Apenas a Nova França e a Nova Inglaterra disputavam a hegemonia no norte do continente americano em meados do século XVII. Desde o início desse século os espanhóis não se imiscuíam mais por ali, subjugados por corsários franceses e ingleses, como Francis Drake (morto em 1596). Os castelhanos já não podiam mais dividir o continente americano inteiro apenas com os portugueses, segundo as decisões dos papas.
A baía Francesa (atual Daía Fundy, entre o Mame e a Nova Escócia) era vizinha mais próxima dos ingleses que dos franceses, submetida aos ingleses pelo Tratado de Breda (1660), mas continuava sob influência francesa devido a seus habitantes, aos fortes e povoamentos que conservava.
Era uma região demasiado isolada e abandonada para ser regida por aqueles governos longínquos, na verdade mais ocupados com suas querelas locais do que com as colónias.
Nesse terra selvagem e independente, aberta a um mar de riqueza excepcional, Angélica e seu marido, o Conde Joffrey de Peyrac, foram buscar um futuro próspero.
"Você tem o dom do amor" suspira a Diaba. "Quem me dera possuir essa força!"
Na escuridão da noite sufocante, Angélica arrepiou-se ao ser enlaçada por trás, por braços sinuosos que a imobilizaram. Surpresa, deu-se conta de que não eram braços de homem: eram braços macios, quentes, femininos!
Um relâmpago, cortando as nuvens no horizonte, permitiu-lhe reconhecer, próximo ao seu, o rosto sensual da Duquesa de Maudribourg. Silenciosa e perturbadora, a enigmática benfeitora francesa a fixava com a luz irradiante de seu belo olhar.
Angélica estremeceu como se tivesse diante de si a face de Satã. Aquela mulher diabólica, com suas sucessivas maldades, conseguira separá-la de todos os que lhe eram caros, desde o índio Piksarett, a Abigail, o Padre de Vernon, até seu próprio filho, Cantor, e principalmente seu marido, o Conde Joffrey de Peyrac.
"Deixe-me!", bradou, desvencilhando-se."Você está louca!
Lentamente, como num pesadelo que chegasse ao fim, os braços que a aprisionavam relaxaram o aperto. A silhueta de mulher correndo, como um fantasma branco, fundiu-se com a noite que voltava a fechar-se, aos roncos abafados da tempestade ao fundo.
Angélica permaneceu paralisada por uma certeza obsedante. Com aquela criatura dissimulada nunca haveria entendimento. Qual Serpente surgida das brumas encantadas do Éden, a emissária das Trevas desejava sua destruição, sua perdição... sua morte!
Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, eram vítimas de uma conspiração secreta de fundo político-religioso que, tentando desuni-los, visava expulsá-los de suas possessões no norte do continente americano, no selvagem território encravado entre a Nova Inglaterra e a Nova França. Prova disso fora o recente episódio em que seus inimigos quase lograram êxito, aproveitando-se de um momento de fraqueza da Marquesa dos Anjos ao reencontrar um amante de outrora-, Cplin Paturel, agora na pele do temível corsário Barba de Ouro. Joffrey, como sempre, agira com presteza, salyando-os da ruína e nomeando Colin governador de Gouldsboro, seu forte na baía Francesa. Mal o casal havia se reconciliado, porém, dava à praia uma nova e intrigante personagem, a belíssima Duquesa Ambrosina de Maudribourg, com as Moças do Rei de quem era benfeitora e cujo navio, o La Licorne, naufragara supostamente a caminho de Quebec. Com -a misteriosa duquesa desfalecida a seus pés, Angélica tivera um pressentimento: seria aquela a mulher que, segundo uma profecia diabólica, deveria elevar-se das águas a serviço do Mal?
GOULDSBORO OU OS PRIMEIROS SINAIS
CAPITULO I
Angélica à cabeceira da Duquesa de Maudribourg, a benfeitora das Moças do Rei
Um gatinho de navio, um gatinho desembarcado ali sem que se soubesse como, um gatinho esquecido, postava-se diante de Angélica.
Estava magro e sujo, mas seus patéticos olhos dourados pediam socorro de um modo simultaneamente imperioso e confiante.
Angélica não o via. Sentada à cabeceira dá Duquesa de Maudribourg, no quarto alto do forte, entregava-se a pensamentos melancólicos.
O bichano a olhava com intensidade. Como pudera chegar ali? Doente, coberto de feridas, recém-desmamado, atirado na praia, quem sabe, pela mão de um grumete impaciente, devia ter vagado muito tempo, animalzinho minúsculo, sem eira nem beira, abandonado num mundo indiferente à sua existência insignificante, ameaçado pelo mar, pela areia, pelas habitações humanas, pelos passos dos homens, demasiado fraco para encontrar o próprio alimento e disputá-lo com os outros gatos e cães de Goulds-boro. De etapa em etapa, conseguira insinuar-se para dentro do forte, depois para aquele quarto misterioso, talvez apenas à procura de sombra e calma para morrer.
Agora olhava aquela mulher sentada e parecia indagar-se sobre o socorro supremo que dela podia esperar. Reuniu as últimas forças para miar. O som que conseguiu emitir foi rouco, quase inaudível. No entanto, o queixoso miado arrancou Angélica de seu devaneio. Levantou a cabeça e examinou o gatinho um instante. Já estava tão pouco vivo o animal, que ela pensou em fantasmagorias do seu espírito cansado, como aquelas visões de animais diabólicos que tivera nos últimos dias.
Ele tentou miar mais uma vez e uma espécie de desespero atravessou-lhe o olhar dourado. Ela então inclinou-se para efe.
- Mas de onde é que você saiu, infeliz? - exclamou, levantando-o nas mãos, leve como uma pluma. O gato agarrou-se imediatamente ao veludo do vestido com as garrazinhas frágeis e se pôs a ronronar com uma força inesperada para um corpo tão débil.
"Ah, você me viu!", parecia dizer. "Não me rejeite, peço-lhe." "Um navio deve tê-lo abandonado", pensou ela, "o de Vane-reike ou então o dos ingleses... Está morrendo de fome e fraqueza."
Levantou-se e foi até a mesa. No fundo de uma tigela havia um pouco da gemada trazida para reconfortar a duquesa. O gato tomou-a, mas não avidamente, pois estava sem forças.
- Está tiritando, está com frio.
Voltou a sentar-se ao pé da cama e colocou-o entre os joelhos para aquecê-lo. Pensou em Honorina, sua filhinha, que tanto gostava de animais e que teria cuidado do gatinho com entusiasmo.
As reminiscências lhe tornaram o coração mais pesado. Revia o forte de Wapassu, onde deixara a pequena Honorina nas mãos de servidores dedicados, e pareceu-lhe que evocava um paraíso perdido para sempre. Ali conhecera dias de tantas alegrias com o esposo bem-amado, Joffrey de Peyrac!
Hoje lhe parecia que tudo se fragmentara, estilhaçara.
Parecia-lhe que ela própria estava em pedaços, que jamais conseguiria refazer-se.
Nas últimas semanas, terríveis, algo fermentara e os lançara um contra o outro, separando-os um terrível mal-entendido. Uma dúvida angustiante a consumia: Joffrey já não a amava.
"No entanto, houve o inverno entre nós", voltou ela a pensar, com desespero. "O inverno de Wapassu. E seus inúmeros perigos, que tivemos que atravessar juntos, sem fraquejar, os momentos de fome, momentos de triunfo da primavera. Não sei se vivemos tudo isso como esposos ou como amantes ligados por uma luta comum. Mas foi bom, caloroso, e eu o sentia muito próximo.., ainda que sempre um pouco imprevisível, um tanto perigoso. Há toda uma parte dele que me escapa..."
Levantou-se, agitada. Havia coisas pelas quais odiava o marido, por exemplo, quando partira em perseguição de Pont-Briand, deixando-a vários dias numa angústia mortal, e antes, no Gouldsboro, quando lhe ocultara que seus filhos, os filhos de ambos, estavam vivos, e recentemente aquela espionagem injusta na ilha do Velho Navio. Então ele cometia uma injustiça contra ela, duvidava do seu amor! Tomava-a por uma-anulher sem coração, preocupada apenas com suas próprias ambições.
"Ainda assim, que encanto-emana dele!", disse consigo. "A ponto de eu não poder viver nem respirar sem sentir o calor de seu amor por mim. Ele não se parece com nenhum outro, e talvez tenha sido a sua singularidade que me ligou a ele com tanta força. Também eu pequei contra ele e fui injusta."
Agora ela ia e vinha no aposento, segurando maquinalmente o gatinho ao colo, e este, de olhos fechados, se aninhava no ombro dela, numa estranha atitude de amor e abandono. Sentia-se que, pelo cohtato com as- mãos de Angélica, a vida lhe voltava.
- Ah, você é que é feliz! - exclamou ela a meia voz. - Não passa de um animalzinho inocente e corajoso, que só deseja viver. Não tema nada, cuidarei de você e o curarei.
O gato ronronou com_mais gosto e ela acariciou-lhe com um dedo o crânio delgado e suave. Naquele momento, aquela pequena presença afetuosa e viva trazia-lhe consolo.
Era possível que ela e Joffrey se tivessem tornado tão estranhos um para o outro?
"Também eu lhe faltei com a confiança. Devia ter-lhe falado logo de Colin, quando voltei no outro dia. O que temia eu? Teria sido mais simples explicar como as coisas aconteceram, que Colin me surpreendeu no sono. Mas talvez minha consciência não estivesse de todo limpa... e há sempre em mim esse temor de perdê-lo... de perdê-lo uma segunda vez, essa recusa em crer no milagre..."
Angélica conseguira definir a angústia insuportável que a oprimia e lhe paralisava os impulsos, e descobrir que a fonte vinha de mais longe, além da tensão dos últimos dias. Era algo antigo, um medo escondido, enroscado no fundo dela e pronto a erguer-se e gritar com desespero: "Pronto, acabou! Acabou! Meu amor! Meu amor! Nunca mais o verei! 'Eles' o pegaram, 'eles' o levaram... e nunca mais o verei!"
E havia algo nela que subitamente se indignava e renunciava à luta.
- "Sim, é isso", confessou a si mesma. "É isso o que não está bem. Eu era muito jovem quando aconteceu. No fundo, uma criança mimada, que recebera tudo da vida... e depois, bruscamente, mais nada."
Aquele grande sol sobre os seus dezoito anos, aquele sol de amor, descoberto, revelado, compartilhado no fulgor das festas de Toulouse, aquela aurora da vida banhando-lhe todo o ser, cada dia, cada hora trazendo como que uma promessa. "Seu andar desigual, sua voz, seu olhar pousado em mim... Comecei a crer no encantamento da vida; e depois, de repente, o grande frio, a solidão. No fundo, nunca.aceitei isso. Conservei o medo... e um pouco de rancor por ele. 'Eles' o pegarão, vencê-lo-ão, e ele se afastará de mim sem se preocupar com a minha dor. Nós nos reencontramos, mas minha confiança não é total, minha confiança nele, na vida, na alegria."
Talvez ainda existisse entre eles algo daquela obscuridade da ausência, vestígios de ferimentos demasiado profundos. Em Wa-passu, a tarefa quase inumana de sobreviverem com os seus ajudara-os a reatar entre si os elos da vida. Uma cumplicidade de ação tal como nunca conheceram outrora. Mas essa união calorosa lhes ocultara aspectos diferentes da personalidade de cada um, nascidos de sua longa separação, e também as cicatrizes daquela lacuna - os quinze anos de ausência e desconhecimento mútuo que os tornaram vulneráveis a revelações súbitas.
Angélica pensou na fúria de Joffrey, mas também em seu gesto, naquela manhã, quando lhe oferecera o magnífico presente, as pistolas espanholas, que repousavam sobre a mesa no estojo aberto. E ele a abraçara, apaixonadamente.
Mas haviam anunciado a benfeitora das Moças do Rei, a Duquesa de Maudribourg, salva das águas.
Fora preciso ir-lhe ao encontro e acudi-la, pois ela desmaiara na praia.
Durante a tarde toda Angélica tentara fazê-la voltar a si. A duquesa agora parecia melhor, e fazia uma hora que, calma, descansava no grande leito. Angélica afastara as acompanhantes, cujo desespero diante do estado da ama podia comprometer aquele repouso finalmente benfazejo. Agora, porém, lamentava não poder distanciar-se. Joffrey não viera vê-la nem lhe enviara mensagem alguma. A vontade de Angélica era sair à procura dele.
Também se arrependia de, num primeiro impulso de piedade, haver mandado levarem a benfeitora para o apartamento do casal no forte.
"Eu devia ter pedido à Sra. Manigault que a acolhesse. Ou então à Sra. Carrère. Acho que construíram alguns quartos, para oficiais de passagem, em cima do albergue: verdade que aquilo é bem desconfortável e barulhento. Esta infeliz necessitava de cuidados atentos. Imaginei que-, ela jamais sairia de sua estranha prostração."
Voltou-se na direção da cama, mas, sem que soubesse por quê, seus olhos evitaram deter-se no rosto da mulher que dormia ali, repousando sobre o travesseiro de renda.
Um rosto tão jovem, de beleza tão frágil, e como que aflito, que causava uma impressão de mal-estar.
"Por que será que imaginei esta Duquesa de Maudribourg como uma velha corpulenta, tal qual sua aia Petronilha Damourt?", indagou-se Angélica. "Parece uma brincadeira de mau gosto."
A Sra. Carrère, que a ajudara a despir a Duquesa de Maudribourg, devia ter compartilhado da mesma perplexidade diante do corpo de deusa da "benfeitora", pois Angélica a ouvira resmungar coisas indistintas enquanto meneava a coifa rochelesa.
Mas, assim como a Sra. de Peyrac, ambas mulheres do Novo Mundo, habituadas a enfrentar todo. tipo de situação inesperada, a Sra. Carrère calara-se. Tinham visto tantas coisas nos últimos dias! Não se podia passar o tempo a surpreender-se e a levantar os braços para o céu. A Sra. Carrère só murmurara ao examinar a roupa da náufraga - saia de cetim amarelo, manto azul, plastrão vermelho, blusa azulada:
— Mas olhe esta roupa! Isto não é uma,mulher, é um papagaio!
— Será talvez a nova moda de-Paris? - sugerira Angélica. - A Sra. de Montespan, que reinava na corte quando a deixei, adorava as cores vivas.
— Pode ser, mas para uma senhora dedicada às boas obras, como dizem que ela é, esta aqui...
As saias e o manto estavam rasgadas £'sujos. A Sra. Carrère os levara, com a intenção de os limpar e remendar.
As meias vermelhas, com filete de ouro, caídas no chão, compunham perto da cama uma nódoa escarlate. O gatinho, atraído, pulou dos braços de Angélica e, depois de examiná-las com circunspecção, foi instalar-se justamente sobre as meias, com ares de proprietário.
- Nada disso, pequenino, você não vai deitar aí - protestou Angélica.
Ajoelhou-se perto dele e encontrou muita dificuldade em convencê-lo de que aquele delicado ninho de seda não fora feito para o seu pêlo cinzento de gatinho doente, até que, depois de instalado sobre um pedaço de coberta macia a um canto, ele concordou com a troca, olhando-a com seus olhos oblíquos semi-cerrados, que pareciam dizer: "Contanto que você se ocupe de mim, que<perceba minha importância e me dê atenção, renunciarei a essas meias vermelhas".
Angélica apanhou as meias e as deslizou por entre as mãos, sonhadora...
- Comprei-as em Paris - disse uma voz -, na casa do Sr. Bernin. Você sabe, Bernin, o capelista da Galeria do Palácio...
CAPÍTULO II
O despertar da belíssima náufraga
A Duquesa de Maudribourg tinha acordado e, apoiada a um cotovelo, observava Angélica há alguns instantes.
Ao ouvir-lhe á voz, Angélica voltou-se para ela e, como antes, na praia, teve um <:hoqu« ao fitar os olhos magníficos da "benfeitora".
"Que feitiço há nesse olhar?", indagou-se, aproximando-se.
As pupilas escuras pareciam devorar o rosto de tez de lírio e quase juvenil, e conferir-lhe uma espécie de maturidade trágica, como o olhar de certas crianças demasiado circunspectas, amadurecidas pelo sofrimento.
Contudo, a impressão for-fugaz.
Quando Angélica se inclinou na direção da Duquesa de Maudribourg, a expressão desta já estava diferente. Emanava de seus olhos uma claridade suave, tranquila, e a duquesa parecia examinar com simpatia a Condessa de Peyrac, enquanto os seus lábios exibiam um sorriso mundano de saudação.
- Como se sente, senhora?- perguntou Angélica, sentando-se à cabeceira da náufraga.
Pegou a mão que repousava sobre o lençol, achou-a fresca, sem febre alguma. Mas a pulsação do sangue, no pulso frágil, permanecia acelerada.
- Você estava admirando as minhas, meias - observou a Sra. de Maudribourg. - Não são realmente bonitas?
A voz harmoniosa parecia um pouco afetada.
- A seda é entremeada com pêlo de cabra dos- afeganes e fio de ouro - explicou. - É por isso que são tão macias e brilhantes.
— De fato, são bonitas e elegantíssimas - conveio Angélica. - O Sr. Bernin, que conheci outrora, conservou a reputação.
— Também tenho luvas de Grenoble - completou a duquesa, solícita - perfumadas a âmbar. Onde estão? Gostaria de mostrar-lhe...
Enquanto falava, seu olhar errava pelo quarto, e ela não parecia dar-se conta de onde se encontrava nem de quem era aquela mulher, sentada ali a seu lado, com suas meias vermelhas entre as mãos.
- Suas luvas não se teriam perdido com o resto da sua bagagem? - perguntou Angélica, cautelosa, querendo ajudá-la a tomar consciência da verdade.
A doente fitou-a vivamente, depois uma expressão de angústia atravessou-lhe o olhar eloquente, que logo se apagou sob as pálpebras. De olhos fechados, a duquesa se reclinou. Muito pálida, pôs-se a respirar aceleradamente. Levou a mão à testa e murmurou:
- Oh, sim, é verdade. Aquele naufrágio medonho! Agora me lembro. Perdoe-me, senhora, sou uma tola...
Ficou um instante em silêncio e continuou:
— Por que aquele capitão nos disse que estávamos chegando a Quebec? Não estamos em Quebec, não é?
— Qual! Com bons vemos, vocês precisariam de três semanas para chegar lá.
— Então onde estamos?
— Em Gouldsboro, na costa do Maine, uma feitoria na margem setentrional da baía Francesa.
Angélica preparava-se para fornecer explicações mais precisas, a fim de situar Gouldsboro em relação a Quebec, mas sua interlocutora soltou um grito de susto:
- O que está dizendo? Maine, baía Francesa! Mas então devemos ter nos perdido depois da Terra Nova, contornando toda a península da Acádia, ao sul, em vez de atingirmos o golfo do Saint-Laurent, ao norte?
Ela pelo menos tinha conhecimentos de geografia, ou então tomara o cuidado de consultar os mapas antes de se lançar em sua aventura americana. Parecia aterrorizada.
— Tão longe! - sussurrou. - O que será de nós agora? E aquelas pobres moças que eu estava trazendo para casarem na Nova França?
— Estão vivas, senhora, o que já é muito. Nenhuma pereceu, algumas se feriram gravemente, mas todas se recobrarão da provação, garanto-lhe.
- Deus seja louvado! - murmurou a Sra. de Maudribourg com fervor.
Juntou as mãos e, fechando os olhos, pareceu mergulhar em oração.
Um raio baixo do sol que' declinava para o horizonte veio iluminar-lhe o rosto e dar-lhe uma beleza surpreendente. Mais uma vez Angélica teve a impressão de ter servido de brinquedo às troças do destino. Onde estava a pesada e velha benfeitora das Moças do Rei que ela imaginara? Aquela jovem orando não parecia completamente real.
— Como agradecer-ihe, senhora? - disse a duquesa, voltando a si. - Entendo que é a castelã deste lugar e que sem dúvida lhe devemos a vida, a você e ao senhor seu esposo.
— Ajudar-se mutuamente nestas costas perdidas é um dever sagrado.
— Eis-me na América, então! Ah, que descoberta esmagadora! Que Deus me ampare!
Depois, controlando-se:
— No entanto, foi para cá que a Virgem, que me apareceu, me disse que viesse. Portanto, devo resignar-me à sua santa vontade! Não crê que já é um sinal de proteção do céu que nenhuma das moças tenha perecido?
— Sim, com certeza.
O sol poente se fazia mais rosado e inundava o aposento com uma luz púrpura. Esse reflexo de fogo deslizou sobre a cabeleira escura da duquesa. Belíssimos cabelos, abundantes e bastos, que emanavam um perfume sutil que Angélica não conseguia definir. Aquele perfume, desde o momento em que se inclinara para a duquesa, causara em Angélica uma inquietação surda e indefinível - a certeza de que havia um sinal naquilo tudo e que ela devia tê-lo compreendido.
- E o perfume do meu cabelo que a intriga - comentou a duquesa, adivinhando os pensamentos de Angélica com uma presciência bem feminina. - Não se parece com nenhum outro, não e. Mando prepará-lo especialmente para mim. Hei de ceder-lhe algumas gotas, a fim de ver se lhe convém.
Mas, lembrando-se das infelicidades que lhe haviam ocorrido
e de que o frasco do seu precioso perfume agora rolava no fundo do mar, interrompeu-se e suspirou profundamente.
— Deseja que eu mande procurar a sua dama de companhia, Petronilha Damourt? - sugeriu Angélica, que queria sair à procura do marido.
— Não, não - exclamou com vivacidade a Sra. Maudribourg. - Oh, por favor, ela não! Estaria além das minhas forças. Essa pobre mulher... é muito devota, mas tão fatigante!... E me sinto tão cansada! Creio que vou dormir... um pouco.
Deitou sobre os lençóis numa pose hierática, com os braços ao longo do corpo, a cabeça lançada para trás e logo pareceu adormecer.
Angélica ergueu-se para ir fechar a janela de madeira e poupar a doente da claridade muito forte. Ficou um instante a contemplar a praia arroxeada pelo crepúsculo, percebeu a animação do fim do dia que chegava ao mesmo tempo do forte e da aldeia. Era a hora em que, como o calor diminuía, se elevava a fumaça das lareiras nas casas onde se aquecia a refeição da noite, e em que se acendiam as fogueiras dos índios e dos marinheiros ao longo das praias e sobre as falésias.
Pareceu-lhe que tinham feito pão naquele dia em Gouldsboro, o que acontecia uma vez por mês, nos fornos abertos diretamen-te na terra e aquecidos com brasas e pedras quentes. O odor de pão quente, delicioso, subia como um incenso sutil e familiar, e Angélica avistou crianças que retornavam a casa levando grandes filões dourados em tabuleiros.
Apesar dos combates recentes que haviam abalado a pequena colónia, a vida continuava.
"Joffrey quis assim", disse ela consigo. "Que força em sua vontade de sobreviver, de manter a vida! Todos ficam como que possuídos em contato com ele. Ele é terrível... terrível de energia..."
CAPITULO III
Angélica pensa ter encontrado uma amiga
De súbito Angélica mergulhou o rosto entre as mãos e o tremor de um soluço a sacudiu, como um vagalhão vindo de muito longe.
Novamente, à simples evocação do marido - aquele Conde de Peyrac que detinha nas mãos, çom força e audácia ao mesmo tempo, o destirro deles todos -, a catástrofe que se abatera sobre eles naqueles últimos dias, sobre o casal apaixonadamente unido que eles formavam, apertava-lhe o coração.
A calma do anoitecer a deixava mais sensível ao desastre, como depois de um cataclisma de que se escapou por pouco e cujas ruínas se vão contemplar... Estava acabado!
Com certeza as aparências mantinham-se salvas, mas algo fora destruído...
Uma amarga decepção a atenazava.
Por que ele não mandara chamá-la?
Por que não viera saber como ela estava?
Durante todo aquele dia, que passara no quarto do forte, à cabeceira da Duquesade Maudribourg, não parara de esperar pela vinda dele, por um sinal seu...
Nada! Portanto, ele ainda estava aborrecido com ela. Sim, naquela manhã ela pudera, por um brevíssimo momento, abordá-lo, falar-lhe, gritar-lhe o seu amor! E de-repente ele a abraçara com uma violência que, quando ela a evocava, ainda a punha perturbada. Sentia os braços dele à sua volta, como de aço, aprisionando-a com um ardor tão feroz, que todo o seu ser fora invadido por um sentimento carnal e profundo, indescritível. O sentimento de pertencer a ele, e somente a ele, até a morte... Uma morte doce, nos braços dele, sem pensar em outra coisa senão na felicidade, a felicidade sem limites de conhecer o seu amor por ela.
Mas eis que, após esse instante de remissão, o medo retornava.
Também durante aquele drama recente, muitas reações íntimas de Joffrey de Peyrac lhe haviam escapado. Ela acreditava que o conhecia, que o-adivinhava, mas agora já não sabia! Ele tivera palavras, gestos, gritos de homem encolerizado, de amante ciumento, que ela não lhe teria atribuído antes..
Mas não fora isso o que mais a ferira, pois sentira confusamente que esse aspecto desconhecido do caráter dele fora suscitado por ela, e não poderia ter sido senão por ela. Só se revelara, em suma, porque era ela que estava em jogo, e, sem querer, com aquelas explosões terríveis, ele, que em tudo conservava o autocontrole, traíra o quanto ela lhe era cara, única entre todas as mulheres. Ainda assim, ela já não tinha muita certeza. Gostaria de tê-lo ouvido dizer isso. Em todo caso, porém, preferira aquela violência, aquela brutalidade, a algumas das astúcias dele, certas armadilhas que ele parecia ter-lhe preparado para fazê-la tropeçar. Por exemplo, atraí-la à ilha do Velho Navio com Co-lin, a fim de poder surpreendê-los nos braços um do outro... Não era iníquo, indigno dele?... Para si mesma, ela fazia e refazia essa pergunta, e a cada vez sofria mil mortes. A bofetada que ele lhe dera não era nada em comparação com isso. Ela precisava entender. Alcançá-lo para além daquela coisa, pois o medo de havê-lo perdido para sempre a torturava terrivelmente.
Como aquilo pudera acontecer tão depressa entre eles, como um ciclone devastador, abatendo-se sem que nada pudesse tê-lo previsto, e devastando tudo? Acontecera subitamente, mas também de modo traiçoeiro e insidioso, que lhes surpreendera a vigilância. Ela se interrogava, tentando achar o fio, entender quando aquilo havia começado, como fora que em tão poucos dias tantos casos funestos puderam acumular-se para levá-los, a eles, cúmplices tão ternos, amigos tão fervorosos, tão fogosamente apaixonados um pelo outro, a tremer um diante do outro. Parecia magia e pesadelo!
Era de crer que aquilo começara em Houssnock, quando Joffrey a mandara levar a inglesinha Rose Ann para a casa dos avós, colonos da Nova Inglaterra, nas fronteiras do Maine, enquanto ele era chamado para firmar um tratado com um chefe índio, que transmitira suas diretivas ao conde por intermédio de Cantor e que marcara uma reunião na embocadura do Kennebec.
Em seguida os acontecimentos se desencadearam como uma avalancha dramática.
O ataque ao vilarejo inglês p£los tanadettses e seus aliados, os índios abenakis, que pareceu premeditado para capturar a ela, a mulher do Conde de Pêyrac.
Angélica escapara graças a Piksarett, o chefe dos patsuiketis, alcançara a baía de Casco, descobrira no pirata Barba de Ouro, que por ali rondava, seu amante de outrora, Colin Paturel, o rei dos escravos de Miquenez, aquele que a salvara do harém de Mulay Ismael, talvez o único de todos os homens que a tinham amado um dia que lhe deixara na lembrança--e na carne um pesar, uma vaga nostalgia, uma ternura particular.
Evidentemente não havia nenhuma comparação com a grande chama devoradora, o-tofmento, a paixão, o desejo imperioso, o apego um pouco loúcq, impossível de raciocinar, de analisar, que ela. nutria por Joffrey, que por vezes compunha uma túnica de Nesso, mas que"também-me reservava felicidades ofuscantes, como sóis brílhantes,_dentro dela, aquecendo, enchendo-lhe a vida, respondendo às aspirações, às exigências secretas de seu coração, de seus sonhos, de seu ser inteiro.
Não se podia compararrMas__ela amara Colin outrora, fora feliz em seus braços, e ao reencontrá-lo numa hora de solidão, de perturbação e fadiga, algo estremecera nela, algo de feliz, de meigo e de sensual, principalmente de sensual. Não queria enganar a si mesma, nem procurar desculpas. Quase sucumbira a um momento de vertigem, o raio do desejo abatera-se sobre ela no en-tressonho em que estava mergulhada quando Colin a tomara contra si, cobrindo-a de beijos e carícias.
Sentia-se culpada. Gostava demais do amor e dos seus êxtases secretos e paradisíacos.
Exceto num breve período de sua vida, depois que fora vítima de estupro pelos mosqueteiros do rei, durante o levante do Poi-tou, época em que não conseguia suportar que um homem a tocasse - e que hoje já esquecera tão bem -, sempre encontrara nos embates amorosos um sabor, um prazer constante, que a cada ocasião pareciam cumulá-la de revelações novas.
Amava demasiado o amor! Era esse o seu mal, a sua fraqueza e o seu encantamento.
Joffrey - sempre Joffrey, o mago - abrira-lhe as portas do domínio encantado, fora o primeiro a revelar-lhe, na sua juventude, o prazer. Fora ele também que, reencontrando-a após quinze anos de separação durante os quais ela o acreditara morto, curara-a dos ferimentos íntimos infligidos à sua feminilidade, reconduzindo-a à vida dos sentidos, ressúscitando-a para o Amor com uma delicadeza, um cuidado, uma paciência infinitos.
Como esquecer isso? Ela lhe devia tudo nesse domínio. A iniciação e o desabrochar, a cura e como que um segundo nascimento para a vida amorosa, que, surpreendendo-a em sua maturidade, quando tudo nela, com a experiência e o sofrimento, se enriquecera e se refinara, a invadiam de um sentimento exaltante de poder saborear-lhes plenamente a miraculosa realidade.
Sentia-se feliz demasiado facilmente: fora essa fraqueza que a fizera tremer, febril, por um instante nos braços vigorosos de Colin, quando ele fora surpreendê-la à noite, em seu navio, o Coeur-de-Marie. Com um esforço ela se arrancara a ele, fugira-lhe...
Por que o soldado Curt Ritz, fugindo do navio, tivera que vê-los naquele momento, pela janela, quando ela estava nua nos braços de Barba de Ouro?
Por que aquele homem, mercenário de Joffrey de Peyrac, mas que ignorava quem era a mulher que vira daquele jeito, tivera que relatar o fato diante do conde, e não somente diante dele, mas de todos os notáveis da colónia de Gouldsboro?
Que horror! Que momento terrível para todos! E para e/e! Escarnecido assim por ela, diante de todos...
Compreendia a violência dele para com ela quando se viram a sós. Mas agora o que fazer para acalmar-lhe a cólera? Como fazê-lo entender que na verdade ela nunca amara, nunca poderia amar outro homem além dele? Que se ele já não a amasse, ela morreria, sim, morreria...
De súbito, decidiu-se. Não ficaria ali, tolamente esperando. Iria procurá-lo novamente essa noite, suplicaria, tentaria explicar-lhe. Tanto pior se ele voltasse a dizer-lhe coisas que a ferissem. Tudo, menos ficar assim separada dele! Tudo, menos a frieza dele.
Que ele a tomasse nos braços outra vez. Mesmo apertando-a até sufocá-la, parti-la em duas, em seu rancor.
Precipitou-se para a penteadeira e, vendo no espelho que tinha lágrimas nas faces, empoou-se um pouco.
Desfez o birote, desmanchou a trança pesada e, pegando a escova de tartaruga incrustada de ouro - presente dele -, desembaraçou rapidamente os cabelos. Queria-se bela, não aflita e tensa como nos últimos dias.
O gato não se mexera desde que.ela o instalara sobre a coberta, enroscado na beatitude de um conforto de que não desfrutava há muito tempo e talvez nunca houvesse desfrutado. Imóvel, meigo, paciente, quase imaterial na sua pequenez e fragilidade doente, ele mal parecia existir. No entanto, quando ela falou com ele, pôs-se a ronronar com força, exprimindo o melhor que podia a sua gratidão e felicidade.
Por puro acaso, depois de urna dura perambulação, ele a encontrara, ela se tornara o seu céu, seu horizonte, sua certeza. Esperava tudo dela, da criatura humana que tivera piedade dele, e sabia que não se decepcionaria em absoluto.
- Estou indo - confiou-lhe ela -, fica comportado. Voltarei...
Deu uma última olhada.na direção da cama. A duquesa repousava, sempre muito retajia cama'. Angélica, de escova na mão, indagou-se sobre uma recordação que não conseguia definir.
— Por que me examina assim? Há algo em mim que a inquieta? - perguntou a doente, sem abrir os olhos.'
— Perdoe-me... Não é nada, acho que foi a maneira como você repousa que me chamou a atenção. Não foi educada em convento desde a mais tenra infância? Quando eu era interna, lembro, só nos era permitido dormir muito retas, de costas, com os braços e as mãos sobre a coberta... mesmo no inverno. Desnecessário dizer que eu não fazia isso. Era muito indisciplinada.
— Você adivinhou corretamente - disse a Sra. de Maudribourg, com um sorriso. - Passei todaa.juventude no convento, e confesso que ainda hoje não saberia dormir em outra posição que não nesta que você me censura.
— Não é uma censura. Onde você esteve interna?
— Com as ursulinas de Poitiers.
— No convento da Rue des Montées.
— Em Poitiers não há outras ursulinas senão as da Rue des Montées.
— Mas eu também fui educada lá! - exclamou Angélica. - Que coincidência! Seria você do Poitou?
— Nasci em Mallenay.
— Perto da floresta de Mevan.
— Na saída do vale de Janot. Sabe, há o Roué, que corre ali - disse a Duquesa de Maudribourg, animando-se de repente. - O nosso castelo ficava na orla da floresta! Castanheiros enormes. O cheiro das castanhas e das bolotas caídas, esse perfume é como um alimento. No outono eu caminhava durante horas para ouvi-las estalar sob meus passos.
Seus olhos brilhavam, e suas faces se ruborizaram.
— Do outro lado do Roué há o Castelo de Machecoul - disse Angélica.
— Sim - anuiu a jovem. E, baixando a voz: - Gil de Retz?
— O maldito.
— O homem do Diabo.
— Que matava garotinhos para obter de Satã a pedra filosofal!
— E que foi enforcado por seus crimes no patíbulo de Nantes.
— Ele mesmo! Gil de Retz!
E puseram-se ambas a rir. Era como se acabassem de evocar um amigo comum. Angélica foi sentar-se à cabeceira da duquesa.
— Então somos da mesma província. Nasci em Sancé, perto de Monteloup, acima dos Marais.
— Fico encantada com isso. Mas continue a se pentear, peço-lhe - replicou Ambrosina, pegando a escova que Angélica largara em cima da cama. - Continue, peço-lhe. Você tem uma cabeleira extraordinária. Dir-se-ia uma cabeleira de fada.
— No Poitou, quando eu era criança, a gente do lugar gostava de dizer que eu era uma fada.
— E aposto que suspeitavam que nas noites de lua cheia você ia dançar em volta de uma pedra druídica na floresta...
— Exatamente. Como adivinhou tão bem?
— Ah, em nossa terra há sempre algumas pedras das fadas na vizinhança - observou a Sra. de Maudribourg em tom sonhador.
Houve algo de caloroso e meigo no olhar que pousou em Angélica.
— Estranho - murmurou. - Haviam-me prevenido contra você. E de repente descubro-a tão próxima, quase uma irmã. Você é do Poitou, Sra. de Peyrac. Que felicidade!
— Quem a preveniu contra mim? - perguntou Angélica.
A interlocutora desviou os olhos. Teve uma espécie de leve arrepio e disse:
- Oh, você sabe, agora em Paris, quando se fala de coisas do Canadá, o nome de seu marido é mencionado com frequência. Digamos... a título de vizinho bem próximo... das possessões do rei da França. E aposto como também se fala dele em Londres.
Passou os braços à volta dos joelhos, que ela levantara sob as cobertas ao sentar. Nessa posição, parecia muito jovem, uma mulher sem afetação, desembaraçada de seus títulos, do pesado fardo de suas prerrogativas. Angélica notou que ela apertava as mãos uma contra a outra, gesto que traía, talvez, o controle de uma emoção intensa, mas continuava a encarar'Angélica com serenidade.
"E como se ela tivesse ouro, no fundo dos olhos", pensou Angélica. "De longe parecem muito pretos, de um negro de azeviche. Mas de-perto se vê-que são como âmbar. Ainda assim, positivamente, têm nofu-ndauma claridade dourada que irradia."
Observavam-se em silêncio. A duquesa erguia um pouco o queixo e sorria levemente. Sua ousadia e sua desenvoltura mundana tinham algo dê adquirida, de voluntário. Como se ela se houvesse imposto manter a cabeça erguida para não ceder ao reflexo de baixá-la e fugir dos olhares.
— Pois bem! Quanto a mim, acho-a muito simpática - concluiu, como se respondesse a uma-indagação interior.
— E por que não lhe seria? - replicou Angélica, reagindo com vivacidade. - Quem pode me haver descrito a você com cores escuras? E quem pode me conhecer em Paris e saber quem sou? Desembarquei aqui no último outono e passei o inverno todo no fundo das florestas...
— Não se irrite - disse Ambrosina, pousando a mão suavemente sobre o pulso dela. - EsCúte, minha cara, de minha parte acho maravilhoso chegar ao Novo Mundo e encontrá-la, a você e a seu marido. Não sou sensível às intrigas, às maledicências, nem às calúnias. Em geral, espero para formar minha própria opinião acerca das pessoas contra as quais tentam prevenir-me, e talvez por espírito de independência"oú simplesmente de contradição (sou um pouco cabeçuda, como toda nativa do Poitou), antecipadamente dedico-lhes certa preferência. - Ela continuou: - Vou confessar-lhe uma coisa. De Paris, a América me parecia imensa, sem fim, e de fato o é. No entanto, eu estava convencida de que um dia ou outro eu a encontraria... Uma espécie de presciência, sim... Agora me lembro, uma certeza... No dia em que pronunciaram seu nome na minha frente, pouco antes de nosso embarque, uma voz disse em mim: 'Você vai conhecê-la!' E aqui estamos... Talvez tudo isso tenha sido desejado por Deus."
Ela falava com certo encanto na hesitação. O timbre de sua voz era suave, levemente velado, às vezes com um arfar, como se o fôlego lhe faltasse. Angélica surpreendia-se ouvindo com atenção. Tinha vontade de desvendar, por trás da aparência, a personalidade escondida.
A afetação da duquesa, um pouco maneirosa, um pouco teatral, não viria de certo esforço que ela despendia para se comunicar com os semelhantes?
"Uma mulher diferente, uma mulher solitária", pegou-se Angélica pensando.
Tal diagnóstico não convinha à juventude exuberante e à beleza de Ambrosina de Maudribourg. Junto com isso havia nela igualmente algo de infantil, certa puerilidade, ou então, disse Angélica consigo, talvez seja por causa dos dentes dela. Os dentes do maxilar superior, pequenos, bonitos e muito bem-alinhados, sobressaíam ligeiramente, erguendo os lábios bem-desenhados, rosados, e por instantes isso lhe dava fugidiamente a expressão de uma menininha que chorou. E quando ela sorria assim, era com uma espécie de inocência confiante que emocionava. O olhar, porém, era sagaz, maduro e sonhador. "Que idade terá? Trinta anos? Menos? Mais?"
- Você não está me ouvindo - disse a duquesa de repente.
E deu exatamente aquele sorriso desarmante e comunicativo, enquanto atirava para trás a pesada cabeleira negra, que lhe deslizava pela face.
- Senhora - perguntou misteriosamente a duquesa -, já que é do Poitou, ouviu a mandrágora gritar ao ser desenterrada numa noite de Natal?
E Angélica notou um sentimento de cumplicidade nascer ela ao ouvir a pergunta estranha. Seu olhar procurou o de Ambrosina de Maudribourg e viu brilhar ali como na escuridão del um lago das florestas, reflexos de estrelas.
- Sim - disse a meia voz -, mas era setembro. Entre nós é em setembro que se vai procurar um cão preto para arrancar a raiz mágica da terra.
— E logo se tem que imolar o cão em holocausto às divindades subterrâneas - continuou Ambrosina.
— E é preciso vesti-lo de escarlate para afastar as potências demoníacas que gostariam de apòderar-se dele - arrematou Angélica,
E as duas caíram na risada.
— Como você é bela! - disse subitamente a Sra. de Mãudribourg. - Sim, realmente todos os.homens devem ficar loucos por você.
— Ah, não me fale de homens! - exclamou Angélica, agastada. - Acabo de ter uma briga medonha com meu marido...
— É saudável - aprovou a.duquesa. - Creio que entre esposos discutir de vez em quando é boa coisa. É sinal de que a personalidade de cada um permanece em boa saúde.
O comentário revelava.um caráter amadurecido. Angélica começava a entender a influência que ela exercia sobre as pessoas. Sentiu uma repentina vontade de se confiar àquela mulher, há pouco estranha e agora ião próxima. Talvez -recebesse um conselho que a ajudasse a ver claro em si mesma. No fundo do olhar da Duquesa de Mãudribourg havia algo de terno e suave, como que uma sabedoria sem idade. Angélica contevé-se, porém, e mudou de assunto.
- É um fragmento de mandrágora que você usa num relicário? - perguntou, tocando com um dedo na correntinha de ouro que a duquesa tinha ao pescoço.
Ela teve um sobressalto.
- Oh, não! Eu teria medo demais. Isso é maldito! Não! São as minhas medalhas protetoras.
Tirou pela gola da camisa de^ renda três medalhas de ouro e colocou-as na-palma de Angélica.
- São Miguel Arcanjo,. Santa Lúcia e Santa Catarina - anunciou.
As medalhas estavam mornas pelo contato com a carne feminina e Angélica teve uma sensação ambígua.
— Uso-as desde que me aproximei pela primeira vez do santo altar - prosseguiu a duquesa em tom de confidência. - Quando nao consigo dormir à noite, eu as sinto e isso me acalma o medo.
— De que você tem medo?
A duquesa não respondeu. Fechou os olhos e uma expressão de sofrimento perpassou-lhe pelas feições. Com um suspiro, afundou nos travesseiros, com a mãos sobre as medalhas.
- A propósito da mandrágora - continuou Angélica -, você não quis testar-me há pouco? Talvez desejasse saber se sou feiticeira, conforme se diz em Quebec e mesmo em Paris? Pois saiba, minha cara, que de fato utilizo a mandrágora para fabricar um medicamento de origem árabe que chamam de "esponja soporífera". Misturada com um pouco de cicuta e sumo de amoras, ela acalma a dor. Mas nunca me dei ao trabalho de procurá-la e desenterrá-la. Os poucos fragmentos que possuo me foram fornecidos por um boticário inglês.
Ambrosina de Maudribourg ouvira-a observando-a através dos longos cílios. Comentou com vivacidade:
- Então é verdade? Você frequenta os ingleses?
Angélica deu de ombros.
— Há ingleses em toda parte na baía Francesa. Não estamos no Canadá, mas na Acádia, ou seja, vizinhos próximos da Nova Inglaterra. Os tratados foram feitos de tal modo que as possessões do rei da França e as feitorias inglesas se entrelaçam numa rede inextricável.
— E o domínio de que você é a castela é independente entre essas duas influências?
— Você parece bem informada.
Angélica deu um leve sorriso, um pouco desencantado. Quando chegara a Gouldsboro pela primeira vez, achara que era a costa mais perdida, o ponto mais ignorado do mundo.
No entanto, a mão dos homens e dos reis já moldava aqueles territórios semivirgens. Joffrey de Peyrac tornava-se um peão importante, um obstáculo ou um aliado. Bruscamente ela teve um sobressalto. O que estava fazendo ali? Não tinha decidido há pouco que ia correr à procura dele? Dir-se-ia que um feitiço repentino a imobilizara, a retivera... Precipitou-se outra vez para a janela.
A noite caía. Na escuridão que começava, um navio atravessava a barra e entrava no porto.
"Mais uma visita, um estranho, seja o que for, francês, inglês ou holandês ou pirata, ou sei lá o quê, e que vai convencer Joffrey a acompanhá-lo a sei lá onde, numa expedição policial ou justiceira qualquer. Ah, não! Desta vez ele não vai partir sem me avisar, deixando-me aflita..."
Pegou o manto de lobo-marinho e atirou-o aos ombros.
— Desculpe-me, senhora - disse à duquesa -, tenho que deixá-la. Diga o que disser, vou mandar-lhe uma de suas moças.Ela acenderá as velas e, se você se sentir melhor, hão de enviar-lhe a ceia. Peça tudo o que for necessário.
— Você vai embora? - indagou a-duques*, numa voz sem timbre. - Oh, rogo-lhe, não me ábandoner
— Mas você está em toda a-segurança aqui - afirmou Angélica, notando a ansiedade que vibrava na voz da mulher deitada.
Sob uma aparência corajosa, ela era frágil e se recobrava mal dos terrores do naufrágio. Não contava que tivera visões como se fosse coisa natural?
- Envio imediatamente alguém para ficar à sua cabeceira - insistiu Angélica, tranqúilizando-a como a uma criança. - Fique calma!
Subitamente alerta, ela aguçou o ouvido para um som de passos masculinos que subiam a escada. Enrico, o maltês, surgiu à porta que ela abriu..'"
- Senhora condessa, Monseigneur Rescator a chama!
CAPÍTULO IV
Reconciliação entre Angélica e o marido, após a incerteza
Quando estava no litoral, Enrico voltava a chamar o amo de Rescator.
Angélica o acompanhou, com o coração acelerado, dividida entre a apreensão e o alívio. Assim, ele mandara chamá-la afinal.
Apressava-se atrás do maltês. Tinham saído do forte e subiam na direção das árvores. Ao atingirem a extremidade do povoado, cuja última casa ficava um pouco recuada, Angélica ouviu a ressaca contra os recifes, e voltou-lhe à memória a lembrança de uma mensagem semelhante que a conduzira a uma armadilha. Fora há algumas noites, quando um marujo desconhecido, de tez pálida e olhos estranhos, viera dizer-lhe: "O Sr. de Peyrac manda chamá-la", e atraíra-a para a ilhota do Velho Navio.
Instintivamente levou as mãos à cintura. Esquecera as pistolas. Que tolice! Voltando-se para o maltês, exclamou, malgrado seu:
— Foi mesmo o Sr. de Peyrac quem o mandou? Também você está me traindo?
— O que está acontecendo?
O conde estava de pé à soleira da última casa de madeira. Sua alta silhueta se destacava contra a luz de um fogo chamejando na rústica lareira de pedra.
Angélica soltou um suspiro de alívio.
— Ah! Tive medo de cair em outra armadilha. A última vez foi um demónio branco que veio do mar...
— Um demónio branco!?
Peyrac olhou-a intrigado.
Desceu ao encontro dela e pegou-a pelo braço para fazê-la cruzar a soleira de pedra.
Com um gesto, despediu o maltês e fechou a porta, cujo grosseiro batente de madeira abafou o estrondo das ondas.
Apenas o crepitar do fogo encheu o pequeno aposento. Angélica aproximou-se da lareira e estendeu as mãos para a chama. Tiritava de emoção. O "conde observava-a.
- Como você está nervosa!"- disse, suavemente.
Ela voltou para ele o belo olhar que a ansiedade e o tormento escureciam, quase a ponto de dar-lhe às pupilas um matiz de água do mar agitada pela tempestade.
— Não é de surpreender, depois destes dias terríveis. E eu tinha medo de que você tivesse esquecido o que nos dissemos esta manhã.
— Como poderia eu esquecer, sobretudo quando você me olha com olhos tão belos?
A voz dele, familiar, de inflexões ternas, atravessou-a toda, e ela o fitou apaixonadamente, não conseguindo acreditar de todo na sua remissão.
Ele sorriu.
- Bem,~meu coração, expliquemo-nos - disse com gentileza -, já é tempo e demoramos muito. Sente-se.
Apontou-lhe um dos dois escabelos que, com uma mesa grosseira, um tabique e objetos de "pesca, compunham a mobília da cabana.
Ele sentou-se do outro lado da mesa. Examinava-a com atenção, e um sentimento apaixonado fazia brilhar-lhe o olhar escuro, que se detinha em cada um dos traços dela, emoldurados pela suntuosa cabeleira ouro-claro, nos vestígios que a dor deixara ali, e os da bofetada que a machucara: A lembrança da própria violência transtornou-o.
— Oh, minha bem-amada! - murmurou com a voz surda. - Sim, você tem razão. Não deixemos nossos inimigos levarem a melhor sobre nós. Nenhuma ofensa merece que se destrua entre nos o que nos une.
— Não o ofendi... - balbuciou ela - ou quase...
— Gosto da ressalva - disse Peyrac. E soltou uma risada. - Minha querida, você é maravilhosa. Você sempre me alegrou, me encantou com a sua espontaneidade. Mas sente-se.
Ela não sabia se ele estava zombando, mas o calor da voz do marido acalmou a tensão que a fazia sofrer.
Sentou-se, conforme ele lhe intimava. Sob o amoroso olhar dele, já se apagava tudo do seu medo e daquela horrível impressão de havê-lo perdido, de estar novamente sozinha no mundo.
— Será que fomos solitários por tempo demasiado? - perguntou, ele, como se respondesse à impressão secreta dela. - Será que outrora, quando o ostracismo do rei nos separou, não medimos o suficiente a força do nosso amor, e será que ao nos reencontrarmos não medimos o suficiente a profundidade dos nossos ferimentos? Por muito tempo você esteve acostumada a defender-se sozinha, a duvidar de tudo, a temer a malignidade do destino que uma vez já se abatera terrivelmente sobre sua vida.
— Oh, sim! - exclamou ela, numa espécie de soluço. - Eu tinha dezoito anos. Você era meu céu, minha vida, e eu o havia perdido para sempre. Como consegui sobreviver?
— Sim, pobre menina! Subestimei o poder dos sentimentos que você me inspirou e sobretudo o valor dos .sentimentos que nutria por mim. Achei que, uma vez desaparecido, você me esqueceria.
— Viria a calhar para que você se unisse à sua primeira amante, a Ciência... Oh, eu o conhecia!... Você era capaz de aceitar a morte para saber se a Terra gira, e separado de mim conseguiu sobreviver, provar todos os prazeres de sua vida aventurosa...
— Sim, você tem razão... No entanto, escute, eis o que descobri nestes últimos dias, durante essa tempestade que acaba de nos abalar a ambos. Com certeza você me seduziu outrora e eu era louco por você; contudo, conforme acaba de dizer, consegui sobreviver. Hoje, porém, eu não poderia. Foi isso o que você fez de mim, querida, e certamente que uma confissão dessas não me é fácil.
Sorriu, mas sobre aquelas feições cinzeladas que a vida marcara com seu selo cruel, as grandes cicatrizes que lhe empalideciam a tez bronzeada, ela via transparecer á força do sentimento autêntico que ele lhe dedicava. Seu olhar ardente cravava-se nela com uma espécie de espanto.
- É estranho o amor - continuou ele, como se falasse consigo, numa queixa surpreendente. - A juventude acredita que o colhe em seu desabrochar e que seu destino depois será estiolar-se. Na verdade, porém, trata-se apenas das primícias de um fruto mais saboroso que só é dado à constância, ao fervor, ao conhecimento mútuo. Inúmeras vezes, nestes últimos dias, eu a revi chegando a Toulouse, bela, orgulhosa, jovem, ao mesmo tempo infantil e sagaz. Talvez naquela época eu tenha querido ignorar que sua personalidade fresca me fascinava ainda mais do que sua beleza. Quem sabe o que se ama nesse primeiro olhar que une dois seres? Com frequência, sem que se sáíba, as riquezas ocultas, as forças contidas, que apenas o futuro revelará... coisa que os poderosos deste mundo não me deram tempo para descobrir em você... Mesmo naquela época eu ficava na defensiva. Pensava: ela mudará, ficará como as outras, perderá essa deliciosa intransigência, esse ardor pela vida, essa fineza inteligente... Mas não... reencontrei-a a você e ao mesmo tempo à outra... Não me olhe assim, meu amor. Não sei onde você vai buscar a sedução desse olhar, mas ele. me transtorna até a medula.
"São seus olhos, esse olhar novo que você me revelou em La Rochelle, quando surgiu da noite e da tempestade para pedir-me que salvasse seus amigos huguenotes - é daí que vem todo o mal, foi esse olhar que fez de mim um homem que já não reconheço. Ah, receio estar ligado demais a vbcê! Você me deixa fraco. Diferente de mim mesmo... Sim, foi daí que nasceu o meu mal. Seus olhos de expressão desconhecida, cujo segredo ainda não consigo desvendar. Sabe o que aconteceu, meu amor, quando você foi me procurar aquela noite, em La Rochelle, sabe o que aconteceu? Pois bem, apaixonefme por você. Loucamente. Desvairadamente. Tanto mais que, sabendo quem você era, eu não quis entender o que estava acontecendo. Foi uma confusão e, com frequência, uma tortura.
"Sentimento estranho, realmente! Quando a via no Gouldsbo-ro, com sua filhinha ruiva no colo, entre seus amigos huguenotes, eu esquecia que você era aquela, esposa que eu recebera outrora em matrimónio. Você não era mais do que aquela mulher quase estranha que eu acabava de encontrar pelos acasos da vida e que me fascinava, seduzia até a medula dos ossos, e que me atormentava com a sua beleza, sua tristeza, o encanto de seus raros sorrisos, uma mulher misteriosa, que me escapava, e a quem eu tinha que conquistar a qualquer preço.
"Assim, na minha ambígua situação de marido loucamente apaixonado pela própria mulher, eu tentava agarrar-me ao que conhecera de você no passado, e se por vezes me senti inábil para ostentar o meu título de marido para acorrentá-la a mim, foi porque eu queria tê-la à minha mercê, perto de mim, minha amante, minha paixão, você minha mulher, que pela segunda vez, mas com artifícios novos e inesperados, acorrentava-me sob seu jugo. Então comecei a recear descobrir amargamente que você não me queria bem, discernir em seu coração a indiferença e o esquecimento de um esposo banido há muitíssimo tempo, e na apreensão em que. me encontrava perante todo esse desconhecido que havia em você - ah, como você era arredia e difícil de cativar, minha pequena abadessa! -, talvez eu não tenha sabido conduzir bem minha conquista. Comecei a compreender que eu encarara a vida demasiado levianamente no que concernia às mulheres, e a você em particular, minha esposa. E que bem precioso eu negligenciara!"
Angélica o ouvia retendo o fôlego; ouvia-o avidamente, e cada palavra lhe devolvia a vida. Estava diante dele como o pássaro cativo diante do passarinheiro que usa de seu poder para reter com o fascínio ou o sentimento um ser frágil prestes a escapar-lhe. Não, ela não queria escapar-lhe. A carícia de sua voz surda, de seu olhar ardente, de sua presença valia bem, para ela, o sacrifício de todas as liberdades. O que era voo solitário no perigo do espaço deserto, comparado à cálida certeza de haver atingido o seu porto seguro perto dele? Disso ela sempre soubera, mas faltava-lhe tomar consciência, e aquele monólogo, aquela espécie de confissão que ele ousava fazer assim, diante dela, por amor, revelava-lhe pela análise dele, ao mesmo tempo sutil e sincera, o quanto ela reinava sobre seu coração. Ele jamais deixara de pensar nela, tentando compreendê-la a fim de melhor reunir-se a ela.
- Sua independência fantasista me causava mil tormentos, pois, não sabendo que ideia poderia passar-lhe pela cabeça, o medo de perdê-la mais uma vez me dominava as preocupações, e nessa independência eu também via o sinal de que você pertencia apenas a si mesma. A prudência me soprava que não se curam facilmente ferimentos tão profundos como os que atingiram-na longe de mim; que eu devia ter paciência; mas o temor subsistia, opressivo, e foi o que estourou em mim quando de repente... Angélica, meu amor, diga-me, por que você partiu assim de Houssnock para o povoado inglês, sem me avisar?
- Mas... foi você que me deu essa ordem!
Ele franziu o cenho.
— Como assim?
Angélica passou a mão pela testa.
- Já não lembro exatamente como as coisas aconteceram, mas tenho a certeza de que foi a uma ordem expressa sua que me pusa caminho para levar Rose Ann paia a casa dos avós. Até fiquei bastante contrariada por não poder fazer essa viagem em sua companhia.
Ele refletia. Ela o viu cerrar es punhos e murmurar entre os dentes:
— Então foram "eles" novamente que prepararam isso.
— O que você quer dizer?
— Nada... ou melhor, sim, começo a entender muita coisa. Esta manhã você me abriu os olhos quando disse:
"Nossos inimigos querem separar-nos. Vamos deixá-los triunfar?" Esse é mais um dos seus novos poderes que me unem a você de maneira tão exclusiva. O modo como você me auxilia nas emboscadas e dificuldades que nos acometem, com uma habilidade, uma criatividade que são apenas suas (aquele pedaço de açúcar que você deu ao pequeno canadense diante de Katarunk e que nos salvou a todos do massacre!), mas também uma presciência exata que me maravilha. Passei a gostar desse sentimento novo: uma mulher a meu lado que compartilha tudo de minha vida.
"Então, sua ausência, seu desaparecimento, a suspeita de sua infidelidade!... Como suportar isso doravante? Preferiria retornar ao patíbulo. Perdoe-me, meu amor, a cólera que se apoderou de mim.
"Mas considera, meu coração, o estado em que me lançou a paixão que me inspirou, a ponto de fazer-me perder o sentido de equidade que procuro manter entre as vicissitudes de meus encargos. Você me lançou na cólera, na injustiça, e, até, em relação a você, no desejo de atingi-la e fazê-la padecer, você meu único amor, minha mulher... Certamente não é fácil revelar uma verdade a que outrora o Conde de Peyrac não teria aderido facilmente: o sofrimento por amor. Mas você me impôs esse sofrimento com o poder de seu encanto sobre todo o meu ser. A Angélica de outrora, sedutora deliciosa e inconsciente, havia despertado muitas coisas em mim, mas a que reencontrei em La Kochelle, com a sua alma nova, seu conhecimento da vida, seus contrastes - como defender-se dessa mistura de suavidade e violência que há com você -, essa Angélica quase estranha, que veio a mim pedir-me socorro para seres ameaçados, fez-me sofrer por amor."
Ele se interrompeu, permaneceu pensativo um instante. Estaria revendo a cena ocorrida naquela noite tempestuosa, quando seu navio pirata, o Couldsboro, se balançava ancorado numa enseada escondida nas proximidades de La Rochelle?
- Lembra-se? Tudo era estranho, inesperados misterioso, naquela noite. O destino nos impelia um para o outro sem que suspeitássemos disso. Eu estava sozinho em minha cabina e pensava em você. Fazia planos, dizia a mim mesmo: 'Estou sob os muros de La Rochelle, mas como reencontrá-la agora? Minha única pista eram as poucas palavras que Rochat me lançara num porto espanhol: 'A francesa... o senhor sabe... a que você comprou em Cândia e que fugiu, pois bem, encontrei-a em La Rochelle!' E de repente Jason, o meu imediato, entrou e me falou com aquele ar frio que lhe era habitual (pobre Jason!): 'A mulher francesa que o senhor comprou em Cândia está aí e quer lhe falar.' Achei que ia enlouquecer. Enlouquecer de alegria, de encantamento, e também... de susto. - O conde continuou: - O homem é estúpido! A felicidade causa-lhe mais medo do que o sofrimento e o combate. Receia na alegria, talvez, uma armadilha que o derrote mais facilmente do que a adversidade? Não sei... Não escapei à regra comum. Para enfrentar aquele instante inimaginável, eu me envolvi em todas as minhas dúvidas, todos os meus rancores, meus receios, amarguras, desconfianças...
Angélica sorriu.
— É verdade que eu não estava muito sedutora - reconheceu. - Você tinha guardado outras recordações. Em que estado me encontrava eu naquela noite?... Encharcada, enlameada, descabelada. Eu tinha levado um tombo correndo pela charneca...
— Você estava... Ah, o que dizer! - murmurou ele. - Meu coração partiu-se... Foi como se eu visse surgir à minha frente a imagem do que a infligira a injustiça do destino, do que a crueldade dos homens (e também a minha, inconsciente talvez) fizera de você... Senti-me gelado, incapaz de reatar com palavras o elo que, para além de tal catástrofe, nos unia. Em Cândia teria sido mais fácil. Mas em La Rochelle senti que você já não pertencia ao nosso passado comum, você tinha se tornado outra. E ao mesmo tempo acontecia o que lhe expliquei há pouco. Por aquela outra mulher, tão diferente, tão perturbadora, que me dizia sem se importar com seu triste estado, com o sangue que lhe escorria, com a água gelada que a encharcava, que era preciso salvar seus amigos, por aquela mulher que já não se parecia com você e que ainda se parecia com você, eu estava em vias de me apaixonar loucamente. Uma paixão à-primeira vista em que tudo se mesclava: a admiração, o gosto; ò encanto inexplicável, a piedade, a ternura, a vontade de proteger, o medo de perder, de deixar escapar um tesouro desses, á incerteza do instante...
— Devo acreditar em você?'Você não me disse com cinismo: "Que fenómeno fez que uma cativa pela qual paguei uma fortuna se transformasse numa mulher pela qual hoje eu não daria cem piastras?"
— Eu tentava dissimular, sob a ironia, emoções inusitadas. Sim! O homem é estúpido. A verdade?... você me queimou naquela noite. Mas em certas medida eu perdera o hábito do sentimento, a possibilidade dé e"xp,timi-lo. Eu precisava impor ordem a tudo isso, e o momento, você o reconhece, o que exigia de mim com tanto ardor, quase não mie- deixava tempo para isso.
"Pouco a pouco refleii,j£Í com mais clareza,-já lhe disse: você tinha permanecido em mim como uma recordação dilacerante, sim, mas como uma imagem que se tornava imprecisa, pois a condessinha encantadora que fora minha mulher, eu não a via a meu lado naquela vida de aventureiro, atirada sobre todos os oceanos, que se tornara a minha vida.
"Também era aquela cuja lembrança eu procurava repelir quando fiquei sabendo do casamento com o Marquês du Plessis-Bellière, aquela a quem eu acusava vagamente de haver abandonado meus filhos, de ser inconsequente em suas loucas peregrinações pelo Mediterrâneo.
"E embora eu a procurasse, já que não podia romper o vínculo que nos unia, sua imagem se fizera imprecisa em mim. Reencontrei-a uma mulher diferente e a mesma, mas você surpreendia meu coração entorpecido, que arrancava de sua letargia. Ele ressuscitava, encontrando com um novo amor as delícias dos tormentos e das esperanças. Não foiiácil conquistá-la de novo entre os acasos que nos opunham a bordo do Gouldsboro. Consegui afinal conservá-la ciumentamente perto de mim em Wapassu, mas por vezes, mesmo durante esse-inverno, o receio de que a provação lhe superasse as forças e também de que o meu desconhecimento de você me levasse a feri-la deixavam-me na dúvida em relação a você. Pois sua força de silêncio e de aceitação me assustava, eu não sabia como fazê-la abandonar o hábito que tinha adquirido de calar-se na dificuldade e no sofrimento, sabendo que nisso poderia situar-se o obstáculo para o nosso entendimento, que enquanto se protegesse tão zelosamente de buscar socorro junto a mim você me escaparia, uma parte de você permaneceria ligada àquela parte de sua vjda que viveu longe de mim, e cujo poder você ainda era suscetível de sofrer. E com isso, às vezes, eu tremia... sem encontrar outro remédio senão a paciência e o veredicto do tempo...
"Era nesse ponto, creio, que nos encontrávamos, quando, há algumas semanas, atingimos Houssnock, no Kennebec... e de repente você desapareceu..."
Fez uma pausa, esboçou uma careta, depois dedicou a ela um sorriso cáustico, mas que não apagava a ardente paixão que lhe brilhava nos olhos escuros.
- Claro que não é uma situação confortável a do indivíduo que de repente se descobre como um marido enganado perante o mundo - disse -, mas não foi por isso que sofri mais cruelmente... Embora fosse preciso que o acontecimento não desconcertasse nossa gente... Mas nisso você me ajudou... Sim nesse ponto, em meio àquela tempestade, você não me decepcionou... você foi realmente... o que era preciso ser, e até minha cólera você forçava a minha admiração, minha paixão... Ah! Que sentimento terrível!... Pois foi como homem ciumento que sofri. Ciumento é a palavra? Mais como homem apaixonado que ainda não concluiu sua conquista e a vê escapar antes que ele possa atingir esse ponto de encontro incomunicável do amor: a certeza. A certeza mútua. Enquanto se treme, a dor está pronta a surgir, e assim também a dúvida, e o medo de que tudo termine antes... antes que se seja atingido por esse encontro' sem nome que transmite alegria, força, perenidade.
Do outro lado da mesa de madeira grossa, Angélica não parava de encará-lo ardentemente. Esquecia tudo do mundo exterior. Agora só existia ele na superfície da Terra, e a vida de ambos, evocada pelas palavras pronunciadas, que despertavam imagens, recordações, mesmo da época em que estiveram separados.
Ele se enganou acerca do silêncio dela.
- Você ainda me quer mal! - exclamou. - Pelo que aconteceu nos últimos dias... Eu a feri!... vamos diga-me o que a feriu mais duramente na minh onduta inqualificável. Queixe-se um pouco, minha querida, ; . a que eu a conheça melhor...
— Queixar-me -murmurou ela - de você, a quem devo tudo?... Não, não é isso... Digamos que há coisas que não entendi, porque também eu não o conheça o bastante...
— Pór exemplo?
Ela já não sabia. Subitamente;sUas mágoas se derretiam ao sol de um amor tão terno e profundo.
— Pois bem!... Você nomeou Colin governador.
— Você preferia que eu o enforcasse?
— Não, mas...
Ele sorriu com indulgência.
— Sim, estou entendendo!... Essa aliança de dois homens, quando eles deveriam ser inimigos pela beleza de Helena de Tróia, é execrável!...- Você sofretr com isso?
— Um pouco... njLo, é-feminino?
— Concordo... e você é adorável - replicou: ele. - Que mais?
— Você obrígou-Tne a_dar-lhe o braço quando nos dirigimos à sala do banquete...
— Admito que foi absolutamente odioso. Perdoe-me, meu coração. Há"momentos, quando se luta ferozmente por algo, em que se fazem gestos canhestros. Eu queria, demasiado talvez, apaj gar aos meus olhos, esquecer...
— E flertava com aquela Inês!
— Que Inês?
— A amante espanhola de Vanereike... durante o banquete!
— Ah, sim... Dever de anfitrião! Eu não tinha que consolar aquela jovem encantadora da atenção que nosso dunquerquiano lhe dedicava? Quando a gente sente na pele o veneno do ciúme, tem piedade pelos que compartilham dos mesmos tormentos...
Angélica baixou a cabeça. Com a recordação, voltava a dor.
— Há algo de mais grave - murmurou.
— O quê?
— Aquela armadilha na ilha do Velho Navio! Atrair-nos assim, a mim e a Colin, não é coisa suã!"
A fisionomia do Conde de Peyrac anuviou-se.
- De fato... não é coisa minha!
Sacou do gibão um pedaço de papel amarrotado, que estendeu a ela. Angélica decifrou estas palavras, escritas com uma letra grosseira:
"Sua esposa está na ilhota do Velho Navio com Barba de Ouro. Chegue pelo lado norte, para que eles não o vejam aproximar-se. Assim poderá surpreendê-los um nos braços do outro".
Um arrepio percorreu Angélica. O terror inqualificável que a dominara por vezes nos últimos dias invadíu-a de novo e congelou-a.
— Mas quem... quem pode ter escrito isto? - balbuciou. - De quem você recebeu este bilhete?
— De um marinheiro da tripulação de Vanereike, que serviu apenas de intermediário. Junto com ele, tentei encontrar o indivíduo que lhe passara esta mensagem, incumbindo-o de entregá-la a mim, mas foi em vão. "Eles" agem assim. Aproveitam o desembarque das tripulações e o movimento criado no porto para se insinuar entre nós e agir, depois desaparecem como fantasmas.
- "Eles"? Eles quem?
Peyrac continuava preocupado.
— Há desconhecidos na baía - disse afinal -, que rondam por aí e que, tenho certeza, se preocupam demasiado conosco.
— Franceses, ingleses?
— Não sei. Franceses, mais provavelmente, mas que não agem por conta própria e cujo objetivo seria criar desentendimentos entre nós.
— O homem pálido que veio me avisar de que você esperava na ilha seria um deles?
— Sem dúvida. E também o homem que, no caminho de Houss-nock, me comunicou mentirosamente que você tinha se salvado e que seguia no Le Rochellais para Gouldsboro...
Peyrac contou como, tranquilizado pelo encontro acerca do que acontecera com ela, decidira seguir Saint-Castine até Penta-gouet, no caminho de Gouldsboro, depois de recompensar o homem que o avisara.
— Dei-lhe pérolas dos mares tropicais.
— Mas... quem podem ser "eles"? Quem os envia?
— Ainda é impossível determinar isso. O que é certo é que estavam bem informados sobre nossas idas e vindas e que não recuam diante de nada, pois no mundo dos marinheiros transmitir informações falsas é uma infâmia mais grave do que cometer um crime. Mesmo entre os inimigos existe uma solidariedade de homens do mar que somente criaturas abjetas ou bandidos declarados se permitem trair. Pressinto que "eles" são da pior espécie.
— Então eu tinha razão - murmurou ela - de temer não sei que empreendimento... diabólico, que se pôs em marcha contra nós...
— Então a vi na ilha com o Barba de Ouro. E eis que sobreveio algo desconhecido pelos nossos inimigos, uma coisa que eles não podiam saber: que Barba de Ouro era Colin. E isso mudava tudo. Colin Paturel, o rei dos escravos de Miquenez, quase um amigo para mim também, no mínimo um homem que eu estimava muito, pois sua reputação era grande no Mediterrâneo. Sim, isso mudava muitas coisas para mim. Colin!... um homem a quem não era desonroso que você tivesse concedido, digamos... sua amizade... Mas eu tinha que certificar-me quanto a Barba de Ouro. Mandei Yann buscar reforços com a ordem de só retornar pelo canal na hora em que a maré recuasse!
— E você ficou.
— Fiquei.
— Queria Saber quem eu era? - indagou ela, olhando-o no rosto.
- Fiquei sabendo.
- Poderia ter tido amargas revelações.
— As que tive foram maravilhosas e fortificaram-me o coração.
— Sempre seus riscos insensatos!
— Não é só isso. Na minha decisão de permanecer na ilha e me esconder até o retorno de minha gente, não houve apenas o gosto de descobrir mais acerca da minha bela esposa desconhecida. Claro, a ocasião se oferecia; um marido tem muito a aprender sobre sua bonita mulher que conversa com um homem que não lhe foi indiferente outrora e o qual ela sabe que ainda a ama. Mas a curiosidade apenas não teria bastado para me lançar a um desafio tão penoso, se eu não tivesse sido forçado pela própria situação. Considere, meu coração, que. a situação era delicada, espinhosa, digamos, por mais de um motivo. Caso eu me apresentasse sozinho a vocês dois, você acha que Colin se deixaria convencer facilmente de minhas intenções pacíficas enquanto marido? É que, na qualidade de pirata, merecendo ser sumariamente enforcado, ele se deixaria capturar facilmente pelo senhor de Gouldsboro? Você me acusa de correr riscos loucos demasiado facilmente, mas o de enfrentá-lo em combate individual naquela praia, sem outra testemunha além de você e os lobos-marinhos, com a morte dele ou a minha como conclusão certa, não me pareceu saudável e benéfico para ninguém. O seu Colin nunca teve a reputação de ser fácil de lidar. Vá perguntar a Mulay Ismael, que falava dele com respeito e quase medo, embora não passasse de um escravo desarmado diante de um rei intratável e cruel.
— No entanto você conseguiu convencer esse intratável a servi-la, conseguiu fazê-lo sucumbir ao poder de seu fascínio.
— Porque me foi trazido entre quatro homens armados. Na ilha do Velho Navio a situação era diferente. Isto posto, que mais podia eu fazer senão permanecer como a testemunha invisível do seu encontro? Ainda que fortuito e involuntário, conforme fiquei sabendo mais tarde.. Também nisso os nossos inimigos jogavam para ganhar, reunindo-nos aos três naquela ilha. Todos os elementos estavam dispostos para que nós mesmos forjássemos nossa própria destruição. A única maneira de enfrentar essas combinações diabólicas era opor a elas um comportamento contrário ao pretendido. Graças a Deus, os três recebemos a força moral de resistir.
— Diabólico! - repetiu Angélica.
— Não se assuste. Saberei frustrar os planos deles e, sejam quem forem, afastá-los. Enquanto não suspeitávamos da presença deles, tropeçamos em suas armadilhas, e parece que você foi a primeira vítima, em Houssnock e em Brunswick Falis, onde por pouco não perdeu a liberdade e talvez a vida. Aquele ataque à aldeia inglesa pelos abenakis e que se destinava a capturá-la também entrava nos planos ocultos deles? Não sei. Mas já quando recebi esse bilhete, na noite da batalha naval contra o Barba de Ouro, uma desconfiança despertou em m'im. Eu sabia que num dia ou noutro "eles" fariam contato. Por um instante acreditei que se tratasse do Barba de Ouro, mas naquele momento eu recebia uma prova em contrário. Dirigi-me à ilha pelo canal, com um barco e um único homem, mas agora estava na defensiva, pelo desconhecido e... por mim mesmo, pois podia ser um falso comunicado para atrair também a mim a uma armadilha, ou podia ser verdade, e contavam com a minha cólera para me fazer cometer gestos irreparáveis, particularmente contra você. Tornou-se-me perceptível essa vontade de prejudicá-la.
"Cuidado!", eu me dizia. 'Toma cuidado. Lembre-se de que, aconteça o que acontecer, nada deve atingir a ela. Principalmente por seu intermédio.' Minha cólera voltava-se para os miseráveis que procuravam fazer de. mim o instrumento da infelicidade contra você, em seus planos maquiavéficos. Você não lhes concederá isso!', dizia-me. Pelo menos dessa vez eu tinha que defendê-la dos ataques deles, fosse qual fosse o preço a pagar.
"Não a conquistei em Toulouse batendo-me em duelo com o sobrinho do arcebispo?"
- Não era a mesma coisa! - exclamou'Angélica, com ímpeto. - Nunca mais será a mesma coisa! Por quem você me toma? Agora eu o amo! - E, surpresa com a confissão como com uma revelação: - Oh,-sim, eu o amo!... Demais! Realmente demais pelo que você merece. Seu afastamento de todos foi tal que não pode sequer çohcgber~o apego que tenho por você? Não lutamos juntos contra os iroqueses^ contra os franceses e seus selvagens, contraio inverno,, a doença, a morte? Já não o mereço?... Rogo-lhe, se"não querjazer-me' sofrer, guarde-se, guarde-se para mim, meu querido amor. Pare de desprezar sua vida, pois se eu o perder, desta vez morrerei, morrerei!
Ele se ergueu, foi na direção dela e abriu-lhe os braços. Ela abraçou-o, com a testa pousada no ombro dele, perdendo-se naquele refúgio maravilhoso, onde toda a sua vida parecia anular-se para saborear, no contato finalmente restabelecido com ele, seu calor, seu odor familiar, um instante de felicidade intensa.
- Também eu tive culpa - murmurou ela -, duvidei do seu amor por mim e do valor dos seus sentimentos. Deveria ter-lhe dito na hora: "Encontrei Colin..." Mas tive medo. Não sei que temor me reteve. Habituada a-lutar contra as emboscadas mesquinhas, contra a baixeza, a vilania que governam as ações dos homens acostumei-me ao silêncio, mais do que à verdade. Perdoe-me. Entre nós não deve ser assim.
Ele tomou o belo rosto entre as mãos e o ergueu para mergulhar naquele olhar e beijar-lhe suavemente os lábios.
- Não podíamos nos reencontrar sem nos magoarmos, depois de tantas felicidades e infelicidades que nos transformaram o co
ração e marcaram o espírito. No limiar dessa descoberta nova e maravilhosa do amor subsistia o receio de sermos frustrados de novo. Mal curados, interrogávamos: a vida nos ensinaria, com os pesares e nostalgias que nos atormentam e com os impulsos que nos transtornam, o quanto éramos realmente destinados um ao outro? Outrora, em Toulouse, foi uma festa, um desabrochar. Mas aquilo não era a árvore, eram apenas as raízes de um amor que iria reclamar ao futuro o seu significado completo. Pois bem, ficamos sabendo. Longe um do outro, sangramos juntos de todos os tipos de chagas, sem no entanto deixarmos de saber, no fundo de nossos corações,; que estávamos unidos para sempre. Agora é preciso que reconheçamos e digamos isso um ao outro. Minha estranhazinha querida, ã quem eu não soube aprisionar inteiramente, perdoai-me, perdoai-me...
Ele lhe beijava com uma suavidade infinita o machucado na têmpora.
- Meu novo amor, minha bem-amada de sempre, minha silenciosa demais...
Ela passou os dedos numa carícia pelos espessos cabelos dele, depois pelas suas têmporas prateadas.
— Você sempre soube falar de amor. O aventureiro dos mares e o conquistador do Novo Mundo não mataram o trovador do Languedoc.
— Ele está longe. Já não sou o Conde de Toulouse.
— O que me importa o Conde de Toulouse? Aquele a quem amo é o pirata que teve piedade de mim em La Rochelle e que me deu uma xícara de café turco quando eu morria de frio, aquele que mandou atirar nos dragões do rei para defender meus amigos huguenotes perseguidos, e aquele, ainda que apesar da ingratidão deles, soube agraciá-los ante as minhas súplicas, aquele com quem dormi no fundo das matas em tamanha segurança, que não há maior na Terra senão na infância, aquele que disse à minha filhinha: "Senhorita, sou seu pai..." Você é-me muito caro. Eu não desejaria que você fosse indiferente àquele... àquele incidente. Preciso sentir o tempo todo que lhe pertenço... realmente!
O elo carnal que sempre fora tão forte entre eles acrescentava sua vertigem àquele momento de felicidade sem sombras, e os lábios deles se uniram longa e apaixonadamente, entrecortando de silêncios inebriados o murmúrio de suas confissões.
- Feiticeira! Feiticeira! Como defender-me de você? Mas um dia saberei como atingi-la para sempre...
Joffrey de Peyrac olhou à volta.
— E agora, que fazer, tesouro do meu coração? Esta população nos devora. A força de abrigar piratas e náufragos, já nem temos um canto só nosso. Você não cedeu nosso apartamento à Duquesa de Maudribourg?
— Oh, sim, que aborrecimento! Mas eu não sabia realmente onde instalá-la com um pouco de conforto e você me havia abandonado lá.
— Vamos para o Gouldsborç ~ decidiu ele. - Estive lá nestas últimas noites para descansar um pouco, longe da tentação de ir ao seu encontro no forte e perdoá-la demasiado facilmente.
— Que falso orgulho o dos homens! Se você tivesse ido ao meu encontro, eu teria ficado louca de alegria. Chorei tanto!... Já não era eu mesma. Você me destruiu!
Ele abraçou-a com" força. Angélica pegou o manto.
— Fico feliz' de rever o Gouldsbõro, esse bejo navio fiel, e sua cabina repleta de objetqs. valiosos, onde o Rescator me recebia mascarado e me-perturbava, muito, sem que eu conseguisse adivinhar por 'quê.
— E onde àquela diabinha da Honorina veio roubar os meus diamantes para afirmar os seus direitos sobre você.
— Quantas lembranças já há entre nós!'
Saíram da cabana e desceram devagarinho pela noite rumo à aldeia, tomando cuidado para falarem baixo a fim de não chamarem atenção.
Temiam, como namorados, ser reconhecidos e solicitados a atender a alguma necessidade. De súbito, tomando consciência de suas reações furtivas e de seus receios, puseram-se a rir.
- Não há nada de mais pesado do que dirigir pessoas - observou ele. - Eis-nos aqui, forçados a procurar a escuridão espessa para termos alguns instantes de intimidade.
Os espanhóis seguiam-nosâ7 alguns passos, mas incomodavam tanto quanto sombras.
- Roguemos a Deus que eles sejam os únicos a nos escoltar e que consigamos chegar à praia sem dificuldades - cochichou Angélica.
CAPÍTULO V
Crise inesperada da Duquesa de Maudribourg
Apesar de suas intenções, ao passarem nas proximidades do forte uma silhueta feminina que parecia espreitá-los destacou-se da porta e correu na direção deles.
Era Maria, a Meiga, a jovem acompanhante da Duquesa de Maudribourg.
— Ah, senhora, ei-la afinal! - exclamou, angustiada. - Mandamos procurá-la em toda a parte. Minha ama está morrendo.
— O que você está dizendo? Ainda há pouco não deixei a Duquesa de Maudribourg em perfeita saúde?
— Foi de repente. Perdeu a consciência, depois uma forte febre a dominou e agora ela está delirando e nos assusta com a sua agitação, Oh, venha, senhora, rogo-lhe!
Angélica voltou-se para o marido. O pânico a invadia. Resultado daqueles dias de cansaço e tensões inumanas. Qualquer incidente adquiria de súbito para ela uma dimensão exagerada, e ela tinha a impressão de que o mundo inteiro se unia para separá-lo dela. Agora que finalmente se haviam explicado, depois daquela briga medonha, não queria mais afastar-se dele, nem mesmo por alguns instantes, antes de terem descansado e se tranquilizado de seus tormentos nos braços um do outro. Sob as pregas da capa, agarrou-se à mão dele, quente e viva.
- Mas o que está acontecendo? Ah, não aguento mais! E queria ficar sozinha com você finalmente - disse baixinho, virando-se para o conde.
Ele respondeu, calmo:
- Vamos nos informar sobre o estado de saúde da duquesa.
Duvido que seja grave. Se for preciso, você lhe administrará alguma poção calmante e poderemos retirar-nos em paz.
No quarto do forte reinava a agitação. Petronilha Damourt se lamentava ruidosamente, andando em círculos. Delfina du Ro-soy e Antonieta, outra Moça do Rei, muito diligente, esforçavam-se por reanimar a duquesa. Joana" Michaúd rezava a um canto, enquanto o filho dela, sentado a seu lado, chupava o polegar, filosófico.
A Sra. Carrère, chamada a acudir resmungava, preparando uma tisana.
Entre todas aquelas mulheres, a presença do secretário de óculos parecia incongruente. Ia e vinha com uma expressão de mocho desamparado e embarrava em tudo.
Em compensação, no meio do aposento, o soldado Ademar estava plantado num charco, pois tinham-no mandado buscar ora água quente, ora fria, pára compressas. Por último havia o gatinho magriçela, refugiado sob um console, com o pêlo todo eriçado e cuspindo, furioso.
Foi o gato "que "Angélica notou primeiro.
"Pobre animalzinho", pensou, contrariada, "essas loucuras vão acabar deixando-o completamente doente."
Achegõu-se à cama e inclinou-se sobre a forma prostrada da duquesa. Esta, que Angélica deixara há pouco calma e descansada, realmente ardia em_febre. De olhos fechados, pronunciava palavras sem nexo, de consónâncias estranhas.
Angélica levantou-lhe as pálpebras, viu-lhe as pupilas dilatadas, apalpou-lhe o pulso, que era imperceptível, notou a rigidez dos braços e dos dedos e, para certificar-se mais uma vez de que nenhum ferimento interno podia ser a causa daquele estado inquietante, afastou a coberta e novamente apalpou o corpo todo com cuidado, estudando as reações de Ambrosina de Maudribourg ao toque dos seus dedos. A duquesa, porém, continuava mergulhada na inconsciência, com uma luz imprecisa e fixa filtrando-se por entre suas pálpebras semicerradas. Não estremeceu nem pareceu sentir dor sob o exame. Angélica tentou mover-lhe as pernas, que estavam igualmente rígidas. Qs artelhos estavam crispados e gelados. Angélica friccionou-os suavemente e notou que a musculatura relaxava.
- Preparem tijolos quentes - ordenou às mulheres.
Sempre tentando aquecê-los, Angélica observou que os pés da duquesa eram de uma rara beleza. Ela devia cuidar muito bem dos pés, pois a pele era macia e acetinada.
Preocupada com aquele estado alarmante, Angélica não notara que a jovem, abandonada ali aos seus cuidados, revelava a todos, sob uma levíssima camisola, a seminudez de um corpo admirável.
De repente a voz de Ademar se fez ouvir no silêncio:
— Pode-se dizer que é uma bela mulher - disse, balançando a cabeça "várias vezes, com ar de conhecedor. - Francamente, pode-se dizer que é uma mulher bem-feita, não é verdade, senhor conde?
— Ademar, o que você está fazendo aqui? - indagou Angélica. - Eu imaginava que estivesse de sentinela esta noite.
— Mandaram-me buscar água - tornou Ademar. - Caíram em cima de mim como um bando de galinhas... Como é que eu podia resistir? Ainda que não seja função de um militar que tem a sua dignidade... Em todo caso, é preciso prestar serviço às senhoras... principalmente num país como este... Coitadinhas! Se eu não estivesse aqui...
Com todo o cuidado, Angélica havia coberto de novo a doente, que parecia melhor, embora continuasse inconsciente.
— Acho que você tem razão - disse ela, dirigindo-se ao marido. - É uma espécie de crise nervosa, certamente uma consequência dos horrores enfrentados durante o naufrágio. Vou dar-lhe um calmante.
— A tisana está pronta - anunciou a Sra. Carrère, avançando com a tigela entre as mãos.
— Obrigada, minha cara!
Angélica foi buscar a sacola e rapidamente preparou a mistura necessária.
Súbito a voz da duquesa elevou-se no quarto, clara e com bom timbre. Dizia:
— O resto q é igual a K, constante multiplicada pela raiz quadrada de 2gH, sendo g a acelaração do peso e H a altura da queda da água... Mas tenho certeza de que ele está engando... K também depende do atrito. - O resto perdeu-se num murmúrio indistinto.
— Mas o que é essa algaravia? - exclamou Ademar, assustado. - Fórmulas cabalísticas para nos enfeitiçar?
— Meu Deus, ela está delirando de novo - lamentou-se Delfi-' na, torcendo as mãos.
Um sorriso enigmático passou de repente pelos lábios do Conde de Peyrac.
- Ela acaba de recitar o teorema sobre hidráulica de um sábio italiano, e penso que está corrigindo, com razão, a fórmula dele - disse o, conde. - Não há por que se afligir, senhorita. Você ignora que a sua benfeitora é uma das maiores sábias do mundo, sempre a trocar postulados matemáticos em Paris com doutores da Sorbonne?
Angélica escutava, sem entenderdireito aquelas palavras surpreendentes.
Debruçou-se sobre Ambrosina e passou a mão sob sua cabeça, para tentar fazê-la beber. Mais uma vez o perfume delicado mas enfeitiçante que se desprendia da pesada cabeleira negra da duquesa causou-lheuma estranha perturbação. Uma espécie de aviso.
"O que significa esse perfume?", perguntou-sè. Viu então que os olhos de Ambrosina de~Maudribourg tinham-se aberto e esta
vam cravados nela. Angélica deu-se conta de que a doente recobrava a consciência. Sorriu-lhe:
- Bebe, beba - insistiu -, isto lhe fará bem.
A duquesa soergueu-se com dificuldade. Estava alquebrada pela crise que se abatera sobre ela. Bebeu aos golinhos, como que exausta, e"Angélica teve que encorajá-la várias vezes para que ela tomasse tudo. Depois ela se atirou para trás e relaxou de novo, de olhos fechados. Mas estava melhor.
- A febre está passando! - "constatou Angélica, depois de pousar a mão sobre a testa menos quente. - Não se preocupe mais.
E foi lavar as mãbs e arrumar seus remédios. As acompanhantes da Sra. de Maudribourg rodearam-na ansiosas.
— Oh, senhora, não nos abandone! - suplicaram. - Fique conosco esta noite" para velá-la. Tememos tanto por ela!
— Mas vocês se preocupam sem motivo, estou dizendo.
A ansiedade-que todas aquelas mulheres manifestavam pela benfeitora começava a parecer-lhe excessiva.
- Ela vai dormir, garanto. E vocês também, durmam - recomendou Angélica. - Ademar, junte esses baldes e apresente suas despedidas às senhoras! Venha, ilumine-nos o caminho até o porto.
Mas o que tinha toda aquela gente, afinal, para se agarrar a ela e a Joffrey como lianas, paralisando-os? Parecia um pesadelo!
Aproximou-se do marido. Ele continuava de olhos fitos na duquesa de Maudribourg, prostrada. Emodurado pela suntuosa cabeleira negra que repousava sobre o travesseiro de renda, pesada e opulenta cabeleira, o rosto adormecido parecia apequenar-se como o de uma criança. Angélica disse a meia voz:
- Você vem?
