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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A EMINÊNCIA / Morris West
A EMINÊNCIA / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em seus dias ruins – e esse era um dos piores em muito tempo –, Luca Rossini fugia da cidade.
Seus assistentes estavam acostumados às suas repentinas saídas e retornos. Eles podiam entrar em contato com ele pelo telefone celular. Seus pares, que sabiam de cor seus títulos e cargos, também sabiam que era um homem especial comandado pelo mais alto posto. Aceitavam que ele fosse cheio de segredos. Pois tinham seus próprios segredos. Eles também compreendiam que boatos eram um passatempo perigoso nesta cidade, portanto, guardavam seus ressentimentos para os momentos pessoais e fraternos. Seu mestre, um homem sucinto, nunca pediu a ele para prestar contas de seus movimentos, apenas de suas transações oficiais.
Ele viajava por toda parte e normalmente sozinho. Poucos eram capazes de mapear seus movimentos ou as razões para eles, contudo, para onde quer que alguém se virasse, estaria igualmente consciente de sua presença ou influência. Seus relatórios eram concisos, as ações, bruscas. As razões que apresentava eram claras e precisas, mas recusava-se a discuti-las com qualquer um exceto o homem que o comandava. Ele podia ser agradável em sociedade, mas raramente submetia-se à intimidade. Antes de sair da cidade, trocava suas roupas por jeans, botas de passeio, uma jaqueta de couro surrada e um velho boné. E dirigia um Mercedes antigo, o qual mantinha na garagem de seu apartamento, a vinte minutos a pé de seu escritório.
O seu destino era sempre o mesmo: uma pequena propriedade ao sopé das montanhas, que comprara havia vinte anos de um dono de terras local. A propriedade, invisível da estrada, era cercada por um antigo muro de pedra, com entrada apenas por um portão pesado de madeira cravado de pregos forjados à mão. Do lado de dentro do muro havia um pequeno chalé, outrora um celeiro, com o telhado de telhas coloniais. O chalé era composto de uma grande sala de estar, onde construíra com as próprias mãos uma cozinha campestre e um banheiro ladrilhado. Havia água e eletricidade, e o gás era entregue em cilindros. Os móveis eram poucos: uma cama, uma mesa de jantar, um jogo de cadeiras, um sofá e uma poltrona usados, um moderno aparelho de CD com uma grande coleção de clássicos, uma estante sobre a qual pendia um crucifixo de oliveira com um grotesco Cristo agonizante. O jardim tinha uma horta, pomar, um caramanchão de parreiras, duas roseiras em vasos. Durante suas ausências, que eram muitas e longas, o jardim era cuidado por um aldeão cuja esposa limpava a casa. Quando vinha, como ocorria hoje, levava uma vida de eremita. Ao partir, deixava dinheiro em um envelope encostado no abajur para pagar o zelador.
Esse era o lugar no mundo onde não havia curiosidade sobre sua identidade ou sua posição na vida. Ele era simplesmente, signor Luca, il padrone. Céu ou Inferno – às vezes ele imaginava o que era esse lugar! – esse era o seu verdadeiro lar. Ninguém podia espiá-lo. Ele não podia ver além de seu próprio muro de jardim, contudo, reconhecia que esse era o lugar do restabelecimento. A cura fora lenta. Não terminara ainda; talvez jamais terminasse, mas quando empurrou o portão, abrindo-o, e entrou no jardim, rico com os primeiros brotos das frutas de outono, sentiu uma súbita onda de esperança.

 

 

 


 

 

 


Seus rituais começavam no momento em que o portão se fechava atrás de si. Ele entrava na casa, dispunha as poucas compras que fizera no trajeto: pão, queijo, vinho, água mineral, linguiça e presunto. Depois percorria o ambiente. A casa estava limpa, o pó era tirado todos os dias, como ele exigia. Havia lençóis recém-trocados na cama e toalhas no banheiro. Ele conferiu a pressão no cilindro de gás e verificou a pilha de madeira no compartimento perto da lareira. Ele não precisaria da lenha, mas havia um conforto em pensar que poderia acender a lareira, se quisesse. Parou perto da estante e olhou para a figura retorcida na cruz de oliveira. Falou com ela em uma súbita explosão de espanhol:

– As coisas entre nós ainda não estão resolvidas! O Senhor está fora disso... fora disso e na glória. Pelo menos é o que clamamos! Eu continuo aqui. Os pedaços de mim estão colados com cordas e argamassa pegajosa. No instante em que me levantei esta manhã, eu sabia que este seria um dia ruim. Estou fugindo novamente. O que mais posso fazer? Continuo sem entender.

Ele empurrou para o lado os livros na última prateleira da estante. Atrás deles havia um pequeno cofre de metal embutido na parede. A chave pendia do seu pescoço. Abriu o cofre e retirou uma pilha de cartas, presas por uma fita desbotada. Não as leu. Conhecia cada frase de cor. Manteve-as nas mãos, esfregando os dedos sobre o papel grosso, como se manuseando um amuleto. Depois recolocou as cartas no cofre, trancou-o e repôs os livros no lugar.

Isabel e ele ainda se correspondiam, mas agora as cartas dela eram textos evanescentes em uma tela de computador, lidas e apagadas, deixando apenas um traço dela na memória dele, como o rastro de um inseto na areia do deserto.

O CD no aparelho de som era a Sinfonia de Praga, de Mozart. Ele ligou o aparelho e deixou a música envolvê-lo. Depois foi até o quarto. Tirou a jaqueta e a camisa e as colocou cuidadosamente sobre a colcha. Embora o ar dentro de casa estivesse aquecido, sentiu um calafrio. Cruzou os braços em torno de si mesmo, de modo que as pontas dos dedos tocassem as primeiras marcas das cicatrizes que cobriam-lhe as costas e estendiam-se até as costelas. Ele não podia vê-las. Não queria vê-las. Só podia senti-las. Depois de algum tempo, livrou-se do próprio abraço e saiu para o jardim iluminado pela luz do sol.

Do lado de fora, algumas ferramentas simples ficavam encostadas contra a parede: uma pá, um enxadão, um rastelo, um ancinho. Ele pegou o enxadão, sentindo, como sempre sentia, prazer ao tocar o cabo rústico. Colocou o enxadão sobre os ombros e começou seu trabalho pelo jardim, retirando o mato entre as alfaces e as fileiras de vagem, capinando a grama nas beiradas dos canteiros.

O tempo todo, estava ciente do sol sobre suas costas, das gotas de suor escorrendo pelas superfícies elevadas das cicatrizes. Isso também era um conforto, mas o maior conforto de todos era poder expor as cicatrizes e não sentir vergonha, porque aqui não havia testemunhas para o que, muitos anos atrás, o tinha transformado em nada.

Trabalhou por mais de uma hora, encontrando novas tarefas, mesmo no jardim bem-cuidado. Juntou folhas e as queimou. Cortou folhas e flores mortas da roseira. Colheu tomates e verduras para o jantar. Inspecionou as frutas e regou o chão sob a latada de parreiras. Quando terminou, os nervos alterados se aquietaram e seus demônios pessoais tinham parado de tagarelar. Ele estava onde precisava estar: na quietude de um mundo físico longe dos políticos, filósofos e das disputas dos opositores pedantes.

Ele limpou as ferramentas e as colocou de volta nos lugares junto à parede. Espalhou cinzas nos rescaldos do fogo, depois entrou para tomar um banho. Ele encontrava um prazer infantil no emboço que fizera para colocar os ladrilhos e gostaria que houvesse alguém a quem pudesse mostrar seu trabalho artesanal.

Ainda estava se enxugando quando ouviu o telefone tocar. Foi apressado até a sala e atendeu em seu estilo lacônico habitual:

– Rossini falando.

A voz do outro lado da linha era familiar, mas agora estava estridente pela ansiedade.

– Aqui é Baldassare. Onde você está?

– A uma hora da cidade. O que deseja?

– Volte para cá o mais rápido possível.

– Por que a pressa?

– Temos um problema, Luca.

– Não o descreva. Apenas dê-me o código.

– Jó e seus consoladores.

– Não me diga que Jó partiu tão cedo.

– Este é o problema. Ele está bem aqui conosco e estamos todos sentados no monte de ruínas com ele.

– Suponho que você tenha cortado as comunicações.

– Tanto quanto possível neste lugar. É por isso que precisamos de você, Luca. Sabe lidar com esse tipo de coisa.

– Gostaria de me sentir lisonjeado. Estarei aí o mais rápido que puder.

Quando desligou o telefone, caiu na gargalhada. Esse era um momento da mais pura ironia. Ele sobrevivera às próprias rachaduras. Sobrevivera com distinção singular ao sistema rachado ao qual se submetera. Agora era convocado a sair de seu lugar secreto para dar conselho, força e destreza política aos mais potentes conselheiros desse sistema – dos quais, surpreendentemente, ele era um dos mais jovens.

A imagem de Jó sobre seu monte de ruínas era vívida. A senha significava muito mais do que dizia: que um evento irreversível estava acontecendo, mas, até que este evento terminasse, os próprios consoladores de Jó estavam agachados sobre o monte de ruínas: e se falhassem em se comportar com astúcia suficiente, eles mesmos carregariam o fardo com todos os desastres de Jó.

Mais uma vez, as cicatrizes em suas costas começaram a formigar, desta vez como se um pequeno vento frio estivesse soprando sobre elas. Do passado veio a voz de um de seus antigos médicos, um psiquiatra que especializara-se no tratamento de vítimas traumatizadas:

– Por muito tempo, meu amigo... até quando não posso lhe dizer... você se descobrirá olhando para trás, pior do que isso, querendo viver em sentido contrário. Até mesmo se descobrirá usando dois espelhos, tentando olhar para as cicatrizes nas próprias costas. Buscará reparação, justiça, punição. Você nunca estará totalmente vingado. Irá declarar uma vendeta contra os infiéis... e os fiéis que colaboraram com eles. Demandará vingança como de direito. Você a reivindicará até como necessidade para a sua própria sobrevivência.

– Há um velho provérbio entre meu povo: “Antes de começar uma vingança, certifique-se de que cavou duas sepulturas.” Não estou certo de que se pode ter as duas coisas, vingança e sobrevivência.

– Por algum tempo, você pode. Os julgamentos de Nuremberg eliminaram certos criminosos de guerra. Os israelenses capturaram Eichmann, julgaram-no e executaram-no. Ainda assim, o registro de atrocidades tem aumentado durante as décadas. A fé cristã ofereceu outras soluções. As igrejas reconciliaram seus criminosos rebaixando os cargos de alguns e submetendo outros ao silêncio penitencial. Houve um custo nisso também, mas, espalhado sobre alguns séculos, certamente pareceu razoável.

– Para a instituição. Nunca para as vítimas.

– O que espera que eu diga? – O médico encolheu os ombros e abriu as mãos em um gesto resignado. – Não sou um fazedor de milagres. Não posso reescrever o seu passado. Não posso prescrever o seu futuro. Você fará seus próprios termos com a vida no seu próprio tempo.

Então, ele fizera uma escolha: permanecer dentro do sistema, usá-lo como uma fortaleza de onde travaria suas guerras pessoais. A escolha era altamente perigosa e ocasionou outra rachadura em seu ser danificado. Ele agora era tanto vítima quanto vindicador. De acordo com todas as crenças que professava, a própria vingança era um crime. Ela pré-esvaziava os direitos da divindade. No entanto, estava comprometido com ela. A partir do momento desse compromisso, tudo o que ele fazia tornava-se um cálculo e um plano. Sua vida pública tinha como base uma mentira privada. Ele não podia entregar-se à incerteza. A crença pela qual vivia tinha de ser mais forte do que aquela à qual fora associado pela profissão pública. Muito cuidadosamente, portanto, ele selou as fontes da compaixão e as pequenas infiltrações da dúvida. Não podia dar-se ao luxo da confusão. Também não podia dar-se ao luxo da ilusão. Só podia trabalhar com a luz clara de sua própria razão. Se no final ficar provado que essa luz é uma escuridão, que seja então. Houve um momento em que, preso à roda com os membros esticados e esperando por cada golpe do chicote, ele rezara pela escuridão como última misericórdia.

Vestiu-se rapidamente, colocou a comida que trouxera em uma tigela de madeira no centro da mesa, escreveu um bilhete em um envelope, depositou dinheiro no envelope para o zelador e o encostou contra a tigela. Ele partiu, batendo o velho portão atrás de si, depois dirigiu rápido através do tráfego em direção à cidade. Ligou o rádio do carro, ouvindo com atenção qualquer notícia que pudesse indicar que a segurança fora violada sobre o caso de Jó e seus consoladores. Quando não ouviu nada, repassou mentalmente o significado da parábola.

Jó era o codinome do papa romano, envelhecendo, doente e excêntrico, mas ainda dogmático. Os consoladores eram os membros da Cúria, a corte mais antiga da Europa. Mencionar o monte de ruínas bíblico significava que o papa fora atacado pela doença que os médicos haviam prognosticado: um derrame maciço envolvendo severa lesão cerebral. Já ocorrera uma série de prelúdios menores, episódios isquêmicos que, segundo os médicos, pressagiavam um incidente maior.

O homem que telefonou para ele era o cardeal camerlengo, tesoureiro do Estado da Cidade do Vaticano, cuja responsabilidade era deliberar com os médicos sobre o tratamento do homem doente, administrar a casa papal e, finalmente, com a morte do papa, assumir o governo interino da Igreja durante a eleição de um sucessor. O camerlengo era um homem hábil, mas enfrentava um grande e desconfortável dilema.

Um papa adoentado era uma coisa – um papa com dano cerebral era outra, completamente diferente. Como dispor dele – se de fato dispor não fosse uma palavra muito parcial. Nos últimos anos da década de 1990, regras foram promulgadas para cuidar dos problemas do envelhecimento entre os altos prelados da Igreja, de fato, do próprio papa. Se ele ficasse incapacitado, tanto o secretário de Estado quanto a maioria do Sacro Colégio poderia declará-lo inapto para a função e aposentá-lo com toda a caridade devida. Feito isso, o camerlengo estava livre para declarar que a Sé de Pedro estava vazia e convocar os eleitores para eleger o sucessor.

As regras eram menos claras sobre o que fazer com o papa aposentado se ele permanecesse vivo mas em estado vegetativo. A pior das decisões seria colocá-lo ou não nos aparelhos de manutenção da vida. E, se ele fosse colocado por erro ou mau julgamento, que mão desligaria o botão da corrente elétrica? A suposição era de que o papa teria expressado seu próprio desejo na questão do prolongamento excessivo de sua vida. No entanto, se não tivesse deixado instruções, quem tomaria a decisão? Certamente, a questão não poderia ser deixada somente para os médicos. Não poderia ser deixada à família porque, ao menos na teoria, o papa transpusera o círculo do parentesco. Ele pertencia a Deus e à Igreja de Deus. Os prelados que ele criara eram, portanto, os árbitros de seu destino.

Isso, no entanto, seria apenas o começo. A imprensa do mundo traduziria o dilema do Vaticano em outro capítulo do debate contínuo sobre a eutanásia. Enquanto dirigia de volta para a cidade, essa era a leitura que Rossini dava à situação. Se o papa não fora tirado dos limites do Vaticano, as coisas ainda estavam parcialmente sob controle. Se, entretanto, tivesse sido levado para o seu hospital, o Hospital Gemelli, fora do território soberano do Vaticano, a situação mudaria radicalmente. O sigilo seria impossível. Os boletins médicos teriam de conter mais do que a simples verdade. A imprensa subornaria metade dos funcionários do hospital para abastecê-la com fatos diários e ficções vendáveis.

O cardeal camerlengo era um administrador experiente, contudo, um de seus predecessores cometera um grave erro ao tentar encobrir os detalhes da morte do papa João Paulo I. Esse erro liberou uma torrente de desinformação política e produziu um best-seller mundial no qual era alegado que um cardeal americano e um bispo americano residente no Vaticano, junto com o criminoso mafioso Michele Sindona, haviam conspirado para assassinar o papa. A história escandalosa ainda permanece. O livro ainda está em circulação. Se o acontecimento presente for mal conduzido, novos rumores surgirão e crescerão mais rápido do que o lendário pé de feijão. Essa era outra ironia que ele ponderava no meio do tumulto de buzinas e gritos de insultos: o sigilo criava e perpetuava os escândalos que estava destinado a prevenir.

A volta para casa levou uma hora e 45 minutos. Quando chegou em seu apartamento, ele estava convencido de que a proteção ainda permanecia. Trancou o carro na garagem, vestiu suas roupas clericais e telefonou para seu escritório pedindo que lhe enviassem uma limusine. Cinquenta minutos depois, um guarda na Porta Angelica o saudou e acenou para que seu veículo estacionasse no lugar reservado aos prelados superiores. Luca Rossini, cardeal presbítero, respeitável Eminência da Cúria Romana, estava de volta ao trabalho.

Ele dirigiu-se apressadamente aos aposentos papais onde um secretário aflito montava guarda no gabinete do papa, enquanto o médico e o camerlengo permaneciam ao lado de sua cama. Pálido e imóvel, preso ao suprimento de oxigênio e aos monitores portáteis, que agora, durante meses, haviam se tornado parte da mobília, ele ainda tinha a aparência de um velho leão cochilando no capim, mas descomunal para qualquer intruso que pudesse perturbar o seu descanso. Quando Luca Rossini entrou no quarto, o camerlengo e o médico cumprimentaram-no com grande alívio. Ele ficou olhando para a figura estendida de seu mestre por algum tempo. Depois perguntou:

– Como ele está?

O médico encolheu os ombros.

– Como pode ver. Coma profundo. Estamos administrando oxigênio. Provavelmente há extenso dano cerebral. Não há como ter certeza, é claro, a não ser que o coloquemos no hospital para uma tomografia computadorizada e uma monitorização de vinte e quatro horas.

– O dano é reversível?

– Eu diria que não.

– Então, na melhor das hipóteses, haverá séria incapacidade?

– Sim.

– E, na pior, uma existência vegetativa?

– Se o colocarmos nos aparelhos, sim.

– O que é a última coisa que ele quer ou merece.

– Eu teria de concordar. – O médico hesitou um momento, depois acrescentou cuidadosamente uma reflexão tardia: – Ajudaria se Sua Santidade tivesse deixado por escrito alguma expressão clara de seus desejos.

– Alguma vez ele os expressou ao senhor, doutor?

– Apenas em termos ambíguos.

– Tais como?

– Devemos esperar e ver o que Deus me reserva.

– Nada mais específico?

– Nada.

Rossini voltou-se para o camerlengo.

– O secretário dele sabe de alguma coisa?

– Ele não sabe de nenhum documento que expresse os desejos do papa sobre esse assunto. Não há codicilo relevante em seu testamento.

Luca Rossini olhou de um homem para o outro. Um pequeno e sardônico sorriso contraiu os cantos de sua boca.

– O que será que ele esperava: subir como Elias em uma carruagem de fogo?

O camerlengo franziu a testa em desagrado.

– Gostaria de lembrá-lo, Luca, de que Sua Santidade ainda está vivo e conosco. Temos de decidir o que é melhor a ser feito por ele e pela Igreja.

– O senhor aconselhou-se com especialistas, doutor?

– Cattaldo e Gheddo o examinaram.

– Suas opiniões?

– Correspondem à minha. Há dano irreversível. Do ponto de vista médico, seria mais simples mantê-lo hospitalizado. De qualquer modo, nós entendemos...

O camerlengo o interrompeu abruptamente:

– Existem certas consequências, algumas muito públicas. O pontífice estará fora dos limites do Estado da Cidade do Vaticano. Aqueles que o tratam... embora não o próprio pontífice... estarão sob a jurisdição da República da Itália e da vigilância constante da imprensa mundial.

– Se ele morrer – Luca Rossini expôs uma série de francas proposições –, não teremos problemas. Nós o sepultaremos com pompa, elegeremos um sucessor e continuaremos nosso trabalho. Se ele sobreviver, mas ficar severamente incapacitado, teremos de aposentá-lo. Há provisões para isso nas recentes emendas da Constituição Apostólica. Se, no entanto, sobreviver em estado vegetativo, ligado aos aparelhos, decisões precisarão ser tomadas quanto a quando eliminá-lo e quem será o eliminador do registro.

O camerlengo o desafiou solenemente:

– Então, como responde as suas próprias perguntas, Luca?

– Mantenha-o aqui. Deixe-o morrer com dignidade em sua própria casa. Não tente prolongar-lhe a vida. Não permita que outros o façam sob qualquer pretexto. Manifestarei publicamente que esse foi o desejo expresso a mim pelo próprio pontífice em várias ocasiões durante os últimos dois anos. Você, Baldassare, pode confirmar que tínhamos um relacionamento especial. Às vezes era difícil definir, mas sim, nosso relacionamento era muito especial.

O camerlengo ficou em silêncio por um momento; depois fez um gesto afirmativo com a cabeça.

– Isso faz sentido.

– Notável sentido – disse o médico, com evidente alívio.

Luca Rossini voltou-se para ele:

– O senhor ainda tem um dever a cumprir, doutor. Nós precisamos de um boletim médico imediato para ser divulgado pelo Departamento de Imprensa da Santa Sé. O boletim precisa ter um tom especial, uma certa ênfase. Até onde o senhor e seus colegas estão preparados para ir, ao expressarem seus prognósticos?

– Não sei se entendo o que quer dizer, Eminência.

– Que palavras estão preparadas para usar? Um grande acidente? Sem esperança de recuperação? Terminal? O fim é esperado a qualquer momento? Que palavras, doutor?

– Por que as palavras são tão importantes?

– O senhor sabe por quê – Luca Rossini foi brusco. – Enquanto o papa estiver vivo e aos cuidados de sua própria gente, a imprensa exigirá saber que tipo de cuidados ele está tendo e quanto tempo espera-se que dure. Baldassare aqui e o secretário de Estado informarão à hierarquia superior. O Departamento de Imprensa cuidará da mídia. Não compete a mim formular as declarações. Simplesmente mencionei a importância de seus termos. Fui claro?

– Como sempre, Luca. – O tom do camerlengo foi seco.

– E o senhor, doutor?

– Tenho certeza de que encontraremos um texto apropriado.

– Ótimo! – Ele olhou de um para o outro, observando seus rostos. Seu próprio rosto estava moldado em uma máscara de pedra. – Agora, com a sua permissão, eu gostaria de ficar um instante sozinho com ele.

O médico e o camerlengo se entreolharam. O médico disse-lhe calmamente:

– Como o senhor sabe, ele está em coma profundo. Não verá ou ouvirá nada. Ele não sentirá sequer o toque de sua mão.

– Eu quero ficar a sós com ele. – Luca Rossini estava friamente irado. – Eu tenho coisas particulares para dizer a ele na hipótese de um em um milhão de que ele possa me ouvir. Isso pode fazer-lhe algum mal?

– É claro que não, Luca.

– Então me façam o favor.

O camerlengo e o médico hesitaram por um momento. Trocaram olhares. O camerlengo assentiu com um movimento de cabeça. Os dois homens saíram do quarto e fecharam a porta, deixando Luca Rossini e seu mestre silencioso lá dentro.

Enquanto esperavam no quarto adjacente, o médico observou:

– Esse homem me preocupa, Baldassare.

O camerlengo curvou a boca.

– O que exatamente o preocupa, meu amigo?

– Há tanta ira nele, tanta arrogância. É como se tivesse que dominar o mundo inteiro todos os dias... com chicotadas e escorpiões!

– A ira, eu conheço. – O camerlengo era um crítico cuidadoso. – Já o vi enfrentar colegas superiores na presença do próprio papa. A arrogância é outro problema. Eu a vejo como defesa. Ele é um homem que já sofreu muito. E ainda não está completamente curado.

– E esse é um perigo constante, não é? – O médico pôs sua máscara de imparcialidade clínica. – A ferida não cicatrizada, as crises não resolvidas do espírito.

– É isso o que vê em Luca Rossini?

– É.

– Devo lhe dizer, meu amigo, que ele é soberbamente competente em tudo o que faz. O Santo Padre usa-o como emissário pessoal, e o papa é, como você sabe, um capataz muito exigente.

– Então o que isso significa? O favorito da corte é sempre tratado com indulgência. Como os colegas de Rossini se sentem sobre ele? Você, por exemplo?

– Eu o acho distante, mas sempre leal. Ele olhará em seus olhos e lhe dirá o que pensa.

– Tudo?

O camerlengo estava começando a ficar irritado.

– Como posso responder? Você o ouviu há poucos instantes. Ele estava dizendo coisas que você e eu não tivemos coragem de colocar em palavras.

O médico ficou imediatamente na defensiva.

– Não tenho autoridade aqui, Eminência. Sou um médico, mas só posso aconselhar e não prescrever, mesmo para o meu ilustre paciente.

– Você já concedeu o tratamento. – O camerlengo o corrigiu rapidamente. – Mas Luca Rossini não é seu paciente. Não devia emitir uma opinião sobre sua condição clínica ou julgamentos sobre o que você pode ver ou ouvir em sua posição privilegiada.

O médico enrubesceu de constrangimento e baixou a cabeça.

– Eu me excedi, Eminência, desculpe-me.

– Não há nada a desculpar. Neste momento estamos ambos estressados. Luca Rossini está lutando com seus próprios anjos negros.

ELE ESTAVA SENTADO ao lado da cama, uma das mãos sobre a mão do pontífice inconsciente, cuja pele estava fria, seca e áspera como a pele de um réptil. Havia tubos em suas narinas e eletrodos que o conectavam aos monitores. Luca Rossini falava em seu ouvido com sentenças argutas e entrecortadas, desafiando-o a sair de seu silêncio.

– O senhor está me ouvindo! Sei que ouve! Agora, escute! O senhor estava enganado sobre mim. O senhor acreditou no que eles lhe disseram: que eu era o herói, o jovem pastor com os membros estirados e preso a uma roda em uma pequena cidade e publicamente açoitado para aterrorizar seu povo e ensinar a eles que não havia poder senão de Deus, e os coronéis eram a voz de Deus na terra... O senhor ordenou que me trouxessem para cá para envergonhar os bispos covardes de meu país. O senhor me protegeu, me empurrou para a frente e para cima. Fez de mim um homem respeitado. Não podia acreditar que eu fosse um homem fragmentado, um vaso rachado e deteriorado. Aceitei tudo o que o senhor me deu. Eu estava tão cheio de culpas, tão cheio de vergonha, e pensei que estava ouvindo a voz de Deus. O senhor está me ouvindo? Isto é o mais próximo que já cheguei de uma confissão total e aberta, e o senhor não pode sequer levantar a mão e me dar a absolvição na qual não acredito! Mas deixe-me dizer ao menos uma vez que o amei... não porque fosse meu patrão, mas porque me fez pagar por cada crédito que me concedeu. É por isso que não quero o senhor envergonhado agora. Prefiro matá-lo com minhas próprias mãos do que vê-lo apodrecendo na vinha como um pedaço de fruta. Mas o senhor mesmo pode fazê-lo. Apenas não segure a vida com tanta força, deixe-a ir. Por favor, por favor, vá.

Ele curvou-se e beijou a testa do homem silencioso. E afastou-se com dificuldade da cama. Havia lágrimas em suas faces. Ele as limpou, depois compôs sua fisionomia novamente em uma máscara, hostil e imperiosa.

POUCO ANTES DAS oito horas naquela noite, um boletim foi divulgado pela Sala Stampa, o departamento de imprensa oficial da Santa Sé.

“Às 14h30 de hoje, Sua Santidade sofreu um grave derrame cerebral que o deixou paralisado e em coma profundo. Uma série de episódios isquêmicos durante as férias de verão em Castelgandolfo haviam alertado tanto o pontífice quanto seus médicos conselheiros para a possibilidade de um grave acidente vascular cerebral.

Determinadas intervenções haviam sido discutidas pelo pontífice e seus médicos conselheiros. Todas foram apresentadas como sendo de alto risco. Sua Santidade declinara firmemente o que chamou de prolongamento oficial de sua vida, já tão longa, por meio cirúrgico ou de mecanismos de manutenção. Ele iria embora, disse, quando Deus quisesse, e ele preferiria ir de sua própria casa, do que de um leito de hospital.

É em resposta a esses claros desejos que os cuidados médicos, e a monitorização vascular e neurológica apropriada, estão sendo fornecidos nos aposentos papais. O médico do pontífice, Dr. Angelo Mottola, está sendo auxiliado por dois colegas ilustres, Dr. Ernesto Cattaldo, neurologista, e Dr. Piero Gheddo, especialista cardiovascular.

Os três hesitam em predizer por quanto tempo o pontífice pode sobreviver. No entanto, concordam que o dano cerebral é extenso e que o prognóstico é negativo.

O cardeal camerlengo pede as orações de todos os fiéis para que Deus esteja feliz em chamar seu bom e leal servidor.

Boletins adicionais serão divulgados diariamente desse departamento, às doze e às dezoito horas.

Materiais antecedentes estarão disponíveis no Serviço de Informação do Vaticano (SIV) em inglês, espanhol e francês. O serviço telegráfico do SIV continuará como sempre.”

– Quem preparou esse engodo?

Stéphanie Guillermin, do Le Monde, bateu no quadro de avisos com a unha escarlate e desafiou sua plateia: meia dúzia de bebedores tardios no bar do Clube da Imprensa Estrangeira em Roma.

– Que interessa? – Fritz Ulrich do Der Spiegel repeliu a pergunta. Ele estava no terceiro uísque e pronto para uma discussão: – O homem vem se preparando para morrer há anos. Finalmente conseguiu estourar uma veia. O que você espera que a Sala Stampa diga a respeito? Eles estão guardando a eloquência para o obituário dele.

– É exatamente o que eu acho, Fritz. – Stéphanie Guillermin não era facilmente repelida. – Esse texto é completamente arbitrário. Ele não tem o toque pessoal de Angel-Novalis. Imagino que ele foi composto em comitê e entregue ao departamento de imprensa para divulgação.

– Mas que comitê é esse, Steffi, e por que eles interviriam? – Frank Colson do Telegraph, conhecia bem a moça para respeitá-la. Ela parecia uma George Sand jovem e escrevia uma prosa limpa e clássica, com uma ponta de malícia. Ela vivia com certo estilo ao lado da viúva muito rica de um banqueiro italiano e, desse modo, suas fontes de informações eram exóticas, mas confiáveis. Suas observações de pessoas e eventos eram sutis o bastante para lhe granjearem o apelido de la déchiffreuse, a decifradora. Ela ficou lisonjeada pela deferência de Colson. Sorriu e inclinou-se para tocar o rosto dele.

– O comitê? Avalie você mesmo, Frank. Deviam ser pelo menos três: o camerlengo, o secretário de Estado, o médico e talvez outro cardeal da Cúria. Jansen, talvez; ou, quem sabe, aquele mistério flutuante, Rossini. O documento tinha de ser divulgado às pressas e tinha de representar pelo menos um consenso parcial na Cúria.

– Mas por que iriam querer intervir na composição de um simples documento?

– Porque não é nada simples, Frank.

Ela agora tinha a atenção de todos. O drinque de Fritz Ulrich ficou suspenso a meio caminho. Enzo, o barman, largou o guardanapo e inclinou-se sobre o balcão para ouvir. Colson tirou-a de seu silêncio momentâneo.

– Continue, Steffi!

– O que temos aqui? Meia página de uma prosa banal; de modo algum no estilo habitual do Sala Stampa. No entanto, está muito cuidadosamente planejado.

– Com que objetivo? – Ulrich voltou ao ataque.

– Responder perguntas embaraçosas antes que pessoas como nós comecem a fazê-las. Pensem bem! Eles falam de um grave derrame cerebral, um grande acidente. Por que não o levaram imediatamente ao hospital? Todos sabemos que o equipamento de monitorização no quarto papal é algo simples. Certamente não têm um tomógrafo. Logo, apesar desses três nomes respeitáveis no boletim médico, o que o velho está recebendo são diagnósticos básicos ao pé da cama, monitorização simples e cuidados caseiros.

– O que mais receberia ele no Hospital Gemelli?

– Pergunta errada, Fritz. – Guillermin foi rápida como os pés de uma esgrimista. – Quando foi que você leu um documento do Vaticano que oferecia uma explicação para qualquer ação... sem mencionar uma desculpa para ela?

– Nunca na vida! – Ulrich esvaziou o copo e o empurrou sobre o balcão para que fosse completado novamente. – Então você está dizendo...

– Que o boletim foi fabricado para justificar uma situação muito estranha. Ele atribui a uma vítima de derrame cerebral orientações e determinações que ela não poderia ter feito depois do evento, e que a vítima parece tê-las mencionado apenas em termos gerais antes do ocorrido.

– Você ainda não chegou ao ponto principal – disse Ulrich.

– Eles querem que ele morra! – Guillermin fez uma afirmação enfática. – Eles precisam que ele morra o mais rápido e silenciosamente possível. Estão inclusive apelando para que toda a Igreja reze por esse evento como uma misericórdia divina. Por quê? Porque se ele não morrer, eles estarão com um papa seriamente prejudicado que deve ser formalmente aposentado e substituído para permitir que a vida da Igreja continue.

– Então eles o matam! – disse Colson suavemente. – Eles o matam através de uma conspiração de negligência benigna.

– Essa é uma interpretação. Os tabloides certamente farão manchete do caso. Contudo – Guillermin levantou a mão, cautelosa –, a alternativa está claramente expressa no boletim. Sua Santidade está exercendo o seu direito moral e fundamental de recusar o prolongamento de sua vida através de intervenção excessiva e oficiosa.

– Desde que... – Ulrich balançou o dedo indicador sob o nariz dela – ...desde que o texto que temos seja a interpretação autêntica dos desejos do papa! Você notará que há outra coisa não convencional. Não há declaração de uma autoridade relevante... uma carta, um testamento. Não há sequer uma citação na encíclica dele sobre eutanásia.

– Fritz está certo – disse Colson. – Isso é algo que poderíamos perguntar legitimamente ao Departamento de Imprensa.

– Aposto dez dólares como eles não possuem sequer uma pista – provocou a mulher da União da Imprensa Internacional, que entrou no final da conversa. – Alguém topa?

Os outros sorriram e recusaram a aposta. Então ela deu o seu parecer:

– Se eles não nos fornecem uma declaração, então estamos livres para especular, não estamos? As matérias são conflitantes: um gabinete de prelados preocupados cuidando de seu pontífice adoentado até o seu plácido fim ou... na versão de Frank Colson... conspirando para matá-lo via negligência benigna.

– De qualquer modo, elas compõem o Capítulo Um de uma grande história – disse Guillermin.

– E que matérias compõem o Capítulo Dois? – O tom de Ulrich ainda era provocativo.

Steffi Guillermin, a decifradora de códigos, deu-lhe uma resposta enigmática:

– Elas começam com minha primeira pergunta, Fritz. Quem preparou esse engodo?

– E você sabe a resposta?

– Ainda não. Mas, como sempre, você lerá primeiro no Le Monde! Depois poderá comprar a história em nossa agência de notícias. Agora, me deem licença. Preciso ir para casa.

– Dê lembranças à sua Lucetta! – Ulrich riu. – Aquela é uma mulher muito bonita.

– E você é um porco, Fritz! – Guillermin já estava do lado de fora enquanto ele ainda procurava uma resposta.

HAVIA UMA HOSTILIDADE silenciosa na reunião tardia dos cardeais convocados pelo secretário de Estado. Essa não era uma reunião formal, mas uma convocação dos prelados curiais residentes em Roma e disponíveis de imediato.

Estes homens eram todos importantes, firmemente ancorados na rocha da autoridade sobre a colina do Vaticano. Se estavam todos tão seguramente ancorados em virtude era uma questão discutível; mas entendiam a potência do protocolo, o equilíbrio delicado do interesse e da influência, a temerosa reserva de poder presente no cargo de São Pedro. Eles sabiam como esse poder podia ser usado para honrar um homem ou enforcá-lo, como Haman, na mais simples das definições. Pelo menos por enquanto o poder era representado pelo cardeal secretário de Estado. Ele foi diretamente ao assunto da reunião:

– Sei que alguns dos senhores não ficaram satisfeitos com o boletim sobre a saúde do Santo Padre, publicado esta noite pelo Departamento de Imprensa. De acordo com a Constituição Apostólica de 28 de junho de 1988, o Departamento de Imprensa está ligado à Secretaria de Estado. Portanto, devo aceitar a responsabilidade total por suas ações. O texto do boletim foi redigido em consulta entre o cardeal camerlengo, o médico papal e eu. Os membros do Departamento de Imprensa não participaram da composição do boletim. Eles simplesmente o distribuíram pelos canais normais.

– Então, com muito respeito, e particularmente entre colegas, deixe-me registrar minha objeção. Esse é um documento precipitado e irrefletido, que terá, a meu ver, sérias consequências negativas. – Quem falava era Gottfried, cardeal Gruber, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, cão de guarda da ortodoxia na Igreja. Um pequeno silêncio seguiu seu protesto. O secretário de Estado respondeu com restrição estudada:

– O documento foi preparado às pressas porque foi exigido às pressas, para cobrir o evento inesperado da doença do pontífice.

– Dificilmente eu a chamaria de inesperada, levando-se em conta o estado de saúde do Santo Padre nos últimos tempos. Concordo que estávamos despreparados para o evento. Admito que devíamos estar prevenidos.

– Nós estávamos prevenidos, Gottfried, bem como o Santo Padre. No entanto, ele tinha sua própria opinião sobre o assunto. Não podíamos persuadi-lo.

– Alguém tentou, verdadeiramente...?

– Eu tentei – Luca Rossini estava calmo e relaxado. – Tentei muitas vezes em conversas particulares. Ele não mudava. Insistia que iria embora quando Deus o chamasse. Queria morrer em sua própria cama.

– O senhor nunca lhe sugeriu que deixasse algum documento expressando seus desejos?

– Sugeri várias vezes, mas sabe melhor do que eu como era difícil fazê-lo assinar alguma coisa até que estivesse pronto para tal.

Um pequeno murmúrio de divertimento percorreu a assembleia, e a tensão relaxou um pouco. Gruber fez um relutante gesto de concordância, mas continuou sua queixa:

– Continuo dizendo que ele deveria ter sido levado diretamente ao hospital.

– Contra sua vontade anunciada?

– Ele não a anunciou. Nós é que anunciamos.

– O senhor está sugerindo – o secretário de Estado estava perigosamente calmo – que nosso colega, Luca, está mentindo, ou que o restante de nós conspirou para fabricar um documento?

– Não, certamente que não! Mas, pense por um momento, agora é do conhecimento geral que estamos rezando por sua morte.

– Pelo que me recordo – disse o secretário de Estado –, as preces tradicionais pelos enfermos graves são para que Deus lhes dê “uma rápida recuperação ou uma boa morte”. No caso do Santo Padre, não há esperança de recuperação.

– Mas não podemos determinar isso com precisão, a não ser em condições clínicas totais.

– Que, como se sabe, ele rejeitou de antemão como oficiosas e inaceitáveis. Nós somos toda a família que ele tem, Gottfried, o que gostaria que fizéssemos?

– Acho que devemos desprezar os desejos do Santo Padre e colocá-lo imediatamente sob totais cuidados clínicos.

– Faça isso – disse Luca Rossini, com certa indiferença –, mas lembre-se: suas faculdades vitais estão em declínio. Sendo assim, para se autoprotegerem, a primeira coisa que irão fazer no hospital é ligá-lo aos aparelhos de respiração artificial enquanto o examinam. Depois disso, se o atual diagnóstico for confirmado, os senhores estarão cuidando de um vegetal. Isso é ter respeito pela vida? Isso é um imperativo moral? Se não é, então presumo que o nosso Gottfried será o voluntário para desligar os aparelhos.

– Acho que já basta! – disse o secretário de Estado. – Não estamos em um consistório formal. Esta reunião não tem status canônico, portanto não pedirei que votem sobre o assunto. Estou convencido de que o Santo Padre deve ter os seus desejos respeitados. Ele ficará aqui em sua própria casa...

– Nesse caso – Gruber fez a pergunta crucial –, quanto tempo dará a ele, antes de decidir destituí-lo como incapacitado e declarar a Sé desocupada?

– Não gosto da palavra destituir – interveio dessa vez o prefeito da Congregação dos Bispos. – Ela me parece inferir poderes que não possuímos.

Pela primeira vez, Baldassare Pontormo, o cardeal camerlengo, levantou a voz:

– Este é um problema que todos nós enfrentamos nesta reunião e fora dela. Vamos ignorar o drama do colapso do Santo Padre e nos perguntar o que faríamos se a natureza e as circunstâncias da enfermidade fossem diferentes – se ele estivesse morrendo de alguma doença duradoura, ou sofrendo de demência. A Igreja seguiria seu curso. Suas estruturas são sólidas, testadas durante os séculos, e o Espírito Santo habita nela como Nosso Senhor Jesus Cristo prometeu. Quanto ao restante, vamos admitir que não estamos bem preparados para lidar com um dos principais fenômenos de nosso tempo, longevidade e os problemas senis, como o mal de Alzheimer. No caso de um pontífice afetado pela doença, pode não ser possível... não é possível... assegurar seu consentimento explícito à renúncia. Dependeríamos de provas circunstanciais implícitas do desejo dele para fazer o melhor para a Igreja. Então, trabalhamos com devotada prudência. Esperamos, observamos e nos aconselhamos com nossos médicos conselheiros... e uns com os outros! Apesar do receio de alguns colegas, não estamos sujeitos à opinião exterior. O Vaticano é um Estado soberano. Mantemos nossa administração de almas sob os desígnios de Deus. Devemos lidar uns com os outros com caridade.

Esse foi o discurso mais longo que Luca Rossini o ouviu fazer, e estava surpreso com a eloquência e o poder do camerlengo. Mas o discurso também o deixou preocupado, porque sugeria que podia não ser tão simples assim destituir um papa senil – mesmo um que estivesse incapacitado. Ele liderou uma pequena salva de palmas que trouxe um sorriso aos lábios do secretário de Estado e um gesto relutante de aprovação de Gruber; mas o velho cão de guarda ainda tinha um rosnado:

– Concordo com Baldassare, porém sob protesto. A Igreja pode funcionar sem o seu papa. Sabemos disso. Já aconteceu no passado e pode acontecer novamente... mas não por muito tempo, não nestes tempos difíceis! Quanto à opinião pública, não estamos submetidos a ela, mas temos o dever de formá-la onde pudermos, para harmonizá-la com os ensinamentos de Nosso Senhor. Gostaria de propor que todos os boletins futuros sobre a saúde e o tratamento do Pontífice sejam submetidos a um comitê seleto da Cúria.

O secretário de Estado empinou-se na cadeira. As juntas de seus dedos estavam brancas contra o tecido escuro de sua batina. Havia um tom irritado na voz dele:

– Não! Não permitirei isso. Estamos lidando com fatos e não com opiniões sobre teologia moral. Minha autoridade está claramente definida na Constituição Apostólica de 1988. Eu não vou, não posso, delegá-la ou revogá-la.

– Como Sua Eminência decidir – Gruber curvou a cabeça rijamente e sentou-se.

– A reunião está terminada – disse o secretário de Estado. – Obrigado a todos pelo comparecimento – O secretário de Estado fez um sinal para que Luca Rossini se aproximasse. Tinha um pedido e uma incumbência. – Você disse palavras sensatas esta noite, Luca. Agora, se posso sugerir, deveria voltar ao silêncio: sem discussões, sem comentários. Entende por quê?

– Perfeitamente. Há questões e opiniões aqui que poderiam arrastar todos nós de volta a Constança em 1415: papalistas e conciliaristas em guerra. É uma confusão antiga, mas parte dela ainda está na nossa porta.

O secretário de Estado contraiu os lábios. Pôs os dedos no bolso do peito da batina, retirou um envelope fechado e o apontou em direção a Rossini.

– Gostaria que você lesse isso quando puder e falasse comigo a respeito.

– Do que se trata?

– O embaixador argentino para a Santa Sé está prestes a se aposentar. Esse é um cargo por nomeação, como você sabe. O governo gostaria de fazer a nomeação antecipadamente. Este é o dossiê referente ao candidato deles. Querem ter certeza o mais rápido possível de que estamos satisfeitos com ele.

– E o que tem isso a ver comigo?

– A Argentina é o seu país. Você tem conhecimentos especiais do povo e da história. O seu parecer é importante para mim pessoalmente.

– Por favor! Não me envolva nisso! A Argentina, claro, é o meu país; realmente tenho conhecimentos especiais, mas meus julgamentos sobre eles são distorcidos, como sabe. O senhor pode encontrar vinte opiniões melhores em seu gabinete. Peço-lhe que me dispense.

– E eu estou lhe pedindo, Luca, para aceitar o que afinal é uma tarefa simples. Não há pressa. Nada faremos até que nossa situação com Sua Santidade esteja resolvida. Deixe o envelope em sua mesa e espere até que esteja disposto a lidar com ele. Agora vamos dormir. Este foi um dia brutal para todos nós!

Ele enfiou o envelope nas mãos de Rossini e juntou suas mãos em torno do envelope, forçando-o a retê-lo; depois, com um breve boa-noite, saiu da sala.

Por um longo momento cataléptico, Rossini fixou o olhar na porta por onde ele saíra, depois também apressou-se em deixar a sala de conferência. Seu dia estava terminando como começara, uma fuga aterradora pela terra devastada, repleta dos lamentos dos fantasmas de ontem.


2

Passava da meia-noite quando Luca Rossini voltou para seu apartamento na Via del Governo Vecchio, uma rua estreita ladeada por palácios gastos pelo tempo, construídos no século XV mas convertidos há muito tempo em apartamentos do século XX. Outrora, essa rua era chamada de “Caminho Papal” porque ela conduzia diretamente da basílica lateranense a São Pedro, do outro lado do Tibre. Agora os andares térreos eram ocupados por oficinas e pequenos comerciantes, e os apartamentos habitados por uma parte da burguesia romana de meia-idade, que amaldiçoava a poluição da cidade mas não tinha condição de mudar-se.

O apartamento de Rossini ficava no quarto andar. Para alcançá-lo subia-se por uma escada de pedra ou por um antigo elevador. Um casal de espanhóis recomendado por um embaixador de partida o servia; ela cozinhava e cuidava da casa, ele se ocupava das roupas e de outros serviços. Ambos tinham seus próprios aposentos. Eram pessoas sóbrias e comedidas, treinadas à maneira castelhana no serviço diplomático e protetoras de seu patrão, cujas idas e vindas eram tão misteriosas quanto seu passado. Eles sabiam que ele era uma Eminência no Vaticano. Sabiam que falava o espanhol da Argentina, para onde seus pais tinham ido como imigrantes de Nápoles depois da Segunda Guerra Mundial. Sabiam que recebia visitas exóticas de ambos os sexos – chineses, indianos, etíopes, ucranianos, indonésios, africanos.

Domesticamente, não era um homem exigente. Falava com eles calmamente e sempre com respeito. Sua única exigência era para que observassem o que chamava de “a privacidade da casa”. Eles não deviam discutir fora de casa o que viam ou ouviam no dia a dia. Não deviam fazer comentários sobre seus convidados. Roma estava atormentada pela ameaça de grupos terroristas de mais de um país. Vidas podiam depender da sua discrição inclusive a dele. Eles entendiam isso? Entendiam. Eles conservavam a confiança de Rossini e em troca recebiam uma vida confortável dentro das possibilidades que o seu cargo oferecia.

Quando voltou para casa naquela noite, exausto, eles estavam dormindo, mas ao lado da poltrona em sua sala de descanso a ceia estava posta: uma garrafa térmica de café, uma garrafa de conhaque, sanduíches sob um tampo de prata. Antes de comer ele foi até o quarto, vestiu o pijama e um roupão. A carta que o secretário de Estado lhe dera ainda estava em seu bolso. Não se preocupou em lê-la, mas levou-a consigo para a sala e trancou-a na gaveta da escrivaninha. Já conhecia o seu conteúdo, que fora a causa da preocupação que o afetara desde o amanhecer. Ele ligou o computador e puxou o correio eletrônico que recebera esta manhã de Isabel. Depois serviu-se de café e conhaque e sentou-se para contemplar o texto novamente.

“Meu querido Luca,

Mesmo depois de todos estes anos, sinto sua falta. Por um lado, minha vida está calma, bem organizada, gratificante, como a sua parece estar. Enterrado bem abaixo da superfície, no entanto, passa um rio de lava, quente e vermelho, sempre procurando alguma fenda ou fissura na crosta grossa da existência diária para transbordar e inundar novamente a minha vida.

Uma destas fendas apareceu hoje. Raul me disse que está sendo recomendado para o cargo de embaixador para a Santa Sé. Esse é um cargo pré-aposentadoria, como você sabe, uma recompensa pelo serviço discreto em tempos de turbulência, antes e depois de nossa desastrosa guerra com os britânicos nas Malvinas.

Para Raul o cargo representa muito mais, uma definitiva absolvição pública pelas coisas feitas e desfeitas na vida dele como um carreirista vacilante. Não estou disposta a negar a ele esse pequeno triunfo estéril. Ele tem sido um bom pai para Luisa e nunca tentou me negar a liberdade de que precisei para sobreviver aos períodos áridos de nosso casamento.

Dificilmente, portanto, eu poderia ser contrária – embora tenha tentado dissuadi-lo – quando ele insistiu em colocar no dossiê a participação dele em tirá-lo do país, quando os militares colocaram você na lista daqueles que queriam ver ‘desaparecidos’, por causa do testemunho que poderia dar contra eles. Você e eu conhecemos os verdadeiros fatos, cada um de nós a seu próprio modo, consentimos em rever a história pelo menos o bastante para tornar nossas vidas toleráveis.

Raul esperava, acho, que eu pudesse intervir de algum modo a favor dele. Contei-lhe a verdade que é apenas meia-verdade, que você não faz parte de minha vida desde que deixou a casa de meu pai e que eu não poderia de modo algum solicitar-lhe favores ou recomendações.

Contudo, é exatamente o que estou fazendo agora, meu querido Luca. Estou fazendo isso por mim mesma e não por ele. Se Raul for designado para Roma, Luisa e eu o acompanharemos. Eu quero, preciso desesperadamente vê-lo novamente, e você, em suas cartas, me confessou a mesma coisa.

O amor é como o sofrimento. Precisa ser cultivado até o fim. Nunca conseguimos fazer isso. Eu gostaria de pensar que poderíamos, antes que o fogo escondido se extinga e o período glacial da indiferença nos alcance. Então, se você puder, por favor escreva ou diga a palavra certa que possa nos levar a Roma, oficialmente e sem escândalo.

Vejo-me sorrindo quando penso na bela comédia romântica que faríamos se eu, como a Señora Embajadora, pudesse receber Vossa Eminência em nossa embaixada. O que leva a outra pergunta: como e onde Vossa Eminência me receberia?

Todo o meu amor, sempre
Isabel”

As letras começaram a ficar indistintas na tela diante de seus olhos. Ele as deletou. Depois, porque era um homem pontual, digitou sua resposta.

“Isabel, minha querida,

Minha resposta é sim. Escreverei e direi as palavras certas no momento oportuno. Devo dizer-lhe, no entanto, que nada acontecerá rapidamente. O papa está muito doente e deve morrer em breve. Nenhum compromisso diplomático será feito até que o seu sucessor seja eleito. Inevitavelmente, portanto, a comédia que você espera representar entre a Eminência e a Senhora terá de ser adiada!

Como você está certa sobre a necessidade de cultivar até o fim tanto o amor quanto sofrimento! Parece ter feito isso com mais sucesso do que eu. Pensei que pudesse realizar isso como um atleta surfando na descarga de adrenalina dos jogos do poder. Eu me tornei muito bom nisso, como sabe, mas as disciplinas são rígidas, a dieta é espartana e a cama é solitária à noite.

Há um outro custo, também, que fica mais alto a cada dia. Eu não posso mais me chamar de crente. Irônico, não é? Sou um dos grandes homens da Igreja. Sou uma figura poderosa em um culto antigo, cujos rituais pratico, mas cujas crenças não aceito mais. Pessoas simples ajoelham-se para me beijar a mão. Para eles, eu ainda ministro uma mágica. Para mim, não há mais mágica. O relicário interior está escuro e vazio.

Por incrível que pareça, há um tipo de libertação nisso. Não há ninguém que possa me subornar ou amedrontar. Mesmo assim, encolho-me como uma criança diante dos pesadelos residuais que ainda me surpreendem. Uso o seu nome como uma palavra mágica para livrar-me deles. Talvez, quando vier, possa me ajudar a purgá-los para sempre. Você perguntou onde e como eu a receberia. Tenho o lugar certo. É um lugar pequeno e reservado onde cada pedaço de terra, cada planta e fruta são meus. Para mim, ele é como se fosse a ilha sagrada de Cós, um lugar de cura. Ficarei feliz e agradecido em recebê-la na paz desse lugar.

É tarde, o papa está morrendo. Tive um longo dia. Dias ainda mais longos estão por vir.

Boa noite, minha querida,
minha muito querida.
Luca.”

Ele esperou um longo tempo antes de decidir enviar a mensagem. Sabia que essa era a declaração mais aberta que já fizera, e que se ela viesse a se tornar pública seria uma catástrofe. Contudo, a necessidade de dizê-la era mais forte. Então, bêbado e confuso pelas toxinas da fadiga e do estresse, digitou o código de transmissão e enviou a mensagem.

NO QUARTO PAPAL, o pontífice permanecia deitado imóvel e pálido. Havia tubos de oxigênio em suas narinas e aplicação intravenosa de soro em seu braço. Seus olhos estavam embaçados e sem expressão. Duas irmãs de caridade tinham acabado de assumir a vigília noturna e o Dr. Mottola estava dando instruções a elas:

– As senhoras já lidaram com esse tipo de coisa antes, portanto não precisam de instruções a respeito. No momento ele parece estável, embora, na verdade, esteja definhando. Tudo o que estamos fazendo é administrando oxigênio e hidratando-o com o soro. Não espero nenhuma grande mudança antes do amanhecer. Claro, haverá um contínuo acúmulo de líquido mucoso em seus pulmões, porque ele não pode eliminá-lo através da tosse. Também haverá um excesso de dióxido de carbono, o que normalmente produzirá apneia e respiração entrecortada. Se isso acontecer, chamem-me. Estarei aqui em dez minutos. Não entrem em pânico. As senhoras não estarão vendo nada que não tenham visto antes. Mesmo o papa não está livre da condição de mortal.

A mais velha das freiras perguntou:

– E quanto a formação de cones?

O médico deu a ela um olhar de aprovação.

– A senhora conhece o seu trabalho, irmã. Se a formação de cones ocorrer, ele estará visivelmente no fim porque a pressão da hemorragia intracraniana comprimirá o cérebro e forçará a massa encefálica para fora do crânio na base. Contudo, não há indicações significativas de que a formação de cones seja iminente aqui. Minha esperança é de que tenham uma noite calma. Apenas deem uma olhada nele mais ou menos a cada meia hora... e certifiquem-se de anotar no prontuário a cada vez. Isso não ajudará muito o paciente, mas manterá nossa reputação limpa! Rezem por ele... e por mim.

– Faremos isso, doutor. Boa noite.

Quando ele saiu, as duas mulheres acomodaram-se na antessala, de onde tinham uma boa visão do paciente. Eram, como reconhecera Mottola, enfermeiras experientes, e já haviam estado muitas vezes ao lado de um moribundo. Mesmo assim, eram mulheres religiosas e havia certa qualidade sobrenatural sobre esse evento que daria cor ao resto de suas vidas. O homem, morrendo aos poucos diante de seus olhos, era dotado de uma série de títulos intimidantes: Bispo de Roma, Vigário de Jesus Cristo, Sucessor do Príncipe dos Apóstolos, Supremo Pontífice da Igreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo e Metropolita da Província de Roma, Soberano da Cidade do Vaticano.

Os títulos foram inflados por séculos de criação de mito, combinados com histórias imperiais, fortalecidos pelas legalizações romanas tradicionais, santificados por longas recordações de martírios, sustentados por grandes edifícios em cujas vergas das portas estão entalhadas a inscrição: “Tu es Petrus... Tu és a rocha sobre a qual o Reino de Deus está construído.” Tudo isso foi reduzido a uma simples e triste ironia – um homem velho morrendo em um pequeno quarto, assistido por duas mulheres conversando em voz baixa na antessala.

Houve uma batida discreta na porta e Claudio Stagni, mordomo do pontífice, entrou com uma bandeja de café e comida para o jantar delas. Ele era um homem baixo, corado e alegre – a única pessoa, segundo a lenda da corte, que conseguia fazer o pontífice sorrir e acabar com o seu mau humor. No pequeno círculo familiar eles o chamavam de Fígaro, porque, enquanto executava suas tarefas, ele se autoparodiava com a melodia de Rossini, Figaro qua, Figaro là, Figaro su, Figaro giù! Quando as mulheres agradeceram pelo serviço e pediram desculpas por mantê-lo acordado até tarde, ele sorriu e deu de ombros.

– Nesse trabalho, a gente vira uma criatura da noite. Sua Santidade muitas vezes trabalha de madrugada. Ele precisa de café, sanduíches e de uma conversa informal. Ele gosta de testar suas ideias comigo porque diz que mesmo um papa pode não ser um herói para seu mordomo, mas se ele me fizer entender, tem uma boa chance de fazer sentido para o resto da Igreja!

A freira mais jovem perguntou a ele:

– Como ele é na intimidade?

Claudio fez um gesto eloquente de reprovação.

– Como ele é? Ah! Como transformar um épico em um soneto? Ele tem sido um grande homem no seu tempo... e tem sido um longo tempo também! Alguns poderiam dizer muito longo. Mas não se pode medi-lo pelo que se vê lá na cama.

– Você diria que ele foi um santo? – Desta vez foi a freira mais velha quem perguntou.

– Um santo? – O mordomo fez uma comédia elaborada ao considerar a pergunta. – Minha querida irmã, creio que ele não é um santo. De muitas maneiras, ele é tão humano como a senhora e eu. Ele perde a calma com facilidade... e não ficou mais dócil nos últimos anos. Ele não gosta de ser contestado, mas admira qualquer um que esteja preparado para enfrentá-lo em uma luta decisiva. Ele gosta de falar, razão pela qual aprecia que eu esteja por perto, mas está sempre pronto a ouvir pessoas que o façam se sentir bem, porque é solitário aqui em cima, como podem perceber. Qualquer erro que cometa está fadado a ser um erro enorme, com grandes consequências. Apesar de tudo, é um homem generoso. Ele ouvirá todos os lados de um caso... se, é claro, a Cúria permitir que os ouça, o que nem sempre acontece. Ele é um santo? Eu diria que é preciso ser um pouco santo para viver o tipo de vida que ele tem vivido. Ele corre o mundo afora como um tenor em turnê, distribuindo sorrisos e bênçãos que as pessoas devoram... e lendo discursos que a hierarquia local escreveu e que deixam as pessoas entediadas. Ele reza muito também. Costumava dizer que não poderia sobreviver sem Deus para se encostar. E Deus é muito real para ele. – Fez uma pausa, depois deu às mulheres um sorrisinho conspirador. – Olhem aqui, irmãs, por que as senhoras não terminam o café, enquanto eu entro para dizer boa-noite a ele? Gostaria de fazê-lo. E acho que devia arrumar o guarda-roupa dele e retirar uma muda de roupa para o caso das senhoras quererem trocá-lo antes do amanhecer. Além do que, isso faria com que eu me sentisse útil. Não há muito mais que eu possa fazer por ele.

Ele as deixou, então. Elas o perderam de vista quando encostou a porta do quarto para pegar as roupas do pontífice no armário. Poucos instantes depois, voltaram a vê-lo por um momento, empilhando algumas roupas para a lavanderia e colocando uma pequena pilha de roupa limpa aos pés da cama. Depois, fez uma coisa curiosa e comovente. Pegou dois lenços brancos da pilha de roupa limpa e tocou a fronte do papa com eles. A seguir os levou para fora e, com um sorriso triste, deu um lenço a cada uma das freiras.

– Tomem! Todos nós sabemos que ele não vai mais precisar deles. Tenho certeza de que gostaria de agradecer as senhoras pelo que estão fazendo por ele. Se o santificarem algum dia, estes lenços serão relíquias preciosas, não é? E não se sintam mal por aceitá-los. Sou o mordomo dele. Eu os comprei para ele. As senhoras não imaginariam um papa saindo para comprar lenços de cambraia na via Condotti, imaginariam?

As duas mulheres estavam profundamente comovidas. Ainda murmuravam seus agradecimentos quando ele deu boa-noite e saiu rapidamente da sala com o monte de roupa suja nas mãos. Elas não sabiam – como poderiam saber? – que Claudio Stagni acabara de obter para si uma pensão vitalícia – três volumes finos do diário mais íntimo do papa, escrito por ele no final de cada dia, e mantidos guardados em uma gaveta no seu armário.

A existência do diário era desconhecida de todos, exceto de seu fiel mordomo, confidente e bobo da corte, que muitas vezes serviu de plateia para os comentários bruscos de um homem fatigado enquanto ele os colocava no papel. Quando ele morresse, essas memórias passariam imediatamente para a custódia do cardeal camerlengo, que talvez escolhesse enterrá-las por um século ou dois no Arquivo Secreto. Melhor, muito melhor, que Fígaro, o ironista feliz, o criado particular há muito sofredor, as apresentasse ao mundo, munidas de contexto e procedência, e, na hora certa, escrevesse sua própria biografia do pontífice. Já havia negócios rentáveis sendo oferecidos por vários meios de comunicação para qualquer material que ele escolhesse fornecer sobre sua vida como criado particular do papa, mas, de posse desses textos, Fígaro estava certo de poder dobrá-los e redobrá-los e dobrá-los, novamente, e viver rico e feliz para sempre.

O PESADELO DE LUCA, cardeal Rossini, nunca mudava. Era como se uma tira de um velho filme mudo estivesse enlaçada em sua cabeça e pronta para rodar na hora mais fria e mais escura antes do amanhecer. A ação sempre começava com a mesma cena: uma pequenina cidade subandina ao noroeste de Tucumán.

Havia uma igreja e uma casa paroquial, de frente para uma pequena praça com um mercado em colunata, onde grãos, animais, cerâmicas e tecidos eram trocados por mercadorias importadas de Buenos Aires. A população local era um típico coquetel argentino de meados do século: crioulos, imigrantes legais e ilegais do Chile e do Uruguai, mestiços e os remanescentes das tribos incas, fragmentados pelas políticas da velha Espanha Imperial.

As carroças dos negociantes, veículos pesados e desajeitados, estavam alinhadas em volta da praça, de forma que os moradores acima da colunata tinham uma vista, como plateia de teatro, dos pequenos dramas representados sobre os paralelepípedos abaixo. Esse também era o ponto de vista de Rossini para o filme desenrolando em sua cabeça. Ele estava vendo a si mesmo, representando a si próprio na tela muda.

A ação começou com um caminhão militar entrando na praça. As pessoas da cidade ficaram congeladas ao vê-lo. Um grupo de soldados saltou do caminhão, dispondo-se em linha reta de frente para a entrada da igreja. O comandante era um sargento, um sujeito robusto que parecia o hércules de um circo. Ele desceu da cabine do caminhão e ficou um longo tempo, um sinistro gigante, supervisionando a cena e batendo em suas calças com um chicote de montaria.

Depois, deu início a um lento giro pela praça enquanto sua pequena população de homens, mulheres e crianças amontoava-se, muda, em torno das carroças. Quando completou o giro, ele acenou com o chicote para a tropa que o aguardava.

Quatro homens saíram de suas posições, dois em cada flanco da praça, e circularam entre os donos dos estandes, exigindo, sempre em atuação muda, seus documentos de identidade. Se houvesse qualquer demora ou hesitação, as mercadorias eram estraçalhadas ou atiradas ao chão. Qualquer um que protestasse era imediatamente derrubado com o punho ou com a coronha do fuzil. Crianças eram esbofeteadas ou chutadas.

Em meio a essa intimidação sistemática, Luca Rossini saiu correndo da igreja. Vestia uma camisa, calças e sandálias. O único símbolo de seu ofício sacerdotal era um pequeno crucifixo de prata pendurado no pescoço. Mesmo como testemunha do sonho, ele ficou chocado em ver como era jovem. O terror era que não podia ouvir as palavras que gritava, nem conter seus raivosos gestos de protesto.

Notou, no entanto, que os gritos silenciosos fizeram algum efeito. Os soldados pararam suas rondas e olharam para o sargento, esperando ordens. O sargento ergueu a mão para ordenar uma pausa, depois andou lentamente para confrontar Rossini, que ainda o censurava com gestos e gritos silenciosos. O sargento sorriu benevolente e o chicoteou em ambas as faces. Fez um outro sinal para a tropa e Rossini foi subjugado por um bando de homens armados.

Rasgaram sua camisa e arriaram as calças até os tornozelos para expor as costas e nádegas. Abriram seus braços e pernas contra a roda grande da carroça de um dos negociantes e amarraram seus pulsos e tornozelos no aro e nos raios da roda. Ele agora não podia ver nada, exceto uma parte dos paralelepípedos entre os raios, um monte de grãos derramados e o rosto apavorado de uma criança, escondida debaixo da carroça.

Depois, medindo e saboreando cada golpe, o sargento começou a chicoteá-lo. A princípio ele tentou permanecer em silêncio, mordendo os lábios, mas finalmente os primeiros gritos silenciosos foram arrancados dele, e os gritos tornaram-se gemidos e grunhidos, enquanto as chicotadas continuavam a descer sobre suas costas e nádegas. O grupo de pessoas na praça estava em silêncio. Os que olhavam das janelas estavam pasmos de medo e horror. Um quarto de século depois, em outra dimensão de tempo e espaço, Luca, cardeal Rossini, olhava a degradação a sangue frio do jovem que havia sido. Finalmente, a surra terminou. O sargento limpou sangue e pele do chicote, depois recuou para inspecionar seu trabalho. Ele apreciou, sorriu e virou-se para falar com sua tropa. Dessa vez as palavras eram audíveis. Elas foram ditas em lunfardo, o dialeto das favelas de Buenos Aires que Rossini aprendera na infância.

– Agora sim, estão vendo!? Eu o amaciei para vocês. Ele está quente e molhado. Quem gostaria de foder um padre?

A tela ficou escura e Luca, cardeal Rossini, lutou para sair do pesadelo para enfrentar um amanhecer cinzento de Roma.

HAVIA OUTROS se levantando cedo naquela manhã na Cidade do Vaticano. Funcionários da Sala Stampa ficaram acordados a noite inteira monitorando as fontes de imprensa na Europa, nas Américas e Sudeste asiático. Seu diretor, monsenhor Domingo Angel-Novalis, estava em sua mesa às cinco da manhã, resumindo a informação para o secretário de Estado.

Angel-Novalis era um aragonês, educado em Madri, e lançado cedo, com o dinheiro da família, em uma carreira de sucesso como financista internacional. Ele casou-se bem. Sua esposa, uma mulher piedosa, o encorajara a ingressar na ala leiga do Opus Dei. Quando sua esposa e seu filho pequeno foram mortos, ele foi amparado em sua angústia pela irmandade da congregação. O rigor, a união e a vida comunitária elitista deles vieram ao encontro de suas necessidades. A filosofia de seu circuito fechado acabaram com todas as dúvidas, como o velho grito de guerra dos cruzados os haviam endurecido para o combate – “Ut deus vult!” – Como Deus quiser! Ao final de um ano, solicitou e foi aceito como candidato para o sacerdócio.

Em qualquer profissão ele seria material de primeira. Nessa em particular, com um casamento e uma carreira de sucesso atrás de si, uma batalha pessoal ganha, ele era notável. Ele terminou seus estudos em Roma e lá foi ordenado. Foi recomendado aos cuidados do pontífice. Sua história e seus talentos manifestos como comunicador trouxeram-lhe a rápida nomeação para a Sala Stampa, onde uma certa ironia sobre o mundo e seus caminhos granjeou-lhe o respeito, se não a afeição. Sua nota para o secretário de Estado tinha um toque da mesma ironia:

“ATÉ AGORA, não nos saímos tão mal com a imprensa mundial. A maioria dos editores foi apanhada de surpresa pelo momento de nosso primeiro boletim. Tiveram pouco tempo para reunir material explicativo ou estampar uma linha editorial clara. Contudo, podemos ter certeza de que tal material emergirá nos próximos dias. Os primeiros indicadores são os seguintes:

Daily Telegraph, Londres: O colapso do pontífice não foi um evento inesperado. Inesperada foi a decisão de tratá-lo em seus aposentos no Vaticano, em vez de no Hospital Gemelli, onde normalmente se trata. Uma explicação que circula em Roma – embora ainda não apresentada por qualquer fonte do Vaticano – é que o dano cerebral do pontífice é tão severo que nenhuma intervenção é possível ou desejada. Contudo, na sua condição atual, qualquer ato clínico – a administração de oxigênio, a hidratação por soro intravenoso – representa um ato de intervenção importante.

Le Monde, Paris: A mensagem do boletim é bastante clara. Sua Santidade expressara anteriormente seu desejo de que não deveria haver o prolongamento oficioso de sua vida. Alguém no Vaticano está claramente preparado para dar testemunho desse fato. O que não está totalmente claro é se, no mesmo contexto, o pontífice consentiu anteriormente em ser desobrigado de seu cargo caso houvesse qualquer dúvida sobre sua capacidade para servir à Igreja. Na ausência de tal consentimento, outras questões se levantam: O desejo dele pode ser presumido? Se a presunção for discutida, quem decide a questão? E, como e de que forma ele será removido para abrir caminho para o sucessor?

New York Times: Os médicos do Vaticano e os funcionários da Cúria estão andando na corda bamba sobre o assunto que, quando toca o fiel comum, tendem a repelir com uma proposição teológica incisiva. Foi dito que o papa rejeitou anteriormente qualquer prolongamento de sua vida já tão longa. Até agora nenhuma prova documental foi apresentada. O papa não tem mais meios de expressar-se. Certamente não pode exercer as funções de seu cargo. Quem decide por ele, seus médicos ou um comitê curial? E com que critério julgarão, com uma teologia rigorista ou liberal? Ambas estão em curso na Igreja de hoje. O pontífice foi, sem dúvida, um rigorista. Ele empurrou os limites da infalibilidade até onde pode esticá-los sem um cisma. Então agora, quis custodiet ipsos custodes? Quem guardará os guardiões nos portões, e como os fiéis julgarão suas ações?

Com grande respeito, Eminência, sugiro que desse momento em diante, retornemos à ordem habitual de comunicação. A Sala Stampa redige os boletins, submete-os a sua aprovação e os edita através de seus canais normais. No momento estamos andando em um campo minado e ainda temos de enfrentar os tabloides e as cabeças falantes da televisão!

Rogo uma instrução urgente de Sua Eminência. Eu gostaria de redigir o próximo boletim pessoalmente, assim que os médicos terminem o relatório da manhã.

D. Angel-Novalis”

Às seis e meia da manhã, o Dr. Mottola e seus dois colegas especialistas examinaram o paciente. Pediram para ficar sozinhos com ele. As irmãs enfermeiras haviam saído para tomar café, enquanto o secretário de Estado e um grupo de prelados superiores, junto com o secretário papal e Domingo Angel-Novalis, estavam esperando no escritório do papa.

– Então, senhores! – O Dr. Mottola dirigiu-se aos colegas. – Diagnósticos e prognósticos. Precisamos ser o mais francos possível. Os cavalheiros na sala ao lado estão na fogueira. Eles precisam de nós para apagar o fogo. Trouxeram Angel-Novalis de volta ao circuito, que encaixará as palavras certas ao que dissermos a ele. Você primeiro, Ernesto.

O Dr. Ernesto Cattaldo ergueu os ombros, resignado.

– O que veem. Coma profundo, olhar fixo, nenhuma sensação. Ele não pode engolir, sua respiração é baixa e espasmódica, com momentos de apneia que se tornarão mais frequentes. Ele não pode tossir para eliminar o muco dos pulmões. Eu o registraria como terminal.

– Piero?

Gheddo, o cardiologista, falou primeiro:

– Eu concordo com terminal, mas o declínio é mais gradual do que se esperava. Ele ainda pode durar alguns dias. Sugiro que a Sala Stampa deixe uma pequena brecha: “A vida do Santo Padre está se esvaindo pacificamente.” Qualquer coisa assim.

– Então, o prognóstico é negativo. Como descreve o tratamento?

O Dr. Gheddo deu de ombros:

– Diga a eles a verdade, mas não necessariamente toda a verdade. Estamos administrando oxigênio, que ainda não é o bastante para equilibrar os níveis de dióxido de carbono no sangue. Nós o estamos hidratando o suficiente para evitar que se queime. Nós não o estamos alimentando de modo algum.

– Estamos pisando em ovos aqui. – O Dr. Mottola estava incerto.

– Não, não estamos. – O neurologista foi taxativo. – Estamos administrando o tratamento ético normal. Nosso compromisso é com o paciente, não com a imprensa ou a Cúria.

– Acho – disse o Dr. Mottola cautelosamente – que é mais uma questão de ajudá-los a encontrar as palavras certas que sejam adequadas tanto às circunstâncias quanto às suas consciências. Conto com a sua colaboração para isso, senhores!

– Tudo que eles precisam – disse Gheddo – é de algumas frases bem lapidadas: “intervenção limitada”, “cuidados deliberados para o conforto e dignidade de um homem moribundo”. Os cavalheiros na sala ao lado estão ainda menos dispostos do que nós para um debate sobre princípios éticos.

– Estamos prontos então? – perguntou o Dr. Mottola.

– Prontos como nunca – respondeu o Dr. Gheddo, resignado. – Cristãos, aos leões! Vamos ao trabalho!

Eles ficaram surpresos ao descobrir quão pouco foi exigido deles. A meia dúzia de prelados superiores reunidos no escritório os cumprimentou timidamente. O camerlengo apresentou o monsenhor Angel-Novalis que, no devido tempo, solicitaria qualquer esclarecimento de seus relatórios médicos para inclusão em seus boletins para a imprensa mundial. Ele pediu ao Dr. Mottola que enviasse o relatório em termos simples. O Dr. Mottola fez um breve resumo das conclusões a que haviam chegado, ele e seus distintos colegas. Depois esperou. A primeira reação veio de Domingo Angel-Novalis, que não era de meias-palavras. Ele estava de bom humor e foi direto ao assunto:

– Obrigado, cavalheiros. Vou recapitular o que me disseram, para certificar-me de que entendi. Primeiro, o Santo Padre está morrendo. O fim é esperado muito em breve. Os senhores estão administrando oxigênio e hidratação. O corpo dele não pode lidar com mais do que isso, porque suas funções estão se deteriorando. Correto até aqui?

– Correto – respondeu o Dr. Mottola.

– E os seus colegas concordam?

– Eles concordam.

– Eles continuarão a atender o pontífice até o fim?

– Se o cardeal camerlengo assim o permitir, certamente.

– Tenho uma pergunta para os cavalheiros. Os senhores já deram início ao tratamento que descreveram. Continuam a administrá-lo neste momento?

– Sim.

– Interromperam algum tratamento por alguma razão?

– Não.

– Recomendariam algum tratamento que não está sendo administrado no momento?

– Não.

– Tiveram algum convite da imprensa para discutir esse caso?

Os três médicos se entreolharam. O Dr. Mottola hesitou um pouco antes de responder:

– Sim, eu fui questionado. Mas não posso responder por meus colegas.

Cattaldo e Gheddo assentiram, mas nada comentaram. O calmo inquisidor continuou:

– Estou certo, cavalheiros, de que suas respostas respeitaram a relação médico-paciente e a relação família-médico que existe entre os senhores e todos os membros da casa papal.

– Isso nem precisava ser mencionado – disse o Dr. Mottola.

– Isso me admira! – o Dr. Cattaldo estava ofendido. – Por que a necessidade de mencionar isso?

– Desculpem-me! – Angel-Novalis foi instantaneamente diplomático. – Por favor, não se ofendam. Estou simplesmente exercendo cautela. Meus colegas e eu lidamos todos os dias com o pessoal da imprensa em todo o mundo. Eles são habilidosos para fabricar manchetes em torno das frases mais fragmentárias. A resposta mais simples a qualquer pergunta é a de que os senhores não podem discutir o caso.

– Isso pode criar problemas, também.

– Reafirmo, meu caro doutor, que estamos melhor equipados do que os senhores para assumi-los e resolvê-los. Eu não me atreveria por um momento sequer a me intrometer no terreno profissional dos senhores. No meu campo, entretanto, sou um especialista. Estou certo, por exemplo, de que nos próximos dias, a mídia oferecerá ao senhor e os seus colegas somas substanciais por declarações à imprensa ou entrevistas na televisão sobre os últimos dias de Sua Santidade. Quando as recusarem, como sei que farão, então os senhores podem ser convidados a responder perguntas aparentemente inocentes. Eu os aconselho a declinar.

Um pequeno rumor de aquiescência ocorreu entre os prelados reunidos. Eles aprovavam este homem. Ele não media palavras. Escapava valsando das armadilhas. Angel-Novalis pegou suas anotações e deixou o aposento. O cardeal camerlengo fez um pequeno discurso para salvar as aparências:

– Antes de saírem, cavalheiros, gostaria de expressar, de minha parte e da parte de todos os membros da Cúria, nossos agradecimentos pelos seus cuidados ao nosso Santo Padre. Sabemos que os senhores continuarão a ampará-lo até o fim, que, rezamos para que não seja muito prolongado.

Ele os levou até a porta, apertou a mão de cada um deles e voltou em meio minuto para enfrentar mais uma vez a assembleia. Parecia um homem que acabara de tirar um grande peso dos ombros.

– Bem, meus irmãos, estamos perdendo o nosso Pai. Creio que nenhum de nós lhe negará ajuda para executar os seus serviços à Igreja. Cabe a mim, como chefe de sua casa, fazer os preparativos para a sua passagem e depois assumir o governo da Igreja enquanto a Sé estiver vazia. Há muito a fazer. Eu gostaria de sua permissão para começar a trabalhar agora. Placetne fratres? Concordam, meus irmãos?

– Placet.

A antiga fórmula passou como uma onda pela assembleia. Com isso todos podiam concordar. Quaisquer que fossem as discórdias ou rivalidades, a comunidade do povo de Deus permanecia em Cristo.

LUCA ROSSINI dispensara-se da reunião matinal no Vaticano. O secretário de Estado o aconselhara ao silêncio. Não era fácil ficar em silêncio em uma assembleia de cardeais da Cúria que estavam velando seu supremo pastor, se preparando para os rituais fúnebres, esperando para eleger um sucessor, imaginando o que aconteceria quando, como mandava o costume, renunciassem aos seus cargos e esperassem que o novo pontífice os redistribuísse.

Ele tinha pouco a acrescentar à discussão sobre protocolo e procedimento. Eles formavam o gabinete central. Ele sempre fora um cavaleiro nas marchas mais distantes, um emissário para os postos mais avançados da cristandade. Mais do que qualquer de seus eminentes colegas, estaria vulnerável aos ventos cortantes da mudança. Ele tinha adversários fortes e poucos advogados no Sacro Colégio, e carecia de paciência para aplacar os hostis e cultivar aqueles que o favoreciam.

Em breve o seu patrono estaria morto. O homem que usara o poder de seu ofício para salvar um corpo e uma alma danificados se ausentaria para sempre. Luca Rossini ficaria só, então. Eles o chamavam de cardeal – um homem-chave, aquele para o qual os portões do poder foram escancarados. Em breve poderia ser a chave de um portão que abriria para lugar nenhum. E também teria de renunciar ao cargo sombrio que ocupava e jurar fidelidade e obediência a um novo Bispo de Roma, um novo Sucessor de Pedro, o Apóstolo. Estaria ele preparado para fazer isso? Deixando de lado qualquer questão de moralidade ou ética, estaria preparado para aceitar as vantagens do cargo, e usá-las sem culpa ou remorso para seus próprios fins, quaisquer que fossem esses fins? Uma vez, ele acreditara que a definição era fácil. Ele a recebera de seu primeiro conselheiro médico: Você buscará reparação, justiça, desforra. Você nunca estará totalmente ressarcido. Você declarará uma vendeta contra os infiéis – e os fiéis que colaboraram com eles. Você exigirá vingança como direito...

Em sua primeira audiência em Roma, o pontífice, que viria a ser seu patrono e protetor, oferecera-lhe outra definição:

– Você está com medo. Está amargo. Está irado. Se eu estivesse em seu lugar, sentiria o mesmo. De certo modo, estou em seu lugar, porque indiquei alguns dos prelados que, pelo silêncio ou por conveniência, permitiram que essas atrocidades acontecessem, porque ficaram mudos, nós aqui em Roma ficamos cegos e surdos. Estou envergonhado por isso. Estou envergonhado pelas muitas barbaridades que aparentamos perdoar, pela ignorância culpável ou pelo falso oportunismo que nos induz a pactuar com o mal. Portanto, use suas cicatrizes com orgulho. Conserve a sua ira, mas aprenda a perdoar! Medite todos os dias nas palavras de nosso Salvador no auge de sua agonia: “Pai, perdoai-os. Eles não sabem o que fazem.” E não se esqueça também que esse foi o mesmo homem que adentrou os distritos do templo desferindo golpes de chicote nos mascates e cambistas que corrompiam a casa de Deus... você não mudará o mundo, nem a si mesmo da noite para o dia, mas precisa tentar. Você tem de praticar todos os dias... portanto lhe darei trabalho para estender suas forças e alargar seu espírito.

Ele aceitara o conselho de boa-fé. Cumprira as tarefas que recebera com energia e bom senso. Aceitara promoções à medida que lhe eram oferecidas porque, embora não curassem as feridas, colocavam poder em suas mãos. Ele aprendeu cedo a usá-lo com moderação, consciente de seu mau uso contra si mesmo. A última coisa que ele queria era criar suas próprias tiranias.

Ele era escrupuloso ao pesar todas as provas em uma causa contra qualquer clérigo ou instituição clerical. Ele concedia a maior tolerância que o senso comum permitia, mas uma vez provado um caso, ele era implacável e preciso como um cirurgião extirpando um tumor maligno.

Foi a sua disciplina draconiana, e a discrição dentro da qual lhe era permitido exercê-la, que o levou ao topo dos fortes declives da prelação. Foi essa mesma disciplina que extraiu dele, gota a gota, os últimos resíduos de manutenção de vida da paixão, deixando-o seco e vazio, um viajante perdido andando em círculos.

Ele vira isso acontecer com outros, mais velhos e mais sábios do que ele. Presos nas armadilhas de suas carreiras, sem desejos ou motivações para se livrar delas, sempre protegidos, rejeitaram todos os riscos e se renderam a uma conformidade cética de crença e conduta. Em seus dias de ira escarnecera deles. Agora via-se diante da escolha oferecida a eles em algum momento de suas vidas: Se não aguenta o calor, saia da cozinha. Se você ainda quer usar o chapéu de mestre-cuca, afaste-se do fogão e se contente em lamber a colher para provar o que os verdadeiros cozinheiros prepararam. Agora ele próprio enfrentava o mesmo dilema: Permaneça sem honra, até que a máscara que usa se torne seu próprio rosto. Ou desista e saia, para se tornar um ninguém em lugar algum.

O pensamento trouxe de volta os terrores de seus pesadelos. Ele livrou-se deles, tocou a campainha para o café da manhã, depois ligou o computador para verificar a correspondência noturna.

Havia cartas de Manila e Jacarta, de Taiwan e Tailândia, de Xangai e Bombaim. Todas sobre assuntos altamente inflamáveis nos territórios menos conhecidos da Igreja, para onde fora enviado ou chamado para mediar disputas ou estabelecer diálogos construtivos. Foi lá que o seu melhor trabalho foi feito. Suas cicatrizes eram o seu passaporte para os territórios menos amistosos, mesmo para os homens velhos em Beijing, que sobreviveram à revolução cultural. Havia um curioso entendimento entre os mártires políticos. Persistiam vínculos perenes não expressados entre as vítimas dos instrumentos de tortura e os inquisidores que os colocaram lá.

Ele brincava com seus pensamentos enquanto lidava com a correspondência. Lembrou-se de como Paulo Apóstolo descreveu a si mesmo na carta aos efésios: Paulo, o prisioneiro de Jesus Cristo... um prisioneiro no Senhor. Para Luca Rossini, a frase continha um gosto amargo. Ao contrário de Paulo, não lhe restava fervor, apenas uma convicção rançosa de que a decência comum exigia que terminasse o trabalho que tinha em mãos.

Quando estava prestes a desligar a máquina, a mensagem de Isabel apareceu na tela. O sobrescrito mostrava que ela fora enviada de Nova York às 2h15 da madrugada. Consultou o relógio. No horário de Roma eram 8h20 da noite. A transmissão fora imediata. O tom da própria carta era urgente, quase peremptório.

“Meu querido Luca,

Como vê, é muito tarde para mim, mas pelo menos posso estar só e ter privacidade. Meu marido está passando dois dias em Washington. Entretanto, liguei para ele com a novidade de que você está preparado para recomendar sua nomeação quando chegar a hora. Ele ficou, é claro, muito feliz e me pediu para enviar seus agradecimentos. Ele escreverá pessoalmente para você no tempo devido, mas, prudente como é, ele acha que qualquer correspondência neste momento seria inoportuna!

Achei, no entanto, que este era o momento oportuno para conseguir o consentimento dele para ir com Luisa imediatamente para Roma e ficar lá o tempo suficiente para mostrar uma presença familiar não oficial, com os diplomatas argentinos, no funeral do papa atual e na instalação do novo papa. Também falei com Raul que esta seria uma ótima oportunidade para apresentar Luisa aos círculos diplomáticos no exterior. Ele concordou que era uma excelente ideia. Já que mantém uma amante há muito tempo em Nova York, ele não sentirá tanta falta dos confortos de um lar.

Por que estou fazendo isso? Eu sou a filha de meu pai. Você sabe que não gosto muito de pompas e cerimônias.

Estou indo por sua causa, Luca. Tenho andado muito preocupada desde que li sua carta. Eu o conheço muito bem. Segurei você em meus braços enquanto chorava como uma criança. Já o vi desatinado de ódio. Eu, a sua Isabel, ensinei-lhe a transformar o ódio em paixão e consumi-la em meu corpo em noites que recordarei pelo resto de minha vida. Reabri o seu coração para o amor. Não posso suportar ver esse amor preso de novo sob essa calma glacial que você exibe ao mundo.

A calma não irá durar. Não pode durar. Ou o Luca que eu conheço irá murchar e morrer de frio, ou explodirá como os vulcões da Islândia e partir-se em pedaços. Portanto, queira você ou não, eu estou indo. Pela manhã terei de fazer os preparativos finais. Preciso chegar aí logo, antes que você entre em conclave para eleger o papa. E se o elegerem e você nunca mais escapar de seu cárcere privado? Isso é um pesadelo, não é?

Não escreva novamente. Entrarei em contato com você logo que chegarmos. Um pedido especial: por favor, reserve um pouco de sua atenção para minha filha. Ela é uma linda jovem e está muito interessada neste homem importante que sua mãe e seu avô resgataram da milícia brutal. Espere por nós muito em breve.

Todo o meu amor sempre,

Isabel.”

Ele recostou-se na cadeira, tomou um gole de café, devagar, e contemplou o texto na tela. Sorriu e balançou a cabeça, repreendendo-se pela própria desilusão. Essa era a visita com que sempre havia sonhado – e agora, embora subconscientemente, tinha conseguido.

Nada havia de exagerado nas lembranças que Isabel tinha dele, nem nas suas em relação a ela. Isabel era uma mulher muito franca e direta para tolerar meias-verdades que, como um clérigo celibatário em alta posição, ele usava para auxiliar seus contatos na sociedade. Tudo o que ela alegou ter feito por ele, ela o fez.

Havia mais ainda a ser dito. Houve omissões mesmo na última história contada a ele por Carlos Menéndez, pai de Isabel:

– Você sabe que estou dirigindo uma operação grande e promissora no contraforte para a Petroleo Occidental. Estamos alojados nas montanhas, mas mantenho um apartamento sobre a colunata na praça. Às vezes Isabel vem de Buenos Aires para ficar comigo. Ela está casada com Raul há pouco mais de um ano, mas a lua de mel já acabou faz tempo. Ele sempre foi ambicioso, sempre foi um esnobe. Isabel despreza a admiração dele pelos militares, que, Deus sabe, são um bando de degenerados. Eu mesmo já fui um engenheiro militar, no posto de major. Depois desisti para associar-me à Petroleo Occidental. Contudo, permaneci na reserva e mantenho um uniforme à mão. É útil quando eles enviam os rapazes valentões para amedrontar os camponeses. Acontece que Isabel e eu estávamos no apartamento quando os militares entraram na cidade. Vimos você amarrado. Vimos a surra começar.

– E deixaram acontecer?

– Nós deixamos parte da ação acontecer. Eu conhecia aquele sargento, ele era um sádico repulsivo. Ele era bem capaz de ordenar a seus homens que abrissem fogo contra as pessoas na praça. Dei à Isabel meu fuzil e disse a ela que o mantivesse na mira enquanto eu vestia meu uniforme e pegava uma pistola. Eu sabia que você sobreviveria a uma surra, mas ninguém sobrevive a uma bala na cabeça.

– Mas, pelo amor de Deus, Carlos, aquela surra durou muito tempo.

– Muito ou pouco, quando eu estava pronto para intervir, ela já havia terminado e o sargento estava desafiando os rapazes a sodomizar você.

– É até aí que me lembro. Eu desmaiei.

– Isabel não lhe contou o restante da história?

– Ela me contou em pequenas doses, como remédio. Ela me disse que você me contaria tudo mais tarde.

– Estou lhe contando agora. A tropa recuou. O sargento gargalhou e disse a eles que lhes mostraria como fazer. Ele começou a desabotoar as calças. Desci as escadas rapidamente. Quando cheguei à praça, eu o vi mostrando seu pênis para a tropa. Assim que se virou para estuprar você, Isabel atirou e arrancou a parte de trás da cabeça dele. A tropa ainda estava na mesma posição, em guarda e chocada, quando atirei duas vezes para o ar e gritei para eles ficarem em posição de sentido. Quando eles viram o uniforme, obedeceram. Eu os ordenei que jogassem o corpo do sargento no caminhão e voltassem para o quartel. Logo que partiram, desamarrei você. As pessoas da cidade me ajudaram a levá-lo para o apartamento. Isabel cuidou de seus ferimentos o melhor que pôde. Telefonei para o comandante militar em Tucumán e lhe disse que ele tinha um grande problema nas mãos, problema com a junta e com a Igreja, a quem a junta estava cortejando como uma noiva virgem. Eu havia mandado a tropa de volta para ele, com um corpo para enterrar. Eu disse a ele que o enterrasse rápido e fundo. Depois fiz duas ligações, uma para o nosso alojamento, pedindo um helicóptero com o nosso médico, a outra para um amigo meu que tem uma grande estancia ao norte de Córdoba. Nós o levamos de helicóptero para lá. Isabel ficou com você. Voltei a Tucumán e depois a Buenos Aires para esclarecer as coisas com a junta e falar em particular com o cardeal-arcebispo e o núncio apostólico. Minha empresa também ajudou, mas... Deus!... aquelas foram as seis semanas mais difíceis de minha vida. O marido de Isabel foi inútil. No final, fizemos um acordo. Eu o levaria a Buenos Aires e o entregaria ao núncio apostólico, que o enviaria imediatamente para Roma. Eu voltaria ao meu trabalho. Isabel voltaria para o marido. Sem publicidade. Sem comentários. Caso encerrado. Há alguma coisa mais que queira saber antes de deixar a Argentina?

– Como você se sente em relação a mim e Isabel?

– Ela foi boa para você. Você, de um modo estranho, foi bom para ela. Fiquei feliz ao ver que se gostavam. Você vale muito mais do que o palhaço com quem ela se casou.

– Por que ela se casou com ele?

– Ele era uma bela mercadoria: de família tradicional, bem educado, boas maneiras, rico, todas as garotas o queriam; então, Isabel tinha de tê-lo. Bem, ela o teve. Um homem vazio que chocalha como uma cabaça, mas tem a aparência de uma fruta sã na fruteira.

– Por que ela não o deixa?

– Ela já pensou sobre isso mais de uma vez. Agora ela não pode... pelo menos por enquanto.

– Por que não?

– Use a cabeça, homem! Você não sabe o que nos custa para sair dessa enrascada. Isabel precisa manter a cabeça no lugar. O marido dela não é poderoso na junta, mas o pai dele é, e ele seria um mau inimigo... É por esta boa razão que quero você fora da vida dela.

– Há outras razões?

– Várias.

– Quero ouvi-las!

– Você é um padre. Ela não tem futuro com você.

– Não sobrou muito do padre.

– Alguma coisa do homem também pode ter se perdido. Leva muito tempo para se recuperar de uma experiência de tortura e da degradação que a acompanha. É por isso que ela é uma ferramenta tão poderosa na política. É muito cedo para saber como você se recuperará. Se quiser uma resposta direta, eu lhe dou. Não quero Isabel bancando a enfermeira doméstica para um aleijado emocional. Um desse tipo é mais do que suficiente para qualquer mulher.

– O que acontecerá com ela agora?

– Não acontecerá nada. Ela é minha filha. Ela moldará sua vida aos seus próprios padrões. A sua família veio da Itália, não é?

– Sim, por que pergunta?

– Porque você entenderá o que quero dizer quando afirmo que Isabel é uma mulher feita agora. Espero que um dia você seja um homem feito.

– Isso significa que tenho de matar alguém?

– Alguém; alguma coisa. Você saberá quando chegar a hora...

Agora parece que a hora está muito próxima, o tempo contra o qual os bons cristãos rezavam todos os dias. Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Luca, cardeal Rossini, não podia rezar. A dádiva da crença se fora dele. Ele só podia esperar, sozinho em seu deserto, pelo dia do julgamento.


3

De repente, o cardeal camerlengo era um homem muito ocupado. O pontífice estava agora oficialmente declarado – e encomendado – entre os moribundos. A Cúria concordara que não era indecente – que na verdade era necessário e apropriado – preparar um cerimonial para conduzi-lo para fora desse mundo e um outro para eleger e instalar um sucessor.

Em cada caso, as suposições da lei canônica eram diferentes. O papa ainda estava vivo, portanto seus desejos e intenções ainda prevaleciam – até onde fossem conhecidos ou pudessem ser intuídos. Ele estava recebendo cuidados em sua própria casa, com privacidade e dignidade, mas agora os embalsamadores estavam de sobreaviso para virem rápido quando ele morresse. Os três ataúdes – de cipreste, chumbo e carvalho – já estavam sendo feitos. O mestre de cerimônia estava dispondo a ordem dos eventos que aconteceriam durante o seu confinamento, a missa fúnebre e o seu enterro na cripta da Basílica de São Pedro.

O concílio do Estado da Cidade do Vaticano já estava preparando a nova moeda e os novos selos que seriam usados durante a vacância da Sé. A força de segurança estava se preparando para um grande influxo de dignitários seculares e clericais que compareceriam aos ritos funerários.

A burocracia no Vaticano muitas vezes movia-se lenta e embaraçadamente sobre rodas que rangiam, mas em questões de vida, morte e imagem pública, ela corria com admirável suavidade. Seu desempenho mais espetacular era nos cerimoniais, o que também contribuiu para o envelhecimento e morte do mais vigoroso dos pontífices.

A essa hora da manhã, entretanto, o camerlengo estava envolvido não com formalidades, mas em um diálogo com monsenhor Victor Kovacs, secretário particular de Sua Santidade.

– Você entende, Victor, o que acontece quando Sua Santidade morre?

– Mais ou menos, Eminência. O senhor tem de examinar o evento, assinar o atestado de óbito com o médico, chamar os embalsamadores e confiar o corpo a eles.

– Tudo isso e um pouco mais. Eu tenho de apagar os selos pessoais dele e tomar posse de tudo em seus aposentos, até de suas roupas de baixo. O que quero agora é que me conduza em uma excursão pelos aposentos. Preciso saber onde todas as coisas dele estão guardadas: seu testamento, sua correspondência, pessoal e oficial, seu diário. Depois da remoção do corpo, os quartos serão trancados e lacrados. Me ajudaria muito se você pudesse preparar um inventário o mais rápido possível.

– Já comecei a fazê-lo, Eminência. Vou mostrar-lhe para que veja por si mesmo como tudo está arranjado. Como imagino que o senhor saiba, Sua Santidade não era... desculpe-me, não é... o mais sistemático dos homens. Eu tinha que pedir a ele para não remexer os arquivos, mas que me pedisse para encontrar o que ele quisesse e me deixasse colocar de volta no lugar depois. Ele sempre me dizia que eu era exigente como uma mulher velha. Mesmo assim, confesso que sentirei saudades dele... Vamos olhar as gavetas da escrivaninha primeiro e depois os armários.

– Sua Santidade tem algum tipo de repositório particular?

– Há um cofre de parede atrás daquele quadro.

– Quem conhece o segredo?

– Apenas Sua Santidade e eu.

– Você deve dá-lo a mim também.

– Certamente.

– E, se puder, por favor, demonstre como abrir e fechar o cofre.

Monsenhor Kovacs escreveu a combinação em um cartão e o entregou ao camerlengo. Depois mostrou a ele como o quadro do desenho sépia de Raffaello estava preso à parede por dobradiças. Quando o quadro era puxado, ele se abria como uma porta e revelava o cofre de parede. O secretário abriu o cofre, fechou-o imediatamente e pediu ao camerlengo que repetisse o ato. Ao fazê-lo com sucesso, o secretário voltou o quadro para o lugar. Nenhum dos homens tentou tirar qualquer coisa do cofre. Esse era o protocolo. O pontífice ainda estava vivo. Seu mandato ainda vigorava. O camerlengo e o secretário completaram a vistoria. O camerlengo perguntou:

– Há alguma coisa de importante no quarto dele?

– Não que eu saiba. Ele possui um breviário e uma bíblia em uma de suas mesas de cabeceira, na outra o livro que ele estiver lendo no momento. Várias vezes, quando esteve doente, ele me pedia para lhe trazer os documentos de que precisava. Eu sempre me certifiquei de que Fígaro... desculpe-me novamente... Claudio Stagni os retornasse ao escritório. Ele, certamente, saberá o que mais há no quarto.

O camerlengo deu um pequeno sorriso:

– Claudio Stagni sabe de tudo... mas nunca diz nem a metade. Contudo, ele é um sujeito divertido. Vou falar com ele agora.

– É estranho, Eminência.

– O que é estranho, Victor?

– Sua Santidade sempre foi muito zeloso de sua privacidade. Stagni era o único que a compartilhava com ele. Agora ele está lá deitado com pessoas entrando e saindo o tempo todo. Ele teria odiado isso, se soubesse. Ele está tão dependente como um recém-nascido, exceto que não tem uma vida pela frente. Posso lhe fazer uma pergunta, Eminência?

– Claro, Victor. O que o preocupa?

– Quando rezei minha missa esta manhã bem cedo, eu a ofereci como petição a Deus para libertar o Santo Padre de sua vida... que para ele não é mais vida. Quando eu estava recitando o credo, uma frase me atingiu como um soco: descendit ad inferos. Ele desceu às regiões mais baixas. Perguntei a mim mesmo se esta não era apenas uma expressão arcaica descrevendo o tempo misterioso entre a morte de Nosso Senhor e a Sua Ressurreição, ou se ela também pode descrever o que aconteceu com o pontífice. Estará ele em alguma outra região ou estado? Estará ele realmente aqui conosco ainda? Até mesmo o senhor e eu estamos agindo como se ele tivesse partido há muito tempo.

A perturbação do homem era tão evidente que o próprio camerlengo foi tocado por uma gentileza rara.

– Sinceramente, Victor, não sei. Pergunte ao meu colega, Gruber. Tenho certeza de que ele lerá para você uma excelente preleção metafísica sobre o assunto, mas, de minha parte, confesso minha ignorância e estou contente por permanecer ignorante. Para mim, o ato de fé é um ato de aceitação de que vivemos e morremos em mistério. Esperança é a crença de que um dia o mistério nos será revelado pela graça de Deus. E caridade é o dom para amar e ser feliz no amor. Sei que você está deprimido, mas esteja certo de que serviu bem Sua Santidade. Ele reconheceu isso para mim e outros membros da Cúria muitas vezes. Ele podia ser uma pessoa difícil, eu sei, mas gostava de você.

– É bom ouvir isso. Obrigado.

– Agora, vou falar com o nosso amigo Fígaro. Vou inspecionar o quarto e fazer uma prece para o nosso paciente. Você tem trabalho a fazer. Eu não o incomodarei mais.

NA PRESENÇA DO PAPA moribundo e do inquisitivo camerlengo, Claudio Stagni fez uma esplêndida representação. Ele ajoelhou-se ao lado da cama com o cardeal e as irmãs enfermeiras e respondeu com grave emoção aos versos da De Profundis: “Das profundezas clamei por vós, Ó Senhor, ouvi a voz da minha súplica.” Depois da oração, ele conduziu o cardeal pelo quarto, abrindo cada armário e cada gaveta, exibindo os itens que continham, mencionando, como fizera o secretário, que o papa, especialmente nos últimos anos, era um homem difícil de se manter organizado. Ele escondia, ele desarrumava as coisas, ele colocava os objetos em algum lugar e esquecia onde as colocara.

– Mais do que todas as pessoas no mundo, Sua Santidade precisava de um mordomo. Monsenhor Kovacs e eu fizemos um pequeno acordo. Nenhum documento deveria ser deixado rolando pelo quarto. Sua Santidade sabia que estava sendo controlado. Ele reclamava às vezes, mas ficava feliz por isso, realmente. Repositório particular? Estranho que o senhor pergunte isso, Eminência. Aqui está, deixe-me mostrar algo ao senhor. A gaveta desta escrivaninha tem um compartimento secreto. Ele está aberto, como pode ver, e vazio. Tem uma chave lá dentro, mas durante todos os anos que o servi, eu nunca soube se Sua Santidade o usou.

– E isso é tudo que pode me mostrar?

– Tudo, Eminência. Mas tenho uma confissão a fazer.

– Sobre o quê?

– Ontem à noite, num impulso, dei a cada uma das irmãs que faziam a vigília noturna um dos lenços que comprei há algumas semanas para Sua Santidade. Elas ficaram tão comovidas, e fiquei feliz por ter feito isso. Depois, mais tarde, comecei a pensar.

O camerlengo não ficou feliz. Sua reprovação foi fria e irada.

– Esse foi um ato insensato e precipitado, Claudio. É exatamente esse tipo de coisa que devo impedir: qualquer tráfego das relíquias e suvenires depois da morte do pontífice. Nós estamos aqui há bastante tempo para saber disso.

– Compreendi isso mais tarde, Eminência. Foi só um impulso. Se o senhor quiser, pedirei às irmãs que devolvam os lenços.

– Não, não! Isso só agravaria o erro. Mas compreenda: coisas assim não devem acontecer mais! Poderia facilmente se tornar um escândalo... ou pior ainda, um absurdo! Pessoas mascateando as roupas de baixo do pontífice nas barracas na Porta Portese! Use a cabeça, homem!

– Estou muito arrependido, Eminência.

– Bem, não se fala mais nisso, então. Já terminei. Você está dispensado.

– Obrigado, Eminência.

Ele saiu, ombros caídos e arrependido como um estudante. No momento em que estava fora dos aposentos papais, ele começou a saltitar no ritmo de seu tema musical, Figaro qua, Figaro là, Figaro su, Figaro giù.

STEFFI GUILLERMIN acordava tarde. Ela gostava de ficar na cama com Lucetta, tomando café, enquanto lia os jornais da manhã e checava os noticiários nos vários canais da Eurovision. Esta manhã o boletim do Vaticano provocou uma exclamação de surpresa e uma homenagem relutante a Angel-Novalis.

– Esse ganha o primeiro prêmio. Ele é esperto e bonito como Lúcifer. Desarmou a maioria dos campos minados na discussão sobre a eutanásia e os seus próprios teólogos de direita no Opus Dei. Não discute com eles. Eles não podem argumentar com ele, mas mesmo assim causa uma impressão profunda com a pergunta que deixa no ar: “O que você faria se o seu próprio pai estivesse sofrendo desse modo?”

– Ora, esse é um método esperto de relações públicas. O que mais significa?

– Provavelmente nada; mas pense sobre isso. Sua Santidade vem enchendo a hierarquia e o próprio Sacro Colégio com homens que são, pelos seus padrões, conservadores convictos. Em outras palavras, ele tem tentado assegurar, o quanto pode, que suas políticas para a Igreja continuem depois de sua morte. Ele sempre foi um centralista e um intervencionista, mas o tiro de ambas as políticas já começou a sair pela culatra. Então, existe um grupo dominante que quer manter o velho vivo o máximo de tempo possível.

– Mas por quê?

– Quanto mais tempo a eleição puder ser adiada, mais chance terão de consolidar o seu bloco de eleitores. Não é segredo que os membros do Sacro Colégio têm feito muitas viagens ultimamente... visitas aos colegas no mundo todo. Antigamente, isso não era possível. Agora é fácil e mais seguro do que corresponder-se.

– Mas agora você diz que ele está sendo tratado em casa e que os conservadores podem ficar frustrados com a sua morte prematura?

– Isso é o que eu acho, mas sempre acreditei que ele era muito esperto para ser passado para trás mesmo pela morte. Imagino que ele deve ter guardado anotações, dossiês, observações a favor e contra qualquer candidato futuro para a sucessão.

– Se essas anotações existem – Lucetta estava incerta –, onde é que estão agora?

– Provavelmente não no Vaticano.

– Por que diz isso?

– Por bom senso. Sua Santidade sabe que quando ele morrer tudo passará para as mãos do cardeal camerlengo. Acredito que ele se precaveu contra isso mantendo os documentos sob custódia.

– De quem, por exemplo?

– Não sei. – Steffi pensou por alguns instantes, depois exclamou: – Meu Deus, eu sou uma idiota! Por que não pensei nisso antes!?

– Pensou no quê?

– Três dias atrás, o meu pessoal em Paris me disse que foram alertados por um agente de Nova York que insinuou que um documento escrito pelo papa poderia surgir no mercado depois de sua morte. O agente perguntou se estariam interessados em pegar os direitos para a língua francesa.

– E eles ficaram interessados?

– Como poderiam não ficar?

– Quem mais foi alertado?

– Na Alemanha deve ter sido o Der Spiegel... o que pode explicar por que Fritz Ulrich estava sendo tão desagradável comigo ontem. Quem sabe não foi por isso também que Frank Colson estava tão complacente? O Telegraph normalmente não seria o primeiro alvo para um negócio como esse. O Sunday Times seria o lance mais provável.

– Então, qual será o seu próximo passo?

– Farejar. Ver se consigo sentir o cheiro de dinheiro ou de boatos. Quando o documento aparecer, então meu pessoal esperará que eu verifique a procedência e a autenticidade antes de pagar por ele. Mas, até lá, a história não será mais exclusiva.

– Por onde vai começar? Você não pode circular pela Cidade do Vaticano interpelando esse e aquele prelado sobre o contrabando de documentos.

– De qualquer forma duvido que Roma seja o lugar certo para começar. Seja quem for que estiver oferecendo essa mercadoria, estará procurando ganhar dinheiro bem longe da Itália... e mantê-lo longe.

– Isso ainda aponta para uma fonte oriunda do Vaticano para o documento, alguém próximo do pontífice com fácil acesso.

– Em outras palavras, um civil, que tenha uma saída mais fácil do que um clérigo?

– Mas como poderiam provar isso?

– Por que iríamos querer provar alguma coisa? Tudo o que precisamos saber é da autenticidade de quaisquer documentos que nos sejam oferecidos. Mais do que isso seria constrangedor.

– Por quê?

– Porque, meu amor, o nosso interesse principal é com a história. Desde que a sua procedência seja válida, ninguém vai se importar em como ela veio parar nas minhas mãos. Isso é para outras pessoas se preocuparem.

LUCA, CARDEAL ROSSINI, foi convidado para almoçar com o secretário de Estado em seu apartamento particular no Palácio Apostólico. Ele sabia de antemão que seria uma refeição espartana: sopa, macarrão, queijo, uma pequena garrafa de vinho branco diluído e café bem forte para espantar qualquer pensamento sobre dormir durante a hora da sesta romana. O cardeal Salvatore Pascarelli – Turi para os seus poucos íntimos – era alto e magro como um ancinho de feno e deplorava a obesidade nos clérigos que, dizia ele, com certo humor sardônico, levou a Igreja ao descrédito. Ele era um homem dinâmico e hábil que havia escalado a formidável escada do treino e da educação no Ministério de adido de segunda-classe a adido de primeira-classe, a escrevente de minutas, a consultor, a chefe de escritório para assuntos gerais, a secretário substituto, e finalmente a recompensa do chapéu de cardeal e ao título de primeiro-ministro da Cúria Romana.

Ele sustentava sua posição com leveza, mas as responsabilidades do cargo pesavam muito em seus ombros magros. Ele alegava, com alguma razão, que o único modo de lidar com os interesses de um bilhão de fiéis confessos em um planeta tão conturbado era pensar neles como se fossem um enorme mosaico e manter os pedaços soltos cimentados, por menores e mais insignificantes que pudessem parecer. Se muitos deles se soltassem de uma só vez, o desenho todo poderia desmoronar. Essa maneira de pensar muitas vezes o fazia parecer exigente, mas a sua percepção da história, de como o passado se reordenava no futuro, era legítima e às vezes profética. Portanto Luca Rossini achou prudente ter a sua minuta sobre o candidato à embaixatura escrita e entregue antes do almoço. O secretário de Estado solicitou que a minuta fosse lida para ele e desculpou-se pela excentricidade com um sorriso cativante.

– Aprendi na juventude que o teste para um bom documento estava na regularidade do ritmo. A verdade, Luca, é que gosto do seu sotaque. Por favor, leia-a para mim.

– Você é o anfitrião, Turi. Você é quem manda! É um texto muito pequeno. Imaginei que não desejaria uma dissertação completa.

– É claro que não. Vá em frente.

– “Minuta sobre Raul Jaime Ortega, indicado pelo governo da Argentina para a nomeação de embaixador da Santa Sé. Li a indicação. Nunca conheci o candidato pessoalmente, embora esteja ciente de sua experiência. Sei que ele alega uma participação importante em assegurar minha saída da Argentina durante o regime da junta militar. Minha informação na época foi de que a sua influência foi mínima. O verdadeiro poder foi exercido pelo seu pai, general Jaime Alfonso Ortega, que era uma personagem importante na junta. Por outro lado, a esposa de Raul Ortega, Isabel, cuidou de meus ferimentos depois do flagelo e me abrigou em segredo enquanto seu pai estava negociando o meu salvo-conduto para fora do país. Dada a ânsia de Raul Ortega em obter essa colocação final no Vaticano, é compreensível que ele exagere sua participação. Não vejo uma boa razão para contestar sua versão dos acontecimentos. Estou certo de que ele será pelo menos um embaixador competente e, segundo a opinião corrente, ornamental. Em resumo, declaro um nihil obstat... sem objeção importante. Recomendo, no entanto, uma expectativa mínima dele quanto a benefícios ou danos para a Santa Sé.”

O secretário de Estado recostou-se na cadeira e gargalhou.

– Bela leitura, Luca! Bela escrita! Uma procuração elegante para uma execução anêmica.

– Não era isso que você estava esperando?

– Digamos que estava curioso para saber o que você iria dizer... dadas às circunstâncias especiais.

Luca Rossini foi ríspido.

– Não faça jogo comigo, Turi! Nós nos conhecemos há muito tempo.

– Isso não é um jogo, Luca, apenas o prelúdio de nossa discussão. Quando você veio para Roma há tantos anos, com o núncio apostólico, alguns rumores o acompanharam. O núncio os extraiu de seu relatório, mas indicou que a junta certamente os usaria contra você se tentasse falar contra eles.

– A junta há muito não está mais no poder. Portanto a ameaça é irrelevante.

– É verdade.

– Mas esses rumores permanecem anotados em seus arquivos.

– Apenas como registro.

– O que eles dizem?

– Que durante o seu resgate um sargento foi morto e que enquanto você estava se recuperando, escondido em um lugar secreto, teve um relacionamento amoroso com a esposa de Ortega.

– O relacionamento amoroso foi elaborado como sendo um boato. Acontece que ele é um fato. Levei isso ao conhecimento de Sua Santidade na primeira vez que ele me recebeu em Roma. Nunca pretendi esconder o que aconteceu. Por outro lado, nunca me senti obrigado a difundir o acontecido. Fazer isso seria expor Isabel a um risco maior. Ela havia matado um homem para me salvar. O amor que ela me deu restaurou minha masculinidade.

– Você não ficou tentado a ficar na Argentina e continuar o romance?

– Claro que sim, mas isso teria levado tanto Isabel quanto seu pai a correrem risco de vida. Meu exílio foi o preço da segurança deles.

– Você a amava, Luca?

– Eu a amava. Eu a amo.

– E ela o amava?

– Sim. Ainda nos correspondemos. Isso não cura as feridas, mas as torna mais fáceis de suportar. Por que está levantando tudo isso agora, Turi? Isso foi enterrado há mais de vinte anos!

– Porque eu queria saber como você iria reagir ao cargo de Ortega como embaixador se ele pretendesse, como certamente pretende, trazer sua esposa e filha.

– Na verdade, Turi, a esposa e a filha dele estão vindo a Roma para uma visita particular no futuro bem próximo.

– Isso é novidade para mim! – O secretário de Estado estava realmente surpreso. – Quando ficou sabendo?

– Esta manhã. Havia uma mensagem de Isabel no meu e-mail. Espero que o seu pessoal possa reservar bons lugares para elas na ala diplomática em São Pedro e na piazza.

– Certamente. Imagino que você as verá durante a visita?

– Isabel disse que entraria em contato comigo quando chegasse a Roma.

O secretário de Estado deu um lento sorriso de aprovação. E disse gentilmente:

– Espero que seja uma experiência agradável para ambos. Foi lhe dado um dom especial, Luca, o dom de sobreviver na solidão do coração. Eu sempre quis saber como é que você podia ser tão audacioso em seus procedimentos, inclusive com o próprio Santo Padre. Você não esconde nada. Você enfrenta todas as questões, como acaba de fazer agora. Todos nós vamos precisar desse dom muito em breve. Agora, vamos almoçar. Temos assuntos importantes para discutir e precisamos nos alimentar.

A REFEIÇÃO FRUGAL terminou logo. O vinho estava tão diluído como sempre, mas ficaram um longo tempo saboreando o café. O secretário de Estado abriu o coração para Luca Rossini como nunca tinha feito antes:

– O nosso homem está morrendo, Luca... o homem que deu a cada um de nós o chapéu vermelho e me colocou nessa função. A imprensa do mundo está fazendo o julgamento dele. Antes e durante o conclave, você e eu estaremos fazendo nossos próprios julgamentos.

– E qual será o seu, Turi?

– Nós devemos abolir muitas práticas que relevamos por muito tempo, e muitas políticas que o nosso mestre desenvolveu.

– E que você administrou.

– Administrei, executei ou, na mais insignificante das hipóteses, não protestei com bastante firmeza. Mesmo assim, eu me sentirei como um traidor da memória dele.

– Não se culpe tanto, Turi. Somos o que fomos treinados para ser: obedientes de coração, mente e desejo.

– Não estou disposto a brincadeiras, Luca!

– Não estou brincando com você. Deus me livre! Também derramei minhas lágrimas pelo nosso pontífice. Ele foi bondoso comigo quando precisei e me deu dignidade quando eu não tinha nenhuma. Eu o combati, às vezes mais ferozmente do que você possa imaginar, porque eu via atrás dele as formas das velhas tiranias, e diante dele as sombras das novas.

– Mas você o combateu. Eu não o fiz.

– Você sempre foi um bom funcionário, Turi. Era incapaz de se amotinar. Estive à beira disso muitas vezes.

– Onde você está agora, Luca?

Luca Rossini franziu as sobrancelhas enquanto tentava articular a resposta.

– Ainda estou de uniforme. Vivo de acordo com as regras. Recebo meu salário. Faço o meu trabalho o melhor que posso. Só que as minhas razões mudaram.

– Como?

– Essa é uma questão para outra hora. Diga-me: o que está pensando, Turi?

O secretário de Estado ficou em silêncio por um momento. Ele parecia estar juntando os pensamentos, escolhendo as palavras, questionando se devia ou não confiar em Luca Rossini. Por fim começou a falar, hesitante no início, depois com paixão e eloquência:

– Você não precisa que eu relacione para você os males da Igreja. Nós desafiamos a realidade da experiência humana, nós nos recusamos a ouvir o Povo de Deus, homens e mulheres de boa vontade. Eles pediram o pão da vida e nós lhes ofertamos pedras. Então eles se afastaram, homens, mulheres e crianças, também. Nós, ministros da Palavra, nos tornamos irrelevantes para eles. Às vezes, nos últimos tempos, tenho tido um pesadelo recorrente: Sua Santidade com as vestes pontificais, de pé sobre o parapeito de um castelo destruído, um cruzado perdido, proclamando seu grito de reunião pelo deserto, vazio de gente...

– Quando ele cair – Rossini forneceu a coda –, nós o enterraremos e sairemos para encontrar outro candidato para a crucificação. Quando este se exaurir, nós o deixaremos também, pendurado na cruz enquanto os corvos bicam seus olhos.

– Esse é o começo da loucura! – Havia fogo na voz de Pascarelli agora. – Nós somos pessoas do século vinte. Deus sabe, já devíamos ter aprendido as depreciações e perigos do processo de envelhecimento. Contudo, elegemos nosso candidato para toda a vida, ajoelhados em perpétua fidelidade, atribuímos a ele um discernimento infalível e usamos todos os sofismas da teologia para dotá-lo com o nume da quase divindade... Vigário de Cristo! Sempre achei o título difícil de engolir, embora nunca tenha tido a coragem de desafiá-lo. Foi Alexandre VI um Vigário de Cristo, ou Júlio II, ou Sérgio III, que assassinou seus dois predecessores? Não podemos nos culpar pelo passado, mas somos responsáveis por repeti-lo. Você tem razão, meu caro Luca, quando fala sobre eleger um candidato para a crucificação. De fato, nós começamos a tentá-lo levando-o ao topo da montanha e lhe mostrando literalmente todos os reinos do mundo de uma só vez. Posso fazer esse pequeno truque em meu próprio escritório com um mapa-múndi e algumas luzes piscantes! Depois nós atuamos em sua ambição de cruzado. A Palavra é a espada do espírito. Com um passo veloz e uma comunicação instantânea, a Palavra pode ser construída perpetuamente e estar presente em todos os lugares, liberta pelo e no próprio pontífice. Isso é vinho generoso, Luca. Todos aqueles rostos virados para cima, aquelas mãos estendidas! A necessidade que eles expressam é bem mais sedutora para um homem bom do que todo o ouro, o resplendor e a luxúria de Avinhão ou da Roma renascentista. Então, quando perguntamos a ele “Aceitas a eleição?”, ele consente com gravidade e humildade apropriadas. Depois se põe a caminho, como fez Paulo, cheio de paixão, fervor e convicção, para mudar o mundo. – Ele parou abruptamente. – Você pode terminar a história, Luca. Eu preciso de mais café.

Luca Rossini prosseguiu a narrativa com uma nota de ironia:

– Ele aprende do modo mais difícil que a mudança de fuso horário e o cansaço da viagem prejudicam o julgamento, que aqueles que deixa em Roma guardando a casa possuem suas próprias ambições: criar seus próprios ducados dentro do Reino de Deus. Ele aprende o que todos os políticos e todas as mulheres bonitas devem aprender: que se expor em excesso é perigoso, que a imagem se desgasta, que as frases mais nobres soam como clichês e as acolhidas mais amáveis se diluem com o tempo, porque o convidado e sua comitiva custam dinheiro para ser alimentados e entretidos.

– Tem mais ainda, Luca. – O secretário de Estado continuou o recital. – Todo esse aprendizado não acontece de uma só vez. Ele acontece em uma série de pequenos abalos, como os tremores em uma zona de terremotos. Os tremores são incertos. Eles criam um sentimento de solidão, que por sua vez cria uma dependência do conforto dos conselheiros dentro de um gabinete interior. Então o grande viajante se torna um recluso, apegando-se às certezas de sua própria alma, confiando em um pequeno grupo de amigos, perdendo a linguagem das pessoas comuns das quais surgiu. Nós temos a chance de mudar isso, Luca... uma única chance.

– Defina-a para mim, Turi.

– Vamos encontrar um papa que concordará em convocar um concílio geral, para escrever nos cânones a idade estatutária para a aposentadoria do papa, assim como foi escrito para nós, e uma permissão prévia para a sua remoção, caso ele se torne mentalmente incapaz.

– Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Turi. Se fosse eleito, você faria tais coisas? Há uma armadilha aqui, veja bem. Uma vez que você está no ofício e dotado com todos os poderes absolutos, quem irá lembrar você de suas promessas? Quem cobrará a proeza? Você tem de saber a resposta, Turi. Você é um dos principais candidatos.

– Não serei um candidato. Eu informarei os eleitores.

– Por que, Turi? Por que está me dizendo isso?

– Quanto à primeira pergunta: sou um bom diplomata porque posso fazer malabarismos intermináveis com o possível. Trabalho em privacidade, não em público. Não tenho experiência pastoral, nem qualquer desejo real de adquiri-la. Por que estou lhe dizendo isso? Acho que há pelo menos uma chance aparente de que você possa ser eleito.

– Eu? – Luca Rossini estava surpreso. Já não era mais o cético e o irônico. – Isso é loucura, Turi! Sempre fui o exótico aqui. Alguns dos nossos colegas costumavam me chamar de “a espécie preservada”. Eu era isso, o pseudo-herói, o jovem mártir milagrosamente preservado para fazer grandes coisas na Igreja! Deixe-me dizer-lhe, Turi, fui um dos erros mais notáveis de Sua Santidade! Não sou o que você pensa que sou. Não sou nem...

Houve o tilintar mudo do telefone. O secretário de Estado levantou a mão para silenciar Rossini. Ele colocou a mão no bolso de sua batina e pegou o telefone.

– Aqui é Pascarelli. – Ele ouviu em silêncio por alguns minutos, agradeceu o chamado e desligou. Voltando-se para Rossini ele disse: – Sua Santidade acaba de morrer.

– Que ele descanse na paz de Deus – disse Luca Rossini, o incrédulo.

– Amém – disse o secretário de Estado. – Agora a Sé está vazia e temos trabalho a fazer.

Claudio Stagni tinha um último serviço para prestar ao seu mestre. Ele separou as roupas com as quais o corpo do pontífice seria vestido pelos embalsamadores para o velório e o sepultamento. Depois, se apresentou ao camerlengo.

– Já terminei, Eminência. Há mais alguma coisa que o senhor queira de mim?

– Obrigado, Claudio. Não há mais nada.

– Haverá emprego para mim aqui depois da eleição?

– Estou certo de que haverá alguma coisa, mas não na mesma posição. O novo pontífice vai querer escolher seus próprios auxiliares. Você está na idade de se aposentar, não está?

– Estou. Também tenho alguns meses de férias acumuladas.

– Sugiro que você tire alguns agora.

– Obrigado, Eminência. Preciso pensar no que farei da minha vida.

– Naturalmente. Nós estamos gratos pelo seu longo e leal serviço, Claudio.

– Foi uma honra e sempre um prazer servir Sua Santidade. Ele foi um grande homem.

– Um grande homem... – disse o camerlengo, ausente. – Mais alguma coisa, Claudio?

– Apenas uma coisa, Eminência. Espero que não pareça desrespeitoso se eu não comparecer ao funeral. Acho que não poderia enfrentar as multidões e as longas cerimônias. Minha vida com Sua Santidade foi muito reservada.

– Você é solteiro, eu sei.

– Isso mesmo. Às vezes Sua Santidade costumava dizer que éramos apenas dois solteirões vivendo em uma casa muito grande para nós.

– É uma maneira de pensar. – O tom do camerlengo era seco. – Boas férias.

– Obrigado, Eminência.

Sua Eminência já estava absorto em sua lista de convidados. Fígaro fez uma reverência e saiu andando tranquilamente para o setor de pagamentos para receber todo o dinheiro que lhe era devido e preencher o requerimento para a sua pensão. Uma vez fora da Cidade do Vaticano, pegou um táxi para levá-lo ao seu apartamento em Trastevere, onde pegou sua bagagem – uma maleta e uma pasta surrada. De Trastevere foi para o aeroporto Fiumicino para embarcar no voo das dezoito horas para Zurique.

Ao chegar em Zurique hospedou-se em uma suíte no Hotel Savoy. O preço o fez perder o fôlego, então se lembrou do motivo que o trouxera e voltou a ficar alegre. Ele trancou a pasta no cofre da suíte, ligou para a recepcionista para dizer-lhe que poderia ser encontrado no restaurante, depois desceu para pedir um jantar que mesmo um cardeal auto-indulgente invejaria. Ele estava saboreando o café e um excelente conhaque quando o garçom lhe trouxe o telefone. Uma voz de mulher perguntou em italiano:

– Claudio Stagni?

– Sim.

– Aqui é Barbara Busoni de Nova York. Nós estamos no saguão do hotel. Podemos subir?

– O gerente mandará alguém para acompanhá-los até minha suíte.

– Somos três pessoas.

– Tantos assim?

– Um especialista em caligrafia, um advogado e eu.

– Muito bom! Gosto das coisas bem-feitas. Eu mesmo sou um homem muito organizado. Eu os verei em poucos minutos.

Ele pediu a conta, assinou-a com um floreio, sorveu a última gota de conhaque, depois caminhou animadamente até o elevador para enfrentar os inquisidores, os quais ele esperava que se tornassem da noite para o dia em generosas fontes de pagamentos.

A mulher era mais jovem e mais atraente do que havia esperado, com a pele cor de mel, olhos castanhos, um sotaque florentino e os cabelos ruivos cortados rente ao pescoço. Ela fez a apresentação um tanto formalmente.

– Sr. Stagni, sou Barbara Busoni. Nós nos falamos várias vezes. Eu trabalho com nossa agência nos projetos de pesquisas. Se entrarmos em acordo, serei sua editora. Este cavalheiro é Maury Rosenhein, nosso advogado, e este é Sergei Malenkov, um reconhecido especialista em caligrafia. Este, senhores, é o Sr. Claudio Stagni, antigo mordomo de Sua Santidade.

– Antigo ou atual?

– Antigo, Sr. Rosenhein. Sua Santidade morreu esta manhã.

– Eu não sabia. Estive voando por seis horas, dormindo na maior parte do tempo. Presumo que o senhor já tenha deixado o seu emprego.

– De modo algum. Estou de férias. O cardeal camerlengo... isto é, o tesoureiro... sugeriu que eu tirasse algumas de minhas férias acumuladas antes de decidir se devo procurar outro emprego no Vaticano.

O advogado franziu as sobrancelhas, intrigado.

– Não foi isso o que me disseram, Barbara. Sei que estou cansado mas...

– Por que não se cala e escuta, Maury? Ainda falta muito para o documento. É do meu entendimento que o Sr. Stagni está nos oferecendo um memorial íntimo e particular dos anos em que foi mordomo do pontífice, junto com o direito exclusivo a certos papéis pessoais do pontífice que chegaram legitimamente às suas mãos. O Sr. Stagni concordou, a princípio, que ditaria suas memórias sob minha supervisão, que eu as editaria à medida que trabalhamos, para que possam estar prontas para a publicação antes do conclave começar. O preço que discutimos foi de um milhão e meio de dólares americanos pelo direito mundial em toda a mídia, a ser pago metade no início do trabalho e metade no término. Concorda, Sr. Stagni?

– Concordo e aceito isso como um início para negociação. As circunstâncias mudaram desde então.

– De que modo, Sr. Stagni?

– Muito mais material... material exclusivo e íntimo, escrito pelo próprio pontífice, ficaram disponíveis para mim. O material é de tal ordem que acredito que deveria ser publicado antes de minhas memórias, porque assim um valor maior seria adicionado a ambos os projetos.

– Quer dizer, Sr. Stagni, que está aumentando o preço?

– Por um lado, sim. Por outro, estou lhe oferecendo um produto muito mais valioso.

– Podemos ver um pouco desse material, por favor? – Barbara Busoni estava impaciente agora. – O senhor deve admitir que isso é um tanto surpreendente.

– Fígaro era sempre cheio de surpresas, não era?

– Fígaro?

– Esse foi o apelido que me deram em Roma. Eu era o mordomo do papa, o barbeiro, o costureiro, ou qualquer outra coisa... mas também era uma das poucas pessoas que podia fazê-lo gargalhar. Aqui está, vou lhes mostrar do que estamos falando. – Ele abriu sua pasta surrada e retirou um missal com capa de couro. Ele o abriu na folha em branco e o entregou a Malenkov, o especialista em caligrafia.

– Imagino que o senhor tenha estudado algumas amostras da caligrafia do falecido pontífice. De outra forma não estaria aqui, certo?

– É claro.

– E já que estamos em uma discussão amigável e não em um tribunal, eu o aceito como especialista. Agora, tenha a bondade de estudar a dedicatória neste missal. Se o senhor não lê italiano, eu traduzirei:

Ao meu fiel criado, Claudio Stagni:

Meu Fígaro, que em algumas horas muito sombrias deu-me o dom do riso.

Por ocasião de seu quinquagésimo aniversário.

– E A ASSINATURA dele vem logo a seguir. O senhor não tem problema para identificar a caligrafia ou a assinatura?

– Nenhum.

– Agora veja isto. Esta é, como o senhor pode ver, uma carta breve do pontífice, escrita em um de seus cartões de lembretes. Novamente, lerei o texto:

Meu caro Fígaro,

Há cinco séculos e meio, um de meus predecessores, papa Pio II, Enea Silvio Piccolomini, ditou suas memórias para o seu secretário, que mais tarde as ocultou por medo de escândalo. Eu não lhe ditei estas páginas, mas você esteve presente nas horas tardias das muitas noites em que as escrevi. Em tempos remotos, talvez eu pudesse enriquecer um criado fiel como você. Mas em breve morrerei como deve morrer um papa, sem posses.

Estes volumes são minha herança para você. Reze por mim às vezes.

– Novamente, o senhor reconhecerá a assinatura. Eu lhe pergunto mais uma vez, a caligrafia é autêntica?

Desta vez, o calígrafo levou um pouco mais de tempo para escrutinar a caligrafia. Usou uma lente de aumento e demorou olhando os detalhes da caligrafia. Finalmente, dirigiu-se à pequena assembleia:

– Sem dúvida alguma. É autêntica.

– Então aonde isto nos leva? – Maury Rosenhein fez a pergunta.

– Isso nos leva a isto. – Stagni calçou um par de luvas brancas, tirou os três volumes do papel fino que os embrulhava, abriu o papel em cima da mesa e colocou os volumes sobre ele reverencialmente. Depois, fez o discurso crucial da noite:

– Acredito, senhora e senhores, que não se decepcionarão. Srta. Busoni, a senhorita pode ler os textos e julgar o valor editorial deles. O seu especialista já autenticou a caligrafia. E o Sr. Rosenhein viu provas da clara procedência. Agora, uma pergunta muito simples. Podemos começar a negociar?

– Em que soma o senhor sugere que comecemos? – perguntou Maury Rosenhein.

– Vamos começar com cinco milhões de dólares americanos – disse Stagni calmamente. – Isso lhes dá o direito de veicular a propriedade em toda a mídia. Depois podemos falar de percentagens e gratificações.

Maury Rosenhein olhou para ele, admirado.

– Gratificações? Onde você aprendeu sobre gratificações?

– Eu aprendo rápido. – Stagni deu o seu sorriso mais feliz. – Se o senhor quiser comprovar o manuscrito, se quiser conferir, use o quarto. Se quiser falar com Nova York, por favor, use o telefone ou o fax. Apenas uma coisa, meus amigos. Não regateiem comigo. Minha oferta termina hoje às onze horas da noite, horário de Zurique. Isso encerra o negócio em Nova York... e lembrem-se: é dinheiro contra documento amanhã em Zurique.

Quando a porta do quarto se fechou, com os seus três convidados lá dentro, Stagni deu um longo suspiro de alívio. Ele investira dois mil dólares no melhor falsificador que o dinheiro podia comprar – um velho falsário que cumprira pena de dez anos em Lipari e vivera, com a filha e o marido dela, a duas ruas depois do apartamento dele. Stagni construíra o texto e fornecera os exemplares necessários da caligrafia do pontífice. O velho falsário dera garantia de seu trabalho manual contra qualquer especialista no mundo. Ele empenhara-se ao mencionar que não fora o seu trabalho malfeito que o colocara na cadeia, mas uma mulher ciumenta que o encontrara na cama com a irmã dela e o denunciara aos carabinieri. Infelizmente, ele não podia garantir-se contra a mortalidade. Morrera de ataque cardíaco duas semanas depois de entregar seu trabalho.

Stagni tinha toda a intenção de lucrar com o evento. No momento em que o dinheiro estivesse em sua conta, ele partiria imediatamente para o Brasil por uma rota bem indireta.


4

Durante os dois dias que se seguiram a sua morte e embalsamento, o corpo do pontífice jazia em câmara-ardente na Capela do Santíssimo Sacramento, na Basílica de São Pedro. Velas altas queimavam em torno dele. Oficiais da Guarda Suíça montavam guarda enquanto milhares de fiéis e não fiéis – romanos e estrangeiros igualmente – passavam em lenta procissão pelo caixão aberto.

O corpo estava vestido com todo o aparato pontifical, com um véu sobre a cabeça, seu rosário nas mãos, seu breviário aberto sobre o peito com o marcador de seda no Ofício do Dia. Enfiadas no caixão estavam cópias das medalhas que ele estampara durante seu reinado, e uma pequena bolsa de couro contendo espécimes de suas moedas. Isso, segundo dizem, ajudaria a identificá-lo se, depois dos cataclismos de outro milênio, ele fosse exumado e enterrado novamente. Os romanos, um povo cético com uma história longa, tinham outra explicação: O papa também é humano. Ele tem de pagar o timoneiro como todos nós.

No terceiro dia, o sepultaram na cripta. A imprensa mundial tratou os ritos fúnebres e o sepultamento com a gravidade apropriada. Os primeiros editoriais foram expressos em prosa ressonante e panegírica. As primeiras fotografias enfatizaram a magnitude arquitetônica, o esplendor ritual, o alcance mundial e a diversidade da Igreja – Única Santa Católica e Apostólica. Os canais de televisão transmitiram discursos reverentes e imagens auto-indulgentes de ícones familiares e desconhecidos.

Depois começaram as Novemdiales, os nove dias de missas, orações e pregações públicas por prelados célebres nas principais igrejas da cidade. Os sermões não eram celebrações piedosas de uma alma estimada que partira. Eles foram intencionados como expressões públicas das necessidades dos fiéis, como avisos ao colégio eleitoral sobre sua tarefa de encontrar um bom pastor para os romanos e para a Igreja como um todo.

Ao mesmo tempo, a imprensa mundial estava tocando em um tom diferente. A prosa florida foi abandonada. Clichês benevolentes se tornaram farpas políticas. A eleição de um novo pontífice era um ato crítico cujas consequências – para o bem ou para o mal – respingariam além das fronteiras das nações e das barreiras das raças, credos e costumes. O mundo estava em crise, a Igreja estava em desordem. A mídia refletia todas essas confusões. Foi o New York Times, no entanto, quem puxou o pino da granada:

O falecido pontífice era um homem obstinado e corajoso que via como sua tarefa pastoral modelar a argila humana à imagem e semelhança de Cristo. No entanto, isso muitas vezes parecia como se ele estivesse tentando criar uma comunidade tão uniforme e tão passiva como os guerreiros sepultados da China. Ele alienou as mulheres da Igreja. Ele silenciou ou intimidou seus pensadores mais audaciosos. Ele sempre foi um centralista e um intervencionista. A noção de um governo colegiado era tão estranha para ele como a ideia de um sacerdócio de mulheres. Não foi um movimento inesperado quando ele apontou homens com o mesmo ponto de vista para episcopados vazios e deu a outros o chapéu cardinalício. Ele claramente esperava que o Sacro Colégio elegesse um papa que continuasse suas próprias políticas.

Agora, imediatamente depois de sua morte, surge uma nova surpresa. Ela poderia ser interpretada – e certamente será por muitos – como uma tentativa póstuma de intervenção no próprio processo eleitoral.

Em nossa edição semanal, estaremos publicando, simultaneamente com outros grandes jornais em todo o mundo, um documento extraordinário. O documento consiste de um diário particular escrito todas as noites pelo falecido pontífice. Ele o guardou em um lugar secreto em seu quarto, e finalmente os deu, como herança pessoal, ao seu antigo mordomo, Claudio Stagni, que muitas vezes fez companhia ao pontífice enquanto este trabalhava de madrugada.

O documento foi totalmente autenticado por dois especialistas em caligrafia – um na Europa e um nos Estados Unidos. A procedência é simples e direta – do pontífice para Stagni. O direito legal é incontestável: uma carta de legado escrita por Sua Santidade para Stagni nos últimos dias de sua vida. Todas essas evidências serão exibidas em nossas publicações.

O diário contém notas reveladoras sobre as políticas do Vaticano e vívidos retratos de altos prelados em todo o mundo, incluindo aqueles que estão nesse momento reunidos em Roma para eleger um novo pontífice. O material será publicado na íntegra, exceto por algumas passagens que, por recomendação jurídica, possam ser consideradas difamatórias...

Havia mais ainda; uma promessa de sórdidos mexericos por Claudio Stagni sob o título, O pequeno mundo de Fígaro e seu papa. O resultado dessas publicações, e a erupção de publicações similares em várias capitais, forçou o cardeal camerlengo a convocar uma reunião de emergência dos cardeais no Palácio Apostólico. Eles estavam aflitos. Ele mesmo estava altamente constrangido, especialmente quando o cardeal-arcebispo de Nova York colocou sobre a mesa uma cópia do material oferecido, e distribuiu cópias tiradas naquela tarde na Villa Stritch, onde Sua Eminência estava alojado. Em seu estilo militar brusco – ele era general capelão das Forças Armadas dos Estados Unidos – dirigiu-se aos espectadores:

– Isso me foi entregue esta manhã pela agência romana do New York Times. Eles foram bastante corteses sobre o assunto. Disseram que não tinham nada para esconder. Alegaram que o direito deles era incontestável, e pelo que já li, o documento é autêntico. O que todos nós queremos saber é como isso pôde acontecer e, a essa altura dos acontecimentos, se há alguma esperança de proibir a publicação.

– Nenhuma esperança, infelizmente. – O camerlengo estava lastimoso, mas firme. – Discuti o assunto com monsenhor Angel-Novalis e com os nossos consultores jurídicos, laicos e clericais. Diante dos fatos, Claudio Stagni tem todo direito sobre o documento, que o próprio pontífice designou como legado. Os compradores e os agentes literários que o venderam para o resto do mundo certamente fizeram suas próprias investigações. Nossa informação é que não há base para proibição em nenhum território.

– Mas como Sua Santidade pôde cometer tal desatino? O senhor esteve em sua companhia mais do que nós estivemos. Ele estava no seu juízo perfeito?

– Não tenho dúvida quanto a isso... nenhuma dúvida.

– Há alguma possibilidade de influência inadequada por parte desse sujeito, Stagni?

O camerlengo deu um breve sorriso contrafeito.

– Você sabe... todos nós sabemos... como era difícil para qualquer de nós influenciar o falecido pontífice nesses últimos anos.

– Onde Stagni está agora?

– Ele está de férias.

– Pelas quais estamos pagando?

– Naturalmente. Ele tem muitas férias acumuladas pelas quais tem o direito de receber. Ele também tem direito a uma pensão para a qual ele e nós temos contribuído por muito tempo.

– Vamos pagar por isso também?

– Na falta de qualquer prova de comportamento criminoso, somos obrigados a fazê-lo.

– E estamos procurando tais provas?

– Não sabemos por onde começar. Pense um pouco. Antes de Sua Santidade morrer, fiz uma inspeção completa em seu escritório na companhia de seu secretário, e em seu quarto e closet com o mordomo. Não havia traços desse documento.

– O senhor viu o compartimento secreto?

– Ele me mostrou. Estava vazio.

– E o mordomo não mencionou o documento?

– Não.

– Pensando bem, isso não parece suspeito?

– Não é suspeito o suficiente para ir à justiça reclamar, naquele momento e agora. Na pior das hipóteses, o silêncio dele pode ser caracterizado como um ato claro de interesse próprio.

– Ou uma resposta aos desejos do próprio pontífice.

A intervenção veio de Luca Rossini, que levantou-se com o texto na mão. Houve um silêncio repentino antes do cardeal-arcebispo questioná-lo friamente:

– É nisso que o nosso eminente colega acredita?

– É o que este eminente jornal sugere. – Rossini estava calmo. – Primeiro ele destaca, apropriadamente, que o falecido pontífice fez certas nomeações para o Sacro Colégio na esperança de que o homem eleito pelo Colégio continuasse suas políticas atuais. Depois o jornal prossegue, dizendo: “Agora, imediatamente depois de sua morte, surge uma nova surpresa. Ela poderia ser interpretada – e certamente será por muitos – como uma tentativa póstuma de intervenção no próprio conclave.”

Do silêncio que seguiu veio a voz do camerlengo:

– Você acredita nisso, Luca?

– Acredito que uma interpretação como esta será feita por muitos leitores e comentaristas.

– E qual é a sua leitura desse incidente infeliz? Afinal, você era íntimo de Sua Santidade.

– Eu era íntimo o bastante para saber que, nos últimos anos, ele às vezes podia ser precipitado no julgamento e que às vezes acreditava que podia, ou devia, comandar o curso da história. Isso, entretanto, é uma opinião pessoal. E não nos fornece embasamento para tomar medidas legais contra Claudio Stagni, ou mesmo contestar sua reputação.

– Quer dizer que não devemos fazer nada? – O arcebispo de Nova York estava ultrajado. – O homem é um ladrão!

– Podemos provar isso?

– Ainda não. Mas temos de desacreditá-lo.

– Podemos acabar desacreditando nós mesmos. Vamos raciocinar um pouco. Os jornais mais poderosos do mundo defenderão a autenticidade daquilo que compraram. A maioria de nós nesta sala reconhece no texto ecos dos comentários feitos em público ou em privacidade pelo pontífice de tempos em tempos. Todos nós podemos no mínimo reconhecer que a letra é bem parecida com a dele. Portanto, acho que pareceríamos tolos se tentássemos desacreditar o documento. A alegação de posse de Stagni é outra questão difícil de descartar. Ele tem um documento escrito à mão, uma carta com a letra do pontífice, dando a ele o diário como herança. Dois especialistas em caligrafia confirmaram sua autenticidade. Acredito que, quando pudermos oferecer prova em contrário no tribunal, já teremos gasto milhões... e estaremos entregando ao novo pontífice um saco cheio de litígios em uma dúzia de jurisdições. Certamente não é um bom começo para um novo reinado!

Rossini sentou-se. Houve um longo silêncio enquanto o camerlengo olhou em torno da sala, esperando por outra intervenção. Finalmente, o secretário de Estado levantou-se:

– O nosso colega, Luca, está certo. Aparentemente o diário é autêntico. O nosso desafio único e verdadeiro... difícil de montar e caro para sustentar... é quanto à validade do direito de Stagni ao documento. Esse documento é um legado válido do pontífice ao seu mordomo? A carta de doação possui a mesma letra do diário, que a maioria de nós aceitaria na primeira olhada como sendo do pontífice. Então o que faremos? Montamos um desafio total ou levantamos todas as dúvidas reais que possamos, enquanto esperamos que o caso vá minguando como uma vela romana assim que os procedimentos da eleição começarem?

– Mais algum comentário? – perguntou o camerlengo.

– Apenas um – disse o homem de Paris. – Detesto a ideia daquele pequeno salaud se bronzeando no Rio ou em outro lugar parecido e vivendo como um príncipe com seus ganhos adquiridos desonestamente! Talvez ele pegue a peste bubônica.

– Eu não desejaria isso a ninguém – disse o homem do Rio. – Minha cidade é um dos lugares mais infestados do mundo.

– Mas não chega a ser tão ruim como a minha – disse o homem de Kinshasa.

O camerlengo chamou a atenção para a reunião.

– Sua Eminência o secretário de Estado fez uma proposta: nós não contestamos a autenticidade do diário. Nós anunciamos que averiguações estão sendo feitas quanto à legitimidade da posse.

– Com todo respeito – disse Luca Rossini –, sugiro um pequeno adendo. Que seja dado ao monsenhor Angel-Novalis a autoridade para conduzir a averiguação e fazer os comentários possíveis à imprensa. O resto de nós estará empenhado em outras coisas importantes.

– Aceito o adendo – disse o secretário de Estado.

– Eu apoio o adendo proposto – disse o arcebispo de Nova York.

– Placetne fratres? – O camerlengo fez a pergunta cerimonial. Todas as mãos se ergueram. Todas as vozes murmuraram consentimento.

O arcebispo de Nova York levantou a mão com os outros, mas sendo uma pessoa irritável, ele fez um protesto final ao seu vizinho, Gottfried Gruber:

– Ainda não consigo entender a relação entre aquele sujeitinho medíocre do Stagni e o Santo Padre.

– Eu consigo – disse Gottfried Gruber, mal-humorado. – O Santo Padre tornou-se uma figura muito pública. Ele não tinha lugar para rir ou chorar exceto em seu próprio quarto. Mesmo conosco, seus colegas, ele muitas vezes era prudente e afastado. Seu mordomo era a única pessoa com quem podia relaxar e compartilhar uma piada ou a fofoca do dia. Todos sabíamos disso. Alguns de nós tínhamos inveja disso.

– Você acredita mesmo que ele deu o diário para Stagni?

– Estou certo de que ele compartilhou alguns de seus pensamentos enquanto os escrevia.

– Isso eu posso entender. Sei como é estar sozinho no fim de um dia duro, e só ter Deus com quem falar. Ele é um bom ouvinte, mas um ouvinte silencioso. Às vezes é difícil acreditar que esteja mesmo lá.

– É exatamente o que acho – disse Gruber. – Ninguém trabalhou mais do que eu para manter a fé pura e defender a autoridade do pontífice romano como seu árbitro e intérprete. Mas ultimamente, venho questionando...

Ele parou no meio da frase. O arcebispo o instigou friamente:

– Questionando o quê? Diga, homem! Somos todos irmãos aqui.

– Venho questionando se não ajudei a criar uma receita para a revolução.

– Só há um modo de responder à pergunta, Gottfried.

– Diga-me, por favor!

– Pergunte a si mesmo o que faria, se de repente nós o sentássemos no trono de Pedro!

A IDEIA FOI PROPOSTA por Steffi Guillermin no bar do Clube da Imprensa Estrangeira. Fritz Ulrich apoiava veementemente. O voto a favor foi unânime. O monsenhor Domingo Angel-Novalis deveria ser convidado no dia seguinte para dirigir-se aos membros do Clube na hora do almoço e responder perguntas depois. Guillermin deu o telefonema e recebeu uma resposta favorável. Houve um grito de júbilo quando ela desligou o telefone e fez o sinal de positivo.

– Ele aceitou. Ele só precisa informar o secretariado, mas acha que não haverá problema algum.

– Eles seriam tolos se recusassem – disse Ulrich. – É a melhor chance que terão para responder às nossas publicações do diário.

– Também pode ser a última hora de Angel-Novalis sob os refletores... e as pessoas do Opus Dei devem estar imaginando como seus papéis mudarão em um novo pontificado.

– Angel-Novalis não terá que evitar as respostas diretas, como faz normalmente. – Colson os lembrou. – Ele nos responderá em espaços duplos, para que possamos ler nas entrelinhas.

– Desde que façamos as perguntas certas e não percamos tempo reproduzindo-as – disse Guillermin.

– Tenho uma sugestão. Por que não reunimos nossas perguntas e as entregamos a um único interrogador que possa ser desviado e adiantar-se rapidamente? O nosso convidado é muito veloz, como todos sabemos.

– Eu nomeio Steffi – Ulrich sorriu maliciosamente. – Ela teve a ideia. Ela também é veloz. Nunca conheci um homem que tenha conseguido pegá-la!

Guillermin ignorou a gozação e recusou o desafio.

– As perguntas devem ser feitas em inglês, pois o nosso convidado é fluente no idioma. Isso torna a cobertura e a associação das perguntas e respostas bem mais fácil.

– Quem escolhe a lista final de perguntas? – perguntou Colson.

– Os chefes das agências dos jornais que compraram os direitos de publicação... e os canais de televisão que contribuíram para a compra. Alguma objeção?

– Nenhuma, de minha parte – disse o homem do New York Times.

– Nenhuma, de nossa parte – disse o The Times de Londres.

Guillermin teve a última palavra:

– Todas as perguntas devem ser entregues ao barman até às dezoito horas de hoje. Teremos uma manhã de trabalho para organizá-las e nos dar a melhor chance de obter uma história de primeira. Eu nomeio Frank para fazer as perguntas. Até eu posso entender o inglês dele. Mais uma coisa: estamos mais interessados no que está sendo dito do que nos ângulos da câmera. Nós determinaremos as posições do pessoal da TV e dos fotógrafos, que ficarão imóveis. Não podemos ter pessoas disparando flash durante o discurso ou na hora das perguntas. E as pessoas que pagaram pelos direitos de publicação têm prioridade. Entendido?

É claro que eles entenderam! Em Roma todos entendem tudo, mesmo antes de ser dito, por isso ninguém perde tempo para ouvir nada. Mas Steffi Guillermin já vivera o bastante na cidade para entender arrangiarsi; a arte de se organizar. Então ela reuniu seu pequeno grupo de conspiradores para organizar um plano base e formular as perguntas em inglês com Frank Colson.

Às dezessete horas, Angel-Novalis ligou. Ele recebera permissão para falar na hora do almoço. Havia, no entanto, certas condições. Guillermin ficou instantaneamente em posição de combate.

– Que condições, monsenhor?

– Primeiro, a senhorita deve mencionar nas reportagens que estou falando como pessoa privada e não como um representante do Vaticano.

– Isso é distorcer a verdade, não é?

– Isso é expressar um fato canônico. A Sé de Pedro está vazia. Todas as prescrições do recente pontífice estão em vigor até que um novo papa seja eleito. Não posso fazer comentários sobre as suas políticas ou profetizar sobre as novas. Posso, no entanto, expressar minhas próprias opiniões, desde que sejam estipuladas.

– O senhor entende que o material que enviamos daqui pode ser mudado ou omitido pelos editores em nossas matrizes?

– Certamente. Eu só estou, como diria...

– Tirando o seu da reta – disse Guillermin. – Nós entendemos isso, monsenhor. Qual é a outra condição?

– Não opinarei sobre determinadas pessoas cujos nomes são mencionados no diário. O risco de difamação ainda existe para mim e para a senhorita.

– Mas o senhor não evitará as perguntas gerais sobre “certas pessoas”?

– Reservo-me o direito de não fazer comentários.

– Estamos satisfeitos com isso. Algo mais?

– O assunto do meu discurso será “Passado e futuro em uma Igreja perseverante.”

– Isso não soa como um show humorístico na hora do almoço – disse Guillermin. – Mas estou certa de que fará um belo trabalho. O senhor pode achar difícil de acreditar, mas estará entre amigos.

– Nunca duvidei disso, senhorita! Até amanhã, então.

Guillermin desligou e deu um pequeno grito de alegria. Esse homem era inteligente – às vezes muito inteligente para o seu próprio bem, mas tinha autoestima o suficiente para garantir um atuação de primeira. Esse encontro seria a representação clássica de uma sala de tribunal com um réu muito seguro e um promotor muito cortês. Em questão estariam 25 anos de um governo centrista da Igreja e uma visão – se tal existisse – de uma nova época milenar, cada uma interpretada a partir do diário secreto de um homem morto.

Quando Luca Rossini chegou em casa, às sete horas da noite, havia uma mensagem de Isabel:

“Luisa e eu sairemos de Nova York às seis e meia da tarde.

Chegaremos amanhã em Roma às oito horas da manhã e seremos recebidas por um diplomata da embaixada argentina. Raul reservou uma suíte para nós no Grand Hotel. Ele insiste em que nos “apresentemos em estilo apropriado.” Depois de uma longa noite de voo, nós duas precisaremos de um descanso e de algum tratamento de beleza antes de encontrarmos a nossa muito especial Eminência! Estaremos esperando por você às oito horas para o jantar. Por favor, deixe uma mensagem no hotel para confirmar a sua vinda – mesmo que Átila esteja nos portões de Roma.

Todo o meu amor,

Isabel.”

Apesar de todas as fantasias que alimentara, o impacto da notícia tirou sua respiração. Depois de um quarto de século de separação e exílio da alma, eles estariam juntos. Eles se encontrariam, olhos nos olhos, lábios nos lábios, corpo no corpo – e todo o passado perdido seria esquecido.

Em seguida, um pânico repentino o dominou. Isso também era uma fantasia. Haveria uma testemunha para o encontro, uma moça jovem de 25 anos, filha de Isabel e Raul, neta daquele valente aventureiro, Carlos Menéndez, que havia enfrentado a junta e a Igreja para mandá-lo para fora do país em segurança. A severa advertência de Menéndez ainda ecoava em sua memória: “Leva muito tempo para se recuperar de uma experiência de tortura. É muito cedo para saber como você se recuperará. Espero que um dia seja um homem feito.”

Como o velho Carlos o julgaria agora – onde quer que estivesse alojado? Ele morrera dez anos atrás, quando o seu helicóptero caiu em um remoto vale andino. Rossini também se perguntava como a jovem reagiria a ele. Mais do que tudo, imaginava como pareceria à Isabel que, há tantos anos, cuidara dele e o resgatara de uma degradação obscena transformando-o na imagem de um homem.

Ele entrou no quarto e ficou longo tempo parado olhando a sua imagem no espelho da penteadeira. Viu um indivíduo magro de cinquenta anos, com a pele azeitonada de um homem mediterrâneo, cabelos grisalhos, e uma boca austera em repouso, que podia contrair-se em um sorriso raro quando as luzes se acendiam em seus olhos escuros. Ele era alto para um sulista e às vezes imaginava que compleição de corsário ou invasão nórdica dera a ele sua altura e passadas longas.

De repente ele explodiu em uma gargalhada pela imagem no espelho e pelo registro que estava fazendo de seus bons aspectos, como se estivesse avaliando um animal. Esse era o seu maior medo: que Isabel, a única mulher que amara, pudesse achá-lo ridículo.

O que o levou, em contrapartida, a uma nova série de perguntas. Como eles se cumprimentariam? Com um aperto de mão ou com um beijo? E que tipo de beijo seria apropriado na presença da filha dela? Isabel não lhe dera nenhum sinal em qualquer de suas cartas, contudo ela também deve ter sonhado com o momento do encontro. Sempre que mencionava a filha, era com orgulho e afeição – e uma satisfação verdadeira da boa relação entre a garota e o pai. “Ela o adora, porque ele não lhe nega nada. Ela é o seu troféu que ele adora exibir – e ele é muito cuidadoso na escolha das pessoas, homens ou mulheres, a quem apresentá-la. Ela, por sua vez, tem uma natureza generosa e feliz e nos tornamos boas companheiras.”

Então, surge outra pergunta – mais estúpida do que qualquer uma das outras: o que ele deveria usar para esse jantar a três? Ele tinha várias opções: uma batina, com acessórios e cinto de cor escarlate, altamente formal, e por certo criaria um alvoroço no saguão do Grand Hotel, um terno clerical padrão, apenas com um colarinho romano e uma echarpe púrpura para indicar seu posto, ou o terno de negócios com colarinho e gravata que usava quando viajava para lugares onde era prudente exibir uma neutralidade religiosa. Ele rejeitou essa opção de imediato. Levaria muito tempo para explicar. No entanto, prometeu a si mesmo que quando levasse Isabel para o seu retiro nas colinas, usaria suas roupas de trabalho e ela, se Deus quisesse, concordaria em ir.

Uma sombra de ressentimento invadiu seus pensamentos. Por que Isabel organizou o primeiro encontro deles desse modo? Já teria ela estabelecido algum tipo de limite? Estaria com medo de um impulso repentino de paixão por parte dele ou dela própria? Ele estava zangado consigo mesmo por ter tido esse pensamento. Ela não lhe devia nada. Ele era o devedor. Cabia a ela o direito de estabelecer os termos do pagamento. Além disso, suas cartas eram o testemunho verdadeiro dos seus sentimentos por ele – e, tinha de admitir, eram bem mais abertas do que as dele para ela. Então rejeitou o pensamento anterior e trocou um sorriso de deboche com a imagem no espelho.

Apesar disso, estava impaciente e preocupado. Não queria enfrentar a noite sozinho. Disse aos empregados que jantaria fora. Depois, discou o número de um certo monsenhor Piers Paul Hallett, que trabalhava como paleógrafo na biblioteca do Vaticano. A amizade deles era algo improvável que resultou de um encontro casual na biblioteca, logo depois da chegada de Rossini a Roma. Assim que foram apresentados, Hallett fizera a pergunta débil: “Diga-me caro rapaz, por acaso você saberia alguma coisa sobre a numeração da civilização inca, saberia?”

Hallett tinha a língua afiada, um dom para a sabedoria indolente, e um desdém muito inglês pelo excesso de governo clerical. Ele estava livre para jantar? Sempre que o eminente estivesse pagando. Ele ficaria satisfeito com o Antica Pesa? Certamente. O lugar era esplendidamente discreto, e seria ainda mais confortável se pudessem usar roupas civis.

– Sem querer ofender meu eminente anfitrião, mas ultimamente Roma está sendo atacada por uma praga de prelados. Todo aquele vermelho e púrpura! É como uma erupção de sarampo!

O nome Antica Pesa significava a velha casa de pesagem, onde as carroças carregadas eram inspecionadas e taxadas antes de subirem a colina Janículo. O restaurante ficava em uma antiga habitação cujas portas da frente davam para o pavimento de pedra da via Garibaldi, e nos fundos dava acesso a um pequeno jardim interno, um lugar agradável para jantar no verão.

Havia um vento frio naquela noite, então Rossini e seu convidado sentaram-se à luz do fogo de oliveira perto de uma lareira tão grande que poderia assar um boi. Eles concordaram com o cardápio: spaghetti alla poverella e vitello arrosto com uma jarra de vinho tinto e uma garrafa de água mineral. Depois, contando com um serviço lento, eles começaram a prosa de velhos amigos. Hallett, como sempre, fazia as perguntas abertamente:

– Então diga-me, eminente amigo, qual é a verdade sobre esse diário? Ele é autêntico? Foi roubado? Por que não há um protesto público por parte do Vaticano sobre as publicações?

Rossini encolheu os ombros e rosnou as respostas:

– Ele é autêntico, sim. A procedência parece simples. O Santo Padre o deu a Stagni como legado pessoal. Há uma carta escrita à mão para provar isso.

– O homem devia estar caducando!

– Ele está morto e enterrado, meu amigo. Deixe-o descansar em paz.

– O que sabe sobre esse mordomo?

– Não muito. Ele já exercia a função quando cheguei em Roma. Eu estive com ele algumas vezes, mas como todo mundo, eu não o levava a sério. Você está aqui há mais tempo do que eu. O que sabe?

– Trabalho na biblioteca, que fica bem distante do quarto papal, mas tomo café todas as manhãs no Nymphaeum, do outro lado do jardim. É um lugar divertido... pelo menos para o Vaticano! Stagni estava sempre lá.

– Como era ele?

– Um bom papo. As pessoas gostavam dele. Eles o chamavam Fígaro, mas você sabe disso, é claro.

– Sei.

– O que provavelmente não sabe é que ele vinha falando por um longo tempo em escrever um livro quando se aposentasse. Certamente algum editor italiano o procurou, mas ele tinha maiores ambições. Ele parecia uma gralha agarrando migalhas de informações sobre agentes, editores e a imprensa de diferentes países. Eu dei a ele um velho exemplar do Anuário de escritores e artistas e sugeri que conseguisse uma publicação parecida na América. Ele ficou muito agradecido.

– Uma vez que tivesse os contatos – Rossini refletia –, ele ficaria encorajado a ampliar as ideias.

– Exatamente! Agora tem outra coisa. Dessa vez estou envolvido.

– Você? Por Deus como...

– Paciência, caríssima Eminência! Paciência! No meu trabalho, a questão sobre falsificação aparece de vez em quando. É um negócio antigo: as pessoas vêm falsificando documentos e artefatos há séculos. Nós também fizemos nossa parte na Igreja! De qualquer modo, a pergunta surgiu certa manhã na hora do café. Stagni estava lá. Ele dizia conhecer um homem que cumprira pena em Lipari por falsificação de documentos de identidade, apólices e até, imagine você, falsos títulos de nobreza. Houve muita procura por eles logo depois da guerra.

– Você se lembra do nome desse homem?

– Sim, lembro. Peguei o endereço dele com Stagni e discuti com ele sobre um documento contestado. O nome dele era Aldo Carrese. Ele está morto agora.

– Quando foi que morreu?

– Há alguns meses.

– Stagni estava usando os serviços dele?

– Creio que seja possível.

– Por que Stagni daria o nome dele a você?

– Ele não podia recusar. Eu não lhe disse que ele era um tagarela? Ele falou tanto que entrou num beco sem saída.

– Não que isso nos ajude muito agora. O homem está morto. O diário já está sendo publicado. Stagni está longe de casa e rico.

– É uma pena!

– Mesmo assim, talvez possamos salvar alguma coisa. Angel-Novalis falará ao Clube da Imprensa Estrangeira. Conversarei com ele pela manhã. Confesso que não posso me envolver muito. Isso tudo é uma coisa momentânea.

– Você acha que é passageiro?

– Acho. Acabamos de dar início aos nove dias de missas... fazer uma retrospectiva e olhar para o futuro. A imprensa entrará em total delírio com o diário, até que estejamos reunidos em conclave. Depois disso, será um assunto morto, uma nota de rodapé na história.

– Isso é irritante! – Hallett ficou mal-humorado de repente. E em silêncio. Rossini o despertou:

– Você tem algo em mente, Piers. Nós somos amigos. Diga-me.

– Eu só estava pensando – Hallett começou a falar lentamente. – Eu tenho lidado com notas de rodapé toda a minha vida.

– Pensei que estivesse feliz com o seu trabalho.

– Eu estava, até recentemente.

– Aconteceu algo para mudar isso?

– Sim, aconteceu algo. Estou atravessando uma fase ruim... enfado, apatia, vaidade das vaidades... e assim por diante.

– Você precisa de umas férias. Ou mudar de trabalho.

– Mudar de trabalho é mais provável. Ele está me irritando. Eu adorava o meu trabalho, mas agora não há mais prazer no que faço.

– Continue.

– É muito simples. Sou um paleógrafo. Lido com escritos e inscrições antigos. É um dos campos mais áridos do conhecimento e um dos mais solitários também. Tudo se refere ao passado. Todos os sinais apontam para ruas sem saídas, para templos destruídos e deuses esquecidos. O meu próprio ser se transformou em um hábitat empoeirado. Foi por isso que fiquei tão feliz quando você me convidou para jantar.

Antes que Rossini tivesse tempo de responder, o garçom trouxe os pratos repletos de massa e começou sua ladainha: “Queijo, senhores? Pimenta? Bom apetite!”

– Eu estou com apetite – disse Luca Rossini. – Seria bom uma prece.

Hallett fez o sinal da cruz sobre a comida e pronunciou a bênção:

– Abençoe-nos, Senhor, e à comida que dividimos entre amigos.

– Amém! – disse Luca Rossini. – Também estou feliz com a sua companhia, Piers.

Eles comeram calmamente a montanha de espaguete, mas na metade do prato, Rossini foi derrotado. Ele pegou o fio da meada da conversa de Hallett:

– Sei o que quer dizer, Piers, sobre a solidão do saber especializado. Os hititas e antigos ilíricos são difíceis de compartilhar durante o café da manhã.

Hallett depositou o garfo no prato com um estalido e olhou para Rossini. Havia um brilho de raiva em seus olhos.

– É a mesa do café da manhã que está me fazendo falta, Luca! Estou murchando na solidão do celibato. Vou fazer cinquenta anos no ano que vem e o que possuo para mostrar de mérito próprio ou de bem para quem quer que seja? Não sou um padre; sou um pedante. Mais do que isso, Luca, sou um homem acabado!

– Quem é a garota, Piers? – Isso foi apenas um meio gracejo, uma isca para fisgar uma confissão muito difícil. Hallett mordeu a isca.

– Não é uma garota, Luca. É um homem.

Rossini hesitou por uma fração de segundo apenas; depois perguntou, com neutralidade premeditada:

– Quer me contar o restante disso?

– Ele é um padre, como eu. Vem trabalhando nos últimos seis meses com o Arquivo Secreto. Ele é inglês, como eu, o que acrescenta uma certa provocação à piada. Lembra-se do velho Peyrefitte e do jovem clérigo francês que forneceu a ele material do Arquivo para construir sua trama? Peyrefitte ficou rico e famoso com o romance, que, se não me falha a memória, chamava-se As chaves de São Pedro. O clérigo ficou famoso como uma personagem do livro dele.

– Eu nunca li esse livro – disse Luca Rossini –, mas entendo como você se sente.

– Eu não sei se entende. Essa é a primeira vez que me apaixono, Luca, e, Deus me livre, é um coup de foudre! Não sei como lidar com isso. Não sei o que fazer ou dizer. Até hoje, todas as minhas fantasias e todos os meus pequenos desejos costumavam estar seguramente escondidos sob minha batina. Eu tinha um trabalho do qual gostava. Rezava como me ensinaram a fazer contra o demônio do meio-dia. Eu seguia as regras. Agora não vejo razão no jogo. Sou muito vulnerável. A Igreja é muito vulnerável para mim.

– E o seu amigo no Arquivo?

– Nós nos encontramos, passeamos, encontramos prazer na companhia um do outro. Por enquanto é só isso... mas não continuará assim.

– O que ele quer fazer?

– Não sei. Ele ainda não teve de se declarar. Também não tenho certeza de estar pronto para isso. Tudo o que sei é que esse é o lugar errado para mim.

– Estou certo de que podemos encontrar uma outra posição para você em um ambiente mais adequado.

– Você sabe que essa não é a solução.

– Eu sei disso, meu amigo... melhor que qualquer um. Nós carregamos nossos próprios demônios nas costas, por que na maioria das vezes eles são a única companhia que podemos suportar. Somos apenas dois amigos discutindo uma situação difícil; mesmo assim, não sei como aconselhá-lo.

O garçom voltou para tirar os pratos de massa, trinchar a vitela e oferecer uma segunda jarra de vinho.

– Conseguiremos tomá-la? – perguntou Rossini.

– Eu preciso – disse Hallett. – Talvez encontremos sabedoria no fundo da jarra.

– Melhor, eu acho que a sabedoria seja encontrada no início – ele disse isso sorrindo e depois levantou o copo para Hallett. – Estou honrado por você ter confiado em mim. Eu sei o quanto é perigoso ficar sozinho quando a crise ataca.

– Eu sei que você sabe – disse Hallett. – A coisa que mais temo é ficar tão necessitado que possa me escravizar, submeter-me completamente a um amante.

– Em particular, ao jovem do Arquivo?

– De certo modo, sim. Ele é como um jovem deus, orgulhoso em sua juventude. Eu sou o quê? Um clérigo envelhecendo com a crise dos sete anos. Não é um quadro bonito, é?

– É um quadro triste, meu amigo. Meu coração chora por você.

– Eu gostaria de poder chorar. Mas não posso. Estou muito envergonhado da minha própria carência. Você tem carências, Luca?

– Tenho. Não as mesmas carências suas, mas sim, eu as tenho.

– Como as enfrenta?

– Não muito bem – Rossini sorriu. Hallett insistiu na pergunta:

– Esta espécie não é expelida exceto através de oração e jejum. É isso o que está dizendo?

– Esta não tem sido minha experiência. – Havia um tom cortante em sua resposta. Hallett desculpou-se:

– Desculpe. Eu me excedi. Devo dizer a você que tenho pensado em deixar o sacerdócio. Será uma carga a menos para suportar, um medo a menos para carregar. Você sabe como estamos expostos ultimamente a escândalos e litígios.

– Sei muito bem. Como Igreja, ainda temos de aprender a lidar com nossa própria humanidade. Se deixasse o sacerdócio, você poderia se sustentar profissionalmente?

– Sem dúvida... mesmo com a desvantagem da idade. No meu limitado campo de trabalho, sou um dos melhores do mundo.

– Então deveria pensar com calma sobre isso como uma decisão possível. Há um procedimento a seguir, se quiser uma dispensa formal com todos os selos nos lugares certos. Eu tentaria abreviar isto para você, se pudesse, mas sabe Deus onde irei parar sob o novo pontífice. Você não precisa decidir já. Não vai querer criar um caso com o seu amigo.

– Ele não é do tipo que criaria um caso. Eu sou.

Rossini ficou em silêncio por um momento, entretendo um novo pensamento. A seguir, o expôs abruptamente ao amigo:

– Primeiro você precisa esfriar a cabeça.

– O que está sugerindo?

– Eu estava pensando em um retiro.

Hallett olhou para ele, surpreso e irado.

– Ora, Luca! Eu podia esperar isso de todos, menos de você! Banhos frios, camisa de cilício e um confinamento solitário!

– De modo algum! Como conclavista, estou autorizado a levar comigo meu pessoal básico. Eu estava pensando em levar alguém do meu escritório. Você pode ficar com o trabalho, se quiser. – Os olhos dele iluminaram-se e sua boca abriu-se em um sorriso jovial. – Pelo menos isso irá mantê-lo fora das ruas e colocá-lo na companhia dos mais velhos e mais sábios.

– É muito generoso de sua parte. Você tem razão, isso pode causar um choque repentino ao sistema, mas o que acontecerá depois?

Rossini, ainda sorrindo, recusou o desafio.

– Um dia de cada vez, Piers. É tudo o que temos; isso é tudo o que podemos obter, qualquer um de nós. Nós invocamos o Espírito Santo para nos guiar no conclave. Talvez o Espírito fale com você.

– Você está esperando Ele... ou será Ela?... falar com você, Luca? Dar a você um nome para o seu cartão de voto?

– Neste momento – disse Luca Rossini calmamente –, o Espírito e eu estamos fora de contato um com o outro. Você não precisa responder agora sobre o conclave. Apenas pense sobre isso por um ou dois dias. Sirva-me um pouco mais de vinho como um bom rapaz!


5

Cedo na manhã seguinte, o monsenhor Angel-Novalis foi chamado para uma conferência com o camerlengo, o secretário de Estado, Rossini e outros três cardeais. Eles foram convocados para uma das reuniões do comitê curial que aconteceria todos os dias até o início do conclave. Rossini apresentou uma proposta a Angel-Novalis:

– Você aceitou falar hoje, como pessoa particular, no Clube da Imprensa Estrangeira. Também como pessoa particular, nós pedimos, mas não ordenamos, um favor seu. Se concordar, você fará poucos amigos e alguns inimigos no alto clero. Você se exporá a provocações e a um possível processo com grandes riscos financeiros. Nós explicamos os riscos ao seu superior e o asseguramos de que os subscreveremos. Contudo, não poderemos revelar isso agora ou mais tarde. Se as coisas derem errado, pode causar algum dano a sua carreira pública na Igreja. Está preparado para isso?

– Não sou um carreirista, Eminência. Meus talentos, tais como são, há muito tempo foram colocados à disposição dos meus superiores.

– Ótimo. Para esse papel precisamos de um ator muito bom.

– Sou um ator razoável, Eminência. E não sou um bom mentiroso.

– Não pediremos que minta. Você deverá oferecer uma hipótese a sua plateia. Gostaríamos que fizesse isso com toda a convicção possível.

– É uma hipótese razoável?

– Acreditamos que sim.

– Mas não podem prová-la?

– No momento, não.

– Então querem que eu veja como a mídia reage a ela?

– Queremos.

– Poderiam me dizer o que pretendem conseguir?

– Queremos atirar um osso à imprensa... um osso muito grande, que eles possam roer até que o conclave comece. Depois disso, esse assunto infeliz desaparecerá na história.

– E serei eu o osso?

– Exatamente. Como se sente a respeito?

– Estou preparado para ouvi-los. Como disseram, senhores, nesse aspecto sou uma pessoa privada.

– Que logo pode ser muito pública. – Rossini retribuiu seu sorriso. – Eis a nossa proposta.

Angel-Novalis ouviu-o em silêncio; depois deu um leve sorriso.

– Sua prova não valeria nada em um tribunal, Eminência. O senhor sabe disso.

– Não estamos lhe pedindo para apresentar prova, apenas para fazer uma declaração pública de uma opinião privada.

– Isso é casuística pura, Eminência.

– Eu sei que é. Você sabe que é. A imprensa não sabe... e o nosso amigo Fígaro pensará que sabemos muito mais do que estamos dizendo. Acima de tudo, você terá introduzido em toda a questão um elemento válido de dúvida. Fará isso por nós?

– Farei – disse Angel-Novalis. – Tentarei me compor de total obediência, de mente, coração e intenção. Agora, se me derem licença, senhores.

– Está dispensado, monsenhor. Somos gratos pela sua cooperação.

– De nada, Eminência. Na Espanha nós criamos altas palavras e altas distinções! Com sua permissão, senhores!

Ele deixou a sala com uma reverência. Assim que saiu, o camerlengo voltou-se para Rossini:

– Agora, meu caro Luca, nós temos um encargo para você também.

– Qual é o encargo?

– Nosso eminente colega, Aquino, gostaria de falar com você esta tarde. Ele sente que há questões entre vocês que precisam ser resolvidas. Nós pensamos o mesmo.

Houve um longo silêncio. Rossini olhou de um membro do grupo para o outro. Eles não retribuíram o olhar. Seus olhos estavam abaixados, as mãos cruzadas sobre os colos. Finalmente, Rossini perguntou:

– Aquino mencionou as questões entre nós?

– Mencionou – disse o camerlengo. – E ficaríamos gratos se nos poupasse do embaraço de repeti-las.

– Os senhores pensaram no meu embaraço?

– Pensamos, Luca. Acreditamos que seja um homem forte o bastante para superá-lo.

– No interesse de quem?

– No interesse da Igreja. Outro escândalo nesse momento e às vésperas do conclave, seria muito embaraçoso.

– Nós precisamos mais do que de um embaraço! Precisamos nos envergonhar! – Havia ira no tom de Rossini. – Já ocultamos muitos escândalos. Este, em particular, já se tornou público. E está claramente estampado nos jornais. Ele deve ser tratado abertamente. Não participarei de qualquer conspiração ou encobrimento.

Houve outro momento de silêncio, depois do qual o secretário de Estado interveio:

– É por esta razão, Luca, que achamos que o seu encontro com Aquino é importante. Você pode argumentar com ele em um nível diferente do nosso. Pode até encontrar algum motivo de compaixão que o encorajará a enfrentar seus acusadores. Talvez possa até chegar ao verdadeiro homem por trás de todo aquele verniz.

– Se tal homem existe – disse Rossini.

– Você precisa acreditar que existe – disse o secretário de Estado. – Por favor, você irá encontrar-se com ele?

– Em que território, dele ou meu?

– Meu – disse o secretário de Estado. – Às quatorze e trinta na Sala de Conferência A.

– Estarei lá. Mas lembre-se: não posso prever o resultado.

– Nós entendemos. Obrigado, Luca... Agora, se pudermos passar ao restante da agenda.

QUANDO ESTAVA em pé na frente do atril no Clube da Imprensa Estrangeira, enfrentando uma plateia de jornalistas e uma bateria de câmeras de TV, Angel-Novalis tinha o ar de um antigo fidalgo, desafiando todos os presentes. Quando começou a falar, no entanto, seu tom era simples, quase humilde.

– Meus caros colegas, falo hoje a todos como uma pessoa particular, preso, como todos aqui, em um momento milenar nesta antiga cidade. Nunca me expus antes. Como funcionário do Vaticano, achei que isso seria impróprio. Como homem particular, posso me abrir com os senhores. Todos sabem que eu sou membro da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, mais conhecida como Opus Dei. Muitas pessoas não nos aprovam. Elas pensam que somos elitistas, rigorosos, ascetas antiquados, mercadores perigosos de trabalhos secretos. Não estou aqui para defender nossa reputação ou a prática de nossa vida religiosa. Simplesmente declaro que quando o meu mundo estava caindo sobre mim, quando minha mulher e filho foram mortos, quando eu não tinha desejo nem determinação para viver, a sociedade me ajudou a recuperar minha vida e a mim mesmo novamente. E lhes digo isso não para persuadi-los a se unir a nós. Não aprovaríamos a maioria de vocês... e a maioria de vocês não ficaria satisfeita conosco! Contudo, existem grandes irmandades, amplos abrigos e campos generosos onde todos podemos nos encontrar em conforto, como fazemos hoje. O Bispo de Roma está morto. Logo outro será eleito para o seu lugar porque a Igreja permanece e está continuamente em Cristo. Nas missas solenes nós rezamos pelo morto: Não entre em julgamento com o seu servo, ó Senhor. Aqui, hoje, estamos fazendo exatamente isso: entrando em julgamento sobre um homem morto que não pode mais responder por si mesmo. Por outro lado, é a profissão de vocês relatar a notícia e comentá-la. Não discuto isso, desde que relatem a verdade e façam um julgamento prudente. Isso me leva direto ao assunto do meu pequeno discurso: Passado e Futuro em uma Igreja Perseverante. O falecido pontífice representa o passado recente... uma grande fatia deste século. O homem que for eleito em seu lugar será eleito para o futuro, mas também está encarregado de tutelar o passado: aquele corpo de magistério, tradição e verdade revelada, que chamamos de Depósito da Fé. Fiquem comigo, eu lhes peço, enquanto exploramos essa noção juntos.

Todos eram profissionais. Conheciam um bom ator quando viam um e prestaram toda atenção nele. Pois sabiam que os estava persuadindo, comovendo-os com engenhosa habilidade, tentando desarmá-los antes da hora das perguntas. Também estava fazendo mais concessões em seu papel de homem particular do que jamais fizera em seu papel de homem público:

– A Igreja tem a sua própria inércia gigantesca, a sua própria imobilidade glacial... A carga do ofício é depositada como uma capa de chumbo nos ombros do pontífice. Não demora muito para ele descobrir que um dia ela o esmagará... Ele sabe também que pode ser destruído pelas próprias falhas... como Pedro sabia que traíra seu mestre três vezes ao ser questionado por uma criada, e Paulo sabia que permanecera em silêncio guardando os mantos daqueles que apedrejaram Estevão até a morte. Minha tarefa pessoal tem sido apresentar o falecido pontífice para o mundo através da mídia com o máximo de verdade e o mínimo de mácula possível. Agora, no diário, ele se apresenta como o Homem comum de pijama e chinelos. Nem sempre é um espetáculo edificante. Deixo registrado um pedido pessoal: tenham pena dele antes de culpá-lo!

Foi a sua frase final que lhe trouxe generosos aplausos: a simples admissão da fragilidade humana – e a confissão implícita da necessidade de se criar um mito em torno do papa e seu ofício. Ela também propiciou um ponto de partida para Frank Colson em seu papel de inquisidor:

– Então o senhor concordaria, monsenhor, que a sua função principal no Sala Stampa é proteger o pontífice?

– Nossa função é transmitir informação oficial e transmiti-la o mais claramente possível. Outros, como a Congregação e os bispos, são os intérpretes oficiais.

– Como o senhor se sentiu, como pessoa particular, quando soube da publicação do diário papal?

– Entristecido, irado.

– Irado com o quê?

– Com a grosseira invasão de privacidade.

– Mas o pontífice não devia estar ciente dessa possibilidade quando fez uma doação por escrito ao seu mordomo?

– Eu desconheço as intenções dele a esse respeito.

– Há uma frase na carta dele que é interessante. Vou citar: “Em tempos remotos, talvez eu pudesse enriquecer um criado fiel como você. Estes volumes são minha herança para você.” Essas expressões não indicam que o pontífice sabia que o seu presente poderia ser transformado em dinheiro pelo fiel empregado?

– Não tenho conhecimento como intérprete, Sr. Colson, devo evitar a pergunta.

– Deixe-me colocá-la de outro modo. O senhor, como pessoa particular, está satisfeito com o documento de doação?

– Como pessoa particular, não. Tenho algumas restrições sobre ele.

– Poderia ser mais específico?

– Não neste momento. Mais tarde talvez.

– Alguma ação legal foi tomada por qualquer autoridade do Vaticano para questionar o documento?

– Não fui informado de qualquer ação a esse respeito.

– O senhor acha que isso pode acontecer?

– Arrisco-me a dizer que duvido. A Sé de Pedro está vazia. O camerlengo é apenas um zelador.

– Devido às suas dúvidas, o senhor recomendaria tal ação ou sindicância?

– Minha opinião não será pedida, Sr. Colson. Na ordem natural das coisas, em breve posso estar desempregado.

Isso fez a plateia sorrir e reduzir um pouco a tensão na sala. Frank Colson tomou um gole de água, organizou seus papéis e deu uma olhada na nota que acabara de ser entregue a ele. Era de Steffi Guillermin. E dizia: “Ele está satisfeito com o desempenho dele. Feche o cerco. Desarme-o.” Colson posicionou-se como um promotor para o próximo ataque sobre sua testemunha.

– Está claro, monsenhor, que, qualquer que sejam suas opiniões privadas, o Vaticano não está preparado para questionar a autenticidade do diário, ou a validade da doação a Claudio Stagni.

– Seria mais exato dizer que, até o momento, o Vaticano não fez contestação formal.

– Então, um outro cenário se apresenta. A doação do manuscrito foi válida. Ela foi feita pelo pontífice em plena posse de suas faculdades mentais... em plena consciência do uso que poderia ter.

– Isso é pura especulação.

– Mas concorda que é pelo menos uma hipótese admissível?

– Improvável, mas sim, admissível.

– Ampliando um pouco esse pensamento, não é igualmente admissível que certos membros da Cúria, consultores íntimos, sugeriram este estratagema ao pontífice e o encorajaram a fazê-lo?

– Esse é um passo muito grande para eu dar, Sr. Colson. Fui consultor do pontífice apenas sobre questões referentes à mídia.

– Mas certamente esse era um assunto de grande interesse para a mídia? É o único tópico de nossa discussão aqui hoje.

– Tudo que posso dizer é que eu não fui consultado sobre o assunto em nenhum momento.

– Mas reconhece que tal discussão deve ter acontecido entre os mais íntimos e poderosos consultores do pontífice?

– É uma possibilidade. Não posso dizer mais do que isso.

– A alternativa é um tanto assustadora, não é?

– Que alternativa, Sr. Colson?

– Que o Santo Padre, um homem incumbido de enorme responsabilidade, cometesse o desatino de entregar um documento tão particular nas mãos de seu mordomo.

– Pode haver outras explicações.

– Quais, por exemplo, monsenhor?

– Roubo.

– O que tornaria nós mesmos e os nossos empregadores em comerciantes de bens roubados?

– Isso poderia acontecer. Já aconteceu antes.

– Outra alternativa?

– Falsificação do documento de procedência. Isso também já aconteceu.

– Qualquer das alternativas leva a uma conclusão muito desconfortável, não é?

– Diga-me a sua conclusão, Sr. Colson.

– Que o Santo Padre tinha a seu lado, e compartilhava seus pensamentos mais íntimos a cada dia, com um homem que abusou de sua confiança, invadiu sua privacidade e cometeu ou organizou uma série de atos criminosos em benefício próprio.

– Precisamente. E se a sua conclusão estiver certa, Sr. Colson, então o senhor, seus colegas e suas corporações são todos cúmplices no crime.

– E o bom julgamento de um pontífice, encarregado do cuidado universal das almas, fica seriamente comprometido.

– Isso, também, já aconteceu muitas vezes no passado, Sr. Colson. Nós somos uma Igreja peregrina. Não somos uma sociedade perfeita.

Colson deixou-o levar vantagem. Ele próprio já ganhara o bastante. Deu início a um novo curso de perguntas:

– Agora vamos dar uma olhada em algumas das declarações mais significativas do diário. O senhor mais ou menos admitiu que ele é um documento autêntico. E em breve será público. É uma introspecção singular na mente de um homem cujos títulos são Vigário de Cristo e Supremo Pastor da Igreja Universal.

– Ele também é... nesse documento, pelo menos... um homem privado, expressando pensamentos íntimos. – Angel-Novalis estava no ataque agora. – Ele deixou de lado seu papel público e está em discussão consigo mesmo e com Deus.

– A não ser que, como o senhor admitiu ser possível, ele esteja buscando o seu papel público através de um testamento pós-morte.

– O papel dele acaba com a sua morte, Sr. Colson. O sucessor dele não é determinado.

– Mas os eleitores podem ser influenciados.

– Influenciados pelo quê?

– Ambição talvez. A pressão de seus pares, lealdades partidárias. Não é segredo que existem facções no Sacro Colégio. Eu cito do diário: “Não estou cego às ambições de certos cardeais ou às suas capacidades para intrigas.”

Angel-Novalis levantou a mão para interrompê-lo.

– Acho que devemos parar por aqui, Sr. Colson. Não estou preparado para fazer comentários sobre os papéis secretos de um homem morto. Deixarei isso para os historiadores. Acho que dei ao senhor e aos seus colegas um valor razoável pela sua hora de almoço.

– O senhor realmente deu.

– Então posso pedir um pequeno favor em retorno?

– Certamente.

– Obrigado. Tenho uma declaração formal que gostaria que o senhor publicasse literalmente. O senhor faria isso?

– Com prazer.

– Esta é uma declaração formal: posso dizer que o diário particular do pontífice é admitido como genuíno. Há, no entanto, uma prova circunstancial de que foi roubado de seu quarto enquanto ele estava em coma, pouco antes de sua morte. A carta de doação do pontífice é uma falsificação preparada por Aldo Carrese, um criminoso condenado que morreu há dois meses. Faço esta declaração como um convite aberto a Claudio Stagni para responder a essas acusações ou me processar por difamação. Estou ciente de que, ao fazer isso, estou excedendo meu depoimento e me expondo à censura. Contudo, tenho o dever pessoal de proteger a reputação de um homem que eu admirava e respeitava. O que os senhores e os seus editores escolherem fazer nas circunstâncias é de sua responsabilidade. Obrigado, senhoras e senhores. Desejo a todos um bom dia.

Enquanto ele se afastava a passos largos do púlpito, a tempestade de aplausos, liderada por Steffi Guillermin, caía sobre ele. Ele merecia cada aplauso. Ele lhes dera uma semana de manchetes. Eles entenderam, também, embora obscuramente, que ele colocara sua carreira em jogo. O Vaticano tinha uma memória longa e uma paciência curta para sacerdotes turbulentos.

ENQUANTO ANGEL-NOVALIS saboreava seu triunfo proverbial no Clube da Imprensa Estrangeira, o homem que o preparara para isso estava esperando na Sala de Conferência A na Secretaria de Estado. Seu visitante, cardeal Matteo Aquino, telefonara para dizer que estava sendo retido em outra reunião e chegaria com vinte minutos de atraso.

Como ex-diplomata – ele fora núncio em Buenos Aires e em Washington – Aquino devia ser mais cortês. Por outro lado, refletiu Rossini, o homem nunca foi cortês. Ele sempre fora arrogante, vaidoso de sua ascendência militar, de suas habilidades como tenista; um esgrimista e um diplomata que, usando suas próprias palavras, “tinha qualificações especiais para lidar com os regimes militares”.

Ele tinha 75 anos. Já oferecera seu pedido de demissão ao falecido pontífice, mas ainda era qualificado a votar no conclave e – ao menos em teoria – ainda era um candidato à eleição. Depois de um longo reinado, sempre havia uma chance de que os eleitores escolhessem um pontífice com uma expectativa de vida curta.

Agora, de repente, Aquino, aquele homem muito combatente, estava sendo combatido. Quem o ameaçava eram as Mães da Praça de Maio, um grupo de mulheres que expusera e definitivamente destruíra a ditadura na Argentina. Elas eram as mães, viúvas, irmãs e namoradas daqueles milhares de “desaparecidos” sob o regime do qual o próprio Rossini fora vítima.

Elas vieram a Roma com provas reunidas durante vinte anos sobre a alegada cumplicidade de Aquino no reino do terror, em atos de traição, sequestros, torturas e execuções que o governo registrou como sendo nove mil, mas as Mães da Praça de Maio declararam estar perto de trinta mil. O objetivo de sua vinda a Roma era pedir ao papa para destituir a imunidade de Aquino como cidadão da Cidade do Vaticano, e assim permitir sua acusação sob as leis da República da Itália. Muitas das vítimas do terror eram imigrantes italianos e algumas, aparentemente, só possuíam o status de residentes na Argentina, mantendo as nacionalidades italianas. Agora que o papa estava morto, as mulheres resolveram esperar para apresentar seu pedido formal ao novo eleito.

O conteúdo das evidências materiais que trouxeram era familiar para Rossini. Os arquivos da Secretaria de Estado também eram abertos para ele: uma pasta fina escolhida dentre muitas estava a sua frente sobre a mesa. Por um breve tempo o próprio Aquino fora uma figura familiar na vida dele: taciturno e retraído, mensageiro a contragosto, entregando um insípido pacote de mercadoria estragada da Argentina para Roma. À medida que Rossini ascendeu no conceito papal, eles raramente se encontravam e suas saudações em ocasiões formais eram breves e frias. Agora Aquino era um suplicante da advocacia pública de Rossini contra a fúria dos lenços brancos da praça de Maio. Para Rossini, ele era uma figura dos anos de pesadelo e sua sombra pairaria sobre o seu encontro com Isabel naquela mesma noite.

Bateram à porta e, em resposta ao convite de Rossini para entrar, um jovem clérigo conduziu Aquino para dentro da sala. Rossini levantou-se para cumprimentá-lo. Ele fez uma reverência mas não estendeu a mão. Aquino também fez uma reverência e murmurou um breve pedido de desculpa. Rossini indicou-lhe uma cadeira. Ele sentou-se, as costas eretas, sem sorrir, até Rossini dirigir-se a ele:

– Pediu para ver-me, Eminência.

– Sim. Estou, como sabe, em uma situação difícil.

– Qual é essa situação difícil?

– Essas mulheres, as Mães da Praça de Maio. Elas vieram aqui para fazer uma campanha contra mim. Querem me colocar diante de um tribunal em Roma. Elas querem a renúncia de minha imunidade como cidadão da Cidade do Vaticano. Pretendem esperar em Roma até que um novo pontífice seja eleito. É tudo muito embaraçoso, muito lamentável.

– Imagino que deva ser – disse Rossini suavemente. – É evidente que o que essas mulheres sofreram, o que seus filhos, irmãos, maridos sofreram, também foi muito angustiante.

– Eu sei.

– Claro, você tinha de saber... era seu trabalho. Apesar de, em várias ocasiões, você ter declarado publicamente não saber de nada.

– Foi uma jogada diplomática necessária.

– Vi seus relatórios. – Ainda estava calmo. Ele bateu com a ponta dos dedos na pasta sobre a mesa. – Eles pertencem a um período muito doloroso da minha vida, com o qual ainda hoje tenho dificuldade de lidar. Motivo pelo qual me deram tarefas em outras áreas. Ainda estou muito vulnerável aos traumas de vinte anos atrás. Contudo, em preparação para este encontro, verifiquei vários papéis importantes. Notei que suas minutas sempre foram prudentes, cuidadosamente ponderadas, mesmo nos assuntos mais controversos.

– Obrigado. Esse é o dever do diplomata: nunca exagerar ou enfatizar demais. Ele deve penetrar no âmago das causas dos eventos.

– Mesmo quando homens e mulheres estão sendo torturados com aguilhões de gado e sufocados em baldes de merda na Escola Naval. Mesmo quando estão sendo chicoteados e sodomizados com cabo de vassouras e castrados, vendados e depois atirados de aviões sobre o oceano?

– Eu protestei sobre essas coisas constantemente.

– Para quem? E quão publicamente?

– Tudo o que eu sabia foi informado à Secretaria de Estado.

– Mas continuava jogando tênis com os homens que ordenavam as atrocidades. Continuava buscando... como é que chamava? – Ele abriu a pasta e colocou o dedo sobre uma linha. – Ah, sim, “conselho teológico idôneo sobre os limites morais da tortura que podem ser necessários para extrair informações dos inimigos do Estado, e em muitos casos, da Igreja também”. O senhor obteve o seu conselho e o passou aos generais nas quadras de tênis: “Medidas extremas podem ser usadas desde que não excedam os limites humanos, não tenham consequências mortais, efeitos mutiladores, e uma duração que não ultrapasse quarenta e oito horas ao todo.” Quem escreveu esse lixo para o senhor?

– Isso foi escrito por um teólogo moralmente digno.

– Digno?! Deus todo-poderoso!

– Para fornecer algum elemento de reconciliação para os homens no Exército que eram obrigados, por force majeure, a executar tarefas brutais.

– E como o senhor propôs reconciliar as famílias dos mortos e dos desaparecidos?

– Não vim aqui para ser ofendido!

– Isso não é ofensa. Isso é a verdade. Por que o senhor veio aqui? O que esperava de mim? Silêncio? Um polimento em toda essa história suja?

– Alguma vez lhe ocorreu – Aquino ainda estava controlado. – que posso ter vindo em busca de compreensão e ajuda?

– Se é isso o que o senhor quer, fale com as mulheres! Apele para a compreensão delas. Confesse a elas, peça-lhes perdão. Elas ouvirão, eu lhe prometo! Elas estão acostumadas ao silêncio. Elas esperaram todos os dias, com os lenços brancos nas cabeças, acusadoras e silenciosas do lado de fora do palácio presidencial. Seus entes desaparecidos foram silenciados para sempre.

– Você sabe que não posso enfrentá-las.

– Por que não?

– Elas me fariam em pedaços.

– Isso depende, de como se apresentará a elas, não?

– Isso também. – Um pequeno sorriso sem graça contraiu os cantos da boca de Aquino. – O que tem em mente? Uma camisa de saco de estopa, uma corda amarrada em meu pescoço?

– O senhor tem outra ideia, por acaso?

– Eu tinha esperança de que você pudesse falar por mim e comigo, já que também foi uma vítima.

Rossini deixou escapar uma blasfêmia em voz baixa.

– Pelo sofrimento de Cristo! Que tipo de homem é o senhor?

– Sou um sobrevivente – disse Aquino calmamente. – Preciso de sua ajuda para sobreviver a isso... essa infâmia!

– Que infâmia?

– Essas acusações de conspiração e colaboração.

– A melhor maneira de sobreviver é responder às acusações! – A despeito de si mesmo, Rossini estava afogado em argumentos. – Escute aqui! O nosso falecido colega Bernardin, em Chicago, foi acusado de abuso sexual por um antigo seminarista. Ele não se escondeu atrás da Igreja ou de seu alto ofício, ele desafiou o seu acusador a encontrá-lo no tribunal. A acusação foi retirada. Bernardin encontrou-se com o homem e o tratou com compaixão e caridade. Lamentavelmente, Bernardin não sobreviveu, mas morreu com honra e as pessoas abençoam sua memória.

– Todos abençoam um bom pastor! Ninguém abençoa diplomatas! Você tem visto o que a imprensa italiana já fez. Imagine o que farão com uma audiência no tribunal! Isso é impossível!

– Por que é impossível?

– Eu me recuso a ser indiciado como criminoso. Ajudei muitas famílias das vítimas. Agora essas mulheres me perseguem com alegações não comprovadas.

– Então leve-as ao tribunal. Deixe que as provas sejam expostas e examinadas. Se forem falsas, o senhor será inocentado. Se forem verdadeiras... então que Deus tenha piedade de sua alma!

– Você está fazendo um jogo cruel. Eu o procurei para que me ajudasse como colega e como cristão. Lembre-se de que tem uma dívida para comigo. Eu o tirei da Argentina.

– Sei disso. Milhares de outros não tiveram a mesma sorte. Mas não estou fazendo um jogo. Estou tentando avaliar a sua situação e decidir como e sob que condições posso lhe ajudar.

– Condições?

– Certamente. O senhor é um diplomata. Condições, termos, acordos, isso é o que o senhor costuma fazer.

– Muito bem, vamos abrir as negociações. O que fará para me ajudar?

– Primeiro, entrarei em contato com a delegação das mulheres. Eu me empenharei para apresentá-lo a elas em um lugar privado. Pedirei a elas que deem ao senhor, em minha presença, um resumo das provas. Eu as convencerei, se puder, a ouvir o seu argumento e pelo menos discutir uma solução mediada.

– E se a mediação for insatisfatória para ambas as partes?

– O senhor desistirá de sua imunidade e concordará em se apresentar no tribunal. Se fizer isso, trabalharei com Angel-Novalis para assegurar a melhor interpretação possível de sua situação pela imprensa mundial.

– Você pede muito, Rossini. E oferece muito pouco.

– É o melhor que posso fazer.

Aquino olhou fixamente para ele com olhos frios e hostis, depois levantou-se.

– Você fez mais por Raul Ortega. Você o recomendou como embaixador da Santa Sé para poder trazer sua amante para Roma.

Quando Rossini não deu resposta, ele acrescentou um pequeno pós-escrito:

– Você parece ter esquecido algo. Eu preciso da permissão do pontífice antes de ir ao tribunal sobre qualquer questão. Portanto, não posso fazer nada até que o novo papa seja eleito. Você, no entanto, está livre para intervir informalmente a meu favor. Assim, se quiser rever sua oferta de ajuda, telefone-me. Não resta muito tempo antes do conclave. Depois disso, como dizem os americanos, “é um jogo inteiramente novo”.

Foi então que a luz do refletor caiu sobre Rossini. Ele exalou um longo suspiro, depois balançou a cabeça em total descrença.

– O senhor está certo, é claro. Fui tolo em não ver. O senhor não está procurando defesa. Tudo o que quer é uma prorrogação... uma trégua!

– Exatamente. E você é a melhor pessoa em Roma para negociar isso!

– Imagine, apenas imagine, que o senhor seja eleito papa. E depois?

– Depois, como eu disse, é um jogo inteiramente novo. O pontífice é o chefe de um Estado soberano. Também é o líder de um bilhão de fiéis. Ele não é contestado em qualquer tribunal no mundo. Plenitudo potestatis. A plenitude do poder. É um velho conceito, mas vem crescendo novamente durante esse reinado. Há muito apoio sobre isso no colégio eleitoral. Pense sobre isso, Rossini. Mas não demore. O tempo está se esgotando.

Ele virou-se e saiu da sala, fechando a porta atrás dele.

DEZ MINUTOS DEPOIS, um Rossini muito zangado fez o seu relatório ao secretário de Estado.

– Foi um erro, Turi! Eu nunca devia ter concordado com esse encontro. Não suporto esse homem!

– Não tem problema. – O secretário de Estado deu de ombros. – Ele pediu o encontro. Nós concordamos. Você o atendeu! Basta!

– Você acha que ele pode ser eleito... com o seu currículo?

– A pergunta é imprópria, Luca, mas eu a responderei. A ficha dele é limpa até que seja condenado por más ações. Ele tem uma pequena facção de poderosos na Cúria. Sim, ele pode ser eleito, ao menos como um tapa-buraco. Há precedentes históricos para isso. Contudo, não me peça para lhe dar as probabilidades.

– Outra pergunta, Turi. Como Aquino soube que eu tinha lhe dado uma recomendação sobre a nomeação de Raul Ortega?

– Não sei. Ele não soube por mim. Na verdade, não discuti isso com ninguém. Não mostrei a recomendação a ninguém. Ela ainda está trancada em meu arquivo particular. Contudo, sabendo que os argentinos fizeram a recomendação, ele pode facilmente ter adivinhado que eu a enviaria a você.

– Então, ele ainda tem estreitas ligações na Argentina?

– Na Argentina, em Washington, em qualquer lugar onde trabalhou. Esse é um dom em um diplomata.

– Havia uma ameaça em seu comentário sobre Isabel.

– E você será sábio em lembrar disso, Luca, agora que a Sra. Ortega está na cidade. Devo avisá-lo de que Aquino sabe de sua chegada.

– Como ele soube disso!?

– Novamente, pela embaixada. Ele tem estado em contato com eles sobre as Mães da Praça de Maio. Ele também me sugeriu que pode haver uma conexão entre esse grupo e a chegada repentina da Sra. Ortega. Há alguma conexão?

– Não sei. Certamente perguntarei a Isabel. Vamos jantar juntos esta noite, com a filha dela.

– Desejo-lhes uma noite agradável.

– Obrigado.

– Só quero o seu bem, Luca. Você sabe disso.

– Eu sei.

– Então, antes de se encontrarem, acalme-se. Livre-se da raiva. Desfrute desse encontro.

– Obrigado, Turi.

– Agora, tenho outro trabalho para você. Gostaria que fosse amanhã a uma reunião com meia dúzia dos membros seniores do Sacro Colégio que não poderão votar por causa da idade. Eles querem comunicar seus pontos de vista a você e a outros membros eleitores.

– Gostaria de ser dispensado, Turi. Reservei o dia de amanhã para assuntos particulares.

O secretário de Estado ficou aborrecido. E inquiriu rapidamente:

– Mais importante do que o serviço que você deve prestar aqui num momento como esse?

– Acredito que seja. – De repente, ele era um homem diferente, aberto e apaixonado. – Escute-me, Turi, tente entender! O que nossos colegas mais velhos querem é o que Paulo VI lhes negou: uma voz no conclave, pelo menos a oportunidade de ser ouvidos por sua experiência. Eu entendo isso. Acredito que têm esse direito. Mas para mim, Turi, a questão é completamente diferente. Eu estou em crise, em uma escuridão desesperadora. O encontro com Aquino me fez mergulhar ainda mais fundo na escuridão. Não sei mais se devo participar do conclave. Estou pensando em renunciar antes que ele comece.

– Por quê, Luca? Por quê?

– Porque não sei mais se sou um crente. De repente, fiquei despojado. O Deus em quem eu acreditava é um estranho para mim. A Igreja onde passei minha vida... onde mantenho, como você, um cargo alto e honrado... é uma cidade de estranhos. Não estou me explicando muito bem, mas você entende, espero, por que preciso de um pequeno espaço de silêncio. Sou o que era no começo: um homem vazio, um homem oco, com a cabeça cheia da luz clara do ártico, e um pedaço de gelo onde deveria estar o coração.

– Qualificações excelentes para um conclavista! – O secretário de Estado recostou-se na cadeira, manuseando a espátula de abrir correspondências. – Uma cabeça clara e um coração frio. Não vou humilhá-lo com simpatia. Se optar por se demitir, lamentarei, mas peço-lhe que adie sua decisão para depois do conclave. O julgamento de um descrente, proferido sem medo ou proteção, pode ajudar a todos nós.

– E como fica isso na sua própria consciência, Turi?

– Muito bem. Aceito o que me disse como uma confidência confessional. Não aceito a sua disposição atual como irrefutável. A noite escura da alma é um fenômeno conhecido na vida espiritual... de fato, para alguns, ela é um lugar de parada necessário no caminho para a Santidade. Na ausência de uma rejeição formal da fé, continuo aceitando você como um irmão em Cristo, um colega no governo da Igreja. Isso responde a sua pergunta?

– Em parte, pelo menos. Obrigado.

– Então posso sugerir que suspenda o seu julgamento sobre o nosso colega, Aquino. Ele, assim como você, tem problemas de consciência. Não devemos inferir julgamento a eles.

Rossini inclinou a cabeça respeitosamente sob a censura. Depois sorriu:

– Você está certo, Turi. Sinto muito. Agora, por favor, posso tirar o dia de folga amanhã?

– Certamente. Temos o número de seu celular. Tentaremos deixá-lo em paz. E, Luca?

– O que é?

– Fique atento. Aquino e seus amigos são um grupo poderoso. Algumas pessoas indelicadas os chamam de Emilian Mafia.

– O que eles podem fazer a um homem que não tem nada a perder?

– Eles podem roubar-lhe o poder de fazer algum bem na Igreja que, apesar de seus problemas pessoais, é maior do que você imagina. Tenha uma noite agradável.


6

Ele saiu cedo de seu escritório naquela tarde. O mau humor negro da ira ainda estava nele; ele precisava de ar puro e do contato das pessoas despreocupadas ao seu redor. Rossini decidiu ir a pé para casa, atravessando a Ponte Sant’Angelo e as velhas ruas depois de Lungotevere Tor di Nona, onde os banqueiros de outra época exerceram seu comércio.

Enquanto andava, a nuvem começou a deixar seu espírito e ele foi tomado por uma sensação crescente de libertação. Agora a verdade fora dita. Sua confissão ao secretário de Estado tinha sido um ato necessário de purificação. O secretário, bom diplomata como era, percebera isso e lhe pedira para adiar uma decisão final. Ele fornecera inclusive um sofisma convincente para salvar a pele de Rossini e apaziguar a própria consciência. Fora um ato caridoso, que Rossini prezava mais por causa de sua ausência em homens como Aquino.

Rossini especulava, não pela primeira vez, por que tantos prelados, homens bons e liberais na juventude, transformavam-se em tiranos quando promovidos a altos cargos. Era como se de repente se sentissem encarregados de perturbar toda a ordem humana das coisas e substituí-la pelo artefato teológico em vez de uma infusão de caridade.

Depois de atravessar metade da ponte, ele parou, encostou-se na balaustrada e ficou olhando para as águas barrentas do Tibre. Lembrou-se de outra confissão que fizera, muitos anos antes, em sua primeira entrevista com o falecido pontífice. O velho o pressionara duramente, acossando-o, primeiro para um lado, depois para o outro, como um cão-pastor levando um carneiro perdido para o redil:

– Como se sente sobre o homem que o chicoteou?

– Ele era um bruto e um sádico. Felizmente está morto.

– Você o perdoou?

– Ainda não recebi essa graça, santidade. Repudio tudo o que ele representa em meu país... as atrocidades que estão sendo planejadas e cometidas todos os dias por altas e baixas personalidades. Eu odeio... sim, odeio o silêncio e a conivência daqueles que se chamam sacerdotes e bispos. Pergunto a mim mesmo o que Sua Santidade pensa de tudo isso, porque nós não ouvimos o seu manifesto sobre essa questão.

– Você se esquece de si mesmo, meu jovem.

– Eu perdi a minha juventude quando eles me amarraram naquela roda.

– E a sua inocência, meu filho? Quando foi que a perdeu?

– Como muitos dos meus irmãos padres, perdi minha inocência no silêncio de nossos bispos e no silêncio de Roma. Havia torturas e assassinatos, santidade... tudo feito em silêncio. Não entendíamos isso. E ainda não entendo. Isso é outra coisa que acho difícil de perdoar. Foi uma mulher quem matou meu torturador. Decorreram semanas de negociações até que o emissário de Sua Santidade interviesse.

– Naquela ocasião, você deu início a um relacionamento adúltero com essa mesma mulher, Sra. Ortega.

– Uma mulher da qual me lembro com amor e gratidão.

– Não vê nada pecaminoso nisso?

– Meus pecados são meus, santidade. Eu era um homem despedaçado. Isabel me recompôs, pedaço a pedaço. Ela arriscou sua vida para isso.

– Agora ela está fora de sua vida?

– Não. Ela nunca estará fora de minha vida. Lembro-me dela todos os dias em minha missa.

– Você continua sendo um crente então? Continua sendo um padre?

– Pratico meu sacerdócio em público. Rezo para que haja luz na escuridão. Eu luto o dia todo, todos os dias, com minhas dúvidas sobre essa nossa Igreja.

– Você é um jovem muito difícil.

– Sobrevivi a tempos difíceis, santidade. Outros não foram tão afortunados.

– Outras pessoas me temem. Você se posiciona como um jovem Lúcifer e fica me desafiando.

– Eu não o desafio, santidade; mas não o temo. Acho mais fácil compreender o senhor do que muitos daqueles que falam com a sua autoridade. Sei que está tentando ser gentil comigo, mas...

– Você não está tornando as coisas fáceis para mim, meu filho!

– Por favor, santidade! Tente entender. O senhor está aqui, um monarca incontestável em seu próprio reino, apoiado pela fidelidade dos fiéis em todo o mundo. Eu acabo de chegar de um campo de batalha onde os seus ministros e o seu povo, homens e mulheres, estão derramando o próprio sangue. O prêmio deles é a simples sobrevivência. A política do governo é a repressão total, “infortúnio ao conquistado”. As palavras do Evangelho que falam mais alto são “Meu Deus, por que me desamparastes?”. Foi uma mulher quem respondeu por Deus a mim, santidade. Eu a deixei correndo risco, estou envergonhado pelo silêncio daqueles que alegam ser defensores da fé mas não levantam a voz ou a mão para proteger o rebanho... perdoe-me, santidade. Ainda estou irado. Falei demais. Peço-lhe permissão para sair.

– Ainda não, Luca! Vamos conversar um pouco mais. Quero falar com você sobre o seu futuro.

A conversa que teve início naquele dia estendeu-se durante anos à medida que o pontífice o preparava para cargos mais altos e o trazia lentamente para seu convívio, demonstrando-lhe confiança. O relacionamento deles era um paradoxo que as intrigas no Vaticano adornavam com mais contradições ainda. Enquanto Sua Santidade, como o seu homônimo, Paulo, submetia-se a jornadas globais espetaculares, Rossini foi posto sob a tutela da Secretaria de Estado e sobrecarregado com estudos suplementares na Biblicum, a Universidade Gregoriana e Propaganda Fide. Foi uma terapia severa que não lhe deu tempo para pensar em coisa alguma, embora nunca o bastante para organizar sua vida para uma livre escolha de uma nova vocação.

Lentamente a princípio, e depois mais rapidamente, as mudanças começaram. Agora Rossini tornara-se o viajante e o pontífice dedicava mais tempo à instrução e à disciplina dentro da Igreja. Ele dava mais confiança e credibilidade aos teólogos rigorosos e aos disciplinadores linha-dura na Cúria. Ao mesmo tempo, recorria a Rossini para interpretações pessoais de um mundo que, à medida que o tempo passava, tornava-se cada vez menos acessível para ele, cada vez menos receptivo.

Naturalmente, isso despertava críticas e invejas, que Rossini cuidadosamente ignorava. Ele não tinha talento para clubes fechados ou gosto por conspirações grupais. Já vira mais do que o suficiente disso em seu próprio país. Se estivesse solitário, ele nunca confessava. Ele era o seu próprio homem sempre, vivendo em perigo entre o Altíssimo e o sucessor de Pedro e todos os tronos, domínios e principados da Igreja do século XX.

Os discursos e escritos do pontífice eram redigidos pelos teólogos mais conservadores, e havia um esforço combinado para estender suas autoridades magisteriais e conter os debates sobre suas conclusões. Havia pouca compaixão em seus tons jurídicos. Eles alienavam em vez de unirem a Igreja peregrina. Expressões de divergências por parte do clero eram duramente reprimidas. Divergências por parte dos leigos eram ignoradas, sabendo que eram irrelevantes para a autoridade, eles ausentavam-se de seu domínio.

Rossini, por outro lado, não media palavras com o seu patrono. Ele resistia como uma rocha contra as ondas de sua ira, submetendo-se apenas quando forçado a aceitar um comando direto. O seu argumento era sempre o mesmo:

– Sei que o senhor quer ser o Bom Pastor e quando visita o seu povo é amado por ele, mas quando escreve, o senhor é como um juiz deliberando um veredicto. Quase se pode ouvir a batida do selo sobre o pergaminho: “Pronto! Esta é a verdade, pura e inviolável. Deixe que eles a engulam ou se engasguem com ela!” A vida não é assim, Santidade. As pessoas não são assim. O melhor estágio que elas podem atingir ainda está muito distante da perfeição, e elas precisam de persuasão e docilidade para alcançar até mesmo esse estágio.

– Está me dizendo que eu deveria diluir a verdade?

– Estou pedindo a Sua Santidade para levar em consideração o modo como o Nosso Senhor a ensinou: através de contos e parábolas que criaram raízes e cresceram lentamente nas mentes e corações do povo. Ele invocou aflições apenas sobre os hipócritas e os demasiadamente justos.

– Agora você está querendo ensinar ao papa?

– Sou um filho da casa, santidade. Reivindico o direito de ser ouvido nela... e essa é outra advertência que continuo repetindo. As filhas da casa também foram ignoradas por muito tempo. Elas sustentam as vigas de nosso mundo e no entanto possuem poucas vozes e nenhum voto na assembleia dos fiéis. Nós somos pobres sem a presença delas.

– Esse é um terreno antigo, Luca. Não vou discutir esse assunto com você novamente.

– É terreno que não lhe pertence, santidade. Embora atualmente o senhor alegue controlá-lo.

– E você não cede nenhum terreno, não é, Luca?

– O pequeno espaço sobre o qual estou de pé foi comprado com sangue. Mesmo pelo senhor, eu não o cederei.

MUITAS VEZES, depois de tais colóquios, ele esperara ser exilado em algum lugar às margens do cristianismo. Muitos de seus colegas queriam que partisse. Seus encargos de viagens o mantinham afastado de Roma com frequência e pelo tempo suficiente para que a Cúria pudesse tolerar sua existência. Contudo, sempre que voltava, o pontífice o recebia como um filho pródigo retornando e passava muito tempo com ele – tempo que outros, com alguma justiça, alegavam ser deles. Alguns dias antes de seu colapso final, ele fizera uma confissão pungente:

– Você tem sido um bom filho para mim, Luca, embora tenha me deixado zangado muitas vezes. Sou um velho teimoso. Do meu lugar na colina do Vaticano, eu devia ver o mundo inteiro e todo o plano de Deus para ele, simples e claro como num livro de fotografias para crianças. Porém você, meu indócil Luca, mostrou-me coisas que jamais sonhei. Você me mostrou a face de Deus, mesmo nos Templos dos Estranhos.

– Não sei se o entendo, santidade.

– Você mesmo chamou minha atenção: na ilha sagrada de Delos, visitantes chegavam de todas as partes do Mediterrâneo para participar dos Jogos Délios, santuários eram construídos onde cada povo pudesse adorar seus próprios deuses em paz. Pensei nisso muitas vezes quando meditava sobre o texto de São Paulo sobre o Deus Desconhecido. Quanto mais velho fico, Luca, mais lastimo todo o tempo e todo o esforço que despendi tentando criar uma Igreja adequada. Suprimi as vozes liberais e questionadoras. Promovi homens cegos ao poder e designei homens surdos para mediar as petições do povo. No final, como você muitas vezes advertiu, fracassei. As pessoas ficaram cansadas de ser repreendidas, esmagadas pela perfeição em um universo ainda inacabado. E assim simplesmente abandonaram o argumento e se ausentaram da família. Elas se afastaram do Deus que ainda habita dentro delas... que, elas sabem instintivamente, ainda habita mesmo nos Templos dos Estranhos. Elas não voltarão em meu tempo, Luca! Eu terei muito a responder quando for a julgamento.

– Nós rezamos todos os dias para que nossas ofensas sejam perdoadas, santidade. Temos de acreditar que o nosso fim será um retorno para casa, não uma sessão com os torturadores!

– Acredita mesmo nisso, Luca?

– Se não acreditasse, santidade, acho que não poderia suportar o caos desse mundo cruel ou a presença de qualquer que seja o monstro que tenha criado esse caos.

– Até esse momento, eu não havia entendido por que você estava tão zangado comigo. Perdoe-me, meu filho... e reze por mim.

Rossini ainda lembrava do silêncio frio que caiu entre eles e da tristeza funesta da confidência final que compartilharam.

Ele deu uma última olhada nas águas cinzentas, girando em torno das fundações da ponte, depois continuou seu caminho para casa. O significado do diário roubado estava claro para ele agora. Ele era o livro de cabeceira de um homem velho, triste e solitário, cujo tempo estava expirando, cuja família profundamente dividida estava espalhada pelo planeta, e cuja diocese em breve seria entregue a outro.

A uma quadra de seu apartamento, Rossini concedeu uma pequena indulgência romana a si mesmo, uma visita ao barbeiro, para cortar o cabelo, fazer a barba e as unhas. Isso era um pequeno prazer sensual e uma grande concessão a sua vaidade masculina. Depois de todos esses anos, ele não podia, não se apresentaria a Isabel apenas parcialmente arrumado. Existiam outras razões também. Ele ainda tinha tempo para matar e estava agitado como um gato em teto quente. As fofocas de Dario, o barbeiro, seriam uma diversão bem-vinda. Elas eram sempre ditas ininterruptamente e cobriam as margens do rio, os becos, as rodas altas e baixas da cidade, da colina Quirinal até a colina do Vaticano, e a safra mais recente de assassinatos na Via Salaria. Quando a sessão terminou, Rossini estava completamente sedado e a sua cabeça repleta com as trivialidades romanas. Finalmente em casa, ele tomou banho e vestiu roupas civis, depois pegou um táxi para o Grand Hotel.

Ele acabara de entrar no saguão quando foi parado por uma mulher cuja aparência lhe era vagamente familiar.

– Desculpe-me, Eminência, o senhor não é o cardeal Rossini?

– Sou.

– Sou Steffi Guillermin, correspondente do Le Monde em Roma. Acabo de entrevistar um de seus colegas, cardeal Molyneux de Montreal. Eu o reconheci pela fotografia em meus arquivos.

– Estou lisonjeado, senhorita. Neste momento a cidade está cheia de gente como eu.

– Mas, como todos os jornalistas, sou uma oportunista. Gostaria de marcar uma entrevista com o senhor.

– Em outra oportunidade talvez.

– Como entro em contato com o senhor?

– Telefone para a Secretaria de Estado. Eles passarão a ligação para o meu escritório.

– Eu gostaria de uma hora de seu tempo, se for possível.

– Meu escritório a informará sobre o meu tempo disponível.

– Obrigada, Eminência.

– Com licença, senhorita.

Ela o acompanhou com os olhos enquanto ele seguia rapidamente até a recepção. Viu o gerente pegar o telefone, falar brevemente, depois conduzir Rossini ao elevador. Quando a porta do elevador se fechou, Steffi Guillermin tomou seu lugar no balcão e deslizou uma nota de cinquenta mil liras sob o mata-borrão. Ela descobrira muitas histórias boas neste lugar anteriormente. Conservara os nativos amigáveis. Eles lhe disseram que a eminente pessoa jantaria na suíte número 38 no terceiro andar, com uma dama argentina, Sra. Isabel Ortega.

ELE SE SENTIU em pânico um momento antes de tocar a campainha da suíte. Houve uma longa pausa antes de Isabel abrir a porta e fazê-lo entrar. No momento seguinte ela estava em seus braços e o tempo parou enquanto se abraçavam e beijavam, se agarravam um ao outro e choravam mansamente em espanto mudo. O tempo voltou a passar quando ele a segurou nos ombros e disse simplesmente:

– Eu havia me esquecido de como você é bela.

– E você, meu Luca, está tão grandioso!

Foi só então que ele pensou em perguntar:

– Onde está Luisa?

– No quarto dela. Eu a chamarei quando estivermos prontos.

– Eu ficava imaginando como seria quando nos víssemos frente a frente outra vez.

– Eu sabia exatamente como seria. – Ela o beijou de novo e limpou uma mancha de batom nos lábios dele. – Luisa irá juntar-se a nós para um drinque, depois um jovem muito apresentável da embaixada a levará para jantar.

– Eu me perguntava como você arranjaria as coisas.

– Já o desapontei alguma vez?

– Nunca. Eu é que estava com medo de desapontar você.

– Sirva-se de um drinque. Vou chamar Luisa. Ela tem seu próprio quarto neste andar. Precisa de privacidade tanto quanto eu.

Quando ela o deixou, ele foi até o bar, serviu-se de um conhaque com soda e fez um brinde silencioso à beleza apaixonante de olhos castanhos a quem os anos haviam tocado tão levemente, entremeando os cabelos negros de branco, deixando ainda o fogo no olhar e as linhas do sorriso em seus lábios. A simplicidade do encontro depois de tantos anos tinha um ar de milagre, embora Isabel tivesse confessado alegremente seu plano. Para ele, era como o nascer de uma lua nova: pois, ao menos nesta noite, todos os medos foram esquecidos, todos os mistérios postos de lado; o amanhã poderia cuidar de si mesmo. Ele teve outra surpresa quando Isabel voltou com a filha. Luisa Ortega era uma réplica admirável da jovem Isabel a quem vira pela primeira vez ao acordar depois da surra na praça da aldeia. Ele olhava de uma para a outra, procurando as palavras:

– Não posso acreditar! Você é tão parecida com sua mãe! Estou feliz em conhecê-la, Luisa.

Ele estendeu a mão para ela. A moça inclinou a cabeça e fez menção de beijá-la, como era hábito antigamente.

– Estou honrada, Eminência.

Ele declinou o gesto e a colocou de pé com um sorriso.

– Esta noite, minha jovem, não sou uma Eminência. Sou Luca, um velho amigo de sua mãe.

– Espero que seja meu também.

– Como poderemos não ser amigos?!

– Como devo chamá-lo, então?

– A não ser que a sua mãe tenha alguma objeção, por que não Luca?

– Mas apenas em privacidade – disse Isabel. – Na presença de outros ele será sempre Eminência.

– Mãe! Às vezes você consegue ser tão arrogante!

– O seu pai pode ser pior ainda, sabe disso. Pode me servir um copo de vinho, Luca?

– E para mim um Campari com soda, por favor.

Rossini serviu os drinques, depois fez um brinde.

– Aos amigos do meu coração, ausentes por muito tempo!

Eles tocaram os copos e beberam. Luisa o desafiou, sorrindo:

– Um dia desses, Luca, quero ouvir a sua versão de como você e minha mãe se conheceram. Todos parecem estar usando um texto diferente. Realmente estou confusa.

– É uma história longa... vamos deixá-la para um outro dia. O jovem que virá buscá-la estará aqui a qualquer momento. Quem é ele, por falar nisso?

– Ainda não o conheci. O nome dele é Miguel Alamino. Mamãe o encarregou de me tirar do caminho enquanto você está aqui. O pai dele é o primeiro-secretário da embaixada argentina... um amigo do papai.

– Onde ele irá levá-la?

– A um lugar chamado Piccolo Mondo. Você conhece?

– Conheço. Não tenho posses para comer lá com frequência, mas você irá gostar.

– Eu pensava que todos os cardeais fossem ricos. Eles não são chamados de Príncipes da Igreja?

Ela começava a provocá-lo e Rossini estava feliz em participar do jogo.

– Muito poucos cardeais são ricos atualmente. Quanto a ser príncipes, essa é uma noção antiga, mas alguns ainda se agarram a isso.

– Você também?

– Eu pareço um príncipe, Luisa?

– Mamãe acha que sim.

– E o que você acha?

– Estou poupando meu julgamento até conhecê-lo melhor. Até agora estou impressionada.

– Também estou impressionado. Você é uma jovem muito bonita. Seus pais devem se orgulhar de você.

– Papai é muito orgulhoso de mim. Mamãe continua tentando me transformar em uma estudiosa e em uma dama. Eu quero ser pintora. Frequento a escola de arte em Nova York, mas mamãe está tranquila porque também estou trabalhando como restauradora no Metropolitan. Ela quer que eu seja uma mulher independente.

– Ela sempre foi uma mulher independente.

– Você acha que eu poderia ver como os restauradores trabalham no Museu do Vaticano?

– Estou certo de que posso providenciar isso. E você deveria ir a Florença.

O telefone tocou. Luisa atendeu. Um momento mais tarde, anunciou:

– Meu acompanhante está esperando por mim no saguão. Não me espere acordada, mamãe. E você, Luca, não a mantenha acordada até muito tarde. Ela não anda muito bem ultimamente e o voo transatlântico não ajudou.

Ela beijou a mãe e surpreendeu Rossini com um abraço apressado e um pedido lisonjeador:

– Espero que possa encontrar algum tempo para mim, também, enquanto estamos em Roma.

– Com prazer. Posso não ter muito tempo livre antes do conclave, mas certamente terei depois.

– Ótimo! Eu cobrarei. Agora me deseje sorte. Eu detesto encontros com desconhecidos, mas uma garota precisa começar em algum lugar numa cidade grande. E lembrem-se: estou fazendo isso por vocês dois.

Quando a porta fechou-se atrás dela, Isabel sorriu.

– Muito bem! Você fez outra conquista. Fico feliz. Eu não tinha ideia alguma de como seriam as coisas entre vocês. Pode me servir outro drinque, por favor, depois vamos relaxar um pouco. Pedi para servirem o jantar às nove. Escolhi uma comida simples, assim não teremos garçons entrando e saindo.

– Estou tão feliz por você estar aqui. – Ele deu a ela o copo de vinho e sentou-se de frente para ela do outro lado da mesa de centro. – Sinto-me tão desajeitado como um garoto. Não sei como e por onde começar.

– Lembra do jogo que costumávamos fazer quando você estava doente? Passado, presente ou futuro?

– Eu me lembro muito bem. Vamos nos livrar do passado primeiro.

A frase pareceu perturbá-la. Seu sorriso desapareceu e ela balançou a cabeça:

– Isso não é tão simples como você pensa, meu amor.

– Perdoe-me. Foi uma expressão indelicada.

– Você está esquecendo; nós dois estivemos viajando por muito tempo, com oceanos nos dividindo. Há muita bagagem para examinar... na maior parte do tempo!

– Então, vamos lidar com ele. O seu casamento parece ter durado.

– Pelo que foi, quando e onde foi, meu casamento durou muito bem. Ele nos acompanhou durante tempos perigosos. Eu era uma jovem impulsiva e ambiciosa, que queria todas as coisas boas da vida assim que as via. Raul era um homem fraco e bonito com poucos talentos, muito patrimônio familiar, um pai poderoso e esperto o bastante para sobreviver aos seus irmãos generais, aos desastres das Malvinas e até às consequências das atrocidades. Na Argentina ficamos juntos porque juntos estávamos seguros. Quando fomos transferidos para os Estados Unidos, Raul havia aprendido o suficiente com o pai para se tornar uma nulidade útil entre os burocratas. Eu o instruí o bastante para manter um ménage diplomático, e dar uma criação civilizada a Luisa. Consegui desenvolver uma carreira para mim na área de pesquisas hispano-americanas e manter as amizades que me conservaram... como direi?... emocionalmente estável. Foi um casamento de conveniência, que deu certo de algum modo. Meu pai foi de grande ajuda em tudo isso. Ele era um cínico à moda antiga que me ensinou a não esperar muito dos relacionamentos humanos. Você, meu amor, foi a única indulgência que ele aprovou e, ao notar a sua estrela subindo em Roma, ele via isso como um elogio ao seu bom julgamento. Foi ele quem me ajudou com Luisa enquanto Raul vagava por Nova York, Washington e Paris.

– Ela é uma moça muito bonita e enternecedora. Devia ter orgulho dela.

– Eu tenho. Agora fale-me de você. As suas cartas eram marcos em minha vida, embora não me dissessem nada que eu ainda não soubesse; você me amava, eu o amava. Não se esqueça de que não começamos a nos corresponder até que nos mudamos para Nova York. Naqueles tempos difíceis na Argentina era perigoso escrever cartas.

– E mesmo quando vieram os bons tempos eu nunca tinha as palavras certas. – Ele sorriu, constrangido. – Eles não nos ensinam a escrever cartas de amor na Secretaria de Estado. Minhas minutas, por outro lado, são muito apreciadas pela brevidade e exatidão!

– Mesmo assim, guardei todas as suas cartas.

– Isso é sensato?

– Quando é que fui sensata, Luca?

– Então posso confessar que guardei as suas.

– Agora conte-me como foi quando você chegou em Roma.

– Aquele era um outro Luca Rossini, o Luca Rossini com marcas nas costas e gosto de fel na boca. Fui um bom padre... simples, mas bom padre. Pensei ter ouvido o chamado e respondi a ele. Eu me preocupava com meu povo... eu tentei protegê-lo, mas fracassei. Depois, quando percebi o quão profundamente havíamos sido traídos, fiquei irado o suficiente para matar. Houve momentos em que pensei estar meio louco.

– Eu me lembro desses momentos. Cuidei de você durante alguns dos piores deles.

– Você fez mais do que isso. Você manteve o outro Luca vivo, o Luca simples que ainda tinha sonhos. Você colocou a sua marca nele: o seu gosto, o seu toque, o seu perfume de flores cítricas. Quando esse Luca foi separado de você e levado a Roma, ele ficou frágil, impotente, incerto como um animal ferido numa selva de predadores exóticos. O outro Luca assumiu o controle então. Ele começou uma vingança contra todos aqueles envolvidos nas conspirações da opressão... e há muitos deles ainda na Igreja. Ele ainda não estava armado para uma guerra aberta, então atuou através de obstruções, impedimentos, desafios. Como ainda estava um pouco louco e como não compreendia totalmente o que estava acontecendo com ele, sobreviveu. Foi protegido pelo próprio pontífice. Como ele não estava procurando proteção e recusou-se a barganhar por ela, foi respeitado... e às vezes temido.

– E o outro Luca, o que tinha a minha marca?

– A princípio ele era como um fantasma sombrio, vivendo das lembranças que esmaeciam: lembranças da cama dos amantes, de pais mortos há muito tempo, de vizinhança leal, de antigas confianças. Às vezes, quando olhava no espelho, eu via esse Luca e lamentava por ele, e desejava o amor que havia perdido.

– Mas nunca estive lá, com o Luca vingador?

– Ah, sim, você esteve! Você era a Isabel que o ensinou a nunca desperdiçar uma bala numa briga ou uma palavra num argumento. Você o ensinou a baixar a cabeça e dizer calmamente: “Como Sua Eminência desejar.” Ensinou a ele os usos do poder. Você deu a ele o dom do silêncio. Você o convenceu a não deixar nunca que a sua paz residisse na boca dos outros.

– Houve outra mulher em sua vida, Luca?

– Nem antes, nem depois de você. Meu único pesar é que não fui corajoso o bastante para fugir com você e juntar-me à guerrilha. – Ele sorriu e abriu as mãos num gesto cômico de derrota. – Foi bom não ter tentado fazer isso. Estou certo de que cometeria um erro, e nós dois estaríamos há muito tempo mortos.

– Provavelmente você estaria melhor preparado hoje.

Esse foi um comentário provocativo, mas ele escolheu deixá-lo de lado.

– Falaremos sobre isso amanhã.

– O que acontecerá amanhã?

– Vou passar o dia com você, levá-la ao meu local de retiro.

– Aquele que mencionou nas cartas?

– Esse mesmo. Você usará roupas simples. Pegará um táxi daqui até meu apartamento, depois a levarei para o campo e nós passaremos o dia brincando em meu jardim. Tomaremos vinho. Farei o almoço para você e ninguém no mundo saberá onde estamos. Eu a trarei de volta antes do horário do rush. O que acha disso?

– Acho maravilhoso; mas e quanto a Luisa?

– Dê-me dois minutos e arranjarei um compromisso que a deixará feliz. – Ele pegou o telefone e discou o número de Piers Hallett.

– Piers? Luca Rossini.

– Meu eminente amigo. Tentei ligar algumas vezes, mas você estava fora. Quero lhe agradecer pelo jantar e pelo convite para conjurar por você no conclave. Fico feliz em aceitar. Esperarei pelas suas instruções.

– Ótimo! Agora eu gostaria que você fizesse algo especial para mim.

– Qualquer coisa, meu amigo.

– Telefone para o Grand Hotel amanhã cedo. Pergunte pela Srta. Luisa Ortega. Diga-lhe que você foi designado por mim a mostrar a ela o Museu do Vaticano e especialmente a seção onde trabalham os restauradores. Depois disso, leve-a para almoçar em um lugar alegre em Trastevere, alugue uma carrozza e a leve de volta para o Grand Hotel, sã e salva.

– Tudo isso, espero, à sua custa.

– Certamente. Se não tiver dinheiro, ligue para o meu escritório, pergunte por Roderigo e peça a ele para lhe adiantar algum em meu nome.

– Por favor! Eu estava brincando. Estou cheio de dinheiro no momento... finalmente um cheque da Connoisseur. A que horas você sugere que eu ligue para a senhorita?

– Às oito horas, em ponto. E faça seus próprios planos para apanhá-la. Se ela quiser levar um amigo, cuide dele também. Se ela recusar o convite, não se sinta ofendido.

– Onde você estará?

– No campo com a mãe dela.

– Divirta-se, Eminência, divirta-se! Quem sabe que pragas atacarão depois do conclave. Ciao!

Rossini desligou o telefone e voltou-se para Isabel.

– Pronto. Tudo arranjado.

– E quem é Piers?

– Piers Hallett, um monsenhor nada menos que isso, inglês, um sábio que trabalha na biblioteca do Vaticano e que será, eu lhe prometo, um guia turístico instrutivo e divertido para Luisa. Antes de sair, deixarei um bilhete explicando, que ela apanhará com o gerente quando for pegar a chave dela. Se ela tiver feito outros planos, como cair de amores por Miguel não-sei-o-quê, então ela poderá levá-lo junto, ou cancelar a saída com Hallett. Não faz diferença.

– Parece-me – Isabel brincou com ele docilmente – que você também andou pensando cuidadosamente sobre essa visita.

– Tive de fazer isso. O secretário de Estado convocara-me para uma reunião com um grupo de cardeais seniores que não estão autorizados a votar mas querem deixar claro aos conclavistas suas opiniões.

– E qual foi a desculpa que deu ao secretário de Estado?

– A verdade. Ele sabe que você está na cidade. Sabe que quero muito passar algum tempo com você. Por isso ele me deu o dia de folga amanhã.

Isabel franziu o cenho e balançou a cabeça.

– Se isso significa o que estou pensando, então somos um segredo de polichinelo em Roma.

– Temos sido por muitos anos, meu amor. Na verdade, desde que retornei. Eu fui trazido, se você se recorda, pelo núncio apostólico, que agora é o cardeal Aquino. Ele trabalhava ligado à junta. Ele certificou-se de que qualquer circunstância suspeita sobre mim fosse notada, qualquer suposição fosse difundida como fato conhecido. Fui interrogado pelo próprio pontífice.

– E contou a ele sobre nós?

– Não! Ele me contou.

– E o que você disse?

– Que você salvou minha vida; que éramos amantes; e que eu a amaria todos os dias de minha vida.

– Então, ele fez de você uma pessoa importante, para purgar seus demônios no topo da montanha.

– Muito pelo contrário, eu acho. Ele me usou para purgar os próprios demônios.

– Sabe o que isso me diz, Luca?

– O quê?

– Que ainda somos reféns nesse jogo de silêncios.

– Você me responderia uma pergunta?

– Se eu puder.

– Meu colega, Aquino, confrontou-me com ela. Ele sugeriu que você estava ligada de algum modo com as Mães da Praça de Maio, que no momento estão aqui em Roma, tentando apresentar uma acusação contra ele.

– E o que disse a ele?

– Eu disse a ele que perguntaria a você.

– Então, quando você voltar a vê-lo – havia ressentimento em seus olhos castanhos –, diga-lhe que vá para o inferno!

– Com muito prazer, senhora.

A campainha tocou. Rossini levantou-se para atender. Um garçom e um maître entraram com um carrinho para servir o jantar e o vinho. Isabel foi até o quarto, enquanto Rossini esperava na sala, conversando com o maître sobre a comida, o talento do chef que a havia preparado, e as virtudes do vinho de uma reserva muito nobre perto de Montepulciano.

Finalmente, eles sentaram-se à mesa, sozinhos, com os pratos quentes fumegando nos rescaldeiros, e o vinho vermelho-rubi nas taças. Isabel estava calma novamente e Rossini era diligente em diverti-la.

– O vinho que você vai tomar amanhã é bem mais rascante do que este, mas combina com a minha comida caseira.

– Você cozinha bem, Luca?

– Dentro dos limites, sim. Sopa, massa, saladas, paella, churrasco na brasa; esse tipo de coisa.

– Recebe muitos visitantes em sua casa de campo?

– Você será a primeira a visitá-la desde que a construí.

Ela lançou-lhe um olhar inquisidor e um sorriso incerto.

– Devo ficar honrada ou amedrontada?

– Espero que você se sinta bem-vinda e confortável. Entenda uma coisa, meu amor. Esse lugar é o meu refúgio, a toca da raposa onde me escondo das guerras do mundo. Ninguém vai até lá exceto o fazendeiro local e sua esposa, que mantêm o lugar arrumado para mim.

– Do jeito como fala, eu poderia estar invadindo um santuário.

– Não. Você sempre esteve lá. Vivi sem você todos esses anos, no entanto tenho usado você, dormido e acordado como minha própria pele.

– Não sabia que o meu Luca era um poeta. – Ela disse isso suavemente, como se receando dar uma importância excessiva às palavras. Ele respondeu do mesmo modo:

– Não mesmo. As músicas que canto para você são todas emprestadas, mas no refúgio de meu jardim elas soam doces.

– Estou orgulhosa por você me amar tanto, Luca. Estou mais feliz do que posso dizer em meu amor por você. É a nossa solidão que me amedronta, eu acho.

– Não deveria, acredite-me. Minha vida exterior é ocupada e diversa. Na minha vida particular tive alguns maus momentos, mas desde que soube que você estava vindo, cheguei a um lugar estranho de calma. O ar é frio, mas não há vento e o mar está plano sob a lua. Sinto que isso é um presente que me foi dado para ajudar-me a refletir sobre meu futuro, a tomar uma decisão sobre ele.

– Que decisão, Luca?

– Ficar na Igreja, ou deixá-la.

– Luca! Você não pode estar falando sério. – Havia uma nota de pânico em sua voz e ela descansou o garfo no prato com um ruído. – Essa é uma decisão enorme para um homem como você tomar. Peço a Deus que eu não faça parte disso!

– Você faz parte de tudo o que sou, de tudo o que faço. Isso é algo que nós dois sabemos e nenhum de nós pode escapar. Mas essa experiência é pessoal para mim. Preciso decidir, aqui e agora, ou na semana que vem, ou no mês que vem, se sou verdadeiramente um crente. Sinto-me curiosamente tranquilo sobre o que pode acabar sendo uma perda devastadora. Piers Hallett diz que os ingleses têm um ditado: “Deus modera o vento para a ovelha tosquiada.” Eu não posso sequer rezar para isso. Eu apenas espero.

– Rezarei para você, meu amor.

– Você continua crendo, apesar de tudo?

– Por causa de tudo, provavelmente. Eu luto como um velho conquistador abrindo o meu caminho em direção ao que quero, mas sempre com a Igreja para arrumar tudo para mim depois. Você é diferente. Engole todo o fel e espera...

– Como você me ensinou.

– Ou como você entendeu minhas lições. Quem sabe? De qualquer modo, existem coisas que quero lhe dizer. Eu não ia lhe dizer esta noite... mas por que deixá-las para amanhã? Quero desfrutar de seu refúgio.

– Você pode me dizer qualquer coisa que quiser, e a seu próprio tempo.

– Esse é o problema. Não há muito tempo. Você vai entrar no conclave. Não posso ficar em Roma indefinidamente. E tenho trabalho a fazer pelas Mães da Praça de Maio. Há evidência de que a maioria dos arquivos sobre os “desaparecidos” foi retirada para a Espanha de modo a ficar fora do alcance de futuros investigadores. Alguns, entretanto, foram copiados por mãos amigas e enviados à Suíça. Enquanto você estiver no conclave, irei até Lugano com duas das mulheres para verificá-los. Visto que fui uma pessoa protegida nos tempos difíceis, acho que é um modo de eu poder pagar minha dívida. Há outra coisa, também, mas isso pode esperar – ela mudou de assunto repentinamente. – Deixe-me servir o segundo prato. Não podemos deixar a comida estragar.

– É uma comida muito boa. – Rossini assimilou sua mudança de humor. – Você será uma esplêndida embajadora.

– Diga-me francamente, Luca. Acha que Raul tem chance de ser nomeado? O Vaticano aceitará sua nomeação?

– Esta é uma decisão para o próximo pontífice.

– Qual foi a sua opinião sobre Raul?

– Dei a ele uma aprovação qualificada. Ele não pode causar muito dano. Não devemos esperar muito dele, também.

– Não ficou tentado a melhorar o seu parecer, por mim?

– Fiquei um pouco, sim, mas cético o bastante para saber que esses estratagemas nunca funcionam por muito tempo.

Ela depositou o prato diante dele e voltou a se sentar. Eles comeram por um tempo em silêncio, depois Isabel disse:

– Mesmo que Raul consiga a nomeação, não devo vir com ele.

– Mas você disse em sua carta...

– Eu a escrevi enquanto esperava pelo resultado da tomografia computadorizada que o meu médico pediu. Estou com câncer nos ossos, Luca, uma invasão séria. Quando eu voltar, eles querem que me interne para tratamento, mas me advertiram que o prognóstico é negativo.

Por um momento ele ficou olhando para ela, pasmo de surpresa, depois as únicas palavras que pôde encontrar foram banais:

– Oh, Deus! Sinto muito.

– Não sinta, Luca! Assim como você, cheguei a um determinado lugar, e o seu amor está lá, também.

A dor ameaçou engasgá-lo. Isabel estendeu os braços e aprisionou as mãos dele, segurando-as até que as emoções se apaziguaram e ele pôde deixar as lágrimas rolarem. Finalmente, Rossini perguntou:

– O seu marido sabe?

– Sabe. Ele já se acostumou com a ideia a seu próprio modo. Ele pode ser generoso em tudo, exceto em envolvimentos pessoais. Ele levará sua vida como sempre levou.

– E Luisa?

– Ela ainda não sabe de tudo. Ela pensa que estou indo para o hospital para fazer mais exames. Tentei poupá-la do pior para que pudesse desfrutar das férias.

– Há alguma coisa que eu possa fazer? Sinto-me tão inútil para você.

– Nunca pense isso! De um modo estranho, nós completamos um ao outro. E existe algo que talvez você possa fazer por Luisa.

– Tudo que estiver ao meu alcance. Você sabe disso.

– Eu sei, mas nós falaremos sobre isso depois do jantar. Agora quero que termine esta refeição que pedi com tanto cuidado. Falaremos de Luisa durante o café. Então, por enquanto, não falaremos mais dos meus problemas. Fale-me sobre o conclave e o que acha que acontecerá nele.

Mais uma vez, embora o seu coração estivesse partido, por ela e por si mesmo, ele cedeu aos desejos dela e falou sobre o que aconteceria quando os homens-chave se reunissem para eleger um novo pontífice.

ERAM QUASE dez e meia da noite quando o garçom levou o carrinho com os pratos e eles ficaram sozinhos. Isabel pareceu preocupada de repente. Rossini disse a ela que iria embora em quinze minutos. Ela não queria saber disso.

– Por favor, Luca! Eu conheço você. Está se fechando para mim.

– Não para você, meu amor! Nunca pense isso. Minha vida tem sido vivida por muito tempo atrás de uma fachada, me faltam as palavras do discurso comum. Não sei se as minhas mãos podem se tornar uma intrusão em vez de conforto no momento em que tocam. Mas, por favor, acredite, não estou e nunca fui fechado para você.

– Mas você precisa me deixar falar. Tenho outras coisas para lhe dizer.

– Estou ouvindo.

Ela depositou a xícara sobre a mesa, cruzou as mãos sobre o colo, respirou profundamente para acalmar-se, depois disse a ele:

– Luisa é sua filha, Luca.

Foi então que ela viu o que os anos espartanos tinham-lhe causado. Havia uma pálida centelha de surpresa em seus olhos, mas suas finas feições estavam congeladas dentro da máscara de predador. Quando ele falou, sua voz soou suave como o farfalhar de seda.

– Bem! Este é um presente que eu não esperava!

– É mesmo um presente, Luca? Alguns homens em sua posição achariam isso uma taça de veneno.

Rossini olhou fixamente para ela por longo tempo, depois, do mesmo modo suave, explicou-se:

– Acho que nunca falei sobre isso com você antes, mas meus momentos mais difíceis, quando era um jovem padre, foram quando segurava um bebê em meus braços na pia batismal e sabia que renunciara para sempre do direito à paternidade. Estou lhe dizendo a verdade, você me deu um presente. O problema é que não estou sabendo lidar com isso. Luisa sabe que sou o pai dela?

– Não.

– Raul sabe?

– Não.

– Então, vamos fazer uma pausa aqui. Esta noite eu a visito, um antigo amante, é verdade, mas constante, nos lembramos dos tempos felizes, celebramos os laços que nos mantiveram unidos. De repente, você abre uma caixa e salta de dentro dela esses grandes segredos. Você tem uma doença mortal. Eu tenho uma filha adulta.

– Pensei muito antes de decidir lhe contar.

– Obrigado por confiar em mim – disse Luca Rossini. – Contudo, nunca pensei em me ver tão pobre de palavras e de recursos. Sou um homem escravizado. O que posso lhe oferecer senão um amor sem esperanças? O que posso oferecer a Luisa? Ela não agradecerá a mim por invadir... ou a você por abalar as estruturas da vida dela.

– Questionei durante anos se devia dizer a ela. Respeitei o seu direito e o dela de viver na ignorância.

– Mas agora você pensa diferente?

– Isso acontece quando leem a sentença de morte para você. Minha coragem me abandonou. Eu não podia mais carregar o segredo sozinha. É por isso que estou lhe fazendo a pergunta agora. Luisa deve saber?

– Não sei – disse Luca Rossini. – Realmente não sei. No entanto, estou certo de uma coisa: se ela tiver de saber, devemos contar a ela juntos.

De repente, ele riu: uma risada seca e sem graça de autodeboche. Depois, estendeu a mão e tocou no rosto dela:

– Agora, por que você não recomeça e explica essa antiga ópera sobre a qual não me disse nada todos esses anos?

– Acho que uma bebida poderia ajudar.

– Dê-me uma também, por favor, mas só água mineral. Preciso estar bem sóbrio para essa apresentação. E, por favor, sente-se de frente para mim para que eu possa ver os seus olhos.

– Por quê? Não acredita em mim?

– Ah, sim, acredito em você, mas quero ver o seu rosto enquanto você fala. Não entende? Você acaba de me presentear com uma criança adorável. É uma estranha experiência. Teria sido mais fácil nos velhos tempos, quando os prelados tinham muitos filhos e os dotavam com vidas abastadas ou arranjavam casamentos nobres para eles.

Suas feições tensas relaxaram em um sorriso. Isabel sorriu, de modo incerto, para ele.

– Luisa tem um bom dote por parte de meu pai. Ela também herdará de Raul. O que não quero é correr o risco de que Raul a troque por um casamento de conveniência.

– O que acontece se ele tentar? Luca surge cavalgando como Júlio II em armadura completa e gritando “Pare! Pare! Solte a moça!?” Isabel, você está vivendo um conto de fadas! Por favor, dê-me a água e sente-se.

Ela sentou-se na poltrona grande, de frente para ele como ele pedira. O primeiro gole de conhaque a impediu de falar por uns minutos, ela limpou a boca com um guardanapo de papel e depois começou a contar sua história lentamente:

– Provavelmente você já esqueceu alguma coisa do que aconteceu, mas me lembro dos dias e até das horas. Quando papai foi a Buenos Aires negociar pela sua vida... e pela minha também... nós ficamos juntos na estância do amigo dele, em Córdoba. Ficamos na casa de hóspedes e, pelo bem de todos, nos mantivemos afastados dos trabalhadores. Nos primeiros dez dias você esteve muito doente. E também sentia muita dor por causa dos ferimentos e da infecção. Foi só na quarta semana, logo após minha menstruação terminar, que começamos a fazer amor. Faça os cálculos, nossa lua de mel durou por mais algumas semanas. Pensei que estava sendo cuidadosa, mas não fui o bastante. No final, você foi retirado de lá para voltar a Roma com o núncio. Papai, de acordo com o combinado, levou-me de volta para minha casa em Buenos Aires. Felizmente... eu pensava na época... Raul estava fora, a negócios no Peru e no Chile. Fiquei em casa quase cinco semanas antes de ele retornar. Neste ínterim, minha menstruação estava atrasada. Quando Raul voltou, fiz o meu papel de esposa amorosa até que, como sempre, Raul se entediasse. E a minha menstruação continuava atrasada; em vista disso, fui ao médico. Não a qualquer médico, mas a um recomendado pela minha tia Amelia, irmã de meu pai... uma senhora valente, sábia nos moldes da sociedade machista da Argentina. Quando minha gravidez foi diagnosticada... e lembre-se, Luca, você estava a milhares de milhas distante, nos braços cálidos da mãe Igreja!... tia Amelia me deu um sábio conselho: “Pense no futuro, Isabel! O seu pai me contou tudo o que aconteceu. Você matou um militar e dormiu com um padre. Se o seu marido, ou a família de seu marido, ficar contra você, estará em apuros. O que você não quer que aconteça é o nascimento do bebê seis semanas antes do tempo e depois ter de explicar tudo. Portanto, pense com antecedência. Nós encontraremos um bom médico para você em Nova York e uma boa desculpa para visitá-lo. Depois você marcará uma data para uma cesariana na clínica dele... uma data que se ajuste aos fatos e crie a ficção conveniente. A cesariana não prejudicará o bebê e evitará problemas para você.” Bem, foi exatamente isso o que fiz, com a ajuda de papai e de tia Amelia. Até mesmo Raul ficou contente com a ideia. Ele pôde organizar sua lista de contatos em Nova York e visitar antigos “parques de diversões”. Quando Luisa finalmente nasceu, linda e sadia, ele ficou encantado. Os pais dele a cobriram de presentes e atenções. O conto de fadas estava completo...

– Mas não para você?

– Não. Eu estava em total confusão. Durante todas as celebrações, vivi uma mentira. Eu estava enganando Raul, zombando de sua alegria. Se a verdade viesse à tona, seria uma vergonha devastadora para ele. Por outro lado, eu havia dado à luz um filho seu. Estava feliz por isso, mas a felicidade ficou amarga porque não podia compartilhá-la. Por algum tempo, entrei em profunda depressão, mas me recuperei e comecei a somar minhas bênçãos.

– E Raul nunca fez uma única pergunta sobre minha curta permanência com você?

– Nem uma. Nunca. Duvido que ele pudesse ver um padre campestre como rival. Além disso, todos os papéis estavam em ordem, assim como meus exames médicos. Que suspeitas ele poderia ter?

– Então, pergunto novamente. – De repente, Luca Rossini era um outro homem, um inquisidor imperioso. – Por que decidiu me contar depois de todos esses anos?

Ela não hesitou, mas inclinou-se para a frente na poltrona a fim de encará-lo.

– Porque eu queria que você soubesse! Queria compartilhá-la com você, queria que visse o que fizemos juntos naquela cama rural em Córdoba. Eu não esperava que você a reconhecesse. E ainda não espero, mas sim, sim, eu quero que você saiba. Espero que encontre alguma alegria no segredo... o último, provavelmente, que poderemos dividir.

– Posso entender isso. – O tom de Rossini era cuidadosamente neutro. – Isso cuida de mim e de você. E para Luisa, o que planejou?

– Eu esperava... Deus sabe por que eu esperava... que você pudesse ser um presente para ela, também. Quando os vi e ouvi juntos esta noite, soube que seriam bons um para o outro.

– Isso é uma suposição, um jogo. Você não tem direito de fazer isso com a vida de sua filha!

– Ela é sua filha também, Luca. Ou não acredita no que acabei de lhe contar?

– Ah, sim! Acredito que Luisa é minha filha, mas ela é minha por natureza; por criação, ela é sua e de Raul. Há um equilíbrio precário aqui. Se você o inclinar para o lado errado, quem sabe o mal que acarretará? Preciso pensar sobre isso. Falaremos novamente amanhã.

– Você ainda quer me levar ao seu refúgio?

– Quero.

Ele levantou-se e estendeu as mãos, trazendo-a para perto de si e mantendo-a junto ao peito, seus lábios tocando os cabelos dela.

– Amo você. Nada muda isso. Eu a amarei de hoje até o dia do juízo final. Mas também estou triste porque você está sofrendo e não há nada que eu possa fazer, exceto rezar, e as minhas orações não são muito boas ultimamente. E Luisa. Também estou triste por ela, de outra forma. Houve uma empatia entre nós, não houve?

– Houve.

– Então vamos prolongar um pouco mais o jogo.

– O que quer dizer? – Ela afastou-se dele para poder olhá-lo no rosto. Ele estava sorrindo novamente.

– Estou pensando sobre amanhã. Ultimamente há poucas alegrias em minha vida, mas meu lugarzinho no campo é uma delas. Quero muito compartilhá-lo com você. Agora...

Ele parou de falar, hesitando sobre a próxima frase.

– Agora o quê, Luca?

– Agora, para a sua maior surpresa, Luca Rossini, cardeal presbítero, é um homem de família! Estou sugerindo que convidemos nossa filha para participar de nosso piquenique.

– Você está querendo dizer que vai contar a ela? – Havia uma nota de alarme na voz de Isabel.

– Não faço ideia... exceto que vou levá-la para a cozinha para fazer o almoço comigo, enquanto você toma sol no jardim. Nós conversaremos... e veremos onde a conversa nos levará. O que acha disso?

– O que posso dizer? Que a graça de seu jardim toque a todos nós.

– Ótimo! Agora é melhor eu ligar para Piers Hallett e cancelar o encontro com Luisa. Ele ficará muito desapontado.

– Você já pensou no que faremos se Luisa não quiser ir?

– Assim seja. Deixe-a fazer o que quiser. Haverá outras oportunidades e estações.

– Não conte com isso, meu amor – disse Isabel sombriamente. – Lembre-se de que fui escalada para o último ato dessa ópera!

Eles se separaram naquela noite nas sombras das aflições mútuas. A paixão do encontro há muito esperado se exaurira, como um fogo de artifício em uma fascinante e maravilhosa emoção. Agora eles se abraçavam em uma paisagem escura, sob um céu sem lua, desprovidos de tudo exceto do conforto físico mais primitivo: o toque de mãos, o breve calor dos corpos e os vestígios dos sonhos passados. Foi Isabel quem encontrou as poucas palavras que precisavam ser ditas:

– Sei o que está pensando, Luca, meu amor. Que devíamos trancar a porta e deixar o mundo lá fora e dormir juntos até o amanhecer. Mas não podemos. E mesmo que pudéssemos, acordaríamos e nos sentiríamos ridículos quando o sol despontasse.

– Para mim, você foi a coisa mais linda do mundo. E sempre será.

– Vá para casa, por favor, Luca.

– Você tem meu endereço, meu telefone.

– Tenho tudo. Nós nos veremos às dez horas. Boa noite, meu amor!

Ele levou mais de uma hora para voltar a pé pela cidade que lentamente caía no sono, mas ainda turbulenta com os barulhos do tráfego e da noite, ainda fétida com a mistura de neblina e fumaça que se estende ao longo do Tibre e serpenteia como uma cobra venenosa por entre as antelas que cobrem as antigas colinas.

Apesar de todo o seu autocontrole, ele ainda estava em estado de choque. Isabel era a pedra sobre a qual a sua devastada masculinidade fora reconstruída. Agora a pedra estava se desintegrando, como um castelo de areia em uma onda invasora. Ele nada podia fazer senão olhar inevitavelmente enquanto as fundações de sua frágil vida interior eram destruídas. Luisa era outro tipo de mágoa: uma filha que não podia reconhecer, de cuja infância nunca compartilhou, cujo futuro ele poderia colocar em risco. A angústia voltou a atormentá-lo: angústia pelas ilusões que ele próprio alimentara, e que agora estavam espalhadas aos seus pés como pétalas de rosas da semana passada.

Ele andava depressa, mas descuidadamente, de cabeça baixa, ombros curvados, quase não suportando o peso a caminho de casa, mas nada trazendo consigo quando chegou lá. Amantes abraçados nos portões o ignoravam. Um bêbado colidiu com ele. Um motociclista com uma moça na garupa acelerou ao passar por ele e o xingou. Uma madona pálida, aprisionada em um pequeno santuário de vidro com uma lamparina pingando em sua frente, olhava fixamente para ele com olhos de gesso, inexpressivos.

A visão dela despertou lembranças da infância de uma casa napolitana nas favelas de Buenos Aires, com uma imagem da Virgem Maria acima do leito conjugal e, pregado sobre a sua própria cama, um cartaz de primeira-comunhão retratando a mítica e mártir Virgem Filomena, de quem sua mãe recebera o nome.

Os anos decorridos deixaram-no mais e mais descrente da mitografia da Igreja, porém cada vez mais consciente de sua potência e da profunda necessidade humana do mistério e do milagre que a sustenta. A ironia era que, enquanto rejeitava um grupo de mitos, ele adotava outro: o mito do amor ideal, preservado na memória, dotado de virtude heroica, imune aos riscos da mortalidade. Essa era uma criatura com a qual podia sonhar sem culpa, desejar sem remorso, porque ela estava além do seu alcance como a Virgem na esquina da rua atrás do vidro empoeirado.

Ele fora avisado, é claro, mil vezes. Seus primeiros professores na vida espiritual o preveniram contra os apegos às coisas perecíveis e às pessoas perecíveis. Eles tentaram em vão cauterizar suas emoções – e a cauterização durara até que um bruto com um chicote arrancara a pele de suas costas e deixara a carne exposta.

Esta noite houve outro tipo de exposição: para a dor do ser amado, agora perigosamente mortal, a quem não podia oferecer cura nem conforto, nem mesmo companhia além de umas poucas horas. Mesmo que abandonasse a Igreja e pegasse a longa estrada para lugar nenhum a fim de manter sua precária identidade, o que poderia oferecer a Isabel? Ela era mais forte do que ele. O amor que dava e o amor que aceitava não tinham etiquetas de preços. Ela aceitara, como a loba, viver e morrer em seu próprio lugar, em sua própria pele.

E em que pé isso deixava Luca Rossini? No amor, ele não podia, não pediria mais do que lhe era dado. Ele entendia o elemento obsessivo em sua própria natureza. O seu senso de ridículo, sua recusa em comprometer a dignidade pessoal pela qual, a seu ver, ele pagara com sangue, o mantivera a salvo da loucura, se não das perguntas sobre o que poderia ter sido.

Uma coisa, pelo menos, a noite fizera por ele. Ela separara Isabel da questão de seu relacionamento com a própria Igreja como crente batizado. A questão agora era simples e radical. Ele ainda era um crente? Se fosse, devia renovar sua aceitação, e servir no ofício para o qual fora chamado. Se não fosse, ele devia retirar-se com dignidade e não expor outros ao escândalo. Ele não podia se ver como um abatido renegado, gritando seus protestos na frente do templo, nem poderia implorar a caridade ou piedade dos fiéis pela sua posição rebaixada.

Quando conseguiu colocar suas confusões nessa ordem elementar, ele estava novamente em casa. Havia um bilhete preso no elevador, Fuori Servizio, o que significava que teria de subir a longa escada de pedra até seu apartamento. Depois, porque o costume e o ritual eram as últimas frágeis couraças contra o medo e o pesar, ele abriu seu breviário e leu as completas do dia:

“Ouvi, Ó Senhor, minha oração e deixai meu lamento alcançar-vos...” Minha vida desapareceu como fumaça, estou só como um pelicano no deserto.”


7

Era costume de Rossini celebrar a missa matutina na capela de um pequeno convento, a poucos quarteirões de seu apartamento. O convento pertencia a uma comunidade de mulheres que se intitulavam Irmãs da Redenção. Elas se dedicavam aos trabalhos de caridade, um dos quais era situado no próprio convento: um abrigo para mulheres que cumpriram pena ou receberam liberdade condicional.

A comunidade era pequena; os recursos baixos; assim, à moda italiana tradicional, duas freiras saíam a cada dia, mendicantes profissionais, pedindo esmolas aos residentes e comerciantes locais. A tarefa não era gratificante. A comunidade envelhecia e poucas mulheres jovens se ofereciam para ajudar, mas as próprias irmãs conseguiam preservar o desvirtuado humor romano, que equivalia ao humor quase sempre anárquico de suas presidiárias.

Rossini as conhecera em um de seus dias ruins quando, vestido como um leigo, preparava-se para ir até o seu refúgio. Ele deu-lhes um donativo, depois começou a conversar com elas. Sendo uma criança de favela, nascido de uma família de imigrantes napolitanos, tinha um respeito tradicional pelos pedintes e um ódio profundo pelos indiferentes que desprezavam a mendicância mas aceitavam-na como um imperativo social.

No decorrer do diálogo com as irmãs, revelou sua identidade e ofereceu uma subvenção contínua em dinheiro e seus serviços ocasionais como celebrante para a comunidade. Por muitas vezes mais tarde arrependeu-se do impulso, ao descobrir-se mais e mais envolvido na posição de confessor, conselheiro e amigo de último refúgio para a comunidade e para aqueles a quem ela protegia. Sua cabeça era fria o bastante para reconhecer o sistema pelo que ele era: a velha caridade eclesiástica, que de forma alguma substituía a devida mas impossível reforma do sistema social italiano.

Assim, as mulheres no convento tornaram-se para ele um pequeno componente particular onde podia atuar como fizera anos antes em sua paróquia no interior da Argentina. As freiras confiavam nele. As outras mulheres foram cautelosas a princípio. Ele compreendia que dificilmente poderiam se comportar de outra maneira. Elas conheciam a dureza da vida em torno dos acampamentos, onde os motoristas de caminhões paravam para um rápido encontro sobre cobertores ensebados. Elas sofreram a violência dos gigolôs e a tirania da polícia e dos funcionários das prisões.

Por fim, as mulheres mais velhas espalharam que esse era um homem digno de confiança. Ele não pregava sermões. Entendia as palavras e os fatos da vida do lado da rua onde elas estavam. Entendia como a polícia lidava com elas. Elas sabiam que as dádivas dele tornavam a vida mais fácil para todas. Não havia nada furtivo sobre ele também. Falava mansamente, mas sabia a diferença entre merda e macaroni; e sabia-se que não usaria meias-palavras se alguém tentasse fazer jogos com ele. Deixou que soubessem discretamente que ele também estivera envolvido com a polícia em seu país e que entendia suas reservas. Não houve compulsão para ir à missa dele, mas primeiro algumas e depois outras vieram; e assim, quando sabiam que ele estava presente, a capela normalmente lotava.

Esta manhã estava relutante em sair de casa, mas não as desapontaria. As freiras eram uma raça especial, uma tribo decrescente mas ainda corajosa. As mulheres aos seus cuidados eram, como ele, as desterradas, as exiladas, as proscritas, as avanze di galera, as sobras de um sistema de prisão para o qual algumas, quase que inevitavelmente, voltariam. Foi a estas que ele dirigiu o seu apelo pungente:

– Minhas amigas, tenho um favor a lhes pedir. Uma amiga muito querida minha acaba de descobrir que está com um câncer incurável. Muitos anos atrás, essa mulher arriscou a própria vida para salvar a minha. Eu lhes peço que orem por ela esta manhã. Estou oferecendo a missa não para pedir uma cura milagrosa, mas para que seja dada a ela a coragem e a suspensão da dor. Eu gostaria de saber por que ela, entre todas as pessoas do mundo, foi afetada, mas este é o mistério que todos nós enfrentamos, não é? Ao vir para cá esta manhã, fiquei me perguntando por que ela? Por que não eu em seu lugar? Eu me sinto como um homem cego, tateando na súbita escuridão. Então me lembro de que o Nosso Senhor e Salvador foi acometido da mesma escuridão, logo antes de morrer: Orem por mim também. Vocês são todas minhas irmãs. Orem por mim – a voz dele se desintegrou. Ele parou por um momento para se recuperar, depois subiu ao altar para iniciar a missa.

Quando a missa terminou, ele permaneceu lá apenas o tempo suficiente para tomar uma xícara de café e trocar cortesias com a madre-superiora. Depois, quando deixava o convento, uma das mulheres, uma robusta veterana de beira de estrada, o parou e enfiou na mão dele uma pequena medalha da Virgem em uma fina corrente de prata. E lhe disse:

– Tome! Dê isso a sua amiga! Isso me salvou de muitos problemas na rua. Talvez faça alguma coisa por ela.

Em seguida a mulher se afastou, arrastando os tamancos pelo corredor. Rossini, novamente tocado pela emoção, pôs o presente no bolso e saiu apressado do edifício.

De volta ao seu apartamento, verificou a correspondência na tela do computador. Havia três mensagens. As duas primeiras eram de seu escritório. A entrevista requisitada por Steffi Guillermin do Le Monde fora marcada para às dez horas da manhã seguinte na Sala Stampa. Monsenhor Angel-Novalis estava preparado para assistir e gravar a entrevista, se Sua Eminência desejasse. Um momento de reflexão convenceu Rossini de que esta era uma sábia atitude. A mensagem seguinte era do secretário de Estado:

Remarquei a sua reunião com os cardeais não votantes para às onze e meia. Isso lhe dá meia hora de intervalo depois de seu encontro com a imprensa. Angel-Novalis talvez precise de algum apoio e você pode esperar algumas palavras duras da imprensa sobre o diário do pontífice. Eles não gostam da ideia de que podem estar negociando com material roubado. Portanto, estão estabelecendo uma linha de defesa. Nosso colega, Aquino, deu-me a sua versão do encontro de vocês. Quando disse a ele que você falaria com a imprensa, ele perguntou, mais gentilmente do que o normal, se eu não poderia arranjar outro breve encontro com você – “Mais breve e mais amigável”, foi como ele disse. Sugiro que ligue para ele. Vocês podem acabar resolvendo a questão com mais graça e civilidade. Tenha um bom dia no campo.

Rossini consultou o relógio. Ainda faltava uma hora e vinte minutos para Isabel chegar – com ou sem Luisa. Ele pegou o telefone e ligou para Aquino. Quando Sua Eminência atendeu, Rossini foi cuidadosamente gentil:

– Recebi uma mensagem do secretário de Estado. Ele me pediu para entrar em contato com o senhor.

– Que gentil da parte dele. Foi bom você responder tão prontamente. Estou preocupado. A nossa conversa não foi muito boa. Minha culpa, certamente. Se possível, gostaria de me desculpar, reparar o dano, por assim dizer.

– Nós dois estávamos revisitando velhos campos de batalhas – disse Rossini calmamente. – Sempre há o perigo de se pisar em solo minado. O que o senhor gostaria que eu fizesse?

– Eu gostaria de aceitar a sua oferta de intervenção com as mulheres. Gostaria de saber se uma situação arbitrada é possível. Ficaria feliz em usar Angel-Novalis para lidar com a imprensa. De qualquer modo...

Houve um silêncio momentâneo. Rossini o induziu a falar:

– Estou ouvindo.

– De qualquer modo, senti, ainda sinto, que a condição que impôs, de que eu deva me prontificar a comparecer ao tribunal, é pedir muito. E, além disso, é canonicamente impossível.

– Pensei sobre isso também – disse Rossini calmamente. – Era uma condição que eu não tinha o direito de impor, mas ainda há uma condição no que me diz respeito.

– Qual é?

– Respostas francas, argumentações francas. Há muito ódio. Eu não quero o seu... ou o meu... adicionado a isso.

– Como trataremos de assuntos sigilosos?

– Não trataremos. Se tiver as respostas, diga-as aberta e francamente. Se não tiver as respostas, diga que não as tem. Se houver um impedimento verdadeiro para a revelação, admita ao menos que há um impedimento. Mas há uma coisa que precisa saber. Além das provas adquiridas pelas mulheres, existem documentos sigilosos guardados na Espanha. Alguns foram copiados e depositados na Suíça. As mulheres os examinarão enquanto estivermos no conclave.

– Tem certeza disso?

– Tenho, embora não saiba que documentos são esses.

– Mas a fonte de sua informação...?

– É impecável.

– Preciso pensar um pouco mais sobre isso. Existem certas complicações; e qualquer envolvimento clerical não será a menor delas. Você sabe o que estou querendo dizer.

– Não totalmente – disse Rossini –, mas preferia não embaraçar Angel-Novalis, que nos estará prestando um serviço.

– Manterei isso em mente. Aguarde um telefonema meu muito em breve e obrigado pela gentileza, Rossini.

– Que bom que nos entendemos melhor.

– Muito bom, muito bom mesmo. Obrigado.

Quando desligou o telefone, Rossini estava sorrindo. As palavras de Aquino foram bastante cordiais, mas ele parecia estar chupando um limão muito azedo enquanto as pronunciava. Ele deu uma olhada no relógio. Ainda havia tempo para ligar para Turi na Secretaria de Estado e deixá-lo a par da conversa com Aquino. A resposta foi calorosa:

– Obrigado, Luca. Fico feliz. Quanto menos atrito tivermos nesse momento, melhor. Por falar nisso, onde conseguiu a informação sobre os documentos espanhóis e suíços?

– Com a Sra. Ortega. Ela irá à Suíça para ajudar autenticar os documentos que estão lá. É uma questão de consciência para ela. Isso é confidencial, Turi.

– Certamente. Você teve uma noite agradável, imagino?

– Agradável, mas triste. Temo que Isabel não estará conosco por muito tempo. Ela me disse que está muito doente... e os prognósticos não são muito bons.

– Sinto muito, Luca, por ela e por você. Rezarei minha missa na intenção dela.

– Obrigado.

– Vai passar o dia de hoje no campo?

– Vou, a filha dela irá conosco. Ele é uma moça linda, a imagem da mãe.

– Você trabalhará amanhã?

– Eu prometi, Turi. Encontrarei os seniores do Colégio às onze e meia e, antes disso, tenho uma entrevista com uma moça do Le Monde. Angel-Novalis estará lá para me dar apoio.

– Um aviso, Luca. Você foi mencionado no diário do pontífice. O assunto virá à tona em breve. Você pode ser questionado a respeito.

– Será que essa moça Guillermin falará sobre isso amanhã?

– Quem sabe? Se o fizer, você terá de lidar com a situação da melhor maneira que puder.

– Não estou tão preocupado, Turi. Assim como você, não quero escândalo para a Igreja, mas para mim mesmo. Sou um homem desfeito. Não existe nada que possam tirar de mim que me fará muita falta.

– Fico feliz por isso. O tempo está ótimo. Aproveite o dia, meu amigo.

Mas, quando desligou o telefone, o secretário de Estado estava pensativo. Ele lidava com crises em algum lugar do mundo todos os dias. Homens e mulheres eram transformados em mártires enquanto ele costurava acordos com seus carrascos para proteger os fiéis restantes. Ele era um homem de apetite disciplinado e julgamento frio, mas estimava a amizade sincera por Luca Rossini. Sabia muito bem que não tinha sido a antiga fé que o mantivera são e equilibrado. Foi o culto particular e potente de uma personificada Madona do Perpétuo Socorro, representada por Isabel Ortega. Ele preferia não especular sobre o que poderia acontecer a Rossini se ela fosse tirada dele, e ele fosse abandonado, um adorador em um santuário vazio, em um deserto de crenças descartadas.

O ELEVADOR CONTINUAVA quebrado. Havia a promessa de que seria consertado até o meio-dia: meio-dia de hoje ou de amanhã era sempre uma questão discutível. Então, Rossini decidiu poupar Isabel da longa e penosa subida pela escada. Ele esperou na rua perto de seu carro, um Mercedes com doze anos que comprara barato de um colega americano que retornara aos Estados Unidos. O carro fora muito bem cuidado e agora estava sólido e reluzente na frente do edifício enquanto Rossini esperava, encostado nele como qualquer romano, protegendo-o contra os jovens que poderiam riscá-lo com uma moeda ou arrancar o símbolo do radiador. Ele apreciava esses momentos de completo anonimato, quando estava absolvido do passado, desapegado do seu estado presente e sem ser responsável por nenhum dos dois.

Isabel estava atrasada. A combinação foi clara. Eles se encontrariam às dez horas. Agora eram dez e meia. A hora romana era flexível, mas Rossini estava irritado porque, com a sombra da perda futura pairando sobre eles como uma nuvem carregada, ele tinha ciúmes das poucas horas que podiam passar juntos. Ele ligou para o hotel pelo celular. Não houve resposta do quarto da senhora. Segundo o porteiro, ela acabara de pegar um táxi com a filha. Se o senhor quisesse deixar um recado? Não, obrigado.

Passaram-se mais dez minutos antes do táxi parar com um guincho provocado pelo freio e deixar as duas mulheres na calçada. Ambas foram instáveis nas desculpas, culpando-se mutuamente. Luisa chegara tarde e não acordara na hora, Raul ligara de Nova York, o que significava uma longa conversa com ambas, depois Miguel telefonara para marcar outro encontro para esta noite, ao qual Luisa não sabia se iria, e, finalmente, quando estavam quase entrando no táxi, Isabel fora chamada de volta para ter uma longa conversa com a mulher com a qual viajaria à Suíça.

– ...e isso, meu querido Luca, finda a nossa ladainha de desculpas. Sentimos muito! Agora, por favor nos dê a sua absolvição e leve-nos daqui!

– Beije-a, pelo amor de Deus – ordenou Luisa. – Ela está tensa como uma corda de violino. Isso não é bom para ela... ou para mim!

Rossini cumpriu a ordem. Ele beijou Isabel e pôs uma mão confortadora sobre seu ombro enquanto a instalava no carro.

– Agora você pode me beijar, Luca.

– Luisa, comporte-se!

– Por que não, mama? Ele está sem o uniforme, não está?

Rossini curvou-se em direção ao banco de trás, deu-lhe um beijo apressado no rosto, depois sentou-se no banco do motorista e partiu.

– Minha casa fica escondida em um vale da colina Sabina a poucas milhas ao sul de Tivoli. Se quiserem, podemos ir por Tivoli... vocês poderão ver a Vila Adriana, e a Vila d’Este, depois iremos a minha casa para almoçar. Devo avisá-las de que esta é uma rota popular, portanto haverá muitos ônibus com grupos de pessoas.

– Se você não se importa, Luca, eu gostaria de passar um dia tranquilo com você.

– Também prefiro um dia tranquilo. – Luisa foi rápida ao apoiar a mãe. – Fiquei acordada até muito tarde ontem à noite. Miguel foi atencioso, mas ele fez tudo como manda o figurino... jantar, clube, e depois o completo espetáculo de Roma à noite com apitos e sinos!

– Então está decidido. Nada de turismo. Pegaremos a estrada secundária até minha casa. Pararemos no vilarejo para comprar comida... que você, Luisa, me ajudará a fazer enquanto sua mãe descansa. Concorda?

– Concordo.

– Nós duas ajudaremos – disse Isabel, com firmeza. – Ainda não sou uma inválida! O que fez ontem à noite depois de me deixar?

– Acho que você poderia chamar isso de minha versão de Roma à noite. Voltei a pé para casa. E me perdi algumas vezes, porque tinha muito em que pensar. Lembro-me de ter olhado para cima e visto, através de uma janela iluminada, um teto com um afresco maravilhoso. Quase fui atropelado enquanto olhava para ele. Quando cheguei em casa, li o final do meu breviário e fui para a cama. Tinha de acordar cedo hoje para celebrar a missa para uma comunidade de irmãs, e fazer umas ligações. E assim, cá estou! Um homem livre hoje com uma agenda lotada para amanhã!

Vestido com roupas rurais, atrás do volante de seu próprio carro, Rossini era um homem mudado – uma volta ao garoto travesso das estradas napolitanas. Ele dirigia com habilidade e vivacidade. Respondia com entusiasmo às buzinas e aos insultos pessoais. Como guia turístico, ele era menos do que informativo: como comentarista das táticas das pistas de corridas dos motoristas romanos, ele era eloquente, divertido e teatralmente ultrajante em lunfardo. As duas mulheres estavam rindo em um momento, ofegantes em outro e profundamente gratas quando saíram da Via Tiburtina e pegaram uma série de estradas campestres rumo à casa de Rossini. Pararam em um pequeno vilarejo para comprar comida e, vendo-o conversar sobre amenidades com o lojista, Isabel foi invadida pelas lembranças, de outro Rossini, jovem pastor de outro vilarejo escondido nos sopés andinos.

Finalmente, Rossini destrancou o pesado portão e entrou com o carro em seu reino. Ele ajudou as mulheres a saltar do carro e as deixou esperando enquanto foi fechar o portão. Quando voltou, Isabel sorriu, pegou em seu braço e disse:

– Eu me lembro que em uma de suas cartas você me disse que queria ter un huerto abigarrado, uma horta variada. Agora sei o que você quis dizer.

– Vocês duas são bem-vindas. A minha casa é a casa de vocês.

Dentro da casa fazia frio, mas a lareira estava preparada com gravetos e toras. Ele colocou um palito de fósforo aceso dentro dos gravetos e ligou o aparelho de som. As chamas estavam crescendo e a Sinfonia de Haffner enchia o ambiente enquanto ele lhes mostrava o seu pequeno refúgio.

– Eu mesmo fiz a maioria das modificações. – O seu orgulho pelo trabalho manual era falaz. – Dá para ver onde comecei... e como o trabalho melhorou à medida que fui me aperfeiçoando. Gosto de manejar ferramentas.

– Foi você mesmo quem fez o projeto? – Luisa já estava testando as torneiras, abrindo gavetas e armários, olhando as facas e a louça.

– Sim, fui eu. Para o encanamento tive ajuda local, mas o restante foi feito por mim. Continuem olhando. Vou trazer a caixa de comida.

Quando ele saiu porta afora, as duas mulheres se entreolharam. Luisa balançou a cabeça, incrédula.

– Ele é tão feliz com tão pouco.

Isabel a desafiou friamente:

– Somos mais felizes porque temos muito mais?

– Mãe, por favor! Você tem estado impaciente a manhã toda.

– Desculpe. Tive uma noite inquietante. Você estava passeando por Roma. E eu passeava pelo meu passado e olhava para meu futuro. Não é uma paisagem bonita.

– Luca tem o seu próprio passado para enfrentar e você faz parte dele. Não! Não se afaste, por favor! Quando o rosto dele está em repouso, é firme e fechado. Mas quando olha para você, o rosto dele muda completamente. Não sei onde ele se encaixa em seu futuro, mas espero que eu possa encontrar um homem que olhará para mim desse modo.

– Eu o encontrei e depois eu o perdi.

– Você nunca o perdeu, mãe.

Rossini entrou naquele momento e colocou a caixa sobre a mesa.

– Vamos deixar isso aqui enquanto vou mostrar-lhes o jardim. A casa estará mais quente quando voltarmos.

Enquanto andavam, eles deram-se as mãos, um trio familiar confortável entre si, embora separados, cada um preocupado com uma questão particular. Luisa perguntou:

– Você nunca se sente preso aqui? Ninguém pode olhar aqui dentro, mas você também não pode ver além de seu próprio muro.

– É assim que eu gosto, mas você precisa entender que passei a maior parte de minha vida encontrando pessoas, engajado com elas sempre em discussões ou negociações. Volto para cá vazio como um jarro de barro. Aqui sou novamente abastecido.

– Mas você nunca se sente solitário?

– A vida celibatária é uma estrada solitária, Luisa.

– Mas mamãe nunca foi celibatária e ela tem sido solitária, também, embora deteste falar sobre isso.

– Também não falo sobre isso. – Rossini foi gentil com ela. – De um modo ou de outro, todos temos de enfrentar a solidão essencial de sermos humanos, sejamos celibatários ou casados.

– Se você é uma pessoa boa, Deus não preenche a sua solidão?

– Ele preenche, acho, com um descontentamento divino.

Isabel apropriou-se da frase com uma intensidade que surpreendeu os dois.

– É o descontentamento que nos mantém vivos. Quando o último desejo é roubado, é porque já cruzamos o rio.

– Então você e Luca ainda têm um longo caminho pela frente.

– Como assim?

– Por favor, mamãe! Um cego pode ver que vocês se amam. Estou feliz por vocês... mas não entendo por que tornaram as coisas tão difíceis para vocês mesmos.

Desta vez foi Rossini quem a repreendeu:

– Você está pisando em propriedade privada, minha jovem!

Luisa recusou-se a calar.

– Você disse que esta casa era minha casa, também. Portanto se há um lugar onde não posso pisar, mostre-o para mim. Não sei toda a história sobre você e mamãe, porque ninguém pensou que eu tivesse o direito de saber. Mas estou aqui com vocês dois neste jardim. Isso requer alguma explicação, não requer? Não é segredo que mamãe e papai vivem vidas separadas, e que mamãe também teve amantes de tempos em tempos.

– Luisa, por favor! – Isabel estava zangada. – Agora você realmente passou dos limites.

– Deixe-a terminar – disse Rossini calmamente. – Ela tem razão. Eu dei a ela a liberdade da casa. Por favor, diga o que quiser, Luisa.

– Não culpo mamãe ou papai. Recebi o amor e os cuidados de ambos... um amor diferente, um cuidado diferente de cada um. Portanto, não tenho do que reclamar, mamãe. Mas Luca também faz parte da minha vida... uma lenda, uma figura misteriosa de quem vovô Menéndez costumava falar de vez em quando. Foi somente ontem que ele se tornou real para mim. Portanto, não podem mais me excluir, nenhum de vocês.

Isabel estava pronta para intervir novamente. Rossini a interrompeu com um gesto:

– Olhe o que vamos fazer. Vamos todos preparar o almoço juntos. Enquanto trabalhamos, conversaremos. Se você tiver perguntas, tentarei respondê-las. Sua mãe pode falar ou ficar em silêncio, como preferir. Isso lhe parece justo?

– Sim, é justo... desde que nenhum de vocês fique querendo me poupar.

Ele as acompanhou de volta para a casa, falando enquanto andavam, parando para pegar peras maduras da árvore carregada.

– Entenda uma coisa desde o começo. Algumas das coisas que vai ouvir aconteceram antes de você nascer. Algumas aconteceram quando era uma menininha e a Argentina e o seu povo estavam amarga e brutalmente divididos. De qualquer lado que você estivesse, havia inimizade e sofrimento. Você foi poupada de muita coisa, portanto tente não julgar ninguém tão severamente. Só mais uma coisa antes de começarmos. Eu realmente amo a sua mãe. Eu a amarei até o dia da minha morte. Ela também me ama. Nós nos correspondemos há anos. Mas, nas circunstâncias dos tempos, cada um de nós era uma ameaça mortal para o outro. De certa forma, ainda somos... – Ele virou-se para Isabel e perguntou: – Posso mostrar a ela?

– Se você pode suportar isso, eu também posso.

Enquanto Luisa olhava, Rossini tirou a camisa e a camiseta, ficando nu da cintura para cima. Então Isabel o virou para que Luisa visse os vergões e as cicatrizes cruzadas em suas costas. Ela prendeu a respiração, horrorizada. Isabel disse calmamente:

– Foi assim que a história começou para nós dois. Raul estava fora, no Chile e no Peru. Eu estava na casa de seu avô Menéndez. Nosso apartamento dava para a praça e para a igreja onde Luca era pastor.

Depois desse primeiro momento de revelação, o restante da história pareceu entrar naturalmente no ritmo quando um e depois o outro pegava a cadência da narrativa, enquanto Luisa trabalhava em silêncio na bancada da cozinha com eles, sem fazer perguntas, sem julgar, até que a narrativa findou com o retorno de Rossini para Roma e o retorno de Isabel para Raul.

– Então, agora você sabe – disse Rossini.

– Obrigada a vocês dois por me contar – Luisa estava subjugada. – Agora, podemos comer? Estou com muita fome.

Rossini serviu o vinho enquanto as mulheres serviam o macarrão. Depois ele invocou a bênção sobre a comida e a companhia. Depois que todos deram a primeira colherada, Isabel levantou o copo.

– Cumprimentos ao chef!

– E o chef agradece às suas ajudantes!

– Esta ajudante aqui trabalhou sob certa pressão – Luisa os repreendeu gentilmente. – Vocês me presentearam com um dramalhão.

Isabel passou a mão no rosto dela:

– Sinto muito que você tenha esperado tanto tempo. Luca me disse que havia um encanto nesta casa.

– Há amor nela hoje – disse Rossini.

– E o que havia antes, Luca?

– Um pouco de fé, um pouco de esperança... amor só na lembrança. Mas este é o nosso ágape, a refeição na qual celebramos o amor juntos.

– E o amanhã? – A pergunta de Luisa pairou sobre eles como uma gota de água clara pronta para cair dentro de uma poça escura. Isabel ficou em silêncio, com o olhar triste. A resposta coube a Rossini:

– Há um velho adágio entre os diplomatas: lide com as perguntas difíceis entre a pera e o queijo. Por que não fazemos isso? Vamos aproveitar a comida e o momento e falar depois.

– Promete que não vai me despistar?

Ele olhou para Isabel. Ela anuiu. Ele respondeu à Luisa:

– Nós prometemos.

Ele se levantou para tirar os primeiros pratos da mesa, mas Luisa o fez sentar-se novamente.

– Deixe isso comigo! Mamãe e eu servimos a refeição. Você cuide do vinho e tente parecer um príncipe da Igreja!

FOI UMA HORA de alegria e conversa antes das frutas e queijos serem postos na mesa e o café estar pronto para ser servido. A conversa deles diminuiu quando Rossini fez uma pequena cerimônia ao cortar a pera e oferecer “o primeiro gosto da fruta do meu jardim”. Quando elas aprovaram a oferenda, ele voltou-se para Isabel:

– Agora, meu amor, nós temos que manter a promessa. Vamos falar sobre o futuro.

– Ainda não – Luisa o parou com um gesto. – Ainda não terminamos com o passado.

– Pensei que tivéssemos – disse Isabel. – Quando Luca veio para Roma, retomei minha vida com seu pai. Luca e eu nos correspondemos, mas ontem à noite foi o nosso primeiro encontro em...

– Em vinte e cinco anos – disse Luisa. – Sei disso, mas enquanto conversávamos, fui fazendo umas contas. Sei quando eu nasci, onde fui batizada. Sei que você fez uma cesariana em Nova York. Então, eu me pergunto se há alguma possibilidade de que eu seja filha de Luca.

– Você nasceu, foi registrada e batizada Luisa Amelia Isabel Ortega.

– Isso não responde à pergunta, mamãe.

– Por que está fazendo essa pergunta agora?

– Porque essa é a primeira vez que vejo você e Luca juntos... e é a primeira vez que vejo duas pessoas de meia-idade tão desesperadamente apaixonadas. Isso corta o meu coração.

– Acho que você deveria contar – disse Luca Rossini. – Conte a ela exatamente o que você me contou ontem à noite. Ela pode fazer o julgamento que quiser. Vou trabalhar um pouco na horta. Chame quando precisar de mim.

Ele as deixou então, tirou a camisa e começou a revolver a terra com a enxada nas fileiras de verduras, tentando diminuir a rotação de seus pensamentos para o compasso dos golpes da enxada à medida que quebravam a crosta seca da terra. Esse era o remédio mais primitivo e mais eficaz que ele conhecia contra os conflitos maníacos de ideias e argumentos, de grandes e pequenas questões, de interesses e preconceitos, de reivindicações e contrarreivindicações que exigiam sua atenção todos os dias.

Qualquer que fosse o argumento ou discussão que Isabel e Luisa estivessem tendo dentro da casa o atingiria, mas seus destinos estavam definitivamente além de seu controle. O reconhecimento dele de Luisa como sua filha natural era uma questão secundária, já decidida. O reconhecimento dele por Luisa era outra questão, muito além da simples concessão de afeto. A mãe dela logo partiria – mas a partida poderia ser longa, dolorosa e destrutiva. O que ele poderia oferecer a Isabel para aliviar sua passagem, e a Luisa para compensá-la pela perda?

As voltas que seus pensamentos davam lhe trouxeram uma questão que ele debatera muitas vezes com o pontífice e discutira com seus colegas da Cúria: os problemas constantes de um clero celibatário na disciplina romana do cristianismo. Cada fase na vida de um clérigo solteiro trazia a sua própria safra de problemas. No período de treinamento, os instintos sexuais eram reprimidos, as expressões de afeto inibidas, suas linguagens purgadas de paixão, tanto que quando eles a encontravam novamente – se alguma vez a encontrassem – nos escritos dos grandes enigmas, era sempre com uma sensação de espanto. Nos meados dos anos da vida pastoral, o companheirismo ou a ambição compartilhada fornecia um apoio parcial, mas nos anos posteriores, a doença ou o tédio ou a simples solidão mudava a paisagem de suas vidas para um soturno desespero. E eles há muito já perderam a simples prática do relacionamento com as mulheres ou outros homens. O que mais irritava Rossini era o elemento da hipocrisia nas discussões em qualquer nível – e isso também era uma prática muito latina: adicionar a marca da virtude ao argumento menos convincente, enquanto os falsificadores de antiguidades envelheciam seus bronzes e mármores nas fossas e montes de estercos.

Esse argumento bem mastigado o acompanhou até o final da fileira de vagem e ele estava acabando de limpar a enxada quando Isabel saiu da casa, de mãos dadas com Luisa. Ele esperou, empoeirado e suando, enquanto elas se aproximavam.

Isabel parou a poucos passos de distância. Luisa parou pouco antes do alcance dele. Luca apoiou-se no cabo da enxada e esperou.

De repente ela parecia pequena e vulnerável, uma criança sozinha em uma praia deserta. Contudo, ele não pôde encontrar palavras para confortá-la ou se explicar. As primeiras palavras dela o desequilibraram completamente.

– Como devemos nos sentir em relação a isso, Luca?

– Não sei, Luisa. Só posso lhe dizer como eu me sinto.

– Então me diga, por favor!

– Estou feliz por finalmente saber a verdade. Fiquei zangado por ter ficado tanto tempo na ignorância. Estou triste por causa dos anos que estão perdidos para mim. Isso é puro egoísmo, eu sei. Estou feliz que você tenha visto sua mãe e eu juntos. Acho que entende o amor que nos uniu todos esses anos. Espero que entenda que é uma criança verdadeiramente amada e que me deixe doar um pouco do meu amor a você. Eu confesso que não sei como, mas sei que o amor está aqui para ser doado. Como se sente?

– Confusa, mas não infeliz. Eu me sinto como se tivesse renascido, e todos os marcos da minha vida fossem mudados de repente.

– Para melhor ou para pior?

– Quando mamãe se for... e sei o quanto ela está doente ... será para pior. Mas agora que vi vocês dois juntos, sei o quanto o seu amor foi importante na vida dela. Isso ainda me deixa com um enorme quebra-cabeça para resolver.

– Como o quê?

– Como lidar com dois pais em minha vida? Nada mudará com Raul. Sei que não pode mudar. Sei que não deve mudar. Como posso viver com um segredo tão grande, porque sei que terei de viver? Como posso conhecê-lo melhor, porque eu quero isso também? Depois há o problema de como devo me sentir a seu respeito.

– Como gostaria de se sentir?

– À vontade... até um pouco amada, mas por mim mesma, não pela mamãe. Eu gostaria que você me abraçasse, me beijasse e me dissesse que sou tão bem-vinda em sua vida como mamãe é.

Ele enrijeceu, deixou cair a enxada e abriu os braços para ela. Luisa deu um único passo e ele a abraçou, murmurando repetidas vezes: “Bem-vinda, minha filha, bem-vinda.” Depois Isabel juntou-se a eles e se abraçaram em silêncio até que Luisa quebrou a teia de aranha que os unia, dizendo gentilmente:

– Mamãe estava certa. Olhe para nós! Três graças no jardim! Você precisa de um banho, Luca, e depois acho que devíamos tomar um drinque para celebrar.

– Bem, estamos lidando com assuntos rurais – disse Isabel.

– E o que são assuntos rurais? – perguntou Rossini.

– Aprendi a frase com minha tia Amelia. Ela aprendeu com os britânicos que ficaram muito ricos na Argentina. Assuntos rurais são... qualquer coisa relacionada a sexo e reprodução, seja ela legítima ou ilegítima.

– Eu não conheci tia Amelia – disse Luisa. – Mas ela certamente teve um importante papel na minha vida. Acho que teria gostado dela.

O RESTANTE DA TARDE deveria ter caminhado para um epílogo agradável do drama das revelações. Em vez disso, Rossini foi testemunha da erupção repentina de uma discussão entre mãe e filha. Ela foi desencadeada por uma observação aparentemente casual de Luisa.

– Agora que você organizou tão bem a minha vida, mamãe, vamos falar sobre a sua.

– Não há nada sobre o que falar. Assim que voltarmos para Nova York, farei outra bateria de exames. O que acontecerá depois disso vai depender dos resultados. É simples. Um dia de cada vez.

– Não é tão simples assim e você sabe disso. Papai me disse o quanto você está seriamente doente.

– Mas não deveria ter dito! A vida é minha.

– E ele é o seu marido e eu a sua filha e agora Luca também está envolvido.

– Minha vida continua sendo minha. Tomarei as decisões sobre ela, enquanto puder.

– E quando não puder?

– Então o seu pai pode assumir a responsabilidade pelo tempo que restar. Não quero você desperdiçando a sua vida cuidando de um caso terminal. Raul pode pagar pelos cuidados que eu venha a precisar.

– Eu sei disso, mamãe. Papai não é um monstro. Ele é gentil e generoso, mas um tolo com as mulheres.

– Agora chega!

– Não, mamãe, não chega! O que quero é que enfrente seja o que for que esteja reservado para você com calma e alegria...

– Não posso fazer isso, se todos ficarem em cima de mim querendo saber como vou organizar o que resta da minha vida. Preciso de um tempo para resolver. Preciso de privacidade, de meu próprio espaço. Tente explicar isso a ela, Luca!

Foi então que ele lembrou-se da medalha que a mulher lhe dera de manhã na missa. Pegou a jaqueta que estava sobre a cama e tirou do bolso o pequeno objeto embrulhado em um pedaço de papel. Voltou para a mesa com o objeto e o depositou na frente de Isabel.

– O que é isso?

– Antes de abrir, deixe-me contar o que aconteceu. Esta manhã celebrei a minha missa em um convento onde as irmãs mantêm um abrigo para mulheres que saíram da prisão. Todas passaram por momentos difíceis, mas aprenderam a confiar em mim. Pedi a elas que orassem por você porque, assim como Luisa, sinto-me incapaz de mudar o futuro para você, incapaz até mesmo de apoiá-la rumo a ele. Depois da missa, uma mulher veio até mim. Devia ter pouco mais de cinquenta anos, eu diria, e passou grande parte da vida como garota de beira de estrada, fazendo sinais para os motoristas de caminhão a caminho de Roma. É uma vida dura, como você pode imaginar, vender-se no inverno e no verão em um buraco de beira de estrada. Eu estava saindo do convento quando ela veio ao meu encontro e colocar o presente na minha mão. Ela disse: “Dê isso a sua amiga. Isso me salvou de muitos problemas na rua. Talvez faça alguma coisa por ela.” Esse é o final da história. Olhe para isso de um certo modo, e verá uma excluída social e um clérigo não muito bom invadindo a sua privacidade. Olhe novamente, e verá um ato de amor e carinho.

Isabel abriu o pacotinho e retirou a medalha com sua frágil corrente. Ela pediu à Luisa:

– Pode colocar em mim, por favor?

Enquanto Luisa ajustava a medalha, Isabel segurou as mãos dela.

– Perdoe-me! Eu não quis repreendê-la. Quando estou com medo, fico zangada. Quando me zango, tenho de descontar em alguém. Luca devia ficar feliz por não ter se casado comigo!

Luca foi rápido na resposta:

– Casado ou não, estamos todos interligados. Então deixe-me dizer o que penso em minha própria casa. A minha vida toda tem sido um ato de gratidão pelo que você fez por mim e pelo que me deu: dignidade e masculinidade! Não posso julgar seu marido. Sei apenas o que me contou. Entretanto, precisa oferecer a ele a chance de dar a você o que ele pode dar, de ser o que ele pode ser para você nesse momento de sua vida. Não pode recusar isso a Luisa também. Todos nós precisamos da chance de nos redimir através da doação. Você entende?

– Entendo, mas chega de sermões, por favor, Luca!

– Meu Deus! – disse Luisa com um sorriso. – Ele está igualzinho ao Grande Inquisidor, não está? Felizmente está do nosso lado!

– Venha me ajudar a lavar os pratos, mocinha. Isabel, por que não coloca o disco de Haydn? Sinto que precisamos de uma boa música organizada em nossas vidas desorganizadas!

Enquanto trabalhavam na pia da cozinha, Luisa perguntou:

– Nós o veremos novamente antes do conclave?

– É pouco provável. Poderíamos marcar um jantar em meu apartamento, mas todos nós do Colégio estaremos sob grande pressão nos próximos dias. Depois do conclave, será bem mais fácil.

– A não ser que você seja eleito papa?

– Essa, querida filha, seria a aposta mais arriscada de todos os tempos. O mais provável é que eu seja remetido para um obscuro cargo no Vaticano.

– Há alguma chance de você ir a Nova York para ver mamãe... antes do fim? É o que ela está esperando... embora seja muito orgulhosa para admitir.

– Moverei céus e terras para estar lá. É uma promessa: mas preciso de uma promessa sua também. Vou depender de você para obter informações regulares sobre as condições de sua mãe. Mande pelo e-mail.

– Pode contar com isso. Eu o manterei informado.

– Ótimo! Agora devemos pensar em voltar para Roma.

– Ainda não, por favor. Mamãe precisa de algum tempo sozinha com você. Vou conversar com os pássaros no jardim.

Então, rapidamente, Luisa saiu e os deixou sozinhos, sentados lado a lado no sofá surrado, o braço dele envolvendo-a, a cabeça de sua mãe descansando no peito dele, desfrutando o silêncio. Após longo tempo, Isabel murmurou, sonolenta:

– Luca, meu amor, acho que este foi o dia mais longo de minha vida.

– Foi um dia feliz?

– Feliz, sim, mas depois de tudo, cada um de nós dormirá sozinho esta noite... e todas as noites seguintes. Estou com medo, Luca... e fria por dentro, como se já estivesse sepultada.

Ele a puxou para mais perto dele, murmurando palavras de conforto e esperança que, mesmo enquanto as pronunciava, soavam secas e vazias. Isabel, no entanto, pareceu se revigorar um pouco. Ela começou a tocar a pequena medalha desbotada que lhe pendia entre os seios. Por fim, falou de novo, do mesmo modo sonolento e dissociado:

– Imagine todas as coisas que essa pequena Virgem viu nas luzes dos acampamentos de beira de estrada. Espero que a mulher que a deu para mim não esteja só sem ela. Faria uma coisa para mim, meu amor?

– Qualquer coisa, você sabe disso.

– Compre outra medalha, uma de ouro com corrente de ouro, peça ao novo papa que a abençoe e mande para ela com uma mensagem nossa.

– O que devo dizer?

– Diga-lhe que o presente foi muito importante para mim e que a sua pequena Virgem já está olhando por mim. E, o mais importante, diga-lhe que sinto ter ganhado uma nova irmã. Vai se lembrar de tudo?

– Como poderia esquecer?

– Muito facilmente, meu amor. Conheço esse espírito negro que o assombra. Qualquer decisão que venha a tomar sobre o que fazer da sua vida, não o faça por precipitação ou ódio. Acima de tudo, não o faça por mim, porque não estarei aqui para compartilhar coisa alguma com você.

– Por favor, meu amor, por favor...

– Não! Deixe-me terminar! Se no final descobrir que não crê, eu crerei por você. Se não tiver esperança, terei esperança por você. Se isso parece tolice, lembre-se que nós dois temos amor, e isto é mais forte que a morte, mais forte que o desespero. Beije-me agora. Abrace-me por um momento, depois leve-me de volta a Roma com nossa filha.


8

A fim de se preparar para a entrevista com Steffi Guillermin, Rossini conseguiu meia hora com Angel-Novalis para conversarem na Sala Stampa. Ele era um mentor ideal: incisivo, lúcido, imparcial. Primeiro, ele fez um retrato:

– Ela é uma mulher elegante, com mente clara. Virá preparada sobre o assunto e seu vocabulário. Ela não tem interesse em homens como parceiros sexuais, mas exige que reconheçam tanto a sua inteligência quanto a sua elegância. O senhor pode esperar citações exatas do que diz, algumas descrições ácidas de suas atitudes sob interrogatório e certas observações que podem surpreendê-lo. Ela não aceitará nada que não deva ser publicado. A atitude dela é a de que o senhor aceitou as regras do jogo. Tópicos? Certamente ela irá se referir ao seu relacionamento pessoal com o pontífice. Certamente vai querer discutir o drama de seu resgate da tropa militar e a sua eventual saída da Argentina. Imagino que terá mais informações do que o senhor pode estar esperando. Agora é do conhecimento de todos que o marido da Sra. Ortega foi indicado como o próximo embaixador argentino para o Vaticano...

– O que nos leva diretamente às Mães da Praça de Maio.

– Sim.

– E uma vez que você estará presente na entrevista, isso certamente levantará a questão da participação ou envolvimento de membros do Opus Dei na guerra suja da Argentina. Tem algum resumo para mim nessa área?

– Guillermin é muito escolada para fazer qualquer pergunta diretamente a mim. Esta entrevista é sua, Eminência. Serei simplesmente uma mosca na parede. Meu conselho é que deva dar suas próprias respostas, e não tentar adivinhar qual será o comentário dela ou tentar instruí-la na fé. Alguns de seus eminentes colegas já caíram nessa armadilha. Inevitavelmente, receberá duas perguntas gerais: qual é o estado atual da Igreja e que tipo de papa precisamos? Cada uma delas possui a sua própria armadilha. Se a Igreja estiver no caminho errado, de quem é a culpa? Se a Igreja precisar de reparos, quem é o homem para fazê-los? E a sua resposta a esta pergunta pode colocá-lo em má situação com todo o colégio eleitoral. Mais alguma pergunta, Eminência?

– Vamos voltar àquela que você não respondeu – disse Rossini. – Qual sua responsabilidade pessoal nas ações de certos membros do Opus Dei no meu país durante a guerra suja?

A pergunta o pegou completamente de surpresa. Ele ficou vermelho. Abriu a boca e voltou a fechá-la. Depois ficou em silêncio, olhando para as costas das mãos. Finalmente, levantou a cabeça para encarar Rossini. Sua voz foi firme e a resposta estudadamente formal:

– O senhor não é meu confessor, Eminência. Portanto, não sou obrigado a responder a essa pergunta.

– Posso entender isso.

– Então por que Sua Eminência perguntou?

– Primeiro, porque na minha vida pessoal, e agora na minha vida colegial como cardeal, a questão assume um caráter especial. Instantes atrás, quando fiz a pergunta, você se recusou a me dar qualquer direção quanto a como... se fosse o caso... responder sobre isso para a imprensa. Então repeti a pergunta, confidencialmente. Há evidência, clara evidência, de que membros do Opus Dei estiveram envolvidos direta ou indiretamente nas atividades repressivas dos militares na Argentina, de que ajudaram a ocultar provas dos crimes cometidos na guerra suja. Eu o conheço como um homem justo e honrado. Isso me ajudaria a saber como chegou a um acordo com essas anomalias. Também tenho questões de consciência para resolver, e gostaria de estar com a mente bem clara quando enfrentasse meu inquisidor!

– Então a resposta terá de ser abreviada, Eminência.

– Aceito isso.

– Vamos começar com essa proposição: o Opus Dei não é um grupo popular ou populista. É elitista. Reservado. E lida com grupos poderosos da lei, do dinheiro, da política. Esforça-se, nem sempre com sucesso, para aplicar os princípios cristãos à mecânica da ordem social. Sua origem, como a dos jesuítas, é hispânica. Seu ascetismo, como queira, também é hispânico. De minha parte, devo admitir que o seu treinamento possibilitou minha sobrevivência no período mais difícil de minha vida. Mas, como ambos sabemos, o poder é um jogo perigoso e corruptor... especialmente quando se tem Deus e o Vigário de Cristo do seu lado! A nossa sociedade integra um grupo de pressão muito forte nas igrejas ibéricas e da América do Sul. Áreas nas quais, por assim dizer, o jogo do poder tem sido jogado mais brutalmente. Peça-me provas de nosso envolvimento, e eu não posso dá-las. Elas estão profundamente enterradas. Escolhi não cavar mais fundo do que sou obrigado a fazer. Como o senhor, Eminência, tenho vivido e trabalhado sob a proteção íntima e pessoal do falecido pontífice, que deu à nossa sociedade um lugar especial em seus planos. Sua Santidade foi uma potente influência na queda dos regimes comunistas no Leste europeu. Na política e na Igreja, ele inclinava-se mais para a direita do que para a esquerda. Assim, vivendo tão próximo ao assento do poder, tem sido fácil dissociar-me de seus abusos, puxar o capuz sobre minha cabeça como um antigo monge, e dizer a mim mesmo que Deus e o Santo Padre sabem o que é melhor para o mundo. Agora não tenho tanta certeza! O que fazer sobre isso? Também não estou certo, especialmente com todas as mudanças que um novo homem irá trazer. Então espero. Luto com minha consciência e rezo para que tenha iluminação suficiente e força suficiente um dia para limpar meu próprio canto da casa de Deus! – Ele parou. Suas feições finas relaxaram em um sorriso e a voz assumiu o tom irônico habitual. – Vê como é fácil esquecer as disciplinas e entrar na emoção excessiva.

– O seu excesso foi uma dádiva para mim – disse Luca Rossini. – A luz surge lentamente, não é?

– Lentamente demais às vezes. Mas deixe-me repetir meu aviso, Eminência. Steffi Guillermin é uma entrevistadora sedutora. Ela possui muita inteligência e gosta de exibi-la. Lembre-se, ela tem água gelada nas veias e ácido na caneta!

A ENTREVISTA FOI realizada em uma sala do departamento de imprensa. Guillermin e Rossini sentaram-se frente a frente, com uma pequena mesa entre eles. Angel-Novalis sentou-se à parte, fora da visão deles. Seu gravador ficou ao lado de Guillermin sobre a mesa. Ela começou sem mais preâmbulos:

– O senhor é um homem ocupado, Eminência. Eu lhe agradeço por aceitar essa entrevista. Vamos começar com a grande questão. O que há de errado com a Igreja?

– As mesmas coisas que estiveram erradas com ela por dois mil anos... pessoas! Homens, mulheres e crianças também, que compõem a família de fiéis. Esta não é uma comunidade de puros e perfeitos. Eles são bons, maus e indiferentes. São ambiciosos, mesquinhos, medrosos, lascivos, uma plebe de peregrinos unida pela fé e esperança... e a difícil experiência do amor.

– Vamos ser mais específicos, então: a instituição da qual o senhor é um funcionário-chave; como descreveria a condição atual da Igreja?

– Às vezes ela é chamada de “barco de Pedro”. É uma boa metáfora. Ela é um barco... um barco muito velho navegando por águas revoltas. Ele foi bem construído... suas estruturas essenciais são fortes, mas suas vigas rangem; algumas delas estão desgastadas e precisam ser substituídas. O cordame está desfiado, as velas foram remendadas várias vezes. Ele sacoleja nas vagas e nos balanços bruscos sobre as cristas dos grandes mares, mas ainda flutua e a tripulação ainda o conduz... embora esta também, às vezes, pareça um grupo heterogêneo.

– E agora, claro, o capitão está morto. O senhor é uma das pessoas, bem poucas pessoas, que vai eleger um novo capitão. Que talentos especiais o senhor traz para essa tarefa eleitoral?

– Poucos, bem menos do que imagina. Sei como funciona a burocracia, embora tenha pouca apreciação e menos talento para isso. Contudo, o processo eleitoral é um jogo de forças e interesses dentro de um pequeno grupo de indivíduos altamente diversos; às vezes uma singularidade, como eu, pode virar o voto em uma direção ou outra... pelo menos foi o que me disseram os que já participaram de um conclave. Este será o meu primeiro.

– Sua Santidade teve um longo reinado. Isso é bom ou mau?

– Bom ou mau, é um fato que produz certas consequências.

– Poderia ser mais específico, Eminência?

– Não há mistério sobre isso. O processo de envelhecimento produz certas consequências inevitáveis. O catálogo é familiar. As artérias entopem. As juntas endurecem. As funções do cérebro podem mudar radicalmente. Além disso, há mudanças psicológicas. O idoso pode ficar medroso, paranoico, até mesmo tirano. Nas sociedades humanas sob um longo regime, existem mudanças análogas.

– Isso não sugere que talvez sejam necessárias mudanças no sistema tradicional? Uma idade para a aposentadoria compulsória do pontífice, uma revisão das regras para a aposentadoria ou deposição com base em incapacidade?

– Todas estas questões são de interesse próprio para toda a Igreja. Sim.

– Mas no final, como as coisas estão, elas podem ser determinadas por um homem, o pontífice reinante?

– Isso é verdade.

– E pela ordem natural das coisas, que pontífice irá proclamar a sua própria execução?

Rossini jogou a cabeça para trás e riu.

– A senhorita está certa!

– O diário secreto do falecido pontífice enfatiza a questão. Foi feita uma acusação de que o diário foi roubado pelo mordomo do papa e que nós, junto com outras mídias, o estamos publicando ilegalmente. O senhor está a par disso?

– Eu estou a par, sim.

– O diário é autêntico?

– Pelo que sei, é.

– Ele foi roubado?

– Há fortes suspeitas de que sim.

– Uma das passagens no diário diz o seguinte: “Há aqueles na Cúria que acham que a minha promoção de Luca Rossini é um erro. Dizem que ele é reservado, arrogante, e muito pronto para recusar as opiniões contrárias às dele. Sei o que esses críticos querem dizer. Tive de censurá-lo muitas vezes pela ênfase dos argumentos. Mas sei pelo que ele tem passado. Sei como tem lutado tenazmente para manter a integridade de seu espírito atormentado. Ele me confessou sua profunda e duradoura afeição pela mulher que salvou sua vida. Acredito que essa experiência deu um valor especial e caráter ao seu serviço para a Igreja. Não posso protegê-lo do escândalo, da calúnia ou dos rumores hostis. Ele consideraria abaixo de sua dignidade procurar tal proteção. Seu raciocínio é muito simples. Ele me disse certa vez: ‘Santidade, fui deixado nu na frente de minha própria paróquia, e açoitado até ficar em carne viva. Estive a ponto de ser estuprado. Meu algoz foi morto na hora em que ia me penetrar. O que os rumores podem fazer comigo?’ Esse pensamento estava em minha cabeça quando o nomeei para cardeal. Eu fantasiava, pensando em como ele agiria caso se sentasse no trono de Pedro. Mas então pensei nos outros que sobreviveram a torturas e foram considerados papabili... Beran, Slipyi, Mindszenty. Todos foram lesados de algum modo.” Tem algum comentário a fazer sobre isso, Eminência?

– Nenhum.

– O senhor possui o espírito profundamente atormentado?

– Digamos que estou mancando, como Jacó depois de sua luta com o anjo.

– Como o senhor vê o seu futuro?

– Cada dia é novo para mim. Eu o aceito quando ele chega.

– As observações do pontífice o constrangem?

– Constrange-me o fato de que a privacidade dele foi invadida pela sua publicação.

– Essa mulher, por quem o senhor tem uma profunda e duradoura afeição. O que pode me dizer sobre ela?

– Devo a minha vida a ela. Isso diz tudo, acho.

– Segundo minha informação, o nome dela é Isabel Ortega, nascida Menéndez. É casada com um diplomata argentino, cuja família a protegeu durante a guerra suja. Ela tem uma filha de vinte e cinco anos.

– Está muito bem informada. Então, deixe-me dizer agora que não pretendo discutir o assunto com a senhorita.

– O episódio está encerrado, então?

– Por favor, senhorita, não brinque comigo. Não estamos falando de episódios ou incidentes, mas de minha profunda gratidão. Quando fui ao Japão pela primeira vez em uma missão particular para o Santo Padre, recebi instruções sobre os hábitos e costumes daquele país. Fui alertado, entre outras coisas, para não intervir de modo algum nos acidentes de rua, mas deixar a vítima aos cuidados de outros. Se eu interviesse, comprometeria o relacionamento de uma vida inteira de deveres para com a vítima... um relacionamento que eu possivelmente não poderia manter.

– E a moral dessa história, Eminência?

– Eu não poderia, não depositaria, e não depositei qualquer carga de continuidade de relacionamento sobre a mulher que salvou minha vida. Agora, vamos abordar outras questões que a senhorita possa ter.

– Antes de fazê-lo, Eminência, por favor, deixe-me dizer algo. Não posso evitar a discussão desse assunto no contexto do diário... e da própria eleição. Na verdade, alguns de seus colegas comentaram comigo sobre ele.

– Eu não lhe perguntarei quem são esses colegas.

– É melhor assim. Na minha entrevista com o cardeal Aquino, entendi que o senhor concordou em mediar a discussão entre ele e as Mães da Praça de Maio.

– Um momento! A senhorita está dizendo que entrevistou o cardeal Aquino?

– Dentre outros, sim.

– E ele forneceu essa informação?

– Sim.

– Quando fez essa entrevista?

– Ontem, mais ou menos nesta mesma hora. Por quê? Há algo errado?

– Não. Não há nada errado. Discuti isso com ele. Acho estranho que ele revele assuntos tão delicados em uma entrevista para a imprensa.

– O quanto o assunto é delicado, Eminência?

– Muito.

– Então me pergunto: por que o senhor consentiu em advogar para Aquino?

– Mais uma vez, senhorita, sua língua está solta e imprecisa. Não consenti em ser o advogado de Aquino, apenas em mediar uma discussão sobre as acusações que as mulheres estão fazendo contra ele.

– Isso pode ser interpretado como um apelo muito eficaz para a defesa dele... ou para a defesa das políticas de Roma e da igreja local.

– Seria uma interpretação falsa.

– Então, como descreve o que aconteceu no seu país, Eminência?

– Muitos de meus compatriotas venderam suas almas ao diabo.

– Por que, Eminência?

– Por uma ilusão de ordem, estabilidade, prosperidade. Por uma ilusão, velha como a história, de que se pode varrer as ideias com armas e instrumentos de tortura.

– Por que então concordaria exatamente em dar conforto a Aquino, que, em seu próprio reconhecimento, deu pelo menos algum conforto ao regime?

– Porque, primeiro, ele tem direito à minha presunção de sua inocência e, segundo, estou destinado como cristão a encontrar no meu coração o perdão para aqueles que me feriram.

– Tem conseguido fazer isso, Eminência?

– Tenho me esforçado – Rossini retorceu a boca. – Mas ainda não consegui.

– Pode explicar por quê?

– Sim. Como o falecido pontífice dizia muito bem, ainda sou um homem alquebrado, consciente de minha própria capacidade para o mal.

– Tem medo dessa capacidade?

– Ah, sim, tenho. A prevalência do mal é o mistério mais negro e amedrontador do universo.

– Então como vê o papel da Igreja na luta contra o mal?

– Como uma comunidade de fiéis, formados na fé e na esperança, amparados e enriquecidos pela caridade, propagando a boa nova da Redenção. Mas a comunidade tem de renovar-se todos os dias.

– Vamos falar sobre o papel da liderança nessa renovação.

Rossini sorriu e balançou a cabeça.

– Isso dá pano para mangas. Não há como cortá-lo nesta curta entrevista.

– Deixe-me colocar de outro modo, então. Dentro de alguns dias, o senhor entrará em conclave com cem ou mais membros do colégio eleitoral para escolher um novo pontífice. Que tipo de homem estarão procurando?

– Só posso falar por mim mesmo, como eleitor individual.

– No entanto, o senhor compartilha um interesse comum: o bem-estar do povo de Deus.

– Mas, sendo humanos, estamos divididos a respeito de como esse interesse deve ser servido.

– Afirma-se, não é, que o Espírito Santo está presente no conclave?

– Nós invocamos o Espírito. – Rossini estava calmo. – Não há garantia que todos nós, ou qualquer de nós, esteja aberto para as suas inspirações.

– E o homem que elegerem? Ele estará cheio do Espírito?

– Rezamos para que sim, mas ele também estará sujeito às tentações diárias do poder que, como escreveu um grande homem inglês, sempre tendem a corromper.

– E Satanás o levou a um monte muito alto – Steffi Guillermin citou o texto familiar – e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e as glórias deles. Então, verdadeiramente, Eminência, o senhor e os seus colegas embarcaram em uma aventura de alto risco. E o risco é dobrado, não é, pelo dogma da infalibilidade, que ultimamente vem recebendo algumas interpretações muito amplas?

– Eu diria de outra forma – replicou Luca Rossini. – Acredito que a Igreja é melhor servida quando a infalibilidade não é invocada, mas a caridade é fartamente dispensada.

– Vamos falar de caridade, então, do amor divino e do amor humano.

– Dois lados da mesma moeda.

– E o ato sexual é uma expressão desse amor.

– Deveria ser. Nem sempre é. Às vezes, é uma inovação, às vezes, uma humilhação. Como, por exemplo, o abuso sexual por parte dos clérigos ou professores religiosos.

– E o senhor, entre todas as pessoas, deve achar tal abuso intolerável.

– Concordo e acho que a sua ocultação pelas autoridades dentro da Igreja agrava o crime.

– E os criminosos?

– Temos de admitir que alguns dos nossos sistemas de treinamento contribuíram para a delinquência deles. Não podemos mantê-los afastados de circulação através dos sistemas pastoral e educacional.

– Perdoá-los?

– Eles, como todos nós, devem ter a chance de mudar e buscar o perdão.

– A ordenação de mulheres: qual a sua posição sobre isso?

– A minha posição é a posição que o falecido pontífice nos ordenou: contra a ideia. A não ser que, ou até que, um juízo posterior mude a ordem. E enquanto mantiver uma posição oficial na Igreja, não falarei contra isso.

– Há alguma possibilidade de que uma ou outra posição possa mudar: uma decisão papal, a sua própria posição dentro da Igreja?

– Apesar dos rumores e pressões pelo contrário, creio que a posição papal possa mudar. Minha própria posição? Como todos nós na Cúria, renuncio automaticamente e fico à disposição do novo homem.

– O que acha dos relacionamentos entre casais homossexuais? Eles deveriam receber status conjugal?

– Acho que não. Por outro lado, eles poderiam receber um reconhecimento civil como sócios, com direitos e obrigações mútuas.

– E quanto ao lado físico e emocional de suas vidas?

– A Igreja proclama um ideal cristão de castidade. Ela não pode, e não deveria, intervir no intercâmbio da cama de casal.

– Isso parece bem cínico.

– Não era para ser. O homem e a mulher são criaturas muito complexas. Repito, eles precisam de amor mais do que precisam de prescrições.

– E a prescrição moral?

– A Igreja aponta o caminho. Somos livres para escolhê-lo ou recusá-lo. Se escolhermos o caminho errado, a Igreja estende a mão para nos ajudar a voltar para o caminho certo. É para isso que serve a família, não é?

– Tem alguma ideia de onde gostaria de estar, do que gostaria de fazer, nessa altura da vida?

– Não sei se posso responder a essa pergunta. As palavras que rondam minha cabeça ultimamente são as palavras de Goethe em seu leito de morte: Mehr Lich... mais luz.

– O tempo esgotou-se, senhorita – disse Angel-Novalis de onde estava.

– Nós terminamos – disse Steffi Guillermin, desligando o gravador. Ela levantou-se e estendeu a mão. – Obrigada pelo seu tempo e disposição, Eminência. Espero fazer-lhe justiça.

– Quando irá publicar?

– Dois dias antes do início do conclave.

– Então a senhorita me enviará como Daniel para a cova dos leões – disse ele com um sorriso que Guillermin retribuiu.

– Se eu fosse um leão, Eminência, me esforçaria muito para ser seu amigo.

Enquanto a acompanhava para fora da sala, Angel-Novalis acrescentou seu próprio pós-escrito:

– Eu avisei. Ele é um osso duro de roer.

– Ele me fez penar por cada maldita linha. Ele é um cara formidável. Acho que vou fazer uma pequena aposta nele para a eleição, nas apostas do Clube da Imprensa!

O COMPROMISSO SEGUINTE de Rossini era mais intimidante: uma reunião no meio da manhã com seis dos membros mais velhos do Sacro Colégio, cujas idades coletivas totalizavam meio milênio. Todos eram italianos, todos veteranos de ordenações pastorais ou curiais, mas ainda bastante ativos e ambiciosos para fazer lobby com os eleitores antes de entrar no conclave.

Eles também estavam claramente ressentidos. Em 1975 o papa Paulo VI excluiu como eleitores todos os cardeais acima dos oitenta anos de idade. A mudança foi planejada para pôr fim ao crescimento na Igreja de uma gerontocracia, um governo de homens velhos, obstinados e invejosos na retenção do poder. Certamente, ela deveria ter lidado com a retenção do próprio cargo papal. Não fazia sentido que apenas o pontífice fosse eleito com mandato vitalício, colocando a Igreja em uma possível desordem se ficasse incapacitado pela idade, doença ou mesmo demência. Entretanto, a indecisão radical da natureza de Paulo VI o fez recuar, deixando essa anomalia essencial para ser ainda confrontada.

Essa deputação a Rossini era um grupo de velhos lobistas, dirigindo-se ao mais jovem com uma clara queixa e um pedido firme. Eles eram liderados por um homem robusto de 85 anos, o arcebispo emérito de uma das principais cidades italianas.

– Somos todos irmãos na mesma família, mas perdemos o direito de voto na Constituição Apostólica de 1975. Tudo o que possuímos de sabedoria e experiência é negado à Igreja. Precisamos de você... e de outros colegas... para transferir nossas opiniões aos eleitores no conclave.

– Eu nunca estive num conclave – Rossini estava calmo e condescendente. – Assim estou um pouco em desvantagem.

– Você aprenderá! Mantenha os olhos e ouvidos abertos. Meça suas palavras e proceda com cautela. As coisas podem ficar desagradáveis por lá.

– Desagradáveis?! Não sei se entendi.

– Inveja de irmão! – O homem velho irrompeu em uma risada sibilante. – Somos todos irmãos no Senhor, mas quando estamos trancados juntos, somos como um saco de gatos, miando e arranhando. Quanto mais longo for o conclave, pior fica.

– Então, digam-me, o que os senhores querem exatamente de mim?

– Uma voz para expressar nossas opiniões.

– Uma voz aprovadora?

– Não necessariamente. Ficaremos satisfeitos com um mensageiro honesto.

– Logo eu!

– Oh, você não é o único com quem estamos falando, mas temos um interesse especial em você. Por um lado, você é um estrangeiro. Por outro lado, sua origem é italiana. Acreditamos que você possui... como dizer?... uma posição simpatizante, uma certa neutralidade.

– Não sou um homem neutro – disse Rossini. – E com o quê, ou com quem, devo ser simpatizante?

– Com a ideia de um papa italiano.

– A ideia possui certos méritos.

– Como você os definiria?

– Eu preferia que os senhores os definissem para mim – disse Rossini suavemente.

– Deixe-me tentar, então, meu amigo. – Essa era uma voz nova e enfática. Rossini deu uma olhada em sua lista para identificar um chanceler da Universidade de Latrão de 83 anos. – Começamos com uma tese, claramente expressa pelo Segundo Concílio Vaticano, de que a Igreja é uma comunidade que sempre precisa de reforma, ecclesia semper reformanda. O processo é às vezes lento, às vezes, rápido, mas acontece e deve continuar. Por algum tempo agora, a velocidade da reforma diminuiu até quase a estabilidade, e isso apesar do fato de que tivemos todos esses anos um pontífice viajante com a missão pessoal de unificar e centralizar a Igreja. Ele foi surpreendentemente bem-sucedido até certo ponto. O rádio, a televisão, a Internet e as viagens rápidas trouxeram o mundo a Roma e levou Roma ao mundo de um modo nunca antes sonhado! O que temos agora é uma nova Igreja imperial, unida mas profundamente dividida, policiada pelas congregações do Vaticano, monitorada pelos núncios e delegados do Vaticano, doutrinadamente censurada em segredo pela versão atual da Inquisição, a Congregação para a Doutrina da Fé.

Rossini irrompeu em risos.

– Admiro a sua franqueza, Eminência. De que maneira o senhor propõe mudar essa imagem imperial?

– Acho que precisamos de um papa italiano, e de uma revisão completa por um concílio ecumênico do papel e do cargo.

– Como conseguirá as duas coisas ao mesmo tempo? – A perplexidade de Rossini era verdadeira. – Um pontífice que esteja preparado para cometer o haraquiri e um concílio ecumênico que forjará as armas para que o ajudem a fazê-lo.

– Simples! Reúna votos suficientes para o homem certo e ele concordará com isso.

– Por que não deveria? O senhor sabe que nenhuma promessa antes da eleição está vinculada à lei, e até mesmo a simonia não invalida uma eleição. Mais uma pergunta: por que um candidato italiano oferece melhores perspectivas de mudança do que um que não seja italiano?

– É uma questão de atitude.

– Poderia explicar isso, por favor?

– Facilmente. O maior problema que tivemos durante o recente pontificado foi o absolutismo antiquado, o medo do “relativismo moral.” Chegar a uma concordância praticável entre os dois conceitos foi e tem sido sempre o talento dos italianos: nós fazemos leis horríveis para tudo. Aceitamos que o princípio da lei é imutável e que a sua prática perfeita é impossível. É aí que entra a tolleranza. É aí que nos diferenciamos dos alemães e dos anglo-saxões...

A princípio, Rossini foi simpático à ideia. Os italianos tinham um talento singular para lidar com situações impossíveis, e de alguma forma, coexistir com as criminalidades perenes da natureza humana. A vida familiar deles era enraizada no sistema matriarcal, no qual, desde que ela pudesse sobreviver à infidelidade, às tiranias masculinas e aos múltiplos partos, toda mulher deveria chegar à soberania – o respeito de toda a família tribal para quem a palavra dela era lei. Foi um dos maiores erros estratégicos de seu falecido mestre que ele tenha alienado as mulheres do mundo. Confrontado com a decisão malfadada de seu predecessor de governar contra o controle de natalidade artificial, ele não aliviou em nada o fardo da mulher e, em um mundo de famintos e de superpopulação, abriu os portões para problemas mais graves enquanto fechava a porta para uma discussão aberta sobre eles pelos teólogos católicos.

Rossini não tinha ilusões sobre a complexidade dos assuntos envolvidos no processo primitivo da sobrevivência. Ele entendia também que a maioria das decisões individuais humanas foi feita em momentos de crise e muitas vezes sem apoio ou deliberação. Ele aprendera a duras penas que pregar contra o pecado era uma coisa, oferecer compaixão e perdão ao pecador era outra coisa bem diferente. Sua resposta foi simples e pragmática:

– Concordo que devemos eleger um pontífice que irá abraçar a causa da reconciliação. Esse é o âmago da questão. Quem os senhores têm em mente?

Desta vez a resposta veio de um cardeal que antigamente comandara a Congregação dos Bispos. Ele era frágil e tinha os cabelos brancos, mas este era claramente o seu argumento e ele estava pronto para falar sobre ele:

– Nós temos três candidatos. Dois deles são pastores de cidades italianas importantes, o terceiro é um prefeito curial com longa experiência diplomática.

Rossini esperou em silêncio pelo restante da exposição. Esse era o velho tratamento romano: manter o homem em suspense, distribuir informações como pérolas. Finalmente, ela foi dita.

– O nosso primeiro candidato é o cardeal-arcebispo de Gênova. Você o conhece, não?

– Sim, nós nos conhecemos.

– Algum comentário?

– No momento, não.

– O segundo candidato é o cardeal-arcebispo de Milão.

– Eu o conheço também, acho melhor que o de Gênova.

– O terceiro é o seu colega curial, Aquino.

– Eu o conheço bem.

– Estaria preparado para dar o seu voto a qualquer deles?

– Estarei preparado para considerar cada um deles nos seus méritos; e na mudança de clima de cada voto, supondo que múltiplos votos são necessários.

– Há algum deles que recusaria de imediato?

– Quer dizer, aqui e agora, fora do contexto do processo eleitoral?

– Aqui e agora, sim.

– Eu não acho que seria apropriado preestabelecer a situação eleitoral.

– Como queira, certamente.

– Houve qualquer opinião quanto ao contrário?

– Fomos induzidos a acreditar pelo seu colega, Aquino, que você era um homem de opiniões positivas.

– Ele deu qualquer exemplo de minhas opiniões?

– Não especificamente. Na verdade, me pareceu que ele estava lhe fazendo um elogio. Ele disse “Fale com Rossini. Ele circula muito. Ele sabe como interpretar os ventos. Se eu fosse pontífice, eu me certificaria de mantê-lo bem perto de mim.”

– Isso foi muita gentileza dele – disse Rossini. – Algum dos outros fez um comentário?

– Deixe-me pensar agora. Gênova simplesmente deu de ombros e disse que você era um homem bom que seguia os próprios conselhos e que provavelmente causaria pouco impacto ao conclave.

– E Milão?

– Aquele é um jesuíta, é claro, e um estudioso bíblico de alta reputação. As duas coisas são, ou podem ser, obstáculos para um pontífice. Como ele o descreveu? Ah sim, ele disse, “Rossini? Sujeito interessante. Eu gostaria de pensar que poderíamos aprender um com o outro.” Então, aí está! Se você ajudar a elegê-lo, ele provavelmente será um bom patrono. Duas probabilidades em uma única fornada. Nada mal, não é?

A piada não foi boa e caiu mal. Seguiu-se um momento embaraçoso. Rossini ficou com os lábios selados em silêncio. Os outros na reunião estudavam as costas das mãos. Então os sinos do ângelus começaram a tocar por toda a cidade. Como soldados bem treinados que eram, os homens velhos levantaram-se e olharam para Rossini como o anfitrião para fazer o ritual de oração: Angelus Domini nuntiavit Mariae. Suas vozes anciãs responderam em um coro roto: Et concepit de Spiritu Sancto. Quando a oração terminou, houve um momento de silêncio enquanto cada um lembrava que neste dia, e por ainda mais alguns dias, não haveria figura de vestes brancas na janela do apartamento papal, recitando o ângelus com os peregrinos na praça. A Sé de Pedro estava vazia. Aqueles que estavam no escritório de Rossini eram membros de uma curadoria, cujos poderes estavam limitados pelo mandato de um homem morto. Quando a oração do ângelus terminou, Rossini de repente pareceu distante. Do silêncio, o arcebispo emérito delicadamente o estimulou a falar.

– Seria de grande ajuda se pudesse nos dar uma posição imediata quanto às ideias que lhe propusemos.

Rossini estava momentaneamente confuso, mas sua resposta foi firme.

– Para ser franco, elas me intrigam. Seu trio de candidatos é interessante, mas não posso acreditar que esteja completo. Sua política... se pode ser assim descrita... carece de substância e detalhes. Eu esperava uma exposição mais persuasiva das necessidades da Igreja.

– Nós deduzimos que você estivesse a par delas. E esperávamos que já tivesse algumas soluções em mente.

– Receio, cavalheiros, que os senhores estão exigindo demais de mim. Deixe-me falar francamente. O meu serviço como pastor foi muito curto. Ele foi ministrado em um canto primitivo da América do Sul. E terminou abruptamente. No tempo restante, pelo desígnio pessoal do falecido pontífice, eu fui treinado, por assim dizer, para uma missão errante. Eu fazia relatos de lugares tão distantes como Tóquio e Tulsa. Sua Santidade via, ou pensava que via, um certo valor nas minhas análises das situações locais, nos meus contatos com políticos e líderes de outras religiões que não teriam, ou não poderiam, ter me recebido formal e abertamente. Muitas vezes pensava que o que estava vendo era o avesso de um tapete e o que eu estava perdendo era o seu maravilhoso desenho do outro lado. Sim, desenvolvi intuições. Tive amigos e conhecidos que podiam me dar acesso furtivo a pessoas no poder, mas, lembrem-se, meus relatórios eram transmitidos com base nesse conhecimento fragmentado e na minha reação instintiva diante de circunstâncias inesperadas. Meus julgamentos adquiriram valor por causa do homem para quem eu os transmitia. Ele me deu confiança. Ele adicionou suas próprias intuições às minhas. Agora, preciso lhes dizer, estou bem menos confiante. Não estou certo de que minhas opiniões tenham algum valor para os senhores.

– Esteja certo que têm, Rossini. E lembre-se: quer nossas opiniões estejam certas ou erradas, precisamos de sua voz para oferecê-las aos eleitores no conclave. Nós somos velhos e apenas às vezes sábios, mas fomos submetidos à mudez por decreto.

Rossini fez um gesto de resignação.

– Então que seja. Eu lhes prometi uma voz honesta no conclave. E os senhores a terão. Agora, os senhores têm transporte? Se não têm, será um prazer arranjá-lo.

E assim a reunião terminou, se não bem-sucedida, pelo menos no estilo tradicional. Sondagens foram feitas. Planos foram traçados na fina letra italiana, depois magicamente apagados como se nunca tivessem existido. Houve até o tilintar abafado da moeda mais preciosa de todas – posição, promoção, patrocínio – nenhuma das quais era verdadeiramente um privilégio daqueles que a ofereciam. E no entanto, Rossini sabia que eram o cerne da verdade entre as cascas da falácia.

Nas últimas décadas do século XX, a repartição do papado romano fora inflada além da capacidade de qualquer homem sozinho fazê-lo. O falecido pontífice viajara o mundo com a Boa Nova em sua pasta – mesmo que metade dela tenha sido reescrita para ele pelos consultores locais. A imprensa moderna dera-lhe uma presença penetrante, um grau de exposição inconcebível nos velhos tempos. A aura que o envolvia agora não era mais de mistério mas de familiaridade e idiossincrasia. Muitos de seus textos foram escritos por outras mãos. Eles começaram a cheirar a lamparina, a incenso e argumento estragados.

Nenhum homem, mesmo cheio do Espírito, era grande o suficiente, sábio o bastante, durável o suficiente para criar a ilusão de universalidade: um pastor universal de uma Igreja universal. Havia bem mais razão, bem mais apelo talvez, na imagem de um pontífice romano, bispo de sua própria Sé, personificados nele mesmo, do que havia de fato na cidade dele, a longa história do cristianismo, a unidade fundamental de seus sacramentos e credos. A primazia dele seria a primazia de tradição milenar entre as igrejas. Ele seria o árbitro final de suas disputas, o censor definitivo de suas condutas. Ele reinaria, não pelo exercício obscuro do poder burocrático, mas pelo consentimento colegial para um Evangelho comum e uma tradição apostólica comum.

Isso, também, talvez fosse uma ilusão, porque, uma vez conquistado, o poder não era prontamente abandonado, contudo a noção de autoridade com base no serviço, validada pela tradição apostólica, era no final a única noção válida. Esse era o verdadeiro pé de mostarda da parábola, brotando de uma única raiz, espalhando seus galhos para que todos os pássaros do ar pudessem descansar naquele lugar. Se a Boa Nova de um Evangelho universal era para ser ouvida acima da confusão de línguas e do clangor dos sinos dos templos discordantes, ela devia ser anunciada com a simplicidade do canto matinal dos pássaros: Ame os seus inimigos. Faça o bem àqueles que lhe fazem mal.

Essa era a doutrina mais fácil de ser pregada e a mais difícil de ser praticada. Rossini estava dolorosamente começando a entender que esse era o centro de seus próprios problemas. Desde que chegara a Roma, estivera construindo uma fortaleza para o seu ser fragmentado. A fortaleza não fora fundamentada em solo firme, mas em afloramento de ódio e ressentimento. No coração da fortaleza havia um santuário onde um Deus silencioso habitava mas onde uma lâmpada sempre queimava para a imagem miraculosa de uma mulher ausente, Isabel Ortega. Era ela quem mediava entre ele e o Deus silencioso, cuja existência reconhecia com toda formalidade, mas que, em seu inconsciente, estava sempre associado à presunção mais severa de magistrado. Não há poder que não venha de Deus – e os poderes existentes são ordenados por Deus.

Fora a amante visível que o mantivera vivo e são. Depois dela, ele vivera em celibato, ele se mantivera afastado dos atos de retribuição ou vingança; contudo, a pontualidade exata de seu serviço era um ato de exclusão contra as lembranças do abuso. Não espero que me amem, cavalheiros, mas me respeitarem os senhores irão! Agora, Isabel estava aqui em Roma. Ele a beijara e a tivera nos braços. Ela mostrara a ele o fruto do amor deles, uma garota transformada em mulher. Ele abraçara sua filha e ela o abraçara. Os três encontraram uma medida de alegria no encontro.

Mas o Deus silencioso os presenteara com uma ironia excêntrica. Isabel estava sob uma sentença de morte, que poderia ser deferida, mas não rescindida. Ele próprio era um dos dois pais de Luisa – aquele que poderia oferecer menos a ela em termos de amor, cuidados e herança. O Deus silencioso escondera sua face – talvez para sempre – para que as liturgias públicas que ele ofertava, os deveres realizados em lugares públicos e de alta-roda se tornassem uma gozação estéril. Em breve o santuário estaria vazio. A fundação de sua fortaleza estava rachando. As paredes estavam desmoronando sobre ele. Um belo dia ele estaria no meio das ruínas, fitando um céu vazio, privado até do dom das lágrimas.

E essa era a ironia final do Deus silencioso: não haveria ninguém com quem pudesse dividir sua desolação. Isabel teria partido. Luisa, sofrendo mas segura no amor de dois pais, dispensaria os dois no final e encontraria seu próprio homem.

Apesar da ruína pairada sobre ele, não poderia se entregar sem lutar. Não envolveria Isabel ou Luisa em sua guerra particular. Se o amor significa alguma coisa, significa que os últimos passos tinham de ser dados para apoiar o ser amado. A última oração tinha de ser compartilhada, mesmo que não tivesse significado para ele, mas somente para os outros. Depois disso, o quê? Um último grande sopro no berrante como o de Rolando em Roncesvalles para desafiar o Deus mudo para se fazer ouvir mais uma vez no deserto silencioso?

Luca, cardeal Rossini, era propriamente um irônico. Ele ainda podia sorrir de seus próprios conceitos. Muita conversa e muita cafeína em um estômago vazio eram mau remédio. Os diabos negros estavam começando a se agrupar em torno dele. Ele precisava de comida e companhia. Pegou o telefone e discou o número do monsenhor Piers Hallett na Biblioteca do Vaticano. Misericordiosamente, o homem ainda estava em sua mesa.

– Piers, precisamos conversar. Se estiver livre, eu lhe ofereço um almoço em minha casa. Apanhe-me aqui em vinte minutos.

– Eminência, o senhor salvou minha vida. Tenho à minha frente um sanduíche de presunto velho e uma página do Evangelho do século VI em grego. Meu problema é que o seu dono é um prelado um tanto irascível da América Central. Ele não ficará muito feliz quando eu lhe disser que o documento é uma fraude malfeita e que o texto original está em Rossano, aos cuidados do arcebispo!


9

Isabel e Luisa passaram a manhã em uma orgia de compras. Elas percorreram todas as armadilhas douradas entre a Via Condotti e a Via del Corso e pararam, com os pés doloridos e mais pobres, nos Salões de Chás de Babington, na base da Escadaria Espanhola. Elas encontraram um canto discreto, tiraram os sapatos embaixo da mesa e pediram chá Earl Grey com sanduíches de pepino e salmão defumado.

– Exatamente como um par de Anglos – disse Luisa, com um sorriso.

– Não brinque, menina – Isabel a repreendeu suavemente. – Este lugar me traz muitas lembranças boas. Meus pais me trouxeram aqui quando eu tinha dezesseis anos. Isso foi no final dos anos cinquenta, quando a Argentina era um país rico e a Itália um país barato para se visitar. Viemos de navio, uma viagem de retorno em um dos grandes navios que estavam trazendo imigrantes italianos de Nápoles para Buenos Aires.

– E este lugar já existia?

– Este lugar existe, se não me falha a memória, desde 1897. Ele foi fundado por Anna Babington, que era britânica, e por Isabel Cargill, que veio da Nova Zelândia. Eu me lembro dela porque o seu nome é o mesmo que o meu, “Isabel”. A história é longa, mas não vou aborrecê-la com isso.

– Não, por favor! Você não está me aborrecendo. Eu adoro quando você divide suas lembranças comigo. Isso não acontece com frequência ultimamente.

– A gente perde o hábito – explicou Isabel. – Alguém me disse que a gente precisa de netos para relembrar.

A garçonete veio, pôs os sanduíches na mesa, serviu o chá, desejou-lhes bom apetite e partiu.

– Por favor – Luisa pediu a ela. – Por favor, termine a história.

– É estranho, como as coisas se organizam na memória. Eu me lembro do Babington como o lugar de minha mãe. A parte anglicana do lugar a encantava, e a história a fascinava. Anna Babington era descendente de um tal Anthony Babington, que foi enforcado, estripado e esquartejado por traição contra a rainha Elizabeth I da Inglaterra. A amiga dela, Isabel Cargill, era descendente de um protestante escocês que pregava contra Carlos II, acusando-o de tirania e lascívia. Ele foi executado em Edimburgo. Quando os tempos ficaram ruins na Argentina e Luca e eu estávamos em apuros, eu costumava sonhar com este lugar. O seu avô Menéndez, por outro lado, nunca se sentiu confortável aqui. Ele preferia o Caffè Greco, do outro lado da praça, na Via Condotti. Todos os grandes românticos o frequentavam: Byron, Liszt, Wagner... E o meu pai era um romântico... mas ele tinha um coração de leão. Quando estávamos escondidos, depois de eu ter atirado no sargento, ele foi sozinho a Buenos Aires e negociou por nossas vidas... Ele nunca me contou o que aconteceu, mas quando ele morreu na queda de helicóptero, fiquei imaginando se não foi um ajuste final de contas por parte de alguém que ele ameaçara. A queda foi noticiada como acidente, mas quem sabe? Nós enterramos tantos segredos durante os últimos vinte e cinco anos. No entanto, aqui estamos, você e eu, tomando chá e comendo sanduíches de pepino no Babington na Piazza di Spagna!

– Enquanto o seu Luca... e meu novo pai... é um cardeal com um solidéu vermelho, que poderá até ser nosso papa.

– Como se sente sobre ele agora?

– Não sei. Você teve vinte e cinco anos para se acostumar com ele. Eu só tive vinte e quatro horas. Você não entende como isso é desconcertante? É como se uma figura tivesse saído de um quadro e estivesse andando pelos aposentos mais particulares da minha vida agora. Você precisa me ajudar! Precisa explicá-lo. Onde Luca se encaixou em sua vida todo esse tempo? Onde ele se encaixa em seu futuro?

– O futuro? Isso é fácil. Voltarei para casa sem ele. E morrerei amando-o.

– Meu Deus, você pode ser cruel às vezes, mãe!

– Eu matei um homem, lembre-se. Esse é um ato cruel. Sobrevivi a tempos cruéis. Desculpe-me! Você me pediu para explicar. Estou tentando. Mas esse amor por Luca não se explica facilmente. Eu era jovem então. Adorava meu pai, que era tudo o que Raul não era. Meu pai era forte, aventureiro, decisivo. Ele deixou o exército porque detestava o que estava acontecendo nas forças armadas. Eu ainda estava aprendendo que Raul era o que sempre seria, um garoto mimado, um conquistador agradável, mas uma perda de tempo quando se dependia dele. Ele viajava muito e se divertia quando viajava. Quando ele estava ausente, eu costumava visitar meu pai onde quer que ele estivesse trabalhando. Foi assim que fui parar na paróquia de Luca naquela manhã. Eu o tinha visto algumas vezes na aldeia, por tempo suficiente para dizer bom-dia e notar que ele era um jovem bonito e imaginar por que estava feliz em se enterrar em um lugarejo como aquele. No dia em que os soldados vieram, tudo mudou.

– Por favor, mãe, eu não quero ouvir essa parte de novo. Como Luca se comportou?

– Você precisa entender que ninguém se “comporta” depois de uma surra como aquela, ele simplesmente ficou lá na roda, gemendo e se retorcendo, com o chicote do sargento cravado em seu traseiro, enquanto o sargento desabotoava as calças e se preparava para sodomizá-lo.

– Meu Deus!

– Luca bloqueou essa parte completamente. Nas semanas em que estivemos juntos, ele nunca mencionou isso. O médico disse que ele poderia reprimir o fato até morrer se a sanidade dele sobrevivesse até lá. Os danos internos não foram graves... mas o dano psíquico foi, como disse o médico, “inadmissível”...

– Então, você teve pena e se apaixonou por ele?

– Não! Foi bem ao contrário. Eu me apaixonei pelo ódio que ainda tinha, pelas pragas que ele ainda podia rogar, pela sua alma desafiadora. Eu não o estava vendo como vítima, mas como um homem atormentado, porém inteiro em espírito. Ele era a minha recompensa. Eu matara por ele. Eu também poderia ser morta no final, mas esse homem era meu.

– Mas você não podia ficar com ele?

– Não! Eu o curei. Cuidei dele durante febres e pesadelos. Usei todos os truques que conhecia para estimular sua paixão e restaurar a devastação de seu orgulho e de sua masculinidade. Meu Deus, Luisa! Se houve uma criança amada no mundo, você foi essa criança.

– Então, por que você deixou Luca ir embora? Por que você ficou com Raul?

– Porque esse foi o trato que o meu pai teve de fazer com os generais e com a Igreja.

– E se ele não tivesse feito o trato?

– Nós três estaríamos entre aqueles desaparecidos.

– Quanto Raul sabe dessa história?

– Não sei dizer. Nunca discutimos o assunto.

– Não acredito nisso.

– É verdade. Logo que vovô Menéndez confrontou os generais... e lembre-se de que o pai de Raul era um deles!... todos viram o perigo da situação. Houve massacres, assassinatos e desaparecimentos no passado. Mas esse poderia ser demais. Um padreco de aldeia... não era muita coisa! Mas a nora de um general, mulher de um playboy conhecido internacionalmente, filha de um renomado engenheiro do ramo de petróleo? É o bastante, eles disseram! Leve a mulher de volta para o marido. Tire o padre do país. Deixe que o núncio apostólico o entregue a Roma, embrulhado para presente. Mas em silêncio! Uma palavra fora do contexto, e vocês nem imaginam o quanto isso pode ficar desagradável! Todos nós fomos reféns do silêncio.

– Por que você e Luca não fugiram?

– Para onde? Peru, Chile? E não se esqueça de que havia outros reféns, também: meu pai, Raul e a família dele. Não havia como superar o trato que tínhamos! Nós dois sabíamos disso.

– Como Luca reagiu?

– Nunca o vi tão enfurecido. O nosso último encontro amoroso foi selvagem, desesperado e maravilhoso... mas a nossa despedida foi calma e serena. Ficamos na sombra e olhamos o helicóptero pousar. Não nos beijamos. Não nos abraçamos. Havíamos decidido que não haveria testemunhas, oficialmente pelo menos, do nosso amor. Duas pessoas saíram do helicóptero: um clérigo e um major do exército. Os olhos de Luca eram como pedras negras. Seu rosto parecia de madeira esculpida. Eu me lembro o que ele me dissera na primeira hora do falso amanhecer: Eu amo você. Sempre a amarei. Nunca haverá outra mulher em minha vida. Ele afastou-se, orgulhoso e calado entre os dois homens, sem olhar para trás. Não sei se acenou para mim ou não quando levantaram voo. As lágrimas me cegavam.

– Mas mesmo assim você voltou para casa e fez amor com o meu pai, e teve outros amantes. Como se sentia quando estava com eles?

– Eram brinquedos para mim. Eles eram minha vingança contra o que Raul estava fazendo comigo.

– Mas Luca também fazia parte de sua vingança.

– Não! Ele era o meu homem.

– Você disse que ele era a sua recompensa. Você realmente o possuía?

– Não inteiramente.

– Você o possui agora?

– Não. Ninguém o possui. O amor dele é um presente gratuito de um homem livre.

– Sinto muito, mãe, mas estou tentando entender. Você acha que Luca manteve a promessa sobre outras mulheres?

– Tenho certeza disso.

– Como pode ter certeza? Será que ele se sente tão culpado em relação a você que perdeu o gosto por outras mulheres?

– Pelo contrário. Ele se recusava a me ver como uma culpa em sua vida. Ele me chamava de “uma dádiva salvadora”, e estava certo.

– Mas ele ainda não está salvo, não completamente. Envolveu a Igreja em torno dele como um manto de invisibilidade. Aquela casa dele mostra o outro lado da história. Ele ainda está voando. Ele precisa de um refúgio. Ele não admite. Ele é muito orgulhoso para isso. Mas você ainda é a estrela-guia que dá direção à vida dele. O que ele fará quando você não estiver mais aqui?

– É disso que você tem medo, Luisa? Que ele tentará de algum modo se apoiar em você?

– É possível.

– É impossível, e não irá acontecer. Quando Luca e eu nos rendemos ao inevitável, esse capítulo de nossas vidas estava terminado. O caso estava encerrado. Nenhum de nós estava preparado para aceitar uma autotortura. O amor era outra coisa, um tesouro, secreto para nós dois. Só começamos a nos corresponder depois que seu pai e eu nos mudamos para Nova York e eu estava trabalhando em uma instituição com meu próprio escritório. Fui eu que dei início à correspondência. Portanto, nunca pense que Luca irá intrometer-se em sua vida!

– Mas, como você, nunca poderei excluí-lo da minha vida.

– Isso é verdade. Então por que não dar as boas-vindas a ele?

– E agradecer por me reconhecer como filha?

– Isso também, se você quiser.

– A carreira dele estaria arruinada se essa notícia se espalhasse!

– Duvido – Isabel fez sinal para que a garçonete trouxesse a conta.

– Como pode dizer isso, mãe?

– Porque acho que ele está prestes a deixar a Igreja.

Luisa olhou para a mãe, surpresa.

– Para fazer o quê?

– Não sei. E acho que ele também não sabe.

– Mas por que ele quer renunciar? A não ser que o transformem em papa, ele já subiu tão alto quanto qualquer homem pode subir em Roma.

– Não acho que ele veja as coisas desse modo.

– Como então?

– Ele está numa crise de fé. Essa pode ser a fórmula que solucionará o trauma não resolvido de sua vida. A surra, a violação, o amor que nutrimos um pelo outro, a conspiração do silêncio entre a Igreja e o Estado, do qual, para salvar nossas vidas, concordamos em ser aliados. É muito para suportar, minha querida filha. Então tente não nos julgar muito severamente. Por falar nisso, o que vai fazer à tarde?

– Vou levar as compras para o hotel, depois vou escrever cartas e cartões. E você?

– Tenho uma reunião com a líder das Mães da Praça de Maio. Ela está com as Irmãs Missionárias de Nazaré no monte Oppio. Depois da reunião, vou até a casa de Luca ficar um pouco com ele, se estiver em casa e me receber.

– Lembre-se de que temos um jantar na embaixada hoje à noite. Eles mandarão um carro nos pegar. Você devia reservar um tempo para descansar antes de irmos.

– A que horas devemos sair?

– Entre oito e oito e meia... ah, e já que ainda estamos de luto pelo papa, vista-se informalmente.

– Isso é uma bênção – disse Isabel. – Vamos andando. Pagaremos na saída.

– Antes de sairmos, mãe. Sei que sou difícil às vezes, mas amo você e sei que é algo muito especial ser sua filha amada bem como legítima.

– Você sabe por quê?

– Diga-me!

– Tia Amelia costumava dizer, “Filhos amados têm sorte quando são bem-vindos. Eles são melhor cuidados e normalmente possuem melhores hábitos do que o restante da família.”

EM SEU PEQUENO terraço, na Via del Governo Vecchio, Rossini estava servindo café para monsenhor Piers Hallet. E também passando algumas informações sobre a organização do conclave:

– Desta vez, todos os conclavistas e seus acólitos ficarão alojados na Casa de Santa Marta. Não é exatamente o Grand Hotel, mas é um edifício todo novo, com cento e oitenta suítes e vinte e três quartos de solteiro, junto com áreas de refeição e lazer. Os locatários presentes serão removidos para acomodar os conclavistas. Nós não sabemos ainda quantos cardeais estarão presentes. Mas digamos que seja qualquer número entre cento e dez e o limite máximo de cento e vinte. O que não deixa muito espaço para os acólitos. Pediram a cada um de nós que especificássemos o número de acólitos necessário a cada um e que justificássemos suas presenças levando um memorando ao camerlengo. Fora a questão de espaço, o ponto chave é reduzir o número de assistentes clericais que costumam circular entre várias facções de eleitores. Então decidi, meu caro Piers, apresentar você como meu confessor pessoal.

Hallet deu uma gargalhada.

– Isso é o máximo! Piers Hallett, paleógrafo, pedante, rato de biblioteca, agora confessor particular de uma Eminência! Eles não vão engolir isso! Eles me expulsarão de lá pelos colarinhos!

– Não, não expulsarão – disse Rossini. – Já deixei claro que tenho um problema pessoal que espero resolver durante o conclave, no qual estamos ordenados a atuar tendo apenas Deus sempre diante dos nossos olhos. Então, de fato, preciso de um confessor... e estou nomeando você.

– Você ainda deve estar brincando.

– Não, não estou. Você é um padre, não é?

– Claro. Mas escute, de amigo para amigo: não sou um homem espiritualizado. Sou um estudioso em uma coleira de cão. Que conselho posso dar a um homem como você?

– Mas você me pediu conselho sobre um assunto muito espiritual: a sua própria identidade, a sua própria vida moral. Espero poder ajudá-lo, e sei que você pode me ajudar.

– Como, pelo amor de Deus?

– Escutando, arrastando-me dos espinheiros para o campo aberto. Toda a nossa conversa estará sob o selo. Nós somos livres, qualquer de nós dois, para dar ou recusar perdão no final.

– Isso é puro formalismo. – Hallett estava verdadeiramente surpreso. – Nunca esperei ouvi-lo falar desse jeito.

– Eu sei – respondeu Rossini. – Mas é só o que tenho para dizer no momento. Sabe, o que preciso decidir... com a sua ajuda, espero... é se ainda tenho fé, se eu devo ou não renunciar discretamente e ir para o deserto por algum tempo.

– Para onde iria?

– Essa foi a pergunta de Pedro: “Senhor a quem devemos ir?”

– Mas Pedro respondeu a si mesmo. “Você tem as palavras da vida eterna.”

– Exatamente, mas Pedro já tinha resposta. Eu não sei se ainda tenho.

– E eu também não sei. – Hallett ficou mal-humorado de repente. – Não sei onde me encaixo nesse mundo mais-que-perfeito dos absolutistas morais. Talvez façamos algumas descobertas juntos enquanto assistimos ao raree-show do Sucessor de Pedro!

Luca Rossini estava intrigado com a referência. Ele perguntou:

– O que foi que você disse?

– O raree-show do Sucessor de Pedro. É uma citação do poeta inglês, Robert Browning.

– Mas, por favor, o que é raree-show?

– Oh, céus! Em italiano ou espanhol, acho que a palavra mais próxima seria carnaval, embora a expressão em inglês sugira um parque de diversões com malabaristas, engolidores de espadas, mulheres barbadas e outras aberrações.

– Com alguns eclesiásticos cômicos misturados... um ou dois cardeais, ou um esqueleto das catacumbas franciscanas.

– Agora você entendeu – disse Hallett alegremente. – É uma palavra antiga, mas ela pode desenterrar alguns fantasmas na Cidade do Vaticano!

Rossini ainda estava rindo da imagem quando o seu celular tocou. Ele atendeu bruscamente; depois toda a sua expressão mudou. Em um momento ele estava ansioso, no outro, em dúvida e preocupado. Finalmente, disse:

– Muito bem. Eu a verei com você. Meu assistente a levará de volta depois. Preciso falar um pouco com você em particular. Não, não mesmo, estou com uma visita, é só isso. – Ele desligou e voltou-se para Hallett.

– Vou me encontrar com algumas pessoas em vinte minutos, por isso preciso dispensá-lo. Estamos de acordo, então? Você entrará no conclave como meu confessor pessoal. A partir de então todas as nossas transações pessoais estarão sob o selo confessional.

– De acordo. E obrigado pela confiança que está depositando em mim.

– Pensando nisso – disse Rossini com um sorriso –, estamos confiando muito um no outro. Se qualquer de nós, se não ambos, perder a fé, nenhuma das regras faz sentido, exceto como instrumentos para a condução da instituição.

– Razão pela qual a maioria delas foi inventada durante séculos – disse Piers Hallett. – Uma sociedade bem-organizada é uma coisa esplêndida. É como uma estufa. Pode-se cultivar qualquer coisa nela, mas nem tudo sobreviverá à aspereza do tempo do lado de fora. Esse é o verdadeiro terror do mundo para mim, Luca. Todos nós humanos... e tantos de nós tão sozinhos!

NA SALA DO Clube da Imprensa Estrangeira, Fritz Ulrich, bem guarnecido com um almoço pesado e dois conhaques, estava espalhando sabedoria e ironia para um grupo de novatos da Imprensa Católica Bávara.

– Esse é o menor e mais exclusivo colégio eleitoral do mundo: cento e vinte homens celibatários indicados para escolher um regente absoluto para o maior eleitorado religioso do planeta. Pense sobre isso! Eles mesmos não são eleitos. Eles são indicados por um pontífice reinante. A quem verdadeiramente representam? Certamente não representam a massa de fiéis. Qual é a obrigação deles? Encontrar um homem universal para uma Igreja universal. Impossível! Em teoria, eles podem eleger qualquer homem batizado e torná-lo padre, bispo ou papa em uma cerimônia. Na prática, escolherão um deles mesmos: um dos cento e vinte... se todos eles comparecerem!... para segurar as chaves do reino para um bilhão de fiéis e todas as outras almas ignorantes por quem reivindicam um mandato de conversão.

– Você está falando muito alto, Fritz! – Steffi Guillermin gritou para ele do outro lado da sala. – Alguns de nós estão tentando trabalhar.

– Peço desculpas! Vou tentar ser mais discreto. De qualquer modo, eu já disse o que queria. Essa gente boa chegará às próprias conclusões.

– Obrigada, Fritz.

Agora que ambos estavam sob pressão para reportar um evento milenar, agora que estavam envolvidos em negociações de posse de documentos e sindicância, a relação deles tornou-se menos abrasiva. Ulrich dispensou sua plateia, levantou-se da cadeira e foi até a mesa dela. Ela franziu as sobrancelhas e fez sinal para que a deixasse.

– Agora não, por favor, Fritz. Estou trabalhando.

– Só uns minutinhos, Steffi. A agência central me enviou uma pergunta.

– Sobre o quê?

– A sua entrevista com Aquino. Você sabe que compramos os direitos para a língua alemã de todas as suas reportagens.

– E qual é o problema deles?

– Você discutiu as acusações lançadas contra ele pelas Mães da Praça de Maio. Meu pessoal quer saber se você tem qualquer informação sobre outro aspecto da situação: o envolvimento de antigos cidadãos alemães na guerra suja, suspeitos de crimes de guerra ou coisa assim?

– Não, não tenho, Fritz. Isso é coisa antiga. Eu não quis mencioná-la. Por que eles querem saber esse tipo de coisa?

– Estão tentando construir o histórico dos candidatos que possam ter manchas negras em seus passados por questões políticas ou outras. Italianos que tenham vivido sob o domínio dos democratas-cristãos, latino-americanos que se voltaram para a extrema esquerda ou direita, esse tipo de coisa. Eu disse a eles que mandaria alguns resumos, mas que não queria perder tempo com isso. Isso é pura especulação... material de carregação.

– Bem, diga-lhes que lamento não poder ajudar. Agora, se não se importa...

– Só mais uma coisa, depois a deixo em paz. O que você sabe sobre os janízaros?

– Os o quê?

– Janízaros! – Ele estava feliz por tê-la surpreendido, feliz por iniciar um novo monólogo. – Soldados das tropas de choque do velho Império Otomano. Criados no século XIV, eles guarneceram todos os postos avançados dos turcos otomanos nos Bálcãs.

Steffi Guillermin olhava para ele estupefata.

– E que diabos eles têm a ver com a eleição papal? Você tem certeza de que está sóbrio, Fritz?

– Não, não tenho certeza. Preciso de outro drinque. Mais um drinque irá provar uma coisa ou outra. Você gostaria de me acompanhar?

– Nem pensar! E você não devia beber mais, também. Bem, por que você mencionou os janízaros?

– Analogia. – Ele encontrou a palavra por acaso, depois agarrou-se a ela. – Analogia histórica importante. Eles capturavam meninos cristãos e os entregavam como escravos às famílias turcas, onde aprendiam a língua e abraçavam o islamismo. Depois disso, eles eram recrutados no exército como corpo de elite. Treinavam em quartéis especiais; eram celibatários; eram impedidos de negociar; a obediência deles era absoluta. Suas insígnias de honra eram os antigos nomes escravos: lavador de panelas, lenhador, cozinheiro. Mas eles eram uma força temida e admirável. Agora, minha querida Steffi, você percebe onde minha analogia quer chegar? Todos os prelados que estão reunidos nesta cidade neste momento são como os janízaros: soldados da tropa de choque de um império religioso.

– É um pensamento interessante, Fritz. Mas o que você vai fazer com ele?

– Um debate talvez. O seu pessoal não estaria interessado em discuti-lo?

– Duvido, mas estou disposta a tentar para você quando isso acabar. O problema que todos nós temos é uma superdose de informação e leitores não educados o bastante para lidar com ela. Agora, me deixe em paz. Preciso terminar meu trabalho.

– Estou indo! Estou indo! – Ele lutou para ficar equilibrado sobre as pernas antes de dizer a última frase. – Os janízaros se deram bem enquanto tinham um suprimento regular de garotos escravos. Mas assim que a luta parava, a procriação tinha de começar; então eles jogavam o celibato pela janela. Há uma lição nisso, Steffi... uma lição para a Igreja. Uma lição para você, também, por falar nisso.

– Graças a Deus não sou uma procriadora, Fritz, se não poderia acabar com uma criança como você!

Enquanto ele saía, rindo, Frank Colson aproximou-se da mesa. Antes de ele abrir a boca, Guillermin disse:

– Por que eu sempre caio na dele? Sou uma mulher inteligente, no entanto, toda vez que ele fala comigo eu caio do meu poleiro como um papagaio demente.

– Cai onde, Steffi?

– Nas piadas de Fritz Ulrich! Ele é tão imbecil!

– Ele a conhece muito bem. Você sempre morde a isca. Agora, eu tenho uma notícia somente para os seus ouvidos.

– Notícia boa, notícia ruim, ou o quê?

– Os tabloides londrinos estão publicando uma história sobre a moral dos veteranos do clero... coisa antiga, na maior parte: um cardeal australiano, alguns valentões na Cúria. Eles só estão pescando em águas turvas; mas um dos nomes que veio à tona foi o de Luca Rossini. Você o entrevistou outro dia. Você o chamou de homem misterioso.

– Eu sei. Estou revisando a história agora e continuo não gostando da frase. Queria encontrar uma nova antes de redigir. De qualquer modo, o que os tabloides ingleses estão dizendo?

– Eles estão navegando em águas perigosas. Estão falando sobre um crime misterioso no qual Rossini esteve envolvido na Argentina, uma surra medonha, uma declaração de que ele fora sodomizado, um arranjo secreto para contrabandeá-lo para fora do país... e eles estão enviando sinais de fumaça sobre um romance e o nascimento de uma criança depois que ele saiu do país.

– Meu Deus! Eles estão assumindo um risco e tanto!

– De quê, um processo? Ele não pode processar, exceto com a permissão do pontífice... que não temos no momento. E, além do mais, que importaria isso? Quanto às chances de eleição, Rossini estará em apuros.

– Então, quem carregou o canhão e disparou o tiro?

– Boa pergunta, Steffi! Qual é a sua resposta?

– São duas. Primeiro, os argentinos tiveram essa informação por um longo tempo. Uma coisa que eles nunca vão querer ver é uma das vítimas de sua guerra suja entronizada no Vaticano, cicatrizes e tudo o mais. A segunda hipótese, que não gosto tanto quanto da primeira, é alguém dentro do Vaticano com acesso aos arquivos e o motivo para vazá-los contra Rossini.

– Clérigo ou leigo?

– Clérigo. Teria de ser.

– Motivo?

– Inveja ou maldade, ou ambas.

– Então agora preciso de seu conselho. Minha agência pediu que eu refletisse se deveríamos investigar a história ou deixá-la esfriar para outro fazer a autópsia.

Steffi Guillermin refletiu sobre a pergunta por alguns instantes, antes de responder:

– Em primeiro lugar, Frank, não há nada nessa história exceto a sodomia e a criança ilegítima que não estavam no diário do pontífice. O romance é mencionado, se não descrito. A criança? Uma certidão de nascimento resolveria esta questão no ato.

– Você está certa, claro. Detesto lavagem de roupa suja. Acho que estou procurando uma boa desculpa para pular fora.

– Você sabe, Frank, que qualquer conselho que se dê em um caso como esse está fadado ao erro. Você recusa uma história suja e ela vira a manchete de amanhã. Você vai atrás dela e estará ajudando o sacana que a deixou vazar em primeiro lugar. Estou em sintonia com Aquino e Rossini, e não seria muito difícil extrair algum comentário das argentinas. Mas, como amiga, eu diria: não toque nisso. Você tem uma boa saída. É chefe de departamento. Avise que qualquer tentativa de promover tal história às vésperas de uma eleição pode ser interpretada como uma tentativa de um país protestante anglo-saxão de interferir na eleição.

– Isso não vai colar, Steffi.

– Então, apele para sua consciência. Diga que se recusa a fazer parte de um rumor espalhado às pressas num momento tão crucial.

– O argumento pode convencê-lo. Ele tem um gosto pelas frases bem construídas. Eu lhe devo um drinque. Ciao!

O que deixou Steffi Guillermin face a face com seu próprio dilema: quanta deslealdade haveria para com um colega se ela desse outra olhada em sua matéria antes de editá-la, e talvez – apenas talvez – fizesse circular um pouco da própria fumaça. Ela levou pelo menos dois minutos para tomar a decisão. Ligou para o escritório de Rossini e pediu que sua chamada fosse transferida para ele onde quer que estivesse. Sim, o assunto era urgente. Ela precisava esclarecer uma passagem da entrevista antes de redigi-la para publicação. Houve uma longa espera antes de receber a resposta. Sua Eminência tinha uma tarde muito ocupada, mas encontraria tempo para recebê-la em seu apartamento às cinco e meia da tarde. Ele esperava que ela não se ofendesse se tivesse de esperar um pouco. Claro que não. Por favor, transfira os agradecimentos da Srta. Guillermin a Sua Eminência!

A MULHER QUE ISABEL apresentou a ele naquela tarde tinha mais de setenta anos. O nome dela era Rosalia Lodano. Ela era a líder das Mães da Praça de Maio, de passagem em Roma.

Seus cabelos eram brancos como a neve, a pele como marfim envelhecido, enrugada e marcada pelo tempo e experiências amargas. Havia nela uma calma profética, uma formidável retidão além do alcance do medo ou da maldade. Seus olhos eram escuros, toldados e implacáveis. Com Isabel a seu lado, ela sentava-se ereta e corajosa, suas roupas folgadas em torno de sua esguia figura, as mãos abertas e imóveis sobre uma pasta grossa de documentos. Sua primeira intervenção foi uma surpresa: uma declaração imperiosa e curta.

– Conheço a sua história, Eminência. Conheço a Sra. Ortega. O senhor tem a minha confiança.

– Entenda que não faço promessas, mas o que prometo, eu cumpro.

– Sabe por que minhas amigas e eu estamos em Roma?

– Acho que sim, mas quero que a senhora me diga, clara e diretamente.

– Em 1976, perdi um filho e uma filha. Minha filha foi presa, interrogada, torturada, estuprada e finalmente morta. Meu filho foi preso. Sabemos que foi levado para a ESMA, a Escola de Engenharia Mecânica. Depois disso, nenhum sinal. Há milhares como ele, os desaparecidos. Nós sabemos que estão mortos. Não sabemos onde e como morreram. Há uma tortura em não saber, uma tortura que nunca termina! Precisamos saber... e quando soubermos, talvez possamos levar os assassinos à justiça. Mas saber é o primeiro passo. O senhor entende?

– Entendo.

– Entenda um pouco mais. O regime mudou na Argentina, sim. Mas nosso presidente bloqueou todas as estradas para a justiça que procuramos. Ele concedeu anistia aos oficiais superiores que foram responsáveis pelos anos de terror. Ele não autorizará a aquisição de testemunhos e depoimentos contra eles ou outros transgressores na Argentina. Documentos vitais foram enviados para fora do país... acreditamos que para a Espanha. Como a Sra. Ortega lhe disse, esperamos colocar as mãos em alguns deles na Suíça.

– Mas a senhora veio para Roma. Por quê?

– Queremos trazer todo esse negócio sujo para a Corte Internacional de Haia. Como indivíduos, não podemos fazer isso. A petição deve ser feita por um país através de seu governo legal. O nosso próprio país se recusa a agir. Então recorremos à Itália. O senhor e eu, Eminência, somos de origem italiana, mas não somos cidadãos. Novamente, estamos sem voz. No entanto, centenas dos desaparecidos eram cidadãos italianos, donos de passaportes italianos, residindo legalmente na Argentina. Eles não têm voz, porque não existem mais. Então, nos voltamos para um italiano que sabe o que aconteceu, o homem do papa, o núncio apostólico, o arcebispo Aquino.

– Mas descobriram que não podem tocá-lo também, porque ele é um cidadão do estado da Cidade do Vaticano?

– Exatamente! Suplicamos a ele que abdicasse dessa posição para que possamos acusá-lo em uma corte italiana, e lá expormos testemunhas e provas que possam forçar o governo italiano a levar a questão à Corte Internacional. O arcebispo... ele agora é cardeal... recusou. Ele alega que não temos provas. Diz que não devemos exigir dele a própria condenação. Além do mais, ele precisa do consentimento do Santo Padre para se apresentar em uma corte civil. Agora o Santo Padre está morto... e qualquer esperança que tínhamos morreu com ele. Não quero faltar com o respeito. O senhor me recebeu em sua casa, mas preciso dizer que não acredito mais na Igreja. Na Argentina, muitos da hierarquia fizeram um pacto de silêncio com homens nefastos. Parece que devemos esperar para discutir a questão com Deus!

– Se a senhora está procurando justiça este é o único lugar onde a encontrará – disse Luca Rossini. – Eu seria um mentiroso se falasse de modo diferente. Ouvindo a senhora, eu mesmo me sinto culpado. Eu sofri, como sabe. A Sra. Ortega assumiu um risco mortal para me salvar, mas no final devemos nossas vidas à mesma conspiração de silêncio. Um acordo foi feito. Se quebrássemos o acordo, outros sofreriam.

– Mas por que continuam em silêncio, agora que as coisas mudaram? Ainda têm medo?

– Só posso responder por mim mesmo – disse Rossini. – Eu não tenho nada a temer.

– Eu tenho algo a temer – disse Isabel. – Eu tenho um marido e uma filha. Não posso arruinar a vida deles.

– Compreendo – disse a velha senhora. – Sei muito bem o que o medo significa. Então, Eminência, o que acha que pode fazer por nós?

– Vamos falar um pouco mais, senhora. Temos uma única chance, não podemos cometer qualquer erro. Quero ouvir tudo sobre a causa contra Aquino... e lembre-se: a causa é contra ele, não contra a igreja local.

– Eu tenho aqui os documentos...

Por mais de quarenta minutos eles ficaram sentados à mesa, enquanto Rosalia Lodano mostrava o conteúdo de seu dossiê e Rossini a questionava sobre a autenticidade e a procedência dos documentos. Finalmente, ele interrompeu a conversação:

– Já vi o bastante. Pedirei a Juan para lhes trazer chá ou café. Preciso ficar só por alguns instantes.

Ele tocou a campainha para chamar o criado, pediu que servisse às mulheres, depois retirou-se para seu quarto, onde telefonou para Aquino. E começou abruptamente:

– Aqui é Rossini. Estou em casa. Está aqui uma senhora da Argentina, Rosalia Lodano, com quem o senhor esteve em contato. Acabo de ver os documentos do dossiê dela contra o senhor.

– Isso é ultrajante! Você não tem o direito de se intrometer desse modo!

– Fique quieto, por favor. Apenas ouça. Eu não me intrometi, o senhor pediu minha ajuda. Hoje essa senhora veio a mim com o mesmo pedido. Há alguns dias, o senhor deu uma entrevista um tanto nociva para uma jornalista do Le Monde e revelou nossa conversa particular sobre as Mães da Praça de Maio.

– Eu dificilmente chamaria isso de revelação. Eu achei que era uma boa oportunidade de preparar o terreno para qualquer discussão que pudéssemos ter com as mulheres... criar uma atmosfera de boa vontade. Não vi nada de ofensivo nisso.

– Eu achei gravemente ofensivo. O senhor me descreveu como seu advogado e defensor.

– Eu não fiz isso.

– A moça disse o contrário.

– Vamos lá, Rossini! Seja justo! Você sabe o quanto se fica exposto às más interpretações, especialmente em uma entrevista informal.

– E o senhor também sabe disso! Pois é um diplomata experiente. O senhor passou a vida medindo as palavras, e mediu essas também antes de pronunciá-las.

– Isso é ridículo... absolutamente paranoico!

– É mesmo? Deixe-me colocar a situação no contexto para o senhor. Eu consenti, particularmente, em mediar a discussão... não arbitrar, não funcionar como juiz, apenas mediar. A jornalista é muito inteligente, uma repórter meticulosa. O senhor deu a ela uma visão de nosso acordo que, imediata e irrevogavelmente, me compromete e o absolve. A própria vítima está defendendo a inocência do acusado. Isso resolve tudo para o senhor. Pois não precisa responder a qualquer acusação. E entra no conclave como um candidato sem mácula para um papado interino. E outra coisa: por favor, não me recomende para ninguém.

– Do que está falando?

– De outro encontro, com uma delegação de nossos colegas. O senhor foi citado: “Rossini circula muito. Ele sabe como interpretar os ventos. Se eu fosse pontífice, cuidaria de mantê-lo bem perto de mim.”

– Isso foi um elogio.

– Mas me foi transmitido como uma indução.

– E você ficou amplamente ofendido!

– Sim, fiquei.

– Então sugiro que você se acalme antes de terminarmos nosso negócio juntos.

– Nós podemos terminá-lo esta tarde, se o senhor quiser. Rosalia Lodano ainda está aqui. Mademoiselle Guillermin estará aqui às cinco e meia. Tenho todo o material do dossiê de que preciso para assumir um papel inteligente na discussão.

– Com que finalidade?

– Dar-lhe a chance de expor seu caso abertamente para a imprensa... com uma mulher com quem o senhor está obviamente confortável. Dar uma chance às Mães da Praça de Maio de serem ouvidas em foro aberto. Dar a mim a chance de fazer o que o senhor me pediu em primeiro lugar, mediar uma posição de risco mínimo para o senhor e para a Igreja.

– E se eu recusar?

– Então atenderei à reunião e farei o melhor que puder...

– Não posso decidir imediatamente sobre isso. Preciso de tempo...

– O senhor não tem nenhum – ele citou ironicamente: – “Agora é o tempo adequado. Agora é o dia da salvação.”

– Você pode ao menos limitar a extensão do...

– Acredito que posso limitar o dano e ainda deixá-lo com um vestígio de reputação. Responda-me agora, Eminência, sim ou não?

– Você falou com o secretário de Estado sobre isso?

– Lembre-se de que foi ele quem arranjou nosso primeiro encontro a seu pedido. Eu o cito literalmente: “Você pode até encontrar algum motivo de compaixão que o encorajará a enfrentar seus acusadores. Talvez até possa chegar ao verdadeiro homem por trás de todo aquele verniz.”

Houve um longo silêncio na linha. Depois Aquino perguntou:

– Como organizará o encontro?

– Rosalia Lodano está aqui. O senhor devia falar com ela primeiro. Depois todos nós falaríamos com a Srta. Guillermin.

– Quem mais estará presente?

– A senhora Ortega. Foi ela quem me colocou em contato com Rosalia Lodano.

– Qual é a posição dela em tudo isso?

– Mais propriamente como a minha, uma amiga da corte. Bem, o que me diz?

– Estarei aí o mais rápido que puder.

– Acho que essa é uma decisão sábia – disse Luca Rossini. – Muito sábia.

Quando voltou para transmitir a conversa para as duas mulheres, ele encontrou Rosalia Lodano bastante hostil.

– Quanto mais penso nisso, menos eu gosto, uma conversa particular em um lugar particular. Depois, cada qual tem uma versão diferente. Isso é o que sempre acontece, aqui e no meu país: palavras suaves, frases cuidadosas, a promessa de estudar o assunto mais atentamente... depois nada.

– Gravaremos a conversa – disse Rossini, calmo. – A senhora ficará com a fita original. Muito mais importante, no entanto, é o que a senhora vai extrair do encontro.

– Temos de levá-lo à corte.

– Não, senhora! – Rossini foi curto. – Nunca conseguirá isso. Eu vi os seus documentos. As senhoras ficarão sem dinheiro e sem vida, mas não terão um caso para levar à corte.

– Como pode dizer isso?

– Porque é um fato, claro em seus próprios arquivos. Em qualquer sentido legal, Aquino não é um criminoso; pelo que li em seu dossiê, nunca conseguirão uma acusação contra ele aqui na Itália ou em Haia.

– Então por que estou perdendo o meu tempo aqui?

– Porque esta tarde a senhora tem a chance de revelar a história mais uma vez para o mundo, implantá-la mais profundamente na memória do mundo, para que a sombra da culpa paire sempre sobre os perpetradores. Quanto a Aquino, o prévio silêncio dele ainda pode ser um testemunho poderoso em sua causa. Se conseguir fazê-lo admitir culpas morais, então a senhora terá conseguido uma grande vitória.

– O senhor pode garantir que ele admitirá alguma coisa?

– Acredito que ele possa ser induzido a fazê-lo, sim. O consentimento dele em participar da reunião desta tarde já é meio caminho andado.

– E o restante da jornada?

– Acredito que possa persuadi-lo a ir mais adiante.

As duas mulheres se entreolharam com grande surpresa. Isabel proferiu um aviso:

– Você arranjou a reunião, Luca. Isso já é uma grande coisa. É de bom senso que você conduza a discussão?

– Não estou certo. De qualquer modo, essa é uma escolha para a Sra. Lodano. A verdade é que posso usar palavras e argumentos que ficariam muito amargos na boca dela. Posso julgar o impacto dessas palavras em Aquino. Em seu próprio contexto elas podem se revelar mais potentes do que qualquer acusação feita a ele em nome dos ausentes. Contudo, estou igualmente preparado para ficar mudo e deixá-la conduzir o próprio diálogo.

A velha senhora ficou em silêncio por alguns momentos, depois disse abruptamente:

– Por que o senhor acha que pode defender nossa causa melhor do que nós?

– Eu não posso defendê-la melhor. Só posso entregar-lhes um resultado mais rápido e talvez melhor do que as senhoras poderiam conseguir.

– Convença-me disso, Eminência. Convença-me de que devemos confiar no senhor até agora!


10

Um vento frio percorreu o ar quando Aquino entrou na sala. Rossini apresentou as duas mulheres. Aquino cumprimentou-as com um aceno de cabeça mas não ofereceu a mão temendo uma recusa. Rossini o sentou do lado oposto da mesa enquanto pegava a própria cadeira e depositou a pasta de documentos diante dele. As mulheres ficaram juntas, a um passo da mesa. Uma terceira cadeira foi colocada ao lado delas para Steffi Guillermin, que devia chegar na próxima hora.

Rossini estava cuidadosamente formal. Ele anunciou:

– Proponho que gravemos nossa conversa para que não haja dúvidas sobre o que for dito aqui. Se qualquer das partes desejar falar confidencialmente, desligarei o gravador. Todos estão de acordo?

Todos concordaram. Rossini ligou o gravador e ditou hora, data, local e nomes dos participantes da reunião. Então começou:

– Esta reunião está sendo feita na esperança de esclarecer certos problemas não resolvidos entre as Mães da Praça de Maio e Sua Eminência cardeal Aquino, antigo núncio apostólico da Argentina. Quero deixar claro que alguns dias atrás, o cardeal Aquino pediu-me para mediar tal discussão. O secretário de Estado aprovou a ideia. A Sra. Lodano, líder da delegação das Mães da Praça de Maio, atualmente em Roma, vem já há algum tempo tentando conseguir uma reunião. Todavia, as exposições não pretendem lesar a posição de qualquer das partes, e não possuem caráter formal. Meu papel é unicamente o de mediador. Não fui convocado para fazer julgamentos, apenas para facilitar a discussão. Meu papel não exclui uma certa defesa para qualquer das partes, se tal defesa ajudar a trazer uma solução. Infelizmente, algumas soluções estão além do alcance. Não podemos ressuscitar os mortos. Não podemos... neste momento pelo menos... dizer onde e como os desaparecidos encontraram seus fins. Justiça para eles e alívio para o sofrimento dos parentes estão além de nosso alcance. Quero também dizer que não é possível fazer total justiça ao cardeal Aquino, que, como representante diplomático do Vaticano, serviu na Argentina durante um período terrível de sua história. Documentos que ele enviou diretamente ao falecido pontífice estão agora nos Arquivos Secretos. Outros, mantidos pelo secretário de Estado, não podem ser divulgados até que um novo pontífice seja eleito. Alegações conflitantes foram feitas sobre as ações de Sua Eminência no período em questão. Não é minha função defender tais alegações, mas simplesmente elucidar os fatos sobre os quais as duas partes possam concordar neste momento. Eminência, o senhor está preparado para declarar que, durante o seu serviço como núncio apostólico na Argentina, houve uma campanha de terror em larga escala por parte do Estado contra certas classes de cidadãos, e que essa campanha resultou na prisão, tortura e morte de milhares de pessoas, e no desaparecimento de muitas outras cujo destino ainda é desconhecido?

– Sim. Não tenho o número exato das vítimas, mas posso estipular que o número foi por volta de milhares delas. O próprio governo admite que foram dez mil, creio.

– Agora, vamos ver se chegamos a uma exata, se não totalmente abrangente, descrição de suas funções como núncio apostólico. Por favor, seja o mais claro que puder. Isso é muito importante para a Sra. Lodano e para as colegas que ela aqui representa.

– A função é dupla. Um núncio é um delegado da Santa Sé, um agente diplomático permanente do papa, que é soberano do Estado da Cidade do Vaticano. Ele possui o posto de embaixador. Sua segunda função, à parte da primeira, é cuidar do bem-estar da Igreja no país de sua missão.

– E qual é o posto dele na Igreja local?

– Ele precede todo o clero local exceto o cardeal-arcebispo. Ele é responsável apenas pela Santa Sé.

– