodovia 119, a estrada para Boulder. Estamos apenas a 30 quilômetros da cidade! Talvez menos!
Tom finalmente compreendeu. Ficou boquiaberto e a expressão cômica em seu rosto fez Stu gargalhar e bater-lhe nas costas. Nem mesmo a dor surda e persistente na perna o incomodava agora.
- Estamos mesmo chegando em casa, Stu?
- Sim, sim, siiiiimmm!
Então, um agarrou o outro e dançaram, formando um desajeitado círculo, caindo, espalhando tufos de neve, ficando polvilhados com ela. Kojak espiava, admirado... mas, após um momento, decidiu juntar-se a eles.
Acamparam em Golden naquela noite e, bem cedo na manhã seguinte, rumaram para a 119, em direção a Boulder. Nenhum deles dormira muito bem. Stu jamais experimentara tanta expectativa em sua vida... e mesclado com isso havia aquela insistente e incômoda preocupação com Frannie e o bebê.
Cerca de uma hora depois do meio-dia a motoneve começou a mover-se aos arrancos e com dificuldade. Stu desligou o motor e apanhou a lata de gasolina sobressalente, presa ao lado da pequena cabine de Kojak.
- Ah, céus! - exclamou, sentindo sua mortal leveza.
- Qual é o problema, Stu?
- Eu! Sou eu o problema!’ Sabia que a porra da lata estava vazia e esqueci de enchê-la! Acho que estava excitado demais. Como pude ser tão idiota!
- Estamos sem gasolina?
Stu atirou longe a lata vazia.
- Sem a menor dúvida. Como pude ser tão imbecil?
- Acho que pensava demais em Frannie. O que fazemos agora, Stu?
- Vamos a pé, ou pelo menos tentar. Leve seu saco de dormir. Vamos dividir os enlatados entre os dois sacos de dormir. Vamos ter que abandonar as tendas. Sinto muito, Tom. Carregarei a culpa por todo o caminho.
- Está tudo bem, Stu.
Não conseguiram alcançar Boulder naquele dia; acamparam quando o crepúsculo chegou, exauridos pela difícil caminhada através da neve, tão fofa que transformara o lento avanço em praticamente um rastejar. Não houve fogueira à noite. Não encontraram lenha e, por outro lado, estavam cansados demais para escavá-la sob a neve. Viram-se cercados por altas e ondulantes dunas de neve. Não se via qualquer clarão no horizonte norte, mesmo quando escureceu por completo, embora Stu o procurasse ansiosamente.
Tiveram uma janta fria e depois Tom se enfiou no seu saco de dormir, pegando instantaneamente no sono sem sequer dizer boa-noite. Stu estava fatigado e sua perna machucada doía abominavelmente. Será muita sorte, pensou, se eu não a tiver comprometido para sempre.
Mas estariam em Boulder amanhã à noite, dormindo em camas de verdade - isso era uma promessa.
Ocorreu-lhe um pensamento inquietante enquanto se enfiava no seu saco de dormir. Chegariam a Boulder e a cidade estaria vazia - tão vazia quanto estiveram Grand Junction, Avon e Kittredge. Casas abandonadas, lojas vazias, prédios com os tetos arriados ao peso da neve. Ruas entulhadas de detritos. Nenhum som além do gotejar da neve dissolvendo-se em um dos degelos periódicos - ele tinha lido na biblioteca que não era raro a temperatura em Boulder disparar subitamente para cima, chegando aos 23 em pleno auge do inverno. Entretanto, todos teriam desaparecido, como os personagens de um sonho tão logo acordamos. Porque não existia mais ninguém no mundo senão Stu Redman e Tom Cullen.
Era uma ideia louca, mas não conseguia descartá-la. Rastejou para fora do saco de dormir e tornou a olhar para o norte, na esperança de vislumbrar a leve claridade do horizonte, indicando que, naquela direção, não muito distante, existia uma comunidade de pessoas. Sem dúvida, seria capaz de ver alguma coisa. Tentou se lembrar de quantos habitantes teria agora a Zona Franca, segundo a estimativa de Glen, à época em que a neve bloqueasse as estradas e impedisse as viagens. Não conseguiu lembrar-se do número. Oito mil? Tinha sido isso? Oito mil pessoas não era muito; não passariam de um lampejo, mesmo se toda a energia elétrica estivesse restaurada. Talvez...
Talvez fosse melhor você dormir um pouco e esquecer essas bobagens. Que o amanhã cuide do amanhã.
Tornou a deitar-se e, após alguns momentos de remexer-se e virar-se, a brutal exaustão o venceu. Ele dormiu. E sonhou que estava em Boulder, uma Boulder em pleno verão, em que todos os gramados estavam amarelados e mortos devido ao calor e à falta de água. O único som era o de uma porta destrancada, oscilando para lá e para cá à brisa leve. Todos haviam partido. Até mesmo Tom fora embora.
Frannie!, gritou, porém a única resposta foi o vento e o som daquela porta que batia sem cessar à leve brisa.
Por volta das duas da tarde seguinte, tinham avançado laboriosamente apenas uns poucos quilômetros. Revezavam-se no trabalho de abrir caminho. Stu começava a crer que levariam mais um dia na estrada. Era ele quem atrasava a caminhada. Sua perna começava a inchar. Em breve estarei rastejando, pensou. Tom se incumbira de abrir caminho a maior parte do tempo.
Quando pararam para o seu almoço frio de enlatados, ocorreu a Stu que nem mesmo chegara a ver Frannie realmente volumosa em sua gravidez. Talvez ainda tenha uma chance. Mas, lá no fundo, achava que não veria. Convencia-se cada vez mais de que tudo iria acontecer sem sua presença... para o melhor ou para o pior.
Agora, uma hora após acabado o almoço, continuava tão entretido com seus pensamentos que quase colidiu com Tom, que havia parado.
- Qual é o problema? - perguntou.
- A estrada - disse Tom, e Stu se virou para olhar em torno apressadamente. Após uma longa e especulativa pausa, Stu exclamou:
- Raios me partam!
Estavam parados no alto de um banco de neve com quase 3 metros de altura. Ali, a neve endurecida era cortada a prumo até a estrada abaixo, e à direita estava um letreiro que dizia: LIMITES DA CIDADE DE BOULDER.
Stu espalhou o resto de biscoitos para cães no topo branco de neve e Kojak refestelou-se enquanto Stu fumava e Tom olhava para a estrada, que aparecia como uma miragem de lunático em meio a quilômetros de neve não sinalizada.
- Estamos em Boulder de novo - murmurou Tom suavemente. - Realmente estamos. L-I-M-I-T-E-S-DA-C-I-D-A-D-E, isso quer dizer Boulder, minha nossa, é isso mesmo.
Stu bateu-lhe no ombro e jogou fora o cigarro.
- Vamos, Tom. Vamos levar nossas carcaças maltratadas para casa.
Por volta das quatro, recomeçou a nevar. Às seis estava escuro e o asfalto negro da estrada adquirira um tom esbranquiçado espectral sob os pés deles. Stu agora mancava horrivelmente, quase se arrastando. Tom a certa altura perguntou-lhe se queria descansar, mas Stu apenas balançou a cabeça.
