Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DESAGRADAVEL PROFISSÃO DE JONATHAN Robert A. Hei
A DESAGRADAVEL PROFISSÃO DE JONATHAN Robert A. Hei

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Isso é sangue, doutor?” Jonathan Hoag umedeceu seus lábios com a língua e inclinou-se para frente na cadeira, tentando ver o que estava escrito na folha de papel que o médico segurava.
Dr. Potbury aproximou a folha de papel de seu jaleco e olhou para Hoag sobre seus óculos. “Alguma razão em particular,” perguntou, “pela qual você deveria encontrar sangue sobre suas unhas?”
“Não. Quer dizer – Bem, não – não há. Mas é sangue – ou não é?”
“Não,” Potbury disse secamente. “Não, não é sangue.”
Hoag sabia que deveria ter se sentido aliviado. Mas sentia-se. Ele sabia nesse momento que tinha se agarrado à ideia de que a sujeira marrom sobre suas unhas era sangue seco em vez de ter que lidar com outras, menos toleráveis, ideias.
Ele sentiu-se enjoado. Mas tinha que saber –
“O que é isso, doutor? Diga-me.”
Potbury olhou para ele de cima a baixo. “Você me fez uma pergunta específica. Eu a respondi. Você não me perguntou que substância ela era; você me pediu para descobrir se era ou não sangue. Não é.”
“Mas – Você está brincando comigo. Mostre-me a análise.” Hoag ergueu-se um pouco da cadeira e esticou a mão em direção à folha de papel. O doutor a afastou dele, então a rasgou cuidadosamente em dois. Colocando os dois pedaços juntos os rasgou novamente, e novamente.
“Mas, por quê!”
“Vá procurar um médico em outro lugar,” Potbury respondeu. “Não se preocupe em pagar essa consulta. Caia fora. E não volte.”
Hoag encontrou-se na rua, caminhando em direção à estação elevada. Ele ainda estava muito abalado pela descortesia do médico. Ele temia a descortesia assim como algumas pessoas temiam cobras, ou grandes alturas, ou então ambientes pequenos. Falta de educação, mesmo quando não direcionado a ele pessoalmente, mas simplesmente mostrada aos outros em sua presença, o deixava enjoado, indefeso e dominado pela vergonha.
Se ele próprio fosse o alvo da grosseria não teria defesa, exceto fugir.
Colocou um pé no primeiro degrau que levava a estação elevada e hesitou. Uma viagem de trem elevado seria uma coisa a se tentar na melhor das hipóteses, mas com os empurrões e cotoveladas, com a sujeira e a sempre presente chance de um comportamento rude, ele não estava a fim disso no momento. Se tivesse que escutar o trem gritando pela curva quando virasse para o norte em direção ao anel ferroviário, suspeitava que gritaria, também.
Hoag virou-se subitamente e forçou-se a parar de forma abrupta, pois estava peito a peito com um homem que ia subir a escada. Ele se esquivou. “Olhe por onde anda amigo,” o homem disse, ao passar raspando por ele.
“Desculpe”, Hoag murmurou, mas o homem já tinha seguido em frente.

 

 

 

 

O tom do homem tinha sido mais de alerta que indelicado; o incidente não deveria ter perturbado Hoag, mas o perturbou. Os trajes do homem, sua aparência, seu próprio cheiro, irritou Hoag. Ele sabia que não havia mal nenhum em usar macacão bem acabado e uma jaqueta de couro, que não havia falta de virtude em um rosto um pouco gorduroso pelo suor seco acumulado no decorrer do trabalho. Fixado no boné do homem estava um emblema oval, com um número de série e algumas letras. Hoag adivinhou que era um motorista de caminhão, um mecânico, ou um ofício similar, que com suas habilidades musculares manteriam as rodas girando. Provavelmente um homem de família também, um pai carinhoso e um bom provedor, cujo maior lapso de virtude poderia ser um copo extra de cerveja ou uma tendência de apostar mais um níquel no pôquer.

Era simples infantilidade para Hoag permitir-se levar-se por aparências e preferir uma camisa branca, um paletó decente e luvas. Mas se o homem cheirasse a loção pós-barba no lugar de suor o encontro não teria sido desagradável.

Hoag perguntou-se se não seria tolo e fraco. Ainda assim – poderia tal rosto grosseiro e abrutalhado ser uma marca externa de gentileza e sensibilidade? Esse nariz de batata disforme, esses olhos de porco?

Deixe para lá, ele iria para casa de táxi, sem olhar para mais ninguém. Tinha um ponto de táxi logo adiante, em frente de uma charutaria.

“Para onde?” A porta do táxi estava aberta, a voz do motorista impessoal e insistente.

Hoag olhou para ele, hesitou e então mudou de ideia. Essa brutalidade novamente – olhos sem profundidade e uma pele marcada por cravos e poros dilatados.

“Ahh... desculpe-me. Eu esqueci uma coisa.” Então virou-se rapidamente e parou abruptamente, quando algo o pegou pela cintura. Era um pequeno menino sobre patins que tinha esbarrado nele. Hoag firmou-se e assumiu a aparência de bondade paternal que usava para lidar com crianças. “Opa, cuidado aí, rapazinho!” Pegou o garoto pelo ombro e gentilmente o moveu.

“Maurice!” Uma voz gritou perto de seu ouvido, estridente e insensata. Ela veio de uma grande mulher, presunçosamente gorda, que se projetava para fora da porta da charutaria. Ela agarrou o outro braço do garoto, puxando-o para longe e armando um puxão de orelha com a outra mão livre. Hoag começou a defender o garoto quando viu que a mulher o estava encarando. O jovem, percebendo ou sentindo a atitude de sua mãe, chutou Hoag.

Os patins o acertaram na canela. Doeu. Ele saiu correndo com nenhum outro propósito além sair de vista. Virou na primeira rua lateral, sua canela fazendo-o mancar um pouco, e as orelhas e parte de trás do pescoço queimando como se tivesse sido pego maltratando o pirralho. A rua lateral não estava muito melhor que a rua que tinha deixado. Não era repleta de lojas, nem dominada pela estrutura de aço dos trilhos elevados, mas era cheia de prédios de apartamentos de quatro andares e superlotados, um pouco melhor que cortiços.

Poetas cantaram a beleza e a inocência da infância. Mas não teria sido essa rua, vista através dos olhos de Hoag, o que eles tinham em mente. Os pequenos garotos pareciam encará-lo irritados, com uma esperteza além de seus anos, esperteza, superficialidade e malícia. As pequenas garotas não eram melhores em seus olhos. Aquelas de oito ou nove, uma viscosa idade indefinida, pareciam fofoqueiras escritas em seus rostos apertados – almas mesquinhas, nascidas para criar problemas e fofocas cruéis. Suas irmãs ligeiramente mais velhas, sábias de sarjeta muito jovens, pareciam inteiramente preocupadas em fazer propaganda de seus arrogantes novos sexos – não para o benefício de Hoag, mas para suas contrapartidas espinhentas vagabundeando perto da farmácia.

Mesmo os pirralhos em carrinhos de bebê – Hoag imaginava que gostava de bebês, divertia-se no papel de tio honorário. Não com esses. Com narizes ranhentos e cheiro azedo, berrando miseravelmente.

O pequeno hotel era como milhares de outros, definitivamente de terceira classe e sem pretensões, com um simples anúncio de neon onde se lia: “Hotel Manchester, Transientes & Permanentes,” um saguão com pé direito baixo, comprido, estreito e um pouco escuro. Frequentados por vendedores viajantes cuidadosos com suas despesas, e habitados por solteiros que não podem bancar coisa melhor. O único elevador é uma gaiola de aço, meio disfarçada com pintura bronze. O chão do saguão em azulejos, as cuspideiras em bronze. Em adição à mesa do recepcionista há duas palmeiras desencorajadas e oito poltronas de couro. Velhos anexados a elas, que parecem nunca terem tido um passado, sentam-se nessas cadeiras, vivem nos quartos acima, e vez ou outra um deles é encontrado enforcado em seu quarto, com a gravata presa ao lustre.

Hoag recuou para a porta do Manchester para evitar ser pego por crianças correndo ao longo da calçada. Alguma espécie de jogo, aparentemente – pegou um trecho de um canto estridente, “- dê a ele um tapa, para fechar sua arapuca; a última morada de um sujo japa!”

“Procurando alguém, senhor? Ou deseja um quarto?”

Virou-se rapidamente, um pouco surpreso. Um quarto? O que queria era seu próprio apartamento confortável, mas no momento um quarto, qualquer quarto afinal, em que pudesse ficar sozinho com uma porta fechada entre si e o mundo parecia a coisa mais desejável possível. “Sim, eu quero um quarto.”

O recepcionista virou o livro de registro para ele. “Com ou sem? Cinco e cinquenta com, três e meio sem.”

“Com.”

O recepcionista o observou assinar, mas não buscou as chaves até que Hoag contasse cinco notas e cinquenta centavos. “Ficamos felizes em tê-lo conosco. Bill! Mostre ao Sr. Hoag o 412.”

O mensageiro solitário conduziu-o até a gaiola, olhou para ele de cima a baixo com um olho, notando o corte caro de seu paletó e a ausência de bagagem. Uma vez no 412 ergueu a janela um pouco, ligou a luz do banheiro, e ficou parado na porta.

“Procurando por algo?”, sugeriu. “Precisa de ajuda?”

Hoag deu uma gorjeta a ele. “Caia fora,” disse rispidamente.

O mensageiro removeu seu sorriso. “Fique à vontade,” disse encolhendo os ombros.

O quarto tinha uma cama dupla, um cômoda com gavetas e espelho, uma cadeira de espaldar reto e uma poltrona. Sobre a cama estava um pôster enquadrado intitulado “O Coliseu sob a luz da lua.” Mas a porta podia ser fechada e era equipada com uma tranca, bem como a janela tinha vista para o beco, longe da rua. Hoag sentou-se na poltrona. Ela tinha uma mola quebrada, mas ele não se importou.

Retirou suas luvas e encarou suas unhas. Elas estavam bem limpas. Poderia a coisa toda ter sido uma alucinação? Ele chegou a ter se consultado com o Dr. Potbury? Um homem que teve amnésia uma vez poderia ter novamente, ele supunha, e alucinações também.

Mesmo assim, tudo isso não devia ser alucinações; ele lembrava-se do incidente muito vividamente. Ou poderia ser? Esforçou-se para lembrar exatamente o que tinha acontecido.

Hoje era quarta-feira seu costumeiro dia de descanso. Ontem tinha retornado para casa do trabalho como sempre. Estava preparando-se para vestir-se para o jantar – um pouco ausente – concentrando-se, ele se recordava, em pensar sobre onde iria jantar, entre tentar um novo local italiano recomendado por seus amigos, os Robertsons, ou se não seria mais agradável retornar ao indubitavelmente excelente goulash do chef do Buda-Pesth.

Tinha decidido escolher o caminho mais seguro quando o telefone tocou. Quase não o ouviu, pois a torneira estava aberta na pia. Tinha pensado ter ouvido algo então fechou a torneira. Agora com certeza, o telefone tocou novamente. Era a Sra. Pomeroy Jameson, uma das suas favoritas anfitriãs – não somente uma mulher charmosa por si mesma, mas com um cozinheiro que era capaz de fazer sopas claras que não pareciam água suja. E molhos. Ela tinha oferecido uma solução para seu problema. “Eu fui subitamente abandonada à minha própria sorte no ultimo momento e preciso de outro homem para o jantar. Você está livre? Poderia me ajudar? Querido Sr. Hoag!”

Foi uma lembrança muito agradável e ele não tinha nenhum ressentimento por ser convidado para preencher alguém ausente no último minuto. Afinal de contas, não se pode esperar ser convidado para cada pequeno jantar. Ficou encantado em prestigiar Edith Pomeroy. Ela servia um despretensioso mas excelente vinho branco seco com peixe e ela nunca cometia a grosseria de servir champanhe a qualquer momento. Era boa anfitriã e ele ficou feliz por ela ter tido a liberdade de pedir a ajuda dele. Era uma homenagem para ele que ela sentisse que ele deveria se encaixar, de forma não planejada.

Ele tinha tido tais pensamentos em sua mente, recordava-se, enquanto vestia-se. Provavelmente, em sua preocupação, o que com a interrupção do telefonema seria uma quebra de rotina, ele negligenciou a escovação de suas unhas.

Deve ter sido isso. Certamente não teve oportunidade de sujar suas unhas tão atrozmente no caminho da casa de Pomeroy. Afinal, usava luvas.

Tinha sido a cunhada da Sra. Pomeroy – uma mulher que preferiria evitar! – quem tinha chamado sua atenção para suas unhas. Ela esteve insistindo com um positivismo chamado de “moderno” que a profissão de cada homem estava escrita em sua pessoa. “Tome meu marido – o que mais poderia ser além de um advogado? Olhe para ele. E você, Doutor Fitts – é pura postura médica!”

“Não no jantar, eu espero.”

“Você não pode evitar.”

“Mas você não provou sua teoria. Você já sabia o que nós somos.”

Diante disse essa mulher impossível olhou em volta da mesa e o alfinetou com seus olhos. “O Sr. Hoag pode me testar. Eu não sei o que ele faz. Ninguém sabe.”

“Realmente, Julia.” A Sra. Pomeroy tentou intervir sem esperança, então se virou para o homem ao seu lado com um sorriso. “Julia esteve estudando psicologia nesse semestre.”

O homem à sua esquerda, Sudkins, ou Snuggins – Stubbins, esse era o seu nome. Stubbins disse, “O que o Sr. Hoag faz?”

“É um pequeno mistério. Ele nunca fala sobre o trabalho.”

“Não é isso,” Hoag ofereceu uma resposta. “Eu não considero – ”

“Não me diga!” aquela mulher tinha ordenado. “Eu vou descobrir em um momento. Alguma profissão. Eu consigo vê-lo com uma pasta.” Ele não tinha a intenção de contar a ela. Alguns assuntos eram conversa de jantar; outros não eram. Mas ela prosseguiu.

“Você deve trabalhar com finanças. Você pode ser um negociante de arte ou um entusiasta literário. Ou então você pode ser um escrito. Deixe-me ver suas mãos.”

Ele hesitou ligeiramente frente à demanda, mas colocou suas mãos sobre a mesa sem tremer. Aquela mulher lançou-se sobre ele. “Peguei-te! Você é um químico.”

Todos olharam para onde ela apontou. Todos viram as manchas escuras sobre suas unhas. Seu marido quebrou o breve silêncio ao dizer, “Bobagem, Julia. Existem dúzias de coisas que mancham unhas. Hoag pode mexer com fotografia, ou trabalhar com gravuras. Sua inferência não poderia ser mantida em um tribunal.”

“Esse esta advogando para você! Eu sei que estou certa. Não estou, Sr. Hoag?”

Ele mesmo esteve olhando ininterruptamente para suas mãos. Ser pego em um jantar com a manicure desleixada teria sido o suficiente angustiante – se tivesse sido capaz de entender a razão disso.

Mas não tinha a menor ideia de como suas unhas tinham ficado sujas. Foi em seu trabalho? Obviamente – mas o que fez durante o dia?

Não sabia.

“Conte para nós Sr. Hoag. Eu estou certa, não estou?”

Ele tirou seus olhos daquelas horríveis unhas e disse baixinho, “Eu peço desculpas.” Com isso deixou a mesa. Encontrou o caminho até o lavabo, onde, de posse de uma repulsa irracional, limpou a pegajosa imundice marrom-avermelhada com a lâmina de seu canivete. A coisa grudou na lâmina; ele limpou-a com toalha de papel, a amassou e enfiou no bolso de seu colete. Então ele esfregou suas unhas, novamente, mais e mais.

Ele não conseguia se lembrar de quando ficou convencido de que a coisa era sangue, era sangue humano.

Conseguiu encontrar seu chapéu-coco, seu casaco, luvas e as colocou sem precisar recorrer à empregada. Saiu para a rua e fugiu de lá o mais rápido que pode.

Pensando nisso no sossego do quarto sujo de hotel, ficou convencido de que seu primeiro medo tinha sido uma repulsa instintiva com a visão do vermelho escuro sobre suas unhas. Foi apenas em um segundo momento que percebeu que não se lembrava de onde teria sujado suas unhas porque não tinha nenhuma lembrança do que tinha acontecido naquele dia, ou do dia anterior, nem de qualquer dos dias antes desse. Ele não sabia qual era a sua profissão.

Era um absurdo, mas terrivelmente assustador.

Pulou o jantar completamente para não ter de deixar o silencioso quarto sujo de hotel; por volta das dez horas encheu a banheira com água tão quente quanto poderia aguentar e imergiu-se. Isso o relaxou um pouco e seus pensamentos confusos sossegaram um pouco. De qualquer forma, consolou-se, se ele não conseguia lembrar-se de sua ocupação, então certamente não retornaria para ela. Sem chance de encontrar novamente aquela nojeira horrorosa sobre suas unhas.

Enxugou-se e rastejou sobre os cobertores. Apesar da estranheza da cama, conseguiu dormir.

Um pesadelo o acordou bruscamente, embora não percebesse isso de início, pois o ambiente de mau gosto do quarto parecia encaixar-se no pesadelo. Quando se lembrou de onde estava e por que estava ali o pesadelo parecia preferível, mas esse momento passou varrido de sua mente. Seu relógio mostrava que era a hora de acordar de costume; chamou o mensageiro e pediu para providenciar uma bandeja de café da manhã.

No momento em que este chegou já estava vestido com a única roupa que tinha com ele e estava ficando ansioso para ir para casa. Bebeu duas xícaras de um café desinteressante de pé, brincou com a comida e então deixou o hotel.

Depois de entrar em seu apartamento pendurou seu casaco e chapéu, tirou suas luvas, e foi como de costume para sua suíte. Ele tinha esfregado cuidadosamente as unhas de sua mão esquerda e estava apenas começando a da sua direita quando percebeu o que estava fazendo.

As unhas de sua mão esquerda estavam brancas e limpas; as da mão direita estavam escuras e sujas. Controlando-se cuidadosamente endireitou-se, saiu do lavabo e examinou seu relógio onde o tinha colocado no armário, então comparou a hora marcada com o relógio elétrico ao lado da cama. Era seis e dez após o meio dia – seu horário usual em que retornava para casa à noite.

Ele podia não se lembrar de sua profissão; sua profissão, certamente, não tinha se esquecido dele.


II

 

A empresa de Randall & Craig, Investigações Confidenciais, mantinha seu telefone noturno em um apartamento duplex. Isso era conveniente, pois Randall tinha se casado com Craig no começo da associação. A sócia minoritária tinha acabado de colocar os pratos do jantar na lava-louças e estava tentando decidir se iria continuar lendo o livro do mês quando o telefone tocou. Ela estendeu as mãos, pegou o receptor e disse, “Sim?” em um tom descompromissado.

A isso ela adicionou, “Sim.”

O sócio majoritário parou o que estava fazendo – ele estava engajado em um delicado trabalho de investigação científica, envolvendo armas mortais, balística e alguns aspectos esotéricos da aerodinâmica; mais especificamente estava tentando aperfeiçoar seu arremesso com os dardos, usando uma rotogravura de uma glamorosa garota pregada em uma placa de pão como alvo. Um dardo tinha atingido seu olho esquerdo; ele estava tentando combiná-lo acertando um no direito.

“Sim.” sua esposa disse novamente.

“Tente dizer ‘Não,’” ele sugeriu.

Ela tapou o bocal do telefone. “Fique quieto e me dê um lápis.” Ela estendeu um longo braço através da mesa de canto e pegou um bloco de estenografia de um gancho. “Sim. Prossiga.” Aceitando o lápis ela traçou várias linhas e rabiscos que estenógrafos usam no lugar de escrever. “Isso parece mais provável,” ela disse finalmente. “O Sr. Randall não está aqui usualmente nessa hora. Ele prefere muito mais ver os clientes durante o horário comercial. O Sr. Craig? Não, eu tenho certeza que o Sr. Craig não poderia ajudá-lo. Positivo. Então? Espere na linha e eu vou descobrir.”

Randall fez mais uma tentativa na adorável senhora; o dardo atingiu a perna do aparelho de rádio. “Então?”

“Tem uma figura do outro lado da linha que deseja muito vê-lo nesta noite. O nome é Hoag, Jonathan Hoag. Alega que é uma impossibilidade física vê-lo durante o horário comercial. Não quer dizer sua profissão e ficou todo confuso quando tentou dizer.”

“Cavalheiro ou mal educado?”

“Cavalheiro.”

“Tem dinheiro?”

“Parece que sim. Não parecia preocupado com isso. Melhor pegar, Teddy. Dia 15 de Abril está chegando.”

“O.K. Passe para mim.”

Ela o afastou e falou novamente no telefone. “Eu consegui localizar o Sr. Randall. Eu acho que ele conseguirá falar com o senhor em alguns instantes. Você pode aguardar na linha, por favor?” Ainda segurando o telefone longe de seu marido ela consultou seu relógio, cuidadosamente contando trinta segundos, e então disse, “Pronto com o Sr. Randall. Pode prosseguir, Sr. Hoag.” e deslizou o aparelho para o seu marido.

“Edward Randall falando. O que há, Sr. Hoag?”

“Oh, realmente agora, Sr. Hoag, eu acho que seria melhor o senhor vir pela manhã. Nós todos somos humanos e precisamos ter nosso descanso – Eu preciso, de qualquer forma.

“Eu preciso avisá-lo, Sr. Hoag, meus preços aumentam quando o sol se põe.

“Bem, agora, deixe-me ver – Eu estava prestes a sair para ir para casa. Na verdade, eu acabei de falar com minha esposa, portanto ela está me aguardando. Você sabe como as mulheres são. Mas se você puder vir até minha casa em vinte minutos, às... ah... dezessete minutos após as oito horas, nós poderemos conversar por alguns minutos. Tudo bem – tem um lápis à mão? Esse é o endereço –” Ele desligou o telefone.

“O que eu serei dessa vez? Esposa, sócia ou secretária?”

“O que você acha? Você falou com ele.”

“’Esposa’, eu acho. Sua voz soava fresca.”

“O.K.”

“Eu vou colocar um vestido de jantar. E é melhor recolher seus brinquedos do chão, Gênio.”

“Ah, não sei. Isso dá um belo toque de excentricidade.”

“Talvez você queira um pouco de tabaco em um chinelo felpudo. Ou uma cigarrilha Regie.” Ela moveu-se pela sala, desligando as luzes do teto e ligando as luminárias de mesa e de chão de forma que a cadeira onde o visitante naturalmente se sentaria estivesse bem iluminada.

Sem responder ele reuniu seus dardos e a tábua de pão, parando para umedecer seu dedo e esfregar o pondo onde tinha marcado o rádio, então colocou toda a coleção na cozinha e fechou a porta. Na luz suave, com a cozinha e a mesa de café da manhã não mais visível, a sala parecia serenamente opulenta.

“Como você vai, Senhor? Sr. Hoag, meu caro. Sr. Hoag... Sra. Randall.”

“Como vai, senhora.”

Randall o ajudou com seu casaco, assegurando-se no processo de que o Sr. Hoag não estava armado, ou – se estivesse – ele teria encontrado algum lugar diferente do ombro ou quadril para carregar uma arma. Randall não estava desconfiado, mas era pragmaticamente pessimista.

“Sente-se Sr. Hoag. Cigarro?”

“Não. Não, obrigado.”

Randall não disse nada como resposta. Ele sentou-se e o encarou, não rudemente, mas suavemente, não obstante intensamente. O seu terno poderia ser da marca English ou Brook Brothers. Certamente não seria Hart, Schaffner & Marx. O laço em seu pescoço poderia ser qualificado como uma gravata, embora fosse modesto como o de freira. Ele elevou seus honorários mentalmente. O pequeno homem estava nervoso – ele não relaxaria em sua cadeira. Seria a presença da mulher, provavelmente. Bom – deixe-o cozinhar em fogo baixo, para então retirá-lo do fogo.

“Você não precisa se preocupar com a presença da Sra. Randall,” disse logo. “Tudo que eu puder ouvir, ela poderá ouvir também.”

“Oh... Oh, sim. Sim, realmente.” Ele curvou-se um pouco à frente, sem levantar-se. “Eu estou muito feliz em ter a Sra. Randall presente.” Mas não prosseguiu para dizer qual era seu problema.

“Bem, Sr. Hoag,” Randall logo acrescentou, ”você desejava me consultar sobre algo, não é?”

“Uh, sim.”

“Então talvez seja melhor você me contar sobre isso.”

“Sim, certamente. Isso – ou melhor – Sr. Randall, a coisa toda é absurda.”

“A maior parte de nosso negócio é absurdo. Mas prossiga. Problemas com mulher? Ou alguém está lhe enviando cartas ameaçadoras?”

“Oh, não! Nada simples assim. Mas estou com medo.”

“De quê?”

“Eu não sei,” Hoag respondeu rapidamente inspirando um pouco. “Eu desejo que você descubra.”

“Espere um minuto, Sr. Hoag,” Randall disse. “Isso parece estar ficando cada vez mais confuso e não menos. Você disse que teme algo e que você quer que eu descubra do quê você tem medo. Eu não sou um psicanalista; Eu sou um detetive. O que existe nisso tudo que um detetive possa fazer?”

Hoag olhou infeliz, então soltou de uma vez, “Eu quero que você descubra o que eu faço no horário comercial.”

Randall olhou para ele, então disse lentamente, “Você quer que eu descubra o que você faz no horário comercial?”

“Sim. Sim, é isso.”

“Mm-m-m. Não seria mais fácil para você me dizer o que você faz?”

“Oh, eu não poderia contar para você!”

“Por que não?”

“Eu não sei.”

Randall estava ficando um tanto irritado. “Sr. Hoag,” disse, “Eu normalmente cobro o dobro para brincar de jogos de adivinhação. Se você não me disser o que faz no horário comercial, isso demonstra uma falta de confiança em mim o que vai tornar realmente muito mais difícil ajudá-lo. Agora jogue limpo comigo – o que é que você faz no horário comercial e o que isso tem a ver com o caso? Qual é o caso?”.

O Sr. Hoag levantou-se. “Eu deveria saber que não conseguiria explicar isso,” disse tristemente, mais para si mesmo do que para Randall. “Eu sinto muito por ter incomodado o senhor. Eu – ”

“Espere um minuto, Sr. Hoag.” Cynthia Craig Randall falou pela primeira vez. “Eu acho que talvez vocês dois não estejam se entendendo. Você quer dizer, não é isso, que você realmente e literalmente não sabe o que faz no horário comercial?”

“Sim,” disse agradecidamente. “Sim, é exatamente isso.”

“E você quer que nós descubramos o que você faz? Que o sigamos, descubramos aonde você vai, e então contemos para você o que está fazendo?”

Hoag acenou afirmativamente e vigorosamente. “É isso que eu estava tentando dizer.”

Randall olhou de Hoag para sua esposa e de volta para Hoag. “Vamos entender isso direito,” disse lentamente. “Você realmente não sabe o que faz no horário comercial e você quer que eu descubra. Há quanto tempo isso vem acontecendo?”

“Eu... Eu não sei.”

“Bem – o que você sabe?”


Hoag conseguiu contar sua história, sendo instigado a isso. Suas lembranças de qualquer tipo recuavam por volta de cinco anos, até a casa de repouso St. George em Dubuque. Amnésia incurável – isso não o preocupava mais e ele tinha se considerado completamente reabilitado. Elas – as autoridades do hospital – encontraram um emprego para ele e então recebeu alta.

“Que tipo de trabalho?”

Ele não sabia isso. Presumivelmente era o mesmo emprego que ele ainda tinha sua ocupação atual. Foi aconselhado fortemente, ao deixar a casa de repouso, a nunca se preocupar com seu trabalho, nunca levar seu trabalho para casa com ele, mesmo em seus pensamentos. “Veja bem,” Hoag explicou, “eles trabalharam com a teoria de que a amnésia foi produzida por excesso de trabalho e preocupações com ele. Eu me lembro do Dr. Rennault me contar enfaticamente de que eu nunca deveria ficar falando sobre o trabalho, nunca deveria deixar minha mente preocupar-se com o dia de trabalho. Quando eu fosse para casa à noite eu deveria esquecer tais coisas e me ocupar com assuntos prazerosos. Então foi o que tentei fazer.”

“Hm-m-m. Você certamente deve ter tido sucesso nisso, quase sucesso de mais para parecer crível. Veja bem – eles usaram hipnose em seu tratamento?”

“Bem, na verdade eu não sei.”

“Devem ter usado. O que acha disso, Cyn? Não parece?”

Sua esposa acenou afirmativamente, “Parece. Pós-hipnose. [2] Depois de cinco anos ele não consegue pensar em seu trabalho depois do fim do expediente, não importa o quanto tente. No entanto, parece uma terapia muito estranha.”

Randall estava satisfeito. Ela lidava bem com assuntos psicológicos. Se ela obtinha suas respostas através de seu extenso estudo formal, ou se vinha de seu subconsciente, ele nunca sabia ao certo. Suas respostas pareciam funcionar. “Algo ainda me incomoda,” adicionou. “Você prosseguiu ao longo de cinco anos, aparentemente nunca sabendo onde ou como você trabalhava. Por que esse desejo súbito de saber?”

Ele contou a história da discussão na mesa de jantar, sobre a estranha substância sobre suas unhas, e sobre o médico não cooperativo. “Eu estou com medo,” disse miseravelmente. “Eu pensei que fosse sangue. E agora eu sei que é algo – pior.”

“Por quê?”

Hoag umedeceu seus lábios. “Porque –” fez uma pausa e olhou sem esperanças. “Você irá me ajudar, não é?”

Randall endireitou a coluna. “Essa não é minha especialidade,” disse. “Você precisa de ajuda, isso é certo, mas você precisa de ajuda de um psiquiatra. Amnésia não é minha área. Eu sou um detetive.”

“Mas eu preciso de um detetive. Eu preciso que você observe-me e descubra o que eu faço.”

Randall começou a recusar; sua esposa o interrompeu. “Eu tenho certeza de que poderemos ajudá-lo, Sr. Hoag. Talvez você também devesse ver um psiquiatra –”

“Oh, não!”

“– mas se você deseja ser seguido, isso será feito.”

“Eu não gosto disso,” disse Randall. “Ele não precisa de nós.”

Hoag colocou suas luvas na mesa lateral e alcançou seu bolso no peito. “Eu farei isso valer o seu esforço.” Ele começou a contar cédulas. “Eu trouxe apenas quintos,” disse ansiosamente, “é o suficiente?”

“Isso é o suficiente,” ela disse.

“Como um depósito,” Randall adicionou. Aceitou o dinheiro e o enfiou no seu bolso lateral. “A propósito,” ele adicionou, “se você não sabe o que faz durante o horário comercial e você não se lembra de nada além de um hospital, de onde você consegue o dinheiro?” Fez sua voz soar casual.

“Oh, eu recebo todo domingo. Duzentos dólares, em dinheiro.”

Quando ele saiu Randall entregou o dinheiro à sua esposa. “Lindos papeizinhos,” ela disse, alisando o dinheiro e dobrando-o ordenadamente. “Teddy, porque você tentou afastar o sujeitinho?”

“Eu? Eu não – eu estava apenas aumentando o preço. O velho truque do ‘Eu-te-odeio-não-me-abandone.’” [3]

“Isso foi o que eu pensei. Mas você quase exagerou nisso.”

“De forma alguma. Eu sabia que poderia contar com você. Você não o deixaria sair da casa com um centavo no bolso.”

