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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DISTÂNCIA ENTRE NÓS / Thrity Umrigar
A DISTÂNCIA ENTRE NÓS / Thrity Umrigar

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DISTÂNCIA ENTRE NÓS

 

A MULHER MAGRA DE SÁRI VERDE estava de pé nas pedras escorregadias e olhava as águas escuras em torno de si. O vento morno soltava do coque alguns fios do seu cabelo ralo. Atrás dela, os sons da cidade ficavam abafados, silenciados pelo contínuo bater da água em seus pés descalços. A não ser pelos siris que ela ouvia e sentia correrem pelas pedras, estava completamente sozinha ali — sozinha com os murmúrios do mar e a lua distante, fina como um sorriso no céu noturno. Até suas mãos estavam vazias, agora que as abriu e liberou os balões cheios de gás, observando até que o último deles tivesse sido engolido pela escuridão da noite de Bombaim. Suas mãos estavam vazias agora, vazias como seu coração, que era como um coco cuja polpa tivesse sido arrancada.

Equilibrando-se com dificuldade nas pedras, sentindo a água que subia lambendo seus pés, a mulher levantou o rosto para o céu negroretinto procurando uma resposta. Atrás dela, a cidade perdida e uma vida que naquele momento parecia fictícia e irreal. À sua frente, o limite quase imperceptível onde o mar se encontra com o céu. Poderia subir de novo pelas pedras e pelo muro de cimento e reingressar no mundo, participar de novo do ritmo louco, pulsante e imprevisível da cidade. Ou poderia entrar no mar à sua espera e deixar que ele a seduzisse e a envolvesse com seus sussurros íntimos.

Olhou de novo para o céu procurando uma resposta. Mas a única coisa que conseguia ouvir era as batidas habituais de seu coração submisso...

 

EMBORA ESTIVESSE AMANHECENDO, dentro do coração de Bhima a escuridão permanecia.

Ela se vira para o lado esquerdo sobre seu fino colchonete de algodão estendido no chão e se senta rapidamente, como faz todos os dias de manhã. Levanta a mão ossuda por cima da cabeça num bocejo, estica o corpo, e um cheiro forte de mofo recende de suas axilas e invade suas narinas. Num instante de preguiça, senta-se na beira do colchão, apóia os pés cheios de calos no chão de barro, com os joelhos dobrados e a cabeça pousada nos braços cruzados. Naquele momento, está quase tranqüila, a cabeça agradavelmente limpa e vazia das dificuldades que a esperam no dia de hoje e de amanhã e de depois de amanhã... Para prolongar esse estado de graça sem ter que pensar em nada, estende a mão distraidamente para a lata de fumo de rolo que mantém à beira da cama. Enfia um pedaço na boca e em seu rosto descarnado surge uma protuberância que lembra uma bola de críquete.

O idílio de Bhima dura pouco. Na luz suave e delicada do novo dia, percebe a silhueta de Maya se mexendo no colchonete que fica no canto esquerdo do casebre. A moça está dormindo e resmungando em seu sono, emitindo sons suaves como que choramingando e, apesar de tudo, Bhima sente seu coração se derreter do mesmo modo que acontecia quando amamentava Pooja, a mãe de Maya, muito tempo atrás. Impulsionada por aqueles sons, que mais pareciam os de um cachorrinho, Bhima se levanta do colchão com um grunhido e vai até onde sua neta está dormindo. Mas, no segundo que leva para cruzar o casebre, alguma coisa muda no coração de Bhima, e o sentimento maternal e carinhoso de um momento atrás é substituído pela dureza e impiedade que já a acompanham há algumas semanas. Ela permanece de pé, olhando do alto para a moça adormecida, que agora está roncando baixinho, inconsciente das fagulhas de raiva nos olhos da avó que examina o ligeiro crescimento de sua barriga.

“Um chute rápido”, Bhima diz a si mesma, “um chute rápido na barriga, seguido de outro, e mais outro, e estará tudo acabado. Olha só para ela dormindo ali como uma prostituta sem-vergonha, sem nenhuma preocupação no mundo. Como se não tivesse virado a minha vida de cabeça para baixo”. O pé direito de Bhima mexe-se enquanto ela pensa nessa idéia. Os músculos da panturrilha se tencionam enquanto ela levanta o pé do chão. “Seria tão fácil...” E, comparado com o que uma outra avó faria a Maya — um rápido empurrão num poço aberto, uma lata de querosene e um fósforo, a venda para um bordel —, isso seria até bastante humano. Desse modo, Maya sobreviveria, continuaria indo à universidade e poderia escolher uma vida diferente da que Bhima sempre viveu. Isso era como deveria ser, como tinha sido, até que essa vaca estúpida de coração mole, e agora com um barrigão, saísse por aí e acabasse grávida.

Maya deixa escapar um ronco alto, e Bhima volta a pôr o pé no chão. Agacha-se perto da garota para sacudi-la pelos ombros e acordá-la. Quando Maya ainda freqüentava a universidade, Bhima deixava-a dormir o mais que pudesse, fazia gaajar halwa para ela todos os domingos, o pudim de cenoura com amêndoas e passas de que tanto gostava, e separava para a neta as melhores porções do jantar todas as noites. Se ganhava alguma coisa de Serabai — um chocolate Cadbury ou aquele doce branco com pistache que vinha do Irã —, guardava para dá-lo a Maya, embora, verdade seja dita, Serabai em geral lhe desse também uma porção para a moça. Mas desde que Bhima soube da vergonha de sua neta tem feito a garota acordar cedo. Nos últimos domingos, não teve gaajar halwa, e Maya não pediu a sua sobremesa favorita. Durante a semana, Bhima até mesmo mandou que a garota ficasse na fila para encher os dois potes d‘água na torneira comunitária. Maya protestou, alisando inconscientemente a barriga com a mão, mas Bhima desviou o olhar e disse que, de qualquer maneira, os vizinhos logo acabariam descobrindo a sua desonra. Então por que esconder?

Maya se vira no colchão, e seu rosto fica a alguns centímetros de distância de onde Bhima está acocorada. Sua mão jovem e rechonchuda encontra a mão magra e enrugada da avó, e a moça se aninha junto dela, segurando-a entre o queixo e o peito. Um fino fio de saliva escorre pela mão de Bhima. A velha sente o coração amolecer. Maya sempre foi assim, desde bebê — carente, carinhosa, confiante. Apesar de todo o sofrimento pelo qual passou ainda jovem em sua vida, Maya não perdeu a suavidade e a inocência. Com a mão livre, Bhima afaga o cabelo lustroso e sedoso da menina, tão diferente do seu cabelo ralo.

O som de um rádio tocando baixinho invade o quarto, e Bhima resmunga uns palavrões. Geralmente, na hora em que Jaiprakash liga o rádio, ela já está na fila da água. Isso quer dizer que está atrasada hoje. Serabai vai ficar zangada. Essa menina burra e preguiçosa fez com que ela se atrasasse. Bhima solta bruscamente sua mão das de Maya, sem se importar se o movimento vai acordá-la. Mas a garota continua dormindo. Bhima fica de pé, e, ao levantar, seu quadril esquerdo dá um estalo forte. Ela fica parada por um momento, esperando pela onda de dor que se segue ao estalo, mas hoje é um dia bom. Nenhuma dor.

Bhima pega os dois potes de cobre e abre a porta baixa. Curva-se para poder sair e depois a fecha atrás de si. Não quer que aqueles homens safados que moram na favela, e que passam por ali, fiquem olhando cobiçosamente sua neta que dorme. Um deles deve ser provavelmente o pai da criança... Balança a cabeça para afastar esses pensamentos sombrios que rastejam como cobras dentro dela.

O intestino de Bhima faz um movimento, e ela faz uma careta contrariada. Agora vai ter que ir ao banheiro comunitário antes de ir para a bica d’água, e a fila vai estar maior ainda quando chegar lá. Geralmente tenta controlar o intestino até chegar à casa de Serabai, onde há banheiros de verdade. Ainda assim, é bastante cedo para que as condições estejam tão más. Algumas horas mais tarde, vai haver pouco espaço para andar por entre as consideráveis pilhas de excrementos que os moradores da favela deixam no chão de barro do banheiro comunitário. Depois de todos esses anos, as moscas e o fedor ainda fazem o estômago de Bhima revirar, os moradores pagavam a uma harijan que morava do outro lado da favela para recolher as pilhas de fezes todas as noites, trabalho típico de uma pessoa da casta dos intocáveis. Bhima a vê algumas vezes, de cócoras no chão, varrendo os montes de excrementos para dentro de um cesto de vime forrado com jornal. Às vezes seus olhos se encontram, e Bhima faz questão de sorrir para ela. Ao contrário da maioria dos moradores das favelas, Bhima não se considera superior àquela pobre mulher.

Bhima faz o que tem que fazer e retorna à bica. Resmunga ao ver a longa fila serpenteando para além dos barracos desalinhados com seus tetos remendados de placas de zinco. A luz da manhã faz com que a miséria torne-se ainda mais visível. As valas a céu aberto, com seu cheiro forte e podre, as fileiras escuras de barracos inclinados, os homens esquálidos e de boca aberta que perambulam no estupor da embriaguez — tudo isso parece bem pior na luz clara do novo dia. Involuntariamente, a cabeça de Bhima volta aos dias do passado, quando morava com o marido Gopal e os dois filhos num chawl, onde a água gorgolejava pela torneira da cozinha e eles só dividiam o banheiro com duas outras famílias do conjunto habitacional.

Bhima estava quase chegando ao fim da fila quando Bibi a vê.

— Ae, Bhima mausi — diz ela. — Venha cá, venha! Eu estava guar-dando o seu lugar aqui.

Bhima sorri agradecida. Bibi é uma mulher gorda e asmática que se mudou para a favela há dois anos e imediatamente adotou Bhima como uma tia mais velha. Enquanto Bhima é calada e reservada, Bibi fala alto e é extrovertida. Ninguém consegue ficar zangado com ela por muito tempo — sua boa vontade em ajudar e uma mistura bem-humorada de velhice e juventude fizeram dela uma das moradoras mais populares da comunidade.

Bhima se dirige para onde Bibi esta.

— Aqui — diz Bibi, pegando um dos potes de Bhima, apesar de já estar carregando dois dos seus. — Entre aqui.

O homem atrás dela sentiu-se na obrigação de reclamar.

— Ei, Bibi, isso aqui não é o Deccan Express, onde se podem fazer reservas para um lugar na primeira classe — reclama ele. — Ninguém tem permissão de furar a fila desse jeito.

Bhima sente seu rosto ficar vermelho, mas Bibi estende uma das mãos para contê-la e se vira para encarar seu detrator.

— Pois bem — diz ela bem alto —, o “seu” Deccan Express aqui está preocupado com gente que fura a fila. Mas, daqui a uma ou duas horas, enquanto dona Bhima vai estar dando duro no trabalho, ele estará a caminho do botequim. E se hoje houver racionamento de bebida, que Deus nos livre, vamos ver se ele vai querer furar a fila ou não.

As pessoas em volta deles riem.

O homem arrasta os pés.

— Tudo bem, Bibi, não há necessidade de ataques pessoais — res-munga o homem.

A voz de Bibi fica ainda mais alta.

— Ora, bhaisahib, meu senhor, que ataques pessoais? Tudo o que estou dizendo é que o senhor pode levar uma boa vida, pois é um homem com uma grande fortuna pessoal. Se quiser passar os dias no botequim, isso é problema seu. Mas a pobre da Bhima não tem um bom marido como o senhor para sustentá-la. Todos sabemos como o senhor trata bem a sua esposa. Então, como eu ia dizendo, Bhima mausi tem que chegar ao trabalho na hora. E não achei que um cavalheiro como o senhor fosse se incomodar que ela enchesse os potes na sua frente.

As pessoas ficam animadas com a cena.

— Isso aí, Bibi, você é demais. Você é o máximo, simplesmente o máximo — disse um jovem desocupado.

— Quem é que precisa de armas nucleares? — acrescenta outra pessoa. — Ouça o que digo, yaar, acho que eles deviam soltar a Bibi lá na Caxemira. A neve ia derreter com o fogo que sai da língua dela.

— Esperem, esperem — diz Mohan, um rapaz de 17 anos que mora no casebre em frente ao de Bibi —, tenho uma música perfeita para a ocasião. Lá vai:

 

        Pra acabar com a questão

         Diz a Índia ao Paquistão

         Nossa arma é a Bibi

         Que é uma baita explosão.

 

Um outro homem, que Bhima não conhece, dá um tapinha nas costas de Mohan.

— Puxa, ustad, você é demais, um mestre. Você é o poeta da comunidade. Com esse jeito de artista de cinema, devia estar escrevendo e cantando suas próprias composições. Imagine só, com o físico do Sanjay Dutt e a voz do Mohammad Rafi! Na noite da entrega dos prêmios da revista Filmfare não haveria outros vencedores, pode acreditar.

Involuntariamente, Bhima sorri.

— Ok, seus altoo-faltoos — diz Bibi com um risinho. — Deixem a gente em paz agora.

 

NO MOMENTO EM QUE BHIMA chega em casa, Maya já está de pé e prepara o chá no fogão Primus. Quando a moça adiciona folhas de hortelã à água fervente, o estômago de Bhima ronca. As duas vão para o lado de fora do barraco e rapidamente escovam os dentes. Maya usa uma escova de dentes, mas Bhima simplesmente põe o pó dentifrício no dedo indicador e o esfrega vigorosamente nos dentes que lhe restam. Cospem na vala a céu aberto que passa em frente à casa. Rápida e eficientemente, Bhima mergulha um copo plástico num dos potes de cobre e se lava sem tirar as roupas. Seu rosto fica vermelho ao ver que um homem no casebre em frente a observa quando mete a mão debaixo da blusa para lavar as axilas.

— Seu safado, badmaash, sem-vergonha — resmunga ela. — Até parece que não tem mãe nem irmã.

Quando Bhima retorna ao casebre, Maya serve o chá em dois copos. Elas se sentam de cócoras, uma de frente para a outra, soprando o chá quente e molhando uma fatia de pão na bebida.

— Esse chá está bom — diz Bhima.

Foi a primeira coisa que falou com Maya naquele dia. Depois, como se o ar de gratidão no rosto da menina fosse mais do que pudesse suportar, acrescentou:

— Parece que você aprendeu pelo menos alguma coisa do que eu lhe ensinei.

Maya se encolhe, e o olhar desconfiado e defensivo reaparece em seu rosto. Ao notar esse olhar, Bhima se arrepende, mas sente também uma estranha satisfação. Tudo o que quer é cutucar ainda mais a ferida.

— E o que você vai fazer hoje o dia inteiro?

Maya dá de ombros.

Bhima se enfurece com o gesto.

— Ah, é claro, esqueci que memsahib, a madame, não vai mais à faculdade — diz ela, dirigindo-se às paredes. — Agora ela vai ficar aqui sentada como uma rainha o dia inteiro, comendo e dando de comer ao seu... seu filho bastardo, enquanto a sua pobre avózinha vai trabalhar como uma escrava na casa de alguém. Tudo para poder alimentar o diabinho que está crescendo dentro de sua barriga.

Se era sangue o que queria, ela o teve. Maya geme ao se levantar do chão e vai para o outro canto do pequeno cômodo. Inclina-se levemente contra a parede de zinco com as mãos em volta da barriga, soluçando baixinho.

Bhima quer botar a menina que chora no colo, abraçá-la e acarinhá-la como fazia quando Maya era criança, quer perdoá-la e lhe pedir perdão. Mas não pode fazer isso. Se fosse apenas raiva o que estava sentindo, poderia ter ido até o canto da parede e estendido os braços para a neta. Mas a raiva é só o começo de tudo. Por trás dela tem o medo, o medo tão infinito, vasto e cinzento como o mar da Arábia; medo por esta garota grávida, inocente e burra que está ali na frente dela chorando, e por esta criança ainda não nascida, que virá ao mundo para ter uma mãe que ainda é uma criança e uma avó que já está velha e exausta, uma avó que está cansada das privações, de amar e perder, que não pode suportar a idéia de mais uma perda e nem de mais uma pessoa para amar.

Ela olha insensível para a garota que chora, fazendo força para que seu coração não se deixe atingir por aqueles soluços.

— Até mesmo as lágrimas são um luxo — diz ela, mas não tem certeza se diz isso em voz alta ou só para si mesma. — Invejo as suas lágrimas.

Quando volta a falar, ela o faz conscientemente.

— Se estiver se sentindo bem, vá até a casa de Serabai mais tarde. Ela sempre pergunta por você.

Mas, mesmo em meio às lágrimas, Maya faz que não com a cabeça.

— Já lhe disse, vovó. Não saio de casa o dia inteiro enquanto você está fora.

Bhima desiste.

— Ok, então, fique em casa enquanto a sua velha avó trabalha o dia todo — diz ela, levantando-se. — Engorde o seu bebê com o meu sangue.

— Vó, por favor — pede Maya, soluçando e tapando os ouvidos, como fazia quando era pequena.

Bhima fecha a porta atrás de si. Quer bater com força, mas se controla. Ninguém da basti precisa saber dos problemas das duas. Logo, logo a favela toda vai ficar sabendo da desgraça que Maya arranjou para si mesma, e aí então vai atacá-la como abutres. Não há necessidade de apressar esse dia.

Iniciando sua caminhada em direção à casa de Serabai, Bhima sente a brisa fresca da manhã e estremece. Pela altura do sol, sabe que está atrasada. Serabai deve estar ansiosa por saber o que aconteceu ontem. Ela apressa o passo.

 

SERA DUBASH OLHA PARA O CESTO de cebolas pendurado perto da janela e depois para o grande relógio da cozinha. Atrasada de novo. Bhima está atrasada de novo. Sera vai realmente ter que conversar com ela sobre esses atrasos diários. Afinal, Sera é responsável por aprontar e embalar o almoço de Dinaz e Viraf toda manhã, e precisa de Bhima para ajudá-la. Ontem, os dois saíram para o trabalho dez minutos atrasados porque a comida ainda não estava pronta. Sera teve que implorar a Viraf que não corresse, que dirigisse com cuidado, lembrando a ele que sua mulher estava esperando o primeiro bebê.

— Tá bom, tá bom, mamãe — disse Viraf sorrindo, dando um beijo rápido no rosto de Sera. — Nós todos sabemos que a barriga da Dinaz tem tatuada a palavra “Cuidado”.

Lembrar a gravidez de sua filha faz Sera pensar em Maya e ela sente uma onda de remorso pela idéia de punir Bhima. “Coitada da Bhima”, pensa Sera. Como se toda a sua vida não tivesse sido difícil o bastante, agora até a própria neta é mais uma de suas preocupações. Quem poderia pensar que uma boa menina como a Maya fosse dar esse mau passo? Fica imaginando o que teria acontecido na faculdade de Maya ontem, e a sua impaciência em saber das últimas notícias faz com que ela olhe para o relógio novamente.

Sera solta um suspiro. Se há uma coisa que odeia é cortar cebola, mas para as omeletes dos dois ficarem prontas a tempo, é melhor começar a fazer isso agora. Não dá para saber a que horas Bhima vai aparecer hoje. Pega uma cebola de tamanho médio e, quando termina de tirar a pele translúcida, seus olhos começam a lacrimejar. Pega a maior faca da gaveta. É melhor acabar com isso o mais rápido possível. Anos atrás, Feroz apareceu de repente às suas costas enquanto ela estava trabalhando na cozinha e disse:

— Meu Deus, Sera, você corta cebola como quem está cortando uma cabeça. Que veemência!

— Preferiria cortar cabeças a cebolas — retrucou ela. — Talvez chorasse menos.

E Feroz riu. Isso foi nos velhos tempos, antes que ela tivesse perdido a capacidade de fazê-lo rir.

Sera ouve Viraf assobiando desafinado em seu quarto, e o som a faz sorrir. Imagina seu genro jovem e bonito de pé diante do espelho de corpo inteiro arrumando a gravata, passando a mão displicentemente pelo cabelo espesso. “Há algo de maravilhoso no som de um homem se aprontando para enfrentar o dia”, pensa Sera. Diferentemente de Feroz, Viraf é barulhento e faz com que a sua presença seja sentida. Deixa cair a escova de cabelo e resmunga baixinho “Droga!”; canta antigas canções dos Beatles no chuveiro; gargareja vigorosamente quando escova os dentes; grita para Dinaz pedindo um novo vidro de xampu; entra ruidosamente na cozinha com creme de barbear no rosto e uma toalha em volta da cintura. Feroz viveu como um ladrão em sua própria casa, vestindo-se completamente no banheiro e depois saindo do quarto sem sequer dar uma segunda olhada no espelho.

Sera quebra dois ovos, bate-os numa tigela, adiciona cebola, alho, coentro e uma pitada de pimenta na mistura que chia ao tocar no óleo quente da frigideira. Uma já foi, agora tem a outra omelete para fazer. Ela se pergunta se deveria fazer mais duas omeletes, uma para si mesma e outra para Bhima, mas a idéia de ter que cortar mais cebolas a detém. Talvez faça omelete de alho para as duas. Pega a caixa de pão e se lembra: nada de carboidratos. A dieta só de proteínas que Viraf e Dinaz estão fazendo faz com que o planejamento do almoço fique difícil. Olha na geladeira para ver o que mais poderia embalar para os dois.

— Poxa, mãe, muito obrigada. Era melhor você ter me dito. Eu podia ter cortado as cebolas para você — diz Dinaz, entrando na cozinha.

— E ir para o trabalho cheirando que nem um restaurante parse? — observa Sera sorrindo. — Não, se quiser realmente me ajudar, diga-me o que mais devo incluir para vocês, deekra, minha querida. Um ovo só não basta...

— É mais que suficiente, na verdade.

— Ora, Dinaz, um ovo pode ser suficiente para você, mas não para o seu maridinho, querida — diz Sera. — Ele é um homem que trabalha duro numa atividade em que é muito solicitado.

Dinaz faz uma careta.

— Ah, sei, só o seu querido genro é que trabalha muito, coitadinho. Sua filha inútil, por outro lado, fica matando mosca o dia inteiro no trabalho.

— Calma aí, Dinaz, eu só estava dizendo...

Sera ouve os passos de Viraf e sente o cheiro de Old Spice antes de vê-lo.

— Absolutamente certo! — diz Viraf entrando na cozinha. — Mamma está certíssima! Pelo menos uma pessoa nesta casa sabe me dar valor e vê o quanto trabalho para sustentar a minha família e o meu filho que vai nascer.

Dinaz lhe dá um tapinha no braço.

— Cale a boca, yaar. Um menino mimado, é isso que a mamãe fez de você. Quando for a hora da promoção, vamos ver quem ganha o maior aumento — O sorriso dela desmente o tom ferino de suas palavras.

Viraf dá de ombros e revira os olhos.

— Isso é porque ela tem uma vantagem que é injusta, mamma. O pobre do senhor Dalal está tão encantado com a beleza da minha esposinha que não poderia lhe recusar nada. Ele se derrete todo sempre que tem que falar com ela. E, diante desses atributos femininos, que chance tem um homem simples, pobre e decente como eu, com essa cara-de-mamão-macho? Que chance tenho eu?

As duas mulheres riem.

— Olhe só para ele, mamãe. Está querendo mais elogios — diz Di-naz.

Sera sorri quando o casal volta para o quarto a fim de terminar de se vestir. Está contente porque o problema que surgiu entre eles há alguns meses parece ter desaparecido. Desde o dia em que Viraf e Dinaz vieram morar com ela, após a morte de Feroz, tinha prometido a si mesma nunca interferir no casamento deles. Afinal, quem melhor do que ela sabia como pode ser venenoso para um casamento a interferência de uma sogra? Ainda assim, foi difícil ficar calada quando notou as pequenas rugas que tinham se formado no rosto pálido e fino de Dinaz. Tinha que contar até dez quando Viraf dava a sua mulher grávida uma resposta atravessada na mesa do jantar ou dizia alguma coisa tão sarcástica que Dinaz levava um momento para levantar a cabeça do prato, precisando de uma pausa para se recompor, para rearrumar seu rosto numa máscara sem expressão. Sera conhecia muito bem aquele olhar. Quantas vezes ela mesma ordenou aos seus olhos que não se enchessem de lágrimas, por ocasião de alguma grosseria de Feroz, só para não permitir que sua sogra Banu tivesse a satisfação de perceber que o filho tinha conseguido magoá-la. Pelo menos Viraf não batia em Dinaz. Ela se consolaria e depois se odiaria pela fraqueza daquele pensamento, por ter baixado tanto os seus padrões que a ausência de violência física houvesse se tornado a definição de um bom casamento. Queria muito mais do que isso para sua única filha.

Agora, olhando para o jeito recuperado de Dinaz, Sera sorri numa satisfação calada. Seja lá qual fosse o problema que tivesse acontecido entre os dois, algo como um vento mau, já tinha sido resolvido. Viraf e Dinaz, mais uma vez, demonstravam o relacionamento espalhafatoso e competitivo que sempre tiveram, o que deixava claro para Sera que, antes de marido e mulher, os dois eram amigos. Mesmo no início de seu relacionamento com Feroz, quando ele a olhava como se ela fosse uma estrela caída do céu, Sera nunca vivenciou a espontaneidade informal e de igual para igual que sua filha compartilhava com o marido. No início do casamento, Feroz tinha sido galante, gentil, até amoroso — mas sempre formal. Por exemplo, se ela entrasse no banheiro enquanto o marido estava escovando os dentes ou cortando as unhas do pé, ele a mandava sair.

— Isso é um assunto particular — dizia ele. — Você não precisa ver o pior de mim.

Quando Dinaz grita para ela do outro quarto, Sera leva um minuto para localizar a voz de sua filha.

— As omeletes estão prontas e embaladas, mamãe? — pergunta Dinaz.

— Quase — responde ela, pegando o papel-alumínio que Viraf trouxe de sua última viagem aos Estados Unidos.

A campainha toca e Sera dá um suspiro de alívio. É Bhima.

 

SERA ABRE A PORTA e basta uma olhada para a fisionomia abatida e encovada de Bhima para ela saber que a missão do dia anterior tinha falhado. Ergue a sobrancelha interrogativamente e, em resposta, Bhima balança devagar a cabeça de um lado para o outro. Isso é o que Sera mais gosta em Bhima — essa linguagem sem palavras, essa intimidade que se desenvolveu entre ambas ao longo dos anos. Essa mesma ligação faz agora com que perceba que Bhima quer esperar até que o casal saia para trabalhar antes de contar o que aconteceu ontem. E Sera está contente com isso porque, para falar a verdade, não quer envolver sua filha grávida nos problemas de Maya, não quer que a sombra da experiência infeliz de Maya se abata sobre a felicidade da gravidez de Dinaz.

— Desculpe, Serabai — diz Bhima. — A fila na bica d’água hoje estava maior do que o normal.

Involuntariamente, Sera não consegue esconder sua irritação.

— Não causou grandes problemas — diz numa voz que soou severa até para si mesma. — Eu mesma tive que fazer as omeletes dos dois. Eles não podem chegar atrasados ao trabalho.

Antes que Bhima pudesse responder, elas ouvem Viraf, do outro quarto:

— Dinaz — berra ele. — Viu minha gravata vermelha? Aquela que você me deu de aniversário no ano passado?

— Nossa, você parece uma criança — retruca Dinaz, mas mesmo àquela distância as duas mulheres conseguem perceber o sorriso em sua voz. — É de admirar que soubesse mastigar a comida antes de me conhecer. Como será que você se virava?

— Muito mal — respondeu ele prontamente. — Eu usava meias de cores diferentes para ir trabalhar. E quanto a me alimentar, não notou o babador que eu estava usando quando você me viu pela primeira vez?

Bhima balança a cabeça.

— Esse Viraf baba — diz ela — sempre tem alguma coisa para dizer. Faz a casa ficar alegre só por sua presença, como se todos os dias fossem feriados, Holi, Diwali ou coisa do gênero.

Sera faz que sim com a cabeça e compreende imediatamente o que Bhima não disse: não é como nos velhos tempos, quando Feroz estava vivo e ela e Bhima tinham que andar na ponta dos pés, temerosas de seus silêncios e ataques explosivos. A casa parecia um túmulo, encastelada no silêncio, um silêncio que a impedia de tocar os outros, de compartilhar seu mais obscuro segredo mesmo com os amigos mais próximos. Quando Bhima era a única que sabia, a única que sentia a umidade no travesseiro molhado após longas noites derramando lágrimas ardentes, a única que ouvia os sons abafados que provinham do quarto dela e de Feroz...

Sera balança a cabeça com impaciência para limpar as teias de aranha do passado. “Aqui estou eu chafurdando na história antiga, enquanto a coitada da Bhima está tão atrapalhada com a situação atual”, pensa ela. “Que mulher egoísta e fútil eu me tornei!”

— Vamos, Bhima — diz ela. — O seu chá está pronto. Beba o chá e pode começar a lavar a louça.

 

BHIMA ESTÁ NA COZINHA LAVANDO A LOUÇA do jantar de ontem. Sera fica observando enquanto as mãos magras e escuras como os galhos de uma árvore esvoaçam sobre os pratos e as panelas, esfregando-os até que brilhem como o sol do meio-dia. Por mais que tente, ela nunca Consegue deixar as panelas brilhando como Bhima faz.

Viraf entra na cozinha arrumando a gravata.

— É isso aí — diz ele sem se dirigir a alguém em particular. — Mês que vem vou comprar uma máquina de lavar louça. Não faz sentido ver a coitada da Bhima trabalhando assim.

Bhima levanta os olhos agradecida, mas, antes que possa dizer urna palavra que seja, Sera fala num tom mais alto.

— Que nada — diz ela. — A minha Bhima deixaria qualquer máquina de lavar louça envergonhada. Nem mesmo uma máquina importada conseguiria fazer com que a louça ficasse tão limpa quanto a de Bhima. Guarde o seu dinheiro, deekra.

“Em vez disso, dê ele para mim”, pensa Bhima consigo mesma. E então, com receio de que pudessem ler seus pensamentos, ela se concentra numa determinada mancha de comida. E também precisa de alguns segundos para não explodir. Às vezes não consegue entender Serabai direito. Por um lado, fica corada de orgulho quando Serabai a chama de “minha Bhima” e fala a seu respeito como se fosse sua dona. Por outro, sempre parece fazer coisas que contrariam os interesses de Bhima, como recusar a oferta de Viraf baba de comprar uma máquina de lavar louça. Como seria bom não ter que mergulhar suas mãos com artrite na água o dia inteiro! Curvar-se sobre a pia para lavar a louça a deixa com dor nas costas e, ao final do dia, às vezes leva metade do caminho de volta para casa até conseguir se desempenhar completamente. Mas como falar com Serabai sobre essas coisas? Ainda mais hoje, que ela a deixou com sentimento de culpa dizendo que tinha feito as omeletes para a própria filha e o genro? E qual o problema se ela odeia cortar cebola? Por acaso ela própria gosta de ficar de cócoras para defecar num banheiro comunitário? Mas o faz porque não há outra opção. Comparado com aquela humilhação, cortar cebola parece tão fácil como cortar um pedaço de bolo.

Com a raiva dissipada, o senso de fair play de Bhima e a sua sólida afeição pela família Dubash prevaleceram. “Mulher ingrata”, recrimina-se. “Quem é que cuidou de você quando teve malária? Foi o fantasma do seu marido? Quem é que lhe deu dinheiro ontem mesmo para você tomar um táxi até a faculdade de Maya? Foi a sua netinha que abriu as pernas? Não, foi essa mesma mulher cuja comida você come, e a respeito de quem você está tendo pensamentos feios. Que vergonha!”

Lembrar o percurso até a faculdade de Maya fez Bhima olhar involuntariamente para o relógio da cozinha. Mais alguns minutos e Viraf baba e Dinaz terão saído. Depois, ela e Serabai vão poder tomar uma xícara de chá e conversar. Ela sabe que Sera está impaciente para ouvir os detalhes do que aconteceu ontem, e a consciência disso deixa Bhima com um nó na garganta de emoção e gratidão. Pelo menos alguém mais se importa tanto quanto ela com aquela garota grávida. Foi a sua generosidade que tornou possível a educação de Maya e, se Serabai agora se sente traída pelo que Maya fez, se percebe que seu investimento no futuro da menina não deu em nada, aí está mais um ponto a seu favor: nunca falou de seu desapontamento com Bhima. Desde o pri-meiro momento em que Bhima relatou a notícia terrível e calamitosa, Sera ficou preocupada, ansiosa e disposta a ajudar.

— É claro que ela vai ter que fazer um aborto — disse Sera imedia-tamente. — Não há outra saída. Maya é brilhante demais, inteligente demais para arruinar a própria vida sendo mãe aos 17 anos. Vou cuidar dos detalhes, Bhima, você não tem que se preocupar com nada. Você já tem muitos problemas, sei disso.

Mas, por razões que ela ainda não entendia, Bhima tinha hesitado. Talvez sem querer tenha sido influenciada por Maya, que ficou toda tensa quando Bhima mencionou o aborto pela primeira vez. E, depois, havia outra coisa: a esperança não revelada, e talvez não reconhecida, de que o pai da criança aparecesse para assumir sua responsabilidade e fazer o que tinha que ser feito. Que a cortina do anonimato e do segredo se abrisse para revelar um rapaz ansioso, porém honesto, assustado, mas disposto a enfrentar esse novo desafio, casando-se e construindo uma vida com a mulher que geraria o seu primeiro filho. Com 17 anos, Maya é muito nova para ter um filho, e o casamento certamente iria destruir seus sonhos de conseguir o diploma em contabilidade e um emprego de contadora num bom escritório. O caminho luminoso que se abria diante de Maya quando se tornou a primeira pessoa da família a entrar numa universidade — o bom emprego que inevitavelmente estaria esperando por ela graças à influência de Dinaz e Viraf e de seus contatos profissionais, escapando do trabalho braçal e extenuante que arruinou as vidas de sua mãe e, antes dela, de sua avó —, esse caminho estaria decerto fechado. Mas — e aqui Bhima se permitiu uma pitada de esperança — talvez um outro caminho se abrisse, se pelo menos Maya revelasse a identidade do pai da criança. Podia ver a neta querida gorda e satisfeita, ocupada numa cozinha com as louças e as panelas brilhando, fritando puris, panquecas com massa folhada, para um menino bagunceiro de cabelos escuros e um pai que chegava em casa todas as noites voltando de um bom emprego.

Tinha ficado muito animada quando, depois de semanas insistindo, implorando, ameaçando, conseguiu que Maya finalmente revelasse identidade do pai da criança: Ashok Malhotra.

— É um colega da faculdade — disse a moça soluçando. — Ele é da minha turma. Está satisfeita, vó, já que conseguiu arrancar o nome dele? Agora me deixe em paz, por favor.

Bhima estava satisfeita. Finalmente, podia dar nome à figura sombria que rondava seus sonhos e pesadelos. Ashok Malhotra, um estudante que freqüentava a mesma faculdade que Maya. Quis pesquisar ainda mais, descobrir quando é que tiveram a oportunidade de fazer sexo. Mas, nesse ponto, Maya se fechou, ignorando teimosamente as outras perguntas de Bhima, olhando ao longe com aquela nova expressão bovina que tinha adquirido durante a gravidez. E de repente Bhima decidiu que não queria saber dos detalhes sórdidos. Que diferença fazia o “como” e o “onde” agora? Pelo menos tinha conseguido que a garota contasse o seu maior segredo, revelando o nome do rapaz que trouxe tanta preocupação para a vida de ambas. E sabia onde encontrá-lo. Cabia a ela fazer o resto. Maya era apenas uma garota boba e imatura que não tinha a menor idéia de como o poço escancarado do destino iria engoli-la se fosse em frente com aquilo e tivesse essa criança sem um pai para sustentar os dois. Era Bhima que deveria agir como sua advogada e fazer o que Maya era incapaz de fazer — convencer esse tal de Ashok Malhotra a assumir a responsabilidade por seus atos, apelando para o seu sentimento de decência e fazendo-o entender que Maya seria uma guirlanda de flores em volta do seu pescoço, e não uma corrente pesada de ferro.

— Pago a corrida do táxi para a universidade — disse Sera quando soube a identidade do pai da criança. — Vá encontrá-lo, Bhima. Veja quais são as intenções dele. Se esse tal de Ashok é pelo menos digno da nossa Maya ou se é apenas mais um daqueles vagabundos que só querem se aproveitar das garotas. Rezo, pelo seu bem, para que ele seja um bom caráter.

 

ERA A PRIMEIRA VEZ QUE BHIMA ia à universidade de Maya sozinha. Na única outra vez em que visitou o prédio, Sera e Maya a acompanhavam. As três ficaram na longa fila para efetuar o processo de inscrição, e foi Sera quem falou com o funcionário grosseiro quando ele vociferou uma ordem para Maya. Sera se empertigou toda, olhou-o de cima a baixo com seu nariz parse, comprido, reto, inacessível e disse-lhe com aquele sotaque de colégio de freiras o mais articuladamente possível para que fizesse a gentileza de ver bem com quem estava falando, que essa moça que ele estava tratando tão mal era provavelmente a estudante mais brilhante que eles teriam a sorte de ter naquela universidade. Diante de seu olhar altivo de grã-fina, o funcionário murchou e se desmanchou em desculpas.

— Desculpe, madame, não quis ofender. O que é que a gente pode fazer, madame? Temos tanto trabalho que estamos sobrecarregados. Por favor, me desculpe.

Dessa vez, Bhima foi direto ao escritório. Como era de se esperar, o funcionário estava sentado remexendo em alguns formulários na mesa à sua frente. Ela se aproximou, hesitante.

— Por favor, com licença...

O homem não levantou os olhos.

— O que é? — perguntou bruscamente.

— Estou procurando um determinado estudante. O senhor poderia me ajudar a encontrá-lo?

Houve um segundo de silêncio enquanto o homem terminava de escrever num pedaço de papel à sua frente. E então perguntou:

— E o que a senhora é dele?

Bhima ficou desconcertada.

— Bem, sou a sua... quer dizer, não sou parente dele. Estou apenas querendo falar com ele.

O funcionário deve ter percebido sua falta de jeito porque levantou a cabeça e a fitou com seus olhinhos brilhantes que pareciam os de um porco.

— A senhora não é parente dele? — indagou em voz alta para que os outros funcionários ouvissem. — Quem sabe não está querendo ficar íntima de um jovem universitário?

Os outros funcionários riram debochadamente enquanto Bhima fitava o chão, sem saber o que ia fazer em seguida. Lembrando-se de como Serabai tinha posto esse descarado em seu devido lugar com poucas palavras bem escolhidas, Bhima desejou, e não pela primeira vez, ter tido uma educação melhor. Uma fúria abrasadora se acendeu dentro dela. Passou a noite toda se preparando para o encontro com Ashok Malhotra. Ficou acordada, tensa com toda aquela expectativa. Ensaiou o que ia dizer sem conseguir decidir se devia ameaçar ou adular, atacar ou fazer um apelo. No táxi, a caminho da universidade, ela se sentia como uma panela de água fervendo no novo fogão Bajaj de Serabai, com as emoções prestes a transbordar. E agora esse gorila mal-educado a estava impedindo de se encontrar com Ashok, jogando-a para lá e para cá de modo displicente e automático, simplesmente para se divertir. Estava brincando com ela do mesmo modo indiferente e entediado como os gatos vira-latas da favela faziam com os ratos que apanhavam. Bhima sentiu sua resolução e determinação se esvaírem.

Uma outra funcionária, uma mulher que parecia ter em torno de vinte anos, veio em sua defesa.

— Ignore esses sujeitos, mausi — disse ela, saindo de sua mesa e se aproximando de Bhima. — Eles não têm nada melhor para fazer, é óbvio. Diga-me, quem a senhora está procurando?

Bhima sorriu para ela, agradecida. Como sempre fazia, cobriu auto-maticamente a boca ao sorrir para esconder os dois dentes que faltavam.

— Obrigada, minha filha. Estou procurando um tal de Ashok Malhotra.

À menção desse nome, Bhima observou que uma coisa estranha a-conteceu.

Todos os quatro funcionários do escritório sorriram.

— Ora, mausi, por que a senhora não disse logo que estava procurando pelo nosso príncipe Ashok? — perguntou o funcionário com quem ela falou inicialmente. — Espere, vamos mandar alguém escoltar a senhora pessoalmente até ele. Deve estar em seu palácio, entretendo sua corte.

Bhima olhou confusa para ele e para a funcionária. Vendo a expres-são em seu rosto, o homem sorriu.

— Na cantina — explicou ele alegremente. — E lá que o príncipe Ashok tem a sua corte, a sua darbar. Ele recebe seus súditos na cantina. A senhora pode ir lá prestar suas homenagens a ele.

Tocou uma campainha na sua mesa e alguns segundos depois apareceu um servente mal-encarado.

— Ae, Suresh — disse o funcionário. — Esta distinta senhora está aqui para falar com o nosso Ashok. Você poderia conduzi-la à cantina, por favor?

A cantina cheirava a cigarro e fritura. Era um salão cavernoso e barulhento, cheio de fumaça e da algazarra de estudantes que conversavam e discutiam uns com os outros. Rapazes morenos de calças cáqui andavam para lá e para cá anotando pedidos e servindo canecas fumegantes de chá. Os estudantes de classe média mal davam pela presença dos rapazes que traziam os pratos de samosas e masala dosas para suas mesas, a não ser, excepcionalmente, para reclamar que o chá tinha esfriado enquanto estavam esperando pelos pastéis de vegetais e pelas panquecas de farinha de arroz, Os estudantes mais velhos, especialmente se houvesse uma mulher com eles, muitas vezes acompanhavam a reclamação com um tapinha amigável, mas nem por isso menos forte, na cabeça dos jovens garçons. Num velho e eterno ritual, os rapazes sorriam depois de serem estapeados, massageando a cabeça e protestando discretamente: tinham trazido a comida assim que ela ficou pronta.

— Fazer o quê, sahib? Temos muito movimento hoje.

A recompensa por essa humildade simpática era uma gorjeta um pouco maior.

— Lá está ele — disse Suresh, apontando para um homem magro vestindo uma kurta azul-escuro e um jeans desbotado. — Aquele ali sentado à direita é o Ashok.

Apesar de haver outros três rapazes à mesa, e mesmo àquela distân-cia, Bhima podia garantir que Ashok era o líder do grupo. Ela se virou para dizer alguma coisa a Suresh, mas ele tinha desaparecido, deixando-a sozinha para ir ao encontro do rapaz.

Os quatro ocupantes da mesa olharam com curiosidade quando ela se aproximou e ficou ali calada, encarando o pai de seu bisneto.

— Sim? — disse finalmente um dos rapazes. — Em que podemos ajudá-la?

Os outros riram.

Decididamente Bhima simpatizou com o rapaz sentado à sua frente. Encorajada por essa descoberta, perguntou:

— Você é Ashok? Ashok Mathotra?

O rapaz levantou-se da cadeira.

— Namaste — disse ele, fazendo a saudação hindu. — E a senhora é...? — Preciso falar com você.

E, olhando para os outros, acrescentou:

— Em particular.

Ashok ficou surpreso.

— É... claro, claro. — Olhou de modo incisivo para os seus colegas, e eles relutantemente se levantaram para dar lugar à mulher ossuda e de aparência severa que estava em pé diante deles.

— Puxa, Ashok, o seu harém só faz aumentar — disse um deles baixinho, mas Bhima ouviu e estremeceu. Pela primeira vez lhe ocorreu que esse rapaz bonito e simpático pudesse ter outras namoradas além de Maya.

Sacudiu a cabeça para espantar aquele pensamento traiçoeiro. Vendo o seu gesto, Ashok sorriu.

— Tem muita mosca nessa cantina — disse ele, se desculpando. A delicadeza de seu sorriso encorajou Bhima, que se animou a falar:

— Sou a avó de Maya Phedke — disse ela.

 

ELAS ESTÃO SENTADAS NA SALA DE JANTAR, tomando chá: Sera na caneca cinza-azulada que Dinaz comprou para ela na Cottage Industries, Bhima na caneca de aço inoxidável que fica separada para ela na casa dos Dubash. Como de hábito, Sera se senta à mesa enquanto Bhima fica de cócoras no chão, a seu lado. Quando Dinaz era mais jovem, implicava com a mãe por algo que considerava uma injustiça: Bhima não poder sentar-se no sofá ou numa cadeira e ter que usar utensílios separados, em vez daqueles que a família normalmente usava.

— Você diz a todas as suas amigas que Bhima é como um membro da família, e que você não poderia viver sem ela — alegava a adolescente. — Mesmo assim, ela não é boa o suficiente para se sentar com a gente. E você e papai estão sempre falando desses hindus de casta superior que queimam os harijans, os intocáveis, e de como isso é errado. Mas na sua própria casa você impõe essas diferenças de casta. Que hipocrisia, mamãe!

— Olhe, Dinaz — dizia Sera com suavidade. — Acho que há uma pequena diferença entre queimar um harijan e não permitir que Bhima use nossos copos. Além disso, você já notou o cheiro forte do tabaco que ela masca o dia inteiro? Quer que os lábios dela toquem nossos copos?

— Mas não é só isso, mamãe, e você sabe muito bem. Certo, se é por causa do tabaco, por que você não deixa ela se sentar no sofá ou nas cadeiras? Ou será que Bhima tem tabaco no traseiro também?

— Dinaz — exclamava Sera genuinamente chocada. — Que termos são esses? Você sabe que seu pai teria um ataque se chegasse em casa um dia e encontrasse Bhima sentada no sofá.

Impossível não rir só de imaginar o olhar de horror no rosto de Feroz. Mas Dinaz não tinha acabado ainda.

— De qualquer modo, talvez seja inútil discutir essa história. Até parece que a pobre da Bhima tem um minuto para se sentar e descansar nessa casa...

Sera arqueou a sobrancelha direita.

— Falando nisso, outro dia ouvi você incentivando Bhima a pedir um aumento. Olhe, Dinaz, não importa o que você pense, você pertence a esta família, não à de Bhima. Acho que, no fim das contas, a família Dubash trata os seus empregados melhor do que qualquer pessoa que a gente conheça. Dinheiro não cresce em árvore, meu amor. Seu pai trabalha muito para nos dar o que temos. Não é correto da sua parte tentar fazer Bhima se voltar contra ele. Lembre-se de que a caridade começa em casa.

Agora, observando Bhima tomando seu chá, Sera se remexe desconfortavelmente na cadeira. Desde a morte de Feroz, de vez em quando pensava em convidar Bhima a sentar-se à mesa com ela. É claro que alguns amigos iriam com certeza se escandalizar, e da próxima vez que uma empregada do prédio pedisse um aumento à patroa, a mulher iria automaticamente culpar Sera Dubash por ter dado o mau exemplo.

— Sera fez Bhima se sentar em sua cabeça, não apenas no sofá — diria a vizinha. — O próximo passo vai ser essas empregadas fundarem um sindicato. Mas é claro que tudo aquilo logo passaria. E, na realidade, que importância tinha o que os vizinhos diriam? Não são eles que a sustentam, e agora que Feroz morreu sente-se livre do medo que a atormentou durante anos — de ser motivo de fofocas entre a vizinhança. Ou pior: de que os mais perspicazes notassem os eventuais machucados que as roupas e a maquiagem não conseguiam esconder e ficassem com pena dela, fazendo tsk-tsk às suas costas. Agora que Feroz morreu, não tem mais medo da piedade deles.

E, mesmo assim... a simples idéia de Bhima sentada em suas poltronas a repugna. Só de pensar nisso fica tensa, exatamente como naquele dia em que pegou a filha, então com 15 anos, dando um abraço carinhoso em Bhima. Observando aquele abraço, Sera foi tomada por emoções conflitantes: orgulho e espanto pela espontaneidade com que Dinaz quebrou um tabu não explicitado, mas também um sentimento de repulsa tal que teve que reprimir a vontade de mandar a filha ir lavar as mãos. “O que é surpreendente”, pensa Sera, relembrando o incidente. Ela mesma tinha declarado em inúmeras ocasiões que Bhima era uma das pessoas mais limpas que conhecia.

— Bhima não saberia distinguir um desodorante de um pauzinho japonês, mas garanto que nunca senti nenhum cheiro ruim nessa mulher — comentou certa vez com a amiga Mani. — Não sei como ela consegue isso, haja vista a falta de privacidade e de água corrente na favela onde mora. Mas ela consegue.

E, desde que Sera a conhecia, Bhima fazia uma pausa de 15 minutos às quatro da tarde para lavar o rosto com o sabonete que guardava na sua própria saboneteira na cozinha, botar talco Pond’s nas axilas e arrumar o cabelo que tinha rareado muito nos últimos anos. Aquelas abluções diárias estimularam Sera, que se tornou então mais consciente do seu próprio mau cheiro, e agora parava o que quer que estivesse fazendo para se lavar também.

Mas, apesar disso tudo, há essa relutância, essa resistência em deixar Bhima usar os seus móveis. Sentadas naquele silêncio amistoso tomando chá, Sera tenta justificar seu preconceito. “Parte disso é a porcaria do tabaco que ela masca o dia inteiro”, pensa consigo mesma. “Isso só serve para me deixar enjoada e sujar qualquer coisa a seu redor. E também, depois de ter visto onde ela mora, posso imaginar as condições de vida na favela — que tipo de água ela usa para tomar banho e como é que consegue se limpar direito nos ‘países baixos’”.

Perdida em seus pensamentos impulsivos e cheios de culpa, Sera percebe que perdeu um trecho do que Bhima estava dizendo.

— Ah, Bhima, repita a última parte. Desculpe, não ouvi direito o que você falou.

Bhima suspira impaciente. E começa a história outra vez.

 

— SOU A AVÓ DE MAYA Phedke — declarou Bhima.

Ashok Malhotra a fitava, na expectativa, piscando os olhos rapida-mente. Como ela não disse mais nada, o rapaz se inclinou para a frente e perguntou:

— Sim?

Os dois ficaram se olhando em silêncio, como se cada um estivesse esperando que o outro continuasse a falar. Finalmente, Ashok teve uma reação.

— Desculpe... será que a senhora acha... quer dizer, será que conheço essa tal de Maya?

A voz de Bhima fraquejou.

— Maya — disse ela, como se estivesse descrevendo a neta para um estranho. — Ela está no segundo ano. Cabelo comprido. Alta, com a pele clara.

Ficou paralisada pela incoerência de ter que lembrar a este bruto in-sensível de que jeito era a mulher que ele tinha engravidado.

Ashok veio em seu socorro.

— Ah, Maya! — exclamou num tom alegre. — É claro que conheço Maya. É que acho que nunca soube o sobrenome dela. Desculpe.

Bhima olhou para o rosto bonito à sua frente. Ela se admirou de não ver ali nenhum sinal de culpa ou de preocupação. O que estava acontecendo com esses jovens de hoje? Conviviam uns com os outros sem nem mesmo saber seus sobrenomes? No seu tempo, saber o nome de família de alguém era mais importante do que saber seu primeiro nome. Afinal, é o sobrenome que diz tudo o que precisamos saber — a que casta a pessoa pertence, de onde vem, quem eram seus antepassados, qual era a profissão deles e a história da família, seu khandaan. E aqui estava este rapaz descaradamente confessando que não tinha nem se preocupado em saber o sobrenome de Maya.

— Aliás, como vai Maya? — prosseguiu Ashok. — Há dias que não a vejo.

Seu rosto rapidamente se entristeceu.

— Ela está bem, não está, tia?

Bhima balançou a cabeça.

— Não, ela não está bem, não. Maya não está nada bem.

— Não diga! — exclamou Ashok. — O que foi, malária ou alguma coisa assim? Dois amigos meus estão com malária. Mas olhe, diga a Maya que não se preocupe. Depois passo todas as minhas anotações para ela. Na verdade, isso vai ser um incentivo para que eu pare de matar aula e passe mais tempo na sala do que nessa estúpida cantina.

E deu aquele seu sorriso radiante.

Pela primeira vez, ocorreu a Bhima que, por trás do rosto barbeado e bonito de Ashok, havia o cérebro de um imbecil. Será que esse rapaz era realmente idiota? Ou estava apenas se fazendo de bobo, tentando parecer inocente e fugir da responsabilidade? Ah, então era isso? Quanto mais Bhima olhava para o rosto franco e de olhos arregalados de Ashok Malhotra, mais entendia o jogo dele.

Bem, não ia deixar que se safasse daquela maneira. Era por isso que estava ali, naquele ambiente estranho e pouco familiar: para enfrentar as negativas desse rapaz e fazer com que ele assumisse a sua responsabilidade. Bhima inclinou-se para a frente em sua cadeira.

— Não é malária, beta — disse ela, esforçando-se para manter a voz firme. — Você sabe exatamente o que houve com Maya.

Ashok piscou os olhos.

— Eu... eu sei? — balbuciou.

Mais uma vez, ficaram se olhando em silêncio. Então, Bhima sacudiu a cabeça com impaciência. Esse rapaz não estava facilitando as coisas. Ele podia se dar ao luxo de passar o dia inteiro nesta cantina jogando seus joguinhos, mas ela não. Estava velha e cansada, tinha o longo percurso de volta para casa e ainda precisava fazer o jantar quando chegasse lá. Além do mais, haveria uma cena quando a neta descobrisse sobre a ida dela à universidade, com lágrimas e recriminações. Maya iria olhar para ela com seus grandes olhos e diria:

— Como é que você pôde fazer isso, vó? Confiei a você o meu se-gredo!

Como se uma pilha de livros tivesse caído na sua cabeça, Bhima subitamente sentiu o peso dos seus 65 anos. Cada osso do seu corpo cantava os seus males, cada fio de cabelo grisalho entoava o seu sofrimento, cada músculo tremia e latejava de dor. Olhou bem nos olhos do rapaz de pele fina e cabelo escuro com uma inveja cheia de amargura. Percebeu suas unhas limpas, sua kurta engomada, o cabelo bem cortado. Notou o brilho da juventude em seu rosto, os dentes brancos e perfeitos, as mãos lisas e sem manchas. Esse rapaz tinha todo o tempo do mundo. “Príncipe Ashok”, era como o chamavam, e era verdade. Esse rapaz podia gastar, podia até desperdiçar o tempo como se fosse uma moeda sem valor. Enquanto ela, Bhima, tinha que poupar o tempo, fazer valer cada segundo do seu dia, esse rapaz podia agitar os braços desordenadamente através do tempo, gastando-o como moedas de dez paisa.

Parte da fúria escamoteada que ela estava sentindo deve ter aparecido em seu rosto, porque Ashok Malhotra a fitava assustado.

— Tia, a senhora está bem? — perguntou ele. — A senhora quer tomar uma Limca ou alguma coisa assim?

— Escute, Ashok, não tenho tempo para isso. Já estou velha e não tenho muitos anos de vida. Pelo menos tenha pena da minha idade e não fique brincando comigo. Isso também não é fácil para mim, beta.

A expressão no rosto do rapaz mudou. Tirando os cotovelos da mesa de fórmica, recostou-se na cadeira de modo a estabelecer o máximo de distância entre ele e Bhima.

— Eu me chamo Ashok Malhotra — disse cuidadosamente. — A senhora tem certeza de que sou o Ashok que está procurando?

Bhima deixou escapar um suspiro, que pareceu mais um assobio.

— Olhe aqui, baba. Já sei de tudo. Não precisa fingir. Maya me con-tou tudo. Não estou aqui para culpar ninguém. Só quero...

— O quê? O que Maya disse à senhora?

Finalmente estavam chegando a algum lugar.

— Ashok, Maya está grávida. Não está com malária. Está grá-vida!

Ashok engasgou.

— Grávida? Impossível. Quero dizer, tia, estou chocado.

A voz de Bhima se abrandou.

— Eu sei, beta. Todos nós estamos. Essa não é a vida que planejei para a minha neta. Ainda assim, quem sabe por que linhas tortas Deus escreve? Talvez...

— Não, quero dizer... logo Maya. Não a conheço muito bem, mas eu realmente a respeitava. Sempre pensei que fosse uma garota séria, diferente das outras moças que conheço.

Bhima ficou olhando para ele boquiaberta. O rapaz era algo mais: um sem-vergonha. Sentado na sua frente, falando sobre as outras garotas que conhecia. Será que isso queria dizer que engravidou outras garotas também? Que havia outros — que Deus nos livre —, outros bebezinhos Ashok Malhotras circulando por aí? Uma onda de desespero e mágoa a atingiu.

Ainda assim, tinha que tentar. Pelo bem de Maya, tinha que fazer esse rapaz esquecer todas as outras namoradas.

— O que passou passou — disse ela. — A questão é: o que vai acontecer agora?

Ashok deu de ombros. Vendo aquilo, Bhima agarrou a borda da mesa rosa para impedir que sua mão voasse na cara dele. Maya estava com sérios problemas e tudo o que esse mulherengo descarado e filho-da-puta podia fazer era dar de ombros?

— Escute aqui — disse ela, nem mesmo esperando que a raiva se dissipasse de sua voz. — Sei de tudo. Maya me contou tudo. Sobre vocês. E se você vai ser pai, pelo menos podia...

— O quê? O quê? — Ashok ficou de pé e havia um novo tom em sua voz. — O que a senhora disse?

Então... ele não sabia. Notando os olhares inquiridores que os outros estudantes lançavam na direção deles, Bhima se amaldiçoou por não ter escolhido um local mais reservado para lhe dar a notícia.

— Eh, Ashok, está tudo bem aí, yaar? — indagou um daqueles rapazes que Bhima tinha afastado da mesa.

O rosto de Ashok estava branco e seu peito arfava. Inexplicavelmente, Bhima sentiu uma vontade incontrolável de rir. O rapaz escandalizado à sua frente, com aquele ar melodramático de ofendido, parecia até uma daquelas atrizes do cinema hindi cuja virtude foi questionada. Mas, depois, notou que ele a fitava com raiva, e o riso abortou dentro dela.

— Beta, sente-se — pediu Bhima. — Sei que isso é difícil, mas...

— Ela disse isso? — exclamou ele entre dentes. — Disse que sou o pai do filho dela?

Incapaz de fitá-lo nos olhos, Bhima fez que sim com a cabeça.

— Que mentirosa safada! Mentirosa safada, escrota e ordinária! Co-mo é que ela teve a ousadia? Piranha! Puta! Isso só vem provar que não se pode confiar numa mulher! Nunca!

Bhima levou um segundo para se dar conta de que ele estava falando de Maya. E, naquele momento, sentiu que não ia querer Ashok Malhotra como genro nem que ele fosse o último homem da face da Terra. Num segundo, vislumbrou o futuro, viu as conseqüências daquele pensamento e enxergou os cacos de um sonho destruído. Para Maya, não ia haver cozinha com louça limpa e panelas areadas, nem marido amoroso para prover todas as coisas que ela, Bhima, nunca teria podido conseguir. Em vez disso, haveria um aborto e uma vida inteira de vergonha e de segredos furtivos. Mas até isso era preferível a obrigar esta criatura de boca suja a se casar com Maya. Serabai estava sempre lendo em voz alta histórias que saíam no jornal sobre noivas queimadas e assassinadas por causa de dotes. Bhima deu de ombros. Tem coisas que alguns homens fazem com suas mulheres e que você não desejaria para o seu pior inimigo. Pode-se dizer o que quiser sobre Gopal (mesmo quando o álcool o transformou num homem vazio), ele nunca a ofendeu com o tipo de linguagem que esse diabo desse rapaz acabou de usar se referindo a Maya.

Bhima se sentiu livre ao perceber que não queria que Ashok Malhotra fizesse parte de sua família.

— Cale a boca. Nunca mais fale da minha neta desse jeito. Lembre-se de que, mesmo estando morta, vou me levantar do túmulo para cortar fora a sua língua. A minha Maya é uma boa menina, vale dez de você. Foi preciso um animal nojento como você para corrompê-la. E quanto a pedir que se case com ela e faça dela uma mulher honesta eu devia estar...

— Casar com ela? Fazer dela uma mulher honesta? — Havia um tom histérico na voz de Ashok. — Arre, Bhagwan, será que estou ficando louco, ou o quê? Ouça bem, minha senhora, mal conheço a sua neta. Devo ter falado com ela umas cinco ou seis vezes, e sempre com outros amigos junto comigo. Deus é testemunha.

Bhima estava a ponto de protestar, mas o olhar furioso de Ashok a silenciou.

— Isto é um complô dos meus inimigos, estou sentindo isso — disse ele, olhando em volta do salão. — São aqueles filhos-da-puta da Progressive Student Union que fizeram a senhora acreditar nisso. Tenho certeza. Esquerdistas escrotos e degenerados. Sempre tentando nos desacreditar, nós do RJS. Todas aquelas putas do PSU com esse papo de secularismo e outras merdas do gênero. E seus “camaradas” socialistas efeminados que ficam babando atrás delas que nem cachorros no cio. Mesmo assim, nunca pensei que eles pudessem chegar a esse ponto.

— Beta, eu vim aqui para falar de Maya e nada mais...

— Nunca teria adivinhado que Maya era uma delas — disse Ashok num tom de voz tão baixo que Bhima mal pôde ouvi-lo. — Mas não importa. Ela não vai conseguir sujar minha reputação. Todo mundo aqui na universidade sabe que sou do RJS e que acreditamos na pureza e na castidade antes do casamento. Até mesmo alguns estudantes cristãos me confidenciaram que, embora não concordem com o objetivo do RJS de uma nação hindu, respeitam muitos dos seus ensinamentos. É claro que nunca admitiriam isso em público. Têm muito medo dos muçulmanos fanáticos, acho eu. De qualquer modo, no RJS nos ensinaram a respeitar as nossas mulheres hindus, mesmo as perdidas, como Maya. Mas também acreditamos em revanche. Precisamos revidar quando alguém ataca a nossa reputação.

Seus olhos faiscavam olhando para Bhima.

Um dos integrantes da turma de Ashok veio até a mesa.

— O que houve, cara? — perguntou ele, olhando para Bhima. — Essa senhora está incomodando você? A gente pode resolver esse problema em dois tempos.

Mas Ashok o afastou com um gesto.

— Não, não, pode deixar, posso cuidar disso sozinho.

— Ghamcha, puxa-saco — resmungou Bhima com seus botões, o-lhando para o outro rapaz que se retirava.

Mas, na verdade, ela já tinha terminado. A defesa veemente que A-shok Malhotra fez de seu caráter, o brilho louco e paranóico em seu olhar, seu desprezo óbvio por Maya e suas ameaças bem pouco veladas tinham arrasado Bhima completamente, e ela sentiu que desmoronava como um castelo de cartas. Não havia mais nada a dizer, não havia nenhum motivo real para continuar ali. Tinha falhado redondamente em sua missão, e se questionava sobre o objetivo daquilo tudo.

— Desculpe o incômodo — disse ela com a voz calma. — Espero que você me perdoe, beta. Sou apenas uma mulher boba e burra. E, se não for o bastante, tenha pena dos meus cabelos brancos e esqueça essa conversa. Minha família — e aqui sua voz falhou — nunca mais vai incomodá-lo. Por favor, me perdoe do fundo do seu coração.

A cantina parecia ter dobrado de tamanho durante o tempo em que ela ficou ali. Bhima caminhou vacilante, mantendo os olhos fixos no chão, forçando o ouvido a não captar os sussurros e risinhos que a seguiam. Seus pés doíam nos pontos onde as sandálias de borracha roçavam em sua pele.

O taxista era um rapaz simpático que nitidamente queria conversar, mas Bhima não estava com espírito para isso. Ela olhava para fora da janela enquanto o táxi passava por prédios e conjuntos habitacionais dilapidados. O ar salgado do mar da Arábia não conseguiu reavivá-la quando passaram por ele, nem mesmo a visão de sua água meio pardacenta que geralmente fazia o seu coração pular de alegria.

Ela repassou mentalmente a conversa que teve com Ashok, tentando precisar o exato momento em que esta lhe escapou como uma manada furiosa de elefantes, o exato momento em que seu coração se despedaçou e o futuro se quebrou diante de seus olhos incrédulos.

E também o exato momento em que começou a acreditar na inocência de Ashok Malhotra. Porque, para ela, não havia dúvida de que o rapaz tinha dito a verdade. E que tinha sido Maya, a neta que ela salvara das portas da morte, Maya, que viera para ela como uma órfã e que cresceu e se tornou uma moça inteligente e ambiciosa, Maya, o único membro da família que tinha por perto, Maya, o único ponto brilhante na sua vida sem brilho, Maya, que deveria compensá-la por todas as esperanças não realizadas e os sonhos abortados, e que era o ponto focal dourado de todas as suas fantasias e devaneios, quem mentiu para ela. Foi Maya quem a traiu. (Mas Bhima não deveria estar acostumada a traições naquela idade?) Foi Maya quem a envergonhou e humilhou. (Mas já não deveria estar calejada pelas humilhações nesta altura da vida?) Maya, que parecia ter a intenção de trazer para a sua vida mais um sofrimento e preparar mais um travesseiro de algodão duro para colocar debaixo da cabeça de Bhima. (E por quê, afinal, Maya deveria ser diferente do resto da família?)

Bhima desceu do táxi cinco minutos antes de chegar á basti. Não queria que os vizinhos ficassem especulando sobre o motivo de ela ter tomado um táxi para voltar para casa. E hoje também não estava a fim de suportar os olhares de inveja. Sabia que muitos deles invejavam a sorte que ela tinha de trabalhar para alguém como Serabai.

— Ae, Bhima mausi — dizia-lhe Bibi com freqüência. — Estou ape-nas esperando que a sua Maya consiga um bom emprego e que você possa se aposentar. Aí, vou trabalhar lá com a sua Serabai. Também quero voltar para casa com chocolate Cadbury para as minhas crianças. Aquela gujarati para quem trabalho é tão kanjoos que, se num mês me dá um grão de sal que seja, juro que tenta descontar alguma coisa do meu pagamento no mês seguinte.

Bhima foi andando rápido, ansiosa para chegar em casa. As tiras das chappals de borracha machucavam os seus pés, mas estava perdida demais nos seus pensamentos para sentir dor. Já que não era Ashok Malhotra, quem seria o pai da criança? E, para falar a verdade, será que isso tinha importância? Com certeza foi um dos desocupados da favela que engravidou Maya. Pode ter sido até aquele homem insolente que mora em frente e que não tem a decência de desviar o olhar quando elas fazem sua toalete diária, O rosto de Bhima ficou vermelho ao pensar nisso. O aborto era o único jeito. O confronto com Ashok Malhotra tirou-lhe a vontade de lutar. Não conseguia imaginar ter que passar por isso com um outro suspeito. E quem lhegarantia que essa sem-vergonha desse a informação certa dessa vez? O rosto de Bhima queimava de raiva pelo desgosto que Maya lhe trouxe. Sua mão direita se contorceu na expectativa dos tapas estalados que queria dar no rosto de Maya. Apressou o passo.

Mas, ao se aproximar da basti, foi tomada por uma estranha relutância em entrar no seu pobre casebre. Notou mais uma vez como a estrutura de lata e papelão era precária e desmantelada, mais parecendo um ninho de um pássaro gigante feito por um bando de corvos bêbados do que um local onde seres humanos habitam. Levantou o sári com a mão direita para impedir que a barra da saia tocasse a água parda, turva e estagnada no chão. Com a mão esquerda, espantava as moscas que enxameavam ao seu redor. Como sempre, sentia aquele desespero desamparado que tomava conta dela quando entrava na favela. Mas hoje aquele desespero tinha marcas de dentes. Sentiu por Maya um ódio nu e cru. Que garota burra e maluca, que sem pensar jogou fora seu futuro como se fosse um jornal velho! Ela também iria morar nesta favela imunda, condenada a viver seus dias do mesmo modo que Bhima tinha vivido. E a sombra da criança abortada iria persegui-la para sempre. Esteve por um fio de sair dali e construir uma vida para si. Mas não escapou à maldição familiar que pairava sobre sua cabeça, como uma garra. A maldição que fez de Maya uma órfã aos sete anos de idade vai deixá-la sem o seu filho aos 17 anos.

É claro que, se hoje não tivesse feito aquela cena na faculdade de Maya, talvez houvesse um jeito de ela voltar para lá. Podia fazer o aborto, ficar em casa descansando durante alguns dias e depois, devagarzinho, ir retomando as aulas. Se algum colega perguntasse, poderia dizer que tinha tido — o que é que Ashok Malhotra disse que os amigos dele tinham? — malária. Ninguém precisaria saber. Mas no momento em que sua neta mencionou o nome de Ashok Malhotra um otimismo estranho e irracional tomou conta de Bhima. A visão da cozinha com as panelas brilhando capturou sua imaginação. Foi como se o diabo estivesse brincando com ela, como se a tivesse contaminado com uma esperança perigosa, atraindo-a até a faculdade de Maya, dançando à sua frente, indicando o caminho até a mesa de Ashok Malhotra, onde a vergonha e o ridículo a esperavam como um prato quente e fumegante de batatas empanadas e apimentadas, as battatawadas. A culpa subiu pelas suas pernas cansadas como uma carga radioativa. Tinha, sem querer, destruído o futuro da neta. Qualquer que fosse o erro que Maya pudesse ter cometido poderia ser corrigido. Mas o que Bhima tinha feito — compartilhado a vergonha da família com um estranho e sujado a honra de Maya diante de um bobo crente e carola, revelando seu segredo a Deus sabe quantos ouvidos curiosos e atentos —, aquilo não podia ser desfeito. Tinha posto sua neta a nu naquela cantina enorme, iluminada e cheia de gente, exposta às flechas venenosas de suas fofocas e seus comentários maldosos.

Talvez tenha sido a culpa o que a fez se voltar contra Maya, assim que esta abriu a porta. Pegando a sandália, que tinha feito um sulco profundo e sangrento em seu pé direito, Bhima esperou até que Maya fechasse a porta empenada. E então, antes que Maya pudesse se afastar, Bhima investiu contra a neta grávida, de quem não podia sequer ver o rosto sem sofrer terrivelmente.

— Venha cá, sua mentirosa sem-vergonha — disse ela, ofegante. — Tome isso e mais isso e mais isso. Quero acabar com você, nunca mais quero ver a sua cara novamente.

Tentando se esquivar dos golpes, as mãos de Maya instintivamente protegeram o abdome. Ela se virou, e a maioria dos golpes de Bhima lhe atingiu as costas.

— Não, vovó — disse ela choramingando, mas depois ficou quieta, encolhendo-se em silêncio a cada chinelada da avó.

Seu silêncio enfureceu Bhima. Queria tirar sangue da neta; mais que isso, porém, queria arrancar lágrimas de Maya, como se as lágrimas fossem batizar a ambas, como se fossem purificá-las e lavá-las desse mal que se infiltrou feito um verme em suas vidas.

— Diga alguma coisa — exigiu ela.

Depois, no ritmo dos golpes:

— Diga... alguma coisa... implore... perdão... sua menina diabólica... você... é um erro do ventre da sua mãe.

Mas, em vez disso, era Bhima que estava quase chorando, abalada pelos acontecimentos do dia — a humilhação, a exaustão, a ofensa e a sensação de impotência de ter sido enganada pela própria neta, e agora também o horror ao seu próprio comportamento incontrolável. A dor nos antebraços a fez parar. Maya se agachou no chão, olhando para ela com grandes olhos assustados. Aquele olhar partiu o coração de Bhima, e ela sentiu vontade de tomar nos braços aquele corpo jovem e trêmulo e cobri-lo de beijos com a mesma intensidade com que o cobriu de golpes há um minuto, mas endureceu o coração. Antes de mais nada, foi essa complacência que permitiu que Maya se afastasse do bom caminho.

— Ashok Malhotra — esbravejou ela. — O pai do seu filho bastardo, não é? Arre, uma perdida como você teria que ter nove vidas para conseguir um rapaz decente, religioso e temente a Deus como ele.

Maya a olhou fixamente.

— Como é que você sabe que Ashok é religioso? — perguntou ela.

— Eu me encontrei com ele. Fui até a sua faculdade hoje para lhe fazer uma proposta de casamento.

Bhima riu com amargura, balançando a cabeça pela sua ingenuidade.

— Você fez o quê? — A histeria aumentou o volume da voz de Maya. — Vó, você fez o quê?

Bhima forçou-se a continuar encarando a neta.

— A culpa é sua. Ou você conta tantas mentiras que se esqueceu do que me disse sobre ele? Na verdade, a culpa é minha. Imagine só, acreditar na palavra de uma cachorra.

Maya se encolheu.

— Não seja tão cruel, vovó, eu imploro. Pode me bater com a chappai ou com um pedaço de pau, pode jogar gasolina em mim e me queimar viva, que não me importo. Mas não me agrida com suas palavras.

— Eu, agredir você? Beta, espere até ver como esse mundo cruel vai tratá-la quando a notícia da sua gravidez se espalhar. Você sabe que a Yasmeen, a muçulmana da basti vizinha, tem que usar o purdah para cobrir a cabeça, não sabe? Bem, você não vai precisar de um. A sua vergonha vai funcionar como um véu.

— E agora você espalhou a minha vergonha feito esterco por toda a faculdade — disse Maya amargamente. — Conheço aquele tal de Ashok. Nunca fui muito com aquele lance Hare Rama dele. Vi como ele adora fofocar, especialmente sobre as meninas de quem não gosta. Ele é um falastrão, parece que nasceu com um alto-falante na garganta. A universidade inteira já deve estar sabendo de tudo.

Bhima engoliu em seco a culpa, com gosto de leite azedo.

— Você deveria ter pensado melhor antes de incriminá-lo falsa-mente. Antes de me olhar nos olhos e me contar uma mentira.

— Você me forçou — disse Maya e, por um segundo, um flash da velha e espirituosa Maya despontou. — Você insistiu, insistiu tanto que eu disse o primeiro nome que me veio à cabeça... o mais improvável. Que importa quem é o pai, vovó? O fato é que o neném está crescendo dentro da minha barriga e não na dele. Isso faz com que isso seja a minha maldição e a minha bênção, e de mais ninguém...

— Bênção? Você se refere a esta, esta coisa que está crescendo dentro da sua barriga como uma bênção? Você ficou louca, menina? Ou está tramando matar a sua avó para herdar esse palácio no qual vivemos?

Maya pôs uma mão insegura no braço magro de Bhima.

— Não fale em morrer, vovó. Você é tudo o que tenho nesse mundo.

“Então é assim que se parte um coração”, pensou Bhima. A sensa-ção é assim tão fria, tão delicada e tão excepcional, como uma nota superaguda de um violino dos discos de música clássica que Serabai ouvia. Bhima queria abraçar Maya e matá-la, salvá-la e destruí-la, tudo num mesmo e explosivo momento.

— Tudo bem — disse ela asperamente. — Não aja como Meena Kumari em algum filme hindi. Vá acender o fogão. O ronco do meu estômago vai espantar até os ratos.

Maya já ia se afastando quando Bhima a reteve.

— Escute aqui, garota. Amanhã vou falar com Serabai sobre levar você a uma clínica de abortos. Já se passou tempo demais.

 

ENQUANTO SERA ESTÁ ESPERANDO O ELEVADOR, ela se pergunta se é seguro deixar Bhima sozinha em casa. Nunca tinha visto Bhima assim tão envelhecida, tão cansada, tão — qual a palavra certa? — derrotada, como parecia hoje. Nem mesmo quando Gopal foi embora, levando consigo a coisa mais preciosa de sua vida. Bhima tinha ficado assustada naquela época, não há dúvida sobre isso, mas ela sabia que ainda era responsável por Pooja e aquela responsabilidade pela filha a encorajava e impedia que desmoronasse. Gopal lhe fez muito mal, mas com Maya foi pior ainda. Ashok Malhotra, puxa vida! Sera tenta sentir raiva de Maya, mas não consegue. Tenta imaginar a Maya de hoje — cautelosa, alterada, defensiva, manipuladora —, mas só se lembra de uma menina tímida e assustada, de sete anos de idade, com um vestido vermelho de babados e sandálias douradas, diante dela e de Feroz, agarrada o tempo todo à mão da avó. Bhima tinha acabado de voltar de Delhi com a neta, tendo viajado a noite inteira de trem, e Sera pôde ver as olheiras profundas em torno dos olhos da menina. Uma órfã dolorosamente magra que Sera conquistou com três pedaços de chocolate Cadbury por dia. A menina, dois meses depois que Bhima começou a trazê-la para a residência dos Dubash enquanto trabalhava, um dia surpreendeu e encantou Sera ao dizer em inglês:

— Cadê meu chocolate?

Foi naquele dia, ou logo depois, que Sera decidiu que ela era uma criança inteligente e merecedora de uma vida diferente daquela que sua avó poderia lhe proporcionar. E que ela, Sera, assumiria a responsabilidade pelos estudos de Maya.

Entra no elevador e vê a senhora Madan, a vizinha do quinto an-dar.

— Como vai, Sera? — diz a mulher. — Há quanto tempo a gente não se vê, querida.

— Estou bem — responde Sera. — E você?

Ela se arrepende de ter perguntado, assim que acaba de falar.

A senhora Madan suspira.

— Chalta hai, chalta hai — diz ela. — A vida continua. A artrite está cada vez pior. Está vendo esse polegar? Está vendo como está inchado e vermelho como um tomate enorme? Baap re, você não pode imaginar como dói. Porém, o que não pode ser curado tem que ser aturado, como costumava dizer meu querido falecido Praful. Mas isso é porque ele nunca teve uma enxaqueca. Às vezes elas são tão fortes que nem consigo abrir os olhos. Graças a Deus, minha empregada sabe exatamente o que fazer nessas ocasiões. Ela está comigo há muito tempo, sabe? Não tanto quanto a sua Bhima, é claro. Isso é verdadeiramente excepcional, devo dizer. Não é de espantar que você a trate como um membro da família, O meu Praful dizia que você permitiu que aquela mulher tomasse conta da sua cabeça, se você não se importa de eu dizer isso. Mas esses homens têm o coração duro, não é? Eles não têm o coração mole como o nosso. Eu sempre digo: Sera vai ser recompensada no céu pelo modo como trata Bhima.

— O céu não tem nada a ver com isso — diz Sera. — Bhima é uma pessoa decente e muito trabalhadora...

— Eu sei, eu sei. É exatamente isso o que digo para todo mundo. Você tem um coração bom como o meu, Sera. Todos os dias você vai visitar a sua sogra idosa. Não pense que não observo, mesmo estando quase cega por causa da catarata. Pode ser que você não vá ao agyari tantas vezes quanto alguns de nós, mas sei que é religiosa a seu próprio modo. Minha querida, está na hora de eu ir buscar o meu remédio. O médico me disse que eu deveria andar todos os dias, mas vou lhe dizer uma coisa, as calçadas estão tão ruins em Bombaim hoje em dia que tenho medo até de sair do edifício. Em todo lugar há bueiros abertos e buracos.

“Essa Mehru Madan é uma idiota”, pensa Sera quando se afastam. Teologia confusa, fatos médicos confusos, cérebro confuso. Ela se lem-bra de que Feroz se referia a Mehru como a Velha do Miolo Mole, e o pensamento a fez sorrir.

Ainda está sorrindo quando entra no elevador do edifício de Banu Dubash. O ascensorista nota o seu sorriso e sorri de volta.

— Salaam, memsahib. Bom dia, madame — diz ele.

Ela retribui o cumprimento levemente com a cabeça, incomodada com o fato de ter sido apanhada desprevenida por um momento.

— Segundo andar — diz ela, embora esteja consciente de que o homem sabe perfeitamente em que andar fica o apartamento de Banu Dubash.

 

O MONSTRO AINDA ESTÁ DEITADO na cama, o cabelo longo e ralo jogado como uma crina de cavalo por sobre o travesseiro. Está dor-mindo quando Sera gira a chave da porta da frente e entra no apartamento. O cheiro conhecido da água-de-colônia Tata e de álcool canforado invadem suas narinas assim que passa pela porta. Como sempre, as cortinas pesadas estão fechadas porque o Monstro gosta que sua toca esteja escura o tempo todo. O apartamento velho tem cheiro de mofo, e Sera tem uma sensação de claustrofobia. Luta contra a necessidade de abrir as cortinas desbotadas e escancarar as janelas para deixar entrar o ar e a luz do sol, tão necessários. Como sempre, seu olho crítico é atraído pelas paredes desbotadas, encardidas, com a tinta descascando, e pensa o quanto gostaria de trazer uma equipe de operários e pintar aquelas paredes antigas de uma cor bem clara. Pelo que lembra, esta casa nunca foi pintada desde que vinha aqui como uma jovem — bem, não tão jovem assim — noiva, há muito tempo. Es-tremece involuntariamente com a lembrança daqueles anos infelizes em que morou na casa do Monstro. Graças a Deus, teve coragem de sair, e a Providência proporcionou-lhe sua própria casa. Não que viver sozinha com Feroz fosse um paraíso. Mas, mesmo assim, era melhor. Já teria pulado da sacada desse apartamento se tivesse continuado a morar com os sogros.

Edna, a enfermeira do dia, está adormecida na grande poltrona no canto direito do quarto onde o Monstro está dormindo, exalando seus roncos ritmados que enchem o espaço com uma música maçante. Sera primeiro vê Edna através do reflexo no espelho de corpo inteiro que cobre um dos painéis do armário de mogno ao lado da cama do Monstro. No segundo painel, há uma pintura vertical de uma cena de floresta, com girafas, elefantes e antílopes. O enorme armário tinha fascinado Sera na primeira vez em que o viu. A casa dos Dubash era cheia de móveis antigos naquele tempo. Havia uma mesa de jantar de mogno entalhado de 12 lugares, duas mesas de centro com tampo de mármore, uma cama de dossel feita de teca maciça.

Sera pigarreia deliberadamente, e o som surpreende Edna, acordan-do-a.

— Oi, madame — gagueja ela, ao ficar de pé. — Não tinha ouvido... Tia Banu dormiu depois da sua toalete matinal, então eu...

— Tudo bem — responde Sera secamente. — E então está tudo direitinho? Correu tudo bem durante a noite?

— A maior parte do tempo, sim, madame. Ela evacuou esta noite, mais ou menos às duas da manhã.

Edna capta a expressão no rosto de Sera e arrepende-se imediatamente do que disse.

— Eu... desculpe, madame. É que pensei que a senhora quisesse sa-ber. Algumas famílias querem saber de todos os detalhes sobre o pacien-te. Sera observa o rosto escuro, ossudo e cansado, as bordas puídas do chapéu branco da enfermeira, o contorno desmaiado de uma mancha marrom no uniforme gasto, e repentinamente sente uma onda de pena e de remorso.

— Não, está tudo bem. Queremos saber o que acontece com ela. E agora, Edna, que tal você fazer um chazinho para a gente? Vou me esticar um pouco ali enquanto você prepara um bule de Brooke Bond.

A sua recompensa é um sorriso alegre e inesperado, claro como o céu lá fora.

— Ótima idéia, madame — diz Edna. — Vou fazer um bule de chá... como é que vocês parses dizem? Fattaa-faat. Rapidinho. Talvez a tia Banu queira um pouco de chá também.

Como se soubesse que estavam falando dela, a velha se mexe na cama. Pela enésima vez, Sera fica admirada com a onisciência de sua so-gra. Durante os anos em que viveu nesta casa, acreditou verdadeiramente que Banu tinha três olhos extras incrustados atrás da cabeça. Não importava o quão discretamente ela e Feroz tentassem discutir sobre alguma coisa, não importava quão baixa Sera tentasse manter a voz durante uma dessas brigas, Banu parecia saber exatamente o que tinha ocorrido no quarto deles. Uma vez, tentou dizer isso a Feroz.

— Você já reparou o jeito como a sua mãe olha para mim sempre que a gente briga? O que é que ela faz? Fica nos espionando ou algo assim? Sempre tento esconder os nossos problemas, mas todas as vezes ela parece saber que há alguma coisa entre nós.

— Você está menstruada?

— O quê?

— Está na época do seu ciclo? — repetiu Feroz. — Porque é quando você fica histérica e paranóica desse jeito, achando que as pesso-as a estão espionando. Daqui a pouco você vai ficar igual àquelas americanas estúpidas que acreditam em óvnis e essas coisas.

Encarou o marido em silêncio, mais magoada do que se achava no direito de ficar pelo desprezo demonstrado por suas preocupações.

— Está bem, Feroz — disse ela finalmente. — Continue debochando de mim.

— Bom, se o que você diz fizesse sentido, eu não teria que fazer isso, minha querida. Agindo como se minha mãe não tivesse mais nada que fazer a não ser perder tempo vigiando você.

Quando Edna sai do quarto, Sera resiste ao impulso de segui-la até a cozinha. Mesmo depois de todos esses anos, e apesar de Banu estar atualmente indefesa e paralisada, ainda fica pouco à vontade quando está sozinha com a sogra. As más recordações fazem algazarra em seu ouvido, como macacos pulando nas árvores em Khandala. Há muitos fantasmas aqui e, apesar dos resquícios fantasmagóricos e semimortos da velha paralisada deitada na cama em frente a Sera, a morta que ela mais lamenta e chora é a jovem mulher que jaz enterrada nesta casa. Com que esperanças aquela mulher recém-casada tinha chegado à casa de seus sogros! Com que fervor tinha sido perseguida e seduzida pelo homem que se tornou seu marido e que a trouxe para dentro desta casa como se ela fosse um objeto precioso, uma peça frágil de porcelana fina. Como eram radiosos e brilhantes aqueles dias, como se alguém tivesse pendurado um sol extra no céu de Bombaim. Ela e Feroz já eram um pouco mais maduros na época, não eram exatamente jovens, mas isso tornou seu brilho ainda mais fascinante, porque tinha sido inesperado e difícil de conseguir. Encontraram um ao outro quando nenhum dos dois esperava mais por isso.

 

OUVE A ENFERMEIRA ARRUMANDO as xícaras de chá na banca-da da cozinha.

— O chá está quase pronto, madame — diz Edna lá da cozinha. — Uma xícara bem quente de chai saindo.

Sera não responde, com medo de acordar a velha. “É melhor não acordar os cães que estão dormindo”, pensa ela, e depois sente um aperto de culpa ao comparar a sua sogra com um cão. Ainda assim, aproveita aquele seu momento de privacidade e fuga dos olhos observadores de Banu. Apesar de o derrame ter deixado Banu indefesa e entrevada e do fato de ela mal conseguir falar, os olhinhos da velha, pequenos como duas contas, normalmente seguiam a nora pelo quarto, observando cada movimento seu, como fazia no início do casamento de Sera.

Agora, aproveitando-se do fato de Banu ainda estar dormindo e seus olhos de dardos ainda estarem fechados, Sera vai pé ante pé até a velha. Banu dorme com a boca aberta, respirando ruidosamente e, a cada três respirações, solta um ronco gutural. Um fio grosso de baba escorre de sua boca no travesseiro. Essa visão faz Sera ficar enjoada. Apesar de vir todos os dias dar uma olhada na sogra, Sera nunca consegue controlar a sensação de náusea e enclausuramento que a envolve quando está neste apartamento. Olha para Banu, percebe a mulher encolhida e imóvel, deitada numa cama que parece ter crescido à sua volta, e vai até o fundo de si mesma buscar um pouco de piedade, mas volta de mãos vazias. Ou melhor, puxa um fio infindável de uma corda, como aquela usada para fazer baixar os baldes dentro dos poços nos templos de fogo parses. Na corda, estão entrelaçados a amargura e o ressentimento. A corda está negra e chamuscada em suas mãos, queimada por sua fúria escaldante. Após todos esses anos, Sera Dubash, amiga leal, mãe amorosa, patroa benevolente, vizinha prestativa, generosa patronesse das artes, não consegue perdoar esse resto de mulher que está deitada diante dela. Fica ao mesmo tempo envergonhada e animada com o pensamento.

Os olhos de Sera se dirigem para o grande retrato a óleo de seu sogro, Freddy Dubash, que está pendurado acima da cama de Banu. Freddy está com uma expressão séria no quadro, o que não era uma característica dele, mas a visão de seu amado papagaio, Polly, empoleirado em seu ombro direito, a deixa feliz. Se os primeiros dias de seu casamento tinham sido como uma mina escura de carvão, Freddy era aquele único raio de luz que brilhava no capacete do mineiro. Ele foi a razão pela qual ela não tinha se desequilibrado completamente.

Sera sorri involuntariamente, como sempre faz quando se recorda do sogro. Olhando para a careca de Freddy e o seu rosto familiar, lembra-se de quando o conheceu e, é claro, do onipresente Polly. Três meses depois de começarem a namorar, Feroz convidou Sera para ir à casa de seus pais num domingo à tarde. Freddy Dubash, um dos mais bem-sucedidos advogados de Bombaim, entrou na sala vestindo um robe de chambre vermelha bordada, com um papagaio pousado em seu ombro.

— Sou Farokh Dubash — disse ele. — O pai do Menino Maravilha. Mas todo mundo me chama de Freddy.

— Prazer em conhecê-lo — murmurou Sera.

— Feroz me contou que você gosta de música clássica. É verdade?

— Meu pai e eu íamos aos concertos em Homi Bhabha desde que eu tinha sete anos — respondeu Sera com simplicidade. — Ele gosta muito de música.

Freddy virou-se para o papagaio

— Polly, temos uma nova amiga. Dê o pé para cumprimentar uma companheira amante da música. Vamos lá. Dê o pé.

O pássaro levantou a garra encurvada e a estendeu. Sera virou-se para Feroz insegura, sem saber o que fazer. Ele parecia distante.

— Vá até lá pegar no pé do bicho — disse entediado. — Aí então sua iniciação nesta família louca estará completa.

Banu estava para lá e para cá, parecendo incomodada.

— Francamente, Freddy... — começou ela, mas Sera foi em direção a Freddy com a mão estendida.

— Como vai você? — perguntou Polly quando Sera levou a mão à altura de sua pata.

Notando o olhar de surpresa em seu rosto, os outros começaram a rir.

— É uma brincadeira do meu marido — disse Banu, a voz com uma pitada de vergonha e de orgulho. — Ele levou semanas para ensinar Polly a fazer isso.

— Que semanas, que nada! — exclamou Freddy. — Ele aprendeu em poucos dias. Isso é porque os papagaios são pássaros de uma inteligência fora do comum — acrescentou, dirigindo-se a Sera. — Muito mais inteligentes do que os cães, se quiser saber a minha opinião.

— É claro, é claro, papai. Você ensinou esse truque ao Polly em poucas horas — disse Feroz de maneira indulgente. — Em minutos. Afinal, esse maldito pássaro é mais inteligente do que seu próprio filho. O Polly é na verdade o filho que meu pai nunca teve — acrescentou, virando-se para Sera. Ela pensou ter percebido um traço de amargura na voz de Feroz, mas seu rosto estava sorridente.

Freddy ignorou o filho.

— Polly gosta de você — disse ele para Sera. — Assim como eu, ele reconhece um amante da música a quilômetros de distância.

“Por que é que o pappa Freddy tinha que morrer antes do Monstro?”, pensa Sera, não pela primeira vez. Depois de todos esses anos, ainda pensa no excêntrico Freddy de bom coração como o seu salvador, o homem que a salvou desta casa infernal.

Banu resmunga em seu sono, como se estivesse atormentada pelos seus próprios sonhos e pensamentos. Por um segundo seus olhos se a-brem, desfocados, e no instante seguinte está roncando novamente. Ainda assim, Sera sabe que a velha vai acordar a qualquer minuto. Ouve Edna equilibrando as duas xícaras de chá, preparando-se para entrar no quarto. Olha em volta rapidamente, sentindo-se culpada. Edna está quase dentro do quarto quando Sera se inclina em direção á mulher que está dormindo, como se fosse acariciar sua testa. Lança um último e furtivo olhar ao seu redor antes de sua mão mudar de trajetória. A palma da sua mão aberta se fecha, e o polegar e o indicador se juntam como pinças.

No momento em que Edna entra no quarto, Sera pega a bochecha mole, caída e sem vida de Banu entre os dedos e lhe dá um beliscão. Com força. Seu coração pula no peito. Fica esperando a velha acordar com um grito, mesmo sabendo que o rosto paralisado de Banu não sentiu o ataque. Banu continua dormindo, perdida em seu próprio e fétido mundo de sonhos. O remorso e a vergonha por seu comportamento infantil entram nas veias de Sera como uma fumaça cinza. Ainda assim, sabe que amanhã vai executar novamente o mesmo ritual. É a única maneira que tem de construir uma pequena vitória para a garota idealista e cheia de esperança que jaz enterrada no túmulo que é esta casa.

A culpa faz Sera mexer dentro da bolsa e puxar uma nota de cem ruptas.

— Isso é para as suas crianças — diz a Edna. — Compre uns chocolates para eles quando voltar para casa hoje.

 

SHYAM, O VIZINHO COM O ROSTO MARCADO de varíola que mora do outro lado da vala, interrompe Bhima quando ela está prestes a entrar em seu casebre.

— Namaste, mausi — cumprimenta ele. — Dia comprido hoje, né?

Bhima faz que sim com a cabeça.

— Todo dia é comprido quando se está trabalhando — responde. Depois, lembrando-se que Shyam tinha perdido o emprego há dois meses, sorri arrependida para assegurar que ele não veja nenhum traço de censura na sua resposta.

Mas seu vizinho não parece ofendido.

— Hahji — concorda ele. — A senhora está certa. Então, Bhima mausi, a senhora vai comparecer ao nosso encontro com o administrador amanhã à tarde?

— Que encontro? — pergunta Bhima, mas se lembra antes mesmo de terminar a pergunta. Dias atrás Bibi tinha lhe dito que os habitantes da comunidade tinham conseguido marcar um encontro com um dos chefões da municipalidade para vir visitar a favela. Entre as muitas rei-vindicações, os residentes da comunidade estavam pedindo à prefeitura que instalasse mais algumas bicas d’água. — Ah, sim, já me lembrei — diz ela antes que Shyam possa responder. — Alguém mencionou alguma coisa. Mas o que fazer, Shyam, se tenho que trabalhar na casa da minha patroa? Se não trabalho, não como!

Shyam se encolhe, e Bhima se recrimina por sua falta de sensibilidade.

— Sim, mausi, sei o que a senhora está dizendo — diz ele numa voz cheia de ironia. — Pelo bem deste estômago prostituído, a gente tem que fazer de tudo e por tudo. Mas o bem-estar desta favela também é uma causa justa, não é mesmo? Com certeza a sua patroa pode lhe dar algumas horas de folga.

Bhima se sente acuada. A simpatia inicial que sentia por Shyam transforma-se em ressentimento. Está cansada, abatida, ansiosa para entrar em seu barraco e fechar a porta para o mundo lá de fora. Sua garganta coça na expectativa de uma xícara quente de chá com leite e açúcar que espera que Maya tenha se lembrado de preparar. Não quer mais perder tempo com esse bobo desempregado.

— Minha patroa precisa de mim — diz rispidamente. — Quanto à favela, é para isso que a gente tem vocês, homens, para cuidar das nossas necessidades, para conversar e debater com as autoridades. Sou apenas uma mulher pobre e analfabeta, só sirvo para cortar cebola e usar uma vassoura. E, falando em cebola, tenho que fazer o jantar para mim e minha neta. Então, com a sua permissão, me dê licença, por favor.

Já está com a mão na porta quando o som do nome de Maya na boca de Shyam a impede de ir adiante.

— Ah, falando nisso — diz ele, e mesmo na luz do crepúsculo ela vê na sua boca um traço de crueldade —, por falar em Maya... a minha Rehka foi à sua casa hoje mais cedo. A gente estava precisando de açúcar, e a minha mulher pediu a Rehka para ir pegar um pouco emprestado. Temos notado que Maya não tem ido à universidade esses dias, então a minha mulher tinha certeza de que havia alguém em casa.

Bhima sente seus músculos do estômago se contorcerem. Alguma coisa está a caminho, e ela tem certeza de que não é nada bom.

— E o que é que isso tem a ver com Maya? — pergunta sem tentar atenuar a rispidez da voz.

— Calma, calma, mausi. — A voz de Shyam desliza como uma cobra em meio à escuridão crescente. — Ainda não acabei. O que estou querendo dizer é que a minha pequena Rehka foi à sua casa e encontrou Maya vomitando num canto e segurando a barriga. E quando a minha filha tentou ajudar, Maya se virou contra ela como uma víbora e a mandou embora. Isso é maneira de tratar alguém que é vizinho na basti?

— Vou falar com Maya — disse Bhima. — Ela está gripada há muitos dias, coitadinha.

— Gripe, é? — A voz dele ficou ainda mais macia. — Tipo estranho de gripe para durar tanto tempo assim. Há pessoas aqui na basti que dizem que ela já está vomitando há um mês ou dois. De toda forma, com todas as moscas e ratos e a água suja dessa favela, imagino que tudo seja possível.

Bhima resiste ao impulso de arranhar aquela cara bexiguenta. Em vez disso, diz numa voz calma e controlada:

— Mande Rehka vir aqui em casa, Shyam. Vou dar um pouco de açúcar para ela.

O rosto de Shyam se ilumina imediatamente. Sua transformação faz Bhima se lembrar da cobra no templo Mahalati que abaixa a crista assim que o alto sacerdote põe uma cuia de prata com leite diante dela.

— Bhima mausi, eu sabia que podia contar com a senhora. — Ele dá um sorriso forçado. — Assim que conseguir um emprego, quero pagar todas as minhas dívidas. A menina vai até aí daqui a pouquinho.

Bhima espera até que Rehka tenha saído com meia xícara de açúcar antes de se virar para Maya. Seus olhos vasculham o quarto. Nota que a neta não preparou o tão esperado chá.

— O que é que você fez hoje? — pergunta, e a secura de sua voz é um aviso.

— Nada — responde a garota cautelosamente.

— Nada — repete Bhima para o ar. — A princesa barriguda ficou aí deitada o dia inteiro sem fazer nada.

O rosto de Maya está impassível como uma tábua, no entanto seus olhos transbordam de lágrimas. Mas Bhima não está satisfeita.

— Você ouviu o que aquele badmaash estava me falando sobre você? — indaga ela.

— Me deixe em paz, vó — diz Maya. — Não estou me sentindo bem. — Sua voz era tão frágil quanto um pote de barro.

Bhima abre a boca para responder e depois a fecha. A garota parece realmente doente.

— Está bem — diz, mal-humorada. — Fique deitada uns minutos enquanto preparo o jantar.

Como se tivesse detectado a diferença no tom de voz da avó, surge um brilho nos olhos de Maya.

— Posso ajudar, vovó — diz ela. — Você deve estar cansada.

Bhima se espanta ao perceber que a neta parece um daqueles cachorros loucos para agradar. Um cachorro assustado por estar apanhando, mas que, assim que pára de apanhar, começa a abanar o rabo novamente.

— Tudo bem, então. Pique duas cebolas — diz ela. — E bote o arroz para cozinhar. Vou fazer um legume para o jantar.

Acocorada perto do fogão junto com a neta, Bhima ouve o estômago de Maya roncar.

— Você comeu hoje? — pergunta ela bruscamente.

— Comi. Não. Quer dizer, tentei. — Maya parece muito mal.

— No almoço, me deu vontade de comer um ovo cozido. Mas como não tinha ovo em casa e eu... eu não estava com vontade de ir fazer compras na rua, tentei comer um chappati. Mas fiquei enjoada e não comi a panqueca assada.

Lembrando-se da omelete que Serabai tinha feito hoje cedo para ela, Bhima sente seu coração se contorcer de vergonha.

— Sua boba — diz a avó em tom de repreensão. — Você está ficando preguiçosa. Não pode ir até a esquina para comprar um ovo?

De repente, sem explicação, Maya começa a chorar.

— Ir até a esquina? Às vezes gostaria de poder sair deste quarto e ir andando até que meus pés virassem asas. Ir para algum lugar onde nin-guém me conheça, onde uma centena de olhos curiosos não estejam me seguindo. Você não sabe o que é ficar sentada aqui o dia inteiro com a porta fechada, ouvindo os sons do mundo exterior, portas batendo, crianças brincando, as mulheres da favela conversando e eu imaginando que elas estão falando de mim. Eu me sinto como uma prisioneira, mas aí então me pergunto: e quem é o meu carcereiro? Sou eu mesma. Não sei o que é pior, vovó, se é este quarto sem eletricidade ou o véu da vergonha que caiu em cima da minha cabeça.

Os soluços de sua neta atingem o peito de Bhima como socos, mas, mesmo assim, está contente. Deixa a menina chorar. Deixa-a se arrepender pelo que fez. Põe um prato de comida diante da garota que chora, desviando resolutamente o olhar das lágrimas de Maya que caem sobre o arroz.

— Coma — resmunga ela. — Uma moça no seu estado tem que comer.

Depois do jantar, Bhima pega a lata de tabaco e enfia um pouco na boca. Mascando lentamente, olha para a neta.

— Escute — diz ela. — As pessoas estão falando. E você não vai poder esconder a sua vergonha aqui neste quarto para sempre. Logo, logo, mesmo essa roupa larga, o seu salwar-khamez, não vai conseguir esconder a sua barriga. E já se passou tempo demais. Temos que levar você ao médico o quanto antes.

Para sua grande surpresa, Maya não faz objeção alguma.

— Eu vou — diz ela. — Só tem uma condição: quero que Serabai vai ao hospital comigo em vez de você.

Bhima se surpreende ao ver como essa rejeição a magoou. Para encobrir seus sentimentos, diz, ranzinza:

— Serabai tem várias coisas mais importantes a fazer do que levar uma garota sem-vergonha a uma clínica de abortos. Eu ficaria envergonhada de pedir isso a ela. Além do mais, isso é um assunto da nossa família. Por que é que você quer envolver aquela pobre mulher? Ela já não lhe fez muitos favores?

Maya parece cansada.

— Pergunte a ela. Sei que não vai dizer não. Eu lhe imploro, vovó.

Depois, vendo o olhar teimoso no rosto de sua avó, acrescenta:

— Você sabe que eles vão cuidar melhor de mim se eu estiver com alguém como ela. Quero que tudo corra da melhor maneira possível.

Bhima fica envergonhada. Ela se lembra do dia em que Gopal, gra-vemente doente, ficou jogado e abandonado no hospital público. Sera e Feroz Dubash tinham entrado lá como dois artistas de cinema e fizeram com que ele tivesse o melhor atendimento. Maya está certa. Rica, confiante e bem-falante, Serabai tem um jeito de fazer as portas se abrirem como mágica. Bhima decide falar com ela de manhã.

 

NAQUELA NOITE, DEITADA em seu fino colchão de algodão, Bhima rememora a conversa com Shyam. Conseguiu tirar o veneno da cobra, por ora pelo menos. Tinha comprado seu silêncio com meia xícara de açúcar. Mas por quanto tempo? Shyam não é dos mais inteligentes. Se notou o mal-estar matinal de Maya, com certeza isso chamou a atenção das mulheres com olhos de águia e dentes manchados de paan, cujas folhas mascam após as refeições, e das línguas fofoqueiras que povoam a favela. Será que não comentaram nada por respeito a ela, Bhima? Se assim for, por quanto tempo vai durar esse silêncio? Ou será que simplesmente vai ser a última a saber? Será que os boatos estão circulando pela favela como pipas negras no ar, e ela é tão burra e ignorante que não percebe nada? Afinal, não tem nenhum amigo de verdade nesta basti. Depois que se mudou de seu apartamento de dois quartos no chawl onde ela e Gopal moravam e teve que descer a este inferno, adotou uma postura que sugere que não é daqui. Essa é uma das razões pela qual não tem interesse em freqüentar essas estúpidas reuniões com esse ou aquele político. Mesmo com mais cinco bicas d‘água, a favela ainda vai continuar sendo uma favela. E já viveu em condições melhores do que essa. Sabe que esse jeito indiferente faz dela alvo das recriminações das vizinhas, mas não se importa. Pelo menos pelo bem de Maya, tem que acreditar que a vida delas ali é temporária. Às vezes, quando está pulando uma valeta ou espantando moscas, acocorada para defecar, é difícil acreditar nisso. Mas se agarrou a essa crença, ao menos até o dia em que voltou para casa e encontrou Maya de cócoras no chão com uma poça de vômito a seu lado. Como sua neta não tinha parado de vomitar três dias depois, Bhima a arrastou à clínica do doutor Premchand, pensando que fosse um caso agudo de gripe estomacal ou intoxicação alimentar. Em vez disso, ficou sabendo que Maya estava grávida.

Pensar na favela faz Bhima lembrar seu apartamento no chawl, seu reino perdido, e sente aquela velha saudade pelo que ficou para trás.

Gopal é engraçado, mas tem pensado mais no marido desde que Maya ficou grávida do que em todos os anos anteriores. Pensou que tinha se acostumado com a solidão da própria vida, que tinha aceitado aquele ponto anestesiado em seu coração, como se um médico lhe tivesse aplicado éter. Mas talvez o veneno da traição de Maya tenha posto sal na ferida de uma traição anterior. Talvez seja isso. Agora precisa de um homem para ajudá-la a navegar nessas águas escuras para onde a neta desmiolada a tinha trazido. Talvez o tempo não cure as feridas de jeito nenhum, talvez essa seja a maior mentira de todas. Em vez disso, o que acontece é que cada ferida penetra mais e mais fundo no corpo até que um dia você descobre que a própria geografia dos seus ossos — os traços do seu rosto, a forma dos seus quadris, o ângulo dos seus ombros, e também o brilho dos seus olhos, a textura da sua pele, a franqueza do seu sorriso — sucumbiu sob o peso das mágoas.

Gopal. Se fechar os olhos por um momento, ainda consegue ouvir o trim-trim da campainha de sua bicicleta no dia em que começou a cortejá-la daquele seu jeito estranho e direto; ela tinha vinte anos e a vida toda pela frente, como um jardim verdejante.

 

ELA O VIU PELA PRIMEIRA VEZ no dia anterior, no casamento de sua melhor amiga, Sujata. Agora, estava esperando pelo ônibus número 5, que a levaria à casa de Dinu Shroff, a patroa para quem trabalhava. Rhima se apoiou na grade da parada de ônibus e fechou os olhos cansados. Chegaram em casa tão tarde depois do casamento de Sujata que só conseguiu dormir umas cinco horas. Tinha cochilado por um segundo quando ouviu o som de uma campainha de bicicleta.

— Acorde, acorde — disse uma voz que não lhe era familiar. — Ou os monstros do sono vão ficar tentados a raptá-la.

Bhima abriu os olhos e imediatamente os fechou quando viu o rosto de Gopal diante dela. Aquele idiota descarado era primo de Sujata e ontem piscou para ela e a tirou para dançar, como se achasse que ela não era uma moça de família. “Ai, Bhagwan”, rezou ela, “faça com que ele tenha ido embora quando eu abrir os olhos novamente”.

Suas preces não foram atendidas. Quando abriu os olhos, ele ainda estava sorrindo, montado em sua bicicleta.

— Namaste — disse ele. — Fui obrigado a acordá-la. Se dormir ainda mais o sono da beleza, vai acabar cegando o sol.

Bhima resmungou:

— Por favor, guarde essas brincadeiras idiotas para si mesmo. Não estou com espírito para isso.

— Não está para brincadeira? Bem, que situação lastimável, minha cara Bhima. Acho então que é minha obrigação fazer com que você entre no espírito da coisa.

Como é que ele sabia seu nome? Antes que pudesse perguntar, o homem que estava na fila à sua frente virou-se e perguntou:

— Esse malandro aí a está importunando?

Imediatamente Gopal levantou a voz.

— Ae, cuide da sua vida, yaar. Não se meta entre um homem e sua noiva sem nenhuma razão. Isso é mammala particular, entendeu?

O homem recuou diante do olhar sério de Gopal.

— Tudo bem, desculpe, estava só tentando...

— Tentando morreu um burro.

Gopal tirou vantagem da situação.

— Esse é o problema aqui em Bombaim, tem gente demais interfe-rindo nos assuntos particulares dos outros.

E, quando o homem se virou, Gopal piscou para Bhima.

Ela desviou o olhar e viu um ônibus vermelho BEST se aproximan-do. Era o número 5. Estaria livre desse chato em menos de um minuto. De manhã cedo, o ônibus estava meio vazio. Bhima sabia que em uma hora o ônibus ficaria tão cheio que haveria pessoas penduradas na porta aberta e seria difícil até pôr o pé para embarcar. Mas nesse horário, ainda podia escolher o lugar e sentou-se à janela na parte da frente do ônibus. Desamarrou o nó na ponta do sári para pegar as moedas e pagar a passagem.

No instante seguinte, levou um grande susto quando uma mão agarrou a barra de metal que havia na janela, perto da qual estava sentada. Por um momento, achou que era alguém do lado de fora tentando roubar o dinheiro da passagem de ônibus. Mas era Gopal, em sua bicicleta, pedalando furiosamente para acompanhar a velocidade do ônibus com uma das mãos na barra de metal e outra no guidom.

— Seu idiota! — exclamou ela. — Você quer morrer?

Em resposta, Gopal cantou para ela.

— Mere sapono ke rani kab aayegi tu? “Rainha dos meus sonhos, quando é que você vai chegar?”

Ele tinha uma voz forte e profunda, e quanto mais pedalava ao lado do ônibus, mais alta sua voz ficava.

Num esforço para dissuadi-lo desse ciclismo louco, Bhima se afastou da janela e sentou-se perto do corredor. Na parada seguinte, porém, mais gente entrou, e ela foi forçada a voltar para a janela. Com o rabo do olho, notou como Gopal sabiamente driblava o trânsito caótico de Bombaim, sem largar a barra de metal. Se estava preocupado que o ônibus desse uma parada brusca em algum ponto e o projetasse da bicicleta, não demonstrava nada pelo jeito displicente e confiante de segurar a barra de metal.

Gopal ainda cantava a mesma música, e, por fim, o homem atrás dela disse:

— Arre, yaar, não conhece outras músicas, não? Se vai fazer serenata para a moça, devia ter mais do que uma música no seu repertório.

Gopal seguiu a sugestão e começou a cantarolar outra música, cheia de duplos sentidos e insinuações. Agora, vários passageiros já tinham embarcado na brincadeira, fazendo-lhe pedidos de músicas. Bhima rangeu os dentes. Esse Gopal realmente estava passando da conta. Estava louca para ter nas mãos naquele momento a vassoura que usava na casa de Dinubai. Ia acabar com aquele sorriso imbecil dele se tivesse a jharoo ali com ela.

Sua irritação e a vergonha que sentia quase a fizeram passar do ponto em que ia saltar.

— Espere, espere — berrou Bhima para o motorista. — Essa é a minha parada.

Quando desceu, esperou o ônibus sair para poder enfrentar Gopal e dizer-lhe que tinha que parar com aquelas bobagens. Para seu desapontamento, o viu pedalando, indo embora ao lado do ônibus. E, como se ele soubesse que ela estava olhando, levantou a mão direita num aceno. “Que covarde”, pensou Bhima. “Sabia que ia levar uma bronca e se mandou”.

No dia seguinte, lá estava ele de volta. Mas dessa vez esperou sentado na bicicleta do outro lado da rua, longe demais para ela poder lhe dizer qualquer impropério. Bhima se esforçou ao máximo para se impedir de olhar na direção dele, mas cada vez que seus olhos se encontravam, ele apertava dramaticamente o coração. “Que idiota!”, pensou ela. “Espero que tenha um ataque cardíaco e caia da bicicleta da próxima vez que apertar o peito”. No instante seguinte, seu corpo se enrijeceu de remorso diante da perversidade de seus pensamentos.

Ficou aliviada quando o ônibus chegou. Sentou-se no lugar de costume e, cinco segundos depois, havia aquela mão conhecida segurando a barra de metal. Desta vez, não fugiu de seu assento, chocada, mas sentiu um ligeiro tremor de surpresa e irritação por sua audácia. Tinha realmente acreditado que hoje ele a deixaria em paz. “Rainha dos meus sonhos, quando é que você vai chegar?” Aquela música de novo. E, de novo, a habilidade de esquivar-se, de zanzar em meio ao trânsito. Os outros passageiros, muitos dos quais pegavam o mesmo ônibus todos os dias, davam risadinhas.

— Arre, bhenji — disse do outro lado do corredor o seu suposto “salvador” de ontem... — Por que a senhorita não diz logo sim ao seu homem e acaba com esse sofrimento? Ele está arriscando a vida por sua causa.

Bhima lançou-lhe um olhar furioso, e o homem continuou a ler o jornal, resmungando consigo mesmo sobre as astúcias do sexo frágil.

Durante as três semanas seguintes, Gopal repetiu a mesma rotina. Alguns dias, esperava por ela do outro lado da rua e depois pedalava furiosamente, atravessando quatro pistas de trânsito para conseguir acompanhar o ônibus quando este chegava. Outras vezes, ele a cumprimentava com o trim-trim da campainha da bicicleta e circulava em volta do ponto de ônibus até Bhima ficar tonta. A única diferença entre o primeiro dia dessa estranha paquera e os dias que se seguiram foi que ele não falou mais com ela. Mas o sorriso maroto, as manobras arriscadas na bicicleta enquanto esperavam a chegada do ônibus e a serenata alegre continuaram iguais. E também o fato de que se afastava junto com o ônibus depois de ter deixado Bhima a algumas ruas de distância da casa de sua patroa. Bhima queria falar com ele, pedir alguma explicação sobre aquele comportamento maluco, mas a presença dos outros passageiros a constrangia.

Um dia, durante essas três semanas, Bhima chegou ao ponto do ônibus e notou imediatamente que Gopal não estava lá. Seu lado racional lhe disse para suspirar aliviada, mas seu corpo sentiu um desapontamento e uma sensação de frustração. Aparentemente, seus companheiros de viagem sentiram a mesma coisa.

— O rapaz não veio hoje — constatou um senhor mais idoso de kurta branca e dhoti, de túnica e pano solto envolto ao corpo. — Me pergunto se estará bem de saúde.

Uma sensação de letargia tomou conta de Bhima ao entrar no ônibus. “As sete paradas até a casa de Dinubai vão durar uma eternidade sem a distração oferecida por Gopal”, pensou, surpreendendo-se. Olhou para a barra de metal solitária e vazia com uma sensação quase melancólica, sentindo saudade daquela mão morena com pêlos grossos e escuros que geralmente a segurava. Quando o ônibus arrancou, ela olhou para trás a tempo de ver Gopal pedalando furiosamente para acompanhar o ônibus. No minuto seguinte, sua mão já estava pousada triunfantemente na barra de metal.

— Oi, minha rainha — disse aquela voz familiar. — Quase me de-sencontrei de você hoje porque dormi um pouco demais.

— Vejam só o nosso jovem herói — exclamou o senhor idoso, e os poucos passageiros habituais aplaudiram. — De um jeito ou de outro, ele conseguiu!

Os aplausos deixaram Bhima irritada. “Que idiotas!”, pensou ela. “Encorajando esse cara a agir como um bobo”. Mas ela não conseguia conter a ligeira sensação de prazer que a invadiu quando viu Gopal peda-lando a seu lado. Depois, ao final de três semanas, Gopal desapareceu. Todo dia de manhã, Bhima procurava por ele quando chegava ao ponto do ônibus, temendo ouvir o som da campainha da bicicleta e, ao mesmo tempo, esperando por ele, pelo sorriso maroto no rosto do rapaz olhando para ela e cantando um repertório de músicas cada vez maior. A cada dia que embarcava no ônibus, embora se odiasse por fazer isso, olhava para trás a fim de ver a bicicleta que lhe era familiar. Às vezes, quando via alguém parecido com Gopal, seu coração disparava de alegria e, num contraponto inevitável, quando voltava ao ritmo habitual, ela se recriminava por aquela bobagem. Outros dias, quando tinha certeza de que ninguém estava olhando, segurava de leve na barra de metal com seus dedos longos, fazendo de conta que ainda sentia o calor da mão de Gopal.

Mas Gopal tinha sumido. Ela o tinha afastado com seu comporta-mento rígido, transformando o seu interesse em indiferença. Bhima o imaginava numa outra parte da cidade, cortejando outra moça com outra música. Esse pensamento fez Bhima picar as cebolas com tanta força que Dinubai olhou para ela com curiosidade e perguntou se estava se sentindo bem. Bhima levantou a cabeça com os olhos transbordando de lágrimas.

— Está tudo bem, bai — disse ela. — Essa cebola é muito forte, só isso. Está me fazendo chorar.

Mas Bhima não precisava ter se preocupado. Sujata e seu marido, Sushil, vieram com uma proposta de casamento. Apesar de Gopal ser primo de Sujata, foi Sushil quem conduziu a maior parte da conversa.

— Gopal não tem parentes imediatos aqui em Bombaim para falar por ele — explicou Sushil para Prithviraj, pai de Bhima. — Sua mãe mora num vilarejo no interior, e seu pai, que Deus o tenha, é falecido. Assim sendo, faço essa proposta de casamento em nome do irmão mais velho de Gopal. Podemos assegurar a firmeza do seu caráter, assim como de sua capacidade para enfrentar o trabalho pesado. Ele tem um bom emprego fixo numa fábrica e ganha bem. A sua Bhima não vai passar necessidade. Ah, e tem mais uma coisa: Gopal me disse expressamente para mencionar que não espera e nem deseja nenhum dote.

Prithviraj tentou não deixar sua satisfação transparecer.

— Vou consultar minha família e dou a resposta dentro de alguns dias — disse ele. — Mas quero dizer uma coisa: uma proposta de casamento feita por uma família tão boa quanto esta me agrada muito. Afinal, Sujata cresceu diante dos nossos olhos. Rezo para que minha Bhima encontre um marido tão bom quanto você, Sushil.

Casaram-se um mês depois numa cerimônia simples, em franco contraste com o brilho que tinha ornamentado o casamento de Sujata alguns meses antes. Durante a cerimônia, Gopal parecia tão atordoado e aterrorizado quanto Bhima. Não havia nem vestígio daquele rapaz maroto que a tinha perseguido com tanta intensidade. Mas, assim que ela ficou sozinha pela primeira vez com o marido, depois que levantou o pallov, o véu, do sári de seu rosto e os dois se sentaram no leito nupcial, o velho e irreprimível Gopal voltou a cena. Olhando fixo em seus olhos e com um sorriso maroto no rosto, começou a assobiar desafinado a música com que tinha feito a primeira serenata para ela. “Rainha dos meus sonhos, quando é que você vai chegar?” Incentivado pelos risos de Bhima, o assobio ficou mais forte, até que se transformou num cantarolar. Ela riu ainda mais quando ele segurou seu queixo e fez cócegas na sua barriga.

— Pare com isso — disse ela baixinho, sem se defender. — Você é maluco.

De um salto, Gopal se pôs de pé em cima da cama. Levantou as mãos acima da cabeça como um boxeador vitorioso.

— Sim, sou louco, o louco chefe da família — declarou, modulando a voz, para que os parentes que, com toda a certeza, estavam escutando atrás da porta do quarto não pudessem ouvir. — E você é uma louca por ter se casado com esse louco. Mas, minha Bhima, vamos nos divertir muito pelo resto das nossas vidas! Espere só, mulher! Vou tratá-la como a rainha que você é.

 

PENSANDO EM SUA NOITE DE NÚPCIAS, na promessa não cumprida de Gopal, Bhima se remexe inquieta. Sabe que tem que tentar dormir, mas sua cabeça fervilha ao percorrer os corredores repletos de gente do passado. Ao seu lado, Maya ronca suavemente e, de vez em quando, murmura alguma coisa. Instintivamente, Bhima reage com essa nova emoção com a qual se acostumou desde que ficou sabendo da gravidez de Maya, uma combinação de proteção insuportável e forte irritabilidade. Ouvindo os roncos e murmúrios da neta, Bhima sente vontade de sufocá-la com um travesseiro e também de pegá-la nos braços e niná-la a noite inteira. Quer preservar a inocência que permite que Maya durma como uma criança. Quer destruir aquela inocência assim como a criança que cresce no ventre de Maya destruiu sua paz de espírito. Fica assustada às vezes ao perceber como ambos os sentimentos parecem residir sem esforço em seu coração; como acabou amando e odiando Maya; como o que era só amor é agora uma mescla de amor e medo. Como ela acabou sendo traída por gente do seu próprio sangue.

“Mas, a essa altura, deveria estar acostumada às traições, sua velha”, diz consigo mesma. “Você, mais do que todo mundo. Por acaso essa menina fez pior do que o seu marido? Olhe só o que ele fez com você. Roubou a sua vida, não foi? E você o perdoou, não foi? Não, você não o perdoou, mas fez as pazes com isso, não é mesmo? Então por que não fazer a mesma coisa com essa pobre garota?”

Forçando os olhos para tentar ver o contorno do corpo de Maya no escuro, Bhima responde à sua própria pergunta. A história com Gopal pertence ao passado e, como um sári de casamento usado, pode ser dobrada e enfiada num canto escuro qualquer. Mas Maya é o presente (antes, era também o futuro, mas não adianta pensar nisso agora). Um ponto pulsante vermelho e em brasa está crescendo em sua barriga, latejando de vida e energia. Sem ter sido sacramentada por um sacerdote, concebida sob o véu da vergonha, enjeitada pelo mundo, aquela coisa crescendo dentro do corpo de Maya tem o poder de destruir as duas. Mas, antes que possa fazer isso, antes que possa chorar suas mágoas para o mundo, antes que possa agitar seu pequeno punho para elas, terão que destruí-la.

Um corvo solitário crocita, e Bhima resmunga. São três da manhã. Daqui a pouco terá de se levantar sem ter conseguido dormir sequer por uma hora. Logo o dia vai nascer.

 

É SÁBADO DE MANHÃ, e Bhima está novamente atrasada. Mesmo grávida, Dinaz acordou cedo hoje para ajudar Sera a preparar o café. Dinaz sabe o quanto sua mãe odeia picar cebola e coentro, e já que os dois ingredientes são necessários para preparar o prato preferido de Viraf para o café da manhã, akuri — ovos mexidos com chili em pó, cebola, alho e outros temperos —, assumiu aquela tarefa desagradável. Sera olha para a filha e, como sempre, sente admiração ao ver como Dinaz se tornou uma pessoa maravilhosa. Não se arrepende de ter se casado com Feroz, mesmo que seja unicamente pelo fruto que o casamento produziu. “É engraçado”, pensa ela, “Feroz e eu tínhamos tantos defeitos... E, no entanto, olhe só o que fizemos juntos: uma das pessoas mais agradáveis que conheço, e eu pensaria assim mesmo que Dinaz não fosse minha única filha. É isso que faz alguém acreditar em evolução, em Deus, em milagres ou coisas assim. Na perseverança do espírito humano, talvez”.

Sera olha para o relógio. Fica preocupada com o fato de que esses atrasos estejam se tornando um hábito para Bhima. “Não vou admitir isso”, diz consigo mesma. “Sei que está sobrecarregada com Maya, mas afinal, ela tem obrigações aqui também”. Inesperadamente, a voz de Feroz soa em sua cabeça:

— Você trata essa mulher como se fosse um membro da família. Os empregados têm que ser mantidos em seu devido lugar, ouça o que lhe digo. Qualquer dia desses volto para casa e encontro você servindo a Bhima.

Como se lesse os pensamentos da mãe, Dinaz levanta a mão para bloquear a visão do relógio.

— Poxa, mãe, pare de ficar olhando o relógio. Hoje é sábado. Mesmo que Bhima esteja atrasada um dia, e daí? Ela é um ser humano também, sabe?

É quase divertido para Sera notar que, quando a questão é Bhima, Dinaz instintivamente desempenha o papel que ela própria desempenhava com Feroz. E agora, paradoxalmente, assumia o papel dele.

— Se fosse só um dia, tudo bem — disse ela. — Mas isso está de-mais. Afinal, não faz sentido ter uma empregada se tenho que acabar fazendo todo o serviço.

Se esperava solidariedade, as palavras de Dinaz acabam rapidamente com aquela ilusão. Ela dá um tapinha nas costas da mãe e diz:

— Serviço doméstico nunca matou ninguém. É bom para a sua artrite e mantém as juntas mais flexíveis. E, além do mais, Bhima é mais velha e precisa mais de descanso que você.

Apesar de tudo, Sera sorri. Às vezes esquece que, antes de a filha mudar para o curso de administração de empresas por insistência do pai, estava estudando para ser assistente social. E mesmo que se saísse muito bem na nova profissão, o velho senso de respeito e a sede de justiça não a abandonaram. Bhima era o ponto fraco de Dinaz. Desde quando era pequena, nunca conseguiu suportar uma crítica a respeito de Bhima.

— Essa mulher está fazendo uma lavagem cerebral na nossa única filha debaixo dos seus próprios olhos — disse-lhe Feroz certa feita, em tom de repreensão. — E você é complacente e burra demais até para notar isso. Dinaz fala mais com Bhima do que com o seu próprio pai.

E Sera mordeu a língua para não declarar o óbvio: Dinaz passava mais tempo com Bhima do que com ele e era tratada com mais bondade pela empregada do que pelo próprio pai.

Viraf entra na cozinha, ainda de pijama. Sem que ninguém pedisse, pega três pratos e os coloca em cima da mesa.

— Bhima, Bhima, Bhima é só o que tenho ouvido nesses últimos dias — resmunga ele. — Juro que não tem nome que se ouça tanto na nossa casa quanto o dela.

— E o que há de errado nisso? — pergunta Dinaz imediatamente. — Afinal, a pobre mulher está com problemas.

— Ai. Não pensei que ia ter que comer a minha própria cabeça no café da manhã — diz Viraf. — É claro que não há nada de errado em falar sobre os problemas de Bhima, meu amor. O que acho um problema é que, depois de todas essas conversas sem fim, nada tenha sido resolvido.

— E o que você propõe que a gente faça, senhor gerente? — pergunta Dinaz, com um sorriso no rosto suavizando as palavras.

Mas Viraf não sorri.

— O que tem que ser feito é óbvio — diz ele. — Maya tem que se submeter a um aborto e, quanto mais cedo, melhor para ela. Na verdade, só fico surpreso de perceber quanto tempo nós já esperamos.

Embora saiba que o genro não fez por mal e que ele leva a sério o problema de Bhima, algo dentro de Sera se irrita com o tom senhorial que nota no pronome nós e no jeito displicente com que mencionou o aborto. “É bem típico de homem”, pensa ela. “Como se se livrar de uma criança fosse tão simples quanto defecar”. Fica ruborizada com a crueza de seus próprios pensamentos.

Viraf fala no vazio que suas palavras criaram.

— Bem, dá para notar pelo silêncio que assumi uma posição realmente bastante popular — diz sarcasticamente. — Mas acho que o tempo das amenidades e de ficar rodeando o assunto já passou, minhas senhoras. Olhem, temos que ser práticos com relação a isso. Maya deu suas voltinhas e ficou grávida. E, se ficarmos sentados e não fizermos nada, estaremos apenas prolongando o sofrimento dela. Me parece que um aborto seria a única coisa prática a se fazer.

— Você está certo — diz Dinaz, tirando a akuri da frigideira e pon-do-a nos pratos. — Sei que você está certo, meu amor.

Ela se interrompe.

— Mamãe, devo deixar um pouco disso aqui para Bhima?

— Não se esqueça de que ela faz jejum aos sábados — diz Sera.

E, vendo o olhar interrogativo de Viraf, acrescenta:

— E também num ou noutro dia santo.

— Por falar em Bhima — diz Viraf —, é melhor ela aparecer logo, se quiser uma carona até o mercado. Não vou me atrasar para o jogo de críquete por causa dela.

Dinaz e Sera sorriem. Sabem que Viraf é louco por críquete. Todo sábado ele veste o uniforme branco e vai a um campo, o maidan, para jogar com seus velhos amigos. Ele joga com esse grupo desde o primeiro ano na faculdade.

— É melhor você dar um aviso prévio aos seus colegas de jogo — observa Dinaz. — Depois que a criança nascer, seus dias de críquete vão acabar.

Viraf fica tão desanimado que as duas caem na gargalhada.

— Meu Deus, veja só a cara dele — diz Dinaz. — É como se eu ti-vesse dito que ele nunca mais ia comer ou beber novamente.

— O críquete é o alimento da vida — diz Viraf teatralmente. — Não é um jogo, é um estilo de vida. É o esporte mais gracioso e elegante que existe. E, além disso, quem sabe? Se for menino, levo-o comigo assim que começar a andar.

— Ótimo, então vamos ter que aturar outra geração de fanáticos por esporte. Não, obrigada, baba. Meu filho vai ser alguém que gosta de ler, um intelectual.

— É melhor você ter cuidado com o que diz, mulher. Não vou deixá-la transformar o meu garoto num maricas — diz Viraf em tom de brincadeira. — Se a tecnologia permitisse, pediria aos médicos que implantassem um chip na sua barriga para que meu filho nascesse com uma bola de críquete na mão.

Dinaz vira-se para a mãe.

— Está vendo só como o seu maravilhoso genro é? Ele fala sobre implantar chips na minha barriga como se eu fosse uma vaca ou coisa assim.

Sera se levanta da mesa com um sorriso.

— Crianças, crianças — diz ela. — Que bobagem vocês estão dizendo!

— Espere aí, não se levante ainda — diz Dinaz. — A gente tem que resolver esse problema da Bhima ainda hoje.

Ela se vira para Viraf.

— Meu bem, você pode telefonar para o Rusi quando voltar do jogo? Sei que ele não é ginecologista, mas pode indicar alguém, não é?

— Bhima pode levá-la para o hospital público — diz Sera automaticamente.

— O que é isso, mamãe! Você sabe que os médicos nesses hospitais de atendimento gratuito são uns açougueiros. E vendo uma garota jovem e solteira que está grávida... — acrescenta Dinaz, dando de ombros.

Viraf faz uma careta.

— Está bem, vou telefonar para o Rusi e pedir que me recomende alguém. E agora vamos mudar de assunto, por favor? Essa conversa está me fazendo perder o apetite.

As duas mulheres trocam um rápido olhar.

— Viraf está certo — diz Sera. — A mesa do café não é lugar para esse tipo de conversa. — Ela sorri para o genro, apaziguadoramente.

Viraf lhe sorri também.

— Além do mais, é tão deprimente falar sobre aborto e todas essas coisas quando Dinaz está... quando nós estamos... grávidos. Sabe, e que toda vez que fico feliz pensando na nossa sorte, sou forçado a pensar na infelicidade de Maya.

Dinaz imediatamente pousa o garfo e se inclina para beijar o marido no rosto.

— Desculpe, janu, meu amor — diz ela. — Também sinto a mesma coisa. Desculpe por ter sido tão insensível.

Viraf estende o braço na direção de Dinaz e engata seu dedo indicador direito no indicador esquerdo dela. Ficam de mãos dadas durante todo o resto do café da manhã. Vendo-os, Sera sente uma felicidade pungente e que lhe aperta como uma dor no peito.

“Isso vale a pena”, pensa ela. “Todo o sofrimento com Feroz valeu a pena só por ter me proporcionado esse momento. Minha filha tem o casamento que nunca tive. E eu a trouxe até este ponto. Fui eu. Eu. Confusa, cheia de defeitos e burra — mas fui eu”.

Durante toda a sua vida, Sera ouviu um milhão de histórias sobre como uma nora atormentada transformou-se numa sogra ainda mais diabólica quando chegou a vez dela. “Como se fosse uma espécie de ritual, um trote dos veteranos nos calouros”, pensa ela. Mas, mesmo agora, as cicatrizes do tempo que passou na casa de Banu Dubash ainda estão recentes demais para que ela possa assumir esse papel na vida do jovem casal. Desde que Viraf e Dinaz se mudaram para a sua casa, depois da morte de Feroz, tem feito o possível para proporcionar a eles a privacidade de que precisam. Como é mesmo aquela palavra que os americanos usam? Espaço. Ela tem lhes dado espaço. E tem controlado a língua. Às vezes não é fácil, especialmente quando Viraf e Dinaz brigam. Nessas horas, a vontade de intervir para dizer uma palavra reconciliadora é enorme. Às vezes acha fácil perdoar Viraf, fazendo vista grossa às suas excentricidades. Mas o desejo de chamar Dinaz a um canto — de dizer-lhe que está errada, e que uma esposa obediente manda no marido, insistindo que volte para o quarto e faça as pazes com Viraf — é tão forte nessas horas que praticamente tem que se segurar e tapar a boca, forçando-se a não se meter na vida deles. Esta foi a sua promessa para Dinaz quando os dois se ofereceram para morar com ela.

— Vocês podem ter certeza de que não vão ser incomodados por uma sogra intrometida.

— Ai, mamãe, não estamos preocupados com isso — retrucou Di-naz.

Sera abanou a cabeça com impaciência

— Sei o que estou falando, deekra — disse ela. — Vocês dois estão casados há pouco tempo. Seu casamento ainda está se desenvolvendo. Sei que tudo parece fácil e possível agora, mas morar com mais alguém, especialmente uma pessoa de outra geração, é difícil. Acredite. Sei o que estou falando.

 

A PRIMEIRA BRIGA COM BANU ocorreu menos de duas semanas depois que Sera e Feroz voltaram da lua-de-mel.

— Feroz, deekra, pode vir até o meu quarto um minuto? — pediu Banu, quando Feroz voltou do trabalho naquela noite.

Ele fez uma careta para Sera, que tinha vindo recebê-lo na porta da frente. Feroz apertou o braço dela e foi ver a mãe.

Quando voltou para o quarto deles, meia hora depois, parecia enca-bulado.

— É que a mamãe queria que eu falasse com você sobre uma coisa importante — disse.

— Será que foi a minha comida? — perguntou Sera imediatamente. — Não pus sal suficiente na galinha? Meu pai sempre reclama que eu...

— Não, não é nada disso. É que mamãe notou que você está no seu período.

— Período? — indagou, sem nenhuma expressão no rosto.

Ele deu um suspiro.

— A sua menstruação, “aqueles dias”. Que você está naqueles dias. E, na nossa casa, as mulheres que estão menstruadas sentam-se separadamente. Elas não tocam na comida na cozinha, usam utensílios separados e coisas assim.

Ela o olhou fixamente, sem acreditar no que estava ouvindo.

— Feroz, você está de brincadeira, não é?

Ele parecia aborrecido.

— Sei que isso deve soar antiquado para você, que é uma moça moderna.

Seu tom era estranho e Sera não pôde deixar de sentir que ele estava repetindo, como um papagaio, as palavras da mãe.

— Mas essas são as regras da casa. As regras da minha mãe. E já que estamos morando com ela, devemos seguir suas regras.

Ele a fitou com olhar suplicante.

— Então, Sera, para que todo mundo fique em paz, faça o que ela pede. Afinal, é para o seu próprio bem. Quando uma mulher está perdendo sangue, fica fraca. Essa tradição então é apenas um modo de conservar sua força.

“Então este é o meu marido moderno, recém-chegado do exterior”, pensou consigo mesma admirada. “Um executivo do alto escalão no Tata’s”. De repente, lembrou-se do que uma colega sua costumava dizer:

— Um parse vira um camundongo diante da mãe.

— Feroz, por favor, isso é ridículo — disse ela. — Quero dizer, pensei que só aquelas mulheres pobres e antiquadas de Udwada se sentassem separadamente durante a menstruação. Estamos em Bombaim, janu. E, afinal, as pessoas mudam com o tempo.

Ele suspirou de novo, dessa vez mais profundamente.

— Olhe, Sera, estou muito cansado hoje. Foi um longo dia de trabalho e tudo o mais. Querida, apenas ceda com relação a esse assunto, está bem? Mamãe já é idosa e tem o seu jeito, sabe? E para que aborrecê-la com uma questão tão pequena? Quero muito que nos relacionemos todos aqui como uma grande família feliz. Por favor, apenas diga que sim.

Foi a visão da grande família feliz que a fez engolir sua relutância e dizer sim.

— E o que exatamente isso acarreta? — perguntou Sera, desconfiada.

— Ai, meu Deus, não sei — respondeu ele, dando-lhe um abraço rápido. — Provavelmente significa que vão servir sua comida no quarto e algumas outras coisas. Obrigado, Sera, por não me humilhar na frente da minha família.

Era estranho jantar no quarto, mas Sera forçou-se a vencer a mágoa que cresceu dentro dela quando as vozes dos outros três flutua-ram em sua direção, vindas da sala de jantar. Ligou o rádio no quarto para abafar aquelas vozes e jantou sem prazer. Feroz veio logo depois para o quarto dizendo o quanto lamentava tudo isso e que sentiu muita saudade dela à mesa do jantar. Naquela noite, ficou abraçado com ela até o dia nascer. Sera se admirava da fácil familiaridade que seus corpos já tinham um com o outro. E conhecer o corpo de Feroz tinha lhe permitido conhecer melhor o seu próprio, seus desejos e necessidades, os músculos que se contraem e a eletricidade dos nervos, as grutas úmidas e os suaves recantos.

— Não vá trabalhar hoje, não — sussurrou ela de manhã. — Vamos passar o dia juntos, só nós dois.

Ele riu e se afastou com relutância dos seus braços.

— Meu Deus, como gostaria de poder fazer isso! Mas já tirei uns dias para a lua-de-mel, sabe? E tenho uma apresentação importante hoje à tarde.

Ela ficou na sacada para lhe dar adeus, ciente do fato de que Banu estava tão afastada dela quanto possível, também acenando para Feroz. Com seus sentimentos ainda feridos pela conversa da noite anterior, Sera permaneceu no terraço, mesmo depois que Feroz saiu com o carro, e Banu voltou para dentro de casa. Ouviu o grito agudo do vendedor de bananas puxando sua carrocinha de madeira. Notou os dois adolescentes no terraço do edifício do outro lado da rua empinando suas pipas. Ali, de pé, perguntava a si mesma se devia falar com Banu sobre a conversa que teve com Feroz, se valia a pena tentar fazer a sogra mudar de idéia. Muitas parses idosas têm essa superstição sobre a menstruação, Sera sabia disso, mas, até então, nenhuma dessas mulheres tinha interferido na sua vida. Sera era filha de um cientista e se sentia humilhada por ter que ceder a essas idéias arcaicas. Não foi assim que fui criada, mamma Banu, era o que queria dizer. E, se isso era uma condição, a senhora deveria tê-la mencionado antes de eu vir para esta casa.

O sol batia em seu rosto e a fazia suar. Da sacada, podia ouvir a música que Freddy Dubash pôs para tocar na vitrola e Polly se esganiçando nas notas agudas. Um enorme ronco no estômago a fez perceber que estava com fome. Será que podia pedir o seu café da manhã ou tinha que voltar para o quarto e esperar ser alimentada como uma criminosa na prisão? Pensava nisso e a humilhação que sentia fez com que suasse ainda mais. Decidiu voltar para o quarto.

Banu estava sentada no sofá da sala com um véu, um mathubanu branco cobrindo-lhe a cabeça e um livro de orações na mão.

— Kern na mazda — rezava, quando Sera passou por ela, atravessando a sala de estar.

No instante seguinte, ouviu-se um grito ensurdecedor.

— Fora, fora daqui — gritou Banu. — Acchut. Intocável. Mulher impura, você sujou a sala inteira enquanto eu estava rezando. Todas as minhas orações foram arruinadas pela sua presença impura. Será cine seu papai e sua mamãe não lhe ensinaram nada, sua porca?

Sera ficou olhando para Banu, estupefata, e levou um minuto para perceber que a sogra estava falando daquela maneira histérica com ela. Aquela mulher agitada à sua frente era completamente diferente da mulher tímida e louca para agradar que a tinha encorajado a se casar com seu filho e que a tinha recebido em sua casa há apenas algumas semanas.

— Eu... eu... — gaguejou Sera.

Freddy Dubash veio correndo da sala de jantar.

— O que aconteceu? Alguém caiu?

— Ah, Freddy, que bom que você está aqui — disse Banu dramati-camente. — Me ajude, meu querido, me ajude.

Freddy parecia assustado.

— Banu, o que foi, diga por favor! É o coração?

— Não, não é nada disso. É só que agora esta casa inteira vai ter que ser purificada. Sera cruzou a sala enquanto eu rezava e ela está naqueles dias, entende? E mesmo assim, sem a menor consideração, interferiu nas minhas orações.

Sera ficou vermelha. Antes que pudesse falar, Freddy levantou a voz:

— Você e suas superstições e benzeduras! Você é uma maluca, isso sim! Aterrorizando essa pobre moça, assustando-a sem motivo algum.

Depois, acrescentou, ainda mais zangado:

— E o pior de tudo é que você acabou com o meu prazer. Estava ouvindo um novo disco de Mozart que acabei de comprar e você e seu ataque histérico me fizeram perder a melhor parte.

Freddy lançou um olhar de solidariedade a Sera e depois saiu da sala.

Banu apertou os olhos e lançou a Sera um olhar assustador.

— Viu o que você fez; precisava deixar o meu Freddy aborrecido? — disse ela, baixando cuidadosamente a voz para não ser ouvida da outra sala. — Foi para isso que entrou na minha casa, para criar atrito entre mim e meu marido?

Sera ficou tonta, como se tivesse bebido quatro cervejas, uma após a outra. Deu um passo em direção a Banu e estendeu a mão para tocar na dela.

— Mamma Banu, não sei o que aconteceu...

— Ela tocou em mim! — gritou Banu. — Deliberadamente, foi de propósito, ela me tocou com essas mãos impuras. Ai, meu Deus, parece bruxaria, que espécie de daakan entrou na minha casa para me fazer sofrer na velhice?

Dessa vez, Gulab, a empregada dos Dubash, veio até a sala. Avaliou a situação e empurrou Sera para o quarto.

— Querida, fique no seu quarto um pouquinho — disse ela autoritariamente. — Vá que eu acalmo mamma Banu.

Chegando ao quarto, Sera caiu na cama. Se Banu a tivesse agredido fisicamente, não a teria machucado tanto. Havia uma parte dela que continuava achando que a cena toda só podia ser uma espécie de trote, uma cerimônia de iniciação da família, cruel, mas inofensiva, imaginada por Feroz. E que, a qualquer momento, Freddy e Banu entrariam no quarto com largos sorrisos encabulados no rosto e confessariam seus papéis no joguinho bobo de Feroz. Mas, enquanto esperava, lembrou-se de algo que sua mãe lhe dissera durante seu noivado.

— Encontrei Miss Amy Smith hoje — tinha dito sua mãe, franzindo a testa. — Você se lembra dela, não é, sua professora do sexto grau? Parece que ela morou no prédio de Feroz até alguns anos atrás. Dei-lhe as boas notícias e ela ficou feliz em saber que você finalmente vai se casar. Mas teve uma coisa que ela disse que me incomodou, beta. Que Banu Dubash era meio esquisita. Fiquei com a impressão de que Miss Smith não gostava muito dela.

Naquela época, Sera tinha descartado as palavras da mãe displicentemente, como se estivesse removendo um cílio solto do rosto.

— Todos os parses são estranhos e excêntricos, mamãe — disse rindo. — Não há novidade nenhuma nisso.

Sua mãe, porém, não pareceu convencida.

— Talvez devêssemos averiguar discretamente. Você sabe que Miss Smith gosta muito de você. Não teria dito isso se não houvesse motivo.

— Por favor mamãe, não me faça passar vergonha. Estou me casando com Feroz e não com a mãe dele. E mamma Banu tem sido muito gentil comigo. Outro dia mesmo, me disse que, desde a primeira vez que nos vimos, soube que eu era a pessoa certa para Feroz.

Jehroo Sethna sorriu.

— Você vai aprender, deekra. Nunca nos casamos apenas com uma pessoa. Casamos sempre com a família toda.

Agora que estava completamente chocada com a cena que tinha acabado de ocorrer, as palavras da mãe voltaram à sua mente com a força de um trem a toda velocidade. Por favor, meu Deus, faça com que Feroz volte para casa cedo hoje, implorava. Por favor, faça com que eu não tenha cometido um erro me casando com ele.

Uma hora depois, Freddy Dubash bateu na porta de seu quarto e entrou com um prato de ovos mexidos.

— Desculpe pelo café ter saído tão tarde hoje, minha querida — disse ele.

Mas quando ela levantou os olhos chorosos, Freddy desviou o olhar.

— Também peço desculpas por aquilo... aquilo que aconteceu lá na sala. E esse negócio de menstruação, não sei o que dizer, minha mãe era assim também. Ela tornou a vida de Banu um inferno. E pensar que agora ela está agindo do mesmo modo... É melhor você ficar fora do caminho dela durante esses períodos, deekra.

Sera fez que sim com a cabeça. Ficou o dia inteiro no quarto lendo um romance e andando para lá e para cá. O tempo nunca passou tão lentamente. Houve um momento em que captou seu reflexo no espelho e ficou chocada com o desespero que viu em seus próprios olhos, como o de um animal apanhado numa armadilha. “Há poucos meses eu tinha um bom emprego, uma boa vida, e podia ir e vir como e quando quisesse”, pensou ela. “E agora estou com medo de sair deste quarto, tudo por causa das crenças idiotas de uma velha supersticiosa”. Piscou os olhos como se esse gesto pudesse de algum modo alterar essa estranha realidade na qual estava inserida.

Sua melhor amiga, Aban, achou um absurdo quando ela disse que ia se demitir do emprego na Bombay House.

— Não, yaar, nos tempos de hoje uma mulher deve ser independente — aconselhou a amiga.

Naquela época, arrebatada pela declaração de Feroz de que era mais do que capaz de sustentar sua mulher, Sera desconsiderou as palavras de Aban, tratando-as como um simples caso de inveja. Mas Aban estava certa, agora percebia. Hoje sentia saudade da simples rotina de decidir que roupa iria usar para trabalhar, da sensação grandiosa de ser levada pela massa de funcionários e trabalhadores que os trens despejavam de manhã, da camaradagem que vinha da participação nas piadas e nas fofocas que circulavam no escritório como memorandos não-oficiais, da satisfação de estar fazendo um trabalho elogiado pelo sr. Madan. Sentada no quarto, esperando Feroz voltar para casa, era invadida por uma sensação de peso opressivo que nunca havia sentido na vida.

Banu abriu a porta para Feroz naquela noite.

— O que houve, mamãe? Onde está Sera? — ela o ouviu perguntar.

Sua mãe soltou um suspiro. Depois, elevando a voz, respondeu:

— Nem me pergunte. Nem me pergunte. Mas, se quer matar a sua velha mãe, devia ter me mandado para a Torre do Silêncio no dia do seu casamento. Assim eu não teria que sofrer esta morte lenta. Ser bicada pelos urubus é melhor do que isso.

Sera esperou que Feroz irrompesse numa gargalhada diante do melodrama encenado por sua mãe. Queria que ele pusesse a velha no seu devido lugar com algumas palavras bem escolhidas, do jeito como tratava seus subordinados no trabalho. Ou, caso não fizesse nada disso, queria que ele entrasse no quarto, a tomasse nos braços e saíssem valsando pela porta da frente, sob o olhar estupefato de Bano.

— Vamos até seu quarto conversar, mamãe — disse Feroz. — Diga o que a está incomodando.

Quando Feroz entrou no quarto deles uma hora depois, seu rosto era urna máscara.

— Oi — disse ele. — O que você fez hoje?

Seta estava incrédula. O que é que fiz hoje? Queria dizer: escrevi um novo capítulo do Ramayana; compus uma sinfonia enquanto almoçava; inventei um dispositivo para mandar sogras intrometidas direto para a Lua.

— Nada — respondeu.

Ele deu um pequeno sorriso.

— Mamãe me disse que houve uma discussão. Foi culpa minha. Esqueci de avisar que não se aproximasse dela enquanto estivesse rezando.

Foi essa falsa humildade de Feroz que despertou a língua de Sera.

— Bom, então vejamos. A minha presença na sala não é permitida quando sua mãe estiver rezando. Não devo me sentar na mesa para jantar. Nem ficar na cozinha para cozinhar. Devo ficar prisioneira neste quarto durante a menstruação?

— Não há necessidade de fazer drama, Sera...

Ela emitiu um som que pareceu como algo entre uma tosse e um soluço.

— Estou sendo dramática? Eu? Meu caro Feroz, sua mãe ganharia um prêmio pela performance de hoje de manhã.

— Fale baixo, mulher.

— Vamos sair.

— O quê?

— Me leve para dar uma volta de carro... em Chowpatty, em algum lugar. Vamos sair para comer bhel, aquela salada de arroz com molho de tamarindo. Preciso sair um pouco desta casa, apanhar um pouco de ar fresco.

— Sera, seja razoável. Mamãe preparou o jantar. Como é que você acha que ela iria se sentir se nos...

— Você me levava para comer bhel sempre, Feroz. E sua mãe tam-bém fazia o jantar naquela época.

— Era diferente.

— Por quê? O que era diferente?

Feroz olhou para ela sem conseguir dizer nada e Sera viu a resposta nos olhos dele: a diferença era que naquela época ele estava tentando conquistá-la, queria fazer com que ela o preferisse a qualquer outro homem, e agora já sabia que a tinha conquistado e não havia mais nenhum motivo para impressioná-la. Ela se virou, com receio de que ele visse o desapontamento em seus olhos. Porque não tinha sido desapontada por ele; na verdade, estava desapontada com ele, com sua banalidade, com essa coisa comum que ele tinha virado.

Ele pegou o seu queixo e a virou para ele.

— Olhe para mim — disse ele.

E insistiu:

— Sera, não fique assim. Já pedi desculpas, não foi? Tente se pôr na minha posição, por favor. Não quero que mamãe pense que me voltei contra ela só porque agora estou casado. Vamos fazer o seguinte: na sexta-feira, volto para casa mais cedo e vamos sair, só nós dois. Agora, por favor, controle-se um pouco.

 

 

QUATRO DIAS MAIS TARDE, Sera foi se juntar a Banu na cozinha, depois de ter tomado banho.

— Está tudo ok agora, mamma Banu — disse, forçando uma leveza na voz. — Está tudo limpo agora. Deixe-me preparar o almoço de hoje.

Banu olhou para ela e deu um passo atrás.

— Você lavou o cabelo? — perguntou com uma voz estrangulada.

Sera olhou para ela, estupefata.

— O cabelo? Não, vou lavar amanhã...

— Então ainda está suja. Não pode estar pura até que tenha se lavado dos pés à cabeça. E entrou na minha cozinha limpa nesse estado.

Sera começou a rir até as lágrimas rolarem pelo rosto. Ouviu sons que emergiam de sua boca, sons que ela mesma não saberia dizer se eram soluços ou gargalhadas. Com o rabo do olho, viu Gulab com as mãos cobertas de farinha, olhando para ela com uma expressão preocupada no rosto. Aquele olhar fez Sera rir ainda mais. “Ela deve achar que estou ficando louca”, pensou. “Ai, meu Deus, estou ficando louca”. De algum modo o pensamento a fez rir ainda mais.

— Sem-vergonha.

Banu estendeu a mão e lhe deu um tapa no rosto.

— Rindo de sua velha sogra. Em que tipo de casa você foi criada? Não tem um pingo de vergonha?

O tapa surtiu efeito. O riso histérico que saía da boca de Sera trans-formou-se em raiva.

— A senhora me deu um tapa — disse chocada, roçando o rosto com O dedo indicador. — A senhora realmente me agrediu.

A dificuldade de acreditar no que estava acontecendo fez com que sua voz ficasse mais alta do que tencionava.

— Mentirosa — disse Banu imediatamente. — Apenas a sacudi para cortar essa histeria.

Ela se virou para a empregada e perguntou:

— Gulab, você é testemunha. Eu toquei nessa moça?

Gulab olhou para as duas e depois balançou a cabeça.

— Não estava olhando, baiji. Estava ocupada fazendo meus chappatis.

— Está vendo? — disse Banu com um ar de triunfo. — Gulab disse que sou inocente. Você é uma mulher má, acusando sua sogra dessa forma. Não somos favelados para fazer esse tipo de coisa.

Sera deu uns passos para trás, com medo do que estava vendo nos olhos da velha. Os olhos de Banu tinham ficado grandes e brilhantes e havia neles um laivo de loucura que deixou Sera gelada. Depois, um muxoxo de Banu a alertou para o fato de que, dissesse o que dissesse, fizesse o que fizesse, a sogra sempre sairia ganhando. Aquela resistência era inútil. Mesmo com a marca dos seus dedos ainda queimando no rosto de Sera, Banu a estava convencendo de que o que ela sentia era apenas uma falsa dor nascida de sua imaginação. Sera sentiu que estava enfrentando alguma coisa insidiosa, que Banu estava atacando tanto seu corpo quanto sua mente. “Então isto é o mal”, pensou consigo mesma. Sempre imaginou que o mal atuava num grande cenário como o das guerras, dos campos de concentração, das câmaras de gás, dos países que se dividiam em novas fronteiras. Agora, percebia que o mal tem um lado doméstico e que a sua própria banalidade o protege da exposição exagerada. Uma rápida olhada para o rosto impassível de Gulab lhe disse que a empregada já havia aprendido há muito tempo o que ela própria estava começando a aprender agora.

— Desculpe, mamma — balbuciou. — Vou... vou voltar para o meu quarto.

Quando Gulab veio com seu almoço naquele dia, Sera a mandou de volta.

— Coma, querida — disse Gulab acariciando suas costas. — Por que está se magoando desnecessariamente desse jeito? Numa família sempre há algum atrito.

Sera quis contar o modo civilizado e carinhoso como foi criada. Meus pais nunca me bateram, era o que queria dizer, e nunca tive que ficar trancada no meu quarto como agora. Mas seu orgulho se rebelou contra o fato de ter que fazer confidências a uma empregada.

— Está tudo bem — disse. — Só não estou com fome.

Às quatro horas, Banu saiu para ir ao templo.

— Eu talvez tenha que ficar algum tempo fora de casa, querido — disse para Freddy, na soleira da porta. — Tenho que falar com Dastur Homjee sobre benzer a cozinha, já que foi conspurcada por cabelos impuros.

Minutos mais tarde, ouvem-se batidas na porta do quarto.

— Posso entrar? — perguntou Freddy. Polly não estava em seu ombro.

Freddy parou na porta e percebeu o cabelo despenteado e os olhos avermelhados de Sera.

— Venha comigo — disse ele baixinho. — Vamos ouvir música lá na sala.

Seu rosto suplicante não permitiu que Sera recusasse.

— Ok — disse ela. — Espere só eu me arrumar um pouco.

Quando Sera entrou na sala, o som já estava ligado.

— “Sonata ao luar” — disse ele, levantando a cabeça. — Achei que algo bonito e meditativo seria apropriado. Podemos abandonar esta sala e imaginar que estamos num lugar onde o luar dança sobre a água.

Sera sorriu meio sem graça e sentou-se ao lado dele no sofá. Após alguns minutos, sentiu a música entrar em seu corpo, fazendo-o relaxar. Fechou os olhos e se sentiu perdida num mundo laranja-escuro, onde nada interferia a não ser o som sagrado de um piano solo.

— Quando eu era garota, achava que o piano era o meu instrumento favorito — disse ela, modulando a voz para não ultrapassar o volume da música.

Seus olhos ainda estavam fechados, mas sentiu Freddy se remexer a seu lado.

— Mas agora — prosseguiu — ...agora adoro o som grave do Vio-loncelo. De algum modo ele soa quase como a vida: triste, suave, perdida, solitária. Acho que, se o coração pudesse cantar, seria como um violoncelo. Você acha que isso é bobagem?

Freddy emitiu um som engasgado que fez com que ela arregalasse os olhos. Virou ligeiramente a cabeça e percebeu, espantada, que o velho estava chorando.

— Pappa Freddy, o que aconteceu? — exclamou ela. — Eu disse al-guma coisa...

Ele se virou para olhar para ela, e Sera notou pela primeira vez como a pele debaixo de seu queixo despencava e tremia, como seus olhos começavam a formar aquela fina película acinzentada que vem com a idade. Chocada, notou que ele estava cruzando as mãos num gesto de súplica, e seus olhos perceberam as rugas e as manchas senis em suas mãos de tom caramelo.

— Desculpe — disse Freddy, com as lágrimas correndo pelo rosto. — Perdoe-me, minha querida, por não ter dito nada antes. Ela olhou para ele, confusa.

— Não, pappa Freddy, está tudo bem — disse ela. — Acabei de perguntar sobre o seu instrumento favorito...

—Estou falando sobre ela — disse ele bruscamente, virando a cabeça na direção do quarto de Banu. — Quando você veio aqui pela primeira vez, quando fez planos de se casar com Feroz, eu devia ter lhe falado sobre ela... sobre os seus ataques. Devia ter contado como ela pode ser perversa e desagradável às vezes. E sobre Feroz também. Mas o que fazer, deekra? Gostei de você desde a primeira vez em que nos vimos. Você se lembra da primeira vez que veio a esse maldito apartamento? Falamos sobre música clássica e você brincou com Polly. Desde aquele instante, quis que você fosse minha filha. Queria tanto que alguém novo entrasse nesta casa... Alguém como eu. E você, vinda de uma família tão boa. Seu pai, um amante da música, um homem culto e inteligente. Bas, bem, decidi ficar de boca calada. De algum modo achei que depois que você viesse para cá, ela iria melhorar. Mas isso não vai acontecer, agora sei. Gulab me contou o que aconteceu hoje de manhã. Desculpe-me, deekra, por este pecado que cometi.

Através do redemoinho de suas palavras, Sera ouviu apenas uma coisa.

— O que tem Feroz? — perguntou. — O senhor disse que deveria ter me avisado sobre ele.

Freddy deu um suspiro.

— Ah, não é nada. Quer dizer, ele é basicamente um bom garoto. Mas às vezes tem um temperamento como o da mãe. Ou talvez seja como o da minha mãe, não sei. Minha mãe era um terror, que Deus a tenha. Ela transformou a vida de Banu num inferno. Eu a chamava escondido de Dona Pimenta, quando menino.

— E... o senhor disse que Feroz é como ela?

Freddy a olhou fixa e intensamente, com um ar triste e piedoso.

— Feroz é temperamental. Com a graça de Deus, você nunca vai ter que presenciar isso. Quando era garoto, eu lhe dizia sempre que tinha que controlar sua raiva. Mas o que se pode fazer, beta? Sangue é sangue. Se há alguma coisa no seu sangue, é muito difícil se livrar disso, não é mesmo? Achei que ele aprenderia a lição quando perdeu Gulnaz. Mas ele é como Banu: fala primeiro e pensa depois.

— Quem é Gulnaz? — perguntou Sera, querendo e não querendo saber ao mesmo tempo.

Os olhos de Freddy passearam pela sala antes que tornassem a pousar no rosto cansado de Sera. Subitamente, estendeu a mão e acariciou os cabelos dela.

— Não fique tão triste, minha querida — murmurou ele. — Acho que a minha conversa a está envelhecendo uns dez ou quinze anos.

Ele deu um suspiro profundo e prosseguiu.

— Gulnaz era uma namorada dele. Eles estavam noivos e tudo. Os pais dela eram de Jamshedpur, gente boa e simples. Até hoje não sei exatamente o que aconteceu. Mas, num domingo, durante o almoço, ela apareceu inesperadamente aqui em casa. Bem na minha frente e de Banu, Gulnaz tirou a aliança e a jogou na mesa com tanta força que ela ricocheteou e caiu dentro do dhansak de Feroz, a comida parse à base de espinafre. Ela disse que não podia agüentar mais o temperamento dele e que já tinha ouvido histórias demais sobre Banu para convencê-la de que não queria fazer parte dessa família. Banu imediatamente lhe perguntou o que ela tinha ouvido falar, mas Feroz interrompeu a mãe, disse a Gulnaz que parasse de insultar sua família e que saísse desta casa. Bas, foi o que aconteceu. Se ele a viu novamente, não sei.

O disco já tinha acabado há alguns minutos, e Freddy se levantou para mudá-lo. Sera continuou sentada no sofá, absolutamente chocada e em silêncio. Ele escolheu um outro disco.

— Que tal esse? — indagou ele. — A Filarmônica de Nova York regida pelo nosso Zubin Mehta.

Ela assentiu, meio ausente; sua cabeça era um depósito de pensamentos confusos e contraditórios. Feroz com outra mulher. Alguém de quem ele deve ter gostado o suficiente para pensar em casamento. Alguém a quem deu uma aliança de noivado. Então era tudo mentira? As declarações de que nenhuma outra mulher o tinha atraído tanto quanto ela, e de como nunca soube o que era amor até Sera entrar na sua vida? O que deveria pensar então sobre o modo constante e ansioso com que ele foi atrás dela? Aquilo era apenas uma desesperada e última cartada de um homem de meia-idade que não queria passar a vida sozinho? Será que qualquer mulher parse com uma aparência razoável poderia ter atraído o seu olhar? Ou ele a tinha escolhido exatamente por causa dos seus 28 anos e pelo seu jeito de quem estava desesperada e rejeitada? Ele teria sentido alguma coisa ali? Algum ponto vulnerável, algum defeito, alguma fraqueza que pudesse explorar? Será que deliberadamente não quis enxergar os defeitos dele? Será que se deixou envaidecer pelo desejo óbvio que ele demonstrava?

Como se pudesse ler sua cabeça confusa, Freddy disse:

— De uma coisa eu sei, Sera. O meu Feroz ama você. Aqueles olhares que ele lhe lança durante o jantar, o modo como fica orgulhoso quando você entra na sala... Só um pai consegue ver essas coisas. Não havia nada de errado com Gulnaz, mas Feroz nunca se comportou desse jeito com ela.

Sera sorriu agradecida, mas seus olhos estavam encobertos pela dúvida.

— Obrigada, pappa Freddy. — Feroz é um bom...

Engasgou-se com as palavras.

— Feroz é a minha vida agora — exclamou, com a voz embargada pela emoção e pelo desespero.

Banu voltou para casa naquela tarde às seis e meia, trazendo cinzas do templo dentro de seu lenço bordado. Freddy e Sera ainda estavam sentados no sofá escutando música quando as sombras da noite inundaram a sala. Girando a chave da porta da frente, Banu entrou e imediatamente acendeu a luz destruindo a atmosfera íntima de penumbra que tinham criado para si mesmos. Eles permaneceram sentados, piscando os olhos por causa da luz repentina, e Sera viu os olhos de Banu se estreitarem ligeiramente ao perceber a cena e sentir a afeição óbvia que um nutria pelo outro.

— Meu Deus, vocês parecem um par de corujas de mau agouro — disse ela, entrando rapidamente na sala. — Ou seria um par de pombi-nhos?

Vendo o olhar enfurecido de Freddy, Banu rapidamente acrescentou:

— Apaixonados por Mozart, é claro.

De pé, na frente de Freddy, ela pegou uma pequena pitada das cinzas e as colocou na testa do marido.

— Dastur Homjee mandou salaams, suas saudações, para você. Disse que faz dois ou três meses que não o vê no agyari.

Pegou outra pitada no lenço, e Sera se preparou para receber as cinzas bentas. Mas Banu deixou as cinzas caírem e desviou-se da nora, que ficou sentada no sofá, sentindo-se uma idiota.

— Vamos, levantem-se daí — disse Banu sem se virar. — Desliguem essa música de enterro. Feroz já deve estar chegando.

 

ALGUNS DIAS DEPOIS, SERA esperou estar a sós com Feroz para perguntar sobre Gulnaz. Eles tinham ido jantar num novo restaurante chinês em Colaba e, mais tarde, Sera quis ir ao Gateway of India.

— Você quer tomar chá no Sea Lounge do Taj? — perguntou Feroz prontamente.

— Não, só estava pensando que seria bom dar um passeio à noite na beira do mar — disse ela. — Para pegar um pouco de ar.

— Ok — disse Feroz, apertando o cotovelo dela. — O que você quiser, minha querida.

Depois das tensões dos últimos dias, era maravilhoso estar a sós Com Feroz num local público. Naquela noite, enquanto passeavam pelo Apollo Bunder num silêncio cheio de companheirismo, Sera se sentiu mais próxima do marido do que tinha estado a semana inteira. E então ficou surpresa e até desapontada ao se escutar perguntando:

— Por que você não me contou nada sobre Gulnaz?

Ele ficou tenso.

— Quem lhe contou? Mamãe? — perguntou.

— Não. Na verdade, foi seu pai.

Feroz expirou ruidosamente.

— Já devia saber. Foi o “seu” bocão. Claro.

— Seu pai não teve má intenção — disse ela. — De qualquer modo, você deveria ter me contado. Por que não disse nada sobre isso?

Ele parou tão bruscamente que um casal de adolescentes, que vinha na direção contrária, teve de se separar e contorná-los. O rapaz encarou Feroz ao passar e resmungou:

— Que grosseria, yaar!

Feroz o ignorou. Quando se virou para Sera, seu rosto estava impassível e sem expressão.

— Não lhe disse nada, minha querida — respondeu ele cuspindo as palavras como se estivessem presas entre seus dentes —, porque sincera-mente você não tem nada a ver com isso.

Sera sentiu uma dor no estômago; o desprezo dele a atingira como um soco.

— Mas sou a sua mulher — disse debilmente.

— É verdade. Você é a minha mulher. Agora. Hoje. Mas não era minha mulher naquela época. E o que fiz naquela época é assunto meu. Não tem nada a ver com você, está bem?

Ela contemplou o mar escuro, tão grande e imensurável como a mágoa que lhe subia em ondas. Tentou reprimir as lágrimas piscando, enquanto raciocinava, perguntando a si mesma se estava certa, se de algum modo tinha infringido alguma norma não expressa do protocolo matrimonial. Será que não era mesmo da sua conta o fato de Feroz ter se apaixonado por outra mulher antes de a ter conhecido? Será que não cabia a ela perguntar?

Depois, lembrou-se de como o marido gritou na noite anterior quando ela entrou no banheiro enquanto ele escovava os dentes e de como ele sempre apagava a luz para vestir o pijama. Percebeu então que ele estava marcando os limites do seu passado assim como marcava os do próprio corpo.

— Venha, vamos embora — disse ele bruscamente. — Está ficando tarde.

A idéia de ter que entrar naquela casa novamente, de ter os olhos incansáveis de Banu acompanhando cada movimento seu, fez a voz de Sera tremer com a intensidade da sensação.

— Amanhã é sábado. Por favor, preciso caminhar mais um pouco. Não quero ir para casa ainda.

Ele suspirou impaciente.

— Ok, trabalhei o dia inteiro, mas se a minha esposa quer caminhar, vamos caminhar.

Foi então que ela viu um casal de muçulmanos vindo em sua direção. O rosto recém-barbeado do homem era jovem e radiante sob a luz da rua. Sera não conseguia ver o rosto da mulher porque ela usava uma burca negra que a cobria dos pés á cabeça, e apenas os olhos eram visíveis por trás da rede. Normalmente, essa visão a teria repugnado. Teria tido pensamentos desagradáveis com relação a esse marido que permitia que a mulher andasse pela rua com esta roupa que mais parecia uma prisão e que ignorava as estatísticas de alta incidência de tuberculose entre as mulheres que mantinham o rosto coberto o dia inteiro. Mas observou que o dedo indicador da mulher saía do vestido preto e se entrelaçava com o do marido. E caminhavam assim, os dedos se tocando numa conexão emocionante que comprovava o logro do véu e sugeria algo de mais profundo e mais eterno do que as convenções humanas.

Àquela visão encheu o coração de Sera de uma inveja súbita e ardente.

— Feroz — disse, querendo explicar-lhe tudo: como certas notas da “Sonata ao luar” tocavam o seu coração como o vento dentro de um saco de papel; como a sua alma se sentia infindável e profunda como o mar batendo ao lado deles; como a visão do casal de muçulmanos a encheu de uma emoção que era alegria e tristeza em partes iguais; e, acima de tudo, como desejava um casamento que tosse diferente do mar morto de muitos casamentos que via ao seu redor, como queria algo melhor, mais profundo, um casamento feito de seda e veludo e não de um pano áspero qualquer; um casamento feito de nuvens e estrelas, de terra vermelha e espuma do mar, de luares, sonatas, livros e galerias de arte, de paixão, bondade, mágoa e êxtase, e de dedos se tocando sob uma burca. Virou-se para ele com um desejo febril.

— Feroz... — disse mais uma vez. — Eu... eu realmente amo você.

Duas coisas aconteceram então. Feroz virou-se para ela com os olhos úmidos, cheios de afeto.

— Também amo você, Sera — disse ele com a voz embargada de emoção. — Desculpe-me por ter agido como um imbecil.

E, mesmo agradecida por aquelas palavras, sentia um desapontamento por ter se traído. Sabia que tinha tomado o caminho mais fácil para se livrar da situação, que tinha deixado a pressão escapar do bule fervente de suas emoções. O que queria dizer não era de jeito nenhum “amo você”. O que quis dizer foi “amo a vida”, uma autodeclaração tão despojada, tão real e autêntica quanto uma radiografia. E então uma porta se fechou com estrondo nos recônditos de sua mente: se tivesse dito o que tinha a intenção de dizer, sabia que Feroz não teria entendido. Um sentimento de solidão a invadiu como um vento gelado e a fez estremecer.

— Você está com frio? — perguntou ele imediatamente, todo solícito. — Venha, vamos ao Taj tomar uma xícara de chá quente.

Feroz pegou sua mão ao atravessar a rua, e ela se odiou pelos pensamentos ambíguos e traidores que batiam as asas em sua cabeça como morcegos. Por que não deveria ter dito “amo você” para Feroz? Sera lutava consigo mesma. Afinal, é verdade, não é? E, mesmo que não fosse o que queria dizer naquele exato momento, é verdade, não é? Mas, mesmo assim, o frio sentimento de autotraição permanecia.

O garçom os acomodou á mesa e Sera ficou olhando através das janelas panorâmicas para as águas sombrias do mar da Arábia.

— Acho que vou querer cerveja em vez de chá, janu — disse ela.

— Uma Kingfisher e um sherry — pediu Feroz. — E me traga uma porção de castanhas de caju.

 

SENTADA AO LADO DE VIRAF no carro com ar-condicionado, Bhima sorri. Ela adora esse ritual matinal. É tão bom não ter que ir ao bazar nos ônibus da BEST, superlotados e caindo aos pedaços... Está ficando velha demais para lidar com a correria que ocorre inevitavelmente quando um dos ônibus vermelhos aparece no ponto. Na semana anterior, Serabai lhe contou a história de uma parente distante, uma mulher franzina de 68 anos que fraturou o pulso quando foi atirada ao chão pela multidão frenética que tentava embarcar no ônibus.

— Tenho certeza de que fazem isso com os parses de propósito — resmungou Sera. — Todo mundo sabe que os nossos ossos são tão que-bradiços quanto os biscoitos Britannia.

Antigamente, as mulheres pelo menos eram poupadas das cotoveladas e dos empurrões que aconteciam sempre que um ônibus aparecia no ponto como se fosse uma fera mitológica. Mas, na Bombaim de hoje, é cada um por si, e os delicados, os fracos, os mais novos e os mais velhos entram nos ônibus superlotados por sua própria conta e risco. Bhima se sentiu como se mal conhecesse a cidade agora — algo de confuso, perverso e cruel se desencadeou dentro dela. Via os sinais dessa nova perversidade em todo lugar. As crianças das favelas amarravam bombinhas nos rabos dos vira-latas e depois riam e batiam palmas ao ver o pobre animal correndo em círculos, enlouquecido de medo. Universitários ricos ficavam loucos de raiva se um pivete de rua de cinco anos sujasse as janelas de seus BMWs e de seus Hondas faiscantes. Todos os dias, Serabai lia o jornal e lhe contava a última desgraça — um representante de um sindicato morto a pauladas por ter ousado exortar os operários da fábrica a organizar um movimento reivindicando um aumento de duas rupias; o filho de um político absolvido depois de atropelar três crianças faveladas a caminho de uma festa; um casal de idosos parses assassinado na cama por uma empregada que trabalhou para eles durante quarenta anos; jovens nacionalistas hindus escrevendo com seu próprio sangue notas de congratulações para celebrar o teste bem-sucedido de uma nova arma nuclear. A cidade parecia ter enlouquecido de ganância e fome, de poder e impotência, de riqueza e pobreza.

Bhima podia sentir a maldade correndo como lodo em suas veias enquanto esperava pelo ônibus. Quando a fera vermelha aparecia em meio a uma nuvem de fumaça, sentia seu coração disparar enquanto observava os outros passageiros, na tentativa de avaliar quem parecia mais fraco e vulnerável, e que, portanto, podia ser empurrado a cotoveladas para fora do seu caminho. Assim que o ônibus parava, a fila se desintegrava e se transformava numa multidão amorfa. Outras pessoas chegavam correndo de todas as direções, tentando entrar no ônibus, antes mesmo de ele parar. Uma vez, um idoso com um pé no degrau e o outro ainda na calçada foi arrastado durante meio quarteirão até que os gritos dos outros passageiros fizeram com que o motorista parasse. Bhima notou que as pernas do homem estavam tremendo tanto que seria impossível para ele embarcar. O motorista o olhou com impaciência, do alto do seu poleiro imperial.

— Vai entrar ou não vai? — perguntou, mas o pobre homem ficou parado ali, ofegante.

O motorista estalou a língua e tocou o sinal novamente. O ônibus partiu, deixando o passageiro no meio da rua, despejado como um pacote sem destinatário.

— O ar-condicionado está muito forte? — pergunta Viraf. Embora esteja com um pouco de frio, Bhima balança a cabeça, dizendo que não. Sabe que Viraf baba é muito calorento.

Bhima olha pela janela as ruas que passam correndo. “A cidade parece tão melhor vista através do vidro fumê de um carro com ar-condicionado”, pensa. Mesmo a fumaça dos canos de descarga dos ônibus e caminhões mais próximos não lhe queimam os olhos ou a garganta, e ela se sente como se tivesse derrotado seu velho adversário, o sol. É melhor ficar com um pouco de frio do que sentir o sol atacando os olhos e a pele.

O som está ligado e toca uma música em inglês que Bhima não en-tende, nem gosta. Fica imaginando por que Viraf sempre ouve música em inglês e não as dos filmes em hindi, tão populares na basti. Olha para o homem sentado ao seu lado com aquele uniforme branco de jogar críquete, e ele parece tão distante dela como as mulheres brancas que vê quando vai com Serabai fazer compras em Goiaba. Serabai lhe explicou uma vez por que aquelas pessoas tinham o cabelo louro e a pele da cor de parede de hospital; disse que havia alguma coisa faltando em seus corpos e que vinham para locais de clima quente como Bombaim para escurecer a pele. Sentia pena deles e, vendo seus cabelos compridos e roupas gastas, queria lhes dar dinheiro, mas Sera se ria disso e dizia que não precisava ter pena, porque eles na verdade sentiam orgulho de sua pele branca. “Gomo é que se pode ter orgulho de uma coisa que está faltando no próprio corpo?” Era o que Bhima queria perguntar, mas, antes que pudesse fazê-lo, Sera lhe explicou que eles não precisavam do dinheiro dela; disse também que eles vinham de lugares muito mais ricos do que ela podia imaginar. Então, Bhima teve certeza de que Sera estava mentindo, porque bastava ver o cabelo sujo deles, suas camisas desbotadas e calças azuis rasgadas para que qualquer imbecil soubesse que aquelas pessoas descuidadas e sem cor eram muito pobres.

Viraf está olhando para ela com curiosidade.

— Você ouviu alguma coisa do que acabei de dizer? — perguntou ele.

Bhima tem um sobressalto, sentindo-se culpada.

— Ai, Viraf baba. Desculpe. Estava só...

— Tudo bem.

Ele ri.

— Estava apenas perguntando por Maya.

Ela fica ruborizada, relutando em discutir a situação de Maya com um homem, mesmo que esse homem seja Viraf. Mas, antes que possa dizer qualquer coisa, ele vem em seu socorro.

— Olhe, Bhima — diz ele, meio sem jeito. — Esse assunto não é nada agradável, eu sei. Mas precisamos enfrentá-lo. Tenho um amigo que é médico. Quando eu voltar para casa, depois do jogo, vou telefonar para ele a fim de conseguir o nome de um médico que faça... que seja... um que e... você sabe, alguém que possa ajudar Maya a se livrar da criança. Já está na hora de se fazer alguma coisa quanto a isso, não é?

Em vez da gratidão que sabe que deveria sentir, Bhima fica chocada com o profundo ressentimento que as palavras de Viraf despertam nela. “É fácil para ele falar de se livrar do bebê de Maya”, pensa ela. “Afinal, ele e Dinaz vão ter um filho, uma criança que nunca vai saber o que é ter adultos planejando a sua morte. Uma criança que será bem recebida nesse mundo. Que nunca vai causar vergonha ou desgosto aos seus pais”. Sente por um momento uma fúria cega que é tão vasta que abrange Maya, Dinaz e Viraf, todos esses jovens, todas essas crianças que estão para nascer. Está cansada de tudo, cansada desse ciclo incessante de nascimento e morte, cansada de investir qualquer esperança na próxima geração, cansada e assustada por ter mais pessoas para amar, pessoas que um dia vão magoá-la, feri-la, irão partir seu coração com enganos, traições e erros, graças à própria condição humana. Bhima se sente esgotada, vazia e enrugada como uma casca de noz. Não tem mais nada para dar, nem amor para partilhar. Por essa razão, se recusa a dar as sobras de comida aos vira-latas da favela, que abanam o rabo e abrem a boca, ansiosos, todas as vezes que a vêem saindo de seu barraco. Não consegue agüentar a visão do pêlo maltratado, dos corpos sarnentos e aleijados, da fome de amor em seus olhos; tudo isso é de cortar o coração. Gopal. Seus dois filhos, Amit e Pooja. E depois o genro, Raju. Bhima os amou a todos e cada um deles a abandonou, deliberadamente ou porque foram derrotados na sua batalha contra a morte. Mas o resultado era o mesmo. Ela ficava para trás enquanto os outros viajavam para o que imaginava que seriam campos mais verdejantes.

Pisca os olhos e se força a voltar para o presente. Está envergonhada por sentir inveja da boa sorte de Dinaz e Viraf. Dinaz cresceu sob seus olhos e ainda se lembra da criança maravilhosa que ela era, toda abraços e sorrisos. Era um milagre que uma criança como aquela pudesse florescer debaixo da sombra projetada pela montanha escura que era seu pai. Assim que começou a ganhar o próprio salário, Dinaz sempre dava uma nota de dez ou vinte rupias a Bhima. E Viraf baba, tão solar, tão cheio de malandragem e de animação. Para se punir por seus maus pensamentos, Bhima enfia o polegar direito na palma da mão esquerda até a dor fazer com que se enrijeça.

— O senhor está certo, Viraf baba — diz, meio atordoada. — Estava dizendo a mesma coisa a Maya ontem à noite.

Viraf a olha rapidamente. Sua mão flutua no espaço entre eles como se quisesse consolá-la, mas acaba pousando novamente no volante.

— Vou falar com o meu amigo hoje mesmo — diz num tom tranqüilizador.

Quando ele a deixa no mercado, Bhima nota que Viraf fica esperando até que ela atravesse a rua sã e salva. Bhima sorri. “Que rapaz atencioso, esse Viraf baba”, diz consigo mesma. Alguns de seus gestos a fazem lembrar-se de Amit... A mesma amabilidade, a mesma cortesia. Amit. Seu único filho. Onde estaria agora? Será que pensava nela, será que sentia vontade de vê-la, será que sentia saudade dela como ela sentia dele?

Perdida em seus pensamentos, quase tropeça no hathgadi de madeira parado no meio da calçada. Bhima solta um xingamento quando a longa vara de madeira entra no seu quadril esquerdo, provocando urna pontada de dor na coxa magra. Um homem de vinte e poucos anos está escarrapachado no carrinho, dormindo profundamente. Bhima fica abismada de ver como ele consegue dormir em meio ao barulho da multidão que se acotovela em torno deles. Desde que Maya engravidou, seu próprio sono ficou tão perturbado que até os ruídos dos camundongos correndo pelo casebre a impedem de dormir. Bhima esfrega o quadril enquanto pensa se deve chacoalhar o rapaz adormecido para pedir que tire o seu hathgadi dali. Então, nota o volume por baixo da calça branca e larga.

— Saala badmaash. Safado — murmura para si mesma, rapidamente desviando os olhos. — Bêbado vagabundo.., dormindo aqui a céu aberto como se fosse o dono da cidade. Sem-vergonha, isso é uma sem-vergonhice!

Uma voz conhecida atravessa seus pensamentos mal-humorados.

— Arre, mausi, venha aqui — chama a voz. — Estava guardando meus melhores legumes especialmente para a senhora.

Bhima acena, despachando-o.

— Vou passar aí depois — diz —, mas antes tenho que encontrar aquele imprestável do Rajeev.

— Ele estava aqui um ou dois minutos atrás. Estava procurando pela senhora, mausi.

Como se tivesse captado a deixa, Rajeev aparece, equilibrando o e-norme cesto de vime sobre a cabeça. Ele é alto e encurvado, tem uns cinqüenta anos e usa um bigode que parece um guidom de bicicleta. Ele faz Bhima se lembrar dos carregadores do Rajastão que transitavam pela Estação Terminal Victoria antigamente, quando ela e Gopal tomavam o trem para a aldeia dos avós dele. Embora Gopal insistisse em levar ele mesmo as malas, os carregadores os seguiam como uma matilha de cães famintos, implorando por uma chance de trabalhar, diminuindo o preço a cada passo que davam.

— Onde é que você estava, Rajeev? — pergunta Bhima, em tom de bronca, como sempre fazia. — Você acha que tenho tempo a perder como uns e outros? Estou com pressa.

— Ae, Bhima mausi, calma, calma — diz Rajeev com um sorriso apaziguador que mostra as marcas vermelhas do paan que ele tinha acabado de pôr na boca. — Por que você tem que correr tanto? A sua patroa é boa, não vai se importar se você chegar uns minutos mais tarde.

Mas Bhima já está andando em direção ao vendedor que a chamou antes. No caminho, passa por Parvati, a velha que vem ao mercado todos os dias de manhã e só sai depois de ter vendido seu estoque de seis couves-flores pequenas e mirradas. A frágil mulher se senta no meio-fio em cima de um pano de algodão imundo e fica chamando os fregueses com a voz fina e anasalada. Desde que Bhima a conheceu, a velha desenvolveu um nódulo do tamanho de uma laranja na garganta. Um dia, quando Parvati adormeceu ali sentada, Bhima notou que a mulher ficava alisando o nódulo com o dedo durante o sono.

E, como faz todos os sábados, Bhima desvia o rosto. A visão de Parvati e de seus legumes de péssima aparência enchem-na de uma tristeza insuportável. Bhima sabe, pelas fofocas dos outros vendedores, que Parvati não tem marido nem filhos. Sabe também que os outros vendedores ajudam a pobre mulher, mandando para ela todas as noites as frutas maduras demais e os legumes machucados que não conseguiram vender. Ainda assim, Bhima se pergunta como aquela mulher consegue se manter viva com uma renda tão escassa. E por que Parvati não aumenta o seu estoque? Por que não consegue couves-flores de melhor qualidade? Assim, poderia comprar algumas... Os legumes são tão pequenos e mirrados que, mesmo comprando todo o lote, não seria o suficiente para a família Dubash. Nem bem se perguntou isso, e já sabia a resposta: aquela mulher mal tinha o suficiente para comer. Nunca lhe sobrava nada para comprar mais suprimentos.

Quando Amit e Pooja eram pequenos, Gopal e ela os levavam à beira-mar todo sábado. Lá, ela insistia em comprar para as crianças os balões em forma de animais vendidos por um pathan do Afeganistão alto e macilento. Havia alguma coisa na calma dignidade daquele homem, o jeito cuidadoso e sem ostentação com que torcia e enroscava os balões em formatos diferentes tocou o coração de Bhima. Quando os outros vendedores de balões tentavam seduzir as crianças com suas contorções cheias de trejeitos, com dedos ágeis torcendo a borracha, fazendo elefantes e cachorros, ela os despachava e esperava o pathan chegar. Enquanto ele trabalhava em suas criações com um leve sorriso distante no rosto, Bhima sentia vontade de perguntar por que o velho saiu de sua terra árida que parecia esculpida no seu rosto marcado e castigado pelo vento; se foi difícil se acostumar com as ruas poluídas e barulhentas da cidade; se sentia falta do ar suave das montanhas de sua terra natal. Mais do que tudo, queria saber como ele se sustentava apenas com a venda daquelas peças vermelhas e brancas de borracha e ar. Aquilo não parecia ser o suficiente para sustentar um pathan alto e magro, que dirá uma família. Porém, sua timidez e falta de jeito fizeram-na segurar a língua, de modo que o maior mistério de Bombaim — como toda uma classe de habitantes de Bombaim (os vendedores de balões, os tiradores de cera de ouvido e os coletores de papel) se aferrava com unhas e dentes à promessa dessa grande metrópole, como conseguia se alimentar apesar desses trabalhos patéticos — permanecia sem solução.

Agora, Bhima pula por cima de uma casca de banana e pára diante de sua quitandeira preferida, com Rajeev alguns passos atrás de si. O homem se abaixa, tira o cesto de vime da cabeça e o põe na calçada. Ignorando os gritos da vendedora que dizia: “‘Ae mausi’, já separei os melhores legumes para a senhora”, Bhima começa a escolher em meio à seleção colorida e magnificamente arrumada à sua frente. Compra seis quilos de quiabo, escolhendo cuidadosamente as peças menores e mais macias. Passa os olhos pelas berinjelas arroxeadas e enfia o nariz em seus machucados até que a vendedora, resmungando por entre os dentes, estende a mão por trás dela e traz quatro berinjelas lustrosas. Bhima segura as cabeças de alho na mão, escolhendo as melhores. Apalpa o coentro, arranca as folhas mortas de um dos molhos. Pede à mulher que corte um novo pedaço da abóbora vermelha porque o pedaço já cortado está cheio de moscas em cima. A vendedora pesa os legumes na velha balança de metal, com os pesos hexagonais de um lado, os legumes do outro, e os coloca dentro de sacos plásticos cor-de-rosa. Rajeev pega os sacos e os põe no cesto.

Bhima se levanta e pega uma nota na barra do sári. Espera pelo troco, mas a mulher fica imóvel, encarando-a.

— Esta é a quantia certa, mausi — diz finalmente. — Fiz para a se-nhora um precinho bom hoje. Qualquer um teria cobrado mais por esses produtos tão fresquinhos que a senhora está levando.

Se fosse qualquer outro sábado, Bhima teria discutido, defenderia sua posição até conseguir algum dinheiro de volta da vendedora. Afinal, pechinchar é uma tradição antiga neste bazar. E também, diferentemente das empregadas que fazem compras para as patroas,

Bhima nunca desperdiça um paisa sequer do dinheiro de Serabai. Para ela, é uma questão de confiança. Serabai confia nela o suficiente para mandá-la fazer as compras sozinha. Então, o procedimento correto é proteger o dinheiro da patroa tão zelosamente como se fosse o seu próprio.

Mas hoje está cansada e tem outras coisas na cabeça. E, além disso, seu próprio sofrimento fez com que ficasse mais vulnerável ao dos outros. Pela primeira vez, Bhima percebe as olheiras escuras em volta dos olhos da mulher, os sinais prematuros de cabelos grisalhos, o pequeno buraco na manga da blusa de seu sári. Hoje não consegue pensar nessa mulher como sua adversária, alguém com quem ela tenha que se envolver num bate-boca. As poucas rupias que economizaria discutindo perderam repentinamente o sentido.

— Tudo bem — diz abruptamente.

Depois, dirigindo-se a Rajeev:

— Vamos, preciso comprar batata e cebola.

Quando Bhima sai, sente o olhar estarrecido da vendedora às suas costas.

Não é tão simpática com o homem com quem compra as batatas e cebolas. Ele é um baniya baixinho e de óculos, fica numa lojinha estreita e pequena e a trata com menos respeito do que os outros vendedores. E, desde que o viu uma vez botando a mão na balança para aumentar o peso, Bhima passou a desconfiar dele. Por ela, não seria mais sua freguesa, mas Serabai gosta dos produtos do homem e insiste para que Bhima compre lá. Bhima o olha de modo arrevesado e diz, secamente:

— Cinco quilos de batata. E, por favor, que nenhuma esteja podre. Na semana passada, duas delas estavam tão ruins que não puderam ser aproveitadas.

Em vez de afetar um ar de desculpas, o comerciante faz uma careta.

— Tudo está podre em Mumbai — diz ele em voz alta. — O ar está podre, os políticos são podres, o sistema de transporte público é podre. Por que algumas das minhas batatas não poderiam estar podres? — Ele dá um sorriso debochado, mostrando os dentes manchados de marrom.

O adolescente de ar doentio e braços longos e finos que trabalha na loja balança a cabeça, admirado.

— Isso mesmo, patrão, isso mesmo — diz, lançando um olhar hostil para Bhima.

— Está ouvindo isso? — pergunta Bhima a Rajeev, alto o bastante para que o dono da loja a ouça. — Que tipo de badmaashi, de safadeza temos que aturar, mesmo quando estamos gastando o nosso dinheiro tão difícil de ganhar! Acho que vou comprar em outro lugar.

O vendedor se torna repentinamente grosseiro e diz:

— A senhora não está gastando o seu dinheiro, esse dinheiro é da sua patroa. A senhora nunca teria dinheiro para comprar os meus produtos e pagar os meus preços. Agora, pare de me fazer perder tempo.

Bhima se encolhe com a verdade contida nas palavras do quitandeiro. Mas, antes que possa reagir, Rajeev dá um passo na direção do quitandeiro, ameaçadoramente.

— Ei, cuidado com a língua. Tem várias lojas aqui que vendem batata e cebola. E posso fazer com que nenhum dos meus fregueses ponha os pés na sua loja novamente.

De repente, Bhima não quer mais nada a não ser acabar com aquilo. Ainda tem que ir ao mercado de peixe e estremece só de pensar que terá que andar naquele chão fedido, sujo, escorregadio e molhado, prestando atenção para não deixar nenhuma espinha de peixe entrar entre o seu pé e as chappais de borracha. Detesta o barulho do mercado fechado, os gritos agudos e insistentes dos vendedores tentando atrair os fregueses para seus estandes. Odeia as expressões vidradas e mudas nas caras dos peixes mortos e derrotados e a sensação escorregadia das moedas quando o vendedor lhe dá o troco. Enquanto Rajeev e o quitandeiro estão rosnando um para o outro, Bhima tira o dinheiro do sári e o põe em cima das batatas amontoadas.

— Pronto — diz apressadamente. — Aqui está o dinheiro. Agora me dê o troco e me deixe ir embora.

Observa Rajeev ajeitar as sacolas no cesto. Geralmente, o adolescente auxilia Rajeev, que se agacha no chão para levantar o cesto e botá-lo na cabeça, mas hoje o rapaz cruza as mãos e assiste impassível a Rajeev fazendo grande esforço para ficar de pé. O cesto já está cheio e Rajeev cambaleia por um momento sob o peso, antes de se aprumar. Bhima percebe seu passo em falso e sente pena dele. Desvia o olhar, aborrecida consigo mesma por esse sentimentalismo que lhe é pouco característico. Já tem problemas suficientes sem ter que arcar com o peso dos problemas do mundo, sem sentir a dor de cada quitandeiro e de cada carregador que encontra. Gopal sempre dizia que ela tinha o coração mole demais, que o mundo ia se aproveitar daquela moleza. E não é que o tempo provou que seu marido era um gênio? Pois não é que ele estava absolutamente certo? E a ironia disso tudo é que o próprio Gopal foi um dos que acabaram com a moleza de seu coração, tornando-o duro e frio como cimento.

— Para onde vamos agora, mausi? — pergunta Rajeev, e ela aponta para o mercado de peixe.

 

QUANDO ACABAM DE FAZER AS COMPRAS, Rajeev põe o cesto repleto perto dos pés de Bhima e diz que vai chamar um táxi. Este é seu ritual semanal, mas hoje a lembrança de Rajeev vindo em sua defesa ainda mexe com o coração de Bhima.

— Chalo. Vamos — diz ela. — Mas, antes disso, que tal tomarmos uma xícara de chá quente? Você vai ter uma carga bem pesada para carregar hoje.

Rajeev olha para ela com curiosidade e faz que sim com a cabeça.

— Seria ótimo, mausi. Muito obrigado.

Eles ficam de pé do lado de fora de um pequeno bar e bebem o líquido marrom-claro nas pequenas canecas. O proprietário, um homem avantajado com uma enorme barriga, está sentado à entrada do bar, fritando batatas empanadas e apimentadas num enorme wok com óleo borbulhante. O cheiro das battatawadas deixa Bhima com a boca cheia de água. Faz as contas para saber quanto vai sobrar do dinheiro de Serabai depois de pagar o táxi, e rapidamente calcula, concluindo que pode se dar ao luxo de comprar um lanche para os dois.

— Duas battatawadas no pão, com chutney — pede ao dono do bar. Quando o lanche é servido num pedaço de jornal, sem dizer uma palavra, Bhima entrega um dos sanduíches a Rajeev. O carregador fica encantado.

— Muito obrigado — diz ele, engolindo a comida.

Bhima tem vontade de comprar-lhe um segundo sanduíche, mas sua consciência está pesada por estar gastando o dinheiro de Serabai. Em vez disso, se força a parar de comer o seu sanduíche, fingindo estar satisfeita.

— Essas battatawadas são muito grandes — diz. — Não vou conse-guir terminar isso. Você quer, Rajeev?

Antes que tivesse terminado de falar, o sanduíche já estava nas mãos dele.

No táxi, Rajeev vai na frente com o motorista, e Bhima se senta no banco de trás com o cesto alojado a seu lado. A comida deixou Rajeev de bom humor, querendo conversar, por isso se vira toda hora para fazer algum comentário. Mas ela não está com muita vontade de bater papo e logo, logo Rajeev se vira para a frente e entabula conversa com o motorista. Sob o escudo protetor das duas vozes masculinas, Bhima se sente livre para se perder em seus pensamentos e ficar olhando pela janela. Inclina-se por sobre o cesto e fecha o vidro da direita para se proteger da fumaça que sai do ônibus da pista ao lado. Já tinha fechado a janela da esquerda assim que entrou no táxi. As janelas fechadas tornavam o carro insuportavelmente quente, mas até o calor era preferível às violentas convulsões sofridas por seus pulmões quando invadidos pela fumaça. Sente falta do ar-refrigerado do carro de Viraf, sente falta de olhar para o mundo lá fora com a pele sendo acariciada por aquele frescor suave e marcante.

Bombaim passa deslizando pela janela, silenciosa e rapidamente, como aconteceu com a maior parte de sua vida.

 

SERA ACORDA COM UM GRUNHIDO. Olha para o despertador e tem a sensação de alívio quando vê que o mostrador marca quatro da manhã. Ainda pode dormir pelo menos mais uma hora. Por um instante, se sente incomodada por ter que acordar tão cedo hoje. Dentro de algumas horas, vai pegar Bhima e Maya na parada de ônibus perto da casa delas. A idéia é Bhima seguir para o trabalho enquanto Sera leva Maya à clínica de abortos. Três dias atrás, ficou lisonjeada quando Bhima lhe disse que Maya pediu que ela a acompanhasse ao médico. Agora, deitada e acordada, olhando para a escuridão do quarto, fica irritada. Não tinha pensado em nada disso quando se prontificou a pagar pela universidade de Maya. Pagar a quantia correspondente a cada período letivo era uma coisa, acompanhar a garota a um médico para tirar seu filho bastardo era outra bem diferente.

“Mas você não está fazendo isso por Maya”, pensa. “Está fazendo isso pela velha Bhima”. O pensamento é imediatamente acompanhado por uma dor surda debaixo do ombro. É uma dor que não existe, sabe disso, uma dor psicossomática, mas mesmo assim sente doer. Afinal, já tinham se passado muitos anos desde o golpe que fez seu braço inchar e doer durante muitos dias. Por outro lado — quem sabe? —, talvez o corpo tenha a sua própria memória, como as linhas invisíveis dos meridianos de que os acupunturistas chineses sempre falam. Talvez o corpo não perdoe, talvez cada célula, cada músculo e cada fragmento de osso se lembrem de cada golpe e de cada ataque sofrido. Talvez a dor da memória esteja codificada na nossa medula, e cada sofrimento rememorado navegue na nossa corrente sanguínea como um seixo duro e negro. Afinal, o corpo, como Deus, anda por caminhos misteriosos.

Na adolescência, Sera tinha ficado fascinada com este paradoxo: o corpo que habitamos e que usamos como um casaco desde o nas-cimento (e mesmo antes do nascimento) continua sendo um estranho para nós. No fim das contas, quase tudo o que fazemos na vida é para o bem-estar do corpo: tomamos banho todos os dias, escovamos os dentes, penteamos o cabelo, cortamos as unhas; trabalhamos em empregos desinteressantes para podermos comer e nos vestir; nos esforçamos para protegê-lo da dor, da violência e do dano. E, no entanto, o corpo permanece um mistério, um livro que nunca lemos. Sera brinca com essa ironia como se fosse um quebra-cabeça: como é que, apesar da dedicação de uma vida inteira ao nosso corpo, nunca nos vimos cara a cara com nossos rins, como reconheceríamos nosso próprio fígado se o víssemos misturado a outros, e como podíamos nunca ter visto nosso coração ou nosso cérebro? Sabemos mais sobre as profundezas do oceano, estamos mais familiarizados com locais remotos do espaço sideral do que com nossos órgãos, músculos e ossos. Então, talvez não existam dores imaginárias. Talvez todas as dores sejam reais, talvez cada golpe de muito tempo atrás sobreviva pela eternidade sob alguma forma ou numa permutação diferente. Talvez o corpo seja essa entidade hipersensível e vingativa, um livro de contabilidade, um inventário de indelicadezas e crueldades.

Mas, se isso é verdade, talvez o corpo também se lembre de cada gesto de bondade, de cada beijo, de cada ato de compaixão. Certamente essa é a nossa salvação, nossa única esperança, a de que a alegria e o amor estejam também entremeados no tecido do corpo, no vigor de cada músculo, no cerne de cada célula pulsante.

Vindo da névoa azul do tempo, Sera se lembra do golpe e do bálsa-mo, do algoz e do curandeiro: Feroz e Bhima.

 

NAQUELA ÉPOCA, ELA E FEROZ tinham se mudado do apar-tamento de Banu para um só deles. Quando o primeiro golpe a atingiu, já tinha até se esquecido de como a briga havia começado. Tudo o que conseguia focalizar era o rosto de Feroz, a veia pulsando raivosamente em sua testa, seus olhos esbugalhados de fúria, sua pele de uma cor marrom-ferrugem. E então, com o rabo do olho, viu o castiçal de latão na mão dele e os golpes rápidos e furiosos no ar antes de atingirem o braço que ela tinha levantado num esforço para se proteger daquela rajada de raiva. Uma dor aguda e amarga invadiu seu corpo, e um grito animal escapou de seus lábios antes de forçar sua boca a ficar calada. Sera caiu ao lado da cama segurando o braço machucado, mas Feroz não parou, desferiu uma enxurrada de socos nas suas costas, dessa vez só com as mãos. Ela achou que fosse desmaiar de dor, mas a violência terminou tão repentinamente quanto tinha começado, como se alguém tivesse desligado o interruptor que fez as mãos dele executarem aquele ato violento.

No passado, depois que o jorro torrencial de sua raiva terminava, ele olhava para ela com um ar de quem não compreendia o que havia acontecido. Depois, vinham as lágrimas, as desculpas e a autorecriminação. Feroz soluçava e implorava por seu perdão. Estapeava com força o próprio rosto ou se dava golpes na nuca. Mas dessa vez Feroz simplesmente ficou olhando Sera, e, quando finalmente conseguiu olhar para ele e ver seu rosto através das lentes distorcidas das lágrimas, o olhar de repugnância do marido fez seu coração parar. Ele estava olhando para ela como se a odiasse, como se a visão de seu corpo machucado e encolhido lhe desse náuseas.

— Hoje você foi longe demais — disse ele. — Hoje você mereceu o que recebeu. Esse seu maldito orgulho, sua arrogância. Você não é uma mulher de verdade, você é uma castradora, sabia disso?

Já estavam casados há tempo suficiente para que Sera soubesse que era melhor não responder. Feroz ficava como que possuído quando estava num de seus ataques violentos, e a mais leve provocação poderia fazer a fúria girar dentro dele e se movimentar ainda mais rápido, como uma nuvem que junta poeira. Então, ela olhou para o outro lado, agradecida por Dinaz estar no parque com Bhima, agradecida pela filha ter sido poupada de ouvir os ruídos do desmoronamento do casamento de seus pais. E, enquanto pensava nisso, deveria provavelmente dar graças por ter um tipo de pele que cicatrizava rapidamente, de modo que se poupava da humilhação de ser uma daquelas mulheres que ostentam no corpo as marcas da violência dos maridos, expostas como numa vitrine.

Mas dessa vez as contusões não sararam. Três dias depois, seu braço ainda estava negro e azulado, e ela mal conseguia levantá-lo acima da cabeça para botar seu sadra pela manhã. Mesmo amarrar seu kasti — o tradicional cordão parse trançado com 72 fios de lã e usado em torno da cintura — fazia com que o braço doesse. Havia também um hematoma no lábio superior, que foi ferido quando ela bateu na cama ao cair de joelhos. Mas, naquele momento, não estava se incomodando. Queria ficar na cama o dia inteiro, entorpecendo a mente, do mesmo modo que seu corpo era invadido pela dor. De manhã, conseguia ficar de pé tempo suficiente para aprontar Dinaz para a escola antes de voltar para a cama, onde ficava até a hora de a filha voltar para casa.

No dia seguinte à agressão, Feroz entrou no quarto e anunciou que iria a Pune numa viagem de negócios. Ela sabia que ele tinha inventado essa viagem como um modo de sair de casa, mas não se importava. Sentia-se agradecida por ele ficar fora. Deste modo, não haveria ninguém para olhá-la com desprezo quando voltasse para a cama às nove da manhã; ninguém para dizer-lhe que, se não tomasse cuidado e saísse daquele estado de espírito, acabaria como uma daquelas velhas parses malucas da Grant Road; ninguém para criticar a sua aparência, seu modo de andar ou seu cheiro; ninguém paradizer que as marcas em seu corpo eram fingidas, e que estava deliberadamente se apegando a elas como um modo de fazê-lo sentir-se culpado. Ainda assim, apesar do alívio de ficar sozinha em casa, seu coração pulava todas as vezes que ouvia o telefone ou que o carteiro batia na porta. Continuava esperando que Feroz se desculpasse por carta ou por telefone, que reconhecesse o seu sofrimento, que perguntasse sobre seu corpo machucado. Mas quando Feroz telefonava à noite era apenas para dar boa-noite a Dinaz. Dessa vez não haveria desculpas. O padrão habitual de violência desenfreada seguida pelo rio de lágrimas, desculpas, palavras carinhosas, beijos e promessas não aconteceria dessa vez. Dessa vez, só haveria a secura do silêncio e da distância. Sera sentiu agudamente a falta do ciclo habitual de brigas e reconciliações. Era como se outra fase de seu casamento tivesse terminado e agora não contava mais nem com a espe-rança de ser reconquistada. A indiferença de Feroz doía tanto quanto os hematomas em seu braço.

No quarto dia, Bhima veio trabalhar trazendo uma pequena trouxa. Sera olhou desinteressadamente quando abriu a porta para Bhima entrar e voltou para o seu quarto. Pouco depois, Bhima veio a seu quarto trazendo um prato com duas torradas.

— Vamos, bai, levante-se — disse ela. — A senhora assim vai ficar ainda mais doente. Hoje a Bhima aqui vai dar um jeito na senhora. Todas essas marcas escuras nos seus braços vão desaparecer até o sol se pôr, prometo.

Sera sorriu levemente. Estava cansada demais para prestar muita a-tenção em Bhima. Mesmo quando a ouviu batendo alguma coisa na cozinha, não prestou muita atenção. Mas levantou a cabeça quando Bhima trouxe o fogareiro Primus para dentro do quarto.

— Bhima, o que está fazendo com isso aqui? — exclamou.

— Shh, shh. Bai, deixe-me fazer o que tenho que fazer. Essa receita é da mãe do Gopal. Uma vez, quando estávamos de visita lá na terra dela, uma das moças do vilarejo foi estuprada e espancada por uma gangue de goondas, um bando de malfeitores. Quando fomos vê-la, hai, a pobre moça estava tão pálida que não se podia dizer qual era a verdadeira cor de sua pele. Nem o doutor sahib sabia o que fazer com ela. Minha sogra foi para casa e voltou com essas folhas secas e um pouco de óleo quente e aplicou sobre o corpo todo da moça. Acredite ou não, no dia seguinte de manhã, a pele da moça estava como a de um recém-nascido.

Sera quis protestar, mas estava cansada demais. Então, recostou-se e observou Bhima pegar uma pitada do pó marrom-escuro e mistura-lo no óleo. Ela pôs o fogo bem baixinho e aqueceu a mistura durante alguns segundos. Depois, verteu o óleo nas mãos ásperas e calejadas e começou a massagear os braços de Sera.

Sera se enrijeceu. Bhima nunca a tinha tocado antes. Tentou opor alguma resistência, mas percebeu que não poderia inventar nenhuma boa razão para impedir que as mãos de Bhima a tocassem. O óleo quente fez Sera despertar. Apesar de os braços finos e fortes de Bhima estarem massageando apenas seu braço, Sera sentiu o corpo todo relaxar. Sentiu a vida começando a se movimentar em suas veias e não soube dizer se essa nova e bem-vinda sensação era por causa do óleo ou pelo simples conforto de ter outro ser humano tocando-a com carinho e cuidado. Mesmo nos momentos mais suaves, quando fazia amor com Feroz, nunca sentiu aquele ato como algo generoso e altruísta, coisa que sentia com esta massagem. Afinal, fazer amor tem sempre outras implicações — as necessidades do outro precisam ser satisfeitas; e, mesmo quando Feroz se concentrava em lhe dar prazer, Sera sentia o corpo dele pulsar; sentia também que ele ficava observando, esperando para ver seu próprio desempenho refletido nas reações dela. O ato sexual é, em última análise, um ato egoísta, são as expectativas de um corpo intrinsecamente entremeado nas necessidades do outro. Mas aqui com Bhima não havia nada disso. Aqui ouvia apenas o som do seu corpo relaxando, observando como a dor e o mal iam abandonando as marcas em sua carne até que se tornassem inofensivas borboletas negras em seu braço.

Quase grunhiu de frustração quando Bhima parou por um segundo para preparar mais um pouco da mistura. Agora, Bhima estava delicada-mente virando-a de barriga para baixo e desabotoando seu vestido nas costas.

— Coitada de Serabai — murmurou. — Quanta carga esse pobre corpo está carregando! Quanta infelicidade! Mande isso para o diabo, largue isso, não fique carregando esse peso!

Enquanto suas mãos faziam círculos nas costas macias de Sera, beliscavam os músculos tensos e davam pancadinhas nos pontos doloridos, com os dedos se movendo para cima e para baixo nas vértebras, como se elas fossem teclas de piano, Bhima continuou falando numa língua que Sera não entendia direito. À medida que seu corpo relaxava com as mãos experientes de Bhima, Sera se sentiu numa espécie de regressão, retrocedendo no tempo e, por um momento, ela era uma jovem noiva sentada no colo do marido enquanto ele a movimentava para a frente e para trás num ritmo sexual; e depois, no momento seguinte, era uma criança sentada nos joelhos da mãe, sendo ninada para dormir depois de uma noite quente e inquieta; depois era ainda mais velha e mais nova do que aquelas duas, era um peixinho flutuando num mundo tépido de escuridão e fluidos, um ser tão informe, transparente e líquido, exatamente como sentia seus ossos naquele momento. E Bhima continuava falando com ela, as palavras voando de sua boca, tão rápidas quanto os pardais ao crepúsculo, sua língua trabalhando tão ágil quanto suas mãos, de modo que tudo era uma mistura de palavras e ritmos, de fala e movimento. E agora Sera está se deixando levar pela corrente de uma memória antiga, primitiva, afogando-se num lago de sensação e sentimento, velhos machucados e novas feridas sendo exorcizados de seu corpo, fazendo com que se sinta tão nova e brilhante como no dia em que nasceu. Paradoxalmente, à medida que a dor abandonava o seu corpo, Sera começou a chorar, como se, agora que a dor deixou de ocupar espaço, houvesse finalmente lugar para as lágrimas. As lágrimas correram pelo seu rosto e foram colhidas pelo travesseiro, mas se Bhima notou as costas de Sera arfando, não comentou nada. Bhima parecia estar em transe. Os estranhos murmúrios continuaram por sobre o choro silencioso de Sera, o que a fez sentir-se agradecida.

A última coisa de que ela se lembrava antes de adormecer era o cheiro do óleo no quarto. Aquilo a fez lembrar-se do cheiro do apartamento de sua avó, e o fato de pensar nela, uma mulher corpulenta e resmungona com um peito grande como um travesseiro contra o qual apertava a cabeça da neta, a fez sorrir.

Quando acordou, algumas horas depois, as marcas em seus braços tinham diminuído. Se antes pareciam o mapa-múndi, agora estavam do tamanho do mapa do Brasil. Em qualquer outra situação ficaria surpresa, mas, depois da estranheza onírica da massagem de Bhima, tudo era possível. Levantou-se da cama, enfiou os pés nos chinelos de borracha e foi até a cozinha. De repente, sentiu-se inacreditavelmente tímida diante da mulher que estava inclinada sobre a pia, lavando a louça com a mesma intensidade com que tinha massageado suas costas algumas horas antes. Queria agradecer a Bhima por sua bondade, queria explicar como a vida parece mais quente e maravilhosa quando volta a fluir nas veias de alguém, queria dizer-lhe como seu coração se sentiu frio depois do último encontro com Feroz e como Bhima o tinha aquecido novamente, como se tivesse segurado nas mãos morenas seu coração frio e cinzento, esfregando-o até que o sangue voltasse a circular por ele. Mas uma nuvem de timidez se abateu sobre Sera quando Bhima ergueu a cabeça e olhou para ela. Já tinha aceitado há muito tempo o fato de Bhima ser a única pessoa a saber que os punhos de Feroz, de vez em quando, voavam como abutres negros sobre o deserto de seu corpo; que Bhima conhecesse melhor a estranheza de seu casamento do que qualquer amiga ou membro da família. Mas agora Sera sentia que Bhima também tinha acesso à sua alma, e que, de algum modo, penetrou em seu corpo mais fundo do que Feroz jamais fizera.

— Melhor? — perguntou Bhima sem sorrir.

Em resposta, Sera levantou o braço para que Bhima pudesse ver a diminuição das marcas em sua pele. A velha assentiu energicamente:

— Amanhã de manhã não vai haver mais nenhum sinal de... nenhum sinal... de nada.

Sera sentiu que corava com o que Bhima não tinha dito. Nenhum sinal da brutalidade de Feroz, isso era o que queria dizer. A humilhação fez Sera desviar o rosto e, por isso, não percebeu que Bhima tinha se afastado da pia da cozinha e dado alguns passos em sua direção, secando as mãos no sári enquanto andava.

— Serabai — disse suavemente —, a senhora é muito mais sabida do que eu, uma mulher instruída, e eu, uma analfabeta. Mas, bai, ouça o que lhe digo: a senhora não pode mais tolerar o que ele está fazendo. Conte para alguém. Conte para seu pai, que ele vai entrar aqui e quebrar a cara dele. A senhora está tentando encobrir a sua vergonha, bai, eu sei, mas a vergonha não é sua. A vergonha é de Feroz seth e não sua.

Os olhos de Sera encheram-se de lágrimas. Ela se sentiu nua sob a visão de raios X dos olhos de Bhima, mas era imenso o alívio de ter outro ser humano reconhecendo em voz alta o que Feroz estava fazendo com ela.

— Gopal... Gopal nunca bateu em você?

Bhima bufou.

— Bater em mim? Arre, se aquele idiota tocasse em mim uma única vez, eu faria um jadoo, um feitiço, para transformar as mãos dele em toras de madeira.

Depois, vendo o rosto chocado de Sera, ela sorriu.

— Não, bai. Com a graça de Deus, o meu Gopal não é como os outros homens. Ele preferiria cortar as próprias mãos a me bater.

 

DEITADA NA CAMA, SERA se recorda da declaração confiante de Bhima sobre Gopal — “ele preferiria cortar as próprias mãos a me ba-ter” — e sorri com amargura. O tempo provou que Bhima estava errada, desgastando sua confiança no marido e deixando uma mulher rude e cheia de farpas em seu lugar. Elas eram parecidas em muitos aspectos. Apesar das diferentes trajetórias de vida — circunstâncias que agora acha que foram determinadas pelos acidentes de seus nascimentos —, ambas conheceram a dor de ver murchar a flor de seus casamentos. Gopal tinha sido um bom homem, mas atingiu Bhima como uma víbora e roubou o objeto mais bonito e brilhante de sua vida.

“Bom, não adianta ficar lamentando o passado”, pensa Sera ao levantar-se da cama e desligar o despertador. É melhor tentar consertar o futuro, que é o que está fazendo ao ajudar Maya na questão do aborto. Ela se senta na beira da cama e reza cinco Yatha Abu Vahirivos. Depois, beija o pequeno retrato do Senhor Zoroastro que tem numa moldura de plástico na cabeceira da cama. Dirige-se ao banheiro, andando em silêncio para não despertar o casal, que está dormindo no outro quarto. Ao pensar em Dinaz, Sera se lembra de como Bhima a mimava quando ela era criança. “Bhima fez muitos favores para essa família”, pensa ela. “Se Maya precisa de ajuda agora, como eu poderia recusar?”

 

“PELO MENOS NÃO VAI TER QUE PEGÁ-LAS na favela”, pensa Sera, ao entrar no táxi. Graças a Deus teve a presença de espírito de pedir que a esperassem no ponto do ônibus. Desse modo, ela e Maya poderão continuar no táxi em direção à clínica do doutor Mehta. Apesar de já terem se passado muitos anos, Sera ainda estremece a simples lembrança de sua visita à favela.

Bhima estava com tifo. Incapacitada de vir trabalhar, mandou notícia por um dos vizinhos, e Sera imediatamente soube que o caso era grave. Tifo era uma doença séria, sabia disso. E então decidiu visitar Bhima e Maya.

Embora seu prédio ficasse a menos de 15 minutos a pé da basti, Sera teve a sensação de estar entrando em outro universo. Uma coisa era passar de carro pelas favelas que brotaram em todos os cantos da cidade. Outra coisa era andar pelas vielas estreitas que conduziam à comunidade cada vez maior da favela, ver seus sapatos de verniz se sujarem com a água turva e lamacenta que se juntava em poças no chão, engasgar com o cheiro fétido de excrementos e de sabe-se lá o que mais, ter de desviar o olhar para não dar de cara com homens urinando nas valas abertas que passavam em frente de suas casas. E as nuvens de moscas, espessas como a culpa. E os cães vadios com cicatrizes e feridas pelo corpo. E as crianças cacarejando como galinhas com suas mães lhes batendo com as mãos espalmadas. Sera quis voltar atrás para fugir desse mundo horrível e retornar para a sua vida saudável. Mas a preocupação com Bhima a impulsionou a ir adiante.

À medida que andava, um grupo de moradores da favela — crianças animadas pulando num pé só, mulheres curiosas e alguns homens mais ousados — começou a segui-la, fazendo com que se sentisse ainda mais alienígena ali, uma invasora espacial que tinha vindo parar num planeta diferente. A multidão às suas costas era festiva e cheia de animação; o zumbido constante de suas conversas a acompanhava como um enxame de abelhas. Mas ninguém falava com ela, a não ser para indicar o caminho até o barraco de Bhima: “Pegue aqui à esquerda, madame” e “Não, bai, por ali”. Sabia que o pessoal da favela encontrava gente rica e bem-vestida todos os dias nas ruas e que muitas dessas pessoas deviam trabalhar na casa de gente como ela. Seu mundo era familiar para eles. A novidade era alguém do seu mundo entrar no mundo deles.

Mas a pior parte da visita — a lembrança que ainda faz o rosto de Sera ficar afogueado — foi a recepção que a aguardava quando chegou à casa de Bhima. Bastou dar uma olhada em Bhima para saber que ela estava gravemente doente. Seu rosto anguloso parecia uma caveira, e os olhos brilhavam com a febre alta que a afligia diariamente. Mesmo assim, Bhima se esforçou para ficar de pé e receber Sera em sua humilde morada. Vasculhando suas coisas, pegou uma nota de cinco rupias e pediu a Maya para buscar uma Mangola para a visita — sabia que esse era o refrigerante favorito de Sera. Sem que ninguém pedisse, os vizinhos de Bhima rapidamente arranjaram uma cadeira de madeira, na qual todos insistiram para que Sera se sentasse. Quando protestou dizendo que poderia se sentar no chão, eles riram como se ela tivesse contado uma ótima piada. Maya voltou com a Mangola. Quando Sera lhe ofereceu um gole, a menina recusou, embora tenha lambido os lábios e desviado o olhar.

Sentada na única cadeira da casa, rodeada de pessoas acocoradas e bebendo a Mangola enquanto as crianças da favela a olhavam com seus olhos grandes e pidões, Sera se sentiu tomada pela culpa e pela dor. A cada gole do refrigerante de manga, espesso e adocicado, tinha a sensação de estar engolindo um coágulo de sangue. Várias vezes fez um gesto de quem já estava satisfeito e não queria beber mais, porém toda vez que isso acontecia, Bhima parecia ficar desolada. “Ah, a generosidade dos pobres”, pensava Sera admirada. “É de nos deixar com vergonha, a nós da classe média. Na verdade, eles deveriam nos odiar. Em vez disso, nos tratam como se fôssemos a realeza”. Só de pensar em como tratava Bhima — não permitindo que se sentasse nas cadeiras e poltronas, fazendo com que comesse com louça e talheres separados — ficou cheia de culpa. Entretanto, sabia que, se tentasse mudar qualquer ritual desses, Feroz teria um ataque. Mesmo assim, o rosto febril e doentio de Bhima e a sua generosidade espontânea fizeram-na tomar uma decisão.

— Você vai para casa comigo, vai ficar conosco até melhorar — disse. — Nem tente discutir, Bhima, você não está em condições de cuidar de si mesma, muito menos de Maya. Qualquer um pode ver isso. Pegue as coisas de que precisa e vamos embora.

Mantendo a palavra, cuidou da saúde de Bhima, levando-a no dia seguinte para ver o bondoso médico da família, o doutor Porus.

Mas agora que tudo isso lhe passava pela cabeça com a velocidade do táxi, Sera não sente nenhum conforto ou orgulho por ter feito o que fez. Lembra-se de que, mesmo doente daquele jeito, Bhima tinha dormido num colchão fino na sacada. A idéia de vê-la dormindo em uma das camas repugnava Sera. A pequena Maya dormiu num lençol, perto da avó. Na época, pôs a culpa em Feroz, dizendo a si mesma que ele não toleraria nada além disso. Mas a verdade é que ela própria teria se sentido desconfortável com qualquer outra solução. Os cheiros que sentiu e as visões que teve na favela ainda estavam muito frescos em sua memória, como que impregnados na sua pele e no seu cabelo. Cada vez que pensava na favela, encolhia-se diante de Bhima, como se aquela mulher personificasse tudo de repulsivo que havia naquele lugar. Durante muitos anos, Sera se maravilhou com a limpeza e arrumação de Bhima. Agora, na hora de lhe dar os remédios, Sera fazia questão de deixar cair as pílulas na palma da mão de Bhima sem encostar nela. Durante as semanas seguintes, manteve Dinaz cuidadosamente afastada de Bhima. Disse a si mesma que era por causa da febre, mas, na verdade, queria também proteger a filha daquela pátina de sujeira que via cada vez que olhava para a empregada.

Soltou um suspiro tão alto que o motorista do táxi olhou para ela pelo retrovisor. “Por mais que tentasse, não conseguia transcender a sua condição de uma mulher de classe média”, pensava ela. Mesmo assim, fez o melhor que pôde por Bhima e sua família. E agora tem que acompanhar Maya nessa situação. Mas, para o bem de todos, vai ficar contente quando todo esse assunto sórdido acabar. Essa situação desagradável afetou Bhima terrivelmente. Ontem mesmo, teve que segurar a língua em pelo menos cinco ocasiões, em que Bhima cometeu erros bobos e descuidados.

 

QUANDO SERA CHEGA À PARADA de ônibus, as duas já estão esperando. Ela as vê antes que a vejam, duas figuras com quase cinqüenta anos de diferença e, no entanto, indiscutivelmente ligadas pelo sangue e pelo destino. Embora não estejam conversando, seus corpos estão apoiados um no outro num gesto inconsciente de familiaridade e intimidade. A garganta de Sera se aperta ao sentir o afeto e o calor humano que Maya lhe desperta. Já faz algum tempo que não a vê porque há alguns meses — mais ou menos na época em que andou dormindo com o namorado, especula Sera — Maya parou de aparecer para trabalhar na casa de Banu. Naquela época, a enfermeira diurna saia as três da tarde, e Sera contratou Maya para cuidar de sua sogra até que a enfermeira da noite chegasse, às oito. Era um trabalho fácil — tudo que Maya tinha a fazer era ir até o apartamento de Banu depois da faculdade para dar o chá da tarde e o jantar da velha. Sabia que podia conseguir outra pessoa pagando bem menos, mas Maya era praticamente um membro da família, e Sera não lamentava o dinheiro extra que dava a ela. Ficou imaginando que a jovem devia se sentir deslocada no meio de seus colegas mais abonados. Afinal, não havia entre eles muitos órfãos cujo único parente vivo trabalhasse como empregada doméstica na casa de alguém. Se algumas rupias extras ajudassem a diminuir seu descon-forto, se ajudassem na compra de uma roupa que aumentasse sua autoconfiança, então valia a pena.

— Pare um pouquinho além do ponto de ônibus — disse, direcio-nando o motorista. — Bas, aqui está bom. Pode parar aqui.

Quando saiu do táxi, as duas a viram e caminharam em sua direção. Sera ficou desapontada ao notar que Maya não olhou para ela, mantendo a cabeça baixa o tempo todo. De algum modo, a falta de entusiasmo da moça ao vê-la a incomodou, fazendo murchar a onda de afeição que havia sentido há poucos minutos.

— Oi, Maya — diz friamente. — Como vai você?

— Vou bem — responde Maya, com voz mortiça.

Sentindo o olhar crítico, Maya finalmente levanta a cabeça e olha para Sera. Mas sua expressão é tão morta quanto a voz, como se seu rosto tivesse repentinamente se transformado em pedra.

Bhima olha para uma e para a outra, preocupada.

— Ela está indisposta hoje, Serabai — diz. — Acordou deprimida... e isso.

Seus olhos cinzentos e gastos imploraram que Sera entendesse e perdoasse.

Sera repentinamente sente que gostaria que Bhima as acompanhasse à clínica. Não queria ter que lidar com essa nova Maya de cara emburrada. A moça que conhece e que ajudou a alimentar e educar é mais leve e mais nova do que essa carregada e deprimida que tem diante de si. Sera reprime a vontade de lembrar-lhe que foi ela própria que pediu sua companhia para ir á clínica, e não o contrário. Também sente culpa por um momento. Será que ela, Viraf e Bhima conspiraram para forçar Maya a fazer um aborto contra sua vontade? Afinal, nunca tinha conversado diretamente com Maya para saber seu desejo. Então, olha para o rosto velho e cansado de Bhima e sente um frio na espinha. Essa menina é muito nova e muito ingênua para saber o que a espera se tiver um filho fora do casamento, a selvageria com que o mundo cairia sobre ela como um bando de abutres a faria em pedaços. Não, é melhor se livrar da criança, e depois de algumas semanas talvez pudesse se sentar com Maya e explicar-lhe a importância de retomar os estudos. Talvez possa até ajudá-la a se matricular em outra faculdade, num outro lugar onde possa começar de novo. Dessa vez sem namorados, sem relacionamentos, quer dizer a Maya. Apenas os estudos. Lembre-se, sem instrução não se é ninguém. Nesta cidade há gente formada em direito e Ph.D.s mortos de fome. Um diploma de segundo grau não é suficiente para conseguir sequer um emprego como channawalla, vendedor de lentilha frita. Foi o mesmo sermão que aplicou em Dinaz anos atrás. Mas com Maya vai fazer mais uma ameaça. Sem ter o diploma universitário, pelo menos, você vai passar o resto da vida varrendo o chão da casa de outras pessoas e lavando suas roupas sujas. É isso o que quer para você, a mesma vida que a sua mãe e sua avó tiveram?

Pensar na falecida mãe de Maya suaviza os sentimentos de Sera com relação á moça que está ao seu lado. Olha para Maya, mas o rosto da jovem está inexpressivo como uma parede. Sera suspira. Fica tentada a dizer a Bhima que mudou de idéia, que quer que ela as acompanhe à clínica, mas resiste ao impulso. Há muito trabalho a ser feito em casa, e Bhima não poderia tirar uma folga para ir com elas. Apesar da intervenção do médico amigo de Viraf, só Deus sabe quanto tempo terão que aguardar. A última coisa que quer no fim de um dia como esse é voltar e encontrar a casa suja e desarrumada.

— Deixei a chave de casa com os vizinhos — diz a Bhima. — Eles vão abrir a porta para você.

Maya olha para Sera de um jeito cortante e um riso amargo como fel escapa-lhe da boca.

— Ela podia ter trazido as chaves — diz para a avó, como se Sera não estivesse ali. — Podia ter confiado em você. Mas confia mais na vizinha.

Sera fica chocada com a insolência. Mas isso ainda é o de menos. Foi a hostilidade na voz de Maya que a chocou. Isso e a ingratidão, verdade seja dita. Mas antes que possa responder, Bhima o faz.

— Garota estúpida e ignorante — diz, ralhando com a neta. — Metendo o nariz onde não é chamada. O que você tem a ver com o que Serabai faz com as chaves de casa? É a casa dela, não é? Se você con-seguir ter uma casa só sua, pode decidir o que vai fazer com as chaves, mas por enquanto feche a matraca, entendeu?

Que coisa feia, tão cedo de manhã. Sera não sabe o que pode ter desencadeado aquilo. “Deve ser a gravidez”, pensa, “a criança indesejada crescendo dentro de Maya na expectativa da morte iminente e não querendo deixar este mundo antes de marcá-lo com a sua presença”. Pensar numa criança morta a faz estremecer. “Quanto mais cedo esse dia terminar, melhor para todos os envolvidos”. Nunca tinha visto Maya tão mal-humorada, tão na defensiva, tão grosseira, tão... tão “gentinha”, na realidade. E, desde que soube da gravidez da neta, Bhima tem estado meio louca — lenta e distraída numa hora, agitada e tensa em outras. A gravidez indesejada tinha também cobrado seu pedágio na casa da família Dubash, pois a criança, crescendo como uma erva daninha dentro de Maya, estava sufocando a felicidade que eles deveriam estar sentindo quando pensavam na criança florescendo na barriga de Dinaz. A própria Dinaz estava provavelmente reprimindo sua grande alegria em respeito ao sofrimento de Bhima. Pensando nisso agora, Sera detectou uma certa discrição em Dinaz nas últimas semanas. E não havia razão para isso. O primeiro trimestre foi um inferno. Dinaz ficava enjoada, cansada, irritada; ela e Viraf implicavam um com o outro como corvos bicando um animal atropelado na estrada. Mas, a cada dia que passava, e á medida que o cansaço e os enjôos diminuíram, Dinaz começou a voltar a ser como antes. Ainda assim, o bebê de Maya lançava uma sombra sobre a felicidade deles. Era difícil voltar para casa cheia de roupinhas novas para o neném, pensar na cor que iam usar para pintar o bercinho de madeira que já tinha sido de Dinaz, escolher o obstetra e o hospital, tudo diante do rosto impassível, mas atento, de Bhima. Era como tentar organizar uma recepção de casamento numa agência funerária.

Bem, se tiver que haver um enterro, se a criança vivendo na barriga de Maya tem que ser morta — Sera se encolhe ao pensar nessa palavra —, então não há tempo a perder. É melhor começar logo.

— Deixamos você na próxima esquina, Bhima — diz secamente, entrando no táxi. — Depois, você pode ir a pé. Maya e eu vamos seguir para a clínica. Agora ande. Vamos indo.

Maya hesita um segundo antes de entrar no táxi. Mas Sera finge não notar nada.

 

O DOUTOR MEHTA É UM HOMEM ALTO e encurvado, com olhos caídos e tristes, e tem o hábito desconcertante de não olhar para Maya quando fala sobre ela. Sempre dirige as perguntas a Sera.

— E então, como é que ela está se sentindo? — pergunta ele. Sera se vira para Maya, que olha continuamente para um determinado ponto em seus pés.

— Está bem — responde finalmente. — Quero dizer, todos vamos nos sentir melhor quando...

— Eu sei, eu sei — interrompe o médico apressadamente.

Ele se levanta.

— Não se preocupe, senhora Dubash. Vamos resolver esse proble-minha num instante.

Ele se dirige a Maya pela primeira vez desde que elas entraram seu consultório.

— Hum... siga-me, por favor — diz o médico, afastando-se de sua cadeira. — A clínica é por aqui.

A garota também se levanta e olha para Sera. Pela primeira vez, hoje, Maya parece apavorada. Seus olhos estão muito arregalados e há uma pequena linha de suor em cima de seu lábio superior, O coração de Sera se comove em solidariedade. Estende a mão para confortar a moça, mas Maya pega a mão de Sera e a segura com força, murmurando assustada:

— Venha comigo, não quero ficar lá sozinha.

Sera olha para ela horrorizada. Estar presente quando o feto for re-movido é a última coisa que quer. Sente a repulsa que lhe sobe até a gar-ganta. “Não me ponha nessa situação”, pensa ela. “Isso é muito mais do que eu estava pretendendo fazer”.

Antes que possa falar, o doutor Mehta vem em seu socorro.

— Deixe de bobagem, menina — diz ele. — Ninguém pode entrar lá, a não ser o pessoal que trabalha na clínica e a paciente. Os parentes têm que aguardar na sala de espera. E você está inutilmente apavorada com o quê? Vamos tirar essa criança daí mais rápido do que se extrai um dente.

Tanto Maya quanto Sera sentem um arrepio com essa comparação. As duas trocam um olhar, e Sera dá uns tapinhas carinhosos no braço direito de Maya.

— Não fique com medo — diz ela. — Vou ficar esperando por você bem aqui.

Sera se senta na sala de espera e pega para ler um antigo exemplar de Eve’s Weekly. Só há mais duas mulheres na sala, e nenhuma delas olha para Sera. Ambas aparentam estar na casa dos quarenta e seus sáris finos e jóias de ouro revelam que têm dinheiro. Sera fica imaginando quais seriam suas histórias. Provavelmente estão aqui acompanhando filhas universitárias. “Não há limite para o que o dinheiro pode comprar”, pensa. “Desde lençóis de seda até uru aborto numa clínica particular bonita e ensolarada”. Depois, se dá conta de sua própria condição. “Você também está aqui porque tem dinheiro”, diz consigo mesma. E fica feliz porque o amigo de Viraf conseguiu marcar essa consulta. As coisas teriam sido muito diferentes se Maya tivesse que ir a um hospital público. Sera já ouviu histórias de médicos que fazem piadas grosseiras sobre mulheres caídas em desgraça, que passam a mão nas partes íntimas das pacientes para se satisfazer, alegando estar fazendo um exame médico. E a maioria dessas mulheres é ignorante demais para saber o que está acontecendo e pobre demais para protestar, mesmo que soubesse. Sente um arrepio só de pensar em Maya num desses lugares.

Sera olha para o relógio e percebe que se esqueceu de ver a que horas Maya entrou no centro cirúrgico. Não tem idéia de quanto tempo o procedimento vai levar ou (e isso a faz ter um sobressalto de apreensão) em que condições Maya vai estar quando tiverem terminado. “Eu devia ter feito mais perguntas”, pensa, recriminando-se. Mas logo se lembra do rosto comprido e triste do doutor Mehta. Não é o tipo de homem com quem se possa ficar batendo papo.

Lembrar-se do doutor Mehta fez com que se lembrasse também da expressão no rosto de Maya quando foram para os fundos da clínica. Como parecia pequena e apavorada! Não muito diferente da órfã que chegou com Bhima na sua casa, há quase dez anos. Ai, as crianças de hoje... Maya era uma criança ainda e estava aqui, grávida de outra criança. Bom, pelo menos aquilo ia acabar logo. Apesar do desconforto em estar ali, Sera não tinha dúvida de que estavam fazendo a coisa certa. Para Maya ter uma chance na vida, essa história de neném tinha que terminar aqui nesta clínica elegante.

 

SERA DEVE TER COCHILADO, porque a enfermeira de uniforme engomado diante dela diz seu nome suavemente.

— Madame Dubash? A paciente está pronta para vê-la agora.

Maya parece pálida e pequena no leito da clínica. Seus olhos estão brilhantes e cheios de lágrimas quando Sera se aproxima.

— Bom — diz Maya, antes que Sera possa dizer qualquer coisa —, todos vocês podem ficar satisfeitos agora. Meu neném está morto.

Sera estremece. Sente o sangue subir à cabeça, mas conta até dez antes que a raiva se transforme em palavras das quais vai se arrepender. “A moça acabou de passar por um trauma”, ela diz a si

“Seja gentil com ela”. Quando fala, não há vestígio de raiva em sua voz.

— Infelizmente não havia outra opção, Maya. Mas imagino que você esteja triste. Como se sente fisicamente, menina?

Maya começa a soluçar.

— Não sei — responde. — Está doendo muito. A enfermeira me disse que vão me dar um remédio para a dor. Disse que vai ficar tudo bem daqui a dois ou três dias.

O doutor Mehta aproxima-se do leito e faz um sinal para que Sera o acompanhe. Seus olhos parecem ainda mais tristes e caídos do que antes.

— Houve muita perda de sangue — diz ele. — Isso acontece ás ve-zes. Talvez ela sinta cólicas. Pode se sentir fraca por alguns dias. Se a se-nhora achar que a família pode pagar, eu receitaria um tônico fortificante.

— Por favor, doutor — diz Sera prontamente. — Não se preocupe com a despesa. Quero que esta menina tenha o melhor.

O doutor Mehta sorri levemente, e Sera fica surpresa ao ver o quanto isso transforma o seu rosto.

— Ótimo — diz ele. — Ótimo, ouça, senhora Dubash, vou manter a menina aqui por mais algumas horas antes de lhe dar alta. Se a senhora quiser, quer dizer, se a senhora tiver que fazer compras ou algo assim, pode voltar para buscá-la dentro de algumas horas. A senhora também poderia ir almoçar e voltar mais tarde.

Quando Sera voltou, algumas horas depois, trouxe para Maya um novo salwar-khamez. Comprou o fortificante que o doutor Mehta tinha receitado e trouxe também um abacaxi, umas bananas e umas laranjas. A menina vai ter que se alimentar bem nos próximos dias. Vai dar dinheiro a Bhima para que ela compre água-de-coco diariamente para ajudar a cicatrizar as entranhas de Maya.

Maya está sentada na cama, esperando por Sera. Com o cabelo penteado, encarapitada na cama de hospital, Maya parece um pacote de papel pardo bem embalado esperando que alguém venha recolhê-lo.

— Está pronta? — pergunta, e Maya desce da cama com um leve gemido.

Lá fora, Sera nota como a moça está andando com dificuldade e sente uma pontada de compaixão.

— Como é que vai a dor? — pergunta, mas a garota apenas dá de ombros, com o rosto impassível.

Elas olham em torno, procurando um táxi.

—Vamos para minha casa, esta bem? — diz Sera. —Vou deixar Bhima sair mais cedo hoje para poder levar você para casa.

O rosto impassível de Maya subitamente se anima.

— Não, Serabai — diz ela. — Prefiro... eu... quer dizer, a senhora pode me deixar na parada de ônibus perto da basti. Estou cansada. Prefiro ir para casa e esperar por vovó lá mesmo.

— Maya, pense bem. Como você vai andar do ponto de ônibus até sua casa? Dá para ver que você está com dor. — “Por favor, não me peça para acompanhá-la até a favela”, pensa Sera.

— Vai dar tudo certo, Serabai. De verdade. Eu... estou apenas louca para chegar em casa e me deitar. Por favor.

Sera sente a tensão dentro de si se afrouxar. Expira. Está cansada de assumir responsabilidades por essa garota teimosa. Está cansada de lutar, de se defender contra as teimosias e grosserias de Maya. Render-se a isso lhe dá uma sensação de leveza, é tão mais agradável...

— Ok — diz. — Se é isso o que quer... Vou mandar Bhima de volta assim que chegar em casa.

Um táxi passa por elas diminuindo a velocidade, e Sera faz sinal. Maya fica encostada na porta e olha resolutamente pela janela. Fazem o resto do percurso em completo silêncio.

 

“DOIS MESES SE PASSARAM E A GAROTA ainda não voltou à vida”, pensa Bhima. Maya fica sentada em seu barraco de pau-a-pique dia após dia, como se fosse uma grande estátua de pedra de um deus. Mas, diferentemente de um deus, Maya não tem um ar raivoso, nem vingativo, nem alegre. Não ri sarcasticamente como Kali, nem suavemente como Krishna. Fica sentada com seu rosto de pedra, como se o médico que fez o aborto tivesse matado mais do que o bebê, como se tivesse limpado as suas entranhas, como se tivesse retirado seu coração pulsante exatamente como Bhima retira o interior fibroso da abóbora vermelha que Serabai põe no seu daal, na sua lentilha. Maya tinha perdido aquilo que faz com que os seres humanos riam, dancem, tenham esperança e amor, rezem, aquilo que separa a juventude da velhice, a vida da morte. E Bhima, incapaz de roubar, ar ou pedir isso emprestado para a neta, sente fortemente o peso da pobreza, da idade e da ignorância. “Se eu tivesse instrução”, pensa, “saberia o que fazer. Encontraria a cura num livro, saberia a quem consultar: um médico, um padre ou um professor. Mas como posso curar uma doença da qual nem sei o nome?”

Logo depois do aborto, Bhima insistiu para que Maya retornasse aos estudos, mas a garota respondeu com tal ferocidade que as palavras de Bhima secaram em sua boca. A mesma coisa aconteceu quando sugeriu que Maya arranjasse um emprego de meio expediente. E, verdade seja dita, Bhima não falou isso com o mesmo ímpeto com que pediu à neta que voltasse à faculdade. De qualquer modo, era tarde demais para voltar a trabalhar na casa de Banubai. A nova enfermeira do turno diurno, Edna, podia trabalhar mais horas do que a anterior, e Serabai a contratou logo depois que Maya parou de aparecer no trabalho. E, só de pensar em Maya trabalhando na casa de estranhos, os músculos do estômago de Bhima se contraíam. No caso de Serabai, era fácil fazer de conta que estavam simplesmente ajudando um membro necessitado da família. Mas pensar na neta fazendo o trabalho pesado que ela própria fazia era doloroso para Bhima. Esse tinha sido o motivo principal de mandar Maya para a faculdade — ajudar a neta a construir um destino diferente para si.

Hoje, a atmosfera na casa escura, que a presença de Maya tornava ainda mais opressiva, era insuportável.

— Você tomou banho hoje? — pergunta Bhima, e fica feliz por ver o ar ofendido no rosto da neta ao dizer que sim.

“Há esperança, então”, pensa ela. “A menina não está tão mal assim a ponto de acabar com a própria vaidade”.

A fraca esperança a impele à ação. Apaga o fogão que tinha acendido há apenas um segundo.

— Vista uma roupa. Vamos até a praia comer panipuri ou bhel. O pãozinho recheado com batata e ervilha ou a salada de arroz. Não tem jantar em casa hoje.

Maya fica olhando para ela por um segundo e depois uma luz brilha em seus olhos. Observando a neta se esforçar para levantar, Bhima sente um aperto de culpa. Deveria ter pensado nisso há mais tempo. Ficar sentada o dia inteiro nesse lugar miserável... não é de espantar que Maya tivesse virado uma estátua de pedra. Bhima se culpa por ser tão velha e por se esquecer das necessidades de uma adolescente: ar fresco, mudança de ares, companhia de outras pessoas, oportunidade de usar roupas novas e botar kaajal nos olhos. Ela mesma tinha virado uma máquina, que só existia para trabalhar e ganhar o seu salário; precisava apenas de água e comida para manter suas peças lubrificadas e funcionando. “E como uma máquina pode saber as necessidades de uma moça?”, pensa, recriminando-se. “Como pode saber o que sente um coração jovem, pulsando de vida e desejo? Não é de espantar que a pobre garota fique sentada em casa como uma passa seca o dia inteiro”.

Andam até a beira da praia num silêncio amistoso. Quando chegam perto da água, ouvem o mar batendo nas pedras, e a névoa leve se levanta e beija seus rostos, dando-lhes as boas-vindas. Maya sorri, um riso espontâneo e sem esforço, que faz Bhima se lembrar da menina de sete anos que trouxe de Delhi.

— O mar está falando — diz Maya. Observando o rosto feliz e sem maldade da neta, Bhima sente sua esperança crescer como a maresia que sobe.

— Seu avô dizia isso sempre — responde. — Adorávamos vir aqui com a sua mãe e o seu tio Amit quando eles eram crianças.

O rosto de Maya fica triste todas as vezes que Bhima menciona um membro da família desaparecido.

— Me conte — pede ela. — Me conte sobre aquele tempo.

Bhima franze a testa num reflexo condicionado como sempre faz quando se lembra do passado. Remexe nas suas lembranças como se estivesse escolhendo o arroz na casa de Serabai, separando as pedras e os grãos duros, deixando só o que é bom e brilhante.

— Vínhamos aqui todo sábado — diz. — Nós quatro. Quando sua mãe era pequena, Gopal a carregava. Ele não era como os outros homens, que sempre esperam que as mulheres façam todo o trabalho. Seu avô não era assim.

— Como a mamãe era? Quando era pequena, quero dizer.

A voz de Maya estava ofegante e, percebendo a sua ansiedade, o coração de Bhima vacila um pouco.

— Sua mãe?

Ela ri.

— Sua mãe era como você quando pequena: um palito de tão magra, mas forte como uma tora. Era inteligente também. Percebi isso no momento em que nasceu. Eu me lembro: depois de amamentá-la, se não a tirasse logo do meu seio, ela me mordia. Mesmo sem dentes, só com aquelas gengivinhas, ai, Bhagwan, ela me mordia. Aquela ali sempre foi uma batalhadora.

Elas riem. Mas Bhima nota que a moça está um pouco ofegante com a caminhada, por isso a conduz até a mureta de cimento que margeia o mar.

— Vamos nos sentar um minuto — diz. — Minhas pernas estão fi-cando cansadas.

Mas, no fundo, está preocupada com Maya. Não é normal uma moça de 17 anos ficar ofegante depois de uma caminhada tão curta. É sinal de que as coisas não vão bem com Maya, e Bhima decide perguntar a Serabai o nome de um bom fortificante para dar à menina. Mesmo que seja caro, vai dá-lo a Maya pelo menos por um mês. “Nada é caro demais para essa menina”, pensa Bhima, e a onda de amor que sente naquele momento é forte o bastante para arrancá-la dessa mureta de cimento e arrastá-la para o mar.

Repentinamente, quer compartilhar o passado com Maya. Esta é sua herança, afinal, essa moeda corrente de memórias que Bhima carrega consigo por aí, numa sacola invisível. Talvez tenha chegado o momento de dividir essa herança com a menina, antes que a passagem do tempo a desvalorize completamente.

— Tinha um vendedor de balões aqui — diz. — Um velho afegão, um pathan. Era um homem alto e tinha um certo ar de dignidade. As crianças gostavam dele. Ele lhes fazia as formas mais lindas de balões. Gopal gostava de conversar com ele, perguntava como iam as vendas, onde morava em Bombaim e essas coisas, mas eu nunca lhe perguntei nada. Não sei por que nunca falei com ele, mas o fato é que nunca falei. Agora, adoraria ter falado. Queria tanto ter-lhe perguntado umas coisas...

— Que coisas? — pergunta Maya num sussurro.

Seu rosto brilha na expectativa, como todas as vezes que Bhima lhe atira nacos de lembranças.

— Como agüentava ficar tão longe da sua terra, se sentia falta da família, onde estava sua mulher. Eu sabia que ele estava sozinho aqui em Bombaim. Estava estampado em seus olhos, sabe? Eles tinham um ar solitário como esse mar daqui. Eu podia ver isso naqueles olhos, mas mesmo assim não dizia nada.

Maya não entendeu direito. Pôs o braço em torno da avó.

— Tudo bem, vó — diz ela. — Tenho certeza de que aquele pathani devia estar bem.

Bhima balança a cabeça com impaciência.

—Não. Não é essa a razão. Quer dizer, eu me preocupava com ele, mas não é por isso que me arrependo de não ter perguntado nada.

Ela abaixa a voz e fala, quase num sussurro:

— Sabe, acho que ele poderia ter me ajudado... a enfrentar o que estava por vir em minha vida. Ele conhecia o segredo, sabe? O segredo da solidão. Como viver com ela, como enrolá-la no próprio corpo e ainda assim ser capaz de fazer coisas bonitas e coloridas como aqueles balões. E podia ter me ensinado, se eu tivesse pedido.

Elas se olham por um momento, com a expressão desprotegida e carente. E então Maya começa a chorar.

— Desculpe, vó — diz ela. — Desculpe por eu ser mais um peso na sua vida. Sei como foi a sua vida e nunca quis...

As outras pessoas sentadas na amurada olham para elas, nitidamente curiosas, descaradamente prestando atenção no que diziam. Bhima encara um rapaz sentado perto de Maya e faz a neta se levantar.

— Vamos caminhar — resmunga. — Tem muita orelha de elefante por aqui.

Quando começam a caminhar, Bhima segura a mão de Maya. A maciez da mão da neta nunca deixa de maravilhá-la. Aquela mão lhe dava uma espécie de orgulho, porque pagou por essa maciez com seu próprio suor. Bhima se lembra de suas próprias mãos aos 17 anos já duras e calejadas, pois desde criança trabalhava como empregada doméstica. Mãos estragadas por uma vida inteira lidando com cerdas duras e pontiagudas da vassoura; mãos que mergulhavam cinzas para arear e limpar louças e panelas até ficarem brilhando. Maya escapou desse destino. Até agora. Bhima esfrega seu polegar nas costas da mão de Maya como se estivesse acariciando um pedaço de veludo.

— Vó, não faz isso.

Maya ri através das lágrimas.

— Faz cócegas.

— Você sempre sentiu cócegas.

Bhima sorri.

— Sempre sentiu. Bastava eu olhar para você começar a se contorcer como um peixinho. Quando a trouxe de Delhi, a levava para ficar comigo na casa de Serabai enquanto eu trabalhava. Como você era muito tímida e assustada, essa era a única maneira de fazê-la sorrir. Serabai fazia cócegas, e você ria.

— Vó — interrompe Maya de repente. — Você nunca me contou. O que aconteceu quando você chegou a Delhi?

Bhima fica tensa. Seu rosto se fecha como um alçapão.

— Não faz sentido relembrar o passado — diz com a voz engasgada. — Já foi ruim o suficiente passar por isso, não vale a pena relembrar. De qualquer modo, não é nada que uma moça como você precise saber.

— Você não vai poder me proteger para sempre, vovó — responde Maya. — Preciso saber. Afinal, isso tudo me diz respeito. Eles eram meus pais.

Vendo o olhar teimoso no rosto da avó, Maya acrescenta:

— Isso não é só propriedade sua, vó. Isso também me pertence. Você pode ser a única que sabe, mas isso não quer dizer que essa história seja só sua. Se não me contar, vai estar me roubando algo.

O rosto de Bhima parece de pedra. Vendo isso, Maya assume um ar de quem sabe de alguma coisa.

— Sei como é que eles morreram, vovó — diz baixinho. — Sei que morreram de aids.

Bhima sente que deveriam ter ficado em casa hoje. O ar da noite, o sussurro do mar, esse anonimato enquanto caminham entre milhares de estranhos, tudo isso está fazendo com que Maya pergunte coisas que normalmente não perguntaria Procura algum vendedor de comida, esperando que a menina se distraia com o cheiro de amendoim torrado ou de battatawadas sendo fritas.

— Está com fome? — pergunta, mas Maya não responde. O queixo da moça está projetado para frente, e ela está do jeito que ficava quando trabalhava num problema difícil de contabilidade.

— Por que o pai e a mãe deixaram você aqui e se mudaram para Delhi? — pergunta ela, de repente.

— Porque o seu pai era o melhor caminhoneiro da firma em que trabalhava. Quando o patrão dele se mudou para Delhi, levou seu pai para ser seu motorista particular.

Maya pensa sobre o assunto.

— Talvez, se não tivessem se mudado para Delhi, não tivessem ficado... doentes.

Bhima não sabe ao certo o que dizer.

— Foi a vontade de Deus — diz, com a voz fraca.

Depois, sentindo necessidade de defender seu genro, acrescenta:

— Raju era um bom homem. Amava muito você e Pooja.

Maya não se dá por satisfeita.

— Fico feliz por ter nascido em Bombaim — declara repentinamente. — Sou uma garota de Bombaim convicta. A mãe também sentia falta daqui, eu me lembro.

Bhima assente, cautelosa, preparando-se para mais perguntas. E não precisa esperar muito.

— O vovô e o Amit vieram para o casamento? — pergunta Maya. Bhima balança a cabeça, dizendo que não.

— Por que não?

— Porque sua mãe não os convidou — diz Bhima bruscamente.

Omite da neta a discussão que teve com Pooja:

— Não é como se o seu pai já tivesse morrido — disse, na época. — Você pode imaginar o que as pessoas vão dizer? Uma garota cujo pai ainda é vivo e que prefere se casar sem que ele esteja presente ao casamento? Mas Pooja não se demoveu.

— Pois que essas mesmas pessoas pensem em como ele nos prejudicou — exclamou ela. — Você se esquece, mãe, não fomos nós que o abandonamos, foi ele que nos abandonou. Por que ele deveria voltar agora, jogando o seu herogiri, aquele charme todo, por um dia, fazendo COm que todo mundo se encantasse por ele? O que ele vai fazer por nós, além de se vestir como um artista de cinema e comer a nossa comida? E não foi você mesma quem disse que agora é minha mãe e meu pai?

Lembrando-se disso, Bhima aperta o passo, e Maya se esforça para acompanhá-la. Bhima sente os olhos da garota fixos nela, avaliando-a, medindo seu humor. Ela se esforça para engolir o gosto azedo que repentinamente enche a sua boca.

— Pois deveria — diz Maya. — A mãe deveria ter convidado o vovô para o casamento dela. Se eu me casar, vou convidar o vovô. E também o tio Amit — acrescenta, em tom de conciliação.

Bhima percebe esse tom e sabe que a menina tem a melhor das intenções. Mas essa referência a casamento fez Bhima se lembrar de que Maya já era uma mercadoria danificada.

— Esqueça essa história de casamento — diz rispidamente, não conseguindo disfarçar a irritação na voz. — Pense apenas na universidade.

Maya se encolhe. Bhima se odeia por magoar a menina dessa maneira, mas ao mesmo tempo fica aliviada por suas palavras terem acabado com as perguntas da neta. Elas caminham em silêncio absoluto por alguns minutos.

— Vamos comer um bhel — diz Bhima finalmente. — Você precisa comer. — As duas sabem que isso significa uma trégua.

A mão macia de Maya se estende e pega a de Bhima.

— Fico feliz que você tenha tomado conta de mim quando o pai e a mãe morreram — diz inesperadamente. — Não sei o que faria sem você.

“Ela é como o avô”, pensa Bhima. “Consegue trespassar meu cora-ção com palavras do tamanho de um mosquito”.Para disfarçar a emoção, Bhima dá uma pancadinha leve no braço de Maya.

— Garota boba — diz, meio mal-humorada. É claro que eu ia cuidar de você. Você é sangue do meu sangue, não é? O que achou que eu ia fazer? Vendê-la para o sucateiro? Entregá-la para o pessoal do circo?

Maya sorri.

— Posso imaginar quanto o sucateiro ia pagar por mim.

— Cinco paisa. E mesmo isso seria muito para uma garota tão boba.

Seguem pelo caminho apinhado de gente, de mãos dadas. Após al-guns minutos, Maya inclina a cabeça e a pousa no ombro da avó.

— Vó — diz, num tom de voz dos mais cativantes, e Bhima fica tensa, preparando-se para mais uma rodada de perguntas.

Porém Maya apenas diz:

— Vó, estou com fome. Mas vamos comer panipuri em vez de bhel?

 

O TELEGRAMA QUE VEIO DE DELHI dizia apenas:

 

         POOJA E RAJU DOENTES PT

         VENHA IMEDIATAMENTE PT

 

Bhima viajou para Delhi na manhã seguinte. Serabai ajudou a pagar as passagens de trem.

AIDs.

De pé no saguão sujo e lotado do hospital público onde Pooja estava deitada numa maca comida de traças, Bhima recebeu a notícia da boca de um médico jovem e com ar cansado.

— A sua filha está com aids — disse ele rispidamente. — Transmitida pelo seu genro. A senhora está entendendo? Ele não deve passar de amanhã ou depois. Quanto a... — consultou uma prancheta — ...Pooja, é difícil dizer por quanto tempo ainda vai ficar entre nós.

— Aides? — perguntou Bhima baixinho. — Isso é como uma intoxicação alimentar? — Era a única coisa que poderia explicar por que Pooja e Raju estavam tão abatidos.

O médico estalou a língua e a encarou.

— A senhora não sabe o que é aids?

Quando Bhima sacudiu a cabeça dizendo que não, ele nem tentou esconder sua irritação.

— Vocês!... — disse ele. — Sabe Deus por que o governo gasta lakhs de rupias tentando educar o povo sobre planejamento familiar e coisas do gênero. É uma causa perdida. É o mesmo que jogar milhares de rupias no lixo.

Ele olhou para ela por mais um minuto e depois se virou.

— Não tenho tempo para lhe dar aula de medicina. Tenho centenas de pacientes para examinar. Além do mais, sou médico e não professor.

Ele começou a se afastar e depois parou.

— Se a senhora quiser um conselho, melhor se despedir de sua filha.

Em seguida, vendo o olhar chocado no rosto de Bhima, acrescentou:

— Sinto muito.

Bhima permaneceu no saguão do hospital, incapaz de se mover. Pooja e Raju estão morrendo? Será que ouviu direito o que o médico disse? Ou será que, em sua ignorância habitual, compreendeu mal? E por que ele ficou tão zangado com ela? Olhou em volta e viu centenas de pessoas vagando pelo enorme corredor, com a aparência tão confusa e aterrorizada quanto a sua. Havia centenas de pessoas a seu redor e, no entanto, nunca se sentiu tão sozinha. Se estivesse em Bombaim, saberia o que fazer. Poderia ligar para Serabai e pedir que ela falasse com o médico. Mesmo um vizinho da basti teria ajudado numa situação como essa. Ela engoliria o orgulho e pediria ajuda. Por Pooja, teria ficado nua e caminhado de joelhos. Faria qualquer coisa que pudesse para salvá-la dessa doença feia que come as carnes e que a estava matando. De repente, os joelhos de Bhima falsearam, e lá teve que se escorar na parede suja e manchada de paan.

— Ei, por favor, alguém ajude aquela mulher! — disse uma voz, e um par de braços a segurou pelos cotovelos.

— Cuidado, didi, cuidado — disse outra voz. — Venha, sente aqui nesse banco um instantinho.

Sua cabeça estava vazia como uma melancia oca. Sentou-se com os olhos fechados até que o enjôo e a tonteira passassem e depois os abriu, porque o rosto magro e moribundo de Pooja estava pairando diante de seus olhos. Virou-se para agradecer à pessoa que a tinha socorrido e viu que era um rapaz de uns vinte anos com a barba rala.

— Deus o abençoe, beta — disse ela.

— Meu nome é Hyder — disse ele, ficando de pé. — Deixe-me pegar um pouco d’água para a senhora — acrescentou. — Tenho uma caneca.

E antes que ela pudesse responder, ele já tinha ido.

Ela o observou se esgueirando com esforço em meio à multidão quando fez o caminho de volta.

— Tome, didi — disse ele. — Água fresquinha, fresquinha.

Ela hesitou por uma fração de segundo. Nunca tinha dividido um utensílio com um muçulmano, e uma vida inteira de ensinamentos e preceitos começou a girar em sua cabeça. Depois, olhou para o local infernal onde estava, observando as caras encovadas e desgastadas dos pacientes moribundos, as expressões desoladas e envelhecidas de seus parentes, o cheiro desagradável de urina e tabaco barato que pairava no ar como o laço de uma forca. Observou o rosto curioso e gentil de Hyder e se deu conta de que, naquele lugar apinhado de gente, ele foi o único que veio em seu socorro.

Bebeu. A água desceu fresca por sua garganta ressecada.

Hyder ficou observando-a.

— A senhora não é de Delhi, didi — disse ele num tom que era mais de afirmação do que de pergunta.

Ela fez que não com a cabeça.

— Sou de Bombaim — disse entre um gole e outro. — Mas minha filha e o marido moram aqui. Peguei o trem para Delhi e cheguei ontem.

Hyder assentiu com a cabeça.

— Sei. E... a sua filha está aqui?

As lágrimas vieram-lhe aos olhos, inesperadamente.

— Minha filha e meu genro, os dois. Ele está na ala masculina.

Ficou admirada ao ver que Hyder não se surpreendera.

— Isso acontece o tempo todo — disse ele. — O marido pega e passa para a mulher.

Subitamente, Bhima sentiu uma onda de raiva. Então Raju era res-ponsável por isso? O que ele tinha feito? Trouxe comida estragada para casa? Ou era como uma dessas febres ou malária, que passa de uma pessoa para outra?

— Como isso acontece? — perguntou ela. — Como o marido passa para a mulher?

Hyder ficou vermelho. Olhou para Bhima tentando decidir o que e o quanto contar a ela. Ela continuou a fitá-lo, implorando uma resposta.

— Beta, para eu poder curar a minha filha, preciso saber o que é essa tal de aides — disse. — Sou analfabeta, não conheço essa doença. E o doutor sahib estava ocupado demais para me explicar.

— Não tem cura — disse Hyder, e ela se enrijeceu diante da dura crueldade daquelas palavras. — Essa é a primeira coisa a ser entendida, didi. Ninguém sobrevive a essa maldita doença.

O rapaz tentou tornar sua voz mais suave quando percebeu a devastação que suas palavras tinham causado.

— Segundo dizem, é uma doença do sangue. Os homens pegam das... a senhora sabe... — disse e piscou os olhos rapidamente tentando disfarçar o embaraço... — ao ter relações com as mulheres da vida. Prostitutas e coisas assim — acrescentou, para ter certeza de que Bhima entenderia. — Depois, eles voltam para casa e passam a doença para suas mulheres.

E acrescentou, baixando a voz:

— Dizem que as ruas de Delhi estão cheias de casos assim. Em Bombaim também, provavelmente.

Bhima estava chocada.

— Mas Raju não é desse jeito — disse ela. — Ele e a minha Pooja felizes em...

Hyder mordeu o lábio inferior.

— Não estou falando mal do seu Raju, didi.

Depois, seu rosto se iluminou.

— Dizem que a doença pode ficar no corpo da pessoa durante anos e anos até que apareçam os sinais. Então, mesmo que Raju tivesse... a senhora sabe... antes do casamento..., a coisa já poderia estar dentro dele.

Bhima olhava fixamente para o rapaz, estupefata.

— Como uma praga — sussurrou ela.

E quando percebeu que ele não tinha entendido, disse:

— Alguém faz um jadoo para você, pondo unhas cortadas debaixo do seu colchão ou enrolando pimenta e limão num trapo velho e botando no seu caminho; os anos passam e você pensa que está a salvo. Então, um dia, alguma coisa de ruim acontece, e você percebe que a mandinga estava com você aqueles anos todos. Só que você não sabia.

— Exatamente — exclamou Hyder. — É exatamente como uma mandinga, didi.

— Só que nesse caso a mandinga foi o meu genro — disse Bhima com amargura.

 

NOS DIAS QUE SE SEGUIRAM, Bhima apoiou-se em Hyder como numa bengala. Na terra dos doentes, sua boa saúde e seu vigor escoraram a saúde de Bhima, que vacilava. Hyder corria de lá para cá, cuidando do amigo que estava morrendo — um rapaz de 23 anos cujos pais o tinham deserdado — e ao mesmo tempo de Bhima e Pooja.

Estava com elas no dia em que Pooja foi visitar o marido. Apesar do péssimo estado da moça, ela insistiu em andar pelo longo corredor até a enfermaria masculina para ver Raju pela última vez. Como sempre, Bhima não conseguiu conter a determinação de Pooja. Era como se aquela força de vontade fosse a única coisa que restasse em sua filha, a única parte que Bhima ainda podia reconhecer naquele trapo que a moça tinha se tornado. E, assim, Pooja foi andando, com as mãos esqueléticas agarradas no punho de Bhima e no braço de Hyder. Para Bhima, aquela caminhada lenta e irregular pareceu um cortejo fúnebre, e o era na verdade, porque quando se aproximaram da cama de Raju, não era possível distinguir os vivos dos mortos. Bhima sentiu que uma parte de si morria durante a caminhada, como se uma peça daquela máquina velha que rangia, o seu coração, tivesse caído no chão e se perdido para sempre. Hyder, tenso do cansaço de ter que cuidar do amigo, também parecia tão solene e impassível como um preso condenado à morte. Quanto a Pooja... Bhima estremeceu ao notar o quanto era doloroso para sua filha abaixar-se para se sentar na cadeira dobrável que um dos serventes pôs ao lado da cama de Raju.

“Perdoe-me, Bhagwan”, disse consigo mesma. “Devo ter cometido muitos pecados graves na minha última vida para ser tão castigada nesta janam de agora. Assistir assim ao sofrimento da própria filha deve ser um castigo reservado apenas aos assassinos e a outros casos especiais”.

Pooja se inclinou na cadeira.

— Raju — sussurrou. — Raju, abra os olhos. Veja, é a sua Pooja. Cumpri as duas promessas que lhe fiz, meu marido. Disse que você não ia morrer sozinho e que não o deixaria sozinho nesta terra de sofrimento. Você vai primeiro, janu, eu vou em seguida.

Os olhos de Raju estavam abertos. Ele olhava para Pooja, mas Bhima não saberia dizer se ele conseguia vê-las. Sua mão direita, que estava pousada no peito, levantou-se alguns centímetros e estremeceu. Imediatamente, Pooja a pegou, contorcendo-se pelo esforço que isso lhe custava. Afagou a mão de Raju antes de gentilmente a pôr de volta em seu peito. Os olhos de Raju ficaram abertos por mais um minuto. Depois, ele os fechou e aquela respiração terrível, difícil, arquejante começou novamente. Pooja virou-se para a mãe com os olhos opacos de medo.

— Mãe — exclamou. — Vamos pegar o nosso Raju e voltar para casa. Estou apavorada com o que vai acontecer se ficarmos neste lugar infernal.

Bhima olhou para Hyder pedindo ajuda, sem saber como reagir. Uma parte dela gostaria de pegar os dois doentes, botá-los num táxi levá-los para casa, onde poderia fazer uma comida boa para lhes força, onde poderia cuidar deles até que se restabelecessem. Mas palavras enfáticas de Hyder, dizendo-lhe que ninguém sobrevivia a essa doença monstruosa, mantinham-na imobilizadas. Antes que pudesse pensar no que dizer, Pooja falou novamente:

— Não, é a vontade de Deus; temos que morrer aqui, neste local de estranhos — disse num sussurro. — Nossos destinos são decididos antes de nascermos. Assim é que é, e assim será.

Pooja insistiu em se sentar na cadeira dobrável de madeira na passagem estreita entre o leito de seu marido e o do vizinho. Bhima tentou algumas vezes convencer a filha a voltar para a cama, mas desistiu. Era óbvio que Raju não passaria dessa noite e era importante para Pooja manter a promessa feita ao marido. Então, Bhima se acocorou no chão ao lado da filha, e a noite se encheu de sons de homens tossindo, grunhindo e gemendo. Mas eram os cheiros que a incomodavam mais — o cheiro enjoado do fenol com que os faxineiros da enfermaria lavavam o chão de pedra; o cheiro forte do Flit para matar os mosquitos que enxameavam em volta das camas úmidas e, acima de tudo, o cheiro da morte que pairava como uma promessa sombria. De vez em quando, conseguia reunir alguma coragem e tomava a mão fina de Pooja na sua, lutando contra a repulsa que sentia quando encontrava ossos em vez de carne. Como trabalhou e lutou anos para engordar aquela mão! E para quê? Para que um homem viesse injetar na filha uma doença que a transformaria num esqueleto. Olhou com amargura para o leito onde Raju travava uma batalha silenciosa com a morte e descobriu que não ia conseguir reunir a energia necessária que o ódio demandava. Tudo o que sentiu foi pena, uma pena por aquele homem moribundo que doía nos ossos, e também por sua Pooja, por ela própria, por Hyder, e por todos que estavam presos ali naquele hospital.

Sentiu Pooja se mexendo.

— Por que não me mandou o telegrama antes? — sussurrou, mas logo se arrependeu de ter perguntado, quando viu o olhar dolorido passar como uma nuvem pelo rosto da filha.

— Não sei, mãe. Raju não queria que ninguém soubesse. Especial-mente você. Estava tão envergonhado, sabe? E também, durante muito tempo, só ele estava doente. Seus resfriados duravam semanas, apareciam feridas na boca que nunca cicatrizavam e também tinha dores de estômago. Arre, Bhagwan, que dores de estômago horríveis ele tinha!

Ela estremeceu. Engoliu a saliva com dificuldade e passou a língua nos lábios secos e rachados.

— Mas eu não me importava, eu era forte. Podia tomar conta dele e de Maya. Não havia necessidade de alarmar você. Mas há mais ou menos seis meses comecei a ficar doente também. Então eu...

— Seis meses?

Bhima não conseguiu disfarçar a indignação na voz.

— Você está doente há seis meses e não me disse nada? Minha filha, eu poderia ter vindo ajudá-la...

— Eu sei, mãe, eu sei. De qualquer maneira, o que está feito está feito. Foi o plano de Deus para a sua filha desventurada.

Fez uma longa pausa. O esforço para falar exauriu Pooja completa-mente e Bhima ficou com remorso.

— Está bem — disse, dando tapinhas na mão ossuda. — Não faz sentido ficar remoendo o passado. Bom, de qualquer modo, você vai descansar agora.

Ficaram em silêncio por um bom tempo. E então, como se não tivessem interrompido a conversa, Pooja voltou a falar. Falava tão baixo que Bhima teve que se esforçar para entender.

— Não sabíamos que doença era essa até eu ficar muito doente há três meses. Nanavatsahib, o patrão de Raju, insistiu para que fizéssemos um exame de sangue. Raju lhe disse que eu não estava conseguindo dormir à noite, que acordava tremendo e suando. Foi então que Nanavatsahib teve essa idéia. Foi a primeira vez que viemos a este maldito hospital. Mas, naquela época, não sabíamos que, alguns meses depois, íamos ficar conhecendo muito bem este lugar. E agora, é claro, eu o vejo até nos meus sonhos.

Bhima sabia que não deveria fazê-lo, mas não conseguiu evitar.

— E... como é que Raju pegou esse daaku, esse diabo dessa doença?

O rosto de Pooja ficou branco como papel.

— Não faz sentido fazer esse tipo de pergunta agora, mãe. O que está feito está feito. Ele é o meu marido. E até tudo isso acontecer sempre me tratou como uma rainha dentro de casa.

Como se tivesse ouvido seu nome, Raju soltou um gemido. Bhima levantou e acariciou sua mão.

— Raju, beta — disse carinhosamente. — Está tudo bem. Estamos aqui com você, beta. Durma agora.

Mas Raju gemeu ainda mais alto, um som tão terrível e solitário que deixou Bhima arrepiada. Era o som de um homem absolutamente sozinho nas margens de um rio além do alcance dos seus semelhantes, os seres humanos. O que restava de sua resistência desmoronou com aquele gemido.

— Raju! — exclamou Bhima. — Olhe, a sua Pooja está aqui com você. Estou aqui também. Vou cuidar de Pooja, prometo. E de Maya — prosseguiu, enfaticamente. — Vou criar Maya como se fosse minha pró-pria filha. Você não tem com o que se preocupar, Raju beta. Pode ir agora. Vá em paz.

O maxilar de Raju se moveu algumas vezes. Sua boca se abria e fe-chava. Uma respiração ruidosa e áspera fez seu corpo todo estremecer. Sua mão pairou algumas vezes sobre o peito. E depois ele se foi.

Bhima e Pooja olharam uma para a outra, abaladas demais para dizer qualquer coisa. Bhima percebeu que Hyder tinha voltado correndo para o leito de Raju e estava dizendo alguma coisa a ela. Mas não conseguia ouvi-lo. Sua mente ainda via as pegadas da morte no corpo arrasado de Raju. Ainda estava chocada de ver como a morte era uma força invasora e brutal, e de como o seu hálito sombrio tinha feito o corpo frágil de Raju estremecer sob seu peso opressivo.

Pooja desviou a cabeça lentamente do marido morto em direção à mãe, e, com lágrimas rolando pelo rosto, disse suavemente:

— Agora é a minha vez.

 

VIERAM BUSCAR O CORPO DE RAJU uma hora depois. Sem dizer uma pa-lavra, dois homens embrulharam o corpo moreno e quebradiço como um pote de barro num lençol e o levaram pelo corredor. Faziam o seu trabalho de uma maneira brutalmente eficiente. Bhima percebeu o cheiro de álcool no hálito deles e se sentiu insultada por isso. Quis protestar por esse desrespeito, mas notou que os parentes dos pacientes espalhados pelo corredor do hospital nem saíam ou paravam de conversar enquanto os homens abriam caminho com o cadáver encolhido de Raju. Tocavam na testa em sinal de respeito quando a pequena procissão passava, mas Bhima podia perceber que aquele gesto mecânico e automático era mais hábito e superstição do que um lamento genuíno pela morte de outro ser humano. E, assim que os carregadores passavam, a conversa nos corredores recomeçava, como se o corpo de Raju fosse apenas uma pedra atirada num lago que criava uma pequena marola antes que a calma das águas retornasse à superfície. Era como se essa indiferença pela morte estivesse por toda parte naquele hospital. Ou talvez não fosse indiferença, mas o cansaço dos derrotados. Como se toda a energia existente tivesse que ser direcionada para a preservação dos vivos, e não sobrasse nada para lamentar os mortos.

Eram seis da manhã quando chegaram ao campo aberto atrás do hospital onde uma dezena de piras funerárias ardia simultaneamente. A fumaça negra como o desespero subia das piras. Às vezes o fogo estalava quando atingia os ossos. Bhima ficou olhando, enquanto o corpo de Raju era depositado em cima dos blocos de madeira cuidadosamente arrumados. Hyder deixou seu amigo moribundo por um tempo e as acompanhou até o local. A fumaça das outras piras fez os olhos de Bhima arderem, mas ainda assim ela ficou assistindo ao corpo de Raju ser devorado pelas chamas que subiam, contra o céu avermelhado do Oriente. Um cheiro terrível, enjoativo e embolorado, um cheiro de algodão molhado misturado à naftalina subiu no ar e a fez engasgar. Mesmo assim, ficou olhando o corpo de Raju se transformar em cinzas. Bhima se concentrou nas chamas que pulavam e lambiam o corpo de Raju como uma língua de fogo. “Está certo”, disse a si mesma, sem convicção. “Esse pobre rapaz já sofreu muito! Esta morte é uma libertação, não uma punição. Você tem que se lembrar disso”.

Mas então lembrou-se de Pooja e de Maya, por quem logo seria responsável, e todo o seu corpo se rebelou contra o que estava acontecendo. Sentiu vontade de pular na pira e ordenar às chamas que parassem de devorar aquele corpo; exigir que Raju se levantasse de sua morada final de madeira e cinzas e assumisse suas responsabilidade marchando de volta para Pooja e ordenando que sua carne crescesse por cima dos ossos e que ela voltasse para a casa deles, para permanecer ao lado do marido saudável e da filha. Queria voltar ao indo aniversário de Maya, quando Pooja e Raju a convidaram para jantar e ela comprou uma roupa nova para sua linda netinha: um par de sapatos vermelho e branco, um vestido cor-de-rosa e uni laço de fita, também cor-de-rosa, para o cabelo. Queria relembrar a conversa que tiveram depois do jantar, quando Raju lhe contou sobre a oferta de trabalho que lhe pagaria muito mais, e ela ficou contente até ele mencionar que eles teriam que se mudar para Delhi. Naquele momento, forçou-se a dar um sorriso, calou seu coração que protestava e disse a Raju que fizesse o que fosse melhor para sua família, e disse a Pooja, que estava de olhos baixos, que seu lugar como unia mulher casada era ao lado do marido e não ao lado de sua velha mãe. Mas agora não. Agora tinha vontade de voltar àquele dia e manifestar o seu descontentamento, agora queria dizer a Raju que a família é mais importante do que o dinheiro, que arranjaria um trabalho extra para compensar a diferença de salário que ele deixaria de ganhar se ficasse em Bombaim. Agora não teria vergonha nem piedade. Lembraria a Pooja que ela era tudo o que tinha no mundo, e que levar a sua única neta para longe seria uma espécie de assassinato, diria que já tinha uma certa idade, e que depois de sua morte eles poderiam se mudar para onde quisessem, para Delhi, para Calcutá, para a Lua, mas que não o fizessem enquanto estava viva.

Bhima emitiu um ruído, e Hyder pôs uma das mãos carinhosamente em seu ombro.

— Didi, tenha coragem — disse ele numa voz que parecia de um homem mais velho. — Pelo bem de sua filha, tenha coragem.

Bhima quis dizer: Por minha filha, posso ser qualquer coisa; posso ser corajosa, forte, destemida. Por ela posso até caminhar em cacos de vidro, me deitar em carvões em brasa e andar por águas frias como o gelo. Mas a minha filha só tem mais alguns dias aqui na Terra, sei disso. Logo vão acender outra pira funerária como esta. Só que, dessa vez, vai ser o corpo da criança que dei à luz, a criança que mordia meu peito a cada vez que eu a amamentava, a menina de seis anos que vomitou depois de ter comido seis bananas de uma só vez, a menina de 11 anos que voltou para casa chorando depois do trabalho na casa de Benifer Sodabottleopenerwalla porque ficou menstruada pela primeira vez e achou que fosse sangrar até morrer, a moça de 16 anos que se tornou calada e séria depois que seu pai nos deixou como um par de sapatos que se joga fora. E, depois desse segundo funeral, depois que Pooja se transformar em cinzas diante dos meus malditos olhos, depois que eu tiver testemunhado o horror da minha própria filha morrendo diante de mim, vou querer derreter como gelo, vou querer desmoronar como um castelo de areia, vou querer me dissolver como açúcar num copo d’água. Vou querer parar de existir, entende? Hyder, tente entender, já tive dois filhos e agora não tenho nenhum. Uma morreu e o outro desapareceu, sumiu, foi roubado de mim pelo nojento do meu marido. E uma mãe sem filhos não é mãe de jeito nenhum. E, se não sou mãe, então não sou nada. Nada. Sou como o açúcar dissolvido num copo d‘água. Ou como o sal, que desaparece quando cozinhamos. Sou como o sal. Sem meus filhos, deixo de existir.

Hyder, para uma mulher como eu, a morte seria um luxo. Eu a receberia de bom grado, como um dia recebi o amor. Mas os deuses são cruéis, Hyder. Você está aprendendo essa lição também, ainda tão jovem. Então, essa Bhima aqui, essa Bhima feia, infeliz, ignorante, analfabeta, vai ser um brinquedo nas mãos dos deuses porque eles sabem que ela não é esperta o suficiente para revidar. E também tem Maya. Carne da minha carne. O que aconteceria com ela se eu pulasse na pira funerária de Pooja, como gostaria de fazer? O que acontece a uma órfã nas ruas de Delhi? Você e eu sabemos a resposta, Hyder. Vira mendiga, ou pior, prostituta, não uma Indira Gandhi, pode ter certeza. Por isso, tenho que viver. Embora já esteja morta, sei que tenho que viver. Porque não vivemos apenas para nós mesmos, não é, beta? A maior parte do tempo, vivemos para os outros, pondo um pé na frente do outro — esquerdo, direito, esquerdo, direito —, de modo que o andar se torna um hábito, como respirar. Para dentro e para fora, es-querdo, direito. Perdoe-me, beta, sei que o estou deixando confuso. Sinto que eu mesma estou confusa... Não tem uma brisa neste local, parece que o fogo comeu toda a brisa, está tudo tão quente e tão apertado, como a entrada da floresta de Ravan, e esse cheiro, beta, esse cheiro de flor morta, de teia de aranha, de naftalina de putrefação, esse cheiro que já está dentro da minha cabeça e que nunca vai me abandonar, esse cheiro que vai me acompanhar pelo resto dos meus dias, dá para senti-lo entrando nos meus ossos, acomodando-se como poeira no meu sangue...

Hyder a amparou quando ela caiu.

 

BHIMA TROUXE MAYA CONSIGO para o hospital no dia seguinte, e sua recompensa foi um débil sorriso no rosto de Pooja.

— Ae, chokri — disse ela carinhosamente à filha, que estava encostada no quadril de Bhima. — Venha aqui. Esqueceu da sua mãe depois de algumas semanas?

Maya foi até ela cautelosamente.

— Fiz uma coisa para você na escola — disse, entregando à mãe o desenho de uma flor.

Pooja sorriu debilmente, mal olhando para o desenho.

— Que bom que está indo à escola. Você tem que ser a melhor aluna da escola, achcha, ok?

Maya sorriu timidamente.

— Já sou.

Pooja fechou os olhos, exausta. Maya se virou para a avó e disse num tom acusatório:

— Ela já vai dormir. E ainda nem contei o que a professora me disse.

Olhou para a mãe por um minuto.

— Vó, por que a mãe está tão feia?

— Chup re, cale a boca, sua malcriada — disse Bhima, zangada. — Sua mãe está bonita como sempre. Você apenas tem que olhar mais fundo para ver a beleza.

Maya deu um passo à frente e ficou olhando para o rosto da mãe que dormia.

— Estou olhando bem fundo — disse. — Mas para mim ela ainda parece feia. — E então começou a chorar.

Bhima se aproximou e apertou a criança contra o peito. Foi então que a irmã de uma mulher que estava a dois leitos dali começou a gemer e se lamentar com um som muito agudo, de arrepiar os cabelos.

— Ai, Bhagwan, minha irmã morreu! — gritava ela. — Responda, fale comigo, irmã! Ai, meu Deus, me leve também, por que me deixou sozinha nesta terra de solidão?

Ao ouvir os gemidos e uivos da mulher, Maya começou a tremer.

—Vó, estou com medo — disse a menina. — Quero ir para casa.

Antes que a mulher pudesse se controlar, Bhima virou-se para ela e disse, aos berros:

— Cale a boca! Pare de assustar as pessoas desse jeito. O que está achando? Que é a única que está sofrendo aqui dentro? Que nós todos somos de pedra?

Ver a mulher boquiaberta e amedrontada só fez com que Bhima fi-casse com mais raiva. Tinha um gosto amargo na boca, como se tivesse engolido as cinzas da pira de Raju, e as palavras cruéis que proferiu esta-vam marcadas por aquela amargura.

— Mulher sem-vergonha — prosseguiu, parcialmente consciente de que todos à sua volta, parentes e pacientes, a observavam, horrorizados. — Guarde essas lágrimas para você mesma. Mesmo que viva 102 anos, você não vai passar pelos sofrimentos por que muitos de nós já passamos. Fica aí chorando pela sua irmã, enquanto tenho que cuidar da minha única filha...

— Silêncio! — disse uma voz masculina encobrindo as palavras de Bhima. — A senhora não tem vergonha?

Era o mesmo médico que tinha encontrado no corredor alguns dias antes, mas ele não deu o menor sinal de que a havia reconhecido.

— O que são vocês? Animais? Não têm respeito pelos mortos ou pelo sofrimento das outras pessoas? Ficam aí brigando uns com os outros feito cães?

O médico foi até Bhima, que apertava a cabeça de Maya contra o peito, como se quisesse que a menina não ouvisse a bronca que estava levando.

— Isso aqui é um hospital, não o barraco onde vivem — vociferou o médico. — Se não sabem respeitar as regras de um hospital, então peguem seu paciente e o levem para casa.

Bhima sentiu um fio de suor descendo pelas costas. Seus olhos se encheram de lágrimas, e ela olhou rapidamente para Pooja a fim de ver se a filha havia presenciado aquela humilhação. Mas Pooja estava deitada com os olhos fechados. Lentamente, Bhima levantou a cabeça e olhou para o colarinho do jaleco branco do médico.

— Desculpe, doutor sahib — murmurou. — Maaf karo. Por favor, me desculpe.

O médico parecia querer dizer mais coisas, mas, ao notar Maya es-condida atrás da avó, virou-se, não sem antes fitar Bhima por mais um minuto.

— Isso não tem solução — disse para si mesmo, mas alto o suficiente para que Bhima o escutasse. — Este hospital inteiro, tudo, tudo é sem solução. Eu devia ter ido para a América quando tive oportunidade. Pelo menos lá eles têm respeito pela vida humana.

E saiu, deixando atrás de si um longo silêncio. Alguns dos parentes e visitantes ficaram olhando para Bhima, nitidamente satisfeitos com a reprimenda que ela tinha recebido. Outros desviaram o olhar, desconfortáveis com a vergonha pela qual ela tinha passado. A jovem que estava dois leitos depois do de Pooja começou a soluçar baixinho, com a cabeça pousada nas pernas da irmã morta. Maya choramingou e puxou o sári da avó.

— Vamos embora, vó — pediu a menina. — Quero ir para casa.

— Espere, beta — disse. — Vá se sentar ao lado da sua mãe mais um minutinho.

— Não quero.

— Então, espere aqui. Volto já, já.

Bhima abriu caminho até o leito da mulher morta. Ao ouvir os pas-sos, a irmã da morta levantou a cabeça, amedrontada. Sua expressão consternada fez o coração de Bhima se contorcer num sentimento de culpa.

— Sinto muito por sua perda. E peço que me perdoe pelas palavras duras. Por favor, me perdoe. Não sei o que... Ontem foi a cremação do meu genro. E aquela ali é minha filha. De qualquer modo, minhas palavras duras eram...

— Não precisa pedir perdão — disse a mulher brandamente. — Não há perdão neste lugar. E suas palavras são verdadeiras. Aqui, todos ganhamos a loteria do sofrimento.

Maya veio até Bhima bem devagar.

— Vó, vamos embora — disse chorando. — Detesto este lugar.

Bhima fez uma expressão compreensiva e disse:

— Está na hora de levar essa mocinha para casa.

E acrescentou baixinho.

— Ela não entende ainda.

Bhima estendeu a mão direita e tocou de leve a cabeça da moça sentada na cama.

— Que Deus cuide de você, beti. E lembre-se, aqueles que não têm ninguém têm a Deus.

 

AO LONGO DAS DUAS SEMANAS seguintes, Bhima mais parecia um dos pacientes do hospital. Todos os dias acordava cedo, vestia Maya e a levava para a casa da vizinha. Depois, ia para o hospital. Na maioria das vezes, comia uma banana no almoço. De vez em quando, apoiava-se na janela do ônibus e via seu próprio reflexo no vidro. Notava então as olheiras escuras que tinham aparecido em volta dos seus olhos, e percebia que seu rosto estava ficando tão encovado e exausto quanto o de Pooja. Mas eram constatações displicentes, como se quase não reconhecesse o rosto refletido na vidraça. Estava distraída. Mil coisas, até contraditórias, lhe passavam pela cabeça, zumbindo como abelhas. Sabia que tinha que dizer a Gopal que a filha deles estava morrendo. Por mais que o álcool o tenha afetado, sabia que Gopal faria o que fosse preciso para vir a Delhi ainda a tempo de ver Pooja. Mas como entrar em contato com ele? Só o que tinha enfiado em algum lugar do barraco, na mala velha que Serabai lhe deu, era o endereço de seu irmão mais velho. A quem poderia pedir que desencavasse aquele endereço? Não tinha cabimento fazer com que Serabai fosse à favela e pedisse isso a algum dos vizinhos. Aliás, desde que chegou a Delhi, não conseguiu um tempinho para encontrar alguém que pudesse escrever uma carta para Serabai contando o que tinha acontecido. Sabia que Serabai devia estar preocupada, mas, de algum modo, assim que entrava no mundo onde o tempo pára, o hospital, o resto de sua vida se dissolvia. Era como se apenas naquele lugar de doença e morte se sentisse viva e vital. Tudo o mais se tornava uma vaga lembrança, uma sombra indistinta.

Talvez a doença de Pooja seja um castigo por ela não ter convidado Gopal para o casamento. Afinal, Bhima sabia muito bem que casar uma filha sem a presença do pai para entregá-la ao noivo dava azar. Não é de espantar que essa doença tenha vindo tomar sua filha como presa. Era de sua natureza atacar os fracos, os vulneráveis. Não deveria ter dado ouvidos á opinião de Pooja com relação ao pai ausente. Pooja era uma moça jovem e inexperiente, o que poderia saber sobre os joguinhos dos deuses, sobre como o destino podia ser vingativo? Mas ela, Bhima, tinha mais sabedoria. Lembrou-se do caso de Seema, a mulher que tinha se mudado para o apartamento térreo do edifício onde morava com seus pais. Foi na época do Diwali, quando Bhima tinha 12 anos, e todos os moradores do prédio estavam reunidos no pátio do edifício soltando fogos e oferecendo doces uns aos outros. Todos, menos Seema e seu marido. Os outros moradores ouviam os dois brigando em meio aos chiados e estouros dos fogos. As palavras de Seema saíam tão incandescentes pela janela de seu apartamento térreo quanto os foguetes que estavam sendo disparados no ar.

— Vagabundo, inútil... Você não serve para nada... Só fica deitado o dia inteiro... Seria melhor que estivesse morto, tão morto como essa coisa que tem aí entre as pernas.

Naquele dia, alguns dos moradores, zangados, bateram na porta de Seema para pedir que falasse mais baixo. Isso a fez calar a boca. Mas o silêncio real veio quatro meses mais tarde, quando Seema chegou uma noite do trabalho, foi direto para a cama e nunca mais acordou. Todos os vizinhos, lembrando-se de seus xingamentos naquele dia de Diwali, balançaram a cabeça, falando da vingança dos deuses.

— Eles pegaram suas palavras, viraram-nas de cabeça para baixo e mandaram de volta para ela — disse a mãe de Bhima.

Hyder estava sentado perto do leito de Pooja quando Bhima chegou.

— Como é que ela está? — perguntou Bhima, e Hyder lhe abriu o maior sorriso.

— Bem — disse ele. — O doutor deu uma passada aqui e disse que Pooja didi estava com ótima aparência hoje.

Bhima olhou para Pooja, aliviada ao ver que a presença de Hyder ti-nha animado a filha.

— Você dormiu essa noite, beti? — perguntou com meiguice.

Pooja sorriu.

— Está tudo melhor agora que você e Hyder estão aqui — disse ela. — Como vai a minha menininha? Está com saudade da mãe?

— Ela está com muita saudade — mentiu Bhima. — Fica o tempo todo perguntando por você. É só: quando é que a mamãe vai voltar para casa? Quando vamos poder ir ao meia, ao festival, juntas?

Bhima percebeu pelo sofrimento no rosto de Pooja que não deveria ter dito isso.

— Conte a ela, mãe — sussurrou Pooja. — Ela tem que entender. Diga que não vou voltar para casa.

Hyder pigarreou e disse:

— Volto mais tarde.

As duas ficaram olhando o rapaz sair da enfermaria. Pooja pegou a mão de Bhima e prosseguiu:

— Fico contente por ele a ajudar, mãe. Estou tão envergonhada por lhe dar todo esse trabalho...

— Trabalho? Escute, chokri, quem você pensa que sou? Não sou uma feirante qualquer... Sou sua mãe, carreguei você na minha barriga durante nove meses.

Apesar de tudo, Bhima sorriu.

— Mesmo ali, você já era um galo de briga, dando pontapés na minha barriga o tempo todo. Baap re, pensei que fosse parir um lutador como o Dara Singh.

Pooja desviou o olhar, mas Bhima viu as lágrimas rolarem em seu rosto. “Para onde iam todas essas lágrimas derramadas no mundo?”, ficou imaginando. “Se pudessem ser coletadas, poderiam irrigar os campos secos e esturricados da aldeia de Gopal, e outros tantos. Com isso, talvez essas lágrimas tivessem algum valor e todo esse sofrimento tivesse algum significado. Caso contrário, era tudo um desperdício, apenas um ciclo infindável de nascimento e morte, de amor e perda.”

Pooja estava bem falante naquele dia. Diante dos olhos incrédulos de Bhima, sua filha parecia retornar à vida e, apesar do rosto encovado e dos olhos com um brilho irreal, conseguia ver ali alguns traços da antiga Pooja. De tarde, pediu à filha que dormisse algumas horas, mas Pooja insistiu que queria falar. Ficou se lembrando de quando conheceu Raju e do dia em que Maya nasceu, e lamentou o fato de ter deixado Bhima para trás em Bombaim.

Devíamos ter trazido você para morar conosco, mãe. Desse jeito, esses anos todos de separação não iam doer tanto agora. Raju era órfão. O que podia saber sobre o amor familiar? Eu nunca deveria ter deixado você para trás. — O rosto magro estava corado, quase luminoso, como se iluminado por uma luz interior.

Observando o rosto de Pooja, Bhima sentiu um momento de desconforto.

— Beti, você está se cansando muito com toda essa falação. Descanse, na.

Mas Pooja estava acesa como uma vela.

— Logo, não vai haver mais nada além de descanso, mãe. Hoje é um bom dia. Estou me sentindo forte. Me deixe falar. Também preciso lhe contar tudo sobre Maya. Mãe, essa menina é muito sensível. Ela se magoa com muita facilidade. Também aprende muito rápido. Já sabe escrever.

Ficou calada por um minuto, até retomar o fôlego. Seu rosto estava vermelho e febril.

— Outra coisa. Tem um dinheiro no banco. A nossa katha, a nossa poupança, é do State Bank. Guardamos a caderneta no cofre dentro do armário de metal. Você se lembra do armário metálico que Serabai nos deu como presente de casamento? É aquele. Tire todo o dinheiro. Deixei uns cheques ao portador já preenchidos antes de vir para o hospital.

— Beti, beti, isso não é hora de ficarmos falando de dinheiro. Vou dar um jeito, prometo. Vou fazer de tudo para que nem um fio de cabelo de sua filha seja prejudicado enquanto eu estiver viva.

Os olhos de Pooja brilharam com as lágrimas.

— Eu sei, mãe. Essa é a única razão pela qual posso morrer em paz. Sem você, eu teria que voltar como um fantasma para cuidar da minha menina.

— Achcha, agora durma, beti. Guarde suas forças. Durma. Vou estar aqui quando você acordar.

 

POOJA NÃO ACORDOU. Mas também não se entregou sem lutar. Quando os dois homens vieram pegá-la, sua fisionomia mostrava sinais de uma grande luta, como se seu rosto tivesse sido pisoteado pelas patas da morte.

Mais uma vez, Bhima e Hyder presenciaram os funerais, e Bhima assistiu às labaredas executarem sua dança diabólica sobre o corpo de sua filha. O tempo todo, Bhima dizia consigo mesma: “Lembre-se de que você é tudo o que a menina tem. Tenha coragem, minha velha, pelo bem da menina.”

Três dias depois, Hyder foi até a estação ferroviária se despedir das duas, que voltavam para Bombaim. Sob a luz brilhante do dia, Bhima notou as rugas naquele rosto jovem, coisa que não tinha visto antes, no hospital.

— Mesmo que eu chegue aos cem anos... — disse ela.

Com um abraço, ele a impediu de falar.

— Didi — disse ele. — Por favor. Vão em paz e tentem esquecer toda essa coisa ruim.

Ficaram olhando um para o outro por um minuto enquanto Maya puxava impacientemente a mão de Bhima.

Elas entraram no trem e encontraram o leito. Olhando para a cabecinha de Maya, com seu cabelo arrumado e repartido ao meio, Bhima suspirou.

— Não sei como vou fazer — disse baixinho para Hyder, que estava de pé na plataforma, perto da janela.

O que queria dizer era que não conhecia aquela criança como conhecia Pooja. Não sabia como Maya era por dentro, não sabia quais eram as suas preferências; não sabia se gostava mais de doce ou de salgado, ou como gostava de ser acarinhada quando estava doente.

— Vai dar tudo certo — disse Hyder. — Mantenha a fé, didi, mantenha a fé.

Essas foram as últimas palavras que Hyder lhe disse antes de o trem sair da estação. Ela ficou olhando para o rosto meigo e pensativo do rapaz, que ia ficando cada vez menor, até que não conseguiu mais vê-lo.

 

— SERA! DINU!, BEM-VINDAS À NOSSA HUMILDE CASA — exclama Aban Driver ao recebê-las na porta de seu apartamento. — Onde está Viraf? Foi estacionar o carro ou coisa do gênero?

Dinaz sorri, ao passarem pelo corredor que leva à sala de estar. Sempre teve um carinho especial por aquela mulher em cuja casa seus pais haviam se conhecido.

— Que bom ver você, tia Ahan! — diz. — Viraf vem mais tarde. Está preso no escritório e vai chegar um pouquinho atrasado.

— Claro, claro — diz Aban. — Coitado desse rapaz, trabalha tanto! Mas é claro — acrescenta, vendo a barriga de Dinaz — que ele tem que fazer isso, agora que vai ter mais uma pessoinha para sustentar.

Ela e Sera trocam um olhar cúmplice.

Ao entrarem na sala cheia de gente, Pervez Driver vem cumprimentá-las. Sera fica abismada ao ver o quanto ele envelheceu, desde que o encontrou no casamento de uma amiga, um ano antes.

— Boa noite, Sera, boa noite, Dinaz — diz ele do jeito tímido e cuidadoso com que sempre tratou Sera.

“Talvez seja assim com todo mundo”, pensa Sera.

— Por favor, fiquem à vontade.

Ele manda alguns meninos que estão sentados no sofá saírem para lhes dar lugar.

— Onde está Toxy? — pergunta Sera.

Afinal, a comemoração do noivado da mais nova dos três filhos de Aban e Pervez é o motivo de estarem ali.

— Está na outra sala com as amigas — responde Aban com um ar displicente. — Você sabe como são essas moças. Não querem ficar com os coroas aqui. E olhe, minha Dinu, você já está incluída nesse time de “velhinhos enxutos” — acrescenta, com um risinho. — Afinal, agora é uma mulher casada, esperando o primeiro filho.

Dinaz fica de pé, num salto.

— Bobagem — diz com um sorriso. — Vou até lá falar com a Toxy e as outras meninas.

Pervez pigarreia, e as duas mulheres levantam o rosto e se dão conta de sua presença.

— Sera, o que você vai beber?

E, antes que ela possa responder, ele acrescenta:

— Uma Kingfisher, se não me falha a memória.

Todos riem.

— Viu como ele é atencioso? — diz Aban. — Todo mundo pensa que Pervez é um marido dominador e bhola-bhala, forte e saudável, mas, se quer saber, ele é muito sedutor.

Um homem que Sera encontrou em outras reuniões, mas de cujo nome não consegue se lembrar, dirige-se a Aban.

— Então, diga a verdade, Aban, você ainda ama esse seu pobre marido?

Quando ele ri, Sera nota que suas gengivas aparecem.

— Perdidamente — diz Aban, pondo a mão de Pervez em seu rosto.

— Arre wah, que tipo de pergunta idiota é essa? Meu maridinho é o melhor do mundo.

— Ai, meu Deus — diz Meena Patel, uma das poucas na festa que não é parse. — Olhem só o Pervez, está vermelho como uma noivinha. Assim fica difícil saber se é ele ou Toxy quem vai se casar.

Outra convidada, que Sera não conhece, dá uma palmadinha no próprio joelho quando ri e diz:

— Essa foi boa, Meena.

Sera bebe a cerveja Kingfisher que Pervez lhe serviu e olha em volta, discretamente. Apesar de uma nova demão de tinta, é impressionante como a sala parece não ter mudado nada desde que conheceu Feroz ali, no dia da festa de seu aniversário de 28 anos.

Sera olha o rosto redondo de Aban, com bochechas carnudas des-pencando e queixo duplo, e fica admirada de ver como o tempo usou sua garra naquele rosto, puxando-o para baixo com sua mão cruel. Sem o menor sinal de vaidade, Sera olha para a sua própria imagem no espelho do aparador Godrej que fica do outro lado da sala e percebe que, de algum modo, foi poupada dos estragos do tempo. Seu rosto de meia-idade conservou um vigor fresco e jovial, sua pele é tão lisa e firme como quando conheceu Feroz. Em compensação, o rosto de Ahan ficou pelancudo e mole como um pudim. Sua aparência é tão gasta quanto a desta sala, com essa mobília antiga onde uma peça não combina com as outras, as jaalas de poeira debaixo das cadeiras, o ventilador de teto que range e parece não ver uma limpeza há uns vinte anos. Já sua sala brilhava como uma jóia, com as paredes recém-pintadas de cor clara, o ruído quase imperceptível do ar-condicionado, o caro jogo de sofá e poltronas que Feroz tinha mandado fazer especialmente para o apartamento e a mesa de centro de pau-rosa que Bhima lustrava todos os dias. Sera tenta se lembrar se Aban era assim tão relaxada quando elas eram mais jovens. Mesmo agora, vestida especialmente para essa ocasião, a alça do sutiã de Ahan fica o tempo todo aparecendo por baixo da blusa sem mangas do sári, e se vê uma mancha marrom no seu peito, onde deve ter caído um pouco de chutney ou molho.

Mas se Pervez nota essas coisas, parece não se incomodar. Sera percebe que ele nunca se afasta muito da mulher; percebe também que, mesmo quando o casal está separado na sala, os dois se olham continuamente. Houve um momento em que Aban mandou um beijo para o marido e, com um rápido movimento da mão, Pervez o apanhou no ar. Sera sorriu ao ver a cena e, ao notá-lo, Pervez sorriu também, encabulado, e levantou os ombros, lentamente.

“Meus velhos amigos Aban e Pervez”, pensa Sera. “Casados há tantos anos e ainda agindo como namorados.” Nota em si mesma uma mágoa aguda e repentina que reconhece como inveja. Para reprimi-la, toma mais um gole de cerveja, depois levanta o rosto e vê Aban dirigindo-se a ela.

— O que é isso, Sera, por que essa cara tão séria? A cerveja está quente, ou aconteceu alguma coisa?

— A cerveja está ótima — diz. — Está tudo bem, e estou me divertindo, é que estava aqui sentada pensando...

— Ah, claro, claro — diz Aban, com um ar compungido que a faz parecer um palhaço triste. — Sou tão insensível às vezes, baap re baap, que devia sumir. Que grandessíssima bafaat sou eu, uma trapalhona grande e gorda. Você deve estar sentindo saudade do seu querido Feroz, não é mesmo? Afinal, foi aqui que vocês se conheceram, não é?

Sera olha para sua amiga mais antiga, sem saber o que dizer. Como inveja a inocência de Aban, o seu jeito simples de dividir o mundo em “amor e desamor”, em “bom e ruim”. Mas o que sente é bem mais complicado do que isso. Desde a morte de Feroz, teve que se defrontar com essa complicada equação, esse bhelpuri de arrependimento e ressentimento, de amor e amargura, de perdão e culpa, de solidão e alívio. Será que sente saudade de Feroz? Não saberia responder. Não sente saudade das surras humilhantes, da raiva contida, de seu próprio servilismo covarde e da hipocrisia de ter que fingir que tudo ia bem no seu casamento. Não, não sente falta disso. Na verdade, sente saudade do sonho do casamento e não do casamento em si. Mesmo agora, depois de todos esses anos, sente saudade do homem com quem imaginou que estava se casando. Sente falta daquele jeito ousado que ele tinha de cortejá-la, dos galanteios incessantes. Sente falta de nunca ter podido saber o que é um casamento como o de Ahan e Pervez. Estar casados há anos e anos e continuar mandando beijos um para o outro.

Aban não lhe dá chance de responder.

— Ei, Sera, você se lembra da viagem para Matheran? Como nos divertimos lá, não foi? Eu e o Pervez ainda falamos sobre isso com os meninos. Meu Deus! Éramos tão jovens naquela época...

Dessa vez, Sera sorri com um prazer genuíno. Aquela foi realmente uma viagem divertida. Feroz e ela estavam casados há apenas três meses quando Aban implorou para que saíssem de férias juntos, os dois casais.

— Venham conosco, yaar, nosso prazer será redobrado se vocês vierem — disse. — Vamos, venham conosco, digam que sim, vocês dois...

E Feroz, sorridente, concordou.

— Você se lembra daqueles macacos badmaash? — pergunta Aban. — Lembra que nunca conseguíamos relaxar totalmente no café da manhã com aqueles brincalhões na varanda?

Ela se vira para os outros convidados e conta:

Se você deixasse uma banana ali por um segundo, eles fugiam com ela num piscar de olhos. Uma vez, um deles quis tirar a fruta da minha mão. Eu gritei tão alto que acho que não só o macaco ficou surdo, mas também os filhos dos filhos dele.

Todos riram.

— Você está esquecendo a melhor parte — diz Pervez. — Um dia, meus óculos estavam em cima da mesa, e um daqueles macacos de bunda vermelha desceu balançando da árvore e saiu com eles. E o cúmulo foi que ele se sentou num galho, numa árvore próxima, e imaginem o que fez? Ele botou os meus óculos. Ficou sentado, fora do meu alcance, falando aquela sua língua de macaco. Fiquei tão irritado que quis trepar na árvore para dar uns tapas na cara daquele ladrãozinho.

— E aí? — perguntou um convidado. — Como você se virou no resto da viagem?

— Arre, o que você quer dizer com isso? — diz Pervez.

Pela maneira incisiva com que Pervez disse aquela frase, Sera percebe que aquele não era o seu primeiro drinque.

— Afinal, estávamos com o nosso brilhante Feroz Dubash. E então, querem saber o que ele fez? Ficou ali observando o macaco. Em poucos minutos, percebeu que o animal estava fazendo tudo o que fazíamos. Naquele momento, Feroz foi lá dentro e trouxe os seus próprios óculos. Primeiro, os pôs no rosto, como o macaco. Depois, os tirou e os pôs na cabeça. O macaco fez a mesma coisa. Então, Feroz pôs a ponta da armação na boca e começou a mordiscá-la. O macaco o imitou. Naquela altura, eu já estava ficando agitado, yaar. Mas a minha Aban me disse para confiar em Feroz. Então, ele jogou os óculos no chão. E sabem de uma coisa? O estúpido do macaco atirou os meus no chão também. Mais rápido que um ladrão, me estiquei e recuperei meus óculos. E o idiota do macaco ficou sentado na árvore, mostrando os dentes amarelos e fazendo ruídos engraçados.

— Mas isso foi brilhante, brilhante, yaar — disse Meena Patel, como se o incidente houvesse acabado de ocorrer. — Seu marido foi inteligente, madame Dubash.

Sera agradece o elogio com um leve sorriso que parece forçado e tenso (mesmo para ela), porque a lembrança de Pervez tinha desencadeado uma outra recordação. Tinha se esquecido do incidente ocorrido no final de sua estada em Matheran, mas agora se lembrava do fato com toda a nitidez.

Eles voltaram para o hotel, depois de um jantar tardio no melhor restaurante de Matheran. Mais cedo, naquela noite, Feroz estava expansivo e animado.

— Vocês são meus convidados — disse a Pervez assim que entraram no restaurante. — Não quero que você pegue na carteira hoje.

Sera lhe lançou um olhar de aprovação. Sabia muito bem que Aban e Pervez não tinham muito dinheiro, embora, a julgar por sua generosidade, ninguém pudesse imaginar que sua situação financeira fosse precária. Feroz fez um sinal para o garçom. Era um rapaz bonito de uns vinte anos com grandes dentes brancos e uma atitude de quem estava cheio de vontade de agradar.

— Escute aqui — disse Feroz ao rapaz. — Me disseram que vocês ainda não têm um setor onde se possa servir bebida. Mas somos de Bombaim e estamos acostumados a tomar drinques junto com a comida. Entendeu? Então, veja o que pode fazer por nós, está bem, achcha?

Ele lhe passou discretamente uma nota de vinte rupias e acrescentou:

— Tome uma gorjeta.

O garçom se inclinou e disse:

— Me dê só alguns minutos, sahib. Vamos ver o que posso fazer.

Como sempre acontecia, Sera ficava envergonhada com essa ostentação escancarada de poder. E, dada a situação humilde de Aban e Pervez, o gesto de Feroz parecia ainda mais deselegante. Mas bastou uma olhada nos rostos admirados de seus amigos para entender que tinha interpretado mal a situação. Feroz piscou para Pervez.

— Olhe só para ela — disse apontando o queixo em direção a Sera. — Ela odeia quando faço essas coisas, mas quando não se tem o que se quer, é preciso pagar.

Aban assentiu, dizendo:

— O dinheiro é que faz o mundo girar.

Foi então que o garçom voltou com três garrafas de Kingfisher geladas.

— Da reserva especial do patrão, sahib — disse ele.

Feroz abriu um largo sorriso.

— Ótimo.

As duas mulheres fizeram seus pedidos.

— Querida, por favor, escolha um prato de carne, ok? — disse Per-vez à sua mulher. — Nada de plantas ou folhas, por favor. Somos seres humanos e não cabras e bodes.

Ele riu, satisfeito com a própria piada.

À medida que o jantar prosseguia, Sera notou que Feroz ficava cada vez mais calado. Quis se virar para ele e perguntar se estava com dor de cabeça, mas, motivado pela cerveja, Pervez emendava uma história na outra, contando sobre seus dias de colégio interno, e ela tinha que se concentrar para sorrir adequadamente nas horas apropriadas. Se os outros dois notaram que Feroz tinha se retirado da conversa, não disseram nada.

— Vamos pedir outra porção de biryani? — disse Pervez num dado momento, olhando cautelosamente para Aban.

Antes que ela pudesse responder, Feroz fez sinal para o garçom.

— Mais desse arroz condimentado e mais duas garrafas de Kingfisher — pediu.

Depois que o rapaz saiu, Feroz se virou ligeiramente para Sera e lhe lançou um olhar que ela não conseguiu interpretar. Quando a cerveja chegou, ele encheu um copo para si mesmo. Sera quis protestar por ele estar bebendo demais, mas ele agiu como se estivesse envolto numa camada fina e fria de gelo. Quando ela lhe sorriu, ele a fitou friamente, com uma expressão distante, como se estivesse na Lua.

— Su che, Feroz — disse finalmente Aban. — Você está tão calado agora...

Ele sorriu para Aban, mas Sera pôde ver que não era um sorriso de verdade.

— Só estou ouvindo vocês — disse ele, de modo pouco convincente.

Aban olhou para Pervez.

— Chalo, talvez seja hora de ir embora — disse ela carinhosamente. — O dia foi longo hoje, não?

No caminho de volta para o hotel, Feroz participou da conversa com os outros lamentando o fato de terem que sair daquela localidade verdejante nas montanhas e voltar para Bombaim, quente e repleta de gente. No hotel, ele e Pervez discutiram sobre quem pagaria o táxi.

— Deixe disso, yaar, sejamos justos — protestou Pervez. — Você já pagou o jantar e tudo o mais.

Feroz lançou um olhar ao motorista e disse num tom de voz que encerrava qualquer discussão:

— Não aceite dinheiro deste cavalheiro.

O motorista aceitou a nota que Feroz lhe entregou.

— Esses homens... — disse Aban para Sera, revirando os olhos.

— Sempre discutindo por alguma coisa, quando todo mundo sabe que na verdade eles discutem é para ver quem tem o pau maior.

— Aban! — exclamou Sera. — Você diz cada coisa!

— Deixe disso, yaar — retrucou Aban. — Pare de agir como uma donzela. Essa é uma das vantagens de sermos mulheres casadas e respeitáveis, não é mesmo?

— Boa noite, Aban — disse Sera com um sorriso. — Às vezes você é demais para mim.

Ela e Feroz foram pelo corredor até o quarto em silêncio. Sera sabia que havia uma tensão não mencionada entre eles. Notou que Feroz mantinha uma postura rígida e andava perto da parede evitando tocá-la.

— Você está bem, janu? — perguntou quando entraram no quarto — Está com dor de cabeça ou alguma coisa assim?

— Estou ótimo — disse ele secamente.

Ele se dirigiu ao banheiro e, quando saiu de lá, já estava de pijama. Também estava de um jeito diferente. Seu rosto estava vermelho, e uma veia latejava na sua testa. Sera ficou estupefata, olhando-o fixamente, convencida de que ele estava doente. Nunca tinha visto Feroz assim antes.

— Pelo amor de Deus, Feroz, o que está acontecendo? — perguntou, tentando pegar em seu braço.

Ele a rechaçou com rispidez.

— Não me toque — disse ele com os dentes cerrados, e só então Sera percebeu que seu marido não estava doente, mas furiosamente enraivecido. Tentou lembrar da conversa durante o jantar. Será que Pervez tinha dito alguma coisa que deixou Feroz aborrecido? Será que o comportamento de Aban o irritou?

— O que é... O que há de errado? — perguntou novamente.

E então ele se voltou contra ela.

— É você. Você é o que há de errado.

Ignorando seu sobressalto de surpresa, ele prosseguiu:

— Não pense que não percebi o seu nataak durante o jantar. Você me envergonhou com a sua atuação, na frente dos nossos amigos, flertando com um garçom que poderia ser seu filho. Sorrindo para ele, agradecendo a cada vez que ele enchia o seu copo de água. Não pense que não vejo tudo o que acontece. Você deve pensar que sou um chootia total, um idiota, para flertar com um outro homem, que além de tudo era um menino, bem ali na minha frente.

“Ele estava brincando. Só podia estar brincando. A coisa toda era tão absurda, tão surreal”, pensou Sera. “Mal tinha prestado atenção no garçom, e não seria capaz de reconhecê-lo se o visse na rua amanhã.” Tentou formular sua ofensa e surpresa numa frase, mas descobriu que não conseguia. A acusação absurda do marido a tinha deixado sem palavras.

Além disso, aquele homem á sua frente, com os olhos esbugalhados e o maxilar se mexendo convulsivamente, era alguém que não conhecia. Um completo estranho. E uma parte dela se ressentia até de ter que se defender do ridículo de suas acusações. Já era tarde, e tinham que acordar cedo no dia seguinte para fazer uma excursão que ia durar o dia inteiro. Nunca ninguém tinha falado com ela naquele tom antes. Era uma pessoa séria e atenciosa, todos os seus amigos sabiam disso.

Não era uma daquelas mulheres vulgares com maquiagem carregada que flertavam com qualquer um que usasse calças. Será que Feroz não sabia disso? E, nesse caso, o que mais não sabia a seu respeito? Afinal, era o seu caráter que ele estava atacando...

Ela piscou, tentando refrear as lágrimas que estavam começando formar em seus olhos.

— Suas observações não são dignas de você — disse ela, com toda dignidade que pôde expressar.

Repentinamente, Sera sentiu um rompante de raiva, como um fósforo aceso no escuro.

— Nem olhei para o garçom. Como você ousa me acusar de...

— Abaixe a voz — disse ele. — Você está num hotel, não na sua casa.

— A minha voz está baixa. E você deveria ter pensado melhor antes de começar tudo isso...

Uma onda de remorso a invadiu.

— Escute, Feroz, já está tarde. Talvez você tenha bebido demais hoje. Não vamos estragar nossa viagem com uma briga boba.

Ela estendeu a mão para tocar em seu braço.

Não percebeu o que estava para acontecer. Um soco acertou em o seu braço direito, e a dor pareceu atravessar a fina camada de músculo e chegar até os ossos, onde ficou vibrando como os gongos de prata que os sacerdotes tocavam nos templos de fogo. A dor era tão aguda que chegou a lhe dar náuseas. Amparando o braço com a mão esquerda, ela o puxou para cima do estômago para controlar o enjôo.

Feroz estava de pé em cima dela, descansando num pé e no outro como um boxeador que espera para ver se o adversário vai ficar caído durante toda a contagem.

— Eu disse para você não me tocar. Eu avisei...

Sera tinha consciência do próprio medo, um medo mais forte até do que a náusea. “Tenho que fugir dele, tenho que pedir socorro”, pensou ela, mas outro pensamento a imobilizou. Aquele homem não era um estranho de quem estava tentando escapar, aquele não era um homem perigoso escondido no meio do mato que tinha pulado em cima dela. Aquele era o seu marido, o homem com quem tinha se casado há apenas três meses, o homem a quem tinha confiado o seu futuro. Olhou a seu redor, num medo pânico, sem saber o que fazer em seguida. A última vez que apanhou de alguém estava na terceira série, foi numa briga com uma colega de turma por causa de uma borracha. Criada por pais que eram radicalmente contra castigos corporais, escapou da violência física a que muitas de suas amigas já estavam acostumadas. Sera agora se dava conta de que não tinha defesas, de que não tinha nenhuma estratégia para se proteger de Feroz, que ainda tinha a respiração pesada e um olhar louco e descontrolado no rosto.

Deu alguns passos vacilantes para trás, até que seus joelhos atingiram a beira da cama e ela se deixou cair. Então, vieram as lágrimas, rolando pelo seu rosto e caindo em cima da mão que ainda apertava o estômago. À medida que a dor no braço diminuía, a dor em seu coração aumentava. Chorava pela rápida brutalidade do gesto violento de Feroz. Soluçava pela injustiça de sua falsa acusação e, acima de tudo, por pensar em passar ano após ano na companhia de um homem que a julgava tão mal que podia descaradamente acusá-la de flertar com um simples garçom. Ela, que recusou propostas de casamento de homens que vinham de famílias de três gerações de médicos. Ela, que passava os sábados à noite no Homi Bhabha Auditorium na companhia de homens que tinham dignidade e cultura. Ela, cujo pai, um dos mais famosos cientistas de Bombaim, nunca sequer levantou a voz para a mulher.

Seu coração se sentia ofendido e, apesar do medo, deu asas às suas palavras.

— Nunca ninguém me tratou assim, em toda a minha vida. Nunca fui acusada de um comportamento inadequado desse jeito. E nunca me bateram. Se meu pai souber o que você fez hoje, ele vai...

Sua voz falhou, e ela não conseguiu terminar a frase.

De repente, tão abruptamente quanto o soco que tinha atingido seu braço alguns minutos atrás, Feroz estava de joelhos diante dela, esfregando seu braço e pedindo perdão, com os olhos brilhando de lágrimas.

— Ai, meu Deus, Sera, estou tão envergonhado. Me desculpe, querida. Não sei o que aconteceu... É que a amo tanto que eu não suporto a idéia de perdê-la. E sou tão mais velho que você, isso me deixa nervoso...

Sera conseguia sentir o gelo se derretendo em seu coração com as palavras dele, e, mesmo involuntariamente, ficava feliz com isso. As lágrimas de Feroz caíam-lhe no colo, uma marca de sua vergonha derretendo o sentimento gelado que tinha tomado conta dela. Sera afagou a cabeça do marido com o braço machucado, ignorando a dor que o atravessou quando tentou erguê-lo. Ouvindo suas desculpas ardorosas e suas promessas de que aquilo nunca iria acontecer novamente, foi assaltada por um milhão de emoções conflitantes — dúvida, medo, apreensão, esperança, vergonha e, acima de tudo, alívio. Alívio por Feroz ter sido resgatado por suas lágrimas, por ele ter sido trazido de volta à vida por meio de suas palavras.

— Não era minha intenção bater em você, querida — dizia ele. — O que aconteceu foi que levantei a mão, e naquela hora você estava me tocando, não sei o que aconteceu... Acho que você estava na trajetória da minha mão...

Por um rápido segundo, a lembrança do soco bem dado passou pela cabeça de Sera, mas estava com vontade de acreditar no marido, assim como ele estava com vontade de convencê-la. Sera rechaçou aquela lembrança e deixou Feroz escondê-la no saco de gatos de suas palavras confortadoras.

— Feroz, sei que você não ia me machucar deliberadamente — disse ela. — E, janu, por que eu prestaria atenção num garçom desclassificado quando tenho você?

— Eu sei, sei que você é uma mulher direita, Sera. Você tem razão, deve ter sido a cerveja que falou mais alto. Venha aqui, deixe passar um pouco de Iodex no lugar onde dói. Me desculpe muito. Sou tão desajeitado e você estava no meu caminho...

Sera faz uma careta ao se lembrar disso. “Você devia tê-lo abandonado ali mesmo naquela hora”, diz a si mesma. “Deveria ter ido embora da primeira vez em que ele bateu em você. E nunca deveria ter encoberto o que ele fez, nunca deveria ter permitido que a vergonha dele se tornasse a sua.” Ela se lembra da blusa de bolinhas de manga comprida que usou na manhã seguinte para esconder o braço machucado.

— Puxa, Sera — disse então Aban. — Por que essa roupa de manga comprida de solteirona? Não está tão frio assim, está?

E, lembrando-se de sua resposta sem energia, pouco convincente até mesmo para os seus próprios ouvidos, Sera sentiu uma nova onda de raiva. “Você merece o que recebeu”, diz a si mesma. “Deveria ter humilhado Feroz na frente de Aban e Pervez naquela época. Isso teria evitado a violência desde então.”

Dinaz está de volta à sala e olha para ela com uma expressão curiosa no rosto.

— Você está bem, mãe? — pergunta suavemente. — A cerveja lhe subiu à cabeça?

Por um instante, Sera sente que Dinaz pôde ler todos os pensamentos sombrios que pingavam na sua cabeça como gotas de tinta. Não era a primeira vez, mas se perguntava o quanto Dinaz sabia sobre as agressões esporádicas que sofrera. Depois que Dinaz nasceu, fez o possível para abafar o choro quando Feroz a cobria de socos, para esconder as marcas que apareciam em seu corpo e em seus olhos. Sera não quis que a sombra da violência do pai eclipsasse a infância da menina.

Sera afasta a teia de aranha de raiva e se esforça para sorrir para a filha.

— Teria que ter bebido bem mais para que isso acontecesse — diz. — Como vai a Toxy? Você a viu?

— Vi. Ela vai sair num minuto — responde Dinaz. — Todas as meninas estão lá no quarto conversando... aquelas conversas de mulher.

Ela se inclina para Sera e abaixa a voz.

— O que houve, mamãe? Você parece tão triste...

Aban ouve Dinaz falar e acrescenta:

— Acabei de dizer as mesmíssimas palavras para sua mãe, Dinu. Sera não é mais a mesma depois da morte do seu querido Feroz.

Mãe e filha trocam um rápido olhar. Dinaz levanta ligeiramente a sobrancelha direita num gesto que faz lembrar o pai. E, naquele momento, Sera tem a certeza de que Dinaz sabe de tudo. Não sabe direito como se sente em relação a isso. Por um lado, o gesto de Dinaz implica uma solidariedade que deixa Sera feliz. Por outro, se sente culpada por não ter conseguido poupar a filha de ficar sabendo como era o casamento de seus pais.

Dinaz passa o braço nos ombros de Sera.

— Mamãe está bem, tia Aban — diz ela. — Só está um pouco cansada... A nossa Bhima anda um pouco... atrapalhada ultimamente. E, por causa disso, a mamãe tem tido que fazer um pouco mais dos trabalhos de casa.

— É isso que acontece quando se trata a empregada como patroa — diz Aban prontamente. — Me perdoe por dizer isso, Sera, mas tenho lhe dito todos esses anos que Bhima ia acabar se aproveitando de você. Digam o que disserem, mas esses ghatis são sempre ghatis. Nós, parses, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre recebemos o troco.

Sera gostaria que Dinaz não tivesse tocado no nome de Bhima. Para falar a verdade, está um pouco cansada de se preocupar com Bhima. Desde o problema com Maya, tem pensado mais nela do que em sua própria família. E a maneira fria e distante com que a garota a tratou no dia do aborto ainda a incomodava. Queria passar uma noite despreocupada, mas Dinaz sem querer lançou Aban em seu assunto favorito.

Sera se vira para a filha com um olhar de aviso, mas já é tarde demais.

— Não disse que tinha nada de errado com a Bhima — interrompe Dinaz. — Ela apenas tem seus problemas como todos nós.

Aban olha fixamente para Dinaz por um segundo e depois explode numa gargalhada. Puxa a moça para si e cobre seu rosto com uma chuva de beijos.

— Ha, ha, ha, essa é demais — diz, com uma gargalhada. — Tal mãe, tal filha, é o que se diz. Ai, meu Deus, olhe para essa cara zangada! Está igualzinha à mãe. Meu Deus, sua preciosa Bhima, vocês tratam como se ela fosse o diamante Kohinoor, ou coisa assim.

Uma outra convidada que mora no prédio de Aban se intrometeu.

— Acho que Aban está certa. Não se pode tratar essa gente bem demais. É melhor manter uma certa distância. Se não, eles acabam se aproveitando de você, com toda a certeza.

— Arre, vocês viram a matéria no Times of India da semana passada? — pergunta outra pessoa. — O caso da senhora pare assassinada? Ela foi professora do Elphinston College durante quarenta anos. Coitada, morreu esfaqueada na cama pela própria empregada. Os vizinhos dizem que a mulher trabalhava para ela há muitos anos. Mas a professora guardava as jóias em casa. E é claro que a empregada sabia disso. São umas cobras essas mulheres. Acho que conseguem enxergar no escuro. A fulana matou a velha com 1 facadas e fugiu com as jóias. O jornal diz que foi o namorado que a encorajou a fazer isso.

— Mas, na verdade, os parses também são loucos, se quer saber a minha opinião — diz Pervez. — Sendo ela uma professora e tudo o mais, deveria saber que não se deve guardar jóias em casa. É para isso que existe o Central Bank. Ela deveria ter um cofre lá.

— Mas, janu, é isso que está errado conosco, os parses — retruca Aban. — Confiamos demais em todo mundo. E somos gente honesta também. E então, naturalmente, acreditamos que todos os outros jaats, todas as outras castas, vão ser honestos como nós.

Aban se vira para Meena Patel.

— Incluindo os gujaratis, é claro. Eles também são honestos. Mas esses maharashtrianos, não. Esses são trambiqueiros de primeira categoria.

A campainha toca e Pervez vai atender. Um segundo depois, volta com Viraf. Aban se levanta com um gritinho.

— Ah, meu Príncipe Encantado chegou. Como vai, meu querido? Trabalhando demais, a Dinu me disse. Bom, mas o que fazer? Um futuro papai tem que trabalhar bastante. E ainda por cima você está muito magro, meu querido — diz ela, beliscando o rosto do rapaz.

Viraf sorri.

— Oi, tia Aban. Você está ótima, como sempre. E, por falar nisso, engordei cinco quilos nos últimos meses. Só que está tudo indo para a minha dimchu — acrescenta ele, batendo na barriga.

Aban dá um largo sorriso, como sempre faz quando está na companhia de homens bonitos.

— Achcha, Viraf, você vai ser o juiz. Estávamos dizendo que não se pode confiar nesses empregados que não são parses, não importa o quanto você faça por eles. Então, o que você me diz? Sera e Dinaz estão fazendo com que Bhima comande as coisas, ou não?

Viraf olha em volta.

— Ora, tia Aban — diz ele. — Isso não são boas maneiras. Você ainda nem me apresentou ao futuro maridinho da Toxy. Onde ele está?

— Muito esperto... Muito inteligente, mudando de assunto.

Aban ri, bem-humorada.

— Grande diplomata, o nosso Viraf. Acho que vão mandá-lo para o Paquistão para negociar com o General Musharraf, que eu só de General Xerife, sobre a questão da Caxemira.

Seu rosto demonstra uma expressão de enfado.

— O Darius e sua família não vão poder estar aqui. A mãe dele acha que dá azar a noiva e o noivo se verem poucos dias antes do casamento. Sabe Deus de onde é que essas nossas mulheres parses tiram essas idéias.

Dinaz pega Viraf pela mão.

— Venha. Vou levá-lo até a Toxy — diz ela. — Pelo menos você vai poder cumprimentá-la.

“Me leve com você”, era o que Sera gostaria de dizer, ao ver a filha se afastando. “Não quero ficar aqui com essa gente ignorante.”

— Diga a Toxy para vir dar um oi aqui para os coroas — pede, e Dinaz acena em sinal de assentimento.

Aban parece estar prestes a retomar o assunto, mas sua empregada, Jaya, aparece na porta da cozinha.

— Bai — chama ela. — Venha aqui um instantinho. As costeletas estão prontas.

Aban resmunga ao se levantar.

— Ela não consegue ficar dez segundos sem mim.

Sera está conversando com Meena Patel sobre os feios edifícios que andam brotando por toda Bombaim quando Aban volta. Atrás dela, uma moça espevitada de vinte e poucos anos está com uma grande bandeja cheia de costeletas de carneiro.

— Ghalo, venha logo — diz Aban. — Vamos servir os convidados enquanto as costeletas estão quentinha!

Enquanto Aban vai distribuindo pequenos pratos de papel, Jaya a segue oferecendo as costeletas aos convidados.

— Deixe a bandeja em cima da mesa — ordena Aban quando ela termina.

E revira os olhos assim que a moça lhe dá as costas para pôr a bandeja na mesa.

— Vocês viram como ela anda, requebrando as cadeiras? — comenta Aban, depois que a empregada volta para a cozinha. — Nem queiram saber as bobagens que essa menina faz. Mesmo quando lhe digo para ir lá embaixo, na padaria, ela não sai de casa sem passar kaajal nos olhos. E quer uma roupa nova a cada Diwali. Eu a trato melhor do que a meus próprios filhos.

— Bem, Aban, ela ainda é uma criança — diz Sera. — O que você esperava?

Aban solta uma grande gargalhada.

— O que foi que eu disse? — exclama ela. — Ah, Sera, você é de-mais. Juro, acho que você é comunista ou alguma coisa assim.

— Falando em comunistas e outros malfeitores, escutem só isso — diz um outro convidado. — Aconteceu com uma senhora que mora no meu prédio, um mês atrás. Alguém tocou a campainha, e a pobre coitada abriu a porta. Três goondas, grandes e brutos, empurraram na para o lado e entraram no apartamento. E isso às três da tarde, imaginem só. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, eles lhe fizeram uma única pergunta: Onde está a “bolacha”? Então, a pobre mulher achou que eles estavam com fome e os levou até a cozinha. Lá, subiu num banquinho e pegou um pacote de bolachas. Mas, por alguma razão, isso fez os bandidos ficarem ainda mais irritados. Eles bateram nela algumas vezes (imaginem bater numa senhora de oitenta anos?) e amarraram-na numa cadeira. Depois, reviraram a casa toda, de cima a baixo, procurando alguma coisa. Como não encontraram nada, eles a espancaram mais duas ou três vezes e foram embora.

As perguntas se amontoam:

— O que aconteceu com a senhora? — indaga alguém.

— O que estavam procurando?

— E a pobre mulher sobreviveu?

— Esperem, esperem, vou acabar de contar — diz o homem.

— Bem, acontece que eles trocaram o número do prédio. Parece que um contrabandista enganou alguém numa questão de moedas grandes de ouro, sabe, moedas de ouro que, na gíria deles, são chamadas de “bolacha”. E então esse mafioso contratou aqueles goondas para irem à casa do contrabandista recuperar as tais moedas. E a pobre mulher se viu envolvida naquela situação. A única razão de ter sobrevivido foi que uma vizinha, que toda noite lhe trazia o jantar, bateu na por-ta muitas vezes e finalmente acabou entrando na casa e encontrou a pobre mulher amarrada na cadeira. A velha se borrou de medo, literalmente, tinha até feito soo-soo nas calças...

— Esses miseráveis safados deviam ser enforcados por atos como esse — diz outro convidado.

— Eles têm deliberadamente os parses como alvo — acrescenta al-guém. — Sabem que somos minoria, então pegam no nosso pé.

— Bom, mas nesse caso não foi uma coisa deliberada — murmura

— Tudo bem, mas, de um modo geral, isso é uma verdade — diz outra mulher, com veemência. — Eles sabem que somos uma comunidade pacífica, e por isso nos têm como alvo. Queria ver se fizessem uma bobagem dessas com os muçulmanos! Eles não ousariam...

— Arre, yaar, devíamos fundar nossa própria organização, como um Shiv Sena.

Aban dá um risinho.

— E quem vai ser o nosso Bal Thackeray? — pergunta ela, referindose ao aguerrido líder da organização hindu de direita. — Esse é o nosso problema. Meu pai sempre dizia que o problema dos parses era que do mundo queria ser general, mas ninguém queria ser soldado.

Sera suspira. A vida inteira ouviu essa mesma conversa, só com algumas variações. Ao mesmo tempo se diverte e se aborrece com as pessoas à sua volta, ficando mesmo abismada com aquele chauvinismo todo, mas sentindo apreço por suas idéias elevadas e sonhos bombásti-cos. “Além do mais”, pensa, “eles são basicamente gente boa, sabemos disso. Meio malucos, com todos aqueles casamentos entre famílias e coisas assim, mas adoráveis em seu jeito de ser.”

Um dos convidados mais jovens, que Sera sabe que é casado com uma moça católica, intervem:

— É, mas o que vem ao caso, afinal? Dizem que existem menos de cem mil de nós. E todos estaremos extintos em algumas gerações. E pronto!

Há um silêncio repentino e incômodo na sala. A mensagem não dita e que paira no ar é: “Rapazes como você que se casam fora da comunidade apressam o dia da extinção dos parses.” Sera se mexe no sofá, sentindo o enorme desconforto do rapaz. Para quebrar aquela pausa incômoda, ela fala com uma alegria que não lhe é própria:

— Bem, mas, enquanto estamos aqui, isso é mais uma razão para vivermos a vida plenamente, não é mesmo?

— Bem falado — diz Pervez erguendo o copo. — Muito bem falado, Sera.

Viraf está de volta à sala.

— Um brinde à extinção — diz ele. — Mas, antes disso, um brinde ao casamento longo e feliz de Toxy e Darius, e que Aban e Pervez sejam logo avós.

Ele ergue seu copo ainda mais alto, balançando-se ligeiramente num pé e no outro.

— Na verdade, esse é um brinde a muitos e muitos bebês parses, esforço para o qual minha esposa e eu logo estaremos dando nossa pequena contribuição.

Um homem alto e de barba, que estava perto de Viraf, lhe dá uns tapinhas efusivos nas costas.

— Meus parabéns — diz. — É exatamente disso que a nossa comunidade parse precisa, homens jovens e saudáveis como você.

Viraf sorri.

— E de mulheres como a minha esposa — acrescenta ele, delicada-mente. — Não vamos esquecer as mulheres.

— Mas é claro, claro — diz o homem alto virando-se apressadamente para Dinaz. — Não tive qualquer intenção de ofendê-la, minha cara.

Dinaz lança um olhar penetrante para Viraf.

— Não ligue para o meu marido — diz-lhe a moça. — Ele só está querendo ser engraçado, como sempre.

No outro lado da sala, Aban aperta a mão de Sera.

— Eles são tão bonitinhos, a Dinu e o Viraf — diz com um suspiro.

Você poderia imaginar, Sera? Quero dizer, quando começamos a trabalhar na Bombay House, quem poderia imaginar que um dia teríamos tudo isso?

Sera sente uma onda de afeto por Aban. Ela e Pervez tiveram uma vida difícil, sabe bem disso. Não deve ter sido fácil criar três crianças com o que ganhavam. Além do mais, Sera se lembra de que Pervez vinha de uma família pobre e também ajudava a sustentar seus pais enquanto eles eram vivos. Depois, houve a mastectomia de Aban alguns anos atrás. Mas, apesar de um padrão de vida modesto, Aban e Pervez tinham conseguido construir uma vida juntos. Seu apartamento é antigo e malcuidado, mas os três filhos terminaram a faculdade e agora têm bons empregos. De repente, Sera percebe que teria trocado de bom grado sua vida pela de Aban. Teria trocado o prestígio e o dinheiro que vinham do fato de ser mulher de Feroz para ter a dedicação e o amor que Pervez sentia por Aban. Teria preferido se esfalfar num emprego, andar em trens lotados todos os dias e voltar para casa exausta e suada ao fim de um dia de trabalho a viver no esplêndido isolamento que Feroz lhe impôs.

Até onde Sera sabia, não existiam segredos na vida de Aban. Olhando para sua velha amiga agora, vê uma pureza infantil e um brilho nos olhos que ela sabe que se deve ao fato de a amiga não ter vivido metade de sua vida nas sombras. Aban reclamou algumas vezes com Sera sobre a injustiça de ter que sustentar os pais idosos de Pervez. Mas, ao mesmo tempo, contava como estava feliz com seus sogros, como eles a tratavam bem e tomavam conta das crianças quando ela estava no trabalho. Naquelas ocasiões, Sera se continha para evitar revelar como Banu tinha sido má e perversa. Ou então elogiava entusiasticamente o sogro e esperava que Aban não notasse seu silêncio com relação à sogra.

Sera toma a mão da amiga entre as suas e diz:

— Você tem razão, Aban. Éramos tão jovens naquela época! Como podíamos imaginar tudo isso? Quero dizer, a Toxy se casando... Meu Deus, como me lembro do dia em que ela nasceu...

Aban abaixa a voz.

— Você sempre fez parte da minha vida, nos momentos tristes ou alegres... Não pense que vou me esquecer de tudo que fez por minha família. Não sei o que teria feito sem você.

Sera fica meio abalada. Elas eram amigas há décadas, mas nunca tinha se sentido tão próxima de Aban. Ainda assim, aquelas palavras a deixam tremendamente emocionada.

— Eu digo o mesmo a você — afirma Sera, esperando que Aban não perceba a falta de sinceridade em sua voz. — Sinto a mesma coisa, minha querida.

Jaya se aproxima de Aban e avisa:

— Bai, o jantar está pronto.

Aban se levanta e diz:

— Atenção, atenção todos!

Quando a conversa no salão diminui, ela emite aquele famoso grito que anuncia o jantar nos casamentos parses.

—Jamva chaloji — diz com um sorriso. — Venham, vamos comer. É estilo jantar americano. A comida os espera lá na cozinha.

 

— FOI UMA NOITE DIVERTIDA — diz Viraf, na volta para casa.

Suas mãos estão firmes no volante, e ele dirige velozmente pelas ruas estranhamente desertas a essa hora da noite.

— Uma noite repleta de chauvinismo parse, das bobagens de sempre ditas por cavalheiros parses bêbados e, é claro, não nos esqueçamos, da comida gordurosa e agressivamente não-vegetariana, excelente para a nossa dieta.

— Fico imaginando que convidado vai cair duro de um ataque do coração hoje — acrescenta Dinaz.

— Que é isso, minha querida? Isso não vai acontecer antes da comemoração do casamento, quando eles servem aquele jantar de cinco pratos repletos de colesterol — retruca Viraf prontamente.

Dinaz e Sera riem.

— Crianças, crianças — protesta Sera, sem muita convicção.

— Não sejam tão maledicentes. A Aban é a amiga mais antiga que tenho.

— Isso não tem nada a ver com a tia Aban — diz Viraf. — Ela é uma gracinha, um amor, uma jóia. Na verdade, estamos planejando fugir para a Suíça amanhã de manhã bem cedinho. Ela vai me esperar na V.T. Station. Vamos pegar um trem para a Suíça.

Dinaz dá um tapinha na coxa de Viraf e diz:

— Chega dessas piadas koila, yaar. Fique sabendo que o seu senso de humor vai de mal a pior.

Mas Viraf não consegue se refrear e prossegue:

— Ela prometeu que ia me dar uma aula completa sobre a superioridade da cultura parse durante a viagem. Vocês sabiam que foram os parses que inventaram a honestidade?

Olhando para Dinaz, que está fazendo um grande esforço para não rir, ele diz:

— É verdade, pergunte a qualquer pessoa. No dia 16 de julho do século IV antes de Cristo, os parses ou, deveria dizer, os zoroastrianos, inventaram a honestidade. No dia seguinte, inventaram a bondade e a caridade.

Sera resmunga.

— Chega, Viraf, chega...

— Esperem, ainda não acabei. Tia Aban quer discutir comigo a possibilidade de iniciar um movimento para conduzir os parses de volta à terra ancestral no Irã. O grande império persa vai se erguer novamente. Se os judeus podem disputar Israel, por que não podemos fazer o mesmo com o Irã? E, então, quem sabe? Talvez possamos desistir da Suíça e ir direto para o Irã. Hoje, Bombaim. Amanhã, o Irã. Repitam comigo: Amanhã, o Irã!

Dinaz se volta para trás a fim de olhar para Sera.

— Juro que, se esse gadhera, esse imbecil, voltar a beber na minha frente, vou acabar com ele. Só espero que o nosso filho não herde o ridículo senso de humor do pai.

Viraf sorri satisfeito.

— Pode debochar o quanto quiser, meu amor. Vou lhe mandar um postal lá do Irã.

Sera fecha os olhos. Foi um longo dia, está exausta e se surpreende ao perceber o quanto se sente esgotada. “Ou estou ficando resfriada ou não estou mais acostumada a essas festanças”, pensa ela. Dinaz lhe disse muitas vezes que estava se enclausurando desde a morte de Feroz, mas, na verdade, até essa noite, Sera não tinha pensado muito sobre o assunto. Sabe que esta é uma das razões de Dinaz ter insistido para que ela e Viraf se mudassem para sua casa. Durante os seis meses depois da morte de Feroz e que antecederam a mudança dos dois para sua casa, Sera encontrava poucos motivos para sair, a não ser para ir ver como andava Banu. Por fim, Dinaz e Viraf vieram uma noite a sua casa e fizeram a seguinte proposta:

— O nosso apartamento é muito longe do trabalho, mamãe — disse Dinaz. — O transporte na hora do rush está ficando insuportável a cada dia. E você parece tão solitária neste apartamento enorme, desde que papai se foi... Então pensamos que... O que você acharia se viéssemos morar com você?

Sera controlou cuidadosamente o seu primeiro impulso, que foi uma imensa alegria. Ter Viraf e Dinaz morando aqui neste apartamento! Ter sua presença jovial para enxotar os fantasmas do passado! Não ter que passar os dias inconscientemente à espera dos passos de Feroz e depois sentindo aquela estranha mistura de culpa e alívio ao se dar conta de que ele não ia voltar para casa. Seria ótimo ter o que esperar no final do dia, preparar as comidinhas favoritas do jovem casal e observar com satisfação os dois comendo com ela na sala de jantar.

Mas a recordação daqueles dias terríveis na casa de Banu Dubash impediram-na de exultar de alegria com aquela proposta.

— Não é fácil conviver com outras pessoas — disse ela. — Vocês sabem que sua avó fez da minha vida um verdadeiro inferno quando fui morar com ela. Eu me odiaria se me pegasse alguma vez agindo como ela. Vocês são jovens e estão casados há pouco. Precisam de tempo para construir o casamento de vocês. Se alguma coisa der errado entre nós, nunca iria me perdoar.

— Mamma Sera, deixe disso — disse Viraf, rindo. — Por favor, você não é nem um pouquinho parecida com vó Banu. Mesmo vendo-a agora, posso imaginar que tipo de tirana ela deve ter sido. E, de todo modo, Dinaz se preocupa muito com você. Além do mais, estaria nos fazendo um favor, já que o transporte para o trabalho está sendo demais para nós dois... De verdade! Ainda assim, é a sua casa, então você...

— Aqui não é a minha casa — atalhou ela. — Tudo o que é meu pertence a vocês dois, você sabe disso, Viraf. Não é como se eu tivesse mais seis filhos. Essa casa é sua, Viraf, nunca sinta que...

— Bom, nesse caso, então está resolvido — disse Dinaz. — Vamos nos mudar de volta para a nossa própria casa.

— Pense no que eu disse — argumentou Sera. Ela suspirou.

— É claro que seria ótimo ter vocês dois morando aqui comigo. Mesmo assim, não é uma decisão fácil. Pense um pouquinho no assunto, deekra.

Afundando-se no banco de trás, Sera olha sonolenta para Dinaz e Viraf, no banco da frente. “Obrigada, meu Deus”, murmura ela. “A alegria que esses dois têm me dado é a minha recompensa por ter ficado com Feroz durante todos esses anos.”

O carro entra na rua de Banu Dubash e, como sempre, Viraf diminui a velocidade.

— A luz está acesa no apartamento — diz ele. — A enfermeira da noite ainda está acordada.

— Vovó deve estar dando um de seus ataques — diz Dinaz. — Coitada da enfermeira... não sei como alguém pode agüentar a velha.

“Disse-o bem”, pensa Sera. “Eu, com certeza, não agüentaria.”

 

AOS QUATRO ANOS DE CASADA, Sera acordou um dia de manhã sentindo uma coisa viscosa e quente no fundo da garganta. Por um mo-mento, pensou que fosse o início de mais uma infecção, mas, após en-golir a saliva com muito cuidado, não sentiu a garganta doer.

Aquilo era ódio, um ódio que mais parecia um osso atravessado na garganta. Um ódio que a fazia se sentir enjoada e dava à sua boca um gosto seco e amargo. Um ódio que invadia o seu coração como uma febre e fazia seus lábios se curvarem para baixo como uma colher torta.

Era um lindo dia de dezembro. Um pombo pousou no parapeito da janela de Sera arrulhando sua melodia despreocupada. Havia uma friagem no ar, um descanso bem-vindo do sol quente de Bombaim. Mas, deitada ali, Sera não podia participar da beleza do dia. Estava triste e desanimada, como se o ódio corroesse o seu corpo. Ficou na cama, exausta. Não conseguia se lembrar de nenhuma outra época de sua vida em que tivesse odiado alguém. Mas agora o ódio pingava na sua garganta, espesso e horrível, fazendo-a se sentir doente.

Afastou o lençol de algodão do corpo e pulou da cama. Pegando a roupa num gesto rápido, foi até o berço onde Dinaz dormia e balançou o corpinho da menina até que os olhos da filha finalmente se abriram e sua boquinha se abriu num bocejo.

— Ande, acorde, Dinu — disse Sera baixinho. — Você e eu vamos embarcar numa aventura hoje.

Foi ao banheiro, abriu a torneira de água quente e colocou o balde de plástico debaixo da água corrente, antes de levar rapidamente consigo a criança para o banheiro.

— Vamos tomar banho juntas hoje — disse.

As duas estavam completamente vestidas quando saíram do quarto. Deixando Dinaz na sala, Sera foi à cozinha para falar com a sogra.

— Hoje vou passar o dia inteiro fora com Dinaz — disse, evitando o olhar penetrante de Banu. — Voltaremos mais tarde.

— Vão sair de casa a essa hora da manhã? E a menina vai sair sem comer? E o almoço que estamos preparando? Você não pode ficar desperdiçando assim o dinheiro suado do meu Feroz...

Sera sentiu aquela coisa espessa no fundo da garganta. Receava encarar Banu, com medo de que sua expressão refletisse o ódio que sentia pela sogra.

— Pode deixar que eu mesma explico tudo ao Feroz — disse. — Agora tenho que ir. Estarei de volta à noite. Até logo mais!

Ignorando decididamente os resmungos venenosos de Banu e ar-mando-se de coragem contra a avalanche de palavras ríspidas que questionavam os motivos da sua saída, sua educação e também sua moral, Sera agarrou o braço fino de Dinaz como se fosse uma asa de galinha e a puxou em direção à porta da frente. Suspirou alto, assim que a porta se fechou às suas costas. Mesmo assim, manteve o passo rápido enquanto iam pelo corredor até o elevador. No último momento, mudou de direção. Em vez de esperar pelo elevador, desceriam pelas escadas. Forçou-se a não olhar para trás, temendo estarem sendo seguidas por Banu.

“Ela é apenas uma velha ridícula”, repetia para si mesma, mas a sensação que tinha no estômago era igual à que sentia quando estava assistindo a um filme de terror na sala escura de um cinema.

Quando chegou à rua, Sera percebeu que eram apenas nove e meia da manhã e que não tinha a menor idéia de onde ir. Pensou rapidamente em dar uma passadinha no escritório para visitar Feroz, mas ficou chocada ao perceber o peso que sentiu quando teve essa idéia. Pensou em passar na casa de Aban, mas sentiu claustrofobia só de pensar nas conversas intermináveis da amiga. E também, com certeza, Aban iria perceber alguma coisa em seu rosto, e certamente iria se intrometer para saber o que estava acontecendo.

Não, Sera ia levar Dinaz para visitar seus pais. Eles iam ficar contentes em vê-las e não ficariam fazendo perguntas. Sentiu de repente uma imensa saudade do santuário limpo e fresco que era o seu antigo quarto. E, além disso, já fazia várias semanas que não os visitava, e sabia que eles ficavam sentidos com sua ausência, embora fossem sempre muito discretos e jamais mencionassem o fato. Isso, ia visitar seus pais. Depois de tomar essa decisão, mudou abruptamente de direção e foi até o ponto de táxi, puxando Dinaz pela mão.

— Devagar, mamãe — disse a menina e, com uma sensação de culpa, Sera diminuiu o passo.

Sentiu seu coração se aquietar assim que entrou no táxi e informou o endereço ao motorista. Olhava as ruas que passavam voando pela janela do carro e se perguntava por que não tinha feito isso antes. Estava subitamente tão ansiosa para chegar à casa de seus pais que quase insistiu para que o motorista atravessasse um cruzamento com o sinal amarelo. Seu corpo todo se inclinava para a frente, impulsionado por um desejo intenso de velocidade. Queria continuar se movimentando, continuar correndo, pondo a maior distância possível entre ela e o apartamento escuro e triste de Banu que lhe sugava a vida. Mas o táxi parou no sinal. Quase que imediatamente, um enxame de pedintes apareceu na janela do carro. Sera desviou o olhar com receio de que, se a vissem olhando, eles não fossem embora.

Dinaz puxou sua blusa e disse:

— Manhê, dinheiro.

Sera soltou um suspiro. Dinaz era uma criança tão sensível... Já sabia que não adiantava ficar pedindo ao pai que desse esmolas aos mendigos. Feroz dizia sempre que não acreditava em estimular a mendicância e a proibia de dar qualquer moeda a um pedinte quando saíam juntos.

— Saala, seus vagabundos preguiçosos — insultava ele. — Também gostaria de fazer o que vocês fazem, vagabundear o dia inteiro e ganhar dinheiro fácil.

Procurando as moedas dentro da bolsa, Sera de repente riu, lembrando o último aniversário de Feroz. Dinaz ficou observando enquanto seus avós fizeram Feroz ficar de frente para o leste e puseram uma tilla vermelha na sua cabeça e uma guirlanda de flores em seu pescoço. Depois, Banu foi até a mesa de centro e voltou trazendo um envelope com dinheiro.

— Feliz aniversário, meu menino querido — disse ela, abraçando-o.

Subitamente, Dinaz, que estava estendida no sofá, se levantou e berrou:

— Saala, seu vagabundo preguiçoso. Ganhando dinheiro fácil!

Sua imitação da entonação do pai era tão perfeita que, por um segundo, Sera achou que as palavras tinham vindo do onipresente Polly.

As bochechas de Feroz se inflaram, e ele parecia prestes a repreender Dinaz por aquele palavreado. Sera começou a emitir um som muito estranho e levou quase um minuto até todos perceberem que ela estava quase engasgando de tanto rir. Os lábios de Feroz tremiam, e ele parecia não saber se ralhava com a filha ou se também caía na gargalhada. Sera o ajudou a se decidir. Com lágrimas rolando pelo rosto, foi até Dinaz e a abraçou.

— Que menina levada! — disse, puxando a filha para perto de si. — Você não devia falar desse jeito, entendeu?

A essa altura, todos estavam rindo.

— Essa menina vai seguir os passos do avô e se tornar uma advogada, vocês vão ver — disse Freddy. — Essa daí vai botar o Supremo Tribunal de joelhos.

O sorriso permaneceu no rosto de Sera depois de o táxi dar a partida. Olhou para Dinaz e seu coração pulou de tanto amor. “Ela é a única luz da minha vida agora”, pensou. “Dinaz e, até certo ponto, pappa Freddy. Já Feroz e sua mãe arruinaram a minha vida.”

Às seis da tarde, Jehroo, a mãe de Sera, deu uma olhada para o marido e depois se virou para a filha.

— Meu amor, temos um jantar hoje à noite. Devemos cancelá-lo? Ou você já vai voltar para casa?

Sera estava quase dizendo que fizessem o que tinham planejado, quando percebeu que não ia sair dali. Não ia voltar para a casa de Feroz. Perceber isso lhe tirou a respiração, como se só agora estivesse entendendo uma coisa da qual seu corpo já sabia. Olhou fixamente para a mãe, imaginando como poderia pôr aquilo em palavras que revelassem apenas o suficiente, palavras que omitissem toda a extensão do pavor que sentia de ter que retornar à casa de Banu.

— Estava pensando... — principiou ela. — Quer dizer, pensei em ficar aqui hoje à noite, eu e Dinaz. Quer dizer, você e papai podem ir ao tal jantar. Mas acho, mamãe, que vamos estar aqui quando vocês voltarem.

Jehangir Sethna olhou como se fosse dizer alguma coisa, mas sua mulher o conteve com o olhar.

— Claro, Sera — disse Jehroo amavelmente. — Você sabe que esta casa é sua, meu amor. Será sempre bem-vinda aqui. Mas tem certeza de que o Feroz não vai se incomodar de dividir a sua linda esposa conosco?

De novo, aquele pingo quente na garganta. Sera engoliu com dificuldade antes de responder.

— Acho que ele vai ficar bem, mamãe. Mas você e papai têm que se preparar para o jantar.

— Ora, se a minha querida filha e a minha querida neta vão ficar aqui em casa, não quero ir a esse jantar — disse Jehangir prontamente.

— Tenho certeza de que os Pundole vão entender.

— Não, nada disso, papai, não mude sua programação, por favor.

E, vendo aquele olhar teimoso conhecido aparecer no rosto do pai, Sera acrescentou:

— Na verdade, eu... preciso de um pouco de privacidade para... pensar um pouco nas coisas.

Jehroo deu uma cutucada no marido e piscou para ele várias vezes, evitando que a filha percebesse.

—Vamos, Jehangu. Vamos ao nosso jantar. Podemos voltar para casa um pouco mais cedo, se quiser. Depois, você pode ficar acordado e conversar com sua filha até cansar.

Quando eles saíram, Sera telefonou para a casa dos Dubash. “Ai, Feroz, por favor, atenda o telefone”, implorava ela. “Por favor, por favor.”

— Alô? — A voz ríspida de Feroz soou tão forte e nítida ao telefone que, por um segundo, Sera esqueceu o discurso que tinha preparado.

— Feroz? Sou eu. Escute, estou ligando para dizer...

— Onde diabos você está? O jantar já está pronto há uma hora, esperando você voltar para casa.

— Estou na casa dos meus pais. Feroz, escute. Acho que vou ficar aqui por alguns dias.

Ouviu então o ruído da respiração do marido, mas ele ficou calado. “Diga alguma coisa”, implorava ela silenciosamente. “Diga alguma coisa e tire esse gosto de naftalina da minha boca.”

O silêncio continuava.

— Alô — disse Sera finalmente.

— Estou ouvindo.

— Você não vai dizer nada?

Dessa vez pôde ouvi-lo ranger os dentes.

— O que há para dizer? Você sai de casa sem avisar de manhã cedo, não volta para casa à noite; enquanto isso, ficamos aqui sentados como chootias, esperando por você enquanto a comida esfria. E agora você diz que está na casa da sua mãe, sem mais nem menos. O que eu deveria fazer? Ir até aí de joelhos e implorar que volte para casa? Você escolheu o homem errado para isso, Sera.

Por um segundo quase conseguiu ver as coisas pelo ângulo dele. Imaginou Feroz voltando para casa do trabalho, cansado, e perguntando por ela e Dinaz. Imaginou a expressão de satisfação no rosto de Banu ao dizer-lhe que sua esposa tinha saído de manhã e que tinha levado a menina junto.

— Você... você quer dar boa-noite à Dinaz? — perguntou Sera cautelosamente.

— Por quanto tempo você vai manter a minha filha longe de mim? — retrucou ele. — E isso quer dizer então que seus pais a encorajaram a abandonar as suas obrigações?

— Feroz, não é bem assim. Não planejei nada disso. Só tenho comigo a roupa do corpo e um sadra. Não sei por quanto tempo vou precisar ficar aqui. É que no momento as coisas aí em casa estão muito tensas entre mim e sua mãe...

— Bobagem.

A palavra veio pelo telefone como um soco e deixou seus ouvidos zumbindo.

— Não culpe a minha mãe ou qualquer outra pessoa da minha família pela sua histeria. Você fez a cama, agora deite-se nela.

Ela olhou para o telefone sem acreditar, sem registrar o fato de que Feroz tinha desligado na sua cara. Ainda segurando o aparelho, sentou-se pesadamente no sofá. Será que a ligação tinha caído por causa do serviço deficiente da companhia telefônica de Bombaim? Mas, mesmo admitindo essa possibilidade, seu coração lhe dizia que Feroz bateu deliberadamente o telefone na sua cara. Ela se questionou se devia ligar de volta, mas sabia que o orgulho de Feroz não o deixaria atender. E se Banu atendesse sua humilhação seria completa.

Passaram-se duas semanas sem nenhuma comunicação com Feroz. No começo, Dinaz perguntava pelo pai e pelo avô, mas as perguntas logo cessaram e ela parecia ter se ajustado à nova vida que estavam levando. Mas aquilo era uma nova vida? Ou era apenas uma trégua temporária da vida de antes? Jehroo Sethna praticamente fez essa pergunta a sua filha um dia. As duas tinham ido fazer compras em GoIaba, deixando Dinaz em casa com o avô.

— Vamos comprar umas calcinhas para a menina? — propôs Jehroo, ao passarem por uma lojinha que vendia roupas de criança. Depois, parou e olhou para sua filha. — Ou não precisa? — acrescentou delicadamente. — E tão difícil saber o que fazer com as roupas dela e tudo o mais, sem saber... qual vai ser o futuro.

Sera entendeu imediatamente o que sua mãe estava perguntando. Desviou o olhar, incapaz de agüentar a delicada piedade que via nos olhos dela. Sem se dar conta, elas pararam de caminhar, e as outras pessoas lançavam-lhes olhares desagradáveis, ao desviarem-se delas. As duas mulheres como freguesas potenciais, os vendedores das barracas ergueram a voz e seus gritos anasalados atingiram proporções frenéticas, as vozes abafando umas às outras.

— Olá, senhoras, o que procuram? Cassetes, perfumes, sabonetes, Kraft enlatado recém-chegado da Austrália? Temos chocolates também: Nestlé, Toblerone. Por favor, pegue um dekho, esse é aasli maal, madame, coisa fina, genuína. Tudo mercadoria importada. Olhe, faço um precinho camarada para a senhora.

Perdidas na sua comunicação particular, Sera e Jehroo ignoravam os movimentos inquietos dos vendedores, desesperados com sua presença imóvel.

— Venha — disse Jehroo, puxando Sera pela mão. — Vamos ao restaurante iraniano tomar um refresco. Lá podemos conversar.

No restaurante, as duas pediram Thums Up e sanduíches de frango. Ficaram sentadas num silêncio amistoso durante um minuto.

Depois, Jehroo virou-se para Sera e disse:

— Fiquei duas semanas sem dizer uma palavra. Que duas semanas, nada, tenho ficado de boca fechada há dois anos! O quê? Você pensa que nunca percebi as chakars escuras em torno dos seus olhos, e que você não sorri mais? Sou sua mãe, deekra, carreguei você na barriga durante nove meses. Conheço cada pedaço da sua pele. Se um mosquito a morder, sinto a picada.

Sera sorriu e disse:

— Sinto a mesma coisa com relação a Dinaz.

— Exatamente. Os homens não enxergam o que está debaixo do nariz, mas nós, mulheres, vemos tudo. E então eu lhe pergunto, Sera, o que está acontecendo com o seu casamento? Durante todos esses meses não me meti em nada, dizia a mim mesma que agora você pertence ao seu marido, não mais a nós. Mas não consigo mais ver a minha única filha com essa cara tão triste. Então, eu lhe pergunto: Por que está na nossa casa? E por que Feroz não telefonou nem uma vez e nem veio aqui para levá-las de volta?

Ele bate em mim, queria dizer. E sua mãe faz da minha vida um in-ferno. As palavras se formaram em seus lábios como espuma na beira da praia e depois se desfizeram. Não podia sobrecarregar a mãe com isso. Não queria transferir as olheiras do seu rosto para o de sua mãe. Não tinha nenhum desejo de aliviar seu coração, jogando seu sofrimento nas costas dela. Além do mais, nem sequer poderia imaginar o que seu pai seria capaz de fazer se soubesse o que Feroz faz com ela a portas fechadas, no escuro. E como às vezes a coisa parecia uma espécie de aperitivo, um beliscão rápido, mas forte, o polegar e o indicador como uma tesoura puxando a carne que ficava doendo dias depois. E parecia, em outras ocasiões, uma refeição completa, um banquete que incluía socos, tapas e, por vezes, chutes — uma refeição que a deixava tão empanturrada que tinha que passar horas no dia seguinte decidindo que vestido de manga comprida usar e como explicar os machucados no rosto. O olhar especulativo e triunfante que via no rosto de Banu no dia seguinte era pior do que as pancadas. De algum modo, aqueles espancamentos uniam Sera a Banu, permitindo que a velha tivesse acesso às vias esburacadas e cheias de lixo do coração da nora.

Não... era impossível prever o que seus pais fariam se algum dia soubessem disso. Violência, crueldade... essas coisas não faziam parte de sua vivência. E já estavam velhos demais para socorrê-la, para enfrentar aquela batalha por ela. Além do mais, sua mãe já tinha tentado alertá-la sobre Banu. Até se ofereceu para investigar, para tentar averiguar os boatos. E Sera dispensou aquela oferta de um modo displicente e arrogante. Como era idealista e confiante aquela mulher que saiu da casa de seus pais! O que restou dela agora? Um tremor na mão direita que às vezes não conseguia controlar, olheiras escuras em torno dos olhos e um coração que se partiu como um prato estilhaçado no chão.

— Mamãe, é óbvio que Feroz e eu estamos passando por dificuldades — disse com muito cuidado. — Sei que estou incomodando você e papai pelo fato de ficar aqui com Dinaz. Mas se pudermos ficar só mais um pouquinho, vou...

— Assim você me deixa zangada — disse Jehroo. — Meu amor, não fique brincando com as minhas palavras como se elas fossem bolinhas de gude. Você sabe o quanto eu e seu pai gostamos de tê-las conosco. Mas o problema não é esse: seu lugar não é aqui conosco, é com o seu marido e seus sogros. Diga: o que a está incomodando?

— Ela se mete demais na nossa vida — respondeu Sera, dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça. — Ela já é uma mulher idosa e é cheia de manias.

Sera percebeu que estava fazendo Banu parecer apenas uma velha excêntrica, em vez do monstro maligno que era na verdade.

— Esse sistema de juntar as famílias é uma espécie de maldição na Índia, sabe? — diz Jehroo. — Muitas mulheres já se sacrificaram por essa causa.

Ela olhou para o lado de fora do restaurante, onde um rapaz branco de calça larga e florida e camisa estampada conversava com uma moça de saia de algodão que carregava uma mochila.

— Sabe, nós, indianos, falamos desses ocidentais. Dizemos que eles põem os filhos para fora quando fazem 18 anos, que mandam os idosos para os asilos, que não amam a família como nós. Mas às vezes me pergunto se somos realmente tão superiores como pensamos ser. Para que morar todo mundo junto se tudo o que acontece são problemas dentro de casa? Melhor ficar separado do que brigar o tempo todo. Você conhece os nossos vizinhos Freny e Jamshed? Bom, a mãe de Jamshed está morando na casa deles. Outro dia fui visitar a velha, e o que encontrei? A coitada está cheia de escaras. Freny disse que não tinha força suficiente para virá-la na cama com a freqüência necessária. Jamshed fica no trabalho o dia todo e então tudo cai nas costas da Freny. Durante o tempo em que passei lá, tudo o que Freny fez foi reclamar da velha, que ela não coopera para se virar na cama, nem quando tem que levantá-la para botar a comadre. Todo mundo pode ver que a pobre coitada é só pele e osso. Ela mal consegue levantar as sobrancelhas, imagina a bunda. Mas Freny está convencida de que a sogra faz isso de propósito, para implicar com ela. E o que dizer da própria Freny? Ela parece ter envelhecido cinqüenta anos em dois meses. Diz que mal pode sair de casa por mais de uma hora e que sente o cheiro de álcool canforado e de urina o tempo todo, mesmo dormindo. A sua vida inteira ficou tomada por esse problema.

Jehroo ergueu os olhos para Sera.

— Beta, tenho certeza de que ela está rezando dia e noite pela morte da velha, e no entanto criticamos os estrangeiros por mandarem os idosos para os asilos. Quando chegar a minha hora, rezo para não ser um peso para ninguém.

Ela sorriu.

— É só botar uns comprimidos no mingau ou no pudim e, um, dois, três, o problema está resolvido.

Sera estendeu o braço e acariciou a mão da mãe, derramando um pouco da água de um dos copos que o garçom tinha trazido, assim que se sentaram.

— Mamãe, não diga isso. Se alguma coisa acontecesse com você, nem sei o que eu faria.

A voz de Jehroo era meiga e carinhosa.

— Seu pai e eu não vamos ficar aqui para sempre, querida. Estamos ficando velhos. É por isso que digo que o seu lugar é ao lado do seu marido. Em todos os casamentos há sempre alguma tensão. É uma pena que você tenha que morar com os seus sogros. Mas foi uma escolha sua. Tente tolerar a velha da melhor maneira que puder. E, com o seu bom temperamento, você poderia conquistá-la.

Sera sorriu para a mãe, mas seu coração estava frio. Ela se sentiu distante dessa mulher elegante com olhos grandes e cheios de bondade. Sua mãe podia ter vivido muito mais do que ela, mas naquele momento Sera se sentia mais velha, mais cética e mais experiente. Jehroo Sethna foi abençoada com pais carinhosos e ricos que cuidaram muito bem dela, com um marido culto e gentil que era louco por ela e com uma filha que a amava e respeitava. Nunca tinha sentido o impacto da mão de um homem golpeando sua pele macia. Nunca teve a sensação claustrofóbica de ficar trancada num quarto na sua própria casa. Nunca ouviu seu marido dizer com desprezo que ela estava ficando velha, gorda e feia ou acusá-la de flertar com todos os homens quando eles saíam juntos. Nunca soube o que era ter aqueles olhos rápidos como ratos seguindo cada movimento que fazia na casa onde morava. Sera percebeu que Jehroo Sethna nunca sofreu e, pela primeira vez na vida, se sentia distante da mãe, incapaz de se conectar com ela num nível que não fosse o do amor óbvio que tinham uma pela outra.

— Sabe de uma coisa, mamãe? — disse ela. — Vamos comprar aquelas calcinhas para a Dinaz. Assim, se eu decidir ficar com vocês ainda por mais algumas semanas, não vamos ter que vir fazer compras de novo.

 

UMA TARDE, TRÊS SEMANAS DEPOIS, alguém bateu na porta. Sera a abriu e viu Freddy Dubash encostado na parede. Estava com seu chapéucoco marrom, e a corrente de ouro do relógio balançava, pendurada em seu bolso.

— Pappa Freddy! — exclamou Sera, toda feliz. — O que o senhor está fazendo aqui?

Seu rosto se anuviou.

— Está tudo... o Feroz está bem?

— Está tudo bem — disse ele.

Fingiu que estava bravo.

— Arre, wah! Puxa vida! Será que preciso de motivo para visitar minha nora e a minha neta?

O rosto de Sera ficou vermelho.

— Mas é claro que não. Por favor, entre. Papai, olha só quem está aqui!

Os dois homens se abraçaram.

— Kem, Freddy, como vai? — disse Jehangir, imperturbável como Freddy viesse visitá-los todos os dias. — Por favor, sente-se.

— Está tudo bem, obrigado — respondeu Freddy, sentando-se numa cadeira. — Li no jornal que o Franz Gutman vai reger neste sábado. Tenho uma de suas primeiras gravações da Sinfonia nº 94 de Haydn. Você vai ao concerto?

— Mas é claro, não perderia essa oportunidade por nada desse mundo. E agora que a minha querida Sera está aqui para me acompanhar...

Olhou de relance para Sera e depois se calou quando se deu conta das circunstâncias da presença da filha ali. Um silêncio incômodo se abateu sobre eles. Jehangir olhou ao seu redor procurando ajuda.

— Vou acordar Jehroo — disse ele. — Ela está tirando uma soneca com a Dinu.

— Não, não faça isso — exclamou Freddy. — O que quero dizer é que na verdade gostaria de conversar com Sera em particular por alguns minutos, se não se importa.

Jehangir olhou para a filha, esperando uma deixa. Quando ela balançou imperceptivelmente a cabeça, ele se levantou, dando um suspiro.

— Até daqui a pouco — disse, meio vagamente.

Sozinha com Freddy, Sera sentiu uma timidez avassaladora se apossar dela: era difícil até erguer os olhos para fitá-lo. Quando finalmente se forçou a isso, notou que Freddy a olhava fixamente. Havia um ar sério em seu rosto, um olhar de objetividade que ela nunca tinha visto antes.

— Você saiu assim sem mais nem menos — disse ele.

Ela sentiu o tom de mágoa na voz do sogro e imaginou o que deveria ter sido para ele descobrir que ela não ia voltar, perceber que a sua única companhia musical o tinha abandonado.

— Nem mesmo um “tchau”, nem mesmo um “Pappa Freddy, tudo de bom para o senhor, vou sentir saudades”. Bas, assim de repente, você sai levando embora toda a alegria da minha casa.

A voz dele tinha baixado de tom, e o queixo estava caído no peito. Ela teve que se esforçar para conseguir ouvi-lo. Era como se ele estivesse falando sozinho.

— E como vai mamma Banu? — perguntou Sera, percebendo naquele exato momento que realmente queria saber sobre a sogra.

A cabeça dele se ergueu num movimento rápido.

— Banu? Gostaria de poder dizer que a minha querida esposa virou um cordeirinho manso e gentil. Mas a triste verdade é que continua má e jabri como sempre. Está deixando a pobre da Gulab quase louca com os “faça-isso” e os “faça-aquilo” dela.

— O Feroz... sabe que o senhor veio aqui?

Freddy olhou para Sera. Seus olhos úmidos investigavam o rosto dela.

— Escute, deekra — disse ele num tom serio. — Vim aqui numa missão muito importante. Quero que você preste muita atenção ao que vou dizer.

De repente, ele pareceu se exaltar e falou como se estivesse se diri-gindo à sala inteira.

— Os senhores, por favor, olhem para esta moça com essa cara preocupada! Vim até aqui só para falar com ela e tudo o que quer saber é se o maridinho sabe que estou aqui.

Ele suspirou dramaticamente.

— Sim, minha querida, Feroz sabe que estou aqui. E o que é mais importante: sabe por que estou aqui. Agora, você vai prestar atenção ao que tenho a dizer?

Sera fez que sim com a cabeça.

— Ótimo, há dois dias encontrei um dos meus antigos clientes. Di-van Shah. Ele agora é um homem muito rico, mas há alguns anos teve uns problemas jurídicos e... digamos que o ajudei bastante. De qualquer modo, isso não interessa a você. O que importa é que ele é dono de uma construtora. Você se lembra do Moti Mahal, o grande bangalô que fica no final da nossa rua? Bem, acontece que a velha senhora que morou lá durante cinqüenta anos vendeu o imóvel e o terreno para a firma do Divan. Vão botar a casa abaixo e construir um edifício de sete andares lá.

Sera percebeu que sua atenção estava flutuando. Queria ir acordar Dinaz para que ela pudesse passar um tempinho com o vovô Freddy. “Como Dinaz reagiria à sua presença?”, ficou imaginando.

— Querida, você está me ouvindo? O que estou tentando dizer é que falei com Divan sobre comprar um apartamento nesse prédio. E ele está disposto a me vender por um bom preço. Ontem à noite conversei com o Feroz. Falei com ele de um jeito como nunca tinha feito antes, se é que você sabe o que estou dizendo... de homem para homem. Disse que se ele perdesse você sua própria vida estaria destruída. Que ele ia acabar um dia como aqueles velhos parses patéticos, falando sozinhos pela rua e se babando quando comem. Pelo menos uma vez na vida meu filho cabeça-dura teve bom senso. E concordou.

Freddy parou, olhando para Sera com um ar de triunfo. Notando a expressão de expectativa no rosto do sogro, Sera percebeu que ele estava esperando que ela dissesse alguma coisa.

— Que bom — disse, num tom vago.

E como Freddy não reagiu, ela perguntou:

— Concordou com o quê?

Freddy deu um leve tapa no próprio joelho.

— Agora, parece que vamos chegar a algum lugar. Vou lhe dizer uma coisa, chok ri, estou começando a ficar preocupado. Você parece uma pessoa que toma cinco comprimidos de tranqüilizante todos os dias de manhã. Se não tomar cuidado, vão surgir teias de aranha no seu rosto.

Sera se recompôs e disse:

— Desculpe, pappa Freddy, mas não tenho a menor idéia do que o senhor está falando.

— E como poderia? Ainda não lhe contei.

Ele se inclinou para a frente e prosseguiu:

— O que estou lhe dizendo é que vou comprar um outro apartamento. Para você e Feroz... e Dinaz, é claro. Separados de mim e de Banu. Desse modo, Banu não vai poder fazer suas maldades habituais, e você e Feroz poderão ter alguma privacidade.

Ela olhou para ele, com medo de acreditar no que estava ouvindo.

— E... Feroz concordou com isso?

— Concordou. Beta, conheço o meu filho. Seu orgulho ridículo nunca vai permitir que ele lhe implore para voltar. Mas vou lhe dizer uma coisa: ele agora é outro homem. Volta para casa tarde e, quando está em casa, quase não come nada no jantar. Outro dia, estava saindo para trabalhar e tive que lembrá-lo de fazer a barba. Pode imaginar o nosso Feroz se esquecendo de uma coisa dessas? Sem você, ele está irreconhecível. Até Polly percebeu.

Sera lutou contra a súbita onda de esperança que brotou em seu coração.

— Mas, mesmo que Feroz concorde, mamma Banu nunca vai aceitar isso — disse, desanimada.

Freddy pareceu aborrecido.

— Arre, o que é isso? Vocês se esquecem, mas eu é que sou o homem da casa, o chefe da minha família. Disse a Banu ontem à noite que, a menos que queira ver nosso filho parecer mais velho que ela, esta é a única solução. Expliquei a situação e não lhe dei nem chance de discutir. Bas, disse-lhe que esse era o plano, e ela tinha que aceitá-lo, chup-chaap, tranqüilamente.

— E o que ela disse?

Freddy se exaltou:

— Mas não acabei de lhe dizer? Ela não tem que dar palpite. Estou comprando esse apartamento com o meu dinheiro, dinheiro que suei para ganhar. É um presente meu para o meu filho e para a minha querida nora, se ela concordar.

Sera percebeu então pela primeira vez o olhar suplicante, a falta de firmeza na voz, o ligeiro tremor nas mãos do sogro. “Pappa Freddy está ficando velho”, disse consigo mesma. “E mesmo assim veio até aqui, engolindo o próprio orgulho.”

— Beta — acrescentou ele, antes que ela pudesse responder. — Você é a jóia da coroa da nossa família. O seu lugar é ao lado do seu marido. Acredite em mim quando digo que Bombaim não é um bom lugar para uma mulher criar uma criança sozinha. Nos meus anos como advogado vi muitas coisas horríveis. É claro que você tem os seus pais, e que Deus lhes dê boa saúde. Mas, mesmo assim, esse não é o seu lugar. O seu lugar é junto com o Feroz. Agora me responda: você aceitaria um presente de um velho?

Sera se levantou do sofá e foi até onde ele estava sentado. Viu o to-po de sua cabeça redonda e careca que parecia muito com a de Feroz. Olhando para aquela cabeça, sentiu a dor da perda. Por um momento, sentiu uma saudade enorme de Feroz, saudade dos contornos rígidos de seu corpo dormindo a seu lado, saudade das mãos dele pegando em seus seios quando a abraçava por trás, saudade daquele ar de autoconfiança, daquela sensação de proteção e segurança que sentia quando saíam juntos pela cidade. Além do mais, Dinaz precisava, não, merecia o que só seu pai podia lhe dar.

— Pappa Freddy — exclamou. — Espero não estar cometendo ne-nhum erro, mas aceito de muito bom grado a sua gentil oferta. Aceito, sim.

 

A MARESIA TEM UM CHEIRO BOM, e o mar faz cócegas nos pés de Bhima e de Maya, que caminham na beira da água, ziguezagueando de vez em quando para evitar as pessoas que vêm em sua direção. Um vento leve brinca com o cabelo preso de Bhima, fazendo com que alguns fios fiquem em pé no alto da cabeça.

Enquanto caminham, Bhima sente que está descarregando um peso na água acolhedora, e seu corpo fica mais leve, mais maleável, perdendo um pouco daquela rigidez zangada que normalmente carrega. Está gostando de vir sempre com Maya passear na beira da praia à noite. Escuta os suspiros ritmados do mar escuro e sente que é como um eco dos seus próprios suspiros. A água bate de encontro à praia, arremetendo contra as suas fronteiras e deixando, quando volta, uma espuma de frustração que se desfaz num chiado. Bhima sente seus pés cansados afundarem na areia molhada, procurando um lugar onde possam se acomodar.

Fazia anos que não vinha à praia de Chowpatty.

— Seu avô e eu vínhamos sempre aqui — diz a Maya.

— Com a mãe e o Amit? — pergunta a moça.

— Não, antes disso. Foi logo depois do nosso casamento. Esse lugar era diferente naquela época.

Seu rosto se abranda com a recordação dela e de Gopal sentados na areia caramelo, comendo pakodas, legumes empanados e fritos em ghee, e chupando toletes de cana-de-açúcar. Depois que o sol se punha e a multidão diminuía, ficavam apenas alguns namorados. Gopal estendia os braços e a puxava para si. Por toda a faixa de areia, os casais, em diferentes estágios da paixão, se sentavam juntos, mas a boa educação mandava que não se prestasse atenção ao que os outros estavam fazendo. Em certos dias, Bhima tinha a impressão de que toda Bombaim estava naquela praia — alguns estavam noivos, outros viviam casos ilícitos, outros ainda, romances que poderiam resultar em problemas muito sérios se os pais descobrissem. Contrastando com tudo isso, sentia-se segura e respeitável por estar ali com seu marido.

— Diferente como? — pergunta Maya, e por um momento Bhima se impacienta ao ser perturbada em sua divagação.

— O governo fez uma limpeza no local. Antigamente, essa praia era suja e tinha muito lixo. As pessoas faziam soo-soo na areia bem na sua frente. E aquela parte de lá — diz, apontando para a parte iluminada da praia onde estavam os vendedores de comida — tinha bem mais panipuri e outras barraquinhas de comida. Agora está tudo regulamentado pelos babus, os funcionários do governo.

Espera que essa explicação faça Maya se calar. Quer relembrar o passado, passar outra vez algum tempo com Gopal nas praias douradas de sua juventude. Mas Maya quer conversar e faz mais perguntas:

— E o seu vendedor de balões? O afegão de quem você estava me falando. Ele também vinha aqui?

— Não sei — responde Bhima, com uma súbita sensação de repulsa ao pensar no homem vendendo sua mercadoria no ambiente espalhafatoso da praia de Chowpatty, em meio ao brilho fácil e barato desse local. Prefere imaginá-lo nas paisagens mais discretas e escuras do Marine Drive, onde não havia multidões de adolescentes e universitários em busca do melhor bbelpuri, a salada de arroz com tomate, batata e cebola, coberta com molho de tamarindo. Um lugar onde alguém poderia apreciar a arte daquele homem, o modo paciente e cuidadoso com que torcia um pedaço de borracha cheio de ar, fazendo coisas mágicas com aquilo. — Provavelmente não. Ele não viria a um lugar desses.

— Tenho certeza de que vinha — diz Maya. — Se era aqui que as pessoas vinham, tenho certeza de que aqui tinha fregueses para ele. Sendo assim, ele deve ter vendido seus balões aqui. Aprendemos isso na aula de administração de empresas: a oferta tem de ir onde há a demanda.

Bhima sente um súbito frêmito de raiva, e seus dedos ficam coçando de vontade de dar um tapa naquele rosto jovem e convencido de Maya, que acha que entende de tudo. Não sabe ao certo o motivo de sua raiva — se foi a referência à universidade ou as palavras impensadas da neta que, de certa forma, dessacralizaram a memória daquele pathan tão digno e banalizaram a sua arte.

— Ele não era um homem de negócios — exclama Bhima. — Menina burra, já lhe disse que ele não vinha aqui.

Maya pareceu chocada e depois magoada, mas seu jeito teimoso fez com que não desistisse.

— Então, não é de espantar que fosse pobre. Não me espanto que você sentisse pena dele.

Bhima quer corrigir Maya, quer frisar que não poderia afirmar que sentisse pena dele. Quer dizer: Beti, é mais do que isso. Ele não era exatamente o tipo de homem de quem se sente pena. Na verdade, olhando seus olhos tristes e delicados, o que se sentia era uma tristeza profunda, o tipo de melancolia que sentimos quando estamos num lugar bonito e o sol está se pondo. E principalmente agora, quando penso nele, sinto pena de mim mesma. Porque aquele velho pathan tinha algo de que preciso agora. Não sei o que era, não posso sequer dar um nome a isso. Tudo o que sei é que ele poderia ter me ensinado alguma coisa, se eu não fosse tão jovem e tímida e não tivesse medo de perguntar.

Mas Maya é ainda mais jovem do que ela naquela época, e Bhima sabe que não adianta explicar aquilo tudo à neta. Além do mais, há uma recordação surgindo do escuro aterro do passado e precisa se concentrar para ajudá-la a penetrar no presente. Algo que o velho pathan tinha dito uma vez, conversando com Gopal... O que Gopal tinha lhe perguntado?... Talvez alguma pergunta sobre a terra dele? É, foi isso. Gopal tinha dito:

— Comparado à nossa Bombaim, com as monções e tudo o mais, o seu Afeganistão deve ser tão ressecado quanto uma velha, não é? É tudo só montanhas, tudo seco e descarnado, certo? Vi uma vez uma foto de lá.

Ela pensou que o pathan fosse ficar ofendido, mas ele riu.

— Nahi, sahib — disse com sua voz grave e sonhadora. — O meu Afeganistão é muito bonito. É verdade que é uma terra difícil, cheia de montanhas, mas a dureza tem a sua própria beleza.

Fez uma longa pausa. Suas mãos se imobilizaram sobre o balão que ele estava transformando. E Bhima teve a nítida impressão de que ele estava viajando novamente por aquelas acidentadas estradas afegãs.

— Quando eu era rapaz, acordava de manhã e corria lá para fora — prosseguiu ele com aquela mesma voz profunda que, aos ouvidos de Bhima, carregava vestígios de tabaco, cânfora e eucalipto. — Respirava o ar puro da montanha, olhava para aqueles morros que, na luz da manhã, eram de um rosa-azulado. E achava que era o rapaz mais feliz do mundo.

O pathan sorriu daquela tolice do garoto de tanto tempo atrás.

— Wah, meu velho, você me faz sentir vontade de conhecer a sua terra — disse Gopal, com seu jeito habitualmente alegre e bem-humorado. — Tem certeza de que não é um poeta, em vez de um vendedor de balões?

Bhima estava quase dando um beliscão em Gopal quando viu que o pathan estava sorrindo.

— Todo mundo é poeta na minha terra, sahib — disse ele. — O país faz a gente ser assim.

E foi então que seu rosto se anuviou.

— Quer dizer, todo mundo era poeta. Agora o país está arrasado. Tem gente demais lutando naquela terra pobre que está sofrendo do coração. Ela chora noite e dia e agora não consegue mais cuidar de filhos.

Calou-se. Seus olhos eram negros como tinta, e a pele de seu rosto parecia um pergaminho. Fez menção de voltar a falar, mas Amit o inter-rompeu.

— O meu balão está pronto? — perguntou, pulando num pé e no outro e olhando impacientemente para aquele homem que deveria parecer para ele tão alto quanto um edifício.

O pathan se abaixou e deu umas pancadinhas de leve na cabeça de Amit.

— Desculpe, baba — disse ele. — Estou ficando lento no serviço.

Terminou o balão com seu jeito metódico habitual e o entregou a Amit, como se fosse uma flor.

— Desculpe, mas o que fazer? Esse menino é impaciente como o pai — disse Bhima, sorrindo à guisa de desculpas. — Mas... o que aconteceu lá na sua terra para haver tanta guerra?

O pathan olhou para ela e lentamente começou a sorrir.

— O meu povo tem um ditado — principiou ele. — Os Deuses da Inveja percebem quando uma coisa é bonita demais. E aí têm que destruí-la. Mesmo que seja sua própria criação, essa beleza desperta a sua inveja, e eles ficam com medo de que aquilo venha a ofuscá-los. E então destroem os próprios templos que construíram.

“Os Deuses da Inveja”, pensa Bhima agora. “Será que foi isso que aconteceu entre ela e Gopal? Será que a felicidade deles incomodou algum deus malvado e perverso? Será que foi por isso que seus dois filhos foram levados embora? Por que insistiu para que a neta desse um fim à criança que tinha na barriga? Talvez o pathan estivesse certo, talvez felicidade e beleza demais não seja bom para os humanos. Talvez a felicidade humana tenha que ser administrada às colheradas, como o óleo de rícino que Banubai botava numa colher de chá e tomava todos os domingos. Se tomado direto da garrafa, pode matar.”

— Vó, já perguntei mil vezes e você não responde. Por acaso está zangada comigo?

Bhima abana a cabeça para dissolver a névoa do passado.

— Desculpe, beti — diz ela. — Só estava pensando e nem ouvi você falar.

— Perguntei o que aconteceu com o velho pathan.

Bhima sente uma onda de gelo em seu coração ao ouvir as palavras de Maya.

— Não sei — responde abruptamente. — Depois do acidente com seu avô paramos de vir passear na beira da praia.

— Por quê? — insiste Maya. — Não tinha nada de errado com as pernas do vovô Gopal, tinha? Por que vocês não podiam mais vir passear na praia?

O rosto de Bhima estava impenetrável como um livro fechado.

— Depois do acidente, tudo mudou — diz rispidamente.

Desvia os olhos, piscando para espantar as lágrimas que se formaram inesperadamente.

Maya encosta a cabeça nos ombros de Bhima.

— Ah, vovó — diz a moça com brandura. — Minha pobre avózinha.

— Ouça, beti. Nunca lhe contei o que aconteceu depois do acidente. Mas vou contar agora para que entenda de uma vez por todas como este mundo trata as pessoas sem instrução.

 

ESTAVA GRIPADA NO DIA DO ACIDENTE de Gopal, e foi por isso que o homem da fábrica a encontrou em casa às três da tarde. Não conhecia aquele homem de pele escura e olhos ansiosos, irrequietos.

— O nome da senhora é...

O homem interrompeu a pergunta e consultou um pedaço de papel.

— Bhima? A mulher de Gopal?

— Isso mesmo.

Ele olhou para baixo.

— Receio estar trazendo más notícias — disse ele. — A senhora tem que vir depressa ao hospital. — Ele pronunciava “hospitar”.

Aconteceu um acidente.

— Acidente? Com o meu Gopal?

Ela ficou meio tonta e se sentia enfraquecida devido à gripe e ao medo súbito que apertou seu coração como uma mão gigantesca.

— Ele esta... muito machucado?

O homem se remexia, pouco à vontade.

— Ele está bem — respondeu. — Só machucou um pouco a mão. Mas o patrão o mandou para o hospital para que tivesse um bom atendimento. Depois, determinou que eu viesse aqui para informar a senhora. Nas Indústrias Godav, cuidamos bem dos nossos operários.

Gopal estava nas Indústrias Godav há 14 meses, depois que a fábrica de tecidos, onde tinha trabalhado durante muitos anos, faliu. Bhima não conhecia nenhum dos novos colegas de Gopal, inclusive aquele homem que estava ali parado à sua porta. Mas havia alguma coisa nele de que não gostava.

— E quem é o senhor? — perguntou ela.

— Sou o supervisor de Gopal. Mas vamos, temos que ir até lá. Ainda preciso voltar para o trabalho.

Bhima reparou que ele não lhe disse como se chamava e era tímida demais para perguntar. Não queria que ele pensasse que Gopal tinha uma mulher impertinente.

Pediu à vizinha que tomasse conta do Amit quando ele chegasse da escola.

— Pooja vai estar de volta do trabalho lá pelas sete horas, didi — disse ela. — Peça a ela que faça um pouco de arroz para o Amit se eu ainda não tiver voltado do hospital a essa hora.

— As crianças podem comer aqui — respondeu a vizinha. — Seus filhos são meus filhos também.

— Muito obrigada.

Na hora de sair, Bhima foi até o pote de aço inoxidável no qual guardava algumas rúpias para as despesas da casa e as apanhou. Gostaria que o homem desviasse o olhar por um minuto enquanto pegava o dinheiro, mas ele observava cada movimento seu.

O supervisor fez sinal para um táxi e esperou que Bhima entrasse. Deu ao motorista o nome do hospital e disse a Bhima:

— Nós o levamos para o hospital público porque era o mais próxi-mo. Ele estava sangrando, então o pusemos num táxi e o levamos. Bara seth pagou o táxi — acrescentou ele com orgulho.

Bhima ficou meio tonta ao pensar em Gopal sangrando tanto a ponto de terem que lhe chamar um táxi.

— Pode me dizer a verdade — pediu. — Meu marido está muito ferido?

— Ele vai ficar bem — respondeu o homem. — Tudo vai depender do tipo de tratamento que receber. Como a mão direita dele está ferida, precisamos que a senhora assine alguns documentos que nos permitam proporcionar-lhe o tratamento adequado.

Enfiou a mão na pasta de plástico, puxou um comprido formulário impresso e uma caneta e disse:

— Assine aqui.

Quando viu aquela página cheia de palavras incompreensíveis, Bhima sentiu aquela vergonha de sempre.

— Não posso assinar — disse, engolindo o soluço que se formou em sua garganta. — Não sei ler nem escrever.

— Tudo bem — respondeu prontamente o homem, buscando alguma coisa na pasta. — A senhora está com sorte hoje — disse, ao tirar dali uma almofada de carimbo. — Pronto — acrescentou, abrindo a tampa e puxando a mão dela em direção à almofada. — E só molhar o polegar na tinta e colocá-lo no papel.

Pela milésima vez Bhima desejou não ser analfabeta. Gostaria de poder ler aquele enorme formulário do modo rápido e displicente como Serabai lia o jornal de manhã. Talvez aquele documento lhe dissesse a verdade sobre a situação de Gopal. Ficou envergonhada ao lembrar como tinha discutido com o marido, que queria botar Pooja na escola. Agora, Pooja ia crescer tão burra e analfabeta quanto a mãe.

— Ela é uma menina — argumentou com Gopal. — Para que precisa de estudo? Logo, logo vai crescer e se casar com um homem que vai querer uma mulher que saiba cozinhar, varrer a casa e lavar Suas roupas. Melhor que saiba como usar uma vassoura do que uma caneta.

— As coisas mudaram — disse Gopal. — Uma menina tem que...

— É, mas não mudaram tanto assim a ponto de um homem querer uma moça que não saiba fazer nada em casa. E nem a ponto de uma renda extra na família ser alguma coisa dispensável. E assim podemos pagar a escola do Amit. Se ele estudar, pode ajudar a irmã tarde.

Com o dedo suspenso sobre o formulário branco à sua frente, Bhima sente seu rosto pegar fogo ao se lembrar disso. Queria que Amit estivesse em casa quando aquele homem, o portador das más notícias, bateu na porta. Seu filho teria sido capaz de entender aquelas palavras negras pousadas na página como insetos mortos. Sentiu que o homem se remexia a seu lado, com impaciência.

— Ande com isso, já estamos quase no hospital — disse ele. — A tinta seca em poucos minutos. Pressione o polegar aqui.

E, antes que Bhima pudesse reagir, ele pressionou sua mão contra o papel e apertou seu polegar na página para deixar uma impressão digital no formulário.

Um estranho pegando em sua mão no banco de trás de um táxi. Bhima estava mortificada. Sua antipatia por ele era como leite talhado. Movimentou-se no banco do pequeno Fiat até encostar na porta. Mas a atitude do homem parecia ter mudado.

— Não se apóie tanto na porta, bhenji — disse ele, rindo. — Ou vou ter dois pacientes para cuidar em vez de um, mulher.

Bhima continuou olhando para a frente, ignorando as palavras dele.

Mas, no hospital, ficou feliz por ele estar ali. Sem ele, não saberia para onde ir naquele prédio enorme e caótico. O homem andava na sua frente de propósito. Ele perguntou a uma enfermeira como fazia para chegar ao centro cirúrgico e, ao ouvir aquelas palavras, Bhima quase disse em voz alta: Por que Gopal está no centro cirúrgico? Aquele homem, de quem não sabia o nome, não tinha dito nada sobre cirurgia. Será que Gopal estava pior do que ele a fez acreditar? Mas quando tentou pará-lo para perguntar, ele simplesmente estalou a língua, desconsiderando seu gesto, e foi curto e grosso:

— Já lhe disse, senhora. Seu marido está ótimo. A senhora só tem que me seguir.

Quando chegaram à porta creme onde se lia “Centro Cirúrgico”, ele apontou para um grande banco de madeira e ordenou:

— Sente-se aqui. Volto já.

Ela o viu se afastar e parar quando encontrou uma enfermeira. Ele enfiou a mão no bolso e retirou uma nota, mas Bhima estava longe demais para saber o valor. Viu a enfermeira aceitar o dinheiro

e enfiá-lo rapidamente no bolso. Ela se curvou para consultar uma ficha e depois apontou para o final do corredor.

— Shuk ria. Obrigado. — Foi o que Bhima conseguiu ouvi-lo dizer.

Ele voltou e sentou-se pesadamente a seu lado.

— Pronto — disse ele, como se estivesse dando continuidade a uma conversa. — Gopal deve sair da sala de operações logo, logo. Parece que perdeu três dedos.

Se ele ouviu o grito de angústia de Bhima, não levou isso em consideração.

— O doutor sahib fez o melhor que pôde. Quando o trouxerem para o leito, alguém vai informá-la. A senhora pode ir visitá-lo Li.

Olhou para o relógio e reclamou em voz baixa.

— Saala, estou muito atrasado. Tenho que voltar para o trabalho. Preciso relatar ao patrão o que ocorreu aqui.

Ele olhou para o rosto apavorado e perplexo de Bhima e franziu a testa.

— Meu patrão já perdeu muito tempo e dinheiro com isso. Esse Gopal sempre foi um sujeito muito descuidado. Muitas e muitas vezes eu lhe disse para prestar atenção. Afinal, uma máquina grande é como um tigre, não se pode pôr a mão em sua boca. Mas seu marido nunca me escutou. É muito herogiri no trabalho.

Bhima soluçava em silêncio, querendo defender Gopal, querendo encontrar palavras que pusessem esse homem desagradável no seu lugar, mas não sabia como. O homem ficou olhando para ela por um momento e depois levantou-se de um salto. Enfiou a mão no bolso e puxou uma nota de cinqüenta rúpias.

— Tome — disse, jogando a nota no colo dela. — Pegue um táxi para casa quando sair daqui.

Olhou fixamente por mais um segundo para o rosto choroso de Bhima, começou a caminhar; depois, voltou alguns passos na direção dela e acrescentou:

— Volto para ver o Gopal amanhã de manhã. Então cuidamos todo o hissabkittab, de toda a papelada, e resolvemos todas as questões contratuais. Entendeu?

Bhima fez que não com a cabeça, mas ele a ignorou.

— Então, está bem. Até amanhã de manhã.

Quando ela finalmente conseguiu ver Gopal naquela noite, ele estava agindo de modo estranho, olhava para ela com olhos pesados e sonolentos e murmurava coisas sem nexo. Durante alguns minutos, Bhima teve medo de que o supervisor tivesse mentido, e que na verdade o cérebro de Gopal tivesse sido afetado pelo acidente. Mas a mãe do paciente do leito ao lado disse que aquilo era normal. A medicação para dormir que davam aos pacientes antes da cirurgia fazia com que agissem e falassem daquela maneira. E também havia um curativo com gaze branca envolvendo a mão direita de Gopal, manchado pelo vermelho-ferrugem de seu sangue e pelo amarelo-alaranjado de uma substância desconhecida.

Na manhã seguinte, Amit se recusou a ir à escola.

— Quero ver o baba — disse o menino. — Sei que meu pai precisa de mim.

Bhima apenas esboçou um protesto. Com 12 anos, seu filho já era mais alto do que ela, e Bhima ficou maravilhada com a facilidade e confi-ança com que ele andava pelos corredores do hospital. “Então é isso o que acontece com quem sabe ler e escrever?”, pensou, orgulhosa por ter podido proporcionar isso ao filho.

Quando chegaram à enfermaria de Gopal, seu leito estava vazio. Por um instante, Bhima sentiu um medo pânico. Será que ele tinha morrido durante a noite?, foi o que passou por sua cabeça. Depois, enfiou a unha do dedo médio no polegar para se punir por tal pensamento. Virou-se, a fim de perguntar a alguém sobre o paradeiro do marido, quando a senhora que a tinha acalmado na noite anterior disse:

— Eles o levaram para fazer uma radiografia lá embaixo.

Bhima balançou a cabeça em agradecimento. A mulher se levantou de onde estava sentada, ao lado do leito do filho, e se aproximou. Baixando a voz e posicionando-se de modo a impedir que Amit ouvisse a conversa, murmurou:

— Seu marido passou mal durante a noite. Teve febre e tudo. E também tossiu muito, uma tosse rouca que fez o meu menino ficar acordado metade da noite.

A mulher sorriu para mostrar a Bhima que aquilo não era uma recla-mação.

Bhima sentiu que o medo a envolvia como a poeira que se depositava todos os dias nos seus potes e panelas de aço inoxidável.

— Mas por quê? — murmurou. — Ele não está resfriado. Por que teria febre e tosse?

Pensou por um momento.

— Estive doente nesses últimos dias. Será que Gopal pegou o meu resfriado?

A mulher deu de ombros.

— Isso eu não sei, beti. Só estou contando o que vi e ouvi.

Amit puxou a mãe pelo cotovelo.

— Mãe, o que está acontecendo? — perguntou ansioso, em voz baixa. — Será que devo ir procurar o baba?

— Melhor não — retrucou a mulher, como se o menino tivesse se dirigido a ela. — Os médicos são muito...

Fez uma careta e completou:

— Melhor que eles não fiquem zangados com você. Espere aqui, que trarão seu pai de volta depois da radiografia.

Eles se sentaram na cama de Gopal, desanimados.

— Será que o baba está machucado? — indagou Amit, depois de um tempo, e Bhima respondeu com um gesto evasivo. Ela mesma ainda não se sentia bem dos sintomas da gripe. Perguntava-se se Murti, a vizinha do prédio, já tinha dado o recado a Serabai, se já a tinha avisado sobre o acidente de Gopal. Talvez demorasse uns dias até poder voltar ao trabalho. E como Serabai ia se virar sem ela? E com ela e Gopal sem trabalhar, teriam que sobreviver com o salário de Pooja. Depois, lembrou-se do que o supervisor tinha dito ontem, alguma coisa sobre resolver uns problemas. Quem sabe a firma não vai dar um dinheiro para eles sobreviverem enquanto Gopal está doente? Que bom o supervisor ter pensado nisso. Ontem, sua cabeça estava voando como um pássaro que saiu do ninho e não pensou em dinheiro, ou em qualquer outra coisa. Bhima sentiu um impulso de gratidão por aquele homem. Talvez o tenha julgado mal. Ele deve Ser bom, para se preocupar com eles numa ocasião como essa. Ia lhe pedir desculpas pela frieza do seu comportamento. Tentou se lembrar se o supervisor da fábrica tinha dito a que horas deveria encontrá-lo. Será que disse que viria à tarde?

Meia hora depois, trouxeram Gopal numa maca e o transferiram para o leito. Bhima deixou escapar um grito de apreensão quando viu seu corpo magro e trêmulo. Menos de 24 horas se passaram desde que o viu forte e alegre indo para o trabalho, e agora mal reconhecia o homem deitado à sua frente. Amit também deve ter notado a diferença porque veio para mais perto da mãe e ficou hipnotizado, olhando para o pai.

— Mãe, o que aconteceu com a mão dele? — perguntou o menino com a voz rouca.

Gopal olhou para Amit e tentou falar, mas um acesso de tosse engoliu suas palavras. Bhima mal podia acreditar que estava ouvindo aqueles sons guturais. Na noite passada, quando saiu do hospital, a respiração do marido estava tranqüila e regular. Agora, soava como a daqueles velhos asmáticos que se reuniam todas as noites para passar o tempo em frente à loja de cigarros perto de sua casa. Quando tocou na testa de Gopal, Bhima retirou a mão num movimento brusco, como se tivesse acidentalmente encostado num bule de água fervendo. Os olhos dele pareciam agitados e desamparados quando a fitava. Ele tentou falar mais uma vez, mas a tosse lhe tomou o peito e cortou suas palavras.

— Não diga nada — aconselhou Bhima, pousando a mão em seu peito para acalmar aquele movimento arfante. Sob a mão, podia sentir os roncos e chiados de seus pulmões congestionados. — Não diga nada, meu Gopal. Estamos aqui com você. Descanse um pouco.

Gopal fechou os olhos, e Bhima pôde observar seu corpo mutilado. Notou que tinham refeito o curativo na mão machucada, mas havia sangue novo manchando as ataduras. Viu as rugas que tinham aparecido da noite para o dia no rosto de Gopal e viu que seu rosto moreno estava avermelhado, como se a febre fosse uma lanterna acesa por debaixo da pele. Ouviu o terrível som da respiração entrecortada e do ar chacoalhando dentro do peito dele. Junto com aquele som, ouvia outra coisa: Amit chorando ao seu lado, embora tenha levado uns segundos para entender o que era.

— Mãe, o que aconteceu com o baba? — perguntou o menino, soluçando.

Temendo que o choro do filho acordasse Gopal, Bhima o repreen-deu, zangada.

— Espere lá fora, no corredor — disse rispidamente. — Se é para ficar agindo desse modo, leve essas lágrimas e essa cara de coitadinho lá para fora.

Exatamente naquele instante, como se para puni-la da dureza daquelas palavras, uma enfermeira se aproximou do leito de Gopal. Tinha uma seringa na mão direita com uma agulha grossa e comprida para a qual Amit e Bhima ficaram olhando com um fascínio amedrontado.

— Ele é seu parente? — perguntou a enfermeira, impaciente. — Por favor, acordem-no. Ele tem que baixar a calça.

Enquanto falava, a enfermeira pegou no cós da calça de Gopal e tentou puxá-la para baixo. Bhima ficou tensa, achando que Gopal acordaria, mas ele continuou dormindo.

— Sono pesado, não é? — constatou a enfermeira, e em seguida enfiou a agulha na coxa de Gopal.

— Ai, ai — gritou Amit sentindo a dor por tabela, mas Gopal continuou dormindo sem o menor sobressalto.

A enfermeira estalou a língua, numa demonstração de solidariedade, e disse:

— A dor nos dedos deve ser tão grande que o coitado nem sequer percebeu a picada.

Bhima seguiu a enfermeira que se preparava para sair.

— Irmã, a senhora poderia me dizer... qual o problema dele? Por que está com febre e tossindo?

A enfermeira deu de ombros e respondeu:

— Infecção. Ele está com uma infecção por causa da cirurgia, entendeu?

Não, queria dizer Bhima, não entendi. Pensei que a cirurgia fosse ajudar o meu marido, e não deixá-lo com febre. Mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, a enfermeira fez um cumprimento com a cabeça num movimento brusco e se foi.

Bhima voltou para perto de Amit.

— Fique aqui com o baba — disse ao menino. — Tenho que dar um telefonema.

Numa cabine de telefone público, discou o número de Serabai devagar, cuidadosamente, do modo como a patroa tinha ensinado. Na época em que Serabai insistiu para que aprendesse a falar ao telefone, Bhima resistiu à idéia. Agora, ficava feliz por saber fazer isso. Embora os números parecessem todos iguais, tinha memorizado o lugar deles. Colocava o dedo indicador em cada buraco e girava o disco.

— Alô? — Era a voz de Feroz seth, forte e impaciente como sempre.

Bhima se perguntou por que ele ainda estava em casa.

— Feroz seth? — berrou ela. — Alô? Aqui é Bhima.

— Bhima? Pare de gritar, pelo amor de Deus. Fale normalmente. Baixe a voz. Melhor assim. Agora diga, como está Gopal? A sua vizinha acabou de passar aqui para dar a notícia.

— Não está nada bem, Feroz seth — respondeu Bhima, tentando se lembrar de que não devia falar alto. — A enfermeira disse que ele está com uma... — “e agora?... como era mesmo a palavras... — “inflexão”.

Feroz praguejou baixinho.

— Isso não é nada bom — disse ele simplesmente.

— E então, estou telefonando por esse motivo — prosseguiu Bhima. — O que é isso? Uma doença?

Houve uma pequena pausa.

— Espere — disse Feroz. — Sera está aqui e quer falar com você.

— Alô, Bhima? — A voz de Sera veio ao ouvido de Bhima como um alívio. — O que está acontecendo?

— A enfermeira disse que Gopal está com uma “inflexão”.

Alguma coisa na voz conhecida e bondosa de Sera atenuou a rigidez do medo que tinha se abatido sobre Bhima desde o dia anterior. As lágrimas agora vinham facilmente.

— Ele está muito doente, Serabai. Febre alta e tosse como se dez elefantes enlouquecidos estivessem pulando em cima de seu peito. O que é essa nova doença que ele tem?

— E a mão?

— Ele perdeu três dedos.

Ela ouviu a respiração brusca de Sera.

— Ele foi operado? Você sabe o que eles fizeram?

— Não, ninguém me disse nada. Ninguém aqui fala comigo, bai — respondeu ela.

— Entendo.

Sera parecia zangada.

— Tenho certeza de que esses médicos gadhera devem ter feito alguma barbeiragem durante a cirurgia.

Fez uma pausa e depois prosseguiu, agora mais lentamente.

— Bhima, uma infecção é uma coisa que entra no sangue. Às vezes acontece depois de uma cirurgia. Mas com a medicação certa podem acabar com ela. Mas a gente tem que tomar cuidado.

— Será que eu deveria fazê-lo beber uma narial pani? — indagou Bhima. — Posso mandar o Amit ir lá fora comprar. Dizem que ela lava todas as doenças.

— Não, só água-de-coco não vai adiantar, ele vai precisar de um re-médio mais forte.

Sera fez uma pausa.

— Você vai ficar aí no hospital o dia inteiro? Vai? Ótimo. Espere aí só um minutinho.

Bhima ouviu Sera falando com Feroz. Pouco depois ela retornou.

— Alô? Bhima, escute só. Feroz e eu vamos dar uma saída hoje. É o nosso aniversário de casamento, sabe? Mas vamos passar no hospital antes. Aí, então, vemos o que se pode fazer. Em que andar o Gopal está?

Gopal estava acordado quando Bhima voltou. Amit estava sentado perto do pai, acariciando a sua cabeça e cantando uma música de um filme que ele e Gopal tinham assistido na semana anterior.

— O baba me pediu para cantar para ele — disse a Bhima. As lágri-mas brilhavam nos olhos do garoto.

Bhima concordou com a cabeça, e Amit recomeçou a cantar. Olhando para os dois, o coração de Bhima chegou a doer de tanto amor. Até acontecer esse acidente, nenhuma nuvem escura turvara a vida deles. Apesar de ter dois filhos, Gopal era brincalhão e despreocupado como um menino. Enquanto o casamento de Sujata com Sushil tinha murchado, o dela floresceu como as flores cor-de-rosa que sempre apareciam na primavera na árvore em frente ao edifício em que moravam. E, desde que Pooja nasceu, Gopal tratava os filhos com tanto carinho e amor que eles eram crianças invejadas no chawl.

Amit ainda estava cantando, embora Gopal tivesse adormecido. Bhima acariciou as costas ossudas do menino, e seu coração se apertou novamente ao sentir o movimento dos músculos do filho na palma da sua mão.

— O baba está dormindo — sussurrou. — Pode parar de cantar agora.

— Ele me pediu — disse o menino. — Sei que estava ajudando ele, mãe.

Ela balançou a cabeça e abraçou o filho.

— Você é o esteio da minha vida. Todo mundo devia ter um filho como você — disse ela, observando Amit espremer uma espinha no rosto para disfarçar um sentimento de orgulho encabulado.

“Ai, meu Deus, faça a minha família ficar boa de novo”, pediu Bhi-ma. “Que essa doença que corre feito uma escuridão no sangue de Gopal abandone o seu corpo. Me traga de volta o meu Gopal, sorridente como sempre.”

 

ERA QUASE MEIO-DIA QUANDO FEROZ e Sera chegaram ao hospital. Ela estava deslumbrante em seu sári verde. Para Bhima, os dois, com suas belas roupas, seus rostos limpos e bem-cuidados, eram um jorro de cor contra o pano de fundo preto-e-branco da enfermaria lúgubre e escura. “Parecem artistas de cinema, se comparados às outras pessoas, deuses caídos do céu em meio aos mortais”, pensou. Bhima notou que todas as pessoas presentes na enfermaria, pacientes e parentes, olhavam boquiabertos para o casal Dubash, que caminhava em sua direção.

— Serabai! — exclamou Amit com prazer, ficando de pé diante deles e sorrindo extasiado, um pouco amedrontado com a presença de Feroz, mas incapaz de conter a alegria ao ver Sera.

— Amit — disse Feroz secamente, balançando a cabeça ao reconhecer o menino.

Mas o rosto de Sera estava cheio de afeto.

— Como vai, Amit? — perguntou ela, estendendo a mão para cumprimentá-lo. Amit riu com essa demonstração de familiaridade.

— Vou bem, obrigado — respondeu o menino, do jeito que ela lhe havia ensinado.

Foi então que um ar preocupado atravessou seu rosto.

— Meu baba está doente — disse ele. — Está com a testa quente como uma xícara de chá.

Bhima estava sentada com as mãos postas, num gesto de gratidão.

— Bai, muito obrigada — disse ela. Virou-se para Feroz e acrescen-tou:

— Desculpe incomodá-lo, seth.

Feroz dispensou o agradecimento com um aceno e disse, perscrutando a enfermaria:

— Onde estão os médicos e as enfermeiras? Quem é o encarregado deste lugar?

— Uma irmã esteve aqui mais cedo — disse Bhima. — E aplicou uma injeção enorme no Gopal. Foi ela que me falou da “inflexão”.

— Infecção — corrigiu Feroz, meio distraidamente.

Seus olhos vararam a enfermaria até pousarem num enfermeiro que ia botar a comadre num paciente.

— Ei, você — chamou Feroz. — Venha aqui um instante.

Hipnotizado pela autoridade de sua voz, o rapaz soltou a comadre e foi até eles.

— Mere re. Meu caro — disse Sera. — Ele podia ter terminado atender aquele pobre homem antes de vir até aqui.

Feroz pegou um cartão e estendeu-o para o rapaz, dizendo:

— Escute aqui. Leve isso para o médico de plantão e diga-lhe que quero falar com ele aqui em alguns minutos. Ande, não temos muito tempo. Temos que estar em outro lugar às 13h30.

O enfermeiro pegou o cartão como se fosse um documento impor-tante, mas permanecia parado ali.

— Os médicos só vêm uma vez de manhã e uma vez à noite disse.

Feroz rosnou.

— Escute aqui. Vá e diga ao médico para vir falar comigo daqui dois minutos. Conheço as pessoas que construíram este hospital, entendeu?

O rapaz saiu, rápido como uma barata.

— Sim, senhor — disse ele. — Só um momento.

Bhima observou abismada um homem mais velho de jaleco branco se aproximar alguns minutos depois.

— Senhor Feroz? Sou o doutor Kapur.

Era um homem de estatura mediana, cabelo grisalho malcuidado e bolsas sob os olhos. Uma das hastes dos seus óculos estava colada com um esparadrapo sujo.

— Ah, sim, muito bem — disse Feroz, estendendo-lhe a mão. — Meu nome é Feroz Dubash e sou um dos diretores do Grupo Tata.

— Pois não.

O médico ficou olhando com curiosidade para Feroz e Sera.

— E o que posso fazer pelo senhor?

— Queremos saber sobre a situação deste rapaz aqui — explicou Feroz, olhando para Gopal, que dormia. — Ele foi operado ontem depois de um acidente de trabalho. Fomos informados de que está com uma infecção. Imagino que o senhor possa me explicar o que aconteceu.

O doutor Kapur parecia pouco à vontade.

— É, ele está com uma infecção. É um problema pós-operatório muito comum aqui — murmurou o médico. — O senhor sabe... às vezes as bactérias entram no corpo após a cirurgia. Estamos tentando curá-lo.

— E desde quando ele está tomando antibiótico? — perguntou Sera.

— Antibiótico?

O doutor Kapur parecia nunca ter ouvido aquela palavra.

— Bem, quer dizer, ainda não está recebendo esse tipo de medicação. Estamos tentando outras coisas primeiro.

Sera sentiu a raiva lhe subir ao rosto.

— O que o senhor está querendo dizer? Está lhe dando paansopari primeiro? — disse ela com ironia. — O senhor está economizando o...

Feroz apertou o cotovelo de Sera para fazê-la calar-se.

— Desculpe, doutor, mas é que a minha mulher está um pouco preocupada. Esse rapaz é importante para a nossa família.

Aproximou-se mais do médico com seus olhos negros perscrutando o rosto do homem, e pronunciando as palavras de modo lento e deliberado.

— De qualquer maneira, o que está feito está feito. Parece que o seu hospital cometeu um grande erro nesse caso. Mas a questão é: o que podemos fazer para ajeitar isso?

A voz de Feroz ficou ainda mais grave quando disse:

— Posso falar com o senhor um minuto, de homem para homem? Ótimo. Bom, o negócio é o seguinte. Por alguma razão, minha mulher gosta muito da nossa empregada. E, se a minha mulher está feliz, eu estou feliz.

Piscou para o médico e prosseguiu:

— Se o senhor é casado, doutor, então sabe perfeitamente do que estou falando. Por exemplo, hoje é o nosso aniversário de casamento. Tirei o dia de folga para passá-lo com a minha mulher e, pode ter certeza, a última coisa que quero fazer é estar aqui, neste... lugar. Mas a minha mulher insistiu que viéssemos ver como estão as coisas, e aqui estamos.

— O senhor não precisa se preocupar com nada — disse o doutor Kapur, impaciente. — Esse homem está recebendo o tratamento adequado...

De repente, Feroz ficou furioso. A veia de sua testa dilatou. Mesmo assim, manteve a voz baixa.

— O senhor chama de tratamento adequado não tratar uma infecção com antibióticos? — exclamou. — O senhor chama de tratamento adequado não explicar à esposa o que há de errado com o seu marido? Existe alguma explicação para isso?

O doutor Kapur desviou os olhos e respondeu:

— Ele não é o nosso único paciente aqui.

Riu meio sem graça.

— O senhor pode se preocupar apenas com um paciente. Nós temos que nos preocupar com todos.

Feroz produziu um som grave que soou como um rosnado.

— Pois então se preocupe! Ora, que diabos, preocupe-se com ele! Faça alguma coisa. Se esse homem morrer por falta de cuidados, juro, Kapur, vou amarrar os seus testículos em volta da sua cabeça tão rápido que...

— Escute aqui, senhor Feroz. Não há necessidade de falar com tanta agressividade. Vim conversar com o senhor porque...

— Se está preocupado com o que digo, melhor nem querer ver o que posso fazer — interrompeu Feroz. — Trabalho para o Grupo Tata, o senhor entendeu? O senhor sabe a influência que temos na administração deste hospital? Basta uma palavra minha e estará na rua sem sequer o seu jaleco branco para vestir. E tem mais: vou me certificar de que nenhum outro hospital em Bombaim o contrate. Entendeu?

Sera veio rapidamente para perto do marido.

— Escute, Feroz, tenho certeza de que não há necessidade de tudo isso — interveio ela com suavidade. — Posso ver que o nosso doutor aqui é um homem bom e vai fazer o melhor que pode por Gopal.

— É exatamente isso que estou tentando dizer ao seu marido, minha senhora — disse o doutor Kapur.

Sua voz tinha mudado e havia nela agora um tom anasalado e falsa-mente cordial.

— Agora mesmo à tarde vamos administrar antibióticos ao paciente. Em poucos dias, vai estar novinho em folha.

Bhima percebeu que Sera lançou um olhar de advertência a Feroz, mas ele a ignorou.

— Ok. A idéia é a seguinte — determinou Feroz —, o senhor tem o meu cartão. Quero que um dos médicos de sua equipe telefone para a minha secretária todos os dias de manhã para nos apresentar um relatório da situação de Gopal. Diga-lhe que telefone por volta das onze horas.

O doutor Kapur deu um sorriso forçado, mas seus olhos estavam gelados de fúria quando disse:

— Senhor Feroz, seja razoável. Isso aqui é um hospital, não uma estação ferroviária. Não posso escalar um dos meus assistentes para telefonar diariamente para o senhor. Se quiser, pode telefonar para o escritório central e falar com alguém de lá.

— O senhor está certo — respondeu Feroz, pensativo. — Os seus assistentes não têm tempo de me telefonar. Ok, então. Tenho uma idéia melhor. Quero que o senhor, pessoalmente, me ligue todos os dias de manhã — acrescentou, cutucando levemente o médico com o dedo indicador. — Entendeu?

O doutor Kapur ficou olhando para o chão. Seu pomo-de-adão movimentava-se furiosamente.

— Sou um médico formado, meu senhor — principiou ele, e depois se calou.

— Então aja como um médico — disse Feroz. — Não me diga o que não pode fazer. Diga o que pode fazer.

Com esse último insulto, o rosto do doutor Kapur desabou. “Parece até uma cabana de palha que cai com as chuvas das monções”, pensou Bhima.

— Muito bem, meu senhor. Vou lhe telefonar todos os dias pela manhã. E supervisionarei pessoalmente o tratamento dele, eu lhe prometo.

— Muito bem, então — disse Feroz rispidamente.

O doutor Kapur fez menção de se virar e perguntou:

— Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

— Não. Isso é tudo. Pode ir agora.

O doutor Kapur ficou vermelho. Evitando olhá-los, fez um cumpri-mento com a cabeça e se foi.

Bhima ficou admirada com a saída do médico e com a expressão de triunfo de Feroz. Para sua surpresa, Feroz estava rindo e piscando para Sera, como se o seu ataque de raiva tivesse sido apenas uma encenação.

— Só estava fazendo uma maaja-masti com ele, uma brincadeirinha de nada.

Ele riu.

— Não se pode deixar esses funcionários públicos se sentirem importantes demais.

“Então é isso que o estudo faz”, pensou Bhima. “Abre as portas ra você.” Ficou imaginando se um dia Amit seria capaz de fazer com que os outros o obedecessem exatamente como Feroz. Estava a um só tempo maravilhada e enojada de pensar que Amit pudesse ser capaz de exercer esse poder sobre outra pessoa. O jeito como o médico tinha estourado e murchado, como um daqueles balões criados pelo pathan... bastaram umas poucas palavras de Feroz sahib e ele desmoronou completamente. E agora Gopal ia receber o tratamento de que precisava. Serabai já estava lhe explicando que logo iam começar a dar novos comprimidos para Gopal.

— Feroz seth, mesmo que o senhor viva cem anos, não vou deixar de agradecê-lo pela ajuda de hoje — disse Bhima, indo em sua direção com as mãos em concha, pronta para pegar a mão direita dele e levá-la à sua cabeça, em sinal de agradecimento. Mas Feroz recuou e se esquivou quando aquelas mãos o tocaram.

— Está bem, está bem — apressou-se em dizer. — Não precisa agradecer.

Bhima não se permitiu sentir a fisgada da rejeição.

— Quando Gopal estiver em casa vou fazer um shrikhand para o senhor — prometeu ela. Sabia que Feroz muitas vezes trazia para casa o iogurte doce da Parsi Dairy Farm.

Feroz sorriu e disse:

— Só gosto do sbrikhand da Parsi Dairy Farm.

E, então, vendo o olhar magoado no rosto de Bhima, ele acrescentou:

— Mas vamos ver, vamos ver. Espere ele voltar para casa primeiro.

Depois que eles foram embora, Bhima deu duas rúpias para Amit ir comprar duas samosas para o almoço.

— E você, mãe? — perguntou ele.

— Não estou com fome — respondeu Bhima secamente. — Vá, coma e depois volte logo, está bem?

Bhima sorriu ao ver o menino sair correndo pelo corredor. Amit era esperto e rápido como um raio. Amanhã insistiria para que ele voltasse à escola. Sabia que ele iria reclamar, mas não lhe daria ouvidos. Depois de observar como Feroz seth dominou completamente a conversa com o médico, sacramentou a sua crença no poder da instrução e do estudo. Algum dia, o seu Amit também ia falar daquele jeito com os médicos e advogados. Talvez viesse até a ser médico ou advogado. Bhima, na verdade, não sabia o que um advogado fazia, mas essa era a profissão de Freddy seth e ela gostava dele. Freddy seth era uma boa pessoa. Numa ocasião, quando ela acompanhou

Serabai à casa dos sogros, ele permitiu que ela fizesse uma festinha em seu papagaio, Polly. E quando ele ia à casa de Sera, sempre perguntava por Gopal e pelas crianças. Isso mesmo, Amit poderia ser um advogado, e Freddy seth poderia ajudá-lo.

Mas depois outro pensamento a assaltou e ela parou, como se estivesse num cruzamento movimentado e seus pensamentos fossem os carros: tinha que prestar atenção neles. O doutor babu também era um homem instruído. E então por que deixou que Feroz seth falasse com ele daquela maneira? Será que só a instrução não era o bastante? E, se não era, o que estava faltando? Não conseguiu acompanhar a conversa porque Feroz e o médico falaram em inglês. Mesmo assim, pelo bem do Amit, precisava saber. Será que Feroz seth falava desse jeito porque era parse? Todo mundo sabe que os parses são instruídos e ricos e que, em sua maioria, suas mulheres usam vestidos em vez de sáris. Em outras palavras, são diferentes. Diferentes dela e de Gopal e mesmo do doutor sahib com suas chappals de borracha gastas e seus óculos emendados com esparadrapo. Então era isso? Ou alguma outra coisa? Era porque Feroz seth sabia como fazer cara de zangado mesmo sem estar? Será que o seu Amit seria capaz de fazer isso? Isso era uma coisa que também se aprendia na escola?

Bhima levantou os olhos e viu outra enfermeira parada na beira da cama, mais jovem e mais bonita do que a que tinha aplicado a injeção em Gopal mais cedo naquele mesmo dia.

— Vamos iniciar agora a nova medicação. A enfermeira sorriu, estendendo a mão.

— Antibiótico.

 

GOPAL VOLTOU PARA CASA DEPOIS de dez dias no hospital, e Bhima retornou ao trabalho. A febre e a tosse tinham cedido, mas ele se queixava da dor forte que sentia na mão, uma dor que corria como uma descarga elétrica pelo braço.

— Espere até tirarem os curativos, Gopu. Depois, usamos remédios caseiros — prometeu-lhe Bhima. — Podíamos até pedir ao seu irmão que nos mande umas ervas lá da terra dele.

— E de que adianta isso? Por acaso vai fazer com que meus dedos cresçam de novo?

Ele tinha adquirido esse jeito ríspido de falar que a magoava e a assustava.

— Não, mas... pelo menos vai aliviar a dor — disse ela tímida mente.

Gopal fez um muxoxo e se virou para o outro lado.

Bhima não insistiu mais. Outra coisa a incomodava, algo mais pre-mente. Desde o dia do acidente, o supervisor da fábrica tinha desaparecido e não foi visto novamente. Não apareceu no dia seguinte como havia prometido, nem no outro. E o que teria dito mesmo sobre propor um acordo? Já era hora de ele entrar em contato, agora que Gopal estava em casa. Afinal, precisavam do dinheiro para pagar o aluguel. E, dentro de algumas semanas, quando as ataduras fossem removidas, e Gopal estivesse se sentindo mais forte, ia querer voltar para o serviço. Mesmo que não possa mais operar as máquinas, certamente haveria outra função que pudesse desempenhar nas Indústrias Godav.

Bhima queria conversar sobre isso com Gopal, queria lhe contar so-bre o estranho que a acompanhou ao hospital naquele dia terrível, mas o rosto do marido ficava carregado toda vez que ela mencionava o hospital ou o acidente. “Ele vai se sentir melhor dentro de alguns dias”, dizia para si mesma. “Aí então converso com ele.”

Como se tivesse lido os pensamentos de Bhima, o supervisor bateu na sua porta na noite seguinte. Ela tinha acabado de chegar do trabalho e estava fazendo a massa dos chappatis. Olhou pela janela e viu o céu escurecendo. Pooja já devia estar chegando. Ouvia os gritos dos meninos do bairro com quem Amit estava jogando críquete no pátio do edifício.

— Seis — gritou com entusiasmo uma voz jovem, e Bhima rezou para que Amit fosse o autor dessa jogada. Tentou olhar pela janela, mas o ângulo não permitia uma boa visão do pátio.

Quando a campainha tocou, Bhima notou que, apesar de estar mais próximo da porta, Gopal ficou sentado, olhando para ela. Então, limpou a farinha das mãos para ir atender. “O velho Gopal nunca teria feito uma coisa dessas”, pensou ela, mas logo afastou tal pensamento. “Coitado”, disse a si mesma. “Está sentindo muita dor! Se precisa descansar, que descanse. Não vai me arrancar nenhum pedaço ir abrir a porta.”

Bhima levou uns segundos até reconhecer o supervisor. Depois, sorriu entusiasmada, pois o alívio de tê-lo reconhecido fez com que esquecesse de que não gostava dele.

— Bem-vindo, bhaisahib — disse ela. — Pensei que o senhor tinha esquecido da gente.

Afastando-se para que ele entrasse, Bhima se virou para o marido e disse:

— Gopal, você tem visita. É o supervisor da fábrica.

O homem atrás dela pigarreou.

— Bem... na verdade, o que eu disse outro dia não era exatamente verdade. Eu... só achei que seria mais fácil assim, já havia tanta tamasha naquele dia, tanta catástrofe... Na verdade, sou o contador da companhia.

Gopal ficou parado de pé, na frente do homem, olhando para ele, confuso.

— O senhor é o contador? — perguntou.

— Namaste, ji — disse o homem, juntando as mãos num comprimento.

Instintivamente Gopal esboçou fazer também aquele gesto, mas ao ver a mão mutilada, deixou os braços caírem ao lado do corpo. Fez um cumprimento com a cabeça, dizendo:

— Namaste.

— Por favor, permita que me apresente — prosseguiu o homem. — Meu nome é Devdas. Cuido da contabilidade das Indústrias Godav.

Gopal olhou de relance para Bhima como que para se certificar de que ela estava na sala.

— O senhor não precisava ter todo esse trabalho de vir até aqui — disse educadamente. — Afinal, estou pensando em voltar ao trabalho daqui a algumas semanas. Assim que tirar isso — acrescentou, com um sorriso pesaroso, mostrando os curativos.

— Bem... é sobre isso mesmo que precisamos conversar — disse o homem.

Ele se acomodou numa cadeira e abriu uma pasta de plástico.

— O senhor quer beber alguma coisa? — perguntou Gopal gentil-mente. — Um chá? Ou uma bebida gelada?

— Não, nada — respondeu Devdas, balançando a cabeça vigorosamente. — Só vou tomar alguns minutinhos do seu tempo — disse incluindo Bhima no movimento do seu olhar. — Afinal, você ainda deve estar de repouso, não é?

Gopal deu de ombros.

— E o que mais um homem pode fazer?

O contador riu, como se Gopal tivesse contado uma boa piada.

— É verdade, é verdade. — Fez uma pausa e olhou para uma enorme folha de papel que tirou da pasta. Quando falou novamente, sua voz tinha mudado de tom. — Achcha. Ok — disse com energia.

— É sobre este contrato. De acordo com ele, as Indústrias Godav vão lhe pagar um total de mil rúpias numa única parcela. Depois disso, o senhor não tem mais qualquer direito a reclamar. Estará livre para procurar emprego onde quiser nesta cidade.

Ignorando as expressões estarrecidas dos dois, ele se recostou na cadeira e deu um sorriso benevolente.

— Vim preparado para lhes pagar o montante integral esta noite mesmo — acrescentou, dando ênfase a cada palavra. — Por isso vim logo que vocês voltaram para casa. Afinal, o patrão sabe que vocês vão precisar de dinheiro numa hora como essa.

Gopal falou, em meio a uma nuvem de confusão.

— O senhor me desculpe, mas não estou entendendo. Tenho a intenção de voltar ao trabalho assim que puder.

O rosto do homem expressava ao mesmo tempo pena e desprezo.

— Pense um pouco, Gopal babu — disse ele com uma voz cheia de malícia. — O que faria na fábrica? Poderia levantar as chapas de plástico? Poderia manejá-las para que a máquina possa cortá-las? Um operário de fábrica com três dedos faltando... não sei, não, baba, é como uma mulher sem seios.

Gopal se levantou de um salto.

— Ei, veja lá como fala nesta casa. O senhor entrou numa casa de respeito, isso aqui não é zona, seu...

— Calma, calma, Gopalji — disse o homem, com a voz macia e ar-rastada. — Por que está assim tão agitado, sem a menor necessidade? Você tem que se preservar, não é mesmo? Não quis absolutamente ofender a sua digníssima esposa aqui presente. Mas a questão principal é que não há nenhum emprego para você na nossa empresa. Entendeu?

O homem procurou alguma coisa dentro da pasta, mantendo os olhos em Gopal o tempo todo. Num gesto floreado, puxou um gordo envelope de papel pardo e depois procurou lá dentro mais um pouco até encontrar o talão de recibos.

— E então aqui estão as mil rúpias — disse, acariciando o envelope. — Não é pouco numa época tão difícil.

Ele se virou para Bhima, ofereceu-lhe o envelope e disse:

— Aqui está, didi. A senhora é a dona da casa. Faça o favor de contar o dinheiro para ter a certeza de que não cometi nenhum erro. Afinal, em Bombaim, atualmente, não se pode confiar em ninguém.

— Não toque nesse dinheiro.

A ordem de Gopal cruzou o ar como o som de um taco de críquete batendo na bola.

— Quero um emprego, e não o pagamento pelos meus três dedos. E a minha indenização? Só isso já seria bem mais do que essa quantia miserável!

— Ah, babu, é isso que estou tentando lhe dizer — explicou o contador com uma voz suave. — Enquanto o senhor estava no hospital, a sua esposa assinou os termos do acordo. Segundo este documento, isso é tudo a que você tem direito.

Gopal empalideceu. Virou-se para Bhima e havia tanta mágoa, confusão e uma sensação de traição em seus olhos que ela se sentiu hipnotizada, como se os olhos dele fossem flechas que a imobilizassem contra a parede. Aquelas flechas trespassavam seu coração, matando as palavras de explicação, antes mesmo que pudessem surgir. Estava como que pregada no chão e não conseguia dar um passo em direção ao marido e transpor aquele terrível abismo que havia surgido entre eles. Queria explicar a Gopal o trajeto que fez, em pânico, até o hospital, o estado de espírito perturbado em que se encontrava e as mentiras de Devdas sobre o pedaço de papel que a convenceu a assinar, mas, sob o peso do olhar de Gopal, não conseguia dizer nada em sua defesa.

— Mentiroso — exclamou finalmente Gopal, dirigindo-se a Devdas, que olhava para ambos com uma expressão de estranha satisfação no rosto. — Minha mulher não sabe ler nem escrever. Como poderia assinar alguma coisa?

Em resposta, Devdas mostrou o pedaço de papel.

— Impressão digital. — Seu tom era de triunfo, quase eufórico, como se estivesse tentando conter o riso.

Virou-se para Bhima, que ainda estava pregada no chão, e perguntou:

— Diga-me. Esta é a sua impressão digital ou não?

Mas ela estava olhando para Gopal, observando um fio de saliva que pendia de sua boca aberta. Notou que ele lambia os lábios de nervoso. Viu também as rugas que apareceram em seu rosto e as lágrimas que brilhavam como estrelas mortas em seus olhos escuros.

— Mulher — disse com a voz embargada. — O que você fez?

Devdas remexeu-se na cadeira, com impaciência.

— O que está feito está feito — disse. — Agora, se me permitem, minha mulher está me esperando para jantar. Por favor, assine este recibo em cima do selo, dizendo que aceitou o dinheiro. Ou você também precisa de uma almofada de carimbo?

— Sei assinar o meu nome — disse Gopal, com os olhos ainda em Bhima.

Pegou a caneta de Devdas e escreveu com a mão esquerda sobre o selo oficial cor-de-rosa.

— Aqui está — disse, devolvendo o talão a Devdas. — Acabei de abrir mão da minha vida.

Devdas deixou cair o bloco de recibos na pasta e se levantou.

— Obrigado — disse ele. — E agora, com sua permissão, vou me retirar.

Pôs o envelope sobre a mesa e olhou para Gopal como se estivesse esperando alguma coisa... Xingamentos, violência, ameaças, uma manifestação de raiva, qualquer coisa. Mas Gopal o fitava fixamente com a expressão vaga, com o rosto inexpressivo, como se estivesse morto. O contador estalou a língua dando mostras de insatisfação.

— Quer saber, Gopal babu, foi você mesmo que causou essa infelicidade. Deveria ter sido mais cuidadoso no trabalho. Afinal, aquelas máquinas são grandes e perigosas, aquilo não é uma casa de bonecas. Da próxima vez, vai se lembrar de ter mais cuidado.

Finalmente ele teve a reação que estava esperando. Gopal se levantou da cadeira com um rugido de raiva e berrou:

— Saia da minha casa. Leve as suas mentiras maléficas para longe da minha vista. Vir me dizer que eu deveria ter tido mais cuidado quando todo mundo sabe que há apenas três dias reclamei com o patrão sobre aquela máquina.... E nenhum de vocês, seus fllhos-da-puta, fez nada. Sai mais barato dispensar um operário como eu do que parar o trabalho por um dia para consertar a máquina. Não pense que não sei o que está dentro deste envelope: é dinheiro sujo, manchado de sangue. São os meus três dedos que vocês estão me devolvendo neste envelope, nada mais do que isso. Saala maadarchot, seu asquerosos quem o senhor pensa que está enganando? O senhor pode enganar a sua mãe, a sua irmã e o seu filho, que ainda mama nas tetas da sua mulher, mas não vai me enganar, entendeu?

Devdas emitiu um ruído que era um misto de bufo de raiva e riso descontrolado.

— Olhe, babu, não há necessidade de agir assim. Afinal, sou visita na sua casa.

Percebendo o brilho nos olhos de Gopal, rapidamente concluiu:

— Já vou indo. Até logo.

A casa ficou estranhamente silenciosa depois que Devdas saiu. Bhima voltou a preparar os chappatis, e Gopal se sentou na cadeira onde Devdas estava há apenas alguns minutos e ficou olhando fixamente para a parede à sua frente, como se ela fosse lhe revelar os mistérios da vida. O envelope permanecia intocado em cima da mesa. De vez em quando, Bhima arriscava um olhar para Gopal, mas o rosto do marido estava tão inexpressivo quanto a parede para a qual ele olhava. Finalmente, ela não conseguiu agüentar mais o silêncio. Limpando a farinha das mãos, foi até Gopal e murmurou:

— Meu marido, encontre no seu coração um jeito de me perdoar. Sou uma mulher burra e ignorante. Aquele badmaash mentiu para mim. Disse que eu estava assinando uma carta para que você tivesse o tratamento adequado no hospital.

Gopal balançou a cabeça lentamente.

— Mulher, você não percebe? Isso não importa. De um modo ou de outro teriam nos passado a perna. Eles são os donos do mundo, sabe? Têm as máquinas, o dinheiro, as fábricas e o estudo. Somos apenas as ferramentas que usam para conseguir todas essas coisas. Sabe como se usa um martelo para pregar um prego? Pois bem, eles me usaram como um martelo para conseguir o que queriam. É isso o que sou para eles, um martelo. E o que acontece com o martelo quando não serve mais? É jogados fora e substituído por um novo. Só a usaram para comprar um martelo novo.

Bhima ficou olhando para ele, sem entender. Não reconhecia este Gopal de agora e também não gostava muito dele. Este Gopal não tinha apenas uma aparência diferente, também cheirava diferente. Seu Gopal era feito de sol, música, risos e brincadeiras e tinha cheiro de hortelã, coentro e chuva fresca. Este novo Gopal era duro como um martelo, grosso como couro e tinha cheiro de suor, cinzas e leite estragado.

— Gopi, ouça só — disse ela em desespero. — Esqueça as Indústrias Godav. Com a minha burrice, fiz você perder esse emprego, mas vou encontrar outro, prometo. E, a partir de amanhã, vou lhe dar todos os dias um pedaço de frango para que se recupere logo. Vou pagar a Pandav para escrever uma carta a seu irmão, pedindo que mande umas ervas para curar a sua dor. Gopal, meu marido, enquanto você estava no hospital, batalhei para mantê-lo vivo. E, agora que você voltou para casa, vou cuidar de você direitinho, prometo.

Ele sorriu para Bhima e então ela percebeu que os deuses lhe haviam pregado uma peça: mantiveram Gopal vivo, mas levaram sua essência, aquilo que faz com que um homem deseje continuar vivendo. Gopal parecia a caixa vazia de um relógio cujo interior tivesse sido removido. Não havia mais nada para manter o mecanismo funcionando. Queria que ele gritasse, chorasse, xingasse o mundo inteiro, batesse nela, quebrasse alguma coisa, rasgasse em pedacinhos o envelope que estava em cima da mesa, se enfurecesse contra Devdas, fizesse alguma coisa que mostrasse que ainda estava vivo. Mas, em vez disso, ele lhe deu um sorriso lento, triste e fatalista que o fazia parecer mais morto do que quando estava no hospital.

— Quer que eu ligue o rádio? — perguntou Bhima, com esperança de que as músicas dos filmes indianos o fizessem ficar mais alegre.

Mas ele simplesmente deu de ombros.

— Estou cansado — disse, e virou-se para encarar a parede nova-mente. Após um momento, Bhima voltou para o fogão na cozinha.

Ouviu Amit e Pooja subirem correndo as escadas e, um segundo depois, entrarem voando na sala. Bhima percebeu o olhar preocupado que Pooja lançou ao seu pai, um olhar tão adulto, e tão cauteloso, que lhe partiu o coração. “Essa menina é muito nova para se preocupar tanto”, pensou ela. Bhima viu Pooja ir até Gopal e fazer-lhe um cafuné enquanto falava baixinho com o pai. O coração de Bhima doía de amor pela sua Pooja — calma, firme e sensível. Amit, ao contrário, parecia não ter consciência da tensão que havia na sala. Seu rosto ainda estava afogueado pela energia despendida no jogo de críquete. Havia alguma coisa em Amit que lhe lembrava um cachorrinho esperto, animado, cheio de vontade de agradar. “Se esse menino tivesse rabo, o abanaria o dia inteiro”, pensou. E, desde que Gopal voltou para casa, o rabo de Amit não parou de balançar. Bhima se espantava de ver como ele estava contente de ter o seu baba de volta em casa; nem parecia notar a mudança em Gopal. Agora, Amit estava se vangloriando, contando ao pai como tinha sido o jogo.

— Marquei dois sixers, baba — disse ele. — Aquele tal de Vaso tentou pegar um dos meus lançamentos, mas, como é um balofo, não conseguia nem correr atrás da bola. E depois teve aquele garoto novo que tentou...

Os olhos de Amit pousaram no envelope.

— O que é isso? — perguntou, pegando-o.

Gopal se virou ligeiramente e seus olhos se encontraram com os de Bhima, por sobre a cabeça do menino.

— É um presente antecipado de Diwali — respondeu Gopal de propósito, sem deixar de olhar para o rosto estupefato de Bhima.

— Abra.

Os dedos ávidos de Amit rasgaram o envelope, e o maço de notas de cem rúpias caiu no chão.

— Puxa! — exclamou o menino quase engasgando.

Nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Confuso, virou-se para o pai e perguntou:

— O que é isso, baba? Esse dinheiro todo?

— Você sabe o que é isso, beta? — retrucou Gopal.

Seu rosto estava tão febril quanto naquele dia em que ele o viu no hospital.

— Isso aí dentro desse envelope é o seu baba. Isso é quanto vale o seu baba. Esse é o preço por...

— Cale a boca.

Bhima entrou voando na sala e tentou deter Gopal com um olhar. Fitou o rosto atônito do filho e alguma coisa na sua inocência confusa a irritou.

— Garoto burro — exclamou, dando-lhe um tapa no ombro. —Pegue logo esse dinheiro do chão. E pare de fazer perguntas idiotas e de aborrecer todo mundo!

Deu outro tapa em Amit, dessa vez na nuca.

— Mãe — reclamou ele. — Pare com isso, O que foi que eu fiz?

— Não desconte no menino os seus pecados, mulher — murmurou Gopal tão baixinho que só ela conseguiu ouvir.

Isso a enfureceu ainda mais.

— O que você fez? — gritava Bhima enquanto o menino esfregava a cabeça. — Passou a tarde toda jogando críquete como um mawali, um muçulmano, junto com aqueles seus amigos que também não servem para nada. Eu volto para casa cansada do trabalho e ainda...

Bhima engasgou com as próprias palavras como se fossem pedaços de carvão em brasa, mas a raiva e o medo ainda borbulhavam dentro do seu peito.

— Nós aqui gastando o nosso dinheiro suado para mandar você para a escola, enquanto Pooja e eu trabalhamos como duas escravas o dia inteiro. E o que você faz, seu moleque sem-vergonha? Fica jogando críquete com os goondas do bairro.

O rosto de Amít faiscou, ofendido e desafiador.

— Mas, mãe, você disse ainda há pouco que eu podia ir jogar om os meninos. E, de qualquer maneira, eles são meus amigos, não são malandros nem pivetes, como você disse.

Subitamente, sua raiva arrefeceu e se apagou como a chama azul do fogão Primus. Fitou o filho com pena e tristeza e resmungou:

— Vá lavar o rosto, O jantar já está quase pronto.

Virou-se para Pooja. Bhima tinha a sensação de que, apesar da calma aparente, a filha estava encolhida de medo por dentro. Suspirou Pensando consigo mesma que essa era uma maldição especificamente dos pais: conhecerem bem demais o interior de seus filhos.

— E você, chokri — disse com a voz grave pelo misto de emoções que sentia —, é melhor ir lavar o rosto também. Você deve estar exausta depois de trabalhar o dia inteiro. Essa sua patroa devia ser chefe de polí-cia... só mandando você fazer uma coisa atrás da outra.

— Na verdade, ela foi boazinha comigo hoje. Até me deu um pedaço de chocolate para comer de sobremesa — disse Pooja.

Por força do hábito, Bhima olhou para Gopal e, por um breve instante, aconteceu aquela velha comunicação cúmplice ao trocarem olhares. Ambos sabiam que Pooja era naturalmente conciliadora e que muitas vezes exagerava ou mentia para fazer seus pais se sentirem melhor.

— Chocolate é bom, mas da próxima vez diga a ela que lhe dê mais dinheiro — resmungou Bhima.

Pelo tom de voz, Pooja sabia que a mãe estava brincando. Sorriu e foi rapidamente para a cozinha usar a pia.

Quando Bhima pegou o envelope e procurou um local seguro para esconder o dinheiro, sentiu os olhos de Gopal acompanhando cada movimento que fazia. Mesmo com o suor lhe escorrendo pelas costas, ela gelou com aquele olhar irônico. Com esse dinheiro, poderia pagar alguns meses de aluguel e também comprar comida. Só Deus sabe quanto tempo ia levar até Gopal encontrar outro emprego. Agora, sem contar com seu salário, precisavam poupar cada paisa que pudessem.

 

NO DIA SEGUINTE, BHIMA SENTIU a esperança palpitar em seu peito enquanto se dirigia para o trabalho. Tinha decidido que contaria a armação do contador a Serabai. Com uma ou duas palavras bem escolhi-das, ela poderia dar um jeito nele.

Mas Sera estava séria quando entrou na cozinha, algumas horas de-pois.

— Acabei de falar com o Feroz no telefone — contou. — Ele disse que o caso está encerrado. Depois que você botou a impressão digital no documento... receio que nada possa ser feito, Bhima... — acrescentou carinhosamente.

De repente, Bhima começou a dar tapas na própria testa. Golpeava repetidamente a testa larga com a base da mão, gritando:

— Mulher burra, imbecil! Você botou a corda no pescoço do seu marido. Você destruiu a vida dele. Maldito seja o dia em que nasceu. Maldita seja minha mãe por não ter me mandado para a escola. Serabai, quando eu era criança, tinha tanta vontade de ler livros!...

Enquanto Sera observava estarrecida, Bhima retomou sua auto-flagelação.

— Que você tenha que repetir ciclos intermináveis de sofrimento neste mundo cruel para pagar por esse pecado! Que os filhos dos seus filhos nunca a perdoem por este crime!

— Bhima, pare, Bhima! — gritou Sera. — Não é hora de ficar histérica!

Sera aguardou até que a empregada parasse de bater em si mesma.

— De que adianta você ficar se culpando, Bhima? — indagou ela. — Como é que você poderia saber do engodo daquele sujeito? O que minha mãe costumava dizer é uma verdade: às vezes as cobras andam disfarçadas de gente.

Naquela noite, a caminho de casa, Bhima parou no pequeno altar que alguém tinha construído para Krishna dentro do tronco de uma árvore, que ficava entre a padaria e uma loja de roupas. Pôs algumas moedas aos pés da estátua azul e ficou olhando para o rosto feliz e tranqüilo de Krishna. Desde que conheceu Gopal, desenvolveu a maior simpatia por Krishna, porque alguma coisa no jeito brincalhão e moleque da divindade fazia com que se lembrasse de Gopal. Agora, olhava para o rosto bem-aventurado do deus com inveja.

— Traga o meu velho Gopal de volta à vida — murmurou fervoro-samente. — Traga o meu Gopal de volta e prometo que vou distribuir três quilos de pedas para todos os meninos de rua daqui dessa região. Vou adoçar a boca desses meninos.

 

GOPAL FEZ AMOR COM ELA pela primeira vez, desde que o aci-dente ocorreu, no dia em que tiraram os curativos. Durante a noite toda, Bhima não tirou os olhos dos tocos onde antes havia os dedos do marido. Perto das extremidades, a pele era rosada, mais clara que o marrom-escuro do resto de sua mão. Quando bateu acidentalmente m a mão mutilada no prato de metal enquanto a família jantava, a dor foi tão aguda que Gopal deu um grito. Depois do acidente, ele aprendeu a comer com a mão esquerda, mas levava tanto tempo para colher o arroz e o daal com os dedos que Bhima muitas vezes se perguntava se era por isso que o marido estava perdendo tanto peso. Agora, sentindo as ondas de dor subindo pela mão aleijada, Gopal largou a comida e se levantou do chão.

— Não consigo comer mais — disse abruptamente.

— Mas, baba, você não comeu nada — observou Amit.

Gopal olhou para ele com um ar tão severo que o menino ficou mudo. Então, foi se deitar enquanto os três comiam rápida e silenciosamente.

Mas, naquela noite, Bhima sentiu os tocos dos dedos do marido percorrendo suas costas. Ela se enrijeceu ao sentir aquela aspereza pouco familiar e lutou contra a repulsa que lhe embrulhou o estômago. Como se tivesse percebido seu desconforto, Gopal disse baixinho:

— Minha mão sem dedos desagrada a você, mulher?

— É claro que não — disse ela rapidamente, virando-se para encará-lo.

Ela acariciou seu rosto bonito e fino com a mão, traçando seus contornos com o dedo indicador.

— Tanta dor num rosto tão jovem! — sussurrou. — E tão magro e tão frágil!

Ele enfiou a cabeça no peito dela e, desabotoando a blusa do san com a mão esquerda, chupou-lhe os seios. Sentiu aquele misto de fogo e gelo correndo pelo seu corpo, que ao mesmo tempo queimava e derretia.

Mas alguma coisa estava errada. Eles pareciam não se encaixar tão bem quanto antes. Em todos os movimentos que faziam, a cada impulso e a cada vez que seus corpos se curvavam, pareciam o tempo todo conscientes da falta dos três dedos. Quando tentou afrouxar o nó do cadarço da calça, a mão mutilada roçou sem querer no tecido e ele trincou os dentes de dor. Enquanto segurava o rosto de Bhima com a mão esquerda, a outra mão de Gopal flutuou no ar e caiu ao lado do corpo, inútil como uma asa quebrada. Quando Bhima arqueou os quadris em sua direção, Gopal não pôde finalizar aquele movimento de intimidade segurando as nádegas dela, como normalmente fazia. Eles tentaram. Suaram, gemeram e se esfregaram um no outro. Mas não se acertavam, como dançarmos que erram os passos. Finalmente, Gopal parou no meio do ato e desistiu. Antes de se virar para o lado, porem, disse com amargura:

— Parece que você se esqueceu de como acolher o seu próprio marido.

Essas palavras a feriram como um tapa, mas Bhima estava cansada e desapontada demais para reagir. À diferença da maioria de seus amigos casados, ela e Gopal sempre tiveram muita compatibilidade na cama. Desde a noite de núpcias, quando caíram nos braços um do outro, rindo e suando e se roçando e se aconchegando, havia uma facilidade nas relações sexuais deles que Bhima sabia que muitas de suas amigas não tinham. Gopal nunca teve que conquistá-la como se ela fosse uma montanha. Nadava nela como se ela fosse um rio. Como um rio e seu peixe, tinham existido lado a lado, fluindo juntos pela mesma corrente, precisando um do outro, mas sem tentar dominar um ao outro.

Mas, de repente, Gopal tinha algo a provar. De repente, ela era um rio a ser represado, seu poder precisava ser controlado e verificado. Agora que lhe faltavam três dedos, Gopal tinha que convencer a si mesmo de que aquele outro “membro” importante estava intacto. E assim, noite após noite, ele empreendia uma espécie de embate com ela até que o sexo passou a ficar mecânico, sem humor e sem inspiração. Consciente da dor que ele sentia e sabendo instintivamente como isso era importante para o marido, Bhima teve paciência. Mas, com o tempo, a paciência se transformou em passividade, e Gopal, que por muitos anos esteve tão afinado com os estados de espírito e pensamentos dela, percebeu isso. Querendo que ela reagisse, seu desempenho sexual tornou-se mais desesperado, frenético e violento. Ele enfiava seus dedos amputados na barriga dela, e ficava eletrizado Com a dor que lhe percorria todo o corpo como uma droga. Beijava os seios dela e depois os mordia como se fossem rodelas de limão. Metia seu pênis tão fundo dentro dela que parecia até uma espada. Ela tentava se enganar, interpretando esse desespero sexual como fruto da paixão, mas o olhar sombrio e atemorizado de Gopal a impedia de embarcar nesse auto-engano.

E então as relações pararam de acontecer. Quando ela veio para cama naquela noite, Gopal já estava dormindo. Bhima se esgueirou para dentro do catre estreito com receio de acordá-lo, mas a respiração de Gopal se manteve constante e ritmada. Ficou acordada durante algumas horas, dividida entre querer mergulhar num sono bem-aventurado e o medo de que ele a tocasse, se baixasse a guarda. Finalmente, exausta, adormeceu.

Na noite seguinte, Bhima voltou do trabalho e imediatamente percebeu um cheiro estranho e diferente.

— Aqui está com cheiro de loja de daru, cheiro de álcool — brincou ela.

Porém, o sorriso em seus lábios morreu subitamente ao dar alguns passos em direção a Gopal.

— Você andou bebendo — exclamou ela num tom de voz que era tanto de surpresa quanto de acusação.

O rosto de Gopal se enrijeceu, como se alguém tivesse fechado a-bruptamente uma janela.

— E daí? — perguntou desafiador.

Havia uma grosseria na sua postura, uma arrogância que ela nunca tinha visto antes.

— Se eu quiser tomar um ou dois tragos, isso é problema de quem?

Ela olhou em volta e perguntou:

— Onde está Amit?

— Está jogando lá embaixo com os meninos.

E depois, como se tivesse lido os pensamentos dela, Gopal concluiu:

— Não se preocupe, ele não me viu subindo. Nosso queridinho Amit não tem nenhum motivo para se envergonhar do pai.

— Você está bêbado — disse ela, como se estivesse falando consigo mesma. — Baap re, Gopal, você está bêbado. Logo você, que quase nunca tocou em bebida desde que nos casamos.

Ele abriu os braços.

— Isso foi antes de eu me libertar — disse, com a voz pastosa. — Quando eu não era importunado pela minha mulher.

Na manhã seguinte, Bhima falou com Feroz antes de ele sair para o trabalho e pediu que arrumasse um emprego para Gopal.

Feroz mordeu o lábio inferior e disse:

— Assim de imediato não me vem nada à mente. Mas me deixe pensar um pouco no assunto.

Gopal começou a beber todos os dias. Dizia que aliviava a dor.

— Você não tem idéia de como é essa dor desgraçada — disse a Bhima um dia. — E como se alguém estivesse enfiando facas na minha mão. E aí vem o médico e me diz que não existe tratamento para isso. A única coisa que me dá umas horinhas de paz é a bebida.

Seu rosto desmoronou como uma parede construída com material barato.

— Tudo o mais já foi tirado de mim, Bhima. Minhas mãos, meu emprego, meu orgulho. Por favor, não tire mais isso. Não sou como aqueles bêbados idiotas. Sei a hora de parar.

Quando Feroz finalmente disse a ela que havia encontrado um em-prego para Gopal, Bhima voltou para casa alegre, mas apreensiva. Para sua grande surpresa, porém, Gopal pareceu gostar da idéia. Três dias depois, começou no novo emprego. Bhima acordou cedo naquele dia e preparou as coisas de que ele mais gostava para o café da manhã. Também botou alguns pedaços de quiabo frito entre dois chappatis e lhe entregou para que comesse no almoço.

Gopal voltou para casa naquela noite tão pálido e tão cansado que, por um momento, Bhima pensou que ele estivesse bêbado. Mas percebeu que era o cansaço, e não o álcool, que o estava fazendo falar daquele jeito, com a voz arrastada. Naquela noite, depois que as crianças foram para a cama, massageou as costas dele, desfazendo os nós de tensão que desciam pelo pescoço e pelos ombros. Enquanto desfazia os nós, também o fez soltar a língua.

— Eu estava lento, muito lento — disse ele suavemente. — E tão desajeitado... Todos os outros carregadores ficavam olhando para o aleijado que tentava fazer o serviço deles. Tive vontade de lhes dizer: Vocês deviam ter me visto alguns meses atrás, seus chootias. Eu trabalhava tão rápido que vocês estariam apenas ligando as máquinas enquanto eu já estaria no final do processo. Mas é claro que não havia nada a fazer ou a dizer a não ser continuar aprendendo como carregar o material de encontro ao peito usando apenas a mão esquerda. O patrão, Deshpande, é um homem bom e muito paciente, mas fiquei tão envergonhado, Bhima.

O amor e a indignação deram um nó na garganta de Bhima.

— Não há do que se envergonhar, Gopu — disse com firmeza. — A única vergonha é ficar em casa e não cuidar da sua família. Tentar ganhar a vida honestamente não é vergonha para ninguém.

— Eu sei — disse ele. — Foram exatamente essas palavras que fiquei me dizendo. Mas, Bhima, tinha também a dor. Às vezes ela era tão forte que eu pensava que ia desmaiar. É engraçado, não estava usando a mão direita para nada, e, se alguma das mãos podia ter direito de reclamar, seria a esquerda, porque estava trabalhando demais. Mas era a mão inútil que doía muito. Constantemente me lembrando da sua presença com os seus mensageiros da dor.

Apesar de tudo, quando trouxe o pagamento para casa naquela sexta-feira, Gopal parecia feliz, mas encabulado.

— Isso não é nada comparado ao que eu ganhava antes, não é? Mas, devagarinho, à medida que eu for conseguindo trabalhar mais rápido, vou ganhar mais, Bhima.

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Vamos dar um jeito com o que conseguir ganhar. Só o fato de ter você em casa comigo e ver você feliz no trabalho já é suficiente para mim.

Ele lhe lançou um olhar estranho e repetiu brandamente:

— Feliz no meu trabalho?

Gopal passou a parar no botequim para beber um ou dois tragos depois do trabalho, mas Bhima se forçou a não se incomodar com isso.

— Seu baba está sentindo muita dor — explicava às crianças. — A bebida é como um remédio para ele.

Mas na terça-feira seguinte Gopal se recusou a sair da cama, dizendo:

— Decreto que hoje é feriado para todos os trabalhadores de Bombaim.

Bhima sentia o bafo de álcool em seu hálito.

— Você também devia ficar em casa hoje. Acabaram de lançar um novo filme do Rajesh Khanna. Podíamos ir ao cinema de tarde.

— E depois fazer dois paisa renderem até o fim da semana? — disse Bhima com amargura. — Mesmo que você não se importe comigo, pense nas crianças, O que vou lhes dar para comer? Já estou devendo ao quitandeiro. Outro dia mesmo, Pooja estava falando em arranjar um segundo emprego. A juventude inteira da minha filha vai se esvair para sustentar o vício do pai. É isso o que você quer?

— Tem o dinheiro do acordo — disse ele com ironia. — Você se esquece, minha querida esposa, de que você conseguiu esse dinheiro com a sua inteligência brilhante?

Ela enrubesceu ao ouvir aquele insulto, mas isso não a tirou dos tri-lhos.

— Gopal, aquele dinheiro é para pagar o aluguel durante alguns meses. Sem o seu salário, meu marido, como vamos manter este local? Pense um pouco no futuro.

Gopal virou-se para o outro lado e dormiu.

Uma semana depois, quando Bhima chegou do trabalho, Amit a esperava na esquina.

— Mãe — disse o menino assim que a viu. — Venha para casa, de-pressa. O baba enlouqueceu.

— O que aconteceu? — indagou Bhima apressando o passo para acompanhar o filho.

— Não sei. Mas quando voltei da escola ele já estava em casa, andando para lá e para cá como um touro bravo, procurando alguma coisa. Fiquei com tanto medo que saí. Há um tempão estou esperando você voltar para casa, mãe.

Assim que Bhima entrou pela porta, Gopal se voltou para ela, ofegante.

— Onde está o meu dinheiro?

Estava com o cabelo desgrenhado, seu rosto suado parecia machucado, e a expressão atordoada era a de quem andou brigando.

— Cadê o dinheiro que você ganhou com os meus dedos cortados, sua puta?

— Você quer dinheiro para quê?

Bhima olhou em volta e viu que ele tinha tirado os lençóis da cama, aberto e esmiuçado o armário e revirado todas as panelas da cozinha de cabeça para baixo.

— Tenho que pagar a conta do botequim — disse ele. — Meu crédito já se esgotou, e se eu não pagar até hoje à noite, ele não me dá mais bebida. Preciso do meu dinheiro — exclamou ele, enfurecido.

— O dinheiro não está aqui — informou Bhima, secamente. — Está guardado com Serabai. De qualquer modo, só restam algumas centenas de rúpias. Como você pensa que tenho conseguido administrar essa casa desde que...

Ele soltou um uivo e avançou para ela, furioso. Bhima fechou os o-lhos, se preparando para sentir as mãos dele em volta do pescoço. “Será que Gopal teria força suficiente para esganá-la com uma só mão?”, pen-sou.

— Baba! — A voz de Amit impediu Gopal em sua investida. — Baba, o que está fazendo?

O menino chorava copiosamente, e a visão das lágrimas nos olhos do filho interrompeu o movimento de Gopal. Amit estava remexendo nos bolsos da calça e disse, estendendo uma nota amassada de cinco rúpias:

— Veja, ganhei uma aposta na escola hoje. Pegue esse dinheiro, baba, e vá tomar a sua daru.

Ficaram todos imóveis na sala durante um segundo infinito. “Gopal, não pegue o dinheiro”, implorava Bhima silenciosamente. “Se pegar o dinheiro do seu filho, saberei que você vai abandonar a gente para sempre, meu marido. Deixe-me sentir ainda algum orgulho em você. Não tire da nossa família esse último motivo de orgulho.”

A calmaria continuava, mas de algum modo a sala parecia vibrar e luzir com uma tensão não expressa. Era como se todos os participantes soubessem que aquele era um momento de decisão, que esse era o teste que tinham que enfrentar juntos ou estariam para sempre afastados uns dos outros, cada um em seu mundo separado e silencioso. Juntos, formavam os três vértices do triângulo em que cada um tocava os outros dois e o menor movimento de cada uma das partes destruiria aquele equilíbrio incerto.

Gopal arrancou a nota da mão de Amit e murmurou, sem ousar olhar para Bhima:

— Você é um bom garoto. Logo, logo devolvo esse dinheiro, meu filho.

Na porta da frente, ele parou. Olhou para a expressão desapontada do filho e viu o olhar cansado e gasto de sua mulher. Deixou escapar uma espécie de grito, como se tivesse notado pela primeira vez que Bhima tinha perdido aquele ar roliço do qual gostava tanto, como se tivesse ficado surpreso com seu rosto pálido e encovado, com bochechas caídas, puxadas para baixo pelas gigantescas mãos do destino. Bhima o encarou, esperando ver a mágoa e a culpa no rosto do marido. Ficou horrorizada ao perceber que, em vez disso, o que ele sentia era uma excitação sombria e cruel, tão excitante e estimulante como a língua de uma prostituta.

Um olhar de malícia prazerosa surgiu no rosto de Gopal.

— Por falar nisso, tenho uma boa notícia, mulher — anunciou ele. — Fui demitido hoje. A partir de amanhã, você vai me ter em casa o dia todo.

Sem os dedos, sem trabalho, improdutivo, Gopal encontrou a sua área de criatividade. Podia produzir infelicidade — montanhas e montanhas de infelicidade.

 

QUANDO AMIT TROUXE PARA CASA um boletim com péssimas notas, Gopal disse que talvez fosse hora de o garoto sair da escola e arrumar um emprego. Pooja fez pé firme. Em vez disso, decidiu pegar um segundo emprego lavando a louça para a vizinha da senhora Sodabottleopenerwalla. Gopal ficou com um ar sonhador quando escutou a notícia, mas, logo depois, deu um bocejo, virou-se para o lado e adormeceu.

— Mãe, o baniya da venda me parou no caminho de casa hoje — a-nunciou Pooja. — Disse que não vai mais nos dar crédito.

O rosto de Bhima ficou tenso de preocupação.

— Talvez eu possa pagar a metade do que devemos — disse.

Bhima abaixou a voz.

— Você e eu vamos ter que comer menos pelo resto da semana para inteirar o dinheiro do aluguel.

Gopal, deitado no catre, fez uma careta para a mulher.

— Sempre falando em dinheiro, dinheiro, dinheiro. Você me dá nojo, mulher.

Ele se levantou e prosseguiu:

— Bem, já que tocou nesse assunto, preciso de dez rúpias.

De algum modo, ele sempre arrumava dinheiro para a bebida. Às vezes, roubava de Bhima. Outras, simplesmente a ameaçava até que ela lhe desse qualquer trocado que tivesse guardado para as despesas domésticas. Esse dinheiro vinha envolto de xingamentos, como o tabaco enrolado em folhas de betel que ele às vezes mascava. Quando ela não tinha nada para lhe dar, quando Gopal já tinha lhe tirado tudo, ele fazia uns biscates para o dono do botequim que pagavam o seu vício.

— Ele é o meu único amigo — disse certa vez Gopal para Bhima. — É o único que entende o que acontece com um homem que foi castrado pela própria mulher.

Bhima teve que morder os lábios para impedir que sua boca cuspisse em cima dele o ódio que sentia. Tampouco lhe disse o que sabia... que Munnu, o filho do proprietário, tinha vindo ameaçá-los de despejo ontem se não pagassem o aluguel.

A senhora que morava ao lado ficou sabendo das dificuldades deles e disse a Bhima, quando estavam na fila do banheiro que dividiam com uma outra família:

— Beti, não se ofenda com o que vou dizer, mas o Munnu, filho do nosso senhorio, esteve aqui ontem e me falou da sua situação. Munnu quer se livrar de vocês, isso é certo. Disse até que já tem outra família pronta para se mudar para o apartamento, e que eles se prontificaram a pagar adiantado seis meses de aluguel. É o que digo, minha filha: essa gente não tem coração. Então, se estiver procurando um lugar mais barato para morar, me avise, posso ajudá-la.

Bhima virou-se para ela, ansiosa.

— Onde fica, didi? Quanto é o aluguel?

— Na verdade, é bem mais perto do seu emprego, beti. Você não vai ter que andar tanto para voltar para casa depois de um dia inteiro de trabalho. Na Comunidade Bhaleshwar tem um lugarzinho que...

— Bhaleshwar? Mas essa favela é um horror, não é? Não posso levar meus filhos para um lugar desses.

A velha senhora bateu na porta do banheiro.

— Arre, bhaisahib, o senhor está construindo uma casa aí no banheiro? — berrou ela. — Sou uma senhora idosa. Por favor, tenha consideração e acabe logo com esse negócio ai.

Ela se aproximou de Bhima e olhou bem nos olhos dela.

— Beti, a favela de Bhaleshwar não é um bom lugar para criar as crianças, concordo. Mas a rua também não é, certo? Você não vai querer voltar para casa um dia e encontrar todas as suas coisa na rua, vai? Para onde você vai, então? Mesmo que não seja por você mesma, pense em Pooja. Uma moça na rua não está mais segura do que uma moça na floresta. Existem animais selvagens nos dois locais.

— E como é que a senhora soube desse lugar, didi?

A velha senhora pareceu embaraçada.

— Meu genro é dono de alguns barracos na favela — disse ela. — Teve uma época em que ele mesmo morou lá. Agora, é claro, ele tem sua própria casa. Mas, como um favor especial a mim, pode fazer para vocês um preço bem camarada no aluguel.

A porta do banheiro se abriu e seu ocupante, um homem careca de lungi, o pano estampado envolvendo o corpo, e camiseta sem mangas, saiu.

— Desculpe, mausi — murmurou o homem. — O que eu podia fa-zer? Diarréia...

A velha senhora entrou no banheiro tapando o nariz num gesto teatral.

Bhima ficou do lado de fora, sentindo a pressão na bexiga e se remexendo de um pé para o outro discretamente. Em todos esses anos, sempre sonhou com um apartamento como o de Serabai, com banheiro privativo. Em vez disso, agora teria que encarar uma mudança para um local pior do que o que ocupava atualmente. Todos os dias passava pela Comunidade Bhaleshwar voltando do trabalho, tapando o nariz por causa de seus odores fétidos. Lembrava-se agora de como o local, visto da rua, parecia escuro e sem fim, com as vielas laterais correndo como túneis tortos para dentro do próprio coração das trevas. As mulheres sentadas dentro de seus casebres amamentando seus filhos, com os seios pendurados, saindo da blusa tão aberta e exposta quanto suas casas. Os homens, acocorados na calçada com aquelas caras de bêbados, eram insolentes com mulheres respeitáveis como ela, que passavam correndo a caminho de seus empregos. Imaginou Gopal juntando-se às hordas de desempregados e decaídos que passavam os dias sentados, sem fazer nada, sob o sol causticante. Imaginou Amit e Pooja naquele inferno: Amit voltando correndo para casa da escola, defendendo-se das provocações dos meninos vadios e analfabetos que queriam arrastá-lo para a delinqüência; Pooja desviando o rosto dos olhares cobiçosos e excitados dos malandros da área.

Não, quando a senhora saísse do banheiro diria que não estava interessada. Pegaria mais dois serviços, se fosse necessário. Talvez Amit pudesse conseguir ganhar um dinheirinho também. Dariam um jeito, ela e os filhos. Nada mais importava, a não ser Pooja e Amit. Não precisavam mais de Gopal. Assumiria o papel de mãe e pai deles. Ela é que tinha carregado os dois na barriga durante nove meses, não Gopal. As crianças eram sua responsabilidade, não dele.

Mas como os protegeria se estivessem na rua? Mesmo que conseguisse outro emprego na semana seguinte, ainda teria de esperar um mês inteiro até receber o pagamento. E se Munnu quisesse que ela pagasse toda a quantia que devia de uma só vez?

A porta do banheiro se abriu. Bhima viu a expressão indiferente no rosto da mulher e percebeu que ela tinha esquecido aquela conversa. “Veja como o mundo nos esquece depressa”, pensou Bhima com seus botões.

Sentiu sua boca se abrir, mas não sabia ao certo o que iria dizer. E então, quando falou, ouviu as próprias palavras ao mesmo tempo em que sua vizinha as ouvia.

— Gostaria de ver esse local em Bhaleshwar. A senhora poderia marcar uma hora para mim?

Bhima teve um sobressalto de surpresa ao ouvir essas palavras. Estava certa de que recusaria a oferta da velha senhora.

 

BHIMA ENTROU NA FAVELA ESCURA e ficou imaginando onde tinham ido parar os dois últimos anos. Seus pés já conheciam de cor as curvas sinistras das ruelas sombrias e estreitas que conduziam ao seu casebre. Não se engasgava mais involuntariamente quando o cheiro pútrido da favela entrava nas suas narinas. E, outro dia mesmo, Amit perguntou algo sobre seu antigo apartamento que a fez perceber que já estava começando a esquecer os detalhes dele.

Pensar em Amit fez com que ela apressasse o passo. O menino tinha ficado em casa naquele dia, lutando contra uma febre alta.

— Fique de olho nele, ouviu? — pediu a Gopal pela manhã. — Se a tosse ou a febre piorarem, leve o menino ao dispensário do doutor Roy.

Hesitou antes de dar algumas rúpias a Gopal.

— Esse dinheiro é para pagar o médico, se você tiver que levar Amit lá, entendeu? Não gaste com o seu vício.

Gopal fez que sim com a cabeça, com um ar sério.

— Juro por Deus, mulher. Você deve achar que sou um animal e não um homem. Que tipo de pai gastaria o dinheiro do remédio do filho com daru?

Quando Bhima voltou para casa naquela noite, encontrou Amit deitado no chão, sozinho, coberto com um lençol fino.

— Como está se sentindo, beta? — perguntou ela. — Cadê o seu baba?

A voz do menino estava rouca e seu rosto, lustroso e vermelho.

— Estou um pouco melhor, mãe — respondeu ele, sentando-se. — Hoje à tarde pedi ao baba que fosse buscar remédio para mim lá na clínica do doutor, e ele disse que eu não estava precisando. Mas acho que a febre baixou um pouco.

Bhima percebeu que o filho estava tremendo.

— Você está com frio? — exclamou ela, e, sem esperar resposta, cobriu-o com um segundo lençol.

— Onde está o seu baba?

Amit olhou para ela de relance e revirou os olhos.

— Onde mais?

Uma fúria fria se abateu sobre Bhima como chuva forte.

— Está no botequim? Hoje? Ele deixou você em casa sozinho, as-sim?

Mas, na verdade, ela não precisava de confirmação. Olhou o pequeno cômodo até que seus olhos se depararam com a vassoura encostada num canto.

— Fique aqui, Amit — ordenou ela, pegando a vassoura. — Não vou demorar, beta.

Quando chegou ao botequim, a fúria tinha se transformado numa tempestade. Bhima viu Gopal assim que entrou naquela estrutura precária, uma mistura de restaurante, casa de jogos e botequim aonde iam os homens que moravam naquela área. Era a única mulher no local.

— Minha senhora — gritou alguém. — Não é permitida a entrada de mulheres aqui.

Ignorando o homem, Bhima foi direto até Gopal, que estava sentado junto com outros cinco homens. Ele estava rindo de alguma coisa com seus dentes brancos brilhando no rosto escuro. Quando a viu, seu riso morreu na boca.

— O que você... — principiou ele.

No momento seguinte teve a resposta, quando Bhima pegou a vas-soura que trazia atrás de si e começou a bater nele.

— Saa la, besharam, matvali — xingava ela, ofegante, golpeando repetidamente o corpo de Gopal com a vassoura. — Seu cachorro. Sem-vergonha. Cobra nascida da barriga da sua mãe, O pior dos piores. Cobra, porco. Filho-da-puta. A máquina devia ter cortado o seu pau junto com os dedos. Hijda, é isso o que você é, um hijda. Você é um capado, não um homem. Um homem de verdade não deixa o filho doente em casa e sai para beber com os outros vagabundos.

Ela tinha posto a raiva toda para fora, gastando muita energia para acertar golpes precisos em Gopal, que não protestava e pouco fez para se proteger do ataque. Bhima parou de bater, mas ficou de olho no marido. Ele pôs os braços na frente do corpo para se defender de novos golpes e foi em sua direção com um jeito apaziguador. Foi então que alguém riu na mesa ao lado, e o riso fez Gopal parar no meio do caminho. Olhou ao seu redor e viu todos os homens ali, seus vizinhos e companheiros de copo que estavam esperando para ver o que faria agora, como restabeleceria sua masculinidade desmoralizada. Tentou alertar Bhima quanto a isso.

— Ande, vamos para casa — disse ele duramente, segurando-a pelo pulso. Mas ela se desvencilhou e disse:

— Não me toque, seu kutta, seu cachorro.

Há 15 anos que Gopal não se metia em uma briga. Mas agora seu corpo se movimentava por vontade própria, enquanto ele estapeava as bochechas murchas de Bhima com a mão esquerda. A cabeça dela era jogada para trás em solavancos e, por um momento, alguma coisa como um sentimento de piedade veio aos olhos de Gopal. E foi então que ele bateu nela de novo. Dessa vez, um filete de sangue escorreu do nariz dela. Os olhos de Gopal se arregalaram diante do sangue. Bhima viu o marido olhando seu rosto como que fascinado. Percebeu que a visão do sangue o excitava, e ele parecia pronto para 1ambê-lo, para torná-lo também parte do seu sangue. Antes que ela pudesse reagir, Gopal recomeçou a bater, usando o dorso da mão, o pulso funcionando como uma dobradiça que lhe permitia fazer um movimento de vaivém como o de uma porta. Por fim, dois homens o agarraram por trás.

— Bas yaar, Gopal — exclamou um deles arrastadamente. — Você quer que sobre alguma coisa da sua mulher para amanhã, não é? Ghalo, leve-a daqui e volte para casa.

Bhima voltou para casa andando atrás de Gopal e tentando parar o sangramento com o pano do sári, lutando contra o impulso de puxar a roupa por cima de seu rosto cheio de vergonha. Sentiu os olhos da basti pregados neles. “Essas pessoas são como urubus”, pensou. “Metendo o bico na vida dos outros, refestelando-se com a infelicidade dos outros, sobrevoando os casamentos mortos das outras pessoas.” Viu Gopal andando à sua frente, magro e perdido e, por um momento aterrorizante, pensou estar vendo uma sombra em vez de um homem. “Ae, Bhagwan, se eu não tivesse um menino doente em casa”, pensou, “juro pelo seu nome que nunca mais voltaria para lá”.

Naquele momento, achou que Gopal tinha satisfeito a sua vingança pela humilhação passada no bar. Mas a sua verdadeira traição aconteceu cinco dias depois.

 

PARANDO NA BANIYA PARA COMPRAR CEBOLAS para o jantar, Bhima se perguntou se Maya ia querer passear na beira da praia hoje à noite. Ela se dá conta de que está gostando daqueles passeios depois do jantar com a neta. Agora, já ficava na expectativa do ar fresco e salgado, do alongamento dos músculos doloridos e tensos enquanto caminhavam, misturadas anonimamente às outras pessoas que vinham ver o mar. Acima de tudo, gostava de sentir que os passeios noturnos pareciam estar fazendo Maya voltar a ser como era; via que a neta ia lentamente perdendo aquele jeito apreensivo e cauteloso e voltava a ser a garota alegre e cheia de energia que era antes da gravidez. “Logo, logo ela vai tocar no assunto de voltar para a faculdade”, pensa Bhima. Agora que Maya já sabe da experiência com o contador trambiqueiro, certamente vai compreender ainda mais como a vida trata aqueles que não têm instrução. Faria isso pela felicidade de Maya, embora soasse estranho pedir a Serabai que ajudasse a menina a se matricular numa outra faculdade.

Bhima aperta o passo quando vai se aproximando da entrada da favela e começa a descer a ruela que vai dar no seu casebre. O saco de papel com as cebolas ficou úmido pelo contato com seus dedos suados, e agora só o que faltava era uma cebola cair e rolar pela sarjeta. Está pensando em fazer para o jantar batata e cebola temperada com chappatis quentes.

Bhima escancara a porta da frente e a primeira coisa que vê é a longa sombra de Maya. A sombra sobe pela parede de zinco ate o teto, fazendo com que Maya pareça uma criança pequena debaixo dela. A menina está sentada no canto do casebre com um lampião de querosene ao lado. Quando os olhos de Bhima se acostumam a nova luminosidade, vê o papel azul-claro na mão de Maya e sabe imediatamente o que a neta está lendo. Olha rapidamente para a arca e percebe, é claro, que a tampa está aberta. Maya parece assustada e depois encabulada, mas, quando Bhima começa a franzir a testa e seus olhos se apertam, a garota se antecipa e diz antes da avó:

— Estava procurando outra coisa, vovó... juro! A minha certidão de nascimento, na verdade. E, quando vi esse papel, comecei a ler antes de saber o que era.

— Por que você precisa de sua certidão de nascimento? pergunta Bhima, achando aquilo suspeito.

Maya morde o lábio inferior e dá de ombros ligeiramente.

— Não sei... só... e que às vezes gosto de olhar para a minha certidão de nascimento. É só para... sabe... ler o nome da minha mãe e do meu pai. Isso... isso faz com que me sinta bem... não sei por quê. É como se eu não fosse órfã.

Bhima acha que essa menina não vai descansar enquanto não conseguir destruir o pouco que sobrou do seu coração com aquela maldita inocência e com palavras que matam e trespassam o seu coração como agulhas.

— Quem disse que você é órfã? — resmunga Bhima. — Sua avó por acaso morreu, para você se sentir órfã?

Maya sorri. Depois, seu rosto se anuvia e rugas de preocupação pousam como pássaros perdidos em sua fronte.

— Vó, nunca soube dessa carta — diz ela calmamente.

A carta. A carta que virou sua vida de cabeça para baixo. A carta que Gopal redigiu em forma de adaga e enfiou em seu coração. A carta com as palavras destruidoras que Jaiprakash — um morador da favela que por uma pequena quantia escrevia cartas para pessoas que não sabiam ler nem escrever — tinha lido em voz alta, com seus olhinhos miúdos, observando a reação de Bhima a cada instante, exercitando o orgulho profissional de seu ofício com seus floreados retóricos que suplantavam sua solidariedade pela mulher cuja vida estava destruindo com aquelas palavras. Ela guardou a carta durante anos e anos, mas só a tinha ouvido uma única vez. E, no entanto, tal era o seu poder que ela lembrava da maior parte do conteúdo e, em sonhos, ouvia a voz calma e envolvente de Jaiprakash.

— Leia a carta — ordena a Maya. — Quero ouvir novamente. Só ouvi essa carta uma vez.

Sua voz é firme, mas o efeito que produz em Maya é o de um choque elétrico.

— Não, vovó — protesta a menina. — Para que reviver desnecessariamente o passado?

Bhima sorri.

— Beti, o passado está sempre presente — diz ela. — Não existe isso de reviver o passado. O passado é como a pele da mão. Estava lá ontem e está aqui hoje. Não vai embora. Talvez, quando você for mais velha, entenda isso melhor.

— Mas, vovó, tem um ditado em inglês que diz: Não acorde as lebres que estão dormindo. Não faz sentido acordar essa lebre.

Bhima leva isso em consideração, mas pergunta:

— E se você for uma dessas lebres infelizes que nunca dormem? E, sentindo que tinha emudecido a neta por um momento, aproveita para insistir.

— Beti, leia a carta para mim.

“Para a rainha-dos-meus-sonhos”, foi como Gopal ditou para Jaiprakash

Tenho sido um peso para você e para a minha família já por muitos anos. Peço o seu perdão por esse e por outros crimes. Vi a minha Bhima, linda e rechonchuda, a noiva que trouxe para casa com tantas esperanças e desejos, ser consumida pela preocupação e pelo sofrimento. A minha bebida a transformou numa criatura magra e enrugada, e por esse crime serei condenado a repetir muitas vezes esse ciclo infeliz de vida. Não pense que minha embriaguez me impediu de ver o quanto eu a tornei infeliz. A bebida é o beijo dos anjos, mas é também a praga do diabo.. Pode esconder, mas também pode revelar e, até cinco dias atrás, minha mulher, eu não sabia que tinha caído tanto na vida e nem como tinha arrastado você comigo. Para mim, ser humilhado em público, no bar, daquela maneira, foi insuportável. Depois disso, seria difícil manter a cabeça erguida nesta basti sem ouvir os comentários das mulheres, das crianças e até dos vira-latas. Você matou a minha virilidade na frente de todo mundo, e agora todos riem na minha cara. E por isso, minha Bhima, estou indo embora. Estou levando Amit junto comigo. Ele vai ser a minha muleta, o meu apoio, a mão que me falta. Estou pensando em voltar para a minha aldeia, onde tenho família, um pedaço de terra e ar limpo e fresco. Talvez até consiga um emprego, uma nova oportunidade para um homem com três dedos faltando. Houve uma época, quando eu era rapaz, em que cheguei a acreditar que tinha me apaixonado por Bombaim e que tinha me casado com a cidade, que ela era minha noiva, minha mulher. Mas agora sei:

Bombaim é a amante de muitos homens, não é esposa de ninguém. A minha vida real está na aldeia da minha juventude, para a qual devo retornar com humildade e na esperança de ser perdoado.

Sem mim e Amit em casa, a sua carga vai diminuir. Com Pooja e você traba-lhando, vai haver dinheiro suficiente para sobreviver. Essa é a última vez que vou roubar dinheiro de você. Apenas o dinheiro para as passagens de trem para chegarmos à minha aldeia. Disse ao menino que estamos viajando para visitar o tio dele e que vamos voltar dentro de algumas semanas. Espero que a vida seja boa para ele lá na aldeia — a comida simples e forte, o trabalho difícil, mas honesto, na lavoura, longe das distrações dessa cidade prostituta. Sei que você nunca vai conseguir me perdoar por levar Amit comigo, mas, Bhima, assim como você, também preciso de uma razão para continuar vivendo. Meu filho tem que ficar ao meu lado: ele vai ser o apoio da minha velhice e o motivo para eu continuar caminhando. Você, por sua vez, vai ficar com Pooja. Ela será o motivo para você continuar respirando.

Minha mulher, acredite quando digo que, quando a trouxe para a minha casa, a minha intenção era tratá-la como uma rainha. Às vezes, quando você está no trabalho, fico sentado sozinho nesse lugar miserável e discuto com os deuses para saber quem ou o quê roubou a nossa vida. Procuro a resposta na garrafa. Olho para o céu. Procuro no meu próprio coração. E não encontro respostas. Há apenas um silêncio branco que sobe até o meu coração como as ondas em Chowpatty. Você se lembra daquelas noites na beira da praia, quando eu ainda era o seu marido e sustentava os nossos filhos? E seria correto eu achar que éramos felizes? Minha Bhima, após todos esses anos Juntos, anos de risos e lágrimas, de tristeza e felicidade, isso foi tudo o que me restou, como conchas na areia depois que as ondas se vão. Amei você e, embora saiba que nunca vou convencê-la dessa verdade, ainda a amo. Apesar de tudo, apesar do horror dessa semana que passou, ainda a amo. Agora que tudo o mais desapareceu — trabalho, dinheiro, casa, orgulho, dignidade —, apenas o amor permanece.

Você nunca vai acreditar em mim — eu sei —, mas onde quer que esteja serei sempre

Seu marido, Gopal.

 

Maya está chorando baixinho ao acabar de ler. Mas Bhima não percebe. Está se lembrando da primeira e fatal leitura da carta anos atrás, e de como Jaiprakash tinha lambido nervosamente os lábios depois de levantar os olhos da última linha e ver o ar demoníaco no rosto de Bhima, e ouvir seus xingamentos quando ele informou que Gopal e o menino tinham pegado o trem das três e meia. Lembrava-se ainda de como tinha vagueado nervosamente pela favela esperando que Pooja voltasse para casa, como tinha passado a noite sem conseguir dormir e nem ficar acordada e que tinha amanhecido com uma febre de 40 graus. E, nos dias que se seguiram, Serabai, balançando a cabeça com gravidade, informou-lhe que, já que foi o próprio pai que levou o menino, não havia nada que Bhima pudesse fazer para pegar Amit de volta contra a vontade de Gopal. Bhima ficou esperando ansiosa uma carta ou um bilhete sobre o paradeiro dos dois. As mulheres na favela faziam tsk-tsk e desviavam o olhar quando viam o rosto enlouquecido e assombrado de Bhima. Jaiprakash a evitou durante semanas e depois, um dia, esbarrando com ela e afastando a culpa, resolveu acusá-la:

— A culpa é sua, Bhima devi. Humilhar seu marido em público daquele jeito... O que você esperava? Sabe que um homem tem orgulho?

Bhima deu meia-volta, vencida pelas palavras de Jaiprakash e convencida de que ele estava certo.

Ela balança a cabeça pensando no seu próprio destino infeliz e se concentra em ouvir o que Maya está dizendo.

— Vovó — pergunta a moça com cuidado. — Você alguma vez teve notícias do meu tio Amit?

“As perguntas da menina são afiadas como as unhas que tiram casca de ferida”, pensou Bhima.

— Amit nunca me escreveu — respondeu finalmente, removendo a mágoa de suas palavras, antes de falar. — Mas o irmão mais velho de Gopal me escrevia de vez em quando. Dizia que sentia muito prazer de ter o Amit trabalhando lá com eles na fazenda da família.

— Se eu fosse o tio Amit, teria voltado correndo para Bombaim, com toda a certeza — disse Maya, tentando consolá-la.

— E deixaria o seu baba sozinho para trás? Só os filhos ingratos a-bandonam os pais.

— Talvez ele volte para Bombaim um dia desses. O que faríamos, vovó, se o tio Amit batesse na nossa porta um dia?

“O que eu faria? Iria de joelhos até o templo mais distante para agradecer”, pensou Bhima. “Jejuaria por uma semana para agradecer aos deuses. Distribuiria pedas para todas as crianças da favela. Voaria até a Lua e a traria para alimentar meu filho. Cortaria fora um pedaço do meu fígado para ver meu filho mais uma vez.”

Maya estava falando novamente.

— Será que o vovô sabia sobre... Você informou a ele sobre meu pai e minha mãe?

A boca de Bhima fica subitamente seca de medo, e ela estende a mão para pegar a lata de tabaco. Enrola um chumaço e enfia na boca, antes de começar a falar:

— Na época, não pude. Não em Delhi. Não havia... tempo. Mas, depois que voltamos, você e eu, mandei-lhe uma carta contando o que aconteceu. Serahai escreveu para mim.

— E o que ele disse?

A voz de Maya estava ofegante.

— Seu irmão mais velho escreveu uma resposta. Eles me culparam por não ter avisado Gopal a tempo. Acusaram-me de mantê-lo afastado da filha. Disseram que a alma da minha Pooja não iria...

Vendo os olhos arregalados de Maya, Bhima não concluiu a frase.

— De qualquer maneira, depois dessa carta, nunca mais tive notícias deles.

— Você acha que o vovô teria vindo a Delhi se soubesse?

Bhima consegue perceber o medo e a esperança embutidos nessa pergunta.

Fecha os olhos e os abre novamente, olhando diretamente para a neta.

— Ele teria vindo. Mesmo que os céus e a terra tivessem tentado impedir, teria vindo. Teria arrumado um jeito, sei disso. Seu avô amava a sua mãe, Maya.

— Então, por que ele escolheu o Amit e deixou ela com você?

Bhima engole em seco, antes de responder.

— Porque ele sabia que eu precisava mais da Pooja do que do Amit — respondeu com suavidade. — Amit era meu filho. Mas Pooja era minha primogênita. Era meu filho e minha filha numa só pessoa.

Subitamente, Maya começou a chorar.

— Minha mãe amava você também, vovó — disse ela, soluçando. — Acredite ou não, mas eu me lembro. Ela sempre falava de Bombaim, do antigo apartamento e de você.

Bhima se abaixa e abraça a neta, que está aos prantos.

— Menina boba — diz de brincadeira. — Por que está chorando por coisas tão antigas? Tudo isso aconteceu há centenas de vidas passadas.

— Mas o passado está sempre presente, vovó. Você mesma acabou de dizer isso.

Bhima dá um tapinha na mão de Maya e diz:

— Você está ficando esperta demais.

Bhima está com um ar cansado. Ela olha para o saco das cebolas no chão e reclama:

— Eu já teria acabado de cozinhar se você não tivesse me atrasado com esse monte de perguntas.

Ela suspira, fica pensando durante um minuto e depois se levanta.

— Ande, vá lavar o rosto. Hoje vamos jantar em Chowpatty. Já está tarde demais para eu começar a cozinhar.

 

BHELPURI.

São quinze para as oito, e Dinaz quer comer bhelpuri. Tinham acabado de se sentar para saborear o belo jantar que Bhima havia preparado mais cedo com galinha caipira e costeletas de carneiro, quando Dinaz empurrou o prato. Ela diz “custeleta”, com aquela mesma pronúncia parse antiquada de Banu, deixando Sera preocupada com o poder cego da genética.

— Essas “custeletas” estão me enjoando. Tirem isso da mesa, por favor.

Viraf faz uma careta.

— Pensei que os enjôos terminassem no primeiro trimestre — co-mentou. As duas sabiam bem que o que ele estava pensando era: Acho que não conseguiria reviver os horrores do primeiro trimestre quando os hormônios, o cansaço e o enjôo transformaram a minha mulher numa louca.

Dinaz ri e diz:

— Não fique tão preocupado, yaar. Olhe para ele, mamãe, só porque não quero comer “custeleta”. Quer saber de uma coisa? É uma pena que os homens não possam ter filhos, assim acabaríamos com o problema da superpopulação na Índia em um dia, porque nenhum deles jamais quereria engravidar.

— Bom, mas você tem que comer alguma coisa, querida — diz, Sera. — O neném precisa de uma boa alimentação e...

— Sabe o que estou com desejo de comer? — diz Dinaz. — Bhelpuri. Em Chowpatty.

Viraf resmunga.

— Dinu, escute só: acabei de chegar do trabalho e não estou com vontade de sair novamente. E aquela comida de lá é imunda. Acho que eles usam a água da privada para lavar a louça.

Dinaz permanece inabalável.

— Pelo menos não estou com vontade de comer barata nem reboco de parede, ou sabe-se lá que outras esquisitices algumas grávidas sentem desejo de comer.

Ela dá um tapinha no braço de Viraf.

— Gadhera, a culpa é sua se estou andando por aí gorda como uma vaca. O mínimo que você pode fazer por mim é me arrumar um pouco de bhelpuri.

— Está bem, está bem — diz Viraf. — Suponho que esta seja uma das obrigações da paternidade iminente.

Sera olha para a mesa. Ficou o dia inteiro na expectativa desse jantar.

— Mas e essa comida toda? Bhima vai ficar tão desapontada!

— Ah, dane-se a Bhima! — retruca Viraf. Na verdade, ela vai gostar. É menos trabalho para fazer amanhã.

Ele empurra a cadeira para trás.

— Ok, então, vamos nessa. Mamãe, vá pegar um xale ou um casaco. Está um pouquinho frio para novembro este ano.

No carro, Sera solta um suspiro.

— Faz tanto tempo que não vou a Chowpatty! Ouvi dizer que a prefeitura fez uma limpeza na área. A última vez que estive lá foi poucos dias antes da morte do seu pai. Era muito sujo naquela época.

Dinaz ri.

— O papai era tão engraçado! Tinha umas manias e uns cuidados bobos com higiene pessoal! Lembro uma vez que fomos juntos à fonte Flora e tinha um sujeito parado no meio do caminho que cuspiu suco de paan no meio da rua. Papai achou que um pouco do suco vermelho tinha pingado na minha calça, mas não consegui ver nenhum sinal disso. Achei que ele ia matar o pobre sujeito com as próprias mãos. E, no entanto, não havia nenhum problema em comer comida na rua.

Ela se vira para Viraf e prossegue:

— Quando ele ia ao colégio assistir a alguma peça de teatro ou a al-gum evento, sempre parava num vendedor que ficava na porta da escola e que fazia um ótimo pyali, aquela comida feita com batata. Papai comia duas tigelas. Você se lembra, mamãe? Você sempre reclamava quando ele comia aquilo. As lágrimas escorriam pelo rosto dele por causa da pimenta.

Sera sorri.

— Ele me disse uma vez, logo que voltou de Londres, que ficava enjoado quando comia bhelpuri em Chowpatty. Por isso, passou a ir lá todos os dias até que seu estômago finalmente se acostumasse de novo.

Viraf ri.

— Isso é bem a cara do pappa Feroz. Ele era duro na queda.

Os três ficam em silêncio por um minuto, cada um lembrando Feroz a seu modo.

— No mês que vem faz três anos — diz Sera suavemente. — Vocês podem imaginar isso?

— É, não parece que passou tanto tempo — responde Dinaz. Há outro momento de silêncio no carro. Então, Dinaz diz:

— Não sabia que você e o papai tinham ido a Chowpatty poucos dias antes de ele morrer.

— É. Tínhamos ido ao grande templo de fogo que fica ali na Fonte. A sua avó tinha sofrido derrame alguns meses antes, e o seu pai estava tão abalado de ver a mãe naquele estado que fez uma manta, uma promessa, de que iria ao templo de fogo todos os dias durante um mês para rezar pelo completo restabelecimento dela. De vez em quando, eu ia com ele. Muitas vezes, íamos jantar no Paradise. Mas, naquele dia, decidimos ir a Chowpatty. Seu pai estava sempre disposto a comer bhelpuri e panipuri. Na realidade, antes do casamento, sempre íamos lá.

Subitamente, Viraf deixa escapar uma gargalhada.

— O que foi? O que foi? — indaga Dinaz e, mesmo no escuro do carro, Sera consegue ouvir o sorriso afetuoso na voz da filha.

— Nada — responde ele. Só estava me lembrando do conselho que seu pai me deu quando fui à sua casa pela primeira vez. Era seu aniversário, lembra? Havia muita gente. Mas, de algum modo, ele percebeu que eu... que gostávamos um do outro. Então, ele me puxou num canto e disse que tinha uma coisa para me falar. Era um conselho do tipo de-homem-para-homem, pode-se dizer. Basicamente, me disse que achava que eu era um bom rapaz parse com potencial para fazer sua filha feliz. Mas me disse que eu deveria ser persistente, se não quisesse perdê-la para outros pretendentes. “Um homem deve investir como um touro indomável quando está atrás de uma mulher.” Acho que foram exatamente essas as suas palavras. Fiquei com tanto medo que tudo o que pude dizer foi “Sim, tio” e “Não, tio”.

Dinaz ri.

— Acho que papai ficou aliviado ao saber que você era parse, foi isso. Ele sempre teve medo de que eu trouxesse para casa um católico de Goa ou um hindu, ou, pior ainda, um muçulmano. E também tinha uma mania esquisita de achar que eu sentiria pena de um homem aleijado ou em cadeira de rodas e que me casaria com ele por piedade. Você pode imaginar uma coisa dessas? Acho que foi essa a razão principal de ele se opor tanto a que eu fosse assistente social. Ele sempre me dizia: ―Não se case com ninguém por pena. E eu lhe assegurava que esse pensamento nunca tinha passado pela minha cabeça.

Ela dá um beliscão na coxa de Viraf.

— O que eu não disse para o papai foi que estava esperando que aparecesse um bonitão com pinta de artista de cinema. E, em vez disso, você se casou comigo — diz Viraf, fazendo um movimento para baixo com a boca. — Foi ótimo o pappa Feroz ter se concentrado tanto em mantê-la afastada dos deficientes físicos, pois assim não notou que você tinha se casado com um deficiente mental, bem?

— Ovaru, ovaru — diz Sera aborrecida, estalando os dedos. — Quanta maluquice vocês dizem, crianças!

— Ah, mamãe, não caia nas gracinhas dele. Ele só está esperando que a gente diga como ele é bonito e inteligente.

Assobiando desafinadamente, Viraf procura uma vaga para estacio-nar. Sera sorri consigo mesma, pensando em como o seu genro é diferente do seu marido. A essa altura, Feroz estaria xingando e procurando por um guarda para lhe passar uma nota de dez rúpias e estacionar ilegalmente. Mas Viraf é um thanda pani ka matla, não esquenta a cabeça com nada.

— A-ha! — exclamou ele triunfante ao descobrir uma pequena vaga. — Aposto que consigo me espremer ali.

— Impossível — diz Dinaz automaticamente, embora tanto ela quanto Sera soubessem que Viraf era um ótimo motorista.

E quando seu marido consegue estacionar o carro na vaga na primeira tentativa, Dinaz resmunga:

— Imagino que você tenha esquecido que a sua mulher está com uma barriga do tamanho do deserto do Saara. Só Deus sabe como vou ter que me espremer para sair do carro nessa vaga apertada.

— Poxa, como esse lugar mudou! — observa Sera, ao se aproxima-rem da praia. — Está parecendo tão mais limpo! Ouvi dizer que estão multando as pessoas que jogam lixo e fazem suas necessidades na praia.

— Isso é totalmente inconstitucional, se quer saber — diz Viraf sorrindo. — Jogar lixo e fazer soo-soo em público são direitos de nascença de todos os nativos de Bombaim.

 

SERA TENTA SE LEMBRAR DE COMO era a praia da última vez que esteve ali com Feroz. Mas o pensamento lhe foge e tudo o que consegue se lembrar é de como Feroz estava carinhoso e atencioso naquela noite. Ele a levou ao seu vendedor de comida predileto e insistiu para que ela comesse o primeiro prato preparado por Ramdas, e Sera sabia que ele não havia comido o dia todo. Depois de dois pratos de bhelpuri, ele quis sorvete, kulfi de leite.

— Meu bem, tome cuidado — aconselhou Sera. — Você sabe que não é bom para o seu colesterol.

— Arre, que se dane o colesterol! respondeu ele. — Faz tanto tempo que a gente não vem a Chowpatty. E você sabe o que sempre digo. Pode-se gastar duzentas rúpias num sorvete no Taj ou em outro hotel cinco-estrelas, mas nada se compara ao kulfi de Chowpatty. Vamos lá, é só hoje. Tenho feito minha dieta, você sabe disso.

Sera concordou, como ele sabia que ela faria. Quando Feroz fazia a-quele olhar de súplica, ela não conseguia lhe dizer não. E Feroz tinha mudado muito depois do derrame de nzarnrna Banu. Era como se o fato de ver a mãe dominadora em estado vegetativo o tivesse feito perceber alguma coisa sobre a imprevisibilidade brutal da vida. Ele visitava a mãe todas as noites quando vinha do trabalho e, quando voltava para casa, parecia mais suave e comunicativo do que jamais tinha sido.

— Aconteceu tanta coisa nesses últimos anos — disse ele, com um suspiro, naquela noite, depois que voltaram para casa.

À luz do abajur, Sera notou as rugas no rosto de Feroz e como a pele de sua cabeça calva se enrugava toda quando ele ficava preocupado. Não foi a primeira vez que percebeu a diferença de 13 anos que a separava do marido que estava envelhecendo.

— Mal havia me recuperado da morte do papai e agora tenho que ver minha mãe nesse estado — disse Feroz. — E insuportável vê-la sofrendo. Sabe, a única coisa boa que aconteceu nos últimos anos foi o casamento de Dinaz. Se não fosse pela felicidade dela e de Viraf, não sei qual seria a razão de viver.

Sera se levantou e foi até onde Feroz estava sentado, todo encurvado. Sentou-se no braço da poltrona e fez um carinho na cabeça dele.

— Podíamos passar uns dias em algum lugar, jantí. Vamos fazer uma viagem. Podíamos ir a Goa, por exemplo.

Ele concordou com a cabeça.

— Sei disso. Mas ainda não está na hora. Vamos esperar a situação da mamãe se estabilizar. Não posso suportar a idéia de deixá-la assim nesse estado.

Feroz levantou a cabeça para Sera, que ficou surpresa de ver lágri-mas em seus olhos. “Ele ama tanto aquela mulher”, pensava admirada. “Será que tem alguma noção de como a interferência dela arruinou a chance de felicidade do nosso casamento? Será que alguma vez pensou nisso?

E, como se estivesse lendo os pensamentos dela, Feroz prosseguiu:

— Sei que você também está precisando dar uma parada, Sera. Agradeço a você por cuidar tão bem da minha mãe numa hora em que ela precisa. Eu sei que ela.... que vocês... que ela não foi a pessoa mais fácil do mundo. Em breve vamos passar uns dias fora de Bombaim, prometo. Talvez até levando os dois junto conosco. É só que... não é bem o momento agora.

No entanto, três dias depois, ele estava morto, e aquela promessa. junto com muitas outras, ficou na gaveta das Promessas Não Cumpridas, junto com a promessa não cumprida do seu próprio casamento que tinha começado com tantas esperanças e expectativas e acabou se queimando como aqueles fogos e morteiros que Dinaz e suas amigas soltavam na época do Diwali e que voltavam do céu com um chiado meio encabulado, como se tivessem sido jogados para baixo por um deus hostil.

No dia de sua morte, Feroz voltou para casa cedo, queixando-se de uma sensação de mal-estar.

— Isso é trabalho demais — disse Sera. — Você está muito tenso, ianu. Talvez devesse fazer uma aula de ioga ou alguma coisa assim, para aprender como acalmar a mente.

Ele sorriu, meio sem vontade.

— Talvez.

Depois, seu rosto despencou.

— Nem fui ver a mamãe hoje — disse ele puxando a colcha e deitando-se na cama. — Ela vai ficar tão chateada!

“Sua mãe não reconhece ninguém”, era o que gostaria de dizer. “Provavelmente ela não saberia distinguir um dia do outro.” Mas Sera guardou aqueles pensamentos para si mesma.

— Venha deitar aqui perto de mim — pediu ele baixinho, e pela primeira vez passou pela cabeça de Sera que Feroz poderia estar realmente doente.

Nunca o tinha visto assim tão fraco, tão vulnerável. Sera teve que lutar contra um pânico súbito e irracional.

— Meu amor — disse ela, tentando manter a voz calma. — O que está acontecendo com você? Será que devo chamar o médico?

— Não, nada de médico, por favor. Deve ser só uma gripe ou alguma coisa assim. Não sei.... não sei explicar exatamente o que estou sentindo. Parece que tem uma palpitação dentro do meu peito. Acho que é tensão. Só preciso dormir um pouco.

Sera foi até a cozinha para dizer a Bhima que não fizesse barulho enquanto Feroz seth estava dormindo.

— Ele está muito cansado — disse em resposta ao olhar curioso de Bhima. — Está precisando de um pouco de paz e de calma.

Enquanto Feroz dormia, ela preparou a sopa chinesa de galinha com milho de que ele gostava. Às seis da tarde, disse a Bhima para botar a sopa na mesa. Acordaria Feroz, que precisava comer. Ele devia estar fraco por causa da dieta que estava fazendo.

Ela foi pé ante pé até Feroz e sentou-se na beira da cama.

— Meu amor — disse baixinho. — Acorde. Fiz uma sopa quentinha para você.

Não houve resposta. Ela falou novamente e já estava a ponto de sacudi-lo para que acordasse quando ouviu alguma coisa, e o que ouviu foi a ausência de som no quarto. Feroz não estava respirando.

— Feroz — gritou ela, estendendo a mão para alcançar o interruptor.

Assim que a luz se acendeu no quarto, ela iluminou o rosto do marido. A boca estava aberta e os olhos também, mas, mesmo no auge do medo e do susto, Sera sabia que finalmente agora Feroz tinha conquistado a paz que procurou a vida inteira.

— Feroz! — gritou. — Não, não, não! Por favor, Feroz, por favor! Bhima. Bhima, venha aqui! Ai, meu Deus, não!

Bhima entrou correndo no quarto.

— Serabai — gaguejou ela, sem saber o que fazer. — Arre, Bhagwan, o que significa mais essa tragédia que se abateu sobre nós?

Estava acabado. Seu casamento estava acabado. Assim, sem mais nem menos, num piscar de olhos, Feroz tinha ido embora. Feroz, marido e opressor, amante e algoz, vítima e torturador. Nenhum homem a tinha feito mais feliz nem mais infeliz. Nenhum homem a tinha amado assim tão apaixonadamente. Nenhum homem tinha feito mais para asfixiar o amor que sentia por ele. Feroz tinha lhe mostrado à chave da felicidade, mas essa chave abriu também as portas do inferno. Ele era um homem muito ativo, agressivo, brilhante, violento e ciumento, mas era também amoroso, generoso e capaz de desprendimentos. Talvez tenha sido culpa sua nunca ter aprendido a lidar com aquele homem, a conduzir o barco pelas águas revoltas que ele deixava no seu rastro. Será que outra mulher, mais experiente e mais sábia, teria feito diferente? Será que outra mulher teria tratado Banu apenas como um incômodo, uma irritação, nada mais do que isso?

— Feroz — disse, chorando. — Feroz, meu marido. Desculpe-me, desculpe-me por tudo. Desculpe-me por ter sido uma esposa tão incompetente. Eu estava tão perdida na minha própria infelicidade que nunca parei para considerar a sua.

Devia estar falando em voz alta, porque Bhima agora estava de pé ao seu lado, levantando sua cabeça e afastando o cabelo de seu rosto, que estava quente e coberto de lágrimas.

— Vamos, Serabai — disse Bhima baixinho. — Essa é a hora de ter coragem, bai. E a senhora não tem por que pedir perdão. Todas as vezes que os homens vão embora, as mulheres pedem perdão. A senhora foi uma boa esposa, bai. Vi isso com os meus próprios olhos, dia após dia. Agora venha, temos que avisar Dinaz.

Dinaz. O coração de Sera ficou congelado ao pensar em dar a notícia à filha. Mesmo assim, forçou-se a pensar no assunto.

— Eles devem estar a caminho de casa. É melhor tentar encontra-los pelo celular. Me dê o caderninho de telefones, Bhima. Tenho o número do celular do Viraf anotado lá.

Ela parou no meio do caminho quando um outro pensamento lhe ocorreu.

— Ai, meu Deus. Alguém vai ter que dizer à velha que o... que o filho dela morreu.

Sera começou a soluçar novamente.

— Viraf baba pode fazer isso — sugeriu Bhima do outro aposento. — A senhora não precisa ir lá, bai. E sabe-se lá se a pobre mulher vai ser capaz de entender. Ela fica lá deitada como um vegetal o dia inteiro.

A campainha da porta tocou meia hora depois. Viraf e Dinaz entra-ram com os olhos e o nariz vermelhos.

— Saltamos do metrô — disse Viraf, sem fôlego. — Pegamos um táxi. Dinaz ficou impaciente no sinal e ai então saltamos do táxi e viemos correndo o resto do percurso.

O som dos soluços de Dinaz cortou o coração de Sera. Não ouvia sua filha soluçar assim desde que ela tinha 12 anos. E claro que Dinaz tinha chorado no enterro de pappa Freddy, e a própria Sera sentiu como se tivesse perdido seu braço direito quando Freddy morreu, mas esse sofrimento pelo pai morto era diferente — cortante, ácido e quente como ferro em brasa.

— Não pude nem dizer adeus a ele — disse Dinaz soluçando. — E ainda por cima, com Viraf e eu morando no subúrbio, quase não estive com ele nesses últimos meses.

Sera procura por moedas de ouro no saco da memória.

— Eu sei, deekra, eu sei — murmurou, enquanto fazia isso.

De repente, encontrou o que estava procurando.

— Sabe o que seu pai me disse dois ou três dias atrás? Que o seu casamento era a única grande fonte de alegria na vida dele.

Mas a sua oferenda teve uma reação contrária, porque agora havia um novo som de sofrimento no ambiente, o corpo esguio de Viraf estava dobrado pela dor e seu nariz comprido estava vermelho como uma beterraba.

— Ele era um rei — balbuciou Viraf. — Pappa Feroz era um verda-deiro príncipe.

Repentinamente, Sera se viu envolvida numa bolha onde o pensa-mento era claro e objetivo, flutuando intocado no mar revolto do sofri-mento impensado e tumultuado que rolava em volta dela. “Então é assim que a história se reescreve”, pensou. “Começa assim, com os ânimos exaltados. Agora, não é mais suficiente para um homem ter sido apenas um homem. Agora, o protocolo do sofrimento exige que o transformemos num príncipe, num rei. Agora, os defeitos de um homem devem ser passados a ferro como as pregas de um terno, até ele aparecer diante de nós tão impecável e sem defeitos como no dia em que nasceu. Como se a terra fosse se recusar a recebê-lo, como se os abutres da Torre do Silêncio se recusassem a bicá-lo se não fosse restaurada a sua glória original. Na morte, todos os homens viram santos.” Ao mesmo tempo, aceitava e se rebelava contra esse pensamento. “Talvez fosse melhor assim, esse apagar das mas recordações, substituindo-as por outras mais felizes, como se troca uma toalha de mesa suja. Mas, se fosse verdade, o que fazer com esse seu corpo pesado e desajeitado, esse corpo que exibia sua verdadeira história, esse corpo que queria declarar e testemunhar o que foi feito dele? Esse corpo maltratado e machucado que foi punido pelos crimes de outras pessoas, pelas iras ciumentas de Feroz e pelo jeito conivente e supersticioso de Banu. Será que esse seu corpo, esse suéter feito de músculos, ossos e nervos, será que esse corpo teria que morrer, será que o seu sangue deveria congelar na imobilidade antes que alguém fizesse sua louvação e dissesse que aquele era o corpo de uma princesa ou de uma rainha?”

— Mamãe, diga alguma coisa, por favor. Estou me sentindo tão sozinha!...

A voz de Dinaz furou a bolha de Sera e ela se sentiu outra vez mergulhar nas águas quentes e borbulhantes do sofrimento.

— Venha cá, minha querida — disse Sera, acariciando a cabeça da filha. — Você nunca vai estar sozinha, nunca enquanto eu viver.

 

PARA ESPANTO DE SERA, TRÊS ANOS SE PASSARAM desde aquele dia. “Como pode, se a memória do sofrimento daquele dia é ainda tão pungente, como se alguém tivesse salpicado pimenta em pó nos meus olhos?” No entanto, admite para si mesma que nunca se sentiu tão feliz como nesses três últimos anos, com a filha e o genro morando com ela e um novo ser a caminho. Sente uma ponta de tristeza quando pensa que Feroz não vai estar aqui para curtir o neném prestes a chegar. Acha que ele adoraria o neto, tanto quanto amava Dinaz. “Ainda assim”, pensa, “será ótimo ter o bebê só para mim enquanto Dinaz e Viraf estão no trabalho”. Vai curtir o netinho como nunca pôde curtir a Dinaz. Afinal, Dinaz nasceu numa casa sempre ensombrecida pelo comportamento irracional de Banu e pelas temidas explosões de raiva de Feroz. Mesmo depois que se mudaram da casa de Banu, Sera nunca se sentiu completamente livre da presença da velha, ficava apreensiva a cada toque inesperado na campainha. E, contrariando suas esperanças, os punhos de Feroz não pararam de atacar depois que se mudaram. De certa forma, tinha lhe dado outra desculpa mais permanente para seus ataques de raiva — a separação forçada da mãe.

“Mas isso tudo já terminou”, diz a si mesma. “O lar que você nunca teve com o seu marido tem agora com a sua filha e o seu genro. Viraf e Dinaz lhe deram aquilo com que você sonhava. E então, sua boba, por que viver tanto no passado quando o presente esta tão cheio de esperança?”

Viraf dá uma cotovelada de brincadeira nas costelas de Sera.

— Su, che, mamãe?

Ele sorri.

— Por que todos esses sorrisos secretos e sedutores? Pensando num novo namorado? Como é o nome dele, Pestonji Pipyadas? Cuidado, porque todos esses bhaiyas vão pensar que você os está paquerando.

Sera cai na gargalhada.

— Que bobo! — diz em tom de deboche. — Eu deveria contar a sua mãe as coisas ridículas que saem da sua boca.

— Tenho certeza de que minha mãe nem sabe o que quer dizer pa-querar — responde ele prontamente.

Pisca para Dinaz e se volta para Sera.

— Afinal, ela não é tão glamourosa quanto a senhora. Quer saber, Dinaz, se a sua mãe fosse vinte anos mais nova...

— Ignore-o, mamãe — diz Dinaz, pegando no braço de Sera.

Ela se vira para o marido com a voz exaltada.

— Seu saparchand, seu cabeça-oca! Vai dar de comer a sua esposa grávida ou vai apenas alimentar a sua boca com essas maluquices? Vamos, estou morrendo de fome.

— Vamos ver se a barraca do Ramdas ainda está por aqui — sugere Sera. — Ele era o bhaiya favorito do seu pai aqui em Chowpatty.

Procuram a barraca, mas as coisas mudaram.

— Esqueçam — diz Sera. — Vamos comer em outro lugar qualquer.

Estão começando o segundo prato de bhelpuri quando Dinaz deixa escapar um grito de surpresa.

— Vejam só quem está aqui — exclama a moça com a boca cheia.

— Não estou entendendo nada — diz Viraf. — Engula primeiro e depois fale.

Dinaz engole a comida. Seus olhos brilham de animação.

— Vejam, Bhima e Maya, na barraca ali em frente. Meu Deus, faz séculos que não vejo a menina. Bhima! — grita ela.

— Talvez não devêssemos incomodá-las — diz Viraf. — Afinal, depois que Maya perdeu a criança, ela pode estar...

Dinaz o ignora.

— Bhima! Maya! Aqui! — grita Dinaz, acenando freneticamente.

 

BHIMA SE VIRA. SEU ROSTO SE ILUMINA com um prazer ge-nuíno ao ver quem a chamou. Dinaz está acenando para elas e, mesmo àquela distância, Bhima consegue ver o sorriso entusiasmado no rosto dela.

— É a menina Dinaz — diz a Maya, puxando-a pelo pulso. — Va-mos, vamos lá falar com eles.

— Vá você, vovó — retruca Maya. — Fico esperando aqui.

— Arre, wah.

Bhima parece chocada.

— O que foi? Ficou tão importante que não pode andar um pouquinho para falar com as pessoas que a cumprimentaram?

Aperta o braço de Maya.

— Vamos, menina preguiçosa.

— Oi — diz Dinaz, quando elas se aproximam. — Ei, Maya, há quanto tempo. Como vai você?

— Vou bem — balbucia Maya, olhando para a barriga crescida de Dinaz.

Dinaz capta o olhar dela e ri.

— É, provavelmente engordei como uma porca desde a última vez que você me viu, não é? — comenta, dando palmadinhas na barriga.

Um olhar de súbito desprezo atravessa o rosto de Maya.

— Eu estava assim também. Quer dizer, até sua mãe dar um jeito em mim — diz e encara desafiadoramente Serabai, que empalidece diante da inexplicável indelicadeza da garota.

Bhima fica mortificada. “Mas o que deu nessa menina?”, pergunta-se. Olha para o chão, tentando encontrar uma desculpa para o comportamento de Maya, quando Serabai vem em seu socorro.

— Mas isso faz mais de um mês, Maya — diz no seu tom de voz comedido de sempre. E o que passou passou. Mas você tem que vir conversar comigo sobre o que vamos fazer com relação a sua faculdade.

Maya resmunga alguma coisa e olha para o outro lado. Debaixo das luzes douradas das barraquinhas de comida, os olhos da moça parecem artificialmente brilhantes, e seu rosto está tão vermelho que Bhima se pergunta se Maya não está ficando doente. “Isso explicaria seu comportamento estranho”, pensa.

Ainda olhando para a neta, Bhima percebe um movimento com o canto do olho e o segue até o rosto de Viraf, que, por trás de Sera e Dinaz, está fitando Maya. Como a moça, ele também está com uma expressão perturbada e alterada, que nada tem a ver com sua auto-confiança habitual. Bhima olha para ele como que fascinada. Viraf morde o lábio superior, e seus dedos longos e finos brincam nervosamente com os fios de barba de seu rosto. O rapaz parece doente... não, parece amedrontado... ou melhor, culpado. Bhima percebe isso e repara que Viraf está, na verdade, tentando se esconder atrás da mulher e da sogra. Lembra-se de um incidente ocorrido na basti há alguns meses, quando uma das moradoras acusou o filho adolescente de uma vizinha de roubar dinheiro de seu barraco. O rapaz balançou a cabeça negando veementemente, mas a expressão afogueada e culpada em seu rosto, sua dificuldade para engolir e a freqüência com que passava a língua nos lábios secos contavam uma história diferente. Viraf está igualzinho, nota Bhima espantada, como se fosse um ladrão ou culpado de alguma coisa, mas de quê?

Dinaz também deve ter sentido alguma coisa, porque vira-se para trás e pega a mão do marido.

— Poxa, querido, você nem disse um “oi” para Maya e Bhima.

Viraf faz um gesto de concordância.

— Oi — diz ele em voz baixa, deixando que seus olhos pousem so-bre a cabeça curvada de Maya antes de pousarem em Bhima. Tem um pequeno sobressalto quando nota o jeito atento com o qual ela está olhando para ele.

Dinaz ri alegremente.

— Já está passando da hora de esse aqui ir dormir — diz, cutucando Viraf. — Ele nem queria sair hoje à noite. Mas eu estava com desejo de comer bhelpuri. Acho que já vamos indo.

— Vou na frente para pegar o carro — diz Viraf imediatamente. — Vocês podem me esperar no sinal.

Dinaz se vira para Maya e diz:

— Foi tão bom ver você, Maya! Sinto sua falta na casa de mamma Banu.

Estende os braços para dar um rápido abraço na moça e lhe diz baixinho:

— Sei que você vai retomar a faculdade assim que puder. E sinto muito por sua perda.

Quando as duas vão embora, Bhima se sente enraizada naquele lugar, como se fosse uma daquelas esculturas de deuses hindus feitas de areia em Chowpatty às quais os passantes atiravam moedas. Na verdade, estava se sentindo como se fosse de areia e bastasse um balde de água para destruí-la. O mundo a seu redor também parecia feito de areia; um mundo instável, ambíguo e impermanente. Um mundo onde nenhuma das antigas regras e dos velhos tabus se aplicava mais. Um mundo no qual uma garota da favela, de família pobre, pode seduzir um rapaz limpo e bonito de classe média alta, cuja mulher está prestes a ter o seu primeiro filho. Um mundo no qual Maya e Viraf...

Foi estranho o modo como descobriu. Num momento não sabia de nada, no momento seguinte, sabia de tudo. Num momento, sua cabeça ficou vazia como um deserto. No seguinte, a serpente da suspeita tinha se esgueirado para dentro de seus pensamentos e levantado sua cabeça venenosa. E agora tinha que conviver com a consciência arrasadora de saber que Viraf Davar era o pai da criança morta de Maya, enquanto ela, Bhima, suspeitou de todos os jovens e homens da favela, enquanto tinha se humilhado diante daqueles rapazes debocha-dos na faculdade de Maya, enquanto tinha ingenuamente imaginado sua neta numa cozinha com pratos e panelas brilhando. Nunca lhe passou pela cabeça procurar a serpente debaixo do próprio nariz.

“Mas talvez eu esteja errada”, pensa. “Talvez essas suspeitas também sejam de areia e uma boa onda haste para derrubá-las.” Se assim for, espera que as águas do esquecimento venham lavar as dúvidas que estão roendo o seu coração. Mas, mesmo rezando por isto, sua certeza se endurece como cimento.

Ao lado dela, Maya está inquieta.

— Ande, vovó — diz ela. — Quero ir para casa.

— Não há nenhuma casa em nosso futuro retruca Bhima enigmati-camente. — Não há lugar de descanso para os pecadores nesse mundo. Por culpa dos seus pecados, vou ter que cumprir ciclos intermináveis de vida nesse mundo infeliz. Então, é melhor começar a praticar desde já. Não, venha comigo, preciso caminhar um pouco mais.

O rosto de Maya fica afogueado e ela arregala os olhos ao fitar o rosto ossudo da avó. Abre a boca como se fosse protestar, mas Bhima começa a andar em direção à praia e, depois de um segundo, a moça a segue.

Caminham em silêncio total. Mas esse silêncio está gritando, um si-lêncio estridente e repleto de sons: as batidas do coração de Bhima, o medo dilacerante como uma garra rasgando a garganta de Maya, o rangido que os pés de Bhima fazem ao se enfiarem na areia com raiva. As duas caminham dentro desse silêncio, com medo de tocar em seus limites, porque romper o dique do silêncio significaria liberar a torrente das águas da raiva, da ira e da fúria que se precipitariam, fazendo com que o tsunami do passado recente — o passado que ignoraram, abortaram e mataram — viesse rugindo destruir seu tênue presente.

Mas a tranqüilidade, como o amor, não dura para sempre.

E então Bhima começa a falar, se é que o som engasgado como de um animal que ela emite pode ser chamado de fala.

— Por quê? — pergunta com um gemido. — Por que ele?

Maya olha para a avó com um olhar de incerteza, como se não sou-besse ao certo se Bhima estava falando com ela ou com alguma divindade invisível, flutuando acima das águas do mar da Arábia, rindo delas. Ela fita as águas vastas e infinitas.

A falta de reação de Maya deixa Bhima enfurecida. Dá uma pancada forte nas costas da neta, que quase cai para a frente.

— Eu lhe fiz uma pergunta, sua sem-vergonha — exclama ela, mas Maya continua calada.

— Ashok Malhotra, não é? provoca Bhima. — Primeiro voce seduz um homem casado e decente, depois mente para me afastar do seu rastro de vergonha. Você cuspiu no prato em que comeu. Traiu a confiança que toda a família Dubash depositou em você. A esposa daquele rapaz, a Dinaz, é como uma filha para mim. Como é que vou encará-los agora? Namak-haram, traidora, cada letra que você sabe ler, cada ponto de linha da roupa que você usa, cada grão de sal que você come, tudo isso vem da generosidade de Serabai.

O rosto de Maya é um campo de batalha onde emoções conflitantes se entrechocam. Bhima está contando que a garota vá continuar negando a identidade do pai de seu filho morto, fingindo não saber do que ela está falando. Mas a hora do fingimento acabou, e a resignação cansada no rosto de Maya é a confirmação final de que precisava.

Mas antes que ela possa falar, Maya o faz.

— Isso não é verdade, vovó — exclama. Eu já estava aprendendo a ler e a escrever antes de vir para Bombaim. Meus pais me mandaram para a escola em Delhi. Serabai quis acreditar que eu era uma menina burra que ela poderia salvar da ignorância. Quanto às minhas roupas e minha comida, sou grata a você, não a ela. É o seu suor e o seu trabalho duro que produzem essas coisas, não a generosidade de Serabai. Se você parasse de trabalhar durante um mês, ela não mandaria o seu salário pelo correio.

Bhima fica olhando boquiaberta para a neta.

— Olhe só para ela — diz mansamente, como se estivesse falando consigo mesma. — Ouça as palavras pecadoras que saem da boca dessa desgraçada ingrata. Está cuspindo na mulher que construiu sua vida. E tudo porque fez as suas safadezas com o genro de Serabai e agora precisa encobrir a mancha da sua culpa. A minha Pooja, que Deus a tenha, deve estar chorando lágrimas amargas de vergonha por esse monstro a quem deu à luz.

Param de caminhar e ficam a poucos centímetros uma da outra, ignorando a água morna que batia em seus pés e os olhares nitidamente curiosos dos passantes.

— Por que é tão fácil para você decidir que a culpa é minha, vovó? — pergunta Maya, com o peito arfando de emoção. Por que essa pressa em fazer da sua neta a única pecadora aqui? E o que será que ele fez? Ou será que todos os membros dessa família vão continuar sendo santos na sua cabeça? Você só consegue xingar e culpar sua própria família por cada ato mau ou vergonhoso?

Agora, Bhima consegue ouvir o ódio na voz de Maya e se lembra de como a menina ficou tensa quando ouviu Dinaz chamando por elas. Naquele momento, achou que a vergonha fosse o motivo da tensão de Maya e de sua recusa em ir cumprimentar Dinaz. Afinal, a neta tinha agido de modo estranho com Serabai até no próprio dia do aborto e vinha se recusando a visitar a casa da família Dubash desde então. Bhima examina a neta com cuidado.

— Ele...Viraf baba... machucou você?

Ela engole em seco a raiva assassina que acompanha seus pensamentos.

Maya balança a cabeça com impaciência, corno se a pergunta de Bhima fosse uma mosca zumbindo em seus ouvidos.

— Você acha que fui eu que fiz a coisa errada. Por quê, vovó? Por que você ama mais aquela família que a sua própria?

Bhima engole a culpa que queima como lava derretida descendo por sua garganta.

— Nunca diga isso — diz ela baixinho. — Como pode dizer isso quando você é o mundo todo para mim? Poxa, por você eu poderia...

Ela balança a cabeça emocionada, incapaz de completar a frase, e volta para a areia seca, procurando um local afastado das outras pessoas. Senta-se na areia, puxando Maya consigo.

Durante alguns minutos, elas escutam em silêncio as ondas batendo na praia. Bhima se vira para Maya. Seu rosto está cheio de bondade, livre da raiva e de qualquer julgamento.

— Conte-me o que aconteceu, beti — pede delicadamente. — Conte-me a história toda.

E Maya conta a sua história.

 

MAYA ESTAVA NA COZINHA DE BANUBAI preparando o chá para a velha quando a campainha tocou. Ela levantou os olhos, surpresa. Eram quatro e meia da tarde e não estava esperando ninguém. Gita, a enfermeira da noite, só chegaria às oito.

Abriu a porta. Era Viraf.

— Ah, Viraf baba — exclamou. — Veio mais cedo hoje?

Sabia que Viraf geralmente passava lá a caminho de casa, quando voltava do trabalho, para dar uma olhada na velha. Depois, notando o olhar agitado no rosto dele, sentiu um aperto no estômago.

— Estão todos bem? Dinaz não está doente ou coisa que o valha, não é?

— Não, está tudo bem, todo mundo está bem — respondeu ele, descartando a idéia, ao passar por ela a caminho da sala de jantar.

Depois, vendo o olhar de apreensão no rosto de Maya, Vira disse:

— Não se preocupe. Dinaz está ótima. A única coisa errada é aquele seu temperamento desgraçado. Menina mimada. Parece até que ela é a primeira pessoa no mundo a ficar grávida.

Maya empalideceu. Não conseguia suportar que ninguém, nem mesmo Viraf, falasse de Dinaz daquela maneira. Vendo o olhar estupefato em seu rosto, ele sorriu maliciosamente.

— Ah, me desculpe por criticar a sua tão preciosa Dinaz disse ele. — Esqueci a adoração que vocês têm uma pela outra. Devia ter pedido a sua ajuda para tentar levá-la ao cinema hoje á noite. Sai mais cedo do trabalho por essa razão. Mas é claro que ela estava tendo uma de suas crises de mau humor, parecia até a deusa Durga. Em vez de sairmos, ela me passou um sermão dizendo que preferia ficar em casa fazendo algum trabalho doméstico e que eu era um irresponsável de vir para casa e esperar que a minha esposa passasse algumas horas comigo. Então, é claro, eu é que sou o chootia aqui.

Maya se encolheu ao ouvir aquela expressão grosseira. Nunca tinha ouvido Viraf falar daquele jeito, como um dos vagabundos da favela onde morava. Algo de seu desapontamento chocado deve ter aparecido em seu rosto porque os modos de Viraf mudaram e ele parecia arrependido.

— Desculpe — disse suavemente. — Acho que me deixei levar pela emoção.

Displicentemente, ele puxou Maya para perto e lhe deu uns tapinhas suaves nas costas.

— Maya, minha querida — murmurou ele. — Esqueci que você era leal como um cachorrinho.

Maya ficou surpresa, envaidecida, confusa. Depois da menina Dinaz, Viraf baba sempre foi a pessoa de quem mais gostava naquela família. Feroz seth a deixava aterrorizada, e mesmo que Serabai fosse sempre muito gentil havia alguma coisa naquela mulher alta e cheia de dignidade que a intimidava. Mas, desde que conheceu Viraf, ele sempre a tratou de modo brincalhão e gozador, sem a distância que Serabai impunha. E ele também era capaz de rasgos de generosidade para com ela e sua avó. Na semana passada, Bhima chegou em casa com uma caixa de doces tão grande que tiveram que dividir com os outros moradores da favela.

— Viraf baba nos deu isso — disse Bhima com um largo sorriso. — Um cliente lhe deu três caixas de mithai, e ele nos deu uma delas.

Mas, mesmo assim, ele nunca tinha tocado nela ou falado com ela de modo tão afetuoso e informal. Na verdade, nunca o viu assim tão irrequieto, tão agitado, tão extrovertido e, obviamente, necessitando de apoio. Alguma coisa se abrandou dentro dela, um sentimento úmido e terno surgiu em seu peito. Ficou tímida e muda, lutando contra o impulso de ficar olhando para os próprios pés descalços. Fm vez disso, forçou-se a olhar para o rosto corado de Viraf, tentando encontrar um modo de confortá-lo, para que ele recuperasse aquele seu bom humor habitual.

— Chá — disse ela. — Estou preparando uma bela xícara de chá para Banubai. Vou fazer para você também, Viraf baba.

Ele sorriu e voltou a se parecer com o velho Viraf.

— Ok. Vou cumprimentá-la e depois vou para o outro quarto verificar as contas dela. Afinal, vim aqui para isso.

Seu rosto se entristeceu novamente.

— Esta casa é muito deprimente, mas pelo menos tem um pouco de paz e tranqüilidade para se trabalhar, sem uma mulher resmungona, com os hormônios enlouquecidos, despejando tudo em cima de nós, pobres machos.

Ele deu um sorriso repentino para Maya.

— Aqui não tem mulher chata me incomodando. Em vez disso, te-mos uma velha malvada e entrevada que fica mandando em você.

Ela nunca o tinha visto daquele jeito, tão agitado. O antigo Viraf, a-quele ao qual estava acostumada, ficava aparecendo e sumindo, como o sol por trás das nuvens. Ela o fitou boquiaberta, sem saber direito se ele estava brincando ou se estava falando sério ou como deveria reagir às coisas que ele estava dizendo sobre sua família. Sentiu-se jovem demais, pequena demais e também crucialmente consciente do seu estranho status naquela família, condenada a ouvir sem falar, sem poder aceitar sua provocação ou dizer o que realmente sentia por Banubai, sem poder dizer que concordava com ele sobre ela ser uma velha malvada que tornava infeliz a vida de todo mundo.

Exatamente naquele momento, os sons engolfados de Banu chegaram até eles.

— Urgghh, urgghh, urgghh — balbuciou.

Viraf voltou as costas para Maya piscando.

— Ela não perde uma, não é mesmo? — disse ele. — Bem, está na hora de pagar minha promessa para Kali devi, a deusa.

Dessa vez, Maya quase engasgou, escandalizada com esse desrespeito flagrante.

— Viraf baba — protestou, mas ele já tinha saído.

— Kern, Banubai. Olá — Ela o ouviu dizer. — Como a senhora está se sentindo hoje? Está com boa aparência, as bochechas estão vermelhas como as maçãs da Caxemira. Mantendo todos os empregados sob controle, imagino.

Na cozinha, Maya ouviu Banu emitir um som engasgado que sabia ser uma gargalhada. Esse Viraf baba era demais. Maya sorriu consigo mesma. Quando ele jogava seu charme, conseguia fazer até com que os mortos rissem.

Quando foi lhe levar a xícara de chá, ele estava sentado, encurvado sobre urna pilha de contas e o talão de cheques de Banu. Tinha tirado a gravata, ajeitando-a sobre a cama, e arregaçado as mangas da camisa.

— Obrigado — disse ele com um sorriso e depois voltou para as contas. — Urna boa xícara de chá. É exatamente disso que eu preciso.

A imagem do sorriso de Viraf a aqueceu enquanto ela servia a xícara de chá de Banubai, segurando um guardanapo de pano debaixo de seu queixo para aparar o filete de líquido que escorria da boca flácida e sem controle da velha. Como de hábito, também mergulhou dois biscoitos no chá com leite e pôs na boca de Banu. Às vezes, quando estava zangada com Maya, Banu cuspia o chá e os pedaços amolecidos de biscoito, e a garota tinha que limpar o rosto e as roupas com o guardanapo. Mas hoje Banu estava de bom humor, alegre pela atenção de Viraf e por suas palavras sedutoras.

— Ok, inanmia — disse Maya bruscamente depois que Banu terminou o seu chá. — Agora vamos dormir um pouco, como urna boa menina. O jantar vem mais tarde. A senhora vai dormir o sono da beleza.

Os olhos acinzentados e leitosos de Banu acompanhavam-na enquanto ela arrumava o quarto. Mas quando Maya olhou para ela novamente, a velha já estava dormindo, com a boca aberta.

Ao entrar no quarto onde Viraf estava trabalhando, Maya o encon-trou estendido na cama. Ele se espreguiçou quando a viu e disse:

— Aquele chá estava tão bom que me fez ficar meio sonolento. Pensei em tirar um cochilo rápido. Dinaz fica tão irrequieta à noite por causa da gravidez que nunca mais tive uma boa noite de sono.

Ela estava prestes a sair do quarto com a xícara vazia quando ele pediu:

— Maya, veja no armário de remédios se tem um vidro de Iodex, por favor. Estou com torcicolo. São muitas horas sentado à minha mesa de trabalho.

Ela retornou com o pote pequeno e escuro e o estendeu para ele, mas ele deu um sorriso pidão e disse:

— É difícil alcançar o local. Você pode passar em mim?

Ela hesitou por um segundo e depois mergulhou dois dedos na po-mada negra. Viraf desabotoou os dois primeiros botões da camisa e se virou de bruços. Quando os dedos de Maya tocaram na sua pele, ele soltou um pequeno grito.

— Suas mãos estão frias — reclamou, mas ela pôde ouvir o sorriso em sua voz.

Os dedos de Maya encontraram o nó no músculo e o massagearam para desfazê-lo.

— Aperte mais fundo — pediu Viraf.

Ele se virou ligeiramente de lado e desabotoou mais alguns botões para lhe dar mais espaço para trabalhar.

— Ai, Deus a abençoe — disse ele com um suspiro, quando o rnúsculo se soltou sob a pressão da mão dela. — Eu mal conseguia mover o pescoço antes. Esse é talvez outro motivo de eu estar de mau humor.

Algo se mexeu dentro dela.

— Minha avó também tem esses torcicolos. Mas sempre consigo dar um jeito — disse com orgulho. — Minha avó diz que eu faço nela a melhor charnpi-malish que tem, a melhor das massagens.

Ela sentiu Viraf sorrir.

— Aposto que você não é tão boa quanto aqueles massagistas da praia de Chowpatty — provocou ele.

— Isso não é justo.

Ela riu.

— Aqueles bhaiyas usam óleo de amêndoas com masa/a, erva, e sei lá mais o que dentro.

— Então pegue o óleo Johnson — retrucou Viraf, ainda com o sorriso na voz. — Aí veremos se você é boa mesmo.

Ela fez urna pausa, sem saber se ele estava brincando ou nao. Percebendo sua hesitação, Viraf se virou e lhe deu um pequeno empurrãozinho.

— Vá — pediu ele. — Seria ótimo se você fizesse uma massagem nas minhas costas.

Quando ela voltou ao quarto, ele tinha tirado a camisa. Ficou surpresa ao ver como as costas dele eram macias e sem pêlos. E a pele era clara, tão clara... A cor e a textura do trigo atta que a vovó amassava para fazer chappatis. Em comparação com aqueles vagabundos que perambulavam pela favela com seus lungis de xadrez e as costas peludas como a dos ursos no circo, as costas de Viraf pareciam tão pouco ameaçadoras quanto uma forma de pão.

Verteu o óleo, tentando olhar para a parede e não para as costas lisas de Viraf. Nunca tinha tocado nas costas de um homem antes e ficou encabulada e sem palavras. Mas seus olhos continuavam a fitar a marca de suas mãos morenas naquela pele cor de manteiga.

— Hum, hum, hum — gemia Viraf. — Poxa, você não estava men-tindo! Urna massagem sua e aqueles massagistas de Chowpatty teriam que passar a vender narial pani.

Era bom poder lhe dar esse prazer. À medida que suas mãos amassavam e acariciavam as costas de Viraf, à medida que conseguia pôr para fora a tensão de seus músculos contraídos, Maya foi se sentindo forte, importante, poderosa. Aquele Viraf de mau humor, provocador e gozador de antes tinha ido embora, vencido por suas mãos rápidas, sábias e capazes. Podia movê-lo, moldá-lo e renová-lo com as suas maos. Talvez relaxado assim fosse mais compreensivo com Dinaz quando voltasse para casa. Maya suspeitava de que as coisas não iam muito bem entre o casal. Ouviu algumas vezes os murmúrios zangados que vinham do quarto deles quando ia lá buscar sua avó, mas até então não tinha a menor noção de que havia alguma coisa que pudesse fazer com relação àquilo. Agora, observando os músculos agradecidos de Viraf se desenroscando como cobras no cesto do encantador de serpentes, percebeu que estava enganada. Maya ficou espantada ao olhar para baixo e ver suas mãos morenas se movendo como sombras nas águas plácidas das costas dele.

— Mais para baixo — sussurrou ele. — A região lombar dói como o diabo.

Ela trabalhou naquela região, tomando cuidado para manter as mãos acima das nádegas, mas deixando que seus olhos passeassem por ali. Estava hipnotizada pelos movimentos rítmicos e circulares de suas próprias mãos. Viraf ficou tão quieto por alguns momentos que ela se perguntou se ele tinha pegado no sono.

Foi então que ele se virou e, durante um momento confuso, suas mãos tocaram o ar, e logo depois ela estava massageando os pêlos escuros do peito dele, sentindo a delicadeza enternecedora dos ossos de suas clavículas, a cavidade triste de suas costelas, sentindo a tensão nos músculos do peito dele e reconhecendo, de algum modo, com uma sabedoria antiga e primal, que ela era a causa daquela tensão, daquela respiração entrecortada. E seu espanto se transformou em orgulho, e o orgulho se transformou em pânico quando Viraf se ergueu e, com suavidade e firmeza, empurrou suas costas em direção a cama, segurando seus ombros para baixo, de modo que por um momento absurdo a parte superior do corpo dela estava no colchão firme enquanto suas pernas ainda estavam balançando acima do chão. Sentiu um aperto no estômago, quando Viraf baixou os lábios em direção ao seu seio, foi tomada por uma onda de outros sentimentos, uma onda que percorreu as suas coxas, rompendo o dique da resistência, fazendo com que suas pernas ficassem pesadas e fracas ao mesmo tempo.

Protestou; não protestou. Não importava, porque o que estava para acontecer era inevitável, já estava acontecendo, e os dois sabiam disso. Eram como nadadores apanhados na mesma correnteza. Olhavam um para o outro sérios, e sem dizer uma palavra. O quarto — o mundo todo — ficou silencioso ao seu redor. Eram as duas únicas pessoas nele, as duas últimas pessoas que ainda permaneciam nele, e não havia mais ninguém, nenhum pensamento em mais ninguém. Não havia nenhuma mulher entrevada no quarto ao lado, não havia nenhuma enfermeira que chegaria logo para render Maya, não havia Bhima para desaprovar o que estava acontecendo ali e, acima de tudo, não havia Dinaz com uma criança crescendo em sua barriga.

— Ai, meu Deus, meu Deus, meu Deus! — dizia Viraf quando se a-jeitou em cima dela. Maya mordeu o lábio inferior para evitar se render à dor aguda que transpassou seu corpo quando ele a penetrou; tentou agarrar as costas dele ao arquear o corpo em sua direção, mas suas mãos escorregaram por causa do óleo. E depois era tudo só fricção e movimento, tudo úmido e escorregadio: o óleo nas costas de Viraf, o sangue por ter mordido a boca com muita força, e um sangue diferente, mais cerimonial, que escorria de um outro lugar; as lágrimas que surgiam nos seus olhos apertados de prazer e dor, o suor que fundia seus corpos como uma cola e, finalmente, a explosão do membro intumescido e quente de Viraf dentro dela.

Maya recobrou os sentidos antes dele. Enquanto estava ali, congelada e rígida de terror e vergonha, ele ainda estava afogueado e mole por causa do calor e do gozo.

— Faz tanto tempo... — ela o ouviu dizer. — A gravidez de Dinaz... está tão frígida... não me deixa nem chegar perto dela...

Mas os sinos clamorosos do seu próprio medo mal deixavam Maya ouvir o que ele estava dizendo.

O telefone tocou. Eles se olharam por um segundo, com os olhos arregalados de incerteza. E então ele ordenou:

— Vá atender.

Ela pulou da cama e vestiu seu salwar-khamez, envergonhada de estar nua na frente dele. Mas não havia desejo em seus olhos, apenas um rosto inexpressivo que ela não conseguiu decifrar. O toque do telefone acabou com o sonho de Viraf e o trouxe de volta à realidade.

Era Dinaz, perguntando por ele.

— Oi, minha Maya. Por que demorou tanto a atender?

Maya poderia ter chorado com o carinho e a inocência que havia na voz de Dinaz.

— O Viraf está aí?

Ele estava de pé, atrás dela, pronto para atender o telefone.

— Peguei no sono durante alguns minutos, querida — ela o ouviu dizer a Dinaz. — Você sabe como é chato fazer a contabilidade da sua avó. Não, estou bem. Não precisa pedir desculpas. Não estou magoado, pode ter certeza. Podemos ver aquele filme bobo a qualquer hora. Volto para casa assim que terminar essas contas. Tchau, querida.

Maya estava na cozinha quando ele desligou o telefone e teve que se esforçar para olhá-lo. Estava sem palavras, envergonhada, humilhada. Queria dizer alguma coisa, explicar-lhe que era uma moça direita, que não fazia com outro homem o que tinha feito com ele e que, na verdade, nunca tinha feito aquilo antes. Mas o Viraf que a olhava de cima parecia tão remoto e distante quanto uma montanha.

— Tem alguma toalha limpa por aqui? — perguntou ele. — Gostaria de tomar um banho antes de sair.

Se ele notou o olhar magoado e amedrontado no rosto de Maya, fingiu que não percebeu.

— E você devia lavar o lençol antes de a enfermeira da noite chegar — prosseguiu. — Tem... sangue no lençol. Pode parecer suspeito.

Ela se acocorou num canto, chorando baixinho enquanto ele tomava banho. Sentia-se suja, contaminada, seu corpo tinha agora um cheiro que não reconhecia. Rezava para que ele ficasse no chuveiro para sempre, que nunca tivesse que encará-lo novamente. Mas, depois de algum tempo, ouviu a torneira ser fechada e logo ele estava diante dela com um cheiro suave de sabonete Yardley de alfazema.

— Escute, Maya — disse ele suavemente. — Estava no chuveiro pensando... Pensando sobre... sobre o que aconteceu agora há pouco, sobre o que você fez. É, foi muito feio o que você fez, me tentando daquele jeito, se aproveitando de mim quando eu estava mais fragilizado.

Ela tentou protestar, mas ele a silenciou.

— Shhh. Espere eu terminar. O que quero dizer é que perdôo você pelo que aconteceu, desde que isso não se repita e também desde que você não diga a ninguém o que fez. Porque a pobre da Dinaz, se algum dia viesse a saber, meu Deus, ela morreria. Nunca perdoaria você. Entendeu? Ela ia sentir isso como a pior das traições, ela que confia tanto em você. E, com a gravidez e tudo o mais, não posso correr o risco de que aconteça alguma coisa a ela. Lembre-se de que a família Dubash sempre foi boa com você e sua avó. Eles tratam vocês como se fossem da família e mandaram você para uma boa faculdade. Você tem um futuro brilhante pela frente. Não deixe que esse incidente arruíne a sua vida. Entendeu o que estou dizendo?

A raiva fez sua voz soar como aço.

— Mas não fiz nada — disse alto. — Quer dizer... o senhor é que pulou em cima de mim como um cachorro louco.

Pensou que ele a atacaria novamente, mas Viraf apenas a observou tristemente, abanando a cabeça.

— Maya, Maya — disse, com um suspiro. — Não fique assim. Se contar a alguém o que aconteceu, em quem acha que acreditariam? Em você ou em mim? Antes de mais nada, saiba que vou negar tudo. Tenha bom senso e não faça nada para prejudicar os seus estudos ou o emprego de Bhima. Por favor. Você me promete que vai deixar isso tudo para trás?

Maya fez que sim com a cabeça. Seu corpo doía, e tudo o que queria era que ele fosse embora. Antes, sentiu remorso, sentiu que tinha agido como uma depravada, mas esses eram sentimentos dela mesma, Maya. Agora, as palavras dele a faziam se sentir uma prostituta. Esperou em silêncio, como um animal acuado, enquanto ele juntava os papéis e os guardava no armário Godrej do quarto de Banu. Ele ficou na beira da cama da velha por um momento, como se estivesse indeciso sobre se devia acordá-la para se despedir, mas quando Banu soltou um ronco particularmente gutural ele recuou, saindo do quarto na ponta dos pés.

Na porta da frente, Viraf parou e olhou para Maya, e ela notou que os olhos dele estavam úmidos e carregados de emoção. Involuntariamente, seu coração pulou de esperança, na expectativa de uma palavra carinhosa, de um pequeno gesto que destruísse esse sentimento sub que se enroscava em suas pernas. Mordendo o lábio inferior,Viraf estava parado à sua frente,examinando seu rosto.

— Você está bem? — perguntou ele, e, quando ela não respondeu, uma sombra de aborrecimento passou pelo seu rosto. — Vamos, Maya, controle-se — disse ele. — O que aconteceu foi... Bem, aconteceu. Nin-guém tem culpa, está bem? Certo. De qualquer modo, a enfermeira da noite já deve estar chegando. Então, se você precisar, sabe como é, se limpar ou alguma coisa assim, melhor fazer isso antes que Banu acorde. E lembre-se: nem uma palavra para ninguém! É melhor você esquecer tudo isso.

Ele já estava do lado de fora quando se virou e disse:

— Ah, e mais uma coisa. Não se esqueça de lavar o lençol, ok?

 

BHIMA NUNCA SOUBE QUE O ÓDIO podia ter uma lâmina tão afiada. Que podia ser tão desconfortável, constante e insistente, como uma pedra num sapato ou uma peça de roupa apertada demais. Tampouco sabia o poder que o ódio tem de subjugar: como se apodera de cada antigo insulto, de cada antiga traição, reunindo tudo isso em nosso estomago num único ponto que queima. Como azeda tudo, parecendo um limão espremido em cima do mundo inteiro.

O jovem médico do hospital dos aidéticos que disse com desprezo: “Gente como vocês”; o contador que praticamente se cumprimentou por ter se aproveitado de uma mulher analfabeta; o velho médico que ignorou Gopal quando ele estava doente no hospital, até sentir o cheiro do poder e do dinheiro. E Gopal, que foi embora levando Amit consigo, como se o garoto fosse uma trouxa de roupa velha que se carrega de um lugar para o outro. Gopal, que lhe escreveu uma carta que era ao mesmo tempo um beijo e um assassinato.

E agora Viraf. Mas aqui o barulho das ondas no ouvido de Bhima é ensurdecedor, como o ronco daqueles aviões que ouviu uma vez no aeroporto Sahar, quando esteve lá acompanhando Serabai. Há um gosto amargo em sua boca que não desaparece, mesmo mascando tabaco. O ódio é como alfinetadas, como pequenas agulhas enfiadas no corpo inteiro. O ódio que sente por Viraf é um sentimento novo, tão cortante e afiado que manteve Bhima acordada a noite toda, o que a deixou se sentindo hoje de manhã em carne viva, machucada e sangrando. As coisas que antes gostava em Viraf, sua beleza, seu rosto saudável e bonito, agora despertam seu desprezo, porque as vê como uma máscara que esconde a sua natureza cínica e corrompida.

“Como será que ele se sente”, pensa, quando se levanta do colchão, “ao saber que um filho seu foi aniquilado, ao mesmo tempo que sua mu-lher está prestes a dar à luz outra criança? Será que considera isso um sinal de mau agouro, a sombra de seu filho morto se projetando sobre a felicidade de sua mulher? Ou será que se importa tão pouco com esse filho ilegítimo, que dorme despreocupado, vendo em seus sonhos apenas o filho que vai herdar a aparência do pai, seu charme, sua riqueza, seu poder?”. Ao pensar isso, o rosto de Bhima se anuviou de fúria. E depois das cinzas daquele último pensamento surge uma recordação: uma carona até o mercado, quando Viraf lhe disse calmamente como era importante não se perder mais tempo e conseguir um aborto para Maya, o mais rápido possível. “Assassino de crianças”, pensa Bhima enfurecida. “Que espécie de pai planeja a morte do próprio filho?”

Com certeza, foi por isso que Maya insistiu que Sera a acompanhasse à clínica de abortos. Serabai, sem saber, supervisionou o assassinato da criança que era a sombra escura, o irmão que poderia um dia desafiar a felicidade da família Dubash, a sua posição na sociedade e seu desejo de respeitabilidade. E Maya tinha arranjado a coisa de tal modo que Sera estivesse lá no momento da destruição, quando o agente desafiador seria silenciado para sempre. Bhima olha para Maya dormindo e, a despeito de sua repulsa, sente uma ponta de admiração pela moça. Maya fez tudo para que a família Dubash estivesse implicada na morte do seu filho, e que um pouco daquele sangue escuro manchasse suas mãos para sempre. Com certeza, Serabai foi para casa naquele dia e fez uma descrição dos horrores da clínica. Certamente Viraf tinha escutado a história do assassinato de seu filho com fria fascinação. Talvez tenha acordado no meio da noite com a culpa cobrindo-o como uma mortalha; talvez na escuridão da noite tenha reconhecido a maldita escuridão do seu próprio coração.

Mas talvez não fosse assim. De repente, Bhima se sentiu velha e cansada. Uma sensação de lentidão muito conhecida se abateu sobre ela. Existem tantas coisas que não conhece e não entende... Viraf baba é um homem bonito, formado, rico e viajado. Ele é tudo o que ela, Bhima, não é. Como poderia saber o que ele pensa? Não havia notado que, quando se dirigia a ela, Viraf falava devagar como se achasse que ela não entenderia as coisas que estava dizendo? E se ela não conseguia ler os pensamentos de seu próprio marido, se não pôde adivinhar a traição no coração dele, como poderia pretender saber que ervas daninhas nascem no fundo do coração negro de Viraf?

Mas vai dizer a ele que sabe de tudo. A idéia vem tão clara e abruptamente como um palito de fósforo que se acende no escuro. Vai dizer a ele que, por mais que seja pobre, por mais que seja mulher, não é uma pessoa com quem seja necessário falar pausadamente; não é mais uma pessoa que pode ser enganada por contadores e maridos, nem ser tratada com desprezo por médicos e homens que estupram a sua neta. Na verdade, ela o conhece melhor do que sua própria mãe porque, mesmo sendo analfabeta, consegue ler a corrupção de seu coração. Vai lhe dizer que sabe de tudo e que ele agora deve temê-la, porque tem o poder de destruir sua felicidade tão rapidamente quanto o vento pode derrubar uma casa. Vai dizer a ele que sabe de tudo e que ele deve manter as suas mãos quietas, porque ela não vai deixar que aquelas mãos sujas e pervertidas contaminem a vida de outra moça. Vai lembrar a ele que seu prazer impensado tirou a vida de sua Maya dos trilhos e bloqueou o caminho que teria tirado a menina da favela. Viraf tinha destruído o que ela e Serabai tinham construído juntas. “As mulheres criam e os homens destroem”, pensou Bhima. “O mundo é assim.”

Hoje é sábado, dia em que pega uma carona com Viraf para ir ao mercado. No carro, dirá a ele que sabe, que Maya não carrega mais esse segredo, assim como não carrega mais o símbolo da vergonha dele. Ele vai tremer e pedir perdão, mas ela não vai se demover. Alguns pecados são muito graves para serem perdoados. Até ela sabe disso.

Essa nova decisão traz energia para Bhima. Levanta-se do colchão e ouve o conhecido estalo na articulação do quadril, mas hoje não espera para ver se ele vai ser seguido daquela onda de dor. Não tem tempo de prestar atenção nos estalos e nas mazelas de seu próprio corpo. Está preparada para fazer com que Viraf sofra.

— Vamos, beti, acorde — diz para Maya, tocando com os dedos do pé a garota adormecida. — Vá buscar água enquanto preparo o chá. Vá agora mesmo, que hoje preciso chegar cedo ao trabalho.

Será que é a sua imaginação ou Viraf a sondou com os olhos quando ela entrou na casa? Não tem tempo de pensar nisso, porque Sera a puxa pela mão.

— Ai, Bhima, graças a Deus você chegou! Esqueceu o jantar de hoje à noite? Ande, tenho que revisar a lista das coisas de que preciso do mercado.

— E... na verdade estou indo para o clube um pouco mais cedo hoje — informa Viraf, que está parado na porta da cozinha. — Bhima pode tomar um táxi para ir ao mercado quando estiver pronta.

Antes que Sera pudesse responder, Bhima retruca.

— É difícil encontrar táxi no sábado de manhã. Posso sair agora, se o senhor quiser.

— É... afinal vocês estão indo na mesma direção — diz Sera. — Não há necessidade de gastar dinheiro com um táxi.

Ela sorri.

— É o que vivo dizendo a vocês, crianças. Dinheiro não cresce em árvore.

O rosto de Viraf está impassível.

— Ok, tudo bem.

Ele se dirige a Sera, embora Bhima esteja parada bem ali na sua frente.

— Ela só tem que se aprontar para sair daqui a uns cinco minutos.

Sera se volta para Bhima, que está pegando as sacolas de pano que costuma levar para o mercado e pergunta:

— Ae, Bhima, Maya está se sentindo bem? Ela não estava com uma aparência muito boa ontem. Será que a comida de Chowpatty não lhe fez bem?

Bhima mantém-se de costas para Serabai.

— Não é isso, bai. Depois do que ela passou recentemente, ainda está muito...

— Entendo — diz Sera com um suspiro. — Coitada. É uma situação tão difícil. Bem, se ela pelo menos aprender com o erro, talvez alguma coisa boa possa advir disso. Nessa idade as moças são tão... Lembro que Feroz e eu ficávamos de olho quando Dinaz era adolescente. Afinal, o maior bem de uma moça é a sua virtude. E você sabe como são as coisas na nossa Índia, não é Bhima? Todo homem quer se casar com uma virgem. Não importa se são hindus, cristãos ou parses, os homens são todos iguais, não é?

Bhima morde o lábio inferior até sentir o cheiro do sangue.

Sera percebe a rigidez nas costas da empregada.

— Isto é, não estou pretendendo dizer que... Maya é uma moça tão boa, estou certa de que vamos acabar encontrando um companheiro adequado para ela. E, na realidade, ninguém da sua comunidade precisa saber sobre esse incidente. Existe um ditado que diz: “O que os olhos não vêem o coração não sente.” Mas, durante muitos anos, nada de pensar em casamento para Maya, espero. Bas, a melhor coisa para ela é terminar os estudos primeiro. Depois, podemos pensar em lhe arranjar um marido.

Bhima ainda não se sente confiante para falar. Se abrir a boca, sabe bem disso, suas palavras vão deslizar como serpentes cheias de veneno que poderiam causar um ferimento em Serabai do qual ela nunca conseguiria se recuperar.

Sera se aproxima por trás e diz, fingindo impaciência:

— Ande logo, Bhima. Quanto tempo vai levar para decidir qual a melhor sacola? Desse jeito, quando voltar do mercado já serei uma velha.

Viraf mete a cabeça na cozinha e pergunta:

— Pronta?

Bhima faz que sim com a cabeça, esforçando-se para que seus olhos focalizem um ponto acima da orelha direita de Viraf. Acha que não vai conseguir olhar diretamente para aquele rosto bonito sem sentir vontade de arranhá-lo com as unhas.

Esperam pelo elevador e descem sem dizer uma palavra. Em vez disso, Viraf conversa com o ascensorista, que timidamente estende a mão para alisar o caro e reluzente taco de críquete de Viraf.

— O que o senhor acha desse novo time das Índias Ocidentais, seth? — pergunta o ascensorista olhando fixamente o taco. Ele é um rapaz alto, desengonçado e dentuço, que parece estar sempre rindo de uma piada secreta.

Viraf dá de ombros.

— Esses caras das Índias Ocidentais são sempre ótimos.

A boca do rapaz se abre num sorriso, e ele balança a cabeça.

— Ah, mas o nosso time da Índia não está ruim dessa vez — diz prontamente, como se estivesse esperando pela resposta de Viraf.

— Vamos dar uma lição naqueles macacos pretos durante o jogo em Bombaim.

Ele se inclina, e confidencia:

— Estão dizendo para todo mundo aparecer no estádio com um monte de cascas de banana. Esses macacos africanos gostam de banana. Vamos jogá-las no campo cada vez que eles forem dar uma tacada.

Viraf aperta os lábios com desprazer.

— Isso não é uma atitude muito esportiva, não é mesmo? — diz ele. — São coisas como essas que dão má fama ao país.

O elevador chega ao térreo e o rapaz salta de sua banqueta para abrir a porta.

— É verdade, é verdade, senhor. Não é uma boa idéia.

Seus olhos piscam velozmente na expectativa de uma gorjeta, mas Viraf o ignora e vai em direção ao carro, com Bhima seguindo-o poucos passos atrás. “Garoto burro”, pensa Bhima. “Tem cara de rato pelado, com aqueles dentes que parecem uma tesoura, e fica chamando os outros de macacos.”

Viraf liga imediatamente o ar-condicionado, assim que entra no carro, mas hoje, apesar do calor que faz lá fora, Bhima sente frio. Ela se inclina para o outro lado, tentando impedir que seus dentes batam visivelmente. Suas mãos estão frias e pegajosas e há uma sensação de gelo em seu estômago que ela reconhece como nervosismo. Tenta se lembrar da sensação de coragem e de não ter nada a perder que experi-mentou hoje de manhã, tenta evocar o ódio e a agressividade que sentiu por Viraf há apenas algumas horas, mas não consegue. Tudo o que consegue fazer é conter o tremor humilhante de seu corpo para que Viraf não o perceba. Precisa de toda a sua força de vontade para controlar seus intestinos, que de repente parecem querer traí-la.

Contrastando com a sua solicitude habitual, Viraf a ignora. Passa por diversas estações de rádio e, quando ele encontra uma que lhe agrada, começa a assobiar desafinadamente junto com a música. Bhima olha de rabo de olho para ele, que, diferentemente dela, parece estar completamente relaxado e confortável consigo mesmo. Embora saiba que essa postura relaxada é uma pose, um casaco que ele veste na sua presença, ela o admira por ser capaz de fingir. Decide tentar imitá-lo e força a sua voz a não tremer quando lhe diz:

— Viraf seth, tenho uma coisa para lhe dizer.

Viraf continua olhando para a frente, com os olhos na rua. Depois do que pareceu a Bhima um longo intervalo, ele pergunta, meio sem interesse:

— O quê?

Ela abre a boca para dizer que sabe de tudo, que nunca vai conseguir perdoá-lo pelo que fez, que ele roubou a inocência e a juventude de Maya, e que ela não tem certeza se vai contar para Sera e para Dinaz a história desse infeliz incidente.

Abre a boca e nada acontece. Sua boca está ressecada pelo medo. Seu corpo está visivelmente tremendo agora, como se ela fosse uma folha de papel jogada ao vento numa rua. E, apesar do frio que está entrando em seus ossos, sente o suor escorrer pelo rosto. Abre a boca para ameaçá-lo, xingá-lo, fazê-lo entender como se sente imensamente ofendida, mas o que sai é:

— Viraf baba, por quê-ê-ê-ê-ê-ê-ê-ê-ê-êêê, ai, meu Deus, por que-e-ê-ê-ê-e-e-ê-ê-ê-êêêêêêê??

Não são exatamente as palavras que fazem Viraf pisar o freio, mas o som delas. É o grito ferido e lamentoso da dor que soa estranho e animalesco mesmo aos seus próprios ouvidos, de modo que, por uma fração de segundo, ela parece tão chocada quanto ele.

Viraf empalidece e pisa de leve o freio. Suas mãos ficam brancas ao apertarem o volante. Um músculo no seu maxilar se movimenta convulsivamente para cima e para baixo durante alguns segundos, e nada mais além disso. Ele continua a dirigir, mantendo os olhos no trânsito sem sequer ter a condescendência de olhar na direção dela. Depois de alguns segundos, seus dedos batucam silenciosamente no volante, e então Bhima percebe que Viraf está esperando que ela continue, ele quer saber o que vai se seguir à explosão inicial.

Mas Bhima já terminou. Está quebrada, desgastada, exausta. O urro animal soou fraco e digno de pena aos seus próprios ouvidos, e ela se sente como um passarinho que se chocou contra uma montanha. Viraf continua impassível e tão impenetrável quanto essa montanha. Ela percebe que não pode atingi-lo. E mesmo o seu ódio de hoje de manhã parecia agora insignificante e ridículo, como o de uma criança fazendo pirraça para os pais ou de um suicida cortando os pulsos, reproduzindo o que as mulheres têm feito durante séculos: virando a raiva contra si mesmas.

Porque sabe agora que não vai usar a única arma que tem para lutar com ele. O único modo que tem de feri-lo é dividir a sua desgraça com Serabai e Dinaz e assistir à mancha da vergonha se espalhar no rosto delas. E não pode fazer isso, pois significaria destruir as duas únicas pessoas que a trataram como um ser humano, que foram sempre sinceras e constantes com ela, que nunca a desprezaram por ser uma mulher fraca, ignorante e analfabeta. Lembra de Dinaz com cinco, seis, doze e quatorze anos, e cada recordação é salpicada de água-de-rosas, cada lembrança é doce como açúcar e pura como cristal: Dinaz se recusando a comer um chocolate, a não ser que pudesse dividi-lo com Bhima; Dinaz implorando a Bhima para se sentar nos sofás e poltronas do apartamento junto com ela quando estavam sozinhas em casa; Dinaz pegando o dinheiro da própria mesada e depositando nas mãos envergonhadas de Bhima. Antes de haver Maya, havia Dinaz, e ela a tinha amado com tal entrega como talvez só uma criança possa fazer. Lembra de Feroz seth rindo e lhe dizendo uma vez:

— Arre, Bhima, você é alguma espécie de jadoogar, de feiticeira, ou algo assim? Como conseguiu enfeitiçar totalmente a minha menina? Saala, desse jeito você vai ter que supervisionar os deveres de casa e ir encontrar com os professores dela nas reuniões de pais e mestres.

E Serabai, alta e clara, uma sentinela dos portões do inferno, tentando evitar que Bhima fosse levada pelo fogo infernal. Sera, que salvou a vida de Gopal, que tentou proporcionar a Maya uma vida diferente, mandando-a para a universidade, e que planejou o aniquilamento de uma vida ainda não formada por acreditar que aquilo seria o melhor para Maya.

E agora seu destino está nas mãos de Bhima. Essas mãos calejadas e cheias de cicatrizes que pentearam o cabelo de Pooja, que lavaram centenas de pratos, que cortaram milhares de cebolas; essas mãos agora seguram as rédeas da felicidade de Sera e Dinaz. Basta um movimento, e a felicidade sairá galopando de suas vidas para sempre.

Então, Viraf olha para ela com cuidado, cauteloso, e finalmente diz:

— Bhima. Nós todos temos que encontrar forças para continuar vivendo.

Não tem certeza do que ele quer dizer com isso, mas sabe que não vai perguntar. Acha que as coisas entre eles vão ficar assim mesmo: insatisfatórias e não resolvidas, um longo silêncio, vazio e árido, que vai substituir o jeito brincalhão e gozador do antigo e imaculado Viraf. Ela tem uma súbita imagem do futuro no qual vê Viraf como um homem de rosto enrugado e cabelos brancos, velho e gordo antes do tempo, com uma antiga culpa lhe fazendo cair as pálpebras e crescer a pele debaixo do queixo. “Esse aí não vai envelhecer bem”, pensa ela. “Vai ficar mais parecido com o sogro do que possa imaginar.”

Como se pudesse ler seus pensamentos, Viraf segura com força o volante e pisa o acelerador. Uma mulher jovem com duas crianças pequenas atravessa a rua, evitando o carro que passa a centímetros dela, do mesmo jeito descuidado e displicente de todos os moradores de Bombaim. Mas hoje Viraf não está com paciência para esse comportamento irresponsável.

— Sua burra! — grita ele, baixando o vidro da janela. — Como quer criar essas crianças se não sabe nem cuidar de si mesma? — resmunga consigo mesmo, levantando o vidro. — Está ficando impossível viver nesta cidade, simplesmente impossível. Um bando de imbecis fodidos em tudo que é lugar. Dirigir aqui não é um prazer, é uma tremenda chateação.

Instintivamente, Bhima se afasta da raiva dele. Já viu Viraf zangado antes, já tinha ouvido suas brigas com Dinaz, mas essas discussões vinham envoltas no amor bem-humorado que ele sentia pela esposa. Agora havia um tom de vingança em sua raiva que a tornava perigosa. Ela tinha desmascarado Viraf, forçando-o a encarar a sua própria sombra, tinha tirado a pele do rosto bonito e suave para revelar a confusão cheia de sangue e infestada de vermes, de contradições e corrupções que ficavam por baixo dela. Bhima tenta imaginar o medo viscoso que Viraf deve estar sentindo com relação ao que ela poderia fazer, deve estar temendo que ela o exponha e o faça ficar nu diante de sua esposa e de sua sogra. “Ele deve se sentir como um homem sentado em cima de um barril de pólvora”, pensa ela. E a terrível verdade é que a mulher que poderia botar fogo naquela pólvora, que poderia detonar a explosão que faria sua vida e de sua família em pedacinhos, é uma simples empregada, uma mulher velha e analfabeta, magra como um graveto, feia como um osso de galinha mastigado. De repente, Bhima sente uma necessidade irracional e irreprimível de rir, mas, antes que o faça, Viraf pergunta com a voz engasgada que soa como se ele tivesse respirado um litro da fumaça de óleo diesel que os rodeava:

— Como vai Maya?

Como responder a tal pergunta? Para responder de verdade, teria que voltar pelo menos à época de sua avó e explicar que todas as mulheres da família tinham trabalhado como empregadas domésticas na casa de alguém; teria que contar como ficava sentida quando via a própria mãe ir trabalhar, mesmo estando doente, para cuidar da casa e das crianças de outras pessoas. Como fazê-lo entender que, quando Maya saía para a faculdade de manhã, sentia que tudo o que tinha passado na vida, todas as necessidades, todos os insultos e todas as traições valiam a pena se pudesse proporcionar à neta uma vida melhor do que a que ela, a mãe e a avó tinham tido? E, acima de tudo, como dizer a ele que o simples ato do aborto não apagava o passado, não fazia o relógio voltar atrás, não permitia que Maya recolhesse os cacos de sua vida e voltasse para a faculdade? É verdade, aquilo tinha sido culpa sua. Bloqueou aquela estrada de Maya na pressa de confrontar e persuadir Ashok Malhotra a se casar com a menina, mas o que poderia ter feito? Tinha ficado enfeitiçada pela visão de uma cozinha com pratos e panelas brilhando e um menino limpo e arrumado correndo pela casa.

Por isso, não diz nada e fica olhando para o tapete do chão do carro debaixo de seus pés. Depois de um segundo, Viraf estala a língua em sinal de frustração. Estão quase chegando ao mercado. Ele diminui a velocidade, procurando um local para parar, onde Bhima possa descer.

— Já estamos quase chegando — avisa o rapaz, e ela sente um tom de alívio em sua voz.

Está mexendo na maçaneta da porta quando ouve Viraf dizer:

— Ouça, quer dizer... Vocês estão precisando de alguma coisa?

Bhima sente seu rosto se endurecer como uma pedra e responde secamente:

— Estamos bem. Somos pobres, mas trabalhamos para ganhar cada grão de arroz que comemos.

Viraf exala sonoramente.

— Tudo bem. Ok. Meu Deus, por que todo mundo nessa cidade é tão dramático e tão nobre? Tudo o que eu estava querendo dizer era...

Ela agora já está fora do carro e dentro da bendita confusão do calor da rua. “É aqui o meu lugar”, pensa. “No meio dos vendedores, dos carregadores, dos peixeiros e dos catadores de papel. Não em carros com ar-condicionado.”

— Obrigada pela carona, Viraf seth — diz ela.

Ela vê a mágoa no rosto de Viraf. Ele notou que ela o chamou de “senhor”, e não do habitual e afetuoso “baba” que, do jeito que usa, significa “rapaz”.

Bhima sente uma ponta de satisfação ao ver o desapontamento dele.

— Não há de quê — responde ele secamente. — E ouça: diga a Dinaz e a mamma Sera para almoçarem sem mim. Vou voltar para casa um pouco mais tarde hoje.

 

FOI UM LONGO DIA HOJE, e a casa está em silêncio porque Viraf e Dinaz saíram. Bhima está quase indo embora, mas Serabai pede uma xícara de chá e ela se sente na obrigação de prepará-lo. Percebe que Serabai fica diferente quando o casal sai à noite, mais pensativa e solitária. Bhima acha que ela precisa ter a filha e o genro por perto para que a casa tenha vivacidade, e sente uma pontada de pena de sua patroa. Lembra que, meses após Feroz seth ter falecido, Serabai às vezes se esquecia de almoçar, e Bhima tinha que insistir para que ela comesse; lembra ainda como, um dia ou outro, Sera também se esquecia de tomar banho. Uma vez, entrou na sala e encontrou Serabai sentada no escuro, resmungando consigo mesma, enquanto esfregava furiosamente o braço. Bhima não sabe ao certo quem ficou mais surpresa, embora Serabai tenha, é claro, soltado os cachorros em cima dela e reclamado da falta de privacidade, dizendo que as pessoas não deviam ficar espionando as outras. Mas a visão de Sera, sempre tão elegante e digna, sentada no escuro como um animal enjaulado, parecendo uma daquelas velhas parses loucas, como Banubai, por exemplo, deixou Bhima chocada e consternada. Quando a menina Dinaz e Viraf baba vieram para o almoço de sábado, fez questão de contar uma coisa ou outra para Dinaz.

— A sua mãe está muito solitária — disse Bhima baixinho quando Dinaz trouxe a louça suja para a cozinha. — Ela às vezes se esquece de comer e beber e fica sentada sozinha dentro de casa sem acender as luzes.

Depois de anos protegendo Serabai, guardando seus segredos e respeitando seus silêncios, era estranho fazer esse tipo de fofoca. Mas o olhar preocupado no rosto de Dinaz era a confirmação de que precisava.

— Tenho pensado nesse assunto — disse Dinaz suavemente. — Muito obrigada por me contar, Bhima.

“Foi uma boa coisa a menina Dinaz ter se oferecido para vir morar com a mãe”, pensa. “Ter o jovem casal aqui tem sido bom para Serabai.” Bhima conheceu muitas parses que envelheceram antes do tempo, que não saíam da cama sem nenhuma necessidade aparente e usavam uma cadeirinha com penico em vez de andar até o banheiro, que se recusavam a sair de casa, a não ser de vez em quando para ir a uma cerimônia fúnebre de algum conhecido. A senhora Motorcyclewalla, que morava no quinto andar, três edifícios adiante, era uma dessas pessoas. Mas aquela mulher já tinha uns parafusos faltando há muitos anos. Depois do acidente de Gopal, Bhima foi lavar louça para a senhora Motorcyclewalla para complementar a renda. Todas as tardes, a mulher ficava parada, observando atenta-mente Bhima trabalhar na pia da cozinha, sem dizer uma palavra, mas às vezes imitava o som dos pombos que pousavam no parapeito do lado de fora. Aquele som fazia Bhima ficar arrepiada.

— Por que ela própria não lava a louça, se tem tempo de ficar aqui me observando com essa cara de coruja? — resmungava Bhima consigo mesma.

De qualquer maneira, precisava do dinheiro, e a senhora Motorcyclewalla sempre pagava em dia. Mas, depois de uns meses, Bhima notou que a mulher estava arrulhando para os pombos, mesmo quando não havia nenhum deles pousado no parapeito. E, um dia, quando estava se aprontando para sair, a mulher se virou para ela com um ar ensandecido e disse:

— Você pege paro o bati antes de sair da cozinha?

Bhima olhou para ela, estarrecida. E finalmente disse:

— Não estou entendendo, bai. — A voz da senhora Motorcyclewalla ficou estridente.

— Estou perguntando se você fez a saudação para a lamparina que queima na cozinha debaixo do retrato do Senhor Zoroastro. Ninguém deve sair da cozinha sem tocar a luz.

— Mas, bai, não sou parse — disse Bhima com cuidado. — Sou hindu jaat e nem ao menos sou brahmin.

Na maioria das casas parses em que tinha estado, as regras eram exatamente o contrário. Banubai, por exemplo, fazia tudo para se certificar de que a sombra de Bhima não cobrisse a bati que queimava dia e noite na cozinha. Mas, seja lá por que razão, não devia ter dito aquilo. A mulher a repreendeu:

— Ninguém tem a autorização de sair daqui sem fazer a saudação — exclamou ela, apertando o pulso de Bhima com a mão. — Senão cem anos de trevas vão se abater sobre esta casa.

Ela praticamente foi arrastada para a cozinha, onde teve que executar mecanicamente os movimentos que a mulher queria que ela fizesse, tocando a lamparina com a ponta dos dedos e depois com a testa, em sinal de respeito.

— Ok, bai, preciso ir — disse Bhima. — Serabai deve estar esperando por mim.

Viu uma nova chama de loucura saltar nos olhos da mulher ao ouvir o nome de Sera.

— Você diga a Sera para vir com você amanhã, trazendo incenso de sândalo. Temos que purificar esta casa Os pombos estão me dizendo há várias semanas que há alguma coisa errada, e agora percebo que você era a culpada. De agora em diante, lembre-se de beijar o retrato do Senhor Zoroastro antes de sair, entendeu?

— É claro, bai — disse Bhima, saindo pela porta da frente e andando de costas. — Vou falar com Serabai.

Foi por causa da senhora Motorcyclewalla, que há vários anos não saía da cama e se recusava a mudar aquela situação, mesmo que os médicos não encontrassem nada de errado com ela, que Bhima falou com Dinaz sobre sua mãe.

E agora, pela primeira vez, desejaria não ter interferido. Se o casal ainda estivesse morando no subúrbio, Viraf provavelmente não estaria no apartamento de Banubai no dia em que Maya estava lá. Sera teria passado muito mais noites como esta, andando pela casa como se estivesse vendo fantasmas, mas pelo menos Maya teria sido poupada, pelo menos sua neta iria...

Sera entra na cozinha.

— Não se esqueça de botar as folhas de hortelã — recomendou. — E faça uma xícara para você também.

Bhima vai até o canto onde guarda suas coisas e pega o seu copo. Sera pega uma caneca do armário. Enquanto Bhima serve o chá, o vapor cria uma barreira ondulante entre elas. Cada uma pega o seu e vão para a sala de jantar, assumindo suas posições habituais. Sera se empoleira numa cadeira e Bhima se acocora no chão. Bebem o chá em silêncio. Depois Sera solta um suspiro e diz:

— O chá está bom. Você faz o melhor chá de Bombaim.

— A casa fica muito quieta sem os dois aqui — comenta Bhima. A-inda não consegue dizer o nome de Viraf em voz alta.

— É verdade — diz Sera. — Mas é bom que Dinaz saia com seus amigos. Coitadinha, tem passado tão mal nesses últimos dias com a gravidez que, hoje de manhã, quase cancelou um compromisso. Disse que mal conseguiu dormir a noite passada. Mas Viraf a convenceu a ir. Só Deus é que sabe, mas depois que o neném nascer ela não vai ter mais tempo para os amigos e para as noitadas. E as meninas do escritório estavam querendo muito sair com ela.

— Ele não foi também? — pergunta Bhima, como quem não quer nada, esperando que Sera não note sua relutância em pronunciar o nome de Viraf.

— Não, é uma festa só para mulheres. Mas é bom assim. Esse rapaz está trabalhando demais e precisa de descanso.

Ela faz uma careta e acrescenta:

— Não estou querendo dizer com isso que estar na casa de mamma Banu seja propriamente um descanso. Mas ele deve estar de volta logo. Só foi lá acertar o pagamento do mês com as enfermeiras e organizar as contas de Banu. Ontem, ficou lá até as onze da noite fazendo a contabilidade dela. Quantos genros iriam fazer isso? E, mesmo que tivesse consciência disso, aquela... minha sogra... nunca ficaria agradecida.

Bhima sente um momento de pânico ao pensar em Viraf lá no apartamento, sozinho com a enfermeira Edna. E se ele tentasse alguma das suas safadezas com a pobre mulher? Ela balança a cabeça para expulsar as imagens indesejadas que se formaram. Edna é adulta, casada e com filhos. Saberia como lidar com Viraf, se ele tentasse fazer qualquer badmaashi com ela. E, além do mais, homens como ele provavelmente só gostavam de carne fresca, como Maya. Que interesse teria numa mulher com o olhar cansado, e ainda por cima casada e com filhos? Não, Viraf e gente da sua laia tinham necessidade de manchar as coisas puras, como uma gota de tinta num copo de leite.

— Bhima, que cara é essa? — indaga Sera sorrindo. — Meu Deus, você parece que viu um fantasma ou coisa parecida! Que pensamentos sombrios estão passando por sua cabeça?

“Ah, Serabai, se ao menos eu pudesse lhe dizer...”, pensa Bhima. Mas seria mais misericordioso apunhalá-la com uma faca do que matá-la com o veneno dos meus pensamentos. Então, diz em voz alta:

— Minha vida inteira é um pensamento sombrio.

Sera suspira.

— Sei o que você quer dizer — responde ela, lutando visivelmente contra as emoções e forçando-se a permanecer ereta na cadeira.

— Mas, Bhima, não podemos desistir. Nós, mulheres, vivemos para muito mais do que apenas nós mesmas. Você por Maya, eu por Dinaz, e agora pelo neném. Sabe, pensei muitas vezes como os homens podem se dar ao luxo de se arriscar mais, de voar mais alto e de cair mais baixo, porque têm sempre o suicídio como saída. Se as coisas não estão funcionando, bas, eles têm essa opção final. Quando eu era jovem, tinha muita inveja dos homens por causa disso. Tenho dois primos que acabaram com as próprias vidas. Dois rapazes, é claro! Mas as mulheres não vivem só para elas mesmas. E depois de ter filhos... esqueça! Nem sei como ainda temos um corpo para andar por aí depois que tivemos filho. Depois disso, vive-se totalmente para outra pessoa. Arre, vamos até mesmo esquecer as crianças. Até me preocupo com mamma Banu, você pode imaginar uma coisa dessas? Agora, depois que o Feroz se foi, fico me perguntando o que vai acontecer com ela se eu morrer antes?

— E por que isso aconteceria? — pergunta Bhima, com veemência. — Ainda não está na sua hora, Serabai, e vou rezar para que ainda falte muito tempo até ela chegar.

Sera sorri.

— Rezo para que também não seja — diz timidamente. — Com o neném agora para nascer... Você pode imaginar, Bhima? Pela primeira vez na minha vida, realmente tenho vontade de viver. Antes, poderia sinceramente dizer que não me importava se fosse assim ou assado. Mesmo quando moça, não sei bem o que havia de errado comigo, mas não dava tanto valor à vida. Para mim, todas as coisas que se tem que fazer só para continuar vivendo pareciam complicadas demais e mal valiam o esforço. Mas agora estou com muita vontade de ver como é que o filho da minha Dinu vai crescer. E quero estar aqui para...

A campainha da porta toca, e Bhima começa a se levantar, mas Serabai a impede, dizendo:

— Eu vou. Deve ser Viraf. Já quase acabei o meu chá. — Sera dá um longo gole final, antes de deixar a caneca em cima da mesa para Bhima lavar depois.

Bhima continua de cócoras, bebericando seu chá, imaginando o que fazer com Maya naquela noite. Desde que esbarrou com Viraf em Chowpatty, Maya tem se recusado a ir passear na praia. As noites em casa agora parecem compridas e opressivas. Bhima sente falta do ar suave da noite, do cheiro da água e da proximidade que tinham quando caminhavam pela praia. Sente falta do desfile de cores e pessoas à beira-mar, dos homens e mulheres vestidos com cores vivas andando em seus carrões, dos mendigos sem pernas se movimentando em seus skates, dos corpulentos sikhs, os religiosos com seus turbantes vermelhos, das muçulmanas com suas burcas, dos velhos casais parses sentados de braços dados nos bancos de pedra, das prostitutas de salto alto esperando serem escolhidas pelos hóspedes dos hotéis próximos, dos grandes grupos de adolescentes barulhentos dos colégios do bairro. Bhima gostava de deixar para trás o isolamento soturno de seu casebre na basti e se misturar com essa multidão amorfa e fluida. Às vezes, parecia que não precisava mover um músculo sequer; era como se não tivesse que pôr uma perna na frente da outra. Se ficasse parada, o movimento da multidão a empurraria para a frente, como o vento, como as ondas...

Percebe, com um sobressalto, que Viraf está dizendo o seu nome, e sua testa começa a se franzir de raiva. É hora de ir para casa, e o estúpido do rapaz talvez ainda queira alguma coisa. Fica imaginando o que ele poderia querer dela, quando sua cabeça pára de seguir por esse caminho, detida pelo tom de voz peculiar de Serabai.

— Impossível — está dizendo Sera. — Você deve estar enganado, deekra. — A voz dela soa enfática, preocupada, magoada e defendida, tudo ao mesmo tempo.

Há um silêncio, e depois ouve-se a voz grave e profunda de Viraf preenchendo o silêncio como o som dos camundongos que passam apressados pelo seu barraco à noite.

— Estou lhe dizendo, eu vi com os meus próprios olhos — exclama ele, com a voz ainda mais alta e mais forte que antes.

— Bhima!

A voz de Sera, ainda com aquela qualidade que lhe era peculiar, a chama e ela se levanta do chão com um grunhido, esperando um momento para que seus ossos que estalam se acomodem em suas posições.

Viraf e Sera estão na sala de estar, sentados no sofá, próximos um do outro. O rosto de Sera está corado, e seu olhar é de expectativa, contrastando nitidamente com a expressão pensativa e reflexiva de alguns minutos atrás, O que quer que esse rapaz tenha dito ou feito a tinha aborrecido enormemente. Durante um rápido instante, Bhima se perguntou se Viraf havia falado sobre Maya, mas rapidamente afasta esse pensamento da cabeça.

— Ah, Bhima, que bom que você está aqui! — gagueja Sera. — Parece que Viraf baba tem um problema. Aparentemente... tem... um dinheiro faltando no armário de Banubai. — Bhima olha para Serabai sem nenhuma expressão no rosto, sem saber se aquilo tem a ver com ela.

— Foi muito dinheiro? — pergunta finalmente.

E depois quando ninguém responde prontamente:

— Já está faltando há muito tempo?

— Olhe só, aí é que está o problema. De acordo com o Viraf, isto é...

— O dinheiro estava lá anteontem — diz Viraf interrompendo Sera.

Seu rosto está molhado de suor, e um pequeno músculo se move em seu maxilar.

— Fui eu mesmo que pus o dinheiro lá. Ontem, pedi que você fosse pegar os talões de cheques para mim. Eu lhe disse para pegar um envelope e deixar o outro, lembra?

— Ele estava lá naquela hora — diz Bhima com ar de triunfo, con-tente em poder ajudar. — Vi com os meus próprios olhos.

— Você o abriu?

— Não fiz isso, não, senhor! Não havia necessidade. Dava para saber qual deles continha os talões de cheques, só de apalpá-los.

Bhima se pergunta se teria feito algo de errado por não ter conferido cada envelope.

Instala-se um silêncio estranho no ar, e Sera, na expectativa, olha para Viraf, sem saber o que fazer.

— Bom, então isso é um mistério — diz suavemente. — E, graças a Deus, não era uma rakam muito grande. Apenas umas setecentas rúpias.

— Mas a questão não é essa.

As palavras de Viraf são pontiagudas como dardos. Ele direciona seus olhos escuros para Bhima.

— Você disse que trouxe as chaves do armário direto para mim, certo? Não as deu para Edna ou para outra pessoa?

“Será que esse rapaz acha que sou uma besta total?”, pensa Bhima. Durante anos foi à casa de Banubai antes que esse tal de Viraf viesse tomar conta do dinheiro dela com um talão de cheques aqui, um recibo de depósito ali... Transportou grandes quantias de dinheiro de uma casa para outra, depositou cheques ao portador de Feroz na conta bancária dele, manipulou os molhos de chaves de ambos os apartamentos.

— Ninguém tinha as chaves a não ser eu, seth — responde seriamente.

— Bem, então, só há uma explicação lógica: entre a hora em que coloquei o dinheiro anteontem e quando fui lá hoje, você foi a única que mexeu no armário. Então, você pegou o dinheiro.

Sera deixa escapar um grito de... afronta? Raiva? Recusa? Ouvindo o grito, Bhima olha em silêncio para ela. Queria que Sera desse um tapa nele, que pusesse a mão sobre a boca de Viraf e o forçasse a engolir aquelas palavras mentirosas. Sera percebe a expressão de Bhima, e isso parece tirá-la do estupor.

— Viraf, isso é bobagem — diz debilmente.

— Bobagem? Por que bobagem? Com todo o respeito, mamma Sera, a senhora vai deixar Bhima negar isso ou vai negar por ela? Veja bem, ela está aqui com cara de culpada, parecendo uma ladra, enquanto que a senhora corre em sua defesa.

O mundo fica todo escuro por um instante, e depois, surpreendentemente branco, de cegar. Bhima ri dentro desse vazio branco. No meio do branco, que agora tem uma borda vermelha como sangue, vermelha como a fúria, vê o rosto inquiridor de Sera voltado para cima e a expressão pervertida e maldosa de Viraf. O rapaz lhe preparou uma armadilha, agora percebe. Deve ter planejado isso durante semanas. Estava preparando a armadilha mesmo quando se recusava a olhá-la nos olhos a cada vez que ela o encarava; mesmo quando agia com humildade a cada vez que ela lhe fazia uma grosseria; mesmo quando comia os ovos fritos onde ela cuspiu uma vez antes de lhe servir. Durante todo esse tempo, sua cabeça estava trabalhando, planejando a vingança, arrumando as peças, assentando os tijolos na parede que a iria encurralar.

Bhima riu novamente. Riu da sua inocência estúpida que acabou sendo tão perigosa quanto a de Maya. Riu da própria arrogância que a levou a acreditar que poderia tratar mal um homem formado e poderoso como Viraf sem ter que pagar um preço por isso. Acima de tudo, da idéia ridícula de que Viraf tinha se arrependido do que havia feito a Maya e de que estava verdadeiramente envergonhado de seu momento de fraqueza. Apesar do fato de este rapaz ter agido como um animal selvagem, nunca o tinha visto assim. Preferiu acreditar que ele não atingiria sua família novamente, e que o conhecimento que tinha de sua culpa seria o suficiente para desarmá-lo.

E agora ele a fez chegar a esse ponto. Mesmo Feroz seth, com seu temperamento explosivo e seus modos arrogantes, nunca havia duvidado de sua honestidade, nem da lealdade canina com que serviu àquela família. Lembra-se das palavras amargas de Maya, dizendo que ela tratava melhor a família Dubash que a sua própria. A moça estava certa. Trabalhou e se esfalfou, protegeu e defendeu essa família como se fosse a sua. E agora a serpente, esse demônio com rosto bonito, a está acusando de ter roubado dinheiro de Serabai.

— Está vendo só que descarada ela é? Dá para imaginar isso, alguém rindo quando é acusado de ter cometido um crime grave? Daqui a pouco, juro que vou chamar a polícia.

A palavra “polícia” traz Bhima de volta aos seus sentidos. Sente o sangue latejar em sua cabeça, e as palavras são despejadas de sua boca, tão espessas e salgadas como sangue.

— Pode chamar a polícia — exclamou ela. — O senhor conta a sua história e eu conto a história do mal que o senhor praticou, como arruinou a reputação da minha família, como manchou a honra da minha família. Abra a sua boca para a polícia que eu mostro do que o senhor é feito, seu cachorro imundo...

— Bhima — esbraveja Sera, com o rosto lívido de fúria. — Controle-se. Você ficou maluca para falar desse jeito? Não esqueça com quem está falando.

Bhima se vira para Sera com o rosto deformado pela raiva. Sabe que tem que falar rápido agora, antes que as lágrimas comecem a cair e sufoquem suas palavras.

— Sei exatamente com quem estou falando, bai. A senhora é que não sabe quem é esse homem. Durante meses, fiquei de bico calado por respeito à senhora. Mas agora tenho que mostrar como é negro o coração dele...

— A senhora está vendo o que criou, mamma Sera? — berra Viraf. — Essa é a sua recompensa por tratar uma empregada como uma pessoa da família. Essa mulher sem-vergonha é capaz de fazer qualquer coisa para ocultar o fato de que é uma ladra. Só Deus sabe há quanto tempo vem roubando, e a senhora nem...

— Que Deus me mate nesse exato instante se eu tiver roubado um paisa desta família — diz Bhima, com a voz trêmula pelas lágrimas não derramadas —, e que Deus acabe com o senhor se estiver acusando injustamente uma pobre mulher como eu apenas para cobrir a sua sujeira com a minha desonra.

— Sua ingrata! — diz Viraf. — Você comeu a comida dessa família durante todos esses anos e agora vem nos xingar.

Ele se vira para Sera.

— Mamma, a senhora deveria ter escutado o que todo mundo sempre disse. Acho até que foi culpa minha ter deixado essa mulher mandar em você. Isso é o que acontece quando se tenta transformar um vira-lata num animal de estimação. Mais cedo ou mais tarde, ele avança em você.

Sera está sentada no sofá, chocada. Bhima sente que Sera está se afastando dela, assim como a lua que sobe cada vez mais alto no céu noturno.

— Sera, maaf karo, me desculpe. Desculpe as minhas palavras duras, bai. Mas a senhora não sabe o que esse homem mau está escondendo. Ele é que é o cachorro louco, bai, não eu. Imploro que a senhora...

Viraf levanta a mão de uma maneira ameaçadora sobre a cabeça de Bhima.

— Escute aqui, sua fllha-da-puta! Se disser mais uma coisa contra essa família, vou arrastá-la nua até a delegacia, entendeu? Agora, pegue as suas coisas e dê o fora daqui!

Quando Viraf corta o ar com a mão, Sera se encolhe.

— Temos que nos controlar diz ela em voz alta. — Está tudo saindo do controle rápido demais.

Ela olha para Bhima com lágrimas nos olhos.

— Bhima, diga a verdade. Se precisava do dinheiro, posso entender, mas diga a verdade!

O pedido de Sera flutua no ar por um instante, como uma gota d‘água num telhado com goteiras. E então Bhima, enlouquecida de fúria pela ofensa, decide fazer o teto vir abaixo de uma só vez.

— A verdade? Pergunte a ele o que fez com a minha Maya, se a se-nhora quiser saber a verdade — responde com amargura. — Pergunte a ele que culpa está tentando esconder. Ele acha que pode comprar o meu silêncio com setecentas rúpias? Mesmo que me construísse uma casa de ouro, nunca o perdoaria pelo que fez com a minha...

Sera deixa escapar um grito estrangulado. Atordoada por um momento, vira-se para Viraf, num gesto questionador, com os olhos arregalados e apreensivos perscrutando seu rosto de pedra. Mas, no instante seguinte, a negação cai sobre seu rosto como um véu.

— Chega — disse ela, tapando os ouvidos com as mãos, do jeito que Pooja fazia sempre que Bhima e Gopal discutiam. — Já ouvi demais essa sua conversa, Bhima. Graças a Deus, a minha Dinu não está em casa para ouvir toda essa sujeira que sai da sua boca. É melhor que vá embora antes que eu diga alguma coisa da qual vou me arrepender depois. Posso desculpá-la por ter me roubado, mas questionar a honra do meu genro, isso não vou perdoar nunca.

— Escute-me, Serabai — diz Bhima chorando. — Estou tentando lhe dizer que...

— O que a sua Maya fez é problema dela — grita Sera. — Ela pode ser uma puta e dar para cinqüenta homens, que não me importo. Apenas não envolva minha família na sujeira dela. Fiz tudo o que pude por essa moça. Agora lavo minhas mãos pela família toda. Saia! — diz ela novamente, com os dentes mordendo nervosamente o lábio superior. — Suma da minha frente!

Bhima sente o tijolo final se encaixar no lugar. Percebe a camada de suor no rosto de Viraf e seu leve e quase imperceptível olhar de satisfação. Seus olhos estão brilhantes e penetrantes. “Está vendo?” Eles parecem provocá-la. “Eu sabia que acabaria pegando você.”

Os soluços são como bolhas dentro da garganta de Bhima, fazendo seu corpo frágil balançar.

— Serabai, não me mande embora — implora ela. — Depois de todos esses anos, para onde vou agora?

Mas o rosto de Sera está duro como uma parede. Ela olha para Bhima como se estivessem se conhecendo agora.

— Pegue as suas coisas e vá embora — diz suavemente. — Por favor, não diga mais nada. Apenas vá embora. Se lhe devo algum dinheiro, mando levar na sua casa.

Bhima atravessa o longo corredor que vai para a cozinha. Suas pernas pareciam incapazes de mantê-la de pé. Viraf e Sera a seguem. “Parecem carcereiros conduzindo um condenado à cela”, pensa Bhima. Olha meio desanimada para os poucos pertences guardados numa caixa de papelão no canto da cozinha: uma saboneteira, o talco Pond‘s, um pente azul faltando um dente, a sua caneca de metal e sua lata de tabaco. Ao pegar a caixa, as lágrimas caem, quentes e velozes. Bhima dá uma olhada geral na cozinha, cozinha que varreu e limpou muitas vezes. Quantas vezes entrou aqui à noite sem precisar acender as luzes. Mesmo com as luzes apagadas, sabia onde encontrar cada garfo, cada prato, cada panela. Bhima percebe a teia de aranha que esta começando a se formar no canto perto da janela. Ontem mesmo pensou em limpar aquela teia. Sente uma ponta de orgulho quando vê a panela de pressão que lavou mais cedo brilhando. Suspira ao olhar para o pé-direito alto, uma diferença tão agradável quando comparada com o peso opressivo do teto baixo de seu casebre, no qual tem que se curvar para entrar.

Bhima está saindo da cozinha quando um pensamento lhe ocorre e ela se vira para Sera, que está pálida e assustada como uma sonâmbula.

— A menina Dinaz — diz Bhima, com a voz falhando. — Não vou poder me despedir dela.

Os olhos de Sera brilham de ternura por um segundo, antes de se transformarem em pedras de gelo.

—Isso agora não tem importância— retruca, com a voz cada vez mais dura. — Depois das coisas feias que você disse, fico muito contente que você nunca mais veja a minha filha.

O nó na garganta de Bhima tem um gosto de sangue.

— Serabai, nunca foi meu desejo magoar a senhora ou a sua filha — diz. — Essa menina é como minha própria...

— Achcha, bas, já chega desse melodrama — retruca Viraf. — Ande, vá embora daqui.

Viraf abre a porta da frente e fica segurando-a para Bhima passar. “O demônio nos portões do inferno”, pensou Bhima. Mas, depois, um outro pensamento a assalta: “O inferno está do outro lado dessa porta. O inferno vai ser tentar conseguir outro emprego na minha idade, aprender os hábitos de outra família, varrer, limpar e cozinhar para gente estranha. O inferno vai ser trabalhar por menos dinheiro para outra família e ver Maya jogar seu destino fora como uma fruta podre. O inferno vai ser saber que nunca vou encontrar outra Serabai, que ninguém mais vai se interessar pela formação universitária de Maya, e que ninguém mais vai se incomodar se estou viva ou morta.”

A gratidão lhe corta a garganta e faz com que pegue a mão enrijecida de Sera e a segure na altura de seus olhos.

— Serabai, se eu estiver condenada a passar por um milhão de reencarnações neste mundo, nunca vou conseguir retribuir o que a senhora...

Mesmo na tênue luz da noite, Bhima nota a lágrima que brilha na pele clara da mão de Sera.

Viraf bate a porta na cara dela antes que consiga terminar a frase. Bhima se encosta na parede por um momento com os olhos fechados e depois caminha lentamente até o elevador. Mas, com vergonha de que o ascensorista a veja assim como uma exilada, decide ir pelas escadas. Bhima inicia sua lenta e torturante descida em direção aos andares mais baixos.

 

O SOL JÁ ESTÁ SE PONDO quando Bhima sai do edifício. O céu está com um tom laranja-escuro, o tipo de céu que, refletindo no rosto das pessoas que andam debaixo dele, faz com que cada rosto, moreno ou pálido, brilhe como se estivesse iluminado pela luz de um milhão de sóis. As pessoas na rua têm um ar dourado, como se tivessem sido beijadas por um deus bondoso e benevolente, O vento da noite desmancha o cabelo de Bhima, puxando os fios de seu coque. Segurando a caixa de papelão na mão direita, tenta puxar o cabelo para trás com a esquerda, mas desiste depois de algumas tentativas frustradas. Em vez disso, usa a mão livre para abaixar o sári, que está levantando com o vento. Normalmente teria ficado irritada com essa brisa incessante, mas hoje fica feliz com isso, O ar fresco da noite dança em seu rosto, congelando as lágrimas nas trilhas que fizeram ali. De algum modo, o vento a faz se sentir livre e anônima, como se a protegesse dos olhos inquisidores das centenas de outras pessoas que caminham pela mesma rua.

Seus pés se arrastam sobre o calçamento de pedra e conhecem o caminho tão bem quanto um cachorro cego. Não precisa prestar atenção para onde está indo. Seus pés a conduzirão até sua casa. Portanto, pode usar a cabeça para separar os corpos, identificar os restos mortais carbonizados e juntar os membros faltantes depois que essa bomba explodiu na sua vida. Isso afetou mais do que apenas a vida dela e a de Maya, tem certeza.

A expressão no rosto de Serabai quando disse a verdade... Será que algum dia Serabai poderá não lembrar mais daquelas palavras, enterrando-as debaixo das camadas protetoras de esquecimento e negação? Ou será que aquelas palavras vão soar como corvos negros em seus ouvidos, vão bicar a sua pele clara como abutres, vão atormentá-la no meio das noites em claro, banhadas de suor? Será que ela vai conseguir olhar de novo o rosto inocente e sorridente de Dinaz sem pensar na traição do genro? Será que as palavras inoportunas de Bhima vão erguer uma parede de vidro entre Serabai e Viraf, uma parede que ninguém, a não ser os dois, será capaz de ver, uma parede que nenhum dos dois será capaz de ultrapassar e que os manterá confinados em seus próprios mundos, congelados e defendidos? E o neném que vai nascer e que ela, Bhima, nunca vai chegar a ver. O neném vai ser lindo, sabe disso, com os olhos intensos e escuros de Viraf e a boca suave e gentil de Dinaz. Mas será que algum dia Serabai vai ser capaz de olhar para o rosto claro e imaculado do neném sem se lembrar do meio-irmão mais escuro, e de cuja morte foi testemunha?

“Será que os ricos pensam assim?”, fica imaginando Bhima. “Ou será que, junto com o á-bê-cê e o 1, 2, 3, também aprendem a não ser perseguidos e atormentados pela verdade?” Não sabe. Em alguns aspectos, conhece Serabai melhor do que os parentes dela, mas, ainda assim, até que ponto conhece essa mulher cheia de orgulho e dignidade e que foi uma presença tão poderosa quanto Deus na sua vida durante todos esses anos? Passou a conhecer Serabai principalmente por seus atos e seus hábitos, percebe agora Bhima. Sabe que ela gosta do chá fraco e com um pouco de leite, que não gosta de goma nas roupas passadas, que é generosa e acredita no valor do estudo. Também conhece Serabai por seus silêncios, o silêncio súbito e fechado quando não está de acordo com alguma coisa, o silêncio de pedra e cheio de dignidade quando não quer expor suas feridas para o mundo, o silêncio tímido e sem jeito quando está num grupo de mulheres batendo papo e não tem nada a dizer.

Mas, após todos esses anos de trabalho na casa de Serabai, Bhima percebe que não tem idéia do que ela pensa. “E por que deveria?”, pergunta-se. “Você é uma mulher ignorante e desinformada, Serabai é uma mulher instruída e viajada. Uma mulher que lê o jornal todos os dias, enquanto você fica catando os pedaços de informação que caem ao seu redor como migalhas de pão. Que assunto ela teria para conversar com você?” Bhima fica ruborizada ao se lembrar das tantas vezes que Serabai teve que abrir sua cabeça para explicar certas coisas. Como o medo que tinha dos muçulmanos, por exemplo. Cresceu, como muitos outros, acreditando que os muçulmanos estavam prestes a dominar a Índia, e que a intenção deles era adquirir ouro e prata até que fossem os donos do país e mandassem todos os hindus embora. Era por isso que tinham tantos filhos, e o governo estava do lado muçulmano, pois só os hindus eram visados pelo seu discurso de planejamento familiar. Serabai riu da primeira vez que Bhima disse isso tudo. Depois, seu rosto se fechou e seus olhos ficaram apreensivos. Ela foi ao outro quarto e voltou com um livro grosso. A princípio, Bhima não pôde acreditar no que Serabai tinha acabado de ler, que a maioria dos muçulmanos da Índia era miserável e que existiam em número infinitamente menor do que os hindus.

— Bhima, mesmo que alguns deles tenham a intenção de... como foi que você disse?... dominar a Índia... nesse ritmo levaria mais de cem anos — disse Serabai.

Ainda assim, Bhima não se convenceu. Serabai, porém, fez questão de traduzir trechos do jornal para ela, e Bhima ficou sabendo dos incêndios das aldeias muçulmanas pelas multidões de hindus e de como os políticos ficavam jogando um grupo contra o outro. Mais importante do que isso, Serabai lhe contou como as duas comunidades tinham vivido lado a lado e em paz durante centenas de anos até os sahibs brancos virem semear a badmaashi, fazendo com que um grupo temesse o outro. Depois disso, Bhima parou de odiar os muçulmanos e começou a odiar os políticos.

Mas agora desejaria que, em vez de compartilhar a história com ela, Serabai tivesse compartilhado alguns de seus pensamentos, que manteve trancados em sua cabeça como remédios numa gaveta, como dinheiro num armário. Dinheiro no armário. Setecentas rupias. Bhima sabia que, quando oferecia uma festa para os amigos, Viraf gastava aquilo só em cerveja e refrigerantes. Em outro momento, ele jamais teria se preocupado com uma quantia tão pequena assim.

“Mas quem foi que disse que o dinheiro sumiu?”, pensa febrilmente. “Decerto está no bolso da calça dele nesse momento. Veja bem, o envelope pardo foi o último tijolo que ele usou para encurralá-la. Você pensou que aquele contador do trabalho de Gopal a tinha enganado. Mas ele apenas a tratou como uma boba ignorante, o que não é mentira. Mas esse rapaz a chamou de ladra na sua cara e não havia nada que você pudesse fazer. Como um caçador querendo apanhar um animal selvagem, ele preparou essa armadilha para você. Talvez tenha escolhido exatamente um dia em que soubesse que a menina Dinaz não ia estar em casa. Deve ter planejado isso durante dias, meses. Cada vez que você fechava a cara para ele, cada vez que não aparecia assim que ele a chamava, cada vez que o humilhava na frente de sua mulher, ele estava pensando, calculando, planejando. Será que precisou planejar tanto assim? Quão amedrontado poderia ficar, sabendo que uma velha sem instrução era o seu oponente? Provavelmente não estava apenas deixando o tempo passar. Estava apenas brincando com você, apenas jogando você para lá e para cá, deixando você achar que tinha mais poder do que verdadeiramente tinha. E depois, com um peteleco, fez com que caísse do seu pedestal. Foi por esta quantia que ele a comprou e a vendeu: setecentas rupias. É o que você vale, menos do que a quantidade de cerveja de uma festa.”

A garganta de Bhima queima com o sal da injustiça. Ela engole o nó na garganta, mas ele queima, descendo em seu peito até finalmente pousar como fogo, derretendo o seu estômago. “Será que eu deveria entrar em contato com Serabai enquanto Viraf estiver no trabalho?”, pensa. E exclama em voz alta, quando a resposta se forma em sua cabeça: Não posso! Se fosse apenas a questão do dinheiro roubado, poderia ter se aproximado de Serabai, poderia tê-la convencido do equívoco daquela acusação. Na verdade, não precisaria dizer uma palavra... A própria Serabai a tinha defendido, não foi? Viraf tinha calculado mal o senso de justiça de sua sogra. Se aquele rapaz pensou que Serabai a despediria só por causa do seu dedo apontado e da sua vil acusação, estava enganado. Mas se Viraf tinha sido incapaz de acender a sua pira funerária, ela mesma o tinha feito. Tinha subido ao topo da pilha de madeira, deitado sobre ela e acendido o fósforo que fez nascer as chamas que a devoraram. Com suas palavras, fez nascer um fogo que queimou todos eles. O fogo a tinha consumido, transformando seu futuro e seus sonhos em cinzas. Nunca saberia como aquilo tudo afetou os outros dois, se as chamas tinham apenas lambido seus corpos e depois se apagado pelas rajadas de suas negações, ou se tinham causado cicatrizes permanentes.

E, apesar de seu sofrimento, de sentir-se ofendida, Bhima reza para que Serabai negue tudo. Não quer magoar essa mulher que já passou por muitos sofrimentos.

— Ae, Bhagwan, me perdoe. O senhor deveria ter cortado fora a minha língua antes que eu pudesse dizer aquelas palavras horríveis.

Fecha os olhos por um segundo para bloquear a visão do rosto chocado e surpreendido de Sera e esbarra num rapaz de bicicleta, na contramão.

— Ae, mausi, olhe por onde anda! — grita ele, ziguezagueando por entre a multidão. — Quase me derrubou da bicicleta, yaar!

Envergonhada, Bhima resmunga uma desculpa e apressa o passo. Subitamente, lembra-se da noite em que Feroz seth morreu. Algo no céu de hoje, inflamado de laranja e roxo, a fez lembrar aquela noite. Lembra-se de ter ficado parada na porta, olhando para o corpo rígido e imóvel de Feroz seth. Como era estranho, pensou, depois que o pessoal da ambulância viesse para levá-lo, nunca mais voltaria a vê-lo. Só os parses podiam entrar na Torre do Silêncio, sabia disso. Parada na porta, tentou estudar os traços do rosto de Feroz, tentou recordar o som da sua voz, o seu riso curto e abrupto. E descobriu que não podia. Ele estava morto há apenas alguns minutos e já tinha ido embora.

“Era assim que parecia a ruptura com Serabai”, pensava ela. Uma ruptura tão repentina quanto a morte. Mas era pior, porque ia ter que conviver com a consciência de que Serabai está viva na cidade, como ela, e que dentro de algumas semanas estará se inclinando no berço do neném e cantando para ele, enquanto outra mulher estará lavando suas roupas, suas panelas e seus pratos.

A idéia de outra mulher trabalhando na casa de Sera provoca uma descarga de raiva que percorre todo seu corpo e, como a eletricidade, a raiva muda de trajeto e se volta para dentro dela. “Ah, que mulher burra!”, recrimina-se Bhima. “E o que importa quem vai trabalhar na casa deles? Mesmo quando o seu marido a deixou, você não sofreu tanto quanto está sofrendo agora. O que essas pessoas significam para você, afinal? Na hora H, eles a jogaram fora como um pedaço de pão velho e mofado, não foi? Serabai não preferiu a óbvia mentira de seu genro à sua óbvia verdade? Não se escondeu no seio da família quando teve que escolher? E bateu na cara dele quando ele a chamou de ladra? Botou o genro para fora de casa quando você contou o que ele tinha feito? Não, em vez disso, mandou você embora, O que a minha mãe sempre dizia é verdade: o sangue é mais espesso que a água. E daí que Serabai não tenha realmente parido Viraf? É a mesma coisa, ele é filho dela. A mesma pele clara, a mesma confiança quando fala com estranhos, o mesmo jeito educado de falar.”

Bhima não se surpreende ao descobrir que, nesse dia de enganos e trapaças, até seus pés a enganaram. Em vez de levarem-na para casa, como pensou que fossem fazer, viraram a esquina e agora ela está na avenida em frente à praia. O céu acima da água estava ainda mais violento e machucado, cortado de vermelho e roxo pela navalha de um louco. Subitamente, sente vontade de ir para perto da água, de ouvir em suas batidas selvagens, mas controladas, o violento turbilhão de sua alma, O vento a impulsiona para a frente, pelas seis pistas de trânsito que tem de atravessar para chegar ao outro lado. Sente, por um momento, um aperto no coração ao pensar em Maya, que deve estar preocupada esperando por ela em casa, mas o vento colhe aquele sentimento de culpa e o leva embora.

Bhima põe a caixa de papelão na mureta de cimento construída ao longo da praia e se senta ao lado dela. Decide que não vai levar aquilo para casa quando sair dali. A caixa é apenas um lembrete falso dos dias que não vão mais voltar. Outra pessoa pode ficar com seu conteúdo. Imagina o prazer de um menino ao encontrar o seu pente azul, de uma pobre mendiga ao ficar com a sua saboneteira, de uma adolescente usando o seu talco Pond’s depois do banho, no dia seguinte. Senta-se com várias outras pessoas que vieram ver o mar e olha para a água cinzenta que bate contra as grandes pedras que o separam da mureta. Deseja que o mar mande uma onda enorme em sua direção, uma onda que se eleve majestosamente por cima da mureta protetora varrendo tudo, as senhoras ricas que passeiam com seus cães, os estrangeiros louros com seus passos largos e suas mochilas, os casais que se sentam olhando o mar com as mãos no colo um do outro, o vendedor com seu lamento anasalado tentando vender o seu amendoim. Acima de tudo, quer que a onda se eleve e carregue seu corpo magro e cansado, que o leve de volta para o mar, como se ele fosse um graveto. Quer boiar na água como um coco seco jogado ao mar para aplacar os deuses. Reza para que a água lave os seus pecados, limpe os pensamentos que queimam em sua cabeça e apague o fogo em sua garganta.

— Bai, bai — chama o vendedor ao seu lado, importunando-a para que comprasse a mercadoria dele.

Bhima faz que não com a cabeça, mas esse sinal de reconhecimento só o deixa mais animado.

— Por favor, bai — pede ele com um sorriso sedutor. — Os negó-cios estão indo muito mal hoje. Tenho mulher e cinco crianças em casa.

Ela o olha com desprezo, lembrando-se do velho pathan vendedor de balões e de sua calma dignidade. Bhima acha que ele nunca imploraria para que um cliente comprasse a sua mercadoria. Teria ficado com fome, teria voltado de mãos vazias ao fim do dia para o seu canto solitário do mundo, mas não teria se rebaixado a mendigar. O vendedor observa o desprezo se formar no rosto dela, como espuma do mar, e desiste. Vai embora apressadamente, resmungando alguma coisa para si mesmo sobre a falta de coração da gente da cidade.

Lembrar-se do rosto bonito e calmamente pensativo do vendedor de balões afegão é algo que acalma Bhima tanto que, por um momento, acha que o mar na verdade ouviu o seu pedido. “É estranho”, pensa ela, “como mal consegue se lembrar do rosto de Feroz seth. E que Deus a perdoe, mas também está começando a esquecer o rosto de Amit. Isto é, consegue se lembrar de partes dele, os pontos brancos nas unhas das mãos, o catarro verde que às vezes escorria do nariz, a textura do cabelo escuro e grosso, a covinha no queixo. Mas, atualmente, tem dificuldade de ver o rosto como um todo. A recordação mais clara que tem é de mais ou menos dois anos antes de ele a deixar. E isso só por causa de uma fotografia daquela época, uma fotografia que amarelou com o tempo e ficou gasta de tanto que ela a pegou, beijou e acariciou.”

E, no entanto, consegue se lembrar muito bem do rosto do pathan, como se tivesse esbarrado com ele ontem. Consegue ver o cinza-leitoso de seus olhos tristes, que ela sempre imaginava que refletiam os céus de sua terra natal. Consegue se lembrar da pele morena encarquilhada naquele rosto tão rústico quanto o país de onde ele veio. Consegue ver o nariz comprido e reto como uma cadeia de montanhas e os lábios finos que faziam meandros como as curvas de um rio, quando ele estava se concentrando no seu trabalho. Mais do que tudo, lembra-se das belas mãos morenas que criavam poesia a partir do nada, que transformavam pedaços de borracha sem vida em objetos mágicos que traziam alegria aos olhos das crianças.

Bhima sente alguma coisa se aliviar em seu coração. O céu está ficando mais escuro agora, com o fim daquele espetáculo estonteante de luz, mas o vento e o barulho do mar batendo continuam a confortá-la. Em meio aos gritos, berros e conversas intermináveis das pessoas à sua volta, imagina que está ouvindo a voz grave e baixa do pathan confortando-a, encorajando-a, dando força para que vá em frente. A voz dele veio até ela através das montanhas e, ao longo dos anos, usou o vento como seu mensageiro. O arrependimento que sempre sentiu por nunca ter falado com ele, por nunca ter perguntado sobre sua vida, agora a abandonou. Talvez porque, de algum modo, mesmo sem que tenha perguntado, o pathan falou com ela. Lembra-se de como suas bochechas encovadas ficavam inchadas com o ar que ele soprava dentro do tubo de borracha dos balões vazios, de como seus dedos longos e morenos deslizavam suavemente pelos tubos delgados dos balões inflados, como os dedos fluidos de Krishna tocando sua flauta. Bhima fica admirada com o paradoxo: um homem solitário, um exilado, um homem sem país e sem família e que ainda assim conseguiu criar mun-dos de sonho para centenas de crianças, entrando nas casas de estranhos com suas criações cheias de cores, mágica e fantasia. Um homem que nunca mais iria tocar ou beijar os rostos amados de seus filhos e que fazia sorrir os filhos de outras pessoas. Como um músico, o pathan tinha aprendido a compor uma canção a partir de sua solidão. Como um mágico, tinha aprendido a usar apenas o ar para contorcer e transformar pedaços inexpressivos de borracha em objetos de felicidade. De mãos vazias, tinha construído um mundo.

Tudo em torno de Bhima ficou silencioso. Os poodles brancos pararam de latir, as buzinas dos carros pararam de tocar, os vendedores pararam de apregoar a superioridade de suas mercadorias. Tudo o que Bhima consegue ouvir é o barulho das ondas que batem e as palavras suaves do pathan murmurando para ela, tecendo uma melodia que é, ao mesmo tempo, a solidão e a receita para superá-la, uma melodia que fala tanto da amargura do exílio quanto do encanto da solidão, do medo de estar sozinho no mundo e da liberdade que bate suas asas por baixo daquele medo. Bhima está sentada, imóvel, ouvindo a música. E logo o shenai, uma espécie de flauta, interrompe o seu lamento trágico e estridente e, após alguns minutos, a cítara pára de emitir o seu som que entorpece o coração, e então tudo o que resta é a batida da tabla — incessante, crescente e poderosa. Logo, a solidão interrompe o seu lamento, o medo faz cessar o seu ruído entorpecente e tudo o que resta é a liberdade — incessante,crescente e poderosa.

Bhima ri bem alto. O casal a seu lado se espanta ao ver uma velha sentada com as pernas cruzadas na mureta de cimento e rindo sozinha.

— Ela deve achar que é o Buda sorridente — sussurra o homem para a namorada.

— Ela é magra demais para isso — responde a moça, também sussurrando.

Bhima não os ouve. Está recebendo ordens de uma autoridade diferente agora, seguindo o som que se alvoroça em seus ouvidos, o som de asas batendo, o som de aprender a voar: liberdade.

Agora chega quase a sentir gratidão por Viraf baba, pois sua traição foi a faca que cortou o cordão que a tinha mantido presa por tanto tempo.

Desce da mureta, sabendo o que tem de fazer. Na pressa, não espera que a junta oscilante do quadril encontre o seu lugar antes de começar a andar, e o castigo é uma dor que corre, descendo pelo galho escuro de sua perna esquerda. Mas hoje não está se importando e antes mesmo que o fogo da dor desapareça, já está mexendo no sári, procurando pelas vinte rúpias que sabe ter guardado ali. Por um momento pensa em Maya diante do fogão, esperando que a avó chegue em casa, e sente um aperto de culpa por privar a moça da comida que as vinte rúpias poderiam comprar. Mas depois pensa:

“O que essa pequena quantia vale na Bombaim de hoje? O que isso compraria? Alguns torrões de açúcar? Posso muito bem tomar meu chá sem açúcar durante as próximas semanas.” Mas, antes de seguir em frente, antes que consiga decidir que desculpa vai dar a Maya quando chegar em casa, e também de que família iria se aproximar para procurar um novo serviço, antes que tenha que enfrentar a terrível realidade do desemprego e de ter que procurar trabalho, e todas as humilhações que isso acarreta, antes que se decida se vai acreditar ou se vai ignorar o som do bater das asas da liberdade, tem que fazer uma determinada coisa: tem que honrar a memória do pathan babu.

Em sua ânsia, quase passa por cima do rapaz que está acocorado na calçada com o rosto sombreado pelos balões que está segurando. Dá alguns passos para trás e pára diante dele, examinando os balões amarrados em gravetos finos que faziam com que parecessem grandes pirulitos.

— Esses são todos os balões que você tem? — pergunta ela.

O homem fica de pé num pulo, com um sorriso solícito no rosto.

— Arre, mausi, tenho muitos balões. Todos de cores diferentes: amarelo, vermelho, laranja. O que mais a senhora quer?

Ela balança a cabeça, impaciente.

— Queria de um outro tipo. Tem outros vendedores de balão por aqui?

Ele olha para ela ressentido, dividido entre querer faturar uma venda e um leve sentido de lealdade com relação aos seus colegas vendedores de balões.

— Bom — diz ele finalmente. — Mais para baixo, se a senhora continuar andando, tem um outro cara vendendo balões de gás. Mas ele está bem lá embaixo — acrescenta, como um aviso.

— Obrigada — diz Bhima.

Ela anda agora a passos rápidos, evitando as pessoas que vinham no sentido contrário. Houve um momento em que se admirou de ver como conseguia andar mais rápido sozinha do que quando estava com Maya. E, de novo, ouve o som das asas batendo. Liberdade. Faz muitos anos que não se sente sozinha desse jeito.

Bhima está quase sem fôlego quando finalmente chega ao segundo vendedor de balões. Tem menos gente ali, e ela se pergunta por que esse homem trabalha naquele local. E então lembra-se de que Serabai lhe dizia sempre que a polícia e os chefes das quadrilhas trabalham lado a lado a fim de tirar dinheiro dos vendedores para lhes ceder um ponto. Provavelmente ele paga menos para trabalhar ali, conclui.

Seu coração pula de alegria quando ela vê o cilindro de gás. Esse vendedor tem exatamente o que ela quer. Bhima aguarda com impaciência ele encher um balão para uma menina que está segurando a mão do pai, olhando maravilhada para o balão que se enche.

— E se ele estourar? — pergunta ela, chorosa.

O vendedor sorri.

— Não vai estourar, não! Isso aqui é um trabalho bem-feito, menina — garante ele.

Quando chega a vez de Bhima, o homem olha a sua volta, procurando uma criança, e depois olha para ela, com uma expressão intrigada.

— Quanto custa o balão? — pergunta Bhima, mas antes que ele possa responder, ela lhe mostra a nota de vinte rúpias. — Quero quantos balões eu puder comprar com esse dinheiro — acrescenta.

O homem olha para ela como se estivesse com receio de acreditar na sua boa sorte.

— É para uma festa na casa da sua patroa? — pergunta ele, puxando conversa, ao começar a encher os balões.

— Não tenho patroa — responde Bhima secamente.

E em vez de serem amargas como aspirina, em vez de lhe rasgarem a boca como cacos de vidro afiados, as palavras são doces como uma bomba de chocolate Cadbury derretendo em sua boca.

— Não tenho patroa — repetiu ela.

Quando o vendedor terminou de encher os balões, Bhima os pega todos juntos como um buquê de flores, segurando-os pelos compridos cordões. Eles voam e ondulam por cima de sua cabeça. O céu agora está negro, sem nenhum vestígio do fogo de mais cedo, e os balões dançam ao vento como cabeças roxas, vermelhas e azuis contra a escuridão do céu. Debaixo da luminosidade dos postes de luz, vê os olhares curiosos das pessoas que passam por ela. Ocasionalmente, uma criança, arrebatada pela inveja, solta-se do braço da mãe e corre em direção a um dos balões. Bhima finge não perceber. Por sobre a água escura, vê o brilhante Colar da Rainha, nome carinhoso dado a reluzente fileira de postes de luz que faz uma curva ao longo do litoral, desde Malabar Hill até Nariman Point.

O vento tenta arrancar os cordões de sua mão, mas ela aperta os dedos, lutando contra o seu poder. Olha ao seu redor, sem saber o que fazer em seguida, quando avista um ponto onde a mureta de cimento tinha desmoronado, criando uma abertura por onde se podia descer até as pedras banhadas pelo mar. Bhima se põe de cócoras perto da mureta desabada e tira os chinelos. Vai descendo sentada até ficar na beira do precipício, em seguida deixa pender um pé desajeitadamente até sentir que tocou as pedras. Equilibrando-se nesse pé, e ainda segurando os cordões dos balões que dançam como fantasmas alegres sobre sua cabeça, põe o outro pé nas pedras, escorando-se rapidamente com uma das mãos na mureta, antes de se soltar completamente. Fica parada por um segundo, vasculhando a água ao seu redor, confiando mais na audição do que na visão.

Bhima sente necessidade de chegar mais perto da água, de sentir a umidade fresca nos pés. Meio agachada, usando as pontas dos dedos para se apoiar, vai se aproximando da água, pisando de pedra em pedra. À medida que se adianta, as rochas vão se tornando úmidas e escorregadias. O vento a está fustigando como um patrão cruel, tentando arrancar os balões de suas mãos. Apesar do solo escorregadio, ela se movimenta agora com mais segurança, com seus pés se adaptando aos contornos das pedras. Sente a água borbulhando em volta dos seus pés, e os sons da água e do vento encobrem os sussurros das palavras do pathan e os ruídos da cidade. Bombaim agora parece distante, e ela acha que não se surpreenderia se olhasse para trás e descobrisse que a cidade tinha sido arrasada. Os táxis tinham desaparecido, os enormes edifícios tinham desmoronado, as pessoas tinham sumido. Na presença da imortalidade — o mar eternamente revolto, os campos arados do céu, o vento livre e cigano —, o que restava de sua vida lhe parecia absurda e ridiculamente mortal, transitório como o dinheiro, frágil como o amor, tão etéreo e pronto a estourar como os balões que estão dançando ao vento.

Agora, Bhima finalmente entende uma coisa que sempre observou no rosto das pessoas quando estão á beira-mar. Anos atrás, quando ela e Gopal vinham aqui, observou como o rosto das pessoas se voltava ligeiramente para o alto quando elas estavam olhando para o mar, como se estivessem tentando ver um sinal divino, ou ouvindo o som silencioso do universo. Notou como, na praia, o rosto das pessoas se tornava suave e melancólico, lembrando-lhe das expressões daqueles cães velhos e afetuosos que perambulavam pelas ruas de Bombaim. Como se estivessem todos farejando o ar salgado para poderem transcender, buscando algo que lhes permitisse escapar das prisões familiares de seu próprio corpo. Nos templos e altares, as cabeças se curvavam e os rostos se tornavam pequenos, temerosos e respeitosos, reduzidos à insignificância pelo canto ritualizado dos sacerdotes. Mas quando as pessoas olhavam para o mar, levantavam a cabeça e seus rostos se tornavam curiosos e abertos, como se estivessem procurando por alguma coisa que os ligasse ao Sol e às estrelas, alguma coisa que sabiam que iria permanecer muito tempo depois que o vento tivesse apagado as suas pegadas na areia. A terra pode ser comprada, vendida, possuída, dividida, reivindicada, maltratada e transformada em campo de batalha. A terra sempre esteve manchada por poças de sangue. A terra inchou e cresceu sobre os incontáveis milhões de corpos nela enterrados. Mas o mar era intocado e eterno, e estava aparentemente além das pretensões humanas. Suas águas subiam e engoliam a rubra vergonha do sangue derramado.

Os balões ainda estão nas mãos de Bhima e, subitamente, ela imagina que os cordões são a única coisa que a mantém atada a esta terra triste e arruinada, e se soltasse os cordões subiria e flutuaria para além dessas pedras, até a estreita faixa onde o mar se encontra com o céu. E, no exato momento em que essa idéia lhe veio à cabeça, ela afrouxou a mão que segurava os balões, e o vento dançarino embalou-os e os levou embora. Por um rápido segundo, diante dos olhos de Bhima, flutua uma imagem do rosto do velho pathan — triste e pensativo, mas também cheio de coragem e dignidade —, e depois a imagem se vai, carregada pelo vento. E tudo o que Bhima consegue ver são os balões, subindo e flutuando por cima da água escura, parecendo cabeças cortadas, subindo cada vez mais alto, ascendendo aos céus como o carro de Arjuna, rumando para as estrelas. Bhima aperta os olhos e observa seu vôo durante muito tempo, até que o último balão desaparecesse de vista. Ela fica de pé nas pedras. Escorrega de vez em quando, mas consegue se aprumar e olha para o mar como se estivesse esperando por uma resposta. Um siri sai correndo de uma pedra próxima aos pés dela, mas Bhima não percebe. Está muito empenhada em falar com o mar, em entregar-lhe sua carga, como uma menina voltando para casa da escola entrega seus livros pesados ao irmão mais velho.

“Poderia ficar aqui para sempre”, pensa ela. “Poderia ocupar este local que não é nem terra, nem água, esperar aqui até que o céu e o mar desengatem seus membros escuros e interligados e os separem novamente, na luz de um novo dia.”

Um novo dia. Vai encará-lo amanhã, pelo bem de Maya. Junto com o mar que desperta, junto com o restante de Bombaim — os pivetes de rua, os cachorros sem dono, os pobres vendedores de nozes e a mulher que só consegue vender seis couves-flores por dia, os habitantes da favela de olhos encovados, os rechonchudos moradores dos edifícios próximos, os trabalhadores que transbordam dos trens na estação de Churchgate, as crianças que embarcam nos ônibus escolares cheios de rangidos, os velhos que gemem em seus leitos de morte e as crianças que saem dos ventres escuros de suas mães junto com toda a metrópole gigantesca e todos os seus habitantes se arrastando em seus destinos individuais, como um exército de formigas fingindo ser um exército de gigantes, junto com Banubai em sua cama úmida, com Serabai em seu mundo despedaçado, com Viraf baba e sua culpa sufocante, com Maya e seus sonhos incertos e hesitantes, e também junto com Gopal e Amit acordando numa aldeia distante para sentir o cheiro de terra. Como todos eles, como os milhões de pessoas que não conhece e as poucas pessoas que conheceu, também vai enfrentar um novo dia amanhã.

Amanhã. A palavra flutua no ar por um momento, ao mesmo tempo promessa e ameaça. Depois vai embora como um barquinho de papel levado pela água que lambe seus tornozelos.

Está escuro, mas dentro do coração de Bhima, o dia nasce.

 

                                                                                Thrity Umrigar  

 

                      

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