Às oito, a neve se tornara espessa e escorregadia. Uma ou duas vezes perderam o rumo e foram de encontro aos bancos de neve na beira da estrada antes de se reorientarem. Os passos se tornaram ainda mais escorregadios. Tom caiu duas vezes e depois, por volta de 8h15, Stu caiu sobre a perna ruim. Precisou trincar os dentes para não gemer de dor. Tom correu para ajudá-lo a se levantar.
- Estou bem - disse Stu e conseguiu se reerguer.
Uns vinte minutos depois, uma voz jovem e nervosa brotou gaguejante da escuridão, fazendo com que parassem no ato.
- Q-quem v-vem lá?
Kojak começou a rosnar, seu pêlo eriçou-se em tufos. Tom ofegou. Então, mal audível em meio ao vento ululante, Stu percebeu um som que fez o terror percorrer suas veias: um clique de um rifle sendo engatilhado.
Sentinelas. Eles postaram sentinelas. Seria irônico empreender toda aquela jornada e ser morto pela bala de uma sentinela nas proximidades de Centro Comercial de Table Mesa. Randall Flagg acharia muito engraçado.
- Stu Redman - gritou no escuro. - Aqui é Stu Redman! - Engoliu em seco e houve um estalido audível em sua garganta. - Quem está aí?
Idiota. Não deve ser alguém que conheça...
Mas a voz que pairou até ele, saindo da neve, pareceu-lhe familiar.
- Stu? Stu Redman?
- Tom Cullen está comigo... pelo amor de Deus, não atire na gente!
- Não é um truque? - A voz parecia estar deliberando consigo mesma.
- Não há truque nenhum! Tom, diga alguma coisa.
- Olá, você aí - disse Tom obedientemente.
Houve uma pausa. A neve caía e rangia ao redor deles. Então a sentinela (sim, aquela voz era familiar) gritou:
- Stu tinha um quadro na parede do velho apartamento. Qual era ele?
Stu forçou o cérebro freneticamente. O som daquele rifle sendo engatilhado continuava repercutindo, embaralhando tudo. Ele pensou: Meu Deus, eu parado aqui em meio à nevasca, tentando lembrar qual é o quadro que havia na parede do apartamento... o velho apartamento, disse ele. Fran deve ter ido morar com Lucy. Lucy costumava fazer piada com aquele quadro, costumava dizer que John Wayne estava esperando aqueles índios justamente onde ninguém pudesse vê-lo...
- Frederic Remington! - Ele berrou á plena força dos pulmões. - O quadro se chama A Trilha da Guerra.
- Stu! - gritou de volta a sentinela. Uma forma escura se materializou para fora da neve, deslizando e escorregando enquanto corria na direção deles. - Mal posso acreditar...
Logo estava diante deles, e Stu viu que era Billy Gehringer, aquele que no último verão causara tanta encrenca por dirigir em disparada.
- Stu! Tom! E Kojak, meu Deus! Onde estão Glen Bateman e Larry? Onde está Ralph?
Stu sacudiu lentamente a cabeça.
- Não sei. Precisamos sair deste frio, Billy. Estamos congelando.
- O supermercado fica logo estrada acima. Vou chamar Norm Kellogg... Harry Dunbarton... Dick Ellis... merda, vou acordar toda a cidade! Esta é grande! Eu não acredito!
- Billy...
Billy virou-se de costas e Stu manquejou até onde ele estava parado.
- Billy, Fran ia ter um bebê...
Billy ficou ainda mais imóvel. E então sussurrou:
- Ah, merda, esqueci disso.
- Ela o teve?
- George. George Richardson é quem pode lhe dizer, Stu. Ou Dan Lathrop. É o nosso novo médico. Nós o conseguimos quatro semanas depois de vocês partirem. Era um otorrino, mas é muito bom gi...
Stu sacudiu Billy bruscamente, tirando-o do seu balbucio quase frenético.
- O que há de errado? - perguntou Tom. - Há alguma coisa errada com Frannie?
- Fale comigo, Billy - disse Stu. - Por favor.
- Fran está bem - revelou Billy. - Ela vai ficar bem.
- Foi isso que você ouviu?
- Não, eu a vi. Eu e Tony Donahue. Fomos visitá-la com algumas flores da estufa. A estufa é projeto de Tony. Ele conseguiu plantar todo tipo de coisa aqui, não só flores. O único motivo por estar ainda internada é que houve necessidade de fazer, como é mesmo que se chama, um parto ce... mano...
- Uma cesariana?
- É, isso aí, porque o bebê chegou invertido. Mas nada de grave. Fomos vê-la três dias depois de ter o bebê, foi no dia 7 de janeiro, há dois dias. Levamos rosas para ela. Imaginamos que ela podia se animar um pouco porque...
- O bebê morreu? - perguntou Stu embotadamente.
- Não morreu - disse Billy, acrescentando depois, com grande relutância: - Ainda não.
Stu de repente sentiu-se muito distante dali, correndo através do vazio. Ouviu risadas... e o uivo dos lobos...
Billy disse, num ímpeto infeliz:
- Ele pegou a gripe. Pegou a Capitão Viajante. As pessoas estão dizendo que será o fim de todos nós. Frannie o teve no dia 4, um menino, com 2,9 quilos. A princípio tudo estava bem com ele e acho que todo mundo na Zona Franca se embriagou. Dick Ellis disse que era como comemorar duas datas cívicas num dia só, e então no dia 6... ele simplesmente pegou a gripe. Sim, cara - continuou Billy, e sua voz começou a ficar trêmula e estridente. - Ele pegou a gripe. Ah, merda, que raio de boas-vindas na sua volta para casa. Lamento paca, Stu.
Stu estendeu o braço, encontrou o ombro de Billy e puxou-o para perto.
- No começo todos diziam que ia melhorar, que talvez fosse uma gripe comum... ou bronquite... ou crupe. Mas os médicos disseram que bebês recém-nascidos raramente pegam essas coisas. É como uma imunidade natural, por serem tão pequeninos. E tanto George quanto Dan... eles viram tanto da supergripe no ano passado que...
- Seria difícil se equivocarem - Stu completou por ele.
- Isso - sussurrou Billy. - Você entendeu.
- Que parada - sussurrou Stu. Depois, dando as costas a Billy, recomeçou manquejar estrada abaixo.
- Ei, Stu! Aonde vai?
- Ao hospital - respondeu ele. - Para ver minha mulher.
FRAN ESTAVA ACORDADA, com a lâmpada de leitura acesa lançando uma poça luminosa no lado esquerdo do imaculado lençol branco que a cobria. No centro da luz, com a capa para baixo, estava um volume de Agatha Christie. Fran estava acordada porém deixava a mente vaguear, naquele estado em que as lembranças se clareiam como que por mágica enquanto começam a transmutar-se em sonhos. Ela ia enterrar seu pai. O que acontecesse depois disso não importava, mas ela ia arrastar-se para fora da onda de choque, o suficiente para cumprir a tarefa. Aquele ato de amor. Quando estivesse feito, ela se serviria de uma fatia de torta de morango-ruibarbo. Seria grande, suculenta e teria que estar muito amarga.
Marcy viera examiná-la meia hora atrás e Fran perguntara:
- Peter já morreu? - E mesmo enquanto fazia a pergunta, o tempo lhe parecera tão duplicado que não tinha certeza de referir-se a Peter, o bebê, ou a Peter, o avô do bebê, agora falecido.
- Pssst, ele está ótimo - dissera Marcy, porém Frannie entrevira uma resposta mais verdadeira nos olhos dela. O bebê que havia produzido com Jess Rider estava empenhado em morrer detrás de quatro grossas paredes de vidro, em algum lugar. Talvez o bebê de Lucy tivesse melhor sorte; afinal, ambos os pais tinham ficado imunes à Capitão Viajante. A esta altura a Zona Franca já riscara o nome de seu Peter, concentrando as esperanças coletivas naquelas mulheres que haviam concebido após o dia 1o de julho do ano anterior. Era brutal, mas perfeitamente compreensível.
Sua mente vagueou em algum nível inferior, correndo ao longo da fronteira do sono, considerando o terreno de seu passado e a paisagem do seu coração. Pensou na sala de visitas da mãe, onde as estações passavam numa época seca. Pensou nos olhos de Stu na primeira vez em que vira o bebê, Peter Goldsmith-Redman. Sonhou que Stu estava com ela, naquele quarto.
- Fran?
Nada funcionara do jeito como deveria. Todas as esperanças tinham-se revelado falsas, tão ilusórias quanto aqueles animais audioanimatrônicos em Disney World, apenas um punhado de engrenagens, uma impostura, um falso alvorecer, uma falsa gravidez, uma...
- Ei, Frannie...
No sonho ela viu que Stu tinha voltado. Estava de pé à porta do quarto, vestindo uma gigantesca parka de pele. Outra empulhação. Contudo, podia ver que o Stu-sonho era barbudo. Não era engraçado?
Fran começava a especular se era mesmo um sonho quando viu Tom Cullen parado atrás dele. E... não era o Kojak ali sentado junto aos calcanhares de Stu?
Sua mão subiu repentinamente para o rosto e ela o beliscou impiedosamente, fazendo o olho esquerdo lacrimejar. Nada mudou.
- Stu? - sussurrou. - Ah, meu Deus, é você, Stu?
O rosto dele estava bastante bronzeado, exceto na pele em torno dos olhos, que poderia ter sido coberta por óculos escuros. Esse não era um detalhe que se esperasse perceber em um sonho.
Ela beliscou-se de novo.
- Sou eu - disse Stu, entrando no quarto. Ele mancava tanto que estava quase caindo. - Voltei para casa, Frannie.
- Stu! - gritou ela. - É você de verdade? Se for real, venha cá!
Ele foi então até ela e a abraçou.
STU SENTAVA-SE NUMA CADEIRA PUXADA para junto da cama de Fran quando Dan Lathrop e George Richardson entraram. Fran imediatamente tomou a mão de Stu e apertou-a com força, quase causando dor. Seu rosto ficou tenso e rígido, e por um momento Stu pôde ver como ela pareceria ao ficar velha; por um momento assemelhou-se a Mãe Abagail.
- Stu! - disse George. - Ouvi falar que tinha voltado. Um milagre! Não imagina o quanto estou feliz em revê-lo. Bem, todos nós estamos.
George apertou-lhe a mão e a seguir apresentou Dan Lathrop.
- Soubemos que houve uma explosão em Las Vegas - disse Dan. - Chegou a vê-la?
- Sim.
- As pessoas por aqui acham que foi uma explosão nuclear. É verdade?
- É.
George assentiu a isto, depois descartou o assunto e concentrou-se em Fran.
- Como está se sentindo?
- Muito bem. Feliz por ter meu homem de volta. E quanto ao bebê?
- Na verdade - disse Lathrop -, é por isso que estamos aqui.
Fran assentiu.
- Está morto?
George e Dan se entreolharam.
- Frannie, quero que ouça com atenção e procure entender bem tudo quanto vou dizer...
Frivolamente, com uma ironia contida, ela disse:
- Se ele está morto, basta que me digam!
- Fran - censurou Stu.
- Peter parece estar se recuperando - disse Dan Lathrop brandamente.
Houve um momento de silêncio total no quarto. Fran, com o rosto pálido e ovalado debaixo da massa de cabelos castanho-escuros no travesseiro, ergueu os olhos para Dan como se ele houvesse começado a proferir algum tipo de besteirada lunática. Alguém - talvez Laurie Constable ou Marcy Spruce - deu uma espiada para dentro do quarto e seguiu em frente. Foi um momento que Stu jamais iria esquecer.
- Como disse? - sussurrou Fran finalmente.
- Não deve nutrir grandes esperanças - disse George.
- Mas você acabou de falar em... recuperação - contestou Fran, seu rosto indubitavelmente perplexo. Até então não percebera o quanto havia se conformado com a morte do bebê.
George explicou:
- Eu e Dan testemunhamos milhares de casos durante a epidemia, Fran... veja bem: eu não falei "tratamos" porque acho que nenhum de nós chegou a modificar o curso da doença nem um tiquinho em qualquer paciente. Concorda, Dan?
- Sim.
A linha eu-quero, que Stu já havia notado em New Hampshire, horas depois de tê-la conhecido, surgia agora na testa de Fran.
- Poderia chegar logo ao ponto, pelo amor de Deus?
- Estou tentando, mas tenho de ser cauteloso e é assim que vou proceder - replicou George. - É a vida de seu filho que estamos discutindo e não vou permitir que me pressione. Quero que siga o fio de nosso raciocínio. A Capitão Viajante foi uma gripe de antígeno mutante, sabemos agora. Pois bem, cada tipo de gripe... a gripe de antigamente... tinha um antígeno diferente, daí o motivo de ficar retornando a cada dois ou três anos mais ou menos, apesar das vacinas. Ocorria um surto da gripe tipo-A, da Hong Kong, por exemplo, e tínhamos uma vacina para ela. Mas então, dois anos depois, surgia uma cepa tipo-B e a pessoa ficava doente, a não ser que utilizasse outro tipo de vacina.
Dan aparteou:
- Mas a pessoa voltava a ficar boa, porque o organismo acabava produzindo seus próprios anticorpos. O organismo se alterava a fim de combater a gripe. Com a Capitão Viajante, a gripe em si mudava a cada vez que o organismo assumia uma postura defensiva. Dessa maneira era mais similar ao vírus da AIDS do que aos tipos comuns de gripe aos quais nosso organismo estava acostumado. E como ocorre com a AIDS, continuou mudando de uma forma para outra até o organismo se exaurir. O resultado, inevitavelmente, foi a morte.
- Então por que não a tivemos? - perguntou Stu.
Foi George quem respondeu:
- Não sabemos. E creio que jamais saberemos. A única coisa sobre a qual temos certeza é que as pessoas imunes não adoecem e depois expulsam a doença para fora. Elas jamais adoeceram, afinal. O que nos traz de volta a Peter. Dan?
- Certo. A chave para a Capitão Viajante é que as pessoas parecem quase melhores, mas nunca completamente melhores. Ora, este bebê, Peter, ficou doente 48 horas depois de nascido. Não havia a menor dúvida de que era a Capitão Viajante... os sintomas eram clássicos. Mas aquelas descolorações sobre a linha do maxilar... que eu e George passamos a associar ao quarto e terminal estágio da supergripe... elas nunca surgiram. Por outro lado, os períodos de remissão do bebê estão ficando cada vez mais prolongados.
- Não compreendo - disse Fran, perplexa. - O que...
- Toda vez que a gripe se altera, Peter também imediatamente se altera, lutando contra ela - disse George. - Existe ainda a possibilidade técnica de ter uma recaída, mas ele nunca entrou na fase crítica final. Ele parece estar exaurindo a doença.
Houve um momento de silêncio total. Por fim, Dan disse:
- Você transmitiu metade da imunidade para seu filho, Fran. Ele pegou a gripe, mas achamos que também pegou a capacidade para vencê-la. Teorizamos que os gêmeos da Sra. Wentworth tiveram a mesma chance, mas havendo tantas desvantagens contra eles... e ainda acho que podem não ter morrido da supergripe, mas sim de complicações geradas por ela. Sei que é uma diferença mínima, mas isso pode ser crucial.
- E as outras mulheres que engravidaram de homens não-imunes? - perguntou Stu.
- Acreditamos que terão de ver seus bebês enfrentando a mesma luta penosa - disse George -, e algumas dessas crianças poderão morrer... houve uma situação incerta com Peter durante algum tempo, e por tudo quanto sabemos agora, pode voltar a ocorrer. Mas muito em breve chegaremos ao ponto em que todos os fetos na Zona Franca... no mundo, serão o produto de pais e mães imunes. E embora não sendo correta uma suposição antecipada, eu apostaria dinheiro como, quando isso acontecer, não teremos quaisquer problemas. Enquanto isso, estaremos monitorando Peter detidamente.
- E não o estaremos monitorando sozinhos, caso isto sirva de consolo - acrescentou Dan. - Em um sentido real, neste exato momento, Peter pertence a toda a Zona Franca.
Fran sussurrou:
- Só quero que ele viva, porque é meu e porque o amo. - Olhou para Stu. - Peter é meu elo com o antigo mundo. Ele se parece mais com Jess do que comigo, e isso me deixa contente. Parece justo. Você compreende, não, amor?
Stu assentiu e ocorreu-lhe um curioso pensamento - o quanto gostaria de estar na companhia de Hap, Norm Bruett e Vic Palfrey, tomar uma cerveja com eles, ver Vic enrolar um daqueles cigarros caseiros fedorentos e contar-lhes como tudo isto terminara. Eles sempre o tinham chamado de Stu Caladão; o velho Stu, diziam, jamais xingaria "merda" por pior que fosse a situação. Mas agora falaria pelos cotovelos, falaria noite e dia. Agarrou cegamente a mão de Fran e apertou-a, sentindo a ardência das lágrimas.
- Temos rondas a fazer - disse George, levantando-se -, mas estaremos monitorando Peter atentamente, Fran. Você terá certeza quando também a tivermos.
- Quando poderei amamentá-lo? Se ele não...?
- Dentro de uma semana - disse Dan.
- Mas é tempo demais!
- Será também muito tempo para todos nós. Temos 61 mulheres grávidas na Zona, e nove delas conceberam antes da supergripe. Isto vai ser especialmente demorado para elas. Stu? Foi um prazer conhecê-lo. - Dan estendeu a mão, que Stu apertou. Saiu rapidamente, pois era um homem com trabalho a realizar e ansioso por fazê-lo.
George apertou a mão de Stu e disse:
- Eu irei vê-lo amanhã o mais tardar, combinado? Basta dizer a Laurie a hora que lhe será mais conveniente.
- Para quê?
- Sua perna - disse George. - Está ruim, não?
- Nem tanto assim.
- Stu? - disse Frannie, sentando-se. - O que há de errado com sua perna?
- Fraturada, mal encanada e sobrecarregada - explicou George. - Péssima. Mas pode ser consertada.
- Bem... - disse Stu.
- Bem, uma ova! Quero ver, Stuart! - disse Fran. A linha eu-quero havia retomado.
- Mais tarde - respondeu Stu.
George levantou-se.
- Procure Laurie, certo?
- Ele o fará - disse Frannie.
Stu riu.
- Farei. Ordem da Dona Encrenca.
- É muito bom tê-lo de volta - disse George. Havia mil perguntas que pareciam se deter logo atrás de seus lábios. Ele sacudiu de leve a cabeça e depois se foi, fechando a porta com firmeza atrás de si.
- Quero vê-lo caminhar - disse Fran, a linha eu-quero ainda cruzando sua fronte.
- Ei, Frannie...
- Vamos lá, quero vê-lo andar!
Stu andou, para que ela visse. Era mais ou menos como ver um marinheiro cruzar um convés inclinado. Quando voltou para junto da cama, ele viu que Frannie chorava.
- Ah, Frannie, por favor, querida, não chore.
- Preciso chorar - disse ela, cobrindo o rosto com as mãos.
Stu sentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos.
- Não. Não, não precisa.
Ela o encarou, as lágrimas ainda fluindo.
- Tanta gente morta... Harold, Nick, Susan... e quanto a Larry? E o que me diz de Glen e Ralph?
- Não sei.
- E o que Lucy vai dizer? Estará aqui em uma hora. Ela vem todos os dias, e já está com quatro meses de gravidez. Stu, quando ela lhe perguntar...
- Eles morreram lá - disse Stu, falando mais para si mesmo do que para ela. - É o que imagino. É o que sei no meu coração.
- Não fale dessa maneira - pediu Fran. - Não quando Lucy estiver aqui. Partirá o coração dela, se o fizer.
- Acho que eles foram para o sacrifício. Deus sempre quer um sacrifício. Tem as mãos ensanguentadas disso. Por quê? Não sei dizer. Não sou um homem muito esperto. Talvez tenhamos causado isso a nós mesmos. Tudo que sei com certeza é que a bomba explodiu lá em vez de explodir aqui, o que nos deixa a salvo por algum tempo. Por pouco tempo.
- Flagg se foi? Morreu realmente?
- Não sei. Acho que... precisaremos montar vigilância por causa dele. E, com o tempo, alguém descobrirá o lugar onde produziram os germes da Capitão Viajante, soterrará o local, espalhará sal no solo e então rezará sobre ele. Rezará por todos nós.
Bem mais tarde nessa noite, pouco antes da meia-noite, Stu a empurrou numa cadeira de rodas pelo corredor silencioso do hospital. Laurie Constable os acompanhava, e Fran fizera questão de que Stu marcasse sua consulta com o médico.
- Por sua aparência, você é quem devia estar em cadeira de rodas, Stu Redman - comentou Laurie.
- Neste exato momento, a perna não me incomoda nem um pouco - respondeu Stu.
Chegaram diante de uma grande vidraça dando para uma sala em tonalidade azul e rosa. Um enorme móbile pendia do teto. Só havia um berço ocupado na fileira da frente.
Stu ficou olhando, fascinado.
GOLDSMITH-REDMAN, PETER, lia-se num cartão ao pé do berço. MENINO, BRANCO, 2,9 QUILOS. MÃE: FRANCES GOLDSMITH, QUARTO 209: PAI: JESSE RIDER (FAL.)
Peter estava chorando.
Tinha as mãozinhas crispadas. O rosto estava vermelho. Em sua cabeça um espantoso tufo de cabelos bem negros. Os olhos eram azuis e pareciam fitar diretamente os de Stu, como se acusando-o de ser o autor de toda a sua infelicidade.
A testa era cruzada por uma funda linha vertical... uma linha eu-quero.
Frannie chorava novamente.
- O que há de errado, Frannie?
- Todos aqueles berços vazios - disse ela, sua voz se tornando um soluço. - É isso que está errado. Ele fica muito sozinho aí. Não é de admirar que esteja chorando, Stu, está totalmente só. Todos esses berços vazios, meu Deus...
- Ele não ficará sozinho por muito tempo - disse Stu, passando um braço em tomo dos ombros dela. - E olha para mim como se fosse superar isso numa boa. Não acha, Laurie?
Mas Laurie já os deixara a sós diante da vidraça do berçário.
Pestanejando pela dor na perna, Stu ajoelhou-se ao lado de Frannie e abraçou-a desajeitadamente. Os dois ficaram contemplando Peter em mútua admiração, como se fosse a primeira criança já surgida na face da Terra. Após algum tempo, ele adormeceu, as mãozinhas entrelaçadas sobre o peito. Ainda assim, continuaram a contemplá-lo... ambos se perguntando se, afinal de contas, Peter deveria estar mesmo ali.
FESTA DA PRIMAVERA
FINALMENTE, HAVIAM DEIXADO O inverno para trás.
Havia sido um longo inverno e para Stu, acostumado ao clima do leste do Texas, deixara uma sensação fantasticamente penosa. Dois dias após retomar a Boulder, sua perna direita fora quebrada de novo, reajustada, e dessa vez colocada em um pesado molde de gesso, que só foi removido no início de abril. Àquela altura, o gesso começava a assemelhar-se a um mapa rodoviário de incrível complexidade; parecia que cada habitante da Zona Franca pusera seu autógrafo nele, embora isto fosse uma patente impossibilidade. Os peregrinos tinham começado a chegar por volta de 1o de março, e mais ou menos no último dia para entrega da declaração de imposto de renda no mundo que se fora a Zona Franca contava com quase 11 mil residentes, segundo Sandy DuChiens, que agora chefiava um Departamento do Censo, constituído por 12 funcionários e com seu terminal de computador no First Bank de Boulder.
Agora, ele e Fran estavam com Lucy Swann na área para piqueniques a meio caminho da subida para a montanha Flagstaff e assistiam à Mayday Chase - a tradicional brincadeira de pegar da Festa da Primavera. Todas as crianças da Zona pareciam envolvidas (bem como muitos adultos). A cesta de maio original, enfeitada com fitas de papel crepom e cheia de frutas e brinquedos, ficou a cargo de Tom Cullen. Tinha sido ideia de Fran.
Tom havia capturado Bill Gehringer (a despeito da constrangida alegação de Billy sobre ele já ter idade demais para brincadeiras infantis daquele tipo, acabara aderindo com grande disposição) e, juntos, tinham capturado o menino Upshaw - ou seria Upson? Stu sentia dificuldade em identificar todos eles - e os três foram à caça de Leo Rockway, escondido atrás da rocha Brentner. Tom capturara Leo.
A perseguição evoluía de um lado a outro na Zona Oeste, com bandos de crianças e adolescentes irrompendo de roldão para cima e para baixo das mas que ainda continuavam semidesertas, Tom berrando e carregando sua cesta. Por fim, a brincadeira de pegar chegara até ali, onde o sol estava quente e o vento soprava cálido. O bando de crianças capturadas já somava umas duzentas, e todos continuavam no processo de rastrear a última meia dúzia aproximada que ainda estava "à solta". E com isso enxotaram dezenas de cervos que não queriam participar da brincadeira.
Três quilômetros acima, no anfiteatro Aurora, acontecia um enorme almoço ao ar livre, exatamente no local onde Harold Lauder certa vez aguardara o momento certo para falar no seu walkie-talkie. Ao meio-dia, 2 ou 3 mil pessoas se reuniram voltadas para leste, na direção de Denver, para comer carne de cervo, ovos à la diable, sanduíches de pasta de amendoim e geleia, com torta fresca de sobremesa. Talvez aquela fosse a última reunião em massa na Zona, a menos que todos se deslocassem para Denver e ocupassem o estádio onde, um dia, os Broncos tinham jogado futebol. Agora, na Festa da Primavera, o gotejar de início da nova estação se avolumara para uma inundação de imigrantes. Oito mil haviam chegado desde 15 de abril, e agora totalizavam cerca de 19 mil mais ou menos - uma soma temporária, pelo menos, porque o Departamento do Censo de Sandy não conseguia manter-se atualizado. Era raro o dia em que não chegavam pelo menos quinhentas pessoas a Boulder.
No cercadinho que Stu havia trazido e forrado com uma manta, Peter começou a chorar vigorosamente. Fran se moveu para ele, porém Lucy, volumosa em seus oito meses de gravidez, chegou lá primeiro.
- Se quer saber - disse Fran -, é para trocar as fraldas. Posso afirmar só pelo modo como soa o choro.
- Não vou ficar vesga se olhar para um pouquinho de cocô. - Lucy ergueu do berço um Peter chorando de indignação e o balançou suavemente nos braços de um lado para outro, à luz do sol. - Oi, bebê. O que andou fazendo? Encheu muito as fraldas?
Peter continuou berrando.
Lucy o acomodou sobre outra manta que haviam trazido. Peter começou a afastar-se engatinhando, sem parar de chorar. Lucy o virou de costas e começou a tirar-lhe as calças de brim azul. As perninhas de Peter se agitaram no ar.
- Por que vocês não vão dar um passeio? - sugeriu Lucy e sorriu para Fran, mas Stu percebeu que era um sorriso triste.
- Por que não vamos? - concordou Fran e pegou o braço de Stu.
Ele se deixou levar. Cruzaram a estrada e entraram num suave prado verde que depois se elevava em um ângulo inclinado abaixo das nuvens brancas moventes e do vívido céu azul.
- O que significa isso? - perguntou Stu.
- Isso o quê? - Fran, contudo, parecia inocente demais.
- Essa expressão.
- Que expressão?
- Sei reconhecer uma quando a vejo - replicou Stu. - Posso não entender o que significa, mas sei identificá-la quando a vejo.
- Sente-se aqui comigo, Stu.
- Então é assim, não é?
Os dois sentaram-se e olharam para leste, onde o terreno ia descaindo numa série de ondulações até a planície que se desbotava numa bruma azul. Nebraska ficava em algum lugar lá naquela bruma.
- É sério, Stu. Não sei como contar a você.
- Bem, é só ir falando, o melhor que puder - respondeu ele e pegou-lhe a mão.
Em vez de falar, o rosto de Fran começou a alterar-se. Uma lágrima escorreu pela face e sua boca descaiu, trêmula.
- Fran...
- Não, não quero chorar! - exclamou furiosa e então houve mais lágrimas e ela irrompeu em choro incontrolável. Desconcertado, Stu passou um braço em torno dela e esperou.
Quando o pior pareceu passar, ele perguntou:
- Agora me diga. Do que se trata?
- Estou com saudades de casa, Stu. Quero voltar para o Maine.
Atrás deles, as crianças corriam e berravam. Stu olhou para ela, absolutamente surpreso. Depois sorriu, um tanto hesitante.
- É isso? Pensei que você, no mínimo, tinha decidido divorciar-se de mim. Não que realmente tenhamos recebido as bênçãos sacramentais, por assim dizer.
- Não vou para lugar nenhum sem você - disse ela. Havia tirado um lenço de papel do bolso da camisa e enxugava os olhos com ele. - Não sabe disso?
- Acho que sei.
- Mas quero voltar para o Maine. Tenho sonhado com isso. Nunca sonhou com o leste do Texas, Stu? Com Arnette?
- Não - respondeu ele com sinceridade. - Eu poderia viver muito tempo e morrer, sentindo-me feliz da mesma forma, mesmo que nunca mais pusesse os olhos em Arnette. Você quer volta para Ogunquit, Frannie?
- Talvez, com o tempo. Mas não exatamente agora. Gostaria de ir para a parte ocidental do Maine, a Região dos Lagos. Você quase chegou lá, quando eu e Harold o encontramos em New Hampshire. Há alguns lugares lindos, Stu. Bridgton... Sweden... Castle Rock. Os lagos devem estar pulando de peixes, posso imaginar. Acho que poderíamos até chegar ao litoral. Só que eu não poderia suportar isso no primeiro ano. Lembranças demais. Tudo seria muito grande no princípio. O mar seria gigantesco. - Ela baixou os olhos para as mãos que se retorciam nervosamente. - Se você quiser ficar aqui... ajudando o pessoal para que tudo vá em frente... eu entenderei. As montanhas aqui também são lindas, mas... bem... não me sinto em casa.
Ele contemplou o leste e descobriu que podia finalmente identificar algo que sentia espicaçá-lo desde que a neve começara a degelar: uma ânsia de movimento. Ali havia gente demais, e tantas pessoas começavam a deixá-lo nervoso. Em Boulder havia os que conseguiam lidar com tal tipo de coisa e que, de fato, pareciam gostar disso. Jack Jackson, que chefiava o novo Comitê da Zona Franca (agora ampliado para nove membros) era um deles. Outro era Brad Kitchner - Brad tinha uns cem projetos em andamento e todos os auxiliares que quisesse a fim de movimentar cada projeto. Tinha sido ideia dele pôr no ar uma das emissoras de TV de Denver. Ela exibia filmes antigos todas as noites, das dezoito horas à uma da manhã, com um noticiário de dez minutos às nove.
E o homem que o substituíra como xerife em sua ausência, Hugh Petrella, não era o tipo de homem que fazia seu gênero. O próprio fato de Petrella ter feito um lobby para obter o cargo bastava para deixá-lo inquieto. O novo xerife era um indivíduo inflexível, um puritano com um rosto que parecia entalhado a machadas. Contava com 17 comissários e procurava aumentar seu número a cada reunião do Comitê da Zona Franca - na opinião de Stu, se Glen estivesse ali, ele diria que a velha disputa americana entre a lei e a liberdade individual havia recomeçado. Petrella não era mau sujeito, mas sim um homem rígido... e Stu o considerava capaz de ser melhor xerife do que ele, pois acreditava firmemente que a lei era a resposta definitiva para todos os problemas. E esta jamais fora a crença pessoal de Stu.
- Sei que lhe ofereceram um cargo no comitê - dizia Fran, hesitante.
- Tive a impressão de que seria um cargo honorário, você também?
Fran pareceu aliviada.
- Bem...
- Achei que para mim não faria diferença se recusasse. Sou o último representante do comitê original. E à época houve uma crise no comitê. Agora não há crise. E quanto a Peter, Frannie?
- Acho que em junho já estará com idade suficiente para viajar - disse ela. - E gostaria de esperar até Lucy ter o bebê.
Houvera 18 nascimentos na Zona desde que Peter viera ao mundo em 4 de janeiro. Quatro bebês tinham morrido, mas os restantes estavam bem. Em breve começariam a nascer os bebês cujos pais estavam imunes à epidemia, sendo inteiramente possível que o de Lucy fosse o primeiro. Estava previsto para o dia 14 de junho.
- O que acha de partirmos a 1º de julho? - perguntou ele.
O rosto de Fran se iluminou.
- Você irá? Quer mesmo ir?
- Claro.
- Não está dizendo isso só para me agradar?
- Não - respondeu ele. - Outras pessoas também estarão partindo. Não muitas, não por algum tempo. Mas algumas partirão.
Fran o enlaçou pelo pescoço e abraçou-o com força.
- Tudo talvez não passe de umas férias - disse. - Ou talvez... talvez a gente goste realmente disso. - Ela o fitou timidamente. - Talvez a gente queira ficar.
Ele assentiu.
- Sim, talvez. - Mas no fundo duvidava se algum deles ficaria satisfeito em permanecer no mesmo lugar por anos a fio. Olhou para Lucy e Peter. Lucy estava sentada na manta e fazia o menino saltar para cima e para baixo. Ele ria, tentava agarrar o nariz de Lucy.
- Já pensou que ele poderia adoecer? E você? Como será se engravidar de novo?
Ela sorriu.
- Existem livros. Poderíamos lê-los. Não podemos passar toda a nossa vida com medo, não acha?
- Não, suponho que não.
- Há livros e bons medicamentos. Podemos aprender a usá-los. E quanto aos remédios que se esgotaram... podemos aprender a fabricá-los de novo. Quanto a adoecer e morrer... - Ela tornou a olhar para o grande prado onde as últimas crianças caminhavam em direção à área de piquenique suadas e afogueadas. - Isto acontecerá aqui também. Lembra-se de Rich Moffat? E Shirley Hammett?
- Sim. - Shirley havia morrido de um ataque cardíaco em fevereiro. Frannie tomou as mãos dele. Tinha os olhos brilhantes, cheios de determinação.
- Digo que correremos nossos riscos e viveremos nossas vidas da maneira que bem entendermos.
- Muito bem. Parece bom para mim. Parece a coisa certa.
- Eu amo você, Texano Oriental.
- Da mesma forma, madame. Peter recomeçara a chorar.
- Vamos ver o que há de errado com o imperador - disse ela, levantando-se e sacudindo o capim aderido às calças compridas.
- Ele tentou engatinhar e bateu com o nariz - disse Lucy, entregando Peter a Fran. - Coitadinho.
- Coitadinho - concordou Fran, pondo-o no colo. O menino recostou familiarmente a cabeça no seu pescoço, olhou para Stu e sorriu. Este sorriu de volta, fez uma careta e Peter riu.
Lucy olhou de Fran para Stu e tomou a fitar Fran.
- Vocês vão partir, não vão? Você o convenceu a ir?
- Acho que ela conseguiu - disse Stu. - Mas ainda ficaremos tempo bastante para ver o que você traz ao mundo.
- Fico contente - disse Lucy.
Ao longe, um sino começou a tocar em fortes notas musicais que pareciam colidir umas com as outras à luz do dia.
- Hora do almoço - anunciou Lucy, levantando-se. Deu uns tapinhas no ventre gigantesco. - Ouviu isso, garoto? Já vamos comer. Ei, não precisa chutar, estou indo.
Stu e Fran também se levantaram.
- Aqui, leve o menino - disse Fran.
Peter tinha caído no sono. Os três começaram a subir a colina para o anfiteatro Aurora.
CREPÚSCULO DE UM DIA DE VERÃO
Enquanto o sol se punha, eles sentavam-se ao alpendre e vigiavam Peter, que engatinhava animadamente na terra do pátio. Stu ocupava uma cadeira com assento de palhinha; anos de uso tinham feito aquele assento afundar. Fran sentava-se à sua esquerda, na cadeira de balanço. No pátio, à esquerda de Peter, o pneu-balanço imprimia sua sombra rasa no solo à última claridade do dia.
- Ela morou aqui muito tempo, não foi? - perguntou Fran suavemente.
- Bota tempo nisso - disse Stu e apontou para Peter. - Ele está ficando todo sujo.
- Tem água. Ela possuía uma bomba manual. É tudo sujeira superficial. Temos todas as conveniências, Stuart.
Ele assentiu e não falou mais. Acendeu o cachimbo, sugando longas baforadas. Peter virou-se para ver se eles ainda estavam ali.
- Oi, neném - disse Stu e acenou para ele.
Peter caiu. Tornou a equilibrar-se nas mãos e joelhos, e recomeçou a engatinhar num amplo círculo. Parado no final da estrada de terra que cortava o milharal silvestre estava um pequeno trailer Winnebago com um guincho na parte dianteira. Estavam viajando por estradas vicinais, mas vez por outra o guincho tinha sua utilidade.
- Sente-se solitário? - perguntou Fran.
- Não. Com o tempo talvez me sinta.
- Preocupado com o bebê? - Fran bateu no ventre, que ainda estava perfeitamente plano.
- Nem um pouco.
- O nariz de Peter vai ficar com uma crosta.
- Quando a crosta cair, cicatriza. E Lucy teve gêmeos! - Stu sorriu para o céu. - Quem diria, hein?
- Eu os vi. Ver para crer, como dizem. Quando acha que chegaremos ao Maine, Stu?
Ele deu de ombros.
- Lá para o fim de julho. Com tempo de sobra, afinal, para começarmos a nos preparar para o inverno. Está preocupada?
- Nem um pouco - replicou Fran, zombando dele. Levantou-se. - Olhe só para ele, está ficando imundo.
- Eu avisei.
Ele a viu descer os degraus do alpendre e pegar o bebê. Ficou sentado ali, onde Mãe Abagail se sentara tantas vezes e por tanto tempo, e pensou na vida que os aguardava. Pensou que tudo ia dar certo. Com o passar do tempo teriam de retomar a Boulder, se quisessem que seus filhos conhecessem crianças da mesma idade, namorassem, casassem e fizessem mais filhos. Ou talvez parte de Boulder fosse ter com eles. Houvera pessoas questionando seus planos atentamente, quase submetendo-os a interrogatório... mas as expressões nos olhos de todos era mais de desejo reprimido do que de desdém ou raiva. Aparentemente, Stu e Fran não eram os únicos com uma vocação para andarilhos. Harry Dunbarton, o ex-vendedor de óculos, tinha falado em Minnesota. E Mark Zeleman, entre todos os lugares, falava no Havaí. Queria aprender a pilotar um avião e partir para o Havaí.
- Acabaria se matando, Mark - censurou Fran, indignada.
Mark apenas sorrira timidamente, dizendo:
- Logo você dizendo isso, Frannie?
E Stan Nogotny começara a falar pensativamente em ir para o sul, parando talvez em Acapulco por alguns anos e depois descendo mais um pouco, até o Peru.
- Eu lhe digo, Stu - falou. - Toda essa gente me deixa nervoso, como um perneta num concurso de salto em distância. Entre uma dúzia de pessoas não conheço mais nem uma só. Todos agora trancam suas casas à noite... não me olhe assim, é um fato. Quem me ouvisse falar, jamais pensaria que morei 16 anos em Miami e trancava minha casa todas as noites. Só que, droga, este foi um hábito que gostei de perder. De qualquer modo, isto aqui está ficando populoso demais. Tenho pensado bastante em Acapulco. Se ao menos pudesse convencer Janey...
Observando Fran bombear a água, Stu refletiu que não seria má ideia a Zona Franca desmembrar-se. Glen Bateman pensaria o mesmo, tinha certeza. Ele diria que o objetivo fora alcançado. Melhor debandar antes que...
Antes que... o quê?
Bem, na última reunião do Comitê da Zona Franca, antes de ele e Fran partirem, Hugh Petrella havia solicitado e obtido autorização para armar seus comissários. Isto se tornara a causa de Boulder, enquanto ele e Fran permaneceram lá as últimas semanas - todos haviam tomado algum partido. Em início de junho, um bêbado se engalfinhara com um dos comissários e o jogara através da vidraça do Broken Drum, um bar na Pearl Street. O comissário levara trinta pontos e precisara de uma transfusão de sangue. Em sua argumentação, Petrella declarou que nada disso teria acontecido se o seu auxiliar estivesse armado. E a controvérsia fervilhou. Muita gente achava (inclusive Stu, embora preferisse guardar para si o que pensava) que, se o comissário tivesse uma arma, o incidente poderia ter acabado com um bêbado morto em vez de um comissário ferido.
O que acontece depois que entregarmos as armas aos comissários?, perguntava-se Stu. Qual a progressão lógica? Pareceu-lhe ouvir a voz culta e levemente seca de Glen Bateman fornecendo a resposta. Então, nós lhes damos armas maiores. E viaturas policiais. Depois, ao descobrirmos a existência de uma comunidade da Zona Franca, seja no Chile ou no Canadá, tornamos Hugh Petrella ministro da Defesa, só por medida de precaução, e talvez comecemos a enviar grupos de reconhecimento, porque afinal...
Todo esse material está jogado por aí, esperando ser recolhido...
- Vamos botá-lo na cama - disse Fran, subindo os degraus.
- OK.
- O que fazia sentado aí, tão calado e pensativo?
- Estava assim?
- Com certeza.
Ele usou os dedos para forçar os cantos da boca a um sorriso.
- Melhor agora?
- Muito. Ajude-me a levá-lo para dentro.
- Com prazer.
Enquanto a seguia para o interior da casa de Mãe Abagail, Stu refletiu que seria melhor, muito melhor, eles se desligarem e se dispersarem. Que adiassem a organização o máximo possível. A organização é que sempre parecia causar o problema. Quando as células começavam a se enfeixar e ficar sombrias. Só devemos entregar armas aos policiais quando eles fossem capazes de lembrar os nomes... os rostos...
Fran acendeu um lampião de querosene que produziu um suave clarão amarelado. Peter ergueu tranquilamente os olhos para eles, já adormecendo. Peter brincara até se fartar. Fran vestiu nele uma camisola de dormir.
Tudo que qualquer um de nós precisa é de tempo, pensou Stu. O tempo da vida de Peter, da vida de seus filhos, talvez o tempo da vida dos meus bisnetos. Talvez até o ano 2100, certamente não mais do que isso. Talvez nem tanto tempo. Apenas o tempo suficiente para que a pobre e velha Mãe Terra consiga se reciclar um pouco. Uma temporada de repouso.
- O que disse? - perguntou Fran, e ele percebeu que havia murmurado seus pensamentos.
- Uma temporada de repouso - repetiu.
- O que isso quer dizer?
- Tudo - replicou ele e tomou-lhe a mão.
Baixando os olhos para Peter, pensou: Se lhe contarmos o que aconteceu, talvez repita para seus próprios filhos. Alertando-os. Queridos filhos, os brinquedos significam a morte - são lança-chamas, contaminação radioativa e a peste negra e sufocante. Esses brinquedos são perigosos; quando foram feitos, o demônio no cérebro dos homens guiou a mão de Deus. Não. Não brinquem com eles, filhos queridos, por favor, nunca. Nunca mais. Por favor... por favor, aprendam a lição. Deixem que este mundo vazio seja o seu caderno de exercícios.
- Frannie - disse ele, e a fez virar-se para poder fitá-la nos olhos.
- O que é, Stuart?
- Você acha... você acha que as pessoas chegarão a aprender alguma coisa?
Ela abriu a boca para falar, vacilou, depois ficou calada. A luz do lampião bruxuleou. Os olhos dela pareciam muito azuis.
- Não sei - disse ela por fim. Pareceu insatisfeita com a resposta e procurou dizer algo mais, que ilustrasse melhor o que tinha dito. No entanto, só conseguiu repetir:
Não sei.
O CÍRCULO SE FECHA
Precisamos de ajuda, concluiu o Poeta.
- EDWARD DORN
ELE ACORDOU AO ALVORECER.
Calçou suas botas.
Sentou-se e olhou em tomo de si. Estava numa praia tão branca como osso. Acima dele, um céu azul de azulejo sem nuvens erguia-se alto e longínquo. Além dele, um mar cor de turquesa quebrava sobre um recife e depois vinha gentilmente, ondulando acima e entre os estranhos barcos que eram...
(canoas polinésias)
Ele sabia que... mas como?
Levantou-se e quase caiu. Estava vacilante. Mal. Sentia-se pairando. Virou-se. A selva verde parecia saltar-lhe aos olhos, um emaranhado sombrio de trepadeiras e folhas largas e luxuriantes, flores em botão que eram
(tão rosadas quanto os mamilos de uma corista)
O que era uma corista?
A propósito, o que era um mamilo?
Uma arara gritou ao vê-lo, voou às cegas, chocou-se contra o grosso tronco de uma velha figueira-brava e caiu morta ao pé da árvore com os pés espichados para cima.
(sentou-se na mesa com as pernas espichadas para cima)
Um mangusto olhou para seu rosto afogueado e barbado e morreu de embolia cerebral.
(chega a irmã com uma colher e um copo)
Um besouro que estivera subindo empenhadamente o tronco de uma palmeira ficou preto e murchou para uma palha, com minúsculos pinos azuis de eletricidade crepitando por um momento entre suas antenas.
(e começa a pingar molho de seu yass-yass-yass.)
Quem sou eu?
Ele não sabia.
Onde estou?
O que importava?
Começou a caminhar - cambalear - na direção da orla da selva. Estava tonto de fome. O som da arrebentação ribombava ocamente em seus ouvidos como um louco latejar de sangue. Sua mente estava tão vazia quanto a mente de um recém-nascido.
Estava a meio caminho para a orla do verde profundo quando a folhagem se abriu e três homens surgiram. Depois quatro. E então havia meia dúzia.
Tinham a pele lisa e morena.
Olharam para ele.
Ele os fitou de volta.
As coisas começaram a acontecer.
Os seis homens se tornaram oito. Os oito viraram uma dúzia. Todos empunhavam lanças. Começaram a erguê-las ameaçadoramente. O homem de rosto barbudo olhou para eles. Estava usando jeans e calçava velhas botas de cowboy, nada mais. Seu torso era branco como a barriga de uma carpa e horrivelmente depauperado.
As lanças se ergueram plenamente. Então um dos homens bronzeados - o líder - pronunciou uma palavra repetidamente, uma palavra que soava como Yun-nah!
É, as coisas estavam chegando.
Exatamente.
Seu nome, em primeiro lugar.
Ele sorriu.
Aquele sorriso foi como um sol vermelho rompendo através de uma nuvem negra. Expôs dentes brancos brilhantes e olhos espantosamente incandescentes. Virou as palmas das mãos lisas para eles no gesto universal de paz.
Eles ficaram confusos ante a força daquele sorriso. As lanças caíram na areia; um deles cravou a sua no chão, que ficou pendendo ali, angulada e trepidante.
- Vocês falam inglês?
Eles apenas olharam.
- Hablan español?
Não. Definitivamente não hablavan a porra do espanhol.
O que significava isso?
Onde ele estava?
Bem, com o tempo saberia. Roma não foi feita num dia, nem Akron, Ohio, a propósito. E o lugar não importava.
O lugar onde você se estabelecia nunca importava. Desde que estivesse lá... e se mantivesse no controle.
- Parlez-vous français?
Nenhuma resposta. Eles o fitavam, fascinados.
Ele tentou em alemão e depois gargalhou ante seus rostos idiotas. Um deles começou a soluçar desamparado, como uma criança.
São gente simplória. Primitiva. Iletrada. Mas posso usá-los. Sim, posso usá-los perfeitamente bem.
Avançou na direção deles, as palmas lisas das mãos ainda voltadas para fora, ainda sorrindo. Seus olhos faiscavam com uma alegria cálida e lunática.
- Meu nome é Russell Faraday - disse em voz lenta e clara. - Tenho uma missão.
Eles o fitaram, todos olhos, assombro e fascinação.
- Vim para ajudá-los.
Começaram a cair de joelhos e baixar as cabeças diante dele. E seu sorriso se alargou enquanto sua sombra escura caía entre eles.
- Vim ensiná-los a ser civilizados!
- Yun-nah! - soluçou o chefe com alegria e terror. E enquanto ele beijava os pés de Russell Faraday, o homem escuro começou a rir. Ria sem parar.
A vida era que nem uma roda que nenhum homem podia deter por muito tempo.
E ela sempre, no final, girava de novo para o mesmo lugar.
Stephen King
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