Ela sorriu alegremente. “Você é um bom homem, Teddy. E nós temos tanto em comum. Nós dois amamos dinheiro. Em quanto dessa história você acreditou?”

“Em nem uma maldita palavra.”

“Nem eu. Ele esta mais para um horrível monstrinho – Eu imagino o que está pretendendo.”

“Eu não sei, mas pretendo descobrir.”

“Você não vai segui-lo você mesmo, vai?”

“Por que não? Por que pagar dez dólares por dia para algum desajeitado estragar tudo?” [4]

“Teddy, eu não gosto dessa coisa toda. Por que estaria disposto a pagar tanto assim” – ela gesticulou com as cédulas – “para arrastá-lo por aí pelo nariz?”

“É isso que eu quero descobrir.”

“Seja cuidadoso. Lembre-se da ‘Liga dos Cabeças Vermelhas.’”

“’Liga dos Cabeças’ – Ah, Sherlock Holmes novamente. Seja adulta, Cyn.” [5]

“Eu sou. E seja você mesmo. Esse homenzinho é mau.”

Ela deixou a sala e guardou o dinheiro. Quando retornou ele estava abaixado em seus joelhos perto da cadeira onde Hoag esteve sentado, ocupado com um soprador. Olhava em volta quando ela se aproximou.

“Cyn – a”

“Sim, gênio.”

“Você não tocou nessa cadeira?”

“É claro que não. Eu poli os braços como de costume antes dele aparecer.”

“Não é isso que eu quis dizer. Eu quero dizer desde que ele saiu. Ele alguma vez retirou as luvas?”

“Espere um minuto. Sim, eu tenho certeza que tirou. Eu olhei para suas unhas quando ele contou aquela lorota sobre elas.”

“Assim como eu, mas eu queria ter certeza de que não estava maluco. Dê uma olhada nessa superfície.”

Ela examinou os braços polidos da cadeira, agora cobertos com um fino filme de poeira cinza. A superfície estava imaculada – sem impressões digitais. “Ele parece nunca ter tocado nela – mas ele o fez. Eu vi. Quando disse, ‘Eu estou com medo,’ agarrou ambos os braços da cadeira. Eu me lembro de perceber como suas juntas estavam azuladas.”

“Colódio, talvez?” [6]

“Não seja boba. Não há sequer uma mancha. Você apertou as mãos dele. Ele parecia ter Colódio em suas mãos?”

“Eu não acho. Eu acho que teria percebido. O Homem sem Impressões Digitais. Vamos chamá-lo de fantasma e esqueça isso.”

“Fantasmas não pagam em dinheiro vivo para serem espionados.”

“Não, eles não fazem isso. Não que eu tenha ouvido falar.”

Ele ficou de pé e caminhou para a mesa lateral, pegou o telefone e discou o código de longa distância. “Eu quero falar com centro Médico em Dubuque, ah –” colocou a mão no telefone e chamou sua esposa. “Diga, querida, em raio de estado fica Dubuque?”

Quarenta e cinto minutos e diversas chamadas depois ele bateu o fone de volta no aparelho. “Era só o que faltava,” anunciou. “Não existe Casa de Repouso St. George em Dubuque. Nunca houve e provavelmente nunca haverá. E não existe nenhum Doutor Rennault.”


III


“Ali está ele!” Cynthia Craig Randall cutucou seu marido.

Ele continuou segurando o jornal na frente de seu rosto como se estivesse lendo. “Eu o vejo,” disse em voz baixa. “Controle-se. Parece que você nunca seguiu alguém antes. É moleza.”

“Teddy seja cuidadoso.”

“Eu serei.” Ele olhou de relance sobre o topo do jornal e observou Jonathan Hoag descendo os ostentadores degraus dos Apartamentos Gotham no qual ele tinha residência. Quando saiu de baixo do toldo ele virou para esquerda. O horário era exatamente sete minutos antes das nove da manhã.

Randall levantou-se, dobrou o jornal com cuidado, e o deixou no banco do ponto de ônibus em que ele estava esperando. Então ele virou-se em direção à farmácia atrás dele, colocou uma moeda na fenda da máquina de venda automática de goma de mascar em um recesso da porta loja. Através do espelho da frente da máquina ele observou o calmo progresso de Hoag descendo pelo lado mais distante da rua. Com a mesma calma ele foi atrás dele, sem atravessar a rua.

Cynthia esperou no banco até que Randall tivesse tempo suficiente para ficar a meia quadra à frente dela, então se levantou e o seguiu.

Hoag subiu em um ônibus na segunda esquina. Randall aproveitou-se de uma mudança no semáforo que manteve o ônibus parado na esquina, atravessou contra a sinalização e conseguiu alcançar o ônibus quando ele estava prestes a sair. Hoag tinha subido para o deck superior; Randall sentou-se abaixo.

Cynthia estava muito longe para conseguir alcançar o ônibus, mas não muito distante para anotar o seu número. Ela assobiou para o primeiro táxi que passava, deu o número do ônibus para o motorista, e pediu para segui-lo. Eles cobriram doze quadras antes de alcançarem o ônibus; três quadras depois o sinal vermelho possibilitou que o motorista parasse ao lado do ônibus. Ela viu seu marido dentro dele; era tudo que ela precisava saber. Ela ocupou-se pelo resto da viagem em manter em sua mão a quantia exata mostrada no taxímetro mais um quarto do valor de gorjeta.

Quando ela os viu saírem do ônibus ela pediu para o motorista parar. Ele o fez, alguns metros depois do ponto de ônibus. Infelizmente eles caminhavam em sua direção; ela não queria sair de uma vez do táxi. Ela pagou ao motorista a exata quantia mostrada no taxímetro enquanto mantinha um olho – aquele na parte de trás da cabeça – nos dois homens. O motorista olhou para ela curiosamente.

“Você persegue mulheres?” ela disse subitamente.

“Não senhora, eu tenho família.”

“Meu marido persegue,” ela disse amargamente e caluniosamente. “Aqui.” Ela entregou a ele a gorjeta.

Hoag e Randall já estavam alguns metros à frente. Ela saiu, foi para a loja em frente e esperou. Para sua surpresa ela viu Hoag virar-se e falar com seu marido. Ela estava muito distante para ouvir o que era dito.

Ela hesitou em encontrá-los. Algo estava errado; isso a deixou apreensiva – mas seu marido parecia despreocupado. Ele escutou calmamente ao que Hoag tinha a dizer, então os dois entraram no prédio de escritórios na frente do qual estavam parados.

Ela aproximou-se rapidamente. O saguão do prédio de escritórios estava cheio como poderia esperar-se nessa hora da manhã. Seis elevadores, em série, estavam fazendo suas viagens apressadas. O número dois bateu suas portas. O número três começou a encher-se. Eles não estavam no número três; ela parou perto da banca de cigarros e acomodou-se no local.

Eles não estavam no saguão. Nem estavam, ela rapidamente certificou-se, na barbearia com acesso pelo saguão. Eles provavelmente foram os últimos passageiros a subir pelo elevador número dois em sua última viagem. Ela ficou observando o indicador de posição do elevador número dois sem descobrir nada de útil com isso; o elevador parou em todos os andares.

O elevador número dois estava de volta agora; ela entrou como uma passageira, não a primeira nem a última, mas entre a multidão. Ela não pediu um andar, mas esperou até que o último dos outros tivesse descido.

O ascensorista ergueu as sobrancelhas para ela. “Andar, por favor!” ele pediu.

Ela mostrou para ele uma nota de um dólar. “Eu quero falar com você.”

Ele fechou a porta, conseguindo alguma privacidade. “Seja rápida,” disse, olhando para os indicadores em seu painel.

“Dois homens entraram juntos na última viagem.” Ela os descreveu rapidamente e vividamente.

“Eu quero saber em que andar eles saltaram.”

Ele sacudiu a cabeça. “Eu não sei. Estamos na hora do rush.”

Ela adicionou outra cédula. “Pense. Eles foram provavelmente os dois últimos a entrarem a bordo. Talvez eles tiveram que dar licença para os outros descerem. O mais baixo provavelmente foi quem disse qual seria o andar.”

Ele sacudiu sua cabeça novamente. “Mesmo se você enchesse mão com isso eu não poderia dizer para você. Durante a hora do rush Lady Godiva e seu cavalo poderiam entrar aqui com a sua carruagem que eu não perceberia. Agora – você quer sair agora ou ir para baixo?”

“Baixo.” Ela entregou para ele uma das cédulas. “Obrigado por tentar.”

Ele olhou para ela, ergueu os ombros e embolsou o dinheiro.

Não havia nada a se fazer exceto voltar para seu posto no saguão. Assim ela fez, fumegando. Fizeram com ela o truque mais velho desde que inventaram o abanar de rabo. Fizeram-na de trouxa com o truque do prédio de escritórios! Eles provavelmente já tinham saído do prédio agora, com o Teddy imaginando onde ela estaria e talvez precisando dela para como backup.

Ela foi enrolada! Maldição!

Ela pegou uma garrafa de Pepsi-Cola na banca de cigarros e bebeu lentamente, em pé. Ela estava imaginando deveria pegar outra, no interesse de manter o disfarce, quando Randall apareceu.

Só ao ser varrida por uma sensação de alívio ela percebeu o quanto estava preocupada. No entanto, ela não saiu do personagem. Ela virou a cabeça para outro lado, sabendo que seu marido a veria e que reconheceria a sua nuca tão bem como o seu rosto.

Ele não veio e falou com ela, portanto ela assumiu sua posição sobre ele novamente. Ela não via Hoag em lugar algum; ela o teria perdido, ou o quê?

Randall caminhou até a esquina, olhou especulativamente para o ponto de táxis, então saltou a bordo de um ônibus que tinha acabado de fazer uma parada. Ela o seguiu, permitindo que várias outras pessoas subissem no ônibus antes dela. O ônibus partiu. Hoag certamente não tinha subido a bordo; ela concluiu que era seguro interromper o procedimento.

Ele olhou para cima quando ela sentou-se ao seu lado. “Cyn! Eu pensei que tinha perdido você.”

“Você quase conseguiu, seu danado,” ela admitiu. “Conte para mim – o que está cozinhando?”

“Espere até chegarmos ao escritório.”

Ela não queria esperar, mas decidiu retroceder. O ônibus em que entraram os levou diretamente até o seu escritório, a meras seis quadras de distância. Quando eles chegaram lá ele destravou a porta do pequeno escritório e foi direto para o telefone. O telefone do escritório era conectado diretamente a um PBX de um serviço de secretárias.

“Alguma chamada?” ele perguntou, então escutou por um momento. “O.K. Envie os recados. Sem pressa.”

Ele colocou o telefone no gancho e virou-se para sua esposa. “Bem, querida, esses foram simplesmente os quinhentos dólares mais fáceis que nós já ganhamos.”

“Você descobriu o que ele faz consigo mesmo?”

“É claro.”

“O que ele faz?”

“Adivinhe.”

Ela o encarou. “O quanto você quer uma torta na cara?”

“Calminha aí. Você não conseguiria adivinhar, pois é simples demais. Ele trabalha para um joalheiro comercial – polindo pedras. Você sabe a coisa que ele encontrou sobre suas unhas, que o deixou tão preocupado?”

“Sim?”

“Nada demais. Polidor de joalheiro. Com a ajuda de uma imaginação perturbada ele saltou direto para a conclusão de que era sangue seco. Então assim faturamos meio barão.” [7]

“Mm-m-m. É o que parece. Esse lugar em que ele trabalha fica em algum lugar do Prédio Acme, eu suponho.”

“Sala 1310. Ou melhor, Escritório 1310. Por que você não estava por perto?”

Ela hesitou um pouco em responder. Ela não queria admitir o quanto foi desajeitada, mas o habito da honestidade completa um com o outro era forte nela. “Eu me deixei enganar quando Hoag falou com você fora do prédio de escritórios Acme. E acabei perdendo-o no elevador.”

“Percebi. Bem, eu – O que! O que você disse? Você disse que Hoag falou comigo?”

“Sim, com certeza;”

“Mas ele não falou comigo. Ele sequer colocou os olhos em mim. Do que você está falando?”

“O que eu estou falando? O que você está falando! Logo antes de vocês dois entrarem no prédio de escritórios Acme, Hoag parou, virou-se e falou com você. Vocês dois ficaram de papo, o que me tirou dos trilhos. Então vocês foram para o saguão juntos, praticamente de braços dados.”

Ele ficou ali sentado, sem dizer nada, olhando para ela por um longo momento. Finalmente ela disse, “Não fique aí sentado como um valentão! Foi o que aconteceu.”

Ele disse, “Cyn, escute minha estória. Eu saltei do ônibus depois que ele saltou e o segui até o saguão. Eu usei o velho truque de grudar em seus calcanhares para subir no elevador e deslizei para trás dele enquanto ele olhava para a porta do elevador. Quando ele saiu, eu parei na porta do elevador, e fiquei meio para fora e meio para dentro, fazendo perguntas ao ascensorista simplório, dando a ele tempo para se afastar. Quando eu virei a esquina do corredor ele tinha desaparecido no número 1310. Ele nunca falou comigo. Ele nunca viu meu rosto. Tenho certeza disso.”

Ela estava olhando sem expressão, mas tudo o que disse foi, “Vá em frente.”

“Quando você chega nesse lugar tem uma grande divisória de vidro à sua direita, com bancadas construídas contra ela. Você pode olhar através do vidro e ver os joalheiros, ou ourives, ou como quer que se chamem trabalhando. Esperto – e bem profissional. Hoag estava abaixando-se enquanto em passava pelo corredor, já do outro lado, já sem o casaco e com um avental, e com uma lente de ampliação presa sobre um olho. Eu passei pela sua mesa – ele nunca olhou para cima – e perguntei pelo gerente. Prestativamente um pequeno sujeito com cara de passarinho apareceu e eu perguntei para ele se havia um homem chamado Jonathan Hoag trabalhando lá. Ele disse sim e então perguntou se eu desejaria falar com ele. Eu disse que não, que eu era um investigador da companhia de seguros. Ele desejava saber se havia algo errado e eu disse para ele que era simples rotina investigativa do que ele tinha dito em sua proposta de seguro de vida, e então perguntei há quanto tempo ele trabalhava ali. Cinco anos, ele me disse. Ele disse que Hoag era um dos seus empregados mais confiáveis e hábeis. Eu disse muito bem, e perguntei se acreditava que Hoag poderia bancar tanto quanto dez mil. Ele disse que certamente poderia, e que era sempre bom saber que seus empregados investiam em seguro de vida. O que era o que eu imaginava quando tinha dado a dica.

“Ao sair eu parei em frente à bancada de Hoag e olhei para ele através do vidro. Nessa hora ele olhou para cima e me encarou, então olhou para baixo novamente. Eu estou certo que teria percebido se ele tivesse me reconhecido. Um caso de completa esquizo... como você pronuncia isso?”

“Esquizofrenia. Completa divisão de personalidade. Mas olhe, Teddy –”

“Sim?”

“Você falou com ele. Eu vi você.”

“Agora vamos devagar com isso, gatinha. Você pode pensar que viu, mas você deve ter olhado para outros dois caras. O quanto você estava afastada?”

“Não estava muito distante. Eu estava de frente para a sapataria do Beecham. Ao lado estava o Chez Louis e logo então a entrada do Edifício Acme. Você tinha suas costas voltadas para a banca de jornal no meio fio e estava praticamente me encarando. Hoag tinha suas costas voltadas para mim, mas eu não poderia estar enganada, pois eu o vi completamente quando vocês dois voltaram-se e foram para o prédio juntos.”

Randall olhou exasperado. “Eu não falei com ele. E eu não fui para dentro com ele; eu o segui.”

“Edward Randall, não me venha com essa! Eu admito que perdi vocês dois, mas não há razão para esfregar isso na minha cara e me fazer de tola.”

Randall esteve casado com ela por muito tempo para não respeitar os sinais de perigo. Ele levantou-se, foi até ela, e colocou um braço em torno dela. “Veja, garota,” disse seriamente e gentilmente, “Eu não estou provocando você. Nossos fios entraram em curto de alguma forma, mas eu estou contando tudo para você tão direto como posso, da forma como eu me lembro.”

Ela procurou seus olhos, então o beijou subitamente, e então o empurrou para longe. “Tudo bem. Nós dois temos razão e isso é impossível. Vamos lá.”

“Vamos lá onde?”

“Para a cena do crime. Se eu não esclarecer isso nunca mais vou conseguir dormir.”

O prédio de escritórios Acme estava onde eles o tinham deixado. A sapataria onde deveria estar, assim como o Chez Louis e a banca de jornal. Ele ficou onde ela tinha estado e concordou que ela não tinha como se confundir com a sua identificação, exceto se estivesse cega ou bêbada. Mas ele estava igualmente certo do que ele tinha feito.

“Você não tomou um trago ou dois no caminho, tomou?” ele sugeriu esperançosamente.

“Certamente não.”

“O que faremos agora?”

“Eu não sei. Sim, eu também! Nós finalizamos com Hoag, não é? Você já o rastreou e é isso.”

“Sim... Por quê?”

“Leve-me para onde ele trabalha. Eu quero perguntar à sua personalidade diurna pessoalmente se ele falou ou não com você quando desceram do ônibus.”

Ele deu de ombros. “O.K. garota, você manda.”

Eles entraram e foram para o primeiro elevador livre. O elevador emitiu um sinal, o ascensorista bateu a porta e disse “Andares, por favor.”

Seis, três e nove. Randall esperou até que todos tivessem sido atendidos antes de anunciar, “Treze.”

O ascensorista olhou em volta. “Eu posso dar a você o doze e o quatorze, meu chapa, e você pode dividi-los.”

“Hein?”

“Não há nenhum décimo terceiro andar. Se houvesse ninguém iria alugá-lo.” [8]

“Você deve estar enganado. Eu estive nele nessa manhã.”

O ascensorista lançou-lhe um olhar condenatório. “Veja por si mesmo.” Ele subiu o elevador lentamente, a figura do número doze deslizou para fora de visão e rapidamente foi substituída por outro número. “Quatorze. Para qual você vai?”

“Eu sinto muito,” Randall admitiu. “Eu devo ter cometido um erro bobo. Eu realmente estive aqui nessa manhã e pensei que tinha visto o andar.”

“Poderia ter sido o dezoito,” o ascensorista sugeriu. “Algumas vezes um oito pode parecer como um três. Por quem você está procurando?”

“Detheridge & Co. Eles são fabricantes de joias.”

O ascensorista sacudiu sua cabeça. “Não nesse prédio. Não temos joalheiros, ou Detheridge.”

“Você tem certeza?”

Ao invés de responder, o ascensorista desceu novamente para o décimo andar. “Tente o 1001. É o escritório da administração do prédio.”

Não, eles não tinham Detheridge. Não, nenhum joalheiro, artesão, ou assemelhados. Poderia ser o Edifício Apex que o cavalheiro estaria procurando, no lugar do Acme? Randall agradeceu a eles e saiu, consideravelmente perturbado.

Cynthia tinha mantido completo silencio durante o que ocorreu. Agora ela disse, “Querido – ”

“Sim. O que é?”

“Nós poderíamos ir até o topo, e então irmos descendo.”

“Por que se incomodar? Se eles estivessem aqui, o escritório da administração deveria saber disso.”

“Assim seria, mas eles podem estar escondendo algo. Há algo cheirando mal nessa coisa toda. Pense nisso, você poderia esconder um andar inteiro de um prédio de escritórios fazendo sua entrada parecer uma parede fechada.”

“Não, isso seria tolice. Eu estou apenas enlouquecendo, isso é tudo. Melhor você me levar até um médico.”

“Isso não é tolice, e você não está perdendo a razão. Como você conta a altura em um elevador? Pelos andares. Se você não vê os andares, você nunca perceberia um andar extra enfiado entre eles. Nós podemos estar na trilha de algo grande.” Ela não acreditava realmente em seus próprios argumentos, mas ela sabia que ele precisava de algo para fazer.

Ele começou a concordar, então se conteve. “E quanto às escadas? Você seria obrigado a perceber um andar a partir de uma escadaria.”

“Talvez exista algum truque com as escadas também. Se assim for também estaremos procurando por isso. Vamos lá.”

Mas não havia. Lá estavam exatamente os mesmo números de degraus – dezoito – entre os andares doze e quatorze como havia entre quaisquer outros andares adjacentes. Eles fizeram caminho, a partir do andar mais alto e examinaram as letras gravadas em cada porta sobre o vidro fosco. Isso tomou muito tempo, pois Cynthia não quis saber da sugestão de Randall de se separarem e fazerem metade dos andares cada um. Ela queria mantê-lo ao alcance de sua vista. Nenhum décimo terceiro andar e em nenhum lugar alguma porta anunciando a ocupação por uma empresa de manufatura de joias, quer fosse Detheridge & Co. ou qualquer outro nome. Não havia tempo para fazer mais do que ler os nomes das empresas nas portas; para entrar em cada escritório, por um pretexto ou outro, levaria muito mais que um dia.

Randall olhou pensativamente para uma porta intitulada: ‘Pride, Greenway, Hamilton, Steinbolt, Carter & Greenway. Advogados Associados.’

“Por essa hora,” ele conjecturou, “eles poderiam ter trocado o texto da porta.”

“Não nessa em específico,” ele apontou. “De qualquer forma, se foi uma armação, eles poderiam ter limpado todo o conjunto também. Mudado de forma que você não poderia reconhecê-la.” Todavia ela olhou para as letras de aparência inocente pensativamente. Um prédio de escritórios era um lugar terrivelmente remoto e sigiloso. Paredes com isolamento acústico, persianas – e um nome de empresa sem significado. Qualquer coisa poderia acontecer em tal lugar – qualquer coisa. Ninguém saberia. Ninguém se importaria. Ninguém nunca sequer perceberia. Nenhum policial fazendo ronda, vizinhos distantes como se estivessem na lua, nem mesmo um serviço de faxina se o inquilino não o desejasse. Desde que o aluguel fosse pago em dia, o locatário deixaria o inquilino em paz. Qualquer crime que você desejasse com os corpos no armário.

Ela estremeceu. “Vamos lá, Teddy. Vamos nos apressar.”

Eles cobriram os andares restantes tão rápido o possível e saíram finalmente no saguão. Cynthia sentiu-se aquecida com a luz do sol, mesmo não encontrando a empresa perdida. Randall parou na entrada e olhou em volta. “Você não acha que nós poderíamos ter estado em um edifício diferente?” disse cheio de dúvidas.

“Nem uma chance. Vê aquela banca de cigarros? Eu praticamente vivi ali. Eu conheço cada cocô de mosca daquele balcão.”

“Então qual é a resposta?”

“Almoço é a resposta. Vamos lá.”

“O.K. Mas eu pretendo beber o meu.”

Ela conseguiu persuadi-lo a acompanhá-la em um prato de picado de carne depois de uma terceira dose de uísque. Isso e duas xícaras de café o deixaram inteiramente sóbrio, mas infeliz.

“Cyn –”

“Sim, Teddy.”

“O que aconteceu comigo?”

Ela respondeu lentamente. “Eu acho que você foi vítima de uma incrível ação de hipnose.”

“Eu também acho – agora. É isso ou eu finalmente pirei. Então vamos chamar isso de hipnose. Eu gostaria de saber o porquê.”

Ela fez rabiscos no prato com seu garfo. “Eu não tenho certeza se quero saber. Você quer saber o que eu quero fazer, Teddy?”

“O quê?”

“Eu quero mandar ao Sr. Hoag quinhentos dólares com uma mensagem de que não poderemos ajudá-lo, por isso estamos devolvendo o dinheiro.”

Ele a encarou. “Enviar o dinheiro de volta? Deus do céu!”

Seu rosto parecia como se tivesse sido pega fazendo alguma sugestão indecente, mas ela prosseguiu teimosamente. “Eu sei. Mesmo assim, é o que eu gostaria de fazer. Nós podemos continuar fazendo casos de divórcio o suficiente para continuarmos comendo. Nós não temos que brincar com uma coisa dessas.”

“Você fala como se quinhentos fosse algo que você estivesse acostumada a dar de gorjeta a um garçom.”

“Não, eu não acho isso. Eu apenas não acho que é o suficiente para arriscar seu pescoço – ou sua sanidade. Olhe Teddy, alguém está tentando nos pegar no meio desse jogo; antes de ir mais adiante, eu quero saber o porquê.”

“E eu quero saber isso também. É por isso que eu não quero abandonar esse caso. Maldição, eu não gosto quando fazem traquinagens comigo.”

“O que você vai dizer ao Sr. Hoag?”

Ele passou a mão pelo cabelo, sem se importar se ele já estava despenteado. “Eu não sei. Suponha que você fale com ele. Jogue uma isca.”

“Essa é uma boa ideia. É uma ótima ideia. Eu vou dizer a ele que você quebrou sua perna, mas que estará bem amanhã.”

“Não seja assim, Cyn. Você sabe que pode lidar com ele.”

“Tudo bem. Mas você tem que me prometer isso, Teddy.”

“Prometer o quê?”

“Enquanto estivermos nesse caso nós faremos tudo juntos.”

“Não fazemos sempre assim?”

“Eu quero dizer literalmente juntos. Eu não quero você longe da minha vista nenhum momento.”

“Mas veja bem, Cyn, isso pode não ser muito prático.”

“Prometa.”

“O.K., O.K., eu prometo.”

“Assim é melhor.” Ela relaxou e olhou quase feliz. “Não temos que voltar para o escritório.”

“Para o inferno com isso. Vamos sair e comprar um ingresso triplo de cinema.” [9]

“O.K., gênio.” Ela pegou suas luvas e bolsa.

Os filmes falharam em distraí-lo, apesar de eles terem selecionado uma sequência de filmes do Velho Oeste, que estavam com um preço exageradamente interessante. Mas o herói parecia tão vilão quanto o estrangeiro, e os misteriosos cavaleiros mascarados, por sua vez, pareciam realmente sinistros. E ele continuava vendo o décimo terceiro andar do prédio de escritórios Acme, a longa divisória de vidro atrás da qual os artesões trabalhavam, e o pequeno e seco gerente da Detheridge & Co. Maldição! – Poderia alguém ser hipnotizado para acreditar que ele tinha visto algo tão detalhado como isso?

Cynthia mal prestou atenção aos filmes. Ela estava preocupada com as pessoas em volta deles. Ela percebeu-se estudando seus rostos cautelosamente quando as luzes se acenderam. Se eles pareciam assim quando estavam se divertindo, como eles pareceriam quando estivessem infelizes? Com raras exceções os rostos pareciam, na melhor das hipóteses, impassíveis e resignados. O descontentamento, as sinistras marcas de dor física, a infelicidade da solidão, frustação, e mesquinhez estúpida, ela encontrava em grandes números, mas raramente via um rosto alegre. Até mesmo Teddy, cuja habitual alegria jovial era uma de suas virtudes principais, parecia melancólico – e com razão, ela admitiu. Ela perguntou-se quais seriam as outras razões para aquelas outras máscaras infelizes.

Ela lembrou-se de ter visto um quadro intitulado “Metro”. Ela mostrava uma multidão derramando-se para fora da porta de um trem subterrâneo enquanto outra multidão tentava forçar seu caminho para dentro. Entrando ou saindo, eles estavam claramente com pressa, e isso não lhes dava prazer algum. A obra não tinha nada de especial; era claro que o único propósito do artista era fazer uma crítica amarga a um modo de vida.

Ela ficou aliviada quando a exibição terminou e eles puderam fugir para a rua, com mais liberdade em comparação. Randall sinalizou para um táxi e eles seguiram em direção de casa.

“Teddy – ”

“Hã?”

“Você percebeu os rostos das pessoas no cinema?”

“Não, não especialmente. Por quê?”

“Nenhum deles parecia sentir qualquer alegria com a vida.”

“Talvez eles não tenham.”

“Mas por que eles não têm? Olhe – nós temos alegria, não temos?”

“Você pode apostar que sim.”

“Nós sempre nos divertimos. Até mesmo quando estávamos sem dinheiro algum e tentando começar o negócio nós nos divertimos. Nós íamos para cama sorrindo e acordávamos felizes. Ainda o fazemos. Qual é a resposta?”

Ele sorriu pela primeira vez desde a busca pelo décimo terceiro andar e a beliscou. “É divertido viver com você, garota.”

“Obrigado. E o mesmo para você. Você sabe, quando eu era uma garotinha, eu tinha uma ideia engraçada.”

“Diga.”

“Eu era feliz, mas quando eu cresci eu pude ver que minha mãe não era. E meu pai não era. Meus professores não eram – a maioria dos adultos à minha volta não era feliz. Eu tive a ideia em minha cabeça de que quando se cresce você encontra algo que nos afasta de sermos felizes novamente. Você sabe como uma criança é tratada: ‘Você não é velha o suficiente para entender, querida’, e ‘Espere até que você cresça querida, e então você entenderá. ’ Eu costumava imaginar que segredo eles estavam mantendo longe de mim e eu escutava atrás de portas para tentar ver se eu conseguia descobrir.”

“Uma detetive nata!”

“Silêncio. Mas eu percebi que não importa o que acontecesse, nada fazia os adultos felizes; apenas os fazia tristes. Então eu costumava rezar para nunca descobrir.” Ela deu de ombros levemente. “Eu acho que nunca descobri.”

Ele riu. “Nem eu. Um Peter Pan profissional, esse sou eu. Tão feliz como se eu tivesse bom senso.”

Ela colocou uma pequena mão enluvada em seu braço. “Não ria Teddy. É isso que me assusta nesse caso do Hoag. Eu temo que se nós formos adiante com isso nós finalmente descubramos o que é que os adultos sabem. E então nós nunca mais seremos capazes de nos divertir novamente.”

Ele começou a rir, então olhou para ela firmemente. “Bem, você está realmente falando sério, não está?” Ele tocou sobre o queixo dela. “Comporte-se como alguém da sua idade, garota. O que você precisa é de jantar – e um drinque.”


IV


Depois do jantar Cynthia estava compondo em sua mente o que deveria dizer para o Sr. Hoag no telefone quando a campainha da casa tocou. Ela foi até a entrada do apartamento e tirou o interfone do gancho. “Sim?”

Quase imediatamente ela virou para o seu marido e sem emitir um som formou as palavras nos lábios, “É o Sr. Hoag.” Ele ergueu as sobrancelhas, colocou um dedo cauteloso nos lábios e andando na ponta dos pés de forma exagerada foi até o quarto. Ela acenou afirmativamente.

“Só um momento, por favor. Pronto – assim é melhor. A ligação está ruim. Agora, quem é, por favor?”

“Oh... Sr. Hoag. Pode subir Sr. Hoag.” Ela apertou o botão que controlava a fechadura elétrica na portaria.

Ele veio balançando nervosamente. “Eu espero que isso não seja uma invasão, mas eu tenho estado tão incomodado que não poderia esperar por um relatório.”

Ela não o convidou para sentar. “Eu sinto muito,” ela disse docemente, “ter que desapontá-lo. O Sr. Randall ainda não veio para casa.”

“Oh.” Ele parecia pateticamente desapontado, tanto que ela até sentiu uma súbita simpatia. Então ela lembrou-se o que seu marido tinha enfrentado nesta manhã e então recuperou a frieza.

“Você sabe,” ele continuou, “quando ele chegará em casa?”

“Isso eu não sei dizer. Esposas de detetives, Sr. Hoag, aprendem a não esperar muito.”

“Sim, assim imagino. Bem, eu presumo que não devo incomodá-la mais. Mas eu estou ansioso em falar com ele.”

