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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DESCOBERTA DOS OSSOS / Alan Bradley
A DESCOBERTA DOS OSSOS / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O SANGUE PINGAVA DA cabeça decepada e caía em um chuvisco de gotas vermelhas, coagulando-se em uma poça cor de rubi sobre os ladrilhos pretos e brancos. O rosto ostentava uma careta de surpresa, como se o homem tivesse morrido no meio de um grito. Os dentes, cada qual nitidamente separado do seu vizinho por uma linha preta, arreganhavam-se em um horrendo e silencioso uivo.
Eu não conseguia afastar os olhos daquela coisa.
A mulher que segurava orgulhosamente a cabeça pelos cabelos encaracolados e muito escuros usava um vestido escarlate — quase, mas não exatamente, da cor do sangue do morto.
A um canto, um criado com o olhar baixo sustentava a bandeja sobre a qual a mulher transportara a cabeça até a sala. Sentada em um trono de madeira, uma matrona de vestido amarelo-açafrão e queixo quadrado inclinava-se em deleite para frente, as mãos cerradas em punhos nos braços da cadeira, e dava uma boa olhada no medonho troféu. Chamava-se Herodias e era a mulher do rei.
A mulher mais jovem, a que segurava a cabeça — pelo menos, de acordo com o historiador Flavio Josefo —, chamava-se Salomé. Era enteada do rei Herodes; Herodias era mãe dela.
A cabeça decepada pertencia a João Batista, é claro.

 

 


 

 


Lembrei-me de ter ouvido toda a história sórdida havia não mais do que um mês, quando o pai lera em voz alta a “Segunda lição”, apoiada nas costas da grande águia de madeira entalhada que servia de púlpito na igreja de São Tancredo.

Naquela manhã de inverno, petrificada, assim como agora, eu olhara para o vitral que reproduzia a cena fascinante.

Mais tarde, durante o sermão, o vigário explicara que, na época do Velho Testamento, acreditava-se que o nosso sangue continha a nossa vida.

É claro! Sangue!

Por que eu não tinha pensado nisso antes?

— Felinha — eu disse, puxando-lhe a manga —, preciso ir para casa.

Minha irmã me ignorou. Ela aproximou a cabeça da partitura, e, às sombras turvas do entardecer, seus dedos voaram como pássaros brancos por sobre as teclas do órgão.

Wie Gross ist des Allmächt’gen Gütte, de Mendelssohn. “Quão grandiosas são as obras do Todo-Poderoso”, ela me explicara o significado.

Faltava menos de uma semana para a Páscoa, e Felinha estava se esmerando ao máximo para a sua estreia oficial como organista da igreja de São Tancredo. O amalucado sr. Collicutt, que ocupara o posto desde o último verão, desaparecera da aldeia súbita e inexplicavelmente, e pediram a Felinha que tomasse o seu lugar.

Organistas passavam por São Tancredo como ratinhos brancos passam por um píton. Anos atrás, tinha sido o sr. Taggart, depois o sr. Denning. O sr. Collicutt era a bola da vez.

— Felinha — eu disse —, é importante. Tem uma coisa que eu preciso fazer.

Felinha golpeou um dos botões de registro com o polegar, e o órgão soltou um rugido. Eu adorava esta parte da peça: o ponto em que, num breve instante, ela salta do som de mar tranquilo durante o pôr do sol para o urro de um animal selvagem.

No que se refere à música de órgão, quanto mais alto, melhor — ao menos no meu modo de pensar.

Apoiei o queixo nos joelhos e me aconcheguei no canto do balcão do coro. Era óbvio que, não importava o que acontecesse, Felinha iria mourejar até o fim, e eu simplesmente teria de esperar.

Olhei em volta, mas não havia muito para ver. À luz pálida da única lâmpada, acima da mesa de som, Felinha e eu podíamos bem passar por náufragas em uma pequena jangada de luz no meio de um mar de trevas.

Torcendo o pescoço e inclinando a cabeça para trás como um enforcado, consegui distinguir apenas a cabeça de São Tancredo, entalhada em carvalho inglês na ponta de uma viga, no telhado da nave. Sob aquela fantasmagórica luz do entardecer, ele parecia um homem com o nariz pressionado contra uma janela, a olhar do frio para o interior de uma sala aconchegante e aquecida pelo alegre fogo da lareira.

Acenei-lhe respeitosamente com a cabeça, muito embora soubesse que ele não podia me ver, já que os seus ossos mofavam na cripta abaixo de mim. Bem, o seguro morreu de velho.

Acima da minha cabeça, do outro lado do presbitério, João Batista e seus assassinos já tinham desbotado quase completamente. O crepúsculo chegava depressa naqueles dias nublados de março, e, vistos pelo lado de dentro da igreja, os vitrais de São Tancredo passavam de uma rica tapeçaria de cores gloriosas a um preto turvo em menos tempo do que era preciso para recitar um dos salmos mais longos.

Sendo sincera, eu preferia estar no meu laboratório químico a ficar sentada na semiescuridão de uma velha igreja cheia de correntes de ar, mas o pai insistira.

Muito embora Felinha fosse seis anos mais velha do que eu, ele se recusava a deixá-la ir sozinha à igreja durante a noite, para os seus quase cotidianos ensaios no coro.

— É provável que haja muitos estranhos por aí nestes dias — dissera o pai, referindo-se à equipe de arqueólogos que logo chegaria a Bishop’s Lacey para desenterrar os ossos do nosso santo padroeiro.

Como eu iria defender Felinha do ataque daqueles eruditos selvagens, o pai não se dera ao trabalho de mencionar, mas eu sabia que era mais do que isso.

Em um passado recente, diversos assassinatos haviam ocorrido em Bishop’s Lacey: assassinatos fascinantes em relação aos quais eu prestara minha ajuda ao inspetor Hewitt, da força policial de Hinley.

Mentalmente, contei as vítimas nos dedos: Horace Bonepenny, Rupert Porson, Brookie Harewood, Phyllis Wyvern...

Mais um cadáver, e eu teria uma mão cheia.

Cada uma das vítimas tivera um fim lamentável na nossa aldeia, e eu sabia que o pai estava apreensivo.

— Não é certo, Ophelia — dissera ele —, uma menina que... uma menina da sua idade ficar sozinha em uma igreja velha, à noite.

— Não há ninguém lá a não ser os mortos — Felinha rira, talvez um pouco alegremente demais. — E eles não me incomodam. Não tanto quanto os vivos, nem de longe.

Pelas costas do pai, minha outra irmã, Dafi, lambera o pulso e umedecera o cabelo dos dois lados de uma linha divisória imaginária no meio da cabeça — como um gato lavando a cara. Ela estava zombando de Ned Cropper, o garçom da taverna Treze Patos, que tinha uma tremenda queda por Felinha e às vezes a seguia por aí com certo mau cheiro.

Felinha coçara a orelha para mostrar que tinha entendido a mímica de Dafi. Era um daqueles sinais silenciosos que as irmãs passam entre si como mensagens semafóricas de navio para navio, indecifráveis a qualquer um que não conheça o código. Ainda que o pai tivesse visto o gesto, não teria entendido o seu significado. O livro de códigos do pai estava em uma linguagem muito diferente do nosso.

— Seja como for — ele falara —, se você for ou voltar após escurecer, terá de levar Flavia com você. Não vai fazer mal a ela aprender alguns hinos.

Aprender alguns hinos, de fato! Poucos meses atrás, quando eu estivera confinada ao leito durante os feriados de Natal, a sra. Mullet, aos cochichos, risadinhas e juras abafadas de segredo, me ensinara um par de novos hinos. Eu jamais me cansava de bradar:

Cantam os anjos, chegou a salvação,

As Pílulas Beecham[1] são a solução.

Por fim, a paz na terra e a doce esperança:

São duas pro adulto e uma pra criança!

Isso, ou então:

Nós, Três Reis da praça central,

Temos calcinhas em geral

Que são muito elásticas

E mesmo fantásticas

E o seu preço é sensacional!

Até que Felinha me jogara na cara um exemplar de Hinos antigos e modernos. Uma coisa que aprendi a respeito de organistas é que eles não têm nenhum senso de humor.

— Felinha — eu disse —, estou morrendo de frio. Estremeci e abotoei o cardigã até o topo. Fazia um frio de rachar na igreja à noite. O coro partira havia uma hora, e, sem aqueles corpos quentes em volta de mim, apertados como sardinhas cantantes, o lugar ficava ainda mais frio.

Entretanto, Felinha se achava mergulhada em Mendelssohn. Eu podia estar falando com a lua, que daria no mesmo.

De repente, o órgão emitiu um arquejo alvoroçado, como se tivesse se engasgado com algo, e a música gorgolejou e parou.

— Ora bolas — disse Felinha. Aquilo era a coisa mais próxima de uma praga que ela já pronunciara. Dentro da igreja, pelo menos. Minha irmã era uma devota fraudulenta.

Ela pôs-se em pé sobre os pedais e gingou para sair do banco do órgão, causando um mugido dissonante de notas graves.

— E agora? — indagou, revirando os olhos como se esperasse uma resposta dos Céus. — Esta coisa estúpida está se comportando assim há semanas. Deve ser o tempo úmido.

— Acho que ele já era. Você provavelmente o quebrou.

— Me passe a lanterna — ela falou depois de uma longa pausa. — Nós vamos dar uma olhada.

Nós vamos?

Sempre que Felinha ficava apavorada, o “eu” se transformava em “nós” com a rapidez de um raio. Como o órgão de São Tancredo tinha sido catalogado pelo Colégio Real de Organistas como instrumento histórico, qualquer dano causado ao precioso objeto provavelmente seria considerado um ato de vandalismo contra a nação.

Eu sabia que Felinha já estava morrendo de medo de ter que dar as más novas ao vigário.

— Mostre o caminho, ó Contraventora! Como chegamos às suas entranhas?

— Por aqui — respondeu Felinha, fazendo deslizar rapidamente um painel oculto na madeira trabalhada ao lado do console do órgão. Nem tive tempo de ver como ela fez o truque.

Acendendo a lanterna, Felinha se enfiou através da abertura estreita e desapareceu na escuridão. Respirei fundo e fui atrás.

Nos vimos em uma bolorenta caverna de Aladim, com estalagmites por todos os lados. O facho da lanterna percorreu o ambiente, e os tubos do órgão se ergueram sobre nós: tubos de madeira, tubos de metal, tubos de todos os tamanhos. Alguns eram pequenos como lápis, outros pareciam canos de drenagem, e outros eram grandes como postes telefônicos. Na realidade, era mais uma floresta de flautas gigantes do que uma caverna.

— O que é isto? — perguntei, apontando para uma fileira de tubos altos e cônicos que me lembravam zarabatanas de pigmeus.

— O registro Gemshorn. Supostamente, soam como uma antiga flauta feita de chifre de carneiro.

— E esses?

— Os Rohrflöte.

— Isso é porque eles rugem? Rooorr?!

Felinha revirou os olhos.

— Rohrflöte significa “flauta de chaminé” em alemão. Os tubos têm o formato de chaminés.

Tinham mesmo. Não teriam se sentido deslocados entre as chaminés de Buckshaw.

De repente, alguma coisa chiou e gorgolejou nas sombras; joguei meu braço em volta da cintura de Felinha.

— O que foi isso? — sussurrei.

— O reservatório de ar — disse ela, apontando a lanterna para o canto oposto.

De fato, nas sombras, um enorme objeto de couro com aparência de baú exalava lentamente chiados e assobios brônquicos variados.

— Super! — exclamei. — É como um acordeom gigante.

— Pare de falar “super”. Você sabe que o pai não gosta.

Eu a ignorei e, abrindo caminho por entre alguns dos tubos menores, me icei para o topo do reservatório de ar, que, após soltar um ruído tão grosseiro quanto realista, afundou-se um pouco mais.

Espirrei — uma, duas, três vezes — na nuvem de poeira que eu havia atiçado.

— Flavia! Desça daí imediatamente! Você vai rasgar esse couro velho!

Pus-me em pé na plenitude do meu um metro e quarenta e oito centímetros. Sou bem alta para alguém de quase doze anos.

— Uhuuu! — bradei, agitando os braços para manter o equilíbrio. — Sou o Rei do Castelo!

— Flavia! Desça agora mesmo, ou vou contar para o pai!

— Veja, Felinha. Tem uma lápide velha aqui em cima.

— Eu sei. É para acrescentar peso ao reservatório de ar. Agora, desça. E tome cuidado.

Varri a poeira com as mãos.

— Hezekiah Whytefleet — li em voz alta. — mil seiscentos e setenta e nove a mil setecentos e setenta e oito. Arre! Noventa e nove anos. Quem será que era ele?

— Estou apagando a lanterna. Você vai ficar sozinha no escuro.

— Tudo bem. Já estou indo. Não precisa ficar rabugenta.

Quando passei o meu peso de um pé para o outro, o reservatório de ar oscilou e cedeu um pouco mais, e eu me senti como se estivesse no convés de um navio inundado.

Algo se agitou bem do lado direito do rosto de Felinha, que se petrificou.

— Deve ser só um morcego — falei.

Felinha soltou um grito agudo, deixou cair a lanterna e desapareceu.

Morcegos estavam no topo da lista das coisas que faziam os miolos da minha irmã virarem pudim.

Outra farfalhada, como se a coisa estivesse confirmando presença.

Descendo cautelosamente do meu poleiro, recuperei a lanterna e arrastei-a pela fileira de tubos como um graveto por uma cerca.

Um furioso bater de asas coriáceas ecoou.

— Está tudo bem, Felinha! — gritei. — É um morcego mesmo. Está preso em um tubo.

Atravessei a portinhola para dentro do presbitério. Lá estava Felinha, debaixo de um raio de luar, branca como uma estátua de gesso, envolvendo o corpo com os braços.

— Talvez possamos espantá-lo com fumaça — eu disse. — Tem um cigarro? — Eu estava brincando, é claro. Felinha tinha horror a cigarro. — Talvez possamos persuadi-lo a sair. O que os morcegos comem?

— Insetos — disse Felinha, o olhar perdido como se ela lutasse para acordar de um pesadelo. — Portanto, isso está descartado. O que vamos fazer?

— Em qual tubo ele está? Você conseguiu distinguir?

— O diapasão de cinco metros — disse ela, trêmula. — O ré.

— Tenho uma ideia! Por que você não toca a Tocata e fuga em ré menor, de Bach? A todo vapor. Isso deve dar um jeito no pestinha.

— Você é detestável. Vou contar ao senhor Haskins sobre o morcego amanhã.

O sr. Haskins era o sacristão de São Tancredo, e se esperava que ele lidasse com tudo, desde cavar sepulturas até polir metais.

— Como você acha que ele entrou na igreja? O morcego, quero dizer.

Estávamos caminhando entre as sebes, de volta para casa. Farrapos de nuvem passavam com rapidez em frente à lua, e um vento frio e cruzado agitava os nossos casacos.

— Não sei e não quero falar sobre morcegos — disse Felinha.

Na verdade, eu estava apenas puxando conversa. Sabia que morcegos não entram por portas abertas. Havia o suficiente daquelas coisas penduradas nos sótãos de Buckshaw para que eu soubesse que morcegos geralmente entram através de janelas quebradas ou são arrastados para dentro, abatidos, por gatos. Como não havia um gato em São Tancredo, a resposta parecia óbvia.

— Por que estão abrindo o túmulo dele? — perguntei, mudando de assunto. Felinha sabia que eu me referia ao santo.

— São Tancredo? Porque é o quingentésimo aniversário da sua morte.

— É o quê?

— O quingentésimo aniversário. De quinhentos anos.

Deixei escapar um assobio.

— São Tancredo está morto há quinhentos anos? Isso é cinco vezes mais do que viveu Hezekiah Whytefleet! — Felinha não disse nada. — Isso significa que ele morreu em 1451 — falei após fazer uma rápida subtração mental. — Como você imagina que será a aparência dele quando o desenterrarem?

— Quem sabe? O corpo de alguns santos permanece inalterado para sempre. Sua compleição continua suave e macia como bumbum de nenê, e emana deles um perfume de flores. “O perfume da santidade”, se chama assim.

Quando estava a fim, minha irmã podia ser bem conversadora.

— Supercolossal! Espero poder dar uma boa olhada nele quando o arrastarem para fora do caixão.

— Esqueça São Tancredo. Não vão deixar você sequer chegar perto dele.

— É como comer calor cozido — disse a sra. Mullet.

Olhei com desconfiança para a tigela de sopa de abóbora e chirívia que ela colocara à minha frente. Grãos de pimenta-preta flutuavam na coisa como chumbinhos de caça usados.

— Parece quase bom de comer — comentei afavelmente.

Espetando um dedo em Os mistérios de Udolfo para marcar o lugar onde parara de ler, Dafi me lançou um de seus olhares paralisantes.

— Sua patifezinha ingrata — resmungou.

— Daphne... — disse o pai.

— Ora, ela é mesmo — prosseguiu Dafi. — A sopa da senhora Mullet não é motivo de piada.

Felinha levou rapidamente um guardanapo aos lábios para esconder um sorriso, e eu vi mais uma daquelas mensagens silenciosas ser passada entre as minhas irmãs.

— Ophelia... — disse o pai. A mensagem também não passara despercebida a ele.

— Ora, não foi nada, coronel de Luce — disse a sra. Mullet. — A senhorita Flavia precisa fazer suas brincadeirinhas, eu entendo. Ela não faz por mal.

Aquilo foi novidade para mim, mas abri um sorriso caloroso.

— Está tudo bem, senhora M — falei. — Eles não sabem o que fazem.

Muito calculadamente, o pai fechou a última edição do London Philatelist que estava lendo, pegou-a e saiu da sala. Alguns instantes depois, ouvi a porta do seu estúdio fechando-se com suavidade.

— Pronto, você conseguiu — disse Felinha.

Os problemas financeiros do pai se tornavam mais prementes a cada mês. Houvera um tempo em que as suas preocupações o deixavam apenas mal-humorado, mas, nos últimos tempos, detectara algo que temia ser muito, muito pior: a capitulação.

A capitulação de um homem que sobrevivera a um campo de prisioneiros de guerra era quase impensável, e, com uma pontada no coração, eu me dera conta de que os ressequidos homenzinhos do Fisco de Sua Majestade haviam feito ao pai o que o Império do Japão não conseguira. Eles o fizeram desistir da esperança. Nossa mãe, Harriet, que herdara Buckshaw do seu tio-avô Tarquin de Luce, morrera em um acidente de alpinismo no Himalaia quando eu tinha um ano de idade. Como ela não deixara testamento, os Abutres de Sua Majestade caíram em cima do pai e bicavam o seu fígado insistentemente desde então.

Vinha sendo uma longa batalha. De tempos em tempos, parecia que as circunstâncias tomariam um rumo melhor, mas, recentemente, eu notara que o pai estava ficando cansado. Em várias ocasiões, ele nos avisara que poderia ter de abrir mão de Buckshaw, porém nós sempre dávamos um jeito. Agora, era como se ele não se importasse mais.

Como eu amava aquele velho e adorado lugar! Só de pensar no seu papel de parede decrépito e nos tapetes esgarçados, sentia arrepios.

O laboratório químico de primeira linha do tio Tar, na parte de cima da ala leste, sem calefação, era a única parte da casa que seria aprovada em uma inspeção. Muito tempo atrás, ele fora abandonado à poeira e à frieza da negligência, até que eu descobrira o cômodo esquecido e o tomara para mim.

Embora o tio Tar estivesse morto havia mais de vinte anos, o laboratório que seu indulgente pai lhe havia construído estava tão a frente do próprio tempo, que mesmo agora, em 1951, seria considerado uma maravilha da ciência. Do latão reluzente do microscópio binocular Leitz às fileiras e mais fileiras de produtos químicos engarrafados, da floresta de frascos e recipientes ao cromatógrafo a gás que ele mandara construir com base na obra do invejavelmente renomado Mikhail Semenovich Tswett, o laboratório do tio Tar era meu agora: um universo de vidro e maravilhas.

Dizem que, na época da sua morte, o tio Tar estava trabalhando na decomposição de primeira ordem do pentóxido de nitrogênio. Se os rumores fossem verdadeiros, ele tinha sido um dos pioneiros naquilo que recentemente passáramos a chamar de “A Bomba”.

Com a biblioteca do tio Tar e os seus cadernos detalhados, eu me transformara em uma excelente química, muito embora meus interesses não fossem dirigidos tanto à fissão de átomos quanto à preparação de venenos.

Para mim, uma bela dose de cianeto de potássio sempre supera velhos e tolos elétrons, que ficam girando sem parar.

Foi impossível resistir ao pensamento do laboratório à minha espera.

— Vocês não precisam se levantar — falei a Dafi e Felinha, que me olharam como se uma segunda cabeça tivesse brotado em mim.

Saí da sala em absoluto silêncio.


2

EXAMINADO ATRAVÉS DE UM MICROSCÓPIO em baixa potência, o sangue humano parece, de início, uma vista aérea do Colégio dos Cardeais, todos eles vestidos em seus barretes e capas, perambulando confusamente pela Praça do Vaticano à espera do aparecimento do Papa no balcão. Não que precisem, é claro.

Mas, à medida que se aumenta a ampliação, a cor desbota, até que, por fim, quando observamos os glóbulos vermelhos individualmente, notamos que, na realidade, cada um não tem mais do que um pálido matiz rosado.

A coloração vermelha do sangue vem do ferro contido na hemoglobina. O ferro se liga facilmente ao oxigênio, que o transporta para os mais distantes cantos e recantos do nosso corpo. Lagostas, caracóis, caranguejos, mariscos, lulas, lesmas e membros das famílias reais europeias, por outro lado, têm sangue azul, devido ao fato de que este tem como base o cobre, em vez do ferro.

Imagino que tenha sido a descoberta da rã morta o que originalmente me deu a ideia. A pobrezinha provavelmente tentava seguir o rio que corre atrás de São Tancredo para o pequeno charco, do outro lado da estrada, quando passou por uma séria desventura com um automóvel.

Qualquer que tenha sido o caso, a criatura já se achava esmagada e achatada antes de eu tê-la colocado no bolso e trazido para casa, para fins científicos.

A fim de tornar os glóbulos mais transparentes sob o microscópio, misturei uma amostra do sangue com uma solução de um para quatro de ácido acético e, então, ajustando o foco, pude ver claramente que os glóbulos da rã eram discos chatos — muito parecidos com moedinhas rosadas —, ao passo que os meus próprios, os quais eu extraíra com uma rápida espetada com um alfinete de gancho, eram duas vezes maiores e mais côncavos, como dúzias de rosquinhas vermelhas.

A ideia de comparar o meu próprio sangue com o do pai e o das minhas irmãs veio mais tarde e, indiretamente, de Dafi.

— Você é tão De Luce quanto o homem da Lua — disse ela quando me pegou bisbilhotando o seu diário. — A sua mãe veio da Transilvânia. Você tem sangue de morcego nas veias.

Ao arrancar o livro encadernado em couro da minha mão, Dafi se cortou feio em uma das páginas.

— Veja só o que você fez! — ela gritou, esticando o dedo sangrento e trêmulo para que eu o inspecionasse; ele gotejava espetacularmente sobre o tapete da sala de visitas. A fim de aumentar ainda mais o efeito dramático, Dafi ordenhou a ferida para extrair algumas gotas a mais. Então, sem mais palavra, disparou meio soluçante para fora da sala.

Não foi difícil absorver uma boa porção de sangue coagulado com o meu lenço. O pai sempre insistia na importância de carregar um “trapo de fungar” limpo, e houve várias ocasiões em que eu ofereci um louvor silencioso ao excelente conselho. Esta foi uma dessas ocasiões.

Imediatamente, disparei para o meu laboratório, preparei uma lâmina de microscópio com a amostra de sangue e desenhei diversos esboços (bastante bons) das minhas observações, colorindo-os primorosamente com os lápis da caixa de artista profissional que a tia Millicent dera de presente a Felinha muitos natais antes.

Pouco depois, em um incrível golpe de sorte, Felinha, que era inusitadamente vaidosa com as próprias mãos, quebrou uma unha na mesa do desjejum, e eu estava de plantão — parece até uma piada.

— Cuidado! Você manchou a toalha de mesa — eu disse, puxando rapidamente o guardanapo de seus dedos e entregando-lhe um chumaço de algodão que tirei do bolso. — Vou lavar isto com água fria antes que seque.

E, então, no meu laboratório, acrescentei mais um jogo de esboços coloridos ao meu caderno.

“Os discos achatados de glóbulos vermelhos”, escrevi, “têm uma tendência a permanecerem juntos. Eles mostram a sua cor vermelha característica somente quando são vistos em sobreposição. Caso contrário, apresentam o amarelo pálido do céu ocidental depois de uma chuva vespertina”.

Obter uma amostra do sangue do pai tinha sido mais complicado. Somente na segunda-feira seguinte, quando ele comparecera à mesa do desjejum com um pequeno pedaço de papel higiênico grudado na garganta, que havia cortado ao barbear-se, foi que logo planejei uma maneira de consegui-lo.

Fora na manhã seguinte a um dos terríveis episódios que Dogger sofria à meia-noite — seus gritos, em uma voz chocantemente roufenha, se estendiam por minutos e então davam lugar a períodos prolongados e horríveis de lamúrias, que eram ainda mais irritantes do que os gritos.

Dogger era o “faz-tudo” do pai. Suas obrigações variavam conforme sua capacidade. Às vezes, era valete e, às vezes, jardineiro, dependendo de como os ventos sopravam em seu cérebro no momento. Dogger e o pai haviam servido juntos no exército — e juntos foram aprisionados em Changi. Isso era uma coisa de que os dois nunca falavam; os poucos detalhes que eu sabia sobre aqueles anos medonhos tinham sido extraídos, cada sofrido bocadinho, da sra. Mullet e de seu marido, Alf.

Naquela manhã, eu me dera conta de que o pai não tinha dormido — de que ele ficara ao lado de Dogger até os terrores se acalmarem. Normalmente, o pai nunca sonharia em permitir que o vissem com papel higiênico grudado na sua pessoa, e o fato de ter feito isso dizia mais sobre a sua aflição do que ele seria capaz de pôr em meras palavras.

Fora fácil recuperar o pedacinho de papel manchado no lixo do seu quarto de vestir, mas devo admitir que, ao fazê-lo, eu me sentira mais culpada do que nunca.

“Nossos glóbulos vermelhos e brancos, do pai, de Felinha, de Dafi e meus”, escrevera em minhas anotações, muito embora me fosse difícil acreditar, “são idênticos em tamanho, forma, densidade e coloração”.

Em um surrado e interessantemente manchado livro sobre microscopia da biblioteca do tio Tar, eu aprendera que os glóbulos do sangue de um morcego são aproximadamente vinte e cinco por cento menores em tamanho do que os do sangue humano.

Mesmo ampliados em mil vezes, os meus glóbulos eram idênticos aos do meu pai e das minhas irmãs.

Ao menos na aparência.

Eu tinha lido em uma das revistas populares que se espalhavam pela nossa sala de visitas que o sangue humano é idêntico em composição química à água do mar, onde, segundo dizem, os nossos ancestrais rastejaram: essa água do mar, de fato, foi muitas vezes usada para transfusões temporárias em emergências médicas nas quais não havia sangue de verdade disponível.

Um pesquisador francês e oficial de artilharia, René Quinton, certa vez substituiu o sangue de um cão por água do mar diluída e descobriu não apenas que o cão viveu — até uma idade madura, evidentemente —, mas que, um ou dois dias depois do experimento, o organismo do cão havia substituído a água do mar por sangue!

Tanto o sangue quanto a água do mar são compostos basicamente de sódio e cloro, embora não nas mesmas proporções. Ainda assim, era divertido pensar que o que corria em nossas veias era pouco mais que uma solução de sal de cozinha, muito embora, sejamos justos, ambos também contenham pequenas quantidades de cálcio, magnésio, potássio, zinco, ferro e cobre.

Por um breve período, este assim chamado fato me deixara imensamente empolgada, pois poderia abrir — como de fato abriu — inúmeras possibilidades de experimentos audaciosos, alguns dos quais envolvendo humanos.

Mas então a Ciência predominou.

Uma extensa e cuidadosamente calibrada série de testes com o meu próprio sangue (eu me sentira fraca por semanas) me mostrou claramente as diferenças.

Eu havia demonstrado de modo bastante conclusivo que o que fluía na veia dos De Luce não era água do mar, e sim uma combinação diferente dos elementos da criação.

Quanto à acusação de Dafi de que eu tinha uma mãe da Transilvânia... Bem, aquilo era simplesmente ridículo!

Em incontáveis ocasiões no passado, as minhas irmãs tinham tentado me convencer de que Harriet não era a minha mãe: de que eu havia sido adotada, ou deixada por duendes quando bebê, ou abandonada logo depois de nascer por uma mãe desconhecida que não suportara a ideia de chorar todos os dias ao ver a minha cara feia.

De algum modo, teria sido muito mais reconfortante saber que minhas irmãs e eu não pertencíamos à mesma tribo.

Sangue de morcego, francamente! Dafi, aquela bruxa!

Entretanto, tudo o que restava agora a fim de concluir o meu experimento do modo científico correto era acrescentar algumas notas em primeira mão baseadas na observação dos fluidos corporais de um morcego de verdade.

E eu sabia precisamente onde encontrar um.

Amanhã, o meu dia começaria cedo.


3

ERA UM DAQUELES DIAS GLORIOSOS DE MARÇO, em que o ar está tão fresco que você adora cada bafejo; em que cada inspiração da essência intoxicante cria novos e tais universos em seus pulmões e cérebro que você tem a absoluta certeza de estar prestes a explodir de puro deleite; um daqueles dias de ventos fortes, de nuvens se deslocando depressa, de chuvas rápidas e insignificantes, de botas de borracha e guarda-chuvas entortados pelo vento que fazem você se sentir verdadeiramente vivo.

Em algum lugar a leste, nos bosques, um pássaro cantava.

Era o primeiro dia de primavera, e a Mãe Natureza parecia saber disso.

Gladys rangia em deleite conforme seguíamos trepidando através da chuva. Muito embora fosse consideravelmente mais velha, ela adorava um bom passeio num dia úmido tanto quanto eu. Tinha sido manufaturada no setor de bicicletas da Indústria Britânica de Armas Leves, em Birmingham, antes de eu nascer e, originalmente, pertencera à minha mãe, Harriet, que a chamava de “l’Hirondelle”, “a andorinha”.

Eu a rebatizara de Gladys por causa da sua natureza alegre.[1]

Normalmente, Gladys não gostava de molhar as suas saias, mas, num dia como este, com os pneus cantando no pavimento molhado e o vento empurrando as nossas costas, não havia tempo para frescuras.

Abrindo bem os braços para que a minha folgada capa de chuva amarela se transformasse em vela, me deixei ser arrastada por um rio de vento.

— Uhuuu! — gritei para um par de vacas molhadas, que me olharam sem expressão enquanto eu passava, célere, por elas no meio da chuva.

Na luz verde e nebulosa do início da manhã, São Tancredo parecia uma aquarela georgiana, a torre flutuando de um jeito fantasmagórico acima do pátio saliente, como se fosse um balão de ar quente partindo para os céus após se soltar de suas amarras.

A única nota dissonante na pacata cena era a van escarlate estacionada junto ao caminho de pedras que levava à porta da frente. Reconheci-a imediatamente como pertencente ao sr. Haskins, o sacristão da igreja. Ao lado dela, na grama sob os teixos, achava-se um reluzente Hillman preto; seu brilho altamente lustroso me informou que não pertencia a ninguém de Bishop’s Lacey.

A oeste da igreja, quase oculto pela neblina, um caminhão azul se encontrava estacionado junto à capela. Um par de surradas escadas de mão e uma carga de tábuas sujas e gastas pelas intempéries se projetavam da sua traseira aberta. George Battle, pensei. O pedreiro da aldeia.

Parei com uma derrapada e encostei Gladys no túmulo de uma tal Cassandra Cottlestone, 1685-1750 (rigorosamente contemporânea de Johann Sebastian Bach, observei).

Esculpida em pedra e tristemente desgastada, Cassandra jazia no topo da sua tumba coberta de musgo, os olhos fechados como se estivesse com dor de cabeça, as pontas dos dedos unidas e pressionadas sob o queixo e um indistinto sorriso presunçoso nos cantos da boca. Ela não parecia se importar muito com o fato de estar morta.

Na base, estava gravado em um estilo arcaico:

Eu faleci

E agora jazo

Às portas da igreja

Para todo o sempre

Rezem para que o meo corpo durma

E a mia alma desperte.

Reparei nas grafias diferentes de “meo” e “mia” — “meu” e “minha” — e me lembrei de que Dafi certa vez me contara uma história absurda sobre o túmulo Cottlestone. O que era mesmo?

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som de vozes exaltadas vindas do pórtico da igreja. Atravessei rapidamente o gramado e o adentrei.

— Mas uma faculdade foi concedida — dizia o vigário. — Não é mais possível voltar atrás. O trabalho já está em andamento.

— Então, você precisa interrompê-lo — disse um homem grande que vestia terno escuro. Com sua cara de batata, cheia de protuberâncias e uma juba de cabelos brancos, ele tinha a aparência de um esfregão em trajes dominicais. — Tem de interrompê-lo imediatamente.

— Marmaduke — o vigário falou —, o bispo me assegurou em várias ocasiões que não haveria... Oh, bom dia, Flavia. Você acordou cedo, pelo jeito.

O homem grande virou a cabeça lentamente e deixou que seus olhos claros repousassem sobre o meu rosto. Ele não sorriu.

— Bom dia, vigário! — falei afetadamente. Comportar-se com uma animação exagerada ao romper da aurora é algo extremamente perturbador para certo tipo de pessoa, e logo percebi que o homem de cabelos brancos era um desses. — Mas que bela, adorável manhã, não é mesmo?!... Apesar da chuva?

Eu sabia que estava passando da conta, mas há momentos em que simplesmente não consigo me conter.

— Hein? — acrescentei para dar mais ênfase.

— Flavia, querida — disse o vigário. — Que bom ver você. Suponho que esteja procurando pelo senhor Haskins. É sobre as cestas de flores, não é? Sim, eu imaginei mesmo. Acho que ele está lá em cima, no campanário, arrumando as cordas dos sinos e essas coisas. Não podemos ter um caos na Sexta-Feira Santa, não é?

Cestas de flores? O vigário estava me incluindo em algum pequeno drama de sua própria criação. Me senti honrada! Eu havia aparecido em um momento delicado, e ele obviamente me queria fora dali.

O mínimo que eu podia fazer era entrar no jogo.

— Maravilha, então. O pai vai ficar muito contente de saber que a questão dos lírios está resolvida.

Com isso, saltei como uma jovem gazela para o primeiro degrau da escadaria em espiral da torre.

Uma vez fora de vista, me arrastei penosamente para cima, lembrando-me de que as antigas escadas em castelos e igrejas torcem-se no sentido horário para quem sobe, de modo que um invasor, ao subir as escadas, seja forçado a segurar a espada com a mão esquerda, enquanto o defensor, lutando de cima para baixo, pode usar a mão direita, usualmente a mais hábil.

Virei-me para trás por um momento e fiz alguns movimentos de defesa e estocada contra um viking imaginário — ou talvez um normando, ou quem sabe um godo. Não sou lá uma especialista quando se trata de saqueadores e invasores.

— Arrá! — gritei, assumindo uma pose de esgrimista, com o braço da espada estendido. — En garde, seja lá o que for!

— Cruz-credo, senhorita Flavia! — disse o sr. Haskins, deixando cair alguma coisa e levando uma das mãos ao lugar onde o seu coração supostamente batia com força. — Você me pregou um belo de um susto.

Receio ter dado um pequeno sorriso de orgulho. Não é fácil assustar um coveiro, especialmente um que, apesar da idade, tinha a constituição robusta de um marinheiro. Imagino que fossem os seus braços musculosos, as suas mãos nodosas e as suas pernas arqueadas que tinham me feito pensar no mar.

— Desculpe, senhor Haskins — falei, removendo a minha capa de chuva e pendurando-a em um gancho próximo. — Eu deveria ter assobiado enquanto subia. O que há nesse baú?

Encostado à parede oposta, um velho e bastante surrado baú de madeira se achava aberto, e um pedaço de corda serpenteava para fora no lugar onde o sacristão a deixara cair — não sem culpa, pensei.

— Aquilo? Nada de mais. Uma tralha inútil, na verdade. Restos da guerra.

Estiquei o pescoço para ver atrás do sr. Haskins.

No baú, havia vários outros pedaços de corda, um cobertor dobrado, meio balde de areia, uma bomba manual com uma mangueira de borracha apodrecida, uma segunda mangueira de borracha da Índia, uma pá muito suja de terra, um capacete preto de aço com um “W” branco e uma máscara de borracha.

— Máscara de gás — disse o sr. Haskins, pegando a coisa e segurando-a na palma da mão tal qual Hamlet. — Durante a guerra, os rapazes da PAA[2] e os guardas-florestais mantiveram um posto aqui. Eu mesmo passei muitas noites neste local. Meio solitário. Costumava ver coisas estranhas.

Ele conseguiu a minha completa atenção.

— Como...?

— Oh, você sabe... Luzes misteriosas flutuando pelo pátio da igreja... Essas coisas.

Será que ele estava tentando me assustar?

— Você está brincando comigo, senhor Haskins.

— Talvez eu esteja, senhorita... talvez não.

Agarrei a grotesca máscara de olhos saltados e coloquei-a sobre a cabeça. Ela fedia a borracha e suor rançoso.

— Olhe, sou um polvo! — eu disse, agitando os meus tentáculos. Abafadas pela máscara, as minhas palavras soaram como “Uiê, fou um fouvo!”.

O sr. Haskins arrancou a coisa da minha cara e jogou-a de volta no baú.

— Crianças morreram usando essas coisas! — falou. — Sufocaram até morrer. Isso não é brinquedo.

Ele abaixou a tampa do baú e, trancando bruscamente o fecho de bronze, enfiou a chave no bolso.

— Você esqueceu a corda — eu disse.

Lançando-me o que acredito ser chamado de um olhar crítico, ele cavoucou o bolso à procura da chave, abriu o fecho com um estalido e retirou a corda do baú.

— E agora? — perguntei, tentando parecer entusiástica.

— É melhor a senhorita dar no pé. Nós temos trabalho a fazer e não precisamos de gente como você no caminho.

Ora!

Normalmente, qualquer um que fizesse um comentário desses na minha cara iria para o topo da minha lista de candidatos a estricnina. Alguns gramas na lancheira da vítima — provavelmente misturados à mostarda de seu sanduíche, o que disfarçaria muito bem tanto o sabor como a textura...

Mas espere! Ele não havia dito “nós”? Quem seria “nós”?

Eu sabia, de ficar perambulando pela igreja, que o sr. Haskins geralmente trabalhava sozinho. Ele solicitava ajuda quando era preciso erguer coisas pesadas, como ao trocar lápides tombadas ou enterrar alguém que...

— São Tancredo! — gritei, disparando para a porta.

— Espere... — protestou o sr. Haskins. — Não vá lá para baixo!

Mas a voz dele já sumia atrás de mim enquanto eu descia retumbantemente a escada em caracol.

São Tancredo! Eles estavam abrindo o túmulo de São Tancredo na cripta e não queriam que eu me intrometesse. Foi por isso que o vigário me dispensou tão abruptamente. Como ele me mandara direto para o sr. Haskins, na torre, aquilo não havia feito sentido, mas o homem não tivera muito tempo para pensar.

Cestas de flores, francamente! Em algum lugar lá embaixo, já estavam abrindo a tumba de São Tancredo!

Cheguei ao vestíbulo, que se achava vazio; o vigário e o estranho de cabelos brancos tinham desaparecido.

A entrada para a cripta ficava à minha esquerda, uma pesada porta de madeira em estilo gótico, a moldura curva como uma sobrancelha de pedra arqueada em desaprovação. Abri-a com um empurrão e desci a escada silenciosamente.

No fundo, uma fileira de pequenas e desnudas lâmpadas elétricas, a qual fora temporariamente pendurada no teto baixo, iluminava a distância em direção à frente da igreja, o débil brilho amarelado servindo apenas para tornar as sombras em volta mais escuras.

Eu estivera ali embaixo apenas uma vez, numa tarde de inverno, por ocasião de um jogo de esconde-esconde com as escoteiras de São Tancredo. Isso, é claro, aconteceu antes da minha expulsão ignominiosa da tropa. Ainda assim, mesmo depois de todo esse tempo, eu não conseguia parar de pensar em Delorna Higginson e no enorme tempo que fora preciso para fazê-la parar de gritar e espumar pela boca.

Agora, à minha frente, espreitando na escuridão, achava-se a maciça pilha de sucata que era a caldeira de calefação da igreja. Contornei-a com receio, evitando voltar as minhas costas para a coisa.

Manufaturada por Deacon and Bromwell em 1851 e apresentada na Grande Exposição, a monstruosidade notoriamente imprevisível acachapava-se nas entranhas de São Tancredo como a lula gigante que atacou o submarino do Capitão Nemo, o Nautilus, em Vinte mil léguas submarinas, os finos tentáculos dos seus condutos serpenteando em todas as direções, as duas janelas redondas de mica luzindo como um par de selvagens olhos vermelhos na porta de ferro fundido.

Dick Plews, o encanador da aldeia, vinha tendo havia anos o que o vigário chamara de “um assunto pessoal” com a besta, mas até eu sabia que essa era uma visão tristemente otimista. Dick tinha medo da coisa, e todo mundo em Bishop’s Lacey conhecia esse fato. Às vezes, durante os serviços, especialmente nos longos silêncios enquanto nos acomodávamos para o sermão, uma corrente de obscenidades subia pelos dutos de ar quente — obscenidades que todos nós conhecíamos mas fingíamos não conhecer.

Estremeci e segui em frente.

De ambos os meus lados, havia arcos de tijolo. Atrás deles — empilhados como lenha, segundo o sr. Haskins — estavam os esquifes em decomposição daqueles aldeões que se foram antes de nós, incluindo uma porção de defuntos De Luce.

Devo admitir que muitas vezes desejei poder tirar de seus nichos aqueles meus ancestrais secos e quebradiços, para um bom encontro cara a cara — não apenas para ver como eles se comparavam aos seus esmaecidos retratos a óleo, que ainda estavam pendurados em Buckshaw, como também para satisfazer o meu prazer privado em confrontar um ocasional cadáver.

Somente Dogger tinha conhecimento desse meu inusitado entusiasmo, e ele me assegurara de que isso acontecia porque, ao lidar com os mortos, o prazer de aprender supera a dor. Aristóteles, Dogger me assegurou, compartilhava da minha paixão por cadáveres.

Querido e velho Dogger! Como ele tranquilizava a minha mente.

Agora, eu conseguia ouvir vozes. Estava exatamente abaixo da abside.

— Cuidado! — alguém dizia nas sombras à minha frente. — Cuidado agora, Tommy, meu rapaz.

Uma sombra escura saltou na parede como se alguém tivesse acendido uma lanterna.

— Calma! Devagar! Onde está Haskins com aquela maldita corda? Desculpe o meu rude linguajar, vigário.

A silhueta do vigário, de costas para mim, achava-se emoldurada por uma arcada aberta. Estiquei o pescoço para olhar além dele. Do outro lado da pequena câmara, uma grande pedra retangular havia sido separada da parede com uma alavanca e girada para fora. Agora, uma extremidade dela era sustentada por um cavalete de madeira, enquanto a outra ainda se apoiava na beira da pedra. Atrás da pedra, viam-se alguns centímetros de fria escuridão.

Quatro trabalhadores — todos estranhos, com exceção de George Battle — aguardavam de prontidão. Ao avançar para ver melhor, colidi com o cotovelo do vigário.

— Céus, Flavia! — ele exclamou, assustado, os olhos arregalados sob a estranha luz. — Eu quase pulei para fora da minha pele, minha menina. Não sabia que você estava aí. Você não devia estar aqui embaixo, é perigoso demais. Se o seu pai souber, irá pedir a minha cabeça em cima de uma bandeja.

São João Batista atravessou meus pensamentos.

— Desculpe, vigário — eu disse. — Não queria assustá-lo. É só que, como São Tancredo é meu xará, eu queria ser a primeira a ver os seus ossos sagrados.

O vigário olhou para mim inexpressivamente.

— Flavia Tancreda de Luce — lembrei a ele com uma injeção de falsa reverência na voz e baixei os olhos, um truque que eu aprendera observando Felinha em suas devoções.

O vigário ficou em silêncio por um longo momento — e então deu uma risadinha.

— Você está brincando comigo. Lembro-me claramente de oficiar no seu batismo. Flavia Sabina de Luce foi o nome que lhe conferimos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém, e Flavia Sabina de Luce você continuará sendo... até o momento, é claro, em que decidir entrar num estado de Sagrado Matrimônio e mudar o seu nome, como a sua irmã Ophelia.

O meu queixo caiu como a tampa de uma caixa de correio.

— Felinha?

— Oh, céus — disse o vigário. — Acho que dei com a língua nos dentes.

Felinha? A minha irmã Felinha? Entrando em um estado de Sagrado Matrimônio?

Eu mal pude acreditar!

Quem seria ele? Ned Cooper, o garçom da Treze Patos, cuja ideia de cortejo era deixar oferendas de doces embolorados na porta da nossa cozinha? Carl Pendracka, o soldado norte-americano que queria mostrar a Felinha as vistas de St. Louis, Missouri? (Carl ia me levar para ver o jogador de beisebol Stan Musial rebater a bola para fora do estádio.) Ou seria Dieter Schrantz, o ex-prisioneiro de guerra alemão que optara por permanecer na Inglaterra como um trabalhador rural até se qualificar para lecionar Orgulho e preconceito a alunos do ginásio? Por fim, é claro, havia o sargento-detetive Graves, o jovem policial que sempre ficava envergonhado e furiosamente vermelho na presença da minha apatetada irmã.

Antes que eu pudesse questionar o vigário, o sr. Haskins, de corda em punho, a lanterna projetando estranhas sombras oscilantes, forçou-se para dentro do espaço já abarrotado.

— Abram caminho! Abram caminho! — resmungou, e os trabalhadores se afastaram, encurralando-se contra as paredes.

Em vez de sair da câmara, usei a oportunidade para me espremer mais para o interior dela. Quando o sr. Haskins prendeu a corda em volta da ponta externa da pedra, eu já tinha forçado passagem para o canto oposto; assim, assistiria de camarote ao que quer que fosse acontecer.

Relanceei o olhar para o vigário, do outro lado, mas ele parecia ter se esquecido da minha presença. Seu rosto se mostrava tenso à luz das pequenas lâmpadas tremeluzentes.

O que será que Marmaduke, o homem de terno escuro, tinha querido dizer? “Você precisa interrompê-lo. Tem de interrompê-lo imediatamente.”

Era óbvio que, a despeito de Marmaduke, fosse quem fosse, o trabalho prosseguia.

O vigário agora mordiscava distraidamente o seu lábio inferior.

— Então, onde está o seu amigo? — o sr. Haskins perguntou de repente, dando as costas para a sua tarefa; as palavras ecoaram de um modo estranho nos arcos da cripta. — Eu pensei que ele quisesse estar aqui para o evento principal.

— O senhor Sowerby? — falou o vigário. — Não sei. Não é normal ele se atrasar. Talvez devamos esperar um pouco.

— Esta pedra não vai esperar ninguém — disse o sr. Haskins. — Esta pedra aqui tem vontade própria e vai sair, quer nós gostemos ou não.

Ele deu uma palmadinha familiar no pesado bloco, que soltou um horrível gemido, como se estivesse sentindo dor.

— Ela já está quase solta. E, além disso, Norman e Tommy precisam voltar para Malden Fenwick, não é mesmo, rapazes? Eles estão aqui para trabalhar e vão trabalhar.

O homem acenou de maneira pomposa para os seus trabalhadores, um extraordinariamente alto, o outro bastante comum. Lá embaixo, nas profundezas da cripta, o sr. Haskins era o soberano do seu próprio reino, e ninguém se atrevia a erguer a voz contra ele.

— E tem mais — acrescentou. — Isto aqui é apenas a parede. Nós não vamos chegar ao sarcófago enquanto não passarmos por ela. Pegue a corda, Tommy.

Enquanto Tommy trabalhava com a corda por cima e em volta de uma prateleira saliente de alvenaria, o sr. Haskins voltou a sua plena atenção para mim. Por um momento terrível, achei que ele me mandaria embora. Mas eu era parte do seu público.

— Sarcófago — falou. — Sarcófago. Eis uma palavra rara para você. Aposto que não sabe o que significa, sabe, senhorita?

— Vem de duas palavras gregas e significa “devorador de carne” — eu disse. — Os gregos antigos costumavam fazer seus sarcófagos com uma pedra especial trazida de Assos, na Turquia, pois diziam que essa pedra consumia o corpo inteiro, com exceção dos dentes, em quarenta dias.

Embora eu não fizesse isso com frequência, ofereci uma pequena oração de graças à minha irmã Dafi, que lera para mim esse fascinante fragmento de um volume negro-caixão-de-defunto de uma enciclopédia, na biblioteca de Buckshaw.

— Arrá! — o sr. Haskins soltou, como se soubesse disso o tempo todo. — Bem, aí temos então, direto de uma pequena fonte abalizada.

Antes que eu pudesse protestar contra o que tomei por um insulto, ele deu um safanão violento na corda. Nada aconteceu.

— Dê uma mão, Norman. Tommy, dê uma empurradinha de leve na outra ponta. Vamos ver se conseguimos soltá-la.

Entretanto, a despeito de todo aquele puxa e empurra, a pedra não cedeu.

— Parece que está mesmo presa — o vigário observou.

— Presa não é a palavra — disse o sr. Haskins. — Está grudada como uma maldita...

— Como uma craca, senhor Haskins, como uma craca — o vigário completou, encostando o indicador nos lábios e inclinando a cabeça quase imperceptivelmente na minha direção.

— Alguma coisa a está prendendo. Vamos dar uma olhada. — O sr. Haskins largou a ponta da corda e arrancou a lanterna da mão de Tommy. Segurando-a quase pela lente, encostou a cara na fenda. — Não adianta — anunciou por fim. — Preciso de uma abertura maior.

— Deixe-me tentar — eu falei, tirando a lanterna das mãos dele. — A minha cabeça é menor que a sua. Eu direi o que consigo ver.

Todos ficaram tão atônitos, acho, que nenhum deles tentou me impedir.

Minha cabeça passou facilmente pela fenda e, como uma contorcionista, manobrei a luz por cima do meu cocoruto até que ela iluminasse o interior da tumba. Uma corrente de ar frio e úmido roçou o meu rosto, e eu encolhi o nariz diante do bafo penetrante e salobro de antiga decomposição. Eu estava olhando para dentro de uma pequena câmara de pedra com uns dois metros de comprimento por um de largura. A primeira coisa que distingui foi uma mão humana, os dedos ressequidos apertados firmemente sobre um pedaço de tubo de vidro quebrado. E, então, a face — uma lívida máscara inumana com enormes, arregalados olhos de acetato e um focinho porcino de borracha. Abaixo, havia um franzido branco que não cobria totalmente os vasos sanguíneos negros como piche do pescoço e da garganta. Acima dos olhos, uma massa de cabelos dourados e cacheados de menino de coro. Definitivamente, aquele não era o corpo de São Tancredo.

Apaguei a lanterna, tirei a cabeça da fenda e me voltei lentamente para o vigário.

— Eu acho que encontramos o senhor Collicutt.


4

FOI O CABELO, É CLARO, que o denunciou. Quantos domingos não vi Felinha galopando pela nave para ser a primeira a chegar ao banco da igreja, de onde ela teria a melhor visão dos cachos dourados do sr. Collicutt?

Empoleirado no banco do órgão, na sua sobrepeliz branca, a cabeça iluminada pela luz de um raio de sol matinal que se infiltrava pelo vitral, ele frequentemente parecia um querubim de Botticelli trazido à vida.

E sabia disso.

Lembrei-me do modo como jogava a cabeça para trás e passava rapidamente todos os dez dedos pelos cachos luminosos antes de fazê-los atacar as teclas para o primeiro acorde do hino. Felinha me dissera uma vez que o sr. Collicutt lhe lembrava Franz Liszt. Não fazia muito tempo, ela contara que costumavam se encontrar no estojo de recordações de damas antigas, havia pouco falecidas, os restos de pontas malcheirosas de charutos que tinham sido fumados em outro século por Liszt. Eu pretendia dar uma espiada nas coisas de Felinha para ver se ela escondia as ponteiras de cortiça dos cigarros Craven A do sr. Collicutt, mas acabara me esquecendo.

Tudo isso passou muito depressa pela minha cabeça enquanto eu esperava que os homens alargassem a abertura e confirmassem a minha descoberta.

Não que eu não estivesse chocada, é claro.

Teria o sr. Collicutt morrido porque eu havia contado os cadáveres nos dedos? Teria ele se tornado uma vítima de alguma magia negra indecifrável?

Pare imediatamente, Flavia!, ralhei comigo mesma. Claro que o homem já estava morto muito, muito antes de você tentar o Destino a lhe produzir mais um cadáver.

Fato era que o homem estava morto. Não havia como escapar disso.

Enquanto uma parte de mim queria chorar pela morte do Príncipe Encantado de Cabelos Dourados de Felinha, outra parte — uma parte que eu não era capaz de entender muito bem — despertava ansiosa de um sono profundo. Eu estava dividida entre aversão e prazer — como quem prova vinagre e açúcar ao mesmo tempo.

Mas o prazer, em tais casos, sempre vence. Facilmente. Uma parte oculta de mim voltava à vida.

Enquanto isso, os trabalhadores tinham trazido algumas tábuas reforçadas para mover a pesada pedra para frente, que também serviriam de rampa improvisada pela qual ela poderia ser arrastada até o chão.

— Devagar agora... devagar — dizia o sr. Haskins. — Nós não queremos esmagá-lo, queremos?

O sr. Haskins se sentia completamente à vontade com cadáveres.

Por fim, depois de muitos rangidos e um par de blasfêmias, a pedra foi removida, e o conteúdo da câmara tornou-se claramente visível.

À luz tremeluzente, a máscara de gás afivelada ao rosto do cadáver reluzia de maneira horrível, efeito de que só borracha molhada é capaz.

— Oh, Deus — disse o vigário. — Oh, Deus. É melhor eu ligar para o policial Linnet.

— Eu diria que não há muita pressa — o sr. Haskins falou —, a julgar pelo cheiro.

Palavras cruéis mas verdadeiras. Eu conhecia em detalhe, pelas minhas próprias pesquisas químicas, o processo pelo qual o corpo humano, após a morte, digere a si mesmo, e o sr. Collicutt estava em estado avançado de decomposição. Tommy e Norman já tinham sacado seus lenços e os apertado contra os respectivos narizes.

— Mas, antes de fazer isso — disse o vigário —, eu pediria a cada um de vocês que se juntasse a mim em uma breve oração por este tão... ahn, tão desafortunado indivíduo.

Inclinamos nossas cabeças.

— Ó Senhor, receba a alma deste seu servo fiel, que encontrou enorme infortúnio sozinho e em um lugar estranho.

Um lugar estranho, de fato! Mas eu não disse isso...

— E, talvez, também estivesse com medo — acrescentou o vigário depois de pensar por alguns instantes, como se procurasse as palavras apropriadas. — Conceda a ele, nós suplicamos, a paz perene e a vida eterna. Amém.

— Amém — falei baixinho. Quase fiz o sinal da cruz, porém contive o impulso. Embora a nossa família frequentasse a igreja de São Tancredo porque o vigário era um dos amigos mais estimados do pai, nós, os De Luce, como Dafi gostava de dizer, éramos católicos havia tanto tempo que, às vezes, nos referíamos a São Pedro como “tio Pepê” e à Santa Virgem Maria como “prima Mari”.

— Flavia, querida — disse o vigário —, eu me sentiria em dívida com você para sempre se subisse comigo e me ajudasse a lidar com as autoridades. Você é tão melhor do que eu nesse tipo de coisa.

Era verdade. Houvera muitas ocasiões no passado em que eu indicara a direção correta a uma polícia irremediavelmente irresoluta.

— Será um prazer, senhor Richardson.

Por ora, eu já tinha visto tudo o que queria.

* * *

Lá fora, havia chovido, e o vigário e eu aguardamos lado a lado no vestíbulo, estranhamente mudos pelo que acabáramos de testemunhar.

Os policiais, quando chegaram no seu familiar Vauxhall azul, ostentavam a sua melhor cara de nada. O inspetor Hewitt me dirigiu um seco aceno de cabeça e uma fração de sorriso ao descer do carro. Os sargentos-detetives Woolmer e Graves eram os mesmos de sempre: Woolmer parecia um grande e rabugento urso dançante (o Vauxhall gemeu audivelmente de alívio quando ele desceu), enquanto Graves, jovem, loiro e com covinhas, sorria para mim de orelha a orelha. Como eu já disse, o sargento Graves tinha uma forte queda por Felinha, e, de várias maneiras, eu esperava que fosse ele o homem a conduzir a divina Ophelia (Há-há-há! Me perdoem se eu der risada!) ao altar. Mais um detetive na família nos daria algum assunto para conversar durante as longas noites de inverno, pensei. Tripas, sangue e chá Tetley’s.

O sargento Woolmer mal olhou para mim enquanto tirava seu equipamento de fotografia do porta-malas do carro. Desviei o olhar e dei um aceno amigável para o sargento Graves, que carregava uma valise familiar.

— Então, organizou as impressões digitais? — perguntei afavelmente, mostrando que me lembrava da sua especialidade.

O sargento corou, apesar de eu ser apenas irmã de Felinha.

Como Papai Noel no poema norte-americano, eles não disseram nem uma palavra, apenas partiram diretamente para o seu trabalho. Em fila, adentraram o vestíbulo e se dirigiram à cripta, deixando-nos, eu e o vigário, sozinhos, ao lado da porta.

— Há quanto tempo ele desapareceu? O senhor Collicutt, quero dizer.

— Desapareceu?

A despeito de ter telefonado para a polícia, o vigário ainda parecia um tanto atordoado.

— Nós realmente não pensamos nele como “desaparecido”. Partido, eu diria. Oh, Não! Essa também não é a palavra exata.

Eu não disse nada: uma ferramenta útil que eu acrescentara aos meus recursos após observar de perto o inspetor Hewitt em ação.

— A senhora Battle disse que ele desceu para o desjejum naquela última manhã como sempre fazia. Comeu apenas uma fatia de torrada. Ele sempre cuidava muito da aparência. Precisava manter a cintura em forma para o trabalho com o pedal. Oh, céus, estou mexericando.

— Quando foi isso mesmo? — perguntei, como se soubesse o tempo todo mas tivesse esquecido.

— Na terça-feira depois da Quinquagésima. Se estou bem lembrado.

— Cerca de seis semanas atrás — falei depois de fazer uma rápida contagem regressiva de cabeça.

— Sim. Terça-Feira Gorda.

— Dia das Panquecas — eu disse, engolindo em seco ao me lembrar por um instante da travessa de pneus murchos e borrachentos que a sra. Mullet colocara na nossa frente naquela desafortunada manhã.

— De fato. O dia anterior à Quarta-Feira de Cinzas. O senhor Collicutt deveria ter buscado a senhorita Tanty e a conduzido até Hinley, para o seu exame oftalmológico.

A srta. Tanty, que cantava no coro, era uma professora de música aposentada cujo tremendo volume físico, além do par de óculos de potência total, lhe dava a aparência de um ônibus velho com enormes faróis de acetileno focados em uma estreita estradinha rural.

Era dela a voz que sempre se podia ouvir acima do restante do coro durante o Magnificat: “Minha alma ‘mognifica’ o Senhor”.

Tudo em relação à srta. Tandy era “mognificado”.

Tanto a gloriosa voz de soprano quanto o olhar de fundo de garrafa eram capazes de fazer arrepios gélidos correrem pela sua espinha.

— Quando ele não apareceu às nove e quinze — prosseguiu o vigário —, ela ligou para a senhora Battle, e Florence, a sobrinha, lhe contou que ele tinha saído pela porta da frente às oito e meia em ponto.

— Ninguém notificou o desaparecimento dele?

— Não. Este é o problema. Crispin... O senhor Collicutt, quero dizer, estava tão envolvido em diversos festivais de música, que raramente ficava em casa durante a semana. “Você vai economizar muito em salmão salgado e repolho”, ele disse à senhora Battle quando ela o aceitou como pensionista. Então, é claro, houve aquele estranho comentário que ele fez sobre... Mas não devo falar mais nada. Cynthia vive me dizendo que eu tenho uma propensão a tagarelar, e acredito que ela esteja certa.

Cynthia Richardson, a esposa do vigário, era o equivalente à varíola em Bishop’s Lacey, mas não permiti que esse pensamento me distraísse.

— Quem era o homem de cabelos brancos? — perguntei, mudando bruscamente de assunto. — Aquele com quem você estava falando no vestíbulo?

Uma sombra perpassou o rosto do vigário.

— Marmaduke Parr — disse ele. — Do Escritório Diocesano. Ele trabalha para o bispo como...

— Assassino de aluguel! — disparei. Eu aprendera a respeito de assassinos de aluguel ouvindo o programa do detetive Philip Odell no rádio: “O caso de Copper Cupcake”.

— ... secretário — completou o vigário, tentando não sorrir com a minha piadinha. — Muito embora eu deva admitir que Marmaduke é um indivíduo um tanto... como direi? Determinado.

— Ele não quer que o túmulo de São Tancredo seja aberto, quer? Ele mandou você parar.

Entretanto, antes que o vigário pudesse responder, o policial Linnet, o “braço da lei” de Bishop’s Lacey, chegou pedalando pelo caminho e saltou da sua bicicleta exatamente à nossa frente, como um xerife de cinema desmontando de seu cavalo. Ele encostou a bicicleta em um teixo, abriu a sua caderneta e lambeu a ponta do lápis.

Lá vamos nós outra vez, pensei.

O policial começou perguntando a nós dois o nosso nome e endereço completos. Embora ele os soubesse muito bem, era importante, por causa dos seus superiores, que tivesse uma caderneta sem rasuras — ainda que escrita a lápis.

— Fiquem aqui, por favor — falou, desabotoando o bolso do peito do uniforme e enfiando nele a caderneta. Acenou um indicador oficial para nós e desapareceu no vestíbulo.

— Pobre Crispin — disse o vigário depois de um longo tempo, como se estivesse pensando em voz alta. — Pobre Crispin. E pobre Alberta Moon. Ela vai ficar devastada. Simplesmente devastada.

— Alberta Moon? — perguntei. — A professora de música em Santa Agatha?

Eu certa vez ouvira a srta. Moon tocar uma sonata de Schubert em um concerto na aldeia e devo dizer que ela não era páreo para Felinha.

O vigário estava em meio a um triste balançar de cabeça, quando o policial Linnet reapareceu à porta.

— Lá embaixo — ordenou ele, sacudindo o polegar em direção ao chão como um imperador romano dando as más novas a um gladiador derrotado. — O inspetor Hewitt gostaria de dizer uma palavra. Na cripta.

O inspetor tinha o queixo enfiado na mão, com o dedo indicador estendido ao longo da bochecha. À luz pálida da cripta, ele se parecia muito com John Mills, pensei (mas jamais diria isso na cara dele).

Os restos macabros do sr. Collicutt eram iluminados a intervalos de poucos segundos pelos clarões cegantes da câmera do sargento Woolmer.

— Quem descobriu o corpo? — perguntou o inspetor, o que me pareceu uma pergunta razoável para começar.

— Ahn... Flavia, aqui — disse o vigário, pousando uma mão protetora sobre o meu ombro. — Quero dizer, a senhorita De Luce.

— Eu já deveria saber — o inspetor falou.

Então, o milagre aconteceu. Enquanto o vigário olhava constrangido para os restos do sr. Collicutt, o inspetor lentamente fechou e abriu o seu olho direito de modo que só eu conseguisse ver.

Ele tinha piscado para mim! O inspetor Hewitt tinha piscado para mim!

Em algum lugar, sinos de igreja soaram. Em algum lugar, canhões dispararam salvas. Em algum lugar, fogos de artifício explodiram loucamente em um céu escurecido.

Mas eu não ouvi nada disso: os meus ouvidos estavam entupidos demais com o rugir do meu próprio sangue.

O inspetor Hewitt realmente piscara para mim!

Mas espere... Agora ele estava esfregando o olho, puxando para baixo a pálpebra inferior, examinando alguma coisa — um grãozinho de areia talvez — na ponta do dedo...

Maldição! Nada mais era que um cisco de poeira da cripta, ou então uma partícula de algum vetusto cidadão de Bishop’s Lacey... talvez de um dos meus próprios ancestrais.

Dirigi-lhe um olhar de preocupação profissional e ofereci o meu lenço.

— Obrigado — disse ele. — Eu tenho o meu próprio. Agora, então — prosseguiu como se nada tivesse acontecido —, descreva-me, desde o começo, o que se deu aqui, do momento em que você chegou à igreja.

E foi o que fiz: contei-lhe da van no pátio da igreja, do vigário e Marmaduke Parr no vestíbulo, do sr. Haskins na torre, de George Battle e Norman e Tommy e o outro trabalhador na cripta. Contei-lhe da remoção da pedra com uma alavanca e do que eu vira atrás dela. O único detalhe que omiti foi o baú de madeira sobre o qual eu havia visto o sr. Haskins pairando.

Afinal, eu tinha de deixar alguma coisa para o pobre homem descobrir sozinho.

— Obrigado — disse o inspetor depois que terminei. — Se houver mais alguma coisa, enviarei alguém a Buckshaw.

Apenas alguns meses antes, eu teria cuspido e saído pisando duro diante de uma dispensa tão abrupta. Mas as coisas tinham mudado. Eu viera a conhecer, mesmo que apenas ligeiramente, a esposa do inspetor, Antigone, e suas pequenas tragédias pessoais.

