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Os espectadores das tribunas tinham-se empoleirado nos bancos. Os outros, de pé nas carruagens, seguiam com os binóculos as evoluções dos jóqueis, que se viam passar como pontos vermelhos, amarelos, brancos e azuis, a todo o comprimento da multidão que rodeava a pista. De longe, a velocidade deles não parecia muito grande; na outra extremidade do Champ de Mars dir-se-ia até diminuir, como se progredissem deslizando, os ventres dos cavalos rentes à terra, sem dobrar as patas estendidas. Mas, voltando rapidamente, iam crescendo; a sua passagem cortava o vento, o solo tremia, voavam pedras, o ar, penetrando nas jaquetas dos jóqueis, fazia-as palpitar como velas; estes chicoteavam com toda a força os animais para alcançarem a meta; era o fim. Tiravam-se os números, outro era hasteado; e, no meio dos aplausos, o cavalo vitorioso arrastava-se até a pesagem, coberto de suor, de jarretes duros, garupa descaída, enquanto o cavaleiro, que parecia agonizar na sela, comprimia as costelas com as mãos.
Uma discussão atrasou a última partida. A multidão, aborrecida, dispersou-se. Grupos de homens conversavam em frente das tribunas. Falava-se com muita liberdade; as mulheres da sociedade foram-se embora, escandalizadas com a vizinhança das cortesãs.
Viam-se também figuras conhecidas dos bailes públicos, atrizes dos teatros do bulevar — e as mais cortejadas não eram as mais belas. A velha Georgine Aubert, a quem um vaudevilista chamava “o Luís XI da prostituição”, horrorosamente maquilada e soltando de vez em quando umas risadas que pareciam grunhidos, estendia-se toda na sua longa caleche, ostentando uma capa de marta como se fosse pleno inverno. A Sra. de Remoussot, a quem um processo pusera na moda, estadeava na boleia de um breque, no meio de americanos; e Thérèse Bachelu, com um ar de virgem gótica, enchia com os doze folhos do seu vestido o interior da carruagem que tinha na frente, em lugar do guarda-lama, uma jardineira cheia de rosas. A Marechala ficou com ciúmes dessas glórias; e, para chamar a atenção, pôs-se a gesticular e a falar muito alto.
Alguns senhores reconheceram-na, e dirigiram-lhe cumprimentos. Ela respondia, dizendo os nomes deles a Frédéric. Eram todos condes, viscondes, duques e marqueses e ele empertigava-se, porque todos os olhares exprimiam um certo respeito pela sua conquista.
Cisy não parecia menos ufano no seu círculo de homens de idade, que sorriam com ar superior, como se troçassem dele; finalmente, deu uma pancadinha na mão do mais velho e dirigiu-se para junto da Marechala.
Esta, afetando voracidade, comia foie gras; Frédéric, para não destoar, imitava-a, segurando uma garrafa de vinho sobre os joelhos.
O milorde tornou a aparecer; era a Senhora Arnoux. Ela corou extraordinariamente.
— Dê-me champanha! — disse Rosanette.
E, erguendo o mais que pôde o copo cheio, exclamou:
— Eh! Aí, mulheres honestas, esposa do meu protetor, eh!
Estouraram risos à volta dela, o milorde desapareceu. Frédéric puxava-lhe pelo vestido, estava a ponto de perder a cabeça. Mas Cisy lá estava, na mesma atitude anterior; e, com mais atrevimento ainda, convidou Rosanette para jantar, naquela noite.
— Impossível! — respondeu ela. — Vamos ambos ao Café Anglais3.
Frédéric, como se nada tivesse ouvido, permaneceu mudo; e Cisy afastou-se, com ar desapontado.
Enquanto ele falava, de pé, junto à portinhola do lado direito, Hussonnet aparecera do lado esquerdo, e, ouvindo falar em Café Anglais:
— É uma bela casa! Se fôssemos lá comer qualquer coisa, hein?
— Como quiser — disse Frédéric, que, tendo-se deixado cair no canto da berlinda, olhava para o milorde que desaparecia ao longe, sentindo que uma coisa irreparável acabava de acontecer, e que tinha perdido o seu grande amor. E a outra estava ali, a seu lado, o amor alegre e fácil! Mas, cansado, cheio de desejos contraditórios, não sabendo sequer o que queria, sentia uma tristeza infinita, uma vontade de morrer.
O rumor de muitos pés e de vozes fê-lo erguer a cabeça; a garotada, passando por cima das cordas da pista, vinha espiar as tribunas; toda a gente estava indo embora. Caíram alguns pingos de chuva. A confusão das carruagens aumentou. Hussonnet desaparecera.
— Tanto melhor! — disse Frédéric.
— Prefere ficar só? — retorquiu a Marechala, pousando a mão na dele.
Então passou diante deles, com reflexos de cobre e aço, um esplêndido landau puxado por quatro cavalos, conduzidos à Daumont por dois jóqueis envergando coletes de veludo com franjas douradas. A Senhora Dambreuse ia ao lado do marido, Martinon em frente, no outro assento; todos tinham um ar muito espantado.
“Reconheceram-me!”, disse Frédéric de si para si.
Rosanette quis que parassem, para ver melhor o desfile. A Senhora Arnoux podia aparecer novamente. Frédéric gritou para o postilhão:
— Vamos, vamos, para a frente!
E a berlinda rodou para os Champs-Elysées no meio das outras carruagens, caleches, briscas, wurts, tandens, tílburis, dog-carts, carroças de cortinas de couro com operários embriagados, cantando, seges dirigidas com prudência por pais de família. Nas vitórias cheias de gente, alguns rapazinhos, sentados sobre os pés dos outros, deixavam pender as pernas para fora. Grandes cupês com assentos de pano passeavam senhoras de idade que dormitavam; ou então era um magnífico stopper que passava, puxando uma cadeirinha, simples e elegante como a casaca de um dândi. Mas a chuva aumentava. Surgiam os guarda-chuvas, as sombrinhas, os impermeáveis; as pessoas gritavam de longe: Boa-tarde! — Como vai? — Sim! — Não! — Até logo! — E as figuras sucediam-se com uma velocidade de sombras chinesas. Frédéric e Rosanette iam calados, sentindo uma espécie de atordoamento, ao ver todas aquelas rodas girarem continuamente junto deles.
De vez em quando, as filas de carruagens, densas demais, paravam ao mesmo tempo. Então, umas perto das outras, as pessoas examinavam-se. Das portinholas brasonadas caíam olhares indiferentes sobre a multidão; olhos cheios de inveja brilhavam no fundo dos fiacres; sorrisos de mofa respondiam às atitudes orgulhosas; bocas escancaradas exprimiam admiração imbecil; e, aqui e ali, algum transeunte, no meio da rua, saltava subitamente para trás, a fim de evitar um cavaleiro que galopava por entre as carruagens e conseguia sair do meio delas. Depois, tudo se punha de novo em movimento; os cocheiros afrouxavam as rédeas, abaixavam os compridos chicotes; os cavalos, estimulados, sacudindo a barbela, espalhavam espuma à volta deles, e as garupas e os arreios úmidos fumegavam por entre o vapor d’água atravessado pelo sol poente. Passando debaixo do Arco do Triunfo, estendia-se, à altura de um homem, uma luz arruivada, que fazia rutilar os eixos das rodas, a extremidade dos varais, as argolas das selas; e, de ambos os lados da grande avenida — semelhante a um rio ao longo do qual ondulassem crinas, roupas, cabeças humanas, — as árvores, reluzentes devido à chuva, erguiam-se como dois muros verdes. O azul do céu, por cima, reaparecendo em certos lugares, tinha doçuras de cetim.
Então Frédéric lembrou-se dos dias já distantes em que invejava a indizível felicidade de ir numa dessas carruagens, ao lado de uma dessas mulheres. Agora tinha essa felicidade, e nem por isso se sentia mais alegre.
Deixara de chover. Os transeuntes, que se haviam refugiado entre as colunas do Garde-Meubles, dispersavam-se. Passeantes subiam a Rua Royale em direção ao bulevar. Diante do palácio dos Negócios Estrangeiros uma fila de ociosos estacionava nos degraus.
Perto dos Bains-Chinois, como havia buracos na rua, a berlinda abrandou a marcha. Um homem de paletó cor de avelã caminhava à beira do passeio. Um salpico de lama, saltando de sob as molas, foi cair-lhe nas costas. O homem voltou-se, furioso. Frédéric empalideceu; reconhecera Deslauriers.
À porta do Café Anglais despediu a carruagem. Rosanette subira à frente, enquanto ele pagava ao cocheiro.
Encontrou-a na escada, conversando com um cavalheiro. Frédéric tomou-lhe o braço. Mas, no meio do corredor, foi detida por outro senhor.
— Vai andando! — disse ela. — Eu já vou!
E entrou sozinho no gabinete. Pelas duas janelas abertas via-se gente nas casas fronteiras. Manchas d’água tremulavam sobre o asfalto, que ia secando, e uma magnólia, no rebordo da janela, perfumava o gabinete. O perfume e o frescor repousaram-lhe os nervos; deixou-se cair no sofá vermelho, por baixo do espelho.
A Marechala entrou; e, beijando-o na testa:
— O meu queridinho está triste?
— Talvez! — replicou ele.
— Não és o único, deixa estar! — o que queria dizer: “Esqueça cada um de nós a sua tristeza numa felicidade comum!”.
Depois, pôs uma pétala entre os lábios e estendeu-os para ele. Aquele movimento, de um encanto e de uma mansuetude quase lasciva, comoveu Frédéric.
— Por que me fazes sofrer? — disse ele, pensando na Senhora Arnoux.
— Eu, faço-te sofrer?
E, de pé à sua frente, olhava para ele, franzindo as sobrancelhas, pousando-lhe as mãos nos ombros.
Toda a virtude, todo o rancor de Frédéric soçobraram numa covardia insondável.
Retorquiu:
— Porque não me queres amar! — sentando-a nos joelhos.
Ela não opôs resistência; Frédéric rodeava-lhe a cintura com os braços; o crepitar do vestido de seda inflamava-o.
— Onde estão eles? — disse a voz de Hussonnet no corredor.
A Marechala ergueu-se bruscamente, e foi para o outro lado do gabinete, voltando as costas à porta.
Pediu ostras; e instalaram-se à mesa.
Hussonnet não foi divertido. À força de escrever quotidianamente sobre toda espécie de assuntos, de ler muitos jornais, de ouvir muitas discussões e de proferir paradoxos para impressionar, acabara por perder a noção exata das coisas, iludindo a si próprio com seus pobres fogos de artifício. As dificuldades de uma vida outrora leviana, mas agora difícil, mantinham-no em permanente agitação; e a própria incapacidade, que não queria admitir, tornava-o irritante, sarcástico. A propósito de Ozaï, um novo bailado, atacou a fundo a dança, o teatro da Ópera; depois, a propósito da Ópera, atacou os italianos, agora substituídos por uma companhia de atores espanhóis, “como se não estivéssemos fartos das Castelas!”. Frédéric sentiu-se chocado no seu amor romântico pela Espanha; e, para mudar de assunto, perguntou o que havia acerca do Collège de France, do qual Edgar Quinet e Mickiewicz acabavam de ser excluídos4. Mas Hussonnet, admirador do Senhor de Maistre, declarou-se a favor da Autoridade e do Espiritualismo. Duvidando, entretanto, dos fatos mais comprovados, negava a história, e contestava as coisas mais positivas, a ponto de exclamar, ouvindo a palavra geometria: “Que embuste, a geometria!”. Tudo isso de permeio com imitações de atores. Sainville, sobretudo, era o seu modelo.
Este palavreado impacientava Frédéric. Num movimento de irritação, atingiu com a bota um dos cachorrinhos, debaixo da mesa.
Então ambos começaram a ganir de maneira insuportável.
— Devia mandá-los embora! — disse ele bruscamente.
Rosanette não tinha confiança em ninguém.
Então Frédéric voltou-se para o boêmio.
— Vamos, Hussonnet, seja dedicado!
— Oh! Sim, meu querido! Como seria gentil!
Hussonnet partiu, sem que fosse necessário insistir.
De que maneira seria paga essa complacência? Frédéric não pensou nisso. Começava mesmo a sentir-se bem, a sós com ela, quando entrou um criado.
— Minha senhora, há uma pessoa à sua procura.
— Como! Outra vez?
— Não posso deixar de ver quem é! — disse Rosanette.
Tinha sede, necessidade dela. Aquele desaparecimento parecia-lhe uma traição, quase uma grosseria. Que mais queria ela? Não lhe bastava ter ultrajado a Senhora Arnoux? Tanto pior para essa, aliás! Agora, odiava todas as mulheres; e sentia as lágrimas prestes a brotar, porque o seu amor fora desprezado e a sua concupiscência iludida.
A Marechala voltou, trazendo Cisy.
— Convidei este senhor. Fiz bem, não é assim?
— Pois claro! Evidentemente! — Frédéric, com um sorriso de supliciado, fez sinal ao gentil-homem para sentar-se.
A Marechala pôs-se a ler o cardápio, parando nos nomes bizarros.
— Se comêssemos, por exemplo, uma empada de coelho à Richelieu, e um pudim à Orléans?
— Oh! Nada de Orléans! — exclamou Cisy, que era legitimista, e julgou ter graça.
— Prefere um linguado à Chambord? — prosseguiu ela.
Esta atenção irritou Frédéric.
A Marechala optou por um simples tournedos, lagostins, trufas, uma salada de ananás, sorvete de baunilha.
— Depois veremos. Pode ir. Ah! Já me esquecia! Traga-me paio! Mas não com alho!
E chamava ao garção “rapaz”, batia com o garfo no copo, lançava ao ar o miolo do pão. Quis beber imediatamente borgonha.
— Não se toma borgonha logo no começo — disse Frédéric.
Isso fazia-se por vezes, segundo o visconde.
— Ah! Não! Nunca!
— É um fato, posso garantir-lhe!
— Estás vendo?
O olhar com que ela acompanhou essa frase queria dizer: “Ele é um homem rico, escuta-o!”.
Entretanto, a porta abria-se de minuto a minuto, os criados interpelavam-se ruidosamente, e, num piano infernal, no gabinete ao lado, alguém tocava uma valsa. Depois, as corridas levaram-nos a falar de equitação e dos dois sistemas rivais. Cisy defendia Baucher, Frédéric o Conde d'Aure, quando Rosanette encolheu os ombros.
— Basta, meu Deus! Ele sabe disso melhor que tu!
Mordiscava uma romã, com o cotovelo apoiado na mesa; as velas do candelabro, pousado à frente dela, tremiam ao vento; aquela luz branca punha-lhe tons nacarados na pele, tornava-lhe as pálpebras rosadas, fazia-lhe brilhar as pupilas; o vermelho do fruto confundia-se com o dos lábios, as narinas delicadas estremeciam; e toda ela tinha algo de insolente, de embriagado, de úmido, que, exasperando Frédéric, provocava-lhe todavia loucos desejos.
Depois Rosanette perguntou, numa voz calma, a quem pertencia aquele grande landau com uma libré castanha.
— À Condessa Dambreuse — replicou Cisy.
— Eles são muito ricos, não é verdade?
— Oh! Muito ricos! Embora a Senhora Dambreuse, que é, simplesmente, uma Boutron, filha de prefeito, tenha fortuna medíocre. — O marido, pelo contrário, recebera diversas heranças; Cisy enumerou-as; como frequentava os Dambreuse, conhecia-lhes a história.
Frédéric, para lhe ser desagradável, teimava em contradizê-lo. Insistiu que a Senhora Dambreuse se chamava “de” Boutron, garantia que era nobre.
— Seja como for, bem gostaria de ter a equipagem dela! — disse a Marechala, estirando-se na poltrona.
E a manga do vestido, descaindo, deixou ver, no punho esquerdo, um bracelete ornado de três opalas.
Frédéric viu-o.
— Essa agora! Mas...
Todos se entreolharam, corando.
A porta entreabriu-se devagarinho, surgiu a aba de um chapéu, depois o perfil de Hussonnet.
— Desculpem se incomodo, meus pombinhos!
Mas deteve-se, espantado por ver Cisy, e por este ter ocupado o seu lugar.
Trouxeram outro talher; e como Hussonnet estava faminto, tirava ao acaso, dos restos do jantar, a carne de um prato, um fruto de uma cesta, bebia com uma das mãos, servia-se com a outra, enquanto narrava a sua missão. Os dois cachorrinhos tinham sido levados para casa, onde nada havia de novo. Encontrara a cozinheira com um soldado, história falsa, inventada somente para produzir efeito.
A Marechala tirou o chapéu do cabide. Frédéric precipitou-se para a campainha, gritando de longe ao criado:
— Uma carruagem!
— Eu tenho a minha — disse o visconde.
— Mas, senhor!
— Todavia, senhor!
E olhavam-se nos olhos, ambos pálidos e de mãos trêmulas.
Finalmente, a Marechala tomou o braço de Cisy, e, mostrando o boêmio ainda à mesa:
— Cuide dele! Vai se engasgar. Eu não queria que a dedicação dele pelos meus cachorrinhos fosse a causa da sua morte!
A porta fechou-se.
— E então? — disse Hussonnet.
— Então, o quê?
— Pensei que...
— Pensou o quê?
— Então você não?...
Completou a frase com um gesto.
— Mas não! De modo algum!
Hussonnet não insistiu mais.
Tivera um fim em vista, ao fazer-se convidado para jantar. Como o seu jornal, que já não se chamava L’Art, mas sim Le Flambard, com a seguinte epígrafe: “Artilheiros, aos vossos postos!”, não prosperava nada, estava com vontade de transformá-lo numa revista semanal, sozinho, sem o auxílio de Deslauriers. Voltou a falar do antigo projeto, e expôs o seu novo plano.
Frédéric, que decerto não compreendera nada, respondeu com coisas vagas. Hussonnet apanhou na mesa alguns charutos, disse “Adeus, meu caro”, e desapareceu.
Frédéric pediu a conta. Era comprida; e o criado, de guardanapo debaixo do braço, esperava pelo dinheiro, quando outro, um indivíduo de cara deslavada, que se parecia com Martinon, veio dizer-lhe:
— Queira desculpar, mas no balcão esqueceram de incluir o fiacre.
— Que fiacre?
— O que aquele senhor tomou há pouco, para os cachorrinhos.
E o rosto do criado alongou-se, como se tivesse pena do pobre moço. Frédéric teve vontade de esbofeteá-lo. Deu de gorjeta os vinte francos do troco.
— Muito obrigado, Excelência! — disse o homem do guardanapo, fazendo profunda reverência.
Frédéric passou o dia seguinte a ruminar a sua cólera e a sua humilhação. Lamentava não ter esbofeteado Cisy Quanto à Marechala, jurou que nunca mais tornaria a vê-la; não faltavam outras tão bonitas quanto ela; e, como era necessário dinheiro para possuir essas mulheres, jogaria na Bolsa a herdade, seria rico, arrasaria com o seu luxo a Marechala e toda a gente. Quando anoiteceu, estranhou não ter pensado na Senhora Arnoux.
— Tanto melhor! Para quê?
Dois dias depois, às oito horas, Pellerin veio visitá-lo. Começou com elogios à mobília, e outras bajulações. E subitamente:
— Foi às corridas, no domingo?
— Fui, ai de mim!
Então o pintor declamou contra a anatomia dos cavalos ingleses, elogiou os cavalos de Géricault, os cavalos do Partenon. — Rosanette não estava com você? — E empreendeu habilmente o elogio dela.
A frieza de Frédéric desconcertou-o. Não sabia como conduzir a conversa para o retrato.
A sua primeira intenção era fazer um Ticiano. Mas, a pouco e pouco, o colorido variado do modelo seduzira-o; trabalhara a largas pinceladas, acumulando os tons e a luz. A princípio, Rosanette ficou encantada; os seus encontros com Delmar tinham interrompido as sessões, deixando a Pellerin todo o tempo para se deslumbrar. Depois, tendo arrefecido a admiração, perguntara a si próprio se o retrato não teria falta de grandeza. Fora rever os Ticiano, compreendera a distância a que tinha ficado, reconhecera o erro; e pusera-se a retocar os contornos com simplicidade. Em seguida, procurara, raspando-os, misturar os tons da cabeça com os do fundo; a figura ganhara consistência, e as sombras, vigor; tudo parecia mais sólido. Por fim, a Marechala reaparecera. Permitira-se mesmo fazer observações; como era natural, o artista teimara. Depois de grandes furores contra os disparates dela, pensara que bem podia ser que tivesse razão. Então começara a era das dúvidas, repelões do pensamento que provocam dores de estômago, insônia, febre, repugnância por si próprio; tivera a coragem de fazer retoques, mas sem convicção, sabendo que a pintura era má.
Queixou-se apenas de ter sido recusado no Salão, e depois censurou Frédéric por não ter ido ver o retrato da Marechala.
— Quero lá saber da Marechala!
Aquela resposta encorajou-o.
— Imagine que essa idiota já não quer o retrato!
O que não dizia era que lhe reclamara mil escudos. Ora, à Marechala pouco se lhe dava quem pagasse, e, preferindo tirar de Arnoux coisas mais urgentes, nem sequer lhe falara nisso.
— Mas, e Arnoux? — perguntou Frédéric.
Ela dissera-lhe que falasse com ele. O antigo negociante de quadros não queria saber do retrato.
— Diz que pertence a Rosanette.
— Com efeito, é dela.
— Como! Mas foi ela que me disse para vir ter com você! — replicou Pellerin.
Se acreditasse na excelência da sua obra, talvez não pensasse em tirar proveito dela. Mas uma quantia (e uma quantia considerável) seria um desmentido à crítica, ao mesmo tempo que o faria sentir-se mais seguro de si. Frédéric, para se ver livre do pintor, perguntou-lhe delicadamente quanto pedia pelo retrato.
A exorbitância da quantia revoltou-o, e respondeu:
— Não, ah! Não!
Mas o senhor é amante dela, foi quem mo encomendou!
Perdão, fui apenas intermediário!
Mas eu não posso ficar com aquilo às costas!
O artista começava a perder a cabeça.
— Ah! Não o supunha tão interesseiro!
— Nem eu ao senhor tão avarento! Boa-tarde! Acabava de sair quando chegou Sénécal.
Frédéric, perturbado, fez um movimento apreensivo.
— Que há?
Sénécal contou a sua história.
— No sábado, aí pelas nove horas, a Senhora Arnoux recebeu uma carta chamando-a a Paris; por acaso, não havia ninguém que pudesse ir a Creil buscar uma carruagem, e ela queria que eu fosse. Recusei, por isso estar fora das minhas funções. Ela partiu, e regressou no domingo à noite. Ontem pela manhã, Arnoux aparece na fábrica. A Bordalesa queixou-se. Não sei o que há entre os dois, o caso é que ele suspendeu a multa diante de toda a gente. Trocamos palavras duras. Em resumo, ele despediu-me, e aqui estou!
Depois, muito pausadamente:
— Aliás, não estou arrependido, cumpri o meu dever. De qualquer modo, foi por sua causa.
— Como? — exclamou Frédéric, receando que Sénécal lhe tivesse adivinhado as intenções.
Sénécal nada adivinhara, pois retorquiu:
— Quer dizer, se não fosse você, eu talvez tivesse conseguido coisa melhor.
Frédéric sentiu uma espécie de remorso.
— E agora, em que lhe poderei ser útil?
Sénécal aceitava qualquer colocação.
— Não lhe há de ser difícil. Conhece tanta gente, entre outros o Senhor Dambreuse, segundo me disse o Deslauriers.
Essa evocação de Deslauriers foi desagradável ao amigo. E não lhe agradava nada voltar à casa dos Dambreuse depois do encontro no Champ de Mars.
— Não tenho suficiente intimidade com ele para recomendar alguém.
O democrata aceitou estoicamente a recusa, e, após um minuto de silêncio:
— Tudo isto, tenho a certeza, vem da Bordalesa e da sua Senhora Arnoux.
Aquele “sua” tirou do coração de Frédéric a pouca boa vontade que ainda conservava. Contudo, por delicadeza, pegou na chave da escrivaninha.
Sénécal atalhou-lhe o gesto.
Depois, esquecendo as próprias desgraças, falou das coisas da pátria, das condecorações prodigalizadas no aniversário do rei, numa mudança de ministério, nos casos Drouillard e Bénier5, escândalos do momento, declamou contra os burgueses e profetizou uma revolução.
Um crid6 japonês, pendurado na parede, chamou-lhe a atenção. Pegou nele, experimentou-lhe o cabo, e depois atirou-o para cima do canapé, com ar de nojo.
— Bem, adeus! Tenho que ir a Notre-Dame de Lorette.
— Essa agora! Por quê?
— É hoje a missa em memória de Godefroy Cavaignac7. Esse morreu em plena ação! Mas não está tudo acabado!... Quem sabe?
E Sénécal estendeu-lhe a mão, com ar decidido.
— Talvez não nos tornemos a ver! Adeus!
Esse adeus, repetido duas vezes, aquele franzir de sobrancelhas ao contemplar o punhal, o ar resignado e solene, sobretudo, deram que pensar a Frédéric, o qual dentro em pouco não pensava mais nisso.
Na mesma semana, o seu notário do Havre mandou-lhe o produto da venda da propriedade, cento e setenta e quatro mil francos. Dividiu-o em duas partes, colocou uma em papéis do Estado e foi levar a outra a um corretor de fundos para arriscá-la na Bolsa.
Comia nos restaurantes da moda, frequentava os teatros e procurava distrair-se, quando recebeu uma carta de Hussonnet, em que narrava divertidamente que a Marechala, logo no dia seguinte às corridas, mandara Cisy embora. Frédéric sentiu-se feliz com isso, sem pensar qual seria o motivo por que o boêmio lhe dava tal notícia.
O acaso fê-lo encontrar Cisy, três dias depois. O gentil-homem resignou-se, e até o convidou para jantar na quarta-feira seguinte.
Na manhã desse dia, Frédéric recebeu por um oficial de diligências uma notificação em que o Sr. Charles-Jean-Baptiste Oudry o informava que, de acordo com uma sentença do tribunal, entrara na posse de uma propriedade sita em Belleville, pertencente ao Senhor Jacques Arnoux, e que estava pronto a pagar os duzentos e vinte e três mil francos a que se elevava o preço da venda. Mas resultava do mesmo documento que, ultrapassando a soma das hipotecas que oneravam o prédio, o preço da aquisição, o crédito de Frédéric se achava completamente perdido.
Todo o mal resultara de não ter renovado em tempo útil uma inscrição hipotecária. Arnoux comprometera-se a fazê-lo, e acabara por esquecer-se. Frédéric ficou irritado contra ele, e, depois de lhe ter passado a cólera:
— Bom, afinal... se isso o pode salvar, tanto melhor! Não vai ser a minha morte! Paciência!
Mas, revolvendo os papéis que tinha em cima da mesa, encontrou a carta de Hussonnet, e viu o pós-escrito, que lhe passara despercebido da primeira vez. O boêmio pedia cinco mil francos, nem mais nem menos, para o lançamento do jornal.
— Ah! Também é demais!
E recusou brutalmente, num bilhete lacônico. Depois do que, vestiu-se para ir ao Maison d’Or.
Cisy apresentou os convivas, começando pelo mais respeitável, um senhor gordo, de cabelos brancos:
— O Marquês Gilbert des Aulnays, meu padrinho. O Senhor Anselme de Forchambeaux — disse depois (era um jovem loiro e esguio, já calvo); em seguida, designando um quadragenário de aparência simples: — Joseph Boffreu, meu primo; e aqui está o meu antigo professor, o Senhor Vezou — personagem com um ar meio de carreteiro, meio de seminarista, de grandes suíças e comprida sobrecasaca abotoada embaixo com um único botão, formando um xale sobre o peito.
Cisy esperava ainda alguém, o Barão de Comaing, “que talvez venha, não é certo”. Saía a todo instante, parecia inquieto; finalmente, às oito horas, passaram a uma sala magnificamente iluminada e demasiado espaçosa para o número de convivas. Cisy escolhera-a propositadamente, por ostentação.
Uma floreira de prata dourada, cheia de flores e frutos, ocupava o centro da mesa, onde toda a baixela era de prata, segundo a velha moda francesa; pratinhos cheios de salgadinhos e especiarias cobriam toda a volta; jarros de vinho clarete, gelado, espalhavam-se pela mesa; diante de cada lugar havia cinco copos de diferentes tamanhos, e coisas de que não se sabia a utilidade, mil engenhosos utensílios de boca; e havia, só para o primeiro serviço, uma cabeça de esturjão em champanha, um presunto de York ao tócai, tordos no forno, codornas assadas, um vol-au-vent com molho Bechamel, um guisado de perdizes vermelhas, e, em ambas as extremidades, palitos de batata misturados com trufas. Um lustre e candelabros iluminavam a sala, forrada de damasco vermelho. Quatro criados de casaca perfilavam-se atrás das poltronas de couro. Diante desse espetáculo, os convivas extasiaram-se, sobretudo o preceptor.
— Palavra de honra, o nosso anfitrião8 fez autênticas loucuras! É fantástico!
— Isto? — disse o Visconde de Cisy. — Ora!
E, à primeira colherada:
— Então, meu velho des Aulnays, já foi ao Palais-Royal, ver Père et Portiers9?
— Bem sabes que não tenho tempo! — replicou o marquês.
Tinha as manhãs tomadas por um curso de arboricultura, as noites pelo Grêmio Agrícola, e as tardes inteiras por estudos nas fábricas de instrumentos de lavoura. Habitando a Saintonge durante nove meses no ano, aproveitava as viagens à capital para se instruir; e o seu chapéu de aba larga, pousado num consolo, estava cheio de brochuras.
Mas Cisy, dando conta de que o Senhor de Forchambeaux recusara o vinho:
— Beba, com a breca! Que falta de coragem, no seu último jantar de solteiro!
Então, todos se inclinaram, felicitando-o.
— E a jovem — disse o preceptor — é encantadora, não estou certo?
— Pudera! — exclamou Cisy. — Mesmo assim, faz mal; é tão estúpido, o casamento!
— Falas levianamente, meu amigo! replicou o Senhor des Aulnays, enquanto uma lágrima lhe brilhava nos olhos, à lembrança da falecida.
E Forchambeaux repetiu várias vezes, escarninho:
— Lá chegará, meu caro, lá chegará!
Cisy protestou. Preferia divertir-se, seguir a moda da Regência. Queria aprender a lutar savate, para frequentar as tabernas da Cité, como o Príncipe Rodolphe de Les Mystères de Paris,10 tirou da algibeira um cachimbo, era grosseiro com os criados, bebia imoderadamente; e, para fazer boa impressão, torcia o nariz a todos os pratos. Até mandou para dentro as trufas; o preceptor, que se deliciava com elas, disse, para adulá-lo:
— Não se comparam aos ovos nevados da senhora sua avó!
Depois voltou a conversar com o agrônomo, sentado ao seu lado, o qual achava muito vantajoso viver no campo, quando mais não fosse, ao menos por lhe permitir educar as filhas no gosto da simplicidade. O preceptor aplaudia-lhe as ideias, e adulava-o, supondo-lhe influência sobre o aluno, do qual tinha o secreto desejo de se tornar administrador.
Frédéric viera cheio de má vontade contra Cisy; esses disparates tinham-no desarmado. Mas os gestos, a cara, toda a pessoa dele, fazendo-lhe lembrar o jantar do Café Anglais, cada vez o irritavam mais; e escutava as observações malévolas que fazia em voz baixa o primo Joseph, bom rapaz sem fortuna, amador de caça e bolsista. Cisy, gracejando, chamou-lhe várias vezes “ladrão”; e, de súbito:
— Ah! O barão!
Surgiu então um sujeito forte, de uns trinta anos, fisionomia um tanto rude, membros elásticos, chapéu à banda e flor na botoeira. Era o ideal do visconde. Ficou encantado por tê-lo ali; e, como a presença dele o excitava, tentou até um trocadilho, dizendo, quando serviam um coq de bruyère:
— Eis o melhor dos caracteres de La Bruyère11!
Em seguida, fez ao Senhor de Comaing uma série de perguntas sobre pessoas desconhecidas do grupo; e então, como se de súbito se lembrasse:
— Ouça aqui! Pensou em mim?
O outro encolheu os ombros.
— Você não tem ainda idade, meu pequeno! Impossível!
Cisy tinha-lhe pedido para ser admitido no seu clube. Mas o barão, apiedando-se sem dúvida do amor próprio de Cisy:
— Ah! Já me esquecia! Mil felicitações pela aposta, meu caro!
— Qual aposta?
— Aquela que fez, nas corridas, de que iria naquela mesma noite à casa daquela dama.
Para Frédéric foi como se tivesse recebido uma chicotada. Mas acalmou-o, logo em seguida, a expressão desconcertada de Cisy.
Com efeito, a Marechala já estava arrependida, no dia seguinte, porque Arnoux, seu primeiro amante, o seu homem, se apresentou nesse mesmo dia. Os dois tinham feito compreender ao visconde que “incomodava”, e tinham-no posto na rua, com muito pouca cerimônia.
Cisy fingiu não ter ouvido. O barão acrescentou:
— Que é feito dela, dessa boa Rose?... ainda tem as pernas tão bonitas como dantes? — provando com essa frase que a conhecia intimamente.
Frédéric ficou contrariado com a descoberta.
— Não é caso para corar — prosseguiu o barão; — é um bom pedaço!
Cisy deu um estalo com a língua.
— Ora! Nem tanto assim!
— Ah!
— Meu Deus, sim! Em primeiro lugar, não lhe vejo nada de extraordinário, e além disso, iguais a ela encontram-se por aí aos montes, porque afinal, é uma mulher que se vende!
— Não a qualquer pessoa! — retorquiu azedamente Frédéric.
— Ele julga-se diferente dos outros! — replicou Cisy. — Que divertido!
E uma risada percorreu a mesa.
O coração de Frédéric batia a ponto de o abafar. Bebeu dois copos d’água de enfiada.
Mas o barão conservara uma boa recordação de Rosanette.
— Ela ainda está com um tal Arnoux?
— Não sei nada disso — respondeu Cisy. — Não conheço esse sujeito!
Acrescentou, todavia, que era uma espécie de vigarista.
— Perdão! — exclamou Frédéric.
— Mas é coisa sabida! Foi até processado.
— Não é verdade!
Frédéric pôs-se a defender Arnoux. Garantia-lhe a probidade, acabando por acreditar nela, inventava cifras, provas. O visconde, que aliás estava embriagado, cheio de rancor, teimava nas suas afirmações, a tal ponto que Frédéric lhe disse, com ar grave:
— O senhor pretende ofender-me?
E fitava nele as pupilas, ardentes como o lume do charuto.
— Oh! De forma alguma! Concedo-lhe até que ele tem uma coisa excelente: a mulher.
Conhece-a?
— Pudera! Sophie Arnoux, quem não sabe disso!
— Como diz?
Cisy, que se pusera de pé, repetiu, balbuciando:
— Quem não sabe disso!
— Cale a boca! Não é dessas que o senhor frequenta!
— Disso me gabo!
Frédéric atirou-lhe o prato à cara.
Este passou como um relâmpago por cima da mesa, derrubou duas garrafas, quebrou uma compoteira e, fazendo-se em três pedaços de encontro ao centro de mesa, foi bater no ventre do visconde.
Todos se ergueram para agarrá-lo. Ele debatia-se, aos gritos, tomado por uma espécie de frenesi; o Senhor des Aulnays repetia:
— Acalme-se! Vamos, meu filho!
— Mas é inconcebível! — vociferava o preceptor.
Forchambeaux, lívido, tremia; Joseph ria à bandeiras despregadas; os criados enxugavam o vinho, apanhando os destroços caídos no chão; e o barão foi fechar a janela, porque, apesar do rodar das carruagens, o barulho podia ouvir-se do bulevar.
Como, no momento em que o prato fora lançado, todos falavam ao mesmo tempo, não foi possível descobrir o motivo daquela ofensa, se era por causa de Arnoux, da Senhora Arnoux, de Rosanette ou de outra pessoa. O que havia de certo era a inqualificável brutalidade de Frédéric, que se negava terminantemente a manifestar o menor arrependimento.
O Senhor des Aulnays tentou apaziguá-lo, e o mesmo fizeram o primo Joseph, o preceptor, o próprio Forchambeaux. Entretanto, o barão reconfortava Cisy, o qual, dominado por uma fraqueza nervosa, chorava. Frédéric, pelo contrário, estava cada vez mais irritado; e teriam ficado ali até amanhecer, se o barão não tivesse dito, para acabar com aquilo:
— O visconde, senhor, mandará amanhã as testemunhas à sua casa.
— A que horas?
— Ao meio-dia, se está de acordo.
— Perfeitamente, senhor.
Uma vez na rua, Frédéric encheu o peito de ar. Havia muito que se dominava. Acabava de expandir-se e sentia como que um orgulho de virilidade, uma superabundância de forças íntimas que o embriagava. Precisava de duas testemunhas. O primeiro de que se lembrou foi Regimbart; e dirigiu-se imediatamente para uma taberna da Rua Saint-Denis. Estava fechada, mas via-se luz através do vidro, por cima da porta. Esta abriu-se, e Frédéric teve que se curvar muito para entrar.
Uma vela, pousada no balcão, iluminava a sala deserta. Todos os bancos estavam postos em cima das mesas, de pernas para o ar. O patrão e a patroa, juntamente com o criado, ceavam no canto, junto da cozinha; e Regimbart, de chapéu na cabeça, partilhava com eles a refeição, e até incomodava o criado, que a cada garfada tinha que se pôr de viés. Frédéric, depois de contar o caso rapidamente, pediu a assistência de Regimbart. A princípio, o Cidadão nada respondeu; com um olhar perdido, parecia refletir, deu algumas voltas na sala, e disse por fim:
— Sim, com todo o gosto!
E iluminou-o um sorriso homicida ao saber que o adversário era nobre.
— Havemos de fazê-lo andar a toque de caixa, esteja descansado! Primeiro... com a espada...
— Mas talvez — objetou Frédéric — eu não tenha o direito...
— Digo-lhe que é necessário escolher a espada! — replicou brutalmente o Cidadão. — Sabe esgrima?
— Um pouco!
— Ah! Um pouco! Aí está como eles são todos! E têm a mania dos duelos! A sala de armas não prova nada! Ouça: mantenha-se bem afastado, sempre na defensiva e recue, recue! Isso é permitido. Fatigue-o! Depois caia a fundo sobre ele, sem hesitar! E sobretudo, nada de espertezas, de botes à La Fougère! Não! Botes simples, um-dois, esquivando-se. Assim, está vendo? — e fazia girar o pulso como se estivesse abrindo uma fechadura.
— Senhor Vauthier, dê-me a sua bengala! Ah! Isto serve.
E agarrou na vara que servia para acender o gás, ergueu em arco o braço esquerdo, dobrou o direito, pôs-se a dar botes, contra a parede, com o chapéu que parecia tocar no teto. O taberneiro dizia de vez em quando: “Bravo, muito bem!” e a esposa também o admirava, apesar de emocionada; e Théodore, antigo soldado, abria a boca de pasmo, sendo, aliás, admirador fanático do Sr. Regimbart.
No dia seguinte, muito cedo, Frédéric correu ao armazém de Dussardier. Ao fim de uma porção de salas, cheias de tecidos amontoados em prateleiras, ou estendidos sobre mesas, enquanto, aqui e ali, cabides de madeira suportavam xales, avistou-o numa espécie de gaiola de grade, no meio de livros de contas, de pé, escrevendo sobre uma estante. O excelente jovem deixou imediatamente o que estava fazendo.
As testemunhas chegaram antes do meio-dia. Frédéric, por uma questão de bom gosto, achou que não devia assistir à conferência.
O barão e o Senhor Joseph declararam que aceitariam as mais simples desculpas. Mas Regimbart, que tinha como princípio não ceder nunca, e que fazia questão de defender a honra de Arnoux (Frédéric não lhe falara em outra coisa), pediu que o visconde apresentasse desculpas. O Senhor de Comaing ficou revoltado com essa impudência. O Cidadão não cedeu um passo. Verificando-se impossível qualquer conciliação, haveria duelo.
Surgiram outras dificuldades; porque a escolha das armas cabia, legalmente, a Cisy, que era o ofendido. Mas Regimbart afirmou que, sendo ele a fazer o desafio, passava a ser o ofensor. Mas as testemunhas de Cisy exclamaram que, todavia, uma bofetada era a pior das ofensas. O Cidadão objetou que uma pancada não era uma bofetada. Finalmente, decidiram consultar militares; e as quatro testemunhas saíram para ir ouvir a opinião dos oficiais de qualquer caserna.
Detiveram-se na do cais d’Orsay. O Senhor de Comaing dirigiu-se a dois capitães, e expôs-lhes a disputa.
Os capitães não entenderam nada, porque as intervenções do Cidadão a tornavam incompreensível. Acabaram por lhes aconselhar que redigissem um auto, depois do que, decidiriam. Então, dirigiram-se a um café; e até, para proceder com discrição, designaram Cisy por um H e Frédéric por um K.
Depois voltaram à caserna. Os oficiais tinham saído. Quando voltaram, declararam que a escolha das armas cabia, evidentemente, ao Senhor H. Voltaram todos para casa de Cisy. Regimbart e Dussardier ficaram no passeio.
O visconde, ao saber a decisão, ficou tão perturbado que tiveram que lha repetir várias vezes; e quando o Senhor de Comaing referiu as pretensões de Regimbart, murmurou “todavia”, não estando, no seu foro íntimo, longe de concordar. Depois deixou-se cair numa poltrona, e declarou que não queria bater-se.
— Hein? Como? — disse o barão.
Então, Cisy lançou-se num fluxo labial desordenado. Queria o duelo a bacamarte, à queima-roupa, com uma única pistola.
— Ou então deita-se arsênico num copo, que será tirado à sorte. Isso já tem sido feito: eu li!
O barão, já de si dotado de pouca paciência, disse-lhe com rudeza:
— Aqueles senhores estão à espera da sua resposta. É indecente, afinal! Que escolhe? Vejamos! A espada?
O visconde replicou “sim” com um aceno da cabeça; e o encontro foi marcado para o dia seguinte, na porta Maillot, às sete em ponto.
Como Dussardier tinha que voltar ao trabalho, Regimbart foi prevenir Frédéric.
Tinham-no deixado o dia inteiro sem notícias; já não podia conter a impaciência.
— Ainda bem! — exclamou.
O Cidadão ficou satisfeito com aquela atitude.
— Queriam que apresentássemos desculpas, quer crer? Não era nada, apenas uma palavra! Mas eu mandei-os passear! Como era de meu dever, não é verdade?
— Certamente — disse Frédéric, enquanto pensava que mais lhe valia ter escolhido outra testemunha.
Depois, quando ficou só, repetiu em voz alta, várias vezes:
— Vou bater-me. Pois é, vou bater-me! Tem graça!
Andava de um lado para o outro e, ao passar diante do espelho, verificou que estava pálido.
— Estarei eu com medo?
Uma terrível angústia o tomou, à ideia de ter medo no local.
— E se eu fosse morto? Meu pai morreu da mesma forma. Sim, vou ser morto!
E, de repente, viu a mãe12 de vestido preto; imagens incoerentes passaram-lhe pela cabeça. A sua própria covardia o exasperou. Teve um paroxismo de valentia, sede de sangue. Um batalhão inteiro não o faria recuar. Acalmada essa febre, sentiu-se, com alegria, inabalável. Para se distrair, foi à Opera, onde havia ballet. Escutou a música, admirou as bailarinas, e bebeu um copo de ponche durante o intervalo. Mas, ao regressar a casa, à vista do seu escritório, dos seus móveis, entre os quais se via porventura pela última vez, sentiu-se fraquejar.
Desceu ao jardim. As estrelas brilhavam; ficou a contemplá-las. A ideia de se bater por uma mulher elevava-o aos seus próprios olhos, enobrecia-o. Depois foi deitar-se tranquilamente.
O mesmo não se deu com Cisy. Após a partida do barão, Joseph procurara incutir-lhe coragem, e, como o visconde permanecia frio:
— Contudo, meu velho, se preferes que a coisa não vá adiante, eu irei dizê-lo.
Cisy não teve coragem para dizer “certamente”, mas levou a mal o primo por não lhe ter prestado esse serviço sem nada lhe dizer.
Desejou que, durante a noite, Frédéric morresse de um ataque de apoplexia, ou ocorresse um motim, e no dia seguinte houvesse tantas barricadas nas proximidades do Bois de Boulogne que não fosse possível lá chegar, ou qualquer acontecimento impedisse uma testemunha de comparecer; porque o duelo seria suspenso por falta de testemunha. Tinha vontade de fugir num trem expresso para um lugar qualquer. Lamentou não conhecer medicina para tomar alguma coisa que, sem perigo para ele, fizesse com que acreditassem na sua morte. Chegou até a desejar uma doença grave.
Para obter um conselho, um auxílio, mandou procurar o Senhor des Aulnays. O excelente homem tinha regressado à Saintonge, ao receber notícia de que uma das filhas estava indisposta. Isso pareceu a Cisy de mau agouro. Felizmente o preceptor, o Senhor Vezou, veio visitá-lo. Então expandiu-se.
— Como fazer, meu Deus, como fazer?
— Eu, no seu lugar, senhor conde, pagaria um estivador para lhe dar uma valente sova.
— Ele saberia quem o tinha mandado! — replicou Cisy.
E, de vez em quando, soltava um gemido; depois:
— Mas é admissível haver duelos?
— Que quer? É um resto de barbárie!
Para ser amável, o pedagogo fez-se convidado para jantar. O seu aluno não comeu nada, e, depois da refeição, sentiu necessidade de dar uma volta.
Ao passar diante de uma igreja disse:
— Se entrássemos um momento... para ver?
O Senhor Vezou concordou, e até lhe ofereceu a água-benta.
Estava-se no mês de Maria, flores cobriam o altar, vozes cantavam, o órgão ressoava. Mas não pôde rezar, as pompas da religião faziam-no pensar em enterros; parecia-lhe ouvir ecos do De profundis.
— Vamos embora! Não estou me sentindo bem!
Passaram o resto da noite jogando cartas. O visconde esforçou-se por perder, para conjurar a má sorte, do que o Senhor Vezou tirou partido. Finalmente, ao amanhecer, Cisy, esgotado, deixou-se cair sobre o pano verde e mergulhou num sono cheio de sonhos desagradáveis.
Se, todavia, a coragem consiste em dominar a fraqueza, o visconde foi corajoso, porque, ao ver as testemunhas que o vinham buscar, entesou-se com toda a força que tinha, porque a vaidade fê-lo compreender que um recuo era a sua perda. O Senhor de Comaing felicitou-o pela boa aparência.
Mas, no caminho, o balançar da carruagem e o calor matinal enervaram-no. A energia tinha-o abandonado. Já nem conseguia distinguir onde se encontravam.
O barão divertia-se aumentando-lhe o medo, falando em “cadáver” e na maneira de o trazer para a cidade, clandestinamente. Joseph dava a réplica; ambos, considerando a querela ridícula, estavam persuadidos de que tudo se arranjaria.
Cisy ia de cabeça pendida: ergueu-a lentamente, e disse que não tinham levado médico.
— É inútil — disse o barão.
— Então não há perigo?
Joseph replicou, em tom grave:
— Esperemos que não!
E ninguém na carruagem deu mais uma palavra.
Às sete horas e dez minutos chegaram diante da Porta Maillot. Frédéric e as suas testemunhas lá estavam, os três vestidos de preto. Em vez de gravata, Regimbart usava colarinho duro, como um soldado; e trazia consigo uma espécie de estojo de violino, próprio para aventuras desse tipo. Trocaram friamente uma saudação. Depois embrenharam-se todos no Bois de Boulogne, pela estrada de Madrid, procurando um lugar adequado.
Regimbart disse a Frédéric, que caminhava entre ele e Dussardier:
— Bom, e esse medo, que é feito dele? Se precisar de alguma coisa, não se preocupe, eu sei o que isso é! O receio é natural ao homem.
E acrescentou, em voz baixa:
— Não fume, isso amolece!
Frédéric lançou fora o charuto, que o atrapalhava, e prosseguiu, a passo firme. O visconde vinha atrás, apoiado no braço das testemunhas.
Raros eram os transeuntes. O céu estava azul, e de quando em quando ouvia-se saltar uma lebre. Na volta de uma vereda, uma mulher de lenço na cabeça conversava com um homem de avental, e, na avenida principal, à sombra dos castanheiros, criados de casaco de brim passeavam cavalos. Cisy recordava os dias felizes em que, montado no seu alazão, e de monóculo, cavalgava ao lado das caleças; estas recordações aumentavam-lhe a angústia; queimava-o uma sede intolerável; o zumbido das moscas confundia-se-lhe com o latejar das artérias; os pés enterravam-se-lhe na areia; parecia-lhe estar caminhando há tempos infinitos.
As testemunhas, sem parar, inspecionavam os dois lados da estrada. Discutiram se deviam ir à cruz Catelan ou até junto dos muros de Bagatelle. Finalmente dirigiram-se para a direita; e detiveram-se numa espécie de gramado entre pinheiros.
O lugar foi escolhido de forma a repartir igualmente o nível do terreno. Marcaram os dois lugares em que os adversários deviam ficar. Em seguida, Regimbart abriu a caixa. Continha, sobre um acolchoado de carneira vermelha, quatro lindas espadas, côncavas no meio, com ornatos de filigrana nos copos. Um raio de luz, atravessando as folhas, caiu sobre elas, e pareceu aos olhos de Cisy que brilhavam como víboras de prata sobre uma poça de sangue.
O Cidadão mostrou que eram de igual comprimento; reservou para si a terceira, a fim de separar os duelistas, caso fosse necessário. O Senhor de Comaing tinha uma bengala na mão. Houve um silêncio. Entreolharam-se. Em todos os rostos havia algo de assustado ou de cruel.
Frédéric despira a sobrecasaca e o colete. Joseph ajudou Cisy a fazer o mesmo; quando tirou a gravata, viu-se um bentinho que usava ao pescoço, o que fez Regimbart sorrir de comiseração.
Então, o Senhor de Comaing (para dar ainda um momento de reflexão a Frédéric) procurou criar dificuldades. Reclamou o direito de calçar uma luva, o de agarrar na espada do adversário com a mão esquerda; Regimbart, que tinha pressa, aceitou. Finalmente, o barão, dirigindo-se a Frédéric:
— Tudo depende do senhor! Não há desonra nenhuma em reconhecer os erros!
Dussardier fez um gesto de assentimento. O Cidadão protestou:
— Que diabo, o senhor pensa que viemos aqui para depenar frangos? Em guarda!
Os adversários estavam frente a frente, as testemunhas de cada lado. Ele deu o sinal:
— Vamos!
Cisy pôs-se extraordinariamente pálido. A ponta de sua espada tremia como se fosse um chicote. Descaiu-lhe a cabeça, os braços afastaram-se e caiu de costas, desmaiado. Joseph ergueu-o; e, ao mesmo tempo em que lhe chegava um frasco ao nariz, sacudiu-o com toda a força. O visconde reabriu os olhos e, de súbito, precipitou-se furiosamente sobre a espada. Frédéric conservara a dele na mão, e esperava-o, sem desviar os olhos da espada em riste.
— Parem, parem! — gritou uma voz que vinha da estrada, ao mesmo tempo em que se ouvia galopar um cavalo, e a capota de um cabriolé quebrava os ramos! Um homem debruçado à portinhola agitava um lenço e continuava a gritar: “Parem, parem!”.
O Senhor de Comaing, supondo tratar-se da polícia, ergueu a bengala.
— Acabem com isso! O visconde está sangrando!
— Eu? — disse Cisy.
Com efeito, ao cair, esfolara o polegar da mão esquerda.
— Mas foi na queda — retorquiu o Cidadão.
O barão fingiu não ter ouvido.
Arnoux apeara-se do cabriolé.
Chego demasiado tarde! Não! Deus seja louvado!
E, abraçando Frédéric, apalpava-o, cobria-lhe o rosto de beijos.
— Eu sei a razão; você quis defender o seu velho amigo! Isso é belo, muito belo! Jamais o esquecerei! Como você é bom! Ah! Meu querido filho!
Contemplava-o e chorava, ao mesmo tempo em que ria de felicidade. O barão voltou-se para Joseph.
— Parece-me que estamos sobrando nesta pequena festa de família. Está terminado, não é verdade, meus senhores? Visconde, leve o braço ao peito; olhe, tem aqui o meu lenço. — E depois, com um gesto imperativo: — Vamos, nada de rancores! Reconciliem-se!
Os duelistas trocaram um mole aperto de mão. O visconde, o Senhor de Comaing e Joseph desapareceram por um dos lados, e Frédéric dirigiu-se para o outro, com os amigos.
Como o restaurante de Madrid não ficava longe, Arnoux propôs que fossem até lá beber um copo de cerveja.
— Até podíamos almoçar — disse Regimbart.
Mas, como Dussardier não dispunha de tempo para isso, limitaram-se a tomar refrescos, no jardim. Todos sentiam aquela beatitude que se segue aos desenlaces felizes. Todavia, o Cidadão estava aborrecido por ter o duelo sido interrompido no melhor momento.
Arnoux tivera conhecimento do caso por um tal Compain, amigo de Regimbart; e, num acesso de emoção, correra a impedi-lo, julgando, aliás, ser ele a causa. Pediu a Frédéric alguns pormenores a esse respeito. Frédéric, comovido pelos testemunhos dessa ternura, teve escrúpulos de lhe aumentar as ilusões:
— Por favor, não falemos mais nisso!
Arnoux achou essa reserva sinal de grande delicadeza. Depois, com a habitual leviandade, passou a outro assunto:
— Que há de novo, Cidadão?
E puseram-se a falar de letras e prazos de pagamento. Para o fazerem mais à vontade, foram até falar baixinho, em outra mesa.
Frédéric distinguiu estas palavras: “Você vai assinar-me... — Sim! Mas você, evidentemente... — Consegui negociar-lha finalmente por trezentos! — Boa porcentagem, sim senhor!”. Em suma, era evidente que Arnoux traficava com o Cidadão em muitas coisas.
Frédéric lembrou-se de lhe falar nos quinze mil francos. Mas a intervenção de Arnoux não permitia fazer-lhe qualquer censura, por branda que fosse. Aliás, sentia-se fatigado. O lugar não era próprio. E resolveu deixar isso para outro dia.
Arnoux, sentado à sombra de uma alfena, fumava com expressão hílare. Ergueu os olhos para as portas dos gabinetes particulares, que davam todas para o jardim, e disse que tinha vindo ali muitas vezes, antigamente.
— Acompanhado, é claro? — replicou o Cidadão.
— Pudera!
— Você saiu-me um patife! Um homem casado!
— Ora essa, e você? — retorquiu Arnoux; e, com um sorriso indulgente: — Tenho até a certeza de que esse pirata tem em qualquer canto um quarto onde recebe meninas!
O Cidadão confessou ser verdade, com um simples erguer de sobrancelhas. Então, os dois manifestaram os seus gostos: Arnoux, presentemente, preferia a juventude, as operárias; Regimbart detestava as “melindrosas”, e fazia acima de tudo questão do sólido. A conclusão, dada pelo negociante de faianças, foi que não se devia levar as mulheres a sério.
“E contudo, ele ama a dele!”, pensava Frédéric, durante o regresso; e achava-o um homem desonesto. Queria-lhe mal por causa do duelo, como se tivesse sido por causa dele que, ainda há pouco, arriscara a vida.
Mas estava grato a Dussardier pela dedicação; o caixeiro, a seu pedido, não tardou a ir visitá-lo todos os dias.
Frédéric emprestava-lhe livros: Thiers, Dulaure, Barante, Les Girondins de Lamartine13. O excelente moço escutava-o com devoção e acatava-lhe as opiniões como se fossem de um mestre.
Um dia apareceu-lhe muito aflito.
Pela manhã, no bulevar, um homem que vinha correndo desabaladamente foi de encontro a ele; e, reconhecendo-o como amigo de Sénécal, dissera-lhe:
— Acabam de prendê-lo, vou fugir!
Era verdade. Dussardier passara o dia colhendo informações. Sénécal fora detido, sob a acusação de atentado político.
Filho de um contramestre, natural de Lião e tendo sido aluno de um antigo discípulo de Chalier, ingressara, mal chegado a Paris, na Sociedade das Famílias14; os seus hábitos eram conhecidos; a polícia mantinha-o sob vigilância. Participara dos motins de maio de 183915, e desde então conservara-se afastado, tornara-se cada vez mais exaltado, entusiasta de Alibaud16, confundindo as próprias queixas contra a sociedade com as do povo contra a monarquia, e despertando cada manhã com a esperança numa revolução que, em quinze dias ou um mês, transformasse o mundo. Finalmente, descoroçoado com a tibieza dos seus irmãos, enraivecido com as demoras que opunham à realização dos seus sonhos e à desespero da pátria, entrara como químico na conspiração das bombas incendiárias; tinha sido apanhado levando pólvora17, que ia experimentar em Montmartre, numa suprema tentativa para implantar a República.
Dussardier tinha, na República, igual fé, porque ela representava, segundo pensava, a libertação e a felicidade universais. Um dia — aos quinze anos — na RuaTransnonain18, diante de uma mercearia, vira uns soldados com as baionetas tintas de sangue e cabelos colados à coronha da espingarda; desde esse tempo, o Governo exasperava-o como a própria encarnação da Injustiça. Fazia uma certa confusão entre assassinos e gendarmes; aos seus olhos, um espião não valia mais do que um parricida. Todo o mal espalhado sobre a terra, atribuía-o ingenuamente ao Poder, e votava-lhe um ódio essencial, permanente, que lhe enchia o coração e lhe afinava a sensibilidade. As declamações de Sénécal tinham-no deslumbrado. Não importava que pudesse ser ou não culpado e a tentativa dele, odiosa. Era uma vítima da autoridade, era preciso ajudá-lo.
— Os Pares vão condená-lo, com certeza! Depois será levado num carro celular, como um galé, e irão encerrá-lo no Mont-Saint-Michel, onde o Governo os deixa morrer! Austen ficou louco! Steuben matou-se! Para transferir Barbès para uma masmorra, arrastaram-no pelas pernas, pelos cabelos! Espezinharam-no, e a cabeça dele ia batendo nos degraus, pelas escadas. Que barbaridade! Os miseráveis!
Oprimiam-no soluços de cólera, e andava à volta do quarto, sob o peso de uma grande angústia.
— É preciso fazer alguma coisa! Mas o quê? Não sei! Se tentássemos libertá-lo? Quando o levarem para o Luxembourg, podíamos assaltar a escolta no corredor! Uma dúzia de homens decididos não há quem os detenha.
Havia um tal fogo nos seus olhos, que Frédéric sentiu um arrepio.
Sénécal lhe pareceu maior do que supunha. Lembrou-se dos sofrimentos dele, da sua vida austera; não sentindo por ele o entusiasmo de Dussardier, experimentava contudo aquela admiração que inspira sempre o homem que se sacrifica por uma ideia. Pensava que, se o tivesse auxiliado, Sénécal não teria chegado àquela situação; e os dois amigos procuraram laboriosamente uma combinação que lhes permitisse salvá-lo.
Não lhes foi possível chegar junto dele.
Frédéric procurava notícias nos jornais, e durante três semanas frequentou assiduamente os gabinetes de leitura.
Um dia, vieram-lhes às mãos alguns números do Flambard. O artigo de fundo era invariavelmente consagrado à demolição de um homem ilustre. Vinham depois as notícias mundanas, os mexericos. Em seguida, fazia-se troça do Odéon, de Carpentras, da piscicultura e dos condenados à morte, quando os havia. O desaparecimento de um paquete dava assunto para gracejos durante um ano inteiro. Na terceira coluna, um correio das artes oferecia, sob a forma de anedota ou de conselho, anúncios de alfaiates, juntamente com a resenha de reuniões mundanas, anúncios de vendas, análises de livros, tratando no mesmo estilo um livro de versos e um par de botas. A única seção séria era a crítica dos pequenos teatros, na qual dois ou três diretores eram constantemente atacados; e os interesses da Arte eram invocados a propósito de um cenário do Funambules ou de uma atriz do Délassements.
Frédéric ia pôr o jornal de lado quando deu com os olhos num artigo intitulado: “Uma franguinha entre três galos”. Era a história do seu duelo, narrada em estilo travesso, gaulês. Não teve dificuldade em se reconhecer, porque era designado por este gracejo, várias vezes repetido: “Um jovem do colégio de Sens, a quem este falta”19. Era apresentado como um pobre-diabo provinciano, um obscuro pateta que procurava introduzir-se no meio dos grandes senhores. Quanto ao visconde, tinha o melhor papel, primeiro durante a ceia, na qual se intrometia à força, depois na aposta, porque era ele que levava a moça, e finalmente no duelo, no qual se comportava como um gentil-homem. Não se negava propriamente a coragem de Frédéric, mas fazia-se compreender que um intermediário, o próprio “protetor”, chegara no momento oportuno. E a conclusão era esta frase, cheia de perfídia:
“De onde lhes vem tanta dedicação? Mistério! E, como diz Bazilie, quem diabo é aqui o enganado?”.
Era, sem dúvida, possível uma vingança de Hussonnet contra Frédéric, por ele lhe ter recusado os cinco mil francos.
Que fazer? Se lhe pedisse satisfações, o boêmio ia jurar inocência, e isso não serviria de nada. O melhor era suportar a afronta calado. Afinal, ninguém lia o Flambard.
Ao sair do gabinete de leitura, viu muitas pessoas em frente à loja de um negociante de quadros. Contemplavam um retrato de mulher, por baixo do qual se lia, em letras negras: “A Srta. Rose-Annette Bron, pertencente ao Sr. Frédéric Moreau, de Nogent”.
Era ela, com efeito — ou quase — vista de frente, o seio à mostra, cabelos soltos, segurando nas mãos uma bolsa de veludo vermelho, enquanto, atrás, um pavão estendia o bico sobre o ombro dela, cobrindo a parede com seu leque de plumas.
Pellerin expusera o retrato para forçar Frédéric a pagar-lho, persuadido de que era célebre e que Paris inteiro, entusiasmando-se a seu favor, ia interessar-se por aquela mesquinharia.
Seria uma conjura? O pintor e o jornalista ter-se-iam entendido para darem o golpe?
O duelo nada evitara. Caíra no ridículo, toda a gente fazia pouco dele.
Três dias depois, em fins de junho, tendo a cotação das ações do Norte subido quinze francos, como adquirira duas mil no mês anterior, ganhou assim trinta mil francos20. Este afago da fortuna fez-lhe recuperar a confiança. Disse de si para si que não precisava de ninguém, que todas as dificuldades lhe vinham da timidez, das hesitações. Devia ter começado com a Marechala brutalmente, negando o dinheiro a Hussonnet logo da primeira vez, não se comprometendo com Pellerin; e, para mostrar que nada o perturbava, foi a uma das reuniões habituais da Senhora Dambreuse.
No meio do vestíbulo, Martinon, chegado ao mesmo tempo, voltou-se.
— Como, tu vens aqui? — com um ar de surpresa e até de contrariedade por vê-lo.
— Por que não?
E, enquanto pensava qual poderia ser a causa daquela atitude, entrou no salão.
A luz era débil, apesar dos candeeiros pousados nos cantos; porque as três janelas, escancaradas, erguiam paralelamente três largos quadrados de sombra negra. Debaixo dos quadros, jardineiras ocupavam os intervalos da parede até à altura de urna pessoa; e um bule de prata com um samovar refletia-se ao fundo, num espelho. Havia um murmúrio de vozes discretas. Ouvia-se o ranger de escarpins sobre o tapete.
Distinguiu um negrume de casacas, depois uma mesa redonda iluminada por um grande abajur, sete ou oito mulheres com roupas de verão, e, um pouco adiante, a Senhora Dambreuse, numa cadeira de balanço. O seu vestido de tafetá lilás tinha as mangas fendidas, deixando sair tufos de gaze, e a tonalidade suave do tecido casava-se com a cor dos seus cabelos; um pouco inclinada para trás, pousava a ponta do pé numa almofada — tranquila como uma obra de arte cheia de delicadeza, uma flor de alta cultura.
O Senhor Dambreuse e um velho de cabelos brancos passeavam de um extremo ao outro do salão. Aqui e ali, algumas pessoas conversavam, sentadas na beira dos pequenos sofás; os outros, de pé, ao centro, faziam círculo.
Conversavam sobre votos, emendas, modificações de emendas, sobre o discurso do Sr. Grandin e a réplica do Sr. Benoist21. Decididamente o terceiro partido ia longe demais! A centro-esquerda não devia esquecer as suas origens! O ministério sofrera sérios ataques! Contudo, o fato de não se ver quem lhe pudesse suceder era tranquilizador. Em suma, a situação era tal qual a de 1834.
Como essas coisas o aborreciam, Frédéric aproximou-se das mulheres. Martinon estava junto delas, em pé, chapéu debaixo do braço, cabeça a três quartos, com tal compostura que parecia uma porcelana de Sèvres. Lançou mão de uma Revue des Deux-Mondes que estava em cima da mesa, entre uma Imitação e um Annuaire de Gotha, e julgou desdenhosamente um poeta ilustre, disse que frequentava as conferências de S. Francisco, queixou-se da laringe, engolindo de quando em quando uma pastilha; e, entretanto, falava de música, mostrava-se superficial. A Senhorita Cécile, a sobrinha do Senhor Dambreuse, que bordava uns punhos, fixava nele, de soslaio, os olhos de um azul desmaiado; e Miss John, a preceptora de nariz achatado, até largara o bordado; ambas pareciam exclamar, no íntimo:
— Como é belo!
A Senhora Dambreuse voltou-se para ele.
— Quer dar-me o meu leque, que está naquele consolo? Não, esse não, o outro!
Ergueu-se; e, quando ele voltava, ambos se encontraram no meio do salão, frente a frente; ela disse-lhe com vivacidade algumas palavras, sem dúvida de censura, a julgar pela expressão altiva; Martinon esforçava-se por sorrir; em seguida foi meter-se na roda dos homens sérios. A Senhora Dambreuse voltou ao seu lugar e, inclinando-se sobre o braço da cadeira, disse a Frédéric:
— Encontrei anteontem alguém que me falou a seu respeito, o Senhor de Cisy; conhece-o, não é verdade?
— Sim... vagamente.
De súbito, a Senhora Dambreuse exclamou:
— Duquesa, que prazer!
E foi até a porta, ao encontro de uma velhinha de pequena estatura, com vestido de tafetá castanho-claro, e touca de renda de pontas caídas. Filha de um companheiro de exílio do Conde d'Artois e viúva de um marechal do Império, que tinha sido elevado a par de França em 1830, estava ligada tanto à antiga como à nova corte, e podia conseguir muita coisa. Os que palestravam de pé afastaram-se, depois voltaram à discussão.
Esta versava agora sobre o pauperismo22, acerca do qual, segundo aqueles senhores, tudo quanto se dizia era muito exagerado.
— Todavia — objetou Martinon — a miséria existe, confessêmo-lo! Mas o remédio não estará nem na Ciência nem no Poder. É uma questão puramente individual. Quando as classes inferiores quiserem abandonar os seus vícios, ficarão libertas das suas necessidades. Que o povo se torne mais moral, e será menos pobre!
Na opinião do Senhor Dambreuse, não se conseguiria nada de bom sem superabundância do capital. Portanto, a única solução viável seria confiar, “como o desejavam, aliás, os sansimonistas (meu Deus, eles tinham alguma coisa de bom, sejamos justos para todos!), confiar, dizia eu, a causa do Progresso àqueles que podem aumentar o tesouro público”. Insensivelmente, a conversa derivou para as grandes explorações industriais, as estradas de ferro, o carvão. E o Senhor Dambreuse, dirigindo-se a Frédéric, disse-lhe em voz baixa:
— Não apareceu para tratar do nosso negócio.
Frédéric desculpou-se com uma doença; mas, sentindo que a desculpa era frágil demais:
— Aliás, tive necessidade dos meus fundos.
— Para comprar uma carruagem? — retorquiu a Senhora Dambreuse, que ia passando junto dele, com uma xícara de chá na mão; e fitou-o durante um instante, com a cabeça um pouco de lado.
Ela supunha-o amante de Rosanette; a alusão era clara. Pareceu até a Frédéric que todas as damas o olhavam de longe, murmurando. Para ver melhor o que elas pensavam, aproximou-se novamente do grupo.
Do outro lado da mesa, Martinon folheava um álbum, sentado junto da Srta. Cécile. Eram litografias que representavam trajes espanhóis. Ia lendo em voz alta as legendas: “Sevilhana. — Jardineiro de Valência. — Toureiro andaluz”; e, descendo uma vez até o fim da página, continuou sem interrupção:
— “Jacques Arnoux, editor”, um dos teus amigos, hein?
— É certo — disse Frédéric, magoado pelo tom. A Senhora Dambreuse interveio:
— Com efeito, o senhor esteve aqui uma vez, pela manhã, por causa de... uma casa, se não me engano? É isso, uma casa da mulher dele (o que significava: “Você é amante dela”).
Frédéric corou até as orelhas; e o Senhor Dambreuse, que se aproximara, acrescentou:
— Você parecia até interessar-se muito por eles.
Essas últimas palavras acabaram de desconcertar Frédéric. A sua perturbação, visível, julgava ele, ia confirmar as suspeitas, quando o Senhor Dambreuse lhe disse de mais perto, com ar grave:
— Não tem negócios com ele, suponho?
Frédéric protestou, abanando repetidas vezes a cabeça, sem compreender a intenção do capitalista, que pretendia dar-lhe um conselho.
Tinha vontade de ir-se embora. O receio de parecer covarde reteve-o. Um criado recolhia as xícaras do chá; a Senhora Dambreuse conversava com um diplomata de casaca azul; duas jovens, de cabeças juntas, examinavam um anel; as outras, sentadas em semicírculo nas poltronas, moviam suavemente os rostos pálidos, enquadrados por cabelos negros ou loiros; enfim, ninguém lhe dava atenção. Frédéric fez meia volta; e, depois de uma série de longos ziguezagues, estava quase alcançando aporta, quando, ao passar junto de um consolo, viu, em cima deste, entre um vaso da China e a parede, um jornal dobrado. Puxou por ele, e leu estas palavras: Le Flambard.
Quem o teria trazido? Cisy! Evidentemente, só podia ter sido ele. Aliás, que importava isso? Iam acreditar, talvez todos eles já acreditassem no artigo. Por que tanto encarniçamento? Uma ironia silenciosa envolvia-o. Sentia-se perdido como num deserto. Mas a voz de Martinon elevou-se:
— A propósito de Arnoux, entre os presos das bombas incendiárias vi o nome de um empregado dele, Sénécal. Será o nosso?
— Em pessoa — disse Frédéric.
Martinon repetiu, elevando muito a voz:
— Mas como, o nosso Sénécal! O nosso Sénécal!
Então, fizeram-lhe perguntas sobre a conjura; dado o seu lugar de substituto no tribunal, devia estar informado.
Confessou que não. Aliás, conhecia muito mal o sujeito, tendo-o visto duas ou três vezes apenas, e, em suma, tinha-o na conta de um tipo pouco sério. Frédéric, indignado, exclamou:
— De maneira nenhuma! É um rapaz muito honesto!
— Contudo, meu caro senhor — disse um proprietário —, um sujeito que conspira não pode ser sério!
A maioria dos homens que ali estavam tinha servido, pelo menos, quatro governos; e teria vendido a França ou a espécie humana, para garantir o seu dinheiro, livrar-se de um incômodo, de uma dificuldade, ou até por simples baixeza, por adoração instintiva da força. Todos afirmaram que os crimes políticos eram indesculpáveis. Antes perdoar aqueles que resultavam da necessidade! E não deixaram de apresentar o eterno exemplo do pai de família, roubando o eterno pedaço de pão do eterno padeiro.
Um administrador chegou a exclamar:
— Mas, meu caro senhor, se soubesse que um irmão meu conspirava, ia denunciá-lo!
Frédéric invocou o direito de resistência; e, recordando-se de algumas frases que ouvira a Deslauriers, citou Desolmes, Blackstone, a Declaração dos Direitos na Inglaterra e o artigo 2 da Constituição de 91. Precisamente em virtude desse direito, Napoleão tinha sido destituído; reconhecido em 1830, fora inscrito à cabeça da Carta.
— Aliás, quando o soberano não cumpre o contrato, a justiça manda que ele seja derrubado.
— Mas é abominável! — exclamou a mulher de um prefeito.
Todas as outras se mantinham em silêncio, vagamente amedrontadas, como se tivessem ouvido sibilar as balas. A Senhora Dambreuse balançava-se na cadeira, e escutava-o sorrindo.
Um industrial, antigo carbonário23, tentou demonstrar-lhe que os Orléans eram urna bela familia; é claro, existiam abusos...
— Bem, e então?
— Mas não se deve falar neles, meu caro senhor! Se soubesse como toda essa gritaria da oposição prejudica os negócios!
— Quero lá saber dos negócios! — retorquiu Frédéric.
A podridão daquela velharia exasperava-o; e, arrastado pela audácia que às vezes se apodera dos mais tímidos, atacou os financeiros, os deputados, o Governo, o rei, tomou a defesa dos árabes, dizendo uma porção de tolices. Alguns estimulavam-no ironicamente: “Vamos! Continue!”, ao passo que outros murmuravam: “Diabo! Que exaltado!”. Finalmente, achou conveniente ir-se embora; e, ao partir, o Senhor Dambreuse disse-lhe, aludindo ao lugar de secretário:
— Nada está ainda terminado! Mas resolva depressa!
E a Senhora Dambreuse:
— Até breve, não é verdade?
Frédéric julgou ver naquela despedida mais uma ironia.
Estava decidido a nunca mais voltar àquela casa, a deixar de frequentar toda aquela gente. Julgava tê-los ferido, ignorando o grande fundo de indiferença que a sociedade possui! Sobretudo aquelas mulheres indignavam-no. Nem uma sequer o apoiara, com um olhar que fosse. Queria-lhes mal por não se terem deixado impressionar. Quanto à Senhora Dambreuse, achava nela algo de langoroso e ao mesmo tempo seco, que não permitia defini-la com uma fórmula. Teria ela um amante? Quem seria? O diplomata, ou outro? Martinon, talvez? Impossível! Contudo, sentia uma espécie de ciúme dele, e, para com ela, uma inexplicável má vontade.
Dussardier, que aparecera nessa noite, como de costume, esperava-o. Frédéric tinha o coração pesado; abriu-se com ele, e as suas queixas, embora vagas e difíceis de compreender, entristeceram o bom do caixeiro; foi ao ponto de queixar-se do seu isolamento. Dussardier, com certa hesitação, propôs que fosse visitar Deslauriers.
Ao ouvir o nome do advogado, Frédéric sentiu uma grande necessidade de vê-lo. A sua solidão intelectual era enorme, e a companhia de Dussardier insuficiente. Respondeu-lhe que arranjasse as coisas como entendesse.
Também Deslauriers sentia, depois da zanga, um vazio na sua vida. Cedeu sem dificuldade às injunções cordiais.
Abraçaram-se, e começaram a conversar sobre coisas sem importância.
A reserva de Deslauriers comoveu Frédéric; e, para lhe dar como que uma reparação, contou-lhe no dia seguinte a perda dos quinze mil francos, sem dizer que estes lhe eram primitivamente destinados. Contudo, o advogado não teve dúvidas. Esse contratempo, que vinha dar razão à má vontade dele contra Arnoux, desfez-lhe completamente o rancor, e não voltou a falar na antiga promessa.
Frédéric, iludido por esse silêncio, julgou que a tivesse esquecido. Alguns dias depois, perguntou-lhe se não haveria maneira de recuperar os fundos.
Podiam contestar-se as hipotecas anteriores, atacar Arnoux como estelionatário, fazer-se um arresto dos bens da mulher.
— Não! Não! Contra ela, não! — exclamou Frédéric; e, cedendo às perguntas do antigo escrevente, confessou a verdade. Deslauriers ficou convencido de que ele não dizia tudo, sem dúvida por delicadeza. Essa falta de confiança ofendeu-o.
Todavia, estavam tão íntimos como outrora, e sentiam tanto prazer em se encontrar que até a presença de Dussardier os constrangia. A pretexto de certos encontros, foram-se libertando dele, a pouco e pouco. Há homens cuja única missão entre os outros é servir de intermediários; passa-se por eles como se fossem pontes, para ir mais adiante.
Frédéric não ocultava nada ao seu velho amigo. Contou-lhe o caso das hulhas, e a proposta do Senhor Dambreuse. O advogado ficou pensativo.
— É curioso! Para esse lugar conviria uma pessoa conhecendo direito a fundo!
— Mas tu poderás ajudar-me — replicou Frédéric.
— Sim... pois... evidentemente!
Nessa mesma semana, mostrou-lhe uma carta da mãe.
A Senhora Moreau acusava-se de ter julgado mal o Senhor Roque, o qual dera explicações satisfatórias da sua conduta. Em seguida falava da fortuna dele, e da possibilidade, mais tarde, de um casamento com Louise.
— Talvez não fosse asneira! — disse Deslauriers.
Frédéric não queria ouvir falar em tal coisa; aliás, o velho Roque era um salafrário. Isso não tinha a menor importância, achava o advogado.
Em fins de julho, as ações do Norte sofreram uma baixa inexplicável. Frédéric não tinha vendido as suas; perdeu, de uma vez só, sessenta mil francos. Os seus rendimentos ficaram sensivelmente diminuídos. Tinha que restringir os gastos, ou arranjar um emprego, ou fazer um bom casamento.
Então Deslauriers falou-lhe na Srta. Roque. Nada o impedia de ir ver o que havia. Frédéric estava um pouco fatigado, a província e a casa materna haviam de lhe fazer bem. Partiu.
O aspecto das ruas de Nogent, revistas ao luar, fê-lo evocar velhas recordações; e sentia uma espécie de angústia, como quem regressa ao fim de longas viagens.
Encontrou em casa da mãe todos os frequentadores de outrora: os Senhores Gamblin, Heudras e Chambrion, a família Lebrun, “as Senhoritas Auger”; além deles, o Senhor Roque e, em frente da Senhora Moreau, diante de uma mesa de jogo, a Srta. Louise. Esta, que presentemente era já uma mulher, ergueu-se, dando um grito. Todos se agitaram. Ela ficara imóvel, de pé; e os quatro castiçais de prata pousados na mesa aumentavam-lhe a palidez. Quando voltou a jogar, tremia-lhe a mão. Esta emoção deixou Frédéric extraordinariamente desvanecido porque tinha um orgulho doentio; disse de si para si: “Tu hás de amar-me!” e, vingando-se dos seus malogros da capital, deu-se ares de parisiense, de homem da moda, contou coisas dos teatros, anedotas dos salões, que conhecia dos pequenos jornais, em suma, deslumbrou os conterrâneos.
No dia seguinte, a Senhora Moreau discreteou sobre as qualidades de Louise; em seguida, enumerou as matas, os campos que ela viria a possuir. A fortuna do Senhor Roque era considerável.
Tinha-a acumulado colocando fundos para o Senhor Dambreuse; como emprestava a pessoas que podiam dar boas garantias hipotecárias, isto permitia-lhe cobrar juros suplementares e porcentagens. O capital, graças à sua ativa vigilância, não corria nenhum risco. Aliás, o Senhor Roque não hesitava jamais em pôr à venda as propriedades; depois, comprava a preço vil os bens hipotecados, e o Senhor Dambreuse, como recuperava os fundos, achava os negócios muito bem conduzidos.
Mas esta manipulação extralegal comprometia-o em relação ao administrador. Não lhe podia recusar nada. Fora a instâncias dele que recebera Frédéric daquela maneira.
Com efeito, o Senhor Roque alimentava uma ambição no fundo da alma. Queria que a filha fosse condessa; e, para consegui-lo, sem pôr em risco a felicidade dela, não via outro genro senão aquele.
Graças à proteção do Senhor Dambreuse, conseguiria que lhe dessem o título do avô, porque a Senhora Moreau era filha de um Conde de Fouvens, e aparentada, aliás, às mais antigas famílias da Champanha, os Lavernade, os d’Étrigny. Quanto aos Moreau, uma inscrição gótica, junto dos moinhos de Villeneuve-l’Archevêque, falava num Jacob Moreau que os reidificara em 1596; e o túmulo de um filho deste, Pierre Moreau, estribeiro do rei, no tempo de Luís XIV, podia ver-se na capela Saint-Nicolas.
Tamanha nobreza fascinava o Senhor Roque, filho de um antigo criado. Se a coroa de conde não se arranjasse, consolar-se-ia com outra coisa; porque Frédéric podia chegar a deputado quando o Senhor Dambreuse chegasse a par, e então ajudá-lo-ia nos negócios, obtendo-lhe fornecimentos, contratos. O jovem agradava-lhe, pessoalmente. Em suma, queria-o para genro, porque havia muito que essa ideia se lhe metera na cabeça, e cada vez o dominava mais.
Agora frequentava a igreja; — e conquistara a Senhora Moreau com a esperança de um título, sobretudo. Todavia, ela abstivera-se de lhe dar uma resposta decisiva.
Assim, oito dias depois, sem que tivesse havido qualquer compromisso, Frédéric era tido como o “prometido” da Srta. Louise; e o Senhor Roque, pouco escrupuloso, deixava-os sozinhos de vez em quando.
V
Deslauriers levara da casa de Frédéric a cópia do título da sub-rogação, com uma procuração que lhe dava plenos poderes; mas, depois de ter subido os cinco andares da sua casa, e ao achar-se só, no meio do triste gabinete, na poltrona de couro, sentiu náuseas à vista do papel selado.
Estava cansado daquelas coisas, e dos restaurantes de trinta e dois sous, de andar de ônibus, da miséria, dos seus esforços. Voltou a pegar nos papéis; ao lado havia outros; eram prospectos da companhia hulheira, com a lista das minas e pormenores sobre a capacidade delas, que Frédéric lhe entregara para ele opinar.
Teve uma ideia: apresentar-se em casa do Senhor Dambreuse e pedir-lhe o lugar de secretário. Este dependia, evidentemente, da compra de certo número de ações. Reconheceu a loucura do projeto e disse de si para si:
“Oh, não! Seria malfeito”.
Então, pensou na maneira de reaver os quinze mil francos.
Para Frédéric, tal soma não era nada! Mas, nas mãos dele, que alavanca não seria! E o antigo escrevente indignou-se por a fortuna do outro ser tão grande.
— Para o triste emprego que lhe dá! É um egoísta. Ora! Quero lá saber dos quinze mil francos!
Por que os tinha emprestado? Pelos lindos olhos da Senhora Arnoux. Era amante dele! Deslauriers não tinha a menor dúvida. “Eis outra das coisas para que o dinheiro serve!” Dominaram-no pensamentos cheios de ódio.
Depois, pensou na própria pessoa de Frédéric. Este sempre exercera sobre ele uma sedução quase feminina; e dentro em breve começou a admirá-lo por um êxito de que se reconhecia incapaz.
Entretanto, não era a vontade o elemento capital em tais empreendimentos? E, visto que com ela se triunfa em tudo...
— Ah! Teria graça!
Mas sentiu vergonha dessa perfídia, e um minuto depois:
— Ora! Terei medo, por acaso?
A Senhora Arnoux (à força de ouvir falar nela) acabara por ganhar proporções extraordinárias na sua admiração. A persistência daquele amor irritava-o como um problema. Presentemente, a sua própria austeridade, um pouco teatral, já o irritava. Aliás, a mulher da sociedade (ou a que ele assim supunha) deslumbrava o advogado, como símbolo e síntese de mil prazeres ignorados. Pobre, cobiçava o luxo sob a sua forma mais clara.
— Afinal, se ele se zangar, paciência! Portou-se demasiado mal comigo, por que havia eu de me constranger? Nada me garante que ela seja sua amante! Ele negou. Portanto, estou livre!
O desejo de tomar essa iniciativa não o largava. Era uma prova de força que queria fazer; — e assim, um dia, de repente, ele próprio engraxou as botas, comprou umas luvas brancas, e pôs-se a caminho, pondo-se no lugar de Frédéric e quase imaginando ser ele, por uma singular evolução intelectual em que havia ao mesmo tempo vingança e simpatia, imitação e audácia.
Mandou anunciar “o Doutor Deslauriers”.
A Senhora Arnoux ficou surpreendida, não chamara médico nenhum.
— Ah! Mil desculpas! Sou doutor em direito. Venho por causa dos negócios do Senhor Moreau.
Este nome pareceu deixá-la perturbada.
“Tanto melhor, visto que ele lhe serviu, também eu lhe hei de servir!” pensou o antigo escrevente, estimulando-se com a ideia corrente de ser mais fácil suplantar um amante do que um marido.
Tivera o prazer de encontrá-la, uma vez, no Palácio da Justiça; citou até a data. Tanta memória espantou a Senhora Arnoux. Ele prosseguiu, num tom meloso:
— A senhora já tinha... algumas dificuldades... nos seus negócios!
Ela nada respondeu; portanto, era verdade.
Deslauriers pôs-se a conversar sobre isto e aquilo, a casa dela, a fábrica; em seguida, ao ver junto do espelho alguns medalhões:
— Ah! Retratos de família, certamente?
Notou o de uma senhora idosa, a mãe dela.
— Tem ar de excelente pessoa, um tipo meridional.
E, à objeção de que era de Chartres:
— Chartres! Linda cidade.
Gabou a catedral e os pastéis; depois, voltando ao retrato, achou semelhanças com a Senhora Arnoux, fazendo-lhe elogios indiretos. Ela não se mostrou chocada. Deslauriers ganhou confiança e disse que conhecia Arnoux havia muito.
— É um excelente rapaz! Mas que se compromete! Com esta hipoteca, por exemplo, não se imagina uma leviandade...
— Sim, eu sei — disse ela, encolhendo os ombros.
Essa involuntária manifestação de desprezo estimulou Deslauriers a ir em frente.
— Aquela história do caolino, talvez a senhora não saiba, ia sendo o diabo, e até a reputação dele...
Um franzir de sobrancelhas fê-lo calar.
Então, refugiando-se nas generalidades, lamentou as pobres mulheres cuja fortuna é dilapidada pelos maridos...
— Mas a fortuna é dele, meu caro senhor; eu não tenho nada!
Fosse como fosse! Não se sabia... Uma pessoa experiente podia ser útil. Fez promessas de dedicação, exaltou os próprios méritos; e olhava-a de frente, através dos óculos que lançavam reflexos.
Ela começava a sentir um vago torpor; e de repente:
— Vejamos o caso, por favor!
Deslauriers exibiu os documentos.
— Isto é a procuração de Frédéric. Com um papel destes nas mãos de um oficial de diligências que fará uma intimação, não há nada mais simples: dentro de vinte e quatro horas... (Ela permanecia impassível, Deslauriers mudou de tática.) — Eu, aliás, não compreendo por que ele reclama essa quantia; afinal, não tem a menor necessidade dela!
— Como! O Senhor Moreau mostrou-se tão bondoso...
— Sim, sem dúvida!
E Deslauriers pôs-se a elogiá-io, depois passou a denegri-lo, com todo o cuidado, apresentando-o como negligente, muito preocupado consigo, avarento.
— Pensei que fosse um amigo do senhor!
— Isso não me impede de lhe ver os defeitos. Assim é que ele parece esquecer... como direi? A simpatia...
A Senhora Arnoux voltava às folhas do grosso caderno. Interrompeu-o, pedindo a explicação de uma palavra.
Deslauriers inclinou-se sobre o ombro dela, tão próximo que lhe roçou a face. Ela corou; esse afogueamento excitou Deslauriers, que lhe beijou a mão com voracidade.
— Que é isso, senhor!
E, de pé, encostada à parede, fixou nele os grandes olhos, negros e irritados.
— Escute-me! Eu amo-a!
Ela soltou uma risada, um riso agudo, desesperante, atroz. Deslauriers teve um acesso de raiva. Conteve-se; e, com o ar de um vencido que pede clemência:
— Ah! Faz mal! Eu não iria, como ele...
— De quem está a falar?
— De Frédéric!
— Ora! O Senhor Moreau preocupa-me pouco, já lhe disse!
— Oh, perdão!... Perdão!...
Depois, com voz mordaz, e arrastando as frases:
— Pensei até que se interessasse suficientemente por ele para ficar contente em saber...
Ela pôs-se muito pálida. O antigo escrevente acrescentou:
— Que ele vai casar.
— Ele!
— Dentro de um mês, o mais tardar, com a Srta. Roque, a filha do administrador do Senhor Dambreuse. Ele até foi para Nogent, só por causa disso.
Ela levou a mão ao coração, como se tivesse recebido um grande golpe; mas, logo em seguida, tocou a campainha. Deslauriers não esperou que o pusessem fora. Quando ela se voltou, já tinha desaparecido.
A Senhora Arnoux sentia-se um pouco oprimida. Aproximou-se da janela para respirar.
No passeio, do outro lado da rua, um homem em mangas de camisa pregava um caixote. Passavam fiacres. Fechou a janela, e voltou a sentar-se. Os altos prédios vizinhos interceptavam o sol, uma luz fria banhava o apartamento. Os filhos tinham saído, nada bulia à volta dela. Era como uma imensa deserção.
“Ele vai casar! Será possível?”
E começou a sentir um tremor nervoso.
“Por que é isto? Será possível que eu o ame?”
Depois, subitamente:
“Mas sim, eu amo-o... eu amo-o!”.
Tinha a impressão de estar mergulhada em qualquer coisa profunda, que não acabava mais. O relógio bateu três horas. Escutou as vibrações morrerem. Permanecia na beira da poltrona, com um olhar fixo, sorrindo sempre.
Na mesma tarde, no mesmo momento, Frédéric e a Srta. Louise passeavam pelo jardim que o Sr. Roque possuía na extremidade da ilha. A velha Catherine vigiava-os, de longe; caminhavam lado a lado, e Frédéric dizia:
— Lembra-se de quando eu a levava a passear no campo?
— Como era bom para mim! — respondeu ela. — Ajudava-me a fazer bolos com areia, a encher o meu regador, a brincar no balanço!
— Que foi feito das suas bonecas, que tinham todas nomes de rainhas ou de marquesas?
— Não faço a menor ideia!
— E o seu cãozinho Moricaud!
— Morreu afogado, o pobrezinho!
— E o D. Quixote1, cujas figuras coloríamos juntos?
— Ainda o tenho!
Ele lembrou-lhe o dia da primeira comunhão, e como estava encantadora no ofício da tarde, com o véu branco e uma grande vela, enquanto desfilavam todas em volta do coro, e o sino badalava.
Essas recordações tinham, sem dúvida, pouco encanto para a Srta. Roque; não respondeu nada; e passado um minuto:
— Seu mau! Que nem uma vez me deu notícias suas!
Frédéric objetou os numerosos afazeres.
— O que é que fazia?
Ele ficou atrapalhado com a pergunta, e depois disse que estudava Política.
— Ah!
E sem querer saber mais:
— Isso ocupa-o, mas eu!...
Então contou-lhe a aridez da sua existência, sem ver ninguém, sem o menor divertimento, a menor distração! Ela desejaria montar a cavalo.
— O vigário acha impróprio para uma menina; que coisa tola, as conveniências! Antigamente, deixavam-me fazer tudo quanto me apetecia; agora, nada!
— Contudo, o seu pai gosta muito de você!
— Sim; mas...
Suspirou, querendo dizer: “Isso não faz a minha felicidade”.
Depois, houve um silêncio. Ouviam apenas o estalar da areia debaixo dos pés e o murmúrio da queda d’água; porque o Sena, acima de Nogent, se divide em dois braços. Aquele que faz mover os moinhos lança ali o excedente das suas águas, que voltam mais abaixo ao curso natural do rio; e, quando se vem das pontes, avista-se à direita, na outra margem, um talude de relvado dominado por uma casa branca. À esquerda, nos prados, erguem-se choupos, e o horizonte é limitado, defronte, por uma curva do rio; este mostrava-se regular como um espelho; grandes insetos deslizavam na água tranquila. Tufos de junco ladeavam-na, irregularmente; as mais diversas plantas cresciam ali, florescendo em botões de ouro, deixando pender cachos amarelos, erguendo rocas de flores arroxeadas, lançando ao acaso as hastes verdes. Numa reentrância do rio, estendiam-se plantas aquáticas; e um renque de velhos salgueiros, ocultando armadilhas, era a única defesa do jardim, desse lado da ilha.
Dentro, quatro muros com uma cobertura de lousas fechavam a horta, onde os canteiros de terra, recentemente lavrados, formavam manchas castanhas. As campânulas dos melões brilhavam em fila, sobre sua estreita cama; as alcachofras, os feijões, os espinafres, as cenouras e os tomates alternavam-se até uma plantação de espargos, que parecia um bosquezinho de plumas.
Todo aquele terreno fora, no tempo do Diretório, o que se chamava uma folie2. Desde então, as árvores tinham crescido desmedidamente. As trepadeiras enrodilhavam-se nos caramanchões, as aleias estavam cobertas de musgo, havia silvas por todos os lados. Por entre as ervas apareciam pedaços de estátuas, cujo gesso se esmigalhava. Os pés ficavam às vezes presos em pedaços de arame, restos de obras ali realizadas. Do pavilhão restavam apenas dois quartos no rés-do-chão, com pedaços de papel azul. Diante da fachada estendia-se uma latada à italiana, sobre cujos esteios de tijolo, ripas entrelaçadas suportavam uma parreira.
Foram até lá os dois, e, como a luz passava através dos interstícios desiguais da folhagem, Frédéric, falando de lado a Louise, observava a sombra das folhas no rosto da moça.
Ela usava, entre os cabelos vermelhos, no coque, um alfinete cuja cabeça era uma bola de vidro imitando uma esmeralda; e calçava, embora estivesse de luto (tão ingênua era a sua falta de gosto), pantufas de palha franjadas de cetim cor-de-rosa, muito vulgares, certamente compradas em alguma feira.
Ele notou-as, elogiando-as ironicamente.
— Não faça troça de mim! — replicou ela.
Em seguida, considerando-o dos pés à cabeça, desde o chapéu de feltro cinzento até as meias de seda:
— Como está elegante!
Depois, pediu que lhe indicasse alguns livros para ler. Ele citou diversos; e ela disse:
— Oh! Você sabe tanta coisa!
Pequenina ainda, dedicara-lhe um desses amores de criança que têm ao mesmo tempo a pureza de uma religião e a violência de uma necessidade. Fora o companheiro, o irmão, o mestre, distraíra-lhe o espírito, fizera-lhe bater o coração e instilara, no mais fundo dela, uma embriaguez latente e contínua. Depois, abandonara-a em plena crise trágica, quando a mãe tinha acabado de morrer, e aqueles dois desesperos confundiam-se. A ausência idealizara-o na sua recordação; voltava como que aureolado; agora, entregava-se ingenuamente à felicidade de vê-lo.
Pela primeira vez na vida, Frédéric sentia-se amado; e este prazer novo, que não ultrapassava o nível dos sentimentos agradáveis, dava-lhe uma espécie de íntima plenitude, e tão intensa que o fez abrir os braços, deitando a cabeça para trás.
Uma pesada nuvem passava então no céu.
— Vai para os lados de Paris — disse Louise; — gostaria de acompanhá-la, não é assim?
— Eu! Por quê?
— Sabe-se lá?
E lançando-lhe um olhar inquiridor:
— Talvez tenha deixado lá... — (procurava a palavra) — qualquer afeição.
— Ora! Não tenho afeição nenhuma!
— Com certeza?
— Sem dúvida, menina, sem dúvida!
Em menos de um ano, dera-se nela uma transformação extraordinária, que espantava Frédéric. Após um minuto de silêncio, acrescentou:
— Devíamos tratar-nos por tu, como antigamente: quer?
— Não.
— Por quê?
— Porque não!
Frédéric insistiu. Ela respondeu, baixando a cabeça:
— Não me atrevo!
Tinham alcançado o fundo do jardim, junto à margem do Livon. Frédéric, por garotice, pôs-se a atirar pedrinhas na água. Ela ordenou-lhe que se sentasse. Ele obedeceu; e depois, olhando a queda-d’água:
— É como o Niágara!
E pôs-se a falar de terras distantes e de grandes viagens. Ela deliciava-se à ideia de fazê-las. Não teria medo de nada, nem das tempestades, nem dos leões.
Sentados um ao lado do outro, apanhavam punhados de areia e deixavam-na escorrer por entre os dedos, enquanto conversavam; — e o vento quente que soprava das planícies trazia-lhes, às lufadas, um perfume de lavanda, de mistura com o cheiro de alcatrão que vinha de uma barca, atrás do açude. O sol dava em cheio na cachoeira; as pedras esverdeadas do pequeno muro, rente ao qual a água corria, pareciam cobertas por uma gaze prateada, desenrolando-se sem parar. Uma longa barra de espuma refervia junto deles, em cadência. Em seguida, era um fervilhar, turbilhões, mil correntes contrárias, que acabavam por fundir-se numa só toalha límpida.
Louise murmurou que invejava a vida dos peixes.
— Deve ser tão bom a gente rolar lá no fundo, à vontade, e sentir-se acariciada por todos os lados.
E estremecia, com movimentos de graça sensual.
Mas uma voz gritou:
— Onde estás?
— A sua criada está chamando — disse Frédéric.
— Está bem! Está bem!
Louise não se incomodou.
— Ela vai zangar-se — insistiu ele.
— Quero lá saber! E além disso... — e a Srta. Roque fê-lo compreender, com um gesto, que a tinha na mão.
Contudo, levantou-se, e depois queixou-se de dores de cabeça. Quando iam passando diante de um alpendre, onde se amontoava lenha:
— E se nos escondêssemos ali debaixo, à l’égaud3?
Ele fingiu não compreender o termo de dialeto, e até caçoou dela por causa da pronúncia. Os cantos da boca de Louise franziram-se, mordeu os lábios, e afastou-se, amuada.
Frédéric aproximou-se dela, jurou que não tivera intenção de feri-la e que gostava muito dela.
— É verdade? — exclamou Louise, olhando para ele com um sorriso que lhe iluminou todo o rosto, um pouco sardento.
Ele não resistiu a esta ousadia de sentimento, ao viço da mocidade dela, e prosseguiu:
— Por que havia de te mentir?... Duvidas, hein? — e passou-lhe o braço em volta da cintura.
Um grito, suave como um arrulho, irrompeu-lhe da garganta; a cabeça descaiu-lhe, desfaleceu, Frédéric segurou-a. E os escrúpulos da sua honestidade não foram necessários; diante daquela virgem que se oferecia, enchera-se de receio. Ajudou-a depois a dar alguns passos, lentamente. Deixou de lhe dizer palavras meigas, e, como não queria falar senão de coisas insignificantes, encaminhou a conversa para a sociedade de Nogent.
De súbito, ela repeliu-o, e, num tom amargurado:
— Tu não tinhas coragem para me levar!
Ele ficou imóvel, com um ar desconcertado. Louise desatou a soluçar, e, escondendo a cabeça no peito dele:
— Como é que poderei viver sem ti!
Frédéric procurava acalmá-la. Ela pousou as mãos nos ombros do rapaz para o olhar melhor de frente, e, mergulhando nas dele aquelas pupilas verdes, de uma umidade quase feroz:
— Queres ser meu marido?
— Mas... — replicou Frédéric, procurando o que havia de dizer. — Sem dúvida... Não há coisa que eu mais deseje.
Nesse momento, o boné do Senhor Roque surgiu por trás de um lilás.
Levou o seu “jovem amigo” numa pequena viagem de dois dias pelos arredores, às suas propriedades; e Frédéric, quando voltou, encontrou três cartas em casa da mãe.
A primeira era um bilhete do Senhor Dambreuse, convidando-o para jantar na terça-feira anterior. Por que tal atenção? Tinham-lhe então perdoado o despropósito?
A segunda era de Rosanette. Agradecia-lhe ter arriscado a vida por ela; a princípio, Frédéric não compreendeu o que queria dizer; finalmente, depois de muitos circunlóquios, implorava-lhe, invocando a sua amizade, fiando-se na sua delicadeza, de joelhos, dizia ela, dada a premente necessidade, como se pedisse pão, um pequeno auxílio de quinhentos francos. Ele decidiu mandar-lhos imediatamente.
A terceira carta era de Deslauriers, falava da procuração e era comprida, obscura. O advogado não tomara ainda nenhuma decisão. Insistia em que Frédéric não se incomodasse: “Não há necessidade de que voltes!”, insistindo até nisso de forma estranha.
Frédéric perdeu-se em conjecturas de toda espécie, e teve vontade de voltar a Paris; aquela pretensão de lhe orientar a conduta indignava-o.
Aliás, a nostalgia do bulevar começava a dominá-lo; além disso, a mãe fazia tanta pressão sobre ele, o Senhor Roque andava de tal maneira à sua volta, e a Srta. Louise amava-o tanto, que não podia permanecer mais tempo sem se declarar. Precisava refletir, e, de longe, poderia julgar melhor a situação.
Para justificar a viagem, Frédéric inventou uma história; e partiu, dizendo a toda a gente, e ele próprio supondo, que não tardaria a estar de volta.
VI
O regresso a Paris não lhe deu prazer; era à noite, no fim de agosto, o bulevar parecia vazio, os transeuntes sucediam-se com expressões mal-humoradas; aqui e ali uma caldeira de asfalto fumegava, muitas habitações tinham as persianas completamente fechadas; chegou a casa; os reposteiros estavam cobertos de pó; jantando sozinho, Frédéric sentiu um estranho sentimento de abandono; então pensou na Srta. Roque.
A ideia de casar-se já não lhe parecia disparatada. Viajariam, iriam à Itália, ao Oriente! Imaginava-a de pé, sobre uma elevação, contemplando uma paisagem, ou então apoiada no seu braço numa galeria de Florença, parando diante dos quadros. Que alegria, ver aquela criança desabrochar ante os esplendores da Arte e da Natureza! Separada do meio de origem, não tardaria a ser uma companheira deliciosa. Aliás, a fortuna do Senhor Roque tentava-o. Todavia, a decisão repugnava-lhe, parecia-lhe uma fraqueza, uma vileza.
Mas estava inteiramente decidido (fizesse o que fizesse) a mudar de vida, isto é, a não mais desperdiçar o coração em paixões infrutíferas, e hesitava até em cumprir um encargo de que Louise o incumbira: comprar para ela, na loja de Jacques Arnoux, duas grandes estatuetas policromas, representando negros, como as que havia na prefeitura de Troyes. Ela conhecia a marca do fabricante, e não queria senão desse. Frédéric tinha medo, caso voltasse “à casa deles”, de recair novamente na velha paixão.
Estas reflexões ocuparam-no durante todo o serão; e ia deitar-se quando uma mulher entrou.
— Sou eu — disse, rindo, a Srta. Vatnaz. — Venho da parte de Rosanette.
Então elas tinham se reconciliado?
— Meu Deus, mas certamente! Eu não tenho mau coração, você bem sabe. Além disso, a pobre pequena... Mas seria longo demais para lhe contar.
Em resumo, a Marechala queria vê-lo, esperava uma resposta, a carta andara de Paris para Nogent; a Srta. Vatnaz não sabia qual o seu conteúdo. Então, Frédéric quis saber da Marechala.
Estava agora “com” um homem muito rico, um russo, o Príncipe Tzernukof, que a tinha visto nas corridas do Champ de Mars, no verão passado.
— Três carruagens, cavalo de sela, libré, groom à moda inglesa, casa de campo, camarote no Italiens e mais uma porção de coisas. Aí tem, meu caro.
E a Vatnaz, como se tivesse tirado proveito dessa mudança de fortuna, parecia mais alegre, muito feliz. Tirou as luvas e examinou os móveis e os bibelôs do quarto. Avaliava-os pelo justo preço, como um antiquário. Ele devia tê-la consultado, para os conseguir mais barato; e felicitava-o pelo bom gosto:
— Ah! Está um encanto, é mesmo um amor! Só você era capaz de ter estas ideias.
Depois, reparando numa porta junto da alcova:
— É por ali que saem as garotas, hein?
E, amigavelmente, fez-lhe uma festa no queixo. Ele estremeceu ao contato das mãos compridas, ao mesmo tempo magras e suaves. Tinha em volta dos pulsos um enfeite de renda e, no corpete do vestido verde, passamanarias, como os hussardos. O chapéu de tule preto, de abas caídas, escondia-lhe parcialmente a testa, realçando o brilho dos olhos; um perfume de patchuli evolava-se dos seus bandós; o candeeiro, pousado numa mesinha, iluminando-a de baixo, como na ribalta, fazia sobressair-lhe o queixo; — e de súbito, diante daquela mulher feia, cujo dorso tinha ondulações de pantera, Frédéric sentiu uma enorme concupiscência, um desejo de bestial volúpia.
Ela disse-lhe numa voz untuosa, tirando três retângulos de papel da bolsa:
— Vai ficar com isto!
Eram três bilhetes para uma representação em benefício de Delmar.
— Como! Ele?
— Sem dúvida!
A Srta. Vatnaz, sem dar mais explicações, acrescentou que o adorava como nunca. Na opinião dela, o ator classificara-se de uma vez para sempre entre “as sumidades da época”. E não era este ou aquele personagem que ele representava, mas o próprio gênio da França, o Povo! Tinha “a alma humanitária; compreendia o sacerdócio da Arte!”. Frédéric, para pôr termo àqueles elogios, comprou-lhe os três bilhetes.
— É melhor não lhe falar nisso, a ela! Mas como é tarde, meu Deus! Tenho que o deixar. Ah! Já me esquecia, o endereço: é na Rua Grange-Batelière, 14.
E do limiar:
— Adeus, homem amado!
“Amado por quem?”, pensou Frédéric. “Que estranha mulher!”
E veio-lhe à memória o que Dussardier lhe dissera um dia, a respeito dela: “Oh! Ela não vale grande coisa!”, como se aludisse a histórias pouco recomendáveis.
No dia seguinte foi visitar a Marechala. Ela morava num prédio novo, cujos estores avançavam sobre a rua. Em cada patamar havia um espelho na parede, uma jardineira rústica diante das janelas; cobria as escadas um tapete de linho; e, quando se vinha de fora, a frescura das escadas era repousante.
Foi um criado que lhe veio abrir, um lacaio de libré vermelha. No vestíbulo, sentados num banco, uma mulher e dois homens, certamente fornecedores, esperavam, como numa antecâmara ministerial. À esquerda, a porta da sala de jantar, entreaberta, permitia ver garrafas vazias sobre os aparadores, guardanapos nas costas das cadeiras; e, paralelamente, corria uma varanda fechada, com roseiras num espaldar de ripas douradas. Embaixo, no pátio, dois moços de mangas arregaçadas limpavam um landau. As suas vozes chegavam até ali, com o ruído intermitente de uma escova batida contra a pedra.
O lacaio voltou. “A senhora ia receber o senhor”; e fê-lo atravessar outro vestíbulo, depois um salão, forrado de tecido adamascado amarelo, apanhado em festões nos cantos, os quais, juntando-se no teto, pareciam prolongar-se pelos braços do lustre. Na noite anterior tinha havido festa, certamente. Pelos consolos espalhava-se cinza de charuto.
Por fim, Frédéric entrou numa espécie de toucador, vagamente iluminado por vitrais coloridos. Trevos de madeira recortada adornavam a bandeira das portas; atrás de uma balaustrada, três colchões cor de púrpura formavam um divã, e em cima deste via-se o tubo de um narguilé de platina. Em vez de espelho, a lareira tinha prateleiras em forma de pirâmide, exibindo toda espécie de curiosidades: relógios antigos, de prata, vasos da Boêmia, fechos de pedraria, botões de jade, esmaltes, bonecos, uma pequena virgem bizantina com uma capa de prata dourada; e tudo aquilo se fundia num crepúsculo dourado, com a cor azulada do tapete, o reflexo nacarado dos tamboretes, a tonalidade fulva das paredes, forradas de couro castanho. Nos cantos, sobre peanhas, vasos de bronze continham tufos de flores que tornavam o ambiente mais pesado.
Rosanette surgiu, numa blusa de cetim cor-de-rosa, pantalona de seda branca, um colar de piastras e um barretinho vermelho tendo em volta um ramo de jasmim.
Frédéric teve um movimento de surpresa; depois disse que trazia “aquilo”, e estendeu-lhe a nota.
Rosanette fitou-o com espanto; e, Frédéric, que continuava com a nota na mão, sem saber onde a pôr, disse-lhe:
— Tome!
Rosanette pegou no dinheiro; e, depois de lançá-lo sobre o divã:
— Foi muito amável.
Era para pagar um terreno em Bellevue, que comprara a prestações; aquela sem-cerimônia magoou Frédéric. Aliás, antes assim! Vingava-o do passado.
— Sente-se! — disse ela. — Aqui, mais perto. — E, num tom grave: — Em primeiro lugar, meu caro, tenho que lhe agradecer por ter arriscado a vida.
— Ora! Não tem importância!
— Mas não, foi muito bonito!
E a Marechala testemunhou-lhe uma gratidão que o embaraçava; ela devia pensar que ele se batera exclusivamente por causa de Arnoux; este, que julgava isso, não devia ter resistido à necessidade de lhe dizer.
“Talvez ela esteja a rir-se à minha custa”, pensava Frédéric.
Como não tinha mais nada que fazer, ergueu-se, alegando um encontro.
— Mas não! Fique!
Frédéric voltou a sentar-se, e elogiou-lhe o traje.
Ela respondeu, com ar acabrunhado:
— É o Príncipe que gosta de me ver assim! E tenho que fumar por coisas assim — acrescentou Rosanette, mostrando o narguilé. — Se experimentássemos? Não quer?
Trouxeram lume; como o tombac custasse a acender, Rosanette bateu o pé, de impaciência. Depois tomou uma atitude langorosa; e ficou imóvel, estendida no divã, uma almofada debaixo do braço, o corpo um pouco torcido, um joelho dobrado, a outra perna esticada. A longa serpente de couro vermelho, que formava anéis no chão, enrolava-se-lhe no braço. Levava a ponta de âmbar aos lábios e, cerrando os olhos, fixava Frédéric através do fumo cujas volutas a envolviam. Quando aspirava o ar, a água gorgolejava, e Rosanette murmurava de quando em quando:
— Pobre pequeno, pobre querido!
Frédéric procurava um assunto de conversa agradável; lembrou-se da Srta. Vatnaz.
Disse que a tinha achado muito elegante.
— Pudera! — replicou a Marechala. — Sorte tem ela, por me ter a mim! — sem acrescentar mais nada, tão grande era a contenção com que falava.
Ambos sentiam um constrangimento, um obstáculo. Com efeito, o duelo de que Rosanette se julgava causa lisonjeara-lhe o amor próprio. Em seguida, estranhara que ele não acorresse, para colher os frutos do seu ato; e, para fazê-lo voltar, imaginara aquela necessidade de quinhentos francos. Como era possível que Frédéric não pedisse, em paga, um pouco de ternura! Era uma delicadeza que a maravilhava, e, num acesso de emoção, disse-lhe:
— Não nos quer acompanhar aos banhos de mar?
— Nós quem?
— Eu e o meu pombinho; você passará por meu primo, como nas antigas comédias.
— Muito obrigado!
— Então, alugue uma casa junto da nossa.
A ideia de esconder-se de um homem rico humilhava-o.
— Não, é impossível.
— Como quiser!
Rosanette voltou o rosto, com uma lágrima nas pálpebras. Frédéric notou-o; e, para mostrar-lhe interesse, disse como se sentia feliz por ver que ela conseguira, finalmente, uma situação excelente.
Rosanette encolheu os ombros. Que teria ela? Dar-se-ia o caso de não ser amada?
— Oh, tenho sempre quem goste de mim!
E acrescentou:
— Resta saber de que maneira.
Queixando-se de “morrer de calor”, a Marechala tirou o corpete; e, apenas coberta pela blusa de seda, inclinava a cabeça sobre o ombro, com um ar de escrava provocante.
Um homem de egoísmo menos pensado não se teria lembrado de que o visconde, o Senhor de Comaing ou qualquer outro pudesse entrar de repente. Mas Frédéric fora iludido vezes demais por olhares daqueles para se arriscar a mais uma humilhação.
Ela quis conhecer as relações, os divertimentos dele; chegou mesmo a perguntar pelos negócios, e a oferecer-se para lhe emprestar dinheiro, se estivesse precisando. Frédéric, não podendo mais, pegou no chapéu.
— Bem, minha cara, desejo que se divirta muito por lá; até à vista!
Ela abriu muito os olhos, e depois, num tom seco:
— Até à vista!
Frédéric tornou a passar pelo salão amarelo e pelo segundo vestíbulo. Sobre a mesa, entre um vaso cheio de cartões de visita e um tinteiro, havia um cofrezinho de prata cinzelada. Era o da Senhora Arnoux! Sentiu-se enternecido, e ao mesmo tempo como que escandalizado perante uma profanação. Teve vontade de pegar nele, de o abrir. Receou ser visto, e foi-se embora.
Frédéric foi virtuoso. Não voltou à casa de Arnoux.
Mandou o criado comprar os dois negros, tendo-lhe feito todas as recomendações indispensáveis; e a caixa seguiu, nesse mesmo dia, para Nogent. No dia seguinte, quando se dirigia para a casa de Deslauriers, na esquina da Rua Vivienne com o bulevar, encontrou-se cara a cara com a Senhora Arnoux.
O primeiro movimento de ambos foi de recuo; depois, o mesmo sorriso lhes veio aos lábios, e dirigiram-se um para o outro. Durante um minuto, nenhum deles falou.
O sol envolvia-a; — e o rosto oval, as longas sobrancelhas, o xale de renda preta, moldando-lhe os ombros, o vestido furta-cor, o ramo de violetas pregado no chapéu, tudo lhe pareceu de extraordinário esplendor. Daqueles belos olhos vinha uma infinita suavidade; e, balbuciando, ao acaso, as primeiras palavras que lhe vieram aos lábios:
— Como vai Arnoux? — disse Frédéric.
— Bem, muito obrigada!
— E seus filhos?
— Estão muito bem!
— Ah!... Ah!... Que belo tempo tem feito, não é verdade?
— Magnífico, com efeito!
— Está fazendo compras?
— Estou.
E com uma lenta inclinação de cabeça:
— Adeus!
Não lhe estendera a mão, não dissera uma só palavra afetuosa, nem sequer o convidara a visitá-la, e contudo ele não trocaria aquele encontro pela mais bela aventura; e ia ruminando aquela suavidade enquanto seguia o seu caminho.
Deslauriers, surpreendido ao vê-lo, dissimulou o despeito — porque conservava, por obstinação, ainda uma esperança em relação à Senhora Arnoux; e mandara dizer a Frédéric para não vir, a fim de ter mais liberdade nas manobras.
Todavia, contou que fora à casa dela, para saber se o seu contrato de casamento estipulava a comunhão de bens; se assim fosse, ela podia ser acionada; “e ela fez uma cara, quando eu lhe disse que ias casar!”.
— Essa agora! Mas que invenção!
— Era necessário, para mostrar que tinhas necessidade dos teus capitais! Uma pessoa indiferente não teria tido aquela espécie de síncope que lhe deu.
— É verdade? — exclamou Frédéric.
— Ah! Meu patife, traíste-te! Sê franco, vamos!
Uma enorme covardia apoderou-se do apaixonado da Senhora Arnoux.
— Mas não!... Garanto-te!... Dou-te a minha palavra de honra!
Estas frouxas negativas acabaram de convencer Deslauriers. Felicitou-o. Pediu-lhe “pormenores”. Frédéric não os deu, e resistiu até à tentação de os inventar.
Quanto à hipoteca, disse-lhe para não fazer nada, que esperasse. Deslauriers achou que ele fazia mal, e foi até brutal nas censuras.
Aliás, estava mais sombrio, malévolo e irascível do que nunca. Dentro de um ano, se a boa sorte não o bafejasse, embarcaria para a América, ou daria um tiro nos miolos. Em suma, parecia tão furioso contra tudo e de um radicalismo de tal maneira absoluto que Frédéric não se conteve que não lhe dissesse:
— Estás como o Sénécal.
A propósito deste, Deslauriers informou-o de que saíra de Sainte-Pélagie1, sem dúvida porque a instrução do processo não oferecera provas suficientes para o levar a julgamento.
Com a alegria desta libertação, Dussardier quis “oferecer um ponche”, e pediu a Frédéric para vir também, avisando-o, todavia, de que iria encontrar-se com Hussonnet, que tinha sido muito bom para Sénécal.
Com efeito, o Flambard tinha agora também uma agência de negócios, em cujos prospectos se lia: “Escritório dos vinhateiros. — Agência de publicidade. — Cobranças e informações etc.” Mas o boêmio receava que a sua indústria lhe pudesse prejudicar a consideração literária, e chamara o matemático para fazer a escrituração. Embora o lugar não valesse nada, sem ele Sénécal teria morrido de fome. Frédéric, que não queria magoar o bom do caixeiro, aceitou o convite.
Com três dias de antecedência, Dussardier encerara os ladrilhos vermelhos da sua mansarda, batera a poltrona e espanara a lareira, na qual se podia ver, entre uma estalactite e um coco, um relógio de alabastro com o seu globo de vidro. Como os dois castiçais e a palmatória que possuía não bastassem, pedira dois candelabros de empréstimo ao porteiro; e as cinco luminárias brilhavam sobre a cômoda, coberta por três guardanapos, destinados a suportar mais decentemente os doces de amêndoa, as bolachas, o pão doce e doze garrafas de cerveja. Em frente, encostada à parede forrada de papel amarelo, uma pequena estante de mogno continha as Fables de Lachambaudie, os Mystères de Paris, o Napoléon de Norvins2 — e, no meio da alcova, sorrindo num caixilho de jacarandá, o rosto de Béranger!
Os convivas eram (além de Deslauriers e Sénécal) um farmacêutico recém-formado, mas que não possuía os fundos necessários para se estabelecer; um jovem de “sua” casa, um representante de vinhos, um arquiteto e um senhor que trabalhava em seguros. Regimbart não pudera vir. A sua ausência foi lamentada.
Acolheram Frédéric com grandes demonstrações de simpatia, todos sabiam, através de Dussardier, como ele falara em casa do Senhor Dambreuse. Sénécal limitou-se a estender-lhe a mão, com ar digno.
Estava de pé, encostado à lareira. Os outros, sentados e de cachimbo na boca, escutavam-no discorrer sobre o sufrágio universal3, do qual resultaria o triunfo da Democracia, a aplicação dos princípios do Evangelho. Aliás, o momento estava próximo; os banquetes reformistas4 multiplicavam-se na província; o Piemonte, Nápoles, a Toscana5...
— É verdade — disse Deslauriers, interrompendo-o — isto não pode continuar assim por muito tempo!
E pôs-se a fazer um quadro da situação.
Tínhamos sacrificado a Holanda6 para conseguir que a Inglaterra reconhecesse Luís Filipe; e essa famosa aliança inglesa, eis que estava perdida, por causa dos casamentos espanhóis! Na Suíça, o Senhor Guizot, a reboque do austríaco, defendia os tratados de 1815. A Prússia, com o seu Zollverein, preparava-nos dificuldades. A questão do Oriente permanecia em aberto.
— Não são razões para se ter confiança na Rússia os presentes que o Grão-duque Constantino manda ao Senhor d’ Aumale. Quanto à política interna, nunca se viu tal cegueira, tanta estupidez! Já nem a maioria se aguenta! Enfim, o que se vê por toda parte é como diz a conhecida frase: “Nada! Nada! Nada!”. E, perante tais vergonhas, — prosseguiu o advogado, pondo as mãos nos quadris — eles declaram-se satisfeitos!
Esta alusão a um voto célebre provocou aplausos. Dussardier abriu uma garrafa de cerveja; a espuma esborrifou sobre os cortinados, sem que ele se importasse; enchia os cachimbos, cortava o pão doce, oferecia-o, descera várias vezes para ver se traziam o ponche; e não tardaram a ficar exaltados, pois todos sentiam a mesma raiva contra o Poder. Era uma exasperação violenta, sem outra causa além do ódio à injustiça; e misturavam às censuras justificadas as mais tolas acusações.
O farmacêutico deplorou o estado lamentável da nossa esquadra. O agente de seguros não tolerava as duas sentinelas do marechal Soult. Deslauriers atacou os jesuítas, que acabavam de se instalar às claras, em Lille. Sénécal execrava ainda mais o Senhor Cousin; porque o ecletismo, ensinando a buscar a certeza na razão, desenvolvia o egoísmo, destruía a solidariedade; o representante de vinhos, pouco entendido em tais assuntos, levantou a voz para dizer que havia muitas infâmias que ele esquecia:
— O vagão real da linha do Norte vai custar oitenta mil francos! E quem os paga?
— Sim, quem os paga? — ecoou o empregado no comércio, furioso como se lhe tivessem tirado esse dinheiro do bolso.
Seguiram-se recriminações contra os tubarões da Bolsa e a corrupção dos funcionários7. Era preciso ir mais acima, segundo Sénécal, e acusar, em primeiro lugar, os príncipes, que ressuscitavam os costumes da Regência.
— Não viram, recentemente, os amigos do Duque de Montpensier voltar de Vincennes, sem dúvida embriagados, e perturbarem com as suas cantorias os operários do faubourg Saint-Antoine?
— Gritou-se até “Abaixo os ladrões!” — disse o farmacêutico. — Eu estava lá, também gritei!
— Ainda bem! O Povo desperta finalmente, depois do processo Teste-Cubières8.
— A mim, esse processo fez-me pena — disse Dussardier — porque é a desonra para um velho soldado!
— Sabem — continuou Sénécal — o que se descobriu em casa da Duquesa de Praslin9?...
Mas a porta foi aberta com um pontapé. Hussonnet entrou.
— Salve, eminências! — disse ele, sentando-se na cama.
Não se fez qualquer alusão ao seu artigo, do qual, aliás, se arrependera, pois a Marechala lho censurara severamente.
Acabara de assistir, no teatro de Dumas, Le Chevalier de Maison-Rouge10, e “achara aquilo muito cacete”.
Tal juízo espantou os democratas — aquele drama, pelas suas tendências, e sobretudo pelo cenário, lisonjeava-lhes as paixões. Protestaram. Sénécal acabou por perguntar se a peça era útil à Democracia.
— Sim... talvez; mas é escrita num estilo...
— Sendo assim, é boa; que é o estilo, se não a ideia?
E sem deixar que Frédéric falasse:
— Dizia eu então que, no caso Praslin...
Hussonnet interrompeu-o.
— Ah! Isso também é uma dessas histórias! Como me têm aborrecido!
— E a outros, não só a você! Por causa dele foram apreendidos cinco jornais! Ouça isto:
E, puxando de um caderno, leu:
— Sofremos, desde que se estabeleceu a melhor das repúblicas, mil duzentos e vinte e nove processos de imprensa, dos quais resultaram para os escritores: três mil cento e quarenta e um anos de prisão, com a modesta quantia de sete milhões cento e dez mil e quinhentos francos de multas. Bonito, hein?
Todos riram amargamente. Frédéric, tão animado como os outros, disse:
— La Démocratie pacifique11 foi processada por causa do folhetim, um romance intitulado A Parte das Mulheres.
— Essa agora! — disse Hussonnet. — Só faltava que nos proibissem a nossa parte das mulheres!
— Mas há alguma coisa que não seja proibida? — exclamou Deslauriers. — É proibido fumar no Luxembourg, é proibido cantar o hino a Pio IX!
— E proibiram o banquete dos tipógrafos! — proferiu uma voz surda.
Era a do arquiteto, oculto pela sombra da alcova, que até aí se mantivera em silêncio. Acrescentou que, na semana anterior, tinham condenado um tal Rouget por ultrajes ao rei.
— Rouget está frito12! — disse Hussonnet.
Sénécal achou o gracejo tão inconveniente que o acusou de estar defendendo “o jogral da Municipalidade, o amigo do traidor Dumouriez”13.
— Eu? Pelo contrário!
Achava Luís Filipe um lugar-comum, um guarda nacional, completamente do gênero dono de armazém e bota de elástico! E, levando a mão ao peito, o boêmio declamou as frases sacramentais: “É sempre com renovado prazer... A nacionalidade polonesa não perecerá... As nossas grandes obras prosseguirão... Deem-me dinheiro para a minha familiazinha...”. Todos riram muito, proclamando-o um jovem encantador, muito espirituoso; a alegria redobrou à vista da poncheira, trazida pelo homem do botequim.
As chamas do álcool e das velas não tardaram a aquecer o apartamento; e a luz da mansarda, atravessando o pátio, ia iluminar, em frente, a beira de um telhado, com o cano de uma chaminé que se destacava em negro contra a escuridão. Falavam muito alto, todos ao mesmo tempo; tinham tirado as sobrecasacas; iam de encontro aos móveis, faziam brindes.
Hussonnet exclamou:
— Mandem subir ilustres damas, para ficar mais Torre de Nesle, mais cor local, e rembrandtesco, com mil diabos!
E o farmacêutico, que não acabava de mexer o ponche, entoou a plenos pulmões:
Tenho dois grandes bois no meu curral,
Dois grandes bois brancos...
Sénécal tapou-lhe a boca com a mão, não gostava de barulho; e os inquilinos apareciam às vidraças, surpreendidos com aquele insólito tumulto no apartamento de Dussardier.
O excelente jovem sentia-se feliz, e disse que aquilo lhe fazia lembrar as pequenas reuniões de outrora, no cais Napoléon; contudo, faltavam alguns, por exemplo Pellerin...
— Passa-se bem sem ele — retorquiu Frédéric.
E Deslauriers perguntou por Martinon.
— Que é feito desse interessante cavalheiro?
Imediatamente Frédéric, expandindo a má vontade que tinha para com ele, atacou-lhe o espírito, o caráter, a falsa elegância, o homem inteiro. Era um perfeito espécime do campônio arrivista! A nova aristocracia, a burguesia, não se comparava à antiga, à nobreza. Defendia essa opinião; e os democratas aprovavam — como se ele tivesse feito parte de uma, e eles tivessem frequentado a outra. Ficaram encantados com ele. O farmacêutico chegou a compará-lo ao Senhor d’Alton-Shée14, o qual, embora sendo par de França, defendia a causa do Povo.
A hora de partir soara. Todos se separaram com grandes apertos de mão; Dussardier, por ternura, acompanhou Frédéric e Deslauriers à casa deles. Logo que chegaram à rua, o advogado, com ar de quem reflete, disse, após um momento de silêncio:
— Estás então muito zangado com Pellerin?
Frédéric não fez segredo do seu rancor.
Todavia, o pintor tirara o famigerado quadro da vitrina. Não se devia ficar zangado por uma coisa sem importância! Para que havia de criar um inimigo?
— Ele cedeu a um movimento de humor, que se desculpa num homem que está sem dinheiro. Mas tu não és capaz de compreender uma coisa dessas!
E, quando Deslauriers entrou em casa, o caixeiro não deixou Frédéric; estimulou-o até a comprar o retrato. Com efeito, Pellerin, tendo perdido a esperança de o intimidar, pedira a intervenção deles para Frédéric ficar com o quadro.
Deslauriers voltou a falar no assunto, insistiu. As pretensões do artista eram razoáveis.
— Tenho a certeza de que, se lhe deres aí uns quinhentos francos...
— Ah, pois seja! Olha, aqui os tens — disse Frédéric.
Nessa mesma noite veio o quadro. Ainda lhe pareceu mais horrendo do que da primeira vez. As meias-tintas e as sombras tinham-se tornado lívidas com o excesso de retoques, e pareciam obscurecidas em relação aos claros, os quais, tendo ficado brilhantes, aqui e ali, destoavam do conjunto.
Frédéric vingou-se de lho ter pago dizendo o pior possível do retrato. Deslauriers concordou de olhos fechados, e aprovou-lhe a conduta, porque mantinha a ambição de constituir uma falange de que seria o chefe15; certos homens têm prazer de levar os amigos a fazer coisas que lhes são desagradáveis.
Entretanto, Frédéric não voltara à casa dos Dambreuse. Faltavam-lhe os capitais. Seria um nunca acabar de explicações; hesitava em tomar uma decisão. Talvez ele tivesse razão? Nada era seguro, agora; tanto o negócio do carvão como outro qualquer; era necessário abandonar aquela sociedade; finalmente, Deslauriers dissuadiu-o. À força de ódio tornava-se virtuoso; e além disso preferia ver Frédéric na mediocridade. Deste modo, permanecia seu igual, e em mais íntima comunhão com ele.
A encomenda da Srta. Roque fora muito mal aviada. O pai dela escreveu-lhe, dando explicações pormenorizadas, e terminava a carta com este gracejo: “Com o risco de lhe dar um trabalho de negro”.
Frédéric não tinha outro remédio senão voltar à casa de Arnoux. Subiu ao armazém, e não viu ninguém. Com o negócio a ir por água abaixo, os empregados imitavam a incúria do patrão.
Seguiu a longa prateleira, carregada de louça, que corria de uma extremidade à outra, no meio da sala; depois, ao chegar ao fundo, junto do balcão, caminhou com mais força, para se fazer ouvir.
O reposteiro foi levantado, e a Senhora Arnoux surgiu.
— Como! A senhora, aqui!
— Sim — balbuciou ela, com certa perturbação. — Estava à procura...
Frédéric viu o lenço dela junto da escrivaninha, e adivinhou que ela descera ao estabelecimento para se informar, sem dúvida para esclarecer qualquer inquietação.
— Mas... precisa talvez de alguma coisa? — disse ela.
— Uma coisa sem importância, minha senhora.
— Estes caixeiros são insuportáveis! Estão sempre fora!
Não os devia censurar. Ele, pelo contrário, felicitava-se por isso.
Ela lançou-lhe um olhar carregado de ironia.
— E então, esse casamento?
— Que casamento?
— O seu!
— O meu? Mas que ideia!
Ela fez um gesto de discordância.
— E que fosse, afinal? Refugiamo-nos na mediocridade, por desesperar do belo que se sonhou!
— Contudo, nem todos os seus sonhos eram tão... cândidos!
— Que quer dizer?
— Quando passeava nas corridas com... certas pessoas!
Frédéric amaldiçoou a Marechala. Teve uma ideia:
— Mas foi a senhora quem, outrora, me pediu que a visitasse, no interesse de Arnoux!
Ela replicou, abanando a cabeça:
— E aproveitou-se disso para se distrair.
— Por Deus! Esqueçamos essas tolices!
— Tem razão, visto que vai casar-se!
E retinha um suspiro, mordendo os lábios.
Ele, então, exclamou:
— Mas repito-lhe que não! Como pode acreditar que eu, com todas as minhas necessidades de inteligência, os meus hábitos, vá encafuar-me na província para jogar cartas, vigiar pedreiros e passear de tamancos! Com que fim, então? Contaram-lhe que ela era rica, não é verdade? Ah! Importa-me muito o dinheiro! Como seria possível, depois de ter desejado tudo quanto há de mais belo, de mais doce, de mais encantador, uma espécie de paraíso em forma humana, e depois de ter encontrado finalmente esse ideal, quando essa visão me oculta todas as outras...
E, tomando-lhe a cabeça com ambas as mãos, pôs-se a beijar-lhe as pálpebras, repetindo:
— Não! Não! Não! Não casarei nunca! Nunca!
Ela aceitava as carícias, vencida pela surpresa e pelo êxtase.
A porta do armazém para a escada bateu. Ela deu um salto; e ficou de mão estendida, como que para impor-lhe silêncio. Ouviram-se passos. Depois, alguém disse do outro lado:
— A senhora está aí?
— Entre!
A Senhora Arnoux apoiava o cotovelo no balcão e rodava uma pena entre os dedos, tranquilamente, quando o guarda-livros ergueu o reposteiro.
Frédéric levantou-se.
— Minha senhora, os meus respeitos. O serviço ficará pronto, não é verdade? Posso contar com isso?
Ela nada respondeu. Mas aquela cumplicidade silenciosa fê-la corar, como se já sentisse o pejo do adultério.
No dia seguinte, voltou à casa dela, e foi recebido; e, para ganhar terreno, começou imediatamente, sem preâmbulo, por se justificar do encontro no Champ de Mars. Só o acaso o fizera encontrar-se com aquela mulher. Admitindo que fosse bonita (o que não era verdade), como poderia ela ocupar-lhe o pensamento, por um minuto que fosse, visto ele amar outra?
— Bem o sabe, eu disse-lho.
A Senhora Arnoux abaixou a cabeça.
— Lamento que mo tenha dito.
— Por quê?
— As mais elementares conveniências exigem agora que eu não o torne a ver!
Ele garantiu a inocência do seu amor. O passado devia responder pelo futuro; prometera a si próprio não perturbar a existência dela, não a perseguir com as suas lamentações.
— Mas, ontem, não pude conter o meu coração, que transbordava.
— Devemos esquecer esse momento, meu amigo!
Todavia, que mal podia haver se dois seres infelizes juntassem a sua tristeza?
— Porque a senhora também não é feliz! Oh! Eu a conheço, não tem ninguém que lhe responda à necessidade de afeto, de dedicação; eu farei tudo o que quiser! Não a ofenderei!... Juro-o.
E deixou-se cair de joelhos, sem querer, arrastado por um peso interior excessivo.
— Levante-se! — disse ela. — Ordeno-lhe.
E declarou-lhe imperiosamente que, se ele não obedecesse, nunca mais a veria.
— Ah! Não seria capaz disso! — retorquiu Frédéric. — Que tenho eu a fazer neste mundo? Os outros lutam pela riqueza, a celebridade, o poder! Eu não tenho posição, a senhora é a minha única ocupação, toda a minha fortuna, a finalidade, o centro da minha existência, dos meus pensamentos. Viver sem a senhora é tão impossível quanto viver sem o ar do céu! Não sente a aspiração da minha alma subir até a sua? Não vê que ambas têm que fundir-se, e que isso me mata?
A Senhora Arnoux tremia toda.
— Oh! Vá-se embora! Peço-lhe!
A expressão transtornada daquele rosto fê-lo calar. Depois deu um passo. Mas ela recuou, juntando as mãos.
— Deixe-me! Pelo amor de Deus!
E Frédéric amava-a tanto que saiu.
Não tardou a sentir-se enraivecido contra si próprio, achando-se um imbecil, e, vinte e quatro horas depois, estava de volta.
A senhora não estava. Frédéric ficou no patamar, atordoado pela fúria e pela indignação. Arnoux apareceu, e disse-lhe que a mulher tinha partido nessa mesma manhã para uma pequena casa de campo que tinham alugado em Auteuil, pois já não tinham a de Saint-Cloud.
— Mais uma das manias dela! Enfim, se ela gosta! E eu também, aliás! Vamos jantar juntos esta noite?
Frédéric alegou um encontro urgente, e correu a Auteuil.
A Senhora Arnoux não pôde conter um grito de alegria. Então, todo o rancor de Frédéric se desvaneceu.
Não falou do seu amor. Para lhe inspirar mais confiança, foi até de uma reserva exagerada; e, quando lhe perguntou se podia voltar, ela respondeu: — Mas certamente — e estendeu-lhe a mão, retirando-a quase imediatamente.
Desde então, as visitas de Frédéric multiplicaram-se. Prometia ao cocheiro grandes gorjetas. Muitas vezes, porém, a lentidão do cavalo impacientava-o, e apeava-se; depois, esbaforido, tomava um ônibus; e com que desdém examinava os rostos das pessoas sentadas à sua frente, que não iam visitá-la!
Reconhecia a casa de longe, por causa de uma enorme madressilva que cobria, de um só lado, as tábuas do telhado; era uma espécie de chalé suíço, pintado de vermelho, com uma varanda na frente. No jardim havia três velhos castanheiros, e no meio, sobre uma elevação, um guarda-sol de colmo apoiado num tronco de árvore. Sob as lousas da parede, um tronco de vinha, mal seguro, pendia aqui e ali, como um cabo podre. A sineta do portão, um pouco perra, ficava ressoando, e demoravam sempre muito para abrir. De todas as vezes, ele sentia uma angústia, um medo indefinido.
Depois ouvia bater no saibro os chinelos da empregada; ou era a Senhora Arnoux em pessoa que aparecia. Frédéric chegou um dia, por trás dela, que estava agachada, diante de um canteiro, procurando violetas.
O gênio da filha obrigara-a a mandá-la para o convento. O filho passava a tarde na escola, Arnoux almoçava interminavelmente no Palais-Royal, com Regimbart e o amigo Compain. Nenhum intruso os podia surpreender.
Era coisa entendida que não podiam pertencer-se. Esta convenção, que os garantia contra o perigo, facilitava-lhes as expansões.
Ela contou-lhe a sua existência de outrora, em Chartres, junto da mãe; como era devota aos doze anos; depois a loucura pela música, quando cantava até o anoitecer, no seu quartinho, de onde se viam as muralhas. Frédéric contou-lhe as suas melancolias no colégio, e como resplandecia, no seu céu poético, um rosto de mulher, de tal forma que, ao vê-la pela primeira vez, a tinha reconhecido.
Estes diálogos só incidiam, habitualmente, sobre os anos em que se tinham frequentado. Ele recordava-lhe pormenores insignificantes, a cor do vestido dela em certa época, qual a pessoa que tinha aparecido certo dia, o que ela dissera de uma outra vez; e ela respondia, maravilhada:
— Sim, estou me lembrando!
As suas opiniões, os seus gostos eram os mesmos. Muitas vezes, aquele dos dois que estava escutando dizia:
— Eu também!
E o outro, por seu turno, exclamava:
— Eu também!
Depois eram lamentações intermináveis sobre a Providência:
— Porque não o quis o céu! Se nós nos tivéssemos encontrado!...
— Ah! Se eu fosse mais jovem! — suspirava ela.
— Não! Eu, um pouco mais velho.
E imaginavam uma vida exclusivamente amorosa, suficientemente fecunda para encher as mais vastas solidões, ultrapassando todas as alegrias, desafiando todas as desgraças, em que as horas teriam desaparecido numa contínua expansão de si próprios, e que teria sido algo resplandecente e elevado como a palpitação das estrelas.
Quase sempre ficavam ao ar livre, no alto das escadas; os cumes das árvores amarelecidas pelo outono arredondavam-se diante deles, desigualmente, até a borda do céu pálido; ou iam ao fim da avenida, para um pavilhão cuja única mobília era um canapé forrado de pano cinzento. O espelho estava cheio de pontos negros; as paredes exalavam um cheiro de mofo — e ali ficavam, falando de si, dos outros, fosse do que fosse, num transporte. Por vezes, os raios do sol, atravessando a persiana, estendiam do teto ao chão como que as cordas de uma lira, e partículas de poeira dançavam nessas barras luminosas. Ela divertia-se em cortá-las com a mão, que Frédéric segurava docemente; contemplava a rede das veias, a pele, a forma dos dedos. Cada um dos seus dedos era, para ele, mais do que uma coisa, quase uma pessoa.
Ela deu-lhe as luvas e, na semana seguinte, o lenço. Chamava-o “Frédéric”. Ele chamava-a “Marie”, adorando aquele nome, feito de propósito, dizia, para ser suspirado no êxtase, e que parecia conter nuvens de incenso, braçadas de rosas.
Chegaram a fixar antecipadamente os dias em que iria visitá-la; e, saindo como que por acaso, ela ia ao seu encontro, na estrada.
Ela nada fazia para lhe excitar o amor, perdida nessa despreocupação que caracteriza as grandes felicidades. Durante toda a estação, usou o mesmo chambre de seda castanha, debruado de veludo da mesma cor, vestuário amplo que convinha ao abandono das suas atitudes e à sua expressão séria. Aliás, ela estava no mês de agosto das mulheres, época que é ao mesmo tempo de reflexão e de ternura, em que a maturidade que começa ilumina o olhar com uma chama mais profunda, quando a força do coração se alia à experiência da vida, e, no auge da pujança, o ser completo transborda de riquezas, na harmonia da sua beleza. Nunca houvera nela tanta suavidade, tanta indulgência. Certa de não fraquejar, abandonava-se a um sentimento que lhe parecia um direito conquistado pelos seus sofrimentos. Era, aliás, tão bom e tão novo! Que abismo entre a grosseria de Arnoux e as adorações de Frédéric!
Ele tremia de medo à ideia de perder com uma palavra tudo o que julgava ter ganhado, dizendo de si para si que uma ocasião pode repetir-se, mas que uma tolice não tem emenda. Queria que ela se entregasse, não a queria violentar. A certeza do amor dela deleitava-o como um antegosto da posse, e, além disso, o seu encanto perturbava-lhe mais o coração do que os sentidos. Era uma beatitude infinita, e uma tal embriaguez, que Frédéric chegava a esquecer a possibilidade de uma felicidade completa. Longe dela, assaltavam-no desejos furiosos.
Não tardou que nos seus diálogos houvesse grandes intervalos de silêncio. Às vezes, uma espécie de pudor sexual fazia-os corar um diante do outro. Todas as precauções para esconder o seu amor o revelavam; quanto mais forte ele se tornava, mais comedidas eram as suas maneiras. O exercício dessa mentira exasperou-lhes a sensibilidade. Gozavam deliciosamente com o cheiro das folhas úmidas, sofriam com o vento leste, tinham irritações sem motivo, pressentimentos fúnebres; um rumor de passos, o estalar da madeira, causavam-lhes pavores como se fossem culpados; sentiam-se arrastados para um abismo; envolvia-os uma atmosfera tempestuosa; e, quando alguma queixa escapava a Frédéric, ela acusava-se a si própria.
— Sim! Eu faço mal! Pareço uma coquete! Não volte mais!
Então ele repetia as mesmas juras, que ela escutava todas as vezes com prazer.
O regresso dela a Paris e as complicações do dia do Ano-Novo suspenderam os encontros por algum tempo. Quando foi visitá-la, havia algo de mais ousado nas atitudes de Frédéric. Ela saía a cada instante para dar ordens, e recebia, apesar das implorações dele, todos os burgueses que a vinham visitar. Eram então conversas sobre Léotade16, o Senhor Guizot, o Papa, a insurreição de Palermo17 e o banquete do 12º distrito18, que inspirava temores. Frédéric vingava-se clamando contra o Poder; porque ele desejava, como Deslauriers, um cataclismo universal, tão amargo se tornara. Pelo seu lado, a Senhora Arnoux tornava-se sombria.
O marido, prodigalizando as extravagâncias, mantinha uma operária da fábrica, aquela a quem chamavam a Bordalesa. Foi a própria Senhora Arnoux quem o contou a Frédéric. Ele queria servir-se disso como argumento, “visto ela ser traída”.
— Oh! Não me importo nada com isso! — disse ela.
Pareceu a Frédéric que essa declaração lhes firmava completamente a intimidade. Arnoux tinha alguma desconfiança?
— Não! Agora não!
E contou-lhe que, uma noite, os deixara a sós, e depois voltara, pondo-se à escuta atrás da porta, e, como ambos falavam de coisas sem importância, sentia-se desde então completamente seguro.
— Com razão, não é verdade? — disse com amargura Frédéric.
— Sim, sem dúvida!
Antes ela não tivesse dito semelhante coisa.
Um dia, Frédéric não a encontrou em casa, à hora que costumava vir. Foi, para ele, como uma traição.
Depois, ficou zangado por ver as flores que lhe trazia postas sempre num copo d’água.
— Mas onde queria que elas estivessem?
— Oh! Aí não! Aliás, estão lá menos frias do que sobre o seu coração.
Algum tempo depois, censurou-a por ter ido na véspera ao Italiens, sem o prevenir. Outros a tinham visto, admirado, amado, talvez; Frédéric agarrava-se a estas desconfianças unicamente para questionar, para atormentá-la; porque começava a odiá-la, ela que partilhasse, pelo menos, uma parte dos seus sofrimentos!
Uma tarde (em meados de fevereiro) foi encontrá-la muito perturbada. Eugène queixava-se de dores de garganta. O médico dissera todavia que não era nada, um resfriado forte, gripe. Frédéric achou estranha a expressão meio tonta da criança. Todavia, tranquilizou a mãe, citou os casos de várias crianças da mesma idade que acabavam de ter afecções idênticas e se tinham curado rapidamente.
— Realmente?
— Mas sim, pode crer!
— Oh! Como você é bom!
E agarrou-lhe a mão. Ele estreitou-a na sua.
— Oh! Deixe-a.
— Que mal tem, se é ao consolador que a dá!... Para estas coisas tem confiança, e duvida de mim... quando lhe falo do meu amor!
— Não duvido, meu pobre amigo!
— Por que essa desconfiança, como se eu fosse algum miserável capaz de abusar?...
— Oh! Não!...
— Se ao menos eu tivesse uma prova!...
— Que prova?
— Aquela que daria a qualquer um, a que já me deu a mim próprio.
E recordou-lhe que tinham saído juntos uma vez, num crepúsculo de inverno, num tempo de nevoeiro. Como tudo isso estava longe, agora! Quem a impedia de se mostrar de braço dado com ele diante de toda a gente, sem receio da parte dela, sem intenções reservadas da parte dele, sem ninguém em volta que os importunasse?
— Seja! — disse ela, com uma decisão que a princípio deixou Frédéric estupefato.
Mas ele acrescentou rapidamente:
— Quer que a espere na esquina da Rua Tronchet com a Rua de la Ferme?
— Meu Deus! Meu amigo... — balbuciou a Senhora Arnoux.
E sem lhe dar tempo para refletir, acrescentou:
— Pode ser na próxima terça-feira?
— Terça?
— Sim, entre duas e três horas!
— Lá estarei!
E desviou o rosto, num movimento de pudor. Frédéric deu-lhe um beijo no pescoço.
— Oh! Não devia fazer isso — disse ela. — Eu podia arrepender-me...
Frédéric afastou-se, temendo a habitual versatilidade das mulheres. Depois, do limiar, murmurou, docemente, como uma coisa definitivamente combinada:
— Até terça!
Ela baixou os belos olhos, com expressão discreta e resignada.
Frédéric tinha um plano.
Esperava que, graças ao sol ou à chuva, poderia fazê-la parar junto a um portal, e que, uma vez aí, ela entraria na casa. A dificuldade estava em descobrir uma que fosse decente.
Pôs-se a procurar e, a meio da Rua Tronchet, leu numa tabuleta: “Apartamentos mobiliados”.
O criado, compreendendo-lhe a intenção, mostrou-lhe imediatamente, na sobreloja, um quarto e uma sala com duas saídas; Frédéric alugou-o por um mês e pagou adiantado.
Depois foi a três estabelecimentos e comprou os mais raros perfumes; comprou também um pedaço de imitação de guipura para substituir a hedionda coberta vermelha, de algodão, escolheu um par de chinelinhos de cetim azul; só o receio de parecer grosseiro o moderou nas compras; voltou com elas, e, com mais devoção do que se ornamentasse um altar, mudou o lugar dos móveis, dispôs os cortinados, pôs madressilvas na lareira, violetas sobre a cômoda; o seu desejo teria sido forrar de ouro todo o quarto. “É amanhã”, dizia de si para si, “sim, amanhã! Não estou sonhando”. E sentia o coração bater com toda a força no delírio daquela esperança; depois de tudo pronto, meteu a chave no bolso, como se a felicidade, que ali dormia, pudesse fugir.
Em casa, esperava-o uma carta da mãe.
“Por que tão longa ausência? O teu comportamento começa a parecer ridículo. Compreendo que, de certo modo, tenhas hesitado a princípio perante esta união; contudo, reflete!”
E entrava em pormenores: quarenta e cinco mil libras de rendimento. Aliás, “falava-se na coisa”; e o Senhor Roque esperava uma resposta definitiva. Quanto à jovem, a posição desta era realmente embaraçosa. “Ela gosta muito de ti.”
Frédéric pôs a carta de lado sem acabar de ler, e abriu outra, um bilhete de Deslauriers.
“Meu velho,
“A pera está madura. De acordo com a tua promessa, contamos contigo. Reunimo-nos amanhã, ao nascer do dia, na Praça du Panthéon. Entra no Café Soufflot. Preciso falar contigo antes da manifestação.”
— Oh, eu as conheço, essas manifestações. Muito obrigado! Tenho um encontro mais agradável.
E no dia seguinte, às onze horas, já tinha saído. Queria dar uma última vista de olhos nos preparativos; depois, quem sabe se ela não viria antes da hora marcada, por um acaso qualquer? Ao desembocar da Rua Tronchet, ouviu atrás da Madeleine um grande clamor; adiantou-se e viu no fundo da praça, à esquerda, homens de avental e burgueses19.
Com efeito, um manifesto publicado nos jornais convocara para aquele lugar todos os inscritos no banquete reformista. O Ministério, logo em seguida, afixara uma proclamação, interditando-o. Na véspera à noite, a oposição parlamentar desistira de o realizar; mas os patriotas, que ignoravam esta decisão dos chefes, tinham vindo ao lugar do encontro, seguidos de grande número de curiosos. Uma deputação das escolas fora há pouco avistar-se com Odilon Barrot. Encontrava-se agora nos Negócios Estrangeiros; não se sabia se o banquete se realizaria ou não, se o Governo levaria adiante a sua ameaça, se os guardas nacionais compareceriam. Havia tanta irritação contra os deputados como contra o Poder. A multidão aumentava sempre, e de súbito vibrou no ar o refrão da Marselhesa.
Era a coluna dos estudantes que chegava. Caminhavam a passo, em duas filas, ordenadamente, com aspecto irritado, sem nada nas mãos, e todos gritavam, de quando em quando:
— Viva a Reforma! Abaixo Guizot!20
Com certeza os amigos de Frédéric estavam ali. Iam vê-lo e arrastá-lo com eles. Refugiou-se rapidamente na Rua de l'Arcade.
Depois de duas voltas à Madeleine, os estudantes desceram em direção à Praça de la Concorde. Estava cheia de gente, e a multidão apinhada parecia, vista de longe, um campo de negras espigas, oscilando.
Nesse mesmo momento, soldados de linha colocaram-se em ordem de batalha, à esquerda da igreja.
Todavia, os grupos estacionavam. Para dispersá-los, policiais à paisana agarravam os mais rebeldes e conduziam-nos, com brutalidade, para a delegacia. Frédéric, apesar da indignação, ficou mudo; podiam levá-lo com os outros, e perdia a entrevista com a Senhora Arnoux.
Pouco depois surgiram os capacetes da guarda municipal, distribuindo espadeiradas para todos os lados. Um cavalo caiu; gente acorreu a prestar socorro; e, mal o cavalariano montou novamente, todos fugiram.
Fez-se então um grande silêncio. A chuva fina, que molhara o asfalto, deixara de cair. As nuvens iam-se embora, empurradas lentamente pelo vento oeste.
Frédéric pôs-se a percorrer a Rua Tronchet, olhando para diante e para trás.
Finalmente, bateram duas horas.
“Ah! e agora!”, disse de si para si, “ela está saindo de casa, vem-se aproximando” e, daí a um minuto: “Já tinha tido tempo de chegar”. Até às três horas, tentou acalmar-se. “Não, ela não está atrasada; um pouco de paciência!”
E, não tendo que fazer, examinava os raros estabelecimentos: uma livraria, um seleiro, uma casa funerária. Não tardou a conhecer o nome de todos os livros, de todos os arreios, de todas as fazendas. Os comerciantes, de tanto o verem passar e tornar a passar, ficaram a princípio admirados, depois assustados, e fecharam as vitrinas.
Sem dúvida ela tivera algum impedimento21, e também sofria. Mas que alegria, dentro em pouco! Porque ela viria, tinha a certeza! “Ela deu certeza!” Contudo, uma angústia insuportável ia-se apoderando dele.
Num movimento absurdo, entrou no hotel, como se fosse possível ela estar lá. Nesse mesmo instante, talvez ela estivesse chegando à rua. Precipitou-se para fora. Ninguém! E continuou a palmilhar o passeio.
Fixava os olhos nas fendas do calçamento, no orifício das goteiras, nos candelabros, nos números das portas. Os mais insignificantes objetos tornavam-se para ele companheiros, ou antes, espectadores irônicos; e as fachadas simétricas das casas pareciam-lhe implacáveis. Tinha os pés frios. Sentia-se dominado por um desânimo sem limites. Os seus passos repercutiam-lhe no cérebro.
Quando viu no relógio que eram quatro horas, sentiu uma espécie de vertigem, de pavor. Esforçou-se por recordar versos, por calcular fosse o que fosse, por inventar uma história. Impossível! A imagem da Senhora Arnoux perseguia-o. Queria correr ao encontro dela. Mas que caminho seguir, para não se desencontrarem?
Aproximou-se de um moço de recados22, meteu-lhe cinco francos na mão e encarregou-o de ir à Rua Paradis, à casa de Jacques Arnoux, para saber do porteiro “se a senhora estava”. Depois ficou parado à esquina da Rua de la Ferme e da Rua Tronchet, de forma a vê-las simultaneamente. No fundo da perspectiva, no bulevar, deslizavam massas confusas. Distinguia de vez em quando o penacho de um dragão, um chapéu de mulher; e forçava os olhos para a reconhecer. Uma criança andrajosa, que exibia uma marmota numa caixa, pediu-lhe esmola, sorrindo.
O homem da jaqueta de veludo regressou. “O porteiro não a tinha visto sair.” O que poderia tê-la retido? Se estivesse doente, não teriam deixado de o dizer! Seria alguma visita? Nada mais fácil do que não a receber. Bateu na testa.
“Ah! Que estúpido sou! Foi a insurreição!” Esta explicação natural trouxe-lhe um alívio. Depois, de repente: “Mas no bairro dela há tranquilidade”. E horrível dúvida o assaltou. “Se ela não viesse? Se tivesse prometido unicamente para se ver livre de mim? Não! Não!” O que a não deixava vir era sem dúvida um acaso extraordinário, um destes acontecimentos que escapam a qualquer possibilidade de previsão. Mas nesse caso teria escrito. E mandou o criado do hotel a casa, à Rua Rumfort, saber se estaria lá alguma carta.
Não tinha vindo carta nenhuma. Esta falta de notícias tranquilizou-o.
Do número de moedas tiradas ao acaso do bolso, da fisionomia dos transeuntes, da cor dos cavalos, tirava presságios; e, quando o augúrio era negativo, esforçava-se por não lhe dar crédito. Nos seus acessos de furor contra a Senhora Arnoux dirigia-lhe impropérios em voz baixa. Depois sentia-se fraco, quase a desmaiar, e de súbito tinha um assomo de esperança. Ela ia aparecer. Estava ali, por trás dele. Voltava-se: nada! Uma vez, avistou, a uns trinta passos, uma mulher da mesma estatura, com um vestido igual. Foi ao seu encontro; não era ela! Deram as cinco! Cinco e meia! Seis horas! Acendia-se o gás. A Senhora Arnoux não tinha vindo.
Ela sonhara, na noite anterior, que se achava no passeio da Rua Tronchet havia muito. Esperava ali algo indeterminado, e todavia importante, e, sem saber por quê, receava ser vista. Mas um maldito cãozinho, encarniçado contra ela, mordiscava-lhe a fímbria do vestido. Voltava obstinadamente e ladrava cada vez com mais força. A Senhora Arnoux acordou. Os latidos do cão continuavam. Apurou o ouvido. Vinham do quarto do filho. Precipitou-se para lá descalça. Era o filho, tossindo23. Tinha as mãos a arder, o rosto afogueado, a voz estranhamente rouca. A sua dificuldade em respirar aumentava de minuto a minuto. Ela ficou até o amanhecer inclinada sobre a cama, observando-o.
Às oito horas, o tambor da guarda nacional veio prevenir o Senhor Arnoux de que os seus camaradas o esperavam. Ele vestiu-se rapidamente e saiu, prometendo passar imediatamente pela casa do médico, o Doutor Colot. Às dez, como o Doutor Colot não tivesse aparecido, a Senhora Arnoux mandou lá a empregada. O médico estava ausente, no campo, e seu substituto tinha saído.
Eugène tinha a cabeça de lado, sobre o travesseiro, as sobrancelhas franzidas, as narinas dilatadas; a carinha estava mais branca do que os lençóis; e saía-lhe da laringe um silvo a cada inspiração, e estas eram cada vez mais curtas, secas, com um som metálico. A sua tosse parecia o ruído daqueles engenhos primitivos que fazem ladrar os cães de papelão.
A Senhora Arnoux foi tomada de pânico. Agarrou-se à campainha pedindo socorro, gritando:
— Um médico! Um médico!
Dez minutos depois, chegava um senhor idoso, de gravata branca e suíças grisalhas, bem aparadas. Fez muitas perguntas sobre os hábitos, a idade e o temperamento do pequeno doente, em seguida examinou-lhe a garganta, encostou-lhe o ouvido às costas e escreveu uma receita. O ar tranquilo do homenzinho era odioso. Cheirava a cadáver embalsamado. A Senhora Arnoux tinha vontade de lhe bater. Ele disse que voltaria à tarde.
Não tardou que recomeçassem os terríveis acessos de tosse. Por vezes, a criança erguia-se subitamente. Movimentos convulsos abalavam-lhe os músculos do peito, e, quando aspirava o ar, o ventre cavava-se-lhe, como se estivesse sufocada por ter corrido. Depois tornava a cair, de cabeça para trás, a boca escancarada. Com infinitas precauções, a Senhora Arnoux tentava dar-lhe o conteúdo dos frascos, xarope de ipecacuanha, uma poção expectorante. Mas a criança repelia a colher, gemendo numa voz débil. Dir-se-ia soprar as palavras.
De vez em quando, ela voltava a ler a receita. As observações do formulário aterrorizavam-na; quem sabe se o farmacêutico não se teria enganado! A sua impotência desesperava-a. O assistente do Doutor Colot chegou.
Era um jovem de aspecto modesto, novo na profissão, que não escondeu a sua má impressão. A princípio ficou indeciso, no receio de se comprometer, e acabou por prescrever a aplicação de gelo. Levou muito tempo até que se conseguisse arranjá-lo. A bexiga que continha os pedaços de gelo estourou. Foi necessário mudar a camisola. Esta confusão provocou novo acesso, ainda mais violento.
A criança pôs-se a arrancar as compressas do pescoço, como se quisesse tirar o obstáculo que a sufocava, e arranhava a parede, agarrava-se às cortinas da cama, procurando um ponto de apoio para respirar. Agora tinha o rosto azulado, e todo o corpo, encharcado de suor frio, parecia ter emagrecido. O olhar alucinado fixava-se na mãe com terror. Lançava-lhe os braços ao pescoço, agarrando-se desesperadamente a ela; e, reprimindo os soluços, a Senhora Arnoux balbuciava palavras meigas.
— Sim, meu amor, meu anjo, meu tesouro!
Depois vinham momentos de acalmia.
Ela foi buscar-lhe brinquedos, um polichinelo, uma coleção de figuras, espalhou-os na cama, para o distrair. Tentou até cantar.
Começou uma canção que lhe cantava outrora, quando o embalava ao enfaixá-lo, naquela mesma cadeirinha estofada. Mas ele teve um estremecimento de todo o corpo, como um onda açoitada pela ventania; os globos dos olhos ficaram salientes: julgou que ele ia morrer, e desviou os olhos para não ver.
Passado um instante, teve coragem para olhar. Ainda vivia. As horas passavam, pesadas, melancólicas, intermináveis, desesperantes; e ela já só lhes contava os minutos pela progressão daquela agonia. Os arrancos do peito faziam-no erguer-se, como se fosse estourar; por fim, vomitou uma coisa estranha, que se parecia com um tubo de pergaminho. Que seria? A Senhora Arnoux imaginou que ele expelira um pedaço das entranhas. Mas a criança respirava agora calmamente, regularmente. Esta aparência de tranquilidade assustou-a mais que tudo; estava petrificada, de braços caídos, olhar parado, quando o Doutor Colot chegou. Na opinião dele a criança estava salva.
Ela a princípio não compreendeu, e fê-lo repetir a frase. Não seria uma dessas consolações próprias dos médicos? O Doutor Colot saiu com ar tranquilo. Então, foi como se as cordas que lhe apertavam o coração se tivessem desatado.
— Salvo! Será possível?
De súbito, a ideia de Frédéric apareceu-lhe de forma nítida e inexorável. Era um aviso da Providência. Mas o Senhor, na sua misericórdia, não a quisera punir inteiramente! Que expiação, mais tarde, se ela persistisse naquele amor! Sem dúvida, seu filho seria insultado por causa dela; e a Senhora Arnoux viu-o, moço, ferido num duelo, trazido numa maca, moribundo. De um salto, precipitou-se para a cadeirinha; e, com todas as suas forças, elevando a alma às alturas, ofereceu a Deus, como holocausto, o sacrifício da sua primeira paixão, da sua única fraqueza.
Frédéric voltara para casa. Caído numa poltrona, nem sequer tinha forças para amaldiçoá-la. Uma espécie de sonolência o dominou; e, através do pesadelo, ouvia cair a chuva, pensando que ainda se encontrava no passeio da Rua Tronchet.
No dia seguinte, numa derradeira esperança, ainda mandou um moço de recados à casa da Senhora Arnoux.
Mas, ou porque o moço não desse o recado, ou porque as coisas que ela tinha a dizer eram muitas para fazê-lo em duas palavras, a resposta que veio foi a mesma. Era muita insolência! Uma cólera de orgulho apoderou-se dele. Jurou a si próprio que não teria sequer um desejo; e, como folha levada pelo vento, o seu amor desvaneceu-se. Sentiu um alívio, uma alegria estoica, em seguida uma necessidade de atos violentos; e saiu ao acaso, pelas ruas.
Passavam homens do subúrbio, armados de espingardas, de velhos sabres, alguns de barrete vermelho, e todos cantando a Marselhesa ou Os Girondinos. Aqui e ali, um guarda nacional apressava-se a caminho da sua mairie. Ouvia-se ao longe o rufar dos tambores. Combatia-se na Porta Saint-Martin. Havia uma atmosfera de entusiasmo e valentia. Frédéric ia andando sempre. A agitação da grande cidade fazia-o sentir-se alegre.
Nas proximidades de Frascati, viu as janelas da Marechala; veio-lhe uma ideia louca, uma reação de juventude. Atravessou o bulevar.
Estavam fechando o portão; e Delphine, a arrumadeira, que escrevia nele, com um pedaço de carvão: “Armas entregues”, disse-lhe precipitadamente:
— Ah! Nem imagina como a senhora está! Esta manhã despediu o groom, que a insultou. Está convencida de que vai haver pilhagens! Está morrendo de medo! Tanto mais que o senhor foi embora!
— Qual senhor?
— O príncipe!
Frédéric entrou no toucador. A Marechala apareceu, de saia branca, os cabelos caídos, transtornada.
— Ah! Obrigada! Vens salvar-me! É a segunda vez! E tu nunca pedes a paga!
— Queira desculpar! — disse Frédéric, deitando-lhe ambas as mãos à cintura.
— Como? Que é isso? — balbuciou a Marechala, ao mesmo tempo surpresa e divertida com os modos dele.
Frédéric respondeu:
— Sigo a moda, faço a minha reforma!
Ela deixou-se jogar sobre o divã, e continuava a rir enquanto ele a beijava.
Passaram a tarde vendo, da janela, o povo nas ruas. Depois levou-a para jantar no Trois-Frères-Provençaux. A refeição foi longa, delicada. Voltaram a pé, não havia carruagens.
À notícia de uma mudança de ministério, Paris transformara-se. A alegria era geral; transeuntes circulavam, e lampiões em todos os andares davam uma claridade de pleno dia. Os soldados regressavam lentamente às casernas, derreados, com ar tristonho. Saudavam-nos, aos gritos de “Viva a linha!”. Eles seguiam, sem responder. Na guarda nacional, pelo contrário, os oficiais, rubros de entusiasmo, brandiam os sabres, vociferando: “Viva a reforma!” e aquela palavra, sempre que a ouviam, fazia rir os dois amantes. Frédéric dizia gracejos, estava muito alegre.
Alcançaram os bulevares, pela Rua Duphot. Lanternas venezianas, penduradas das casas, formavam grinaldas de luzes. Embaixo, era um confuso formigueiro de gente; no meio dessa sombra, de quando em quando, brilhavam os reflexos das baionetas. Havia um grande vozear. A multidão era demasiado compacta, o regresso direto impossível; e entravam na Rua Caumartin quando, de súbito, um ruído estalou atrás deles, como se tivessem rasgado uma imensa peça de seda. Era a fuzilaria do Bulevar des Capucines.
— Ah! Estão dando cabo de alguns burgueses — disse Frédéric tranquilamente, porque há situações em que o menos cruel dos homens se acha tão alheado dos outros, que era capaz de assistir, sem a menor emoção, ao desaparecimento do gênero humano.
A Marechala, pendurada no seu braço, batia os dentes. Declarou-se incapaz de andar mais vinte passos. Então, por um requinte de ódio, para melhor ultrajar, na própria alma, a Senhora Arnoux, Frédéric levou-a ao hotel da Rua Tronchet, ao apartamento preparado para a outra.
As flores não tinham murchado. A colcha de renda cobria a cama. Tirou do guarda-roupa as chinelinhas. Rosanette achou essas atenções extremamente delicadas.
Aí pela uma hora, um rufar de tambores longínquo despertou Rosanette; viu que ele soluçava, com a cabeça enterrada no travesseiro.
— Que tens, querido amor?
— É o excesso de felicidade — disse Frédéric. — Havia tempo demais que eu te desejava!
Terceira parte
I
O estrépito de um tiroteio fê-lo despertar bruscamente; e, apesar dos pedidos de Rosanette, Frédéric quis por força ir ver o que se passava. Desceu os Champs-Elysées, de onde os tiros tinham partido. Na esquina da Rua Saint-Honoré, passaram por ele homens de avental, gritando:
— Por aí não! Ao Palais-Royal!
Frédéric seguiu-os. Tinham arrancado as grades da Assomption. Mais adiante, notou três pedras no meio da rua, sem dúvida início de uma barricada, e depois cacos de garrafas e feixes de arame, para atrapalhar a cavalaria; quando de súbito se precipitou de um beco um jovem pálido, cujo cabelo negro lhe flutuava sobre os ombros, e vestindo uma espécie de camisa de malha com pintas de cor. Tinha na mão uma comprida espingarda de soldado, e corria na ponta dos chinelos, com ar de sonâmbulo e ligeiro como um tigre. De vez em quando ouvia-se uma detonação.
Na véspera à noite, à vista da carroça que levava cinco cadáveres recolhidos entre os do Bulevar des Capucines, as disposições do povo tinham mudado; e, enquanto nas Tulherias se sucediam os ajudantes de campo, e o Senhor Molé, em vias de constituir novo ministério, não voltava, o Senhor Thiers procurava organizar outro, e o rei questionava, hesitava, e dava depois a Bugeaud o comando geral para o impedir de utilizá-lo, a insurreição, como que dirigida por um único cérebro, organizava-se formidavelmente. Homens de eloquência frenética arengavam a multidão, nas esquinas; outros, nas igrejas, tocavam a rebate com toda a força; fundiam-se balas, enrolavam-se cartuchos; as árvores dos bulevares, os mictórios, os bancos, as grades, os candeeiros do gás, tudo foi arrancado, derrubado; pela manhã, Paris estava coberto de barricadas. A resistência não durou muito; por toda parte, a guarda nacional intervinha; — de tal forma que, às oito horas, o povo já se apoderara, por bem ou por mal, de cinco casernas, de quase todas as mairies, pontos estratégicos mais fortes. Por si mesma, sem abalos, a monarquia dissolvia-se rapidamente; e estavam agora atacando a delegacia do Château-d’Eau, para libertar cinquenta presos, que não estavam lá.
Frédéric viu-se obrigado a parar à entrada da praça. Estava cheia de grupos armados. Companhias de linha ocupavam as ruas Saint-Thomas e Fromanteau. Enorme barricada fechava a Rua de Valois. Quando o fumo que oscilava sobre ela se dissolveu um pouco, Frédéric distinguiu alguns homens que corriam, fazendo grandes gestos, e depois desapareceram; em seguida o tiroteio recomeçou. Da delegacia respondiam, sem que se visse ninguém no interior; as janelas, defendidas por portadas de carvalho, tinham seteiras; e o monumento, com os seus dois andares, as duas alas, a fonte no primeiro e a pequena porta ao meio, começava a cobrir-se de marcas brancas, ao choque das balas. Nos três degraus da escadaria não havia ninguém.
Ao lado de Frédéric, um homem de barrete grego e uma cartucheira por cima da camisa de malha discutia com uma mulher de lenço amarrado na cabeça. Ela dizia-lhe:
— Mas volta! Volta!
— Deixa-me em paz! — respondia o marido. — Podes muito bem guardar sozinha a portaria. Diga-me, cidadão, acha isto justo? Cumpri o meu dever em toda parte, em 1830, em 32, em 34, em 39! Hoje, luta-se! Eu tenho que lutar! Vai-te embora!
E a porteira acabou por ceder ante os protestos dele, e os de um guarda nacional que se achava ao lado, quadragenário cujo rosto bonacheirão era adornado por um colar de barba loira. Carregava a arma e disparava, enquanto conversava com Frédéric, tão tranquilo no meio da insurreição como um horticultor no seu jardim. Um rapazola de avental adulava-o para ele lhe dar cartuchos, a fim de poder utilizar a sua arma, uma bela carabina de caça que lhe tinha dado “um senhor”.
— Tira-os daqui de trás — disse o burguês — e esconde-te! Olha que podes morrer!
Os tambores tocavam a carregar. Gritos agudos, hurras de triunfo erguiam-se. Um remoinho permanente fazia oscilar a multidão. Frédéric, apanhado entre duas massas compactas, não se mexia, aliás fascinado, e divertindo-se imenso. Os que caíam feridos, os mortos ali estendidos não pareciam verdadeiros feridos, nem verdadeiros mortos. Parecia-lhe estar assistindo a um espetáculo.
No meio da turba, acima das cabeças, viu-se um velho de casaca preta, montado num cavalo branco, com sela de veludo. Numa das mãos levava um ramo verde, na outra um papel, e agitava-os com obstinação. Por fim, desesperando de se fazer ouvir, foi-se embora.
Os soldados de linha tinham desaparecido, e os municipais estavam agora sozinhos na defesa da delegacia. Uma onda de intrépidos avançou pela escadaria; caíram, outros os substituíram; e a porta, abalada pelos golpes de barra de ferro, repercutia; os municipais não cediam. Mas uma caleche carregada de feno, que ardia como gigantesca tocha, foi arrastada para junto da parede. Não tardaram a trazer molhos de lenha, palha, um barril de espírito de vinho. O fogo subiu ao longo da cantaria; o edifício começou a fumegar por todos os lados; e ao alto, com um ruído estridente, surgiram grandes chamas entre os balaústres do terraço. O primeiro andar do Palais-Royal enchera-se de guardas nacionais. Disparava-se de todas as janelas da praça; as balas assobiavam; a água da fonte rebentada misturava-se ao sangue, fazia poças no chão; escorregava-se, na lama, sobre peças de vestuário, capacetes, armas; Frédéric sentiu debaixo do pé uma coisa mole; era a mão de um sargento, de capote cor de cinza, caído no enxurro, com o rosto para baixo. Novos bandos de populares continuavam chegando, empurrando os combatentes para a delegacia. O tiroteio tornava-se mais cerrado. Os armazéns de vinho estavam abertos; ia-se lá, de quando em quando, fumar uma cachimbada, beber um chope, para depois voltar ao combate. Um cão perdido uivava. Dava vontade de rir.
Frédéric foi abalado pelo choque de um homem que, tendo recebido uma bala nos rins, caíra-lhe sobre o ombro, estertorando. Àquele tiro, dirigido talvez contra ele, Frédéric sentiu-se furioso; e ia precipitar-se para a frente quando um guarda nacional o deteve.
— É inútil! O rei acaba de partir. Ah! Se não acredita, vá lá ver!
Aquela afirmativa acalmou Frédéric. A Praça du Carrousel tinha um aspecto tranquilo. O palácio de Nantes continuava e erguer-se solitário; e as casas por trás dele, a cúpula do Louvre, em frente, a extensa galeria de madeira à direita e os terrenos desocupados que ondulavam até as barracas de quinquilharias, estavam como que afogados na cor cinza do ar, no qual um murmurar distante parecia confundir-se com a névoa, — enquanto do outro lado da praça uma luz crua, incidindo, graças a um vão entre as nuvens, sobre a fachada das Tulherias, recortava-lhe em branco todas as janelas. Junto do Arco do Triunfo via-se um cavalo morto estendido. Por trás das grades, grupos de cinco a seis pessoas conversavam. As portas do castelo achavam-se abertas, e os criados, no limiar, não impediam a entrada.
Embaixo, numa pequena sala, estavam servindo café com leite. Alguns dos curiosos instalaram-se ali, gracejando; outros permaneciam de pé, e, entre estes, um cocheiro de fiacre. O sujeito agarrou com ambas as mãos um açucareiro, lançou um olhar desconfiado a um lado e outro, e pôs-se a comer com voracidade, com o nariz metido dentro. Ao pé da grande escadaria, um homem estava assinando um livro. Frédéric reconheceu-o pelas costas.
— Você aqui, Hussonnet!
— Pois claro — respondeu o boêmio. — Apresento-me à Corte. Grande farsa, hein?
— E se subíssemos?
E chegaram à Sala dos Marechais. Os retratos destas notabilidades, à exceção do de Bugeaud, com um furo na barriga, estavam intactos. Apoiados no sabre, tendo um canhão como fundo, as suas atitudes majestosas estavam em desacordo com a circunstância. Um grande relógio marcava uma hora e vinte minutos.
De repente, a Marselhesa vibrou. Hussonnet e Frédéric debruçaram-se no corrimão. Era o povo, que se precipitou pela escadaria, num flutuar vertiginoso de cabeças descobertas, de capacetes, barretes vermelhos, baionetas e ombros, com tamanho ímpeto que se viam desaparecer pessoas naquela massa ondulante que subia sem cessar, como um rio impelido pela maré do equinócio, num ulular prolongado, sob um impulso irresistível. Ao chegar em cima, espalhou-se, e o canto cessou.
Não se ouvia agora senão o arrastar de todos aqueles pés, e o marulhar das vozes. A multidão inofensiva limitava-se a olhar. Mas, de quando em quando, um cotovelo comprimido demais partia um vidro; ou então era um vaso, uma estatueta que tombava de um consolo ao chão. O forro de madeira estalava sob a pressão. Todos os rostos estavam corados, e o suor escorria por eles em grossas bagas; Hussonnet observou:
— Os heróis não cheiram lá muito bem!
— Ah! Como você é irritante! — disse Frédéric.
E arrastados, a seu pesar, entraram num salão onde, no teto, se estendia um dossel de veludo vermelho. Embaixo, no trono, estava sentado um proletário de barba negra, camisa aberta, um ar hílare e estúpido de macaco. Outros subiam ao estrado para se sentar no lugar dele.
— Que mito! — disse Hussonnet. — Aí tem o povo soberano!
A poltrona foi erguida à força de braços, e atravessou o salão, oscilando.
— Com a breca! Como balança! A nau do Estado é sacudida por um mar tempestuoso! Como dança! Como dança!
Tinham-na conduzido até junto de uma janela e, no meio de assobios, lançaram-na fora.
— Pobre velha! — disse Hussonnet ao vê-la cair no jardim, onde foi apanhada sem demora para, em seguida, ser passeada até a Bastilha, e lá queimada.
Então, uma alegria frenética explodiu, como se, no lugar do trono, um futuro de felicidade sem-fim tivesse surgido; e o povo, não tanto por vingança como para afirmar a sua posse, quebrou, dilacerou os espelhos e os cortinados, os lustres, os tocheiros, as mesas, as cadeiras, os tamboretes, todos os móveis, mesmo os álbuns de desenho, mesmo as cestas de costura. Tinha obtido a vitória, precisava divertir-se! A canalha enfeitou-se ironicamente com rendas e sedas. Franjas douradas enrolaram-se nas mangas dos blusões, chapéus de penas de avestruz adornavam a cabeça dos ferreiros, faixas da Legião de Honra serviram de cinto a prostitutas. Cada qual satisfazia o seu capricho; uns dançavam, outros bebiam. No quarto da rainha, uma mulher punha cosmético nos bandós; atrás de um biombo, dois amadores jogavam cartas; Hussonnet mostrou a Frédéric um indivíduo que, debruçado numa sacada, fumava cachimbo; e o delírio redobrava o estrépito continuado das porcelanas quebradas e dos estilhaços de cristal que soavam, saltando, como palhetas de gaita de boca.
Depois a fúria tornou-se mais sombria. Uma curiosidade obscena fez vasculhar todos os recessos, abrir todas as gavetas. Galerianos mergulharam os braços no leito das princesas, e rebolavam-se nele para se consolarem de não as poder violar. Outros, de caras mais sinistras, erravam em silêncio, procurando qualquer coisa para roubar; mas a multidão era demasiado numerosa. Pelas portas escancaradas, só se distinguia na enfiada das salas a massa sombria do povo entre os dourados, sob uma nuvem de poeira. Todos os peitos ofegavam; o calor tornava-se cada vez mais sufocante; os dois amigos, receando que lhes faltasse o ar, saíram.
No vestíbulo, de pé sobre um monte de roupas, uma prostituta, imitando a estátua da Liberdade, mantinha-se imóvel, de olhos muito abertos, medonha.
Tinham dado três passos para fora quando viram avançar, na direção deles, uma companhia de guardas municipais de capote que, tirando os barretes e descobrindo ao mesmo tempo os crânios um tanto calvos, saudaram o povo com uma grande reverência. Perante esta prova de respeito, os vencedores maltrapilhos empertigaram-se. Mesmo Hussonnet e Frédéric não deixaram de sentir certo prazer.
Estavam cheios de entusiasmo. Voltaram ao Palais-Royal. Diante da Rua Fromanteau havia cadáveres de soldados, amontoados em cima de palha. Passaram ao lado, impassíveis, orgulhosos, até, de sentir que faziam boa figura.
O palácio regurgitava de gente. No pátio interno ardiam sete fogueiras. Das janelas atiravam-se pianos, cômodas e relógios. Bombas de incêndio faziam jorrar água até os telhados. Alguns vagabundos tentavam cortar as mangueiras com sabres. Frédéric pediu a um estudante da Politécnica para intervir. Este não compreendeu, e aliás parecia imbecil. A toda a volta, nas duas galerias, o populacho, tendo-se apoderado das adegas, entregava-se a uma pândega desenfreada. O vinho formava regatos, molhava os pés. Vagabundos bebiam por fundos de garrafa, e vociferavam, titubeando.
— Vamo-nos embora — disse Hussonnet. — Este povo enoja-me.
Ao longo de toda a Galeria d’Orléans, havia feridos estendidos no chão, sobre colchões, cobertos com cortinados vermelhos; e burguesinhas do bairro traziam-lhes caldo e roupa.
— Pois sim! — disse Frédéric. — Quanto a mim, acho o povo sublime.
Na grande sala de entrada havia um turbilhão de gente em fúria, homens queriam subir aos andares superiores para acabar de destruir tudo; postados nos degraus, guardas nacionais procuravam retê-los. O mais intrépido era um soldado de caçadores, de cabeça descoberta, cabelo eriçado, com o boldrié em pedaços. A camisa enrolava-se-lhe entre as calças e a túnica, e ele debatia-se encarniçadamente no meio dos outros. Hussonnet, que tinha um olhar penetrante, reconheceu de longe Arnoux.
Depois dirigiram-se ao jardim das Tulherias, para respirar mais à vontade. Sentaram-se num banco; e deixaram-se ficar ali durante alguns minutos, de olhos fechados, tão atordoados que nem tinham forças para falar. Em redor, os transeuntes conversavam uns com os outros. A Duquesa d’Orléans tinha sido nomeada regente; estava tudo acabado; e sentia-se aquele bem-estar que se segue aos desenlaces rápidos, quando às janelas das mansardas do castelo apareceram os lacaios rasgando as librés. Lançavam-nas ao jardim, em sinal de abjuração. O povo apupou-os. Eles desapareceram.
A atenção de Frédéric e de Hussonnet foi atraída por um rapagão que caminhava rapidamente por entre as árvores, de espingarda ao ombro. Uma cartucheira apertava-lhe à cintura o blusão vermelho, e tinha um lenço amarrado na cabeça, debaixo do boné. Voltou a cabeça. Era Dussardier; e, caindo-lhes nos braços:
— Ah! Que felicidade, meus rapazes! — sem poder dizer mais nada, tão ofegante estava de alegria e cansaço.
Havia quarenta e oito horas que estava de pé. Trabalhara nas barricadas do Quartier Latin, batera-se na Rua Rambuteau, salvara três soldados de dragões, entrara nas Tulherias com a coluna Dunoyer, fora em seguida à Câmara, depois à Municipalidade.
— Venho de lá! Tudo vai bem! O povo triunfa! Os operários e os burgueses confraternizam-se! Ah! Se tivessem visto o que eu vi! Que valentes! Como é belo!
E, sem notar que eles não tinham armas:
— Tinha certeza que os encontraria! Houve um momento difícil, contudo!
Uma gota de sangue corria-lhe pela face, e, às perguntas dos outros dois:
— Oh! Não é nada! Um arranhão de baioneta!
Mas precisa tratar-se!
— Ora! Eu sou duro, que importância tem isto? Está proclamada a República! Agora vamos ser felizes! Uns jornalistas que ouvi conversar, há pouco, diziam que se vai libertar a Polônia e a Itália! Acabaram-se os reis! Compreendem? Toda a terra livre! Toda a terra livre!
E, envolvendo num olhar todo o horizonte, abriu os braços em atitude de triunfo. Mas uma extensa fila de homens corria pelo terraço, à beira d’água.
— Ah! Com a breca! Tinha-me esquecido! Os fortes estão ocupados! Tenho de ir para lá! Adeus!
Voltou para gritar-lhes, brandindo a espingarda:
— Viva a República!
Das chaminés do castelo saíam grandes rolos de fumaça negra, que arrastavam fagulhas. O repicar dos sinos lembrava, na distância, balidos aflitos. À direita e à esquerda, por todos os lados, os vencedores disparavam as armas. Frédéric, embora não tivesse espírito bélico, sentiu ferver o sangue gaulês. O magnetismo das multidões entusiásticas contagiara-o. Aspirava voluptuosamente o ar de tempestade, impregnado de cheiro de pólvora; e ao mesmo tempo estremecia sob os eflúvios de um amor imenso, de uma suprema e universal comoção, como se o coração da humanidade inteira lhe batesse no peito.
Hussonnet disse, bocejando:
— Talvez sejam horas de informar as populações!
Frédéric acompanhou-o ao escritório de correspondência, na Praça da Bolsa; e pôs-se a redigir para o Journal de Troyes um relato dos acontecimentos em estilo lírico, verdadeira obra de arte, que assinou. Em seguida, jantaram os dois numa taberna. Hussonnet estava pensativo; as excentricidades da Revolução deixavam as dele a perder de vista.
Depois do café, quando se dirigiram à Municipalidade, para saber o que havia de novo, a natureza agarotada já lhe voltara. Escalava as barricadas como um gamo, e respondia às sentinelas com chistes patrióticos.
Ouviram proclamar, ao clarão dos archotes, o Governo provisório. Finalmente, à meia-noite, Frédéric, vencido pelo cansaço, voltou para casa.
— Então — disse ele ao criado, enquanto este o ajudava a despir-se — estás satisfeito?
— Estou, é claro, senhor! Mas o que não me agrada é todo esse povo dançando!
No dia seguinte, ao acordar, Frédéric lembrou-se de Deslauriers. Correu à casa dele. O advogado acabava de partir, fora nomeado comissário na província. Na véspera à noite conseguira chegar junto de Ledru-Rollin, e, não o largando, falando em nome das Escolas, arrancara-lhe um lugar, uma missão. Aliás, dizia o porteiro, escreveria daí a uma semana, para dar o endereço.
Em seguida, Frédéric foi visitar a Marechala. Ela recebeu-o com azedume, estava amuada por ele a ter deixado só. O seu rancor desvaneceu-se perante as reiteradas garantias de que tudo estava em paz. Tudo voltara à tranquilidade, não havia já nenhum motivo para ter medo; e beijava-a; e ela declarou-se a favor da República, tal como já fizera Monsenhor o Arcebispo de Paris, e como o fariam, com extraordinária presteza de zelo, a Magistratura, o Conselho de Estado, o Instituto, os Marechais da França, Changarnier, o Senhor de Falloux, todos os bonapartistas, todos os legitimistas, e considerável número de orleanistas.
A queda da Monarquia fora tão rápida que, passada a primeira estupefação, os burgueses sentiram como que o pasmo de ainda estarem vivos. A execução sumária de alguns ladrões, fuzilados sem julgamento, pareceu coisa muito justa. Repetiu-se, durante um mês, a frase de Lamartine sobre a bandeira vermelha, “que apenas tinha dado a volta ao Champ de Mars, ao passo que a bandeira tricolor”, etc.; e todos se abrigaram à sombra dela, cada partido só vendo, das três cores, a sua — e contando, logo que fosse o mais forte, poder arrancar as outras duas.
Como os negócios estavam suspensos, a inquietação e a ociosidade traziam toda a gente para a rua. O descuido do vestuário atenuava a diferença das categorias sociais, o ódio escondia-se, as esperanças exibiam-se, a multidão estava cheia de doçura. O orgulho de um direito conquistado brilhava em todos os rostos. Havia uma alegria de carnaval, ostentavam-se uns ares de bivaque; nada foi mais divertido do que o aspecto de Paris, nos primeiros dias.
Frédéric tomava a Marechala pelo braço, e vagueavam juntos pelas ruas. Ela divertia-se com as condecorações em todas as lapelas, os estandartes pendurados de todas as janelas, os cartazes de todas as cores afixados nas paredes, e deitava aqui e ali uma moeda nas caixas de auxílio aos feridos, instaladas numa cadeira, no meio da rua. Depois detinha-se diante das caricaturas que representavam Luís Filipe de pasteleiro, de saltimbanco, de cão, de sanguessuga. Mas os homens de Caussidière1, de sabre e faixa, assustavam-na um pouco. Outras vezes, era uma árvore da Liberdade que se estava plantando. Os senhores eclesiásticos compareciam à cerimônia, abençoavam a República, escoltados por acólitos de galões dourados; e a multidão achava aquilo muito bom. O espetáculo mais frequente era o das deputações de qualquer coisa, indo reclamar fosse o que fosse à Municipalidade — porque cada profissão, cada indústria esperava do Governo o fim radical da própria miséria. Alguns, é certo, iam até junto dele para o aconselhar, ou para o felicitar, ou simplesmente para lhe fazer uma visitinha, e ver funcionar a máquina.
Em meados de março, um dia que atravessava a Ponte d’Arcole, tendo de aviar uma encomenda de Rosanette no Quartier Latin, Frédéric viu uma coluna de indivíduos com chapéus estranhos e longas barbas. À frente, tocando tambor, marchava um negro, antigo modelo de ateliê, e o homem que conduzia o estandarte, no qual flutuava ao vento esta legenda: “Artistas pintores”, era nem mais nem menos do que Pellerin.
Fez sinal a Frédéric para que o esperasse, e reapareceu daí a cinco minutos, tendo tempo de sobra, porque o Governo estava recebendo naquele momento os pedreiros. Iam com os seus colegas reclamar a criação de um Fórum da Arte, uma espécie de Bolsa em que seriam debatidos os interesses da Estética; obras sublimes nasceriam, visto que os trabalhadores punham em comum o seu gênio. Paris estaria dentro em pouco coberta de monumentos gigantescos; ele os iria decorar; tinha até começado uma figura da República. Um dos seus camaradas veio chamá-lo, porque esperava vez, depois deles, a deputação dos comerciantes de aves.
— Que disparate! — resmungou uma voz na multidão. — Sempre tolices! Nada que seja forte!
Era Regimbart. Não cumprimentou Frédéric, mas aproveitou a oportunidade para dar largas à própria amargura.
O Cidadão passava os dias vagabundeando pelas ruas, cofiando os bigodes, esbugalhando os olhos, ouvindo e transmitindo notícias lúgubres; e só tinha duas frases: “Tenham cuidado, eles vão passar por cima de nós!” ou então: “Mas com os demônios, estão escamoteando a República!”. Não estava contente com nada, e sobretudo com o fato de não termos restabelecido as nossas fronteiras naturais. Bastava o nome de Lamartine para fazê-lo encolher os ombros. Não achava Ledru-Rollin “suficiente para o problema”, chamava a Dupont (de l’Eure) velho incapaz; a Albert, idiota; a Louis Blanc, utopista; a Blanqui, homem extremamente perigoso; e quando Frédéric lhe perguntou o que teria sido necessário fazer, respondeu, apertando-lhe tanto o braço que quase lho esmagava:
— Tomar o Reno, é o que lhe digo, tomar o Reno, que diabo!
Depois acusou a reação.
Esta desmascarava-se. O saque dos castelos2 de Neuilly e de Suresne, o incêndio de Batignolles, as desordens de Lião, todos os excessos, todas as queixas, eram agora exagerados, e acrescentavam-se-lhes a circular de Ledru-Rollin, o curso forçado das notas de banco, a diminuição do juro dos papéis do Estado para sessenta francos, finalmente, como suprema iniquidade, como golpe derradeiro, como um suplemento de horror, o imposto dos quarenta e cinco cêntimos3! — E, ainda por cima, havia o Socialismo! Embora essas teorias, tão novas como o jogo da glória, tivessem sido durante quarenta anos debatidas o suficiente para encher bibliotecas, assustaram os burgueses4 como se fosse uma chuva de aerólitos; e houve indignação, devido àquele ódio que provoca o aparecimento de uma ideia, por ser uma ideia, execração da qual lhe virá mais tarde a glória, e que faz com que os seus inimigos estejam sempre abaixo dela, por medíocre que porventura seja.
Então, a Propriedade elevou-se no respeito público ao nível da Religião, e confundiu-se com Deus. Os ataques que sofria pareceram sacrilégio, pouco menos que a antropofagia. Apesar da legislação mais humana que jamais existiu, o espectro de 93 reapareceu, e a lâmina da guilhotina vibrou em todas as sílabas da palavra República; — o que não lhe evitava o ser desprezada pela sua fraqueza. A França, não se sentindo já dominada, pôs-se a gritar de medo, como um cego sem bengala, como um bebê que se perdeu da ama.
De todos os franceses, nenhum tremia tanto como o Senhor Dambreuse. O novo estado de coisas ameaçava-lhe a fortuna, mas, sobretudo, ludibriava-lhe a experiência. Um sistema tão bom, um rei tão ponderado! Era lá possível! Era o fim do mundo! Logo no dia seguinte, despediu três lacaios, vendeu os cavalos, comprou, para sair à rua, um chapéu mole, pensou até em deixar crescer a barba; e ficava em casa, prostrado, lendo com amargura os jornais mais hostis às suas ideias, e tão sombrio que nem sequer os gracejos sobre o cachimbo de Flocon5 tinham já a virtude de fazê-lo sorrir.
Como sustentáculo do regime anterior, temia as vinganças do povo contra as suas propriedades da Champanha, quando lhe caíram debaixo dos olhos as elucubrações de Frédéric6. Imaginou então que o seu jovem amigo era um personagem muito influente e que poderia, se não servi-lo, pelo menos defendê-lo; de forma que, certa manhã, o Senhor Dambreuse se apresentou em casa dele, acompanhado por Martinon.
Esta visita tinha como único fim, dizia ele, vê-lo e conversar um pouco. Em suma, rejubilava com os acontecimentos, e adotava com entusiasmo “a nossa sublime legenda: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, tendo sido sempre republicano, no fundo”. Se, no outro regime, votava de acordo com o ministério, era simplesmente para acelerar uma queda inevitável. Foi até violento ao referir-se ao Senhor Guizot, “que nos meteu em bons assados, temos de concordar!” — Pelo contrário, admirava muito Lamartine, o qual se mostrara “magnífico, palavra de honra, quando, a propósito da bandeira vermelha...”
— Sim, bem sei — disse Frédéric.
Depois do que, declarou a sua simpatia pelos operários.
— Porque enfim, somos todos mais ou menos operários! — E levava a imparcialidade a ponto de reconhecer que havia lógica em Proudhon. “Oh, muita lógica, que diabo!” Depois, com a liberdade de uma inteligência superior, conversou sobre a exposição de pintura, onde tinha visto o quadro de Pellerin. Achava-o uma coisa original, de mão de mestre.
Martinon corroborava tudo o que ele dizia com palavras de aprovação; também ele entendia que era necessário “aderir francamente à República”, e falou do pai, lavrador, tomando ares de camponês, de homem do povo. Não tardaram a falar nas eleições para a Assembleia Nacional e nos candidatos na circunscrição de la Fortelle. O da oposição não tinha probabilidades.
— O senhor devia tomar o lugar dele! — disse o Senhor Dambreuse.
Frédéric protestou.
— Ora, por que não? — teria os sufrágios dos “ultras”, dadas as suas opiniões pessoais, e os conservadores, por causa da família. — E talvez, um pouco, quem sabe, — acrescentou o banqueiro, sorrindo — graças à minha influência.
Frédéric objetou que não saberia como fazer. Nada mais fácil, era conseguir ser recomendado aos patriotas do Aube por um clube da capital. Era questão de fazer, não uma profissão de fé como as que se viam todos os dias, mas uma séria exposição de princípios.
— Traga-me isso; eu sei o que convém na localidade! E poderia, repito-lhe, prestar grandes serviços ao país, a todos nós, até a mim.
Em épocas assim, o auxílio mútuo era necessário e, se Frédéric tivesse necessidade de alguma coisa, ele, ou os seus amigos...
— Oh! Mil vezes obrigado, meu caro senhor!
— Com promessa de compensação, bem entendido!
O banqueiro era um excelente homem, afinal.
Frédéric não pôde deixar de refletir nos conselhos dele; e não tardou a sentir-se atordoado por uma espécie de vertigem.
Passaram-lhe diante dos olhos as grandes figuras da Convenção. Pareceu-lhe que uma aurora magnífica ia surgir. Roma, Viena, Berlim, achavam-se em plena insurreição, os austríacos tinham sido escorraçados de Veneza; toda a Europa se agitava. Era a hora de se precipitar no movimento, de o acelerar, talvez; além disso, seduzia-o o traje que, segundo se dizia, seria usado pelos deputados. Via-se já de colete de lapela, e de faixa tricolor; e aquele desejo, aquela alucinação tornou-se tão forte que se abriu com Dussardier.
O entusiasmo do excelente rapaz nunca se desmentia.
— Mas certamente, está claro! Proponha-se!
Não obstante, Frédéric consultou Deslauriers. A oposição estúpida que entravava o comissário na sua província aumentara-lhe o liberalismo. Respondeu imediatamente exortando-o com violência.
Entretanto, Frédéric sentia necessidade de ser aprovado por um maior número; confidenciou o caso a Rosanette, num dia em que a Senhorita Vatnaz estava presente.
Esta era uma das celibatárias parisienses que, todas as noites, depois de terem dado as suas aulas, ou de terem procurado vender os seus desenhinhos, de colocar pobres manuscritos, voltam para casa com lama agarrada às saias, fazem o seu jantar, comem-no sozinhas, e depois, com os pés sobre uma escalfeta, à luz de um candeeiro sujo, sonham com um amor, uma família, um lar, uma fortuna, tudo aquilo que lhes falta. Assim, como muitas outras, ela tinha saudado na Revolução a hora da vingança; — e dedicava-se a uma propaganda socialista desenfreada.
Segundo a Vatnaz, a libertação do proletário só poderia realizar-se através da libertação da mulher7. Queria o direito de acesso a todos os empregos, a investigação de paternidade, um novo código, a abolição, ou, pelo menos, “uma regulamentação mais inteligente do casamento”. Então, cada francesa seria obrigada a casar com um frances ou a adotar um velho. Era preciso que as amas e parteiras fossem funcionárias pagas pelo Estado; que houvesse um júri para examinar as obras de mulheres, editores especiais para as mulheres, uma escola politécnica para as mulheres, uma guarda nacional para as mulheres, tudo para as mulheres! E, como o Governo não reconhecia os seus direitos, elas deviam vencer a força por meio da força. Dez mil cidadãs, com boas espingardas, podiam fazer tremer a Municipalidade!
A candidatura de Frédéric pareceu-lhe favorável às suas ideias. Estimulou-o, apontando-lhe a glória no horizonte. Rosanette rejubilou por ter um homem que falaria na Câmara.
— E depois, talvez te deem um bom lugar.
Frédéric, aberto a todas as fraquezas, foi contagiado pela demência universal. Escreveu um discurso, e foi mostrá-lo ao Senhor Dambreuse.
Com o ruído da grande porta ao fechar-se, entreabriu-se uma cortina por trás de uma vidraça; uma mulher apareceu. Não teve tempo de a reconhecer; mas, no vestíbulo, um quadro fê-lo parar; era de Pellerin, e estava pousado numa cadeira, sem dúvida provisoriamente.
Aquilo representava a República, ou o Progresso, ou a Civilização, na figura de Jesus Cristo conduzindo uma locomotiva, a qual ia atravessando uma floresta virgem. Frédéric, após um minuto de contemplação, exclamou:
— Mas que horror!
— Não é verdade? — disse o Senhor Dambreuse, que surgira quando ele proferia aquelas palavras, e supondo que elas dissessem respeito, não à pintura, mas à doutrina que o quadro glorificava. Martinon chegou no mesmo instante. Passaram ao escritório; e Frédéric ia tirando um papel do bolso quando a Srta. Cécile, entrando de repente, disse com ar ingênuo:
— Minha tia não está aqui?
— Bem sabes que não — replicou o banqueiro. — Enfim, faça de conta que está em sua casa, Senhorita.
— Oh! Muito obrigada, vou-me embora.
Mal ela saiu, Martinon pareceu procurar o lenço.
— Esqueci-o no sobretudo, desculpem-me.
— Bom! — disse o Senhor Dambreuse.
Evidentemente, a manobra não o iludia, parecia até favorecê-la. Por quê? Mas Martinon não tardou a voltar, e Frédéric começou a ler o seu discurso. Logo na segunda página, onde assinalava como uma vergonha a preponderância dos interesses pecuniários, o banqueiro fez uma careta. Depois, entrando no capítulo das reformas, Frédéric pedia a liberdade do comércio.
— Como?... Mas perdão!
Ele não entendeu, e continuou. Reclamava o imposto sobre o rendimento, o imposto progressivo, uma federação europeia, e a instrução do povo, o maior estímulo às belas-artes.
— Se o país desse a homens como Delacroix e Victor Hugo cem mil francos de rendimentos, que mal haveria nisso?
E no fim vinham os conselhos às classes superiores.
— Não poupeis nada, ó ricos! Dai! Dai sempre!
Calou-se, e ficou de pé. Os seus dois auditores, sentados, não diziam palavra; Martinon esbugalhava os olhos, o Senhor Dambreuse estava muito pálido. Por fim, dissimulando a emoção sob um sorriso azedo:
— É perfeito, o seu discurso! — E elogiou muito a forma, para não ter de referir-se ao fundo.
Tal virulência da parte de um jovem inofensivo aterrava-o, sobretudo como sintoma. Martinon procurou tranquilizá-lo. O partido conservador não tardaria a tirar a desforra, com certeza; em várias cidades tinham escorraçado os comissários do Governo provisório: as eleições estavam marcadas somente para 23 de abril, havia tempo; em suma, era necessário que o Senhor Dambreuse, em pessoa, se candidatasse no Aube; e, daí por diante, Martinon não o largou mais, tornou-se seu secretário e rodeou-o de carinhos filiais.
Frédéric chegou muito satisfeito consigo à casa de Rosanette. Delmar estava lá, e informou-o de que “definitivamente” se apresentava como candidato às eleições no Sena. Numa proclamação dirigida “ao Povo”, na qual o tratava por tu, o ator gabava-se de o compreender, a “ele”, e de se ter feito, para salvá-lo, “crucificar pela Arte”, de forma que era a sua encarnação, o seu ideal; — crente, efetivamente, de ter uma influência enorme sobre as massas a ponto de oferecer-se mais tarde, numa repartição do ministério, para dominar, ele sozinho, um motim; e, a respeito dos meios que utilizaria para isso, deu esta resposta:
— Não tenham medo! Mostrar-lhes-ei a minha cabeça!
Frédéric, para mortificá-lo, informou-o da sua própria candidatura. O cabotino, como o colega tinha em vista a província, declarou-se seu servidor e ofereceu-se para guiá-lo nos clubes.
Visitaram todos, ou quase todos, os vermelhos e os azuis, os furibundos e os tranquilos, os puritanos, os reles, os místicos e os da bebedeira, aqueles onde se decretava a morte dos reis, aqueles onde se denunciavam as fraudes dos merceeiros; e por toda parte, os locatários amaldiçoavam os proprietários, o avental atacava a casaca, e os ricos conspiravam contra os pobres. Alguns exigiam indenizações como antigos mártires da polícia, outros imploravam dinheiro para realizar os seus inventos, ou então eram planos de falanstérios, projetos de bazares municipais, sistemas de felicidade pública; — depois, aqui e ali, surgia um lampejo de espírito por entre essas nuvens de disparates, apóstrofes, súbitas como jatos de lama, o direito formulado numa praga, e flores de eloquência nos lábios de um salafrário, trazendo o boldrié de um sabre rente ao peito sem camisa. Às vezes, também, surgia um cavalheiro, aristocrata de modos humildes, dizendo coisas plebeias, e que não lavara as mãos, para fingir que eram calosas. Um patriota reconhecia-o, os mais virtuosos maltratavam-no; e ele saía, cheio de ódio. Era necessário, para parecer sensato, atacar sempre os advogados, e empregar o maior número de vezes possível estas locuções: “trazer a sua pedra ao edifício”, “problema social”, “oficina”.
Delmar não perdia oportunidade de tomar a palavra; e, quando já não sabia mais o que dizer, o seu recurso era pôr a mão na cintura, o outro braço metido no peito, colocando-se de perfil, bruscamente, de forma a mostrar bem a cabeça. Então os aplausos estrondeavam, os da Srta. Vatnaz do fundo da sala.
Frédéric, apesar da insignificância dos oradores, não tinha coragem de falar. Toda aquela gente lhe parecia demasiado inculta ou demasiado hostil.
Mas Dussardier pôs-se em campo, e anunciou-lhe que existia, na Rua Saint-Jacques, um clube intitulado o Clube de Inteligência. O nome era animador. Aliás, iriam também alguns amigos.
Levou aqueles que tinha convidado para o seu ponche; o guarda-livros, o representante de vinhos, o arquiteto; até Pellerin foi, e Hussonnet talvez aparecesse; e, no passeio, diante da porta, achava-se Regimbart com mais dois indivíduos, um dos quais era o seu fiel Compain, homem um pouco atarracado, com sinais de bexiga, olhos avermelhados, e o outro uma espécie de macaco peludo, de tez escura, e que ele conhecia unicamente por ser “um patriota de Barcelona”.
Seguiram por uma aleia, e depois foram introduzidos numa grande sala, sem dúvida destinada a oficina de marceneiro, e cujas paredes ainda frescas cheiravam a cal. Quatro candeias de azeite, penduradas umas ao lado das outras, proporcionavam uma luz desagradável. Num estrado, ao fundo, havia uma secretária com uma campainha, embaixo, uma mesa que servia de tribuna, e duas mais pequenas de cada lado, para os secretários. A assistência que ocupava os bancos era constituída de pintores malogrados, mestres-escolas, homens de letras inéditos. No meio destas filas de colarinhos ensebados, via-se de vez em quando uma touca de mulher ou o avental de um operário. O fundo da sala estava aliás cheio de operários, que ali tinham vindo sem dúvida por não terem outra coisa a fazer, ou trazidos pelos oradores a fim de os aplaudirem.
Frédéric teve o cuidado de se instalar entre Dussardier e Regimbart, o qual, logo que se sentou, pousou as duas mãos sobre o castão da bengala e fechou os olhos, enquanto, na outra extremidade da sala, Delmar, de pé, dominava a Assembleia.
Na mesa da presidência surgiu Sénécal.
Esta surpresa, supunha o bom do caixeiro, seria agradável a Frédéric. Mas contrariou-o.
A multidão manifestava ao seu presidente grande deferência. Era daqueles que, a 25 de fevereiro, tinham defendido a organização imediata do trabalho8; no dia seguinte, no Prado, fora a favor do ataque à Municipalidade; e como cada personagem tomava um modelo, este imitando Saint-Just, aquele a Danton, um outro a Marat, ele procurava assemelhar-se a Blanqui, o qual imitava Robespierre. As luvas pretas e o cabelo cortado à escovinha davam-lhe uma aparência rígida, extremamente respeitável.
Abriu a sessão com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ato de fé habitual. Em seguida, uma voz forte entoou As Recordações do Povo, de Béranger.
Levantaram-se outras vozes:
— Não! Não! Isso não!
— O Boné! — puseram-se a gritar, ao fundo, os patriotas.
E cantaram em coro o sucesso do dia:
Tirai o chapéu ante o boné,
Ajoelhai ante o operário!
A uma palavra do presidente, o auditório silenciou. Um dos secretários procedeu à abertura da correspondência.
— Um grupo de jovens anuncia que todas as noites queima diante do Panthéon um exemplar do Assemblée Nationale9, e convida todos os patriotas a seguir-lhes o exemplo.
— Bravo! Aprovado! — respondeu a multidão.
— O cidadão Jean-Jacques Langreneux, tipógrafo, da Rua Dauphine, desejaria que se erguesse um monumento à memória dos mártires de Termidor.
— Michel-Évariste-Népomucène Vincent, ex-professor, emite o voto de que a democracia europeia adote uma língua única. Poderia utilizar-se uma língua morta, por exemplo o latim, aperfeiçoado.
— Não! Nada de latim! — exclamou o arquiteto.
— Por quê? — redarguiu um professor particular.
E os dois travaram uma discussão, em que outros intervieram, cada um dizendo a sua frase para fazer efeito, e que não tardou a ficar tão tediosa que muita gente começou a sair.
Mas um velhinho, de óculos verdes sob uma fronte prodigiosamente alta, reclamou a palavra para uma comunicação urgente.
Era um memorial sobre a repartição dos impostos. Eram números e mais números, aquilo não tinha fim! A impaciência manifestou-se a princípio em murmúrios, em conversas; nada o perturbava. Depois começaram a assobiar, chamando “Azor”; Sénécal chamou o público à ordem; o orador prosseguia, como uma máquina. Para fazê-lo parar, foi necessário agarrá-lo por um braço. O homenzinho teve um ar de quem acorda de um sonho, e, erguendo tranquilamente os óculos:
— Perdão, cidadão! Perdão! Retiro-me! Peço muitas desculpas!
O insucesso dessa leitura deixou Frédéric desconcertado. Tinha o discurso na algibeira, mas teria sido preferível um improviso.
Finalmente, o presidente anunciou que iam entrar no assunto importante, a questão eleitoral. Não iriam ser discutidas as grandes listas republicanas. Todavia, o Clube da Inteligência tinha tanto direito como qualquer outro de fazer também a sua, “sem ofensa para os senhores paxás da Municipalidade”, e os cidadãos que aspiravam ao mandato popular podiam expor os respectivos programas.
— Vá lá! — disse Dussardier.
Um homem de sotaina, cabelo crespo, expressão petulante, já tinha levantado a mão. Declarou, tartamudeando, chamar-se Ducretot, padre e agrônomo, autor de uma obra intitulada Dos Adubos. Disseram-lhe que fosse para um clube agrícola.
Depois subiu à tribuna um patriota de blusão. Esse era plebeu, de ombros largos, uma cara larga, de expressão doce, e grande cabeleira negra. Percorreu a Assembleia com um olhar quase voluptuoso, deitou a cabeça para trás e disse, finalmente, abrindo os braços:
— Repelistes Ducretot, ó meus irmãos! E fizestes bem, mas não foi por irreligião, pois somos todos religiosos.
Alguns escutavam de boca aberta, com ar de catecúmenos, e atitudes extáticas.
— Não é também por ele ser padre, porque também nós somos padres! O operário é padre, como o era o fundador do socialismo, o Mestre de nós todos, Jesus Cristo!
Chegara o momento de inaugurar o reino de Deus! O Evangelho conduzia diretamente a 89! Após a abolição da escravatura, a abolição do proletariado. Tinha havido a idade do ódio, agora começava a idade do amor.
— O cristianismo é a chave da abóbada e o fundamento do novo edifício...
— Está brincando conosco! — exclamou o representante de vinhos. — De onde é que saiu este papa-hóstias?
Essa interrupção provocou grande escândalo. Quase todos se puseram de pé nos bancos, e vociferavam, de punho estendido: “Ateu! Aristocrata! Canalha!” enquanto a campainha do presidente tilintava sem parar e os gritos de “Ordem! Ordem!” redobravam. Mas, intrépido, e apoiado aliás por “três cafés” que tomara antes de vir, ele debatia-se no meio dos outros.
— O quê? Eu, aristocrata? Essa agora!
Conseguindo por fim explicar-se, declarou que nunca estaria tranquilo com os padres, e, já que se tinha falado há pouco em economias, fazia-se uma excelente suprimindo as igrejas, os santos cibórios e finalmente todos os cultos.
Alguém objetou-lhe que era ir muito longe.
— Sim, vou longe! Mas, quando um navio é surpreendido pela tempestade...
Sem esperar o fim da comparação, um outro respondeu-lhe:
— De acordo! Mas é demolir de uma vez, como um pedreiro sem discernimento...
— O senhor está insultando os pedreiros! — berrou um cidadão coberto de cal; e, obstinando-se a pensar que o tinham provocado, vomitou insultos, quis bater-se, e agarrava-se ao banco. Foram necessários três homens para expulsá-lo.
Entretanto, o operário permanecia na tribuna. Os dois secretários disseram-lhe para descer. Ele protestou contra a arbitrariedade de que era vítima.
— Não me impedireis de gritar: amor eterno à nossa querida França! Amor eterno também à República!
— Cidadãos! — disse então Compain. — Cidadãos!
E, à força de repetir “Cidadãos!”, tendo conseguido um pouco de silêncio, apoiou na tribuna as duas mãos vermelhas, que pareciam cotos, inclinou-se para a frente e, piscando os olhos:
— Acho que seria necessário dar maior extensão à cabeça de vitela.
Todos ficaram em silêncio, julgando ter ouvido mal.
— Sim, à cabeça de vitela!
Trezentas gargalhadas estalaram ao mesmo tempo. O teto tremeu. Diante de todas aquelas caras transtornadas pela alegria, Compain teve um movimento de recuo. Prosseguiu, com voz enfurecida:
— Como! Então não sabem o que é a cabeça de vitela?!
Foi um paroxismo, um delírio. Uns comprimiam as ilhargas. Outros chegavam a cair no chão, debaixo dos bancos. Compain, não aguentando mais, refugiou-se junto de Regimbart e quis arrastá-lo para fora.
— Não! Eu fico até o fim! — disse o Cidadão.
Essa resposta decidiu Frédéric; e, como olhava à sua volta procurando os amigos para o apoiarem, avistou, em frente, Pellerin na tribuna. O artista dirigia-se com arrogância à multidão.
— Ainda gostaria de saber onde é que está o candidato da Arte no meio de tudo isto? Eu fiz um quadro...
— Não temos necessidade de quadros! — disse com brutalidade um sujeito magro, com manchas vermelhas nas faces.
Pellerin reclamou por o estarem interrompendo.
Mas o outro, numa voz trágica:
— Não devia o Governo ter já abolido, por meio de um decreto, a prostituição e a miséria?
E, como essa frase lhe conquistou imediatamente a simpatia do povo, tonitruou contra a corrupção das grandes cidades.
— Vergonha e infâmia! Deviam agarrar-se os burgueses à saída do Maison d’Or e cuspir-lhes na cara! Se ao menos o Governo não favorecesse a devassidão! Mas os cobradores do imposto são de tal indecência com as nossas filhas e nossas irmãs...
Uma voz gritou de longe:
— É divertido!
— Fora!
— Arrancam-nos contribuições para pagar a libertinagem! Assim, os grandes ordenados dos atores...
— A mim! — exclamou Delmar.
Saltou para a tribuna, afastou toda a gente, tomou a sua atitude; e, declarando desprezar acusações tão estúpidas, pôs-se a dissertar sobre a missão civilizadora do comediante. Visto que o teatro era o fundamento da instrução nacional, votava a favor da reforma do teatro; e, em primeiro lugar, nada de direções, nada de privilégios!
— Sim, de maneira nenhuma!
A mímica do ator galvanizava a multidão, e cruzavam-se as moções subversivas.
— Abaixo as academias! Abaixo o Instituto!
— Abaixo as missões!
— Abaixo o bacharelato!
— Abaixo os graus universitários!
— Conservemo-los, — disse Sénécal — mas que sejam conferidos pelo sufrágio universal, pelo Povo, único juiz verdadeiro!
O mais útil, aliás, não era isso. Primeiro, havia que fazer curvar a cabeça dos ricos! E representou-os refocilando no crime debaixo dos tetos dourados, enquanto os pobres, torcendo-se de fome nos seus tugúrios, cultivavam todas as virtudes. Os aplausos tornaram-se tão fortes que ele se calou. Durante alguns minutos, permaneceu de olhos fechados, a cabeça deitada para trás e como que deixando-se embalar pela cólera que suscitara.
Depois recomeçou a falar, dogmaticamente, em frases imperiosas como leis. O Estado devia tomar conta dos Bancos e dos Seguros. As heranças deviam ser abolidas. Seria instituído um fundo social para os trabalhadores. Muitas outras medidas seriam boas no futuro. Essas, de momento, seriam suficientes; e, voltando às eleições:
— Precisamos de cidadãos puros, de homens inteiramente novos! Alguém se propõe?
Frédéric levantou-se. Houve um murmúrio de aprovação entre os amigos. Mas Sénécal, tomando uns ares à Fouquier-Tinville, pôs-se a interrogá-lo acerca de nome, sobrenome, antecedentes, vida e costumes.
Frédéric respondia-lhe sumariamente, mordendo os lábios. Sénécal perguntou se alguém via impedimento àquela candidatura.
— Não! Não!
Mas ele via. Todos se inclinaram e apuraram o ouvido. O cidadão postulante não dera certa quantia prometida para uma fundação democrática, um jornal. Além disso, no dia 22 de fevereiro, apesar de suficientemente avisado, faltara ao encontro marcado na Praça du Panthéon.
— Juro que ele estava nas Tulherias! — exclamou Dussardier.
— Pode jurar tê-lo visto no Panthéon?
Dussardier baixou a cabeça. Frédéric calava-se; os amigos, escandalizados, olhavam-no, inquietos.
— Pelo menos — prosseguiu Sénécal — conhece algum patriota que possa responder pelos seus princípios?
— Eu! — disse Dussardier.
— Oh! Isso não basta! Outro!
Frédéric voltou-se para Pellerin. O artista respondeu-lhe com uma abundância de gestos que significava:
“Ah! Meu caro, eles repeliram-me! Diabo! Que quer!”.
Então, Frédéric tocou no cotovelo de Regimbart.
— Sim! É verdade! Está na hora! eu vou!
E Regimbart saltou para o estrado; depois, mostrando o espanhol, que o tinha seguido:
— Cidadãos, permitam que lhes apresente um patriota de Barcelona!
O patriota fez uma grande vênia, esbugalhou, como um autômato, os olhos claros, e, pondo a mão sobre o coração:
— Ciudadanos! Mucho aprecio el honor que me dispensais, y si grande es vuestra bondad, mayor es vuestra atención10.
— Peço a palavra! — gritou Frédéric.
— Desde que se proclamo la constitucion de Cadiz, ese pacto fundamental de las libertades espanolas, hasta la ultima revolucion, nuestra patria cuenta numerosos y heroicos mártires.
Frédéric tentou mais uma vez fazer-se ouvir.
— Mas, cidadãos!...
O espanhol continuava:
— El martes proximo tendra lugar en la iglesia de la Magdelena un servido funebre.
— É absurdo, afinal! Ninguém está entendendo nada!
Esta observação exasperou a multidão.
— Fora! Fora!
— Quem, eu? — perguntou Frédéric.
— O senhor mesmo! — disse, majestosamente, Sénécal. — Saia!
Ergueu-se para sair; e a voz do ibérico prosseguia:
— Y todos los espanoles desearian ver alli reunidas las deputaciones de los clubes y de la milicia nacional. Una oracion funebre en honor de la libertad espanola y del mundo entero, sera prononciado por un miembro del clero de Paris en la sala Bonne-Nouvelle. Honor al pueblo frances, que llamaria yo el primero pueblo del mundo, sino fuese ciudadano de otra nacion!
— Aristocrata! — guinchou um garoto, mostrando o punho a Frédéric, que se precipitava para fora da sala, indignado.
Pensou que a sua dedicação fora em vão, sem reparar que as acusações de que fora objeto eram justas, afinal. Que triste ideia a de se candidatar! Mas que burros, que cretinos! Comparava-se àqueles homens, e a estupidez deles era um lenitivo para o seu orgulho ferido.
Em seguida, veio-lhe o desejo de ver Rosanette. Depois de tanta fealdade e ênfase, seria bem agradável a sua gentil companhia. Ela sabia que Frédéric iria apresentar-se nessa noite num clube. Contudo, quando ele entrou, não lhe fez a menor pergunta.
Estava junto da lareira, descosendo o forro de um vestido. Ele estranhou vê-la nesse trabalho.
— Que estás fazendo?
— O que tu vês — disse ela secamente. — Remendando os meus trapos! É a tua República.
— Por que a minha República?
— Será a minha, por acaso?
E começou a censurá-lo por tudo o que se passara na França, havia dois meses, acusando-o de ter feito a revolução, de ser causa de estar toda a gente arruinada, de os ricos abandonarem Paris, e que acabaria por morrer no hospital.
— Tu podes falar à vontade, com os teus rendimentos! Aliás, da maneira como as coisas vão, não os vais gozar por muito tempo, os teus rendimentos.
— É bem possível — disse Frédéric. — Os mais dedicados são sempre incompreendidos; e, se não fosse a nossa consciência, os brutos com quem a gente se mete acabariam por nos desgostar da abnegação!
Rosanette olhou para ele, franzindo as sobrancelhas.
— Hein? Como? Que abnegação? O cavalheiro foi malsucedido, ao que estou vendo? Tanto melhor! É para aprenderes a fazer donativos patrióticos. Oh! Escusas de mentir! Bem sei que lhes deste trezentos francos, porque essa tua República faz-se pagar! Pois então diverte-te com ela, meu filho!
Perante aquela avalancha de disparates, Frédéric passava do seu outro desapontamento a uma decepção mais dura.
Tinha ido para o fundo do quarto. Rosanette foi até junto dele.
— Vejamos! Pensa um pouco! Num país, como numa casa, tem que haver um chefe; de outro modo, cada um faz o que quer. Em primeiro lugar, toda a gente sabe que Ledru-Rollin está coberto de dívidas! Quanto a Lamartine, como queres tu que um poeta entenda de política? Ah! Podes abanar a cabeça à vontade e julgares-te mais esperto do que os outros, a verdade é essa! Mas queres sempre discutir; não se pode falar contigo! Aí tens, por exemplo, Fournier-Fontaine, dos armazéns de Saint-Roch: sabes de quanto ele precisa? De oitocentos mil francos! E Gomer, das mudanças, aí em frente, outro republicano, esse quebrava as tenazes na cabeça da mulher, e bebia tanto absinto que vão interná-lo numa casa de saúde. É assim que eles são, os tais republicanos! Uma República a vinte e cinco por cento! É, podes estar satisfeito!
Frédéric foi-se embora. A inépcia daquela rapariga, revelando-se de repente naquela linguagem plebeia, fazia-lhe nojo. Até voltou a sentir-se um pouco patriota.
O mau humor de Rosanette ia-se agravando. A Srta. Vatnaz irritava-a com o seu entusiasmo. Julgando ter uma missão a cumprir11, tinha a mania de perorar, de catequizar, e, mais segura do que a amiga nessas matérias, vencia-a com os seus argumentos.
Um dia, apareceu muito indignada com Hussonnet, que tivera o atrevimento de fazer uns gracejos de mau gosto, no clube das mulheres. Rosanette achou que ele tinha feito muito bem, e declarou até que se vestiria de homem para “lhes ir dizer umas verdades, a todas, e corrê-las a chicote”. Frédéric vinha entrando nesse momento.
— Irás comigo, não é assim?
E, apesar da presença dele, as duas altercaram, uma dando-se ares de burguesa, a outra, de filósofa.
Segundo Rosanette, as mulheres tinham nascido exclusivamente para o amor e para criar os filhos, para governar a casa.
De acordo com a Srta. Vatnaz, a mulher devia ter o seu lugar no Estado. Outrora, as gaulesas legislavam, as anglo-saxônias também, as esposas dos hurões faziam parte do Conselho. A obra civilizadora era comum. Era necessário que todas contribuíssem para ela, para substituir finalmente o egoísmo pela fraternidade, o individualismo pela associação, a fragmentação pela grande cultura.
— Essa é boa, agora és entendida em cultura?
— Por que não? Aliás, trata-se da humanidade, do seu futuro!
— Pensa mas é no teu.
— Isso é comigo!
Começaram a ficar zangadas. Frédéric interveio. A Vatnaz ia-se esquentando, e chegou a desejar a vinda do comunismo.
— Que tolice! — disse Rosanette. — Como se isso pudesse realizar-se!
A outra deu como prova os essênios, os irmãos morávios, os jesuítas do Paraguai, a família dos Pingons, próximo de Thiers, na Auvergne; e, com a gesticulação, a corrente do relógio prendeu-se-lhe no molho de berloques, a um carneirinho de ouro que dele pendia.
De repente, Rosanette ficou pálida.
A Srta. Vatnaz continuava procurando desvencilhar o carneirinho.
— Não te esforces tanto — disse Rosanette. — Agora já sei quais são as tuas opiniões políticas.
— Como? — retorquiu a Vatnaz, que se pôs vermelha como uma virgem.
— Oh! Oh! Tu bem me entendes!
Frédéric não entendia. Entre elas, era evidente, passara-se qualquer coisa mais importante e mais íntima do que o socialismo.
— E se fosse? — replicou a Vatnaz, empertigando-se com intrepidez. — É um empréstimo, minha cara, dívida por dívida!
— Claro, eu não nego as minhas! Por alguns milhares de francos, ora, adeus! Mas ao menos peço emprestado, não roubo ninguém!
A Srta. Vatnaz procurou rir.
— Oh! Poria a minha mão no fogo.
— Tem cuidado! Está tão sequinha que era capaz de arder.
A velha mostrou-lhe a mão direita, e conservando-a estendida, mesmo em frente dela:
— Mas há amigos teus que a acham a seu gosto!
— Algum andaluz, não? Para fazer castanholas!
— Ordinária!
A Marechala fez uma grande vênia.
— Não se pode ser mais gentil!
A Srta. Vatnaz não respondeu. Gotas de suor afloraram-lhe às têmporas. Tinha os olhos fitos no tapete. Estava ofegante. Por fim, dirigiu-se para a porta e, batendo-a com toda a força:
— Boa-noite! Hão de ter notícias minhas!
— Bom proveito! — disse Rosanette.
O esforço tinha-a esgotado. Deixou-se cair no divã, toda trêmula, balbuciando insultos, desfeita em lágrimas. Seria aquela ameaça da Vatnaz que a afligia? Mas não! Ela importava-se lá com isso! Quem sabe se a outra lhe devia dinheiro? Era o carneirinho de ouro, um presente; e, no meio das lágrimas, escapou-lhe o nome de Delmar. Então, ela amava o cabotino!
“Mas se assim é, por que me quis?” dizia Frédéric de si para si. “Por que voltou ele? Quem a obriga a estar comigo? Que significa tudo isso?”
Rosanette continuava a soluçar baixinho. Ficara na beira do divã, deitada de lado, a face direita sobre as duas mãos, — e parecia um ser tão delicado, inconsciente e magoado, que Frédéric aproximou-se dela e beijou-lhe a testa, docemente.
Então, ela fez-lhe promessas de amor; o príncipe acabava de partir, estariam livres. Mas, de momento, estava em dificuldades. “Tu mesmo viste, outro dia, quando eu aproveitava os meus velhos forros.” A carruagem fora-se! E não era tudo; o estofador ameaçava levar embora os móveis do quarto e do salão maior. Ela não sabia como fazer.
Frédéric teve vontade de responder: “Não te preocupes, eu pagarei!”. Mas a dama podia estar mentindo. Ele aprendera à própria custa. Limitou-se a vagas palavras de consolo.
Os temores de Rosanette não eram infundados; foi necessário devolver os móveis e abandonar o belo apartamento da Rua Drouot. Mudou-se para outro, num quarto andar do Bulevar Poissonnière. As bugigangas do antigo toucador bastaram para dar aos três aposentos um ar acolhedor. Foram colocados estores chineses, um dossel no terraço, no salão um tapete de ocasião, ainda por estrear, com almofadas de seda cor-de-rosa. Frédéric contribuíra generosamente para estas aquisições; sentia a alegria de um recém-casado que possui finalmente uma casa sua; uma mulher sua; e, sentindo-se bem ali, ia lá dormir quase todas as noites.
Certa manhã, ao sair do vestíbulo, viu no terceiro andar o quepe de um guarda nacional que vinha subindo. Aonde iria ele? Frédéric esperou. O homem continuava subindo, de cabeça meio inclinada: ergueu os olhos. Era o Senhor Arnoux. A situação era clara. Coraram ambos ao mesmo tempo, sentindo igual embaraço.
Arnoux foi o primeiro a encontrar uma saída.
— Ela está melhor, não é verdade? — como se Rosanette estivesse doente, e tivesse vindo saber notícias.
Frédéric pegou a deixa:
— Sim, sem dúvida! Pelo menos, foi o que me disse a criada — querendo dar a entender que não fora recebido.
Depois ficaram um diante do outro, ambos indecisos, observando-se, para ver qual dos dois ia ficar. Foi novamente Arnoux que decidiu a situação.
— Ora! Voltarei mais tarde! Aonde quer ir? Vou com você!
E, na rua, conversou com a naturalidade habitual. Provavelmente não era de caráter ciumento, ou então era bonacheirão demais para zangar-se.
Além disso, a pátria preocupava-o. Agora não tirava o uniforme. No dia 29 de março, defendera a redação de La Presse12. Quando a Câmara fora invadida, salientara-se pela coragem, e tomara parte no banquete oferecido à guarda nacional de Amiens.
Hussonnet, sempre de serviço com ele, explorava-lhe, mais do que ninguém, o cantil e os charutos; mas, irreverente por natureza, gostava de o contradizer, dizendo mal do estilo incorreto dos decretos, das conferências do Luxembourg13, das vésuviennes, dos tiroleses, de tudo, inclusive do carro da Agricultura, puxado por cavalos em vez de bois e escoltado por moças feias. Arnoux, pelo contrário, defendia o Poder e sonhava com a fusão dos partidos. Entretanto, os negócios iam-lhes de mal a pior. Não se afligia muito com isso.
As relações de Frédéric com a Marechala não o tinham amargurado, porque tal descoberta autorizou-o (na consciência) a suprimir a pensão que voltara a dar-lhe depois da partida do príncipe. Alegou as dificuldades do momento, gemeu muito, e Rosanette foi generosa. Então, o Senhor Arnoux passou a considerar-se o amante preferido, o que o elevou na sua própria estima e o fez rejuvenescer. Certo de que Frédéric pagava à Marechala, supunha “pregar-lhe uma boa partida”, chegou mesmo a esconder-se dele, e deixava-lhe o campo livre quando se encontravam.
Essa partilha era dolorosa para Frédéric; e as amabilidades do rival pareciam-lhe uma zombaria que se prolongava demais. Mas caso se zangasse, teria perdido todas as probabilidades de voltar à outra, e além disso era a única maneira de ouvir falar dela. O fabricante de louça, segundo o seu hábito, ou talvez por malícia, aludia frequentemente à mulher em conversa, e perguntava mesmo por que deixara Frédéric de os visitar.
Frédéric, tendo esgotado todos os pretextos, acabou por lhe dizer que procurara a Senhora Arnoux por diversas vezes, em vão. Arnoux ficou convencido, porque muitas vezes estranhara, diante dela, a ausência do amigo; e ela respondera-lhe sempre ter estado fora quando ele a procurara; de maneira que estas duas mentiras, em vez de se contradizer, confirmavam-se.
A delicadeza do jovem e a satisfação de o enganar faziam com que Arnoux gostasse cada vez mais dele. Levava a familiaridade até o extremo limite, não por desdém, mas por confiança. Um dia, escreveu-lhe dizendo que um negócio urgente o chamava à província por vinte e quatro horas; e pedia-lhe que fosse fazer a guarda em vez dele. Frédéric não teve coragem para recusar, e dirigiu-se ao posto do Carrousel.
Teve que suportar a companhia dos guardas nacionais e, à exceção de um operário destilador, sujeito divertido que bebia de maneira descomunal, todos lhe pareceram mais estúpidos do que a sua cartucheira. A conversa mais importante foi sobre a substituição do boldrié pelo cinturão. Outros indignavam-se com as oficinas nacionais14. Dizia-se: “Para onde vamos?” Aquele a quem a apóstrofe fora dirigida respondia, esbugalhando os olhos, como se estivesse à beira de um abismo: “Para onde vamos?”. Então, um mais ousado exclamava: “Isto não pode continuar assim! É preciso pôr-lhe termo!”. E como os mesmos discursos se repetiram até a noite, Frédéric aborreceu-se mortalmente.
Grande foi a surpresa do rapaz quando, às onze horas, viu aparecer Arnoux, o qual disse que vinha libertá-lo, pois tinha liquidado o seu negócio.
Não houvera negócio algum. Era uma invenção, para passar vinte e quatro horas sozinho com Rosanette. Mas Arnoux confiava demais nas próprias forças, a ponto de, com o cansaço, assaltarem-no os remorsos. Vinha agradecer a Frédéric e convidá-lo para cear.
— Mil vezes obrigado! Não tenho fome! Só quero a minha cama!
— Mais uma razão para almoçarmos juntos, daqui a pouco! Que molengão você me saiu! Não são horas de voltar para casa! É demasiado tarde! Seria perigoso!
Frédéric cedeu uma vez mais. Arnoux, que ninguém esperava, foi festejado pelos seus irmãos de armas, principalmente pelo destilador. Todos gostavam dele; e tinha tão bom coração, que lamentou a ausência de Hussonnet. Mas precisava de um minuto de sono, apenas.
— Instale-se junto de mim — disse ele a Frédéric, enquanto se estirava na cama de campanha, sem tirar o boldrié. Receando um alarma, e apesar do que mandava o regulamento, não largou a espingarda; depois, balbuciou algumas palavras: “Minha adorada! Meu anjinho!” e não tardou a adormecer.
Os que conversavam calaram-se; e a pouco e pouco fez-se no posto um grande silêncio. Frédéric, atormentado pelas pulgas, olhava em torno de si. A parede, pintada de amarelo, tinha a meia altura uma longa tábua sobre a qual as mochilas formavam uma sucessão de pequenas bossas, ao passo que, embaixo, as espingardas cor de chumbo estavam encostadas umas ao lado das outras; ouviam-se roncos produzidos pelos guardas nacionais, cujos ventres se distinguiam confusamente, no escuro. Sobre a estufa havia uma garrafa vazia e alguns pratos. Três cadeiras de palha rodeavam a mesa, em cima da qual havia cartas de baralho espalhadas. A correia de um tambor, pousado no meio do banco, pendia. O vento quente que vinha da porta fazia fumegar a candeia. Arnoux dormia com um braço para cada lado; e, como a espingarda estava com a coronha para baixo, um pouco de lado, o cano tocava-lhe na axila. Frédéric notou-o, e ficou assustado.
“Mas não! É uma tolice! Não há perigo nenhum! Contudo, se ele morresse...”
E logo um nunca acabar de imagens se lhe apresentou. Via-se com Ela, de noite, numa diligência; depois, à beira de um rio, numa noite de verão, à luz de um candeeiro, em casa, no seu lar. Detinha-se até em cálculos sobre o Governo da casa, sobre arranjos domésticos, contemplando, tocando já aquela felicidade; — e, para a realizar, bastaria que o gatilho da arma se levantasse! Ou podia ser empurrado com um dedo do pé; a espingarda disparava-se, seria um acidente, nada mais!
Frédéric demorou-se nessa ideia, como um dramaturgo tecendo um enredo. De repente, pareceu-lhe que ela não estava longe de se transformar em ato, e que ia contribuir para isso, que tal era o seu desejo; então sentiu enorme pavor. No meio dessa angústia, sentiu um prazer, que cada vez o dominava mais, verificando, com terror, que os escrúpulos se desvaneciam; no furor da sua imaginação, o resto do mundo apagava-se; e só tinha consciência de si próprio por uma intolerável opressão no peito.
— Vamos ao vinho branco? — disse o destilador, acordando.
Arnoux pôs-se de pé; e, tomado o vinho branco, quis fazer a guarda de Frédéric.
Depois levou-o a almoçar à Rua de Chartres, no Parly; e, como precisava refazer-se, pediu dois pratos de carne, uma lagosta, uma omelete com rum, uma salada etc., tudo regado por um Sauternes de 1819 e um Romanée de 1842, além do champanha à sobremesa, e dos licores.
Frédéric não o contrariou em nada. Sentia-se comprometido, como se o outro pudesse descobrir-lhe no rosto os vestígios dos pensamentos.
De cotovelos apoiados na mesa, todo debruçado sobre ela, Arnoux, fazendo pesar o olhar sobre Frédéric, confiava-lhe as suas fantasias.
Tinha vontade de arrendar todos os aterros da estrada de ferro do Norte, para semear batatas, ou então organizar um cortejo monstro nos bulevares, em que figurassem as “celebridades da época”. Alugaria todas as janelas, o que, a três francos cada, em média, daria um belo lucro. Em suma, sonhava com um grande golpe de sorte, graças a um açambarcamento. Todavia, cheio de moral, censurava os excessos, os desregramentos, falava do seu “pobre pai” e, segundo afirmava, fazia todas as noites um exame de consciência, antes de oferecer a alma a Deus.
— Um pouco de curaçau, hein?
— Se quiser.
Quanto à República, as coisas haviam de arranjar-se; enfim, julgava-se o homem mais feliz da terra; e, por distração, pôs-se a elogiar as qualidades de Rosanette, e comparou-a até a sua própria mulher. Era outra coisa! Não se podiam imaginar coxas mais bonitas.
— À sua saúde!
Frédéric bebeu. Por complacência, excedera-se um pouco na bebida; por outro lado, a luz do sol entontecia-o; e, quando subiram juntos a Rua Vivienne, as dragonas de ambos tocavam-se fraternalmente.
De volta a casa, Frédéric dormiu até as sete horas. Depois, foi ter com a Marechala. Mas ela tinha saído com uma pessoa. Seria com Arnoux? Não sabendo que fazer, continuou o seu passeio pelo bulevar, mas não pôde ir além da Porta Saint-Martin, tanta era a gente.
A miséria deixara entregues a si próprios numerosos operários; e acorriam ali, todas as tardes, talvez para se passar em revista, e esperar um sinal. Apesar da lei contra as concentrações populares15, estes “clubes do desespero” aumentavam de forma aterradora; e muitos burgueses frequentavam-nos quotidianamente, por bravata, por moda.
De repente, Frédéric viu a três passos de distância o Senhor Dambreuse, acompanhado por Martinon; olhou para outro lado, porque o Senhor Dambreuse conseguira ser nomeado representante, e guardava-lhe rancor por isso. Mas o capitalista deteve-o.
— Uma palavra, meu caro senhor! Devo-lhe uma explicação.
— Eu não a peço.
— Por favor! Escute-me.
Não fora de modo algum culpa sua. Tinham insistido, quase o constrangendo. Martinon corroborou imediatamente o que ele dizia: tinham ido à casa dele delegações de Nogent.
— Aliás, julguei-me livre, uma vez que...
Uma onda de povo, no passeio, forçou o Senhor Dambreuse a afastar-se. Um minuto depois reapareceu, dizendo a Martinon:
— É um grande serviço que me presta! Não terá que se arrepender...
Os três encostaram-se a um estabelecimento, para conversar mais à vontade.
Ouvia-se gritar, de quando em quando: “Viva Napoleão! Viva Barbès! Abaixo Marie!”16. A imensa multidão falava muito alto; e todas aquelas vozes, repercutidas pelas casas, produziam como que o ruído contínuo das vagas num porto. Em certos momentos, silenciavam; então erguia-se a Marselhesa. Sob os grandes portões, homens de ares misteriosos ofereciam bengalas de estoque. Por vezes, dois indivíduos, ao passar um pelo outro, piscavam o olho e afastavam-se rapidamente. Grupos de mirones ocupavam os passeios; uma multidão compacta agitava-se no meio da rua. Bandos inteiros de agentes de polícia saíam dos becos e tornavam imediatamente a desaparecer. Bandeirinhas vermelhas, aqui e ali, lembravam chamas; os cocheiros, do alto da boleia, gesticulavam, e em seguida davam meia volta. Era um movimento, um espetáculo dos mais divertidos.
— Como a Senhorita Cécile teria gostado de tudo isto — disse Martinon.
— Bem sabe que minha mulher não gosta que a sobrinha venha conosco — redarguiu sorrindo o Senhor Dambreuse.
Ninguém o teria reconhecido. Havia três meses que andava a gritar “Viva a República!”, e até votara a favor do desterro dos Orléans17. Mas as concessões tinham que acabar. Mostrava-se furioso, a ponto de trazer um cassetete no bolso.
Martinon também tinha um. A magistratura deixara de ser inamovível, e ele abandonara o Tribunal, de modo que ainda se mostrava mais violento do que o Senhor Dambreuse.
O banqueiro odiava particularmente Lamartine (por ter apoiado Ledru-Rollin), juntamente com Pierre Leroux, Proudhon, Considérant, Lamennais, todos os cérebros esquentados, todos os socialistas.
— Porque, afinal, que querem eles? Foi suprimido o imposto de barreiras sobre a carne, e a prisão por dívidas; agora, acha-se em estudo o projeto de um banco hipotecário; outro dia, era o de um banco nacional! E estão no orçamento cinco milhões para os operários! Mas felizmente isso acabou, graças ao Senhor de Falloux18! Boa viagem! Que se vão embora!
Com efeito, não sabendo como dar de comer aos cento e trinta mil homens das oficinas nacionais, o ministro das obras públicas assinara, naquele mesmo dia, um decreto que convidava todos os cidadãos entre dezoito e vinte anos a assentar praça, ou a partir para as províncias, para trabalhar no campo.
Esta alternativa indignou-os, persuadidos de que se queria destruir a República. A vida longe da capital parecia-lhes um exílio; imaginavam-se morrendo de febres, em regiões inóspitas. Aliás, para muitos deles, habituados a trabalhos delicados, a agricultura surgia como um envilecimento; em suma, era um logro, uma irrisão, a quebra formal de todas as promessas. Se resistissem, seria empregada a força; suspeitavam-no, e dispunham-se a evitá-lo.
Cerca das nove horas, os ajuntamentos formados na Bastilha e no Châtelet refluíram para o bulevar. Da Porta Saint-Denis à Porta Saint-Martin, era um enorme burburinho, uma massa única de um azul carregado, quase negro. Os homens que ali se viam tinham todos o olhar febril, a tez pálida, os rostos emagrecidos pela fome, exaltados pela injustiça. Entretanto, as nuvens acastelavam-se; sob o céu de tempestade, que aquecia a eletricidade da multidão, esta redemoinhava, indecisa, com um largo balançar de vaga; e sentia-se, nas suas profundidades, uma força incalculável e como que a energia dos elementos. Depois, todos se puseram a cantar: “Lampiões! Lampiões!”19. Algumas janelas não se iluminaram; foram lançadas pedras contra as suas vidraças. O Senhor Dambreuse achou prudente ir-se embora. Os dois jovens acompanharam-no à casa.
O capitalista previa grandes desgraças. O povo podia invadir, uma vez mais, a Câmara; e, a propósito disto, contou como teria sido morto, a 15 de maio, se não fosse a dedicação de um guarda nacional.
— Mas esquecia-me! É o seu amigo, o fabricante de louça, Jacques Arnoux! — Sentia-se asfixiar no meio dos arruaceiros, e aquele excelente cidadão agarrara nele e afastara-o dali.
Estabeleceram-se, assim, entre ambos, desde então, relações cordiais.
— Precisamos jantar juntos um dia destes, e, como o encontra com frequência, diga-lhe que gosto muito dele. É um excelente sujeito, a meu ver caluniado; e tem espírito, aquele diabo! Mais uma vez, os meus respeitos! Muito boa-noite!...
Frédéric, depois de ter deixado o Senhor Dambreuse, voltou para junto da Marechala; e disse-lhe, com ar sombrio, que tinha de escolher entre ele e Arnoux. Ela respondeu com doçura que não entendia nada de “tais intrigas”, e não gostava de Arnoux, nada a prendia a ele. Frédéric estava doido para se ver longe de Paris. Ela não se opôs a essa fantasia, e partiram para Fontainebleau20, logo no dia seguinte.
O hotel onde se instalaram distinguia-se dos outros por um repuxo que cantava ao centro do pátio. As portas dos quartos davam para um corredor, como nos conventos. O que lhes foi destinado era grande, tinha bons móveis, forrados de chita, e era silencioso, dada a escassez de hóspedes. Viam-se passar, rentes às casas, burgueses desocupados; depois, debaixo das janelas, ao entardecer, crianças da rua jogavam uma partida de barra; — e esta tranquilidade, depois do tumulto de Paris, surpreendia-os e apaziguava-os.
De manhã cedo foram visitar o castelo. Ao passar o portão, avistaram a fachada inteira, com os cinco pavilhões de telhados aguçados e a escadaria em forma de ferradura erguendo-se ao fundo do terreiro, ladeado por duas alas mais baixas. De longe, a cor dos líquenes, entre as pedras do chão, fundia-se no tom fulvo dos tijolos; e o conjunto do palácio, cor de ferrugem, como uma armadura antiga, tinha qualquer coisa de regiamente impassível, de grandeza militar e triste.
Por fim, um criado apareceu, com um molho de chaves. Mostrou-lhes primeiro os aposentos das rainhas, o oratório do Papa, a galeria de Francisco I, a mesinha de mogno em que o Imperador assinara a abdicação, e, numa das salas em que fora dividida a antiga galeria dos cervos, o lugar onde Cristina mandara assassinar Monaldeschi. Rosanette escutou essa história com a maior atenção; depois, voltando-se para Frédéric:
— Foi por ciúme, com certeza? Toma cuidado contigo!
Depois atravessaram a sala do Conselho, a sala dos Guardas, a sala do Trono, o salão de Luís XIII. Das altas janelas, sem cortinados, vinha uma luz branca; sobre os fechos e os pés de cobre dos consolos havia uma leve camada de pó; por toda parte, as poltronas estavam cobertas de capas de linho grosso; acima das portas viam-se caçadas de Luís XV, e, aqui e além, tapeçarias que representavam os deuses do Olimpo, Psiquê, ou as batalhas de Alexandre.
Quando passava diante dos espelhos, Rosanette parava um instante para alisar os bandós.
Depois do pátio da torre e da capela Saint-Saturnin, chegaram à sala das festas.
Ficaram maravilhados com o esplendor do teto, dividido em caixilhos octogonais, todo salpicado de ouro e prata, mais cinzelado do que uma joia, e com a abundância de pinturas pelas paredes, desde a gigantesca lareira em que as armas da França estão rodeadas por crescentes e aljavas, até a tribuna para os músicos, na outra extremidade, ocupando toda a largura da sala. As dez janelas em arcadas estavam abertas de par em par; o sol fazia brilhar as pinturas, e o céu azul prolongava até o infinito o ultramar dos arcos; e, do fundo da mata, cujas copas vaporosas enchiam o horizonte, parecia vir um eco dos halalis das trompas de marfim e dos bailados mitológicos, juntando sob a folhagem princesas e fidalgos, disfarçados de ninfas e silvanos, — época de ciência ingênua, de paixões violentas e de arte suntuosa, quando o ideal era arrebatar o mundo num sonho das Hespérides, e as amantes dos reis se confundiam com os astros. A mais bela dessas mulheres famosas fizera-se pintar, à direita, sob, a figura de Diana Caçadora, e até de Diana Infernal, sem dúvida para mostrar o seu poder, mesmo além do túmulo. Todos estes símbolos confirmavam-lhe a glória; e alguma coisa dela ficou ali, uma voz indistinta, uma irradiação que se perpetuava.
Frédéric sentiu uma concupiscência retrospectiva e inexprimível. Para desviar o seu desejo, fitou enternecidamente Rosanette, perguntando-lhe se não gostaria de ter sido aquela mulher.
— Qual mulher?
— Diana de Poitiers!
Repetiu:
— Diana de Poitiers, a amante de Henrique II.
Ela soltou um breve “Ah!”, nada mais.
Esse mutismo provava que não sabia, não compreendia nada, de modo que ele disse-lhe, para ser agradável:
— Estás te aborrecendo?
— Não, não, pelo contrário!
E, de queixo no ar, passeando em torno um olhar dos mais vagos, Rosanette soltou esta frase:
— Como isto traz recordações!
Contudo, percebia-se na sua expressão um esforço, uma intenção de respeito; e, como este ar de gravidade a fazia mais bonita, Frédéric desculpou-a.
O lago das carpas divertiu-a mais. Durante um quarto de hora, esteve a lançar pedacinhos de pão à água, para ver saltarem os peixes.
Frédéric sentara-se ao lado dela, debaixo das tílias. Pensava em todos os personagens que tinham vivido entre aquelas paredes, Carlos V, os Valois, Henrique IV, Pedro, o Grande, Jean-Jacques Rousseau e “as belas lacrimosas dos camarotes de primeira ordem”21, Voltaire, Napoleão, Pio VII, Luís Filipe; e sentia-se rodeado, arrastado por aquele tumulto de mortos; era uma confusão de imagens que o atordoava, não obstante achar-lhe certo encanto.
Finalmente desceram ao jardim.
Era um vasto retângulo, revelando a um só olhar as largas aleias ensaibradas, os quadrados de relva, as ruas de buxo, os cedros em pirâmide, as plantas verdes, baixas, e os canteiros estreitos, com flores esparsas pontilhando a terra cinzenta. No fim do jardim começa o parque, atravessado em toda a sua extensão por um longo canal.
As residências reais possuem uma melancolia particular, que provém certamente das dimensões excessivas, demasiado consideráveis para o número reduzido dos seus habitantes; do silêncio em que nos surpreende vê-las mergulhadas, depois de tantas fanfarras, do luxo imóvel, que demonstra, pela sua velhice, a fugacidade das dinastias, a eterna miséria de tudo; — e essa exalação dos séculos, entorpecente e fúnebre como um perfume de múmia, não poupa sequer as cabeças ingênuas. Rosanette abria desmedidamente a boca. Voltaram para o hotel.
Depois do almoço, levaram-lhes uma carruagem descoberta. Saíram de Fontainebleau por uma larga rotunda, depois subiram a trote uma estrada arenosa por entre um bosque de pinheiros novos. As árvores tornaram-se maiores; e o cocheiro, de vez em quando, dizia: “Ali são os Frères-Siamois, o Pharamond, o Bouquet-du-Roi... “, não esquecendo nenhum dos pontos famosos, por vezes até parando para que admirassem melhor.
Entraram na mata de Franchard22. A carruagem deslizava sobre a grama como um trenó; pombos invisíveis arrulhavam; de repente, surgiu um garção de café; e desceram diante da vedação de um jardim em que havia mesas redondas. Depois, deixando à esquerda as paredes de uma abadia em ruínas, caminharam sobre grandes rochas, e não tardaram a atingir o fundo da garganta.
Cobre-a, de um lado, um emaranhado de grés e zimbros, ao passo que, do outro, o terreno quase despido se inclina para a concavidade do vale, onde uma vereda marca uma linha pálida sobre o colorido da urze; e, muito ao longe, distingue-se um cume em forma de cone achatado, com a torre de um telégrafo atrás.
Meia hora depois puseram novamente pé em terra para subir às alturas de Aspremont.
O caminho faz ziguezagues por entre pinheiros atarracados, à sombra de rochas de perfis angulosos; em todo esse recanto da floresta há algo de abafado, de selvagem e recolhido. Pensa-se nos ermitões, companheiros dos grandes cervos que têm uma cruz de fogo entre os galhos23, recebendo com sorrisos paternais os bons reis da França, ajoelhados diante da sua gruta. Um perfume de resina enchia o ar quente, à flor da terra entrelaçavam-se raízes, semelhando veias. Rosanette tropeçava nelas, enfurecia-se, tinha vontade de chorar.
Mas, lá mesmo no cimo, recuperou a alegria, ao encontrar, sob um telhado de ramos, uma espécie de taberna, onde se vendem objetos esculpidos em madeira; bebeu uma garrafa de limonada, comprou um cajado de azevinho; e, sem dar um olhar sequer à paisagem que se avista do planalto, entrou na Caverne-des-Brigands, precedida por um garoto de tocha em punho.
A carruagem esperava-os no Bas-Bréau.
Um pintor de blusão azul trabalhava junto de um carvalho, com a caixa das tintas sobre os joelhos. Ergueu a cabeça para vê-los passar.
No meio da encosta de Chailly, uma nuvem, desfazendo-se de repente, obrigou-os a levantar a capota. A chuva cessou quase imediatamente; e o pavimento das ruas brilhava ao sol quando regressaram à cidade.
Viajantes recém-chegados informaram-nos de que uma tremenda batalha estava ensanguentando Paris. Rosanette e o amante não se surpreenderam com isso. Depois todos se foram, o hotel recuperou o sossego, apagou-se o gás, e eles adormeceram ao murmúrio do repuxo do pátio.
No dia seguinte foram visitar a Gorge-au-Loup, a Mare-aux-Fées, o Long-Rocher, a Marlotte; no outro dia, recomeçaram ao acaso, segundo a vontade do cocheiro, sem perguntar onde se achavam, e até muitas vezes desdenhando os sítios famosos.
Achavam-se tão bem no seu velho landau, baixo como um sofá e forrado com um pano de riscas desbotadas! Os fossos cheios de silvas deslizavam diante dos seus olhos, num movimento suave e contínuo. Raios luminosos atravessavam como flechas os fetos arbóreos; por vezes, um caminho fora de uso surgia-lhes aos olhos, em linha reta; ervas cresciam aqui e ali, ao acaso. No centro das encruzilhadas, uma cruz abria os seus quatro braços; noutros lugares, viam-se postes inclinados, como árvores secas, e caminhos sinuosos, perdendo-se entre a folhagem, davam vontade de os seguir; no mesmo instante, o cavalo enveredava por eles, a carruagem enterrava-se na lama; mais adiante, havia musgo rente aos sulcos profundos.
Julgavam-se longe dos outros, bem sós. Mas de repente surgia um guarda florestal com a sua espingarda, ou um bando de mulheres esfarrapadas, carregando às costas grandes feixes de lenha.
Quando a carruagem parava, fazia-se um silêncio absoluto; ouvia-se apenas o resfolegar do cavalo entre os varais e o piar repetido e muito débil de algum pássaro.
Em certos lugares, a luz, incidindo sobre a orla de um bosque, deixava o fundo imerso em sombra; ou então, atenuada nos primeiros planos por uma espécie de crepúsculo, estendia na distância uma névoa violácea, uma claridade esbranquiçada. Ao meio-dia, o sol, caindo a prumo sobre as vastas extensões verdes, chapinhava-as, pendurava gotas argênteas na extremidade dos ramos, cortava os gramados de rastros esmeralda, punha manchas douradas nas camadas de folhas mortas; e, deitando a cabeça para trás, via-se o céu, por entre as copas das árvores. Algumas, de altura desmedida, pareciam patriarcas e imperadores, ou, com os altos ramos tocando-se, dir-se-iam arcos de triunfo; outras, tendo crescido obliquamente, lembravam colunas prestes a desabar.
A multidão de linhas verticais entreabria-se; então, imensas ondas verdes desenrolavam-se em saliências desiguais até a superfície dos vales para onde avançavam os dorsos de outras colinas, dominando planícies douradas, que acabavam por perder-se numa vaga palidez.
De pé, lado a lado, no alto de uma elevação de terreno, aspirando o vento, entrava-lhes na alma como que o orgulho de uma vida mais livre, numa exuberância de forças e numa alegria sem causa.
A diversidade das árvores era um espetáculo sempre mutável. As faias, de casca branca e lisa, confundiam as copas; freixos deixavam pender com moleza a ramaria glauca; por entre os rebentos dos bordos, os azevinhos, agressivos, pareciam de bronze; vinha depois um renque de vidoeiros delgados, inclinados em atitude elegíaca; e os pinheiros, simétricos como tubos de órgão, balançando constantemente, pareciam cantar. Viam-se carvalhos rugosos, enormes, que se contorciam, se estreitavam uns contra os outros, e, firmes nos seus troncos que lembravam torsos, trocavam, com os braços despidos, apelos desesperados, ameaças furibundas, como um grupo de Titãs imobilizados na sua cólera. Algo mais pesado, um langor de febre, planava sobre os pântanos, que estendiam a toalha das suas águas entre sarças cheias de espinhos; os líquenes da margem, onde os lobos vêm beber, são cor de enxofre, parecem queimados pelas bruxas, e o coaxar ininterrupto das rãs responde ao grito das gralhas que esvoaçam em volta. Depois, atravessavam clareiras monótonas, com árvores jovens, espaçadas. Um ruído de ferro, golpes vivos e repetidos faziam-se ouvir: era um grupo de pedreiros no flanco de uma colina, atacando as rochas, cujo número aumentava sempre, acabando por encher toda a paisagem, cúbicas como casas, lisas como lajes, sobrepostas, amontoadas, parecendo as ruínas irreconhecíveis e monstruosas de alguma cidade desaparecida. Mas a própria fúria desse caos fazia pensar antes em vulcões, em dilúvios, em grandes cataclismos ignorados. Frédéric dizia que elas se achavam ali desde o começo do mundo, e ficariam assim até o fim; Rosanette desviava os olhos, dizendo que “aquilo acabaria por enlouquecê-la”, e ia colher urzes. As suas florzinhas cor de violeta, muito juntas, formavam placas desiguais, e a terra que se esboroava debaixo delas deixava franjas escuras ao lado das areias palhetadas de mica.
Chegaram um dia a meia encosta de uma colina que era só areia. A superfície, virgem de passos, era marcada por ondulações simétricas; aqui e ali, como promontórios no leito seco de um oceano, erguiam-se rochas que tinham vagas formas de animais, tartarugas estendendo a cabeça, focas rastejando, hipopótamos e ursos. Ninguém. Nenhum rumor. As areias, faiscando ao sol, ofuscavam a vista; — e de repente, nessas vibrações da luz, os animais pareciam mexer. Saíram rapidamente dali, fugindo à vertigem, quase assustados.
A solenidade da floresta contagiava-os; e havia horas de silêncio em que, abandonando-se ao embalo das molas, ficavam como que entorpecidos numa embriaguez tranquila. Enlaçando-a, Frédéric escutava-a falar enquanto os pássaros chilreavam, e ao mesmo tempo ia observando as uvas pretas do chapéu dela e as bagas dos zimbros, as pregas que fazia o véu e as volutas das nuvens; e, quando se inclinava para ela, a frescura da sua pele confundia-se com o intenso perfume do bosque. Tudo os divertia: mostravam um ao outro, como uma curiosidade, os fios da Virgem suspensos das moitas, poças formadas no meio das pedras, um esquilo empoleirado num galho, o esvoaçar de duas borboletas que os seguiam; ou então, a vinte passos deles, uma corça que caminhava tranquilamente, com ar nobre e meigo, tendo a cria ao lado. Rosanette sentia vontade de correr atrás dela, para beijá-la.
Assustou-se muito, quando um homem, surgindo repentinamente, mostrou-lhe três víboras numa caixa. Ela agarrou-se precipitadamente a Frédéric; — e ele ficou feliz por ela ser fraca, e por se sentir suficientemente forte para defendê-la.
Nessa noite, jantaram numa estalagem, à beira do Sena. A mesa ficava junto da janela; Rosanette estava na sua frente, e Frédéric contemplava o narizinho fino e branco, os lábios bem desenhados, os olhos claros, os bandós castanhos tufados, o lindo rosto oval. O vestido de seda crua colava-se-lhe aos ombros um pouco descaídos; e, saindo dos punhos apertados, as suas mãos cortavam, enchiam os copos, moviam-se sobre a toalha. Serviram-lhes um frango com os quatro membros estendidos, uma caldeirada de enguias numa terrina de barro, um vinho rascante, pão demasiado duro, e as facas estavam desgastadas. Tudo aquilo lhes aumentava o prazer e a ilusão. Julgavam-se quase a meio de uma viagem, na Itália, em lua de mel.
Antes de regressar, foram passear ao longo da margem.
O céu, de um azul suave, arredondado como uma cúpula, apoiava-se no horizonte sobre o recorte dos bosques. Em frente, na extremidade do prado, via-se um campanário de aldeia; e, mais longe, à esquerda, o teto de uma casa manchava de vermelho o rio, que parecia imóvel em toda a extensão da sua sinuosidade. Contudo, juncos balouçavam, e a água fazia oscilarem levemente as estacas espetadas na margem, para segurar as rede; viam-se um covo de vime, duas ou três velhas chalupas. Perto da estalagem, uma rapariga de chapéu de palha tirava água de um poço; — e todas as vezes que o balde subia, Frédéric escutava com prazer inexprimível o ranger da corrente.
Ele não duvidava de que seria feliz até o fim dos seus dias, tão natural lhe parecia a felicidade que sentia, inerente à sua vida e à pessoa daquela mulher. Um impulso levava-o a dizer-lhe coisas ternas. Ela respondia com palavras gentis, pancadinhas no ombro, agrados cuja surpresa o encantava. Frédéric descobria-lhe agora uma nova beleza, que não era porventura senão o reflexo das coisas em volta, a menos que fosse o desabrochar de virtualidades secretas.
Quando descansavam no meio do campo, Frédéric estendia-se com a cabeça nos joelhos dela, ao abrigo da sombrinha; — ou então, deitados de barriga para baixo, entre a erva, ficavam um em frente do outro, contemplando-se, olhos nos olhos, com sede um do outro, até se fartarem, e ficavam depois de pálpebras semicerradas, sem falar.
Outras vezes, ouviam ao longe o rufar de tambores. Era o toque de reunir, nas aldeias, para a defesa de Paris.
— Olha, a insurreição! — dizia Frédéric com piedoso desdém, tanto aquela agitação lhe parecia mesquinha, comparada ao seu amor e à natureza eterna.
E conversavam fosse sobre o que fosse, de coisas que sabiam perfeitamente, de pessoas que não os interessavam, de mil insignificâncias. Rosanette falava-lhe da criada de quarto e do cabeleireiro. Um dia, por distração, disse-lhe a idade: vinte e nove anos; estava ficando velha.
Por diversas vezes, sem querer, deu pormenores a respeito de si própria. Tinha sido caixeira numa loja, fizera uma viagem à Inglaterra, começara a estudar para atriz; tudo isso sem transição e ele não conseguia abarcar o conjunto. Ela contou mais coisas, certo dia que estavam sentados sob um plátano, na orla de um prado. Embaixo, à beira da estrada, uma pequenita, de pés descalços na poeira, trazia uma vaca a pastar. Mal os viu, veio pedir-lhes esmola, e, segurando com uma das mãos a saia esfarrapada, coçava, debaixo do cabelo negro que parecia uma peruca à Luís XIV, a cabeça que uns olhos esplêndidos iluminavam.
— Vai ser bem bonita mais tarde — disse Frédéric.
— Que sorte para ela, se não tiver mãe! — retorquiu Rosanette.
— Hein? Como dizes?
— Sim, eu, se não fosse a minha...
Deu um suspiro, e começou a falar da infância.24 Os pais eram tecelões na Croix-Rousse. Ela ajudava o pai como aprendiz. O pobre homem fartava-se de trabalhar, a mulher passava-lhe descomposturas e vendia tudo para ir beber. Rosanette lembrava-se do quarto, com os teares em linha junto das janelas, o caldeirão sobre o fogareiro, a cama pintada a imitar mogno, em frente um armário, e o sótão escuro onde dormira até os quinze anos. Por fim aparecera um sujeito, rosto gordo, cor de buxo, de maneiras untuosas, vestido de preto. Minha mãe e ele estiveram conversando, e o resultado foi que, três dias depois... — Rosanette calou-se, e com um olhar cheio de impudor e de amargura:
— Lá fui!
Depois, respondendo ao gesto de Frédéric:
— Como era casado (receava comprometer-se em casa dele), levaram-me para o gabinete de um restaurante, dizendo-me que eu ia ser feliz, que ia ganhar um belo presente.
“Logo que entrei, a primeira coisa que me saltou à vista foi um candelabro de prata dourada, numa mesa posta para duas pessoas. Um espelho, no teto, refletia-a, e o forro de seda azul das paredes fazia lembrar uma alcova. Surpreendi-me. Tu compreendes, um pobre ser que nunca tinha visto nada! Apesar do meu deslumbramento, tinha medo. Queria ir-me embora. Mas fiquei.
“O único assento que havia era um divã, ao lado da mesa, que cedeu suavemente sob o meu peso; a boca do calorífero, sobre o tapete, lançava-me uma baforada de calor, e fiquei ali, sem comer nada. O garção, que estava de pé, insistiu para eu comer. Encheu-me logo um grande copo de vinho; senti a cabeça andar à roda, quis abrir a janela, mas ele disse-me: ‘Não, menina, é proibido’. E saiu logo. A mesa estava coberta por uma porção de coisas que eu não conhecia. Nada daquilo me parecia bom. Contentei-me com um prato de doces, e continuei esperando. Não sei o que o impedia de vir. Era muito tarde, meia-noite, pelo menos, eu não podia mais de cansaço; afastando uma das almofadas, para me estender melhor, encontrei uma espécie de álbum, um caderno; eram gravuras obscenas... Estava dormindo em cima, quando ele chegou.”
Rosanette baixou a cabeça, e ficou pensativa.
À volta deles as folhas sussurravam, no meio de um tufo de ervas balouçava uma dedaleira, a luz corria sobre a grama como onda; e o silêncio era interrompido a breves intervalos por uma vaca, que dali era invisível, e que pastava.
Rosanette olhava um ponto no chão, a três passos dela, fixamente, as narinas palpitantes, absorta. Frédéric pegou-lhe na mão.
— Como tu sofreste, minha pobre querida!
— Sim — disse ela — mais do que calculas!... A ponto de querer dar cabo de mim; tiraram-me da água.
— Como?
— Ah! Não pensemos mais nisso!... Amo-te, sou feliz! Beija-me. — E tirou, um por um, os espinhos dos cardos agarrados à barra do vestido.
Frédéric pensava sobretudo no que ela não tinha contado. Que degraus teria ela subido para sair da miséria? A qual dos amantes devia a educação? Que lhe sucedera na vida até o dia em que tinha ido pela primeira vez à casa dela? A sua última confissão proibia qualquer pergunta. Quis saber, apenas, como travara conhecimento com Arnoux.
— Por intermédio da Vatnaz.
— Não eras tu que estavas certa vez com os dois, no Palais-Royal?
Citou a data exata. Rosanette fez um esforço.
— Sim, é verdade!... Eu não estava nada alegre, nesse tempo!
Mas Arnoux fora excelente. Frédéric não o duvidava; contudo, o seu amigo era um homem cheio de defeitos; teve o cuidado de os recordar; ela deu-lhe razão.
— Seja como for!... Mesmo assim, a gente gosta desse diabo!
— Mesmo agora? — disse Frédéric.
Ela corou, meio sorridente, meio agastada.
— Ah! Não! É história antiga. Não te escondo nada. E mesmo que fosse, era diferente! Aliás, não és gentil com a tua vítima.
— A minha vítima?
Rosanette pegou-lhe no queixo.
— Certamente!
E ceceando, como se fala às crianças:
— Nem sempre fomos bem comportados! Dormimos com a mulher dele!
— Eu? Mas de maneira nenhuma!
Rosanette sorriu. Frédéric sentiu-se ferido com o sorriso, prova de indiferença, julgou. Mas ela prosseguiu, com um daqueles olhares que imploram a mentira:
— De verdade?
— Mas sem dúvida!
Frédéric garantiu sob palavra de honra que nunca pensara na Senhora Arnoux, porque estava demasiado apaixonado por outra.
— Por quem?
— Mas por você, minha beleza!
— Ah, não faças pouco de mim! Irritas-me!
Achou prudente inventar uma história, uma paixão. Deu até pormenores circunstanciados. Aliás, essa pessoa tinha-o feito muito infeliz.
— Decididamente, não tens sorte! — disse Rosanette.
— Oh! Oh! Talvez — querendo dar a entender que fizera muitas conquistas, para dar melhor ideia de si, da mesma forma que Rosanette não confessava todos os seus amantes, para ele lhe ter mais estima; — porque, no meio das mais íntimas confidências, há sempre restrições, por falsa vergonha, delicadeza, piedade. Descobrem-se no outro ou em nós próprios precipícios e lodos que impedem de prosseguir; sente-se, aliás, que não se conseguiria ser compreendido; é difícil exprimir com exatidão seja o que for; por isso são raras as uniões completas.
A pobre Marechala nunca tivera outra melhor. Muitas vezes, quando contemplava Frédéric, vinham-lhe lágrimas aos olhos, depois erguia-os, ou fixava-os no horizonte, como se contemplasse alguma grande aurora, perspectivas de felicidades sem limites. Finalmente, um dia, confessou que desejava mandar dizer uma missa, “para dar sorte ao nosso amor”.
Por que tinha resistido a Frédéric durante tanto tempo? Nem ela sabia. Ele repetiu por diversas vezes a pergunta; e ela respondia, apertando-o nos braços:
— É que tinha medo de te querer demais, meu querido!
No domingo pela manhã, Frédéric leu num jornal, numa lista de feridos, o nome de Dussardier. Deu um grito, e mostrando a folha a Rosanette declarou que ia partir imediatamente.
— Para fazer o quê?
— Mas para vê-lo, para cuidar dele!
— Tu não me vais deixar sozinha, espero?
— Vem comigo.
— Ah, queres que me vá meter naquele rebuliço! Muito obrigada!
— Contudo, eu não posso...
— Ora, ora! Como se não houvesse enfermeiras de sobra nos hospitais! E depois, para que foi ele meter-se, também? Que cada um cuide de si!
Frédéric ficou indignado com o egoísmo dela; e censurou-se por não estar lá com os outros. Tamanha indiferença às desgraças da pátria tinha algo de mesquinho e burguês. O seu amor pesou-lhe de repente, como um crime. Estiveram amuados durante uma hora.
Depois ela suplicou-lhe que esperasse, que não se expusesse.
— E se te matam!
— Ora! Apenas terei cumprido o meu dever!
Rosanette deu um salto. Em primeiro lugar, o dever dele era amá-la. É que decerto já não a queria! Era uma coisa sem pés nem cabeça! Que ideia, santo Deus!
Frédéric tocou a campainha para pedir a conta. Mas não era fácil regressar a Paris25. A carruagem dos Transportes Leloir acabava de partir, as berlindas Lecomte não seguiriam, a diligência de Bourbonnais só passaria altas horas da noite, e talvez viesse cheia; não se sabia nada. Depois de ter perdido muito tempo nestas informações, teve a ideia de ir pela mala-posta. Mas o encarregado desta recusou-se a dar os cavalos, por Frédéric não ter passaporte. Finalmente, alugou uma caleche (a mesma em que tinham passeado) e chegaram diante do Hotel do Comércio, em Melun, pelas cinco horas.
A Praça do Mercado estava cheia de armas ensarilhadas. O prefeito proibira aos guardas nacionais saírem para Paris. Os que não eram daquele departamento queriam prosseguir. Gritava-se. Na estalagem havia grande tumulto.
Rosanette, assustada, declarou que não iria mais longe, e suplicou-lhe mais uma vez que ficasse. O estalajadeiro e a mulher fizeram coro. Um sujeito que estava jantando meteu-se na conversa, afirmando que a batalha não tardaria a terminar; aliás, cada um devia cumprir o seu dever. Então os soluços da Marechala redobraram. Frédéric estava exasperado. Entregou-lhe a bolsa, beijou-a rapidamente e desapareceu.
Chegado a Corbeil, disseram-lhe na estação que os insurretos tinham cortado os trilhos em diversos pontos, e o cocheiro recusou-se a conduzi-lo mais longe; os cavalos, dizia ele, estavam “rendidos”.
Contudo, graças à proteção dele, Frédéric conseguiu um cabriolé ruim que, pela quantia de sessenta francos, não contando a gorjeta, consentiu em conduzi-lo até a Porta d'ltalie. Mas, cem passos antes de lá chegar, o condutor fê-lo descer e foi-se embora. Frédéric seguia pela estrada quando, de repente, uma sentinela lhe apontou a baioneta. Quatro homens deitaram-lhe a mão, gritando:
— É um deles! Cuidado! Revistem-no! Bandido! Canalha!
E tão grande foi a sua estupefação que se deixou arrastar até o posto da barreira, na encruzilhada para onde convergiam o Bulevar des Gobelins e de l'Hôpital e as Ruas Godofroy e Mouffetard.
Quatro barricadas formavam, no fim das quatro ruas, enormes taludes de pedras; aqui e ali ardiam archotes; apesar da poeira que andava no ar, distinguiu soldados de infantaria e guardas nacionais, todos de rosto enegrecido, a roupa em desordem, esgazeados. Acabavam de apoderar-se da posição, e tinham fuzilado diversos homens; a cólera ainda não se lhes extinguira. Frédéric disse que vinha de Fontainebleau, em socorro de um camarada ferido que morava na Rua Bellefond; a princípio ninguém lhe deu crédito; examinaram-lhe as mãos, até lhe farejaram as orelhas, para se certificarem de que não cheirava a pólvora.
Contudo, de tanto repetir a mesma coisa, acabou por convencer um capitão, que deu ordem a dois fuzileiros para o conduzirem ao posto do Jardim das Plantas.
Desceram o Bulevar de l'Hôpital. Soprava uma brisa forte, que o reanimou.
Dobraram em seguida para a Rua du Marché-aux-Chevaux. À direita, o Jardim das Plantas era uma grande massa negra, enquanto, à esquerda, a fachada inteira da Pitié, com todas as janelas iluminadas, parecia incendiada, e viam-se passar rápidas sombras por trás das vidraças.
Os dois homens que vinham com Frédéric foram-se embora. Outro o acompanhou até a Escola Politécnica.
A Rua Saint-Victor estava às escuras, sem um só bico de gás aceso nem uma luz nas janelas. De dez em dez minutos, ouvia-se:
“Sentinelas! Alerta!” — e esse grito, lançado no meio da noite, prolongava-se como o repercutir de uma pedra atirada a um abismo.
Por vezes, aproximava-se um ressoar de passos pesados. Era uma patrulha de cem homens, pelo menos; murmúrios, um vago retinir de ferros vinham dessa massa confusa; e, afastando-se com um balançar rítmico, fundia-se na obscuridade.
No centro de cada encruzilhada havia um cavalariano, imóvel. De quando em quando, um estafeta passava a galope, depois tudo recaía no silêncio. Canhões em marcha faziam ao longe um reboar surdo e formidável sobre as calçadas; e o coração ficava pequenino perante estes ruídos diferentes de todos os ruídos habituais. Pareciam até aumentar o silêncio, que era profundo, absoluto — um silêncio negro. Homens de blusão branco abordavam os soldados, diziam-lhes uma palavra, e desvaneciam-se como fantasmas.
O posto da Escola Politécnica estava cheio de gente. Mulheres atravancavam a entrada, pedindo para ver o filho ou o marido. Eram remetidas para o Panthéon, transformado em depósito de cadáveres, — e ninguém dava atenção a Frédéric. Ele obstinava-se, jurando que o seu amigo Dussardier o esperava, que ia morrer. Acabaram por designar um cabo para conduzi-lo ao alto da Rua Saint-Jacques, à mairie do 12º distrito.26
A Praça du Panthéon estava cheia de soldados deitados sobre palha. Começava a nascer o dia. As fogueiras do bivaque iam-se apagando.
A insurreição deixara terríveis vestígios naquele bairro. As ruas mostravam-se, de ponta a ponta, acidentadas pelo serviço de trincheiras. Sobre as barricadas em ruínas viam-se ônibus, canos de gás, rodas de carroças; pequenas poças escuras, em certos lugares, deviam ser sangue. As casas estavam crivadas de projéteis, e via-se-lhes a estrutura, sob as fendas da cal. Gelosias, presas só por um prego, pendiam como farrapos. As escadas tinham desmoronado, havia portas que davam para o vazio. Via-se o interior de quartos com o papel das paredes às tiras; por vezes, coisas delicadas tinham ficado intactas. Frédéric notou um relógio, o poleiro de um papagaio, gravuras.
Quando entrou na mairie, os guardas nacionais falavam sem parar sobre as mortes de Bréa e de Négrier27, do representante Charbonnel e do arcebispo de Paris. Dizia-se que o Duque d’ Aumale desembarcara em Bolonha, que Barbès fugira de Vincennes, que a artilharia estava chegando de Bourges e que afluíam os socorros da província. Pelas três horas, alguém trouxe boas notícias; parlamentários dos insurretos estavam com o presidente da Assembleia.
Então todos rejubilaram; e, como ainda tinha doze francos, Frédéric mandou vir doze garrafas de vinho, esperando apressar assim a sua libertação. De súbito, ouviu-se uma fuzilaria. As libações pararam; o desconhecido foi olhado com desconfiança; podia ser Henrique V.
Para não ficarem com nenhuma responsabilidade, transferiram-no para a mairie do 11º distrito, de onde não o deixaram sair antes das nove da manhã.
Foi correndo até o cais Voltaire. Numa janela aberta, um velho em mangas de camisa chorava, olhos fitos no céu. O Sena corria tranquilamente. O céu estava todo azul; pássaros cantavam nas árvores das Tulherias.
Frédéric ia atravessando o Carrousel quando passou uma maca. O posto apresentou logo armas, e o oficial disse, fazendo continência: “Glória à coragem inditosa!”. Esta frase tornara-se quase obrigatória; aquele que a pronunciava parecia sempre solenemente emocionado. Um grupo de pessoas furiosas escoltava a maca, gritando:
— Havemos de nos vingar! Havemos de nos vingar!
No bulevar as carruagens circulavam, e diante das portas mulheres rasgavam panos para fazer ataduras28. Entretanto, a insurreição estava dominada, ou quase; uma proclamação de Cavaignac, que acabava de ser afixada, assim o anunciava. No alto da Rua Vivienne, surgiu um pelotão de guardas móveis. Então, os burgueses soltaram gritos entusiásticos; erguiam os chapéus, aplaudiam, dançavam, queriam beijá-los, oferecer-lhes de beber, — e das sacadas caíam flores lançadas pelas senhoras.
Por fim, às dez horas, no momento em que troava o canhão para tomar o subúrbio de Saint-Antoine, Frédéric chegou à casa de Dussardier. Foi encontrá-lo na mansarda, estendido de costas, dormindo. Do outro quarto veio uma mulher, pé ante pé, era a Vatnaz.
Chamou Frédéric de parte e contou-lhe como Dussardier tinha sido ferido.
No sábado, sobre uma barricada29, na Rua Lafayette, um rapazinho, enrolado numa bandeira tricolor, gritava para os guardas nacionais: “Não disparem contra os vossos irmãos!”. Quando eles avançaram, Dussardier deitou fora a espingarda, afastou os outros, saltou sobre a barricada e, com uma rasteira, fizera cair o insurreto e arrancara-lhe a bandeira. Encontraram-no entre os escombros, com a coxa atravessada por um zagalote de cobre. Tinha sido necessário abrir a ferida, extrair o projétil. A Srta. Vatnaz acorrera na mesma tarde, e desde então não o tinha deixado.
Preparava com inteligência tudo o que era necessário para os curativos, ajudava-o a beber, adivinhava-lhe os menores desejos, ia e vinha mais leve que uma mosca, contemplando-o com olhos ternos.
Durante duas semanas Frédéric não deixou de voltar todas as manhãs; um dia em que lhe falava na dedicação da Vatnaz, Dussardier encolheu os ombros.
— Que nada! É por interesse!
— Achas?
Ele retorquiu: — Tenho certeza! — sem querer dar mais explicações.
Ela cumulava-o de atenções, e até lhe trazia os jornais em que a sua bela ação era exaltada. Essas homenagens pareciam importuná-lo. Confessou até a Frédéric as inquietações da sua consciência.
Talvez devesse ter estado do outro lado, com os operários; porque, afinal, quanta coisa lhes tinham prometido sem cumprir! Os vencedores detestavam a República; e além disso, como tinham sido duros com eles! Estavam errados, é certo, mas não inteiramente; e o excelente rapaz sentia-se torturado ante a ideia de que poderia ter combatido a causa justa.
Sénécal, preso nas Tulherias30, debaixo do terraço à beira do rio, não sofria de nenhuma destas angústias.
Estavam ali novecentos homens, amontoados no meio da imundície, negros de pólvora e de sangue coagulado, tremendo de febre, gritando de raiva; e ninguém tirava os que ali morriam. Por vezes, ao ruído surdo de uma detonação, julgavam que iam ser todos fuzilados; então precipitavam-se de encontro às paredes, voltando a deixar-se cair onde estavam antes, a tal ponto embrutecidos pela dor, que lhes parecia viverem um pesadelo, uma alucinação fúnebre. O lustre, pendente do teto, parecia uma mancha de sangue; e chamazinhas verdes e amarelas surgiam, produzidas pelas emanações do subterrâneo. Com o receio das epidemias, foi constituída uma comissão. Mas ao pôr o pé nos primeiros degraus, o presidente recuou, apavorado pelo cheiro dos excrementos e dos cadáveres. Quando os prisioneiros se aproximavam de um postigo, os guardas nacionais que estavam de sentinela, para os impedir de sacudir as grades, espetavam as baionetas ao acaso, naquela massa.
Foram, em geral, implacáveis. Os que não tinham combatido queriam distinguir-se. Era o medo que extravasava. Vingavam-se ao mesmo tempo dos jornais, dos clubes, das concentrações populares, das doutrinas, de tudo quanto era motivo de exasperação, havia três meses; e, a despeito da vitória, a igualdade (como que para castigo dos seus defensores e escárnio dos seus inimigos) manifestava-se triunfalmente, uma igualdade de animais brutos; um igual nível de torpezas sangrentas; porque o fanatismo dos interesses iguala-se aos delírios da necessidade, a aristocracia teve os furores da crápula, e o barrete de dormir não se mostrou menos hediondo do que o barrete frígio. A razão pública estava desorientada, como após os grandes cataclismos da natureza. Houve pessoas inteligentes que ficaram idiotas para o resto da vida.
O Senhor Roque tinha-se tornado valente, quase temerário. Tendo chegado a Paris no dia 26, com os de Nogent, em vez de regressar ao mesmo tempo que eles, juntara-se aos guardas nacionais acampados nas Tulherias; e ficou muito contente por ser posto de sentinela em frente ao terraço à beira do rio. Ali, pelo menos, tinha-a debaixo de si, àquela canalha! Gozava com a derrota dela, com a sua abjeção, e não podia deixar de a invectivar.
Um deles, um adolescente de longos cabelos loiros, pôs-se junto às grades, pedindo pão. O Senhor Roque mandou-o calar. Mas o jovem continuava a repetir, numa voz lamentosa:
— Pão!
— Onde é que eu tenho pão!
Outros prisioneiros surgiram junto ao postigo, com as barbas desgrenhadas, os olhos chamejantes, empurrando-se uns aos outros e gritando:
— Pão!
O Senhor Roque sentiu-se indignado ao ver desrespeitada a sua autoridade. Para meter medo, apontou-lhes a arma; e, empurrado até à abóbada pela multidão que o asfixiava, o adolescente, de cabeça deitada para trás, gritou uma vez mais:
— Pão!
— Pronto, aqui o tens! — disse o Senhor Roque, disparando a arma31.
Ouviu-se um uivo enorme, e mais nada. À beira da selha32 via-se apenas uma coisa esbranquiçada.
Depois disto, o Senhor Roque voltou para casa; porque possuía, na Rua Saint-Martin, uma casa na qual reservara para si um apartamento; e os prejuízos que a insurreição causara à fachada do seu prédio não tinham deixado de contribuir para o enfurecer. Pareceu-lhe, quando tornou a vê-la, que tinha exagerado os danos. O seu ato de há pouco apaziguava-o, como se fosse uma indenização.
Foi a própria filha quem lhe veio abrir a porta. Disse-lhe, imediatamente, que a sua ausência demasiado longa a tinha inquietado; receara uma desgraça, um ferimento.
Esta prova de amor filial enterneceu o Senhor Roque. Estranhou que ela se tivesse posto a caminho sem Catherine.
— Mandei-a fazer compras — respondeu Louise.
E perguntou-lhe pela saúde, por isto e por aquilo; depois, com ar indiferente, quis saber se, por acaso, não tinha encontrado Frédéric.
— Não! Nem sombra dele!
Fora unicamente por causa dele que fizera a viagem. Ouviram-se passos de alguém no corredor.
— Ah! Perdão...
E ela desapareceu.
Catherine não encontrara Frédéric. Estava ausente havia alguns dias, e o seu amigo íntimo, o Senhor Deslauriers, morava agora na província.
Louise voltou toda trêmula, sem poder falar, apoiando-se nos móveis.
— Que tens? Mas que tens tu? — exclamou o pai.
Ela fez sinal que não era nada, e refez-se, por um grande esforço de vontade.
O dono da pensão em frente trouxe a sopa. Mas o Senhor Roque tinha sofrido uma emoção demasiado violenta. A comida "não passava", e à sobremesa teve uma espécie de delíquio. Mandaram a toda pressa chamar um médico, que receitou uma poção. Depois de metido na cama, o Senhor Roque reclamou o maior número possível de cobertores, para suar. Suspirava e gemia.
— Obrigado, minha boa Catherine! Beija o teu pai, minha franguinha! Ah! Estas revoluções!
E, como a filha lhe ralhasse por se preocupar tanto com ela a ponto de adoecer, ele replicou:
— Sim! Tens razão! Mas é mais forte que eu! Sou demasiado sensível!
II
A SENHORA Dambreuse, no seu toucador, entre a sobrinha e Miss John, escutava o Senhor Roque, narrando as suas fadigas militares.
Ela mordia os lábios, parecia sofrer.
— Oh! Não tem importância! O pior já passou!
E, com expressão amável:
— Teremos para jantar uma pessoa das suas relações, o Senhor Moreau.
Louise estremeceu.
— Além dele, somente alguns íntimos, Alfred de Cisy, entre outros.
E elogiou as maneiras, a pessoa e sobretudo os costumes dele.
A Senhora Dambreuse mentia menos do que supunha; o visconde sonhava com o casamento. Dissera-o a Martinon, acrescentando ter a certeza de agradar à Srta. Cécile, e de que seus pais o aceitariam.
Para se atrever a essa confidência, devia ter informações favoráveis acerca do dote. Ora, Martinon supunha Cécile filha natural do Senhor Dambreuse; e talvez fosse um belo golpe pedir a mão dela para ver o que dava. Esta audácia tinha os seus riscos; por isso Martinon se conduzira, até agora, de forma a não se comprometer; aliás, não sabia como se ver livre da tia. As palavras de Cisy decidiram-no; e fizera o pedido ao banqueiro, o qual, não vendo impedimento, acabava de informar a mulher.
Cisy entrou. Ela levantou-se, e disse:
— Tem-se esquecido de nós... Cécile, shake hands!
No mesmo momento entrou Frédéric.
— Ah! Até que enfim! — exclamou o Senhor Roque. Estive por três vezes em sua casa, com Louise, esta semana!
Frédéric fizera tudo para lhes fugir. Alegou que passava o dia inteiro junto de um camarada ferido. Aliás, havia muito que uma porção de coisas lhe tomava o tempo; e inventava histórias. Felizmente, os outros convivas chegaram; primeiro, o Senhor Paul de Grémonville, o diplomata que entrevira no baile, depois Fumichon, aquele industrial cujo zelo conservador o escandalizara uma noite; a velha Duquesa de Montreuil-Nantua chegou logo depois.
Mas duas vozes se ouviram no vestíbulo.
— Tenho certeza — dizia uma.
— Minha bela senhora! Minha bela senhora! — respondia a outra. — Por favor, tranquilize-se!
Era o Senhor de Nonancourt, um velho conquistador, que parecia mumificado em cosmético, e a Senhora de Larsillois, esposa de um prefeito de Luís Filipe. Vinha tremendo, porque acabara de ouvir um órgão tocar uma polca que era um sinal entre os insurretos. Muitos burgueses tinham dessas imaginações; acreditava-se que, nas catacumbas, havia homens que pretendiam fazer explodir o faubourg Saint-Germain; ouviam-se rumores nos porões; passavam-se coisas suspeitas por trás das janelas.
Entretanto, toda a gente se empenhou em tranquilizar a Senhora de Larsillois. A ordem estava restabelecida. Nada mais havia a temer. “Cavaignac salvou-nos!” Como se os horrores da insurreição não tivessem sido suficientes, exageravam-nos. Do lado dos socialistas tinham combatido vinte e três mil forçados — nem mais nem menos!
Ninguém punha em dúvida os víveres envenenados, os soldados serrados entre duas tábuas, e as inscrições das bandeiras reclamando a pilhagem, o incêndio.
— E alguma coisa mais! — acrescentou a esposa do ex-prefeito.
— Ah! Minha querida! — disse por pudor a Senhora Dambreuse, indicando com um movimento de olhos as três moças.
O Senhor Dambreuse saiu do seu gabinete com Martinon. Ela voltou o rosto, e respondeu aos cumprimentos de Pellerin, que vinha entrando. O artista olhava para as paredes com expressão inquieta. O banqueiro chamou-o de parte, e fez-lhe compreender que se vira obrigado, provisoriamente, a esconder o seu quadro revolucionário.
— Sem dúvida! — disse Pellerin, cujas opiniões tinham mudado depois do insucesso no Clube da Inteligência.
O Senhor Dambreuse sugeriu muito delicadamente que lhe encomendaria outros trabalhos.
— Mas perdão!... Ah! Caro amigo! Que prazer!
Arnoux e a Senhora Arnoux estavam diante de Frédéric.
Este sentiu uma espécie de vertigem. Rosanette, com a sua admiração pelos soldados, irritara-o a tarde inteira; e o velho amor reavivou-se.
O criado veio anunciar o jantar. Com um olhar, a Senhora Dambreuse ordenou ao visconde que conduzisse Cécile, e disse em voz baixa a Martinon: “Miserável!” e passaram à sala de jantar.
Sob a folhagem verde de um ananás, no centro da mesa, avultava um dourado, de cabeça voltada para um quarto de cabrito e tocando, com o rabo, um prato de lagostins. Figos, cerejas enormes, peras e uvas (novidades dos pomares parisienses) formavam pirâmides nas cestas de velho Saxe; um ramo de flores alternava, de vez em quando, com o brilho das pratas; os estores de seda branca, descidos, deixavam penetrar na sala uma luz suave; dois vasos com pedaços de gelo refrescavam o ambiente; criados de culotes serviam à mesa. Tudo isto parecia melhor, depois das emoções dos últimos dias. Voltava-se a gozar as coisas que se tivera medo de perder; e Nonancourt exprimiu o que todos sentiam, dizendo:
— Ah! Esperemos que os senhores republicanos nos deem licença de jantar!
— Apesar da sua fraternidade! — acrescentou espirituosamente o Senhor Roque.
Esses dois cavalheiros estavam à direita e à esquerda da Senhora Dambreuse, que tinha o marido em frente, entre a Senhora de Larsillois, com o diplomata ao lado, e a velha duquesa, com Fumichon junto de si. Vinham a seguir o pintor, o negociante de louça, a Srta. Louise; e, graças a Martinon, que lhe tirara o lugar, para ficar ao lado de Cécile, Frédéric achava-se junto da Senhora Arnoux.
Tinha ela um vestido preto, de lã, uma escrava de ouro no pulso, e, como no primeiro dia em que Frédéric jantara em casa dela, um enfeite vermelho no cabelo1, um ramo de fúcsia enrolado no coque. Ele não pôde deixar de lhe dizer:
— Há quanto tempo não nos vemos!
— Ah! — replicou ela friamente.
Ele insistiu, com uma doçura na voz que atenuava a impertinência da pergunta:
— Pensou alguma vez em mim?
— Por que havia eu de pensar?
Frédéric sentiu-se ferido com essa resposta.
— Talvez tenha razão, afinal.
Mas, não tardando a arrepender-se, jurou que não se passara um dia sem que a recordação dela o fizesse sofrer.
— Não acredito numa palavra do que diz, meu caro senhor.
— Contudo, bem sabe que a amo!
A Senhora Arnoux não respondeu.
— Bem sabe que a amo.
Ela continuou calada.
“Pois vá para o diabo!” disse Frédéric de si para si.
E, erguendo os olhos, viu a Srta. Roque na outra extremidade da mesa.
Ela achara bonito vestir-se toda de verde, o que contrastava grosseiramente com o seu cabelo ruivo. A fivela do cinto estava alta demais, a gola estrangulava-a; esta falta de elegância contribuía sem dúvida para o frio acolhimento de Frédéric. Ela observava-o de longe, com curiosidade; e Arnoux, ao lado, em vão prodigalizava os galanteios, não conseguia tirar dela duas palavras, de maneira que, desistindo de lhe agradar, deu atenção à conversa. Esta versava agora sobre os cremes de ananás do Luxemburgo.
Segundo Fumichon, Louis Blanc tinha um palacete na Rua Saint-Dominique, e negava-se a alugá-lo aos operários.
— O que eu acho curioso — disse Nonancourt — é Ledru-Rollin caçando nas propriedades da Coroa!
— Deve vinte mil francos a um joalheiro! — acrescentou Cisy; — e dizem até...
A Senhora Dambreuse interrompeu-o.
— Ah! Como é feio discutir política com tanto calor! Um jovem, parece impossível! Ocupe-se antes da sua vizinha!
Depois, as pessoas sérias passaram a atacar os jornais.
Arnoux tomou a defesa deles; Frédéric interveio, chamando-lhes casas de negócios iguais às outras. Os que neles escreviam eram em geral imbecis ou trocistas; presumiu conhecê-los bem, e atacou sarcasticamente os sentimentos generosos do amigo. A Senhora Arnoux não dava conta de que era uma vingança contra ela.
Enquanto isso, o visconde queimava os miolos para conquistar a Srta. Cécile. Primeiro, manifestou gostos artísticos, criticando a forma dos jarros e o desenho das facas. Depois falou dos seus cavalos, do seu alfaiate e do seu camiseiro; finalmente, abordou o capítulo da religião e arranjou maneira de dar a entender que lhe cumpria todos os preceitos.
Martinon foi mais hábil. Numa voz monótona, e sem tirar os olhos dela, elogiava-lhe o perfil de ave, o louro desbotado do cabelo, as mãos curtas demais. A feia moça estava encantada sob aquela catadupa de amabilidades.
Não se conseguia ouvir nada, todos falavam ao mesmo tempo. O Senhor Roque queria “um braço de ferro” para governar a França. Nonancourt lamentava até que tivesse sido suprimida a pena de morte para os políticos. Toda essa canalha devia ser destruída em massa!
— São até covardes — disse Fumichon. — Não vejo que valentia possa haver em se meter atrás de uma barricada!
— A propósito, fale-nos de Dussardier! — disse o Senhor Dambreuse, voltando-se para Frédéric.
O bom do caixeiro era agora um herói, como Sallesse, os irmãos Jeanson, a Péquillet etc.
Frédéric, sem se fazer rogar, contou a história do amigo, o que lhe deu também uma espécie de auréola.
Passou-se, como era natural, a relatar diversos atos de coragem. Segundo o diplomata, não era difícil afrontar a morte, prova os que se batem em duelo.
— É ver o visconde — disse Martinon.
O visconde pusera-se muito corado.
Os convivas olhavam para ele; e Louise, mais espantada do que os outros, murmurou:
— De que se trata?
— Fez feio diante de Frédéric — respondeu Arnoux em voz baixa.
— A menina sabe alguma coisa? — perguntou logo Nonancourt; e transmitiu a resposta à Senhora Dambreuse, a qual, inclinando-se um pouco, se pôs a observar Frédéric.
Martinon não esperou as perguntas de Cécile. Informou-a de que o caso dizia respeito a uma pessoa desclassificada. A jovem recuou um pouco na cadeira, como que para fugir ao contato daquele libertino.
A conversa recomeçara. Os grandes vinhos de Bordéus circulavam, a animação crescia; Pellerin não perdoava à revolução por causa do museu espanhol, definitivamente perdido. Era o que o afligia mais, como pintor. A esta palavra, o Senhor Roque interpelou-o.
— Não será o senhor quem fez um quadro notável?
— Talvez! Qual?
— Representa uma dama em traje... enfim!... Um pouco... ligeiro, com uma bolsa e um pavão por trás.
Dessa vez, foi Frédéric quem corou. Pellerin fingia não entender.
— Mas eu sei, não há dúvida! Tem o seu nome escrito por baixo, e uma linha no caixilho em que diz ser propriedade do Senhor Moreau.
Um dia em que o Senhor Roque e a filha esperavam Frédéric em casa dele, tinham visto o retrato da Marechala. O homenzinho julgara até que fosse “um quadro gótico”.
— Não! — disse Pellerin com brutalidade; — é um retrato de mulher.
Martinon acrescentou:
— De uma mulher bem viva! Não é verdade, Cisy?
— Não sei nada disso!
— Pensei que a conhecia. Mas como isso lhe desagrada, mil desculpas!
Cisy baixou os olhos, provando com a sua atrapalhação que devia ter feito uma triste figura por causa desse retrato. Quanto a Frédéric, o modelo não podia deixar de ser sua amante. Era uma daquelas convicções que se formam imediatamente, e os rostos da Assembleia manifestavam-no claramente.
“Como ele me mentia!”, disse de si para si a Senhora Arnoux.
“Foi então por causa disso que ele me deixou!”, pensou Louise.
Frédéric imaginava que aquelas duas histórias podiam comprometê-lo; e quando passaram ao jardim, censurou Martinon.
O apaixonado de Cécile riu-lhe na cara.
— Ora! Mas de maneira nenhuma! Até é bom! Vai em frente!
Que queria ele dizer? Aliás, qual o motivo daquela amabilidade, tão contrária aos seus hábitos? Sem lhe dar qualquer explicação, dirigiu-se ao fundo, onde as damas tinham ido sentar-se. Os homens estavam de pé, e Pellerin, no meio deles, expunha ideias. O que havia de mais favorável às artes era uma monarquia bem compreendida. Os tempos modernos desgostavam-no, “quando mais não fosse, ao menos por causa da guarda nacional”; tinha pena de já não se estar na Idade Média ou na época de Luís XIV; o Senhor Roque felicitou-o pelas opiniões exaradas, confessando até que elas tinham feito desaparecer todos os preconceitos que tivera acerca dos artistas. Mas afastou-se quase imediatamente, atraído pela voz de Fumichon. Arnoux procurava demonstrar que havia dois socialismos, um bom e outro mau. O industrial não via a diferença, e ficava rubro de cólera ao ouvir falar em propriedade.
— É um direito escrito na natureza! As crianças têm apego aos seus brinquedos; todos os povos são da minha opinião, todos os animais; até o leão, se pudesse falar, se declararia proprietário! Eu, por exemplo, meus senhores, comecei com quinze mil francos de capital! Durante trinta anos, fiquem sabendo, levantava-me regularmente às quatro horas da manhã! Tive um trabalho dos diabos para fazer a minha fortuna! E vêm dizer-me que não sou senhor dela, que o meu dinheiro não é o meu dinheiro, em suma, que a propriedade é um roubo.
— Mas Proudhon...
— Ora, deixe-me em paz com esse Proudhon! Se o apanhasse aqui, creio que o estrangulava!
E estrangulava. Depois dos licores, sobretudo, Fumichon ficava outro; e o seu rosto apoplético parecia prestes a explodir, como uma granada.
— Boa-noite, Arnoux — disse Hussonnet, avançando rapidamente pelo gramado.
Trazia ao Senhor Dambreuse a primeira folha de uma brochura intitulada L'Hydre, na qual o boêmio defendia os interesses de um grupo reacionário, e a tal título o banqueiro o apresentou aos seus convivas.
Hussonnet divertiu-os, primeiro afirmando que os negociantes de sebo pagavam a trezentos e noventa e dois garotos para gritarem todas as noites: “Lampiões!”, e escarnecendo em seguida dos princípios de 89, da libertação dos negros, dos oradores da esquerda; e até desenhou “Prudhomme na barricada”, levado talvez por um ciúme ingênuo daqueles burgueses que tinham jantado bem. A caricatura teve pouco êxito. Os semblantes permaneceram sorumbáticos.
Aliás, não era ocasião para gracejos, conforme disse Nonancourt, lembrando a morte de Monsenhor Affre e a do General Bréa2. Estas eram constantemente recordadas e usadas como argumentos. O Senhor Roque declarou que a morte do arcebispo “era tudo quanto havia de mais sublime”; Fumichon dava a primazia à do general; e, em vez de se limitarem a deplorar os dois assassinos, discutiram sobre qual deles devia provocar maior indignação. Em seguida veio outro paralelo, entre Lamoricière e Cavaignac3, este, posto nas nuvens pelo Senhor Dambreuse, aquele, por Nonancourt. Dos presentes só Arnoux os tinha visto em ação. Nem por isso deixaram todos de formular um juízo irrevogável sobre as operações por eles conduzidas. Frédéric abstivera-se, confessando não ter pegado em armas. O diplomata e o Senhor Dambreuse endereçaram-lhe um aceno de cabeça aprovador. Com efeito, ter combatido a insurreição era ter defendido a República. O resultado, embora favorável, consolidava-a; e, agora que estavam livres dos vencidos, desejavam que o mesmo acontecesse em relação aos vencedores.
Logo que chegaram ao jardim, a Senhora Dambreuse, aproximando-se de Cisy, tinha-lhe censurado a falta de tacto; ao ver Martinon, mandou-o embora, e depois quis saber do seu futuro sobrinho a razão dos gracejos acerca do visconde.
— Nenhuma.
— E tudo isso para maior glória do Senhor Moreau! Com que fim?
— Nenhum. Frédéric é um rapaz encantador. Gosto muito dele.
— E eu também! Ele que venha! Vá buscá-lo!
Depois de duas ou três frases triviais, a Senhora Dambreuse começou a depreciar levemente os seus convidados, o que era uma maneira de o colocar acima deles. Frédéric também não deixou de criticar um pouco as outras mulheres, maneira hábil de lhe fazer a corte. Mas ela abandonava-o de vez em quando, era a sua noite de recepção, chegavam senhoras; depois voltava para junto dele, e a disposição fortuita das cadeiras permitia-lhes não serem ouvidos.
Mostrou-se risonha, séria, melancólica e sensata. As preocupações do momento pouco lhe interessavam; havia outros sentimentos, menos transitórios. Queixou-se dos poetas, que deformam a verdade, depois ergueu ao céu o olhar, perguntando-lhe o nome de uma estrela.
Tinham pendurado nas árvores algumas lanternas chinesas, que o vento fazia balançar; raios coloridos brincavam no seu vestido branco. Estava, como de costume, um pouco reclinada na poltrona, com um banquinho aos pés; distinguia-se a ponta de um sapato de cetim preto; e a Senhora Dambreuse proferia, de vez em quando, uma palavra mais alto, e soltava até uma risada.
Estes dengues não tocavam Martinon, muito ocupado com Cécile; mas iam atingir a Srta. Roque, que conversava com a Senhora Arnoux. Esta era a única, entre aquelas mulheres, cujas maneiras não lhe pareciam desdenhosas. Tinha vindo sentar-se a seu lado; depois, cedendo a uma necessidade de expansão:
— Não acha que Frédéric Moreau fala muito bem?
— Conhece-o?
— Oh! Muito bem! Somos vizinhos, brincava comigo quando eu era criança.
A Senhora Arnoux lançou-lhe um olhar demorado, que significava: “Não gostarás dele, suponho?”.
O da jovem replicou, sem se perturbar: “Sim!”
— Então, encontra-o frequentemente?
— Oh! Não! Só quando vai visitar a mãe. Faz dez meses que esteve lá! Contudo, tinha prometido ser mais regular.
— É preciso não fazer muita fé nas promessas dos homens, minha filha.
— Mas ele a mim não enganou!
— Como a outras!
Louise estremeceu: “Frédéric também lhe teria prometido alguma coisa, a ela?” e o rosto crispou-se-lhe de desconfiança e ódio.
A Senhora Arnoux quase sentiu medo; antes não tivesse dito aquelas palavras. Depois, ambas ficaram silenciosas.
Como Frédéric estava na frente delas, num banquinho, contemplavam-no, uma com decência, de soslaio, a outra francamente, de boca aberta, a tal ponto que a Senhora Dambreuse lhe disse:
— Volte-se para lá, para ela vê-lo melhor!
— Quem?
— A Srta. Roque!
E pôs-se a fazer gracejos sobre o amor daquela menina da província. Ele protestava, procurando rir.
— Mas que ideia! Não faltava mais nada! Com uma cara daquelas!
Contudo, sentia um enorme prazer de vaidade. Lembrava-se da outra recepção, da qual saíra acabrunhado de humilhação; e enchia o peito de ar; sentia-se no seu verdadeiro meio, quase nos seus domínios, como se tudo aquilo, inclusive o palácio Dambreuse, lhe pertencesse. As damas formavam semicírculo, e escutavam-no; para se mostrar brilhante, defendeu o restabelecimento do divórcio, que devia ser facilitado a ponto de os casais se poderem separar e tornar a juntar indefinidamente, tantas vezes quantas quisessem. Elas protestavam; algumas cochichavam; da sombra, junto ao muro coberto por um angelicó, vinha um murmúrio de vozes. Parecia um cacarejar de galinhas à solta; e ele ia desenvolvendo a sua teoria, com aquela arrogância que dá a consciência do êxito. Um criado veio trazer ao caramanchão uma bandeja com gelados. Os cavalheiros aproximaram-se. Conversavam sobre as prisões.
Então, Frédéric vingou-se do visconde, fazendo-lhe crer que talvez fosse perseguido por ser legitimista. O outro objetava que não tinha posto os pés fora de casa; o seu adversário acumulou prognósticos pessimistas; até os senhores Dambreuse e De Grémonville acharam graça. Depois felicitaram Frédéric, lamentando que não empregasse esses dons na defesa da ordem; e o seu aperto de mão foi cordial; podia doravante contar com eles. Finalmente, quando todos se despediam, o visconde fez uma grande mesura a Cécile:
— Senhorita, tenho a honra de lhe desejar uma boa-noite.
Ela respondeu, secamente:
— Boa-noite! — mas lançou um sorriso a Martinon.
O Senhor Roque, para continuar a discussão com Arnoux, ofereceu-se para o acompanhar, “assim como à senhora”, visto o caminho ser o mesmo. Louise e Frédéric iam à frente. Ela agarrara-lhe o braço; e, quando estavam a certa distância dos outros:
— Ah! Enfim! Enfim! Como sofri durante todo o serão! Como estas mulheres são más! Que ares de superioridade!
Ele quis defendê-las.
— Em primeiro lugar, bem me podias ter falado ao chegar, há um ano que não te vejo!
— Não faz ainda um ano — disse Frédéric, agarrando-se àquele pormenor, para evitar os outros.
— Está bem! O tempo pareceu-me longo, eis tudo! Mas, durante este abominável jantar, até parecia que tinhas vergonha de mim! Ah! Compreendo, não tenho o que é necessário para agradar, como elas.
— Estás enganada — disse Frédéric.
— Pois sim! Jura-me que não estás apaixonado por nenhuma delas!
Frédéric jurou.
— E é só a mim que amas?
— Pudera!
Esta garantia deixou Louise alegre. Queria que se perdessem nas ruas, para passearem juntos a noite inteira.
— Estava tão aflita! Lá só se falava em barricadas! Via-te caído de costas, coberto de sangue! Tua mãe estava de cama, com reumatismo. Não sabia de nada. Eu tinha que me calar! Não podia mais! Então, vim com Catherine.
E contou-lhe a sua partida, toda a viagem, a mentira que tinha dito ao pai.
— Daqui a dois dias ele me vai levar outra vez. Aparece amanhã à noite, como se fosse por acaso, e aproveita para pedir a minha mão.
Nunca Frédéric estivera tão longe de querer casar-se. Aliás, a Srta. Roque parecia-lhe demasiado ridícula. Que diferença de uma mulher como a Senhora Dambreuse! O futuro que o esperava era bem diferente! Agora tinha a certeza; por isso não era o momento de, por uma fraqueza sentimental, tomar decisão de tal gravidade. Agora precisava ser positivo; — e além disso tornara a ver a Senhora Arnoux. Contudo, a franqueza de Louise deixava-o numa situação embaraçosa. Replicou:
— Pensaste bem nessa decisão?
— Como! — exclamou ela, gelada de surpresa e de indignação.
Ele disse que seria uma loucura casar naquele momento.
— Então não me queres?
— Mas tu não compreendes!
E embrenhou-se num discurso muito confuso, para lhe dar a entender que o retinham motivos da maior relevância, que tinha um sem-número de negócios, que até a sua fortuna estava comprometida (Louise respondia a todas estas objeções, com soluções bem claras), enfim, que as circunstâncias políticas não eram propícias. Portanto, o mais sensato era ter paciência por mais algum tempo. As coisas haviam de se arranjar, evidentemente; pelo menos, assim o esperava; e, como não sabia que mais alegar, lembrou-se de repente que já havia duas horas que devia estar junto de Dussardier.
Depois, tendo cumprimentado os outros, tornou pela Rua Hauteville, deu a volta pelo Gymnase, voltou ao bulevar e subiu correndo os quatro andares de Rosanette.
Os Arnoux despediram-se do Senhor Roque e da filha ao princípio da Rua Saint-Denis. Foram andando sem dizer nada; ele, esgotado de tanto falar, ela sentindo um grande abatimento; até se apoiava no ombro de Arnoux. Era o único homem que durante a reunião mostrara bons sentimentos. Sentiu-se cheia de indulgência para com ele. Contudo, Arnoux conservava um certo rancor contra Frédéric.
— Viste a cara dele, quando se falou do retrato? Não te dizia que era amante dela? Não querias acreditar!
— Oh! Sim, estava enganada!
Arnoux, satisfeito com a vitória, insistiu.
— Aposto mesmo que nos deixou, agora, para ir ter com ela. Está a esta hora com ela, aposto! Vai lá passar a noite.
A Senhora Arnoux baixara o mais possível as abas do chapéu.
— Mas estás tremendo!
— Tenho frio — disse ela.
Mal o pai adormeceu, Louise entrou no quarto de Catherine, e começou a sacudi-la.
— Levanta-te!... Depressa! Mais rápido! Vai procurar um fiacre.
Catherine respondeu-lhe que àquela hora já não havia.
— Então tu mesma vais levar-me lá.
— Mas onde?
— À casa de Frédéric!
— Não é possível! Para quê?
Era para lhe falar. Não podia esperar. Queria vê-lo imediatamente.
— Mas que ideia! Ir assim bater a uma porta no meio da noite! Aliás, a esta hora ele está dormindo!
— Eu acordo-o!
— Mas não fica bem a uma menina!
— Não sou uma menina! Sou a mulher dele! Amo-o! Vamos, põe o teu xale.
Catherine, de pé ao lado da cama, refletia. Acabou por dizer:
— Não! Não quero!
— Então fica aí! Eu vou!
Louise esgueirou-se como uma cobra pelas escadas abaixo. Catherine precipitou-se no seu encalço, e apanhou-a no passeio. Seus protestos não tiveram efeito; e seguiu atrás dela, acabando de abotoar a blusa. O caminho pareceu-lhe excessivamente longo. Queixava-se das velhas pernas.
— Depois, falta-me aquilo que a faz correr assim!
Mas acabou por se humanizar.
— Coitadinha! O que lhe vale é a sua velha Catherine!
De vez em quando tinha um acesso de escrúpulos.
— Ah! No que a menina me meteu! Se o seu pai acordava! Santo Deus! Oxalá não aconteça nenhuma desgraça!
Diante do Variétés foram detidas por uma patrulha de guardas nacionais. Louise declarou imediatamente que ia com a criada à Rua Rumfort chamar um médico. Deixaram-nas passar.
Na esquina da Madeleine, encontraram outra patrulha, e, depois de Louise ter dado a mesma explicação, um dos cidadãos disse:
— É por causa de alguma doença de nove meses, minha gatinha?
— Gougibaud! — gritou o capitão. — Nada de garotices em serviço! Senhoras, circulem!
Apesar da advertência, os ditos continuaram:
— Divirta-se muito!
— Os meus respeitos ao doutor!
— Cautela com o lobo!
— Eles gostam de rir — observou Catherine. — São rapazes!
Finalmente chegaram à casa de Frédéric. Louise tocou a campainha com força, várias vezes. A porta entreabriu-se e à sua pergunta o porteiro respondeu:
— Não!
— Mas já deve estar deitado!
— Já lhe disse que não! Há quase três meses que não dorme em casa!
E o postigo do cubículo caiu seco, como uma guilhotina. Elas permaneciam na obscuridade, no átrio. Uma voz furiosa gritou-lhes:
— Saem ou não?
A porta abriu-se novamente, e elas saíram.
Louise viu-se obrigada a sentar-se num marco; e, de cabeça entre as mãos, chorou do fundo do coração, abundantemente. Começava a despontar o dia, e passavam carroças.
Catherine levou-a para casa, amparando-a, dando-lhe beijos, dizendo-lhe uma porção de palavras animadoras, tiradas da sua experiência. Não devia afligir-se tanto por causa de um namorado. Se perdesse aquele, outros haviam de aparecer!
III
Quando o entusiasmo de Rosanette pela guarda móvel acalmou, voltou a mostrar-se encantadora como nunca, e Frédéric foi-se habituando insensivelmente a viver em casa dela.
O melhor do dia era a manhã, no terraço. De penteador de renda, sem meias e de pantufas, ela ia e vinha à volta dele, limpava a gaiola dos pintassilgos, mudava a água dos peixes vermelhos e jardinava, com uma pá da lareira, na caixa cheia de terra de onde se erguia um espaldar de gerânios que guarnecia o muro. Depois, debruçados na varanda, ficavam juntos vendo as carruagens, os transeuntes, e aquecendo-se ao sol, fazendo projetos para a noite. Ele saía por duas horas, quando muito; em seguida, iam a um teatro qualquer, para uma frisa; e Rosanette, com um grande ramo de flores na mão, escutava os instrumentos, enquanto Frédéric, inclinado ao seu ouvido, lhe dizia coisas divertidas ou galantes. Outras vezes, tomavam uma caleche que os conduzia ao Bois de Boulogne; ficavam passeando até alta noite. Por fim, voltavam pelo Arco do Triunfo e pela grande avenida, sorvendo o ar, sob o céu estrelado, e os candeeiros de gás em fila, até o fundo da perspectiva, como um duplo cordão de pérolas luminosas.
Quando iam sair, Frédéric tinha sempre que esperar por ela; demorava sempre muito a ajeitar debaixo do queixo as duas fitas do chapéu; e sorria para si própria, diante do espelho do guarda-roupa. Depois, metia o braço no dele e obrigava-o a mirar-se junto dela:
— Ficamos bem assim, os dois ao lado um do outro! Ah, querido amor, era capaz de te comer!
Frédéric era agora sua coisa, sua propriedade. Isso dava ao rosto de Rosanette uma aura permanente, ao mesmo tempo que as suas atitudes pareciam mais langorosas, e as formas, mais arredondadas; e, sem que pudesse dizer em quê, ele achava contudo que ela tinha mudado.
Um dia, Rosanette disse-lhe, como se fosse uma coisa muito importante, que Arnoux acabava de montar uma loja de roupas brancas para uma antiga operária da fábrica; ia lá todas as noites, “gastava muito, só na semana passada, lhe tinha dado uma mobília de jacarandá”.
— Como sabes? — disse Frédéric.
— Ora! Tenho certeza!
Delphine, por ordem sua, tirara informações. Então ela gostava muito de Arnoux, para se interessar tanto por ele! Frédéric respondeu apenas:
— E que te importa isso?
Rosanette pareceu surpreendida com a pergunta.
— Mas esse miserável deve-me dinheiro! Não é horroroso que esteja mantendo umas ordinárias?
Depois, com expressão de ódio triunfante:
— Aliás, ela pouco se importa com ele! Tem três outros arranjinhos. Tanto melhor! E que lhe comam até o último centavo, é o que eu desejo!
Com efeito, Arnoux deixava-se explorar pela Bordalesa, com a indulgência dos amores senis.
A fábrica ia mal; todos os seus negócios estavam em má situação, a tal ponto que, para os salvar, teve a ideia de instalar um café-concerto, onde seriam cantadas apenas obras patrióticas; se o ministro lhe desse uma subvenção, esse estabelecimento seria ao mesmo tempo um centro de propaganda e uma fonte de rendimento. Como o Poder mudara de mãos, o projeto tornara-se inviável. Agora sonhava com uma grande chapelaria militar. Mas faltavam-lhe fundos para começar.
Não era mais feliz na vida doméstica. A Senhora Arnoux mostrava-se menos amável com ele, às vezes chegava a ser rude. Berthe1 dava sempre razão ao pai. Isso aumentava a desarmonia, e a casa estava ficando intolerável. Muitas vezes, Arnoux saía pela manhã, passava o dia inteiro fazendo longas caminhadas, para se atordoar, depois jantava numa taberna campestre, entregue às suas reflexões.
A prolongada ausência de Frédéric perturbava-lhe os hábitos. Por isso, apareceu-lhe uma tarde, suplicando-lhe que viesse, como antigamente, e ele prometeu.
Frédéric não se atrevia a voltar à casa da Senhora Arnoux. Tinha a impressão de que a traíra. Mas era um comportamento muito covarde. Faltavam-lhe desculpas. Não teria outro remédio senão ir lá! E, uma tarde, decidiu-se.
Como estivesse chovendo, acabava de entrar na passagem Jouffroy quando, à luz das vitrinas, foi abordado por um homenzinho de boné. Frédéric não teve dificuldades em reconhecer Compain, aquele orador cuja moção provocara tamanhas gargalhadas no clube. Apoiava-se no braço de um sujeito de barrete vermelho de zuavo, que tinha o lábio superior muito saliente, o rosto amarelo como uma laranja, e uma barbicha no queixo, que o fixava de olhos arregalados, brilhantes de admiração.
Compain orgulhava-se dele, sem dúvida, pois disse:
— Apresento-lhe aqui este sujeito! É um amigo meu, sapateiro, um patriota! Vamos tomar qualquer coisa?
Como Frédéric não aceitasse, foi logo arremetendo contra a proposta Rateau2, manobra dos aristocratas. Para acabar com isso, era necessário recomeçar 93! Depois perguntou por Regimbart e alguns outros, não menos famosos, como Masselin, Sanson, Lecornu, Maréchal e um tal Deslauriers, comprometido no caso das carabinas recentemente apreendidas em Troyes.
Tudo aquilo era novidade para Frédéric. Compain não sabia mais nada. Despediu-se, dizendo:
— Até breve, não é verdade? Porque você também é dos nossos!
— De quê?
— Da cabeça de vitela!
— Que cabeça de vitela?
— Ah, seu brincalhão! — retorquiu Compain, dando-lhe uma pancadinha na barriga.
E os dois terroristas entraram num café.
Dez minutos depois, Frédéric não pensava mais em Deslauriers... Estava no passeio da Rua Paradis, diante de uma casa; e contemplava o reflexo de um candeeiro, por trás das cortinas.
Por fim, subiu as escadas.
— Arnoux está em casa?
A criada respondeu:
— Não! Mas faça o favor de entrar.
E abrindo bruscamente uma porta:
— Minha senhora, é o Senhor Moreau!
Ela pôs-se de pé, mais pálida do que a gola do vestido. Estava tremendo.
— A que devo a honra... de uma visita... tão imprevista?
— Mas a nada! Ao prazer de tornar a ver velhos amigos!
E, sentando-se:
— Como vai o nosso bom Arnoux?
— Muito bem! Saiu.
— Ah! Compreendo! Os seus velhos hábitos noturnos; um pouco de distração!
— E por que não? Depois de um dia a fazer cálculos, a cabeça precisa de repouso!
Foi mesmo a ponto de gabar o marido, como trabalhador. Aqueles elogios irritavam Frédéric; e, apontando para um pedaço de fazenda preta que ela tinha no regaço, com sutache azul:
— Que está fazendo?
— É uma blusa que estou arranjando para a minha filha.
— A propósito, não a vejo; onde está ela?
— Está num pensionato — respondeu a Senhora Arnoux.
Vieram-lhe lágrimas aos olhos; procurava retê-las, costurando rapidamente. Para fazer alguma coisa, Frédéric pegara num número da Illustration que estava na mesa, ao lado dela.
— Estas caricaturas de Cham são muito engraçadas, não acha?
— São.
Depois ficaram novamente silenciosos.
Uma rajada de vento sacudiu de repente as janelas.
— Que tempo! — disse Frédéric.
— Realmente, foi muito amável da sua parte ter vindo com esta terrível chuva!
— Ora, que me importa isso! Não sou como as pessoas a quem ela impede, sem dúvida, de ir às entrevistas combinadas!
— Que entrevista? — perguntou ela com ingenuidade.
— Não se lembra?
Ela teve um estremecimento, e baixou a cabeça.
Frédéric pousou-lhe delicadamente a mão no braço.
— Creia que me fez sofrer terrivelmente!
Ela respondeu, com um tom lamentoso de voz:
— Mas eu tinha medo por causa do meu filho!
E contou-lhe a doença do pequeno Eugène e todas as angústias daquele dia.
— Obrigado! Obrigado! Não duvido mais! Amo-a como sempre!
— Ah, não! Não é verdade!
— Por quê?
Ela fitou-o com frieza:
— Esquece a outra! Aquela com quem passeia nas corridas! A mulher de que tem o retrato, a sua amante!
— Sim, é verdade! — exclamou Frédéric. — Não nego nada! Sou um miserável! Escute-me! — Se aquilo acontecera, tinha sido por desespero, como quem se suicida. Aliás, fizera-a muito infeliz, para se vingar sobre ela da sua própria vergonha. — Que suplício! Não compreende?
A Senhora Arnoux voltou o belo rosto para ele, e estendeu-lhe a mão; fecharam os olhos, perdidos numa embriaguez que era como o embalo doce e infinito. Depois ficaram contemplando-se, frente a frente, um junto do outro.
— Como pôde pensar que eu já não a amasse?
Ela respondeu, numa voz baixa, cheia de carícias:
— Não, apesar de tudo, eu sentia no fundo do coração que isso não era possível, e que um dia o obstáculo entre nós havia de se desvanecer!
— Também eu! E sentia uma necessidade terrível de vê-la!
— Uma vez — respondeu ela — no Palais-Royal, passei ao seu lado!
— Verdade?
E ele disse-lhe quanta felicidade sentira ao encontrá-la em casa dos Dambreuse.
— Mas como eu a detestava essa noite, ao sair de lá!
— Pobre rapaz!
— A minha vida é tão triste!
— E a minha!... Se fossem só os desgostos, as inquietações, as humilhações, tudo o que sofro como esposa e como mãe3, como todos temos de morrer, não me queixaria; o que é terrível é a minha solidão, sem ninguém...
— Mas agora eu estou aqui!
— Oh, sim!
Um soluço de ternura fê-la palpitar. Abriu os braços e estreitaram-se, de pé, num beijo prolongado.
Ouviu-se estalar o soalho. Uma mulher estava junto deles, Rosanette. A Senhora Arnoux tinha-a reconhecido; os seus olhos, desmedidamente abertos, examinavam-na, cheios de surpresa e indignação. Por fim, Rosanette disse-lhe:
— Venho para falar com o Senhor Arnoux, por causa de negócios.
— Ele não está, como vê.
— Ah, é verdade! — retorquiu a Marechala. — A sua criada tinha razão! Mil perdões!
E voltando-se para Frédéric:
— Ah! Estavas aí?
Este tratamento de “tu”, dado na sua frente, fez corar a Senhora Arnoux, como se fosse uma bofetada na cara.
— Ele não está, repito-lhe!
Então, a Marechala, que olhava para um lado e para outro, disse tranquilamente:
— Vamos para casa? Tenho um fiacre lá embaixo.
Frédéric fingia não ouvir.
— Vamos, anda!
— Ah! Sim! Aproveite! Vá-se embora! Vá-se embora! — disse a Senhora Arnoux.
Saíram. Ela inclinou-se sobre o corrimão, para os ver ainda; e uma gargalhada estrídula, dilacerante, caiu sobre eles, do alto da escada. Frédéric empurrou Rosanette para dentro do fiacre, sentou-se diante dela, e, durante todo o caminho, não pronunciaram uma única palavra.
Da infâmia que o ultrajava, ele próprio era a causa. Sentia ao mesmo tempo a vergonha de uma humilhação que o esmagava e a dor de ter perdido a sua felicidade; quando finalmente ia alcançá-la, ela tornara-se irrevogavelmente impossível! — e por culpa daquela ordinária, daquela meretriz. Tinha vontade de a esganar; faltava-lhe o ar. Quando chegaram em casa, atirou o chapéu para cima de um móvel, arrancou a gravata.
— Ah! Acabas de fazer uma linda coisa, não há dúvida!
Ela plantou-se diante dele, desafiando-o.
— E daí? Onde está o mal?
— Como! Andas me espionando?
— E a culpa é minha? Por que é que te queres divertir com as mulheres honestas?
— Seja como for, não quero que as insultes.
— Em que é que eu a insultei?
Ele não soube que responder; e, num tom mais raivoso:
— Mas da outra vez, no Champ de Mars...
— Ah! Não me venhas com histórias antigas!
— Miserável!
E levantou o punho.
— Não me mates! Estou grávida!
Frédéric recuou.
— É mentira!
— Olha para mim!
Pegou num candelabro, e, mostrando-lhe o rosto:
— Entendes alguma coisa disso?
Pequenas manchas amarelas maculavam-lhe a pele, e tinha a cara inchada. Frédéric não negou a evidência. Foi abrir a janela, deu alguns passos de um lado para o outro, e acabou por se deixar cair numa poltrona.
Aquilo era uma calamidade, que em primeiro lugar adiava a ruptura, e além disso transtornava-lhe todos os projetos. Aliás, a ideia de ser pai parecia-lhe grotesca, inadmissível. Mas por quê? Se, em vez da Marechala?... E a sua abstração tornou-se tão profunda que teve uma espécie de alucinação. Via ali, no tapete, uma garotinha, que se parecia com a Senhora Arnoux e um pouco também com ele: — branca, de cabelos castanhos, olhos negros, espessas sobrancelhas, uma fita cor-de-rosa nos cabelos anelados. (Oh! como a teria amado!) E tinha a impressão de ouvir a voz dela: “Papai! Papai!”.
Rosanette, que tinha acabado de se despir, viu-lhe uma lágrima nos olhos, e beijou-lhe a testa, com gravidade. Frédéric ergueu-se, dizendo:
— Claro! Não se vai matar essa criança!
Então ela pôs-se a tagarelar. Seria um rapaz, com certeza! Havia de se chamar Frédéric. Era preciso começar o enxoval; — e ele, vendo-a tão feliz, apiedou-se. Como a cólera tinha acalmado, quis saber o que motivara aquele passo de há pouco.
Era que a Vatnaz lhe tinha apresentado, nesse mesmo dia, uma letra protestada havia muito; e então correra à casa de Arnoux, para arranjar dinheiro.
— Mas eu tinha-o para te dar! — disse Frédéric.
— Era mais simples ir buscar lá o que me pertence, e devolver à outra os seus mil francos.
— É, ao menos, tudo quanto lhe deves?
Ela respondeu:
— Sem dúvida!
No dia seguinte, às nove da noite (hora indicada pelo porteiro) Frédéric apresentou-se em casa da Senhorita Vatnaz.
No vestíbulo, tropeçou em móveis amontoados. Mas um ruído de vozes e de música orientou-o. Abriu uma porta e achou-se em plena festa. Ao lado do piano, que uma jovem de óculos martelava, Delmar, grave como um pontífice, declamava uma poesia humanitária sobre a prostituição; e a sua voz cavernosa reboava, sustentada pelo percutir dos acordes. Rente à parede via-se uma fila de mulheres, quase todas vestidas de cores sombrias, sem gola nem punhos. Cinco ou seis homens, todos eles pensativos, sentavam-se aqui ou ali. Numa poltrona via-se um antigo fabulista4, uma ruína; — e o cheiro acre de dois candeeiros misturava-se ao aroma das chávenas de chocolate que enchiam a mesa de jogo.
A Srta. Vatnaz, com um lenço oriental em volta da cintura, estava num dos cantos da lareira. Do outro lado achava-se Dussardier, que não parecia muito à vontade. Aliás, aquele meio artístico intimidava-o.
A Vatnaz teria rompido com Delmar? Talvez não. Contudo, parecia ter ciúmes do caixeiro; e, como Frédéric pedisse para lhe falar em particular, fez-lhe sinal para os acompanhar ao seu quarto. Quando Frédéric lhe entregou os mil francos, ela reclamou, além disso, os juros.
— Não tem importância! — disse Dussardier.
— Ora, cala-te!
Essa covardia de um homem tão corajoso foi agradável a Frédéric, como justificação da sua própria. Trouxe a letra, e não voltou a falar do escândalo em casa da Senhora Arnoux. Mas, a partir de então, todos os defeitos da Marechala lhe saltaram aos olhos.
Ela era de um mau gosto irremediável, de uma preguiça incompreensível, de uma ignorância de selvagem, a ponto de ter como muito célebre o Doutor Desrogis; e tinha orgulho em recebê-lo, a ele e à mulher, porque eram “pessoas casadas”. Pontificava, com ar pedante, sobre as coisas da vida da Srta. Irma, pobre criaturinha que tinha como protetor um cavalheiro “muito bem”, ex-funcionário da alfândega, mestre no baralho; Rosanette chamava-o “meu luluzinho”. Frédéric achava também insuportável a repetição de certas frases idiotas; e teimava em espanar pela manhã as suas bugigangas com umas velhas luvas brancas! Revoltavam-no, sobretudo, aqueles modos com a criada — cujo ordenado estava sempre em atraso, e que até lhe emprestava dinheiro. Nos dias em que faziam contas discutiam como duas peixeiras, para depois se beijarem, feitas as pazes. A vida em comum estava se tornando triste. Foi para ele um alívio, quando recomeçaram os serões em casa da Senhora Dambreuse.
Essa, ao menos, divertia-o! Conhecia todas as intrigas mundanas, as mudanças de embaixadores, o pessoal das costureiras; e, se lhe escapava algum lugar-comum, era numa fórmula tão convencional que a sua frase podia passar por uma deferência ou uma ironia. Dava gosto vê-la no meio de vinte pessoas que conversavam, não esquecendo nenhuma, provocando as respostas que queria, evitando as perigosas! Coisas muito simples pareciam confidências, contadas por ela; o mais insignificante dos seus sorrisos fazia sonhar; enfim, o seu encanto, tal como o delicioso perfume que usava habitualmente, era complexo e indefinível. Junto dela, Frédéric sentia, de cada vez, o prazer de uma descoberta; e, contudo, ia encontrá-la sempre igual na sua serenidade, semelhante ao reflexo das águas límpidas. Mas por que havia tanta frieza na maneira como tratava a sobrinha? Lançava-lhe mesmo, de vez em quando, estranhos olhares.
Logo que se falou em casamento, objetou ao Senhor Dambreuse a saúde da “querida pequena”, e levou-a logo para as termas do Balaruc5. De volta, novos pretextos tinham surgido: o pretendente não tinha uma posição à altura, aquele grande amor não parecia sério, não fazia mal nenhum esperar. Martinon respondera que estava disposto a esperar. O seu comportamento foi sublime. Fazia os maiores elogios a Frédéric. Fez mais: industriou-o acerca dos meios para agradar à Senhora Dambreuse, dando-lhe mesmo a entender que conhecia, através da sobrinha, os sentimentos da tia.
Quanto ao Senhor Dambreuse, ao contrário de se mostrar ciumento, cumulava de atenções o jovem amigo, consultava-o sobre diversos assuntos, preocupava-se até com o futuro dele, a tal ponto que, um dia, como se falasse no Senhor Roque, lhe disse ao ouvido, com um ar sabido:
— Você fez muito bem!
E Cécile, Miss John, os criados, o porteiro, não havia pessoa que não o tratasse bem, naquela casa. Ia lá todas as noites, abandonando Rosanette. A maternidade tornava-a mais grave, até um pouco triste, como se tivesse alguma preocupação. A todas as perguntas, respondia:
— Estás enganado! Sinto-me muito bem!
Eram cinco letras que assinara outrora; e, não se atrevendo a falar nisso a Frédéric, depois de paga a primeira, voltara à casa de Arnoux, o qual lhe prometera, por escrito, a terça parte dos seus lucros com a iluminação a gás das cidades do Languedoc (um negócio formidável!) recomendando-lhe que não se servisse da carta antes da Assembleia dos acionistas; a Assembleia era adiada de semana a semana.
Contudo, a Marechala precisava de dinheiro. Mas preferia morrer a pedi-lo a Frédéric. Não queria receber nada dele. Teria estragado o seu amor. É certo que ele pagava as despesas da casa; mas uma pequena carruagem alugada por mês, e outros sacrifícios indispensáveis desde que frequentava os Dambreuse, impedia-o de fazer mais pela amante. Por duas ou três vezes, chegando fora da hora costumeira, pareceu-lhe ver costas masculinas desaparecendo pelas portas; e ela saía muitas vezes sem lhe dizer aonde ia. Frédéric não tentou aprofundar essas coisas. Um dia, tomaria uma decisão definitiva. Sonhava com outra vida, que seria mais alegre e mais nobre. Era um ideal que o tornava indulgente com o palácio Dambreuse.
Este era uma sucursal íntima da Rua de Poitiers. Ali encontrou o grande M. A., o ilustre B., o profundo C., o eloquente Z., o imenso Y., os velhos tenores da centro-esquerda, os paladinos da direita, os burgraves do justo-meio, os eternos simplórios da comédia. A linguagem lamentável, as mesquinharias, a má-fé, os rancores daqueles indivíduos deixavam-no estupefato. Toda aquela gente, que aprovara a Constituição, se empenhava agora em destruí-la; — e agitavam-se muito, lançavam manifestos, panfletos, biografias; a de Fumichon, por Hussonnet, era uma obra-prima. Nonancourt ocupava-se da propaganda nas províncias, o Senhor De Grémonville minava o clero, Martinon catequizava jovens burgueses. Cada qual colaborava segundo as capacidades respectivas, até Cisy. Pensando agora em coisas sérias, durante todo o dia corria aqui e ali, de cabriolé, trabalhando pelo Partido.
O Senhor Dambreuse, como um barômetro, exprimia sempre a última variação deste. Não se falava de Lamartine que ele não citasse a frase de um homem do povo: “Basta de lira!6”. Cavaignac, a seus olhos, já não passava de um traidor. O Presidente, que admirara durante três meses, começava a decair na sua estima (já não lhe achava “a energia necessária”); e, como precisava sempre de um salvador, o seu reconhecimento, depois do caso do Conservatório, ia para Changarnier7: “Graças a Deus, Changarnier... Esperemos que Changarnier... Oh, não há nada a recear, enquanto Changarnier...”.
Em primeiro lugar exaltava-se o Senhor Thiers, pelo seu livro contra o Socialismo8, onde se mostrara tão grande pensador como escritor. Pierre Leroux, que citava na Câmara trechos dos filósofos, era ridicularizado. Faziam-se gracejos sobre os falansterianos. Aplaudia-se La Foire aux Idées9, e comparavam-se os seus autores a Aristófanes. Frédéric foi lá, como os outros.
O palavreado político e os bons jantares entorpeciam-lhe o senso moral. Embora aqueles personagens lhe parecessem medíocres, tinha orgulho em conhecê-los, e desejava, no seu foro íntimo, a consideração burguesa. Uma amante como a Senhora Dambreuse havia de o impor.
Para isso, pôs-se a fazer tudo o que era necessário.
Encontrava-se no seu caminho, no passeio, não deixava de ir cumprimentá-la no seu camarote, no teatro; e, sabendo a que horas ela ia à igreja, punha-se atrás de uma coluna, em atitude melancólica. Para indicar uma curiosidade, dar informações sobre um concerto, emprestar livros ou revistas, era uma troca permanente de bilhetinhos. Além da sua visita à noite, fazia por vezes outra, ao fim da tarde; e sentia a gradação de alegrias ao passar sucessivamente pelo grande portão, o pátio, o vestíbulo, os dois salões; finalmente, chegava ao toucador, discreto como um túmulo, tépido como uma alcova, onde se tropeçava nos móveis estofados, entre os mais variados objetos: comodazinhas, anteparos, taças e pratos de charão, de tartaruga, de marfim, de malaquita, bagatelas caras, frequentemente renovadas. Havia outras mais modestas: três seixos de Étretat servindo de pesa-papéis, uma touca de mulher da Frigia pendurada em um biombo chinês; contudo, todas estas coisas se harmonizavam; e a nobreza do conjunto impressionava até, o que resultava talvez da altura do teto, da opulência dos reposteiros e das longas franjas de seda, pendentes das varetas douradas dos mochos.
Ela estava quase sempre sentada numa poltrona baixa, junto da jardineira que ornamentava o vão da janela. Sentado na ponta de um tamborete de rodas, Frédéric dirigia-lhe galanteios delicados; e ela olhava para ele com a cabeça levemente inclinada, um sorriso nos lábios.
Frédéric lia-lhe páginas de poesia, pondo nelas todo o sentimento a fim de lhe tocar o coração, e para se fazer admirar. Ela interrompia-o com uma maledicência ou uma observação de ordem prática; e o diálogo ia cair sempre na eterna questão do Amor! Perguntavam-se o que lhe dava origem, se as mulheres o sentiam mais do que os homens, quais as diferenças entre eles. Frédéric procurava emitir a sua opinião, evitando ao mesmo tempo ser grosseiro e vulgar. Aquilo tornava-se uma espécie de luta, por momentos agradável, outras vezes monótona.
Não sentia junto dela aquele transporte de todo o seu ser que o impelia para a Senhora Arnoux. Nem o alegre estouvamento que Rosanette lhe dera a princípio. Mas desejava-a como coisa fora do comum e difícil, por ela ser nobre, por ela ser rica, por ela ser devota — imaginando que devia ter delicadezas de sentimento, raras como as suas rendas, amuletos ao pescoço e pudores na depravação.
Serviu-se do seu antigo amor. Contou-lhe, como se ela o inspirasse, tudo o que lhe fizera sentir outrora a Senhora Arnoux, os langores, as apreensões, os sonhos que tivera. Ela ouvia-o como pessoa habituada a essas coisas, e, sem o repelir formalmente, não cedia nada; e ele não conseguia seduzi-la, e tampouco Martinon dela obtivera a mão de Cécile. Para correr com o apaixonado da sobrinha, ela acusou-o mesmo de querer casar por interesse, e pediu até ao marido que o pusesse à prova. O Senhor Dambreuse declarou assim ao jovem que Cécile, sendo órfã de pais pobres, não teria “esperanças”, nem dote.
Martinon, não acreditando que isso fosse verdade, ou tendo ido demasiado longe para voltar atrás, ou por uma dessas teimosias estúpidas que são atos de gênio, respondeu que o patrimônio dele, quinze mil libras de rendimento, lhes seria suficiente. Esse desinteresse inesperado comoveu o banqueiro. Ofereceu-se para fazer uma caução de uma recebedoria, prometendo arranjar-lhe o lugar; e, em maio de 1850, Martinon casou-se com a Srta. Cécile. Não houve festa. O casal partiu nessa mesma noite para a Itália. No dia seguinte, Frédéric veio fazer uma visita à Senhora Dambreuse. Achou-a mais pálida do que habitualmente. Ela o contradisse azedamente sobre dois ou três casos sem importância. Aliás, os homens eram todos uns egoístas.
Mas havia alguns que eram dedicados, pelo menos ele.
— Ora, tanto como os outros!
Tinha os olhos vermelhos; chorava. Depois, tentando sorrir:
— Desculpe-me! Fiz mal! É que tive uma ideia triste!
Frédéric não entendia nada.
“Seja como for”, disse de si para si, “ela não é tão forte como eu pensava.”
Chamou a criada para lhe trazer um copo-d’água, bebeu um gole, mandou levá-lo embora, depois queixou-se de ser horrivelmente malservida. Para a distrair, ele ofereceu-se para seu criado, presumindo ser capaz de pôr a mesa, de espanar os móveis, de anunciar as visitas, em suma, de ser um criado grave, ou antes, um trintanário, embora já tivesse passado a moda. Gostaria de ir nas traseiras da sua carruagem, com um chapéu de penacho.
— E como eu a seguiria a pé, majestosamente, levando um cãozinho nos braços!
— Você está alegre! — disse a Senhora Dambreuse.
— Não é uma tolice — prosseguiu ele — levar tudo a sério? — Havia tristezas de sobra sem ser preciso inventá-las. Nada merecia uma dor. A Senhora Dambreuse levantou as sobrancelhas, num vago gesto de aprovação.
Esta identidade de sentimentos estimulou Frédéric a ser mais ousado. Os malogros de outrora ajudavam-no agora a ser clarividente. Continuou:
— Os nossos avós sabiam viver melhor. Por que não obedecer ao impulso que sentimos? — Afinal, o amor não era uma coisa tão importante.
— Mas isso que está dizendo é imoral!
Ela voltara à sua poltrona baixa. Ele sentou-se na extremidade, junto aos seus pés.
— Não compreende que estou mentindo! Porque, para agradar às mulheres, é preciso fingir uma leviandade de bufão ou tomar ares trágicos! Elas fazem pouco de nós, quando lhes dizemos amá-las, simplesmente! Por mim, acho essas hipérboles que as divertem uma profanação do amor verdadeiro; de maneira que não se sabe como o exprimir, sobretudo diante daquelas... que têm... muito espírito.
Ela fixava-o com os olhos semicerrados. Frédéric baixava a voz, inclinando-se sobre o seu rosto.
— Sim! Tenho-lhe medo! Estou talvez ofendendo-a?... Perdão!... Eu não queria dizer tudo isto! Mas que posso fazer! É tão bela!
A Senhora Dambreuse fechou os olhos, e ele ficou surpreendido com a facilidade da vitória. As grandes árvores do jardim, que sussurravam levemente, pararam. Nuvens imóveis cortavam o céu de longas faixas avermelhadas, e houve como que uma suspensão universal. Então, outras tardes assim, com silêncios idênticos, vieram-lhe à lembrança, confusamente. Onde tinha sido?...
Ajoelhou, agarrou-lhe a mão e jurou-lhe amor eterno. Depois, quando ia saindo, ela fez-lhe sinal para que se aproximasse, e disse-lhe num murmúrio:
— Venha jantar! Estaremos sós!
Parecia a Frédéric, ao descer as escadas, ter-se tornado outro homem, que havia em torno de si uma temperatura perfumada de estufa, que entrava de uma vez para sempre no mundo superior dos adultérios patrícios e das altas intrigas. Para ter nele o primeiro lugar, bastava uma mulher como aquela. Ávida, sem dúvida, de poder e ação, e casada com um homem medíocre que auxiliara prodigiosamente, desejaria um homem de valor, para fazer subir? Agora nada era impossível! Sentia-se capaz de andar duzentas léguas a cavalo, trabalhar durante muitas noites seguidas, sem se cansar; o coração transbordava-lhe de orgulho.
No passeio, à sua frente, um homem de paletó coçado caminhava de cabeça baixa, numa tal atitude de acabrunhamento que ele se voltou para vê-lo. O outro ergueu a cabeça. Era Deslauriers. Ficou hesitante. Frédéric lançou-se-lhe ao pescoço.
— Ah! Meu velho! Mas como! És tu!
E arrastou-o para casa, fazendo-lhe uma porção de perguntas ao mesmo tempo.
O ex-comissário de Ledru-Rollin contou, em primeiro lugar, os tormentos que padecera. Como pregava a fraternidade aos conservadores, e o respeito pelas leis aos socialistas, uns tinham-lhe dado tiros, outros trazido uma corda para o enforcar. Depois dos acontecimentos de junho, fora destituído sem contemplações. Metera-se numa conspiração, a das armas apreendidas em Troyes. Fora posto em liberdade, por falta de provas. Depois, o comitê de ação enviara-o a Londres, onde andara à bofetada com os irmãos, no meio de um banquete. De regresso a Paris...
— Por que não vieste a minha casa?
— Estavas sempre fora! O teu porteiro tinha uns ares misteriosos, eu não sabia que pensar; além disso, não queria reaparecer como vencido.
Batera às portas da Democracia, oferecendo-se para servi-la pela pena, pela palavra, por atos; em toda parte o tinham repelido; desconfiavam dele; vendera o relógio, a biblioteca, a roupa branca.
— Mais valia ir apodrecer nos pontões de Belle-Isle10, com o Sénécal!
Frédéric, que ajeitava a gravata, não se mostrou muito impressionado com essa notícia.
— Ah, foi deportado, o nosso Sénécal?
Deslauriers replicou, olhando para as paredes com ar de inveja:
— Nem toda a gente tem a tua sorte!
— Vais desculpar-me, — disse Frédéric, sem reparar na alusão — mas tenho um jantar. Dar-te-ão de comer; pede o que te apetecer! E fica na minha cama.
Perante tão completa cordialidade, o azedume de Deslauriers evolou-se.
— Na tua cama? Mas... vou-te incomodar!
— Nada disso! Tenho outras!
— Ah! Muito bem! — replicou, rindo, o advogado. — Onde vais jantar?
— Em casa da Senhora Dambreuse.
— Dar-se-á o caso de que... porventura... fosse?..
— És demasiado indiscreto — disse Frédéric, com um sorriso que confirmava a suspeita.
Depois, tendo olhado para o relógio, tornou a sentar-se.
— É assim mesmo! Não se deve nunca desesperar, velho defensor do povo!
— Misericórdia! Que outros se ocupem dele!
O advogado detestava os operários, por ter sofrido na sua província, uma região de minas. Cada uma nomeara o seu Governo provisório, que pretendia dar-lhe ordens.
— Aliás, o comportamento deles foi um encanto em toda a parte, em Lião, em Lille, no Havre, em Paris! Porque, a exemplo dos fabricantes que queriam que se proibisse a entrada dos produtos estrangeiros, aqueles cavalheiros reclamavam que fossem banidos os operários ingleses, alemães, belgas e saboianos! Quanto a serem inteligentes, para que serviu, durante a Restauração, aquela famosa federação? Em 1830, entraram na guarda nacional, e nem sequer tiveram o bom-senso de a dominar! Pois não aconteceu que, logo depois de 48, os corpos de misteres reapareceram com os seus estandartes? E pediam até representantes do povo, que só teriam falado por eles! Exatamente como os deputados da beterraba, que só se preocupam com a beterraba! — Ah! Estou bem farto dessa gente, prosternando-se sucessivamente diante do cadafalso de Robespierre, das botas do Imperador, do guarda-chuva de Luís Filipe, uma canalha eternamente dedicada a quem lhe mete o pão na boca! Todos falam na venalidade de Talleyrand e de Mirabeau; mas o moço de recados da esquina venderia a pátria por cinquenta cêntimos, se lhe prometessem decretar o preço de três francos pela corrida! Ah! Que erro! Devíamos ter lançado fogo aos quatro cantos da Europa!
Frédéric respondeu-lhe:
— Faltou a faísca! Vocês não passavam de pequenos burgueses, e os melhores, uns pedantes! Quanto aos operários, bem razão têm de se queixar; porque, à exceção daquele milhão tirado da lista civil, e que vocês lhes concederam com a mais baixa das adulações, a única coisa que fizeram por eles foram frases! A caderneta11 fica na mão do patrão, e o assalariado (mesmo perante a justiça) permanece inferior ao patrão, porque a sua palavra não faz fé. Em suma, acho a República velha. Quem sabe? O Progresso talvez não seja realizável senão por uma aristocracia ou por um homem? A iniciativa vem sempre de cima! O povo é menor, quer se queira quer não!
— Talvez tenha razão — disse Deslauriers.
Segundo Frédéric, a grande massa dos cidadãos aspirava apenas ao repouso (tirara proveito das conversas em casa dos Dambreuse), e os conservadores tinham todas as probabilidades. Contudo, faltavam a esse partido homens novos.
— Se te candidatasses, tenho a certeza...
Não concluiu. Deslauriers compreendeu, passou a mão pela testa; depois, subitamente:
— Mas, e tu? Que te impede? Por que não serias deputado? — Em resultado de uma dupla eleição, havia no Aube uma candidatura vaga. O Senhor Dambreuse, reeleito para a Legislativa, pertencia a outra circunscrição. — Queres que eu trate disso? — Conhecia muitos taberneiros, mestres-escola, médicos, ajudantes de escrivães e os seus patrões. — Aliás, pode-se convencer os camponeses de tudo o que se queira!
Frédéric sentia reanimar-se a sua ambição.
Deslauriers acrescentou:
— Era preciso que me arranjasses um lugar em Paris.
— Oh, não há de ser difícil, graças ao Senhor Dambreuse.
— Como falávamos de hulhas — prosseguiu o advogado — que há com a tal grande sociedade? Era uma ocupação desse gênero que me convinha! E podia ser-lhes útil, embora conservando a minha independência.
Frédéric prometeu levá-lo à casa do banqueiro dentro de três dias.
O jantar, a sós com a Senhora Dambreuse, foi uma delícia. Ela sorria, na sua frente, do outro lado da mesa, por cima das flores, sob a luz do candeeiro de suspensão; e como a janela estava aberta, distinguiam-se as estrelas. Falaram muito pouco, receando trair-se, sem dúvida; mas logo que os criados voltavam as costas, atiravam-se beijos, estendendo os lábios. Ele falou-lhe no seu projeto de se candidatar. Ela aprovou-o, prometendo mesmo levar o Senhor Dambreuse a interessar-se.
Ao serão, apareceram alguns amigos, para felicitá-la e para lamentá-la: devia estar bem triste, por lhe faltar a sobrinha? Os recém-casados tinham feito muito bem, aliás, indo viajar; mais tarde, surgem as dificuldades, vêm os filhos! Contudo, a Itália não correspondia à ideia que se tinha dela. Mas eles estavam na idade das ilusões! Além do que, a lua de mel embelezava tudo! Os dois últimos a ficar foram o Senhor De Grémonville e Frédéric. O diplomata não parecia disposto a ir-se embora. Finalmente, à meia-noite, levantou-se. A Senhora Dambreuse fez sinal a Frédéric para sair com ele, e agradeceu-lhe a obediência com uma pressão da mão, mais suave que tudo o mais.
A Marechala soltou um grito de alegria quando o viu. Havia cinco horas que o estava esperando. Ele desculpou-se alegando que estivera diligenciando em favor de Deslauriers. Havia uma expressão de triunfo no seu rosto, uma auréola, que deslumbrou Rosanette.
— Talvez seja por causa da casaca, que te vai bem; mas nunca te achei tão bonito! Como és bonito!
Num transporte de ternura, jurou no seu foro íntimo que nunca mais pertenceria a outros, houvesse o que houvesse, mesmo que tivesse de morrer de miséria!
Os seus lindos olhos úmidos brilhavam com tal força de paixão que Frédéric a fez sentar nos joelhos, dizendo de si para si: “Que canalha eu sou!”, satisfeito com a própria perversidade.
IV
Quando Deslauriers procurou o Senhor Dambreuse, este pensava em ressuscitar o seu grande negócio de carvão. Mas aquela fusão de todas as companhias numa só não era vista com bons olhos; diziam que era um monopólio, como se, para exploração dessa ordem, não fossem necessários imensos capitais!
Deslauriers, que tivera o cuidado de ler o livro de Gobet e os artigos de Chappe no Journal des Mines, conhecia perfeitamente o problema. Demonstrou que a lei de 1810 instituía em benefício do concessionário um direito intransferível. Aliás, era possível dar à empresa um ar democrático: impedir a unificação das minas seria atentar contra o próprio direito de associação.
O Senhor Dambreuse deu-lhe apontamentos para ele redigir um memorial. Quanto à maneira como o seu trabalho seria pago, fez promessas tão maravilhosas quanto imprecisas.
Deslauriers voltou para a casa de Frédéric e relatou-lhe a entrevista. Além disso, vira a Senhora Dambreuse ao fundo das escadas, quando ia saindo.
— Dou-te os meus parabéns!
Depois conversaram a respeito da eleição. Era preciso inventar qualquer coisa.
Daí a três dias, Deslauriers reapareceu com um escrito destinado aos jornais, e que era uma carta particular em que o Senhor Dambreuse aprovava a candidatura do seu amigo. Apoiada por um conservador e recomendada por um vermelho, devia vencer. Como é que o capitalista assinava semelhante elucubração? O advogado, sem o menor embaraço, fora de moto próprio mostrá-la à Senhora Dambreuse, que, achando-a muito boa, se encarregara do resto.
Esta iniciativa surpreendeu Frédéric. Aprovou-a, contudo; depois, como Deslauriers se pusera em contato com o Senhor Roque, contou-lhe a sua posição diante de Louise.
— Diz-lhes o que te apetecer, que os meus negócios vão mal; que tudo se há de arranjar; ela é suficientemente jovem para poder esperar!
Deslauriers partiu; e Frédéric considerou-se uma grande cabeça. Sentia, aliás, um apaziguamento, uma satisfação profunda. A alegria de possuir uma mulher rica não era maculada por nenhum contraste; o sentimento harmonizava-se com o meio. Agora, a sua vida estava cheia de delícias.
A maior, talvez, era contemplar a Senhora Dambreuse, no meio de outras pessoas, no seu salão. O decoro das suas atitudes fazia-o evocar outras; enquanto ela conversava num tom frio, recordava as palavras de amor que lhe ouvira balbuciar; todas as homenagens à sua virtude o deleitavam como uma homenagem que recaía sobre ele; e às vezes tinha vontade de exclamar: “Mas eu conheço-a melhor que vós! Ela é minha!”.
A sua ligação não tardou a ser uma coisa entendida e aceite. Durante todo o inverno, a Senhora Dambreuse fez com que Frédéric frequentasse a alta sociedade.
Ele chegava quase sempre antes dela; e via-a entrar, os braços nus, o leque na mão, pérolas nos cabelos. Ela detinha-se no limiar (as ombreiras da porta faziam como que uma moldura à sua volta), e tinha leve movimento de indecisão, semicerrando os olhos, para ver se ele estava lá. Trazia-o para casa na carruagem; a chuva fustigava os vidros; os transeuntes, como sombras, agitavam-se no meio da lama; e, apertados um de encontro ao outro, viam tudo aquilo confusamente, com tranquilo desdém. Sob diversos pretextos, Frédéric ficava ainda uma boa hora no quarto dela.
Fora sobretudo por tédio que a Senhora Dambreuse se lhe entregara. Mas aquela derradeira experiência não podia perder-se. Ela queria um grande amor, e pôs-se a cumular Frédéric de adulações e carícias.
Mandava-lhe flores; bordou uma cadeira para ele; deu-lhe uma charuteira, um tinteiro, mil pequenos objetos de uso quotidiano, para toda a existência dele ficar ligada à sua lembrança. Essas atenções deliciaram-no a princípio, e depois pareceram-lhe perfeitamente naturais.
Ela tomava um fiacre, apeava-se à entrada de uma passagem, saía pelo outro lado; depois, esgueirando-se rente às paredes, com um véu espesso cobrindo-lhe o rosto, alcançava a rua onde Frédéric a esperava, tomando-lhe rapidamente o braço para a levar à sua casa. Os dois criados de Frédéric tinham ido passear, o porteiro fora dar um recado; ela olhava em redor; nada a temer! E soltava um suspiro de exilado que torna a ver a pátria. O êxito tornou-os mais ousados. Os encontros multiplicaram-se. Uma noite, até, ela apareceu-lhe inesperadamente, vestida para ir a um baile. Estas surpresas podiam ser perigosas; Frédéric censurou-lhe a imprudência; aliás, ela não lhe agradou. O decote muito aberto descobria demais a magreza do peito.
Então reconheceu o que escondera de si próprio, a desilusão dos seus sentidos. Nem por isso deixou de fingir grandes ardores; mas, para os sentir, precisava evocar a imagem de Rosanette ou a da Senhora Arnoux.
Esta atrofia sentimental deixava-lhe o espírito inteiramente livre, e ambicionava mais que nunca uma posição social elevada. Com um ponto de apoio assim, o menos que podia fazer era servir-se dele.
Em meados de janeiro, Sénécal entrou-lhe uma manhã no escritório; e, ante a sua exclamação de espanto, respondeu que era secretário de Deslauriers, e até lhe trazia uma carta. Esta continha boas notícias, e censurava-lhe contudo a negligência; precisava aparecer.
O futuro deputado respondeu que daí a dois dias se poria a caminho.
Sénécal não se manifestou a respeito da candidatura. Falou de si próprio e da situação do país.
Esta, embora catastrófica, parecia-lhe ótima, pois se caminhava para o comunismo. Em primeiro lugar, a própria Administração se encarregava disso, pois cada dia havia mais coisas regidas pelo Governo. Quanto à propriedade, a Constituição de 48, apesar das debilidades, não a tinha poupado, e, em nome da utilidade pública, o Estado podia doravante apoderar-se do que entendesse ser conveniente. Sénécal declarou-se partidário da Autoridade; e Frédéric reconheceu-lhe nos discursos o exagero das palavras que ele próprio dissera a Deslauriers. O republicano fulminou até contra a incapacidade das massas.
— Robespierre, ao defender o direito da minoria, levou Luís XVI perante a Convenção Nacional, e salvou o povo. A finalidade das coisas torna-as legítimas. A ditadura é por vezes indispensável. Viva a tirania, contanto que o tirano pratique o bem!
A discussão prolongou-se por muito tempo, e, ao partir, Sénécal confessou (era talvez essa a finalidade da sua visita) que Deslauriers se impacientava muito com o silêncio do Senhor Dambreuse.
Mas o Senhor Dambreuse adoecera. Frédéric via-o todos os dias, pois a sua qualidade de íntimo lhe dava acesso junto dele.
A destituição do General Changarnier1 impressionara extraordinariamente o capitalista. Na mesma noite, sentira um grande calor no peito, e uma opressão que não lhe permitia ficar deitado. As sanguessugas deram-lhe alívio imediato. A tosse seca desapareceu, a respiração tornou-se mais calma; e, daí a oito dias, disse, enquanto tomava um caldo:
— Ah! Agora estou melhor! Mas estive quase a embarcar para a grande viagem!
— Mas não iria sem mim! — exclamou a Senhora Dambreuse, significando com essas palavras que não poderia sobreviver-lhe.
Em vez de responder, o marido fixou nela e no amante um singular sorriso, em que havia ao mesmo tempo resignação, indulgência, ironia e até como que uma insinuação, um subentendido quase alegre.
Frédéric quis partir para Nogent, mas a Senhora Dambreuse opôs-se; e ele fazia e desfazia as malas, segundo as alternativas da doença.
De repente, o Senhor Dambreuse começou a escarrar sangue em abundância. Consultados, “os príncipes da ciência” não fizeram nada. Incharam-lhe as pernas, a fraqueza aumentou. Manifestara diversas vezes o desejo de ver Cécile, que estava no outro extremo da França, com o marido, havia um ano nomeado para uma recebedoria. Ordenou expressamente que a fizessem vir. A Senhora Dambreuse escreveu três cartas, que lhe mostrou.
Sem confiar sequer na religiosa, não o deixava um segundo, não se deitava mais. As pessoas que deixavam os nomes na portaria informavam-se dela com admiração; e os transeuntes ficavam cheios de respeito perante a quantidade de palha estendida na rua, debaixo das janelas.
No dia 12 de fevereiro, às cinco horas, declarou-se uma hemoptise terrível. O médico assistente informou do perigo. Correram a chamar um padre.
Durante a confissão do Senhor Dambreuse, a mulher olhava para ele de longe, com curiosidade. Depois, o médico pôs-lhe ventosas, e esperou.
A luz dos candeeiros, velada pelos móveis, iluminava desigualmente o quarto. Frédéric e a Senhora Dambreuse, aos pés do leito, observavam o moribundo. No vão de uma janela, o padre e o médico conversavam a meia-voz; a freira, ajoelhada, murmurava orações.
Por fim, ouviu-se um estertor. As mãos arrefeciam, o rosto começava a perder a cor. Por vezes, fazia de repente uma inspiração enorme; mas isto tornou-se cada vez mais raro; escaparam-lhe duas ou três palavras confusas; exalou um leve suspiro, revirou os olhos, e a cabeça descaiu sobre o travesseiro.
Durante um minuto, todos ficaram imóveis.
A Senhora Dambreuse aproximou-se; e, sem esforço, com a simplicidade do dever fechou-lhe os olhos.
Depois, abriu os braços, torcendo o corpo como que no espasmo de um desespero que se procura dominar, e saiu do quarto, apoiada no médico e na religiosa. Passado um quarto de hora, Frédéric subiu ao quarto dela.
Havia ali um perfume indefinível, emanação das coisas delicadas que o enchiam. No meio da cama, estava estendido um vestido preto, contrastando com a coberta cor-de-rosa.
A Senhora Dambreuse estava ao canto da lareira, de pé. Embora calculando que ela não sofresse grande coisa, supunha-a ao menos um pouco triste; e, numa voz dolente:
— Sofres?
— Eu? Não, de maneira nenhuma.
Ao voltar-se, deu com os olhos no vestido, examinou-o; depois disse-lhe que estivesse à vontade.
— Fuma, se te apetece! Estás em minha casa!
E, soltando um profundo suspiro:
— Ah, Virgem Santa! Que alívio!
Frédéric estranhou a exclamação. Respondeu, beijando-lhe a mão:
— Contudo, tínhamos toda a liberdade!
Esta alusão à liberdade dos seus amores pareceu ferir a Senhora Dambreuse.
— Ah, não sabes os serviços que eu lhe prestava, e as angústias em que vivi!
— Como?
— Pois decerto! Podia sentir segurança, com aquela filha natural por perto, uma filha que ele trouxe para casa ao fim de cinco anos de casados, e que se não fosse eu, sem dúvida, o teria levado a fazer alguma tolice?
Então, explicou-lhe os seus negócios. Estavam casados em regime de separação de bens. O seu patrimônio era de trezentos mil francos. Pelo contrato de casamento, o Senhor Dambreuse garantira-lhe, em caso de sobrevivência, quinze mil libras de rendimento, e a propriedade do palácio. Mas, pouco tempo depois, fizera um testamento em que lhe dava toda a fortuna; e ela calculava-a tanto quanto era possível sabê-lo presentemente, em mais de três milhões.
Frédéric esbugalhou os olhos.
— Valia a pena, não é assim? Contribuí para ela, aliás! Eram os meus bens que defendia; Cécile ter-me-ia despojado, injustamente.
— Por que não veio ela ver o pai? — disse Frédéric.
A esta pergunta, a Senhora Dambreuse fitou-o; e depois respondeu, numa voz seca:
— Sei lá! Por não ter coração, sem dúvida! Oh! Conheço-a! Também, de mim não há de ver um real!
— Mas ela não a incomodava nada, pelo menos depois de ter casado.
— Ah! Esse casamento! — disse a Senhora Dambreuse sardonicamente.
Não perdoava a si própria ter tratado demasiado bem aquela pécora, que era ciumenta, interesseira, hipócrita. “Tinha todos os defeitos do pai!” E cada vez o denegria mais. Ninguém tão falso como ele, aliás implacável, duro como uma pedra, “um homem mau, um homem mau!”
Mesmo os mais sensatos cometem erros. A Senhora Dambreuse acabava de cometer um, deixando transbordar assim o seu ódio. Frédéric, sentado diante dela, refletia, escandalizado.
Ela ergueu-se, e veio sentar-se docemente nos seus joelhos.
— Só tu és bom! Não amo senão a ti!
Olhando para ele, o seu coração enterneceu-se, uma reação nervosa fez-lhe vir lágrimas aos olhos, e murmurou:
— Queres casar comigo?
Ele a princípio julgou ter ouvido mal. Aquela riqueza entontecia-o. Ela repetiu, mais alto:
— Queres casar comigo?
Frédéric respondeu finalmente, sorrindo:
— Duvidas?
Depois, teve um acesso de pudor e, como uma espécie de reparação feita ao defunto, ofereceu-se para velar o cadáver. Mas, como tinha vergonha desse sentimento piedoso, acrescentou com ar despreocupado.
— Talvez fosse mais decente.
— Sim, talvez — disse ela — por causa dos criados.
O leito fora trazido completamente para fora da alcova. Aos pés, estava a freira; e à cabeceira achava-se um padre, outro, alto e magro, que tinha um ar espanhol e fanático. Sobre o criado-mudo, coberto com um pano branco, ardiam três velas.
Frédéric sentou-se numa cadeira, e olhou para o morto.
O rosto estava amarelo como palha; um pouco de espuma sanguinolenta assomava aos cantos da boca. Tinha um lenço em torno do crânio, um colete de malha e um crucifixo de prata sobre o peito, entre os braços cruzados.
Estava acabada aquela existência cheia de agitações! Quantas vezes não correra aos escritórios, alinhara números, metera-se em negócios, ouvira relatórios! Quantas adulações, quantos sorrisos, quanto dobrar de espinha! Porque ele aclamara Napoleão, os Cossacos, Luís XVIII, 1830, os operários, todos os regimes, tendo tal devoção pelo Poder que teria sido capaz de pagar para vender-se.
Mas deixava a propriedade da Fortelle, três fábricas na Picardia, o bosque de Crancé, no Yonne, uma fazenda perto de Orléans e consideráveis valores imobiliários.
Frédéric foi fazendo assim a recapitulação da fortuna; e esta ia pertencer-lhe! Pensou primeiro “no que diriam”, num presente para a mãe, nas carruagens que teria, num velho cocheiro da família que pensava fazer porteiro. A libré seria outra, naturalmente. Ficaria com o salão grande para gabinete de trabalho. Nada o impedia de, deitando três paredes abaixo, fazer uma galeria de pintura no segundo andar. Talvez fosse possível instalar, embaixo, uma sala de banhos turcos. Quanto ao escritório do Senhor Dambreuse, sala desagradável, para que poderia servir?
O padre, que acabava de assoar-se, ou a freira, avivando o lume, interrompiam brutalmente estas imaginações. Mas a realidade confirmava-as; o cadáver ali estava. Os olhos tinham voltado a abrir-se; e as pupilas, embora afogadas em trevas viscosas, tinham uma expressão enigmática, insuportável. Parecia a Frédéric ver nelas um juízo sobre si próprio, e quase sentia remorsos, porque nunca tivera razão de queixa daquele homem, o qual, pelo contrário... “Ora! Um velho malandro!” e considerava-o de mais perto, para tranquilizar-se, gritando-lhe mentalmente:
“E então que tem? Matei-te, por acaso?”
Entretanto, o padre ia lendo o breviário; a religiosa, imóvel, cabeceava; os pavios das três velas cresciam.
Ouviu-se, durante duas horas, o rodar surdo das carroças dirigindo-se para o Halles. As vidraças clarearam, passou um fiacre, depois uma tropa de burras, trotando na calçada, e ouviram-se marteladas, pregões de vendedores ambulantes, toques de corneta; tudo se confundia, já, na grande voz de Paris despertando.
Frédéric começou a tomar as providências necessárias2. Dirigiu-se primeiro à mairie para fazer a declaração; depois de obtida a certidão de óbito, voltou à mairie para dizer qual o cemitério escolhido pela família, e para entender-se com a agência funerária.
O empregado mostrou um desenho e um programa, este indicando as diversas categorias de enterro, e aquele, todos os pormenores da decoração. Desejava um carro com galeria ou com penachos, tranças nos cavalos, plumas para os lacaios, iniciais ou brasão, lâmpadas funerárias, um homem para levar as condecorações e quantas carruagens? Frédéric foi generoso; a Senhora Dambreuse queria fazer as coisas sem medir os gastos.
Depois dirigiu-se à igreja.
O vigário começou por condenar a exploração da agência funerária; assim, o homem para as condecorações era na realidade inútil; muitos círios seriam bem melhor! Combinaram uma missa rezada, com música. Frédéric assinou o que fora combinado, com a obrigação solidária de pagar todas as despesas.
Em seguida dirigiu-se à Municipalidade para comprar o terreno. Uma concessão de dois metros de comprimento por um de largura custava quinhentos francos. Queria uma concessão por cinquenta anos ou perpétua?
— Oh! Perpétua! — disse Frédéric.
Tomava o caso a sério, esforçava-se. No pátio do palácio, um marmorista esperava-o, para lhe mostrar orçamentos e projetos de túmulos gregos, egípcios, mouriscos; mas o arquiteto da família já se entendera com a senhora; e, na mesa do vestíbulo, havia uma porção de prospectos relativos à limpeza dos colchões, à desinfecção dos quartos, a diversos processos de embalsamar.
Depois de jantar, foi ao alfaiate, por causa do luto dos criados; e ainda teve que dar outro recado, porque tinham sido encomendadas luvas de pelica, e era de algodão que deviam ser.
Quando chegou, no dia seguinte, às dez horas, o grande salão já começava a encher-se de gente, e quase todos, ao encontrar-se, diziam com ar melancólico:
— E eu que ainda o tinha visto há um mês! Meu Deus! É o destino que nos espera a todos!
— Sim, esperemos que seja o mais tarde possível!
Então, soltavam uma risadinha de satisfação, e entabulavam até diálogos inteiramente alheios às circunstâncias. Finalmente, o mestre de cerimônias, de casaca preta à francesa e culote, com capa, canhões, espadim e chapéu de três bicos debaixo do braço, fazendo uma vênia, proferiu as palavras habituais:
— Meus senhores, quando quiserem.
O enterro pôs-se a caminho.
Era dia do mercado de flores na Praça de la Madeleine. O tempo estava claro e ameno; e a brisa, que sacudia levemente as barracas de lona, enfunava aos lados o imenso pano preto pendente sobre o portal da igreja. O brasão do Senhor Dambreuse, num quadrado de veludo, repetia-se três vezes. Era em fundo preto, um braço esquerdo de ouro, de punho fechado enluvado, em prata, com a coroa de conde, e a divisa Por todos os meios.
Os gatos-pingados conduziram até o alto da escadaria o pesado caixão, e entraram.
As seis capelas, o hemiciclo e as cadeiras estavam forrados de negro. O catafalco, à entrada do coro, formava, com os grandes círios, um único foco de luzes amarelas. Nos dois cantos, sobre candelabros, elevavam-se as chamas de espírito de vinho.
As pessoas mais importantes tomaram lugar no altar-mor, as outras na nave; e a missa começou.
À exceção de alguns, a ignorância religiosa de todos era tão completa que o mestre de cerimônias lhes fazia sinal, de quando em quando, para se erguerem, ajoelharem, tornarem a sentar-se. O órgão e dois contrabaixos alternavam com as vozes; nos intervalos de silêncio, ouvia-se o resmonear do padre no altar; depois, a música e os cantos recomeçavam.
Uma luz baça caía das três cúpulas; mas da porta aberta vinha horizontalmente como que um rio de claridade branca que incidia sobre todas as cabeças descobertas; e no ar, a meia altura da nave, flutuava uma sombra, penetrada pelo reflexo dos dourados que ornavam a nervura da abóbada e a folhagem dos capitéis.
Frédéric, para distrair-se, escutou o Dies Irae; fixava a assistência, procurava distinguir as pinturas demasiado altas que representavam a vida de Madalena. Felizmente, Pellerin veio para junto dele, e começou imediatamente, a propósito dos afrescos, uma longa dissertação. O sino tocou. Saíram da igreja.
O carro fúnebre, ornado de panos pendentes e de grandes plumas, encaminhou-se para o Père-Lachaise, puxado por quatro cavalos negros com tranças nas crinas, penachos na cabeça e envoltos até os cascos em largos xairéis bordados a prata. O cocheiro, de botas de montar, tinha um chapéu de três bicos, com um longo crepe pendente. Segurando os cordões, quatro pessoas importantes: um questor da Câmara dos Deputados, um membro do Conselho Geral do Aube, um delegado das minas — e Fumichon, como amigo. A caleche do defunto e doze carruagens de luto faziam o acompanhamento. Atrás, os convidados ocupavam o centro do bulevar.
Para ver tudo isso, os transeuntes paravam; mulheres, com o filho ao colo, subiam em cadeiras; e gente que bebia cerveja nos cafés assomava às janelas, com tacos de bilhar na mão.
O caminho era longo; e, como nas refeições de cerimônia em que se começa por ser reservado e se acaba por ficar expansivo, a compostura não tardou a relaxar-se. Só se falava na recusa do abono3 feita pela Câmara ao Presidente. O Sr. Piscatory4 mostrara-se demasiado ríspido, Montalembert, “magnífico, como sempre”, os Senhores Chambolle, Pidoux, Creton, em suma, toda a comissão deveria ter seguido, talvez, a opinião dos Senhores Quentin-Bauchard e Dufour.
Estas conversas prosseguiram ao longo da Rua Roquette, cheia de lojas, e onde só se veem rosários de vidro colorido e rodelas pretas cobertas de desenhos e letras douradas, — o que as faz parecer grutas cheias de estalactites e armazéns de louça. Mas, diante do portão do cemitério, todos, instantaneamente, calaram-se.
Os túmulos erguiam-se por entre as árvores, colunas partidas, pirâmides, templos, dolmens, obeliscos, hipogeus etruscos de portas de bronze. Em alguns via-se uma espécie de toucador fúnebre, com poltronas rústicas e bancos de dobrar. Teias de aranha pendiam, como farrapos, dos cadeados das urnas; e a poeira cobria os ramos de flores com fitas de cetim e os crucifixos. Por toda parte, entre os balaústres, sobre os túmulos, coroas de perpétuas e castiçais, vasos, flores, discos negros ornamentados com letras douradas, estatuetas de gesso: meninos e meninas, ou anjinhos seguros no ar por um arame: alguns até com um teto de zinco sobre a cabeça. Enormes fios de vidro, preto, branco e azul, descem do cimo das lápides até a extremidade das lajes, retorcidos como cobras. O sol batia neles, fazendo-os cintilar entre as cruzes de madeira preta; e o cortejo fúnebre avançava pelas grandes aleias, pavimentadas como as ruas de uma cidade. De quando em quando, os eixos estalavam. Mulheres de joelhos, com o vestido arrastando na grama, falavam docemente aos mortos. Uma fumarada esbranquiçada erguia-se por entre a verdura dos cedros. Eram oferendas abandonadas, restos que estavam sendo queimados.
A cova do Senhor Dambreuse era nas proximidades das de Manuel e Benjamin Constant. O terreno faz, naquele lugar, um declive abrupto. Têm-se aos pés os cocurutos de árvores verdes; mais longe, chaminés de fábricas, depois, toda a grande cidade.
Frédéric pôde admirar a paisagem enquanto se pronunciavam os discursos.
O primeiro foi em nome da Câmara dos Deputados, o segundo no do Conselho Geral do Aube, o terceiro no da Sociedade das Hulhas de Saône-et-Loire, o quarto no da Sociedade Agrícola de Yonne; e houve ainda outro, em nome de uma sociedade filantrópica. Finalmente, já todos se dispersavam quando um desconhecido se pôs a ler um sexto discurso, em nome da Sociedade dos Antiquários de Amiens.
E todos aproveitaram a oportunidade para malhar no socialismo, responsável pela morte do Senhor Dambreuse. O espetáculo da anarquia e a sua dedicação à ordem abreviaram-lhe a existência. Exaltaram-lhe as luzes, a probidade, a generosidade e até o mutismo como representante do povo; porque, se não era orador, possuía em compensação aquelas sólidas qualidades, mil vezes preferíveis etc. ... com todas as palavras que é preciso dizer: “Fim prematuro, — saudade eterna, — a outra pátria, — adeus, ou melhor, não, até breve”.
A terra, de mistura com pedras, caiu sobre o caixão; e nunca mais se voltaria a falar dele neste mundo.
Ainda se falou um pouco, ao descer o cemitério; e não se fazia cerimônia para o apreciar. Hussonnet, que faria o relato do enterro para os jornais, repetiu até, troçando, todos os discursos; — porque, afinal, Dambreuse tinha sido um dos mais dignos “vira-casacas” do último reinado. Depois, as carruagens de luto reconduziram os burgueses aos seus negócios; a cerimônia não tinha sido demasiado longa, e todos se felicitaram por isso.
Frédéric, fatigado, voltou para casa.
Quando no dia seguinte se apresentou no palácio Dambreuse, avisaram-no de que a senhora estava ocupada embaixo, no escritório. As pastas, as gavetas estavam abertas, em desordem, os livros de contas espalhados por todos os lados; um rolo de papéis, com o título “Cobranças desesperadas”, estava caído no chão; quase tropeçou nele, e apanhou-o. A Senhora Dambreuse mal aparecia, enterrada na grande poltrona.
— Então? Mas onde é que está? Que aconteceu?
Ela ergueu-se de um salto.
— O que aconteceu? Estou arruinada, arruinada! Ouviste?
O Senhor Adolphe Langlois, o tabelião, chamara-a ao cartório e dera-lhe conhecimento de um testamento, escrito pelo marido, antes do casamento. Legava tudo a Cécile; e o outro testamento tinha-se perdido. Frédéric ficou muito pálido. Ela com certeza não tinha procurado bem?
— Mas olha aí! — disse a Senhora Dambreuse, mostrando-lhe o escritório.
Os dois cofres, escancarados, tinham sido arrombados a machado, e ela revolvera a escrivaninha, revistara os armários, sacudira os colchões, quando de repente, dando um grito agudo, se precipitou para um dos cantos, onde acabara de divisar uma pequena caixa com fechadura de cobre; abriu-a: nada!
— Ah! O miserável! E eu que cuidei dele com tanta dedicação!
Depois caiu em soluços.
— Talvez esteja noutro lugar? — disse Frédéric.
— Ah, não! Estava ali, naquele cofre! Vi-o recentemente. Queimou-o, tenho a certeza!
Um dia, no começo da doença, o Senhor Dambreuse tinha descido para assinar alguns papéis.
— Foi nessa altura que o destruiu!
E deixou-se cair novamente numa cadeira, aniquilada. Uma mãe de luto, junto de um berço vazio, não faria mais dó do que a Senhora Dambreuse em frente aos cofres escancarados. Em suma, a sua dor — malgrado a baixeza que a provocava — parecia tão profunda que Frédéric procurou consolá-la, dizendo-lhe que, afinal, não tinha ficado na miséria.
— É a miséria, porque não te posso oferecer uma grande fortuna!
Já não tinha senão trinta mil libras de rendimento, não contando o palácio, que correspondia talvez a umas dezoito ou vinte mil.
Embora isso fosse, para Frédéric, a opulência, nem por isso deixou de se sentir decepcionado. Adeus sonhos, e toda a grande vida que teria levado! A honra impunha-lhe o casamento com a Senhora Dambreuse. Esteve um minuto a refletir; em seguida, com expressão terna:
— Mas tenho-te ainda a ti!
Ela precipitou-se-lhe nos braços; e Frédéric estreitou-a contra o peito, com uma emoção na qual havia um pouco de admiração por si próprio. A Senhora Dambreuse, cujas lágrimas se tinham estancado, ergueu para ele os olhos brilhantes de felicidade, e, tomando-lhe a mão:
— Ah! Eu nunca duvidei de ti! Contava com isso!
Esta certeza antecipada do que ele tinha como uma bela ação desagradou a Frédéric.
Depois ela levou-o para o quarto, e fizeram projetos. Agora, Frédéric precisava pensar em conseguir uma situação. Deu-lhe até admiráveis conselhos sobre a candidatura dele.
Em primeiro lugar, era necessário que soubesse duas ou três frases sobre economia política. Precisava escolher uma especialidade, cavalos, por exemplo, escrever vários memoriais sobre um problema de interesse local, ter sempre à disposição postos do correio e concessões de tabacarias, prestar uma porção de pequenos serviços. Nesse ponto, o Senhor Dambreuse fora modelar. Assim, uma vez, no campo, fizera parar a carruagem, cheia de amigos, em frente à loja de um sapateiro, e comprara para os hóspedes doze pares de sapatos, e, para ele, umas botas horrendas — que teve até o heroísmo de usar durante quinze dias. Essa anedota pô-los alegres. E ela contou outras, recuperando todo o seu encanto, juventude e espírito.
Achou bom que ele fosse imediatamente a Nogent. Os adeuses foram ternos; depois, no limiar, ela murmurou uma vez mais:
— Gostas de mim, não é verdade?
— Eternamente! — respondeu ele.
Em casa, esperava-o um moço de recados, com um bilhete a lápis, prevenindo-o de que Rosanette ia dar à luz. Tivera tantas ocupações, nos últimos dias, que nem pensara mais nisso. Ela estava numa instituição especial, em Chaillot.
Frédéric tomou um fiacre e dirigiu-se para lá.
Na esquina da Rua Marbeuf, leu numa tabuleta, em grandes letras: “Casa de Saúde e de Partos da Senhora Alessandri, parteira de primeira classe, ex-aluna da Maternidade, autora de diversas obras etc.”. Depois, no meio da rua, por cima da porta, uma portinha esconsa, outra tabuleta repetia (sem a palavra parto): “Casa de Saúde da Senhora Alessandri”, com todos os seus títulos.
Frédéric bateu à porta.
Uma camareira conduziu-o à sala de visitas, onde havia uma mesa de mogno, poltronas de veludo cor de vinho e um relógio de redoma.
Madame surgiu quase imediatamente. Era uma morena alta de quarenta anos, cintura fina, uns belos olhos e boas maneiras. Informou Frédéric de que o parto tinha corrido bem, e conduziu-o ao quarto.
Rosanette, com um sorriso inefável, como que desfalecida de amor, disse-lhe, baixinho:
— É um rapaz! Ali, ali! — apontando para um bercinho, ao lado da cama.
Ele afastou o cortinado, e viu, entre a roupa, uma coisinha avermelhada, cheia de rugas, que cheirava mal e vagia.
— Dá-lhe um beijo!
Ele respondeu, para ocultar a repugnância:
— Tenho medo de lhe fazer mal!
— Não! Não!
Então Frédéric beijou o filho, com a extremidade dos lábios.
— Como ele é parecido contigo!
E Rosanette, estendendo os braços débeis, pendurou-se nele, com uma efusão de sentimento que Frédéric nunca lhe vira.
Voltou-lhe a recordação da Senhora Dambreuse. Considerou-se um monstro, por trair aquele pobre ser, que amava e sofria com toda a sinceridade da sua natureza. Durante alguns dias, fez-lhe companhia até o anoitecer.
Ela sentia-se bem naquela casa discreta; as portadas das janelas mantinham-se até constantemente cerradas; o quarto, forrado de chita clara, dava para um grande jardim; a Sra. Alessandri, cujo único defeito era citar, como seus íntimos, médicos ilustres, rodeava-a de atenções; as companheiras, quase todas meninas da província, aborreciam-se muito, não tendo ninguém que as fosse visitar; Rosanette deu conta de que era invejada, e disse-o com orgulho a Frédéric. Mas era necessário falar baixo; os tabiques eram finos, e toda a gente estava sempre de ouvido atento, apesar do barulho contínuo dos pianos5.
Ia partir finalmente para Nogent, quando recebeu uma carta de Deslauriers.
Dois novos candidatos tinham surgido, um conservador, o outro vermelho; um terceiro, fosse ele quem fosse, não tinha quaisquer probabilidades. A culpa era de Frédéric; deixara passar o momento oportuno, devia ter ido mais cedo, ter-se mexido. “Nem sequer apareceste nos comícios agrícolas!” O advogado censurava-o por não ter nenhuma influência nos jornais. “Ah, se tu tivesses seguido outrora os meus conselhos! Se tivéssemos um jornal nosso!” E insistia nisso. Aliás, muitas pessoas que teriam votado nele, por consideração pelo Senhor Dambreuse, o abandonariam agora. Deslauriers seria uma delas. Nada mais tendo a esperar do capitalista, largava o seu protegido.
Frédéric levou a carta à Senhora Dambreuse.
— Então não estiveste em Nogent? — disse ela.
— Por quê?
— É que vi Deslauriers há três dias.
Sabendo da morte do marido, o advogado viera trazer-lhe notas sobre as minas de carvão, e oferecer-lhe os seus préstimos como homem de negócios. Isto pareceu estranho a Fréderic; e que estaria o amigo fazendo em Nogent?
A Senhora Dambreuse quis saber em que empregara ele o tempo desde que se tinham separado.
— Estive doente — respondeu ele.
— Ao menos podias ter-me avisado.
— Oh! Não valia a pena; — e, além disso, tivera uma porção de coisas a fazer, encontros, visitas.
Daí por diante levou uma dupla existência, nunca deixando de dormir em casa da Marechala, e passando as tardes em casa da Senhora Dambreuse, de modo que lhe sobrava apenas, no meio do dia, uma hora de liberdade.
A criança estava no campo, em Andilly. Iam vê-la todas as semanas.
A casa da ama6 ficava na parte alta de uma aldeia no fundo de um pequeno pátio, sombrio como um poço, com palha pelo chão, galinhas à solta e uma carroça de hortaliça debaixo de um galpão. Rosanette começava por beijar freneticamente o bebê; e, dominada por uma espécie de delírio, andava de um lado para o outro, tentava mungir a cabra, comia o pão grosseiro, aspirava o cheiro do estrume, queria pôr um pouco deste no lenço.
Depois davam grandes passeios; ela entrava nas hortas, arrancava ramos de lilás que pendiam das paredes, gritava: “Eh! Burrinho!” aos animais que puxavam uma carriola, ficava contemplando, através do portão, o interior dos belos jardins; ou então a ama pegava na criança, e as duas levavam-na para a sombra de uma nogueira; e ficavam, durante horas, a dizer enfadonhas insignificâncias.
Frédéric, junto delas, contemplava os vinhedos pelas encostas, com o tufo de uma ou outra árvore de permeio, as veredas empoeiradas, que pareciam fitas cinzentas, as casas, pondo por entre a verdura manchas brancas e pretas; e, de vez em quando, o penacho de fumo de uma locomotiva estirava-se horizontalmente no sopé das colinas cobertas de folhagem, como gigantesca pena de avestruz cuja frágil extremidade se fosse desfazendo.
Depois, o seu olhar pousava no filho. Imaginava-o moço, faria dele um companheiro; mas talvez saísse estúpido, e certamente viria a ser infeliz. A ilegalidade do nascimento havia de o perseguir sempre; antes não tivesse nascido, e Frédéric murmurava: “Pobre criança!” com o coração amargurado por uma tristeza incompreensível.
Muitas vezes, perdiam o último trem. Então, a Senhora Dambreuse censurava-o por ter faltado. Ele inventava mentiras.
Também precisava inventá-las para Rosanette. Ela não compreendia como é que ele tinha sempre as noites ocupadas; e, quando mandava algum recado à casa dele, nunca estava! Um dia, que não tinha saído, apareceram as duas quase ao mesmo tempo. Fez sair a Marechala e escondeu a Senhora Dambreuse, dizendo-lhe que a mãe estava para chegar.
Não tardou a achar divertido mentir-lhes; repetia a uma as juras que acabava de fazer à outra, mandava-lhes ramos de flores iguais, escrevia-lhes ao mesmo tempo, depois estabelecia comparações entre ambas; — e havia uma terceira, sempre presente no seu pensamento. A impossibilidade de ela ser sua servia-lhe de justificação para aquelas perfídias, que acicatavam o prazer, pela alternativa; e, quanto mais tinha enganado qualquer das duas, mais ela o amava, como se os seus amores se tivessem inflamado reciprocamente, e, por uma espécie de emulação, cada qual quisesse fazer-lhe esquecer a outra.
— Admira a minha confiança! — disse-lhe um dia a Senhora Dambreuse, desdobrando um papel em que a preveniam de que o Sr. Moreau vivia maritalmente com uma tal Rose Bron. — É aquela moça das corridas, por acaso?
— Que disparate! — retorquiu ele. — Deixa-me ver.
A carta, escrita em letras desenhadas, não era assinada. A princípio a Senhora Dambreuse tolerara aquela ligação, que encobria o seu adultério. Mas, quando a paixão se tornara mais forte, tinha exigido uma ruptura, coisa que, dizia Frédéric, havia muito estava feita; e, quando ele terminou os seus protestos, ela replicou, semicerrando os olhos, com um olhar que parecia a ponta de um estilete:
— Está bem, mas a outra?
— Que outra?
— A mulher do ceramista!
“Ele encolheu desdenhosamente os ombros. A Senhora Dambreuse não insistiu.
Mas, passado um mês, como falassem de honra e de lealdade, e ele proclamasse a sua (de maneira incidental, por precaução), ela disse-lhe:
— É certo, tu és honesto, nunca mais lá voltaste.
— Onde?
— À casa da Senhora Arnoux.
Frédéric suplicou que lhe confessasse como conseguira essa informação. Fora pela costureira, a Senhora Regimbart.
Assim, conhecia-lhe a vida, enquanto ele nada sabia da sua!
Todavia, descobrira-lhe no toucador a miniatura de um homem de grandes bigodes; seria o mesmo acerca do qual lhe tinham contado outrora uma vaga história de suicídio? Mas não tinha maneira de saber mais nada! E de resto, para quê? Os corações das mulheres são como aqueles cofrezinhos de segredo, cheios de gavetas metidas umas dentro das outras; tem-se imenso trabalho, quebram-se as unhas, e vai-se encontrar lá no fundo alguma flor seca, uns grãos de poeira — ou o vazio! Além disso receava talvez vir a descobrir demais.
Ela exigia que ele recusasse os convites, quando não podia ir também, conservava-o a seu lado, tinha medo de perdê-lo; e, apesar de uma união cada dia maior, de repente surgiam abismos entre eles, a propósito de coisas insignificantes, a apreciação de uma pessoa, de uma obra de arte.
A Senhora Dambreuse tocava piano de forma correta e seca. O seu espiritualismo (a Senhora Dambreuse acreditava na transmigração das almas pelas estrelas) não a impedia de olhar muito bem pelos seus negócios. Mostrava-se altiva com os servidores; os olhos não se lhe umedeciam diante dos andrajos dos pobres. Um egoísmo ingênuo revelava-se nas suas locuções habituais: “Que tenho eu com isso? Só se eu fosse tola! Preciso lá disso!” e mil pequenos atos inanalisáveis, odiosos. Era capaz de escutar atrás das portas; devia mentir ao confessor. Por espírito de domínio, quis que Frédéric a acompanhasse à missa dos domingos. Ele obedeceu, e levava-lhe o missal.
A perda da herança suscitara nela uma grande transformação. Estes sinais de um sofrimento que era atribuído à morte do Senhor Dambreuse tornavam-na atraente; e, como outrora, recebia muito. Depois do insucesso eleitoral de Frédéric, ambicionava para ambos uma legação na Alemanha; em vista disso, a primeira coisa a fazer era submeter-se às ideias reinantes.
Uns desejavam o Império, outros os Orléans, outros o Conde de Chambord; mas todos estavam de acordo sobre a urgente necessidade de uma descentralização, e vários meios eram sugeridos, como estes: dividir Paris numa multidão de grandes ruas, a fim de aí instalar aldeias, transferir para Versalhes a sede do Governo, levar as Escolas para Bourges, suprimir as bibliotecas, confiar tudo aos generais de divisão; — e fazia-se a apologia da aldeia, o analfabeto tinha naturalmente mais bom-senso do que os outros! Pululavam os ódios; ódio contra os professores primários e contra os taberneiros, contra as aulas de filosofia, contra os cursos de história, contra os romances, os coletes vermelhos, as barbas compridas, contra qualquer forma de independência, qualquer manifestação individualista; porque era necessário “firmar o princípio de autoridade”; que ela se exercesse fosse em nome do que fosse, de onde quer que viesse, contanto que fosse a Força, a Autoridade! Os conservadores falavam agora como Sénécal. Frédéric já não entendia nada; e ia encontrar em casa de Rosanette as mesmas conversas, na boca dos mesmos homens!
Os salões das cortesãs (é dessa época que data a sua importância) eram um território neutro, onde se encontravam os reacionários de diversos grupos. Hussonnet, empenhado na demolição das glórias contemporâneas (coisa excelente para a restauração da Ordem), inspirou a Rosanette o desejo de também ter as suas reuniões, como qualquer outra; ele faria o relato para os jornais; levou primeiro um homem sério, Fumichon; depois surgiram Nonancourt, o Senhor de Grémonville, o Senhor de Larsillois, ex-prefeito, e Cisy, agora agrônomo, mais que nunca bretão e cristão.
Vinham, além desses, antigos amantes da Marechala, como o Barão de Comaing, o Conde de Jumillac e alguns outros; a liberdade dos seus modos era desagradável a Frédéric.
Para se impor como dono da casa, aumentou o luxo. Passaram a ter um groom, mudaram de apartamento, compraram mobília nova. Tais despesas eram úteis para fazer parecer o casamento menos desproporcionado com a sua fortuna. Por isso, esta diminuía a olhos vistos; — e Rosanette não compreendia nada do que se passava!
Burguesa decaída, adorava a vida caseira, um pequeno interior sossegado. Contudo, gostava de ter o seu “dia de receber”, e dizia “Essas mulheres!”, quando se referia às suas iguais; queria ser “uma dama da sociedade”, julgava-se uma delas. Pediu-lhe para deixar de fumar no salão, tentou levá-lo a respeitar o jejum, para se dar ares.
Enfim, estava traindo o seu papel, porque se tornava séria, e até, antes de deitar-se, manifestava sempre um pouco de melancolia, tal como há ciprestes à porta das tabernas.
Frédéric descobriu a causa disto: ela sonhava com o casamento, — também ela! E ficou exasperado. Aliás, não se esquecera do aparecimento dela em casa da Senhora Arnoux, e além disso ficara-lhe uma certa raiva por lhe ter resistido durante tanto tempo.
Nem por isso se desinteressava de saber quem tinham sido os seus amantes. Ela negava-os todos. Começou sentindo uma espécie de ciúme. Irritava-se com os presentes que ela recebera, que recebia ainda; — e, à medida que a própria essência da pessoa dela o irritava sempre mais, uma febre dos sentidos, rude e bestial atraía-o para ela, ilusões de um minuto que acabavam em ódio.
As palavras, a voz, o sorriso, tudo nela acabou por lhe ser desagradável, sobretudo o olhar, aquele olhar de mulher, eternamente límpido e inepto. Sentia-se por vezes tão irritado que a teria visto morrer sem comoção. Mas como zangar-se? Ela era de uma doçura exasperante.
Deslauriers reapareceu, e explicou a sua estada em Nogent dizendo que andara procurando comprar um cartório. Frédéric gostou de tornar a vê-lo; era alguém! E ficou íntimo da casa.
O advogado jantava com eles de vez em quando, e, quando havia pequenas discussões, punha-se sempre do lado de Rosanette, a tal ponto que Frédéric lhe disse, certa vez:
— Homem! Dorme com ela, se isso te diverte! — tanto era o seu desejo de um acaso que o libertasse.
Em meados de junho, ela recebeu uma intimação em que Athanase Gautherot, oficial de diligências, lhe exigia o pagamento de quatro mil francos devidos a Clémence Vatnaz, na falta do que, viria no dia seguinte fazer a penhora.
Com efeito, das quatro letras que assinara outrora, só uma fora paga; — o dinheiro que recebera depois fora tapar outros buracos.
Rosanette correu à casa de Arnoux. Este mudara para o faubourg Saint-Germain, e o porteiro ignorava o nome da rua. Foi à casa de diversos amigos, não encontrou ninguém, e voltou desesperada. Não queria dizer nada a Frédéric, com medo de que aquela nova dificuldade fosse prejudicar o seu casamento.
No dia seguinte pela manhã, o Senhor Athanase Gautherot apresentou-se, seguido por dois acólitos, um lívido, cara de fuinha, expressão de inveja, o outro de colarinho e presilhas muito esticadas, com uma dedeira de tafetá preto no indicador; — e ambos ignobilmente sujos, de colarinhos gordurosos, as mangas da sobrecasaca curtas demais.
O seu chefe, um belo homem, pelo contrário, começou por se desculpar da sua penosa incumbência, enquanto passava os olhos pelo apartamento, “cheio de lindas coisas, palavra de honra!”. E acrescentou: “além daquelas que não se pode penhorar”. A um gesto seu, os dois beleguins desapareceram.
Então, os cumprimentos redobraram. Como imaginar que uma pessoa tão... encantadora, não tivesse um amigo sério! Uma venda por ordem da justiça era uma autêntica desgraça! Nunca mais se levanta a cabeça. E procurou amedrontá-la; depois, vendo-a aflita, tomou subitamente um tom paternal. Sabia como eram as coisas, tivera de se ocupar de questões com outras damas; e, enquanto dizia os nomes delas, examinava os quadros que pendiam das paredes. Eram antigas coisas de Arnoux, esboços de Sombaz, aquarelas de Burieu, três paisagens de Dittmer. Rosanette não lhes conhecia o valor, evidentemente. Gautherot voltou-se para ela:
— Olhe! Para lhe mostrar como sou boa pessoa, vamos fazer uma coisa: ceda-me estes Dittmer, e eu pago tudo. Está bem?
Nesse momento, Frédéric, informado no vestíbulo por Delphine, e que acabava de ver os dois beleguins, entrou de chapéu na cabeça, com ar violento. Gautherot recuperou a dignidade; e, como a porta tivesse permanecido aberta:
— Vamos, senhores, escrevam! Na segunda sala, temos: uma mesa de carvalho, com duas tábuas suplementares, dois bufês...
Frédéric deteve-o, perguntando se não havia maneira de impedir o arresto.
— Sem dúvida! Quem pagou os móveis?
— Eu.
— Então pode formular uma reivindicação; é sempre tempo ganho.
Gautherot terminou rapidamente os seus assentos, lavrou no auto o recurso da Srta. Brow, e retirou-se.
Frédéric não fez nenhuma censura. Contemplava a lama deixada no tapete pelos sapatos dos beleguins; e disse de si para si:
“Vai ser necessário arranjar dinheiro!”
— Ah! Meu Deus, como sou estúpida! — disse a Marechala.
Remexeu numa gaveta, tirou uma carta, e correu à Sociedade de Iluminação do Languedoc, para registrar as ações.
Voltou passada uma hora. Os títulos tinham sido vendidos a outra pessoa! O empregado respondera-lhe, examinando o papel, que era uma promessa por escrito de Arnoux: “Este documento não a constitui de modo algum proprietária. A Companhia não toma conhecimento disso”. Em suma, tinha-a mandado embora, e ela vinha furiosa; Frédéric devia ir procurar imediatamente Arnoux, para esclarecer o assunto.
Mas Arnoux ia talvez supor que ele pretendia recuperar, indiretamente, os quinze mil francos da hipoteca perdida; além disso, fazer uma reclamação a um homem que fora amante da sua amante parecia-lhe torpe. Optando por um meio-termo, foi ao palácio Dambreuse para saber a morada da Senhora Regimbart, mandou um moço de recados à casa dela, e conseguiu descobrir assim qual o café agora frequentado pelo Cidadão.
Era um pequeno café da Praça da Bastilha, onde passava o dia inteiro, no canto do lado direito, ao fundo, imóvel como se fizesse parte do prédio.
Depois de ter passado sucessivamente pelo cafezinho, o grogue, o vinho doce, e até pela sangria, voltara à cerveja; e, de meia em meia hora, dizia apenas: “Chope!”, tendo reduzido a sua linguagem ao indispensável. Frédéric perguntou-lhe se costumava ver Arnoux.
— Não!
— Ora essa, por quê?
— Um imbecil!
Talvez a política os tivesse afastado um do outro, e Frédéric achou conveniente perguntar-lhe por Compain.
— Que besta! — disse Regimbart.
— Como assim?
— Essa cabeça de vitela!
— Ah! Diga-me o que vem a ser isso de cabeça de vitela!
Regimbart teve um sorriso de compaixão.
— Idiotices!
Frédéric, após um demorado silêncio, continuou:
— Então ele mudou-se?
— Quem?
— Arnoux!
— Sim, para a Rua de Fleurus!
— Que número?
— Não frequento jesuítas!
— Como, jesuitas?!
O cidadão respondeu, furibundo:
— Com o dinheiro de um patriota que lhe apresentei, esse canalha estabeleceu-se com um negócio de rosários!
— Não é possível!
— Pois vá lá ver!
Nada mais certo: Arnoux, debilitado por um ataque, dera em devoto; aliás, “sempre tivera um fundo religioso”, e (com a combinação de mercantilismo e ingenuidade que o caracterizava), para salvar a alma e o dinheiro, dedicara-se ao comércio de artigos religiosos.
Frédéric não teve dificuldade em descobrir o estabelecimento, cuja tabuleta dizia: “Às Artes Góticas. — Restauração do culto. — Decorações de igreja. — Escultura policroma. — Incenso dos reis magos etc. etc.”.
De cada lado da vitrina erguia-se uma estátua de madeira, sarapintada de dourados, de cinábrio e de azul: um S. João Batista com a sua pele de carneiro, e uma Sta. Genoveva, com rosas no avental e um fuso debaixo do braço; além dessas, havia grupos de gesso: uma freira ensinando uma menina, uma mãe ajoelhada junto de uma cama, três colegiais diante da mesa da comunhão. O mais bonito era uma espécie de chalé, representando o interior do presépio, com o boi, o burro e o Menino Jesus deitado na palha, palha verdadeira. De alto a baixo das prateleiras, viam-se dúzias de bentinhos, rosários de toda espécie, pias de água-benta em forma de concha e os retratos das glórias eclesiásticas, entre os quais brilhavam Mons. Affre e o Santo Padre, ambos sorridentes.
Ao balcão, Arnoux dormitava, de cabeça pendente. Tinha envelhecido extraordinariamente, mostrando até, em volta das frontes, uma coroa de borbulhas cor-de-rosa, sobre as quais se refletiam as cruzes douradas, batidas pelo sol.
Diante daquela decadência, Frédéric sentiu uma grande tristeza. Contudo, por dedicação a Marechala, resignou-se, e ia entrar, quando ao fundo da loja surgiu a Senhora Arnoux; então, deu meia-volta.
— Não o encontrei — disse, ao chegar a casa.
Não serviu de nada a promessa de escrever imediatamente ao seu notário do Havre, para este lhe mandar dinheiro: Rosanette enfureceu-se. Nunca se tinha visto um homem tão fraco, tão molengão; enquanto ela sofria mil privações, os outros enchiam-se.
Frédéric pensava na pobre Senhora Arnoux, imaginando a aflitiva mediocridade do seu lar. Sentara-se à escrivaninha; e, como a voz azeda de Rosanette não parasse:
— Ah! Pelo amor de Deus, cala-te!
— Quererás tu defendê-los, por acaso?
— E por que não? — exclamou ele. — Por que tamanho encarniçamento?
— Mas tu, por que não queres que eles paguem? É com medo de afligir a tua “ex”, confessa!
Frédéric teve vontade de lhe atirar o relógio à cabeça; não pôde articular uma palavra. Calou-se. Rosanette, andando de um lado para o outro, acrescentou:
— Vou processar o teu Arnoux. Oh! Não preciso de ti! — e, comprimindo os lábios: — Consultarei um advogado.
Três dias depois, Delphine entrou precipitadamente.
— Minha senhora, está lá dentro um homem com um pote de cola que me mete medo.
Rosanette entrou na cozinha e viu um vagabundo, de cara toda esburacada pelas bexigas, paralítico de um braço, bastante bêbado e tartamudeando.
Era o afixador de editais de Gautherot. O embargo da penhora fora indeferido, e a venda, portanto, ia ser efetuada.
Pelo trabalho de ter subido as escadas, reclamou, para começar, um copinho de aguardente; — em seguida, implorou outro favor, a saber, bilhetes para o teatro, supondo que a senhora fosse atriz. Ficou depois durante alguns minutos piscando os olhos, em sinais incompreensíveis; acabou finalmente por declarar que, por quarenta sous, podia rasgar os cantos do aviso que já colara na porta da rua, no qual Rosanette se achava designada pelo seu nome, rigor fora do comum, que revelava quanto ódio lhe tinha a Vatnaz.
Outrora, fora uma pessoa cheia de sensibilidade, e até, sob o efeito de um desgosto de amor, escrevera a Béranger pedindo-lhe conselhos. Mas as borrascas da existência tinham-na feito azeda; sucessivamente, dera lições de piano, tivera uma pensão, colaborara em jornais de modas, sublocara apartamentos, dedicara-se à venda de rendas no mundo das mulheres fáceis, — no qual as suas relações lhe permitiram prestar favores a muita gente. A Arnoux, entre outros. Anteriormente, trabalhara numa casa comercial.
Era ela que fazia o pagamento das operárias; para cada uma destas havia dois livros, um dos quais ficava sempre com ela. Dussardier, que guardava, por favor, o de uma tal Hortense Baslin, apresentou-se um dia na caixa no momento em que Srta. Vatnaz trazia a conta dessa moça, 1.682 francos, que o tesoureiro lhe pagou. Ora, na véspera, Dussardier lançara apenas 1.082 no livro da Baslin. Sob qualquer pretexto, ele pediu o livro; depois, querendo abafar aquela história de roubo, disse-lhe que o tinha perdido. A operária repetiu ingenuamente a mentira à Vatnaz; esta, para tirar o caso a limpo, veio falar com o bom do caixeiro, que se limitou a responder: “Queimei-o”. Ela deixou o estabelecimento pouco tempo depois, sem acreditar na destruição do livro, e supondo que Dussardier o guardara.
Ao saber que ele estava ferido, correra à casa dele, com a intenção de o reaver. Depois, não tendo encontrado nada, apesar das mais minuciosas buscas, fora tomada de respeito, e dentro em breve apaixonara-se por aquele rapaz tão leal, tão meigo, tão valente e tão forte! Na sua idade, era uma sorte inesperada. Apoderara-se dele com voracidade; — e por causa dele abandonara a literatura, o socialismo, “as doutrinas consoladoras e as utopias generosas”, o curso que dava sobre a Dessubalternização da mulher, tudo, até Delmar; finalmente, propusera casamento a Dussardier.
Embora ela fosse sua amante, ele não lhe tinha amor nenhum. Além disso, não esquecera o roubo. Por outro lado, ela era demasiado rica. Recusou. Então ela contou-lhe, em lágrimas, os projetos que fizera: era de se juntarem para abrir uma loja de roupas feitas. Ela tinha os fundos indispensáveis para começar, que seriam aumentados de quatro mil francos na semana seguinte; e contou a penhora feita contra a Marechala.
Dussardier ficou descontente, por causa do amigo. Lembrava-se da charuteira que ele lhe oferecera na delegacia, dos serões no cais Napoléon, das boas conversas, dos livros emprestados, das mil gentilezas de Frédéric. Pediu à Vatnaz para desistir.
Ela fez pouco da sua bonomia, manifestando um ódio incompreensível contra Rosanette; e até só desejava ser rica para mais tarde esmagá-la com o seu luxo.
Estes abismos de maldade aterraram Dussardier; e, quando soube o dia certo da venda, saiu. No dia seguinte pela manhã, entrou em casa de Frédéric com ar embaraçado:
— Tenho que pedir-lhe desculpas.
— Mas por quê?
— Deve achar que sou um ingrato, já que é... — Balbuciava. — Oh! Nunca mais a quero ver, não serei cúmplice dela! — E como Frédéric o fitasse, muito surpreendido: — Não é verdade que os móveis da sua amante vão ser vendidos, dentro de três dias?
— Quem lhe disse isso?
— Ela mesma, a Vatnaz! Mas tenho receio de ofendê-lo...
— Impossível, caro amigo!
— Ah! Bem sei, você é tão bondoso!
E, discretamente, estendeu-lhe uma carteirinha de couro.
Eram quatro mil francos, todas as suas economias.
— Como! Ah! Não!... Não!
— Bem sabia que o ia ferir — replicou Dussardier, com uma lágrima no canto do olho.
Frédéric apertou-lhe a mão; e o excelente jovem insistiu, numa voz dolente:
— Aceite! Dê-me esse prazer! Sinto-me tão desesperado! Aliás, não é verdade que tudo acabou? Julguei, quando veio a revolução, que todos iam ser felizes. Lembra-se de como tudo era belo? Como se respirava à vontade! Mas eis-nos caídos mais baixo que nunca.
E, pondo os olhos no chão:
— Agora, estão matando a nossa República7, tal como deram cabo da outra, da romana! E a pobre Veneza, a pobre Polônia, a pobre Hungria! Que coisas abomináveis! Para começar, deitaram abaixo as árvores da liberdade8, depois restringiram o direito de voto9, fecharam os clubes, restabeleceram a censura e entregaram o ensino aos padres10, enquanto não vinha a Inquisição. Por que não? Pois não há conservadores que pedem a vinda dos Cossacos?11 Condenam-se os jornais quando falam contra a pena de morte, Paris está cheio de baionetas, dezesseis departamentos acham-se em estado de sitio; e a anistia foi mais uma vez negada!
Deixou cair a cabeça nas mãos; depois, abrindo os braços, num grande desânimo:
— Se todavia se tentasse alguma coisa! Se houvesse boa-fé seria possível um entendimento! Mas qual! Os operários não são melhores que os burgueses, é o que é! Recentemente, em Elbeuf, recusaram o seu auxílio para apagar um incêndio. Há miseráveis que chamam aristocrata a Barbès! Para que se faça pouco do povo, querem nomear para a presidência Nadaud12, um pedreiro, imagine! E não há nada a fazer! Não há solução! Todos estão contra nós! Eu nunca fiz mal a ninguém; e, contudo, é como se tivesse um peso no estômago. Acabo por ficar louco, se isto continua. Dá-me vontade de me deixar matar. Garanto-lhe que não preciso do dinheiro! Depois devolve-me, é claro! É um empréstimo.
Frédéric, constrangido pela necessidade, acabou por aceitar os quatro mil francos. Assim, do lado da Vatnaz, já não tinham mais preocupações.
Mas Rosanette, daí a pouco, perdeu o processo contra Arnoux, e queria apelar, por teimosia.
Deslauriers extenuava-se para fazê-la compreender que a promessa de Arnoux não constituía nem uma doação nem uma cedência legal; ela nem sequer o escutava, achando a lei injusta; era por ela ser mulher, os homens defendiam-se uns aos outros! Por fim, todavia, seguiu-lhe os conselhos.
Ele sentia-se tão à vontade que trouxe diversas vezes Sénécal para jantar. Frédéric não gostava desta sem-cerimônia; emprestava-lhe dinheiro, fazia-o até vestir-se no seu alfaiate; e o advogado dava as suas casacas velhas ao socialista, cujos meios de vida ninguém conhecia.
Contudo, Deslauriers queria ser útil a Rosanette. Um dia, como esta lhe mostrasse doze ações da Companhia do Caolino (aquela empresa por causa da qual Arnoux fora condenado a pagar trinta mil francos), disse-lhe:
— Mas são fraudulentas! É magnífico!
Ela teria o direito de o intimar a fazer o reembolso dos títulos. Começaria por provar que ele era solidariamente obrigado a pagar todo o passivo da companhia, visto ter declarado coletivas as dívidas pessoais, e finalmente que dilapidara diversos títulos da Sociedade.
— Tudo isto o torna incurso no crime de falência fraudulenta, artigos 586 e 587 do Código Comercial; e havemos de apanhá-lo, pode ter a certeza, minha linda.
Rosanette atirou-se-lhe ao pescoço. No dia seguinte, ele recomendou-a ao seu antigo patrão, por ele próprio não poder tomar conta do processo, pois precisava ir a Nogent; Sénécal lhe escreveria, em caso de urgência.
As suas negociações para a compra de um cartório não passavam de pretexto. Passava o tempo em casa do Senhor Roque, onde começara, não só por fazer o elogio de Frédéric, mas por lhe imitar tanto quanto possível as maneiras e a linguagem, o que lhe valera a confiança de Louise, ao mesmo tempo em que ganhava a do pai, vociferando contra Ledru-Rollin.
Se Frédéric não voltava, era porque frequentava a alta sociedade; e a pouco e pouco Deslauriers foi-lhes dizendo que ele amava alguém, que tinha um filho, que mantinha uma criatura.
O desespero de Louise foi imenso, e não menor a indignação da Senhora Moreau. Via o filho precipitando-se para o fundo de um vago abismo, sentia-se ferida na sua religião das conveniências, como se se tratasse de uma desonra pessoal, quando de súbito a sua fisionomia se modificou. Às perguntas que lhe faziam a respeito de Frédéric, respondia com ar sutil:
— Vai bem, muito bem.
Tinha sabido do seu casamento com a Senhora Dambreuse.
A data estava marcada; e ele procurava até descobrir como fazer aceitar o fato a Rosanette.
Em meados do outono, esta ganhou o processo relativo às ações do caolino; Frédéric soube-o ao encontrar à sua porta Sénécal, que acabava de sair da audiência.
Arnoux tinha sido considerado cúmplice de todas as fraudes; e o antigo explicador tinha um ar de tal satisfação ao anunciar isso que Frédéric não o deixou ir mais longe, garantindo-lhe que se encarregava de transmitir o recado. E entrou em casa dela com um ar irritado.
— Bem, podes dar-te por satisfeita!
Mas, sem prestar atenção a estas palavras:
— Olha!
E Rosanette mostrava-lhe o filho, deitado no berço, junto da lareira.
Encontrara-o tão doente pela manhã, em casa da ama, que o trouxera para Paris.
Todos os seus membros estavam extraordinariamente emagrecidos, e tinha os lábios cobertos de manchas brancas, e que no interior da boca pareciam de leite coalhado.
— Que disse o médico?
— Ah! O médico! Acha que a viagem lhe agravou o... já não sei, um nome em ite... em suma, que ele está com sapinhos. Sabes o que é?
— Frédéric não hesitou em responder: “Certamente”, acrescentando que não era nada.
Mas, à noite, ficou aterrado com o aspecto débil da criança, e a progressão daquelas manchas azuladas, que pareciam mofo, como se a vida, abandonando já aquele pobre corpinho, só tivesse deixado uma matéria na qual a vegetação crescia. Tinha as mãos frias; já não podia beber; e uma outra ama, que o porteiro fora buscar, ao acaso, a uma agência, repetia:
— Acho-o bem malzinho, bem malzinho!
Rosanette passou a noite toda em claro.
Pela manhã foi chamar Frédéric.
— Vem ver. Ele já não se mexe.
Com efeito, estava morto. Agarrou-o, sacudiu-o, apertou-o contra si, chamando-o com os nomes mais carinhosos, cobria-o de beijos, soluçando, girava pelo quarto, desorientada, arrancando os cabelos, aos gritos; — e deixou-se cair na beira do divã, onde ficou, de boca entreaberta, enquanto as lágrimas lhe saltavam aos borbotões dos olhos esgazeados. Depois caiu num torpor, e tudo ficou quieto no apartamento. Havia móveis derrubados. Dois ou três panos estavam caídos no chão. Deram seis horas. A lamparina apagou-se.
Olhando para tudo aquilo, Frédéric julgava sonhar. A angústia apertava-lhe o coração. Tinha a impressão de que aquela morte era apenas um começo, por trás do qual uma infelicidade maior espreitava.
De repente, Rosanette disse, numa voz meiga:
— Vamos conservá-lo, não é verdade?
Queria mandar embalsamá-lo. Muitas razões se opunham a isso. Sobretudo, achava Frédéric que não era possível, com crianças daquela idade. Mais valia mandar fazer um retrato. Rosanette aceitou a ideia. Frédéric escreveu um bilhete a Pellerin, e Delphine correu à casa deste.
Pellerin não se fez esperar, querendo apagar com esse zelo qualquer lembrança da maneira como se comportara. Começou por dizer:
— Pobre anjinho! Ah! Meu Deus, que desgraça!
Mas, a pouco e pouco (o artista nele levando a melhor), declarou não ser possível fazer nada com aqueles olhos arroxeados, aquele rosto lívido, o que era uma autêntica natureza-morta — só com muito talento; e murmurava:
— Oh! Nada fácil, nada fácil!
— Desde que fique parecido... — objetou Rosanette.
— Eh! Que me importa a semelhança? Abaixo o Realismo! O que se pinta é o espírito! Deixe-me em paz! Vou ver se imagino como devia ser.
E pôs-se a refletir, a testa apoiada na mão esquerda, o cotovelo na direita; depois, subitamente:
— Ah! Tive uma ideia! Um pastel! Com as meias-tintas lançadas com leveza, pode-se conseguir um belo modelado, só nos contornos.
Mandou a criada buscar a caixa de tintas; depois, com uma cadeira debaixo dos pés, e outra ao lado, começou pintando largos traços, tão calmo como se estivesse a trabalhar diante de um modelo. Elogiava os S. Joõezinhos13 de Corrégio, a Infanta Rosa, de Velásquez14, as carnações leitosas de Reynolds, a distinção de Lawrence, e sobretudo a criança de cabelos compridos que está no colo de Lady Glower.
— Aliás, haverá coisa mais encantadora do que esses bichinhos? O tipo do sublime (Rafael provou-o com as suas Madonas) não será a mãe com o filho?
Rosanette, sufocada, saiu do quarto; e Pellerin disse logo:
— E o Arnoux, hein? Sabe o que aconteceu?
— Não! Que foi?
— Aliás, não podia acabar de outra maneira!
— Mas que aconteceu?
— Talvez ele esteja neste momento... Perdão!
O artista levantou-se para pôr a cabeça do pequenino cadáver mais alta.
— Você dizia... — inquiriu Frédéric.
E Pellerin semicerrando os olhos para tomar melhor as medidas:
— Dizia que o nosso amigo Arnoux talvez esteja, a esta hora, na cadeia!
Em seguida, com ar de satisfação:
— Olhe para isto! Não está bom?
— Excelente! Mas Arnoux?
Pellerin pousou o lápis.
— Segundo pude compreender, foi processado por um tal Mignot, um amigo íntimo de Regimbart, grande cabeça, não é? Que idiota! Imagine que um dia...
— Homem! Não se trata agora de Regimbart!
— É verdade. Pois bem, Arnoux tinha que arranjar, ontem à noite, doze mil francos, senão estava perdido.
— Oh! Não será exagero? — disse Frédéric.
— De maneira nenhuma! Pareceu-me coisa grave, muito grave!
Nesse momento, Rosanette reapareceu, com as maçãs do rosto muito vermelhas, como se as tivesse pintado. Aproximou-se do esboço e ficou a olhá-lo. Pellerin fez sinal de que não dizia mais nada por causa dela. Mas Frédéric, sem prestar atenção:
— Contudo, não posso crer...
— Repito-lhe que o encontrei ontem — disse o artista — às sete da tarde, na Rua Jacob. Até trazia o passaporte, por precaução; e disse que ia embarcar para o Havre, ele e a família toda.
— O quê! Com a mulher?
— Certamente! Um bom pai de família como ele não ia viver sozinho.
— Mas tem certeza...
— Pudera! Onde pensa que ele podia descobrir doze mil francos?
Frédéric deu duas ou três voltas no quarto, ofegante, mordendo os lábios, depois agarrou no chapéu.
— Aonde vais? — disse Rosanette.
Ele não disse nada, e desapareceu.
V
Precisava arranjar doze mil francos, ou nunca mais veria a Senhora Arnoux. Até aquele momento, conservara uma esperança inabalável. Não era ela como que a substância do seu coração, a própria essência da sua vida? Durante alguns minutos ficou parado no passeio, titubeante, roído de angústias, feliz, todavia, por já não estar em casa da outra.
Onde arranjar dinheiro? Frédéric não ignorava quanto é difícil consegui-lo de um momento para o outro, seja por que preço for. Só uma pessoa o podia ajudar, a Senhora Dambreuse. Ela tinha sempre na escrivaninha algumas notas de banco. Dirigiu-se à casa dela; e, num tom decidido:
— Tens doze mil francos que me possas emprestar?
— Para quê?
Era segredo de outra pessoa. Ela queria saber de quem. Frédéric não cedeu. Ambos se obstinaram. Por fim, ela declarou que não daria nada, sem saber para que fim. Frédéric ficou muito vermelho. Um dos seus camaradas tinha cometido um roubo. A quantia tinha de ser restituída naquele mesmo dia.
— Quem foi? O nome? Vamos, o nome?
— Dussardier!
E ajoelhou aos pés dela, suplicando-lhe que nada dissesse.
— Que ideia fazes de mim? — replicou a Senhora Dambreuse. — Até parece seres tu o culpado. Deixa-te desses ares trágicos! Pronto, aqui os tens! E que lhe sirvam!
Correu à casa de Arnoux. O comerciante não estava no estabelecimento. Mas continuava a morar na Rua Paradis, porque tinha dois domicílios.
Na Rua Paradis, o porteiro jurou que o Senhor Arnoux se achava ausente desde a véspera; quanto à senhora, não sabia dizer nada; e Frédéric, tendo subido as escadas num salto, encostou o ouvido à fechadura. Finalmente, vieram abrir. A senhora tinha partido com o patrão. A criada ignorava quando voltariam; tinham-lhe pago o ordenado, e ela própria se ia embora.
De repente, ouviu-se um estalido na porta.
— Está aí alguém?
— Não, meu senhor! É o vento!
Então foi-se embora. Fosse como fosse, um desaparecimento tão súbito tinha algo de inexplicável.
Talvez Regimbart, sendo amigo de Mignot, pudesse esclarecê-lo? E Frédéric fez-se conduzir a Montmartre à Rua de l’Empereur.
A casa de Regimbart era rodeada por um jardinzinho, fechado por uma grade coberta de placas de ferro. Três degraus de entrada davam relevo à fachada branca; e, do passeio, viam-se as duas salas do rés-do-chão, um salão, com vestidos espalhados por cima dos móveis, e uma sala em que trabalhavam as costureiras da Senhora Regimbart.
Todas elas estavam convencidas de que o Senhor Regimbart tinha importantes ocupações, grandes relações, que era um homem inteiramente fora do comum. Quando ele atravessava o corredor, com aquele rosto comprido, de casaca verde, interrompiam o trabalho. Aliás, ele nunca deixava de lhes dirigir algumas palavras de estímulo, qualquer gentileza em forma sentenciosa; mais tarde, quando casavam, sentiam-se infelizes, porque o tinham tomado como seu ideal.
Nenhuma, contudo, o amava como a Senhora Regimbart, mulherzinha inteligente, que o sustentava com o seu trabalho.
Mal o Senhor Moreau disse quem era, ela veio recebê-lo com presteza, pois sabia, pelos criados, o que ele era da Senhora Dambreuse. O marido “não ia tardar”; e Frédéric, seguindo-a, admirou a maneira como a casa estava cuidada e a profusão de oleados que havia. Depois esperou alguns minutos, numa espécie de escritório para onde o Cidadão se retirava para pensar.
O seu acolhimento foi menos rebarbativo do que habitualmente.
Contou a história de Arnoux. O ex-fabricante de louça intrujara Mignot, um patriota, possuidor de cem ações do Siècle, demonstrando-lhe ser necessário, do ponto de vista democrático, mudar a gerência e a redação do jornal; e, a pretexto de fazer triunfar o seu parecer na própria Assembleia geral, pedira-lhe cinquenta ações, dizendo-lhe que ia entregá-las a amigos de confiança, os quais lhe apoiariam a proposta; Mignot não teria a menor responsabilidade, não precisaria zangar-se com ninguém; depois, obtida a vitória, conseguir-lhe-ia na administração um bom lugar, de cinco ou seis mil francos, pelo menos. Tinham-lhe sido entregues as ações. Mas Arnoux vendera-as imediatamente; e, com esse dinheiro, associara-se a um negociante de objetos religiosos. Vieram, então, as reclamações de Mignot e as evasivas de Arnoux; por fim, o patriota ameaçara-o com uma queixa por extorsão, se ele não restituísse os títulos ou a quantia equivalente: cinquenta mil francos.
Frédéric tinha um ar desesperado.
— Mas não é tudo — disse o Cidadão. — Mignot, que é uma excelente pessoa, aceitava a quarta parte. Novas promessas do outro, novas intrujices, é claro. Em resumo, anteontem pela manhã, Mignot intimara-o a entregar-lhe, dentro de vinte e quatro horas, sem prejuízo do restante, doze mil francos.
— Mas eu tenho-os aqui! — disse Frédéric.
O Cidadão voltou-se lentamente:
— Brincalhão!
— Perdão! Tenho-os aqui no bolso. Ia levar-lhos.
— Você é eficiente, com a breca! Mas é demasiado tarde; a queixa foi apresentada, e Arnoux partiu.
— Sozinho?
— Não! Com a mulher. Viram-nos na estação do Havre.
Frédéric empalideceu extraordinariamente. A Senhora Regimbart pensou que ele fosse desmaiar. Dominou-se, e teve até forças para fazer duas ou três perguntas, ao acaso. Regimbart achava o caso lamentável, afinal, tudo aquilo prejudicava a Democracia. Arnoux tivera sempre uma conduta irregular e desordenada.
— Uma autêntica cabeça de vento! Gastava sem peso nem medida! As saias perderam-no! Não é dele que eu tenho pena, mas da mulher! — porque o Cidadão admirava as mulheres virtuosas, e tinha em grande estima a Senhora Arnoux. — Ela deve ter sofrido um pedaço!
Frédéric ficou-lhe grato por aquela simpatia; e, como se ele lhe tivesse prestado um serviço, apertou-lhe efusivamente a mão.
— Tomaste todas as providências necessárias? — disse Rosanette ao vê-lo.
Não tivera coragem, respondeu Frédéric, e andara ao acaso, pelas ruas, para se atordoar.
Às oito horas, passaram à sala de jantar; mas ficaram calados, um na frente do outro, soltando de quando em quando um suspiro profundo, sem tocar na comida. Frédéric pôs-se a beber aguardente. Sentia-se esmagado, aniquilado, sem consciência de mais nada além de uma extrema fadiga.
Rosanette foi buscar o retrato. O vermelho, o amarelo, o verde e o índigo chocavam-se em manchas violentas, tornando-o uma coisa hedionda, quase risível.
Aliás, o pequenino cadáver estava já irreconhecível. O tom violáceo dos lábios tornava a pele ainda mais branca; as narinas tinham-se afilado, os olhos afundavam-se nas órbitas; e a cabeça repousava sobre um travesseiro de tafetá azul, entre pétalas de camélias, rosas de outono e violetas; a ideia fora da criada de quarto; tinham-no arranjado assim, com devoção. A lareira, coberta por um pano rendado, estava ornamentada com candelabros de prata dourada, alternando com ramos de buxo bento; nas extremidades, em dois vasos, ardiam pastilhas odoríferas; tudo aquilo formava, com o berço, uma espécie de capela; e Frédéric lembrou-se do velório do Senhor Dambreuse.
Mais ou menos de quarto em quarto de hora, Rosanette abria as cortinas para contemplar o filho. Imaginava-o dentro de alguns meses, começando a andar, depois no colégio, no meio do recreio, jogando barra; depois, aos vinte anos, na juventude; e todas estas imagens, que fantasiava, representavam-lhe outros tantos filhos que tivesse perdido — o excesso do sofrimento multiplicava a maternidade.
Imóvel, na outra poltrona, Frédéric pensava na Senhora Arnoux.
Estava certamente viajando de trem, o rosto junto da vidraça de um vagão, vendo os campos ficar para trás, do lado de Paris, ou então no tombadilho de um barco a vapor, como da primeira vez que a tinha encontrado; mas este afastava-se interminavelmente, a caminho de regiões de onde ela não voltaria mais. Depois via-a no quarto de uma estalagem, com malas pelo chão, o papel das paredes em frangalhos, a porta sacudida pela ventania. E depois? Que iria ser dela? Mestra, dama de companhia, criada de quarto, quem sabe? Estava abandonada a todas as vicissitudes da miséria. A ignorância sobre o seu destino torturava-o. Devia ter-se oposto a essa fuga, ou partir em sua perseguição. Não era ele o seu verdadeiro esposo? E, pensando que nunca mais a encontraria, que tudo estava acabado, e ela irremediavelmente perdida, sentia todo o ser dilacerado; as lágrimas que se vinham acumulando desde manhã transbordaram.
Rosanette viu-as.
— Ah! Choras, como eu! Estás sofrendo?
— Ah! Sim! Estou!...
Apertou-a de encontro ao peito, e os dois ficaram soluçando, abraçados.
Também a Senhora Dambreuse chorava, deitada na cama, apertando a cabeça com as mãos.
Olympe Regimbart tinha vindo à noite, provar o seu primeiro vestido de cor, e contara a visita de Frédéric, e até que ele tinha doze mil francos destinados ao Senhor Arnoux.
Então aquele dinheiro, o seu dinheiro, era para impedir que a outra se fosse embora, para não perder a amante!
A princípio teve um ataque de raiva: estava decidida a escorraçá-lo como um lacaio. Lágrimas em abundância acalmaram-na. Mais valia fingir, não dizer nada.
No dia seguinte, Frédéric foi devolver-lhe os doze mil francos.
A Senhora Dambreuse insistiu para que ele os conservasse, em caso de necessidade, para o amigo, e fez-lhe muitas perguntas sobre esse cavalheiro. Quem o arrastara a cometer esse abuso de confiança? Uma mulher, sem dúvida! As mulheres conduzem os homens a todos os crimes.
Aquele tom de ironia deixou Frédéric desconcertado. Sentiu um grande remorso por sua calúnia. O que o tranquilizava era a impossibilidade de vir a Senhora Dambreuse a saber da verdade.
Ela, contudo, obstinou-se; porque, dois dias depois, tornou a perguntar-lhe pelo amigo, e por um outro, Deslauriers.
— É um homem inteligente, no qual se possa confiar?
Frédéric gabou-o muito.
— Pede-lhe para passar por cá um dia destes; desejava consultá-lo por causa de um negócio.
Tinha encontrado um rolo de papéis que continham letras de Arnoux perfeitamente protestadas, e que tinham a assinatura da Senhora Arnoux. Fora por causa delas que Frédéric viera uma vez à casa do Senhor Dambreuse, à hora do almoço; e, embora o capitalista tivesse desistido de promover essa cobrança, fizera com que o Tribunal do Comércio condenasse, não só a Arnoux, mas também à mulher, que o ignorava, pois o marido não achara conveniente informá-la.
Aquilo era uma arma! A Senhora Dambreuse tinha a certeza. Mas o seu notário talvez lhe aconselhasse a não tocar no assunto; ela preferia uma pessoa obscura; e lembrara-se daquele sujeito, de ar descarado, que lhe oferecera os seus préstimos.
Frédéric deu-lhe ingenuamente o recado.
O advogado ficou encantado por se ver em contato com aquela grande dama, e acorreu.
Ela preveniu-o de que a herança pertencia à sobrinha, o que era mais um motivo para liquidar essas dívidas, que reembolsaria, empenhada em ofuscar o casal Martinon com a lisura do seu procedimento.
Deslauriers compreendeu que havia ali algum mistério; meditava, considerando as letras. O nome da Senhora Arnoux, traçado pela própria mão dela, fez-lhe evocar a pessoa inteira, e o ultraje que dela recebera. Se a vingança se lhe oferecia, não ia deixá-la fugir.
Assim, aconselhou a Senhora Dambreuse a pôr em leilão as dívidas irrecuperáveis que dependiam da sucessão. Um testa de ferro comprava-as de segunda mão, e instaurava o processo. Ele se encarregava de arranjar o homem.
Quase no fim de novembro, Frédéric, ao passar diante da casa da Senhora Arnoux, ergueu os olhos para as janelas e reparou num edital afixado na porta, onde se lia em grandes letras:
“Venda de um rico mobiliário, consistindo em bateria de cozinha, roupa de uso e de mesa, camisas, rendas, saias de baixo, calças, sedas francesas e da índia, um piano Erard, dois baús de carvalho Renascença, espelhos de Veneza, porcelana da China e do Japão”.
“É a mobília deles!”, disse Frédéric de si para si; e o porteiro confirmou-lhe a suspeita.
Quanto à pessoa que ordenava a venda, nada sabia. Mas o leiloeiro, o notário Berthelmot, talvez pudesse informar.
O funcionário ministerial não quis dizer, a princípio, quem era o credor que promovia a venda; Frédéric insistiu. Era um certo Sénécal, agente de negócios; e o Senhor Berthelmot levou a gentileza a ponto de emprestar o seu jornal dos “Pequenos Anúncios”.
Chegando em casa de Rosanette, Frédéric atirou-o aberto para cima da mesa.
— Lê isto!
— E então, que tem? — disse ela, com uma expressão de tal placidez que ele se indignou.
— Ah! Deixa de te fazer de ingênua!
— Não compreendo.
— És tu que mandas vender as coisas da Senhora Arnoux?
Ela tornou a ler o anúncio.
— Onde está o nome dela?
— Ora! É a mobília dela! Sabes disso melhor que eu!
— Que me importa? — disse Rosanette, encolhendo os ombros.
— Que te importa? Mas estás te vingando, eis tudo! É o resultado das tuas perseguições! Pois não a ultrajaste a ponto de ir à casa dela? Tu, uma ínfima criatura. A mulher mais santa, mais encantadora, a melhor de todas! Por que te encarniças em querer a sua ruína?
— Estás enganado, garanto-te!
— Ora vamos! Como se não estivesse metido nisso o Sénécal!
— Que disparate!
Frédéric perdeu a cabeça.
— Mentes! Mentes! Miserável. Tens ciúmes dela. Conseguiste uma condenação contra o marido! O Sénécal já andou metido nos teus negócios! Ele detesta Arnoux, os vossos dois ódios entendem-se. Vi a alegria dele quando ganhaste o processo por causa do caolino. Vais negar isso, também?
— Dou-te a minha palavra...
— Oh! Conheço-a, a tua palavra!
E Frédéric recordou-lhe os nomes dos amantes, com pormenores circunstanciados. Rosanette, muito pálida, recuava.
— Admiras-te! Julgavas-me cego, por eu fechar os olhos. Hoje, estou farto! Não se morre das traições de uma mulher da tua espécie. Quando se tornam monstruosas demais, a gente afasta-se; quem as castigasse, degradava-se!
Ela torcia os braços.
— Meu Deus, mas quem o pôs assim?
— Ninguém, senão tu própria!
— E tudo isso por causa da Senhora Arnoux!... — exclamou Rosanette, chorando.
Frédéric retorquiu friamente:
— Nunca amei senão a ela!
A este insulto as lágrimas de Rosanette secaram.
— Isso mostra o teu bom gosto! Uma mulher madura, com uma tez cor de cera, de cintura grossa, uns olhos que parecem os respiradouros de uma adega, e vazios como eles! Pois se gostas, vai ter com ela!
— Era o que eu queria ouvir! Obrigado!
Rosanette ficou imóvel, estupefata perante aqueles modos incompreensíveis. Deixou mesmo que a porta se fechasse; depois de um salto, foi agarrá-lo no vestíbulo, e abraçando-o:
— Mas estás louco! Estás louco! É absurdo! Amo-te! — e suplicava-lhe: — Meu Deus, em nome do nosso filhinho!
— Confessa que foste tu quem tramou o negócio! — disse Frédéric.
Ela tornou a protestar a sua inocência.
— Não queres confessar?
— Não!
— Pois bem, adeus! E para sempre!
— Escuta!
Frédéric voltou-se.
— Se me conhecesses melhor, saberias que a minha decisão é irrevogável.
— Oh! Hás de voltar!
— Nunca mais!
E bateu a porta com violência.
Rosanette escreveu a Deslauriers que precisava vê-lo imediatamente.
Ele chegou cinco dias depois à noite; e depois de ela lhe ter contado a ruptura:
— É só isso! Olha a grande desgraça!
Rosanette julgara a princípio que ele poderia fazer voltar Frédéric; mas agora tudo estava perdido. Soubera, pelo porteiro, do próximo casamento dele com a Senhora Dambreuse.
Deslauriers pregou-lhe moral, mostrou-se até excepcionalmente alegre, brincalhão; e, como era muito tarde, pediu licença para passar a noite numa poltrona. Depois, na manhã seguinte, partiu de novo para Nogent, avisando-a de que não sabia se tornaria a vê-la; talvez dentro em breve houvesse uma grande mudança na vida dele.
Duas horas depois do seu regresso, a cidade estava em rebuliço. Dizia-se que o Senhor Frédéric ia casar com a Senhora Dambreuse. Finalmente, as três senhoritas Auger, não se contendo mais, dirigiram-se à casa da Senhora Moreau, que confirmou orgulhosamente a novidade. O Senhor Roque ficou doente. Louise fechou-se em casa.
Entretanto, Frédéric não conseguia esconder a sua tristeza. A Senhora Dambreuse, sem dúvida para distraí-lo, redobrava as atenções. Todas as tardes passeava na sua carruagem; e, uma vez que ia passando na Praça da Bolsa, ela teve a lembrança de entrar no palácio dos leilões, para se divertir.
Era dia 1º de dezembro, aquele mesmo em que seria efetuada a venda da Senhora Arnoux1. Frédéric lembrou-se da data, e manifestou pouca vontade, dizendo que aquele lugar era intolerável, por causa da multidão e do barulho. Ela queria dar apenas uma vista de olhos. O cupê deteve-se. Não teve remédio senão acompanhá-la.
No pátio, viam-se lavatórios sem bacia, armações de poltronas, cestas velhas, cacos de porcelana, garrafas vazias, colchões; e homens de avental e sobrecasaca suja, cobertos de poeira, as caras ignóbeis, alguns com sacos de linhagem ao ombro, conversavam em grupos separados, ou apostrofavam-se ruidosamente.
Frédéric objetou a inconveniência de passar adiante.
— Ora!
E subiram as escadas.
Na primeira sala, à direita, cavalheiros, de catálogo na mão, examinavam quadros; noutra, vendia-se uma coleção de armas chinesas; a Senhora Dambreuse quis descer. Ia olhando os números por cima das portas, e levou-o até uma sala cheia de gente, na extremidade do corredor.
Frédéric reconheceu imediatamente as duas prateleiras da Art industriel, a mesa de costura, todos os móveis! Arrumados ao fundo, segundo a altura, formavam uma grande pilha, que ia do chão às janelas. E, nas outras paredes da sala, pendiam a toda a volta os tapetes e os reposteiros. Embaixo, havia degraus ocupados por homens idosos, que cabeceavam. À esquerda erguia-se uma espécie de balcão, onde o leiloeiro, de laço branco, brandia delicadamente um martelinho. A seu lado, um jovem escrevia; e, mais adiante, de pé, um moço forte, com ar de caixeiro-viajante, anunciava aos gritos os móveis em leilão. Três jovens traziam-nos para cima de uma mesa, em volta da qual havia uma fila de ferros velhos e adeleiras. A multidão circulava por trás deles.
Quando Frédéric entrou, as anáguas, os fichus, os lenços e até as camisas passavam de mão em mão, eram virados e revirados; por vezes, atiravam-nos de longe, e alvuras atravessavam o ar, subitamente. Em seguida, puseram à venda os vestidos dela, depois um dos chapéus, do qual pendia uma pena partida, depois suas peles, depois três pares de botinas; — e a partilha daquelas relíquias, que lhe sugeriam confusamente as formas dela, parecia-lhe uma atrocidade, como se visse corvos dilacerando-lhe o cadáver. A atmosfera da sala, pesada de hábitos, agoniava-o. A Senhora Dambreuse ofereceu-lhe o seu frasquinho de sais; divertia-se muito, dizia.
Foram expostos os móveis do quarto de dormir.
O Senhor Berthelmot anunciava um preço. O pregoeiro repetia-o mais alto, imediatamente; e os três carregadores esperavam tranquilamente a pancada do martelo, e levavam o móvel para uma sala contígua. Assim foram desaparecendo, uns após outros, o grande tapete azul matizado de camélias, que os seus pés delicados pisavam quando vinha ao encontro dele, a poltroninha estofada em que se sentava sempre diante dela, quando estavam sós; os dois para-fogos da lareira, cujo marfim se tornara mais suave ao contato das suas mãos; uma bola de veludo, ainda eriçada de alfinetes. Era como se fossem levando pedaço a pedaço o seu coração: e a monotonia das mesmas vozes, dos mesmos gestos, entorpecia-o de fadiga, fazia-lhe sentir um torpor, uma dissolução fúnebres.
Junto da sua orelha houve um roçagar de seda; era Rosanette que lhe tocava.
Tivera conhecimento do leilão pelo próprio Frédéric. Passado o desgosto, viera-lhe a ideia de tirar proveito dele. Acabava de chegar para vê-lo, num corpete de cetim branco com botões de pérola, um vestido cheio de folhos, luvas justas, ar triunfante.
Frédéric empalideceu de cólera. Ela olhou para a mulher que o acompanhava.
A Senhora Dambreuse tinha-a reconhecido; e, durante um minuto, as duas olharam-se de alto a baixo, para descobrir o defeito, a tara, — uma invejando talvez a juventude da outra, esta despeitada pelo extremo bom gosto, pela simplicidade aristocrática da rival.
Por fim, a Senhora Dambreuse desviou os olhos, com um sorriso de indizível insolência.
O pregoeiro abrira um piano — o piano dela! Permanecendo de pé, tocou uma escala com a mão direita, e pôs o instrumento em praça por mil e duzentos francos, descendo depois para mil, para oitocentos, para setecentos.
A Senhora Dambreuse, com ar jocoso, fazia troça do fraco instrumento.
Puseram diante dos ferros velhos um cofrezinho com medalhões, de cantos e fechos de prata, o mesmo que ele vira no primeiro jantar na Rua de Choiseul que depois estivera em casa de Rosanette, e voltara para a da Senhora Arnoux; muitas vezes, enquanto conversavam, os seus olhos tinham pousado nele; estava ligado às mais queridas recordações de Frédéric, e a alma desfalecia-lhe de emoção quando a Senhora Dambreuse disse de repente:
— Vou comprá-lo!
— Mas não tem interesse — retorquiu ele.
Pelo contrário, ela achava-o muito bonito; e o pregoeiro gabava-lhe a delicadeza:
— Uma joia do Renascimento! Oitocentos francos, meus senhores! Quase inteiramente de prata! Com um pouco de alvaiade ficará brilhante!
E enquanto ela abria caminho por entre a multidão:
— Que estranha ideia! — disse Frédéric.
— Aborrece-o?
— Não! Mas que se pode fazer dessa bugiganga?
— Quem sabe? Talvez guardar cartas de amor!
E lançou-lhe um olhar que tornava a alusão bem clara.
— Mais uma razão para não despojar os mortos dos seus segredos.
— Não a julgava tão morta. — E acrescentou em voz clara: — Oitocentos e oitenta francos!
— O que está fazendo não é bonito — murmurou Frédéric.
Ela ria.
— Mas, minha querida amiga, é o primeiro favor que lhe peço.
— Sabe que não vai ser um marido amável?
Alguém acabava de cobrir o lanço; ela levantou a mão:
— Novecentos francos!
— Novecentos francos! — repetiu o Senhor Berthelmot.
— Novecentos e dez... e quinze... e vinte.., e trinta! — berrava o pregoeiro, enquanto percorria com os olhos a assistência, fazendo movimentos sacudidos com a cabeça.
— Prove-me que a minha mulher é uma pessoa sensata — disse Frédéric.
E arrastou-a mansamente para a porta.
O leiloeiro continuava:
— Vamos, vamos, meus senhores, novecentos e trinta! Há comprador por novecentos e trinta?
A Senhora Dambreuse, que acabava de chegar ao limiar, parou; e, em voz alta:
— Mil francos!
Houve um movimento entre o público, e depois silêncio.
— Mil francos, meus senhores, mil francos! Ninguém diz nada? Todos viram? Mil francos! — Arrematado!
E o martelo de marfim caiu.
A Senhora Dambreuse mandou o seu cartão, e mandaram-lhe o cofrezinho, que pôs no regalo.
Frédéric sentiu gelar-se-lhe o coração.
Ela não lhe abandonara o braço; e não ousou olhar para ele de frente, até chegarem à rua, onde a carruagem esperava.
Ela atirou-se para dentro como um ladrão em fuga, e, depois de sentada, voltou-se para Frédéric, que tinha o chapéu na mão.
— Não sobe?
— Não, minha senhora!
E, com um cumprimento frio, fechou a portinhola e fez sinal ao cocheiro para seguir.
A princípio, teve uma sensação de alegria e de independência reconquistada. Sentia-se cheio de orgulho por ter vingado a Senhora Arnoux, sacrificando-lhe uma fortuna; depois ficou espantado com o seu ato, e sentiu um abatimento imenso.
No dia seguinte pela manhã, o criado disse-lhe as novidades. Tinha sido decretado o estado de sítio, a Assembleia fora dissolvida e uma parte dos representantes do povo estava em Mazas2. Os assuntos públicos deixaram-no indiferente, tão preocupado estava com os seus próprios.
Escreveu a diversos fornecedores dando contraordem a respeito de várias compras relativas ao casamento, o qual aparecia-lhe aos olhos como uma operação um tanto ou quanto ignóbil; e execrava a Senhora Dambreuse, por ter estado quase a cometer uma baixeza por causa dela. Esquecia a Marechala, nem sequer com a Senhora Arnoux se preocupava, pensando em si, somente em si — perdido entre os escombros dos seus sonhos, doente, cheio de dor e desânimo; e, por ódio ao meio fictício em que tanto sofrera, desejou o frescor da grama, o repouso da província, uma vida sonolenta passada à sombra do teto natal, junto de corações ingênuos. Finalmente, na terça-feira à tarde partiu.
No bulevar estacionavam numerosos grupos. De vez em quando uma patrulha dispersava-os; e tornavam a formar-se, mal ela acabara de passar. Falava-se livremente, vociferava-se contra a tropa, com gracejos e injúrias, mas nada mais.
— Como! Então não se vai lutar? — disse Frédéric a um operário.
O homem de avental respondeu-lhe:
— Só se fôssemos loucos é que nos íamos fazer matar por amor aos burgueses! Eles que se arranjem!
E um respeitável cavalheiro resmungou, olhando de revés para o homem do subúrbio:
— Essa canalha dos socialistas! Se ao menos desta vez se pudesse dar cabo deles!
Frédéric não podia entender tanto rancor e estupidez. Ainda ficou mais enojado de Paris; e, dois dias depois, partiu para Nogent pelo primeiro trem.
As casas não tardaram a desaparecer, e os campos cresceram. Sozinho no vagão, com os pés em cima do banco, meditava sobre os acontecimentos dos últimos dias, e todo o seu passado. Lembrou-se de Louise.
“Essa gostava de mim! Fiz mal em deixar fugir esse amor... Ora, não pensemos mais nisso!”
Mas, cinco minutos depois:
“Contudo, quem sabe?.. Mais tarde, por que não?”
Como o olhar, a sua divagação perdia-se em vagos horizontes.
“Era uma ingênua, uma camponesa quase selvagem, mas como era boa!”
À medida que se aproximava de Nogent, ela ficava mais próxima dele. Ao atravessar os prados de Sourdun, viu-a à sombra dos choupos, como outrora, cortando juncos à beira das poças d’água; chegavam, e desceu.
Depois foi debruçar-se na ponte, para rever a ilha e o jardim onde tinham passeado num dia de sol; — e como o atordoamento da viagem e do ar livre, a fraqueza, que lhe ficara das recentes emoções, lhe dessem uma espécie de exaltação, disse de si para si:
“Talvez tenha saído; se eu fosse ao encontro dela!”.
O sino de Saint-Laurent badalava; via-se na praça, diante da igreja, um ajuntamento de pobres, e uma caleche, a única da terra (que era utilizada para os casamentos), quando, no portal da igreja, de repente, numa onda de burgueses de laço branco, dois recém-casados surgiram.
Julgou estar sofrendo uma alucinação. Mas não! Era mesmo ela, Louise! — de véu branco, que lhe caía do cabelo ruivo até os pés; e era mesmo ele, Deslauriers! — de casaca azul bordada a prata, uniforme de prefeito. Mas por quê?
Frédéric escondeu-se no ângulo de uma casa, para deixar passar o cortejo.
Envergonhado, vencido, esmagado, voltou para a estação, e regressou a Paris.
O cocheiro do fiacre garantiu-lhe que havia barricadas desde o Château d’Eau até o Gymnase, e seguiu pelo faubourg Saint-Martin. À esquina da Rua de Provence, Frédéric apeou-se, para tomar o caminho dos bulevares.
Eram cinco horas, e caía uma chuva fina. Viam-se burgueses no passeio do lado da Ópera. As casas fronteiras estavam fechadas. Ninguém às janelas. A toda a largura do bulevar, galopavam os dragões, à rédea solta, inclinados sobre as montadas, de sabre desembainhado; as crinas dos capacetes e as grandes capas brancas, esvoaçando atrás deles, passavam sob a luz dos bicos de gás, que tremelicava ao vento, por entre a névoa. A multidão ficava olhando para eles, muda, aterrada.
Entre as cargas de cavalaria, brigadas de policiais surgiam, para fazer refluir a multidão para as ruas laterais.
Mas, nos degraus de Tortoni, um homem — Dussardier — que se destacava, de longe, pela elevada estatura, permanecia tão imóvel como uma cariátide.
Um dos policiais da frente, de tricórnio caído sobre os olhos, ameaçou-o com a espada.
Então, ele, dando um passo em frente, pôs-se a gritar:
— Viva a República!
Tombou de costas, com os braços cruzados.
A multidão soltou um urro de raiva. O policial circulou os olhos em volta; e Frédéric, pávido, reconheceu Sénécal.
VI
Viajou.
Conheceu a melancolia dos paquetes, o frio despertar sob a tenda de campanha, o atordoamento das paisagens e das ruínas, a amargura das simpatias interrompidas.
Voltou.
Frequentou a sociedade, e teve novos amores. Mas a permanente lembrança do primeiro tornava-os insípidos; e além disso, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, já não existia. Também suas ambições espirituais tinham diminuído. Passaram-se os anos; e suportava a ociosidade da sua inteligência e a inércia do seu coração.
Em fins de março de 1867, ao cair da noite, estava sozinho em seu gabinete, quando uma mulher entrou1.
— A Senhora Arnoux!
— Frédéric!
Ela agarrou-lhe as mãos, puxou-o docemente até a janela, e olhava-o, repetindo:
— É ele! Sim, é ele!
Na penumbra do crepúsculo, só lhe via os olhos, debaixo do véu de renda preta que lhe velava o rosto.
Depois de pousar na borda da lareira uma pequena carteira de veludo cor de vinho, sentou-se. Ambos estavam incapazes de falar, sorrindo um para o outro.
Finalmente, Frédéric fez-lhe uma série de perguntas sobre ela e sobre o marido.
Habitavam nos confins da Bretanha, para viver economicamente e pagar as dívidas. Arnoux, quase sempre doente, parecia agora um velho. A filha estava já casada em Bordéus, e o filho num regimento, em Mostaganem. Depois, ela ergueu a cabeça:
— Mas torno a vê-lo! Sinto-me feliz!
Ele não deixou de lhe dizer que, ao saber da catástrofe, correra à casa deles.
— Eu soube!
— Mas como?
Tinha-o visto no pátio, e escondera-se.
— Por quê?
Então, numa voz trêmula, e com demorados intervalos entre as palavras:
— Tinha medo! Sim... medo de você... e de mim!
Esta revelação fê-lo sentir como que um arrepio de volúpia. O coração batia-lhe apressadamente. Ela continuou:
— Desculpe por eu não ter vindo antes. — E, indicando a carteira cor de vinho, coberta de palmas de ouro: — Bordei-a em sua intenção, de propósito. Contém aquela quantia que os terrenos de Belleville deviam garantir.
Frédéric agradeceu-lhe o presente, embora censurando-a pelo incômodo que tivera.
— Não! Não foi por causa disso que eu vim! Fazia questão desta visita; depois voltarei... para lá.
E falou-lhe do lugar onde morava.
Era uma casa baixa, de um só pavimento, com um jardim cheio de enormes buxos e uma avenida ladeada de castanheiros que subia até o alto da colina, de onde se via o mar.
— Vou para lá, e sento-me num banco, ao qual dei o nome de banco de Frédéric.
Em seguida pôs-se a olhar os móveis, as bugigangas, os quadros, avidamente, para os fixar na memória. O retrato da Marechala estava meio oculto por um reposteiro. Mas os ouros e os brancos, que sobressaíam no escuro, chamaram-lhe a atenção.
— Parece-me que conheço aquela mulher...
— Impossível! — disse Frédéric. — É uma velha pintura italiana.
Ela confessou o desejo de dar uma volta, pelo seu braço.
Saíram.
A luz dos estabelecimentos iluminava-lhe, a intervalos; o perfil pálido; depois, a sombra novamente a envolvia; e, no meio das carruagens, da multidão e do ruído, seguiam sem se distrair de si próprios, sem nada ouvir, como aqueles que caminham juntos no campo, sobre um leito de folhas mortas.
Contavam um ao outro os dias antigos, os jantares ao tempo da Art industriel, as manias de Arnoux, a sua maneira de esticar as pontas do colarinho, de esmagar cosméticos nos bigodes, e outras coisas mais íntimas e profundas. Que emoção ele sentira ao ouvi-la cantar pela primeira vez! Como ela estava bela, no dia da sua festa, em Saint-Cloud! Lembrou-lhe o jardinzinho de Auteuil, as noites de teatro, um encontro no bulevar, antigos criados, a babá preta.
Ela espantava-se da sua memória. Contudo, disse-lhe:
— Às vezes, suas palavras voltam-me como um eco longínquo, como o som de um sino trazido pelo vento; e parece-me tê-lo ali, quando leio passagens de amor nos livros.
— Tudo o que neles se censura como exagerado, senti-o por você, — disse Frédéric. — Compreendo os Werther2,— aos quais não aborrece o pão com manteiga de Carlota.
— Pobre amigo querido!
Suspirou, e, ao fim de longo silêncio:
— De qualquer modo, amamo-nos muito.
— Mas não pertencemos um ao outro!
— Talvez tenha sido melhor assim — disse ela.
— Não! Não! Que felicidade teria sido a nossa!
— Oh! Acredito, com um amor como o seu!
E devia ser bem forte, para ainda durar ao cabo de tão longa separação!
Frédéric perguntou-lhe como tinha descoberto que ele a amava.
— Foi uma noite em que me beijou o pulso, entre a luva e o punho. Disse de mim para mim: “Mas ele ama-me, ele ama-me”. Tinha medo de ter certeza, contudo. A sua reserva era tão deliciosa, que eu sentia o prazer de uma homenagem involuntária e contínua.
Ele nada lamentava. Os sofrimentos de outrora tinham sido pagos.
Quando voltaram, a Senhora Arnoux tirou o chapéu. O candeeiro, pousado num consolo, iluminou-lhe os cabelos brancos. Foi como se recebesse uma pancada em cheio no peito.
Para lhe esconder essa decepção, Frédéric ajoelhou-se junto aos pés dela e, pegando-lhe nas mãos, começou a dizer-lhe coisas doces.
— A sua pessoa, os seus menores movimentos, tudo me parecia ter no mundo uma importância extra-humana. O meu coração, como se fosse poeira, erguia-se à sua passagem. Era para mim como o luar de uma noite de verão, quando tudo é perfume, sombras suaves, brancuras, infinito; e para mim, todas as delícias da carne e da alma estavam contidas no seu nome, que eu repetia, procurando beijá-lo nos meus lábios. Mas não imaginava nada para além disso. Era a Senhora Arnoux tal como era então, com os seus dois filhos, meiga, séria, bela de enlouquecer e tão bondosa! Essa imagem apagava todas as outras. Nem pensava em mais nada! Pois não tinha no fundo de mim a música da sua voz e o esplendor dos seus olhos?
Ela recebia com enlevo estas adorações pela mulher que já deixara de ser. Frédéric, embriagado pelas próprias palavras, chegava a acreditar no que estava dizendo. A Senhora Arnoux, de costas para a luz, estava inclinada para ele. Frédéric sentia na testa a carícia do seu hálito, através das roupas o contato vago de todo o seu corpo. As suas mãos estreitaram-se; a ponta da botina saía um pouco além da saia, e ele disse-lhe, quase desfalecendo:
— Ver o seu pé perturba-me.
Um movimento de pudor fê-la erguer-se. Depois, imóvel, e com a entonação singular dos sonâmbulos:
— Na minha idade! Ele! Frédéric!... Nenhuma mulher foi jamais amada como eu! Não, não! Para que serve ser jovem? Bem me importa a mim! Desprezo-as, a todas aquelas que vêm aqui!
— Oh! Não vem nenhuma! — respondeu ele, complacente. O rosto dela iluminou-se, e quis saber se ele se casaria.
Frédéric jurou que não.
— Com certeza? Por quê?
— Por sua causa — disse Frédéric, apertando-a nos braços.
Ela deixou-se ficar, com o busto deitado para trás, de boca entreaberta, o olhar perdido. De súbito, afastou-o com uma expressão de desespero; e, como ele suplicasse uma resposta, ela disse, baixando a cabeça:
— Gostaria de o ter feito feliz.
Frédéric suspeitou que ela tivesse vindo para se oferecer; e teve um desejo dela mais forte que nunca, furioso, enraivecido. Entretanto, sentia algo inexprimível, uma repulsa, como o pavor de um incesto. Outro receio o deteve, o de mais tarde sentir nojo. Aliás, que complicação seria! — e, ao mesmo tempo por prudência e para não degradar o seu ideal, deu meia volta e pôs-se a enrolar um cigarro.
Ela contemplava-o, maravilhada.
— Como é delicado. Só você é assim. Só você.
Deram onze horas.
— Já! — disse ela; — daqui a um quarto de hora, vou-me embora.
Tornou a sentar-se; mas observava o relógio, e ele continuava a andar de um lado para o outro, fumando. Ambos já nada mais tinham para se dizer. Há um momento, nas separações3, em que a pessoa amada já não está junto de nós.
Por fim, quando o ponteiro já tinha ultrapassado os vinte e cinco minutos, ela pegou no chapéu pelas fitas, lentamente.
— Adeus, meu amigo, meu querido amigo! Nunca mais o verei! Era o meu último ato de mulher. A minha alma não o deixará mais. Que todas as bênçãos do céu caiam sobre você.
E beijou-o na testa, como uma mãe.
Mas pareceu procurar alguma coisa, e pediu-lhe uma tesoura.
Desfez o penteado; todos os seus cabelos brancos se soltaram.
Brutalmente, pela raiz, cortou uma longa mecha.
— Guarde-os! Adeus!
Depois de ela sair, Frédéric abriu a janela. No passeio, a Senhora Arnoux fazia sinal a um cocheiro para se aproximar. Subiu. A carruagem desapareceu.
E foi tudo.
VII
Em princípios daquele inverno1, Frédéric e Deslauriers conversavam ao canto da lareira, mais uma vez reconciliados, pela fatalidade da sua natureza que sempre os fazia reunirem-se e gostarem de novo um do outro.
Um explicou sumariamente a briga com a Senhora Dambreuse, que voltara a casar, desta vez com um inglês.
O outro, sem dizer como viera a casar com a Srta. Roque, contou que a mulher fugira, um belo dia, com um cantor. Para contrabalançar o ridículo, comprometera-se na prefeitura por excessos de zelo governamental. Tinham-no destituído. Fora, depois, chefe de colonização na Argélia, secretário de um paxá, gerente de um jornal, angariador de anúncios, para finalmente se tornar empregado no contencioso de uma companhia industrial.
Quanto a Frédéric, tendo gastado dois terços da fortuna, levava uma vida de pequeno-burguês.
Em seguida, informaram-se mutuamente dos amigos.
Martinon era agora senador.
Hussonnet ocupava um alto posto, do qual dominava todos os teatros e toda a imprensa.
Cisy, que se fizera muito devoto, e era pai de oito filhos, habitava o castelo dos antepassados.
Pellerin, depois de se ter inclinado para o fourierismo, a homeopatia, as mesas de pé de galo, a arte gótica e a pintura humanitária, fizera-se fotógrafo; e, em todas as paredes de Paris, via-se reproduzida a sua figura de corpo minúsculo e cabeça enorme.
— E o teu íntimo amigo Sénécal? — perguntou Frédéric.
— Desapareceu! Não sei nada dele! E tu, a tua grande paixão, a Senhora Arnoux?
— Deve estar em Roma com o filho, tenente de caçadores.
— E o marido?
— Morreu o ano passado.
— Ah! — disse o advogado.
Depois, batendo com a mão na testa:
— A propósito, outro dia, numa loja, encontrei aquela excelente Marechala, trazendo pela mão um garotinho, que ela adotou. É viúva de um tal Oudry, e está gordíssima, imensa. Que decadência! Ela que antigamente tinha uma cintura tão delgada.
Deslauriers não escondeu que se aproveitara do desespero dela para verificar este fato por si próprio.
— Conforme aliás me tinhas autorizado.
Esta confissão era uma compensação do silêncio que mantivera a respeito da sua tentativa com a Senhora Arnoux. Frédéric teria perdoado, por ele nada ter conseguido.
Embora um pouco vexado com a descoberta, fingiu que achava graça; e a ideia da Marechala trouxe ao seu espírito a da Vatnaz.
Deslauriers nunca a tinha visto, assim como a muitos outros que frequentavam a casa de Arnoux; mas lembrava-se perfeitamente de Regimbart.
— Ainda é vivo?
— Quase que não. Todas as tardes, sem exceção, arrasta-se diante dos cafés, da Rua de Grammont à Rua Montmartre, debilitado, dobrado em dois, esgotado, um espectro!
— E Compain?
Frédéric soltou um grito de alegria, e pediu ao ex-delegado do Governo provisório que lhe explicasse o mistério da cabeça de vitela.
— É de importação inglesa. Para parodiar a cerimônia que os realistas celebravam a 30 de janeiro, um grupo de Independentes fundou um banquete anual no qual se comiam cabeças de vitela, e se bebia vinho tinto em caveiras de vitela, brindando à morte dos Stuart. Depois do Termidor, uns terroristas organizaram uma confraria semelhante, o que prova quanto a idiotice é fecunda.
— Pareces-me muito desiludido da política!
— Efeito da idade — disse o advogado.
E resumiram a vida deles.
Ambos tinham falhado, tanto o que sonhara com o amor como o que sonhara com o poder. Qual teria sido a razão?
— Talvez fosse a falta de uma linha de conduta — disse Frédéric.
— Quanto a ti, é possível. Eu, pelo contrário, pequei por excesso de linha, sem levar em conta mil coisas secundárias, mais fortes do que tudo. Tive lógica demais, e tu, sentimento demais.
Depois, acusaram o acaso, as circunstâncias, a época em que tinham nascido.
Frédéric disse:
— Não era a isso que outrora, em Sens, pensávamos chegar, quanto tu querias escrever uma história crítica da Filosofia, e eu um grande romance medieval sobre Nogent2, cujo assunto tinha encontrado em Froissart: de como Misser Brokars de Fénestranges e o bispo de Troyes assaltaram Misser Eustache d'Ambrecicourt. Ainda te recordas?
E, exumando a sua mocidade, repetiam, a cada frase:
— Ainda te lembras?
Recordavam o recreio do colégio, a capela, o locutório, a sala de armas ao fundo das escadas, figuras de prefeitos e alunos, um tal Angelmarre, de Versalhes, que fazia polainas das botas velhas, o Senhor Mirbel e as suas suíças ruivas, os dois professores de desenho linear e de desenho livre, Varaud e Suriret, sempre brigando, e o polonês, o compatriota de Copérnico, com o seu sistema planetário de cartão, astrônomo ambulante cuja exibição fora paga com um jantar no refeitório, — e depois uma grande patuscada durante um passeio, as primeiras cachimbadas, as distribuições de prêmios, a alegria das férias.
Fora durante as de 1837, que haviam ido à casa da Turca3.
Chamavam assim a uma mulher cujo verdadeiro nome era Zoraide Turc; e muita gente a supunha muçulmana, turca, o que aumentava a poesia da casa, situada à beira d’água, atrás das muralhas; mesmo no auge do verão, havia sombra em volta da casa, assinalada por um aquário com peixes vermelhos ao lado de um vaso de resedá, a uma janela. As raparigas, de camisolão branco, caras pintadas e compridos brincos, batiam nos vidros quando alguém passava, e, à noite, no limiar, cantarolavam baixinho, em voz rouca.
Aquele lugar de perdição projetava sobre todo o departamento um brilho fantástico. Era designado por perífrases: “O lugar que você sabe, — aquela rua, — lá no fim das Pontes”. As camponesas da redondeza temiam pelos seus maridos, as burguesas, pelas suas criadas, porque a cozinheira do subprefeito lá fora surpreendida; e era, bem entendido, a obsessão secreta de todos os adolescentes.
Ora, um domingo, durante as vésperas, Frédéric e Deslauriers, depois de terem frisado o cabelo, colheram flores no jardim da Senhora Moreau, saíram depois pela porta do quintal e, ao fim de uma grande volta por meio dos vinhedos, voltaram pela Pêcherie e introduziram-se em casa da Turca, com os seus grandes ramos de flores na mão4.
Frédéric ofereceu o seu como um apaixonado à noiva. Mas o calor, o temor ao desconhecido, uma espécie de remorso, e até o prazer de contemplar, num só relance de olhos, tantas mulheres à sua disposição, perturbaram-no a tal ponto que se pôs muito pálido, e ficou parado, sem dizer nada. Todas elas riam, divertidas com o seu embaraço; julgando que caçoavam dele, pôs-se a fugir; e, como era Frédéric quem tinha o dinheiro, Deslauriers não teve outro remédio senão segui-lo.
Houve quem os visse sair. Foi um escândalo que ainda não estava esquecido três anos depois.
Contaram-no prolixamente, cada qual completando as recordações do outro; e quando terminaram:
— Afinal foi o que tivemos de melhor! — disse Frédéric.
— Sim, quem sabe? Foi o que tivemos de melhor! — disse Deslauriers.
Gustave Flaubert
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