“Eu vou contar a ele. Você tinha algo em particular para conversar com ele? Alguma nova informação, talvez?”

“Não –” disse lentamente. “Não, eu imagino... isso tudo parece tão bobo!”

“O quê, Sr. Hoag?”

Ele olhou seu rosto. “Eu imagino – Sra. Randall, você acredita em possessão?”

“Possessão?”

“Possessão de almas humanas – por demônios.”

“Eu não posso dizer que tenha pensado muito sobre isso,” ela respondeu cautelosamente. Ela imaginou se Teddy estava escutando, e se ele poderia chegar até ela rapidamente se ela gritasse.

Hoag estava com a frente de sua camisa estranhamente bagunçada; ele tinha um botão aberto; ela sentiu um forte odor acre, e ele estava segurando algo em sua mão, algo preso por uma corrente em torno de seu pescoço, sobre a camisa.

Ela forçou-se a olhar para isso e com grande alívio reconheceu a coisa pelo que ela era – um cordão de dentes de alho frescos, vestidos como um colar. “O que você está usando?” ela perguntou.

“Isso parece bobo, não é?” ele admitiu. “Entregando-se a superstições como essa – mas isso me relaxa. Eu tenho tido uma assustadora sensação de estar sendo observado –”

“Naturalmente. Nós estivemos – O Sr. Randall esteve observando você, a seu pedido.”

“Não é isso. Um homem em um espelho –” Ele hesitou.

“Um homem em um espelho?”

“Seu reflexo em um espelho observa você, como você espera; isso não preocupa você. Mas isso é algo novo, como se alguém estivesse tentando chegar até mim, esperando por uma chance. Você acha que estou louco?” ele concluiu subitamente.

A atenção dela estava somente metade em suas palavras, pois ela tinha notado algo enquanto ele segurava o alho que prendia atenção. As pontas de seus dedos tinham as marcas sulcadas em redemoinhos, voltas e arcos como as impressões digitais de qualquer um – e eles certamente não estavam manchados com colódio nesta noite. Ela decidiu pegar uma amostra dessas impressões para Teddy. “Não, eu não acho que você está louco,” ela disse suavemente, “mas eu acho que você está muito preocupado. Você deveria relaxar. Porque você não toma um drinque?”

“Eu ficaria grato por um copo de água.”

Água ou uísque, era no copo que ela estava interessada. Ela pediu licença e foi até a cozinha onde ela escolheu um copo alto com lados suaves e sem decoração.

Ela o poliu cuidadosamente, colocou gelo e água com muito cuidado para não molhar as laterais. Ela o trouxe, segurando perto da parte de baixo.

Intencionalmente ou não, ele tinha driblado ela. Ele estava parado na frente de um espelho próximo da porta, onde ele esteve evidentemente endireitando o laço de sua gravata e arrumando-se colocando novamente o alho em seu esconderijo. Quando ele virou-se com a aproximação dela ela viu que ele tinha colocado suas luvas de volta.

Ela o convidou a sentar, pensando que se ele o fizesse talvez removesse suas luvas. Mas ele disse, “Eu já a incomodei demais com isso.” Ele bebeu metade do copo de água, agradeceu e saiu silenciosamente.

Randall veio. “Ele se foi?”

Ela virou-se rapidamente. “Sim, se foi. Teddy, eu gostaria que você fizesse seu próprio trabalho sujo. Ele me deixa nervosa. Eu queria gritar para você voltar.”

“Aguente firme, garota.”

“Está tudo muito bem, mas eu gostaria que nós nunca mais colocássemos os olhos sobre ele.” Ela foi até uma janela e a abriu totalmente.

“Muito tarde para um Repticida. [10] Nós estamos nisso agora.” Seus olhos descansaram no copo. “Diga – você conseguiu suas impressões digitais?”

“Não tive essa sorte. Eu acho que ele leu minha mente.”

“Que pena.”

“Teddy, o que você pretende fazer a respeito dele agora?”

“Eu tive uma ideia, mas deixe-me trabalhar nisso primeiro. O que era lengalenga que ele falava com você sobre demônios e um homem no espelho observando ele?”

“Não foi isso que ele disse.”

“Talvez eu fosse o homem no espelho. Eu o observei nessa manhã.”

“Ah-hã. Ele estava apenas usando uma metáfora. Ele estava acrescentando alguns pontos.” [11] Ela virou-se subitamente, imaginando se tinha visto algo mover-se sobre seu ombro. Mas não havia nada lá além dos móveis e da parede. Provavelmente era apenas um reflexo no vidro, ela decidiu, e não disse nada sobre isso. “Eu o tenho feito também,” ela adicionou. “E quanto a demônios, já basta ele de demônio. Você sabe o que eu gostaria?”

“O quê?”

“Uma grande dose de bebida e ir para cama mais cedo.”

“Boa ideia.” Ele foi até a cozinha e começou a misturar o medicamento. “Quer um sanduíche também?”

Randall encontrou-se parado em seu pijama na sala de estar de seu apartamento, encarando o espelho que estava pendurado próximo à porta externa. Seu reflexo – não, não era o seu reflexo, pois a imagem estava vestida em sérias roupas conservadoras apropriadas a um homem de negócios – a imagem falou com ele.

“Edward Randall.”

“Hã?”

“Edward Randall, você foi convocado. Aqui – pegue minha mão. Puxe uma cadeira e você vai descobrir que pode escalar através facilmente.”

Parecia ser uma coisa perfeitamente natural para se fazer, de fato parecia ser a única coisa racional para se fazer.

Ele colocou uma cadeira de encosto reto sobre o espelho, pegou a mão que tinha sido oferecida a ele, e atravessou. Havia um lavatório sobre o espelho do outro lado, que ele teve que pular. Ele e seu companheiro estavam parados em um pequeno lavabo com azulejos brancos, como os encontrados em prédios de escritórios.

“Apresse-se,” disse seu companheiro. “Os outros já foram reunidos.”

“Quem é você?”

“O nome é Phipps,” o outro disse, com um suave aceno da cabeça. “Por esse caminho, por favor.”

Ele abriu a porta do lavabo e deu a Randall um gentil empurrão. Ele encontrou-se em uma sala que era obviamente uma sala de reuniões – com uma reunião em andamento, pois a longa mesa estava cercada por cerca de uma dúzia de homens. Eles todos tinham os olhos sobre ele.

“Depois de você, Sr. Randall.”

Outro empurrão, não tão gentil, e ele estava sentando no meio da mesa polida. Seu tampo parecia frio através do fino algodão de seu pijama.

Ele apertou-se no casaco que vestia e tremeu. “Corte essa,” ele disse. “Deixem-me sair daqui. Eu não estou vestido apropriadamente.” Tentou levantar-se, mas parecia incapaz de realizar esse simples movimento.

Alguém atrás dele riu. Uma voz disse, “Ele não é muito gordo.” Alguém respondeu, “Isso não importa, para este trabalho.”

Ele estava começando a reconhecer a situação – da última vez tinha sido na Avenida Michigan sem as calças. Mais de uma vez ele viu-se novamente na escola, não apenas despido, mas sem ter feito o dever de casa, e atrasado para as aulas. Bem, ele sabia como vencer isso – fechar os olhos e procurar o cobertor, e então acordar seguro em sua cama.

Ele fechou seus olhos.

“Não vejo razão para se esconder, Sr. Randall. Nós podemos vê-lo e você está simplesmente desperdiçando tempo.”

Ele abriu seus olhos. “Qual o problema?” disse selvagemente. “Onde eu estou? Por que vocês me trouxeram aqui? O que está rolando?”

Encarando ele na cabeceira da mesa estava um homem grande. De pé ele devia medir pelo menos 1,80 metros de altura, e ele tinha ombros largos e estrutura óssea pesada proporcional à altura. Gordura estava disposta à vontade sobre sua figura. Mas suas mãos eram esguias, bem formadas e com manicure impecável; sua fisionomia não era larga, e parecia emoldurada por mandíbulas gordas e bochechas grandes. Seus olhos eram pequenos e joviais; sua boca sorria um bocado e ele tinha um tique de comprimir seus lábios e empurrá-los para fora.

“Uma coisa de cada vez, Sr. Randall,” ele respondeu jovialmente. “Quanto a onde você está, esse é o décimo terceiro andar do prédio de escritórios Acme – você deve lembrar-se.” Ele riu, como se eles compartilhassem uma piada entre eles. “Quanto ao que está rolando, essa é uma reunião do conselho da Detheridge & Co. Eu –” ele conseguiu curvar-se mesmo sentado, sobre sua larga barriga “– sou R. Jefferson Stoles, presidente do conselho, a seu serviço, senhor.”

“Mas –”

“Por favor, Sr. Randall – vamos às introduções primeiro. À minha direita, o Sr. Townsend.”

“Como vai, Sr. Randall.”

“Como vai você,” Randall respondeu mecanicamente. “Olhe aqui, isso já foi longe de mais –”

“Então, o Sr. Gravesby, Sr. Wells, Sr. Yoakum, Sr. Printemps, Sr. Jones, o Sr. Phipps você já encontrou. Ele é nosso secretário. Além dele está sentado o Sr. Reifsnider e o Sr. Synder – não são parentes. E finalmente o Sr. Parker e Sr. Crewes. O Sr. Potiphar, eu sinto dizer, não pode participar, mas nós temos quórum.”

Randall tentou levantar novamente, mas o tampo da mesa parecia inacreditavelmente escorregadio. “Eu não me importo,” disse amargamente, “se vocês formaram um quórum ou uma quadrilha. Deixem-me sair daqui.”

“Tst tst, Sr. Randall. Você não quer ter suas dúvidas respondidas?” [12]

“Nem tanto. Malditos sejam, deixem-me –”

“Mas elas realmente precisam ser respondidas. Essa é uma reunião de negócios e você é o negócio em questão.”

“Eu?”

“Sim, você. Você é, devo dizer, um item menor da agenda, mas um item que precisa ser esclarecido. Nós não gostamos da sua atividade, Sr. Randall. Você realmente precisa parar com isso.”

Antes que Randall pudesse responder, Stoles ergueu a palma de sua mão na direção dele. “Não seja apressado, Sr. Randall. Deixe-me explicar. Não todas suas atividades. Nós não nos incomodamos com quantas loiras você planta em quartos de hotéis para agir como cumplices em casos de divórcio, ou quantos telefones você grampeou, ou quantas correspondências alheias você abriu. Há só uma atividade sua que nos preocupa. Eu me refiro ao Sr. Hoag.” Ele cuspiu essa última palavra.

Randall podia sentir certa inquietação correr através da sala.

“O que tem o Sr. Hoag?” Ele exigiu saber. Novamente a inquietação. O rosto de Stoles não tentava mais mostrar um sorriso.

“Vamos nos referir a ele daqui para frente”, disse, “’como seu cliente.‘. Digamos assim, Sr. Randall. Nós tempos outros planos para o Sr. – para o seu cliente. Você precisa deixá-lo em paz. Você precisa esquecê-lo, você não pode vê-lo novamente.”

Randall o encarou de volta, sem mostrar-se intimidado. “Eu nunca prejudiquei um cliente até hoje. Eu prefiro antes ver você no inferno.”

“Isso,” admitiu Stoles, empurrando seus lábios para fora, “é uma possibilidade, eu garanto, mas tanto eu você como eu não gostaríamos de ver isso acontecer, exceto como uma metáfora bombástica. Vamos ser razoáveis. Você é um homem razoável, eu sei, e meus companheiros e eu somos criaturas razoáveis também. No lugar de tentar coagi-lo ou persuadi-lo eu gostaria de contar a você uma história, para que você então entenda o motivo.”

“Eu não quero saber de escutar qualquer história. Eu estou indo embora.”

“Você realmente está? Eu acho que não. E você vai escutar!”

Ele apontou um dedo para Randall; Randall tentou responder, e descobriu que não podia. “Isso,” ele pensou, “é o pior ‘sonho-de-estar-pelado’ que eu já tive. Eu não deveria comer antes de ir para cama – como bem sei.”

“No Começo,” Stoles relatou, “havia o Pássaro.” Ele subitamente cobriu seu rosto com as mãos; e todos os outros reunidos em volta da mesa fizeram o mesmo.

O Pássaro – Randall sentiu uma súbita revelação do que essa simples palavra significava quando falada por esse repulsivo homem gordo; não um suave e felpudo pintinho, mas uma ave de rapina, com asas fortes e olhos vorazes que não piscam, da cor de trigo com pupilas púrpuras – mas mais especialmente ele viu seus pés, seus pés de pássaro, cobertos de escamas amarelas, descarnados e projetados para fazer o mal. Obscena e terrível –

Stoles descobriu seu rosto. “O Pássaro estava sozinho. Suas grandes asas batiam na imensidão do espaço onde não havia ninguém para ver. Mas no seu âmago estava o Poder, e o Poder era Vida. Ele olhou para o norte quando não havia norte; ele olhou para o sul quando não havia sul; para o leste e oeste ele olhou, e para cima e para baixo. Então saindo dessa não existência e saindo de sua Vontade ele teceu o ninho.

“O ninho era largo, profundo e forte. No ninho Ele pôs uma centena de ovos. Ele ficou no ninho e chocou os ovos, pensando Seus pensamentos, por dez mil milhares de anos. Quando o tempo chegou Ele deixou o ninho e o pendurou com luzes que os inexperientes pudessem ver. Ele observou e esperou.

“De cada um dos cem ovos, uma centena de Filhos do Pássaro foram chocados – dez mil vezes mais fortes. Mesmo sendo tão largo e profundo e tendo espaço de sobra para cada um deles – um reino à parte onde cada um era um rei – rei sobre as coisas que rastejavam, arrastavam, nadavam e voavam pelas quatro direções, coisas que tinham nascido das fendas do ninho, para fora do calor e da espera.

“Sábio e cruel era o Pássaro, e sábios e cruéis eram os Filhos do Pássaro. Por duas vezes dez mil milhares de anos eles lutaram e governaram e o Pássaro ficou agradecido. Então houve alguns que decidiram que eles eram mais sábios e fortes que o próprio Pássaro. Para fora do material do ninho eles criaram criaturas para si mesmos e sopraram em suas narinas, para que tivessem filhos para servi-los e lutar por eles. Mas os filhos dos Filhos não eram sábios, fortes e cruéis, mas fracos, delicados e estúpidos. O Pássaro não ficou satisfeito.

“Para baixo Ele lançou Seus Próprios Filhos e os deixou acorrentados pelos fracos estúpidos – Aquiete-se, Sr. Randall! Eu sei que isso é difícil para você com sua mente pequena, mas pelo menos dessa vez você deve pensar em algo maior que seu nariz e mais largo que sua boca, acredite!

“Os estúpidos e os fracos não podiam segurar os Filhos do Pássaro; portanto, o Pássaro colocou entre eles, aqui e ali, outros mais poderosos, mais cruéis e mais perspicazes, que pelo ofício, crueldade e ludibriação podiam contornar as tentativas dos Filhos de se libertarem. Então o Pássaro sentou-se, satisfeito, e esperou que o jogo se desenrolasse.

“O jogo está sendo jogado. Portanto, nós não podemos permitir que você interfira com seu cliente, ou que o ajude de qualquer forma. Você entende isso, não é?”

“Eu não entendo,” disparou Randall, subitamente capaz de falar, “uma maldita palavra! Para o inferno com todos vocês! Essa piada já foi longe demais.”

“Tolo, fraco e estúpido,” Stoles suspirou. “Mostre a ele, Sr. Phipps.”

Phipps levantou, colocou uma pasta de documentos sobre a mesa, a abriu e retirou algo dela, enfiando-a sobre o nariz de Randall – um espelho.

“Por favor, olhe para cá, Sr. Randall,” disse polidamente.

Randall olhou para ele mesmo no espelho.

“O que você está pensando disso, Sr. Randall?”

A imagem apagou, e ele encontrou-se olhando seu próprio quarto, de certa altura. O quarto estava escuro, mas ele podia claramente ver a cabeça de sua esposa em seu travesseiro.

Seu próprio travesseiro estava vazio.

Ela se mexeu, e virou de lado, suspirando baixinho. Seus lábios estavam ligeiramente separados com um leve sorriso, como se estivesse tendo um sonho agradável.

“Você vê, Sr. Randall?” disse Stoles. “Você não quer que nada aconteça com ela agora, quer?”

“Por que, seu canalha, imundo –”

“Calma, Sr. Randall, calma. E isso será o suficiente para você. Lembre-se de seus próprios interesses – e dos dela.” Stoles virou-se. “Remova-o, Sr. Phipps.”

“Vamos lá, Sr. Randall.” Ele sentiu novamente um empurrão indigno por trás, então ele estava voando através do ar com o ambiente caindo aos pedaços em torno dele.

Ele estava bem acordado em sua própria cama, deitado de costas e coberto de suor frio.

Cynthia sentou-se. “Qual é o problema, Teddy?” ela disse sonolenta. “Você estava gritando.”

“Nada. Um sonho ruim, eu acho. Desculpe se acordei você.”

“Tá tudo bem. Dor estômago?”

“Um pouco, talvez.”

“Tome um antiácido.”

“Eu irei tomar.” Ele levantou-se, foi até a cozinha e preparou uma pequena dose. Sua boca estava um pouco amarga, ele percebeu, agora que estava acordado; o antiácido ajudou.

Cynthia já estava dormindo quando ele retornou; ele deslizou em sua cama silenciosamente. Ela aconchegou-se a ele sem acordar, seu corpo esquentando o seu. Rapidamente ele também caiu no sono.

“Não importa o problema! Fiddle-de-dee!” Ele começou a cantar subitamente, após ter ligado o chuveiro o suficiente para permitir uma conversa normal, e disse, “Bom dia, linda!”

Cynthia estava parada na porta do banheiro, esfregando um olho e olhando para ele com o outro olho embaçado. “Pessoa que canta antes do café da manhã – bom dia.”

“Por que eu não deveria cantar? É um lindo dia e eu tive um sono maravilhoso. Eu tenho uma nova canção de chuveiro. Escute.”

“Não se incomode com isso.”

“Essa é uma canção,” ele continuou, imperturbado, “dedicada a um Jovem Homem Que Anunciou Sua Intenção de Sair Para o Jardim Para Comer Minhocas.”

“Teddy, você é nojento.”

“Não, eu não sou. Escute.” Ele abriu mais o chuveiro. “Você tem que deixar a água correr à vontade para conseguir o efeito completo,” ele explicou. “Primeiro verso:”

“Eu não acho que sairei para o jardim;

Eu farei as minhocas virem até mim!

Se eu tiver de ser miserável,

Eu ficaria muito confortável!”

Ele fez uma pausa para efeito. “Refrão,” ele anunciou.

“Não importa o problema! Fiddle-de-dee!

Coma sua minhocas com vitamina B!

Siga essa regra que você estará,

Ainda comendo minhocas com cento e três!”

Ele fez uma segunda pausa. “Segundo verso,” Randall declarou. “Só que eu ainda não pensei em um segundo verso. Devo repetir o primeiro verso?”

“Não, obrigada. Apenas caia fora desse chuveiro e me dê uma chance com isso.”

“Você não gostou dela,” ele a acusou.

“Eu não disse que não gostei.”

“A arte é raramente apreciada,” ele resmungou. Mas saiu do chuveiro.

Ele tomou o café e o suco de laranja esperando pelo momento que ela apareceria na cozinha. Ele entregou a ela um copo de suco de fruta. “Teddy, você é adorável. O que você quer em troca de todo esse mimo?”

“Você. Mas não agora. Eu não sou somente um rosto bonito, eu sou também sou um gênio.”

“É mesmo?”

“Ah-hã. Veja – eu descobri o que fazer com nosso amigo Hoag.”

“Hoag? Ah, querido!”

“Cuidado – você vai derrubar!” Ele pegou o copo dela e colocou na mesa. “Não seja boba, boneca. O que deu em você?”

“Eu não sei, Teddy. Eu apenas senti como se estivéssemos enfrentando o poderoso chefão da Sicília com um atirador de ervilhas.” [13]

“Eu não deveria ter falado de negócios antes do café da manhã. Tome seu café – você vai se sentir melhor.”

“Tudo bem. Não quero torrada, Teddy. Qual é a ideia brilhante?”

“É essa,” ele explicou, enquanto mastigava uma torrada. “Ontem nós tentamos ficar fora da vista dele de forma a não o forçarmos a voltar para a sua personalidade noturna. Certo?”

“Ah-hã.”

“Bem, hoje não temos que fazer isso. Nós poderemos grudar nele como uma sanguessuga, nós dois, praticamente de braços dados. Se isso interferir com a metade diurna de sua personalidade, isso não importará, porque nós podemos levá-lo ao prédio de escritórios Acme. Uma vez lá, o hábito irá levá-lo aonde ele usualmente iria. Não estou certo?”

“Eu não sei, Teddy. Talvez. Personalidades amnésicas são coisas engraçadas. Ele poderia entrar em um estado de confusão mental.”

“Você não acha que isso funcionaria?”

“Talvez funcione, ou talvez não. Mas enquanto você estiver planejando que nós fiquemos juntos, eu estou disposta a tentar isso – se você não pretende desistir da coisa toda.”

Ele ignorou a condição que ela colocou para ele. “Certo. Eu vou dar um telefonema para o velhaco dizendo para nos esperar em seu apartamento.” Ele foi até o telefone do outro lado da mesa e pegou o fone, discou e falou com Hoag. “Esse cara parece uma barata tonta,” [14] disse ao desligar o telefone. “De início ele não sabia do que eu estava falando. Então subitamente algo pareceu dar um click e tudo estava certo. Pronto para ir, Cyn?”

“Em um minuto.”

“O.K.” Ele levantou e foi até a sala de estar, assobiando suavemente.

O assobio interrompeu-se subitamente; ele voltou rapidamente à cozinha. “Cyn –”

“Qual é o problema, Teddy?”

“Venha até a sala de estar – por favor!”

Ela correu até onde ele estava, subitamente apreensiva ao ver seu rosto. Ele apontou para uma cadeira de espaldar reto que estava encostada em um local diretamente sobre o espelho próximo à porta da entrada. “Cyn – como foi que isso foi parar onde está?”

“Essa cadeira? Bem, eu puxei a cadeira ali para endireitar o espelho logo antes de ir para a cama. Eu devo tê-la esquecido ela ali.”

“Hm-mm – Eu acho que você deve. Engraçado como eu não a percebi quando apaguei a luz.”

“Por que isso preocupa você? Acha que alguém deve ter entrado no apartamento ontem à noite.”

“Sim. Sim, claro – era isso que eu estava pensando.” Mas sua testa inda estava franzida.

Cynthia olhou para ele, então voltou para o quarto. Lá ela pegou sua bolsa, vestiu-a rapidamente, então abriu uma pequena gaveta escondida em sua penteadeira. “Se alguém conseguiu entrar, então não pegaram muito. Pegaram a sua carteira? Tudo está aí? E quanto ao seu relógio?”

Ele fez uma rápida checagem e reportou, “Está tudo certo. Você deve ter deixado a cadeira ali e eu apenas não percebi. Pronta para ir?”

“Já estou indo.”

Randall não disse mais nada sobre isso. Particularmente ele estava pensando no que uma bagunça envolvendo algumas memórias subconscientes e um sanduíche de lanchonete logo antes de dormir poderia produzir. Ele devia ter notado a cadeira antes de ter apagado a luz – o que explicaria o aparecimento dela em seu pesadelo. Ele descartou o assunto.


V

 

Hoag estava esperando por eles. “Por favor, entrem,” disse. “Podem entrar. Bem vinda senhora, ao meu pequeno esconderijo. Por favor, sente-se? Nós temos tempo para uma xícara de chá? Eu temo, ele acrescentou em tom de desculpa, “que eu não tenho café em casa.”

“Eu acho tem que temos tempo,” concordou Randall. “Ontem você saiu de casa as oito e cinquenta e três e agora são só oito e trinta e cinco. Eu acho que devemos sair no mesmo horário.”

“Bom.” Hoag afastou-se, retornando com um serviço de chá em uma bandeja, que ele colocou sobre a mesa em frente aos joelhos de Cynthia. “Você irá servir, Sra. Randall? É chá chinês,” ele adicionou; “Minha própria mistura.”

“Será um prazer.” Ele não parecia sinistro nessa manhã, ela forçou-se a admitir. Ele parecia apenas um solteirão espalhafatoso com rugas de preocupação em torno de seus olhos – em apartamento muito requintado. Seus quadros eram bons, apesar dela não ter conhecimento o suficiente para dizer o quanto, mas pareciam ser originais. Não havia muito deles também, ela percebeu com aprovação. Solteirões admiradores de arte eram normalmente piores que velhas senhoras quando se tratava de entulhar uma sala.

Mas não o apartamento do Sr. Hoag. Ele tinha uma perfeição arejada que era agradável, da sua forma, como uma valsa de Brahms. Ela desejava perguntar a ele onde ele tinha conseguido suas cortinas.

Ele aceitou uma xícara de chá dela, segurou-a em sua mão e cheirou o aroma antes de beber dela. Ele então se virou para Randall. “Eu temo, senhor, que nós sairemos em uma busca infrutífera nesta manhã.”

“Talvez. Por que você pensa assim?”

“Veja bem, eu realmente estou sem ideia do que fazer em seguida. O seu telefonema – eu estava preparando o chá da manhã, pois eu não tenho uma empregada – como de costume, quando você ligou. Eu suponho que fico meio enevoado no início da manhã – distraído, você sabe, apenas fazendo coisas que alguém faz quando acorda como ir ao banheiro com o pensamento em outro lugar. Quando você ligou eu fiquei bem confuso e levei um momento para recordar quem era você e qual era o assunto que nós tínhamos um com o outro. De certa forma a conversação limpou minha mente, me tornou consciente de mim mesmo, por assim dizer, mas agora –” Hoag deu de ombros, impotente. “Agora eu não tenho a menor ideia do que devo fazer em seguida.”

Randall assentiu. “Eu tinha essa possibilidade em mente quando liguei para você. Eu não pretendo parecer um psicólogo, mas parecia possível que sua transição da personalidade noturna para a diurna acontece quando você deixa seu apartamento e que qualquer interrupção em sua rotina poderia atirá-lo para fora disso.”

“Então por que – ”

“Isso não importa. Veja bem, nós o seguimos ontem; nós sabemos aonde você vai.”

“Vocês sabem? Contem-me, senhor! Contem-me!”

“Não tão rápido. Nós o perdemos no último minuto. O que tenho em mente é o seguinte: nós podemos guiá-lo pelo mesmo caminho, até o ponto onde perdemos seu rastro ontem. Nesse ponto eu espero que sua rotina habitual o leve em frente – e nós estaremos bem em seus calcanhares.”

“Você disse ‘nós’. A Sra. Randall o auxiliou nisso?”

Randall hesitou, percebendo que ele tinha sido pego em uma leve tergiversação.

Cynthia adiantou-se e assumiu o jogo.

“Não normalmente, Sr. Hoag, mas esse parecia um caso excepcional. Nós sentimos que você não gostaria de ter seus assuntos privados observados por um operador ordinário contratado, então o Sr. Randall se comprometeu a atender seu caso pessoalmente, com a minha ajuda quando necessário.”

“Oh, devo dizer, isso é muito gentil da parte de vocês!”

“De forma alguma.”

“Mas é – certamente é. Mas, ah, nesse caso – eu imagino se eu paguei a vocês o suficiente. O serviço do chefe da empresa não é mais caro?”

Hoag estava olhando para Cynthia; Randall acenou para ela um enfático ‘Sim’ – que ela escolheu ignorar. “O que você já pagou, Sr. Hoag, parece o suficiente. Se comprometimentos adicionais aparecerem mais tarde, nós poderemos discuti-los então.”

“Sim, assim imagino.” Ele fez uma pausa e empurrou seu lábio inferior. “Eu aprecio sua delicadeza em manter meu caso entre vocês. Eu não gostaria –” Ele virou subitamente para Randall. “Diga-me – qual seria sua atitude se a vida diurna que desenvolvo fosse – escandalosa?” A palavra parecia feri-lo.

“Eu manteria o escândalo em sigilo.”

“Suponhamos que fosse pior que isso. Que fosse algo – criminoso. Selvagem.”

Randall parou para escolher suas palavras. “Eu sou licenciado pelo Estado de Illinois. Essa licença me obriga a me considerar de certa forma um agente policial em um sentido limitado. Eu certamente não poderia encobrir qualquer grande crime. Mas não é meu interesse entregar clientes que cometem pecados veniais. Eu posso assegurar a você que teria que ser algo muito grave para eu me dispor a entregar um cliente para a polícia.”

“Mas você não pode me garantir que você não o faria?”

“Não.” Randall disse secamente.

Hoag suspirou. “Eu imagino que devo ter que confiar no seu bom julgamento.” Ele segurou sua mão direita e olhou para suas unhas. “Não. Não, eu não posso arriscar. Sr. Randall, suponha que você encontre algo que você não aprove – você não poderia apenas me chamar e dizer que você está deixando o caso?”

“Não.”

Ele cobriu seus olhos e não respondeu de imediato. Quando ele o fez sua voz mal podia ser ouvida. “Você não encontrou nada – ainda?” Randall balançou a cabeça. “Então talvez seja mais sábio desistirmos do assunto agora. É melhor nunca sabermos de algumas coisas.”

Sua evidente angústia e desamparo, combinadas com impressão favorável que o apartamento dele teve sobre ela, despertou em Cynthia uma simpatia que ela pensava ser impossível na noite anterior. Ela se inclinou em direção a ele. “Por que você está tão angustiado, Sr. Hoag? Você não tem motivo para acreditar que você fez alto para temer – tem?”

“Não. Na verdade não. Nada além de uma apreensão avassaladora.”

“Mas por quê?”

“Sra. Randall, você alguma vez já ouviu um barulho atrás de você e teve medo de olhar? Você alguma vez já acordou no meio da noite e manteve os olhos fechados com força no lugar de tentar descobrir o que a assustou? Alguns males atingem seu pleno efeito somente quando tomamos conhecimento e os enfrentamos.

“Eu não ouso encarar esse,” ele adicionou. “Eu pensava que poderia, mas eu estou enganado.”

“Vamos lá,” ela disse gentilmente. “fatos nunca são tão ruins como nossos medos –”

“Por que você diz isso? Por que eles não deveriam ser muito piores?”

“Bem, porque eles apenas não o são.” Ela parou subitamente consciente que essa era apenas sua Pollyanna [15] falando sem nenhum fundo de verdade, o tipo de coisa que adultos usavam para acalmar crianças. Ela pensou em sua própria mãe, que tendo ido parar no hospital temendo uma apendicectomia – que seus amigos e família amorosa privadamente diagnosticaram como hipocondria – onde na verdade morreria de câncer.

Não, os fatos eram frequentemente piores que nossos piores medos.

Ainda assim, ela não podia concordar com ele. “Suponha que nós olhemos para isso sobre a pior ótica possível,” ela sugeriu. “Suponha que você vem fazendo algo criminoso, durante seus lapsos de memória. Nenhuma corte no estado poderia julgá-lo legalmente responsável por suas ações.”

Ele olhou para ela selvagemente. “Não. Não, talvez eles não pudessem. Mas você sabe o que eles fariam? Você sabe, não é? Tem alguma ideia do que eles fazem com criminosos insanos?”

“Eu certamente tenho,” ela respondeu positivamente. “Eles recebem o mesmo tratamento que outros pacientes psicóticos. Eles não são discriminados com isso. Eu sei; eu fiz trabalho de campo no Hospital do Estado.”

“Supondo que você teve – você olhou para isso de fora. Você tem alguma ideia do que se sente quem está dentro? Alguma vez você foi presa a cobertores molhados? [16] Alguma vez você já teve um guarda ao lado da sua cama? Ou foi forçada a comer? Você sabe como é ter uma chave fechando um cadeado cada vez que você faz um movimento? Não ter nunca privacidade não importando o quanto você o queira?”

Ele se levantou e começou a caminhar. “Mas isso não é o pior de tudo. Há os outros pacientes. Você imagina que um homem, simplesmente porque sua própria mente está pregando truques nele, não reconheceria a insanidade dos outros? Alguns deles babando e outros com hábitos inumanos. E eles andam, andam, andam. Você consegue imaginar ficar deitada amarrada em uma cama, e uma coisa na cama ao lado que fica repetindo, “O passarinho subiu e voou para longe; o passarinho subiu e voou para longe; o passarinho subiu e voou para longe –”

“Sr. Hoag!” Randall levantou e o pegou pelo braço. “Sr. Hoag – controle-se! Essa não é uma forma adequada para se comportar.”

Hoag parou, olhando perplexo. Ele olhou de um rosto para outro e uma expressão de vergonha apoderou-se dele. “Eu... eu sinto muito, Sra. Randall,” ele disse, “Eu me perdi completamente. Eu não sou eu mesmo hoje. Toda essa preocupação –”

“Está tudo bem, Sr. Hoag,” ela disse rigidamente. Mas sua repulsa anterior tinha retornado.

“Não está tudo bem,” Randall corrigiu. “Eu acho que é hora de esclarecermos algumas coisas. Tem muita coisa acontecendo que eu não compreendo e eu acho que cabe a você, Sr. Hoag, fornecer algumas respostas diretas.”

O pequeno homem parecia honestamente perdido. “Eu certamente darei, Sr. Randall, se houver qualquer coisa que eu possa responder. Você acredita que eu não tenho sido franco com você?”

“Eu certamente acho que sim. Primeiro – quando você esteve internado em um hospital para criminalmente insanos?”

“Bem, eu nunca estive. Pelo menos, eu não me lembro de ter estado. Eu não me lembro de ter estado em um.”

“Então qual a razão de toda essa bobagem histérica que você esteve despejando nos últimos cinco minutos? Você estava apenas interpretando?”

“Oh, não! Isso... isso foi... eu me referia à Casa de Repouso St. George. Eu não tenho nada a ver com esse tipo de hospital.”

“Casa de Repouso St. George, hein? Nós voltaremos a isso, Sr. Hoag, diga-me o que aconteceu ontem.”

“Ontem? Durante o dia? Mas Sr. Randall, você sabe que eu não posso lhe contar o que aconteceu ontem durante o dia.”

“Eu acho que você pode. Estão acontecendo algumas maquinações, e você é o centro delas. Quando você me parou na frente do prédio de escritórios Acme – o que foi que você me disse?”

“O prédio de escritórios Acme? Eu não sei nada sobre esse prédio Acme. Eu estive lá?”

“Você pode crer que esteve lá, que colocou algum tipo de vodu em mim, me drogou ou dopou, ou algo do tipo. Por quê?”

Hoag olhou da face implacável de Randall para a de sua esposa. Mas a face dela estava impassível; ela não estava tendo nada com isso. Ele virou-se desesperançoso de volta para Randall. “Sr. Randall, acredite em mim – eu não sei do que você está falando. Eu posso ter estado no prédio Acme. Se eu estive lá e se eu fiz algo a você, isso eu não já não sei dizer.”

Suas palavras eram tão sérias, soavam tão solenemente sinceras que chegaram a deixar Randall inseguro em sua convicção. E ainda – maldito seja, alguém o levou a um beco sem saída. Ele mudou sua abordagem.

“Sr. Hoag, se você vem sendo sincero comigo como você alega, você não se importará com o que eu farei em seguida.” Ele retirou de um bolso interno de seu casaco uma cigarreira de prata, a abriu, poliu sua superfície interior espelhada com seu lenço. “Agora, Sr. Hoag, se você puder.”

“O que você quer?”

“Eu quero suas impressões digitais.”

Hoag olhou assustado, engoliu seco duas vezes, e disse em uma voz baixa, “Porque você desejaria minhas impressões digitais?”

“E por que não? Se você não fez nada isso não poderia fazer mal algum, poderia?”

“Não!”

Randall levantou-se, caminhou em direção a Hoag e parou na sua frente. “Ou você preferiria ter seus dois braços quebrados?” disse selvagemente.

Hoag olhou para ele e encolheu-se, mas não ofereceu suas mãos para tomar as impressões. Ele se recompôs, afastando o rosto e com as mãos apertadas em seu peito. Randall sentiu um toque em seu braço. “Já é o bastante, Teddy. Vamos sair daqui.”

Hoag olhou para cima. “Sim,” disse asperamente. “Caiam fora. E não voltem.”

“Vamos lá, Teddy.”

“Eu irei em um momento. Eu não terminei ainda, Sr. Hoag!”

Hoag buscou seu olhar como se precisando fazer um grande esforço para isso.

“Sr. Hoag, você mencionou a casa de repouso St. George duas vezes como seu local de internação. Eu apenas quero que o senhor saiba que eu sei que não existe tal lugar!”

Novamente Hoag parecia genuinamente assustado. “Mas existe,” ele insistiu. “Não foi lá que eu estive para – pelo menos eles me disseram que esse era o nome,” ele adicionou com dúvida.

“Hã!” Randall virou-se para a porta. “Vamos lá, Cynthia.”

Uma vez que eles estavam sozinhos no elevador ela virou-se para ele. “Por que você agiu dessa forma, Teddy?”

“Porque,” disse amargamente, “apesar de não me importar em encontrar dificuldades, doí quando meu próprio cliente arma contra mim. Ele nos serviu um monte de mentiras, obstruiu a investigação, e nos fez algum truque com essa coisa do prédio Acme. Eu não gosto de ter um cliente fazendo acrobacias como essas; eu não preciso do dinheiro tanto assim.”

“Bem,” ela suspirou, “Eu, pelo menos, ficarei feliz em reembolsá-lo. Eu fico feliz que tenha terminado.”

“O quê você quer dizer, com ‘reembolsá-lo’? Eu não vou reembolsá-lo; Eu vou ficar com o dinheiro.”

O elevador chegou ao piso térreo agora, mas ela não tocou o portão.

“Teddy! O quê você quer dizer?”

“Hoag me contratou para descobrir o que ele faz. Bem, maldito seja, eu vou descobrir – com ou sem sua cooperação.”

Randall esperou pela sua resposta, mas ela não o fez. “Bem,” ele disse defensivamente, “você não tem que ter nada a ver com isso.”

“Se você vai prosseguir com isso, certamente eu tenho. Lembra o que você me prometeu?”

“O que eu prometi?” Randall perguntou, fazendo o gênero inocente.

“Você sabe.”

“Mas veja, Cyn – tudo que eu vou fazer é ficar por perto até que ele saia, então segui-lo. Isso pode levar o dia todo. Ele pode decidir não sair.”

“Tudo bem, eu vou esperar com você.”

“Alguém tem que cuidar do escritório.”

“Então você cuida do escritório,” ela sugeriu. “Eu seguirei Hoag.”

“Agora isso é ridículo. Você –” o elevador começou a subir. “Oops! Alguém quer usar o elevador.” Ele apertou o botão marcado com “Parar,” então apertou o botão que retornava o elevador para o térreo. Dessa vez ele não esperou dentro; ele abriu imediatamente o portão e a porta do elevador.

Adjacente à entrada do prédio de apartamentos havia uma pequena saleta ou hall de espera. Ele a guiou para lá. “Agora vamos acertas as coisas,” ele começou.

“Já está certo.”

“O.K. você venceu. Vamos sair de cena.”

“Que tal bem aqui? Nós podemos sentar por aqui e ele não poderia sair sem que nós o víssemos.”

“O.K.”

O elevador subiu imediatamente depois de eles terem saído; logo eles ouviram o som característico que indicava que ele estava retornando para o térreo. “Na ponta dos pés, garota.”

Ela assentiu com a cabeça e recuou para as sobras da saleta. Ele colocou-se de forma que pudesse ver a porta do elevador pelo reflexo em um espelho ornamental pendurado no hall. “É Hoag?” ela sussurrou.

“Não,” ele respondeu em uma voz baixa, “é um homem grande. Ele parece –” Ele calou-se subitamente e agarrou seu punho.

Passando pela porta da saleta ela viu a forma apressada de Jonathan Hoag passar. A figura não olhou na direção deles, mas seguiu diretamente para porta de saída. Quando ela bateu Randall relaxou o aperto em seu punho. “Eu quase perdi o danado,” ele admitiu;

“O que aconteceu?”

“Eu não sei. Espelho vagabundo. Uma distorção na imagem. Tally-ho [17], garota.”

Eles chegaram à porta quando sua presa estava na calçada, e, como no dia anterior, tinha virado para a esquerda.

Randall parou inseguro. “Eu acho que nós corremos o risco dele nos ver. Eu não quero perdê-lo.”

“Nós não poderíamos segui-lo mais efetivamente em um táxi? Se ele subir em um ônibus onde o fez antes, seria melhor do que tentarmos entrar no ônibus com ele.” Ela não admitiu, mesmo para si mesma, que ela estava tentando mantê-los afastados de Hoag.

“Não, ele poderia não pegar um ônibus. Vamos lá.”

Eles não tiveram dificuldade em segui-lo; ele estava seguindo pela rua apressado, mas não em um ritmo difícil de seguir. Quando ele chegou ao ponto de ônibus onde ele tinha estado no dia anterior, ele comprou um jornal e sentou-se no banco. Randall e Cynthia passaram atrás dele e se abrigaram na entrada de uma loja.

Quando o ônibus chegou ele subiu no segundo andar como antes; eles entraram e permaneceram no nível inferior. “Parece como se ele estivesse indo exatamente onde ele esteve ontem,” Randall comentou. “Hoje vamos pegá-lo, garota.”

Ela não respondeu.

Quando o ônibus aproximou-se da parada próxima ao prédio de escritórios Acme eles estavam prontos e esperando – mas Hoag não desceu os degraus. O ônibus começou a andar novamente com um solavanco; eles sentaram-se novamente. “O que você acha que ele está tramando?” Randall afligiu-se. “Você acha que ele nos viu?”

“Talvez ele tenha nos dado uma rasteira,” Cynthia sugeriu esperançosamente.

“Como? Pulando do topo do ônibus? Hm-mm!”

“Não é bem isso, mas você chegou perto. Se outro ônibus parou do lado de nós em outro ponto, ele poderia ter pulado de um para outro pelo guarda corpo. Eu vi um homem fazer isso uma vez. Se você faz isso em direção à traseira você tem uma boa chance de escapar facilmente.”

Ele considerou o assunto. “Eu tenho certeza que nenhum ônibus parou perto de nós. Ainda assim, ele poderia ter pulado em cima de um caminhão, também, embora só Deus saberia como poderia descer de lá.” Ele ficou incomodado. “Vou dizer-lhe uma coisa – eu vou até as escadas e darei uma espiada.”

“E encontrá-lo descendo? Por que você não cresce, gênio.”

Ele cedeu; o ônibus prosseguiu por algumas quadras. “Está chegando à nossa quadra,” ele lembrou.

Ela acenou com a cabeça, naturalmente tendo percebido assim como ele que eles estavam aproximando-se da esquina próxima ao prédio onde o escritório deles estava localizado. Ela pegou seu pó compacto e aplicou-o no nariz, uma rotina que ela seguiu oito vezes desde que entraram no ônibus. O pequeno espelho servia como um periscópio de mão para observar os passageiros saindo pela traseira do ônibus. “Ali está ele, Teddy!”

Randall levantou-se do assento subitamente e apressou-se pelo corredor, acenando ao condutor. O condutor olhou irritado, mas acenou para o motorista não seguir. "Por que você presta atenção?” ele perguntou.

“Desculpe amigo. Eu não conheço bem a região. Vamos lá. Cyn.”

O homem deles estava virando em direção à porta do prédio onde tinham seu escritório. Randall parou. “Algo está estranho nisso tudo, garota.”

“O que nós faremos?”

“O seguiremos,” Randall decidiu.

Eles apressaram-se; Hoag não estava no saguão. O Midway-Copton não era um prédio grande, ou ostentador – senão não teriam conseguido alugar ali. Ele tinha apenas dois elevadores. Um estava no térreo e vazio; o outro, pelo indicador, tinha acabado de subir.

Randall foi até o elevador que estava aberto, mas não entrou. “Jimmie,” disse, “quantos passageiros foram no outro elevador?”

“Dois,” o ascensorista respondeu.

“Tem certeza?”

“Sim. Eu estava papeando com Bert quando ele fechou a porta. O Sr. Harrison e outro passarinho. Por quê?”

Randall entregou-lhe uma gorjeta. “Esqueça,” disse com os olhos voltados para a seta do indicador. “Para qual andar o Sr. Harrison vai?”

“Sete.” A seta parou no sete.

“Certo.” A seta começou novamente, movendo-se lentamente pelo oito e o nove, parando no dez. Randall empurrou Cynthia no carro. “Nosso andar Jimmie,” Randall disparou, “e pisa fundo!”

Um sinal de “subir” piscou no quarto andar; Jimmie foi em direção aos controles; Randall agarrou seu braço. “Pule esse dessa vez, Jim.”

O ascensorista deu de ombros e aceitou o pedido.

O corredor encarando os elevadores no décimo andar estava vazio. Randall viu isso de imediato e virou-se para Cynthia. “Dê uma pescoçada no outro corredor, Cyn,” Randall disse, e foi para a direita, na direção de seu escritório.

Cynthia assim o fez, com nenhuma apreensão em particular. Ela estava certa de que, tendo chegado até aqui, Hoag certamente estava se dirigindo para o escritório deles. Mas ela estava seguindo o hábito de receber orientações de Teddy quando ele estava agindo; se Randall desejava que o outro corredor fosse observado, ela obedeceria, é claro.

O layout do andar era no formado de uma letra H maiúscula, com os elevadores localizados na barra central. Ela virou para esquerda para ir até o outro corredor, então olhou para esquerda – ninguém estava naquele beco. Ela virou-se e olhou para o outro lado – ninguém estava lá. Ocorreu a ela que era possível que Hoag tivesse entrado na saída de incêndio; por isso a direção da saída de incêndio foi a primeira para a qual ela olhou, para a parte de trás do prédio – mas o hábito a levou a um engano; ela estava acostumada à outra ala na qual o escritório deles estava localizado, no qual, naturalmente, tudo estava invertido da direita para esquerda em relação ao que estava disposto nessa ala.

Ela tinha dado dois ou três passos em direção ao fim do corredor em direção à rua, quando ela percebeu seu engano – a janela aberta certamente não teria uma escada de incêndio além dela.

Com uma pequena exclamação de impaciência pela sua estupidez ela virou-se para trás.

Hoag estava parado logo atrás dela.

Ela deu um guincho totalmente não profissional.

Hoag sorriu. “Ah, Sra. Randall!”

Ela não disse nada – ela não podia pensar em nada para ser dito. Ela tinha uma pistola .32 em sua bolsa de mão; ela sentiu o desejo de sacá-la e atirar. Em duas ocasiões, na época em que ela esteve trabalhando como isca para o departamento de narcóticos, ela foi elogiada oficialmente por sua calma coragem em situações de perigo – ela não sentia tal calma agora.

Hoag deu um passo na direção dela. “Você desejava me ver, não é?”

Cynthia deu um passo para trás. “Não,” ela disse sem fôlego. “Não!”

“Ah, mas você queria. Você esperava me encontrar em seu escritório, mas eu decidi encontrá-la – aqui!”

O corredor estava deserto; ela não podia ouvir nenhum som de digitação ou conversas de qualquer outro dos escritórios em torno deles. As portas envidraçadas encaravam cegamente; os únicos sons, além das suas próprias palavras esparsas, eram os ruídos da rua dez andares abaixo, abafados, remotos e inúteis.

Hoag aproximou-se. “Você queria pegar minhas impressões digitais, não queria? Você queria checá-las – descobrir coisas sobre mim. Você e seu marido intrometido.”

“Afaste-se de mim!”

Ele continuou sorrindo. “Vamos lá. Você queria minhas impressões digitais – você deverá tê-las.” Ele ergueu seus braços em direção a ela e esticou seus dedos, tentando alcançá-la. Ela recuou das mãos que tentavam agarrá-la. Ele não mais parecia pequeno; ele parecia mais alto, e largo – maior que Teddy. Seus olhos a encaravam.

O salto dela bateu em algo atrás dela; ela sabia que tinha recuado até o fim do corredor – um beco sem saída. Suas mão juntaram-se. “Teddy!” ela gritou. “Oh, Teddy!”

Teddy estava inclinando-se sobre ela, batendo em seu rosto. “Pare com isso,” ela disse indignamente. “Isso dói!”

Randall deu um suspiro de alívio. “Nossa, querida,” disse ternamente. “Você me deu um susto. Você apagou por alguns minutos.”

“Hã!”

“Você sabe onde eu encontrei você? Ali!” Ele apontou para um ponto abaixo de uma janela aberta. “Se você não tivesse caído, você seria um hambúrguer agora. O que aconteceu? Esta olhando para fora e ficou tonta?”

“Você não o pegou?”

Randall olhou para ela com admiração. “Sempre profissional! Não, foi por pouco. Eu o vi, no corredor. Eu o observei por um momento para ver o que ele pretendia. Se você não tivesse gritado, eu o teria pegado.”

“Se eu não tivesse gritado?”

“Certamente. Ele estava na frente da porta do nosso escritório, aparentemente tentando abrir a fechadura com uma gazua, quando –”

“Quem estava?”

Randall olhou para ela surpreso. “Como assim, Hoag, é claro – querida! Acorde! Você não vai desmaiar novamente, vai?”

Ela tomou uma profunda inspiração. “Eu estou bem,” ela disse sombriamente, “– agora. Apenas enquanto você estiver aqui. Leve-me ao escritório.”

“Devo carregá-la?”

“Não, apenas me dê sua mão.” Ele a ajudou a levantar e desamassou seu vestido. “Não se preocupe com isso agora.” Mas ela parou para alisar, inefetivamente, uma linha solta do que tinha sido até o momento uma meia nova.

Ele a conduziu até o escritório e a sentou cuidadosamente em uma poltrona, então pegou uma toalha molhada com a qual limpou o seu rosto. “Sente-se melhor?”

“Eu estou bem – fisicamente. Mas eu quero entender algo. Você disse que viu Hoag tentando entrar nesse escritório?”

“Pois é. Sorte danada que nós temos essas fechaduras especiais.”

“Isso aconteceu quando eu gritei?”

“Sim, com certeza.”

Ela tamborilou nos braços da poltrona.

“O que foi, Cyn?”

“Nada. Nada demais – somente isso: A razão pela qual eu gritei foi porque Hoag estava tentando me enforcar!”

Levou algum tempo até mesmo para ele dizer, “Hã?”

Cynthia respondeu, “Sim, eu sei, querido. Isso foi o que aconteceu, e isso é loucura. De uma forma ou outra, ele fez isso conosco novamente. Mas eu juro para você que ele estava prestes a me enforcar. Ou eu pensei que ele estava.” Ela repetiu sua experiência, em detalhes. “O que isso nos acrescenta?”

“Eu gostaria de saber,” ele contou para ela, esfregando o rosto. “Eu gostaria de saber. Se eu não tivesse passado por isso no prédio Acme, eu poderia dizer que você está doente e desmaiou e então quando voltou a si estava meio tonta. Mas agora eu não sei qual de nós está pirado. Eu certamente o vi.”

“Talvez nós dois estejamos loucos. Seria uma boa ideia se nós dois fossemos ver um bom psiquiatra.”

“Nós dois? É possível duas pessoas ficarem malucas da mesma forma? Não deveria ser um ou outro de nós.?”

“Não necessariamente. É raro, mas acontece. Folie a deux.”[18]

“Foli a du?”

“Loucura contagiosa. Os pontos fracos coincidem e fazem cada um mais louco.” Ela pensou nas casos que estudou e recordou que isso normalmente uma pessoa era dominante e a outra subordinada, mas ela decidiu não trazer isso à tona, pois tinha sua própria opinião sobre quem era dominante em sua família, uma opinião que seria melhor manter em privado por razões políticas.

“Talvez,” Randall disse pensativamente, “o que nós precisamos é um bom e prolongado descanso. No caribe, talvez, onde nós poderíamos ficar largados no sol.”

“Isso,” ela disse, “é uma boa ideia em qualquer circunstância. Por que alguém no mundo escolhe viver em lugar feio, sujo e sombrio como Chicago está além da minha capacidade de compreensão.”

“Quanto dinheiro nós temos?”

“Cerca de oitocentos dólares, depois das contas e taxas serem pagas. E há também os quinhentos de Hoag, se você contar isso.”

“Eu acho que nós merecemos isso,” disse severamente. “Espere! Nós temos esse dinheiro? Talvez isso seja um embuste também.”

“Você quer dizer que talvez nunca tenha havido um Sr. Hoag, e daqui a pouco a enfermeira irá trazer nossa sopinha?”

“Hm-mm – essa é a ideia. Você está com ele?”

“Eu acho que sim. Espere um minuto.” Ela abriu sua bolsa, e conferiu um compartimento com zíper. “Sim, está aqui. Lindas notas verdinhas. Vamos sair de férias Teddy. Eu não sei por que nós estamos em Chicago, de qualquer forma.”

“Porque os negócios estão aqui,” disse praticamente. “De volta ao feijão-com-arroz. [19] O que me lembra, goste ou não, que é melhor ver as ligações que recebemos.” Ele foi até a mesa onde estava o telefone; seu olhar caiu sobre uma folha de papel na máquina de escrever. Ele ficou em silêncio por um momento, então falou com uma voz tensa, “Venha aqui, Cyn. Dê uma olhada nisso.”

Ela levantou imediatamente, deu a volta e olhou sobre seu ombro. O que viu era um dos seus papéis de carta, rolado na máquina de escrever, no qual uma simples linha estava digitada:


A CURIOSIDADE MATOU O GATO


Ela não disse nada e tudo que tentou fazer foi controlar o frio na boca do estômago.

Randall perguntou, “Cyn, você escreveu isso?”

“Não.”

“Tem certeza.”

“Sim.” Ela esticou o braço para retirar a folha da máquina; ele a interrompeu.

“Não toque nisso. Impressões digitais.”

“Tudo bem. Mas eu tenho uma noção,” ela disse, “que você não vai encontrar nenhuma impressão digital nisso.”

“Talvez não.”

Mesmo assim, pegou seu equipamento da gaveta inferior de sua mesa e jogou pó sobre o papel e a máquina – com resultados negativos em ambos. Não havia sequer impressões digitais da Cynthia para confundir o teste; ela tinha um asseio profissional em seus hábitos de escritório e tinha o costume de esfregar e limpar sua máquina de escrever ao fim de cada dia. Enquanto ela observava ele trabalhar ela observou, “Parece que você deve tê-lo visto saindo ao invés de estar tentando entrar.”

“Hã? Como?”

“Usou uma gazua na fechadura, eu suponho.”

“Não nessa fechadura. Você esqueceu, garota, que essa fechadura é uma das realizações de maior orgulho de Mr. Yale. Você pode quebrá-la, talvez, mas você não pode abri-la com uma gazua.”

Ela não respondeu – ela não podia pensar em uma resposta. Ele encarou mau humorado a máquina de escrever como se ela pudesse responder a ele o que aconteceu, então endireitou a coluna, recolheu seu equipamento, e retornou-o à sua própria gaveta. “A coisa toda fede,” disse, e começou a caminhar pela sala.

Cynthia pegou um pano de sua mesa e limpou o pó de impressões de sua máquina, então se sentou e o observou. Ela segurava sua língua enquanto ele mastigava o assunto. A expressão dela era perturbada, mas ela não estava preocupada com si mesma – nem isso era algo maternal. Ao invés disso ela estava preocupada por eles.

“Cyn,” disse subitamente, “isso tem que terminar!”

“Tudo bem,” ela concordou. “Vamos acabar com isso.”

“Como?”

“Vamos sair de férias.”

Ele balançou a cabeça. “Eu não posso fugir disso. Eu tenho de saber.”

Ela suspirou. “Eu prefiro não saber. O que está errado em fugir de algo muito grande para nós lutarmos?”

Ele parou e olhou para ela. “O que aconteceu com você, Cyn? Você nunca se acovardou antes.”

“Não,” ela respondeu lentamente, “Eu nunca o fiz. Mas eu nunca tive uma razão para isso. Olhe para mim, Teddy – você sabe que eu não sou uma mulher muito feminina. Eu não espero que você entre em uma briga em um restaurante quando alguém tenta dar uma cantada em mim. Eu não grito quando vejo sangue e não espero que você modere sua linguagem para adequá-la aos meus ouvidos femininos. Quanto ao trabalho, eu alguma vez deixe você desistir de um caso? Devido à timidez, quero dizer. Eu já fiz isso?”

“Com o inferno que não. Eu não disse que você fez.”

“Mas esse é um caso diferente. Eu tinha uma arma em minha bolsa alguns minutos atrás, mas eu não pude usá-la. Não me pergunte por quê. Eu não pude.”

Ele praguejou, com ênfase e detalhes consideráveis. “Eu gostaria de tê-lo visto então. Eu poderia ter usado a minha!”

“Você teria usado, Teddy?” Vendo sua expressão, ela pulou e o beijou subitamente, na ponta de seu nariz. “Eu não quis dizer que você teria medo. Você sabe que não foi o que quis dizer. Considero você é tão valente e forte quanto é esperto. Mas veja bem, querido – ontem ele o levou por aí pelo nariz e fez com que você acreditasse estar vendo coisas que não estavam lá. Por que você não usou sua arma então?”

“Eu não vi nenhum motivo para usá-la então.”

“É isso exatamente o que eu quis dizer. Você viu o que foi determinado para você ver. Como você pode lutar quando você não pode acreditar em seus próprios olhos?”

“Mas, maldito seja, ele não pode fazer isso conosco –”

“Não pode? Aqui está o que ele pode fazer.” Ela começou a contar nos dedos. “Ele pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ele pode fazer você ver uma coisa e eu outra, ao mesmo tempo – em frente ao prédio Acme, lembra? Ele pode fazer você pensar que foi até um escritório que não existe em um andar que não existe. Ele pode passar por uma porta trancada para usar uma máquina de escrever do outro lado. E ele não deixa impressões digitais. Somando isso tudo a que somos levados?”

Ele fez um gesto de impaciência. “Ao absurdo. Ou à mágica. E eu não acredito em mágica.”

“Nem eu.”

“Então,” disse, “nós dois piramos.” Ele riu, mas sem alegria.

“Talvez. Se é magia, seria melhor nós procurarmos um padre –”

“Eu disse que não acredito em magia.”

“Deixe para lá. Em todo caso, não nos fará qualquer bem tentar seguir o Sr. Hoag. Um homem com D.T. [20] não pode pegar as cobras que ele imagina ver e levá-las ao zoológico. Ele precisa de um médico – e talvez nós precisemos também.”

Randall ficou subitamente alerta. “Isso!”

“Isso o quê?”

“Você apenas me lembrou de um ângulo que eu tinha esquecido – o médico de Hoag. Nós nunca checamos ele.”

“Sim, você fez isso também. Não se lembra? Não existe esse médico.”

“Eu não quero dizer o Dr. Rennault; eu quis dizer Dr. Potbury – aquele que ele foi ver sobre o troço debaixo das unhas.”

“Você acha que ele realmente fez isso? Eu pensei que isso fosse apenas parte das mentiras que ele nos contou.”

“Assim como eu. Mas nós devíamos checar isso.”

“Eu aposto com você que não existe esse médico.”

“Provavelmente você está certa, mas nós deveríamos saber. Me de essa lista telefônica.” Ela a entregou para ele; ele a foleou, procurando pela letra P. “Potbury – Potbury. Tem meia coluna deles. Mas nenhum médico,” ele anunciou. “Vamos ver nas páginas amarelas; algumas vezes médicos não listam seus endereços residenciais.” Ela pegou a lista para ele. “’Consultórios Médicos’ – ‘Médicos e Cirurgiões.’ Uma porrada deles! Mais consultórios que bares – metade da cidade deve ficar doente a maior parte do tempo. Aqui está: ‘Potbury, Terapeuta, Clínico Geral.”

“Pode ser esse,” ela admitiu.

“O que estamos esperando? Vamos descobrir.”

“Teddy!”

“Por que não?” Randall disse defensivamente. “Potbury não é o Hoag – ”

“Eu espero.”

“Hã? O que você quer dizer? Você quer dizer que Potbury pode estar no meio dessa confusão também?”

“Eu não sei. Eu apenas gostaria de esquecer tudo sobre nosso Sr. Hoag.”

“Mas não há mal algum nisso, belezura. Eu apenas pulo no carro, deslizo até lá, pergunto ao respeitável doutor algumas perguntas pertinentes, então estarei de volta a tempo para o almoço.”

“O carro está parado para uma trocar as velas; como você bem sabe.”

“O.K. Então eu pegarei o trem elevado. Mais rápido, de qualquer forma.”

“Se você insiste em ir, nós dois pegaremos o trem. Nós ficaremos juntos, Teddy.”

Randall mordeu o lábio. “Talvez você esteja certa. Nós não sabemos onde Hoag está. Se você prefere assim –”

“Com certeza eu prefiro. Eu me separei de você por apenas três minutos agora a pouco e veja só o que aconteceu.”

“Certo, também acho. Eu não quero que nada aconteça com você, garota.”

Ela afastou essa colocação. “Não sou eu; somos nós. Se alguma coisa acontecer, eu espero que aconteça a mesma coisa a ambos.”

“Tudo bem,” Randall disse seriamente. “De agora em diante, nós ficamos grudados. Eu posso me algemar a você, se você preferir.”

“Você não vai precisar. Eu vou me pendurar em você.”


VI

 

O consultório de Potbury ficava ao sul, além da universidade. Os trilhos do trem elevado passavam entre quilômetros de apartamentos residenciais. Existem paisagens que as pessoas ordinariamente veem sem registrar quaisquer impressões na mente; hoje ela olhava para a elas, e as percebia, através de seu próprio humor cinzento.

Prédios de apartamentos de quatro ou cinto andares, com os fundos voltados para os trilhos, com pelo menos dez famílias por prédio, mas normalmente com vinte ou mais, e os prédios esmagados quase parede com parede. Varandas construídas em madeira nos fundos que proclamavam a natureza incendiável das habitações, apesar de suas cascas externas de tijolos, roupas penduradas para secar nessas varandas, latas de lixo e lixeiras. Quilômetro após quilômetro de indigna e feia imundice, vista dos fundos.

E sobre tudo uma película de fuligem, velha e inevitável, como a sujeira no peitoril da janela ao lado dela.

Ela pensou naquelas férias, ar puro e dia ensolarado. Por que ficar em Chicago? O que a cidade fez para justificar sua existência? Uma avenida decente, em um subúrbio decente ao norte, apenas para os ricos, duas universidades e um lago. Quanto ao resto, quilômetros sem fim de ruas deprimentes e sujas. A cidade era um grande curral.