— Está certo, então — falei. — Até mais!

Pareceu-me a escolha perfeita de palavras.

Gladys me aguardava no meio das plantas. Ela deu um pequeno gemido de prazer quando agarrei o seu guidão e a conduzi em direção à estrada.

Mal era hora do desjejum quando partimos para casa, eu assobiando “Terra de esperança e glória” e Gladys marcando alegremente o ritmo com sua corrente matraqueante.


5

FOI SOMENTE QUANDO EU JÁ ESTAVA quase em casa — de fato, não antes de eu passar velozmente pelos grandes grifos de pedra que guardavam os Portões Mulford — que percebi ter deixado passarem duas coisas muito importantes. A primeira era o morcego e como ele conseguira entrar na igreja. A segunda era isto: se a tumba da cripta estava ocupada pelos restos mortais do sr. Collicutt, então onde diabos se achavam os ossos de São Tancredo?

Quando Buckshaw assomou no final da longa avenida de castanheiras, me dei conta, chocada, de que estava totalmente encharcada. Lenta e quase imperceptivelmente, a névoa matinal, como ela adora fazer na Inglaterra, se transformara em uma inequívoca garoa. Eu deixara a minha capa de chuva na torre da igreja, e agora o meu cardigã, a minha blusa, a minha saia e as minhas meias grudavam no meu corpo como esponjas de banho saturadas.

Gladys também estava recoberta de lama e outras partículas de sujeira da estrada.

— Nós precisamos de um banho, velha amiguinha — eu disse a ela conforme triturávamos o caminho de pedrisco da entrada.

O pai, Dafi e Felinha, eu sabia, ainda estariam à mesa do desjejum. Passar com Gladys pelo foyer estava fora de questão por causa da lama, e a entrada da cozinha, pelo menos a esta hora do dia, ficava bem debaixo do nariz da sra. Mullet.

Encostei um dedo nos lábios e, rolando Gladys silenciosamente para contornar a casa, ao longo do lado leste, encostei-a bem abaixo de uma das janelas do meu quarto.

— Espere aqui. Vou sondar o território — sussurrei.

Voltei rapidamente até a frente da casa e me insinuei silenciosamente no foyer. Eu não precisava ter me preocupado. A quietude usual da hora do desjejum pairava sobre a sala de jantar. O pai devia estar estudando atentamente o último periódico filatélico, e Dafi, a esta altura, estaria com o nariz enfiado em O monge, que Carl Pendracka lhe dera no Natal. Não pude deixar de pensar que ele provavelmente tinha algum motivo implícito nesse gesto. Estaria tentando ganhar o apoio dela para pedir a mão de Felinha? Ou seria Dafi a sua segunda escolha? Com treze anos, Dafi era jovem demais para namorar, mas os norte-americanos têm muito mais paciência que os ingleses, que, depois de seis anos de guerra, querem o mundo e o querem agora, ao menos de acordo com Clarence Mundy, que operava o único táxi de Bishop’s Lacey. Clarence confidenciara essa breve informação enquanto levava a sra. Mullet e eu para Hinley para trocar um fogareiro de cobre que eu arruinara com um experimento químico envolvendo a preservação de peles de rã.

— Noivas de guerra! — dissera ele. — Isto é tudo em que os norte-americanos pensam hoje em dia, fugir com uma noiva de guerra. Ora, se eles continuarem desse jeito, não vai sobrar nada para os rapazes trabalhadores daqui.

— É a bomba — respondera a sra. Mullet. — É o que diz o meu Alf. Todo mundo está com medo deles, já que eles têm a bomba.

— Arrrr... — Clarence resmungara antes de silenciar.

Subi pé ante pé a escadaria até a ala leste, onde ficavam localizados o meu laboratório e o meu quarto. Todos os aposentos de dormir de Buckshaw eram vastos ermos açoitados pelos ventos, mais adequados para atracação de dirigíveis do que para sonhar doces sonhos, e o meu era o mais remoto e desolador de todos.

Esta parte da casa havia sido, em grande medida, abandonada: sua imensidão sem aquecimento, seus pisos soltos, suas janelas desnudas, e suas eternas correntes de ar a tornavam o lugar perfeito para ser esquecido. Eu morava lá por escolha, em privacidade e paz.

Removi os lençóis da minha cama e, acrescentando a eles um par de velhas mantas de lã, improvisei rapidamente uma corda com uma grande laçada em uma das pontas.

Abri a janela e arriei a laçada até conseguir laçar o guidão de Gladys.

— Devagar agora... devagar! — sussurrei enquanto a puxava lentamente para cima pela parede externa e então para dentro. Em menos tempo do que alguém levaria para dizer “cianeto”, Gladys se achava encostada ao pé da minha cama, com o para-lama imundo e ainda tonta da subida, mas feliz de estar em casa — isto é, do lado de dentro.

Dei corda no gramofone, puxei da pilha de discos, sob a cama, uma gravação de “Assobiando enquanto trabalha” e pousei a agulha sobre os sulcos bem arranhados.

Com um balde de água que pegara no laboratório, enchi parcialmente a banheira de assento e esfreguei Gladys com uma bucha. Usei minha escova de dente para acessar os lugares mais difíceis.

Embora fosse muito coceguenta, Gladys tentou fingir que não era. Está aí uma fraqueza que as pessoas não gostam muito de anunciar. Eu ainda estremeço ao me lembrar que Felinha e Dafi me fizeram cócegas até eu começar a espumar pela boca.

— Aguente firme — falei. — São apenas cerdas de porco.

Eu a poli vigorosamente com a minha camisola de flanela até ela ficar razoavelmente reluzente.

— Lá, lá, lááá, lá, lá, lá — cantarolei enquanto o fazia e até consegui assobiar uma parte da melodia. Eu era o oitavo anão. Furtivo.

Feito o trabalho sujo, bafejei sobre as partes niqueladas, dei um polimento extra e então um passo atrás para admirar a minha obra.

— Você está passável.

Lavei os lençóis em um balde de água limpa, torci-os e os estendi em uma longa série de alças que iam da moldura de um quadro de Joseph Priestley até o candelabro.

Depois de um rápido banho de esponja na pia, vesti roupas limpas, escovei o cabelo e os dentes e desci para o desjejum.

— Bom dia, todo mundo — falei em uma voz sonolenta e esfreguei os olhos.

Eu não devia ter me preocupado. Felinha olhava fixamente para a sua xícara de chá, admirando o próprio reflexo. Ela insistia em tomá-lo puro, “sem creme, obrigada”, para se ver melhor na trêmula superfície líquida. No momento, estava soprando gentilmente o chá para ver como ficava com os cabelos ondulados.

Dafi olhava para as páginas do seu livro, aberto, apoiado sobre um porta-torradas, e limpava os dedos melados na saia antes de virar cada página.

Ergui a tampa de uma terrina e examinei o conteúdo um tanto assustador: alguns pedaços de toucinho queimado, um par de arenques defumados, uma pequena pilha de restos de omelete coagulados e o que parecia ser um maço de jalapas cozidas. Estendi a mão para o último pedaço de torrada fria.

— Ponha um pouco de geleia de pastinacas em cima — disse a sra. Mullet ao entrar apressadamente na sala. — A irmã de Alf as cultiva em uma horta arrendada. “Não há nada melhor que pastinacas para melhorar sua condição respiratória”, costuma dizer Alf.

— Eu não quero pelo no meu peito — falei. — Além disso, Dafi tem mais que suficiente para todos nós.

Dafi fez um gesto rude com os dedos.

— Então, quando é o casamento? — perguntei em uma voz animada.

A cabeça de Felinha se ergueu como a de uma porca ao ouvir o som do balde de lavagem. O uivo começou em algum lugar no fundo da sua garganta, subiu e então saiu, como uma sirene de ataque aéreo em perigo:

— Paaaaa-aaaaaa-aaaa-iiiiii!

Por fim, o uivo esmoreceu e terminou em lágrimas. Fiquei fascinada com a capacidade da minha irmã de transformar-se de Rainha da Saúde em bruxa velha em menos tempo do que leva um piscar de olhos.

O pai fechou a sua revista, tirou os óculos, colocou-os de volta e fixou-me com aquele paralisante olhar De Luce, do mais frio azul.

— De onde você tirou essa informação, Flavia? — ele indagou em uma voz antártica.

— Ela fica escutando atrás das portas! — disse Felinha. — Ela está sempre escutando atrás das portas!

— Ou nos dutos de ar quente — acrescentou Dafi, abandonando O monge por um momento.

— Bem? — perguntou o pai, a voz como um sincelo.

— Eu apenas supus — falei, pensando mais depressa que nunca — que, agora que ela tem dezoito anos...

O pai sempre dissera que nenhuma filha sua se casaria antes de ter no mínimo dezoito anos, e mesmo então...

O décimo oitavo aniversário de Felinha tinha sido pouco tempo antes, em janeiro.

Como eu poderia esquecer?

Para celebrar a feliz ocasião, eu planejara um pequeno espetáculo de fogos de artifício dentro de casa: apenas umas bombinhas, de fato, e um par de foguetes alegremente coloridos. Eu enviara convites por escrito para todo mundo da casa e abraçara a mim mesma em secreto deleite cada vez que uma pessoa pegava a convocação da salva do correio, no foyer, abria-a e então a punha de lado sem dizer palavra. Os convites foram complementados com uma série de cartazes feitos à mão e afixados estrategicamente pela casa. No grande dia, preparei uma fileira de cinco cadeiras de madeira: uma para o pai, uma para Felinha, uma para Dafi e mais um par no fim, para a sra. Mullet e Dogger.

A minha química estava preparada. A hora marcada havia chegado e passado.

— Eles não vêm, Dogger — eu dissera depois de vinte minutos.

— Devo chamá-los, senhorita Flavia? — perguntara Dogger.

Ele se achava calmamente sentado em uma das cadeiras, com uma garrafa de sifão nas mãos para a eventualidade de pequenos incêndios.

— Não! — eu falara, alto demais.

— Talvez eles tenham esquecido.

— Não, eles não esqueceram. Eles não se importam.

— Você pode apresentar o espetáculo para mim — dissera Dogger depois de algum tempo. — Eu sempre gostei de um belo espetáculo de pirotecnia dentro de casa.

— Não! — eu gritara. — Está cancelado.

Quão amargamente, tempos depois, eu iria me arrepender daquelas minhas palavras.

— Bem? — o pai novamente perguntou, trazendo-me de volta ao presente.

— Bem, Felinha tem dezoito anos agora — prossegui —, e é natural que... que os pensamentos dela se voltem para o... Sagrado Matrimônio! — concluí triunfantemente.

Atrás do seu livro, Dafi deixou escapar uma risadinha abafada de escárnio.

— Não era para ninguém saber — gemeu Felinha, puxando os cabelos de modo dramático. — Especialmente você! Droga, inferno! Agora eu estarei na boca da aldeia inteira.

— Ophelia... — disse o pai, não levando aquilo realmente a sério. — Bem, Flavia, é verdade! Nós mesmos pretendíamos anunciar na Páscoa. A não ser encostando as orelhas nas portas, o único modo de você ter ouvido isso seria da boca do vigário... Foi isso! O vigário contou! Eu a vi se esquivando pelo foyer uma hora atrás, e não me diga que não fez isso. Você estava na igreja e conseguiu tirar essa informação do vigário, não foi? Eu devia saber. Eu devia saber! Ophelia...

Depois que a minha irmã se dava corda, era melhor você se sentar numa cadeira. Eu certamente não queria que a culpa recaísse sobre o reverendo Richardson. A vida dele era suficientemente difícil, com Cynthia e tudo o mais.

— Sua bestinha! — disse Felinha. — Sua bestinha imunda!

O pai se levantou da mesa e saiu da sala.

Dafi, que adorava uma boa discussão mas detestava brigas, saiu em seguida.

Fiquei sozinha com Felinha.

Continuei sentada por um momento, curtindo a sua cara vermelha e os seus esbugalhados olhos azuis. Não era sempre que ela se deixava cair aos pedaços daquele jeito. Embora quisesse lhe dar o troco, não queria ser eu a lhe dar as novas sobre o desafortunado sr. Collicutt.

Bem, na verdade, eu queria — mas não queria ser culpada por arruinar o seu mundo.

— Você tem toda a razão — eu me ouvi dizendo. — Eu estava na igreja esta manhã. Saí cedo para fazer algumas orações particulares e por mero acaso me encontrava lá quando o corpo do senhor Collicutt foi descoberto.

Isto é para ela aprender a não me acusar de ouvir atrás das portas, pensei. O sangue se esvaiu do rosto de Felinha. Eu soube instantaneamente que a minha irmã não era a assassina. Ninguém é capaz de fingir palidez.

— O senhor Collicutt? Corpo?

Ela se pôs em pé de um pulo, derrubando o bule de chá, que se espatifou no chão.

— Receio que sim — falei. — Na cripta. Usando uma máscara de gás. Muito esquisito.

Soltando um uivo verdadeiramente aterrorizador, Felinha saiu correndo da sala.

Eu a segui escada acima.

— Desculpe, Felinha — chamei gentilmente enquanto batia à sua porta. — Apenas me escapou.

Os soluços dela eram abafados pelos painéis de madeira. Quanto tempo Felinha seria capaz de resistir antes de implorar pelos detalhes sangrentos? Eu teria de esperar.

— Eu sei que você está aborrecida, mas pense em como será para Alberta Moon receber essa notícia.

Um longo, entrecortado suspiro terminou de repente em um soluço. Ouvi o ruído de sapatos no tapete e o de uma chave girando. A porta se abriu, e lá estava Felinha, molhada e devastada.

— Alberta Moon? — ela perguntou, a mão trêmula na frente da boca.

Assenti tristemente e falei:

— Melhor me deixar entrar. É uma longa história.

Felinha jogou-se de cara na cama.

— Conte-me tudo. Comece do início.

Estranhamente, ela usara quase as mesmas palavras que o inspetor Hewitt, e eu contei a ela, como havia contado a ele, a minha emocionante história, deixando de fora apenas aquelas coisas essenciais que queria guardar para mim.

— Uma máscara de gás — Felinha soluçou quando terminei. — Por que, em nome dos Céus, ele estaria usando uma máscara de gás?

Encolhi os ombros.

— Não sei.

Na verdade, eu sabia sim — ou pelo menos tinha uma ideia razoavelmente boa. Nos últimos oito ou nove meses, eu passara um bom número de horas estudando as páginas de Princípios e prática de jurisprudência legal de Taylor, cujos volumes ilustrados com fotografias eu afortunadamente encontrara escondidos em uma alta prateleira da Biblioteca Livre de Bishop’s Lacey. Por um notável golpe de sorte, eles eram muito similares em tamanho aos livros de Enid Blyton A aventura na ilha, A aventura no castelo e A aventura no mar, e, por meio de uma astuta manipulação das sobrecapas, consegui estudá-los atentamente pelo tempo que quis, em um canto afastado da sala de leitura.

— Meu Deus, Flavia! — dissera a srta. Pickery, a bibliotecária-chefe. — Você é realmente um ratinho de biblioteca, não é?

Se ela soubesse o quanto...

— Talvez tenha ocorrido um vazamento de gás — disse Felinha, a voz abafada pela manta. — Talvez ele estivesse tentando escapar das emanações.

— Talvez — falei de modo evasivo.

Muito embora um vazamento de monóxido de carbono no monstro de ferro do porão da igreja fosse uma possibilidade a considerar, havia um problema: uma vez que o gás é inodoro, incolor e insípido, como o sr. Collicutt teria se conscientizado da sua presença?

E parecia improvável que, passadas seis semanas, ainda houvesse vestígios mensuráveis da coisa no que quer que restara do seu sangue. Em casos de envenenamento por monóxido de carbono — e eu tinha boas razões para acreditar nisso —, o gás (CO) liga-se à hemoglobina do sangue, afastando o oxigênio que ela deveria transportar para as células do corpo, e a vítima morre de simples asfixia. Enquanto esta permanecesse viva (uma vez arrastada para fora da atmosfera gasosa, é claro), o monóxido de carbono desapareceria bem depressa do sangue, cujo oxigênio seria reposto pela respiração normal.

Já os cadáveres são outro assunto inteiramente diferente. Com a respiração interrompida, o monóxido de carbono poderia permanecer no corpo por um tempo considerável. É um fato bastante conhecido que o monóxido pode ser detectado nos gases emanados por um cadáver de meses.

Sem um acesso fácil ao sangue do defunto sr. Collicutt, ou aos seus órgãos internos, seria quase impossível ter certeza. Mesmo que houvesse uma poça de sangue oculta embaixo do corpo, esse sangue estaria reoxigenado haveria muito tempo pela exposição ao ar da cripta, por mais viciado que este fosse.

Pensei no momento em que eu enfiara a cara naquele abismo pela primeira vez — na onda fria e pungente de decomposição que invadira as minhas narinas.

— Eureca! — bradei. Não consegui me conter.

— O que foi? — perguntou Felinha. Ela também não conseguiu se conter.

— O morcego no órgão! — falei excitadamente. — De algum modo, ele entrou na igreja. Aposto que foi por uma janela quebrada! O que você acha, Felinha?

Como desculpa, essa era tão amanhecida como a torrada de ontem, mas foi o melhor que consegui inventar de supetão. Ainda bem que Felinha não podia ler a minha mente, pois era isto o que eu estava pensando: a corrente fria de ar que saíra do que eu pensava ser uma cripta fechada me fez lembrar do que Dafi me contara sobre o verso na tumba de Cassandra Cottlestone:

Eu faleci

E agora jazo

Às portas da igreja

Para todo o sempre

Rezem para que o meo corpo durma

E a mia alma desperte.

— Ela jaz às portas da igreja — dissera Dafi — porque foi uma suicida. É por isso que não foi enterrada com o resto dos Cottlestone, na cripta. Por direito, ela não devia sequer ter sido enterrada no pátio da igreja, mas seu pai era um magistrado e conseguiu mover céus e terra, digamos assim. — Pensei por um momento no pobre sr. Twining, o velho mestre-escola do pai, que jazia em um lote de terra comum do outro lado da margem do rio, atrás de São Tancredo. O pai dele, evidentemente, não tinha sido um magistrado. — A senhora Cottlestone, no entanto — prosseguira Dafi —, conseguiu que se cavasse um túnel entre a tumba de Cassandra e a cripta, para que a filha, ou pelo menos a alma da filha, pudesse visitar os pais sempre que desejasse.

— Você está inventando isso, Dafi!

— Não, não estou. Está no terceiro volume de A história das antiguidades de Bishop’s Lacey. Pode consultar você mesma.

— Um túnel? Realmente?

— É o que dizem. Eu ouvi rumores...

— Sim? Conte-me, Dafi!

— Talvez eu não deva. Você sabe como o pai fica quando desconfia de que estamos enchendo a sua cabeça de espectros.

— Não vou contar a ele. Por favor, Dafi, eu juro!

— Bem...

— Por favooor! Juro pela minha vida, por todos os santos do céu!

— Está bem, então. Mas depois não diga que eu não avisei. O senhor Haskins me contou que, uma vez, quando cavava uma cova ao lado do túmulo de Cassandra Cottlestone, a beirada cedeu, e a sua pá caiu no buraco. Ele viu que não conseguiria alcançá-la com o braço e então se arrastou para dentro de cabeça... Você tem certeza de que quer continuar ouvindo isto?

Eu fingira morder as juntas dos meus dedos.

— No fundo da cova, ao lado da pá, havia um pé humano mumificado.

— Isso é impossível! Ele não poderia ter resistido por duzentos anos!

— O senhor Haskins disse que poderia, sob certas condições. Alguma coisa a ver com o solo.

É claro! Adipocera! Cera de túmulo! Como eu pude ter me esquecido disso?

Quando enterrado em um lugar úmido, um corpo humano pode ser maravilhosamente transformado. A amônia gerada pela decomposição — em que os tecidos se tornam ácidos palmítico, oleico e esteárico —, trabalhando em conjunto com o sódio e o potássio do solo da cova, pode transformar um corpo em um pedaço duro de sabão de lavar roupa. Era uma simples questão de química.

Dafi abaixara a voz e prosseguira:

— Ele disse que, não muito antes disso, havia pulverizado com pó vermelho de tijolo o piso da cripta, para verificar se os ratos da margem do rio estavam encontrando um caminho para dentro da igreja.

Eu estremecera. Fazia menos de um ano desde que me vira trancada no galpão do poço à margem do rio, e eu sabia que os ratos não eram produto da imaginação da minha irmã.

Dafi arregalara os olhos; sua voz já não passava de um sussurro:

— E quer saber de uma coisa?

— O quê? — Não consegui evitar; eu também estava sussurrando.

— A sola do pé estava tingida de vermelho, como se ele tivesse pisado em...

— Cassandra Cottlestone! — eu quase gritara, e os cabelos da minha nuca ficaram em pé como se uma brisa fria os tivesse soprado de repente. — Ela estava andando...

— Exatamente — dissera Dafi.

— Eu não acredito!

Dafi encolhera os ombros.

— E o que me importa se você acredita? Eu lhe dei um fato, e você me deu uma dor de cabeça. Agora, caia fora.

Eu tinha caído fora.

Enquanto eu estava perdida em minhas recordações, os soluços de Felinha se acalmaram; ela olhava sombriamente pela janela agora.

— Quem é a vítima? — perguntei, numa tentativa de animá-la.

— Vítima?

— Você sabe, o pobre palerma que você vai arrastar até o altar.

— Oh — disse ela, jogando o cabelo para trás e, para minha surpresa, despejando a resposta sem que eu precisasse insistir: — Ned Cropper. Achei que você tivesse ouvido isso atrás das portas também.

— Ned? Mas você o despreza.

— De onde você tirou essa ideia? Um dia, Ned vai ser dono da Treze Patos. Ele vai tomá-la de Tully Stoker e reconstruir o lugar inteiro: bandas, dardos no terraço, críquete no gramado... Ele vai levar um pouco de ar fresco àquele buraco. Trazê-lo para o século vinte. Ned vai ser um milionário. Espere e verá.

— Você está confusa — falei.

— Ora, está bem. Se você precisa saber, é Carl. Ele implorou ao pai que me permitisse ser a senhora Pendracka, e o pai concordou... principalmente porque acredita que Carl seja da mesma linhagem do rei Artur. Ter um herdeiro com essas credenciais seria uma verdadeira honra para o pai.

— Ora, Felinha. Você está me gozando.

— Nós vamos morar na América, Carl vai me levar para ver Stan Musial rebater a bola para fora do estádio pelos Cardinals. É um time de beisebol.

— Na verdade, eu esperava que fosse o sargento Graves. Eu nem sei qual é o primeiro nome dele.

— Giles — disse Felinha, olhando sonhadora para as suas unhas. — Mas por que eu iria me casar com um policial? Eu não suportaria a ideia de viver com alguém que volta para casa todas as noites com um assassinato nas botas.

Felinha parecia estar superando muito bem a morte do pobre sr. Collicutt. Talvez houvesse uma gota de sangue De Luce nela, afinal.

— É Dieter — eu disse. — Foi ele quem lhe deu o anel de amizade no Natal.

— Dieter? Ele não tem nada a oferecer além de amor.

Quando ela tocou o anel, notei pela primeira vez que o usava no terceiro dedo da mão esquerda. Com a simples menção do nome dele, ela não conseguiu deixar de sorrir.

— É isso! — receio ter gritado. — É mesmo Dieter!

— Nós vamos começar do zero — disse Felinha, o rosto mais suave do que eu já tinha visto. — Dieter vai se preparar para ser um mestre-escola. Eu vou lecionar piano, e nós dois vamos ser felizes como esquilos no algodão.

Não pude deixar de me abraçar. Uhuuu!, era o que eu estava pensando.

— Aliás, onde está Dieter? — perguntei. — Faz tempo que não o vejo.

— Ele foi para Londres, para um exame especial. O pai que lhe arranjou. Se você deixar escapar uma palavra, eu te mato.

Alguma coisa na voz de Felinha me disse que ela falava sério.

— O seu segredo está seguro comigo — falei, desta vez com sinceridade.

— Vamos noivar por um ano, até eu completar dezenove — prosseguiu Felinha —, apenas para agradar ao pai. Depois disso, vai ser tudo chalés e aquilégias e saltos-mortais sempre que der vontade.

Felinha nunca dera um salto-mortal na vida, mas eu sabia o que ela queria dizer.

— Vou sentir sua falta, Felinha — falei lentamente, dando-me conta de que o meu coração estava em cada palavra.

— Oh, que coisa mais tocante. Você supera.


6

SEMPRE QUE ME SINTO UM POUCO triste, penso em cianeto, cuja cor azul reflete perfeitamente o meu estado de espírito. É agradável pensar que a mandioca, que cresce no Brasil, contém enormes quantidades da substância nas suas raízes de quinze quilos, a qual, infelizmente, é removida por completo na lavagem antes que o resíduo seja usado para fazer a tapioca nossa de cada dia.

As palavras de Felinha, muito embora eu tenha levado uma hora para admitir isto a mim mesma, me magoaram até a medula óssea. Entretanto, em vez de ficar matutando sobre isso, peguei na prateleira uma garrafa de cianeto de potássio.

Do lado de fora, a chuva havia passado, e um raio de luz cálida brilhava através da janela, fazendo que os cristais brancos faiscassem intensamente ao sol repentino.

O ingrediente seguinte era a estricnina, que, coincidentemente, vem de outra planta sul-americana e da qual o curare — veneno de flechas — é derivado.

Eu já mencionei a minha paixão por venenos, em particular pelo cianeto. Porém, para ser perfeitamente justa, devo admitir que também tenho uma fraqueza pela estricnina, não apenas pelo que ela é, mas também pelo que é capaz de se tornar. Trazidos à presença de oxigênio nascente, por exemplo, esses cristais brancos bastante comuns assumem de início uma rica cor azul e então passam sucessivamente ao roxo, violeta, carmesim, laranja e amarelo.

Um perfeito arco-íris de ruína!

Com cuidado, coloquei a estricnina ao lado do cianeto.

A seguir, veio o arsênico: em sua forma de pó, parecia um tanto banal ao lado de suas irmãs — lembrava mais fermento de bolo que qualquer outra coisa.

Em sua forma de óxido arsenioso, o arsênico é solúvel em água, mas não em álcool ou éter. O cianeto é solúvel em água alcalina e ácido clorídrico diluído, mas não em álcool. A estricnina é solúvel em água, álcool etílico ou clorofórmio, mas não em éter. Para se extraírem as diversas essências, cada veneno precisava ser marinado no próprio banho.

Com as janelas totalmente abertas para ventilação, sentei-me a fim de aguardar a uma hora necessária para que as três soluções se completassem. Soluções em mais de um dos sentidos da palavra!

— Cianeto... estricnina... arsênico — pronunciei os nomes em voz alta. Eu os chamava de meus “produtos químicos calmantes”.

Naturalmente, não fui a primeira a pensar em combinar diversos venenos em uma única bebida devastadora. Giulia Tofana, na Itália do século XVII, fizera uma atividade comercial da venda da sua Aqua Tofana, uma solução que continha, entre outros ingredientes, arsênico, chumbo, beladona e gordura de porco, para mais de seiscentas mulheres que desejavam ter os seus casamentos quimicamente dissolvidos. Dizia-se que a substância era límpida como água mineral, e o abade Gagliani chegara a afirmar que existiam poucas damas em Nápoles que não possuíam um pouco dela em um frasco secreto entre os seus perfumes.

Dizia-se também que havia dois papas entre as suas vítimas.

Como eu adoro História!

Finalmente, os meus frascos ficaram prontos, e eu cantarolei alegremente enquanto misturava as soluções e as decantava para uma garrafa especialmente pré-preparada.

Balancei a mão por cima da mistura que ainda fumegava.

— Eu a batizo Aqua Flavia.

Com uma das canetas de pena de aço do tio Tar, escrevi o nome recém-criado em uma etiqueta, que colei na garrafa.

— Aqua Flavia — repeti em voz alta, saboreando cada sílaba. Soava muito bem.

Eu acabara de criar um veneno que, em quantidade suficiente, podia deter um elefante selvagem instantaneamente. O que aquilo faria com uma irmã impertinente era quase horrível demais para contemplar.

Um aspecto bastante negligenciado dos venenos é a satisfação de pensar nos seus efeitos.

Como alguma sábia pessoa já disse certa vez, a vingança é um prato que se come frio. A razão para isso, claro, é que, enquanto você antegoza o evento, a vítima tem tempo de sobra para se preocupar sobre quando, onde e como você irá atacar.

Pode-se pensar, por exemplo, na expressão da vítima ao se dar conta de que o que ela está saboreando na linda taça é mais do que um simples suco de laranja.

Decidi esperar algum tempo.

Gladys aguardava pacientemente onde eu a deixara, com a sua recém-lavada libré reluzindo lindamente ao sol da manhã que vinha das janelas do meu quarto.

— Avaunt! — bradei. Era uma palavra arcaica que significava “cai fora!”, a qual eu aprendera quando Dafi lera em voz alta para nós A noiva de Lammermoor, em uma das nossas Noites Culturais compulsórias.

— Nós duas! — expliquei, embora não fosse realmente necessário.

Pulei para cima do seu selim, tomei impulso, pedalei para fora do quarto, cambaleei pelo corredor, fiz uma curva brusca para a esquerda e, momentos depois, estava no topo da escadaria leste.

Quando se está montado numa bicicleta, as escadarias parecem muito mais íngremes do que realmente são. Muito abaixo, no foyer, os ladrilhos brancos e pretos eram como campos semeados no inverno vistos do alto de uma montanha. Segurei firme as alavancas de freio e comecei a descer em um ângulo alarmante.

— Bumpeti-bumpeti-bumpeti-bumpeti! — exclamei, uma vez para cada degrau, os meus ossos chacoalhando deliciosamente.

Dogger se achava no fim da escada. Usava um avental de lona e segurava um par de botas do pai.

— Bom dia, senhorita Flavia — falou.

— Bom dia, Dogger. Ainda bem que você está aqui. Tenho uma pergunta. Como a gente faz para desenterrar um defunto?

Dogger ergueu uma sobrancelha, só um pouquinho.

— Você está pensando em desenterrar um defunto, senhorita?

— Não, não pessoalmente. O que quero saber é que tipo de permissões precisam ser obtidas, essas coisas.

— Se me lembro bem, primeiro, é preciso conseguir o consentimento da Igreja. Esse consentimento é conhecido como faculdade, acredito, a qual deve ser obtida com o Concílio Diocesano.

— O gabinete do bispo?

— Mais ou menos.

Então, era disso que o vigário falava. Uma faculdade já tinha sido concedida, ele contara a Marmaduke Parr, o homem do gabinete do bispo. De fato, o secretário do bispo.

— Não há como voltar atrás — dissera o vigário.

Parecia óbvio que uma faculdade fora concedida para a exumação de São Tancredo e depois, por alguma razão, revogada.

Quem, indaguei-me, teria se colocado no caminho? Que mal haveria em escavar os ossos de um santo que estava morto havia quinhentos anos?

— Você é o melhor, Dogger.

— Obrigado, senhorita.

Em sinal de respeito, desmontei de Gladys e empurrei-a discretamente através do foyer rumo à porta da frente.

No gramado, no limiar do pedrisco, achava-se uma banqueta de dobrar e, ao lado dela, uma porção de trapos e uma lata de graxa para bota. Fazia mais calor agora, e Dogger obviamente estivera trabalhando do lado de fora, ao ar fresco, desfrutando a luz do sol.

Eu estava prestes a partir para a igreja, quando vi um carro fazer a curva e entrar pelos Portões Mulford. Foi o formato estranho do veículo que me chamou a atenção: um tanto quadrado, como um carro funerário.

Se fosse embora agora, eu poderia perder alguma coisa. É melhor conter a minha impaciência e esperar, pensei.

Sentei-me na banqueta e estudei o veículo enquanto ele avançava pela avenida de castanheiras. Visto de frente, a julgar pelo alto e luxuoso radiador de um prateado reluzente, era certo se tratar de um Rolls-Royce Landau — em alguns aspectos, muito parecido com o velho Phantom II de Harriet que o pai mantinha guardado como uma espécie de santuário na obscuridade da cocheira: os mesmos para-lamas largos e os mesmos faróis gigantescos. Ainda assim, havia algo de diferente.

Quando o carro ficou de lado para mim, notei que a pintura era verde-maçã e que o teto tinha sido removido desde logo atrás do assento do motorista, como uma lata de sardinhas aberta. Onde antes existiam os bancos de trás, havia agora fileiras de cinzentas caixas de madeira, sem pintura, cada qual entulhada lado a lado de vasos de flores, todos abertos ao tempo, como uma galeria de assentos baratos no topo de uma jardineira de onde as mudas e as plantas medrantes podiam ver o mundo que passava.

Como o pai nos repreendia com frequência sobre os males de encarar as pessoas, eu instintivamente saquei o caderno e o lápis do bolso do meu cardigã e fingi estar escrevendo. Ouvi pneus cantarem em uma freada brusca. A porta se abriu e se fechou.

Arrisquei uma olhadela com o canto do olho e registrei um homem alto com capa de chuva bege.

— Olá. O que temos aqui? — ele falou, como se estivesse se referindo a uma estátua de cera no Museu Madame Tussauds.

Continuei rabiscando coisa nenhuma no meu caderno, resistindo ao ímpeto de esticar a língua no canto da boca.

— O que você está fazendo? — o homem perguntou, chegando perigosamente perto, como se quisesse espiar. Se existe uma coisa que eu desprezo é gente que fica olhando por cima do meu ombro.

— Anotando números de placas — falei, fechando bruscamente o caderno.

— Hum... — Ele olhou devagar para a paisagem vazia em volta. — Eu não imagino você adicionando muita coisa à sua coleção em um lugar tão remoto como este.

De um modo adequadamente cortante, eu disse:

— Bem, eu tenho a sua, não tenho?

Era verdade. GBX1066.

Ele me viu olhando para o Rolls.

— O que você acha da velha carroça? — perguntou. — Phantom II, 1928. O antigo proprietário, que precisava de alguma coisa para transportar confortavelmente um cavalo de corrida, meteu um serrote nele.

— Ele devia estar louco — falei. Não consegui evitar.

— Ela, na verdade. Sim, ela estava. Muito louca. Lady Densley.

— Da Biscoitos da Densley??

— A própria.

Enquanto eu pensava em como reagir, ele tirou do bolso um estojo de prata, abriu-o e me entregou um cartão.

— Meu nome é Sowerby. Adam Sowerby.

Dei uma olhada no pedacinho de cartolina. Pelo menos, era de bom gosto, impresso em pequenos tipos pretos.

Adam Tradescant Sowerby

Me., MSRHort – Membro da Sociedade Real de

Horticultura etc.

Arqueólogo de Flora

Sementes de Antiguidade — Mudas — Investigações

Tower Bridge, Londres E.1TN Royal 1066

Hum, pensei. Os mesmos quatro dígitos da placa. Este homem é bem astuto.

— Você deve ser Flavia de Luce — ele disse, e estendeu a mão. Eu estava prestes a devolver o cartão quando me dei conta de que a sua intenção era me cumprimentar. — O vigário me falou que eu provavelmente a encontraria aqui. Espero que você não se importe por eu ter entrado assim, sem pedir licença.

Claro! Era o amigo do vigário, o sr. Sowerby. O sr. Haskins perguntara sobre ele na cripta.

— Você tem alguma relação com a Sowerby & Filhos, os agentes funerários da aldeia?

— O atual encarregado é um primo em terceiro grau, acredito eu. Alguns dos Sowerby escolheram a Vida, outros, a Morte.

Segurei a mão dele e dei-lhe um apertão objetivo, olhando diretamente para os olhos azuis do homem.

— Sim, eu sou Flavia de Luce. Não me importo nem um pouco por você ter entrado sem pedir licença. Como posso ajudá-lo?

— Denwyn é um velho amigo — ele disse, sem soltar a minha mão. — Ele me falou que você muito provavelmente poderia responder às minhas perguntas.

Denwyn era o nome do vigário; mentalmente, eu o abençoei por ser tão franco.

— Farei o possível — respondi.

— Quando você olhou pela primeira vez para dentro daquela câmara, o que viu?

— Uma mão. Muito ressecada. Segurando um pedaço de tubo de vidro quebrado.

— Anéis?

— Não.

— Unhas?

— Limpas. Bem manicuradas. Embora suas mãos e roupas estivessem imundas.

— Muito bom. E depois, o que você viu?

— O rosto. Pelo menos, uma máscara de gás que cobria o rosto. Cabelo loiro-dourado. Linhas escuras na garganta.

— Mais alguma coisa?

— Não. O facho da lanterna era muito estreito.

— Excelente! Vejo que a sua reputação é muito merecida.

A minha reputação? O vigário devia ter contado a ele sobre as indicações corretas que eu fizera à polícia nos vários casos anteriores.

Senti-me um pouquinho envaidecida.

— Sem pétalas secas... vegetação... nada do tipo?

— Não que eu tenha notado.

O sr. Sowerby se ajeitou como se estivesse prestes a fazer uma pergunta delicada. Em uma voz contida, ele disse:

— Deve ter sido um choque e tanto para você. O corpo do pobre homem, quero dizer.

— Sim — falei, sem mais comentários.

— A polícia fez uma grande trapalhada na cena, removendo os restos e tudo o mais. Tudo o que poderia ser de interesse para mim já nada mais é senão...

— Poeira nas botas do sargento — sugeri vividamente.

— Exato. E agora vou ter de examinar tudo com uma lupa, como Sherlock Holmes.

— O que espera encontrar?

— Sementes. Vestígios do sepultamento de São Tancredo. Os enlutados muitas vezes jogam flores frescas na tumba, você sabe.

— Mas não havia nada na tumba. Ela estava vazia. A não ser pelo senhor Collicutt, é claro.

Adam Sowerby me olhou de uma forma curiosa.

— Vazia? Oh, entendo o que você quer dizer. Não, não é muito provável que estivesse vazia. A greta em que você encontrou o senhor Collicutt é, na verdade, uma câmara acima da tumba propriamente dita. Sua cobertura, se preferir. São Tancredo ainda deve estar muito bem aninhado em algum lugar abaixo.

Era por isso que não havia ossos! A minha pergunta fora respondida.

— Então, é muito provável que você ainda encontre sementes e essas coisas?

— Eu ficaria surpreso se não encontrássemos. Mas, em qualquer investigação, é melhor começar pelo lado de fora e ir mordiscando aos pouquinhos para dentro.

Eu mesma não poderia ter colocado melhor.

— E essas sementes — perguntei —, o que você vai fazer com elas?

— Vou cuidar delas. Colocá-las em um lugar quente e provê-las da nutrição de que precisam.

Pela paixão em sua voz, percebi que as sementes eram para ele como os venenos eram para mim.

— E depois?

— Elas bem podem germinar. E, se formos extraordinariamente afortunados, uma delas poderá reviver.

— Mesmo depois de quinhentos anos?

— Uma semente é um receptáculo notável. Nossa única máquina do tempo verdadeira. Cada uma delas é capaz de trazer o passado, vivo, para o presente. Pense nisso!

— E então? — perguntei. — Depois que elas reviverem?

— Eu as venderei. Você ficaria surpresa com o valor que algumas pessoas são capazes de pagar para serem as únicas proprietárias de uma flor extinta. Oh, e então há as trombetas acadêmicas, é claro. Quem poderia viver hoje em dia sem as trombetas acadêmicas?

Eu não tinha ideia do que ele falava, mas a parte sobre as flores era bastante intrigante.

— Você se importaria de me dar uma carona até a aldeia? — perguntei de repente. Ainda era cedo, e uma ideia se formava em minha cabeça.

— O seu pai permite que você peça carona a estranhos? — Havia um brilho malicioso nos seus olhos.

— Ele não se importará, já que você é amigo do vigário. Posso pôr Gladys na parte de trás, senhor Sowerby?

— Adam. Como estamos os dois sob o feitiço do vigário, acho que você pode me chamar de Adam.

Tomei o assento do passageiro na frente. Houve uma prolongada e triturante trepidação quando Adam pisou na embreagem e gentilmente empurrou a alavanca de câmbio para a primeira marcha, e então nós partimos.

— O nome dela é Nancy — ele falou, apontando o painel de instrumentos. Depois, relanceando o olhar para mim, acrescentou: — Em homenagem ao poema de Burns.

— Acho que não conheço. A minha irmã Daphne é a leitora inveterada da família.

— “Embora pobres em posses, somos ricos no amor” — ele citou. — De “O retorno do soldado”.

— Ah!

O pátio da igreja exibia um verde mais vívido ainda do que à primeira luz da manhã. O Vauxhall azul do inspetor continuava estacionado no mesmo lugar, assim como a van do sr. Haskins.

— Vou deixá-la aqui — disse Adam quando chegamos ao portão coberto do pátio da igreja. — Tenho umas coisinhas para discutir com o vigário.

Era uma maneira de dizer: “Preciso falar com ele em particular”, mas Adam foi tão delicado que eu dificilmente poderia ter feito qualquer objeção.

Embora eu notasse que Gladys estava animada com o seu primeiro passeio em um Rolls-Royce, senti que ela ficou contente por retornar à terra firme. Acenei enquanto me afastava a pedaladas.

Eu mal tinha pisado na igreja, quando um vulto grande e escuro assomou, barrando a minha passagem.

— Oh, bom dia, sargento Woolmer — eu disse. — Lindo dia, não é? Apesar da chuva que caiu logo cedo, o tempo ficou muito bom.

— Não adianta, senhorita — ele falou. — Você não vai entrar. O lugar está fechado. Entrada proibida. É a cena de um crime.

— Eu só quero dizer umas preces. — Encolhi os ombros, toda dócil, como Cynthia Richardson, a mulher do vigário, e imprimi um quê de lamento na voz: — Não vou ficar muito tempo.

— Você pode rezar no pátio da igreja. O Senhor tem ouvidos grandes.

Suguei o ar pela boca, como se tivesse ficado chocada com a blasfêmia dele.

Na verdade, o sargento havia me dado uma grande ideia.

— Muito bem, sargento. Vou me lembrar de mencionar o seu nome.

Aquilo daria ao brutamontes algo em que pensar!

O túmulo de Cassandra Cottlestone possuía a aparência de uma pesada cômoda elisabetana que fora roubada por criminosos, os quais, pegos no ato, abandonaram a coisa no pátio da igreja, onde ela se transformara em pedra com o passar dos séculos.

Uma grama um tanto alta brotava em todo o contorno da base de pedra calcária, um sinal claro de que esta parte do pátio raramente era visitada.

O sol se escondeu atrás de uma nuvem, e eu me dei conta, com um arrepio, de que logo abaixo dos meus pés ficava o túnel secreto pelo qual, ao que diziam, caminhava o espectro da falecida Cassandra.

Rezem para que o meo corpo durma

E a mia alma desperte.

Quando dei a volta em direção ao lado norte do monumento, o meu coração deu um pulinho.

Um túmulo adjacente havia afundado, e a grama já não cobria inteiramente a base da tumba de Cottlestone.

Exatamente como Dafi dissera!

No canto noroeste, uma grande laje de pedra fora apoiada em ângulo no monumento, e partes dela se achavam cobertas com um encerado desgastado que se enchera de poças de água por conta da chuva. A cobertura era mantida no lugar por fragmentos de pedra nos cantos. Pela quantidade de sedimento assentado, deduzi que aquilo fora deixado assim havia algum tempo.

Ou a tarefa de reparar o afundamento tinha sido tirada do sr. Haskins, ou ele era simplesmente preguiçoso.

De onde eu estava agora, na sua extremidade norte, o túmulo volumoso bloqueava a visão da igreja, e vice-versa. Como eu disse, ninguém nunca vinha a esta parte do pátio mesmo. Poderia bem ser em outro planeta.

Pus-me de quatro e espiei por baixo do encerado. O que havia ali era um buraco escancarado. Em volta dele, no solo revolvido, inúmeras pegadas, algumas indistintas por causa da chuva recente e outras, protegidas pelo encerado, notavelmente claras. Não tinham sido deixadas pela mesma pessoa.

Removi as pedras e puxei a cobertura, tomando cuidado para que a água empoçada escorresse para o lado, sobre a grama.

Agora, o buraco estava totalmente exposto.

Mais uma vez de quatro, consegui ver o que havia lá dentro.

Será que eu estava esperando me deparar com ossos? Não sabia com certeza, mas o que havia embaixo da tumba era uma câmara de pedra, preenchida por trevas em sua maior parte.

Ah, se eu tivesse uma lanterna!, pensei.

Por que a natureza não nos equipou com um farol no meio da testa, mais ou menos como os vaga-lumes, porém com as luzes na outra extremidade? E mais potentes, claro. Seria uma questão de simples química fosforescente.

Eu estava esticando o pescoço para olhar melhor, quando o solo cedeu sob a pressão das minhas mãos.

Me agarrei desesperadamente ao capim comprido, mas as folhas molhadas se romperam ou escorregaram pelos meus dedos.

Por um instante, cambaleei, os braços se agitando como cata-ventos, numa tentativa desesperada de me reequilibrar. Mas não adiantou. Meus sapatos resvalaram e deslizaram uma última vez na grama lamacenta, e eu mergulhei para dentro da sepultura.


7

DEVO TER PERDIDO O FÔLEGO. Pelo que me pareceu um tempo enorme — mas que provavelmente não durou mais que uns poucos segundos —, tenho certeza de que fiquei estatelada, atordoada.

E o cheiro. Ah, o cheiro!

Era como se eu houvesse sido atingida no nariz por um tijolo. De repente, as minhas narinas pareciam em carne viva, como se estivessem sendo abertas à força com um arco de pua.

Cobri o nariz com uma das mãos e me pus de joelhos, mas isso piorou as coisas. Me dei conta instantaneamente de que o lodo malcheiroso que eu acabara de espalhar pela cara era tudo o que restava de Cassandra Cottlestone e seus vizinhos.

Eu sabia que, no instante em que a vida termina, o corpo humano começa a se autoconsumir de um modo muito eficiente. As nossas próprias bactérias nos transformam, com uma rapidez notável, em bolsas de gás que contêm metano, dióxido de carbono, sulfeto de hidrogênio e mercaptano, para citar só alguns poucos exemplos. Muito embora eu estivesse havia algum tempo fazendo anotações para um futuro trabalho que se intitularia De Luce em decomposição, não tinha tido nenhuma experiência real, digamos assim, até o momento.

Agora, eu estava aprendendo depressa que a coisa funciona como sais de amônia.

Levantei-me de um pulo e, com ânsia no estômago, recuei até dar de costas contra uma parede de pedra.

Quando os meus olhos começaram a se acostumar com a escuridão, verifiquei que a abertura através da qual eu caíra não era mais larga que a entrada de uma toca de raposa. À luz débil, vi que as paredes da tumba eram todas de pedra em desintegração.

A não ser por alguns pedaços de entulho no chão, a caverna retangular se achava vazia.

No lado oposto ao buraco, embutida na parede, havia uma pequena porta de madeira, de aparência surpreendentemente comum.

Segurei a maçaneta e a girei. A porta estava trancada.

Em outras circunstâncias, eu teria pego qualquer pedaço de arame que estivesse à mão e forçado a fechadura — uma arte que Dogger me ensinara em troca de uma ajuda na limpeza de vasos da estufa durante um longo inverno.

— Está tudo nos dedos — ele costumava dizer. — Você precisa aprender a escutar a ponta de seus dedos.

Infelizmente, uma pessoa que acaba de cair de cabeça em uma sepultura não está devidamente equipada com as ferramentas do ofício de forçar fechaduras. Certa vez, eu improvisara com o arame do meu aparelho dentário, porém não o usava agora.

Eu poderia, se absolutamente necessário, me arrastar para fora do túmulo e suplicar a Gladys que me emprestasse um dos raios das suas rodas. Entretanto, com o lugar fervilhando de policiais, seria mais que provável que eu fosse vista, e fim de jogo.

Por enquanto, parecia que os homens do inspetor Hewitt estavam tão ocupados na cripta que ainda não tinham descoberto esta ponta do túnel escondido.

Apertei um ouvido contra a porta e escutei atentamente. O apurado sentido da audição que eu herdara de Harriet raramente se mostrava mais útil que doloroso, mas esta era uma dessas raras ocasiões.

Do outro lado da porta, não havia nada além de silêncio: nenhum policial corpulento avançava pesadamente pelo túnel à procura da origem deste.

Dei um último puxão violento na porta, que mal se mexeu. Alguém tinha a intenção de manter gente do lado de fora, pensei.

Ou de manter gente do lado de dentro.

Eu precisaria retornar à noite: voltar à igreja com uma lanterna velada e toda vestida de preto.

E isso teria de ser feito o quanto antes. Esta noite. Se eu tivesse sorte, estaria um passo à frente da polícia.

Por enquanto, tudo o que restava era escalar para fora desta cova fétida, voltar a Buckshaw e tomar um banho. As minhas roupas provavelmente precisariam ser queimadas.

Aproximei-me do buraco, estiquei as mãos para cima, agarrei a beirada e dei um grande impulso, pedalando os pés loucamente contra a parede para ganhar tração.

Por um instante, meus dedos tocaram a saliência na parte de baixo do monumento, mas eu não consegui agarrá-la.

Caí de volta na lama nojenta. Se eu fosse apenas uns cinco ou dez centímetros mais alta...

Só havia uma solução — a não ser gritar por socorro, claro, e eu certamente não queria fazer isso.

Com os dedos imundos, desfiz os laços dos cordões e removi os sapatos e as meias. Enfiando uma das meias em um dos sapatos para uma espessura adicional, usei a outra para amarrar os sapatos um no outro, as solas para fora, formando um tijolo improvisado de borracha. Posicionei o bloco firmemente contra a parede de pedra e subi nele.

Respirei fundo, rezei a São Tancredo para dar asas aos meus calcanhares e dei um salto poderoso.

Desta vez, meus dedos pegaram a borda de mármore com facilidade, e, com os pés patinando furiosamente, me ergui para fora da sepultura.

Ali na grama, olhando chocada para mim, o rosto lívido como uma mortalha e a boca aberta em um “O” negro, estava Cynthia Richardson, a mulher do vigário.

Suponho que eu devesse ter dito alguma coisa educada: proferido qualquer coisa tranquilizadora. Mas não o fiz.

Não sei o que passou pela cabeça dela ao ver aquela aparição imunda de cara preta e fedida, que repentinamente se arrastara com as garras para fora da tumba bem embaixo do seu nariz, mas, naquele preciso instante, eu não me importei. Fiz o que qualquer menina sensata faria nestas circunstâncias. Saí em disparada.

Quaisquer pensamentos que eu pudesse ter tido de lavar o grosso da imundície no rio atrás da igreja foram postos de lado.

Oh, Flavia!, pensei. Oh, Flavia!

Então, em um daqueles clarões cegantes de inspiração que nascem do temor da punição, lembrei-me de que havia deixado a minha capa de chuva em um cabide na torre. Com um pouco de sorte, poderia recuperá-la sem ser notada. Sim, era isso! Eu a usaria até chegar em casa para esconder os trapos imundos em que se transformaram as minhas roupas.

Da esquina da torre, lancei um olhar para Cynthia, que continuava paralisada exatamente como eu a havia deixado, lívida como os anjos do cemitério.

Com as costas pressionadas contra as pedras, contornei lentamente a parede da torre. Uma rápida espiada na esquina revelou o sargento Woolmer sentado com o traseiro no banco de trás do Vauxhall e os pés para fora, sobre a grama. Ele escrevia no seu caderno.

Tentando me fazer fina como papel, deslizei pela esquina e disparei porta adentro. Se houvesse alguém no vestíbulo, eu estaria perdida.

Mas o Destino estava do meu lado. O vestíbulo se achava vazio, e a igreja adiante jazia em sombrio silêncio. A polícia obviamente continuava às voltas com o seu trabalho na cripta.

Subi a escada de pedra em espiral na ponta dos pés e entrei na câmara do topo. A minha capa estava pendurada precisamente onde eu a deixara.

Dobrei-a no volume mais compacto e chato possível e enfiei-a embaixo do que restara do meu suéter. Não teria sentido atrair algum olhar para uma capa amarela fluorescente que praticamente berrava por atenção.

Se eu topasse com alguém ao sair, simplesmente abraçaria a minha barriga e inventaria uma história qualquer. Dor de estômago, por exemplo.

Poria a culpa no mingau de aveia da sra. Mullet.

Me arrastei pela escada em caracol, parando em cada degrau para escutar.

O sargento Woolmer ainda estava absorto no seu caderno. Num piscar de olhos, atravessei a porta e virei a esquina da torre. Apesar de isto ser considerado algo aziago, contornei a igreja no sentido anti-horário (“sinistro”, como diz Dafi), detendo-me antes de buscar o lado norte. Mas o perigo havia passado. Cynthia Richardson se fora.

Gladys aquecia-se alegremente sob o sol. Eu a pedalei lentamente através do pátio da igreja, esquivando-me de uma lápide após outra, para oeste e sul, ao longo da margem sinuosa do rio. Meu cardigã e minha saia, normalmente considerados comuns, agora camuflados com nódoas de lama tumular, me tornavam quase invisível entre os monumentos desgastados pelo tempo. Quando chegamos à mureta de pedra que marcava o limiar, ergui Gladys, passei-a por cima e depositei-a com gentileza do outro lado. Momentos depois, rodávamos alegremente para casa pela estrada de Buckshaw.

Eu não havia notado até agora, conforme pedalava pela avenida de castanheiras, como o nosso lar começara a parecer desleixado e dilapidado. A grama sem aparar, as sebes sem podar, o pedrisco sem rastelar e as janelas sem lavar: o lugar tinha uma aparência negligenciada que me partiu o coração.

Não que fosse culpa do pai. A carência de dinheiro o forçara a estreitar o seu mundo pessoal até pouco lhe restar além do modesto estúdio: um pequeno refúgio — ou seria uma prisão? — onde ele podia se isolar de um mundo exigente atrás de uma barricada de selos postais antigos.

Tampouco era culpa de Dogger: ele fazia tudo o que era mental e fisicamente capaz de fazer. Às vezes, quando estava a fim de ser jardineiro, a casa e os jardins apresentavam-se tão primorosos quanto naqueles longínquos tempos em que foram fotografados para a Country Life. Em outras ocasiões, apenas servir ao pai já era um estresse mais que suficiente para os seus nervos em frangalhos, e eu dava graças por Dogger conseguir ao menos cuidar das botas do pai.

A sua banqueta de dobrar não estava em nenhum lugar visível. Dogger sumira para o lugar onde ele sumia, fosse onde fosse.

Como antes, o problema era atravessar o foyer e subir sem ser vista. Se Dafi ou Felinha vissem o estado das minhas roupas, seria questão de segundos até que o pai ficasse sabendo; e se o próprio pai fosse o primeiro a vislumbrar a minha imunda condição... Bem, eu tremi só de pensar na descompostura.

Felizmente, a minha capa, como fora lavada pela chuva de ontem, estava imaculada. Virei a gola para cima e a abotoei completamente. Quem sabe? Eu poderia até ser elogiada por me agasalhar e me manter seca.

O único problema eram os meus pés. Não estavam apenas descalços — sem sapatos e sem meias —, mas também emplastrados com os restos malcheirosos de Cassandra Cottlestone.

Dobrei os joelhos até que a barra da capa tocasse os ladrilhos do piso e então bamboleei pelo foyer como um pinguim, ou como o mímico Mr. Pastry saindo de cena no final da sua pantomima “A cerimônia de graduação”. Devia estar parecendo que tinham serrado as minhas pernas na altura dos joelhos, ou que eu tinha sido cravada no chão como uma estaca de barraca.

Eu já havia subido metade da escada quando ouvi passos no corredor do andar superior.

Droga!, pensei.

Duas pernas surgiram entre os balaústres de cima: pernas que vestiam calças pretas.

Um momento depois, o restante de Dogger apareceu.

— Voltarei imediatamente com a água quente — ele disse mansamente de canto de boca ao passar por mim na escada.

O homem era estrambótico.

De molho no meu banho de assento, tentei não pensar muito nos fragmentos variegados que flutuavam na superfície do caldo fumegante. A água quente, somada ao meu cansaço, deve ter-me feito cochilar. Num instante, eu estava me enrugando como um bolinho e, no seguinte, de volta a São Tancredo, sentada na banqueta do órgão.

Eu assistia fascinada enquanto os dedos longos e brancos tocavam as teclas, iluminadas apenas por um par de velas, uma em cada extremidade da estante de música.

O resto da igreja encontrava-se às escuras.

Notas pretas voando através de uma página branca. Sombras pretas das mãos voando como aranhas através do marfim branco.

Reconheci a música como sendo a marcha fúnebre de Chopin: Felinha a tocara havia apenas duas semanas, quando a velha sra. Fuller fora conduzida pelo corredor pela última vez.

Tum-tum-tum-TUM, tum-tum-TUM-tum-TUM-tum-TUM.

Aquilo possuía um ar de desfecho tal! Depois que você é mandado para a sepultura, não há mais volta. A não ser que seja desenterrado, claro.

— Felinha — eu disse, estremecendo —, você acha que...

Me virei para olhar a minha irmã — não era Felinha que estava ao meu lado na banqueta do órgão.

O focinho negro de porco voltou-se lentamente para mim na escuridão, seus olhos vítreos injetados de sangue. Ainda antes que aquilo abrisse a boca para falar, deu para sentir o cheiro da sua pele imunda de borracha, o fedor tumular do seu hálito quente e putrefato.

— Harriet — grasnou a coisa. — Ha-r-r-i-et.

Acordei aos gritos, as mãos açoitando a água e os pés se agitando violentamente. Pulei para fora da tina, provocando um vagalhão que se arrebentou no chão.

Os meus dentes matraqueavam. A minha pele, apesar da água agora tépida, estava gelada. Atravessei o quarto cambaleando, enfiei o meu roupão e desabei toda encolhida na cama.

Foi tudo o que consegui fazer. A minha respiração ainda eram arfadas irregulares, e o coração palpitava como um tambor golpeado por um demente.

Ouvi uma batida leve à porta, mas não consegui encontrar dentro de mim o que quer que fosse necessário para responder. Depois de alguns instantes, a porta se abriu lentamente, e a cara de Dogger apareceu.

— Você está bem? — ele perguntou, avaliando-me enquanto se aproximava.

Consegui dominar os músculos férreos da minha nuca o suficiente apenas para assentir com rigidez.

Dogger tocou a minha testa com o lado de dentro do pulso, depois colocou o polegar sob a reentrância do meu queixo.

— Você levou um susto — disse ele.

— Foi um sonho.

— Ah. — Ele envolveu os meus ombros com uma colcha. — Os sonhos fazem isso às vezes. Deite-se, por favor.

Depois que me estiquei na cama, Dogger colocou um travesseiro embaixo dos meus pés.

— Sonhos — falou. — Coisas muito benéficas, os sonhos. Muito úteis. — Eu devo ter olhado para ele com súplica nos meus olhos. — Os sustos são capazes de curas notáveis. Dizem que curam até gota. E que aliviam a febre.

— Gota? — murmurei.

— Uma doença dolorosa de cavalheiros idosos que amam o seu vinho mais do que o seu fígado.

Acho que sorri, e subitamente as minhas pálpebras pareceram ser feitas de chumbo.

Pescoço de ferro, pálpebras de chumbo, pensei. Estou ficando mais forte.

E adormeci.


8

QUANDO ABRI OS OLHOS, havia luz do dia nas minhas janelas, embora o sol ainda não tivesse surgido. Os ponteiros do meu despertador de latão apontavam sonolentos para as cinco e meia.

Droga! Eu dormira por toda a minha tencionada visita da meia-noite à cripta. Agora, precisaria esperar outras vinte e quatro horas, quando então a polícia provavelmente já teria...

— Bom dia, senhorita Flavia — disse uma voz junto ao meu cotovelo, e eu quase pulei para fora da minha pele de susto.

— Oh! Dogger! Eu não sabia que você estava aqui. Você me assustou.

— Desculpe. Não tive a intenção. Espero que você tenha dormido bem.

Pela maneira lenta e rígida como ele se desdobrou da cadeira ao lado da minha cama, eu soube que estivera sentado ali durante a noite inteira.

— Bem, obrigada, Dogger. Acho que eu realmente passei da conta ontem.

— Sem dúvida. Mas acredito que você já esteja muito melhor esta manhã.

— Sim, obrigada.

— Dentro de dez minutos, tomarei um desjejum de chá e torradas na cozinha, se quiser juntar-se a mim.

— Eu fico com a casca! — falei, plenamente consciente da tremenda honra que era ser convidada.

Depois que Dogger se foi, lavei o rosto e refiz as minhas tranças com todo o capricho, chegando até mesmo a amarrar cada uma com um pedaço de fita branca (para a Páscoa). Depois da noite sem dormir de Dogger, pensei, o mínimo que eu podia fazer era me apresentar decentemente à mesa do desjejum.

Estávamos sentados na cozinha, Dogger e eu. O resto da casa não havia acordado, e a sra. Mullet não chegaria da aldeia em menos de uma hora.

Caíra entre nós o que Dogger certa vez chamara de “um silêncio sociável”, uma pequena porção de tempo durante a qual nenhum de nós sentia qualquer necessidade especial de falar.

O único som na cozinha era o das nossas facas raspando as torradas e o leve ruído da torradeira de prata quando as pequenas serpentes vermelhas em seu interior transformavam o pão branco em castanho-dourado. Pensando bem, era realmente maravilhoso: os elementos elétricos aquecidos ao rubro faziam que os açúcares do pão interagissem com os seus aminoácidos, produzindo uma gama de sabores totalmente nova. Reação de Maillard, era o nome disso, em homenagem a Louis-Camille Maillard, o químico francês que fez um estudo da tostadura e do bronzeamento.

Enquanto meus dentes trituravam a saborosa torrada, me dei conta de repente de que uma torrada quente e recém-saída da torradeira é vastamente superior em sabor a uma torrada levada a uma mesa distante. Embora parecesse haver uma lição aqui, eu não pude atinar qual seria.

Fui a primeira a romper o silêncio:

— Você já ouviu falar de uma pessoa chamada Adam Sowerby?

— Um conhecido do seu pai, acredito. Um botânico muito famoso hoje em dia. Eles estudaram juntos na escola.

Um amigo do pai? Por que Adam não me contara isso? Por que o pai nunca mencionara o nome dele?

— O trabalho dele frequentemente o leva a antigas igrejas — continuou Dogger, sem olhar para mim.

— Eu sei. Ele espera encontrar velhas sementes no túmulo de São Tancredo. Me deu uma carona até a aldeia ontem.

— Sim — disse Dogger, servindo-se de mais um pedaço de torrada e passando o mel com uma precisão cirúrgica. — Eu vi vocês de uma janela do andar de cima.

Ninguém ergueu os olhos quando entrei na sala de jantar. O pai, Felinha e Dafi encontravam-se sentados como sempre, cada qual no seu próprio compartimento invisível.

A única diferença esta manhã era a aparência de Felinha: seu rosto estava branco como giz, com bordas arroxeadas em volta das pálpebras vermelhas. Sem dúvida, passara a noite chorando pelo finado sr. Collicutt. Eu quase senti o cheiro das velas.

Evidentemente, ela ainda não compartilhara com o pai as novas do passamento do homem. Por alguma razão complicada, estava guardando aquilo para si. Quase entesourando o segredo.

Um arrepio de ar frio me revelou que eu acabara de roçar os ombros com um fantasma.

Deslizei para a minha cadeira e levantei a tampa do réchaud patenteado. O prato principal desta manhã consistia dos Omelettes Royale da sra. Mullet: umas panquecas chatas e borrachudas de ovos pálidos e incrustadas de partículas de pimentas vermelhas e verdes e de nacos de chutney que, quando o pai não estava presente, nós chamávamos de “sapo na estrada”.

Com o meu garfo, espetei uma daquelas monstruosidades parecidas com lulas e passei-a em um prato para Felinha.

Ela cobriu a boca com a palma da mão, soltou um leve porém detectável ruído de ânsia de vômito e saiu apressadamente da sala.

Ergui uma sobrancelha zombeteira para o pai quando este desviou o olhar do The London Philatelist, mas ele não se deixaria distrair do seu hobby. Por um momento, auscultou os passos distantes de Felinha como se fossem o uivo de um sabujo longínquo, depois retomou a leitura do seu jornal.

— Ontem, eu conheci um amigo seu, pai — falei. — Adam Sowerby.

Lentamente, o pai ressurgiu das suas profundezas.

— Sowerby? — disse afinal. — Onde você o conheceu?

— Aqui. Em Buckshaw. No átrio. Ele tem um velho Rolls muito extraordinário, cheio de plantas.

— Hum — o pai murmurou e voltou a ler sobre gravuras da cabeça da rainha Victoria.

— Ele me deu uma carona até a aldeia — prossegui. — Está aqui para procurar sementes antigas no túmulo de São Tancredo.

Mais uma vez, o pai emergiu. Era como estar conversando com um mergulhador de grandes profundezas que voltava a submergir depois de cada sentença.

— Sowerby, você disse?

— Sim, Adam Sowerby. Dogger disse que ele é um velho amigo seu.

O pai fechou o jornal, removeu os seus óculos de leitura e enfiou-os no bolso do colete.

— Um velho amigo? Sim, eu diria que sim.

— Aliás, falando do túmulo de São Tancredo — falei despreocupadamente, agora que conseguira a total atenção do pai —, o sr. Collicutt foi encontrado morto lá dentro.

A cabeça de Dafi ergueu-se bruscamente do seu livro. Ela estivera escutando o tempo todo.

— Colly? Colly está morto? Felinha sabe?

Assenti. Não disse que ela sabia desde o desjejum do dia anterior.

— Ele parecia ter sido assassinado.