Mas Joffrey de Peyrac não pareceu ouvi-la. Na cabeça de Angélica tudo começava a embaralhar-se, e a enxaqueca instalava-se. Mais do que qualquer outra coisa, ela queria retirar-se, escapar com ele. Era como que uma exigência em que não estava apenas em jogo o desejo de estar nos braços dele. Era, parecia-lhe, como que uma necessidade vital, uma questão de vida ou de morte. Ela não podia perdê-lo outra vez essa noite...
Sentia os nervos tensos, prestes a rebentar.
— Senhora, fique - repetiam as mulheres num coro gemente.
— Ela talvez morra - exclamou Delfina du Rosoy, em tom trágico.
— Claro que não!
Elas se aproximaram mais.
- Fique! Fique! - murmuravam. - Oh, por piedade, cara senhora!
Havia nos olhos delas uma espécie de medo estranho. Angélica pensou num átimo: "Estão loucas!" Com um gesto instintivo, agarrou o braço do Conde, pedindo-lhe socorro.
Ele pareceu voltar a si e olhou-a, viu-lhe o rosto pálido e crispado. Então, à vista de todos, rodeou-lhe a cintura com o braço.
- Senhoras, sejam razoáveis - disse -, a Sra. de Peyrac também precisa descansar. Levo-a comigo, se não se incomodam! Se tiverem algum receio pela sua ama, mandem buscar o Dr. Parry. E bom conselheiro!
E depois destas palavras, cuja ironia elas não podiam apreciar, saudou-as com muita galanteria e saiu, levando Angélica.
CAPÍTULO VI
"Não nos separemos mais, senão eu morro!"
— Essa Duquesa de Maudribourg e sua gente me cansam - comentou Angélica ao se verem do lado de fora, descendo para a praia. - Dir-se-ia que ela faz todas perderem a cabeça. Nunca tive maior surpresa do. que ao vê-la. Por que será que imaginei que ela fosse unia mulher idosa e gorda? Certamente pelo título de duquesa, e de benfeitora...
— E também porque você a sabia viúva do Duque de Maudribourg, falecido há poucos anos em idade avançada. Se calculo corretamente, ele hoje teria mais de oitenta anos... e nem por isso deixaria de ser o marido dessa mulher bem bonita, com uns quarenta anos de diferença de idade entre eles.
— Ah, começo a entender! - fez Angélica. - É isso então! Um casamento entre feudos, como o que inúmeras jovens, quase crianças às vezes, têm que enfrentar para agradar à família.
Arrepiando-se, apoiou o rosto no ombro do conde.
— Também eu, lembro, indo para Toulouse, achava que ia desposar um ancião... um monstro^ "um Gil de Retz...
— O Duque "de Maudribourg era um pouco disso tudo ao mesmo tempo. Debochado, lúbrico, sem escrúpulos. Dizia-se que mandava educar em conventos orfãzinhas bonitas, para, logo na sua puberdade, transformá-las em amantes ou, quando eram de origem nobre, casar com elas. Parece que se cansava depressa delas, e quando morreu a sua terceira, não, quarta esposa, falou-se muito dele, dizendo que ele as envenenara. O jovem rei até o baniu por algum tempo da corte. Nem por isso Maudribourg deixou de comparecer ao casamento do rei, em Saint-Jean-de-Luz.
Mas recusei-me a encontrá-lo... precisamente por causa da sua jovem beleza. Antes ele fora me visitar em Toulouse, pois queria ser informado de segredos de magia para invocar o Diabo.
— Que história horrível, meu Deus! Ele já era casado com a duquesa atual, no casamento do rei? Não, não podia ser, ela ainda era jovem demais, pobre criança!
— Ela não é tão jovem assim - disse Peyrac, com alguma causticidade -, não a creio tão infantil. É pessoa de grande inteligência e cultura extraordinária.
— Mas... é como sè você conhecesse também a ela! - exclamou Angélica.
— Somente de reputação. Ela defendeu uma tese na Sorbonne sobre o cálculo infinitesimal inventado pelo Sr. Descartes. Foi nessas condições que, desejando manter-me a par das evoluções da ciência na Europa, ouvi falar dela. Até cheguei a ler um opúsculo seu, em que ela põe em dúvida não apenas Descartes, mas também as leis de gravitação da lua... Quando a aia das Moças do Rei pronunciou o nome da benfeitora delas, não tive certeza se se tratava de fato da mesma mulher. Também a mim me parecia um tanto improvável, mas a verdade é que Gouldsboro encerra em seus muros um dos primeiros doutores honoris causa do nosso tempo.
— Não consigo acreditar - murmurou Angélica. - Quantos acontecimentos em tão poucos dias!
Chegavam à beira da água. Na maré alta, um pequeno andaime de madeira que avançava mar adentro permitia que se descesse sem dificuldade para uma chalupa já na água. Jacques Vignot veio-lhes ao encontro, levantando alto uma lanterna para guiá-los. A noite estava pesada de nevoeiro, mas não totalmente escura. Uma lua invisível filtrava através da neblina laivos de luz fuliginosos, que cintilavam como pirilampos misteriosos ao sabor das ondas, entre a rede plúmbea de penínsulas e recifes. Havia algo um tanto inquietante nesse jogo de luzes surdas e fugidias. Aquelas faixas de bruma que vagavam eram como presenças monstruosas a espreitar o desconhecido.
Iam passar ao molhe quando, vindo de algum lugar distante, mas perceptível, lancinante, elevou-se um grito, um grito de mulher.
Soou por muito tempo, terrível, interminável, como que nascido de um sofrimento inumano, de uma tortura indizível que não acabava nunca.
Parecia brotar da própria noite, do ponto mais profundo da fuligem negra das nuvens revoltas,acima de Angélica e Joffrey.
Retinia através da escuridão, sem fim, e o vento parecia levá-lo e amplificar ao infinito o eco agudíssimo daquele urro, em que vibrava uma dor sem jiomé, mas também como que os exteriores de um ódio e de uma fúria demoníacos.
Quem o ouviu sentiu o sangue gelarias veias e ficou petrificado.
Ademar deixou cair a lanterna que-Angélica lhe havia imposto. Tremia tanto, que não conseguia persignar-se.
- A Diaba... a Diaba... - balbuciou. - Desta vez não há er
ro! Vocês a ouviram também, não ouviram?
Por mais empedernidos que fossem; os outros marujos estavam perturbados.
— O que será que está acontecendo de ruim acolá? - perguntou um deles,- olhandtcpãra õ fundo da noite. - O que acha, Monseigneur} -Urna mulher em. apuros?
— Não, é a voz de um espírito --disse outro. - Tenho certeza. Ouvi outros muito'pã?ecidos perto do arquipélago dos demónios, no., golfo do Saint-Laurent... Mas este não pareceu vir do mar...
- Não, talvez do povoado - observou Peyrac -, do forte até.
Angélica pensou na Duquesa, de Maudribourg.
Um grito daqueles só podia ter brotado do peito de um ser que estivesse dando o último suspiro. Convencida de repente de que a doente acabava de expirar, Angélica voltou correndo para as casas, recriminando-se por não ter sido perspicaz o bastante e por haver abandonado aquela infeliz na sua última hora.
Chegou sem fôlego e avistou duas silhuetas que se debruçavam no batente iluminado de uma janela aberta.
- O que está acontecendo? - gritou ela.
— Não sei - respondeu a voz de Delfina du Rosoy. - Alguém gritou aí fora. Foi medonho! Ainda estamos todas tremendo de medo.
— Dir-se-ia que o som veio da floresta - ajuntou Maria, a Meiga, que estava perto de Delfina.
Angélica continuava perplexa.
- Não, o som veio daqui. E estranho que não tenham tido a mesma impressão. A Sra. de Maudribourg não foi perturbada pelo grito?
- Não, felizmente!
Maria, a Meiga, deu uma olhada para trás, para o interior do aposento.
— Ela está repousando calmamente. Deus seja louvado!
— Pois bem, fechem a janela agora e repousem também. Talvez algum animal tenha caído numa armadilha na mata. De qualquer maneira, Maria, você não deveria estar em pé ainda. Basta de emoções por hoje! Vá meter-se logo na cama, minha pequena, se quer me agradar.
— Sim, senhora. A senhora é muito boa - respondeu a jovem, cuja voz fraquejou de repente.
— Boa noite, senhora - disse Delfina gentilmente.
As duas se retiraram e puxaram o pesado batente de madeira.
Por um instante, em pé no escuro, Angélica tentou perceber de novo o eco daquele grito horrível. Parecia-lhe que ele ainda vibrava à sua volta.
"Quem estará sofrendo assim na noite?", interrogou-a uma secreta voz interior. "Que súcubo perdido?... Ah, estou perdendo o espírito! 'Eles' vão me deixar louca com suas artimanhas... Joffrey!..."
Percebeu então que estava sozinha de novo e um terror repentino a dominou.
— Joffrey - gritou -, Joffrey, Joffrey! Onde você está?
— Mas estou aqui - respondeu a voz do conde, que subia ao seu encontro. - Vamos, o que foi agora, meu coração? Que pânico é esse? Decididamente você está esgotada!
Ela se atirou contra ele e o abraçou convulsivamente.
- Ah, como tive medo há pouco! Ah, rogo-lhe, não nos separemos mais esta noite, não nos separemos mais, senão eu morro!
CAPITULO VII
Projetos em Gouldsbpro - Mestre Berne pede o socorro de Angélica
E agora era de manhã, ujna manhã branca, carregada de neblina, em que não se via nada. Mas clara e luminosa o suficiente para que os malefícios da noite parecessem haver-se apagado com o nascer do dia.
Angélica e Joffrey, apoiados à amurada do Gouldsboro, aguardavam o bote que deve levá-los para a praia.
Não estavam com pressa de vê-lo chegar. Estavam bem assim, um perto do outro, ainda envoltos na solidão e no mistério criados pelo nevoeiro à sua volta.
Da terra invisível cheglvam-Jhes o"s ruídos ativos do povoado. Não tinham como evitar, dali a pouco, seguir para lá e retomar os encargos que eles próprios se haviam impostos. Mas, nessa manhã, o cansaço de ambos se dissipara. Sentiam-se felizes e cheios de vigor, sensíveis àquela vida intensa cujos ecos lhes chegavam através da tela algodoada e translúcida da bruma. Chamados de pescadores que retornavam à margem, carpinteiros pregando com muito barulho pranchas, vigas e ripas, mulheres conversando alto enquanto se dedicavam às suas ocupações...
Os gritos das gaivotas e o arrulho mais distante das rolas na mata pairavam sobre esse fundo sonoro, e os odores da vida trans-passavam o nevoeiro - odores de fogo, de defumações, tabaco, rum, madeira recém-serrada, aroma típico de um forte naquela região, entre os vapores iodados do mar e o hálito capitoso da floresta de essências resinosas.
- Vou me reconciliar com as senhoras de Gouldsboro - disse Angélica. - Elas não são fáceis de lidar... mas eu também não o sou. Claro que não resolvemos todas as nossas diferenças, mas no final das contas bem que gostamos umas das outras. Elas são inteligentes e consideram que lhes trago não sei que elemento estranho que lhes permite aperfeiçoarem-se. O que sempre apreciei entre as huguenotes é que elas não têm, como inúmeras mulheres católicas, sobretudo entre camponeses e burgueses, esse sentimento sufocado de sua condição fe/ninina, essa docilidade sem raciocínio com relação ao marido, ao cura.
— Hum! - disse Peyrac. - Vê-se de fato que você soube livrar-se da tutela papista.
— Livrei-me de todas as tutelas - disse Angélica, rindo -, ex-ceto a de seu amor.
E dirigiu-lhe o olhar mais fervoroso. Todas aquelas horas que acabavam de passar, aquela noite maravilhosa, conservariam para sempre, para ela, um valor inestimável; todas as palavras que tinham trocado desde a véspera na tensão de uma primeira tentativa de reconciliação, e mais tarde, nos enlevos cegos do seu abraço de amor, e na suavidade de um entressonho, no bem-estar daquelas horas noturnas em que, com o corpo serenado, mas ainda emocionado e encantado pelas alegrias experimentadas, com o espírito liberto, mas como que esquecido das preocupações terrestres, puderam conversar sem pudores, de coração aberto. Todas aquelas palavras ficariam nela como um tesouro que ela não se cansaria de contemplar, lembrando-se de cada uma delas para saborear-lhes a doçura, o gosto. Num dia que não estava distante ela extrairia da recordação o consolo necessário para atravessar uma difícil provação.
Mas ainda não sabia disso nessa manhã tranquila, moldada em luz, em meio ao calor que se tornava mais intenso. Apenas o canto enfeitiçador da torre Perdida, ao longe, causava-lhe uma angus-tiazinha lancinante. Ela queria ignorá-la. Sentia-se nova, diferente mesmo, e encarava sorrindo o homem a quem amava. Tudo nele a emocionava e deixava feliz.
Um gotejar cadenciado de água advertiu-os de que a chalupa se aproximava. Avançaram até o portaló cuja portinhola um marujo havia retirado. O homem, de joelhos, desenrolava a escada de corda.
- E o meu gatinho, que esqueci! - lembrou Angélica. - Espero que alguém lhe tenha dado água... E que a Duquesa de Maudribourg não tenha falecido. Também tenho que visitar Abigail, agora que temos um pouco de calma. O filho dela deve nascer em breve...
Instalaram-se no barco, e os marinheiros estenderam os braços sobre os pesados remos a fim de vencerem as poucas braças que os separavam da margem.
- Também vou pedir à Sra. Carrère que encontre uma acomodação decente para a duquesa, a fim de podermos nos reinstalar em nosso apartamento no forte. Você não vai mais partir, não é? Já não posso senti-lo- o tempo todo distante, seja de corpo, seja de espírito... As horas são muito longas e amargas quando não sei onde você está. Quero muito me dedicar inteiramente a Gouldsboro, mas perto de você... Que navio foi aquele que entrou no porto ontem ao anoitecer?
Peyrac meneou a cabeça.
— Receio justamente, que mais uma vez seja gente que vem para me separar de vocêr obrigando-me a policiar a baía Francesa.
— Ingleses?
— Não, franceses! "O governador da Acádia em pessoa, o Sr. de Ville-d'Avray. Anunçiaram-no ontem à noite, mas encarreguei Colin e D'Urville de recebê-lo, porque eu queria me dedicar apenas a você.
A chalupa acostava. Angélica, avançando pela praia, topou quase que de imediato com algo de minúsculo e vivo que se debatia miseravelmente entre os sargaços
- Mas o que é isto? Um caranguejo! Oh, meu Deus, é o meu gatinho! - exclamou ela. - O que está fazendo aqui? Estava tão doente!
Recolheu-o, e, coberto de espuma e areia, que lhe colava os pêlos aos ossinhos frágeis, o gato parecia de novo a ponto de expirar. Mas, assim como na véspera, seu olhar dourado era súplice.
— É como.se ele tivesse vindo à praia para me esperar, como se soubesse que eu ia chegar por aqui...
— Eu também a esperava junto com esse animalzinho - disse a voz gemente de Ademar, que saía do nevoeiro. - Esse governador da Acádia que chegou ontem à noite disse que somos desertores, eu e os outros soldados que estavam antes aqui, no Forte Santa Maria. Diz que vai nos mandar à corte marcial. E quis espancar com a bengala o gordo que nos trouxe.
— Ah! Défour também está aqui - disse Peyrac. - A coisa promete, pois os irmãos Défour não gostam dos oficiais de Que-bec. E quem está vindo ali?
Três ou quatro silhuetas saíam da neblina. Colin, o seu quartel-mestre, Vanneau d'Urville e Gabriel Berne. Disseram que desejavam apresentar ao Sr. e à Sra. de Peyrac algumas questões urgentes, antes que o governador francês, que hospedavam desde a véspera e que parecia muito inquieto, absorvesse o conde com suas reivindicações e exigências.
Colin já estava a par de muita coisa. A comperência com que tomara em mãos os interesses de Gouldsboro aos poucos lhe garantia a adesão dos huguenotes.
Anunciou que tinha dois projetos sobre os quais a população tanto huguenote quanto católica já se pronunciara. Primeiro, a construção de um fortim com quatro torrinhas angulares junto ao rio dos Cayugas, que ficava a meio caminho entre o acampamento Champlain e aporto de Gouldsboro. Era por aquele rio que os índios hostis podiam se insinuar furtivamente para assediar os brancos da região.
Naquele local o Conde de Peyrac fora atacado no ano anterior, justamente por iroqueses cayugas, cujo nome passara a designar o lugar. Um pouco mais tarde, no outono, uma mulher fora raptada por outra tribo saqueadora e um homem, gravemente ferido. índios da pequena aldeia vizinha foram massacrados e os sobreviventes haviam abandonado a região.
Construir ali um forte de vigia e defesa que protegesse os habitantes enquanto estes se entregavam a suas atividades entre o acampamento Champlain e o forte fazia-se imperativo, principalmente naquela estação em que os grupos de guerra iroqueses iam começar a rondar.
O outro projeto concernia à construção de uma capela para o culto católico, que seria erguida do outro lado do promontório, no local onde os novos colonos, vindos no Coeur-de-Marie, pareciam dispostos a instalar-se.
- Bom! - disse o conde. - Preparemo-nos para lidar com essas questões espinhosas. Mas para começar vamos nos recompor no albergue da Sra. Carrère e provar da sua sopa de mariscos ou do seu vinho quente com canela.
Levou Angélica para o albergue, de onde se alçava um cheiro bom de fogo de lenha, e os outros os acompanharam, bem como os soldados espanhóis, e Ademar, que tinha sempre o ar de estar seguindo um cortejo fúnebre.
Angélica enfiara o gato sob o manto e se preocupava por senti-lo tremer.
Gabriel Berne alcançou-a e puxou-a um pouco de parte.
-- Apenas uma palavra,' permita-me, senhora, mas pressinto que o Sr. de Peyrac seja obrigado a parrfr por alguns dias numa expedição pelo rio Saint-Jean, e suponho que desejará acompanhá-lo... Então queria pedir-lhe... O dia de minha cara mulher está se aproximando... Estou extremamente preocupado. Apenas sua presença aqui pode nos tranquilizar quanto a um final feliz...
- Não tema nada, meu caro Berne - respondeu ela -, vim para isso, e não sairei de Gouldsboro antes de Abigail ter o seu bebé e estar perfeitamente recuperada do.parto.
Mas acrescentou, tom o còração'*oprimido:
— Acredita mesmo .que meu marido seja obrigado a deixar Gouldsboro? O. que teria eje a fazer no rio Saint-Jean?
— A situação é exrf emamente complicada lá. Aquele inglês de Boston, Phipps, que-se apresentou como o Almirante Sherrylg-ham, encontrou um meio de bloquear no rio personalidades importantes de _Quebec.'0"governador da Acádià escapou por pouco com o seu capelão e uns jovens estouvados de sua comitiva, e veio pedir socorro aqui, pois, mais uma vez, trata-se de uma questão que pode desencadear uma guerra entre as duas coroas, e apenas ele, seu marido, pode impedir isso.
Designava com um gesto do queixo o Conde de Peyrac, que atravessava a soleira do albergue.
Os soldados puseram-se de guarda à porta. Dom Juan Alvarez acompanhou o conde. Do momento em que o conde punha o pé em terra, o comandante espanhol não o largava mais, exercendo uma vigilância discreta mas cuidadosa.
CAPÍTULO VIII
As mulheres de Gouldsboro - Ademar, ingénuo soldado, conta um sonho
Já havia muitas mulheres na grande sala.
Era um costume que aos poucos se instaurara entre as senhoras de Gouldsboro, desde que a construção fora erguida: nas primeiras horas da manhã, depois de os filhos levantarem e os maridos saírem para o trabalho, reuniam-se ali. Trocavam impressões e faziam uma refeição, tranquilamente sentadas diante do prato, livres da preocupação de servir a mesa da família. Depois disso retornava cada uma às suas ocupações.
Angélica notou de imediato a Sra. Manigault, que se levantou e veio fazer-lhes uma pequena reverência.
Crianças e adolescentes escamavam peixes numa gamela de madeira. Cumprimentaram alegremente. A Sra. Manigault sorria, na medida em que o permitia o seu rosto habitualmente carrancudo.
Peyrac retribuiu o sorriso.
— Vejo que se abriram os caixotes das porcelanas - disse ele. - Essas faianças eram uma carga bem delicada para trazer da Europa, mas Erikson não poupou palha e parece que não há grandes perdas a lamentar.
— Não, exceto pela alça de uma bacia de Limoges e algumas peças de um forno holandês. Mas o Sr. Mercelot nos prometeu que vai colar tudo isso.
Algumas senhoras trouxeram para a mesa algumas peças dessa porcelana, que, naquela manhã, era o tema das conversas - tema mais agradável e muito mais apaixonante do que pirataria, combate e enforcamento, traição e naufrágios, feridos e mortos, que tinham tido à farta nos últimos dias.
A presença do Conde de Peyrac e de Angélica, sentados lado a lado e aparentemente reconciliados, contribuía para aumentar a tranquilidade geral.
Cada uma das famílias dè Gouldsborcçecebera um presente para pendurar ou arrumar no'guarda-lo"uça - uma sopeira, alguns pratos, ou um púcaro, urnacesta, uma bandeja, sempre um objeto de valor e conforto que daria brilho novo às rústicas moradas.
— Estamos como príncipes - concluiu a Sra. Manigault. - Deveríamos ter começado com isso: abrindo as caixas ao invés de discutir.
— E você, minha amiga, teve tempo de examinar seus presentes? - indagou Joffréy de Peyrac discretamente, inclinado para Angélica.
— Oh, não! Não tive ânimo.
Ela continuava preocupada com as palavras de Berne e comia distraidamente. Peyrac-notou isso.
— O que a preocupa agora?
— Estou pensando-nesse inoportuno governador francês. Será que você -será"obrigado a se enfiar pela baía Francesa?
— Veremos. Por enquanto, mesmo que todos esses senhores do Canadá estivessem correndo o risco de serem escalpelados ou postos a ferros, eu não a"deixaria nem mesmo por dois dias. Não sou um fantoche à disposição de todas as nações que se metem em apuros.
A promessa tranquilizou Angélica. Dois dias. Era interminável!... Deu de beber e comer ao gatinho, sob os olhares interessados de algumas crianças, depois conversou com a Sra. Carrère sobre a possibilidade de mudar, a duquesa de alojamento. Havia uma casa na s_aída da aldeia cujo morador partira para o interior, a comerciar peles. A duquesa e sua comitiva talvez ficassem um pouco apertadas ali, mas guerra é guerra, quando se vai para o Canadá há que se estar preparado para tudo... Angélica indagou também se a roupa de Ambrosina de Maudribourg pudera ser reparada.
- Ainda não. Foi preciso que eu encontrasse linha de todas as cores do arco-íris para remendar aqueles panos! Sabe, havia alguma coisa de estranho naquela roupa...
— Como assim?
— As manchas, os rasgões...
— Como queria que a roupa estivesse depois de um naufrágio?
— Não é isso! Enfim, não posso dizer nada...
Angélica deixou o albergue depois de fazer o marido prometer que lhe iria ao encontro no forte, o mais tardar ao final da manhã, para que pudessem descansar um pouco juntos, e também que não partiria subitamente em expedições guerreiras sem avisá-la. Ele riu, reiterou as promessas e beijou-lhe as pontas dos dedos.
Apesar disso, porém, ela não se sentia tranquila. O medo de perdê-lo outra vez abrira-se diante dela como um abismo mortal, e Angélica não se sentia de todo capaz de desviar-se dessa visão.
No entanto, quando viu o sol atravessar definitivamente as brumas e Gouldsboro cintilar com suas casas de madeira clara, suas falésias envernizadas sob a abundância de árvores, suas praias, seus promontórios-de rochas desabadas, azuis aqui, malva ou rosadas ali, a alegria a invadiu e ela disse consigo que era a mais feliz das mulheres. Acontecesse o que acontecesse, os obstáculos seriam vencidos. Não se pode construir nada sem luta.
Ao se aproximar do forte, desejou que a duquesa estivesse restabelecida o suficiente para poder se mudar, para que ela pudesse ficar sozinha em casa com a sua felicidade, o seu coração novo. Agora sentia vontade de examinar o conteúdo dos caixotes trazidos pelo Gouldsboro. Só remexera neles às pressas, procurando um vestido para assistir, talvez, ao enforcamento de Colin. Que recordação horrível, e como a serenidade deste novo dia ganhava mais valor por isso! Instalaria o gato. Ele se curaria logo, já que satisfizera a necessidade primeira: encontrar um abrigo, uma presença, um pouco de comida.
Ia começar a subir a escada interna do. forte, quando ouviu vozes que pareciam discutir asperamente, depois o Capitão Job Si-mon saiu do apartamento, arqueando um pouco a alta silhueta para não ferir de novo a testa já machucada. Com a cabeça enfiada entre os ombros e como que derreado por um fardo esmagador, ele parecia qua sou destratado. Parece-lhe justo isso?
Apesar de seu rosto extremamente feio, que, ainda por cima, nessa manhã, se apresentava eriçado de pêlos grisalhos, a huma
nidade do seu olhar cinzento, encravado sob sobrancelhas enormes, dava-lhe a aparência de um cão triste que suplica um pouco de afeição.
— Salvou seu unicórnio - disáe ela para reconfortá-lo. - Não é um bom sinal, um presságio, para o futuro?
— Sim, talvez! Mas será preciso dourá-lo de novo. Onde é que posso encontrar folha de ouro .por aqui? Essas coisas são leves como um sopro e custam caro. Não será amanhã que vou recolocá-lo na proa de um navio. Estou acabado. E ainda me censuram.
— Cá entre nós, capitão, você não é umpouco culpado? Se ia a Quebec, como foi que fez para vir dar nestas paragens?
Ele pareceu atingido pela reflexão dela e examinou-a pensativo, antes de soltar um suspiro enorme.
— Que seja! Mas o naufrágio não foi culpa minha.
— De quem foi então?
— Daqueles patifes provocadores de naufrágios, daqueles que acenaram com lanternas do alto das falésias para nos atrair para estes recifes imundos.
De repente pareceu pensar em outra coisa.
— O que foi que a senhora disse sobre meu unicórnio? Que eu poderia banhá-lo a ouro de novo? É uma ideia!... Meu pai era dourador! Conheço um pouco do ofício. Mas eu teria que encontrar ouro. Onde quer que se encontre ouro neste país maldito, cheio de demónios e de provocadores de naufrágios?
— Quem sabe? Talvez encontremos... Você não ignora que o ouro é coisa do Demónio!
— Não se deve brincar íom isso, senhora - exclamou Ademar, que a seguira.
O' capitão persignou-se energicamente, mas nem por isso deixou de dizer:
- Tanto pior! Tanto pior para o Demónio. Se encontrar folha de ouro para meu unicórnio,-conte comigo! Obrigado antecipadamente, senhora. A senhora pelo menos é boa. ,
E afastou-se, aparentemente revigorado.
O gatinho escapou dos braços de Angélica e foi farejar a porta.
— Cuidado para que ele não fuja de novo!... Pegue-o, Ademar! Por que você está sempre nos meus calcanhares, meu pobre rapaz?
— A senhora acha que tenho vontade de ser enforcado, como disse aquele governador da Acádia?... E depois, tenho que lhe contar meu sonho. Vi um anjo, mas era vermelho, inteiramente vermelho, da cabeça aos pés, e isso não é normal para um anjo... Angélica entrava no quarto. O gatinho penetrou ali com ares de proprietário. Com a cauda ereta, foi imediatamente na dire-ção do pedaço de lã que ela lhe dera na véspera, instalou-se e se pôs a lamber-se com cuidado.
CAPÍTULO IX
Aparição de um demônio assustador
Ambrosina de Maudribourg estava sentada diante da janela, num vestido de vehldo preto com gola de renda. O vestido escuro acentuava-lhe a palidez. Parecia uma criança órfã. De mãos juntas sobre os joelhos, ira como se estivesse imersa em meditação profunda. Suas acompanhantes respeitavam-lhe o silêncio.
Quando Angélica entrou, a duquesa levantou a cabeça com vivacidade. Seus movimentos tinham muita distinção, mas dissimulavam mal uma impulsividade inata que não era despida de encanto e a tornava ainda mais jovem.
- Ah, aí está você! - exclamou. - Eu a esperava. Deus! Como a esperava! Finalmente você está aqui.
Seus olhos brilharam com uma alegria contida.
— Você levantou - replicou Angélica -, e espero que esteja restabelecida de seus mal-estares. Passou uma boa noite? Mas acho-a mais pálida ainda.
— Não é nada. E eu estava pensando que já a importunei bastante, a você e ao seu esposo, ocupando seus apartamentos privados. Agora posso me locomover, embora, de fato, ainda me sinta bastante fraca. O Capitão Simon acaba de me dizer que nosso navio se perdeu completamente. Nenhuma esperança de reavê-lo. Mas, assinando letras de câmbio, penso que encontrarei uma embarcação que nos leve, a mim e a minhas moças, para Quebec finalmente.
— Não fale de partir com tanta pressa - disse Angélica, que pensou nos projetos elaborados para as Moças do Rei. - Nem você nem elas estão realmente curadas.
— Então, que pelo menos eu deixe de incomodá-la aqui. Qualquer choupana me servirá. Ao partir para a Nova França incluí a falta de conforto entre os sacrifícios a oferecer a Nosso Senhor. Não receio em absoluto a austeridade.
— Você será instalada perto de suas moças - disse Angélica -, e, apesar de seus desejos de mortificação, verei que tenha todo o necessário.
Sentiu-se aliviada £om o fato de a Duquesa de Maudribourg haver ela mesma tido o tato de liberar os apartamentos do forte. Aquela jovem de personalidade um pouco estranha não deixara de assimilar a excelente educação que toda moça da nobreza recebia nos conventos. Além disso, parecia naturalmente inclinada a se preocupar com os sentimentos e o bem-estar do próximo.
Ela sorrira ligeiramente às palavras de Angélica. Com um gesto designou o vestido que estava usando.
— Mais uma desculpa a obter de sua generosidade. Veja como me mostrei indiscreta. Como não sabia como me vestir, tomei-lhe este vestido emprestado.
— Poderia ter escolhido um mais vistoso - disse Angélica espontaneamente. - Esse não cai bem com a sua tez. Você está parecendo uma conventual e uma órfã.
— Mas eu sou uma conventual - retorquiu a duquesa, que riu de repente, como que divertida -, já não lhe disse isso? E também sou órfã - acrescentou, mais baixo, mas com simplicidade.
Angélica lembrou-se das informações que lhe dera Joffrey de Peyrac sobre o casamento daquela jovem com um ancião, e sentiu um vago remorso mesclado de piedade. Sob a aparência extremamente segura da Duquesa de Maudribourg, que, segundo a reputação que tinha, era ao mesmo tempo uma sábia e uma séria mulher de negócios, ela era talvez a única a discernir-lhe uma falha, algo de infantil e de frágil. Teve vontade de protegê-la e de socorrê-la, de distraí-la também de uma vida que lhe parecia ter sido bem austera.
— Vou encontrar-lhe um traje mais alegre.
— Não, peço-lhe - fez a outra, balançando a cabeça -, deixe-me, por favor, deixe-me usar luto por aqueles coitados que morreram há duas noites, sem sacramento. Que infelicidade terrível! Penso nisso o tempo todo.
E cobriu o rosto com as mãos.
Angélica não insistiu. Aquela gente vinda da Europa ainda não vivia no mesmo ritmo que todos eles. Refletiu consigo que, mesmo sem ter o coração endurecido, a vida ali impelia as pessoas com tal intensidade, o risco de morte era tão frequente, que se esquecia depressa.
As jovens e Petronilha Damourf estavam prestes a sair do quarto, apenas à espera da ordem da, ama. Tinham arrumado e limpado tudo perfeitamente, pareciam .calmasse refeitas da emoção da véspera. O secretário de óculos terminava de escrever alguma coisa, sentado diante da mesa que era habitualmente a mesa de trabalho de Joffrey. Tomara emprestada a pena de albatroz imaculada que servia ao senhor do forte, e isso desagradou instintivamente a Angélica, embora, pensando bem, o pobre secretário da duquesa, despojado de tudo, quase não tivesse tido outra escolha. Armando Dacaux, o secretária da Duquesa de Maudri-bourg, não tinba idade. Sua ligeira corpulência é sua solenidade um pouco pedante deviam atrair-lhe a consideração das pessoas simples. Por uma razão indefinível, ele não era simpático a Angélica. Apesar das maneiras afáveis e bonachonâs, dava-lhe a impressão de não sèr um homem à vontade consigo mesmo e com sua situação. No fundo talvez fosse apenas uma impressão. E de todo modo, o cargo de secretário de grandes personalidades, cargo que requer ao mesmo tempo qualidades de servilidade e de desenvoltura, não forjava caracteres particularmente expansivos.
- O sr. Armando está-fazendo o -balanço das nossas perdas -explicou a Sra. de Maudribourg.
Embora tivesse anunciado que ia mudar, a duquesa continuava sentada, com as mãos juntas sobre os joelhos, e Angélica notou que um rosário de buxo entrecruzava-se aos dedos dela.
- Algum religioso de alta posição não me mandou procurar?-inquiriu a duquesa de súbito.
- Aqui? - exclamou Angélica. - Mas, minha cara, estamos longe de todas as cidades, já não lhe disse isso? Claro que há alguns jesuítas itinerantes pela Acádia, os capelães de certas concessões ou postos militares...
Interrompeu-se, tomada de uma ideia repentina. Ambrosina de Maudribourg disse com vivacidade:
- Meu confessor escreveu e avisou sobre minha chegada a todas as autoridades religiosas da Nova França. Justamente um desses
senhores da Companhia de Jesus já deveria ter sido prevenido de que naufraguei na costa do Maine e se apresentado para nos trazer o socorro da nossa santa religião.
- Eles não são muito numerosos e as distâncias são grandes - comentou Angélica vagamente.
A duquesa parecia apurar os ouvidos.
— Não se ouvem os sinos... - murmurou. - Como saber a hora?... Gostaria de assistir à santa missa, mas disseram-me que nem há igreja aqui.
— Em breve teremos uma capela.
Angélica estava grata a Colin por lhe permitir anunciar isso, assim na última hora.
— Como se pode viver assim sem nunca assistir ao sacrifício divino? - indagou a jovem benfeitora, encarando-a com uma espécie de cândido espanto. - Dizem-me que vocês nem sequer têm um capelão. Assim, toda essa gente vive e morre como animais, sem o socorro dos sacramentos.
— Há um pastor...
— Um reformado! - exclamou a duquesa, horrorizada. - Um herege! É mais grave ainda! Não está escrito na Bíblia: "Fuja do herege depois de lhe haver feito uma primeira e uma segunda reprimenda... Saiba que quem ficar com ele é igualmente pervertido".
— Que seja - disse Angélica, levemente irritada -, mas não se esqueça de que a nossa perversão, da gente de Gouldsboro, conserva-nos caridosos para com o próximo, o que no final das contas é o primeiro mandamento do Novo Testamento. Diga o que disser o seu Capitão Job Simon, não somos provocadores de naufrágios e fizemos por vocês tudo o que podíamos.
Enquanto trocava essas palavras com Ambrosina de Maudribourg, Angélica ia e vinha pelo aposento, recolocando alguns móveis no lugar. Que ideia estranha fora aquela que lhe passara pela cabeça há pouco, quando a duquesa falara de um eclesiástico de alta posição?
Passara-lhe pelo espírito como um relâmpago. Uma coisa importante... Já não conseguia lembrar.
Abriu o estojo das pistolas e examinou os objetos. Recordar a atenção de Joffrey para com ela aquecia-lhe o coração e distraía-a da preocupação que lhe causavam as palavras da duquesa. Tinha consciência de que a outra a observava com atenta curiosidade.
- Você usa armas - comentou esta. - Dizem até que é uma atiradora de elite.
A Sra. de Peyrac voltou-se bruscamente para ela.
- Decididamente você sabe coisas demais a meu respeito - exclamou. - Em certos momento? me parece que não foi o aca so que a conduziu até aqui...
A Sra. de Maudribourg soltou um grito «orno se tivesse sido atingida em pleno coração, e cobriu o rosto com as mãos.
- O que está dizendo? Não foi o acaso? Então, se não foi o acaso, foi o quê? - disse com,voz entrecortada. - Não posso crer que tenha sido a Providência, conforme eu tinha esperanças ainda ontem. Mas dei-me conta do horror do destino que nos oprime. Todos esses infelizes mortos, afogados, golpeados tão longe de seu país! Par^ce-me que a maldição deles pesará sobre mim para sempre... Ah! se não foi o acaso que nos trouxe para esta costa, quem foi? Quiçá (c)-próprio Satã, receio,,.. Satã, oh, meu Deus! Como encontrar forças suficientes para enfrentá-lo...
Pareceu fazer um esforço para se recompor.
- Perdoe-me --- disse suavemente -, sim, senhora?... Sinto que a feri há pouco com miphaj perguntas e minhas reflexões sobre sua vida em comum com os hereges. Sou demasiado impulsiva, e é frequente rrie censurarem por exprimir francamente demais minhas opiniões. Sou assim. Raciocino logicamente e sei que não deixo lugar suficiente ao instinto do coração. Ora, é você que tem razão, bem o sei. O que importa que haja ou não uma capela aqui?... O que é o rito sem a bondade? "Quando eu falar todas as línguas dos homens e dos anjos, se eu não tiver caridade, não serei nada... E quando eu tiver o dom da profecia, a ciência de todos os mistérios e todo o conhecimento, quando eu tiver mesmo toda a fé, a ponto de remover montanhas, se eu não tiver caridade, não serei nada..."-FõrSão Paulo que disse isso, São Paulo, o mestre de todos nós... Cara amiga, perdoe-me.
Um halo de sofrimento anuviava-lhe o olhar magnífico, onde brilhava como que uma luz tocante. Angélica ouvia-a indagando-se sobre a personalidade ambígua daqueja mulher, dotada demais mas desarmada demais também. Uma rígida educação religiosa, mesclada a estudos científicos abstratos, fizera-a viver, parecia, fora da realidade, numa exaltada atmosfera mística. Ela certamente estaria mais em seu lugar em Quebec, recebida pelo bispo, pelos jesuítas e pelas freiras, do que lançada às praias independentes de Gouldsboro. A rude América não seria indulgente com aquela fragilidade.
— Não lhe quero mal - disse. - E a perdoo de bom grado. Tem o direito de se informar sobre o lugar onde está e sobre a maneira como vivem aqueles que a acolheram. Também eu, é claro, sou impulsiva e digo de chofre o que penso. Não há motivo para'se emocionar assim. Vai adoecer de novo.
— Ah, como estou cansada! - murmurou a duquesa, passando a mão pela testa. - Aqui já não me sinto eu mesma. Esse calor, esse vento incessante, esse-cheiro de sal e de enxofre que vem do mar, e esses gritos lancinantes das aves que não param de cortar o céu em bandos, como almas penadas... Gostaria de confessar-lhe uma coisa que me aconteceu esta manhã, mas você vai zombar de mim.
— Não, não farei isso. Confesse...
— Satã apareceu-me - disse a duquesa, muito séria, enquanto as outras se persignavam, assustadas. - Naturalmente não foi a primeira vez, mas hoje ele se apresentou sob um aspecto pouco comum: estava inteiramente vermelho...
— Como o meu anjo! - exclamou Ademar, que se apaixonava por esse tipo de confidência e que quase parecia provocá-las.
— Vermelho e medonho - prosseguiu a duquesa - e zombeteiro, todo eriçado, como um animal peludo e malcheiroso. Mal tive tempo de esboçar um sinal-da-cruz e as palavras da prece sacramental... Ele fugiu pela chaminé...
— Pela chaminé?
— O meu anjo também - bradou Ademar, fascinado.
— Não ignoro que Satã pode tomar todas as formas e também que ele gosta de vermelho e de preto - continuou a duquesa. - Mas desta vez fiquei particularmente assustada. Pergunto-me o que pode anunciar esse aspecto novo que o Demónio resolveu tomar para me abalar. Algumas infelicidades, algumas torturas, algumas tentações novas a me infligir... Você compreenderá agora por que eu desejava receber o socorro de um padre qualificado, caso houvesse um por aqui - concluiu, com uma voz que, apesar do controle da duquesa, tremia.
— O capelão do Sans-Peur partiu, mas talvez o Padre Baure ainda esteja aqui. Um recoleto que é capelão do Sr. de Saint-Castine, do Forte Pentagouet.
- Um recoleto - protestou a duquesa -, não, é inferior demais...
Angélica examinava a lareira pela qual a Sra. de Maudribourg pretendia ter visto o Príncipe das Trevas sumir. Havia cinzas ali, pois, apesar da quente noite de julho, tinham acendido o fogo para a doente, e a própria Angélica, na véspera, jogara ali um feixe de lenha miúda e fizera fogo para dáf à náufraga uma impressão de acolhida reconfortante".
Inclinando-se, ela distinguiu a marca de um pé descalço. E o cheiro, de fato, ainda pairava,.quase tangível, mas para Angélica era um cheiro familiar. "Um selvagem", pensou, "que entrou aqui com a sua petulância peculiar!... Talvez me procurasse. Quem pode ter sido?"
O incidente lembrava-lhe a aparição.de Tahutaguete, enviado pelos iroqueses, quando ele penetrara no forte de Katarunk, por entre seus inimigos abenakis, a fim de falar com Peyrac. Apesar dessa evocação dos "iroqueses, cujos grupos de guerra começavam a ameaçar a região, Angélica se sentiu mais tranquila e até contente.
— Acho que você.é que tem razão - disse, rindo, a Ademar. - Era antes um. anjo do^que um'demónio.
— Vejo que não levou minha visão a sério - queixou-se a Duquesa de Maudribourg.
— Claro que sim, duquesa, estou convencida de que você viu alguma coisa... ou alguém, mas não creio que fosse um demónio. Veja Ademar! É um espírito simples, mas por isso mesmo seu instinto para as coisas supraterrestres é bastante correto!
Nisso se ouviram algumas batidas fortes na porta. Eram os filhos da Sra. Carrère, que vinham mandados pela mãe para ajudar a Sra. de Maudribourg. e conduzi-la à sua nova habitação.
Com a pele queimada pelo ar do mar e pela vida livre de caça, pesca e trabalhos rudes a que estavam submetidos, aqueles meninos e adolescentes tinham boa cara. Ostentavam os modos decididos de quem tomou os freios da própria existência, longe de uma sociedade complicada e sufocada por séculos de maneiris-mos e regras de polidez tão minuciosas quanto supérfluas.
— Onde estão as bagagens? - indagaram.
— Quase não há bagagens - disse a duquesa. - Sr. Armando, terminou com os seus garranchos?
O secretário salpicou com areia as suas folhas de papel, a seguir enrolou-as, dando um profundo suspiro, e levantou-se.
O grupo desceu a escada de madeira do forte.
Apesar dos protestos da duquesa, qur garantia sentir-se em perfeita saúde, Angélica tomou-lhe o braço a fim de ampará-la. Fez bem, pois, ao chegarem embaixo, Ambrosina de Maudribourg desmaiou de novo.
Teve motivos para isso.
Barrando a porta de entrada, erguia-se diante delas, em toda a sua soberba, Piksarett, o.chefe dos patsuiketts, Piksarett, o Grande Batizado, o maior guerreiro da Acádia.
Fora bem ele, não havia dúvida, quem se apresentara de manhã, sem cerimónias, aos olhos ainda novos e cândidos das recém-chegadas. 'Não era de surpreender que elas o tivessem tomado por um demónio.
O aspecto dele era particularmente assustador. Vestido com uma simples tanga, estava pintado dos pés à cabeça de vermelho escuro, escarlate e violeta,-com listras que pareciam desenrolar-se em turbilhões e volutas em torno de cada um dos seus peitorais, do umbigo, dos músculos salientes das coxas, dos joelhos e das panturrilhas, bem como dos braços e antebraços. Nariz, testa, queixo e maçãs do rosto exibiam a mesma ornamentação, o que lhe conferia uma máscara de esfolado vivo, na qual brilhavam vivamente o seu sorriso de doninha carniceira e seus olhinhos penetrantes e zombeteiros.
Angélica apressou-se a reconhecê-lo.
— Piksarett - exclamou -, que prazer em revê-lo! Venha, entre, acomode-se. Sente-se nesta sala. Mando trazer-lhe refrescos. Jerónimo e Miguel vieram com você?
— Estão aqui - anunciou Piksarett, afastando a lança para dar passagem aos dois inseparáveis.
Esse novo reforço de plumas e pinturas bárbaras contribuiu para perturbar mais as Moças do Rei e sua benfeitora. Mas a Sra. de Maudribourg se recompôs, não sem mérito. Tinha muito autocontrole. Sentia-se que o próprio Satã não poderia fazê-la perder a dignidade diante das mulheres simples por quem ela era responsável.
Mesmo quando Piksarett se aproximou delas e pousou uma mão peremptória e engordurada no ombro de Angélica, a duquesa conseguiu controlar-se.
- Você esperou a minha vinda, não fugiu, muito bem - constatou Piksarett, dirigindo-se a Angélica, sua cativa. - Não esqueceu que sou seu amo, pois pousei a mão em você no combate.
- Eu não ousaria esquecer isso. E para onde você queria que eu tivesse fugido? Sente-se! Vamos conversar.
Introduziu-os na sala central dó forte, onde havia mesas e bancos. Depois voltou até as francesas, que arregalavam muito os olhos mas aos poucos se serenavam.
— Apresento-lhes umgrande chefe indígena, muito famoso - disse alegremente. - Vejam que não se trata de Satã. Pelo contrário, ele é católico, fervorõ.so mesmo. Um grande defensor da santa cruz e dos jesuítas. Os que o acompanham são dois de seus guerreiros, também batizados.
— Selvagens! - cochichou Ambrosina. - São os primeiros que vemos, que emoção!
Elas continuavam a examinar de longe, com uma mistura de medo e repugnância, os três peles vermelhas que se acomodavam ruidosamente, olhando à volta com curiosidade.
— Mas... são medonhos, aterrorizantes - continuou a duquesa. - E como' cheiram mal! .
— Isso não é nada, a gente se acostuma. É gordura de urso ou de lobo-marinho com qxte eles untam o corpo para se protegerem do frio no inverno e dos mosquitos no verão. A gente se acostuma. Creio que foi a ele que você viu esta manhã, ainda meio adormecida, e o tomou por uma visão.
— Sim... creio que sim... Mas ele ousaria penetrar assim nos seus apartamentos sem se fazer anunciar?
- Tudo é possível com eles. Os selvagens não têm pejo, e são tão cheios de si, que não entendem nada das maneiras dos brancos. Ainda assim, tenho que deixá-las agora para recebê-los, ou eles se ofenderiam. Terrivelmente.
- Vá, minha cara. Compreendo que seja necessário lidar com esses indígenas, para cuja salvação fazemos tantas novenas nos nossos conventos. Nem por isso eles são menos aterrorizantes. Como você pode divertir-se com eles e suportar que a toquem?
As reticências da duquesa divertiam Angélica.
- Eles são grandes zombadores - disse. - É preciso honrá-los e rir com eles. Não pedem mais.do que isso.
CAPÍTULO X
Terrível predição de Piksarett, o Grande Guerreiro - Angélica apreensiva com o futuro
Piksarett aceitou o tabaco da Virgínia, recusou a cerveja e, com indignação maior ainda, a aguardente.
— O demónio da embriaguez é o pior de todos. Tira-nos a vida. E causa de crimes, faz-nos perder a cabeça.
— Você fala como Mopuntuk, o chefe dos metallaks, do Alto Kennebec. Ele me ensinou sobre a água das fontes.
— A água das fontes nos transmite a força de nossos ancestrais sepultados na terra que ela atravessa.
Angélica mandou buscar a água mais fresca que se pudesse encontrar.
Ora, de repente Piksarett pareceu pensativo.
O aldeamento de Gouldsboro intimidaria o grande abenaki, aliado dos franceses e de seus guias espirituais, os jesuítas? Apesar de sua independência pessoal, será que se sentia culpado por se extraviar num aldeamento quase inglês para receber o resgate de uma cativa que ele nem poderia mandar batizar na religião católica, pois ela já era batizada?
Angélica achou que lhe agradava ao garantir-lhe que ele encontraria ali ferro da melhor qualidade para o seu machado e os de seus guerreiros, e que se desejasse pérolas, para ele, grande chefe, o Sr. de Peyrac tinha reservadas pérolas azuis e verdes que mandava vir da Pérsia. As conchas que ele apresentaria para os tratados tampouco seriam, para um sagamore tão importante, conchas vulgares recolhidas nas praias, mas caurim, do oceano Indico. Embora muito rara na América, essa moeda de troca fora trazida há séculos pelas caravelas das Companhias das índias. Compunham as mais belas jóias, e mesmo para além dos mares doces falava-se de certos adornos de chefes sioux, que, sem nunca terem tido con-tato algum com o homem branco, orgulhavam-se de ostentar fieiras múltiplas desses caurins vindos'de mares de cuja existência eles sequer desconfiavam. Jerónimo e Miguel apaixonaram-se pelo assunto. Seus olhos brilhavámde cobiça, mas Piksarett de súbito foi categórico dizendo que não, cabia a uma mulher cativa discutir o seu próprio resgate, e que ele.trataria desse assunto pessoalmente com Teconderoga, o Homem do Trovão.
- Quer que eu o leve até ele? - propôs Angélica, aceitando-lhe o humor.
- Não, saberei encontrá-lo - afirmou Piksarett, peremptório.
O que havia comeje, de repente? Afirmar que Piksarett, o alegre, o folgazão, subitamente se mostrava preocupado seria dizer pouco. A gravidade'e a expressão de intensa reflexão que lhe faziam brilhar o olhar- de amóF-a»pre-ta tornavam pouco tranquilizadora aquela máscara multicolorida, dè repente fixa e endurecida sob a rede de entrelaçados vermelhos,'Ele começou a olhar à volta, mas agora sem curiosidade, com ardesconfiado; parecia farejar alguma coisa. Depois tocou com a ponta dos dedos a testa de Angélica.
- Há um perigo sobre você - murmurou -, eu sei, estou sentindo.
A declaração despertou em Angélica um sentimento de alarma.
Ela não gostava de ver os selvagens, ou Ademar, aquele espírito simples, manifestar seus pressentimentos secretos. Era muito grande o risco de eles acertarem.
— Que perigo, Piksarett, diga-me? - indagou ela.
— Não sei.
Ele balançou as tranças adornadas com patas de raposa.
— Você é batizada? - perguntou, dardejando sobre ela um olhar de confessor jesuíta, totalmente incongruente com o seu grotesco colorido.
— Sim, sou. Já lhe disse -que sou.
— Então reze à Santa Virgem e aos santos. É tudo o que pode fazer. Reze! Reze! Reze! - instou ele, solene.
Levou as mãos ao birote oleado, procurou alguma coisa e retirou um dos inúmeros ornamentos, um terço de capuchinho com contas grandes, terminado por uma cruz de madeira, e passou-o pelo pescoço de Angélica. Depois benzeu-o três vezes, pronunciando a fórmula consagrada:
- In nomine Pater, Filius et Spintus Sanctus...
Finalmente pôs-se em pé com um salto e agarrou a lança.
- Vamos, depressa - ordenou a seus dois fiéis. - Tenho que me pôr a caminho antes que os iroqueses se espalhem pelas nossas florestas. O verão faz esses coiotes saírem de seus covis fedorentos.
"Agora que acabamos com os ingleses, terminemos a obra de justiça para contentar aos.hossos irmãos em Deus, os franceses, e satisfazer a nossos padres bem-amados, os Togas Negras, caso contrário os demónios que rondam ganharão de nós em rapidez.
"Irmã, tenha coragem, devo deixá-la. Mas lembre: reze! reze! reze!
Com estas palavras solenes, eclipsou-se com algumas pernadas. Seus dois acólitos dispararam atrás dele. O ranço de fera que deixaram atrás de si ainda pairou por alguns instantes pelo forte.
Angélica ficou ali, imóvel, indagando-se inquieta acerca da inconstância de Piksarett.
O que lhe teria desagradado em Gouldsboro?
Subitamente ele reafirmara sua amizade pelos franceses e pelos Togas Negras. E sua alusão aos ingleses despertara em Angélica a recordação aguda dos massacres de que ela fora testemunha recentemente.
A tempestade pessoal que a abalara e a Joffrey, a luta contra os piratas e o seu desenlace, a chegada inopinada de um contingente de Moças do Rei e de uma grande dama francesa com todos os embaraços que isso comportava não podiam fazê-la esquecer que a algumas milhas a oeste, para além do horizonte azul-arroxeado do mar e das colinas róseas do monte Deserto, continuava se desenrolando uma tragédia sangrenta. Ondas de tribos indígenas brotando da floresta abatiam-se sobre os povoados de colonos brancos, matando, pilhando, queimando, escalpelando.
Angélica pensou nos fugitivos dos aldeamentos ingleses litorâneos, que ela encontrara refugiados nas inúmeras ilhas da baía de Casco e que organizavam às pressas uma defesa, enquanto as crianças se banhavam nas enseadas, por entre lobos-marinhos, sob a guarda dos mais velhos.
As flotilhas indígenas os teriam alcançado? Será que ainda estariam vivos?
Em contraste com os horrores que talvez se desenrolassem lá, no mesmo momento, a liberdade e a relativa tranquilidade na qual se encontravam Gouldsboro e a região circunvizinha tinham algo de miraculoso.
Esse milagre devia-se apenas à força da autoridade do Conde de Peyrac, que se valia de suas alianças com o Barão de Saint-Castine, com as tribos vizinhas, de seu entendimerUjo-com os colonos aca-dianos franceses ou com os comerciantes das feitorias inglesas.
Ao chegar a Gouldsboro, pas§ava-sé de um mundo a outro. Apesar das rixas internas, entre os habitantes ou com os eventuais piratas, sentia-se uma espécie, de segurança, fora dos conflitos, a proteção de fronteiras invisíveis, erguidas ao longo de vários milhares de milhas ao redor, pelo renome do conde francês, Peyrac, ontem desconhecido, hoje rico, independente dos reis, liberal. Em Gouldsboro, apesar da "guerra próxima e ameaçadora, ainda se podia eleger um governador, comerciar, receber num dia os teólogos de Boston ejno dia seguinte os representantes de Quebec.
A efervescência que reinava no forte era a da vida. Arrumavam-se as mercadorias fêCérrí-críegadas, o hutim do Coeur-de-Marie, falava-se dos casamentos próximos, da construção de uma igreja, de leis novas para a-comunidade.
Graças à vontade £ àihteligência de um único homem, servido fielmente, apesar de tudo, por uma comunidade de indivíduos heteróclitos, mas decididos a tudo, edificava-se ali o coração de um pequeno Estado livre, desligado das sujeições aos longínquos e tirânicos reinos da França e da Inglaterra, preocupado apenas em criar, em fazer a terra frutificar, em plantar numa terra nova raízes para as gerações futuras.
Para se ter certeza disso, bastava constatar a maneira como chegavam a esse porto franco, para pedir socorro ou justiça, todos os que se consideravam ameaçados em sua vida ou em seus direitos.
Mas justamente esse lado insólito e miraculoso de uma situação assim não acusava a sua fragilidade? Aquela realidade subitamente surgida de seus esforços e de sua tenacidade permanecia precária.
O verão que precisavam viver, verão curto e ardente, marcaria a hora da verdade para todos? Derrota ou vitória?
Angélica subiu para -seus apartamentos.
Sentia-se vazia, um pouco como antes de uma batalha. Estava tudo em ordem, todos os detalhes tinham sido acertados. Havia que esperar. O que iria acontecer?
CAPITULO XI
Arma-se uma intriga - "Confiemos no destino"
Angélica pegou as duas pistolas. Eram leves e seguras. Seria fácil manejá-las, e com muito mais rapidez do que qualquer outra arma conhecida.
Afivelou o cinto, a presilha de couro bordada em filigrana prateada. As armas quase se dissimulavam nas pregas de sua'saia. As coronhas de madeira, incrustadas de flores de nácar e esmalte, pareciam jóias diferentes, bem como o saquinho de escovas e a bolsa de balas, dotados de uma elegância feminina. Angélica treinou o saque rápido de uma e outra pistolas, exercitou-se em armá-las com destreza. Acostumou-se à utilização da "platina de miquelete" que, embora infinitamente mais prática do que qualquer outro sistema, era novo para ela.
Agora que se sentia armada, estava mais tranquila.
O gatinho pulara para cima da mesa e acompanhava seus gestos com o maior interesse. Seguia com paixão o movimento de seus dedos sobre» a arma, e dava uma patada furtiva, como se quisesse surpreendei em sua agilidade aqueles animaizinhos móveis e infatigáveis: dedos de mulher. Depois esquivava-se com um salto. Conseguiu agarrar uma bala, fê-la rolar através do quarto, permaneceu imóvel por longo tempo, com o rabo ereto, diante do móvel embaixo do qual o projétil parecia haver-se refugiado.
Quando Angélica, passando a outra ocupação, dirigiu-se para os cofres colocados a um canto do aposento, o gato logo foi rodeá-la, e assim que ela levantou uma tampa, ele mergulhou, afogando-se em babados e sedas. Aqui e ali sua cabecinha reaparecia triunfalmente, encimada por uma fita ou um punho. Angélica ria de suas estripulias.
- Você é engraçado! Parece um garotinho traquinas, magro e vivo, como Florimond antigamente... Vamos, não me perturbe... Vá embora...
Vinte vezes ela o tirou dás caixas. Ele encontrava sempre um jeito de retornar, às vezes sem que ela notasse. Ela não podia deixar de brincar com ele, tão-cheio d^ vida e personalidade era o bichinho. Sua presença de diabrete tornava leve a atmosfera. Angélica já não pensava senão no momento presente, cheio de descobertas agradáveis.
Naquela manhã Joffrey lhe dissera, quando ela fizera alusão à elegância da Duquesa de Maudribourg, em particular à originalidade de suas meias vermelhas:
- De meias desse tipo há muitos pares em, nossas mercadorias chegadas da Europa,.que mandei levar para seus aposentos.
Você ainda não "as"examinou!...
E era verdade que ali havia maravilhas com que fascinar a mais parisiense das-mulhefes. Angélica não se dera conta disso no domingo, quando remexera ali febrilmente, à procura de um vestido com que se apresentar dignamente para o julgamento de Colin Paturel e-diante de seu cadafalso. Naquele momento escolhera o vestido preto com gola de renda de Malines, que, justamente, a Duquesa de Maudribourg tomara emprestado naquela manhã, e que, na sua severidadé7não-deixava de ser elegante e de grande riqueza, pela beleza do seu veludo. O restante dos trajes estava à altura do primeiro, todos de material selecionado, sedutores pelas novidades, pelos acessórios de valor. Foi com emoção que Angélica descobriu roupas de menina e dois trajes de garotinho, de lã sólida e cores vivas.
- Dir-se-ia que o próprio Joffrey fez tal escolha. No entanto, Erikson deve ter-se limitado a embarcar estas mercadorias. Mas Joffrey deve manter, tanto em Paris quanto em Londres e em todas as capitais, correspondentes que lhe conhecem os gostos e que o servem com cuidado. Diga ele o que disser, e embora aparentemente esteja perdido do outro lado do mundo civilizado, ele continua sendo o Conde de Toulouse. Ah, que homem!
Talvez fosse por isso que, com ele, embora banido, sem raízes, sem vínculos aparentes, todos continuassem a se sentir unidos com o mundo antigo que os rejeitara.
Ele conseguia que chegassem até eles, pelos seus aspectos mais amáveis, talvez se pudesse dizer os mais consoladores, a civilidade do Velho Mundo, o seu refinamento, o que restava de tangível e de bom, apesar das barbáries, das guerras, das injustiças...
Não se falara de faianças de Delft ou de Gien, distribuídas como presentes naquela manhã às senhoras de Gouldsboro, e que para aquelas mulheres exiladas, que recomeçavam a existência entre algumas pranchas majcortadas, numa praia perdida e selvagem, traziam um símbolo de conforto e de riqueza futuros?
Pensando no marido e nas maravilhosas ideias dele, Angélica beijou impulsivamente a roupa que segurava entre as mãos e que era justamente aquele pequeno gibão de menino. Honorina, que lamentava tanto não ser menino, aceitaria o presente sem hesitar...
Um som de passos na escada.
Angélica precipitou-se, com o coração disparado.
Era ele!
Joffrey de Peyrac surgiu acompanhado de um espanhol que trazia um cofrezinho de madeira leve, que depôs sobre a mesa diante de Angélica antes de se retirar.
— Venha ver o que lhe trago - disse Peyrac. - E um cofre de remédios, para você pôr suas garrafinhas, potes de unguento, saquinhos de ervas e instrumentos de cirurgia. A divisão pode ser modificada conforme as necessidades. Mandei fazê-lo em Lyon. O artesão houve por bem acrescentar nas pinturas que o decoram São Cosme e São Damião, protetores das farmacopéias, para que lhe prestem assistência, e penso que ele teve razão, pois quando se trata de salvaguardar a vida, não se deve desdenhar nenhum tipo de intercessão, não é?
— Certamente - concordou Angélica -, gosto muito de Cosme e Damião, e será com prazer que os terei como companheiros em minhas tarefas.
— E esses adornos que está desembalando, gosta deles?
— Demais. Parece que certo Conde de Toulouse, dotado de ubiquidade, esteve lá pessoalmente, na Europa, para escolhê-los.
— O ornamento feminino e sua inesgotável fantasia sempre me pareceram um domínio extremamente agradável de encorajar, de observar. Confesso-lhe que, no Mediterrâneo e durante aquele período oriental da minha existência, lamentei a ausência dessa adorável loucura da moda, às vezes incómoda, mas que diz muito sobre a personalidade daquelas que se preocupam com ela. Que prazer sinto agora de poder enfeitá-la de novo!
— Fico encantada. Mas o que posso fazer com todos estes vestidos no fundo das nossas florestas de Wapassu?
— Wapassu é um r.eino. E você a sua rainha. Quem sabe que festividades não haverá ali um dia? Aqui mesmo você já viu que não estamos livres de visitantes de alta categoria. E depois, quero que você ofusque Quebec. -
Angélica estremeceu. Tomará no;s braços o gatinho, para que alguma seda preciosa não se-esgarçasse sob aquelas garrazinhas, e acariciou-o maquinalmente.
— Quebec! - murmurou. - Vamos a Quebec?... Aquela armadilha do rei da França? Aquele ninho dos nossos piores inimigos de sempre, os devotos,.ps homens da Igreja, os jesuítas...
— Por que não?... É lá que se trama tudo. Então, por que não? Sim, sei que eedo ou tarde-serei forçado a ir. Claro que não quero que você corra risco-algum. Hei de apresentar-me com navios e canhões. Mas também sei que á sensibilidade francesa se inclina mais facilmente diante da formosura de uma mulher ornada de todas~as graças jjb atavio e da beleza do que diante de uma ameaça de guerra. E depois, temos amigos lá e não dos menores: o Duque d'Arreboust, o Cavaleiro de Loménie-Chambord, e até Frontenac, o governador. O meu auxílio ao Cavaleiro de La Salle criou, quer se queira ou não, uma espécie de aliança entre a Nova França e mim. O Sr. de Ville-d'Avray confirmou-me isso há pouco.
- O governador da Acádia? Que género de homem é ele?
Peyrac sorriu.
- Você verá. Uma espécie de Péguilin de Lauzun, misturado com Fouquet, pelo senso dos negócios e do diletantismo, e um pouco de Molière, pela observação crítica dos seus congéneres. E também mais avançado em todo tipo de ciência do que parece.
"Mas ele me diz que é a você que querem ver em Quebec, e na sua opinião é a sua presença, muito mais do que a minha, que decidirá tudo."
- Sem dúvida por causa daquela lenda, da profetisa sobre a Diaba da Acádia?
Joffrey de Peyrac deu de ombros.
- Pouca coisa basta para cristalizar as paixões populares. Tomemos os fatos no pé em que se encontram. A oposição da Igreia fundamenta-se agora nos elementos místicos muito mais importantes do que todas as anexações de territórios pretensamente franceses que eu possa fazer. E preciso destruir essas apreensões de outra era.
Angélica suspirou. O mundo estava doente, mas quem o curaria? Contra essa concepção de uma vida fundamentada unicamente na salvação eterna e nas forças sobrenaturais, o que podia, de fato, a materialidade fria .dos canhões?
Não era pela força que se subjugaria a alma de Quebec, a intolerante, digna filha recém-nascida da Igreja Católica, Apostólica e Romana.
Vindos para trazer a salvação aos selvagens e expulsar o espírito das trevas das florestas pagãs do Novo Mundo, os seus habitantes conservavam no coração um pouco do espírito dos cavaleiros conquistadores de outrora.
— Quebec?... Enfrentar a cidade? - Angélica estava inquieta. - Será que poderemos estar de volta a Wapassu para o inverno? Veja, perdi o hábito de estar em sociedade, e estou ansiosa por rever Honorina.
— O verão é curto, de fato. Temos primeiro que pôr em ordem a baía Francesa, mas... A propósito de Honorina, você pode imaginá-la saindo para a caça nesse gibão de gentil-homem?
— Estas roupas são para ela, então?
— Sim, ela é diligente e ousada como um jovenzinho. No inverno, na neve, suas saias de menininha a estorvam e ela se enfurece por não poder ousar tanto quanto Bartolomeu e Tomás. Vai ficar felicíssima com essas roupas.
— Oh, sim! Você sabe adivinhá-la e entendê-la.
— Ela me é cara e muito próxima - disse Peyrac com um dos seus sorrisos de encanto singular, que dedicava a Angélica quando queria tranquilizá-la.
E o fato de ele se preocupar assim com Honorina realmente lhe dava uma grande alegria que ela não sabia como exprimir.
O gatinho pulou dos braços de Angélica para um canto da mesa, onde se pôs a limpar o focinho absortamente, como se não visse ninguém.
Angélica passara os braços em torno do pescoço de Peyrac. A lembrança de Honorina intensificava a força do amor deles. A menina, que poderia ter sido o escolho entre eles, tornara-se uma razão a mais para que os dois se sentissem indefectivelmente ligados. A fragilidade dela, que lhes fora confiada entre tormentos e sofrimentos, impelia-os a lutar a qualquer preço para garantir o destino da pequena, a não se deixarem apanhar pelas armadilhas ocultas neles mesmos, a sempre tentarem superar-se, a fim de não desapontarem a expectativa inocente da criança que soubera inspirar-lhe o coração. Quando Angglfcã se angustiava por ela, pobre bastardazinha, a lembrança de que Joffrey de Peyrac a tomara sob seu encargo e a amava açalmava-lhe o pânico. "Por que sou seu pai, senhorita!" Que momento inesquecível! Nunca como naquele instante Angélica tivera mais nítida a percepção da bondade profunda que residia no coração daquele homem, a quem, no entanto, a vida, e talvez a própria inteligência superior dele, poderiam ter tornado intolerante, indiferente, cruel mesmo.
Teria sido fácil para ele exercer seu domínio apenas com o poder da força, He.sua-ciência, de seu caráter audacioso, inventivo, em movimento permanente, em perpétuo desenvolvimento. Não perdera, porérri, o gosío por dar à Vida e aos encantos dela a atenção necessária^ reservando aos simples, aos fracos, a parte que lhes era devida, à graça dã*infância, à graça das mulheres, um interesse espontâneo, bem como a todas as coisas vivas que merecem honra e amor.
Era isso o que fazia com que as pessoas se sentissem tão bem perto dele. E Angélica maravilhava-se de que, entre todas as criaturas, ela tivesse sabido cativar e reter aquela personalidade de homem fora do comum, ao mesmo tempo intratável e terna, superior e modesta, dissimulada, que não se entregava, não se desvendava facilmente, mas era segura e correta de intenções. O drama recente provara isso, obrigando-os a ambos, para que não se perdessem mutuamente, a viojentar o pudor dos seus sentimentos, a se exporem um diante do outro.-
Angélica extraía disso uma extraordinária sensação de segurança em relação a ele. A angústia vinha de outra fonte.
Deslizou as mãos pelos ombros do marido. Tocá-lo, senti-lo era um reconforto para ela, uma felicidade, que a fazia indagar consigo mesma, receosa, como poderia ver-se privada dela e ainda assim sobreviver.
Abaixou a cabeça. Afinal perguntou, hesitante:'
- Vai ser obrigado a partir outra vez, não é? Para levar socorro àqueles oficiais de Quebec que estão bloqueados pelo navio de Phipps no rio Saint-jean?
Ele levantou-lhe o queixo como a uma criança triste a quem se fita nos olhos a fim de tentar consolá-la, convencê-la.
— E preciso. E uma valiosa oportunidade de prestar um serviço àqueles carantonhas de Quebec.
— Mas, afinal - disse ela, nervosa -, explique-me de uma vez por todas por que é que esses canadenses nos querem tão mal. Por que vêem em mim uma diaba e em você um perigoso invasor de território francês? Este local pertence, pelos tratados, ao Massachusetts, você o adquiriu devidamente... Os canadenses não podem pretender dominar todo o continente americano.
— Mas pretendem, minha cara! Essa é exatamente a ambição deles, ao mesmo tempo nacional e católica... Servir a Deus e ao rei é o primeiro dever de um bom francês, e eles estão prontos a morrer por isso, mesmo que não passem de um punhado de umas seis mil almas contra os duzentos mil ingleses do sul. Querer é poder! Apesar dos tratados, eles continuam a considerar franceses todos os territórios nos arredores da baía Francesa. Prova disso são as inúmeras senhorias e feitorias mantidas um pouco por toda parte: Pentagouet, com Saint-Castine, Port-Royal, etc,
- e todo ano o governador da Acádia vem receber seus tributos em seus domínios. Uma intrusão que não agrada muito a estes longínquos súditos do rei da França. Com o tempo, os acadia-nos acabaram considerando-se independentes, um pouco à imagem de Gouldsboro, e foi por isso que Castine veio me pedir que reunisse sob a minha égide os diversos colonos que povoam a baía, tanto franceses quanto escoceses e ingleses, e que se consideram, cada um deles, em sua própria casa por direito pleno. Evidentemente, se isso foi comentado em Quebec, não posso estar sendo bem-visto por lá, menos ainda junto ao dito governador de Acádia, sobretudo no momento em que ele vem coletar os impostos de seus súditos recalcitrantes. Assim, parece-me de boa política tirá-lo de um apuro.
— O que foi que lhe aconteceu?
— Em represália pelos massacres que os abenakis comandados por franceses perpetraram a oeste, na Nova Inglaterra, o Massachusetts enviou um almirante e alguns navios a fim de tentar castigar todos os franceses que lhes aparecessem pela frente. Ainda que justificado, um projeto desses só podia agravar nossa situação já precária e não levaria a nada. Submeter Quebec é que seria necessário, não atacar alguns pequenos proprietários acadianos que se agarram como podem às terras que receberam dos ancestrais e que tornam mais produtivas a cada ano. Consegui demover o Almirante Sherrylgham, rrías Phipps, o bostoniano que o acompanhava, não quis ouvir nada.-Prosseguiu sozinho e, ao saber que oficiais de Quebec, entre QS quaiá*o governador da Acá-dia, Ville-dAvray, e também o-intendente da nova França, Carlon, e diversos gentis-homens de renome se encontravam em jemseg, foi bloquear a entrada do rio-Saint-Jean. Impede-os assim de descer o rio e retomar o mar. O Sr. de Ville-d'Avray, que é muito impaciente, preferiu escapar a pé pela floresta. Graças à neblina, conseguiu subir a bordo de um pesqueiro sem chamar a atenção dos ingleses, e vir até aqui para me pedir auxílio. Embora me considerando um rival infame e um inimigo em potencial, ele quer principalmente salvat-seu navio, que desconfio, esteja cheio de peles preciosas; còletadas durante sua viagem de governador. Eu ficaria mal recusando-lhe esse fevor. "Se Phipps conseguir capturar essa gente, bem como seus navios, e levá-los prisioneiros a Boston ou a Salem, isso_chegará'a Versalhes,, e o rei talvez veja nisso o pretexto que procura justamente para declarar guerra à Inglaterra.-^ Nos tórios aqui preferimos nossa paz meio manca a um novo conflito.
Angélica o ouvia, alerta. Pela sua boca, e embora ele atenuasse os fatos a fim de não assustá-la-,- ela compreendia melhor a fragilidade da situação deles e o encargo que ele tomava sobre os ombros.
Como ele estava sozinho, meu Deus! Por quê, por quem desejava lutar?... Por ela, pela .menina Honorina, pelos filhos dele, pelos párias do mundo que tinham vindo pôr-se sob sua bandeira, à sombra de sua força. Para-críar, para avançar, para construir e não destruir...
— É um desses incidentes clássicos da baía Francesa, com a sua fauna humana de todas as nações - concluiu ele. E deu um sorriso. - Nenhum tratado dará certo enquanto houver nevoeiros, marés e recantos de rios onde as pessoas possam se enfiar e esconder-se de todos... Este é um país de refúgio e de escaramuças, mas não tem importância, nele hei de construir-lhe um reino...
— Há algum risco na expedição que você vai realizar?
— E um passeio. Trata-se somente de ajudar os franceses, evitar que os índios da região entrem no conflito e, em suma, tirar a Phipps o butim ao qual ele tinha algum direito. Ficará furioso, mas está fora de questão chegarmos às vias de fato. Estreitou-a nos braços.
— Gostaria de levá-la comigo.
— Não, é impossível, não posso deixar Abigail sozinha. Prometi-lhe que a assistiria no parto e... não sei por quê, receio por ela-, e sinto que ela mesma, apesar de, sua coragem, está inquieta. Minha presença a tranquiliza. Tenho que ficar.
Meneou a cabeça várias vezes, como que para expulsar a tentação que sentia de agarrar-se a ele, de segui-lo a" qualquer preço num desejo impulsivo, que ela não analisava.
- Não falemos mais nisso - arrematou, corajosa.
E foi sentar-se na poltrona. O gato, como se concluísse por esse sinal que os dois já haviam brincado e conversado o suficiente, saltou para os joelhos dela e se enrodilhou.
Parecia tão amistoso e contente de viver, que comunicou a ela um pouco de sua tranquilidade. "Honorina vai ficar louca com este gatinho", pensou Angélica.
Honorina! A angústia de novo! Seu coração dilatava-se. Ele ia embora e ela ficaria sozinha para lutar. Contra que ameaça?
O navio desconhecido entraria em cena, assim como os homens que o tripulavam, que pareciam ter recebido a missão de atrapalhar o destino deles? Quem é que os mandara? Os canadenses? Os ingleses?... Essa explicação não era plausível. A situação com os vizinhos era mais franca. Os canadenses lançavam o anátema, atacavam. Os ingleses tinham mais a fazer além de perturbar um homem, que lhes era útil e com quem haviam chegado a acordos interessantes.
E então? Um inimigo pessoal de Joffrey? Um rival de comércio, que disputava o local, quereria sorrateiramente desencorajar os primeiros ocupantes? Já não o tinham vendido indevidamente a Barba de Ouro?
Mas então por que é que visavam a ela? Sentia-se tão particularmente visada, que a opressão a esmagava. Era uma sensação tão forte, que tinha a impressão de que, se ela não existisse, Joffrey poderia ficar em paz.
Não pôde deixar de dizer-lhe isso.
- Se não me tivesse a seu lado, sinto que a situação seria fácil para você.
- Se eu não a tivesse a meu lado, não seria um homem feliz.
Ele olhou à volta.
- Construí este forte na solidão. Você tinha desaparecido da minha vida. No entanto, bem no fundo de mim, alguma coisa não aceitava a ideia de que você tivesse morrido. Reencontrar Florimond e Cantor já representou para-niim um símbolo de não sei que promessa. "Ela virá", dizia eu^comigo, baixinho, "ela vai chegar, a minha bem-amada..;" Era loucura, mas por instinto eu acrescentava certos detalhes... para você... Foi pouco antes do meu regresso à Europa, naquela viagem em que por acaso eu encontraria Rochat num cais espanhol, que me diria: "A francesa de olhos verdes, o senhor sabe, aquela que comprou em Cândia... está viva. Está em La Rochelle. Eu a vi por lá faz pouco tempo". Como exprirftir a alegria fulminante de um momento como esse! O céu que se abre!... Bom Rochat!,Crivei-o de perguntas. Cumtrlei-o de atenções, como ao amigo mais caro... Sim!
O destino foi clemente conosco, mesmo tendo tomado às vezes caminhos bem sinutjsos.
Foi até Angélica beijar-lhe as mãos.
- Continuemos a confiar nele, meu amor.
CAPÍTULO XII
Jantar na casa dos Berne - As surpreendentes leis da nova terra
Angélica e Abigail estavam ambas no centro do jardinzinho, por entre os altos tufos de flores e folhagens. Era um jardinzinho que rodeava a casa dos Berne e fechado com uma cerca, à maneira da Nova Inglaterra, do tipo que toda mulher de colono precisava ter, a fim de preservar a saúde da família com remédios, naquele lugar onde com frequência o boticário se encontrava muito distante, e também para realçar e apurar os pratos sem graça, os peixes e a caça. Misturavam-se alguns legumes, verduras, pêras, rabanetes, cenouras, e muitas flores para alegrar o coração.
A primavera fora branda. As primeiras sementes já brotavam. Abigail afastou uma folha redonda e aveludada de um pé que avançava para fora da platibanda.
— No outono terei abóboras... Vou guardá-las para o inverno. Mas vou colher algumas enquanto ainda estiverem do tamanho de um melão. A gente as coze sob a cinza e come como maçãs ao forno.
— Minha mãe gostava de jardins - disse Angélica de repente. - Revejo-a... no pomar, trabalhava sem parar... Revejo-a de súbito...
Num átimo revia a mãe. Alta e elegante, ela passava, silhueta apagada sob o chapéu de palha, cestos pendurados no braço e às vezes um raminho de flores apertado contra o coração, como uma criança.
"Minha mãe!"
Foi uma visão fugaz, e que a atravessou de inopino, sem motivo.
"Mãe, proteja-me!", pensou.
Era a primeira vez que lhe ocorria fazer apelo a uma intercessão assim. Tomou a mão de Abigail, a seu lado, e segurou-a carinhosamente. Abigail, alta, serena, valente, parecia-se com sua mãe esquecida? .
A tarde Berne fora convidar .o Sr. e a Sra. de Peyrac a lhe darem a honra de compartilhar da refeição da noite. O convite inesperado parecia querer provar que o honrado e intratável protestante desejava, assim como seus correligionários, pedir perdão de público ao senhor de Gouldsboro e testemunhar a ele os desejos de todos de apagar as palavras mais do que acaloradas trocadas no momento da posse de Barba de Ouro. Consciente dessa vontade de reconciliação, o Conde de Peyrac aceitara o convite e, ao crepúsculo, dirigira-se com Angélica à casa dos Berne.
Mas as personalidades dos antagonistas eram tão fortes e as lembranças entre «les tão carregadas de paixões e violência, que o encontro não deixará 3e criar certa tensão emocional.
Deixando os dois homens a sós, Abigail levara Angélica para fora,; a fim de mostrar-lhe seu jardim.
A amizade das duas Mulheres estava além de todas as brigas. Por instijrtto «las se isolavam, recusando-se a examinar muito de perto o que nos atos dos homens podia ferir demais, proibindo-se de julgar com intransigência, a fim de preservarem entre si aquele vínculo necessário de afeição mútua, aquela aliança de suas sensibilidades femininas. Por mais diferentes que fossem, precisavam gostar uma da outra. Era um refúgio, uma certeza, algo suave, vivo, que nem mesmo a ausência poderia romper, e que cada provação enfrentada fortificara ao invés de destruir.
Clarões nacarados, que morriam no horizonte das ilhas, davam como que um reflexo ao fino rosto de Abigail e lhe acentuavam a beleza. Os cansaços' de seu estado não lhe haviam alterado os traços nem empanado a tez tão pura. Ela continuava usando sua severa coifa de La Rochelle, que não era a coifa mais comum entre as senhoras da cidade, mas que pertencera à mãe falecida e que era do Angoumois, onde as mulheres não se preocupam com rendas e fitas. Essa coifa-de estilo severo caía-lhe melhor do que a qualquer outra mulher.
- Então você está feliz? - indagou Angélica.
Abigail estremeceu e, se não estivesse escuro, Angélica a veria corar. Mas ela controlou a própria emotividade e Angélica adivinhou-lhe o sorriso no escuro.
- Afirmá-lo seria falar demais. Como agradecer a Deus? A cada dia descubro os tesouros do coração de meu marido, a riqueza de sua inteligência e de seu conhecimento, sua sabedoria, suas qualidades profundas de homem forte, duro às vezes, mas cheio de sensibilidade... Creio que no fundo... ele é muito bom. Mas essa é uma virtude perigosa em nossos tempos, e ele sabe disso.
Acrescentou, sonhadora:
— Estou aprendendo a amar um homem. É uma aventura estranha. Um homem é algo grave, diferente, desconhecido, mas tão importante! Pergunto-me se nós, mulheres, não somos um pouco negligentes a esse respeito, recusando-nos a aceitar a mentalidade particular deles. Se nem sempre eles nos entendem, será que nós fazemos esforço para entendê-los conforme os séculos os moldaram, responsáveis pelo mundo, o que por vezes constitui um fardo bem pesado; ainda que eles o tenham posto às costas voluntariamente?
— Somos as herdeiras da escravidão, e eles, da dominação - disse Angélica. - É por isso que às vezes há centelhas. Mas também é uma aventura apaixonante visar ao entendimento graças ao amor.
A escuridão era quase total. As luzes das casas e do porto começavam a brilhar, brancas como a opala sobre todo aquele azul profundo, e nas ilhas dispersas, estrelas pálidas, avermelhadas, revelavam fogueiras e lanternas, presenças que o dia não deixara suspeitar que estivessem ali. Angélica disse de súbito:
- Dir-se-ia que há alguém que nos espia... Alguma coisa se mexeu no arbustos.
Elas prestaram atenção. Ambas tinham a impressão de que alguém as observava não longe dali, oculto nos arbustos, e sen
tiam essa presença como uma ameaça.
Abigail passou o braço pelos ombros de Angélica e apertou-a contra si. Mais tarde contaria que naquele instante tivera a certeza de que um grande perigo pairava sobre Angélica de Peyrac.
Tiveram a impressão de surpreender um suspiro profundo e lancinante, mas talvez fosse apenas o vento soprando nos pinheiros da falésia.
- Vamos entrar - disse Abigail, conduzindo a amiga.
Voltaram-se para a casa e deram alguns passos naquela direção. Mas desta vez foram estalidos de galhos, seguidos de um ronco inconfundível, que as alertaram.
- Oh! - exclamou Abigail, voltando-se. - E isso então! É o porco dos Mercelot que entrou outra vez em nosso jardim.
Do lado deles há apenas uma sebe. Eles não se preocupam em fechar o animal nà cabana, acham mais ^jmples deixar que ele procure comida pelas ruas do povoado 'è no jardim dos outros.
Caminhou até a sebe que- QS separava de outra propriedade, uma casa parecida, de tábuas e pranchas no telhado de ripas, erguida em meio a um terreno que parecia bem malcuidado.
A porta da casa estava aberta, e unia jovem, segurando nos braços uma criança de alguns meses, estava ali postada no escuro, sua silhueta recortando-se contra a claridade que vinha de dentro. Abigail chamou-a:
- Bertille! Seu porco veio chapinhar outra vez em meu jardim.
A mulher-desceu da soleira e avançou na direção delas a passo displicente. Seu andar porém, era gracioso, e ela parecia jovem e bonita. Quando-se aproximou, Angélica reconheceu Bertille Mercelot, a filha do papeleiro de La Rochelle. O bebé que ela trazia no colo estava rechonchudo e bem-cuidado. Mantinha-se muito eretoe percebia-se que ele devia observar tudo com gravidade. Mas, por causa da escuridão, era difícil distinguir-lhe os traços.
— Já falei disso a meu marido - disse Bertille com voz queixosa. - Ele concordpu"afinal em que a gente faça uma cerca, dividindo com vocês o trabalho do carpinteiro. Mas com todas as histórias que houve nestes dias, essas batalhas, esses estrangeiros, esse novo governador, ele não teve tempo de tratar disso.
— Reconheço que hayia coisas mais urgentes a tratar do que a colocação de uma cerca - admitiu Abigail, conciliadora. - Mas você deveria manter seu porcojio cercado. Ele já nos causou muitos prejuízos.
Angélica, estimulando o animal com o pé e com a voz, conseguira fazê-lo voltar para o domínio de seus donos, de onde o porco galopou em outra direção. Soltando um suspiro, Bertille despediu-se brevemente e polidamente, e também se afastou.
- Então Bertille Mercelot casou? - perguntou Angélica, espantada. - Eu não sabia disso. E já tem um filho! Ainda não faz um ano que chegamos e naquela altura nãose falava nada a respeito!
— Não é filho dela. - explicou Abigail. É o pequeno Carlos Henrique. Você sabe, o bebe de Jenny Manigault, o que nasceu quase no dia em que desembarcamos. Em breve ele fará um ano. E verdade, talvez você não esteja a par do que aconteceu com a coitada da Jenny.
— Não! O que foi?
— Foi raptada pelos índios. No finai do outono. Mal fazia dois meses que dera à luz. Alguns de nós iam naquele dia, uns a pé, outros a cavalo, do acampamento Champlain a Gouldsboro, quando, naquele mesmo lugar onde já houvera um ataque, os índios apareceram -soltando os seus gritos de guerra. Nossos homens estavam armados e revidaram. Os índios se retiraram, mas levaram Jenny, que se demorara do lado da floresta colhendo bagas com Sara, sua irmã. Sara conseguiu escapar e nos alcançar.
"A Sra. Manigault ia num dos cavalos, levando o bebe. Viu Sara correr em nossa direção, perseguida por aqueles demónios vermelhos. Gabriel, meu marido, atirou. Um deles caiu. Mas outro atirou o machado e um dos nossos foi atingido, o machado rachou-Ihe a cabeça. Foi uma grande infelicidade para nossa comunidade, pois ele era um ótimo carpinteiro. E perdemos Jenny."
Angélica estava aterrada.
- Que índios eram? íroqueses? Talvez se pudesse...
Ela já se via correndo com o seu colar de wampum, dado por Utakê, para pedir a libertação de Jenny Manigault. Abigail balançou a cabeça.
— Não! Durante alguns dias o Sr. d'Urville organizou batidas. Não se encontrou pista alguma. O Sr. de Saint-Castine nos ajudou muito generosamente. Acabou apurando que se tratava de uma pequena tribo do Alto Kennebec, que teria vindo de canoa. Partiram com a prisioneira. O Sr. de Saint-Cantine dizia que eram abenakis, mas sem aliança com as outras tribos. Nómades. Ninguém sabe onde achá-los. Vivem lá em cima, mais do lado dos ingleses do que do Canadá.
— Que coisa horrível! - murmurou Angélica.
De repente sentiu frio, e o frescor da noite a fez tremer.
- O Sr. Manigault ficou como louco - continuou Abigail. - Queria ir embora deste lugar, que dizia ser maldito, e partir para Boston. Mas chegaram a neve e as tempestades. Era preciso passar o inverno. Tivemos muito medo de que a criança privada
do leite materno morresse. A Sra. Manigault é uma excelente mulher. Começou a alimentar o bebe com o leite de algumas cabras que tínhamos aqui. A criança sobreviveu. É vigorosa. Agora come legumes e peixe, como um autêntico homenzinho. Já não temos o que recear por ele. O pai voltou a casar há seis meses, com Bertille. Ela sempre fora apaixonada por ele e aproveitou a ocasião para conquistá-lo de mil maneiras.
-Voltou a casar!... Mas.,. Jenny tarvez não esteja morta!
-Isso também me magoou.JMas todos diziam que havia muito poucas chances de ela hayer escapado da morte entre as mãos daqueles selvagens. Meu pãi concordou com essa união. O infe liz, desesperado, não podia continuar vivendo sozinho com o filho órfão, e Bertille acabaria por levá-lo a viver em pecado. Foi o melhor que podia acontecer, não é? Ela cuida da criança... Angélica fez um esforço para aceitar com filosofia o comunicado daquele acidente cruel è sua conclusão. Entendia que para aqueles calvinistas isolados com suas próprias leis, a infeliz Jenny, tendo ido para o mundo dos índios, realmente passara para o outro mundo.
Coitado dopequeno Carlos Henrique, a quem ela quisera dar o nome de seu filhinho-degolado pelos mosqueteiros do rei! Será que ela lhe dera azar?
-Entremos! - disse Abigail. - Você está ficando triste. Não quero isso. Aqui é preciso tentar não pensar demais, não refletir demasiado nos perigos que nos rodeiam, nos lutos ou nos erros que não pudemos evita?-, caso contrário se perderia a coragem. Há que guardar todas as nossas forças para levarmos adiante nossa tarefa, pela vida, pelo melhor...
-Sim, você tem razão.
CAPÍTULO XIII
Cena doméstica na intimidade dos Berne - O gato de Angélica
Dois garotinhos jogavam gamão a um canto da mesa.