Os apartamentos deram lugar a metros de trem elevado; o trem virou para esquerda e foi para o leste. Depois de alguns minutos eles desceram na estação Stoney Island; ela estava feliz por saltar do trem e da visão excessivamente franca dos fundos da vida cotidiana, mesmo que fosse para trocar pelo ruidoso e decadente comercialismo da Rua 63.

O consultório de Potbury era voltado para rua, com uma excelente visão dos trilhos elevados e dos trens. Era o tipo de ponto em que um clínico geral teria certeza de uma agenda cheia e igualmente certeza de nunca ser incomodado por ricaços ou famosos. A pequena sala de espera estava lotada, mas a fila andava rápido; eles não tiveram que esperar muito.

Potbury olhou para eles quando eles entraram. “Qual de vocês é o paciente?” ele perguntou. Ele aparentava ser um tanto irascível. Eles tinham planejado entrar no assunto de Hoag usando o desmaio de Cynthia como uma desculpa para uma consulta; a próxima observação de Potbury arruinou o esquema, do ponto de vista de Cynthia. “Qualquer um que seja o outro pode esperar lá fora. Eu não gosto de fazer convenções.”

“Minha esposa –” Randall começou. Ela agarrou seu braço.

“Minha esposa e eu,” ele prosseguiu suavemente, “desejamos fazer algumas perguntas doutor.”

“Bem? Podem falar.”

“Você tem um paciente – Sr. Hoag.”

Potbury levantou-se bruscamente, foi até a porta da sala de recepção, e assegurou-se dela estar fechada adequadamente. Ele então parou e os encarou, com as costas para a única saída. “O que há sobre – Hoag?” disse como se fosse um mau agouro.

Randall mostrou suas credenciais. “Você pode ver por si mesmo que eu sou um agente de investigação regulamentado,” ele disse. “Minha esposa é licenciada também.”

“O que vocês têm a ver com – o homem que vocês mencionaram?”

“Nós estamos conduzindo uma investigação para ele. Sendo você também um profissional, você pode compreender que eu prefiro ser franco –”

“Você trabalha para ele?”

“Sim e não. Especificamente, nós estamos tentando descobrir certas coisas sobre ele, mas ele está ciente do que nós estamos fazendo; então nós não estamos agindo pelas suas costas. Se você preferir, você pode telefonar para ele e descobrir por você mesmo.” Randall fez a sugestão porque parecia ser necessário fazê-la; ele esperava que Potbury a desconsiderasse.

Potbury assim o fez, mas não de uma forma reconfortante. “Falar com ele? Não se eu puder evitar! O que vocês querem saber sobre ele?”

“Alguns dias atrás,” Randall disse cuidadosamente, “Hoag trouxe a você uma substância para ser analisada. Eu quero saber que substância era essa.”

“Hummpf! Você me lembrou apenas um momento atrás que nós dois somos profissionais; eu estou surpreso que você possa fazer tal pedido.”

“Eu aprecio seu ponto de vista, doutor, e eu sei que o conhecimento que um médico tem de seus pacientes é privilegiado. Mas nesse caso existe –”

“Você não gostaria de saber!”

Randall considerou isso. “Eu já vi uma boa dose de coisas obscuras da vida, doutor, e eu não acho que exista algo que ainda possa me chocar. Você hesitaria em me contar na presença da Sra. Randall?”

Potbury olhou para ele interrogativamente, então sondou a Sra. Randall. “Vocês parecem ser pessoas decentes,” ele reconheceu. “Eu suponho que vocês acham que não poderiam se chocar. Mas deixem-me dar alguns conselhos. Aparentemente vocês estão conectados de alguma forma a este homem. Fiquem longe dele! Não tenham mais nada a tratar com ele. E não me perguntem o que ele tinha sobre suas unhas!”

Cynthia ficou surpresa de início. Ela tinha ficado de fora da conversa, mas a acompanhava cuidadosamente. Até onde ela se lembrava Teddy não tinha feito menção alguma às unhas. “Por que doutor?” Randall continuou insistentemente.

Potbury estava começando a ficar irritado. “Você é um homem bastante estúpido, senhor. Deixe-me dizer isso a você: Se você não sabe mais dessa pessoa do que você aparenta saber, então você não tem ideia da profundidade da bestialidade que é possível neste mundo. Nisso você é sortudo. É muito, muito melhor nunca saber.”

Randall hesitou, consciente de que a conversa estava indo contra ele. Então disse, “Supondo que você esteja certo, doutor – como é então que sendo ele tão perverso você não entregou Hoag para a polícia?”

“Como você sabe que eu não o fiz? Mas eu vou responder isso, senhor. Não, eu não o entreguei a polícia, pela simples razão de que isso não adiantaria. As autoridades não teriam a sagacidade ou a imaginação de conceber a possibilidade desse peculiar mal envolvido. Nenhuma lei poderia tocá-lo – não no nosso tempo ou era.”

“O que você quer dizer com, ‘não no nosso tempo ou era?’”

“Nada. Esqueça isso. O assunto está encerrado. Você disse algo sobre sua esposa quando você entrou; ela desejaria me consultar sobre algo?”

“Não era nada,” Cynthia disse apressadamente. “Nada importante.”

“Apenas um pretexto, hein?” ele sorriu quase jovialmente. “O que era?”

“Nada demais. Eu desmaiei hoje cedo. Mas eu estou bem agora.”

“Hm-m-m. Você não está grávida, está? Você não aparenta estar. Você parece forte o bastante. Um pouco anêmica, talvez. Ar fresco e um pouco de sol não faria mal algum.”

Ele afastou-se deles e abriu um armário branco na outra parede; ele ocupou-se com alguns frascos por um momento. Ele retornou com um copo de medicamento cheio com um líquido marrom alaranjado. “Aqui – beba isso.”

“O que é isso?”

“Um tônico. Aqui tem apenas o suficiente daquilo Que-Faz-a-Dança-de-Pastor [21] para fazer você gostar disso.”

Ela ainda hesitou, olhando para seu marido. Potbury percebeu isso e comentou, “Não gosta de beber sozinha, hein? Bem, uma dose não nos faria mal algum, também.” Ele voltou para o armário e voltou com mais dois copos de medicamento, um dos quais entregou a Randall. “Essa é para esquecer todos esses assuntos desagradáveis,” disse. “Beba!” Ele ergueu seu próprio copo até os lábios e atirou tudo para dentro.

Randall bebeu, e Cynthia o seguiu. Não era nada mal, ela pensou. Algo um pouco amargo estava presente, mas o uísque - isso era uísque, ela concluiu - disfarçava o gosto. Uma garrafa desse tônico não deveria trazer qualquer benefício real, mas o faria sentir-se melhor.

Potbury conduziu-os para fora. “Se você tiver outro episódio de desmaio, Sra. Randall, volte para me ver e eu farei um exame completo. Enquanto isso, não se preocupe com assuntos que você não pode resolver.”

Eles pegaram o último carro do trem de volta e conseguiram pegar um assento longe o bastante dos outros passageiros para que pudessem conversar livremente. “O que você conseguiu com isso?” ele perguntou, assim que sentaram.

Ela franziu a testa. “Eu não sei, na verdade. Ele certamente não gosta do Sr. Hoag, mas ele nunca dirá o por que.”

“Hum-mm.”

“O que você conseguiu com isso, Teddy?”

“Primeiro, Potbury conhece Hoag. Segundo, Potbury está muito preocupado para que não saibamos nada sobre Hoag. Terceiro, Potbury odeia Hoag - e tem medo dele!”

“Hã? Como você percebeu isso?”

Ele sorriu irritantemente. “Use suas pequenas células cinzentas, doçura. Eu penso nesse amigo Potbury – e se ele pensa que pode me assustar para me afastar de buscar o que Hoag faz em seu tempo livre, melhor pensar em outra coisa!”

Sabiamente, ela decidiu não discutir com ele – eles já estavam casados por um bom tempo.

A seu pedido eles foram para casa no lugar de voltar para o escritório. “Eu não estou a fim disso, Teddy. Se ele quer brincar com minha máquina de escrever, deixe-o!”

“Ainda sentindo-se derrubada com o que aconteceu?” ele perguntou ansiosamente.

“Tipo isso.”

Ela dormiu pela maior parte da tarde. O tônico, ela refletiu, que Dr. Potbury tinha dado a ela não parecia ter feito bem algum – deixou-a tonta, além de um gosto ruim na boca.

Randall a deixou dormir. Ele vadiou pelo apartamento por alguns minutos, montou seu alvo de dardos e tentou desenvolver um arremesso em gancho, então desistiu quando lhe ocorreu que deveria acordar Cynthia. Olhou para ela e percebeu que ela estava descansando tranquilamente. Decidiu que ela poderia desejar uma lata de cerveja quando acordasse – era uma boa desculpa para sair; ele queria uma cerveja também. Com um pouco de dor de cabeça, nada demais, mas não se sentia bem desde que deixou o consultório do médico. Umas duas cervejas poderiam consertar isso.

Havia um boteco ao lado da mercearia mais próxima. Randall decidiu parar para um trago antes de voltar. Logo ele encontrou-se explicando ao proprietário que as fusões empresariais e reformas nunca parariam a economia da cidade. Ele lembrou-se, ao deixar o local, de sua intenção original. Quando ele voltou ao apartamento deles, carregando cerveja e frios fatiados sortidos, Cynthia estava acordada e fazendo ruídos domésticos na cozinha. “Oi, querida!”

“Teddy!”

Randall a beijou antes de soltar os pacotes. “Você ficou assustada quando acordou e viu que eu tinha saído?”

“Na verdade não. Mas eu preferiria que você tivesse deixado um recado. O que você trouxe aí?”

“Umas geladas e frios fatiados. Gosta?”

“Beleza. Eu não queria sair para jantar e estava tentando ver se podia cozinhar algo. Mas eu não tenho carne nenhuma na casa.” Ela pegou os frios dele.

“Alguém ligou?”

“Não. Eu liguei para a telefonista quando acordei. Nada de interessante. Mas o espelho chegou.”

“Espelho?”

“Não banque o inocente. Foi uma bela surpresa, Teddy. Venha ver como ele fica bem no quarto.”

“Vamos esclarecer isso,” disse. “Eu não sei nada sobre espelho algum.”

Cynthia parou, confusa. “Eu pensei que você tinha comprado ele para mim para me fazer uma surpresa. Já estava pago.”

“A quem estava endereçado, você ou eu?”

“Eu não prestei muita atenção; eu estava meio sonolenta. Eu apenas assinei algo e eles desembalaram e penduraram ele para mim.”

Ele era um belo pedaço de vidro, chanfrado, sem moldura e bem largo. Randall percebeu que ele combinava bem com a penteadeira dela. “Se você queria um espelho desses, querida, eu compraria um para você. Mas esse não é nosso. Eu suponho que seja melhor chamar alguém para que o levem de volta. Onde está a etiqueta?”

“Eles a retiraram, eu acho. De qualquer forma, já passa das seis horas.”

Randall sorriu para ela com indulgência. “Você gostou dele, não gostou? Bem, ele será seu por hoje à noite – e amanhã eu verei de conseguir outro para você.”

Era um lindo espelho; o revestimento de prata era quase perfeito e o vidro era transparente.

Cynthia sentia como se pudesse atravessar a mão através dele.

Randall dormiu, quando eles foram para a cama, um pouco mais rapidamente do que ela – era o cochilo da tarde, sem dúvida. Ela descansou sobre um cotovelo e olhou para ele por um longo tempo depois de sua respiração ficar regular. Doce Teddy! Ele era um bom garoto – bom para ela, certamente.

Amanhã ela lhe diria para não se incomodar em encontrar outro espelho – ela não precisava dele.

Tudo que ela realmente desejava era ficar com ele, que nada nunca os separasse. Coisas não importavam; apenas estando juntos era tudo que realmente importava.

Ela olhou para o espelho. Ele certamente era bonito. Tão perfeitamente claro – como uma janela aberta. Ela sentiu como se ela pudesse atravessá-lo, como a Alice em Alice Através do Espelho. [22]


***


Ele acordou quando seu nome foi chamado. “Acorde aí, Randall! Você está atrasado!”

Não era a Cynthia, com certeza. Ele esfregou os olhos sonolentos e tentou focá-los. “O que acontece?”

“Você,” disse Phipps, inclinando-se para fora do espelho chanfrado. “Mexa-se! Não nos deixe esperando.”

Institivamente ele olhou para o outro travesseiro. Cynthia tinha sumido.

Sumido! Então ele se levantou da cama de uma vez, completamente acordado, tentando freneticamente procurá-la em todo lugar. Nada no banheiro. “Cyn!” Nada na sala de estar, ou na cozinha. “Cyn! Cynthia! Onde está você?” Ele procurou freneticamente em cada um dos closets. “Cyn!”

Ele voltou ao quarto e ficou parado ali, sem saber o que fazer em seguida – uma trágica figura de pés descalços e cabelos desgrenhados em pijamas amarrotados.

Phipps colocou uma mão na beirada inferior do espelho e saltou facilmente no quarto. “Esse quarto deveria ter espaço para instalar um espelho de corpo inteiro,” ele observou secamente ao deixar seu casaco e endireitar sua gravata. “Todo quarto deveria ter um espelho de corpo inteiro. Na verdade eu vou fazer essa solicitação – vou providenciar isso.”

Randall focou seus olhos nele como se o estivesse vendo pela primeira vez. “Onde está ela?” ele exigiu saber. “O que você fez com ela?” Ele foi até Phipps ameaçadoramente.

“Não é da sua conta,” retorquiu Phipps. Ele inclinou sua cabeça para o espelho. “Atravesse ele.”

“Onde está ela?” ele gritou e tentou agarrar Phipps pela garganta.

Randall nunca teria certeza do que aconteceu em seguida. Phipps ergueu uma mão – e ele encontrou-se jogado no chão ao lado da cama. Ele tentou lutar levantando-se – sem sucesso. Seus esforços eram infrutíferos, como se estivesse em um pesadelo. “Sr. Crewes!” Phipps chamou-o. “Sr. Reifsnider – eu preciso da ajuda de vocês.”

Mais dois rostos, vagamente familiares, apareceram no espelho. “Aqui deste lado, Sr. Crewes, por favor,” Phipps direcionou o Sr. Crewes para atravessar. “Bem! Vamos colocá-lo de pé primeiro, eu acho.”

Randall não tinha nada a dizer sobre isso; ele tentou resistir, mas seus músculos estavam moles. Contrações vagas eram tudo o que ele podia realizar. Ele tentou morder um punho que veio em sua direção e foi recompensado com um rosto cheio de ossos de uma mão dura – uma batida que ardeu mais do que machucou.

“Eu verei isso mais tarde,” Phipps prometeu a ele.

Eles o arrastaram através do espelho e o largaram em uma mesa – a mesa. Era a mesma sala em que ele tinha estado antes, a sala de reuniões da Detheridge & Co. Lá estavam os mesmos agradáveis rostos gelados em torno da mesa, o mesmo jovial olhar de porco do homem gordo na cabeceira.

Havia apenas uma pequena diferença; na extensa parede estava um grande espelho que não refletia a sala, mas mostrava seu quarto, seu e de Cynthia, como se visto através de um espelho, com tudo invertido da esquerda para a direita.

Mas ele não estava interessado nesse pequeno fenômeno. Ele tentou sentar-se, descobrindo que não podia, e viu-se forçado a simplesmente erguer sua cabeça. “Onde vocês a colocaram?” ele exigiu do enorme presidente.

Stoles sorriu para ele simpaticamente. “Ah, Sr. Randall! Então você veio nos ver novamente. Você andou por aí, não andou? Até demais, na verdade.”

“Maldito seja – diga-me o que vocês fizeram com ela!”

“Tolo, fraco e estúpido,” Stoles refletiu. “Pensar que meus irmãos e eu não poderíamos criar nada melhor que você. Bem, você deverá pagar por isso. O Pássaro é cruel!”

Nessa última observação enfática ele cobriu seu rosto brevemente. Os outros presentes seguiram seus movimentos; alguém esticou e colocou uma mão asperamente sobre os olhos de Randall, então depois a removeu.

Stoles estava falando novamente; Randall tentou interrompê-lo – mais uma vez Stoles apontou um dedo para ele e disse severamente, “Basta!” Randall encontrou-se incapaz de falar; sua garganta ficou engasgada e ele sentiu-se nauseado ao tentar falar.

“Alguém poderia supor,” Stoles continuou civilizadamente, “que até mesmo alguém da sua pobre espécie poderia compreender o aviso que lhe foi dado, e acatá-lo.” Stoles parou por um momento e apertou seus lábios firmemente. “Eu algumas vezes acho que minha única fraqueza reside em não compreender toda profundidade das falhas e estupidez dos homens. Como uma criatura racional eu me vejo com uma desafortunada tendência a esperar dos outros que não são como eu que sejam sensatos.”

Ele parou e direcionou sua atenção para um de seus colegas. “Não crie falsas esperanças, Sr. Parker,” disse, sorrindo docemente. “Eu não subestimo você. E se você deseja lutar pelo meu direito de sentar onde eu sento, eu devo forçosamente – mais tarde, eu espero,” adicionou pensativamente, “verificar qual é o gosto de seu sangue.”

O Sr. Parker foi igualmente cortês. “O mesmo quanto ao você, Senhor Presidente, eu imagino. É uma ideia agradável, mas eu estou satisfeito com os arranjos atuais.”

“Eu sinto ouvir isso. Eu gosto de você, Sr. Parker; eu esperava que você fosse mais ambicioso.”

“Eu sou paciente – como nosso Ancestral.”

“Então? Bem – de volta aos negócios. Sr. Randall, eu tentei anteriormente impressioná-lo com a necessidade de não ter mais nada a tratar com – seu cliente. Você sabe a qual cliente eu me refiro. O que você considera que o impressionaria além do fato dos Filhos do Pássaro não tolerarem interferência com seus planos? Fale – conte para mim."

Randall tinha ouvido pouco do que aconteceu ali e não compreendeu quase nada. Todo o seu ser estava absorto em um simples e terrível pensamento. Quando descobriu que podia falar novamente, ele despejou tudo de uma vez. “Onde está ela?” ele exigiu saber com um suspiro rouco. “O que você fez com ela?”

Stoles gesticulou impacientemente. “Algumas vezes,” disse irritadamente, “é quase impossível nos comunicarmos com um deles – quase não possuem inteligência. Sr. Phipps!”

“Sim, senhor.”

“Você pode por gentileza ver o outro que foi trazido para cá?”

“Certamente, Sr. Stoles.” Phipps chamou um assistente com um olhar; os dois deixaram a sala para retornar logo com um fardo que eles colocaram casualmente na mesa ao lado de Randall. Era Cynthia.

O sentimento de alívio foi quase mais do que ele podia suportar. Ele rugiu através dele, o engasgou, o ensurdeceu e o cegou com lágrimas, não deixando nada para pesar a gravidade do perigo presente na situação deles. Mas gradualmente a agitação pela qual passava diminuiu o suficiente para que ele visse que algo estava errado; ela estava muito quieta. Mesmo se ela estivesse dormindo quando eles a carregavam, o tratamento áspero que recebeu deveria ter sido o suficiente para acordá-la.

Sua preocupação foi quase tão devastadora quanto seu alívio tinha sido. “O que vocês fizeram com ela?” ele implorou. “Ela está –”

“Não,” Stoles respondeu em um tom aborrecido, “ela não está morta. Controle-se, Sr. Randall.” Com um aceno de sua mão direcionou-se aos colegas, “Acordem-na.”

Um deles a cutucou nas costelas com o dedo indicador. “Não precisa embrulhar,” observou, “eu vou comendo no caminho.”

Stoles sorriu. “Muito engraçado, Sr. Printemps – mas eu disse para acordá-la. Não me deixe esperando.”

“Certamente, Senhor Presidente.” Ele deu lhe um tapa ardido em seu rosto; Randall sentiu como se tivesse sido em seu próprio rosto – em sua condição impotente isso quase acabou com o seu juízo. “Em Nome do Pássaro – acorde!”

Ele viu seu peito mexer-se sobre a seda da sua camisola; os olhos mexendo-se enquanto dizia uma palavra, “Teddy?”

“Cyn! Aqui querida, aqui!”

Ela virou a cabeça em sua direção e exclamou, “Teddy!” então adicionou, “Eu tive um sonho horrível – Oh!” Cynthia percebeu ele olhando seriamente para ela. Ela olhou lentamente em volta, com os olhos arregalados e sérios, então se voltou para Randall. “Teddy – isso ainda é um sonho?”

“Temo que não seja querida. Queixo erguido, querida.”

Cynthia olhou mais uma vez para os outros, e então novamente para ele. “Eu não estou com medo,” ela disse firmemente. “Pode agir Teddy. Eu não irei desmaiar novamente.” No entanto ela manteve os olhos fixos nos dele.

Randall deu um olhar de relance para o presidente gordo; ele estava observando eles, aparentemente divertindo-se com a visão, e não mostrava disposição de interferir. “Cyn,” Randall disse com um suspiro de urgência, “eles fizeram algo comigo para que eu não consiga me mexer. Eu estou paralisado, então espere muito de mim. Se você tiver uma chance de agir, aproveite!”

“Eu não posso me mexer, também,” ela suspirou de volta. “Nós temos que esperar.” Ela viu sua expressão agonizante e adicionou. “‘Queixo erguido, ’ você disse. Mas eu gostaria de poder tocar em você.” Os dedos dela tremeram levemente, encontraram alguma resistência no tampo da mesa polida, e começaram a progredir dolorosamente e lentamente através dos centímetros que os separavam.

Randall descobriu que ele podia mover um pouco os seus dedos; ele moveu sua mão esquerda para juntar-se à dela, centímetro por centímetro, seu braço como um peso morto contra o movimento. Finalmente eles tocaram-se e a mão dela apertou a dele, pressionando fracamente. Ela sorriu.

Stoles bateu ruidosamente na mesa. “Essa pequena cena é muito tocante,” disse em um tom simpático, “mas temos negócios a resolver. Nós devemos decidir o melhor a fazer com eles.”

“Não seria melhor eliminá-los completamente?” sugeriu aquele que tinha cutucado Cynthia nas costelas.

“Isso seria um prazer,” Stoles concedeu, “mas nós devemos lembrar que esses dois são meros incidentes em nossos planos para... para o cliente do Sr. Randall. Ele é aquele que precisamos destruir!”

“Eu não vejo como –”

“É claro que você não vê e é por isso que eu sou o presidente. Nosso propósito imediato deve ser imobilizar esses dois de uma forma que eles não causem suspeitas de sua parte. A questão aqui é meramente sobre a escolha do método e da forma.”

O Sr. Parker falou. “Seria muito interessante,” ele sugeriu, “retorná-los como ele estão agora. Eles iriam definhar lentamente, incapazes de responder à campainha, incapazes de atender ao telefone, totalmente desamparados.”

“Assim seria.” Stoles disse aprovando. “Isso é uma questão de calibragem da sugestão que eu espero de você. Suponha que ele tente vê-los, e os encontre. Você acha que ele não compreenderia sua estória? Não, deve ser algo que selaria suas línguas. Eu pretendo enviá-los de volta com um deles – morto-vivo!”

A coisa toda era tão absurda, tão pouco provável, que Randall ficava dizendo para si mesmo que isso não podia ser real. Ele estava nas garras de um pesadelo; se ele conseguisse apenas acordar, tudo ficaria bem. A coisa de não ser capaz de se mover – ele já tinha experimentado isso em sonhos anteriores. Na verdade você acorda e percebe que os cobertores ficaram enrolados em torno de você, ou que você estava dormindo com ambas as mãos debaixo da sua cabeça. Ele tentou morder sua língua para que a dor o acordasse, mas isso não ajudou.

As últimas palavras de Stoles trouxeram sua atenção de volta ao que estava acontecendo em torno dele, não porque ele as compreendia – elas significavam pouco para ele, apesar de estarem carregadas com horror – mas por causa da agitação de aprovação e antecipação que correu em torno da mesa.

A pressão da mão de Cynthia na sua aumentou suavemente. “O que eles vão fazer, Teddy?” ela sussurrou.

“Eu não sei, querida.”

“O homem, é claro,” Parker comentou.

Stoles olhou para ele. Randall teve o sentimento de que Stoles também pensava nele – o que quer que estivesse vindo! – até que Parker sugeriu isso. Mas Stoles respondeu, “Eu sou sempre grato por seu conselho. Isso facilita muito para eu decidir o que deve ser feito.” Virando para os outros ele disse, “Preparem a mulher.”

“Agora,” pensou Randall. “Tem que ser agora.” Invocando toda a força de vontade que ele possuía ele tentou erguer-se da mesa – erguer-se e lutar!

Parecia que ele não tinha feito esforço algum.

Randall deixou sua cabeça cair para trás, exaurido com o esforço. “É inútil, garota,” disse miseravelmente.

Cynthia olhou para ele. Se ela sentia medo, isso estava mascarado pela preocupação que ela demonstrava por ele. “Queixo erguido, gênio,” ela respondeu com a mera sugestão de pressão da sua mão na dele.

Printemps levantou-se e inclinou-se sobre ela. “Isso é mais propriamente um serviço para Potiphar,” ele objetou.

“Potiphar deixou uma garrafa preparada,” Stoles respondeu. “Você a tem, Sr. Phipps?”

Phipps respondeu esticando a mão até sua pasta de documentos e pegando ela. Com um aceno de Stoles ele a passou adiante; Printemps a aceitou. “A cera?” ele adicionou. “Aqui está,” Phipps reconheceu, mergulhando em sua pasta novamente.

“Obrigado, senhor. Agora, se alguém puder tirar isso do caminho” – indicando Randall enquanto falava – “parece que estamos prontos.” Meia dúzia de mãos selvagens manipularam Randall até o extremo da mesa; Printemps inclinou-se sobre Cynthia, com a garrafa na mão.

“Um momento,” Stoles interrompeu. “Eu quero que os dois compreendam o que está acontecendo e por que. Sra. Randall,” ele continuou, acenando galantemente, “em nossa curta entrevista mais cedo eu acredito que fiz com que você compreendesse que os Filhos do Pássaro não permitirão interferências como as de vocês dois. Você entende isso, não entende?”

“Eu entendo você,” ela respondeu. Mas seus olhos eram desafiadores.

“Bom. Que fique entendido que é nosso desejo que seu marido não tenha mais nada a ver com... certa pessoa. De forma a assegurar isso nós estamos prestes a dividi-la em duas partes. A parte que a mantém caminhando, a qual você prefere divertidamente chamar de alma, nós vamos espremer nessa garrafa e guarda-la. Quanto ao resto, bem, seu marido pode manter com ele, como uma lembrança de que os Filhos do Pássaro tem você em seu domínio. Você me compreende?”

Ela ignorou a pergunta. Randall tentou responder, descobrindo que sua garganta estava se comportando errado novamente.

“Escute-me, Sra. Randall; se você ainda deseja ver seu marido novamente é imperativo que ele nos obedeça. Ele não pode, com o risco de você morrer, ver seu cliente novamente. A mesma penalidade caso ele não segure sua língua no que concerne a nós e tudo que ele presenciou. Se ele não o fizer – bem, nós poderemos fazer sua morte muito interessante, eu posso assegurá-la.”

Randall tentou gritar que ele prometeria qualquer coisa se eles pudessem poupá-la, mas sua voz ainda estava silenciada – aparentemente Stoles queria ouvir de Cynthia primeiro. Ela balançou a cabeça. “Ele irá fazer o que considerar mais sábio.”

Stoles sorriu. “Muito bem,” disse. “Essa é a resposta que eu desejava. Você, Sr. Randall – você promete?”

Randall desejava concordar, estava prestes a concordar – mas Cynthia disse, “Não!” com seus olhos. Pela expressão dela sabia que sua voz estava agora sendo bloqueada. Dentro da sua cabeça, clara como palavras, parecia ouvi-la dizer, “É um truque, gênio. Não prometa!”

Ele ficou em silêncio.

Phipps colocou um polegar em seu olho. “Responda quando você receber a ordem de falar!”

Ele teve que deixar o olho semicerrado de forma a ver Cynthia, mas a expressão dela ainda era de aprovação; ele manteve a boca fechada.

Stoles disse, “Esqueça. Prossigam com isso, cavalheiros.”

Printemps colocou a garrafa sobre o nariz de Cynthia, e a segurou contra sua narina esquerda.

“Agora!” ele comandou. Outro deles pressionou suas costelas inferiores vigorosamente, de forma que sua respiração foi expelida subitamente. Ela grunhiu.

“Teddy,” ela disse, “eles estão me separan – Ugh!”

O processo foi repetido com a garrafa na outra narina. Randall sentiu a suave e calorosa mão sobre a dele subitamente relaxar. Printemps segurou a garrafa com seu polegar sobre o gargalo. “Dê-me a cera,” disse rapidamente. Depois de selá-la ele a passou para Phipps.

Stoles esticou um polegar em direção ao grande espelho. “Devolvam-nos,” comandou.

Phipps coordenou a passagem de Cynthia de volta através do espelho, então se voltou para Stoles. “Não deveríamos dar algo para que se lembre de nós?” perguntou.

“Fique à vontade,” Stoles respondeu indiferentemente, quando se levantou para sair, “mas tente não deixar marcas permanentes.”

“Muito bem!” Phipps sorriu, e acertou em Randall um gancho de esquerda que afrouxou seu dente. “Nós seremos cuidadosos!”

Randall ficou consciente por uma boa parte disse, apesar de, naturalmente não ter como julgar a proporção da coisa. Desmaiou uma ou duas vezes, apenas para voltar novamente sobre o estímulo de uma grande dor. Foi a complicada forma que Phipps encontrou de derrubar um homem sem marcá-lo que causou o último desmaio. Estava em uma pequena sala, onde todos os lados eram espelhos – as quatro paredes, o chão e o teto. Estava repetido infinitamente em todas as direções e toda imagem era ele mesmo – vários ‘eus’ que o odiavam mas dos quais ele não podia escapar. “Acertem-no novamente!” eles gritaram – ele gritou – e acertou a si mesmo nos dentes com seu punho fechado. Eles – ele – gargalhou. Eles estavam caindo sobre ele e Randall não podia correr o suficiente. Seus músculos não o obedeciam, não importa o quanto ele tentasse. Era devido a ter sido algemado – algemado a uma esteira rolante em que o colocaram. Ele foi vendado, também, e as algemas impediam que ele alcançasse os olhos. Mas ele tinha que continuar – Cynthia estava no topo da escalada; ele tinha que alcançá-la.

Somente, é claro, se houvesse um topo quando você estivesse em uma esteira.

Randall estava terrivelmente cansado, mas toda vez que diminuía o passo um pouco eles o acertavam novamente. E também exigiram que ele contasse os passos, também, senão ele não receberia crédito por isso – dez mil e noventa e um, dez mil e noventa e dois, dez mil e noventa e três, para cima e para baixo, para cima e para baixo – se ele pudesse pelo menos ver para onde estava indo.

Randall tropeçou; eles o acertaram por trás e ele caiu para frente com a cara no chão. Quando acordou seu rosto estava apertado contra algo duro, rugoso e frio. Ele moveu-se e percebeu que seu corpo inteiro estava rígido. Seus pés não funcionavam como deveriam – investigou com a luz incerta da janela e descobriu que ele tinha arrancado o lençol pela metade da cama e que estava preso nos tornozelos.

O objeto frio era o radiador do aquecedor; ele estava encolhido e empilhado contra ele. Randall estava começando a recuperar sua orientação; estava em seu familiar quarto. Ele devia ter andando enquanto dormia – não fazia tal proeza desde que era garoto! Caminhou dormindo, tropeçou, e esmagou a cabeça no radiador. Caiu estupidamente, como um saco de batatas – maldita sorte não ter se matado.

Randall estava começando a se recompor, e a erguer-se dolorosamente sobre seus pés, quando ele percebeu uma coisa não familiar no quarto – a novo grande espelho. Ele trouxe o resto do seu sonho de volta de uma vez; ele saltou em direção à cama. “Cynthia!”

Mas ela estava onde deveria, segura e sem ferimentos. Cynthia não tinha acordado com o escarcéu, o que o deixou feliz; não queria assustá-la. Randall foi na ponta dos pés para longe da cama e entrou silenciosamente no banheiro, fechando a porta atrás dele antes de acender a luz.

Uma bela visão! Ele refletiu. Seu nariz esteve sangrando; ele tinha parado de sangrar e o sangue tinha coagulado. Isso fez uma bagunça ensanguentada na frente do casaco de seu pijama. Além disso, ele aparentemente ficou caído com o rosto na coisa – ela secou, sujando tudo, e fazendo-o parecer muito mais machucado do que realmente estava, como descobriu quando limpou o rosto.

Na verdade, ele não parecia muito machucado, exceto por – au! – todo o lado direito de seu corpo estava rígido e dolorido – provavelmente devido à batida e torcida que deu quando caiu, batendo no chão frio. Ele imaginou por quanto tempo ele esteve apagado.

Ele retirou o casaco do pijama, decidiu que seria muito complicado tentar lavá-lo então o amassou em uma bola e enfiou atrás o assento do vaso sanitário. “Por que razão nesse mundo, Teddy, você faria isso consigo mesmo?” “Nada de mais, garoto – apenas corri para o radiador!”

Isso soava pior do que aquela velha história de correr para cima de uma porta fechada.

Ele ainda estava grogue, mais grogue do que pensava – ele quase acertou a própria cabeça quando atirou o casaco, tendo que se segurar na pia para não cair. E sua cabeça estava latejando como uma bateria do Exército da Salvação. Ele vasculhou o armário de medicamentos, localizando algumas aspirinas e pegando três tabletes, então olhou esperançosamente para o frasco de Amytal [23] prescrito para Cynthia alguns meses antes. Randall nunca tinha precisado de nada do tipo antes; ele dormia profundamente – mas esse era um caso especial. Pesadelos por duas noites seguidas e agora o sonambulismo quase quebrando seu maldito pescoço.

Ele tomou uma das capsulas, enquanto lembrava em como pensou que a garota tinha algo erado quando disse que precisavam de umas férias – então se sentiu arrependido.

Pijamas limpos eram muito difíceis de encontrar sem ligar a luz do quarto – então deslizou na cama, esperou um momento para ver se Cyn estava imóvel, então fechou seus olhos e tentou relaxar. Dentro de alguns minutos as drogas começaram a fazer efeito, a dor em sua cabeça começou a diminuir, e rapidamente ele estava dormindo.


VII

 

A luz do sol em seu rosto o acordou; Randall focou um olho no relógio da penteadeira e viu que passava das nove horas, então levantou da cama rapidamente. Não foi, ele descobriu, uma coisa muito inteligente a se fazer – o lado direito de seu corpo lhe deu um acesso de dor. Então ele viu a mancha marrom sobre o radiador do aquecedor e lembrou-se do seu acidente.

Cautelosamente virou sua cabeça e deu uma olhada em sua esposa. Ela ainda estava dormindo em silêncio, não demonstrando disposição em se mover. Isso era bom para ele; seria melhor, ele pensou, dizer o que aconteceu depois de preparar sua dose de suco de laranja. Não via sentido em assustar a garota.

Randall arrastou-se em seus chinelos, então vestiu o robe, pois seus ombros estavam gelados e seus músculos doloridos. O gosto ruim na boca melhorou um pouco depois dele escovar os dentes; o café da manhã começou a parecer uma boa ideia.

Sua mente estava divagando sobre a noite passada, entre lembranças vagas sem se agarrar a nenhuma. Esses pesadelos, ele pensou enquanto espremia as laranjas – não era coisa boa. Talvez não fosse loucura, mas definitivamente não era coisa boa, eram neuróticos. Randall tinha que por um ponto final neles. Um homem não podia trabalhar se passasse a noite caçando borboletas, mesmo se ele não caísse e quebrasse o pescoço. Um homem precisava dormir – definitivamente

Ele bebeu seu próprio copo de suco, então levou o outro para o quarto. “Vamos lá, beleza – toque da alvorada!” Quando ela não se moveu ele começou a cantar. “Levante dorminhoca, vamos lá, levante, levante! Lá vem o sol!”

Cynthia ainda não se moveu. Ele colocou o copo cuidadosamente no criado mudo, sentou na beirada da cama, e toco em seu ombro. “Acorde garota! O trem está partindo – dois vagões já foram!”

Ela ainda não se moveu. Seus ombros estavam frios.

“Cyn!” Randall gritou. “Cyn! Cyn!” ele a sacudiu violentamente.

Ela se mecheu sem vida. Ele sacudiu seu braço. “Cyn, querida – Oh, Deus!”

Randall foi atravessado por um choque elétrico; ele queimou os fusíveis, por assim dizer, e estava pronto, com uma espécie de calma sombria para fazer o que seria necessário. Ele estava convencido sem saber o porquê, sem mesmo avaliar a situação, de que Cynthia estava morta. Ele não conseguia encontrar seu pulso – talvez ele estivesse sendo desajeitado, disse a si mesmo, ou talvez estivesse muito fraco; o tempo todo um coro em sua cabeça gritava, “Ela está morta... morta... morta – e você a deixou morrer!”

Ele colocou uma orelha sobre o coração dela. Parecia que podia ouvir o coração dela bater, mas não podia ter certeza; podia estar apenas sentindo o seu próprio coração. Desistiu e olhou em torno procurando um espelho pequeno.

Ele encontrou o que queria na bolsa de mão de Cynthia, um pequeno espelho de maquiagem. Ele o poliu cuidadosamente na manga de seu robe e o segurou em frente à sua boca meio aberta.

O espelho ficou levemente nevoado.

Randall o removeu de uma forma atrapalhada, não se permitindo ter esperança, o poliu novamente e o colocou em frente à sua boca. Novamente ficou nevoado, levemente, mas certamente.

Ela estava viva – ela estava viva!

Randall imaginou um momento depois por que não conseguiu vê-la claramente, e descobriu que seu rosto estava molhado. Limpou seus olhos e prosseguiu com o que tinha a fazer. Tinha aquela coisa com uma agulha – se pudesse encontrar uma agulha. Ele encontrou uma em uma almofada de alfinetes em sua penteadeira. Ele trouxe-a de volta para a cama, e pegando a pele do braço dela, disse, “Desculpe-me garota,” em um sussurro e a espetou.

O furinho mostrou uma gota de sangue, que parou rapidamente – viva. Ele gostaria de um termômetro para febre, mas não tinham um – os dois eram muito saudáveis. Mas ele se lembrava de algo que tinha lido em algum lugar, algo sobre a invenção do estetoscópio. Você enrola um pedaço de papel –

Randall encontrou um de tamanho adequado e o enrolou em um tubo de cerca de um centímetro e o empurrou contra a pele nua sobre o coração. Ele colocou seu ouvido do outro lado e escutou. Bump-bump-bump-bump – baixo, mas regular e forte. Sem dúvida agora; ela estava viva; seu coração estava batendo.

Ele tinha que sentar-se por um momento.

Randall forçou-se a pensar no que fazer em seguida. Chamar um médico, obviamente. Quando as pessoas ficam doentes chama-se um médico. Ele nunca tinha pensado nisso por que Cyn e ele nunca o fizeram, nunca precisaram fazer. Ele não conseguia lembrar o nome de nenhum médico que eles tenham ido desde que se casaram.

Chamar a polícia e pedir uma ambulância talvez? Não, ele conseguiria algum médico mais acostumado a acidentes de trânsito e ferimentos à bala do com coisas como essa. Ele queria o melhor.

Mas quem? Eles não tinham um médico da família. Ele conhecia um chamado Smyles – um beberrão, nada bom. E Hartwick – que inferno, Hartwick era especializado em clientes da alta sociedade. Ele pegou a lista telefônica.

Potbury! Randall não sabia nada sobre o camarada, mas parecia ser competente.

Randall procurou o número dele, errou a discagem três vezes, então pediu para a telefonista chamá-lo.

“Sim, aqui é Potbury. O que você deseja? Desembuche homem.”

“Eu disse que quem fala é Randall. Randall. R-A-N-D-A-duplo L. Minha esposa e eu fomos vê-lo ontem, lembra-se? Sobre –”

“Sim, eu me lembro. Qual o problema?”

“Minha esposa está doente.”

“O que aconteceu? Ela desmaiou novamente?”

“Não... sim. Isto é, ela está inconsciente. Ela acordou inconsciente – quero dizer, ela não acordou. Ela está inconsciente agora; ela parece morta.”

“Ela está?”

“Eu não acho – mas ela está muito mal, doutor. Eu estou apavorado. Você pode vir aqui agora?”

Houve um curto silêncio, então Potbury disse mal humorado, “Estou a caminho.”

“Oh, que bom! Olhe – o que eu devo fazer antes de você chegar aqui?”

“Não faça nada. Não toque nela. Eu chegarei logo ai.” Ele desligou.

Randall colocou o telefone no gancho e correu para o quarto. Cynthia estava da mesma forma. Ele começou a tocá-la, lembrou-se das instruções do médico, e endireitou-se rapidamente. Mas seus olhos caíram sobre o pedaço de papel com o qual ele improvisou um estetoscópio e ele não pode resistir à tentação de checar o resultado anterior.

O tubo forneceu um animador tump-tump; ele o removeu e o colocou de lado. Dez minutos ficando parado e olhando para ela sem nada mais útil a fazer do que ficar roendo as unhas o deixou nervoso demais para continuar fazendo isso. Ele foi até a cozinha e removeu uma garrafa de uísque do topo do armário e despejou uma generosa dose de três dedos em um copo de água, olhou para o troço de cor âmbar por um momento, então o despejou no ralo da pia, e voltou para o quarto.

Ela ainda estava na mesma.

Então subitamente ocorreu a ele que não tinha fornecido a Potbury o seu endereço. Ele correu para a cozinha e pegou o fone. Controlando-se ele conseguiu discar o número correto. Uma garota atendeu o telefone. “Não, o doutor não está no consultório. Algum recado?”

“Meu nome é Randall. Eu –”

“Oh – Sr. Randall. O doutor saiu para a sua casa há uns quinze minutos atrás. Ele deve estar chegando a qualquer minuto agora.”

“Mas ele não tem o meu endereço!”

“O que? Oh, eu tenho certeza que ele tem – se ele não o tivesse já teria me ligado agora.”

Randall colocou o telefone no gancho. Isso era muito engraçado – bem, ele daria a Potbury três minutos, então tentaria outro.

O interfone tocou; ele levantou de sua cadeira como um pugilista peso meio-médio após ter sido surrado.

“Sim?”

“Potbury. É você, Randall?”

“Sim, sim – suba!” Ele apertou o botão que destravava a porta enquanto falava.

Randall estava esperando com a porta aberta quanto Potbury chegou. “Entre doutor! Venha, venha!” Potbury assentiu e passou por ele.

“Onde está a paciente?”

“Aqui.” Randall o conduziu com uma pressa nervosa para o quarto e inclinou-se do outro lado da cama enquanto Potbury dava uma primeira olhada na mulher inconsciente.

“Como ela está? Ela vai ficar bem? Conte para mim, doutor – ”

Potbury endireitou-se um pouco, grunhindo ao fazê-lo, e disse, “Se você fizer a gentileza de ficar de lado e parar de me atrapalhar, talvez eu possa descobrir.”

“Oh, sinto muito!” Randall recuou até a porta. Potbury pegou seu estetoscópio de sua maleta, escutou um pouco com uma expressão inescrutável em seu rosto que Randall tentou decifrar em vão, mudou o instrumento de lugar, e escutou novamente. Depois ele colocou o estetoscópio de volta na maleta, e Randall aproximou-se ansiosamente.

Mas Potbury o ignorou. Ele ergueu uma pálpebra com um polegar e examinou sua pupila, ergueu um braço para então deixá-lo cair livremente ao lado da cama e bateu próximo ao cotovelo, então se endireitou e apenas olhou para ela por vários minutos.

Randall queria gritar.

Potbury realizou várias outras coisas estranhas que médicos fazem, quase ritualísticas, algumas das quais Randall pensou entender, outras que ele definitivamente não compreendia. Finalmente ele disse subitamente, “O que ela fez ontem – depois que vocês deixaram meu consultório?”

Randall contou a ele; Potbury acenou demonstrando compreender. “Isso era o que eu esperava – isso tudo reflete o que aconteceu de manhã. Tudo sua culpa, devo dizer!”

“Minha culpa, doutor?”

“Você foi avisado. Nunca deveria ter a deixado aproximar-se de um homem como aquele.”

“Mas... Mas... você não me avisou até que ele tinha assustado ela.”

Potbury parecia um pouco envergonhado com isso. “Talvez não, talvez não. No entanto você me disse que alguém tinha alertado você antes de eu o ter feito. Você deveria saber melhor, de qualquer forma, com uma criatura como aquela.”

Randall desistiu do assunto. “Mas como ela está, doutor? Ela vai melhorar? Ela vai, não é?”

“Você tem uma mulher muito doente em suas mãos, Sr. Randall.”

“Sim, eu sei que ela está doente – mas qual é o problema com ela?”

“Lethargica Gravis, trazida por um trauma psíquico.”

“Isso é – sério?”

“Muito sério. Se você cuidar adequadamente dela, eu espero que ela consiga sair dessa.”

“Eu faço o que for necessário, doutor. Dinheiro não é o problema. O que nós devemos fazer? Levá-la a um hospital?”

Potbury afastou essa sugestão. “Pior coisa no mundo para ela. Se ela acordar em um ambiente estranho, ela pode apagar novamente. Mantenha-a aqui. Você pode tratar dos seus assuntos enquanto cuida dela?”

“Com certeza que eu posso.”

“Então faça isso. Fique com ela noite e dia. Se ela acordar, a coisa mais favorável para ela será encontrar-se em sua própria cama com você atento e próximo a ela.”

“Ela não deveria ter uma enfermeira?”

“Eu não acho que seja necessário. Não há muito que possa ser feito por ela, exceto mantê-la coberta e aquecida. Você deve manter o pé dela um pouco mais alto que a cabeça. Coloque dois livros sobre cada extremidade inferior da cama.”

“Certo.”

“Se essa condição persistir por uma semana ou mais, nós precisaremos ver injeções de glicose, ou algo do tipo.” Potbury parou, fechou sua maleta e a pegou. “Ligue para mim houver qualquer alteração em sua condição.”

“Eu irei. Eu – ” Randall parou subitamente; a última observação do médico o lembrou de algo que ele tinha esquecido. “Doutor – como foi que você encontrou o caminho até aqui?”

Potbury olhou perturbado. “O que você quer dizer? Esse lugar não é difícil de encontrar.”

“Mas eu não dei a você o endereço.”

“Hã? Absurdo.”

“Mas eu não dei o endereço. Eu me lembrei disso apenas alguns minutos depois e liguei novamente no seu consultório, mas você já tinha saído.”

“Eu não disse que você me deu ele hoje,” Potbury disse irritado; “você me deu ele ontem.”

Randall pensou nisso. Ele tinha oferecido a Potbury suas credenciais no dia anterior, mas elas continham apenas seu endereço comercial. É verdade que seu telefone estava na lista telefônica, mas era listado como um número comercial, sem endereço, tanto nas suas credenciais como na lista telefônica. Talvez Cynthia –

Mas não podia perguntar a Cynthia e pensar nela afastou essas menores considerações de sua mente. “Você tem certeza de que não temos mais nada a fazer, doutor?” ele perguntou ansiosamente.

“Nada. Fique aqui e observe ela.”

“Eu irei. Mas eu certamente queria ter um irmão gêmeo agora,” ele adicionou enfaticamente.

“Por quê?” Potbury perguntou, enquanto pegava suas luvas e virava-se para a porta.

“Esse cara, o Hoag. Eu tenho um assunto para resolver com ele. Deixe para lá – eu colocarei outra pessoa em sua cola até que eu tenha a chance de acertar contas com ele pessoalmente.”

Potbury virou-se e olhou para ela ameaçadoramente. “Você não fará nada disso. Seu lugar é aqui.”

“Sim, sim – mas eu quero mantê-lo no gelo. Um dia desses eu o pego para ver o que faz ele se coçar.”

“Meu jovem,” Potbury disse lentamente, “Eu quero que você me prometa que você não vai fazer qualquer coisa com... com esse homem que você mencionou.”

Randall olhou para a cama. “Em vista das circunstâncias,” disse selvagemente, “você acha que eu vou deixá-lo se livrar disso?”

“Em nome do – Veja. Eu sou mais velho que você e já aprendi a conviver com tolices e estupidez. Ainda assim – quanto mais você precisará para aprender que algumas coisas são muito perigosas para se brincar com elas?” Ele gesticulou em direção à Cynthia. “Como você pode esperar que eu seja responsável por sua recuperação se você insiste em fazer coisas que podem trazer apenas catástrofe?”

“Mas – escute Doutor Potbury, eu disse para você que eu pretendia seguir suas instruções quanto a ela. Mas eu não vou apenas esquecer o que ele fez. Se ela morrer... se ela morrer, então eu vou parti-lo ao meio um machado enferrujado!”

Potbury não respondeu imediatamente. Quando ele respondeu, o que disse foi, “E se ela não morrer?”

“Se ela não morrer, minha prioridade aqui é cuidar dela. Mas não espere que eu prometa esquecer Hoag. Eu não irei – e isso é minha decisão final.”

Potbury enfiou o chapéu na cabeça. “Nós iremos cuidar disso – e garantir que ela não morra. Mas deixe-me dizer algo a você, garoto. Você é um tolo.” Ele saiu batendo o pé do apartamento.

A excitação do embate com Potbury acabou poucos minutos depois do médico sair, e uma depressão sombria se abateu sobre ele. Não havia nada a fazer, nada para distrair sua mente da dolorosa apreensão que ele sentia por Cynthia. Ele providenciou a elevação dos pés da cama, como sugerido por Potbury, mas a tarefa levou apenas alguns insignificantes minutos; quando ele tinha terminado ele não tinha nada com o que se ocupar.

Ao erguer o pé da cama ele foi muito cauteloso para evitar sacudir muito a cama e acabar acordando-a; então ele percebeu que acordá-la era justamente o que ele desejava fazer. No entanto, ele não conseguiu ser ruidoso ou áspero com isso – ela parecia tão indefesa deitada ali.

Ele puxou uma poltrona para o lado da cama, onde ele podia tocar uma das mãos e observá-la de mais perto procurando qualquer mudança. Ficando bem imóvel ele descobriu que podia perceber o erguer e baixar de seu peito. Isso o tranquilizou um pouco; ele passou um longo tempo observando isso – o lento, imperceptível inspirar, e o muito mais rápido expirar da sua respiração. Seu rosto era pálido e assustadoramente sem vida, mas ainda assim lindo. Apertava o seu coração olhar para ela. Tão frágil – ela tinha confiado nele tão completamente – e agora não havia nada que ele pudesse fazer por ela. Se ele tivesse escutado ela, se ele tivesse apenas escutado o que ela tinha dito, isso nunca teria acontecido com ela. Ela esteve com medo, mas ela fez o que ele pediu para ela fazer.

Até mesmo os Filhos do Pássaro não foram capazes de assustar ela –

O que ele estava dizendo? Recomponha-se, Ed – isso não aconteceu; isso foi parte do seu pesadelo. Ainda assim, se algo assim tivesse acontecido, isso seria apenas o que ela teria feito – ficar por perto e auxiliá-lo, sem se importar no quanto as coisas teriam ficado ruins.

Ele teve certa satisfação melancólica a partir da ideia que, mesmo em seus sonhos, ele tinha certeza sobre ela, certeza da sua coragem e da sua devoção a ele. Ela tinha coragem – mais que a maioria dos homens. Houve uma vez onde ela derrubou uma garrava de ácido das mãos daquele sujeitinho que eles pegaram no caso Midwell. Se ela não tivesse sido rápida e corajosa então, ele provavelmente estaria usando óculos escuros agora, com um cão para guiá-lo por aí.

Ele baixou os cobertores um pouco e olhou para a cicatriz em seu braço onde ela tinha sido atingida naquele dia. Nenhum ácido o atingiu, mas algum tinha tocado nela – a marca ainda existia, ela sempre existiria. Mas ela não parecia se importar.

“Cynthia! Oh Cyn, minha querida!”

Chegou um momento em que ele não conseguiu mais ficar parado em uma posição. Dolorosamente – devido ao acidente da última noite seus músculos doíam furiosamente – ele levantou-se e preparou-se para lidar com as necessidades.

Pensar em comida era repugnante, mas ele sabia que tinha que alimentar-se se pensava em ser forte o suficiente para conseguir cuidar e esperar pelo tempo que fosse necessário.

Vasculhando os armários da cozinha e a geladeira, ele encontrou alguns mantimentos, coisas de café da manhã, alguns enlatados, algumas folhas de alface. Ele não tinha estômago para cozinhar; uma lata de sopa parecia tão boa quanto qualquer coisa. Ele abriu uma lata de caldo escocês, colocou em uma panela e adicionou água. Quando ferveu por alguns minutos ele tirou do fogo e comeu direto da panela, de pé. Tinha gosto de papelão cozido.

Randall voltou para o quarto e sentou-se novamente para continuar sua vigília sem fim.

Mas logo ele percebeu que o sentimento a respeito da comida era mais forte que sua lógica; ele disparou para o banheiro e ficou vomitando por alguns minutos. Então ele lavou o rosto, fez um gargarejo e voltou para sua poltrona, fraco e pálido, mas sentindo-se bem o suficiente fisicamente.

Começou a escurecer lá fora; ele ligou o abajur do criado mudo, virou-o de forma que ele não jogasse luz diretamente nos seus olhos, e novamente sentou-se. Ela estava imóvel.

O telefone tocou.

Isso o deixou quase sem resposta racional. Ele e seu sofrimento estiveram sentados velando por ela por tanto tempo que ele acabou quase incapaz de perceber qualquer coisa do mundo exterior. Mas ele conseguiu recompor-se e o atendeu.

“Alô? Sim, aqui é Randall falando.”

“Sr. Randall, eu tive tempo para pensar nisso e sinto que lhe devo desculpas – e uma explicação.”

“Deve-me o que? Quem está falando?”

“Ora, aqui é Jonathan Hoag, Sr. Randall. Quando você – ”

“Hoag! Você disse ‘Hoag’?”

“Sim, Sr. Randall. Eu quero me desculpar por meus modos peremptórios de ontem de manhã e gostaria de pedir seu perdão. Eu espero que a Sra. Randall não esteja chateada por meu –” Nesse momento Randall ficou suficientemente recuperado da sua surpresa inicial para conseguir expressar-se. Ele assim o fez, deliciosamente, usando palavras e figuras de linguagem reunidas durante anos de associação com tipos que um detetive particular inevitavelmente encontra no caminho. Quando ele terminou ouviu um engasgar do outro lado da linha e um silêncio mortal. Ele não estava satisfeito. Ele queria ouvir Hoag interrompendo-o para então continuar seu discurso. Você está aí, Hoag?”

“Uh, sim.”

“Eu quero adicionar mais uma coisa: Talvez você pense que é engraçado agarrar uma mulher sozinha em um corredor e assustá-la até que ela desmaie. Eu não acho! Mas eu não vou entregar você à polícia – não, realmente! Apenas assim que a Sra. Randall melhorar eu vou procurá-lo eu mesmo e então – Que Deus ajude você, Hoag. Você vai precisar disso.”

Seguiu-se um silêncio tão longo que Randall teve certeza de que sua vítima tinha desligado. Mas parecia que Hoag estava meramente recompondo-se. “Sr. Randall, isso é terrível – ”

“Pode apostar que é!”

“Você quer dizer que eu abordei a Sra. Randall e a assustei?”

“Você sabe que sim!”

“Mas eu não sei, eu verdadeiramente não sei.” Ele parou, então continuou com uma voz insegura. “Esse é o tipo de coisa que eu temo, Sr. Randall, temo que eu possa descobrir que durante meus lapsos de memória eu possa estar fazendo coisas terríveis. Mas ter machucado a Sra. Randall – ela foi tão boa comigo, tão gentil comigo. Isso é horrível.”

“Não me diga!”

Hoag suspirou como se estivesse cansado além da sua resistência.

“Sr. Randall?” Randall não respondeu. “Sr. Randall – não há razão para eu continuar me iludindo; existe só uma coisa a ser feita. Você tem que me entregar à polícia.”

“Hã?”

“Eu sei disse desde nossa última conversa; Eu pensei sobre isso o dia todo ontem, mas eu não tive a coragem. Eu esperava que eu superasse minha outra... outra personalidade, mas hoje aconteceu novamente. O dia todo foi uma incógnita para mim e eu apenas me lembro do que fiz ao chegar em casa. Então eu sabia que tinha que fazer algo a respeito, então liguei para você para continuarmos com sua investigação. Mas eu nunca suspeitei que eu pudesse fazer algo a Sra. Randall.” Ele parecia convincentemente subjugado pela ideia. “Quando isso... isso aconteceu, Sr. Randall?”

Randall encontrou-se em um estado mental confuso. Ele estava dividido entre o desejo de agarrar o pescoço do homem responsável pela situação desesperada da sua esposa através do telefone e a necessidade de permanecer onde estava para cuidar dela. Adicionalmente a isso, estava incomodado pelo fato de Hoag recusar-se a falar como um vilão. Enquanto falava com ele, escutando suas gentis respostas e seu tom de voz preocupado, era difícil manter o conceito dele como um monstro horrível tipo Jack o Estripador – no entanto sabia conscientemente que vilões muito frequentemente tinham modos gentis.

Portanto sua resposta foi meramente factual. “Nove e meia da manhã, mais ou menos.”

“Onde eu estava às nove e meia desta manhã?”

“Não desta manhã, você o fez ontem de manhã.”

“Ontem de manhã? Mas isso não é possível. Não se lembra? Eu estava em casa ontem de manhã.”

“É claro que eu me lembro, e eu vi você sair. Talvez você não saiba disso.” Ele não estava sendo muito lógico; os outros eventos da manhã anterior o convenceram de que Hoag sabia que eles estavam seguindo-o – mas ele não estava em condições de ser lógico.

“Mas você não poderia me ver. Ontem de manhã foi a única manhã, além das minhas quartas-feiras de costume, na qual eu tenho certeza de onde eu estava. Eu estava em casa, em meu apartamento. Eu não o deixei até que fosse próximo de uma da tarde, quando eu fui até o meu clube.”

“Ora, isso é – ”

“Espere um minuto, Sr. Randall, por favor! Eu estou tão confuso e irritado com isso quanto você, mas você deve me escutar. Você quebrou minha rotina – lembra? E minha outra personalidade não se afirmou. Depois de você sair eu permaneci como... como eu mesmo. É por isso que eu tinha esperanças de que eu finalmente estivesse livre.”

“Para o inferno o que você fez. O que o faz pensar que você o fez?”

“Eu sei que meu testemunho não conta muito,” Hoag disse humildemente, “mas eu não estava sozinho. A minha faxineira chegou logo depois de vocês saírem e ficou lá por toda a manhã.”

“Muito engraçado que eu não a tenha visto subir.”

“Ela trabalha no prédio.” Hoag explicou. “Ela é a esposa do zelador – o seu nome é Sra. Jenkins. Você gostaria de falar com ela? Eu provavelmente posso localizá-la em colocá-la no telefone.”

“Mas – ” Randall estava ficando mais e mais confuso e começando a perceber que ele estava em desvantagem. Ele nunca deveria ter discutido assunto algum com Hoag; ele devia simplesmente esperado até ter oportunidade de arrebentar ele. Potbury estava certo; Hoag era um sujeito escorregadio e insidioso. Francamente, um álibi!

Além disso, ele estava ficando cada vez mais nervoso e mal disposto por estar longe do quarto por tanto tempo. Hoag deve tê-lo segurado no telefone por pelo menos dez minutos; não era possível ver o quarto de onde ele estava sentado na mesa da cozinha. “Não, eu não quero falar com ela,” disse asperamente. “Você mente sem parar!” Ele bateu o fone no aparelho e correu para o quarto.

Cynthia estava como ele tinha a deixado, dormindo e tão adorável que doía o coração. Ela estava respirando, ele rapidamente percebeu; sua respiração era suave e regular.

Seu estetoscópio caseiro o recompensou com o doce som das batidas de seu coração. Ele sentou-se e a observou por algum tempo, deixando a miséria da sua situação o encharcar como um vinho quente e amargo. Ele não queria esquecer sua dor; ele abraçou-se a ela, aprendendo o que incontáveis outros aprenderam antes dele, que até mesmo a mais profunda dor em relação a alguém amado é preferível à morte. [24]

Mais tarde ele agitou-se, percebendo que estava sendo indulgente consigo mesmo de uma forma que só serviria para prejudicá-la. Ele precisava ter comida em casa, para começo de conversa, e deveria ser capaz de comer e mantê-la no estômago. Amanhã, disse a si mesmo, ele deveria fazer algumas ligações e ver o que poderia fazer para manter o negócio intacto enquanto estivesse afastado dele. A Agência Vigília Noturna poderia servir como um lugar para conduzir qualquer negócio que não pudesse cuidar; eles eram muito confiáveis e ele tinha feito favores para eles – mas isso podia esperar até amanhã.

Por agora ele discou para o armazém na rua abaixo e fez uma encomenda muito sem método. Ele autorizou o proprietário a pegar tudo que parecesse bom e que poderia ajudar a manter alguém por um dia ou dois. Ele então o instrui para encontrar alguém que gostaria de ganhar alguns trocados para entregar a coisa toda em seu apartamento.

Feito isso, dirigiu-se ao banheiro e barbeou-se cuidadosamente, por valorizar muito a conexão entre higiene pessoal e moral. Deixou a porta aberta e ficou com um olho na cama. Então pegou um pano de chão, umedece-o e limpou a sujeira do radiador. O pijama sujo ele enfiou no cesto de roupa suja do closet.

Sentou-se e esperou o pedido do armazém chegar. Por todo o tempo ficou pensando em sua conversa com Hoag. Havia apenas uma coisa sobre Hoag que era clara, concluiu, e que tudo nele confuso. Sua estória original já era maluca o suficiente – imagine chegar e oferecer uma grande quantia para alguém seguir você mesmo! Mas os eventos desde então fizeram isso parecer pouco. Havia o problema do décimo terceiro andar – maldição! Ele tinha visto esse décimo terceiro andar, esteve nele, observou Hoag no trabalho com um vidro na sua frente.

Ainda assim não poderia ter visto isso.

O que isso queria dizer? Hipnotismo, talvez? Randall não gostava muito de tais coisas; sabia que hipnotismo existia, mas sabia também que isso era tão potente quanto os suplementos matutinos que os comerciais querem que você acredite. Hipnotizar um homem em alguns segundos em uma rua lotada de forma que ele acredite e que possa lembrar-se de uma clara sequência de eventos que nunca aconteceram – bem, ele apenas não acredita nisso. Se uma coisa como essa fosse verdade, então o mundo todo poderia ser uma fraude ou uma ilusão.

Talvez fosse.