— Parecia? — perguntou o pai no mesmo instante. Tive de dar-lhe nota máxima pela percepção rápida como um raio. — Parecia? Você quer dizer que você estava lá? Que você o viu... morto?

— Eu descobri o corpo — falei modestamente.

O queixo de Dafi caiu como o alçapão de uma forca.

— Realmente, Flavia — disse o pai. — Isto já é além da conta.

Ele pescou os seus óculos, colocou-os, removeu-os e colocou-os de novo. No passado, o pai parecera muito orgulhoso dos cadáveres com os quais eu topara, porém suponho que haja um limite até para cadáveres.

— Collicutt, você disse? O organista? O que ele estava fazendo morto?

Era uma pergunta tola mas também excelente.

A sra. Mullet, que surgiu da cozinha enquanto o pai falava, deu uma fungada.

— Estão dizendo por aí que aquele lá mereceu. Todas aquelas coisas estranhas no pátio da igreja. Foi transformado numa porca por demônios, é o que ele foi, como aqueles porcos gabardinos da Bíblia.

Coisas estranhas no pátio da igreja? O que ela queria dizer com isso? Quando eu falara com o sr. Haskins na torre, ele mencionara luzes misteriosas que foram vistas flutuando no pátio da igreja pela PAA e pelos guardas-florestais, mas aquilo havia sido anos atrás, durante a guerra. Poderiam essas estranhas cerimônias, ou o que quer que fossem, estar acontecendo ainda? Uma coisa da qual eu tinha quase certeza e que conectava o passado remoto ao presente era isto: uma vez que restara apenas uma máscara no baú, a máscara de gás afivelada no pobre defunto do sr. Collicutt devia ter vindo do mesmo baú de madeira. Originalmente, teria de haver mais de uma.

De fato, eu seria capaz de apostar o meu bico de Bunsen que as duas eram idênticas.

Não que eu fosse uma entendida em máscaras de gás.

Havia a de Dafi, claro, uma máscara de Mickey Mouse alegremente colorida, feita de borracha da Índia, com um bocal azul de latão, que lhe fora atribuída quando ela tinha não mais que três anos e a qual ainda mantinha à mão, pendurada pelas tiras ao lado do seu espelho.

— Nunca se sabe — ela me dissera uma vez, com uma cara um tanto estranha.

E também havia aquela máscara de antiga safra que ficava no laboratório para o caso de certos acidentes químicos. Ela fora dada pessoalmente ao tio Tar, não muito antes da sua morte, em 1928, por Winston Churchill, que na época era Ministro das Finanças. Eu recolhera os detalhes do encontro entre ambos em um dos extensos diários do tio Tar, um dos vários volumes que eu mantinha sobre a minha mesa de cabeceira para uma leitura empolgante antes de dormir.

Churchill fizera uma visita outonal ao tio Tar em Buckshaw, e, enquanto eles passeavam ao lado do lago ornamental, Churchill lhe oferecera um charuto (o qual o tio Tar recusara polidamente, uma vez que a sua fraqueza pessoal era um Pimm’s no 2 Cup) e dissera: “Há uma guerra no ar, Tarquin. Posso sentir o cheiro. A Inglaterra dificilmente pode se permitir perder um De Luce”.

Eu quase era capaz de ouvir a voz daquele homem-buldogue pronunciando tais palavras, que certamente tinham um tom churchilliano.

— Obrigado, senhora Mullet — dizia o pai quando meus pensamentos voltaram ao presente. Ele estava agradecendo não pelas histórias de feitos espantosos no pátio da igreja, mas pelo “sapo na estrada”, cujos restos ela agora removia da mesa.

Dafi, marcando a sua página d’O monge com um dos guardanapos de papel crepom que fôramos forçados a adotar desde que os “tempos difíceis” (palavras dela) se abateram sobre nós, deslizou silenciosamente para fora da sala.

O pai não ficou muito atrás dela.

— Conte-me sobre as porcas no pátio da igreja, senhora Mullet — eu disse assim que nos vimos a sós. — Eu ultimamente tenho andado muito interessada em estudos bíblicos. De fato, andei pensando em começar um álbum de recortes sobre animais do Novo Testamento e seus...

— Isso não é adequado para ouvidos como os seus — ela retrucou de um jeito que achei um tanto brusco. — Alf diz que o senhor Ridley-Smith, o magistrado, avisou que não é seguro ficar à toa naquela igreja enquanto o mistério não for elucidado, o que faz sentido para mim.

— Ora, baboseiras — falei, mudando de tática. — Não passa de tagarelice da aldeia. O pai sempre nos alerta sobre a tagarelice da aldeia, e eu acho que ele tem toda razão.

Eu mal pude acreditar que a minha boca proferira isso.

— Ah, tagarelice da aldeia, é? — a sra. Mullet bufou, pondo de lado a pilha de pratos que carregava e plantando as mãos nos quadris. — Então, conte-me, por favor, senhorita, por que eles tiveram de chamar o doutor Darby para dar uma injeção na senhora Richardson depois do que ela viu no pátio da igreja?

Deixei a minha boca se escancarar. Se eu fosse capaz de babar a bel-prazer, teria feito isso.

— Conte-me — implorei. — Por favor. O que foi que ela viu?

Lutando como louca contra o anseio de ser discreta, a sra. Mullet mordeu o lábio.

— Um fantasma saindo da sepultura! — ela disse em uma voz baixa e áspera, os olhos do tamanho de pires a esquadrinharem, inquietos, os quatro cantos da sala. — À luz do dia! Em plena luz do dia! — E acrescentou: — Eu não disse nada, hein?

Embora ainda um pouco trêmula por causa do meu pesadelo, logo eu estava pedalando de volta à igreja, como que atraída por um ímã. O ar fresco ia me fazer bem, pensei: um pouco mais de oxigênio para estimular a velha água do mar.

Já nas cercanias do pátio da igreja, constatei que o meu caminho se achava bloqueado. O Vauxhall azul, apesar de estacionado em um lugar diferente do de ontem, continuava desconfortavelmente perto da porta da frente. Desta vez, não era o sargento Woolmer quem estava nele, mas o sargento Graves, o pretendente fracassado da minha irmã.

Derrapei até parar, desmontei de Gladys e me abaixei atrás da mureta de pedra. Como eu poderia passar pelo homem?

É notável o modo como funciona a mente humana.

Eu estava pensando na igreja — o que me fez lembrar de hinos —, quando o que pipocou na minha cabeça, como que por mágica, foram estas palavras: “Deus age de maneira misteriosa, para suas maravilhas realizar”.

Hino 373.

É claro!

Bem ali, crescendo selvagens ao longo da mureta, havia as primeiras flores da primavera: açafrões, campainhas-brancas, prímulas — até mesmo um amontoado de narcisos que provavelmente tinham sido descartados após um funeral qualquer e encontrado refúgio ao abrigo das pedras.

Colhi algumas delas e juntei-as em um buquê bastante decente, cujos azuis, amarelos e brancos brilhavam à luz do sol matinal. Para o toque final, removi uma das minhas fitas brancas de cabelo e dei várias voltas em torno dos caules, amarrando-os em um ramalhete elaborado e de fato muito bonito.

Então, subi o caminho até a porta da igreja, atrevida que só.

— Flores para o altar — falei, chacoalhando o buquê embaixo do nariz do sargento ao passar por ele.

Que homem ousaria me impedir?

Eu já tinha chegado quase na porta, quando o sargento Graves falou:

— Espere.

Parei, me voltei e ergui uma sobrancelha.

— Sim, sargento?

Ele de repente ficou todo informal: encolheu os ombros e examinou as unhas, como se o que estava prestes a dizer não tivesse importância, como se fosse nada — algo que acabara de lhe ocorrer.

— É verdade o que estão dizendo a respeito da sua irmã? Ouvi dizer que ela vai se casar.

— Ora, quem lhe contou isso?

Eu estava plantando verde.

— A polícia ouve coisas — o sargento Graves disse tristemente, e, enquanto pronunciava essas palavras, eu notei que, pela primeira vez desde que o conhecera, ele não exibia o seu perpétuo sorriso de menino.

— Talvez seja apenas um boato — falei, não querendo ser a pessoa a partir o coração do homem.

Por um momento, apenas nos olhamos um nos olhos do outro: dois seres humanos, nada além.

Então, eu me virei e entrei na igreja. Para não ter de abraçá-lo.

O interior era de um frio, sombrio e matizado lusco-fusco e estava repleto daquela vaga e inquietante vibração que as igrejas possuem quando estão vazias, como se as almas daqueles nas criptas abaixo cantassem — ou amaldiçoassem, talvez — em um diapasão agudo ou grave demais para ser ouvido pelo resto de nós.

Mas o que eu detectava agora não era um coro de almas. Parecia mais um coro de vespas: crescendo e decrescendo, havia uma... Como era mesmo a palavra que Dafi adorava usar? Ululação? Sim, era isso, ululação: um uivo baixo como o lamento distante de sirenes de ataque aéreo, arrebatado de quando em quando pelo vento.

Permaneci imóvel ao lado de um pilar de pedra.

O som continuou, ecoando do teto abobadado.

Não vi ninguém. Dei um ou dois passos cautelosos — e então mais alguns.

Estaria aquilo vindo do órgão no presbitério? Teria um dos tubos emperrado? Ou seria o vento uivando através de um buraco?

Lembrei-me subitamente de que, no dia anterior, eu tinha voltado à igreja — antes de ser distraída pelo cadáver do sr. Collicutt — para procurar uma janela quebrada através da qual um morcego pudesse ter entrado.

Pé ante pé, subi os degraus acarpetados e entrei no presbitério.

Ali, o zumbido era mais alto.

Que estranho! Parecia que... Sim, era uma melodia. Eu a reconheci: “Quando a Ti, Salvador, em pó voltarmos”.

Poucos dias atrás, Felinha a cantara enquanto praticava ao piano:

— “Quando a Ti, Salvador, em pó voltarmos e em adoração os joelhos dobrarmos”...

Eu me demorara no salão para ouvir as palavras tão terríveis:

— “Ante o aflito suspiro que contava que em Teu aprisco a traição espreitava”...

Felinha cantava aquilo com tanto sentimento.

Me lembro de ter pensado: “Não se fazem mais hinos como este”.

As palavras marcantes passavam pela minha cabeça conforme eu avançava lenta e furtivamente pela nave agora, todos os sentidos em alerta para a fonte do estranho lamento.

Uma tábua do assoalho rangeu.

Virei a cabeça devagar, os cabelos da nuca arrepiados.

Não havia ninguém. O zumbido cessou abruptamente.

— Menina!

A voz veio de trás. Girei sobre os calcanhares.

Ela estava sentada em uma imponente cadeira de carvalho, no limiar das cadeiras do coro, cujas alas elaboradamente entalhadas a mantiveram oculta até que eu me achasse imediatamente ao lado. Olhos muito arregalados me fitavam através de lentes grossas que também refletiam, de um modo muito perturbador, as cores gotejantes da cabeça decepada de João Batista no vitral. Era a srta. Tanty.

— Menina!

A não ser por uma engomada gola branca de crochê, ela estava coberta com uma bombazina preta, como se toda a sua roupa houvesse sido alinhavada com o pano embaixo do qual o fotógrafo esconde a cabeça antes de apertar o disparador.

— Menina! O que você está tramando?

— Oh, bom dia, senhorita Tanty. Desculpe, eu não a tinha visto.

As minhas palavras foram recebidas com um grunhido um tanto rude.

— Você estava espreitando. E não finja que não estava.

Em circunstâncias normais, alguém que falasse assim comigo jamais veria o sol nascer outra vez. Na minha cabeça, ao menos, eu ministrava venenos a torto e a direito.

Mas, neste caso, eu precisava de informações; por isso, decidi abrir uma exceção.

— Eu não estava espreitando, senhorita Tanty. Eu trouxe algumas flores para pôr no altar.

Praticamente enfiei o buquê na cara da mulher, e os enormes óculos se moveram de um lado a outro, examinando as flores e os caules como se fossem serpentes coloridas.

— Humpf — ela grunhiu. — Flores silvestres. Flores silvestres não têm lugar no altar. Uma menina da sua classe deveria saber isso.

Então, ela sabia quem eu era.

— Mas...

— Nem mas, nem meio mas — disse ela, erguendo a mão. — Eu sou presidente da Guilda do Altar e, como tal, é minha função saber o que é o quê. Me dê essas flores aqui e eu irei jogá-las no lixo quando sair.

— Eu a ouvi cantarolando — falei, escondendo as flores nas costas. — Estava lindo, com todos os ecos e essas coisas.

Na verdade, não estava lindo. “Lúgubre” era a palavra mais apropriada. Mas a Regra 9B dizia: mude de assunto.

— “Quando a Ti, Salvador, em pó voltarmos” — eu disse. — Um dos meus hinos favoritos. Reconheci mesmo sem a letra. Você tem uma voz tão maravilhosa, senhorita Tanty. Devem lhe implorar a todo momento para fazer algumas gravações fonográficas.

Foi possível sentir o degelo. Em um instante, a temperatura no interior da igreja subiu pelo menos dez graus Celsius.

Ela ajeitou o cabelo.

E então, sem uma palavra de aviso, inspirou fundo e, com as mãos na cintura, começou a cantar:

— “Quando a Ti, Salvador, em pó voltarmos e em adoração os joelhos dobrarmos”...

Não havia dúvida de que tinha uma voz notável: uma voz que, pela forma como (vendo de perto, ao menos) chacoalhava os seus ossos, poderia até ser chamada de “vibrante”. Parecia se originar em algum lugar no fundo do seu corpo, perto dos rins, imaginei.

— “Ante o profundo gemido moribundo, ante a triste pedra sepulcral, ante a cripta cuja escura morada”...

A sua voz me arrebatava em ondas, envolvendo-me em uma espécie de cálida umidade. Ela cantou todos os cinco versos.

E que sentimento a srta. Tanty colocou nas palavras! Parecia estar me guiando por uma excursão pela sua própria vida.

Quando terminou, permaneceu paralisada, como que estupefata com os próprios poderes.

— Isso foi super, senhorita Tanty! — falei. E tinha sido mesmo.

Não creio que ela tenha me escutado. Continuou olhando para cima, para a luz colorida, para Herodias e Salomé, aquelas triunfantes mulheres gravadas em ácido sobre o vidro.

— Senhorita Tanty?

— Oh! — disse ela, num sobressalto. — Eu estava em outro lugar.

— Isso foi magnificente — observei depois de ter tido tempo para escolher uma palavra mais refinada.

Seus olhos grandes e esbugalhados giraram e então me focalizaram como um par de holofotes.

— Então — ela falou. — A verdade. Eu quero a verdade. O que você está tramando?

— Nada, senhorita Tanty. Eu só trouxe essas flores... — Eu as tirei de trás de mim. — ... para colocar no altar...

— Sim?

— Em memória do pobre senhor Collicutt.

Ela deixou escapar um chiado.

— Me dê essas flores aqui — ordenou em voz áspera e, antes que eu pudesse protestar, levantou-se e arrancou o ramalhete da minha mão. — Não vá desperdiçar os seus açafrões.


9

BUM!

Um disparo de canhão nos fundos da igreja.

A srta. Tanty e eu piscamos uma para a outra, surpresas, depois viramos a cabeça na direção da origem do barulho.

A grande porta da igreja, uma coisa maciça de carvalho e cravejada de tiras de ferro, se fechara com um estrondo. Houve correria nas sombras.

— Quem está aí? — a srta. Tanty gritou em uma voz autoritária.

Não houve resposta. Uma espécie de murmurejar febril veio de algum lugar nos fundos, dentre os bancos sombrios.

— Quem está aí? Identifique-se imediatamente!

— Os frascos da ira. O sangue de um homem morto!

As palavras chegaram aos nossos ouvidos em um sussurro espectral que se tornou mais alto pelos vitrais grandiosos e pelas pedras que nos cercavam.

— Venha para a luz! — ordenou a srta. Tanty quando um fardo de trapos animados abriu caminho em passos espasmódicos por entre os genuflexórios.

—Pois eles derramaram o sangue de santos e profetas, e tu nos deste sangue para beber!

— É a Meg — eu disse. — Do Bosque Gibbet.

Meg, a Louca (eu hesitei em usar o apelido na frente da srta. Tanty), vivia em uma choupana no bosque, na Colina Gibbet, não muito longe dos restos apodrecidos de um patíbulo do século XVIII que emprestara seu nome à colina e ao bosque.

— Meg, a Louca, você quer dizer — a srta. Tanty falou em voz alta. — Meg, venha imediatamente para a luz, onde possamos vê-la.

— O sangue de santos, dado a Meg para beber — disse Meg, com uma horrível risada gorgolejante de escárnio.

— Tolice! — disse a srta. Tanty. — O que você diz não tem pé nem cabeça.

Meg havia chegado a um ponto de luz que caía ao fim de uma fileira de bancos. Vestida com um traje preto desbotado que bem poderia ter sido doado pela srta. Tanty, ela começou a se mover na nossa direção, a cabeça balançando, a cereja de vidro vermelho no seu chapéu de vaso de flores movendo-se para cima e para baixo com um desprendimento insolente. Com um dedo curvo e imundo, ela apontou para as vigas de madeira do teto abobadado.

— O sangue de santos e profetas — repetiu, balançando a cabeça como que para confirmar suas palavras, olhando ansiosamente do rosto da srta. Tanty para o meu em busca de algum sinal de entendimento.

— O Apocalipse de São João — a srta. Tanty falou. — Capítulo dezesseis.

Meg olhou para ela inexpressivamente.

— Santos e profetas — disse em resposta, a voz um sussurro rouco e confidencial agora. — Sangue!

Seus olhos pálidos e fixos estavam quase tão esbugalhados quanto os da srta. Tanty.

No fundo da igreja, um longo e ofuscante raio de luz do dia caiu subitamente no vestíbulo quando a porta se abriu e dois vultos escuros apareceram. Um deles eu reconheci de imediato como sendo o vigário. O outro... Claro! Era Adam Sowerby. Eu quase tinha me esquecido do homem.

Eles caminharam despreocupadamente pelo corredor central, como se estivessem passeando no campo.

— É claro — o vigário dizia —, como o caro amigo Sydney Smith enfatizou, os bispos gostam de falar “a minha sé”, “o meu clero”, “a minha diocese”, como se essas coisas lhes pertencessem como lhes pertencem os seus porcos e cães. Eles se esquecem de que o clero, a diocese e os próprios bispos só existem para benefício dos fiéis.

— O atormentante bispo e o atormentado cura, e assim por diante — observou Adam.

— Exatamente. Um cura espezinhado sente uma dor tão grande quanto um bispo quando é rejeitado. Está muito claro que alguma coisa precisa ser feita.

— Talvez já tenha sido feita — Adam observou. O vigário parou bruscamente.

— Oh, céus! — disse ele. — Oh, céus! Eu não tinha pensado nisso.

— Nem eu... até agora — Adam falou. E, ao erguer os olhos e avistar nós três, Meg, a srta. Tanty e eu, em pé como noivas abandonadas no altar, acrescentou: — Olá! O que temos aqui? As Três Graças, se não me engano.

As Três Graças? Qual delas eu seria? Charme, Beleza ou Criatividade? E qual seria a srta. Tanty? E Meg, a Louca?

— Olá, Meg — disse Adam. — Faz um longo tempo, não é?

Meg prostrou-se em uma profunda e majestosa mesura, os dedos encardidos puxando a saia de modo a formar uma elaborada tenda negra, o que revelou meias listradas e um par de botinas de trabalho chocantemente surradas, de variedade vitoriana com cadarços.

— Vocês se conhecem? — receio ter deixado escapar. Não consegui me conter. Mal podia acreditar que alguém como Adam Tradescant Sowerby, Me., MSRHort etc., Arqueólogo de Flora e todo o resto, conhecesse a louca que vivia no Bosque Gibbet.

— Meg e eu somos velhos conhecidos, não é, Meg? — disse Adam, com um sorriso genuíno, tocando com a mão o xale esfarrapado dela. — Mais que conhecidos; colegas, eu diria. Camaradas, na verdade, para ser absolutamente correto.

A boca de Meg se arreganhou em um sorriso que é melhor não descrever.

— Os seus aconselhamentos me impediram, pelo menos em uma ocasião, de fazer de mim mesmo um idiota farmacológico.

— Sangue — observou Meg afavelmente. — O sangue de santos e profetas. Sangue para beber.

Sua mão acenou vagamente em direção às sombras.

— E a senhorita Tanty, se não estou enganado — prosseguiu Adam. — Não tenho ouvido nada senão expressões de louvor pelo modo como você insuflou vida nova na Guilda do Altar.

A srta. Tanty forçou um sorriso apertado que foi ainda mais medonho que o de Meg.

— A gente faz o melhor que pode — ela falou, endireitando-se com uma olhada um tanto feroz para o vigário. Por um momento, fiquei com medo de que a ferocidade do seu olhar, realçada pela espessura de fundo de garrafa dos seus óculos, o fizesse murchar como um inseto sob uma lente incendiária. — Uma pessoa só pode esperar fazer o seu melhor apesar de todas as...

— Céus! — o vigário exclamou em voz alta enquanto consultava o seu relógio de pulso. — Para onde vai o tempo? Cynthia está à espera da minha contribuição para o folheto da igreja. Ela se tornou uma verdadeira Cassandra desde que o bispo doou o seu usado duplicador a álcool para substituir o nosso obsoleto hectógrafo.

Cassandra? Estaria ele fazendo uma referência inconsciente ao espírito de Cassandra Cottlestone, cuja súbita ascensão da sepultura podia ou não ter sido a causa do suposto colapso de Cynthia? A única outra Cassandra que me ocorria era aquela usada por William qualquer-coisa como pseudônimo na sua às vezes escandalosa coluna no Daily Mirror.

— Como as do Times — o vigário dizia —, as laudas de Cynthia vão para a cama à meia-noite.

Eu não acreditei nos meus ouvidos! Em que o pobre coitado estava pensando?

— “As hortaliças do vigário”, é como estou chamando o meu artigo — continuou ele. — Alguma coisa para a congregação ir digerindo durante a semana, entende? Eu achei que talvez um pouquinho de frivolidade pudesse render o bastante para... mas agora... Oh, céus! O que Cynthia vai pensar?

Realmente, o que Cynthia vai pensar?, pensei eu.

Segundo a última notícia que eu ouvira sobre Cynthia Richardson, o dr. Darby lhe dera um sedativo depois que ela quase sujara as calças de susto ao ver o fantasma de Cassandra Cottlestone no pátio da igreja.

Ou a injeção era só mais um mexerico da aldeia, ou o vigário estava encobrindo alguma coisa. Dificilmente Cynthia poderia estar estupidificada por hidrato de cloral e continuar produzindo copiosamente boletins da igreja com a sua duplicadora Banda. Aquilo não tinha senso químico nenhum.

— Eu deveria ter imaginado que você estaria imprimindo algo sobre o senhor Collicutt — disse a srta. Tanty, com uma olhadela maliciosa para o vigário.

Espere aí, pensei, o que está acontecendo aqui?

Apenas minutos atrás, a mulher me dissera para não desperdiçar os meus açafrões e agora cá estava ela praticamente implorando de joelhos que publicassem manchetes chamativas sobre o sr. Collicutt no boletim da igreja.

Os adultos às vezes podem se comportar de maneiras muito peculiares.

Tenho de admitir que eu mesma quase me esquecera do sr. Collicutt. Como descobridora do seu cadáver, sentia certa responsabilidade para com ele; contudo, as circunstâncias me impediram de dedicar-lhe mais que um instante de atenção.

Mais tarde, quando voltasse a Buckshaw, eu viraria uma nova página no meu caderno e anotaria os pontos positivos e negativos do falecido sr. C. Mas, primeiro, precisava extrair alguns detalhes da srta. Tanty. Afinal, havia sido ela quem marcara um encontro com o defunto.

Eu tinha certeza de que, com tempo, poderia extrair da mulher mexericos suficientes para chocar até mesmo o mais calejado editor de tabloide de Londres. Se ao menos eu pudesse afastá-la de Adam e do vigário.

— Sim, bem... — o vigário dizia à srta. Tanty. — Por favor, com licença.

E, com isso, ele se virou e seguiu lentamente pelo corredor em direção à porta.

A imagem que se insinuou na minha cabeça foi a de um fatigado lavrador a retornar lenta e penosamente a casa.

— Sowerby! Sangue! — bradava Meg, excitada, do corredor leste. Como os outros ainda conversavam, ela voltara às sombras entre os bancos e apontava com seu dedo sujo.

Adam caminhou até ela, e eu o segui. Depois de um momento, a srta. Tanty fez o mesmo.

O vigário parou de repente e se voltou.

Nunca vou me esquecer daquele momento. Está gravado na minha memória como a imagem de um cartão de Natal precioso: nós três, eu, Adam e a srta. Tanty, adejando em volta da encurvada Meg como numa estranha cena de natividade esculpida em madeira; e o vigário, imóvel, guardando o seu rebanho à noite nos distantes e sombrios campos do corredor central obscurecido.

— Sangue — disse Meg outra vez, e olhou para nós como se pedisse aprovação, apontando enfaticamente para o chão com o seu dedo imundo.

Sobre as pedras, havia uma poça vermelha de limo pegajoso.

— O sangue de santos e profetas — ela falou em uma voz indiferente.

Na minha lembrança, ficamos congelados no lugar, embora deva ter havido alguns pescoços esticados e empurrões para ver melhor a poça vermelha aos nossos pés.

Meg, complacente agora que o seu trabalho de nos convencer estava feito, agacha-se alegremente ao lado da sujeira e então olha para nossos rostos.

— Para beber — ela explica.

Um raio de sol luta para passar através do vidro colorido, iluminando o líquido.

Uma nova gota cai do alto e aterrissa com um audível plop!, causando uma minúscula e perfeitamente circular ondulação na superfície da pequena poça vermelha.

O dedo ossudo de Meg aponta para cima, para onde a madeira escura das vigas do teto abobadado se estende como se fosse a parte de baixo das tábuas do assoalho celeste.

Lá em cima, muito acima das nossas cabeças, a face de São Tancredo esculpida em madeira nos fita, e dela escorre mais uma gota vermelha, que cai entre nós.

E mais uma.

— O velho está chorando — Meg fala simplesmente.


10

POR ESTRANHO QUE PAREÇA, a primeira a reagir foi a srta. Tanty, que, com surpreendente flexibilidade para uma pessoa de sua idade, pôs-se de joelhos no chão e mergulhou um dedo no líquido tremulante.

Com isso, fez o sinal da cruz, primeiro na testa, depois no peito. Aquela mancha vermelha no seu engomado colarinho branco vai ser o diabo para remover, pensei.

— Perdoe-me, ó Senhor — disse ela, juntando as mãos sob o queixo e, por alguma razão, olhando extaticamente para o caleidoscópio de cores que era a cabeça de João Batista.

Adam tirou do bolso do casaco um lenço branco de linho e mergulhou uma ponta no lodoso líquido cor de rubi. Depois de olhá-lo de perto, tocou-o com a língua.

Ora, por que não?, pensei. Já que todo mundo está testando a coisa...

Alcancei a minha trança e, desfazendo o laço de fita branca restante, mergulhei-o na beirada da poça que se espalhava, bem no momento em que mais uma gota caiu do rosto do santo nas vigas.

Adam reparou e me deu uma olhada que não dizia nada porém dizia tudo — uma piscadela invisível.

Creio que o vigário não tenha visto nada disso. Ele ainda caminhava na nossa direção, arrastando os pés desajeitadamente através da longa fileira de bancos que nos separava do corredor central. Pareceu levar uma eternidade; quando afinal chegou a nós e por fim se postou entre mim e Adam, olhou sem palavras para a poça sangrenta no chão.

Que bela encrenca temos aqui!, ele devia estar pensando. Quando a cabeça de madeira de um santo de repente começa a chorar sangue na igreja de uma aldeia remota, quem você chama? A polícia? O arcebispo de Canterbury? Ou a News of the World?

— Flavia, querida — disse o vigário, pousando uma mão trêmula em meu ombro —, seja uma boa menina, corra até lá fora e chame o sargento Woolmer.

No mesmo instante, senti o meu rosto ficando quente, a pressão dentro da minha cabeça subindo como no Monte Vesúvio.

Por que as pessoas estão sempre fazendo isso comigo? Dando-me ordens como se eu fosse algum tipo de camareira a postos para emergências?

Contei até onze. Não, doze.

— Certamente, vigário — falei, mordendo a minha língua espiritual. Só quando já estava quase na porta, acrescentei baixinho: — Gostaria de uma xícara de chá e um biscoito também?

O sargento Graves não estava à vista. O Vauxhall azul se fora, o que significava, eu supus, que a polícia havia feito o que viera para fazer e então desaparecera.

Isso explicava por que o sargento permitira que eu entrasse na igreja. O meu engenhoso esquema de “flores para o altar” tinha sido uma perda de tempo. Tanto que Meg entrara e batera a porta explosivamente sem que um policial da aldeia tivesse erguido uma sobrancelha sequer.

Eu deveria ter percebido. A polícia estava de saída, e agora já tinha ido.

O que, sob um aspecto, era uma pena. Se eu fosse totalmente honesta, admitiria que estava ansiosa por renovar a velha parceria com o inspetor Hewitt. O inspetor e eu tínhamos neste momento o que poderia ser descrito como uma relação morna. Nota mental: verificar a origem da palavra “morna”. Seria bíblica? Uma das melhores passagens da Bíblia, pelo menos no meu modo de pensar, pertencia ao Apocalipse: “Porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca”. Um relacionamento que, por alguma razão, parecia alternar entre quente e frio dependendo da gloriosa esposa do inspetor, Antigone. Eu ainda não havia deslindado as engrenagens e alavancas da nossa relativamente instável relação triangular, mas com certeza não fora por falta de tentar.

Mais de uma vez, eu me jogara sobre aquela deusa afetuosa e fria na expectativa de que ela...

De que ela o quê? Prometesse ser minha verdadeira amiga e cúmplice secreta, pela eternidade e para todo o sempre, amém?

Algo assim, imagino. Mas as coisas não foram bem desse jeito.

Eu estragara tudo ao lhe perguntar se, com o salário de um inspetor, eles não podiam se permitir ter filhos. Por gentil que tivesse sido a sua resposta, eu soube que a magoara.

Embora não fosse acostumada a pedir desculpa, fiz o meu melhor, porém os seus bebês perdidos me perseguiram em meu sono por semanas.

Como teriam sido?, eu me perguntava. Teriam tido cabelos escuros como os dela, ou claros e ondulados como os dele? Eram meninos ou meninas? Sorriam quando ela arrulhava para eles, chutavam com seus pezinhos? Que apelidos carinhosos ela lhes tinha sussurrado e, ao fim, que nomes lhes dera antes de a terra os cobrir?

A maternidade podia ser um negócio duro, decidi, um negócio que jamais poderia ser verdadeiramente compartilhado. A despeito da sua aparência gentil, havia uma parte da esposa do inspetor que se achava eternamente além da compreensão.

Talvez fosse assim com todas as mães.

Eu estava pensando nisso, quando um Hillman preto se desviou da estrada principal e se apressou em minha direção pelo caminho de entrada da igreja, que não era feito para automóveis. Reconheci o motorista imediatamente: Marmaduke Parr, o secretário do bispo.

O carro tinha sido tão bem lavado que, enquanto Marmaduke desembarcava, pude ver a parte de trás da sua juba branca refletida na pintura polida.

— Bom dia, senhor Parr — eu disse, instintivamente ansiosa por impedi-lo de entrar na igreja. O vigário já tinha problemas suficientes sem um burocrata subalterno se intrometendo em algo que poderia provar ser um milagre.

Um santo de carvalho cujos olhos choravam sangue definitivamente poria um fim aos problemas financeiros de São Tancredo. O Fundo para o Teto, depois de meio século, seria liquidado, e, com um pouco de sorte, aqueles intermináveis concertos, festivais no pátio da igreja e jogos de tômbola no salão paroquial seriam postos para descansar.

— Reverendo Parr — ele corrigiu, em resposta à minha saudação. — Ou padre Parr, se preferir.

O homem estava tentando abocanhar mais do que era capaz de mastigar. Embora tivesse falado aquilo com o intuito de me repreender, ele obviamente não estava ciente de que, para nós, De Luce, católicos romanos desde a Ressurreição, jamais poderia haver sinos, livros e velas em demasia.

Como o vigário era um dos amigos mais próximos do pai, nós frequentávamos São Tancredo por querer, e não por dever. O pai via com bons olhos as muitas inovações que Denwyn Richardson trouxera à paróquia e, certa vez, chegara a dizer na cara do vigário, talvez brincando, que ele sempre pensara no Movimento de Oxford como o pastor voltando às suas ovelhas. Tudo isso, no entanto, era complicado demais para ser discutido no pátio da igreja.

Marmaduke Parr olhava para mim com petulância, impaciente por prosseguir com as suas intimidações.

— Então, um bom dia para você — ele disse e saiu marchando em direção à porta.

— Eu não entraria lá se fosse você! — gritei jovialmente. — Houve um assassinato. O lugar está fechado. Entrada proibida. É a cena de um crime.

Usei as palavras exatas do sargento Woolmer, sem me preocupar, no entanto, em mencionar que a proibição já tinha sido suspensa.

Ele parou de repente e voltou lentamente até mim. Seu rosto e seus olhos pareciam mais pálidos que nunca.

— Como assim?

— Um assassinato — expliquei com paciência, uma palavra de cada vez. — Alguém foi morto na cripta.

— Quem?

— O senhor Collicutt — sussurrei arrogantemente. — O organista.

— Collicutt? O organista? Impossível. Ora, ele tinha acabado de...

— Sim? — eu disse, aguardando.

— Collicutt? — ele perguntou de novo. — Você tem certeza?

— Certeza absoluta. Todo mundo em Bishop’s Lacey só fala nisso.

Não era bem verdade, porém eu passara a acreditar que não há mal nenhum em espalhar um pouco de medo onde o medo é devido.

— Bom Deus! — disse o sr. Parr. — Espero que não. Definitivamente, espero que não.

Agora estávamos começando a chegar a algum lugar.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? — perguntei. — Esperava poder me voluntariar para ajudar a desenterrar São Tancredo, separar os ossos, essas coisas, mas parece que isso não vai mais acontecer.

— Certamente não vai mais acontecer! — ele disse. Seu rosto mudou instantaneamente da cor de leite azedo para um tom ardente de beterraba. — Isso é sacrilégio! Aqueles que dormem com o Senhor não podem ser perturbados em suas tumbas para mero entretenimento de um bando de aldeões desocupados!

Aldeões desocupados, é o que somos? Bem! Isso é o que vamos ver!

— Estou vendo que você pôs um ponto-final nisso — falei.

— O bispo pôs um ponto-final nisso — ele disse, empertigando-se em toda a sua altura, que era bem substancial, como se estivesse usando a mitra do bispo na cabeça e segurando o bastão episcopal em seu punho fechado. — E não apenas o bispo — acrescentou, como se fosse necessário mais um argumento. — O chanceler também é terminantemente contra. Ele revogou a autorização, e a exumação está desautorizada. Os arqueólogos foram mandados embora.

— Desautorizada? — perguntei. Eu estava interessada na palavra, e não apenas porque soava divertida.

—Estritamente desautorizada. — Ele disse isso com uma entonação de juízo final.

— E quem é o chanceler?

— O senhor Ridley-Smith, o magistrado.

O sr. Ridley-Smith, o magistrado?, pensei. O pai de Cassandra Cottlestone era um magistrado, Dafi me contara, e, como tal, era capaz de mover céu e terra — a ponto de conseguir que a sua filha suicida fosse enterrada em solo consagrado.

— Seriam os Ridley-Smith de Bogmore Hall? — eu disse.

Todo mundo sabia dos Ridley-Smith de Bogmore Hall, em Nether-Wolsey. Outrora, tinham sido tema de histórias sussurradas por trás de elaborados leques de papel; hoje, provavelmente eram mencionados em meio à fumaça dos cigarros na casa de chá ABC.

Eu escutara, por exemplo, de Sheila Foster, amiga de Felinha, sobre Lionel Ridley-Smith, que pensava ser feito de vidro, e sobre sua irmã, Anthea, cujo crocodilo de estimação havia devorado uma camareira.

— Isso, é claro, foi antes da Primeira Guerra — dissera Sheila —, quando as camareiras eram mais abundantes do que hoje.

E não era a srta. Pickery, a bibliotecária, que tinha uma irmã casada, Hetty, que vivia em Nether-Wolsey?

Hetty sofrera o que a srta. Mountjoy, a antiga bibliotecária, certa vez chamara de “um trágico acidente” com uma máquina de costura. E com o que foi mesmo que a srta. Cool, da confeitaria, contribuiu para o meu armazém de conhecimentos sobre o misterioso porém ausente Henry?

— ... a Singer, a agulha, o dedo, os gêmeos, o marido inconstante, a garrafa, as contas... — ela me contara.

Isso, é claro, fazia mais de um ano, mas, com um pouco de sorte, Hetty estaria mais do que nunca à procura de alguém disposto a cuidar de gêmeos.

— Isso mesmo — disse Marmaduke Parr com uma fungada. — Os Ridley-Smith de Bogmore Hall.

E, antes que se pudesse dizer “antitransubstancionalista”, Gladys e eu estávamos chispando pela pista estreita a caminho de Nether-Wolsey.

De um jeito ou de outro, pelos meios corretos ou não, eu iria fazer o chanceler Ridley-Smith engolir as suas palavras. Estritamente desautorizada, fale sério!

A sudoeste de Buckshaw havia uma encruzilhada, sendo o caminho esquerdo, via Nether Lacey, uma espécie de estrada secundária para Doddingsley. À direita ficava Sta. Elfrieda e, para além, um pouco mais para o sul, Nether-Wolsey.

Assim que me aproximei, notei que não era a aldeia mais bonita da Inglaterra. De jeito maneira. Até as árvores pareciam cansadas.

O marco mais notável era um antigo açougue espremido entre casas geminadas, suas tábuas cinzentas, sem pintura, cedendo como cortinados de madeira, conferindo ao lugar a palidez dos mortos-vivos. Na vitrine coberta de larvas de moscas pendia um velho arranjo de linguiças amarradas em cadeias e laçadas, e eu demorei para me dar conta de que elas formavam, de um modo repugnante, a palavra “carnes”.

Uma sineta tilintou quando abri a porta, e então, a não ser pelo zumbido de uma mosca na janela, o silêncio recaiu de novo sobre a loja.

— Olá! — chamei.

A mosca continuou zumbindo.

Um mostruário de vidro se estendia através da parte de trás da sala estreita, com diversos pedaços de carne crua à mostra, em uma exposição grotesca de vermelho, branco e azul que fez o meu estômago virar.

Atrás do balcão, em um rebuscado suporte de ferro fundido, havia um rolo de papel parafinado rosado. Um barbante grosso pendia convenientemente de uma pequena gaiola de arame presa ao teto.

Nos fundos da loja, em um canto, encontrava-se um cepo de açougueiro coberto de sangue e, atrás dele, uma porta aberta que obviamente levava à área atrás da loja.

— Olá? — chamei de novo. Sem resposta.

Contornei o mostruário de vidro e enfiei a cabeça para fora da porta.

O jardim estava atulhado de caixotes vazios. Um toco de árvore avermelhado obviamente fazia as vezes de cepo, cujas vítimas vinham dos galinheiros logo além.

Enquanto eu me achava plantada ali sem saber muito bem o que fazer, uma diminuta mulher de saia, blusa e bandana emergiu do galinheiro maior, segurando uma grande galinha parda pelos pés.

A ave se debatia de ponta-cabeça, as asas curtas batendo impotentes.

Quando colocou o pescoço da galinha sobre o cepo e estendeu a mão para o cutelo, ela me viu à porta aberta da loja.

— Volte para dentro — disse. — Estarei lá num instante. — O seu braço magro e descoberto ergueu a lâmina lustrosa.

— Não! Espere! — eu me ouvi dizendo. — Por favor...

A mulher ergueu os olhos, o cutelo no ar.

— Por favor — eu disse. — Quero comprar essa ave... mas viva.

O que tinha dado em mim? Muito embora eu não me importasse com humanos mortos — de fato, de certa maneira, eu me deleitava com eles —, soube naquele instante que não podia suportar o pensamento de qualquer outra criatura sendo ferida.

Não fazia tanto tempo desde que eu fora atacada por um galo enlouquecido em Bishop’s Lacey, e no entanto, a despeito daquela contenda sanguinária, era como se, neste momento, as minhas asas protetoras estivessem abraçando todas as galinhas do universo. Foi uma sensação muito peculiar.

— Viva... — consegui dizer, a cabeça girando que nem um pião de brinquedo.

A mulher pôs de lado o cutelo e jogou a ave para longe, que voou — voou mesmo! — através do pátio, fez uma aterrissagem mais ou menos decente e começou a ciscar a terra endurecida como se nada tivesse acontecido.

Eu sabia que, se estivesse aqui, Dafi teria dito: “O toque de recolher não irá soar esta noite”. Aquela galinha em particular, pelo menos por enquanto, viveria para cacarejar por mais um dia.

Eu tinha salvado a minha primeira vida.

Será que há vida após a morte para as galinhas?, me perguntei. Considerando as perspectivas do cutelo, da depenação, do caldeirão fervente, do calor do forno e da mastigação dos nossos dentes famintos à mesa de domingo, parecia meio improvável.

No entanto... no entanto, a despeito de tudo isso, talvez realmente houvesse a recompensa de um galo celestial em algum lugar sobre o céu azul.

— Eu saí sem dinheiro — falei. — Trago assim que puder.

— Você não é destas paragens, é? — a mulher perguntou, caminhando na minha direção.

— Não, mas não sou de muito longe — eu disse, acenando vagamente para o norte.

— Eu já não a vi antes? — ela indagou, agora perto o bastante para examinar o meu rosto.

Foi nesse momento que uma ideia brilhante me atingiu. Dizer a verdade. Sim, isso mesmo — dizer a verdade. O que eu tinha a perder?

— Talvez. Eu me chamo Flavia de Luce.

— É claro. Eu devia ter percebido. Os olhos azuis, o...

Ela parou como se tivesse topado com uma parede de pedra.

— Sim?

— Nós costumávamos fornecer aves a Buckshaw — a mulher disse lentamente —, para a senhora Mullet. Imagino que ela tenha partido há muito tempo, não?

— Não. Ela continua conosco — falei. E acrescentei rápido o bastante: — Felizmente.

— Mas isso já faz anos. Muitos anos. Antes de... Mas diga-me, o que a traz a Nether-Wolsey?

— Estou procurando uma mulher chamada Hetty. Não sei o seu nome completo, mas ela é...

— A irmã de Patsy Pickery.

Pus a mão na frente da boca para conter um sorriso.

— Sim — eu disse. — Ela mesma. A irmã de Patsy Pickery.

— Foi embora. Pegou as crianças e foi-se. Morava do outro lado da estrada, perto do posto de gasolina, mas então Rory a espancou, e ela pegou as crianças e... Mas, afinal, o que você quer com ela?

— Eu queria perguntar uma coisa.

— Talvez eu possa responder.

— É sobre Bogmore Hall — eu disse e notei a expressão da mulher se fechando antes mesmo que as palavras terminassem de sair da minha boca.

— Fique longe de Bogmore Hall — ela avisou. — Não é o tipo de lugar para alguém como você.

Alguém como eu? O que ela queria dizer com isso?

— Há algo que preciso falar com o senhor Ridley-Smith, o magistrado.

— Você se meteu em algum tipo de encrenca, não foi? — ela perguntou, fechando um olho como o Popeye.

— Não, na verdade, não.

— Bem, seja como for, não fique zanzando por aquele lugar. As coisas não andam muito bem por lá, se é que você me entende. — O seu dedo se dirigiu quase automaticamente, ao que pareceu, para a cabeça.

— Os Ridley-Smith, você quer dizer? O crocodilo? O homem que era feito de vidro?

A mulher deu uma fungada.

— Feito de vidro, o meu traseiro! — falou. — Escute aqui. Existem coisas que são piores do que vidro e crocodilos. Fique longe daquele lugar.

Ela acenou com a mão numa direção que imaginei ser o sudoeste.

— Está bem — eu disse. — Obrigada. Vou fazer isso.

Quando retornei para dentro da loja, ela não estava muito atrás de mim.

— Vou voltar para buscar a galinha assim que puder — falei por cima do ombro.

Eu já estava na rua com um pé em um dos pedais de Gladys, quando a mulher saiu apressada da loja, com um engradado de madeira nas mãos. Através dos sarrafos, a galinha parda enfiava a cabeça em todas as direções, os olhos amarelos brilhando intensamente para aquele vasto e insuspeitado mundo.

— O nome dela é Esmeralda — disse a mulher, amarrando agilmente o engradado ao bagageiro de Gladys.

— O dinheiro... — comecei.

No entanto, antes que eu pudesse terminar, ela já tinha corrido de volta para a loja e batido a porta.

Para o sul de Nether-Wolsey, a estrada seguia gentilmente colina abaixo. Para oeste, outra estrada subia de modo acentuado para uma escarpa proeminente que pairava sobre a aldeia como uma única sobrancelha escura. A colina bem poderia ter abrigado um velho forte.

Esta era a direção que a mulher tinha indicado ao me alertar sobre Bogmore Hall. Não poderia estar muito longe.

Me voltei para o oeste.

Depois de algum tempo, a estrada ascendente se tornou ainda mais íngreme, e agora era pouco mais que um caminho pedregoso. Mesmo em primeira marcha, Gladys oscilava perigosamente. Desmontei e empurrei-a devagar ladeira acima.

Quando saí de um corte profundo para uma elevação quase plana, não tive dúvida de que a escura construção gótica à minha frente era Bogmore Hall. Um conglomerado maluco de espigões pontiagudos lhe emprestava a aparência de um feixe de antigas lanças fincadas de qualquer jeito, com as pontas para cima, em um desmesurado porta-guarda-chuvas.

Isolada do resto do mundo, a casa ficava em um mar de capim selvagem em que se sobressaíam blocos de pedra quebrados e cobertos de musgo, que outrora poderiam ter sido querubins e ninfas de urnas e fontes. Um braço branco e gorducho projetava-se da terra como se pertencesse a um bebê morto tentando escapar da sepultura.

Janelas sem cortinas me fitavam inexpressivas, e a minha cabeça foi invadida pela ideia de que eu estava sendo observada por mais do que vidros. Um desgastado bloco de pedra servia de degrau de entrada, como se reformas tivessem sido iniciadas em outro século e depois abandonadas.

Parecia um lugar um tanto esquisito para servir de morada a um magistrado.

Encostei Gladys em uma balaustrada em ruínas e puxei a corrente enferrujada que pendia junto à porta. Embora eu não pudesse ouvir, sabia que, em algum lugar nas profundezas da casa, uma sineta soava.

É claro que ninguém respondeu.

Toquei de novo: uma... duas... três vezes.

Mesmo encostando o ouvido na porta, não consegui ouvir nada lá dentro. Ainda assim, persistia a inquietante sensação de estar sendo observada.

Dando as costas para a casa, caminhei despreocupadamente na direção do que devia ter sido o gramado da frente, mas que agora era um emaranhado de torrões de terra entranhados de ervas daninhas de um ano atrás. Pus a mão em concha acima dos olhos e fingi estar olhando a paisagem, que, daquela elevação, era realmente espetacular.

Então, dei uma meia-volta brusca.

Um rosto branco recuou de uma janela no andar de cima.

Puxei a corrente da sineta de novo, desta vez com muito mais insistência. Mas, como antes, a casa permaneceu em silêncio.

Tentei abrir a porta: trancada.

De modo a não poder ser vista de dentro, me encostei na parede e, lentamente, um passo de cada vez, dei a volta na casa toda até a porta da cozinha, onde, como a sra. Mullet certa vez me assegurara: “Há sempre uma chave embaixo do capacho”.

Ela estava errada. A chave não estava embaixo do capacho: estava escondida sob um vaso de flores quebrado, a menos de um metro da porta.

Eu nunca ficara tão feliz com o fato de Dogger ter me ensinado tanta coisa sobre a arte das fechaduras.

Aquela não era uma chave-mestra comum de casa, mas da variedade patenteada Yale. Quem quer que houvesse instalado aquela fechadura pretendia manter as pessoas do lado de fora.

Estranho, portanto, que deixasse a chave tão à mão, embaixo de um vaso de flores quebrado.

Introduzi silenciosamente os dentes serrilhados da chave na fechadura, girei-a e deslizei para dentro da casa.

A cozinha era uma caixa obscura, friamente iluminada por uma única janela no alto da parede. O chão de ardósia cinzenta deixava o lugar parecido com uma cela de prisão. O fogão apagado não oferecia nenhum calor ou conforto.

Estremeci com o ar úmido e pegajoso e puxei o meu cardigã bem apertado em volta dos ombros.

Uma porta larga, pensada, imaginei, para a passagem de carrinhos em antigos banquetes — com cabeças de javali e assim por diante —, levava a um corredor curto e então, à esquerda, a uma sala de desjejum em que dois lugares se encontravam parcialmente arrumados com facas, garfos, colheres e oveiros. Alguém já estava preparado para o dia seguinte, pensei.

Atravessei a sala silenciosamente e entrei no foyer sombrio: ladrilhos rachados, retratos escuros de velhos carrancudos com perucas de juiz e um leve cheiro de arenque defumado. Um alto relógio de pêndulo tiquetaqueava de modo irritante, como se contasse os segundos para uma execução. Talvez a minha própria.

O que eu iria fazer se fosse pega? Fingir que tinha visto fumaça em uma janela superior? Mas então por que eu não gritara para alertar os ocupantes da casa? E por que não gritara do lado de fora?

Como eu tinha encontrado a chave?

Talvez eu precisasse usar o telefone. Talvez, enquanto pedalava, eu tivera uma súbita queda de pressão que me deixara tonta e confusa. Talvez eu estivesse precisando urgentemente de um médico.

Um sino tocou! — e então mais um, reverberando horrivelmente no foyer vazio. Agora o meu coração estava disparado de verdade. Eu teria acionado um alarme oculto? Uma família de juízes provavelmente estaria muito bem informada a respeito de ladrões.

Mas não: era apenas aquele relógio idiota batendo as horas no canto para fazer companhia a si mesmo na casa estranhamente vazia.

Olhei para dentro de uma ou duas salas e achei-as muito parecidas: tetos altos, assoalhos expostos, uma ou duas peças de mobiliário e as altas janelas sem cortinas que eu notara de fora.

Era evidente pela própria atmosfera das salas do andar inferior que não havia ninguém em casa, e em poucos minutos eu andava por ali tão à vontade como se fosse dona do lugar.

Sala de bilhar, salão de baile, sala de estar, biblioteca — todos os ambientes frios como cinzas. Um pequeno e escuro estúdio estava repleto de pilhas até o teto de documentos jurídicos e pastas, as inferiores, mais pesadas, de velino, e as superiores, mais leves, de papel amarelado.

Estratos de vidas de pessoas, pensei, amontoados em pilhas à espera de julgamento. Ou já julgados. Quantos desses milhões de documentos teriam o nome De Luce escrito a tinta sobre suas páginas empoeiradas?

Espirrei, e uma tábua do assoalho rangeu.

Havia alguém ali?

Não — ao menos não nesta sala. A casa estava, pensei com um arrepio, silenciosa como um túmulo.

— Olá?! — gritei, a minha voz reverberando como se eu me achasse em uma caverna.

Eu sabia que ninguém responderia, e não respondeu.

No entanto, havia alguém ali — eu tinha certeza. O rosto branco que recuara da janela do andar de cima não podia ser coisa da minha imaginação.

Uma camareira, talvez, assustada demais para se mostrar por ter sido pega sozinha naquele lugar. Ou poderia ter sido o fantasma da antiga camareira que fora devorada pelo crocodilo de Anthea Ridley-Smith. Ou o espírito transparente de Lionel Ridley-Smith, que era feito de vidro.

Quem quer — ou o que quer — que fosse, aguardava por mim no andar de cima.

Se eu pensei em fugir em disparada?

Bem, sim, pensei.

Mas então pensei em como Marmaduke Parr intimidara o vigário e em como a aldeia de Bishop’s Lacey inteira ficaria desapontada — eu mais do que todos — por não ter os ossos do nosso santo visivelmente presentes entre nós no festival dos seus quinhentos anos.

Quando eles finalmente viessem à luz, eu poderia quem sabe me tornar uma espécie de heroína da aldeia, com banquetes etc. realizados em minha homenagem, discursos após o jantar feitos pelo pai, pelo vigário, pelo bispo e, sim, talvez até pelo próprio magistrado Ridley-Smith, agradecendo-me pela minha persistência obstinada e assim por diante.

Creio que Dafi se referira a uma tal efusão extravagante de louvor como um encômio, e me dei conta de que eu não era objeto de um encômio havia um longo, longo tempo.

Se é que tinha sido alguma vez.

Comecei a subir as escadas — um passo lento por vez, atenta ao mais ligeiro som de vida.

Seja uma casa inteira ou apenas uma gaveta, existe um prazer profundo e primitivo em bisbilhotar os pertences de outra pessoa. Embora uma parte de mim estivesse simplesmente apavorada, a maior parte se divertia como nunca. Eu tive vontade de assobiar, mas não me atrevi.

No topo da escada, como se fosse o passadiço de um transatlântico, um longo corredor à direita levava a alguma remota distância, o piso coberto por um linóleo marcado pelo uso. Dormitórios, pensei, cada qual com uma deprimente cama de quatro colunas, uma mesa com uma jarra e uma bacia e um penico esmaltado.

Uma rápida espiada em vários deles, de ambos os lados do corredor, provou que eu estava certa.

De volta ao topo da escada, uma sólida porta de madeira com um pequeno visor prometia outro longo corredor na direção oposta. Os alojamentos dos criados, talvez. Cobri o visor com as mãos em concha e espiei através do vidro, mas só enxerguei escuridão.

Tentei girar a maçaneta e, para minha surpresa, a porta se abriu.

Atrás dela pendia um pesado par de cortinas de veludo verde que, a julgar pelo cheiro de mofo, tinham sido limpas pela última vez quando Henrique VIII era solteiro.

Com relutância, puxei-as de lado, empoeirando as mãos, e me vi frente a frente com outra porta. Ela também tinha um visor circular, porém este, diferentemente do outro, era feito de vidro fosco.

Tentei a maçaneta, mas a segunda porta estava trancada. As portas trancadas pareciam estar por toda parte, pensei.

Primeiro, a porta de madeira no túnel do pátio da igreja, e agora estas.

Seria uma coincidência?

Normalmente, eu teria descido as escadas para a cozinha, enfiado no bolso um garfo barato e uma escova de lavar garrafas e resolvido rapidamente o problema.

Mas, outra vez, a fechadura era Yale.

Não havia jeito de entrar naquela ala da casa a não ser escalando uma parede externa. A menos que houvesse outra entrada pelas escadas dos fundos.

Em uma frustração momentânea, abri bem a mão e apertei os dedos contra o vidro frio.

Houve uma cintilação — uma mera mudança de luz — e então a sombra negra de uma mão se materializou e se esparramou contra o outro lado do vidro, espelhando a minha mão, dedo a dedo — exceto pelo fato de que aqueles dedos eram unidos por membranas!

Aquilo e eu só não estávamos nos tocando graças ao centímetro de vidro.

Perdi o fôlego.

Antes que eu pudesse me mover, a fechadura estalou. A maçaneta virou com uma lentidão enlouquecedora e a porta se abriu, centímetro a centímetro.

Ele era pequeno e vestia um casaco Norfolk e calções fechados abaixo dos joelhos, um colete xadrez amarelo e um alto colarinho branco de celuloide — o traje rejeitado de alguém, provavelmente encontrado em um baú.

Os cantos dos seus olhos e — como eu já observara — os seus dedos eram unidos por membranas. Ele tinha uma cara redonda que se erguia sobre um queixo diminuto e uma língua grande que a boca não conseguia conter por completo. As orelhas, pequenas e redondas, se localizavam muito abaixo na cabeça, e a pele parecia ter sido toda esfregada com cera de vela.

Seria um homem ou um menino? Era difícil dizer.

Seu rosto era jovem e sem rugas, porém o cabelo bem penteado era completamente branco. Como o de Dogger, me dei conta, chocada.

Eu não me mexera. Estava paralisada, o braço esticado, os dedos espalhados como se tentasse parar um cavalo fujão, a mão na mesma posição em que se encontrava contra o vidro.

Por um tempo desagradavelmente longo, ficamos olhando um para o outro, parados.

Então, ele falou:

— Olá, Harriet.


11

SENTI UM ARREPIO GELADO, como se um fantasma tivesse passado por mim.

Sem saber que ela havia morrido, aquele pobre homem obviamente estava sob a impressão de que eu era Harriet. Eu seria capaz de me comportar de acordo com a mentira, ou deveria simplesmente lhe contar a verdade?

Ele deu um passo para trás e acenou para que eu entrasse.

É em momentos como este, quando tudo o que lhe foi ensinado entra em embate com o seu coração, que você descobre do que é feita. Por um lado, eu queria descer as escadas correndo, sair desta casa, voltar para Buckshaw, subir para o meu quarto, trancar a porta e mergulhar debaixo dos cobertores. Por outro, queria jogar os braços em volta desta pessoa pequena e redonda, deixá-la encostar a cabeça no meu ombro e abraçá-la até o sol arder sua última fagulha.

Dei um passo para dentro e ele fechou a porta abruptamente, como se tivesse capturado uma borboleta rara.

— Venha — disse. — Sente-se.

Eu o segui.

— Você se foi por um longo tempo — ele disse depois que eu me instalei na poltrona que me fora oferecida.

— Sim — falei, tendo decidido naquele instante seguir os meus instintos. — Eu estive afastada.

— Perdão? — Ele inclinou a cabeça na minha direção.

— Estive afastada — repeti, mais alto desta vez.

— Você está bem?

A sua voz era bem profunda: profunda demais para um menino, decidi.

— Sim. Muito bem. E você?

— Eu sofro. Mas, fora isso, também estou muito bem. — Então, ele acrescentou de repente: — Chá!

Foi até um aparador onde havia uma chaleira esmaltada sobre um pequeno aquecedor elétrico, ligou-o e ficou enxugando os dedos nervosamente nas calças enquanto a chaleira esquentava.

Aproveitei a oportunidade para dar uma olhada no quarto: cama, cômoda com uma Bíblia preta, guarda-roupa. Atrás da cama, na parede, havia um par de fotografias. A primeira, em uma moldura preta, era de um homem de toga, em pé, com as articulações dos dedos de uma mão pressionadas contra o tampo de uma mesa, um livro aberto na outra, olhando para a câmera com desdém. O magistrado Ridley-Smith — eu soube com certeza.

A segunda fotografia, menor, achava-se em uma moldura oval de algo que parecia bambu. Nela, uma mulher de rosto pálido com um vestido branco de babados erguia os olhos atormentados do seu bordado como se alguém tivesse acabado de lhe dar notícias trágicas. Estava sentada em uma varanda, e era possível ver árvores exóticas ao fundo, ainda que fora de foco.

Havia algo de familiar na mulher.

Me ajeitei o mais displicentemente que pude para olhar mais de perto.

O homenzinho desligou o interruptor, ergueu a chaleira e despejou um pouco do líquido preto como piche para cada um de nós.

— A sua xícara favorita — falou, entregando-me uma xícara de porcelana e um pires decorados com grandes amores-perfeitos azuis. A xícara estava bastante lascada ao longo da borda e rachaduras pretas partiam de cada lasca, como numa representação do rio Amazonas e todos os seus afluentes.

— Obrigada — eu disse, tirando os olhos da fotografia. Precisaria ficar mais íntima antes de reunir coragem para perguntar sobre a mulher. — Faz muito tempo desde que tomei uma boa xícara de chá.

O que, a não ser pelo meu desjejum com Dogger, era verdade.

Forcei-me a levá-la até a boca e sorrir amigavelmente enquanto a borra cáustica carcomia as minhas papilas gustativas. Aquela infusão estava sendo fervida havia meses.

Depois de uma longa pausa, ele perguntou:

— E como está Buckshaw?

— Como sempre.

O que também era verdade.

Ele me olhava ansioso por sobre a borda da xícara.

— É adorável na primavera — observei. — É sempre adorável na primavera.

Ele aquiesceu tristemente, como se não soubesse muito bem o que era primavera.

— O magistrado está em casa hoje? — perguntei. Não quis correr o risco de adivinhar se aquele homem curioso com quem eu bebericava chá era o filho ou o irmão do sr. Ridley-Smith. Nunca o vira em São Tancredo, cujos paroquianos eu conhecia de vista desde o velhinho mais idoso até o bebê mais recente da sra. Lang.

— O pai? — ele disse. — O senhor Ridley-Smith? O senhor Ridley-Smith nunca está em casa.

— Eu tinha a esperança de vê-lo, a respeito de um assunto da igreja — falei. Ele anuiu sabiamente.

— A respeito do santo?

Quase babei o meu chá.

— Sim. Na verdade, é isso mesmo. Como você sabia?

— O senhor Ridley-Smith fala com Benson no ar.

— Perdão?

— No ar — ele repetiu, gesticulando com uma mão. — O senhor Ridley-Smith fala com Benson.

— Entendo — eu disse, embora não houvesse entendido nada.

— O santo não pode ser despertado! — ele falou em uma voz subitamente alta e rude, e me dei conta de que estava arremedando o pai.

— Por que não?

Ele não respondeu, mas ergueu os olhos para o teto.

— Psiu!

Os meus ouvidos já tinham captado uma mudança no som do quarto, como se o aposento houvesse se tornado subitamente maior. Havia um zumbido — um silvo...

— Ottorino Respighi — anunciou uma voz cava e monocórdia, que parecia vir de lugar algum. — Os pinheiros e as fontes de Roma.

As palavras foram pronunciadas sem nenhuma expressão, como se a pessoa que as proferira estivesse cansada de respirar. Ela também pronunciara “Respighi” errado.

Então, houve um clique!, seguido do crepitar de uma agulha nos sulcos de um disco fonográfico.

O som metálico da música começou. Afinal, localizei a fonte em uma abertura gradeada no alto da parede.

— Ora... — comecei, mas, no mesmo instante, o homenzinho me interrompeu com a mão erguida.

— Escute! — disse, levando um dedo palmado aos lábios.

Talvez outra comunicação estivesse a caminho, pensei. Era óbvio que havia mais alguém na casa. A voz cava não era a de um comentarista da BBC e, certamente, não soava como a de um magistrado ou chanceler.

E se ele me pegasse aqui?

Os pinheiros e as fontes de Roma continuou rodando, provendo uma trilha sonora dramática para os meus pensamentos fervilhantes.

Quem mantinha este homem desafortunado trancado em um quarto no andar de cima? E por quê? Por que lhe impingiam música de um alto-falante oculto? Quem era Benson? Por que o santo não podia ser despertado?

— Aquela voz era de Benson? — perguntei, mas novamente as minhas palavras foram recebidas com um dedo nos lábios e um urgente “Psiu!”.

Por que não ajudar este homem a escapar?, pensei. Eu poderia simplesmente sair com ele pelas duas portas, descer as escadas, atravessar o foyer e deixar a casa. Eu o equilibraria no selim de Gladys, o faria se segurar à minha cintura, desceria a encosta com a roda livre até Nether-Wolsey e então pedalaria em pé até Bishop’s Lacey. Eu o levaria para a casa do vigário e...

Espere um minuto, disse uma voz dentro da minha cabeça. A porta para este quarto estava trancada. Ele deixou você entrar!

Qual de nós era o prisioneiro, afinal?

Se a segunda porta podia ser aberta de dentro, qual era o propósito dela? Manter alguém do lado de fora?

Será que a porta exterior também podia ser aberta de dentro? Possuía uma tranca? Eu não havia notado. Ela certamente não estava trancada. Talvez Benson, ou quem quer que fosse o dono da voz desencarnada, a tivesse deixado aberta por acidente.

Duas portas, duas fechaduras: uma aberta, a outra não.

Era como um quebra-cabeça no Anuário das meninas.

Eu estava pensando isso quando a música chegou ao fim.

— A música ensina. A música tranquiliza a besta selvagem — disse o meu anfitrião (ou seria o meu captor?). Novamente, pensei ter detectado o arremedo de uma voz mais áspera.

Antes que eu pudesse fazer outra pergunta, a voz desencarnada falou de novo, elevando-se por sobre o ronco e o zumbido do alto-falante:

— Peter Ilyich Tchaikovsky. Abertura de O lago dos cisnes.

Houve um estrondo abafado, como se alguém tivesse derrubado uma peça de porcelana em outro quarto.

— Última forma — a voz ordenou, e um silêncio incômodo se fez. Então, ela disse em um tom bemol: — Franz Schubert. A morte e a donzela.

Novamente, a agulha foi solta nos sulcos do disco e os sons de um quarteto de cordas se infiltraram através da cobertura de peneira do alto-falante.

A morte e a donzela? Seria um aviso?

Que tipo de manicômio era aquele em que eu fora parar?

Agora, o meu anfitrião se achava perfeitamente quieto, absorto por completo na música, os olhos fechados, as mãos juntas no colo, os lábios pronunciando palavras silenciosas.

A sua deficiência auditiva tornava improvável que ele detectasse ruídos leves, que, graças a Franz Schubert, também seriam mascarados pela música. Desde que não fizesse sombra em seu rosto, eu estaria segura. Eu me pus lentamente em pé e atravessei o quarto numa lentidão glacial, contornando-o pela direita e por trás para não passar na frente da janela.

Alcançando a cômoda, abri a capa da pesada Bíblia preta.

Aleluia!

