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Passava das dez horas e havia apenas três homens sentados ao balcão e outro a uma mesa do fundo do bar quando a prostituta entrou. com ela, entrou uma rajada de ar frio.
Trepou a um banco e deixou o fino casaco de Inverno deslizar parcialmente dos ombros, enquanto pedia:
- Dá-me uma cerveja.
Sem proferir palavra, o bartender encheu uma caneca e colocou-lha em frente. Em seguida, pegou na moeda de vinte e cinco cêntimos e guardou-a na caixa registadora.
- Alguma actividade esta noite, Jimmy? - perguntou ela, ao mesmo tempo que esquadrinhava o balcão com o olhar em busca de satisfação da curiosidade.
- Hoje não, Maria. - O interpelado abanou a cabeça. - É domingo, e os turistas estão em casa, deitados.
Afastou-se e começou a puxar o brilho a alguns copos sob o balcão. Entretanto, observava-a enquanto tomava a cerveja. Maria. Ele chamava Maria a todas. Às pequenas mulheres porto-riquenhas, com os seus olhos negros-brilhantes e busto e nádegas firmes. Quando se teria injectado pela última vez?
A prostituta renunciou aos homens do balcão e voltou-se para o que ocupava a mesa. Embora só visse as costas, o corte do fato indicava que não era dali. Lançou um olhar interrogativo ao bartender, que encolheu os ombros, e deslizou do banco, a fim de se aproximar da mesa.
O homem baixava os olhos para o copo de uísque, quando ela se deteve a seu lado e inquiriu:
- Sente-se só, senhor?
Adivinhou qual seria a resposta no momento em que o viu erguer a cabeça para a encarar. Por meio da expressão dos olhos pretos, rosto bronzeado e boca voraz. Os indivíduos como ele não necessitavam de comprar os seus prazeres - conquistavam-nos.
- Não, obrigado - respondeu Cesare, polidamente.
A prostituta esboçou um sorriso, inclinou a cabeça e regressou ao balcão. Tornou a empoleirar-se no banco e puxou de um cigarro.
O bartender, um homem baixo e atarracado, ofereceu-lhe um fósforo aceso e, com um sorriso, murmurou:
- Como disse há pouco, é domingo.
A rapariga chupou o cigarro profundamente e expeliu o fumo com lentidão.
- Pois é - articulou em voz átona, deixando transparecer o primeiro sinal de apreensão -, mas tenho de trabalhar. É um hábito dispendioso.
O telefone na cabina junto do balcão principiou a tocar e ele afastou-se para atender. Quando saiu da cabina, dirigiu-se à mesa de Cesare e informou:
- Para usted, señor.
- Muchas gracias - replicou o outro, encaminhando-se para o telefone. - Estou... - proferiu, depois de fechar a porta.
A voz da mulher era quase um murmúrio e exprimia-se em italiano:
- Tem de ser de manhã, antes de ele comparecer no tribunal.
- Não há outro lugar? - perguntou Cesare, no mesmo idioma.
- Não. - As palavras dela soavam distintamente no auscultador, apesar da suavidade. - Não conseguimos descobrir de onde vem. Só sabemos que aparecerá no tribunal às onze.
- Não há outro lugar? - perguntou Cesare, no mesmo sítio?
- Continuam. Em Las Vegas e Miami. Planeou bem as coisas?
- Está tudo preparado.
- O homem tem de morrer antes de se sentar no banco das testemunhas. - A inflexão da mulher tornou-se dura. - Os outros também.
- Diga a Dom Emílio que não se preocupe. - Cesare soltou uma risada seca. - Pode considerá-los todos mortos.
Pousou o auscultador e abandonou o bar, para imergir na noite escura do Harlem espanhol. Levantou a gola por causa do vento gelado e começou a afastar-se. Dois quarteirões adiante, em Park Avenue, mandou parar um táxi solitário e subiu.
- El Morocco - disse ao motorista.
Reclinou-se no banco e acendeu um cigarro, ao mesmo tempo que principiava a dominá-lo certa excitação. Pela primeira vez desde a guerra, voltava a ser a valer. Evocou as circunstâncias da primeira. A primeira rapariga e a primeira morte. Era curioso como pareciam andar juntas. A realidade de viver nunca era maior que quando uma pessoa tinha a morte bem segura nas mãos.
Dir-se-ia ter sido há muito tempo. Ele tinha quinze anos e estava-se em 1935. Naquele dia, realizara-se uma parada na pequena aldeia siciliana no sopé da montanha. Os fascistas passavam a vida a organizar paradas. Havia bandeiras e cartazes com a efígie do Duce por toda a parte. com o rosto carrancudo, punho cerrado ameaçadoramente e olhos porcinos proeminentes. Vive Perigosamente. Sê Italiano. A Itália Representa a Força.
Era perto do fim da tarde, quando Cesare atingiu a base da montanha, a caminho de casa. Ergueu os olhos e viu o castelo à beira de um promontório, perto do topo. Adornado e hediondo. Como se apresentava há quase seiscentos anos. Desde que um antepassado há muito falecido, o primeiro conde Cardinali, escolhera para esposa uma filha da família Bórgia.
Principiou a escalar a montanha e passou diante da vinha de Gandolfo, onde lhe acudiu às narinas o odor intenso das uvas pretas. Ainda se recordava do rufar dos tambores e da excitação no seu íntimo, naquela tarde. O seu espírito fora inundado pelas histórias lúbricas do velho sareEto do recrutamento acerca das orgias que se desenrolavam no palácio do Duce.
- Collones - bradava o velho militar. - Nunca houve collones como aqueles em toda a história da Itália! Comeu cinco raparigas diferentes na mesma noite.
Posso afirmá-lo, porque me competia levar-lhas. Todas se retiraram com as pernas arqueadas, como se tivessem sido montadas por um touro E ele levantou-se às seis da manhã, vigoroso e fresco, para nos ministrar a instrução habitual! - A saliva deslizava-lhe dos cantos da boca. Fiquem cientes de uma coisa, meus rapazeS; se é mulheres que pretendem, a farda do exército italiano proporciona-lhes todas as que quiserem. Faz que cada uma pense que obtém um pedaço do Duce!
Fora então que Cesare vira a rapariga. Vinha das traseiras da casa de Gandolfo. Reparara nela Doutras ocasiões, mas nunca quando tinha os sentidos excitados. Era uma fêmea alta, robusta, de peito bem cheio aquela filha do vinhateiro, e levava um odre de vinho da casa de arrefecimento no campo das traseiras, perto do ribeiro, mas quando o viu deteve-se.
Ele imobilizou-se igualmente e observou-a. O calor do dia ainda se fazia sentir com intensidade, e limpou as gotas de transpiração do rosto com as costas da mão.
- Talvez o signor deseje um pOuco de vinho fresco? - sugeriu ela em tom suave e respeitoso.
Cesare assentiu com um movimento de cabeça, sem pronunciar palavra, aproximou-se, ergueu o odre e o vinho tinto deslizou para a garganta, derramando-se, em parte, para o queixo. Sentiu o impacto poderoso do líquido no íntimo, para o aquecer e arrefecer simultaneamente. A seguir, devolveu o odre e ficaram a olhar-se em silêncio.
Uma coloração avermelhada começou a propagar-se do peito e garganta da rapariga em direcção ao rosto, ao mesmo tempo que baixava os olhos. Ele divisou o súbito endurecimento dos mamilos contra a blusa fina de camponesa e a ondulação dos seios na parte superior.
Por fim, voltou-lhe as costas e principiou a encaminhar-se para o bosque. De gerações de conhecimento das profundezas das entranhas brotou a ordem que não tinha a mínima dúvida da sua capacidade para possuir:
- Vem!
Obedientemente, como se fosse um autómato, ela seguiu-o para o interior do bosque, onde o arvoredo era tão denso que quase não se conseguia ver o céu. Deitou-se no chão a seu lado e não proferiu uma única palavra, enquanto os dedos dele lhe retiravam a roupa do corpo.
Cesare conservou-se de joelhos por um momento, para contemplar as linhas musculares bem definidas do corpo dela, os seios de bicos bem cheios, o ventre liso que arfava com intensidade e as pernas vigorosas e bem torneadas. Assolou-o uma torrente avassaladora de paixão e lançou-se-lhe para cima.
Era a primeira vez para ele, mas não para ela. Gritou por duas vezes em agonia, quando ela o prendeu firmemente dentro de si, e, por último, esgotado, rolou para o lado e ficou a arquejar pesadamente no solo húmido junto dela.
A rapariga voltou-se para ele em silêncio, enquanto os dedos e boca se moviam para explorar, sondar. A princípio, ele repeliu-a, até que as mãos tocaram nos seios e se imobilizaram. Involuntariamente, torceu-os e ela gritou de dor.
Ele olhou-a então, pela primeira vez, no rosto. Os olhos eram grandes e apresentavam-se húmidos. Tornou a torcer e o grito repetiu-se. Agora, porém, conservou as pálpebras cerradas. Havia indícios de lágrimas nos cantos, todavia a boca achava-se aberta em êxtase, como se pretendesse absorver vigor da atmosfera.
Cesare sentiu-se invadido por uma vaga de poder que nunca conhecera. Apertou os dedos, agora com crueldade. Desta vez, a explosão de dor espantou as aves, que abandonaram as ramagens com gritos estridentes. Ela abriu os olhos e fitou-o, até que, numa atitude de adoração, inclinou a cabeça para o corpo dele, subitamente reactivado.
Anoitecia, quando Cesare começou a afastar-se. Sentia-se forte e completo, e a relva era como um tapete sob os seus pés. Quase alcançara a orla da pequena clareira, quando a voz dela o deteve:
- Signor!
Virou-se com lentidão. Ela encontrava-se agora de pé e o corpo nu brilhava na penumbra como se brotasse da própria terra. Os olhos eram lagoas luminosas no rosto. Esboçou um sorriso para consigo, dominada por orgulho e satisfação íntimos. As outras ficariam com inveja, quando lhes descrevesse o episódio. Não se tratava de um jornaleiro ou de um trabalhador itinerante dos que participavam nas colheitas, mas do sangue, do sangue verdadeiro, do futuro conde Cardinali.
- Grazie! - proferiu com sinceridade.
Ele inclinou levemente a cabeça, mergulhou no arvoredo e desapareceu do campo visual da rapariga, antes que ela pudesse agachar-se para recolher a roupa.
Foi seis semanas mais tarde, na escola de esgrima da aldeia, que Cesare voltou a ouvir falar dela. O mestre há muito que renunciara a dar-lhe lições, por o considerar superior à sua perícia em declínio com a idade, e sabia que Cesare só comparecia às aulas para se conservar em forma. A porta abriu-se de repente, para dar passagem a um soldado.
Avançou para o pequeno ginásio e olhou em volta, no seu moderno uniforme da guarda do Duce curiosamente deslocado no ambiente antigo de espadas.
- Qual de vocês é conhecido pelo nome de Cesare Cardinali? - perguntou, em voz tensa.
Estabeleceu-se um silêncio repentino. Os dois jovens que esgrimiam baixaram os floretes e voltaram-se para o recém-chegado. Cesare afastou-se com lentidão da parede, onde se exercitava com os pesos, deteve-se diante do soldado e anunciou:
- Sou eu.
Este último cravou-lhe um olhar intenso e declarou:
- Sou o noivo de minha prima Rosa.
Cesare olhou-o com uma expressão impassível, pois não conhecia ninguém com aquele nome.
- Quem é? - replicou polidamente.
- Rosa Gandolfo! - A informação brotou com agressividade dos lábios do outro. - E eu fui chamado do meu posto em Roma para casar com ela, porque você a engravidou!
Cesare continuou a fitá-lo por um momento, enquanto a situação se lhe tornava gradualmente clara no espírito. Por fim, descontraiu-se um pouco e, dominado por uma estranha e crescente sensação de orgulho, retorquiu:
- É só isso? Falarei ao conde, meu pai, para que lhes conceda um donativo.
Rodou nos calcanhares para se afastar, mas o soldado puxou-o pelo braço.
- Um donativo? - vociferou. - É isso que vocês pensam que eu quero? Dinheiro? Nem por sombras!
- Como queira. - Cesare contemplou-o com frieza. - Nesse caso, não falarei a meu pai.
- Exijo uma satisfação! - bradou o soldado, esbofeteando-o.
A área atingida destacou-se quase imediatamente na face de Cesare, que adquirira uma palidez intensa.
- Os Cardinalis não vislumbram a mínima honra em lutar com um plebeu - asseverou, fitando-o sem temor.
- Os Cardinalis são cobardes, proxenetas e violadores de mulheres indefesas! - O soldado cuspiu as palavras com desdém. - E você, filho bastardo, ainda é pior! O Duce tinha razão quando disse que os aristocratas da Itália estão em declínio e devem ceder o lugar ao vigor dos camponeses!
A mão de Cesare moveu-se mais rapidamente que a luz e, conquanto o soldado pesasse cerca de dez quilogramas mais, atirou-o ao chão sem dificuldade. Em seguida, cravou-lhe o olhar com uma expressão estranha, que invadiu o rosto gradualmente, ao mesmo tempo que a tonalidade azulada da íris parecia substituída por uma sombra negra. Por fim, virou-se para o mestre. Há muito tempo que ninguém ousara aludir ao seu nascimento ilegítimo.
- Dê-lhe uma espada - disse, com voz calma. - vou lutar com ele.
- Não, Signor Cesare, não! - O mestre mostrava-se sinceramente alarmado. - Seu pai, o conde, não...
Todavia, Cesare interrompeu-o no mesmo tom sereno, que continha, porém, uma autoridade inconfundível:
- Dê-lhe uma espada. Meu pai não gostaria que esta mancha no seu nome ficasse por lavar!
Entretanto, o soldado levantara-se e exibiu um sorriso ao proclamar:
- No exército italiano, somos treinados segundo a tradição. Uma espada na mão direita e um estilete na esquerda.
- Assim será - aquiesceu Cesare.
O soldado começou a despir a jaqueta e expôs os braços e ombros musculosos, ao mesmo tempo que exibia um ar confiante.
- Mande chamar um padre, meu jovem violador, pois pode considerar-se desde já morto.
Sem responder, Cesare despiu a camisa, que largou no chão, enquanto os olhos deixavam transparecer uma alegria singular.
- Está pronto?
O outro assentiu com uma inclinação de cabeça e o mestre acercou-se para servir de árbitro. O tronco esbranquiçado de Cesare parecia frágil em comparação com o vigoroso e bronzeado do antagonista.
- En garde!
As espadas cruzadas brilhavam sobre as suas cabeças. O mestre pousou-lhes a mão e a do soldado desceu vertiginosamente.
Cesare esquivou-se e a espada silvou a curta distância da ilharga, enquanto ele soltava uma gargalhada de desdém. O soldado mastigou uma imprecação e voltou à carga com impetuosidade. Cesare tornou a desviar-se com prontidão e passou à ofensiva. Adiantou-se com rapidez, as espadas cruzaram-se e, num movimento hábil e violento, fez saltar a outra da mão do adversário.
- A sua honra, meu caro senhor? - proferiu, pousando-lhe a ponta aguçada no peito.
O soldado tornou a praguejar e repeliu-a com o estilete. Em seguida, deu um salto para o lado, a fim de tentar recuperar a espada, mas Cesare postou-se na sua frente.
Olhou-o com animosidade e praguejou mais uma vez, enquanto Cesare ria de novo. Revelava uma satisfação que nenhum dos presentes jamais lhe observara. No instante imediato, largou igualmente a espada, que se juntou à outra, no chão.
Antes que o som metálico se extinguisse, o soldado atacou, com o estilete apontado ao rosto de Cesare. Este voltou a desviar-se no momento próprio e o estilete cortou o ar.
A seguir, agachou-se, com o estilete bem firme na palma da mão e a ponta para fora. O soldado imitou-o, agora com uma expressão desconfiada. De repente, tentou nova arremetida, prontamente neutralizada.
Cesare ensaiou um ataque, todavia o soldado retrocedeu e, julgando vislumbrar uma aberta, tornou a avançar. Desta vez, os dois corpos uniram-se num abraço grotesco. Cesare parecia perdido, enquanto os braços do outro o rodeavam com firmeza. Conservaram-se naquela posição por um momento, oscilando para a frente e para trás, como em actividades obscenas, até que os braços do soldado começaram a deslizar com lentidão.
O estilete soltou-se-lhe dos dedos sem força e ele caiu de joelhos, com as mãos pousadas nos quadris de Cesare, que recuou um passo.
Foi então que os outros viram o estilete na mão deste último.
O soldado tombou de bruços no chão e o mestre avançou apressadamente.
- Chamem um médico! - ordenou com ansiedade, enquanto ajoelhava junto do soldado.
Cesare, que acabava de recolher a camisa do chão, voltou-se, para advertir:
- Não merece a pena. Está morto. - E dirigiu-se para a porta.
Distraidamente, guardou o estilete na algibeira do casaco, enquanto imergia na noite.
A rapariga esperava-o na colina, onde a estrada descrevia a última curva em direcção ao castelo. Ele deteve-se quando a viu e olharam-se em silêncio. Por fim, Cesare voltou-se e seguiu para o bosque, e, obedientemente, ela moveu-se no seu encalço.
Quando já não conseguiam ver a estrada, ele virou-se. Os olhos dela arregalavam-se e emitiam um clarão intenso, ao mesmo tempo que se aproximava dele, que lhe rasgou a blusa e apertou os seios cruelmente nas mãos.
- Ai! - gritou ela, prestes a perder os sentidos.
Em seguida, a dor comunicou-se a Cesare, dos testículos tumefactos a todo o corpo. Em movimentos frenéticos, despiu-se, quando o sémen começava a verter-se em jactos no chão.
A brilhante lua siciliana já se encontrava bem alta no firmamento, quando ele se soergueu na escuridão e estendeu a mão para a roupa.
- Signor... - sussurrou ela.
Cesare não respondeu. Localizou as calças na penumbra, levantou-se e enfiou-as.
- Signor... Vim para o prevenir. Meu primo...
- Eu sei - interrompeu ele, baixando os olhos para ela.
- Mas disse que tencionava matá-lo! - volveu a rapariga, alarmada.
- Como vês, continuo vivo - proferiu ele, com uma risada seca.
- Mas pode encontrá-lo a todo o momento. Aqui mesmo. É muito ciumento e orgulhoso.
- Era - corrigiu, em inflexão átona. - Morreu.
- Morreu? - A voz dela convertera-se quase num grito, ao mesmo tempo que se levantava de um salto. - Matou-o?
- Si - confirmou Cesare com indiferença, enquanto abotoava a camisa.
A rapariga atacou-o como uma pantera, de unhas em riste, soltando sons que umas vezes pareciam uivos e outras soluços.
- Malvado! Teve relações comigo, quando o sangue dele ainda estava fresco nas suas mãos! É mais abjecto que os animais! Agora, quem casará comigo? Que faço a esta coisa que me produziu no ventre?
Ele foi assolado por uma sensação reveladora e segurou-lhe os pulsos, que conservou entre os dedos com firmeza.
- Assim desejaste, ou não estaria lá.
Ela olhou-o com intensidade e compreendeu que ele se apercebera da realidade. De súbito, inclinou a cabeça para trás e cuspiu-lhe na cara.
- Já não me interessa! - bradou. - Seria um monstro, um bastardo como o pai.
Cesare afundou o joelho com impetuosidade no ventre mole. A dor acudiu à garganta da rapariga como uma mordaça asfixiante e ela caiu, para se contorcer e vomitar.
Ele contemplou-a, ao mesmo tempo que introduzia a mão na algibeira distraidamente, e os dedos contactaram com o estilete e extraíram-no.
Ela ergueu os olhos para o observar, enquanto sentia gerar-se apreensão crescente.
- Se não te interessa, como dizes, trá-lo cá para fora com isto - indicou Cesare, com um sorriso glacial, atirando o estilete para o chão junto dela. - Serve para te purificar, pois ainda contém sangue dele. - E rodou nos calcanhares, para começar a afastar-se.
De manhã, encontraram a rapariga morta. Achava-se estendida no mesmo lugar, com o estilete em ambas as mãos e as coxas cobertas de sangue coagulado que se espalhara em volta.
Dois dias mais tarde, Cesare partiu para Inglaterra, a fim de frequentar a universidade. Só regressaria à Itália quando a guerra eclodiu, cerca de cinco anos depois.
Entretanto, os Gandolfo construíram um novo estabelecimento vinícola com as dez mil liras oferecidas pelo conde Cardinali.
O táxi deteve-se à entrada do El Morocco e o porteiro, gigantesco, abriu a porta, para alargar o rosto num sorriso, quando viu Cesare.
- Ah, o conde Cardinali! - proferiu calorosamente. - Boa noite. Começava a pensar que esta noite não o veríamos.
Cesare pagou ao motorista; apeou-se e consultou o relógio. Eram onze e meia. Esboçou um sorriso. A perspectiva de uma mulher à sua espera no restaurante também fazia parte da excitação. O atraente e condescendente corpo dela continha igualmente a realidade da vida.
CAPÍTULO II
O agente especial George Baker começou a apagar as luzes do gabinete. Quando alcançou a porta, hesitou por um momento, retrocedeu para a secretária e pegou no telefone. Tratava-se de uma linha directa ao gabinete do capitão Strang, da Central da Polícia.
- Que aspecto tem? - perguntou Baker.
- Ainda não saíste? - A voz grave do outro vibrava com intensidade no auscultador. - Passa das onze.
- Bem sei. Tinha umas coisas para arrumar. Lembrei-me de ouvir as últimas antes de fechar a loja.
- Não temos de nos preocupar - volveu Strang, em tom confiante. - O local está devidamente coberto. A área em redor do tribunal encontra-se desimpedida e coloquei homens em todos os prédios e esquinas das imediações. Ficarão lá toda a noite e ao longo da manhã, até levarmos a testemunha ao tribunal. Podes crer que ninguém se aproximará a menos de três metros dele até entrar na sala.
- Óptimo. De manhã, seguirei directamente para o aeroporto, a fim de esperar o avião. Encontramo-nos no tribunal às onze.
- Entendido. E agora, não te preocupes e vai dormir um pouco. Garanto-te que está tudo controlado.
No entanto, quando se encontrou no seu quarto de hotel, Baker descobriu que não conseguia dormir. Por fim, sentou-se na cama e pensou em telefonar à mulher, mas desistiu por reconhecer que ficaria sobressaltada com a chamada a meio da noite. Ao invés, abandonou a cama e afundou-se numa poltrona.
Em movimentos lentos, extraiu o revólver do coldre colocado em cima do espaldar de uma cadeira e examinou-o. Fez girar o tambor por um momento e tornou a guardá-lo. "Estou enervado, reflectiu. "Ando metido nisto há demasiado tempo.
com efeito, nos últimos meses, não conhecera outra actividade. Apenas aquela investigação. "Quebre a espinha dorsal da Mafia, Sociedade, Sindicato ou lá como se chama a organização que domina o mundo do crime da América", determinara o chefe.
Na altura, ele era jovem; pelo menos, estava convencido disso, porque, agora, sentia-se velho. Quando principiara a trabalhar naquele caso, o filho acabava de ingressar no liceu e no final do ano corrente completaria o curso universitário.
O tempo escoara-se inexoravelmente; os anos haviam-se sucedido de uma forma frustrante, à medida que cada pista se revelava infrutuosa. Parecia não existir qualquer meio de atingir o topo, os tubarões. Era indiscutível que a arraia-miúda continuava a cair na rede com uma regularidade estatística, mas aqueles que na realidade interessavam permaneciam incólumes.
Até que surgira uma réstia de esperança. Um homem falara acerca do assassínio de dois agentes federais da Brigada de Narcóticos a bordo de um pequeno navio que rumava a Nova Iorque. A pista fora investigada até à exaustão e agora, pela primeira vez na história do crime organizado, quatro dos seus chefes mais importantes preparavam-se para enfrentar o tribunal. Por homicídio e conluio para assassinar.
Baker recapitulou mentalmente os elementos identificativos de cada réu. George, Big Dutch, Wehrman, de 57 anos de idade,
21 prisões, nenhuma condenação, ocupação actual, dirigente sindical; Allie, The Fixer, Fargo, de 56 anos, 1 prisão, 1 condenação, 1 sentença suspensa, ocupação actual, empreiteiro; Nicholas, Nick, Pappas, de 54 anos, 32 prisões, 9 das quais por homicídio, 2 condenações, 20 dias na cadeia, ocupação actual, nenhuma, jogador bem conhecido; Emílio, The Judge, Matteo, de 61 anos, 11 prisões, 1 condenação, 5 anos na cadeia, deportado, ocupação actual, aposentado.
A evocação deste último obrigou-o a comprimir os lábios num sorriso de amargura. "Aposentado" indicava o cadastro. Aposentado de quê? Do homicídio, dos narcóticos, da participação em praticamente todas as formas de actividades ilegais concebíveis?
Tornava-se impossível associar esta ideia ao juiz, a Dom Emílio, como os comparsas lhe chamavam.
A deportação para a Itália, juntamente com Luciano e Adónis, após a guerra, tivera como único resultado conceder-lhe licença para roubar. Embora Matteo tivesse auxiliado o Governo no planeamento da invasão da Itália durante o conflito, não lhe deviam ter concedido a liberdade. Uma vez encerrado na cadeia um indivíduo como aquele, a única coisa sensata a fazer era deitar fora a chave.
Baker recordava-se do número incontável de ocasiões em que voara por todo o país na sequência de indicações de que Matteo regressara, sem conseguir localizá-lo. Não obstante, existiam todos os indícios de que estivera presente. Os narcóticos e os mortos. Provas silenciosas. Agora, porém, era diferente. Havia elementos eloquentes, que seriam ventilados, ainda que fosse apenas para salvação das vidas dos delatores. E, em virtude desses elementos, Matteo fora trazido da Itália. Levara tempo, mas agora tinham-nos nas mãos. Três testemunhas cujas declarações se confirmavam mutuamente. Depoimentos que significavam, quase sem margem para dúvidas, a morte para os réus. Subsistia apenas um problema. Conduzir cada uma das testemunhas ao tribunal... viva.
Agitado, Baker levantou-se da poltrona, aproximou-se da janela e contemplou a cidade envolta no manto da noite. Profundo conhecedor de Matteo e dos seus métodos, estava convencido de que, algures naquelas artérias, um assassino ou assassinos aguardavam o momento oportuno para actuar.
As grandes interrogações consistiam em como, o quê, quando, onde e quem.
O chefe de mesa de bigode inclinou-se com deferência diante dela.
- Miss Lang... - murmurou. - O conde Cardinali já chegou. Queira acompanhar-me.
Voltou-se e ela seguiu-o no seu andar lento e gracioso de modelo, as longas madeixas ruivas lançando reflexos sobre os ombros.
Movia-se pausadamente, saboreando as cabeças que se viravam e os olhares de apreciação que a acompanhavam, e ouviu uma mulher murmurar:
- É a rapariga de "Fumo e Fogo", Barbara Lang. Sabes a quem me refiro. A dos anúncios de cosméticos.
O homem conduziu-a ao longo da fiada de mesas até à ocupada por Cesare, que se levantou quando a viu, sorridente, para lhe beijar a mão, enquanto o outro desviava um pouco a mesa. Ela sentou-se e deixou o casaco deslizar para o longo espaldar estofado.
- Champanhe? - sugeriu Cesare.
Ela assentiu com uma inclinação de cabeça, enquanto esquadrinhava a sala com o olhar, para abarcar as luzes difusas, as mulheres cobertas de jóias e os homens de rostos redondos, bem nutridos e, não obstante, vorazes. Aquilo era o topo da escada. El Morocco. E ela encontrava-se com um conde verdadeiro em vez de um promotor artificial e baboso, com uma das mãos adiposas pousada no estômago rotundo e a outra sob a mesa, numa tentativa para lha introduzir na saia.
Em seguida, voltou-se para observar o companheiro, ao mesmo tempo que levava a taça aos lábios. Cesare, conde Cardinali, que podia remontar as origens da sua família seiscentos anos atrás, à época dos Bórgias, conduzia carros de corrida por todo o mundo e tinha o nome publicado nas colunas de ecos da sociedade todos os dias.
- Estará preparada de manhã? - perguntou ele, sorrindo.
- Sou muito eficiente - redarguiu ela, imitando-o. - Já tenho as malas feitas.
- Óptimo. - Cesare inclinou a cabeça e ergueu igualmente a taça. - À sua.
- Às nossas férias.
Ela sorveu o champanhe pensativamente. Na realidade, a sua vida não fora sempre assim. Ainda relativamente há pouco tempo, a única bebida com "bolhas" que conhecia era a cerveja. Parecia-lhe que fora na véspera que a escola de modelos que frequentara quando trabalhava como empregada de balcão na loja de Buffalo onde nascera a chamara. Havia uma possibilidade de ganhar algum dinheiro e experiência na publicidade de um filme que se ia estrear na localidade.
Pedira dispensa no trabalho para aquela tarde e dirigira-se ao hotel para uma entrevista. Não sem certo nervosismo, aguardou no corredor à entrada da maior suite do estabelecimento e ouviu as gargalhadas estentóricas provenientes do interior. Por fim, num gesto impulsivo, antes que perdesse a coragem, premiu o botão da campainha. No instante imediato, a porta abriu-se para revelar um rapaz alto.
Ela respirou fundo, e as palavras brotaram-lhe dos lábios às golfadas.
- Sou Barbara Lang. Fui enviada pela agência. Disseram-me que necessitavam de uma rapariga para a campanha publicitária.
Ele olhou-a em silêncio por um momento e acabou por sorrir. Era um sorriso agradável e proporcionava ao rosto algo pálido uma expressão cordial. Em seguida, desviou-se, abriu um pouco mais a porta e informou:
- Sou Jed Golias, responsável pela publicidade. Entre, para que lhe apresente os outros.
Barbara obedeceu, esperançada de que o nervosismo não se notasse. Sentia a leve transpiração brotar no lábio superior, como acontecia sempre que se sentia apreensiva e amaldiçoou-se intimamente. Havia mais três homens na suite, e uma mesa ao canto continha os ingredientes para uma sessão de coquetéis.
Golias conduziu-a até junto do indivíduo sentado perto da janela aberta, cujo semblante, apesar do sorriso, apresentava um ar torturado de apreensão. Era o produtor-argumentista da película, Mendel Bayliss, e a expressão devia-se ao facto de ter dinheiro do seu bolso investido na produção.
- Viva - saudou, com um gesto largo. - Está calor. Quer uma bebida?
Ela reconheceu imediatamente o segundo homem. Participava num programa semanal da televisão. Chamavam-lhe tagarela, e passara por ali apenas para visitar o produtor para quem trabalhara num espectáculo frustrado, alguns anos antes.
O terceiro era Johnny Gleason, gerente local da companhia cinematográfica - alto, rubicundo e particularmente embriagado-, que se levantou e inclinou numa vénia no momento das apresentações, o que fez que quase se despenhasse em cima da mesa à sua frente.
Jed sorriu a Barbara encorajadoramente, enquanto voltava a instalar o homem no sofá.
- Temos estado a beber desde as oito da manhã - explicou à guisa de justificação.
Ela conseguiu exibir um sorriso de compreensão, como se coisas daquelas lhe acontecessem todos os dias, e, numa tentativa para enveredar por assuntos mais prosaicos, aventurou:
- Na agência disseram-me que havia um trabalho publicitário sobre um filme.
- É verdade - assentiu Jed. - Precisamos de uma rapariga Nunca-Nunca.
- Uma quê? - balbuciou ela, perplexa.
- Uma rapariga Nunca-Nunca. É o título do nosso filme: Nunca, Nunca.
- Você é alta - observou Bayliss.
- Um metro e setenta e três.
- Descalce os sapatos - indicou, levantando-se. Barbara obedeceu e conservou-se imóvel, segurando-os na
mão, enquanto ele se acercava e colocava a seu lado.
- Eu meço um metro e setenta e cinco - declarou, com orgulho. - Não podemos ter uma rapariga mais alta do que eu em todas as fotografias publicitárias. Vai passar a usar saltos rasos.
- Muito bem.
Bayliss regressou à poltrona e olhou-a com curiosidade, até que perguntou:
- Trouxe um fato de banho?
Ela aquiesceu com um movimento de cabeça. Fazia parte integrante do equipamento que conservava na caixa de chapéus, sua companheira quase inseparável.
- Vista-o - ordenou ele, secamente. - Vejamos o que tem. O tagarela aproveitou o momento para demonstrar que o epíteto se justificava. Aproximou-se dela em passos grotescos e olhou-a com uma expressão sorridente.
- Não nos importamos que nos mostre o que tem mesmo sem o fato de banho - murmurou em tom facilmente audível.
Barbara mudou de indumentária rapidamente, efectuando apenas uma pausa para se observar no espelho da casa de banho. Por uma vez, congratulava-se com o bronzeado dourado que ainda durava do Verão. Em seguida, puxou de um lenço de papel, secou a transpiração do lábio superior e regressou à sala.
Todas as cabeças se voltaram quando abriu a porta. Por um momento, sentiu uma ponta de embaraço, mas avançou para o centro com o andar de modelo que aprendera e descreveu uma rotação devagar.
- Tem uma figura escorreita - concedeu o produtor.
- As tetas são muito pequenas para o meu gosto - comentou o tagarela. - Sou um homem!
- Que esperava de um modelo de alta-costura? - retrucou o produtor, sem desviar os olhos dela. - Os vestidos assentam melhor assim. - Estudando-lhe o rosto atentamente perguntou: - 35?
- Exacto.
- Tenho o olhar mais perspicaz de Hollywood - vangloriou-se, pondo-se de pé com um sorriso de satisfação. - Não fiz um cálculo errado em vinte anos. - Voltou-se para Jed. - Serve.
O tagarela aproximou-se de novo e cravou o olhar nos seios com uma expressão significativa.
- Obrigado pelas glândulas mamárias - cantarolou em voz desafinada,
- Pare com as palhaçadas - disse Bayliss, com uma gargalhada. - São horas de comermos qualquer coisa - acrescentou, encaminhando-se para a porta.
O tagarela e o gerente seguiram-no, mas, antes de sair, Bayliss dirigiu-se a Jed:
Explique-lhe o que tem de fazer e leve-a à conferência
de imprensa, às cinco.
A porta fechou-se atrás deles, e Barbara e Jed olharam-se em silêncio por uns segundos. Por último, ele sorriu e sugeriu:
- Talvez queira sentar-se por um momento para recuperar o alento?
Ela sentiu as pernas subitamente frágeis e acolheu a ideia com gratidão, pelo que se afundou na poltrona que o produtor abandonara, ainda quente do seu corpo.
Jed encheu um copo de cubos de gelo e esvaziou uma garrafa de coca-cola por cima, depois estendeu-lho.
- Obrigada - murmurou ela, aceitando-o e vertendo um pouco.
- Eles são doidos - disse Jed, contemplando o fato de banho branco e as longas pernas bronzeadas.
- São sempre assim?
- Sempre. - Continuava a sorrir, mas ela julgou detectar uma leve nota de amargura na voz. - São pessoas importantes. Estão sempre a provar alguma coisa.
Na semana seguinte, Barbara tornou-se a rapariga mais conhecida de Buffalo. Não passava um dia sem que a sua fotografia aparecesse nos jornais, figurando duas vezes consecutivas no de Niagara Falis. Além disso, visitou todas as estações de rádio e interveio em programas de televisão, conhecendo todos os jornalistas e pessoas importantes no meio.
Jed encontrava-se sempre perto. Sem dar nas vistas, com notável discrição, indicava os momentos mais apropriados para fotografias dela e do produtor, juntos e sós. Algures nas imagens havia sempre um espaço consagrado ao filme. Na primeira noite, ela só conseguiu recolher a casa às três da madrugada. Na seguinte, teve de se sujeitar a uma "directa". Passou-a no quarto de Jed.
Foi uma semana excitante e sobrecarregada, e quando terminou, tudo se lhe afigurou monótono e destituído de significado. De todas as pessoas que conhecera naqueles oito dias,
nenhuma parecia recordar-se dela, nem mesmo as matronas que assistiam à passagem de modelos semanal na loja onde trabalhava. Lembrava-se do que Jed lhe dissera na última noite:
- Estás deslocada nesta terriola de saloios, Barbara. Vem para Nova Iorque, o lugar ideal para uma moça como tu.
Deixara-lhe o seu cartão-de-visita e o de um fotógrafo que conhecia, e, transcorridos seis meses, ela partia para Nova Iorque. O porteiro do prédio dele informou-a de que se mudara para a Califórnia. Porém, o fotógrafo conservava-se no mesmo endereço. O curioso, no meio de tudo, era que Jed não se equivocara. Nova Iorque era, de facto, o lugar ideal para Barbara. Passadas duas semanas, contratavam-na para figurar na capa da revista Vogue. Um ano mais tarde, era um dos modelos de alta-costura mais procurados. Cobrava sessenta dólares por hora e auferia cerca de vinte mil anuais.
Trabalhava com afinco e saía muito pouco. A objectiva mostrava-se demasiado impiedosa e reveladora, quando não repousava o suficiente. Nos fins-de-semana, seguia de avião para Buffalo e visitava a casa que adquirira para a mãe.
Uma tarde, acabava de se deixar fotografar com alguns novos vestidos à entrada do Hotel Plaza e preparava-se para posar para a última, com a mão no puxador da porta do Alfa-Romeo vermelho que servia de adereço, quando o executivo da agência se aproximou. Acompanhava-o um homem alto, magro, de aspecto estrangeiro, possuidor de uma expressão atraente quase selvagem, que expôs dentes fortes e brancos no momento em que descerrou os lábios num sorriso.
- Queria apresentar-lhe o conde Cardinali, Barbara. Teve a gentileza de nos emprestar este carro para as fotografias.
Ela olhou-o com curiosidade, pois conhecia o nome. Conde Cardinali, um dos que figuravam nos jornais com regularidade. Quase uma lenda. Como De Portago e Pignatari, os quais nunca se esperava que fossem reais.
- Tenho muito gosto em conhecê-la - declarou Cesare, com um sorriso, pegando-lhe na mão e beijando-a.
Barbara sorriu igualmente e inclinou a cabeça, e ele afastou-se, enquanto ela prosseguia o trabalho. Naquela noite, encontrava-se em casa, entretida a ver televisão, quando o telefone tocou.
- Estou...
- Barbara? - O sotaque dele parecia um pouco mais acentuado através da linha. - Fala Cesare Cardinali. Está interessada em cear comigo?
- Bem... não sei - replicou ela, inesperada e incompreensivelmente corada. - Não tencionava sair.
- Tem muito tempo para se arranjar - replicou ele, em tom confiante. - Não a irei buscar antes das onze. Que diz ao El Morocco?
A pergunta devia ser simplesmente circunstancial, porque cortou a ligação logo a seguir, antes de ouvir a resposta. Ela entrou na casa de banho, abriu a torneira de água quente da banheira, e só quando se achava imersa até aos ombros teve a plena noção de que, na verdade, veria o conde Cardinali naquela noite.
Mais tarde, quando estavam sentados no restaurante, ele ergueu a taça de champanhe e proferiu em voz grave:
- Consta, com insistência na cidade, que você tem em vista tornar-se uma mulher promíscua. Ora, isso agrada-me. E ainda ficaria mais satisfeito se me permitisse que a ajudasse nesse sentido.
- O quê? - balbuciou ela, abismada.
No entanto, ele exibia um sorriso divertido e compreendeu que se limitava a desfrutá-la. Quase involuntariamente, começou também a sorrir e pegou na taça, reflectindo que o conde Cardinali tinha muito que aprender acerca das raparigas americanas.
Agora, a voz dele fê-la regressar à realidade:
- Irei buscá-la às nove e meia. Assim, disporei de tempo para passar pelo Palácio de Justiça para recolher os meus documentos, antes de seguirmos para o aeroporto.
- Muito bem. Estarei pronta a horas.
CAPÍTULO iII
Cesare arrumou o Alfa-Romeo num espaço à entrada do edifício reservado exclusivamente às entidades oficiais e virou-se para Barbara com um sorriso.
- Importa-se de aguardar uns minutos enquanto corro lá dentro para levantar os documentos?
Ela abanou a cabeça, mas dominada pelo receio típico da classe média dos dísticos e prescrições oficiais, advertiu:
- Despache-se, porque não quero que me corram daqui.
- Não correm - replicou Cesare, com firmeza, abrindo a porta e apeando-se.
Encaminhou-se para a entrada do edifício encimada pela indicação Departamento de Emigração e Naturalização e desapareceu, enquanto Barbara o acompanhava com a vista, reflectindo que, por vezes, se comportava como uma criança.
Foi o que acontecera quando ele lhe telefonara, na semana anterior. Explicou que acabava de regressar da Europa, onde visitara a família, e tomara uma decisão inabalável. Naturalizar-se-ia cidadão americano. E para celebrar o facto, quando fosse levantar os documentos, importar-se-ia ela de o acompanhar, numa semana de férias, a um lugar qualquer onde brilhasse o Sol?
Ela acedera quase espontaneamente, mas quando pousara o auscultador começara a sorrir. Era possível que ele, desta vez, se achasse animado de intenções sérias acerca de uma mulher. Estava ao corrente de todas as antecessoras, mas toda uma semana... Muita coisa podia acontecer durante esse lapso de tempo.
Registou-se certa agitação perto da esquina e Barbara voltou-se. Notou que se formava uma pequena multidão e viu um polícia aproximar-se do carro.
- Vai demorar muito?
Não, Sr. Guarda - replicou, apressadamente. - O meu
amigo entrou apenas para levantar uns documentos.
O homem inclinou a cabeça e principiou a afastar-se, enquanto se gerava uma espécie de rugido na esquina.
- Que se passa, Sr. Guarda?
Ele lançou uma olhadela à esquina e voltou-se para trás, a fim de explicar:
- Começa esta manhã o julgamento dos gangsters e parece que Nova Iorque em peso pretende assistir.
Cesare entrou na primeira sala à direita e dirigiu-se ao empregado:
- Venho levantar os meus documentos de naturalização. Chamo-me Cesare Cardinali.
- Primeira via?
- Exacto.
O funcionário procurou num ficheiro, extraiu um pequeno cartão e informou:
- Estão prontos dentro de dez minutos, Mr. Cardinali. Queira sentar-se.
- Muito bem. - Cesare hesitou e, com um leve sorriso, perguntou: - Há instalações sanitárias perto daqui?
- Ao fundo do corredor, à esquerda.
- Obrigado - agradeceu, encaminhando-se para a porta. Volto já.
Dirigiu-se para os lavabos, deteve-se à entrada e olhou em volta, para se certificar de que ninguém o observava. Em seguida, seguiu em frente e transpôs uma porta com a indicação ESCADA, após o que principiou a subir apressadamente.
A limusina preta imobilizou-se diante do Palácio de Justiça e a multidão rodeou-a imediatamente. Baker olhou para fora, do lugar ao lado da testemunha, e em seguida dirigiu-se-lhe:
- ÉS o foco das atenções gerais.
A testemunha, Dinky Adams, um indivíduo de rosto longo e expressão granítica, encolheu-se e puxou a aba do chapéu para os olhos.
- Grande avaria... - articulou, com amargura. - A minha vida não valerá dois cêntimos a partir do momento em que descobrirem quem sou.
- Ninguém te incomodará - prometeu Baker. - Garantimos que te protegeríamos e, até agora, cumprimos a nossa palavra.
Um piquete da Brigada Móvel desimpediu a área em volta do carro e o capitão Strang inclinou-se para a janela.
- Podemos seguir.
Baker apeou-se em primeiro lugar, seguido de três outros agentes. Conservaram-se imóveis por um momento, para olharem em volta, e Baker fez sinal a Adams para que saísse.
Gerou-se um murmúrio de reconhecimento entre a multidão de curiosos, e os agentes e polícias rodearam a testemunha, enquanto começavam a mover-se através da massa humana. Fotógrafos e repórteres gritavam perguntas, porém eles prosseguiam em frente sem responder, até que transpuseram os degraus de acesso ao edifício e enveredaram pelo corredor.
- Por aqui - indicou Strang. - Temos um elevador à espera.
O grupo seguiu-o a uma cabina vazia, cujas portas se fecharam com prontidão, e iniciou-se a ascensão, o que pareceu contribuir para que a tensão geral se atenuasse gradualmente.
- Conseguimos - observou Baker, com um olhar de satisfação a Strang.
Este assentiu com uma inclinação de cabeça e um sorriso.
- O pior já passou. O único obstáculo que resta são os repórteres, lá em cima.
Dinky Adams fitou-os com uma expressão lívida, em que ainda se notava apreensão.
- Tenho muito tempo no resto da minha vida para os felicitar. Se viver o suficiente.
O sorriso desapareceu do rosto de Strang. Os detectives entreolharam-se e, em seguida, concentraram-se na porta, que principiava a abrir-se.
Cesare abandonou a escada no segundo piso e dirigiu-se apressadamente para os elevadores. Olhou para a porta da sala de audiências e viu que havia dois polícias à entrada. Introduziu a mão direita na manga do casaco e sentiu o contacto frio do aço do estilete entre os dedos. Ao mesmo tempo, desenhava-se-lhe um sorriso estranho nos lábios.
Sentiu as palpitações do coração acelerarem-se. A sensação assemelhava-se à que experimentava quando conduzia um carro numa curva apertada sem saber se dispunha de tracção suficiente para a transpor. Encheu os pulmões de ar e o sorriso intensificou-se.
A porta do elevador abriu-se e a multidão precipitou-se para lá. Cesare, porém, não se moveu, pois sabia que eles não se encontravam na cabina. A sua informação fora irrepreensivelmente minuciosa, e lamentava não ter disposto de mais tempo para os preparativos. Encostou-se à parede entre o segundo e terceiro elevadores e aguardou.
A porta seguinte abriu-se, e os detectives surgiram numa falange em redor da testemunha. Cesare postou-se prontamente atrás deles e deixou a multidão impeli-lo para a frente. Ainda não podia fazer nada, porque havia um detective entre ele e a testemunha. Entretanto, os repórteres vociferavam perguntas que não obtinham resposta e clarões sucessivos de flashes rasgavam a atmosfera, enquanto os fotógrafos davam saltos com as máquinas para obter uma boa imagem da testemunha. Cesare ansiava por uma oportunidade, ainda que ténue, pois a partir do momento em que o homem entrasse na sala ficaria impossibilitado de actuar. "
Encontravam-se agora nas proximidades da porta, e o estilete parecia gelado na palma da mão dele. Há muito que parara de respirar e os pulmões estavam cheios ao ponto de rebentamento de oxigénio que nunca seria necessário.
Sentia uma pressão intensa nas orelhas e afigurava-se-lhe que todos se moviam ao retardador.
O grupo deteve-se por um momento diante da porta fechada e o detective atrás da testemunha desviou-se ligeiramente. O ar brotou dos pulmões de Cesare quase ruidosamente. A multidão impeliu-o pelas costas, obrigando-o a avançar. Agora! Surgira o momento oportuno!
Mal se apercebeu do movimento da mão. Dir-se-ia que não lhe pertencia. O estilete cravou-se no coração da testemunha como uma faca em manteiga. Cesare sentiu a lâmina regressar ao interior da manga, puxada pela mola presa ao cabo, no instante em que a soltou.
A testemunha oscilou levemente no momento em que os dois polícias se moveram para abrir a porta. Cesare começou a encaminhar-se para a escada e uma lâmpada de flash explodiu quase junto do seu rosto, cegando-o momentaneamente, mas a visão reapareceu em seguida e ele continuou em frente.
Registou-se um murmúrio na sala do tribunal, enquanto soavam vozes no corredor, cada vez mais elevadas.
Matteo lançou uma olhadela aos outros réus. Big Dutch movia os dedos no alfinete da gravata com nervosismo, enquanto Allie Fargo roía as unhas e o próprio Dandy Nick traçava rabiscos distraidamente no bloco de apontamentos à sua frente. O ruído lá fora aumentou e Big Dutch inclinou-se para este último.
- Morro de curiosidade por saber quem vão trazer. Dandy Nick exibiu um sorriso em que havia maior percentagem de medo do que de alegria.
- Não tardaremos a saber.
Matteo mandou-os calar com um gesto, sem desviar os olhos da entrada, que acabava de se abrir.
Primeiro, surgiram dois detectives e, em seguida, a testemunha, que pareceu cambalear e um dos polícias estendeu a mão para o amparar.
- É Dinky Adams, o grande filho da mãe! - rugiu Big Dutch, levantando-se num salto.
O martelo do juiz apressou-se a impor silêncio, enquanto a testemunha avançava mais alguns passos, com uma expressão que parecia dominada pelo terror. Tornou a cambalear e volveu o olhar para a mesa atrás da qual os réus se sentavam. Descerrou os lábios, como se pretendesse falar, mas não brotou o mínimo som. Apenas um fio de sangue, que deslizou pelo canto da boca. Acudiu-lhe aos olhos um clarão de agonia e cambaleou mais uma vez, agora em franco desequilíbrio. As mãos estenderam-se para o casaco de Baker, mas não conseguiu segurar-se e deslizou para o chão.
Gerou-se um pandemónio que o martelo do juiz se revelou impossibilitado de neutralizar.
- Fechem a porta! - ordenou Strang.
Big Dutch fez menção de segredar algo a Matteo, todavia este impediu-o com uma mirada fulminante.
O funcionário ergueu a cabeça, sorriu ao ver Cesare reaparecer e anunciou:
- Já estão prontos, Mr. Cardinali. Queira assinar aqui. Cesare aceitou a caneta que o outro lhe estendia, inscreveu
o nome nos documentos e devolveu-a.
- Obrigado - proferiu, após o que os recolheu e afastou-se para a porta.
A impressão de tensão ainda persistia no peito, quando emergiu do edifício para a rua banhada pelo sol, e ele pestanejou. Barbara acenou-lhe do carro e ele retribuiu o sinal com um sorriso, ao mesmo tempo que se aproximava.
- Parabéns, conde Cardinali - disse ela, com um sorriso malicioso. "
Ele soltou uma risada, enquanto contornava o carro, para se instalar ao volante.
- Vê-se que não leu os documentos, cara amiga. Já não há conde Cardinali. Apenas Cesare Cardinali, puro e simples.
- Cesare Cardinali, puro e simples - ecoou Barbara, imitando-o. - Não desgosto. É uma qualidade de fabrico caseiro.
- Desconfio que está a entrar comigo - observou ele, com um olhar de través, enquanto desviava o carro do passeio.
- De modo algum - replicou ela, apressadamente. - Acredite que me orgulho de si.
A tensão acabou por desaparecer e ele pôde finalmente descontrair-se.
- Importa-se de me acender um cigarro? Experimentava um calor crescente na virilha e um latejar
familiar nas coxas.
- Gostava de saber o que minha mãe pensaria se soubesse disto - murmurou Barbara, colocando-lhe o cigarro entre os lábios. - vou passar o fim-de-semana com um homem que não é meu marido. Nem sequer estamos comprometidos para casar.
- O que não souber não a preocupa - sentenciou Cesare, notando-lhe o leve sorriso.
- Se acompanhasse um conde, era capaz de compreender - prosseguiu ela, mantendo o sorriso. - Os Europeus são diferentes, nesse aspecto. Mas com um homem sem título...
- Sabe o que penso?
- Não - redarguiu ela, arregalando os olhos. - O quê?
A sensação na virilha começava a tornar-se insuportável. Ele pegou na mão da companheira e pousou-a no músculo entumescido da coxa. O sorriso dissipou-se subitamente do rosto dela, que se apercebeu da tensão. Volveu o rosto para a fitar e, por um momento, ela vislumbrou centenas de anos nos seus olhos. Em seguida, desceu um véu sobre eles.
- Penso que sua mãe é uma snobe.
Barbara riu e mantiveram-se silenciosos, enquanto ele conduzia o veículo para o túnel de acesso à auto-estrada do aeroporto. Fazia-o por reflexo, automaticamente, ao mesmo tempo que o espírito voava para a Sicília, o seu lar. Visitara-a poucas semanas atrás, mas afigurava-se-lhe que haviam transcorrido anos.
Que chamara Dom Emílio a seu tio? Um shylock. Sorriu intimamente e perguntou-se o que pensaria dele agora.
O homem que acabava de matar representava apenas o principal pagamento da sua dívida. Os dois que faltavam constituiriam os juros, os juros acumulados durante doze anos. Três vidas por uma, o que devia corresponder a um pagamento suficiente no código de qualquer pessoa.
Evocou as circunstâncias da noite em que Dom Emílio apresentara a factura.
CAPÍTULO IV
O pátio-do castelo Cardinali encontrava-se deserto no momento em que Cesare travou o carro diante da entrada. Quando desligava o motor a porta abriu-se e surgiu um indivíduo idoso, que exibiu um largo sorriso ao reconhecer o recém-chegado e desceu os degraus com a rapidez que as pernas trôpegas lhe permitiam.
- Dom Cesare, Dom Cesare! - exclamou em voz trémula de emoção.
- Gio!
- Devia ter prevenido de que vinha - volveu, curvando-se junto do carro. - Assim, não pudemos preparar a casa devidamente.
- É uma visita inesperada - explicou Cesare, com um leve sorriso. - Só fico esta noite. Amanhã, tenho de voltar para casa.
- Para casa, Dom Cesare? - A expressão de Gio toldou-se. - A sua casa é aqui.
- Tens razão - admitiu Cesare, enquanto principiava a subir os degraus de acesso. - Estou sempre a esquecer-me. Em todo o caso, agora vivo na América.
Gio pegou na mala do banco de trás e moveu-se no seu encalço, ao mesmo tempo que perguntava:
- Que aconteceu na corrida? Ganhou?
- Não. O gerador ardeu e tive de desistir. Foi por isso que dispus de tempo para esta visita.
Cesare, com um olhar glacial, cruzou o átrio e deteve-se diante do retrato do pai. Por uns instantes, contemplou o rosto magro do aristocrata, que lhe devolvia o olhar com a expressão dura que o fotógrafo registara para a posteridade. Depois, a guerra esmagara-o. Espiritual e fisicamente. Manifestara ideias hostis em relação aos Alemães, e o Duce confiscara-lhe as terras, O velho expirara pouco mais tarde.
- Lamento o que aconteceu ao carro - disse Gio, atrás dele.
- Hem...? Ah, sim, o carro.
Cesare desviou os olhos do retrato e seguiu para a biblioteca. Na realidade, não pensava no carro, nem mesmo no pai. Limitava-se a verificar que tudo se modificara profundamente.
Quando regressara, após a guerra, deparara-se-lhe uma transformação radical na situação. O tio tomara posse de tudo. O banco e as terras. Tudo, excepto o castelo e o título. Nunca perdoara ao irmão o facto de ter legitimado Cesare e vedar-lhe assim a sucessão ao título.
Embora jamais fosse pronunciada qualquer palavra em voz alta acerca do assunto, todos se achavam ao corrente do estado de espírito do dono do banco. Cesare recordava viva e amargamente as circunstâncias da visita ao tio.
- Signor Raimondi - proferira em tom arrogante -, constou-me que meu pai tinha algum dinheiro depositado no seu estabelecimento.
- Não é verdade, meu caro sobrinho - replicara o velho, observando-o com desdém por cima da secretária desarrumada e suja. - Aconteceu precisamente o contrário. O falecido conde deixou este mundo sem saldar as dívidas importantes que contraiu comigo. Disponho de hipotecas do castelo e de todas as suas terras.
com efeito, não mentia. Achava-se tudo devidamente autenticado. Aliás, Raimondi Cardinali nunca descurava um pormenor, no que se referia à exactidão dos documentos que lhe passavam pelas mãos. Ao longo dos três anos subsequentes à guerra, Cesare teve de viver na dependência implacável do tio, ao ponto de acabar por odiá-lo. Tinha de o procurar até para obter dinheiro para frequentar o ginásio onde continuava a praticar esgrima.
Foi numa dessas visitas que conheceu Emílio Matteo. Encontrava-se no gabinete de Raimondi, no banco, quando se registou certa agitação no exterior e Cesare voltou-se para a porta envidraçada, para a qual avançava um homem de cabelos grisalhos, trajado com elegância, a cuja passagem todos se inclinavam respeitosamente.
- Quem é? - perguntou ao tio.
- Emílio Matteo - informou o interpelado, levantando-se para o receber. Vendo que o sobrinho arqueava uma sobrancelha, pois nunca ouvira falar dele, acrescentou:
- É um dos Dons da Sociedade, que acaba de regressar da América.
Cesare esboçou um sorriso. Eles gostavam de chamar Sociedade à mafia. Indivíduos adultos que brincavam como garotos, derramando o sangue uns dos outros e tratando-se por tio, sobrinho e primo.
- Não rias - advertiu Raimondi. - Na América, a Sociedade tem muita influência. Matteo é o homem mais rico de toda a Sicília.
Por fim, a porta abriu-se e Emílio entrou.
- Bon giorno, Signor Cardinali - saudou, com forte sotaque americano.
- Sinto-me lisonjeado com a sua visita, Signor Matteo - proclamou Raimondi, com uma vénia. - Em que lhe posso ser útil? - Vendo o recém-chegado olhar o sobrinho com uma expressão interrogativa, apressou-se a acrescentar: - Permita-me que lhe apresente o meu sobrinho, Cesare Cardinali. - Virou-se para este último. - O Signor Matteo, da América.
- O major Cardinali? - inquiriu Emílio, observando-o com curiosidade.
- Isso era durante a guerra - esclareceu Cesare.
- Ouvi falar de si.
Foi a sua vez de deixar transparecer curiosidade, pois havia pouquíssimas pessoas que tivessem ouvido falar dele durante a guerra.
Apenas aqueles que tinham acesso a informações muito especiais.
No entanto, Raimondi estava impaciente por tratar de negócios e, com um gesto peremptório, indicou ao sobrinho que já lhe concedera tempo suficiente.
- Passa por cá amanhã - recomendou com ares importantes. - Nessa altura, talvez te possa dizer se continuarei a financiar as tuas sessões de esgrima.
Cesare comprimiu os lábios e os olhos azuis enevoaram-se com uma expressão de animosidade. Um dia, o velho iria longe de mais, com consequências imprevisíveis. As liberdades que se permitia começavam a exceder os limites do razoável.
Consciente de que os olhos de Matteo o acompanhavam com interesse, encaminhou-se para a porta, que quase acabava de fechar atrás de si, quando ouviu o tio comentar:
- É bom rapaz, mas dispendioso. Trata-se de uma relíquia do passado, sem preparação para nada, incapaz de se candidatar a qualquer espécie de ocupação...
E a porta fechou-se, cortando o resto do arrazoado paternalista.
Gio acendeu o lume da lareira, diante da qual se achava Cesare, com um copo de brande na mão, e, em seguida, anunciou:
- O jantar estará pronto dentro de meia hora.
Cesare aquiesceu com uma leve inclinação de cabeça e aproximou-se da secretária, a fim de pegar na moldura que continha a fotografia da mãe. Recordava-se bem dos seus olhos. Embora azuis como os dele, eram mais suaves e ternos. Acudiu-lhe ao pensamento o dia em que o surpreendera no jardim, quando tinha apenas oito anos.
Entretinha-se a observar a varejeira esverdeada que empalara com um alfinete numa tábua e lutava por se libertar.
- Cesare! - exclamou a mãe. - Que estás a fazer?
Ele voltou-se, viu-a a seu lado e exibiu um sorriso de satisfação, sem responder.
- Liberta-a imediatamente. É uma crueldade!
Separou o alfinete da tábua, mas a mosca continuou presa, pelo que consultou a mãe com o olhar e depois, baixou-o de novo para o insecto. De súbito, arrancou-lhe as asas, largou-a no chão e pisou-a.
- Por que fizeste isso? - bradou a mãe irritada.
O semblante de Cesare assumiu uma expressão grave por um momento, enquanto reflectia, até que se alargou, de novo, num sorriso.
- Porque gosto de matar - explicou com simplicidade. Ela fitou-o em silêncio por uns segundos e acabou por voltar
para dentro. Um ano mais tarde, morria de tifo, após o que o conde o levou para o castelo, onde se verificou uma sucessão de professores e tutores, mas ninguém que ousasse dirigir-se-lhe com impunidade.
Pousou à fotografia com um ligeiro suspiro. Começava a impacientar-se com a vida. Rodeavam-no demasiadas recordações naquele ambiente. O castelo tresandava a outras eras, ao passado. Devia vendê-lo e tornar-se cidadão americano. Era a única maneira de enfrentar o passado vitoriosamente. Cortá-lo de forma radical, para que não subsistisse o menor vestígio no seu íntimo.
Pensou na mensagem que o conduzira ali. A mensagem que o afastara da corrida e impedira de se encontrar com Ileana na Riviera. Ao lembrar-se dela, não pôde evitar um sorriso. Havia algo de especial naquelas romenas, sobretudo nas demimondaines possuidoras de títulos. Naquele momento, era provável que se achasse a caminho da Califórnia, com o seu texano abastado.
Gio interrompeu-lhe as cogitações para comunicar:
- O jantar está pronto, excelência.
CAPÍTULO V
Os guardanapos e toalha de mesa eram brancos e suaves, os candelabros de ouro e os talheres polidos e reluzentes.
Gio excedera-se a si próprio e preparara uma ementa requintada, em que se destacavam enguias geladas num molho especial e camarões quentes.
Entretanto, trocara a indumentária de serviço habitual pela libré roxa e verde de mordomo e ajustou respeitosamente a cadeira para que Cesare se instalasse à mesa longa, branca e deserta.
- Os meus parabéns - disse este último, pegando no guardanapo. - És, na verdade, um génio.
- Faço o que posso, excelência - alegou Gio, com uma modéstia algo forçada, principiando a desrolhar uma garrafa de Orvieto branco. - Não é como nos velhos tempos, em que havia uma multidão para jantar todas as noites. Já lá vão muitos anos.
Cesare provou o vinho e inclinou a cabeça. De facto, tinham passado muitos anos. Não obstante, o mundo não parava de girar. O tempo não se mantinha imóvel, nem para Gio. Pousou o olhar na mesa e retrocedeu ao passado.
A situação era muito diferente, logo após a guerra. Então, podiam considerar-se felizes se havia comida na mesa, quanto mais toalhas e guardanapos imaculados. Recordou a noite em que Matteo o procurara. Fora no mesmo dia em que o conhecera no banco do tio. Na altura, sentava-se àquela mesma mesa e comia pão com queijo e uma maçã como sobremesa.
De súbito, registou-se o ruído de um carro e Gio foi ver quem era. No momento imediato, reaparecia para anunciar:
- O Signor Matteo deseja falar com vossa excelência.
Matteo entrou com o habitual ar majestoso, e o olhar perscrutador abarcou a situação sem demora: a comida modesta e os talheres de aço. No entanto, o rosto não deixava transparecer o motivo da visita.
Cesare indicou-lhe que se sentasse e convidou-o a partilhar do jantar, porém, Matteo instalou-se numa cadeira e abanou a cabeça, esclarecendo que já comera. Por seu turno, Cesare não se sentia preocupado com a posição em que se encontrava.
Pertencia à classe daqueles para os quais a pobreza não se revestia de importância. Constituía motivo de contrariedade, mas não de embaraço.
Por fim, esgotadas as palavras do preâmbulo formal, Gio levantou a mesa, Cesare reclinou-se na cadeira e cravou os dentes brancos e fortes na maçã.
Matteo contemplou-o em silêncio por uns momentos, abarcando o semblante de devasso, olhos azuis-glaciais e queixo voluntarioso, na sua frente. Também não lhe passou despercebida a força quase selvagem do punho e da mão que segurava a maçã.
- Fala inglês, major? - acabou por perguntar, naquele idioma.
- Fui educado em Inglaterra, antes da guerra.
- Óptimo. Nesse caso, se não vir inconveniente, passaremos a exprimir-nos nessa língua. O meu italiano... bem, abandonei a Itália aos três anos de idade.
- Como queira.
- Deve estranhar a minha visita. - Matteo fez uma pausa, enquanto Cesare aquiescia com um movimento de cabeça. - Meu pai costumava descrever-me as maravilhas do castelo Cardinali - prosseguiu, com um gesto largo. - Dizia que o olhavam lá de baixo, da aldeia, e parecia alegre e cheio de luz.
- Contingências da guerra - observou Cesare, pousando o caroço da maçã na mesa e encolhendo os ombros.
- Ou a boa sorte de seu tio - acudiu Matteo, com uma expressão maliciosa.
- Esse usurário... - Cesare fungou com uma expressão de desdém. - Agora, é tudo dele.
- Enquanto viver - salientou o outro, olhando-o fixamente.
- Os dessa raça são os últimos a morrer.
- Na América, existe uma designação para homens como ele. Shylock, como o do usurário da peça.
- A América tem uma maneira de se exprimir muito vigorosa. Shylock, hem...? Parece-me apropriado.
Como se não tivesse havido a menor interrupção, Matteo continuou:
- Seu tio vive só e você é o seu único parente. Por outro lado, possui um banco com duzentos milhões de liras.
Cesare olhou-o com curiosidade, reconhecendo-se na forma de raciocinar do interlocutor.
- Pensei nisso diversas vezes. O porco não merece viver. Mas se eu o matasse, não lucrava nada. Pelo contrário.
- Sem dúvida. No entanto, se morresse, digamos, quando você praticava esgrima, a alguns quilómetros daqui, voltaria a ser rico.
Conservou-se silencioso por uns segundos e, de repente, levantou-se e chamou:
- Gio! Traz aquela garrafa de conhaque Napoleão. Vamos para a biblioteca. - Depois de fechar a porta atrás deles, sentaram-se diante da lareira e voltou-se para Matteo. - Por que me procurou?
A resposta não surgiu imediatamente, devido à aparição de Gio com o conhaque e dois cálices. Quando tornaram a ficar sós, Matteo estendeu a mão para o seu cálice e explicou:
- Falaram-me de si, major.
- O quê?
- Decerto se recorda daquela parte da guerra antes de os Aliados invadirem a Itália? Um sócio meu, que se encontra presentemente em Nápoles, e eu fornecemos ao Governo americano uma lista de pessoas com as quais devia contactar para preparativos da invasão. Tratava-se de um movimento de Resistência que datava de muito antes da guerra, antes mesmo da primeira. Os mafiosos.
Fez uma pausa, todavia Cesare conservou-se silencioso.
- Inteirei-me de que você foi um dos oficiais italianos incumbidos de colaborar com a O. S. S. pelo Alto Comando de Itália. Devia contactar com nove homens e assegurar a sua cooperação. Assassinou cinco deles.
- Negaram-se a cooperar - apressou-se Cesare a esclarecer. - Aliás, foi tudo explicado no meu relatório.
- A explicação oficial não me interessa - declarou Matteo, com um sorriso. - Analisei-as suficientemente para não ter a mínima fé na sua veracidade. Neste caso, existe, contudo, um pormenor especial. Os seus superiores nunca viram os corpos dos homens que matou. Amigos meus tiveram oportunidade de os ver - Pousou o cálice e olhou Cesare sem pestanejar. - É por isso que não compreendo a situação de seu tio, meu amigo. Dispondo de um ensejo tão fácil, por que o deixa continuar a viver?
- Então, era diferente. Estávamos em guerra.
- A guerra não passou de uma desculpa para si. Houve outros casos similares. O soldado da aldeia, quando você não passava de um adolescente, o jovem inglês que atropelou na estrada, no seu último ano na universidade, a amante alemã do seu comandante em Roma, quando ela ameaçou denunciá-lo. Matteo assumiu uma expressão inocente. - Como vê, possuo fontes de informação muito melhores do que as das autoridades.
Cesare ingeriu, pensativamente, um longo sorvo de conhaque e sorriu.
- Admitamos que dispõe de elementos interessantes. Mas que destino pretende dar-lhes, se não têm a menor utilidade para si?
- Não tenciono dar-lhes destino algum - replicou o outro, com um encolher de ombros. - Falei nisso apenas para que saiba que me interesso por si. Penso que nos podemos ajudar mutuamente.
- Como?
- As circunstâncias obrigaram-me a regressar à terra natal mas, no fundo, sou americano e não italiano, o que se aplica sobretudo aos meus interesses de negócios. Infelizmente, não posso voltar à América nos anos mais próximos. Pelas vias legais, entenda-se. É claro que tenho possibilidade de efectuar breves visitas, embora se revistam de grande perigo. Além disso, prevejo um momento em que necessitarei de um aliado em território americano. Alguém como você, com quem ninguém me possa relacionar, capaz de me valer em caso de necessidade.
- E os seus sócios? - estranhou Cesare, arqueando as sobrancelhas. - Os seus amigos da Sociedade. Decerto conta com muitos aliados nesse sector?
- É exacto, mas são todos conhecidos. Entre si e da Polícia. Mais cedo ou mais tarde, não existem segredos entre eles. - Matteo levantou-se e acercou-se da lareira, para voltar as costas ao lume e encarar o interlocutor. - Suponho que está aborrecido com a modéstia da sua vida actual, de modo algum em conformidade com a sua natureza. Que faria se se livrasse de tudo isto?
- Não sei. Talvez viajasse. Comprava alguns carros e participava em corridas. Lê Mans, Turim, Sebring. É um passatempo particularmente excitante.
- Refiro-me ao seu modo de vida. O dinheiro não dura eternamente, como sabe.
- Nunca pensei nisso - admitiu Cesare, meneando a cabeça. - Os negócios não me atraem.
- Ah, a inconsciência da juventude! - Matteo puxou de um charuto e acendeu-o, para continuar em inflexão tolerante: Tenho interesses numa empresa de automóveis que adquiri recentemente através de uns sócios legítimos. Dentro de uns anos, tencionam invadir o mercado americano. Se, nessa altura, você desfrutasse de certa reputação no campo dos carros de corrida, poderia tornar-se o responsável pela delegação nos Estados Unidos. Interessa-lhe?
- Sem dúvida. Mas que espera de mim, em troca?
- Um favor, de vez em quando - informou, impassível.
- De que género? Não me quero envolver nas vossas estúpidas actividades. Tráfico de droga, jogo a alto nível...
- Mesmo que lhe proporcionasse riquezas para além dos seus sonhos mais ambiciosos?
- Riquezas? - Cesare soltou uma gargalhada. - Quero lá saber disso! Desejo apenas o suficiente para fazer o que me agrada.
- Óptimo. - Matteo imitou-o. - Não é ambicioso, portanto. Mais um ponto a seu favor. Não há ninguém que necessite ter medo de si.
- Ainda não disse que género de favor me pediria - lembrou Cesare, pegando no cálice.
Os olhares dos dois homens cruzaram-se por um momento de silêncio e Matteo explicou:
- Apenas a retribuição daquele que lhe farei quando seu tio morrer, amanhã, enquanto você estiver ocupado com a esgrima.
Escoou-se um longo momento e Cesare sorriu.
- Muito bem. Negócio fechado.
- Está disposto a aceitar o juramento? - inquiriu o outro, com uma expressão grave.
- Decerto.
- Tem uma faca?
Matteo cravou o olhar no estilete que surgiu subitamente na mão de Cesare, o qual voltou a sorrir e lho entregou, pegando na ponta aguçada.
- É o meu irmão. Andamos sempre juntos.
- Dê-me a mão.
Cesare obedeceu e Matteo pousou a sua na palma. Em seguida, com um movimento rápido, cravou a extremidade aguçada do estilete na ponta de cada indicador. O sangue brotou imediatamente e, depois, misturou-se entre as suas palmas.
- O nosso sangue fundiu-se e agora pertencemos à mesma família - anunciou em tom solene. Fez uma pausa, enquanto Cesare assentia com uma inclinação de cabeça. - Morrerei por você.
- Morrerei por você.
Retirou a mão e devolveu o estilete, após o que introduziu o dedo na boca e o sugou para estancar o sangue.
- A partir deste momento, caro sobrinho, só nos encontraremos por minha vontade expressa.
- Entendido, tio. "
- Se tiver necessidade de comunicar comigo, mande recado por intermédio do carteiro da aldeia. Depois, tratarei de entrar em contacto consigo.
- Perfeitamente, tio.
A cena desenrolara-se cerca de doze anos atrás. Como Matteo prometera, Raimondi morreu na noite seguinte, enquanto Cesare praticava esgrima no ginásio. Os cinco anos imediatos escoaram-se com rapidez. Em corridas e trocas frequentes de carro. Bailes de gala e romances efémeros. Até que, em 1953, como Emílio dissera, surgiu a oferta para dirigir a delegação americana da fábrica de automóveis, nomeação que mereceu larga divulgação na imprensa. A vida trepidante e a forma alucinada como conduzia haviam-no tornado uma notável figura internacional. Envolvera-se em duelo por duas vezes por causa de mulheres. Para a América, era um homem de outro mundo.
Ao longo dos doze anos, apenas vira Matteo uma vez. No ano anterior, em resposta a uma mensagem telefónica, comparecera num quarto de uma pensão por cima de um bar no Harlem espanhol, onde se tinham limitado a trocar palavras banais e Matteo manifestara satisfação pelo êxito do "sobrinho". Não se demorou muito, porque tinha de tomar o avião para Cuba, de onde regressaria à Sicília. Separaram-se pouco depois, e unicamente quando recebeu um bilhete, pouco antes de uma corrida, para se apresentar imediatamente no castelo, voltou a ter notícias dele.
O cacciatore de frango fora leve e delicioso e a lagosta fra diavolo bem condimentada, e Cesare acabava de pousar o guardanapo, quando entrou um carro no pátio do castelo.
Aguardou com ansiedade o aparecimento de Gio que, na verdade, não tardou com um sobrescrito na mão.
- Era o carteiro da aldeia. Disse que esta carta lhe foi enviada com a recomendação de entrega imediata.
Cesare abriu-a e viu que continha duas páginas de instruções dactilografadas. Leu-as rapidamente, procedeu a segunda leitura mais pausada e, por fim, pousou-as na mesa e estendeu a mão para a xícara de café.
Tinham-se escoado doze anos. E Dom Emílio apresentava a factura para pagamento. com juros.
CAPÍTULO VI
Las Vegas é uma cidade nocturna. Fora dos hotéis, há as piscinas, de águas límpidas, cristalinas, mas ninguém se senta em torno delas, à parte os turistas e prostitutas que actuam nos hotéis e conservam os corpos bronzeados como uma espécie de maquilhagem profissional. No interior dos átrios, é sempre noite.
Alguém disse uma vez que não convinha ver a luz do dia. com efeito, existe algo da claridade intensa diurna que interfere no sentido da realidade do jogador. A realidade do movimento rotativo da roleta, o som seco dos dados no pano verde das várias mesas, a realidade da febre de ganhar, a realidade das areias movediças do deserto sobre as quais a cidade está construída.
Reside aí o prémio ambicionado, a grande aventura, a promessa de todos os amanhãs. Dinheiro grátis. E tudo o resto funciona em conformidade com ele. O sexo, os negócios, a alegria. Dinheiro grátis. Puxa a alavanca das máquinas de fichas. Pode ser a tua vez de conquistar o jackpot.
Eles saíram da sala de jantar-teatro, ainda a rir da actuação de um dos maiores comediantes do mundo. Em seguida, detiveram-se e contemplaram o átrio do casino.
Eram dez horas da noite e as mesas do Maharajah estavam apinhadas de gente proveniente do espectáculo. Os olhos de Cesare esquadrinhavam a sala, enquanto Barbara dizia:
- Não ouviu o que perguntei!
Ele voltou-se e observou-a com uma excitação estranha no olhar.
- Pois não, cara amiga. Que foi?
Ela olhou-o com curiosidade. Outro homem teria pedido desculpa ou protestado que ouvira. Ele, ao invés, limitava-se a confessar que não.
- Perguntei se preferia os dados ou a roleta.
- A roleta. - Cesare exibiu um sorriso. - Já desisti de me entender com aqueles cubos diabólicos de marfim. - Começaram a encaminhar-se para a área ocupada pelas mesas de roleta. É pena não se jogar o bacará, aqui. Quanto a mim, trata-se do passatempo ideal para o ser humano civilizado. Exige certa perícia. O factor sorte não basta. - Vendo a companheira aproximar-se de uma, segurou-lhe o braço. - Essa não. Está muita gente. Vamos antes para aquela.
Referia-se à mesa no lado oposto da que ela escolhera, mas na verdade apresentava-se menos concorrida. Em seguida, puxou uma cadeira para Barbara, que se sentou e perguntou:
- Sente-se com sorte, esta noite?
Ele aquiesceu com uma inclinação de cabeça e sorriu.
- Muita - declarou, colocando um monte de fichas na sua frente.
Em Nova Iorque, o telefone em cima da secretária de Baker começou a tocar, e ele pousou o filtro de café para levantar o auscultador.
- Jordan, de Las Vegas - informou a telefonista.
- Pode ligar.
- Olá, George - proferiu a voz de Ted Jordan. - Como vai isso por aí?
- Nada bem - replicou Baker, em tom de cansaço. - Estamos num beco sem saída. Ainda não conseguimos descobrir como Dinky Adams foi morto. Como se comporta o nosso rapaz?
- O melhor possível. Neste momento, encontra-se numa mesa de roleta a apostar como se o dinheiro fosse passar de moda.
- Está protegido?
- Tenho um homem em cada lado e outro atrás. Ninguém se pode aproximar dele.
Mesmo assim, não estou descansado. Julgávamos que
tínhamos previsto tudo no caso de Adams e olha o que aconteceu.
- Se te preocupas tanto, por que não o fechamos numa cela? - sugeriu Jordan. - Aí é que ninguém lhe pode tocar.
- Conheces a situação. Se fizéssemos isso, a defesa ficava a conhecer a identidade das testemunhas antes do julgamento. E, nesse caso, elas não falavam e as nossas esperanças esfumavam-se.
- Matteo deve rir como um perdido, neste momento.
- Ficará sério, quando voltarmos ao tribunal - prometeu Baker.
- O nosso rapaz aposta vinte contra um em como nunca chegará lá. .
- Acredita mesmo que o matarão? - articulou Baker, com incredulidade. - E, apesar disso, continua a frequentar os casinos?
- Exacto. Diz que ninguém o pode evitar, pelo que quer gozar a vida até ao fim.
Pousou o auscultador com um suspiro de frustração e voltou a pegar no filtro de café. Era aquilo que nunca conseguia compreender neles. Apesar de serem cobardes, proxenetas e assassinos, existia algo no seu íntimo que os levava a encarar a vida com fatalismo. Ou seria a morte? Tornava-se difícil determiná-lo.
Twister sentava-se numa mesa de roleta, com a atenção concentrada na roda. Por fim, esta imobilizou-se e a bola entrou no espaço correspondente ao vinte vermelho, após o que ele inscreveu mais um sinal na pequena folha de papel. Em seguida, adicionou as colunas rapidamente e verificou que não se equivocara. A roda movia-se em direcção ao preto, naquela noite. Chegara o momento de efectuar a sua jogada. Por conseguinte, impeliu um pequeno monte de fichas para o preto.
Ouviu Jordan aproximar-se, mas não se voltou. Naquele instante, o guarda-costas atrás dele perguntou:
- Podes dispensar-me por uns momentos, Ted? Tenho de ir aos lavabos, senão, rebento.
Twister não ouviu a resposta de Jordan, pois a bola acabava de se imobilizar no vermelho. Perdera. Hesitou por uns segundos e impeliu mais algumas fichas para o preto.
Cesare voltou-se e observou Twister, enquanto Barbara se concentrava na roleta em movimento. O bilhete de Matteo revelara-se bem elucidativo, e havia três dias que ele vigiava Twister.
Os guarda-costas achavam-se presentes, como sempre. Um de cada lado e um terceiro na retaguarda, todos de olhos permanentemente alerta. Naquele momento, o terceiro ausentou-se, mas foi prontamente substituído. Cesare desviou a vista no instante em que os olhos do homem se moveram na sua direcção. O que vira bastava-lhe. com uma réstia de sorte... Esboçou um sorriso, quando a frase lhe cruzou o espírito. Era a empregada com mais frequência naquele ambiente. com uma réstia de sorte completaria a sua missão nessa noite.
- vou buscar-te uma bebida - comunicou a Barbara.
Ela ergueu a cabeça para lhe sorrir e tornou a concentrar-se na roleta, enquanto ele contornava a mesa de Twister e, em seguida, olhava para trás.
Daquela posição, podia observá-lo bem e notou-lhe a expressão compenetrada. Diante dele, sentava-se uma loura atraente, que Cesare contemplou por uns segundos. Inclinava-se para a frente e expunha os seios generosamente. De súbito, ele começou a sorrir. Acabava de descobrir como procederia. E tudo graças a uma velha piada que era contada a todos os que visitavam Las Vegas.
Jordan olhou em volta com impaciência, desejoso de que a missão chegasse ao fim. Quando ingressara no F. B.I., recém-saído da Faculdade de Direito e com os ouvidos inundados de propaganda, antevira uma vida excitante de perseguições a criminosos e espiões.
Nunca lhe passara pela cabeça que consumiria três meses fazendo de ama-seca de um delinquente barato.
Observou a mesa do lado oposto à sua. O casal voltara a aparecer. Um casal de aspecto atraente, e recordou-se de o notar na primeira noite. Existia algo de familiar em ambos, como se já os tivesse visto e, em obediência aos seus métodos habituais, tratara de se elucidar a seu respeito.
A rapariga era um dos modelos mais conhecidos da América. Barbara Lang, de "Fumo e Fogo", cujo rosto ele vira em milhares de anúncios de cosméticos, e o companheiro era Cesare Cardinali. O conde Cardinali, piloto de carros de corrida, frequentador dos altos círculos da sociedade.
Viu-o dizer algo à rapariga e começar a afastar-se. Ao mesmo tempo, acudiram-lhe ao pensamento algumas das coisas que ouvira acerca do homem. Tratava-se de um indivíduo que vivia a vida com "V" maiúsculo. Não havia dúvida de que ninguém batia os Europeus nesse capítulo. Estavam-se nas tintas para os outros. Divertiam-se onde quer que estivessem. Aquele, por exemplo, encontrava-se acompanhado por uma das mulheres mais belas dos Estados Unidos e evidenciava uma serenidade impressionante. Jordan tornou a observá-la. Todas as promessas contidas nos anúncios correspondiam à realidade. Era indiscutível que alguns fulanos tinham toda a sorte deste mundo.
Cesare aguardou que a loura voltasse a endireitar-se na cadeira. Nesse momento, voltou-se com petulância para o companheiro, um homem assaz nutrido, que lhe entregou algumas notas de banco de um maço apreciável, após o que ela se concentrou de novo na roleta.
Cesare foi buscar uma bebida, seguiu pela passagem atrás da loura e hesitou por um momento. No instante em que o croupier fez girar a roda e largou nela a bola, a mão de Cesare moveu-se rapidamente atrás das costas da loura e afastou-se em direcção à sua mesa.
Notou o aparecimento do latejar nas têmporas e a sensação de dor. Era sempre assim. A dor principiava aí e depois, gradualmente, propagava-se a todo o corpo. Era a dor da excitação, do perigo, de espreitar no abismo do tempo, no inferno do esquecimento.
Encontrava-se atrás de Twister, que repousava o queixo nas mãos, com os cotovelos apoiados na mesa. O guarda-costas principiava a voltar-se para ele, quando soou o grito.
O guarda-costas rodou nos calcanhares, ao mesmo tempo que movia a mão na direcção do coldre no interior do casaco. Cesare actuou com prontidão e eficiência. Do outro lado da mesa, a loura desenvolvia esforços desesperados para conservar o vestido acima dos seios, mas tratava-se de uma luta perdida, pois o território para cobrir era demasiado vasto.
Cesare soltou o estilete e sentiu-o regressar ao esconderijo no interior da manga, puxado pela mola. Twister continuava sentado, sem se mover. O guarda-costas descontraiu-se, e Cesare viu-o sorrir, enquanto entregava a bebida a Barbara.
A loura acabou por se levantar e afastar-se da mesa, com o indivíduo nutrido no seu encalço.
- Já te disse que não se partiram! - exclamava ela em voz aguda. - Foram cortadas!
- Fala mais baixo - recomendou ele. - Estão todos a olhar para nós!
- Quero lá saber! - volveu ela, precipitando-se para a saída da sala.
Cesare e Barbara riram e ela virou-se de novo para a mesa, a fim de arriscar mais algumas fichas.
Jordan voltou-se para Twister, que permanecia imóvel, com o queixo pousado nas mãos. A roda parou, com a bola imobilizada no sete. O croupier impeliu um monte de fichas para diante de Twister, mas este não se moveu.
A roda recomeçou a girar e Jordan consultou outro guarda-costas com o olhar, todavia este limitou-se a encolher os ombros.
- Façam as suas apostas, senhoras e senhores - indicou o croupier, na habitual ladainha.
Em seguida, lançou a bola na roda. Pouco depois, o monte de fichas diante de Twister voltava a avolumar-se. Tornara a sair o preto.
A dor concentrava-se agora no peito de Cesare e dificultava-lhe a respiração. Por fim, baixou os olhos para Barbara e disse:
- Não me parece a melhor maneira de passarmos a nossa última noite em Las Vegas. Neste lugar superlotado, no meio de uma cambada de sensaborões.
- Ocorre-lhe alguma alternativa melhor? - perguntou ela, com um leve sorriso malicioso no canto dos lábios.
- Apenas nós. Sem companhia.
Os seus olhos principiaram a deixar transparecer excitação. Sentia a corrente que emanava dele, mas não resistiu à tentação de o provocar:
- Foi aloura que o entusiasmou. O espectáculo era demasiado provocante para qualquer homem.
- Não se trata disso - apressou-se ele a redarguir, pegando-lhe na mão.
Tinha a palma húmida e quente, como se estivesse com febre, o que a levou a enrugar a fronte e perguntar:
- Sente-se mal?
- Pelo contrário. Estou simplesmente enfastiado com toda esta gente que só pensa no dinheiro. Quero estar consigo. Sentir a vida dentro de si.
Os lábios de Barbara ficaram repentinamente secos, ao mesmo tempo que notava um calor crescente. Num recanto do espírito, pairava uma imagem excitante do corpo vigoroso e viril dele. Segurou-lhe a mão com firmeza e olhou-o com curiosidade.
Apercebeu-se de uma intensidade que não existia no momento anterior, enquanto o ouvia murmurar:
- Tomaremos champanhe gelado antes e brande morno depois.
Ela levantou-se, como que imersa num turbilhão. Sentia as pernas curiosamente frágeis e tentou sorrir ao replicar no mesmo tom:
- E depois, de novo, champanhe gelado?
Jordan contemplou Twister com perplexidade. Era a quarta vez consecutiva que o preto ganhava e as fichas na sua frente deviam rondar os nove mil dólares.
- Não forces a sorte, Jake - recomendou com um sorriso, tocando-lhe no ombro com as pontas dos dedos. - É melhor guardar isso e fechar a loja por hoje.
Twister inclinou-se grotescamente para a frente, as mãos impeliram as fichas e o rosto acabou por pousar nelas.
Uma mulher soltou um grito e Jordan levantou a cabeça de Twister. Os olhos estavam abertos, sem a menor expressão.
- Ajudem-me a levá-lo daqui! - bradou, largando-lhe a cabeça.
Os guarda-costas actuaram com prontidão. Ergueram o corpo rápida e eficientemente e dirigiram-se para o gabinete do gerente. Registou-se um breve momento de histeria colectiva, porém, as vozes monótonas dos fiscais da casa trataram de serenar os ânimos.
- Não há novidade, amigos. O homem desmaiou e nada mais. Não corre qualquer perigo.
De tal modo é poderosa a promessa de Las Vegas - dinheiro grátis, o sonho de amanhã -, que, em poucos segundos, a roleta recomeçava a girar e o incidente em breve tombava no esquecimento.
Excepto para o croupier, que foi despedido na manhã seguinte por se apoderar de cinco mil dólares do monte de fichas que se encontravam diante de Twister.
Eles voltaram-se para observar os homens que transportavam Twister e, em seguida, Barbara apercebeu-se da expressão no rosto de Cesare.
Os olhos brilhavam e os lábios entreabriam-se, como num sorriso cruel, o que lhe provocou um arrepio.
- Por que faz essa cara? - perguntou, num murmúrio.
O semblante tornou-se mais descontraído e os lábios exibiram um sorriso natural.
- Estava a pensar que os tipos previram todas as hipóteses. Por mais que uma Pessoa se esforce, não pode sair vencedora. Cesare encheu os pulmões de ar. A dor concentrava-se agora no abdómen, e era a custo que continha um grito. - Vamos. Não temos mais nada que fazer aqui.
O telefone na secretária de Baker recomeçou a tocar, no momento em que ele se preparava para abandonar o gabinete, e retrocedeu para atender.
Era Jordan, cuja voz vibrava de excitação:
- Acabam de matar Twister!
- Matar? - Baker sentou-se com lentidão. - Como?
- com um estilete. O mesmo que vitimou Adams. - A inflexão de Jordan parecia na iminência de se extinguir num soluço. - Lastimo profundamente, George. Não o perdemos de vista um único instante. Ainda não percebi como conseguiram. Havia mais de mil pessoas no casino, esta noite.
O espírito de Baker desanuviou-se com brusquidão.
- Volta a telefonar dentro de uma hora. Quero contactar com Miami, para ter a certeza de que Vanicola está bem. - Pousou os dedos no descanso e tornou a levantá-los. Quando a voz da telefonista surgiu na linha, indicou: - ligue ao agente especial Stanley, em Miami Beach.
"Eles conhecem as testemunhas", reflectiu, enquanto aguardava. "Conhecem-nas. Tanto sigilo e preparativos para nada." Eles conheciam-nas.
CAPÍTULO VII
O silêncio do quarto era alterado apenas pelo murmúrio cadenciado do sono dela. Ele fixava os olhos no tecto, entregue a cogitações. Fora há tantos anos, que quase esquecera tudo.
A guerra. Não voltara a haver nada que se parecesse. Tudo o resto não passava de um substituto. O grande perigo, a excitação inebriante, a sensação de poder que lhe percorria o corpo com a consciência da força da morte que pretendia irromper, a fim de o aproximar do seu destino.
Esboçou um sorriso na penumbra, dominado por uma impressão de bem-estar crescente. Estendeu a mão para o maço de tabaco em cima da mesa-de-cabeceira e descobriu que estava vazio.
Deslizou da cama com prudência, cruzou o quarto em direcção à cómoda, extraiu um cigarro de outro maço e acendeu-o. Através da vidraça da porta da varanda, despontavam os primeiros clarões da alvorada no horizonte.
- Cesare... - A voz dela não passava de um sussurro.
- Sim? - Ele virou-se para a cama, embora não a pudesse ver na escuridão.
- Abre a segunda garrafa de champanhe - volveu Barbara, num tom alterado pela sonolência.
- Já a abrimos.
- Mas continuo com sede - insistiu em inflexão de criança amuada.
- És uma mulher insaciável - redarguiu ele, com uma breve risada, ao mesmo tempo que notava o ruge-ruge dos lençóis.
- Tenho culpa de continuar com sede?
- Claro que não - admitiu, encaminhando-se para a varanda.
Ainda imperava a quietude da noite e distinguia-se ao longe o som de grilos, juntamente com o murmúrio seco do vento do deserto. A tonalidade azul-escura do céu principiava a tornar-se mais clara com o aproximar da manhã.
Barbara acercou-se dele, que se apoiara ao parapeito e não se voltou. Deteve-se para lhe rodear o peito com os braços e pousou a cabeça nas costas nuas.
- Não tarda a amanhecer - articulou a meia voz.
- Pois não.
Tens uma pele tão macia... - volveu, beijando-lhe o omBro. Chego a perguntar-me de onde vem tanta energia. Nunca
supus que um homem pudesse ser como tu.
Deve ser do vinho que bebi em criança. - Cesare deu
uma gargalhada e voltou-se. - O da Sicília é bom para o sangue e para a pele.
Ela olhou-o com intensidade, reflectindo que havia certas coisas nele que nunca compreenderia.
- Quando fazes amor comigo dizes sempre que estás a morrer - observou com estranheza. - Parecem-me palavras muito estranhas numa ocasião dessas.
- É o nome que nós, Italianos, lhe damos. A pequena morte.
- Porquê? Num momento em que tudo no teu íntimo se abre e renasce, por que afirmas que estás a morrer?
- E não é verdade? - Cesare assumiu uma expressão grave. - Porventura cada nascimento não representa o início de mais uma morte? Não sentes essa dor?
- Não. - Barbara abanou a cabeça com veemência. - Apenas euforia. Talvez seja essa a diferença entre nós. É possível que, mesmo nos momentos em que estamos unidos mais intimamente, me aperceba de uma tua faceta que se move num mundo que desconheço por completo.
- Não digas tolices.
- Falo a sério. Como, por exemplo, a tua expressão no momento em que levavam aquele homem inanimado. Numa altura, apesar de nos rodear tanta gente, senti a impressão de que te tinha dentro de mim. No instante imediato, passaram junto de nós e ausentaste-te. Suponho que ele estava morto.
- Por que dizes isso? - inquiriu ele, olhando-a com curiosidade.
- Adivinhei-o pela expressão na tua cara - murmurou ela. - Sabias. Ninguém mais se deu conta, mas tu sabias.
- Que disparate! Como querias que soubesse?
- Não faço ideia. No entanto, tinhas a mesma expressão de quando saías do Palácio de Justiça, no dia em que partimos. Mais tarde, abrimos o jornal no avião e vimos a notícia do homem assassinado à entrada do tribunal, perto da área em que nos encontrávamos.
Pousara a cabeça no peito dele, pelo que não viu a contracção dos lábios numa expressão cruel.
- Não preciso de ler o jornal desta manhã para saber que aquele homem foi morto no casino. Sinto-o. E agora pergunto-me o que acontecerá em Miami.
- Apanharemos bom tempo, como aqui. - Cesare esperava que ela não notasse a alteração das palpitações do coração. Dias de sol e calor.
- Não me referia a isso, querido - replicou Barbara, levantando a cabeça e olhando-o. - Também morrerá alguém?
- Morrem pessoas em toda a parte, todos os dias - alegou ele, com desprendimento.
- Espero que não sejas o Anjo da Morte.
- Pareces apostada em dizer baboseiras - declarou, enquanto a expressão voltava a toldar-se.
- Não tanto como pensas - volveu ela, pausadamente. Recordo-me de ler a história de uma rapariga que se apaixonava pelo Anjo da Morte.
- Que lhe aconteceu? - inquiriu ele, pousando-lhe a mão na nuca e obrigando-a a aproximar de novo a cabeça do peito.
- Morreu. Quando ele descobriu que ela sabia quem era, teve de a levar consigo. - Barbara olhou-o subitamente com ansiedade. - Levas-me contigo?
Cesare segurou-a pelos cabelos soltos sobre os ombros e acercou-lhe o rosto do seu.
- Sim, levo-te comigo - prometeu, e colou-lhe a boca brutalmente nos lábios.
Ouviu-a arquejar de dor no momento em que a mão livre pousou no seio, até que se conseguiu desprender e exclamar:
- Magoaste-me!
Ele afundou o rosto entre os seios nus e principiou a mover-lhe a cabeça num círculo largo, sem atenuar a pressão da mão no peito. Distinguiu-lhe o gemido de prazer e notou a torrente que se gerava no seu íntimo. O círculo alargou-se ainda mais.
os gemidos sucediam-se sem interrupção no momento em que ajoelhou com lentidão.
Pára, por favor, Cesare! Não consigo suportar a dor!
Entretanto, ele sorria. Havia poder no seu íntimo. E vida. E morte. Quando tornou a falar, a voz parecia provir de algures nas suas entranhas.
- É altura de aprenderes a singularidade do prazer da dor.
- Não, Cesare, por favor! - O corpo dela começou a estremecer numa convulsão irresistível. - Não suporto a dor! Morro!
Ele baixou os olhos para a contemplar e largou-a repentinamente. Ela quase caiu, mas conseguiu segurar-se-lhe aos quadris, ao mesmo tempo que soluçava:
- Amo-te, Cesare! Amo-te!
CAPÍTULO VIII
Miami Beach é uma cidade soalheira situada numa faixa de areia estéril ao longo da costa da Florida, que, todos os anos, graças a uma inseminação artificial de capital, dá à luz um novo hotel. O St. Tropez era o de construção mais recente.
Não longe do Fontainebleu e do Éden Roc, o St. Tropez ergue os seus onze pisos ao céu, geralmente limpo, num estilo arquitectónico que recorda um pouco uma impressão de Picasso do palácio de Monte Carlo. Os naturais da Florida, que avaliam a beleza pela diária de cada quarto, chamam-lhe o hotel mais bonito de todos os tempos. Refira-se, a propósito, que a diária é de oitenta dólares.
Dispõe de um terraço com três metros de largura sobranceiro ao oceano, no qual só costumam ser vistos turistas da época baixa. Possui igualmente uma piscina no meio de frondosas palmeiras, também considerada das maiores do mundo, totalmente circundada por quatro fiadas de cabanas, cada uma das quais contém casa de banho privativa, telefone, mesa de jogo, diversas cadeiras e um frigorífico.
Por volta das três da tarde, desenrola-se em cada uma delas uma partida de gin-rummy, cujos participantes envergam, em geral, fatos de banho como única indumentária, fora da acção dos raios solares responsáveis da sua presença naquele recanto do planeta. Os que preferem os efeitos benéficos do astro-rei refastelam-se ao ar livre, entregues à dupla actividade de queimar o corpo e os rendimentos.
Sam Vanicola encontrava-se na varanda da suite do St. Tropez, de onde contemplava a piscina. Era um homem de aspecto possante, o que já acontecia na adolescência, quando fazia recados a Lepke nas ruas de Brooklyn. Pesava então uma centena de quilogramas e agora cento e vinte.
Por fim, emitiu um grunhido de desagrado e voltou para a sala, onde três homens jogavam as cartas.
- Isto é uma grande chatice!
- Temos de cumprir as ordens que nos deram - lembrou com suavidade o agente especial Stanley.
- Ordens! Ordens! - rugiu Vanicola. - Serviram de muito, quando mantiveram Abe Reles fechado à chave no quarto do Hotel Half Moon, em Brooklyn! Limparam-lhe o sarampo à mesma.
- Como sabes, Sam? - replicou Stanley, com um sorriso. Lançou-se da janela e concluiu-se que se tinha suicidado.
- Não me faça rir! Eu conhecia-o bem. Ele nunca faria uma coisa dessas. Empurraram-no.
- De resto, isso foi há vinte anos. As circunstâncias actuais são diferentes.
- Pois são! - Vanicola fungou desdenhosamente. - Dinky Adams foi liquidado quando entrava no tribunal e Jake, The Twister, numa sala com mais de mil pessoas. Não me venha dizer que as circunstâncias actuais são diferentes!
Stanley conservou-se silencioso e lançou um olhar de desconforto aos outros agentes.
Vanicola extraiu um charuto da algibeira, atravessou a sala e sentou-se no sofá. Em seguida, cortou a extremidade do charuto com os dentes e cuspiu-a para a carpeta. Finalmente, utilizou um fósforo aceso, expeliu uma nuvem de fumo azulado, reclinou-se e, em voz menos truculenta, proferiu:
Vamos lá ver uma coisa, rapazes. Também sou contribuinte" com todos os impostos em dia. O Governo gasta duzentos dólares do meu dinheiro para me manter numa espelunca destas, para quê, se ninguém lucra com isso?
- Queres sentar-te no meu lugar e tentar a sorte ao póquer? - sugeriu Stanley, levantando-se. - Ou preferes aguardar na cadeia?
- Não me faça rir! Se me engavetam, não pio. Sem mim, vocês não dispõem de mais ninguém para ir depor.
- Confesso que não te entendo. Tens muito empenho em ir desta para melhor?
- Quanto a mim, estou morto desde o dia em que me foram buscar - declarou Vanicola, com uma expressão grave. - Se não falasse, acusavam-me de homicídio. Se desse com a língua nos dentes, os tipos abatiam-me, mais cedo ou mais tarde. O tempo esgota-se-me a galope. Portanto, por que não telefona ao seu chefe para me autorizar a passar uma ou duas horas por dia naquela piscina, todas as tardes? Concordarei com tudo o resto que determinarem.
Stanley aproximou-se da varanda, observou a piscina com uma expressão pensativa e pareceu-lhe frequentada pelas pessoas habituais.
- Ninguém pode chegar junto de mim, lá em baixo - persistiu Vanicola. - Coloca-se um de vocês em cada entrada, são só duas.
Stanley retrocedeu, dirigiu-se ao quarto contíguo e fechou a porta atrás dele. Vanicola olhou os dois agentes sentados à mesa, que recomeçaram a jogar, e entreteve-se a chupar o charuto em silêncio.
Stanley reapareceu transcorridos alguns minutos e deteve-se diante dele.
- A tua pretensão foi deferida, Sam. Mas lembra-te de que se vires alguma coisa que nos tenha escapado ou reconheceres alguém, deves prevenir-nos imediatamente. Não queremos que te aconteça uma fatalidade.
Vanicola levantou-se do sofá, assomou à varanda, contemplou a piscina por um momento e assentiu com prontidão.
- Combinado. Não tenho pressa nenhuma em esticar. Stanley reocupou o seu lugar na mesa e preparava-se para
reatar a partida de póquer, quando o outro exibiu um sorriso sem alegria e acrescentou:
- Pelo menos, uma coisa é certa.
- O quê, Sam? - quis saber um dos outros agentes.
- vou ficar bem bronzeado. As pessoas que desfilarem diante do meu caixão ficarão sem saber onde passei o Inverno.
Barbara admirava o oceano da varanda, quando ouviu o telefone tocar atrás dela e foi atender.
- Uma chamada de Nova Iorque para o conde Cardinali - informou a telefonista.
- É para ti, Cesare - comunicou ela, cobrindo o bocal com a mão.
Ele surgiu de calção de banho branco, que permitia observar que se bronzeara apreciavelmente nos poucos dias de exposição ao sol, e pegou no auscultador.
- Fala Cardinali. - Fez uma pausa, enquanto escutava. Está bem. Pode ligar. - Voltou-se para Barbara. - É Miss Martin.
Ela inclinou a cabeça e voltou para a varanda, de onde distinguia fragmentos da conversa. Aparentemente, relacionava-se com um carro que se encontrava em Palm Beach.
Transcorridos alguns minutos, Cesare cortou a ligação, mas não se lhe reuniu. Quando ela se virou para dentro, viu-o sentado à secretária, com um bloco-notas na sua frente, no qual escrevia algo.
Barbara abandonou, por fim, a varanda e ele ergueu os olhos, com um sorriso.
- Desculpa - articulou, secamente. - Negócios.
Ela assentiu com um movimento de cabeça, ao mesmo tempo que reflectia que era o último dia da semana que haviam planeado passar juntos.
- Quem dera que fosse o princípio da semana - murmurou.
- Não era mau, de facto.
- Nem quero pensar em que amanhã estaremos uma vez mais em Nova Iorque, no meio do frio e chuva, e só voltaremos a sentir este calor no Verão. Oxalá pudéssemos ficar aqui para sempre.
- É o mal de todas as férias - admitiu ele, com novo sorriso. - Têm um fim.
- E pela parte que nos toca também? - volveu Barbara, sem se referir às férias.
- Que remédio. Tenho de voltar para os meus negócios e tu para o teu trabalho.
Invadiu-a uma amargura estranha e compreendeu que a única pessoa que iludira quando aceitara o convite para aquela semana fora a ela própria. O que acontecera entre ambos não passara de uma distracção para ele.
- Há alguém que te conheça realmente, Cesare?
- Que pergunta tão insólita - redarguiu ele, com uma expressão de surpresa.
De repente, ela teve vontade de lhe tocar, obrigá-lo a sentir a sua realidade e acabou por se voltar para evitar estender-lhe as mãos.
- Não acho - tornou, a meia voz. - A maioria das pessoas pensa que és um playboy, mas eu sei que isso não corresponde à verdade.
- Tenho tido muita sorte. - Ele contornou a secretária e acercou-se. - É vantajoso para os meus negócios poder fazer aquilo que me agrada.
- É essa a razão da presença de mulheres como eu? - Ela olhou-o sem pestanejar. - Para fortalecer a tua reputação, juntamente com os carros velozes? Por que é vantajoso para os teus negócios?
- Não há outras mulheres como tu - murmurou ele, pegando-lhe na mão.
- Não? - Barbara começava a irritar-se consigo própria por não conseguir conter-se. - E a baronesa Bronczi, ou lá como se chama?
Há um mês, os jornais referiam-se pormenorizadamente à forma como a seguias por toda a Europa.
- Ileana? - Cesare deu uma gargalhada. - Conheço-a desde criança. As nossas famílias eram amigas de longa data. De resto, já não me interessa. Encontra-se na Califórnia com um texano rico. Tem predilecção especial pelos texanos ricos.
- Desculpa...
- Tenho uma ideia. - Segurou-lhe o queixo com a mão e ergueu-lhe a cabeça. - A sede da minha firma quer que vá buscar um carro a Palm Beach. Portanto, em vez de voarmos para Nova Iorque esta noite, regressaremos nele. De qualquer modo, estou saturado de aviões e, desse modo, podemos prolongar as férias.
Ela começou a sorrir. Talvez se tivesse equivocado acerca dele e lhe merecesse um pouco de interesse.
- É uma ideia maravilhosa!
- São quase três horas - acrescentou ele, depois de consultar o relógio. - Ainda há tempo para um mergulho. Jantaremos em Palm Beach e estaremos em Jacksonville antes de amanhecer.
Vanicola emergiu da casa de banho da cabana, depois de enfiar um calção de banho com desenhos havaianos e dirigiu-se aos agentes do F. B. I.
- Há algum inconveniente em que vá apanhar a minha ração de sol?
Os interpelados entreolharam-se e Stanley virou-se para os homens postados nas saídas, que inclinaram as cabeças. Por fim, levantou-se e, com certa relutância, acedeu:
- Acho que podes ir.
Os outros dois agentes puseram-se igualmente de pé e Vanicola encaminhou-se para a piscina, tendo o cuidado de mudar de rumo com frequência, a fim de não colidir com as numerosas cadeiras em que os turistas se estendiam. Os companheiros conservaram-se a seu lado, enquanto retirava um colchão de plástico da prateleira e o colocava na água. Em seguida, desceu os degraus da piscina e deitou-se desajeitadamente nele.
Entretanto, Stanley observava as pessoas em volta e um dos agentes perguntou:
- Vês alguma coisa suspeita?
- Não. Penso que não há perigo. Os trajos que usam são insuficientes para ocultar uma arma.
- Algumas destas bonecas quase nem conseguem esconder as suas armas - comentou, com um sorriso malicioso.
No entanto, Stanley não sorriu. De facto, naquele momento nada do que o circundava lhe parecia engraçado.
- Eu bem lhes disse que não havia perigo - declarou Vanicola, da piscina, onde permanecia deitado no colchão. E acrescentou, com um sorriso. - É o terceiro dia seguido que saímos sem que aconteça nada. Quando tiverem passado dez minutos, avisem para me voltar. Não quero ficar esturrado.
- Está bem - assentiu Stanley. E sentou-se numa cadeira perto da água, reflectindo que respiraria fundo quando a missão chegasse ao fim.
Vanicola flutuou para o centro da piscina e os agentes entretinham-se a observar os banhistas, vagamente conscientes de que a tensão principiava a atenuar-se.
Cesare viu-os do outro lado da piscina e lançou uma olhadela a Barbara, que se deitava de braços numa toalha de banho e conservava as pálpebras cerradas. Sentiu as palpitações do coração acelerarem-se e tornou a concentrar-se no lado oposto da piscina.
Vanicola flutuava em direcção ao centro, onde um grupo de jovens se divertia a fazer piruetas, e os seus gritos chegavam aos ouvidos de Cesare sem dificuldade. Inconscientemente, levou a mão à cintura e notou o contacto do estilete dissimulado na bainha interna do calção. No entanto, apercebeu-se com prontidão da imprudência do gesto e apressou-se a afastá-la.
Um dos guarda-costas levantou-se, disse algo a Vanicola, que se sentou com dificuldade no colchão e quase deslizou para a água. Em seguida, voltou-se e deitou-se de bruços, após o que o guarda-costas tornou a sentar-se.
Cesare lançou nova olhadela a Barbara e viu que continuava imóvel. Por fim, levantou-se, encheu os pulmões de ar e mergulhou na água. Depois de executar algumas braçadas, abriu os olhos e principiou a nadar para o centro da piscina, sem subir à superfície.
Barbara soergueu-se quando o ouviu e chamou-o, porém, ele já desaparecera, deixando apenas uma esteira de bolhas de ar. Ela pestanejou e sorriu. Em certos aspectos, Cesare parecia uma criança. Havia três dias que se treinava a percorrer a piscina nos dois sentidos sem acudir à superfície. Virou-se para o relógio na parede da cabana, viu que faltavam vinte minutos para as quatro e começou a recolher as suas coisas, pois estava a fazer-se tarde e em breve teriam de partir.
Acabava de retocar a maquilhagem, quando ele emergiu da piscina a curta distância. Tinha a boca aberta num esgar estranho, ao mesmo tempo que respirava fundo, e olhava-a como se estivesse muito longe,
- Conseguiste desta vez? - perguntou ela, com um sorriso.
- Consegui - afirmou ele, saindo da água.
- Cesare! - exclamou ela, chocada.
Acudiu-lhe um estremecimento de pavor e baixou a mão para o estilete, mas verificou que se achava no seu lugar. Apercebeu-se então do ponto que os olhos dela fixavam e aceitou o roupão que lhe estendia e se apressou a vestir.
- És fantástico! - murmurou Barbara, agora com uma risada divertida. - Mal te excitas, nota-se.
- Nunca te disse que nós, Sicilianos, éramos pessoas básicas? - retorquiu ele, ajudando-a a levantar-se.
Ela pegou no saco de plástico e, rindo com satisfação, encaminharam-se para o hotel.
O telefone da cabana principiou a tocar e Stanley levantou-se com prontidão.
- Não o percam de vista, enquanto atendo - recomendou aos outros agentes.
Estes aquiesceram com acenos e um deles olhou em volta e confessou ao companheiro:
- Gostava de voltar cá, mas sem ser em serviço.
- Não temos dinheiro para caprichos destes, rapaz - replicou o outro, com um sorriso de resignação. - Os preços são astronómicos.
Stanley reapareceu pouco depois e sorria pela primeira vez em vários dias.
- Vamos buscá-lo. Partimos para Nova Iorque, esta noite. Viraram-se todos para a piscina. - Chega, Sam - indicou, levantando a voz para se fazer ouvir no meio do ruído dos banhistas. - Os teus dez minutos expiraram.
Mas não eram apenas os dez minutos que tinham expirado para Sam Vanicola. com efeito, encontrava-se morto no colchão que se afundava lentamente, o rosto pousado na superfície de plástico transparente. Até a sua derradeira visão se lhe varrera da mente. A expressão sorridente de Cesare que se aproximava do fundo da piscina, pouco antes de o coração de Vanicola explodir numa dor que nunca supusera possível.
CAPÍTULO IX
A Sunshine State Parkway estende-se para o norte de Miami a Fort Pierce, para além dos pântanos e pomares que polvilham a costa atlântica da Florida. E numerosas vezes, à noite, no princípio do Inverno, o nevoeiro avança do mar subitamente arrefecido, para, misturado com o fumo das cercanias, formar uma neblina que paira sobre a estrada como uma colcha numa cama de plumas.
O poderoso motor do Ghia conversível palpitava com intensidade, enquanto Barbara ligava o rádio. A música encheu o carro e ela inclinou-se sobre o volante do carro, cujos faróis varriam a neblina.
- O nevoeiro está a aumentar - murmurou.
- Queres que suba a capota? - perguntou Cesare.
- Por enquanto, não. Ainda não incomoda. Conservaram-se silenciosos por uns momentos, até que a voz
do locutor interrompeu a música para anunciar:
- Segue-se o noticiário das onze, de Miami.
Cesare lançou um olhar de soslaio à companheira, que continuava a conduzir com a atenção concentrada na estrada.
- com o assassínio de Sam Vanicola na piscina do Hotel St. Tropez, aqui, em Miami Beach, esta tarde, o Governo admitiu, esta noite, em Nova Iorque, o colapso total do seu processo contra os quatro presumíveis dirigentes do Sindicato. Foi igualmente revelado que a arma empregada em cada crime era um estilete, instrumento de vingança na Itália que remonta à época dos Bórgias. Desfrutava de particular predilecção dos assassinos, em virtude de a sua configuração provocar hemorragias internas, enquanto o ferimento superficial se fecha após a retirada da lâmina. A Polícia e o F. B. I. atribuem grande importância a este facto e empregam todos os meios ao seu alcance para descobrir indícios susceptíveis de os conduzir à identidade do assassino ou assassinos. Entretanto, em Washington...
Cesare estendeu a mão e desligou a telefonia.
- Hoje em dia, as notícias são de uma monotonia enervante - comentou, com uma risada seca. - Assaltos e crimes a todo o momento. Não encontrarão outros temas? - Fez uma pausa, todavia Barbara permanecia com o olhar fixo na estrada, sem pronunciar palavra. - Acorda, dorminhoca. Não te esqueças de que vais a conduzir.
- Estou acordada.
- Alegra-me sabê-lo. Já me sinto mais aliviado.
- Estava a pensar - disse ela, pausadamente.
- Em quê?
- No homem que morreu na piscina. Gostava de saber quem seria... se o vi ou ele a mim.
- É um pensamento singular. Por que te lembraste disso?
- Se nos tivéssemos falado, talvez o pudesse prevenir - murmurou, continuando a fixar a estrada.
- De que havias de preveni-lo? - Ele tornou a rir. - Não sabias o que ia acontecer.
Desta vez, ela desviou os olhos, para o encarar com uma expressão angustiada.
- Podia ter-lhe falado do Anjo da Morte. De como nos seguiu de Nova Iorque a Las Vegas e, depois, a Miami. - Estremeceu levemente. - Achas que continua a seguir-nos?
- Deixa-te de patetices. Encosta aí adiante e deixa-me guiar. Começas a enervar-te e podias provocar um acidente.
Sem replicar, Barbara ligou o pisca-pisca da direita e principiou a abrandar a velocidade, até que encostou à berma e travou.
- De qualquer modo, é preferível que conduza eu - volveu ele. - Conheço bem o caminho e há uma ponte muito estreita um pouco adiante. com este nevoeiro, todo o cuidado é pouco.
- Não me oponho a que guies. Mas tem cautela.
- Podes estar descansada a esse respeito.
Puxou-a para si e beijou-a, notando-lhe a frieza dos lábios que, no entanto, ficaram colados aos seus por um momento.
- Não me importa que sejas o Anjo da Morte - sussurrou ela. - A tua companhia tornou-me mais feliz do que nunca em toda a vida.
Cesare não pôde evitar a pergunta que lhe acudiu ao espírito:
- Que farias, se fosse?
- Agora, és tu que estás com patetices.
Algo no seu íntimo impelia-o a aprofundar o assunto. Era possível que se ela conhecesse a verdade e compreendesse, a existência não lhe parecesse tão vazia. Por que havia de ser ele o único a sentir aquilo?
- Podia ter sido eu o assassino - concedeu. - Estávamos em todos os lugares onde os crimes ocorreram.
Ela arqueou as sobrancelhas e, em seguida, começou a sorrir.
- Tal como centenas de outras pessoas. Às vezes, pareces tão pateta como eu.
Cesare deu uma gargalhada divertida, apeou-se, contornou o carro e imobilizou-se junto dela, que puxara do bâton e começava a aplicá-lo.
- Importas-te de me alumiar um pouco? - pediu Barbara, sem erguer os olhos. - Receio fazer asneira na escuridão.
Ele acendeu o isqueiro e olhou-a com intensidade, ao mesmo tempo que sentia os lábios tornarem-se tensos.
- Por que me olhas assim?
- És muito bonita.
- Essas palavras merecem um beijo, antes que acabe de me pintar. - Ele inclinou-se e apercebeu-se de que os lábios dela eram agora mais quentes. - Receio começar a amar-te tanto, que me é indiferente se mataste ou não aqueles homens.
Cesare endireitou-se e ela voltou-se para continuar a aplicar o bâton, expondo a nuca, onde os cabelos compridos se separavam em duas abundantes madeixas. Não havia outra solução. Ele ergueu a mão direita, com a palma virada para fora. Barbara já traçara demasiadas conjecturas e poderia acabar por se tornar perigosa. Uma morte conduzia a outra, e o homicídio assemelhava-se a ondulações concêntricas num lago que se distanciavam cada vez mais da vítima e do violador. De súbito, baixou a mão com violência, num golpe implacável.
O bâton soltou-se dos dedos dela como uma bala, embateu no tablier e rolou no sobrado do carro, enquanto Cesare a contemplava, sentindo o coração explodir.
Ela tombou sobre o volante, com a cabeça inclinada num ângulo inverosímil. No fundo, ele congratulava-se por não lhe ver os olhos. Depois de olhar em volta, para se certificar de que não se aproximava qualquer carro, sentou-se ao lado dela e ligou o motor, que pegou imediatamente com um rugido.
Tornou a esquadrinhar as imediações com os olhos, retirou o estilete e a respectiva mola do braço e, com um movimento rápido, lançou-o para a escuridão e ouviu-o pousar na área pantanosa. Em seguida, pôs o carro em movimento e conduziu-o de novo para a estrada.
Calcou o pedal do acelerador, conjecturando que a ponte devia distar cerca de mil e quinhentos metros. O veículo não tardou a atingir os cento e vinte quilómetros horários. Cesare espreitava através do nevoeiro, enquanto o corpo de Barbara resvalava para o seu lado.
Lá estava a ponte. Soltando uma imprecação entre dentes, impeliu-a de novo para junto do volante, retirou o pé do acelerador e agachou-se sobre o banco, sem largar o volante, a fim de conduzir o carro directamente contra uma das guardas da ponte.
Deu um salto quase no momento exacto do impacte. A velocidade que o animava impeliu-o para a frente e descreveu uma volta sobre si próprio antes de mergulhar na água.
O som ensurdecedor chegou-lhe aos ouvidos uma fracção de segundo antes de atingir a água, que estava fria e escura. Começou a afundar-se com lentidão, enquanto os pulmões pareciam na iminência de explodir, até que passou a mover os braços freneticamente. Por último divisou as estrelas através do nevoeiro e pôde respirar livremente.
Nadou com vigor para terra, esforçando-se por ignorar a dor que lhe assolava todo o corpo. Por último, sentiu os pés contactar com o fundo e transpôs apressadamente a distância que restava.
O solo apresentava-se húmido e pegajoso, o que contribuiu para lhe acentuar a sensação de mal-estar, quando se deitou de costas para recuperar o alento. De repente, principiou a tremer convulsivamente e cravou os dedos na terra, como se receasse ser arrastado de novo para a água. Por fim, fechou os olhos e a noite envolveu-o por completo.
Baker reclinou-se na cadeira e fixou o olhar na janela, para contemplar pensativamente os desenhos caprichosos que o sol de Inverno produzia nos edifícios. Tinham-se escoado três dias desde a morte de Vanicola e as investigações permaneciam num ponto morto. Em seguida, desviou os olhos para os três homens sentados do outro lado da secretária: o capitão Strang, da Polícia de Nova Iorque, Jordan, regressado de Las Vegas, e Stanley, de Miami.
- É esta a situação - declarou, pousando as mãos no tampo de vidro, num gesto de frustração. - Não atribuo a responsabilidade a nenhum de vocês, pois é exclusivamente minha e não a enjeito.
Amanhã, tenho de me avistar com o chefe, em Washington. O senador Bratton está a pressionar o departamento e ele exige um relatório circunstanciado do que aconteceu.
- Que tencionas dizer-lhe? - perguntou Stanley.
- Que lhe posso dizer? - redarguiu Baker, com um suspiro de resignação. - Sei tanto como ele. - Pegou num sobrescrito. - Está aqui o meu pedido de demissão, que lhe entregarei amanhã.
- Não te precipites - recomendou Jordan. - O chefe não exige o teu escalpo.
- Não armes em ingénuo, Ted - volveu o outro, com um sorriso de amargura. - Conhece-lo tão bem como eu. Os desaires não gozam das suas preferências.
Seguiu-se um longo silêncio, até que ele premiu distraidamente o botão do projector de diapositivos em cima da secretária. Quase no mesmo instante, surgiu uma imagem na parede, que representava a multidão no corredor do tribunal.
- Que tens aí? - inquiriu Jordan.
- Fotografias do corredor tiradas por repórteres no momento em que Dinky Adams se encaminhava para a sala de audiências. - Baker actuou noutro botão e a cena modificou-se. - Examinei-as milhares de vezes. Era de esperar que, com tantas chapas batidas, houvesse algum pormenor interessante. Infelizmente, não existe uma única do momento crítico. - Tornou a carregar no botão. - Esquecia-me de que vocês não as tinham visto.
- Espera aí - indicou Stanley, em voz levemente excitada. - Importas-te de tornar a projectar a diapositivo anterior?
Baker obedeceu e ele levantou-se e aproximou-se um pouco da parede, a fim de apontar para um homem.
- Á máquina tem algum sistema que permita ampliar este tipo de chapéu verde?
Baker soltou uma gargalhada sem alegria, reflectindo que se tratava de mais uma esperança frustrada.
- O chapéu não é verde. Trata-se da cor da tinta da parede.
- Era verde, George - acudiu o capitão Strang. - Recordo-me de o notar entre a multidão.
Baker apressou-se a fazer girar a lente, até que a projecção conteve apenas o rosto de um homem. Embora fosse unicamente um ângulo lateral, não subsistiam dúvidas quanto ao chapéu.
- Eu vi-o - afirmou Stanley.
- Há muitos chapéus como esse - argumentou Baker.
- Mas não caras como essa. Reconheço-a perfeitamente. Jordan fez uma pausa, enquanto todos se concentravam nele. É o conde Cardinali, o célebre piloto de carros de corrida. Encontrava-se na mesa perto da nossa, em Las Vegas, acompanhado da rapariga que serve de modelo para os anúncios de cosméticos "Fumo e Fogo", Barbara Lang.
- Também estavam no St. Tropez! - bradou Stanley, pondo-se de pé num salto. - Foi aí que vi o chapéu. Eu estava no átrio quando eles chegaram e Cardinali usava-o!
Baker olhou-os com uma nova esperança. Talvez ainda houvesse uma possibilidade de alterar a situação. Por fim, pegou no telefone e indicou:
- Quero uma informação completa e minuciosa sobre o conde Cardinali. Do dia em que nasceu até hoje! - Cortou a ligação e dirigiu-se de novo aos três homens. - Fazem alguma ideia do seu actual paradeiro?
- Faço eu - declarou o capitão Strang.
Extraiu um jornal dobrado da algibeira, estendeu-o em cima da secretária e apontou para o canto superior esquerdo de uma página.
Baker viu a fotografia de Cardinali a anteceder a reportagem, cujo título era do seguinte teor: O Famoso Volante Tem Amanhã Alta do Hospital. Seguia-se uma breve descrição do acidente na Sunshine State Parkway, em que a rapariga perdera a vida.
Por último, ergueu os olhos do jornal e assobiou em surdina.
- Se este tipo é o Estilete - proferiu em tom pausado -, vai-nos dar água pela barba para o apanharmos. Segundo parece, não gosta de deixar testemunhas na sua esteira. Suas ou dos outros!
CAPÍTULO X
Baker encontrava-se diante da sala de exposições de automóveis na Park Avenue, através de cujas amplas janelas os elegantes modelos estrangeiros se destacavam com um brilho impressionante. Na porta envidraçada de entrada, via-se a indicação em caracteres prateados: CESARE CARDINALI - AUTOMÓVEIS IMPORTADOS.
Finalmente, impeliu-a e entrou, deparando-se-lhe vários clientes que examinavam os carros, pelo que aguardou uns minutos, até que um deles se retirou e o vendedor acudiu para o atender.
Era um homem alto, de cabelos grisalhos, que usava casaco azul-escuro e uma pequena flor na botoeira, parecendo mais um corretor da Bolsa que um vendedor de automóveis.
- Em que o posso servir? - perguntou com uma deferência de que não se achava isenta uma ponta de arrogância.
Baker sorriu para consigo ao pensar na diferença de atendimento naquele stand e na garagem onde comprara o seu carro.
- Desejava falar com Mr. Cardinali. Ele está?
- Mr. Cardinali nunca vem à sala de exposições. - Foi o esclarecimento em inflexão agora afectada.
- Então, onde o posso encontrar?
- Não sei ao certo. Experimente no escritório.
- Onde é? - persistiu Baker, pacientemente, pois há muito que aprendera a suportar os snobes.
- No décimo quinto piso. - O vendedor apontou para uma porta lateral. - O elevador fica no átrio.
- Obrigado.
- Sempre às ordens - replicou, encaminhando-se para junto de novo cliente potencial que acabava de entrar.
Baker dirigiu-se ao átrio e aguardou a chegada de uma das cabinas. O edifício era de construção recente, altamente automatizado. Na verdade, até nos elevadores havia música permanente.
Não subsistiam dúvidas de que Cardinali não era um impostor. Vivia com desafogo. Como se explicaria a ligação de um homem daqueles com o Sindicato?
Recordou-se da expressão de incredulidade de Strang, quando tinham consultado os elementos biográficos pedidos.
- Não compreendo - dissera o capitão. - O tipo tem tudo. Um título. Dinheiro. Fama. É um herói da guerra. Por que se envolveria com o mundo do crime?
Era a interrogação que os preocupava a todos. E havia os pontos fracos que apoquentavam Baker. As arestas suaves em torno dos factos duros que se prolongavam em direcção a algo impossível de explicar. Os referentes à guerra, por exemplo. Cardinali cooperara com os Aliados em actividades secretas anteriores à invasão da Itália e recebera uma condecoração pela eficiência com que se comportara. Não obstante, matara cinco dos seus "contactos" nessa missão, enquanto todos os outros participantes, e havia mais de vinte agentes, apenas viam necessidade de eliminar quatro. Havia igualmente a questão do tio assassinado. É certo que Cardinali se achava longe na altura, mas pouco depois, conquanto estivesse sem dinheiro no final da guerra, começara a singrar na abastança. Tinham surgido os carros velozes e as corridas e, quase de um momento para o outro, tornara-se uma figura da sociedade internacional. Sem dúvida que havia outros como ele. De Portago, que perdera a vida numa corrida em que Cesare também interviera. Registara-se, em duas outras ocasiões, a implicação da sua responsabilidade nas mortes de competidores importantes. Não surgira, todavia, a mínima indicação de ligações com o mundo do crime.
A porta do elevador abriu-se e Baker imergiu numa antecâmara em cujas paredes se viam fotografias de automóveis famosos.
- Em que lhe posso ser útil? - perguntou a recepcionista atrás de uma pequena secretária no canto.
- Desejava falar com Mr. Cardinali.
- Tem entrevista marcada? - Fez uma pausa, enquanto abanava a cabeça. - Pode revelar-me a natureza do assunto?
- É pessoal.
Pegou no telefone com uma expressão de desaprovação, ao mesmo tempo que observava:
- vou ver se o conde Cardinali está. Diz-me o nome, por favor.
- George Baker.
Ele aguardou pacientemente, enquanto a rapariga sussurrava para o bocal. Transcorrido um momento, ergueu os olhos e indicou:
- Queira sentar-se. A secretária do conde Cardinali, Miss Martin, vem já para falar consigo.
Baker instalou-se num confortável sofá, diante de uma mesa cheia de revistas de automobilismo de praticamente todos os países, e pegou numa, que folheava distraidamente, quando se abriu uma porta ao fundo da sala, para dar passagem a uma rapariga, que se deteve na sua frente.
- Sou Miss Martin - informou, com um sorriso formal. A secretária do conde Cardinali. Ele não recebe ninguém sem marcação prévia de entrevista. Pode revelar-me o que pretende?
Ele levantou-se com lentidão, consciente da expressão de curiosidade da recepcionista, e, sem proferir palavra, levou a mão à algibeira para puxar do cartão identificativo, que estendeu à secretária.
Ela baixou os olhos para ler os elementos registados e voltou a erguê-los com perplexidade.
- Lamento incomodar o conde - declarou Baker, em tom tranquilizador -, mas penso que pode colaborar na investigação a que procedo.
- Queira aguardar mais um momento. - Miss Martin devolveu-lhe o cartão com um gesto quase de repulsa. - vou ver se lhe posso arranjar uma entrevista.
Desapareceu pela porta por onde entrara, para regressar decorridos alguns minutos.
- Acompanhe-me, por favor.
Ele seguiu-a através de uma sala espaçosa, onde se encontravam várias mulheres e homens atrás de secretárias, passaram a outra, de menores dimensões, e acabaram por desembocar num gabinete.
Os olhos de Baker arregalaram-se de admiração ao abarcar a decoração. Os objectos de arte eram autênticos e os candeeiros de estatuária verdadeira. Até a lareira artificial fora construída com mármore italiano de primeira qualidade. Na prateleira, por cima, viam-se algumas taças de ouro e outros trofeus, única concessão ao comercialismo em todo o aposento. Cardinali não ocupava uma secretária, pela simples razão de que não havia nenhuma.
Levantou-se de uma luxuosa poltrona junto de uma mesinha em que se via um telefone, com um bloco-notas ao lado.
- Em que lhe posso ser útil, Mr. Baker? - inquiriu com um vigoroso aperto de mão, ao mesmo tempo que indicava uma poltrona à sua frente.
O agente aguardou que Miss Martin se retirasse e só então se sentou e observou o interlocutor por uns momentos.
Cardinali submeteu-se ao exame sem pestanejar, com uma expressão de leve expectativa e um sorriso. Na realidade, parecia apenas moderadamente curioso quanto à finalidade da visita. Entretanto, Baker reflectia que a atitude correspondia às suas previsões. Quem utilizara o estilete com tanta eficiência, necessitava de possuir nervos de aço, e acabou por sorrir igualmente.
- De que ri? - quis saber Cesare, polidamente.
O agente não podia deixar de considerar que, quando todos se mostravam tão solícitos em lhe valer (a frase "Em que lhe posso ser útil?" parecia o lema da casa), a experiência ensinara-lhe que o auxílio prestado costumava ser muito reduzido.
- Estava a pensar que o seu gabinete de trabalho excede, de longe, muitos dos que tenho visitado, em conforto. Na verdade, parece mesmo demasiado confortável para induzir a trabalhar.
- Isso é verdade - assentiu Cesare, com um sorriso. - No entanto, na minha actividade não considero necessário preocupar-me com a mecânica do negócio. Por conseguinte, reduzo o ambiente de trabalho ao mínimo. Em particular porque sou uma criatura muito egoísta, amante do meu conforto.
Baker inclinou a cabeça em silêncio. Tudo o que aquele homem dizia e fazia correspondia exactamente à verdade.
Não merecia a pena estar com rodeios, pois Cardinali poderia manter a fachada da inocência durante todo o dia. Por fim, inclinou-se para a frente e observou:
- Suponho que já se recompôs inteiramente dos efeitos do acidente?
- Na verdade, sinto-me capaz de outra, como se costuma dizer.
- Deve ter sido uma experiência horrível.
- Mais que isso - murmurou Cesare, com uma expressão compungida. - Foi uma tragédia. Nunca deixarei de me censurar por ter permitido que acontecesse.
- Podia tê-lo evitado? - perguntou Baker, com prontidão. No instante imediato, julgou vislumbrar um clarão divertido nos olhos do outro ao responder:
- Julgo que sim. Não devia ter consentido que ela conduzisse.
Foi nesse momento que o agente se apercebeu de que obtivera resposta a numerosas perguntas. Pretendera que Cesare o sujeitasse a uma sondagem directa e conseguira-o, sem deixar transparecer nenhuma das suas suspeitas.
- Folgo em saber que se sente bem. Podemos, pois, passar ao assunto que me trouxe.
- Sou todo ouvidos.
- Em resultado do acidente, inteirei-me através dos jornais de que, na semana anterior, permaneceu algum tempo no Maharajah de Las Vegas e no St. Tropez de Miami Beach.
- É exacto.
- E, segunda-feira da mesma semana, visitou o Palácio de Justiça de Nova Iorque.
- Vocês não perdem um pormenor. Também corresponde à verdade.
- Faz alguma ideia do motivo por que me refiro a esses lugares?
- Seria um pateta se fingisse ignorância. - Cesare tornou a sorrir. - Também leio os jornais.
- Nesse caso, está ao corrente do assassínio das testemunhas do julgamento dos indivíduos acusados de pertencerem ao Sindicato?
- Sem dúvida. Mas não compreendo de que modo o posso ajudar.
- Que fazia no Palácio de Justiça, naquele dia?
- Não sabe? - Desta vez, soltou uma risada seca. - Fui buscar os documentos da minha naturalização.
- O Departamento de Emigração situa-se no rés-do-chão e foi visto no corredor do segundo andar, perto da sala de audiências.
- A explicação é muito simples. - Nova gargalhada de curta duração. - O lavabo do rés-do-chão estava ocupado e disseram-me que havia outro no segundo andar, pelo que utilizei a escada para subir. Quando avistei a multidão, voltei a descer.
- Não notou nada de anormal, lá em cima?
- Para mim, era tudo anormal, invulgar. Se se refere a alguma coisa em particular, um incidente, a resposta é negativa. Havia apenas toda aquela gente e os homens que vinham do elevador, enquanto eu tentava abrir caminho entre eles para alcançar, de novo, a escada.
- Que motivo o levou a instalar-se nesses hotéis? Por que não qualquer dos outros de Las Vegas e Miami?
- Os hotéis também obedecem à moda. Na actividade a que me dedico, tenho de estar a par de semelhantes pormenores. Cesare extraiu um cigarro de uma caixa em cima da mesinha. - Afigura-se-me mais relevante fazer a pergunta ao responsável da instalação das testemunhas nesses hotéis.
- Viu alguma delas?
- Que me apercebesse, não. - Meneou a cabeça levemente, enquanto acendia o cigarro. - De qualquer modo, não as reconheceria. - Hesitou por um momento. - Talvez visse uma, em Las Vegas. Quando saía do casino com Miss Lang, passaram uns homens que transportavam outro inanimado.
- Era, de facto, uma das testemunhas - confirmou Baker.
- Sim? Foi pena não saber, na altura. Talvez tivesse olhado em volta com mais atenção.
- Ocorre-lhe algum pormenor que nos possa ajudar? Uma pessoa que lhe despertasse a curiosidade, por exemplo.
- Lamento ter de dizer que não. Gozava umas pequenas férias em companhia de uma mulher muito atraente que me monopolizava toda a atenção.
O agente reconheceu intimamente que chegara ao termo do percurso. A entrevista acercava-se do fim sem que apurasse nada de interessante. E não adiantaria submeter o homem a um interrogatório cerrado. Por fim, levantou-se e reparou então em dois punhais cruzados montados numa panóplia pendurada na parede atrás de Cesare.
- Que armas são aquelas?
- Estiletes - informou este último, sem se voltar.
Baker acercou-se da parede e examinou-os com curiosidade, verificando que o brilho fora ofuscado pela patina.
- Estiletes - repetiu a meia voz. - As testemunhas foram assassinadas com instrumentos deste tipo.
- Recordo-me de o ler no jornal - admitiu Cesare, impassível.
- Tem-nos há muito tempo?
- Pertencem à família desde longa data. Tenho uma colecção abundante, aqui, em Nova Iorque, no meu apartamento, e em minha casa, em Itália. O estilete era a arma favorita dos Bórgias.
- Suponho que o sabe manejar com perícia?
- Gosto de me convencer disso. - Levantou-se igualmente, com um sorriso. - Mas não existem muitas oportunidades para uma pessoa se tornar, na verdade, proficiente, na nossa sociedade. As armas, como as outras coisas estão sujeitas aos caprichos da moda. - Retirou um dos estiletes da panóplia, contemplou-o por um momento e estendeu-o a Baker. - Aqueles pequenos brinquedos que vendemos lá em baixo matam mais pessoas num mês que todos os estiletes produzidos até hoje.
Baker observou a lâmina delicada que tinha na mão, e, em seguida, fitou o interlocutor, assolado por uma vaga recordação.
- É o mesmo Cardinali que conquistou um campeonato de esgrima em Itália?
O próprio. Trata-se de mais um dos desportos antigos
que aprecio. Pratica-o?
Na universidade, cheguei a fazer parte da equipa oficial. - Pousou o estilete na mesinha com suavidade. - Bem, não lhe tomo mais tempo. Obrigado pela cooperação, conde Cardinali.
- Lamento não ter podido ser mais útil - replicou Cesare, polidamente.
O estilete continuava em cima da mesinha, quando Miss Martin reapareceu, após a saída de Baker, e fixou o olhar nele e, em seguida, em Cesare, para perguntar com uma familiaridade resultante da longa associação:
- Que queria?
Antes de responder, ele pegou no estilete e colocou-o na panóplia.
- Parece que não estava nos meus dias, quando escolhi o itinerário de férias - declarou, com um sorriso enigmático.
- Não consegui nada - confessou Baker, reclinando-se na cadeira.
- Nem ias convencido do contrário, aposto - observou Strang, com um clarão malicioso no olhar.
- Pois não. A única coisa que consegui foi ficar com uma certeza. O tipo é o Estilete. Disso, não tenho a mínima dúvida.
- Saber e provar são coisas muito diferentes.
Baker debruçou-se sobre a secretária, extraiu de uma gaveta diversas fotografias de um carro parcialmente destruído e mostrou-as ao outro.
- Observa-as bem. Foram enviadas da Florida.
Strang obedeceu e, transcorridos uns momentos, perguntou:
- E então?
- Repara como a rapariga está entalada, por assim dizer, atrás do volante. Por outro lado, o motor parece ter sido impelido para trás e quase atravessou o tablier. Se Cardinali dormia, como declarou, no momento do embate, onde diabo tinha os pés? Não pousados no sobrado sob o tablier, como seria normal, de contrário nunca teria sido cuspido. Ficaria com as pernas esmagadas.
- Assisti a acidentes de automóvel em quantidade suficiente para saber que tudo é possível.
- Talvez - concedeu Baker. - Mas eu apostava, sem receio de perder, que o nosso homem se manteve agachado no assento até quase ao momento da colisão, antes de saltar.
- E a rapariga? Não te esqueças que ia a conduzir.
- A única coisa de que podemos ter a certeza é de que estava sentada ao volante.
- Mesmo assim, continuas a não poder provar nada - lembrou Strang.
- De momento não, de facto. No entanto, tenho algumas ideias.
- Vais mandar vigiá-lo?
- Era tempo perdido. Nos círculos que o fulano frequenta, quem colocássemos no seu encalço havia de dar nas vistas como um nariz inflamado. De resto, podia haver complicações secundárias. Sabes como o chefe é, quando se trata de gente importante.
- Nesse caso, que tens em vista?
- A primeira coisa a fazer é revelar, embora discretamente, aos jornais que foi interrogado. Depois, precisamos de encontrar alguém que se mova perto dele e conheça pormenores interessantes, disposto a ajudar-nos.
- Quem, por exemplo?
- Uma mulher. O nosso amigo é particularmente mulherengo. Pois bem, tenho uma em mente que satisfaz as condições necessárias. Sociedade. Carros de corrida. Em suma, tudo.
- Se ele é de facto o Estilete, ela pode correr perigo.
- Diz que o saberá manter à distância - asseverou Baker, com um sorriso. - E, depois de examinar a sua ficha, convenci-me de que é a única pessoa em condições de o conseguir.
CAPÍTULO XI
A festa achava-se no auge, quando Cesare entrou no camarote e fez uma pausa junto da porta, para tentar localizar a anfitriã. Ela viu-o quase imediatamente e apressou-se a acudir ao seu encontro, de mão estendida.
- Ah, Cesare, meu rapaz! - exclamou, enquanto ele lha beijava. - Alegra-me que pudesse vir.
- Antes a morte do que perder uma recepção de madame - replicou ele, com um sorriso.
A mulher imitou-o, ao mesmo tempo que os olhos negros emitiam um clarão sob os cabelos grisalho-azulados. Em seguida, baixou a voz e assumiu um tom que se assemelhava ao que Cesare ouvira pelo telefone, poucas semanas antes.
- Este camarote fica ao lado do dele. Há uma porta de comunicação entre as duas casas de banho. Deve chegar a bordo dentro de dez minutos. - Naquele momento, entrava outro convidado e ela passou a exprimir-se em inflexão normal. - E muito obrigada pelas belas flores.
- Ofereci-lhas com o maior prazer, madame.
Ele observou-a, enquanto se afastava para receber o recém-chegado. Outrora, fora uma mulher extraordinariamente bonita e das mais famosas da sociedade internacional, cujo nome ainda conjurava visões de salões de baile requintados e príncipes. Agora, porém, pertencia a Dom Emílio.
Em seguida, Cesare encaminhou-se lentamente para a casa de banho e escutou a risada da mulher quando a abria. Quantas outras pessoas haveria presentes como ela que tinham transposto a fronteira dos dois mundos? E quantas haveria como ele próprio? "
Emílio Matteo abotoou o sobretudo para se proteger do vento glacial que soprava do rio Hudson, quando se apeou do táxi, e contemplou o navio com uma expressão sombria, enquanto os detectives se postavam a seu lado. Depois, sem uma palavra, entregou uma nota de banco a um deles para o motorista.
- Por aqui - indicou o detective, principiando a mover-se na direcção do cais.
- Eu conheço o caminho - replicou Emílio, com azedume. Atravessaram o cais, transpuseram a prancha de embarque
e, na coberta, um homem uniformizado acompanhou-os à primeira classe. Sons de alegria provinham de trás das portas, onde as festas de despedida se encontravam quase no auge. O Itália devia largar dentro de menos de uma hora.
Emílio entrou na suite e os detectives imitaram-no, deparando-se-lhes um pequeno bar ao canto da sala.
- Está tudo a gosto do signore? - perguntou o homem.
- Acho que sim - grunhiu Emílio, entregando-lhe uma nota. O outro inclinou-se e saiu, após o que os dois detectives
olharam em volta e o mais velho observou:
- Isto é luxuoso, Matteo.
- Para mim, só o melhor - redarguiu Emílio, com um sorriso, encaminhando-se para o bar. - Julgava que ia viajar num daqueles imundos camarotes que o Governo paga?
Desrolhou uma garrafa e serviu-se uma bebida, que se apressou a ingerir.
- O uísque é excelente. Aquece um pouco, depois do frio cortante do cais. - Virou-se para os detectives. - São servidos?
- Já agora... - aquiesceu o mais velho, depois de consultar o companheiro com o olhar.
- Então, à vontade. - Emílio estendeu-lhes a garrafa, despiu o sobretudo e atirou-o para uma cadeira. - Desconfio que começo a ficar velho. Os rins já não funcionam como dantes. vou à casa de banho, se me dão licença. - Aproximou-se da porta, abriu-a e, vendo o detective mais jovem a seu lado, desviou-se. - Talvez seja conveniente dar uma olhadela.
O outro espreitou e retrocedeu com uma expressão algo embaraçada.
- Não há novidade. Pode entrar.
Obrigado - retrucou Emílio, em tom formal. - Para certas coisas, gosto de um pouco de intimidade. - E fechou a porta atrás dele.
Naquele momento, registou-se forte ruído de vozes e gargalhadas no camarote contíguo, e o detective mais jovem comentou, enquanto se servia uma bebida.
- Parece que há festa rija.
- O único ingrediente necessário é o dinheiro - filosofou o colega, erguendo o copo. - Shalanta.
- Shalanta - ecoou o outro, e levou o seu aos lábios. - De facto, o uísque é bom.
- Como o tipo disse, para ele só o melhor.
- Pois é - concordou, com sarcasmo. - O crime não compensa.
Emílio abriu a torneira do lavatório, aguardou um momento e escutou, verificando que distinguia o murmúrio das vozes dos detectives. Em seguida, movendo-se rapidamente, aproximou-se da porta que comunicava com a suite contígua e viu que estava fechada à chave. Após uma pausa, tamborilou levemente com os dedos na superfície e proferiu em voz baixa:
- Cesare!
Registou-se um som idêntico do outro lado. Acto contínuo, voltou-se e abriu o armário. Pegou na chave que se encontrava na prateleira superior, introduziu-a na fechadura da porta e fê-la rodar. O trinco daquele lado deslizou e, no momento imediato, ouviu suceder o mesmo ao outro.
Por fim, a porta entreabriu-se, Cesare entrou com prontidão e tornou a fechá-la atrás dele.
- Dom Cesare! - articulou Emílio, sorrindo. - Meu sobrinho!
- Dom Emílio! Meu tio!
- Há quanto tempo! - acrescentou, enquanto se abraçavam.
- Muito, na verdade - confirmou Cesare, em inflexão formal.
- Tens actuado com eficiência. Orgulho-me de ti.
- Cumpro o juramento.
- Sem dúvida, e a Família ficará contente quando eu a informar. Chegou a altura de ocupares um lugar nos nossos concílios.
- Basta-me honrar o acordo consigo. Não ambiciono nada da Irmandade.
- Mas possuirias uma riqueza incalculável - salientou Emílio, surpreendido.
- Não a necessito. O que possuo actualmente chega e sobra para as minhas aspirações.
- Os Dons vão encarar a tua atitude como uma afronta - advertiu, meneando a cabeça.
- Não é minha intenção ofendê-los - apressou-se Cesare a esclarecer. - Explique-lhes isso pormenorizadamente. Pagarei a minha dívida, como me compete, mas nada mais.
- Os outros três homens que se encontravam comigo no tribunal já propuseram a tua morte ao conselho. Pensam que representas um perigo para eles, enquanto te moveres livremente. Além disso, leram nos jornais que foste interrogado pelas autoridades.
- Não passam de velhas alarmistas - afirmou Cesare, com uma expressão de desdém. - A Polícia não soube nada por meu intermédio.
- Apesar disso, estão preocupados.
- Assegure ao conselho que não há motivo para preocupações. Não exijo nada de ninguém.
- Farei o que pedes, caro sobrinho, mas sê prudente até receberes notícias minhas. Eles são perigosos.
- Terei cuidado, Dom Emílio. - Esboçou um sorriso. - No seu próprio interesse, espero que também sejam cautelosos.
- Tratarei de os prevenir.
- Óptimo. Quando comunicará comigo?
- No próximo mês. Transmitir-te-ei a decisão do conselho na corrida de carros do México. Participarás com o teu Ferrari. O teu mecânico ficará retido em Itália e, quando chegares à Cidade do México, na véspera da prova, serás informado por telegrama de que adoeceu. Contratarás então um que te enviarei. Inteirar-te-ás nessa altura das novas instruções.
- Muito bem. Se houver alguma alteração nos meus planos deixarei recado para si no restaurante Quarter Moon do Harlem, como anteriormente.
- Combinado. - Emílio voltou a abraçar Cesare e em seguida pegou-lhe na mão. - Morrerei por ti.
Cesare olhou-o em silêncio por um instante e replicou:
- Morrerei por si. - E desapareceu na casa de banho contígua, depois de fechar a porta.
Emílio ouviu deslizar o trinco do outro lado, fez rodar a sua chave na fechadura e tornou a colocá-la na prateleira do armário. A seguir, fechou a torneira e encaminhou-se para a outra porta, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. Cesare lavrara a sua própria sentença de morte ao recusar a aliança com a Irmandade. Agora, ele tinha de se preocupar igualmente com a morte do "sobrinho", e lamentava não dispor de tempo para prevenir os outros da mudança operada na situação.
Na Lexington Avenue, em Manhattan, há um restaurante cujos bifes são considerados os mais suculentos e saborosos do mundo e o esparguete melhor do que o da própria Itália. Por conseguinte, compreende-se que num estabelecimento dessa natureza os preços sejam tão elevados, que um comensal desprevenido não possa ir além de uma torrada com manteiga. E não é menos compreensível que as únicas pessoas que se podem permitir frequentá-lo vivam dos rendimentos ou possuam dinheiro em quantidades tão elevadas que, em caso de necessidade, podem utilizar as notas novas estaladiças que adoram para ornamentar as doses abundantes de salada com que costumam encetar os repastos.
Big Dutch introduziu um largo pedaço de bife na não menos vasta boca e mastigou-o metodicamente, sem se preocupar com o facto de deslizar um pouco de molho pelos cantos da boca.
Quando se apercebeu, aplicou-lhe um pouco de pão, que tragou igualmente. Continuou a mover as mandíbulas por mais uns momentos e acabou por dizer aos companheiros:
- Estou-me nas tintas para o que vocês pensam. Quanto a mim, devíamos cair-lhe em cima.
- Mas ainda nem sequer sabemos se é, de facto, ele - objectou Allie Fargo. - Emílio não nos comunicou nada.
- Que interessa isso? - Big Dutch cortou novo pedaço de carne. - Não há tempo para confirmações. Os jornais disseram que o F. B. I. o tinha interrogado. Que nos acontece se o tipo começa a cantar?
Dandy Nick baixou os olhos para o seu prato com uma expressão de desagrado. Tanta comida afigurava-se-lhe desperdiçada nele, pois estava habituado a alimentar-se com moderação.
- Cheira-me a esturro - declarou a meia voz. - Emílio recomendou que aguardássemos ordens de Itália. Vai expor o assunto a Lucky e Joe.
- Quero lá saber do que Emílio recomenda! - vociferou Big Dutch, com a boca cheia. Fez uma pausa para engolir e prosseguiu: - Estou farto das sentenças dele. Os fulanos levam vida regalada, enquanto nós arriscamos a pele! Lá porque inauguraram o negócio julgam que ainda são os donos!
Dandy Nick olhou em volta quase inconscientemente, para verificar se alguém ouvira, e converteu a voz num murmúrio ao advertir:
- Cuidado! com palavreado desse só consegues arranjar dissabores.
- Quem nos diz que eles não pretendem enrolar-nos? Talvez tenham em vista colocar esse tipo no poleiro. Sabem perfeitamente como os italianos puxam sempre a brasa à sua sardinha.
Dandy Nick não replicou e lançou uma olhadela a Allie, que comia em silêncio, com a atenção concentrada no prato. Por fim, pousou a faca e o garfo meticulosamente e proferiu com suavidade:
- Vai haver grandes repercussões. Não se trata de um mero dissidente de um dos teus sindicatos, mas de alguém importante.
- Pois claro - acudiu Dandy. - E se não for o Estilete, continuaremos governados. De qualquer modo, teremos de fornecer explicações a Emílio.
Big Dutch continuava a comer com voracidade, mas isso não o impedia de se entregar a reflexões. Era altura de jogarem a sua cartada. Há demasiado tempo que o leme da embarcação se encontrava nas mãos dos italianos. De resto, o centro da organização situava-se nos Estados Unidos, juntamente com todo o dinheiro. Chegara o momento de cortar os laços com a Mafia. Que podiam os outros fazer a cinco mil quilómetros de distância, se ninguém quisesse trabalhar para eles?
- Acho que não devemos esperar. Passemos à ofensiva. Pronunciou estas palavras sem erguer os olhos. De certo modo, fora pena que se encontrasse na prisão quando haviam libertado Roger Touhy. Ele já preparara um encontro. Os rapazes alinhariam ao lado de Roger contra a Mafia.
O apetite de Dandy Nick extinguira-se por completo e desviou o prato da sua frente. Adivinhava o que Dutch pensava. Olhou Allie de través e, a avaliar pela maneira como comia, também devia estar ao corrente. Não se tratava apenas de atingir um fulano. Poderia constituir o início de uma revolução. E sentia-se demasiado velho para participar noutra guerra.
- Que diríamos a Emílio? - perguntou, esperançado em protelar a decisão.
Os olhos de Dutch fitaram-no com intensidade por um momento e tornaram a concentrar-se na comida.
- Havemos de pensar em alguma coisa.
- Bem, não sei... - Allie hesitava visivelmente. - Lembrem-se do que aconteceu a Touhy. Aguardaram o momento oportuno durante vinte e cinco anos.
- Touhy tornou-se mole na cadeia - comentou Dutch. - Devia ter regressado ao trabalho imediatamente. Desse modo, as coisas podiam ser diferentes. Tinham medo dele. Recordam-se de como cortou as voltas a Al Capone?
- E acabaram por apanhá-lo - salientou Dandy.
- Sim, mas como foi? - retrucou Dutch. - com dois amadores. Os tipos estavam tão excitados, que até deixaram o chui vivo.
De momento, só podem contar com os amadores ávidos de fama. Até esse Estilete Não pertence ao meio. Temos de proteger o nosso negócio. Não há uma figura importante no país que não concorde connosco. - Pousou o talher e anunciou com uma expressão solene: - Proponho que ataquemos.
Allie olhou para Dandy Nick e virou-se de novo para Dutch, consciente de que não podia continuar a esquivar-se.
- Muito bem - acabou por declarar. - Ataquemos.
Voltaram-se para Dandy Nick, que já decidira. A percentagem inclinava-se a favor da casa: cara perdiam, coroa ganhavam, e restava acalentarem a esperança de se manterem de pé até que tudo terminasse.
- Ataquemos.
Dutch sorriu. Tratava-se apenas do primeiro passo, porém ele dera-o e os outros tinham-no acompanhado. O Estilete era meramente um símbolo. A importância concentrava-se toda em torno da Mafia. Era altura de restituírem o país aos americanos, a quem pertencia. O seu espírito já se preocupava com a nova partilha do poder e as somas envolvidas aturdiam-no. Por último, pôs-se de pé e contemplou os companheiros.
- Não sei o que se passa convosco, mas é a primeira noite que a velhota me deixa sair desde que voltei da cadeia e vou procurar Jenny para um pouco de fornicação.
Os outros não responderam e, quando se afastou, entreolharam-se em silêncio por um momento.
- Café - disse Dandy Nick ao empregado.
Em seguida, voltou-se para Allie, a fim de trocarem impressões sobre a apólice de seguro indispensável perante a situação. Tinham de entrar em contacto com Emílio.
CAPÍTULO XII
A sessão semanal do Clube de Esgrima achava-se no auge, no segundo piso do Clube Atlético de Nova Iorque, em Central park South.
No pequeno ginásio, ecoavam os contactos das espadas e floretes, enquanto os homens de camisa branca dançavam para trás e para diante, com os rostos protegidos pelas máscaras grotescas.
A lâmina de Cesare reflectiu a luz do tecto e descreveu um arco para além da guarda do oponente, até se imobilizar sobre o pequeno coração vermelho bordado na camisa.
- Touché! - declarou este último, recuando um passo e erguendo a espada.
- Defendeu-se muito bem, Hank - reconheceu Cesare, ao mesmo tempo que retirava a máscara. - Em todo o caso, ainda precisa de aperfeiçoar o movimento do pulso. Tem pouca firmeza.
- Tenciona participar no torneio do próximo mês? - perguntou o outro, imitando-o.
- Duvido. Inscrevi-me para as corridas do México e não devo regressar a tempo. Os negócios primeiro que o prazer.
- É pena. Sem o seu concurso, a nossa equipa tem poucas possibilidades de êxito. Bem, obrigado pela lição.
- Sempre às ordens. - Cesare virou-se para o pequeno número de assistentes e sorriu. - Quem é o próximo... como se diz...?, pombo?
Os outros soltaram risadas algo constrangidas e entreolharam-se, até que um replicou:
- Acho melhor esperar que Fortini apareça. Estamos vários furos abaixo da sua categoria, Cardinali.
- Como queiram.
- Posso tentar a sorte? - proferiu uma voz, à entrada. Cesare voltou-se e avistou Baker, devidamente equipado.
- Ah, Mr. Baker! - proferiu, sem deixar transparecer a menor admiração. - com certeza.
O recém-chegado muniu-se de uma espada, agitou-a duas ou três vezes, transferiu-a para a mão esquerda e estendeu a direita, que Cesare apertou.
- Quando soube que era sócio deste clube, conde Cardinali, não resisti à tentação de cruzar espadas com um dos maiores esgrimistas do nosso tempo.
- É muito amável. Deseja aquecer uns minutos?
- Não vejo necessidade. A minha perícia não melhoraria com isso. Espero apenas proporcionar-lhe alguns momentos interessantes.
- Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. - Cesare
sorriu, enquanto assumiam as posições apropriadas. - Não sabia que também era sócio.
- Infelizmente, disponho de pouco tempo para frequentar o clube. A profissão absorve-me quase totalmente. - Baker colocou a máscara. - Preparado?
- Quando quiser - assentiu Cesare, imitando-o. As espadas cruzaram-se e Baker exclamou:
- En garde!
Lançou-se para a frente e Cesare desviou a arremetida e retrocedeu, compreendendo imediatamente que o adversário não era um amador, o que o levou a sorrir por detrás da máscara, enquanto aguardava nova investida. O embate talvez resultasse divertido.
Começou a formar-se um grupo de curiosos, ao mesmo tempo que a atmosfera adquiria uma tensão especial. Baker atacava com uma espécie de concentração furiosa e a espada de Cesare refulgia, à medida que neutralizava as arremetidas e recuava com lentidão.
Entretanto, Baker começava a ganhar confiança. Cardinali não parecia corresponder à reputação que lhe atribuíam. Em dado momento, as espadas cruzaram-se e ficaram presas, porque Cesare exercia forte pressão, parecendo subitamente colado ao chão, o que levou o outro a ficar com a impressão de que pretendia forçar uma parede granítica. De repente, compreendeu que o adversário se limitara a brincar com ele.
No instante imediato, Cesare impeliu-o para trás. Baker cedeu alguns passos e recompôs-se a tempo de neutralizar uma investida poderosa. Lançou-se para a frente numa finta e alterou a posição da espada com prontidão, mas Cesare contava com isso.
- Excelente! - aprovou em tom paternalista. - Aprendeu com o mestre Antonelli? ;
- Exacto - admitiu Baker. - Roma, 1951.
- Os meus parabéns. O Signor Antonelli é muito exigente
com os seus alunos. Só aceita os melhores.
-. Segundo parece, não aproveitei todos os seus ensinamentos. - reconheceu Baker, preocupado em se defender da súbita ofensiva do antagonista.
- A espada é uma amante muito exigente. E, como referi no outro dia, actualmente há outras armas mais em voga.
A lâmina de Cesare parecia agora animada de vida própria, e Baker experimentava sérias dificuldades em se defender. Dir-se-ia que a espada passara a pesar várias dezenas de quilogramas, mas Cesare deu a impressão de se aperceber das suas dificuldades e abrandou o ímpeto.
Baker sentia a transpiração alagar-lhe o rosto dentro da máscara e a respiração tornava-se cada vez mais penosa. Houve diversas ocasiões em que lhe pareceu que Cesare podia ter marcado pontos, mas desviava a lâmina propositadamente no último instante. Se aquilo continuasse por muito tempo, tombaria exausto.
A irritação que lhe acudiu restituiu certo vigor aos braços, e ele reuniu todas as reservas para um derradeiro ataque. Assim, desviou a espada de Cesare e investiu.
- Touché! - bradaram os espectadores.
Baker imobilizou-se e baixou os olhos. A ponta da lâmina do adversário pousava no coração. O movimento fora tão rápido que nem o vira.
- Não posso competir consigo, conde Cardinali - declarou, baixando a espada e levantando a máscara.
- Congratulo-me por não dispor de mais tempo para treinar - replicou Cesare, com um sorriso.
- Não exagere, por favor.
- Acompanha-me numa bebida, Mr. Baker?
- É uma boa ideia. Depois disto, preciso de um estimulante.
Encontravam-se sentados diante da lareira acesa. Cesare estendia as longas pernas e olhava Baker com curiosidade. Por fim, ergueu o copo e disse:
- Não veio apenas para praticar esgrima.
O outro retribuiu-lhe a mirada, pensativamente. Em certos aspectos, Cardinali não era muito europeu. No caso presente, por exemplo, não perdia tempo com rodeios.
- Tem razão. Vim para o prevenir e oferecer-lhe ajuda.
- É muito amável, mas de que se trata?
- Constou-nos que a sua vida corre perigo.
- Que melodramático! - exclamou Cesare, com uma gargalhada.
- O caso não é para rir. Determinadas pessoas pretendem matá-lo.
- Que pessoas?
- Big Dutch, Allie Fargo e Dandy Nick.
- Quem são essas individualidades? - perguntou, sem pestanejar.
- Os réus do julgamento cujas testemunhas de acusação foram assassinadas. Pensam que é o Estilete.
- Nesse caso, por que haviam de me querer matar? No fundo, dever-me-iam as suas miseráveis vidas.
- A questão é precisamente essa. - Baker inclinou-se para a frente numa atitude confidencial. - Receiam-no. Julgam que se pode voltar contra eles.
- São estúpidos.
- E perigosos. Não existe protecção possível contra uma bala nas costas.
- Sei cuidar de mim - afirmou Cesare, levantando-se. Sobrevivi a perigos muito maiores do que esses homens, durante a guerra. Aliás, deve estar ao corrente disso. Sei que o seu departamento é particularmente eficiente na recolha de informações.
- De qualquer modo, gostaríamos de o ajudar.
- Vocês já me prestaram toda a ajuda de que necessito - esclareceu em voz subitamente glacial. - Se não lhes agradasse tanto obter publicidade nos jornais, talvez esses homens nem soubessem da minha existência.
- Creia que deploramos essa inconfidência. - Baker pôs-se igualmente de pé. - Desconheço como a Imprensa se inteirou da nossa conversa, mas se se vir em apuros não hesite em contactar connosco. - E estendeu a mão.
Obrigado, Mr. Baker. - Cesare apertou-a com firmeza. - Mas não creio que a necessidade se apresente.
Cesare abriu a porta e entrou no pequeno vestíbulo do seu apartamento, após o que despiu o sobretudo.
- Tonio!
Aguardou um momento e, como não obtivesse resposta, largou-o numa cadeira, antes de se encaminhar para a cozinha, cuja porta abriu, para tornar a chamar, com idêntico resultado.
Meneando a cabeça, atravessou a sala em direcção ao quarto, ao mesmo tempo que reflectia que necessitava de tomar providências acerca do rapaz, embora fosse sobrinho de Gio. Um empregado doméstico não se podia permitir certas liberdades. Ultimamente, a ausência de Tonio quando ele chegava a casa repetia-se com uma insistência intolerável.
Acendeu a luz do quarto e aproximava-se da casa de banho, quando estacou ao ouvir o som de água corrente.
- Tonio!
Não obteve resposta. com um suspiro de irritação, avançou para a casa de banho, mas deteve-se bruscamente ao recordar a advertência de Baker. Moveu a mão, e os dedos rodearam o estilete. Em seguida, cobriu a distância que o separava da porta sem produzir o menor ruído e abriu-a com um movimento repentino.
Uma mulher emergia do chuveiro e estendia a mão para uma toalha.
- Cesare! - bradou, com expressão de perplexidade.
- Ileana! - A voz dele era um eco de surpresa. - Que fazes aqui? Julgava-te na Califórnia!
- Acabo de tomar banho, como vês - volveu ela, colocando a toalha diante do corpo, ao mesmo tempo que fixava os olhos no estilete. - Para que é essa faca? Quem pensavas encontrar na tua casa de banho?
Cesare largou o estilete, que desapareceu na manga, puxado pela mola, e Ileana correu para ele e rodeou-lhe a cintura com o braço molhado.
- Preciso da tua ajuda, querido! - murmurou, beijando-o.
- Que aconteceu ao teu texano rico? - perguntou Cesare, com uma expressão de desconfiança, pois não costumava ser ela quem necessitava de auxílio.
- Estás zangado comigo - articulou ela, olhando-o com ar amuado. - Não negues, que se nota bem. É por não ter esperado por ti em Monte Carlo?
- Não respondeste à minha pergunta.
Soltou-o e foi sentar-se diante do toucador, onde contemplou a sua imagem no espelho.
- Sê bondoso comigo, por favor. Atravessei uma experiência horrível. - Pegou na toalha de rosto e estendeu-lha. - Seca-me as costas, se não te importas. Nunca consigo chegar-lhes.
- O texano! - persistiu ele, obedecendo. - Que lhe aconteceu?
- Prefiro não falar nisso. Foi, de facto, horrível. Achas que emagreci?
- Estás com uma linha óptima - afirmou, sorrindo. - Que se passou?
- Já me sinto mais aliviada. - Ileana fechou os olhos por um momento. - Estava convencida de que tinha emagrecido. Tornou a abri-los e virou-se para ele. - O tipo era casado.
- Isso já tu sabias.
- com certeza. Não sou uma criança. Mas a mulher dele era uma criatura horrível. Muito pouco compreensiva. Extremamente provinciana. Imagina que até fez queixa de mim ao Departamento de Imigração. Esses fulanos são estúpidos como portas. Não conseguiam compreender como pude viver neste país durante oito anos sem dinheiro nem trabalho. Explicaram que, se não apresentasse provas de uma fonte de rendimentos ou de que estava empregada, me deportavam por corrupção da moral.
- Que respondeste? - quis saber Cesare, pousando a toalha.
- Que havia de responder? - Ela encolheu os ombros com indiferença. - Disse que trabalhava para ti. Não acreditaram quando afirmei que não precisava de um emprego para viver. Arranjas-me trabalho?
- Não sei - replicou ele, olhando-a pensativamente. com um sorriso, acrescentou: - Que podes fazer? Não aprendeste estenografia nem a escrever à máquina. Como queres que utilize os teus modestos préstimos?
Ileana levantou-se e olhou-o com uma expressão de desafio, conservando a toalha de banho na sua frente.
- Não vendes automóveis?
- Decerto.
- Deve haver alguma coisa que eu possa fazer nesse campo - murmurou, acercando-se. - Em tempos, tive um RollsRoyce.
Cesare começou a rir e beijou-a.
- Está bem. Veremos o que se consegue.
- Palavra? És uma jóia! Garanto-te que não te hás-de arrepender. Preciso de trabalhar apenas o tempo suficiente para obter o cartão da Segurança Social. É a única coisa que eles exigem para legalizar a minha situação.
- Em último caso, podes dizer-lhes que conheci os teus pais - lembrou ele, apertando-a nos braços.
Ela lançou-lhe um olhar furtivo, para tentar determinar se as palavras continham segundo sentido, e, pela primeira vez desde longa data, pensou nos progenitores.
Evocou a expressão do rosto do pai na noite em que abrira a porta do seu quarto e os vira juntos na cama. A mãe. Ela própria. E o americano abastado.
Capítulo XIII
A mãe era inglesa e contava apenas dezassete anos quando casara com o fogoso jovem romeno, barão de Bronczki.
Os jornais da época tinham falado de um idílio de conto de fadas. Ileana nascera menos de um ano mais tarde, eclodira uma revolução e o conto de fadas tivera um termo abrupto. A vida tem uma maneira muito sua de resolver esse tipo de idílios.
Na verdade, ela nunca dispusera de grandes oportunidades de conhecer os pais durante a infância. Subsistia apenas a ideia vaga de que a mãe fora uma mulher muito atraente e o pai extremamente bem-parecido, mas passara a maior parte do tempo em internatos longe do lar.
Primeiro, houvera o colégio em Inglaterra, no qual ingressara com cerca de cinco anos de idade, no início da guerra. O pai alistara-se no exército britânico e a mãe achava-se envolvida no frenesim social de auxílio aos combatentes, pelo que não dispunha de tempo para lhe consagrar.
Depois, terminado o conflito, a família transferira-se para Paris e haviam-na enviado para um colégio na Suíça. O pretexto invocado consistira em que o pai, quase incapacitado em virtude dos ferimentos sofridos, estaria demasiado ocupado com a luta para recuperar as propriedades e a fortuna para que se pudessem instalar permanentemente num lugar. Nunca lhe ocorreu interrogar a mãe sobre o que pensava sobre o assunto. De resto, encontrava-se sempre atarefada com os amigos e actividades sociais, e Ileana notava-lhe algo de indefinível que a embaraçava e impedia de sugerir uma conversa formal.
Ela tinha então cerca de catorze anos e o colégio na Suíça diferia substancialmente do que frequentara em Inglaterra. No anterior, a tónica incidira no aspecto académico, enquanto no suíço, o social assumia particular relevo. O estabelecimento estava cheio de jovens ricas provenientes da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, a fim de receberem uma camada de verniz difícil de obter em qualquer outra parte do mundo. Ileana aprendeu a nadar, a praticar esqui e equitação, juntamente com vestir em conformidade com as diferentes situações, a dançar e a trocar impressões sobre banalidades.
Aos dezasseis anos, já começava a cumprir a promessa da sua beleza. A tez e olhos eram ingleses e a figura e graciosidade derivavam do pai. E, no outro lado do lago em cuja margem o colégio se situava, havia um estabelecimento similar para rapazes, entre os quais se verificava um contacto regular e íntimo, pois necessitavam-se mutuamente para complementar as suas funções.
Realizara-se uma excursão, naquele Verão em que ela completara dezasseis anos, e o seu companheiro fora um rapaz alto e moreno, herdeiro de um trono qualquer no Médio Oriente, detentor de um nome interminável que ninguém conseguia pronunciar, pelo que lhe chamavam Ab, abreviatura de Abdul. A canoa em que passeavam conduziu-os a uma pequena ilha longe da companhia dos outros, onde se deitaram na areia, em fato de banho, para se bronzearem ao sol.
A certa altura, ele apoiou-se no cotovelo e olhou-a em silêncio por um momento. Por fim, inclinou-se e beijou-a com gravidade.
Ileana cerrou as pálpebras, rodeou-lhe o pescoço com o braço e puxou-o para si. A areia, os raios solares e o calor da boca dele infundiam-lhe uma sensação nova e aprazível. Pouco depois, sentiu-o desprender o colchete do soutien e os dedos acariciaram-lhe os seios, o que intensificou a excitação e a fez soltar uma breve risada.
Ele ergueu a cabeça e contemplou-a, mantendo o ar solene. Abarcou os seios duros e agressivos e passou a beijá-los com lentidão.
- Que bom... - murmurou ela, sorrindo.
- Ainda és virgem? - perguntou ele, com curiosidade. Vendo-a assentir com uma inclinação de cabeça, insistiu: - Porquê? Relaciona-se com a tua religião?
- Não. Confesso que desconheço o motivo.
- No colégio, chamam-te "a frígida". Nenhuma das outras da tua classe é virgem. "
- Que disparate - articulou ela, sentindo as palpitações do coração acelerarem-se.
Ele voltou a observá-la em silêncio por uns segundos e sugeriu:
- Não achas que é altura de pormos termo a isso? - Verificando que concordava com um gesto, levantou-se e dirigiu-se à canoa. - Volto já.
Durante a sua ausência, Ileana despiu o fato de banho, saboreou por um momento a acção do sol no corpo nu e voltou-se para ver o que ele fazia.
Acabava de extrair algo da algibeira das calças e aproximava-se, mas estacou no instante em que a avistou.
- Que é isso? - inquiriu ela, apontando para a mão.
- Uma coisa para que não engravides.
A revelação não a surpreendeu, pois fora tudo explicado meticulosamente no colégio. Fazia parte do currículo, um dos retoques finais mais importantes para que as jovens estivessem equipadas da forma conveniente para enfrentar o mundo sem consequências visíveis.
Ele desembaraçou-se do calção, ajoelhou ao lado dela, que o contemplou por um momento e sussurrou:
- És belo! - Estendendo a mão, prosseguiu: - Belo e forte. Nunca pensei que um homem pudesse ser tão atraente.
- Os homens são naturalmente mais belos que as mulheres - declarou ele com desprendimento, inclinando-se para a beijar. - Mas tu também não és feia.
Ela puxou-o impulsivamente para cima, assolada por um desejo que parecia ter substituído o sangue nas veias e constituir o único fluido capaz de a manter viva.
- vou fazer o possível para não te magoar - prometeu ele, interpretando erradamente o tremor que lhe notava.
- Não me hás-de magoar - replicou ela, com voz rouca. Também sou forte!
E era. Muito mais que supunha. Foi necessária a intervenção de um médico de Lausana para completar a desfloração na sala de operações.
Ileana tinha dezoito anos, quando surgiu à entrada do apartamento dos Bronczki em Paris. A sua educação resultara tão completa como a de qualquer das colegas e, em vários aspectos, suplantara muitas, porque era mais atraente e as suas capacidades superiores. Após breve hesitação, premiu o botão da campainha e aguardou.
- Que deseja?
A mãe abriu a porta e não a reconheceu, pelo que se lhe dirigiu no tom que reservava para os empregados domésticos e pessoas socialmente inferiores.
Ileana sorriu para consigo, ao mesmo tempo que reflectia que não esperava muito mais.
- Olá, mãe - proferiu em romeno.
- És tu? - balbuciou a mãe, com uma expressão de incredulidade.
- A própria. Posso entrar?
- Só te esperávamos para a semana - explicou, corando, ao mesmo tempo que se desviava.
- Enviei um telegrama, há dias - explicou Ileana, pegando na mala e entrando. - Não o receberam?
- Ah, sim, o telegrama - proferiu, vagamente. - Teu pai disse qualquer coisa a esse respeito, antes de partir em viagem de negócios.
- O pai não está? - Ileana experimentou pela primeira vez uma sensação de desapontamento.
- Deve regressar dentro de poucos dias - apressou-se a mãe a acrescentar. - Surgiu um problema qualquer relacionado com a devolução das propriedades. - Contemplou a filha com curiosidade. - Estás mais alta do que eu.
- Cresci em todos os aspectos. Já não sou uma criança.
- Preferia que falasses francês em vez dessa língua horrível - observou em inflexão petulante. - Como sabes, nunca consegui aprendê-la bem.
- Como queria - assentiu Ileana.
- Deixa-me ver-te bem.
Conservou-se imóvel, enquanto a mãe se movia à sua volta com lentidão, o que a fez sentir-se como uma escrava prestes a ser leiloada.
- Não estarás vestida de um modo muito solene para a tua idade?
- Já fiz dezoito anos. Querias que usasse uma blusa com laçarotes e saia por cima dos joelhos?
- Deixa-te de impertinências. Já basta a dificuldade que tenho em me habituar à ideia de uma filha adulta. Não me admirava nada que nos tomassem por irmãs.
Ileana olhou-a atentamente e admitiu que, de certo modo, tinha razão, pois conseguira manter um aspecto juvenil, de modo algum em conformidade com os seus trinta e seis anos.
- Tem razão, mãe.
- E não me trates por mãe. Aliás, é uma forma antiquada que já não se usa. Utiliza o meu nome. Ou melhor, faz como o teu pai, que me chama sempre "querida".
- Pois sim, mãe... querida.
- Vês que não custa nada? Vem, para que te mostre o teu quarto.
Ileana seguiu-a por um longo corredor em direcção a um pequeno aposento perto da cozinha, e não necessitou de qualquer esclarecimento para compreender que era o habitualmente destinado ao pessoal doméstico, como, de resto, o mobiliário indicava com clareza.
- Depois de arranjado, fica óptimo - proclamou a Querida. Apercebendo-se, porém, do ar impassível da filha, perguntou: - Que tens? Não te agrada?
- É muito pequeno - alegou Ileana, reflectindo que o guarda-fato do colégio parecia maior.
- Tens de te adaptar. Teu pai não é das pessoas mais abastadas do mundo, como deves calcular. Só Deus sabe como conseguimos governar-nos com o dinheiro de que dispomos. - A Querida preparava-se para abandonar o quarto, quando soou a campainha da entrada. - Ah, já me esquecia. Combinei comparecer num coquetel com um nosso amigo americano. Importas-te de ir abrir e dizer-lhe que não me demoro? - Afastou-se pelo corredor, com Ileana no encalço, e, diante do seu quarto, deteve-se para recomendar: - Não te apresentes como minha filha, por enquanto. Explica-lhe que somos irmãs e vieste visitar-me. De momento, não sinto disposição para descrever a situação.
apressou-se a fechar a porta antes que Ileana pudesse replicar.
Esta última encaminhou-se para o vestíbulo, perfeitamente consciente do que se passava. A preparação que recebera no colégio suíço incluía casos como aquele.
Quando o pai regressou, na semana seguinte, ficou chocada com a alteração verificada no seu aspecto. O homem outrora alto e desempenado apresentava-se agora encurvado e de movimentos arrastados, apoiado a duas bengalas. Afundou-se imediatamente na cadeira de rodas, contemplou a filha com ternura e, estendendo a mão, a fim de a puxar para si, murmurou:
- Alegra-me que voltasses finalmente para casa. Apesar da doença, o barão necessitava de se ausentar com frequência, pois tinha de resolver a questão da devolução das propriedades, negociação que dependia da decisão do actual regime, que exigia uma indemnização pelas perdas sofridas em virtude da acção de outros proprietários que se haviam posto em fuga no momento propício. O regresso puro e simples à pátria resultava impossível, porque se encontrava englobada no bloco soviético.
Durante as ausências dele, Ileana ocupava o tempo com pessoas amigas, mantendo-se no apartamento o mínimo possível, e recorria com frequência à porta das traseiras, se ouvia vozes na sala.
Decorrera mais de um ano, quando recebeu carta de uma antiga colega do colégio suíço que a convidava a passar o Verão em Monte Carlo. O barão ausentara-se mais uma vez, e ela dirigiu-se ao quarto da mãe para lhe mostrar a missiva.
- Vai ser maravilhoso poder sair de Paris, por causa do calor sufocante! - exclamou excitada, enquanto a lia. - A praia e o mar...! Estou ansiosíssima por que chegue o dia.
- Não podes ir - declarou a mãe, guardando-a no sobrescrito, que pousou na cómoda. - Não temos dinheiro para essas coisas.
- Mas não preciso de dinheiro nenhum - argumentou Ileana, surpreendida. - Sou convidada.
- Precisavas de roupa. Não podias comparecer como uma maltrapilha.
- Os vestidos que trouxe do colégio ainda me servem perfeitamente.
- A moda mudou e nota-se que são antigos. Assim, todos ficavam a saber que não podias comprar um guarda-roupa novo. Escreve-lhe duas palavras a explicar que, embora te custe muito, não podes aceitar o convite, porque já tinhas outros planos. Serve-te do meu papel de carta, se quiseres.
- Guarde o seu papel timbrado para si! - balbuciou, sentindo os olhos marejarem-se. - Prefiro o meu! - E retirou-se em passos firmes.
Quando atravessava o corredor, soou a campainha da porta e a mãe pediu:
- Vai abrir, por favor. Diz que não me demoro. Rangendo os dentes de frustração, obedeceu e viu que se tratava de mais um amigo americano da Querida. Apresentava-se já um pouco embriagado e, em conformidade com o estipulado, ela intitulou-se irmã da dona da casa.
O homem entrou para a sala, instalou-se no sofá, contemplou-a com curiosidade e disse:
- A baronesa nunca me falou numa irmã tão bonita. Ileana soltou uma risada ante a tentativa de galantaria tipicamente americana.
- E minha irmã nunca me falou num amigo tão atraente.
- É pena ter de regressar aos Estados Unidos, esta noite, de contrário havíamos de nos conhecer melhor.
- Vai partir já, John? - proferiu a voz da Querida, da porta. - Lastimo profundamente.
- Fui chamado - explicou ele, levantando-se. - Surgiu um problema qualquer na fábrica.
- Que pena... - murmurou a Querida, estendendo-lhe a mão.
- Pois é. Tomámos coquetéis e jantámos juntos três vezes e eu prometi sempre a mim mesmo que não seria a última. Agora, tenho de regressar e não tornaremos a ver-nos.
- Há-de voltar a Paris.
- Sim, mas só Deus sabe quando. - O americano ocupou de novo o sofá, ao mesmo tempo que esclarecia: - Entrei no bar, lá em baixo, e emborquei três uísques, antes de subir.
A Querida deu uma gargalhada musical, cujo significado Ileana conhecia perfeitamente, e perguntou:
- Porquê?
- Tenho uma coisa muito importante para lhe propor - declarou ele, assumindo um ar repentinamente grave.
- Importas-te de ir buscar gelo ao frigorífico? - solicitou a Querida à filha. - John gosta de muitos cubos com o uísque.
Ileana dirigiu-se à cozinha e, no momento em que reapareceu na sala com o gelo, eles encontravam-se silenciosos. Preparava-se para o colocar em cima da mesinha junto do sofá, quando viu o maço de notas de banco americanas.
Lançou um olhar incisivo a John, que ainda tinha a carteira na mão, e em seguida à mãe, com uma expressão interrogativa.
Ele deu-se conta e dirigiu-se a esta última:
- vou até vinte e cinco mil dólares, se ela também participar na festa.
De repente, Ileana compreendeu ao que se referia e retirou-se, com um calor incomodativo nas faces, para recolher ao quarto e fechar a porta atrás dela.
A Querida reuniu-se-lhe pouco depois e, olhando-a friamente, perguntou:
- Por que desapareceste daquela maneira? Foi uma autêntica criancice.
- Mas sabe o que ele propunha, mãe. Fiquei positivamente revoltada. Queria que fôssemos os três para a cama.
- Não precisas de mo explicar.
- Tenciona deitar-se com aquele bêbado? - bradou Ileana, incrédula.
- Sem dúvida - retorquiu a Querida, imperturbável. - E tu também! ,
- Nunca! Não me pode obrigar!
- Sabes a quanto correspondem vinte e cinco mil dólares? Um milhão e meio de francos no mercado negro. De resto, de que pensas que temos vivido? Das trinta e duas libras mensais da pensão que teu pai recebe do exército? Das propriedades que não tornará a ver? Que espécie de vida julgas que é a minha ao lado de um inválido sem préstimo para nada? - Sacudiu a filha com irritação. - com esse dinheiro, podes aceitar o convite da tua amiga de Nice, sustentamo-nos durante seis meses e teu pai seguirá para uma clínica, a fim de se sujeitar à operação que está sempre a adiar.
- Não conte comigo. - Ileana afundou-se numa cadeira, abismada. - Não posso. Só de pensar nisso sinto o estômago revoltado.
- Não me faças rir - retorquiu a mãe, com uma risada de desdém. - Escusas de armar em virgem inocente. Sei perfeitamente o que se passava no teu precioso colégio. Ou fazes o que te digo ou encarregas-te de explicar a teu pai por que me recuso a continuar a viver com ele. - E retirou-se com ares de dignidade melindrada.
Ileana conservou-se sentada por um momento e, por fim, levantou-se e saiu para o corredor, onde colidiu com uma cadeira.
- És tu, Ileana? - perguntou a voz da Querida.
- Sou.
- Traz um pouco mais de gelo, por favor.
- Está bem, querida - replicou com uma expressão de amargura, enquanto as risadas musicais da mãe a seguiam até à cozinha.
Um som abafado obrigou-a a soerguer-se na cama. A seu lado, a Querida dormia, com o braço sobre os olhos, para os proteger da luz, enquanto o americano, deitado de bruços, roncava ruidosamente.
O som repetiu-se, agora uma espécie de rangido, como o produzido por uma cadeira de rodas. Assolada por um temor glacial, estendeu a mão e sacudiu a Querida com violência, que abanou a cabeça e murmurou:
- Que foi?
- Depressa! - indicou Ileana, em tom quase inaudível. Passe para o outro quarto!
A Querida acordou por completo imediatamente e deixou transparecer profundo terror. Em seguida, principiou a levantar-se, mas deteve-se. Era demasiado tarde, porque a porta começara a abrir-se com lentidão.
Sentado na cadeira de rodas, o barão contemplou a cena com impassibilidade, embora lívido.
- Posso... posso explicar tudo - tartamudeou o americano, saltando da cama e pegando nas calças com mãos trémulas.
- Rua! - vociferou o barão.
Aterrado, o homem apressou-se a obedecer e no momento imediato soava a porta da rua.
O barão concentrou-se então nas duas mulheres - a Querida, encolhida a um canto da cama, e Ileana, inclinada para a frente, com o lençol pousado no peito.
Por fim, ele voltou a falar.
- Não achaste suficiente que eu fechasse os olhos ao que és, porque outrora te amei e me sentia responsável por ti. Odeiasme tanto, que quiseste converter a tua própria filha numa prostituta.
- Fui eu que... - começou Ileana.
Não pôde continuar ao ver o ar amargurado com que ele a fitou.
- Veste-te e vai para o teu quarto, filha.
Sem proferir palavra, ela enfiou o roupão e encaminhou-se para a porta, de onde o pai desviou um pouco a cadeira para que passasse. Ao mesmo tempo, a mão tocou na dela. Estava fria como o gelo.
Ileana afastou-se e o barão impeliu a cadeira para dentro e fechou a porta. Ela preparava-se para entrar no quarto, quando soaram as detonações. Correu para lá, alarmada, e deparou-se-lhe um quadro que jamais esqueceria. A mãe jazia atravessada na cama e o pai permanecia na cadeira, a cabeça inclinada para o peito, com a pistola ainda fumegante no chão, perto dos seus dedos estendidos.
O barão não lhe deixou dinheiro, mas a mãe possuía mais de sessenta mil dólares. Ileana seguiu para Monte Carlo com a herança e dissipou-a na roleta em menos de uma semana.
Quando ficou sem ela, sentiu-se melhor. Mais limpa. Depois partiu para Nice, a fim de aceitar o convite da amiga.
Foi aí que conheceu Cesare, que conquistara o segundo lugar na corrida de automóveis anual. Foi também aí que encontrou um novo modo de vida. À semelhança do que acontecia com a mãe, havia sempre um homem abastado disposto a ajudá-la. E quando descobriu que se tornara como ela, tudo o resto deixou de a preocupar.
A única coisa que interessava era o presente. E o maior partido possível que podia extrair dele... ou incluir.
CAPÍTULO XIV
Cesare voltou ao vestíbulo e chamou Tonio mais uma vez. Este surgiu à entrada da sala de jantar, com um saco de compras na mão.
- Veio cedo, excelência! - exclamou. Em seguida, baixou a voz num murmúrio conspiratório. - A baronesa de Bronczki...
- lá sei - interrompeu Cesare. - Acabo de a ver. Onde estavas?
A voz de Ileana, proveniente do quarto, forneceu a explicação:
- Mandei-o comprar umas coisas para o jantar. Pareceu-me boa ideia comermos em casa, para variar - acrescentou, assomando à porta.
- Ah, sim? - redarguiu ele, voltando-se. - Quem te disse que eu estava pelos ajustes? Como sabias que não me apetecia ir jantar ao El Morocco?
Ela riu, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. Usava calça de belbutina preta cingida às pernas e à cintura e blusa e sapatos dourados.
- Simplesmente impossível.
- Porquê?
- Querias que me apresentasse no El Morocco nesta figura?
É a única roupa que trouxe.
A única? Onde deixaste o resto?
Levou as mãos ao rosto dele e beijou-lhe a face, após o que se foi sentar no sofá.
- Traz-nos coquetéis, Tonio.
- Sim, excelência. - O rapaz inclinou-se respeitosamente e desapareceu na cozinha.
- Ainda não respondeste - lembrou Cesare. - Onde deixaste o resto da roupa?
- Na Califórnia. A única coisa que trouxe foi isto... e o casaco de visão. O gerente do hotel mostrou-se pouco compreensivo. Pôs-me fora do quarto, quando aquela mulher me cortou o crédito. Por sorte, conservava comigo o bilhete de regresso a Nova Iorque. Por conseguinte, dirigi-me ao aeroporto, e aqui me tens. - Exibiu um largo sorriso. - Que sorte, hem?
Antes que ele pudesse replicar, Tonio reapareceu, para anunciar:
- Coquetéis, signore.
Tonio pousou a cafeteira de prata e xícaras na mesinha junto do sofá e, com uma vénia, voltou para a sala de jantar, onde começou a levantar a mesa.
Ileana inclinou-se para a frente, a fim de servir o café, enquanto Cesare a observava pensativamente. De um modo algo singular, sentia-se bem consigo mesmo. Estava descontraído. Havia uma particularidade agradável relacionada com ela. Não necessitavam de se entregar a simulações. Compreendiam-se perfeitamente, o que constituía uma vantagem de ser europeu.
- Queres açúcar? - perguntou Ileana, estendendo-lhe uma xícara.
Ele abanou a cabeça e agitou-a, para a levar aos lábios e ingerir o café com lentidão. O travo levemente amargo do expresso produzia-lhe uma sensação agradável na boca.
- Acho-te muito calado esta noite, mon cher - observou ela, em francês.
- Estou cansado - replicou Cesare, no mesmo idioma. -. Tenho tido muito que fazer.
Ileana aproximou-se e massajou-lhe as têmporas com suavidade.
- Afinal, foi boa ideia comermos em casa - articulou num murmúrio. Fez uma pausa, enquanto ele aquiescia com um gesto. - Iremos para a cama cedo. Providenciarei para que descanses e não te incomodarei. Hei-de enroscar-me a um canto, para que não notes a minha presença.
- Amanhã, trataremos de te procurar quarto no hotel.
- Não é necessário - replicou com prontidão. - Este apartamento serve perfeitamente para as minhas exigências.
- Os americanos são diferentes, cara amiga. Aliás, sabe-lo bem. É preferível ficares num quarto.
- Está bem. - Beijou-o fugazmente. - Tudo o que queiras. Naquele momento, Tonio reapareceu para perguntar:
- Deseja mais alguma coisa, excelência?
- Não, obrigado. Podes ir deitar-te.
- Boa noite, excelência. - O rapaz virou-se para Ileana. Boa noite, baronesa.
- Boa noite, Tonio. - Ela sorriu, acompanhou-o com a vista enquanto se retirava e virou-se para Cesare, a fim de tornar a encher a xícara. - Estava a pensar numa coisa... Não podemos comer em casa todas as noites.
Ele começou a esboçar um sorriso malicioso, consciente do que se seguiria, e moveu a mão para a algibeira.
- Sem dúvida - assentiu. - De quanto precisas?
Ileana pareceu entregar-se a um cálculo por um momento e declarou:
- Como vou passar a trabalhar para ti, parece-me apropriado receber um adiantamento sobre o meu salário.
- com certeza. É uma coisa que se faz constantemente.
- Óptimo. Tiraste-me um peso de cima. Dá-me mil dólares... não, é preferível dois mil. Depois deduze-los do salário.
- Dois mil dólares?! - exclamou Cesare, incrédulo.
- Tentarei fazer que cheguem para tudo. Garanto-te que os gastarei com a maior prudência.
- Tencionas adquirir os estabelecimentos Dior?
- Não brinques. Querias que andasse por aí com esta roupa?
Começou a rir, reflectindo que ela não tinha a menor concepção do valor do dinheiro.
- Está bem. vou passar-te um cheque. - Dirigiu-se à secretária, pegou no livro, preencheu um talão e entregou-lho. - Creio que isto deve chegar.
Ileana aceitou-o, verificou que era de dois mil e quinhentos dólares, pousou-o na mesinha e contemplou Cesare pensativamente. De súbito, compadeceu-se dele. Era um homem estranho e, ao mesmo tempo, amargurado. Estendeu-lhe a mão e puxou-o para o sofá a seu lado.
- Obrigada, querido - sussurrou.
- Não tens nada que agradecer - redarguiu ele, com uma expressão sombria no olhar. - No fundo, temos de nos manter unidos, como últimos representantes de uma civilização em vias de extinção.
- Não fales assim. Fazes que tudo pareça destituído de esperança.
Fitou-a pensativamente e ela viu-lhe nos olhos o vazio da futilidade. O pesar inexplicável tornou a assolá-la. Beijou-o e fez deslizar a mão para a virilha. Acto contínuo, os dedos notaram a reacção do músculo ao contacto e a pressão acentuou-se.
- Vem - murmurou, dominada por uma espécie de maternalismo, compreendendo que ele se sentia torturado como acontecera ao pai dela. - Quero ajudar-te a descontrair.
Ao mesmo tempo, reflectia que pisava terreno bem firme, pois conhecia todos os truques capazes para levar um homem a esquecer. E contribuir para que ela também esquecesse.
Big Dutch espreitou pela janela da retaguarda da limusina estacionada perto da esquina e viu-os emergir do El Morocco.
- Liga o motor - indicou ao condutor.
O porteiro fez sinal a um táxi, e Dutch notou que Ileana dizia algo a Cesare, o qual sorriu e abanou a cabeça na direcção do homem. Em seguida, voltaram-se e principiaram a afastar-se.
Big Dutch soltou uma imprecação. Nas quatro noites anteriores em que vigiara o local, eles tinham tomado sempre um táxi.
- Vão a pé! - rugiu. - Sobe a Fifty-Third, para tentarmos interceptá-los na Lexington Avenue.
Mas quando cortaram ao norte na avenida e seguiram velozmente para a esquina, Cesare e Ileana acabavam de enveredar pela Park Avenue, do lado oposto da artéria.
- Abóbora! - exclamou Big Dutch. - Escaparam-se-nos! Mete pela Fifty-Fifth e desce a Park Avenue, para os apanharmos aí.
- Não estou a gostar disto, patrão - articulou o motorista, virando-se para trás, com uma expressão ansiosa. - Talvez fosse melhor deixarmos a coisa para outra noite.
- Concentra-te no volante e não te preocupes com o resto. Tem de ser hoje.
Dutch cravou os olhos na rua à sua frente, enquanto aguardavam que a luz do semáforo mudasse. Tinha, na verdade, de ser naquela noite, pois a esposa começava a resmungar. Havia várias noites que saía para preparar o golpe e não duvidava de que ela tardasse muito a explodir.
Por fim, surgiu a luz verde e a limusina reatou a marcha.
- Lá estão eles! - com efeito, acabavam de atravessar o pavilhão defronte do edifício Seagram e tinham-se detido para contemplar o jogo de luzes da fonte. - Vira para a Fifty-Second - indicou, estendendo a mão para a espingarda-metralhadora no assento a seu lado. - Abatemo-lo quando descer os degraus!
O carro descreveu um semicírculo e imobilizou-se junto da esquina, a nascente. Big Dutch olhou em volta e verificou que não havia ninguém nas imediações. A seguir, voltou-se para o pavilhão e viu que Cesare e Ileana se moviam com lentidão para a fonte.
Pegou na arma e apontou-a cuidadosamente, ao mesmo tempo que comprimia os lábios num sorriso. Seria facílimo. Se queria uma coisa bem feita, tinha de se encarregar dela ele próprio.
Não podia confiar nos novatos dos tempos correntes. O que lhes interessava era divertirem-se, e executavam o trabalho sem o menor cuidado. Mais um momento, e o alvo encontrar-se-ia no local conveniente.
Cesare e Ileana alcançaram o topo dos degraus junto da fonte e ele ficou exactamente no centro da mira da espingarda-metralhadora.
- Agora! - bradou Dutch, e puxou o gatilho.
O motorista pisou o acelerador e o motor rugiu em sincronia com a arma. Esta disparou duas vezes e encravou-se. Big Dutch viu o rosto de Cesare voltar-se para ele ao clarão das luzes do edifício, enquanto o carro se punha em movimento.
Em gestos frenéticos, tentou desencravar a arma e, lançando uma olhadela fugaz através da janela, viu Cesare impelir Ileana para a fonte e precipitar-se para detrás da pequena parede. Já não havia nada a fazer.
Entretanto, preparavam-se para dobrar a esquina da Lexington Avenue e, voltando a espreitar pela janela da retaguarda, notou que Cesare retirava a rapariga da fonte, após o que se ocultaram atrás dos prédios. Enfurecido, Big Dutch atirou a arma para um canto e exalou um suspiro de frustração.
- Acertou-lhe, patrão? - perguntou o motorista, conduzindo a limusina por outra rua.
- Qual quê!
- Para onde vamos, agora? - quis saber, quase jovialmente.
- Para o escritório do sindicato.
De súbito, registou-se um estampido, e Dutch levou a mão à automática que tinha na algibeira, enquanto o carro dava vários solavancos.
- Temos um furo - anunciou o motorista.
- Só nos faltava isto! - vociferou Dutch, estendendo a mão para o fecho da porta.
"Não havia nada a fazer", reflectia, enquanto subia para o táxi que mandara parar. "Quando as coisas dão para o torto, é escusado insistir."
CAPÍTULO XV
- Estás bem? - perguntou Cesare, puxando-a da fonte.
- Mas aqueles homens queriam matar-te! - exclamou Ileana, encharcada até aos ossos.
- Não digas nada - recomendou ele, vendo que começavam a surgir pessoas do prédio mais próximo, e levando-a para um táxi. - Para o Towers - indicou ao motorista. Em seguida, virou-se para a companheira e tornou a perguntar: - Estás bem?
- Estou - aquiesceu ela, ainda aturdida. De repente, contemplou-se e soltou um gemido. - O meu vestido novo!
- Não te queixes, que tiveste muita sorte.
- Eles queriam matar-te!
- Bem, não sei - replicou ele, com uma expressão sarcástica. - Não tive oportunidade de lhes perguntar as intenções. Vendo-a tremer, despiu o sobretudo e colocou-lho sobre os ombros. - Não quero que isto se saiba. Entendido?
- Pois sim. - Ileana esforçava-se por evitar que os dentes batessem. - Talvez estejas em situação mais perigosa do que eu, meu amigo - acrescentou a meia voz.
O táxi parou à entrada do hotel e eles apearam-se. O porteiro lançou um olhar de perplexidade a Ileana, enquanto Cesare pagava ao motorista, com a recomendação:
- Esta corrida nunca existiu, hem? - E estendeu-lhe uma nota de vinte dólares.
- Qual corrida? - redarguiu o homem, embolsando-a com prontidão e pondo o veículo em marcha.
Cesare abriu a porta do quarto dela e desviou-se para que entrasse.
- Trata de mudar de roupa sem demora.
- Talvez fosse melhor ir contigo para cima. Tenho medo de ficar só, depois daquilo.
É melhor assim. - Fez uma pausa, reconhecendo que não era má ideia passar a noite com ela. - vou vestir outra coisa e depois volto.
Big Dutch encontrava-se sentado no seu gabinete deserto, na sede do sindicato, e fixava o olhar na garrafa de uísque em cima da secretária. Por fim, estendeu a mão e serviu-se de nova dose. Do piso inferior, provinham os sons da chegada do pessoal da manhã.
Talvez os outros acabassem por ter razão. Era uma pessoa demasiado importante para se ocupar de tarefas como aquela. Seria preferível confiá-las aos novatos, embora não possuíssem tanta experiência. De qualquer modo, tinham menos a perder.
Pensou na sua juventude com nostalgia. Esses, sim, eram bons tempos. Naquela época, as perspectivas apresentavam-se muito mais animadoras. Não se estava com rodeios e todos os traidores sofriam o merecido castigo sem demora. Não havia necessidade de aguardar que um conselho qualquer reunisse previamente para lavrar a sentença.
Recordou-se da ocasião em que Lep o convocara e a Sam Vanicola no pequeno speakeasy de Brooklyn.
- Quero que tu e Sam dêem um pequeno passeio a Monticello para queimar Varsity Vic - ordenara. - Começa a assumir ares demasiado importantes.
Concordaram sem hesitar e dirigiram-se ao bar, a fim de adquirir seis garrafas de uísque para lhes fazerem companhia no longo percurso.
Quando saíram, travaram-se de razões acerca do carro que utilizariam. Big Dutch não gostava do Chevrolet de Sam e este detestava o seu Jewett. Por fim, chegaram a uma solução de compromisso e roubaram um Pierce estacionado à porta de uma das mansões de Brooklyn Heights.
* (1) Lugar onde se vendiam bebidas alcoólicas clandestinamente durante a Lei Seca, nos Estados Unidos. (N. do T.)
Era uma viagem de cerca de cinco horas, naqueles tempos, e passava das duas da madrugada, quando se detiveram à entrada da pousada de Varsity Vic, restando-lhes três garrafas de uísque intactas.
- Repara neste ar - disse Sam, saindo do carro e espreguiçando-se. - Tem um cheiro diferente do da cidade. É mais limpo. Não me desagradava viver aqui.
Ainda se lembrava do canto dos grilos quando entraram. A sala achava-se apinhada e as variedades ainda não tinham terminado. Postaram-se junto de uma das portas e assistiram ao número das raparigas que dançavam uma variação do Black Bottom.
- Repara na terceira da esquerda! - disse Dutch. - Aquela é para mim. As tetas rolam como bolas de borracha.
- Não temos tempo para isso - replicou Sam, puxando-o para o bar. - Estamos de serviço. Vamos tomar mais uma bebida. De fabrico particular - recomendou ao bartender.
- Que os trouxe da cidade? - quis saber o homem, colocando a garrafa de uísque diante deles.
- Viemos dar uma volta - explicou Dutch, jovialmente. Na cidade faz muito calor.
- Aqui não está muito mais fresco.
- Mas a clientela não falta - observou Sam.
- Boa e má - disse o bartender, com uma expressão enigmática.
- Vic anda por aí?
- Esta noite ainda não o vi.
O número de variedades terminou e as raparigas tiveram de passar junto do bar para se dirigirem aos camarins. Quando viu a que lhe interessava, Dutch estendeu o braço e apalpou-lhe os seios.
- Atrevido! - articulou ela, com um sorriso, e afastou-se com as outras.
- Posso arranjar-lhe uma entrevista - informou o bartender.
- Fica para outra ocasião.
Em seguida, Big Dutch voltou-se para Sam, inclinou a cabeça e este encaminhou-se para o gabinete do gerente. Pressentindo o perigo, o bar tender fez menção de carregar num botão na parte inferior do balcão, mas Dutch advertiu-o:
No seu lugar, eu não faria isso.
De qualquer modo, não tenho nada com isso - declarou
o outro, com um encolher de ombros, ao mesmo tempo que pegava num pano. - Sou um mero empregado de balcão.
- Exacto.
Dutch reuniu-se a Sam junto da porta do gabinete e entraram. Varsity, sentado atrás da secretária, ergueu os olhos e sorriu.
- Como vai isso, rapazes?
- Somos portadores de um recado do patrão - anunciou Big Dutch, fechando a porta atrás deles. - Quer um encontro consigo.
- Muito bem. - Varsity Vic desviou os olhos para o guarda-costas, sentado a um canto, que se levantou com prontidão. Ele que indique a data e comparecerei.
- Imediatamente.
- É melhor ficar para amanhã. Neste momento, não posso. Eles voltaram-se, como se pretendessem sair, e o guarda-costas começou a sorrir e afastou a mão da algibeira em que guardava a arma. Sem perda de um segundo, Sam abateu-o com um murro certeiro e viraram-se de novo para Varsity Vic.
- Como sabe, o patrão não gosta que o façam esperar - salientou Dutch.
O rosto de Varsity Vic apresentava uma lividez cadavérica, quando o trio abandonou a pousada. O bar tender viu os três homens passarem com uma expressão compungida, mas parecia mais preocupado em eliminar uma mancha imaginária no balcão com o pano.
Dutch instalou-se no banco de trás com Varsity Vic e Sam sentou-se ao volante. Logo que se puseram em marcha, o primeiro pegou em nova garrafa de uísque e arrancou a cápsula com os dentes, após o que a ofereceu ao companheiro.
- Beba um pouco - indicou. - Parece estar com frio.
O outro recusou com um movimento de cabeça e quando, finalmente, falou, a voz denunciava pouca firmeza.
- Dou-lhes mil dólares se me deixarem sair.
Como única resposta, Dutch levou a garrafa aos lábios e olhou-o em silêncio.
- Dois mil - acrescentou Vic, apressadamente. - Quanto lhes pagam por isto? Cem? Cento e cinquenta? Dois mil dólares é muito dinheiro.
- Estás a ouvir, Sam?
- Estou.
- Tem o milho consigo?
- Aqui - afirmou Vic, pousando a mão no casaco.
- Está bem. - Dutch olhou em volta. Encontravam-se no campo e não havia casas nas proximidades. - Encosta à berma, Sam. - Aguardou que o carro se imobilizasse e voltou-se para Vic. - Dê-me o milho.
O outro puxou da carteira com prontidão e extraiu as notas correspondentes, que pousou no assento.
- Dois mil. Vocês estão com sorte. Não tenho nem mais um dólar - informou, sacudindo a carteira vazia.
- Sim, estamos com muita sorte - confirmou Dutch. Agora, saia.
Varsity Vic abriu a porta, apeou-se e virou-se para trás.
- Obrigado, rapazes. Não me esquecerei disto.
- Acredito - retorquiu Big Dutch, puxando o gatilho da automática.
O impacte dos projécteis de calibre 45 projectaram Varsity Vic para os arbustos que ladeavam a estrada. Em seguida, os dois homens desceram do carro para o examinar, mas verificaram que não dava sinais de vida.
- Tira um pouco de gasolina do depósito e rega-o - disse Big Dutch.
- Para quê?
- Não ouviste Lep dizer que o queimássemos? Temos de obedecer.
No final da cremação, sentaram-se no estribo do Pierce e ingeriram o resto do uísque, e quando tentaram pôr o carro em marcha, descobriram que Sam esvaziara o depósito, pelo que tiveram de percorrer cinco quilómetros a pé antes de se lhes deparar outro automóvel, no qual regressaram à cidade.
Dutch inclinou-se para a frente na secretária e suspirou, enquanto voltava a encher o copo. Os bons velhos tempos tinham de facto terminado para sempre. Lep e Sam já não existiam. O primeiro vira a existência interrompida prematuramente na cadeira eléctrica e o outro fora anavalhado na piscina.
Pegou na bebida e contemplou-a com uma expressão pensativa. Tudo parecia dourado quando observado através de um copo de uísque. Ele nunca acreditara que Sam falaria. Não obstante, tinham-no executado. Eram como carraças: uma vez colados às costas de uma pessoa, nunca mais a largavam. Mas desta vez seria diferente. Havia de lhes dar uma lição.
Esvaziou o-copo e estendeu a mão para o telefone. Mais valia que contactasse com a velhota para comunicar que seguia imediatamente para casa e atenuar-lhe um pouco a irritação.
Entretido a marcar o número, não viu Cesare abrir a porta em silêncio.
Começava a amanhecer, quando ela ouviu a chave rodar na fechadura.
- És tu, Cesare?
- Sou - replicou ele, em voz átona e tensa.
Instantes depois, começava a despir-se apressadamente, para enfiar-se na cama e pousar as mãos nos seios de Ileana.
- Não tenhas tanta pressa - murmurou ela, experimentando uma sensação de dor e receio. - Quem te visse julgava-te americano! - acrescentou com uma risada forçada.
Capítulo XVI
Cesare acabava de levar o copo de sumo de laranja aos lábios, quando Tonio entrou.
- Mr. Baker deseja falar-lhe, excelência.
- Manda entrar. - Pousou o copo vazio na mesa e levantou-se no momento em que o outro surgia. - Não esperava tornar a vê-lo tão cedo. Sente-se e tome café.
O recém-chegado instalou-se numa cadeira e observou o interlocutor, enquanto Tonio enchia uma chávena de café e a colocava na sua frente.
- Parece que teve um pequeno problema, esta noite.
- Tive? - redarguiu Cesare, polidamente. - Por que diz isso?
- Vem nos jornais.
- Ainda não os vi.
- Não? - estranhou Baker, com um olhar significativo ao jornal dobrado em cima da mesa.
Cesare esboçou um sorriso quando compreendeu ao que se referia e esclareceu:
- É o Wall Street Journal, o único que leio. Interessa-me estar ao corrente do mundo dos negócios.
Baker sentiu um calor incomodativo nas faces em virtude da gaffe, ao mesmo tempo que levava a mão à algibeira do sobretudo e puxava de um exemplar do Daily News, que desdobrou diante de Cesare.
Este baixou os olhos para a primeira página e leu:
O ESTILETE VOLTA A ATACAR! BIG DUTCH ASSASSINADO!
A seguir, fitou Baker e encolheu os ombros.
- Não compreendo o que tenho a ver com isto. Expliquei-lhe que não conhecia o homem.
- Há outra notícia curiosa, na página cinco. Pouco depois da meia-noite, um homem e uma mulher foram alvejados a tiro na Park Avenue, junto ao edifício Seagram. Ela lançou-se à fonte e afastaram-se apressadamente num táxi antes de serem reconhecidos.
- E daí? - inquiriu, principiando a aplicar manteiga numa torrada.
- O porteiro diz que a baronesa com a qual entrou, esta noite, estava encharcada até aos ossos.
- Ninguém me alvejou - asseverou, cobrindo a manteiga com geleia.
- Apesar disso, o banho nocturno da sua companheira continua por explicar.
- Por que não pergunta à companheira? - proferiu Ileana, aparecendo à entrada.
Os dois homens levantaram-se e Cesare procedeu às apresentações.
- Mr. Baker pertence ao F. B. I. - acrescentou.
- Sim? - Os olhos dela arregalaram-se, enquanto perguntava, apreensiva. - Envolveste-te em apuros?
- Não creio - replicou Cesare, com um sorriso. - Mr. Baker pensa que alguém pretende matar-me.
- Que horror! - Ileana virou-se para Baker. - É por isso que quer saber como me molhei?
- Exacto.
- É uma história muito embaraçosa - explicou com a dose de dignidade apropriada. - Tínhamos estado no El Morocco e creio que exagerei no consumo de champanhe. Devido a isso e aos sapatos que estreei, escorreguei na rua e caí numa poça. Julgava que ninguém se tinha dado conta.
- Tem a certeza de que não caiu na fonte do edifício Seagram?
- Absoluta - proclamou num tom que dava a entender estar pouco habituada a que duvidassem da sua palavra.
- Que fez a seguir?
- O conde Cardinali acompanhou-me ao quarto, que é neste hotel.
- A que horas se separaram?
Consultou Cesare com o olhar e este estendeu o braço para lhe dar uma palmada tranquilizadora na mão.
- Não és obrigada a responder.
- É importante? - perguntou ela a Baker.
- Muito - assentiu ele, com uma expressão grave.
- Há cerca de uma hora, quando ele veio tomar o pequeno-almoço em sua casa.
Cesare levantou-se e, conquanto continuasse a exprimir-se polidamente, a voz adquirira uma inflexão glacial:
- Não acha que já fez perguntas em número suficiente? Baker pôs-se igualmente de pé e dirigiu-se a Ileana:
- Peço que me perdoe algum embaraço que lhe tenha provocado, baronesa, mas a minha profissão exige que faça todas estas perguntas.
- Compreendo perfeitamente - murmurou ela, sem erguer os olhos da toalha.
- Aconselho-o a estar atento ao que o rodeia, Mr. Cardinali. Os outros ainda se mostrarão mais perigosos, depois da morte do comparsa.
- Não se preocupe comigo.
Naquele momento, Tonio apareceu para anunciar:
- A sua bagagem ficará pronta a tempo, excelência. Providenciarei para que esteja no aeroporto às quatro.
- Obrigado - agradeceu Cesare, com uma ponta de contrariedade.
- Vai partir? - quis saber Baker.
- Inscrevi-me na corrida de estrada do México, que principia depois de amanhã. O meu Ferrari já lá se encontra.
- Acompanho-o - informou Ileana, com um sorriso. - Vai ser muito excitante.
Ele olhou-os alternadamente por uns segundos e terminou também por sorrir.
- Felicidades - desejou, dirigindo-se para a porta. - Conduza com prudência.
Cesare aguardou que ele abandonasse o apartamento e voltou-se para Ileana.
- Por que lhe disseste que me acompanhavas?
- Tentei apenas ajudar-te, querido - alegou ela, com uma expressão inocente.
- Se quisesse que viesses comigo, tinha-te convidado!
- Ah, não compreendi! - Os seus olhos arregalaram-se. Há outra mulher envolvida? Desculpa.
- Não há mulher nenhuma! - retorquiu Cesare irritado.
- Nesse caso, acompanho-te. De resto, não posso dar-me ao luXO de trabalhar para ti. Há pouco, falei com a tua secretária, que me informou de que o meu salário fora estipulado em cento e vinte e cinco dólares por semana.
- Quanto esperavas ganhar? Não sabes fazer nada.
- Não tenho uma ideia concreta a esse respeito. - Ela encolheu os ombros com desprendimento e baixou os olhos para a toranja que Tonio acabava de lhe servir, após o que se apressara a sair. - No entanto, preciso de, pelo menos, essa quantia para as minhas despesas diárias. - Cravou a colher na fruta e levou-a à boca. - Está deliciosa.
Ele contemplou-a e acabou por sorrir involuntariamente. Era o que acontecia quando duas pessoas se compreendiam. Ileana não fizera a menor alusão ao facto de ter mentido a Baker. E nunca faria.
Ela olhou-o com ar de quem deixara o seu ponto de vista
bem vincado e acrescentou:
- Além disso, uns texanos ricos que conheço estarão no México por causa da corrida.
CAPÍTULO XVII
O recepcionista do Hotel Ciudad da Cidade do México permitiu-se um sorriso de cumplicidade.
- A baronesa tem uma bela suite ao lado da sua, conde Cardinali.
- Óptimo - proferiu Cesare, acabando de assinar o livro. -
Obrigado.
- Chegou um telegrama pAra si.
Abriu-o enquanto se reunia a Ileana, quase sem lhe prestar atenção, pois continha a mensagem esperada.
- Acabo de saber que o meu mecânico adoeceu.
- Que contratempo! - deplorou ela. - E agora?
- vou ter de procurar outro. O melhor é dirigir-me à garagem para tratar do assunto.
- Pois sim. Demoras muito?
- Não sei. Mais vale que sigas para cima e te instales. Encontramo-nos à hora do jantar.
Reinava intensa actividade, quando Cesare entrou na garagem, pois os concorrentes inspeccionavam os carros em busca de alguma deficiência de última hora.
Encaminhou-se para o pequeno cubículo de paredes de vidro, cujo ocupante saiu ao seu encontro, quando o viu.
- Conde Cardinali! - exclamou, com um largo sorriso. - Alegra-me tornar a vê-lo.
- Obrigado, señor Esteban. Também tenho muito gosto em o ver.
- O seu carro encontra-se na rampa inferior, compartimento doze. Suponho que está ansioso por examiná-lo?
- Pois estou, mas surgiu um problema grave. O meu mecânico adoeceu e preciso de encontrar quem o substitua.
- Não vai ser fácil - advertiu o homem, com súbita apreensão. - Todos os técnicos da Ferrari estão comprometidos.
- Eu sei, mas temos de fazer alguma coisa, de contrário não posso participar na corrida.
- Precisamos de evitar isso a todo o custo. vou procurar um imediatamente. Assim que souber alguma coisa previno-o.
- Mil gracias - agradeceu Cesare, com um sorriso. - Entretanto, estarei às voltas com o carro.
Havia cerca de uma hora que inspeccionava o Ferrari, quando viu uma rapariga de fato-macaco aproximar-se. endireitou-se para lhe admirar os contornos atraentes.
- É o conde Cardinali? - perguntou ela, em voz rouca agradável, detendo-se diante do carro.
- O próprio - assentiu ele, ao mesmo tempo que extraía um cigarro da algibeira do casaco, que colocara na janela do Ferrari.
- O señor Esteban diz que procura um mecânico.
, sabe de algum? Onde o posso encontrar? - volveu Cesare com ansiedade, pois começava a enfastiar-se com o trabalho, faceta das corridas que menos lhe agradava.
Eu - declarou a rapariga, sorrindo.
Uma mulher? Esta corrida não é própria para o sexo denoninado fraco. São dois mil e quinhentos quilómetros.
- Percorri distâncias ainda maiores, quando houve necessidade - O sorriso dissipou-se e os olhos azuis assumiram uma expressão acerada. - Mas não iremos tão longe.
- Não? - estranhou ele, arqueando as sobrancelhas.
- Não haverá necessidade. - Ela sacudiu a cabeleira loura e debruçou-se sobre o capot para examinar o motor. - Dom Emílio tem outros planos.
Cesare enrugou a fronte, pois não esperara que lhe enviassem uma mulher.
Quando se endireitou, ela voltava a sorrir e estendeu a mão.
- Chamo-me Luke Nichols.
- Mas percebe realmente de Ferrari? - perguntou ele.
- Tenho obrigação disso. - O sorriso alargou-se. - Pilotei-os praticamente por todo o mundo. - Vendo Esteban aproximar-se, indicou: - Pergunte-lhe.
- Vejo que já travaram conhecimento - disse o recém-chegado, com ar satisfeito. - Excelente.
- Mas uma mulher na grande corrida do México! - protestou Cesare. - Onde se viu uma coisa assim?
- Tem muita sorte, conde Cardinali - assegurou-lhe Esteban. - A senhorita recebeu muitas propostas, mas decidira não participar na corrida até que soube do seu problema. O ano passado, concorreu com o seu Ferrari.
- Que lhe aconteceu?
- Não ganhei - explicou ela, com um encolher de ombros. - Embati numa barreira e ficou inutilizado. Esperava encontrar um substituto aqui, mas apanhei uma desilusão.
- Muito bem. Deve ser competente, se o meu amigo Esteban o diz. Pode contar com a percentagem habitual, se ganharmos, e quinhentos dólares, se tal não acontecer.
- Combinado, Mr. Cardinali.
- Afine-o e dê uma volta nele para ver como se comporta na estrada - indicou Cesare, enfiando o casaco. - ComuniqUe -me o resultado às cinco. Estarei no bar do hotel.
- Entendido. - Ela virou-se para Esteban e a voz assumiu um tom formal. - Importa-se de providenciar para que eu utilize a pista número dois? Aquela que tem o novo cronómetro eléctrico. A primeira coisa que quero inspeccionar é o circuito eléctrico.
O homem aquiesceu com uma inclinação de cabeça e Cesare voltou-se e principiou a subir a rampa. Quando chegou ao topo e olhou para trás, verificou que ela já conduzia o carro para o local solicitado.
A iluminação da sala de coquetéis do Hotel Ciudad provinha de recantos dissimulados na parede que não só ocultavam as lâmpadas como grande parte da intensidade da luz. Cesare tinha de se considerar satisfeito por descortinar a bebida na sua frente e nem tentava ver as horas, porque estava convencido de que não lograria vislumbrar o mostrador.
A porta abriu-se e uma nesga de sol alterou a penumbra. Luke entrou e imobilizou-se para habituar os olhos à transição e tentar localizá-lo. Quando o viu acenar, sorriu e foi sentar-se diante dele.
- Deviam fornecer lanternas de mineiro à entrada - comentou ela rindo.
- De facto, está escuro. - Naquele momento, o empregado aproximou-se e Cesare perguntou: - Não podemos ter um pouco mais de luz, antes que ceguemos?
- Sem dúvida, señor.
O homem estendeu a mão para a parede e premiu um botão. Acto contínuo, o "reservado" onde se encontravam foi iluminado por um clarão suave.
- Assim é melhor - aprovou Cesare. - Que toma?
- Um daiquiri (1), por favor.
(1) Coquetel composto de rum, sumo de lima e açúcar. (N. do T.
Aguardou que o empregado se afastasse e inquiriu:
Que pensa do carro?
É um modelo maravilhoso - admitiu ela, com uma expressão de amargura. - Em circunstâncias normais, podíamos obter a vitória.
O empregado reapareceu com a bebida, que pousou diante dela, e retirou-se.
- Salud - disse Cesare, erguendo o copo.
- Felicidades!
Beberam e pousaram os copos, seguindo-se um momento de silêncio.
- Haverá outras corridas - observou ele.
- Assim espero. - A rapariga olhou em volta, para se certificar de que não havia ninguém nas proximidades. - Liguei um mecanismo de relojoaria ao velocímetro - prosseguiu em voz baixa. - Exactamente a duzentos quilómetros da partida, explodirá e destruirá o gerador. Estaremos, então, a quatrocentos e cinquenta do posto de controlo seguinte, pelo que passarão umas cinco horas antes que nos encontrem. Há uma pequena casa abandonada a uns dois quilómetros da estrada, onde esperaremos por Dom Emílio. - E voltou a pegar no copo.
- É só isso? - perguntou Cesare, seguindo-lhe o exemplo.
- É.
Observou-a com curiosidade e viu que substituíra o fato-macaco por um vestido leve que não permitia quaisquer dúvidas quanto à sua feminilidade. Ao mesmo tempo, servia para que parecesse mais uma jovem universitária americana que uma mulher envolvida nas actividades ilegais da Mafia. Ele não pôde evitar um leve sorriso malicioso. Dom Emílio era um inesgotável POÇO de surpresas.
Entretanto, ela começava a sentir-se desconfortável com o exame a que era submetida. Ele diferia muito dos outros que conhecera, em geral indivíduos" grosseiros, pouco preocupados em tratá-la com deferência.
- Por que me olha assim? - acabou por perguntar. Nunca tinha visto uma mulher?
- Peço desculpa. Estranho simplesmente que escolhessem uma rapariga como você.
- Pagam bem e, como lhe disse, procurava um Ferrari. Esta é a maneira mais rápida de o conseguir. O seu caso parece-me muito mais incompreensível. Não precisa de dinheiro.
- Não há muitas corridas como esta, e a vida entre elas pode tornar-se monótona, se não aparece uma ocupação interessante.
Cesare fez sinal ao empregado e conservaram-se silenciosos até que ele lhes serviu novas bebidas. Em seguida, pegou no copo e olhou-o com uma expressão pensativa.
- É pena - murmurou com amargura. - Gostava de ganhar esta.
- Calculo como se sente - assentiu ela, mostrando-se subitamente entusiasmada. - Não há nada que se compare a isto. A velocidade, o perigo, a excitação! Uma pessoa tem a plena sensação de que está viva, tudo vibra no seu íntimo, o mundo inteiro palpita dentro do seu corpo!
- É isso mesmo! - concordou ele, em voz alterada pela emoção. - Nunca supus que mais alguém pensasse assim. Dá a impressão de que possuímos tudo o que desejamos no mundo. Dinheiro, poder, mulheres...
Estendeu as mãos e pousou-as nas dela, que notou o vigor e entusiasmo que emanava dele. Olhou-o com curiosidade e viu que deixava transparecer uma espécie de ansiedade, como a do tigre à espreita da presa, na noite.
- É como se nunca tivesse estado com uma mulher até este momento - acrescentou Cesare, em tom quase inaudível.
Ela sentiu-se assolada por um temor repentino. Não dele, mas de si própria. Sabia perfeitamente o que um homem daqueles lhe podia fazer.
- Concentremo-nos apenas na corrida, está bem? - propôs, retirando as mãos. - Sabemos perfeitamente que não podemos vencer.
- Porquê, Luke? - volveu ele, no mesmo tom. - Por que razão nos havemos de limitar a isso?
Os seus olhos assemelhavam-se a ímanes irresistíveis, e ela começava a sentir-se arrastada para as suas profundezas. A febre familiar principiou a gerar-se na virilha, acompanhada de flacidez dos membros. Por que tinha de ser sempre assim? Precisamente quando preparara tudo com a maior meticulosidade. Ao voltar a falar, notou o ressentimento amargo para consigo transmitir-se à voz:
- Porque consigo sou uma vencida. Conheci outros tipos como você. É sempre a mesma coisa. Começa-se por se supor que se pode atingir o céu e, de repente... - Interrompeu-se e fez estalar os dedos.
- Acha que há-de ser sempre igual?
- Sempre.
- E contenta-se em atravessar a vida sem viver, porque receia perder? - perguntou ele, com brandura.
- Que pretende de mim, afinal? - retorquiu ela, irritada por senti-lo pousar o dedo na ferida. - É um desses homens que tem de possuir todas as mulheres que vê? Acompanha-o uma que provavelmente lhe pode proporcionar mais sexo em dez minutos que eu em dez dias! - Começavam a acudir-lhe lágrimas de frustração e levantou-se antes que ele as visse. - Por conseguinte, concentremo-nos na corrida! - acrescentou, enfurecida. - Até amanhã à hora da partida!
Rodou nos calcanhares e afastou-se apressadamente, quase colidindo com Ileana, que se dirigia para o "reservado" e a acompanhou com a vista por uns instantes, depois de se sentar.
- Quem é? - inquiriu com curiosidade.
- A minha mecânica.
- Palavra? - estranhou, arqueando uma sobrancelha. Virou-se para o empregado, que acudira com prontidão. - Cinzano on the rock. A tua mecânica?
- Exacto! - replicou Cesare, em inflexão incisiva.
- Não pude deixar de ouvir as suas últimas palavras - esclareceu Ileana, com um sorriso. - Acho que tem razão.
Ele guardou silêncio e o empregado reapareceu com a bebida, Para se retirar em seguida. Ileana pegou no copo e ergueu-o numa espécie de brinde irónico.
- Acho que não vou ter contigo a Cuernavaca, como havíamos combinado. Aguardarei aqui, na Cidade do México. - Levou-o aos lábios e pousou-o. - Como não sou americana e, por conseguinte, compreendo bem estas situações, dou-lhes a oportunidade de investigarem os respectivos pontos de vista e demonstrarem que têm razão.
CAPÍTULO XVIII
Os raios solares intensos magoaram-lhe os olhos, depois da penumbra da sala de coquetéis, e ela pôs os óculos escuros. A princípio, caminhou apressadamente, irritada consigo mesma, mas apercebeu-se de que a observavam com estranheza e passou a mover-se mais devagar. Não devia esquecer que se encontrava na Cidade do México, onde toda a gente andava com lentidão.
Que existia nela que provocava semelhantes situações? lá na adolescência lhe acontecia o mesmo. As outras raparigas recebiam rapazes em suas casas para sessões de estudo e nunca sucedia nada. Por seu turno, ela assumia atitudes idênticas às das colegas e acontecia algo antes de o serão terminar.
Depois de o rapaz se retirar, costumava amaldiçoar-se. Em regra, não voltava a encontrar-se com ele, mas surgia sempre outro. E começava tudo da mesma maneira. Animava-a uma firme determinação. Apenas o estudo. Nem sequer se aproximava dele, preferindo sentar-se do outro lado da mesa ou da sala e lançarem-se perguntas mutuamente. Pelo menos, era assim que o serão principiava.
Mas em breve sentia a febre acender-se. As pernas tornavam-se flácidas e a voz denunciava tremor, tornando-se-lhe cada vez mais difícil concentrar-se nas lições. Combatia a sensação com todo o vigor, ao ponto de a transpiração irromper na fronte e axilas e aperceber-se do odor acre mesclado com o perfume.
Depois, acontecia. Os primeiros beijos exploratórios. Ela prometia a si própria que se sujeitaria àquela experiência e poria fim a qualquer tentativa de actividades ulteriores de natureza similar. De repente, porém, a febre revelava-se vulcânica e, com ela, surgia o frenesim. O rasgar da roupa que a constrangia, o desejo furioso de provocar e sentir dor. A adoração do macho arrogante e a necessidade de se entregar, para poder ser senhora do impulso explosivo que a devorava.
Começou a sentir-se aturdida e sacudiu a cabeça inconscientemente. O sol continuava demasiado quente, pelo que convinha que se lhe esquivasse e sentasse algures. Na sombra, a sensação penosa havia de se atenuar.
Olhou em volta e verificou que se achava quase de novo na garagem. Aproveitaria, pois, a oportunidade para mais uma inspecção ao carro. Havia algo de frio e masculino numa corrida que a fazia sentir-se sempre melhor.
A temperatura era agradável na garagem, em contraste com o calor lá fora. A maior parte dos mecânicos retirara-se para jantar e ela principiou a descer a rampa com uma sensação de alívio.
Esteban surgiu do seu pequeno gabinete e saudou-a:
- Hola, señorita Nichols!
- Olá, señor Esteban! - retribuiu ela, voltando-se.
- Viu o conde? Está satisfeito?
- Estou-lhe muito grata, señor Esteban.
- No hay de quê. Tive muito gosto em lhe ser prestável. com uma expressão maliciosa, ele acrescentou: - É um homem interessante, hem?
- Sim, muito. Mas diga-me uma coisa. É bom piloto?
- Podia ser dos melhores. Infelizmente, falta-lhe uma coisa.
- Falta-lhe uma coisa? - ecoou ela, enquanto desciam a rampa. - Não compreendo. O quê?
- O medo. Um piloto de corridas é como um matador. Não se pode considerar bom na sua profissão sem ter sentido o travo amargo do medo. A partir de então, a perícia desenvolve-se com naturalidade. Não comete loucuras desnecessárias. Conduz apenas para vencer.
Detiveram-se diante do Ferrari longo e branco e ela pousou-lhe a mão, ao mesmo tempo que perguntava:
- Não se mostra interessado em vencer?
- É um belo carro - disse Esteban, em vez de responder
- O melhor da garagem - assentiu ela, acariciando o guarda-lama.
- Acho que, desta vez, vou apostar os meus habituais dez pesos no conde - decidiu ele, começando a afastar-se em direcção ao seu gabinete. - Felicidades, señorita.
Ela acompanhou-o com a vista até que desapareceu no topo da rampa e, em seguida, abriu a porta e sentou-se no carro. Acudiu-lhe imediatamente às narinas o odor pungente de óleo, gasolina e cabedal novo, enquanto deslizava para junto do volante e o rodeava com os dedos, num gesto possessivo. Aquilo representava a força. A pura força masculina.
Recordou-se de estar sentada sobre os joelhos do pai, quando ele conduzia o automóvel à vila no dia de feira. Como se sentia importante e acenava a todos para que a vissem conduzir! Até o corpulento polícia que orientava o trânsito na Rua Direita, Mr. Saunders, se aproximava para ver se ela tinha carta de condução. Na altura, contava apenas seis anos.
Aprendera a guiar antes dos dez, pois o pai costumava deixá-la praticar na rua estreita e pouco concorrida das traseiras da casa, enquanto a mãe abanava a cabeça com desaprovação.
- A maior parte das vezes, ela não parece uma rapariga - lamentava. - Sempre a rondar a garagem, a mexer em carros e ouvir o palavreado grosseiro da rapaziada que a frequenta.
- Deixa-a lá, mulher - replicava o pai. - Tem muito tempo para crescer e aprender a cozinhar e costurar. De qualquer modo, isso já não é tão importante como no nosso tempo, pois quase toda a comida vem em latas ou congelada.
No fundo, sentia-se satisfeito, pois sempre desejara um filho.
As coisas começaram a correr melhor, quando ela completou dezasseis anos e tirou a carta de condução. Os rapazes não a preocupavam tanto naquela época. Não lhe apetecia tanto rasgar-lhes a roupa e explorá-los. Talvez fosse porque os vencia na estrada e nas provas de resistência que costumava efectuar no Ocean Drive.
Adivinhava o que pensavam na primeira vez que se apresentou na sua carripana. "Aí vem a Condescendente à procura de alguém para fornicar." Não ignorava as histórias que circulavam no liceu a seu respeito. Sempre que um rapaz aparecia no vestiário com arranhões nas costas, os outros riam e começavam a atirar-lhe moedas. No entanto, isso não os impedia de lhe rodearem o carro, quando a viam.
O chefe da malta, Johnny Jordan, acercou-se, um dia, inclinou-se para a porta, com um cigarro pendurado ao canto dos lábios, e perguntou:
- Onde arranjaste o bate-latas?
- No Stan - replicou ela, referindo-se à garagem onde todos adquiriam as suas viaturas em segunda mão.
- Não me lembro de o ver lá - volveu ele, examinando-o, de sobrolho franzido.
- Introduzi-lhe algumas alterações.
Na realidade, procedera a uma modificação radical. Desmontara-o e reconstruíra-o sem ajuda de ninguém. Tratava-se de um velho Pontiac conversível, cujo motor substituíra pelo de um Cadillac, antes de colocar um diferencial novo, rectificar os rolamentos, afinar os travões, retirar a carroçaria e trocá-la pela de um velho Cord, após o que aplicara chumbo às portas para proporcionar o peso conveniente e, por último, pintara-o de prateado e preto, operação que lhe consumira seis meses.
- Anda? - inquiriu Johnny, com um sorriso sarcástico.
- Anda.
- Chega-te para lá - indicou, fazendo menção de subir.
- Nem pensar - redarguiu ela, conservando-se firmemente ao volante. - Ninguém o conduz sem que eu o vença.
- Quem vais conseguir desafiar? Os rapazes não fazem corridas com raparigas.
- Estás a cortá-las?
- Não é isso - grunhiu ele, corando. - Nunca se viu uma rapariga participar nas nossas corridas.
- Como queiras. - Ela ligou o motor. - vou fazer constar na vila que tens medo. - E começou a afastar-se.
- Espera aí. - Johnny correu um pouco para alcançar o carro, que tornara a imobilizar-se. - Não tens o direito de dizer isso.
- Ah, não? Então, demonstra-o.
- Está bem - acedeu com relutância. - Mas se te magoares, não atires as culpas para cima de mim. - Meteu-se no seu carro e, levantando a voz para se fazer ouvir em virtude do ruído dos motores, indicou: - Sobe a estrada durante um quilómetro e meio. Depois, aguardas lá e eu volto para trás, para disputarmos a prova.
Ela aquiesceu com um movimento de cabeça e prestou atenção à partida. No momento em que um dos rapazes que assistiam baixou o braço, pôs o veículo em movimento, imitada por Johnny. Iniciaram a escalada colados e ela rodou o volante ligeiramente para o lado dele, ficando separados escassos centímetros.
Ele pisou o acelerador numa tentativa para a ultrapassar, porém ela soltou uma gargalhada e acompanhou-o. Ouviu-se o ruído de metal contra metal e Johnny desviou-se um pouco para a deixar passar.
Ela já alcançara o topo e voltara o carro para o sentido oposto, quando ele efectuou a manobra e principiou a descer a rampa, não sem lhe lançar um olhar turvo.
Tornou a prestar atenção ao sinal de partida e, quando se verificou, iniciou a descida, até que avançaram um contra o outro no centro do pavimento. Ela sorriu e afundou o pedal do acelerador até ao sobrado, enquanto segurava o volante com firmeza.
Observou que o carro dele estava prestes a atingir o seu, mas o sorriso não se dissipou. Não se desviaria, quaisquer que fossem as consequências.
Viu-o fazer rodar o volante no derradeiro momento possível e acompanhou-o com a vista pelo espelho retrovisor. Notou que experimentava dificuldades em o dominar, devido à manobra súbita a alta velocidade, mas acabou por consegui-lo. Por fim, ela descreveu um semicírculo e reuniu-se-lhe.
Johnny apeara-se e os outros rapazes rodeavam-no com expressões de assombro, com os olhos fixos no guarda-lama esquerdo da retaguarda, parcialmente destruído. Ela nem se apercebera de que o atingira no instante em que se tinham cruzado.
- És chanfrada! - vociferou ele.
- Queres experimentar? - perguntou ela com um sorriso,
ao mesmo tempo que deslizava para o lado, no banco. - Pode atingir cento e oitenta quilómetros, numa recta.
Johnny contornou o carro e sentou-se ao volante, não tardando a alcançar os cento e vinte. Foi o seu primeiro amante a tempo inteiro.
Fora diferente dos anteriores e ela sentia-se mais à vontade e segura a seu lado. Não necessitavam de fazer amor como os cães ou os gatos. Ele respeitava-a. Sabia que lidava com uma mulher à sua altura. Por outro lado, o facto não o impediu de a engravidar.
Ela frequentava o último ano do liceu e deixou transcorrer uma semana antes de o procurar e anunciar:
- Temos de casar.
- Porquê?
- Por que havia de ser, estúpido?
- Gaita! - bradou ele, depois de a olhar em silêncio por um momento. - Bem me parecia que os preservativos que comprei no supermercado não prestavam!
- Os causadores não foram os preservativos - retorquiu ela, principiando a irritar-se. - Foi isso que tens entre as pernas. Fartaste-te de mo meter dentro.
- Não parecias contrariada. Nunca te opuseste. - Johnny assumiu uma expressão desconfiada. - Além disso, sei lá se fui eu! com as histórias que ouvi a teu respeito...
Ela olhou-o com amargura, enquanto via todos os sonhos que arquitectara acerca de ambos desmoronarem-se. Afinal, no fundo, ele não diferia dos outros. Por último, com um leve suspiro de resignação, rodou nos calcanhares e afastou-se.
No sábado seguinte, levantou cem dólares das suas economias e dirigiu-se ao Center City, no carro, onde sabia haver um médico que se ocupara de casos similares ocorridos a colegas do liceu.
Aguardou pacientemente que todas as outras pacientes tivessem sido atendidas e entrou no consultório, onde se lhe deparou um homem de pequena estatura, atarracado, de calva reluzente e expressão de cansaço.
- Dispa-se e volte para aqui. - Aguardou que ela se desembaraçasse do vestido e indicou. - Tudo.
Ela tirou o soutien e cuecas e acercou-se dele, que se levantou da secretária para a examinar. Em seguida, conduziu-a para junto de uma mesa longa e estreita e, colocando uma luva de borracha na mão direita, explicou:
- Pouse as mãos na borda e incline-se para trás. A seguir, encha os pulmões de ar e expila-o com lentidão.
Ela inspirou fundo e deixou o ar sair pela boca aberta, enquanto ele procedia a um exame mais minucioso. Por fim, mandou-a endireitar e calculou:
- Cerca de seis semanas.
- Exacto.
- Vai-lhe custar cem dólares - informou, regressando à secretária.
Sem emitir o menor comentário, ela pegou na carteira, colocou o dinheiro diante dele e aguardou.
- Quando quer tratar disso?
- Imediatamente.
- Não pode ficar aqui. Veio alguém consigo?
- Tenho o carro lá fora - declarou, ao mesmo tempo que meneava a cabeça. - Não se preocupe. Regressarei a casa sem novidade.
O médico hesitou por um momento, recolheu o dinheiro, guardou-o numa gaveta da secretária, dirigiu-se ao esterilizador e muniu-se de uma seringa hipodérmica. A seguir, cravou a agulha na cápsula de borracha de um pequeno frasco e aproximou-se dela enquanto aspirava o líquido.
- Que é isso? - perguntou ela, pela primeira vez, um pouco apreensiva.
- Penicilina. - Ele esboçou um sorriso. - Ainda bem que a inventaram. Mata todos os micróbios, excepto aquele que tem dentro de si.
Era hábil, rápido e competente, e concluiu a operação em vinte minutos. Depois, ajudou-a a descer da mesa e a vestir-se, entregando-lhe em seguida alguns comprimidos num pequeno sobrescrito sem qualquer indicação.
- Os maiores são de penicilina. Tome um cada quatro horas nos próximos dois dias. Os pequenos destinam-se às dores e deve tomar um cada duas horas, depois de chegar a casa. Meta-se imediatamente na cama e deixe-se ficar lá durante quarenta e oito horas, pelo menos. Se sangrar muito, não se alarme porque é normal. No entanto, se lhe parecer que perde demasiado sangue passado o primeiro dia, não arme em heroína e chame o seu médico assistente. Se sua mãe a interrogar, diga que está com a menstruação mais abundante do que habitualmente. Fixou tudo?
Ela assentiu com um movimento de cabeça e ele acrescentou com brandura:
- Nesse caso, pode ir. Siga para casa e meta-se na cama, não esqueça. Dentro de uma hora, terá tantas dores que desejará morrer.
Regressou à secretária e sentou-se, enquanto ela se encaminhava para a porta. Antes de a transpor, voltou-se e murmurou:
- Obrigada, doutor.
- Não tem nada que agradecer. Mas passe a conservar os olhos bem abertos. Não quero tornar a vê-la aqui.
Cobriu os setenta quilómetros que a separavam de casa em menos de meia hora, e começava a sentir faltarem-lhe as forças no momento em que travou o carro à entrada de casa. Quando se apeou, seguiu directamente para o quarto, congratulando-se por os pais terem saído. Tomou os comprimidos e enfiou-se entre os lençóis, enquanto as dores começavam a fazer-se sentir.
Cerca de uma semana mais tarde, preparava-se para retirar o carro do parque de estacionamento nas traseiras do supermercado, quando Johnny se aproximou e pousou as mãos na porta.
- Estive a pensar, Luke... - articulou com a segurança masculina que tanto a irritava. - Quando casamos?
- Vai-te matar, excremento de galinha! - replicou ela friamente, e pôs o carro em movimento, sem se preocupar com o facto de que quase lhe arrancava um braço.
A partir de então, concentrou-se no carro, e quando ingressou na faculdade já adquirira certa fama na localidade. Participava nas corridas da Cow Pasture Track todas as semanas e começou a acumular triunfos com uma regularidade que depressa a popularizou. Os conterrâneos passaram a referir-se com orgulho à garota que suplantava os próprios profissionais.
Foi durante as primeiras férias grandes que contraiu matrimónio. com um piloto de corridas, evidentemente. Um homem de um metro e oitenta e oito de altura, cabelos pretos anelados, olhos castanhos sorridentes, e sem dúvida o melhor volante presente na corrida.
- Acho que devíamos juntar os tarecos - declarou no tom arrastado próprio do Texas de onde procedia. - Podemos formar a melhor equipa na estrada.
- Refere-se ao casamento? - redarguiu ela, ao mesmo tempo que sentia a febre íntima reacender-se.
- Precisamente.
Os pais mostraram-se contrários à ideia, pois queriam que terminasse o curso e fosse professora. Depois, teria muito tempo para casar. De resto, que espécie de vida levaria a percorrer o país para participar em corridas?
Era o argumento menos aconselhável, porque se tratava exactamente da espécie de vida que ela queria levar. Só se sentia viva ao volante de um carro. Era o que tornava tudo e todos iguais. E, circunstância curiosa, proporcionou-lhe lucros muito satisfatórios. No espaço de um ano, conseguira depositar cerca de mil e quinhentos dólares no banco.
Até que surgiu a Polícia e prendeu o marido por bigamia. Segundo parecia, havia três mulheres no seu passado das quais se esquecera de divorciar. E duas semanas depois de o levarem para a cadeia, ela descobriu que estava grávida. Desta vez, não tomou quaisquer providências para se opor à marcha da natureza e teve um rapaz.
Levou-o para casa dos pais, onde o deixou, após o que adquiriu uma passagem de avião para a Europa e comprou um Ferrari. Em França, participou numa corrida para mulheres e venceu e, conquanto o prémio não fosse espectacular, agora possuía um ferrari e dois mil dólares no banco. Estava farta de pistas baratas. De futuro só se preocuparia com as importantes.
No Principado do Mónaco conheceu o irlandês que conduzia bem e ria muito. Tinha apenas um defeito, jogava. No entanto, a febre irrompeu mais uma vez, quando o viu. Neste caso, não houve casamento, embora não fosse má ideia. Passaram a percorrer o mundo juntos, conduzindo alucinadamente em todos os países, enquanto ele se achava sempre sem dinheiro.
No México, no ano anterior, antes da corrida, procurou-a e, pela primeira vez, ela viu-lhe o medo desenhado nos olhos.
- São os jogadores, querida - explicou. - Se não lhes pagar, matam-me. - E principiou a chorar.
- Quanto?
Ergueu a cabeça e olhou-a, com uma réstia de esperança, como um cachorro perdoado depois de ser espancado pelo dono.
- Dez mil dólares.
- Tenho quatro mil no banco e posso obter seis mil pelo carro.
- Hei-de pagar-te tudo até ao último cêntimo - prometeu, pegando-lhe na mão e beijando-a.
No dia seguinte, acompanhou-a ao banco e, depois de receber o dinheiro, combinaram encontrar-se no hotel à hora do jantar. Não apareceu. Às dez da noite, a notícia circulava pela garagem. Fugira com a mulher de outro piloto.
Ela perdeu a corrida e o banco confiscou-lhe o carro. Mais tarde, encontrava-se no quarto do hotel sem saber onde ir buscar o dinheiro para pagar a conta, quando bateram à porta.
Deparou-se-lhe um homem trajado de forma impecável, cujo rosto parecia vagamente familiar.
- Miss Nichols? Posso entrar?
Ela desviou-se para que passasse, fechou a porta e olhou-o com curiosidade.
- Há muito que me considero seu admirador, depois de a ver correr em muitos lugares: Itália, França, Mónaco, etc. Ora, constou-me que enfrenta um pequeno problema e gostava de a ajudar.
Como única resposta, ela voltou a abrir a porta e indicar-,
- Saia.
- Não se precipite, por favor. - Ele ergueu a mão num gesto conciliador. - Não é o que pensa. Você conduz carros de corrida e eu possuo um. Quero que o conduza.
- Onde está? - perguntou ela, fechando-a de novo.
- Em Acapulco. A corrida é daí até à Califórnia. Pagarei todas as suas contas aqui e entregar-lhe-ei mil dólares, quando deixar o carro na garagem, no final da prova. Qualquer prémio que conquistar, ficará para si.
- Qual é o ardil por detrás de tudo isso? O carro está carregado de droga.
- O seu único trabalho consiste em pilotá-lo. É por isso que lhe pagarei. - Ele puxou de uma cigarrilha italiana e acendeu-a, ao mesmo tempo que sorria. - Não precisa de saber mais nada.
Ela fitava-o, perplexa. Ou aceitava a oferta ou tinha de telegrafar aos pais para lhes pedir dinheiro. Não havia outra alternativa. Estava convencida de que não lho recusariam, porém, essa solução implicaria o regresso a casa. Não se lhe voltaria a deparar a oportunidade de possuir um carro, pois dificilmente tornaria a reunir fundos suficientes.
- Combinado - declarou com firmeza.
- Óptimo. De manhã, quando descer, encontrará uma ordem de pagamento em seu nome na recepção.
Ele transmitiu mais algumas instruções e retirou-se antes que ela se lembrasse de lhe perguntar o nome.
Só no dia seguinte, quando se achava a bordo do avião, compreendeu de quem se tratava. Vira-o em Roma, num restaurante, indicado por alguém:
- É Emílio Matteo, um dos três homens mais importantes da Mafia. Os Estados Unidos expulsaram-no, mas isso não o impede de voltar lá com frequência.
Tornou a vê-lo seis vezes durante o ano seguinte, sempre para a incumbir de um ou outro trabalho, e ela reconheceu que só se fosse muito estúpida não compreenderia que se convertera numa mensageira da Mafia. E de estúpida não tinha nada.
No entanto, de cada vez apareciam mais mil dólares na conta bancária, que atingia agora oito mil. Mais cinco mil, e poderia comprar o Ferrari.
Entretanto, ela e Matteo haviam-se tornado praticamente velhos amigos, e lera o suficiente nos jornais para saber que conduzia um homem à morte. No fundo, o facto não a preocupava muito, pois vira vários morrer nas corridas, no meio de ferros torcidos ou das chamas. Era um risco a que uma pessoa se expunha, quando se sentava atrás do volante.
Pelo menos, pensava assim até ao momento em que o conhecera. Antes de sentir a febre íntima, a impressão de fraqueza nas pernas. Antes de experimentar o fogo que se gerava ao mínimo contacto entre ambos.
CAPÍTULO XIX
Cesare acabava de se vestir, quando ela entrou no quarto, o que lhe provocou uma exclamação de surpresa.
- Ileana! Que fazes a pé às seis da manhã?
- Não quis que saísses sem te desejar felicidades na corrida - replicou ela, atando o cordão do roupão.
- És muito amável. - Ele sorriu e inclinou-se para a beijar na face. - Vemo-nos à hora do jantar - acrescentou automaticamente, dirigindo-se para a porta.
- À hora do jantar? - ecoou ela, perplexa. - Julgava que a corrida durava dois ou três dias.
- Tens razão, não me lembrava. - Cesare assumiu uma expressão de contrariedade, ao aperceber-se do deslize. - Ver-te todos os dias tornou-se um hábito - acrescentou, com um sorriso forçado.
Ileana começou a ser assolada por uma vaga suspeita, pois ele não costumava entregar-se a lapsos de semelhante natureza.
- bom ou mau?
- Tu própria mo explicarás, quando eu voltar.
Conservou-se imóvel por um momento e olhou em volta, depois de ficar só. Vendo que deixara a mala aberta em cima da cama, preparava-se para a fechar, quando notou uma pequena bolsa triangular no interior da tampa, com uma bainha estreita cosida na parte de dentro, que contivera uma faca recentemente.
A imagem do estilete que Cesare tinha na mão na noite em que a encontrara no seu apartamento acudiu-lhe repentinamente ao espírito. Para que necessitaria de uma lâmina daquelas numa corrida de automóveis?
A vaga suspeita que a assolara ao ouvi-lo dizer que se veriam à hora do jantar reapareceu. Talvez fosse verdade, embora se apressasse a desmenti-lo. Era possível que aqueles homens tivessem razão no que afirmavam, conquanto ela não acreditasse na altura.
Começou a invadi-la uma sensação de pânico e, de repente, compreendeu por que levava o estilete. Voltaria à noite para a matar.
Luke observava Cesare dissimuladamente. Conduzia de forma descontraída, os olhos ocultos atrás dos largos óculos escuros, com um leve sorriso nos lábios. Ela inclinou-se para a frente, a fim de inspeccionar o tablier.
O ponteiro do taquímetro indicava 26.000 rotações por minuto, o que condizia com o velocímetro, enquanto a temperatura era normal, assim como o nível do óleo e as cargas do gerador e da bateria. Endireitou-se com um suspiro de satisfação. Podiam percorrer um milhão de quilómetros naquele carro, se quisessem.
Contornaram uma curva e depararam-se-lhes dois outros competidores. Acto contínuo, Cesare voltou-se para ela e sugeriu:
- Podemos divertir-nos um pouco, antes de desistir?
Luke consultou o conta-quilómetros, verificou que se achavam a uns cem quilómetros do ponto de partida e inclinou a cabeça.
Ele alargou o sorriso e aumentou a pressão do pé no pedal do acelerador, para se colocar atrás dos dois carros, que lhe bloqueavam a passagem, até quase estabelecer contacto com os pára-choques.
Ela olhou-o de novo e viu que comprimia os lábios num esgar de crueldade. Por detrás dos óculos escuros, os olhos pareciam emitir um clarão diabólico. Entretanto, os carros que os precediam começaram a enveredar por uma curva.
Cesare soltou uma gargalhada e aumentou a velocidade. Luke baixou os olhos para o velocímetro e viu que assinalava cento e noventa quilómetros, com tendência para subir. Notou o impulso da força centrífuga no momento em que o Ferrari entrou na curva e fixou o olhar em frente com nervosismo. Se os outros carros não se desviassem, morreriam todos. E, antes que a ideia se lhe dissipasse do espírito, o Ferrari introduziu-se entre ambos.
Deliberadamente, após a ultrapassagem, Cesare começou a descrever pequenos "esses", ante a irritação dos competidores. Em seguida, voltaram a entrar numa extensa recta, e o Ferrari afastou-se velozmente, deixando-os para trás.
Luke voltou-se e deu uma gargalhada. Compreendia agora ao que Esteban se referira, na garagem. Apesar de saber que não terminaria a corrida, Cardinali conduzia com a mesma perícia e eficiência de sempre. Não havia dúvida de que era um excelente piloto. Se se empenhasse nisso, poderia ser dos melhores do mundo.
Sentiu a mão dele pousada na sua e voltou-se. Inconscientemente, devido à excitação, aproximara-se mais dele. Após breve hesitação, ergueu-a do assento e pousou-lha na virilha.
Sentiu o calor que se desprendia do corpo dele e transmitia ao organismo através da mão. Por um momento, quase ficou transtornada ao imaginar o que ele lhe poderia fazer, as sensações que lhe provocaria. Gramou as unhas nos músculos da coxa e sentiu-as perfurar o tecido das calças e afundar-se na carne. Queria produzir-lhe dor, magoá-lo e retirar a mão.
Todavia, ele riu, divertido. Luke notou um latejar estranho na palma e, depois de fazer deslizar as unhas ao longo da perna, recolheu a mão. Em seguida, afastou-se para o seu canto do assento e fechou os olhos quando surgiu a dor aguda no seu íntimo no momento em que quebrou o contacto com o corpo dele. Sacudiu a cabeça para desanuviar as ideias, irritada consigo mesma. Não tinha nada a esperar no meio de tudo aquilo. Por que insistiria sempre em ser uma vencida?
Tornou a consultar o conta-quilómetros e verificou que haviam percorrido cento e sessenta quilómetros, pelo que tocou no ombro do companheiro.
- Comece a abrandar. É melhor deixarmos aqueles dois carros ultrapassarem-nos.
Ele assentiu com um movimento de cabeça, e o poderoso Ferrari principiou a reduzir a velocidade até estabilizar nos cem quilómetros. Transcorridos poucos minutos, os dois competidores alcançaram-nos e prosseguiram, não sem um vivo concerto das buzinas, como sinal de protesto pela manobra das proximidades da curva.
- Acabou a festa - declarou Cesare, abanando a cabeça.
- Nunca chegou a começar - replicou Luke, com o olhar fixo no conta-quilómetros.
Ao mesmo tempo, achava a velocidade excessiva, na iminência da deflagração de uma bomba, ainda que de potência reduzida, que destruiria o gerador, mas se ele pensava que daria parte fraca, estava equivocado.
No momento exacto em que o ponteiro assinalou a quilometragem prevista, registou-se uma explosão abafada no interior do capot, o carro sofreu um solavanco e o motor parou, após o que o Ferrari principiou a ziguezaguear loucamente na estrada.
Ela viu os músculos dos braços de Cesare tornarem-se tensos, enquanto se esforçava por dominar o volante, ao mesmo tempo que actuava gradualmente no travão, até que o carro passou a rolar com lentidão.
- Agora que se divertiu um pouco, Mr. Cardinali - observou ela, com um leve suspiro de alívio-, podemos sair da estrada.
- Muito bem.
Ele torceu o volante no sentido da berma e sorriu com ar confiante, porém, ela advertiu-o:
- Cuidado! Uma vala!
Cesare tratou de alterar a direcção, mas era demasiado tarde. As duas rodas do lado direito derraparam e o pesado veículo rolou para a área arenosa e ficou voltado com a carroçaria para baixo.
Ele deslizou para fora com certa dificuldade, levantou-se e tirou o capacete, ao mesmo tempo que pequenas colunas de fumo começaram a desprender-se do motor.
- Está bem, Luke? - perguntou, agachando-se.
- Estou inteira - foi a resposta ténue, proveniente do outro lado do carro.
Cesare apressou-se a contorná-lo e ajoelhou para espreitar. Ela pousava as mãos no espaldar do banco e contorcia-se para tentar sair.
- De que está à espera? - bradou ele. - Saia depressa. Há pelo menos cem litros de gasolina no depósito!
Luke parou de se mover e fitou-o com uma expressão quase apopléctica.
- Que lhe parece que estou a fazer? Ginástica para conservar a linha? - Recomeçou a contorcer-se e, de súbito, principiou a rir. - Tenho o fato-macaco preso algures.
- Já podia ter dito! - vociferou ele, lançando-se ao chão e rastejando para dentro. Em seguida, segurou o fato-macaco com ambas as mãos e rasgou-o de alto a baixo, após o que lhe colocou os braços sob os ombros. - Descalce os sapatos.
Luke obedeceu automaticamente e sentiu-se puxada para fora do fato-macaco e do carro, ficando deitados ao lado um do outro, enquanto continuava a rir.
- Sabia que você gostava de dar nas vistas, mas não a esse ponto - comentou ele, olhando-a significativamente.
A hilaridade extinguiu-se com brusquidão. Ela acabava de se dar conta da nudez, pois o soutien translúcido e cuecas não menos transparentes pouco ou nada encobriam. vou buscar o fato-macaco.
No entanto, a mão dele impediu-a de se levantar, e Luke permaneceu imóvel, fitando-o na expectativa, ao mesmo tempo que sentia o calor febril desencadear-se em vagas avassaladoras. Em seguida, viu a outra mão mover-se para libertar um dos seios do soutien.
Pare com isso - murmurou, cada vez mais excitada, disposta a não se tornar presa fácil, desta vez.
Os olhos dele refulgiam, o que a fazia sentir-se como sob observação microscópica para lhe ler os pensamentos e emoções mais íntimos.
Você não quer que pare - redarguiu Cesare, com um sorriso malicioso.
Ela sentiu os dedos vigorosos comprimirem-lhe subitamente o seio, e a dor arrancou-a da letargia.
vou obrigá-lo a parar! - exclamou, introduzindo as unhas em riste na camisa aberta dele e contorcendo-se. - Hei-de dilacerar-lhe o corpo!
Mas no momento em que os dedos contactaram com a pele macia e fresca, a febre intensificou-se, para se lhe apoderar de todo o ser e esvair a resistência dos membros. Afundou mais as mãos na camisa e cerrou as pálpebras, mas o braço dele afastou-a.
Luke abriu os olhos, enquanto notava o aparecimento de lágrimas. Era inútil. Não podia mudar, nunca mudaria.
- Deixe-me tocar-lhe - implorou. - Deixe-me adorá-lo.
E quando, passados uns momentos, ele a possuiu, ela reconheceu que não se equivocara desde o primeiro instante em que o vira. Jamais houvera um homem na sua vida capaz de preencher todos os recantos da sua mente e corpo como aquele.
Voltou a fechar os olhos e principiou a correr suavemente através da floresta em direcção às montanhas. Sabia que o animal se encontrava lá, algures, com as suas listas pretas e amarelas, espreitando-a entre a vegetação. Ela escalava agora a montanha com frenesim, o coração palpitante e alento ardente como se proviesse de uma fornalha. Por fim, encontrou-se no topo, com todo o mundo em rotação lá em baixo, e quando o animal lhe saltou em cima estava preparada para o receber. Presos num abraço de morte, rolaram juntos ao longo da encosta da montanha.
- Tigre, tigre, tigre - gemia ela.
Cesare abriu a porta da cabana com um pontapé e anunciou:
- Não está ninguém. - Deixou Luke precedê-lo e entrou igualmente. - Que fazemos, agora?
- Aguardamos.
Havia algumas cadeiras e uma mesa que decerto tinham conhecido melhores dias, e ele impeliu uma para junto dela, que se sentou. A seguir, acendeu dois cigarros e ofereceu-lhe um.
- Ficaste, de repente, muito calada - observou, verificando que o aceitava em silêncio.
- Que queres que diga? - Luke encheu os pulmões de fumo e expeliu-o com prontidão, considerando o sabor acre purificador. - Provaste o teu ponto de vista.
- Achas que foi só isso?
- Que interessa? Não volta a acontecer.
- Estás sempre tão segura das coisas? Sabes lá o que acontecerá amanhã?
- Amanhã, terei dinheiro suficiente para comprar um Ferrari - afirmou ela, quase com amargura. - Depois, não nos tornaremos a ver.
- Só significou isso, para ti? - Cesare emitiu uma risada seca. - Um automóvel? Um Ferrari serve para muita coisa, mas não te pode aquecer os pés na cama.
- Referes-te ao amor, porventura? - retorquiu ela, com Cinismo.
- Esqueces que conheço as tuas actividades. A quantas mulheres falaste de amor? Dez, vinte, uma centena? Mais?
- Um homem pode viver em muitos lugares e não considerar nenhum o lar - murmurou ele, com uma expressão enevoada no olhar.
Naquele momento, soou um carro nas proximidades e Luke encaminhou-se para a porta. Antes de a alcançar, voltou-se com ar grave e tenso e declarou em tom incisivo:
- Terminou tudo. Prometi a mim própria não tornar a perder.
- Há pouco junto do carro, mudaste de ideias.
- Pagaram-me para tudo o que fiz - retorquiu com aspereza. - Ordenaram-me que te retivesse aqui. - E abriu a porta.
Surgiram dois homens de automáticas em punho, que apontaram a Cesare.
- Compreendes ao que me refiro? - acrescentou Luke, por cima do ombro, movendo-se para o exterior. - Não viemos para saudar César.
CAPÍTULO XX
A porta fechou-se atrás deles e suprimiu o fulgor dos raios solares, enquanto o contemplavam em silêncio.
- Onde está Matteo? - perguntou Cesare.
- Pede muita desculpa, mas não pôde vir - replicou Allie. - Enviou-nos no seu lugar.
Cesare sentiu os músculos adquirirem tensão repentina e os lábios ressequidos. Tentou humedecê-los com a língua, ao mesmo tempo que reflectia que a situação carecia de sentido. Matteo não tinha nada a lucrar com a sua morte.
- Deve haver engano - aventurou, por fim.
- Não há engano nenhum. - Allie adiantou-se, enquanto gesticulava com a arma. - Volte-se para a parede, pouse as mãos acima da cabeça e afaste as pernas.
Seguiu-se uma pausa, enquanto Cesare obedecia e o outro o revistava.
- Não estou armado.
- Não procuro uma arma de fogo - esclareceu Allie.
- Também não encontrará a faca - persistiu Cesare, sentindo o contacto frio do estilete no braço pousado na parede. - Não preciso dela para conduzir.
- Acho que não - admitiu Allie, retrocedendo. - De qualquer modo, não a tornará a utilizar.
- Liquido-o agora? - inquiriu o pistoleiro, começando a erguer a automática.
- Não. Tive uma ideia. Para este tipo, há uma receita especial.
Cesare espreitou por cima do ombro. Allie extraía algo da algibeira e, vendo que ele o observava, sorriu.
- Sabe o que é isto? - perguntou, exibindo-o. Cesare não respondeu, pois sabia perfeitamente.
- Um furador de gelo - explicou o outro, alargando o sorriso. - Não tem um nome tão requintado como a faca de degolar porcos que você utiliza, mas para o efeito serve. Big Dutch podia ter-lho explicado.
De repente, inverteu a posição da pistola na mão e aplicou uma violenta coronhada na base do crânio de Cesare.
Sentindo um turbilhão enlouquecedor na cabeça, este caiu de joelhos, ao mesmo tempo que os dedos tentavam apoiar-se à parede, enquanto ouvia a voz áspera de Allie ordenar:
- Vira-te para cá, bastardo! Quero que vejas o que se vai seguir!
Obedeceu com lentidão, sacudindo a cabeça para desanuviar as ideias, e fitou o homem, que exibia um sorriso escarninho. Guardou a automática na algibeira, transferiu o furador de gelo para a mão direita e, acercando o rosto do de Cesare, rosnou:
- Vou-te enfiar isto nas goelas.
Cesare viu-o erguer o sinistro objecto e lançou-se desesperadamente para o lado no momento em que o braço desceu. O furador cravou-se na parede de madeira atrás dele e, acto contínuo, aplicou um impiedoso golpe de judo na garganta de Allie.
Sem se deter a observar o resultado, lançou-se sobre o pistoleiro, de cuja mão a arma voou no instante em que tombaram pesadamente no chão. Pelo canto do olho, viu Allie recolher a pistola do chão e puxou o homem para a sua frente quando principiou a disparar.
O corpo do pistoleiro estremeceu com o impacte das balas e, por fim, ficou inerte nos braços de Cesare, que tentou aproveitar a oportunidade para atingir a porta.
- Não penses nisso, bastardo! - rugiu Allie, voltando a puxar o gatilho.
Soou um estalido no momento em que o cão da pistola atingiu uma câmara vazia, ele praguejou e arremessou a arma a Cesare, após o que se voltou para recuperar o furador de gelo. Arrancou-o com um gesto brusco e virou-se de novo, a tempo de o ver avançar lentamente com o estilete reluzente na mão.
Ergueu o furador à sua frente, enquanto deslizava ao longo da parede. De repente, lembrou-se da pistola que guardava na algibeira e esboçou um sorriso, ao mesmo tempo que movia a mão sub-repticiamente para a extrair. Necessitava apenas de uns segundos para o conseguir.
Luke sentava-se no banco da frente do carro, absolutamente imóvel. Os dedos seguravam o volante com tanta firmeza que os nós se apresentavam brancos, e tinha os olhos focados num ponto distante para além do pára-brisas. Foi apenas no momento em que sentiu a ponta do estilete pousada na nuca que se voltou e o viu.
Cesare inclinou-se para ela, os lábios comprimidos num esgar animal no rosto tenso, enquanto os olhos azuis emitiam um clarão sinistro.
Os dela arregalaram-se por uns instantes com uma expressão que ele não entendeu e, em seguida, tornaram-se impenetráveis.
- Por que fizeste isto? - inquiriu Cesare, segurando o estilete com firmeza.
- Já te expliquei - redarguiu ela, em voz tão inexpressiva como os olhos. - Era a minha missão. Nunca faço perguntas a Matteo. E tu?
- O meu caso é diferente. Cumpria um juramento.
- Eu também. A única diferença estava na maneira como éramos pagos.
- Devia matar-te!
Luke notou um pouco de pressão na ponta do estilete e cerrando as pálpebras, pousou a cabeça no espaldar do banco.
- Então, não hesites - proferiu em tom de cansaço. - É-me indiferente. Matteo não tolerará o meu desaire, tal como não aceitou o teu êxito.
Ele não replicou e seguiu-se um silêncio que parecia interminável. Ela sentiu a febre íntima reacender-se mais uma vez e propagar-se a todo o corpo como uma onda de choque escaldante. A imagem do tigre irrompeu-lhe na mente. Mais um momento e não conseguiria conter as convulsões auto-orgiásticas que já começavam a desenhar-se na virilha.
- Vá! Acaba com isto! - gritou, desvairada, consciente de que a morte acalmaria o tigre.
Cesare continuou silencioso e ela abriu os olhos. Viu-lhe o rosto banhado em transpiração e apercebeu-se do tremor do corpo em contacto com o banco. Acudiu-lhe uma sensação repentina de reconhecimento e vislumbrou-se que eram duas almas gémeas.
Ouviu o estilete cair no sobrado do carro e sentiu os lábios dele procurar-lhe o pescoço e cobrir a minúscula ferida produzida pela ponta do estilete. O perigo e a excitação haviam terminado e eram os mesmos, tanto para um como para o outro. Apenas serviam para estimular o apetite do tigre.
- Vai buscar as tuas coisas - indicou Cesare, travando o carro à entrada do hotel. - Encontramo-nos no aeroporto dentro de duas horas.
- Promete ser cauteloso - advertiu ela, olhando-o com intensidade.
- Não te preocupes. Estaremos a caminho de Nova Iorque antes que alguém descubra o que aconteceu. Tenho de contactar com Emílio, para esclarecer a situação.
Luke apertou-lhe a mão com ternura e apeou-se. Em seguida, acompanhou-o com a vista, enquanto se distanciava e, por fim, desaparecia no hotel.
Cesare entrou no átrio do Hotel Ciudad e dirigiu-se à recepção.
- A minha chave, por favor - pediu ao recepcionista, que estava de costas para ele.
- Conde Cardinali! - exclamou o homem, surpreendido. Estendeu a mão para o cacifo e pousou a chave no balcão. - A corrida... ?
- O gerador do carro ardeu - interrompeu Cesare, com impaciência.
- Lamento imenso, senhor. - O recepcionista estendeu-lhe um sobrescrito. - A baronesa deixou isto para si.
Cesare abriu e leu o bilhete:
Desculpa, querido, mas não posso aguardar o teu regresso. Sigo para Nova Iorque com outro texano rico, que insiste em que o ajude a fazer umas compras.
Saudades,
Ileana.
Esboçou um sorriso divertido. Devia ter calculado que ela dispunha de um motivo especial para não o esperar em Cuernavaca.
- A que horas partiu a baronesa?
- Cerca das sete da manhã - informou o recepcionista. Cesare inclinou a cabeça e encaminhou-se para o elevador,
enquanto consultava o relógio. Eram quase sete horas da tarde. Por conseguinte, Ileana já se devia encontrar em Nova Iorque.
CAPÍTULO XXI
Baker debruçou-se sobre a secretária e fixou o olhar em Ileana.
- Por que regressou? Devia continuar com ele.
- Tive medo, como referi. - Ela contraiu as faces num trejeito de nervosismo. - Pressenti que me queria matar... que sabia...
- Que a levou a pensar assim? - inquiriu ele, prontamente. - Disse ou fez alguma coisa que a fizesse suspeitar?
- Não foi nada disso. Deveu-se à bainha que descobri dissimulada na mala e já mencionei. Quando lhe toquei, fiquei com a sensação de que a morte se tinha apoderado da alma dele. Por conseguinte, tratei de me afastar.
- Mas não viu lá nenhum estilete. Eu próprio tenho um compartimento desses na minha mala. É para a escova de dentes e a máquina de barbear. - Baker fez uma pausa no momento em que bateram à porta. - Entre.
Surgiu um agente com uma mensagem de teletipo, que pousou na secretária.
- Acaba de chegar da Cidade do México. Encontraram os corpos de Allie Fargo e de um pistoleiro qualquer numa cabana abandonada no deserto, a cerca de um quilómetro do ponto em que o carro de Cardinali deixou a estrada.
- Está a ver! - exclamou Ileana, levantando-se excitada. Eu tinha razão!
- Se você ficasse lá, talvez estivéssemos agora mais elucidados - contrapôs Baker.
- Ou eu morta! Não estou a gostar nada disto. Virou-se de novo para o agente:
- Onde se encontra Cardinali, neste momento?
- A caminho de Nova Iorque. O seu avião deve chegar a Idlewind durante a manhã. Acompanha-o uma mulher.
- Uma mulher? - Dirigiu-se uma vez mais a Ileana. - Foi por isso que você voltou?
- Não diga disparates!
- Começo a vislumbrar a situação - declarou, com um sorriso malicioso. - Ele arranjou outra companheira e correu consigo.
- Não é verdade! - Ileana mordeu o anzol irreflectidamente. - Sei de quem se trata. É a mecânica dele.
- A mecânica? - ecoou Baker, com cepticismo.
- Sim. Chama-se Luke qualquer coisa. O mecânico que ele tinha contratado adoeceu e ela apareceu providencialmente.
Tornou a voltar-se para o agente:
- Telegrafe para lá e peça informações pormenorizadas acerca dela.
- Muito bem. Quer que detenhamos Cardinali, quando o avião aterrar?
- Não lucrávamos nada com isso. De resto, não dispomos de qualquer motivo. Mande preparar um carro. Quero ver para onde segue. - O agente retirou-se e Baker tornou a concentrar-se em Ileana. - É melhor regressar ao hotel e conservar-se o mais perto possível dele.
- Nem em sonhos! - foi a resposta imediata.
- Não lhe tocará, desde que ignore a nossa ligação. - com uma inflexão dura, acrescentou: - Ou prefere a deportação?
- A deportação é preferível à morte.
- A corrupção moral é uma acusação muito grave. Não poderia voltar a entrar neste país. E os reflexos da notícia nos jornais também não se podem considerar agradáveis.
- Na Europa, são muito mais compreensivos - afirmou ela, olhando-o com ressentimento. - Reconhecem que algumas mulheres não nasceram para trabalhar. - Puxou de um cigarro e bateu levemente com ele no tampo da secretária.
Baker acendeu-lho e reclinou-se na cadeira, consciente de que a colocara onde desejava.
- Creio que nós, Americanos, também estamos ao corrente disso - admitiu, com um sorriso. - Simplesmente, não costumamos mencioná-lo.
- Começo a ficar com a impressão de que o sexo é encarado como não americano.
Encarou-a em silêncio por um momento e acabou por se mover para a frente, a fim de se exprimir quase com amabilidade:
- Tem medo, hem?
Ela fitou-o com gravidade e inclinou a cabeça lentamente.
- A princípio, supus que não passava tudo de uma mera brincadeira. Agora, compreendo que não é e começo a sentir-me aterrada.
Ele levantou-se, contornou a secretária e asseverou em voz pausada:
- Não a perderemos de vista, baronesa. Tente dominar o medo. Garanto-lhe que a arrancaremos de lá ao primeiro sinal de perigo.
O jovem agente que acompanhava Baker emitiu um silvo de apreciação, quando viu Luke subir para o táxi com Cesare, à saída do aeroporto.
- Safa, que o tipo tem sorte com as mulheres!
- Parece que sim. Não o percamos de vista.
Ligou o motor e conduziu o carro para a faixa de rodagem, porém, outro veículo interpôs-se entre eles e o táxi.
- Quer que o ultrapasse?
- Não, é melhor assim. Na via rápida, não o podemos perder.
Rolaram em silêncio durante cerca de dez minutos, até quase alcançarem a curva de Jamaica Bay, altura em que Baker observou com curiosidade o carro que os precedia, o qual mantinha a distância entre eles e o táxi de Cesare. De súbito, começou a aumentar a velocidade e passou para a faixa da esquerda, o que infundiu a suspeita de que ocorria algo de anormal.
com efeito, possuía demasiada experiência da profissão que exercia para desprezar os pressentimentos.
- Continue atrás daquele carro - indicou o agente, desabotoando o casaco e soltando a mola do coldre. - Não estou a gostar disto.
- De facto, procede de uma forma estranha - assentiu o outro, obedecendo. De repente, registaram-se várias explosões. -. Estão a alvejá-lo!
- Acelere!
Baker puxou da automática e debruçou-se sobre a janela, para premir o gatilho.
Entretanto, o táxi desviara-se para a berma e ele não conseguiu determinar se alguém fora atingido, quando o seu carro passou velozmente.
Tornou a disparar e surgiu um orifício na janela da retaguarda do outro veículo, directamente atrás do condutor, que tombou sobre o volante, enquanto o automóvel abandonava a estrada em direcção à baía. Segundos antes de alcançar a água, Baker viu a porta abrir-se e o homem saltar para fora.
Encontravam-se agora numa área relvada e ele fez sinal ao agente para que parasse, após o que correu em perseguição do outro.
- Pare! - bradou, com um tiro de advertência para o ar. O homem voltou-se por um instante e Baker viu qualquer coisa brilhar na mão. Registou-se um silvo no instante em que a bala lhe passou perto da cabeça e depois o som da detonação.
Lançou-se ao chão e viu-o reatar a correria. Visando-lhe as pernas, porque o queria capturar vivo, puxou o gatilho, mas errou o alvo.
Tornou a disparar e desta vez o homem caiu de bruços, antes de começar a rolar pelo declive.
Naquele momento, o agente reuniu-se a Baker, de pistola em punho.
- Está bem?
- Estou - grunhiu Baker, começando a levantar-se.
- O tipo do carro está morto.
- Vá ver o outro. Tentei acertar-lhe nas pernas.
O agente correu para lá, ajoelhou e gritou:
- Também morreu! ; com uma imprecação entre dentes, Baker guardava a automática no coldre, quando ouviu a voz de Cesare atrás dele:
- Tem uma pontaria admirável, Mr. Baker.
Virou-se e encarou-o quase com animosidade, reflectindo que o homem devia ter nervos de aço. Acabava de ser alvejado, dois indivíduos haviam perdido a vida e, não obstante, exprimia-se com uma serenidade surpreendente.
- Desta vez, não vai dizer que não pretendiam matá-lo, Mr. Cardinali - observou, esforçando-se por conservar a calma.
- Decerto que não - admitiu Cesare, com um encolher de ombros e uma expressão algo sardónica. - O que não compreendo é porquê.
Os olhos de Baker assumiram um clarão glacial, ao mesmo tempo que perdia a vontade de prosseguir com a simulação.
- E aposto que também não compreende o motivo por que Allie Fargo foi morto numa cabana a cerca de um quilómetro do ponto em que o senhor abandonou a estrada, no México.
- Nem sequer sabia que tinha sido morto - replicou Cesare, sorrindo. - Não li os jornais, nos últimos dias.
- Pode provar como gastou o tempo, na estrada?
- Sem dúvida. Não saí do lado da minha mecânica um único instante. Pode certificar-se, se quiser. Encontra-se no táxi, a retocar a maquilhagem.
- É perito em apresentar mulheres para lhe fornecerem álibis.
- Eu diria antes "afortunado".
Baker olhou-o em silêncio por um momento, enquanto soava a sereia de um carro da Polícia que se aproximava.
- Vá à sua vida, Cardinali - articulou, irritado. - Mas lembre-se de que não estaremos sempre presentes para lha proteger.
O táxi encostou ao passeio e Cesare desceu, após o que se voltou para dentro.
- Aguarda aqui - indicou a Luke. - Tenho de ir lá acima ao escritório, mas não tardo.
A recepcionista pareceu surpreendida de o ver, porém ele seguiu para a sala contígua com uma leve inclinação de cabeça. Havia um grupo de empregados em torno do depósito de água, que se apressaram a ocupar as respectivas secretárias quando entrou.
- Chegue cá - ordenou a Miss Martin, quando atravessava a antecâmara. Uma vez no seu gabinete, virou-se para ela e inquiriu: - Que se passa lá fora? Por que não estão a trabalhar?
- Está bem? - perguntou ela, com ansiedade.
- Claro que estou.
- Acabámos de ouvir na rádio que o alvejaram, quando vinha do aeroporto.
- Parece-lhe desculpa suficiente para eles estarem ociosos? Pago-lhes para que façam alguma coisa e não para passarem o dia na conversa.
- Não têm nada que fazer.
- O quê? - rugiu ele, cada vez mais irritado. - Porquê? Miss Martin pegou num telegrama de cima da secretária e estendeu-lho.
- A nossa concessão foi revogada. Esta é a última. Chegou há cerca de uma hora.
Cesare baixou os olhos para o papel e, em seguida, pegou nos outros telegramas da secretária, cujos textos diferiam pouco um dos outros. Provinham das duas companhias italianas, duas inglesas, uma francesa e outra sueca. Por fim, voltou-se de novo para ela e indagou:
- Quando aconteceu isto?
- Começou na manhã em que partiu para o México. Confesso que não compreendo. Dá a impressão de que obedeceram a um sinal.
Ele tornou a baixar os olhos para o telegrama que tinha na mão e, de súbito, com um gesto brusco, atirou-o para cima da secretária. A Sociedade estava muito segura de si própria. Tinha tanto a certeza da sua morte que não necessitava de prosseguir com as concessões à sua companhia. Necessitava de contactar com Matteo urgentemente. A situação já fora demasiado longe.
- Lamento, Mr. Cardinali - disse Miss Martin, em tom de comiseração. - Tentei preveni-lo, mas do hotel informaram que já tinha partido. Suponho que é por causa daquela história que veio nos jornais.
Cesare não replicou, imerso em reflexões. Impunha-se que alguém fizesse chegar uma mensagem às mãos do carteiro daquela aldeia na Sicília. Estava convencido de que Matteo se encontrava algures no país, mas nem que se entregasse a pesquisas durante anos o localizaria.
A voz da secretária interrompeu-lhe as cogitações.
- Que tenciona fazer?
- A única coisa que me resta - redarguiu, com um encolher de ombros. - Pagar a indemnização legal ao pessoal e dispensá-lo. Diga-lhe que o chamaremos, quando a situação se regularizar.
- Pensa que isso acontecerá?
- Não sei - declarou, dirigindo-se para a porta, onde se deteve, a fim de olhar para trás e acrescentar: - E, francamente, estou-me nas tintas!
CAPÍTULO XXII
Cesare introduziu a chave na fechadura e voltou-se para Luke.
- Entra.
Ela obedeceu e ele seguiu-a. No mesmo instante, soou a voz de Ileana no quarto:
- És tu, Cesare?
Ele lançou um olhar furtivo à companheira, que conservava o rosto inexpressivo, e acabou por sorrir:
- Sou.
- Confesso que não sei onde este mundo vai parar! - continuou Ileana, ainda no quarto. - Todos os texanos ricos que me aparecem são casados ou impostores! Este queria que o ajudasse a fazer compras para a mulher!
Cesare não conseguia evitar que o sorriso se alargasse, à medida que a expressão de Luke se tornava cada vez mais granítica.
- Pouca sorte.
- Não ouvi... Mas não tem importância. Pedi a Tonio que pusesse uma garrafa de champanhe no gelo. Está no armário das bebidas. Importas-te de encher as taças? Saio já.
Ele aproximou-se do armário e verificou que, de facto, a garrafa se achava no balde com gelo, ao lado de duas taças. Em gestos quase solenes, pegou noutra taça e juntou àquelas. A seguir, desrolhou a garrafa e encheu-as.
Ileana surgiu finalmente à entrada da sala, ao mesmo tempo que tentava apertar o cinto do negligée.
- Não pude esperar por ti... - começou, com um sorriso que se extinguiu com brusquidão ao ver Luke.
Lançou uma mirada interrogativa a Cesare, que olhava de uma para outra, divertido com a situação, e proferiu:
- Creio que as senhoras apenas se viram en passaní. Permitam-me que proceda às apresentações. - Pronunciou os nomes de ambas com os gestos apropriados, entregou uma taça a cada uma e ergueu a sua. - A uma amizade duradoura. - Sorriu e levou-a aos lábios.
Ileana contemplou Luke com frieza e virou-se para ele, com uma expressão inocente.
- Embora ela seja um pouco magra, não achas que o teu apartamento é pequeno para um menage à trois? - perguntou em francês.
- Não sejas impertinente. Garanto-te que tem talentos insuspeitados - replicou Cesare, no. mesmo idioma.
- Não duvido - volveu ela, secamente. - Mas se a gerência do hotel objecta à presença de uma, como reagirá quando souber que vives com duas? Ou porventura convenceste-a de que te converteste ao maometanismo?
Naquele momento, acudiu uma ideia luminosa à mente dele. Descobrira como contactar com Matteo. Assim, com um largo sorriso, declarou ainda em francês:
- Não há problema por esse lado, porque já comuniquei que partias para a Itália esta noite e Luke ocuparia o teu quarto até que regressasses!
- Nem sonhes! - vociferou Ileana, arregalando os olhos. Não estou disposta a abandonar a cena, para que te reboles na palha com esta chienne!
E, com estas palavras, atirou-lhe a taça e voltou para o quarto, cuja porta fechou ruidosamente. Cesare olhou os fragmentos do míssil no chão, depois de embater no armário, e, em seguida, virou-se para Luke:
- Ileana tem um temperamento muito fogoso - observou em inglês.
- O que interessa é saber se está disposta a partir - retrucou ela, em francês irrepreensível.
- Compreendeste o que dissemos? - estranhou ele.
- Até à última sílaba - assentiu ela, com um sorriso. Mas não respondeste ao que perguntei. - O sorriso extinguiu-se. - Achas que partirá?
- com certeza - afirmou Cesare, em tom confiante. Ileana e eu somos velhos amigos. Fará tudo por mim.
Tonio pousou o telefone e dirigiu-se à sala de jantar, para anunciar:
- Era da companhia de aviação, excelência. Foi confirmada a passagem da baronesa para o voo desta noite.
- Obrigado - agradeceu Cesare.
Ileana aguardou que o empregado se retirasse para explodir:
- Já disse que não vou! Estou-me nas tintas para o que pensas. Escusas de contar comigo!
Cesare fitou-a em silêncio por um momento. Ao mesmo tempo, pelo canto do olho, apercebia-se de que Luke o observava com uma expressão significativa e começou a irritar-se.
- Farás o que eu te mandar! - advertiu em inflexão dura. Ou preferes que as autoridades da Imigração saibam que na realidade não trabalhas para mim?
Ileana desviou os olhos para Luke, que baixara os seus para o prato, e perguntou em tom amuado:
- Por que não a mandas a ela?
- Sabes perfeitamente que não é possível. Dava nas vistas como um nariz inflamado. Acaba lá de comer como uma menina bonita e vai fazer as malas. O "jacto" para Roma parte à meia-noite.
Enfurecida, atirou o guardanapo para a mesa e levantou-se. Instantes depois, a porta do quarto voltava a fechar-se ruidosamente.
Luke ergueu os olhos do prato e exibiu um leve sorriso.
- Ileana fará tudo por mim! - mimou.
- Cala a boca! - bradou Cesare, enrugando a fronte. Estou convencido de que irá.
Ileana fechou a porta do quarto à chave, pegou no telefone e indicou à telefonista o número que tomara a precaução de fixar na memória. Estabelecida a ligação, pediu:
- Mr. Baker, por favor.
- Estou... - proferiu a voz dele, transcorridos uns segundos.
- Ele quer que vá à Sicília - informou apressadamente, em voz baixa. - À sua aldeia natal. Tenho de procurar o carteiro e transmitir-lhe uma mensagem.
- Que espécie de mensagem?
- É a seguinte: "Diga a meu tio que preciso de encontrar-me com ele." Depois, devo aguardar no hotel até o homem me comunicar a resposta.
- Óptimo - aprovou Baker. - As coisas parece que começam a enveredar pelo bom caminho.
- É a única coisa que lhe ocorre dizer? - replicou ela, indignada. - Não sei se sabe que o tio de Cesare morreu há mais de dez anos! Os mortos não costumam receber ou transmitir mensagens!
- Não se preocupe com isso. O tio com o qual ele pretende contactar está tão vivo como nós. Na Sociedade, o indivíduo da hierarquia superior recebe o tratamento de "tio" por parte do seu protegido.
- Se é à Mafia que tenho de transmitir a mensagem, o meu medo transforma-se em pavor. Essa gente não hesitará em me matar!
- Garanto-lhe que não há motivo algum para se apoquentar - asseverou Baker, em tom conciliador. - Um dos nossos homens viajará consigo no avião e não a perderá de vista, onde quer que vá. A sua preferência inclina-se para os texanos ricos, salvo erro. Pois, procure um a bordo.
Ileana pousou o auscultador com lentidão e acendeu um cigarro. Em seguida, abriu a porta da varanda e assomou, apesar do frio, para contemplar a cidade iluminada sob a noite de Inverno.
Ouvindo vozes abafadas, debruçou-se um pouco no parapeito e, na varanda do piso inferior, viu um homem e uma mulher abraçados.
Beijavam-se com arrebatamento, aparentemente indiferentes à baixa temperatura. Ileana estremeceu e retrocedeu, para fechar a porta sem produzir ruído.
Havia muito tempo que não experimentava uma sensação como a da mulher que acabava de ver e perguntou-se vagamente se isso voltaria jamais a acontecer. De súbito, reconheceu que se tratava de uma impossibilidade. Todo o seu romantismo ficara sepultado no passado. Mais concretamente no quarto da mãe, quando ela tinha apenas dezanove anos.
Pensou nos pais pela primeira vez desde longa data. O pobre pai perdera-se. E a Querida também, à sua maneira. Era curioso que ela tivesse necessitado de tanto tempo para os compreender.
Somente agora, quando não existia ninguém a quem se apoiar ou amar, experimentava uma afinidade com eles. E sentia-se igualmente perdida. Notou uma sensação pouco vulgar nos olhos e compreendeu que chorava por eles.
Cappítulo XXIII
Baker reclinou-se na cadeira atrás da secretária e encarou o capitão Strang.
- Creio que surge finalmente a primeira oportunidade animadora, Dan. Cardinali quer encontrar-se com o tio. Se a reunião se concretizar e o tio for quem eu penso, poderemos solucionar este caso.
- Não era sem tempo - comentou o outro, com um sorriso. - Mas supõe que a quadrilha liquida Cesare antes disso?
- Não podemos permitir que tal aconteça. - Baker inclinou a cabeça pensativamente. - Os factores em jogo são demasiado importantes.
- Não podemos protegê-lo cada vez que o alvejam.
- Pois não. Mas tenho um plano.
- Ouçamo-lo.
Conservou-se silencioso por um momento e, em tom confidencial, advertiu:
- Isto tem de ficar entre nós. O chefe não aprovaria, porque foge um pouco à prática regulamentar.
- Começa a agradar-me - admitiu Strang, tornando a sorrir. - E ainda não o ouvi.
- Assustá-lo-emos para que se esconda. Iniciaremos uma campanha de intimidação. Telefonemas a cada hora. Ameaças. Poremos os tipos mais duros no seu encalço e permitiremos que os veja. Ele pensará que são membros da quadrilha. Acabará por ceder, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais não seja, para se ocultar até à marcação do encontro.
- Talvez resulte - concedeu, com ar pensativo.
- Tem de resultar!. Depois de o termos encurralado num sítio, montaremos um rigoroso sistema de vigilância. Não sairá nem entrará ninguém sem o nosso conhecimento.
- Se a coisa abortar, arriscamo-nos a ser postos na rua.
- Estou perfeitamente ciente disso - declarou Baker.
- Detestas mesmo o fulano, hem?
- A mais não poder. - Acudia-lhe uma indignação tão profunda, que se levantou e aproximou da janela. Quando prosseguiu, a voz tremia. - Consigo compreender a maior parte desses indivíduos. Vi os lugares de onde provêm, o nada com que iniciaram as vidas. Sei quando descambaram no crime e porquê. Mas este tipo excede toda a minha capacidade de compreensão.
- Principiou a vida com tudo. E, até onde nos é possível averiguar, não ambiciona nada. Talvez goste de matar.
- Se não encontrarmos uma maneira de lhe pôr um travão, morrerão muitas mais pessoas. E não me refiro apenas a gangsters, mas a inocentes, como aquela rapariga na Florida. Ninguém pode prever até onde irá um psicopata destes!
Strang encheu os pulmões de ar e expeliu com lentidão, enquanto sacudia o cachimbo no cinzeiro. Por fim, fitou o interlocutor e, com um sorriso que atenuava a amargura das palavras, articulou:
- Já consagrei trinta anos da minha vida ao departamento. E nunca tinha aspirado a uma ocupação fixa!
O telefone começou a tocar e Cesare levantou o auscultador.
- Fala Cardinali.
A voz do outro extremo do fio era áspera e totalmente desconhecida.
- Cardinali? - proferiu em tom ameaçador. - O Estilete perdeu a sua utilidade. Havemos de te liquidar, mais cedo ou mais tarde. Por que não facilitas as coisas a todos?
A ligação foi cortada com brusquidão e ele bateu repetidamente com os dedos no descanso.
- Está? Quem fala?
Por fim, pousou o auscultador e voltou para o sofá onde Luke se encontrava com uma expressão de curiosidade.
- Que foi?
- Uma ameaça. Provavelmente de um gangster barato qualquer.
- É assim que começam - murmurou ela, pensativamente. - Conheço a rotina. Procuram arrasar os nervos.
- Se pensam que conseguem fazer-me entrar em pânico com telefonemas destes, hão-de descobrir que sou diferente dos porcos que estão habituados a enfrentar! - vociferou Cesare, dirigindo-se para a porta.
- Onde vais?
- Certificar-me de que Ileana segue para o aeroporto. Queres vir?
- Não, obrigada. Posso continuar a viver satisfatoriamente, sem me despedir da tua amiga.
Cesare sorria, quando emergiu do edifício da Italian Airlines e se encaminhou para o parque de estacionamento onde deixara o carro. Ileana daria conta do recado. Não necessitava de se preocupar com ela. A mensagem seria entregue.
Não obstante, havia algo nela digno de admiração. Que outra mulher manteria os olhos bem abertos em busca de uma oportunidade, numa situação daquelas? Ele quase soltou uma gargalhada ao evocar a maneira como descobrira o rapaz. Fora por causa do chapéu de vaqueiro branco. Tratava-se de um texano rico, como não podia deixar de ser. E seria substancialmente mais pobre antes do final da viagem.
Entrou no parque de estacionamento e principiou a percorrer a passagem entre as extensas fiadas de carros. Era tarde e o local achava-se quase deserto. De súbito, apercebeu-se de passos que pareciam acompanhar o ritmo dos seus, e deteve-se por um momento, a fim de olhar para trás.
Não avistou ninguém e, com um encolher os ombros, prosseguiu. Os passos reapareceram. Fez uma pausa para acender um cigarro e tornaram a extinguir-se. Acendido o cigarro, reatou a marcha.
No momento imediato, voltou a ouvi-los. Eram pesados e deliberados. Desta vez, não tinha a menor dúvida de que o seguiam. Abrandou o andamento, para verificar se o imitavam, como na realidade aconteceu.
Entretanto, achava-se quase junto do seu carro e puxou o estilete para a palma da mão. O contacto frio do aço era tranquilizador. Avançou para o espaço entre dois automóveis e rodou subitamente nos calcanhares, de estilete apontado.
- Quem está aí? - perguntou numa inflexão que ecoou de forma sinistra no parque deserto.
Não obteve resposta e aguardou um momento, no meio de um silêncio quase sepulcral. Provavelmente, limitara-se a ouvir o eco dos seus próprios passos. Fez o estilete deslizar para o antebraço, onde se encontrava a mola, ao mesmo tempo que reflectia que se deixara influenciar por aquele estúpido telefonema. Quando se sentou ao volante, soltou uma breve risada para aliviar a tensão.
Ligou o motor, enquanto sentia a excitação crescente na virilha, como sempre que acabava de experimentar algum perigo. Pensou em Luke, que o aguardava no apartamento, e congratulou-se por poder contar com ela, naquela noite, pois necessitava de alguém para se descontrair.
Conduziu o Alfa-Romeo para a saída do parque de estacionamento, enquanto continuava a pensar nela. Conhecia aquele tipo de mulher e sabia que não acompanhava um homem qualquer. Era motivada pela identificação. E quando encontrava o que procurava, dir-se-ia que se tratava da chave mágica do seu corpo, deixando então de poder dominar os desejos.
Depois, surgia a luta para afirmar a sua superioridade. Em primeiro lugar, sexualmente, através de exigências para além dos limites da satisfação. Cesare sorriu para consigo. Era o ponto em que se achava naquele momento. Depois, vinham as outras, a insistência na aceitação como igual por parte do homem no trabalho e, por fim, a superioridade em virtude da feminilidade.
Essa vitória final nunca a alcançaria. com ele ou com alguém que o atraísse, pois não se sentia inclinada para os fracos. Por esses, apenas experimentaria desdém. E a derradeira fase das suas reacções consistia na exigência da rejeição que surgia no final. Isso era uma coisa que conseguiria sempre.
E porque isso constituía o detergente com que se lavava e absolvia a consciência, para poder prosseguir em frente e repetir a rotina da sua vida. Por conseguinte, quando tudo terminasse, Cesare não teria grande dificuldade em fazer o que lhe competia. De certo modo, fora ela que o provocara. Nessa altura, ele também estaria preparado. Ter-se-ia satisfeito e enfastiado dela.
E Ileana regressaria então ao seu convívio. Pensou nela com um sorriso. Talvez acabassem por casar. Era altura de começar a concentrar-se na tarefa de perpetuar o seu nome. Os laços de sangue seriam similares, além de que Ileana era europeia.
Os Europeus eram muito mais sinceros que os Americanos e muito mais realistas. Em comparação com as complexidades de Luke, Ileana parecia tão simples e franca como uma colegial.
CAPÍTULO XXIV
- Já lá vão dois dias - lembrou Strang. - Como achas que estão as coisas?
- É difícil de dizer - replicou Baker, com um encolher de ombros. - Ele atende o telefone e desliga antes de completarmos a mensagem. - Puxou de um cigarro e acendeu-o. - Qual é a opinião dos teus homens do serviço exterior?
- Já os substituí seis vezes. Afirmam que Cardinali principia a enervar-se, através dos sintomas habituais. Olha por cima do ombro, hesita antes de transpor uma porta, etc.
- E a mulher?
- Parece que resiste mais. Está sempre a seu lado, mas talvez desconheça a situação.
- Recebi um relatório a seu respeito. Não apresenta nada de suspeito. É piloto de carros de corrida e nada má a avaliar pelo que se apurou. Teve azar e perdeu o veículo o ano passado. Agora, faz economias para comprar outro.
- Isso não nos adianta muito - comentou Strang. - Não explica a ansiedade em o ilibar do que aconteceu no deserto mexicano.
- Deve estar muito ansiosa em adquirir o carro, e ele é a pessoa indicada para lho proporcionar.
- Para já, não. Descobrimos que as suas concessões foram canceladas.
- Todas? - estranhou Baker.
- Todas. Quem sabe se isso se revestirá de algum significado?
- Talvez. Tratarei de indagar, em todo o caso. - O telefone tocou e ele estendeu a mão para o auscultador. - É para ti - indicou, passando-o a Strang.
Este escutou em silêncio por um momento e cortou a ligação.
- Era um dos meus homens. Cardinali e a mulher acabam de entrar no Pavillon da 57 th Street para almoçar.
- Boa altura para mais um telefonema. - Baker tornou a pegar no auscultador. - Chamem Cardinali no Pavillon e passem a cassette mais uma vez - indicou para o bocal.
- Garanto-te que vi o homem seguir-nos - insistiu Cesare. Conheço-o de algum lado.
- Tens a certeza? - Luke enrugou a fronte, com incredulidade. - Não me apercebi de ninguém.
- Estava junto da esquina da Park Avenue. Tenho a certeza absoluta.
Ele calou-se, quando o empregado lhes serviu os coquetéis, após o que ela pousou a mão na do companheiro e declarou:
- Precisas de descansar. Esta noite, quase não pregaste olho.
- Quem é que consegue dormir com o raio do telefone a tocar? - retorquiu ele, irritavelmente. - Houve quatro telefonemas antes de decidirmos deixar o auscultador fora do descanso.
- Eu mandava-o desligar definitivamente.
- Para se convencerem de que conseguiram assustar-me? Era o que eles queriam.
Naquele momento, o empregado reapareceu com um telefone.
- Há uma chamada para o conde Cardinali - informou, com uma leve mesura.
Cesare lançou um olhar desesperado a Luke, que decidiu:
- Eu atendo.
O homem tornou a inclinar-se respeitosamente e em seguida introduziu a ficha na tomada junto da mesa, todavia foi Cesare quem aceitou o auscultador.
- Fala Cardinali.
Ela viu o rosto tornar-se tenso, à medida que escutava, até que cortou a ligação sem voltar a pronunciar palavra.
- Eram eles - murmurou pausadamente, pegando no copo. - Como vês, não me enganei. Os tipos seguem-nos. Sabiam onde me encontrava.
O telefone começou a tocar no momento em que regressavam ao apartamento, e Tonio foi atender.
- Residência do conde Cardinali... - Virou-se para a porta e acrescentou: - Um momento, que vou ver se está. - Pousou o auscultador e aproximou-se deles. - Há uma chamada para si, excelência, mas a pessoa não quis dizer o nome. Afirma que tem um recado importante para lhe transmitir.
- Está bem.
Cesare levantou o auscultador, escutou em silêncio, enquanto o empregado se retirava e, de súbito, com uma expressão colérica, arrancou o telefone da tomada e atirou-o para o outro lado da sala.
- Maldito instrumento de tortura! - vociferou, sem se preocupar com a destruição de um valioso jarrão. Em seguida, afundou-se no sofá, ao mesmo tempo que Tonio acudia, pressuroso, com visível apreensão. - Varre os cacos depressa!
- Sim, excelência! Imediatamente, excelência! - O pequeno homem varreu os cacos e apressou-se a sair.
Cesare inclinou-se para a frente e pousou a cabeça nas mãos, enquanto Luke se postava atrás dele para lhe massajar a nuca com suavidade.
- Acalma-te - recomendou a meia voz. - Não adiantas nada com isso. vou preparar-te uma bebida.
Dirigiu-se ao armário, utilizou as garrafas de gim e vermute para confeccionar um martini e olhou em volta à procura de outra que contivesse algo susceptível de proporcionar o travo amargo, pois os Europeus não dispensam esse ingrediente nos seus aperitivos.
Como não a descobrisse nas prateleiras expostas, fez rodar a chave da pequena porta na retaguarda do móvel e deparou-se-lhe um frasco escuro solitário, no qual pegou, após o que se voltou para Cesare.
- Queres umas gotas disto? - perguntou, mostrando-lho.
- De onde tiraste esse frasco?
- Daqui de dentro. Sei que gostas...
- Coloca-o onde estava e evita abrir portas fechadas à chave! - foi a advertência em voz áspera.
- Não é preciso gritar - redarguiu ela, agastada, obedecendo.
- Desculpa, querida. - Ele descontraiu-se um pouco. - Se queres utilizar uma bebida amarga, encontra-la na prateleira da parte inferior.
- Mas que contém o frasco? - quis saber Luke, entregando-lhe a bebida.
Cesare levou o copo aos lábios antes de responder:
- Veneno. Infelizmente, não o posso pendurar na parede, como as outras armas. Obtive-o de um químico de Florença que procedia a pesquisas relacionadas com os venenos empregados por Lucrécia Bórgia. Bastam umas gotas, e não há antídoto. Disse que os conhecimentos de química da família Bórgia eram espantosos para a época.
- Eu não vivia sossegada com uma coisa daquelas em casa - murmurou ela, com um olhar turvo para o armário.
- Não há perigo. - Ele tornou a servir-se do copo. - Ninguém abre aquela porta, nem mesmo para limpar o móvel. - Reclinou-se no espaldar do sofá e fechou os olhos. - Estou arrasado.
- Eu sei - sussurrou ela, fazendo-lhe deslizar os dedos pelas têmporas. - Se houvesse um lugar para onde pudéssemos ir,
sem que nos descobrissem, até ao regresso de Ileana...
Cesare endireitou-se repentinamente e olhou-a com uma expressão de alívio.
- É isso mesmo! Por que não me ocorreria antes? Conheço o lugar ideal. Nunca se lembrarão de nos procurar aí.
Luke sorriu-lhe, ao mesmo tempo que se sentia assolada por um calor íntimo crescente. Começava a desenhar-se o período em que ele se aperceberia de como necessitava dela.
O sargento-detective McGowan consultou o relógio, que marcava vinte e três horas, e reflectiu que ainda faltava uma hora para que o seu substituto chegasse. Batendo os pés no chão para neutralizar um pouco o frio da noite, reconheceu que era aquela a única coisa desagradável da sua profissão. Encontrava-se diante do hotel desde as quatro da tarde.
No fundo, porém, não tinha razão de queixa. Pelo menos, não necessitava de tentar manter-se invisível, como na maioria das diligências. Era uma das facetas curiosas do seu trabalho. Na televisão, um detective particular seguia um suspeito praticamente até à cama sem ser visto. Na vida real, as coisas desenrolavam-se de maneira algo diferente. O capitão destacara seis homens para a presente missão. Havia um em cada entrada do vasto hotel e dois que contornavam o quarteirão constantemente num carro para manterem o contacto e prestarem assistência em caso de necessidade.
O veículo acabava de desaparecer na esquina da Lexington Avenue, quando ele se voltou para o hotel e os viu sair.
A mulher segurava uma pequena mala e o companheiro esquadrinhou a rua rapidamente com a vista, após o que pegou no braço dela e seguiram em direcção à Lexington Avenue, depois de ele abanar a cabeça, quando um táxi livre abrandou o andamento a seu lado.
McGowan não hesitou em os seguir, embora deplorasse que escolhessem aquele momento para sair. Assim não regressaria a casa antes das seis da manhã.
Cruzaram a rua na esquina e prosseguiram a caminho da 51 st Street. Ele continuou no seu encalço e, quando o homem se virou para trás, não tentou ocultar-se, em obediência às instruções recebidas. No momento em que os viu começar a descer os degraus da entrada do metropolitano, principiou a correr e alcançou o topo da escada no momento em que se ouvia chegar uma composição. Consciente de que o capitão não o nomearia para um louvor oficial se os perdesse, transpôs os degraus rapidamente, numa tentativa para os localizar.
Vislumbrou uma sugestão de sombra pelo canto do olho no instante em que começava a contornar a curva na base da escada e fez menção de se voltar. Procurou esquivar-se à mão que descia sobre ele num implacável golpe de judo, mas não conseguiu e a dor explodiu na base do crânio e propagou-se à cabeça.
Caiu pesadamente e, conquanto não perdesse o conhecimento por completo, via desfilar uma fiada interminável de luzes diante dos olhos, ao mesmo tempo que o cérebro parecia subitamente transformado numa sala de afinação de campainhas. Desenvolvendo um esforço prodigioso, sacudiu a cabeça e a visão desanuviou-se um pouco.
Estendeu a mão para a parede e, embora com certa dificuldade, pôs-se de pé, para permanecer imóvel por um momento, enquanto inspeccionava a plataforma com a vista.
Viu-os entrar para uma carruagem e principiou a mover-se atrás deles. No entanto, antes de alcançar a cancela, as portas fecharam-se e a composição começou a abandonar a estação. Ainda teve tempo de ver o rosto do homem através da vidraça da porta, e o sorriso de triunfo que descortinou não contribuiu para lhe levantar o moral.
com uma expressão mista de cansaço e desânimo, McGowan dirigiu-se à cabina telefónica, entrou, introduziu a moeda e ouviu-a tilintar no interior da caixa. O capitão não gostaria de se inteirar de que eles tinham escapado, mas podia tê-lo prevenido de que o homem sabia judo. Por fim, com um suspiro de resignação, começou a marcar o número.
Strang pousou o auscultador e virou-se para Baker.
- O plano funcionou - admitiu, secamente. - Mas funcionou bem de mais. O nosso homem derrubou McGowan numa estação do metropolitano e bateu as asas.
- A mulher também?
- Também.
Baker pegou num cigarro com dedos trémulos.
- Que Deus lhes acuda, se a quadrilha os localizar antes de nós.
- Se tal acontecer, mais vale que tenhas o pedido de demissão preparado - redarguiu Strang, com uma expressão lúgubre. - O meu já está pronto!
CAPÍTULO XXV
Há poucos lugares em Nova Iorque que resistem ao avanço da construção de habitações de baixo custo tão satisfatoriamente como a parte alta da Park Avenue. E um dos motivos reside no facto de constituir a meca comercial do Harlem espanhol. Aí, sob a via férrea da New York Central, por onde circulam as composições destinadas aos subúrbios, situa-se um dos últimos mercados da cidade.
As pessoas que o frequentam são, na sua maioria, de descendência porto-riquenha e movem-se entre os lugares ambulantes e artigos expostos nos passeios com a alegria e à-vontade, apesar da sua pobreza, que manifestavam na sua ilha tropical de origem. Também há hotéis, nessa secção da Park Avenue e, conquanto não se pareçam com os das áreas mais requintadas, desempenham funções similares. Constituem locais para dormir e comer e oferecem o isolamento necessário a um viajante fatigado. A diferença fundamental, à parte a decoração, consiste nos cartões de crédito. Os do Harlem espanhol só admitem clientes com dinheiro à vista.
Cesare voltou as costas à janela do Hotel del Rio, quando o comboio deslizou na linha em frente e contemplou Luke, que se sentava numa cadeira tosca, com os jornais da manhã na sua frente.
- Não haverá nada que possas fazer além de leres o raio dos jornais durante todo o dia? - resmungou, acendendo um cigarro.
Ela ergueu os olhos para o encarar. Havia cerca de uma semana que ele se mostrava excitado, nervoso e irritável. Tinham transcorrido mais de duas semanas desde que Ileana partira e eles conservavam-se encerrados naquele quarto a maior parte do tempo.
A princípio, fora divertido. Haviam rido de todos os pequenos desconfortos: a torneira permanentemente gotejante, o ranger das molas da cama, o estofo coçado da poltrona. Depois, a pouco e pouco, o ambiente começou a acabrunhá-los, até que, uma manhã, deixou de lhes provocar a menor hilaridade.
Luke estava plenamente consciente do que se aproximava, mas Cesare não. As mulheres adaptavam-se muito melhor que os homens. Tinham muito mais paciência. Achavam-se mais bem equipadas para esperar. Mental e fisicamente. Ela recordava-se de ter sentido uma sugestão da dor que costumava acompanhar o início do seu período. Todavia, não acontecera nada, o que a levou a ponderar vagamente se estaria grávida. Já passara mais de uma semana e era raro verificar-se um atraso tão pronunciado.
- Por que não te deitas um pouco? - sugeriu, pacientemente. - Sempre descansavas.
- É a única coisa que se consegue, neste pestilento hotel! - bradou ele. - Isso e comida intragável! Começo a estar farto!
- É melhor que estar morto!
- Confesso que já não tenho muito a certeza disso - grunhiu, virando-se de novo para a janela.
Ela tornou a concentrar-se no jornal, mas Cesare voltou a falar e ergueu os olhos, verificando que continuava virado para a rua.
- Costumava ver pessoas como aquelas lá em baixo na aldeia da Itália, quando era pequeno. Olha para elas. Sorriem e gritam, enquanto rebuscam o lixo à procura de algo para comer.
Luke levantou-se da cadeira e reuniu-se-lhe, para observar a rua.
- Parecem felizes. Ou, pelo menos, contentes.
- É o que nunca consegui compreender - murmurou ele, com uma expressão meditativa. - Que torna essa gente permanentemente feliz? Que possui que nos falta? Ignorará que o mundo pertence aos privilegiados que sabem apoderar-se das coisas?
Não o deve ignorar. Apesar disso contenta-se em sorrir, dar gargalhadas e fazer filhos. Que possuirá que nos falta? Ela olhou-o com curiosidade e recordou-se dos seus tempos de criança, com a excitação que sentia ao visitar a vila nos dias de feira. "Pobre Cesare... Havia tantas coisas que nunca tivera."
- Talvez seja a esperança - aventurou.
- Esperança? - Ele soltou uma risada de escárnio. - É uma palavra inventada pelos sonhadores.
- Ou a fé - persistiu ela, empenhada em que compreendesse.
- Essa foi inventada pelos padres - retorquiu ele, com nova gargalhada.
Luke não pôde conter-se de lhe pousar a mão no braço exposto. Talvez o conhecimento brotasse do contacto dela, para o invadir. O conhecimento do que sentia.
- Ou o amor - acrescentou com suavidade.
Cesare olhou-a e voltou a cabeça, ao mesmo tempo que retirava o braço.
- Essa é a maior fraude de todas. Inventaram-na as mulheres para encobrir as suas necessidades e deveres biológicos. O amor... Cantigas!
Ela regressou à cadeira e pegou no jornal, sem todavia o ler, nem ver sequer. Acudia-lhe uma dor estranhamente familiar que parecia decidida a devorar as entranhas.
- Então, é possível que eu não entenda nada da vida.
Ele afastou-se da janela para se postar na sua frente e contemplá-la. Luke não necessitava de erguer os olhos para pressentir o sorriso cruel que exibia, pois observara-o com frequência nos últimos dias. Cada vez que lhe voltava as costas, que ignorava a necessidade desesperada que a consumia.
- É exacto. Não entendes. A verdade é" que ninguém a entende. Mas sou o único que a admite. Não há nada mais para os homens do que o desejo de existir. E, a maior parte deles, não se importa como. Basta existir. No dia-a-dia. Ano a ano. Para nada.
Ela preparava-se para replicar, quando bateram à porta e, acto contínuo, surgiu um estilete na mão de Cesare.
- Quem é? - perguntou Luke.
- Trago os jornais da tarde, minha senhora - anunciou a voz do porteiro.
- Deixe-os aí, Já os vou buscar.
Aguardaram um momento, até que os passos se afastaram e, obedecendo a um sinal de Cesare, ela levantou-se e aproximou-se da porta. com um movimento rápido, abriu-a, recolheu os jornais e tornou a fechá-la, após o que os levou para a cadeira e principiou a folhear um.
No entanto, ele arrancou-lho da mão com um gesto brusco, enquanto vociferava:
- Nunca mais largas essa porcaria? - E tornou a acercar-se da janela.
Luke inclinava-se pacientemente para o apanhar, quando viu a fotografia.
- Olha! - exclamou, mostrando-lho. - Ela já voltou!
com efeito, numa página do Journal-American, via-se a imagem de Ileana, que sorria e acenava à objectiva da escada de desembarque de um avião. A legenda revestia-se da maior simplicidade: "Baronesa de regresso de férias no estrangeiro."
O grupo de homens no gabinete de Baker inclinava-se atentamente para a frente, enquanto a voz de Ileana vibrava no altifalante em cima da secretária.
- Está?
- Fala Cesare. - A inflexão parecia tensa e fatigada. Trazes alguma mensagem?
Um dos agentes pegou noutro telefone e murmurou algo para o bocal.
- Onde estás, Cesare? - volveu Ileana.
Baker ergueu os olhos para o agente que telefonava e explicou: - Ela procura ganhar tempo, como lhe indicámos. Estão a tentar localizar o telefonema?
- Movemo-nos o mais rapidamente possível - afirmou o outro.
- Trago - prosseguiu Ileana. - Mas confesso que não a compreendo.
- Isso não interessa! - redarguiu ele. - De que se trata?
- A Lua nasce esta noite - informou ela, em tom hesitante. Soou um estalido no altifalante, indicativo de que ele desligara, e, após um breve silêncio, Ileana exclamou:
- Cesare! Cesare! Estás aí?
- Localizaram-no? - perguntou Baker ao agente.
- Desligou demasiado cedo - anunciou o interpelado, meneando a cabeça.
- Cesare? - insistiu Ileana.
Baker pegou no outro telefone da secretária e revelou:
- Ele desligou, baronesa.
- Não fiz como me mandaram? - A voz dela deixava transparecer uma ponta de alarme. - Retive-o até onde me foi possível.
- Procedeu exactamente como convinha - assegurou ele, com uma confiança que não sentia. - Temos a situação dominada. - Pousou o telefone e virou-se para o agente. - Obrigado. Pode retirar-se.
- Deve haver alguma coisa que se possa fazer, se ele abandonar o esconderijo, amanhã.
-O quê?
- Enviou uma mulher ao estrangeiro para transmitir e receber uma mensagem - lembrou outro agente.
- Não existe nenhuma lei que o proíba.
Os dois homens menearam as cabeças com expressões compungidas e abandonaram o gabinete, enquanto Baker e Strang, sentado na sua frente, se olhavam em silêncio.
- Foi uma boa tentativa, George.
- Mas insuficiente - replicou Baker, com um sorriso.
- Fizeste tudo o que pudeste.
Levantou-se, com o travo amargo da derrota na boca, e declarou:
- vou ser franco. - Aproximou-se da janela e contemplou a rua distraidamente. - Se Cardinali aparecer amanhã, isso significará que o Estilete levou a sua avante. De contrário...
bem, em qualquer dos casos ficamos a perder. Continuamos tão longe de Matteo como dantes. - Virou-se para dentro e concluiu em inflexão amargurada: - Eles venceram, Dan. Tanto de uma maneira como da outra, perdemos.
CAPÍTULO XXVI
Abandonaram o hotel cerca das dez horas da noite.
- Não é longe daqui - disse ele, enquanto se afastavam a pé. Deixaram a Park Avenue na 116 th Street e dirigiram-se para Madison, efectuando mais alguns desvios em diferentes esquinas, até que tocou no braço dela. - É em frente.
Luke viu um daqueles edifícios antigos que tinham um bar e restaurante na cave, encimados por um letreiro de néon com os dizeres "Bar e Restaurante Quarto Crescente".
Cesare conduziu-a para além da entrada do estabelecimento e subiram os degraus de acesso ao edifício, cuja porta se encontrava aberta. Entraram num átrio iluminado por uma lâmpada de fraca intensidade suspensa do tecto e ela perguntou:
- com quem vamos falar?
- com Matteo, evidentemente - replicou ele, imperturbável.
- Julgava que não podia entrar no país - volveu Luke, surpreendida.
- Ele e muitos outros - assentiu Cesare, com um sorriso, pegando-lhe no braço. - Anda.
Uma vez no primeiro andar, Cesare deteve-se diante de uma porta e bateu discretamente.
- Entre - indicou a voz de Matteo. - Não está fechada à chave.
Cesare obedeceu, e Luke verificou com admiração que se tratava de um gabinete de trabalho decorado com conforto, de modo algum de acordo com o que esperava em semelhante prédio.
Cesare fechou a porta atrás deles e Matteo ergueu os olhos da secretária para os contemplar:
- Conde Cardinali! E -Miss Nichols! Confesso que estou admirado.
Cesare deixou-a à entrada, acercou-se da secretária e fitou Matteo em silêncio.
Entretanto, Luke observava o que a rodeava. Havia outra secretária ao canto, com uma máquina de escrever, seguindo-se um ficheiro metálico e, ao lado, uma arcada protegida por um reposteiro que provavelmente conduzia à casa de banho. O único pormenor estranho consistia na aparente inexistência de janelas. De súbito, ouviu de novo a voz de Matteo e voltou-se para ele.
- Solicitaste um encontro, sobrinho.
- É verdade. Queria conversar consigo acerca de um mal-entendido entre nós.
- Continua.
- Quando nos vimos pela última vez, reconheceu que eu tinha executado o meu trabalho de modo satisfatório. - Cesare exprimia-se em voz baixa. - A Sociedade estava contente comigo.
- É exacto.
- Então, por que exigem a minha morte? - inquiriu calmamente.
Emílio entrelaçou os dedos sobre o estômago e reclinou-se na cadeira.
- És jovem, sobrinho, e há muitas coisas que não compreendes.
- Que coisas?
- A Sociedade deve a sua existência a uma regra simples - explicou em voz firme. - Uma regra simples que a ajudou a sobreviver a muitas guerras e muitas épocas de provações difíceis e alcançar o poder que hoje detém. E essa regra consiste na nossa força. "Não pode viver o homem que ameace a segurança dos outros."
- Não a infringi - apressou-se Cesare a proclamar. - Excepto a pedido da Sociedade para proteger alguns dos seus membros.
A voz de Emílio continuava paciente, como se se dirigisse a uma criança.
- É deplorável, sem dúvida, mas esse facto representa agora uma espada aguçada apontada às nossas gargantas. A Polícia suspeita de ti e se, por qualquer circunstância indesejável, o que sabes chegasse ao conhecimento das autoridades... - Interrompeu a frase significativamente.
- Não descobrirão nada por meu intermédio.
- Acredito, mas haveria prejuízos graves se ambos laborássemos em erro. Os outros não manifestam a mesma confiança que nós.
- Porquê? - inquiriu Cesare. - Cumpri o juramento. E não pretendo nada deles.
- É precisamente isso - apressou-se Emílio a salientar. A preocupação deles reside aí. Um homem sem ambições não tem nada para proteger. Não és como Dandy Nick, Big Dutch ou Allie, que já eliminaste. Esses tinham motivos para ser leais, tinham algo a proteger, lucros a proporcionar. Ao invés, tu, caro sobrinho, não nos dás qualquer lucro, nem produzes nada. Não passas de um diletante, apenas interessado na excitação e perigo, como um garoto.
- Portanto, em virtude de Dandy Nick, exigem a minha morte.
Emílio conservou-se silencioso por uns segundos, enquanto estendia as mãos com as palmas para cima, num gesto de impotência.
- Por essa razão, deves cumprir o teu juramento à Sociedade.
Luke vislumbrou um movimento atrás do reposteiro e, aterrorizada, gritou:
- Cuidado, Cesare!
Este rodou nos calcanhares tão rapidamente, que ela não se apercebeu do estilete que lhe voou da mão. No instante imediato, cravava-se no reposteiro e no homem oculto na arcada, que o segurou convulsivamente e caiu, ao mesmo tempo que uma automática rolava no chão, para se imobilizar perto de Luke.
Cesare apressou-se a ajoelhar junto do homem, para lhe retirar o reposteiro de cima, após o que se voltou para Emílio.
- É Dandy Nick - proferiu com aspereza. - Agora, em conformidade com a lei, já não constituo perigo para ninguém!
- Há ainda uma pessoa, caro sobrinho - redarguiu o outro, a meia voz.
- Quem?
- Eu.
Surgiu subitamente uma pistola na mão de Emílio, cujo indicador começou a exercer pressão no gatilho. Ao mesmo tempo, reflectia que, até certo ponto, era deplorável ter de terminar tudo assim, pois Cesare reunia quase todas as condições para se converter num Dom.
Achava-se tão imerso em cogitações, que não viu Luke pegar na automática com um gesto rápido e fazer fogo. O impacte da bala no ombro obrigou-o a vacilar para trás, enquanto a arma lhe saltava da mão.
Cesare não perdeu tempo em se acercar, com o estilete erguido acima da cabeça.
- Não, por favor! - exclamou Matteo, horrorizado. - Falarei aos conselheiros! Hão-de escutar-me!
- É demasiado tarde, tio! - retorquiu Cesare, com uma risada brutal. - As regras deles condenam-no! com a sua morte, fico livre de perigo!
Profundamente impressionada, Luke viu o estilete cravar-se numerosas vezes no corpo de Emílio, até que não se pôde conter e bradou:
- Pára, Cesare. Já basta!
Ele endireitou-se com lentidão e virou-se para ela, enquanto a expressão maníaca começava a dissipar-se do olhar. Quando se lhe reuniu, sorria e pegou-lhe no braço, a fim de a conduzir para a porta.
Antes de a transporem, voltou-se para trás e, com uma leve gargalhada, declarou:
- Desconfio que ele começava a convencer-se de que era realmente meu tio.
Abriu a porta do apartamento e entraram, após o que se foi sentar à secretária, para afastar o monte de correspondência por abrir, puxar do livro de cheques e começar a preencher um.
Luke aproximou-se por detrás e principiou a massajar-lhe a nuca com suavidade.
- Como é bom regressar a casa!
Cesare acabou de preencher o cheque, arrancou-o do livro e estendeu-lho.
- Aqui tens! - disse com brusquidão.
Ela imobilizou-se e olhou-o com perplexidade.
- Para que é isso?
- Não querias um Ferrari? - A voz dele era inexpressiva e os olhos pareciam os de um estranho. - Agora, pega nas tuas coisas e põe-te a andar!
Luke fitava-o com incredulidade, ao mesmo tempo que sentia um desconforto indefinível no estômago, mesclado com uma impressão de náusea crescente. Voltava a acontecer. Voltava a acontecer a mesma coisa!
- Pensas... - A voz faltou-lhe por um momento. - Pensas que foi por isso que fiquei contigo?
Ele levantou-se e dirigiu-se ao armário das bebidas, para verter uísque num copo, que esvaziou de um trago.
- O que penso não interessa - replicou, voltando-se. - As nossas relações terminaram!
Luke reflectiu que tinha de lhe dizer. Se ele soubesse que a engravidara, talvez não se comportasse daquela maneira. No fundo, não tinha culpa. Sofrera tantas contrariedades, ultimamente...
- Que vou fazer, Cesare? Estou... não...
Ele estendeu a mão para a porta do armário, abriu-a e pegou no pequeno frasco preto, que pousou ao lado da garrafa de uísque.
- Estou-me nas tintas para o que fizeres, mas tens uma alternativa. Sabes o que este frasco contém.
Meia dúzia de gotas e, em três minutos, terminam todos os teus problemas. Sem dor, posso garantir-te!
Encaminhou-se para a porta e ela seguiu-o, alucinada.
- Vais ter com ela?
- Exacto. - Cesare exibiu um sorriso cruel. - Estou farto de ti. Cansei-me de dormir contigo em lençóis encardidos e malcheirosos, flagelado pelas tuas tentativas amorosas plebeias! Acertaste no que disseste a primeira vez que nos vimos. Ela pode proporcionar-me mais em dez minutos do que tu em dez dias. E acabas de o provar!
- Já não me queres? - murmurou ela, segurando-o pela banda do casaco.
- Não é bem isso - retorquiu ele, desprendendo-se. - Já não preciso de ti.
Afastou-se e Luke conservou o olhar fixo na porta por um momento. Em seguida, voltou-se e moveu-se lentamente em direcção ao sofá. Tornara de facto a acontecer. Fixou o olhar no frasco de veneno e reconheceu que ele tinha razão. Era a única solução para alguém como ela.
Preparava-se para o utilizar, quando as náuseas se acentuaram. Apavorada, precipitou-se para a casa de banho, ajoelhou diante da sanita e vomitou, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe ardiam nos olhos. Por último, esgotada, pousou a cabeça na porcelana fria, enquanto as lágrimas rolavam livremente pelas faces. Agora, não subsistia a menor dúvida quanto ao seu estado.
CAPÍTULO XXVII
Cesare fez girar a chave na fechadura e entrou no apartamento de Ileana. As luzes estavam acesas e ouviu a água correr no chuveiro. Sorriu, acercou-se da entrada da casa de banho e chamou:
- Ileana!
O ruído extinguiu-se com brusquidão e a voz dela perguntou receosamente:
- És tu, Cesare?
- O próprio - foi a resposta com uma gargalhada. - Voltei.
- Estás bem?
- Estou óptimo. Despacha-te, que tenho uma coisa importante para te dizer!
Ele afastou-se da porta, com uma sensação de bem-estar. Chegara o momento de assentar arraiais. A época da aventura terminara e principiava o período destinado à constituição de família. Compreendia agora ao que o pai se referira, quando lhe recomendara:
"Não deixes o nome extinguir-se, meu filho. Toma a precaução de não desperdiçares toda a semente."
Naquele momento, ouviu Ileana pedir:
- Importas-te de me dar o estojo de maquilhagem? Não quero que me vejas sem bâton. Está em cima da mesa-de-cabeceira.
Cesare soltou uma breve risada ao recordar-se de tantas vezes que a vira sem pintura. No entanto, admitiu que não lhe custava nada habituar-se aos seus pequenos caprichos, pois fariam parte da sua vida juntos.
Dirigiu-se à mesa-de-cabeceira, abriu a carteira para extrair o estojo, mas a pega resvalou-lhe da mão e o conteúdo verteu-se no chão. Preparava-se para o recolher, quando um sobrescrito lhe despertou a atenção. Ostentava os dizeres: "Governo dos Estados Unidos - Assunto Oficial", o que o impeliu a examinar o conteúdo. Assim, desdobrou a folha de papel timbrado e leu:
A pedido de Mr. George Baker, do Federal Bureau of Investigation, temos o prazer de lhe comunicar que a sua petição de um visto para residir permanentemente no país foi deferida. Queira apresentar-se numa das nossas delegações, munida desta carta e do passaporte, para regularização da situação.
Endireitou-se com lentidão, desinteressando-se do estojo de maquilhagem, e abriu a porta da casa de banho antes de se compenetrar inteiramente do significado da carta. Ela trabalhava para Baker! Não podia haver outra razão para o auxílio que lhe prestara na obtenção de autorização para fixar residência nos Estados Unidos.
Ileana encontrava-se diante do espelho e apertava o cinto do roupão, quando ele surgiu. O sorriso que começara a desenhar-se-lhe nos lábios extinguiu-se no momento em que notou a expressão do rosto.
- Que tens?
De súbito, viu a carta que tinha na mão e arregalou os olhos.
- Por que fizeste isto? - perguntou ele, detendo-se à entrada, com um olhar glacial. - Procuraste-me como uma amiga necessitada de ajuda e não ta neguei. Porquê?
- Fui obrigada - sussurrou ela, baixando os olhos. - Não tive qualquer alternativa.
- Não acredito - volveu, principiando a avançar para ela. - Podias ter-me revelado tudo e descobriríamos uma solução.
Ileana viu-o erguer a mão com lentidão e descobriu com estranheza que não tinha medo, agora que o clímace surgira, perguntando-se se as outras vítimas experimentariam uma reacção similar.
- Não faças isso - advertiu com serenidade. - Agora, não escaparás às consequências. Eles saberão que foste tu. - Calou-se por um momento, enquanto ele conservava o braço levantado, hesitando. - Estás doente, querido. Deixa-me ajudar-te.
- Já ajudaste de mais - ripostou ele, com amargura. Imagina que cheguei a ser suficientemente estúpido para pensar em casar contigo!
Ela tentou alcançar a porta, mas não foi além de dois passos. O gume da mão dele atingiu-a na base do crânio, prostrando-a sem sentidos.
Cesare contemplou-a por uns segundos, enquanto tentava dominar a respiração acelerada e raciocinava apressadamente. Não se atrevia a utilizar o estilete, pois constituiria a assinatura do acto. Tinha de haver uma maneira de conferir à morte dela o aspecto de um simples acidente. Como fizera no caso de Barbara.
De súbito, acudiu-lhe uma ideia luminosa. O suicídio representaria a solução mais segura.
Ergueu-a nos braços e levou-a para junto da porta da varanda, que abriu para espreitar. Nevava com certa intensidade e a noite glacial que envolvia a cidade desencorajava as pessoas de assomar à janela. Arrastou Ileana para o parapeito, no qual a apoiou por um momento, a fim de a olhar com uma curiosidade não isenta de pesar.
O rosto apresentava-se lívido e calmo e, num recanto do espírito, ele ouviu ecoar a sua risada cristalina. Teria sido uma noiva admirável. Por fim, aplicou-lhe um leve impulso e ela desapareceu na noite.
Não perdeu tempo a observar a queda. Ao invés, voltou para dentro, disposto a abandonar o apartamento o mais depressa possível.
Uma vez na sua sala, encaminhou-se para o sofá, com a intenção de repousar um pouco, mas estacou ao ver Luke aparecer do quarto.
- Ainda cá estás? - Fez uma pausa sem obter resposta e afundou-se no sofá, para a increpar em tom brutal: - Por que esperas? Desaparece!
Inclinou-se para a frente e pousou a cabeça nas mãos, enquanto ela se dirigia ao armário e preparava uma bebida. Em seguida, acercou-se dele e estendeu-lhe o copo.
- Bebe isto.
Cesare aceitou-o e ingeriu o uísque de um trago, após o que o pousou na mesinha na sua frente, com um suspiro.
- Agora, vai buscar as tuas coisas e sai.
Sem replicar, Luke rodou nos calcanhares e entrou no quarto, enquanto ele tornava a reclinar-se no sofá, assolado por cansaço crescente.
No dia seguinte, partiria para uma estância de veraneio algures e, durante alguns dias, limitar-se-ia a bronzear o corpo. Fechou os olhos, reflectindo que passara muito tempo desde a última vez que saboreara os efeitos benéficos dos raios solares.
Por fim, decidiu deitar-se, mas quando tentava abandonar o sofá, o corpo pareceu revoltar-se e negar-se a obedecer. Aguardou um momento para reunir energias e efectuou nova tentativa com idêntico resultado.
Naquele momento, Luke reapareceu, com a mala na mão, e aproximou-se sem pronunciar palavra.
- Ajuda-me a levantar, por favor! - balbuciou ele. Sinto uma impressão estranha!
- Já ninguém te pode valer - articulou ela em voz neutra. Cesare olhou-a em silêncio por uns instantes e em seguida fixou o copo vazio na mesinha.
- Cadela! - rugiu, ao abarcar a situação. - Eu devia ter-te liquidado no deserto!
- Talvez - admitiu ela, como que alheada do que a rodeava. - Expliquei-te que não queria voltar a perder na vida. Virou-se para a porta e abriu-a.
Depararam-se-lhe Baker e vários agentes, que a impeliram para dentro. O primeiro contemplou Cesare com estranheza e voltou-se para Luke.
- Que tem ele?
Uma vaga recordação acudiu à mente de Cesare, que olhou os recém-chegados com uma expressão tensa.
- Está a morrer - informou ela, imperturbável.
- Lucrécia! - exclamou ele, subitamente.
- Chamem um médico, depressa! - ordenou Baker.
- É tarde de mais. - De repente, Luke soltou uma gargalhada quase histérica. - A única pessoa que lhe pode servir para alguma coisa é um padre!
- Chamem um médico, em todo o caso - persistiu Baker. - E levem-na daqui!
Strang entrou no momento em que ela e os agentes saíam, e anunciou:
- A baronesa não corre perigo de vida. Terá de ficar de cama por uns dias, mas não apresenta qualquer fractura.
- Mas Ileana morreu! - gemeu Cesare.
- Lamento desapontá-lo - retrucou Baker. - A varanda dela é menos saliente que a do andar de baixo. Assim, a queda não foi grande, além de que havia um toldo que a atenuou.
Cesare começou a rir como um alucinado e Strang perguntou a Baker:
- Que lhe aconteceu?
- Está moribundo. Ingeriu veneno!
Cesare olhou-os com amargura. No fundo, a situação revestia-se de certa ironia. Os imbecis ignoravam que os Bórgias não se envenenavam uns aos outros. Por um momento, sentiu-se tentado a revelar-lhes a verdade, mas acabou por preferir guardá-la para si. Seria mais uma coisa que os estúpidos carabinieri nunca averiguariam, e soltou nova gargalhada.
- Onde estão Matteo e Dandy Nick? - perguntou Baker, inclinando-se para ele.
- Morreram - redarguiu Cesare, com um sorriso. - Estão todos mortos.
- Por que se envolveu nisto, Cardinali? Você nunca ambicionou o que eles possuíam. Tinha tudo o que necessitava.
- Meu pai também costumava dizer isso - murmurou, começando a sentir dificuldade em focar os olhos no interlocutor -, mas o único motivo por que me aceitou em sua casa foi para perpetuar o seu nome. Só há duas coisas na vida que se revestem de significado. O nascimento e a morte. Tudo o que se situa no meio, viver, carece de importância. É o vazio.
Fez uma pausa para recobrar o alento.
- Somente quando mergulha as mãos neles um homem se pode considerar na verdade vivo. É com essa finalidade que penetramos uma mulher. Para voltar a nascer. É também por isso que você assiste à minha morte, para partilhar da excitação da minha agonia. Sente-se mais vivo neste momento que jamais em toda a sua existência!
Tornou a reclinar a cabeça no espaldar do sofá, enquanto a transpiração deslizava no rosto em grossas gotas.
- O homem endoideceu! - proferiu Strang, em voz rouca, empalidecendo. - Está doido varrido!
Cesare ergueu a cabeça para o observar. Necessitava de recorrer a todo o vigor que lhe restava para enxergar através do véu que descia diante dos olhos. Ao longe, distinguia o choro de uma criança. Talvez o homem tivesse razão e ele estivesse louco. Que fazia um recém-nascido num ambiente daqueles? De súbito, abarcou a verdade. Era o seu filho que chorava. Fora isso que Luke pretendera dizer-lhe. Transportava o filho dele no ventre.
Invocou as escassas energias que subsistiam para recuperar a voz e sentiu os lábios comprimirem-se numa agonia de esforço.
- Não estará... todo o mundo... um pouco... louco? - arquejou, enquanto o véu se adensava e fazia desaparecer os agentes do seu campo visual.
Harold Robbins
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