Talvez o mundo todo existisse somente quando você mantém sua atenção centrada nele e acredita nele. Se você deixar discrepâncias infiltrarem-se, você começa a duvidar e tudo fica em pedaços. Talvez isso esteja acontecendo com Cynthia porque ele tenha duvidado da realidade dela.

Se ele apenas fechar os olhos e acreditar que ela está viva e bem, então ela poderia ficar bem – Ele tentou. Ele fechou os olhos e acreditou nela viva e bem, com aquele jeito sarcástico em sua boca que ela mostrava quando estava rindo de algo que ele tinha dito – Cynthia, acordando de manhã, com os olhos sonolentos e linda – Cynthia, em seu terninho e seu pequeno chapéu atrevido, pronta a sair com ele para qualquer lugar.

Cynthia –

Ele abriu os olhos e olhou para a cama. Ela ainda estava lá deitada, inalterada e parecendo morta. Ele permitiu-se chorar por algum tempo, então assuou o nariz e foi jogar água no rosto.


VIII

 

A campainha do apartamento soou. Randall foi até o hall de entrada e apertou o botão que destravava a porta da rua sem usar o interfone – ele não queria falar com ninguém, certamente não com quem quer que fosse a pessoa que Joe tinha encontrado para entregar as compras.

Depois de um razoável intervalo ele ouviu uma suave batida na porta. Ele a abriu, dizendo “Pode colocar,” então parou subitamente.

Hoag estava parado na porta.

Nenhum deles falou de início. Randall estava estupefato; Hoag parecia hesitante e esperando por Randall para iniciar o assunto. Finalmente ele disse timidamente, “Eu tive que vir, Sr. Randall. Eu posso... entrar?”

Randall o encarou, realmente sem palavras. O descaramento do homem – a cara de pau!

“Eu vim porque eu tinha que provar ao senhor que eu não faria nada para ferir a Sra. Randall,” ele disse simplesmente. “Se eu o fiz sem saber, eu quero fazer o que eu puder para consertar.”

“É muito tarde para consertar.”

“Mas, Sr. Randall - por que você acha eu fiz algo à sua esposa? Eu não vejo como eu – não ontem de manhã.” Ele parou e olhou desesperadamente para o rosto de rocha de Randall. “Você não condenaria um cão sem um julgamento justo – julgaria?”

Randall mordeu seu lábio em uma agonia de indecisão. Escutando-o o homem parecia tão decente – Ele abriu a porta completamente. “Entre,” disse mal humorado.

“Obrigado, Sr. Randall.” Hoag entrou timidamente. Randall começou a fechar a porta.

“O seu nome é Randall?” Outro homem, um estranho, estava parado na porta, carregado de pacotes.

“Sim,” Randall admitiu, procurando dinheiro em seus bolsos. “Como foi que você entrou?”

“Entrei com ele,” o homem disse, apontando para Hoag, “mas eu desci no andar errado. A cereja está gelada, chefe,” ele adicionou insinuantemente. “Direto do gelo.”

“Obrigado.” Randall adicionou uma moeda aos cinquenta centavos e fechou a porta para ele. [25] Ele pegou os pacotes do chão e foi para a cozinha. Ele poderia tomar uma cerveja agora, ele decidiu; talvez ele nunca tenha precisado mais disso. Depois de colocar os pacotes na cozinha ele pegou uma das latas, vasculhou a gaveta por um abridor, e preparou-se para abri-la.

Um viu algo com o rabo do olho – Hoag, incomodado mudando o peso de um pé para o outro. Randall não tinha convidado ele para sentar-se, ela ainda estava de pé. “Sente-se!”

“Obrigado.” Hoag sentou-se.

Randall voltou para a sua cerveja. Mas o incidente lembrou-o da presença do outro; ele encontrou-se preso ao hábito das boas maneiras; era quase impossível para ele servir-se de uma cerveja e não oferecer uma a um convidado, não importa o quanto ele não fosse bem vindo.

Ele hesitou apenas por um momento, então pensou, droga, não pode fazer mal à Cynthia ou a mim deixá-lo tomar uma lata de cerveja. “Você bebe cerveja?”

“Sim, obrigado.” Apesar do fato de Hoag raramente beber, preferindo reservar o seu palato para as sutilezas dos vinhos, mas no momento ele provavelmente diria sim até para uma gin sintética, ou para água suja, se Randall tivesse oferecido.

Randall trouxe os copos, colocou-os na mesa, então foi até o quarto, abrindo a porta apenas o suficiente para deixá-lo passar. Cynthia estava como ele esperava que ela estivesse. Ele mudou a posição dela apenas um pouco, por acreditar que qualquer posição ficaria cansativa com o tempo até mesmo para uma pessoa inconsciente, e alisou a colcha. Ele olhou para ela e pensou em Hoag e nos alertas de Potbury a respeito de Hoag. Seria Hoag tão perigoso quanto o médico acreditava ser? Estaria ele, Randall, agora mesmo sendo manipulado por suas mãos? Não, Hoag não podia feri-lo agora. Quando o pior já tinha acontecido qualquer mudança seria uma melhora. A morte deles dois – ou mesmo a morte apenas de Cyn, para então ele simplesmente segui-la. Isso ele tinha decidido mais cedo – e ele não ligava a mínima para quem chamasse isso de covardia!

Não – se Hoag fosse responsável por isso, pelo menos ele já tinha feito tudo que podia fazer. Ele voltou para a sala de estar.

A cerveja de Hoag ainda estava intocada. “Beba,” Randall convidou, sentando-se e pegando seu próprio copo. Hoag obedeceu tendo o bom senso de não sugerir um brinde ou erguer o copo como se fizesse o gesto disso. Randall olhou para ele com uma curiosidade esgotada. “Eu não entendo você, Hoag.”

“Eu não entendo eu mesmo, Sr. Randall.”

“Por que você veio aqui?”

Hoag abriu as mãos impotente. “Para perguntar sobre a Sra. Randall. Para descobrir o que eu fiz com ela. Para consertar isso, se eu puder.”

“Você admite o que fez?”

“Não. Sr. Randall. Não. Eu não vejo como eu poderia ter feito algo a Sra. Randall ontem de manhã –”

“Você esquece que eu o vi.”

“Mas – O que eu fiz?”

“Você encurralou a Sra. Randall em um corredor do prédio de escritórios Midway-Copton e tentou enforcá-la.”

“Oh, Deus do céu! Mas – você me viu fazer isso?”

“Não, não exatamente. Eu estava –” Randall parou, percebendo como soaria estranho dizer a Hoag que ele não o viu em uma parte do prédio de escritórios porque ele estava ocupado observando Hoag em outra parte do prédio.

“Prossiga, Sr. Randall, por favor.”

Randall ficou de pé nervoso. “Não vejo utilidade nisso,” ele disparou. “Eu não sei o que você fez. Eu só sei que você fez algo! Tudo que eu sei é isso: Desde o primeiro dia que você entrou por essa porta, coisas estranhas estão acontecendo com minha esposa e comigo – coisas malignas – e agora ela está deitada lá dentro como se estivesse morta. Ela –” Ele parou e cobriu o rosto com as mãos.

Ele sentiu um toque gentil em seu ombro. “Sr. Randall... por favor, Sr. Randall. Eu sinto muito e gostaria de ajudar.”

“Eu não sei como você poderia ajudar – a não ser que você saiba como acordar minha esposa. Você sabe Sr. Hoag?”

Hoag balançou sua cabeça lentamente. “Eu temo desconhecer um modo. Conte-me – qual é o problema com ela? Eu não sei ainda.”

“Não há muito a dizer. Ela não acordou nesta manhã. Ela age como se nunca mais acordará.”

“Você tem certeza de que ela não está... morta?”

“Não, ela não está morta.”

“Você consultou um médico, é claro. O que ele disse?”

“Ele me disse para não sair de perto dela e observá-la cuidadosamente.”

“Sim, mas o que ele disse que está errado com ela?”

“Ele chamou isso de lethargica gravis.”

“Lethargica gravis! Isso foi tudo que disse?”

“Sim – por quê?”

“Mas ele não tentou diagnosticá-la?”

“Foi essa a diagnose – lethargica gravis.”

Hoag ainda parecia intrigado. “Mas, Sr. Randall, isso não é uma diagnose; isso é apenas uma forma pomposa de dizer ‘sono pesado’. Isso na verdade não significa nada. É como dizer a um homem com problemas de pele que ele tem uma dermatite, ou um homem com problemas no estômago que ele tem estomatite. Quais testes ele fez?”

“Ah... Eu não sei. Eu –”

“Ele colheu alguma amostra com uma bomba estomacal?”

“Não.”

“Raio-X?”

“Não havia como fazer isso.”

“Você está me dizendo, Sr. Randall, que um médico apenas entrou, deu uma olhada nela, e saiu, sem fazer nada por ela, ou fazer qualquer teste, ou consultar uma segunda opinião? Ele era seu médico de família?”

“Não,” Randall disse miseravelmente. “Infelizmente eu não sei muito sobre médicos. Nós nunca precisamos de um. Mas você deve saber se ele é bom ou não – era o Potbury.”

“Potbury? Você quer dizer o Dr. Potbury que eu consultei? Como aconteceu de você escolhê-lo?”

“Bem, nós não conhecemos médicos – e nós estivemos com ele, checando sua história. O que você tem contra Potbury?”

“Na verdade nada. Ele foi rude comigo – ou assim pensei.”

“Bem, então, o que tem contra você?”

“Eu não sei como ele poderia ter algo contra mim,” Hoag respondeu em um tom intrigado de voz. “Eu apenas vi ele uma vez. Exceto, é claro, o assunto da análise. Por que ele deveria –” Ele deu de ombros desanimadoramente.

“Você está falando sobre a coisa sobre suas unhas? Eu pensei que isso fosse apenas alguma encenação.”

“Não.”

“De qualquer forma, não poderia ser apenas isso. Depois de tudo que ele disse sobre você.”

“O que ele disse sobre mim?”

“Ele disse –” Randall parou, percebendo que Potbury não tinha dito nada especificamente contra Hoag; na verdade foi tudo o que ele não disse. “Não foi muito o que ele disse; foi sobre como sentia-se sobre você. Ele odeia você, Hoag – e tem medo de você.”

“Ele tem medo de mim?” Hoag sorriu debilmente, como se acreditasse que Randall deveria estar contando alguma piada.

“Ele não disse isso, mas era claro como a luz do dia.”

Hoag sacudiu a cabeça. “Eu não entendo. Eu estou mais acostumado a ter medo das pessoas do que tê-las me temendo. Espere – ele contou para você os resultados da análise que fez para mim?”

“Não. Digo, isso me lembra de uma coisa muito esquisita que ele falou sobre você, Hoag.” Ele interrompeu, pensando na aventura impossível do décimo terceiro andar. “Você é um hipnotizador?”

“Que graça, não! Por que você pergunta isso?”

Randall contou a estória da sua primeira tentativa de segui-lo. Hoag ficou quieto durante toda a narrativa, seu rosto mostrando atenção e perplexidade. “E essa é a extensão da coisa toda,” Randall concluiu enfaticamente. “Nenhum décimo terceiro andar, nenhuma Detheridge & Co., nada! E ainda assim eu me lembro de cada detalhe tão claramente quanto eu vejo a sua cara.”

“Isso é tudo?”

“Não é o bastante? Ainda assim, tem uma coisa a mais que eu posso acrescentar. Não deve ter importância real, exceto por mostrar o efeito que a experiência teve em mim.”

“O que é?”

“Espere um minuto.”

Randall levantou e foi novamente para o quarto. Não foi tão cuidadoso dessa vez em abrir a porta o mínimo necessário, no entanto a fechou atrás dele. Ele estava nervoso, de certa forma, por não estar constantemente ao lado de Cynthia; ainda assim ele honestamente sentia-se forçado a admitir que a presença de Hoag trazia alguma companhia e algum alívio para sua ansiedade. Conscientemente ele justificava sua conduta como uma tentativa de chegar ao fundo dos seus problemas.

Ele auscultou o coração dela novamente. Satisfeito por ela ainda estar nesse mundo, ele afofou seu travesseiro e retirou alguns fios de cabelo rebeldes de seu rosto. Ele inclinou-se e beijou-a na testa, então saiu rapidamente do quarto.

Hoag estava esperando. “Então?” Hoag perguntou.

Randall sentou-se pesadamente e colocou a cabeça nas mãos. “Ainda na mesma.” Hoag absteve-se de fazer uma pergunta inútil; Randall iniciou a contar com uma voz cansada os pesadelos que experimentou nas últimas duas noites. “Veja bem, eu não digo que eles são significantes,” adicionou, quando terminou. “Eu não sou supersticioso.”

“Eu me pergunto,” Hoag meditou.

“O que você quer dizer?”

“Eu não quero dizer que seja algo sobrenatural, mas não é possível que os sonhos não sejam inteiramente acidentais, trazido por suas experiências? Quero dizer, se houver alguém que possa fazer você sonhar as coisas que sonhou no prédio de escritórios Acme em plena luz do dia, por que não o forçariam a sonhar à noite também?”

“Hã?”

“Existe alguém que odeie você, Sr. Randall?”

“Bem, não que eu saiba. É claro, em meus negócios, você algumas vezes faz coisas que exatamente não fazem amigos, mas você o faz por outra pessoa. Tem um trapaceiro ou dois que não gosta muito de mim, mas – bem, eles não poderiam fazer nada assim. Isso não faz sentido. Alguém odeia você? Além de Potbury?”

“Não que eu tenha conhecimento disso. E eu não sei por que me odeia. Falando nele, você irá consultá-lo novamente, não vai?”

“Sim. Eu acho que não penso tão rápido. Eu não sei o que fazer, exceto pegar o telefone e tentar outro número.”

“Existe uma alternativa melhor. Chame um hospital grande e peça uma ambulância.”

“Eu farei isso!” Randall disse, levantando.

“Você poderia esperar até amanhecer. Você não conseguirá qualquer resultado útil até amanhã, de qualquer forma. Nesse meio tempo, ela pode acordar.”

“Bem... Sim, eu espero. Eu acho que vou dar outra olhada nela.”

“Sr. Randall?”

“Hã?”

“Você se importa se – Eu posso vê-la?”

Randall olhou para eles. Sua suspeita aquietou-se mais do que tinha percebido pelas maneiras e palavras de Hoag, mas a sugestão trouxe a suspeita de volta, o fazendo lembrar-se do aviso de Potbury vividamente. “Eu prefiro que você não a veja,” Randall disse duramente.

Hoag mostrou seu desapontamento e logo tentou encobri-lo. “Certamente. Eu entendo senhor.”

Quando Randall voltou ele estava parado próximo à porta com seu chapéu na mão. “Eu acho melhor eu ir embora,” Hoag disse. Quando Randall não comentou nada ele adicionou, “Eu poderia ficar sentado com você até amanhecer se você desejar.”

“Não. Não é necessário. Boa noite.”

“Boa noite, Sr. Randall.”

Quando Hoag saiu ele ficou vagando sem rumo por vários minutos, com o seu pensamento sempre retornando para a sua esposa. Os comentários de Hoag sobre os métodos de Potbury o deixaram mais inseguro do que ele ousava admitir; e em adição a isso Hoag, em parte por levantar suspeitas pelo homem, removeu dele o componente emocional de garotinho chorão – o que não lhe fazia bem.

Ele comeu um jantar frio empurrando para baixo com cerveja – e ficou grato por encontrá-la da mesma forma. Ele então arrastou uma grande cadeira para o quarto, colocou um descanso de pés na frente dela, pegou um cobertor e preparou-se para passar a noite. Não havia nada a ser feito e ele não sentia vontade de ler – ele tentou e não funcionou. De tempos em tempos ele levantava e pegava uma lata de cerveja da geladeira. Quando a cerveja acabou ele tomou o uísque. A coisa parecia acalmar seus nervos um pouco, mas por outro lado ele não queria outro efeito dele. Ele não queria ficar bêbado.

Acordou com um susto, convencido por um momento que Phipps estava no espelho e prestes a raptar Cynthia. O quarto estava escuro; seu coração parecia prestes a saltar do peito até que ele encontrou o interruptor e assegurou-se que isso não estava acontecendo, que sua amada, pálida como cera, ainda estava deitada na cama.

Randall foi examinar o grande espelho e assegurou-se que ele refletia o quarto e não estava agindo como uma janela para outro horrível lugar antes dele ter conseguido ligar o interruptor. A fraca luz refletida da cidade dava para ele algum suporte para seus nervos abalados.

Ele pensou ter visto um movimento no espelho, virou-se e viu que se tratava de seu próprio reflexo. Ele sentou-se novamente e endireitou-se, resolvido a não dormir novamente.

O que foi isso?

Randall correu até a cozinha para ver o que era. Nada – nada que ele pudesse encontrar.

Com outro surto de pânico correu de volta para o quarto – isso poderia ter sido um ardil para tirá-lo de perto dela.

Eles estavam rindo dele, incitando-o, tentando induzi-lo a fazer algo errado.

Ele sabia disso – eles estiveram maquinando contra ele por dias, tentando abalar seus nervos. Eles o observaram a partir de cada espelho na casa, abaixando quando ele tentava vê-los neles. Os Filhos do Pássaro –

“O Pássaro é Cruel!”

Ele disse isso? Alguém tinha dito isso para ele? O Pássaro é Cruel. Ofegante, foi até a janela abri-la e olhou para fora. Ainda estava escuro, como breu. Ninguém se movia nas ruas abaixo. Na direção do lago via-se uma nuvem de neblina. Que horas eram? Seis horas da manhã pelo relógio da mesa. Nunca amanhecia nessa cidade esquecida por Deus?

Os Filhos do Pássaro. Ele subitamente sentiu-se muito astuto; eles pensavam que tinha o pegado, mas ele iria enganá-los – eles não podiam fazer isso com ele e Cynthia. Ele iria quebrar cada espelho do lugar. Correu até a cozinha, onde deixava um martelo na gaveta de coisas variadas. Pegou-o e voltou para o quarto. Primeiro o espelho grande – hesitou quando esteve prestes a bater nele. Cynthia não gostaria disso – sete anos de azar! Ele não era supersticioso, mas – Cynthia não gostaria! Ele voltou-se para a cama com a ideia de explicar para ela; parecia tão óbvio – apenas quebrar os espelhos e então eles estariam livres dos Filhos do Pássaro.

Mas ele ficou perplexo ao ver seu rosto imóvel.

Ele pensou ou pouco. Eles tinham de usar espelhos. O que era um espelho? Um pedaço de vidro que reflete. Muito bem – é só dar um jeito deles não refletirem! Além disso, ele sabia como fazê-lo; na mesma gaveta do martelo havia três ou quatro latas de tinta barata, e um pequeno pincel, sobras de uma reforma que Cynthia tinha feito.

Ele jogou o conteúdo delas em uma bacia; juntas ela talvez servissem como pigmento forte – o bastante, ele pensou, para seu propósito. Ele atacou primeiro o grande vidro bisotado, passando pigmento sobre ele rapidamente com pinceladas desajeitadas. A tinta corria por seus punhos e pingava na penteadeira; ele não se importou. Então foi para os outros – havia o bastante, quase insuficiente, para finalizar o espelho da sala de estar. Não importava –era o último espelho da casa – exceto, é claro, pelos pequenos espelhos nas bolsas e carteiras de Cynthia, ele já tinha decidido que eles não contavam. Muito pequenos para um homem atravessar, e guardados fora de vista, de qualquer forma.

A tinta era uma mistura de uma pequena quantidade de preto e talvez uma lata de vermelho. Estava tudo sobre suas mãos agora; ele parecia o personagem principal de um assassinato com um machado. Não importava – ele limpou-se, quase tudo, com uma toalha e voltou para sua cadeira e garrafa.

Que eles tentem agora! Que tentem usar sua suja, imunda magia negra! Ele os tinha bloqueado.

Ele preparou-se para esperar pela aurora.

O som da campainha o ergueu da cadeira, muito desorganizado, mas convencido que de que ele não tinha fechado os olhos. Cynthia estava bem – melhor dizendo, ela ainda estava dormindo, o que era o melhor que ele podia esperar. Ele enrolou o tubo de papel e tranquilizou-se ouvindo o som do coração dela.

A campainha continuou a tocar – ou recomeçou, ele não sabia dizer. Automaticamente ele respondeu o interfone.

“Potbury,” veio uma voz. “Qual é o problema? Você estava dormindo? Como está a paciente?”

“Nenhuma mudança, doutor,” ele respondeu, esforçando-se para controlar a voz.

“É mesmo? Bem, deixe-me entrar.”

Potbury passou rapidamente por ele quando abriu a porta e foi diretamente até Cynthia. Ele inclinou-se sobre ela por alguns momentos, então se endireitou. “Parece na mesma,” Potbury disse. “Não podemos esperar muita mudança em um dia. Crise até quarta-feira, talvez.” Potbury olhou para Randall curiosamente. “O que você andou fazendo? Você parece estar de porre.”

“Nada,” disse Randall. “Por que você não pediu que eu a mandasse para o hospital, doutor?”

“Seria a pior coisa que você poderia fazer por ela.”

“Como você sabe disso? Você realmente não a examinou. Você não sabe o que ela tem de errado. Sabe?”

“Você está louco? Eu lhe contei ontem.”

Randall balançou a cabeça. “Apenas conversa fiada. Você está tentando me enganar sobre ela. E eu quero saber por que.”

Potbury deu um passo em direção a ele. “Você está louco – e bêbado também.” Ele olhou curiosamente para o espelho. “Eu quero saber o que anda acontecendo por aqui.” Ele tocou um dedo no espelho e besuntou-o com a tinta.

“Não toque nisso!”

Potbury olhou o dedo. “Para que isso?”

Randall mostrou-se astuto. “Eu os enganei.”

“Quem?”

“Os Filhos do Pássaro. Eles vêm através dos espelhos – mas eu os impedi.”

Potbury o encarou. “Eu os conheço,” Randall disse. “Eles não vão me enganar novamente. O Pássaro é Cruel.”

Potbury cobriu o rosto com as mãos.

Os dois ficaram perfeitamente imóveis por alguns segundos. Levou esse tempo para uma nova ideia percolar através da mente judiada e confusa de Randall. Quando a ideia fixou-se ele chutou Potbury na virilha. Os eventos dos próximos segundos foram muito confusos. Potbury não protestou, mas respondeu lutando. Randall não fez tentativa alguma de lutar limpo, e seguiu o primeiro golpe com mais golpes baixos.

Quando as coisas acalmaram, Potbury estava atrás da porta do banheiro, com Randall na frente da porta, no lado do quarto, com a chave em seu bolso. Ele estava respirando pesado, mas sem notar completamente de qualquer dano menor que tenha sofrido.

Cynthia dormia.

“Sr. Randall – me deixe sair daqui!”

Randall retornou para sua cadeira e estava tentando pensar em uma forma de sair dessa situação. Ele estava totalmente sóbrio agora, e não fez qualquer tentativa de consultar a garrafa. Ele estava tentando entender a ideia de realmente existiam os “Filhos do Pássaro” e que um deles estava trancado logo ao lado agora.

Nesse caso Cynthia estava inconsciente por causa – Deus os ajude! – os Filhos roubaram sua alma. Demônios – eles estavam enfrentando demônios.

Potbury bateu na porta. “Qual é o significado disso, Sr. Randall? Você enlouqueceu? Deixe-me sair daqui!”

“E o que você vai fazer se eu deixar? Você vai trazer Cynthia de volta à vida?”

“Eu vou fazer o que um médico pode fazer por ela. Por que você fez isso?”

“Você sabe o motivo. Por que você cobriu o rosto?”

“O que você quer dizer? Eu ia espirrar e você me chutou.”

“Talvez eu devesse ter dito ‘Gesundheit!’[26] Você é um demônio, Potbury. Você é um Filho do Pássaro!”

Houve um curto silêncio. “Que loucura é essa?”

Randall pensou nisso. Talvez fosse loucura; talvez Potbury realmente fosse espirrar. Não! Isso era apenas uma explicação que fizesse sentido. Demônios, demônios e magia negra. Stoles, Phipps, Potbury e os outros.

Hoag? Isso explicaria – espere um minuto, agora. Potbury odiava Hoag. Stoles odiava Hoag. Todos os Filhos do Pássaro odiavam Hoag. Muito bem, demônio ou outra coisa, ele e Hoag estavam do mesmo lado.

Potbury estava batendo na porta novamente, não mais com os punhos, mas com uma batida mais pesada, menos frequente que era a batida do ombro com o peso inteiro do corpo atrás. A porta não era mais forte que uma porta de interior de casa normalmente seria; era evidente que ela não resistiria a tal tratamento.

Randall bateu do seu lado. “Potbury! Potbury! Você me ouve?”

“Sim.”

“Você sabe o que eu vou fazer agora? Eu vou ligar para Hoag para que ele venha até aqui. Você escutou isso, Potbury? Ele vai matá-lo, Potbury, ele vai matá-lo!”

Não houve resposta, mas as batidas pesadas recomeçaram. Randall pegou sua arma. “Potbury!” Nenhuma resposta. “Potbury, pare ou eu vou atirar.” As batidas não diminuíram nem um pouco.

Randall teve uma súbita inspiração. “Potbury – em Nome do Pássaro – afaste-se dessa porta!”

O barulho parou como se tivesse sido cortado fora.

Randall escutou e então aproveitou sua vantagem. “Em Nome do Pássaro, não toque nessa porta novamente. Ouviu-me, Potbury?” Não houve resposta, e o silêncio continuou. Era cedo; Hoag ainda estava em casa. Ele evidentemente ficou confuso com as explicações incoerentes de Randall, mas concordou em vir, de imediato, ou rapidamente.

Randall voltou para o quarto e continuou sua vigília. Ele segurou a mão fria de sua esposa na mão esquerda; na direita ele segurava sua arma, pronta no caso da invocação falhar em segurá-lo. Mas as batidas não recomeçaram; fez-se um silêncio mortal em ambos os ambientes por alguns minutos. Então Randall ouviu, ou imaginou ouvir, um sibilância raspando no banheiro – um inexplicável e ameaçador.

Ele não podia pensar em nada para fazer a respeito disso, então não fez nada. Isso prosseguiu por vários minutos e então parou. Depois disso – nada.

Hoag encolheu-se com a visão da arma. “Sr. Randall!”

“Hoag,” Randall exigiu, “você é um demônio?”

“Eu não entendo.”

“’O Pássaro é Cruel!’”

Hoag não cobriu o rosto; ele simplesmente olhou confuso e um pouco mais apreensivo.

“O.K.,” decidiu Randall. “Você passou. Se você fosse é um demônio, é do tipo que eu gosto. Venha – eu tranquei Potbury, e eu quero que você o confronte.”

“Eu? Por quê?”

“Porque ele é um demônio – um Filho do Pássaro. E ele teme você. Vamos!”

Ele apressou Hoag para o quarto, prosseguindo, “O engano que eu cometi foi não ser capaz de acreditar nisso quando aconteceu comigo. Aquilo não eram sonhos.” Ele bateu na porta com a coronha da arma. “Potbury! Hoag está aqui. Faça o que eu digo e você poderá sair dessa vivo.”

“O que você quer dele?” Hoag disse nervosamente.

“Ela – é claro.”

“Oh –” Randall bateu novamente, então se virou para Hoag e sussurrou, “Se eu abrir a porta, você o confrontará? Eu estarei bem ao seu lado.”

Hoag engasgou, olhou para Cynthia e então respondeu, “É claro.”

O banheiro estava vazio; ele não tinha janela, ou qualquer outra saída racional, mas os meios pelos quais Potbury tinha escapado eram evidentes. A superfície do espelho tinha tido a tinta raspada, com uma lâmina de barbear.

Eles arriscaram-se aos sete anos de azar e quebraram o espelho. Se ele soubesse disso ele teria quebrado todos eles; sem o conhecimento pareceu mais sábio apenas fechar a passagem.

Depois disso não havia mais nada a fazer. Eles discutiram isso, sobre a forma silenciosa da esposa de Randall, mas não haviam mais nada a fazer. Eles não eram mágicos. Hoag foi para a sala de estar, não desejando perturbar a privacidade de Randall, mas também não disposto a abandoná-lo inteiramente. Ele olhou para ele de tempo em tempo. Em uma dessas ocasiões ele percebeu uma pequena mala escura sobre a cama, e a reconheceu pelo que era – uma maleta de médico. Ele foi até ela e a pegou. “Ed,” ele perguntou, “você viu isso?”

“O quê?” Randall olhou com olhos mortiços, e leu a inscrição em letras douradas bem delineadas sob a aba:


DR. POTIPHAR T. POTBURY


“Hã?”

“Ele deve ter deixado para trás.”

“Ele não teve a chance de levá-la.” Randall pegou-a das mãos de Hoag e a abriu – um estetoscópio, fórceps, pinças, agulhas, uma grande variedade de frascos em uma caixa, ferramentas comuns ao trabalho de um clínico geral. Havia uma garrafa de medicamento manipulado também; Randall a pegou e olhou o rótulo. “Hoag, veja isso.”


VENENO!

Essa prescrição não pode ser reaproveitada.

SRA. RANDALL – TOMAR COMO PRESCRITO

FARMÁCIA BONTON CUTRATE


“Ele estava tentando envenená-la?” Hoag sugeriu. “Eu não acredito nisso - esse é o aviso costumeiro que se usa em drogas. Mas eu gostaria de descobrir o que é isso.” Ele a balançou. Parecia vazia. Randall começou a quebrar o lacre.

“Cuidado!” Hoag alertou.

“Eu vou tomar cuidado.” Randall a segurou afastada do rosto para abri-la, então cheirou muito cuidadosamente. Ela tinha uma fragrância, sutil e extremamente doce.

“Teddy?” Randall girou, derrubando a garrafa. Era realmente Cynthia, com as pálpebras mexendo-se. “Não prometa nada a eles, Teddy!” Ela suspirou e seus olhos fecharam-se novamente.

“’O Pássaro é Cruel!’” ela sussurrou.


IX

 

“Seus lapsos de memória são a chave para a coisa toda,” Randall estava insistindo. “Se nós soubéssemos o que você faz à luz do dia, se nós soubéssemos sua profissão, nós poderíamos saber por que os Filhos dos Pássaros querem pegá-lo. Mais que isso, nós poderíamos saber como lutar com eles – pois obviamente eles têm medo de você.”

Hoag virou-se para Cynthia. “O que você acha Sra. Randall?”

“Eu acho que Teddy está certo. Se eu soubesse o bastante sobre hipnotismo, nós poderíamos tentar isso – mas eu não sei, portanto scopolamina [27] seria nossa melhor aposta. Você gostaria de tentar isso?”

“Se você achar que devo, sim.”

“Pegue o kit, Teddy.” Ela pulou de onde ela estava empoleirada, no canto da sua mesa. Ele estendeu uma mão para ampará-la.

“Você deveria pegar leve, boneca,” Randall reclamou.

“Bobagem, eu estou ótima – agora.”

Eles reuniram-se no escritório deles assim que Cynthia acordou.

Colocando isso mais claramente, ambos estavam apavorados – um medo persistente, mas não um medo bobo. O apartamento parecia um lugar inseguro para ficar. O escritório não parecia muito melhor. Randall e Cynthia tinha decidido sair da cidade – a parada no escritório foi a penúltima parada, para uma conferência de guerra.

Hoag não sabia o que fazer.