Como eu esperava, os ramos da árvore genealógica da família Ridley-Smith serpenteavam como gavinhas selvagens pela página. Bem embaixo, sob o título “Nascimentos”, havia esta entrada:

Vivian Joyous Ridley-Smith — 1o de janeiro de 1904

Vivian. Então era esse o seu nome. Tinha quarenta e sete anos de idade.

Eu estava fechando a Bíblia quando os meus dedos rasparam um canto agudo. Algo se projetava ligeiramente da borda das duas páginas seguintes. Um envelope. Puxei-o para fora.

Na frente, estava escrito em uma caligrafia fluente — e obviamente feminina —: “Para Jocelyn”.

Aquilo devia ter pertencido a tempos passados: devia ter sido removido dos documentos da família. Mas quem era Jocelyn, a destinatária?

Não havia selo postal e, portanto, não havia data no envelope. Provavelmente fora entregue em mãos.

Levei-o ao nariz e dei uma cheirada, e o meu coração quase congelou quando as minhas narinas foram preenchidas com o odor de pequenas flores azuis, de prados montanhosos e de gelo.

Miratrix.

O perfume de Harriet!

Eu o cheirara muitas vezes no boudoir dela. Me era tão familiar quanto as costas da minha própria mão.

Com dedos desajeitados, abri o envelope e extraí uma única folha de papel.

“Querido Jocelyn”, assim começava.

Jocelyn?

E então eu vi! É claro! “Jocelyn” — “Joss” — era uma variante de “Joyous”.

Um apelido. Um nome pelo qual somente a sua família e os seus amigos mais próximos — talvez apenas Harriet — o chamariam.

Querido Jocelyn,

Devo me afastar por algum tempo e não poderei visitá-lo.

Sentirei falta de lermos os dois juntos e espero que você continue

fazendo isso. Lembre-se do que eu lhe disse: os livros fazem a

alma flutuar.

Sua amiga,

H.

P.S.: queime depois de ler.

Por estranho que pareça, foi somente então que o meu cérebro admitiu que era a caligrafia de Harriet.

As minhas mãos de repente tremiam como folhas no inverno. A minha mãe escrevera esta nota quando estava prestes a partir em sua jornada final.

Enfiei o papel de volta no envelope e o recoloquei na Bíblia.

A música flutuou lentamente de volta à minha consciência: o serra-serra dos arcos nas cordas da melodia pesarosa.

A morte e a donzela.

Jocelyn continuava escutando atentamente, os olhos fechados.

Quantas vezes Harriet o visitara ali? Como ela conseguia passar por todas aquelas portas — pelo menos duas delas trancadas?

Talvez, onze ou doze anos atrás, as coisas fossem diferentes. Talvez, como Buckshaw, Bogmore Hall tivesse sido um lar feliz.

Mas, por alguma razão, eu duvidava disso. O lugar era como eu imaginava que seria um tribunal abandonado: frio e vazio e cheirando a tribunal, o último prisioneiro arrastado para fora em sua punição.

Com exceção de Jocelyn, é claro. Aparentemente, ele tinha sido sentenciado a prisão perpétua.

Comecei a pensar na horrível existência que ele devia levar, quando a minha cabeça começou a me mandar uma mensagem urgente — algo acerca das portas duplas. Mas o quê?

As fechaduras! Se Benson, ou quem quer que fosse o carcereiro de Jocelyn, tivesse de fato se esquecido de trancar a porta exterior e acaso retornasse, eu também ficaria trancada.

Precisava sair daquele lugar imediatamente! Quaisquer pensamentos sobre questionar Jocelyn a respeito do seu pai, ou de Harriet, ou do santo que não devia ser despertado, teriam de ser adiados para outro dia.

Enquanto ele permanecesse dentro da sua bolha educativa musical, eu poderia partir sem que me notasse.

Planejei o meu percurso e comecei a me mover devagar em direção à porta. Já estava no meio do quarto, quando a música terminou.

Jocelyn virou a cabeça um pouco para a direita — e então para a esquerda. Levantou-se da cadeira e deu meia-volta exatamente quando eu toquei a maçaneta da porta.

Os seus olhos encontraram os meus, a sua face inexpressiva. Era impossível dizer o que ele pensava.

Não sei o que me levou a fazer isso, mas deve ter sido alguma memória primitiva que me fez, sem pensar, erguer três dedos aos lábios e lhe soprar um beijo.

Então, saí pela porta.

Agora, eu estava de volta à pequena câmara, as cortinas empoeiradas se arrastando pelo meu rosto como a teia de uma obscena aranha-mamute. Lutei para me livrar delas e abri o fecho da fechadura da porta externa. Havia uma fechadura, afinal.

Mas espere um pouco!

E se Benson estivesse esperando do outro lado? Pegar uma intrusa em flagrante seria realmente um triunfo pessoal.

Mantendo o olho bem afastado do visor de vidro, movi a cabeça lentamente de um lado para outro a fim de observar a sala de fora, pedaço por pedaço, metro por metro.

Vazia.

Abri a porta com cautela e estava com um pé para fora, quando ouvi o som de passos. Um momento depois, vista através dos balaústres, uma cabeça apareceu. Uma cabeça estranhamente familiar.

Alguém estava subindo a escada! Um homem.

Eu não tinha onde me esconder. Era tarde demais.

Ainda bem que eu não havia fechado a porta atrás de mim. Me esquivei para o cubículo e fechei silenciosamente a tranca.

Teria ele me visto?

Eu não podia voltar ao quarto de Jocelyn — a porta interna se trancara atrás de mim. Estava presa naquele espaço escuro, sem ar, entre as duas portas: aprisionada no meio das cortinas de veludo mofadas.

Uma chave arranhou a fechadura.

A poeira carcomia as minhas narinas como pimenta-preta. Eu ia espirrar.

Apertei o nariz entre o polegar e o indicador e tentei respirar pela boca enquanto me espremia no canto atrás da porta, me encolhendo, tentando me fazer tão pequena quanto possível.

A porta se abriu, forçando-me contra a parede e expelindo o ar dos meus pulmões.

Houve uma pausa — e então, o som de uma chave na segunda fechadura.

Eu não podia respirar. Estava a ponto de sufocar.

De súbito, a pressão se aliviou quando a porta de fora foi fechada.

Eu me encontrava trancada no cubículo com o homem. Ele se achava tão perto, que pude sentir o cheiro do seu hálito. Tabaco e arenque defumado.

Houve um arrastar de pés, e as cortinas ondularam.

— Ei, quer abrir a porta? — o homem bradou, quase ao meu ouvido. — Estou com uma bandeja.

Ouvi um som de batida, como se ele estivesse chutando a porta interna.

Depois de uma eternidade, a tranca se abriu.

— Benson? — a voz de Jocelyn perguntou.

— Quem mais você achou que fosse? — rosnou o homem. — O rei de Sião?

Então, ele se foi, e eu fiquei sozinha no cubículo abafado.

Contei até três e deslizei a tranca da porta externa, que deixei entreaberta ao seguir para a escada.

Catorze, quinze, dezesseis: voei pelos degraus de pedra como se os cães de Hades ladrassem atrás de mim. Contei os degraus conforme eles desapareciam sob os meus pés. Agora eu estava no patamar. Vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro — dois de cada vez —, vinte e seis. Atravessei o foyer, saindo pela porta da frente, e só então, acho, comecei a respirar.

Gladys estava onde eu a deixara, encostada na balaustrada de pedra em ruínas. Esmeralda bicava o fundo do engradado, absorta nos seus próprios pensamentos.

Já pedalando para longe, arrisquei uma olhada para trás, para as janelas do andar de cima. Vazias.

Nenhum rosto na janela. Nem de Jocelyn, nem — ainda bem — de Benson.

Eu sabia que já tinha visto aquele homem em algum lugar.

O problema era este: por mais que me esforçasse, eu não conseguia me lembrar de onde.


12

O SOL ESTAVA MUITO baixo no oeste conforme eu pedalava rumo a Buckshaw.

O pai, eu sabia, estaria furioso. Ele exigia que todas nós, sem exceções nem desculpas, estivéssemos adequadamente vestidas e sentadas a tempo para a refeição da noite. Agora, por causa da minha impontualidade (“impontualidade” é uma daquelas palavras de “dez xelins e seis pence” que Dafi adora lançar contra mim), a sra. Mullet precisaria ser retida até mais tarde, e o pai, que tentava desesperadamente reduzir as horas de trabalho dela para cortar despesas, se veria contra a parede, obrigado a pagar horas extras.

Mesmo antes de chegar aos Portões Mulford, eu soube que algo estava errado. Uma aglomeração se juntava na saída da estrada.

Teria havido um acidente?

Acelerei com tanta vontade que fui forçada a apertar violentamente os dois freios de mão e derrapar de lado, parando de um jeito humilhante para evitar atingir as pessoas.

Ainda montada em Gladys, mas com os pés no chão, bamboleei até o grupo. Mal pude acreditar nos meus olhos.

O pai, Felinha, Dafi, Dogger e a sra. Mullet se achavam plantados em um semicírculo desigual. Nenhum deles sequer olhou para mim.

O centro de sua atenção era um homem com um colete pequeno demais, um colarinho de celuloide apertado e olhos lacrimosos e saltados, que, com uma marreta, martelava uma placa no chão.

VENDE-SE, estava escrito em sinistras letras pretas.

TUM! TUM! TUM!, cantava a marreta, e cada golpe era como uma estaca sendo fincada no meu coração.

Buckshaw à venda! Eu não podia acreditar!

Houvera ameaças, é claro, e, no passado, o pai nos avisara de que estava perdendo a sua longa batalha com o departamento do governo ao qual ele, em um momento mais alegre, se referira como “As sanguessugas de Sua Majestade”. Mas, de algum modo, nós sempre contornáramos a situação; sempre surgia alguma coisa.

Havia apenas alguns meses, por exemplo, um primeiro in-quarto de Romeu e Julieta de Shakespeare viera à luz em nossa biblioteca, porém, como as suas próprias iniciais e as de Harriet estavam entrelaçadas em tinta na primeira página do livro — uma lembrança do seu namoro —, o pai se recusara a se separar dele.

O ator Desmond Duncan o assediara com uma oferta exorbitante após a outra, mas o pai as ignorara. O Museu Britânico então se oferecera para fazer uma proposta conjunta que provavelmente teria comprado a cidade de Stratford-upon-Avon inteira, até o último cisne.

No entanto, o pai recusara-se a ceder.

Agora, as coisas chegaram a este ponto.

Havia momentos em que eu tinha vontade de sacudir o pai: agarrá-lo pelas lapelas e sacudi-lo até as penas saírem voando.

“Seu tolo cabeça-dura!”, queria gritar na cara dele.

Então, quando a razão se infiltrava novamente no meu cérebro superaquecido, eu me dava conta de como nós dois éramos parecidos e de que o meu pai me irritava mais justamente quando agia como eu mesma.

Não fazia o menor sentido, mas era assim.

Agora, aqui estávamos nós, todos em semicírculo, plantados na estrada como caipiras na feira, assistindo enquanto um estranho martelava uma placa em nossa terra ancestral.

Foi somente neste momento — quando me dei conta de que os meus familiares, cada um deles, haviam sido arrastados para fora de casa e caminhado a considerável distância pela avenida de castanheiras da casa até os Portões Mulford para ver um meirinho sequestrar a nossa propriedade — que a gravidade da situação me tocou.

Até onde eu me lembrava, era a primeira vez que todos nos encontrávamos verdadeiramente juntos.

E ali permanecemos: nós, os De Luce, amargos como a morte, Dogger com os músculos do queixo tensos, a sra. Mullet em lágrimas.

— Não está certo — ela murmurou enquanto sacudia a cabeça. — Não está nada certo.

Foi a única a falar.

Após algum tempo, o pai se afastou lentamente em direção à casa, seguido por Felinha e Dafi, depois Dogger.

O meirinho, findo o seu serviço, sacudiu a poeira das mãos e jogou a marreta no porta-malas de um Anglia enlameado que se achava estacionado à margem da estrada. Momentos depois, já não estava mais lá.

A sra. Mullet e eu continuamos em silêncio, juntas, no mundo que escurecia.

— O seu jantar está no forninho, querida — ela disse. Então, voltou-se e caminhou, muito devagarinho, na direção de Bishop’s Lacey.

* * *

Mais tarde, no meu quarto, encurvada entre os travesseiros, eu beliscava a comida, jogando uma ou outra ervilha de lata para Esmeralda, no chão. Ouvi uma batida leve à porta.

Era Dogger.

— Trouxe um pouco de pão e água para a sua amiga — ele disse, pondo no chão uma das duas tigelas que trazia.

— O nome dela é Esmeralda — falei. — Eles iam matá-la.

Com Dogger, não havia necessidade de longas e detalhadas explicações. Ele entendia as coisas tão depressa e facilmente, que era como se as absorvesse pela pele.

— Um belo exemplar de Buff Orpington — observou, jogando-lhe uma migalha de pão. — Não é, Esmeralda?

Esmeralda pulou em cima da migalha, que desapareceu.

Dogger jogou-lhe mais uma.

— Ela não queria comer — eu disse. — Tentei dar um pouco do meu milho.

— Ela pode estar choca. Algumas variedades apresentam maior inclinação do que outras a ficarem chocas na primavera.

— O que é “choca”? — Eu nunca tinha ouvido a palavra.

— Significa estar irritada e com uma forte inclinação para sentar no ninho — Dogger explicou.

— Como o pai — deixei escapar. Não pude evitar.

Dogger jogou mais uma migalha para Esmeralda.

— Uma raça muito forte, a Buff Orpington — ele disse. — Muito britânica. Dizem que a rainha gosta bastante delas. Tem um bando delas no castelo de Windsor, acredito.

— Talvez pudéssemos criar galinhas em Buckshaw! — eu falei, subitamente inspirada. — Poderíamos improvisar algumas gaiolas na estrebaria e vender ovos no mercado de Malden Fenwick. Seria muito divertido.

— Receio que isso exija mais do que galinhas — disse Dogger com um longo suspiro. Então, depois do que pareceu ser uma pausa eterna, ele acrescentou: — Não, receio que galinhas não sejam o bastante.

— Mas o que precisamos fazer?

— Precisamos rezar, senhorita Flavia. É tudo o que restou.

— Boa ideia. Vou rezar antes de dormir para que ninguém veja a placa de “Vende-se”. Então, primeira coisa pela manhã, vou destruí-la com o machado até transformá-la em cavacos para acender fogo.

— Isso não adiantaria nada. O anúncio sairá em todos os jornais.

— Talvez, se rezássemos para São Tancredo... — eu disse, minha cabeça fervendo de ideias. — Afinal, ele é o nosso santo padroeiro. Você acha que o fato de não sermos anglicanos vai nos prejudicar?

— Não. Nos tempos de Tancredo, não existia a Igreja da Inglaterra. Ele era tão católico romano quanto alguém pode ser.

— Você tem certeza?

— Certeza absoluta.

— Então, está feito. Estarei lá quando abrirem a sepultura e rezarei por Buckshaw antes que qualquer um tenha a chance de fazer um pedido.

Isso me levou, com um pequeno choque, de volta à cripta da igreja e ao falecido sr. Collicutt.

Na última noite, eu perdera a oportunidade de rever o pátio da igreja e explorar o túnel que a conectava à tumba de Cassandra Cottlestone.

Será que já era tarde demais? Teria a polícia descoberto a passagem secreta? Ou a teria deixado passar despercebida em sua pressa de encontrar o assassino?

Só havia um jeito de descobrir.

— Boa noite, Dogger — falei, com um falso bocejo. — Uma boa noite de sono me ajudará a começar cedo.

Eu não disse quão cedo.

Às duas e quinze da madrugada, a estrada era uma fita de luar, como no poema do sr. Noye “O assaltante da estrada”. No meu comprido e escuro casaco invernal de ir à igreja, eu poderia ter me passado pelo próprio assaltante da estrada, a não ser pelo fato de que estava de bicicleta e não planejava acabar morta como um cão.

“Agasalhe-se bem”, a sra. Mullet sempre me dizia e, desta vez, eu aceitei o seu conselho. Com grossas meias marrons e um suéter de lã por baixo do casaco de domingo, eu estava tão aquecida quanto uma torrada, perfeitamente equipada para descer ao submundo.

O ar frio do começo da manhã fustigou o meu rosto, e uma coruja caçadora rasou a estrada à minha frente. Tive vontade de gritar “Uhuuu!”, mas não me atrevi. Você nunca sabe quem está ouvindo na escuridão.

Tirei a lanterna do bolso e fiz um teste rápido. Em vez de apontar o facho para a estrada e tornar a minha presença conhecida por quilômetros ao redor, enfiei a lente na boca e liguei. Fui recompensada com uma rica incandescência vermelha das minhas bochechas estufadas. Estava funcionando.

A qualquer um que se achasse fora de casa nesta hora desoladora — por exemplo, caçadores ilegais — eu pareceria uma fantasmagórica lanterna de abóbora do Dia das Bruxas a flutuar pela estrada de Bishop’s Lacey, com olhos pretos e vazios e uma cabeça iluminada de dentro por um fogo sobrenatural.

Virei a cabeça para um lado e para outro e olhei fixamente, terrificada, para o interior das valetas.

Lendas surgiram na minha cabeça: “O caçador do inferno”, que contavam às crianças em vozes abafadas, afirmando terem ouvido o ruído dos cascos de um cavalo fantasma.

Alertavam-nas contra furtar doces e contar mentiras.

Embora fosse agradável contar a mim mesma essas histórias, parte de mim sabia que eu só fazia isso para espantar o medo.

Quem sabe que horrores eu iria encontrar naquela passagem úmida e terrosa embaixo da igreja? Não era tanto o pensamento de espíritos mortos-vivos que me perturbava, mas sim o conhecimento de que havia um assassino à solta em Bishop’s Lacey.

Naquela hora da madrugada, não haveria polícia na cena do crime: ninguém para me salvar se eu me encontrasse numa situação difícil.

O pátio da igreja, quando cheguei a ele, era como as ilustrações perturbadoras das novelas góticas de Dafi: apenas sombras profundas, inclinadas pedras tumulares que lembravam dentes quebrados e, por toda parte, aquele sinistro limo tumular com uma espécie de brilho quase luminescente de um azul-esverdeado e rançoso à luz fria de uma lua quase cheia de março.

Estacionei Gladys no lado norte da tumba de Cassandra Cottlestone e dei uma palmadinha no seu selim de couro. Um lampejo prateado do guidão me lembrou um cavalo assustado mostrando o branco dos olhos.

— Fique de olho — sussurrei. — Eu volto já.

O montículo de terra e o encerado pareciam estar do mesmo jeito que eu os deixara. Até onde a luz da lua me permitia dizer, não havia pegadas; nenhuma impressão fresca de botas oficiais.

Até agora, tudo bem, pensei.

Avancei lentamente por baixo do encerado, deixei os pés penderem no espaço vazio por alguns segundos — e então me deixei cair dentro da sepultura.

Como antes, as minhas narinas foram tomadas instantaneamente pelo mau cheiro, mas, desta vez, decidi ignorá-lo no meu cérebro.

Agora, havia pouco risco de que a luz da minha lanterna fosse notada; assim, acendi-a e voltei a minha atenção à pesada porta de madeira.

Eu trouxera comigo uma das minhas ferramentas prediletas para forçar fechaduras: os arames que restaram do meu aparelho ortodôntico, o qual eu arruinara no último verão para um fim similar na Greyminster School. Eles e um garfo torto de picles — de que ninguém, eu esperava, iria sentir falta — eram tudo o que uma pessoa precisaria para abrir quase qualquer fechadura no mundo cristão.

O problema era que a fechadura estava enferrujada. Não poderia estar tão oxidada, pensei, já que, se a minha teoria estivesse correta, fora usada recentemente — seis semanas atrás, para ser mais exata. Ainda assim, aquela coisa estúpida se achava emperrada.

Como eu iria arranjar um óleo lubrificante decente no fundo de uma tumba fedorenta, às duas e meia da madrugada?

A resposta me veio quase tão depressa quanto a pergunta.

Há um hidrocarboneto insaturado de fórmula molecular C30H50 e nome pouco charmoso — squalene — que é encontrado na levedura, no azeite de oliva, nas ovas de peixes, no fígado de certos tubarões e na pele do nariz humano.

Devido à sua viscosidade extremamente alta, ele tem sido usado por relojoeiros para lubrificar engrenagens, por mordomos para polir ébano, por ladrões para lubrificar revólveres e por fumantes para mimar os fornilhos de seus cachimbos favoritos.

Bom e velho óleo de nariz nosso de todos os dias que lubrifica a boa e velha fechadura nossa de todos os dias.

A porta em si era um trabalho tosco, algumas pesadas tábuas pregadas a martelo, e eu ainda podia ver as marcas do cinzel com o qual a fechadura fora grosseiramente instalada. Era do tipo de embutir, que se abre com uma chave-mestra.

Brincadeira de criança.

Raspei a lateral do nariz com uma unha e passei o depósito oleoso numa das pontas do meu desfigurado aparelho ortodôntico. Segurando a lanterna entre um ombro contraído e o queixo, inseri a ponta curva do arame no buraco da fechadura e girei para um lado e para o outro até decidir que as fendas e alavancas internas tinham sido suficientemente lubrificadas.

Então, depois de empurrar e puxar a ponta curva da minha gazua improvisada até alinhá-la com as alavancas, dei uma girada brusca.

De início... nada. Resistência. E então... um satisfatório clique!

Virei a maçaneta, e a porta se abriu com um gemido surdo.

Passei por cima da soleira tosca e entrei no túnel.

Abafado e acre são as duas palavras que melhor descreveriam o cheiro do lugar. Eu me encontrava agora a um metro e meio ou dois abaixo da superfície e, deste ponto em diante, o túnel se inclinava para baixo na direção da igreja. Quem quer que o tivesse cavado, imaginei, queria ficar bem abaixo do conteúdo repulsivo do cemitério.

Eu estava bem ciente, enquanto avançava lentamente, de que a terra acima da minha cabeça, de ambos os lados, continha tudo o que restava dos mortos de Bishop’s Lacey, cujos ossos passaram havia muito pelo processo de lixiviação e cujos fluidos se infiltraram no solo esponjoso no decorrer dos séculos.

Um dos sermões do vigário me veio inesperadamente à cabeça: aquele sobre como nós somos a argila e o Senhor é o nosso oleiro — uma lição que só agora, neste pátio de igreja rural, ganhava vida. Para todos os lados que eu olhasse, fragmentos de ossos dos mortos, como cacos de louça de cozinha, refletiam muito brancos o facho da minha lanterna.

Era uma mostra tão surpreendente quanto qualquer das exibições geológicas tridimensionais no Museu da Ciência.

Espere um pouco, Flavia, pensei. Este não é o momento adequado para pensar nas maravilhas da putrefação.

Prossegui lentamente ao longo do túnel, indo mais fundo na terra a cada passo. Sob a terra, a distância parecia muito maior do que no pátio acima. A esta altura, eu já deveria estar perto das fundações da igreja.

Talvez o túnel não levasse à igreja — talvez estivesse me levando em uma direção totalmente diferente.

Mas não — eu estava me movendo em linha reta, pelo menos até onde podia dizer.

O piso do túnel começou a subir um tanto acentuadamente. À frente, havia o que parecia ser um arco de pedra.

E mais uma porta trancada.

A fechadura era mais velha e muito mais difícil de abrir.

O mecanismo era mais maciço, mais pesado, mais rígido — e quase impossível de mover com o arame fino do meu aparelho.

Congratulei-me por ter trazido o garfo de picles como respaldo.

Um pouco mais de squalene do meu nariz, algumas voltinhas nas fendas da fechadura com o meu aparelho dentário, um par de torcidas jeitosas com o talher e... pronto! As alavancas se ergueram e a porta se abriu para dentro.

Eu não estava mais no túnel.

Agora, eu me encontrava em uma baixa câmara de pedra que obviamente fazia parte da cripta.

Nas paredes, arandelas de ferro que outrora sustentaram tochas: grandes manchas de fuligem negra no teto, provavelmente com centenas de anos de idade, indicavam que archotes haviam sido usados ali.

As paredes estavam arranhadas com nomes e iniciais: D. C., R. O.; Playfayre; Madrigall, Wenlock: alguns deles, ancestrais de famílias que ainda viviam em Bishop’s Lacey.

Nenhum De Luce no meio.

Nos fundos da câmara, havia algo que de início tomei por um buraco: um retângulo de escuridão a mais ou menos um metro e meio do piso. Iluminei-o com a lanterna, mas não consegui ver muito longe. A minha altura não era o bastante.

Por sorte, alguém improvisara um degrau com granito quebrado — antigos túmulos, talvez — diretamente abaixo da passagem.

Mesmo sem as pegadas que se espalhavam por toda parte na poeira, estava claro que aquela passagem tinha sido usada muito recentemente.

Subi e espiei dentro da câmara. Era surpreendentemente espaçosa.

Tomei impulso e me atirei na escuridão. Acendi a lanterna e comecei a avançar engatinhando. Por um momento, pensei em Howard Carter rastejando por aquelas passagens intricadas nas pirâmides. Ele não havia morrido por ignorar uma maldição?

Na apertada passagem de pedra, eu ouvia os batimentos do meu coração.

Tan-credo, Tan-credo, Tan-credo, Tan-credo...

Teria o santo, como Shakespeare, lançado uma maldição sobre a sua própria tumba? Amaldiçoado seja aquele que mexer nestes ossos, e coisa e tal?

Seria isso o que acontecera com o pobre sr. Collicutt?

Parecia improvável. Ainda que os espíritos dos mortos fossem capazes de matar, eu duvidava que prendessem máscaras de gás na cara das suas vítimas.

Um arrepio me sacudiu os ombros ao pensar no sr. Collicutt, que, se a minha teoria estivesse correta, havia sido arrastado, morto ou vivo, através desta mesma passagem.

Amarrei um barbante mental no meu dedo indicador. Eu me lembraria de rezar apropriadamente para ele no Domingo de Páscoa.

Neste ponto, muito abruptamente, o estreito espaço de engatinhar se bifurcava, e eu me vi olhando de cima para uma grande câmara. Como na sala externa, alguém convenientemente empilhara pedras quebradas abaixo da abertura e foi fácil descer ao piso coberto de escombros.

Esta parte da passagem não seguia além. Era o fim.

Passei o facho da lanterna lentamente por todo o recinto, mas, além de mais nomes e iniciais arranhados nas paredes de pedra, havia pouca coisa para ver.

O lugar estava vazio.

Isto é, a não ser por um par de suportes que se projetavam da parede.

Duas manoplas tinham sido introduzidas em lados opostos de uma mesma pedra; não poderiam ter outra finalidade senão movê-la.

Uma rápida investigação mostrou que eu estava certa: uma fenda tão fina quanto uma lâmina corria ao longo do topo da pedra e para baixo, por ambos os lados. Diferentemente das outras pedras na parede, esta, embora perfeitamente assentada, não tinha argamassa.

Fora projetada para sair.

Conforme dedilhava a fenda, senti a corrente de ar na ponta dos meus dedos: a mesma corrente — eu tinha certeza! — que sentira na cripta.

A não ser que eu estivesse redondamente enganada, me encontrava diretamente abaixo da parede da câmara onde o corpo do sr. Collicutt havia sido escondido.

Fora assim que o assassino — ou os assassinos, era mais provável — o manobrara para dentro de uma tumba fechada.

De início, o som veio como não mais que uma ligeira agitação do ar perto dos meus ouvidos. O senso agudo de audição que eu herdara de Harriet era assim: imperceptível no começo, uma espécie de silêncio audível.

Só quando reconheci a sua presença ele tomou a sua forma plena, como agora.

Alguém estava falando.

A voz era a de uma mosca dentro de uma garrafa — um minúsculo e surdo zumbido que aumentava e diminuía... aumentava e diminuía.

Não pude distinguir as palavras, somente o som monótono da voz de inseto.

A minha reação imediata foi apagar a lanterna.

O que me deixou às escuras.

Instantaneamente, percebi pontos de luz se infiltrando pelas fendas.

Teriam eles visto a luz da minha lanterna? Improvável: eles se achavam em uma cripta iluminada por uma série de lâmpadas. Muito pouco da luz da minha lanterna teria sido visível.

Mas quem estaria na cripta no meio da noite? Concluí que deveria haver pelo menos dois deles, já que alguém dificilmente falaria consigo mesmo ali.

Apertei o ouvido contra a fenda e tentei distinguir as palavras.

Não adiantou. A fenda estreita entre as pedras possuía um estranho efeito de filtragem: era como se eu ouvisse apenas uma faixa estreita na gama da voz do falante — insuficiente para distinguir as palavras.

Depois de um minuto ou um pouco mais, desisti e, usando apenas a ponta dos dedos, passei a examinar mais detidamente a pedra em si.

Tinha cerca de cinquenta centímetros de largura e trinta centímetros de altura. A profundidade, eu sabia, equivalia à espessura da parede, que calculei também ser de cinquenta centímetros.

Cinco vezes cinco vezes três é igual a setenta e cinco, ou seja, setenta e cinco mil centímetros cúbicos, que são setenta e cinco centésimos de metro cúbico. Quanto pesaria?

Isso, é claro, dependia do seu peso específico. Graças às tabelas dos manuais do tio Tar, eu sabia que o ouro tem um peso específico de mais de dezenove mil quilos por metro cúbico, e o chumbo, de mais de onze mil.

São Tancredo era famosa pela beleza do seu arenito, que, se me lembrava corretamente, tem um peso específico entre dois mil e dois mil e quinhentos quilos por metro cúbico.

Então, arredondando, a pedra inteira pesaria algo entre cento e cinquenta e cento e oitenta quilos.

Eu seria capaz de movê-la? Obviamente, com pessoas do outro lado, este não era o momento.

Ainda assim, eu precisava ter a certeza de que este túnel e esta pedra se conectavam diretamente à cavidade na qual eu encontrara o corpo do sr. Collicutt.

Não me atrevi a puxar as manoplas de ferro por medo de ser ouvida.

Talvez eu tivesse de esperar no escuro até que a luz do outro lado da pedra se apagasse.

Quanto tempo isso levaria? Que diabos eles estariam fazendo lá?

Eu bem poderia me acomodar. Encostar as costas na parede e deslizar por ela até sentar no chão.

Então, na escuridão, aguardar.

Já estava a meio caminho desta simples manobra quando os meus pés escorregaram em um pedregulho.

Despenquei pesadamente sobre o meu traseiro.

Pior ainda, deixei a lanterna cair.


13

BLEM! FOI O SOM de gelar os ossos, forte na escuridão.

Prendi a respiração.

O zum-zum-zum de vozes parou instantaneamente.

Forcei os ouvidos, porém o único som que ouvi foram as batidas do meu coração.

Então, um ruído rascante — de pedra contra pedra — ecoando de parede a parede. Me arrastei para frente e toquei o bloco com os dedos.

Ele estava se movendo!

Estavam empurrando a pedra para dentro — na minha direção!

Tentei pegar a lanterna, mas os meus dedos não a localizaram na escuridão. Tateei inutilmente pedaços de entulho, as minhas unhas raspando o piso de pedra.

O bloco continuou se movendo. Eu não podia vê-lo, mas podia ouvir o ruído rascante. Em menos de um minuto, eles estariam entrando pala passagem.

Se ao menos houvesse algum jeito de parar a pedra: um sólido pedaço de madeira, por exemplo, para calçá-la contra a parede oposta.

Mas não havia nada nesta câmara reverberante.

Nada, a não ser Flavia de Luce.

O pensamento saiu de lugar nenhum — ou assim me pareceu no momento.

Depois, eu me daria conta de que a minha mente vomitara uma súbita lembrança de bisbilhotar a gaveta de coisas proibidas de Felinha à procura do seu diário. Após desistir, ficara irritada ao descobrir que a gaveta não se fechava completamente. Não importava o quanto eu empurrasse, ela não cedia.

Quando a puxara para frente, tirando-a dos trilhos, eu descobrira o diário preso com tiras de esparadrapo no fundo. Mais uma lição aprendida.

Me joguei de costas no chão, os pés contra a pedra em movimento, e pressionei os ombros contra o lado oposto da câmara.

Tensionei cada músculo do meu corpo e me transformei em uma cunha humana.

A pedra parou de se mover.

Houve um momento de silêncio, seguido de um esforço renovado do outro lado.

Novamente, a pedra começou a avançar pouco a pouco para dentro.

Será que eles tinham trazido uma alavanca?

Talvez, ambos estivessem empurrando agora.

Meus joelhos começaram a se dobrar. Tentei mantê-los retos, porém eles tremiam como corda de arco.

Certa vez, Dafi me lera uma história em que a vítima foi torturada com um dispositivo chamado Filha do Carniceiro, o qual, em vez de esticar o corpo como a roda, comprimia-o em uma bola até que seus fluidos o faziam explodir como uma enorme espinha.

Estiquei os dois braços ao máximo na tentativa desesperada de me agarrar ao piso. Qualquer coisa para aumentar a resistência.

Um fino raio de luz apareceu. A pedra estava quase solta da parede.

Agora, eu conseguia ouvir as vozes.

— Essa coisa maldita está emperrada — disse um. — Me passem o pé de cabra.

Houve um som metálico, e eu senti a pedra se mover mais vigorosamente contra os meus pés. Não aguentaria muito tempo mais.

Então, a luz se apagou — e, poucos segundos depois, se acendeu novamente.

— Alguém vem vindo! — uma voz ciciou, e a pedra se deteve com um rangido.

— Há alguém no topo da escada — disse outra voz. — Eles desligaram e ligaram a luz.

— Vamos cair fora daqui! — sussurrou frenética a primeira voz.

— Deem a volta e retornem por trás da fornalha. Usem o depósito de carvão.

Houve um ruído abafado e, depois, um silêncio absoluto.

Eles tinham ido embora.

Contei lentamente até cem.

Não havia sentido em rastejar como um comando militar até a tumba Cottlestone, pensei, sendo que estava tão perto da liberdade.

Agarrei as alças de ferro da pedra e puxei com força. Ela deve ter se movido uns dois centímetros.

Me sentei no chão de modo que a pedra ficasse entre os meus joelhos, plantei os pés contra a parede e puxei de novo. Desta vez, talvez uns cinco centímetros, um pouco mais.

Se eu me concentrasse em puxar apenas uma extremidade, ela viraria para dentro como uma porta. Apenas o suficiente, se eu tivesse sorte, para me espremer através da abertura.

Por fim, consegui forçar uma abertura de mais ou menos dez centímetros; insuficiente para passar, mas grande o bastante para ver o outro lado. Caí de quatro e espiei a cripta. O pé de cabra encontrava-se onde o haviam largado, a meio metro da abertura.

Deitei de barriga, enfiei um braço na abertura e estiquei-o ao máximo. O meu rosto ficou tão apertado contra a pedra que eu devia estar parecendo algum ser das profundezas oceânicas.

Meus dedos encontraram a ponta chanfrada do pé de cabra, mas por muito pouco. Eu não queria jogar a coisa longe.

Um centímetro de cada vez, prendi as unhas na borda do pé de cabra e puxei-o muito lentamente na minha direção.

Felinha me criticava por roer as unhas desde que eu estava no carrinho de bebê e, bem recentemente, eu decidira que ela tinha razão. Uma química que será fotografada pelo The Illustrated London News segurando um tubo de ensaio e olhando atentamente para ele precisava de mãos pelo menos semidecentes.

Minhas unhas ainda não eram tão compridas quanto eu gostaria, mas davam para o gasto.

O pé de cabra rastejou até mim. Quando enfim se achava seguramente ao meu alcance, puxei-o através da abertura e dei graças ao bom São Tancredo, que jazia em algum lugar abaixo, bem perto de mim.

Daí em diante, usá-lo como alavanca para puxar a pedra para dentro da câmara foi brincadeira de criança.

Uma brincadeira de criança da Idade da Pedra, pensei, dando o que provavelmente foi um sorriso bobo.

Agora, havia luz suficiente para encontrar a lanterna, que rolara a um canto distante. Dei um peteleco no botão para conferir se ainda estava funcionando — estava — e então rastejei através da parede para o interior da cripta.

Quando me pus em pé, me dei conta pela primeira vez de como o meu corpo estava enrijecido e dolorido. Minhas mãos e joelhos estavam esfolados e arranhados.

Fiquei muito orgulhosa de mim. Compreendi como os veteranos se sentiram depois de sofrerem ferimentos de guerra.

Antes de passar à parte principal da cripta, parei para ouvir.

Nenhum som.

Quem quer que houvesse estado na cripta, se fora. Nenhuma dúvida quanto a isso. O lugar estava repleto de uma quietude especial, que só se encontra nos locais onde todos os ocupantes estão mortos.

Ainda assim, tenho de admitir que, quando passei lentamente pela fornalha, os cabelos da minha nuca se arrepiaram — mas só um pouquinho.

Agora, eu me encontrava na parte mais baixa da escada que levava à igreja. Haveria mais alguma coisa com que me preocupar? Estariam os últimos visitantes da cripta à minha espera, do lado de fora da igreja?

Eles só precisavam se esconder atrás da lápide onde Gladys estava estacionada e pular em cima de mim assim que eu aparecesse — sequestrar uma menina num pátio de igreja, no meio da noite, não seria difícil.

Talvez fosse melhor ficar dentro da igreja, me enrodilhar em um dos bancos, tirar um cochilo rápido e correr para casa assim que o sol raiasse. Ninguém sequer perceberia que eu havia saído.

Sim, era melhor.

Subi pesadamente a escada de pedra, um passo lento de cada vez.

No vestíbulo, a porta externa estava fechada porém destrancada, como sempre estivera desde os tempos de Henrique VIII, quando as igrejas da Inglaterra eram pilhadas e vandalizadas.

À minha esquerda, iluminado somente pela luz que se infiltrava através das janelas de vidro coloridas, o tapete do corredor central era uma fita vermelha ao luar.

Pensei mais uma vez no poema do Assaltante da Estrada, que, no final, era derrubado como um cão na estrada.

E pensei — por alguma razão peculiar — no falecido sr. Collicutt.

O sr. Collicutt, é claro, não jazera sobre o próprio sangue na estrada com um lenço de renda no pescoço — mas bem que poderia.

Aquilo me voltou à mente num flash, como a câmera de um repórter.

Ele estava usando um monte de lenço de renda no pescoço.

Ou algo muito parecido.

O assaltante da estrada morrera por amor, certo? Para avisá-lo de que a estalagem fervilhava de homens do Rei George, a filha de olhos negros do estalajadeiro atirara no seu próprio peito.

Os dois morreram.

Haveria outra vítima em Bishop’s Lacey? Estariam os assassinos do sr. Collicutt planejando silenciar outra pessoa — alguém que amara o desafortunado organista?

Atravessei lentamente a nave central, tocando a ponta de cada fileira de bancos com a ponta dos meus dedos, absorvendo a segurança do carvalho ancestral.

Havia luz suficiente para encontrar o caminho pelos degraus do presbitério acima, até o órgão, sem precisar acender a lanterna.

De volta aos trabalhos, decidi.

Embora o painel na parede fosse quase invisível, Felinha o abrira com facilidade. Será que eu encontraria o ferrolho?

Corri os dedos pela madeira polida e pelos frisos entalhados, mas eram tão sólidos quanto pareciam. Apertei aqui e ali — sem resultado.

O rosto de um diabinho esculpido em madeira me sorriu atrevidamente nas sombras. Toquei as suas bochechas polidas e infladas e as torci.

Houve um clique! e o painel deslizou para se abrir.

Dei um passo cauteloso adentro.

Fechando o painel, acendi a lanterna.

Louvado seja São Tancredo, o santo padroeiro da Evidência!

Na poeira do chão, sob a luz da lanterna, estavam as pegadas de Felinha e as minhas próprias. Ninguém caminhara por cima delas. A polícia não vira nenhuma razão para examinar a caixa do órgão. Afinal, por que deveriam? Ela não estava nem perto do lugar onde o corpo do sr. Collicutt fora escondido.

Nem mesmo o sr. Haskins estivera aqui para extrair o morcego do tubo do órgão — eu seria capaz de reconhecer as pegadas das suas botas de coveiro a um quilômetro de distância —, o que significava, muito provavelmente, que a carcaça do morcego ainda se achava no fundo do diapasão de cinco metros.

Descanse em paz, pequena criatura, pensei.

O morcego entrara através do depósito de carvão, imaginei, durante as idas e vindas noturnas de quem quer que tivesse enfiado o sr. Collicutt na parede da cripta.

Com os nós dos dedos, dei uma batidinha no tubo, porém nada se mexeu. O morcego, quase certamente, estava morto.

Minha lanterna iluminou um par de goivaduras novas na madeira do corpo do órgão. Caí de joelhos para examinar melhor.

Sim, não havia a menor dúvida...

— Caramba!

Quase pulei fora da minha pele quando, no canto oposto, o reservatório de ar soltou um chiado seco. A pedra lapidar de Hezekiah Whytefleet se assentara, forçando ar para dentro do mecanismo do órgão.

Também houve um chiado atrás de mim.

Virei bruscamente o facho da lanterna e de imediato vi a fonte do ruído. Na rede de condutos de madeira havia um buraco redondo, perfurado com verruma, com diâmetro ligeiramente menor que o de um lápis, e era através dele que o ar chiava.

No chão, diretamente abaixo, uma mancha vermelha e seca.

Quando dei um passo à frente, ouvi o som de alguma coisa sendo triturada sob meus pés.

Mesmo sem olhar, eu soube que era vidro.

O trabalho no laboratório me deixara bastante familiarizada com o princípio do manômetro: aquele tubo de vidro em forma de U, cheio de líquido, era usado para medir a pressão do ar.

Fazia sentido que o órgão fosse equipado com um dispositivo assim para medir a pressão no reservatório de ar. O tubo, graduado em centímetros, teria sido parcialmente preenchido, até recentemente, com álcool colorido, e o seu nível indicaria a leitura requerida, de modo muito semelhante a um termômetro externo.

Agora, tudo o que restava do manômetro, além dos cacos de vidro no chão, era o anel irregular de vidro vazio de onde ele fora arrancado junto com o seu encaixe de madeira.

O resto dos tubos de vidro, se não estava completamente enganada, eu tinha visto nas mãos do finado sr. Collicutt.

Foi ali, naquele lugar, no coração do grande órgão que ele tocava e amava, que o organista encontrou a sua morte.

Eu tinha certeza disso.

Não possuía um canivete para raspar uma amostra da mancha vermelha, mas isso não era um grande problema. Para evitar contaminá-la com os meus dedos, eu desatarraxaria a parte de trás da minha lanterna e usaria a tampa de lata como um raspador.

Foi somente quando apontei o facho para os joelhos que me dei conta do que havia feito com as minhas roupas. O meu melhor casaco preto parecia ter rolado sobre cinzas. Eu estava raiada de limo do túmulo, encrostada de lama do túnel e recoberta por uma camada de poeira. Mais um item para ser entregue às chamas.

O meu rosto, imaginei, não estava melhor. Passei as costas da mão pela testa, que ficaram pretas de coisas nojentas.

Melhor dar uma boa lavada, pensei. Eu esperava que houvesse alguma fonte de água em algum lugar na igreja. Se houvesse, e considerando o número de horas até a luz do dia, talvez eu até conseguisse me fazer apresentável a tempo para o desjejum.

É claro!, pensei. A fonte!

Saí cautelosamente da câmara do órgão para a abside, tomando cuidado para não me limpar nos móveis eclesiásticos.

Se fosse preciso, eu poderia até fazer uma incursão ao vinho da comunhão e usá-lo como removedor de manchas.

Soltei uma fungada seca ao pensar na provável reação do vigário. A expressão no seu rosto...

Um grito penetrante despedaçou os meus pensamentos.

Dei meia-volta e me vi cara a cara com uma aparição vestida de preto.

Meu sangue gelou. Meu cérebro assustado precisou de vários segundos para reconhecer aquele aparente fantasma.

Era Cynthia Richardson.

Ela me vira sair flutuando de uma parede, com roupas, se é que era possível, ainda mais manchadas de resquícios do túmulo do que antes.

Sua boca continuava escancarada do grito, os olhos saltados para fora da cara.

— Hannah! — ela arquejou.

Seus olhos reviraram e ela desabou no chão como se tivesse levado um tiro no coração.

Minha espinha de repente virou um filete de água gelada.

“Hannah” era o nome que o vigário dissera enquanto dormia na noite em que ele e Cynthia ficaram retidos em Buckshaw por causa de uma tempestade.

“Hannah, por favor! Não!”

Eu ainda podia ouvir o seu sussurro torturado na minha cabeça.

Eu me perguntara então quem seria Hannah e me perguntava a mesma coisa agora, enquanto olhava para uma inconsciente Cynthia Richardson.

Inconsciente? Ou morta?

Teria morrido de medo? Não seria o primeiro caso.

Me ajoelhei ao lado dela e encostei um dedo no ângulo da sua mandíbula, como já vira Dogger fazer em mais de uma ocasião. Era impossível não perceber a pulsação forte e firme.

Respirei aliviada. Eu não a matara, afinal.

A próxima coisa a fazer era me certificar de que ela estava confortável e respirando direito. Do meu treinamento de primeiros socorros com as escoteiras, eu me lembrava de que as vítimas de choque precisam ser mantidas aquecidas a todo custo.

Tirei o meu casaco pesado e a cobri, pensando em quão pateticamente pequena era aquela mulher: mal chegava a ser maior do que eu.

Enquanto ouvia a sua respiração, o ar entrando e saindo, entrando e saindo, pensei na ocasião em que Cynthia me pegara subindo no altar para raspar uma amostra de esmalte azul de um vitral medieval, para análise química. Cynthia me pusera sobre seus joelhos e, fazendo uso impróprio de um exemplar de Hinos antigos e modernos, me batera ali mesmo.

Em retrospecto, aquilo fora quase cômico, mas não muito. Eu ainda não a perdoara totalmente pelo primeiro castigo real — sem contar aqueles aplicados pelas minhas irmãs, é claro — que eu recebera na minha vida.

Agora, ajoelhada ao lado dela, tive vontade de me vingar. Mas não fui capaz. Simplesmente não fui capaz.

Deveria ficar ao lado dela? Tomar conta dela até o sol raiar?

Talvez eu devesse correr até a casa do dr. Darby e pedir ajuda. Ou acordar o vigário no presbitério.

Esses pensamentos passavam pela minha cabeça, quando ouvi passos leves atrás de mim. Pus-me em pé de um pulo e dei meia-volta.

Lá estava o vigário, o rosto branco como papel.

— Oh, céus — ele dizia. — Oh, céus. Eu temia que chegasse a este ponto.

Não era: “O que você está fazendo entrando furtivamente na igreja no meio da noite?”. Não era: “Por que você está agachada ao lado da minha amada esposa?”. Não era: “O que você fez com ela?”.

Apenas: “Oh, céus. Eu temia que chegasse a este ponto”.

Chegasse a que ponto?, me perguntei.

Aliás, o que Cynthia estava fazendo entrando furtivamente na igreja no meio da noite?

Podia ter sido ela que...

Não me permiti completar aquele pensamento horrível.

— Acho que ela desmaiou — eu falei um tanto bobamente e me peguei, por incrível que pareça, retorcendo as mãos.

— Não é a primeira vez — disse o vigário quase como que falando consigo mesmo, sacudindo a cabeça. — Não, receio não ser a primeira.

Sem saber o que fazer, fiquei parada feito um caixote.

— Flavia, querida — ele disse afinal, ajoelhando-se ao lado do corpo desfalecido de Cynthia. — Você precisa me ajudar a levá-la para casa.

As palavras soaram estranhas e forçadas. Por que não deixar que ela recuperasse a consciência antes de carregá-la ao presbitério?

Não era o caso de ela estar bêbada em um local público e precisar ser movida rapidamente, antes que os paroquianos a vissem naquele estado.

Ou era?

Não, não podia ser. Eu não detectara nem o mais leve odor de álcool — e me orgulhava da minha capacidade de farejar as cetonas.

— É claro — falei.

O vigário ergueu a sua esposa com facilidade, como se ela fosse uma boneca, e seguiu velozmente com ela pelo corredor central, em direção à porta.

Eu o segui através da grama fria e molhada do pátio até o presbitério, olhando em volta para conferir se algum rosto espiava por trás das antigas pedras tumulares, mas não. Os intrusos tinham escapulido.

Disparei na frente pelos degraus do presbitério e segurei a porta aberta.

— No estúdio — disse o vigário, enquanto eu acendia a débil lâmpada do pequeno foyer.

O estúdio, como de costume, era uma avalanche de livros. Transferi diversas pilhas altamente inflamáveis de livros do sofá de crina de cavalo para o chão. O mesmo sofá, observei, em que Meg Louca se esticara na época do caso Rupert Porson.

O vigário ajeitou cuidadosamente o meu casaco em volta do corpo da mulher, como se estivesse pondo uma criança para dormir.

Ela se agitou ligeiramente e soltou um gemido leve. Ele tocou o seu rosto carinhosamente.

Os olhos pálidos de Cynthia se abriram e olharam constrangidos de um lado a outro.

— Está tudo bem, querida — disse o vigário. — Está tudo bem.

Os olhos dela encontraram os dele, e foi então que o milagre aconteceu.

Ela sorriu.

Cynthia Richardson sorriu!

Eu sempre achei que a mulher tinha cara de rato, mas talvez fosse um certo preconceito da minha parte. O sorriso congelado de dentes salientes, anulado por uma carranca perpétua, lhe dava a aparência de um roedor de péssimo temperamento.

Ainda assim, Cynthia sorrira!

E, para ser perfeitamente justa, devo admitir que o seu sorriso era do tipo geralmente descrito como radiante.

Nenhuma Madona jamais olhara para a sua criança com um olhar tão terno; nenhuma noiva jamais sorrira para o seu noivo com tanto amor quanto Cynthia Richardson demonstrou pelo marido.

Aquilo quase me fez chorar.

— Devo chamar o doutor Darby? — perguntei. — Vou e volto num instante.

A verdade era que eu queria deixá-los sozinhos naquele momento. Eu era uma intrusa.

— Não — respondeu o vigário. — Tudo o que ela precisa é de repouso. Veja, já dormiu.

Era verdade. Com um vestígio daquele sorriso maravilhoso persistindo nos cantos da boca, Cynthia adormecera.

Um leve ressonar confirmou isso.

— O que aconteceu? — o vigário perguntou, algo hesitante.

— É uma longa história — falei.

— Conte-me — ele disse gentilmente. — Temos a noite inteira.

Uma das coisas que amo no nosso vigário, Denwyn Richardson, é o fato de que ele me aceita como eu sou. Não me faz perguntas idiotas.

Ele não quer saber, por exemplo, por que eu emergi, coberta de terra tumular, do lambril da sua igreja, às duas ou três da madrugada.

Ele não quer saber por que eu não estou em casa, bem acomodada na minha caminha, sonhando sonhos de criança.

Resumindo, ele me trata como uma adulta. É uma dádiva.

Para nós dois.

Foi por isso que eu quebrei a minha consagrada regra e não apenas assumi a responsabilidade, como também forneci informações voluntariamente.

— Receio que seja minha culpa — falei. — Eu lhe dei um susto. Ela pensou que eu fosse outra pessoa.

O vigário ergueu uma sobrancelha entristecido. Ele não precisou fazer mais nada.

— Ela disse “Hannah” — eu contei — e então desmaiou.

Houve um daqueles longos silêncios durante os quais, constrangidas, as pessoas anseiam dizer alguma coisa mas, por medo de um constrangimento ainda maior, não dizem.

— Hannah — ele disse lentamente. — Hannah era... a nossa filha.

Senti algo horrivelmente pesado se abater sobre mim: tão pesado quanto o universo inteiro, porém invisível, ainda assim.

Não respondi.

— Ela morreu quando tinha quatro anos — disse o vigário. — Eu a matei.


14

EU MAL ENCONTREI fôlego para falar.

— Tenho certeza de que isso não é verdade — consegui dizer.

Mais uma eternidade se passou antes que o vigário falasse novamente:

— Sete anos atrás. Semana do Natal. Eu a tinha levado comigo à estação ferroviária em Doddingsley, para buscar o azevinho para a igreja, como sempre faço. Hannah adorava o Natal... Sempre queria participar de tudo. Alguém me parou na plataforma; uma antiga paroquiana que eu não via havia anos queria me cumprimentar pelas festas, sabe, e eu larguei a mão de Hannah, apenas por um momento, entenda... mas...

“O trem... o trem...”

De repente, lágrimas rolaram pelo seu rosto.

Notei a minha mão procurando a dele.

— Eu gritei para ela. Tentei chamá-la...

— Sinto muito — disse, consciente, no instante em que falava, de como são inúteis as palavras de simpatia, mesmo quando são tudo o que temos. — Sinto muito — repeti.

— Se ela estivesse viva — disse o vigário, os olhos marejados —, teria a sua idade. Cynthia e eu muitas vezes pensamos em quanto você... — Ele parou abruptamente. — Cynthia e a sua mãe eram grandes amigas, você sabe, Flavia. Elas se tornaram mães ao mesmo tempo.

Mais uma parte do enigma que era Harriet se encaixou.

— Sinto muito — eu disse mais uma vez. — Eu não sabia.

— Como você poderia saber? As pessoas de Bishop’s Lacey conspiraram para manter silêncio. Ninguém pode falar sobre a morte de Hannah. Elas acham que nós não sabemos. Mas nós sabemos.

— Mas você não devia se culpar — eu disse sem pensar, tomada por uma raiva crescente. — A culpa não foi sua. Foi um acidente.

O vigário deu-me um sorriso triste, o qual sinalizava que as minhas palavras não mudavam nada.

— Onde ela está enterrada? — perguntei com um súbito atrevimento. — Vou levar flores e colocá-las com grande cerimônia sobre o seu túmulo. Vou pôr um fim a este silêncio patético.

— Aqui — o vigário disse simplesmente. — No pátio da igreja. Perto do túmulo Cottlestone. Não pudemos, de início, nos permitir uma lápide. O ordenado de um vigário do interior não permite... E depois... bem, depois, era tarde demais. Ainda assim, Cynthia vai até lá frequentemente, mas temo que eu...

Estremeci quando a totalidade do horror em suas palavras me invadiu.

A filha deles estava enterrada no exato lugar onde Cynthia me vira surgir da terra. E, depois, na igreja...

Como eu poderia me desculpar?

— Ela pensou que eu era Hannah — eu disse, dando o primeiro passo. — Eu estava à procura de pistas dentro do órgão. Para ela, deve ter parecido que eu atravessei a parede ao sair.

Enquanto eu falava, Cynthia soltou um leve suspiro e, sob a pálpebra, moveu a íris de um lado a outro.

— Ainda bem que você estava na igreja — falei. — Eu não sabia muito bem o que fazer.

— Eu segui Cynthia — o vigário disse suavemente. — Sempre faço isso. Para me assegurar de que ela não se machuque.

Com gentileza, ele removeu o meu desmazelado casaco dos ombros dela e o entregou a mim, substituindo-o pela manta que se encontrava dobrada aos pés do sofá.

— É melhor eu ir andando — aproveitei a deixa.

Ao me enfiar no meu casaco, pequenos pedaços de argila caíram no tapete.

Eu já estava na porta, quando o vigário falou:

— Flavia.

Eu me voltei.

— Sim?

Seus olhos, ainda úmidos, encontraram os meus.

— Tenha cuidado.

Esta é mais uma das coisas que amo em Denwyn Richardson.

Sob o luar, Buckshaw era um cenário de sonho. Enquanto eu seguia pela avenida de castanheiras, a casa era semi-iluminada por uma pálida luz prateada, a outra metade no escuro, a longa sombra preta se afastava lentamente pela Trafalgar Square em direção ao leste, como se tentasse alcançar a segurança das árvores distantes.

Estacionei Gladys na parede de tijolos do jardim da cozinha e olhei para as janelas de cima. Não havia luzes nem faces lívidas me observando.

Perfeito, pensei. Eu precisava de tempo para preparar um solvente químico de limpeza. Misturaria alguma coisa em um recipiente para carvão — alguma coisa que envolvesse amônia e um dos agentes oxidantes baseados em cloro. Ou gasolina, talvez: com um sifão, eu poderia facilmente tirar alguns litros do tanque do Phantom II de Harriet. Embolaria bem o meu casaco sujo, mergulharia-o por meia hora, depois o penduraria do lado de fora da janela do laboratório, para secar ao vento. Ficaria tão imaculado e sem cheiro, como se tivesse sido lavado a seco pela Armfieds, em Belgravia.

Quando abri a porta e entrei na cozinha, percebi o quanto estava com fome. Não comia nada havia eras; o meu estômago se apegava à minha espinha como uma mochila vazia. Eu poderia pegar uns pedaços de pão na despensa e torrá-los na chama de um bico de Bunsen.

Já me achava a meio caminho da cozinha, quando uma voz solene como o dobrar de um sino fúnebre falou:

— Flavia.

Era o pai.

De início, eu mal o reconheci. Ele estava sentado à mesa, de roupão e chinelos. Nunca antes eu o vira usando algo que não fosse a sua indumentária normal de camisa, gravata, colete, casaco, calças e botas polidas como espelhos.

— Eu estava na igreja — comecei, à espera de ganhar alguma vantagem, muito embora sequer imaginasse que vantagem seria essa. — Falando com o vigário — acrescentei debilmente.

— Estou bem ciente disso — disse ele.

Ciente? Teria o vigário me delatado?

— O chanceler telefonou.

Mal pude acreditar! O pai proibira o uso d’O Instrumento, como ele o chamava, a não ser em caso de terrível emergência. Ele se sentia, a respeito do telefone, como um condenado se sente a respeito do cadafalso.

— Ele me aconselhou a dar um fim às suas bisbilhotices na igreja durante as escavações. Acha que você pode se machucar.

Como ele sabia que eu estava bisbilhotando na igreja?, tive vontade de perguntar.

A resposta era óbvia: o seu bajulador, Marmaduke Parr, lhe contara.

— E não é só isso — o pai prosseguiu. — Como você sabe muito bem, um assassinato foi cometido na cripta.

Ofereci aos céus uma pequena oração de graças. Pelo menos, não tinha sido o inspetor Hewitt quem telefonara e me ordenara que ficasse longe.

— Ele mencionou o senhor Collicutt? O chanceler, quero dizer.

— De fato — respondeu o pai —, não. Mas, seja como for, eu quero que você fique...

— A senhora Richardson desmaiou junto ao altar — eu falei antes que ele pudesse dizer outra palavra. — Ela me tomou pela sua filha, Hannah.

O pai me encarou, o rosto severamente marcado à fria luz da lua. Ele não tinha se barbeado, e os pelos eriçados das suas suíças brilhavam cruelmente. Nunca parecera tão velho.

— O vigário me contou sobre ela — eu disse. — Não perguntei nada.

O relógio da cozinha tiquetaqueava. O pai deixou escapar um longo suspiro.

— Não consigo enxergá-la — ele disse depois de algum tempo. — Meus olhos não são mais o que eram. Pegue uma vela na despensa. Não acenda a luz elétrica.

Peguei um castiçal de estanho e uma caixa de fósforos de madeira e, um minuto depois, à luz tremeluzente de uma vela de cera, estávamos olhando um para o outro através da mesa da cozinha.

— Denwyn e Cynthia não tiveram uma vida das mais fáceis — disse o pai.

— Não — concordei. Eu estava aprendendo que as melhores conversas consistiam em ficar calada e ouvir, e somente pronunciar, se tanto, palavras monossilábicas.

— Ele se culpa — nós dois dissemos ao mesmo tempo.

Foi incrível! O pai e eu falamos as mesmas três palavras no mesmo instante — como se recitássemos em uníssono.

Não me atrevi a sorrir.

— Sim — nós dois dissemos.

Foi absolutamente supranatural.

O pai só falara comigo — falara de verdade, quero dizer — em uma ocasião, quando ele se achava encarcerado em Hinley, acusado do assassinato de Horace Bonepenny. Naquele dia, ele falara e eu escutara.

Agora, nós dois estávamos falando ao mesmo tempo.

— Foi um acidente, pura e simplesmente. Tão pura e simplesmente quanto pode ser um acidente, pelo menos. Trágico. Ainda assim, naquelas circunstâncias, não havia nada a fazer senão seguir em frente. Estávamos em guerra. Todo mundo, de um jeito ou de outro, estava sofrendo perdas. Era um péssimo momento para perder uma menininha.

— Você estava lá quando aconteceu? — perguntei, chocada comigo mesma. De onde teria vindo essa súbita coragem?

Uma sombra perpassou o rosto do pai. O relógio da cozinha seguia tiquetaqueando.

— Não — ele disse depois de um momento. — Eu não estava.

Ele estava, como eu bem sabia, em um campo de prisioneiros de guerra, junto com Dogger. Isso não era um tópico de discussão em Buckshaw.

Que estranho, pensei. Cá estavam aqueles quatro grandes enlutados, o pai, Dogger, o vigário e Cynthia Richardson, cada qual trancado no seu próprio passado, sem querer compartilhar nem um pedacinho da sua angústia, nem mesmo entre si.

Seria o pesar, afinal, algo particular? Um recipiente lacrado? Algo que, como um balde de água, só podia ser carregado em um único par de ombros?

Para tornar as coisas piores, havia o fato de que a aldeia inteira abrigava cada um dos quatro em um casulo de silêncio total.

Queridas pessoas condenadas! Tanto os que abençoavam como os abençoados!

Senti o meu rosto enrubescer quando me lembrei da minha promessa de colocar flores, à vista de todos, no túmulo de Hannah Richardson.

Mas eu não iria perturbar o pai com isso. Ele já tinha o bastante com que se preocupar.

— O que vamos fazer com você? — ele perguntou de repente.

— Eu não sei, senhor — respondi.

O “senhor” saiu do nada. Eu nunca me dirigira ao meu pai desse jeito, mas me parecera a coisa perfeitamente certa a fazer.

— É só que às vezes... às vezes... eu acho que sou muito parecida com a minha mãe.

Pronto! Falei!

Agora, só me restava esperar para ver o dano que eu causara.

— Você não se parece com a sua mãe, Flavia.

Engoli em seco.

— Você é a sua mãe.

Minha cabeça se tornou um enxame de abelhas — uma colmeia, um tornado, uma tempestade tropical. Os meus ouvidos realmente tinham escutado isso? Pelos últimos e vários anos, cada vez mais, as minhas irmãs tentavam me convencer de que eu fora adotada; uma criança trocada pelos duendes, um pedaço de carvão deixado em suas meias por um Papai Noel cruel.

— Faz algum tempo que quero falar com você sobre isso — disse o pai, remexendo-se como se estivesse procurando alguma coisa perdida nos bolsos do roupão. — Talvez seja melhor ir direto ao ponto.

O meu queixo tremia. O que iria acontecer? O que ele iria dizer?

Estaria prestes a arrancar um pedaço de mim por eu ter estragado o meu melhor casaco?

— Eu sei que a sua vida nem sempre foi... — ele começou de maneira inesperada. — Quero dizer, eu sei que, às vezes, você...

Ele olhou para mim pesaroso, o rosto tremeluzindo à luz da vela.

— Que droga — falou. E começou de novo: — Como a sua mãe, você foi dotada do dom fatal da genialidade. Por causa disso, a sua vida não será fácil. E você não pode esperar que seja. Você deve sempre se lembrar de que grandes dons vêm a grandes custos. Você tem alguma pergunta?

Pai querido! Mesmo os seus momentos mais gentis eram como um discurso de dia de parada. Como eu o amava.

— Não, senhor — falei como se fosse um sapador acusado de explodir as linhas inimigas. — Nenhuma pergunta.

— Muito bom. Muito bom — disse o pai, erguendo-se e esfregando as mãos. — Bem, então, é melhor você dormir um pouco.

Com isso, ele se foi, deixando-me sozinha à mesa.

Pensei muito em tudo o que ele disse.

Seus comentários sobre Harriet não eram para se ponderar à mesa da cozinha. Eu precisava refletir sobre eles depois, na privacidade do meu quarto. No conforto da minha cama.

Uma coisa, no entanto, estava clara. O pai não me proibira expressamente de me aproximar da igreja.


15

— ELES DIZEM QUE É PORQUE perturbaram os ossos!

A sra. Mullet despejou mais um montão do seu mingau parecido com lava na minha tigela. Pensamentos de um Oliver Twist ao contrário cruzaram a minha cabeça. “Por favor, senhora, eu não quero mais.”

— Coma enquanto está quente, querida. Boa menina. Lembre-se: Margaret Mullet não conta balelas, mingau de aveia gruda nas costelas. Ora, vejam! Sou poeta e não sabia — a sra. Mullet deu uma risadinha da própria piada.

Pensar naquela porcaria grudada nas minhas costelas — ou qualquer outra coisa — foi o bastante para o meu estômago se pôr em hibernação.

— Obrigada, senhora M — eu disse meio grogue, acrescentando uma generosa quantidade de leite ao mingau. Talvez eu pudesse bebericar o líquido e deixar o horror tremelicante oculto sob a superfície, como o monstro do Lago Ness.

Eu mal dormira, não estava nas minhas melhores condições. A limpeza do meu casaco fora mais complicada, do ponto de vista químico, do que eu imaginara; no fim, exigira que eu duplicasse o famoso experimento de Michael Faraday de 1821, no qual ele sintetizara o tetracloroetileno extraindo-o, por decomposição térmica, do hexacloretano.

Consequentemente, eu ficara acordada a noite inteira.

— Na verdade, não perturbaram os ossos dele — contei a ela. — Eles ainda não cavaram tão fundo.

— Mas ele sabe muito bem que estão a caminho — disse a sra. Mullet. — Ouça o que lhe digo. Os santos não são como as pessoas comuns. Eles sabem coisas. Podem ver e ouvir coisas à distância, como na televisão. Eles ouvem quando a senhora Frampton reza para que a sua Elsie Bert ganhe o bolão do jogo de futebol, para que ela possa mandar a mãe para Blackpool de férias em junho e tirá-la do seu pé por quinze dias, para poder esfregar o chão e bater os tapetes em paz. Veja bem, eu não falei nada.

Eu estava tomando o desjejum na cozinha porque, quando enfim me arrastara para fora da cama, a sra. Mullet já havia tirado a mesa na sala de jantar.

— Ouvi tudo isso da minha amiga, a senhora Waller. Ela diz que havia sangue por todos os lados, como num matadouro.

— Não havia tanto assim — falei. — Eu mesma vi.

Os olhos da sra. Mullet se arregalaram.

— Não mais que um par de colheres de chá, se você juntar tudo. — As poças de sangue sempre parecem maiores em volume do que na realidade são.

Se é que era sangue de fato. Eu mal podia esperar para subir as escadas até o meu laboratório e analisar aquela coisa em que eu mergulhara a minha fita branca.

— Mesmo assim — disse ela. — A senhorita Tanty teve de ser posta na cama e precisaram chamar o médico. Um verdadeiro terror, ela passou, balbuciando sem parar sobre o senhor Collicutt e os quatro cavaleiros do após calipso. Não falava coisa com coisa. Estado de choque, se você me perguntar.

— Acho que você tem toda razão, senhora M — eu disse, os meus planos mudando à medida que eu falava. — Vou levar umas flores para ela em nome de todos nós de Buckshaw.

— Isso seria muito gentil, querida — disse a sra. Mullet. — Você sempre foi uma criança tão atenciosa.

É claro que eu era uma criança atenciosa. Se os lábios da srta. Tanty fossem liberados pelo láudano, eu queria estar entre as primeiras pessoas a ouvirem o que eles verteriam.

A srta. Tanty morava em uma casinha no lado oeste da Rua Cater, a qual seguia para o norte da Rua Alta, a oeste da Treze Patos.

Desmontei de Gladys e estacionei-a junto ao portão bem quando a srta. Gawl, tesoureira da Guilda do Altar, saía pela porta da frente.

— Receio que ela não possa receber visitas, criança. Ordens do médico. Entregue-me essas flores. Vou colocá-las em um vaso e trazê-las mais tarde.

Eu sabia que ela não faria isso. Ela as jogaria na sua pilha de lixo. Não que isso importasse. Eu colhera o ramalhete silvestre no mesmo lugar da primeira vez, em frente à igreja.

— É muita gentileza da sua parte, senhorita Gawl — eu falei, entregando as flores e vestindo um ar de preocupado interesse no rosto, como se vestisse um capuz de alpinista. — Como ela está?

— Repousando confortavelmente, agora. Mas não pode ser perturbada. Nós lhe demos uma injeção para ajudá-la a dormir.

Nós lhe demos uma injeção?

Então, me lembrei. É claro: a srta. Gawl era uma enfermeira aposentada. Por isso, usara a palavra “injeção”. Qualquer outra pessoa teria dito: “Nós lhe demos alguma coisa para ajudá-la a dormir”. Ou: “um sedativo para ajudá-la a dormir”. E não teria dito “nós”. Teria dito: “O médico lhe deu alguma coisa para ajudá-la a dormir”.

Quantas coisas maravilhosas podem ser deduzidas a partir de uma simples palavra!

Dei à mulher o meu melhor sorriso de idiota da aldeia.

— Então, é melhor eu ir andando — falei, resistindo ao ímpeto de acrescentar: “para o Desfile de Vacas da Páscoa”.

Há um limite até para a insolência.

Pedalei Gladys até o ponto em que a rua terminava no rio. Com uma idiotice deliberada, peguei um punhado de pedregulhos e, com a língua para fora, os fiz saltar na superfície da água.

Um... dois... três...

Quando olhei para trás, a srta. Gawl se fora.

Caminhei rapidamente de volta à casa da srta. Tanty, olhei para os dois lados para me certificar de que não havia ninguém à vista e então abri a porta e deslizei para dentro.

O lugar estava superaquecido — abafado como uma selva tropical.

À direita, havia uma sala de jantar com uma mesa exageradamente grande e mais cadeiras do que tínhamos em toda Buckshaw.

À esquerda, uma sala de estar combinada com sala de música, com todos os móveis e utensílios usuais: um pequeno piano de cauda, estantes de música, bustos de gesso de Beethoven e Mozart e de um outro que não reconheci — ahá! —: Wagner. Seu nome estava gravado na base — os três com uma aparência fria, como se tivessem sido moldados com entulho da lua. Além do estúdio, havia um pequeno conservatório, o qual transbordava de plantas de aparência exótica. Um papagaio encurvado se empoleirava em uma elaborada gaiola de arame.

— Louro lindo — eu disse, na tentativa de fazer amizade.

O papagaio me deu uma olhada rabugenta.

— Então, quem é o louro lindo? — perguntei, sentindo-me idiota. Bem, não existem muitos tópicos de conversação que se possa ter com uma ave.

A coisa me ignorou. Talvez estivesse com fome. Talvez a srta. Tanty estivesse tão perturbada que se esquecera de alimentá-la.

Peguei um pedaço de sebo que se achava enfiado entre as grades da gaiola.

A ave deu um bote repentino. Puxei a mão antes de perder um dedo.

Temo ter xingado o louro.

— Passe fome, então — eu lhe disse e voltei para a entrada da frente.

A cozinha, nos fundos da casa, era a fonte da alta temperatura. Um grande fogão preto liberava tanto calor quanto as caldeiras do Queen Elizabeth, e o cheiro de comida se espalhava pelo ar. Abri o forno maior e espiei dentro. Um enorme assado de carne repousava sobre uma cama de batatas, cenouras, cebolas, nabos e maçãs.

A carne estava bem dourada. Já assava havia pelo menos uma hora.

A srta. Gawl dissera que a srta. Tanty estava repousando, o que provavelmente significava no andar de cima.

Voltei ao saguão de entrada.

— Olá, Quentin — disse o papagaio do conservatório, em tom coloquial. Provavelmente, o bicho idiota percebera que eu planejava alimentá-lo e, agora, tentava me adular. Tarde demais.

Perdoar não é uma das minhas melhores qualidades.

À minha esquerda, os degraus da escada eram pintados para parecerem teclas de piano, as partes horizontais pretas e as verticais brancas.

Segui lentamente pelo teclado ascendente, relanceando cada uma das muitas fotografias emolduradas em preto que cobriam as paredes dos dois lados: uma srta. Tanty mais jovem, de vestido de gala, cantando em um palco, as mãos entrelaçadas na sua ampla cintura; a srta. Tanty recebendo um troféu das mãos de um cavalheiro carrancudo cuja expressão indicava que ele achava que outra pessoa deveria ter sido a ganhadora; a srta. Tanty na frente de uma casa medieval com vigas aparentes de madeira, provavelmente em algum lugar na Alemanha; a srta. Tanty regendo um coro de meninas, todas — inclusive a própria srta. Tanty — de uniforme escolar composto por vestido, blusa e meias pretas; a srta. Tanty diante do coro de São Tancredo, e, de um lado, as costas do sr. Collicutt, sentado ao console do órgão, apenas o cabelo loiro e encaracolado visível. No alto, ao fundo, um pouco fora de foco, a face esculpida em madeira de São Tancredo.

Que não estava sangrando.

No alto da escada, virei à direita e segui ao quarto da frente da casa. A srta. Tanty jamais aceitaria um quarto nos fundos.

A maior parte das portas se encontrava aberta; somente uma, a do quarto situado bem na frente da casa, estava fechada.

Girei a maçaneta e enfiei o nariz pela fresta da porta.

Com as mãos cruzadas no peito, a montanhosa srta. Tanty se achava deitada, imóvel, na cama. Embora os seus óculos grossos repousassem sobre o nariz, os olhos estavam fechados.

Atravessei o quarto pé ante pé.

Me preocupou um pouco o fato de ela não estar roncando.

A srta. Tanty me parecia o tipo de pessoa que não fazia nada pela metade; logo imaginei que ela não seria do tipo que dorme em silêncio. Entretanto, as cantoras bem treinadas talvez sejam capazes de controlar as suas úvulas palatinas — aqueles pequenos dedos de carne que pendem como sincelos rosados no fundo da garganta — mesmo durante o sono.

A srta. Tanty estava mesmo dormindo? Ou alguém a teria matado? Teria o assassino do sr. Collicutt retornado para um bis? Estaria alguém matando coros, um músico de cada vez? Seria Felinha a próxima?

Eu remoía todos esses pensamentos ao mesmo tempo.

Já reparara na garrafa escura que se achava no topo de uma estante transbordante de livros, encaixada entre a cama e a parede. Estava me inclinando por cima da cama para olhar mais de perto, quando um dos olhos da srta. Tanty se abriu lentamente.

Quase engoli a minha língua.

Ampliado pelas lentes grossas, o seu olho úmido era tão grande quanto o súbito despontar de uma sanguinolenta lua cheia no equinócio de outono.

Ela piscou, e o outro olho se abriu, ainda mais alarmado que o primeiro. Suas pupilas giraram, flutuando no seu líquido denso, e se fixaram em mim.

Ela não pareceu nada surpresa por me ver. Era quase como se estivesse esperando por isso.

— Eu... eu entrei sem pedir licença. Para ver se você estava bem — falei. — Estava preocupada com você.

O corpo substancial da srta. Tanty começou a se sacudir em tremores silenciosos, começando pelos ombros e pelos seios fartos, descendo aos poucos até desaparecerem nos tornozelos. Aquilo me lembrou, apenas por um instante, um dos estropiados aspics de gelatina da sra. Mullet.

— Você estava — ela disse. Não foi uma pergunta.

Precisei de um momento para me dar conta de que a mulher ria.

Enquanto as suas bochechas convulsionavam, ela mordeu o lábio inferior, e os grandes olhos molhados se agitaram violentamente dentro das órbitas.

Era um espetáculo repulsivo.

— Oh! — ela falou. — Você realmente estava.

Ela rolou na direção da mesa de cabeceira e pegou a garrafa. Tirou a rolha com os polegares e despejou uns três centímetros de um líquido marrom-avermelhado num copo que se achava à mão.

— Para as minhas cordas vocais — falou e virou o copo de um só gole.

Ela fez um ruído de gargarejo simbólico, como que para me convencer.

Reconheci imediatamente o cheiro de xerez. A sra. Mullet usava-o no pudim de Natal, bem como no que ela chamava de “Guisado Pecador”.

— As pregas vocais precisam ser renovadas de quando em quando — disse a srta. Tanty, enfiando a rolha de volta na garrafa. — Elas devem ser tratadas como leões treinados: um chicote frequente temperado com uma recompensa ocasional.

Poderia aquela ser a srta. Tanty que precisara ser posta na cama e para quem fora preciso chamar o médico? A srta. Tanty que precisara tomar uma injeção para dormir? Se isso fosse verdade, ela era a segunda mulher em Bishop’s Lacey, em um período extraordinariamente curto, a precisar de uma agulha. A primeira fora Cynthia Richardson, que levara um susto no pátio da igreja. E, agora, a srta. Tanty, que levara um susto dentro da igreja.

A mesma srta. Tanty que, neste momento, regalava as suas pregas vocais com uma segunda talagada de xerez.

— Me desculpe por entrar sem ser convidada — eu disse, sem mencionar a srta. Gawl. — Eu percebi o grande choque que você sofreu com o sangue na igreja, e tudo o mais. Eu queria...

— Conversa fiada! — ela disse, fitando-me com seus olhos revirados. — Eu não fiquei mais chocada do que você.

— Mas...

A mulher estava rindo de novo, produzindo ondas de carne pelo corpo.

— É claro, eu fiz um grande esforço para fazer parecer que fiquei muito chocada. Balbuciar algumas palavras do Livro do Apocalipse pode ser algo notavelmente convincente. Bem... nem tão grande esforço assim, se você pensar bem. Em qualquer aldeia, uma simples chamada telefônica é tão boa quanto um editorial no Times.

— Mas...

— Foi uma atuação, querida. Uma atuação! E magnífica, se me permite. Fiquei especialmente feliz porque até você se deixou enganar... Perdoe-me, ó Senhor! Você caiu direitinho, não foi? Admita. E devo dizer que fazer o sinal da cruz com as gotas de sangue foi um toque de pura genialidade. Embora eu precise reconhecer que, por alguns momentos, pensei que você tivesse percebido a encenação.

Minha cabeça girava em círculos. Senti-me como a última a cruzar a linha de chegada em uma corrida de sacos. Aquela velha horrorosa me batera no meu próprio jogo.

— Me deixei enganar? — consegui dizer. — É claro que não me deixei enganar. É por isso que estou aqui.

Foi uma débil recuperação, mas a melhor de que fui capaz naquelas circunstâncias.

A essa altura, os vagalhões ondulantes da srta. Tanty tinham se convertido em uma plena tempestade tropical.

— Céus! — disse ela, removendo os óculos e enxugando os olhos transbordantes com a ponta de um lençol lilás. — Céus! Por que — ela perguntou, acenando a mão para a estante de livros — deveríamos deixar toda a glória da descoberta para a senhorita Como Se Chama?

Pela primeira vez, notei que a biblioteca da mulher consistia exclusivamente de centenas de brochuras de mistério encapadas em verde, como as que Dafi escondia de olhos curiosos no fundo da sua gaveta de calcinhas.

— Eu sempre achei que fosse uma mulher mais do que inteligente — a srta. Tanty prosseguiu. — Não brilhante, mas não ruim de todo. Sou sempre a primeira a descobrir quem envenenou as ameixas do pudim de Natal; quem deixou as pegadas viradas para trás no paddock, esse tipo de coisa. — E acrescentou com um olhar focado e destruidor: — Muito parecida com você.

O meu coração afundou.

Eu tinha uma rival.

— Lá estávamos nós, nós três, investigando como loucos desvairados sem que ninguém percebesse.

Nós três? Do que a mulher estava falando?

— Eu fui a primeira a sair pelo portão, acredito — disse a srta. Tanty. — Estava de joelhos e tinha uma amostra da “substância vermelha”, como Jack, o Estripador teria chamado aquilo, na ponta do meu dedo, na minha gola e... você tem de admitir que foi um golpe de mestre, Flavia... o sinal da cruz na minha testa.

Raio de mulher!

— O tal de Sowerby quase me superou com o seu lenço. Provar a coisa foi um toque interessante, mas um pouco exibido da parte dele. Então, é claro, foi a sua vez, mergulhando a sua fita branca, esperando desesperadamente que ninguém percebesse.

Raio de mulher, outra vez!

— Como três grandes detetives, fomos inesperadamente jogados em volta de uma poça de sangue, na cena de um crime. Que quadro! Que momento imortal! Que instantâneo para a capa de um livro. Eu queria ter a minha Kodak em mãos!

Cá estava uma situação bem embaraçosa. Imagino que eu devesse ter ficado feliz de encontrar uma alma irmã em Bishop’s Lacey, mas não foi assim.

Longe disso.

Como eu poderia ter esperanças de chegar ao fundo do desafortunado passamento do sr. Collicutt com alguém como a srta. Tanty turvando as águas?

Isso para não falar da polícia.

— Nós podíamos formar uma espécie de clube — ela prosseguiu com entusiasmo crescente. — Poderíamos nos chamar de “Os Três Grandes”. Ou uma empresa: TSD. Tanty, Sowerby & De Luce. Com um E comercial, é claro.

Agora chega!

Eu não ia passar o resto da minha árdua vida bancando o terceiro violino para um par de amadores.

Será que eram amadores mesmo?

A srta. Tanty tinha levantado um ponto interessante.

E eu havia negligenciado Adam Sowerby completamente.

Fechei os olhos e tentei visualizar o seu cartão comercial.

O que dizia mesmo?

Adam Tradescant Sowerby; Me., MSRHort etc.

Arqueólogo de Flora

Sementes de Antiguidade — Mudas — Investigações

Tower Bridge, Londres E.1TN Royal 1066

Investigações!

Eu não reparara nisso. Droga! Duas vezes droga!

O homem era um detetive particular.

O que lançava uma luz totalmente nova sobre as coisas. Quanto, por exemplo, o homem já sabia sobre a morte do sr. Collicutt? E como eu iria extrair isso dele?

A srta. Tanty, se estava bisbilhotando a aldeia à procura de pistas, também poderia ser uma fonte de informação mais rica do que eu imaginara.

Eu precisava manter as melhores relações possíveis com ela. Pelo menos por enquanto.

— Eu já ouvi falar, é claro — eu disse —, sobre como você solucionou o caso das agulhas de tricô desaparecidas.

A sra. Mullet nos contara a história enquanto servia o peixe. “Cuidado com os ossos”, ela dissera, e então nos contara sobre o mistério da aldeia solucionado.

— É verdade — a srta. Tanty falou, envaidecendo-se um pouco. — Pobre senhora Lucas. Ela era tão distraída. Não as encontrava de jeito nenhum. Onde tinha deixado as agulhas de tricô? Tinham desaparecido completamente. Num instante.

— Você procurou no cabelo dela? — perguntei. — Ela sempre usou o cabelo preso em um grande nó, como aqueles horríveis bailarinos no Toulouse Lautrec. La Goulue, e assim por diante... A Rainha de Montmartre.

— A senhora Lucas me deu uma olhada muito estranha, ergueu a mão, e pasme! Ela os empurrara sem pensar para dentro do penteado quando o carteiro aparecera no portão. “Você é uma verdadeira Sherlock Holmes”, ela me disse.

Dei à srta. Tanty um afável sorriso profissional.

— Quanto ao senhor Collicutt... — comecei.

Mas não havia necessidade de estimular aquela fonte. Bastou um toque na manivela para que a história inteira jorrasse.

— Foi numa terça-feira — ela disse. — A terça-feira antes da Quarta-Feira de Cinzas, para ser precisa. É sempre tão adorável ser precisa, não é, querida? A gente acha tão útil quando está envolvida na arte da pervigília.

Foco, amiga, foco!, tive vontade de gritar. Mas eu tinha de me comportar da melhor maneira. Dei à srta. Tanty um sorriso débil.

— Na terça-feira antes da Quarta-Feira de Cinzas, como tenho boas razões para me lembrar, já que, na manhã seguinte, iríamos cantar no cenário Chaillot de Benedicte, em Matins. Estávamos trabalhando naquilo havia algum tempo. Mas, como a sua irmã Ophelia pode confirmar, é uma peça terrivelmente difícil. Parece fácil, eu sei, como toda grande música parece, mas é, de fato, uma armadilha para os incautos.

“Como eu não tivera tempo suficiente para dominar a partitura... Bem, eu sabia que teria de confiar na minha capacidade de ler de relance, geralmente considerada por aqueles que a testemunharam como deveras notável.

“A única dificuldade, a mosca na minha sopa, se você preferir, era o fato de que os meus olhos estavam me traindo. Havia momentos, especialmente momentos de grande emoção, em que as notas na página eram pouco mais do que um borrão desprezível. Eu sabia que ou as minhas lentes ou os meus medicamentos teriam de ser trocados com rapidez, daí a minha consulta com o bom senhor Gideon, em Hinley.

“Normalmente, sempre que eu achava necessário fazer a Peregrinação, como eu gostava de chamar, Mildred Battle fazia a gentileza de me levar no seu Austin. Ela é uma santa: uma motorista muito adequada para alguém em uma Peregrinação, não acha?”

Eu sorri respeitosamente.

— Mas, naquela manhã em particular, Florence me ligou antes do desjejum. “A tia Mildred está doente”, me disse, “deve ter sido algo que ela comeu”. “Oh, céus”, eu falei, “sinto muito. Vou ter de telefonar para o táxi de Clarence Mundy, embora eu trema só de pensar no custo de deixá-lo esperando o dia inteiro em Hinley”. Suponho que eu deveria ter sido mais sensível à emergência de Mildred, mas foi assim. Suponho que deveria ter pensado no severo desapontamento dos paroquianos e, sim, do vigário também, por eu estar incapacitada de emprestar a minha voz a Benedicte. Você entende o meu dilema, não é?

Eu fiz que sim.

— “Mas não se preocupe”, Florence disse praticamente antes de as palavras saírem da minha boca. “O senhor Collicutt se ofereceu para levá-la, e a titia Mildred concordou gentilmente em emprestar o seu carro. Ele irá pegá-la às oito e trinta e cinco”.

Eu tinha esquecido que o senhor Collicutt estava hospedado com o senhor e a senhora Battle. Dou graças por a senhorita Tanty ter me lembrado. Assim, eram mais duas pessoas, três, contando Florence, a sobrinha, a serem interrogadas.

— O que não poderia ter sido mais perfeito. O meu compromisso com o senhor Gideon estava marcado para as nove e meia e, embora seja uma viagem de apenas dez ou quinze minutos até Hinley, eu sempre gosto de chegar bem adiantada. Às vezes, quando chegamos cedo e acontece um cancelamento, eles a atendem antes da sua hora e você volta para casa muito mais cedo. E ainda economiza três xelins na barganha.

“‘Estarei aguardando no portão’, eu disse a Florence. E assim foi. Às nove horas, como o senhor Collicutt ainda não tinha chegado, tentei ligar para ela, mas a linha estava ocupada. A senhorita Goulard, da central telefônica, disse que, como não havia vozes na linha, alguém provavelmente deixara o fone fora do gancho. Eu estava muito preocupada, posso lhe dizer. Porém, quando tentei outra vez, quinze minutos depois, a chamada se completou sem nenhum problema. Florence atendeu imediatamente e me contou que o senhor Collicutt saíra da casa às oito e meia em ponto. Fiquei furiosa. Eu teria sido capaz de matar o homem...”

Eu devo ter parecido chocada. A srta. Tanty se afobou.

— Uma figura de linguagem, é claro. Eu não mataria o querido senhor Collicutt, nem qualquer outra pessoa. Seria mais fácil criar asas e sair voando. Com certeza, você sabe disso.

— É claro — eu disse, subitamente cautelosa com a mulher.

O querido sr. Collicutt? Seria esta a mesma srta. Tanty que me dissera para não desperdiçar os meus açafrões?

Havia algo de estranho, e não era amor.

— Ele era um músico muito competente — ela prosseguiu —, mas, como todos os músicos competentes, tinha uma tendência a trabalhar duro demais. Se não estava dando aulas particulares, ou trabalhando com o coro, ou julgando um ou outro festival de música em outra cidade, estava sofrendo as dores de uma nova composição. Mildred diz que ela e George costumavam ouvi-lo andando de um lado a outro no seu quarto, não importava a hora. Eles teriam reclamado, não fosse pelo fato de que precisavam do dinheiro. Inquilinos não são tão fáceis de encontrar como eram durante a guerra, mas alguém que sai furtivamente para caminhar na lua nova é, de certo, um enorme aborrecimento para um pedreiro que trabalha por longas e árduas horas e precisa estar acordado antes do raiar do sol.

— Na lua nova? — perguntei. — Por que ele faria isso?

— Inquietação, insônia, imagino. Devia estar trabalhando harmonias e contrapontos na cabeça. Sei que ele às vezes ia à igreja. Às vezes, quando o vento soprava do oeste, eu captava trechos de música de órgão em horários estranhos. Mais de uma vez, pensei em levar ao bom homem uma garrafa térmica de chá quente, mas eu detestaria me intrometer. A música pode ser uma amante muito cruel, você sabe.

Ela me fitou com um olho gigantesco.

Estaria tentando extrair informações?

Dafi algumas vezes falava sobre amantes, mas este tópico não tinha para mim o mesmo interesse que para ela. A não ser que houvesse um assassinato envolvido, ou veneno, como no caso de Madame de Brinvilliers e o Chevalier de Sainte-Croix, eu não daria um vintém pelo que as pessoas faziam nas horas vagas.

— Às vezes, eu mesma caminho nas trevas — dizia a srta. Tanty. — Muito embora, segundo algumas pessoas, o ar noturno seja deletério para a voz. A gente apenas caminha de boca fechada, respirando calmamente pelo nariz.

Não era de admirar que as pessoas alegassem ter visto fantasmas!

Aquelas luzes misteriosas que os membros da PAA e os guardas-florestais tinham visto no pátio da igreja durante a guerra provavelmente não eram outra coisa senão o brilho da lua refletido nas lentes gigantescas da srta. Tanty.

Ou seriam algo muito mais sinistro?

— É melhor eu ir andando — falei. — Não precisa me acompanhar. Estou aliviada em ver que você está bem, senhorita Tanty.

Essa bajulação desavergonhada era como continuar jogando o jogo mesmo depois de os últimos assentos do pavilhão terem sido esvaziados. Mas a minha aparente generosidade de espírito deixaria a porta aberta para eventuais questionamentos posteriores.

— Pense no que eu disse — gritou a srta. Tanty quando eu já me encontrava à porta. — Nós três, juntando as nossas cabeças, seríamos uma força considerável.

Dei-lhe um sorriso descompromissado e comecei a descer a escada, passando pela galeria de retratos musicais. Parei por um momento para dar uma segunda olhada no cavalheiro carrancudo que presenteava a srta. Tanty com o troféu musical. Eu já tinha visto a cara dele em algum lugar, mas não me lembrei de onde.

Só de brincadeira, pulei os últimos três degraus e caí abruptamente no foyer.

— Gerônimo! — bradei. Era um brado de batalha que se tornara famoso com os paraquedistas norte-americanos; ao menos, tinha sido o que Carl Pendracka me contara.

À minha direita, na sala de estar, junto à escrivaninha da srta. Tanty, um homem endireitou as costas de repente e deu meia-volta, surpreendido. Ele folheava os papéis dela.

Era Adam Sowerby.

Ele olhou por não mais que uma fração de segundo antes que um largo sorriso se espalhasse pelo seu rosto.

— Por Júpiter! — falou. — Fui pego no ato. Você me deu um belo susto.

— Você é um detetive particular — eu afirmei.

— Bem, tenho de admitir que existem certos aspectos da minha carreira que não envolvem flores perfumadas.

— Você é um detetive particular — repeti. Eu não ia me deixar ser circunloquiada, ou seja lá qual for a palavra certa (teria de perguntar a Dafi).

— Sim. Podemos dizer que sim.

— Está impresso no seu cartão: investigações.

— Muito astuto da sua parte.

— Por favor, não seja condescendente comigo, senhor Sowerby. Eu não sou uma criança. Bem, na verdade... falando estritamente e aos olhos da lei, suponho que eu seja uma criança, mas, ainda assim, não gosto de ser tratada como tal.

— Vou me prostrar aos seus pés e chorar lágrimas amargas no tapete — ele disse com um sorriso galhofeiro, agitando os braços como um demente.

Marchei em direção à porta.

— Flavia... Espere.

Parei.

— Desculpe. É difícil deixar de ser um idiota num instante. É como sair da estrada com um automóvel e entrar em um campo de feno: são necessários alguns metros para parar totalmente.

— Talvez devamos sair antes que a senhorita Tanty desça as escadas e o flagre roubando os seus bens.

— Bom Deus! Você quer dizer que ela se encontra em casa?

— Lá em cima — eu disse, apontando com o queixo.

— Então é exeunt omnes[1] para nós — ele sussurrou, pondo um longo dedo indicador sobre os lábios e dando grandes, exagerados passos em direção à porta, como um assaltante mascarado numa pantomima.

— Você é realmente um bobo — falei. — Eu gostaria que você parasse com isso.


16

ESTÁVAMOS À BEIRA DO RIO, no fim da Rua Cater, bem longe dos ouvidos da srta. Tanty. Havíamos caminhado até lá em silêncio total.

Agora, o único som era o do rio, além do murmurar abafado de uns poucos patos que chapinhavam em círculos na correnteza.

— Sinto muito — ele repetiu. — Velhos hábitos custam a morrer.

— É parte da sua camuflagem? — perguntei. — Ser um idiota?

Eu tinha ouvido o termo “camuflagem” usado nesse sentido em um dos mistérios de Philip Odell, na BBC. “O caso da rainha curiosa”, se eu me lembrava corretamente. Significava fingir ser outra pessoa; algo que a pessoa não era.

Ocasionalmente, eu mesma tivera a oportunidade de experimentar a técnica, já que quase todo mundo em Bishop’s Lacey conhecia Flavia de Luce tão bem quanto suas próprias mães. Mas só assumia outra personagem quando me achava a uma distância segura de casa.

— Imagino que sim — disse Adam, dando uma torcida no nariz com os dedos. — Pronto. Desliguei. Sou eu mesmo de novo.

Seu sorriso se fora, e aceitei a sua palavra.

— A senhorita Tanty acha que deveríamos juntar forças — eu disse. — Formar uma espécie de clube de investigação.

— Compartilhar informações?

— Bem, sim, imagino que foi o que ela quis dizer.

— Eu não sabia das aspirações dela como detetive. Talvez eu devesse saber. O que significa, claro, que aquela encenação medonha na igreja foi apenas isto, uma impostura total. Bem como a tão divulgada crise de nervos dela esta manhã. Muito sagaz da sua parte ter percebido isso.

— Eu não percebi. Ela confessou antes que eu terminasse de atravessar a porta.

— Mas por quê? Não faz sentido. Por que se dar todo aquele trabalho e depois entregar o segredo sem nem ser provocada?

Agora, ele estava falando comigo como se eu fosse uma adulta, e devo dizer que adorei.

— Só pode haver uma razão — falei, retribuindo o favor. — Ela precisa fazer de mim uma aliada.

Os olhos de Adam se anuviaram por um momento, e então ele disse:

— Talvez você tenha razão. Está preparada para entrar no jogo?

Até aquele momento, a minha reação usual teria sido concordar com a cabeça, mas não o fiz.

— Sim — falei.

— Bom. Eu também.

Ele estendeu a mão, e eu a apertei, para não criar constrangimentos.

— Agora que somos parceiros, por assim dizer, há uma coisa que você deve saber. Mas, antes de contar, preciso da sua mais solene promessa de que não deixará vazar nem uma palavra.

— Empenho a minha palavra — eu disse. Tinha ouvido a expressão em algum lugar e achei que era admiravelmente adequada à ocasião. Nós não éramos parceiros, mas eu não iria expressar isso a ele.

— Também quero que você me prometa que não ficará perambulando pela igreja. Não sozinha, pelo menos. Se você achar, por alguma razão, que precisa ir até lá, me avise e eu irei com você.

— Mas por quê?

Eu dificilmente me deixaria atrelar a alguém velho o bastante para ser meu pai.

— Você já ouviu falar no Coração de Lúcifer?

— É claro que sim. Nos ensinaram na escola dominical. É uma lenda.

— Quanto dessa lenda você lembra?

— Em seguida à Crucificação do Nosso Senhor — comecei, papagueando quase palavra por palavra a narrativa da srta. Lavinia Puddock aos nossos ouvidos infantis —, dizem que José de Arimateia trouxe à Inglaterra o Santo Graal, o cálice que continha o Sangue de Cristo. Quando José tocou o chão da Abadia de Glastonbury com o seu cajado, este criou raízes e dele brotou um arbusto cujo tipo jamais havia sido visto. Era o famoso Espinheiro de Glastonbury, e dos seus ramos foi esculpido o báculo, ou bastão episcopal, do nosso amado São Tancredo, no qual foi engastada uma pedra preciosa chamada de Coração de Lúcifer, que, ao que dizem, caiu do céu e alguns consideram como o próprio Santo Graal. — E acrescentei: — Tudo isso me parece uma bela trapalhada.

— Muito bom — disse Adam. — Você pode ver a curva do báculo ao lado do seu rosto, no entalhe.

— Aquele que está gotejando sangue — falei entusiasticamente.

— Você confirmou isso no seu laboratório?

— Eu estava prestes a fazê-lo, mas fui interrompida. Vi você provar a coisa na igreja. O que acha?

— Vou aguardar a sua análise química. Então, veremos se os seus tubos de ensaio concordam com as minhas papilas gustativas.

— O que você ia me contar? — perguntei. — A coisa que você disse que eu devia saber?

O rosto de Adam ficou sério de repente.

— Nós últimos anos da guerra, uma pessoa chamada Jeremy Pole, que eu conhecera superficialmente na universidade, estava fazendo uma pesquisa no Arquivo de Registros Públicos, quando descobriu algo surpreendente. Enquanto analisava fardos de escrituras um tanto maçantes da Idade Média, ele encontrou um pequeno livro que outrora estivera na biblioteca, ou scriptorium, da Abadia de Glastonbury, a qual foi saqueada, não há outro modo de dizer isso, por Henrique VIII, em 1539, a despeito do fato de que monges beneditinos, ao que diziam, sentiam-se à vontade entre a realeza. Suponho que isto prova, no mínimo, que a realeza não se sentia à vontade com os beneditinos. A Abadia de Westminster, como você deve se lembrar, começou a vida como um monastério beneditino.

“As suas bibliotecas eram famosas por serem tesouros de documentos raros, sem paralelo; a de Glastonbury, especificamente, continha inúmeras histórias antigas e originais da Inglaterra.”

Na verdade, eu não me lembrava. Era uma parte da história que eu nunca soubera, mas adorei o fato de Adam fazer de conta que eu sabia. Definitivamente, ele estava melhorando.

— O estranho na descoberta de Pole era o seguinte: embora aquele antigo livrinho encadernado em couro estivesse ensanduichado entre muitos pacotes de rolos de registros oficiais em couro de vaca embolorado, não havia nenhuma marca que indicasse isso.

— Tinha sido colocado ali recentemente — observei.

— Excelente. Essa foi a conclusão de Pole.

— Alguém o escondera lá.

— Nota máxima, Flavia — disse Adam. — Muito bem.

Resisti à tentação de dar palmadinhas nos meus próprios ombros.

— Quando ele o folheou, descobriu que era um livro de registros domésticos, escrito em latim e mantido pelo despenseiro em Glastonbury, um certo Ralph: despesas, et cetera, et cetera. Nada de muito excitante. Umas poucas notas aqui e ali sobre o que estava acontecendo na abadia: grandes tempestades, mortes e secas. Não uma crônica em si, e sim um caderno de anotações de um homem atarefado, que estava mais preocupado com a despensa, as abelhas e o estado da horta... E é por isso que Pole chamou a minha atenção.

“Como muitos documentos monásticos, estava cheio de anotações rabiscadas nas margens, ou marginalia, como chamamos hoje em dia: coisas como ‘não esquecer os ovos’, ‘metheglin para o estômago do Padre Abbot’. Metheglin era uma espécie de hidromel temperado, um derivado de mel fermentado na apicultura, moda nos monastérios, a cerveja escura e forte daquele tempo.

“De qualquer modo, Pole estava folheando preguiçosamente aquelas notas, que nem pertenciam à sua área de estudo, quando a palavra adamas lhe chamou a atenção: uma palavra latina para ‘diamante’. Muito incomum de encontrar em escritos monásticos.

“O texto registrava, em surpreendentemente poucas palavras objetivas, a morte do bispo: Tancredo de Luci.”

Por alguns instantes, a minha mente não registrou o que os meus ouvidos tinham escutado.

— De Luci? — eu disse final e lentamente. — Poderia ser...?

— De fato, é muito possível — disse Adam. — O nome De Luce é, como você sabe, muito antigo, de origem normanda. Já apareceu em muitas formas diferentes. Houve, é claro, o famoso Sir Thomas Lucy, de Charlecote Park, em Warwickshire, de quem se diz, erradamente, é provável, que mandou trazer à sua presença um jovem chamado William Shakespeare, acusado de caçar ilegalmente o veado de Charlecote.

— Caramba! — falei.

— Caramba mesmo — concordou Adam.

Ele apanhou um pedregulho e o arremessou para perto dos patos que chapinhavam. Houve súbitos grasnidos excitados, um bater de asas, e os patos se acomodaram novamente no seu eterno bicar e mergulhar.

— Mas há mais — ele disse. — Você gostaria de ouvir?

Dei-lhe uma bela de uma olhada.

— Algumas páginas depois, Ralph, o Despenseiro, registra que o bispo foi posto para descansar... Sabe onde? Você vai achar isto interessante. Em Lacey.

— Não Bishop’s Lacey?

— Não. O lugar não recebeu este nome até depois da sua morte. Ele foi posto para descansar, de acordo com Ralph, que deve ter comparecido ao funeral, “com grande e solene pompa, em sua mitra, vestes sacerdotais e báculo”.

— O báculo com o Coração de Lúcifer?

— O próprio — disse Adam em voz baixa, como se houvesse algum perigo de que fôssemos ouvidos. — Na margem, Ralph anotou: oculi mei conspexi e a simples palavra adamas, que significa, mais ou menos, “vi esse diamante com meus próprios olhos”. É interessante que ele tenha decidido escrever a marginalia em latim.

— Por quê? — demandei.

— Porque seria facilmente entendido por todos na abadia, tão facilmente como o inglês no qual era mantido o seu caderno.

— Talvez outra pessoa tenha feito a anotação.

— Não, era a mesma caligrafia. O que significa que temos o relato de uma testemunha ocular, ou a coisa mais próxima disso, do fato de que São Tancredo foi enterrado com a sua mitra, trajes sacerdotais e báculo, com o Coração de Lúcifer e tudo.

— Mas por que ninguém nunca descobriu isso?

— A história é como um ralo de cozinha — respondeu Adam. — Tudo vai girando, girando e girando até que, eventualmente, mais cedo ou mais tarde, a maior parte desce pelo cano de esgoto. As coisas são esquecidas. As coisas são postas fora do lugar. As coisas são escondidas. Às vezes, é apenas uma questão de desleixo.

“Durante o último século e meio, alguns esportistas amadores elegeram como passatempo escavar os escombros da história da nossa ilha, em grande parte para o seu próprio conhecimento e diversão, mas, com as duas últimas guerras, isso praticamente acabou. Hoje em dia, o passado é um luxo ao qual ninguém pode se permitir. Ninguém tem tempo para isso.”

— Você tem? — perguntei.

— Eu tento. Embora nem sempre tenha sucesso.

— Então, isso é tudo?

— Tudo?

— Tudo o que você queria me contar? Tudo o que eu me comprometi a não repetir?

Uma sombra perpassou o seu rosto.

— Receio — ele disse — que isso seja apenas o começo.

Ele pegou mais um pedregulho como se fosse atirá-lo despreocupadamente entre os patos, porém pensou melhor e deixou a pedrinha cair dos seus dedos.

— A grande questão — ele falou — é que, nesse passado de, digamos, dez anos, outra pessoa deu com as anotações de Ralph, o Despenseiro, e as achou importantes o bastante para escondê-las no meio de uma pilha de velhos pergaminhos. E, como costuma ser o caso, receio haver um diamante no fundo de tudo isso.

— O báculo de São Tancredo! — deixei escapar em um sussurro.

— Precisamente.

— Está na sua tumba! — falei, pulando de um pé para o outro.

— Acredito que está — disse Adam. — Você sabe alguma coisa sobre diamantes na história?

— Não muito. A não ser que, outrora, acreditava-se que eles eram ao mesmo tempo veneno e antídoto.

— É verdade. Achavam também que os diamantes conferiam invisibilidade, que protegiam contra o mau-olhado e que, ao menos conforme Plinio, o Velho, davam aos homens o poder de ver o rosto dos deuses: Anancitide in hydromantia dicunt evocari imagines deorum. No início do século dezesseis, segundo um veneziano chamado Camillus Leonardus, os diamantes eram “uma ajuda para os lunáticos e os possuídos pelo Demônio”. Ele também acreditava que podiam domar bestas selvagens e evitar pesadelos. Acreditava-se que o diamante no peitoral do Sumo Sacerdote Judeu se tornava claro na presença de um inocente e turvo na presença de um culpado. E foi dito no Talmude que o Rabi Yehuda, durante uma viagem, colocou um diamante sobre algumas aves salgadas, as quais voltaram à vida e saíram voando com a pedra!

— Você acredita nessas coisas?

— Não — disse Adam. — Mas gosto de ter em mente que, quando se acredita que uma coisa tem certo efeito, ela tem mesmo. Também é sensato lembrar que, quando se trata de diamantes, existe, sim, um poder que eles possuem de fato: o poder de fazer as pessoas matarem.

— Você está falando do senhor Collicutt?

— Para ser franco, sim. É por isso que quero que você se mantenha afastada da igreja. Deixe isso comigo. É por essa razão que estou em Bishop’s Lacey. É o meu trabalho.

— É mesmo? Eu pensava que fosse o trabalho do inspetor Hewitt.

— Há mais coisas entre o céu e a terra do que o inspetor Hewitt.

— Posso fazer uma pergunta? — falei, criando coragem.

— Você pode tentar.

— Para quem você está trabalhando?

Subitamente, o ar se tornou frio, como se uma brisa fantasma houvesse soprado sobre nós, vinda do passado.

— Receio não poder contar isso.


17

DE VOLTA À CASA, EM BUCKSHAW, e ao laboratório, me debrucei sobre o meu caderno de anotações. Eu descobrira por experiência que pôr as coisas no papel ajuda a clarear a mente, exatamente do mesmo modo que, como me ensinara a sra. Mullet, uma casca de ovo clareia o consommé ou o café, o que, naturalmente, é uma simples questão de química. A albumina contida na casca do ovo tem a propriedade de coletar e ligar os resíduos que flutuam no líquido escuro, que podem então ser removidos e descartados em um único grumo malcheiroso: uma descrição perfeita do processo de escrever.

Olhei para Esmeralda, empoleirada em um suporte de ferro fundido, a cabeça inclinada para vistoriar os dois ovos que ela pusera na minha cama: dois ovos que eu agora cozinhava no vapor, em um frasco de vidro coberto. Se Esmeralda estava aborrecida por ver a sua prole sendo cozida viva, não demonstrava.

— Menina valente — eu disse a ela, que se achava mais interessada na água borbulhante do que na minha falsa simpatia. As galinhas são muito menos emotivas que os humanos.

Ovos de luxo no vapor De Luce, foi como batizei a minha invenção.

Os horríveis ovos duros da sra. Mullet, com seu círculo verde em volta da gema, iguais ao planeta Saturno com seus anéis envenenados — só de pensar naquelas coisas, tenho engulhos —, me forçaram a encontrar uma solução química para o problema.

Uma casca de ovo, raciocinei, é composta principalmente de carbonato de cálcio, CaCO3, que, muito embora não ferva até chegar a uma temperatura muito alta, começa a se decompor a cem graus Celsius, o ponto de fervura da água.

No vapor, coberta por dez minutos, a estrutura cristalina do carbonato de cálcio se enfraquece. Depois de aproximadamente mais dez minutos em água fria, o ovo pode ser batido de leve em uma superfície dura e rolado gentilmente sob a mão, ao longo do seu equador, até que a casca se despedace em cristais e possa ser removida quase inteira, tão facilmente quanto a de uma tangerina. A clara fica firme sem ser borrachuda, e a gema apresenta um perfeito amarelo-narciso.

Adeus, ovos duros cozidos na água. Viva os Ovos de luxo no vapor De Luce!

Uma solução perfeita para qualquer pessoa que odeie lutar com as cascas de ovos cozidos — ou que roa as unhas. Eu ainda escreveria um livro de culinária e ficaria famosa. Flavia na cozinha!, eu o chamaria, e me tornaria conhecida como A Dama dos Ovos.

“Uma vida melhor com a química”, como o pessoal da DuPont sempre nos diz em seus anúncios no Picture Post.

Peguei o meu lápis.

“O Coração de Lúcifer”, escrevi e logo risquei. Pensando melhor, arranquei a página e a expus à chama de um bico de Bunsen, depois deixei a água da pia arrastar as cinzas pretas para o ralo. Por mais que estivesse morrendo de vontade de pôr no papel a história daquela pedra inestimável, me dei conta de que eu não me atreveria. Não era seguro, nem sensato, confiar certas coisas ao papel. Diários e cadernos podem ser lidos por olhos indiscretos. Sabe-se que isso acontece.

Por ora, eu me limitaria a pessoas.

“Adam Tradescant Sowerby”, eu escrevi numa nova página e sublinhei. Isto ia ser difícil. Eu tinha sentimentos tão confusos para com o homem.

Admite ser um investigador particular, mas quem o está empregando? E quanto ele sabe?

Era estranho que não me tivesse feito perguntas sobre os meus próprios achados. Parecia não estar nem um pouco curioso sobre qualquer coisa que eu pudesse ter descoberto.

Tracei uma linha, deixando mais espaço para Adam Sowerby. Voltaria a ele mais tarde.

Srta. Tanty - fantasia ser uma detetive amadora. Afortunadamente, acredita que Adam e eu também somos.

Como presidente da Guilda do Altar, tem acesso inquestionável à igreja, a qualquer hora. Admitiu ter ficado furiosa com o sr. Collicutt por não pegá-la para o seu compromisso, mas isso dificilmente seria razão para matá-lo. Outros motivos? Musicais, talvez? Ela gritou ao ver o sangue pingando na igreja - “Perdoe-me, ó Senhor” - e depois tentou me convencer de que aquilo foi encenado. Pelo que ela precisava ser perdoada? (P.S.: extrair isso de Felinha.)

O que me fez lembrar: eu ainda não analisara o resíduo vermelho na minha fita de cabelo. Enfiei a mão no bolso.

Estava vazio.

Pulei da bancada e revirei desesperadamente os dois bolsos. A fita se fora.

Com certeza, estava comigo esta manhã, enquanto eu falava com a sra. Mullet. Ou não estava? Eu certamente pensara em realizar a minha análise química, mas teria realmente tocado, apalpado a fita? Provavelmente, não.

Eu a teria perdido à margem do rio, enquanto falava com Adam? Ou na casa da srta. Tanty?

— Droga! — exclamei.

Eu poderia tê-la deixado cair em qualquer lugar: na cripta, no pátio da igreja, no túnel, na estrada para Nether-Wolsey, no açougue daquela peculiar aldeia. Ou ela teria caído do meu bolso em Bogmore Hall? Ainda estaria caída em algum lugar naqueles corredores poeirentos — ou na cela de prisão que era o quarto de Jocelyn Ridley-Smith —, pronta para trair o fato de que eu estivera lá? Talvez, ela já tivesse sido encontrada pelo pai dele, o magistrado — ou pelo criado. Qual era mesmo o nome do homem? Benson?

Não importava. Eu precisava continuar com as minhas anotações antes que esquecesse os detalhes.

Meg, a Louca - realmente inofensiva. Pelo menos, eu acredito que seja. Embora tenha sido a primeira a ver o sangue pingando, não pareceu nada surpresa. De fato, ela imediatamente começou a citar o Livro do Apocalipse - como se tivesse ido à igreja especialmente para anunciar o milagre.

Marmaduke Parr - sem sequer conhecer o homem, posso dizer que ele é uma daquelas pessoas que o pai chamaria de “um camaleão eclesiástico”. Uma figura repelente, sem dúvida. Por que está tão determinado em interromper a exumação de São Tancredo? Ou será que é realmente o bispo quem deseja fazer isso? Ou o chanceler?

O que nos leva ao:

Magistrado Ridley-Smith - eu nunca batera os olhos no homem mas já antipatizava fortemente com ele, pelo simples fato de que mantém o seu pobre filho, Jocelyn, cativo como uma princesa numa torre.

Minha mão parou de escrever.

Não seria “extremamente atípico”, como diria Dafi, que, embora Harriet tivesse visitado Jocelyn Ridley-Smith em Bogmore Hall — frequentemente, ao que parece —, ela nunca exigira que ele fosse libertado? Por que não? Esta talvez fosse a maior de todas as perguntas.

Meu lápis se quebrou com um estalo!

Percebi de súbito que, entre as palavras, eu mordera e mascara quase metade do lápis. Teria de continuar depois.

Esmeralda soltou um cacarejo, e vi que os ovos haviam praticamente secado. Provavelmente, eu os estragara. Apaguei o bico de Bunsen e, com um par de pinças de laboratório niqueladas, extraí os ovos fumegantes do béquer.

Usando como oveiro um funil de vidro enfiado em um frasco, dei no primeiro ovo uma batida seca com uma colher de medida graduada que eu furtara da cozinha e tirei o topo.

O cheiro de sulfeto de hidrogênio preencheu o ar.

Gás de ovo podre.

— Um ovo cozido demais cheira a você-sabe-o-quê — já dissera a sra. Mullet, e ela estava certa, muito embora não conhecesse os detalhes químicos.

Além das gorduras, um ovo contém magnésio, potássio, cálcio, ferro, fósforo e zinco, junto com uma poção de bruxa de aminoácidos, vitaminas (nas quais a Marinha Real não acreditava até muito recentemente) e uma longa lista de proteínas e enzimas, inclusive lisozima, que é encontrada no leite, bem como nas secreções humanas tais como lágrimas, cuspe e ranho.

Não fazia diferença: eu estava com fome.

No entanto, na primeira colherada, a porta do quarto se abriu bruscamente e Dafi entrou de modo tempestuoso. Eu devia ter esquecido de trancá-la.

— Olhe para você! — ela bradou, com o dedo indicador tremendo.

— O quê? — perguntei. Até onde eu sabia, não havia cometido nenhuma perversidade recentemente.

— Olhe para você! — ela disse de novo. — Apenas olhe para você!

— Você quer um ovo? — perguntei, fazendo um gesto para uma banqueta vazia. — Estão um pouco passados demais.

— Não! — E acrescentou: — Obrigada.

As boas maneiras eram tão persistentes em Dafi quanto um cisco no olho.

— Bem, sente-se assim mesmo — falei. — Você está me deixando nervosa.

— O que eu tenho a dizer a você precisa ser dito em pé.

Encolhi os ombros.

— Sinta-se à vontade — eu disse, mas ela não me deu sequer a sombra de um sorriso.

— Você não tem juízo? Você não tem juízo nenhum?

Esperei pela explicação, a qual, suspeitava, não demoraria a vir.

— Você não vê o que está fazendo com o pai? Ele está arrasado, ele está doente, ele não dorme, e você sai por aí criando problemas! Como você consegue viver consigo mesma?

Encolhi os ombros. Eu poderia ter dito, suponho, que, na última noite, tivera uma conversa perfeitamente civilizada com ele.

Então, me lembrei de que havia encontrado o pai sozinho na cozinha escura.

Era melhor esperar que a raiva de Dafi passasse. Até mesmo uma bomba voadora fica sem combustível. Mas, no momento, Dafi estava tão furiosa que, mesmo eu tendo relanceado o olhar para Esmeralda várias vezes, não registrara a galinha.

Ouvi durante o que deve ter sido uns dez minutos enquanto Dafi deblaterava, andando de um lado a outro, agitando os braços, citando os capítulos e versículos das minhas ofensas desde o dia do meu nascimento, dragando incidentes dos quais até eu me esquecera.

Foi um espetáculo impressionante.

Então, de repente, ela irrompeu em lágrimas, soluçando como uma menininha perdida, e eu me vi ao lado dela, com um braço em volta dos seus ombros, os meus próprios olhos inexplicavelmente turvos.

Nenhuma de nós disse uma palavra. Nem precisávamos. Ficamos abraçadas como lulas, molhadas, trêmulas e infelizes.

O que seria de nós?

Eu estava escondendo essa pergunta de mim mesma fazia mais tempo do que gostaria de lembrar.

Para onde iríamos quando Buckshaw fosse vendida? O que faríamos?

Algumas perguntas não tinham respostas. Não existiam finais felizes.

Se tivéssemos sorte, a venda de Buckshaw renderia dinheiro suficiente para pagar as dívidas do pai, porém ficaríamos sem um lar e sem um único centavo.

O pai, eu sabia, jamais aceitaria caridade. Não estava no seu sangue.

De novo esta palavra: sangue. Estava por toda parte, não estava? Pingando da cabeça decepada de João Batista, caindo do rosto de um São Tancredo de madeira, manchando a minha fita de cabelo, escorrendo, em sua maravilha vermelha, nas lâminas de vidro sob o meu microscópio...

Por toda a parte. Sangue.

Era o que nos unia, Dafi e Felinha e o pai e eu.

Naquele instante, tive certeza de que éramos um. A despeito das histórias estúpidas com as quais as minhas irmãs sempre me atormentaram, o meu sangue agora me gritava que todos éramos um e que nada poderia nos separar, nunca.

Foi o mais feliz e o mais triste momento da minha vida.

Ficamos plantadas ali, Dafi e eu, por um longo tempo, abraçadas, sem querer nos separar, tendo de olhar uma para a outra. Em momentos assim, os rostos devem ficar enterrados nos ombros.

Então, incrivelmente, me ouvi dizendo:

— Pronto, pronto... — E dei palmadinhas no ombro de Dafi.

Poderíamos ter rido, mas não rimos. Dafi, afinal, fungando, se afastou e saiu do quarto.

Nossos olhos não se encontraram.

As coisas tinham voltado ao normal.

Eu me senti muito estranha conforme descia lentamente a escadaria da ala leste. O que estava acontecendo comigo?

Por um lado, algo me fizera seguir Dafi: uma necessidade de continuar o contato que acabáramos de fazer. Por outro, eu queria matá-la.

Das minhas duas irmãs, Dafi era a que eu mais temia. Isso se devia, imagino, aos seus silêncios. O mais comum era encontrá-la enrodilhada com um livro, o que, em si, era um quadro bastante bonito — porém enrodilhada, ainda assim; como uma cobra.

Não era possível saber quando ela iria atacar e, quando atacava, as suas palavras eram venenosas.

Parei no patamar para refletir.

Eu estava sendo dilacerada por dentro: pressionada por uma espécie de gratidão entorpecida que tentava me expandir e, ao mesmo tempo, oprimida pela realidade exterior, pelo peso enorme da nossa situação.

Será que eu explodiria ou seria esmagada?

Um tanto atordoada, terminei de descer a escada e, sem me dar conta, segui à cozinha.

A sra. Mullet se achava mergulhada até os cotovelos em uma pia cheia de potes.

— O que há com você, querida? — ela perguntou, secando as mãos e se voltando para mim. — Parece que viu um fantasma.

Talvez eu tivesse visto.

Talvez eu tivesse visto o fantasma do que a nossa vida em família poderia ter sido se todos nós não fôssemos quem éramos.

Tudo era tão deploravelmente complicado.

A sra. Mullet fez uma coisa que não fazia desde que eu era uma menininha. Ela se ajoelhou, pôs as mãos nos meus ombros e olhou bem dentro dos meus olhos.

— Conte-me — falou suavemente, afastando o meu cabelo dos meus olhos. — Conte tudo à senhora M.

Suponho que poderia ter feito isso, mas não fiz.

— Acho que é só porque Felinha vai se casar e se mudar daqui — eu disse, com o lábio inferior tremendo. — Vou sentir falta dela.

Por que, pensei ao mesmo tempo que dizia essas palavras, nós mentimos com mais facilidade quando há sentimentos envolvidos?

Esse pensamento nunca me ocorrera antes — e me assustou. O que fazer quando o seu cérebro vomita perguntas às quais você não tem respostas? Perguntas que você sequer entende?

— Todos vamos sentir falta dela, querida — disse a sra. Mullet. — Vamos sentir falta da sua música adorável pela casa.

Aquilo foi a gota d’água. Irrompi em lágrimas.

Por quê?

É difícil explicar. Em parte, por causa da ideia de que a sra. Mullet sentiria falta de Ludwig von Beethoven e Johann Sebastian Bach; sentiria falta de Franz Schubert e Domenico Scarlatti e Pietro Domenico Paradis e mais uma centena de outros que visitavam os salões de Buckshaw desde que eu me dava por gente.

Como aquele lugar iria ficar vazio. Tão imensa, horrivelmente vazio.

A sra. Mullet enxugou as minhas lágrimas com o seu avental.

— Pronto, querida, pronto — ela disse, exatamente como eu dissera a Dafi. — Tenho uns bolinhos que acabaram de sair do forno. Não existe nada melhor para enxugar lágrimas do que bolinhos quentes.

Sorri com a sugestão, mas não muito.

— Sente-se à mesa, vou pôr a chaleira no fogo — ela falou. — Uma boa xícara de chá faz bem para a moela, como o bispo disse para a corista. Oh, desculpe, querida! Eu não devia ter dito isso. É um dito engraçado que Alf ouviu no jantar do seu regimento. Não sei o que passou pela minha cabeça.

Do que ela estava falando? Não havia nada de remotamente divertido naquela frase. De fato, não fazia nenhum sentido.

No entanto, me fez lembrar algo: o bispo. E o bispo me fazia lembrar o chanceler.

— Você sabe alguma coisa sobre o magistrado Ridley-Smith? — me vi perguntando.

— Apenas que ele é da Tartária. Os Ridley-Smith são uma gente estranha. Não são coisa boa.

— Ouvi falar de um que era feito de vidro e de outro cujo crocodilo de estimação comeu a camareira.

A sra. Mullet fungou.

— Esses dois não são nada perto dele — falou. — Não importa se é magistrado ou não, o homem é perverso. Fique longe dele.

— Mas Harriet costumava visitar Bogmore Hall.

A sra. Mullet parou a meio caminho do fogão, a chaleira imóvel na mão.

— Onde você ouviu isso, mocinha?

O ambiente subitamente se tornou frio, como acontece quando você vai longe demais.

— Oh, eu não sei — falei alegremente. — Dafi ou Felinha devem ter mencionado.

— A senhorita Daphne e a senhorita Ophelia não sabem nada sobre isso. Era um segredo entre mim e a senhorita Harriet. Nem mesmo o coronel sabia. Eu costumava preparar a comida, e ela entregava para ele.

— Para Jocelyn Ridley-Smith? — perguntei.

— Agora, escute aqui, senhorita Espertinha. Nunca mais mencione esse nome nesta casa. Vão pensar que a culpa é minha e eu vou ser demitida por falar demais. Vá embora... E tire esses Ridley-Smith da sua cabeça.

— Você acha que é um pecado Harriet ter feito amizade com Jocelyn?

— Não é uma questão do que eu acho. Não é meu papel achar. Eu me arrasto todos os dias até aqui para cozinhar para vocês e então vou para casa, e isso é tudo.

— Mas...

— Isso é tudo! — a sra. Mullet bradou. — Se eu chego em casa e conto para o Alf que perdi o emprego, não quero nem pensar no que ele vai dizer. Agora, vá embora.

E eu fui embora.

A sra. Mullet tinha me dado uma ideia.

A sra. Mullet e Alf moravam em um pitoresco chalé perto do fim da Alameda dos Sapateiros, uma trilha estreita que começava na Rua Principal e terminava em lugar nenhum.

Sentado em uma janela, um gato ruivo me observava com um único olho aberto.

Bati à porta e tentei parecer respeitosa.

Não sabia muita coisa sobre a vida familiar dos Mullet, a não ser pelos mexericos que a sra. M inevitavelmente deixava escapar.

Eu sabia, por exemplo, que Alf adorava torta de creme; que a filha deles, Agnes, saíra de casa no último ano da guerra para estudar taquigrafia Pitman; e que, desde então, o quarto de Agnes era mantido como um santuário devotado aos poderes da máquina de escrever. Mas eu sabia muito pouco além disso.

A porta se abriu, e lá estava Alf. Ele era um homem de meia-idade, meia altura, meio cabelo e meia compleição. Sua única característica peculiar era o modo como se postava: reto como uma vareta. Alf, eu lembrei, servira no exército e, como o pai e Dogger, sabia uma porção de coisas sobre as quais nunca se devia falar.

— Bem, senhorita — disse ele. — A que devemos este prodigiosamente enorme prazer?

Precisamente as mesmas palavras com que ele me recebera na minha última visita, seis meses antes.

— Estou fazendo uma pesquisa — falei — e gostaria de ouvir a sua opinião.

— Pesquisa, é? Melhor entrar e me contar a respeito.

Antes que desse tempo de assobiar os primeiros dois compassos de “Rule, Britannia”, estávamos sentados na cozinha minúscula, perfeitamente limpa e organizada.

— Me desculpe por não recebê-la no salão de baile — disse Alf —, mas a patroa não gosta de ter as suas almofadas desarrumadas.

— Sem problema, senhor Mullet. Eu também não gosto.

— Menina sensata. Um bom senso de inteligência.

Fui direto ao assunto:

— Eu estava conversando com a senhora Mullet sobre os Ridley-Smith.

O que, até esse ponto, era verdade, mas não muito.

— Ah — Alf disse vagamente, sem olhar para mim. — Mais alguma coisa?

— Não, apenas os Ridley-Smith. O magistrado Ridley-Smith, em particular.

— Ah — Alf disse de novo.

— A mulher dele era muito bonita. Acho que vi uma fotografia dela.

— É curioso como toda aldeia tem os seus segredos, não é mesmo? Algumas coisas sobre as quais simplesmente não se fala. Já reparou nisso? Eu já.

— E esta é uma delas, não é?

Alf atarefou-se com a chaleira, exatamente como fizera a sra. Mullet. Acho que, quando duas pessoas estão casadas há séculos, elas se tornam figuras recortadas de si mesmas unidas uma à outra.

— Está um lindo dia — disse Alf, sentando-se à mesa da cozinha. — Um pouco de vento. Mas nada mau para março.

— Eu estive em Bogmore Hall. Vi Jocelyn Ridley-Smith. Falei com ele.

Houve apenas a mais leve hesitação. Se eu não estivesse à sua procura, não teria notado.

— Você esteve lá? Por George!

— Sim.

Havíamos chegado a um beco sem saída.

Alf deu um piparote em uma migalha, depois se curvou e recolheu-a do chão, examinando-a atentamente, como se fosse uma partícula de pó da lua.

— Preciso da sua ajuda, senhor Mullet — eu disse. — Estou fazendo uma pesquisa genealógica para um artigo que pretendo escrever: “As raízes normandas de certas famílias residentes na paróquia de...”

Antes mesmo de terminar a frase, percebi pelo seu sorriso debochado que aquilo não daria certo.

— A verdade é que eu sei que você esteve no exército — falei, mudando de tática. — Sei que, por causa da Lei dos Segredos Oficiais, existem coisas que você está proibido de falar. Não vou perguntar nada sobre essas coisas. Não vou perguntar sobre o meu pai, por exemplo, nem sobre Dogger. Isso o colocaria numa situação difícil.

Alf concordou com a cabeça.

— Mas eu vou perguntar sobre a senhora Ridley-Smith, porque... bem, porque eu preciso saber. É importante para Jocelyn, também. Espero que o senhor entenda. Pode ser uma questão de vida ou morte. — E acrescentei: — Segredos e não segredos.

Pelo modo como evitou os meus olhos, percebi que ele estava vacilante.

— Eu sei que você sabe tudo sobre as forças armadas. Todo mundo em Bishop’s Lacey sabe disso. “Uma enciclopédia ambulante”, eles o chamam.

— É mesmo?

— Sim — eu disse. Fiz o sinal da cruz sobre o meu coração com os primeiros dois dedos cruzados e estendi a outra mão, para deixar claro que eu não estava cancelando o sinal da cruz com um sinal negativo nas costas. — É verdade. A senhora Mullet também diz isso.

Ele amoleceu.

— Você ouviu falar da Batalha de Plassey — falou. Foi uma afirmação, não uma pergunta.

Fiz que não com a cabeça. Uma vez que eu o fizera se abrir, não queria interrompê-lo.

— E de Clive da Índia?

Balancei a cabeça de novo.

— Chocante — ele disse. — Precisamos corrigir isso sem demora.

O que isso teria a ver com os Ridley-Smith?

Eu não podia nem imaginar.


18

— A ÍNDIA, NAQUELES DIAS, era como o paraíso e o inferno dentro de uma chaleira de pedra fervente. Ainda assim, todos davam a vida para entrar lá — os franceses, os holandeses, os portugueses, e, sim, os ingleses, todos se engalfinhando para serem os mandachuvas. Para não falar dos maometanos e mongóis, que tentavam se agarrar a tudo o que lhes pertencia por direito.

“Mais guerras do que você pode contar nos seus dedos das mãos e dos pés juntos, travadas em uma terra cheia de serpentes, elefantes, leões, leopardos, tigres, rios, montanhas, monções e malária.”

— Mas por quê? — perguntei.

— Negócios — disse Alf. — Agricultura. Chá e madeira. Arroz. Café e algodão. Ópio.

— Ah — falei como se tivesse entendido. — E quem ganhou?

— Nós ganhamos, é claro.

— Na Batalha de Plassey? — indaguei, uma tentativa de estar um passo na frente dele.

— Entre outras — disse Alf. — Esta foi só uma de tantas. Mas uma das melhores. Bengala, Trichinopoly, Puducherry, Coromandel... Não se fazem mais nomes como esses hoje em dia.

Ele se levantou da mesa e, abrindo uma gaveta, tirou de lá dois punhados de talheres — uma dúzia de facas, garfos e colheres, que soltou ruidosamente sobre a mesa.

— O buraco negro de Calcutá — disse, sentando-se novamente. — Você já ouviu falar?

— Não.

— Cento e quarenta e seis ingleses foram socados em uma cela menor do que a copa de Buckshaw. Junho. O mês mais quente do ano. Na manhã seguinte, não havia mais do que vinte e três vivos.

Tentei me imaginar abrindo a porta da copa de Dogger e cento e vinte e três cadáveres tombando para dentro da cozinha, abandonando a um canto sombrio outras duas dúzias, ou quase isso, de seres humanos miseráveis. Mas não consegui. Era inimaginável.

— O calor era horrendo — Alf prosseguiu. — Não havia ar. Assassinato, puro e simples. O que você faz?

— Vingança? — perguntei. Me parecia a resposta lógica.

— A vingança é justa! — disse Alf, batendo o punho violentamente contra a mesa, fazendo os talheres pularem. — Aqui está o Rio Bhagirathi — ele posicionou uma faca. — E aqui — posicionando um saleiro —, Siraj ud-Daulah, o último governador indiano de Bengala. O inimigo. Ele tem noventa anos de idade e o temperamento de uma naja com presas purulentas. Com um exército de cinquenta mil na infantaria, dezoito mil cavalos, cinquenta e três canhões e quarenta franceses.

Alf de repente voltou à vida. Ele era tão apaixonado pela história militar britânica quanto eu pelos venenos.

— Aqui, a oeste, está Clive, com o Trigésimo Nono Regimento. Robert Clive. Sequer era militar por profissão, se você pensar bem. Um guarda-livros. Um guarda-livros! Mas um guarda-livros inglês. Apesar disso, ele guiou os seus homens à batalha através de uma tempestade, trovões e relâmpagos de estarrecer. Os nativos pensaram que era uma espécie de deus da guerra. — Alf suspirou. — Foram bons tempos aqueles, foram bons tempos.

“Agora, em Plassey, havia três mil e duzentos homens e noventa canhões. Era a estação das monções. Choviam canivetes de novo. Estávamos em minoria, mais de quinze para um. O que você imagina que ele fez?”

— Ele atacou — adivinhei.

— Maldição! É claro que ele atacou — disse Alf, girando uma colher de açúcar e mandando-a ao outro lado da mesa. — Siraj ud-Daulah debandou montado num camelo.

Ele varreu com o braço as colheres e os garfos do exército de Nawab, que caíram no chão.

— Depois eu lavo tudo — falou. — Quinhentos mortos. Perdas britânicas? Vinte e dois mortos e quinze feridos.

Deixei escapar um assobio baixinho.

— Como pode ser? — perguntei.

— Nawab não mantinha seca a sua pólvora. Não se pode lutar com pólvora molhada.

Assenti sabiamente.

— Muito interessante — eu disse. — O que foi feito dele?

— Nawab? Foi executado uma semana depois, pelo seu sucessor.

— E Clive?

— Cortou a própria garganta anos depois, em Londres.

— Ugghhh! — eu disse, muito embora estivesse interessada.

— Imagino que você esteja se perguntando por que contei tudo isso — disse Alf.

— Só um pouquinho — admiti.

— Porque — Alf falou, observando atentamente a minha reação — um daqueles oficiais do Trigésimo Nono Regimento de Infantaria da Sua Majestade, que era George II, veja bem, era um antepassado da senhora Ridley-Smith.

Fiquei sem fôlego.

— A senhora Ridley-Smith? A mulher do magistrado? A mãe de Jocelyn?

— A própria. É um mundo engraçado, não é?

— E como você sabe disso?

— O velho Beatty me contou. Ele foi jardineiro em Bogmore enquanto homem e menino, por sessenta anos ou mais. Trabalhei ao lado dele quando era garoto. Eu não passava de uma criança, mas o velho Beatty gostava de ter alguém para quem recitar as suas histórias. Um grande contador de histórias, o velho Beatty. Confiavam muito nele, os Ridley-Smith. O magistrado o trouxe da Índia para cuidar do seu jardim. Do interior, perto de Calcutá. Flores maravilhosas, costumava dizer o velho Beatty. Danadas de maravilhosas.

— Espere um minuto. Estou confusa. O magistrado Ridley-Smith esteve na Índia?

— Quando era jovem. Algum tipo de magistrado distrital. Conheceu a esposa lá. Ada, ela se chamava. A família dela estava na Índia fazia um bocado de tempo. Britânicos, é claro, mas viviam no país havia gerações. Jocelyn nasceu enquanto eles estavam lá.

— E a mãe dele?

— Ela morreu.

— Morreu quando ele nasceu?

— Foi o que contou o velho Beatty.

Arrá! Então, era isso! A sra. Ridley-Smith era a mulher de olhos tristes na fotografia que eu vira na parede de Jocelyn.

— Ela estava doente? — perguntei. — Antes de Jocelyn nascer, digo.

— Ela estava irritadiça. Ficava muito sozinha. Passava o tempo todo com os seus soldados.

Ele observou atentamente a minha reação.

— Soldados?

— Soldadinhos de chumbo. Milhares deles.

Não pude acreditar no que ouvira. Soldadinhos de chumbo? Uma mulher adulta brincando com soldadinhos de chumbo?

— Ela os comprara para Jocelyn? — perguntei.

— Não. Ela morreu quando ele nasceu, lembre-se.

— Talvez os estivesse guardando para quando o filho fosse mais velho.

Alf sorriu.

— Não. Ela os tinha desde menina. Passados de geração a geração, desde os seus antepassados militares. Cada um acrescentou alguns soldados à coleção. Era o hobby dela, por assim dizer.

— Soldados — falei. Mal podia acreditar.

— Soldados — repetiu Alf, curvando-se e recolhendo, peça por peça, os talheres espalhados pelo chão. Ele os reposicionou em fileiras bem ordenadas sobre a mesa, nomeando cada uma enquanto ajeitava as peças gentilmente. — Aqui, a Primeira Divisão, o Primeiro Regimento Europeu de Madras. Aqui, a Segunda Divisão, os Primeiros Regimentos Europeus de Madras e Bombaim. Aqui, dois mil sipaios, os soldados nativos de infantaria, o Primeiro Regimento de Bengala, a Artilharia Real. — E concluiu: — Então, isto somos nós. Todos presentes.

— Mas e o Nawab? — perguntei. — E os seus cinquenta mil guerreiros?

— Oh, eles estavam lá, sem dúvida — Alf disse mansamente. — O velho Beatty contou que ela possuía um bonequinho para todos eles. Para cada um deles.

Ele esperou enquanto eu absorvia aquele pensamento.

— Você quer dizer...? — perguntei.

— Isso mesmo, mocinha. Construiu um quarto especialmente para isso. Mantinha-o tão bem trancado quanto o Tesouro Nacional. Ninguém podia entrar a não ser ela mesma. O velho Beatty só sabia disso porque, certa vez, foi chamado para acudi-la, pois ela tinha desmaiado. Apenas entrou e a carregou para fora, mas conseguiu dar uma boa olhada em volta.

Fiquei na beirada da cadeira, os meus olhos implorando por mais.

— Ela tinha todo o campo de batalha de Plassey representado em uma maquete. Uma réplica em escala precisa da coisa de verdade. Era enorme. Pedras, colinas, árvores. O Rio Bhagirathi era um espelho, pintado de azul. Os indianos são maravilhosamente hábeis com as mãos. Preencheram a sala inteira, de parede a parede, a parede, a parede. Lindo de ver, disse o velho Beatty.

— E a senhora Ridley-Smith...?

— Se trancava lá dentro, de manhã até a noite, movendo os soldadinhos de um lado a outro, lutando a batalha de Plassey repetidamente.

— Mas o marido dela... — falei. — O magistrado, o chanceler... Ele achava que ela era...

— Boa da cabeça? Ninguém sabe. Ele jamais menciona o nome dela.

Senti um arrepio me atravessar. Só mais tarde eu pensaria no porquê desse arrepio.

— Depressão, é como chamam hoje em dia. Naquela época, deviam ser “os vapores”, ou coisa assim.

— E os familiares dela? Eram do mesmo jeito?

— Sólidos como pedras, todos eles. Soldados, advogados, nababos da Companhia das Índias Ocidentais desde os tempos mais remotos. Eles a deixavam completamente sozinha com os seus brinquedos, pelo menos de acordo com o velho Beatty.

— Obrigada, senhor Mullet — eu disse, arrastando a minha cadeira para trás e dando-lhe um aperto de mão. — É melhor eu ir andando. Não quero que ninguém fique preocupado comigo.

Na verdade, eu precisava conversar com Dogger imediatamente.

Era uma questão de vida ou morte.

Ao passar com Gladys por São Tancredo, divisei uma multidão na frente da igreja.

Parei com uma derrapada.

O vigário se encontrava no pórtico, as mãos para cima.

— Senhores... senhores... — ele dizia.

Encostei Gladys contra a parede e, tentando não ser notada, me infiltrei lentamente na multidão. A maioria das pessoas era de Bishop’s Lacey, mas uns poucos não eram.

Um dos estranhos era um homem alto, magro, de capa de chuva e gravata-borboleta vermelha, com um caderno na mão. Ao seu lado, outro homem, mais baixo, com roupas semelhantes, segurava uma câmera de imprensa na altura dos olhos.

— Mas estão dizendo que é um milagre, vigário! Por favor, apenas algumas palavras.

O vigário tentou, sem sucesso, ajeitar os seus cabelos desalinhados, que esvoaçavam. Quando ele fez isso, uma lâmpada de flash estourou.

— O que você pensou quando viu o sangue? — outro homem gritou. — Nos contaram que uma pessoa jogou as muletas longe. É verdade?

Um murmúrio perpassou a multidão.

— Cavalheiros, por favor. Tudo no devido tempo.

— E quanto ao cadáver na cripta, vigário?

Eu já podia visualizar as manchetes sensacionalistas na edição de amanhã do Hinley Chronicle e do Morning Post Horn e, certamente, o vigário também.

“Cadáver na cripta! Santo chora sangue!”

Com esse tipo de publicidade, o bispo logo o transferiria a um novo posto em algum lugar na Amazônia. A imprensa era impiedosa, mas a Igreja também.

— Senhores, por favor! Temos de nos lembrar de que hoje é Sexta-Feira Santa. Não se deve permitir que nada seja profanado...

— Deixem-me passar! — eu gritei. — É uma emergência! Por favor, deixem-me passar.

Abri caminho a cotoveladas através da multidão e me coloquei ao lado do vigário. Segurando seu cotovelo, falei em um sussurro de palco — alto o bastante para ser ouvido pelos repórteres:

— Receio que ela tenha piorado, vigário. O médico disse que não vai durar muito. Solicitaram a sua presença imediata.

Pulei de um pé para o outro, fiz caretas horríveis, tentei forçar uma lágrima.

O vigário olhou para mim como se tivesse acabado de acordar em outro planeta.

— Por favor — choraminguei, acrescentando um lamento vigoroso e crescente: —, antes que seja tarde demais!

Puxei o braço dele, girei-o, arrastei-o pelo pórtico, bati a pesada porta da igreja e travei a tranca de ferro.

— Uau! — falei. — Que assédio! Parece até Ivanhoé. Podemos escapulir pela sacristia.

Por um momento, o vigário me olhou com olhos vazios. Estava mais abalado do que eu pensara. Aquela história cobrava o seu preço, sem falar dos seus problemas com Cynthia.

Conduzi-o até um dos bancos do fundo e me sentei ao seu lado.

— Vai dar tudo certo — eu disse. — Estou em vias de resolver.

O rosto dele, sombreado pelo malva dos vitrais acima, se voltou relutantemente para mim.

— Oh, Flavia. Se ao menos isso fosse verdade.


19

FOI SOMENTE QUANDO JÁ ESTAVA a meio caminho de casa que eu fui tomada pela indignação.

“Se ao menos isso fosse verdade.” Francamente! Ficou óbvio pelas suas palavras que, a despeito da sua vocação, o vigário era um homem de pouca fé.

Eu o conduzira pela mão através da sacristia, atravessara pé ante pé o pátio da igreja com ele e o entregara em segurança à porta da sua casa. Depois, eu me escondera atrás de uma grande lápide e ficara observando conforme a multidão resmunguenta e descontente pouco a pouco se dispersava e se afastava.

Nenhum deles sequer pensara em olhar nos fundos da igreja. Ninguém pensara em nos seguir na nossa triste procissão até o leito de morte imaginário. Todos ficaram tão tocados com a minha fingida missão de piedade, que ninguém — nem mesmo os mais empedernidos jornalistas — tentara a porta da igreja.

Ainda assim, o vigário não teve fé em mim.

Detesto admitir o quanto isso me doeu.

* * *

A melhor coisa para confortar uma cabeça desapontada é oxigênio. Algumas inalações profundas do velho “O” rejuvenescem todas as células do corpo. Eu poderia ter subido ao meu laboratório e pegado um pouquinho da substância engarrafada, mas, para mim, isso teria sido trapacear. Não existe nada como o oxigênio em sua forma natural — o oxigênio naturalmente produzido em uma floresta, ou em uma estufa, onde muitas plantas, pelo processo de fotossíntese, absorvem o dióxido de carbono venenoso que expelimos na respiração e, em troca, nos fornecem oxigênio.

Certa vez, eu comentara com Felinha que, por causa do oxigênio, respirar ar fresco era como respirar Deus, porém ela me dera um tapa na cara e me dissera que eu estava blasfemando.

A estufa de Buckshaw, eu havia descoberto, sempre me saudava com alegria, embora eu não soubesse dizer quanto disso se devia à presença de Dogger e quanto se devia ao oxigênio. Meio a meio, provavelmente. Uma coisa era certa: uma estufa é um lugar plácido. Você não ouve falar de assassinatos a machadadas que tiveram lugar em uma estufa.

A minha teoria é que isso se deve ao “O”.

Encontrei Dogger entre os vasos de flores; ele amarrava as ferramentas de jardinagem em feixes, com um cordão forte.

— Dogger — falei descontraidamente, contendo um bocejo enquanto inspecionava uma primavera —, o que você me diria se eu perguntasse sobre o que causa músculos debilitados dos polegares e mãos enfraquecidas?

— Eu diria que você esteve em Bogmore Hall, senhorita Flavia.

Imagino que eu deveria ter ficado perplexa, mas, por alguma razão, não fiquei.

— Você viu a fotografia da senhora Ridley-Smith?

— Não — respondeu Dogger —, mas ouvi tagarelices dos empregados.

— E...?

— Muito lamentável. Mas, pelo que fui capaz de deduzir, trata-se de um caso clássico de envenenamento por chumbo. Os músculos flexores e, em um grau menor, os extensores foram afetados. Mas você já sabe disso, não é, senhorita?

— Sim. Mas eu precisava da sua confirmação.

Fez-se um silêncio enquanto cada um de nós considerava como lidar com o que inevitavelmente viria a seguir.

— Você sabia o tempo todo. — Tentei fazer que as minhas palavras não soassem como uma acusação.

— Sim — ele disse, e havia certa tristeza em suas palavras. — Eu sabia o tempo todo.

Outro silêncio. Subitamente, me dei conta de que era porque ambos evitávamos citar o nome de Harriet.

— Ela costumava visitá-lo, não é? — perguntei. — Jocelyn, quero dizer.

— Sim — Dogger falou simplesmente.

— E você ia com ela!

— Não, senhorita. Você deve se lembrar de que eu ainda não vivia em Buckshaw naquele tempo.

É claro! Que bobagem a minha. O que eu estava pensando? Dogger não viera para Buckshaw até depois da guerra. Ele devia ter ouvido sobre os Ridley-Smith, como eu ouvira, de outras pessoas.

— Mas ele é um prisioneiro! Como podem mantê-lo trancado daquele jeito?

— Ele está sendo trancado... — Dogger começou.

— É claro que está! — falei, talvez alto demais. — Atrás de portas duplas!

— ... ou sendo protegido?

Então, me ouvi falando bem baixinho:

— Eu não tinha pensado nisso.

— Não — disse Dogger. — As pessoas normalmente não pensam nisso. Elas leem essas histórias nos jornais e imediatamente tiram suas conclusões. Frequentemente, os fatos estão em oposição às presunções.

— Às manchetes — eu disse, pensando por um instante no vigário.

— Sim. Como você sabe pelos seus próprios estudos, o envenenamento por chumbo não é algo bonito.

Era verdade. Eu tinha lido sobre casos de mulheres que usaram chumbo em suas tinturas de cabelo, ou espalharam em seu rosto cosméticos que continham carbonato de chumbo: produtos de charlatão com nomes como Cosmético Infalível ou Tesouros do Deserto de Ali Ahmed.

Deixei a minha mente voar até os livros gordos da biblioteca do tio Tar nos quais eu me deparara pela primeira vez com os detalhes: Um tratado sobre venenos, de Christinson; Princípios da jurisprudência médica, de Taylor; e Venenos, seus efeitos e detecção, de Blyth. Desde que eu os descobrira, eles se tornaram o meu velho e novo testamentos e os meus livros apócrifos.

Pensei nos horrores repulsivos porém fascinantes que jazem em suas páginas: a paralisia da mão; a palidez; a falta de sangue; as dores de cabeça; o gosto ruim na boca; as câimbras nas pernas; a dificuldade em respirar; os vômitos; a diarreia; as convulsões; a inconsciência. Eu sabia que se, por alguma mágica, fôssemos capazes de puxar os lábios de Ada Ridley-Smith naquela velha fotografia em preto e branco, notaríamos pelo menos um vestígio da linha azul no ponto em que suas gengivas encontravam os dentes — o sintoma clássico de plumbismo, mais conhecido como envenenamento por chumbo.

Não admira que a mulher fosse deprimida.

— Soldadinhos de chumbo pintados com tinta à base de chumbo — disse Dogger. — Feitos para olhar, não para brincar. Não em tamanha quantidade, pelo menos.

— Mas Jocelyn... — falei.

— Infelizmente, o dano está feito. — Dogger sacudiu a cabeça. — Ele já nasceu envenenado.

Pareceu um pensamento chocante demais para ser posto em simples palavras.

— O cérebro de um recém-nascido é um alvo muito suscetível — disse Dogger. — É mais comum as mulheres que sofrem de envenenamento por chumbo perderem a criança. Mas nem sempre. Nem sempre.

— Fale-me mais sobre esse “nem sempre” — eu disse, mansamente.

— As crianças nascidas de mãe envenenada por chumbo raramente sobrevivem mais de dois ou três anos. As chances são de menos de três em cem.

— Mas o que se pode fazer? — perguntei. — Certamente, não podemos permitir que ele seja confinado desse jeito. Não está certo.

Dogger pôs de lado os ancinhos e as enxadas.

— Às vezes — ele disse —, uma vida familiar confusa e instável como um jogo de pega-varetas é o melhor que se pode esperar. — Ele fez uma pausa e então prosseguiu quietamente, como se tirasse o pó dos móveis: — Pode não ser o ideal, porém pode ser a melhor solução possível, dadas as circunstâncias. A mais leve interferência pode fazer a coisa desmoronar como um castelo de cartas.

De repente, eu não quis mais falar sobre aquilo. Foi estranho. Talvez eu estivesse cansada demais. Mais de uma vez, o pai nos admoestara sobre o esforço exagerado. Talvez ele tivesse razão. Eu realmente tivera um dia um tanto agitado.

— Tomei a liberdade de preparar um ninho para Esmeralda — disse Dogger, mudando de assunto de modo impecável — e colocar um suprimento de ração certificada.

Ele apontou para uma caixa no canto, onde Esmeralda se aninhara sobre uma confortável cama de palha. Eu nem tinha reparado.

— Dogger — eu disse —, você é uma graça!

Não sei o que deu em mim. Simplesmente falei sem pensar. Fiquei mortificada. Era o tipo de coisa que Sheila, a amiga de Felinha, diria.

— Desculpe — falei a ele. — Eu não queria...

Então, saí correndo, deixando Dogger a trabalhar placidamente na sua atmosfera de oxigênio.

O que estava acontecendo com o meu mundo? Tudo estava de ponta-cabeça. Buckshaw estava para ser vendida. O pai tinha me dito que eu era Harriet, e, de certa maneira, Jocelyn Ridley-Smith dissera a mesma coisa. Dafi tinha me abraçado. O vigário tinha duvidado de mim. Eu soubera que, provavelmente, era uma descendente colateral de um santo. Já começava a gostar da antes odiada Cynthia. Tinha me deixado explodir em lágrimas na frente da sra. Mullet. E, agora, tinha acabado de falar com Dogger como se eu fosse uma adolescente escandalosa. O universo estava mudando de maneiras que eu não necessariamente aprovava.

Se apenas pudéssemos voltar aos bons e velhos tempos de uma semana atrás, quando girávamos serenamente em torno de nossas velhas órbitas empoeiradas, por mais desagradáveis que estas parecessem.

Agora, ao que parecia, Felinha era, como Sherlock Holmes certa vez dissera sobre o dr. Watson: “o único ponto fixo em um mundo em mutação”. Ao longo de todos os acontecimentos dos últimos dias, Felinha de algum modo continuara sendo a mesma e desagradável ela-mesma.

Poderia ser porque o bem cresce e míngua como a lua, enquanto o mal permanece constante?

Se eu descobrisse a resposta a essa pergunta, talvez todas as outras coisas se tornassem claras.

Era, de certa maneira, o mesmo problema com que nos deparávamos agora o inspetor Hewitt e eu e, em menor grau, eu supunha, Adam Sowerby e a srta. Tanty.

Poderia ser que uma pessoa com um passado a princípio impecável tivesse enlouquecido e cometido um assassinato? Ou o sr. Collicutt teria encontrado o seu fim nas mãos de alguém que já matara antes?

Um profissional, digamos?

A sua morte não parecia se encaixar em um típico assassinato de aldeia: ciúme, palavras iradas, golpe, estrangulamento, envenenamento, uma armadilha na cama.

Em vez disso, ele fora brutalmente assassinado dentro do gabinete fechado de um histórico órgão de tubos, e o seu corpo, levado através do pátio da igreja, jogado em uma cova aberta, arrastado por um túnel e, por fim, despejado em uma câmara oculta, acima da antiga tumba de um santo.

Não fazia o menor sentido.

Ou fazia?

A verdade, eu suspeitava, estava em um pedaço de pano.

O franzido branco que se projetava da máscara de gás, na garganta do sr. Collicutt.

Me joguei na cama para descansar os olhos.

Quando os abri novamente, estava escuro lá fora.

Desci a escadaria leste lentamente e esfregando os olhos após uma noite inquieta. Eu sonhara com Buckshaw — e foram sonhos tenebrosos, em que buracos surgiam por toda parte, como se uma marmota monstruosa cavasse cegamente a casa e seus arredores, implacável, incontrolável.

Quando acordei, já se passava muito das nove da manhã. Precisaria encontrar o pai e lhe pedir desculpas, não apenas por ter faltado à ceia de ontem, sem falar do almoço, mas também ao desjejum desta manhã.

O pai, como eu dissera, era exigente nas observâncias. Desculpas não eram toleradas.

Segui devagar pelo corredor, adiando ao máximo o inevitável confronto.

Parei do lado de fora da sala de estar e escutei. Se não estivesse na sala, o pai estaria no seu estúdio, e eu certamente não queria perturbá-lo aí.

De certo modo, eu teria escapado da enrascada.

Encostei o ouvido à porta e distingui um murmúrio de vozes. Embora não entendesse o que estava sendo dito, atinei, pelo modo como vibravam os painéis, que um dos falantes era Felinha.

Me ajoelhei e coloquei o olho no buraco da fechadura, porém não adiantou: a chave bloqueou a minha visão.

Escutei junto à porta novamente — pressionando o ouvido com força contra o painel de madeira —, mas tampouco adiantou. Nem mesmo a minha audição supersensível foi suficiente.

A solução veio — como geralmente ocorre com as soluções brilhantes — num repente.

Na ponta dos pés e a grandes passadas, voltei ao foyer e subi para o meu laboratório, dando risadinhas pelo caminho.

De um armário sob uma das pias, extraí uma chave de fenda, um pedaço de mangueira de borracha e dois funis, normalmente usados para encher garrafas, mas agora destinados a uma missão muito mais excitante.

Segui pelo corredor de cima, passando pela abandonada ala norte e pela porta revestida de feltro que levava aos aposentos da família. Em frente ao boudoir de Harriet, que o pai mantinha intocado como mais um santuário à sua memória, ficava o quarto de Felinha. Depois do de Harriet, o quarto de Felinha era o maior de Buckshaw — e o mais luxuoso.

Bati na porta com uma unha, para verificar se o interior se achava livre.

Se Felinha estivesse lá — se houvesse sido a voz de outra pessoa que eu ouvira na sala de estar —, ela responderia instantaneamente ao mais leve som com um sonoro e mal-humorado: “O quê?”.

Felinha era a mais territorial de todos os De Luce e tão assustadoramente protetora dos seus domínios quanto Deus no Paraíso.

Bati de novo.

Nada.

Empurrei a porta e, milagre dos milagres, ela se abriu. Felinha devia ter descido em uma pressa devastadora para negligenciar um ponto tão básico da sua privacidade.

Fechei a porta silenciosamente e atravessei o quarto na ponta dos pés. Encontrava-me agora exatamente acima da sala de estar e não queria ser denunciada pelo som dos meus passos. Não que fosse uma possibilidade. Buckshaw era tão sólida quanto qualquer catedral antiga — tetos altos, pisos espessos —, mas, ainda assim, eu não pretendia tropeçar no tapete e entregar o jogo.

Uma das maravilhas de Buckshaw, ao menos nos tempos vitorianos, tinha sido a conversão do seu projeto original de chaminés em um esquema patenteado de controle de correntes. Por meio de um engenhoso arranjo de condutos nos pisos térreo e segundo, acionado por uma válvula rudimentar — de fato, não mais que uma placa de ferro fundido —, os moradores se protegiam contra o envenenamento pelo monóxido de carbono liberado por fogo de carvão nas grelhas, caso uma das chaminés fosse bloqueada por um ninho de gralha.

Eu descobrira aquelas placas quase por acidente, enquanto investigava, no meu laboratório, um meio mais eficiente do que abrir as janelas para lançar gases venenosos, tais como cianureto de hidrogênio e outros, ao exterior sem matar carne da minha carne e sangue do meu sangue.

Aquelas placas de ferro no fundo de cada lareira, recobertas por gerações de fuligem, podiam, com um pouquinho de persistência, ser facilmente desparafusadas e removidas.

Eu deveria ter trazido alguma coisa para recolher a fuligem — uma velha manta ou um cobertor, talvez —, mas era tarde demais. Precisava ouvir a conversa de Felinha com aquela que só poderia ser a única visitante que Buckshaw recebia nos últimos meses. O assunto era, quase certamente, o casamento de Felinha, cujos detalhes, por alguma razão inexplicável, eram ocultados de mim. Eu não queria perder nem uma palavra além do necessário.

Eu ouvira em algum lugar que os limpadores de chaminé usavam lençóis para cobrir os móveis, o que, do meu ponto de vista, não podia ser mais conveniente. Como estava ao alcance da mão, removi a manta da cama de Felinha e puxei o lençol. Depois eu o substituiria por outro, limpo.

Estendi o lençol na lareira fria, me enfiei pela boca como se passasse por uma porta minúscula e me pus em pé, com a cabeça dentro da lareira.

Ah! Ali estava — bem acima da minha cabeça. Subindo na grade, alcancei facilmente os parafusos que prendiam a placa de ferro. Senti as fendas com a unha dos meus polegares.

É importante lembrar que, ao remover partes de ferro fundido de chaminés, é preciso ser silencioso, pois os tijolos transmitem o menor ruído com uma eficiência fantástica.

A placa saiu sem dificuldade, e a depus cuidadosamente sobre o lençol.

A seguir, peguei os dois funis — um grande, de lata, e um pequeno, de vidro — e enfiei o bico de cada um em uma ponta da mangueira de borracha.

Deslizei o funil maior para dentro da nova abertura e, então, manobrando a mangueira de borracha como se fosse uma corda, lenta... cuidadosamente... centímetro a centímetro... metro a metro... eu a arriei.

Depois do que pareceu uma eternidade, todo o comprimento da mangueira pendia dentro da chaminé. Se os meus cálculos estivessem certos, o funil grande agora se encontrava mais ou menos nivelado com a lareira da sala de estar.

Encostei o funil menor no ouvido bem a tempo de ouvir Felinha dizer:

— Pensei que talvez alguma coisa de Elgar. “O adeus do anjo.” É bem britânica.

— Sim, mas também católica demais, você não acha? — retrucou a voz estranha. — Baseada em um poema do vira-casaca Newman. Seria o equivalente a rezar a ave-maria. Não vamos pôr ideias erradas na cabeça das meninas. Todas elas estarão presentes, você sabe. Todas o adoravam.

Eu soube instantaneamente estar bisbilhotando uma conversa entre Felinha e Alberta Moon, a professora de música em Sta. Agatha — Alberta Moon que, segundo o vigário, ficara devastada ao ouvir sobre a morte do sr. Collicutt. Elas não estavam discutindo o casamento de Felinha, e sim o funeral do sr. Collicutt.

— Talvez o “Nunc Dimittis” — disse Felinha. — “O Senhor agora permitiu que tu, teu servo, partisses em paz.” Ele o tocava muitas vezes na Oração da Tarde. Acho que poderíamos pedir à senhorita Tanty que cantasse solo.

Houve um silêncio frio, que se tornou ainda mais frio e longo pela extensão da mangueira de borracha através da qual eu escutava.

— Não, eu acho que não, Ophelia. Sendo muito sincera, a senhorita Tanty odiava-o profundamente.

Isso foi seguido por uma risada tensa.

Felinha disse algo que não entendi muito bem mas que soou como se ela estivesse irritada. Removi o funil de vidro da mangueira e enfiei a ponta do tubo diretamente no meu ouvido.

— ... tínhamos boas e velhas conversas de menina na escola, antes de ela pendurar as chuteiras — a srta. Moon dizia. — Nos tempos em que ainda conseguíamos ser educadas uma com a outra.

Eu não lembrava que a srta. Tanty fora a predecessora da srta. Moon na Sta. Agatha.

— E, por difícil que possa ser para você acreditar, talvez seja meu dever sagrado informar que ela tinha o que as minhas meninas chamam de “paixonite” por Crispin.

Crispin? Arrá! Ela falava do sr. Collicutt.

— Oh, não faça essa cara de espanto, Ophelia. É claro que ela tinha idade para ser mãe dele, mas, como você bem sabe a esta altura, ninguém deve subestimar os poderes de uma soprano.

Para os meus ouvidos — ou, antes, para o meu ouvido, já que eu estava bisbilhotando com uma mangueira de borracha enfiada em apenas um deles —, a srta. Moon soava mais zangada do que devastada:

— Eu não aceitarei aquela mulher cantando um solo no funeral de Crispin! A suposta amante desprezada sendo autorizada a gorjear sobre os restos mortais do amado? Não, Ophelia. Pode tirar isso da sua cabeça. Não, eu mesma prestarei as homenagens. Purcell, eu acho. “Quando eu descer à terra”, de Dido e Aeneas. Basta. Vou acompanhar a mim mesma e cantar do banco do órgão, assim você não precisa aprender a peça.

“Não, não. Não precisa me agradecer. Tenho certeza de que você tem o bastante para se preocupar... Uma pena essa história de Buckshaw, não é? Eu vi a placa nos portões. Chocante demais. Mas temos de ver as coisas pelo lado positivo. Um passarinho me contou que logo você terá um motivo para comemorar. Estamos todos muito felizes por você, Ophelia, de verdade.

“Qual é o nome dele, lá da Fazenda Culverhouse? Victor? Sei que você e Victor irão...”

Era demais!

Peguei o pequeno funil de vidro na grade e o abalroei novamente na ponta da mangueira. Enfiei a ponta na boca e gritei:

— Dieter! É Dieter, sua vaca-marinha estúpida!

O que eu tinha feito? Deixara um momento de raiva destruir o último fragmento de dignidade dos De Luce? Neste momento, São Tancredo estaria sacudindo a sua cabeça de madeira em incredulidade sangrenta a tal comportamento de um dos seus descendentes.

Pus o funil no ouvido e escutei.

Nada senão silêncio.

Então, uma porta bateu.

Um momento depois, veio o som de passos na lareira, seguido pelo ruído inconfundível de roçar de dedos na ponta da minha mangueira de borracha.

Estrangulada pelo tubo estreito, a voz de Felinha, fina como a de um elfo raivoso, passou por entre os meus dedos e saiu da pequena trombeta do funil:

— Eu odeio você!


20

COMO PODERIA UMA ÚNICA ALDEIA, aninhada a quilômetros de qualquer lugar na zona rural inglesa, conter tanto uma srta. Tanty como uma srta. Alberta Moon? Matematicamente falando, é claro, a Providência deveria tê-las colocado em extremidades opostas do país — uma em Land’s End e outra em John o’Groat’s.

Estava pensando nisso enquanto descia a escadaria oeste, o fuliginoso lençol de Felinha ensacado na minha mão. Eu espalharia a fuligem em algum lugar do Visto, de onde, mais cedo ou mais tarde, ela seria arrastada pela chuva. Já arranjara um lençol limpo e o instalara perfeitamente na cama de Felinha. Este, eu iria lavar no laboratório, pendurar para secar no meu quarto e devolver ao armário de roupa de cama quando desse. Ninguém perceberia nada.

Felinha se encontrava no pé da escada e batia o pezinho no chão. Eu quase me virei e saí correndo, mas não. Algo dentro de mim congelou os meus pés. Ora bolas, mais cedo ou mais tarde, ela iria me encontrar de qualquer jeito. Não havia escapatória possível. Eu poderia muito bem engolir o remédio agora e acabar com isso de uma vez.

Quando desci desajeitadamente o último degrau, Felinha voou na minha direção.

Larguei o lençol, com fuligem e tudo, e cobri os olhos. Ela me agarrou pelos ombros. Iria me apertar até me matar por asfixia, quebrar as minhas costelas como os avantajados lutadores norte-americanos que eu vira no cinema.

— Você foi magnífica! — ela falou, apertando-me em seus braços. — Obrigada!

Me desvencilhei, desconfiada.

— Até uns minutos atrás, você me odiava — eu disse.

— Isso foi antes. Agora é diferente. Tive tempo para pensar. Talvez eu tenha me precipitado um pouco.

Aquilo era, provavelmente, a coisa mais próxima a um pedido de desculpa que eu receberia de Felinha, nesta ou em qualquer outra vida.

— Aquela vaca-marinha velha e idiota! — disse Felinha, sacudindo a cabeça. — Você deveria ter visto a cara dela. Por um momento, pensei que ela iria sofrer um acidente no nosso tapete.

A minha irmã podia ser notavelmente grossa quando perdia a cabeça.

— Não há de quê — eu disse, ainda me regozijando com os inesperados agradecimentos de Felinha e desejando que a sensação durasse o máximo possível.

Com esse fim abrupto das hostilidades, a minha cabeça subitamente borbulhou de boa vontade; eu estava morrendo de vontade de compartilhar com ela a nova de que talvez corresse em nossas veias o sangue de um santo — de contar sobre a pobre Hannah Richardson, a tumba de Cassandra Cottlestone e a minha descoberta sobre Jocelyn Ridley-Smith.

Eu quis abraçá-la, como abraçara Dafi. Eu quis apertar os seus ossos.

Mas não fui capaz. Era como se nós duas houvéssemos nascido em polos opostos de um mesmo ímã — como se, por isso, devêssemos ser idênticas porém fôssemos, de fato, repulsivas uma à outra —, para sempre forçosamente afastadas por uma força misteriosa e invisível.

— Quando será o funeral? — perguntei, sem jeito.

— Na próxima terça-feira. Depois que a Páscoa estiver fora do caminho.

Embora tenha ficado um tanto surpresa por ouvir a minha pia irmã se referir ao maior dos festivais da Igreja como se fosse um obstáculo, não falei nada. Estava aprendendo, ao menos no que concernia a Felinha, a segurar a minha língua.

— Vão deixar o caixão aberto? — perguntei.

Certamente, eu esperava que deixassem. Seria melhor, pensei, lembrar do sr. Collicutt sem a máscara de gás.

— Céus, não — disse Felinha. — O vigário não aprova caixões abertos. De fato, ele desencoraja fortemente essa prática. A Ordem pelo Enterramento dos Mortos enfatiza a ressurreição, não a morte. “Eu sou a ressurreição e a vida”, disse o Senhor.

— Espero que isto atenue um pouco o fato de termos um cadáver jazendo bem lá no meio, com uma cara de nada.

— Flavia!

— Por falar em caras de nada, encontrei a senhorita Tanty na igreja.

Não mencionei que havia sangue pingando das vigas.

— Assim me deram a entender — disse Felinha.

Droga! Será que não existia privacidade nesta aldeia?

Mas quem poderia ter contado a ela? Certamente, não o vigário; ainda mais certamente, não Adam Sowerby. Ela nem conhecia o homem. Meg, a Louca, é claro, estava fora de questão.

Felinha deve ter notado o ar de perplexidade na minha cara.

— “O organista bem-sucedido” — ela citou — “deve ter os dedos compridos o bastante para alcançar os registros, pernas compridas o bastante para alcançar os pedais e ouvidos compridos o bastante para alcançar a vida de cada membro do coro.” Whanlei, sobre o órgão e suas amenidades, capítulo treze, “Administração dos coristas”. Na verdade, ouvi isso dos lábios da própria Jezebel.

— Jezebel?

Eu havia feito uma nota mental para extrair de Felinha detalhes sobre a srta. Tanty; não esperava que eles fossem despejados antes mesmo de eu, digamos assim, tocar a fechadura.

— Oh, você certamente notou — disse Felinha. — Aquelas duas harpias, a senhorita Moon e a senhorita Tanty, ataviando-se e enfeitando-se perante as cinzas do pobre senhor Collicutt. Foi como assistir a uma corrida de bigas em Roma.

— E os perfumes! — eu falei, ansiosa por participar da brincadeira. — Backfire e Noite em Malden Fenwick.

— E Jealousy — Felinha acrescentou.

Por um momento, me indaguei por que eu não falava com a minha irmã com mais frequência.

Mas as nossas risadas esmoreceram rapidamente, como sempre acontece quando as risadas são artificiais, e um silêncio embaraçoso nos envolveu.

— Por que a senhorita Tanty bradou “Perdoe-me, ó Senhor” quando viu o sangue?

Eu presumi que a srta. Tanty contara a Felinha sobre o sangue.

— Porque ela precisa ser o centro das atenções. Mesmo quando um santo sangra.

— Ela me disse que era uma atuação — falei, sem mencionar que ouvira isso depois, na casa da srta. Tanty. — Ela imagina que é uma detetive, quer se envolver no caso. Quer até que pensem que ela pode ser a assassina.

— A assassina? — Felinha deu uma fungada. — Ovos de cavalo! Ela não seria capaz de enxergar um elefante na ponta das patas. Quanto a ser detetive, ora, a mulher não conseguiria encontrar o próprio traseiro se não estivesse abotoado nela.

— Deus a abençoe assim mesmo — eu disse. Era uma fórmula que usávamos sempre que constatávamos ter ido longe demais.

— Deus a abençoe assim mesmo — Felinha ecoou, um tanto mal-humorada.

— Então, nos resta a senhorita Moon — sugeri com sutileza.

— Por que a senhorita Moon mataria o senhor Collicutt? — Felinha perguntou. — Ela gostava dele incondicionalmente. Levava-lhe sacos cheios do seu horrível caramelo caseiro de água salgada. Até se ofereceu para lavar os seus lenços e sobrepelizes.

— É mesmo? — perguntei, a minha cabeça voando instantaneamente para o franzido branco que se destacava sob a máscara de gás.

— É claro. A senhora Battle sempre se recusou a lavar a roupa dos seus inquilinos.

Isso me deu uma ideia.

— Os seus ouvidos sempre foram compridos o bastante para alcançar a vida de todos os membros do coro — eu disse com um sorriso forçado. — Você será uma organista fantástica, Felinha!

— Sim, espero que sim — ela concordou. Então, apontando para a trouxa cheia de fuligem no chão, acrescentou: — Agora, limpe essa sujeira horrorosa antes que eu conte ao pai.

A pensão da sra. Battle, um edifício muito velho, com tábuas empenadas e desgastadas pelo tempo e pintura descascada, erguia-se em um terreno maltratado, do outro lado da estrada, a meio caminho entre São Tancredo e a Treze Patos. Em outros tempos, tinha sido uma taverna, a Adão e Eva; o nome e as palavras “Cervejas claras e escuras” ainda eram visíveis no letreiro desbotado sobre a porta. O lugar inteiro se vergava no meio como uma serpente e possuía um ar depressivo.

Bati e aguardei.

Não aconteceu nada. Bati de novo.

Nada.

Talvez, pensei, como no açougue em Nether-Wolsey, o dono se achasse no jardim.

Dei a volta distraidamente, como se fosse uma turista boboca que se perdera.

A área atrás da casa era como uma escavação arqueológica: montes de areia como ouriços gigantes, as costas eriçadas de pás. Por toda parte havia pilhas desmazeladas de tábuas e sacos de cimento. Por toda parte havia pedras quebradas, que pareciam ter sido espalhadas durante uma crise raivosa de um bebê gigante.

A sede do negócio de cantaria de George Battle.

Espiei dentro de um telheiro mal iluminado que ficava num canto. Mais cimento, uma caixa de madeira com colheres de pedreiro, uma antiquada mesa inclinada com livros de contabilidade e tinteiros, cabides dos quais pendiam várias capas de chuva de borracha preta, um fogareiro elétrico com uma chaleira esmaltada e um cobertor jogado no canto, o qual poderia ter sido outrora usado para cobrir um cão morto havia muito tempo.

Não faz sentido bisbilhotar demais, pensei. Alguém pode estar observando de uma janela nos fundos da casa.

Enfiei as mãos nos bolsos do meu cardigã, olhei para o céu como se estivesse conferindo o tempo e, assobiando, caminhei de volta à porta da frente.

Bati de novo... e de novo. Uma boa quantidade de batidas.

Depois do que me pareceu uma hora, passos pesados e desajeitados se aproximaram da porta, e uma cortina de renda se agitou em uma das janelas laterais.

Um olho espiou para fora e depois se afastou.

Mais um momento sofridamente longo, e a maçaneta de louça rachada girou lentamente uns poucos graus; a porta se abriu para dentro, revelando um longo túnel de escuridão que só não levava ao infinito porque terminava em um pequeno e distante recorte de luz do dia, nos fundos da casa.

— Sim?

A voz veio de algum lugar na penumbra.

— Senhora Battle? — falei. — Eu sou Flavia de Luce, de Buckshaw. Posso entrar?

Pedi, e vos será dado, me disseram para crer, porém não funcionou. É difícil para uma pessoa comum recusar-se a atender a um pedido tão direto, mas a sra. Battle não era, obviamente, uma pessoa comum.

— Por quê? — ela demandou.

— É sobre o senhor Collicutt. Na verdade, é um tanto confidencial. Eu preferiria discutir o assunto dentro de casa, onde ninguém pudesse nos ouvir.

Passo dois: insinue que a sua mensagem é ao mesmo tempo secreta e suculenta.

— Bem... — ela hesitou.

— Eu não quero que ninguém me veja aqui — falei em voz baixa e olhei para trás como se estivesse verificando se havia algum bisbilhoteiro.

— Entre — ela comandou e, no meio das sombras, uma mão carnuda me fez sinal para adentrar a escuridão.

Depois da luz brilhante do exterior, precisei de vários segundos até que os meus olhos se ajustassem às trevas. Quando eles o fizeram, me vi cara a cara com a senhora da casa. Ou meio cara a cara. A outra metade do rosto dela permanecia oculta atrás da porta.

Embora eu a tivesse visto de quando em quando na aldeia, sempre fora a certa distância, e eu nunca falara com a mulher. Assim, de perto, ela era maior do que eu me lembrava, e a sua cara era mais vermelha.

— Bem?

— Na verdade... — eu usei a expressão pela segunda vez.

A expressão “na verdade”, como a sua prima “francamente”, deveria já ser uma dica para a maioria das pessoas de que o que vem a seguir é uma mentira descarada — mas não é.

— Na verdade... — eu disse outra vez —, é sobre a minha irmã, Felinha. Ophelia, quero dizer.

— Sim?

O olho se arregalou um pouco na penumbra. Até agora, tudo bem. Eu havia ensaiado a conversa inteira na minha cabeça enquanto pedalava de Buckshaw para a aldeia.

Eu me mexi impacientemente no lugar e olhei em volta como se temesse ser ouvida por acaso.

— Ela... ela vai se casar, você sabe, e há algumas cartas...

Dafi uma vez nos lera uma novela francesa cujo enredo era exatamente este.

Prendi a respiração e fiz força para deixar o meu rosto vermelho, apesar de o meu esforço provavelmente ter sido em vão na escuridão.

— O senhor Collicutt... — comecei a explicar.

— Cartas, é? — disse a sra. Battle. — Entendo. E você as quer de volta?

Simples assim!

Mordi o lábio e assenti com a cabeça.

— Para a sua irmã.

Assenti de novo, tentando me lembrar de como fazer cara de desolação.

— Muito meigo da sua parte — ela disse. — Tocante. Você deva amá-la muito.

Enxuguei uma lágrima imaginária e então o dedo “molhado” na minha saia.

Aquilo foi a gota d’água.

— Não que vá ajudar muito — ela prosseguiu, gesticulando com uma das mãos para a escada escura. — A polícia já vasculhou tudo.

— Oh, não! — eu falei. — Felinha vai simplesmente morrer.

Uma sensação estranha me atingiu no momento em que pronunciei essas palavras.

Ninguém morre simplesmente.

O sr. Collicutt, por exemplo, encontrara a sua morte nas mãos de um par de assassinos — eu estava certa disso — e fora arrastado, vestido com uma máscara de gás (ou a máscara teria sido colocada depois?), através do pátio da igreja, do túmulo excessivamente pisado de Cassandra Cottlestone, de um abafado túnel de terra, até ser descartado na tumba de um santo morto havia muito tempo.

Nada de simples nisso.

— Eles viraram tudo de cabeça para baixo, o inspetor Fulano e sua turma. Não tive coragem de arrumar. A coisa toda foi um...

— Choque assustador — eu intervim.

— Tirou as palavras da minha boca. Um choque assustador.

Deixei que alguns momentos de silêncio se passassem para que nos ligássemos uma à outra como irmãs em aflição.

— Espero que você esteja se sentindo melhor — eu disse. — A senhorita Tanty me contou que você tem sido uma verdadeira santa, levando-a para os seus compromissos. Você tem um coração muito grande, senhora Battle.

— Sim. Colocando desse modo, suponho que tenho.

Nem mesmo São Francisco de Sales, cuja última palavra foi “humildade”, poderia ter rejeitado um elogio como aquele.

— Eu tive um pouco de enxaqueca naquele dia — ela prosseguiu sem ser incitada. — Fiquei triste por desapontá-la, mas Florrie, a minha sobrinha, se ofereceu para levá-la, já que, naquele dia, não precisava entrar no trabalho antes do meio-dia. “Não, Florrie”, Crispin... quero dizer, o senhor Collicutt, disse a ela. “Eu preciso mesmo ter uma palavra com a mulher. Você merece o seu meio dia, e eu voltarei bem antes do meio-dia.”

— A mulher? — perguntei. — Ele sempre se referia à senhorita Tanty como “a mulher”?

Os olhos da sra. Battle viraram lentamente e pousaram nos meus.

— Não — ela disse. — Nem sempre.

Teria sido esse, imaginei, o “estranho comentário” que o vigário mencionara?

— Deus, deve ter sido uma perturbação para você e Florence, com o desaparecimento do carro, quero dizer. Do senhor Collicutt também, é claro.

— O carro nunca desapareceu — ela disse. — Ele nunca o levou. Não para longe, pelo menos. Florrie o encontrou estacionado na frente da igreja.

— Hum — falei numa voz desinteressada. Deixei escapar um suspiro e então disse, quase em tom de desculpa: — As cartas...

Ela gesticulou para a escada.

— Primeira porta à esquerda — disse. — No topo.

Arrastei-me lentamente pela escada escura acima, como se o silêncio valesse pontos, muito embora o quarto e o sétimo degraus tivessem rangido horrivelmente. A primeira porta à esquerda era tão pequena e tão perto do topo da escada que quase não a vi.

Virei a maçaneta de louça e adentrei o quarto do sr. Collicutt.

Creio que eu esperava alguma coisa espaçosa. Acostumada com os quartos de Buckshaw, do tamanho de estádios, aquele lugar minúsculo sob o beiral do telhado me causou um certo choque. Era como se uns poucos metros de sótão houvessem sido transformados em um quarto extra para uma emergência e, posteriormente, ninguém tivesse se dado o trabalho de pôr as coisas de volta aos seus lugares. Um quarto realmente peculiar.

Mas que quarto!

Repleto de tubos de órgão, a ponto de explodir. Como os ratos em “O flautista de Hamelin”, estavam por toda parte: tubos grandes, tubos pequenos, tubos finos, tubos potentes, tubos marrons, tubos pretos, tubos cinzentos, tubos fulvos, tubos velhos, sisudos e perseverantes, tubos jovens, alegres e brincalhões, pais, mães, tios — um labirinto de tubos e cilindros retorcidos. Prateleiras de registros, como costelas de boi na vitrine do açougueiro, cada qual com o seu nome gravado em um disco de marfim: Corneta, Ocarina, Violino, Flauta Nason, Flauta de Junco, Bordão e muitos outros. Entalada em um canto, abaixo do teto inclinado, havia uma cama pateticamente pequena e perfeitamente arrumada.

Por um súbito momento turbilhonante, pensei que havia retornado à câmara do órgão em São Tancredo — a câmara onde o sr. Collicutt fora assassinado.

Uma caixa de chá de madeira, colocada em pé, servia de escrivaninha, e sobre ela jazia uma pilha desordenada de papéis. Subi em cima de algo que poderia ser um diapasão e peguei a folha do topo, coberta por uma pequenina caligrafia de formiga.

“A descoberta do Órgão Renatus Harris de 1687 em Braxhampstead, com um relato da sua restauração”, estava escrito. Isso estava sublinhado duplamente em tinta vermelha. Abaixo, lia-se: “escrito por Crispin Savoy Collicutt, bacharel em Música, Royal College of Organists”.

A seguir, em preto e em outra caligrafia, alguém acrescentara a palavra “Falecido”.


21

QUEM PODERIA TER FEITO uma coisa dessas?

A palavra em preto devia ter sido adicionada recentemente — depois da descoberta do corpo do sr. Collicutt.

A não ser, é claro, que a tivessem escrito antes, como um aviso.

O inspetor Hewitt teria visto isso? Provavelmente. Mas, se vira, por que não levara o documento consigo como evidência?

Folheei rapidamente a pilha de páginas. Supus que havia umas quinhentas delas. Sim, ali estava — as folhas eram numeradas. Quinhentas e treze, cada uma totalmente coberta com a caligrafia minúscula do sr. Collicutt. Ele devia estar trabalhando naquilo desde que era um garotinho de calças curtas.

A despeito da densidade da sua caligrafia, milhares de acréscimos e correções abarrotavam a margem de quase todas as páginas, todos com uma linha comprida e fina ligando-os ao lugar no texto em que a mudança deveria ser feita: “desordem” para “desarranjo”; “dispositivo” para “engenhoca”; e assim por diante.

Muito direto, objetivo.

Seriam aqueles rabiscos o que o amigo de Adam, Pole, chamara de marginalia? Provavelmente, não. Marginalia eram anotações sobre a vida cotidiana, ao passo que aqueles rabiscos eram as revisões do sr. Collicutt no seu próprio manuscrito.

Pelo menos, era o que eu estava pensando até reparar na palavra adamas.

De início, pensei que estava escrito “Adam”. Seria uma anotação do sr. Collicutt sobre Adam Sowerby? Seria adamas uma abreviação de “Adam A. Sowerby”?

Mas não — não podia ser. O nome do meio de Adam era Tradescant. Eu vira no seu cartão de visitas.

Então, a ficha caiu! Caiu tão pesadamente que a senti no fundo do meu crânio!

Adamas era a palavra latina para diamante. Adam mencionara isso!

A palavra se achava circundada e ligada por uma linha terminada em seta a uma lista dos vários registros que outrora foram parte do antigo órgão de Braxhampstead. Ele queria inserir a palavra entre “Ocarina” e “Violino”.

— Você já encontrou?

Era a voz da sra. Battle, seguida de pesadas passadas nos degraus rangentes.

Pulei até a porta e enfiei a cabeça no corredor.

— Já estou indo, senhora Battle! — gritei, ouvindo os seus passos se deterem. Escadas provavelmente eram uma dificuldade para ela, que não gostava de subi-las mais do que o necessário.

— Será que eu poderia aproveitar que estou aqui em cima e usar o toalete? — gritei em um tom de súbita urgência. — Estou com medo de que...

Não foi preciso elaborar. A imaginação humana é capaz de qualquer coisa quando deixada por sua própria conta para preencher vazios.

Rezei desesperadamente para que houvesse um banheiro no andar de cima. Tinha de haver — era uma pensão.

— No fim do corredor — ela resmungou, e seus passos se afastaram para baixo.

Voltei ao meu exame dos pertences do sr. Collicutt. Para um quarto atulhado, havia poucos deles, tirando o ferro-velho de partes de órgãos.

Pilhas de livros de música, um metrônomo, um diapasão, um busto de Johann Sebastian Bach — que nasceu e morreu nos mesmos anos que Cassandra Cottlestone, me lembrei com um arrepio delicioso.

Sobre uma mesinha auxiliar, uma escova de dentes se achava enfiada num copo d’água e, perto dela, havia uma lata de pó dentifrício. Uma lima de unhas e um par de tesouras de unhas se alinhavam perfeitamente, como seria de esperar. Mais do que qualquer outra coisa, os organistas precisam cuidar das suas mãos.

Pensei nos dedos engelhados do sr. Collicutt tal como eu os vira na tumba de São Tancredo e nas unhas limpas da mão que agarrava o fragmento de um tubo de vidro.

Ele estava morto quando fora arrastado através do túnel. Não tinha se agarrado ao solo do cemitério.

Me pus de joelhos e olhei embaixo da cama. Estava escuro demais para ver alguma coisa. Me achatei contra o chão, com a cara encostada no assoalho, me arrastei para a frente e estiquei o braço o mais longe que pude sob a estrutura de madeira. Os meus dedos tocaram alguma coisa — sentiram — seguraram — e a puxaram lentamente.

Era uma caixa achatada de lata, de cigarros. Players Navy Cut. Cem cigarros.

Com certeza, a polícia teria visto. Mas, nesse caso, por que a deixaram embaixo da cama?

Talvez eles tivessem apenas olhado, e não apalpado. Confiado mais nos olhos do que nos dedos. Um sargento de polícia grandalhão não estaria tão acostumado quanto eu a serpentear para baixo de camas. Uma lata delgada em um canto escuro teria facilmente passado despercebida.

Fiquei de joelhos e me acocorei. A julgar pelo peso, a caixa não estava completamente vazia.

Mexi na dobradiça, e a tampa se abriu de repente. Alguma coisa esvoaçou e caiu no meu colo. Notas bancárias de papel! Meia dúzia delas — cem libras esterlinas cada uma.

Seiscentas libras, ao todo. Mais dinheiro do que eu jamais tinha visto na minha vida. Devo confessar que uma porção de ideias surgiu na minha cabeça tão depressa quanto as notas se esparramaram no meu colo, mas, como cada uma dessas ideias envolvia roubo, sufoquei o impulso quase imediatamente.

As notas haviam sido dobradas e enfiadas em um envelope e pularam como um boneco de caixa surpresa assim que eu abri a tampa da lata.

Seiscentas libras!

Não dava mais para pensar no sr. Collicutt como um pobre rato de igreja — aquele não era um organista de igreja de aldeia que sobrevivia com cinquenta libras por ano.

Recolhi as notas uma por uma e já estava prestes a recolocá-las na lata, quando notei algo de estranho no envelope. Sua aba tinha sido arrancada, deixando uma beirada irregular.

— Você já acabou aí em cima?

A sra. Battle de novo. Impaciente, agora.

— Sim, estou indo! — gritei — Já estou descendo.

Dobrei as notas e as espremi na lata de cigarros. Deitando de barriga, empurrei a caixa para o canto mais distante da cama, atrás de uma das pernas.

Enfiei o envelope no bolso e saí do quarto.

Pé ante pé, segui para a extremidade do corredor, entrei no banheiro, puxei a corrente e dei a descarga... esperei... dei a descarga de novo... e de novo, então bati a porta e desci tranquilamente a escada, tentando parecer muito grata.

— Bem? — a sra. Battle falou, as mãos na cintura.

Sacudi a cabeça com gravidade.

— Nada — eu disse. — Felinha vai ficar devastada. Por favor, prometa que isto vai permanecer confidencial.

A sra. Battle me fulminou com os olhos por um longo momento e depois, subitamente, suavizou-se. Algo que talvez fosse um sorriso tremeluziu no seu rosto.

— Acredite ou não, eu já fui jovem — ela falou. — Não vou deixar transpirar uma só palavra.

— Oh, obrigada! Aliás — acrescentei —, a sua sobrinha está em casa? Eu gostaria de agradecê-la pessoalmente por sua enorme gentileza para com a senhorita Tanty. Tenho certeza de que a minha irmã está muito grata, por causa do coro e tudo mais. A senhorita Tanty é uma preciosidade, você não acha?

— Florence está no trabalho — disse a sra. Battle, segurando a porta aberta para mim. — Eu dou o recado a ela.

— Oh, sim — eu disse, me esforçando loucamente para conseguir qualquer pequeno fragmento de informação. — Ela é governanta na casa dos Foster, não é?

Foi um tiro no escuro.

— Governanta? — a mulher deu uma fungada. — Eu diria que não. Florence é secretária particular do magistrado Ridley-Smith.

Em casa de novo, em casa de novo, oba-oba-oba. Se não fosse por Gladys, os meus pés já teriam sido reduzidos a cotocos.

No meu laboratório, peguei um farolete em uma gaveta e fui até a câmara escura que o tio Tar construíra em um canto.

À prova de luz. Escura como piche.

Acendi o farolete e puxei o envelope do meu bolso.

No quarto do sr. Collicutt, as pontas dos meus dedos detectaram a mais ligeira irregularidade na superfície do papel. Por que, eu me perguntara, alguém removeria a aba de um envelope usado para transportar dinheiro? A resposta parecia óbvia: para se livrar de alguma coisa que estava escrita nele.

Posicionei o envelope virado para cima e deitei o farolete na bancada ao lado. Um pedacinho do cartão restringiu o facho.

Agora, eu tinha uma fenda de luz a brilhar em um ângulo muito baixo — um ângulo reto, na verdade — através do papel. Quaisquer irregularidades saltariam à vista.

Peguei uma lupa e me aproximei.

Voilá!, como diria Dafi.

O papel era velho e de alta qualidade, do tipo usado antes da guerra para correspondência pessoal. Nem remotamente parecido com aquela coisa chinfrim, fina e sem vida que os credores do pai utilizavam hoje em dia para enviar as suas frequentes cobranças.

A aba faltante contivera a estampa de uma insígnia ou de um monograma, e um armazenamento prolongado numa prensa ou numa caixa imprimira um pequeno sinal na frente em branco do envelope.

Pequeno, sim, e muito esmorecido, porém o monograma era decifrável ao facho oblíquo do farolete.

QRS

Alguma coisa Ridley-Smith.

“Ridley-Smith”, escrevi no meu caderno. “Ridley-Smith, o pai, não o filho. Qual é o primeiro nome do homem?”

O magistrado Ridley-Smith — o chanceler Ridley-Smith — entregara, ou enviara, seiscentas libras em notas bancárias ao sr. Collicutt, que, segundo diziam na aldeia, era pobre a ponto de ter os seus lenços e sobrepelizes lavados e passados na lavanderia a vapor.

“Coincidência demais que a sobrinha da sra. Battle, Florence, trabalhe para Ridley-Smith”, escrevi. Talvez, ela estivesse involuntariamente envolvida nisso.

Talvez, todos eles estivessem.

Por que razão no mundo, me perguntei, um dos magistrados de Sua Majestade, um chanceler da Igreja da Inglaterra, daria a um organista de aldeia uma importância tão enorme, a qual terminaria escondida sob a cama? Fosse qual fosse o destino do dinheiro, por que o sr. Collicutt não o depositara em segurança no banco?

A resposta parecia óbvia.

Alguém estava sendo pago em segredo para fazer alguma coisa.

Mas o quê?

Eu ia anotar as minhas suspeitas, porém ouvi uma batida leve na porta. Era Dogger.

— O senhor Adam Sowerby deseja vê-la, senhorita Flavia. Devo introduzi-lo?

— Obrigada, Dogger. É claro — respondi, tentando segurar a minha excitação até a porta se fechar.

Adam Tradescant Sowerby; Me., MSRHort etc. fazendo uma visita profissional à srta. Flavia de Luce! Imagine só!

Fechei o caderno e enfiei-o numa gaveta; depois, corri até a câmara escura para guardar a lanterna e o envelope.

Mal tive tempo de voltar à janela e segurar um tubo de ensaio com um líquido colorido contra a luz — chá, na realidade — quando a porta se abriu e Dogger anunciou:

— O senhor Sowerby, senhorita Flavia.

Contei lentamente até sete, depois me voltei.

— Entre — falei. — Que bom vê-lo de novo.

Adam soltou um assobio baixinho enquanto observava o laboratório.

— Bom Deus! — ele disse. — Eu já tinha ouvido falar do seu famoso Gabinete de Química, é claro, mas não fazia ideia...

— Poucos fazem. Tento mantê-lo o mais privativo possível.

— Então, eu sou muito privilegiado.

— Sim, você é.

Não há sentido em desperdiçar tempo com falsa vaidade quando você tem em mãos o que realmente importa.

Ele se aproximou do meu microscópio.

— Ernst Leitz, por Deus! — disse. — Binocular, ainda por cima. Muito bom. Muito bom mesmo.

Assenti graciosamente e mantive a boca fechada. Vamos aguardar, pensei, para ver o que o gato trouxe para casa.

— Eu a vi na igreja — ele falou. — Muito engenhoso o modo como você salvou o vigário daqueles repórteres uivantes.

— Você estava lá? — perguntei, surpresa.

— Atalaiando no meio do entablamento funerário — disse Adam. Então, ele notou a expressão no meu rosto e acrescentou rapidamente: — Escondido atrás de uma lápide, quero dizer. Você foi magnífica.

Corei ligeiramente. Era a segunda vez que me diziam que eu tinha sido magnífica — primeiro, Felinha, e agora Adam Sowerby.

Eu não estava acostumada a lidar com tanto louvor inesperado. Não sabia o que dizer.

— Imagino que você está se perguntando o motivo da minha visita — disse Adam, resgatando o momento.

— Sim — eu disse, embora não estivesse.

— Razão primeira...

Ele enfiou a mão no bolso e tirou um tubo de ensaio, dentro do qual havia alguma coisa torcida.

— Abracadabra — falou, passando-o a mim.

Reconheci a coisa imediatamente.

— A minha fita de cabelo!

— Com a mancha e tudo. — Adam arreganhou um sorriso.

— Onde você a encontrou? — Onde você a deixou cair. No vestíbulo da igreja.

Eu não sou uma pessoa dada a blasfemar, mas cheguei perigosamente perto.

— Obrigada — consegui dizer, colocando a fita de lado. — Vou analisá-la mais tarde.

— Por que não agora, para que eu possa assistir?

Me senti tentada a recusar, mas a ideia da glória me venceu. A química é uma ocupação tão solitária, que nunca há uma audiência para os seus grandes momentos.

— Está bem — eu disse, sem necessidade de maior persuasão.

Pus um pouco de água destilada em um tubo de ensaio limpo e desenrolei cuidadosamente, centímetro a centímetro, a fita de cabelo de dentro do recipiente de vidro em que Adam a trouxera.

— Roubado de uma das minhas amostras germinantes — disse ele. Quando percebeu a minha expressão alarmada, acrescentou: — Eu esterilizei.

Com uma tesoura, cortei a ponta manchada de uma cor bem pardacenta e, com uma pinça, a imergi na água.

Acendi um bico de Bunsen e entreguei a Adam o tubo de ensaio e um par de pinças niqueladas.

— Segure-o na chama — instruí. — Mantenha-o em movimento. Volto num instante.

Fui até uma fileira de produtos químicos engarrafados e tirei de lá o ácido nítrico.

— Afaste-o da chama — eu disse. — Mantenha firme. Acrescentei umas poucas gotas de ácido à água no tubo de ensaio.

— Obrigada — falei, reassumindo a tarefa.

Esquentei o líquido lentamente, girando o tubo de ensaio e observando conforme a água e o ácido nítrico rapidamente tomavam a mancha.

Fiz isso até o líquido quase se evaporar, deixando pouco mais que um resíduo de sedimento no fundo do tubo. Ao resíduo, adicionei um pouco de álcool, depois filtrei e pus a mistura de lado, para esfriar.

— Que tipo de sangue você esperaria obter de um santo de madeira? — perguntei enquanto esperávamos. — O sangue das artérias tem mais oxigênio e menos nitrogênio; no sangue das veias, ocorre o oposto. Já que um santo esculpido não respira, qual deverá ser a composição mais provável do seu sangue?

Adam não disse nada, porém os seus olhos encontraram os meus, e ele não desviou o olhar.

Ele compreendera instantaneamente que havia mais na minha pergunta do que apenas química.

Quando ficou pronto, coloquei uma gota do resíduo em uma lâmina de vidro limpa e a meti embaixo do microscópio. Antes de a imagem entrar em foco, eu já tinha um sorriso no rosto.

Adam respirava agradavelmente por cima do meu ombro.

— Olhe — eu disse. — Prismas de quatro lados. Feitos de cristais aciculados. Como pequenas agulhas — expliquei, caso ele não conhecesse o significado da palavra. — CH4N2O.

— Engenhoso — disse Adam. — Infernalmente engenhoso da sua parte pensar nisso.

Concordei totalmente com ele.

— Você disse que a fita era a “razão primeira” da sua visita. Qual é a razão segunda?

— A razão segunda? Oh, sim, eu achei que você gostaria de saber. Estão içando São Tancredo da sua tumba neste exato momento.

— O quê? — exclamei em tom bem exclamativo.

— Achei que você iria querer assistir. Posso lhe dar uma carona?

— De preferência!


22

NO ROLLS-ROYCE ABERTO DE ADAM, NANCY, avançávamos aos trancos pela estrada de Bishop’s Lacey, com o vento assobiando em nossos ouvidos.

— Eles decidiram fazer isso antes que alguém ficasse sabendo. O vigário me deu a dica — disse Adam, gritando por sobre o barulho da carroceria cortada do carro. — Eu sabia que você nunca me perdoaria se eu não a deixasse por dentro.

— Mas por quê? — perguntei, talvez pela terceira vez. — Você não precisava.

— Digamos apenas que eu sou um velhote de bom coração.

— Não — falei com firmeza. — Eu quero a verdade.

— Bem — disse Adam —, eu sempre acreditei que exumações de ossos de grandes figuras devem ser feitas na presença da pessoa mais jovem que se possa encontrar: aquela que irá viver por mais tempo; aquela que levará, através dos anos, a lembrança de ter estado cara a cara, por assim dizer, com a História.

— E eu sou a pessoa mais jovem que você encontrou? Esta é a única razão?

— Sim.

Inferno de homem!

— Além disso — ele prosseguiu —, eu achei que você gostaria de ser a primeira da fila a dar uma espiada no Coração de Lúcifer.

Agora, eu sorria como uma boba.

O Coração de Lúcifer!

Fui atingida por uma súbita e notável ideia.

— Se o que você diz é verdade — eu falei a Adam —, e se for constatado que São Tancredo era um De Luce, isso não significa que o Coração de Lúcifer pertenceria ao meu pai por pleno direito?

— A Igreja pode pensar de outro modo — ele observou depois de pensar a respeito.

— Ora, dane-se a Igreja. Se eles foram suficientemente idiotas para enfiar um diamante de valor inestimável no túmulo, não o desejavam tanto assim. Isso deve ser regulado por uma daquelas leis peculiares sobre restos de naufrágio que o mar joga na praia. Vou perguntar a Dafi. Ela deve saber.

Dafi nos tinha lido em voz alta uma das novelas de Victor Hugo em que as leis de restos de naufrágio são explicadas a ponto de provocar enjoo de mar.

— Seja como for, vai ser interessante — disse Adam —, muito embora, eu, se fosse você, não guardaria grandes esperanças.

Ele deve ter notado o efeito imediatamente desencorajador que suas palavras tiveram sobre mim.

— Vou lhe dizer uma coisa — falou. — Eu estive pensando. — fiquei em silêncio. — Pensando que, talvez, devamos fazer uma troca. Escândalo por escândalo. Olho por olho.

— Receio não saber o que você quer dizer com isso — eu disse, sem querer abrir mão da minha vantagem cedo demais.

— Você me conta o que você encontrou no quarto de Collicutt, e eu lhe conto os resultados da autópsia.

Ele arreganhou um sorriso para mim, desafiando-me a não aceitar.

— Feito! — eu disse. — Foi dinheiro. E uma boa quantia. Seiscentas libras, escondidas embaixo da cama dele, em uma lata de cigarros Players.

— Uau! — Adam assobiou e depois riu. — E a polícia não a encontrou?

— Evidentemente que não — eu disse, e ele riu ainda mais. — Agora é a sua vez. A autópsia. Como você descobriu a respeito? Você conseguiu extrair do doutor Darby?

— Céus, não! O bom doutor Darby é muito mais discreto do que isso. Eu simplesmente troquei uma palavrinha com o meu primo Wilfred.

Devo ter feito uma cara de nada.

— Wilfred Sowerby, da Sowerby & Filhos, os agentes funerários locais. “Fornecedores de funerais e mobiliário.”

É claro! Eu tinha me esquecido da conexão.

— Aqueles que escolhem a Morte enquanto o seu lado da família escolhe a Vida — falei. — Sim, agora me lembro.

Tão parecido com os De Luce, tive vontade de dizer, mas não era um pensamento que eu gostaria de compartilhar.

— Sim — disse Adam. — Os Sowerby funestos.

— E?

— E o quê?

Ele estava se fazendo de bobo outra vez.

— Ah, sim. A autópsia — disse após eu não ter mordido a sua isca estúpida. — O primo Wilfred foi deveras esclarecedor. Ruptura dos órgãos internos. Tudo desde o esôfago até pontos ao sul do equador. Wilfred contou que nunca tinha visto uma explosão nem de perto parecida. Absolutamente espetacular, ele disse.

— Causada por...?

Eu mal podia me conter, mas aguentei firme e continuei quieta.

— Eles não têm a menor ideia. Pelo menos, até agora.

Eu precisava mudar de assunto. Depressa.

— Hum — falei como se não estivesse interessada. — Imagine só.

Ficamos sem falar por um minuto ou pouco mais, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Então, eu disse:

— Espere aí! Como eles podem abrir a tumba de São Tancredo? Pensei que o bispo havia proibido.

— O bispo, ao que parece, mudou de ideia. Assim como o chanceler Ridley-Smith.

— O quê?

— É verdade. Embora os bispos não sejam famosos por sua flexibilidade, este, ao que parece, deu marcha à ré no assunto. Ele revogou a faculdade revogada.

— Mas por quê? Por que ele faria uma coisa dessas?

— “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua vã filosofia” — disse Adam com um sorriso de astro de cinema.

Por que as pessoas vivem citando essa fala tão batida? Da última vez, fora o dr. Darby e, antes dele, a minha irmã Dafi.

Por que as pessoas sempre citam Hamlet quando querem parecer inteligentes?

Shakespeare demais, no meu entender!

— E isso significa que...? — receio ter disparado, sem que fosse a minha intenção.

— Talvez ele tenha sido forçado a fazer isso.

— Há! Ninguém dá ordens a um bispo.

Até eu, que não era nenhuma especialista em teologia, sabia disso.

— Não mesmo? — perguntou Adam, um pouco presunçosamente, eu achei.

— Você sabe de alguma coisa que não está me contando.

— Talvez — ele disse, mais parecido com o Gato de Cheshire a cada segundo que se passava.

Que homem mais exasperante era aquele!

— Você sabe quem está dando as ordens ao bispo e não quer me contar? — perguntei.

— Não posso contar. É diferente.

Já nos encontrávamos perto das terras pantanosas que cercavam a igreja. Adam pisou no freio e parou para um pato selvagem que atravessava a estrada.

Pulei para fora e bati a porta.

Olhando fixamente para frente, marchei na direção da igreja, deixando Adam Tradescant Sowerby, Me., MSRHort etc. para cozinhar no fogo brando da sua própria esperteza.

— Ah, Flavia — disse o vigário enquanto eu escolhia cautelosamente o meu caminho em meio ao entulho, para o interior da cripta. — Estávamos à sua espera.

— É uma enorme gentileza da sua parte me informar — falei, esticando o pescoço para enxergar além do ombro dele. George Battle e seus trabalhadores haviam introduzido parafusos com olhais na pedra do fundo da câmara: a laje sobre a qual jazia o cadáver do sr. Collicutt quando fora encontrado.

— Trata-se, na verdade, da tampa do sarcófago — explicou o vigário em uma voz abafada, como se fosse um comentador da BBC a cobrir alguma cerimônia especialmente solene na rádio Home Service.

Um guincho compacto fora instalado para erguer a pedra, e suas cordas já se retesavam sob o peso desta.

— Você chegou em cima da hora. Céus, pensar que, em poucos momentos, estaremos olhando para a face de... É claro, dadas as suas inclinações, eu sabia que você não gostaria de perder um instante sequer do que promete ser...

— Erguer! — disse George Battle.

Com um gemido cavernoso, a pedra subiu um centímetro e meio.

— Dizem que, quando certas tumbas reais são abertas, os trabalhadores encontram o ocupante inalterado pelo tempo, vestido com armadura, coroado com ouro, as faces frescas como se houvesse acabado de cair no sono. Então, subitamente, em um ou dois minutos de exposição ao ar, eles se esfarelam em pó. Os personagens régios, isto é, não os trabalhadores.

— Erguer!

A pedra subiu mais cinco rangedores centímetros.

— Talvez você tenha interesse em saber, George — disse o vigário —, que o alvanel que abriu as tumbas dos regicidas Cromwell e Ireton recebeu dezessete xelins pelo seu trabalho.

George Battle não disse nada, apenas puxou de novo a sua corda, mal-humorado.

— Erguer!

Uma rachadura escura surgiu em volta das bordas da laje.

— Santo Deus! — disse o vigário. — Estou empolgado como um menino de escola. Vamos, deixem-me dar uma mão.

— Cuidado com os dedos, vigário! — George Battle bradou. — Você pode perdê-los se essa porcaria cair.

O vigário deu um pulo para trás.

A pedra estava livre da sua canaleta agora, oscilando lenta e pesadamente como um pêndulo de duas toneladas.

Imediatamente, senti a corrente de ar e o fedor frio da tumba.

— Balance agora, Norman. Segure a barra, Tommy. Cuidado! Cuidado!

A pedra foi movida do seu eixo, revelando uma cova negra e escancarada. Inclinei-me para frente, porém divisei apenas uns poucos tijolos que revestiam a sua lateral. O vigário pousou a mão no meu ombro e sorriu para mim. Estaria ele imaginando que eu era a sua filha, Hannah, saída do túmulo para estar ao seu lado naquele momento maravilhoso e aterrorizante?

Ele apertou o meu ombro, e eu pus a minha mão sobre a dele. Nenhum de nós pronunciou uma única palavra.

— E para baixo... para baixo... para baixo... isso... para baixo... para baixo.

Com um irritante ruído rascante, a pedra se assentou no chão.

— Muito bom — disse Norman para ninguém em especial.

— Dê-me aquela lanterna — Tommy pediu, e George Battle entregou-a a ele.

Tommy galgou a borda, plantou-se de pernas abertas sobre a cova e dirigiu o facho da lanterna para o abismo.

— Caramba... — ele murmurou.

O vigário foi o próximo. Ele avançou devagar, inclinou-se e, desviando-se das pernas de Tommy, olhou para baixo por um longo momento.

Sem dizer nada, curvou o indicador e fez sinal para que eu me aproximasse.

Embora apenas um par de dias houvesse se passado, era como se eu tivesse ansiado toda a eternidade por esse momento. Agora que o momento chegara, eu me vi vacilante.

O que eu estava a ponto de ver? Um São Tancredo de faces viçosas? Um diamante grande como um ovo de perua — o Coração de Lúcifer?

Avancei o rosto lentamente por cima da borda da cova e olhei para baixo.

No fundo, sob o facho da lanterna, talvez a uns três metros de profundidade, coberta de pó e exalando um leve mau cheiro, havia uma pilha de tecido bolorento e velhos ossos verdes.

Jazia em um sarcófago de chumbo cuja tampa fora arrancada e se achava encostada a um canto.

Um pedaço engelhado de madeira preta entalhada, o qual lembrava vagamente um cajado de pastor, tinha sido jogado de qualquer jeito sobre a pilha — como um galho murcho e maltratado pelo tempo atirado sobre os restos de uma fogueira.

O báculo de São Tancredo, entalhado em madeira do Espinheiro de Glastonbury, na forma, dizem, do próprio Santo Graal.

Na extremidade mais grossa, um hiante buraco oval com grampos retorcidos de metal mostrava claramente o lugar de onde alguma coisa fora arrancada. O Coração de Lúcifer se fora.

Alguém estivera ali antes de nós.


23

— CÉUS — DISSE O VIGÁRIO. — Alguém esteve aqui antes de nós.

Nós dois nos encontrávamos na borda da cova, ombro a ombro, e olhávamos para baixo, para o fuste, como se olhássemos para o interior de um poço. Uma fria e acre corrente de ar, proveniente de uma abertura irregular na metade da lateral, soprava em nossos rostos. No fundo, patéticos farrapos do manto de São Tancredo tremulavam àquele vento.

— Eles abriram um buraco na parede — eu disse.

— Um desmoronamento — falou George Battle, empurrando-me para o lado e tomando o meu lugar. — Desmoronamentos acontecem em velhas igrejas.

Súbita e silenciosamente, Adam se achava atrás de nós. Vestia um chapéu de copa mole, botas de borracha e uma espécie de colete de explorador coberto de bolsos, com petrechos científicos a saírem pelo ladrão. Uma volumosa bolsa para câmera completava o seu equipamento.

— Se me permite — ele disse um tanto abruptamente ao vigário —, eu preciso descer antes que mais alguma coisa seja tocada.

— Sem dúvida. Albert, se você puder fazer a gentileza de buscar uma escada para o senhor Sowerby... — Ele estava se dirigindo ao sr. Haskins, que entrara na cripta atrás de Adam.

— Escada? — perguntou o sr. Haskins, como se não soubesse o significado da palavra, ou como se não quisesse ser incomodado.

— Tem uma escada de mão na traseira do caminhão do senhor Battle — eu disse, solícita. — Na verdade, diversas.

— Norman — disse o sr. Battle, com uma olhada para os seus ajudantes. Norman, alto para a cripta, abaixou a cabeça e atravessou o arco.

Ninguém falou nada por um longo tempo; todos se ajeitaram inquietamente, olhando para qualquer parte, menos um para o outro.

Eu me perguntei por quê.

Olhei despreocupadamente para os trabalhadores restantes.

Tommy de Malden Fenwick aproveitou a trégua para acender um cigarro. O outro homem, cujo nome não sei, sacudiu a cabeça quando Tommy lhe estendeu o maço para oferecer um.

Não houve conversa fiada: só um par de trabalhadores aguardando impacientes para prosseguir com o trabalho.

Então, fazendo barulho através da cripta, quebrando o encantamento do silêncio, Norman voltou com a escada. Com muitas topadas e algumas instruções murmuradas, a extremidade da escada foi manobrada para dentro do túmulo do santo.

Adam passou um pé sobre a borda e posicionou-o em um dos degraus de cima.

— Desejem-me boa sorte — disse e, pegando a lanterna das mãos de Tommy, começou a descer.

— Adam — disse o vigário.

Adam parou, já quase fora de vista. Ele pareceu surpreso.

— Vamos rezar — disse o vigário em uma voz notavelmente forte, e todos nós inclinamos a cabeça. — Senhor, foste para nós um refúgio de geração em geração. Antes que os montes tivessem nascido e fossem gerados a terra e o mundo, desde sempre e para sempre tu és Deus. Faz o mortal voltar ao pó, dizendo: “Voltai, ó filhos de Adão!”. Pois mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou, uma vigília dentro da noite! Amém.

— Amém — nós ecoamos.

O rosto de Adam nos fitava interrogativamente, estranhamente pálido à luz da lanterna.

— Só por precaução — observou o vigário.

Reconheci as palavras do vigário como sendo da Ordem do Sepultamento dos Mortos, Salmo 90. Mas por que ele as escolhera? Estaria pensando em São Tancredo? Em Adam? Em sua Hannah? Ou em si mesmo?

A escada tremia conforme Adam descia. Espiei por cima da borda e vi-o puxar uma elaborada unidade de flash da bolsa. O poço e até mesmo a câmara onde estávamos logo foram iluminados por uma série de relâmpagos brancos.

Não havia muito o que ver de cima. Eu me contentei em ficar ali e ouvir. De início, havia silêncio e uma ocasional exclamação abafada. Então, Adam começou a assobiar.

Reconheci imediatamente a melodia. Era uma canção que as Escoteiras cantavam, e suas palavras passaram pela minha mente:

Embalem os seus problemas na velha mochila, rapazes, e abram um belo sorriso.

Enquanto tiverem um lúcifer para acender o seu cigarro, sorriam, isso que é estilo...

Lúcifer, é claro, era um tipo de fósforo usado durante a Primeira Guerra Mundial que tinha na ponta enxofre e uma pasta seca de fósforo e clorato de potássio. Também era um apelido de Satanás. E do diamante roubado de São Tancredo.

Ninguém na parte de cima da câmara estava sorrindo como a canção nos instava a fazer. Os trabalhadores se entreolharam constrangidos, como se um grande tabu fora quebrado pelo assobio de Adam, que ainda ecoava sinistramente no poço.

— Adam... — o vigário chamou.

— Desculpe. — A palavra flutuou para fora da sepultura e pairou no ar.

O assobio teria sido impensado, ou havia uma mensagem na sua escolha de canção? Se houvesse, a quem se dirigiria?

Foi então que me dei conta de que várias outras pessoas tinham se juntado a nós na cripta. Uma delas era um homem grande que usava um terno preto, um colarinho clerical e tinha uma aparência de sacralidade estressada.

O bispo. Não havia qualquer dúvida a respeito.

— Sua Graça — disse o vigário. — E chanceler Ridley-Smith.

Ele apertou a mão de cada um, sem nenhuma alegria verdadeira.

Então, aquele era o chanceler — ou magistrado — Ridley-Smith. O pai de Jocelyn.

A primeira coisa que notei a seu respeito foi que já o tinha visto antes. Era o homem que estava entregando o troféu à srta. Tanty na fotografia.

Estudei-o cuidadosamente.

Um homem rígido, pensei, com olhos castanhos duros porém úmidos, os quais se moviam para os lados de modo profissional, passando sem parar de cada um de nós para outro, como o carro de uma máquina de escrever. As órbitas em que se localizavam eram redondas e fixas, e logo senti pena dos acusados que ficaram perante o homem, no banco dos réus.

O seu cenho era permanentemente vincado, como o de uma pessoa que acabou de sentir um bafo fedorento — uma impressão que era realçada pelo fato de que ele não possuía sequer vestígios de sobrancelhas ou cílios. O seu nariz manchado era achatado, como se ele tivesse lutado boxe na juventude, mas não muito bem.

Um beberrão, determinei.

Embora não fosse fisicamente grande, a simples presença do magistrado Ridley-Smith pareceu consumir todo o ar que restava na cripta, a qual de repente se tornou sufocante.

Ele balançava sobre os seus pés curiosamente pequenos, observando impacientemente o ambiente que o cercava.

— Então, vamos em frente com isso — disse em uma voz notavelmente rouca e grossa, tirando do bolso do colete um relógio meio-caçador e consultando-o com o lábio inferior protuberante. — Onde estão os restos mortais?

Enquanto ele tentava desajeitadamente guardar o relógio, não pude deixar de notar que o seu pulso, como o da sra. Ridley-Smith na fotografia que eu vira em Bogmore Hall, era peculiarmente fraco e frouxo.

O que foi mesmo que Dogger dissera? Um caso clássico de envenenamento por chumbo.

Teria o magistrado, naqueles longínquos tempos que passara na Índia, sido exposto aos soldados de brinquedo da esposa?

— Ainda não os movemos — disse o vigário. — Eu achei melhor aguardarmos até que vocês...

— Muito bem, então, você está fazendo a Igreja, o Judiciário e a polícia esperarem. Sugiro que prossigamos.

Pela Igreja, ele queria dizer o bispo; pelo Judiciário, ele mesmo. Quem diabos estava representando a Polícia?

Então, eu vi o inspetor Hewitt. Ele se achava nas sombras, atrás do bispo. Sorri para ele, que pareceu não ter reparado em mim. Seus olhos se moviam pela cripta tão friamente quanto os do magistrado Ridley-Smith. Ainda mais friamente, talvez.

— Prossigam — ordenou o bispo, lambendo os lábios.

Neste exato instante, a cabeça de Adam apareceu no topo da escada, o queixo no mesmo nível da borda de pedra do túmulo santo. Me lembrou a cabeça de João Batista.

— Então — disse ele, destruindo a ilusão. — Tudo em ordem lá embaixo.

— Quem é esse... homem? — o magistrado Ridley-Smith demandou. — Ele não deveria estar fuxicando lá embaixo. Quem lhe deu permissão?

— Nós demos — disse o bispo. — Você deve se lembrar...

No entanto, o magistrado Ridley-Smith não estava escutando. O seu rosto era uma nuvem carregada.

— Venha comigo, Martin — ele rosnou e saiu pelo arco a passos pesados.

Martin, o quarto trabalhador — Martin, o silencioso Martin que não pronunciara uma palavra desde que eu o vira pela primeira vez — falou em uma voz monocórdia e cansada:

— Agora, estamos em maus lençóis.

Cinco palavras. Mas foi o que bastou para fazer a minha mente girar como uma girândola, lançando chuvas de fagulhas em todas as direções.

Aquela voz! Eu a ouvira antes. Mas onde?

O meu sentido de audição nunca me deixara na mão antes; eu não gostaria que o fizesse agora.

Repassei as palavras do homem na minha cabeça: “Agora, estamos em maus lençóis”.

Em um quartinho nos fundos do meu cérebro, alguma coisa fez clique e ouvi a mesma voz dizendo: “Peter Ilyich Tchaikovsky... Franz Schubert... O lago dos cisnes... A morte e a donzela”. Era a voz que eu ouvira nos alto-falantes escondidos no quarto de Jocelyn, em Bogmore Hall.

Benson!

O trabalhador silencioso era o guardião de Jocelyn! Ele fora mandado à cripta apenas para espionar a abertura da tumba de São Tancredo!

Eu soube que já o tinha visto antes, quando divisara o seu rosto na escada, porém não conseguira me lembrar de onde. Fora, é claro, exatamente nesta cripta, onde a sua presença silenciosa atraíra pouca atenção.

Agora, ele estava deixando a câmara de pedra, arrastando-se atrás do seu mestre.

Como que para confirmar o que eu já sabia, Tommy disse:

— Até mais por enquanto, Benson.

— Sim, bem, então — disse o bispo. — Proponho que continuemos com isto. É tarde. Amanhã será Páscoa. Nos restam apenas umas poucas horas e temos muito o que fazer. Por favor, informe-nos quando as relíquias tiverem sido recolhidas, senhor Haskins, e prepararemos o ossuário.

Então, também ele se foi.

Adam subiu até a borda e sentou com os pés balançando dentro do poço.

De algum lugar lá embaixo, vieram batidas na madeira, e a escada matraqueou contra as bordas de pedra.

— Olá! — disse Adam, olhando para o fundo do poço. — Algo se mexeu na sepultura.

Novamente, a escada se sacudiu e um rosto vermelho apareceu, listrado de lama e surpreso por nos ver.

Era o sargento Graves.

— Você estava certo, chefe — ele falou ao inspetor Hewitt, apontando o facho da sua lanterna para o lugar de onde viera. — Vai diretamente daqui até o pátio da igreja.

Brilhante, tive vontade de dizer, mas fiquei de boca fechada. Era óbvio que o outro ramal do túnel — aquele que eu não tomara — levava diretamente à própria tumba de São Tancredo.

O sargento galgou a escada e sentou-se ao lado de Adam na borda, sacudindo a sujeira das roupas.

O inspetor balançou a cabeça; o seu rosto era uma máscara. Ele não disse o que com certeza lhe passava pela cabeça: que a passagem do sargento tal qual um limpador de tubulações através da tumba provavelmente destruíra os indícios daqueles que a saquearam.

Isso significava que o mesmo ocorrera com os sinais das minhas explorações; portanto, decidi não falar nada. Talvez o inspetor nem soubesse a respeito do Coração de Lúcifer. Talvez, nem o bispo ou o chanceler.

Uma vez, eu ouvira um ditado que era assim: “Quanto menos se fala, mais cedo se corrige”.

Eu manteria a minha língua domada e os meus lábios selados. Que jamais se diga que Flavia de Luce é uma boquirrota.

Mas o que foi isso? O inspetor Hewitt me chamou a atenção e agora estava gesticulando a cabeça para o lado e revirando os olhos na mesma direção, uma mensagem que eu pude ler tão claramente quanto uma manchete de jornal.

PARA CIMA, ela dizia, AGORA.

Caminhávamos agradavelmente na grama alta da parte de trás do pátio da igreja, o inspetor e eu.

— As suas pegadas estão por toda parte naquele túnel — disse ele, apontando para o movimentado túmulo de Cassandra Cottlestone, atrás de nós.

Fingi surpresa e perplexidade. Eu poderia facilmente salientar a grande quantidade de pessoas que usava tênis.

— Não se dê ao trabalho — ele disse. — A sua pegada está registrada em nosso arquivo. — E acrescentou: — Bem como as suas impressões digitais.

— Bem, é uma longa história. Havia um morcego preso em um tubo do órgão, e eu estava tentando descobrir como ele tinha entrado na igreja. Estava com medo de que ele tivesse raiva. Não queria que nada acontecesse com Felinha. Ela está noiva, você sabe, e eu estava com medo...

Liguei o interruptor identificado como “Soluços convulsivos”, porém nada aconteceu. Que diabo estava acontecendo comigo? Estaria ficando empedernida? Então, era assim que seria a vida aos doze anos?

— Muito louvável, tenho certeza — o inspetor observou. — E o que você descobriu dentro da toca do coelho?

Quando falham as lágrimas, decidi na hora, deslumbre-os com detalhes.

Recitei uma resposta bastante decente:

— O túnel leva do túmulo Cottlestone para o lugar onde encontrei o corpo do senhor Collicutt. Havia outro ramal, mas eu não o segui. Há uma pedra com alças de ferro que pode ser removida. Foi assim que eles o jogaram lá. Ele foi assassinado na câmara do órgão e levado para baixo ou pela cripta ou pelo pátio da igreja. Pelas pegadas que já existiam, suspeito que havia mais de um assassino.

— Mais alguma coisa?

— Não — menti descaradamente.

Como eu poderia sequer começar a contar sobre a srta. Tanty, ou Meg, a Louca, ou Jocelyn Ridley-Smith, ou a sra. Battle, ou até mesmo sobre Adam e o Coração de Lúcifer?

Como eu observara antes, precisava deixar alguma coisa para ele descobrir por conta própria. Nada mais do que justo.

— Flavia...

Adorei quando ele disse o meu nome.

— Não esqueça que há perigosos assassinos à solta.

Meu coração se acelerou.

Perigosos assassinos à solta! As palavras que todo detetive amador vive na eterna esperança de ouvir. Desde que as escutara pela primeira vez de Philip Odell, em “O caso das bolas de gude desaparecidas”, eu ansiava que alguém as dissesse para mim. Agora, eu as ouvira. “Perigosos assassinos à solta!” Tive vontade de apertar a mão do inspetor.

— Sim — falei. — Eu sei. Vou tomar cuidado.

— Não é apenas uma questão de tomar cuidado. É uma questão de vida ou morte.

“Uma questão de vida ou morte!” A outra grande frase! Talvez ainda maior do que “perigosos assassinos à solta”.

A minha taça de crime transborda, pensei.

— Flavia, você não está prestando atenção em mim.

— Sim, estou, inspetor — assegurei. — Só estava pensando em como sou grata por você ter me avisado.

— Você ficará terminantemente longe da igreja. Está entendendo?

— Mas amanhã é Páscoa!

— Você pode ir com a sua família. Isso é tudo.

Isso é tudo? Eu estava sendo dispensada? Demitida como uma camareira pega no flagra com o nariz no xerez?

Ele já se afastava a passos largos pelo capim alto quando pensei em gritar:

— Inspetor, como vai a senhora Hewitt?

Ele não parou nem se voltou. De fato, sequer reduziu a marcha.

Era óbvio que não me ouvira.


24

EU SOUBE, NÃO ME PERGUNTE COMO, enquanto pilotava Gladys pelos grifos de pedra dos Portões Mulford, que alguma outra coisa havia dado errado em Buckshaw.

É difícil explicar; era como se a casa estivesse desaparecendo entre as batidas do coração — como se fosse parcialmente apagada, e então restaurada, pelo artista invisível que a desenhava.

Nunca na minha vida eu vivenciara nada parecido.

A avenida de castanheiras parecia não ter fim. Quanto mais rápido eu pedalava, mais lentamente parecia me mover.

Por fim, cheguei à porta da frente e a abri.

— Olá? — gritei, como se fosse uma viajante que havia chegado inesperadamente à cabana de uma bruxa, na floresta. Como se não tivesse vivido neste lugar por toda a minha vida. — Olá? Alguém em casa?

Não houve resposta, é claro.

Certamente, eles se encontravam na sala de estar. Sempre estavam lá.

Batendo os pés nos tapetes com um ruído surdo, corri até a ala oeste.

Mas a sala de estar se achava vazia.

Eu estava no vão da porta, perplexa, quando ouvi um baque às minhas costas.

O som parecia ter vindo do estúdio do pai, uma das zonas proibidas de Buckshaw. A outra era o boudoir de Harriet, que, como eu disse, o pai preservara como um memorial onde cada frasco de perfume, cada lixa de unhas e cada esponja de pó de arroz eram mantidas precisamente na mesma posição em que ela os deixara no seu último dia.

No boudoir, não era permitido entrar sob nenhuma circunstância; no estúdio do pai, apenas sob ordens.

Bati na porta e a abri.

Dogger ergueu os olhos, surpreso. Não teria ouvido os meus passos?

— Senhorita Flavia — ele disse, pondo de lado um álbum de selos que estava prestes a guardar em uma caixa de embalagem.

A verdade era que eu ainda não superara o constrangimento que eu mesma havia criado ao chamar Dogger por um apelido carinhoso — e, neste momento, pensei que jamais superaria.

— O que há de errado? — perguntei. — Onde está todo mundo?

— Creio que a senhorita Ophelia foi para o quarto dela, com dor de cabeça. A senhorita Daphne está selecionando livros na biblioteca.

Não precisei perguntar por quê. O meu coração se apertou.

— E o pai?

— O coronel também foi para o seu quarto.

— Dogger — eu disse de repente — o que há de errado? Eu soube que algo não estava certo assim que passei pelos Portões Mulford. O que é?

Dogger balançou a cabeça.

— Você também sente isso, senhorita.

Nenhum de nós conseguiu encontrar palavras, até que Dogger disse:

— O coronel De Luce recebeu uma chamada telefônica.

— Sim? Sobre o quê?

Eu estava ansiosa demais para perguntar “De quem?”.

— Receio não poder dizer — Dogger falou. — A pessoa que ligou não se identificou. Insistiu em falar diretamente e somente com o coronel De Luce.

— É sobre a casa, não é? Buckshaw foi vendida.

Meus ossos ferviam. Minha alma congelava. Eu ia vomitar.

— Eu não sei — disse Dogger. — O coronel não me confidenciou. Admito que pensei o mesmo.

Se eu fosse outra pessoa que não Flavia de Luce, teria marchado ao quarto do pai e exigido uma explicação. Afinal, estávamos falando da minha vida também, não?

Admita, Flavia, pensei. Você não tem o que é preciso para enfrentar o leão na sua cova.

O que, por alguma estranha razão, me fez lembrar o magistrado Ridley-Smith e sua peculiar cara de leão.

— Dogger — perguntei, mudando de trilho como numa emergência ferroviária —, o que você diria se eu perguntasse a você sobre músculos do polegar enfraquecidos, uma mão defeituosa e pés que se arrastam?

— Eu diria que você esteve em Bogmore Hall novamente — respondeu Dogger, mantendo uma expressão séria e apropriada.

— E se eu lhe dissesse que não estive?

— Então, eu lhe pediria mais detalhes, senhorita.

— E eu lhe diria que conheci alguém que tinha todos esses sintomas, bem como olhos grandes, redondos e fixos. Não tinha sobrancelhas nem cílios. Tinha um nariz quebrado, compleição manchada e pardacenta e uma carranca das mais horríveis.

— Eu diria: “Muito bem, senhorita Flavia. Uma descrição muito bem observada de facies leonina, a chamada ‘face de leão’”. Seria inapropriado perguntar se essa pessoa passou algum tempo na Índia?

— Na mosca, Dogger! — exultei. — Na mosca! Um caso clássico de envenenamento por chumbo, acredito.

— Não, senhorita. Um caso clássico de mal de Hansen.

— Nunca ouvi falar.

— Eu não estranharia, senhorita. É mais conhecido como lepra.

Lepra! Aquela doença pavorosa sobre a qual nos advertiram na escola dominical — a doença pavorosa que o padre Damien contraíra entre os leprosos de Molokai: a pele embranquecida, encrostada, descascando, as úlceras azuis, os narizes apodrecidos, os dedos dos pés e das mãos se soltando e, no fim, a face caindo em uma triste e incurável ruína. Os leprosos de Molokai para quem os centavos das caixas de coleta da escola dominical eram enviados regularmente.

Lepra! O medo secreto de cada menina e menino do Império Britânico.

Com certeza, Dogger estava enganado.

— Eu achava que as pessoas morriam disso — falei.

— Elas morrem. Às vezes. Mas, em certos casos, a doença se torna dormente, isto é, entra em um estado de animação suspensa, durante anos.

— Quantos anos?

— Dez, vinte, quarenta, cinquenta. Varia. Não existe regra imutável.

— É contagiosa? — perguntei, sentindo uma vontade súbita e desesperada de lavar as mãos.

— Não tanto quanto se pensa — disse Dogger. — De fato, é muito difícil se contagiar. A maioria das pessoas possui uma imunidade natural ao organismo que a causa, o Mycobacterium leprae.

Fazia muito tempo que eu ansiava perguntar a Dogger sobre o seu vasto cabedal de conhecimentos médicos, um desejo que, até agora, eu conseguira manter sob controle. Não era da minha conta. Até mesmo a mais discreta inquirição sobre o seu passado chocante e perturbador seria uma imperdoável invasão de privacidade.

— Eu mesmo soube de um caso em que as bolhas do estágio prodrômico...

As suas palavras se interromperam abruptamente.

— Sim? — instiguei.

Os olhos de Dogger pareceram ter feito as malas e fugido para algum lugar distante. Um país diferente, quem sabe, uma terra diferente, ou um planeta diferente. Depois de um longo tempo, ele disse:

— É como se...

Agora, era como se eu não estivesse ali. Subitamente, a voz de Dogger era o farfalhar de folhas ou o suspirar do vento em um salgueiro seco.

Prendi a respiração.

— Há uma lagoa — ele disse lentamente, as palavras encadeadas como contas em um longo fio. — Fica na selva... Às vezes, a água é clara e pode ser bebida... outras vezes, é turva; um braço nela mergulhado desaparece.

Dogger estendeu o braço para tocar algo que eu não via, a mão trêmula.

— Foi-se... ou continua lá, invisível? Alguém procura nas profundezas, impotente, esperando encontrar... alguma coisa... qualquer coisa.

— Está tudo bem, Dogger — eu disse, como sempre dizia, e toquei o seu ombro. — Não importa. Não é importante.

— Oh, mas importa. E é importante, senhorita Flavia — ele falou, alarmando-me com o seu vigor. — Agora mais do que nunca, talvez.

— Sim — eu disse automaticamente. — Agora mais do que nunca, talvez.

Eu não sabia exatamente sobre o que estávamos falando, mas sabia que precisávamos persistir.

Sem realmente mudar de assunto, continuei como se nada tivesse acontecido:

— Sem cometer qualquer inconfidência, posso dizer que a pessoa de quem estou falando é o magistrado Ridley-Smith.

Dogger, afinal, houvesse estado comigo na cripta, poderia tê-lo visto com seus próprios olhos.

— Só ouvi falar dele, nada mais — disse Dogger.

— O outro, aquele sobre quem perguntei antes, é o filho dele, Jocelyn.

— Sim, eu me lembro. Envenenamento por chumbo.

— Exatamente. Você deduziu que eu havia estado em Bogmore Hall.

— Eu ouvi falar do filho. Empregados falam. Ouvem-se coisas no mercado.

— Mas não do pai?

— Não. Não do pai. Sequer uma descrição física.

— Pobre Jocelyn! Se o seu diagnóstico estiver correto, isso significa que a sua mãe foi envenenada por chumbo e que o seu pai é um leproso.

Dogger assentiu tristemente.

— Essas coisas acontecem — observou —, muito embora tentemos fazer de conta que não acontecem.

— Eles vão viver?

Eu progredira devagar até a pergunta mais importante de todas.

— O filho, talvez — respondeu Dogger. — O pai, não.

— Estranho, não é? A lepra, agora que voltou à vida outra vez, irá matá-lo.

— A lepra em si raramente é fatal. Suas vítimas geralmente morrem de falência dos rins ou do fígado. Agora, se me desculpa, senhorita...

— É claro, Dogger. Desculpe por interromper. Sei que você tem coisas a fazer.

Foi por pouco. Dogger chegara muito perto de escorregar para um dos seus episódios. Eu sabia que ele não queria nada além de voltar ao seu quarto e cair silenciosamente em pedaços.

O pior havia passado, pelo menos por ora, e ele precisava que lhe concedessem a dádiva de ser deixado sozinho.

* * *

— Quais são as novidades, Dafi? — falei após irromper na biblioteca como se fosse apenas mais um alegre dia em Buckshaw.

Minha irmã era extraordinariamente perceptiva, muito embora fingisse não ser. Se uma chamada telefônica devastadora tinha acontecido, Dafi teria descoberto todos os detalhes a esta altura.

De certo modo, ela era bem parecida comigo.

— Nenhuma — Dafi falou, sem tirar os olhos dos livros que estava selecionando. O sentimento cálido criado anteriormente pelo nosso cessar-fogo fraternal escorrera como areia em uma ampulheta.

— Quem telefonou? — perguntei. — Acho que ouvi o telefone tocar mais cedo.

Um telefone tocando era tamanha raridade em Buckshaw, que o evento podia ser comentado sem levantar suspeitas.

Dafi encolheu os ombros e abriu A moradora de Wildfell Hall.

O que quer que houvesse perturbado o pai, ele não compartilhara.

O que, de um modo peculiar, era reconfortante. Minhas irmãs compartilhavam tudo entre elas. O que Dafi sabia, Felinha sabia.

O que Flavia sabia era, em comparação, como uma batida no cepo do buraco no fundo do mar. Fundo, escuro, e ninguém dava a mínima.

Tentando alegrar as coisas um pouco, eu disse:

— Estou procurando um bom livro para ler. Você pode me recomendar alguma coisa apropriada?

— Sim — disse Dafi. — A Bíblia Sagrada.

Então, ela fechou Wildfell Hall com um baque seco e marchou para fora da sala.

É o que valem os laços de sangue.


25

O JANTAR FOI uma charada.

O pai não compareceu.

Felinha, Dafi e eu beliscamos a comida e fomos horrivelmente decentes uma com a outra, tendo passado o sal e a pimenta e as ervilhas frias com esmerados “por favor” e “obrigada”.

Foi atroz.

Nenhuma de nós sabia com certeza o que acontecera, com Buckshaw ou com o pai, nem queria ser a primeira a perguntar — nenhuma de nós queria ser a primeira a jogar a última pedra: a pedra que arrebentaria, de uma vez por todas, a nossa frágil ampulheta.

Como se apenas palavras fossem capazes de causar a derrocada.

— Me dão licença? — Dafi perguntou.

— É claro — Felinha e eu respondemos rápido demais e ao mesmo tempo.

Tive vontade de chorar.

Também tive vontade de voltar ao laboratório e preparar uma enorme porção de tri-iodeto de nitrogênio para explodir em um cogumelo espetacular de vapor roxo o mundo e tudo o que ele contém.

As pessoas pensariam ser o Apocalipse.

O mar vítreo semelhante ao cristal... a estrela chamada Absinto, as sete lâmpadas de fogo, o arco-íris em volta do trono, o segundo anjo a derramar a sua taça pelo mar, onde se tornou em sangue como o de um morto.

Eu mostraria para eles!

Eu lhes daria algo em que pensar.

O sangue de um morto.

Tudo havia começado com sangue, não havia?

Era isso o que escorria na minha mente conforme eu subia a escada.

No começo, o sangue do sapo esmagado e o sangue da minha própria família radiando uma iridescência vermelha sob o microscópio. Depois, o sangue vítreo de João Batista e o sangue que pingou da fronte do São Tancredo de madeira. Eu ainda não tivera a oportunidade de contar ao vigário os resultados da minha análise.

Também houvera a mancha vermelha no piso da câmara do órgão onde o sr. Collicutt fora assassinado, mas aquilo, é claro, não era sangue. Era álcool tingido de vermelho do manômetro quebrado do órgão.

Do sangue do sr. Collicutt, não havia vestígio.

É claro!

Nem uma única gota.

Nem na câmara onde ele foi morto, nem na tumba onde o seu corpo foi parar, nem, até onde eu tinha visto, em qualquer lugar entre elas.

No caso do sr. Collicutt, não era tanto uma questão de manchas de sangue, mas da falta delas.

A conclusão óbvia era que ele não fora esfaqueado ou baleado; e envenenamento, para o meu pesar, estava fora de questão.

A despeito do que Wilfred Sowerby, o agente funerário, contara a Adam sobre explosões internas, aquelas lesões certamente foram infligidas após a morte.

Nenhum sangue.

C.Q.D.

Você não precisa ser o professor Einstein para enxergar que o sr. Collicutt muito provavelmente morrera por asfixia. Na verdade, eu deveria ter notado isso assim que pus os olhos nele.

A máscara de gás em si contava boa parte da história.

Agora que eu pensara nisso, também havia aquele franzido branco junto ao seu queixo. Como o assaltante da estrada. Um lenço. Enfiado embaixo da máscara.

Mas por quê?

A resposta me atingiu como um tijolo.

Éter! Éter dietílico!

O bom e velho (C2H5)2O.

A substância fora descoberta no oitavo século, pelo alquimista persa Abu Abdallah Jaber ben Hayyam ben Abdallah al-Kufi, às vezes chamado de Geber, ou no décimo terceiro século, por Raymond Lully, às vezes chamado de Doutor Illuminatus, e podia ser facilmente preparada em casa a partir de ácido sulfúrico e creme tártaro. Também podia ser surrupiada de um hospital ou de um consultório médico ou dentário.

Eu podia imaginar claramente os últimos momentos do sr. Collicutt: o nariz empalmado pelo lenço impregnado, frio no começo, depois uma queimação violenta seguida por entorpecimento. O sabor doce e quente ao arquejar desesperadamente por ar, o calor no seu estômago, o desfalecimento dos sentidos, a escuridão turbilhonante e então... O quê?

Bem, a morte, claro, se o éter foi aplicado por tempo demais, ou em quantidade grande demais. Paralisia do sistema nervoso central e falência do sistema respiratório podiam ocorrer se não fosse tomado um grande cuidado. Eu tinha lido os detalhes assustadores no texto clássico de Heinrich Braun, Anestesia local, um exemplar bastante manuseado que o tio Tar guardava na prateleira acima da sua escrivaninha. Os próprios experimentos do tio Tar com procaína e amilocaína (patenteada como stovaine pelo seu descobridor, o francês Ernest Fourneau, palavra que significa “fogão”) foram bem documentados em anotações microscópicas nas margens.

Mas quem, em Bishop’s Lacey e nos dias atuais, seria capaz de obter éter? Muito poucos, provavelmente.

De fato, se você pensar bem, a única pessoa no mundo a carregar a substância para qualquer lugar, em sua valise, seria um médico.

Eu precisava falar com o dr. Darby.

O dia seguinte era Domingo de Páscoa. Quase certamente — salvo em caso de emergências médicas —, ele estaria na igreja, com o resto de Bishop’s Lacey, organizando, como sempre fazia, a encenação da peça pascal e a caça aos ovos. Eu o pegaria no portão coberto à entrada do pátio e perguntaria como quem não quer nada se ele notara, recentemente, a falta de algum item na sua valise.

Mas, primeiro, eu precisava dormir.

Dogger trouxera Esmeralda de volta da estufa, pois eu a encontrara empoleirada e muito satisfeita no anel de ferro de um pedestal de suporte do laboratório. Também havia um ovo fresco em cima da minha cama.

Eu o guardaria para a manhã seguinte, decidi. Seria um longo dia.

O pai nos faria levantar às cinco horas para que pudéssemos comer um desjejum leve antes das três horas regulamentares.

Como católicos romanos, nós éramos obrigados a jejuar a partir, no mínimo, da meia-noite anterior ao recebimento da Sagrada Eucaristia. Somente os gravemente doentes ou aqueles em risco de morte tinham permissão para comer antecipadamente sua torrada com geleia.

O pai, no entanto, discordava.

— Um desjejum quente é indispensável, se não obrigatório — ele costumava nos dizer. — Você nunca sabe quando, ou se, poderá comer de novo.

Era uma pérola de sabedoria que ele aparentemente formulara durante o seu serviço militar — mas nós sabíamos que era melhor não fazer perguntas. Em uma discussão com o vigário, os dois determinaram que um período de três horas bastava para satisfazer tanto a barriga quanto o espírito da lei.

O pai, devo dizer, está anos à frente do seu tempo. Ele não vê nada de errado em receber a Santa Comunhão no altar da Igreja da Inglaterra em vez de dirigir até Hinley para a Sagrada Eucaristia na Nossa Senhora das Sete Dores.

— É um dever sagrado — ele nunca se cansava de nos dizer — negociar com as firmas locais.

Bem, que seja, eu suponho.

Nós estaríamos no banco da igreja para o serviço das oito horas, depois retornaríamos para o serviço das onze, aquele com a pompa toda: coro, órgão, salmos e responsos entoados, um tremendo sermão — McGillicuddy de cabo a rabo.

Puxei de debaixo da minha cama o conjunto de gravações que surrupiara do quarto de Felinha, Concerto para piano em lá menor de Grieg, que, de acordo com ela, era descritivo de sol e sombras nos fiordes gelados da Noruega, onde pedaços de gelo como diamantes do tamanho de Buckshaw se desprendiam e desabavam estrepitosamente no mar.

Girei a manivela para dar corda no meu gramofone, pousei a agulha nos sulcos do disco, mergulhei sob as cobertas e puxei o acolchoado até as orelhas enquanto a música começava.

Com as cordas da Filarmônica de Londres me embalando, morri para o mundo antes de a primavera acabar.

Sonhei que eu estava no pátio de São Tancredo, onde mesas — talvez uma dúzia delas — tinham sido dispostas aqui e ali entre as sepulturas. Às mesas, sentavam-se as pessoas de Bishop’s Lacey e redondezas, todas vestidas do mesmo modo, em trajes de arlequim com um padrão de losangos. As ricas cores das suas sedas faziam-nas parecer figuras de um vitral.

Sobre a mesa, na frente de cada jogador — ou competidor, eu não estava completamente certa —, havia quebra-cabeças idênticos, fechados, e, atrás de cada jogador, plantava-se um juiz com uma bandeira de arlequim.

Oh, que grande diversão, pensei, um torneio de quebra-cabeças.

Um apito soou, as bandeiras desceram zunindo, e os jogadores rasgaram as caixas e começaram a separar as peças como loucos. Um ou dois deles já encaixavam as peças chatas nas bordas.

Um juiz com uma peruca empoada e um pincenê caminhava entre as mesas, parando para olhar por cima do ombro de cada jogador por alguns momentos antes de rabiscar anotações em um grande e antiquado livro de registro.

Quando me aproximei para olhar mais de perto os quebra-cabeças (que pareciam retratar um santo com um halo dourado em volta da cabeça, ou ainda uma rocha ao luar que se projetava de um mar no meio da noite), fui expulsa por uma figura escura em vestes clericais (seria o vigário?) que, gesticulando as mãos, deixou muito claro que qualquer interferência seria punida imediatamente pelo homem com a pá.

Dei meia-volta e me vi cara a cara com o punidor — o homem com a pá. A srta. Tanty.

Acordei instantaneamente e me sentei na cama, o coração disparado.

Se não soubesse antes, eu sabia agora como o sr. Collicutt fora morto e por quê.

O relógio mostrava que faltavam dez minutos para as cinco. Tarde demais para voltar a dormir.

Pulei da cama para um piso gelado, despejei água fria da jarra nas mãos e no rosto e, como um maquinista de trem mete o pé no pedal da sua locomotiva, me enfiei no vestido branco engomado com babados que a sra. Mullet separara para mim.

O ovo de Esmeralda, no vapor, e dois pedaços de pão torrados sobre o bico de Bunsen contribuíram para um substancioso desjejum.

Peguei uma rolha numa gaveta e queimei-a na chama do gás. Quando ela esfriou, apliquei-a às minhas pálpebras, com atenção especial às inferiores, depois esfreguei o lugar até a fuligem esmaecer, para simular um realístico roxo-acinzentado.

Para um toque final, emaranhei o cabelo até parecer um ninho de rato e borrifei na minha testa água fria de um vaporizador.

Me olhei ao espelho.

Com grumos de ovo ainda presos aos meus lábios, o efeito era notavelmente convincente.

O pai, Dafi e Felinha já se achavam à mesa quando eu entrei cambaleando na sala de jantar e olhei em volta, confusa.

Tomei o meu lugar sem uma palavra e permaneci imóvel, as mãos entrelaçadas sombriamente no colo.

— Bom Deus! — disse Felinha. — Olhe para você!

O pai e Dafi ergueram os olhos de suas torradas secas.

— Eu... eu... eu receio que terei de ser dispensada — consegui dizer. — Desculpem. Eu mal dormi. Deve ter sido algo que comi.

Levei a mão em concha para a boca e estufei as bochechas.

— Coma um pedaço de torrada — disse o pai. — Depois, suba e vá direto para a cama. Verei como você está quando chegarmos em casa.

— Obrigada — falei. — Mas não estou com fome. — E acrescentei ecoando a sra. Mullet: — Um bom e prolongado sono vai me fazer bem demais.

De volta ao andar de cima, troquei o vestido de Páscoa por uma saia e um suéter e os meus sapatinhos de carola por um par de tênis.

Minutos depois, eu me arrastava — silenciosa, cuidadosamente — para fora pela janela da galeria de retratos, no andar térreo.

Chovera à noite e Gladys estava molhada. Dei-lhe uma boa sacudida e as gotas de condensação fria voaram como um chuveiro de brilhantes ao luar.

Em menos de dez minutos, estaríamos na igreja de São Tancredo.


26

UMA NÉVOA FRACA SE DESPRENDIA do rio, atrás da igreja, e flutuava como fumaça cinzenta por entre as sepulturas, abafando o som da água corrente.

Um pátio de igreja ao luar de março seria o bastante para provocar tremeliques em qualquer um, mas não nesta garota.

Afinal, eu já estivera ali.

Bati no peito com os dois punhos e respirei o ar úmido da manhã — uma mistura de terra encharcada, grama molhada e pedras velhas, com um vestígio de flores murchas.

Não era difícil entender por que os clérigos amavam o seu trabalho.

As senhoras da Guilda do Altar logo chegariam; portanto, eu precisaria ser rápida na minha empreitada. Com um pouco de sorte, teria uma hora, uma hora e meia, no máximo, antes que elas chegassem com braçadas de lírios de Páscoa.

Não que eu precisasse de tanto tempo. O meu sonho me ajudara a inserir as últimas peças do quebra-cabeça no seu devido lugar. Antes, embora eu tivesse todos os fatos, não enxergava como eles se encaixavam. Agora, entretanto, eu sabia precisamente o que iria encontrar — e onde.

Entrei no vestíbulo e acendi a lanterna, com cuidado para manter o facho dirigido ao chão. Visto de fora, o mais ligeiro brilho sobre os vitrais faria a igreja reluzir como um abajur Tiffany no cemitério.

Abri a porta interna e passei do vestíbulo para o corpo principal da igreja ou, como Felinha teria dito, do nártex para a nave. Quando o assunto era arquitetura eclesiástica, Felinha adorava vomitar termos técnicos como se estivesse batendo papo com o arcebispo da Cantuária — ou até mesmo com o Papa — durante um chá com biscoitos. Será que o Papa bebia chá? Eu não sabia, mas Felinha com certeza seria capaz de dissertar sobre o assunto até altas horas.

Parei na passagem central e escutei.

O lugar estava preenchido por aquele silêncio total que só as igrejas possuem — um silêncio tão vasto, tão atemporal e tão alto que dói nos ouvidos, um vácuo reverberante de som negativo.

Seriam os clamores dos mortos que se empilhavam nas paredes e na cripta abaixo? Estariam eles de tocaia, como Dafi certa vez me contara, para agarrar os visitantes do meio da noite e arrastá-los aos seus caixões, onde mascariam os seus ossos até o Juízo Final, quando então os cuspiriam e se apressariam ao céu?

Pare com isso, Flavia!, pensei.

Por que eu permitia que a minha cabeça se enchesse desse tipo de entulho? Já havia estado ali à noite e não vira nada pior do que a srta. Tanty.

A srta. Tanty e Cynthia Davidson.

Agora que eu parara para pensar nisso, São Tancredo era, nas primeiras horas da madrugada, quase tão movimentada quanto a Estação Victoria ao meio-dia.

O trem expresso para o Paraíso.

Pare com isso, Flavia!

Eu estava deixando que o lugar me desse nos nervos — e não estava gostando nem um pouco disso.

Atravessei a passagem passo a passo — uma lenta procissão de um só.

Então, na minha cabeça, talvez para me fazer companhia, Dafi passou a marchar atrás de mim enquanto entoava em uma voz solene e cava: “Vamos falar de túmulos, de vermes e epitáfios...”.

Pare com isso, Flavia! Pare com isso imediatamente!

Eu estava a poucos minutos do sucesso. A um instante de...

Alguma coisa rangeu.

Alguma coisa de madeira, a julgar pelo som.

Eu congelei.

Escutei...

Nada.

Isto é ridículo, pensei. Além de suas pedras, as igrejas são cheias de carvalho e olmo. As vigas que formavam arcos sobre a minha cabeça, os bancos, o púlpito, os corrimãos haviam sido, em algum tempo, árvores em uma floresta inglesa. Haviam estado vivos — ainda estavam, talvez, acomodando-se, alongando os músculos em seu sono.

Percorri a passagem até o órgão, sem me atrever a erguer o facho da lanterna para conferir se São Tancredo ainda gotejava.

Manchas de luar colorido atravessavam angulosamente as janelas e tornavam as sombras ainda mais escuras.

Cheguei ao órgão, cujos três teclados reluziam nas trevas como uma tripla dentadura.

Alguma coisa rangeu.

Outra vez. Ou seria outra coisa?

Desviei o facho da lanterna e o diabinho esculpido sorriu para mim nas trevas.

Pressionei o ouvido contra o painel de madeira e escutei: nem o mais leve som vinha da câmara do órgão.

Uma torcida nas bochechas gorduchas do diabinho e o painel deslizou para se abrir.

Entrei.

Cá estava eu de novo. O lugar onde o sr. Collicutt morrera — o lugar onde, a não ser que eu estivesse lamentavelmente enganada, o sr. Collicutt escondera o Coração de Lúcifer.

Era uma simples questão de alinhavar os fatos na ordem certa, como pérolas em um fio. Isso feito, a solução não era difícil. Eu mal podia esperar para explicar tudo ao inspetor Hewitt — entregar-lhe aquela oferenda de boa vontade com todos os laços e todas as benditas fitas lindamente amarrados.

Ele iria, claro, compartilhar os detalhes com a sua esposa, Antigone, que me telefonaria imediatamente e me convidaria para um novo chá, a despeito das minhas gafes passadas.

Ela comentaria sobre o brilhantismo da minha descoberta, e eu diria que não foi nada.

Os tubos do órgão se erguiam ao redor de mim — milhares deles, ao que parecia, fileira após fileira, como picos de montanhas de metal e madeira.

Cada tubo tinha a sua boca, uma fenda horizontal perto do fundo através da qual falava, e eu tinha tanta certeza quanto possível de que o sr. Collicutt enfiara o Coração de Lúcifer em um dos tubos.

A questão era: em qual deles?

Eu tinha passado horas observando Felinha puxar os registros que conferiam ao órgão a sua voz: o Lieblich Bourdon, o Geigen Principal, o Contra Fagotto, o Gemshorn, o Voix Céleste, o Salicet, o Dulciana e o Lieblich Gedact.

Em qual conjunto de tubos o sr. Collicutt teria escondido o Coração de Lúcifer?

Por estranho que pareça, fora a fileira de registros descartados no seu quarto que fizera brotar a pergunta na minha cabeça.

“Onde um organista esconderia um diamante, uma pedra preciosa, uma gema?”

Era uma charada e, como numa charada, a resposta, depois de descoberta, era risivelmente óbvia.

“Ora, uma gema só poderia estar no Gemshorn!”

Felinha me explicara que os tubos Gemshorn são aqueles que soam como flautas feitas de chifres de animais — aqueles que, para mim, pareciam zarabatanas de pigmeus.

Devia haver duas dúzias daquelas coisas, as quais variavam em comprimento de uns dez centímetros até alguns metros. Os tubos menores eram pequenos demais para ocultar algo; não era possível enfiar nada em sua fenda.

Decidi começar pelo tubo maior.

Inseri dois dedos na boca de metal e tateei para cima e para baixo — acima da fenda e abaixo dela.

O interior do tubo era tão liso quanto uma lata de chá.

Muito bem, então — vamos ao próximo.

Eu não contive um sorriso enquanto trabalhava. Felinha se queixara de que o órgão andava meio mal-humorado havia semanas, mas ela equivocadamente pusera a culpa no tempo.

Eu sabia que o motivo era outro.

Quem teria imaginado que um diamante escondido era a causa da rouquidão do pobre, velho, cansado instrumento?

Flavia de Luce teria!

— Flavia, sua malandrinha... — sussurrei e enfiei os dedos na boca do tubo seguinte.

Existe uma lei tácita do universo segundo a qual a coisa que você procura sempre está no último lugar em que você olha. Isso se aplica a tudo na vida, desde meias perdidas até venenos extraviados — e certamente vigorava neste caso.

O único tubo Gemshorn que eu ainda não conferira era o maior e o último — o mais distante do painel deslizante pelo qual eu entrara na câmara do órgão.

Me estiquei muito para alcançá-lo e fiz uma prece silenciosa antes de deslizar a mão fenda adentro.

Meus dedos tocaram algo!

Havia uma coisa sólida no tubo, sólida e seca, como uma ameixa seca petrificada.

Apalpei a coisa, sentindo gentilmente o seu tamanho e a sua forma com a ponta dos dedos.

Era do tamanho de uma noz, talvez, e possuía mais ou menos a mesma textura.

Eu a movi de um lado a outro e, com um ruído surdo, ela se soltou e caiu na minha mão.

Cuidado, pensei. Não deixe cair dentro do tubo.

Manobrei o objeto lenta, cuidadosamente, na direção da fenda, até conseguir puxá-lo para fora. Posicionei-o sob a luz da lanterna.

Que amarga decepção!

Nada mais era senão um pedaço de massa velha de vidraceiro.

Prendi a lanterna entre dois tubos do órgão, cravei a unha de ambos os polegares na coisa e a dividi ao meio como se estivesse quebrando um ovo.

O Coração de Lúcifer!

O meu coração deu um pulo. Receio até ter dito algo um tanto profano de que eu não me orgulharia mais tarde.

Trazido à vida pelo facho da lanterna, o enorme diamante disparava chispas de luz na escuridão como se fosse um novo, íncubo sol.

Como eu suspeitara, o sr. Collicutt enfiara a gema em um tubo de órgão.

Que inteligente da parte dele, pensei, e muito mais inteligente da minha parte ter imaginado como encontrá-la.

O Coração de Lúcifer! Imagine só!

Eu mal podia esperar para contar ao pai.

Estava segurando a gema gigante entre o polegar e o indicador, virando-a para um lado e para outro, emitindo reflexos dançantes aos milhares, quando uma voz atrás de mim disse:

— Agarre-a, Benson!

Então, tudo aconteceu de uma vez. Alguém me agarrou pelo braço e cravou dedos poderosos nos meus músculos. O meu braço inteiro fraquejou.

Me virei e chutei o meu oponente ao mesmo tempo que me torci inteira, tendo o prazer de sentir o meu sapato encontrar uma canela.

— Maldita! — disse uma voz alterada pela dor. — Vou ensiná-la a...

A lanterna se apagou.

O meu cotovelo a derrubara dos tubos do órgão, e ela fora ao chão de madeira com um baque surdo.

Estávamos na escuridão total. Eu abri a boca para gritar. Mas não gritei.

Em vez disso, fiz algo que espero jamais esquecer.

Mãos me agarraram e logo me soltaram quando recuei e bati ruidosamente no meio dos tubos. O reservatório de ar se encontrava em algum lugar no canto. Talvez eu conseguisse me içar para ele e me esconder atrás...

Mãos poderosas agarraram um dos meus tornozelos e começaram a torcê-lo e torcê-lo...

Então, a lanterna se acendeu. Alguém a recuperara no chão e agora dirigia o facho diretamente para os meus olhos.

— Onde está? — trovejou uma voz vinda das trevas, atrás da luz.

A voz de Ridley-Smith, o magistrado. Eu não tive dúvida.

— Entregue-a — outra voz demandou, e o meu braço foi torcido quase a ponto de sair da junta. Vi dedos estranhos se cravarem no meu pulso, que estava ficando branco.

— Entregue-a! E rápido!

— Entregar o quê? — arquejei. — Me solte. Não sei do que você está falando.

— A pedra! — disse uma voz áspera e quente no meu ouvido. Senti o bafo do homem, e não foi nada agradável.

A minha primeira reação foi tentar ganhar tempo. Mas quanto até que chegasse ajuda?

Uma hora? Poderia bem ser uma eternidade.

Benson (pois agora eu via com meus próprios olhos que era ele o oponente) segurou os meus ombros e me chacoalhou como um cão terrier chacoalharia um rato.

O meu cérebro bateu contra a caixa craniana.

— Sem jogos — ele sibilou, irascível. — Entregue-a.

Estendi as mãos vazias.

— Deve haver algum engano — eu disse, tentando olhar com olhos abertos e cara de honestidade para o facho cegante da lanterna. — Juro.

Outra chacoalhada, mais dolorosa que a primeira.

— Você está me machucando — eu disse, a cabeça girando. — Me solte.

Mais uma chacoalhada de sacudir os ossos.

Eu não aguentaria muito mais. Não havia escapatória. Ambos, Benson e o magistrado, barravam a única saída daquela câmara infernal.

Eu precisava mudar de tática.

Ligeiramente.

— Está bem — falei. — Eu sei que vocês dois assassinaram o senhor Collicutt.

As chacoalhadas pararam. O primeiro ponto foi para mim.

— Bem aqui — acrescentei, gesticulando para toda a câmara do órgão. O meu fôlego voltava em arfadas. — Sei que... vocês e os seus homens... estão cavando um túnel... desde o pátio da igreja... para roubar a pedra... há muito tempo... talvez anos. Sei que você, magistrado Ridley-Smith... topou com o relato... do Coração de Lúcifer... no Registro Público dos Arquivos Nacionais... os documentos guardados em Chancery Lane. Você o escondeu em uma pilha de contratos antigos. Quem mais teria acesso senão alguém do mundo das leis?

Eu respirava pesadamente — como um relógio de seis xelins com a corda toda.

O magistrado não disse nada. Eu havia sido convincente o bastante.

— O senhor Collicutt era um dos seus... — Como era mesmo a palavra? Lacaios? Sequazes? Dafi saberia — ...empregados — me conformei em dizer, consciente, no momento em que pronunciei, de que era uma escolha vocabular bem sofrível. — Ele o traiu. Vocês se desentenderam. Você o assassinou bem aqui, na câmara do órgão. Método? Éter dietílico. Arma do crime?

Fiz uma pausa dramática. Prolongue este momento o máximo que puder, pensei.

— Um lenço embebido em éter, metido em uma máscara de gás para se manter no lugar. Então, vocês o arrastaram pelo túnel e se livraram do corpo na câmara acima do túmulo de São Tancredo.

Houve um silêncio absoluto durante o qual Benson soltou o meu ombro.

— Foi por isso que você forçou o bispo a revogar a sua faculdade. Você sabia o que encontrariam quando a tumba fosse aberta, e era tarde demais para mover o corpo outra vez.

Durante toda a minha explicação, o magistrado Ridley-Smith permaneceu em silêncio. Em seguida, ele falou, as palavras curiosamente suaves na câmara de pedra:

— É isso o que você pensa? Honestamente, é isso o que você pensa?

— Sim! — disparei de volta, tentando imprimir um tom de acusação na minha voz.

— Receio que você tenha interpretado os fatos lamentavelmente mal, mocinha — ele disse.

Há!, pensei. Eu sei qual é a dele! “Mocinha”, francamente!

Ele estava tentando se esquivar e me ganhar com falso respeito.

— É mesmo? — perguntei o mais fria e condescendentemente de que fui capaz, dada a situação.

— É mesmo — ele respondeu com tanto sentimento nas palavras que, por um momento, quase me senti tentada a acreditar nele.

Aquilo que eu detectara em sua voz era um sinal de abalo?

— É mesmo. Você interpretou mal — o magistrado repetiu. — A verdade é bem o contrário.

Mordi o lábio deliberadamente. Por quanto tempo mais eu conseguiria prolongar aquilo?

Ó benditas senhoras da Guilda do Altar, eu rezei. Criem asas! Agora! Voem para me defender!

— O que é a verdade, então? — deixei escapar, lembrando-me vagamente de que Pôncio Pilatos usara palavras similares, porém em circunstâncias muito diferentes.

— A verdade é que nós tentamos desesperadamente reviver Collicutt. Benson usou um pedaço de mangueira da torre. Conectou-a a algum tipo de válvula neste mesmo órgão. Tentou lhe fornecer ar. Mas foi inútil.

A mangueira de ar? Eu não tinha pensado nisso! Certamente, explicaria o estado dos intestinos.

— Não acredito em você — falei.

No momento em que falei, ouvi uma súbita agitação na igreja, seguida pela batida surda de um genuflexório no piso de pedra.

A salvação se achava a instantes de distância!

— Socorro! — gritei na voz mais alta, aguda e aterrorizante que consegui. — Ajudem-me! Por favor, ajudem-me!

Escutei um arrastar de pés.

Então, um rosto grande surgiu por cima do ombro do magistrado — um rosto com óculos tão grossos quanto o Coração de Lúcifer.

Era a srta. Tanty!

— O que está acontecendo aqui? — ela perguntou.


27

NUNCA — NEM NOS MEUS SONHOS MAIS alucinados —, eu teria acreditado que ficaria tão feliz em ver a mulher.

Passei voando por Benson e o magistrado Ridley-Smith e me refugiei atrás das amplas saias da srta. Tanty.

— O que está acontecendo aqui, Quentin? — ela repetiu, olhando acusadoramente de um dos meus oponentes para o outro e depois para mim, os óculos grossos como lupas emoldurando aquele olhar assustador.

— Um mal-entendido — disse o magistrado, com uma risadinha compungida e falsificada. — Nada mais.

— Mal-entendido — Benson ecoou como se estivesse dando entrada na própria apelação.

— Entendo... — disse a srta. Tanty, vacilando à beira de uma decisão. Parecia estar em dúvida entre duas alternativas, talvez mais.

Por um longo tempo, ela os fitou, e eles a ela.

— Venha comigo, menina — a srta. Tanty disse de repente e, dando meia-volta, segurou o meu braço.

Fiz uma careta de dor. Não tinha me dado conta do quanto Benson me machucara.

Sem mais palavra, ela me levou à passagem central, pela qual marchamos juntas em direção à porta, como noiva e noivo em algum pesadelo.

Do lado de fora, a cerração diminuíra, embora o ar continuasse frio. O pátio da igreja estava vazio. Ainda era muito cedo para as senhoras da Guilda do Altar. Não havia ninguém à vista.

Saímos e seguimos pelo caminho que levava à estrada, com a srta. Tanty me puxando como se eu fosse um cachorrinho de brinquedo preso por um barbante.

Eu devo ter hesitado.

— Venha comigo, menina — ela repetiu. — Você passou por um grande choque. Vejo isso nos seus olhos. Precisamos aquecê-la. E lhe dar alguma coisa quente e doce.

Eu não poderia ter concordado mais. Meus joelhos estavam começando a tremer quando viramos para o leste, em direção à Rua Cater, onde ficava a casa da srta. Tanty.

Subitamente, eu me senti exausta, como se alguém tivesse aberto uma torneira no meu calcanhar e deixado a minha energia escorrer para a terra.

A ideia de uma xícara de chá e um punhado de biscoitos era, ao mesmo tempo, estranhamente reconfortante e estranhamente familiar. Como um conto de fadas outrora ouvido e há muito esquecido.

Caminhávamos rapidamente agora. Entramos na Rua Cater.

— Eu esqueci Gladys! — exclamei, parando de repente. — A minha bicicleta. Deixei no pátio da igreja.

— Vou buscá-la enquanto você toma o seu chá — disse a srta. Tanty. — Vou ligar para alguém buscá-la.

Tive a súbita visão ridícula de alguém — a srta. Gawl, talvez — me levando pela estrada estreita até Buckshaw com um cajado de pastor, ou um báculo de bispo, como se eu fosse uma ovelha desgarrada.

— É muita gentileza sua — eu disse.

— Não é nada — a srta. Tanty retrucou, arreganhando o mais horrível e reconfortante dos sorrisos.

Chegamos à casa dela tão subitamente que bem poderíamos ter sido transportadas em um tapete mágico.

É isso o que um choque faz?, me perguntei. Distorce o tempo?

Seria possível estar em choque e, ainda assim, ao mesmo tempo, observar a si mesmo em choque?

A srta. Tanty procurou uma chave no bolso e destrancou a porta, o que foi estranho, pensei, já que ninguém em Bishop’s Lacey tranca as portas.

Entramos, e ela passou o ferrolho na porta. O papagaio logo gritou do conservatório:

— Olá, Quentin. Toda a tripulação ao convés! — E assobiou quatro notas, nas quais reconheci a abertura da Quinta sinfonia de Beethoven. — Dah-dah-dah-DUM!

Olá, Quentin?, pensei. Fora o que a ave dissera quando eu havia estado aqui antes. Era também o nome pelo qual a srta. Tanty chamara Benson. Não, espere — o nome de Benson era Martin.

Ela estava se dirigido ao magistrado?

— Sente-se — a srta. Tanty comandou. Já tínhamos chegado magicamente à sua cozinha. — Vou colocar a chaleira no fogo.

Olhei o ambiente em volta, e ele era azul. É estranho mas é verdade. É basicamente o que eu me lembro a respeito da cozinha da srta. Tanty: era azul. Eu não notara isso antes.

Sobre a mesa, havia uma jarra de leite cheia de lírios em decomposição, uma pequena tábua de pão e meio pão de forma Hovis, uma torradeira elétrica, um castiçal de peltre com uma vela parcialmente derretida e uma caixa de fósforos.

Era óbvio que as refeições da srta. Tanty eram solitárias.

Então, num instante, uma fumegante xícara de chá surgiu na minha frente, e eu me senti peculiarmente grata.

— Beba — a srta. Tanty falou. — Aqui. Coma estes.

Ela empurrou um prato de biscoitos amanteigados embaixo do meu nariz, depois se virou e passou a mexer em um armário.

— Aqueles homens — ela dizia. Despreocupadamente demais, sociavelmente demais. — Aqueles homens na igreja. O que eles estavam fazendo com você?

— Eles pensaram que eu tinha encontrado uma coisa. Eles queriam que eu lhes entregasse.

— E você entregou?

— Não.

Os grandes óculos se viraram e me miraram fixamente.

— Não, você não encontrou uma coisa? Ou não, você não entregou a eles?

Olhei-a nos olhos, mesmerizada, e não me vieram palavras.

— Bem?

Tarde demais, a verdade desmoronou de uma vez.

— Eu preciso ir para casa agora — falei. — Não estou me sentindo bem.

As mãos da srta. Tanty apareceram subitamente das suas costas. Uma segurava uma garrafa de vidro, a outra, um lenço.

Ela derramou líquido no tecido e apertou-o contra o meu nariz.

Arrá!, pensei. (C2H5)2O.

Éter dietílico outra vez.

Eu reconheceria o seu odor doce, que faz cócegas na garganta, em qualquer lugar.

O químico Henry Watts certa vez o descrevera como um odor estimulante, e a Encyclopaedia Britannica o chamara de agradável, mas era óbvio que nem o professor Watts nem a Encyclopaedia Britannica tiveram a substância enfiada nos seus narizes por uma ponderosa e surpreendentemente poderosa mulher tresloucada com óculos de fundo de garrafa, em uma cozinha pintada de azul.

Aquilo queimou.

Aquilo me abrasou as narinas — dilacerou-me o cérebro.

Lutei para me pôr em pé — mas foi inútil.

A srta. Tanty enganchara um braço em volta do meu pescoço e, por trás, me puxava para baixo e para trás, como se quisesse me afundar na cadeira. A outra mão segurava o lenço firmemente sobre o meu nariz.

— Vou lhe ensinar! — ela dizia. — Vou lhe ensinar!

Agitei os braços, esperneei, porém não adiantou.

Menos de dez segundos haviam se passado, e o meu cérebro já girava em um turbilhonante, doce e nauseante esquecimento. Tudo o que eu precisava fazer era me entregar.

Me deixei levar.

— Não!

Quem tinha gritado isso?

Fui eu?

Ou foi Harriet?

Eu escutara a voz nitidamente.

— Não!

A srta. Tanty soltou o meu pescoço e passou a vasculhar um dos meus bolsos, depois o outro.

Num movimento brusco com os dedos espalhados, eu arranquei os óculos do seu rosto.

Não foi muito, mas foi o bastante. Virei a cabeça para um lado e enchi os pulmões de ar fresco — uma respirada rápida, depois outra, mais uma.

Sem as suas lentes poderosas, a srta. Tanty olhou em volta da cozinha, os olhos loucos, enormes e cansados, fracos, lacrimosos e desfocados.

Lutando para sair da cadeira, me esquivei para a esquerda, mas ela me bloqueou com os quadris tal qual um jogador de rúgbi.

Me esquivei para a direita, porém ela também estava lá.

Embora eu não fosse mais que um borrão para ela, a mulher conseguia se jogar na frente de todos os meus movimentos.

Não havia saída. Não havia porta dos fundos.

Ela estava com o braço em volta do meu pescoço outra vez, mais apertado do que antes.

Só enxerguei uma possibilidade.

Em desespero, estendi o braço e agarrei a caixa de fósforos. Abri-a com um rasgão, e os fósforos de madeira se espalharam sobre a mesa.

Quando a mão pesada da srta. Tanty se aproximou impetuosamente com o lenço, risquei a cabeça de um fósforo na madeira da mesa e o segurei desajeitadamente atrás de mim.

Ele se apagou.

Eu me mexera depressa demais.

Peguei outro, risquei e, devagar, agonizantemente devagar, dobrei o cotovelo na direção dela.

Houve um momento de graça, como se nada tivesse acontecido, e, então, um som como se um cão são-bernardo excepcionalmente grande houvesse acabado de ladrar “WOLF!”.

Um grande globo de fogo se alastrou como um balão alaranjado de ar quente para o teto baixo e depois desceu rolando pelas paredes em ondas de fumaça preta e gordurosa, apenas para subir de novo em volta dos nossos tornozelos em uma nuvem densa e sufocante.

Por uma fração mínima de tempo, a srta. Tanty se tornou uma estátua congelada com um braço segurando uma tocha flamejante sobre a cabeça, tal qual Demétrio em sua busca de Perséfone, a sua filha perdida, pelo mundo inferior.

E ela gritou.

E continuou gritando.

Ela deixou cair o lenço chamejante e tropicou de parede em parede, começando a tossir.

Tosse... grito... tosse... grito.

Era para abalar os nervos de qualquer um.

Ela correu em volta da cozinha, colidindo com os móveis, como se fosse uma monstruosa e ensandecida mosca varejeira a ricochetear de uma parede fumegante a outra.

A esta altura, eu também estava tossindo, e a sensação no meu rosto era como se eu adormecera por horas na praia, sob um sol de verão.

Com os pés, apaguei as chamas do lenço incendiado.

A srta. Tanty ainda gritava.

— Pare com isso — eu disse e abri a janela, mas ela não me deu atenção. Continuou dando voltas pela cozinha, segurando um pulso com a outra mão.

— Pare com isso — eu disse outra vez. — Deixe-me dar uma olhada.

Eu já tinha dado uma olhada; a mão dela estava queimada.

— Pare com isso — falei, porém ela gritou mais e mais. — Pare com isso!

Eu lhe dei uma bofetada na cara.

Posso não ser a pessoa agradável que gosto de pensar que sou, pois tenho de admitir que, para a minha surpresa, senti um grande prazer naquilo. Não porque aquela criatura tentara me assassinar momentos atrás, não porque houvesse qualquer carga de vingança no ato, mas porque, naquelas circunstâncias, era, de algum modo, a coisa certa a fazer.

Ela parou de gritar instantaneamente e olhou para mim como se nunca tivesse me visto antes.

— Sente-se — ordenei e, maravilha das maravilhas, ela obedeceu docilmente. — Agora, me dê a sua mão.

Ela me estendeu um punho avermelhado e olhou para ele como se pertencesse a um estranho — qualquer um menos ela.

Revirei meia dúzia de gavetas da cozinha até encontrar um pano de prato de algodão, com o qual cobri o seu pulso. Peguei o frasco de éter que ela pusera no escorredor de louça.

Tirei a rolha e despejei o conteúdo por cima do pano de prato, observando a expressão de alívio renovado que se espalhou pelo rosto da mulher enquanto ela olhava para mim em adoração muda, ou coisa assim.

Abri os armários embaixo da pia e, por fim, encontrei em um recipiente basculante o que estava procurando: uma batata.

Descasquei-a pela metade e a cortei em fatias tão finas, que se poderia ler a Bíblia através delas. Com as fatias, fiz um emplastro úmido, o qual, depois de remover o pano, usei para cobrir sua mão e seu pulso.

— Dói — disse a srta. Tanty, olhando para o meu rosto com seus grandes olhos de lua, os óculos reduzidos a cacos no chão.

— Sorte madrasta — eu falei.


28

DISPAREI DA CASA da srta. Tanty como se todos os cães do inferno estivessem nos meus calcanhares — e talvez estivessem.

Contornei a esquina e entrei na Rua Principal. Em um minuto, eu estava golpeando a porta do chalé do policial Linnet, que também fazia as vezes de delegacia de polícia de Bishop’s Lacey.

Em um tempo surpreendentemente curto, o policial de cabelos revoltos se achava à porta, com a sua jaqueta azul do uniforme, a testa enrugada, as sobrancelhas erguidas como duas letras V ao contrário.

— À casa da senhorita Tanty! — gritei. — Depressa! Tentativa de assassinato!

Deixando o perplexo policial na soleira da porta, disparei na direção oposta, rumo ao consultório do dr. Darby.

A srta. Tanty ainda estaria na cozinha quando a polícia chegasse? Eu tinha razões para acreditar que sim. Em primeiro lugar, ela se encontrava em estado de choque. Em segundo, a mulher não tinha sido talhada tendo em vista corridas de curta distância. Por fim, pensando bem, não havia onde se esconder; Bishop’s Lacey não era grande o bastante para abrigar locais de refúgio.

Eu estava com sorte. Quando cheguei ao consultório, o dr. Darby se achava do lado de fora. Usando um balde e uma esponja, ele lavava o seu Morris com nariz de touro para tirar a lama e a poeira da clínica rural.

— A senhorita Tanty queimou a mão — contei a ele, sem fôlego. — Explosão de éter! Já apliquei éter frio e um emplastro de batata.

O dr. Darby balançou a cabeça sabiamente, como se isso acontecesse todas as manhãs, antes do desjejum. Quando ele entrou na clínica para pegar a sua valise, eu parti.

Poderia chegar antes dele. Ou assim pensei. Mas o seu Morris me passou ainda antes de eu chegar ao Caminho das Vacas.

Alcancei o policial Linnet bem quando ele chegou ao portão da srta. Tanty.

— Fique aqui — ele ordenou, erguendo uma mão muito oficial. — Fora — acrescentou, como se fosse possível eu não ter entendido.

— Mas...

— Sem “mas”. Agora, esta é uma cena de crime. Nós temos as nossas ordens.

O que ele queria dizer com isso? Será que o inspetor Hewitt proibira especificamente o meu acesso?

Depois de tudo o que eu fizera por ele?

O policial Linnet desapareceu na casa antes que eu pudesse fazer uma única pergunta.

Um momento depois, a srta. Tanty começou a gritar outra vez.

O pai, Felinha e Dafi caminhavam na minha direção pela estrada quando eu contornei o muro do pátio da igreja.

O calor da explosão de éter me deixara com a sensação de que o meu rosto fora irradiado. Pelo menos, eu agora sabia em primeira mão como Madame Curie deve ter se sentido.

Minha saia e meu suéter estavam em ruínas, as fitas do meu cabelo pendiam em resíduos chamuscados.

— Olhe para você! — disse Felinha. — Onde esteve? Você não pode entrar na igreja desse jeito. Ela pode, pai?

O pai olhou na minha direção, porém eu percebi que ele não estava realmente me vendo.

— Flavia — foi tudo o que ele disse antes de desviar letargicamente o olhar e fixá-lo em um distante, particular horizonte.

— Pensei que você estava doente — disse Dafi.

Dafi sempre era a primeira a desencavar os detalhes incriminadores.

— Eu estou me sentindo muito melhor agora — falei, lembrando-me de repente de que ainda tinha resíduos de rolha queimada em volta dos olhos.

— Bom dia a todos — disse uma voz atrás de mim.

Era Adam Sowerby. Eu não o escutara chegar em seu silencioso Rolls-Royce.

— Nossa, o que aconteceu com você? — ele perguntou. — Um pouco de sol demais?

Eu assenti. Poderia ter abraçado o homem.

— Acabo de sair do consultório do doutor Darby — eu disse, o que era verdade. — Ele falou que não há nada com que se preocupar. — O que era mentira.

— Hum — Adam falou. — Bem, eu não sou médico, mas tenho alguns truques espertos na manga que aprendi em minhas andanças por Limpopo e redondezas. Se você concordar, Havi-land — disse ele dirigindo-se ao pai —, eu acho que nós...

O pai balançou a cabeça vagamente, não como se tivesse escutado, mas como se tentasse impedir que a cabeça rolasse para fora dos ombros e caísse na terra.

— Vamos logo com isso — disse Felinha. — Preciso correr com o hino, não tenho tempo para...

Ela acenou para mim como que acrescentando: “esse tipo de coisa”. Estava ansiosa, eu sabia, para chegar ao órgão. Afinal, hoje seria a sua estreia oficial no banco.

O pai ainda olhava vagamente para além dos campos, mas, quando Felinha e Dafi marcharam para a porta da igreja, ele as seguiu lentamente — quase obedientemente.

Dafi me olhou por cima do ombro como se eu fosse a atração principal do show de horrores.

Que diabo, me perguntei, poderia estar acontecendo com a venda de Buckshaw? Eu estivera tão ocupada com os meus próprios problemas, que nem pensara em perguntar.

Nem me atrevera a perguntar.

No entanto, ver o pai deste jeito, quase um espectro, mexera com algo dentro de mim, bem lá no fundo.

De certo modo, eu estava orgulhosa dele. Quaisquer que fossem os demônios que o roíam por dentro, não o impediram de cumprir com o seu dever pascal. O meu pai era um homem que ainda tinha fé em algum lugar lá dentro, e eu esperava, para o bem dele, que isso fosse o suficiente.

— Por aqui — Adam dizia.

Ele me conduziu em torno da igreja, pelo pátio, passando por uma ainda adormecida Cassandra Cottlestone, até a margem do rio. Estremeci ligeiramente ao me lembrar que fora neste exato lugar que eu encontrara o assassino de Horace Bonepenny. Isso tinha sido quase um ano atrás, mas bem poderia ter sido em outra vida.

Adam desceu com cuidado pela margem molhada e arrancou um maço de narciso pela raiz.

— As suas botas estão ficando completamente enlameadas — eu disse.

— Estão mesmo — ele falou após dar uma olhada para os pés. Não pareceu se importar.

Ele subiu de volta e pescou um canivete no bolso do colete.

— Você sabe o que é isto? — perguntou, cortando um bulbo em várias fatias.

— Um narciso.

— Fora isso.

— Narcisina. Nas raízes. Cl6H17ON. Veneno letal. Se alguém o aborrecer, sirva-lhe bulbos fervidos de narciso e faça de conta que os confundiu com cebolas.

— Arre! — Adam assobiou. — Você certamente conhece as suas cebolas, não é?

— Sim, conheço. E os meus narcisos também.

Ele separou as fatias finas de raiz e as esfregou gentilmente, uma de cada vez, no meu rosto, cantando enquanto trabalhava:

Quando desabrocha o narciso

Viva! Vem pelo vale a amante,

Da doce hora do ano o aviso,

Sangue vence o inverno calmante.

Ele tinha uma voz agradável e cantou a canção com confiança, como se estivesse se apresentando em um palco.

— O que significa? — perguntei. — “Sangue vence o inverno calmante?”.

— Que sangue irá correr — ele disse — mesmo no ambiente mais frio.

Eu estremeci, e não só porque Adam esfregava o veneno refrescante no meu rosto e no meu pescoço.

Sangue e narcisos. Soava como o título de uma novela de mistério escrita por uma doce velhinha que negociava com morte e bolinhos.

Esta história toda tinha sido sangue do começo ao fim: meu sangue, sangue de morcego, sangue de sapo, sangue de santo e ausência de sangue do sr. Collicutt.

E narcisos. Um punhado de narcisos e açafrões haviam me levado a ficar cara a cara com a srta. Tanty. O que ela dissera mesmo: “Não vá desperdiçar os seus açafrões”?

— Você supõe... — perguntei.

— Psiu! — disse Adam. — Nós não queremos que isto caia na sua boca, queremos?

Sem qualquer encorajamento da minha parte, ele prosseguiu:

Narcisos,

Que antecipam andorinhas,

E cujo encanto enleia o vento em março.

As suas palavras pintaram imagens na minha cabeça; pensei no pai, em Gladys, em flores. Nós nunca mais veríamos outra primavera em Buckshaw.

— Eu odeio narcisos — falei e, de repente, estava em prantos.

Adam fingiu não notar e continuou:

— “Violetas... pálidas prímulas... verbascos altivos e a coroa-imperial... lírios de todos os tipos, sendo um deles a flor-de-luce.”[1] O velho Bill Shakespeare era bem informado sobre o reino vegetal, você sabe.

— Você está inventando isso para me fazer sentir melhor.

— Asseguro que não. Você encontra isso em O conto de inverno. Vocês De Luce existem há um tempo notavelmente longo.

— Ai! — eu disse. Adam aplicara o suco de narciso em um ponto especialmente sensível do meu nariz.

— Arde um pouco, não é? — Adam perguntou. — Eu suponho que seja a narcisina. Os alcaloides têm uma tendência a...

— Ora, cale-se — falei, mas agora eu estava rindo dele.

Como ele poderia entender?

Não havia esperança.

— Pronto, você está remendada — ele disse. — Vamos entrar?

— Entrar? — perguntei, segurando a minha saia e espalhando-a como um leque. — Você não vai ficar com vergonha de ser visto comigo?

Adam apenas riu. Tomando o meu braço, ele então me conduziu de volta ao adro.

Cabeças se viraram e corpos se torceram no banco quando passamos pela nave da igreja. Nem bem nos apertáramos no banco da frente, ao lado do pai e de Dafi, e Felinha tocou os primeiros acordes do hino processional.

Agora, o coro desfilava em cortejo no fundo da nave, cantando a sua estimulante canção matinal enquanto o órgão rugia.

Quando os coristas se emparelharam com o nosso pequeno grupo, nenhum deles deixou de dar uma olhadela furtiva na minha direção, muito embora fingissem não fazê-lo.

Lá estava eu, sentada o mais recatadamente possível, os olhos enegrecidos da rolha queimada, o rosto e o pescoço avermelhados pelo suco venenoso do narciso, as roupas imundas do pó da câmara do órgão, chamuscada e tisnada com a fuligem de uma explosão de éter.

Até os olhos do vigário se arregalaram quando ele passou cantando:

O sublime banquete do cordeiro, chamados a dividir

Todos ataviados, em alvos e belos trajes a vestir

O diapasão retumbou, fazendo estremecer os bancos manchados pelo tempo, fazendo vibrar a velha madeira ao sacudir a estrutura da igreja vetusta.


29

NÃO ME LEMBRO DE MUITA COISA do serviço de Páscoa. Para mim, não foi mais que uma confusão de cantorias, um levantar, ajoelhar e papaguear de responsos.

Me contaram depois que Felinha foi brilhante; que os coristas cantaram como anjos (mesmo sem a srta. Tanty); e que o trabalho no teclado estabeleceu um novo padrão de virtuosidade musical em Bishop’s Lacey. É claro, eu tinha apenas a palavra de Sheila Foster para julgar e, como Fossie era a melhor amiga de Felinha, eu não apostaria uma fortuna na sua opinião.

A regra inescrita para sair de São Tancredo era: “primeiras fileiras primeiro”, para que, após a bênção, ao dispararmos em direção às portas, sempre tivéssemos a oportunidade de ver quem chegara depois de nós.

Quando caminhamos entre a multidão para a parte de trás da igreja, lá estavam, totalmente inesperados, sentados a cerca de quatro fileiras do fundo, perto do corredor, o inspetor Hewitt e a sua esposa, Antigone. Como eu ainda estava um tanto constrangida pelo meu comportamento impetuoso na última vez em que nos encontráramos, precisava proceder com cuidado. Será que deveria desviar os olhos? Cumprimentar afetadamente alguém na fileira mais distante e fazer de conta que não a vira? Fingir um ataque de tosse e passar por ela aos tropeços, com os olhos fechados?

Eu não precisava ter me preocupado. Quando passei ao seu lado, Antigone se levantou, estendeu uma delicada mão enluvada, segurou meu braço e me puxou.

Ela sussurrou ao meu ouvido.

Receio ter sorrido ostensivamente de alegria quando ela terminou.

Até meti um punho no rosto surpreso do seu marido e insisti em dar-lhe um cordial aperto de mão.

Não admirava que ele adorasse a mulher!

No pátio da igreja, todos se reuniam em grupos para fazer de conta que trocavam saudações de Páscoa quando, na verdade, estavam mexericando. Muito embora o verdadeiro diz que diz não fosse ter lugar até o último serviço, os aldeões de Bishop’s Lacey apresentaram um show bem razoável para um horário tão impiedoso — a não ser pelo pai, que atravessou a porta da igreja, deu um aperto de mão simbólico no vigário e caminhou lentamente para casa, o olhar fixo no chão.

Naquele instante, decidi definitivamente lidar com ele. Assim que chegasse em Buckshaw, eu demandaria ser informada do que estava acontecendo. Qual era a situação com Buckshaw?

Demandaria saber a essência da misteriosa chamada telefônica e por que ela o deixara em tal estado de nervosismo e perturbação.

Eu não vira o corretor de imóveis desde o dia em que ele cravara a placa de “Vende-se” nos Portões Mulford. Talvez Dogger soubesse.

Sim, assim seria — eu me aconselharia com Dogger antes de desafiar o pai no seu tugúrio.

Eu estava fazendo hora ao lado de uma lápide, à espera de que os Hewitt aparecessem, quando Adam se aproximou caminhando despreocupadamente na minha direção.

— E a narcisina? — ele perguntou. — Alguma dor?

Sacudi a cabeça. Eu não ia compartilhar o meu aparato interior com Adam Sowerby, Me., MSRHort etc., ainda que fôssemos parceiros, digamos assim, unidos pelo meu mais solene compromisso.

Não que isso significasse alguma coisa.

— Coisa de bruxa — falei da maneira mais espontânea que consegui. — Um belo de um truque. Onde você aprendeu?

— Como contei — ele começou —, nas minhas andanças por Limpopo ...

Então, ele parou.

— Na verdade — disse —, Meg, a Louca me ensinou. Quando menino, fiquei com uma tia na Fazenda Malplaquet. Um dia, durante minhas perambulações de verão, dei com Meg perto da velha forca, no Bosque Gibbet. Ela estava cavando à procura de musgo de crânios humanos.

Os meus olhos se arregalaram. E doeram.

— Tudo bobagem, claro. No entanto...

— No entanto? — perguntei.

— No frigir dos ovos, ela foi a minha primeira instrutora em botânica.

— Acho que ela é uma bruxa — falei. — Uma bruxa cristã, mas uma bruxa, ainda assim. Como a mulher de uma história que Dafi leu para nós a qual era capaz de acreditar na diaba irlandesa Banshee e também no Espírito Santo.

Adam riu.

— Ela é o que costumam chamar de simpler. Alguém que colhe ervas na natureza e as vende aos químicos.

— Meg?

— Sim, Meg. Ela vende para médicos, também, mas não fale a ninguém que eu contei.

Devo ter parecido cética.

— De onde você supõe que os químicos e boticários adquirem o seu conhecimento sobre plantas? A maioria daqueles velhotes nunca pôs um pé na zona rural.

— Das simplers?

— Certo. Das simplers, as velhas que colhem plantas nos bosques e sebes. Séculos de segredos transmitidos em sussurros. E de onde você acha que os médicos aprendem os mesmos segredos?

— Dos químicos e boticários.

— Na mosca! É um prazer ter você como parceira, Flavia de Luce. Prevejo que grandes coisas nos aguardam. Aliás, falando nelas... — ele acrescentou. — Aí vem uma. Ah, inspetor Hewitt! Eu sabia que era apenas uma questão de tempo.

O inspetor não estava exatamente carrancudo, mas não era o mesmo homem que eu vira minutos atrás.

Em algum ponto entre o edifício e o pátio da igreja, ele assumira uma nova face: uma face oficial.

Antigone fora retida à porta da igreja; o vigário segurava a sua mão e sussurrava ao seu ouvido. Ambos estavam ruborizados.

— Bem? — disse o inspetor, olhando para mim e depois para Adam. Ele não estava batendo um pé impaciente no chão, mas bem poderia estar.

— Era um complô — falei. — O magistrado Ridley-Smith é o mandachuva. Ele usava trabalhadores locais. O senhor Battle, o pedreiro, é um. E os seus ajudantes, Tommy e Norman; não sei o sobrenome. O criado do magistrado, Benson, é outro. Eles estão abrindo um túnel para a cripta de São Tancredo há muito tempo. Anos, talvez. Venha, vou lhe mostrar! — Eu acenei para os fundos da igreja. — Eles abriram o túnel através do velho túmulo Cottlestone.

— Não é preciso — disse o inspetor. — Nós já vimos.

À palavra “nós”, ele olhou adiante, e eu divisei os sargentos-detetives Woolmer e Graves, que caminhavam em nossa direção, vindos do pátio da igreja.

— Bom trabalho, inspetor! — disse Adam. — Eu estive fazendo algumas inquirições por conta própria e...

— Assim me disseram — o inspetor interrompeu um tanto friamente. — Eu apreciaria se você deixasse o trabalho de detetives a nosso encargo.

Adam sorriu como se tivesse acabado de receber o maior elogio do mundo.

— Na verdade, eu posso lhe dizer que o magistrado e seus comparsas foram detidos. Não há mais necessidade para a sua... assessoria.

— Esplêndido! — Adam falou. — Então, eu posso deduzir que vocês também recuperaram o Coração de Lúcifer?

Existem caras de nada e caras de nada, mas a do inspetor Hewitt superou todas.

Ele olhou do sargento Woolmer para o sargento Graves como que pedindo ajuda, porém ambos se achavam igualmente perplexos.

— Suponho que você me contará a respeito — o inspetor disse afinal, ainda no comando.

— Com todo prazer — respondeu Adam, começando pelo início.

Ele contou sobre Jeremy Pole e a descoberta deste no Registro Público dos Arquivos Nacionais, sobre as anotações rabiscadas de Ralph, o despenseiro da Abadia de Glastonbury, e sobre a sua descoberta da palavra adamas e da expressão oculi mei conspexi — “vi com os meus próprios olhos”.

Eu mesma não poderia ter feito uma descrição melhor.

Enquanto Adam falava, Antigone Hewitt e o vigário deixaram o vestíbulo e caminharam relaxadamente em nossa direção. Ele ainda segurava a mão dela e tagarelava de um jeito animado, o rosto de ambos luminoso.

Logo atrás, vinham Felinha e Dafi, seguidas por Sheila Foster; Felinha parava a cada passo para receber elogios, reverências e beija-mãos de seus encantados súditos.

Logo, todos eles se encontravam à nossa volta e ouviam atentamente o fim da narrativa de Adam. Aquilo me lembrou uma dança em volta do mastro de maio, com os aldeãos, em suas melhores roupas de Páscoa, afluindo dos quatro pontos cardeais para um encontro improvisado no gramado.

— E o Coração de Lúcifer foi enterrado com o santo em Bishop’s Lacey — Adam concluiu —, onde permaneceu escondido nos últimos quinhentos anos. Até recentemente.

Como um contador de histórias nato, ele olhou para as caras boquiabertas.

— E onde está agora? — o inspetor Hewitt indagou. — Essa pedra de São Tancredo? Esse Coração de Lúcifer?

Não consegui resistir nem por um segundo mais.

— Aqui! — gritei. — Na minha barriga! — Dei uma palmadinha orgulhosa na referida parte de mim mesma. — Eu a engoli!

A multidão caiu em um silêncio constrangido, as pessoas trocando olhares atônitos, e então prorrompeu em algaravia excitada, como na Babilônia. Era certo que, até o Coração de Lúcifer fazer seu reaparecimento final, Bishop’s Lacey acompanharia cada movimento meu com agudo interesse.

— Eu o encontrei no tubo Gemshorn, onde o senhor Collicutt o escondera — expliquei. — O magistrado Ridley-Smith e a sua gangue iam...

— Isto é o bastante por ora, Flavia — disse o inspetor Hewitt. — Este não é o momento e nem o lugar.

— Muito bem, inspetor — concordei, elegantemente rechaçando a sua postura condescendente. — Especialmente tendo em vista que acaba de acontecer uma tentativa de homicídio a poucos metros daqui, na Rua Cater. Imagino que o senhor queira cuidar disso imediatamente. O policial Linnet foi deixado sozinho com uma assassina sangue-frio.

Era algo atrevido a dizer, eu sei, mas eu estava apostando tudo na suposição de que o policial Linnet não conseguira se comunicar por telefone com o inspetor antes de este ter partido para a igreja. Ainda que a central de polícia de Hinley tivesse transmitido a mensagem por rádio, o inspetor e seus dois sargentos-detetives não teriam, a não ser por uns poucos minutos, estado na viatura para recebê-la.

— Tentativa de assassinato? — o inspetor indagou.

— Rua Cater — falei despreocupadamente. — Casa da senhorita Tanty. A almejada vítima era eu. — E acrescentei: — Porém, não há pressa. Como eu disse, o policial Linnet já se encontra na cena do crime.

Tenho de dar nota máxima ao inspetor, entretanto, por lidar impecavelmente com uma situação cabulosa.

— Antigone — ele disse, voltando-se para a esposa —, você se importaria de levar em seu carro a senhorita De Luce e suas irmãs até Buckshaw? Eu aparecerei por lá mais tarde, para o chá e interrogatório.

Chá e interrogatório!

Eu amava, adorava o homem.

— Obrigada, inspetor — falei. — Que tremendamente gentil da sua parte.

Receio ter pronunciado “tlemendamente”.

— Que bolo de frutas delicioso! — Antigone Hewitt estava dizendo. — Você precisa me dar a receita, senhora Mullet.

Eu tentara avisar Antigone por meio de inúmeros sinais — olhos vesgos, língua para fora, meio lábio superior erguido como um cachorro louco — para que recusasse quando a bandeja tinha sido passada, mas fora inútil.

— Eu sempre faço na Páscoa — disse a sra. Mullet —, mas este ano ninguém está com fome. Pegue um pãozinho quente com passas, senão vou ter de jogar fora.

Isso foi dito com um olhar soturno para Felinha, Dafi e mim, porém não adiantou absolutamente nada. Nós nos sentamos em cima de nossas mãos como se tivéssemos nascido assim.

— Obrigada, eu aceito — disse Antigone, passando manteiga em um pãozinho do modo como eu imagino que Moira Shearer teria feito se Moira Shearer passasse manteiga em pãezinhos quentes com passas.

— Hum, delicioso — ela mentiu entre os seus perfeitos dentes brancos. E, voltando-se para Felinha, disse: — Você tocou lindamente esta manhã.

Felinha ruborizou-se graciosamente.

— Graças à Flavia — falou. — O órgão estava soando de um jeito esquisito por causa daquela pedra, que tinha desafinado um dos registros.

Graças à Flavia? Eu mal acreditei nos meus ouvidos!

Elogios vindos de Felinha eram tão escassos quanto água no sol; ainda assim, esta era a segunda vez em dias que ela me lançava um.

Eu mal sabia o que fazer com ele.

E se referir ao Coração de Lúcifer como “aquela pedra”!

Eu ainda não anunciara que São Tancredo era um De Luce. Estava guardando essa bomba para o pai.

Mesmo sendo uma notícia que significava a salvação de Buckshaw, era crucial que fosse revelada no momento precisamente certo. Não fazia muito tempo que o pai se recusara a vender um raro in-fólio de Shakespeare que poderia ter assegurado o futuro da nossa família. Era preciso ter muito tato ao lidar com ele.

— Vocês me dão licença? — perguntei. — Preciso alimentar a minha galinha.

Dafi fungou como se eu estivesse me dirigindo sub-repticiamente ao WC.

— Você poderia martelar algum Beethoven para a senhora Hewitt — sugeri a Felinha. — Voltarei em minutos.

Sem esperar por permissão, me dirigi ao foyer e entrei no cubículo embaixo da escada, onde o instrumento proibido ficava enjaulado. Uma rápida olhada na lista telefônica de Hinley me deu a informação de que eu precisava.

— Hinley 80 — falei à srta. Goulard, da central telefônica.

Era o número perfeito para um médico de olhos: um par de óculos em pé seguido por um monóculo.

— Consultório do doutor Gideon — disse uma áspera voz feminina. — Sondra falando.

Ela soou como se estivesse contendo uma risadinha.

— Bom dia, Sondra — comecei, logo mergulhando com os dois pés. — Estou ligando em nome da senhorita Tanty, de Bishop’s Lacey. Ela perdeu o cartão da sua próxima consulta. Será que você poderia conferir na sua agenda?

— O consultório está fechado. É domingo da Páscoa, você sabe.

Claro que era! Como esqueci isso?

— Ligue de novo na semana que vem — ela disse e deixou escapar um convulsivo acesso de tosse de fumante.

— Receio que isso será impossível — improvisei. — Nós estaremos em... Gales.

Não me importava se aquilo fazia sentido ou não. O importante era mantê-la na linha.

— Desculpe. Ligue novamente na segunda-feira.

— Espere. O que você está fazendo aí se o consultório está fechado?

— Sou apenas a faxineira, amor. Olhos não têm nada a ver comigo. Não é o meu departamento.

— Então, por que você atendeu o telefone?

Outro ominoso acesso de tosse e então uma risada estrangulada.

— Verdade seja dita, amor, eu pensei que fosse Nigel, o meu noivo. Nigel sempre me telefona para saber como está o caimento do meu suéter. Sempre foi um palhaço, o Nigel. Ligue de novo na semana que vem.

— Escute, Sondra. Só entre mim e você, é uma questão de vida ou morte. A senhorita Tanty está para ser acusada de tentativa de assassinato, se já não foi. Ela precisa provar que estava no consultório do doutor Gideon na Terça-Feira Gorda, dia seis de fevereiro.

Mesmo pelo telefone, ouvi os olhos de Sondra se arregalando.

— Assassinato, é?

— Assassinato! Ou pior... — falei em um sussurro horripilante, cobrindo o bocal do instrumento com as mãos e pressionando os lábios quase para dentro da coisa.

— Espere um momento — disse Sondra.

Escutei um farfalhar de papéis na outra ponta.

— Seis de fevereiro? — ela perguntou.

— Isso mesmo.

— Sim, aqui está. Terça-feira. A sua senhorita Tanty estava agendada para as nove e meia, mas ela ligou para cancelar.

— Por acaso, você sabe a hora?

— Agora?

— Não! A hora em que ela ligou para cancelar.

— Nove horas. Está bem aqui. “Srta. T ligou nove, zero, cinco da manhã, cancelamento. Liguei D. Robertson para preencher vaga”. Iniciais LG. Laura Gideon, provavelmente, mulher do doutor Gideon.

— Obrigada, Sondra. Você é muito prestativa.

— Você não vai contar a ninguém, vai? Nigel ficaria furioso se eu fosse demitida.

— Os meus lábios estão selados — jurei, mas não creio que ela tenha ouvido. Um novo estrépito de tosse abriu caminho através dos fios telefônicos.

Quando voltava pelo foyer, a campainha da porta tocou. Era o inspetor Hewitt.

Ele tirou o chapéu, o que significava que pretendia entrar.

— Estamos na sala de estar — eu disse a ele. — Gostaria de juntar-se a nós?

Como se fosse uma reunião da Liga dos Tocadores de Campainha.


30

— CERTO — O INSPETOR HEWITT estava dizendo. — Vamos lá.

Não pude deixar de pensar em quanto progresso ele fizera desde que nos encontráramos pela primeira vez, nove meses antes, ocasião em que me mandara buscar o chá.

Ainda havia esperança para o homem.

— Suponho que você já tinha tudo traçado desde o ponto de largada — ele disse com um sorriso suficientemente agradável.

A sua esposa, Antigone, tocou o próprio cabelo, e eu compreendi que um sinal secreto fora transmitido entre eles.

— Isto é, espero que você não se importe de preencher alguns dos espaços vazios para nós.

— É claro que não — falei em uma humilde voz de menina-alegre-tão-feliz-em-vê-lo. — Eu ficaria mais do que feliz em ajudar. Por onde começo?

Mas não abuse da sorte, os olhos dele diziam.

— Comecemos com as suspeitas — ele falou, pegando o seu caderno e abrindo-o sobre o joelho.

Eu o vi escrever “Flavia de Luce” e sublinhar. Certa vez, em uma investigação anterior, ele acrescentara a letra “P” ao lado do meu nome e se recusara a explicar o seu significado. Desta vez, não havia “P”.

— Quando você começou a suspeitar de que algo peculiar estava acontecendo na igreja de São Tancredo?

— Quando o sacristão, que é o senhor Haskins, mencionou as luzes misteriosas vistas durante a guerra no pátio da igreja. Por que ele me contaria uma coisa dessas a não ser que quisesse me intimidar?

— Então, você acha que o senhor Haskins estava metido nisso?

— Sim. Não posso provar, mas uma gangue de homens dificilmente conseguiria abrir um túnel no pátio da igreja sem o seu conhecimento, não é?

— Suponho que sim — disse o inspetor Hewitt.

Primeiro ponto para Flavia.

— Como o senhor Sowerby lhe contou — eu disse —, eles estavam atrás do Coração de Lúcifer. Estavam nisso havia um tempão, talvez anos. O magistrado Ridley-Smith pagava a eles...

Fora nesse ponto que ele me interrompera antes; fiz uma pausa para ver se me deixaria continuar agora.

Felinha e Dafi tinham a boca aberta como um par de peixinhos de aquário, e Antigone me sorria encorajadoramente, como uma Madonna que acabou de receber uma massagem nos pés.

Aquilo me conferiu a coragem de que eu precisava. Há momentos em que a honestidade não é apenas a melhor política, mas a única.

— Tenho de admitir que dei uma olhadinha rápida, não mais que isso, no quarto do senhor Collicutt, na pensão da senhora Battle.

— Sim, eu achei que você faria isso — disse o inspetor. — Ainda bem que estivemos lá antes de você.

— Eu encontrei seiscentas libras embaixo da cama do senhor Collicutt. Dentro de uma lata de Players.

Logo percebi que tinha me metido numa encrenca oficial.

A exasperação estava estampada em todo o rosto do inspetor, mas, para seu crédito, ele não explodiu. A presença da esposa pode ter tido algo a ver com isso.

— Seiscentas libras — falou; as palavras saíram chiando da sua boca como vapor quente.

Eu sorri radiante, como se merecesse palmadinhas na cabeça.

— Estavam em um envelope que contivera as iniciais do magistrado Ridley-Smith em relevo: QRS, Quentin Ridley-Smith. É bastante improvável que houvesse pertencido a qualquer outra pessoa. Não são muitas aquelas com nomes iniciados por letras consecutivas do alfabeto.

Tenho de dizer que o inspetor Hewitt estava se saindo notavelmente bem em manter o seu temperamento sob controle. Somente a cor dos seus olhos o traía.

Decidi que era chegado o momento de prover uma diversão.

— Suponho que vocês repararam que alguém escreveu “Falecido” após o nome do senhor Collicutt no seu manuscrito?

— E se reparamos?

O homem não ia entregar coisa alguma.

— Era uma caligrafia de mulher. Não havia mulheres na casa dos Battle, a não ser pela senhora Battle e sua sobrinha, Florence. O senhor Collicutt disse para...

— Um momento — disse o inspetor. — Você está me dizendo que uma delas...

— De modo algum. Estou simplesmente chamando atenção para um fato. A caligrafia de George Battle estava por toda parte nos livros de contabilidade em seu telheiro de trabalho. Grande e desleixada. Não foi ele.

De uma parte distante da casa, veio o som da campainha e, antes que pudéssemos voltar ao nosso duelo de sagacidade, Dogger surgiu na porta.

— Sargentos-detetives Woolmer e Graves — ele anunciou. — Posso trazê-los aqui?

Como o mais velho membro presente da família, era função de Felinha dar o consentimento, porém eu passei à sua frente antes que ela pudesse abrir a boca:

— Obrigada, Dogger. Por favor, faça isso.

Woolmer e Graves entraram na sala de estar e prontamente se mesclaram ao papel de parede vitoriano.

— Seiscentas libras em uma lata de Players na residência Battle — disse o inspetor Hewitt para o sargento Graves. — Nós notamos isso? Não me lembro de ter visto.

O rubor do sargento Graves tornava as palavras desnecessárias, mas ele falou assim mesmo:

— Não, senhor.

O inspetor Hewitt virou a página e fez uma anotação que não prometia um futuro feliz para o pobre Graves.

— Continue — ele falou depois de um tempo agonizantemente longo.

— Bem — eu prossegui —, seiscentas libras me pareceram um bocado de dinheiro para um pobre organista do campo. O fato de que se achavam escondidas embaixo da sua cama, e não depositadas em segurança no banco, sugeriu que algo não cheirava bem. Foi somente quando conheci Jocelyn Ridley-Smith que somei dois e dois.

O inspetor Hewitt não conseguiu esconder a sua perplexidade.

— O filho do magistrado?

— Sim. Acredito que o magistrado Ridley-Smith estava fazendo uma pesquisa no Registro Público dos Arquivos Nacionais, em Londres, quando topou com a nota marginal de Ralph, o despenseiro da Abadia de Glastonbury. Adamas, a nota dizia. “Diamante”, em latim. Ralph tinha visto com os próprios olhos. Ele também disse muito claramente que o diamante estava enterrado com São Tancredo, em Lacey. O que é aqui.

— Prossiga — disse o inspetor.

— Ele acreditava que a pedra curaria Jocelyn da sua aflição.

Antigone prendeu a respiração, e eu a amei por isso.

— Segundo o senhor Sowerby, em outros tempos, acreditava-se que diamantes eram “uma ajuda para os lunáticos e os possuídos pelo Demônio”. O que mais um magistrado idoso poderia querer com um diamante?

“Mas Jocelyn não é lunático! Ele é solitário, é um cativo e sofre de envenenamento por chumbo, que herdou da mãe.

“É tarde demais para diamantes. Ou para qualquer outra coisa. Não há nada que eu possa fazer quanto ao envenenamento por chumbo, mas eu posso ajudá-lo com a solidão. Assim como Harriet, a minha mãe, fazia antes de morrer.”

A sala foi lentamente preenchida por silêncio. De repente, havia um caroço na minha garganta. Disfarcei tomando desnecessários porém profundos goles de chá e piscando indiferentemente na direção da janela.

Fingi esfregar uma súbita coceira no olho.

— O magistrado — continuei — poderia ter comprado um diamante, claro, mas não seria a mesma coisa que o Coração de Lúcifer; não teria o poder de uma pedra tocada por um santo.

O inspetor me observava ceticamente.

— Ele está morrendo de lepra, entenda. Ainda que eu esteja errada quanto à mágica, suponho que o magistrado planejava conseguir o suficiente pelo Coração de Lúcifer para garantir os cuidados de Jocelyn depois que ele se fosse. Estou especulando, é claro.

— Entendo — disse o inspetor, mas notei que ele não entendia.

— O senhor Collicutt estava metido nisso desde o começo. Como organista, ele podia frequentar a igreja no meio da noite sem chamar atenção. A senhorita Tanty me contou que o ouvia tocar em horários estranhos. Ele deve ter sido o primeiro a entrar na tumba inferior depois que os cavadores do túnel abriram a passagem e deve ter rastejado para dentro dela sozinho. Nem a abertura nem a tumba eram grandes o bastante para dois. Ele ergueu a tampa do sarcófago com uma alavanca, extraiu o diamante do báculo e enfiou-o no bolso. Provavelmente, disse aos outros que a tumba já tinha sido vandalizada. Mas, como eu disse, estou especulando.

— Interessante — disse o inspetor Hewitt. — Depois, ele retornou à igreja na manhã da Quarta-Feira de Cinzas e escondeu o diamante no tubo do órgão.

— Exatamente!

— Onde o magistrado Ridley-Smith e Benson, ou Haskins, ou seus trabalhadores... Como se chamavam? — Ele voltou algumas páginas no seu caderno. — Thomas Wolcott e Norman Enderby. Onde o magistrado Ridley-Smith e Benson, ou Haskins, ou Tommy Wolcott e Norman Enderby, ou alguma combinação dos supracitados, o mataram. É isso o que você está dizendo?

O inspetor estava me provocando, porém eu já não me importava.

— Sim — falei. — Mas eles não tinham a intenção. Era a senhorita Tanty quem estava tentando matá-lo.

Esperei que as minhas palavras fizessem o efeito desejado — e fui ricamente recompensada. O silêncio foi tamanho que, como a sra. Mullet dissera uma vez, era possível ouvir uma panela caindo.

— A senhorita Tanty — repetiu o inspetor. — E o motivo dela?

— Amor não correspondido. Ele desdenhara das suas investidas.

Dafi e Antigone explodiram em riso no mesmo instante. Antigone teve a elegância de cobrir a boca com a mão para reprimi-lo. Dafi não, e eu a fulminei com aquele olhar.

— Ainda mais interessante — disse o inspetor Hewitt. Como eu treinara muito para conseguir ler de cabeça para baixo, vi-o acrescentar às suas anotações: “amor não correspondido”. — Talvez você possa fazer a gentileza de explicar.

— Foi o lenço. Assim que o vi sob a máscara de gás, eu soube que o senhor Collicutt não tinha sido assassinado por um homem. Os babados denunciaram.

— Excelente! — disse o inspetor. — Nós mesmos chegamos à mesma conclusão, praticamente.

Aventurei-me a dar uma olhadela para Antigone, para conferir se ela estava prestando atenção, e estava. Ela me devolveu um sorriso radiante.

— Os vasos do seu pescoço ainda estavam escurecidos, mesmo depois de seis semanas.

— Espere — disse o inspetor Hewitt. — Você está indo rápido demais.

— É um fato bem conhecido — observei — que a administração de vapor de éter escurece o sangue. O fato de que os seus vasos sanguíneos estavam pretos depois de seis semanas mostra que o senhor Collicutt morreu depois do éter, mas antes que o seu corpo pudesse reoxigenar o sangue.

— Você está muito segura disso, não é? — o inspetor perguntou, sem olhar para mim.

— Muito segura. Você encontra essa informação em Taylor sobre venenos.

Não mencionei que mantinha essa fascinante obra em minha mesa de cabeceira, para uma reconfortante consulta no meio da noite.

— Voltemos à senhorita Tanty por um momento — disse o inspetor. — Creio não ter entendido muito bem como ela fez o que fez.

Dei-lhe um sorriso paciente.

— A senhorita Tanty havia planejado pedir à senhora Battle que a levasse de carro para a sua consulta oftalmológica em Hinley, mas, quando Florence, a sobrinha, telefonou para dizer que a senhora B estava doente e se ofereceu para levá-la, a senhorita Tanty enxergou a sua oportunidade.

“No entanto... o senhor Collicutt, em vez de ir direto para a casa da senhorita Tanty, passou na igreja para esconder o diamante. Ela provavelmente o viu passar e parar na igreja. A senhorita Tanty tinha uma visão muito boa tanto da estrada como do extremo leste do pátio da igreja.

“Ela então pegou a garrafa de éter, a qual, suspeito, conseguiu com a senhorita Gawl, embora eu não possa provar. A garrafa tinha as iniciais ‘UDS’, ‘Unidade Distrital de Saúde’, estampadas em tinta vermelha no fundo; tomei a precaução de embolsá-la como evidência. Não se preocupe, a explosão de éter vaporizou as impressões digitais de qualquer jeito. Está lá em cima, no meu laboratório. Pode dar uma olhada nela mais tarde, se quiser.”

— Aí está a nossa garrafa desaparecida, então — o sargento-detetive Woolmer resmungou.

O inspetor assentiu sombriamente, enquanto o sargento me dirigia um olhar que eu não descreveria exatamente como apreciativo.

— Continue.

— Bem, a senhorita Tanty o encurralou na caixa do órgão e meteu o lenço embebido de éter em seu nariz. Isso não requer uma grande força nem leva muito tempo. Dez segundos, acredito, são suficientes para produzir inconsciência.

“A senhorita Tanty, muito maior que o senhor Collicutt, deve tê-lo dominado com facilidade. De fato, ela lhe deu uma dose tal da substância, que ele teve convulsões.”

— Convulsões? — o inspetor indagou, surpreso.

— Sim, há mossas e talhos recentes nos pontos em que os calcanhares do homem bateram no revestimento do cano d’água. São bem fáceis de ver se você ficar de quatro no chão.

O inspetor não ergueu os olhos, porém fez outra anotação, uma bem extensa, no seu caderno.

— Então — falou —, ela o matou administrando éter.

— Não. Ela não o matou.

— O quê?!

Suas palavras foram seguidas de um ponto de exclamação e uns seis pontos de interrogação, que eu não reproduzi aqui.

— Ela o dopou com éter e o deixou para morrer. Tencionava matá-lo, mas provavelmente não o fez.

O inspetor anotou aquilo e parou, a sua Biro flutuando, à espera de que eu continuasse.

— Logo depois que ela se foi, veja bem, o magistrado Ridley-Smith e seus sequazes chegaram à cena. Você encontrará uma interessante mistura de pegadas nos cantos da câmara: botas de trabalhador e a sola de um inusitadamente pequeno sapato feito à mão, do magistrado. Obviamente, eles acreditaram que o senhor Collicutt estava morto; se isso fosse verdade, o diamante, caso não estivesse nos bolsos dele, poderia estar perdido em definitivo. Eles devem ter percebido um leve sinal de respiração. Precisavam revivê-lo, e depressa!

“Alguém (o senhor Haskins talvez?) que se lembrava do velho baú da PAA abandonado no campanário subiu na torre e pegou a máscara de gás, a bomba manual e o pedaço de mangueira de borracha de reserva.

“Mas eles logo descobriram que o encaixe da mangueira na bomba estava podre, quase em pedacinhos. Na verdade, eu notei isso logo que a vi.

“Não havia um segundo a perder. Não havia tempo a desperdiçar com quinquilharias. Alguém afivelou a máscara no rosto do senhor Collicutt. Eles sequer se importaram em remover o lenço, ao menos não completamente. Alguém pensou em ligar a ventoinha do órgão e conectar a mangueira na conexão do manômetro. Nós sabemos, claro, que, naquele momento específico, o senhor Collicutt ainda estava vivo.”

Fiz uma pausa para deixar aquelas palavras calarem na mente da minha plateia.

— Claro! — disse o inspetor. Ele era ligeiramente mais esperto do que eu pensava. — O vidro quebrado!

— Exatamente. Ele se segurou no tubo de vidro do manômetro, que quebrou em sua mão. Onde ainda permanecia seis semanas depois, na cripta. Pode até ser que tenha sido o silvo do ar escapando o que lhes deu a ideia.

— Hum — murmurou o inspetor Hewitt.

— Aquela pequena câmara deve ter virado uma casa de loucos — prossegui. — Tudo em que eles pensavam era que precisavam fazê-lo desembuchar. Para entregar o Coração de Lúcifer ou, pelo menos, contar onde o havia escondido. Mas eles subestimaram a força assassina do ar. Não foi preciso mais do que um toque da mangueira, sob aquela enorme pressão, para que a maior parte dos seus órgãos internos se rompesse imediatamente.

— Um momento — disse o inspetor. — Onde você conseguiu essa informação?

— Bem, é apenas lógico, não é? Quanta pressão de ar a ventoinha produz? — perguntei, voltando-me para Felinha, cujo rosto ficava mais pálido a cada minuto.

— Setenta e cinco a cento e vinte e cinco milímetros — ela sussurrou, tirando os olhos do chão pela primeira vez.

Olhei triunfante para o inspetor.

— Bom Deus — ele disse.

— Provavelmente, eles pensaram que poderiam bombear ar para os pulmões do senhor Collicutt através da máscara de gás. Algo parecido é feito diariamente com máscaras de oxigênio, em hospitais e aeronaves. Uma ideia estranha, sem dúvida, mas as pessoas fazem coisas peculiares quando se encontram sob pressão. Adam... o senhor Sowerby, quero dizer, me contou sobre os efeitos inesperados que diamantes podem ter sobre alguns indivíduos.

Dei outra olhada para Felinha, que não estava olhando para mim. Ela voltara a fixar inexpressivamente o tapete.

— Você está me dizendo que o magistrado Ridley-Smith e companhia não cometeram o assassinato, é isso?

— Sim. De fato, muito pelo contrário: eles estavam tentando salvar a vida do senhor Collicutt por meio de respiração artificial; estavam tentando refocilá-lo. Não sabiam do esquema da senhorita Tanty, e ela não sabia sobre o Coração de Lúcifer.

Percebi que o inspetor ponderava aquela observação.

— Refocilar — ele disse afinal. — Uma palavra e tanto, não é?

Não acrescentou “para uma menininha”, mas poderia muito bem ter feito isso.

— Acontece que nos ensinaram respiração artificial nas escoteiras de São Tancredo — falei. Não achei necessário acrescentar que eu fora expulsa da organização por excesso de jovialidade. — Nós fomos detalhadamente instruídas nos métodos Silvester, Schaefer, Holger-Nielsen e Barley-Plowman.

Os primeiros três eram verdadeiros; já o método Barley-Plowman inventei na hora, apenas para colocar o homem no seu lugar.

— Entendo — disse o inspetor, e eu esperei que ele tivesse baixado a sua bola.

— De qualquer modo — continuei —, o problema é este: no momento em que agarrou o tubo de vidro, o senhor Collicutt estava vivo. Quando eles finalmente o conectaram à ventoinha, ele já estava morto por asfixia da máscara.

— Estava mesmo? — perguntou o inspetor.

— Estava. A ventoinha não reoxigenou o sangue dele.

Seria necessária a sabedoria de Salomão para decidir o momento preciso da morte e, portanto, a identidade do assassino, ou assassinos. Foram o éter e o lenço, ou a máscara de gás e o reservatório de ar?

Na morte, frações de segundo podem fazer a diferença entre o patíbulo e uma palmada na mão.

— Ainda assim, eu espero que a tentativa de salvamento pese a favor deles — acrescentei. — Eu detestaria pensar que ajudei a enforcar uma pessoa inocente.

— Eu não me preocuparia — disse o inspetor. — Você pode ter certeza de que, se existe alguém que sabe como contornar as cortes, é um magistrado. E por que você está sorrindo?

Era verdade. Não consegui evitar.

— Eu só estava pensando na cara dele quando você lhe perguntar por que o papagaio da senhorita Tanty o chama pelo primeiro nome.

— Como assim?

— Olá, Quentin! — guinchei na minha melhor voz de papagaio.

Foi a vez de o inspetor sorrir.

— Vejo aonde você quer chegar — ele falou, fazendo mais uma anotação no seu caderno. Então, acrescentou: — Uma última pergunta, se você não se importa. Essa história do santo sangrando. Ela não tem nada a ver com o caso, isso está claro, mas preciso admitir que tenho uma curiosidade pessoal. Entendi, pelo que contou o senhor Sowerby, que você colheu uma amostra da substância e que ele a ajudou a realizar uma análise química.

— Correto — afirmei, um pouco irritada com Adam por tagarelar demais.

— E? Podemos ser brindados com os resultados?

— Totalmente conclusivos — retruquei. — CH4N2O. Eu a submeti ao teste de ácido nítrico para ureia. É urina de morcego.

Todos na sala, com exceção de Felinha, balançaram sabiamente a cabeça como se soubessem disso o tempo todo.

— Adam tinha provado a coisa e chegado à mesma conclusão.

Onde estaria Adam?, me perguntei. Teria sido especialmente adorável se ele estivesse presente para testemunhar o meu triunfo.

— Eu teria prazer em entregar as minhas anotações, se elas tiverem alguma relevância neste caso.

— Sem dúvida — disse o inspetor Hewitt, levantando-se e guardando o seu caderno. — Bem, obrigado, Flavia. Acredito que isso é tudo, pelo menos por ora. Eu apreciaria se você levasse o sargento Woolmer para cima a fim de reaver a garrafa em questão. Antigone?

Ele se voltou para a esposa e lhe ofereceu a mão quando ela se levantou da chaise longue.

Fiquei chocada! Eu havia lhes apresentado o caso em uma bandeja de prata. Onde estavam os profusos agradecimentos? Onde estavam os louvores? Onde estavam as congratulações? As aclamações? Os galardões? E assim por diante?

Onde estavam as trombetas?

Mas, de repente, Antigone segurou a minha mão, o seu sorriso radiante como o sol do Mediterrâneo.

— Obrigada, Flavia — ela disse. — Estou certa de que você foi de enorme ajuda. Ligarei para você na semana que vem, e iremos às compras em Hinley. Uma excursão de meninas, só nós duas.

Foi recompensa suficiente. Fiquei parada à janela com um sorriso tolo na cara, pensando em nada, até muito tempo depois de ela ter partido, muito tempo depois de o seu marido tê-la conduzido, de carro, pela avenida de castanheiras e através dos Portões Mulford, na direção de Bishop’s Lacey. Aí, olhei para baixo e vi os destroços que eram a minha saia e o meu suéter.

Aborrecimentos iriam acontecer. Eu podia senti-los chegando.

Assim como o medo tem gosto de cobre, os aborrecimentos têm cheiro de chumbo.

Então, quando os meus pensamentos se voltaram ao pobre Jocelyn Ridley-Smith, fui tomada por uma súbita ideia.

Eu pediria a Antigone que o levasse conosco! Comprar vestidos em Hinley e depois almoçar na Casa de Chá ABC. Nós três faríamos um banquete de pãezinhos doces e creme azedo!

Que aventura para Jocelyn! Eu tinha certeza de que poderia conseguir isso. Telefonaria para o vigário ou até para o bispo, se necessário, assim que o pai terminasse o seu comunicado, fosse ele qual fosse.

Dafi e Felinha tinham saído sem que eu notasse; assim, me vi sozinha na sala de estar pela primeira vez em muito tempo.

Quanto tempo, me perguntei, até que estranhos estejam olhando pela nossa janela e chamando o lugar de seu? Quanto tempo até que sejamos jogados para fora, para um mundo feio e indiferente?

Ouvi uma batida discreta — não mais que uma unha na madeira —, e Dogger entrou.

— Com licença, senhorita Flavia.

— Sim, Dogger? O que foi?

— Eu queria dizer que tomei a liberdade de ouvir junto à porta. Você foi soberba. Absolutamente perfeita.

— Obrigada, Dogger — consegui dizer, a despeito dos meus olhos repentinamente marejados. — Isso significa muito.

Eu poderia ter continuado, mas não encontrei palavras.

— O coronel de Luce — ele falou — gostaria de vê-la na sala de estar em quarenta e cinco minutos.

— Só a mim? — perguntei. Já estava temendo mais uma interdição nas minhas atividades.

— Vocês três: a senhorita Daphne, a senhorita Ophelia e você.

— Obrigada, Dogger — eu disse. Sabia que não valia a pena implorar por mais detalhes.

Eu acreditava que já os sabia. Mas, antes da temida entrevista, eu tinha um dever a cumprir.

Lenta e silenciosamente, eu iria andar pela casa, talvez pela última vez. Eu me despediria dos ambientes que amara e me manteria afastada dos que não amara. Começaria pelo boudoir de Harriet, muito embora, tecnicamente, fosse zona proibida. Iria tocar os seus pentes e escovas e inalar o seu perfume. Eu me sentaria em silêncio por algum tempo. Dali, seguiria para a estufa e a cocheira, onde passara tantas horas felizes conversando com Dogger a respeito de tudo, sob mil sóis.

Caminharia, pela última vez, através da galeria de retratos, despedindo-me dos meus velhos e carrancudos ancestrais emoldurados em fileiras solenes. Iria lhes contar que o retrato de Flavia de Luce não estava destinado a lhes fazer companhia.

Então, a cozinha: a querida cozinha que transbordava de memórias da sra. Mullet e de suprimentos surrupiados. Eu me sentaria à mesa na qual o pai conversara comigo.

Da cozinha, subiria a escadaria leste rumo ao meu quarto, onde daria corda no velho fonógrafo e poria o “Réquiem” de Wolfgang Amadeus Mozart. E o ouviria inteiro.

E, finalmente, o meu laboratório.

Neste ponto, devo finalizar a minha descrição.

É insuportavelmente triste demais para prosseguir.

Na hora marcada, nós três partimos lentamente para a sala de estar. Felinha e Dafi desceram dos seus quartos, na ala oeste, e eu desci as escadas da ala leste.

Eu vestira uma saia limpa e o meu velho e confortável cardigã e retocara o meu rosto chamuscado com o pó que tinha surrupiado (para um experimento envolvendo cosméticos envenenados) do quarto de Felinha, várias semanas antes. Com carvão pulverizado, eu pintara novas sobrancelhas e um par de cílios.

Nós não falamos; tomamos nossos lugares em silêncio, o mais longe possível uma da outra, cada qual no seu próprio canto da sala de estar, aguardando a chegada do pai.

Felinha manuseava, inquieta, umas folhas de partitura, alisando-as como se elas precisassem disso. Dafi pescou um livro atrás das almofadas do sofá e começou a ler no ponto em que ele se abriu.

O pai, afinal, entrou na sala. Por alguns momentos, permaneceu parado, de costas para nós, as mãos espalmadas sobre a cornija da lareira, a cabeça curvada.

As suas mãos tremeram quando ele manipulou o relógio de bolso.

Foi neste instante que passei a amá-lo completamente, de um jeito novo e inexplicável.

Tive vontade de correr até ele, envolvê-lo com meus braços e contar-lhe sobre o Coração de Lúcifer — contar-lhe que havia uma chance, por pequena que fosse, de que a pedra do santo afinal trouxesse felicidade à nossa casa.

Mas não o fiz, e as razões são incontáveis como os grãos da areia do Saara.

— Preciso contar a vocês — ele disse afinal, virando-se para nós, a voz como a do fantasma do vento de março. — Eu tenho uma notícia, e vocês precisam se preparar para um choque muito grande.

Nós três estávamos fascinadas — olhávamos para ele como tantas outras estátuas de pedra.

— Eu fiquei agoniado por vários dias tentando decidir se contava isso a vocês ou, pelo menos por ora, guardava para mim. Somente esta manhã, cheguei a uma decisão.

Engoli em seco.

Adeus, Buckshaw, pensei. A casa foi vendida. Logo seremos expulsos — forçados a abandonar estas velhas e queridas pedras e madeiras, seus sonhos e suas lembranças, entregá-los bárbaros.

Nós nunca conhecemos outro lar que não Buckshaw. Viver em outro lugar era simplesmente impensável.

O que seria da sra. Mullet? O que seria de Dogger?

E de Felinha? E de Dafi?

O que seria de mim?

O pai se virou e caminhou lentamente até a janela. Ergueu a cortina e olhou para fora por um momento, para a sua propriedade, como se as forças de um exército devastador e invisível já se reunissem na horta da cozinha e avançassem pelo pequeno gramado.

Quando ele se virou para nós de novo, olhou diretamente em nossos olhos, primeiro nos de Felinha... depois nos de Dafi... finalmente nos meus. A sua voz fraquejou quando disse:

— A mãe de vocês foi encontrada..

 

 

                                                   Alan Bradley         

 

 

 

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