Estavam tão absortos, que se debruçavam, e seus cabelos inteiriçados, loiros e castanhos, cobriam-lhe as faces. Um velho negro, com o cabelo branco como uma boina de estopa, seguia atentamente a partida, também ele debruçado, com o queixo sobre as mãos escuras, de unhas arroxeadas.
A luz de um vela fincada num candeeiro de estanho iluminava suavemente a cena, e acendia pequenas centelhas nos anéis de ouro que prendiam das orelhas do velho negro, nas maçãs do rosto, no nariz de ébano, e no esmalte branco de seus olhos.
A entrada de Angélica e Abigail, o quadro logo se animou. Os dois garotinhos saltaram aos pés delas, depois ao colo de Angélica, o velho negro também se precipitou, com todo tipo de bons votos, que ele formulava num francês castigado, com o sotaque suave e levemente sibilante dos africanos. Era Siriki, o criado dos Manigault. Estes o haviam recolhido outrora, doente entre os escravos nos entrepostos de La Rochelle, no tempo em que Manigault contava com o tráfego de "madeira de ébano" entre as suas inúmeras atividades comerciais.
Ainda usava, embora gasta e um pouco remendada, a bela libré cor de amaranto com filete dourado, de que sempre fora muito orgulhoso. Angélica se lembrou dele, correndo como uma labareda pela charneca, atrás dos fugitivos huguenotes, a gritar: "Meu amo! Meu amo! leve-me..."
Os mosqueteiros do rei galopavam atrás dele. Momento terrível! Mas agora estavam todos sãos e salvos naquela pobre residência na América.
Orgulhoso, Siriki fez questão de que Angélica reconhecesse a criança loura, Jeremias Manigault», seu pupilo, de quem ele cuidara quando bebezinho.
- Ele não cresceu, senhora? Está ficando um homem. E ainda nem tem onze anos.
Jeremias, de fato, tinha as'faces mais redondas, os olhos mais azuis e os cabelos mais loiros do,que nunca.
Laurier Berne, seu parceiro no gamão naquela noite, parecia mais franzino ao lado dele, embora também Laurier estivesse bem mais forte.
— Qual dos dois está ganhando? - indagou Angélica.
— Ele - fez Jeremias, apontando .Laurier com rancor. - Ele anha sempre.
Laurier se-espantou é troçou do outro. Jeremias amuou. Pequeno temporão depois de várias filhas na família de Manigault, ico burguês rochelês, aquele filho único fora muito mimado por odos os parentes. O seu sequestro por pessoas devotadas aos jesuítas, num dia em que voltando da escola, ele tivera a imprudência de parar para olhar uma procissão católica, determinara Manigault a êxilar-se. Depois que, à força de manobras em que
ngélica o ajudara, ele conseguira recuperar o filho, o grande omerciante rochelês entendera as ameaças que pesavam doravante sobre todos os protestantes da França, fosse qual fosse a osição ou a situação deles.
Abigail consolou Jeremias com uma carícia e uma fatia de bolo.
- Continuarão a partida amanhã - disse. - Vou pôr o jogo a prateleira, sem mover as peças.
Jeremias, de boca cheia, saudou a todos com um único cumprimento e pôs a mão na de Siriki.
A casa dos Berne ficava na metade da ladeira que descia para a praça central do povoado. Tinha janelas muito pequenas, a fim de isolar melhor o frio e também porque o vidro era raro. Mas Gouldsboro não fora o único" aldaeamento cujos moradores, no primeiro inverno, tiveram que se resignara pedaços de pergaminho ou peles de peixe nas janelas.
Construídas às pressas no outono, as casas dos huguenotes eram bem exíguas. A dos Berne tinha dois cómodos: um de estar e comer, o outro com a cama dos pais e um armário. Havia um telheiro para guardar as achas, outro para as abluções. Um sótão sob o telhado, ao qual se tinha acesso por um alçapão e uma escadinha, completava a habitação. Marcial, o filho mais velho, sentira-se muito apertado e construíra para si uma wigwam de casca de arvore no jardim.
- Como o nosso velho canadense, Elói Macollet - disse Angélica.
No aposento comum dormia Laurier. Severina se instalara no sótão.
Severina também estava ali. Queimara erva-cidreira para afugentar os mosquitos. Estava entrando na adolescência e continuava magra, com o mesmo rostinho ardente e a boca grande. Mas se desenvolvera junto da paciente Abigail. Também ela beijou Angélica e declarou sem cerimonia:
— Que felicidade que todas as histórias que contaram a seu respeito fossem mentiras, Dame Angélica! Tive vontade de me matar. Não gosto da vida quando há excesso de complicações e decepções.
— Você é inflexível demais, Severina. Não mudou, reconheço-a bem.
Sentados a cada lado da mesa, animada por uma garrafa de rum velho, de vidro preto e gargalo comprido, Joffrey de Peyrac e Gabriel Berne trocavam palavras calorosas. Parecia que tinham baseado seu entendimento numa afeição comum: Honorina. Joffrey de Peyrac contava as façanhas de Honorina em Wapassu, e Berne ia mais além, contando as façanhas de Honorina em La Rochelle. Os dois concordavam em que a criança era encantadora, de personalidade forte, e que era impossível não se apegar a ela logo na primeira vez em que se via a menina.
- Desde bebezinho ela era assim - dizia Berne. - Lembro-me de quando a encontrei na floresta, ao pé da árvore à qual estava amarrada...
Interrompeu-se. Seu olhar cruzou com o de Angélica atravessado de um pânico súbito, depois voltou a fitar Joffrey de Peyrac, que os observava com atenção.
- E uma história antiga - disse. - Faz parte do mundo que deixamos para trás. Um dia lhe contarei, messire, se Dame Angélica me autorizar, ou então ela mesma lhe contará. Enquanto isso bebemos à nossa saúde e à dos nossos pimpolhos, presentes ausentes ou futuros - concluiu Berne, levantando o copo. Pelo final da refeição, um pequeno convidado surgiu de repente.
- Oh, vejam que vem aí! - exclamou Angélica. - O meu gato!
O animal pulou para os joelhds dela, pousando as duas patas na beirada da mesa, e apresentou-se aos demais com um débil miado, roufenho mas agradável.' Depois reclamou sua parte no banquete.
- Acho que ele se parece com Hpnorina, quando ela chegou à nossa casa - observou Severina. - Via-se que ela se considerava a pessoa mais importante do universo...
Angélica contou a história do gato.
— Ele é de uma coragem inacreditável. Não sei como faz, sendo tão pequeno, para vir ao meu encontro, esteja eu onde estiver, através de mil obstáculos.
— Geralmejnte os gatos jião se apegam às pessoas, mas à casa - sentenciou a douta Tia Ana.
Falou-se de gatos, enquanto o herói da conversa se deleitava com o douradogrelhado, realmente convencido de que também ele era a pessoa, mais importante do universo. Ainda franzino, agora, porém que recobrara forças para se assear, revelava-se de um belo branco puro, com manto, meia boina e algumas manchas cor de canela. Uma cor mais escura, quase preta, rodeava-lhe um olho, salpicava-lhe uma orelha, reaparecia na base da cauda e numa única pata. Tinha-o pêlo longo e espesso, com suíças em pompons e tufos a lhé saírem das orelhas, que lhe davam o ar de um pequeno lince. Era encantador e sabia disso.
CAPÍTULO XIV
Jantar com o governador, entre personagens da Nova França - Uma explicação das marés
Angélica encontrou, a Duquesa de Maudribourg recitando o terço com todas as suas acompanhantes, inclusive Juliana e o secretário Armando Dacaux, corajosamente ajoelhado no seu canto.
Fazia muito calor, mas ninguém parecia sofrer com a postura incómoda, de joelhos no chão de terra batida, na casa modesta para onde a benfeitora se mudara. Com o tempo Angélica constataria que cenas piedosas como aquela eram frequentes entre-as Moças do Rei. A delicada e encantadora duquesa era a mais constante na prece, e mantinha sua comitiva sob controle: a oração parecia constituir sua atmosfera favorita. Megulhava na reza como que deliciada. O olhar alçado para o céu brilhava com uma alegria extática, e sua tez tornava-se mais branca, um lírio, como que iluminada por uma luz interior. Parecia belíssima assim, mas se o seu fervor não fosse sincero, não poderia aguentar o esforço físico exigido por essas longas sessões de devoção.
Dos sobreviventes do naufrágio do La Licorne, apenas Job Si-mon, o grande capitão com a mancha avinhada, não participava desse exercício de devoção. Estava melancolicamente sentado na areia, do lado de fora, perto do seu unicórnio de madeira esculpida, e parecia vigiar, guardião hirsuto e inquietante ladeado de seu animal mítico, todas as. suas vestais reunidas.
- Alegre-se! - disse-lhe Angélica ao passar. - Terá as suas folhas de ouro. Falei a respeito com o Sr. de Peyrac.
Chegando em pleno murmúrio da ave-maria, Angélica desconcertou-se um instante, pois não esperava topar com a cena. No entanto, ao percebê-la, a Sra. de Maudribourg logo se persignou, beijou a cruz de seu rosário e colocou-o no bolso. Depois, levantando-se, foi ao encontro da visitante.
— Estava ansiosa por revê-la, minha cara. Como vê, ainda que modestamente instaladas, já nos sentimos em casa. Um lugar onde possamos nos reunir e orar é indispensável^para nós, a fim de recuperarmos as forças e enfrentarmos os acontecimentos com coragem.
— Perfeito! - disse Angélica. - Alegro-me de que esteja em condições de ouvir o que venho anunciar-lhe.
— Estou pronta - respondeu a duquesa, aprumando-se e encarando-a fixamente.
— Há um jantar na praia, em homenagem ao senhor governador da Acádia, o Marquês de Ville-d'Avray, que é nosso hóspede hoje, venho convidá-la,- bem como às suas moças.
Angélica fez-o convite ém tom sério, mas sorriu às ultimas palavras. A duquesa entendeu a intenção, empalideceu, depois uma onda cor-de-rosa subiu-lhe à fronte.
— Está zombando de mim, "creio - murmurou, em tom de desculpas. - Devo parçcexclhe demasiado devota, não é? Perdoe-me se a choco. Mas, veja, a prece me é uma coisa terrivelmente necessária!
— Não é um mal. Você é que deve perdoar-me - replicou Angélica, que se arrependia do gracejo diante da expressão de pânico infantil que atravessou o olhar da duquesa. - Rezar é boa coisa.
— E sentir prazer também - concluiu a duquesa, alegre. - Um jantar na praia, que felicidade! E como estar em Versalhes, à beira do grande canal... O Marquês de Ville-d'Avray, você disse? Esse nome não me é desconhecido. Ele não possui um pavilhão de caça precisamente entre Versalhes e Paris, aonde o rei gosta de ir?
— Não sei.-Pergunte a ele. Meu marido também deseja apresentar-lhe algumas personalidades de nossa colónia.
— Ville-d'Avray! Se entendo bem, ele é o representante da Nova França e do rei nesta região. E os visita?
— Somos bons amigos. A ocasião lhe permitirá examinar sua situação e as possibilidades que se lhe oferecem de aproveitá-la.
Angélica tateava o terreno com prudência. Nenhuma das Moças do Rei parecia haver mencionado à benfeitora as propostas que lhes fizera o governador de Gouldsboro, no sentido de se estabelecerem ali mesmo. Será que a Sra. de Maudribourg concordaria em desviar suas recrutas da missão sagrada que lhes fora confiada de seguir para Quebec a fim de povoar a Nova França? No momento ela não parecia preocupada com isso. Penteou-se rapidamente, deixou os cabelos escuros soltos sobre os ombros, arrumou a gola de renda do vestido de veludo preto, e seguiu Angélica com diligência.
Dado o hábito que se estabelecera, espontâneo, de as pessoas se reunirem diante do albergue, para assembleias que tinham um pouco o ar de conselhos e de quermesse alegre, ergueram-se ali vários cavaletes cobertos de iguarias diversas, bebidas, frutos, pratos à base de peixe e caça, e cada um podia servir-se a seu gosto.
Os grupos já se formavam, cada um reunindo-se segundo conivências instintivas. Os mais antigos peroravam de bom grado à volta de Joffrey de Peyrac, do Conde d'Urville, Colin Paturel, Manigault e Berne. Os ingleses refugiados, recém-chegados, mantinham-se timidamente à parte, mas perto dos huguenotes de La Rochelle, por instinto da religião comum, apesar da diferença de nacionalidade.
Em frente a eles, os marujos do Coeur-de-Marie, colonos de data recente, de quem seus compatriotas de La Rochelle tinham alguma razão de não gostar, reuniam-se relativamente quietos e comportados sob o olhar severo de Colin Paturel, que, recebendo a todos como governador de Gouldsboro, não perdia de vista seus tripulantes da véspera. Seu imediato, Francisco de Barsempuy, ajudava-o nessa tarefa.
Alguns selvagens misturavam-se aos oficiais, grandes chefes sa-gamores, mas Angélica procurou em vão a silhueta altiva e escarlate de Piksarett. Em compensação, avistou Jerónimo e Miguel, que passeavam gloriosamente, trocando troças a propósito do ca-raíba oliváceo, o homem das especiarias.
Aquela raça das ilhas quentes, vivendo sob o signo do abacaxi e do algodão, era-lhes mais estranha a eles, filhos da gordura de urso e do milho, do que a um francês de Paris ou a um russo das estepes siberianas.
O homem se encontrava em Goudsboro porque seu amo, um pirata das Antilhas, quisera permanecer ali depois da partida do seu navio, o Sans-Peur. Sem intenção manifesta. Cansaço das viagens, amizade por Aristides, que também ficara, vontade de renovar com produtos locais sua provisão de ervas e especiarias para o comércio.
Quando Angélica e a Duquesa de Maudribourg se aproximaram da multidão, uma personagem toda enfeitada se destacou do grupo e acorreu na direção delas, em particular na direção de Ambrosina, que ia um pouco à frente. Com viyos movimentos de boas-vindas e saudação, varrendo várias veies o chão com a pluma de seu chápeu, ele se inclinou profundamente diante da duquesa. Era um homenzinho baixo, um pouco corpulento, mas parecia muito amável e entusiasmado.
. - Finalmente! - exclamou ele. - Finalmente aparece a senhora de uma beleza sem igual que alimenta a crónica da Nova França antes mesmo de a conhecerem. Permita-me que me apresente. Sou o Marquês, de Ville-d'Avray, representante de Sua Majestade, o rei da França, na Acádia.
Um pouco surpresa, Ambrosina de Maudribourg respondeu com uma inclinação de cabeça. O marquês continuou, loquaz:
— Então é a senhora quem virou a cabeça daquele circunspecto D'Arreboust- e causou-a danação daquele santo do Loménie-Chambord! Sabe que a acusam de haver causado a morte de Pont-Briand?
— Senher, está me confundindo - apressou-se a protestar a duquesa. - Não tenho o prazer de conhecer esses cavalheiros, nem tenho a morte de ninguém na consciência.
— Então é uma ingrata.
— Não! Está me confundindo, estou dizendo. Não sou...
- Também não é a mais bela mulher da terra!...
Ante essas palavras a duquesa riu com gosto.
- Fico muito agradecida, cavalheiro, mas, novamente, não sou... aquela a quem devem dirigir-se os seus comentários. Aposto como se trata da Condessa de Peyrac, senhora deste lugar, e que de fato bem poderia ser responsável, com seu encanto, pelas calamidades que senhor evoca... Virar a cabeça de gente sossegada e causar a danação de santos... é coisa de sua alçada. Ei-la aqui...
O marquês voltou-se para Angélica, que Ambrosina designava com um gesto. Empalideceu, corou, balbuciou.
- Que confusão! Perdoe-me! Sou muito míope...
Remexia nos bolsos do gibão, bordado de florzinhas rosa e verdes, bem comprido, à moda de Versalhes, e que se abria sob as abas de sua casaca.
- Onde estão os meus óculos? Não viu os meus óculos, Alexandre?
Dirigia-se a um adolescente que o acompanhava e que, apesar da pouca idade, parecia tão carrancudo quanto o marquês se mostrava jovial e exuberante.
— Óculos! - respondeu o rapazinho, com ar arrogante. - Para que?
— -Mas para ver, bom Deus! Você bem sabe que sou quase cego sem eles. Acabo de cometer uma gafe irreparável. Ah, senhoras, mil desculpas! Mas, de fato, cara condessa, a senhora é loura! A descrição me parece mais exata. Então é a senhora a Dama do Lago de Prata, cuja lenda Quebec inteira comenta.
Recompôs-se, recuperou o bom humor, o sorriso espontâneo, e seu olhar ia, com um prazer evidente, de uma mulher à outra.
- O que importa - decretou afinal -, a loura vale a morena! Eu estaria errado de me arrepender de minhas palavras. Quanto mais mulheres bonitas há, tanto mais feliz se é! Decididamente a vida é bela!
Pegou a ambas peremptoriamente pelo braço.
— Não me quer mal? - indagou a Angélica.
— Certamente que não - conseguiu ela dizer, enquanto ele já se dirigia a Ambrosina.
— Você também não, espero. Sou assim. Franco, direto, digo o que penso, e quando alguém me inspira admiração, sou absolutamente incapaz de me controlar. Tenho uma paixão, um culto pela beleza, todas as formas de beleza, e tenho que exprimi-la.
— Um capricho, suponho eu, que lhe perdoam de bom grado.
A Duquesa de Maudribourg parecia divertir-se. Seu belo rosto, habitualmente triste, transformara-se. Ria com indulgência. Ria e olhava o marquês no rosto, com uma ousadia que não lhe parecia costumeira.
— Cavalheiro, permite que lhe faça uma pergunta?
— Certamente. A uma mulher tão graciosa, tudo é permitido!
— Por que está com o rosto lambuzado de preto?
— O que me diz? - exclamou ele, muito agitado. - Ah, já sei, eu trouxe para o Sr. de Peyrac algumas amostras de carvão mineral, provenientes da baía de Chignecto...
Procurava o lenço, febril.
- Sei que ele aprecia esse tipo de presente. Há pouco estávamos examinando e admirando juntos a beleza e a qualidade desse minério que substitui com tantas vantagens a madeira nos duros dias de inverno. Trouxe uma carga de Quebec. Mas suja muito. Ele limpava o rosto, espanava, mas logo recuperou o entusiasmo.
— Em troca ele me presenteou' com um belíssimo fogão da Holanda! Não lhe parece muito atencioso daparte dele? Que homem encantador! Minha casa em Quebec vái ser a mais bonita de todo o Novo Continente! Conde - disse ele a Peyrac, que se aproximava -, isto é decididamente intolerável! Guardar na sua Gouldsboro as mais raras maravilhas da terra! Tem consigo as duas mulheres mais belas do mundo!
— Conheceu a Duquesa de Maudribourg?.- indagou Peyrac, apontando-a.
— Acabamos de nos-conhecer.
Beijou várias vezes os dedos de Ambrosina.
— Ela é encantadora.
— A Sra. de Maudribourg é nosssa hóspede há alguns dias. Seu navio naufragou na nossa costa.
— Naufrágioí Que horror! Quer fazer-me crer que este país magnífico, este mar tao belo são perigosos?
— Não se faça de iniocente - disse Peyrac; rindo. - Bem o sabe, depois da. façanha sem igual que acaba de realizar, atravessando as quedas reversíveis do estuário Saint-Jean com seu três-mastros.
— Não fui eu quem à realizou, foi Alexandre - disse o marquês, empertigando-se.
Joffrey de Peyrac apresentou à duquesa Colin Paturel, governador de Gouldsboro, seu lugar-tenente Barsempuy, o chefe de sua frota, Rolando d'Urville, Dom Juan Alvarez, capitão de sua guarda espanhola, os principais notáveis entre os huguenotes de La Rochelle, e por último o Barão de Saint-Castine, seguido do futuro sogro do barão, Mateconõndo, o sagamore dos suriqueses do Penobscot, que se apresentou com um barrete preto florentino, ganho de Yerruzano, colocado sobre o cabelo trançado.
A duquesa sorriu a todos graciosamente.
- Decididamente o senhor tinha razão, conde. Parece que nestas praias há mais gentis-homens bem-rtascidos do que na antecâmara do rei.
Ela se lembrava do comentário que ele lhe fizera quando de sua chegada.
- Somos todos gentis-homens de aventuras - exclamou o Tenente de Barsempuy -, todos nós empunhamos bem alto o estandarte de nossos pais, enquanto na antecâmara do rei agora só há burgueses ou covardes.
Ele tentava se valorizar, pois amava Maria, a Meiga, e receava que a duquesa não fosse favorável às suas intenções. Para maior segurança, repetiu o próprio nome, que o conde já havia pronunciado, e citou os títulos de seus pares na região de Nantes, de onde ele era originário.
A duquesa olhou com interesse aquele rosto bronzeado de jovem corsário, que respirava franqueza e a animação do guerreiro acostumado aos combates. De fato, não fora na antecâmara do rei nem nos parlatórios dos conventos que a Duquesa de Mau-dribourg pudera conhecer aquele tipo de gentil-homem. Era novo para ela. Certa curiosidade contida brilhava nos olhos de Ambrosina, que iam de um a outro dos rostos que a cercavam. Ela se controlava muito e era difícil saber o que pensava, mas Angélica intuía que ela sentia certo prazer por se ver entre aquele grupo inusitado.
Barsempuy tentava atrair a atenção de Maria, a Meiga, com sinais, imitado nisso, com muito menos discrição, por Aristides Beaumarchand, que queria monopolizar Juliana.
Mas as Moças do Rei mantinham-se comportadamente agrupadas sob a salvaguarda de sua benfeitora e de Petronilha Da-mourt, com o secretário Armando Dacaux fechando o cortejo.
O Marquês de Ville-d'Avray descobriu-as.
- Mas há outras aqui! - exclamou. - Oh, que lugar admirável! Venham, senhoras, venham refrescar-se-
Rompeu o círculo e conduziu todo mundo até as mesas. Angélica ouviu-o dizer a Ambrosina de Maudribourg:
- Um naufrágio! Mas isso é medonho! Conte-me como foi, minha pobre moça!
Angélica foi travar contato com o Barão de Saint-Castine, que lhe apresentou a noiva, Matilde, a jovem princesa indígena que ele amava. Era bonita e fina, com sua pesadas tranças negras a emoldurar-lhe o oval do rosto dourado.
— Pode dar-me notícias do nosso marinheiro inglês, Jack Merwin? - indagou ao barão.
— O Padre de Vernon? Seguiu viagem. Penso que tentou alcançar o Padre d'Orgeval no Kennebec para prestar contas de sua missão.
— Em que pé está a guerra com os índios?
— Minhas populações permanecem calmas, mas as notícias que nos chegam as perturbam e é difícil contê-las. Os abenakis do oeste do Kennebec continuam a colher esçalpos e prisioneiros. Dizem que eles lançaram à- água suas flo&ilhas a fim de atacar as ilhas da baía de Casco e dar caça aos ingleses até os últimos refúgios. Caso as ilhas caiam, a Nova Inglatera se recuperará mal do golpe.
— Otimo! - gritou Ville-d'Avray, que, não longe deles, saboreando um guisado de caranguejo, surpreendera as palavras do barão.
— O caso se complicará se o corsário Phipps capturar seu intendente da Nova França - retorquiu Saint-Castine -, e se em represália todos esses navios ingleses que agora pescam na baía vierem assediar o meu Forte Pentagouet.
— Não tema nada; meu caro, o Sr. de Peyrac se encarrega dos ingleses - afirmou o- governador da Acádia, de boca cheia. - Provou este caranguejo, barão? Está excelente. Tem um travo de tal delicadeza... O quére, afinal? Ah, noz-mòscada, aposto! Não é? - dissg, apontando o indicador para Angélica, muito excitado, como se tivesse descoberto um segredo de extrema importância.
Ela reconheceu que ele acertara. "Não há bom caranguejo sem noz-moscada", diz o velho provérbio gastronómico das costas da província de Saitonge. O homem das especiarias e seu escravo caraíba tinham ficado em Gouldsboro não se sabe por quê, quando o Sans-Peur partira.
Simultaneamente, duas chegadas atraíram a atenção em duas direções diferentes. No mesmo instante, a metade das cabeças ali reunidas voltou-se para a orla da mata, de onde acabava de surgir um religioso de batina marrom, carregando sua canoa indígena à cabeça, e a outra metade se virou para a enseada, onde entrava uma pesada chalupa, com umas trinta toneladas.
- O Irmão Marcos, capuchinho de Saint-Aubin sur la Sainte- Croix - exclamou Ville-d'Avray, apontando o religioso -, e aí está Grande Fontaine - concluiu, com um gesto na direção do mar.
O apelido de Grande Fontaine era Grand Bois, "Grand Bosque", por causa do esplêndido, e aparentemente sem limites, bosque de carvalhos que rodeava a sua senhoria, onde ele passava a maior parte do seu tempo. Era um gigante que ia vivendo miseravelmente de coleta de peles, mas era principalmente um caçador e pescador impenitente, o que não contribuía muito para os seus negócios.
Dando cotoveladas e empurrando sem cerimonia os grupos de pessoas que desembarcavam da chalupa, ele pôs o pé em terra e gritou de longe, reconhecendo Peyrac:
- As quedas do estuário de Saint-Jean foram vencidas por franceses, franceses de rendas ainda por cima, aqueles belos cavalheiros de Quebec. Mas os imbecis foram surpreendidos por trás pelos ingleses que os perseguiam. Agora os ingleses estão bloqueando a entrada. Já não posso voltar para casa. Vim pedir uma ajudazinha.
Ele avançava, seguido da tropa heteróclita que desembarcara da chalupa. Alguns acadianos de boa compleição, um grupo de mulheres e crianças evidentemente inglesas ou holandesas, índios malecitas, ou mic-macs, que exibiam suas boinas pontudas e bordadas, e destacando-se de tudo o kilt e o tartan do escocês Cromley, a quem o conde despachara para levar uma mensagem de advertência aos povoados estrangeiros da baía Francesa.
— Sim - repetiu Grand Bois, aproximando-se -, aquele imbecil do governador realizou uma façanha de se tirar o chapéu, mas enfiou a todos nós no atoleiro...
— De quem está falando, cavalheiro? - perguntou o Marquês de Ville-d'Avray, aprumando-se em toda a sua altura para ser bem visto.
— Ah, está aqui! - exclamou Grand Bois, avistando-o. - Conseguiu passar... de Jemseg? E seguiu a pé pela floresta?
— Sempre consigo passar por onde desejo passar - gritou o governador com uma voz de falsete por causa da cólera -, e fique sabendo que sempre consigo alcançar os insolentes de sua espécie...
— Não se irrite - disse Grand Bois, um tanto aborrecido apesar de tudo -, eu disse que o senhor merecia que lhe tirassem o chapéu pela subida dãs quedas do estuário.
Fungou e passou a manga do casaco de couro pelo nariz úmido.
- No final das contas - continuou -, é verdade que estamos todos com um problema, por sua causa, com esses ingleses que se agitam como vespas. O senhor teria feito melhor escapando aos ingleses bordejando a baía ao invés de entrar assim pelo rio...
— Era o único meio de salvar a minha preciosa carga.
— Claro - troçou um dos recém-chegados -, preciosa sim, com todas as peles que nos tomou, limpando-nos até o caroço.
— Não lhes tomei nada, Sr, Défour - berrou o governador -, pela simples razão de que quando cheguei às suas terras não encontrei absolutamente nada e -ninguém...
— Encontrou o nosso gato.
— Mas apenas a ele! - rugiu Ville-d'Avray, que espumava. - Os quatro senhores Défour foranTpassear no bosque, ao invés de se comportarem como súditos leais de Sua Majestade e receberem honrosamente seu representante, ou seja, eu! E um deles, ao sumir, ainda encontrou um jeito de corromper os seis soldados do Forte Santa Maria, a fim de'"se pôr à disposição do Sr. de Peyrac.
- Pois bem, o senhor deve estar satisfeito agora, pois o Sr. de Peyrac deverá sírvir-Ihe. Ao trazemos para cá, o Sr. Défour antecipou-se a seus .desejos. E ao invés de lhe agradecer...
Os dois irmlos Défour eram parecidos, só que o mais novo, que acabava de desembarcar, era ainda mais alto e mais largo de ombros do que o mais velho. Ville-d'Avray examinou-os com ar sombrio.
- Bom! Pois esperemos que dentro em pouco os quatro malandros estejam reunidos aqui para" que eu possa pô-los a ferros e levá-los bem guardados para Quebec!
Os dois irmãos e Grand Bois soltaram uma gargalhada ruidosa e insolente, imitada com estardalhaço por todos os seus mic-macs, parentes ou irmãos de sangue.
Grand Bois tirou do bolso um lenço enorme para enxugar os olhos, pois ria a ponto de chorar.
— Aqui o_senhor não está em território francês, governador. Gouldsboro é um reino neutro e nós também somos.
— Um reino neutro! - repetiu o governador, de olhos arregalados. - O que foi que ouvi? Mas então é uma rebelião!... A revolta contra a Flor-de-Lis!...
Joffrey de Peyrac desinteressara-se da discussão. Os desentendimentos do governador da Acádia com seus administrados eram célebres e se repetiam mais ou menos nos mesmos termos em cada uma de suas visitas anuais.
O conde foi conversar brevemente com o escocês e com os poucos refugiados das feitorias inglesas e holandesas, trazidos pelo escocês, mais a título de medida preventiva do que premido por uma ameaça de guerra indígena. Aliás, o que se revelou foi que os colonos estrangeiros da baía Francesa preocupavam-se mais com os atos de seu compatriota bostoniano, Phipps, do que com os dos franceses, e que haviam agarrado com todas as forças a oportunidade de visitar Gouldsboro enquanto as coisas não se resolviam à entrada do rio Saint-Jean. Uma barca de acadianos passando ali recolhera-os a bordo sem dificuldades.
— Alimentem-se - disse-lhes Peyrac, depois de apresentá-los ao Reverendo Patridge, a Miss Pidgeon e aos refugiados ingleses da baía de Massachusetts. - Dentro de alguns dias poderão voltar para casa. O velho chefe Skudun controla bem seus índios e vou visitá-lo pessoalmente para tranquilizá-lo.
— É em nome dele que venho trazer-lhe este colar de porcelana - informou o religioso de hábito marrom, que se aproximara.
Estendeu a Peyrac uma tira de couro, sobre a qual se enfileiravam conchas.
— Skudun mandou charmar-me especialmente à sua aldeia de Metoudic para enviar-me a você. De Jemseg, esses senhores de Quebec lhe pedem que conduza seus guerreiros contra os ingleses. Ele ainda não tomou nenhuma decisão e lhe manda isto.
— Uma única tira!...
Peyrac passou o colar de conchas pela palma da mão, refletin-do. A remessa era diminuta. Tanto podia significar "O que devo fazer? Estou na expectativa, quanto "Isto é um gesto de deferência que lhe devo antes de entrar em campanha, mas agirei conforme minha vontade".
— O que acha, meu padre, o senhor que o viu? - perguntou Peyrac, voltando-se para o capuchinho.
— Ele não dará um passo antes de saber sua opinião. Ainda assim, porém, está preparando alguns alojamentos de guerra a fim de agradar a esses senhores cujos navios estão sob ameaça inglesa.
O capuchinho exprimia-se com indiferença. Sentia-se que para ele essas negociações tinham pouca importância. Jovem, com um rosto enérgico e gracioso, muito bronzeado, imberbe, os cabelos castanhos emaranhados pelo vento, a batina enrolada bem alto no cinto de corda, calçado de mocasssins, havia algo nele que, embora tivesse recebido as ordens e pudesse celebrar a missa, fazia que o chamassem de Irmão Marcos, como se fosse um noviço ou leigo.
— Que sorte para você que Skudun o tenha despachado a bater perna - lançou-lhe Ville-d'Avray em tom acerbo -, prefere isso aos padre-nossos! Hein? E pôde .cometer loucuras em todos os rápidos do Saint-Jean, do- Sainte'Croix,*atê do Meduxnakeag. Quantas vezes emborcou a canoa sobre a cabeça? Quantos trambolhões levou nos redemoinhose nos rochedos?... Essa juventude só pensa em proezas fogosas contra as águas, este país os deixa loucos - comentou o marquês, dirígindo-se a Angélica. - Veja este religioso. Deixa os próprios índios boquiabertos com sua ousadia ao descer todos os cursos d'água considerados intransponíveis e perigosos-. Acredita, que ele pensa no serviço de Deus, pelo qual foi .mandado para cá? Pois sim!... E o,meu Alexandre? Seus pais o confiaram a' mim para que eu faça dele um gentil-homem consumado.ijiíbo um selvagem que só sonha em subir o curso de um-rio com a velocidade de dez cavalos galopando, como fez no ano passado no Petit Codiac. Neste ano ele tinha que vencer o "estuário do rio Saint-Jean... .
— Então o .senhor confessa que foi mesmo para agradar a seu favorito que nos pôs a todos em apuros! - gritou Bertrand Défour.
— Eu não tinha convocado Phipps - berrou Ville-d'Avray, fora de si.
— Não importa, a proeza permanece válida - disse o Irmão Marcos, conciliador. - Vejam que não se tiram apenas desvantagens da situação. É a lembrança daquela subida no ano passado e desta agora que torna Skudun tão perplexo, que o faz perguntar a si mesmo se não deveria dar uma ajuda aos franceses e acabar se mostrando um aliado sincero.
O rosto do marquês iluminou-se e ele deu aquele sorriso juvenil que o remoçava em vinte anos.
— Eu não dizia? - exclamou. - Não foi em vão que Alexandre arriscou sua vida... e a minha. Esse rapaz é excepcional. Veja, conde, sem o meu Alexandre, estaríamos todos perdidos.
— Atenção, ainda não estamos salvos - retificou Peyrac, rindo. - E, justamente, eu não gostaria que Skudun se mostrasse demasiado fiel aos franceses. Pretiro nesse caso sua mentalidade altiva. Será preciso que eu, por minha vez, encontre alguma coisa para impressioná-lo.
Olhou à volta e foi na direção do grupo de ingleses, cuja maioria se sentara na areia, na orla dos sargaços, comendo modestamente e bebendo cerveja.
- Mr. Kempton, o mascate, está entre vocês? - indagou.
Estava, ativamente, tomando medidas de todos os pés que se ofereciam e prometendo para o dia seguinte, o mais tardar para a semana seguinte, pares de sapatos de uma elegância londrina e de uma resistência a toda prova. Ele tinha couro para tantas encomendas? Claro que sim, e da melhor qualidade! Bem, na verdade ele ia se abastecer dentro de dois dias. Conhecia uma ilha que...
A pergunta de Peyrac, o pequeno mascate de Connecticut se apresentou, espichando o nariz pontudo para o alto interlocutor, mostrando o pescoço com. várias voltas de fitas, como um encantador de serpentes.
— Mr. Kempton - disse-lhe o conde -, eu precisaria de seu urso.
— De meu urso! O que quer com ele? - protestou Elias Kempton, desconfiado.
— Fazer dele um aliado meu. Ou melhor, confiar-lhe uma missão da mais alta importância. Um urso tão inteligente deve entrar para a diplomacia, a serviço da Inglaterra. Quero levá-lo comigo a Métoudic a fim de conquistar o chefe dos malecitas, Skudun, de quem espero serviços importantes, entre outros o de não se aliar aos franceses para a guerra.
Elias Kempton balançou a cabeça.
— Impossível. Mr. Willoagby não pode participar de empreendimentos perigosos assim. De todo modo, não posso me separar de meu urso.
— Mas pode acompanhá-lo.
— Oh! Yes. Há mulheres europeias por lá? - indagou o mascate, sempre desconfiado.
— Claro! E das mais abandonadas. Hão de acolhê-lo com alegria. . .
— Oh! I see! Entendo. Isso muda tudo - encantou-se Elias Kempton, de olhos brilhando.
— Esses ingleses são de uma concupiscência! - comentou com repugnância Ville-d'Avray, que saboreava aos bocadinhos uma
torta de airelas e que sabia o suficiente de inglês para ter acompanhado o diálogo.
- Mas não, não é o que imagina - corrigiu Angélica, rindo.
— Esse homenzinho é um mascate da Nova Inglaterra à procura de clientela. Seu alforje é inesgotável. Ele tem sempre alguma coisa para vender. Com ele, o milagre a que se assistiu nas praias foi o dá multiplicação do punho dé renda e 3o cordão de cetim. E, naturalmente, todas as mulheres ficam felizes de vê-lo chegar.
Kempton decidira-se.
— Está bem. Informarei Mr. Willoagby e lhe darei a resposta dele amanha - concluiu, com pressa de retornar aos negócios. Afastou-se gritando: - Olhem os belos sapatos! Olhem os belos sapatos novos...
— Mas que. figura extraordinária - comentou a Duquesa de Maudribourg -, e comótoda essa gente é vivaz e engraçada... Nunca me diverti tantto- exclamou, olhando Angélica com o entusiasmo deuma menina em seu primeiro baile.
Parecia fascinada. Esquecia suas responsabilidades de benfeitora e, dentre os-novosxolpnos, os' que se consideravam os "prometidos" das Moças dó Rei aproveitavam para tentar a sorte junto daquelas senhoritas, levando-as para junto das mesas para, a pretexto de lhes passarem pratos e bebidas, ficarem mais a sós com a bela de sua escolha. Barsempuy esfprçava-se, com gentileza, por desarmar o recato de Maria, á"Meiga; o quartel-mestre Vanneau começara a relatar a Delfina Barbier du Rosoy as suas campanhas mundo afora. Naturalmente Aristides Beaumarchand se exibia para Juliana, que nem sempre conseguia conter uma sonora gargalhada e logo levava-a mão à boca, dando uma olhada inquieta na direção da duquesa e de Petronilha Damourt. Masaté, a corpulenta aia, relaxara a guarda. A chegada de Cromley perturbara completamente os conceitos da brava mulher sobre a espécie masculina. Aquele espécime, que usava saia e suíças ruivas e eriçadas como vassouras no meio das faces, intrigava-a visivelmente, e, vendo o interesse que inspirava, o escocês começara, com sua segurança costumeira, a contar-lhe todo tipo de histórias horripilantes sobre as aparições que surgiam na baía, os navios fantasmas e os monstros marinhos.
Angélica notou que apenas a mourisca, que no entanto era bastante amável e bonita, parecia um pouco abandonada. Os marujos de Colin Paturel, agora dando-se ares de honorabilidade, não queriam de modo algum, cortejando uma mestiça, lembrar o gosto um tanto pronunciado demais que tinham tido pelas moças das ilhas no decorrer de suas viagens.
Angélica se propunha a ir até ela, a fim de distraí-la, e confiá-la às moças de Gouldsboro, mas nesse momento, antecipando-se a ela, Yann le Couénnec, que notara a solitária, abordava-a.
— Fala francês, senhorita?
— Mas com efeito! - exclamou esta. - Fui educada no convento das ursulinas de Neuilly, perto de Paris, e sei ler e falar em sociedade.
— Fico encantado com isso - afirmou o rapaz. - Quer tomar cerveja de espinheiro, limonada de sumagre branco, ou um pouco de vinho da Espanha para alegrar o coração?
- Vinho da Espanha! - disse a jovem, que voltou a sorrir.
A duquesa, ao lado de Angélica, acompanhara a cena.
- E muita bondade desse rapaz ocupar-se dessa criança - observou, com um suspiro - Minha pobre Mourisca! Eu não que
ria me encarregar dela, mas foi minha amiga, a Marquesa de Roquencourt, que insistiu muito para que eu fizesse isso. Não sei se ela encontrará quem a queira em Quebec. E lamento, pois apeguei-me a ela. Enfim, ela sempre poderá tomar hábito como leiga. Ela é muito preparada.
Num átimo Angélica pensou nos bastardos que as grandes damas depravadas concebiam com seu mouro e que em seguida escondiam no fundo de um convento ou que seus criados levavam num cesto para vender no Pátio dos Milagres.
— No que está pensando? - perguntou a duquesa, pousando a mão sobre o pulso de Angélica.
— Em nada de preciso - disse Angélica, balançando a cabeça para expulsar suas reminiscências.
Paris e suas perversões estavam longe. Ambrbsina exâminava-a com atenção, fitando-a com seus imensos olhos de âmbar.
— Às vezes há alguma coisa que passa pelo seu rosto - disse - e que a torna de uma beleza surpreendente... Você deve ter uma vida interior intensa.
— Não sei - replicou Angélica, sorrindo. - Quase não tenho tempo de meditar.
Indagava a si mesma se seria oportuno falar agora com a duquesa sobre o projeto de estabelecer em Gouldsboro aquelas Moças do Rei, pois o momento parecia bem escolhido. Mas Joffrey de Peyrac voltou para junto delas.
— Você não me disse que o sagamore Piksarett apresentou-se em Gouldsboro esta manhã?
— De fato. Veio reclamar meu resgate^, pelo que me disse, e queria encontrá-lo com toda a urgênciarMas não o estou vendo aqui.
— Que história de resgate é-essa? --- perguntou a duquesa, arregalando os olhos. - Você já fez alusão a isso hoje de manhã.
Angélica explicou rapidamente que num combate na Nova Inglaterra ela fora capturada pelo famoso Piksarett. Ele a deixara em liberdade, mas, segundo as leis da guerra indígena, o Sr. de Peyrac lhe devia ym"resgate, bem como aos dois outros guerreiros abenakis, pelos" ingleses capturados por estes e cuja libertação também fora conseguida.
— Tudo isso é "extraordinário - disse a Sra. de Maudribourg, olhando-a atónita, - Por que você não se livra desses índios insolentes?
— E preeiso respeitar os costumes deles...
Tinham mandado cnamar os dois guerreiros, Jerónimo e Miguel, que comiam pernas de cabrito perto de uma fogueira. Depois de limparem as mãos nos mocassins e nos cabelos, aproximaram-se.
- Onde está Piksarett? --- perguntou Angélica em abenaki.
Os dois guerreiros patsuikett se entreolharam e pareceram hesitar.
- Fugiu - respondeu Jerónimo.
A palavra parecia estranha, principalmente em relação a Piksarett, o intransigente. Peyrac fez que repetissem, depois pediu a opinião de Castine. Mas não havia outro jeito de traduzir a frase do abenaki. Piksarett fugira. Por quê? De que perigo? Ninguém parecia saber. Angélica e o conde se encararam.
- Lamento a ausência dele - disse Peyrac. - Gostaria de pedir-lhe que me acompanhasse- em nossa expedição. Skudun se preocupa muito com suas alianças com outras tribos abenakis, e a visita do Grande Batizado, cuja fama é considerável e de quem Skudun me falou com interesse, certamente o teria encantado muitíssimo. Os dois poderiam discutir religião, fumar do meu melhor tabaco da Virgínia, e eu teria tempo de desativar a bomba.
- Levai Mateconondo, meu futuro sogro - propôs o jovem barão gascão. - Também ele é muito eloquente sobre religião.
Nisso Jerónimo e Miguel começaram a discorrer sobre seus cativos ingleses, que haviam aprisionado em Brunswick Falis e atrás dos quais já corriam há um bom tempo. Tinha chegado o momento de saberem se podiam levá-los consigo ou se receberiam um resgate. Era preciso tratar da questão, pois os dois compadres tinham demonstrado certa paciência. •
— Esses selvagens são esplêndidos, não são? - disse o Marquês de Ville-d'Avray, enquanto mandavam chamar o jovem Samuel Corwin, os dois noivos, o Reverendo Patridge e Miss Pidgeon, que os abenakis pretendiam haver capturado.
— Olhem essa musculatura. Nem uma onça de gordura. A cada movimento a pele deles brilha como ouro. Mas eles cheiram bem mal. Pena! Sabem que eles podem correr com a velocidade de um cervo? Vi isso no Bosque de Bolonha, quando levei alguns espécimes para a França com o Sr. de Romagny, para divertir o rei. Puseram aquele jovem iroquês, Utakê, para correr junto com um cervo, o índio o alcançou e o pegou pelos chifres. O rei ficou fascinado. Utakê agora é o chefe das Cinco Nações e o pior inimigo da Nova França. Não valeu a pena levá-lo para uma viagem tão bela. Vá se entender esses animais!
— Ganhei dele um colar de wampum - disse Angélica, que se orgulhava muito do presente do chefe iroquês.
— Minha cara, você é capaz de tudo - atalhou o marquês, atacando um prato de guloseimas feitas de nozes picadas e torrões de açúcar. - Mas - concluiu, de boca cheia -, os iroqueses são monstros, e a Nova França só respirará no dia em que estiverem exterminados.
"Ah, acaba de me ocorrer", exclamou, mudando completamente de assunto, "Peyrac, meu caro, se quer impressionar o chefe malecita, leve meu Alexandre. Ouviu o que disse há pouco o Irmão Marcos. Não se pode deixar de honrar esse jovem herói, depois do que ele fez."
- O que não impede que tenha sido, uma tolice. - retificou Grand Bois. Se tivesse sido apenas o macaréu do Petit Codiac, ainda se poderia entender, teria sua utilidade. Contanto que não se deixe a pele por lá, percorre-se em uma hora uma distância que se levaria um dia para vencer pelo curso habitual do rio. Mas as quedas loucas do estuário do Saint-Jean...
- Mas a honra da façanha... Gente grosseira da sua espécie não consegue compreender...
Puseram-se todos a discutir asperamente de novo e o Irmão Marcos era o mais animado. Ovryiam-no com certa atenção, pois tinha grande experiência, e. dizia-se que não havia um selvagem que conhecesse como ele o menor salto dos inúmeros rios, regatos, riachos, desde o rio Loup, no Saint-Laurent, até o Kenne-bec, passando pelo Saint-Jeán o Sainte-Croix e o Penobscot.
— Parece que o-assuntó .realmente os exalta - observou Angélica ao Conde d'Urville, que estava perto dela.
— Se você conhecessse o país, entenderia - disse o jovem senhor normando. - Naquela região toda a vida parece condicionada por esse. movimento das águas, que rodeiam as pessoas, borbulham em-toda.parte. A floresta não é mais do que um ruído de cascatas...
— Se ao menos não houvesse marés com quase onze toesas - dizia Défour.
— Mas há mares ,de"onze toesas - replicava Ville-d'Avray, triunfante -, até de doze, ao que me disseram. Enquanto no Mediterrâneo as marés nãa^tingem uma toesa. O que deduzir disso senão que estamos numa região de fenómenos surpreendentes, o que obriga, no conjunto, a se ter um comportamento diferente das normas?
— A Bretanha, na sua extremidade ocidental, conhece marés de oito toesas. Nem por isso os bretões são loucos.
- São piores. Todo mundo concorda, em que eles não são gente como.os outros. Em todo caso, é uma raça à parte. Mas voltemos à sua baía Francesa. O que é que pode causar marés tão altas aqui?
— Eu sei - disse um marujo do Coeur-de-Marie, que, justamente, era bretão. - Foi gente de~Saint-Malo que me explicou. Eles vêm pescar "aqui iodo ano, os pais deles já faziam isso, há séculos, bem antes que Colombo viesse dar aqui. Quer dizer, eles conhecem todos os segredos desta costa.
— E então?
— Eles dizem que antigamente não havia marés assim mas apareceu um monstro marinho, enorme, com várias milhas de comprimento, e ficou encalhado na falha da plataforma submarina. Ficou lá, e cada vez que ele se-vira, o mar transborda.
— Cale-se, grande loroteiro! - exclamou Colin, enquanto as pessoas caíam na risada. - Isso já não são histórias que se contem hoje em dia.
— E por que não? - protestou o marujo, aborrecido. - Os malvinos também me disseram que às vezes, do lado das cinco ilhas, diante do Parsboro, a gente vê os olhos do monstro, brilhando embaixo da água. Parte do focinho dele estaria na baía Verde, outra parte na baía de Chignecto, bem na entrada do Petit Codiac, e isso explica por que aquela região fica tão agitada, quando ele tenta fechar a goela.
— Cale-se! Cale-se, meu caro - insistiu Ville-d'Avray, com indulgência. - Se o Sr. Peyrac o ouvisse, ele, que é um cientista, lhe passaria uma descompostura.
Mas de modo geral os marinheiros ficaram impressionados com a explicação do bretão.
- E por que isso não seria uma explicação, mesmo não sendo científica, como o senhor diz, "marquês? - lançou outro bretão, que queria defender o compatriota. - No final das contas, não faz muito tempo, em nossa terra, na Bretanha, a terra se mexia do lado de Pont-Brieuc. O feiticeiro Merlin mandou cavar e encontraram dois dragões gigantes, um branco e um vermelho... Esta região se parece com nossa terra. E esse malvinos que vêm há muitíssimo tempo à baía Francesa forçosamente sabem muita coisa sobre o lugar. Afinal, não é normal que o mar comece a subir de repente e depois a descer, como se alguma coisa o empurrasse de dentro e depois o chamasse de volta. Nós, homens do mar, que nascemos no litoral, estamos habituados, a gente nem pensa nisso, mas tem que existir uma razão.
Ville-d'Avray teve que confessar que também para ele a coisa era misteriosa.
- Não seria por causa de cardumes de peixes que se deslocam ou aumentam de volume quando desovam? - sugeriu o Irmão Marcos. - Na baía Francesa, isso explicaria a diferença em relação às outras; há muitos peixes aqui, também há lobos-marinhos, baleias...
Colin meneou a cabeça, dubitativo, e o marquês fez um muxoxo.
- Sua sugestão não me satisfaz em absoluto... Ah, aí está o conde, que retorna. Quem sabe ele possa nos desempatar...
A questão dos cativos ingleses pareceu resolver-se bem rapidamente, ou, pelos menos, as bases do acerto foram enunciadas para satisfação dos abenakis lesados. Não havia crianças brancas em jogo, o que simplicava o problema, e Uauenuruê-Jerônimo não insistia demasiado em levar consigo, como escravo, o seu irascí-vel refém, o Reverendo Patridgé, contentando-se em aceitar, conforme lhe propôs Peyrac, uma carga desmamas de Limbourg, azuis e vermelhas, que, dobradas .vima em cima da outra, formavam uma pilha da altura do cativo.
Esses regateios deixaram o pastor fora de si, e ele se pôs a trovejar, maldizendo os índios com versículos bíblicos, enquanto estes gargalhavam.
Tenuienant-Miguel, por seu lado, lamentava não poder levar Miss Pidgeon para a missão de São Francisco, perto de Quebec. Ela era um pouco yelEa, mas boa, ativa e corajosa. De bom grado os franceses a comprariam para batizá-la. No entanto, por um punhada de conchas dos mares do sul, cedeu-a a seus correligionários.
- Conde, desempate-nos - disse Ville-d'Avray, muito excitado. - Desconfio_jque poderá responder à pergunta, ou melhor, às perguntas que nos fazemos. Indo em ordem, primeiro, qual é o fenómeno que causa o movimento das marés em geral? segundo, por que particularmente em nossa baía Francesa ocorrem essas marés gigantes que fazem que em algumas horas a paisagem se transforme e se torne quase irreconhecível? A gente chega a um rio na orla de uma floresta e seis horas depois, no mesmo local, está ao pé de uma falésia.
Amistoso, Joffrey de Peyrac fitou o grupo e sorriu.
Naquele dia estava usando um gibão simples de veludo verde-escuro, de que Angélica gostava, pois era o que ele usava quando ela o encontrara em La Rochelle. Usava-o sobretudo quando estava descontraído, quando não se,sentia obrigado a resolver uma situação difícil. Angélica sentia que ele estava mais tranquilo e que saboreava, sem segunda intenção, o interesse daquele conta-to com pessoas diferentes mas que lhe eram todas devotadas ou favoráveis, reconhecendo implicitamente a presença dele e a necessidade daquela presença entre elas. Tratava-se de uma atmosfera nova, e Angélica, olhando-o a alguns passos dela, com sua expressão afável, a humanidade do seu olhar, cuja intensidade ardente às vezes era preciso enfrentar, mas de que ela também conhecia a paixão e a alegria, também se sentia tranquila.
Pareceu-lhe que nas têmporas do marido o toque prateado se acentuara, e seu coração se contraiu de ternura.
Daqueles dias atormentados nasceria algo de indelével entre eles. Ela sentia que eles, no fundo, ainda estavam como que quebrados. Mas havia muito a fazer naqueles dias de verão. Não tinha importância. O que era positivo se desprenderia aos poucos, e mais tarde eles saboreariam melhor o gosto e a riqueza, melhor do que naquela confusão. Eram obrigados a manter-se firmes, a resistir, tinham responsabilidades demasiado grandes para se poderem permitir o retiro de que precisariam. Mas, pensou Angélica para se dar coragem, mais algum tempo e voltariam para Wapassu, a "casa deles". Contanto que ele renunciasse àquela ideia de ir a Quebec, que a ela parecia perigosa...
- Responderei de bom grado à primeira pergunta - disse Peyrac -, mas gostaria de ver algum de vocês fazendo isso em meu lugar. Darei um presente a quem chegar à verdade pelo raciocínio e pelas suas observações^ Vamos, Senhores, você são homens do mar, e juntaram muitos conhecimentos no decorrer de suas campanhas. Reúnam suas recordações e façam a síntese de suas
experiências. Não demorarão, tenho certeza, a se aproximaram bastante da resposta científica e matematicamente demonstrada daquilo que provoca o movimento das marés em nosso globo terrestre.
Começaram todos a se encarar, a cochichar à parte, a franzir o cenho, a mergulhar em profundas meditações.
— Estou vendo Yann, que levanta os olhos para o céu - disse o conde. - Está ficando quente, meu rapaz.
— Será que se deve procurar o segredo das marés nas estrelas? -indagou Yann.
- Com certeza. Pelos menos nos astros - afirmou uma voz. -Pois as marés, são devidas à atração da Lua...
CAPÍTULO XV
Angélica e a dor do ciúme - Ambrosina, a Duquesa de Maudribourg, rouba a cena
Era uma voz de mulher. Todos os olhos convergiam na direção de onde ela viera.
A Duquesa de Maudribourg, ao lado de Angélica, enfrentou corajosamente"os olhares-, onde se misturavam surpresa, ironia e desaprovação. Aprumou o gracioso pescoço e deu um sorrisinho de desafio aos homens que a encaravam.
Um silencio estupefato, um pouco escandalizado, reinou por um instante. Aguardava-se o veredicto.
Peyrac deu alguns passos na direção da duquesa.
— Ganhou, senhora - disse, cumprimentando-a -, e saiba que Gouldsboro se honra de ter entre seus muros, se posso me exprimir assim, um dos alunos do grande astrónomo Gasseni, o francês que foi o primeiro no mundo a medir, na Guiana Francesa, o comprimento do meridiano terrestre.
— A Lua? O que é que a Lua tem que ver com isso? - exclamou o governador da Acádia: Elé parecia um pierrô embasbacado. Acrescentou: - Para começo de conversa, as marés acontecem tanto de dia quanto à noite.
— Você me surpreende, meu caro - disse-lhe Peyrac. - Reflita que para nossa Terra, um planeta entre outros planetas, a Lua está sempre lá, tanto à noite como"de dia, assim como o Sol, aliás.
— E atração? O que é que quer dizer atração? - indagou o quartel-mestre Vanneau.
- Já viu um ímã atrair agulhas? - disse a Sra. Maudribourg.- Em certas horas, a Lua faz o mesmo conosco.
Todos entenderam a simplicidade da imagem e novamente houve um silêncio surpreso, mas já menos incrédulo.
A maioria dos homens olhava para o céu. E Ville-d'Avray descobriu precisamente o crescente pálido da Lua, no nácar do céu que começava suavemente a dourar com a aproximação do anoitecer.
- Ah, é isso então que nos faz, arteira! - exclamou. - É verdade, Bergerac, aquele sábio que fazia versos e que trespassava com a espada todos os que zombavam do seu nariz comprido demais, bem que disse alguma coisa do género no século passado, mas eu achava que aquele gascão fosse louco, como todos os gascões - disse, jovial, segurando o braço de Peyrac e o de Saint-Castine. - E agora eu gostaria de saber por que em certas horas, que aliás variam, essa zombeteira resolve nos solicitar e em outras, nos deixa em paz.
Joffrey de Peyrac fez um gesto na direção da Ambrosina de Maudribourg.
— A honra é sua, senhora.
— Poderia explicá-lo tão bem quanto eu, conde - disse ela, com uma ponta de coqueteria. - Será que isto é um exame?
Ele meneou a cabeça. Seu olhar escuro e atento demorava-se sobre o rosto de Ambrosina de Maudribourg.
Foi então que Angélica sentiu uma dor inexplicável e que lhe pareceu quase física, como se o coração de repente se lhe retraísse, apertado por um punho brutal.
Era uma dor profunda e insidiosa, que dava medo. Vinha de uma fonte invisível, e Angélica por um momento não conseguiu analisar a procedência. Era o olhar de Peyrac a causa. Então ela entendeu. Aquele olhar que ele exibia naquele instante devia ser dirigido apenas a ela, Angélica, o amor, a esposa dele.
Ora, ei-lo que o pousava naquele rosto de moça que, na claridade perolada do dia a ponto de escurecer, adquiria uma espécie de transparência de alabastro, aquele rosto onde os olhos escuros e imensos ardiam com o fogo vivo da inteligência. Ele conservava um meio sorriso, mas ninguém conseguiu ler a natureza exata do que lhe passava pelo pensamento.
- Um exame, não, senhora - protestou. - Mas eu ocupo a cátedra com demasiada frequência. Gostaria de ser seu aluno por alguns instantes.
Ela soltou uma gargalhada quase infantil, com um movimento de protesto que lhe moveu a ampla cabeleira sobre os ombros.
— Tolice! Tenho certeza de qtíe não tenho nada a ensinar-lhe, a você!
— Pois eu tenho certeza do contrario.
"Mas... eles estão flertando!", pensou Angélica, horrorizada. E foi de fato uma espécie de terror que a paralisou enquanto essas palavras eram trocadas na sua frente e ela percebia, num pesadelo longínquo, a voz surda da marido e a de Ambrosina, enfeitiçante, junto com seu sorriso.
— Conde, está preparando armadilhas para mim!... Um sábio de sua reputação! Pretende, realmente, não saber a razão pela qual a maré não ocorre éx-atamentè, quando a Lua se encontra no seu zénite, mas com certa jdefasagem de horário...
— Infelizmente é. verdade. Ainda não consegui determinar a causa matemática desse fenómeno...
— Está zombando-de mira...
— Não! Você é que teria o direito de zombar de mim... Mas a humilhação é ligeiral. A gente se perdoa por ser ignorante quando tem o. privilégio de ser ensinado por uma mulher tão bonita... Então, ouvimos a mestra em ciência...
— Esperem! Esperem! - gritou Ville-d'Avray. - Eu quero entender também! Comecemospelo começo. Em que a atração da Lua, admitindo-se que haja atração, provoca marés?... Ouça bem, Alexandre!
- Eu sei tudo isso - fez o rapazinho, amuado.
Ambrosina se voltou com vivacidade para o adolescente, com uma expressão interrogativa e imperiosa. O garoto teve a prudência de bater em retirada.
- Quero dizer que o Padre dé Maubeuge, em Quebec, me falou disso, más não prestei muita atenção.
- O Padre de Maubeuge?
Ambrosina pareceu muito interessada.
— Ele esteve na China, não é? E contribuiu para a criação do Observatório de Pequim. Como gostaria de conversar com ele!
— Afinal, essa Lua? - impacientou-se Ville-d'Avray.
— Pois não, marquês. Faça perguntas, se deseja - disse ela, desta vez se dirigindo ao governador da Acádia.
— Bom - começou ele, em tom douto -, hum, se a Lua, como você diz, exerce sua influência sobre o globo todo numa proporção quase igual, como é possível que em certos lugares ocorram marés extremamente baixas e em outros, extremamente altas?
— Hábil objeção. Na verdade, isso foi muito discutido. Atual-mente está estabelecido que essa diferença de proporções no fenómeno se deve à viscosidade da água, que não é a mesma para todos os mares. Assim, o Mediterrâneo é um mar fechado e por isso muito salgado, a atfação da Lua não pode constituir uma curvatura suficiente para equilibrar a viscosidade da superfície; por outro lado...
— O que quer dizer com viscosidade da superfície? - perguntou alguém.
— A espessura do que constitui a "pele" do mar.
— A "pele" do mar! - quase gargalhou Ville-d'Avray.
— Exatamente, meu caro.
Angélica se recompunha. Desde que o marquês entrara em cena e o diálogo já não se travava unicamente entre o Conde de Peyrac e a duquesa, ela começara a se sentir melhor e a vencer a vertigem que a dominara bruscamente.
Pelo calor repentino que sentiu nas têmporas, entendeu que durante alguns segundos devia ter estado pálida como a morte. As palavras continuavam a zumbir-lhe nos ouvidos e ela se forçava a ouvi-las e a tentar entender-lhes o sentido, indagando-se no fundo de si mesma: "O que foi que aconteceu? O que foi que houve? Mas nada! O que foi que me deu de repente?... Não aconteceu nada... Está tudo muito normal, muito natural..."
Ouvia a voz de Ambrosina de Maudribourg explicar com muita clareza que, se "se atirasse uma bala de fuzil contra a superfície do mar, a bala ricochetearia, o que provava que o mar oferecia resistência à penetração, por causa da sua "pele". Num mar fechado, como o Mediterrâneo, essa "pele" parecia encolher-se obrigatoriamente, tornando-se portanto muito espessa, o que oferecia uma resistência à atração do astro das noites. Ao contrário, quanto maior a superfície, mais ela se estirava, como ali, na baía Francesa, ou no beco bretão do monte Saint-Michel, onde vão dar as duas extremidades de um oceano imenso, e mais facilmente obedecia o mar à força atrativa da Lua.
- Além disso, nesses dois lugares os geógrafos puderam de terminar a presença dessa plataforma glacial de que se falava, e essa é uma causa suplementar, devido à pouca profundidade do mar, ao adelgaçamento extremo dessa superfície resistente da água. Assim, nestas nossas paragens, a Lua pode brincar com ela como todo um véu muito leve, dócil a todos os seus caprichos. Conde, minha explicação não se afasta demasiado do rigor científico?
- Ela é justa e acessível a todos - conveio Peyrac.
E balançou a cabeça várias-vezes, empinai de aprovação.
Ela fitou-o com um olhar-ardente'e como que enlevado. Tinha os lábios entreabertos, deixando perceber a borda de seus dentes brilhantes e perfeitos.
— Tudo isso parece lógico - admitiu o governador -, mas já se conseguiu determinar em que momento, fora dos sonhos, a doce Febo exerce sua influência sobre nós?
— Ela exerce sua.jnfluência mais forte quando se encontra entre a Terra e o Sol..;
- E as duas marés? -^interveio vivamente o quartel-mestre.
A duquesa explicou, çom aquela voz bem-timbrada e forte que
adotava quando falava de ciência, que para uma e outra maré a Lua não se éncontraví no mesmo local em relação ao Sol. Quando estava em quadratura, ou seja, em ângulo reto em relação ao Sol, as duas influências ser contrariavam e a atração era mais fraca e a subida das águas; menor. Eram as águas-mortas ou pequena maré, com meia amplitude, e que não se deve confundir, como fazem com frequência as pessoas não habituadas com os termos da marinha, com o refluxo.
- O que acontece com o refluxo?
— A Lua se afasta, a atração cessa, as águas levantadas simplesmente baixam.
— Isso me dá vertigem - comentou Ville-d'Avray, cético. - É de a gente se imaginar num balanço, hein?
Com o canto do olho ele observava as reações de Peyrac, mas este não parecia de modo algum pôr em dúvida as afirmações daquela bela mulher. Pelo contrário. Por trás de seus traços burilados, voluntariamente impassíveis, adivinhava-se certa satisfação.
- Então as leis de Kepler teriam sido confirmadas? - indagou o conde.
- Certamente. Aliás, eu me correspondi com ele.
O conde levantou ligeiramente uma sobrancelha.
- Com Kepler? - perguntou, com uma nuança de dúvida na voz.
— Por que não? - Ela o encarava novamente com ousadia. - Será que uma mulher, em sua opinião, não pode compreender essas leis que ele deduziu de suas observações das fases do planeta Marte? Saber que as órbitas planetárias são elipses onde o Sol ocupa um dos dois focos e também que as áreas atingidas pelos raios vetores que vão do centro do Sol ao centro do planeta são proporcionais ao tempo empregado para descrevê-los, ou seja, a percorrê-los, e também essas leis que afirmam que os quadrados dos tempos das revoluções planetárias são proporcionais ao cubo dos grandes eixos do alongamento das órbitas?
— Leis das quais Newton, o sábio inglês, deve ter deduzido as leis da gravitação universal, entre elas a atração lunar - arrematou Peyrac, que não deixara de ouvir a duquesa com extrema atenção.
Angélica recebeu como uma mensagem secreta o eco da voz dele. Desta vez não havia dúvida. Ele ficara profundamente tocado pelas palavras que acabava de trocar com a Duquesa de Mau-dribourg e que para todos os demais permaneciam herméticas.
Angélica ficou aliviada de ouvir o Marquês de Ville-d'Avray, que não gostava de ocupar papéis secundários, quebrar de novo o encanto perguntando:
- Voltemos à Lua! Ela está mais perto de nós do que esses seus centros imateriais. Mais uma pergunta, duquesa, para minha informação, sobre essas marés. Se admito um inchamento na superfície da Terra do lado do hemisfério de face para a Lua no momento da atração, como é que o mesmo fenómeno pode se reproduzir do outro lado do globo?
Ela dedicou-lhe um sorriso de comiseração.
- Mas o que é a Terra, cavalheiro - disse ela, suavemente -, no imenso sistema de planetas que nos rodeia, senão um simples ponto ínfimo? A influência da Lua, como a do Sol, de resto, não se contenta em nos atingir num único ponto, quer dizer, no lugar onde se está.
"Ela literalmente nos envolve, atravessa de lado a lado, e não é maravilhosa, quando se pensa nisso, essa comunhão com os sistemas visíveis ou invisíveis que nos cercam ao infinito? O que se pode fazer senão reconhecer a grandeza de nosso Criador, Deus, nosso Pai que está no céu?", concluiu, com fervor, de olhos alçados para o firmamento.
Uma estrela se acendia no ouro fluido do anoitecer.
E nesse momento um bando de pássaros passou com grandes batidas de asas, planando como um sopro, amplo e fugaz, acima do grupo silencioso.
Angélica, então, tomou consciência de um fenómeno insólito, algo de incomum, que ninguém notava, exceto ela. Aliás, ela mesma só o percebeu de modo fugidio, como se^ coisa estivesse acon-- tecendo em outro lugar e não dissesse respeito a ela em absoluto. Mas a visão se gravou em sua rjstitía de modo fulgurante: todos os homens presentes olhavam para Arribrosina de Maudribourg!
A duquesa parecia de umibeleza surpreendente, com seu rosto jovem e branco, extático e como que iluminado por uma paixão sagrada. Angélica não seria capaz de dizer quantos segundos se escoaram, mas talvez tivesse sido apenas um instante brevíssimo. Na verdade, talvez nem tivesse havido nenhum momento de silêncio. .
A benfeitora voltou-se para o Conde de Peyrac, dizendo em sua voz um pouco" mundana:
— Está satisfeito, Magister? Posso tirar a toga?
— Com certeza, senhora. Respondeu com mais do que capacidade a essas-perguntas árduas.'Agradecemos-lhe todos.
Ela continuava encarando-o fixamente. Depois fez um muxo-xo sorridente.
- E o meu presente? - disse, como que se decidindo. - Não disse que daria um presente a quem pudesse explicar a razão das marés e a amplitude delas na-baía Erancesa?
— E justo - anuiu ele -, mas...
— Não previu que seria uma mulher a lhe dar uma resposta? - exclamou ela, caindo na risada.
— Exatamente - admitiu o conde, sorrindo -, e se eu pensava em algumas tranças de tabaco para o cachimbo destes senhores...
— ...não previu nada para mim... uma mulher!
Ela continuava rindo, mas em tom mais suave, mais baixo, como que indulgente.
- O que importa? Não sou difícil. Perdi tudo nesse naufrágio... A menor coisa me dará prazer. Mas tenho direito à minha recompensa... não é?
Ele desviou os olhos, como se temesse enfrentar o olhar ao mesmo tempo atrevido e cândido de Ambrosina de Maudribourg. Pareceu a ponto de tirar dos dedos um dos seus próprios anéis para oferecê-lo à duquesa, mas, mudando de ideia, remexeu na bolsa de couro que levava ao cinturão e tirou uma pepita de ouro bruto, do tamanho de uma noz.
— O que é isso? - indagou ela, admirada.
— Uma das mais belas pepitas encontradas em nossa mina de Wapassu.
- Que coisa extraordinária! Eu nunca tinha visto um pepita.
Estendeu a mão. Mas ele conteve seu gesto.
— Não respondeu à "minha pergunta sobre o atraso horário do fenómeno de atraçãp em relação ao momento em que a Lua se encontra em seu zénite.
— Oh! Em outra ocasião, rogo-lhe - protestou ela, com uma coqueteria de menininha.
Ele entregou-lhe a pepita com um sorriso e ela ergueu-a nas pontas dos dedos delicados, fazendo-a cintilar ao Sol poente.
E novamente o medo invadiu Angélica, uma angústia que não podia ser expressa com nenhum grito, nenhum movimento, nenhuma reação de sua parte, um medo diante do qual a prudência exigia que ela permanecesse imóvel e impassível, sob pena de ver abrir-se, ainda mais largo e aterrorizante sob seus pés, o precipício vislumbrado.
CAPÍTULO XVI
Intervalo entre feras do Novo Mundo
Bruscamente o silêncio foi rompido por gritos, uma correria e, depois, gargalhadas.
O glutão Wolverines-, descendo a ladeira como um projétil negro, abria caminho por entre .a multidão, derrubando todos os que se encontravam à sua'frente, ,antes de estacar diante de Angélica, com a,cauda soberba levantada, a carinha de roedor ao nível do chão, enquanto dardejava para ela os olhos imensos, onde se refletiam os clarões vermelhos do céu.
A Duquesa de Maudribourg recuara com um grito. Encontrava dificuldade em não tremer;
- Que monstro é esse? - exclamou, aterrorizada. - Angélica, por favor, salve-me!
- É só um glutão. Não é perigoso. É domesticado.
Angélica ajoelhou-se para acariciar o animal. De repente sentiu-se muito feliz com o aparecimento de Wolverines. Dava-lhe uma espécie de alívio.
— Ele está procurando Cantor. Está como que enlouquecido desde que Cantor partiu.
— Seu filho teria feito melhor levando-o consigo - gritou a Sra. de Manigault, que caíra sentada no seu amplo assento, felizmente sem se machucar.
— Mas ele procurou o glutão - explicou Marcial Berne. - Nós o procuramos juntos no momento da partida. Mas "Wolverines fora brincar na floresta com o urso. Cantor -teve que embarcar sem ele.
— Ele é muito amigo do urso - observou a inglesinha, Rose Ann.
— Ah, aí está o urso! - disse alguém.
Elias Kempton entrava no círculo, seguido de seu enorme companheiro.
— Trago-lhe Mr. Willoagby - declarou com solenidade ao Conde de Peyrac. - Coloquei-o a par do que o senhor espera dele e ele não faz objeção em acompanhá-lo ao fundo da baía Francesa, embora se sinta muito bem em Gouldsboro e não goste muito de navegar. Mas trata-se de um questão de prestígio para a Inglaterra, e ele compreende isso.
— Agradeço a esse súdito leal do rei da Inglaterra - disse Peyrac, que dirigiu ao urso algumas palavras em inglês.
O animal, de fato, ganhara novo viço em Gouldsboro, onde se fartara de mirtilos, avelãs e mel. Parecia duas vezes maior do que quando desembarcara. Pôs-se a farejar em todas as direções, como se procurasse entre os presentes um rosto conhecido, depois, erguendo-se nas patas traseiras, dirigiu-se rebolando e grunhindo para Angélica.
Em pé, era uma cabeça mais alto do que ela, e era impressionante.
A duquesa soltou outro grito, abafado, e quase desmaiou. Qs que estavam mais perto recuaram às pressas. Joffrey de Peyrac e Colin Paturel fizeram um movimento automático na direção do animal. Mas com algumas palavras em inglês Angélica fez o urso se pôr de quatro outra vez, e acariciou-o, prodigalizando-lhe palavras amistosas.
- A Bela e a Fera - exultou o Marquês de Ville-d'Avray. - Realmente, que espetáculo extraordinário!
CAPITULO XVII
Angélica, convidada a4r a Quebec, sofre de ciúme
-Sim, realmente - comentou ele um pouco mais tarde -, que espetáculo fora do comum! Sua lourice e sua graça perto daquele monstro peludo! Vo'çê não tem medo de nada, realmente. Faz jus à reputação que adquiriu em Quebec... Não, não leve isso, minha boa senhora - interveio" ele, retendo a Sra. Carrre, que começava a juntar os pratos das mesas -, ainda há um pouco desse caranguejo delicioso neste prato. Passai-o para mim. Hum! É absolutamente divino!... O que é que eu estava dizendo? Sim, cara Angélica, você faz jus ao retrato que pintam de você seus entusiasmados partidários em Quebec. Quando penso que D'Arreboust, grave e solene como é, causou um escândalo ao tomar sua defesa quando retornou da viagem ao Kennebec... Antes não nos entendíamos. Ele me considerava libertino demais. Mas a coragem dele em relação a você me agradou, e isso nos aproximou. Está visivelmente apaixonado por você. Em Montreal, a mulher dele já se desmancha em orações pela salvação de sua alma. Mas enfim, por que é que ela não dorme com ele? Ela está, recebendo apenas o que merece!
Angélica só ouvia com um ouvido. As pessoas se dispersavam. Arrumavam-se as escudelas, os copos e cântaros. Rapazes vigorosos se encarregavam de desmontar os cavaletes. A penumbra lilás invadia a praia e os chamados dos que já começavam a não se enxergar subiam com uma sonoridade particular, pois o crepúsculo estava límpido e o vento serenava.
Angélica procurava o marido com os olhos e não o achava.
- Em Quebec, quando houve a grande fome, quando se dizia que vocês tinham todos morrido no fundo da mata, o Cavaleiro de Malta Loménie-Chambord comandou uma novena por vocês. A coisa pareceu excessiva. Mas eu fui. Sempre gostei de fazer alguma coisa pelas mulheres bonitas, até rezar por elas. Houve grande tumulto por causa disso. Janina Gonfarel liderou as mulheres contra você. Agiu assim para agradar aós jesuítas. É a sua maneira de conseguir que eles a deixem em paz com o bordel que tem na Cidade Baixa. Há todo tipo de gente interessante em Quebec, você verá. Adoro aquela cidade. O tempo todo acontecem coisas foca do comum. Eu já estava lá em 1662 quando passou um cometa, sinal de guerra, e canoas em chamas levando todos os que tinham morrido martirizados pelos iroqueses... Você matou Pont-Briand, pelo' que se diz?
— Eu? Não matei ninguém...
— Enfim, ele morreu por sua causa. Era um excelente amigo meu, mas amava demais o belo sexo. Considerava-se irresistível. Uma presa fácil para aquele jesuíta hábil.
— De quem está falando? - perguntou Angélica, com voz alterada.
Acabava de avistar Joffrey. Estava em pé, perto da porta do albergue, conversando com a Duquesa de Maudribourg, sentada num dos bancos de madeira que ladeavam a porta.
- Mas de Sebastião d'Orgeval, ora! - retorquiu Ville-d'Avray. - Bom sujeito! Gosto muito dele. De início tivemos desavenças. Mas não tenho medo dos jesuítas. São criaturas que têm o seu encanto.
Sim, minha carruagem esbarrou nele numa rua que subia. Depois ele quis me proibir o uso da carruagem, dizendo que as ruas de Quebec não são feitas para carruagens. Ele tem razão. Mas mandei vir essa carruagem da Europa com grande despesa e tenho que utilizá-la...
Ambrosina de Maudribourg, com as mãos juntas sobre os joelhos, alçava para o Conde de Peyrac o rosto alvo. A silhueta do conde se delineava, longa, imponente, contra o fundo esbraseado da baía. De vez em quando, gente que entrava no albergue ou saía roubava-o às vistas de Angélica.
— Leve isso, meu amigo - disse Ville-d'Avray estendendo o prato a um dos filhos Carrère, que passava. - Ainda tem alguns daqueles deliciosos confeitos de nozes, creio?...
— Não, Monseigneur, as crianças comeram tudo.
— Que pena!
Limpou a boca com o lencinho de renda e se espreguiçou com satisfação.
- Angélica, a vida é bela! Não é?... Você não responde? - Por quê? O tempo não está delicioso? E não tivemos um momento excepcional, ouvindo aquela bonita duquesa a nos instruir?... Ah, fiz bem em sair de Quebec por algum tempo! Depois do inverno fica-se muito nervoso por lá. Minha criada me provocava. Queria ir visitar a família na ilha de Orleans. Essa mania de se mexerem um pouco que todos os canadenses têm no fim do inverno! "Pois vá", disse-lhe eu, "não sou um recénvnascíde-que não possa passar sem você!" Mas não há corno ela.para saber preparar meu,chocolate da manhã. Gosto bem temperado^ à moda espanhola. O pequeno Maudreuil também estava todp agitado. Queria ir coletar peles nas terras altas, como todos esses jovens de cabeça quente. "Pois bem", disse-lhe eu, "parta, Eliacin!" Ele também voltará. Estava com medo de que o casassem à força, os novos decretos são severos. Eu teria intervindo. Mas*ele não confia em mim. Foi criado pelos iroqueses, sabia? Quanto a Alexandre, reclamava proezas náuticas. Agora estava' escuro ali Q.a margem. As lanternas e as lâmpadas ainda não tinham-sidq acesas. A temperatura estava tão amena, que as pessoas hesitavam em se separar e voltar para casa. Demoravam-'se.r conversando preguiçosamente, em grupos.
— Sim, a vida é bela - repetiu-o Marquês de Ville-d'Avray. - Gosto da atmosfera<laT>aía Francesa. Está sentindo essas correntes que-passam no ar? E por isso que todo mundo aqui está um pouco à beira da loucura. Exceto seu esposo, que persegue metodicamente os seus objetivos e se contenta em edificar sem loucura coisas loucas.
— Que coisas loucas? - perguntou Angélica, voltando-se para ele com nervosismo.
— Ora, por exemplo, a criação deste povoado. Católicos e calvinistas lado a lado... Isso não é viável! Quando as crianças crescerem, vão se amar, vão querer casar uns com os outros... Mas pastores ou padres se recusarão a uni-los, os pais os amaldiçoarão, as mães chorarão...
— Ah, cale-se! Você me arruina o moral! - exclamou Angélica, não aguentando mais.
— Mas o que tem você? Não quis afligi-la. Pelo contrário. Não estava dizendo como gosto destes lugares que você anima mais com a sua presença? Que originalidade,"que variedade entre tantos tipos humanos vindos de todos os cantos do mundo!
Passaram aves com grandes gritos lancinantes.
- Que agitação! Que animação!
— Sim, é uma autêntica feira - disse ela.
— Não, é o verão - replicou ele. - O verão é curto. Nestes países do norte há que viver depressa, intensamente, febrilmente, acertar tudo em alguns meses. Mas depois... Vamos, vá a Quebec no outono... E tão bonito! Os navios já partiram, os Laurentides estão rosa, o Saint-Laurent fica como um grande lago pálido, ao pé do rochedo, deixando-se dominar suavemente pelo gelo. Vá mesmo.
— Mas você mesmo diz que depois não se pode sair de lá.
— Pois você passará" o inverno lá. Coloco minha casa à sua disposição e do Sr. de Peyrac. É uma das mais confortáveis da cidade... Estarão bem instalados. Não, não me incomodarão em absoluto, tenho um apartamentozinho na Cidade Baixa e...
- Com licença - atirou-lhe Angélica, deixando-o bruscamente.
Acabava de distinguir a silhueta de Ambrosina de Maudribourg
destacando-se da sombra do albergue e subindo para o povoado. Num movimento impulsivo, foi ao encontro dela. A duquesa andava depressa, quase correndo. Por pouco não se chocaram uma com a outra, e ao reconhecer Angélica na semiclaridade que ainda havia no céu, Ambrosina teve uma expressão assustada.
— O que foi? - indagou Angélica. - Você parece perturbada.
— Você também.
Houve um silêncio. Os olhos da duquesa eram duas cavidades escuras em seu rosto marmóreo. Suas pupilas se fixavam nas de Angélica com uma intensidade dolorosa.
- Como você é bela! - murmurou quase maquinalmente.
— Você falava com meu marido. O que será que lhe disse ele para tocá-la a tal ponto?
— Mas nada, realmente nada. Falávamos... - Hesitou e balbuciou: - Nós... nós falávamos de matemática...
— Então você foi conversar mais sobre matemática com a Sra. de Maudribourg? - perguntou Angélica a Peyrac. - Ela decididamente é muito sábia.
— Talvez em demasia para uma mulher bonita - disse o conde, distraído. - Mas não, esta noite aprendemos o suficiente com aquela preleção magistral sobre as marés, muito interessante, confesso. Contentei-me em comunicar-lhe as possibilidades de algumas de suas protegidas se estabelecerem aqui.
— E que disse ela?
— Que pensaria no assunto.
CAPITULO XVIII
Angélica busca a compreensão de Ambrosina na questão das Moças do Rei
Passaram-se dois dias, còm seus contingentes de incidentes, tarefas a cumprir, problemas a resolver, hóspedes mais ou menos desejáveis mas que pareciam concentrar-se na direção de Goulds-boro como o único rugar onde se tinha certeza de encontrar terra firme sob os pés, refúgio e segurança garantidos, naquele período tenso que a baía Francesa vivia.
Angélicatentara se localizar, procurara entender o que de fato lhe acontecera na praia quando vira Joffrey olhando para Ambrosina. Mas a experiência se atenuava, apagava. Ela não conseguia explicar a si mesma a emoção que sentira. Como dar crédito à sua impressão quando Joffrey continuava ali, compartilhando as noites com ela, e quando lhe parecia que ele nunca lhe testemunhara tanto fervor?
No domínio do amor estava tudo claro entre eles, e se cada um chegava a ocultar uma preocupação secreta, isso decuplicava a intensidade do sentimento que õs aproximava, um encontrando no outro a força"necessária, cada um, na sua solidão, sabendo que não possuía melhor refúgio do que aquele amor recíproco.
- Como sou feliz! - dizia:lhe ele baixinho. - Sua presença me deixa felicíssimo.
Ele já não falava de partida, mas Angélica sabia que de um momento para o outro o marido poderia ser obrigado a tomar a decisão de levantar âncora. Isso tornava mais preciosas e exaltantes as horas que lhes eram concedidas. Ela abençoava a noite, refúgio dos amantes. A noite! É à noite que se trama tudo da felicidade ou da infelicidade dos homens.
No dia seguinte à conferência na praia, um naviozinho de pescadores malvinos veio prover-se de água, desembarcando um eclesiástico ilustre, que levantava a sotaina, aborrecido, para evitar as poças na areia.
- Mas é o meu sulpiciano! - exclamou Ville-d'Avray, avistando-o de longe. - Então, você também, meu bom amigo, largou a todos lá em Jemseg, todos aqueles fidalgos acadianos e aquele insensível Carlón! Pois fez bem. Aqui pelo menos a gente se diverte e come-se bem. Essa Sra. Carrère é uma artista. Eu a contrataria de bom grado como cozinheira se ela não fosse huguenote, mas pode imaginar... já em Quebec, com as minhas excentricidades... se eu levasse uma cozinheira protestante! O meu navio continua no lugar e não foi saqueado? Ah, não me diga que os ingleses se apoderaram dele!
O sulpiciano, Sr. Dagenet, não disse. Os ingleses, de fato, continuavam emboscados na entrada do estuário, à espera de que a caça cansada tentasse sair da toca. O sulpiciano se enfadara e tomara a rota da floresta, depois a do mar, para ir ao encontro do governador, a quem estava ligado como capelão particular.
- Mas você teria feito melhor ficando para vigiar a minha bagagem - censurou-o Ville-d'Avray. - No fundo, porém, eu o entendo. Está-se muito melhor em Gouldsboro do que em Jemseg, onde só se come milho cozido e caça. Não se assuste. Isso aqui está cheio de protestantes e de ingleses, mas é muito agradável. Você vai ver. Há mulheres admiráveis...
Depois chegou o Padre Tournel, capelão de Port-Royal, vindo no navio de cento e quarenta toneladas que a Companhia dos Associados da Acádia colocava à disposição do proprietário de Port-Royal. Vinha pedir notícias, enviado pela castelã, que se preocupava com a demora do marido. Humberto d'Arpentigny, o jovem senhor acadiano do cabo Sable, acompanhava o mensageiro da Sra. de La Roche-Posay.
Peyrac lhe disse:
— Veio então me ajudar a assustar os ingleses no estuário do rio Saint-Jean.
— O que eu ganharia com isso?
— A indulgência do intendente Carlon, que está a ponto de cair nas mãos deles.
Humberto d'Arpentigny foi conferenciar com o seu próprio intendente, Pol Renart, e com os seus mic-macs. De resto, fora até ali atraído por uma vaga atmosfera de preparativos de combate que só podia concentrar-se em Gouldsboro, o único lugar que oferecia a possibilidade de se^ntrar em campanha por via marítima. Em favor de quern^ essa guerra, e com.que finalidade? Ali naquela parte do mundo essa definiçãçtnunca era fácil, mas havia sempre uma esperança de capturar navios ou pilhar um forte, o que ajudaria as pobres feitorias perdidas à beira das águas da Acádia francesa ã sobrevi-ver por algum tempo.
Nessas horas, em que cada instante era apressado e ocupado demais, a vida tinha uma intensidade febril e frçmente, semelhante à vivacidade e à força das cores circunvizinhas. O bom tempo, imutável naqueles dois-dias, comunicava ao mar tons azuis de uma riqueza extasiante. O vento parecia passar o tempo todo sobre o esmalte do céu para avivá-lo e fazê-lo brilhar num azul sem mácula.
Também era a época da florescência dos epilóbios... Suas longas ramas malva, rosadas, ou vermelhas escapavam de todas as sinuosidades da paisagem. O menor vale ensolarado era coberto de violeta episcopal, atnenor falha nas falésias; súbito franjeadas de púrpura, soltava ao vento suas cabeleiras ardentes.
São flores em cacho, numa haste alta e flexível, com folhas estreitas, em forma de lança, de um verde azulado.
Nascem na orla pedregesa e quente das florestas e crescem alinhadas e apertadas ao longo de vales e de todas as ravinas que se oferecem à sua invasão.
O seu desabrochar sublinhava a suntuosidade do verão em seu ponto mais intenso. O mar, contudo, permanecia violento, adornando as costas com girândolas de espumas níveas, e o incessante ronco de suas marretadas contra as falésias e rochas rosadas ou azuis parecia repercutir em tremores surdos através da natureza, insinuando nos seres humanos uma tensão ligeiramente angustiada, uma exaltação que os incitava a viver e participar de tudo o que acontecia com uma paixão decuplicada.
Sim, havia guerra e amor no ar, e também a pressa de escavar, construir, abater árvores, desmatar, awmentar sempre a área vital, fazer todas as coisas estabelecidas frutificar, formar casais novos, abrigá-los sob um teto, cercá-los de jardins, e fechar esses jardins com cercas, traçar novos caminhos, novas rotas, novas ruas, edificar uma igreja para os recém-chegados a fim de enraizá-los definitivamente com os liames da alma, e levantar fortes nos quatro cantos do horizonte, para defendê-los para sempre da destruição.
Não se sabia que impulso informulado animava a gente de Gouldsboro, huguenotes e novos imigrantes, a provarem a si mesmos, sob o estímulo de Peyrac e de Colin Paturel, a possibilidade de .sobreviverem, apesar da sua singularidade, ou talvez por causa dela, e a necessidade que tinha a América nova da sua presença insólita.
O modo como, naquele verão, vinham a eles-puritanos e católicos, exploradores de bosques e piratas, índios e acadianos, definia o papel da gente de Gouldsboro, e sentia-se que, fossem quais fossem as opiniões, as simpatias ou as ambições de uns e outros, aquele porto independente, rico, bem-protegido, bem-abastecido de mercadorias, já representava para todos um centro comercial ativo e de que toda a região oeste do norte da América tinha uma necessidade premente.
Levada por essa corrente que jorrava com tanto mais força quanto mais difícil fora a etapa a vencer, e premida pela necessidade de respirar fundo e se controlar, dominar duramente alma e espírito para chegar a isso, Angélica adiava para mais tarde... não sabia o quê... Examinar talvez, no fundo de si mesma, sua inquietação, sua ansiedade. Agora não havia tempo para essas análises.
Uma voz lhe soprava que era preciso viver como se nada estivesse acontecendo. E sem que dissessem o que lhes ia pela cabeça, ela sabia que Joffrey de Peyrac agia da mesma forma.
Parecendo unicamente preocupado com os preparativos da expedição, concentrando toda a atenção no reparo dos navios, no seu armamento, na defesa do forte, nas construções, reunindo-se em conselhos frequentes com Colin, D'Urville e os notáveis do lugar, estaria pensando secretamente naqueles que ele jurara encontrar e desmascarar, os misteriosos vadios da baía?
Estaria tramando seus planos contra eles? Não dizia nada, e Angélica, seguindo-lhe o exemplo, também se calava, recusava-se até a pensar no assunto.
Os demónios seriam parvos?
A noite as pessoas se reuniam no albergue, sob o porto, com os hóspedes de passagem.
Havia que fazer as honras da casa ao governador e ao seu sul-piciano, à duquesa e seu secretário, ao Sr. de Randon e seu irmão de sangue, o grande sagamore mic-rnac, ao Barão de Saint-Castine e seu futuro sogro, o chefe Mateconondo, ao pastor Tomás Patridge e aos diversos capelães.
Durante essas refeições, a Duquesa de Maudfibourg, para grande alívio de Angélica, não tentou-tfazer a prSsa geral para o terreno científico. Ville-d'Avray, muito loquaz, contribuía bastante para a conversa, e Peyrac, que de repente parecia descontraído e muito alegre, ao seu estilo de antes, um pouco cáustico, mas cheio de tiradas inesperadas, dava-lhe a réplica com bom humor. Os filósofos antigos constituíram o assunto dessas conversas, terreno neutro e relativamente sem perigo para convidados de credos tão diversos.
Até o Reverendo Patridge, homem muito culto, dignava-se sorrir. Aqueles papistas meresiam o inferno, mas distraíam. Era surpreendente ver a "firreza-com que os chefes indígenas podiam participar desse_ género de debates. Comiam com as mãos, arrotavam, limpavam os dedos na cabelo ou nos mocassins, mas a filosofia deles -bem vajia__a de Sócrates ou Epicuro.
Alexandre de Rosny", e o seu eterno e inexplicável amuo, também servia1 de alvo e de bode expiatório. Ville-d'Avray e Peyrac tentavam explicar o fenómeno de um rapaz tão bonito ser tão enfadonho pela influência da metempsicose, a reencarnação, a possessão, a hereditariedade, a- influência dos astros, etc. Tudo isso sem maldade, mas com muito espírito, em frases que o rapaz ouvia, sem nem por isso modificar seus traços anuviados.
Tanta impassibilidade acabou provocando a hilaridade geral. Angélica notou, porém, que a duquesa não participava da animação do grupo. Sorria só com os lábios, e seus olhos muito grandes às vezes assumiam expressões trágicas. Em todo caso, suas preocupações-prirneiras eram conhecidas. O dilema eclodira já no dia seguinte ao dia em que ela apresentara com tanto brilho a teoria de Galileu e a de Newton sobre as marés.
Pela manhã a Sra. Carrère levara a Angélica as roupas consertadas da duquesa, menos o manto, que parecia exigir cuidados mais demorados.
- Fiz o que pude - disse a rochelesa, com o habitual ar reticente que adotava para falar da roupa da duquesa -, mas, o que se quer, vestidos rasgados assim eu nunca vi!
Levando no braço a saia de cetim amarelo-clara, a blusa azul, o peitilho vermelho, Angélica dirigia-se à casa da duquesa quando foi detida por Aristides Beaumarchand, que parecia esperá-la na curva de um caminho.
Seria exagero dizer que ele readquiria boa cara e já não tinha nada do medonho pirata cuja pança ela rasgara e depois costurara, na ponta Maquóit. Mas, bem-barbeado, com os cabelos oleosos presos atrás por uma tira de couro, a.roupa limpa, ainda que sobrando no corpo' emagrecido, e segurando o chapéu com duas mãos sobre o estômago, ele tinha uma aparência quase decente. Pensando na provação física que ele acabava de atravessar não fazia muito tempo, ocorreu a Angélica a inacreditável resistência dos gatos na doença e na fome, a sua recusa em morrer que às vezes causa a admiração dos seres humanos. Na verdade aquele homem era um gato velho, atingido por todo lado mas imbatível, e sua vontade de viver, de manter-se em pé, vacilante e lívido, continuando a estertorar e a xingar, com o risco de "fazer tudo explodir", acabava inspirando estima.
— Eu a esperava, senhora - disse, sorrindo com todos os dentes à mostra.
— É mesmo? - disse Angélica, na defensiva. - Espero que com boas intenções.
Aristides fez-se de desentendido.
— Claro! O que quer dizer? A senhora me conhece, não é?
— Justamente!
— Sabe que no fundo sou um bom rapaz...
— Bem no fundo.
Aristides virava e revirava o chapéu entre as mãos, embaraçado.
— E isto - decidiu-se: - senhora condessa, eu gostaria de me casar.
— Casar, você? - exclamou ela.
— E por que eu não me casaria, como todo mundo?! - replicou ele, aprumando-se em toda a sua dignidade de pirata arrependido.
— E a Juliana que você ama? - indagou ela.
Parecia um tanto insólito utilizar o verbo "amar" em relação àqueles dois, mas afinal, por que não, como ele próprio dizia? Tratava-se de amor, mesmo. Bastava ver a tez amarelada de Aristides Beaumarchand corar, enquanto ele desviava os olhos remelentos com pudor.
— Sim, a senhora adivinhou na hora. Tinha que ser. É a mais notável de todas. E eu não sou de me interessar por qualquer uma, tem que ser especial para me interessar, sobretudo entre as donzelas. Mas essa é especial. ,
— Você tem -razão. Juliana é uma moça excelente. No começo eu implicava um pouco com-ela para fofçá-la a se cuidar. Espero que não me queira, mal.
— Qual nada! A senhora tevê razão em importuná-la assim. Ela é uma cabeçuda - dissê-ele, com admiração. - Ela mesma diz: "A senhora condessa estava cer-ta em me azucrinar. Eu sou uma megera". Ela a adora, mais do que à Madona!
— Bom! Pois tanto melhor! Você falou a respeito com o seu capitão, o Sr. Paturel?-
— Claro! Eu não rae permitiria fazer meu pedido sem poder oferecer a Juliana um futuro bem garantido. Expliquei minhas intenções ao Barba de Ouro. Com minha parte do butim, que enterrei num lugar e com o que a gente recebe aqui, poderei comprar uma chalupa para fazer cabotagem e ir de forte em forte, vendendo o meu rum.
— O seu o quê?
— É uma ideia minha; Sou bem entendido em rum, sabia?... Ah, claro, quando digo rum, não pode ser rum autêntico, de destilaria, porque de todo modo não há cana-de-açúcar por aqui. Mas conheço uma boa mistura, que vou"fabricar a partir de resíduos de melaço para a fabricação do açúcar. Não custa nada. Pelo contrário, nas ilhas ainda são capazes de lhe pagar para se livrarem do melaço! É só o trabalho de embarcá-lo em cestos, e Jacinto se encarregará disso. Já me entendi com ele sobre isso. Depois misturo água para fermentar, dou um tratamento com um bom "molho", para colorir e dar gosto. Há inúmeras receitas: um pouco de couro ralado ou de carvalho queimado, resina, alcatrão. Depois ponho para envelhecer num tonel com um bom pedaço de carne, que posso vender por quartilho! Um bom rum, a preço razoável! As pessoas dos povoados daqui, principalmente os ingleses, vão gostar, e poderei trocar com os índios. Eles não são exigentes quanto à qualidade, desde que seja forte.
"Falei a respeito com o senhor conde. Ele me entende, porque vejo que esse também é o seu sistema: mandar vir mercadoria barata para fabricar coisas que se podem revender caro. Isso se chama indústria, só que é preciso entender do assunto e ter ideias..."
— E o que disse ele?
— Não disse "não".
Angélica não estava, muito convencida de que o Conde de Pey-rac aprovasse de coração aquela iniciativa de fabricar em seu território um álcool de baixa qualidade, destinado a ser vendido como rum autêntico aos colonos da baía Francesa, mas a boa vontade de Aristides Beaumarchand para se tornar um homem ajuizado e trabalhador merecia ser encorajada.
— Pois bem, desejo-lhe boa sorte, meu amigo. Então você não tem mais vontade de retornar às ilhas?
— Não! Quero me estabelecer. Nas Caraíbas não há ambiente para um casal sério, e com uma moça bonita como Juliana, Jacinto a roubaria de mim. O problema é que o assunto não está resolvido. A gente precisa do consentimento da Veneno. É por isso que queria pedir-lhe, senhora, que intercedesse por nós.
— A Veneno? - repetiu Angélica, sem entender nada.
— A benfeitora! A duquesa, ora! E que ela não parece disposta a largar as Moças do Rei. É preciso convencê-la. E não falo só por mim. Também há Vanneau, que está arrastando a asa para a Delfina e...
— Entendido. Vou perguntar à Sra. de Maudribourg se ela re-fletiu no assunto, falarei com ela imediatamente.
— Muito obrigado, senhora condessa - disse Aristides, humildemente. - Só de saber que a senhora se encarrega do assunto, já me sinto melhor. Com a senhora a gente sabe como as coisas vão: a toque de caixa, palavra de Barriga Aberta!
Deu-lhe uma piscada de cúmplice. A desenvoltura dele em relação à Duquesa de Maudribourg chocava Angélica, mas era preciso tomá-lo pelo que ele era: um sujeito de baixa condição, sem fé, nem Deus, nem amor, e as nuanças do tato sempre lhe seriam estranhas.
Maria, a Meiga, disse-lhe. que a Sra. de Maudribourg estava rezando. Mas logo que a duquesa ouviu a voz de Angélica, saiu do recanto onde orava.
- Trago-lhe sua roupa - disse-lhe Angélica -, exceto o manto...
Ambrosina deu uma olhada na saia amarela, a blusa vermelha, uma olhada fixa, depois arrepiou-se e fez o gesto de repeli-las.
- Não, não, não é possível!... Quero usar este vestido preto. Deixe-o comigo, sim?-Estou de luto,, de luto por aquele navio e pelos infelizes -que morreram tão miseravelmente, e sem confissão!... A lembrança daquela noite horrívelnje persegue o tempo todo. Interrogo-me sobre seu significado è sobre o desígnio de Deus para conosco com esse naufrágio... Hoje, dia de Maria, já deveríamos estar em Quebjsc. E finalmente eu poderia rezar na paz deuma cela. Eu tinha'muita inclinação pelas bernardas, para onde me retirei depois de viúva, por causa da grande austeridade delas. As ursulinas são parecidas. Sinto que estaria em paz ali. Essa ordem me é mais próxima do que qualquer outra, a conversa com o semelhante, ali, é mais de acordo com a conversa que Nosso Senhor teve aqui embaixo ao instruir as almas. Por que... oh, por que, ao invés de me levar para aquele doce asilo, Ele me atirou- nestas cestas selvagens e desoladas?
Parecia desorientada como uma criança, e seus olhos imensos, com uma expréssãoiríterrogativa e angustiada, iam do rosto de Angélica para o horizonte-de um azul forte salpicado de branco do mar, que se avistava pela porta entreaberta.
Estava quente dentro da casa rústica, grosseiramente mobiliada. O chão era de terra batida com seixos redondos. Esse despojamento a que se adaptavam os cojonos na América, na sua vontade de refazer a vida numa terra nova, parecia de fato demasiado insólito e cruel quando se examinavam aquelas duas mulheres em sua beleza aristocrática, que as designava, a ambas, herdeiras de um velho passado de nobreza, a brilhar nos mais belos trajes na corte do rei, cobertas de honras e jóias, rodeadas de homenagens...
Qualquer observador imparcial poderia realmente se indagar sobre as inconsequências de um destino ensandecido que se divertira em reuni-las ali, naquele ponto perdido, onde cada instante de sobrevivência ainda representava da parte de cada um esforço sobre-humano, coexistindo com a incerteza de ainda se estar vivo no dia seguinte.
A sensibilidade de Ambrosina de Maudribourg fora penetrada até a alma por esse estado latente, e sua inquietação e desânimo eram tamanhos, que por um instante conseguiu contagiar Angélica.
Essa, porém, tinha o seu pólo, o seu porto de origem, a presença do homem a quem ligara sua existência, e isso lhe servia de refúgio e certeza. Ela já não perguntava se era melhor estar aqui do que ali.
Mas podia entender a perturbação de uma jovem cheia de responsabilidade, a quem faltavam, ali, apoios seguros e o quadro de vida religiosa a que se habituara.
Pousou a roupa sobre uma das enxergas«de sargaços que tinham sido alinhadas ao longo das paredes para as Moças do Rei.
— Não se agite - disse -, e não pense em demasia no que lhe falta aqui. Logo poderá chegar a Quebec é reunir-se às ur-sulinas.
— Ah, se pelo menos eu pudesse ouvir a santa missa...
— Poderá, a partir de amanhã de manhã! O mar nos trouxe uma pletora de eclesiásticos para dentro de nossos muros.
— Faz tanto tempo, várias semanas já, que não assisto ao divino sacrifício... Nele sempre encontro conforto.
— Não tinha um capelão a bordo? - inquiriu Angélica.
O comentário da duquesa sobre os homens mortos sem confissão lembrou-lhe que entre os cadáveres atirados na praia pelo mar não se encontrara nenhum de batina ou hábito.
Pensando nisso, parecia bem surpreendente para um navio fretado para uma missão religiosa e sob uma obediência tão devota quanto a da Sra. de Maudribourg.
- Pois sim - disse esta, numa voz sem timbre -, tínhamos o Padre Quentin, um oratoriano que meu confessor me recomendou. Mas veja a maldição que persegue esta viagem: o infeliz se afogou ao largo da Terra Nova! Havia um nevoeiro denso. Roçamos num bloco de gelo enorme. A tripulação inteira gritou: "Misericórdia, estamos mortos!" Vi com meus próprios olhos aquele gelo horrível. Estava tão perto, que o ouvíamos estalar.
A bruma nos impedia de ver o topo do bloco...
Ela parecia prestes a desmaiar. Angélica puxou um banquinho, sentou-se e fez sinal à, duquesa para se sentar também.
— E o Padre Quentin? - perguntou.
— Foi nesse dia que ele desapareceu. Ninguém sabe o que aconteceu. Revejo sempre aquele gelo monstruoso que nos roçava e ainda lhe sinto o hálito mortal e gelado. Parece-me que era assombrado e impelido por demónios em nossa direção...
Angélica pensou que a benfeitora, por sábia, devota e rica que fosse, era realmente impressionável demais para realizar tais viagens, sempre arriscadas e desgastantes. Seu confessor a aconselhara mal ou se enganara ao considerá-la uma Joana Mance ou uma Margarida Bourgeoys, aquelas grandes mulheres já tão célebres do Canadá francês, que tinham perdido a conta de suas peregrinações através do oceano. Ou será que a,quele jesuíta - pois devia ser jesuíta - não teria querido explorar, a serviço das missões da Nova França pelas- quais a. ordem era responsável, a exaltação mística daquela, pobre viúva moça, rica demais?
Uma espécie de piedade insinuou-se no coração de Angélica, que se censurou pela irritação que sentira na véspera pela duquesa, quando esta fizera sua preleção sobre as marés e a atração da lua.
Sentada, usando seu vestido preto, as mãos cruzadas sobre os joelhos, os olhos profundos fitando ao longe alguma visão desolada, com sua tez de porcelana frágil e seus opulentos cabelos negros, mais do que nunca-ela apresentava o ar de uma criança órfã.
Angélica tomou consciência-da solidão autêntica que rodeava aquela mulher.-Mas-riâo era fácil ajudá-la, pois parecia viver num mundo à parte;- que ek mesma criara.
— Onde você embarcou?
— Em Dieppe. Ao sair do canal da Mancha, corremos o risco de ser apanhados pelos espanhóis e dunquerquianos. Eu ignorava que os mares fossem tão pouco seguros...
Recompôs-se, balançou"a cabeça e "seu rosto branco iluminou-se de um sorriso.
— Você deve achar-me ridícula... por me assustar como uma criança... Você, que enfrentou tantos riscos e permanece tão serena e alegre, tão forte apesar da morte em que roçou tantas vezes...
— Como sabe disso?
— Sinto-o... Claro, eu ouvrfalar de você em Paris neste inverno, antes de embarcar. Pronunciava-se o nome do Sr. de Peyrac como o de um gentil-homem de aventuras, cujos feitos ameaçavam os povoados da Nova França. Dizia-se que ele acabara de trazer, no outono, um grupo de hugueriotes e uma mulher belíssima, mas ninguém tinha certeza de "que você era esposa dele. Talvez não o seja, de fato?... Pouco se me dá!... Hei de me lembrar sempre da impressão que tive ao avistá-la na praia, tão bela e tranquilizadora entre tantos rostos de homens desconhecidos e selvagens! E também do sentimento que tive de que você era uma mulher diferente de todas as outras... - E acrescentou, pensativa: - Também ele é diferente...
— Ele?
— Seu esposo, o Conde de Peyrac.
- Claro que é diferente - disse Angélica com um sorriso. - E por isso que o amo!
Procurava o pretexto para levar Ambrosina ao assunto do casamento das Moças do Rei.
- Então, senhora, apesar das circunstâncias em que chegou, Gouldsboro não a desagradou demais?
A duquesa estremeceu e fitou vivamente Angélica. Perguntou com uma ansiedade que lhe fez a voz tremer:
— Então não quer chamar-me de Ambrosina? Angélica surpreendeu-se com a pergunta.
— Se você quiser.
— Você não quer?
— Já nos conhecemos o suficiente para isso?
-É possível sentir-se próximo desde o primeiro encontro.
A Duquesa de Maudribourg arrepiava-se toda e parecia aflitíssima.
Desviou os olhos e voltou a fixar, pela porta aberta, o horizonte marítimo, como se este pudesse conter sua única esperança.
- Gouldsboro? - murmurou afinal. - Não! Não gosto deste lugar. Sinto que aqui vivem paixões que me são estranhas, e malgrado meu, desde que estou aqui sinto tentações perturbadoras, desespero, dúvida, e o receio de vir a saber que antes de acostar aqui minha vida se perdeu em direções funestas.
Talvez sua intuição estivesse cerreta. Saída de sua atmosfera conventual para se ver exposta aos vendavais de Gouldsboro, a jovem viúva estaria começando a entrever que havia outra vida que ela poderia ter conhecido, uma vida mais calorosa, mais feliz?
Angélica não quis aprofundar o debate. Também para ela a personalidade da Duquesa de Maudribourg se revelava demasiado estranha, embora pudesse compreender em profundidade o que a atormentava e até o que a deformara .e deixara um pouco esquisita.
Ainda que sentindo piedade, não se sentia apta a aconselhar aquela alma aflita, que teria feito melhor ficando na penumbra perfumada de incenso dos confessionários da igreja de São Sulpício, em Paris, ao invés de sair por aquelas paragens rudes e primitivas da América.
O dia parecia mal escolhido para falar com ela de temas banais como o estabelecimento das Moças do Rei, mas era preciso resolver a questão, pois os homens de Colin, receando perder as "prometidas", impacientavam-se.
- Você refletiu nas propostas que meu marido lhe apresentou ontem à noite? - perguntou.
Desta vez foi com verdadeiro terror que Ambrosina de Maudribourg a encarou. Seu rosto ganhou uma palidez de giz.
- O que você quer dizer? - balbuciou.
Angélica armou-se de paciência.
— Ele lhe falou, não foi, dos projetos de algumas das suas moças de se radicarem aqui, com um bom casamento católico com alguns dos nossos colonos?
— Ah, é disso que se trata então? - A voz de Ambrosina não tinha timbre. - Deseuipe-me. Eu temi que... tive a impressão de entender Outra cpisa...
Passou a mão péla testa, depois levou-a ao seio, como para controlar as batidas do coração. Por último, juntando os dedos, fechou os olhos e^ rezou por um instante.
Quando fitou Angélica de novo, recuperara toda a segurança. Falou com voz firme:
- Algumas das minhas moças de. fato se abriram comigo acerca dos sentimentos que lhes inspiraram alguns dos homens que se esforçaram por elas no momento do naufrágio. Não prestei atenção. Que loucura é essa? Multiplicar um povoado de hereges?
- Há grande número de católicos... entre nós.
A duquesa aparteou com um gesto:
- Católicos que aceitam viver lado a lado com huguenotes notórios e até se associar a eles? A meus olhos trata-se de católicos relapsos ou"de hereges em potencial. Não posso entregar a alma de minhas moças a tais indivíduos.
Angélica lembrava-se do comentário de Ville-d'Avray: "Não é viável". Ele não era tolo nem tão fútil quanto gostava de aparentar. As reações da duquesa confirmavam mais uma vez as barreiras místicas que separavam os seres humanos, entregando-os, em nome de Deus, a conflitos e guerras sem fim, sem se preocuparem com o avanço dos povos rumo a uma forma de existência mais proveitosa e menos bárbara. Não tinham chegado os tempos da conciliação? Mas adotou a linguagem da razão e da prudência.
— Todos os Estados, inclusive a França, não nos oferecem imagem semelhante ao nosso século? Católicos e protestantes lado a lado entre as mesmas fronteiras, e associando-se pela prosperidade do país.
— Imagem deplorável de conciliação nefasta. Quando penso nisso, creio ver as chagas de Nosso Senhor sangrando na cruz, e sinto uma grande dor. Ele, que morreu para que se conservasse a Sua palavra, para que não fosse alterada em absoluto!... E hoje há heresia em toda parte!... Realmente, isso não a faz sofrer? - indagou, olhando Angélica com um ar de incompreensão.
Angélica desviou a discussão.
— Não é o caso de recolocar em questão o tempo todo problemas que personalidades muito mais importantes do que nós já se incumbiram de resolver com toda a competência. Por exemplo, na França, o Rei Henrique IV não decidiu de uma vez por todas que os protestantes e os católicos franceses eram iguais perante a nação? Ele ratificou suas decisões com o edito de Nantes, e os assuntos do reino só lucraram com isso.
— Justamente - disse a duquesa, com um sorriso -, você não está a par, minha cara. Comenta-se que o rei revogará o edito de Nantes.
Angélica levou um choque.
- Mas é impossível! - exclamou. - O rei não pode revogar esse acordo que seu antepassado assumiu solenemente perante todos os franceses, e em nome de seus herdeiros e sucessores. Em toda a história dos povos, não se encontrará infâmia igual!
Já via a catástrofe desencadear-se dentro da França. Caso o edito de Nantes fosse revogado, os huguenotes franceses perderiam toda a liberdade e a cidadania. Não poderiam se casar legitimamente, seus filhos seriam considerados bastardos, suas assinaturas, não habilitadas, e não teriam escolha senão converterem-se ou fugirem do reino...
Mas na verdade já não fazia muito tempo que o edito caducara, que não era aplicado? Ela bem que sabia alguma coisa a respeito!
Na liberdade de sua nova vida, na América, ela começara a esquecer a opressiva perseguição de que fora alvo junto com eles, em La Rochelle.
Mas ela se revoltara inteira contra tal desonestidade de consciência aplicada ao destino dos povos.
— Não, é impossível - repetiu, levantando-se com violência -, seria render todos os esforços dos homens pelo bem ao arbítrio dos reis.
— Você fala como um tribuno antigo-?- observou a Sra. de Maudribourg, com ironia.
— E você como u.má carótida Companhia do Santíssimo Sacramento - lançou-ihe Angélica, eríçaminhando-se para a porta.
A duquesa alcançou-a de um salto.
- Oh! Perdoe-me, minha cara, caríssima - implorou com voz alterada -, não sei o que me deu para lhe dirigir a palavra nesse tom... a você, a você^que é a caridade mesma. Perdoe-me! Você perturba de modo tão profundo as certezas que me ajudavam a viver, que. a instantes... ponho-me a odiá-la! A invejá-la também... Você é tão vivaz; tão autêntica! Ah! Gostaria tanto que você estivesse engajada!....No entanto, receio que tenha razão. Mas perdoe-me... Aqui me descubro fraca e inconstante, e sinto-me humilhada...
Suas mãos agarravam-se aos braços de Angélica, querendo retê-la, e seus olhos procuravam os dela.
Suas pupilas ouro-escuro pareceram iluminar-se com uma alegria indizível quando o olhar verde de Angélica, anuviado como um mar violento e borrascoso sob a cólera, cruzou finalmente o seu.
- Veja como me arrependo... - murmurou. - Perdoe-me... sou... um pouco como você, uma mulher habituada a ser obedecida, a ser compreendida... ou pelo menos a ser ouvida. Sei que tenho muito a me corrigir nesse aspecto preciso: o orgulho. Mas não gostaria de modo algum que houvesse nuvens entre nós, apesar de tudo o que nos separar.- não sei como, mas nestes poucos dias você adquiriu um grande poder sobre meu coração, que no entanto não se deixa seduzir com facilidade...
Dir-se-ia que no fundo daqueles olhos belíssimos uma criatura amedrontada gritava, por socorro. Foi a impressão fugidia que Angélica teve e que lhe dissipou á irritação. Não conseguia querer mal a Ambrosina de Maudribourg por ter uma concepção da existência calcada na estreita ética religiosa que lhe haviam inculcado desde a infância, ou seja, que tudo o que não está com Deus e sua Igreja está contra Deus.
Mas, ela bem que adivinhara, os conhecimentos científicos da duquesa, tão raros numa mulher daquele tempo, tornavam-na apta a evoluir para um sentido mais amplo da vida. As mãos da duquesa deslizaram pelos braços de Angélica e apertaram-lhe os dedos com ardor.
- Façamos as pazes, sim? E depois tentemos expor uma à outra nossos pontos de vista diferentes sern nos impacientarmos. Acho que nós duas sonios um pouco esquentadas, como os franceses em geral e as mulheres do Poitou em particular, não é?
Seu sorriso procurava uma reconciliação. Ambrosina era quase da mesma altura que Angélica, mas sua aparente fragilidade, que às vezes se acentuava, a ponto de parecer que ela ia desmaiar, fazia-a a parecer menor. Nesses instantes emanava dela uma sedução a que Angélica encontrava dificuldade de resistir.
— Que seja - disse, consentindo em sorrir também -, admito que com o edito de Nantes desviamo-nos para um terreno ardente e que, no final das contas, já quase não nos diz respeito, pois você, como eu, doravante viveremos na América.
— Sim, isso nos obriga a encarar outras formas de existência e talvez abrandar nossas concepções da vida. Tentarei!
Sentaram-se outra vez. E a Sra. de Maudribourg pediu detalhes acerca dos casamentos.
Angélica esforçou-se, comedidamente, por situar Gouldsboro e suas ramificações no delicado bale a que a Nova França e a Nova Inglaterra se entregavam naquela parte setentrional do continente americano. Ainda bem que já fazia alguns decénios que os espanhóis não se imiscuíam mais. O inglês Drake os subjugara. Estavam demasiado seguros de poderem dividir o continente americano inteiro apenas com os portugueses, seguindo somente as decisões do papa.
Descreveu a posição da baía Francesa, vizinha mais próxima dos ingleses do que dos franceses, submetida aos ingleses pelo Tratado de Breda, mas continuando sob influência francesa devido aos seus habitantes, aos fortes e povoados que conservava. Na realidade, uma região demasiado isolada e abandonada tanto por uns quanto pelos outros para ser regida por aqueles governos longínquos. Além disso, aberta para um mar de riqueza excepcional, que não congelava nunca, sua independência natural lhe prometia um futuro comercial excepcional, por pouco que conseguisse organizar-se segundo suas próprias leis.
Assim que se falava de negócios, a Duquesa de Maudribourg se punha muita atenta e deixava de regular sua conduta por dados místicos, elevados mas temerários.
Era um ponto comum entre as duas. Podiam-entender-se com meias palavras -e pôr as cartas na mesa.
A jovem viúva era muito capaz e muito hem-informada sobre os mistérios ou as vicissitudes do comércio colonial, tanto francês quanto inglês. Sabia'o que significavam cifras, tinha noção do que era preciso exigir no jnícfo de um empreendimento para que este não se tornasse deficitário.
Como todos os franceses que voltavam os olhos para a colónia, ela se interessava muito por peles. Angélica confirmou-lhe o que ela já parecia saber: era com os selvagens dos rios Pentagouet e Saint-Jean que se comerciava, mais. Os primeiros forneciam peles de alces e ursos, os segundos, de castores e lontras. Num ano comum, as petes de alces do rio Saint-Jean chegavam a três mil, as do rio Pentagouet, ao dobro.
- Aí está por que esse Barão- de Saint-Castine é tão rico - disse a duquesa, pensativa. - Em suma, Gouldsboro poderia tornar-se um porto livre?
Angélica não confirmou que já era. Havia que deixar à duquesa tempo de sopesar sua fidelidade ao rei da França, que acarretava automaticamente a salvação de sua alma, e seus interesses financeiros. Ao que parecia, ela sempre soubera conduzir bem o seu barco nesse aspecto, mas agora se via diante de um dilema.
- Bem vejo, à luz de suas palavras e do que pude observar aqui, que o futuro da América sem dúvida está na independência dos que desejam fazê-la prosperar e não na ligação e obrigações distantes. Certamente as minhas moças teriam grandes vantagens materiais, estabelecendo-se aqui. Mas a riqueza não é tudo na Terra...
Soltou um profundo suspiro.
- Ah, como eu gostaria de conversar com um daqueles senhores da Companhia de Jesus, a fim de receber sua orientação! Eles têm talentos especiais para iluminar as almas e são muito mais largos de espírito do que você parece crer. Assim, para eles, a única coisa que conta é um objetivo sagrado, mas se esse objetivo pode conciliar-se com um bom ganho material, eles concordam ainda com maior entusiasmo. Um jesuíta talvez visse neste caso a possibilidade de compensar a influência huguenote e inglesa em sua região. A fé de minhas moças é sólida. Saberão transmiti-la aos maridos e manter nestas costas a presença da verdadeira religião. O que acha?
- E um ponto de vista - disse Angélica, contendo um sorriso. - Vale bem o ponto de vista de querer extirpar a heresia apenas com a violência.
Pensou consigo que os próprios jesuítas por vezes deviam se ver em apuros com a sua - aparentemente - inofensiva e dócil penitente, a Duquesa de Maudribourg. No que concernia a argumentos especiosos, ele devia saber combatê-los no terreno deles mesmo. Isso certamente explicava a influência e a reputação dela nos meios teológicos. Mas a benfeitora continuava reticente quanto a desviar suas moças da missão para a qual as arregimentara.
— Prometi a Nossa Senhora que ajudaria a edificar a Nova França - disse, obstinada -ç, e receio que, deixando-me inspirar pelos interesses que você me expõe, eu falte com a promessa sagrada.
— Nada impede que leve para Quebec as jovens que não quiserem ficar aqui. E as outras, tendo encontrado a felicidade que vieram procurar no Novo Mundo, serão um símbolo de aliança com os nossos compatriotas do norte. Tudo o que desejamos é entendimento...
Ainda conversaram até que a escuridão invadisse a casa. Os mosquitos e pernilongos começaram a zumbir na penumbra e Am-brosina se queixou, acompanhando Angélica até a porta, dos tormentos que os insetos lhe infligiam desde que o crepúsculo se aproximava.
— Vou buscar-lhe um pouco de melissa no jardim de Abigail - disse Angélica. - Ao se queimarem, essas folhinhas soltam um perfume delicioso, que tem a propriedade de afastar esses nossos atormentadores noturnos.
— E bem verdade, como dizem os missionários, que os pernilongos são aqui a única praga do Egito contra a qual apenas a fumaça funciona um pouco. Agradeço antecipadamente pela sua melissa.
Acrescentou, como que movida por um impulso repentino:
— Sua amiga não está perto de dar à luz?
— Sim, de fato. Creio que daqui a uma semana nossa colónia contará mais um habitantezinho.
A Duquesa de Maudribourg olhava para o golfo, pontilhado de ilhas, mais uma vez incendiando-se com inúmeras fogueiras do poente. O reflexo delas avivava a carnação pálida da duquesa, e seus olhos pareciam brilhar com uma intensidade maior.
- Não sei por quê, mas tenho o pressentimento de que essa moça vai morrer no parto - disse, numa voz inexpressiva.
— O que está dizendo? - gritou Angélica.. - Você está louca!
Subitamente as palavras da duquesa cristalizavam uma das vagas apreensões que a atormentavam: Sim! Ela não quisera confessar a si mesma. Más também ela receava por Abigail. Sentiu que o coração se lhe contraia.
- Fiz mal em dizer-lhe isso - assustou-se Ambrosina, vendo-a pálida como a morte. - Decididamente sófaço feri-la o tempo todo. Não me dê ouvidos! Certas palavras me saem da boca sem que eu me dê conta. Minhas companheiras no convento acusavam-me de ser profetisa é de prever o futuro. Mas não é só isso. Veja, eu pensava no desconforto de minhas moças neste país afastado de qualquer socorro quando também elas se virem na difícil eventualidade de porerrr uma Criança no mundo, e o temor me dominou.
Angélica fazia um esforço para se acalmar.
- Não terna nada'Daqui até lá haverá em Gouldsboro uma farmacopeia mais.provida e médicos mais sábios do que em Quebec. Quanto a Abigail...
Angélica aprumou-se e pareceu crescer na sua vontade de enfrentar o destino. O sol fazia cintilar sua cabeleira de ouro claro.
- Eu estarei lá, eu, sua amiga. Hei de assisti-la, e prometo-lhe que ela não morrerá!
CAPÍTULO XIX
A chegada do Padre Vernon, o jesuíta
A enseada se enchia de navios outra vez. Mas três dias se passaram, e Joffrey de Peyrac não dava sinal de partida, embora tudo parecesse pronto.
— O que você está fazendo? - agitava-se Ville-d Avray. - Não vai entrar em combate?
— Temos tempo. Não tema por seus amigos. Se caírem nas mãos dos ingleses...
— Mas estou pouco ligando para meus amigos! - gritou o marquês, sem rebuços. - É com meu navio que estou preocupado. Objetos de valor inestimável, sem contar os milhares de libras em peles!
O Conde de Peyrac sorriu e olhou o céu varrido por ventos mas sempre azul, ainda que de vez em quando cortado por grandes nuvens brancas. Mesmo assim, não deu o sinal de partida nem forneceu razões para o atraso da expedição punitiva pela baía Francesa. Apesar disso, a atmosfera era de partida e todos se ocupavam com os preparativos.
Para ir ao fundo da baía Francesa e enfrentar a temível mitologia dos mic-macs e dos suriqueses, dominada pela luta entre o deus Glooscap, a divindade ou herói lendário entre os índios algonquinos do nordeste dos EUA, e o castor e que se manifesta pelo furor das águas e pela sua loucura naquela parte do mundo, Mateconondo queria ser assistido pela filha e pelo genro. Mas o barão se recusou.
- Tenho que ficar. O comércio está com os navios no auge e os meus índios estão coletando aguardente de todas as embarcações. Dentro em breve estarão se embriagando descontroladamente, e se eu não estiver aqui haverá crimes nas wigwams. Sem contar que, na minha ausência, eles se deixariam convencer mais uma vez pelos missionários a partir para a guerra com os ingleses.
Combinou-se, então, que Matjlde acompanharia o pai, junto com dois ou três guerreiros confiáveis.
Não foi sem pesar que o,senhor gascão se separou de sua encantadora noiva índia. Mas Matilde, inteligente, intuitiva, seria preciosa perto do chefe etcherrim.
Mais uma vez Elíás Kempton, arnestrador de urso, corria os bosques à procura de Mr. Willoagby, que, desdenhoso da importância do seu papel diplomático, parecia ter-se lançado outra vez em expedição pela floresta com seu amigo, o glutão.
Mas, para satisfazer ao Sr. de Ville-d'Avray, que se alarmava, falou-se de um primeiro embarque. Os índios partiriam com a Sra. de Randon e com D.'Arpentigny. Como que avisada por uma corrente secreta, a população começou a afluir para o porto, e nem os próprios interessados se deram conta de que já estavam recebendo mensagens para os do fundo da baía Francesa".
O Padre Tournel queria que se.entrasse em contato com o Padre João Rousse, jesuttaTesponsável pela região, de quem aguardava instruções. Ville-d'Avray insistia com o seu sulpiciano em que retornasse ao rio Saint-Jean a fim de vigiar seus navios. O sulpiciano recusava-se. O Irmão Marcos hesitava em embarcar com os mic-macs, tentado que estava a voltar para as terras do Sr. de Vauvenart por terra, quer dizer, pelo rio. Seria menos rápido, mas mais divertido...
Nesse ínterim, uma nuvem de crianças protestantes, correndo e pipilando como pardais, abateu-se sobre a praia.
- Dame Angélica, venha depressa! - gritou com voz aguda o pequeno Laurier Berne. - Há um jesuíta chegando!
Logo houve uma comoção geral, mesmo entre os eclesiásticos presentes. Era tal a ascendência da Companhia de Jesus, que os religiosos de ordens menos renomadas nunca se sentiam à vontade diante de um de seus representantes. Sulpicianos, recoletos e capuchinhos se reuniram, indagando-se sobre aquele que chegava.
- Tenho certeza de que é Jack Merwin - disse Angélica, alegre. - Quero dizer, o Padre Maraicher de Vernon.
Era ele, de fato. Indo-lhe ao encontro, guiada pelas crianças, Angélica avistou no topo da encosta a alta silhueta escura de Jack Merwin, o jesuíta, com a criança sueca ao lado. Todo um gru,po de rocheleses o rodeava e, ao se aproximar, ela ouviu vozes ásperas. O acaso quisera que no momento em que o jesuíta saía da floresta com a sua pequena comitiva desembocassem pelo caminho da encosta os ingleses do acampamento Champlain, com o Reverendo Tomás Patridge à sua frente. O reverendo logo reconhecera seu.inimigo mais íntimo, duplamente, triplamente odiado por ele, pois era papista; jesuíta e capitão dò White Bird, cuja insolência desdenhosa a reverendo tivera que suportar durante três dias. Assim, o choque do encontro imprevisto foi viplento. Soltando um rugido introdutório, o pastor puritano logo começou a invectivar o padre católico, cobrindo-o de anátemas segundo a melhor tradição bíblica. Também deu o tom à acolhida oferecida ao jesuíta pelos huguenotes franceses, eles próprios inquietos e tensos diante do recém-chegado. O aparecimento de um daqueles jesuítas tão amaldiçoados despertava temores e ódio ainda intensos. Angélica ouviu Manigault perguntar de modo pouco ameno:
- O que veio fazer aqui? Somos huguenotes de La Rochelle banidos do próprio país por esse rei a quem você serve e que lhe serve. Não viemos para tão longe para ainda termos que lidar com gente da sua espécie.
O Padre de Vernon voltou-se para ele com altivez.
— É o chefe desta feitoria?
— Isto não é uma feitoria. É um povoado francês, mas livre.
— Um povoado de homens livres - repetiu Berne.
— Onde todo homem, portanto, pode entrar livremente? - indagou o jesuíta, cravando neles seu olhar penetrante.
— Desde que não se comporte como inimigo declarado - disse Berne, depois de um momento de hesitação.
Angélica chegava até eles nesse instante, um pouco sem fôlego. Apressara-se, temendo que logo de saída houvesse uma explosão irreparável entre aquelas várias personagens que pareciam, todas, ter o sangue muito quente. As crianças protestantes lhe gritavam:
- Dame Angélica, rápido, o jesuíta vai matar nossos pais!
Ao reconhecê-la, o rosto do Padre de Vernon se iluminou. Pelo menos foi essa a impressão fugidia que ela teve, se é que se podia ler a expressão de um sentimento naquela fisionomia altiva, habitualmente fria e indiferente. Mas quando ela lhe estendeu a mão, ele apertou-a sem formalidades, calorosamente. Ela disse, espontânea:
- Finalmente você chegou! Eu receava que só chegasse depois da partida de meu marido.
Ele pareceu surpreso.
— Então me esperava, senhora?
— Certamente.
Sempre tivera certeza de que ele viria. Deu uma olhada nos índios que o acompanhavam.
— Piksarett está com você?
— Não! Ele não está aqui? Avisou-me que vinha a Gouldsboro reclamar seu resgate.
— De fato o vimos. Depois ele... desapareceu!
— Ele tem seus caprichos - disse o padre, como pessoa habituada com os índios.
Eles voltavam a travar conhecimento, agora em outro plano. Angélica dava-se conta de que. a personalidade de Jack Merwin ficara gravada, nela, ocupando - sem que ela tivesse consciência disso - muito de seu pensamento e de seu interesse. Amigo, inimigo, perigoso ou capaz. de. tornar-se um aliado?
Ele usava a mesma batina um pouco esverdeada, um pouco curta demais sobre seus magros tornozelos de marinheiro, batina que ele havia desenterrado, de^ob umá árvore, na entrada do Penobs-cot, mas cujoalto colarinho preto, de avesso branco, junto com a ampla capa, lhe comunicavam aquela aparência de príncipe espanhol que todo jesuíta deve ao fundador da ordem, Inácio de Loiola. O que havia de diferente nele é que às vezes sorria e já não mascava continuamente-seu toco de fumo.
Trazia na mão, para a caminhada, um longo bastão de peregrino encimado por uma simples cruz de ferro. Essa cruz perturbou muito os reformados, que temiam vê-la penetrar em Gouldsboro. Mas era preciso que se acostumassem com aquela igreja que se começava a construir do outro lado do porto. Sem resmungar muito, seguiram Angélica e o jesuíta, que desceram a rua principal da aldeia. Atrás deles, a meia voz, Miss Pidgeon acalmava o Reverendo Patridge, furioso com aquela intrusão diabólica.
A meio caminho avistaram o Conde de Peyrac, que lhes ia ao encontro.
- Aquele é meu marido - disse Angélica, sem poder conter uma inflexão de alegria e orgulho na voz.
CAPITULO XX
Agitação em Gouldsboro com a chegada do jesuíta
Como era sedutor e cheio de juventude o senhor de Gouldsboro, com seu andar arrojado, um pouco desigual, mas cheio de ímpeto, e a elegância do seu grande manto, que ele sabia levar de modo incomparável, flutuando ao vento!
De longe ela via brilhar o alvor do sorriso dele. O conde levantou as mãos, em sinal de acolhida.
— Bem-vindo, padre - gritou, afável, assim que se viu próximo o suficiente.
— Essa agora! - murmurou o Padre de Vernon, quase involuntariamente.
Pois a malícia do destino quis que Joffrey de Peyrac avançasse ladeado de perto por todos os eclesiásticos que eram hóspedes em Gouldsboro e que, ansiosos por ser cada um o primeiro a se apresentar ao jesuíta anunciado, tinham-no seguido apressados.
Assim, o senhor de Gouldsboro, famoso em Quebec por manter distância das coisas da fé, apresentava-se com melhor séquito do que um bispo. O conde, aliás, não deixou de se divertir com a situação.
— Pois é! - exclamou, abordando cordialmente o recém-chegado. - Como vê, meu padre, mais um pouco e eu poderia abrir um convento. Só esperávamos por você para que todas as ordens que se devotam com tanta coragem à salvação espiritual da Nova França estivessem representadas nestas paragens.
— I see! I see! Compreendo! Compreendo! - resmungou o marinheiro Jack Merwin, passeando seu olhar mais mercurial por sobre aquele amontoado de batinas e hábitos. - Sulpiciano, oratoriano, recoleto e capuchinho. Não falta nada. De fato! É quase um concílio. Como faz, Sr. de Peyrac? - exclamou, decidindo encarar a situação com humor.
- Como faço... para quê? Para atrair ao meu covil as mais santas personagens do país? Pois não tenho a menor ideia! Indague-se consigo mesmo, padre, sobre as razões que o impeliram a nos visitar, e talvez encontre a resposta... - Er mais sério, acrescentou à parte, querendo ser ouvido.ápenas pelo jesuíta: - Sejam quais forem essas razões, alegro-íne, pois sei que lhe devo a vida de uma pessoa que me é muito cará, e fico feliz por poder exprimir-lhe o meu reconhecimento-de viva.voz.
Com um sinal de cabeça, Vernon indicou que entendera.
- Eu queria me informar sobre o bom termo da viagem da Sra. de Peyrac - replicou casualmente. - Como tive a honra de escoltá-la alguns dias por entre grandes perigos, fiquei sabendo do tormento que ela sentia por estar separada do senhor e da impaciência que tinha por vir ao seu encontro. Portanto, também para mim é motívó de grande satisfação vê-los a ambos reunidos e felizes em seu domínio.
Angélica abençoou o tato do jesuíta. Ele acabava de dizer exatamente o que era necésstrio para dissipar as ultimas nuvens entre ela e Joffrey. Olhou-o com afeto. Continuaram a descer rumo à praça central, por entre a curiosidade um pouco reticente dos habitantes.
Colin Paturel apresentou-se jpor sua vez, rodeado de piratas arrependidos.
- Aposto como terá penitentes esta noite, meu padre, se estiver ouvindo confissões.
O Padre de Vernon percebeu o governador da Acádia francesa.
— O senhor aqui, Sr. de Ville-d'Avray?
— E por que não estaria, como todo mundo... e como o senhor mesmo? - retorquiu o marquês, empinando o nariz com ar fanfarrão.
Angélica eclipsou-se um instante e correu até a casa das Moças do Rei, onde encontrou a Duquesa de Maudribourg, que por acaso não estava rezando.
- Venha logo - disse-lhe -, desta-véz eu tenho o eclesiástico de categoria para suas confissões. Um jesuíta autêntico, de linhagem nobre. O Padre Luís Paulo Maraicher de Vernon.
As acompanhantes da duquesa escovavam-lhe o cabelo. Ela parecia imersa num devaneio melancólico. Aias quando entendeu, soltou uma risada.
— Você é adorável - exclamou -, e tão boa! Sempre procura dar a todos aquilo que pode fazer-lhes bem. Mas sei que me julgou ridícula com minhas exigências.
— Nada disso! Não ignoro que a vida é dura para os imigrantes. É preciso ajudar cada um a encontrar seu conforto material e moral:
— Você é adorável - repetiu a duquesa, com ternura. - Um jesuíta de verdade! Que maravilha!
Ambrosina de Maudribourg levantou-se. De sua cabeleira cuidadosamente escovada emanava aquele perfume especial que chamara a atenção de Angélica quando cuidara dela no primeiro dia. Era um perfume de uma delicadeza enfeitiçante e que parecia adaptar-se tão bem à personalidade da duquesa, que esta ficava como que exaltada pela fragrância, e não se podia evitar ser atraído e fascinado por sua fragilidade e beleza.
- Como é que... - começou Angélica. Mas a continuação da pergunta escapou-lhe, sem que ela soubesse por quê.
A duquesa tomou-lhe o braço espontaneamente e puseram-se as duas a caminho. No trajeto, uma pequena sombra que parecia avançar tropeçando de pedra em pedra chamou-lhes a atenção.
— Oh, o seu gato! - exclamou a duquesa.
— Mas o que é que ele está fazendo aqui? - exclamou Angélica, descobrindo seu protegido, que a examinava com olhos imensos, o rabinho todo empinado para o céu. - Eu o tranco a sete chaves. Não sei como consegue escapar.
A audácia com que o gatinho se lançava pelo mundo vasto e assustador, com a única finalidade de segui-la e encontrá-la, forçava-lhe a admiração e a ternura.
- Vai acabar acontecendo-lhe alguma coisa - monologou-Angélica, pegando-o. - É tão pequeno! Minúsculo! No entanto me parece que nunca vi uma criatura tão cheia de vida e paixão quanto este gato. Ouça como ele se põe a ronronar quando o levo ao colo...
CAPÍTULO XXI
Entre a frofa de Gouldsboro, a chegada de Cantor no Le Rochelais
Assim que o Padre de 'Vernon chegou ao porto, seu olhar foi atraído pela.frota ãnporada na enseada.
- Sei que você é "marinheiro! - disse-lhe Peyrac. - Refresque-se e depois iremos veros navios.
Angélica e Ambrasinade Maudriboúrg juntaram-se a eles no molhe, onde, sob a atenção de todos, o Conde de Peyrac porme-norizava"'para o novo hóspede as particularidades de cada um de seus vasos e embarcações.
— Como é alegre aqui - observ.ou a duquesa a meia voz -, há sempre alguma coisa acontecendo!... Esse jesuíta tem um ar de distinção notável. Não sei por quê. Vejo nele uma espécie de semelhança com seu marido.
— Sim, talvez... de fato.
A reflexão de Ambrosina era justa. De tipo físico mais ou menos semelhante, altos, bem desenvoltos, vigorosos, os dois homens, o jesuíta e o gentil-hornem aventureiro, pareciam-se sobretudo na força interior que se sentia emanar deles, um ardor controlado, uma percepção atenta do mundo exterior, uma vontade que não se deixava desviar com facilidade de um objeti-vo. Compartilhavam também essa faculdade de apreciar aspectos diversos da vida, como o de sabpreàr todos os detalhes de uma bela construção naval.
Os olhos escuros de Jack Merwin brilhavam enquanto ele ouvia Peyrac falar das diferentes unidades de sua frota, concebidas e executadas com a finalidade muito precisa de transporte, ou de pesca, ou de cabotagem, ou mesmo de simples corso, não no sentido que a palavra adquirira com os corsários, indicando navios de combate, mas navios velozes.
— Às vezes é necessário que a gente possa se deslocar no mar mais rápido do que qualquer outro, como um cavalo puro-sangue bem descansado e treinado ultrapassa sem dificuldades os seis cavalos de .uma carruagem. Veja, por exemplo, esse pequeno veleiro muito leve, bem baixo na água.
— Só estou vendo oito tripulantes-e nenhum alojamento, no entanto não se trata de uma barca.
— E um sambur do Iêmen, no mar Vermelho, feito de madeira de Java imputrescível. Excelente veleiro, capaz de desenvolver doze nós com suas duas velas, em bom vento.
— Tem um calado muito raso.
- E pode se enfiar em todas as angras, que por aqui não faltam.
Os navios de pesca eram do tipo das baleeiras bascas.
Havia dois. O terceiro estava pescando bacalhau no golfo Laurentiano. Retornaria no outono, quando os sáveis, que os bostonianos chamavam de shads, desceriam aos milhões os rios litorâneos, depois de desovarem. Alguns pequenos iates holandeses, mais lentos mas flexíveis na manobra e com capacidade para muita mercadoria, serviam para a cabotagem, mas também, ocasionalmente, para o transporte de homens armados.
O Gouldsboro era a jóia daquela pequena frota independente, mas já mais poderosa e ativa do que qualquer outra nos portos da região.
— Associei-me com Rieder de Boston para desenhar as plantas - explicou Peyrac.
— Ele é originário de Rotterdam, não é?
— De fato. Ficamos muito orgulhosos com o resultado, pois conseguimos reunir exigências contraditórias em dimensões razoáveis: o armamento de navio corsário e a grande capacidade de carga.
— E aquela caravela? - indagou Ville-d'Avray. - Parece só linda mas pouco digna das novidades de sua frota. Boa na medida para Cristóvão, o judeu. Em compensação, que quadro admirável no castelo de popa: a Virgem entre os anjos. Aquela Virgem é de uma beleza! Não sei se é uma impressão, mas não, sim, ela se parece com você, cara Angélica!... Não acha, conde?
Houve um silêncio gelado. Se Angélica podia se alegrar com o tato do jesuíta, dificilmente poderia fazer o mesmo pelo do governador da Acádia, que tinha realmente a arte de dizer o que faria melhor em calar. E não era a primeira vez que ela o surpreendia nesse joguinho. "Você me paga", pensou ela.
— É meu navio - interveio Colin Paturel. - O Coeur-de-Marie...
— É mesmo? - extasiou-se o marquês olhando com candura o gigante louro. - Pois bem, você me recomendará-ao seu pintor, meu caro! Quero mandar rabiscar alguma coisa desse tipo em meu veleiro: é uma obra-prima!
— Desde que seu navio já não esteja nas mãos dos ingleses ou a pique no rio Saint-Jean - alfinetou Angélica.
O rosto aberto e feliz do Marquês de Ville-d'Avray se anuviou de repente numa expressão magoada.
— Ah, não é gentil de-sua parte lembrar-me isso - disse em tom de censura - convenhamos! Eu estava feliz, descontraía-me um pouco com esta companhia interessante, e eis que estou atormentado de novo. Realmente, não é nada gentil de sua parte, Angélica!... Mas o que está esperando, afinal, para ir dar caça àqueles ingleses? - ifriíeu-se ele, voltando-se para Peyrac e batendo no molhe com a ponta da bengala de pomo de prata. - Isto acaba sendo intolerável! Se continuar, vou queixar-me de você em Quebec... Estou avisando. Ora, pare de rir! Não é engraçado. O que está esperando, afinal? .
— Talvez aquilo! - respondeu o conde, apontando algo no horizonte.
Sacou a luneta da cintura e estirou-a antes de levar a extremidade ao olho.
- Muito bem! - murmurou.
Fazia mais de uma hora que se percebia uma vela do lado da barra, dando voltas como que a espera do momento favorável para ingressar no porto.
Naquele exato instante o navio fazia a sua entrada, um pequeno iate atarracado e bem pousado sobre as ondas.
- Le Rochelais! - exclamou Angélica, com um vivo sobressalto de alegria.
Ambrosina olhou-a, espantada. O marquês, por sua vez, puxou do bolso de seu colete bordado uma pequena luneta em aro de ouro. Sua expressão amuada transformou-se.
— Mas quem é aquele rapazinho admirável que percebo na proa? - indagou com entusiasmo.
— É o capitão - replicou Peyrac -, que também é nosso filho, Cantor.
— Que idade tem?
— Dezesseis anos.
— É tão bom navegante quanto Alexandre?
— É coisa que se precisa avaliar.
Angélica não esperava um regresso tão rápido do Rochelais. Mas ficou muito feliz e como que aliviada. A dispersão de seus filhos - Hononná em Wapassu, Cantor no mar, Florimond nos confins das florestas do Novo Mundo - causava-lhe uma inquietação surda. Tinha vontade de voltar a reuni-los sob a asa, como todas as mães na hora do perigo. Pelo menos Cantor estava ali.
O mar baixara e ele não podia atracar no molhe. Ancorou entre o Gouldsboro e o xaveco do pai, desceu a chalupa e todo o grupo se deslocou para recebê-lo na praia.
— Que belo jovem! - disse a Duquesa de Maudribourg. - Deve ter orgulho dele, minha cara.
— De fato - admitiu Angélica.
Gostava de reconhecer naquele rosto franco e redondo, ainda pueril, o ar valente e algo distante do seu Cantor, jovem príncipe nascido para outro destino, mas que vinha pela praia com a segurança de cortesão que teria exibido diante do rei. Cumprimentou o pai com um movimento de cabeça respeitoso e militar, beijou a mão da mãe.
- Ele é encantador! - repetiu Ville-d'Avray.
- Parece um arcanjo - disse a Duquesa de Maudribourg.
O conde apresentou-o às pessoas que tinham chegado a Goulds
boro durante a ausência do rapazinho.
As apresentações foram interrompidas pela chegada impetuosa de Wolverines, que surgiu à sua maneira habitual, como um projétil atravessando um jogo de boliche.
Cantor voltou a ser uma criança feliz para acolher o animal de estimação.
— Eu imaginava que ele se perdera e voltara para a mata.
— Ele certamente não parou de espreitar sua chegada da orla da floresta, onde se divertia com o urso - explicou Angélica.
— E aí está o urso - disse alguém.
CAPÍTULO XXII
Memorável luta epfre ojesuita e o urso
Joffrey de Peyrac logo decidiu:
Já que o urso apareceu, podemos embarcar imediatamente, é agora ou nunca-.- MrrJCempton, está pronto para zarpar esta noite?
- Yes, sir! Mandei fazer minha bagagem para o porto hoje de manhã, conforme me -recomendou.. E estou com os pes gastos de correr atrás desse bandido, que não devia estar tão longe e que deve ter zombaedo de mim por detrás de uma árvore.
Mr WilLoagby avançava sem pressa, detendo-se de tempos em tempos para revirar um seixo ou erguer-se nas patas traseiras pa ra farejar e correr à volta um olhar olímpico.
- Haverá de pagar-me"por suas manhas, mister - resmungou o mascate, preparando um laço para reter o fujão.
Enquanto isso a atmosfera mudara subitamente e a atividade se desenrolava com diligência, seguindo um plano prévio. Decidira se que assim que o urso fosse encontrado, membro importante da expedição que era, um primeiro contingente de embarcações mais lentas se faria ao largo, entre ..elas a grande chalupa que trou xera os acadianos e seus selvagens, e que agora os levaria, com armas e bagagens, mais o mascate e seu urso, Mateconondo, seus guerreiros e filha, os dois patsuiketts, o Sr. d'Urville e o sogro in dígena, o Sr. de Randon, etc. A flotilha heteróclita poderia atrair a desconfiança dos ingleses. Peyrac e seus,navios, mais rápidos, iriam ao encontro deles quando já tivessem tomado posição, para desembarcar nos arredores do estuário do Saint-Jean.
Alertados, os índios também se reuniram e logo o seu falatório habi tual fez subir o diapasão. Castine se emocionava. Segurava ternamen te a jovem Matilde pelos ombros e lhe murmurava em abenakis palavras de amor. Ela o olhava, sorrindo gravemente, tranqúilizando-o cõm algumas palavras sábias. Não se tratava de uma expedição guerreira, dizia, seria pouco mais do que um passeio, e daquele país louco do deus Glooscap eles trariam todo tipo de histórias novas, tesouros desconhecidos, alianças tranquilizadoras, presentes inesperados.
Em meio a tudo isso, aquele que provocara toda a agitação ao aparecer, o-urso Willoagby, não parecia haver entendido de todo a seriedade do momento. Com muita agilidade e uma fleuma toda britânica, esquivava-se aos apelos do amo para que se deixasse amarrar e levar para um barco, coisa que ele nunca apreciara muito. Depois de algumas tentativas vãs, Elias Kempton começou a enervar-se.
- Já chega! - gritou, girando bruscamente o chapéu para pôr a fivela para trás, o que nele era sinal de grande cólera. - Willoagby, não vai zombar por muito mais tempo de gente respeitável! Afinal de contas, você não passa de um urso!
Como única resposta, o urso saiu pesadamente a galope por entre os grupos de indígenas, que se puseram a rir e a gritar com estrépito. Depois, achando-se subitamente diante do Padre Maraicher de Vernon, o urso ergueu-se em toda a sua altura e pousou pesadamente sobre os ombros do jesuíta suas perigosas patas cheias de garras.
O jesuíta não pestanejou, e permaneceu firme. Conhecia aquele companheiro incomum, que embarcara como passageiro um dia, em Nova York, e cumprimentou-o cortesmente em inglês. Só que, embora Merwin fosse alto, o urso erguido o ultrapassava um pouco, e a sua goela escancarada com presas agudas oscilava a poucas polegadas do rosto do religioso.
Cessaram os risos, e Angélica se aproximou, ansiosa.
Cevado a frutas, ar puro e liberdade, o urso parecia haver-se tornado selvagem outra vez. De chofre se afastou e se manteve diante do jesuíta, balançando-se e resmungando, com as patas separadas, como se se preparasse para pegá-lo e apertá-lo. Ele quer lutar! - exclamou Kempton. - Ah, já se viu urso tão esperto e brincalhão? Acha que ainda não o olharam o suficiente. Que comediante! Quer lutar com você, Merwin.
- Não! - gritou nervosamente Angélica. - Não é prudente. Não está vendo que esse animal está muito excitado?
Mas o Padre de Vernon não parecia perturbado. Exataminava o temível interlocutor com bonomia e sorria ligeiramente. Não era a primeira vez que o urso o desafiava a combate.
- Lute com ele, Merwin - insistiu o mascate. - Caso contrário isto não vai acabar nunca. Bem que pode fazer isso por ele, não? Depois de tudo o que ele fez por você...
Era de se perguntar que serviços particulares Mr. Willoagby, o urso, pudera prestar ao patrãc/do White Bird. Mas o mascate-zinho de Connecticut julgava a existência a?partir de uma óptica muito particular, no centro da'qual se erkontrava seu amigo e companheiro de infância: o -urso.
O animal se agitava. Parecia desapontado. Não tinham amizade por ele, principalmente este, que sempre fora, como ele bem se lembrava, um bom e franco adversário?
- All right! - decidiu o jesuíta. - Está bem!
Tirou o manto, que confiou ao pequeno sueco, descalçou os mocassins e arregaçou-a batina até a cintura, expondo as pernas magras e nodosas. E se pôs em guarda, diante do urso.
Este soltou um grunhido de satisfação, que fez um arrepio de preocupação percorrer os espectadores.
— Em julho o urso está no cio - disse alguém. - O jesuíta está louco.
— O que importa? O Diabo, seu mestre, o amparará - lançou o Reverendo Patridge, com uma gargalhada sardónica.
A multidão se reunira num círculo estreito e compacto. Até os índios se calaram. Os gorros altos, pretos e pontudos dos mic-macs oscilavam, agrupados numa massa atenta.
Todos os olhares se fixãvamno espetáculo inesperado. Uma fera ereta em toda a sua força selvagem e um homem de mãos nuas, prestes a se enfrentarem. Um único golpe daquelas garras temíveis podia abrir uma barriga, desfigurar para sempre. Mr. Willoagby, em suas refregas habituais, não fazia uso das garras, que Kempton aparara ligeiramente. Mas hoje se notava que pareciam particularmente afiadas, talvez porque o urso não tivesse o ar bonachão de costume. Ele grunhia, balançando-se, e seu olhar tinha um reflexo vermelho.
De súbito arremeteu. O adversário esquivou-se ao primeiro ataque e aproveitou para desferir um violento soco lateral. O urso não pareceu se incomodar, e fez meia-volta. Mas Vernon-Merwin já lhe lançava uma violenta joelhada na pança. Mr. Willoagby a recebeu com a impassibilidade de um tronco de árvore. Mas fez uma pausa. Merwin contornou-o rapidamente e, apoiando-se com as costas ao enorme dorso peludo, começou a dar-lhe murros e cadeiradas para tentar desequilibrá-lo e fazê-lo cair de quatro. O urso resistiu, e depois foi a sua vez de tentar empurrar o adversário pelas costas. Se conseguisse e caísse sobre o jesuíta, sem dúvida o esmagaria.
O homem resistia, com os pés arqueados na areia. Por um instante ficaram ambos assim, costas contra costas, lutando para ver quem desequilibraria o outro primeiro.
Elias Kempton dava pulos, exultava, esfregava as mãos.
- Está começando bem. Wonderful! Esses dois são extraordinários!.
As pessoas começavam a se acalmar, a se entusiasmar.
— Aposto no jesuíta.
— Não, é impossível. O outro é pesado demais...
De repente o Padre de Vernon se esquivou de sua posição incómoda com um rápido deslizar para o lado, e o urso, arrastado pelo próprio peso, caiu para trás. Logo se levantou, rolando para o lado, e se pôs de quatro. Parecia atordoado.
O jesuíta o esperava a alguns metros. Mr. Willoagby correu os olhos à volta com af descontente.
De repente disparou na corrida, como uma bala, e lançou-se em cima do homem, a quem projetou no ar e que caiu rolando a alguns passos.
- O urso também sabe usar de astúcia - observou um espectador a meia voz.
Merwin continuava parcialmente deitado, de cara na areia, sem dúvida aturdido pelo choque.
- Esse está liquidado.
- Vencido, Merwin? - perguntou Kempton.
Willoagby, contente consigo, começou a dar sinais de vitória.
Cambaleando, aproximou-se do corpo imóvel, farejou-o. Curvando-se bruscamente, Merwin meteu os dois pés no focinho do animal, que, sob o efeito da descontração, recuou, para literalmente fugir e se postar do outro lado do círculo que formava a arena, gemendo de dor.
— Não devia ter feito isso, Merwin - protestou Kempton. - Esses animais têm o focinho muito sensível...
— Estamos lutando ou não? - resmungou o jesuíta, que se levantava arquejando. - Ele também não me deu trégua.
— Atenção! - gritou alguém.
O urso arremetia outra vez, e foi por pouco que o Padre de Vernon evitou a colisão. Seguiu-se uma série de passes e investidas, em que a vivacidade do jesuíta compensava, mas cada vez com mais dificuldade, as cabeçadas, as investidas ou então a força da inércia do enorme adversário.
Ora ereto, para melhor dominar o inimigo, ora pondo-se de quatro a fim de se deslocar com mais rapidez, o urso demonstra va uma inteligência quase humana em sua tática. A valentia do homem, sua audácia, seu conhecimento do animal, sua força e sua agilidade fora do comum, forçavam a admiração.
Era um belo combate.
Mas a tensão aumentava. Não se podia deixar de sentir alguma ansiedade.
- Desista, Merwin - aconselhou o mascate. - Seria melhor para você!
Os longos cabelos negros do jesuíta varriam-lhe o rosto coberto de suor.
Não pareceu ouvir. A claridade do entardecer começava a di fundir clarões alaranjadósr A tez de Jack Merwin apresentava uma transparência ebúrnea, mas .dir-se-ia que ele sorria, enquanto seus olhos de reflexo mineral cintilavam de repente com uma espécie de alegria quê o transformava.
Foi nesse instante .que,o urso o tomou nos braços. Um grito brotou da assistência.
- Atenção! Ele vai sufocá-lo!
A longa silhueta de sotaina preta parecia desaparecer entre as patas enormes.
Felizmente Willoagby, achando que obtivera a vitória, largou o adversário. Este deslizou para o chão e não se mexeu. O urso começou a olhar ao redor com orgulho, a fim de colher os aplausos.
Quase em seguida, porém, vacilou e desabou por sua vez, levantando uma nuvem de poeira.
O eclesiástico soltou-se não sem dificuldade da .massa peluda que o esmagara parcialmente ao cair.
Levantou-se e espanou-se com ar fleumático.
- Continuamos, Mr. Willoagby? - perguntou em inglês.
Mas o urso não se movia. Dir-se-ia uma enorme rocha musguenta, encalhada ali pela eternidade. Continuava de olhos fechados.
As pessoas estavam estupefatas perante a súbita reviravolta da situação.
- Ué, o que está acontecendo?.- indagou o mascatezinho de Connecticut, atónito, aproximando-se preocupado. --- Willoagby, meu amigo!... Será que não está passando bem?...
O urso não dava sinal de vida. Estava absolutamente inerte. Era difícil crer que alguns segundos antes ele fazia evoluções, grunhindo, sob a admiração atenta dos espectadores.
Elias Kempton, aterrorizado, contornou-o, não podendo crer nos próprios olhos. Depois rebentou em imprecações.
— Você o matou, papista maldito! - berrou, arrancando os poucos cabelos grisalhos que ainda tinha. - Meu amigo, meu irmàoi Que infelicidade terrível! Você é um monstro, um brutamontes sanguinário, .como todos os seus papas malditos!
— Está exagerando, meu velho - protestou Merwin. - Olhe o estado em que me encontro. Bem sabe que todos os golpes que pude dar-lhe não o afetaram mais do que uma picada de inseto. Contentet-me em agarrá-lo pela pata para derrubá-lo.
— Isso não impede que ele esteja morto - soluçou Kempton, desesperado. - Você é um brutamontes, Jack Merwin, um chupador de sangue, como todos os seus semelhantes. Jamais deveria tê-lo autorizado a enfrentá-lo, a você, um jesuíta! Você o matou, este animal inocente, com suas magias satânicas.
— Basta de tolices! - impacientou-se o jesuíta. - Ele não pode estar muito ferido, garanto. Não entendo por que não se mexe.
— Porque está morto, estou dizendo, ou morrendo... Milady! Milady! - suplicou o mascate, voltando-se para Angélica -, a senhora, que sabe curar, faça alguma coisa por este pobre animal.
Angélica não podia furtar-se ao pedido do mascate inglês, embora se sentisse bastante embaraçada. Nunca lhe acontecera ter de tratar de um urso daquele tamanho. Também ela não entendia o mal que podia ter abatido Mr. Willoagby tão bruscamente. O Padre de Vernon tinha razão ao dizer que os murros que lhe assentara, ainda que ele fosse um boxeador e lutador bastante temível para um ser humano, quase não podiam importunar uma massa enorme como aquela, revestida por gordura e pêlos.
Pensou no golpe que ele levara no focinho e que parecera causar-lhe muita dor. Ajoelhou na areia, perto do animal deitado e inerte, cuja cabeça parecia bem pequena e fina, em contraste com o corpo volumoso e a espinha monstruosa. Delicadamente, ela apalpou-lhe o nariz, e, achou-o tépido e macio. Não havia sangue. Acariciou-o várias vezes, subindo pára a testa, como se faz com um cão. Inclinada, Angélica examinava as pálpebras fechadas por entre o emaranhado de pêlos. Uma pálpebra pareceu estremecer, depois entreabriu-se, deixando filtrar na direção de Angélica um olhar tão humano e triste, que a transtornou.
- O que está acontecendo com você, Mr. Willoagby? - perguntou, suavemente. - Oh, por favor, diga-me...
Ele pestanejou ligeiramente e ela teria jurado que um lágrima lhe escorria pelo focinho. Depois-óim suspiro profundo soergueu o peito do urso, que voltou a cerrar os olhos, como que se recusando a contemplar o mundo'tão amargeT;
Angélica ergueu-se e foi até Kempton e o Padre de Vernon, que esperavam lado á lado, prépcupados.
— Escutem - disse ela erfi,iftglêsí a meia voz -, talvez me engane, mas vou dar-lhes minha opinião. AcKo que ele não tem nada, só está terrivelmente envergonhado..Essa queda, a derrota, quando ele se considerava vitorioso...
— Oh, mas sim,.é claro, sem dúvida tem razão! - exclamou Elias Kempton,Iluminado. -Eu tinha esquecido: isso já lhe aconteceu unia véz!... Ninguém conseguiu movê-lo durante três dias!
— Três diaslEsta-mos_feitos - disse Peyrac, caindo na risada.
— E o senhor ri!I-"indignou-se o mascate. - Mas isso não tem nada de eng'raçado..Ethamo sua atenção para o fato de que sua expedição ao rio-Saint-Jean gorou!... A culpa é sua também, Merwin. Em vários momentos o~colocou em posição ridícula, e principalmente lhe machucou o nariz. Entendo que ele esteja envergonhado.
O Sr. de Ville-d'Avray, que não entendia inglês, perguntou o que é que se tramava. Contaram-lhe. Ele explodiu.
— Como? Não se pô"de partir sim o urso? Então a sorte de altos funcionários de Quebec depende agora da boa vontade de um urso!... É intolerável! Sr. de Peyrac, intimo-o a ordenar a esse urso que se levante imediatamente, ou... eu emburro!...
— Acredite que eu gostaria de satisfazer-lhe, cavalheiro - disse Peyrac, com sangue-frio -, mas o caso não me parece simples.
Examinou a imobilidade quase pétrea de Mr. Willoagby, que parecia adormecido para sempre.
— Talvez se pudesse tentar consolar-lhe o amor-próprio de algum modo - propôs Angélica. - Se você se fingisse de morto, Merwin? - acrescentou, voltando-se para o jesuíta. - Ele se acreditará vitorioso e...
— Boa idéía - aprovou Elias Kempton, entusiasmado. - Eu o conheço! Tem um coração de ouro. Mas não pode admitir que seja menos forte do que um homem. E, de fato, é ilógico. Deveria estar morto, Merwin. Faça'de conta que está...
- All right! - aceitou o jesuíta.
Deixou-se cair de comprido diante do urso, de face contra o chão, e não se mexeu.
O mascate insistia com o amigo para que abrisse os olhos e contemplasse o triste espetáculo.
— Olhe o que fez, Mr. Willoagby! Não é uma pena? Você é o urso maisforte do mundo... Deu uma lição a esse arrogante. Mas olhe! Ele.não se mexe. Não vai se recuperar logo. Isso há de ensinar-lhe a querer lutar com Mr. Willoagby... O urso maravilhoso, mais forte, mais imbatível do mundo...
— Mr. Willoagby - insistia também Angéltea, acariciando o animal -, olhe sua vitória. Como se saberá que é o vencedor se não se levantar? Como saberá que é o urso mais forte do mundo?
Nesse ínterim, o gatinho veio se meter na história. Apareceu de repente na arena e, antes que pudessem impedi-lo, foi dar algumas patadinhas insolentes na ponta do focinho do urso. Angélica afastou-o, mas o animalzinho voltava à carga, muito interessado naquela massa de pêlos em torno da qual todo mundo se agrupava. Kempton continuava com suas adjurações.
- Olhe, afinal, o que fez a esse diabo de batina preta. Sendo papista, recebeu o que merecia, mas ainda assim lembre que ele o recebeu em seu navio.
Esse assédio de palavras persuasivas, junto com as traquinagens do gato, que lhe fazia cócegas, pareceram, afinal, abalar a fortaleza de amor-próprio ferido de Mr. Willoagby.
Consentiu em abrir um olho, depois o outro, depois em se interessar pelo estado de Merwin. Suspirou. Lentamente, como que a contragosto, começou a içar-se sobre as pesadas patas.
Com circunspeção, aproximou-se do corpo estendido, farejou-o, rodeou-o, examinou-o outra vez. Os espectadores continham o fôlego.
— Mas sim, bem vê que venceu mais uma vez, Willoagby! - disse Kempton. - Erga-se, meu amigo, para que o aplaudam! Aplaudam, bando de palermas! - intimou à multidão.
— Viva Mr. Willoagby! Urra! Urra!
Quando o agradável alarido lhe chegou aos ouvidos, o urso serenou definitivamente. Levantou-se sobre as patas traseiras e fez a volta à multidão, colhendo aplausos e homenagens, carícias, felicitações e encorajamentos.
O negrinho Timóteo, enquanto isso, estendeu com presteza o alforje ao mascate, que pegou um pedaço de bolo de mel. Era a recompensa habitual do urso, quando ele vencia. O animal aceitou. Enquanto se deleitava, o amo passou-lhe a corrente ao pescoço. Depois, puxou dos bolsos um lenço grande como um guardanapo e se enxugou demoradamente.
- Estamos salvos! - exclamou, - Bom, eu ojevo, Sr. de Peyrac. Encontramo-nos na casa de Skudún. Está vendo que pode contar com meu urso!... E de umarinteligêneia superior. Vocês,serpentes vermelhas, peguem minha bagagerríe meus-fardps de mercadorias - intimou ele aos mic-macs, que se^apressáram em obedecer, contra os próprios princípios, pois estavam encarnados com a.ideia de embarcar com uma companhia tão divertida. - Venha comigo, Mr. Willoagby! Já basta. Deixemos todos esses papistas com as suas tolices!...
Pobre Mr. Willoagby! Talvez, não se deixasse lograr de todo pela comédia, mas a honra estava salva.
Seguiu o amo com docilidade.
Depois de içado para o barco? e quando o navio, levando também o mascate e o negrinho, índios e acadianos, e mais alguns espécimes, se-afástou. da margem sob saudações e adeuses cordiais, o Padre de Vernon-teve permissão para se levantar.
Estava coberto" de areiapde arranhões e de equimoses, e tinha a batina rasgada.
Angélica procurou com os olhos alguém que lhe trouxesse de beber. Mas o jovem Marcial Berne logo se apresentou com um balde de água.
O jesuíta lavou demoradamente o rosto.
Enquanto isso, todos os ingleses, longe de se indignar, riam a bandeiras despregadas da história do pastor.
— Decididamente, quanta alegria! - observou Ambrosina de Maudribourg, de olhos brilhando.
— Sim, não estamos em Quebec, longe disso - interveio o Marquês de Ville-d'Avray. - Nunça-em vida tinha visto um jesuíta fazer-se assim de bufão! Quando eu contar a Monsenhor Lavai...
— Eu lhe ficaria grato, cavalheiro, se não falasse deste... incidente em Quebec - pediu-lhe com altivez o religioso.
— Sim?... Acredita então que vou me privar disso? - casquinou o marquesinho, examinando-o com júbilo e insolência. - Uma história tão boa! Seria pena... Que seja! Eu me calarei. Mas doravante me concederá indulgências para meus pecados... Uma mão lava a outra. Pelo menos uma vez tenho um jesuíta à minha mercê.
CAPÍTULO XXIII
"Apenas você existe no mundo!"
Angélica ouvira o marido perguntar a Cantor, quando este desembarcava: "Está trazendo Clóvis?" "Não." "Por quê?" "Ele desapareceu", e estava com pressa de ir ao encontro dele, à distância daquela agitação que, devido ao acaso de chegadas e partidas, parecia existir permanentemente na praia de Gouldsboro.
Finalmente ele estava ali, e ela fechou a porta do quarto do forte com uma impressão de alívio.
Mais algumas horas roubadas ao tempo, àquela agitação que desejava dispersar os esforços de ambos e sua necessidade de confidências.
Angélica abençoou a noite clemente, carregada de estrelas, sonora com o movimento do mar que os isolaria por algumas horas breves. Ele aproximou-se dela rindo.
- Você estava tão encantadora com aquele urso, há pouco, meu amor. Não existem duas mulheres como você no mundo. Eu estava morrendo de vontade de tomá-la nos braços.
Ela hotou-lhe a alegria. Toda a cacofonia, a incessante solicitação para que tomasse decisões, os detalhes a acertar, nada parecia abatê-lo.
- Apenas você existe no mundo, apenas você!
Angélica foi invadida por uma paz extraordinária que de repente descia sobre ela. "Só existe ele", pensou também, sentindo a força de sua presença. Tudo em que ele toca fica marcado com um sinal extraordinário... E este homem me ama... Sou sua mulher..."
Apenas o ruído do gatinho brincando com uma bala de chumbo, achada sob um móvel, perturbava o silêncio. Dir-se-ia um duente, um pequeno génio tutelar, velando pela felicidade deles.
— Está preocupada - continuou Peyrac -, notei quando você entrou. Por quê?
— Esqueço-me disso quando estou aqui - disse Angélica, estreitando-se contra os ombros dele. - Gostaria de ficar a vida inteira aqui, e principalmente... de que você não partisse... Oh, que não partisse! Não sei por quê, mas sinto uma angústia enorme ante essa idéia. Não parta.
— E preciso.
— Por quê?
— O Sr. de Ville-d'Avray se amua! - disse Joffrey, fingindo susto.
— Ora, que importa que ele se amue! É a ocasião para que ele nos deixe em paz,com sua mania de destilar'veneno ao acaso das conversas. Você notou? O marquês já não abre a boca, mas Alexandre está falando rVi-e conversando com Cantor. O marquês e o protegido devem se entender para se revezar no amuo...
Riram os dois, mas Angélica continuava angustiada.
— Era a Cantor que-você esperava para tomar a decisão da partida?
— Em parte... sim.
— Vai levá-lo consigo?
— Não, deixo-a sob a-guarda dele... e deste aqui - acrescentou, apontando o gaíinho.
Ela foi pegar o animalzinho leve, de olhos imensos.
- E contra que perigos esses dois devem proteger-me?
De súbito lhe ocorria a ideia de Colin. Abandonando-a sozinha em Gouldsboro, de onde Colin agora era o governador, Joffrey de Peyrac estaria preparando outra armadilha?
Mas não estava. De repente era como se cada um deles, ela, ele, Colin, tivesse ocupado seu lugar exato. Já não havia perguntas a fazer a respeito, nem para ele, nem para ela, nem mesmo para Colin. Alçando os olhos para o rosto do marido, Angélica não conseguiu ler nenhuma segunda-intenção. E pensou: "Que homem pode existir para mim alémfdele?"
E era uma coisa tão certa, tão simples de conceber como uma verdade imutável, que ela sentia que também para ele a fronteira das inquietações e das dúvidas corrosivas e malsãs fora atravessada.
E Colin, o justo, o forte, Colin, o franco, o íntegro, também sabia disso.
Se ele permanecia em Gouldsboro, tendo aceitado incumbências que convinham a seus talentos, era porque encontrara seu lugar pessoal, um equilíbrio, em que a serenidade do sacrifício consentido lhe fortificava o gosto pela vida e pela ação.
Pelo contrário, a presença dele ali, auxiliando Peyrac, trazia ao coração de Angélica urna cálida sensação de conforto. Disse a meia voz:
— E bom, não é,; que Colin esteja aqui?
— Sim. Se ele não tivesse o lugar sob controle, eu não me afastaria.
Essas palavras encheram o coração de Angélica de uma alegria que, involuntariamente, irradiou pelo rosto dela. Encarando-a, ele esboçou um sorriso.
— Tudo está ainda instável demais em nossa situação - observou ele. - Há inimigos em demasia a nos espreitar, bem neste momento. Ora, Paturel é atento. Tem um faro seguro, um punho de ferro, e ninguém pode influenciá-lo facilmente. Coloquei-o a par de tudo o que poderia prejudicar-nos. Ele tem... a percepção do que somos aqui, do que podemos obter destas terras, destes homens. Ele não cederá, não deixará nada ir por água abaixo, ele se agarrará. Enfim... ele está solidamente apegado a este mundo. Recebeu realmente do céu um dom, um poder sobre o ser humano.
— Como você.
— Comigo é diferente - disse Peyrac, pensativo. - Eu o fascino, ele os convence. Posso distraí-los e atraí-los distraindo-os ou recompensando-os, mas continuo distante. Ele é próximo, é da mesma laia. E prodigioso! Sim, graças a Deus, Colin está aqui, e posso me dedicar a outros assuntos.
Ela adivinhou que ele não pensava somente na expedição destinada a libertar os funcionários de Quebec. Seu objetivo, ao deixar Gouldsboro, era sobretudo dar caça aos misteriosos inimigos que em várias ocasiões já os haviam feito tropeçar em suas armadilhas, e desemboscá-los.
— O que foi que aconteceu com Clóvis?
— Encarreguei Cantor de trazê-lo da mina entre o Kennebec e o Penobscot, onde o deixei. Queria interrogá-lo acerca do mal-entendido que houve em Houssnock, quando você se pôs a caminho da aldeia inglesa, supondo que o fazia a mando meu. Cantor lhe trouxe o comunicado, mas recebeu-o, disse-me, de Maupertuis. É impossível perguntar a Maupertuis, já que os canadenses o capturaram. Mas Cantor terh a impressão de lembrar que Maupertuis aludiu a Clóvis como a pessoa que lhe transmitira minhas ordens. Por intermédio de Clóvis tenho certezade que eu poderia obter informações mais precisas sobre >essâ gente que se compraz em embaraçar nossp novelo/Mas Clóvis desapareceu.
— Teria sido uma açao deles?,
— Pressinto que sim...
— Quem pode ser "eles"?
— O futuro nos esclarecerá. Num futuro pxóximo, espero, hei de dar-lhes caça sem trégua. Avistaram o pavilhão dos navios deles nas ilhas da baía. Talvez tenham um vínculo com a companhia que venden as terras de Gouldsboro a Colin.
Angélica tentava lembrar uma coisa que Lopes, um homem de Colin, lhe diss.era. Era como que uma pista cujo fio ela não conseguia agarrar.
— E o Padre de Vernon? Que papel pode ter em tudo isso?
— Seu jesuíta, marinheiro e lutador de feira?... Parece-me que ele é favorável a nós, na medida em que você o enredou em sua rede.
— O que está dizendo? Ele é um pedaço de mármore, um monumento de frieza. Se você soubesse com que impassibilidade ele olhava enquanto eu me afogava na ponta Monégan!
— O que não o impediu de mergulhar.
— E verdade.
Angélica acariciou, o gatinho, pensativa.
— Confesso que tenho amizade por ele. Sempre gostei de ecli-siásticos - confessou, rindo. - Que Deus me perdoe! Tenho a impressão de encontrar facilmente, com eles, um terreno de entendimento, não sei qual exatamente.
— Você lhe oferece da mulher: uma imagem desconhecida, nem pecadora, nem deyota, que lhes adormece a desconfiança...
— Como é que ele sabia que Barba de Ouro me havia captura-o e quem o mandou me procurar a bordo do Coeur-de-Marie?
— Faça-o confessar.
- Um jesuíta! Realizei muita coisa considerada impossível, como fugir do harém de Mulay Ismael. Mas fazer um jesuíta confessar... Nunca!... O que não impede que eu tente!
CAPÍTULO XXIV
Despedidas e partidas
-Adeus - disse a Sra. de Maudribourg, segurando as mãos de Angélica -, adeus, não a esquecerei nunca!
Seu olhar magnífico envolvia o rosto de Angélica com uma intensidade desesperada, como se ela quisesse gravá-lo para sempre na memória. Estava de uma palidez impressionante, e Angélica sentiu que as mãos da benfeitora estavam geladas.
— Você me despreza, não é? - sussurrou Ambrosina. -.Mas devo obedecer à vontade de Deus. Ah, deixo este lugar de coração partido! Que encanto reina aqui e como me cativou! Nunca a santa disciplina me pareceu tão cruel. Mas o Padre de Vernon foi categórico. Não devo ficar aqui, devo ir para a Nova França...
— Você já me explicou - disse Angélica. - Creia que também lamentamos, e por inúmeras razões, a decisão que você tomou de nos deixar. Vejo mais de um e de uma chorando hoje.
— Tenho que obedecer - murmurou Ambrosina.
— Pois bem, obedeça! Apesar do que se diz, não somos gente a utilizar de força num acaso como este para reter entre nossos muros aqueles ou aquelas que não querem ficar de modo algum.
— Você é dura - disse Ambrosina numa voz de censura, estrangulada, como se ela fosse rebentar em soluços.
— E o que quereria de, mim? - protestou Angélica, que começava a irritar-se.
— Que não me esquecesse! - lançou Ambrosina, que estava a ponto de desfalecer.
Mergulhou o rosto entre as mãos. Depois, desviando-se de Angélica, afastou-se a passos lentos. Na roupa de cores vivas, que voltara a vestir, parecia mais do que nunca um pássaro frágil.
Sua curta estada em Gouldsboro deixava-lhe um misterioso ferimento.
Ná véspera, depois que o Padre de Vernon se refizera do combate com o urso, mandara erguer uma cabana de ramos para receber seus penitentes, e ela logo se apresentara para se confessar com ele.
Pouco depois Angélica a virá chjgar, transtornada.
— Ele recusa - exclamará -, desaconselhou-me fortemente a deixar minhas moças aqui. Disse que devo abandonar este lugar, onde Deus e o rei da França não são honrados, que o meu dever é levar as minhas moças para a Nova França, Quebec ou Montreal, e que.me-deixei induzir em tentação pelas suas liberalidades perigosas. "Uma atmosfera sedutora, com certeza", disse-me ele, "mas'na qual essas moças logo se desviarão de sua salvação eterna, para sóie.-preocuparem com bens materiais... aqui, onde a riqueza do "mundo aflui".
— Riqueza?:.. Em Gouldsboro!... Um lugar deserdado, onde estamos o tempo todo -em risco de perder o.s poucos bens que possuímos, inclusive a vida... Ele não tem medo de exagerar, esse Merwfn. Reconheço-o bem nisso.
Angélica ficara profundamente decepcionada e mesmo entristecida com a reação do jesuíta. Fora precipitada demais em presumir que tivessem inspirado simpatia ao religioso.
Estivera a ponto de ir procurá-lo para dizer-lhe umas verdades, mas Ambrosina a avisou de que o padre descansaria naquela noite numa aldeia próxima, cujo chefe o convidara, e que já estava a caminho:
— A frota do Sr. de Peyrac o impressionou. Disse que todos os aldeamentos privados ou .militares da Nova Fraca não constituem, juntos, tal-potência comercial e defensiva.
— Os aldeamentos franceses nas colónias são sempre pobres como Jó, devido à negligência do reino e a de seus próprios governos. Não é razão para imitá-los...
Angélica tivera que expor ao marido, as novas decisões da Sra. de Maudribourg.
- Pois que se vá - dissera o conde, com uma vivacidade que quase surpreendera Angélica. - Ontem, justamente, o Padre Tournel, capelão de Port-Royal, me propunha levar essas mulheres para lá, onde a Sra. de la Roche-Posay poderia recebê-las em terra francesa.
— Não haverá cruéis desapontamentos entre os homens?... Tinha se falado de casamentos...
— Encarrego-me, junto com Colin, de explicar a eles. Port-Royal não fica longe, diremos. E uma ausência de alguns dias, necessária por diversas obrigações, fortificará os sentimentos deles. A aprovação da ausência pode ser benéfica, antes de se comprometerem pela vida toda, etc.
— Eles se deixarão lograr?
- Sim, porque é preciso - respondera o'conde.
Angélica não entendera de todo a resposta.
Realmente os futuros cônjuges das Moças do Rei assistiram à partida das prometidas sem manifestar demasiada inquietação ou desespero.
Mas reinava um silêncio estranho e como que um mal-estar informulado. Parecia, na verdade, que estava acontecendo alguma coisa diferente daquilo que se via. Angélica sentia isso tão profundamente, que precisou fazer força para permanecer calma.
O visível pesar da benfeitora não a ajudava. Uma espécie de piedade e ansiedade por aquela jovem desarmada e como que abandonada por todos entrava em conflito, em Angélica, com a irritação que lhe causava a excessiva docilidade de Ambrosina perante as ordens dos jesuítas.
Ela lamentava que o Padre de Vernon não estivesse presente para poder dizer-íhe umas verdades.
Aristides Beumarchand era o grande ganhador na história. Ficava com a sua Juliana. Aparentemente, a benfeitora agarrara a oportunidade de se livrar da sua ovelha negra.
Angélica notou que a moça não estava presente à partida das antigas companheiras. Talvez receasse que a Duquesa de Mau-dribourg, volúvel e autoritária, mudasse de opinião na última hora.
Ambrosina tomara a decisão de deixar Gouldsboro tão rapidamente, que muitos dos habitantes não foram prevenidos. A Sra. Carrère chegou no. último minuto, protestando.
— Ninguém me diz nada, nunca. As pessoas chegam, vão embora, sem me dar satisfação. Senhora duquesa, peço que me perdoe, mas não acabei de remendar seu manto...
— Não tem importância, deixo-o com você, minha boa mulher - respondeu Ambrosina de Maudribourg, numa voz sem timbre. Corria os olhos à volta, como se procurasse socorro.
— Sr. Ville-d'Avray.- exclamoja de repente, voltando-se para o governador francês, que assistia ao embarque com ar compungido e compenetrado -, por quê não me acompanha? Sua presença encantadora nos distrairia, e Port-Royal não fica sob sua jurisdição?
— Excelente ideia- aprovou o marquês, com um sorriso juvenil. - Estou morrendo de vontâde de comer cerejas em Port-Royal. Randon, as cerejas já estão maduras lá?
— Não, ainda não! - respondeu o senhor acadiano.
— Então lamento mjuito. - O marquês assumiu uma expressão pesarosa. - Sou-obrigado a esperar a estação das cerejas. Realmente, lamento muito. Mas tenha paciência, será apenas uma voltinha à extremidade da baía Francesa, para, saborear os crustáceos gratinados delMarcelina, a Bela, e logo irei ao seu encontro, encantadora senhora.
Essas palavras aTespeito dê cerejas e crustáceos tinham algo de ridículo, riras, curiosamente, ninguém pensou em rir ou sequer sorrir. Ninguém as ouvia como completamente reais.
Os sentimentos de Angélica a respeito de Ambrosina de Maudribourg tinham oscilado por muito tempo, não chegando a se pronunciar. Agora, porém, que a via embarcando, o patético daquela fisionomia alçada para eta despertava-lhe piedade e simpatia.
Havia naquela mulher de uns trinta anos uma espécie de inocência, algo de inacabado, de abatido, melhor dizendo, e Angélica se emocionava ao sentir aquela jovem de grande beleza, nascida cheia de dons e aparentemente para um destino glorioso, alquebrada por uma enfermidade interior que ela não conseguia definir.
Houvera instantes em que aqueles contrastes entre a personalidade madura e sagaz da duquesa e sua puerilidade inesperada tinham-na irritado extremamente. Os contrastes desconcertavam o observador, mas não eram despidos de encanto para quem se contentava em suportar a ascendência da duquesa. Para Angélica, o lado pueril da duquesa vinha à tona sobretudo quando ela se encontrava diante de urna audiência masculina. Instinto ou compensação. Dir-se-ia uma adolescente excercitando-se em seus primeiros jogos de sedução... Talvez não tivesse tido muitas ocasiões de usá-los na juventude...
Claro que Angélica não estava esquecendo o medo que sentira no outro dia, durante aquela discussão científica, quando vira Am-brosina alçando para Joffrey de Peyrac seus olhos magníficos. Mas agora entendia que se perturbara sem motivo, interpretando com exagero, no seu nervosismo, fatos sem importância.
Joffrey de Peyrac não parecia de modo algum perturbado pela partida da duquesa, antes parecia impaciente por vê-la embarcar, e a benfeitora naufragada só prestava "atenção em Angélica.
- Poderíamos ter tido uma belíssima amizade - disse-lhe. - Sinto-a próxima de mim de inúmeras maneiras, apesar do que nos opõe.
Falava com razão. Embora enrijecida num quadro de educação piedosa que ela não parecia querer nem poder ultrapassar, por vezes a duquesa tinha clarões de instinto em seus julgamentos que se assemelhavam às intuições de Angélica. Dissera-lhe um dia: "Há um perigo-que a ronda e ameaça".
E agora não parecia capaz de decidir a deixá-la, olhando-a com desespero.
Ambrosina aceitou o auxílio de Armando Dacaux e do Capitão Job Simon para subir na chalupa. As Moças do Rei tinham sido levadas para o navio. Esta última viagem conduziria a duquesa até o pequeno navio de trinta toneladas, cujo comando fora assumido pelo Sr. de Randon. Depois da escala em Port-Royal, a embarcação encontraria Peyrac no rio Saint-Jean.
Atrás de Job Simon, dois grumetes carregavam um andor sobre o qual repousava o unicórnio de madeira, que o capitão levava consigo. Ele não concluíra a tarefa de banhá-lo a ouro outra vez e fizera uma cena infantil quando lhe falaram de partida. "Você tem que seguir-me", dissera a duquesa, "é tudo o que me resta da tripulação que contratei..."
Aborrecido e resmungando, ele foi o último a embarcar, depois de içar e instalar na popa da chalupa o unicórnio cintilante.
Vendo-o erguer-se, desengonçado, poderoso e cabeludo contra o céu avermelhado do entardecer, Angélica se lembrou de repente da frase que lhe dissera Lopes, o homem de Colin: "Quando vir o grande capitão, com a mancha violeta, saberá que seus inimigos não estão longe!" O que podia significar isso? Apesar da marca avinhada que lhe marcava a têmpora, as palavras não podiam aplicar-se ao pobre Job Simon, piloto canhestro, naufragado por azar na baía Francesa.
Com um braço passado à volta do pescoço do unicórnio, ele se afastava melancolicamente de Gouldsboro, de tempos em tempos, levantando a mão em sinal de adeus.
As crianças respondiam-lhe, também com acenos, mas não havia gritos nem vivas.
Job Simon e o seu unicórnio ocultavam os demais ocupantes da chalupa. Ainda assim, num momento em que a embarcação fez umà evolução, Angélica avistou Ambrosina de Maudribourg, que voltava os olhos, ria sua. diréção. Foi como se o fogo irradiando daqueles olhos escuros â envolvesse de uma maneira imperiosa, cujo sentido ela não entendia. "Ainda não estamos quites", parecia dizer o olhar devorador.
Abigail estava ao lado de Angélica naquele instante. Numa rea-ção impulsiva, Angélica- pegou a mão da amiga e ficou surpresa de sentir os dedos de Aoigail apertarern com força os seus, como se a calma jovem rochelesa-tivesse compartilhado internamente da sensação inabituãV qu£ se desprendia daquela cena.
O sol vermelho começava a de§cer rapidamente entre as nuvens amontoadas n(c) horizonte. O vento se levantava e viam-se as velas enfunar- num branco puro e fosforecente contra-o azul escuro do céo, dò lado de onde a noite estava chegando.
Os movimentos do embarque já não eram visíveis. No entanto, quando o unicórnio de madeira dourada foi içado para bordo, os reflexos do sol fizeram-no cintilar, bem como o corno de narval de marfim rosado' que~lhe pendia dentre as narinas.
Pouco depois pareceu que o navio atravessava a barra, e a escuridão do crespúsculo o tragou.
Então as crianças se animaram e começaram a pular na areia. Depois, pegando-se pela mão, puseram-se a dançar em roda e a correr numa farândola, soltando gritos alegres.
Abigail e Angélica olharam-ss. Não trocaram palavra, pois não saberiam o que dizer de preciso, mas sabiam que ambas estavam com a mesma sensação de alívio.
A atmosfera mudara na praia. Apenas alguns homens que tinham visto distanciar-se as jovens a quem amavam continuavam preocupados e tristes. Mantinham-se a parte e conversavam entre si. Colin foi-lhes ao encontro e voltou a falar com eles.
No conjunto, porém, parecia que ninguém lamentava demasiado a partida dos passageiros do La Licorne, naufragado duas semanas antes na costa de Gouldsboro.
Todas aquelas partidas aliviavam as tarefas e os encargos dos habitantes, felizes de repente por se verem outra vez sozinhos.
- É a nossa vez - disse Peyrac, atirando sobre os ombros o manto que o vento forte do anoitecer agitava.
— Vai partir? - perguntou Ville-d'Avray, alegremente.
- Na próxima, maré.
- Afinal! Angélica, meu anjo, a vida é bela. Seu marido é um homem encantador. Vocês têm absolutamente que ir os dois a Quebec... Sua presença transformará num encantamento o próximo inverno... Sim! Sim, vão, faço absoluta questão.
GOULDSBORO OU AS MENTIRAS
CAPÍTULO XXV
O adeus de Peyrac
— Oh, meu amor - disse ela -, parece-me que não tivemos tempo de nos-amar o suficiente e de nos dizermos isso, e você já está partindo!' É horrível para mim. Ah, odeio a maré e o seu relógio infalível! A maré -não espera!... E ela o tira de mim.
— Mas o que está acontecendo? Não a reconheço..
Joffrey de Peyrac tomou-a nos braços, acariciou-lhe a testa febril. Ouviu-se um trovão, num estrondo repentino. As nuvens se haviam-reuhidó de noitinha, num pesado amontoado cor de ardósia, prestes a descarregar o relâmpago e o raio. O calor opressivo cedia a bruscas rajadas de vento. A janela de madeira batia na parede com estrépito.
— Não vai partir com esta tempestade, não é? - disse Angélica, esperançosa.
— Tempestade! Isso não passa de um toro. Meu amor, você está uma criança esta noite.
— Sim, sou uma criança - concordou ela, obstinada, com os braços à volta do pescoço dele -,.uma criança que ficou sozinha no palácio quando o arrancaram ao horizonte dela. Nunca me refarei disso.
— Eu também não. Sabe?... Minha violência da outra.noite era isso. Esse medo, arraigado em mim, de perdê-la uma segunda vez, de que os demónios triunfem uma segunda vez sobre nós. Mas tudo isso é pueril. Amadureçamos, envelheçamos, é mais do que tempo - disse ele, rindo e cobrindo-a de beijos -, e olhemos a verdade de frente: afasto-me por seis, dez dias, bem armado, bem aparelhado. Um passeio à extremidade da baía Francesa...
— Essa extremidade da baía Francesa me dá medo. Fala-se dela o tempo todo e vejo como que um buraco escuro, cheio de fumaças do inferno, povoado de dragões, de monstros, ídolos...
— Há um pouco disso. Mas conheço as regiões do inferno. Já fui passear à sua soleira inúmeras vezes em minha vida. E novamente desta vez, tranqúilize-se, meu amor, não vão me querer por lá.
Seu humor trocista acabou levandp a melhor sobre os pressentimentos dela."
- Talvez eu esteja de volta antes mesmo de nascer o filho de Abigail - acrescentou.
Angélica calou a inquietação que sentia pela amiga. Receava desapontá-lo com essas queixas de mulher.
— Não esqueça de pedir ajuda à índia velha da aldeia - recomendou ele -, ela é famosa pelas drogas que tem para casos de parto.
— Farei isso. Tudo irá bem - disse Angélica.
Sabia que ele precisava partir. Não havia apenas Phipps. Havia também os "outros", aqueles que ela começava a chamar consigo mesma de "demónios". Não podia entravar a ação do marido, que ele punha em prática depois de haver pesado longamente as chances de êxito. Adivinhava-lhe a força oculta, pronta para agir. Ela não duvidava de que ele atacaria rápida e duramente, e que depois estaria tudo bem. Mas era a ausência dele que temia, e não se decidia a afastar-se dele, a consentir em sua partida. Acariciava-lhe os ombros, ajeitava-lhe a ombreira de fitas, o peitilho de renda. Tinha gestos de posse que faziam bem a ele, afirmando para si mesma que ele pertencia somente a ela e que ainda estava ali, perto dela. Ele estava usando aquele magnífico traje inglês de cetim bege com tiras carmesin, bordado de pequenas pérolas, com altas botas vermelhas, de couro macio, que subiam até a metade das coxas.
— Eu o vi uma vez usando esta roupa - disse ela, atentando ao traje. - Não o usava na noite do meu retorno a Gouldsboro?
— Precisamente. Eu precisava exibir um pouco de soberba, assim como se faz ao partir para combate. Não é papel fácil o de marido enganado... ou o de passar por marido enganado - arrematou ele, rindo da reação impulsiva de protesto de Angélica.
Puxando-a para si, abraçou-a com uma paixão decuplicada, envolvendo-a com os braços e apertando-a contra o peito a ponto de tirar-lhe o fôlego.
- Guarde-se bem, meu amor! - murmurou, com os lábios sobre os cabelos dela. - Ah, guardé-se bem!... Rogo-lhe.
E ela intuiu que nunca antes ele ficara tão preocupado em deixá-la. Afastou-a, olhou-a profundamente. .Com um dedo, alisou suavemente a curva de uma sobrancelha, seguiu a linha oval do rosto, como se quisesse sentir-lhe,a "perfeição. Depois se dirigiu até a mesa, pegou das pistolas e fixou-as nos estojos de seu boldrié.
— Agora não se pode recuar - disse, como se falasse consigo. - Há que ir adiante, desemboscar, desmascarar o inimigo, forçá-lo a mostrar o rosto... ainda que seja um rosto' diabólico. Os dados estão lançados, Gouldsboro existe, Wapassu existe, nossos fortes, nossas minas ap longo do Kennébec e do Penobscot, nossa frota... Temos que fázer.o que é preciso para .manter tudo isso.
— O que é preciso fazer?
Ele tomou-a nos braços de novo. Ostentava o sorriso cáustico habitual, como se quisesse atenuar a seriedade das próprias palavras.
- Não se deve ter medo - disse -, nem duvidar. Veja... Tive medo, medo de perde-la^ duvidei, e hoje sei que sem seus avisos eu cairia.-numa armadilha preparada... Lições desse tipo tornam a gente humilde. E prudente. Por isso, lembre-se, meu amor: não ter medo... de nada, não duvidar, estar vigilante... e as portas do inferno não levarão a melhor contra nós.
CAPÍTULO XXVI
Angélica recebe em seu quarto uma visita inesperada
Ele partira. E a noite tombava outra vez, depois de um dia chuvoso e tempestuoso.
O quarto no forte parecia ter perdido o calor. Vendo-se ali sozinha, sem a presença viril e viva do homem que amava, Angélica tinha dificuldades em repelir um sentimento de apreensão gelada e sem alvo, que tentava sorrateiramente infiltrar-se nela.
De bom grado teria retido Cantor para tagarelar um pouco até uma hora avançada da noite, a fim de que esta passasse mais depressa, mas o rapazinho, pelo final da tarde, desaparecera com Marcial Berne, Alistair MacGregor e mais dois ou três adolescentes para alguma atividade secreta.
Durante o dia Angélica visitara Abigail.
— Imponho-lhe um sacrifício bem pesado, não é? - dissera-lhe a esposa de Mestre Gabriel. - Sem mim, você poderia ter partido com o Sr. de Peyrac.
— Sem você! Claro! Mas você existe, minha cara Abigail - respondera Angélica alegremente -, e também existe essa pequena vida preciosa que em breve nos trará alegria e novidade.
-.Não estou tranquila - decidiu-se Abigail a confessar, no tom em que confessaria uma falta irreparável - receio enfrentar mal a provação que se anuncia. A primeira mulher de Gabriel morreu de parto. Eu me lembro, estava presente. Foi horrível aquela impotência!... E sinto que também ele, à medida que se aproxima a hora, é perseguido pela recordação.
- Ah, não me vá agora enfiar ideias na cabeça! - exclamou Angélica, fingindo-se aborrecida.
Sentou-se perto de Abigail, na beirada da grande cama rústica, e contou-lhe todas as histórias de partos felizes de que conseguiu se lembrar.
— É que eu sinto uma bola que passa e repassa por aqui - disse Abigail, pousando a mão à altura do estômago. - Será a cabeça da criança? Será que isso quer dizer que ela vai nascer de nádegas?
— Talvez. Mas não-há motivo para Sjustò. As vezes os nascimentos nessa posição transcorrem mais facilmente do que os outros...
Deixou Abigail tranquilizada. Mas tomou para si os tormentos de que aliviara a amiga. Foi procurar a Sra. Carrère.
- A senhora me ajudará, não é, Sra. Carrère, com Abigail?
A mulher do advogado franziu o nariz.
Sua disposição, seu espírito prático, os onze filhos, que levava a rédeas curtas, davam-lhe cada vez mais um lugar de primeiro plano em Gouldsboro.
— Abigail já não é rnuito nova --- disse, preocupada. - Trinta e cinco anos é tarde parã-unr primeiro filho.
— Sem dúvida, mas-Abjgail é corajosa e paciente. Isso conta, num parto que pode ser demorado.
— Eu me pergunto se a criança está bem colocada.
— Na verdade não está.
— Se ficar tempo demais na passagem, morrerá.
— Não morrerá - afirmou Angélica, com uma segurança tranquila. - E então, posso contar com a senhora?
Dirigiu-se também ao acampamento indígena, a fim de encontrar, no fundo da cabana onde ela fumava seu cachimbo, a velha índia que lhe tinham recomendado. Tinham combinado um quartilho de álcool, dois pães de trigo e uma manta escarlate pelos serviços, conselhos e medicamentos que poderia dispensar. Era muito experiente e possuía o segredo de certas drogas, cuja composição Angélica bem que gostaria de conhecer. Entre outras, um extrato de raízes que podia atenuar o sofrimento sem retardar ou deter o trabalho de parto, e também um unguento que tornava indolor a fase de expulsão. Jenny Manigault o_experimentara no ano interior, quando nascera o pequeno Carlos Henrique.
Coitada de Jenny Manigault! Pobre rochelesinha!... A grande América incivilizada a havia devorado, engolira-a para sempre nas profundezas de suas florestas. Retornando ao povoado, sob uma chuva fina e irritante, Angélica tremia. Encerrada naquele invólucro de florestas escuras, Gouldsboro agarrava-se à costa, ponto ínfimo entre aqueles dois desertos móveis e inclementes: a floresta e o oceano.
A ausência de navios na enseada, a partida da maioria dos hóspedes que a visitavam nos últimos dias, os acadianos e seus peles-vermelhas, as Moças do Rei e sua benfeitora, o buliçoso Marquês de Ville-d'Avray e sua comitiva de eclesiásticos, o entardecer que tombava sobre os telhados de palha ou ripas, atenuando as cores e as distâncias, tudo isso tornava mais sensíveis a fragilidade e como que a precariedade daquelas poucas casas, agrupadas numa vontade de sobreviver, a despeito da aparente impossibilidade de triunfarem sobre os elementos imperiosos que as rodeavam.
Em contraposição, a mesma sensação de fraqueza inspirava o seu contrário, a da força que habitava os homens aninhados sob aqueles pobres telhados, onde a chama das lareiras, brilhando por trás das janelas, simbolizava a alma voluntariosa.
Um pouco adiante, ao longe, os ingleses fugidos, acantonados no acampamento Champlain, conservavam a esperança de reconstruir o que os índios tinham destruído. Protegidos por aqueles franceses generosos, aguardavam pacientemente, cantando salmos e orando, o fim da tormenta. A proximidade de um jesuíta, seu pior inimigo, não os perturbava.
Gouldsboro representava trégua. O direito ao repouso para os homens de boa vontade perseguidos. Lembrando-se do jovem protestante Marcial Berne, estendendo espontaneamente ao jesuíta esgotado um balde de água fresca, Angélica perguntava-se se apesar de tudo não haveria alguma coisa em vias de se modificar naquele canto de mundo.
Hesitara em visitar Colin. Tinha vontade de saber como os homens dele, elemento novo na colónia, ainda pouco assimilados, estavam suportando a decepção que lhes causara a partida das Moças do Rei.
Mas a caminhada sob a chuva abatia-lhe o humor. Tinha os pés molhados. Foi até o albergue, junto ao porto, que, depois da animação dos últimos dias, parecia vazio. Não encontrou Cantor, tomou uma tigela de caldo de peixe e voltou para casa.
Sentia-se realmente ansiosa.
Ele não estava mais ali. Partira. Apenas o gatinho, como um duendezinho, cuja alegria de viver nada podia alterar, animava
a penumbra com seus pulos, cambalhotas e corridas. Às vezes sentava sobre a cauda, com modos de gato sério, tombando a cabeça de lado para olhar Angélica, e parecia interrogá-la: "Então? Alguma coisa errada?" E voltava a brincar, com entusiasmo redobrado.
Ela admitiu que se sentia contente porfie estar ali. A noite próxima e os dias que se seguiriam já lhe pareciam intermináveis. Estava bem úmiçkrno quarto naquela noite. Angélica quis acender a lareira, mas desistiu, pois não achou lenha seca. E o ruído da chuva e do vento continuava crescendo dentro do aposento, misturado com o quebrar das ondas próximas, pois o forte fora construído na ponta de um pequeno promontório.
De repente, pelas dez horas da noite, fez-se silêncio.
Quando Angélica-chegou à janela para fechá-la, tudo se acalmara: chuva, vento,-choque de ondas vigorosas contra os rochedos. Em compensação, um nevoeiro espesso começava a invadir a natureza. Podia:se,yê-k> avançar, vindo do mar, na noite, como um alto muro esbranquiçado.
Rolou suas vblutas sobr-e a praia, onde ardiam as fogueiras de alguns marinheiros, e ficou ali, cercando o forte. Agora só se via a sua textura lívida, fumaça densa e sem odor salvo por um ranço de mar-:e terra úmida. O hálito frio do nevoeiro invadiu o aposento. Todas as luzes ao redor tinham-se apagado, as fogueiras da praia e as luzes que brilhavam por trás das janelas das casas, todas engolidas pela neblina.
Angélica tomou coragem e fixou a janela. Joffrey! Onde estaria ele? Conhecia o mar, mas o nevoeiro nunca é amigo dos navios.
Pensativa, entregou-se a alguns afazeres antes de ir dormir. Não estava com sono, mas sentia necessidade de descansar. Só que nessa noite não conseguiria repousar sem arrumar minuciosamente o quarto, inventariando cada detalhe e retendo com o olhar o lugar de cada coisa. Tratava-se de uma necessidade que lhe parecia nascer mais de um desejo desegurança do que do sentimento de bem-estar por se encontrar num quarto bem em ordem. Não era maníaca por ordem. Certa efervescência, certo movimento na disposição ou no acúmulo de objetos não lhe desagradavam. Sempre encontrava nisso uma sensação de vida, a prova de que uma casa ou aposento era habitado, respirava, participava. Também gostava de ter as coisas sob os olhos. Essa noite, porém, queria examinar, avaliar, começar de novo. Dobrou as roupas, arrumou-as cuidadosamente nas arcas, fechou, examinou seus frascos, saquinhos e remédios, um pouco dispersos sobre um console, jogou fora o que era inútil, pôs de lado o que desejava ter à mão para o parto de Abigail. O cofre de madeira com iluminuras de São Cosme e São Damião era grande e prático. Foi com prazer que se posa arrumar tudo ali da melhor maneira possível. Revivia a atenção de Joffrey para com ela e se enternecia, ao mesmo tempo em que se acentuava seu sentimento de incerteza e leye angústia. "Por que temer por ele?", repetiu consigo mais uma vez. A expedição em que ele se lançara esse dia não era muito diferente de inúmeras outras que já empreendera e levara a bom termo. Que perigo de que ele já não tivesse conhecimento podia aparecer-lhe pela frente, depois de uma vida já longa a frustrar os maus golpes do destino e a malícia dos homens?
Ele logo retornaria, depois de pacificar a região e garantir a tranquilidade das costas pelo menos por algum tempo, o bastante para que os habitantes de Gouldsboro atravessassem em relativa quietude as dificuldades de um segundo inverno - inimigo não menos perigoso do que piratas, índios e canadenses.
Com o espírito em paz, Angélica e o marido poderiam voltar a Wapassu, e embora o que os aguardava lá fosse uma existência talvez mais distante de qualquer ajuda, mais ameaçada do que a dos pioneiros do litoral, ela só pensava nisso com o delicioso sentimento de voltar para casa, para o seu feudo, um lugar onde se sentia realmente protegida, com ele. Um lugar onde podia se desenrolar a vida verdadeira de ambos, com o transcorrer de trabalhos e alegrias simples e sempre renovadas de sua existência familiar, de esperanças e realizações de projetos sonhados e para os quais se tinham empenhado juntos. Um lugar onde só dependia deles - dela e dele - manter a atmosfera de amizade e estímulo com os companheiros, que, apesar das origens diferentes, não eram por isso companheiros menos seletos, unidos pela vontade de viver junto às fronteiras, de construir e cultivar para si mesmos, sim, mas também para o bem-estar dos tempos futuros naquele país rico e novo.
Angélica não se inquietava por Wapassu na ausência deles, que na verdade seria relativamente curta. Antine e Ritz eram homens fiéis, e os trabalhos intensivos do verão quase não permitiriam aos mercenários recém-chegados, conforme permitiram aos primeiros habitantes do lugar, fazerem-se perguntas sobre as suas dificuldades de convivência. Peyrac traçara planos de ampliação do forte e da paliçada que manteriam os mercenários ininterruptamente ocupados, fosse a rachar lenha, fosse a construir. Também os mineiros não permaneceriam inatiyos: extrair ouro e prata, cavar novas galerias, instalar novos moinhos. E todos seriam requisitados pelas culturas, pela caça, pela pesca, e a conservação dos víveres. Nem as crianças ficariam ociosas. Angélica podia imaginar Honorina dedi-cando-se à colheita de bagas, em companhia do ursinho Lancelot.
Arrumando os objetds de sua sacola, o grande saco de couro do qual raramente se separava, achou o colar de wampum que lhe fora enviado por Utakê; o chefe das Cinco Nações iroque-sas. Demorou-se contemplando aqueles símbolos de pérolas roxas e brancas, onde também podia ler a garantia da sua tranquilidade em Wapassu. Desta vez não teriam que sacrificar suas reservas de/víveres aos ancestrais dos irbqueses. Com a paliçada de altos troncos de cedro, flanqueada por torrinhas angulares, com sua pequena guarnição bem armada, que saberia intimidar canadenses arrojados, caso estes aparecessem, com depósitos bem providos de lenha e" sólidas chaminés de pedra, estariam bem em Wapassu, ao longo dos dias de inverno.
Apesar das agruras do-ijiverno recente, ela o evocava com nostalgia.
"Fomos felizes, apesar de tudo", pensou. "Ficamos tão escondidos lá, no fundo do nosso vale sagrado do lago de Prata, que parece que nem os próprios demónios podem nos alcançar..."
A evocação dos demónios pêrturbou-lhe o ânimo de novo. Um nada a abatia ou exaltava. Era a opressão do nevoeiro, cujo domínio almofadado ela sentia, reinando sobre a noite e sobre o mar.
- Será que ele vai encontrá-"los"?... E o que será que ocultam as astúcias deles, de que fomos vítimas?
Seu espírito retornou ao mar obscuro e agitado onde Joffrey de Peyrac rondava, à procura dos inimigos invisíveis e misteriosos. Teve dificuldade em respirar. Depois censurou-se pelos próprios medos sem fundamento.
Ainda assim, antes de ir para a cama, armou uma das pistolas e enfiou-a embaixo dos travesseiros.
O silêncio lá fora, tão inabitual, dayaJhe a impressão de estar absolutamente sozinha num forte isolado e abandonado por toda presença humana.
A sensação foi tão vigorosa, que ela não resistiu ao impulso de ir abrir a porta que dava para a escada. Ouviu o ruído das vozes das sentinelas, que bebiam na sala comum com os homens de Colin e alguns índios. Ficou mais tranquila.
Resolveu pôr-se na cama, mas apesar de seus esforços continuou tensa, como que numa espécie de espera.
Acabou adormecendo, um sono perturbado, quase vigília, onde entrevia como que passando pela fantasmagoria dos nevoeiros da baía Francesa formas indistintas. Marcelina, a Bela, e seus doze filhos, por entre conchas que voavam, lançadas numa velocidade inacreditável, o monstro marinho escondido na baía de Parsboro se virando enquanto as águas subiam como uma massa sob a ação do fermento, o deus Glooscap que se erguia, gigantesco. E só transparecia de repente, nas nuvens fuliginosas, sua máscara de demónio lívido, de olhos de ágate transparente.
Angélica despertou com uma sensação de angústia medonha, e todos aqueles seres estranhos que lhe haviam atravessado o sono pareciam ainda estar agrupados à sua volta, povoando a escuridão densa, rodeando-a, espreitando-a.
Não enxergava nada. A noite era profunda. Ela "os" sentia. No entanto, o silêncio tinha algo de anormal. A neblina devia colar-se ao redor, lá fora, com a densidade de um muro, a preen-são de uma fortaleza, envolvendo o forte de madeira, isolando-o de todo contato, de todo socorro.
Os momentos de escuridão se arrastavam com uma lentidão opressiva. Passavam como que sustentados pelas batidas aceleradas de seu coração, sem que ela conseguisse extrair daquele silêncio e daquela escuridão os elementos materiais ou imateriais que lhe inspiravam o terror.
Afinal tomou consciência de que o que devia tê-la acordado era um ruído imperceptível e estranho, bem perto dela, quase contra a sua orelha. Dir-se-ia um arranhar breve, seguido como que de um pequeno jato de vapor escapando. A coisa parava, depois se reiniciava. Impossível definir o que poderia produzir aquilo. Madeira? Ferro? Mas era bem perto, tão perto, que de repente ela se deu conta: um animal!
Presa de pânico, ia se atirar para fora da cama, mas mudou de ideia: um animal?... sim, claro: o seu gato! Certamente ele conseguira se insinuar até junto dela para dormir. Mas por que fazia aquele barulho estranho? Estaria sufocando? Vomitando? Estaria doente? Ela prestou atenção, ouviu melhor, adivinhou-o de súbito erguido sobre as patas frágeis, o dorso arqueado, com todos os pêlos eriçados. E aquele ruído que ouvia!... Mas claro... Obedecendo aos reflexos hereditários de sua espécie quando um perigo a ameaça, ele cuspia e soprava, intermitentemente. Ela então entendeu.
O gato via no escuro alguma coisa que ela não via e que o enchia de horror e medo. E ela mesma, então, sentiu que a espinha se lhe eriçava com um longo arrepio.até a raiz do cabelo.
Por um momento que lhe pareceu interminável, ficou paralisada, petrificada, incapaz de qualquer rriovimento. O que havia na noite, aquela coisa cuja presençatangível ela discernia aos poucos? Aquela coisa presente, assustadora, monstruosa, invisível, mas que o gato via?
Afinal conseguiu estender a mão, enfiá-la embaixo do travesseiro e encontrar a pistola. A sensação da coronha de madeira polida na palma da mão lhe fez bem. Respirou mais calma, recuperou o controle dos. pensamentos.
Acender uma-luz?... Esteedeu a mão na direção da mesa-de-cabeceira. Seus dedtís encontraram o pêlo morno do gatinho, de fato eriçado como uma pelota de espinhos. Quando lhe roçou a pelagem, houve cofrió que centelhas crepitando. O gato deu um miado agudo e pulou_para for*a da cama. Com certeza foi se refugir sob um móveí, onde se enroscou, aterrorizado. Angélica tateava,-:pròcurândo o isqueiro e a vela. Não os achava. O coração continuava a bater-lhe disparado, acentuando-lhe a falta de jeito. Havia alguém no quarto, ela tinha certeza, mas quem? Derrubou um objeto e,conteve-se: "Ainda que seja o Diabo", disse consigo, batendo os dentes, "preciso vê-lo!"
Ela sentia... Sentia... Era algo que vinha até ela, envolvendo-a como uma onda, lembrando-lhe algo que ela não identificava. Uma pergunta que ia fazer... Como se esquecera, a chave perdera-se...
Seus dedos se enervavam, batendo o isqueiro. Precisava apressar-se antes que a onda a sufocasse. Enfim uma faísca brilhou. Mas Angélica não conseguiu acender o pavio.
Ainda assim, no clarão, ela enxergara, pudera ver o que sabia que estava ali. Alguém!
Uma silhueta humana. No fundo do aposento, perto do ângulo à esquerda da porta. Uma silhueta negra, imóvel, como que coberta de longos véus de luto.
Por que aquela náusea? Aquele perfume insuportável. E no perfume se encontrava toda a explicação, o perigo. .
Angélica reuniu toda a coragem, enquanto sentia um brusco suor de angústia brotar-lhe de todos os poros. Quando o pavio começou a arder, ela se esforçou por não se voltar, pausadamente aproximou-o da mecha, esperou que a chama pegasse bem e que subisse, alta e clara, dissipando as sombras e empurrando-as até as paredes.
Então, pegando o candeeiro, dirigiu a luz com mais segurança para o canto do quarto onde tivera a impressão de notar uma silhueta imóvel. Obrigando-se a permanecer calada, esquadrinhou a penumbra. Não restava nenhuma dúvida. Havia alguém ali, em pé. Uma forma escura, como a de um fantasma envolto em sombras, um ser que se diria coberto por um manto negro, de capuz a lhe cobrir inteiramente o rosto inclinado-, parecendo aquelas estátuas de monges chorando que se colocam nos quatro cantos de tumbas de reis.
Por um instante tentou convencer-se de que era uma ilusão, um jogo de sombras de um móvel coberto de roupas, e que seu espírito assustado a iludia. Nesse momento, porém, a forma moveu-se e como que deu um passo à frente.
O coração de Angélica deu um pulo. Ainda assim ela conseguiu segurar a vela numa mão que não tremia.
- Quem está aí? - perguntou, com uma voz tão firme quanto possível.
Não houve resposta. De súbito, Angélica foi dominada pela cólera. Pousou a vela sobre a mesa e, afastando as cobertas, sentou na beira da cama. Gom o pé, procurou as chinelas de couro bordado, e levantou-se. Não desviava os olhos da sombra muda.
Ficou um instante assim. Depois, pegando a vela de novo, começou a avançar na direção do fantasma negro.
Então a sensação do perfume que a indispusera atingiu-a de novo e, reconhecendo-o de repente, teve tamanho terror que achou que ia desmaiar e cair.
Ambrosina!
Simultaneamente seu espírito efetuou umâ espécie de restabelecimento estranho. O pânico inconsciente se acalmou, enquanto ela dizia consigo: "Se for realmente ela, por que ter medo?"
E encaminhou-se a passo mais seguro. O perfume recriava a presença quase familiar daquela que por alguns dias fora sua hóspede, pássaro de plumagem brilhante, melancolias insólitas, encantos incomparáveis, devoção, ciência e ingenuidade, juventude e poder maduro da benfeitora de personalidade ambígua e misteriosa.
Perto dela, Angélica "sentiu-a" sem sombra de dúvida, e quando, pousando a mão na testa do fantasma, puxou o capuz de tecido preto, não se surpreendeu ao descobrir os olhos brilhantes da duquesa, ardendo de um fogo sombrio no seu rosto de cal.
- Ambrosina - disse Angélica, recuperando o sangue-frio com dificuldade -, Ambrosina, o que faz você aqui?
Os lábios da Duquesa de Maudríbourg tremeram. Nenhum som lhe saiu da garganta.
Como que perdendo as forças, tombou de joelhos e, atirando os braços à volta da cintura de Angélica,' pousou a testa sobre o seio dela.
— Eu não podia - exclamou afinal, desesperada -, não podia...
— O que é que não podia?
— Afastar-me desse lugar... Afastar-me de você... A medida que a costa se apagava-, eu acreditava que morria de sofrimento... Parecia-me que a esperança de não sei que sonho de vida serena e boa me era arrancada definitivamente... Que era aqui, aqui! que eti devia permanecer,., -Eu não podia.
Suspiros convulsivos a-agitavam. Através da fina camisola de cambraia, Angélica sentia os braços da duquesa apertando-a como uma liana macia,'mas de força irresistível e ardente. O peso daquela testa que pesava contra ela irradiava uma indefinível impressão de mal-estar e de doçura.
Conseguiu pousar o candeeiro sobre um console próximo e, pegando as mãos de Ambrosina, que se cravavam nos seus rins, despregou-lhe os dedos crispados e afastou-a.
Nesse momento o chamado da sirena de nevoeiro, soprado numa concha na baía, elevou-se e pairou longamente através da espessura algodoada do nevoeiro.
Esse longo gemido lúgubre causou um arrepio em Angélica, e ela se perguntou num átimo se-a-forma ajoelhada ali, à sua frente, tinha algum parentesco com a da mulher que embarcara há pouco tempo para Port-Royal. Seria uma aparição, uma miragem, um pesadelo que ela vivia acordada, sem poder distinguir vigília e sonho?
Os olhos de Ambrosina de Maudribçjurg, alçados para ela, eram de uma beleza surpreendente. A luz que emanava deles parecia mergulhar no âmago de Angélica, num apelo silencioso e fascinado.
A sirena do nevoeiro soou de novo, avisando os marinheiros dos perigos.
— A neblina - disse Angélica -, como você conseguiu atravessar a neblina? Onde estão suas moças? Quando desembarcou?
— Minhas moças estão em Port-Royal, sem dúvida, a esta hora - explicou a duquesa. - De repente um barco de pesca cruzou conosco. Vinha para Gouldsboro. Não resisti. Disse aos meus que continuassem sem mim e pedi aos pescadores que me recebessem a bordo. Desembarcaram-me não longe daqui. Apesar da bruma, consegui me orientar sem muita dificuldade. Dirigi-me para o forte, o forte onde eu sabia que você repousava. As sentinelas me reconheceram.
— As sentinelas deviam ter-me avisado - interrompeu Angélica, contrariada.
— Que importa? Eu sabia onde ficava seu quarto. Subi. Sua porta não estava fechada.
Angélica lembrou que na véspera saíra até o patamar para escutar os ruídos do forte e se tranquilizar. Depois esquecera de passar os ferrolhos na porta de novo. Devia ao próprio nervosismo e negligência o pavor que sentira há pouco. Estava encharcada de suor e fraca como depois de um calor desgastante. Ao mesmo tempo, sentia frio e se continha para não bater os dentes. Isso lhe ensinaria a não se deixar dominar por impulsos e temores vagos.
De bom grado teria esbofeteado Ambrosina para ensinar-lhe a não penetrar assim no apartamento de gente adormecida e se comportar como um espírito vindo de entre os mortos. Mas percebia que a Duquesa de Maudribourg não se encontrava em seu estado normal. Parecia que fizera aquele regresso a Gouldsboro, dera a caminhada até o forte, através do nevoeiro, até o quarto de Angélica, numa espécie de segundo estado, sob o impulso de uma força desesperada e irracional.
As mãos dela, que Angélica ainda segurava, tornavam-se frias e começavam a tremer. Continuava ajoelhada, mas parecia despertar e tomar consciência de suas loucuras.
- Perdoe-me - murmurou. - Oh, perdoe-me, o que foi que eu fiz?... Mas cheguei até você!... Não me abandonará, não é?... Senão estou perdida...
Ela divagava.
- Levante-se e venha deitar - disse Angélica. - Você está exausta.
Guiou os passos vacilantes da duquesa até a cama.
Ajudando-a a tirar o manto negro, viu uma espécie de relâmpago vermelho que pareceu envolvê-las a ambas. O manto era inteiramente forrado de cetim carmesim, que cintilou sob o efeito da luz. Atirado sobre a cama, era como uma grande poça de sangue, de um vermelho escuro e suntuoso.
"De onde será que ela tirou essa capa "? --- perguntou Angélica para si mesma.
Mas a indagação sumiu assim que surgiu. Angélica continuava não se sentindo completamente segura da realidade.
Ajudou Ambrosina de Malidribourg a deitar entre os lençóis ainda mornos de seu corpo.
- Estou com frio - gemeu a jovem, de olhos fechados.
Era sacudida por tremores convulsivos.
"De onde será que ela tirouessa capa?", pensou Angélica de novo.
Ainda nesse instante, erfquanto puxava por sobre Ambrosina, rígida e quase, inconsciente, a coberta da cama, ela duvidava da presença real da duquesa. O gatinho deu um pulo, de olhos dilatados, e, fazendo uma pausa breve, atravessou a cama como um raio, depois o quarto,-e correu para se enfiar novamente embaixo de um móvel.
"Do quê é que ele está com medo?"
Dir-se-ia que o nevoeiro, infiltrando-se por todos os interstícios, banhava o quarto com uma umidade.gelada. Angélica tinha arrepios e sentia-se dominar pelo mal-estar que arrasava a duquesa.
Acendeu a lareira e,. rapidamente, num pequeno fogareiro, preparou um café turco bem forte. Depois disso se sentiu melhor e suas ideias clarearam.
"Que loucura! Voltar sozinha, com um tempo destes! As moças lá, em Port-Royal, ela aqui. Todo esse belo mundo missionário não tem os pés no chão... A América é demasiado dura para essas mulheres- exaltadas...
Apiedava-se pelo destino de Ambrosina de Maudribourg, um destino caótico de passado carregado de sombras, dores, aflições inconfessáveis, que ela pressentia ao se inclinar mais uma vez sobre aquele frágil corpo aniquilado. O que teria vindo procurar com ela, Angélica, que sua fortuna, posição e criados não podiam garantir-lhe?
- Beba - disse, amparando com o braço a cabeça inerte e aproximando a xícara dos lábios de Ambrosina.
— Não é bom - disse esta, com uma careta.
— É café, a melhor panaceia do mundo. Em alguns instantes você se sentirá melhor. E agora conte-me - continuou quando viu um pouco de cor voltar às faces da jovem -, você veio sozinha, alguma de suas acompanhantes veio com você? Seu secretário? Job Simon?
— NãOj não, ninguém, já lhe disse! Decidi isso^por mim mesma quando vi aquele barco acadiano, dizendo que vinha para Gouldsboro. Gouldsboro! Você! Sua amiga Abigail, tão encantadora, toda essa gente agradável, amável e corajosa, esses dias de alegria e acontecimentos, essa liberdade, o ar que se respira aqui... Não sei o que me deu... Queria revê-la, certificar-me de que você existia, de sua realidade...
— E deixaram que partisse assim?
— Todos gritavam. Mas pouco me importa. Meu impulso foi mais forte do que os argumentos deles. Tiveram que me deixar agir segundo minha vontade e continuar a viagem, como eu lhes ordenara.
"Deve ter sido uma confusão e tanto!", pensou Angélica.
— Sei fazer-me obedecer - disse Ambrosina com um súbito clarão de desafio nos olhos imensos.
— Sim, eu sei. Mas ainda assim você agiu loucamente.
— Ah, não me censure. Já não consigo ver com clareza em mim mesma. Não seria hoje, pelo contrário, que eu estaria agindo no sentido que me é necessário, e não sob as perpétuas coerções que querem a minha destruição?
Falava gemendo e seus olhos ganhavam brilho, como se se enchessem de lágrimas. Sua cabeça, de pesados cabelos negros, pesava contra o ombro de Angélica como a de uma criança abatida.
— Acalme-se. Amanhã falaremos de novo sobre tudo isso. Por enquanto você tem que recuperar as forças. A noite ainda vai a meio. Precisamos dormir.
— Amanhã me instalarei de novo na casa lá embaixo... Eu gostava de olhar o mar da porta. Não a atrapalharei, você verá. Viverei sozinha, orando. E tudo o que desejo...
— Veremos. Agora, durma.
Deslizou para o outro lado da cama, para seu lugar, que ficara morno, e teve prazer em se esquentar de novo.
Decididamente a noite estava fria. A coberta de pele que, na véspera, estendera sobre o leito não era nada inútil.
Hesitava em apagar a vela, ainda abalada pelo medo que sentira havia pouco. Pensou em acender uma lamparina a óleo num canto do quarto. Mas não tinha coragem de levantar. Onde estava o gatinho? Voltaria a se insinuar para junto dela, tranquilizado? Antes de soprar a vela, olhou na direção de Ambrosina, que parecia haver mergulhado num sono profundo. Sobre seus traços delicados lia-se uma impressão de serenidade infantil.
Angélica meneou a cabeça. A criatura era uma infeliz.
Apagou a vela, não sem cuidadosamente preparar ao alcance da mão o isqueiro e o pavio.'Durante alguns instantes seu espírito vagueou, indeciso e inquieto, depois ela deslizou para o sono, levando para seus sonhos o perfume leve épenetrante da cabeleira de Ambrosina de Maudribourg, ao seu lado.
Sonhou, e reviveu o sonho horrível que já tivera uma vez. Fazia amor com um monstro que tinha um ricto assustador. Uma sensação de opressão a sufocava e ela se debatia para escapar ao abraço medonho.
Despertou de novo, com o coração disparado, e na escuridão profunda topou com olhos brilhantes ao nível do chão, olhos que ela fitou Com um texror inominável durante minutos intermináveis. Afinal entendeu que eram os olhos do gatinho, ento-cado do Outro lado do quarto, sob um console. Ele não dormia. Continuava a espreitar, curiosamente alerta.
Pouco a pouco o coração de Angélica se acalmou, parou de tocar um tambor enlouquecido em seus ouvidos. Ela recuperou o sentido da realidade. Era noite ainda, continuava fazendo silêncio e, certamente, lá fora, o mesmo nevoeiro denso e implacável. Angélica pensou nas casinhas de Gouldsboro. Tentou rememorar uma a uma, cada uma isolada, envolta naqueles véus opacos, amortalhada. Numa delas dormitava Abigail, a menos que conseguisse dormir de fato,,pois agora suas noites eram perturbadas pelo fardo que ela trazia em si. O pequeno Laurier devia dormir a sono solto, com os cabelos sobre o rosto. Em outra cabana havia Bertille e a criança loura, nascida em terras da América, que levava o nome de'Carlos Henrique; em outra, outra criança loura, Jeremias, com o grande, escravo negro deitado a seus pés, enquanto no aposento ao lado roncava Manigault, junto da esposa imponente. Em outra habitação, afinal, havia Colin, também. Ela não conseguia imaginá-lo naquela hora senão trabalhando, meditando, indiferente ao nevoeiro, atento em se instruir perto da vela acesa. Ele velava, não tinha medo, permanecia sólido apesar dos malefícios que naquela noite rondavam Gouldsboro.
De repente Angélica lembrou-se de Ambrosina e estendeu a mão para o lado.
O lugar estava vazio. Desta vez Angélica disse em voz alta:
- Estou louca ou o quê?
E acendeu uma vela-, com a mesma determinação com que se decide enfrentar um destino. Ambrosina estava ali. Ajoelhada a alguns passos do leito, rezava, de mãos postas, os olhos alçados para o céu com fervor.
— O que você está fazendo? - exclamou Angélica, quase encolerizada. - Isto não são horas de rezar!
— Sim, são horas - respondeu a duquesa com uma voz baixa, rouca, como que aterrorizada -, é preciso rezar. O Diabo ronda!...
— Basta de tolices! Venha para a cama.
Angélica levantava a voz, de medo de ceder ao pânico. Sentia um arrepio a eriçar-lhe a espinha. Aquilo lhe lembrava uma cena antiga, a noite que ela, criança, passara na Abadia de Nieul, quando o
jovem monge arregaçara as mangas para lhe mostrar os vestígios dos golpes de Satã. "Veja o que me fez o Maligno, veja!"
Cerrou dentes e punhos para dominar o tremor que a dominava. Teria dado um mundo inteiro para que Joffrey aparecesse naquele instante e ela pudesse se lançar aos braços seguros dele; ou para ousar correr até a casa de Colin, a fim de que aquela presença de homem sólido afastasse ameaças vagas. Mas morreria de medo antes de chegar lá! Não queria sequer sair da cama, a que se agarrava como a uma balsa salvadora. Parecia-lhe que assim que pousasse os pés no chão, mãos ardentes e peludas lhe agarrariam os tornozelos...
Por que o gatinho também tremia embaixo do console, com aquela atitude aterrorizada?
— Deixe-me rezar mais um pouco - suplicou Ambrosina de Maudribourg. - Logo será madrugada. O galo cantará. O Maldito se afastará...
— Aqui não há galo - soltou Angélica, rude -, e se espera que ele cante, vai cair de esgotamento.
— Ah, está ouvindo? - exclamou a jovem, enquanto uma expressão de alívio lhe iluminava a fisionomia torturada.
De fato, por surpreendente que fosse, Angélica notou o canto de um galo no pátio do forte, abafado pelo nevoeiro, mas bem real, e que se repetiu por várias vezes. O canto familiar de todas as auroras campesinas aliviou a tensão dela também.
— Ele se afasta - murmurou Ambrosina -, Satã se afasta. Tem medo do dia, da luz.
— Então há galos em Gouldsboro - comentou Angélica. - Eu não tinha notado. Mas já que é assim,*por favor, Ambrosina, pense que agora só temos algumas horas de sono à nossa disposição, e venha deitar. Não agiiento mais...
Obediente, a jovem se ariastou para a cama e enfiou-se nela, também exausta.
- Que tormento! - murmurou, ajeitando a coberta e mergulhando o rosto pálido com uma espécie de volúpia no travesseiro. - Ah! como se está bem a seu lado! Angélica! Você permanece serena, inacessível. É uma força em você que me seduz mais do que tudo. Nenhum medo a'aíinge. De onde tira sua coragem? É algo que recebeu de "herança, Jião _é? Ah! Por que não a recebi também? Por que o Maldito-se prendeu aos meus passos desde que nasci?
Desta vez Angélica deixou á luz acesa. Não queria voltar a adormecer, apesar do cansaço. Aquela voz queixosa ao seu lado emocionava-à, ehchiá-a de uma piedade que ia buscar sua origem em reminiscências longínquas. Sabia o que era o abandono, a solidão de uma mulher, incompreendida, censurada por todos, rejeitada por uma espécie de trama inconsciente, e era essa aflição que ela sentia vibrar na voz da duquesa. Daquela personalidade dilacerada, surgia uma criança, e uma criança que pedia socorro.
Quase sem refletir, estendeu a mão e acariciou a pesada cabeleira com reflexos de noite e de fogo. As pupilas de Ambrosina se suavizaram e fitaram-na com uma espécie de espanto pueril.
— Você é boa - murmurou, em tom incerto. - Por que é boa para mim?
— E por que eu não o seria? Você precisa de ajuda e está longe dos seus. Gostaria que se recompusesse e recobrasse a coragem.
— Que maravilha contemplá-la e ouvi-la! - cochichou Ambrosina, como em sonho. - Você é tão bela! E no entanto seu coração também está vivo. O dom do amor, é isso, então. Você o possui. É capaz de amar aos outros e de sentir que a amam. Eu nunca sinto nada...
Avançava a mão e, timidamente, como que ofuscada, tocava a cabeleira de Angélica, sua face, seu lábio.
— Você é tão bela, e no entanto...
— Tolices - disse Angélica, que ouvia atentamente, preocupada em discernir por trás daquelas palavras desconexas a brecha que lhe revelaria o segredo daquele coração ferido -, do que é que me quer convencer? Também você é bela. E sabe disso! Quanto a não ser amada, a dedicação de suas acompanhantes, de todos os que a acompanham, prova o suficiente o amor que lhes inspira... .
De repente a pergunta que já quisera fazer váriasvezes voltou-lhe à memória e ela exclamou:
- Ambrosina, o perfume de seus cabelos... É sempre tão envolvente, e seu cabelo parece ter sido ungido recentemente. Você não me disse que perdeu o último vidro de perfume no naufrágio?'
Ambrosina fez uma careta e deu um sorriso débil.
— Pois veja, isso ilustra sua tese de que estou-rodeada de gente que me ama muito. Imagine que,-sabendo a que ponto eu gostava desse perfume e temendo que não o encontrasse na Nova França, meu secretário, Armando Dacaux, trouxe um vidro a mais. Como é homem cuidadoso e meticuloso, envolveu o vidro em tela gomada, forrou-o com panos e costurou o embrulho numa aba de sua roupa. Pôde, então, ouvindo que eu me queixava por haver perdido minha frasqueira, dar-me esse néctar supremo.
— Não foi ele também, pelo que ouvi dizer, que a ajudou a descer na chalupa com a criança de Joana Michaud?... Veja o de-votamento que você pode inspirar mesmo a um escrevente que, por vocação, não parecia destinado a se fazer de herói...
Ambrosina também sorria, mas seu sorriso crispado sulcava-lhe nos cantos da boca vincos amargos.
- Aquele grande palerma! - murmurou.
Seu olhar se fixou em Angélica de novo, antes de dizer, febril:
- A você, todos os homens amam, e os mais dignos desse nome. Um homem como seu marido, por exemplo... fora do comum, todos os dons, todas as seduções, um sedutor na verdade, um homem que todas as mulheres gostariam de cativar, e basta que você apareça e ei-lo fascinado. Segue-a com os olhos, seu olhar se suaviza quando pousa em você, ele só parece sorrir às suas tiradas de espírito... e aquele outro, o gigante louro e taciturno, o que é que existe entre ele e você? É algo que se sente à flor da pele... Até aquele imponente jesuíta. Também aí senti essa "aura" de intimidade, de cumplicidade que você sabe criar entre si e qualquer homem, até os mais simples: aquele soldado estúpido, aquele pirata devasso, até aquele índio assustador... Também o índio a ama, é evidente. Mataria qualquer um que a tocasse um fio de cabelo, senti isso... Basta que você apareça e alguma coisa muda, dir-se-ia que as pessoas -que se.-sentem mais felizes... Até o urso, até o urso a adora! -'-eXaltou-sè*'ela, torcendo as mãos. Angélica caiu na risada.
— Mas que diatribe é essa? Você esta exagerando, minha cara!
— Não - disse Ambrosina, obstinada. - Você tem o dom do amor, talvez porque saiba receber amor, senti-lo. Que fortuna não daria eu para possuir esse dom!
— Então é assim difícil amar a vida? - perguntou Angélica, examinando-a com.,seriedade.
Bem no fundo daquela personalidade cheia de encanto e talentos, ela começava a entender que existia um desespero mortal.
- O dom do amor resume se nisso, então? - repetiu Ambrosina. - Não, não é tão. simples.,.
Avançou a mão-e acariciou o ombro e o braço de Angélica, que o vento c-o sol do_mar haviam bronzeado.
— Você tem um corpo feliz - disse -, é esse o segredo. Você goza de ttído no coração, mas também na carne, felicidade e infelicidade, sol, as aves que passam, a cor do mar, o que talvez aconteça amanhã... e o amor que lhe têm, e o que sente...
— O que a impede de fazer o mesmo?
— O que me impede?
Estas palavras foram gritadas. Os olhos arregalados de horror da duquesa contemplavam no fundo dela uma visão insuportável. O amargor de sua boca acentuava-se a ponto de fazê-la parecer feia e devastada, como uma velha.
— Deixe-me - disse de repente, empurrando o braço de Angélica que lhe_rodeava os ombros. - Deixe-me, quero acabar com a vida, como eu devia ter feito naquela noite...
— Que noite, Ambrosina?
— Não, não - fez a duquesa, enlouquecida -, não fale disso. Vou me matar, é tudo.
— Deus proíbe esse ato. Você, tão piedosa...
— Piedosa!... Sim, sou. É preciso que eu seja alguma coisa, já que estou completamente morta. Não encontei outro motivo por que sobreviver. Rezar, ser piedosa, ocupar me com coisas de religião. Você zomba de mim, não é, com minhas devoções, você, que possui tudo. Não pode compreender.
— Compreender o quê, Ambrosina?
— Não! Não! Eu nunca poderia dizer! Você não pode compreender.
— Como sabe que não?
Angélica amparava contra si o corpo de Ambrosina de Maudribourg, que era sacudida por tremores .convulsivos e parecia prestes a se atirar para fora da cama para se entregar a um ato de desespero. Em seu delírio, não se dava conta de que se debatia seminua. Tinha um corpo de uma juventude estranha, perfeita. Dir-se-ia o corpo de uma donzela intacta.
— Você acredita que não vivi antes de hoje? - indagou Angélica. - Atravessei muitas vicissitudes, acredite, e dos sofrimentos humanos é pouco o que não conheço...
— Não! Não! Você era forte... Enquanto eu... Você não pode saber o que significa ser...
— O quê, Ambrosina?
- Ser uma criança de quinze anos entregue a um velho lúbrico - gritou ela, como se vomitasse um veneno que ao mesmo tempo lhe arrancasse as entranhas.
Ficou ali curvada, arquejando.
- Gritei - cochichou -, gritei... Ninguém veio em meu socorro... Lutei uma noite inteira... No final ele mandou seus criados me segurarem!... E padres para abençoar aquilo...
Atirou-se para trás, sobre o travesseiro, pálida. O suor lhe escorria pelas têmporas. Um círculo arroxeado se desenhava sob suas pálpebras fechadas. Por um instante pareceu morta.
Angélica enxugou-lhe o rosto.
-- Você não dirá nada, não é? - balbuciou a duquesa, com.uma voz quase inaudível. - Não dirá nada... que gritei... Eu era muito orgulhosa. Uma criança pura, alegre, mas orgulhosa... No convento eu dominava minhas colegas: a mais bela, a mais instruída, a mais amada. Desde a infância eu deixava de boca aberta teólogos, matemáticos, que vinham com a única finalidade de me questionar. Eu olhava de cima as religiosas, aquelas ignorantes... E depois, a humilhação súbita... Descobrir que todos esses belos dotes não representavam nada, não me defendiam do destino comum, que eu não passava de uma presa que os homens e suas leis tinham o direito de vender ao que oferecesse mais, com a bênção de um clero cúmplice... sem piedade pela minha inocência... junto de um homem corroído de vícios, cinquenta e cinco anos mais velho do que eu
Interrompeu-se, sem fôlego, e pareceu novamente a ponto de vo irritar. Angélica a amparava, calada. Dizer, o quê? Ela se lembrava Também para ela, casada por pfodiração, tudo poderia ter sido ignóbil, medonho. Mas houvera Joffrey de Peyrac à sua espera em Toulouse, e a aventura incomum de um amor apaixonado nascen do entre a jovem virgem vendida.é o grão-senhor que. a comprara
Numa ocasião, o Duque de Sjaudribourg estivera em Toulou se para conhecer ó segredo-da transmutação do ouro, e o conde não lhe abrira a porta, devido à sua reputação de libertino. E fora àquele homem desprezível que Ambrosina fora entregue.
Nascia o dia. Uma claridade turva substituía a noite, afogando o halo de luz da vela. O gatinho deslizou para fora do abrigo e chegou à porta,"miando. Angélica se levantou para abri la.
Retirou os painéis de "madeira diante dos vidros; o nevoeiro continuava ali, branco como neve. Mas infiltrava-se no aposen to um perfume de fogo de madeira. Ouvia-se movimento, idas e vindas, embaixo, na sala da guarda, e sons de vozes. Angélica sentiu vontade dé"qúe Piksarett.retornasse, todo pintado de ver melho, para lhe dizer com o seu sorriso de doninha: - Você minha cativa. - Aquilo era a vida, a vida deles em terras americanas, longe dê todas as ignomínias do Velho Mundo.
A náusea continuava a contrair-lhe a garganta. Voltou para junto de Ambrosina, deu-lhe de beber um copo de água fresca
A duquesa parecia-sem forças e permanecia de olhos fechados Mas disse, com uma voz mais clara e nítida:
— Ainda não perdoei, aceitei. Isso continua a me queimar, co mo um ferro em brasa. E por isso que estou morta por dentro.
- Acalme se - disse Angélica, benévola, acariciando-lhe a testa úmida como a uma criança -, você falou, isso sempre faz bem Agora tente não pensar mais e descansar. Aqui você está em paz, longe de todas as obrigações e testemunhas do seu passado Se desejar confiar-se de novo, eu a ouvirei de bom grado, um pou co mais tarde. Por ora, durma.
Pousou a mão sobre os olhos pisados, impondo-lhes como que uma refrescante quietude
— Que bom que a encontrei! --- suspirou Ambrosina, que quase imediatamente pareceu mergulhar num sono profundo.
CAPÍTULO XXVII
Na solidão de Gouldsboro, a companhia da Duquesa Ambrosina
Angélica precisou avisar Colin Paturel da chegada inopinada da duquesa.
O governador de Gouldsboro não teceu comentários. Balançou várias vezes a cabeça e limitou-se a convidar as duas mulheres a jantar com ele naquela noite.
A ausência de Joffrey de Peyrac, do Marquês d'Urville, da guarda espanhola e do séquito do conde, e até do Marquês de Ville-d'Avray, criava um vazio e uma atmosfera incomum. Reinava em Gouldsboro, envolta em suas brumas, um silêncio quase hibernal, não fosse pela pesada baforada quente que às vezes parecia brotar da floresta invisível, perfumando a costa com odores selvagens e balsâmicos tão intensos, que expulsavam os odores amargos de algas e maré.
Nenhuma aliança parecia unir os dois grupos humanos reunidos ali.
Os homens de Colin trabalhavam arduamente construindo seu povoado e suá igreja. Mas eram silenciosos. Barsempuy, com o rosto jovem de gentil-homem aventureiro ensombrecido pela tristeza, dirigia-os com ordens lacónicas.
Os protestantes se dedicavam à sua vida cotidiana, já bem engrenada, e um grupo e outro não trocavam mais de quatro palavras.
O entendimento ocorria em escalão superior, pois os notáveis rocheleses pareciam gostar de conversar com Colin. Angélica encontrou com ele Manigault, Berne e o Pastor Bçaucaire, em conferência. Informou-se da saúde de Abigail. Gabriel pareceu alegre.
- Sentiu-se melhor esta manhã - disse -, a ponto de ter resolvido lavar roupa! Creio que ainda temos alguns dias - acrescentou, contente por ver distante a.data que ele temia ainda mais do que a própria Abigail.
Angélica foi visitar a amiga. Abigail, de fato, recuperara a boa aparência e lidava com bravura, levando as cestas de roupa até o rio, onde, com Séverina, Laúrier, Bertille e outras vizinhas, posse a ensaboar e a manejar vigorosamente a pá de bater a roupa.
- Eu já não tinha forças para fazer este trabalho e temia que a casa não estivesse em ordem para meu parto. Graças a Deus, sinto-me bem, sem dúvida por causa dessa onda de frio repentina, e todos estes lençóis e roupas estarão estendidos na corda esta noite. Amanhã fará sol.Terei tempo de dobrar e arrumar tudo nos armários. Depois Séverina me ajudará a passar. E pronto. Poderei descansarjcóm o espírito em paz.
Angélica pr-ometíé que iria ajudar.
Retornandoao forte, encontrou Ambrosina de Maudribourg em pé, sentada diante^iéTíma bandeja com a refeição que ela mandara levar-lhe. Suas feições continuavam carregadas. Estaria arrependida de suas confidências? Parecia atingida por uma espécie de constrangimento, e ficou assim por várias horas, de olhos parados. De vez em quando pegava um pedacinho de pão e comia maquinalmente, imersa em suas meditações. Angélica lhe disse que não quisera mandá-la para longe, sozinha na casa afastada onde se alojara com as Moças do Rei. Entendera-se com a Tia Ana, aquela solteirona muito instruída que no inverno dava aulas às crianças. Ao lado de sua casa modesta, ela possuía uma sala bem-instalada e com entrada independente, que servia de sala de aula. Como no verão não era usada para esse fim, a Sra. de Maudribourg poderia instalar-se ali hoje.
— Tia Ana é muito discreta.e solícita. Não a perturbará em nada. Mas se você se sentir sozinha, terá alguém com quem conversar. Ela certamente tem mais condição de discutir matemática e teologia com você do que eu -"concluiu Angélica, rindo.
— Oh, você! Você é um anjo - murmurou Ambrosina. - O que posso fazer para lhe provar meu reconhecimento?
— Recobre-se - respondeu Angélica, passando levemente a mão pela testa da jovem -, não pense mais nas coisas que lhe fazem mal...
Mas a Duquesa de Maudribourg se encontrava em estado de choque. Seriam necessários alguns dias antes de se poder conversar com ela como com uma pessoa em plena posse de suas faculdades.
Angélica deixou-a, depois de voltar a prodigalizar conselhos de repouso. Ajudou Abigail uma parte do«dia..Conversou alegremente enquanto.carregava do rio para o secador os cestos de roupa bem lavada. Abigail achava que, depois de arrumar os armários, ainda teria tempo para polir seus móveis.
Angélica não ousou dizer-lhe que o programa parecia bem carregado para a semana seguinte. Por experiência, reconhecia na atividade de Abigail a agitação que toma conta de toda mulher perto do parto e que a leva, febril, a pôr tudo em ordem a fim de, com o espírito em paz, consagrar-se à tarefa que a espera de dar a vida.
Pelo final do dia as brumas se dissiparam e o sol brilhou.
— Viu como eu tinha razão, minha roupa estará seca amanhã - disse Abigail. - Estou com os braços exaustos. Que pena que Marcial não pôde nos ajudar! Ele é vigoroso e solícito.
— Onde está ele?
— Patrulhando a baía com seu Cantor e alguns outros jovens. Parece que o Sr. de Peyrac os incumbiu de uma missão.
A preocupação com Abigail e também a que sentia por Cantor substituíram um pouco nos pensamentos de Angélica os problemas da Duquesa de Maudribourg.
- Por que Cantor nunca me diz nada e desaparece assim, sem me dar nenhuma explicação? Eu bem que gostaria de tê-lo a meu lado nestes dias. Qual foi a missão de que Joffrey o incumbiu? Deve procurar na baía o navio de pavilhão alaranjado? Claro que esses garotos que bisbilhotam por toda parte sabem tudo sobre todos os esconderijos das ilhas. Mas não estarão correndo perigo? Ah, diabo de menino! Não vejo a hora que volte...
Felizmente Ambrosina de Maudribourg parecia melhor. Mas, ainda enfraquecida, não se sentia com forças de comparecer ao jantar a que Colin as convidara. Angélica, então, mandou ao anfitrião um pedido de desculpas. Também ela preferia ficar em casa naquela noite, depois dos trabalhos no forte e da noite agitada da véspera. Iria cedo para a cama. Logo Abigail necessitaria de toda a sua vigilância.
— Estamos bem aqui - disse Ambrosina, correndo os olhos à volta. - Que paz emana dos lugares impregnados pela sua presença! Passei o dia neste aposento, examinando cada detalhe, e curiosamente isso me tranquilizou. Sintojme melhor.
— Fico feliz com isso.
— Parece que no lugar onde você habita cessam osmalefícios. Uma espécie de trégua ao.mal'que ronda.
Angélica enchia de carvão de madeira o fogareiro de terracota, a fim de preparar para elas duas um' pouco de café turco. Às palavras de Ambrosina, olhou-a, intrigada.
— O que está querendo dizer?
— Você não sente que um perigo nos ronda? - indagou a duquesa, fitando-a com seus olhos grandes e um pouco fixos. - E não sei como^ mas me pajece que esse perigo ameaça particularmente a você...- - >
Angélica soprou as "brasas,..para reavivá-las antes de pousar a cafeteira márrpquina^obre o-fogareiro. Entendia agora o que a intrigara, perturbara até, na Duquesa de Maudribourg: eram certas qualidades de profetisa, "como a gente encontra nas "ciganas", inconciliáveis com seus títulos de grande dama benfeitora, e que de certo modo se assemelhavam aos seus próprios talentos, de que por vezes fora acusada em sua vida aventurosa. Alguns a acusavam de ser feiticeira e "de lançar mau-olhado apenas com o poder dos olhos verdes. Dotes naturais, que ela não costumava utilizar para o mal, mas que, sabia disso, a aproximavam dos fenómenos da vida, das crianças, dos animais, dos selvagens.
— Você fala como Piksarétt - disse.
— O grande chefe índio que veio reclamá-la como sua cativa?
— Sim... De repente ele me disse: "Há um perigo sobre você..." E literalmente desapareceu.
— Está vendo? - disse Ambrosina, alarmada. - Meu sentimento está correto. E me pergunto se esse perigo está do lado de fora... ou... em você...
— Em mim?
— Sim! Angélica, não leve a mal o que vou dizer-lhe, mas tenho alguma experiência do ser humano, das mulheres sobretudo, por haver convivido com muitas pessoas de caráter mais ou menos simples... O seu é um dos mais extraordinários que já encontrei, um dos mais atraentes, e é por isso que eu gostaria de lhe apontar os percalços que-distingo nele e que poderiam causar sua perda. Você é de tal modo fora do comum que acredita que todo mundo se parece com você, que a retidão dos seus sentimentos pode ser compreendida por todos... Seria fácil abusar de você... pois, no fundo, você carece de prudência.
— De_ prudência - repetiu Angélica, que a ouvia atentamente.
— Sim... ou, no mínimo, sua visão particular das coisas, dos seres também, não a deixa ver o suficiente os perigos que podem decorrer dasua conduta... e é isso o que me preocupa em. você. Assim, por exemplo, falemos desse... Piksarett. Entrou neste quarto, que é o seu, como se tivesse direitos, comportando-se como senhor, debruçou-se sobre essa cama, onde você devia estar repousando, como se estivesse habituado a contemplá-la ali. Até me pousou no ombro uma mão suja e fedorenta, e ria por entre todos os seus rabiscos vermelhos. Nunca senti tanto medo na vida. Acreditei realmente que fosse o Diabo. Minhas moças e eu gritamos como possessas.
— Eu lhe disse que é preciso habituar-se às maneiras dos selvagens - observou Angélica, que se continha para não rir com a evocação da cena.
— Mas você poderia estar na cama com seu marido! - exclamou a duquesa, chocada.
— Nesse caso, e se não tivéssemos tido a precaução de passar o ferrolho na porta na véspera, pois sabemos o que esperar das maneiras da população que visita nossas costas, pois bem, teríamos rido com ele, sem cerimonias. Os selvagens são pudicos, exageradamente pudicos até, mas não têm constrangimentos exagerados diante das necessidades naturais da vida.
— Você é indulgente com eles. Então está mesmo ligada a esse homem?
— Que homem? - perguntou Angélica, que não entendia a insistência de Ambrosina no assunto.
— Esse... Piksarett! Saiba que em Quebec se comenta que você dorme com os selvagens..
Angélica reagiu vivamente.
- Em Quebec!... Não me espanta! Querem me ver morta. Diriam qualquer coisa. Chegam a ponto de dizer que sou uma diaba. Porque são fanatizados por um homem que viu em nós emissários do Diabo, pondo o pé nos territórios deles para pervertê-los: o Padre d'Orgeval.
— Ouvi falar dele - disse Ambrosina, pensativa.
— Não podemos fazer nada contra a vingança dele. É uma ideia fixa, preconcebida, e ele não recuará diante de nada para chegar a seus fins, nem diante dos comentários,mais baixos.
— Você poderia pelo menos, não dar>prétexto aos comentários. Era a isso que eu queria chegar ao censurá-la por não levar em conta o suficiente a vilama'4o mundo.. Oh, apenas pela afeição que lhe tenhoí DormirVcbm os selvagens é uma reputação horrível para uma mulher branca,' e agora que a conheço isso me magoa por você. Como é que seu marido pode deixar que se dê crédito a uma lenda dessas, tolerando a familiaridade dele com você? Seria um marido fácil?...'
— De jeito nenhum! - retorquiu" Angélica,, pensando em incidentes recentes.
— Então não entendo que ele...
— Não lhé pedem que entenda tudo sobre a vida alheia - cortou Angélica secamente -, sobretudo num país onde é preciso aprender a reconsiderar bem osrprincípios. Aqui a tolerância é necessária.
— Sim... mas a prudência é uma virtude.
Desta vez Angélica se absteve de replicar. Ambrosina começava a exasperá-la seriamente. Era decididamente irritante aquela mistura de dama benfeitora do Santíssimo Sacramento, de puerilidade, e de instinto psicológico profundo. Sim, Angélica estava magoada, mas nó fundo não podia negar que havia algo de justo nas palavras da duquesa, traduzindo, concretizando talvez, o perigo que pesava sobre eles, que pesaria sempre: o perigo de um mundo que, sendo como era, jamais poderia aceitá-los, sendo como eram.
Era um fardo terrivelmente pesado.
Piksarett... Utakê... Poderia ela explicar a quem quer que fosse o que a unia àqueles filhos das florestas americanas? A Piksarett dera um manto cor da aurora para envolver os ossos de seus ancestrais, e ele em troca lhe dera a vida. de Utakê, o iroquês ferido. E Utakê, o deus das nuvens, eríviãra-lhe um colar de wam-pum a fim de selar a aliança, e feijão e arroz para salvá-los da fome, no fim do inverno. Essas coisas se passavam num plano humano e espiritual, mas inacessível a culturas antigas e europeias, que tinham perdido certo sentido da humanidade e da espiritualidade.
Angélica pôs a cafeteira de lado, para deixar a beberagem repousar um pouco. Depois, com um movimento maquinal, foi até a janela. A noite pareceu-lhe negra como tinta, e profunda demais. O sentimento da solidão que a envolvia e a Joffrey neste mundo foi quase intolerável. Pensou nas ameaças que tinham detectado,'sem conseguir precisá-las, e um medo muito real contraiu-lhe as entranhas. Quem preparava a destruição deles? Era tão hábil! Tão inteligente! Aquilo ultrapassava a sutileza do ser humano.
"Acredita em Satã?", perguntou-lhe uma voz" interior. "Não sei!", respondeu ela. "Mas em Deus?... Acredito, Deus, proteja-nos!
Voltou para junto de Ambrosina, que cruzara as mãos sobre os joelhos e não desgrudava os olhos dela.
— Eu a magoei! Perdpe-me... Costumo ser desajeitada com você... talvez porque deseje demasiado conhecê-la a fim de poder ajudá-la. Você me faz tão bem!
— Não se preocupe comigo - replicou Angélica, frivolamente.
— Quem fará isso, então, quem se preocupará com você? - exclamou Ambrosina, torcendo as mãos. - Você está tão sozinha aqui! Por que seu marido não a levou com ele? Se a ama, devia ter sentido que você corre perigo, não devia abandoná-la assim.
— Ele desejava levar-me. Mas eu não podia sair de Gouldsbo-ro. Preciso esperar que Abigail tenha a criança...
— É verdade, você já me disse isso... Decididamente é muito boa para com os que a cercam, mesmo que não pertençam à sua religião. Ela é huguenote, não é? Veio procurar-me um dia. Fiquei muito interessada. Foi a primeira vez que conversei com uma protestante. Pareceu-me... encantadora.
— Sim, ela.é encantadora - disse Angélica, com um sorriso. - O que queria ela?
— Queria saber se eu deixaria minhas moças se casarem com os piratas que se encontram aqui, a fim de criar novos casais de colonos em Gouldsboro. Tive a impressão de que a questão quase não a preocupava pessoalmente, mas que fora incumbida de uma missão, de mulher para mulher, pelo marido ou pelos chefes e pastores principais de sua comunidade. Creio que esses huguenotes se consideram em casa aqui, senhores de uma colónia protestante, e que não estavam dispostos a ver com bons olhos a instalação de casais católicos. Como, seguindo o conselho do Padre de Vernon, eu já tomara minha decisão acerca das moças, pude tranquilizá-la,
Angélica sentiu-se contrariada ao ser informada da atitude de Abigail.
— Por que Abigail não me falou diretamente das preocupações deles a esse respeito?
— Foi a pergunta que lhe fiz. Cenfessou-me que era difícil para eles oporem-se diretamente a seu marido, que é o proprietário das terras e a quem, acreditei entender, eles devem muito, e mesmo a você, que estava ligada a essa ideia de colonização por casamento, que satisfazia aos piratas e seu chefe, Colin Paturel, recentemente norneado governador daqui.
— Não estou particularmente ligada a essa ideia - protestou Angélica, que .novamente estava com os nervos à flor da pele -, mas na desordem em-que nos encontrávamos, com todos os combates, os naufrágios^ isso conciliava tudo.
— Foi issOj na verdade, o que Abigail me explicou. Creio que, por si mesma e pari agf adá-la, ela teria aceitado de bom grado essa solução^ Mas parece que a opinião dos homens de sua comunidade era outra... Dir-se-ia que eles são antes hostis ao governador atual. Ele é católico, não é?
Angélica não se dignou responder. As palavras de Ambrosina lhe provocavam novas preocupações. Aqueles huguenotes! Jamais se conseguiria conciliá-los! Eram realmente esquisitos demais, intratáveis.
Serviu o café em duas.xícaras e pousou-as sobre a mesa, uma diante de Ambrosina, outra para si. Foi servir-se de um copo de água fresca de uma moringa, para acompanhar o café, e voltou. A duquesa, çjue lhe observava o rosto preocupado, soltou um suspiro.
— Sim, compreendo. É um pouco difícil o que vocês tentam fazer aqui. Conciliar os extremos! Será que isso é razoável?
— Não tentamos nada - disse Angélica, não aguentando mais -, aconteceu por si! O acaso. Gente que pede socorro, que não tem uma pedra para descansar a cabeça... o que fazer senão salva-los e recebê-los num canto de terra?...
Ia sentar diante de Ambrosina, quando bateram na porta.
A Sra. Carrère apresentou-se, trazendo mais uma vez ao braço o manto de cetim amarelo da duquesa.
— Eu a vi passar, senhora - disse, dirigindo-se a esta última. - Disse comigo: "Ora, ela voltou!" E foi uma sorte, pois o trabalho está terminado, afinal, e posso entregar-lhe o manto.
— Mas é maravilhoso! - exclamou Ambrosina, examinando o tecido. - Não se vê absolutamente nada. Você é de uma habilidade desconcertante, .minha cara.
— Minhas filhas me ajudaram - disse a rochelesa, modestamente. - Elas são hábeis, e é bom para elas trabalhar de vez em quando em alguma coisa delicada. É café turco que estão tomando? - continuou a mulherzinha, aspirando, gulosa, o aroma que exalava das duas xícaras de porcelana sobre suportes de cobre martelado.
— Sim. Também gosta desta beberagem dos deuses, Sra. Carrère?
— Se gosto? Claro. Eu às vezes tomava café numa pequena casa oriental em La Rochelle.
— Pois tome esta xícara que já está pronta, enquanto o café ainda está quente. Farei outra para mim.
A Sra. Carrère sentou de bom grado e bebeu quase até a última gota. Olhou no fundo da xícara a borra meio preta e derramou-a no pires.
— Havia uma cigana que às vezes lia o futuro nesta mancha de café. Aprendi um pouco. Aprende-se de tudo nos portos. Quer que lhe diga a boa sorte? - indagou.
— Oh, não, por favor! Todas essas feitiçarias são pecado! - exclamou a duquesa, tirando-lhe o pires.
Angélica fez sinal à Sra. Carrère para que não insistisse.
— Bom! Eu as deixo - disse a rochelesa, levantando-se.
— Fará bom tempo amanhã? - perguntou Angélica, que pensava na roupa de Abigail.
A Sra. Carrère foi até a janela e farejou o ar.
- Não - disse -, o vento mudou de novo. Parece que traz belas nuvens, chuva e até uma tempestade.
As predições se comprovaram corretas. Pouco depois ouviu-se o ronco de um trovão longínquo. O mar enegreceu e salpicou-se de branco.
- Vou acompanhá-la à sua casa, antes que a chuva caia - propôs Angélica. - Ponha o manto.
Ajudou Ambrosina a pôr sobre os ombros o manto preto forrado de escarlate com que ela chegara na véspera.
- De onde você tirou esse manto? - perguntou. - Armando Dacaux também o tinha escondido num dos seus bolsos?
Ambrosina pareceu despertar de um sonho.
— Oh! É mais uma história de fazer cair o? queixo, uma espécie de milagre, como acontece o terjipo tddo neste país. Imagine... Foi o capitão do barco que me deu.
— Que capitão? E.que barco?
— A chalupa que me trouxèVontem à noite a Gouldsboro. Disseram que pilharam recentemente um navio espanhol, que tinham a bordo uma arca cheia de roupas femininas-para as quais não tinham utilidade.
— Você não me disse" que eles eram acadianos?
— Foi assim que se apresentaram. Por que não? Todos os acadianos franceses não são, afinal, um pouco saqueadores e provocadores de naufrágios? São pobres demais e abandonados pelas suas companhias e governos, e quando a necessidade se faz sentir...
Como Angélica continuasse -perplexa, a duquesa acrescentou:
— Ele insistiu, em que eu aceitasse o presente. Não sei o que queria de mim, dava-níe um pouco de medo. É verdade que eu estava tiritando, o nevoeiro acabava de cair, e este manto foi bem-vindo.
— Como era esse capitão? Tez branca, olhos frios?...
— Não sei exatamente.-. Não me atrevi a olhá-lo. Eu estava perturbada, estou dizendo, depois do meu gesto de ousadia, por me ver sozinha, sem bagagem, entre aqueles marujos desconhecidos. - Ambrosina deu um sorriso pálido. - Veja a que extremos me impeliu meu imperioso desejo de retornar a Gouldsboro para encontrá-la.
— E a embarcação? Não tinha um-pavilhão alaranjado na proa?
— Não que eu lembre. Não passava de uma barca grande... Mas agora que penso nisso... Sim, espere... No momento em que eu descia para a dita chalupa, notei úm navio que cruzava a algumas braças. E esse navio... esse sim, tinha um pavilhão alaranjado na proa!
CAPÍTULO XXVIII
O parto de Abigail Berne
-Dame Angélica! Dame Angélica!
Reconhecendo a voz de Sevérina, Angélica entendeu na hora. Pulou da cama, acompanhada pelo gatinho, despertado. Um ruído forte e indeterminado agitava os arredores. A tempestade...
Sevérina estava à soleira da porta, com a saia de cima, de droguet, levantada sobre os cabelos gotejantes.
— Dame Angélica, venha logo!... Abigail!...
— Estou indo...
Entrou no quarto para se vestir e pegar a sacola, já preparada.
- Entre um instante. Enxugue-se um pouco. Está chovendo tão forte assim?...
A porta bateu com violência atrás de Sevérina.
— E a tempestade - disse Sevérina. - Achei que não conseguiria descer até aqui, há verdadeiras torrentes descendo pela colina.
— Por que não mandaram Marcial?
— Ele continua ausente. Meu pai também. Vieram buscá-lo ontem à noite para vigiar o forte novo e a margem do rio. Avistaram um grupo de iroqueses.
— Só nos faltava essa!
Joffrey estava no mar. Marcial devia estar acampado em alguma ilhota com Cantor e os demais. A tempestade poderia retê-los por vários dias e, esperando por eles, as mães teriam tempo de ganhar alguns cabelos brancos. Finalmente, para concluir, anunciavam-se os iroqueses...
Abigail, em meio às primeiras dores, estava sozinha com o pequeno Laurier.
- Apressemo-nos... Parece que a chuva está diminuindo...
O gatinho, de cauda empinada e cabeça inclinada para um lado, acompanhara com interesse o diálogo.
- Comporte-se - disse-lhe Angélica, fechando a porta -, e não venha atrás de mim, acabaria afogado no temporal.
Havia só uma sentinela no'forte. Os outros homens da guarda tinham sido requisitados para à defesa contra os iroqueses, embora não se previsse um ataque noturno. Mas era melhor esperarem pelo alvorecer preparados para a guerra.
Felizmente a chuva amainava.
- Vá acordar a Sr. Carrère - pediu Angélica a Severina. - E diga a um dos garotos dela, caso-haja algum disponível, que corra até a aldeia indígena para trazer a velha Vatirê.
E disparou peja-noite, na direção da casa de Abigail.
Um vento úmidcr e frio fazia correr nuvens enormes, ribombantes, intumescidas, negras conto fuligem, contra a textura acinzentada de um firmamento lunar. De vez em quando clarões fuliginosos as atravessavam e o estrondo do trovão se juntava ao frago.r do mar enfurecido.
Correndo, com o coração oprimido por uma angústia insustentável, Angélica ergueu os olhos para o céu desumano. Não sabia por que a noite de Goujdsboro, naquele verão, lhe parecia tão assustadora.
- Meu Deus - disse num impulso -, meu Deus, rogo-lhe... Tenha piedade de Abigail.
Quando chegou à casa, o céu abriu-se de novo em torrentes diluvianas.
- Estou aqui! - gritou da, soleira a fim de serenar a infeliz, sozinha no aposento contíguo.
A lareira estava apagada. O pequeno Laurier, sentado de camisa em sua cama, parecia com-medo e tiritava.
- Suba para o sótão de Severina e vá se aquecer na cama dela - disse-lhe Angélica. - Durma tranquilo. Amanhã você terá trabalho, correndo por todas as casas para dar a boa notícia.
Entrou no quarto de Abigail e imediatamente a viu desamparada, fitando com desespero a porta pela qual ela entrava.
- Ah, você chegou, você chegou! - disse a jovem, numa voz entrecortada. - O que será de mim?... Gabriel não está aqui!... E já sofro tanto que me parece que não conseguirei aguentar mais!
- Qual nada, qual nada, não comece a imaginar coisas!
Largou a sacola e segurou a mão de Abigail, que se agarrou como a uma bóia que não parecia disposta a largar, com medo de afogarrse.
Sentindo que a dor voltava, crispou-se toda.
-' Não é nada -_afirmou Angélica, com o seu tom mais persuasivo. - E só uma dor que passa. Conserve acoragem, são alguns segundos. Só lhe peço alguns segundos, Abigail... Assim, isso. Veja, já está passando... como a tempestade...
Abigail sorriu debilmente. Descontraiu-se, e sua fisionomia pareceu mais calma.
— Sofri menos desta vez - disse -, sem dúvida por causa de sua presença e de sua mão curativa.
— Não. Foi principalmente porque se assustou e se debateu menos. Veja, é tudo simples. Basta não ter medo.
Quis afastar-se para acender o fogo, pois estava frio. Mas Abigail a reteve com força.
- Não, não, peço-lhe, não me deixe.
Parecia prestes a se descontrolar de novo. Angélica entendeu que a jovem precisava de sua presença para conservar o sangue-frio necessário. Garantiu-lhe que não a deixaria por um instante sequer.
— É mesmo a você, minha valente Abigail, que vejo nesse estado? - censurou-a suavemente. - Não a reconheço. Teve provações maiores a atravessar. Que sentimento de medo é esse que a domina de repente?
— Sou culpada - disse a pobre rochelesa, arrepiando-se -, recebi demais... alegrias grandes demais. Fui demasiado feliz nos braços de Gabriel. Agora chegou a hora, estou sentindo, de pagar por esses gozos culposos. Deus vai me punir...
— Claro que não! Claro que não, minha querida! Deus não é um sujeito tão mau...
O gracejo aliviou a ansiedade de Abigail. Embora às voltas com outra contração, não pôde deixar de rir.
— Oh, Angélica, não há como você para encontrar respostas singulares!
— O quê? O que foi que eu disse? - perguntou Angélica, que, em sua preocupação, não prestara atenção às próprias palavras.
- Oh, Abigail, veja como tudo vai melhor agora. Você acaba de sentir uma dor mas está quase rindo...
— É verdade que me sinto muito melhor... Mas não será um sinal de que o parto vai mal e parou? - perguntou, de novo assustada.
— Não, pelo contrário, suas tontrações-são mais amplas e mais profundas porque você já" não lhes opõe* resistência. São nossos medos que aumentam íiossas dificuldades. Por quetentar interpretar a justiça de. Deus, nosso criador? Diga-me, minha amiga querida. Se me fio simplesmente nos conselhos que colhemos a esse respeito no Antigo e no Novo Testamento: "Crescei e multiplicai-vos... Amai-vos uns aos outros, não vejo em que reside sua culpa. Eu antes lembraria que o Rei Davi dançava diante da Arca e que as coisas sagradas, devem ser feitas na alegria. Conceber a vida também é algo sagrado, bemcomo o nascimento de uma criança. Então, ouça-me e acredite no que lhe digo. Você serviu bérri aTDeus ao conceber esta criança na alegria. Agora sirva-O mais realizando com coragem e felicidade o que Ele lhe pede hoje: trazer-àluz .um'novo ser para glorificá-Lo...
Abigail ouvira-a avidamente.
Seus olhos agora brilhavam suavemente e sua fisionomia se transformara, recuperando a serenidade habitual.
— Você é maravilhosa - sussurrou. - Diz-me exatamente o que eu tinha vontade de ouvir. Mas não me deixe - acrescentou, pueril, segurando a mão de Angélica.
— Mas eu tenho que acender o fogo...
"Mas o que está fazendo a Sra. Carrère?", pensou. "Não é mulher de ter medo de botar o nariz para fora quando chove. O que está acontecendo? Isto não é normal..."
Os minutos contavam dobrado. O tempo parecia interminável. Angélica não ousava afastar-se da cabeceira de Abigail. Embora tranquila e cheia de coragem, a parturiente entrava agora numa fase mais crítica. As dores se faziam mais longas e próximas.
Afinal Angélica ouviu com alívio um ruído na porta. Mas Se-verina apareceu sozinha, completamente ensopada.
— Onde está a Sra. Carrère? - lançou Angélica. - Não veio? Por quê?
— Não conseguem acordá-la.
Severina parecia completamente desorientada.
- Como não conseguem acordá-la? O que é que significa isso?
— Ela está dormindo! Está dormindo! - disse Severina, assustada. - Sacudiram-na, tentaram de tudo. Está dormindo, roncando, não há nada a fazer.
— E a velha Vatirê?
— Um dos meninos foi até a aldeia.
— O que está acontecendo? - indagou Abigail, abrindo os olhos e agitando-se outra vez. - Alguma coisa vai mal? O parto está sendo normal? _
— Glaro que sim. Na verdade, minha querida, nunca vi um parto mais fácil.
— Mas a criança está de costas.
— Uma facilidade a mais, se você for corajosa. Quando chegar o momento, faça toda a força que puder e não pare.
Em voz baixa, disse a Severina:
- Vá buscar a vizinha mais próxima. Bertille...
A pobre Severina vojtou a sair para a escuridão, já sem se preocupar em levantar a saia sobre a cabeça para se proteger da tromba-d'água que desabava. Voltou logo depois.
— Bertille não pode vir. Diz que tem medo da tempestade. E que nunca viu um parto... E que não pode deixar Carlos Henrique sozinho. O marido dela foi com a guarda.
— Então vá. procurar Rebeca, a Sra. Manigault, qualquer uma, alguém precisa me ajudar!
— Eu posso ajudá-la, Dame Angélica.
— Sim, é verdade, ajude-me. Agora já não temos tempo. Acenda o fogo, ponha água para ferver. Depois troque de roupa, minha pobre menina.
— É uma boa criança - disse Abigail suavemente, olhando na direção da garota.
Sua calma, agora, era surpreendente. Severina acendeu o fogo, pendurou um caldeirão, e foi vestir um vestido seco, antes de trazer um banquinho a Angélica para que esta pudesse se sentar. Trouxe outro banquinho para dispor os instrumentos de que Angélica poderia precisar. Angélica deu-lhe um saquinho de ervas para uma infusão. •"Oxalá Vatirê chegue a tempo", pensava.
Via-se agora que a criança já descera bastante.
— Sinto uma grande força que me invade - disse Abigail, erguendo-se de repente e apoiando-se nos cotovelos.
— É o momento. Coragem! Não pare...
De repente, sem saber como, Angélica viu-se segurando pelos pés uma criaturinha avermelhada e luzidia e, no seu entusiasmo, erguendo-a como uma oferenda.
- Oh, Abigail! - exclamou. - Oh, minha querida! Oh, seu filho!... Olhe! Olhe!
O grito do recém-nascidó soou, .estridente. Presa de um tremor, Angélica nem notava que em sua emoção, as lágrimas lhe corriam pelas faces.
— E uma menina - disse. Abigail, num tom de alegria indizível.
— Como é bonita! - exclamou Severina,.que se mantinha muito ereta, de braços levantados, as maOs espalmadas como um admirador de presépio. E se pôs a rir, um ri-so maravilhoso.
"Que papel de tola o meu!", pensou Angélica. "Aí estão as duas, naturais e felizes, e sou eu quem chora..."
Com presteza, cortou p cordão umbilical e..envolveu o bebé num xale.
— Pegue-a - disse a._Severina. - Pegue-a nos seus braços.
— Que cois_a bonita é o nascimento de uma criança! - disse Severina, extasiada..?- Por que não querem que a gente olhe?
Sentou num. escabelo, apertando contra si o fardo precioso.
- Como é bonito'este amorzinho! Acalmou-se assim que a peguei.
Tudo acontecera sem dificuldade. O bebé era pequeno. A mãe sequer sofrera rupturas.
A rapidez com que,, felizmente, se realizou aquele parto, que ambas haviam esperado com muita apreensão, deixava-as perturbadas.
— Estou tremendo toda - disse Abigail -, não consigo parar de bater os dentes.
— Isso não é nada. Vou pôr-lhe pedras quentes aos pés e se sentirá melhor.
Correu até a lareira.
— E agora, admire sua filha - disse Angélica, quando viu a amiga aquecida, serenamente apoiada nos travesseiros. Tomou a criança dos braços de Severina e pousou-a nos de Abigail. - Parece que é comportada e bonita como a mãe. Que nome lhe dará?
— Elisabete! Em hebreu quer dizer "Casa da Alegria".
— Posso ver? - perguntou a vozinha de Laurier, do alto do sótão.
— Sim, meu garoto, e venha nos ajudar a instalar o berço.
A chuva continuava a tamborilar sobre o telhado, mas na casinha de madeira seu ruído não chegava aos ouvidos dos que se acotovelavam, fascinados, à volta da recém-nascida.
— Estou morrendo de fome - exclamou Severina de repente.
— Eu também - confessou Angélica. - Vou fazer uma sopa para você e nós a tomaremos juntas, antes de voltarmos para a cama.
Ao chegar, Mestre Berne encontrou a mesa posta com a mais bela toalha, os castiçais de prata e as velas brancas de cera de abelha, e a louça dos grandes dias em torno de uma sopeira fumegante. A casa estava toda iluminada, o fogo crepitava na lareira.
- O que está acontecendo? - indagou, pondo o mosquete contra a porta. - Até parece uma ceia de Epifania!
- O Menino Jesus está aqui - gritou Laurier. - Venha ver, pai!
O pobre homem não conseguia acreditar. Era difícil convencer-se de que tudo acontecera sem problemas, que a criança estava ali, que Abigail estava sã e salva. Sua felicidade era tamanha, que ele nem podia falar.
- E os iroqueses? - perguntou Abigail.
- Nem sinal de iroqueses ou de qualquer grupo de guerra, abenaki ou qualquer outro. Bem que eu gostaria de saber quem foi que se divertiu fazendo-nos sair correndo assim, numa noite infernal como esta!
Um pouco mais tarde Angélica deixou a feliz família e retomou o caminho do forte. Não faltava muito para amanhecer, mas a noite continuava profunda por causa das enormes nuvens que se amontoavam no céu. No entanto, a tempestade passara. Uma calma surpreendente sucedia ao estrépito do vento e do trovão. A natureza, esgotada, parecia arquejar, e sobre o som de mil córregos, o canto dos grilos elevou-se de súbito, como uma orquestra celebrando o fim da tempestade com uma estridência triunfante.
A meio caminho Angélica encontrou-se com um rapazinho encharcado que vinha balançando uma lanterna. Era o filho mais velho da Sra. Carrère.
— Estou vindo da aldeia indígena - disse.
— Mas não está trazendo a velha Vatirê.
— Nem carregando-a às costas eu teria conseguido trazê-la. Ela comprou álcool de marinheiros recentemente e encontrei-a completamente bêbada...
CAPÍTULO XXIX
Suspeitas de intenções inimigas
O que teria acontecido se...
O espírito de Angélica-colidia com esse "se", e o que ela entrevia então lhe transmitia tamanha vertigem de terror, que a alegria e o alívio experimentados com o parto fácil de Abigail não conseguiam tranqôilká-la.-Daquelas últimas horas ela queria reter apenas-a felicidade intensa, o desfecho feliz de uma provação que ela temera-muito, mas perdurava'a sombra que a impedia ds gozá-la plenamente.
O que teria acontecido se o parto de Abigail não tivesse sido fácil? A ausência de mestre Berne, bem naquela noite, já lhe causara grande desgosto. Abigail afligia-se na solidão. Angélica chegara no último momento para defendê-la de um pânico perigoso. Depois, a indisposição da Sra. Carrère, a ausência da velha índia curandeira, a tempestade...
Mestre Berne dissera: "Quem será que se divertiu fazendo-nos correr atrás de iroqueses numa noite como esta?"
E, estranhamente, isso se juntava, no espírito de Angélica, à recordação de informações erróneas dadas a ela e a Joffrey para enganá-los, separá-los, impedi-los de se reunir ou de se socorrer. Ora, como dissera o conde de Peyrac, notícias falsas, assim como falsos alarmas, eram raros. Violações assim, que traíam todas as leis do mar e do Novo Mundo, só podiam provir de intenções inimigas, decididas e premeditadas. Ela precisava fazer umas perguntas a Berne. Quem lhes levara a notícia de que um grupo iroquês se aproximava, obrigando os homens a se armar e a se afastar do povoado, inclusive ele, Berne, forçado a se distanciar de casa naquela noite em que Abigail estava a ponto de dar à luz?...
E a velha Vatirê? Era plausível. O álcool podia ter tentado a velha índia, geralmente sóbria, mas talvez por falta de oportunidade. Ela quase já não corria atrás dos navios para trocar algumas peles por um ou dois quartilhos de aguardente. Fora preciso que alguém lhe levasse a bebida... Mas quem?... E por que, precisamente, criminosamente, naquela noite?*
E a tempestade! A tempestade, somando-se a tudo aquilo!
"Mas quem poderia provocar uma tempestade só para nos prejudicar?... Ah, estou ficando louca! Tudo isso não passa de uma série de más coincidências pelas quais por pouco não pagamos muito caro! É tolice querer ver nisso o plano de uma mão mal-intencionada. Quem quereria a morte de Abigail?... Qual, estou imaginando coisas!"
Olhava o céu lavado de cor-de-rosa que emergia da noite escura e tempestuosa, como um nenúfar desabrochando de um charco lodoso.
As nuvens de estopa cinzenta fugiam no horizonte, cedendo lugar a uma aurora nacarada. Apenas um vento ácido e cortante lembrava as violências da noite.
Angélica não conseguira pregar o olho. Ficara debruçada à janela, à espreita dos primeiros clarões do dia, conversando consigo mesma e com o gatinho, que a ouvia, de cabeça inclinada, sentado sobre a cauda, ali quietinho, como se compartilhasse da inquietação dela.
Assim que viu Gouldsboro se animar, não aguentou mais e foi até o albergue, seguida de perto pelo gatinho, que pulava com vigor os riachinhos que escorriam pela ladeira da praia.
— Que história é essa de não conseguirem despertar sua mãe esta noite? - perguntou Angélica a uma das filhas da Sra. Carrè-re, que, sozinha na cozinha, pendurava as panelas na cremalhei-ra, na lareira monumental.
— É a pura verdade. E ela continua dormindo - afirmou a adolescente, preocupada. - Não parece doente, mas ainda assim não é normal dormir assim, principalmente depois de todo o alarido que se fez para acordá-la esta noite.
— Vocês a sacudiram? Chamaram bem alto?
— Claro! Um alarido e tanto, estou dizendo!
— Então é realmente inquietante. Mesmo uma pessoa muito cansada acorda quando é sacudida com força. Alguma coisa lhe aconteceu. Leve-me até ela!
A Sra. Carrère roncava ruidosamente, deitada de costas, o lençol puxado até o queixo, a boca entreaberta, o nariz empinado para o teto. Parecia decidida a dormir assim, tranquilamente, regularmente, até o fim dos tempos:
Salvo isso, estava com a Cor normal, o coração bàtia-lhe regularmente.
Angélica sacudiu-a de novo, chamou-a, sem obter outro resultado senão alguns grunhidos-. Em desespero de causa, preparou-lhe uma tisana bem forte para dar-lhe náuseas. A boa mulher teve bons reflexos para engolir a beberagem que lhe ingurgitaram, mas nem por isso despertou. Ainda assim, uma hora depois pareceu melhor e mergulhada num sono mais leve. Depois de visitar Abigail, Angélica retornou à cabeceira da Sra. Carrère, vigiando com inquietação-aquele sono estranho, de que a pobre rochelesa só saiu "por volta da uma hora da tarde.
Parecia aturdida e levou algum.tempo para entender por que a família, a vizinhança e "Angélica estavam todos reunidos e ansiosos à sua cabeceira.
- Foi aquele seu café - disse ela, bem-humorada, a Angélica. - Senti-me mal quase logo depois de tê-lo tomado em sua casa. Lembro que as minhas pernas não me aguentavam mais. Achei que não conseguiria chegar até o albergue e tive um bocado de dificuldade para me despir e vestir a roupa de dormir. Eu sentia como que um gosto de ferro na boca.
- O meu café? Mas eu o bebi! - protestou Angélica. - Não -reconsiderou -, agora lembro, fiz outro para mim depois de lhe oferecer a minha xícara, mas não o bebi! Mas a Sra. de Maudribourg também tomou...
Interrompeu-se, procurou lembrar. Tinha visto Ambrosina naquela manhã? Não... Alguém vira a Duquesa de Maudribourg naquele dia? Todos balançaram a cabeça. Normalmente ela teria ido comer no albergue ou teria ido ao encontro de Angélica. A menos que Tia Ana a tivesse retido para o almoço e para conversar...
Angélica correu até a casa da solteirona. O gatinho, muito excitado, corria-lhe atrás.
Encontrou Tia Ana à porta, conversando com um vizinho sobre o feliz nascimento da pequena Elisabete.
- Viu a Sra. de Maudribourg? - perguntou, sem fôlego.
Tia Ana meneou a cabeça.
- Não, nem a ouvi no quarto. Até imaginei que tivesse saído, que talvez tivesse se levantado antes de mim para ouvir a missa do jesuíta.
Angélica contornou a casa e foi bater à porta do pavilhão onde se tinha posto uma cama para a duquesa.
Não houve resposta. Ela levantou o trinco, mas a porta estava bloqueada por dentro.
— É preciso arrombar esta porta - disse ao vizinho.
— Mas por quê? - espantou-se ele.
— Bata outra vez - propôs a Tia Ana -, sem dúvida ela está dormindo.
— Mas é justamente isso que não é normal - desesperou-se Angélica.
— O senhora duquesa, acorde! - gritou o vizinho, desferindo sonoros murros na porta.
— É inútil, estou dizendo, é preciso arrebentar a fechadura.
-Espere, parece que houve um movimento lá dentro!
Ouvia-se de fato um leve movimento, depois um passo hesitante deslizando até a porta.
Os trincos foram retirados às apalpadelas e no vão da porta apareceu Ambrosina, de camisola, vacilante, sonolenta.
- O que está fazendo aqui? - surpreendeu-se. - Acabei de acordar.
Olhou para o sol e perguntou:
— Que horas são?
— Bem tarde - disse Angélica. - Ambrosina, como se sente?
— Mas... muito bem... Só estou com a cabeça pesada e como que com um gosto de ferro na boca.
As mesmas palavras da Sra. Carrère.
Não restava dúvida alguma. Era o café. Com certeza continha alguma droga, e as duas pessoas que o beberam foram mergulhadas em sono profundo por várias horas.
E de repente Angélica entendeu. E um suor frio lhe escorreu pela espinha.
Reviu a Sra. Carrère entrando e dizendo: "Oh, seu café cheira bem!" - ao que ela respondeu: "Tome a minha xícara".
Caso a Sra. Carrère não tivesse aparecido, ela é que deveria ter bebido aquele café, e ela é que teria dormido, na hora em que Abigail precisasse de seu socorro. Teria sido inútil sacudirem-na, chamarem-na... Abigail teria tido que enfrentar sozinha a provação e, no estado de culpa e tensão em que se encontrava, teria sucumbido à angústia. Atenazada por dores atrozes, em vão ela teria sofrido horas a fio, por entre o sobressalto de uma vizinhança incompetente e os estrondos -da tèmpesjáde. Provavelmente a criança teria morrido. A mãe também, talvez...
Então era verdade! "Tinham" querido a morte de Abigail! Mas por quê? Para atingir a quem por intermédio dela?
— O que foi? - balbuciou Ambrosina, que continuava ali parada, de camisola, na frente deles. - Você.parece doente. Mas o que está acontecendo? Houve alguma infelicidade?
— Não! Não! Graças ao céu! Volte para a cama, Ambrosina, não se aguenta nas" pernas.
— Estou com muita fome - queixou-se, infantil, a duquesa, levando a mão. ao estômago.
— Tia Ana, tem afgam caldo para lhe dar, alguma coisa quente?
— Tenho sopa de azedas!
Para não desmaiar, Angélica precisava se convencer de que a pequena Elisabete, rechonchuda e rosada como um bebé de açúcar-cande, repousava pacificamente nos braços da mãe. Tudo transcorrera bem. Ela estivera à cabeceira de Abigail, fornecera-lhe todo o auxílio de que a amiga necessitara, a criança e a mãe estavam salvas. Há pouco Angélica visitara a família, e a alegria que reinava por lá era paradisíaca. Todo visitante que transpunha a soleira se sentia invadido de felicidade.
Mas, pensando no que poderia ter acontecido se... Angélica não conseguia recompor-se. Até aquela tempestade, que rebentara para arrematar a catástrofe... "Mas quem pode provocar uma tempestade para nos prejudicar?", repetiu consigo mesma.
Foi quando.lhe voltou à mente uma palavra do Padre de Ver-non: "Quando as coisas diabólicas se põem a caminho, a sorte, o destino, a natureza mesma parecem estar do lado de quem deseja o mal".
A tempestade! A tempestade ainda .por cima! O dedo do Maligno!
- Mas o que tem você? - insistiu Ambrosina. - Está lívida... Rogo-lhe, diga-me... Por que .acordei tão tarde? Aconteceu uma infelicidade, não foi?
- Não! Não! Pelo contrário!... Uma grande felicidade. A pequena Elisabete nasceu... A filha de Abigail...
E acrescentou, olhando, malgrado seu com uma espécie de desafio, para a jovem ali à sua frente:
— Ela não morreu! Está vendo?
— Deus seja louvado!
Ambrosina de Maudribourg postou as mãos e, inclinando a cabeça, murmurou com fervor um ato de reconhecimento. Em sua camisola fina, de repente ela pareceu uma espécie de anjo de encanto ambíguo.
— Mas por que, então, você parece tão perturbada?
— Não é nada! A emoção, o cansaço da noite. E depois você me assustou com esse sono prolongado...
"Vou jogar fora aquele café", pensou.
Voltou-se e viu o gatinho atrás dela. Estava eriçado, com o dorso arqueado, soprava e cuspia, fitando alguma coisa ali perto.
Angélica o pegou, levantando-o à altura do rosto. Tinha vontade de desvendar o segredo e cravou os olhos naquelas pupilas de ágata dilatadas.
- O que é que está vendo? - cochichou-lhe. - O que é que está vendo? Diga-me. A quem está vendo?
CAPÍTULO XXX
Angélica vai ao encontro-do Padre Vernon
Um padre...-Um casaco negro a quem pedir conselho...
Angélica sentia necessidade disso ao subir a colina à procura do Padre Maraicher de "Vernon. Parecia-lhe que o homem revestido de um caráíer sagrado, ungido do óleo santo, marcado com o sinal da separação que diferencia os servidores de Deus do comum dos mortais, seria rrfàis apto do que ela á destrinçar o que lhe acontecia. Tinha vontade de contar-lhe tudo, mas não sabia se faria isso.
Bem no fundo, qual era o sentido que a impelia a essa atitude? O Padre de Vernon chegara, partira de novo, mas ela não deixara de sentir-lhe a presença em Gouldsboro. Na verdade ele praticamente não se afastara. E se às vezes se aprofundava na floresta para batizar de aldeia em aldeia, seu porto de origem parecia continuar sendo a costa.
Dizia-se que ele erguera sobre a falésia, entre o porto e a enseada das anémonas, um confessionário, uma cabana de casca de árvore, e um altar de toras, onde celebrava missa todas as manhãs.
Na verdade, dificilmente estaria, lá naquela hora do dia. E o que queria ela saber ou obter dele?
Angélica deu-se conta de que na realidade só queria vê-lo. Um padre! Que era um homem com quem ela compartilhava a existência familiar. Talvez não contasse nada a ele, mas o velho reflexo, nascido da infância religiosa, entremeada de preces e procissões, agia e a levava na direção dele. Ele era "o" padre. Pagando o alto preço do ascetismo, da castidade, do distanciamento do mundo, ele adquirira o direito de entrever os mistérios obscuros que regem os atos humanos.
Por que o Padre de Vernon plantara a cruz naquele lugar, como se tivesse a intenção de permanecer por longo tempo? Quereria, com esse sinal, apropriar-se do lugar? Como um dedo cravado entre a casca e o tronco da árvore, seu pequeno acampamento estava ali, de viés entre a Gouldsboro católica e a Gouldsboro protestante, dando para "o acampamento CKamplain e para a aldeia índia. E a alta cruz de madeira erguia-se contra um fundo de árvore e de céu. Grandes cedros e alguns olmos e carvalhos faziam-lhe um cenário verde-escuro, franjado de ramagem púrpura, um cenário de drama shakesperiano, encerrando-o estreitamente entre o mar e a floresta. A esplanada onde se erguiam a cruz, a cabana, o confessionário e o altar era pontilhada de zimbros, de algumas plantas de aroma amargo.
Ao se desembocar de entre ás árvores, logo se ouvia o estrondo das ondas, e às vezes, quando elas se engolfavam mais profundamente lá embaixo, um penacho níveo ultrapassava a beirada da falésia. Dir-se-ia um animal grande e curioso, tentando dar uma olhada furtiva num mundo desconhecido.
O garotinho sueco estava sentado diante da cabana, talhando uma flauta.
Angélica avistou o Padre de Vernon na extremidade do promontório de rochas enormes.
A batina preta destacava-se contra o horizonte que se fizera outra vez azul-escuro, salpicado de branco. Lá estava ele, solidamente escorado sobre os pés descalços, despreocupado com os respingos que as ondas, intermitentemente, espirravam por ali.
Estava com o rosto voltado em determinada direção. Ao aproximar-se, Angélica percebeu que olhava para Gouldsboro. Dali Gouldsboro se descortinava com sua enseada, sua praia, seu porto à esquerda, e suas casas de madeira clara.
Uma atenção concentrada paralisava o jesuíta. Era como se quisesse intensamente desvendar o segredo daquela imagem, inscrita ali, na curva da costa.
Não ouviu Angélica aproximar-se, e ela intuiu com segurança que ele estava evocando a visão da religiosa de Quebec e sopesando-a consigo.
Quando ele a fitou, ela disse com um sorriso um pouco melancólico:
- E Gouldsboro, não é? Acha que foi Gouldsboro que a Irmã Madalena viu em sua visão?... Gouldsboro, que ela nunca viu senão em sonho?
Ele a encarou com seu olhar voluntariamente frio e vazio. E como ela sabia coisa que aprendera duramente às próprias custas - que o século em que viviam «ra o séeulo;das sublimidades religiosas, da mortificaçãoexterior e de uma moral severa, sentia-se impotente para lhe transmitir a verdade de Gouldsboro, que era, apesar dos huguenotes,,como que uma entidade à parte daquilo tudo, com sua vontade de sobreviver fora dos conflitos místicos e ter sua parte de felicidade, riqueza, amor.
— Por que Gouldsboro? - suspirou ela.
— E por que não Gouldsboro? - retorquiu ele, sarcástico.
— E por que .não Gouldsboro?
Ele foi na direção dela e a encontrou na metade do promontório. Diante d"a figura altiva dele, de seu ar orgulhoso e da frieza de sua expressão, ocórrjeir uma dúvida a Angélica. Não fazia muito ela pensara:. "Todaàquela trama que nos rodeia é muito hábil! Tão inteligente!... Alguma coisa à imagem desse homem, desses homens de batina preta,-dispostos a servir a Deus com todos os recursos do seu saber, do seu poder sobre o espírito humano, jogando com desejos e terrores para conduzir os homens à própria salvação a qualquer preço, não recuando diante de nada para atingir o objetivo sagrado: salvar, preservar a Igreja Católica Apostólica Romana, e se possível implantar-lhe a doutrina pelo mundo inteiro".
E se fosse ele o inimigo oculto, ou antes, atrás dele a figura fanática do Padre d'Orgeval! Angélica não podia esquecer que fora o Padre de Vernon quem a procurara no navio de Barba de Ouro. Instruído por quem? Por ordem de quem?
Mas com essa evocação reviu Jack Merwin, mascando seu tabaco e manobrando a vela, e sua apreensão cedeu.
Aquele homem que a salvara do afogamento e a carregara nos braços e lhe servira uma sopa quente para reconfortá-la não podia ser inteiramente inimigo.
Ainda que tivesse recebido ordens severas a respeito dela, Angélica o sentia independente o suficiente para interpretá-las à sua maneira. Era preciso ter a coragem de enfrentá-lo e conhecer-lhe melhor as intenções.
Alçou os olhos para ele.
- Então, qual é o seu pressentimento? - indagou, desafiante.- A Diaba pode surgir de Gouldsboro?
— Sim! Acredito que sim - respondeu ele, olhando-a nos olhos. Angélica sentiu-se empalidecer.
— Então, também você é nosso inimigo?
— Quem disse isso?
- Está sob as ordens do Padre d'Orgeval, não é? Ele jurou destruir-nos. Enviou-o para nos espionar, para nos confundir, para nos destruir, talvez para nos liquidar, para causar nossa morte caso surja a ocasião... Eu me lembro...
Recuou e gritou-lhe com uma espécie de desespero:
- Você olhava enquanto eu morria! Sim! Quando eu estava me afogando na ponta de Monégan, você me olhava... Eu soube. Li em seus olhos quando se recusava a me estender a mão para me ajudar... Esperava de braços cruzados que o mar consumasse sua perversidade. Mas uma coisa é decidir consigo mesmo que uma criatura deve morrer, e vê-la debater-se e agonizar é outra. Não conseguiu.
Ele a ouvia, examinando-a com acuidade, mas permanecia impassível. Quando ela se calou, arquejando, indagou em tom calmo:
— Posso perguntar-lhe, senhora, qual é a finalidade de sua visita ao meu acampamento hoje?
— Estou com medo - disse ela num impulso.
E como estendera as duas mãos para a frente ao pronunciar essas palavras, ficou surpresa de vê-lo, a ele, um jesuíta, segurá-la e retê-las um instante com firmeza nas suas.
- Muito bem! - disse ele. - Fico feliz de que tenha vindo a mim, apesar dos desígnios negros que me atribuía há pouco. Estou à sua disposição para tentar devolver-lhe a coragem. O que está acontecendo?
Ela já não sabia o que dizer. Era tão inesperado aquele gesto de Merwin... e tão reconfortante também.
Olhou-o ansiosa, tentando entender o que animava aquela personalidade insondável e os objetivos ocultos que ele desejava atingir.
Um vagalhão rebentou das profundezas do promontório e um jorro de espuma branca esguichou ali perto, a uma altura inacreditável. Levada pelo vento, uma chuva de gotinhas salgadas e coruscantes envolveu a ambos.
Deram alguns passos para se afastar. Agora Angélica hesitava em falar.
Revelar a ele seus temores de uma ação perigosa sendo tramada no centro de Gouldsboro não seria acabar de lançar descrédito sobre o povoado, já considerado herético, possuído pelo Diabo, carregado de todos os pecados de Israel?
Balançou a cabeça.
- Não sei o que está acontecendo aqui, mas sinto que alguém deseja nossa perdição ,dé maneira tão forte e.profunda, que não aguento mais. Quem quer nossa destruição? Se eu soubesse, poderia me defender. É o Padre d'Orgeval, Merwin? Se sabe, suplico-lhe, diga-me. Foi ele quem o avisou de que eu estava a bordo do navio de Barba de Ouro, foi por ordem dele que você foi me procurar? Havia umaxorrelação, não havia, entre minha captura e o que você tinha á fazer nà baía Francesa, a serviço dele?
Ele não negou, mas tampouco aquiesceu. Ela sentia que o jesuíta tentava unir õs diferentes fatos de que tinha conhecimento, que ele sabia mais do que ela sobre os mistérios que a rodeavam, mas que não^estava disposto a comunicar-lhe o resultado de suas refrêxões. Desconfiaria dela? Trabalharia para seus inimigos? Seria um de "seus inimigos?
— Ingleses puritanos, franceses hereges - disse ele de repente -, piratas sem fé e sem lei, gentis-homens aventureiros, prontos a qualquer golpe, é essa a população de Gouldsboro. Como tal ninho de infecção poderia viver tranquilamente e não atrair a suspeita do Canadá que, pela Acádia, é seu vizinho?
— Esse é um julgamento precipitado - protestou Angélica. - Você mesmo pôde ver que nossa população é composta sobretudo de famílias industriosas de costumes patriarcais, e apesar da chegada recente desses piratas, que aliás estão decididos a se regenerar, o que reina é uma atmosfera decente. Ê verdade que as vezes nos divertimos, mas você mesmo não se recusou a nos distrair. Quanto aos ingleses puritanos, bem sabe que se trata de refugiados da Nova Inglaterra, que fogem dos massacres que se desencadeiam lá e que esperam que a tempestade se acalme para voltarem para casa. Essas mulheres, essas crianças sob nossa proteção, por que não teriam direito a seu quinhão de vida? Deixem-nos viver, meus padres! Então já não bastam os que morreram do outro lado da baía... Oh, Merwin! - disse ela com sofrimento. - Lembra as criancinhas inglesas da ilha Longue que foram cantar para nós na praia? Agora estão mortas!... Correu o boato de que as ilhas da baía de Casco caíram nas mãos dos abenakis.
— Pois está enganada! - disse ele, brusco. - Elas não estão mortas. As ilhas continuam esperando pelo ataque das canoas indígenas, e essas.crianças inglesas por quem você chora continuam, aposto, a procurar conchas cantarolando. Dentro em pouco retornarão tranquilamente às fazendas na Nova Inglaterra. E tudo isso graças a você ou por sua culpa, depende!
— O que está querendo dizer? - exclamou Angélica, olhando-o estupefata.
— Que a partida, ou melhor, a deserção de Piksarett atrapalhou todos os planos, desmoralizou as tropas que tinham partido para atacar os colonos da Nova Inglaterra. A guerra dos índios se apagou como um fogo de tições não alimentado. Logo depois do desaparecimento dele no-Androscoggin, as tribos que ele trouxera do norte se dispersaram, subindo de volta para Quebec com seus reféns.
"As que haviam seguido para o sul, esperando a chegada dele, só o viram aparecer de vez em quando, mais preocupado em segui-la, Angélica, em suas peregrinações, do que em levar suas tropas a combate. Ficou à espera da passagem do White Bird. Quando viu que você estava a bordo, subiu para Pentagouet, onde nos aguardava. Ora, não há guerra de índios nestas nossas paragens sem o grande guerreiro da Acádia. Depois de algumas escaramuças, os índios aliados dos franceses desistiram. E pronto! Está satisfeita com a sua obra?... Sim, parece-me!
Ele vira o rosto dela iluminar-se.
De fato, a notícia dele de que as crianças da ilha Longue tinham sido poupadas dera tal alívio a Angélica e tal alegria, que ela sentiu um rubor súbito crescer e subir-lhe à testa.
- Que felicidade! - exclamou com os olhos brilhando. - Então estão vivas. Deus seja louvado!
O jesuíta acariciava o queixo, examinando-a, enquanto um clarão de humor se acendia em seus olhos.
- Confesse, Angélica, que o Padre d'Orgeval teria algumas razões para querer-lhe mal por um poder cuja origem ou influência é difícil explicar. Uma campanha que dá em nada, o seu Grande Batizado, seu filho preferido, esquivando-se sem remorsos ao seu dever de chefe de guerra santa, e tudo isso porque encontrou a Dama do Lago de Prata. É assim que a chamam em Quebec, que
está nitidamente dividida a seu respeito. Quando se conhecem as dificuldades que há para influenciar um pouco esses índios inconstantes e caprichosos, seu poder sobre uma personalidade tão difícil quanto a de Piksarett, evidentemente, para quem não a conhece, pode parecer feitiçaria. E já tinha havido certas mudanças de opinião bem desagradáveis pára meu sapefior aceitar, como a do Sr. de Loménie-Chaiíibord, que é, conforme você não ignora, seu melhor amigo e que, mosfrando-se agora como seu ferrenho partidário, magou-o muito. Como é que ele não veria em você uma inimiga perigosa, quando a instalação do Sr. de Peyrac nesta costa já parece minar as bases de toda anossa obra na Acádia e sua presença lhe retirou, como que por magia, as melhores alianças?
— Mas por que foi que ele se convenceu de que lhe somos nocivos? Estávamos à procura de um canto para sobreviver. O mundo é vasto e a América, imensa e ainda pouco povoada. Não queremos o mal. No que o incomodamos?
— Vocês dão um exemplo que não se enquadra com o que ele deseja impor aqui. Nossa população canadense com certeza é fervorosa. Quer ganhar esteThundo para Deus, mias dedica-se a isso com mais ânimo explorando as matas e trocando peles do que cultivando os campos à sombra das igrejas. Deixa-se levar facilmente pela impiedade dos que podem viver longos meses afastados de todos os sacramentos. Se» exemplo já é uma tentação para eles. Vêm a vocês porque encontram quinquilharia melhor e a possibilidade de traficar a bom preço com o inimigo, sem sujar as mãos. Acha que sou cego e que não topei com um bom número desses 'enforcáveis' franceses nos arredores das wigwams? O homem é pecador por excelência. Ama acima de tudo ao próprio gozo. Os ingleses querem rezar à sua moda herética e não medirão distâncias para conquistar esse direito; os franceses querem explorar os bosques e enriquecer com o comércio de peles..."
- E vocês, meus padres, qual é seu gozo próprio?
Interrompido, o jesuíta fez uma pausa. Depois se decidiu a responder.
- Ganhar algumas almas para a Igreja e conservar-lhe as que ela já possui, conservá-las contra tudo e todos.
Outro vagalhão rebentou e desta vez o penacho branco, que, com uma espécie de cólera grandiosa, se desfraldava contra o azul do céu, caiu mais longe, mas uma ponta dele transbordou e, com um movimento ágil, deslizou até eles e cobriu-lhes os pés até os tornozelos.
-Saiamos daqui - disse o Padre de Vernon -, a maré está subindo. E o mar é traiçoeiro na costa americana, conforme bem sabemos.
Estendeu a mão e, tomando-lhe o braço, obrigou-a a se afastar.
Andaram um instante em silêncio, lado a lado, seguindo por uma trilha que levava à relva da esplanada. O tapete de epilóbios chegava até ejes, invasor e frágil, um exército rosa e malva.
Angélica sentiu a realidade daquele braço de homem passado sob o seu com um instintivo sentimento de proteção. Decididamente ele não se comportava como um jesuíta comum.
Era uma graça inesperada. Ele fazia o gesto como se deixasse agir a outra faceta de sua natureza, humana e sensível como na-quela vez, em Monégan, quando ela fugidiamente sentira que representava para ele um ser humano que era preciso salvar, defender à custa da própria vida. Era a outra face daqueles corações de bronze, o amor que dedicavam aos homens através do amor que Cristo lhes inspirava. Mas como era difícil aos profanos segui-los na sua transmutação mística dos sentimentos!
Ela não estava preparada para o golpe baixo que ele iria desferir-lhe. Ouviu de repente:
— Não sobreviverá! Sua obra está destinada ao fracasso, pois, ainda que vá longe, uma vida criminosa traz em si a própria condenação.
— De quem está falando?
— De você, Angélica, em particular de seus crimes passados.
-Meus crimes passados! - repetiu Angélica.
O sangue subiu-lhe à cabeça.
— Está passando dos limites, Merwin - exclamou, puxando o braço que ele ainda segurava. E seus olhos faiscaram de cólera. - O que sabe de meu passado para ousar chamar-me assim de criminosa? Não sou uma criminosa.
— E mesmo? - observou ele, irónico. - Explique-me melhor... Então são as mulheres virtuosas que são marcadas com a flor-de-lis no reino?... Por mais imperfeita que seja a justiça por lá, não acredito que já tenha chegado a esse grau de leviandade...
Angélica sentiu que o sangue lhe sumia das faces.
Com que docilidade e ingenuidade se precipitara para as armadilhas dele! Como pudera acreditar que ele esquecera aquilo? Além do Conde de Peyrac, só havia dois homens no mundo que sabiam que ela fora marcada com a flor-de-lis: Berne, que assistira ao suplício na pequena câmara de justiça de Marennes, e ele, o jesuíta, que a salvara do afogamento em Monégan. Ela se lembrava das mãos dele sobre seu corpo, friccionando-a para reanimá-la. Fora quando ele pudera ver em seu clorso desnudo a marca infame da flor-de-lis. Entendeu que o fato exigia explicações. Agora estava encurralada,.. Ou contava tudo sobre si mesma ou corria o risco de que ele confirmasse sua opinião em suposições erróneas que acentuariam o mal-entendido, o perigoso desacordo entre eles e a Nova França.
Sim! Era um jesuíta exatamente como os outros! Um adversário rude! Lidando corri eles a pessoa sempre subestima suas forças.
Naquele momento ela.devia estar com o ar tristonho de Willoagby, traiçoeiramente .atingido pelo mesmo jesuíta, e a ideia a fez sorrir contra-a vontade.
Recuperou a sobranceria. Se queria contar-lhe a verdade, havia apenas um meio para que ele não pensasse que ela usava de reticências, para que soubesse tudo sobre ela, para que não duvidasse.
— Padre --- disse, encarando-o francamente -, apesar da pouca estima que possa ter por mim, e reconheço que é possuidor de um segredo que lhe confere o direito de professar tal opinião, apesar disso, acredita-mccapaz. de cometer um sacrilégio?... Quero dizer: de utilizar os sacramentos para fins nocivos, malignos ou mentirosos?
— Não - afirmou ele, espontaneamente -, não a acredito capaz disso!
— Então... Quer, padre... quer ouvir-me em confissão?
CAPITULO XXXI
"Vá a Quebec!"
O menino sueco afastara-se do acampamento. Procurava avelãs pelo chão.
Ali, no confessionário rústico, composto de um tabique com uma abertura, estavam protegidos do vento. De um lado havia um assento para o confessor; do outro, a terra nua para os joelhos do penitente. Teto arredondado, paredes de cascas de olmo grosseiramente reunidas sobre estruturas de estacas flexíveis, mas não havia portas nem cortinas. Confessor e penitente, quase invisíveis um para o outro através do biombo de varas, podiam, cada um do seu lado, olhar o mar, caso tivessem vontade.
Angélica ajoelhou-se.
O Padre de Vernon pegou de sobre o banquinho uma sobrepeliz branca que enfiou por cima da batina, e passou pelo pescoço a estola bordada.
Sentou-se e inclinou-se.
- Há quanto tempo não se confessa?
A pergunta pegou-a de surpresa. Há quanto tempo? A data perdia-se na noite dos tempos, no caos dos acontecimentos dilacerantes e múltiplos que ela atravessara. De repente reviu a Abadia de Nieul, a cátedra alta, onde se sentava o abade, e o rosto pálido dele emoldurado pelo capuz branco, a infinita amizade daqueles olhos escuros por ela.
- Há... quatro ou cinco anos, acho.
O jesuíta teve um sobressalto.
- E admite isso sem constrangimento... Mas, minha filha, você perdeu toda a noção de seus deveres para com Deus, a Igreja e você mesma!... Durante quatro ou cinco anos, talvez mais, no final das contas, não se aproximou do tribunal de penitência, nem do santo altar, evidentemente. Assim, você vive constantemente em estado de pecado mortal, coisa que não parece perturbá-la muito. No entanto, caso morresse amanha, não ignora que seria enviada para o inferno e entregue a Satã nela eternidade!
Angélica ficou calada.
— Confesse suas faltas - continuou ele -, para que pelo menos possa receber o perdão por essa negligência horrível.
— Quero fazer uma confissão geral.
— Pois bem, estou ouvindo.
Ela poderia confessar apenas os pecados cometidos desde a última confissão. Uma confissão geral era sua vida inteira. Ele ficaria sabendo de tudo ã seu respeito. Mas, embora se entregasse inteiramente, correndo todos os riscos, e talvez a um representante de seus piores inimigos, ela sabia que, ajoelhando-se ali, marcava um ponto.
Pois o sigilo da confissão o obrigaria ao mais absoluto segredo.
Se lhe confiasse de Outra maneira alguns episódios secretos de sua vida, ele estaria livre para transmiti-los aos seus superiores, ao bispo, e até, se quisesse, para espalhá-los por Quebec inteira.
Mas quanto àquilo que ela ia revelar-lhe ali, diante do que, desde os primeiros tempos do cristianismo, era considerado como o tribunal de Deus, ele deveria atentar para que nem por alusão deixasse escapar seu teor a quem quer que fosse.
Lei intransigente. Não havia um único exemplo de eclesiástico que a tivesse violado. No século X, São João Crisóstomo, chamado João Boca de Ouro por essa razão mesma, morrera sob tortura e não revelara ao imperador os segredos da confissão da imperatriz.
Depois de recitar o Confiteor afirmar, segundo a fórmula consagrada, que tomava "a resolução de não voltar a pecar", Angélica procurou por onde começar.
Sua vida não era simples. Apesar disso, queria ordená-la, de modo a convencer o padre de que não continha em germe um ateísmo de convicção. As circunstâncias tinham feito dela uma revoltada, não uma criminosa, e se fora marcada com a flor-de-lis fora porque a tomaram por protestante. Explicou isso ao padre.
- Por que não se justificou, recusando-se a ser tomada por herege, no mínimo para escapar á esse suplício infame?
Foi preciso contar que ela estava se escondendo naquela altura, que não podia revelar quem era, que a polícia do rei lhe pusera a cabeça a premio... Havia sua filha também, que ficara abandonada na floresta, amarrada a uma árvore... Era complicado. Ela fora comandante de guerra: a Rebelde do Poitou.
Ele ouvia sem.parecer perturbado e, coisa curiosa, recebeu com frieza a confissão de que ela matara duas vezes com as próprias mãos. Degolara o Grande Coèsre, que ameaçava a vida de seu filho, e mandara cortar á cabeça de Montadour... Com um gesto, ele pôs isso de parte, mas ateve-se à moralidade de sua vida: a luxúria, o adultério, inúmeras vezes ela enganara o marido...
— Eu o imaginava morto, padre...
— E a virtude da pureza? Você faz muito pouco-caso dela, ao que me parece, minha filha!
Angélica teve vontade de dar de ombros, de dizer: "Isso não tem importância".
Estava se embaralhando... Como tudo aquilo estava longe! Era outra vida, outro mundo!
Daquele emaranhado extraía uma sensação de horror e impotência, mas ao mesmo tempo lhe vinha um alívio inexprimível ante a ideia de que agora estava livre, amada, protegida, nas ter-. as da América.
Já não estava sozinha debatendo-se contra as opressões seculares. Um homem a amava. Trouxera-a para longe da crueldade dos homens, erigira paliçadas a volta dela, paliçadas que as forças existentes no Novo Mundo já não tinham condições de derrubar facilmente, e ele voltaria dentro de alguns dias...
— Ah, compreenda, Merwin! Finalmente podemos viver felizes, livres de nós mesmos, de nossas convicções e de nossas preferências... Rogo-lhe... Deixe-nos viver! Deixe-nos viver!...
— Minha filha, não se esqueça de que está aqui para se acusar de seus pecados e não para procurar desculpas... ou aliados.
E concluiu:
- Ao longo de toda a sua vida você quis ignorar, por fraqueza, irreflexão ou desânimo, os ensinamentos da Igreja, que lhe recomendavam ser virtuosa e casta. Mas eu a absolverei, pois Jesus foi indulgente com a adúltera, foi indulgente com a pecadora que foi a ele, por amor, verter-lhe um vidro de perfume aos pés.
"A exemplo de Santa Maria Madalena, saiba chorar às vezes ao pé da cruz pela remissão dos pecados do mundo. É nesse espírito que lhe peço que recite seu ato de contrição."
Ajudou-a a recitar as palavras, que ela esquecera, depois abençoou-a, absolvendo-a.
Ao sair do confessionário, ele tirou a estola, mas conservou a sobrepeliz.
Seus pés.nus sobre a relva rente lembfávam a Angélica que ela o vira executando trabalhos docotidiano dos homens: cozer a sopa, cortar o pão,"lavar, a camisa, consertar o barco, mascar fumo...
Apesar de sua cultura, de sua ciência austera e universal, suas mãos calosas e seus pés descalços tornavam-no próximo. Com o combate com o urso ele conquistara toda a população de Goulds-boro. Os huguenqtes pressentiram nele sua humanidade.
Sentiam que ele era também um homem do mar, ligado às mensagens do vento, ao segredo da vaga e da tempestade, ao ruído da ressaca envenseadas.perdidas, um homem dos portos, das angras e da costa da América. Mas qual seria sua decisão definitiva em relação aos protestantes?
Apesar da-imensa esperança ê alegria que a invadiam depois da confissão; sem qvre ela soubesse exatamente por quê, Angélica permaneceu prudente.
Houve um longo silêncio.
Depois ele recomeçou, em tom voluntariamente neutro:
— Não vá deduzir que, porque cometi em Monégan um ato de humanidade elementar para com você, eu deva ser considerado seu aliado. As distâncias continuam as mesmas.
— Não, de modo algum - disse Angélica, rindo de repente. - Você me arrastou pelo cabelo na praia e eu vomitei sobre seu colete. Queira-se ou não, isso aproxima e cria vínculos, mesmo de penitente para confessor.
Seu humor venceu as defesas do jesuíta. Ele subitamente se pôs a rir à larga, como rira na casa de Saint-Castine...
- Que seja! Admitamos que-sim - exclamou. - Mas isso não elimina o fato de que, se em sua independência, em sua... neutralidade proclamada, afirmada, vocês não estão expressamente ao lado dos inimigos da Nova França, tampouco são um de seus amigos.
"Reconheça que não é fácil considerá-los inofensivos. Tomemos o exemplo de seu governador atual. O Sieur Colin Paturel. É um corsário que recebeu suas cartas de corso em Paris e adquiriu, de modo corretíssimo, as terras da região, que se engajou para servir ao mesmo tempo às missões e à Nova França, e encontro-o aqui, seu aliado, seu amigo, do seu lado em suma. Como conseguiram que, mesmo espoliado, ele lhes dedique fidelidade tão evidente? O que foi que lhe prometeram?
- Para começo de conversa, por que Versalhes se permitiu verder-lhe ferras que, sabia-se, pertenciam notoriamente aos ingleses pelo Tratado de Breda?
O jesuíta fez um gesto irritado.
— Poderíamos discutir indefinidamente para saberá quem pertencem estas terras da Acádia. Os franceses foram seus primeiros ocupantes, com De Monts...
— Um huguenote, aliás... E talvez Colin tenha entendido que quiseram servir-se dele enviando-o para conquistar terras, pelas quais ele pagara em moeda sonante, a pessoas que tinham tanto direito de possuí-las quanto ele. Haviam-lhe garantido que para ele seria uma brincadeira de criança expulsar esse pirata e o bando de protestantes indevidamente instalados lá. Reconheço que o golpe foi bem montado. Mas, aí tem você, as coisas se comprovaram diferentes. Paturel é um homem franco, e pudemos fazer um acordo com ele...
— Por meio de que artifícios? - repetiu o jesuíta.
Em torno daqueles fatos surpreendentes, ele farejava o mistério. Disse com súbita impulsividade.
— Ele é apaixonado demais por você. E coloca essa paixão acima de tudo. Não gosto desse homem.
— Acredite que é recíproco. Ele o disse a mim. Considera-o violento demais para um padre. Gostaria que os padres esclarecessem os fiéis e não os iluminassem sem levar em conta a personalidade de cada um. Sem dúvida que, na qualidade de corsário, ele não imaginou que você iria a bordo de seu navio surrupiar-lhe a refém, a Condessa de Peyrac, que ele conseguira capturar... Ele já tinha trabalhado o suficiente com a conquista de Goulds-boro. A mando dos jesuítas, você veio retirar-lhe seu melhor trunfo. Mas é um homem muito crente, e não gostaria de ser considerado por vocês inimigo de Deus e da Igreja.
Deu um suspiro e acrescentou:
- Pronto! E possível conciliar as coisas para homens de boa vontade? Que conselho me dá?
- Vá a Quebec - respondeu o Padre de Vernon. - É preciso que a conheçam lá. E a seu esposo, considerado traidor, inimigo do reino. Ora, ele é gascão de origem, e isso servirá de terreno de entendimento com o nosso governador, Frontenac.
"E você, principalmente, para que se acalmem as apreensões e dúvidas a seu respeito."
— Mas você está louco!"- exclamou ela, assustada. - E uma armadilha a que quer nos atrair? Quebec! Bem sabe que me receberão a pedradas! A polícia do rei pôde nos deter sem apelação, mandar-nos para a prisão..?.
— Vão armados. A frota de seu marido já é mais poderosa do que a da Nova França... que possui somente um navio... e que não está lá sempre...
— Estranho conselho de sua parte! - disse ela, sem conter um sorriso. - Então não é nosso inimigo, Merwin.
Ele não respondeu. Tirou a sobrepeliz e, dobrando-a com cuidado, colocou-a ao braço. Ela compreendeu que ele não desejava prosseguir.
— Ficará mais tempo em Gouldsboro? - indagou.
— Não sei.„ Vá agora, minha-filha. Faz-se tarde. É a hora da oração. E possível que "alguns fiéis venham para o rosário.
Docilmente ela inclinou a cabeça para se despedir e começou a descer pela trilha. Mas parou.
- Padre - disse, voltando-se -, não me deu penitência.
Era costume, no fim da confissão,-que o padre indicasse diversas preces ou alguns sacrifícios ou atos de devoção, a título de reparação pelos pecados cometidos.
O Padre de Vernon hesitou. Franziu o cenho e seu rosto assumiu uma expressão autoritária.
- Pois bem! Vá a Quebec! - reiterou. - Sim, é isso o que lhe ordeno como penitência. Vá a Quebec. Acompanhe seu marido até lá, caso surja a ocasião.'Tenha a coragem de enfrentar a cidade, sem" medo nem vergonha. Afinal de contas, talvez de tudo isso saia algo de bom para' a terra da América!
CAPITULO XXXII
Com Ambrosina, sempre presente, Angélica visita Abigail
Apesar do mutismo do Padre de Vernon ante a pergunta que ela lhe fizera - "Não é nosso inimigo, não é?" -, Angélica estava esperançosa. Teve vontade de transmitir imediatamente a Jof-frey seu sentimento de confiança. "Creio que aquele jesuíta está do nosso lado", teria dito ela.
O Padre d'Orgeval já lhes enviara Massérat - e Massérat os ajudara a cuidar dos doentes em Wapassu e a fabricar cerveja -, depois Guérande, no Kennebec, depois Merwin. Este último era o mais importante. Era como que um segundo Padre d'Orgeval. Menos místico, mas também menos vulnerável, portanto menos suscetível de se deixar levar pelo fanatismo. De certo modo ele era o observador de D'Orgeval, que não temia mais enfrentar a dialética dos reformados do que a sedução das mulheres, as tavernas de Nova York, o mar, os piratas, os causadores de naufrágios, os índios, os ursos...
Ele faria seu relatório ao superior. Seria o relatório de um homem que sondara o inimigo de perto. D'Orgeval se deixaria convencer?
Angélica cruzou com Cantor, que voltava do porto com o grupo de amigos. Traziam redes ao ombros, peixes, lagostas e moluscos em cestos.
O adolescente beijou a mãe com entusiasmo. Estava bronzeado como um pirata, e nunca a limpidez do seu olhar de esmeralda irradiara mais inocência. Não deu explicações sobre sua ausência, e ela nada quis perguntar. Afinal, ele era capitão de navio.
Mas a presença dele, dissipando-lhe uma inquietação, completava-lhe a felicidade. Decididamente tudo era belo naquela noite! Os perigos e angústias distanciavam-se, pareciam descabidos.
Angélica levantou os olhos para uma revoada de pássaros. O impulso magnífico daquelas revoadas, sua densidade em movimento, que de repente obscureciam o céu, sempre lhe provocavam admiração. Era a vida do céu, um mundo diferente, batido pelos ventos e as correntes invisíveis das migrações regido pelas leis imperiosas da natureza, um mundo harmonioso e ativo, que também tinha seu lugar navida deles. O pouso, na maré baixa, de milhares de alcatrazes e gaivotas transformando as rochas desnudas em planície de neve, seu aparecimento ruidoso e súbito, um ponto preto no horizonte, que inflava/inflava como uma tempestade, ou seu desaparecimento, que fazia cair sobre a natureza uma espécie dejtorpor, de silêncio inquieto, expectante, ritmavam a vida deles em Gouldsboro. As aves!... Gouldsboro, sua baía, suas ilhas... seu mistério oculto, Gouldsboro, onde a religiosa visionária de Quehec pretendia que se desenrolaria o drama místico da Diaba, cuja aparição ela presenciara.
"Minha vísãé situava-se. à bèira-mar... Por toda parte, na baía, ilhas em grande númejo^omo monstros entorpecidos... Eu ouvia os gritos de gaivotas e alcatrazes...
"De repente uma mulher de grande beleza levantou-se das águas e eu soube que era um demónio fêmea... Seu corpo refletia-se nas águas... ela cavalgava um unicórnio..."
Fantasmagoria!
"Não vai acontecer nada", afirmou Angélica para consigo. "Estarei atenta! Se essas coisas estão inscritas no destino de Gouldsboro, talvez sejam apenas simbólicas. Passarão por entre nós sem que saibamos. O importante é superá-las!"
E voltou-se. Viu uma mulher, a alguns passos, que a olhava, e seus cabelos escuros contorciam-se como serpentes à luz vermelha do soL poente.
- Você tinha se esquecido de mim, imagino - disse a voz de Ambrosina de Maudribourg --, olhava as aves... e tinha se esquecido de minha existência,-não é?... Ouvia os gritos das gaivotas que passavam. Para você era uma música celestial... Vi que fechou os olhos e sorria. Como faz para amar tanto as coisas da vida? A mim só inspiram medo. Essas aves que passam! Ouço gritar as almas dos mortos ou dos danados, e morro de medo. Mas a você elas encantam. Você as ama, mas não a mim.
- Você está enganada, Ambrosina. Preocupo-me muito com você.
Aproximou-se. A benfeitora estava tendo mais uma de suas crises de puerilidade. Mas em sua desconfiada suscetibilidade, Ambrosina não se enganava muito. Durante alguns minutos Angélica a esquecera. A ausência de Joffrey de Peyrac a atormentava. Não parava de olhar para o horizonte, tentando avistar as velas da pequena frota retornando da expedição guerreira. Entre o parto de Abigail e o diálogo com o Padre de Vernon, ela teve que admitir para si mesma que os problemas da Duquesa de Maudri-bourg tinham passado para segundo plano. Disse com gentileza:
— Não se imagine abandonada. Todos os que vivem aqui em Gouldsboro têm direito ao meu interesse e afeto. Quando quiser, examinaremos juntas a decisão a tomar: se deve mandar suas moças voltar para cá, se vai ao encontro delas em Port-Royal... o que não impedirá que continuemos boas amigas, pelo contrário... Se você gosta de Gouldsboro...
— Mas não quero partir! - exclamou Ambrosina, torcendo as mãos. - Quero ficar aqui, sozinha, com você...
— Mas é a benfeitora delas - protestou Angélica -, aquelas jovens precisam de você. Vamos, Ambrosina, recomponha-se... Não é uma criança...
— Sim! Sou uma criança perdida! - exclamou a duquesa em tom desesperado.
Ela não parecia em estado de ouvir a voz do bom senso. A mulher autoritária, arrojada, segura de si, que até agora levara sua existência de viúva, rica, nobre e piedosa, dedicada às boas obras e versada em ciências, sem esmorecimento e até com felicidade e êxito, parecia haver desaparecido. Alguma coisa, nos últimos tempos, naquelas paragens, a havia abalado. O naufrágio, sem dúvida. A nova existência também.
Ela despertava daqueles anos de vida de convento e estudos como que de um sonho, descobria-se aos trinta e cinco anos como a criança de quinze, entregue ao monstro, procurando sua ama perdida naquele desastre.
Angélica teve uma suspeita. A alma de Ambrosina de Maudri-bourg errava por espaços desertos tal qual o pássaro perdido que, deixando-se distanciar pelos outros, tem que recorrer às suas próprias forças para reencontrar a direçào a seguir. Com frequência se trata de um pássaro muito jovem, sem experiência. Angélica os observava inúmeras vezes - subindo, descendo, girando ao sol, soltando no espaço um grito sem eco -, e nessas ocasiões compartilhava da ansiedade da criatura separada dos seus, sem recursos, destinadas à morte caso .não encontrasse em si mesma, e somente em si, o instinto de sobrevivência...
"Eles sempre acham que a mãe voltará para buscá-los", dizia Cantor, que também gostava de observar os pássaros ao entardecer, sentado junto de Angélica,"mas não é verdade, a mãe nunca volta..."
Angélica pousou a mão sobre os cabelos de Ambrosina e acariciou-os como teria feito a uma criança.
- Está bem - disse, em tom apaziguador -, tenha paciência! Aqui você está em segurança e ninguém lhe fará mal. Quando tiver recuperadoas forças, conversaremos. Enquanto isso, viva em paz. Olhe,, vou agora mesmo à casa da Abigail, levar-lhe alguns presentes que meu riTarido e eu havíamos preparado para ela. Acompanhe-me,-sirrr? A- vista daquele bebezinho a reconfortará...
Para Abigailliavia uma Bíblia encapada de brocado dourado, guarnecida de prata e Buas placas de metal lavrado, descrevendo o Êxodo do Egito e Ester diante de Assuero. Uma colcha de seda escarlate bordada a ouro, a fronha e o lençol.
Para a família, Angélica juntara uma caixa de balas inglesas e dois potes, um de gengibre verde, outro de flores de laranjeira.
Cantor, Marcial e os outros garotos estavam presentes: tinham ido, ruidosamente, levar seus bons votos à mãe e ao bebe.
Angélica receava que tantas visitas acabassem fatigando a jovem mãe. Abigail inquietava-se. O leite não aparecia e ela estava com um pouco de febre. Angélica prometeu que lhe prepararia uma tisana, que levaria na manhã-seguinte. Fez suas recomendações a Severina, Rebeca e Tia Ana, que se revezariam à cabeceira de Abigail, bem como a Gabriel Berne, muito atento a tudo o que concernia à sua pequena família.
Sempre acompanhada de Ambrosina, entregou-se a mais algumas ocupações. Quando conseguiu vér-se sozinha, de noitinha, suas preocupações voltaram. Censurou-se por não haver mencionado ao Padre de Vernon suas apreensões acerca de uma atmosfera diabólica que parecia introduzir-se entre eles. Já que ele não parecia hostil, por que não abrir-se com ele com mais confiança? Mas quase no mesmo instante sua consciência a reconduzia a um sentimento de prudência. Para começar, os índios, os fatos que nutriam sua angústia, eram ténues. Quando tentava pô-los em certa ordem, em certa lógica, não conseguia achar o fio da meada. Um navio desconhecido, tripulado por desconhecidos que pareceram dar-lhes intencionalmente informações erradas, uma mulher, duas mulheres, que tinham dormido demais, certamente por efeito, de uma droga. Mas falar disso a um confessor, ligeiramente na defensiva em relação a ela, não era fácil. Necessitava de mais certezas antes de poder decidir ao menos de que lado vinha o perigo. Seu espírito vagueava, procurava, deteve-se numa ideia súbita: alguém que desejava vingar-se! Sim, vingar-se... sim. A tenacidade e o ilogismo das açòes que se valiam de qualquer recurso correspondiam à ideia fixa de um maníaco aferrado aos passos deles, procurando levá-los a extremos por meios de intrigas perpétuas, .mais do que ao desenrolar de um plano de ataque concebido com finalidades políticas. Certo, "tinham-lhes" enviado Barba de Ouro, mas podia-se muito bem conceber os responsáveis coloniais franceses tendo justamente essa ideia, decidindo entregar a um corsário disposto a guerrear um território já ocupado por um indesejável. O que não se enquadrava com os planos urdidos por aqueles senhores de Paris era o rapto de Barba de Ouro, seu transporte para uma ilha onde ela devia encontrá-lo, e também o bilhete passado a Peyrac: "Sua mulher está na ilhota do Velho Navio, com Barba de Ouro..."
Operação tão magnífica, montada em quase todos os detalhes, para lançar aquelas três pessoas numa tragédia irremediável, revelava a presença de um espírito minucioso, a par da existência cotidiana deles, de seus hábitos, e até do caráter de cada um, de suas reaçòes comuns, e decidido a jogar com tudo isso com um objetivo de destruição. Cada vez que pensava nisso, Angélica sentia um arrepio. Não, não podia estar enganada: tudo aquilo não fora fruto do acaso ou de coincidências infelizes, como às vezes queria convencer-se.
Havia mais alguém. Alguém que levava a cabo uma vingança contra eles. Mas quem podia odiá-los a tal ponto? Alguém que nutria um ódio mortal a Joffrey, a ponto de querer seqiiestrar-lhe a mulher... levá-lo a matá-la... Ou seria vingança contra ela? Mas a quem ofendera ela assim, para levá-lo a cometer tais vilanias? Pensou em Clóvis, que, justamente, desaparecera.
Ela sabia que Joffrey quisera que Cantor o trouxesse. Porque desejava interrogá-lo a fira de chegar à origem da ordem falsa que despachara Angélica para o povoado inglês, para atirá-la na armadilha dos canadenses. Sabia-se que Cantor recebera a mensagem dos Maupertuis. Mas estes' estavam agora no Canadá, e para saber quem a dera a eles o conde tivera?que interrogar, em vão, todos os seus homens presentes naqueTe dia em Houssnock. Faltava apenas o testemunho -d(c) Clóvis, que desaparecera.
Durante alguns instantes, Angélica teve a impressão de que topava com uma pista muito importante, mas, pensando melhor, a coisa não lhe pareceu plausível.
Ela não via o pobre carvoeiro dedicando-se a tantos esmeros e sutilezas psicológicas, se bem que nunca se pudesse saber ao certo com aqueles seres primitivos e fechados, quando eles, como dogues, se apegavam a um objetivo único. Era todo caso, Clóvis não poderia rondar pelos arredores sem ser imediatamente reconhecido e levado-ao JZonde de Peyrac.
Restava a esclarecer também o caso do café drogado, pois não havia dúvida àlguma.díque o sonífero que mergulhara a Sra. de Maudribourg e.a. sra. Carrère nurrrtorpor tão prolongado só podia estar naquele café íme*elas foram as únicas a beber.
Angélica.examinou com atenção o pó do café torrado que lhe restava. Parecia absolutamente normal e tinha um aroma delicioso. Se Joffrey estivesse ali, poderia analisá-lo e descobrir o que fora misturado.
Ela pensou em pedir a opinião do homem das especiarias. Talvez, com seu nariz sutil e o hábito que tinha de pesquisar todo tipo de produtos coloniais, ele conseguisse reconhecer aquele. Mas resolveu não envolver aquele pirata, que nem era um homem de Gouldsboro, e para evitar algum acidente, ainda que com o gato, que não parava de farejar o café e bem poderia se envenenar, ela decidiu, não sem remorsos, livrar-se do pó.
Foi pessoalmente jogar o conteúdo da caixa no mar e voltou para casa, sempre seguida pelo gato, que não se afastava dela mais de meio metro.
Felizmente ele estava ali, o gatinho! Era pouco, mas sua presença vivaz acalmava-lhe a angústia. Levou-o ao ombro e acariciou-o, sempre olhando pela janela a noite de Gouldsboro, cortada de relâmpagos distantes.
CAPITULO XXXIII
Duelo de titãs
O dia seguinte foi particularmente quente. O vento sumira, o mar estava lânguido; a floresta e a terra exalavam uma bruma esbranquiçada através da qual o sol parecia brilhar como por trás de porcelana translúcida.
Bem cedo, aproveitando o fato de que Ambrosina de Maudri-bourg ainda dormia, Angélica subiu até a casa dos Berne para levar a tisana prometida. Fez a amiga tomar uma primeira xícara e pousou o púcaro na beirada da lareira, perto das brasas. Seria preciso beber duas ou três xícaras durante o dia. Mas ela voltaria à tarde. A pequena Elisabete era um bebé encantador, roliço, rechonchudo, e já parecia sorrir. Severina, pelo menos, tinha certeza disso.
Angélica foi ao encontro da duquesa, que, parada à porta de casa, olhava o mar.
- Venha passear comigo. Quero procurar ametistas e ágata para levar para Honorina, minha filhinha. Dizem que por aqui a gente encontra algumas belíssimas pelas praias...
Levava na mão uma cesta, onde pusera uma garrafa de limonada e biscoitos de milho.
Acharam algumas pedras e muitas conchas. Angélica falava de Honorina, que com certeza, ficaria maravilhada com tudo aquilo. Quando se sentaram, um pouco mais tarde, estavam com uma sede fortíssima.
- Faço esta limonada com sumagre-vermelho - explicou. - O branco é venenoso. Mata até o carvalho e o teixo que crescem à sua volta. Em compensação, as bagas do vermelho, misturadas com açúcar de ácer fermentado, dão uma bebida deliciosa.
Pôs a garrafa para refrescar num oco de rocha e, para se deleitarem, esperaram que esfriasse bem. Ambrosina soltou um suspiro de satisfação infantil. Deitouma areia e pousou a cabeça nos joelhos de Angélica.
- E se for sumagre-branco?..: Será qu£~vamos morrer?
— Não, não tema nada.
— Veneno - disse ã. duquesa em tom sonhador e como que distante -, veneno... uma palavra que me assombrou o pensamento durante anos. Envenená-lo... aele, o monstro... compreende, envenená-lo!... Gostaria de ter tido coragem para fazer isso. Só pensava nisso, meu único consolo, meu único alívio era imaginá-lo morrendo.,peIa minha mão... Mas nunca pus meus pro-jetos em prática. Tinha medo do inferno... Finalmente ele morreu... de velhice, de devassidão... Quanto a mim, recebo minha punição por aqueles" pensamentos pecaminosos arrastando minha miséria, não encontrando repouso em parte alguma, nem na oração, nem- no-âtÕ de contrição...
— Por que não casou outra vez? Tenho certeza de que não lhe faltaram pedidos, e dos mais lisonjeiros.
Ambrosina àprumou-se de um salto.
- Casar outra vez?... Como pode fazer uma pergunta dessas? Ah! Você é cruel em sua serenidade de mulher feliz!... Casar outra vez? Voltar a ser a presa de-um homem? Não, eu não poderia, nunca! A simples ideia me põe doente: suportar que um homem me toque!
Inclinou a cabeça e sua cabeleira caiu, velando-lhe a meio o fino perfil de tânagra que,o calor e a emoção arroxeavam. Ao seu braço despido, o sol dava uma coloração dourada. Ela passou um dedo lentamente pelo próprio braço, numa carícia melancólica.
- E sou bonita... não é? Quem poderá curar-me de uma enfermidade tão profunda: o horror ao amor?
A máscara mundana rachava-se, a atitude engenhosamente estudada para uso nas relações com a corte- e com a ciência ruía. Seria difícil curar o mal. Como ajudar a juntar os pedaços daquela personalidade repentinamente dividida e sem objetivo, devolver a confiança àquela feminilidade mutilada? Seria necessário o saber de um padre, mas perante esse padre Ambrosina com certeza, pelo hábito adquirido, representaria a comédia de sempre e não se mostraria sincera.
Parecia que só mesmo a Angélica ela revelaria seus ferimentos profundos.
Angélica contentou-se em falar demoradamente com ela, tentando devolver-lhe o gosto e confiança na existência, despertar-lhe o interesse pelos objetivos elevados que ela escolhera para si mesma, lembrar-lhe, até esgotar os argumentos, a misericórdia de Deus e Seu amor por todas as Suas criaturas. Ambrosina permanecia calada e parecia insensível, mas Angélica acabou sentindo que a reconfortara um pouco.
- Você é generosa - murmurou a duquesa, abraçando-a num gesto pueril e instintivo -, nunca conheci alguém tão humano quanto você.
Fechou os olhos e pareceu adormecer, numa descontraçào súbita e benfazeja. Angélica deixou-a repousar. As confidências que ouvira a entristeciam. Olhava para o horizonte, pensando em avistar a vela do navio que traria Joffrey de volta. E pensava nele apaixonadamente: "Você, meu amor. Você não me decepcionou. Não me fez mal. Logo me deu as chaves do reino..."
Voltavam-lhe as recordações daquela época distante, em Toulouse. Tinha só dezessete anos, e os trinta anos do grão-senhor tolosano lhe pareciam o auge da velhice, enquanto a experiência que se adivinhava por trás daquele rosto sardónico e recortado de cicatrizes parecia aterrorizante. Ele já se havia aproximado de todas as labaredas e talvez pelas ex-amantes ardera de um fogo libertino, despido de sentimento. Mas por Angélica, por quem se apaixonou imediatamente, com um amor sem igual, Joffrey de Peyrac tivera todas as delicadezas. A ela, entregue inocente ao seu inteiro prazer, ele não enganara sobre o amor. Como agradecer ao céu por um presente assim?
- No que está pensando? - indagou bruscamente Ambrosina, numa voz entrecortada -, ou melhor, em quem está pensando? Nele, naturalmente, nele... No homem a quem ama... Você é feliz, enquanto eu não tenho nada, nada...
Sacudiu a cabeleira em todos os sentidos, frenética, depois, acalmando-se de repente, desculpou-se por estar tão nervosa.
Como o calor começava a diminuir, elas retornaram. Mas o vento ainda não soprava. O ar continuava pesado, opaco, colando à pele. Alguém veio dizer a Angélica que o Padre de Vernon perguntara por ela e a aguardava perto do forte. A Duquesa de Maudribourg saudou de longe o eclesiástico e se dirigiu para a casa de Tia Ana. O jesuíta pareceu.surpreso e quase contrariado.
- Imaginava que a Sra, de Maudribourg tivesse deixado Gouldsboro...
Angélica forneceu algumas explicações bastante confusas.
— E as Moças do Rei, onde estão?
— Em Port-Royal.
— Não vão voltar também? Eu achava que elas fossem casar com alguns habitantes de Gouldsboro.
— Não desaconselhou fortemente esses casamentos? - pergun-ou Angélica, surpresa..
— Eu? - exclamou ele, franzindo-o cenho e assumindo seu r altivo. - Por que me-envolveria nesse assunto?
— Mas achei que... A Sra. de Maudribourg me disse... Afinal, alvez ela tenha entendido mal sua opinião a respeito.
— Talvez!
Lançou um olhar penetrante na direção de Angélica e pareceu prestes a falar? Mas maateve-se calado.
- Pediu para ver-rne? - indagou Angélica.
Ele meneou a cabeça, como se julgasse inoportunos os pensamentos que o atormentavam.
— Sim... queria apresentar-lhe me_us cumprimentos. Deixo esta região amanhã, ao alvorecer.
— Vai partir? - Ela se espantava por ficar afetada com isso. O medo de novo, o medo irracional levantara a cabeça viperina. - Vai ao encontro do Padre d'Orgeval?
— Não antes de várias semanas. Mas devo enviar-lhe uma mensagem mais diretamente.
— Falará a nosso favor?
Ele deu um sorriso levemente irónico,
- É isso que lhe interessa, então?
Depois ficou sério, sombrio mesmo.
— Não conte demasiado com minha intervenção - disse com franqueza. - Odeio esses hereges que y.õcês protegem, execro essa corja orgulhosa que ousou alterar as palavras de Cristo para melhor afastar o homem de sua salvação e perdê-lo em caminhos traiçoeiros.
— Mas a nós, Merwin, não odeia de modo algum?
Fitava-o com olhos ardorosos, que queriam provocar-lhe a indulgência. "A mim... não me odeia?", suplicava esse olhar. Ele consentiu em sorrir de novo, mas balançou a cabeça.
— Saiba que eu não poderia mesmo apoiar aqueles que apoiam os enviados de Satã.
— Mas pode sugerir ao Padre d'Orgeval que nos poupe.
— Trata-se de um homem íntegro, que só conhece objetivos precisos e definidos.
— Tentará...
Ela queria que ele fraquejasse, gostaria pelo menos de conservar a esperança de uma semipromessa, a quase-certeza de haver tocado aquele coração de bronze. Mas ele não arredava pé.
— Então, pelo menos, quando o vir, peça-lhe uma coisa de minha parte - decidiu ela. - Ele não pode me recusar isso, mesmo que eu seja a sua pior inimiga.
— O que é?
— O segredo de fabricação de suas velas verdes! Ninguém ainda conseguiu me informar qual é.
O Padre de Vernon soltou uma gargalhada.
- Você é desarmante - disse. - Está bem! Apresentarei seu pedido.
Estendeu-lhe a mão como que para selar uma aliança. Nisso, novamente, não agiu como um jesuíta comum, mas como homem do mar, como companheiro franco, que não quer falar mas traduz num gesto seu sentimento profundo.
E ela apertou com fervor aquela mão aristocrática, que o manejo das velas tornara calosa e morena. Ocorreu-lhe um pensamento: "Ele não pode ir embora... se partir eu nunca mais o verei de novo..."
Uma revoada de pássaros chilreantes fez descer uma sombra sobre a praia, e a mesma sombra pareceu velar o coração de Angélica, oprimindo-a. Teve a impressão de que uma coisa medonha ia acontecer. O destino estava ali e preparava-se para atacar. O destino! Pareceu-lhe descobri-lo de repente, atrás de Jack Mer-win. O susto que ele leu nos olhos dela fez que se voltasse com vivacidade. Atrás dele, a alguns passos, o Reverendo Tomás Pa-tridge mantinha-se imóvel.
Tinha o peso de um monumento de pedra. Só os olhos, injeta-dos de sangue, moviam-se, rolando e soltando faíscas.
O Padre de Vernon fez uma pequena careta.
- Seja bem-vindo, pastor - disse em inglês.
O reverendo não pareceu ouvi-lo. Ultrapassara de muito as fronteiras da rabugice crónica que constituía a base de seu caráter. Seu rosto marcado de cicatrizes, arroxeado, cor de berinjela, traía uma fúria enorme, que já não podia'exprimir-se com palavras.
— Emissário do Diabo! - grunhiu. afinal,..aproximando-se do jesuíta. - Então alcançou seus objetivos. Traiu o asilo sagrado, a hpnra da hospitalidade.1
— O que está resmungando aí, velho louco! Emissário do Diabo é você!
— Hipócrita! Não acredite que será assim tão fácil entregar-nos a Quebec. Bati-me contra os índios para defender meu rebanho. Hei de bater-me com você.
Seu punho maciço.vóbu. Atingiu Merwin em pleno rosto.
- Morra, Satã! - urrou ele.
O sangue espirrou, escorxeu do nariz pela boca, depois sobre o peitilho branco do-padjre. Patridge esmurrou-o de novo, no estômago. Ia atingi-lo uma terceira vez, quando o jesuíta reagiu e, saltando para_trás,lafíçou o pé no queixo do pastor. Os dentes do furioso^ entr-echocararrí-se.
- Morra você também, Satã! - gritou Merwin.
E se engalfinharam com uma fúria demente. Um desferia murros, o outro evitava os golpes com revides de quebrar os ossos.
Num piscar de olhos formou-se um círculo à volta deles. Os espectadores estavam boquiabertos, petrificados, incapazes de intervir, tal era a violência assassina e o ódio que ali ardiam.
A briga começara tão de repente, que Angélica mal entendia o que estava acontecendo. Os gritos ensurdecedores das aves que de súbito os sobrevoavam num turbilhão infernal, cobrindo com o ruído de suas asas em movimento e de seus berros o dos golpes e dos insultos trocados entre os adversários, os gemidos e a respiração arfantex embaralhavam os sentimentos dos espectadores que tinham acorrido, dando àquela luta de morte o aspecto irreal de um pesadelo.
Quando os dois caíram, enlaçados num abraço infernal, alguns dos assistentes se aproximaram, mas estacaram, impotentes, diante daquela vontade selvagem de se exterminar que animava a ambos com uma força extraordinária demais para que se pudesse intervir. Angélica, afinal, lançou-se na direção deles, rogando-lhes que se acalmassem, que se separassem. Por pouco não foi derrubada por um brusco sobressalto do pastor, que, soltando-se de uma chave mortal, desferiu uma terrível joelhada no adversário. O jesuíta recebeu o golpe na região do fígado e soltou um grito rouco.
Seu braço, como uma tenaz, agarrou os ombros do inglês, cuja face estava quase preta sob o efeito da congestão, enquanto a outra mão levantada se abatia de lado, como uma foice, sobre a base da nuca.
Angélica gritava com todas as forças para tentar dominar o barulho infernal das aves.
- Vão procurar Colin Paturel! Só ele pode separá-los! Depressa!
Depressa! Eles vão se matar!
Foi ao encontro de Colin Paturel, que chegava a passos largos.
— Depressa, Colin, rogo-lhe. Eles estão lutando para se matar!
— Quem?
— O pastor e o jesuíta!
Colin precipitou-se e, com alguma rudeza, abriu caminho por entre o círculo de assistentes. Mas de repente havia um silêncio brutal.
Um pouco adiante, o bando ruidoso de gaivotas e alcatrazes acabava de pousar nos rochedos, e andava compassadamente. E naquele silêncio, uma onda preguiçosa arrebentou com um ruído de seda.
Horrorizados, os homens contemplavam sem conseguir dizer palavras os dois corpos arriados, como polichinelos quebrados, sobre a areia.
— Ele lhe quebrou a nuca - disse alguém.
— Ele lhe arrebentou as vísceras - disse outro.
De olhos fixos e arregalados, o pastor estava morto. Seu inimigo ainda se mexia. Angélica caiu de joelhos perto do Padre de Vernon. Levantou-lhe as pálpebras de cera. Ainda a via? As pupilas empalideciam, ganhavam um reflexo metálico e cego.
- Padre! Meu padre! - exclamou ela -, está me vendo? E está me ouvindo?
Ele a fitou cegamente e disse, numa voz apagada:
- A carta... para Orgeval... Ela não deve...
Um soluço interrompeu-o. Um estertor escapou-lhe por alguns instantes da garganta e ele expirou.
Passou-se um longo momento até que Colin se inclinasse de novo sobre os corpos tombados.
Angélica tentava explicar, numa voz trémula e entrecortada.
— Não entendi nada do que aconteceu. De repente o pastor estava aqui, fora de si, e atacou o padre... Claro, eles sempre foram inimigos... O tempo todo, quando viajávamos pela região le Casco, eles estiveram prestes a'chegar às vias de fato...
— E uma infelicidade terrível! - disse, Colin.
Separou os dois corpos, estendeu-os um perto do outro, ambos grandes e poderosos em suas negras vestes eclesiásticas, Fechou-lhes os olhos e pediu dois lenços. Duas mulheres desataram os lenços que traziam ao pescoço e Colin velou os rostos intumescidos.
— Quem pode dizer as orações dos mortos por este aqui? - indagou, apontando o reverendo.
O Pastor Beaucaire,'muito pálido, avançou. Recitou algumas palavras importantes do ofício dos rhortos, a que os protestantes presentes-responderam a meia voz.
— E por este?
— Eu - balbuciou o jovem capuchinho, o Irmão Marcos, que ainda se encontrava ím Goujdsboro.
Muito emocionado, o irmão se,atrapalhou com o latim, as fórmulas e os sinais-da-cruz. O grande jesuíta Merwin teria sorrido de piedade.
- Homens para carregá-los!
Quatro homens se apresentaram, mas ele insistiu:
- Mais! Eles são pesados!
Foram necessários oito homens de ombros robustos para levá-los até a última morada, no topo da falésia.
- Coloquem-nos na mesma tumba - ordenou Colin.
Essa tumba continua lá, sob os pinheiros, entre os epilóbios. Ninguém sabe. Ninguém mais sabe. Mas se se afastasse o musgo, seria encontrada a lápide cinzenta, meio quebrada, onde ainda se podem ler,-gastas, as palavras que o governador do lugar mandou gravar, naquela época longínqua:
AQUI JAZEM DOIS HOMENS DE DEUS
QUE SE MATARAM AOS BRADOS DE
"MORRA, SATÃ!"
QUE DESCANSEM EM PAZ.
CAPÍTULO XXXIV
Uma suspeita medonha
- Onde está a criança? - reclamava Angélica. - Aquele garotinho do Padre de Yernon?... Abbal Neals!
Ela correra ao acampamento abandonado do jesuíta. Como não encontrara a criança, procurara por toda parte. A bagagem do padre devia estar com o menino. As últimas palavras de Jack Mer-win a atormentavam. "A carta para o Padre d'Orgeval... Ela não deve..." Angélica sentia que essa carta era de extrema importância. No estado de hiperexcitação em que se encontrava, até tinha a certeza de que tudo estava explicado naquela carta.
Sim, agora tinha certeza, o jesuíta entendera tudo, levantara o véu sobre todos os mistérios. Se ela conseguisse achar a carta, conheceria o rosto de seus inimigos, poderia prevenir-se, a si e aos seus, contra as armadilhas deles.
Ele quisera dizer-lhe alguma coisa desse género, quando reunira suas últimas palavras transcendentes para soprar-lhe: "A carta para o Padre d'Orgeval... Ela não deve..."
O que quisera dizer exatamente? Que ela não devia chegar ao destinatário ou, pelo contrário, que não devia extraviar-se?
Angélica pediu a Colin que organizasse uma batida para encontrar o menino.
Mas, ao cair da noite foi preciso desistir.
Era inútil comentar aquele drama brutal. Por intermédio de dois refugiados ingleses, vindos do acampamento Champlain, conseguiu-se destrinçar vagamente a génese do incidente. Correra o boato entre eles de que o jesuíta, de acordo com os papistas do lugar, a Sra. de Peyrac e Colin Paturel, ia levá-los presos a Quebec. A impulsividade nativa do pastor puritano fizera o resto.
No crepúsculo, Gouldsboro, acabrunhada, mantinha-se silenciosa. Os grilos e as cigarras, senhores do terreno, davam um verdadeiro concerto, com uma exuberância inocente que parecia insultar a tristeza dos homens.
Trazida por essa estridência estival, a noite chegava carregada de malefícios e angústias.
Finalmente Angélica retornou ao forte. Antevia com apreensão o momento em que estaria sozinha. Quando voltaria Joffrey?
Uma preocupação menor aumentava-lhe o pesar e as apreensões. O dia inteiro não vira o gatinho. Também não o achou em seu apartamento. Vazio daquela presença brincalhona, o quarto tinha algo de lúgubre, degelado, O desaparecimento do animalzinho pareceu-a Angélica tão definitivo quanto o de Merwin, o jesuíta, riscado para'sempre, naquele dia, do contingente dos vivos. E a ausência. ípi-lhe -intolerável, somando-se ao luto que lhe oprimia o coração.
Desceu de hovo; disposta á encontrá-lo a qualquer preço. Não ousou perguntar aos. homens da guarda se -tinham visto o animal. Depois" do que? acontecera, sua preocupação com um gato poderia parecer fútil. Para ela, porém a coisa assumia proporções despropositadas. Se não o encontrasse, se ele estivesse perdido, desaparecido, morto, ela veria nisso o sinal de que a infelicidade os agarrara a todos pela garganta e não os soltaria mais. Precisava achá-lo. Do mesmo modo como procurara o menino há pouco.
Saiu à procura pelas ruas do vilarejo, chamando-o a meia voz.
- Onde está, meu pequeno? - dizia. - Venha! Venha!
Parava perto das cercas dos jardinzinhos, examinando a sombra das sebes e das folhagens. Voltou até a praia, procurou entre os barcos encalhados, os cestos de pescadores, os rochedos que a maré baixa descobria.
- Onde está, meu pequeno? Venha, por favor...
A lua irisada, aumentada por um halo de bruma dourada, iluminava suficientemente a paisagem .para guiar-lhe os passos.
Aos raros passantes que encontrou, Angélica não podia confiar seu tormento. Mas pensava que, se Honorina estivesse ali, teria entendido. Segurando a criança pela mão, teriam caminhado juntas, invadidas pelo mesmo sentimento primitivo e ardente de encontrar o amigo perdido, o ser inocente que compartilhava a vida com elas e que, tendo-as escolhido, amava-as sem condição. Era absolutamente preciso que ele voltasse. Não era possível que tivesse desaparecido para sempre, também ele, particularmente naquela noite.
Em desespero de causa, chegou ao porto e contornou-o mais uma vez3 examinando a orla de sombra ao pé da muralha. De repente, parou. Eram pirilampos?... Tivera a impressão de ver brilhar ali, contra a paliçada, num tufo de ervas, como que duas pupilas douradas.
- E você, meu pequenino? - cochichou.
Tudo pareceu continuar imóvel. Mas ela intuiu um movimento imperceptível, e seu coração saltou de esperança e alegria. Era ele, tinha certeza. Mas por que não se movia? Aproximou-se mais e se inclinou. Desta vez não havia dúvida alguma. Duas pupilas dilatadas olhavam-na fixamente. .
- E você - disse ela. - Mas o que é que você tem? Não me reconhece?
Avançou a mão e, quando roçou o corpo do animal ele soltou um grito selvagem. Ela retirou a mão rapidamente.
- O que você tem? O que você tem? Que foi que lhe aconteceu?
Correu até o posto de guarda.
- Por favor, dêem-me uma luz!
Um homem desprendeu uma lanterna e ofereceu-se para acompanhá-la. Mas ela recusou. Retornou até o local, rezando ao céu para que, assustado, o animal não tivesse fugido. Por sorte continuava lá, enroscado nos arbustos. E era ele mesmo. Permanecia imóvel, enrolado como uma bola, de cabeça baixa, como que contrito, mas, à luz da lâmpada, Angélica viu-lhe o pequeno focinho sujo de sangue.
- O que você tem? Que foi que lhe aconteceu? O que foi que lhe fizeram?
Tentava pegá-lo, mas cada vez que o tocava, ele soltava um miado lancinante. Finalmente conseguiu envolvê-lo no xale. Ele tremia e gemia surdamente.
Angélica levou-o para os seus aposentos. Quando o pôs sobre a mesa para examiná-lo, ele deu um pulo, escapou e procurou se enfiar em algum canto, com o instinto supremo dos animais que se escondem para1 morrer. Mas não conseguiu ir longe. Novamente encolheu-se no chão, com a cabecinha tombada, como se reunisse suas forças. Ela se ajoelhou perto dele.
- Sou eu - disse-lhe baixinho -, sou eu, não tema nada, eu o curarei.
Evitando tocar-lhe, procurou examinar-lhe os ferimentos. O sangue escorria-lhe das narinas. Em certrjs pontos, o pêlo tinha sido como que arrancado em placas, e o sangue também brotava dali. Uma queda, pancadas'...;
Pegou delicadamente uma patinha, que ele não podia dobrar, e pareceu-lhe que apresentava vestígios de queimaduras.
- Será que você andou no fogo? Mas os gatos podem tocar as brasas sem se queimar...
Uma suspeita medonha ganhava corpo nela, inchava como um vagalhão, como u-ma onda escura .prestes a rebentar.
— Bateram nele!... Bateram nele de propósito, torturaramo-no... O coração lhe falhava sob o efeito da angústia e do horror.
— Quem fez'isso?..-Quem?
E correu os olhos em redor, aterrorizada, procurando adivinhar na penumbra uma. presença, discernir o rosto do monstro que rondavav-invisíveljjemeando entre eles.o pânico, o desespero e a morte.
CAPÍTULO XXXV
Noite de superstições e temores ancestrais
Então, quase furtivamente, Angélica saiu do forte. Apertando ao seio a infeliz criaturinha moribunda, dirigiu-se para a casa dos Berne. Andava depressa, na noite, temendo até o luar, que podia denunciá-la. Por sorte a porta da casa dos Berne estava aberta. A família jantava à luz das candeias.
Angélica apareceu à soleira. Devia estar descomposta e com uma expressão inusitada, pois Gabriel Berne ergueu-se de um salto e exclamou, como teria feito em La Rochelle, quando falava de patrão para criada:
— Minha criança, o que você tem? Está passando mal?
— "Eles" quiseram matar meu gato - disse Angélica, numa voz que, malgrado seu, tremeu. - Bateram nele, torturaram-no. Ele vai morrer.
— Mas eles quem?
— Os demónios!... Os demónios que querem a nossa destruição. Todos a olhavam, aterrados.
— Angélica - chamou Abigail -, venha para perto de mim. Da cama ela podia ver a cena que se passava no aposento
contíguo.
- Angélica, venha - insistiu, autoritária e meiga -, coloque esse gato sobre a cama. As crianças vão cuidar dele... E venha sentar aqui. Você está esgotada.
Estendia a mão, persuasiva, amical. Angélica obedeceu àquele apelo maternal. Largou o gato, e sentou-se perto da cama e se abandonou sem forças contra o ombro de Abigail.
- Não sobreviveremos - gemeu. - Desta vez eu sinto. O Mal será mais forte. "Eles" vencerão, no fim. Ele não voltará, e eu morrerei...
- Não fale assim!
Abigail estreitou-a junto a si. Esta. noite era ela quem tranquilizava a amiga.
— Claro que ele voltará - censurou-a a píêiã voz. - Você bem sabe disso. Ele sobrevivera tudo. Você mesma me disse um dia: quem pode levar a melhor sobre ele? Não há combate no qual ele não saia vitorioso. Em alguns dias, quem sabe amanhã, talvez, ele estará aqui, depois dé acertar da melhor maneira possível os assuntos da baía Francesa. E vou rir dos seus medos.
— Mas o que foi que fizeram a meu gato?
— Um acidente... Uma carreta que o atingiu, um marujo impaciente que o afastou do caminho com brutalidade...
— Ele acabou de tomar um pouco de água - disseram as crianças.
Era bom sinal.
- Também ele sobreviverá - afirmou Abigail. - Não esqueça que os gatos~têm~ sete vidas. E a tradição popular não afirma que eles são rriais fortes-4o que os demónios?
Diante de tanta amizade calorosa, Angélica recobrou o autocontrole.
- Perdoem-me.
Aprumou-se, passou asjnãos pela testa, como que para afastar tantos pensamentos desastrosos, e balançou a cabeça.
— Decididamente, sou uma tola... Foi a morte daquele jesuíta que me transtornou. Claro, era um homem duro, mas eu gostava dele, apesar de tudo. E ele se tornaria um aliado nosso...
— Fique conosco esta noite - decidiu Mestre Berne. - Você exigiu demais de suas forças e somos culpados de tê-la deixado sozinha depois do espetáculo hediondo que testemunhou há pouco. Dois homens de Deus! - disse ele entre dentes, balançando a cabeça. - Será possível? Nunca se viu combate mais atroz sob o céu... Fique, Angélica, e descanse ao lado de Abigail. Quanto a mim, vou dormir na wigwam de Marcial.
Ela cobriu Laurier como antigamente em La Rochelle, foi beijar Severina no sótão, cobriu o fogo da lareira, atirou algumas folhas de melissa sobre um braseiro para afastar os mosquitos e pernilongos.
Depois fechou a meio a porta entre os dois aposentos deixando apenas uma candeia no quarto de Abigail, e foi cuidar do bebe.
O refúgio estava cheio de quietude, de calor humano, de ternura. O garrote que oprimia o coração de Angélica desapertava. Aqui, entre seus amigos, estava em segurança.
— Já que falávamos de Marcial, você saberia dizer-me onde anda o meu Cantor, com quem ele parece associado para não sei que trabalhos misteriosos?
— Os jovens gostam do mistério e de se darem importância - respondeu Abigail, sorrindo. - Marcial deu-me a entender que eles receberam do Sr. de Peyrac uma missão á" realizar na ausência dele e que os obriga a navegar por entre as ilhas. Não me disse mais nada, mas sei que fazem um relatório ao governador e pedem diretrizes toda vez que retornam ao forte.
— Bem! - suspirou Angélica. Era melhor não ficar imaginando coisas a propósito de Cantor.
A bondade e a serenidade de Abigail, a afeição, aquele vínculo amical eram preciosos. Na ausência do marido, Angélica avaliava-lhe melhor o valor. Longe de separá-las e de acentuar as diferenças de cultura e religião que havia entre elas, a terra da América as aproximara. Tinham recordações comuns, objetivos comuns. Apoiada ao travesseiro de seda escarlate, Abigail estava muito bonita, com suas longas tranças escuras a emoldurar-lhe o fino rosto de porcelana.
O bebé parecia tranquilo e paciente, mas chupava o punho freneticamente.
— Será que a alimentei o suficiente? - inquietou-se Abigail.
— Bebeu toda a tisana que lhe preparei?
— Severina esqueceu de me dar - confessou a jovem mãe, confusa.
— Mas eu a tinha posto bem à vista. Que pena!
Achou o bule no canto do fogão onde o pusera, mas o pequeno Laurier o tapara com o cesto de concha, quando voltara da pesca, o que desculpava a distração de Severina.
- A tisana ainda está morna. Vou dar-lhe uma xícara - disse Angélica, voltando para junto da amiga.
Começou a servir a bebida, mas estava nervosa e cansada, e seus movimentos se ressentiam disso. Algumas gotas caíram no travesseiro escarlate, o que lhe acentuou a contrariedade.
- Não faz mal. Prefiro preparar-lhe uma decocção fresca. Estas folhas são muito frágeis, e estou vendo que o líquido adquiriu uma cor escura e feia.
Foi até a janela e atirou o conteúdo do bule lá fora. Segurou a janela aberta e respirou, deliciada, o ar noturno. Situada na orla da floresta, a casa era toda rodeada de odores delicados.
Angélica enxaguou o bule e, enquanto.ele-secava, virado sobre o escorredor de madeira, preparou ã;poçã(5*em outro recipiente. Abigail bebeu-a. Angélica tirara^'suja fronha de seda vermelha e a substituíra por outra limpa. Aproximou o bercinho do leito da mãe, foi dar outra olhada no gatinho infeliz, enroscado num canto e lutando com tenacidade muda contra a dor e a morte. Bem ou mal, Angélica lhe passara um bálsamo nas feridas, tentara fazê-lo beber. Mas ele se recusava. Ainda assim, quando ela lhe falou, ele respondeu com um ronronar leve e suave, o que provava que continuava lúcido e atento. Angélica preparou-se para a noite. Deixaria a janela escancarada, pois.estava muito calor. Soprou a vela, deixando apenas, num canto do aposento, uma pequena lamparina a qleof num-vidro colorido. Tirou a blusa e a saia de cima e foi^eftar-sé ao lado de Abigail.
Da cama podiam contejpplar a noite de um-azul velado, com estrelas tremelúzentes.^Uma brisa leve remexia as folhagens próximas e de-:berh longe chegava o chamado dos lobos-marinhos no golfo.
- Abigail - disse Angélica de chofre -, você não desejava que se realizasse o projetõ de -casamento entre a tripulação de Colin e as Moças do Rei, não é?
Abigail estremeceu ligeiramente.
— Naturalmente isso apresentava dificuldades, mas no final das contas... não me diz respeito - disse, hesitante.
— Mas seu marido, Manigault e os outros eram contra?
- Sim - confessou Abigail cam franqueza.
Angélica ficou em silêncio um instante.
- Por que foi conversar com a Duquesa de Maudribourg e não comigo?
A jovem estremeceu outra vez.
- A duquesa queria saber minha opinião - balbuciou.
Mas Angélica teve a impressão de que ela corava no escuro.
Por que Abigail queria dissimular o fato de que fora encarregada pelos protestantes de sondar as intenções da benfeitora? Com certeza porque não aprovava a atitude de seus correligionários, do marido, e, tendo amizade por Angélica, tentava minimizar a oposição surda que os huguenotes não cessariam nunca de erguer contra Joffrey de Peyrac. Abigail sabia que Angélica sofria com isso, E Angélica, de fato, sentia o coração pesado ao pensar em como era vão esperar que os homens descartassem suas velhas querelas para construir uma vida nova.
No outro dia, durante sua visita aos Berne, tivera a sensação de que até esse milagre seria possível nas terras da América. Mas sabia que acreditava demais na boa vontade do ser humano. Por um instante lhe veio a ideia de que talvez fosse entre os •huguenotes que ela deveria procurar o fomentador daquela trama que tendia a separá-los, a abatê-los, a ela e ao marido, bem como a destruir a atmosfera de Gouldsboro. Aos ciumentos olhos deles, o porto estava invadido por um excesso de indesejáveis, que Peyrac recebia. Angélica conseguia ver muito bem um deles ir excitar o iras-cível Patridge contrao jesuíta, cuja presença entre os huguenotes lhes era tão intolerável quanto a do próprio Satã. Mas a armadilha na ilha do Velho Navio... o gatinho?... Não... Havia algo de depravado, de desumano naqueles atos... Naturalmente que se podia dizer dos huguenotes que, de certa maneira, eram ferozes consigo mesmos e com os outros, mas sobretudo no seu julgamento... Naturalmente a revolta deles no Gouldsboro, durante a viagem, provara que eles não hesitavam em passar aos atos, e que o seu senso de justiça e de reconhecimento era bastante singular...
Mas havia neles qualidades de retidão intransigente, de honestidade quase ingénua, quase pueril, que se aproximavam da própria concepção de vida de Angélica... e ela não podia deixar de... amá-los. Sim, de amá-los! E era terrivelmente penoso sentir que talvez eles continuassem a conspirar contra ela, e sobretudo contra Joffrey, o homem que ela amava, a preparar aquelas armadilhas destinadas a fazê-los tropeçar... De repente a vida lhe pareceu penosa, esmagadora...
Angélica sentiu a mão de Abigail pegar a sua.
- Minha amiga - murmurou a jovem mãe -, não fique triste, tudo se arranjará. Estou aqui, e você é muito cara para mim. Durante o inverno, quantas vezes Gabriel e eu falamos de você e do Sr. de Peyrac, de seus filhos e de Honorina, a quem amamos tanto! Quantas vezes, despertando de noite, ouvindo os vendavais aterrorizantes, carregados de neve, não pensamos em vocês, tão longe, perdidos naquela floresta selvagem, tão sozinhos, com seus filhos, alguns fiéis... Naqueles momentos entendemos o que você representava para nós... Quando eu tinha o coração muito contraído de angústia, Gabriel me dizia: "Não tema nada, aquelas criaturas não podem perecer!.... Foram marcadas na testa pelo destino, triunfarão sobretudo!" E ele estava com a razão. Você está aqui, trazendo a todos á- força par^ superar os obstáculos. Ele me falava de você. Contou-me como em seu primeiro encontro, no Poitou, ele a espancou a bastonadas... Sente remorso até hoje. Era você. Mas não foi cprimeiro encontro... Ele também me contou o passado".
— Então você sabe tudo... sobre o jovem protestante que tomou na garupa uma mulher miserável para ajudá-la a salvar seu filho.
— Sim... ele me dizia com frequência... é o destino. Vínculos assim, há que se inclinar perante eles, entender que temos alguma coisa a fazer juntos rigsta terra, apesar de nossas divergências de condição e de religião.
Abigail riu-ligeiramente.
— Você conhece Mestre Bern,e. As vezes, sob a ação da cólera, esquece suas boas intenções... mas se recompõe depressa. Acho que posso dizer que èle tem pelo Sr. de Peyrac uma estima sincera, mais, liima grande admiração... Sim, a preocupação que vocês nos inspiraram revelou-nos a profundidade dos nossos sentimentos. Quando, no outono, vimos o explorador Maupertuis voltar com os cavalos, e soubemos como vocês enfrentaram os iroque-ses, sacrificaram seu forte de Katarunk e uma parte dos seus víveres para escapar à vingança deles, e como se enfiaram ainda mais fundo na mata, estremecemos de ansiedade. "Nunca mais os veremos", diziam alguns... Sim, posso afirmar que nos preocupamos mais com vocês do que com nossa própria sorte...
— Mas também para vocês o 'inverno foi rude, aposto.
— Rude... elaro! Nevou. A costa ficou branca, o mar, negro e violento, mas limpo. Podíamos'manter contato com nossos vizinhos. Fizemos boas trocas com os franceses de Port-Royal, os ingleses de Salem ou de Portland. O comércio continuou, apesar das tempestades... Mesmo assim! O homem se sente só e fraco quando a brisa sopra sobre as costas da América. Mas o verão chegou e recebemos o fruto de nossos esforços e de nossas lutas... saborear dos benefícios dessa-liberdade que você obteve para nós com tanta generosidade.
Cada palavra de Abigail foi um bálsamo para o coração de Angélica. Ela não podia duvidar da sinceridade de uma amizade tão calorosa, e expulsou todos os pensamentos amargos, para conservar apenas a suavidade da hora presente e encontrar, conversando com Abigail, o reconforto de que necessitava. Falou de Joffrey, evoçou-o diante dos iroqueses e, mais tarde, no forte de Wapassu, ajudando cada um a viver.
- Um homem assim! Como não amá-lo!
Adormeceram afinal, como duas crianças.
Pelo meio da noite a pequena Elisabete chorou. Angélica se levantou e colocou-a ao seio da mãe. Enquanto a criança mamava, Angélica, dominando sua apreensão, foi ver se o gatinho não morrera. Não o achou. Ele mudara de lugar. Angélica descobriu-o na poltrona estofada com uma espessa almofada. Com certeza concluíra que um grande doente tinha direito a algo mais confortável do que um miserável canto no chão.
Lambeu com avidez o leite que ela lhe apresentou.
— Acho que ele vai escapar - sussurrou ela, toda feliz, para Abigail.
— Que felicidade! E alegro-me de vê-la sorrir de novo.
Antes de voltar para a cama, Angélica segurou um pouco a pequena Elisabete. Embalou-a, indo e vindo pelo quarto, cantarolando baixinho.
Parou perto da janela aberta. A lua, mais baixa no horizonte, continuava a difundir sua claridade leitosa, irreal, e uma grande paz emanava daquela paisagem de camafeu, cinza-pérola contra um fundo de cinzas.
Angélica contemplava sorrindo com ternura o rostinho da criança adormecida ao seu colo. A inocência daquele rosto harmonizava-se com a serenidade da noite.
Olhando o mar, Angélica divagava.
"Eu gostaria de ter mais um filho dele... Que loucura! Mas eu gostaria!..."
Pousou os lábios várias vezes na testa pura do bebé.
As folhagens espessas e negras murmuravam lá embaixo. Era uma suave canção.
Mas dessa paz noturna irrompeu de repente uma espécie de soluço lúgubre, que terminou num grito, terrível e prolongado.
O grito! Como da outra vez. Vinha de bem perto. Angélica atirou-se para trás, apertando a criança ao seio. Um arrepio gelado a percorreu.
— O que é? - perguntou Abigail, erguida no leito. - Quem gritou assim?
— Não sei.
— Nunca ouvi um grito assim..
— Eu sim, uma vez... Talyez seja um animal selvagem.
— Feche a janela - Suplicou Abigail.
Angélica entregou-lhe a filha e foi puxar a janela, sem coragem de perscrutar a escuridão. Passou a barra de ferro de través sobre a janela.
- Quem pode ter gritado assim? - repetia Abigail. - Dir-se-ia uma alma penada a se lamentar...
Todas as velhas superstições da infância de ambas, de que as províncias francesas são pródigas, vbltavam-lhes à memória: o lobisomem, o Diabo com pés fendidos, o dragão, a quimera, as almas danadas,, inconsoláveis.
Angélica decidiu que a terra da América era nova e que era preciso despojá-la desses temores ancestrais.-
Por outro lado, "havia-ámeáças,mais tangíveis que podiam pesar sobre eles." Mas Angélica não quis participar à amiga suas apreensões, certos fatos inexplicáveis, sua certeza de que havia desconhecidos que tentavam prejudicá-los de modo misterioso.
Quando acordaram de novo, o sol já devia estar alto no horizonte. Fazia muito calor no quarto todo fechado.
Angélica teve a impressão de que vozes, bem próximas, discutiam atrás da janela.
Era como se houvesse uma multidão reunida no jardim de Abigail, bem atrás da janela.
Levantou-se, bastante vacilante e maldesperta, foi abrir e topou cara a cara com um homem de boina de algodão, outro com gorro de pele, mulheres, entre as quais Bertille, a vizinha.
- O que estão fazendo todos vocês no jardim da Sra. Berne? - perguntou. - Parecem muito agitados...
CAPITULO XXXVI
Morte misteriosa do porco de Bertille Manigault
— Há motivos - gritou Bertille, com azedume. - Você matou meu porco com seu lixo... Um porco que nos custou uma fortuna! E como foi você, Sra. de Peyrac, ninguém dirá nada! Teremos simplesmente que aceitar nossa perda...
— Não seja tão agressiva, Bertille, explique-me. Que dano lhe causei?
-r Matou meu porco - repetiu a jovem.
Todos olhavam para o chão, para alguma coisa que parecia estar logo embaixo da janela. Debruçando-se, Angélica avistou uma massa rosada ali caída: o porco dos Rambert, que de fato parecia paralisado na imobilidade definitiva da morte.
— Que foi que lhe aconteceu?
— Também, seu porco devora tudo - observou Hervé Le Gall, dirigindo-se a Bertille. - Deve ter engolido alguns espinhos.
— Não - afirmou Bertille, obstinada e impertinente -, sei o que estou dizendo. Ontem à noite eu vi a Sra. de Peyrac atirar alguma coisa pela janela, e agora o porco está morto bem no lugar onde a coisa caiu.
— Era uma tisana - explicou Angélica.- Ele não pode tê-la bebido.
— Mas pode ter engolido os detritos sobre os quais ela caiu.
— Era uma tisana absolutamente inofensiva.
— Então por que a jogou fora?
— Porque já não estava muito fresca, mas de modo algum poderia ter causado a morte de alguém.
— E por que seu porco ia sempre bisbilhotar nos jardins da vizinhança? - perguntou o vizinho de boina de algodão. - Ainda ontem veio remexer nos meus pés de milho.
- Acha que podíamos mantê-lo na coleira? - retorquiu o homem de gorro de pele.
Era o marido de Bertille, o ex-marido da pobre Jenny Manigault: Germano Rambert. Angélica não o -feria reconhecido. Agora tinha o ar de um explorador de florestas, com o rosto endurecido e malbarbeado.
Polidamente, mas com eneígia„eÍa lhes pediu que fossem discutir em outro lugar e saíssem do, jardim dos Berne, depois de limpar o local. Germano Rambert pediu aos demais que o ajudassem a fazer uma maca a fim de transportar o animal, que pesava no mínimo duzentas libras.
- Que catástrofe para eles - suspirou Abigail, ao ser informada. - Compraram esse porco dos acadianos de Port-Royal por um lote de peles e' os poucos luíses de ouro que Germano trouxera de La Hothelle. O porco era a garantia de provisões para o inverno, sem,que eles precisassem pedir auxílio à comunidade. É um casal quê.vive à parte e não quer conviver com os outros. Germano explora as matas, prefere comerciar com os selvagens a trabalhar para o povoado. Os Manigault já não o vêem...
Pelo meio da manhã,_Bertille apareceu de novo com o pequeno Carlos Henrique ao color Via-se que não vinha espontaneamente, mas que fora forçada. Com mau humor, perguntou a Angélica se esta podia afirmar que a tisana não continha veneno. Se esse fosse o caso, embora o porco tivesse morrido de modo suspeito, talvez pudessem tentar recuperar os pernis e defumá-los, ainda que já fosse tarde demais para sangrar o animal convenientemente para fazer chouriços e linguiças.
Angélica acabaya de prodigalizar seus cuidados a Abigail, ao bebe e ao gatinho, que pouco a pouco parecia recobrar-se dos ferimentos. Arrumada a casa e varrida a lareira, preparava-se para ir ao acampamento Champlain.
Ocorrera-lhe de repente que, após.a^morte brutal do pastor, a pobre Miss Pidgeon devia estar sofrendo, e censurou-se por não haver pensado antes na pobre senhorita inglesa, uma das raras sobreviventes do massacre de Brunswick Falis.
A palavra veneno, esboçou um dar de ombros, mas sentiu logo como um choque, como se abrisse os olhos de repente e percebesse a verdade assustadora. E sentiu que um suor frio lhe surgia na testa.
— Veneno?
— Então era veneno mesmo! - exclamou Bertille, alarmada diante da expressão de Angélica. - Ah, que infelicidade! Não poderemos aproveitar nem um pedacinho de toucinho... Você nos deve uma indenização - gritou a mofa, sacudindo o bebé na sua cólera.
— Pare de se agitar assim! - intimou Angélica. - E de me recriminar, quando a culpa é toda da sua negligência. Afirmo e repito que não havia veneno no líquido que joguei fora ontem à noite, mas ainda assim não a aconselharia a comer a carne de um animal que não foi sangrado e que morreu sem que se consiga explicar por quê. Devia tê-lo alimentado às custas de sua própria horta, e não das hortas dos vizinhos.
Bertille retirou-se furiosa, dizendo bem alto que se queixaria ao Sr. de Peyrac quando ele retornasse. Ele pelo menos se mostraria generoso, ela tinha certeza. Angélica quis repelir a medonha desconfiança, mas não conseguia. Tentava lembrar-se de como as coisas aconteceram na véspera em relação àquela tisana que Bertille incriminava. Preparara certa quantidade, dera uma xícara a Abigail, que não parecia ter sido afetada pela bebida. Depois o bule passara o dia inteiro perto da lareira, já que Severina se esquecera das recomendações de Angélica. Quando esta quisera reparar o esquecimento, fizera um gesto desajeitado e algumas gotas caíram na fronha escarlate. Aborrecida, ela notara então a cor feia que o remédio adquirira ao longo do dia. Jogara-o pela janela, lavara o bule e a xícara. Era faiança de Nevers, lisa, bem-cozida, brilhante. Uma vez enxaguada, não ficaria vestígio algum do produto que contivera. Ainda assim, Angélica examinou os dois recipientes. Saiu da casa e contornou-a para ir olhar embaixo da janela. Tinham levado o animal e, obedecendo às ordens de Angélica, limpado o lugar. Além das marcas de pés, não havia outros sinais - nenhum vestígio, portanto, de alimentos que pudessem determinar a causa da morte do porco.
"Mas por que me concentrar nessa tisana como causa da morte? Isso foi ideia de Bertille. Ela sempre criou caso com tudo.
A bebida, mesmo alterada pelo calor ou pelo tempo, não pode causar grande dano. Vi inúmeras vezes nutrizes utilizando-a..."
Voltando à casa, percebeu, embolada num canto, a fronha que ela tirara do travesseiro de Abigail.
Movida por um impulso súbito, apanhou-a e desdobrou-a.
Nos lugares respingados com o líquido, cresciam manchas feias e esbranquiçadas, cortando o escarlate luminoso da seda. Angélica sentiu-se empalidecer. Alterações assim só podiam resultar de um produto venenoso, que corroía a tintura e até furava o tecido.
Angélica ficou ali em silêncio, segurando a fronha aberta. Aquela tisana que preparara para Abigail... devia pensar que uma mão criminosa vertera ali, intencionalmente, um veneno mortal? Então, se Laurier-não tivesse posto um cesto diante do púcaro, escondendo-o, se Severina não tivesse esquecido de dá-la a Abigail de tarde," a jovem mãe teria sofrido uma morte tão terrível quanto súbita. E na .noite anterior, se não tivesse mudado de ideia bruscamente, devia ejitérider que estivera a ponto de administrar com suas próprias mãos uma bebida envenenada à sua melhor amiga? Não, estava-íicando louca! Quem poderia desejar a morte de Abigail?
— Recebeu muitas visitas ontem, durante o dia? - perguntou, voltando-se para Abigail, que não desgrudava os olhos dela mas não dizia nada.
— Oh, sim, muitas! Foi um verdadeiro desfile.
— Mas quem? Dê-me nomes.
— Não posso lembrar-me de todos. Houve momentos em que fiquei muito cansada e cochilei um pouco. Em todo caso, veio o Sr. Paturel e o seu lugar-tenente, o Sr. de Barsempuy. Veio também o quartel-mestre, Vanneau trouxe um pequeno objeto feito de espuma do mar. Depois, ah, sim, agora lembro, o grumete, você sabeis, o grumete naufragado do La Licorne. Também ele queria me dar um presente: sua colher de madeira esculpida. Recusei. É o único bem que lhe resta, pobre rapaz! Ah, estava esquecendo! Juliana veio, aquela Moça do Rei que casou com um dos piratas. Ficou bastante tempo. Queria me ajudar em alguma coisa e se ofereceu para fiar minha roca. Saiu-se muito bem. No fundo é uma moça muito boa.
- Quem mais?
Angélica dobrava a fronha e envolvia-a num pedaço de tela antes de pô-la no bolso.
— Não sei mais. Não consigo me lembrar. Mas eu lhe direi caso me ocorra um nome ou um rosto. Por que tantas perguntas? E por que Bertille veio esbravejar assim? Alguma coisa a atormenta?
— Não. Bertille acha que o porco morreu porque comeu alguma coisa estragada em seu jardim, e, vpcê a conhece, ela tem sempre que criar caso:
— No final das contas pode ser que ela tenha razão. A conselho do chefe etchemin, o pai da Sra. d'Urville, -plantei em meu jardim algumas daquelas plantas de que se comem as raízes e que chamam de batatas. Mas dizem que os frutos, que parecem uns tomatinhos, contêm veneno. Até preveni as crianças para que tomassem cuidado e não fossem colhê-los.
— Ah, com certeza foi isso! - exclamou Angélica, aliviada. No entanto, restava explicar as manchas na fronha.
Seu espírito não se desviava da imagem vislumbrada pela sua imaginação hiperexcitada: uma mão criminosa, vertendo a morte no remédio destinado a Abigail. Por mais louca e inexplicável que fosse a suposição, a tensão, os acidentes, os acasos infelizes dos últimos dias faziam que Angélica a aceitasse como uma certeza. Portanto, um louco rondava entre eles, tentando semear a infelicidade, atacando, movido por seus fantasmas, qualquer um: um gato, uma parturiente, uma criança. E aquele sonífero no café? E a morte do jesuíta e do pastor? Mas neste último caso, a quem se podia acusar senão à violência natural do temperamento dos dois homens, que lançara um contra o outro?
Angélica segurou a cabeça com as duas mãos. Que fim tiveram o menino sueco e a carta?
Inclinou-se para o gatinho imóvel sobre a almofada da poltrona. Ele ainda não repousava de lado, como os animais saudáveis: continuava na postura paciente e corajosa, com as patinhas dobradas sob o corpo, o pescoço reto, a cabeça inclinada, os olhos semicerrados. Mal parecia respirar.
- Diga-me, quem foi que, você viu? - murmurou ela. - Você sabe, sabe tudo! Ah, se pudesse falar!
Caso Joffrey estivesse ali, logo determinaria o elemento, químico ou natural, virulento o suficiente para apagar a cor da fronha e até esburacá-la.
Angélica tinha a impressão de que o marido partira de Goulds-boro há uma eternidade. Mas, contando nos dedos, só fazia cinco dias.
Mesmo que tudo transcorresse bem no rio Saint-Jean, com os ingleses, ela não devia esperá-lo antes de uma semana.
Até lá, que atitude adotar? Devia falar com Colin? E quem poderia dar-lhe uma opinião acerca das manchas suspeitas? Um produto não-tóxico poderia causar estragos assim?
Angélica pensou de súbito.no homem das especiarias, que pertencera à tripulação do dufiquerquiano Vanereick e que, depois da partida do Sans-Peur, ficara em Gouldsboro com seu escravo caraíba.
Depois de recomendar a Severina que vigiasse cada pessoa que viesse visitara mãe e.á irmãzinha, saru à procura do homem. Mas, como por acaso, ele partira havia dois ou três dias. Não se sabia se embarcara ou s_e tomara o caminho da floresta. Tanta gente, e de todo tipo, des-ambarcava ali...
Angélica lembrottqúe Colin falara, no conselho, de se instituir um registro onde escreveria o nome de todo indivíduo que passasse mais de dois efes em Gouldsboro ê que, ao ir embora, informasse data de partida e destino. Sábia medida!
Teve vontade de falar com Colin. Mas se sua intuição feminina lhe afirmava a realidade de um perigo pairando sobre suas cabeças, os indícios de que-dispunham eram débeis, quase capciosos: temia passar por mulher hipernervosa, procurando pretexto para perturbar os demais, pretexto, quem sabe, até para falar a sós com Colin, o governador. Tinha a impressão, talvez pela primeira vez na vida, de que não sabia exatamente o que devia fazer, ou mesmo o que devia pensar, decidir. Sua opinião oscilava o tempo todo: ora se via convencida, a ponto de sentir vertigem, da ameaça temível e premente, ora seus receios se dissolviam e a situação lhe parecia sob uma.luz favorável.
No fundo, o que acontecera de tão anormal?
Dois homens tinham lutado e morrido em consequência dos murros que trocaram. Um gatinho brincalhão fora maltratado por um marujo brutal. Um porco guloso se envenenara com os frutos venenosos da batata. Uma índia velha se embriagara com álcool obtido em troca de peles.... Incidentes e acidentes da vida cotidiana.
O calor opressivo que um vento caprichoso trazia ao anoitecer arrematava a obra de pôr-lhe os nervos à flor da pele.
Se Joffrey estivesse ali... Nunca antes Angélica sentira de modo tão claro que ele era seu pólo, sua certeza. De suas múltiplas experiências, das emboscadas que frustrara, de todas as ignomínias que atravessara, ele extraíra uma intuição segura, um instinto quase animal da realidade. Se dissesse "não é nada", podia-se ficar tranquilo; mas sedissesse "tomemos cuidado", havia que permanecer vigilante, o'inimigo não estava longe. Não se deixava enganar pelas aparências inofensivas, confundir pelo calor ou pelo vento.
Ele estava longe. Naquele mesmo instante, que inimigos estaria enfrentando? Onde estaria? Em algum lugar a leste, na extremidade da baía Francesa? Como ela tinha pressa de revê-lo!
Angélica dirigiu-se até o acampamento Champlain. Encontrou Miss Pidgeon, sozinha, sentada num tronco, com as mãos postas sobre os joelhos;
Foi até ela, sentou-se ao seu lado, passou-lhe um braço à volta dos ombros, e disse baixinho em inglês:
- My poor dear... Minha pobre querida...
Miss Pidgeon pôs-se a chorar.
Que devaneios, que fontes de ternura e devotamento não se ocultavam por trás do belo rosto fanado de uma filha das costas americanas, crescida e envelhecida entre a floresta selvagem e o mar, no duro espartilho das disciplinas puritanas! Mas todo ser humano tem direito a seu sonhos secretos.
- Por que o incitaram a tal ponto? - conseguiu dizer afinal.
- Ele era tão sensível! Um nada o punha fora de si...
Angélica sabia que ela falava do Reverendo Patridge, e, no fundo, não estava enganada de todo. Era um homem sensível à sua maneira, e, como todas as pessoas demasiado instruídas, sofria com o obscurantismo dos ignorantes e com a tolice do género humano.
— Ele temia tanto por nós, suas ovelhas, pela sorte da alma de cada um de nós em contato com os franceses! Exortava-nos o tempo todo à prece. Por que foram dizer a ele que iam nos levar para Quebec, escoltados pelo jesuíta e que nos forçariam a aceitar o batismo católico? Isso não é verdade, é?
— Claro que não! Já não lhes repeti inúmeras vezes, ingleses cabeçudos que são, que sob a proteção do Conde de Peyrac estavam em segurança? Por que Patridge não confiou em mim, ao invés de se deixar engodar assim?!
- É verdade! Mas, você sabe, desde aquelas pancadas todas que os índios lhe deram na cabeça, pobre rapaz, ele ficou de uma sensibilidade extremada...
Via-se que fazia bem à solteirona falar do irascível pastor, com uma ternura e uma familiaridade que efa não se teria permitido enquanto ele vivia. Como tinha lembranças comuns, por causa da viagem que fizeram de Brunswick Falis a Gouldsboro, depois do massacre, Angélica amparou-a com sua simpatia.
— Reconheço que nunca vi alguém suportar com tanta valentia um ferimento tão horrível. Ele era de'uma coragem excepcional.
— Não era?
Conversaram assim por algum tempo e aos poucos Miss Pidgeon se reconfortou. Vejido-a melhor, Angélica pensava em tomar o caminho-de-volta, quando ouviu o galope de um cavalo. De longe reconheceu' Colin, que, depois de ingressar no acampamento, pediu que4he indicassem o lugar onde estavam as duas mulheres.
Parou diante dela£ sem desmontar, saudou-as com um cortês sinal de cabeça, -e dirigiu-se a Angélica.
- Faz-se tarde, senhora. Não é prudente que retorne sem escolta a Gouldsboro. Já fez mal em vir aqui sozinha. Vim buscá-la.
Depois, a Miss Pidgeon, em inglês:
— Amanhã, miss, por favor, apresente-se ao conselho. Eu gostaria de pedir-lhe que recebesse toda manhã nossos pequenos hu-guenotes para ensinar-lhes inglês. Eles lhe serão trazidos de carroça e, pelos seus serviços, receberá víveres, auxílio e salário.
— Então é verdade mesmo que não vão nos entregar aos canadenses? - exclamou Miss Pidgeon^ definitivamente tranquilizada.
— Certamente que não. Onde ouviram esse boato maldoso? Acabei de assegurar mais uma vez aos seus compatriotas que isso não tem fundamento. Assim que se acalmar a agitação na baía de Massachusetts, poderão retornar à Nova Inglaterra sem obstáculos. Enquanto isso, reflita sobre minha proposta.
CAPÍTULO XXXVII
Angélica leva suas suspeitas ao governador Colin Paturel
Angélica retornou a Gouldsboro na garupa do cavalo de Colin.
Precisava segurar-se com as duas mãos à cintura dele, mas dizia consigo que não havia outra coisa a fazer senão aceitar a pro-teção do governador. Se fora buscá-la, enfrentando a delicadeza da situação de ambos, depois do drama recente que por pouco não destruíra o amor que unia Angélica ao Conde de Peyrac, fora porque sabia, ele também, que o perigo que rondava não eVa uma ilusão e que era seu dever defendê-la a qualquer preço.
- Que imprudência! - resmungou. - Entendo que às vezes seu marido perca a paciência e se mostre intratável. Que ideia, aventurar-se sozinha por esta estrada que ainda é perigosa!
Passavam justamente diante do forte novo, quase terminado, em torno do qual os homens da guarda começavam a. acender fogueiras.
— Mas o que devia eu recear? - indagou Angélica, surpresa. - A estrada entre Gouldsboro e o acampamento Champlain me parece segura agora. Já não é de temer, como no ano passado, uma incursão repentina dos iroqueses.
— Não há apenas os iroqueses a temer.
— Então também você tem medo, Colin! De que tem medo? Ele hesitou.
— E quem é que sabe? Há coisas ruins rondando.
— Não seja supersticioso! Diga-me... Diga-me, fale com franqueza.
— Não posso dizer mais nada além do que lhe disse no navio, quando o jesuíta foi procurá-la: tome cuidado, querem fazer-lhe mal.
-Mas o jesuíta se mostrou amigo. Tenho certeza de que ele teria apoiado nossa causa. Agora aquele homem está morto. Oh, meu Deus! E não se encontra o menino. Sim, tem razão, há coisas ruins a nos rondar.
Contou-lhe, atabalhoadamente, o que a assustara: o sono inexplicável da Sra. Carrère e da Sra'. de Maudribourg no momento do parto de Abigail, sono que eertamente se devera ao café que ambas tinham tomado; a morte" suspeita do porco de Bertille; as mensagens falsas, de que Joffrey, ela e Colin tinham sido vítimas.
- Não se pode unir nada, mas a impressão é que há alguém que conduz o jogo.
Chegavam a Gouldsboro. Angélica deslizou para o chão. Colin desmontou também e, segurando o cavalo pela rédea, caminharam juntos áté a praça central do povoado.
— Fale, Colin - insistkfAngélica -, fale. Parece-me que você tem alguma, coisa ria^abèça que não quer dizer.
— Porque não "pode ter relação alguma com o que está acontecendo aqui. Uma idéia-assim, que me veio quando me falaram do naufrágio do Lá Licorne, de todos aqueles mortos com o crânio rachado.E Job Simon que repetia sem parar: "Os causadores de naufrágios! Eles me bateram". Então me lembrei... Havia um homem nos portos a quem chamavam de "o homem do bastão de chumbo". Por uns tempos" ele possuía um navio, por outros não, mas nunca passou miséria. Tinha todo um bando armado consigo, e quando andavam por uma cidade, ninguém ficava tranquilo, principalmente as outras tripulações. Alugava seus serviços tanto para pilhar um navio malguardado, quanto para capturar jovens para o serviço de recrutamento de embarcadiços. Aceitava qualquer tramóia ao longo das" costas... Deve ser mais fácil do que ser um bandido de estrada. Um homem esquisito... Poderia ter feito outra coisa. Mas gostava disso... O crime, atacar no escuro. Só o encontrei uma vez, num café de Honfleur.
— Como era ele? - perguntou Angélica, ofegante.
— Difícil de descrever. Havia um demónio nele. Era um homem pálido e frio...
— E ele! - bradou Angélica. - Desta vez tenho certeza de que é ele. É ele que ronda nossas ilhas. Tenho certeza de que, por trás do pretexto de ir libertar os oficiais de Quebec, foi em perseguição dele que Joffrey se lançou, e é por isso que temo por Joffrey. Phipps, o inglês, é menos perigoso do que esses "invisíveis". Mas se for esse homem de que você falou, por que teria vindo para a América? Por que nos atacar? Por que teria atraído o La Licorne para os recifes, massacrando a tripulação?
- Pelo Mal, talvez. Quando um demónio encontra sua expressão para atacar, não se cansa nunca.
— Não! Estamos nos dispersando. Que ligação tem isso com o que eu lhe contava há pouco? Uma droga no café, um porco envenado... Você controla tudo, os navios, ou barcos que aparecem, e desconhecidos não entrariam em nossas casas sem se fazer notar. Ainda assim... Imagine, Colin, que coisa horrível se eu tivesse dado a Abigail uma droga mortífera e ela tivesse morrido na minha frente... eu teria ficado louca!
- Talvez seja isso o que alguém deseja - disse Colin.
Angélica olhou fixamente o rosto rude do ex-Barba de Ouro.
Ele sempre intuíra as intenções ocultas de seus inimigos. O sultão Ismael, o Astuto, acusava-o de ser clarividente.
- Se for isso - disse ela -, não tema nada. Aconteça o que acontecer, não ficarei louca.
Colin soltou um profundo suspiro.
— Gostaria de poder protegê-la, como fazia antigamente.
— Já faz isso estando aqui, velando por Gouldsboro. Que segurança saber que você está aqui! É inexprimível. Joffrey pode perseguir o inimigo e eu... preparar-me para enfrentá-lo.
Sacudiu os cabelos, desafiadora.
— Não tema nada - repetiu. - Se "eles" querem devorar-me, vão quebrar os dentes, sou dura como couro...
— Você não mudou.
— O principal é que eu esteja prevenida. Fez-me bem falar com você, sabe? Saber que está aqui. Afinal, se "eles" são fortes, nós também somos.
Ele inclinou a cabeça e despediu-se dela. Angélica sabia que ele passaria a noite atento, vigiando o povoado, visitando todos os postos de guarda, interrogando, verificando a identidade dos marujos na praia, voltando mais uma vez a bordo dos navios ancorados na enseada, colocando seus homens mais confiáveis nos pontos a proteger. Ela não duvidava de que encontraria alguns não longe da casa dos Berne.
Capítulo XXXVIII
A reveladora carta do Padre Vernon desaparece - Ambrosina propõe ida a Port-Royal
No entanto, quando Angélica pousou a mão sobre a maçaneta da porta de seu quarto e começou a abri-la, soube instintivamente que havia, como na,outra noite, alguém à sua espera.
Desta vez não teve coragem de enfrentar sozinha o perigo e chamou um dos homens de guarda embaixo..
Ele a precedeu no ap'osento, com a lanterna bem alta.
Descobriram uma criança amedrontada, apertando um saco contra o peito. A luz fez cintilar seus cabelos louros. Era Abbal Neals, o órfão que o Padre de Vernon recolhera no cais da Nova Inglaterra.
Angélica teve um estremecimento de alegria, de alívio e também, sem saber por quê, de apreensão.
- Pode deixar-me - disse ao homem que a acompanhara. - Obrigada.
Fechada a porta, dirigiu-se ao grumete do White Bird. Ele não respondeu, contentando-se em estender-lhe, com um gesto impulsivo, o saco que segurava. Era-um alforje de pele de cervo não curtida. Ao abri-lo, Angélica viu que continha toda a bagagem do jesuíta morto. Um breviário, uma estola, um rosário de buxo, uma sobrepeliz e, num envelope de veludo finamente bordado em ouro e prata, e estofado, õs objetos do culto, indispensáveis ao sacrifício da missa: a patena, um pequeno cálice, um cibório, duas galhetas, tudo de prata dourada; depois um crucifixo com o pé de prata e o corporal de cetim, contendo algumas hóstias. Não sabendo se estavam consagradas, Angélica deteve-se, respeitosa, sem ousar tocar naquelas relíquias santas.
O menino, com um gesto impaciente, pegou o breviário e estendeu-o a ela.
O livro se abriu sozinho sobre uma folha de pergaminho. Ao desdobrá-la, Angélica vju que se tratava de uma carta inacabada.
"Meu caríssimo irmão em Jesus Cristo..."
Desde as primeiras palavras, ela entendeu: "A carta para o Padre d'Orgeval..." Era aquela carta que ela segurava entre as mãos, a carta que o auxiliar Ao Padre d'Orgeval começara a redigir para o superior algumas horas antes-de morrer.
O medo invadiu-a. O que ia ficar sabendo de terrível?... Aquela carta! Tinha o direito de lê-la?... Tinha o direito de violar o pensamento de um morto... de forçar, de certa maneira, aquele homem sigiloso e fechado a confessar-lhe o que quisera esconder-lhe em vida?
Apesar de tudo, tão urgente lhe parecia a necessidade de ver com clareza naquela situação tensa e ameaçadora, que quase maquinalmente desdobrou a missiva e leu:
"Meu caríssimo irmão em Jesus Cristo. Escrevo-lhe de Goulds-boro, aonde me dirigi para concluir a investigação de que me incumbiu. E como, pela confiança que dispensa aos meus julgamentos, garantiu-me que as minhas opiniões seriam recebidas pór você como a expressão da verdade, dando crédito às minhas palavras como se tivesse podido julgar pessoalmente no local, falarei sem rodeios, sem receio de lisonjeá-lo ou de desagradá-lo.
Um objetivo sagrado, mais importante do que nossas próprias suscetibilidades, que, na qualidade de homens pecadores, com frequência somos levados a experimentar, obriga-nos a ambos a calar as nossas paixões ou desejos para buscar apenas a verdade, a fim de proteger as almas tão numerosas e tão ameaçadas que dependem do nosso ministério.
Assim, dir-lhe-ei sem rebuços, desde já, que tinha razão, meu caríssimo padre, e que as visões que Deus, em Sua Bondade, teve a graça de conceder-lhe, corroborando a da santíssima religiosa de Quebec, não o enganaram. Sim, tinha razão: a Diaba está em Gouldsboro..."
Angélica parou, estupefata. Não podia crer nos próprios olhos. Era mesmo o Padre de Vernon quem levantava tal acusação? Então não acreditara nela! Não compreendera nada... Apesar da franqueza dela, ele continuara a considerá-la através do falso aspecto daquela lenda estúpida. As letras se puseram a dançar diante dos seus olhos.
"Sim, tinha razão: a Diaba está em Gouldsborq, e não é sem estremecer que escrevo tais palavr-ás. Por pr^árados que estejamos para enfrentar, no decorrer de nossa vida eclesiástica, seres satânicos, nem por isso a prova é menos rude de atravessar quando se apresenta de fato. E é com humildade de um homem que, por instantes, se sentiu bem fraco diante de.um encontro tão horrível, que venho relatar-lhe os detalhes. O Grand-Albert [um tratado de magia branca] nos ensina qué o espírito de Lúcifer tem algo de temível, que alia a beleza do anjo à sedução do caráter feminino e diante do quajtodo homem se sente particularmente vulnerável, não só por causa dos encantos do seu corpo, mas, creio, também por essa tentação de ternura e abandono que a recordação indelével de-nossas mães e da felicidade que delas recebemos deixa em nós. Mas, fortalecido pelos seus conselhos e pelos nossos ensinamentos,.foi-me relativamentefácil desmascarar a verdadeira natureza- daquela que agora não hesito em chamar de Diaba, espírito dormal em corpo de mulher, de inteligência viva, luxuriosa, criminosa, sacrílega, não hesitando em seduzir-me ou em usar do sacramento da penitência para melhor me abordar e obter de mim uma aliança para seus projetos infames..."
"Oh, não, não!", quase bradou Angélica. "Não, padre, não é verdade. Não tentei seduzi-lo, não é verdade. Oh, Jack Merwin, não é possível! Eu acreditava que você fosse meu amigo..."
O coração batia-lhe a ponto de arrebentar. Uma sensação de desastre invadiu-a, chegando a darfhe vertigem. Precisou pousar a carta na mesa e-se apoiar para não cair.
O menino louro a olhava. Sua expressão de pavor certamente refletia a que ela mesma exibia. Ele' se pôs a repetir, numa voz fraca:
- Mistress, they pursue me. For God's sake,do help me! Senhora, eles estão me perseguindo. Pelo amor de Deus, ajude-me!
Mas ela não o ouvia.
Bateram na porta e, como não obtiveram resposta, indagaram:
- O que está acontecendo? O que quer essa criança? Atrapalho?
A doce voz de Ambrosina. Angélica recuperou o sangue-frio.
— Não é nada. Boa noite, Ambrosina. O que você deseja?
— Mas vê-la! - exclamou a duquesa, em tom trágico. - Sequer a vislumbrei o dia inteiro e se surpreende de que eu venha informar-me a seu respeito à noite?
— É verdade, negligenciei-a... Perdoe-me. Tivemos mil preocupações.
— Ainda parece preocupada.
— De fato. Acabo de sofrer uma terrível decepção com alguém em quem eu depositara a minha confiança.
— É uma provação bem amarga. Ao longo da vida achamos sempre que nos resignamos com a imperfeição dos seres que nos cercam, mas nos damos conta de que o coração permanece sempre vulnerável.
Pousou a mão no braço de Angélica e disse séria:
- Creio que a ausência do Sr. de Peyrac lhe é intolerável. Pensei numa coisa: acompanhe-me a Port-Royal! Com você terei coragem de partir e de retomar meu fardo, pelo menos de encará-lo e procurar a melhor solução para minhas protegidas, e para tanto também tenho uma necessidade premente de seus conselhos. A viagem lhe permitirá reencontrar o Sr. de Peyrac dois ou três dias antes.
Como Angélica hesitasse, surpresa, ela acrescentou:
— Não sabe que ele deve passar por Port-Royal antes de voltar para cá?
— Não, não que eu saiba.
— Em todo caso ele disse a mim - afirmou Ambrosina, com ar contrafeito -, ou melhor...
Pareceu lembrar de alguma coisa e mudar de ideia, com a expressão confusa de quem cometeu uma rata.
— Ele disse também ao senhor governador. Estava presente quando ele lhe comunicou isso... Venha - insistiu. - Partamos amanha para Port-Royal, é melhor do que esperar aqui, com impaciência, e a mim isso ajudará muitíssimo a retomar coragem.
— Vou pensar - disse Angélica.
Continuava a sentir-se como que sob o efeito de um choque violento. A descoberta da traição - sim, era uma traição - do Padre Maraicher de Vernon deixava-a num estado de estupor amedromado. Ambrosina tinha razão. Ela precisava mexer-se, fazer alguma coisa, e principalmente rever Joffrey o quanto antes.
Mas agora pensava que precisava continuar a ler aquela carta até o fim. Abriu a boca para pedir a Ambrosina, com o máximo de tato possível, que a deixasse Cozinha, mas ao dar uma olhada sobre a mesa percebeu que a carta que colocara ali desaparecera.
Correu o aposento com õs olhos, A criança também não estava mais ali.
— Onde está o menino? - exclamou.
— Foi-se - disse Ambrosina. - Vi-o pegar o saco, enfiar nele um papel que estava em cima da mesa e correr rapidamente para a porta, sem ruído. É estranha aquela criança/Parecia um duende.
— Mas é preciso alcançá-lo!
Quis lançar-sé para a: porta, mas Ambrosina a reteve com força, agarrando-se a ela com oim rosto subitamente pálido de medo.
— Não vá, Angélica! Não vá! Cheirada demónio por aqui. Talvez seja ele quê anima aquela criança...
— Basta de tolices! - bradou Angélica. - Tenho que alcançá-lo!
.- Não, nãa-esta-íióite". .Quando clarear - suplicou Ambrosina. - Angélicay rogo-ljbe^deixe-rríe fazer algo por você, parta comigo para Pdrt-Royai. Sinto que ronda por aqui um espírito funesto. Ffller a respeito com o Padre de Vernon. Disse-lhe que Gouldsboro era um lugar que se precisava exorcizar. Ele não riu de mim. Acho que compartilhava de minha opinião.
- As opiniões de gente da espécie dele sempre tentam enquadrar os fatos com suas ideias preconcebidas - disse Angélica, amarga.
De repente se sentiu muito cansada.
Mandar procurar o menino! Para quê? Para dar-se o prazer de decifrar mais algumas insanidades que só poderiam convencê-la, mais uma vez, da impossibilidade de comunicar-se, de fazer-se entender?
- Angélica - repetiu Ambrosina -, parta comigo, rogo-lhe. Não sente como a atmosfera está pesada aqui? É como se houvesse um perigo suspenso sobre nossa cabeça. Foi um pouco por isso que voltei. Não podia suportar a ideia de que você estivesse sozinha aqui, rodeada de. gente que talvez preparasse sua destruição... Não posso fazer muito por você, mas pelo menos estarei ao seu lado.
"Foi por isso também que tive pressa em subtrair as minhas moças a essas influências nefastas. Não. consigo detectar-de onde vem essa tensão... Talvez desses ingleses... O mal está neles. São hereges."
— Eles mal são vistos! Não saem do acampamento Champlain.
— Mas não poderiam estar encarregados de uma missão de destruição junto a você?... E esses piratas!... Essas carrancas inquietantes! Entendo que seus amigos protestantes não se sintam em segurança com um governador assim. Por que seu marido deposita tanta confiança nele, a ponto de partir deixando com ele toda a responsabilidade pelo povoado?...
Hesitou.
— Não sei se tem muita importância, mas surpreendi entre dois dos homens dele uma conversa que me despertou a desconfiança. Um dizia ao outro: "Um pouco de paciência, companheiro. Mais algum tempo e todo esse belo mundo será nosso... Barba de Ouro nos afirmou". Fizeram mais algumas considerações: que é preciso usar de astúcia quando se perdeu a batalha, que Barba de Ouro sempre foi forte nisso. E que ele tinha cúmplices na baía Francesa, que o ajudariam quando chegasse a hora.
— Colin! - exclamou Angélica, sacudindo a cabeça. - Não é possível!
— Você está segura quanto a esse homem? - indagou Ambro-sina, olhando-a com severidade.
Sim, ela estava segura. Depois, de repente, lembrou-se. Tantos anos tinham passado desde Ceuta... Um homem pode mudar profundamente, radicalmente, sobretudo se cede ao desespero e ao rancor, conforme Colin lhe confessara. Colin!... O coração de Angélica contraiu-se de novo, sob o peso de uma angústia insuportável. Se fosse Colin, tudo se explicava! Mas não era possível! Joffrey não poderia ter-se enganado tão absolutamente. A menos que, mais uma vez, tivesse havido cálculo da parte dele. Que cálculo!
Ela não podia pensar ou ia perder a cabeça.
Fosse como fosse, precisava rever Joffrey o quanto antes, pô-lo a par dos novos perigos, das novas suspeitas, e sondá-lo, tentar entender o que ele tinha em mente.
Agora que Abigail tivera o bebe, Angélica podia partir. E se ir a Port-Royal lhe antecipava em alguns dias esse encontro tão desejado, ela só poderia ganhar com isso.
- Que seja! - disse a Ambrosina. - Eu a acompanharei. Partiremos amanhã.
PORT-ROYAL OU A LUXÚRIA
CAPÍTULO XXXIX
A viagem a bordo do Le Rochelais
Finalmente chegara o momento de partir.
Com alguns tripulantes; as duas mulheres e sua bagagem, Ademar, que reaparecerá jipes a..partida do governador Ville-d'Avray
— Adernar que, sempre choramingas e com medo do mar, não podia encarara perspectiva de viver na América sem estar sob a proteção direta da Sra. De Peyrac -, com.o Irmão Marcos, o recoleto, que resolvera de repente retomar a estrada, mas queria ir reconhecer alguns rios e rápidos da península antes de retornar a Sainte-Croix pelo istmo de Chignecto, com o jovem Alistair Mac-Gregor, que queria visitar a numerosa parentela em Port-Royal
— pois a avó francesa e o avô"escocês eram ambos originários de lá, de onde partiram recém-casados para instalarem-se na ilha de Monégan -, com alguns outros que estavam com vontade de mudar de ares, e alguns índios de passagem, Le Rochelais deixara Gouldsboro, seguindo para oés-sudoeste, rumo à mais antiga feitoria francesa, talvez até europeia, da América do Norte.
A terrível baía Francesa fez? jus à reputação.
Por curta que fosse a travessia para Port-Royal, levantou-se uma tempestade que, naquele intervalo de tempo, ofereceu vinte vezes ao pequeno iate Le Rochelais a ocasião de soçobrar.
Atravessar o estreito que dava acesso à bacia de Port-Royal levou duas horas. Duas horas de lutas contf a a cavalgada gigantesca de ondas de crista espumosa. Por instantes avistavam-se, emergindo de uma bruma pluviosa, sobre os dois flancos do navio, altas falésias negras, coroadas de árvores e perigosamente próximas.
Vanneau e o acadiano que lhe servia de piloto deitaram-se sobre o timão, para mantê-lo na direção correta. Por duas vezes Cantor, que comandava o navio, foi atirado de pernas para o ar e rolou contra a amurada, pois recusara-se a se amarrar ou mesmo a se segurar a alguma coisa.
Por outro lado, quando atingiram as águas mais calmas da bacia, um nevoeiro de cortar com faca os aguardava como uma sentinela rude, barrando imperativamente a entrada e impedindo todo o avanço.
O navio, porém, conseguiu penetrar e fez algumas milhas, mergulhado numa opacidade branca e opressiva, até que o piloto propôs lançar âncora.
- Devemos estar diante da feitoria, mas para descer a chalupa e acostar é melhor saber aonde se vai. E, se continuarmos, corremos o risco de chocar-nos com um navio ancorado no porto. Quando anoitecer, talvez consigamos avistar as luzes das casas.
A espera permitiu aos passageiros, particularmente às duas mulheres, Angélica e a Duquesa de Maudribourg, descansarem e porem ordem na roupa e na bagagem. Embora abrigadas na pequena cabina do castelo de popa, tinham sido muito sacudidas. A arca de escalpos de Saint-Castine, mal escorada, deslizara e ferira levemente Angélica no tornozelo. Pouco antes do embarque, Saint-Castine voltara para indagar:
— O Sr. de Peyrac levou minha arca para entregar ao governador de Quebec?
— Não - disse-lhe Angélica. - Ele não ia a Quebec, e é pouco provável irmos.
— Então, leve-a com você até Port-Royal. O Sr. de la Roche-Posay terá ocasião de encaminhá-la a círculos superiores. E preciso que eu possa provar minha boa vontade ao Sr. de Frontenac e a toda a camarilha...
A arca de madeira, pesadamente reforçada de cobre, era bastante incomoda. E de qualquer' modo não parecia aconselhável a Angélica passear com aquela fartura de cabeleiras inglesas por águas que fervilhavam com centenas de navios bostonianos e vir-ginianos. No entanto, não podia recusar o favor a Castine, que, pelo menos ele, era um aliado seguro, graças a quem os massacres abenakis, provocados pelos jesuítas, tinham sido detidos na margem oeste do Kennebec..
Por isso, aceitara a arca. Saint-Castine foi pródigo em explicações. A espécie de inconsciência que o habitava, centrado em suas próprias preocupações, seus índios, escalpos, seu sogro, o chefe Mateconondo, a noiva Matilde, dava a Angélica a sensação de uma intromissão inconveniente no seu pesadelo pessoal e que embaralhava ainda mais o fio de suas ideias.
A sua volta acontecia algumafcoísa cuja realidade ela já não conseguia apreender inteiramente, a sentido, -a direção, a verdade, alguma coisa onde estava em jogo sua própria sorte, sua vida, sua razão, bem coma a sortç dos que lhe eram caros, e Saint-Castine ali, a falar de seus escalpos "ingleses.
Bom, que embarcassem-,aquela arca!
Angélica queria partir a qualquer preço;
Estava deixando o gato quase curado com às crianças Berne. Agora que o animalzinho escapara à morte, que Abigail e o bebé se encontravam em boa saúde, nada podia retê-la em Gouldsboro.
Mas Colin, ao serinformado, recebera o comunicado com uma emoção inesperada, opondo-lhe um rosto furioso, um olhar de cólera contida.
- Não! Você não partirá! A Sra. de Maudribourg pode muito bem fazer' a;.viagenT sozinha.
Era outro-bomem ahà frente dela... Barba de Ouro! Barba de Ouro, o desconhecido! Lembrando-se das palavras de Ambrosi-na de Maudribourg, Angélica sentira de novo aquela vertigem de inquietação que a punha ofegante, às raias de um pânico quase infantil. Sentira o mesmo ao ler a carta do Padre de Vernon... A súbita ausência de um amigo seguro... Pior, mesmo: a descoberta de um inimigo, quando ela edificara no coração a certeza de uma amizade ou de uma fidelidade. Seria possível que o mesmo se aplicasse a Colin?... Não! Não era possível. Ela vira Jof-frey pousar a mão sobre o ombro de Colin e os olhares dos dois homens se haviam cruzado. Um olhar assim, entre dois homens! Confiança, franqueza, retidão. "Agora", pareciam dizer aqueles olhares masculinos, aqueles olhos azuis de normando, aqueles olhos negros do senhor da Aquitânia, "Agora, entre nós, é pela vida toda, até a morte!" Ela os.vira pela janela, e eles não sabiam que estavam sendo observados. Ninguém pode enganar-se com um olhar assim. Ou então era ela que estava ficando louca, ela, Angélica... ou então era tudo aparência apenas, mentira... a significação do mundo visível lhe escapava de repente... as palavras, os olhares mudos já não tinham o mesmo sentido, tudo se conturbava, duplicava. Alguns sabiam, viam o reverso... e só ela, desorientada, via apenas o verso. Cada um daqueles rostos lisos, hu-, manos, que ela conhecia, que a cercavam, usaria uma máscara?... Já não se sentia suficientemente hábil para concluir coisa alguma. Foi tão profunda a sua perplexidade, que levou algum tempo para responder a Colin, e quando o fez falou com mais calma do que normalmente.
- Por que você se opõe? Não entendo. A criança de Abigail já nasceu. Nada me retém aqui...
Colin continha-se a custo. Em seus traços lia-se uma ansiedade genuína, uma angústia até,- ainda que, passada a primeira reação, ele fizesse um esforço por falar moderadamente.
— O Sr. de Peyrac ficará contrariado de não encontrá-la aqui ao regressar! - disse.
— Mas é justamente para vê-lo mais cedo que quero ir a Port-Royal, pois ele deve fazer uma escala lá, voltando do rio Saint-Jean, antes de seguir para Gouldsboro.
O governador pareceu acalmar-se de repente. Uma expressão astuta e concentrada, que ela lhe conhecia bem, substituiu-lhe nos traços a da cólera e preocupação, enquanto seus olhos se fechavam ligeiramente. Assemelhava-se a um grande animal que acaba de perceber no fundo da floresta um ruído insólito e se recolhe, a fim de discernir de que tipo de ruído se trata.
— Quem disse que o Sr. de Peyrac passaria por Port-Royal antes de voltar para Gouldsboro?
— Mas... não foi ele mesmo quem disse, antes de partir?... Disse a você também.
-• Não me lembro - resmungou ele.
Ela ficara assim, diante dele, esperando que ele voltasse a falar. No fundo de si mesma continha com todas as forças o vagalhão de seu desafio a Colin prestes a desencadear-se. Por que ele queria retê-la? Porque a considerava refém e não queria deixá-la escapar? Era por isso que fingia não se lembrar de que Joffrey devia passar por Port-Royal? Sua pouca simpatia pela Sra. de Maudri-bourg residia no fato de que ele adivinhava que aquela mulher inteligente e demasiado intuitiva o perscrutara?
Angélica fazia consigo essas perguntas, que poderiam explicar a atitude de Colin, mas recusava-se a respondê-las por enquanto, afirmativa ou negativamente. Não dispunha de elementos nem de provas suficientes a enfrentar. Simplesmente se perguntava isso tudo, tentando calar o medo que sentia e dizendo a si mesma que, custasse o que custasse, deixaria Gouldsboro, visto que ainda lhe era possível escapar dali.
A palavra "escapar" ocorrera-lhe espontaneamente. Doravante afastaria sem escrúpulos tudo o que parecesse impedi-la de correr ao encontro de Joffrey.
Colin deve ter-lhe lido nos olhos a resplução irrevogável e obstinada.
Disse, secamente:
- Muito bem! Eu a deixarei partir. Mas com uma condição: que seu filho Cantor a acompanhe...
Mas aí foi a vez de Cantor opor-se violentamente e com arrogância à decisão, quando Angélica lhe comunicou.
— Não sairei de Gouldsboro - declarara. - Não recebi nenhuma ordem .de meu pai nesse sentido. Você é livre de ir a Port-Royal com .a Sra. de Maudribourg, se é isso d que quer, mas eu não sairei daqui...
— É um .favor qúcvocê me faria aceitando. Por diversas razões Colin hesita em me deixar partir se você não me acompanhar...
Cantor apertou" õs lábios e deu de ombros, irreverente.
— O problema é seu^se se deixa explorar- replicou ele, cada vez mais intransigente e altaneiro. - Quanto a mim, sei onde está meu dever.
— Pois bem, e onde está seu dever? - indagou Angélica, que começava a irritar-se. - Explique-se, ao invés de se dar ares de importância!
— Sim, explique-se, meu jovem - interveio Ambrosina, que presenciava o diálogo. - Sua mãe e eu confiamos em seu julgamento. -Há que nos esclarecer e auxiliar em nossas decisões...
Mas Cantor lançou-lhe um olhar sombrio e, desdenhoso e muito altivo, saiu do aposento.
Essa intensificação da hostilidade de Cantor, com quem suas relações tinham sempre sido difíceis, contribuiu para abater Angélica ainda mais.
- Seu filho está inquieto -.murmurou Ambrosina. - Ainda é uma criança! Muito, apaixonado por você, como todo adolescente, filho de mãe tão bela, muito orgulhoso do pai. Isso o torna intuitivo... Deve sofrer com uma situação que talvez nos escape, sobre a qual ele sabe e adivinha mais do que nós. É preciso confiar nos pressentimentos da juve-ntude. É um estado de graça... Outro dia, vendo-lhe o ar sombrio, eu o arreliava, perguntando-lhe por que não parecia comprazer-se em Gouldsboro. Respondeu-me que não era de seu gosto comprazer-se na companhia de bandidos. Imaginei que se tratasse de um repente, de uma briga com seu grupo de amigos... Mas sem dúvida se tratava de outra coisa... Talvez o governador tenha ameaçado... O garoto se cala, não sabe como defender-se... Seria preciso que ele confiasse em você, Angélica, seria preciso fazê-lo falar...
- Não é fácil fazer Cantor falar - comentara Angélica, preocupada. - Quanto à confiança em mim, sei que ele não confia em mim facilmente.
Angélica adivinhava muito bem que o coração desconfiado de Cantor não pudera receber, sem ferir-se, os comentários maldosos que correram sobre ela e Colin naquele verão, e daí os ares intransigentes do adolescente.
Ambrosina observava-lhe o rosto pensativo. Num tom que não era afirmativo nem negativo, disse:
— E você. continua confiando nesse homem, nesse Colin...
— Não, talvez não - disse Angélica -, mas confio em meu marido. Ele possui um profundo conhecimento do ser humano. Não pode ter-se enganado a tal ponto...
— Talvez não se tenha enganado... Talvez só tenha usado de astúcia, conhecendo o inimigo temível com quem lidava...
— Não - repetiu Angélica.
Rejeitava a ideia de que Colin fosse um traidor. E agarrava-se àquela troca de olhares que surpreendera entre Colin e Joffrey, um olhar de conivência, de entendimento, de comunicação.
Mas, diante de Port-Royal, finalmente longe de Gouldsboro e do seu clima opressivo, tudo isso lhe voltava à mente, e seus temores contidos ressurgiam, sufocavam-na... Lembrava-se do que sentira, justamente, no momento em que surpreendera o Conde de Peyrac e o pirata Barba de Ouro trocando aquele olhar de reconhecimento mútuo, de conivência... Tivera a terrível sensação de estar excluída daquele entendimento, uma mulher rejeitada na noite, afastada, suprimida, empurrada para suas ingenuidades, suas solidões, sua espécie fraca e combalida, fraca e oprimida, fraca e abandonada... Homens!... Toda a sua desconfiança, nascida das inúmeras traições que conhecera, retornava-lhe ao coração. Joffrey a aguardava por trás daquela cortina de bruma ou prosseguia seu trajeto longe dela... E Colin? Colin zombara dela?... Não, Colin, não!... Ela não sabia mais. Só Joffrey, agora, podia esclarecer esse ponto. A necessidade que sentia dele, de ouvi-lo e falar-lhe, era a de uma criança perdida que já não tinha ponto de apoio em si mesma onde se agarrar e de onde avaliar a rota a seguir. A hostilidade,dos protestantes, dos ingleses, a hostilidade e a acusação detestável do Padre de Vernon, a hostilidade de Cantor, talvez de Colin...
Cantor acabara acompanhando-a. Ultimando os preparativos para a viagem, ela o vira" apafeeer e entender-se com Vanneau para aprestar o Rochelais a fim de levar a Sra. de Peyrac e a Sra. de Maudribourg a Port-Royál.
— Então você não me abandona - dissera-lhe, com um sorriso.
— Recebi ordens do senhor governador! - explicara ele em tom seco.
O que lhe teria dito Colin para faz&lo decidir-se? Os temores sufocados continuavam a atormentá-la. Colin! Quando ela lhe comunicara seus receios,'de que alguém rondava, tentava envenenar, matar, ele não reagira bem frouxamente? Deveria ter reforçado a defesa, o controle. E àquela história do homem com bastão de chumbo não se-destinara a desviar as suspeitas dela? Ambrosina ouvira dois dos homens dele dizendo que Colin tinha cúmplices na baía. Mas teria entendido bem? Colin!... Quando ela falara do navio com bandeira alaranjada, ele não parecera atribuir-lhe muita importância... Saberia quem eram "eles"?... Seus cúmplices!... Colin! Como lhe fazia ma! pensar nisso! Colin, inimigo deles! Não! Trairido-os, traindo-a, uma certeza repentina. Não, impossível! E respirava fundo, meio reconfortada. Mas a hostilidade de Cantor... Por quê? O que havia em Cantor que ela nunca conseguiria abrandar, conquistar?
Lá vinha ele, debruçar-se à amurada, não longe dela, também olhando para a terra invisível.
- Você nos conduziu bem nesta viagem - disse ela.
Ele deu de ombros, como se desdenhasse um cumprimento que poderia amolecer-lhe a atitude de reprovação.
- Cantor - perguntou ela à queima-roupa -, o que foi que Colin lhe disse para convencê-lo a me acompanhar?
Ele voltou para a mãe os olhos verdes e.ela admirou-lhe a beleza juvenil em meio àquela irisação da neblina, que parecia suavizar-lhe os traços e aureolar-lhe a jovem silhueta vigorosa, a cabeleira cacheada. Ainda era uma criança, graciosa, enternecedora na coragem e severidade que opunha a um mundo conturbado e áspero.
— Disse-me que eu devia partir para protegê-la - disse ele sem vontade. E parecia divertir-se com isso como se se tratasse de um pretexto destinado a troçar dela.
— Então não posso proteger a mim mesma? - indagou Angélica, sorrindo e levando a mão à coronha da pistola que trazia à cintura.
— Você atira bem, mãe, não contesto isso - admitiu Cantor, sem abandonar o tom altivo -, mas há outros perigos de que não está consciente...
— Quais?... Fale... Estou ouvindo.
— Não - disse Cantor, sacudindo a cabeleira -, se eu lhe dissesse a quem acuso, você não admitiria, ficaria aborrecida, e me chamaria de ciumento e de basbaque... Por isso não vale a pena.
E afastou-se, para deixar bem claro seu distanciamento. Quem é que ele tinha em mente? A quem não ousava acusar na frente dela? Berne Manigault?... Colin, outra vez... o pai, quem sabe?... Ele era tão exagerado... Angélica entendia que existia alguma coisa nele que ela nunca conseguiria vencer e acalmar. Como era estranha e vã a existência!...
Um dia, num momento de felicidade inaudito, ela concebera uma criança, e eis que essa criança, tornada homem feito, estava à sua frente como um estranho, parecendo lembrar-se apenas dos sofrimentos que devia à mãe, e não das alegrias.
O nevoeiro porejava em torno dela, salpicando-lhe os cabelos de pérolas irisadas... Angélica sentiu frio e estreitou o manto contra o corpo, sentindo renascer aquela apreensão pesada que se dissipara um pouco quando partira de Gouldsboro. Uma sombra leve passou perto dela e foi a vez de Ambrosina vir debruçar-se a seu lado. Estava usando o manto preto forrado de vermelho. O vermelho harmonizava-se com seus lábios, que ela pintara levemente, o preto, com seus olhos, sua palidez de lírio, com a brancura de alabastro do nevoeiro. Ambrosina estava bonita e parecia amadurecida, menos indecisa e desorientada do que nos dias precedentes.
Port-Royal, feitoria católica, provida de no mínimo dois capelães oratorianos de grande piedade, frequentada por inúmeros religiosos de passagem, onde reiríava, ao que se dizia, uma atmosfera patriarcal entre os nobres, senhores do feudo, e a população camponesa, industriosa e inteligente, conviria melhor a Ambrosina do que Gouldsboro, com sua mistura de religiões e de origens diversas.
Angélica fez um esforço para sorrir-lhe.
— Aposto como suas moças ficarão felizes de revê-la! Devem ter-se preocupado com você. Pobres moças!
A Duquesa de Maudribourg não respondeu. Examinava Angélica com atenção.
- Você parece a rainha do setehtrião -r disse de repente -, com essa bruma irisada a flutuár-J-he em torne-dos cabelos. Eles
são louros ou.brancos? Dir-se-ia que. de urrfouro-claro cintilante. Sim, a rainha das neves: Teria desempenhado melhor o papel de Cristina da Suécia do que aquele mosqueteiro de saia.
O piloto acadiano e Vanneau aproximaram-se delas. Tinham paciência, a espera era um dos elementos da vida do marinheiro. Também eles olhavam na suposta direção de' Port-Royal.
— Os moradores devem estar agitados - disse o piloto. - Devem ter ouvido o ruído de nossa corrente, quando lançamos âncora. Não sabem se somos ingleses, e a maioria deve estar se preparando para fugir para-as matas com seus caldeirões.
— Espero que não "atirem em nós assim que a neblina se dissipe - observou Cantor.
— Eu ficaria surpreso se eles tivessem muita munição - disse o piloto. - Dizem que o navio da Companhia da Acádia, que os reabastece todo verão, foi pego pelos piratas.
Com os olhos abertos para o universo branco como gesso que os cercava, Angélica tentava desvendar o mistério das vidas escondidas por trás daquelas brumas. Por vezes parecia-lhe perceber perfumes vindos de terra, que traíam a atividade de homens, odores de estábulo ou de fogo na lareira, ruídos vagos, ecos incertos. Pelo anoitecer, quando tudo escurecia, ouviu-se o carrilhão de um sino de igreja, e quase no mesmo instante um vento frio varreu a superfície do mar, encapelando-a de ondinhas curtas, dissipando parcialmente o nevoeiro, e luzes indistintas floresceram de repente ao longo da margem. Outra rajada de vento e o povoado de Port-Royal surgiu inteiro aos olhos deles, ao crepúsculo, alinhando a meia encosta suas casas de madeira com telhado alto e pontudo, cada um com uma grande chaminé no meio, soltando preguiçosas baforadas-de fumaça que se misturavam às nuvens de passagem.
O aldeamento francês já contava cerca de quatrocentas almas. Assim, o conjunto era imponente, as casas estendiam-se pela margem até as vastas pradarias dos charcos drenados na extremidade da bacia, onde se erguiam árvores frutíferas e pastavam vacas e carneiros.
De uma extremidade a outra do povoado havia duas paróquias, o que permitia fazer-se procissão entre as duas igrejas nos dias de festa.
Exceto pelas luzes nas habitações, o burgo parecia pouco animado àquela hora. Uma manada de vacas desfilava em seu andar oscilante não longe da beira da água. Ressoavam mugidos e alguns gritos de pastores.
Cantor mandou hastear o pavilhão de seu pai,, a auriflama cortada por um escudo de prata que todos começavam a conhecer nas paragens da América do Norte. Só restava esperar que fosse avistado da margem, apesar, da noite que caía, e*que as pessoas se tranquilizassem. Desceram a chalupa e os passageiros nela tomaram lugar.
Ao se aproximarem, avistaram um grupo numeroso na margem, formado sobretudo de mulheres e crianças. Boinas e coifas brancas esvoaçavam na penumbra como um voo de gaivotas.
- Estou vendo Armando - disse a Sra. de Maudribourg. - Engordou mais, o coitado. O passadio deve ser bom em Port-Royal.
Já se podiam imaginar grandes cenas de reencontro. As Moças do Rei já agitavam os lenços, mas alguns homens, armados de mosquetes, gritavam:
- São ingleses? Respondam.
Deram-se explicações à distância, e quando a chalupa acostou estavam todos tranquilizados.
Enquanto Maria, a Meiga, Delfina, a Mourisca, Henriqueta, Joana Michaud e as outras, assim como o seu inseparável Armando, se lançavam aos pés e ao pescoço de sua benfeitora, uma mulher distinta, ainda jovem, embora tivesse o rosto fanado e marcado, sem dúvida pelas inúmeras maternidades, veio ao encontro de Angélica. Pelo traje burguês, sóbrio mas não deselegante, pelo penteado à francesa, que ela protegia apenas com um quadradinho de renda preso por um alfinete enfeitado com um camafeu, Angélica adivinhou que se tratava da Sra. de la Roche-Posay.
— Fico feliz de conhecê-la finalmente - disse a Angélica com cordialidade. - Sempre tivemos bons negócios com Gouldsbo-ro. Trouxe-me notícias de meu marido?
— Infelizmente não. Eu mesma vim com a intenção de fazer-lhe a mesma pergunta.
— Eles acabarão voltando - suspirou a Sra. de la Roche-Posay, filosoficamente. - Os negócios da baía nunca se resolvem sem muitas conversações. Nossos maridos aprenderam a ter paciência com os índios, mas nós, que os esperamos do alto de nosso promontório, às vezes achamos o tempo longo.
A Sra. de Maudribourg agradeceu calorosamente à castelã por haver tomado conta de suas ovelhas em sua ausência. Angélica viu na fisionomia da anfitriã a mesma surpresa que todos tinham sentido em Gouldsboro ao descobrir sob os traços de uma mulher tão jovem e bonita a benfeitora das Moças do Rei.
Levou-as até o solar,- metade de pedra, metade de madeira, construído no local da antiga residência de Champlain e onde residia a família proprietária.
Na sala grande, uma fileira de crianças berii-penteadas e bem-vestidas esperavam. Cumprimentaram as recém-chegadas, as meninas com uma reverência, os meninos com uma impecável saudação.
- Mas é como estar na corte! - exclamou Angélica, adivinhando que estava diante da numerosa prole do Marquês de la Roche-Posay, bem educada péla governanta, a Srta. Radegunda de Ferjac.
Esta ficou felicíssima. Reunia em si todos os sinais da educadora de famílias-nobres, certamente ela mesma de origem fidalga, remontandcra São Luí's_g empobrecida, como a Tia Petronilha, que criara e educara to'das as crianças de Monteloup. De idade incerta, magra, realmente feia, severa, nem por isso parecia má, conforme sugeria Castine.
— Cumprimento-a pelos seus alunos - disse-lhe Angélica. - Nestas nossas paragensfi um autêntico milagre encontrar crianças de França tão bem-educadas.
— Oh, não tenho ilusões! - suspirou a Srta. Radegunda de Ferjac. - Assim que esses meninos cresçam, estarão explorando as matas e correndo atrás das índias, e quanto às meninas, seria preciso mandá-las para um convento ou para a França, para casá-las.
— Eu não quero ir para o convento - disse uma graciosa menininha de oito anos, de ar esperto -, também quero explorar as matas.
— Ela só pensa em andar descalça - suspirou a governanta, acariciando os cabelos bem-penteados em cachos da pupila.
— Eu era assim quando criança - sorriu Angélica -, e acho que ela se entenderia bem com Honqrina.
— Quem é Honorina?
— Minha filhinha.
— Que idade tem?
— Quatro anos.
— Por que não a trouxe com você?
— Porque ficou em Wapassu.
E foi preciso responder a inúmeras perguntas sobre Wapassu e sobre Honorina.
Nesse meio tempo entraram criados, colocando sobre a longa mesa de madeira todo tipo de pratos guarnecidos de vitualhas e púcaros cheios. Nas duas extremidades da mesa havia candelabros de prata acesos.
— Está perfeito, Radegunda - disse a Sra. de la Roche-Posay, satisfeita.
— É para nós toda essa cerimonia? - perguntou Angélica. - Ficamos confusos de lhes dar tanto trabalho.
— É preciso - afirmou a governanta, categórica. - É raríssimo estas crianças terem oportunidade de aparecer em sociedade. Assim que soube que se tinha ouvido a corrente de um navio no porto, mandei as crianças se vestirem e pus as cozinhas em marcha.
— E se fossem os ingleses?
— Nós os teríamos recebido a bala - lançou um petulante garotinho.
— Mas você sabe muito bem que não temos mais munição - censurou-o uma das irmãs mais velhas.
— Oh! Um soldado francês! - exclamaram todos, ao descobrirem Ademar. - Que sorte! Se os ingleses chegarem, teremos alguém para nos defender.
Correram para ele a festejá-lo.
— Você nos ensinará a atirar com o canhão, não é, soldado? - pediram os meninos.
— Quanto tempo ficará conosco? - indagou a Srta. Radegunda, dirigindo-se a Angélica e a Ambrosina. - E que dentro de dois dias daremos uma festinha pelo aniversário do desembarque de Champlain neste lugar. Vamos representar uma peça de teatro e haverá um banquete...
CAPÍTULO XL
Angélica desconfia ter caído numa armadilha - Ambrosina delata traição de Péyrac
Ele não estava ali. Ela sempre soubera que ele não estaria ali! Joffrey! A paz de Port-Royal çaiu-lhe sobre os ombros como uma chapa de chumbo. Uma ideia passou-lhe pela cabeça, fugidia e aterrorizante.
"Uma armadilha! Outra,armadilha!... Colin tinha razão de não querer me deixar partir..."
Tudo lhé pareceu suspeito. A calma do anoitecer, a serenidade bíblica dos moradores, o riso das crianças, a afabilidade da Sra. de la Roche-Posay. Escondiam-lhe alguma coisa. Sabiam! Só ela não sabia. Era irrespirável.
Ela caíra ingenuamente numa armadilha. Quem a preparara?...
Ouviu a Sra. de la Roche-Posay repetir que não tinha notícias do marido e queixar-se mais uma vez de que aqueles senhores exageravam um pouco, aproveitavam o pretexto da situação política para abandonarem as esposas...
O que ela queria fazê-la entender?
Durante o jantar Angélica aguçou o ouvido a essas queixas, procurando adivinhar as palavras, o,sentido oculto, a ameaça ou a advertência...
A castelã dizia que o Sr. de Peyrac era ambicioso, que ela receava que o marido se iludisse, que para um povoado francês tudo aquilo culminaria numa nova incursão dos ingleses, que viriam saqueá-los e arruiná-los a titulo de represália, e que, naturalmente, isso aconteceria na ausência do marquês e num momento em que eles estariam completamente sem munição para se defender.
— O Sr. de la Roche-Posay não lhe deu a entender quanto tempo duraria essa expedição pela baía Francesa? - indagou Angélica, que também se repetia no desejo de vislumbrar alguns raios de esperança.
— Não mais do que seu marido! - gemeu a marquesa. - Esses cavalheiros têm outra coisa na cabeça que não as nossas inquietações.
Angélica convencia-se de que naquelas palavras havia um subentendido ou um aviso que lhe escapava.
Notou que, durante a refeição, Ambrosina de Maudribourg, ao contrário do que lhe era habitual, não tentava dominar a conversa ou conduzi-la para um tema científico, que certamente ninguém lhe teria disputado. Em vez disso, permaneceu em silêncio, não pronunciou palavra, mordiscando com uma expressão de ansiedade e até de angústia no rosto pálido.
Quis acompanhar Angélica até a soleira da casinha que lhe fora destinada e onde tinham colocado sua mala, a sacola e a arca de escalpos de Saint-Castine.
Angélica sentia-a tensa, às voltas com uma grave preocupação.
No momento de despedir-se, pegou as mãos de Angélica nas suas, que estavam geladas.
- Chegou o momento - disse, numa voz a que tentava dar firmeza. - Adiei este momento, mas é covardia de minha parte. Angélica, você não merece que a enganem e que lhe mintam. É por isso que falarei, custe-me o que custar... Tenho muito afeto e respeito por você...
Angélica se acostumara com as preocupações oratórias e com os preâmbulos exagerados da duquesa, mas, curiosamente, desta vez, cada palavra atingia nela um ponto sensível de angústia e apreensão, e um medo enorme a invadiu. Sentia que as pernas lhe fraquejavam, o coração se lhe contraía, essa perda brusca dos sentidos, como um tombo, num pesadelo. O que mais lhe iria acontecer?... O que precisaria ouvir que arruinaria as bases sobre as quais repousavam sua vida e todas as suas afeiçoes?
- Eu não lhe disse tudo quando lhe pedi que me acompanhasse até aqui a Port-Royal - continuou Ambrosina -, na verdade tive medo... Eu sabia que eíe viria... e não me sentia com forças para resistir ao encanto dele... então disse comigo que se você estivesse aqui... seria mais fácil... nós ambos seríamos salvos dessa tentação terrível... E agora que você está aqui, sinto-me um pouco tranquilizada, tenho menos medo... Mas é preciso que a situação fique clara, que você esteja prevenida... Não posso viver na mentira... Já sofri o bastante por ser obrigada a esconder de você as investidas dele... Não é do meu caráter dissimular assim... No entanto, vi-me forçada'., ele me pediu expressamente...
— Mas de quem você está falando? - conseguiu perguntar Angélica.
— Mas... dele - bradou Ambròsina, desesperada -, de quem você quer que seja?
Soltou as mãos de Angélica e cobriu o rosto.
- Joffrey de Peyrac - disse em voz abafada -, seu marido... oh! que vergonha para mim esta confissão..', mas eu não fiz nada, juro, para provocar a paixão dele... Mas, ao encanto de um homem daqueles, como resistir... ou mesmo recusar-me a ouvi-lo... Quando me falava do prazer raro que sentia ao conversar comigo, quando insistia em que eu viesse esperá-lo em Port-Royal,
parecia-me que a" própria inflexão de sua voz me prometia um paraíso que nunca encontrei,.. Que provação para mim, e que impasse nesse-encontío! Não só eu temia, pela minha alma e sua salvação, essa-tentação sutil e deliciosa, mas também em relação a você, Angélica, que'foi tão boa para comigo, e embora ele me afirmasse-que, por um acordo tácito, você e ele são livres em seus amores, eu tinha mil remorsos. Foi uma das razões pelas quais voltei tão impulsivamente para Gouldsboro... Fugir... fugir dele... encontrá-la... Estou pouco-preparada para situações sentimentais perturbadoras como essa...
Deixou que as mãos lhe deslizassem pelo rosto e examinou Angélica com ar perplexo e assustado, procurando adivinhar-lhe os pensamentos.
Angélica não se encontrava em estado de pronunciar uma única palavra.
Sofria de maneira estranha, como que em suspenso, como se não pudesse decidir de que lado ia cair, nem o que devia aceitar ou rejeitar daquelas palavras que lhe trespassavam o coração.
- De certo modo - continuou baixinho Ambròsina -, perdoe-me por dizê-lo, mas admiti que é difícil não ser seduzida e fascinada por um homem como ele. Por um instante até tive a ilusão de que com ele eu poderia ser feliz. Mas, veja, sou franca. Não quero passar por alguém melhor do que sou... Sofri demais por causa dos homens. Acho que há alguma coisa partida em mim... algo de irremediável. Mesmo com ele... eu não poderia... Então por que traí-la vilmente, a você, que é a mais deliciosa das mulheres... Prefiro agir como amiga leal... Quis tomar as mãos de Angélica, que as afastou bruscamente.
— Eu a feri? - perguntou Ambrosina. - Então lhe dedica mais afeição do que eu supunha. Tive a impressão de que havia certa frieza entre vocês.
— Quem lhe deu a entender isso?
— Mas... ele... Quando lhe disse que entendia mal essas declarações da parte dele, o marido de uma mulher tão bela e sedutora, ele me disse que a gente se cansa da beleza quando não vem acompanhada da fidelidade do coração, que há muito tempo ele se resignara a não reclamar de modo algum a exclusividade de sua beleza, que você tinha direito à sua independência.
— Mas isso é loucura! - gritou Angélica, fora de si. - Ele não pode ter dito isso... Não foi ele, não foi ele!... Você está mentindo!
Ambrosina a olhava, aterrada.
— Oh! O que foi que fiz? - murmurou. - Você está sofrendo!
— Não! - lançou-lhe Angélica, feroz. - Para sofrer vou esperar até estar diante dos fatos...
— O que você chama de fatos?
— Que ele mesmo me conte isso.
— Então não acredita em mim? - insistiu a duquesa. E acrescentou com um egoísmo pueril: - Oh, como você me faz mal!...
— Você também me faz mal! - replicou Angélica, num grito que não conseguiu conter.
Tinha a impressão de que ia rebentar. Em gritos, em soluços. Ou cair ali, morta...
Ambrosina finalmente pareceu entender o quanto Angélica fora atingida.
— O que foi que fiz? Oh! O que foi que fiz? Não a imaginava tão apaixonada!... Se soubesse, não teria falado... Preferi avisá-la, por lealdade... Para que você pudesse se defender em tempo... Mas fiz mal...
— Não - disse Angélica, com esforço -, como você diz, é melhor estar prevenida... em tempo!
CAPÍTULO XLI
A Serpente e a tentação da luxúria
Angélica continuava aturdida com as revelações contraditórias. Durante longo tempo, depois de se retirar para a casinha que lhe fora destinada, ficou-sentada no estrado guarnecido de um colchão de sargaços, sem^equer sonhar em deitar-se e procurar dormir um pouco.
" Aturdida era a palawa. Ela flutuava entre duas águas, estava como que hipnotizada. Tentava imaginar Joffrey dirigindo-se a Ambrosina naqueles termos de sedução cujo poder ela conhecia bem, o calor do seu olhar, a inflexão terna é acariciadora de sua voz, que envolvia a jovem num encanto difícil de romper ou do qual fugir.
Parecia ao mesmo tempo plausível e inconcebível... Plausível! O encanto ambíguo, um pouco pungente, misterioso, daquela mulher estranha, surgida das águas, o brilho de seus dentes contra a polpa rosada dos lábios naquele sorriso incerto, tímido e raro, a seriedade de seus grandes.olhos escuros, uma vertigem noturna pela qual muitos homens deviam deixar-se levar, o fascínio de um espírito feminino formado de mil facetas surpreendentes: ciência, sabedoria, puerilidade, alegria e desespero, candura e astúcia, e o que mais... beleza, graça.... tudo para fazer um homem mergulhar de cabeça no abismo aberto sob seus passos.
Era plausível... mesmo para Joffrey dè Peyrac... e, ao mesmo tempo, inconcebível. Porque ele não era assim. Porque a amava, a ela, Angélica. Porque estavam ligados para a vida e para a morte, e ele não podia desaparecer do horizonte dera mais do que o sol podia desaparecer do céu.
Mas em certos instantes vinha-lhe como que a sensação de um eclipse, uma espécie de anestesia do sentimento que lhe subtraía a percepção de suas relações exatas com ele e com os outros. Via-os evoluir à sua volta como num teatro... Quem estava louco? Co-lin, Joffrey, Cantor, os protestantes, o Padre de Vernon, ela?... O que os enlouquecera? De onde vinha essa desordem que atacava cegamente à direita, à esquerda? Devia acreditar em Satã, em seu poder maléfico, prejudicando gratuitamente, como a fantoches incapazes de lutar, seres humanos desorientados?
Disse consigo que estava tudo destruído, que tudo tinha gosto de cinzas e que não se podia saber como isso acontecera.
Ao mesmo tempo, contudo, permanecia firme em sua resolução de não considerar nada em profundidade antes de reencontrar Joffrey.
Estendeu-se sobre o leito com precauções infinitas, como se receasse quebrar, como vidro, o frágil equilíbrio interior que conseguira restabelecer.
Dormiu. Despertou e levou muito tempo para tomar consciência do local onde se encontrava. Lembrava-se do nome Port-Royal, mas não conseguiria entender de que se tratava. Assim que recuperou a memória e a recordação da catástrofe, proibiu-se de pensar nela.
Apenas a vinda de Joffrey solucionaria o dilema, permitiria que ela saísse da semiletargia em que se refugiava, que se entregasse ao desespero delirante que sentia despontar no fundo de seu espírito, esse desespero cheio de gritos e apelos. "Meu amor! Meu amor! Não me deixe... Só tenho a você... a você... a você!"
Ela se proibia esses gritos, que o eco das falésias repetiria, esses gritos de loucura...
Não! Não tinha nada a temer. Bastava esperar, simplesmente, como um náufrago em sua ilha, recusando-se a soltar as rédeas de sua imaginação atormentada. Mas...
...Nunca um dia lhe pareceu tão comprido quanto aquele em Port-Royal, quando cada segundo lhe requereu um esforço de paciência sobre-humana.
Ela conheceria outros, ao mesmo tempo mais angustiantes e mais francamente perigosos do que aquele, mais tarde, no golfo Saint-Laurent.
Mas o dia que se desenrolou com uma lentidão infinita, na quietude do pequeno povoado de Port-Royal, haveria de deixar-lhe para sempre uma recordação pesada, de pesadelo impreciso, impossível de revelar pelas aparências, mas perseguido pela mesma impotência para dissipá-lo.
Ao se lembrar desse dia mais tarde, ela confessaria a si mesma que não teria podido viver dois iguais, naquele estado de incerteza mortal, sem um único indício ao alcance dâ mão que a ajudas se a sair dele.
Graças a Deus! Os incidentes da noite seguinte desencadeariam essa crise embrionária... Ela admitiria com humildade que nunca estivera tão perto de perder o equilíbrio, a fé, a alegria de viver, e de se dar por vencida.
Que foi que ela fez daquele dia, suave ésereno, com perfume de pomar e pão quente, às margens da bacia de Port-Royal, re-fletindo em mil matizes o .azul de, linho de um céu puro?
De manhã, na companhia da Sra. de la Roche-Posay, foi visitar algumas-famílias dó povoado, principalmente as que já viviam há várias gerações! no-lugar. Belas famílias patriarcais, originárias do Berri^ Cretxse ou Limôusin, e hoje fortemente mescladas com sangueindro. "•
Na maioria dos lares-de Port-Royal, a nora revelava sob a coifa branca de camponesa os grandes olhos negros de uma selva-genzinha mic-mac que um belo dia o filho trouxera de suas peregrinações pelas matas.
Devota, ativa, boa dona-de-casa, ela dava à luz belas crianças de cabelos e olhos negros, de pele muito branca, que cresciam comportadamente entre os trabalhos dos campos, a missa do domingo, a fartura do toucinho e repolho. Inúmeros selvagens mic-macs, untados de óleo de foca ou de gordura de urso, que, saindo da floresta, visitavam Port-Royal da manhã à noite, sentavam-se junto à lareira na qualidade de parentes que vinham visitar a família francesa e admirar os hêtos.
Respirava"-se uma forte atmosfera da antiguidade de Port-Royal. As mudas tinham tido tempo de criar raízes e ramificar. Sentia-se intensamente também sua situação fechada, refúgio quase insuspeito, protegido pelo longo promontório que fechava a bacia sobre as margens da qual o povoado" fora edificado.
As agitações e as tempestades do mar e do mundo, que batiam lá atrás, pareciam não conseguir chegar até eles. Quando os delírios da baía Francesa punham todos os navios em perigo, a bacia permanecia calma. No inverno a neve caía com uma mansidão silenciosa, e não congelando-lhe a paisagem.
Esse retiro, essa calma, tiravam aos moradores o gosto de evadir-se rumo ao horizonte.
Com o auxílio dos holandeses, que, ao longo da história, também tinham tklo Port-Royai entre as mãos, os colonos acadia-nos tinham drenado os charcos e criado alqueires de pradarias onde agora pastavam vacas e carneiros, ou onde se estendiam pomares soberbos.
Embora fossem pobres, carecendo numa parte do ano do necessário em ferro, tecidos e munições, sobretudo quando o navio da companhia demorava a chegar da França, certa riqueza bucólica se desprendia daquele ativo povoado francês onde leite, manteiga e toucinho não faltavam de modo algum, onde abundavam frutos e legumes saborosos, onde cada jovem devia fiar e tecer o seu par de lençóis de linho e cada rapaz, saber revestir de ferro a roda de uma carroça antes de serem considerados aptos para fundar um lar.
A Sra. de Maudribourg tentou acompanhar as duas mulheres no passeio. Mas Angélica não estava disposta a se mostrar amável para com ela, embora Ambrosina tentasse ansiosamente captar-lhe o olhar.
O grupo do La Licorne se cerrara firmemente em torno da benfeitora. Apesar de suas ingenuidades e daquele aspecto bem inconsistente de alguns de seus atos, que Angélica talvez fosse a única a conhecer, a duquesa realmente tinha uma ascendência excepcional sobre sua comitiva, uma autoridade à qual não escapavam o secretário de óculos, nem a velha Petronilha Damourt, ou mesmo o rude Job Simon.
- As Moças do Rei são honestas, instruídas, polidas - observou a Sra. de la Roche-Posay quando o grupo se afastou na companhia da Sra. de Maudribourg. - Eu bem que conservaria algumas para os nossos jovens, mas a protetora delas não parece disposta a consentir. Contudo, não hesitou em enviá-las para mim sem me dar explicações. Tive que vesti-las e alimentá-las por vários dias às minhas custas. Ela.é um pouco estranha, não lhe parece?
Vanneau tentava encontrar-se com Delfina du Rosoy a sós. A tarde Angélica subiu com as crianças De la Roche-Posay a íngreme encosta do promontório que apoiava o vilarejo.
Lá de cima avistava-se, de um lado, por entre as folhagens agitadas pelo vento, o mar verde e sempre tempestuoso da baía Francesa, do outro a calma extensão da bacia, brilhando como um lago polido, entre os troncos das árvores.
Nenhuma vela no horizonte. Apenas alguns barcos de pesca. Desceram de volta ao povoado.-.Os "meninéi De la Roche-Posay entendiam-se muito bem com Ademar. Para não decepcioná-los, pois sempre se enternecia com ás crianças, ele consentiu em examinar com eles o canhão dá plataforma de uma torrinha angular que, em teoria, defendia o porto. Apesar de tudo, ele aprendera muita coisa ao longo dos seus anos de serviço forçado. Pôde explicar-lhes o manejo da engenhoca, como limpá-la, muni-la, acendê-la. Procurando-bem, descobriu aqui e acolá algumas balas, que os meninos' empilharam em--pequenas pirâmides perto do canhão. Aos poucos á cena adquiriu um ar tranquilizador.
- Ainda bem .que você veio, soldado - diziam as crianças. - Com o pretexto de*que não há munição para repelir o inimigo, nossa defesa foi por água abaixo...
Ademar exultava.
O dia passou assim, lento, suave, insuportável. Ao entardecer, o céu nublado carregou-se de uma tensão infernal, os rostos serenos dissimulavam medos incomunicáveis. Era secreta, invisível e horrível, como tudo o que ocorrera nos últimos tempos. Acontecia no fundo da alma de cada um, cada um achando que era o único a saber. A tensão estagnaria ali por longo tempo antes de emergir à superfície da realidade na forma de crime, luxúria, desastre ou traição.
No entanto, a refeição da noite, no salão do solar, foi uma recepção agradável. Além de Angélica e da duquesa, a Sra. de la Roche-Posay convidara alguns notáveis da terra, os capelães, o secretário Armando Dacaux.
Cantor também estava presente. Foi ele quem desencadeou a tempestade entre os homens, enquanto a que girava no céu em grandes nuvens pesadas de chuva não se decidia a rebentar e só se anunciava por roncos surdos e relâmpagos mudos e espasmódicos. Um vento morno fazia ondular-os campos de trigo e as hastes de tremoços rosa, azuis e brancos que abundavam, belos e grandes, dando a toda a aldeia um ar de festa permanente.
Os manjares eram finos na casa dos fidalgos: caranguejo temperado com umâ pitada de gengibre e um filete de licor, um pernil de veado assado, saladas em abundância e, em cestos, as famosas cerejas de Port-Royal, de uma bela cor viva. Com a sobremesa, a Sra. de la Roche-Posay mandou servir um vinho extraído da vinha selvagem. Era negro como tinta e bastante capitoso. A conversa logo se animou. Como boa anfitriã, a castelã dava aos convivas a ocasião de brilhar. Ouvira falar da reputação de erudita da Sra. de Maudribourg e fez-lhe algumas perguntas nada tolas.
Imediatamente Ambrosina se lançou a um tema árduo, mas que apresentava com tanta habilidade, que em certos instantes cada ouvinte imaginava ter um espírito particularmente aberto para as ciências matemáticas. Com o auxílio do seu encanto pessoal, ela reteve a atenção geral. Angélica revia a cena ocorrida na praia de Gouldsboro, quando Ambrosina falara da atração da Lua sobre os mares.
O olhar atento de Joffrey cravado em Ambrosina. Foi tão insuportável, que ela preferiu expulsar a visão. Aliás, foi nesse ponto que Cantor explodiu. Ambrosina evocava sua correspondência com o sábio Kepler. Cantor exclamou:
- Outra vez essa tolice! Kepler já morreu há muito tempo, em 1630...
Interrompida, Ambrosina o olhou com espanto.
- Se eu não morri, ele também não morreu - disse, com um leve sorriso. - Ainda recentemente, pouco antes de eu partir da Europa, recebi uma carta sua, tratando das órbitas dos planetas.
O rapaz deu de ombros, furioso.
— Impossível! Ele foi um sábio do século passado.
— Estaria você mais bem informado sobre os sábios do que seu pai?
— Por quê?
— Porque ele próprio me disse que manteve correspondência com Kepler.
Cantor ficou roxo e ia retorquir violentamente quando Angélica o interrompeu com firmeza.
- Cantor, basta! É inútil discutir sobre isso. Afinal, os nomes dos sábios alemães são parecidos. A Sra. de Maudribourg e você devem estar fazendo uma confusão. Não falemos mais nisso.
A Sra. de la Roche-Posay mudou de assunto, propondo um copo de rossolis. Eram as últimas gotas do tonel que recebera da França no ano anterior. Se o navio da companhia demorasse a chegar...
- Os jovens daqui têm o sangue quente - disse ela, depois que Cantor, pedindo licença cortesmente, saiu da sala. - A vida que levam os faz destemer toda autoridade e até desprezá-la, de onde quer que venha.
Os pernilongos começavam a zumbir no crepúsculo cortado por relâmpagos silenciosos. Os convidados despediram-se. Angélica foi à procura de Cantor-, que estava alojado num pequeno alpendre ao lado de uma granja. Teve a sorte de encontrá-lo.
— Que mosca o mordeu há pouco para se. .mostrar tão insolente com a Sra. de Maudribourg?... Por pirata ou explorador de floresta que se considere, não se esqueça de que é cavalheiro e que foi pajem do rei. Você deve cortesia às senhoras.
— Tenho horror às mulheres sabidas - disse Cantor, em tom de superiedade.
— Só porque um diarprecisamente na corte, você viu as comédias do Sr: Molièrer .
— Ah, eu me-lembro, foi engraçado - e Cantor se animou com a recordação. Depéislimuou-se de novo. - O que não impede que fosse- memor não ensinar as mulheres a ler.
— Ah, que belo homem você me sai! - exclamou Angélica, desmanchando-lhe o cabelo com uma alegria mesclada de irritação. - Você gostaria de mê ver-tola e" incapaz de decifrar o menor rabisco?
— Com você não é a mesma coisa - replicou Cantor, com o ilogismo dos filhos que adoram a mãe. - Mas uma mulher é incapaz de amar o saber por si mesmo. Elas se servem do saber, como aquela lá, para se enfeitar como com plumas de pavão, e seduzir melhor os homens imbecis que se deixam engodar.
— A Sra. de Maudribourg certamente possui uma inteligência superior... - disse Angélica com prudência.
Cantor apertou os lábios e desviou a cabeça, com ar amuado. Angélica sentiu que ele estava ardendo .paxá dizer alguma coisa, mas calava-se porque "naturalmente ela não poderia entender. Deixou-o, lembrando-lhe mais uma vez que as qualidades de um jovem senhor também comportam a de mostrar-se polido em sociedade.
Cantor tinha o dom de irritá-la e mesmo de desencorajá-la com a insatisfação que sentia com a conduta do próximo.
A noite tinha sobre os ombros de Angélica um peso de chumbo. Parecia-lhe espessa e como que ameaçadora, e cada casa, fechada sobre a luz da lareira, era hostil, abrigava um inimigo oculto, que lhe acompanhava a marcha com o olhar. Em que residência se escondia ele, preparando suas armadilhas?
Ela correu. Tinha pressa de se refugiar em sua casinha a até se entrincheirar lá dentro, o que era bem tolo.
Antes de chegar lá, tinha que atravessar um pátio atrás da casa principal e, para sair dele, uma espécie de passagem abobadada, bem longa. Enquanto atravessava essa paisagem, teve a sensação de que alguém a espreitava, enfiado na densa escuridão.
Foi o tempo instintivo de registrar a advertência e já dois braços - horror! - a agarravam por trás, paralisando-lhe os movimentos. A força deles era irresistível. Dir-se-ia tratar-se de duas serpentes ardentes, tentando enlaçá-la para sufocá-la. A escuridão era profunda sob a abóbada. Não se enxergava nada. E, sob o impacto de uma surpresa aterrorizante, Angélica não conseguia emitir som algum. Aquele abraço lhe causava uma sensação indescritível e inusitada.
Não eram braços de homem!
Eram macios, quentes e femininos, assim como a voz que lhe falava ao ouvido - Angélica não saberia dizer em que língua - e que lhe causava a mesma impressão de medo e repugnância, como se estivesse prestes a deslizar vertiginosamente para uma armadilha mortal de onde nenhuma força humana poderia salvá-la. A sensação foi tão intensa e terrível, que ela talvez tivesse desfalecido de horror e repulsa se um relâmpago súbito, cortando as nuvens no horizonte, não iluminasse a escuridão da passagem e, sob o clarão, Angélica não reconhecesse, perto do. seu e examinando-o com espanto, o rosto de Ambrosina de Mau-dribourg.
— Ah, é você! - conseguiu articular, enquanto lhe parecia que era com dificuldade que o sangue voltava a circular-lhe pelas veias. - Por que me deu esse, susto estúpido?
— Susto? Que susto, minha cara? Eu a esperava para despedir-me de você, foi tudo, e você andava tão depressa, imersa em seus pensamentos, que tive que pará-la.
— Que seja! Desculpe-me - disse Angélica, com frieza -, mas... é infantil. No futuro, seja mais simples! Deu-me tanto medo, que ainda estou tremendo.
Tentara dar alguns passos, mas notava que tinha as pernas pesadas como chumbo, que já não a aguentavam. Precisou apoiar-se na entrada da passagem. Respirou o ar mais fresco, procurando acalmar as batidas desordenadas de seu coração. Mas essa noite o ar estava opaco, pesado", carregado de odores exacerbados pela tempestade, e não a aliviava. Continuou a sentir-se prestes a desfalecer, dominada por aquela angústia que lhe retirava até a faculdade de raciocinar, e quando .seu olhar voltou a pousar no rosto de Ambrosina, alçado para ela, o medo voltou-lhe.
Era sutil e ainda incerto. A luz baça do fogo que ardia baixo na lareira da casinha onde ela estava instalada e que chegava até elas pela porta aberta-, lançando, clarões intermitentes, um pouco rosados, e mesmo a luz das estrelas entre as nuvens e seu reflexo na superfície do maf criavam à volta de Angélica e de Ambrosina uma semic-la-ridade 'rasgada por vezes por um relâmpago ofuscante esilericipso," jorrado do horizonte noturno. Bem depois, e longe, "õuviãm-seos ronco^ abafados da tempestade. No entanto, mesmo quando a-escuridão voltava a imperar, Angélica podia ver Ambrosina, graças à fosforescência da noite, onde se mesclavam os diferentes reflexos dos elementos, e parecia-lhe que a brancura daquele rosto se intensificava a ponto de também emitir uma luz anormal, e que o-fogo sombrio das pupilas estranhas, onde dormia um clarão dourado, acentuava-se, carregando-se de um poder maléfico que deixava Angélica incapaz de escapar-lhe ao feitiço.
- Você está irritada comigo - disse Ambrosina, com a voz alterada -, você se afastou de mim, eu sinto isso e é horrível!... Por quê, por quê? Em que a feri? Não tive a menor intenção disso!... Como me deixam indiferente as homenagens que não podem emocionar-me o coração, enquanto um único sorriso seu me é mais precioso, mais delicioso, do que tudo no mundo... Mulher maravilhosa!... Como a esperei!... Como a esperei!... E finalmente você está à minha frente, contra mim, tão bela. Não me julgue... eu a amo...
Passara os braços à volta do pescoço de Angélica e sorria. Seus dentes pequenos brilhavam como pérolas, cintilavam como estrelas.
As palavras pareciam vir de muito longe, como que trazidas por um vento sombrio e estranho.
Angélica sentiu que sua pele se arrepiava.
Era como se em torno de Ambrosina dançassem línguas de fogo que se reuniam, escrevendo palavras contra o fundo fosforescente da noite... aquelas palavras que a rodeavam desde que ela pusera os"pés na América, aquelas palavras que ela lera, escritas pela mão do jesuíta na carta ao Padre d'Orgeval, aquelas palavras loucas, sem significado, palavras rituais, inverossímeis, ridículas e que," surgindo-lhe subitamente do pensamento, impunham-se a ela com uma certeza assustadora': a Diaba! o espírito súcubo!
— Você não me está ouvindo - disse Ambrosina de repente -, está parada aí, fitando-me com ar espantado. Que foi que eu disse de tão assustador?
— O que foi que você disse?
— Disse que a amava. Você me lembra nossa madre abadessa... Era belíssima, muito fria, mas havia um fogo terrível por trás do seu rosto impassível.
Deu uma risadinha, um pouco ébria.
- Eu gostava quando ela me tomava nos braços - murmurou.
Sua expressão mudou de novo e outra vez aquela espécie de aura, que talvez só fosse visível aos olhos de Angélica, pareceu brotar de toda a sua pessoa, sobretudo do rosto, dos olhos e do sorriso, irradiando uma exaltação apaixonada.
- Mas você é ainda mais bela - disse Ambrosina com ternura.
Um sentimento indefinível a transfigurava, a ponto de Angélica dizer consigo que nunca conhecera antes criatura tão bela. Havia algo de supraterrestre naquilo. "A beleza dos anjos", pensou.
E o coração fraquejou-lhe, mas desta vez pelo impacto de uma sensação desconhecida, a de se desprender da terra para comunícar-se com o mundo irreal, invisível aos seres humanos. Com um impulso interior, como o que dá um afogado no mar para retornar à superfície, escapou à vertigem. O medo recuara diante de um sentimento de intensa curiosidade.
- O que você tem, Ambrosina? Não está no seu estado normal esta noite. Parece possuída.
A jovem soltou uma gargalhada estridente, mas que se abrandou.
- Possuída! Que palavra forte!
Um sorriso indulgente brincava-lhe nos lábios.
- Como você é emotiva, minha amiga, e como seu coração bate! - disse, pousando a mão sobre o seio de Angélica.
Uma ternura ardente vibrava-lhe na voz.
- Possuída, não. Mas fascinada,?.. Com certeza. Fascinada por você! Sim, estau. Não compreendeu de imediato? Assim que a vi na praia, lá em Gouldsboro, tombei sob seu domínio e minha vida adquiriu outro sentido. Amoo.seu riso, tão alegre, a sua violência, o seu fervor perante a vida, a doçura dos seus gestos para com os outros... MaV acima, de tudo, a sua beleza me transtorna...
Encostou a cabeça ao ombro de Angélica.
— Sonhei tanto com este gesto - murmurou. - Quando você falava de Honorina„ sua filha, eu sentia ciúme. Queria estar no lugar dela e sentir ó calor do seu corpo! Estou com frio - disse com umarrepio. - O mundo é povoado de terrores. Apenas você é o "refúgio e a Volúpia.
— Você perdeu a razão -disse Angélica, que não conseguia se soltar. Invadia-a uma sensação de quase sonho. Através do tecido da blusa, sentia as unhas de Ambrosina.arranharem-na ligeiramente, e a seus ouvidos o ruído era terrível.
Para soltar aquelas mãos que se agarravam a ela e forçar a mulher a recuar, precisou fazer um esforço imenso.
— Você bebeu demais esta noite. Aquele vinho selvagem era forte.
— Ah, não comece a- se comportar de novo como dama de grande virtude! Com certeza que isso lhe cai à maravilha. Você sabe compor bem sua personagem de sedutora. Todos os homens se deixam fascinar. Gostam da virtude, contanto que esteja pronta a fraquejar diante das paixões deles. Mas entre você e mim não há necessidade dessas astúcias, não. é? Somos as duas bonitas e gostamos do prazer. Você nãome concederá um pouco da sua amizade, apesar do que lhe disse ontem?
— Não, não posso. '
— Por quê? Por que não, minha bem-amada?
Ria aquele risinho suave e baixo que .tinha algo de carnal, de enfeitiçante.
Um relâmpago que veio projetar-se no canto escuro onde se desenrolava o diálogo, um clarão cru e ofuscante, mostrou novamente aos olhos de Angélica aquele rosto transformado por um sentimento de paixão indescritível e que ornava Ambrosina de Maudribourg de uma beleza sobrenatural. Sim, Angélica realmente nunca vira antes uma criatura tão bela. Era ela agora quem se sentia fascinada.
- Por que não? Os homens têm tanta importância para você? Por que parece tão desconcertada pelo meu desejo? Você não é ingénua, que eu saiba. E é sensual. Viveu na corte, até atendia aos prazeres do rei, ao que me disseram. A Sra. de Montespan contou-me a seu respeito inúmeras passagens-libertinas. Você as teria esquecido... Sra. du Plessis-Belliere?... Sabendo o que sei sobre você, não posso crer que recuse um instante de prazer quando ele se apresenta...
Aproveitando-se do estupor de Angélica à menção da Sra. de Montespan e da sua vida passada na corte, a Duquesa de Maudribourg soltou os pulsos das mãos que os retinham.
Esfregou-os suavemente, como se o aperto de Angélica os tivesse machucado, e seus olhos ardentes continuavam a observar a outra mulher na penumbra, entrecortada de clarões fulgurantes.
Uma súbita expressão de amargor retorceu-lhe a boca.
- Por que você se mostra tão fria? Se um homem a acariciasse já estaria vibrando de outra maneira, tenho certeza. Nunca gozou desses prazeres pela mão de uma mulher? É pena! Têm seus encantos.
Soltou outra gargalhada, ao mesmo tempo irritante e sedutora.
- Por que deixar apenas aos homens a preocupação de nos fazer felizes? São tão pouco dotados, os pobres boçais!...
E riu de novo, mas desta vez com um estrépito brusco, rangente, metálico.
-A ciência deles é tão curta! Enquanto a minha...
Aproximou-se de Angélica e seus braços lisos, de tépido perfume, enlaçaram-na de novo.
- A minha é infinita - soprou.
Seus braços eram de uma suavidade aveludada, mas essa mesma suavidade provocou em Angélica um horror inexprimível.
Como pouco antes, quando fora detida no pórtico, tinha a impressão de que uma serpente flexível e de força irreprimível se enrolava nela, enroscando-se com uma sensualidade egoísta em seu corpo, oprimindo-a com um abraço melado e ávido.
Quem disse que as serpentes são frias, viscosas? Aquela ali, animada de uma vida calorosa, de uma ternura perturbadora, de um encanto insinuante e imperioso, com a luz fixa e irradiante do seu belo olhar humano fito nela, aquela, Angélica sabia, era a
Serpente, surgida das brumas encantadas do Éden, dos esplendores do jardim sem nome, dos primeiros dias do mundo, quando desabrochavam todos os esplendores da criação, quando toda carne era inocente...
Foi tão forte a impressão, que nao se espancou áo ver uma língua bifurcada deslizar sutilmente por entremos lábios vermelhos entreabertos de Ambrosina.
— Você saberá tudo - disse aquela boca perto da sua - e eu lhe deverei tudo. Não me recuse a única volúpia que posso conhecer na terra.
— Solte-me - disse Angélica -, você está-louca.
Os braços que a aprisionavam relaxaram o aperto e a visão ao mesmo tempo assustadora e paradisíaca pareceu apagar-se, enquanto a noite trespassada de relâmpagos voltava a fechar-se. Os sons e os movirnentos da.realidade ao redor retornaram à percepção de Angélica:- ocanto estridente dos grilos, o sussurrar das ondas na areia:
Mal notou o ruído de-passos-que se afastavam, enquanto a silhueta de uma mulher correndo se fundia com a noite, como um fantasma branco.
CAPÍTULO XLII
Cantor revela a verdadeira face do demónio
Angélica viu-se sentada em seu leito de sargaços, na casinha de ripas. Estava atordoada. Ao mesmo tempo, porém, o incidente que acabava de ocorrer, e que ela ainda não tinha certeza de que não sonhara, havia como que dissipado a tensão opressiva que a atormentara o dia todo. A sensação que tinha era a de que caíra brutalmente com os pés no chão, e junto com isso vinha algum alívio. Inúmeras vezes fizera a si mesma a pergunta angustiante: "Quem é que está louco?... Colin, Joffrey, eu,- os ingleses, os hunguenotes, o Padre de Vernon?" De repente a resposta brilhava com uma claridade evidente. Ela é que era louca. Ela, a Duquesa de Maudribourg.
E sob essa luz muita coisa parecia voltar a seu lugar: as palavras de Colin e as dos piratas que a duquesa pretendia haver surpreendido, bem como as palavras que atribuíra a Joffrey, e até as palavras de Abigail, encarregada de se informar, da parte dos protestantes, se a Moças do Rei permaneceriam em Goldsboro, uma desconfiança que ferira Angélica. De súbito lhe passara pelos olhos, fugidiamente, o rosto altaneiro do jesuíta, franzindo o cenho quando Angélica lhe dissera: "Você se opôs a que as Moças do Rei ficassem em Goldsboro". E ele: "Eu? Não me envolvi nesse assunto..."
Mas fora Ambrosina quem dissera a ela: "O Padre de Vernon se opõe absolutamente à ideia... Receia pela alma de minhas moças".
Mentiras!... Travestimento da verdade e das aparências pela habilidade de uma esperança desnorteada.
Era bastante inesperado que a revelação de um aspecto insuspeito da personalidade da duquesa, suas inclinações a paixões culposas, que Angélica jamais lhe teria atribuído, lhe revelassem ao mesmo tempo, como proveniente de fonte segura, que dela vinham todas as mentiras. Mas havia uma lógica naqueles acontecimentos turvos e decepcionantes. A transformação de Ambrosina não era uma transformação. Sua primeira atitude, a que adotara diante de Angélica, de jovem dedicada às boas obras, piedosa, devotada, um pouco exaltada na religião, depois desvendando aos poucos os tormentos ocultos em sua alma machucada, era essa personagem a mentira. A verdadeira Ambrosina era aquela que ainda há pouco pronunciara palavras tão espantosas...
"Mas que palavras espantosas?", perguntava-se ela, novamente desconcertada e duvidando que estivesse entendendo bem a situação. Uma criatura desequilibrada, desnorteada depois de libações um tanto generosas demais, abandonando-se a declarações amorosas insólitas,"de que se.emvergonharia no dia seguinte.
Não, não era nisso-que residia a solução do mistério... Louca, desequilibrada, sim, -mas daí a ácusá-la de todo o peso da cabala sangrenta e nitidamente orquestrada que visava a ela e a Joffrey, não era cair nó excesso contrário?...
Depois, uma confissão tombada da boca de Ambrosina voltou-lhe à memória: "Somos as duas bonitas e gostamos do prazer..."
Então, por um instante, pareceu-lhe que tivera entre as mãos a verdadeira Ambrosina e não mais aquela de grandes olhos de gazela acuada que gemia: "Não posso suportar que um homem me toque... Você não pode saber o que é ser uma criança de quinze anos entregue a um velho lúbrico".
Aquela que lhe inspirara piedade. Quem era ela? Perigosa, amoral ou digna de pena?
Como saber a verdade? Quem poderia falar sem rebuços de Ambrosina de Maudribourg? Seus protegidos a amavam e era visível que a veneravam.
Angélica dava-se conta de que nunca falara com ninguém sobre a Duquesa de Maudribourg, sobre a opinião que tinham dela. Não falara sequer com Abigail ou com Joffrey.
Joffrey simplesmente lhe dera sobre o Duque de Maudribourg, o marido, informações que correspondiam ao que, mais tarde, a própria Ambrosina revelara. O conde também reconhecera que ela era muito preparada.
Mas o que ele pensava da benfeitora, ela ignorava. Perceber isso causava-lhe uma impressão desagradável, como toda vez que em pensamento associava o nome de Ambrosina ao de Joffrey. Seu marido não lhe dissera tudo sobre aquela mulher, e até lhe parecia que quisera ocultar-lhe alguns fatos. Fora tola então? As pessoas não falavam de Ambrosina de Maudribourg, isso era fato. Acaso ou reflexo, de receio ou de incerteza?
Evocava a cena na praia de Gouldsbaro, quando vira os olhos de todos os homens presentes, inclusive os de Joffrey, fitos em Ambrosina. Será que naquele instante eles a viam. conforme ela a vira há pouco? Transfigurada por uma espécie de chama interior e uma alegria sobre-humana?
"Meu Deus! Como ela é bonita!", pensou.
Que homem poderia resistir à atração daquela beleza ao percebê-la? Estaria ali o encanto de que se orna toda mulher quando ama de fato e é possuída pelo desejo?... Será que eu fico com aquela cara, quando Joffrey me toma nos braços? Sim, talvez?"
Mas a anomalia não provinha apenas disso. Uma mulher usando de seus encantos, retendo a atenção... não bastava para que Angélica logo gritasse: "É ela que é louca! As mentiras, todas as mentiras, é ela..."
Então, pensando de novo na cena recente que se desenrolara entre elas, entendeu que o insólito, o anormal era o medo absolutamente indescritível que sentira quando Ambrosina a abraçara.
Ora, o fato em si não justificava tanto medo, embora fosse bastante para surpreendê-la, pois em nenhum instante sequer lhe passara pela cabeça a ideia de que a piedosa encantadora viúva pudesse sacrificar ao culto de Safo.
Pelo contrário: se tivera uma desconfiança fora por temer o poder do fascínio de Joffrey sobre uma natureza que parecia dotada de todos os atributos da sedução feminina: beleza, juventude, inteligência, graça, puerilidade - e que poderia, por sua vez, utilizar suas armas para conquistar aquela personagem excepcional, aquele grão-senhor do fim da mundo que muito poucas mulheres podiam considerar com indiferença.
Angélica temera por Joffrey. Agora tinha de admitir isso com franqueza. E eis que era a ela que Ambrosina fazia suas declarações...
Havia motivo para espanto. Mas não para se petrificar de terror, como ocorrera.
Ao longo de sua existência, principalmente de sua vida na corte, precisara safar-se de situações mais espinhosas do que a recusar os avanços amorosos de uma mulher. Na corte reinavam todos os prazeres. Era o veneno com que se inebriava aquela multidão ávida, louca por contentar os sentidos solicitados por todos os gozos terrestres.
Cada um bebia da taça;que lhe parecia mais saborosa ou que parecia prometer maissensaçõesínovas. O décimo mandamento . era infringido de todas as maneiras, 'assim que o corpo estivesse em jogo. A ideia de pecado acrescentava uma pimenta suplementar aos deliciosos êxtases dos sentidos, bem como o medo do inferno, do qual, naturalmente, todos queriam escapar. Felizmente os capelães estavam lá para isso...
Naquele bale meio Celeste, hieio infernal que se dançava em Versalhes, a beleza de Angélica inúmeras vezes a pusera na con
tingência de causar cr-uéis_decepções. Mas isso fazia parte das regras do jogo.
Com a experiência, .í também orientada pelo instinto natural, o respeito inate_que sentia pelo próximo e que a tornava indulgente com as paixão humanas, contanto que não houvesse crueldade envolvida, eh adquirira a ciência de preservar a própria liberdade e sentimentos sem criar inimigos. Exceto o rei, evidentemente! Mas isso era outra história.
Por que, então, aquele pânico que a paralisara a ponto de até deixá-la por um instante sem reação, como um coelho estúpido diante da serpente?
A serpente! Novamente essa imagem! "E porque ela é louca, sem dúvida alguma... A verdadeira loucura dá medo... Não, já tive medo na vida e já topei com loucos... Mas há pouco era outra coisa! Era como todos os terrores misturados... O mito aterrorizante! O Mal!.., Quem é ela?"
Levantou-se, tomada de súbita inspiração. Havia alguém em Port-Royal que talvez lhe pudesse falar abertamente sobre a Duquesa de Maudribourg, alguém que a detestava cordialmente e não escondia isso. Conhecer as razões dessa antipatia talvez ajudasse Angélica a fazer um julgamento mais exato sobre a estranha criatura.
Saiu da casa. A tempestade longínqua continuava a roncar no fundo do horizonte tenebroso. Mas um silêncio sutil pesava sobre o povoado. Parecia que em Port-Royal se dormia profundamente, e com a consciência limpa.
Desceu a encosta até as primeiras casas que bordejavam a praia.
Ao aproximar-se do alojamento de Cantor, viu brilhar a lâmpada por trás da lucarna entreaberta e parou. Ele estaria sozinho? Vá-se saber, com esses jovens! Mas, dando uma olhada lá dentro, sorriu. Pois-ele adormecera com a mão ainda estendida na direçào de um enorme cesto de cerejas* quexolocara perto da cama, sobre um escabelo. Apesar da forte musculatura do belo corpo de adolescente, sobre o qual ele atirara com negligência uma coberta, aos olhos dela continuava parecendo o pequeno Cantor bochechudo, que adormecia como um anjo, toda noite. No emaranhado de seus cachos de um louro queimado, o rosto bronzeado, a boca carnuda, um pouco amuada - a boca dos Sancé de Monteloup -, pálpebras com longos cílios sedosos conservavam a candura da infância.
Ela entrou sub-repticiamente na cabana e foi sentar-se à cabeceira dele.
- Cantor!
Ele teve um sobressalto, abriu os olhos.
- Não tema nada. Só vim lhe pedir um palpite. O que você pensa da Duquesa de Maudribourg?
Pegava-o de surpresa, para que ele não tivesse tempo de desconfiar e de se fechar sobre si mesmo, como de hábito.
Ele se sentou, meio apoiado num cotovelo, e olhou-a com ar desconfiado, apesar de tudo.
Angélica pegou o cesto de cerejas e colocou-o entre eles. Os frutos faziam bem à vista e ao palato. Eram enormes, brilhantes e de um vermelho realmente cintilante.
- Dê-me a sua opinião - insistiu. - Preciso saber o que você sabe sobre ela.
Ele demorou-se o tempo de morder duas cerejas e cuspir-lhes os caroços.
- E uma puta - declarou afinal, solene -, a puta mais temível que já conheci na vida. ,
Angélica não se atreveu á comentar que a vida dele contava apenas quinze anos e que, nesse domínio em particular, era mais curta ainda.
- O que você quer dizer com isso? - indagou em tom neutro, enquanto pegava um punhado de cerejas e contemplava na palma da mão o cintilante vermelho de rubi.
— Que ela investe contra os homens - disse Cantor -, até meu pai... Ela tentou... e até a mhru-
— Você está louco! - exclamou Angélica, com um sobressalto. - Quer dizer... Quer dizer-que ela lhe fez propostas?
— Claro! - afirmou Cantor, com um misto de indignação e satisfação ingénua. - Por que não faria?
— Um garoto de dezesseis~anos...'Uma mulher daquela idade... e depois... não, é impossível, você está perdendo a cabeça?
Quem era louco?... Todos, ao que parecia,.Embora, a partir daquela noite, estivesse preparada para ouvir tudo, era brutal demais a transformação da-imagem que construíra de Ambrosina de Maudribourg, piedosa, pudica e até frígida, distanciada do amor e dos homens, um pouco infantil, afetada, senhora dada às boas obras, Ambrosina, ajoelhada7recitando o terço durante horas com toda a sua comitiva fíel...
— As Moças do Rei têm um respeito por ela,: uma consideração filial... Se ela fosse assim... ela^ saberiam...
— Não sei como é que-elas se entendem - disse Cantor -, o que eu sei é que ela virou tudo do avesso em Gouldsboro. Não houve um homem que não fosse alvo das investidas dela, e quem sabe quantos não sucumbiram... Tenho minhas ideias a respeito e não contribuem em nada-para aumeHtar minha estima por certas pessoas...
— Mas é uma loucura! - repetiu Angélica. - Se tudo isso acontecesse em Gouldsboro nestes últimos tempos, eu teria notado...
— Não necessariamente!
E acrescentou, com uma sagacidade surpreendente:
— Quando todo mundo mente, ou tem medo, ou vergonha, ou se cala por uma razão qualquer," é difícil ver com clareza. Também a você ela soube levar à sua maneira. No entanto, odeia-a a um ponto que acho impossível superar... "È sua mãe que lhe quer bem-comportado?", dizia-me ela, quando lhe repeli os avanços. "E você quer obedecer como um bom menininho. Como é tolo! Ela não pode guardá-lo para si.-Acha que todo mundo a ama e que todo mundo cede de boa vontade ao seu poder, mas no fundo é fácil enganá-la, enternecendo-lhe o coração."
— Se ela disse isso - exclamou Angélica, sufocada -, se lhe falou assim... a você... meu filho, então ela é realmente diabólica!
- Sim, é! - afirmou Cantor.
Afastou a coberta e pegou os calções.
- Venha comigo - decidiu ele -, acho que a esta hora da noite poderei fornecer-lhe algumas provas interessantes sobre ela...
Atravessaram uma parte do povoado. Instintivamente andavam sem ruído, conforme tinham aprendido em contato com os índios.
A noite ainda era profunda. Muitas velas, das que ardiam longo tempo, tinham-se apagado. Cantor parecia enxergar no escuro como os gatos. Guiava a mãe com segurança. Alcançaram uma espécie de pracinha, onde as casas se espaçavam ao pé. da colina.
Cantor apontou uma delas, bem ampla de aparência, com um pequeno alpendre de madeira. Erguia-se sobre os primeiros degraus da encosta que subia na direção das árvores e do cume do promontório.
- É ali que a benfeitora está alojada - cochichou Cantor -, e aposto como a esta hora da noite ela não está sozinha, mas em companhia galante.
Mostrou a Angélica um rochedo atrás do qual ela poderia se esconder sem perder de vista os acessos à casa.
- Vou bater na porta, na frente. Se, como presumo, houver um homem lá dentro, que não gostaria de ser reconhecido, ele fugirá pela janela de trás. Você não poderá deixar de vê-lo é reconhecê-lo, pois há bastante luar atravessando as nuvens...
O rapazinho distanciou-se. Angélica esperou, de olhos fitos no fundo escuro da casa.
Os instantes se escoaram. Depois houve certo alvoroço e, conforme Cantor previra, alguém passou a perna por cima da lucar-na, pulou e saiu em disparada. De início Angélica achou que o fugitivo estava de camisola, mas logo reconheceu, flutuando ao vento, a sotaina do Irmão Marcos, o recoleto capelão do Sr. de Saint-Aubin no rio Sainte-Croix. Na pressa, ele nem tivera tempo de amarrar o cordão à cintura.
Angélica ficou boquiaberta.
— E então? - perguntou Cantor um pouco mais tarde. Ele se deslocava tão rápida e silenciosamente, que ela não o ouvira aproximar-se.
— Estou sem palavras - confessou ela.
— Quem era?
— Mais tarde lhe direi.
— Acredita em mim agora?
— Sim, claro!
— O que vai fazer?
— Nada... Nada por enquanto. Preciso refletir. Mas você tinha razão. Obrigada pelo auxílio.,E um bom garoto. Lamento não ter pedido seu conselho mais cedo.
Cantor hesitava em deixá-la. Sentia que a mãe estava mortificada e quase se arrependia do êxito total de sua astúcia.
-Vá - insistiu ela -, vá deitar agora, vá dormir com as suas cerejas.
E enterneceu-se ao vê-lo afàstar-se5 tão jovem, tão puro, tão íntegro ainda. Tinha a retidao e a beleza do arcanjo justiceiro.
Quando ele desapareceu na noite,'Angélica se encaminhou para a casa, subiu os degraus do alpendre e bateu.
Do interior ouviu:se a voz de Ambrosina, irritada.
— Quem é,-afinal? Quem está batendo?
— Eu, Angélica.
— Você!...
Ouviu Ambrosina levantar-se e pouco depois a duquesa puxava o ferrolho é entreabria' a porta.
A primeira coisa que;Angélica notou ao penetrar no aposento foi, no chão, perto,da cama, o cordão esquecido pelo monge. Ostensivamente foi pegá-lo e dobrou-o, sempre olhando Ambrosina.
— Por que me contou todas aquelas historias?
— Que histórias?
Uma lamparina a óleo de foca brilhava sobre um escabelo. Iluminava o rosto de Ambrosina, seus olhos dilatados, sua suntuo-sa cabeleira espalhada, tão negra quanto a noite.
- Que desdenhava o amor dos homens, que não podia suportar que um homem a tocasse!
Ambrosina examinou-a em silêncio. Um clarão de esperança roçou-lhe as feições, enquanto urir sorriso súplice lhe brotava dos lábios...
- Enciumada?
Angélica deu de ombros.
— Não, mas gostaria de entender. Que necessidade tinha você de fazer-me tais confidências? Que é u-ma vítima, que a brutalidade dos homens a tornou para sempre incapaz de conhecer o prazer, que eles lhe causam repugnância, que é fria, insensível...
— Mas eu sou! - exclamou Ambrosina em tom trágico. - Foi você que me levou a este ato insensato com sua recusa. Esta noite peguei o primeiro homem que insistia em que eu o satisfizesse, a fim de vingar-me de você, para tentar pelo menos esquecer os tormentos nos quais me lançou. E, veja, não é terrível?... um padre! Cometi esse sacrilégio... Desviar um homem de Deus... Mas desde Gouldsboro que ele me seguia, suplicava. Em vão tentei reconduzi-lo a seus deveres. Você não entendeu por que esse religioso quis acompanhá-la a Port-Royal. Pois aí tem a verdadeira razão... E não sei o qucserá de mim, em meio a tantos tormentos, a concupiscência dos homens, sua severidade... Levantou a cabeça bruscamente.
- Como soube que eu não estava sozinha? Você me seguiu? Queria saber o que eu estava fazendo? Então não me odeia? Você se interessa por mim!
Havia uma ansiedade tão angustiada e ávida por trás destas últimas perguntas, que por um momento fugaz Angélica sentiu despertar sua piedade, e esse sentimento deve ter-lhe transparecido no olhar, pois Ambrosina atravessou o aposento e foi loucamente atirar-se aos joelhos dela, enlaçando-a de novo, suplicando-lhe que a perdoasse, que não a repelisse, que a.amasse. Mas com o conta-to renasceu o sentimento de repulsa e medo que Angélica sentira não fazia muito tempo.
E via a verdade com clareza, com uma lucidez assustadora. A mulher ali ajoelhada não a amava, sequer a desejava, como afirmava sua boca mentirosa. Queria somente sua perdição! Motivada por um ódio feroz, um ciúme implacável e sabe-se lá que volúpia pela destruição, ela a queria derrotada, morta, vencida para sempre a ela, Angélica!
- Basta - disse, repelindo-a -, basta, não tenho uso para os seus arrebatamentos! Guarde-os para seus tolos, que eu, com você, já fiz papel de tola que bastasse. Mas comigo é assunto encerrado...
Meio tombada a seus pés, Ambrosina de Maudribourg estudou-a um instante em silêncio.
— Eu a amo - sussurrou, arquejando.
— Não - replicou Angélica -, você me odeia e quer minha morte. Ignoro por quê. Mas e assim, estou sentindo.
O olhar de Ambrosina mudou outra vez. Pôs-se a examinar Angélica com uma atenção penetrante e fria que dava arrepios.
- Tinham-me dito que você não era uma adversária fácil -murmurou.
Angélica fez um esforço para escapar ao medo viscoso que novamente se insinuava nela. Dirigiu-se para a porta.
- Não parta - bradou Ambrosina, estendendo para ela o braço nacarado, com os dedos arreganhados como garras. - Se não posso conquistá-la, morrerei.
No chão, seminua, sobre a mancha escarlate do seu grande manto de cetim por onde a luz fazia correr reflexos de sangue, ela deu a Angélica a impressão de estar mergulhada num pesadelo do inferno de Dante.
- Eu sei por que você me desdenha - continuou a outra -, você quer reservar sua paixão para aquele a quem ama. Mas ele não a ama. Ele é livre demais para se acorrentar'a uma única mulher. Tola que você é de imaginar que reina sobre seu espírito
e sobre seu coração... Ninguém reina sobre ele nem o acorrenta... Ele me escolheu -quando teve vontade...
Angélica, com a mão sobre o trinco, sentiu fraquejar-lhe o coração, de dúvida é angústia. Vulnerável assim que se falava nele, não entendeu que Ambrosina encontrara o único meio de retê-la e fazê-la sofrer, e que o .usava deleitada.
- Lembre-se de quando "ele falava comigo umã noite, na praia?
Você teve medo... e estava certa de ter medo. Perguntou-me: "Do que você faia còm õ meu marido?" Respondi: "De matemáti
ca...", porque tive piedade de você. Eu pensava nas palavras de amor, palavras apaixonadas, perturbadoras, que ele acabava de me dirigir, e a via tão incíúieta^ tão enciumada... infeliz! Você fez muito mal em reservar-lhe tanta paixão! Veja como ele a engana sem escrúpulos... Você ignora que ele tinha marcado um encontro comigo em Port-Royal. Nem sabia que ele viria.
- Mas ele não estava aqui - replicou Angélica, recompondo-se.
Esquecera-se de sua descoberta recente de que toda palavra de Ambrosina vinha impregnada de mentiras. Mais uma vez acabava de cair na armadilha.
- Ele virá - disse a duquesa, sem se deixar desconcertar -, virá, você verá... e só para mim.
CAPITULO XLIII
Angélica vai à procura do Irmão Marcos
Assim, a coisa agora parecia clara: Ambrosina de Maudribourg era louca ou, pior, conscientemente perversa, mentirosa, destrutiva.
Já não havia como ter ilusões sobre o ódio que Angélica lhe inspirava. Mas nascia de que sentimento esse ódio... e com que finalidade?... Inveja instintiva de toda felicidade, necessidade de prejudicar por instinto natural, necessidade de envilecer, de perverter o que parecia nobre...
Por que isso tivera que acontecer precisamente quando Angélica e o marido já se encontravam às voltas com aqueles perigos precisos e imprecisos que acabavam de abalar Gouldsboro? O drama de Barba de Ouro e seus piratas. Ela e aquele a quem amava, vacilando ainda, atingidos em sua confiança mútua, profundamente feridos, desesperados, não ousando admitir isso um para o outro, não ousando se estender os braços.
Num momento em que se encontravam em tal estado de fragilidade, misteriosamente ameaçados de todos os lados e, no fundo de si mesmos, pela própria fraqueza, que acaso funesto fizera surgir do mar a estranha, a mulher nascida para semear a discórdia, a inquietação, a dúvida, as tentações da carne, os remorsos, as vergonhas secretas, o silêncio... Um naufrágio! O naufrágio de um navio chamado La Licorne, atirado contra os bancos de areia de Gouldsboro por mãos invisíveis. As vítimas revelando-se mais perigosas do que os demónios què'as haviam atingido. Uma ronda infernal, arrastando crimes, mentiras e atentados... Uma conjunção de males, uns mais inesperados do que os outros. Uma nche de palavras suspeitas, calúnias, erros irreparáveis cometidos num estado de apatia que depois pareceria inexplicável.
Nessa confusão, nesse sonho mau, nesse emaranhado de sensações desconfortáveis, impossíveis de deslindar, Angélica se apegava a algo seguro, certo, ao menoí pára ela: o amor, que Joffrey lhe testemunhara na noite em que a mandara chamar.
"Expliquemornos, meu coração!"
Fora ele quem fizera o primeiro gesto e parecia que tinha pressa de dissipar as sombras entre eles, deergutr uma barragem de amor que também seria uma defesa contra o novo assalto que se preparava contra eles.
Ambrosina de Maudribourg desembarcara naquela mesma manhã. A intuição de Joffrey de Peyrac o teria prevenido? Angélica desejava revê-lo com todo o coração, chamava-o em silêncio para que a tranquilizase e com sua confiança e seu amor, naquele mundo enganador e decepcionante. Era um fio retesado, mas sólido, que a ligava a ele, e Angélica repetia consigo mesma, com veemência, que não cederia à mulher invejosa a vitória nesse ponto. Acontecesse o que acontecesse, a lembrança do olhar dele a fitá-la com uma expressão enigmática e ardente, como se medisse todo o valor de Angélica pelo encarniçamento de seus inimigos em abatê-la, essa lembrança haveria de constituir seu viático ao longo da provação que a aguardava.
Angélica assistia ao alvorecer, sentada um pouco acima, na colina. Do ponto onde estava, podia ver os telhados de Port-Royal surgindo aos poucos de uma neblina irisada que chegara subitamente do mar, pouco antes dos primeiros clarões do dia. Mas o leve nevoeiro já se dissipava sob o efeito do sol nascente. Angélica estava sentada não longe do local onde o lorde escocês Alexandre, em 1625, edificara seu forte, trazendo sua comitiva de tartâs e boinas com pompom para o lugar do primeiro Port-Royal francês, destruído e queimado uns dez anos antes pelo corsário virginiano Argall, a mando dos puritanos da Nova Inglaterra. O forte de Lorde Alexandre fora destruído por sua vez, mas os escoceses continuavam ali, produzindo ruivinhos entre os aca-dianos de cabelo preto.
Todo esse passado de Port-Royal importava pouco a Angélica esta manhã. Para ela, tratava-se de lugar sem nome,.cenário um pouco fantasmagórico e cuja aparente quietude e encanto combinavam mal com as revelações que a noite lhe trouxera. A realidade não era aquela aldeia pacata e florida despertando entre o cantar de galos e o dobrar de sinos chamando os fiéis para a missa matinal. Era a personalidade secreta de Ambrosina, sua habilidade em confundir, abusar, paralisar os espíritos e as línguas com o medo,, o ofuscamento, o fascínio que ela provocava.
Cantor tinha razão. Quando uns mentem e os outros têm medo, tudo pode acontecer sob os olhos da geínte, até em nossa própria casa, sem que se consiga perceber a origem do problema. O espírito orientado em outra direção não entende os.sinais nem as alusões, interpreta-os mal. Assim fora com Angélica, entregue a Ambrosina... E ela sabia que ainda não terminara, agora que achara uma ponta do fio da meada, sabia que as descobertas amargas não tinham acabado... Descobertas atrozes talvez... A aurora chegava, de um azul pesado, do lado onde estrondejara a tempestade, revelando pouco a pouco a bacia com reflexos de estanho.
A neblina caía em orvalho sobre as ripas prateadas e os arbustos de tremoços multicoloridos.
Um dos oratorianos, o Sr. Tournel, em seu hábito negro, atravessou a rua principal, seguido de um menino madrugador que o ajudaria na missa.
Angélica esperou mais um pouco. Quando o sol, deslizando para o leste, acima da crista dos montes arborizados, anunciou a hora matinal em que se põe o pé na estrada, em que se parte para os campos, em que o pastor abre a porta dos currais, em que a mulher devota se dirige para a igreja, Angélica levantou-se.
Seguiu pelo flanco da colina. Um pouco adiante havia uma clareira cortada por um riacho, que descia em caracol até o povoado. Angélica avistou aquele a quem fora procurar. Sabia que era ali que ficava o acampamento dele. Com um pedaço de pano amarrado à cintura, um homem se lavava vigorosamente no regato. Era o Irmão Marcos.
Quando ele percebeu Angélica, agitou-se, pegou com rapidez o hábito que atirara sobre um arbusto e o enfiou às pressas, confuso por ter sido surpreendido em traje tão sumário.
Angélica aproximou-se e, tirando do bolso o cordão do capuchinho, estendeu-o a ele.
- Você esqueceu isto, esta noite, na casa da Sra. de Maudribourg.
O religioso ficou ainda mais confuso. Olhou o cordão como se fosse um animal venenoso, e um rubor violento subiu-lhe ao rosto bronzeado de alegre explorador das matas. . Pegou o cordão, atou-o à cintura, depois, sempre de olhos baixos, começou ajuntar os poucos objetos espalhados sobre a relva à volta do.fogareiro onde preparara uma¥èfeição. Finalmente resolveu encarar Angélica.
- Está me julgando, não é? Traí meus votos religiosos?
Angélica deu um -sorriso sem alegria.
- Não tenho por que julga-lo, meu padre, quanto a esse ponto em particular. Você é um homem jovem e vigoroso, e conciliar sua natureza e seus votos é assunto seu. Gostaria somente de saber: por que ela?
O Irmão Marcos respirou fundo e pareceu dominado por uma agitação interior qué o impedia de achar as palavras adequadas.
- Como explicar?,... - explodiu. - Ela não me dava trégua.
Desde os primeiros dias em Gouldsboro estou às voltas com a perseguição dela. Nunca iui alvo de uma investida assim. E ela
me atraía por meio de artifícios cujo poder eu reconheço, sem, no entanto, ser capaz de"rlefinir em que reside o feitiço enganador deles..
Uma profunda melancolia abateu-lhe a excitação. Balançou a cabeça.
- A gente imagina que-existe nela" alguma coisa que nos escolheu ou que poderia nos escolher se a gente se desse ao trabalho de amá-la, de avançar mais em seu mistério. Mas só se encontra o vazio. Nada, nada, apenas o vazio. Um vazio ainda mais mortal pelo fato de que se adorna com todas as graças, com tantas miragens sedutoras!... Nada... e depois, talvez, bem no fundo, como o dardo de uma serpente,,iima vontade assustadora de nos destruir, de nos arrastar na sua perdição, ao seu nada... Certamente é a única vontade que ela. deve ser capaz de conhecer.
Calou-se, os olhos cravados na terra.
- Confessei-me ao Sr. Tournel - continuou -, e agora vou embora. Creio que de tudo isso extrar ao menos um ensinamento que me será útil junto àqueles a quem devo edificar. Ainda que o ser humano nunca esteja disposto a ouvir a voz da sabedoria, a menos que ele próprio se tenha queimado no fogo das paixões humanas. Quanto aos selvagens, levar-lhes o quê? Sabem muito mais do que nós sobre as coisas da alma. Felizmente me restam a floresta e as águas.
Como era muito jovem e talvez pela primeira vez na vida seu ser sangrasse com a renúncia definitiva a algo essencial, suas pálpebras se avermelharam de repente, enquanto ele alçava os olhos para as ramagens espessas onde zumbiam insetos. Mas recompôs-se.
- A floresta é. boa - murmurou. - A natureza tem seu mistério também, sua beleza e suas armadilhas, sim, mas nào perversas, e até os animais, na sua inocência cheia de coragem e simplicidade... Talvez o reflexo que obtemos, através dâs coisas, do nosso Deus Criador seja menos cintilante do que esperamos dos seres humanos, mas é fiel.
Juntou a bagagem, atirou-a sobre o ombro.
- Vou embora - repetiu -, volto a viver com os selvagens. Os brancos são complicados demais para mim.
Deu alguns passos e sè virou, hesitante.
- Posso pedir-lhe segredo, senhora?
Ela meneou a cabeça, afirmativamente.
- A senhora - continuou ele -, não sei... talvez seja mais forte do que ela. Mas tenha cuidado...
Aproximou-se e repetiu baixinho, como um segredo premente:
- Tenha cuidado! É uma diaba.
E afastou-se. Andava a passos largos. Angélica teve inveja dele por poder enfiar-se por sob as ramagens de odores selvagens.
CAPÍTULO XLIV
A festa de Port-Royaf - A chegada do navio inglês - A partida de Ambrosina
Em Gouldsboro, Ambrosina lhe dissera: "Não lhe parece que um perigo a ameaça?... Um demónio a ronda".
O demônioera eláf Quanta, habilidade em desviar de sua pessoa as suspeitasvassurnrndo a dianteira, sendo â primeira a acusar...
Não era Colki ou Abigail que traíam Angélica. Era Ambrosina que lhes atribuía propósitos criminosos capazes de feri-la e fazê-la duvidar dos amigos, e Angélica acreditava nela, ou quase, tamanha fora- a verosimilhança que Ambrosina soubera dar às suas palavras, graças à intuição prodigiosa que tinha acerca das pessoas e do comportarrfénto-jdelas."
Com pequenos toques, pequenas frases, empenhara-se em separar Angélica de todos os que podiam protegê-la, esclarecê-la ou preveni-la: Piksarett, Abigail, Colin, o Padre de Vernon, seu próprio filho, e até e principalmente Joffrey, seu marido.
A propósito de Piksarett: "Dizem que você dorme com os selvagens..."
De Abgail: "Os protestantes... são contra esse projeto de instalar católicos em Gouldsboro, mas não querem nos falar a respeito porque sabem que você concorda com o plano..."
De Colin: "Você tem confiança de fato nesse homem?... A mim me parece temível... Por que você o-defende?"
E Cantor: "Seu filho está inquieto"."
E o Padre Vernon: "Disse que Gouldsboro não é lugar suficientemente santo para minhas moças". .
E Joffrey: "Ele não deveria tê-la abandonado assim..."
Joffrey não a abandonara. Só partira depois que a duquesa embarcara para Port-Royal. Desconfiaria dela? Mas então, nesse caso, ela o lograra, regressando quase imediatamente...
Quando Angélica analisava todas essas astúcias que pouco a pouco a haviam manietado, sentia um arrepio percorrer-lhe a espinha e eriçar-lhe a raiz dos cabelos e, em meio ao susto, uma espécie de admiração por todo aquele génio malfazejo.
Quanto a influenciá-la, que escolha de palav/as e que comédia hipócrita! Apresentando-se como uma vítima necessitada de socorro, despertara o interesse de Angélica. Dizendo-lhe que amava Gouldsboro, emocionara-a.., E, declarando-se originária do Poitou também, dizia: Você foi colher mandrágora numa noite sem lua?"
- Oh, Cantor! - disse Angélica ao filho, a quem fora procurar na cabana, depois da partida do Irmão Marcos. - Ela é realmente... monstruosa.
De repente, caiu na risada.
- Escarnecida a esse ponto!... Nunca... nunca conheci uma criatura com tal poder de adivinhação das fraquezas humanas. Ela é prodigiosa...
Cantor olhou-a, sombrio, enquanto esvaziava o cesto de cerejas.
- Você ri - disse. - E como meu pai, as artes de Satã o divertem e ele se deleita com seu génio maquiavélico como com
uma curiosidade natural. Mas cuidado, ainda não acabamos com ela... Continua aqui a alguns passos de nós e nos mantém em seu poder.
Angélica lembrou-se de chofre da carta do Padre de Vernon, das palavras que lhe haviam trespassado o coração, nas quais vira uma acusação a ela, aquelas palavras do jesuíta ao superior.
"Sim, meu padre, você tinha razão, a Diaba está em Gouldsboro!"
E se ele tivesse levantado a acusação não contra ela, mas contra a outra mulher?
"A Diaba está em Gouldsboro..."
Desta vez o arrepio que a percorreu gelou-a até o coração. O Padre de Vernon morrera, a carta desaparecera, assim como o menino que a tinha em seu poder... Uma vertigem a invadia... Querendo demais desenredar a meada, ia acabar acreditando em visões. Apenas uma coisa lhe parecia urgente: era preciso livrar-se daquela mulher, pô-la fora de ação, afastá-la, distanciá-la para sempre, mas como?...
Lá fora Port-Royal despertava, alvoroçava-se, animava-se. A manhã avançava e logo viriam perguntar pela Condessa de Peyrac. Ela teria que aparecer, reencontrar Ambrosina à vista de todos, a vida tinha que retomar seu curso aparentei Iria sentar-se à mesa da Sra. de la Roche-Posay e à sua frente tomaria lugar a Duquesa de Maudribourg, cõm o seu rosto de anjo ferido, seu belo olhar inteligente e, talvez, nos lábios, um sorriso contrito, dedicado a Angélica. Só de pensar nisso se_ntia náuseas e percebia que contava apenas com o filho, aquele adolescente arisco e intransigente, para compartilhar seu segredo e ajudá-la.
Com exceção dele, não tinha recurso algum, e tudo o que pudesse tentar explicar -.sobre a Duquesa, de Maudribourg aos demais passaria por calúnia. Ambrosina era a imagem da virtude. Angélica deu-se conta de' que estava perigosamente sozinha e, lembrando-se da insistência de.Colin para que Cantor a acompanhasse, dedicou-Jhe um pensamento de gratidão.
Agora que também ela enxergava com clareza, era necessário retirar Ambrosina do convívio de' todos.
Mas não seria simples.
Em que navio embarcá-la? A bacia estava vazia! Com exceção do Rochelais, ancorado. Alguns grandes pesqueiros estavam parados ao longe, na bruma de calor que ocultava a outra margem e os pôlderes estendidos sobre "a embocadura de um belo rio.
Os acadianos de Port-Royal eram pobres. A única embarcação de importância que possuíam encontrava-se naquela altura numa expedição ao rio Saint-Jean. Há muito tempo eles tinham desistido de competir com as flotilhas da Nova Inglaterra ou da Europa que no verão vinham visitar a baía Francesa, depois de comprar, em Boston, suas provisões de bacalhau para o inverno.
Port-Royal sequer tinha, como Gouldsboro, um porto de comércio ou de pesca. Nenhum movimento de navios estrangeiros, chegando ou partindo para a Europa ou qualquer outro destino longínquo.
Portanto, estavam todos ali, no fim do;.mundo, bloqueados em alguns alqueires de terra desbravados entre o céu, o mar e a floresta indígena. Os elementos pesavam sobre eles como os muros de uma prisão da qual não podiam fugir, e naquela manhã Angélica tinha uma percepção tão opressiva dessa realidade, que se espantava com a leviandade com que a pequena população perdida se entregava às suas ocupações e aos seus prazeres. Preparando, entre outras coisas, com alegria, a festa prevista para o dia seguinte. Enquanto isso, Angélica torturava a imaginação para descobrir um meio de apressar a partida de Ambrosina de Mau-dribourg e comitiva. Mas, outra vez, como?
Embarcá-la no Rochelais? Com que destino? Sob a responsabilidade de quem? Repugnava-lhe a ideia de envolver Cantor novamente nessa história...
E então? Não se podia matá-la, conforme desejava Cantor, afogá-la, fazê-la perder-se na floresta! Num átimo, Angélica invejou a boa consciência daqueles "assassinos de rendas" que conhecera na corte, que, com tanta facilidade, sem escrúpulos, pagavam alguns facínoras dos antros de Paris para desembaraçá-los de pessoas indesejáveis.
Ela não podia fazer isso.
Por vezes, porque o sol brilhava, ardente, as flores estavam radiosas, as pessoas à entrada de seus jardinzinhos pareciam simples e boas, apagava-se a lembrança dos malefícios entrevistos na noite de Port-Royal adormecida. Depois a janela se reabria, virava-se, como as partes de um tríptico, desvendando imagens opos-tas, o inferno contra o paraíso, a noite contra a luz, e ela revia Ambrosina, nua e branca sobre o cetim escarlate do manto estendido no chão, ouvia a voz do recoleto cochichando: "Tenha cuidado. É uma diaba!"
Em várias ocasiões, a duquesa tentou aproximar-se de Angélica para falar com ela, mas esta se esquivou. Apesar das aparências benignas, a verdade entrevista durante a noite fora demasiado brutal. Os antolhos se lhe haviam caído, e em tudo e em todos Angélica via somente estupro, luxúria, ignomínia, hipocrisia, enquanto tentava, arquitetando planos para a partida de Ambrosina, libertar-se de uma situação tão confusa.
A Srta. Radegunda de Ferjac, azafamando-se para encenar a representação do dia seguinte, completava o quadro. Indiferente aos tormentos secretos das paixões humanas, caía em cima de todo mundo. Empurrando, reclamando, dando ordens, requisitava os indiozinhos mic-macs que vagavam pelas ruas para as danças, mandava colher flores, dirigia os carpinteiros que lhe construíam um tablado destinado a servir de palco - da praia se veria melhor -, cortava costumes, rasgava panos, trançava guir-landas. E não admitia que ninguém ficasse de fora da festividade.
Job Simon foi designado para desempenhar o papel do deus Netuno, e PetronilhaDamourt, por,causa das bochechas gordas, o de Eolo, pai dos ventos. Radegundade Frejac entregou a ambos folhas manuscritas por ela durante as noites de inverno e determinou que aprendessem muito- bem os respectivos papéis. Corria de ponta a ponta" do povoado, repetindo: - Oxalá não haja neblina amanha!
Queria que Angélica fosse Vénus e Ambròsina, Febe, a Maga. O delírio era total. E em meio a isso tudo, a Sra. de la Roche-Posay, serena ou habituada, fazia doces. Haveria um banquete.
O dia seguinte, dia dejesta, não deixou a ninguém tempo para se debruçar sobre seus problemas. No fundo, talvez fosse melhor assim. Ainda não aparecera nenhuma vela no horizonte. Foi preciso assistir com grande" aparato à missa cantada. Os índios tinham vindo,em gránjde-número da floresta e, em suas canoas de árvores, do outro ladoda baía. Traziam peles. Mas a Srta. Ra-degunda de Ferjac foi intransigente. Susteve as.trocas, assim que percebeu as primeiras j^èleidades de comércio, e mandou todos os chefes e "principais" dos rriic-macs se pintarem da cabeça aos pés e incufiibiu-os de formar uma ala de honra na enseada, alinhando as canoas à volta do palanque onde se representaria a peça de teatro. Eles obedeceram. Com o.correr dos anos, Rade-gunda de Ferjac se tornara urfí de seus demónios familiares, e eles tinham aprendido que ninguém resistia a ela.
Após a missa, que terminou bem tarde, o sol continuava a brilhar, e serviram-se, numa mesa posta ao ar livre, codornizes e perdizes, de um "aroma admirável", como certamente teria dito o governador Ville-d'Avray, acompanhadas dos belos repolhos roxos e azulados de Port-Royal, famosos na baía inteira, junto com nabos daAcádia, únicos no mundo. Vinhos e queijos, seguidos de tortas de frutas, completaram o banquete.
Era apenas um entreato, para dar aos atores tempo de se prepararem. Homens carregaram para a praia os bancos das duas igrejas. As mulheres, auxiliadas pelos filhos mais velhos, punham no fogo caldeirões enormes, para cozinharem o guisado para selvagens, de milho e peixe cozido, com que eles poderiam matar a fome depois da festa. Outras mesas receberiam, junto aos colonos, os grandes sagamores. Pratos mais refinados seriam servidos por um exército de cozinheiros de touca e avental branco, que se preparavam para surgir como por milagre das cozinhas no solar.
Radegunda de Ferjac apressava o movimento. Auxiliada por Armando Decaux, de quem, para a ocasião, ela fizera seu secretário particular, e que a seguia passo a passo, com uma escrivaninha portátil pendurada ao pescoço, munida de penas, tinta e papéis, ela dava os últimos toques aos preparativos. O maior medo da governanta nào era uma possível falha na memória de seus atores, devidamente ensaiados por ela, mas o aparecimento inopinado do nevoeiro, que, sobretudo no verão, podia aparecer sem pejo.
Por sorte o horizonte estava limpo.
O tablado foi levado a alguma distância da praia. As canoas indígenas tomaram lugar ao redor. Os atores subiram num barco para ocupar as respectivas posições.
— Não me obriguem a fazer isso - suplicou Petronilha Da-mourt. - Desde o naufrágio que sofremos, tenho medo de estar sobre a água.
— Ora, que histórias são essas? - ralhou azedamente Radegunda de Ferjac. - Vamos! Suba! Não se vem à América quando se tem medo do mar e de naufrágios.
Netuno estava irreconhecível, magnífico, numa longa túnica azul-esverdeada, a cabeça encanecida e barbuda coroada de papel dourado. Brandia o tridente de um pescador de caranguejos. Cantor fazia parte do elenco, com sua guitarra, bem como Delfina de Rosier, de ninfa. Havia anjos, amores, demónios. Para caracterizá-los, Radegunda tomara emprestado aos índios as pastas especiais que estes usavam para se pintar - azuis, brancas, vermelhas ou pretas -, e alguns usavam máscaras medonhas, dignas da antiga comédia grega.
Os espectadores se acomodaram nos bancos. Os que sobraram podiam sentar-se no chão. A ideia do tablado foi boa. Como o terreno se elevava, todos enxergavam de longe e podiam ouvir bem.
Angélica acompanhava o movimento, tentando, por polidez para com a Sra. de la Roche-Posay, não deixar transparecer em excesso suas preocupações. Era" um reflexo de educação fortemente ancorado em seu mundo, esse autocontrole, e uma qualidade dessas não era inútil. Ao longo de sua existência, Angélica tivera inúmeras ocasiões de apreciar a importância de saber dissimular seus sentimentos: medo, cólera ou impaciência, sob um sorriso natural, uma civilidade de primeira água, que adormecia as suspeitas do inimigo, fosse ele quem fosse. Mas não esquecia que Ambrqsina também era da nobreza, e, das duas, talvez fosse a ela que'Angélica mais se esforçasse para demonstrar alegria e segurança, a fim de cbhvencê-la do pouco-caso que fazia do horror e das verdades vislumbradas na noite anterior.
Às vezes Angélica avistava.Cantor, quê se debatia com a guitarra sob as ordens de Radegunda de Ferjac. O pobre garoto havia encontrado seu mestre. Teve que pôr na cabeça uma coroa de rosas e subir no tablado para' acompanhar os atores.
— Ele está divino! - deslumbrou-se Ambrosina de Maudribourg, voltando-sé' para a Sra. de la Roche-Posay e Angélica.
— Ele foi pajem em Yersalhes - replicou Angélica -, e aprendeu a adaptár-se a todos os usos, a muitos caprichos! Apesar do que se pensa, Versalhes fambém pode ser uma dura escola de vida.
Job Simon errara dê vocação. Sãía-se melhor como ator do que como piloto de navios destinados ao fim do mundo. Sua voz es-tentória, de bom timbre"; recitava as estrofes de Lescarbot, cujo eco já ressoara ali mesmo, no tempo da primeira colonização. Cativada, a multidão se deixava envolver pelas vicissitudes mitológicas que se abatiam sobre os heróis, e todos os habitantes de Port-Royal estavam de olhos fixos no tablado e no horizonte marinho que lhe servia de pano de fundo. Foi por isso que ninguém "o" viu chegar, o inimigo íntimo da Srta. de Ferjac: o nevoeiro.
Pois chegou por trás.
Transbordando da baía Francesa por sobre o rebordo do promontório, despencou na direçãq do povoado com a velocidade de uma avalancha. Quando, pelo seu hálito gelado, sentiram-no chegar, ele já estava ali. Em alguns instantes cada indivíduo daquela multidão se viu quase sozinho consigo mesmo, mal podendo distinguir o vizinho. A costa; o tablado e os índios se apagaram também. As vozes se abafaram.
- Todo ano é a mesma coisa - gemeu a pobre governanta.
- Esses malditos nevoeiros estragam nossa festa.
Invisível, ela ordenava aos brados que todos permanecessem em seus lugares. Talvez a neblina passasse... Para que tivessem paciência, anunciou que iam servir cestos de bolos e bombas de creme.
Os atores chamavam por entre a bruma para que fossem buscá-los. Também à çles levou-se uma mensagem de paciência e alguns doces. Os augures tinham a impressão de que o nevoeiro, particularmente denso mas como que impelido por uma forte corrente de ar, logo se afastaria.
Passou-se meia hora. A situação de fato parecia melhorar. De repente alguém trouxe a notícia de que havia um navio na enseada. Tinham "ouvido o ruído da correia da âncora ^desenrolando. Foi o tempo de se tomar conhecimento da novidade e a bruma, aliviando, já revelava ao largo a silhueta de um pequeno três-mastros, imóvel. Logo houve grande agitação. O tablado e seus ocupantes também começavam a reaparecer, mas não se podia continuar o espetáculo antes de se identificar o recém-chegado, que até então não passava de um vago fantasma, uma sombra de navio que às vezes a neblina apagava completamente.
Mas Angélica já sabia que não se tratava do Gouldsboro, muito maior, e a Sra. de la Roche-Posay também não reconhecera o pequeno cem-toneladas com que o marido fora dar assistência a Joffrey de Peyrac no rio Saint-Jean.
— Talvez seja um navio da companhia, que nos enviam de Hon-fleur. Estamos no fim de agosto. Não está na época de ele chegar.
— Se for, é uma embarcação bem pequena.
— Ah, eles são sovinas!... Já quase não esperamos nossos sócios: a gente os conhece!...
Ficaram na expectativa. Depois, como uma cortina puxada de repente, as últimas ondas de neblina se apagaram, revelando toda a superfície da bacia e, já a poucas centenas de metros, chalupas transportando homens armados que remavam rumo à praia.
Ouviu-se um único grito:
- Ingleses!
Foi um salve-se quem puder.
Saltando os bancos de madeira, as pessoas correram para as casas, para pegar seus objetos mais preciosos e os proteger contra os saqueadores inimigos. Na ausência do Sr. de la Roche-Posay, que levara consigo a maioria dos homens de combate, a defesa do povoado era nula. Os próprios índios sabiam tão bem disso, que preferiram afastar-se da praia com suas canoas. Não tinham
vindo para lutar, e, habituados a comerciar com os navios ingleses, evitavam agora envolver-se nas disputas dos brancos.
No entanto alguns sagamores que tinham parentes entre os aca-dianos ofereceram-se para combater^ enquanto alguns camponeses mais enfurecidos foram buscar os mosquetes.
- Soldado - gritaram as crianças de la Roche-Posay, dirigindo-se a Ademar -, vamos correr para o.canhão, depressa! Chegou a hora do combate!
Nas chalupas, os marujos ingleses para se excitar, soltavam gritos ensurdecedores. A embarcação dianteira chegou à altura do tablado, onde os atores impotentes se agitavam, uma multidão de mascarados e fantasiados.
- Mas é Phipps! -.exclamou Angélica, reconhecendo o homem de Boston que acompanhava o almirante inglês quando este fizera escala em Gouldsboro, algumas semanas antes.
E imediatamente pensou: "Será que ele viu Joffrey? Poderá dar-me informações sobre ele?"-
Do seu ponto de Vista a situação não parecia trágica. Gouldsboro mantinha excelentes relações com a Nova Inglaterra para que, estando presente- a-Condessa de Peyrac,- não houvesse um meio de chegar a um entendimento com os recém-chegados.
Disse à Sra. de la Roche-Posay, que encarava o acontecimento com resignação, já que o previra muito bem:
- Não se inquiete. Conheço o capitão desse navio. Prestamos alguns favores a ele. Não se recusará a parlamentar...
E dirigiram-se as duas para a praia, a fim de tentarem apresentar-se em primeiro lugar ao atacante.
Mas Angélica não prestara atenção aos movimentos das crianças De la Roche-Posay, que levavam Ademar para o porto.
Começava a fazer sinais a Phipps e a chamar em inglês quando a situação se deteriorou irremediavelmente por culpa da prole demasiado belicosa do Marquês de la Roche-Posay.
O capitão inglês, que se distinguia como puritano pela roupa preta e pelo chapéu de copa alta, acabava de atirar um gancho na direção do tablado a- fim de rebocar e capturar o grupo surpreendente de mascarados e fantasiados.
Foi o momento que Ademar, do alto da torrinha angular, escolheu para acender o pavio. A detonação ecoou. Acaso ou habilidade, a bala silvou e passou exatamente entre ò tablado e a chalupa, que oscilaram juntos, atirando todo mundo na água.
- Vitória! - berraram os acadianos, mais satisfeitos de verem os ingleses patinhar do que preocupados com a sorte de Netuno e os seus.
A chalupa inglesa fora atingida e ia a pique.
A desordem foi total, e Angélica teve que desistir da intenção de ser ouvida. A situação transformou-se em batalha. Foi breve mas violenta. O tiro feliz de Ademar foi o único. Outras chalupas acostavam um pouco adiante. O contingente de marujos solidamente armados subiu ao ataque do fortim e se apoderou de Ademar antes que ele pudesse repetir a proeza. Alguns tiros de mosquete completaram a tomada de Port-Royal pelas forças inglesas naquele dia. Vendo que tudo estava perdido, uma parte dos habitantes, levando panelas e puxando vacas pelo cabresto, correu para a mata, pois nunca se sabia a que excessos podiam se entregar aqueles marujos da Nova Inglaterra quando decidiam saquear uma feitoria francesa. Os demais, entre os quais se encontravam Angélica e, de modo geral, os que estavam na praia no momento da chegada do navio, compondo o público mais próximo e mais importante - a Sra. de la Roche-Posay, seus filhos e gente de sua casa, a Duquesa de Maudribourg e seus protegidos, os capelães, as famílias dos notáveis -, foram rodeados, receberam ordem de ficar quietos, enquanto eram brutalmente reunidos, sob a ameaça de mosquetes, nos limites dos bancos de igreja.
Enquanto isso os náufragos da chalupa e do tablado faziam o melhor que podiam para alcançar a praia.
Phipps e Netuno foram os primeiros a sair da água, fulminando-se com o olhar. Um perdera o chapéu de puritano, o outro, a coroa dourada.
Phipps espumava. Se suas intenções iniciais estavam longe de ser pacíficas, agora se tinham tornado francamente assassinas. Só falava de baraços e patíbulos e de reduzir as cinzas até a última cabana daqueles malditos "comedores de rãs". Conhecia-os bem demais para querer conceder-lhes ainda que uma parcela de indulgência. Esse colono da Nova Inglaterra nascera num pequeno povoado do Maine. Em outras palavras, sua infância transcorrera entre os ataques incessantes dos canadenses e dos selvagens devotados a eles, e uma boa parte das cabeleiras de sua família.servia de troféus nas wigwams abenakis ou nas muralhas dos fortes franceses.
- Vou ensinar-lhe a brincar de herói - urrou ele, quando lhe trouxeram Ademar, manietado. - Vamos, arranquem a cruz grande, lá na praia, e façam uma forca no mesmo lugar para este patife!
A estas palavras, Ademar, que adquirira uma noção suficiente de inglês durante sua viagem para o leste do Kennebec, percebeu mais uma vez que sua última hora chegada.
- Senhora, salve-me! - rogou, procurando Angélica entre o mar de cabeças.
O alarido atingia o "auge. Os gemidos dos náufragos do tablado, entre os quais a infeliz Petronilha Damourt, salva com grande dificuldade do segundo afogamento, misturavam-se aos gritos de protestos dos moradores que tentavam conter os ingleses, que começavam a derrubar-a machado as portas das casinhas.
Com uma ordem, Thipps fez cessar esse início de pilhagem. Veriam isso mais tarde! E "se fosse preciso queimar tudo, queimariam! Antes ele queria assegurar-se de um butim mais sério e, em particular, apropriar-se da carta - comissões e missivas do rei - que o Maíquês de la Roçhe-Posay possuía e que provava que o rei da França mantinha colonos, indevidamente, em territórios que, pelos tratados? pertenciam à Inglaterra.
Começou a subir rumo ao solar.
Angélica achou que chegara o momento propício para agir.
- Vou tentar alcançá-lo - confiou à Marquesa de la Roche-Posay. - É imprescindível^ antes que a situação piore ainda mais. De qualquer maneira, ele deve ser capaz de nos dizer o que aconteceu no rio Saint-Jean. Parece que está voltando diretamente de lá e, a julgar pelo seu humor, os acontecimentos não devem ter-lhe sido favoráveis. Talvez obtenhamos notícias dos nossos maridos também...
Lembrava que, quando William Phipps fizera escala em Goulds-boro com o almirante governador'de Boston, haviam descoberto na tripulação dele um huguenote francês, refugiado de La Rochelle, que se revelara vagamente aparentado com os Mani-gault. Estes o haviam recebido à sua mesa, a título de boa vizinhança, durante as poucas horas da escala.
Angélica teve a sorte de encontrá-lo entre os que os estavam vigiando. Insinuou-se até ele, deu-se a conhecer, lembrou-lhe a visita a Gouldsboro.
- Preciso muitíssimo falar com seu capitão - disse-lhe.
Não teve dificuldade em convencê-lo, pois o homem vira que o Sr. e a Sra. de Peyrac mantinham excelentes relações com o governador de Boston. Autorizou-a, portanto, a se separar dos outros prisioneiros e ele mesmo a acompanhou até a habitação.
No salão, Phipps e seus homens procuravam furiosamente pelos documentos que provariam o direito deles e a má fé dos franceses. A machadadas, abriam aparadores, armários, enquanto outros tentavam arrombar os baús, desejosos de topar com jóias ou trajes preciosos, de que se dizia que aqueles católicos depravados eram sempre bem-providos.
Angélica chegou a tempo de ver Phipps atirar no chão as peças de louça de uma cristaleira.
- Está louco - exclamou na língua dele -, você se comporta como um vândalo! São objetos de valor. Pegue, se quer, mas não quebre!
O inglês voltou-se, fora de si:
— O que está fazendo aqui? Volte para junto dos outros!
— Não me reconhece? Sou a Sra. de Peyrac, recebi-o há algumas semanas, e meu marido o tirou de um apuro num dia de tempestade.
Isto não o acalmou de modo algum.
- Seu marido! Pois sim! Pregou-me uma boa peça!
Angélica encheu-o de perguntas. Então ele vira seu marido?
Ele não vira nada. Havia neblina, para aumentar-lhe a má sorte, enquanto ele espreitava com tanta persistência aqueles malditos oficiais de Quebec, bloqueados no rio. O nevoeiro lhe ocultara as manobras da flotinha de Peyrac. Como é que todos eles tinham conseguido fugir, sob as barbas dele? Malditos franceses! Um butim e uma presa de guerra que ele jurara levar para Mas-sachusetts a título de troca com os intratáveis lá de cima, de Quebec, daquele Canadá feroz, a título de vingança também, já que o sangue de todos os massacrados da Nova Inglaterra reclamava justiça...
Phipps falava de um modo um tanto confuso, como as pessoas taciturnas que não têm o hábito de relatar ou se explicar. Isso só tornava seu ressentimento mais violento, fervilhante, sem que ele encontrasse saída para seus rancores acumulados.
— Destruíram tudo por lá... aqueles selvagens vindos do norte com os malditos padres papistas, povoados destruídos, colonos dizimados, é difícil deter essa gente.
— Eu sei. Estive lá, há algumas semanas. Em Brunswick Falis, e escapei por pouco. Sabia que consegui salvar alguns dos seus compatriotas e levá-los em segurança para Gouldsboro?
— Então por que o Conde de Peyrac me impede de combater essas feras, de pelo menos me apoderar dos escalpos na posse deles, já que tenho oportunidade?
— Para deter a guerra? Meu pobre amigo!...Você não ignora que também foi ele quem impediu o Barão de Saint-Castine de arrastar os seus etchemins para o conflito, conforme a ordem formal que recebera de Quebec: Caso contrário, não teriam sido apenas os povoados do leste de Kennebec a arder, mas todos os povoados, nas ilhas e na costa do Maine e da Nova Escócia. A guerra só parou graças a ele, mas a menor faísca pode desencadear uma catástrofe ainda pior, contra a., qual toda a influência dele não conseguirá fazer nada..
— Mas ainda .assim é preciso conter esses malditos papistas! -berrou Phipps, desesperacfo. - Se não devolvermos golpe por golpe, eles acabarão noí-exttrmihando, por mais numerosos que sejamos. Que situação!" Lá em cima aquele punhado de fanáticos na sua neve e nas Suas florestas, enósr aqui, dez vezes mais numerosos, mas como~carneÍEOs-balindo... Eu não sou dessa espécie! Nasci no Maine. Hei dé ensinar-lhes que o lugar me pertence e dedicarei rínnha vida a isso, se for necessário! De todo modo, não posso voltar a Boston de mãos vazias. Não posso fazer nada... Port-Royal vai pagar por Saint-Jean... Preciso de reféns e também daquela carta do rei daTrança.
Correu os olhos pelo salão, à procura do papel.
- Ah, naquela arca talvez?...
Angélica reconheceu, no canto da sala onde a pusera ao chegar, a arca de escalpos de Saint-Castine. Interpôs-se com presteza.
- Não, essa arca não, rogo-lhe! São meus objetos pessoais.
Tomou-lhe a dianteira e resolutamente sentou-se em cima da arca.
- Peço-lhe que não o force,, cavalheiro - disse com firmeza. -Meu marido e eu somos bons amigos dos ingleses, pois até recebemos do Grande Conselho de Massachusetts nossos direitos sobre nossas terras, mas há gestos que-não poderíamos admitir sem sermos obrigados a encaminhar uma queixa, considerando a quem os cometesse um pirata sem fé nem lei, agindo por conta própria e não em nome de seu governo. Escute-me - continuou, vendo-o desconcertado -, sente-se e acalme-se. - Apontou-lhe um escabelo à sua frente. - Tenho uma proposta a fazer-lhe que, creio, ajeitará tudo...
Phipps examinava-a desconfiado. Angélica tremia de pensar que estava sentada sobre trezentos e cinquenta escalpos arrancados de crânios ingleses pelos selvagens abenakis. Tinha a impressão, horrorizada, de que o cheiro pútrido dos escalpos se infiltrava pelos interstícios da arca. Mas sua autoridade levou a melhor sobre as reticências do irascível puritano inglês. -
Ele sentou-se e, como continuava encharcado devido ao mergulho forçado, uma poça de água começou a formar-se.à sua volta, que ele contemplava com tristeza.
- Escute - recomeçou Angélica -, o que é que você quer exatamente? Reféns? Com os quais poderia fazer pressão sobre Quebec a fim de obter o justo respeito aos seus tratados ou para trocar pelos prisioneiros que foram levados para o norte pelos
abenakis e pelos canadenses?... Ora, aqui o que há são acadianos, conforme não se ignora. Franceses, sim, mas tão abandonados pelo seu governo e pela administração real, que comerciam com Boston e Salem para não perecerem... Admitimos que você levasse a Sra. de la Roche-Posay e seus filhos, mas quem se preocupará com eles em Quebec?
Phipps sabia disso. Já pensara no caso. Preocupado, deu urrj profundo suspiro e melancolicamente desabotoou o colete de linho branco para secá-lo. Em seguida tirou as botas de pele de foca.
— Então, o que me propõe? - indagou com outro suspiro.
— Isto: chegou recentemente aqui a Port-Royal uma grande dama francesa, muito rica e considerada, acompanhada de moças que ela devia levar para Quebec a fim de casá-las com oficiais e jovens senhores canadenses. Continuam sendo esperadas no Canadá, pois o navio em que viajavam naufragou em nossa costa. Não sabemos o que fazer com elas. Proponho que as leve com você! Essa dama nobre possui tantas alianças, que sua captura pode emocionar até o rei da França, e de todo modo é tão rica, que mesmo depois de perder o navio que tinha, você poderá conseguir dela um excelente resgate. Eu até acredito - prosseguiu Angélica, perdoando-se por manipular de certa forma a verdade - que entre as moças que a acompanham está a noiva de uma alta personalidade de Quebec...
Os olhos durosMo inglês contraíram-se sob o esforço da reflexão. Franziu o cenho, fungou.
— Mas se esse navio se dirigia a Quebec, como foi que conseguiu naufragar nesta costa? - perguntou, pois na qualidade de marinheiro a coisa lhe parecia suspeita.
— Os franceses não sabem pilpta? - replicou Angélica frivo-lamente.
Como William Phipps também era desça opinião, não insistiu. Um de seus homens, trazendo,a; carta que tinha encontrado no escritório do amanuense da feitoria, contribuiu para serená-lo de todo.
- Está bem - disse -, farei isso.. Mas também vou levar o soldado. Afinal, ele me feriu dois homens.
O embarque da Duquesa de Maudribourg, seu secretário Armando Dacaux,-a aía.Petronilha Damourt, as Moças do Rei, o capitão Job Simon ê o grumete sobrevivente, estes últimos carregando o unicórnio de madeira dourada, todos levados como prisioneiros dos ingleses~para Boston, transcorreu sem incidentes e em meio;a uma^quãse indiferença geral.
Os acadianos de Port-Rõyal estavam felizes por se saírem tão bem. Assim que entenderam que os ventos estavam mudando e que as coisas se ajeitariam, retornaram com peles, queijos e víveres, legumes e frutos, oferecendo-os aos marujos na esperança de obterem ferragem . inglesa, excelente e muito apreciada. Fizeram-se bons negócios-na praia: uma roda de queijo por uma caixa de pregos, e assim por diante.
Ninguém prestou muita atenção à partida dos reféns, que os ingleses, apressados pela maré, empurravam um pouco.
Apenas Angélica e a Sra. de la Roche-Posay, satisfeitas, cada uma com suas razões, por saírem do apuro com saldo tão positivo, providenciaram para as Moças -do Rei cestos de mantimentos, para ajudá-las a suportar a "travessia.
O quartel-mestre -Vanneau também estava ali. Mas Delfina Bar-bier du Rosier não o encarava. De cabeça baixa, olhos postos no chão e como que conformadas cóm seu destino estranho e caótico, as Moças do Rei seguiam a benfeitora.
O infeliz Ademar, coberto de correntes, foi o primeiro a subir ao barco.
- Senhora, não me abandone! - gritava, dirigindo-se a Angélica.
Mas ela não podia fazer nada por ele. Assegurou-lhe que obtivera de Phipps a promessa ae que a vida dele seria poupada, e comunicou-lhe a esperança de que talvez os ingleses o enviassem de volta para a França...
No momento de embarcar, Ambrosina de Maudribourg deteve-se diante de Angélica, que entendeu desta vez que a verdade inconcebível, vislumbrada como que nuifTrelâmpago numa noite de pesadelo, não podia ser mais autêntica.
Angélica tinha à sua frente uma criatura«que desejava sua destruição, sua perdição... sua morte, mesmo. Como que tirando a máscara depois de perder a partida, a duquesa já não tentava dissimular sua inveja, seu ódio.
- E a você que devemos este belo arranjo? - sibilou a meia voz, enquanto tentava exibir um sorriso insolente.
Angélica não respondeu.
O ódio que ardia nos olhos de Ambrosina apagava toda recordação do que poderia ter sido, entre elas, um entendimento ou o início de uma amizade.
- Quis livrar-se de mim - continuou a duquesa -, mas não imagine que triunfará com tanta facilidade... continuarei a fazer de tudo para abatê-la... e chegará o dia em que farei você chorar lágrimas de sangue...
Anne e Serge Golon
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