“Apenas esqueça que você alguma vez viu esse kit,” Randall o advertiu, enquanto preparava a hipodérmica. “Não sendo um médico, ou um anestologista, eu não deveria ter isso. Mas ele é bem conveniente, algumas vezes.” Ele esfregou um ponto do braço de Hoag com algodão embebido em álcool.

“Parado agora – ai está!” Ele espetou a agulha.

Eles esperaram a droga fazer efeito. “O que você espera conseguir,” Randall sussurrou para Cynthia.

“Eu não sei. Se nós tivermos sorte, suas duas personalidades irão começar a tricotar. Então nós poderemos descobrir muitas coisas.”

Um pouco depois a cabeça de Hoag pendeu para frente; ele respirou profundamente. Ela foi para frente dele e sacudiu o seu ombro. “Sr. Hoag – você me escuta?”

“Sim.”

“Qual é o seu nome?”

“Jonathan Hoag?”

“Onde você vive?”

“Seis-zero-dois – Edifício Residencial Gotham.”

“Com o que você trabalha?”

“Eu... não sei.”

“Tente lembrar. Qual é a sua profissão?”

Nenhuma resposta. Ela tentou novamente. “Você é um hipnotizador?”

“Não.”

“Você é um – ilusionista?”

A resposta atrasou um pouco, mas finalmente veio. “Não.”

“O que você é, Jonathan Hoag?”

Ele abriu sua boca, pareceu prestes a responder – então se endireitou subitamente, agindo vivamente e completamente livre da lassitude normal da droga. “Eu sinto muito, minha querida, mas isso vai ter que parar – por agora.”

Ele levantou, caminhou para a janela, e olhou para fora. “Isso é ruim,” ele disse, olhando de cima a baixo para a rua. “Perturbadoramente ruim.” Ele parecia mais estar falando consigo mesmo do que com eles. Cynthia e Randall olharam para ele, então um para ou outro buscando ajuda.

“O quanto é ruim, Sr. Hoag?” Cynthia perguntou, timidamente. Ela não tinha analisado bem a situação, mas parecia outra pessoa – mais jovem, mais vibrante.

“Hã? Oh, sinto muito. Eu devo uma explicação para você. Eu fui forçado a, hum, dispensar a droga.”

“Dispensar o que?”

“Atirar ela fora, ignorá-la, transformá-la em nada. Você pode ver, minha querida, enquanto você falava eu me lembrei da minha profissão.” Ele olhou para ela alegremente, mas não ofereceu mais nenhuma explicação.

Randall foi o primeiro a se recuperar. “Qual é a sua profissão?”

Hoag sorriu, quase ternamente. “Eu não vou contar para você,” ele disse. “Não agora, pelo menos.” Ele virou para Cynthia. “Minha querida, posso incomodá-la pedindo um lápis e uma folha de papel?”

“Hã – bem, certamente.” Ela pegou para ele, que aceitou graciosamente e, sentando-se, começou a escrever.

Como Hoag não disse nada para explicar sua conduta, Randall falou, “Vamos, Hoag, olhe aqui –” Hoag virou um rosto sereno para ele; Randall começou a falar, parecendo intrigado pelo que viu na face de Hoag, concluindo desajeitadamente, “Er... Sr. Hoag, o que significa isso tudo?”

“Você não está disposto a confiar em mim?”

Randall mordeu o lábio por um momento e olhou para ele; Hoag demonstrou paciência e serenidade. “Sim... Eu suponho que sim,” Randall disse finalmente.

“Bom. Eu estou fazendo uma lista de algumas coisas que quero que você compre para mim. Eu vou ficar bem ocupado pelas próximas duas horas mais ou menos.”

“Você está nos deixando?”

“Você está preocupado com os Filhos do Pássaro, não esta? Esqueça eles. Eles não vão machucá-lo. Eu prometo.” Ele retornou à escrita. Alguns minutos depois ele entregou a lista para Randall. “Eu anotei embaixo o local onde você poderá me encontrar – um posto de gasolina fora de Waukegan.”

“Waukegan? Por que Waukegan?”

“Nenhuma razão importante. Eu quero fazer mais uma vez algo que aprecio fazer, e não espero ser capaz de fazer novamente. Você vai me ajudar, não vai? Algumas das coisas que eu pedi para você podem ser difíceis de conseguir, mas você vai tentar?”

“Eu suponho que sim.”

“Bom.” Ele saiu de uma vez.

Randall olhou para a porta fechando e depois para a lista em sua mão. “Bem, isso será – Cyn, o que você acha que ele quer de nós? – mantimentos!”

“Mantimentos? Deixe-me ver essa lista.”


X

 

Eles estavam dirigindo para o norte nos limites da cidade, com Randall no volante. Em algum lugar à frente estava o local onde deveriam encontrar Hoag; atrás deles no porta-malas do carro estava a compra que Hoag pediu para eles fazerem.

“Teddy?”

“Sim, garota.”

“Você pode fazer um retorno aqui?”

“Certamente – se nenhum guarda estiver olhando. Por quê?”

“Porque isso é apenas o que eu gostaria. Deixe-me terminar,” ela prosseguiu apressadamente.

“Nós temos o carro; nós temos todo o dinheiro que temos no mundo conosco; não há nada que nos impeça de ir para o sul se quisermos.”

“Ainda pensando naquelas férias? Mas nós vamos fazer isso – assim que nós entregarmos essas coisas para o Hoag.”

“Eu não quis dizer férias. Eu quero dizer para irmos embora e nunca mais voltarmos – agora!”

“Com oito dólares de mantimentos chiques que Hoag encomendou e não nos pagou ainda? Nem por sonho.”

“Nós podemos comer isso nós mesmos.”

“Hummph! Caviar e assas de beija-flores. Nós não podemos bancar isso, garota. Nós somos do tipo hambúrguer. De qualquer forma, mesmo se pudéssemos, eu quero ver Hoag novamente. Ter alguma conversa franca – e explicações.”

Ela suspirou. “Isso foi o que eu pensei, Teddy, e por isso eu quero desistir disso e fugir. Eu não quero explicações; eu estou satisfeita com o mundo como ele está. Apenas você e eu – e nenhuma complicação. Eu não quero saber nada sobre a profissão do Sr. Hoag – ou dos Filhos do Pássaro – ou qualquer outra coisa do tipo.”

Randall tateou procurando um cigarro, então raspou um fósforo no painel de instrumentos, enquanto olhava para ela interrogativamente com o canto de seus olhos. Felizmente o tráfego estava leve. “Eu acho que sinto o mesmo que você, garota, mas eu vejo por um ângulo diferente. Se nós deixarmos isso para lá agora, estaremos fugindo dos Filhos do Pássaro pelo resto das nossas vidas, e apavorados até para fazer a barba, temendo olhar para um espelho. Mas existe uma explicação racional para a coisa toda – tem que haver – e eu vou consegui-la. Então poderemos descansar.”

Cynthia encolheu-se e não respondeu.

“Veja dessa forma,” Randall prosseguiu um pouco irritado. “Tudo que aconteceu poderia ter sido feito da forma ordinária, sem o recurso de agências sobrenaturais. Quanto aos agentes sobrenaturais – bem, aqui na luz do sol e no tráfego é um pouco demais para se engolir. Filhos do Pássaro – ratos!”

Ela não respondeu. Randall prosseguiu. “O primeiro ponto significante é que Hoag é um ator nato. Apesar de parecer um pequeno almofadinha todo certinho, ele tem uma personalidade dominante de primeiríssima qualidade. [28] Veja só a forma como eu me calei e disse, ‘Sim, senhor,’ quando ele fingiu ter se livrado da droga e nos ordenou comprar os mantimentos.”

“Fingiu?”

“Claro. Alguém substituiu os frascos coloridos do meu suco do sono – provavelmente ao mesmo tempo em que colocou o falso aviso na máquina de escrever. Mas voltando ao ponto – Hoag é uma pessoa naturalmente forte e quase certamente um hipnotizador talentoso. Plantar aquela ilusão sobre o décimo terceiro andar e a Detheridge & Co. mostra o quanto ele é talentoso – ou alguém é. Provavelmente ele usou drogas em mim também, como fizeram com você.”

“Em mim?”

“Claro. Lembra-se da coisa que você bebeu no consultório do Potbury? Algum tipo de Boa Noite Cinderela [29] de ação retardada.”

“Mas você também bebeu aquilo!”

“Não necessariamente a mesma coisa. Potbury e Hoag estavam mancomunados, e foi assim que eles criaram a atmosfera que tornou a coisa toda possível. Tudo mais foi coisa pequena, insignificante quando vistas isoladas.”

Cynthia tinha suas próprias ideias sobre isso, mas ela as manteve para si mesma. No entanto, uma coisa a incomodava. “Como Potbury saiu do banheiro? Você me disse que ele estava trancado nele.”

“Eu estive pensando nisso. Potbury deve ter usado uma gazua e aberto a fechadura enquanto eu estive no telefone com Hoag, escondeu-se no closet e ficou esperando uma chance de sair.”

“Hmmm –” Ela seguiu com isso por vários minutos.

Randall parou de falar, estando ocupado com o trânsito em Waukegan. Ele virou para a esquerda e foi para fora da cidade.

“Teddy – se você tem certeza que isso tudo foi apenas um embuste e que não existem tais coisas como os Filhos, então por que nós não desistimos disso e partimos para o sul? Nós não precisamos ir a esse encontro.”

“Eu tenho certeza de que minha explicação está correta,” Randall disse, habilmente evitando um garoto suicida em uma bicicleta, “mas de forma geral eu não tenho certeza dos motivos – e é por isso que eu tenho que encontrar Hoag. Coisa estranha, entretanto,” continuou pensativamente, “Eu não acho que Hoag tem algo contra nós; Eu acho que Hoag deve ter algumas razões e nos pagou quinhentas verdinhas para causar algum desconforto enquanto cuidava de seus planos. Mas nós veremos. De qualquer forma, é muito tarde para retornar; aqui está o posto de gasolina que ele mencionou – e ali está Hoag!”

Hoag entrou no carro com nada mais que um aceno de cabeça e um sorriso; Randall sentiu novamente a compulsão de fazer o que lhe foi dito assim como sentiu cerca de duas horas atrás. Hoag disse onde deveria ir.

Seguiram por um caminho para fora da cidade, e após, em uma estrada de terra. No devido tempo eles chegaram a um portão de uma fazenda que levava a um pasto, onde Hoag instruiu Randall a abrir e passar através dele. “O proprietário não se importa,” Hoag disse. “Eu estive aqui muitas vezes nas quartas-feiras. Um lindo local.”

Era um lindo local. A estrada, dois trilhos de pneus agora, levavam a uma subida gradual em uma colina com árvores no topo. Hoag o fez estacionar sob uma arvore, e então saiu. Cynthia ficou parada por um momento, respirando e saboreando profundas inspirações de ar puro. Ao sul Chicago podia ser vista e além dela no leste o brilho prateado do lago. “Teddy, não é lindo?”

“É sim,” Randall admitiu, mas voltou-se para Hoag. “O que eu quero saber é – porque nós estamos aqui?”

“Picnic,” disse Hoag. “Eu escolhi este local para o gran finale.”

“Gran finale?”

“A comida primeiro,” disse Hoag. “Então, se você desejar, nós conversaremos.”

Era um cardápio muito estranho para um picnic; ao invés dos alimentos tradicionais ali estavam algumas especialidades gourmets – Geleia Kinkan, goiabada, terrinas em pequenos potes, chá – preparado por Hoag sobre um pequeno fogareiro – delicados wafers de uma marca famosa. Apesar disso tanto Randall quanto Cynthia encontraram-se comendo com prazer. Hoag provou tudo, nunca desistindo de um prato – mas Cynthia percebeu que na verdade Hoag comia muito pouco, mais provando do que comendo.

No devido tempo Randall criou coragem para enfrentar Hoag; começava a parecer que Hoag não tinha intenção de entrar no assunto por si mesmo. “Hoag?”

“Sim, Ed?”

“Não é hora de você tirar essa falsa expressão e parar de brincar conosco?”

“Eu não estou brincando com vocês, meu amigo.”

“Você sabe o que eu quero dizer – essa corrida desenfreada em que estivemos nos últimos dias. Você está metido nela e sabe mais sobre ela do que nós sabemos – isso é evidente. Considere isso, não estou acusando-o de nada,” ele adicionou rapidamente. “Mas eu quero saber o que isso significa.”

“Pergunte a si mesmo o que significa.”

“O.K.,” Randall aceitou o desafio. “Eu irei.” Ele lançou-se às conclusões que tinha chegado com Cynthia, Hoag o encorajou a continuar até o fim, mas, quando terminou, ele não disse nada.

“Bem,” Randall disse nervosamente, “foi assim que aconteceu – não foi?”

“Parece uma boa explicação.”

“Assim eu penso. Mas você ainda tem que esclarecer algumas coisas. Por que você fez isso?”

Hoag sacudiu a cabeça pensativamente. “Eu sinto muito, Ed. Eu não tenho como explicar meus motivos para você.”

“Mas, maldição, isso não é justo! O mínimo que você poderia –”

“Quando foi que você viu alguma justiça, Edward?”

“Bem – Eu esperava que você jogasse limpo conosco. Você nos encorajou a tratá-lo como um amigo. Você nos deve explicações.”

“Eu prometi explicações. Mas considere isso, Ed – você quer explicações? Eu asseguro a você que não terá mais problemas, nenhuma visita mais dos Filhos.”

Cynthia tocou em seu braço. “Não pergunte por eles, Teddy!”

Randall a afastou, não grosseiramente, mas decisivamente. “Eu tenho que saber. Vamos ter a explicação.”

“Você não vai gostar dela.”

“Eu irei arriscar isso.”

“Muito bem.” Hoag acomodou-se. “Você pode servir o vinho, minha querida? Obrigado. Eu devo contar a vocês uma pequena estória primeiro. Ela será parcialmente alegórica, pois não há... as palavras, mas os conceitos. Era uma vez uma raça, muito diferente da raça humana – muito diferente. Eu não tenho meios de descrever para vocês como pareciam, ou como viviam, mas eles tinham uma característica você vocês podem entender: eram criativos. As criações e apreciação dos seus trabalhos artísticos eram suas principais razões de existir. Eu digo ‘arte’ deliberadamente, pois arte é uma coisa indefinida, indefinível, e sem limites. Eu poderia usar as palavras sem temer o uso incorreto dela, pois ela não tem significado exato. Existem tantos significados quanto existem artistas. Mas lembre-se que esses artistas não eram humanos e sua arte não era humana.

“Pense em alguém dessa raça, em seus termos – um jovem. Ele cria um trabalho de arte, sobre o olhar e orientação de seu professor. Ele tem talento, esse jovem, e sua criação tem muitas características curiosas e interessantes. O professor o encoraja a prosseguir com ela e a prepara para ser julgada. Veja bem, eu falo em termos metafóricos, como se esse fosse um artista humano, preparando sua obra para ser julgada em um evento anual.”

Hoag parou e disse subitamente para Randall, “Você é um homem religioso? Alguma vez ocorreu a você que tudo isso” – Hoag fez um amplo movimento com o braço – “pode ter tido um Criador? Precisa ter tido um Criador?”

Randall o encarou e ficou vermelho. “Eu não sou exatamente um homem que frequenta igrejas,” disse abruptamente, “mas – Sim, eu suponho acreditar nisso.”

“E você, Cynthia?”

Ela acenou afirmativamente, tensa e sem palavras.

“O Artista criou esse mundo, seguindo Suas Próprias ideias e usando postulados que pareciam adequados a Ele. Seu professor aprovou no geral, mas –”

“Espere um minuto,” Randall disse insistentemente. “Você está tentando descrever a criação do mundo – do Universo?”

“O que mais?”

“Mas – maldição, isso é um disparate! Eu pedi uma explicação para as coisas que aconteceram conosco.”

“Eu disse que você não iria gostar da explicação.” Hoag esperou por um momento, então continuou. “Os Filhos do Pássaro eram a característica dominante desse mundo, no início.”

Randall escutou-o, sentindo que sua cabeça estava prestes a explodir. Ele sabia, com horror doentio, que a racionalização que tinha feito no caminho até esse encontro foi pura ilusão, produzida para aplacar os medos que o subjugavam. Os Filhos do Pássaro – reais, reais e horríveis – e poderosos. Ele sentiu que sabia agora o tipo de raça da qual Hoag falava. O rosto tenso e horrorizado de Cynthia mostrava que ela sabia também – e que nunca mais haveria paz para nenhum deles. “No Início havia o Pássaro –”

Hoag olhou para Randall com olhos livres de malícia, mas sem piedade. “Não,” disse serenamente, “nunca houve o Pássaro. Eles chamam a si mesmos de Filhos do Pássaro como se assim fossem. Mas eles são estúpidos e arrogantes. Suas histórias sagradas não passam de superstições. Mas nos seus modos e pelas regras desse mundo eles são poderosos. As coisas, Edward, que você pensa ter visto, você realmente viu.”

“Você quer dizer que –”

“Espere, deixe-me terminar. Eu preciso me apressar. Você viu o que você pensa ter visto, com uma exceção. Até hoje você me viu apenas em seu apartamento ou no meu. As criaturas que você seguiu, a criatura que assustou Cynthia – Filhos dos Pássaro, todos eles. Stoles e seus amigos.

“O professor não aprovou os Filhos do Pássaro, e sugeriu certos aperfeiçoamentos na criação. Mas o Artista foi apressado e descuidado; no lugar de removê-los inteiramente Ele meramente – pintou sobre eles, os fez parecerem ser algumas das criações com as quais Ele povoou Seu mundo.

“Tudo não teria importado se o trabalho não tivesse sido selecionado para julgamento. Inevitavelmente os críticos os perceberam; eles eram – arte ruim, e eles desfiguraram o trabalho final. Havia alguma dúvida em suas mentes se a criação merecia ser preservada ou não. É por isso que eu estou aqui.”

Ele parou, como se não houvesse mais nada a dizer. Cynthia olhou para Hoag temerosamente. “Você é... você é –”

Ele sorriu para ela. “Não, Cynthia, Eu não sou o Criador do mundo. Você perguntou minha profissão uma vez.

“Eu sou um crítico de arte.”

Randall gostaria de não ter acreditado. Era impossível para ele o fazer; a verdade tocava em seus ouvidos e não podia ser negada. Hoag continuou, “Eu disse para você que eu deveria falar usando termos que você conhece. Você deve entender que para julgar uma criação como essa, seu mundo, não seria como ficar em frente a um quadro olhando para ele. Esse mundo é povoado com homens; ele precisa ser visto através dos olhos de homens. Eu sou um homem.”

Cynthia olhou ainda mais perturbada. “Eu não entendo. Você age através do corpo de um homem?”

“Eu sou um homem. Espalhados através da raça humana estão os Críticos – homens. Cada um é a projeção de um Crítico, mas cada um é um homem – de todas as formas um homem, sem saber que também é um Crítico.”

Randall agarrou-se à discrepância como se sua razão dependesse disso – a qual, talvez, dependesse mesmo. “Mas você sabe – ou você diz saber. É uma contradição.”

Hoag acenou com a cabeça, imperturbado. “Até hoje, até o interrogatório de Cynthia tornar inconveniente continuar o que eu era – e por outras razões – essa persona” – Hoag bateu em seu peito – “não tinha ideia do motivo pelo qual ele estava aqui. Ele era um homem, e nada mais. Até agora, eu estendi minha persona apenas o necessário para o meu propósito. Existem questões que eu não posso responder – como Jonathan Hoag.

“Jonathan Hoag veio à existência como um homem, com o propósito de examinar, saborear, certos aspectos desse mundo. No decorrer disso tornou-se conveniente usá-lo para farejar algumas atividades daquelas criaturas descartadas que foram mal cobertas na pintura, que chamam a si mesmas de Filhos do Pássaro. Vocês dois acabaram atirados nessa atividade – inocentemente e desconhecedores, como pombos usados por exércitos. Mas aconteceu que eu observei algo de valor artístico enquanto estive em contato com vocês, e é por isso que estamos assumindo os problemas por essas explicações.”

“O que você quer dizer?”

“Deixe-me falar primeiro dos assuntos que eu observei como um crítico. Seu mundo tem vários prazeres. Aqui está o comer.” Hoag estendeu o braço e pegou algumas uvas moscatel, gordas e doces, e comeu-as apreciativamente. “Um prazer estranho, esse. E muito admirável. Ninguém antes pensou em uma arte do simples negócio de se obter energia necessária. Seu Artista tem um talento muito verdadeiro.”

“E há o sonhar. Um estranho negócio reflexivo no qual às criações do Artista se permitem criar mais mundos para eles mesmos. Você vê agora, não vê,” disse sorrindo, “por que os críticos precisam ser homens verdadeiros – senão eles não poderiam sonhar como um homem sonha?”

“Há o beber – que mistura o comer com o sonhar.

“Há o estranho prazer de conversar, amigo com amigo, como estamos fazendo agora. Isso não é novo, mas entra no crédito do Artista por Ele ter incluído isso.

“E há o sexo. Sexo é ridículo. Como um crítico eu teria desconsiderado isso inteiramente se vocês, meus amigos, não me fizessem ver algo que tinha passado despercebido por Jonathan Hoag, algo que, em minhas próprias criações artísticas, eu nunca teria tido a inteligência de inventar. Como eu disse, seu Artista tem talento.” Ele olhou para eles quase ternamente. “Diga-me Cynthia, o que você ama nesse mundo e o que há nele que você odeia e teme?”

Ela não fez tentativa de responder, mas aproximou-se de seu marido. Randall colocou um braço protetor nela. Hoag falou com Randall. “E você, Edward? Há algo nesse mundo pelo qual você desistiria de sua vida e sua alma se fosse necessário? Vocês não precisam responder – Eu vi em suas faces e em seus corações, na última noite, quando você inclinava-se sobre a cama. Arte de qualidade, boa arte – vocês dois. Eu encontrei vários tipos de artes nesse mundo, boas e originais, o suficiente para justificar o encorajamento ao seu Artista para tentar novamente. Mas havia tanta coisa que era ruim, pobremente desenhada e amadorística que eu não me considerava capaz de aprovar o trabalho como um todo até que eu encontrei e saboreei isso, a tragédia do amor humano.”

Cynthia olhou para ele confusa. “Tragédia? Você disse ‘tragédia’?”

Ele olhou para ela com olhos que não eram compassivos, mas serenamente apreciativos. “O que mais poderia ser, minha querida?”

Ela o encarou, então virou e enterrou o rosto na lapela do casaco de seu marido. Randall acariciou sua cabeça. “Pare com isso, Hoag!” Randall disse selvagemente. “Você está assustando-a novamente.”

“Eu não quis fazer isso.”

“Mas você fez. E eu posso dizer o que eu acho de sua estória. Ela tem tantos buracos que você pode atirar um gato através dela. É tudo invenção sua.”

“Você não acredita nisso que você está falando.”

Era verdade; Randall não acreditava. Mas ele prosseguiu bravamente, suas mãos ainda acariciando sua esposa. “A coisa em suas unhas – e quanto a isso? Eu percebo que você deixou isso de fora. E suas impressões digitais.”

“A coisa sobre minhas unhas tinha pouco a ver com a estória. Ela serviu ao seu propósito, que era causar o temor dos Filhos do Pássaro. Eles sabiam o que era aquilo.”

“Mas o que era aquilo?”

“O Icor [30] dos Filhos – plantado ali por minha outra persona. Mas o que era isso sobre impressões digitais? Jonathan Hoag estava honestamente temeroso em produzi-las; Jonathan Hoag é um homem, Edward. Você deve lembrar-se disso.”

Randall contou o que aconteceu; Hoag acenou com a cabeça. “Entendo. Na verdade, eu não me recordo, mesmo hoje, no entanto minha persona completa sabe isso. Jonathan Hoag tinha a compulsão de polir coisas com seu lenço; talvez ele tenha polido o braço da cadeira.”

“Eu não me lembro disso.”

“Nem eu.”

Randall partiu para a luta novamente. “Isso não é tudo e isso não é nem a metade disso. E quanto à casa de repouso em que você disse ter estado? E quem paga você? Onde você consegue dinheiro? Por que Cynthia sempre tem tanto medo de você?”

Hoag olhou em direção à cidade; uma neblina estava aparecendo na frente do lago. “Há pouco tempo para essas coisas,” ele disse, “e isso não importa, mesmo para você, quer você acredite ou não. Mas você acredita – você não pode impedir isso. Mas você trouxe outro assunto à tona. Aqui.” Ele puxou um espesso rolo de notas de seu bolso e o entregou a Randall. “Você deve levar isso com você; Eu não tenho mais uso para isso. Eu devo deixá-los em alguns minutos.”

“Para onde você esta indo?”

“De volta a mim mesmo. Depois que eu parta você deve fazer isso: Entre em seu carro e dirija para o sul, através da cidade. Em nenhuma circunstância abra as janelas do carro até que esteja a quilômetros de distância da cidade.”

“Por quê? Eu não gosto disso.”

“Não importa, faça isso. Ocorrerão certas – mudanças, reajustes serão feitos.”

“O que você quer dizer?”

“Eu disse, não disse, que estamos tratando dos Filhos do Pássaro? Deles, e todos os seus trabalhos.”

“Como?”

Hoag não respondeu, mas olhou novamente para a neblina. Ela estava rastejando para cima da cidade. “Eu acho que devo partir agora. Faça como eu disse para você fazer.” Ele começou a virar-se. Cynthia ergueu o rosto e falou com ele.

“Não vá! Não ainda.”

“Sim, minha querida?”

“Você deve me contar uma coisa: Teddy e eu iremos continuar juntos?”

Ele olhou nos olhos dela e disse: “Eu entendo o que você quer dizer. Eu não sei.”

“Mas eu preciso saber!”

“Eu não sei. Se vocês dois são criaturas desse mundo, então seus padrões podem prosseguir juntos. Mas há os Críticos, você sabe.”

“Os Críticos? O que eles têm a ver conosco?”

“Um, ou outro, ou os dois podem ser Críticos. Eu não saberia. Lembrem-se, os Críticos são homens – aqui. Eu nem mesmo me via como um até hoje.” Hoag olhou para Randall meditativamente. “Ele pode ser um. Eu suspeitei disso hoje.”

“Eu sou?”

“Eu não tenho como saber. É muito improvável. Você vê, nós não conhecemos um ao outro, pois isso poderia atrapalhar nosso julgamento artístico.”

“Mas... mas... se nós somos iguais, então –”

“Isso é tudo.” Ele disse, não enfaticamente, mas soando tão conclusivo que os dois assustaram-se. Ele inclinou-se sobre os restos do picnic e selecionou mais uma uva, comeu-a, e fechou os olhos.

Ele então nos abriu. Randall disse, “Sr. Hoag?” Nenhuma resposta. “Sr. Hoag!” Ainda nenhuma resposta. Randall separou-se de Cynthia, levantou-se, deu a volta até onde a figura estava sentada. Ele o sacudiu. “Sr. Hoag!”


***


“Mas nós não podemos apenas deixá-lo aqui!” Randall insistiu alguns minutos depois.

“Teddy, ele sabia o que estava fazendo. O que devemos fazer é seguir suas instruções.”

“Bem – nós podemos parar em Waukegan e avisar a polícia.”

“Contar a eles que nós deixamos um homem morto em uma colina? Você acha que eles diriam, ‘Tudo bem’, e deixariam nós irmos embora? Não, Teddy – apenas faremos o que ele nos disse para fazer.”

“Querida – você acredita nessa coisa toda que ele esteve nos contando?”

Ela olhou em seus olhos, seus próprios cheios de lágrimas, e disse, “Você acredita? Seja honesto comigo, Teddy.”

Ele encontrou seu olhar por um momento, então baixou os olhos e disse. “Ah, deixe para lá! Nós faremos o que ele disse. Entre no carro.”

A neblina que parecia ter engolido a cidade não era visível quando eles desceram a colina e voltaram até Waukegan, e não a viram também quando viraram para o sul e dirigiram através da cidade. O dia estava claro e ensolarado, como tinha sido no começo da manhã, apenas com frio suficiente para fazer com que a sugestão de Hoag sobre deixar as janelas fechadas parecesse com bom senso.

Eles pegaram a rota do lago sul, pulando o trevo, com o objetivo de continuar para o sul até que estivessem fora da cidade. O tráfego tinha aumentado um pouco em relação ao que estava no meio da manhã; Randall forçou-se a dar mais atenção ao volante. Nenhum deles sentia-se com vontade de conversar, e isso forneceu uma boa desculpa para não o fazer.

Eles deixaram o trevo para trás quando Randall falou, “Cynthia –”

“Sim.”

“Nós deveríamos contar a alguém. Eu vou pedir ao próximo policial pelo qual passarmos para chamar a delegacia de Waukegan.”

“Teddy!”

“Não se preocupe. Eu vou dar alguma dica que o fará investigar sem que suspeite de nós. O velho correr-em-torno-do-rabo [31] – você sabe.”

Ela sabia que seus poderes de invenção eram férteis o suficiente para tal trabalho; ela não objetou mais. Alguns blocos mais tarde Randall viu um patrulheiro parado no acostamento, aquecendo-se no sol, e observando alguns garotos jogando football. Ele estacionou o carro atrás dele. “Abaixe a janela, Cyn.”

Ela obedeceu, então deu uma curta inspiração e engoliu um grito. Randall não gritou, mas gostaria de gritar.

Do lado de fora da janela aberta não havia luz do sol, policiais ou garotos – nada. Nada além de uma névoa cinzenta e disforme, pulsando lentamente com vida incipiente. Eles não podiam ver nada da cidade através disso, não porque fosse muito densa, mas porque estava – vazio.

Nenhum som saiu disso; nenhum movimento aparecia.

A coisa misturou-se com a moldura da janela e começou a deslizar para dentro. Randall gritou, “Feche a janela!” Ela tentou obedecer, mas suas mãos não obedeciam; ele esticou o braço e tentou fechar a janela ele mesmo, batendo ela firmemente em seu lugar.

A cena ensolarada foi restaurada; através do vidro eles viram o patrulheiro, o jogo dos garotos, o acostamento, e a cidade além. Cynthia colocou uma mão em seu braço. “Dirija Teddy!”

“Espere um minuto,” Randall disse tenso, e virou-se para a janela ao seu lado. Muito cuidadosamente ele a abaixou – apenas uma fresta, menos de dois centímetros.

Foi o suficiente. A névoa cinzenta disforme estava fora, também; através do vidro o tráfego da cidade e a rua ensolarada eram claros, através da fresta – nada.

“Dirija Teddy, por favor!”

Cynthia não precisava mais apressá-lo; ele já estava disparando o carro para frente com um tranco.


***


A casa deles não era exatamente no Golfo, mas a água podia ser vista do topo de uma colina próxima. A vila onde eles faziam as compras tinha apenas oitocentos moradores, mas parecia o suficiente para eles. Eles não se importavam muito com companhia, de qualquer forma, exceto a deles próprios. Eles tinham bastante dessa. Quando ele ia para a horta, ou para o campo, ela ia junto, levando com ela tanto trabalho feminino quanto ela podia carregar e fazer no colo. Se eles fossem para a cidade, iam juntos, de mãos dadas – sempre.

Ele usava uma barba, mas não tanto por estilo, mas por necessidade, pois não tinham um espelho sequer em casa. Mas eles tinham uma peculiaridade que os marcariam como estranhos em qualquer comunidade, se alguém soubesse disso, mas por motivos que ninguém jamais poderia saber.

Quando eles iam para cama à noite, antes de apagar as luzes, eles algemavam os seus punhos um ao outro.

 

 

                                                                  Robert A. Heinlein

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades