Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DUQUESA ACIDENTAL
A DUQUESA ACIDENTAL

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 17
Uma semana mais tarde, Lydia folheou rapidamente o correio matinal ao terminar o pequeno-almoço. Rosalyn sentara-se por perto, com o olhar aguçado a quem nada escapava.
Várias daquelas cartas eram convites. Rosalyn sabia quem eram os remetentes só de, do outro lado da mesa, vislumbrar o papel e a caligrafia, e oferecia recomendações sobre quais deveria aceitar, sem que
Lydia lhe tivesse pedido conselho. Lydia tinha esperança de que ela se enganasse pelo menos uma vez, o que não aconteceu.
Algumas outras cartas continham pedidos para causas beneficentes e ela leu a última. A maioria provinha de grandes e reputadas instituições de beneficência que aproveitavam a oportunidade de uma recém-duquesa
poder desejar patrociná-las, juntamente com tantos dos seus pares. Uma, contudo, fora enviada por uma instituição para a qual Lydia já contribuíra.
Nunca antes aquela instituição lhe escrevera e a carta despedaçou-lhe o coração. Era como que uma carta de despedida. As mulheres que a geriam agradeciam-lhe o seu último donativo e desejavam-lhe felicidades
na sua nova vida. Pareciam pressupor que, no futuro, ela encontraria destinatários mais em voga para a sua generosidade.
E talvez assim fosse, mas não para já. Lydia Alfreton faria pelo menos mais um donativo, decidiu. Muito em breve. Com a chegada do inverno, esse dinheiro seria necessário.
Percorreu o restante correio, estacando numa carta em particular. Reconheceu a caligrafia. Enjoada com o mau agoiro, abriu o envelope.
A carta não vinha assinada. Claro que não. Teve vontade de soltar palavrões quando a leu.
Vossa Senhoria,
Fiquei imensamente satisfeito com a notícia da sua boa sorte! Muito bem. Considerando as circunstâncias, será talvez mais adequado concluir o nosso acordo mais rapidamente do que me propôs, já que, para
um duque, a sua prosa poderá ser ainda mais problemática do que para um conde. Fico a aguardar a sua resposta.
Que desprezível patife. Batoteiro e mentiroso. Eles tinham um acordo. Ele já tinha quase três mil libras. Lydia nem sequer deveria ter de pensar nele durante um ano.
– Recebeu más notícias, Lydia? – Rosalyn espreitava a carta enquanto ferrava os dentes num dos bolinhos.
– Más notícias, não. Só inesperadas.
– Nesse caso, não recusará os planos que fiz para hoje. Gostaria que me acompanhasse nalgumas visitas, para que possa passar algum tempo com alguns dos seus pares. Tem muito a aprender com essas pessoas.
– Lamento, mas já tenho os meus planos. Esta manhã tenho marcação com o solicitador e depois devo visitar as minhas tias. Tenho-as negligenciado.
– Irei consigo, então. Não vejo a Amelia há algum tempo. Passamos por lá primeiro e mais tarde pode visitar sozinha a sua tia Hortense.
Não havia forma de escapar sem ser mal-educada. Lydia escusou-se e subiu aos seus aposentos para poder bater com o pé e gritar e praguejar contra Mr. Trilby em privado. Contudo, quando por fim leu novamente
a carta, sentia-se demasiado desanimada para qualquer tipo de histeria. É óbvio que ele não honraria o acordo. Ele não tinha qualquer tipo de honra. Era um chantagista.
Sarah reparou no seu estado e interrompeu a organização do guarda-roupa de inverno.
– Passa-se alguma coisa?
Lydia entregou-lhe a carta.
– Pensei que estava tudo resolvido. E agora ele envia isto. É como se ele nunca soubesse o que realmente quer. Concorda com uma coisa, uma semana depois muda as suas exigências e expectativas. Como será
possível alguma vez eu pagar a um chantagista se ele nunca se considera pago?
– É ousado, lá isso é. – Sarah devolveu-lhe a carta. – Está convencido de que agora a encurralou de vez, com o casamento, suponho. O preço do escândalo acabou de subir.
Sem dúvida que sim. Tinha subido para o valor de um duque. O custo de um tal escândalo para Penthurst vinha-lhe acometendo crescentemente o espírito.
Há dois meses, talvez tivesse gozado de um prazer perverso com a sua humilhação. Poderia ter encarado tudo como uma justiça retardada. Mas agora...
Poderia nunca vir a amá-lo, mas não podia negar o afeto que se desenvolvera, e não apenas devido ao prazer. Ainda lutava com o papel que ele desempenhara na sua vida e com o desfecho daquele duelo, mas
era-lhe cada vez mais difícil acreditar que ele o teria feito por algo insignificante.
Os seus pensamentos vaguearam de volta àquela noite, quando o ajudou a lavar-se. Nunca antes, com exceção de Sarah, revelara a quem quer que fosse os seus sentimentos por Lakewood. Mas Penthurst adivinhara.
Tinha visto o seu interesse naquele duelo por aquilo que realmente era. Se ele não tivesse exigido que lhe contasse, será que, ainda assim, não o teria feito? O impulso para o fazer vinha-se acumulando
desde que haviam proferido os votos. Talvez a sua esperança fosse de que, se colocasse essa pedra entre eles, talvez um deles conseguisse encontrar forma de a contornar e superar.
Não foi o que aconteceu. No entanto, a revelação mudara a forma como lidavam um com o outro. Não melhorou, mas também não piorou. Mais honesta, se calhar. Lydia sabia apenas que, ao verbalizar aquele ressentimento,
sentira que fora também aliviada de parte desse mesmo ressentimento.
E agora tinha recebido aquela estúpida carta, lembrando-a da pior forma de que ainda escondia segredos que poderiam causar muito mais danos do que qualquer confissão do seu amor infantil por outro homem.
– Não sei o que fazer, Sarah. Consigo imaginar-me a receber cartinhas como esta a vida inteira, enquanto ele ameaça repetidamente a minha exposição, sempre a pedir mais. Duvido que ele alguma vez diga
que já paguei o suficiente e que me entregue o manuscrito.
– Parece-me que deveria ter concordado com a minha ideia inicial, de o roubarmos.
– Bem, não posso sequer ponderar tal coisa agora. Seria um bonito serviço ser apanhada a assaltar a casa do Trilby.
Tendo em conta a história inventada para a fuga de casamento, os mexericos teriam assim algo com que se ocupar! Além disso, não lhe parecia que Trilby guardasse o manuscrito no lugar onde vivia. Havia
cada vez mais indícios de que ele era demasiado astuto para tal e que não arriscaria a possibilidade de Lydia enviar alguém à procura. Para um homem tão enfadonho, a verdade é que Trilby estava sempre
a tomar uma série de decisões inesperadamente argutas.
Lydia fixou os olhos na carta, cada vez mais irritada. Tinha assim demonstrado que não era de confiança. Nunca honraria qualquer acordo. Na sua carta, Trilby nem sequer fizera referência à sua exigência
de ver provas de que o manuscrito ainda estava em sua posse antes de fazer mais qualquer pagamento. Nenhuma das suas páginas acompanhava a carta. Também nenhuma promessa de entrega de provas. Tanto quanto
ela sabia, ele podia nem sequer ter o manuscrito completo. Se calhar tinha em mão apenas algumas páginas, tendo-as utilizado para a atrair mais profundamente para este seu esquema.
A simples ideia atordoou-a logo que lhe assomou ao espírito. Seria ele tão ousado? Tão manhoso? Se sim, ela não podia ter sido mais tola.
Mesmo que ele tivesse apenas algumas páginas, continuava sem saber como elas lhe teriam chegado às mãos. Ninguém tinha conhecimento daquele manuscrito, pelo que dificilmente teria imaginado que pudesse
ser roubado. Meia dúzia de páginas, contudo, poderiam ser mais fáceis de obter e passar de mão em mão. Um criado poderia ter encontrado tudo, poderia ter lido e constatado o valor daquelas listas, por
exemplo...
Uma outra coisa lhe saltou à mente. Uma memória antiga surgiu por entre a nuvem onde estava alojada – a imagem de um dia soalheiro de primavera, a sombra debaixo de uma árvore, uma hera a roçar-lhe a saia,
enquanto um livro de poesia era partilhado...
Não era verdade que ninguém soubesse do manuscrito. Lakewood soubera. Lydia falara-lhe nele sob aquela árvore. Trouxera uma parte na sua visita seguinte e entretivera-o, lendo-lhe algumas páginas.
Certamente ele não teria contado a mais ninguém. Porque haveria de fazê-lo? Nem poderia ter sido ele a levá-lo. Estava ainda na sua arca quando recebeu a notícia da morte dele.
– O que pensa fazer? – perguntou Sarah.
Lydia abriu uma gaveta da escrivaninha e colocou a carta sob uma pilha de papéis.
– Vou fazer o que deveria ter feito logo de início e tentar descobrir como foi que o manuscrito chegou às mãos de Trilby, se é que ele o tem sequer na sua posse.
– Talvez seja sensato distraí-lo por um tempo com algum dinheiro. No seu lugar, eu não gostaria de ter de explicar toda esta história ao duque.
Lydia revoltou-se com a ideia de dar àquele traste mais uma libra que fosse. Mas Sarah tinha razão. Talvez fosse inevitável fazer mais um pagamento, para o manter longe.
Duas horas depois, Lydia estava no escritório do irmão, sentada ao lado da secretária, onde Southwaite se sentava; o advogado da família, Mr. Ottley, ocupava uma cadeira encostada ao outro lado da mesa.
Sobre a secretária encontravam-se vários e grandes documentos em velino, redigidos com uma caligrafia floreada.
– Conforme acordado entre Lorde Southwaite e Sua Senhoria, a senhora deverá receber anualmente mil libras para despesas, a pagar trimestralmente. Deverá existir igualmente conta aberta para guarda-roupa,
no valor de duas mil libras por ano, a que acrescem mil libras no presente ano, para que possa adquirir os itens necessários ao seu novo estatuto. – Mr. Ottley entregou um dos documentos a Southwaite,
para que este os lesse e verificasse. – E este discrimina o acordo que está a estabelecer relativamente a Lady Lydia, a ser creditado em depósito fiduciário. Este outro terá de ser assinado por Lady Lydia.
Renuncia assim aos seus direitos de dote em troca de um montante único, que deverá ser repartido pelos descendentes por ocasião da sua morte. A adenda enumera as pensões para a gestão doméstica após a
morte do duque ou se em algum momento viverem em separado, com o duque em vida.
Lydia olhou para o irmão. Southwaite ignorou a sua curiosidade quanto ao último item enquanto também examinava cuidadosamente esse documento.
Ainda havia mais. Lydia deveria possuir carruagem própria e dois lacaios às suas ordens. Teria liberdade para escolher os seus próprios criados para servir as suas necessidades. Poderia utilizar livremente
as joias do património da família, a maioria das quais não seria, no entanto, transferida para a sua propriedade privada. Essa página incluía algumas outras disposições invulgares, como a aceitação, pelo
duque, de não interferir nas relações familiares de Lydia.
Southwaite escrevinhou a sua assinatura nas folhas empilhadas e Mr. Ottley saiu.
– Sou pouco conhecedora destas coisas, meu irmão, mas algumas pareceram-me algo peculiares – disse ela.
Southwaite encolheu os ombros.
– É sensato tentar prever todas as eventualidades. Ele compreendeu que era essa a minha intenção.
– Vou fazer um esforço de extravagância para gastar três mil libras em roupa ainda este ano.
– Ele achava que precisaria de mais. Parece-me que a tia não se poupa nas modistas e é essa a sua única referência recente, com exceção de... – Interrompeu-se. De repente, decidiu que o tinteiro ficaria
melhor no lado esquerdo da secretária e deslocou-o com grande concentração.
– Com exceção das suas amantes?
Southwaite reanalisou a secretária e devolveu o tinteiro à posição inicial.
Certamente o irmão teria conhecimento das amantes. Partia do princípio de que seria provável continuar a haver, como acontecia tão frequentemente entre os seus pares, especialmente entre aqueles com casamentos
combinados por motivos financeiros ou dinásticos. Ou por terem sido obrigados a assumir a atitude correta ao ver comprometida a situação de uma inocente. Lydia imaginou que fora esse o motivo que o levara
a incluir nos documentos do acordo a parte sobre uma residência em separado.
Por outro lado, se calhar pensou que o duque poderia querer alojá-la numa residência separada, caso se tornasse uma esposa problemática, à semelhança da irmã problemática que fora.
– Obrigada por cuidar de mim neste assunto. Certamente não terá sido fácil negociar perante um facto consumado.
– Não houve grandes negociações, Lydia. Ele aceitou quase tudo sem discutir. – Sorriu. – Os duques de Penthurst podem dar-se a esse luxo.
– Que sortuda eu sou. E não estou a ser sarcástica. Sei que poucas mulheres têm a minha sorte, nem sequer uma ínfima parte deste acordo. Apesar de não ter procurado este casamento, nem sequer o ter desejado,
não sou tonta a ponto de ignorar as suas muitas vantagens.
– Espero que chegue o dia em que me dirá que, não só é sortuda como também feliz, Lydia.
Lydia não estava certa de que esse dia alguma vez pudesse chegar. Não sabia sequer ao certo se sabia o que significava ser feliz. Algo como os tempos passados em Hampshire, imaginava. Se calhar só as raparigas
ignorantes e tontas conseguiam ser verdadeiramente felizes.
– Antes de partir, explique-me por favor de que modo este dinheiro me será entregue. Tenho de pedir ao duque o meu dinheiro para as despesas?
– Não é uma pensão que lhe seja entregue segundo a vontade do duque. Penso que o solicitador tratará de lho entregar a si ou depositará numa conta bancária para seu usufruto. Daqui a uma ou duas semanas
já deverá ter disponível a primeira tranche.
Duas semanas. Iria precisar dele mais cedo.
– Tem alguma necessidade imediata de despesa? – perguntou ele. – Tenho a certeza de que Penthurst lhe dará dinheiro, Lydia. Simplesmente ainda não lhe ocorreu como se estará a dar atualmente sem nada.
– Preferia não lhe pedir. Terei de esperar.
Southwaite abriu uma gaveta e levantou a tampa de uma caixa de madeira.
– De quanto precisa?
– Duzentas e cinquenta?
E com isso Lydia teve direito a um olhar severo.
– Espero que não seja para jogar.
– Não, não é para isso. – Pelo menos a maior parte.
Southwaite entregou-lhe um pequeno maço de notas.
Lydia enfiou-as na bolsa.
– Pago-lhe quando receber o meu dinheiro.
Southwaite acompanhou-a à porta.
– Pelo facto de já não ter de comprar o seu guarda-roupa de casamento e economizar os custos da sua subsistência no futuro, posso dar-me ao luxo de lhe fazer esta oferta.
– Não tinha pensado nisso. Está agora liberto da preocupação e das despesas comigo. As coisas acabaram por lhe correr de feição.
Southwaite rasgou um sorriso.
– Sem qualquer dúvida.
Para a tia Amelia, Lydia era agora claramente a duquesa e não uma sobrinha desobediente. Acepipes em bonitos pratos, sobre as pequeninas mesas da sala de estar. Chávenas repletas de chá dispendioso. Lydia
sabia que a tia dificilmente se poderia permitir tais luxos e sentiu-se culpada por ter gastado tanto dinheiro para uma breve visita social.
Rosalyn não sentia qualquer tipo de culpa. Inspecionou criticamente os pratos e queixou-se de que o chá estava demasiado quente. Encontrou defeitos num dos bolos e aconselhou a Amelia uma loja melhor onde,
por uns xelins a mais, poderia adquirir doçarias de qualidade superior.
Amelia aceitava servilmente tudo o que Rosalyn dizia. Eram amigas, mas a pobre Amelia assumia o papel de serva, não de senhora. E ver agora a tia a aceitar humildemente tudo o que ela própria dizia era
demasiado estranho para Lydia.
– Imagino que agora irá ampliar o seu guarda-roupa, duquesa. – O rosco macio e redondo de Amelia resplandecia de alegria. – Estou empolgada para ver o que irá escolher.
– Ainda não comecei a pensar nisso. E, por favor, não me trate dessa forma. Somos família.
– A sua sobrinha ainda não compreendeu o seu novo estatuto, Amelia. É claro que deve tratá-la dessa forma, como aliás toda a gente. Tal familiaridade é insensata. Não me diga que trata o conde por Darius?
Amelia corou.
– Sim. Só às vezes – apressou-se ela a acrescentar. – Muito poucas vezes.
– Eu também – disse Lydia. – A Rosalyn não me trata por duquesa. Se é obrigatório para a minha tia, então também o é para si.
A boca de Rosalyn contraiu-se, como que num beijo reprovador.
– Veja só aquilo com que tenho de lidar, Amelia. Dir-se-ia que um casamento como o que ela conseguiu geraria gratidão e humildade.
– Uma tristeza – respondeu Amelia, abanando a cabeça.
– Parece-me que deveria dar indicações ao duque sobre como me ensinar gratidão e humildade, Rosalyn, embora ele possa não compreender a minha gratidão e humildade para consigo.
Rosalyn decidiu ignorar o desafio, optando por angariar a solidariedade de Amelia.
– Espero que não se tenha sentido demasiado constrangida com os rumores vindos de Buxton, querida Amelia.
Amelia fez uma expressão contrita.
– Não demasiado. Embora tenha ouvido algumas crueldades nos primeiros dias, as ameaças do duque eliminaram-nas por completo, das salas de estar aos aposentos privados. Imagino que, depois do que aconteceu
com o barão Lakewood, todos estão convictos de que terão de o enfrentar em duelo se promoverem mexericos. Outra história tão triste. Achei sempre o barão um homem simpático e muito gentil.
Rosalyn lançou um olhar significativo a Amelia. A pobre Amelia precisou de uns bons segundos para se dar conta do seu terrível passo em falso. O rosto mergulhou em consternação.
– Não que de algum modo queira questionar a sua justeza. Honra é honra, é claro. – Olhava desesperadamente de Rosalyn para Lydia, à beira das lágrimas. – Não sou muito boa a avaliar o carácter das pessoas.
Tenho a certeza de que era tão maldoso como Mr. Trilby parece ser.
– Não há nada de errado em gostar de um homem que foi bastante atencioso consigo – disse Lydia.
– Foi atencioso, não foi? Especialmente naquela primavera depois do falecimento do meu querido Harold. Lembra-se, Lydia? Esteve comigo parte do tempo que passei na casa de campo. Ele visitava-nos quando
vinha da cidade e, por vezes, até trazia amigos, para me distrair.
– Lembro-me, sim. – Embora não trouxesse amigos para a visitar porque, depois de dar atenção à tia Amelia, passava a tarde com a sobrinha. – Não tem de o condenar só porque está a beber chá com familiares
do homem que o matou. Não é verdade, Rosalyn?
A cólera de Rosalyn desvaneceu.
– Mas é claro. Embora, Amelia, esteja correta quanto à sua incapacidade para avaliar o carácter das pessoas.
Amelia concordou rapidamente. Na verdade, passou o resto da visita a concordar com tudo o que Rosalyn dizia, mesmo quando Rosalyn opinou que Lydia deveria ter a sensatez de se colocar total e incondicionalmente
nas suas mãos na aprendizagem dos seus deveres.
Tendo-se transformado em tema de discussão e não ela própria uma participante da conversa, Lydia aguardou pacientemente que o tempo passasse. No final, acompanhou Rosalyn até à carruagem, mas não entrou.
– Perdoe-me, deixei ficar uma luva. Volto num instante – disse ela.
– Envie o lacaio...
Mas Lydia já se encaminhava para a porta.
Regressou para junto da tia.
– Preciso de lhe perguntar uma coisa. Alguma vez houve sarilhos na sua casa de campo de Hampshire? Sinais de assalto ou de roubo?
– Roubo! Meu Deus do céu, porque haveria de pensar isso? Parece estar tudo em ordem quando lá vou. Não dei por falta de nada.
– O caseiro alguma vez lhe escreveu a falar de... – De quê? – ...algo fora do normal?
A tia Amelia refletiu um pouco, abanando a cabeça ao mesmo tempo.
– Se o fez, não foi suficientemente importante para que o recorde agora.
Lydia não sabia se eram ou não boas notícias. Teria sido tão mais fácil saber que a casa fora pilhada no inverno passado.
Depois de deixar Rosalyn em Grosvenor Square, solicitou ao cocheiro que a levasse até casa da tia Hortense.
Ouviu muito pouco do que Hortense lhe disse, as duas sentadas na sua sala de estar privada. A tia nunca precisava de muita atenção para manter uma conversa, já que tinha mais interesse pela sua própria
voz do que pela de qualquer outra pessoa. Enquanto Hortense perorava sobre todos os assuntos, desde a política à moda, Lydia fez alguns planos.
Se calhar chegara a altura de saber se Lakewood fora o homem gentil e simpático da tia Amelia ou o patife de Cassandra. Seria talvez, pelo menos, o momento de saber o que tinha ele sido com Lydia Alfreton.
Infelizmente, a resposta residia em memórias que ela se esforçara arduamente por afastar.
Essas memórias nunca lhe regressariam ali em Londres. Havia lá demasiadas pessoas com opiniões sobre ele e cada uma delas influenciava-a. As críticas de Penthurst, em particular, haviam abalado profundamente
a sua fé.
Desejava poder afirmar que, após aquela noite, acordara segura da sua perspetiva daquele grande amor que lhe atirara à cara. Pelo contrário, recebera a alvorada envolta no seu abraço e passara uma hora
a fingir que estava a dormir para poder permanecer naquele calor, ao mesmo tempo que duvidava de si mesma. Teria estado assim tão apaixonada por Lakewood a ponto de não o ter realmente conhecido?
Também tinha de descobrir isso. Se queria realmente saber a verdade, precisava de ir aos lugares onde ela pudesse ser encontrada. Estava na sua mente, e no seu coração. E em Hampshire.
*
Duas noites mais tarde, Lydia saltou da carruagem de Penthurst e dirigiu-se a passos largos para a porta de casa. Passou apressadamente pelo criado que a abriu e caminhou rapidamente para a biblioteca.
Vazia. Lydia voltou atrás.
– Onde está ele?
– O duque está no escritório – respondeu o mordomo.
Isso significava que estava a tratar de assuntos imobiliários. Normalmente, ela não interrompia, mas esta não era uma noite normal. Marchou pelas escadas acima e dirigiu-se à porta do escritório na extremidade
dos aposentos do duque. Não pediu autorização, entrando simplesmente.
Penthurst estava sentado numa cadeira, com um candeeiro a óleo, numa mesa próxima. Os cães descansavam aos seus pés. Tinha o colo coberto de papéis e pergaminhos. Estava tão concentrado que demorou alguns
momentos até se dar conta da presença de Lydia.
– Lydia. – Varreu-a com o olhar. – Está encantadora hoje. Onde foi? Ao teatro?
– Não, fui um pouco à casa de Mrs. Burton. Muito pouco tempo. E é claro que sabe o que descobri.
– A menos que tenha estado lá apenas para observar, efetivamente sei. – Parecia vagamente divertido.
Lydia não conseguia acreditar na sua calma, mas por outro lado não fora ele o humilhado à frente de uma sala cheia de pessoas.
– Mrs. Burton disse que já não podia jogar ali. Disse que tinha sido informada por escrito pelo duque. Como se atreve?
– Como eu me atrevo? – Qualquer eventual ar divertido desapareceu. – Lembre-se de que está a falar com o seu marido, Lydia. Tenho o direito de me atrever a tudo o que me apetecer.
– Não aceito o seu direito de fazer isto só porque lhe apetece. Pior, nem sequer me informou. Estou convencida de que queria ver-me a ser rejeitada. Queria que o mundo inteiro visse como agora me controla.
– Só uma mulher que nunca foi submetida a controlo pensaria estar agora a sofrer com isso. Não abuse da minha paciência, caso contrário seguirei o meu discernimento e tratarei de garantir que se comporta
exatamente como eu acho que deve comportar-se.
Lydia recompôs-se para que a sua cólera não transformasse a conversa numa enorme discussão. Tinha também de se manter calma, e racional. Ele não era um homem irrazoável.
– Disse-me que eu continuaria a poder frequentar as mesas de jogo.
– Disse, até perder cem libras por ano. Já perdeu mais do que isso este ano. Só comigo. Acabou-se portanto o jogo até janeiro.
– Isso foi uma aposta. Tenho imensa margem para o ano todo. Tinha margem mesmo nessa noite.
– Comigo, ultrapassou o limite. De qualquer modo, está a precisar de fazer uma pausa nos jogos.
– Não é justo. É assim que ganho dinheiro. É a minha única forma de o fazer. Tenho despesas.
– Não tem de ganhar dinheiro. Se precisar de dinheiro, eu dou-lho.
– Nesse caso, é o seu dinheiro. Há coisas em que quero usar o meu dinheiro. Para poder fazer com ele o que me apetecer, sem permissão de ninguém. – Ele não ostentava um ar nada razoável. Muito pelo contrário.
– Não é para aplicações más ou perigosas, nem mesmo imprudentes. Seguramente não para joias ou sedas. Esteja à vontade para gastar por mim o seu dinheiro nessas coisas.
– Nada de perigoso ou mau. Nada de luxos. O quê, então?
Como poderia explicar? Será que algum homem poderia sequer compreender? Ricos ou pobres, tinham sempre algum dinheiro seu, para usar a seu critério. Nunca precisaram de pedir a irmãos, maridos ou depositários,
nem explicar o que pretendiam fazer. Não tinham acordos que decretavam pensões ou dinheiros para despesas que podiam usar conforme desejavam, mas claramente definidas e organizadas por advogados de modo
a serem concedidos pelos maridos.
– Eu deveria poder ter ou fazer coisas que sejam só minhas. Começadas e acabadas por mim. Nunca terei tal coisa se não obtiver o meu próprio dinheiro. Se eu usar o seu, ou o do meu irmão, não é a mesma
coisa. Não é totalmente meu. É assim tão difícil de compreender?
– Quase impossível de compreender. As suas objeções são os únicos e últimos resquícios das suas rebeldias de menina. Informei os salões de jogo que não deveriam aceitá-la, para seu próprio bem. Se não
gosta, pois lamento. Agora sou responsável por si e decidi que precisa de fazer uma longa pausa no jogo. Só lhe traz sarilhos. Com os diabos, foi o que a prendeu neste casamento que nunca quis.
– Não foram as minhas apostas consigo que me trouxeram aqui!
– Mas a sua ida a Buxton, sim. Por que outro motivo haveria de ir até lá, senão para jogar longe dos olhos daqueles que poderiam contar a Southwaite?
Sim, que outro motivo haveria? Como teria o seu comportamento despótico conseguido levá-la a ficar sem palavras?
Mas ainda encontrou algumas.
– Não aceito isto. Não o tolerarei. Quanto a um casamento que nunca quis, estava a começar a pensar que já não se importava assim tanto, mas acabou de me convencer novamente do contrário.
Lydia virou-lhe as costas e correu para os seus aposentos. Que homem tão casmurro. Não fazia ideia nenhuma de como estava a interferir em assuntos importantes para ela. Nem se importava com isso. Sua Senhoria
tinha tomado uma decisão e contava que ela aceitasse. Devia mas é deixar que Trilby atuasse da pior forma e deixar a Sua Senhoria enfrentar o escândalo e a desonra que Trilby tinha capacidade para armar.
Com essa ideia, dominou-se. A sua indignação apaziguou-se num ápice. Qualquer escândalo seria horrível para ela, mas muito pior para ele. Para um homem, a humilhação poderia ser tão nefasta como uma corda
de enforcado.
Lydia abriu a bolsa e contou o dinheiro que tinha. As duzentas e cinquenta libras do irmão sossegariam Trilby durante alguns meses, pelo menos. Enviar-lhas-ia amanhã. Quanto às suas restantes exigências
financeiras, aquela a que tinha pretendido dedicar os lucros da noite, teria de adiá-las até à chegada da primeira tranche do dinheiro das despesas, pedir dinheiro ao duque ou angariá-lo de alguma outra
forma.
Dirigiu-se ao quarto de vestir. Sarah estava ali sentada, debruçada sobre a luz de um candeeiro, remendando a camisa de noite que Lydia usara na noite em que ajudara Penthurst a lavar-se. No auge da paixão,
rompera-se uma costura.
– Sarah, temos de fazer um dos nossos passeios amanhã de manhã.
– No parque?
– Podemos ir ao parque primeiro, se quiseres, mas depois preciso de ir a uma loja no Strand.
– O caminho todo desde o parque até ao Strand? – resmungou Sarah. – Não muito longe no Strand, espero eu.
– Não tão longe que possas desmaiar. A recordação dos sorrisos do teu miliciano dar-te-ão leveza no andar até lá.
Sarah regressou às agulhas.
– E o que vamos fazer, já que não quer usar as carruagens ou os criados do duque?
Varrer os resquícios das minhas rebeldias de menina.
– Não penses nisso. Garante apenas que estou acordada e vestida antes das nove da manhã.
Na manhã seguinte, Penthurst vestiu-se cedo. Tinha pela frente um dia cheio, mas não esperava que fosse agradável. Enquanto o criado de quarto lhe puxava o lustro às botas, leu novamente uma carta que
recebera no dia anterior. Era sobretudo uma lista de nomes e fora-lhe enviada do Ministério da Guerra.
Pensou em Lydia, dormindo do outro lado da parede. Se as suas pesquisas sobre as atividades de Lakewood produzissem os frutos podres que ele temia, Lydia não lhe ficaria grata. As observações de Cassandra
sobre o carácter de Lakewood poderiam ter sido o início da desilusão, mas Lydia estava a debater-se para evitar vivê-la em pleno.
Havia a possibilidade de ele não encontrar mais nada. Os seus instintos não acreditavam nisso, mas, por Lydia, tinha esperança de que assim fosse. Embora não se importasse de pôr fim às suas memórias de
uma paixão de menina, também não queria ver como isso a faria sofrer.
Fez deslizar a carta pelo bolso do casaco. Quando começara esta investigação, nutrira a esperança de poder silenciar as perguntas que lhe sussurravam ao ouvido e que o impediam de pôr aquele duelo atrás
das costas. Mas, agora, questionava-se se a sua própria necessidade de saber seria mais intensa do que a necessidade de Lydia acreditar.
Arranjado e aperaltado, dirigiu-se à porta dos aposentos de Lydia para ver se ela já acordara. Tendo em conta a missão que tinha para aquele dia, gostaria de suavizar a tempestade provocada pela discussão
da noite anterior.
– A duquesa não está – disse-lhe o criado de quarto enquanto devolvia as escovas à respetiva gaveta. – Vi-a a sair com a aia quando abri uma janela há minutos.
Mal acabavam de bater as nove horas. Onde poderia ir a esta hora?
A tendência de Lydia para comportamentos invulgares inquietava-o enquanto descia e esperava que lhe trouxessem o cavalo. Depois da noite anterior, Lydia poderia estar a fazer deliberadamente algo extraordinário,
só para provar que podia.
Demorou-se sentado na sela, refletindo. Embora ainda indeciso, ponderando as exigências da lista que trazia no bolso, voltou o cavalo na direção de Hyde Park.
*
– Obrigada – disse Mrs. Beattie. – Será um grande alívio para Mrs. Kerry saber que pode continuar a contar com o seu apoio. Temia que a mudança das suas circunstâncias pudesse também levar a alterações
nesta matéria.
– Espero que tal não venha a acontecer. – Mas Lydia não podia prometer que não aconteceria. – Lamento não ser mais.
– O que está a dar-nos vai alimentar toda a gente durante meses e ainda poderemos admitir mais algumas hóspedes.
Mrs. Beattie e Mrs. Kerry apelidavam sempre as internas de hóspedes da casa. Apesar de não serem família, e de poderem entrar e sair livremente, para Lydia tal designação continuava a ser encantadora.
Firmemente crentes nas capacidades de reabilitação, as duas mulheres desempenhavam o papel de mães, professoras, confessoras e tutoras das trinta raparigas que dormiam nas camas que preenchiam os quartos
e o sótão.
– Duas das raparigas foram admitidas ao serviço por uma família de Essex – relatou Mrs. Beattie. – Outra foi aprendiz de uma costureira. – Folheou as notas bancárias dispostas na mesa entreposta entre
as duas cadeiras. – O seu anterior ato de bondade permitiu pagar-lhe a propina.
Lydia perguntou por algumas das outras raparigas que saíram no último ano. Mrs. Beattie descreveu os seus êxitos e, em dois casos, os seus fracassos.
– Estão de volta – contou, com tristeza. – É sempre um desgosto para Mrs. Kerry quando isso acontece, mas digo-lhe sempre para se lembrar das vitórias, não das derrotas.
«De volta» significava aos bordéis no centro da cidade. Lydia tomara conhecimento desta casa pela tia Hortense. Um ano antes, perdida num dos seus solilóquios, expressara a sua indignação por se permitir
a existência de um tal lugar no bairro decente e sóbrio próximo de Hanover Square, onde residia uma das suas amigas. Horrorizava-a a ideia de que Mrs. Kerry, viúva de um comerciante, tivesse transformado
a sua casa numa escola para meretrizes.
Até àquele dia, Lydia não tivera consciência de que algumas das prostitutas de Londres eram crianças.
Lydia fez menção de se despedir.
– Não sei quando poderei regressar, Mrs. Beattie. É possível que outra pessoa lhes traga o que eu possa ter para oferecer no futuro.
– Será possivelmente a atitude mais sensata, mas Mrs. Kerry vai ficar desgostosa ao saber que não estava cá para a receber uma última vez. Contudo, com o seu casamento e o seu novo estatuto, provavelmente
não será próprio ser vista à nossa porta.
Lydia chamou Sarah e saiu da casa, pensando em como no passado ninguém se tinha dado conta da sua presença naquela porta. Não deveria ter importância no futuro, mas é evidente que tinha.
No momento em que saiu, foi saudada com a prova disso mesmo. A última pessoa que deveria vê-la naquele local ali estava, de pé, ao lado do seu cavalo.
– Mas que surpresa – disse Lydia, caminhando na sua direção. – Que infelicidade não me ter seguido de carruagem.
Penthurst olhou diretamente nos olhos de Sarah, levando-a a sair dali de imediato. Quando ficou sozinho com Lydia, Penthurst falou.
– Que lugar é este?
– Uma escola.
Penthurst perscrutou a fachada.
– Para raparigas? Estou a ver-lhes as caras nas janelas.
– É natural que esteja a atrair as atenções. Duvido também que alguma vez tenham visto tão belíssimo cavalo.
– Caminhemos, então, para que a minha presença não interfira nas lições.
Caminharam lentamente pela avenida. Era uma zona residencial e não muito longe de Hanover Square. Certamente alguma viúva criara uma pequena escola em sua casa, o que acontecia com alguma frequência.
– Porque está a visitar uma escola para raparigas, Lydia?
Lydia matutou numa resposta durante tanto tempo que começou a duvidar de que engendraria alguma.
– Não é uma escola como as outras – respondeu.
– Não me surpreende. Se está a visitá-la, parto do princípio de que seja algo fora do comum.
– São raparigas muito jovens. A mais nova tem onze anos e a mais velha quinze. As mulheres proprietárias desta casa, e que gerem a escola, encontraram-nas todas em bordéis. Compram a liberdade das meninas
e trazem-nas para aqui, para as educarem no sentido de fazerem outra vida. – Disse-o numa frase longa e inquieta.
– É generoso da sua parte.
– Não está minimamente chocado? São meninas pequenas. Nem queria acreditar. Depois fiquei a saber que era verdade e fiquei horrorizada. E ninguém trava os cavalheiros que abusam delas. Esses homens regressam
aos seus clubes e às suas propriedades e às suas terras sem qualquer punição. – A sua ira crescia a cada palavra que dizia.
Era o tipo de depravação de que, assim esperavam os homens, as suas mães, mulheres e irmãos, nunca deveriam ter conhecimento.
– Não sabe se são todos cavalheiros, Lydia.
– Não sei? O proprietário de um desses estabelecimentos disse-me que as mais novinhas são muito, muito caras.
Penthurst tomou a mão de Lydia na sua. Ergueu-a como que para a beijar, e depois manteve-a suspensa.
– Se dependesse de mim, seriam todos enforcados. Neste momento, no entanto, estou aqui a pensar como foi que chegou à fala com o proprietário de um bordel. Não, não... não me conte. Tenho a certeza de
que fez a visita matinal mais extraordinária que qualquer filha de um cavalheiro alguma vez fez.
– Tinha de saber se era verdade, não tinha?
– Suponho que sim, que tivesse de saber. – Mudaram de direção para voltar atrás. – Tenho uma coisa a confessar. Vi-a com Sarah no parque. Achei que só tinham ido até lá para que ela pudesse observar os
milicianos. Imagine a minha surpresa quando não regressou a casa logo depois, dirigindo-se pelo contrário a uma loja de penhores no Strand. Espero que o que quer que tenha dado àquele homem não seja de
valor ou tenha um valor sentimental.
– Não. – E lançou-lhe um olhar muito severo. – Esteve a seguir-me.
– É verdade. Não me pergunte como me atrevi a fazer tal coisa. É natural que um marido fique curioso quando a mulher se passeia a pé por toda a cidade quando tem carruagens e cavalos à disposição.
– O que me exaspera não é o facto de se atrever a fazer tais coisas, mas sim de eu estar numa situação em que alguém tem o direito de se atrever a fazer tais coisas.
Este era um assunto que mais valia evitar, embora Penthurst desconfiasse de que o abordariam frequentemente nos próximos anos.
Penthurst apontou para a escola.
– Deu-lhes o dinheiro do penhor? Era para isto que queria o seu próprio dinheiro?
– Uma das coisas. Não me diga, por favor, que uma duquesa não se deve conspurcar com este tipo de obras de beneficência. São apenas crianças e não têm culpa do seu passado sórdido.
– Não lhe direi tal coisa.
Alcançaram de novo o cavalo. Sarah permanecia duas casas abaixo, para não poder escutar a conversa.
– Eu deveria ter-lhe perguntado o que fazia com os ganhos do jogo. Nunca me questionei, Lydia. Pressupus que os gastava como é normal as mulheres o fazerem.
– No início, pus algum de lado para uma viagem pelo continente quando a guerra terminasse. Dado que parece que a guerra jamais terá fim, encontrei outras formas de o usar.
– Formas generosas. Avaliei-a mal. Perdoe-me. Mas... alguma vez contou a alguém? Está a fazer algo de bom, nada que necessite de esconder.
– Não estava propriamente a esconder, apenas a mantê-lo assunto meu. Só para mim. Era a única coisa que eu fazia sem a ajuda de ninguém e gostava da sensação.
– Como subir para um cavalo e montar sozinha pela primeira vez.
– Sim, é bastante isso. Afinal compreende!
Não totalmente. E, como é óbvio, a maioria das mulheres nunca montou a cavalo sozinha.
– Está a falar no passado, Lydia. Não tem de parar. Agora pode fazer muito mais por elas, se o desejar.
– Se está a oferecer-se para financiar um donativo maior, vejo-me forçada a aceitar. Contudo, uma parte da minha satisfação deixou de existir. Eu sabia-o quando aqui vim hoje. Mesmo que me permitisse regressar
às mesas de jogo, nunca mais poderá ser como dantes.
– Nunca pensei vir a sentir-me culpado por transformar uma mulher numa duquesa, mas está muito perto de me provocar esse sentimento, Lydia.
Lydia inclinou a cabeça para trás e olhou-o pensativamente.
– Quão pesado é o seu sentimento de culpa?
– Como assim?
– A culpa pesa-lhe mil libras? Duas mil? Elas estariam seguras se tivessem um depósito fiduciário e um rendimento regular.
– Parece-me que posso fazer isso. Mas isso não muda em nada o facto de ter perdido a sensação de independência que tinha tanta importância para si.
– Algum dia terei de crescer e aceitar a vida que se espera de uma mulher. E dado que a minha é de luxo, seria pecaminoso queixar-me. Contudo, antes de colocar todas as algemas que agrilhoam as mulheres,
há algo que preciso de saber. Só para mim. Não lhe diz qualquer respeito. Mas vou precisar de fazer uma viagem, porque não me parece que vá encontrar aqui as respostas que procuro.
Como tinha a conversa passado da beneficência para a seguir ela o abandonar?
– E onde estão elas?
– Em Hampshire, penso eu.
Penthurst sentiu um alívio imenso. Estava quase à espera de a ouvir dizer América ou Rússia. Mas a sua reação foi então animada por alguma apreensão. As perguntas poderiam não lhe dizer qualquer respeito,
mas o mesmo não era necessariamente verdade para as respostas.
Era tudo por causa de Lakewood. Sabia-o, simplesmente. Sentia-o. Amaldiçoou-se por ter esperado para solicitar a lista que tinha no bolso. Nunca deveria ter permitido que a sua preocupação sentimental
pela reputação de Lakewood comprometesse a sua explicação daquele duelo ou a sua descoberta de toda a verdade.
– É melhor não, Lydia. Talvez no verão.
– Por favor, reconsidere. Quero ir até lá, à casa de campo da minha tia. Preciso de refletir sobre uma coisa e aquele será o melhor lugar para o fazer com honestidade.
Conseguiu veicular uma imagem de impotência, súplica, ardor e promessa, tudo ao mesmo tempo. Se ele não lhe tivesse qualquer afeição, não produziria qualquer efeito, mas a verdade é que tinha, pelo que
começou a hesitar.
Ainda assim, não gostava da ideia. Lydia sozinha numa casa de campo a quilómetros de distância não lhe agradava de todo. Foi então travado pelo seu próprio raciocínio. Agradar-lhe a ele. Devia antes pensar
no que lhe agradava a ela.
Calculou a viagem de ida e volta e os dias que Lydia poderia estar fora. Pelo menos duas semanas. Pareceu-lhe muito tempo.
– Mais vale dar-lhe a minha autorização. Se não o fizer, encontrará uma forma de o fazer na mesma. Mas terá de levar a Sarah consigo e o cocheiro terá de se manter por perto.
A expressão de satisfação de Lydia encantou-o. Debruçou-se para a beijar, pensando que o direito de um marido orientar os comportamentos da mulher não valia, na realidade, grande coisa.
Aplausos abafados e estridentes escaparam do interior da casa. Penthurst virou-se para o edifício. Rostos fantasmagóricos surgiam por trás das vidraças onduladas das janelas. Algumas abriram-se e dali
surgiram mãozinhas a bater palmas.
Lydia olhou para trás, na direção dos aplausos, e riu-se.
– Fomos indiscretos. E agora, eu e a Sarah vamos a cavalo para casa ou acha que podemos alugar uma carruagem aqui perto?
CAPÍTULO 18
Lydia parou a olhar para a casa de campo enquanto o cocheiro carregava as malas. Sarah já entrara, para aceder aos seus aposentos.
Perguntou-se se teria cometido um erro ao vir até ali. Mesmo nesse momento, sem sequer ter ainda visto uma só sala ou percorrer qualquer vereda, sentiu-se mergulhada em nostalgia. Pior, essa nostalgia
caiu de uma nuvem que conhecia demasiado bem e a cujo domínio pensava ter por fim escapado.
O cocheiro aproximou-se.
– Carreguei alguma madeira e água. Vou hospedar-me naquela estalagem por onde passámos na vila há alguns quilómetros, senhora. Regressarei todas as manhãs para saber se deseja a carruagem nesse dia.
– Não precisarei amanhã.
– Virei ainda assim, senhora. Foram instruções do duque.
O cocheiro regressou à carruagem. Sarah assomou à porta.
– Sempre achei esta casa encantadora, milady. Gosto da ideia de a cozinha estar nas traseiras, para não ser necessário transportar comida de um edifício exterior.
Lydia entrou e esperou que a nuvem caísse sobre ela.
Não aconteceu. Aliviada e encorajada, deambulou pelas salas que partilhara com a tia Amelia durante aqueles meses. Viera numa missão de solidariedade, fazer companhia a uma mulher recém-enviuvada sofrendo
ainda uma dor profunda, mas ficara também a saber que a tia conseguia ficar demasiado absorta em si mesma para lhe dedicar grande atenção. E nutria a esperança, tão intensamente como toda e qualquer rapariga,
de que lhe surgisse à porta o jovem que lhe roubara o coração.
Lakewood insinuara essa possibilidade. Detinha uma pequena propriedade algures na vizinhança. Um pedaço de terra, era como lhe chamava, referindo-se ao facto de ser tão pequena. Herdara um título, mas
não muita propriedade. Lydia considerara sempre que ele lidara com isso com uma graciosidade impressionante. Nunca expressou inveja para com o irmão de Lydia nem ressentimento pela sua falta de fortuna.
Sarah desapareceu para as traseiras da casa. Não tardaram a ecoar os sons de tachos e panelas por toda a casa. Lydia seguiu-a e encontrou-a a reorganizar o espaço à sua medida.
– Antes de sairmos, ponho tudo novamente no lugar – explicou Sarah. – Não me faz sentido ter os tachos daquele lado.
Lydia espreitou pela janela que dava para o jardim. Viu-se a si mesma ali fora, a passear com Lakewood, a rir.
Um braço envolveu-a. Sarah encostou a cabeça contra a sua e olhou também lá para fora.
– Espero que não tenha vindo até aqui para ficar triste outra vez, Quida.
– Não era essa a minha ideia.
– Praticamente não me falou do assunto, mas eu sabia que tinha esperança. Quem não teria? Todos aqueles passeios juntos. Visitou-a vezes suficientes para lhe gerar expectativas.
Tinha-a visitado demasiadas vezes, caso não tivesse qualquer intenção de cumprir essas expectativas. Se calhar teve essa intenção. Se não tivesse acontecido o duelo, talvez ela tivesse fugido para se casar
com outro homem, há duas primaveras. Southwaite não teria reagido bem a um pedido de casamento de Lakewood. Não só não possuía grande fortuna, como além disso, segundo Emma, nessa altura ele clamava o
seu amor eterno por Cassandra.
Lydia obrigou-se a abandonar aquelas memórias.
– Ajudo-te a guardar a comida que comprámos e depois podes fazer uma tarte.
Uma hora depois, enquanto Lydia cortava maçãs e Sarah misturava a massa, Sarah tomou a palavra por entre a paz silenciosa do seu companheirismo.
– Chama-se Jonathan Peace. O meu miliciano. Com «ea», como na palavra «paz»1.
– É um bonito nome.
– Cresceu em Kent, como eu, mas não junto à costa.
– Parece que os dois andaram a conversar.
Sarah corou.
– Ele ajuda com os cavalos do White Swan e às vezes passa por lá. Não negligenciei os meus deveres nem...
– Eu sei que não, Sarah. É tão simpático como o seu sorriso?
– Acho que sim. E quer cortejar-me como deve ser. Disse-lhe que pediria a sua permissão.
– Não precisas da permissão de ninguém para aceitar as atenções de um homem, Sarah. Direi à governanta que deverá permitir que ele espere por ti na sala de estar dos criados e que não coloque qualquer
objeção se decidires sair com ele.
Sarah comprimiu a massa contra a forma.
– Tem de cortar as maçãs em fatias mais grossas, caso contrário vão ficar em papa.
Lydia tentou cortar fatias mais grossas.
– Estou contente por um homem decente por quem te sentes atraída desejar cortejar-te, Sarah. Fico feliz por ti.
Sarah começou a raspar o açúcar do pequeno cone que haviam trazido.
– E eu também estou feliz por si. Posso dizê-lo à Quida, mas não seria apropriado se o dissesse à milady, a duquesa.
– Estás? Porquê?
– Por causa do duque, é claro. Ele gosta mais de si do que os homens como ele são obrigados a gostar das suas mulheres. Vejo-o nos seus olhos quando está a olhar para si.
Ele gostava dela? Será que o seu crescente à-vontade era mais do que simplesmente duas pessoas a acomodarem-se ao inevitável ou seria um resultado das intimidades físicas do casamento?
Pousou a faca e limpou as mãos. Sarah começou a empilhar as maçãs sobre a massa.
Lydia foi até à sala de estar e tirou o spencer de um cabide.
– Vou apanhar um pouco de ar no jardim, Sarah. Não demoro.
Saiu pela porta que dava para o jardim e observou as plantas que tão bem conhecia. A tia não vinha ali há meses, mas o caseiro fazia uma boa manutenção da propriedade. Vislumbrou o banco de pedra do outro
lado do caminho central. No verão, os arbustos tapavam-no mais quando visto da casa, mas aquelas folhas rasavam agora pelo chão, amarelas e secas.
Era capaz de fazer isto. Já não era aquela rapariguinha apaixonada. Tomaria conta do medo e da tristeza. Não voltaria a esconder-se naquela nuvem, nunca mais. Para começar, não conseguimos ver grande coisa,
se estivermos dentro de uma nuvem. Se calhar por isso mesmo havia sido tão tentadora.
Lydia caminhou na direção do banco, em direção ao passado.
A leiloeira Fairbourne’s ganhara reputação pelas suas faustosas exposições. E a esta acorreu uma multidão de notáveis. Penthurst compareceu sem a sua duquesa. Depois de beber um bom vinho com o primeiro-ministro
e de examinar os livros na companhia do príncipe, voltou o seu olhar crítico para os quadros.
O acontecimento permitia-lhe distrair-se dos pensamentos que lhe assaltavam o espírito nos últimos dias. Passara a semana anterior a procurar os homens cujos nomes constavam da lista que recebera do Ministério
da Guerra. Eram todos suspeitos de terem comprado a influência que lhes havia garantido uma promoção. Cinco admitiram-lhe que pagaram a Lakewood para que lhes obtivesse a recomendação de um conde ou duque.
Aparentemente, Lakewood não se restringira ao seu círculo.
Além daquelas confirmações de que o esquema fora mais abrangente do que adivinhara, obtivera pouca informação. Uma mulher fora vista algumas vezes, mas poderia ter sido a amante de Lakewood da altura.
Podia jurar o seu amor não correspondido por Cassandra, mas nunca tinha deixado de cortejar outras mulheres.
Assim sendo, a ameaça de escândalo seria ainda maior do que Penthurst tivera consciência na manhã do duelo. Suficientemente grande para provocar um desespero tal que levasse um homem a organizar a sua
própria morte?
Southwaite e Emma encontraram-no enquanto apreciava uma paisagem e percorria todos os acontecimentos na sua mente.
– Pareceu tão interessado naquele Van Ruisdael que Emma se sentiu obrigada a rogar-lhe que apresente uma licitação – disse Southwaite.
– Não tenho qualquer intenção de rogar seja o que for – disse ela. – Esse é o dever de Mr. Fairbourne, não meu. – Relanceou para onde o irmão apreciava a festa algo em demasia, negligenciando o dever que
ela acabara de descrever.
– Está muito bonita e feliz, Lady Southwaite. – Estava a ser sincero e a dizer a verdade. Emma não era a mais bela entre as mulheres, mas algo nela era sempre envolvente e o facto de estar grávida realçava-lhe
essa qualidade indescritível.
– É porque estou aliviada por esta exposição estar a ser um sucesso. Estará presente amanhã no leilão?
– Penso que sim. Manter-me-á ocupado algumas horas, agora que estou novamente solteiro.
Southwaite riu-se. Mas Emma não. Olhou para o outro lado da grande sala de exposições, onde Cassandra tagarelava com Kendale e a mulher, Marielle.
– Diga-me a verdade, por favor. A Lydia saiu da cidade para nos poder evitar sem ser abertamente grosseira? A Cassandra e eu teremos um grande desgosto se assim for e, se a tivermos ofendido, teremos de
remediar a situação.
– Não tenho conhecimento do que falaram entre vós, mas não penso que estivesse ofendida. A sua ausência da cidade não teve por objetivo evitar este convite nem a vossa companhia, tenho a certeza.
– Mais provavelmente, será para o evitar a ele – fez notar Southwaite em tom sarcástico, acenando com o polegar na direção de Penthurst.
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – atalhou Emma.
Penthurst já não tinha grandes certezas no que dizia respeito a Lydia. Ela escrevera-lhe duas vezes – cartas breves e vazias que poderiam ter sido enviadas por um mero conhecido.
Kendale e Ambury aproximaram-se, juntamente com as respetivas esposas. As senhoras escapuliram-se para ir ver as joias.
– Está a apreciar a vida de monge? – perguntou Ambury.
– Tem vantagens inesperadas. Para já, estou a retomar o contacto com a minha tia. Onde quer que eu me esconda, consegue sempre encontrar-me para me encher os ouvidos de mexericos.
– Tenho a certeza de que também tem tido muito tempo para ler à noite. É sempre bom exercitar a mente – acrescentou Ambury.
– Uma pausa do outro tipo de exercício noturno a que se poderá ter dedicado nos últimos tempos também pode ser revigorante – disse Southwaite. – Pelo menos é o que me dizem.
– É um pouco cedo para isso, parece-me – disse Kendale. – Cedo também para uma separação, por mais breve que seja. Ela já o esgotou, como diz o Southwaite, Penthurst? Ou tiveram uma discussão?
Southwaite fez uma expressão constrangida e abanou lentamente a cabeça, de espanto. Ambury apertou o ombro de Kendale com força e debruçou-se sobre ele.
– O Southwaite estava a brincar. E não perguntamos uns aos outros sobre a outra coisa.
– Está a falar das discussões com as mulheres?
– Sim, estou a falar das discussões.
Kendale pigarreou.
– Peço desculpa.
– Não houve qualquer discussão – disse Penthurst.
– Claro que não – disse Ambury. – Só mesmo o Kendale é que imaginou tal coisa.
– Só mesmo ele – disse Southwaite em eco.
– Ela sabe que terá de iniciar uma longa ronda de visitas e receções e foi até ao campo descansar antes de se dedicar a essas obrigações. – Saiu-lhe de chofre, quase soando razoável.
Quando aceitara que Lydia fosse para Hampshire, não tinha pensado como pareceria estranho ela sair tão cedo após o casamento. Se os seus amigos o achavam bizarro, as outras pessoas naquela sala estariam
certamente a tecer todo o tipo de suposições pouco lisonjeiras.
– Foi provavelmente sensato da parte dela – declarou Ambury. – Descansar, quero eu dizer.
– Quer dizer então que ainda não o esgotou. Foi você quem a esgotou a ela – disse Kendale.
Ambury lançou as mãos ao ar.
– Por Zeus, será que pode...
– Quem está a brincar agora sou eu. O Penthurst percebeu a piada, mesmo que vocês não a entendam.
Penthurst viu de facto a piada, mas não a que Kendale tinha em mente. Tivera todo o cuidado para não a esgotar, nas palavras de Kendale. Lydia era uma mulher impetuosa, mas, afinal de contas, não tinha
sido uma união por amor. Ele não fora o grande amor da sua vida.
E no entanto, as noites desde que partira haviam sido uma tortura. Normalmente, não lhe era difícil suportar períodos de abstinência. Mas este estava a enlouquecê-lo. E também não desejava apenas um qualquer
tipo de alívio. Queria-a a ela.
Cassandra fez sinal a Ambury para que se lhe juntasse a ver as joias.
– Oh, não – murmurou ele. – Isto vai sair-me caro. Venha comigo, Southwaite, e afaste a sua mulher para ela não convencer a Cassandra a licitar meia vitrina.
Afastaram-se, deixando-o a beber vinho sozinho com Kendale.
– Sente-lhe a falta? – perguntou Kendale.
Eis outra pergunta que os homens não se faziam uns aos outros, a menos que fossem amigos muito próximos, o que não era o caso dele e Kendale. Mas a verdade é que Kendale tinha ainda menos delicadeza a
falar de mulheres do que noutros temas de conversa.
O olhar de Kendale repousou nas senhoras debruçadas sobre a vitrina das joias e, em especial, sobre aquela mulher graciosa e elegante que era a sua mulher. O que lhe viu nos olhos disse-lhe que sabia qual
seria a sua própria resposta à pergunta.
– Sim, Kendale. Sinto-lhe a falta.
A exposição aproximava-se do fim quando Penthurst viu Ambury sozinho e decidiu aproximar-se.
– Há outra pequena forma de me ajudar nas minhas investigações sobre o Lakewood.
– Quem quer que eu encontre?
– Ninguém. Preciso apenas de algumas informações.
– Diga-me o que é. Se existir, eu encontro.
– Sei da pessoa ideal com quem falar para obter essa informação. Consigo.
Ambury fitou-o.
– Oh diabo.
– É quem o conhecia melhor, Ambury.
– Nada disso.
– Há mais tempo, pelo menos.
– Oh diabo.
– Mas se preferir não...
– Não, é melhor que seja eu.
Foi como se tivesse dito Não chamemos a atenção de mais ninguém para o tipo de patife que ele era. Quem sabe se consegue ainda salvar alguma coisa do seu bom nome.
Saíram para o jardim para terem alguma privacidade. A noite tinha arrefecido o suficiente para que fosse visível a respiração.
– O que deseja saber?
– Alguma vez ele teve uma amante de cabelo ruivo?
– Quer saber acerca das suas amantes?
– Só das ruivas.
Ambury refletiu.
– Não tinha uma amante propriamente dita. Não o género de amantes que se apresenta aos amigos. Houve mulheres, é claro. Via-o por vezes com uma. Há cerca de cinco anos, vi-o na cidade com uma mulher de
cabelo a tender mais para o castanho, não tanto ruivo. Chamava a atenção, por isso olhei duas vezes. Mas não tenho maneira de saber a relação que tinha com ele.
Não era grande coisa. Podia até nem ser a mesma mulher que Greenly e os outros viram. Havia muitas mulheres de cabelo ruivo.
– Fale-me da sua propriedade.
Ambury riu-se.
– Sabe bem que ele herdou muito pouco.
– Tão pouco que nunca falava do assunto. É por isso que lhe estou a perguntar.
– Ele irritava-se com a sua falta de fortuna. Certamente seria difícil para ele, especialmente tendo-o a si e ao Southwaite como amigos. Eu, pelo menos, tive o meu pai a manter-me pobre durante algum tempo.
– Se calhar era essa a sua justificação para nos usar. Tínhamos tanto, e ele tão pouco, certamente não nos importaríamos de que ele se servisse de meia dúzia de libras com a nossa ajuda involuntária.
– O mais provável é que ele estivesse a contar que nunca descobríssemos e estava preparado para perder as amizades, se tal acontecesse.
Ambury revelava mais amargura do que a que Penthurst sentia, mas a verdade é que a desilusão lhe estava ainda fresca.
– É claro que ele teve sempre esperança de conseguir um bom casamento – disse Ambury. – Depois daquela história com a Cassandra, isso tornou-se menos provável.
– Estava endividado?
– Menos do que seria de pensar. A falta de expectativas significava que também não tinha grande crédito.
– Mas tinha algumas propriedades. Lembro-me de uma vez ele ter falado nisso de passagem.
– Algumas quintas em Derbyshire pagavam-lhe os plastrões e o brandy. Conseguia com dificuldade levar algo parecido com uma vida sofisticada com essas rendas, mas tinha de estar atento a cada xelim.
– Quando bebia demais, costumava fazer piadas sobre o solar que tinha no campo. Pela forma como o dizia, presumi que não era de todo um solar. Essa casa ficava em Derbyshire?
– Está a referir-se a Dunner Park. – Ambury riu entre dentes. – Já o conhecia há dois anos quando me dei conta de que o nome era uma piada2. Acho que Dunner Park, qualquer que fosse a sua dimensão ou estatuto,
não ficava tão para norte. Hampshire, acho que era isso. Tinha uma pequena propriedade para esses lados e ia até lá de vez em quando. Talvez cerca de vinte hectares.
Cassandra chegou então para levar Ambury. Penthurst deambulou até à rua por entre o que restava dos convidados. As informações de Ambury não lhe trouxeram grande coisa, aparentemente. Acrescentaram algumas
nuances sobre a falta de fortuna de Lakewood, mas pouco mais.
A menos que quisesse contar com a informação sobre Dunner Park, que basicamente confirmava que Lydia tinha ido até Hampshire para encontrar respostas a perguntas que envolviam o homem que fora o senhor
de um solar na região.
*
– Que estranho – disse Lydia ao ler uma carta que chegara de Londres pelo correio. – Lembras-te de eu dizer que não conseguia encontrar a minha arca? Procurei por todo o lado. No sótão, nas adegas e em
todos os quartos. Desapareceu. Escrevi à minha tia Amelia a perguntar o que lhe aconteceu.
– A sua tia enviou-a para a cidade ao saber que a milady já não iria regressar?
– Vê o que escreveu: Pedi ao homem que a colocasse no celeiro juntamente com as outras coisas, para não estorvar. – Lydia olhou para Sarah. – Que outras coisas? Que homem? O caseiro?
– Que celeiro? Não há aqui nenhum celeiro.
– Talvez estivesse a referir-se à casa das carruagens. Vamos lá ver.
Atravessaram o jardim em direção ao portão de trás. Lydia olhou de relance o banco de pedra quando passaram por ele. Agora já conseguia sentar-se nele sem ser sugada pela nostalgia. Com algum esforço e
perseverança, banira todos os fantasmas da casa e do jardim.
O resto ainda estava à espera. Os trilhos daqueles longos passeios, o beijo sob a árvore no âmago na Floresta de Bere, as palavras proferidas que tanto tinham de ambíguas como de incriminatórias. No dia
seguinte começaria a abordar honestamente as partes mais difíceis.
A casa das carruagens estava situada junto a um dos lados do muro traseiro do jardim, cerca de trinta metros mais atrás. Não havia carruagens dispostas ao longo da parede do lado esquerdo. Não havia cavalos
a comer feno nas cavalariças instaladas no outro lado.
Caminhou até ao centro, procurando a arca. Na terceira cavalariça, encontrou mobília empilhada numa grande confusão. Reconheceu uma parte, já que fizera parte da decoração da casa. Deu uma olhadela à volta
e no meio da pilha.
– Ajuda-me. Acho que estou a vê-la.
Juntas, Lydia e Sarah arredaram mesinhas e cadeiras. Por baixo de tudo aquilo, estava a arca de Lydia.
– Se calhar esta mobília encerra memórias do marido da minha tia e por isso pediu para a retirarem. Já que tinha o homem a fazê-lo, deve ter decidido retirar isto também. – Lydia agachou-se e examinou
os ferrolhos da arca. Lydia nunca a trancara. Levantou a tampa.
Havia roupa no cimo. Sarah retirou-a e pegou em cada peça.
– Fica com o que quiseres, vende o resto e guarda o que ganhares – disse Lydia enquanto afastava alguns livros.
– Tem a certeza? Este vestido...
– Certeza absoluta.
Lydia empilhou os livros sobre o soalho da cavalariça. Puxou para fora uma pequena boneca que já nem se lembrava de ter tido consigo. Não se recordava por que razão a tinha levado. Já não era criança nessa
visita, já não brincava com bonecas há muito.
Mas havia mais. Uma pequena caixa de joias, repleta de objetos simples, mas dos seus favoritos, que pensava ter perdido. A partitura de uma canção que estava a tentar aprender. Um livro de desenho. Resistiu
à tenção de o folhear, por saber o que continha.
Muito antes de chegar ao fundo da arca já Lydia sabia que o manuscrito ali não estava.
Sentou-se sobre os calcanhares e examinou o seu conteúdo. Tinha a certeza de não o ter levado para Londres, mas ainda assim vasculhara os seus aposentos na casa do irmão, para se certificar de que a sua
vaga memória estava correta. Guardara o romance nesta arca e agora tinha desaparecido. Assim, era muito provável que Trilby tivesse tudo. Tivera esperança do contrário.
Enfiou os livros e o resto novamente na arca.
– Traz a roupa, se quiseres. Tenho de escrever novamente à minha tia. – Precisava de saber o nome do homem que carregara a arca e se mais alguém tivera acesso ao seu conteúdo depois de ter regressado a
Londres.
*
Duas manhãs mais tarde, Penthurst tomava o pequeno-almoço com a tia. E ela tudo fez para que ele se arrependesse.
– Toda a gente comenta a ausência dela da cidade. É muito estranho que o tenha permitido. Tem de obrigá-la a regressar ou as pessoas irão pensar que é um daqueles homens que faz todas as vontades da mulher,
a ponto de parecer idiota. – Mergulhou os dentes num bolo com uma firmeza tal que sugeria ser o bolo a sofrer os padecimentos que, na sua opinião, eram merecidos por Lydia: mastigando minuciosamente a
sua repreensão.
– Duvido que a minha reputação seja minimamente afetada – disse ele.
– Que típico de um homem acreditar nisso. Há nomes que se chamam aos homens que se tornam fracos por causa de uma mulher, como Sansão.
– Ai há? Esclareça-me. – Ergueu o olhar do jornal e fingiu curiosidade.
Rosalyn corou.
– Seria vulgar da minha parte repeti-los. São nomes muito grosseiros. Nada que se possa dizer a companhias decentes.
– E, no entanto, conhece-os, ao passo que eu não. Suponho então que a minha companhia seja mais decente do que a sua. – E devolveu a sua atenção ao jornal. Do outro lado da mesa, chegaram-lhe os sons de
incoerências e uma língua a ciciar de reprovação.
O mordomo trouxe o primeiro correio da manhã para a sala de pequeno-almoço. O grande maço de cartas de Rosalyn mantê-la-ia ocupada durante um bom tempo. O maço de Penthurst, mais pequeno, anunciava uma
semana de reuniões em privado, enquanto o Governo ponderava algumas aberturas manifestadas por França no sentido de se iniciarem negociações para terminar a guerra. Não foram apenas ministros a escrever-lhe,
embora fosse interessante a quantidade deles que lhe queria dar uma palavrinha em privado. Dois oficiais subalternos do tesouro e três deputados também lhe haviam solicitado audiência. Pressupunha que
estaria a fermentar algum tipo de controvérsia e a maioria destas cartas provinha de homens a quererem que exercesse a sua influência, e não para lhe fornecerem informações úteis.
No fundo da pilha, tinha à sua espera uma carta diferente. Grossa e escrita com uma caligrafia que não reconheceu de imediato, tinha sido expedida em Londres na tarde do dia anterior. Colocou-a de parte
enquanto lia as outras e ia calculando quais deveria declinar.
– Ela escreveu, ao menos? – perguntou Rosalyn, fingindo estar distraída com as suas próprias cartas.
– Recebi uma carta ontem à tarde. Certamente não está à espera de que ela escreva duas vezes em vinte e quatro horas.
– Consigo imaginar o que aconteceu e acho que está a lidar erradamente com a situação. – A sua voz transbordava de compreensão solidária. – Aquela aia dificilmente a poderá aconselhar devidamente. Ela
precisa de falar com uma mulher mais velha com experiência nestas coisas. Com a tia Amelia, por exemplo.
A singularidade deste seu novo tom e das palavras acabou por penetrar na mente de Penthurst. Colocou a carta de lado e apoiou o queixo na mão.
– O que acha que aconteceu?
– Não está certamente à espera de que lhe fale desse assunto.
– Certamente que estou. Estou muito curioso. As suas opiniões são frequentemente muito esclarecedoras.
Rosalyn ficou algo enervada e tentou evitar uma resposta. Ele simplesmente esperou. Ela reuniu coragem e assumiu firmeza no rosto e no tom de voz.
– Chocou-a, é claro. É o que toda a gente pensa. Todas aquelas amantes mais velhas esgotaram-no e tornou-se demasiado... ambicioso com ela.
– Na cama, é o que quer dizer.
A franqueza de Penthurst horrorizou-a, a ponto de se questionar absortamente se teria com ela os seus sais, caso se revelassem necessários.
– Quando diz «demasiado ambicioso», quer dizer que a obriguei a...
– Não é preciso dizer o que a obrigou a fazer, muito obrigada. Tenho a certeza de que, se lhe escrever a pedir desculpa e prometer deixar esse tipo de vulgaridades para as mulheres que são pagas para as
tolerarem, Lydia regressará e correrá tudo bem.
– E toda a gente pensa que é esse o motivo por que Lydia viajou para o campo?
– Evidentemente. Que outra razão haveria para ela se ir embora?
Penthurst retomou o pequeno-almoço.
– Tenho imensa pena de que ela não esteja aqui a ouvir esta conversa, Rosalyn.
– Sem dúvida. Teria evitado a necessidade de abordar o assunto por sua iniciativa. Mas tem de fazê-lo.
– Prometo fazê-lo, e com grande pormenor. – Aquela estranha carta chamou novamente a sua atenção. Ainda a imaginar a gargalhada de Lydia quando lhe descrevesse o seu extraordinário pequeno-almoço com Rosalyn,
pegou na carta e abriu o selo.
Caíram duas páginas. Uma fora rasgada de uma agenda ou diário. Reconheceu a caligrafia de Lydia. Perplexo, percorreu rapidamente as palavras. Era uma lista de navios.
Penthurst apanhou a outra página. Fora escrita, nada mais, nada menos do que por Algernon Trilby.
Meu caro Duque,
Como pode constatar, tanto a sua reputação como a da duquesa encontram-se em grave perigo. A duquesa tem vindo a adiar repetidamente a justa compensação pelo meu tempo e esforço no sentido de lhe fazer
chegar os documentos de onde foi retirada a página que aqui junto. A sua última tentativa de adiar o assunto resultou numa quantia irrisória. Estou certo de que compreenderá a gravidade da situação mais
do que ela aparenta compreender e que quererá resolver este assunto, para que pertença por fim ao passado.
Penthurst leu as duas páginas, sentindo uma ira cada vez mais negra. Duas ideias conseguiram sobreviver ao ataque de fúria. A primeira foi lamentar não ter levado até ao fim aquele desafio de duelo com
Trilby. A segunda é que agora sabia por que diabo Lydia fora a Buxton. Este homem maçador não a estava a cortejá-la. Estava a chantageá-la.
Recolheu todas as cartas e caminhou decididamente até aos seus aposentos, chamando os criados para que lhe preparassem o cavalo. Para o diabo os encontros marcados com ministros. Tinha a intenção de encontrar
Trilby e dar-lhe uma sova até ele perder os sentidos.
Marcus Trilby, artista, vivia numas espaçosas águas-furtadas de um sótão, em que reinava a luz, as telas, os odores a tinta e uma chaise longue sobre a qual o seu modelo, uma rapariga que aparentava ter
cerca de quinze anos, se estendia totalmente nua. Segurava uma urna quebrada que, presumivelmente, deveria simbolizar a sua inocência perdida. A pintura em labor tirava o máximo partido dessa mesma urna,
de modo a veicular um contexto moral a uma pintura sentimental e erótica que iria provavelmente atrair todo o género de homens que apreciavam as raparigas que a escola de Lydia procurava salvar.
O artista ostentava algumas semelhanças com o ilusionista, de cabelo louro e rosto delgado. Sentiu-se invadir por uma tremenda excitação logo que leu o cartão que tinha na mão.
– Oh! Por favor, entre, Vossa Senhoria. Tudo o que possa fazer por si... Cobre-te, Katy! Hmm, a menos que a Vossa Senhoria prefira...
– Diga à rapariga para sair, por favor.
– Vai-te embora, Katy. Leva a roupa e veste-te lá em baixo, na cozinha. – Trilby, o artista, expulsou a garota e convidou o seu hóspede a sentar-se na mesma chaise longue. Começou a retirar quadros das
pilhas e a colocá-los fora de vista. – Estou felicíssimo, Vossa Senhoria. Que um colecionador da sua estirpe me procure... é um sonho concretizado, especialmente após a desilusão na Real Academia. Teve
conhecimento do meu trabalho através de algum amigo? Se assim for, ficar-lhe-ia grato se me dissesse o nome, para que possa agradecer devidamente.
– Lamento, está a compreender mal a situação. Não vim até aqui para ampliar a minha coleção. Estou à procura de um familiar seu que, segundo me disseram, vive aqui. Mr. Algernon Trilby.
O artista interrompeu a sua agitada atividade. Ali ficou à frente dos quadros, desiludido.
– O Algernon é meu primo. Não vive propriamente aqui. Quando vem à cidade utiliza um quarto extra de que disponho, isso é verdade, mas não é esta a sua residência principal.
– E está a utilizá-lo agora?
– Saiu esta manhã dizendo que poderia regressar daqui a uma ou duas semanas.
Maldição. A carta de chantagem ardia-lhe no bolso. Estava esperançoso de poder obrigar Algernon Trilby a comê-la, muito literalmente.
– Se este não é o seu domicílio principal, onde vive ele?
– Na sua casa de família. Herdou-a com a morte do pai. Vive lá com a irmã, embora ultimamente tenha vindo frequentemente à cidade. Faz uns truques de cartas patetas que divertem as senhoras. Tem estado
a dar-se bastante bem desde que o apresentei pela primeira vez a algumas pessoas. – Olhou para os quadros e a última frase foi proferida com ressentimento.
– Gostaria de lhe escrever. Teria a amabilidade de me dar a morada?
– Mas é claro. No entanto, ele poderá não estar lá neste momento. Ele mencionou uma ida a Brighton, a uma receção de alguma senhora que aprecia os seus truques. Suponho que fará lá uma apresentação antes
de regressar a casa.
Arredou algumas paletas, pondo a descoberto uma escrivaninha. Encontrou um pedaço de papel e um pau de giz colorido e começou a escrevinhar. Parou rapidamente e ergueu o olhar com toda a cautela.
– Ele não está metido em nenhum sarilho, ou está?
– Acha que poderá estar?
– De todo. – Continuou a escrever e depois parou de novo. – Mas não deixa de ser estranho um duque aparecer aqui à sua procura. Ele não teve assim tanto sucesso. E aqueles passes de mágica que ele faz...
alguns homens usam-nos para obter vantagens de formas menos dignas.
– E é o que ele faz?
– Se a sua presença aqui é porque está convencido de que sim, nesse caso está enganado. Penso que ele tentou, mas revelou-se desastrado e desistiu.
– Mas a verdade é que tentou.
Trilby, o artista, corou.
– Uma ou duas vezes, penso eu. Há não muito tempo tentou novamente e não conseguiu. Regressou depois aqui muito desiludido consigo mesmo. Fiquei a pensar se não estaria a mentir porque, de repente, parecia
ter uma boa quantia de dinheiro.
– Tudo isso é muito interessante, mas não estou aqui por causa dos seus passes de mágica.
O artista ficou à espera de saber de que se tratava. Penthurst apontou para a escrivaninha.
– A morada?
Com um sobressalto, lembrou-se do que tinha em mente. Escreveu várias linhas, dobrou o pedaço de papel de modo a não esborratar o giz e entregou-lho.
– Eu próprio lhe escreverei e dir-lhe-ei da sua visita.
– Por favor, não o faça. Gostaria de lhe fazer uma surpresa com a minha carta. – Levantou-se, fazendo menção de partir, mas parou para examinar os quadros. – A sua técnica faz-me lembrar Claude. Talvez
devesse tentar paisagens.
– Claude? Acha mesmo?
– Absolutamente. A vantagem das paisagens é que não tem de pagar a modelos. O que me lembra... aquela rapariga que aqui estava... No futuro, deverá solicitar que esteja acompanhada da mãe. Se algum dia
eu regressar para examinar os seus quadros mais de perto, não gostaria de me deparar novamente com uma situação que comprometa uma rapariga tão jovem e, por associação, que me comprometa a mim. Em França,
está sempre presente uma tutora.
– Ai sim? – Trilby seguiu-o na sua sombra até à saída. – Oh, sim, é claro. Insistirei para que a mãe também esteja presente. Fico a aguardar o seu regresso e tentarei ter já algumas paisagens para sua
apreciação.
Quando chegou à rua, abriu o pedaço de papel para ver onde encontraria o tratante chantagista. Pouco reparou nas primeiras duas linhas da morada, já que a última palavra se cravou profundamente na sua
atenção. A casa de família de Algernon Trilby ficava em Hampshire.
1 Peace em inglês. (N. da T.)
2 Referência ao significado de dunner: cobrador de dívidas. (N. da T.)
CAPÍTULO 19
Tudo parecia diferente. Não conseguia deixar de reparar nisso a cada dia que passava. Os campos pareciam menos vastos, os edifícios menos pitorescos, a luz menos dourada e os trilhos mais pedregosos.
Teria ela conhecido uma Hampshire mais agradável ou será que a sua mente lhe embelezara as memórias?
Quando subia o caminho que conduzia à casa, ocorreu-lhe que, se Lakewood estivesse agora a caminhar a seu lado e ela olhasse para ele, também ele poderia não estar à altura das suas recordações. O seu
rosto sobrevivera também com um halo dourado, não é verdade? Talvez visse agora defeitos em que nunca antes reparara. Se calhar as orelhas eram demasiado grandes ou tinha os olhos demasiado juntos. O seu
amor de menina transformara-o num Adónis, mas tinha dúvidas de que na verdade tivesse chegado sequer lá perto.
Suspeitava de que o verdadeiro Lakewood não estava minimamente à altura de Penthurst, por exemplo. O duque não precisava da paixoneta de uma menina para se sentir mais do que já era. E isso aplicava-se
a tudo, não apenas à superfície e à forma. Mesmo que não fosse um duque, nem mesmo um nobre, ou nem sequer um homem abastado detentor de propriedades, ele seria sempre admirável. Aí está uma palavra que,
na sua memória, não lhe era evocada por Lakewood.
Para uma pessoa sã, que ponderasse os factos sem se deixar afetar pelas emoções, não haveria qualquer concorrência possível entre os dois homens. Nenhuma, mesmo. Embora Lakewood conseguisse ganhar ao duque
apenas num aspeto. Havia a possibilidade de que talvez tivesse amado Lydia Alfreton. E essa poderia constituir uma grande diferença para aquela que se dava pelo nome de Lydia Alfreton.
Teria ele amado?
Começara a suspeitar de que talvez não. Pensou, ao entrar em casa, se a pergunta se mantinha em aberto simplesmente porque a resposta provável a levaria a sentir-se a mais tonta das mulheres.
Lydia ouviu sons vindos da cozinha. Chamou Sarah enquanto despia o spencer e tirava o chapéu.
– O correio trouxe alguma carta da minha tia, Sarah?
Sarah não respondeu. Curiosa, dirigiu-se às traseiras da casa para verificar se Sarah teria saído para o jardim.
Saltou de surpresa quando entrou na cozinha. O duque estava encostado à janela, vestido com roupa de montar.
Nesse instante de sobressalto em que o viu ali pela primeira vez, recebeu todas as respostas de que necessitava. A alegria que sentiu no coração disse-lhe a verdade. E também a agitação que sentiu por
todo o corpo.
Apercebeu-se de que a verdadeira questão não era saber quem amara quem no passado, mas quem ela amava no presente.
Lydia deu um salto como se ele tivesse aparecido de um esconderijo para a assustar. E depois ficou totalmente imóvel. Pela forma como o examinava, ele poderia ter sido um perfeito desconhecido.
Estava bonita e fresca. O cabelo caía-lhe solto sobre os ombros e as costas, e a pele estava corada após o passeio no exterior. A satisfação ao vê-la surpreendeu-o ainda mais do que a ansiedade que sentira
na expectativa de a reencontrar. Contudo, por entre essa paz, uma semente de nostalgia começou a lançar pequeníssimas raízes. Se tudo não corresse de feição nos próximos dias, poderia nunca mais sentir
tal satisfação.
Penthurst contava que Lydia o repreendesse. Como se atreve a seguir-me, como se eu precisasse de uma ama-seca ou de um tutor, depois de eu lhe ter dito que nada disto lhe dizia respeito. Parece-me que
deixei bem claro que queria estar aqui sozinha.
Pelo contrário, Lydia aproximou-se, envolveu-o com os braços e encostou a cabeça ao seu peito. Ele abraçou-a com força e beijou-a longamente na cabeça.
– Como conseguiu encontrar este lugar? – perguntou Lydia.
– A sua tia teve o prazer de me informar. Considerando os rumores acerca da sua ausência, as senhoras da sociedade tê-la-iam forçado a fazê-lo, caso tivesse hesitado.
– Rumores?
– Conto-lhe mais tarde. Mas agora... – Beijou-a. Tinham passado apenas duas semanas, mas bem podia ter sido um ano, pela forma como aquele beijo mexeu com ele interiormente. A sua essência suspirou de
alívio e gratidão quando os lábios quentes e macios de Lydia o aceitaram docemente e, depois, avidamente. Penthurst ergueu-a ao nível do beijo, mais perto, e ela rodeou-lhe o pescoço com os braços.
O beijo não tardou a ser insuficiente para ambos. Lydia olhou para a janela.
– A Sarah...
– Mandei-a até à vila ver se conseguia comprar vinho.
– Isso demorará pelo menos uma hora. Ainda é uma bela caminhada.
– A Sarah é inteligente. Parece-me que demorará pelo menos duas.
Lydia pendurou-se nele e esboçou um sorriso irreverente.
– Tratou de tudo muito habilmente. Cavalgou este caminho todo porque tinha saudades minhas como amante?
– Esse foi um dos motivos. O principal. – O outro tinha-o no bolso, à espera de outro dia.
O sorriso de Lydia não vacilou, mas os olhos tornaram-se sérios e profundos.
– Sinto-me lisonjeada. Também senti a sua falta. Muito. Estou tão contente por ter vindo. Preciso que me abrace. E também preciso da sua amizade.
A sua declaração de necessidade excitou-o ferozmente. Não vislumbrava nela qualquer tristeza, mas as suas palavras insinuavam que a sua missão ainda não estava concluída. E que ele não poderia cumpri-la
por ela, nem mudar a verdade para a proteger. Mas naquele dia podia abraçá-la como ela precisava e ser o amigo que ela procurava.
E não apenas amigo, evidentemente. Amante também. Nesse momento, essa componente da sua aliança recusava-se a ser protelada. Penthurst ergueu-a rapidamente nos braços.
– Onde fica o quarto?
Lydia riu-se e apontou para o teto.
Ela perdeu um sapato enquanto ele a levava para fora da cozinha. Outro caiu nas escadas. Até chegar lá acima, Lydia manteve sempre os braços à volta do pescoço dele. Distraiu-o com um beijo no patamar.
O que não o ajudou a controlar-se.
– Por ali. – Lydia apontou o caminho.
Parecia um quarto de menina, todo branco e cheio de folhos. Penthurst pousou-a, de pé, e começou a tirar-lhe a roupa. Lydia riu-se de novo e afastou-lhe as mãos.
– Um pouco de paciência, Vossa Senhoria. Não trouxe grande coisa comigo e não posso dar-me ao luxo de que me desfaça este vestido em pedaços.
Penthurst deixou-a tratar do assunto e desembaraçou-se dos casacos. Enquanto retirava o colarinho e as mangas, analisou o quarto com mais atenção. A mobília era antiquada e simples. A cama tinha a cabeceira
de ferro e o fundo da cama era feito de hastes verticais trabalhadas, sendo que quatro mais longas suportavam o dossel e a armação que sustentava os cortinados.
Sentou-se e descalçou as botas. O próprio ato de despir de Lydia distraía-lhe os sentidos. Vestia apenas a combinação e os collants. Lydia reparou que ele a observava e provocou-o demoradamente enquanto
despia a combinação. Foi subindo muito, muito lentamente. Lydia virou-se de costas, fingindo-se envergonhada, e as nádegas macias foram as primeiras a revelarem-se.
Penthurst fez menção de lhe tocar e cingiu-a a si para lhe beijar a covinha do fundo das costas e deleitar-se com a sensação da sua pele de encontro à sua carícia.
– Acham que veio embora porque nem tudo estava a correr bem connosco na cama – disse ele enquanto lhe beijava as costas e deslizava as mãos pelas pernas abaixo.
– Quem é que acha isso?
– Toda a gente, suponho eu. Se calhar até as suas amigas. Parece que os maridos só permitem que as mulheres saiam tão cedo se as tiverem obrigado a tanto que elas se sentem perfeitamente infelizes.
– Demasiadas vezes, quer dizer?
– Acho que a ideia é demasiado eroticamente.
Lydia virou-se para ele.
– Não foi por isso que vim embora, mas é verdade que me disse que algumas daquelas coisas não são habituais nos casais.
Penthurst beijou-lhe o ventre, adorando a sensação da sua pele aveludada nos seus lábios. Observou como as suas mãos lhe envolviam os seios.
– Dir-me-ia se não tivesse gostado de alguma coisa, não é verdade? Não quero que se sinta forçada.
O desejo transformara já a expressão de Lydia. Inclinou-se para receber as carícias daquele modo que fazia quando queria mais.
– Claro que lhe diria. O que consta por aí está errado, pelo menos no que me toca a mim. Mas isso já você sabia.
Penthurst movimentou rapidamente a língua pelos seios dela. Lydia contraiu-se, arquejou e esticou os dedos ao longo do cabelo dele e apertou-lhe mais a cabeça contra o seu corpo.
– Está a querer insinuar que me quer mostrar mais alguma coisa extraordinária?
– Muitas coisas. Mas não agora. – Apesar das imagens que lhe povoavam a mente, não queria ministrar aulas de erotismo naquele momento.
Penthurst levantou-se, ergueu-a de novo e pousou-a na cama. Despiu-se da cintura para baixo e instalou-se em cima dela, de modo a senti-la plenamente ao longo de todo o seu corpo. Usou a mão para se certificar
de que ela estava pronta e depois penetrou lentamente, fazendo durar o momento, grato com toda a sua alma por cada intenso instante. Não se mexeu então por muito tempo, permanecendo assim no abraço dela,
depositando-lhe um beijo na curva do pescoço enquanto inspirava profundamente a realidade que ela representava.
Ouviram-se sons lá em baixo. A luz da janela revelava que a tarde já ia avançada. Lydia temia perder aquela beleza pungente se se mexesse, por isso manteve-se tal como estava, com o braço de Penthurst
atravessado sobre o seu corpo, num gesto de proteção e posse.
Lydia não se teria importado com algo eroticamente extraordinário, se tivesse sido esse o desejo dele. Essas lições eram para ela empolgantes. Contudo, apreciara o facto de ele ter percebido que ela precisava
de algo bastante normal. Precisava deste prazer lento, com as suas explorações mais tranquilas. Permitiu-lhe nunca perder a noção da forma como as suas emoções conferiam novas profundidades à intimidade.
Era algo que antes havia roçado o prazer, mas que hoje dominara por completo.
Teria ele sentido também? Se calhar os homens nunca o sentiam. Certamente era o mais provável nos homens casados por obrigação.
O braço de Penthurst mexeu-se, para grande pena de Lydia. Ele sentou-se.
– Já se vai fazendo tarde.
– A Sarah começou a cozinhar. Fica cá connosco? Devo avisá-lo de que nesta casa apenas este quarto e o da minha tia têm camas e eu cedi à Sarah o da minha tia.
– Cabemos bem os dois aqui. A casa é simples, mas acolhedora. Ficarei, mas apenas se não se importar.
Penthurst levantou-se e olhou pela janela.
– Está a formar-se um pôr do sol glorioso. Vamos sair e apreciá-lo.
Vestiram-se e desceram. Sarah saiu da cozinha e fez uma vénia.
– Trouxe o vinho, Vossa Senhoria. O jantar está pronto daqui a cerca de uma hora, milady. Acabei de pôr o púcaro de galinha no fogão.
Lydia conduziu-o para um trilho que percorria em ziguezague os campos de uma quinta vizinha. À medida que as suas pernas avançavam em sintonia, Lydia pensava noutro homem que em tempos pisara o mesmo chão
a seu lado. Não haveria um só lugar onde pudesse levar Penthurst onde não tivesse já estado com Lakewood.
– Está muito calada, Lydia.
– Estou só perdida em pensamentos.
– Espero não ter interferido nos seus planos aqui, nem ter manchado a sua nostalgia, independentemente das conclusões a que tenha chegado sobre a sua causa.
Lydia sentiu uma pontada no coração. Ele sabia. Tão típico dele dizer-lhe naquele momento, no seu estilo oblíquo, que, se desejasse guardar Lakewood no seu coração para sempre, ele compreenderia.
Ele merecia melhor. E ela também.
– Não cheguei a muitas conclusões. Mas vejo o tempo que aqui passei no início de uma dada primavera de forma muito diferente daquilo que guardei na memória. Menos dourado e muito menos perfeito. Até as
minhas emoções. Eu não era propriamente uma menina, mas estava perdida de paixão pela primeira vez e isso pode ser um poderosíssimo gerador de ilusões. Passei as últimas duas semanas a analisar o passado
com um olhar mais maduro. Consigo ver agora como poderei ter sido manipulada e como a sua insistência em manter secreta a nossa aliança refletirá provavelmente as suas intenções indignas.
Penthurst nada disse, mas alguns passos mais à frente tomou a mão de Lydia na sua. Caminharam para oeste sob o ar fresco do outono. No céu iam nascendo listras vermelhas à medida que o sol descia. De repente,
toda a luz mudou, como se um artista tivesse acrescentado um pouco de rosa à tonalidade da atmosfera.
Pararam e ficaram a observar, enquanto durou. Por fim, o sol desapareceu por trás do horizonte e abateu-se uma penumbra profunda. Lydia voltou-se para ele.
– Quero que saiba que tudo isto, o tempo e o espaço e a pessoa, já tinham sido encerrados no passado. Não pensei nele quando nós... quando...
– Fomos íntimos?
– Sim.
– Teria encontrado a palavra sozinha, depois de aceitar a sua ousadia de sequer pensar em encontrar uma.
Lydia riu-se.
Penthurst puxou-a para si, encaixando-a no seu abraço.
– Que bom saber isso, Lydia. – Beijou-a. – Estou quase tão aliviado por ouvi-lo como quando soube que o traseiro nu que viu naquele dia não era o dele.
Apesar do sentido de humor, um elo vibrante unia-os naquele abraço. Lydia falara a verdade quando dissera que precisava de um amigo. Não Emma, nem Cassandra, nem sequer Sarah. Era este, que olhava para
ela à medida que a luz se ia desvanecendo.
Talvez fosse o facto de saber que a sua cara ficaria escondida na escuridão. Ou se calhar nasceu apenas da proximidade que sentiu para com ele e no ambiente de confidência que criou. Mas pensou que aquilo
que tinha para lhe dizer em seguida poderia já não ser tão atrevido como teria sido uma semana antes.
Lydia tocou-lhe o rosto, e depois a boca.
– Penso que talvez o tenha avaliado cruelmente no que toca àquele duelo. Quer falar-me sobre isso?
Ainda se conseguia vislumbrar as luzes nos seus olhos. Cintilavam de cólera, orgulho e, até, pensou ela, alguma dor. Ele pegou-lhe na mão e tirou-a do rosto, beijou-a e continuaram a caminhar.
Só quando avistaram a casa é que ele começou de novo a falar.
Nunca falara sobre aquilo. E não sabia porque estava a fazê-lo naquele momento. Talvez devido às alusões que ela em tempos fizera à forma como os duques assassinam amigos e escapam ao castigo. Queria que
ela soubesse que não tinha sido assim tão preto no branco.
Perante a suspeita de que talvez os dias que se avizinhavam acabassem de qualquer modo por abrir a ferida, sentiu-se compelido a prepará-la também com esta outra história.
Tê-la-ia poupado da história da desonestidade de Lakewood com as promoções, mas esse assunto acabaria de qualquer forma por ser revelado. Não se alongou em pormenores, o que também não alterou em nada
a verdade. O que restava da menina apaixonada poderia não querer ouvi-lo, mas a duquesa não se deixou abater.
Falar sobre o duelo propriamente dito revelou-se mais difícil.
– Pensei que, quando se acalmasse, ele desistiria do desafio. O seu irmão era a sua testemunha e tentou chamá-lo à razão. E a mim, mas ele não estava ciente daquilo que eu sabia. O Lakewood parecia pensar
que, se me matasse, a sua reputação sobreviveria. E se não me matasse, sobreviveria na mesma. Não me apercebi de como estava determinado em levar aquilo até ao fim, não plenamente, até o ver naquela manhã.
– Ele chegou mesmo a dizê-lo?
– Afirmou que me silenciaria. Eu disse-lhe que outras pessoas também sabiam. Que um dos seus oficiais promovidos havia revelado demasiado, e fora assim que me chegara a verdade. Nesse momento, ele transformou-se.
A beligerância abandonou-o. – A memória daquela transformação assombrava-o. Não foram só a vontade de lutar e matar que haviam abandonado Lakewood naquele momento. Esvaziara-se de vontade ali mesmo e o
seu olhar virara-se para dentro, perturbado. – E depois afastou-se para esperar a chamada para assumirmos as nossas posições.
– Se matá-lo não impediria o escândalo, porque não parar logo ali?
Porque ele decidiu ir de encontro à bala da minha pistola.
– Orgulho, talvez.
Lydia tomou-lhe o braço e encostou-se ao seu flanco.
– Ainda assim, a sua reputação foi poupada, apesar do que disse sobre haver outras pessoas que sabiam.
– Não podemos levar um homem morto a julgamento. O Ministério da Guerra investigou discretamente e os oficiais de acusação foram afastados, mas as suas ações não foram reveladas.
– Se calhar alguém usou as suas influências para o garantir. Algumas palavras de um homem importante ou dos seus amigos importantes, por exemplo.
– Quem sabe o seu irmão argumentou a favor dele.
– Não me parece que tenha sido o meu irmão. Se ele tivesse sabido dessas promoções, não teria cortado relações consigo durante mais de um ano.
Já escurecera quando alcançaram o jardim. Odores deliciosos exalavam da cozinha. Lydia travou-o antes que chegasse à porta.
– Obrigada por me ter contado. Embora não tenha dito tudo, pois não?
– Disse-lhe a maior parte. – Não o choque com o movimento repentino de Lakewood ou como ficou a vê-lo cair. Não as semanas em que reviveu aqueles escassos momentos tentando perceber o que acontecera realmente.
Lydia esticou-se e beijou-o.
– Ele teve em si um melhor amigo do que merecia. Ele sabia que assim seria, parece-me. Sabia que, se morresse, protegeria o seu nome, por ser tão bom e tão justo.
Penthurst chegara praticamente à mesma conclusão. Uma morte autoinfligida para expiar os seus pecados, sabendo que o seu bom nome seria poupado – era um belo enredo. A personagem de Lakewood quase parecia
nobre e sacrificial na história que contava. Precisara de muito tempo para se aperceber de que o enredo era excessivamente melodramático.
Seria preciso mais do que a ameaça de escândalo em torno daquelas promoções para levar Lakewood a fazer o que fez. Ele vira algo mais no futuro, quando se começasse a fazer perguntas. Algo que o levou
a preferir morrer a enfrentar.
Penthurst seguiu Lydia e entrou em casa, tentando imaginar se ela o acharia assim tão bom quando ele descobrisse os restantes crimes de Lakewood.
CAPÍTULO 20
A primeira luz da aurora levou-a a mexer-se. Com movimentos subtis, foi despertando. A seu lado, a cama estava vazia. Voltou-se e viu Penthurst já vestido. Ele veio até ela, beijou-a e aconchegou-lhe os
lençóis.
– Volte a dormir.
– Vai-se embora?
– Só por umas horas, no máximo. Apeteceu-me caminhar até à costa. Não é longe daqui. Às vezes cheira-me a mar.
Lydia atirou os cobertores para trás.
– Será talvez uma hora a caminhar se for pela Floresta de Bere, mas demora mais se for pela estrada. Eu acompanho-o e mostro-lhe o caminho mais curto, se não se importar de ter companhia.
– Não é demasiado longe para si?
Lydia deslizou para fora da cama.
– Já fiz esse caminho a pé antes. E andei mais do que isso nas minhas estadas em Crownhill. Já deveria ter percebido por esta altura que não tenho uma constituição muito delicada.
Penthurst esperou, sentado numa cadeira, observando-a a lavar-se e a vestir a combinação e os collants e, depois, o vestido.
– Obrigada por ontem à noite ter tranquilizado a Sarah sobre as milícias. Ficou muito aliviada ao ouvir que provavelmente nunca chegariam a pôr os pés num campo de batalha – disse ela.
– Estão em curso esforços determinados de negociação. Penso que poderemos assistir em breve ao fim da guerra, ou pelo menos a umas tréguas, para se poder redobrar esses esforços.
– Isso seria maravilhoso. Sinto que vivi a vida inteira com esta guerra. O fim de todos os custos e mortes foi-me parecendo algo inalcançável.
– Quando terminar, vamos a França. Quis ir em tempos, o suficiente para viajar clandestinamente numa galé.
Lydia puxava os botins para os calçar. Penthurst fez-lhe sinal para vir até ele. Um de cada vez, ergueu-lhe os pés e apertou os botões laterais. Seguiram-se o chapéu, o spencer e as luvas. Estava por fim
pronta para sair.
– Espere. – Penthurst abriu o guarda-roupa e espreitou lá para dentro. Saiu de lá com um velho xaile que Lydia não se lembrava de alguma vez ter visto. Abriu-o e envolveu-a com ele. – Ainda está frio lá
fora e vai constipar-se com a humidade da noite.
– É muito feio. Acho que pertencia a uma criada que trabalhou aqui em tempos. Se passarmos por alguém, vai ficar envergonhado.
– Se nos cruzarmos com alguém, pode livrar-se dele e eu levo-o. Mas vai usá-lo agora, Lydia. Esta caminhada já será suficientemente cansativa sem que seja preciso ainda ficar doente.
– Verá que não me vou cansar nada. Vamos, então.
As primeiras horas da manhã eram a altura ideal para caminhar, decidiu Lydia. O mundo inteiro ainda estava imbuído da quietude da noite e a luz prateada conferia um toque de magia mesmo às luzes mais comuns.
Caminharam pelo campo para sul e penetraram na floresta, enquanto Penthurst descrevia os acontecimentos em Londres.
Estavam muito perto da costa quando aquela luz ficou branca e o sol fez a sua aparição. Ainda assim, não estava arrependida de ter consigo o tal xaile feio. O ar transportava aquele frio acutilante que
anunciava a chegada próxima do inverno.
– Conhece muito bem todos estes caminhos – disse Penthurst.
Lydia orientava-se bem porque viera ali muitas vezes com Lakewood. Devido à distância, que na altura lhe parecera muito menor, não recapitulara este passeio em particular nas últimas duas semanas.
Algo na observação e na voz de Penthurst a levou a pensar duas vezes sobre uma recapitulação completa desses passos no presente dia. Conduziu-o a um lugar ligeiramente a oeste do porto, que proporcionava
uma vista lateral dos navios e para leste.
Penthurst estudou a configuração do porto e a posição de Portsmouth a meio caminho. Apontou para a vasta extensão de Portsdown Hill a norte da água.
– Vamos subir àquela colina e ver a frota.
– Ali há guardas. Vão fazer-nos perguntas.
– Nesse caso, só teremos de responder. Não me parece que fiquem desconfiados de um cavalheiro e uma senhora.
Não, se o cavalheiro fosse um barão. Havia pouca gente naquela colina uns anos antes, mas um nobre conseguia aceder com meia dúzia de palavras. Lydia ainda contava com menos problemas se estivesse acompanhada
de um duque.
Lydia não tinha vontade nenhuma de penar por aquela subida acima, mas seguiu-o. A cada passo, lembrava-se de que, quando regressasse a Londres, teria novamente de procurar aplacar as investidas de Algernon
Trilby. Caminharam até ao local onde se podia ver a maior parte da frota ancorada e a atividade febril nas docas parecia um autêntico formigueiro. É verdade que um guarda se aproximou calmamente e que
os questionou sobre o motivo de estarem ali. Penthurst identificou-se, e fim de conversa.
Penthurst perscrutou tudo aquilo com uma expressão pensativa.
– Costumava vir aqui com ele.
Não era uma pergunta.
– Sim. Eu trazia comida e comíamos ao ar livre, aqui, no caminho de regresso.
– Fizeram-no muitas vezes?
– Várias vezes. Foi um percurso favorito durante algumas semanas. Porque pergunta? Não é ciúme, isso eu sei.
– Não sou superior a ponto de não sentir ciúme, Lydia. Contudo, é esta a razão da minha pergunta. – Enfiou a mão no bolso e retirou uma folha de papel dobrada. Entregou-lha. Ela abriu.
Lydia sentiu-se prestes a desmaiar quando viu a sua caligrafia e a lista de navios. Desmaiar ou vomitar. Não se atreveu a levantar os olhos do papel. Não conseguia olhar para ele, mas sentiu o seu olhar
sobre si.
– Chegou-me juntamente com uma carta, para o caso de estar a pensar. Mr. Trilby decidiu que estava a hesitar muito tempo e que, ultimamente, não lhe dera o suficiente.
– Hesitar? Dei àquele patife quase três mil libras e prometi mais. As suas exigências eram demasiado ridículas logo desde o início e só foram piorando.
– Não há forma de ganhar em negociações com chantagistas, Lydia. – Puxou suavemente a folha até que Lydia a soltou. – Como foi que escreveu isto?
– Faz parte de um romance. Um mau romance, admito. Estava a escrevê-lo aqui, para passar o tempo quando estive sozinha com a minha tia. E acabei por lá inserir todo o tipo de coisas.
– É muito pormenorizado. É extremamente incriminador, Lydia. Sabe bem disso. Caso contrário, não lhe teria dado um só xelim.
– Ele fazia jogos enquanto comíamos – explicou ela em desespero. – Fazíamos rimas tontas sobre os navios, como canções da escola. Como acontece nessas lições, foi fácil lembrar-me do que vi.
– As canções eram então também muito pormenorizadas, já que indicavam o número de soldados e de fragatas e outros que tais.
Lydia dirigiu o olhar para a frota. Não teria reconhecido uma fragata, nem que a sua vida dependesse disso. Lakewood tinha-lhe identificado tudo e criara a maioria daquelas canções disparatadas. Lydia
rira-se longamente e com gosto por algumas das rimas serem tão ridículas. Para ela, ele era o homem mais divertido do mundo.
Depois, quando começou a escrever o romance, fora fácil descrever como a sua heroína subira sozinha até aqui, observando todos aqueles navios enquanto penava pelo seu amor.
Ocorreu-lhe algo. Algo terrível. Tentou afastar esse pensamento, mas simplesmente não desaparecia, exigindo atenção. Se tinha escrito a informação que memorizara com aquelas pequenas rimas, não teria Lakewood
feito o mesmo? Teria sido essa a única razão para ir até ali?
Olhou para Penthurst e soube que esse mesmo pensamento lhe ocupava a mente. Quem sabe já há dias.
Lydia apontou para o papel.
– O que vai fazer com isso?
– Vou queimá-lo. Quanto a Mr. Trilby, farei o que teria feito há semanas se tivesse confiado em mim. Eu e ele vamos ter uma longa conversa. Dependendo do que eu ficar a saber, e de ele cooperar ou não,
ou o suborno, uma só vez e definitivamente, ou passo a informação e trato de que seja enviado para as galés.
No regresso, conversaram sobre outras coisas. O duque não a censurou pela estupidez que a havia conduzido à chantagem. Não era preciso fazê-lo. Lydia autoflagelava-se a cada passo. A situação embaraçosa
de Buxton pareceria muito insípida comparada com o escândalo, se Trilby não cooperasse. Lydia não duvidava de que Penthurst ponderava agora como tinha feito um mau negócio ao ficar com ela.
O espírito de Lydia também processava outras coisas. Por fim, conseguia olhar para aquele início de primavera com total honestidade. Já não engendrava desculpas para defender Lakewood e não se encolhia
só de pensar nas implicações daquilo que via. Quando por fim chegaram à casa de campo, Lydia estava furiosa.
– Não era por acaso que ele tanto preferia caminhar ao longo da costa, pois não? – perguntou enquanto pendurava o spencer no cabide.
Penthurst não respondeu. Parecia perturbado e pensativo. Não por ele mesmo, certamente. Por ela. Por causa dela?
– Bem, eu cá penso que não foi por acaso – disse ela, já que ele nada dizia. – Precisava de uma desculpa para passar tempo num local onde pudesse estudar o porto. É verdade que deixariam entrar um barão,
mas não podia simplesmente sentar-se e tomar notas, não é? Por isso, lisonjeou e seduziu uma rapariguinha prestes a ficar para tia, para que as suas visitas se transformassem em simples passeios a um interessante
lugar para fazer piqueniques. – Transbordava de indignação. – E como se isso não fosse suficiente, ele...
– Lydia, acalme-se. Não sabemos...
– Sabemos, sim. Eu sei. Ele usou-me para fazer algo tão indigno que não é desculpável nem perdoável. Algo por que preferiria morrer a ver exposto. E como se isso não fosse suficientemente mau, ainda por
cima informou alguém do meu manuscrito, este foi roubado e foi parar às mãos do Trilby. Eu até li partes ao Lakewood. Ele sabia o que continha. Quem se daria ao trabalho de o roubar, a menos que também
o conhecesse?
Penthurst não parecia muito surpreendido, nem sequer solidário. Ostentava o ar do duque de Penthurst, aquele que exigia que o mundo se vergasse às suas vontades.
– O que está a dizer poderá estar correto. Sabê-lo-ei em breve. Mas não me parece que ele tivesse a ideia de a tornar vítima de chantagem. O objetivo poderá ser sido apenas de levar o diário para que não
pudesse ser lido por terceiros e assim levantar questões.
Sobre ele ou sobre ela? Seria agradável pensar que Lakewood teria tido a decência de tentar protegê-la.
– Não é um diário. Já lhe disse, é um romance.
– Suponho que isso se tornará evidente logo que eu veja mais do que uma página.
Tomaram a refeição que Sarah preparara. Revelou-se um momento tranquilo e desconfortável. Enquanto depenicava o guisado, Lydia observava-o. Percebia-se que tinha o espírito ocupado com alguma coisa.
Deu-se conta de que Penthurst não acreditava nela. Ou pelo menos não tinha a certeza. A sua análise deixava em aberto a possibilidade de Lydia – imprudente e sempre em busca de excitação – ter achado divertido
pelo menos fingir que estava a espiar a frota. Não podia censurá-lo por colocar essa hipótese, mas sentiu-se invadida por um profundo pesar.
Penthurst já sabia de tudo quando chegara, na véspera. Fora esse o motivo da sua vinda. E a sua união terna e emotiva naquela cama de ferro poderá ter sido tão forte porque ele sabia que, em breve, não
voltaria a vê-la com os mesmos olhos.
– Dei instruções ao cocheiro para vir de manhã, para a levar a si e à Sarah de regresso a Londres.
A sua voz soava por entre a noite. A paixão fora rápida e sem satisfação, já que pensamentos sobre o dia impediam-na de se perder no prazer. Lydia imaginava se seria sempre assim a partir de agora. Porventura
não se teria importado se não tivesse já conhecido melhor. Não teria reparado na ausência de intimidade e proximidade se nunca se tivesse apaixonado por ele.
– Quando lhe disse isso? – Penthurst não saíra do seu lado desde que chegara.
– Ontem, antes de vir até aqui.
Então fora tudo planeado. Exceto a companhia dela no passeio até à costa. Tinha sido sua intenção fazê-lo sozinho.
– Viajará de regresso connosco?
– Tenho algo a tratar antes de regressar à cidade. Voltarei daqui a alguns dias.
– Devo fechar a casa ou permanecerá aqui?
– Diga à Sarah que pode fechar tudo.
Penthurst virou-se para Lydia. Quando adormeceu, repousou o braço sobre o corpo dela, naquele abraço familiar. Ela ali permanecia deitada, nada fazendo que o obrigasse a desviá-lo.
*
– Trouxe-os consigo? – perguntou Penthurst.
Estava à mesa de uma taberna da vila, não muito longe da casa de campo. O homem com quem tinha combinado encontrar-se acabara de entrar e sentou-se à sua mesa.
Kendale pediu cerveja.
– Na sua carta pedia-me que trouxesse o meu exército, o que não fazia sentido nenhum. Não tenho qualquer exército, como é evidente. Eu próprio já não estou no exército há anos.
– Perdoe-me. Escrevi à pressa. Trouxe algum daqueles muitos criados com treino de armas e que estão às suas ordens?
Era efetivamente um pequeno exército, para grande preocupação do Governo. Se Kendale não fosse visconde, estaria provavelmente na prisão devido a algumas das atividades que empreendia com aqueles homens.
– Vieram quatro comigo. Nada do que possa ter em mente necessitará de mais.
Quatro seriam provavelmente mais do que suficientes, mas Kendale não tinha forma de o saber, excetuando a sua fraca opinião sobre o tipo de missão que o duque poderia empreender.
Beberam a cerveja em silêncio. Kendale não pediu pormenores sobre a carta nem sobre os acontecimentos que se seguiriam. Penthurst sabia que assim aconteceria. Fora esse, desde logo, o motivo por que enviara
a carta a Kendale. A única questão que se lhe colocara era saber se ele realmente viria. Uma vez que sim, Penthurst não contava com grandes conversas. Quando Kendale se apercebesse da presa que na realidade
iriam caçar naquele dia, muito provavelmente não manifestaria além disso qualquer ressentimento ou juízo.
– Vamos. Não é longe daqui.
Saíram e montaram. Quatro homens a cavalo seguiram-nos pela estrada. Alguns quilómetros depois, chegaram a uma vereda. Terminava em frente a uma casa de dimensões generosas. Examinando com mais atenção,
tornava-se evidente que a maior parte da casa fora construída recentemente. O bloco central e a entrada principal aparentavam ser muito mais antigos. A pedra ostentava o desgaste de eras, o que não acontecia
com os acrescentos.
– Não terão de fazer mais nada além de se alinharem aqui fora e fazer um ar intimidante – disse Penthurst depois de desmontar.
– Está a dizer-me que me arrastou até aqui, mas que não há nada para fazer?
– Não haverá combates, se é isso que esperava.
– Que pena. Trouxe a minha espada. – Kendale avaliou a casa. – Dinheiro recente.
– Sim.
– Indigno?
– Creio que sim.
Kendale continuou a estudar a casa.
– É este o infame Dunner Park do Lakewood?
As perguntas sucediam-se de um modo que sugeriam que Kendale, apesar da sua perspetiva inflexível sobre aquele duelo, se apercebera de algumas coisas sozinho.
– Céus, não, não é, mas se me está a fazer essa pergunta, mais vale vir também. – Penthurst caminhou com determinação até à porta. Enquanto esperava que respondessem depois de bater, Kendale juntou-se-lhe.
Uma criada de touca e avental abriu a porta. Penthurst entregou-lhe o seu cartão.
– Diga-lhe que me deverá receber, a bem do irmão.
A mulher deixou-os à espera no exterior enquanto levava o cartão. Regressou para os acompanhar até uma biblioteca ampla e de teto alto que mais parecia poder ter sido decorada pela sua tia Rosalyn.
Uma mulher estava sentada num divã, com o cartão na mão. O seu cabelo era castanho, com madeixas de um acobreado luminoso. Possuía aquele tipo de beleza precisa que levaria Ambury a olhar duas vezes e
que conduzia os homens a acreditar que seria a amante de um duque.
– Miss Trilby, que agradável poder finalmente conhecê-la. Este é o visconde Kendale. Quero falar-lhe sobre as atividades levadas a cabo pelo seu irmão, por si e pelo barão Lakewood para aumentarem as vossas
fortunas.
Ela ousou ostentar uma pose de altivez.
– Parece-me que não sei de que fala.
Penthurst voltou-se para Kendale.
– Peça aos seus homens que a detenham. Vamos levá-la para Londres e deixaremos que os agentes do Ministério do Interior orientem esta investigação.
Ela levantou-se, em alarme.
– Se se quiser explicar, farei tudo o que esteja ao meu alcance para ajudar. O meu irmão fez alguma coisa que atraísse a atenção do Governo?
– Mais recentemente, chantagem. E, antes disso, a venda de promoções a oficial e, o que se reveste de particular interesse, alguma espionagem. Uma atividade diminuta, mas o termo aplica-se, ainda assim.
Miss Trilby levou as mãos ao rosto em desalento. Os olhos transbordavam de lágrimas. Voltou-se de costas.
– Oh, Algernon. Estúpido, estúpido Algernon.
Penthurst aproximou-se, até que se posicionou de modo a encarar de frente o seu constrangimento reverente.
– Sim, o estúpido do Algernon. Tão estúpido que não consigo imaginá-lo a conseguir tudo isto sozinho. Se tivesse terminado tudo com a morte do Lakewood, eu poderia ter partido do princípio de que teria
sido ele a inventar tudo. Mas como não terminou aí, resta-me considerá-la a si a mente por trás de tudo.
– Acha que ela vai fazer o que lhe disse? – perguntou Kendale enquanto se encaminhavam para os cavalos, duas horas mais tarde.
– Será a opção inteligente e aquela mulher não é parva.
– Não gosto disto. O melhor seria revelar tudo. Os dois deveriam sofrer o destino que escolheram quando o atraíram para isto.
Atrair era uma palavra demasiado dócil. Duvidava de que Lakewood tivesse resistido muito tempo, pelo menos não no que diz respeito às promoções. A cara bonita que conhecera ali dentro teria sido muito
persuasiva. Os dois conheciam-se há anos e um homem desejoso de uma mulher, se tivesse um carácter débil, podia ceder rapidamente.
– É melhor assim. – Subiu para o cavalo. – Ela fará como ordenei. Vai organizar o encontro.
– Por saber que tem o irmão na mão? Não contaria com isso. Ela parece-me o género de pessoa capaz de o entregar à sua sorte, traindo-o e saindo a correr.
Ela desejá-lo-ia, mas não o faria. Mas não por lealdade para com o irmão. Seria movida pela cobiça, como sempre acontecera. Penthurst dera-lhe a entender, oblíqua e indiretamente para não chamar a atenção
de Kendale para a referência, que teria à sua espera uma boa maquia em dinheiro no encontro.
– Vai precisar de mim para o desenlace final? – perguntou Kendale quando viraram os cavalos na direção da estrada.
– Creio que não. Há outros com quem posso contar na cidade, caso conclua que preciso de um exército. Pode regressar para junto da sua mulher, embora ela certamente já se tenha cansado de si entretanto
e tenha ficado satisfeita por o ver fora durante alguns dias.
Kendale achou muita graça.
– Fale por si, Penthurst. – Rindo, conduziu os seus homens rumo à estrada.
CAPÍTULO 21
Lydia sentiu que estava prestes a enlouquecer. Não bastava ter regressado a Londres com tanto pesar no coração, como ainda por cima estava há já quatro dias a aguentá-lo. Fora um perfeito inferno antever
a desilusão e a fúria de Penthurst quando, por fim, também regressasse. Lydia possuía agora informação que acrescentaria uma inesperada faceta a todo o enredo.
Lakewood e Trilby conheciam-se.
– Tem mesmo a certeza? – disse ela à tia Amelia. Fizera-lhe uma visita de cortesia, para se distrair um pouco.
Não tinha permitido a companhia de Rosalyn desta vez. Rosalyn andava a tratá-la como a uma inválida desde que regressara. De repente, era a «pobre Lydia» e mimava-a com atos de apoio que não faziam qualquer
sentido. Na noite anterior, dissera que Lydia deveria agradecer-lhe por Penthurst ter pedido desculpa. Acontece que não tinha feito tal coisa, nem se recordava de qualquer motivo por que devesse fazê-lo.
Suspeitava que estava tudo relacionado com aqueles rumores sobre imposições eróticas, mas a ideia de que Rosalyn sabia e refletia sobre o assunto não devia ser alimentada.
– Oh, sim – respondeu Amelia. O seu rosto macio e redondo enrugou-se num sorriso sob os caracóis grisalhos. – O barão trouxe Mr. Trilby para me distrair. Não foi uma simpatia? Mr. Trilby faz uns pequenos
truques de magia com cartas. Penso que acompanhou o barão duas ou três vezes antes de vir fazer-me companhia, Lydia. Posteriormente, depois de a Lydia regressar à cidade, Mr. Trilby voltou para saber se
eu precisava de alguma coisa. Que simpatia a do homem, a lembrar-se assim de mim. Também trouxe a irmã e continuou a visitar-me sempre que eu ia até à casa de campo. No verão passado, a irmã convenceu-me
a tirar alguns dos objetos do meu Harold, para que não sofresse no coração sempre que os visse. Concordei e o irmão carregou-os simpaticamente para o celeiro enquanto eu e ela ficámos a conversar.
A conversa terá permitido que Trilby se movimentasse livremente pela casa. Teria ele encontrado a arca por acaso, vasculhando-a por curiosidade, ou será que Lakewood o teria avisado da existência de um
manuscrito? Na casa das carruagens, Trilby teve oportunidade de analisar o seu conteúdo à vontade, encontrando então o manuscrito. Quem sabe não o teria levado para se certificar de que não continha nada
que incriminasse Lakewood ou ele próprio. Terá provavelmente saltado de alegria quando encontrou páginas que incriminavam a autora e mais ninguém.
Amelia inclinou-se sobre Lydia e tomou-lhe a mão.
– Ficarei para sempre grata por ter vindo ter comigo naquela primavera. Pensei que não quereria a companhia de ninguém, mas a sua presença tranquila ajudou-me tanto. Tive pena do modo como nos afastámos
depois.
– Isso foi por culpa minha, não sua. É muito mais fácil ludibriar a tia Hortense. Eu sabia que, quando superasse a sua dor, não me divertiria de longe tanto consigo como com ela.
Amelia fez uma careta de repreensão, e depois riu-se.
– Tudo está bem quando acaba bem. Uma vez que afinal sempre acabou por ficar com o Penthurst, quem se pode queixar?
Lydia continuava a ruminar o que descobrira sobre Trilby e demorou uns instantes a atentar à última e estranha observação da tia. – Afinal sempre? O que quer dizer com isso?
O rosto de Amelia ficou sério de repente.
– Nunca ninguém lhe contou? Eu e a Hortense optámos por não o fazer porque não queríamos que ficasse triste por ter perdido a oportunidade de se casar com um duque. Pensei que certamente alguma outra pessoa
teria sido suficientemente desagradável para lhe falar nisso quando crescesse, porque as pessoas são como são.
– Agora que já o mencionou, poderia então explicar-me.
Amelia lançou-se numa surpreendente explicação sobre um pacto para que Penthurst se casasse com ela, firmado entre a sua mãe e Rosalyn aquando do seu nascimento. Acontece que o futuro duque não achou piada
nenhuma e repudiou a combinação logo que herdou o título.
– Postou-se perante aquela assembleia de familiares e amigos e disse que escolheria ele próprio a sua duquesa e que rejeitava de imediato qualquer tipo de combinação, pacto ou noivado por interposta pessoa
que possam ter sido ou possam vir a ser firmados em seu nome – terminou Amelia. – Estava a falar de si, infelizmente.
– Naturalmente.
– Ele não tinha mais de quinze anos na altura, mas já conseguíamos ver que tipo de pessoa seria. Quando soube da vossa fuga para se casarem, pensei, bem, aqui está. A Celeste acabou por conseguir o que
queria. E também a Rosalyn, embora me pareça que já se tivesse reconciliado com a ideia de o sobrinho não ceder a esse pacto.
– Também me parece.
– Vê como tudo acabou bem, Lydia? O suficiente para devolver a fé a qualquer pessoa.
Lydia partiu pouco depois, refletindo sobre a espantosa revelação de que a mãe tentara prometê-la em noivado a Penthurst horas depois de ter nascido. Que coisa antiquada. É claro que ele repudiou o pacto.
Caso contrário, teria sido ela a fazê-lo.
Lydia regressou a casa, fadada a esperar, a preocupar-se e a conjeturar. Tentou enterrar todas as suas emoções bem fundo no coração, mas em vão. Chegara à conclusão de que, depois de reconhecer o amor,
se torna muito difícil recuar ao tempo em que o desconhecíamos. Agora tinha de o aguentar. Se ele voltasse a tratá-la como antes daquele último dia em Hampshire, restar-lhe-ia mal conseguir viver sem ver
o seu coração despedaçado vezes sem conta.
Quando a carruagem parou em frente à casa, pressentiu que algo tinha mudado. O lacaio que a ajudou a descer confirmou-o.
– Sua Senhoria regressou, Senhora.
– Quando?
– Chegou a cavalo há uma hora.
– E como estava... Quer dizer, pareceu-lhe bem?
– Disse uma graça e atirou-me um guinéu, por isso pareceu-me bastante bem, Senhora.
Lydia obrigou-se a subir calmamente os degraus. Contudo, uma vez dentro de casa, correu para as escadas. Em todo o caminho até lá acima, rezava para que não houvesse qualquer estranheza entre os dois.
Quem sabe brincaria também com ela, sobre todas aquelas descobertas em Hampshire. Troçaria dela por ter incluído listas de navios num romance e dir-lhe-ia que usara o seu poder ducal para resolver tudo
e cairiam os dois na cama e ela conheceria o poder de, pelo menos ela, o amar, muito embora ele só a visse como uma esposa problemática que não apreciava por aí além.
Sarah teve um sobressalto quando ela irrompeu nos aposentos.
– Rápido, rápido – ordenou ela. – Tira-me este chapéu e arranja-me o cabelo. Vai buscar um vestido mais bonito. Também devia lavar a cara.
Sarah correu de um lado para o outro, tentando fazer tudo ao mesmo tempo. Lydia sentou-se no toucador, olhou com desalento para o espelho, mordeu os lábios e beliscou as faces para ganhar mais cor.
– O vestido vermelho novo, Sarah. Não, o verde-escuro.
Sarah não respondeu. Reinava subitamente o silêncio no quarto de vestir. Lydia voltou-se e viu Sarah de pé com vestidos, combinações e agasalhos nos braços. Sarah olhava para a porta.
Lydia virou-se para o outro lado. Ali estava Penthurst. Não vestia casacos e o cabelo estava húmido de ter sido lavado.
Sarah largou a roupa no chão e saiu.
Lydia sorriu nervosamente e tentou decifrar o estado de espírito de Penthurst. Não parecia zangado, mas emanava uma aura obscura. Lydia desconfiava de que poderia não ter a mesma sorte do lacaio.
Penthurst aproximou-se por trás dela, debruçou-se e, por trás, beijou-a na face.
– Que bom vê-la, Lydia. – Afagou-lhe o rosto. – Está muito vermelha. Se calhar beliscou com demasiada força.
Era mais provavelmente o rubor que sentia aquecer-lhe o rosto.
– Correu tudo bem na viagem?
Penthurst afundou-se no canapé por trás dela. Lydia voltou-se.
– Bastante bem. Não tem de se preocupar. Está tudo tratado. Daqui a dois dias, vamos os dois encontrar-nos com o Trilby, vamos pagar-lhe e pôr um ponto final na história.
Lydia queria atirar-se para cima dele, chorar de gratidão e suplicar-lhe que esquecesse que tal coisa alguma vez acontecera. Mas deixou-se ficar quieta. Algo nele lhe recordava aquele último dia que tinham
passado juntos. Pairava no ar alguma coisa que ficara por dizer.
– Obrigada. Se me quiser repreender por me ter metido nesta alhada, não poderei contestar. Já me flagelei repetidamente por ter sido tão crédula e estúpida.
– Não quero repreendê-la por ter sido crédula. Mas quero repreendê-la severamente por não ter contado comigo, ou pelo menos com o seu irmão.
– Fi-lo, de certa forma. Contei consigo.
– Não estou a falar de forçar aquela aposta para ganhar dinheiro, sabe bem disso. Poderá talvez ser desculpada por não confiar em mim de início. O mesmo não se poderá dizer de quando ele fez a última exigência.
– Olhou para ela claramente contrariado.
– Como disse antes, era muito incriminador. Poderia ter pensado...
– Que fez intencionalmente listas de navios para que fossem transmitidas a outros? Teria sido simpático da sua parte ter demonstrado alguma fé na minha confiança em si. Pensava que agora tínhamos algo
mais entre nós, Lydia. Se não acreditou que o meu afeto por si faria diferença, teria pelo menos sabido que o meu sentido de responsabilidade por si o faria.
Lydia não sabia o que dizer. Ajoelhou-se no canapé, envolveu-lhe o pescoço com os braços e beijou-o.
– Pensei que tinha tudo resolvido em Buxton. Não contava ter de pensar novamente no assunto durante um ano. Mas tem razão. Eu devia ter sabido que não pensaria mal de mim, ou que não suspeitaria o pior,
ou que não exigiria algum tipo de penitência.
Penthurst puxou-a para o seu colo e beijou-a com ímpeto.
– Está certa quanto a dois aspetos. Mas eu cá não pressuporia tão depressa a parte da penitência.
Lydia beijou-lhe a face e sorriu.
– Está a brincar, naturalmente.
– Não.
Lydia recostou-se para poder ver-lhe o rosto.
– Porque haveria eu de cumprir penitência, se não fiz nada de mal? Não é justo.
– Para reparar todos os problemas que me causou desde que entrou aqui a exigir que apostássemos às cartas, eis porquê. A mim parece-me justo e há muito devido.
Lydia imaginava que estaria a incluir o casamento no âmbito de todos os problemas. E mais algumas outras coisas. Ele tinha razão para estar aborrecido, lá isso era verdade.
– Que tipo de penitência?
– Primeiro, deverá pedir à Rosalyn que a ajude a preparar-se para a apresentação na corte como duquesa de Penthurst. A rainha manifestou impaciência, por isso terá de ser feito em breve.
– Tenho de aceitar as instruções dela? Por favor, não me exija isso.
– Exijo-o, sim. E não só tem de as aceitar, como pedi-las. Fale com ela amanhã e peça-lhe que a ajude, daquela forma gentil e humilde que tão bem consegue.
Lydia quase fez força para sair do seu colo. Matá-la-ia ter de fazer tal coisa.
– Em segundo lugar...
– Acho que a primeira já é suficiente por si só.
– Eu não acho. – Encheu a palma da mão com o queixo de Lydia e olhou-a nos olhos. – Em segundo lugar, vai entregar-se a mim como nunca antes fez.
Uma sensação feliz e sensual serpenteou dentro dela ao ouvir as suas palavras.
– Não soa a penitência.
– Espero que não. Mas não deixarei de ser bem pago por todo o incómodo.
– Porque não acordamos esta penitência a dobrar e deixamos de fora a parte da Rosalyn?
– Mais problemas, Lydia? Não é dia para isso.
Provavelmente não, era o que o ar dele lhe dizia. Parecia muito austero. Isso excitava-a.
– E para quando devo contar com esta segunda penitência? Depois da primeira?
Penthurst abanou a cabeça.
– Agora.
Lydia esperou que ele a beijasse novamente, para começar. Mas ele pegou-lhe na mão e levou-a a levantar-se.
– Dispa-se.
Ele ajudou com as fitas, mas nada mais. Recostou-se e observou, deixando-a nervosa com a sua negra intensidade. Lydia deixou cair o vestido e deslizou a combinação para a despir. Vestira um semicorpete
para as visitas da manhã. Desfez o nó dos atilhos e depois puxou-os de modo a retirar esta peça apertada.
Penthurst trouxe-a de volta ao seu colo.
– Pode deixar os collants, creio eu. Agora, faça-me o mesmo a mim.
Lydia sentou-se de pernas abertas em cima dele, nua à exceção dos collants, e puxou-lhe o plastrão. Quando o havia retirado, ele tirou-lho das mãos e pousou-o no canapé, ao lado da combinação. Lydia passou
à camisa. Em todo o processo, a sua excitação ia aumentando. Ele mal lhe havia tocado, mas ela contorcia-se de encontro ao colo dele. Levantou-lhe a camisa e tirou-a.
Ele estava magnífico. Lydia não conseguiu resistir a acariciar-lhe os ombros e beijar-lhe o peito.
– Ajoelhe-se para fazer o resto – ordenou ele.
Enquanto deslizava para sair do colo dele, um estremecimento agitou-lhe a efervescência por ser uma ordem a que deveria obedecer, não uma sugestão. Encostando-se às pernas dele, começou a desapertar os
botões dos calções. Ele nada fez para ajudar, manteve-se sentado, à espera e a observar. Uma e outra vez os dedos de Lydia tocaram a dura ereção sob o tecido. Quando terminou os botões, puxou para baixo
toda a roupa para o libertar. Ele ergueu-se o suficiente para que ela puxasse tudo pelas ancas abaixo e o retirasse pelas pernas.
Penthurst não se mexeu nem proferiu mais ordens. Por sua iniciativa, Lydia roçou-lhe o pénis com a ponta dos dedos. Nunca antes o tinha visto sob aquela perspetiva. Fechou os dedos em torno da base e usou
a outra mão para o acariciar.
– Sim, Lydia. Assim. – Envolvia com a mão a nuca de Lydia. Uma ligeiríssima pressão levou-a a curvar-se. – E assim, se estiver disposta a isso.
Lydia deu-se conta de que ele desejava uma intimidade semelhante àquela que lhe havia proporcionado a ela. Um momento de choque fê-la resistir àquela ligeira pressão. Ele soltou a mão. Lydia observou as
carícias que lhe estava a oferecer. Curvou-se sem ajuda e beijou.
Penthurst pousou as mãos sob os seus seios e afagou-lhe os mamilos, vezes sem conta. Explodiu dentro dela um desejo de uma intensidade ousada. Lydia beijou novamente e depois fez carícias com a língua.
Quando a voz dele, calma e grave, pediu mais, o passo seguinte pareceu-lhe inevitável.
Afetou-o profundamente. Afetou-a a ela também. O erotismo do ato inundou-lhe por completo os sentidos. A titilação das carícias dele gerou nela uma necessidade insuportável. Quando ele a interrompeu e
a ergueu até ela ficar de pé, enquanto ele próprio se levantava, ela mal se conseguia equilibrar.
Penthurst ergueu-a em braços e carregou-a até à cama. Lydia olhava para cima, para ele, e ergueu os braços para o aceitar no seu abraço. Ele não aderiu. Ao invés, voltou-a ao contrário, pelo que ficou
a abraçar o colchão.
As suas mãos apertavam os flancos das ancas de Lydia.
– Para cima. Apoie-se nos joelhos. Mãos na cabeceira.
Lydia assumiu a posição que ele lhe havia solicitado antes. Desta vez, ele não se deitou por baixo dela. Nem a deixou simplesmente naquela posição. Ao invés, pegou-lhe no braço esquerdo e, enlaçando rapidamente
o plastrão, atou-lhe o pulso à coluna da cama.
Passou para o outro pulso, atando-o com a combinação. Lydia testou aquelas algemas suaves. Conseguiria libertar-se, se realmente quisesse. Decidiu que não queria. A sensação de vulnerabilidade excitava-a.
– É esta a penitência? – perguntou, espantada com o facto de esticar os braços e ficar suspensa pelo tecido atado às colunas. Fazia-lhe lembrar... – Não está a pensar dar-me com o chicote, pois não?
– Não. Infligir dor provoca um prazer rudimentar. Mas o poder... – Penthurst puxou os joelhos de Lydia para trás e afastou-os. Estava agora verdadeiramente pendurada pelos atilhos de tecido, os braços
e o corpo formando uma curva longa e lenta. Deixou de tentar lutar contra o efeito. Descontraiu e deixou que os atilhos suportassem o seu peso.
Sentiu-o atrás dela. Fechou os olhos e esperou, com uma impaciência que a fez tremer.
Tocou-a primeiro, com as carícias longas e conhecedoras que a levavam à loucura. Todo o controlo se começou a desmoronar. Lydia olhou para trás no preciso momento em que ele se baixava. Fechou os olhos.
Com o primeiro deslizar da língua, Lydia desistiu e abandonou-se à sensação extrema.
Gritou quando o prazer se tornou uma tortura. Suplicou. Os primeiros tremores de libertação agitavam-se em torno do limiar da sua essência. Esperou pelo violento desfecho que anunciavam.
Ele parou então, recusando-lhe esse final. Lydia olhou novamente para trás. Ele ajoelhou-se, bem alto, atrás dela. O seu olhar fixou o dela enquanto a preenchia lentamente. Saiu e entrou novamente. Ela
sentia-o como nunca antes. A interrupção da sua libertação deixara-a profundamente sensível e um prazer extremamente fundo concentrou-se em torno das suas investidas deliberadas.
Uma loucura gloriosa submergiu-a e trouxe-lhe a sua liberdade. Lydia mexia as ancas, tentando absorver mais, procurando a libertação que se foi revelando com os primeiros estremecimentos. Ele segurava-lhe
firmemente as ancas para que ela sentisse apenas o que ele lhe permitia. Entrou com mais força, uma e outra vez, com ela suspensa na cama, impotentemente submissa, até que ela se estilhaçou por dentro
com uma sublime explosão de êxtase.
Penthurst não tinha de levar Lydia para o encontro com Trilby. Mas fê-lo, ainda assim. Ela tinha o direito de estar presente. Deslocaram-se na sua carruagem oficial, com dois lacaios de libré ao serviço.
Seguindo as instruções de Penthurst, Lydia vestira um conjunto de viagem com ornamentos em pelo. Era importante que Trilby compreendesse o poder que estava a enfrentar.
– Ali está ele – disse Lydia, olhando pela janela. Tinham penetrado profundamente em Hyde Park, longe das zonas muito frequentadas de manhã. Alguns cavaleiros pontilhavam os campos lá atrás, mas Trilby
e a irmã estavam sozinhos.
A carruagem parou. Um lacaio ajudou Lydia a descer. Penthurst juntou-se-lhe e, lado a lado, caminharam os trinta metros que os separavam de Trilby. O lacaio transportava uma mala. Pousou-a no chão quando
pararam e depois regressou à carruagem.
Mr. Trilby parecia pálido e intimidado. Algo que não afetava Patricia Trilby. Havia-o revelado naquela conversa em Hampshire, quando tentou fazer acreditar que tudo fora obra do irmão. Se necessário, repetiria
tudo em frente a um magistrado. Uma testemunha ouvira tudo, mas Penthurst duvidava de que precisasse do apoio de Kendale. Ser duque tinha os seus privilégios e um deles era que os magistrados tendiam a
acreditar em tudo o que dissesse.
– É o manuscrito? – Penthurst apontou para um embrulho que Trilby trazia debaixo do braço.
Trilby anuiu e fez menção de o entregar. A irmã travou-o com o braço.
– É o dinheiro? – Apontou para a mala.
– Sim.
Ela caminhou na direção da mala, agarrou-a pelas pegas e arrastou-a de volta ao lugar onde estava o irmão. Agachando-se, abriu a mala e vasculhou as notas bancárias.
Penthurst libertou Trilby do embrulho.
– Deduzo que não falte uma única página. Se detetar que falta o que quer que seja que foi prometido, a mim ou à minha mulher, não ficarei satisfeito.
– Estão todas aí – disse Trilby. Verá que está tudo em conformidade. Verifiquei-o pessoalmente antes de virmos, só para ter a certeza. – Lançou à irmã um olhar de soslaio, indicando quem poderia ter tido
a ideia de retirar uma ou duas folhas como garantia de futuro.
– Como teve conhecimento da sua existência? – perguntou Lydia. – O que o levou a ir à procura?
– O Lakewood manifestou alguma preocupação por estar a escrever um registo do tempo que passou consigo. Disse que para si era um romance, mas mais parecia um diário. Estava preocupado que pudesse conter
algo incriminador.
– Quer dizer, além do seu comportamento indigno para comigo.
Trilby enrubesceu.
– Tinha-me apresentado a sua tia. A minha irmã, ou seja, nós decidimos tentar obtê-lo, se possível, só pelo seguro.
– E bem que demorou a consegui-lo – disse Patricia Trilby, revirando os olhos. – Muitas visitas aborrecidas até surgir a oportunidade. Imagine a nossa surpresa ao descobrir que a pessoa incriminada não
era o Lakewood nem o meu irmão, mas a senhora. – Deu pequenos pontapés na mala. – Uma feliz descoberta, na verdade.
– Mr. Trilby, compreende as condições? – perguntou Penthurst, para acabar com a forma como aquela mulher acicatava Lydia. – Devem ambos sair do país. Vão para a América ou para o Brasil. Vão para onde
quiserem. Caso contrário, ou se regressarem, qualquer um de vós, terão à vossa espera uma cela húmida na prisão de Newgate.
Trilby anuiu. A irmã limitou-se a sorrir descaradamente. Deslocou o olhar para Lydia e percorreu-a da cabeça aos pés. Lydia encarou-a de cima.
– De quem foi a ideia? – perguntou Lydia. – Os navios. Quem decidiu avançar com essa atitude indigna?
Os olhos de Patricia Trilby estreitaram por sobre aquele sorriso irritante.
Algernon Trilby agitou-se, enervado.
– É difícil dizer. Ele apareceu um dia e referiu como, de um determinado sítio, se conseguia ver tudo. A ideia de imaginar aonde tal nos conduziria partiu daí. – Corou. – Parecia uma vigilância muito pouco
grave e com muito pouco de desleal. Afinal de contas, qualquer pessoa que subisse até Portsdown Hill veria a mesma coisa. O tamanho de uma frota nunca consegue ficar totalmente em segredo.
– Tem mais alguma pergunta, Lydia? – perguntou Penthurst calmamente. O plano deste encontro não incluía um interrogatório, mas ele suspeitava de que havia muito mais que ela gostaria de saber.
Lydia hesitou, mas depois abanou a cabeça.
– Nesse caso, está tudo tratado – disse ele. – Leve a sua irmã e desapareça numa semana, Trilby. Não a deixe convencê-lo de que não é necessário. Por uma vez só em toda esta triste história, não se deixe
levar por ela.
Tomou o braço de Lydia e regressaram à carruagem.
– Ela levou-os aos dois – disse Lydia. – Foi ela a causa da inconstância de Trilby em todas as nossas negociações, era ela quem mudava constantemente as exigências tornando-se mais ousada a cada semana
que passava. Que mulher horrenda. Devia tê-los atirado para a prisão. Lamento que o meu envolvimento, por mais inconsciente que possa ter sido, o tenha obrigado a ser tão generoso com eles.
– Eu não lamento. Deu-me uma desculpa para ser generoso também com outra pessoa, Lydia. Um homem que, embora fraco de carácter, foi em tempos seu amigo. E meu.
CAPÍTULO 22
Lydia não conseguia dormir. Depois de se virar e revirar sob os lençóis durante duas horas, atirou-os para o lado. Vestiu o roupão e dirigiu-se à porta do quarto de vestir de Penthurst. Abriu-a e viu uma
luz ténue vinda do quarto de dormir.
Confiante de que ele não se importaria, avançou descalça e espreitou lá para dentro. Penthurst também se havia preparado para dormir, mas estava sentado a ler um documento numa cadeira acolchoada. César
e Cleo dormiam a seus pés.
Lydia entrou e sentou-se na beira da cama. Ele pousou os documentos.
– Não consegue dormir, Lydia?
Ela abanou a cabeça.
– Está nervosa?
– Um pouco. A rainha não me assusta tanto quanto todos os outros. Suponho que qualquer erro que eu cometa já se terá espalhado por todo o reino até ao meio-dia do dia seguinte.
Lydia iria a St. James Court no dia seguinte e seria recebida como duquesa de Penthurst. Afinal Rosalyn revelara-se útil. Assistira muitas vezes à cerimónia no seu tempo e conhecia o protocolo até ao mais
ínfimo pormenor. Terá sido provavelmente sensato de Penthurst exigir que lhe pedisse auxílio. Além disso, Lydia tinha de admitir que o tempo que passaram a planear essa ocasião tornara Rosalyn mais suportável
também sob outros pontos de vista. Já não a irritava tanto como dantes.
– A Cassandra e a Emma estarão presentes. Nem todas as senhoras estarão à espera de que dê um passo em falso. Imagine que é um dia como outro qualquer. Aconteça o que acontecer, não terá realmente importância.
Para ele era fácil dizer.
Lydia apontou para os papéis.
– O que está a ler?
– Um manuscrito da autoria de uma amiga. Ainda não está publicado.
– E presta?
– É extraordinário. Porque não se deita e eu leio-lhe umas partes. Pode ser que a ajude a adormecer.
Lydia estendeu-se na cama e ficou a ouvir o restolhar das folhas.
– Esta é uma passagem extraordinária. Eu sabia que não devia permitir que Mr. Beaumont me beijasse, mas o amor não admitia qualquer recusa. Fechei os olhos enquanto os seus lábios procuravam os meus. As
instruções austeras da minha precetora...
– Pare! – Apoiou-se sobre o flanco e esticou-se, tentando tirar-lhe as páginas da mão. – Pensava que tinha queimado isso há duas semanas.
– Eu disse que o ia queimar. E assim farei. As partes perigosas transformaram-se em cinzas no dia em que pus as mãos nisto. Mas achei que devia ver como era uma história de quinze mil libras antes de lançar
o resto às chamas.
Lydia fechou os olhos, envergonhada.
– Leu isso tudo?
– Oh, sim. Deixe-me ver, onde estava eu... Ah, aqui. As instruções austeras da minha precetora desvaneceram-se do meu espírito quando a excitação daquele beijo agitou toda a minha condição feminina. Não
me empenhei em terminar o beijo com a rapidez que havia intencionado. Isso deve ter encorajado Mr. Beaumont de formas que não foram minha intenção, porque ele me tomou nos seus braços e me ergueu num beijo
que nunca poderia ser interpretado como pura amizade. «Minha querida Christina. Morrerei de amor por si. Que crueldade não podermos casar-nos e conhecer a doçura dos dons de Vénus. Deixe-me pelo menos
acariciar os seus seios perfeitos, para que uma vez na vida possa conhecer a sua doce macieza antes de perecer.» Não hesitei, pois a intimidade pareceu-me necessária para meu próprio contentamento, muito
pequena comparada com aquilo que nunca partilharíamos. A sua mão tremia ao aproximar-se das minhas colinas nevadas e...
Lydia protestou.
– Por favor, pare. Mesmo.
– Ainda há melhor. Há outra cena de amor bastante marota, embora a ignorância da autora se torne evidente mais para o fim.
Lydia já sabia quão melhor ainda havia para ler. E estava definitivamente ciente da ignorância da autora naquela altura.
– Está a divertir-se?
Ele riu-se.
– Imenso. A minha parte favorita é esta descrição de Beaumont. Deu-se conta de que ele muda? Começa por ter cabelo castanho-claro, mas depois fica mais escuro. E também fica mais alto. Penthurst clareou
a garganta. «Mr. Beaumont era um homem atraente e excessivamente orgulhoso que olhava o mundo com condescendência. Embora o seu carácter lhe afetasse os seus pontos de vista, em parte tal estaria relacionado
com a sua considerável altura. Era uns bons vinte centímetros mais alto do que a maioria dos seus amigos. Para mim, a sua estatura era desconcertante. Era desagradável estar constantemente com a cabeça
inclinada para trás, tudo para encontrar os seus olhos escuros, sob as sobrancelhas arqueadas, a olhar-me com uma reprovação não dissimulada.
Lydia franziu o sobrolho e sentou-se.
– Eu não escrevi isso. Está a inventar.
– É a sua caligrafia, juro. Aqui. – E entregou-lhe a folha.
Lydia espreitou a página. Era dela. Quando teria ela escrito aquilo? Não se parecia nada com o Lakewood. Descrevia...
– Porque não me contou que sonhava com ter a minha mão próxima de uma das suas colinas nevadas, Lydia? Eu teria tido todo o prazer em fazer-lhe a vontade.
Lydia atirou-lhe uma almofada.
– Tem de queimar isso já.
– A maior parte, prometo. Mas tem de me deixar guardar a descrição do irmão de Christina. E a do amigo, aquele oficial do exército carrancudo e zangado. Já que teve o cuidado de aguçar bem as suas facas
antes de retalhar alguns dos sustentáculos da sociedade, seria uma pena perder esses parágrafos. – Deixou que as folhas caíssem ao chão e foi ter com ela à cama. – Há partes que não são nem de perto tão
más quanto quis fazer parecer. A história de amor é muito envolvente. Se alguma vez decidir escrever outra, se calhar é melhor ficar-se por aí e deixar de fora aquelas listas todas.
– Amanhã vou ser apresentada como sua duquesa e está a sugerir que eu escreva outro romance provocante. Tenho a certeza de que a rainha acharia muita graça, se eu fizesse tal coisa.
Penthurst deitou-se a seu lado e tomou-a nos braços.
– Não se preocupe demasiado com aquilo a que a rainha acha graça. Deixe de se ralar com a cerimónia de amanhã. Não a terei em menor conta se não for perfeita. Mesmo que tropece e caia de cara no chão,
não a amarei menos por isso.
– Nem sequer brinque com uma possível queda. Nunca conseguirei adormecer se começar a imaginar isso... – As palavras esmoreceram quando se apercebeu daquilo que ele acabara de dizer. Virou-se dentro do
abraço dele, pelo que os dois rostos ficaram praticamente encostados. – A sério que me ama? Chegou a esse ponto?
– Parece que sim, Lydia. Inesperadamente, mas feliz por isso, concluo que me roubou o coração. Acha que as mulheres do mundo deixam que os seus maridos as amem ou será demasiado vulgar?
– Ser amada por si nunca poderia ser vulgar. E amá-lo de volta também não. É a experiência mais empolgante que alguma vez vivi.
Penthurst beijou-a docemente, apoiou-se no braço e olhou para ela.
– Sabia dos meus sentimentos? – perguntou Lydia. – Adivinhou?
– De todo. Não esperava que me respondesse com uma declaração sua. Disse-o porque queria que soubesse. Depois da forma como este casamento aconteceu, pareceu-me que devia saber.
– Suponho que seja isso a que se referia ao dizer que foi inesperado. Ou estava a referir-se à forma como me repudiou quando eu tinha quinze anos?
Penthurst tapou os olhos com a mão e resmungou.
– Quem lhe disse? A Rosalyn? Vou desterrá-la numa torre e mandar tirar a escada.
– Ela está inocente, embora a sua primeira repreensão tenha passado a fazer muito mais sentido quando fiquei a saber. – Lydia deu-lhe uma pancadinha no flanco. – Deve ter pensado que o destino lhe havia
armado uma cilada quando proferiu os votos na Escócia.
– Isso nunca me passou pela cabeça – respondeu ele, galante.
– Se eu estivesse no seu lugar, teria ficado estupefacta com a ironia.
– É verdade que me ocorreu que os decretos ducais não valiam grande coisa. – Repousou a mão sobre o rosto de Lydia e ficou sério. – Não senti que tinha sido apanhado numa cilada naquela igreja escocesa.
Mais do que irónico, o casamento pareceu-me inevitável. Na semana passada, em Hampshire, dei-me conta de que tinha estado à espera de que crescesse e que amava a mulher em que se havia tornado.
Lydia foi invadida por uma emoção intoleravelmente preciosa. Esticou-se para o beijar. Demorou-se com os lábios suspensos sobre os dele, para que pudesse guardar eternamente a memória do primeiro beijo
que haviam partilhado depois de terem desnudado os seus corações.
– Se calhar devia ir dormir, para estar pronta para amanhã – murmurou ele.
– Ainda não. Quero que me preencha. Quero senti-lo dentro do meu corpo e do meu coração e conhecer todo o entusiasmo de estar apaixonada pelo meu marido.
Ele acedeu ao seu pedido, até que se uniram tão absolutamente que ela o sentiu dentro da sua alma. Ele mexeu-se, fechou os olhos e mexeu-se novamente.
– Perfeito, Lydia.
Era perfeito. Lydia fletiu as pernas para que ele lhe chegasse mais fundo. Abriu o coração e deixou que o seu amor se tornasse livre e temerário.
À medida que a intensidade ia crescendo e que se fundiam num só, Lydia sussurrou-lhe declarações de amor ao ouvido, para que ele soubesse como a surpreendia, e como, graças ao seu amor, a sua vida se tornara extraordinária.

 

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades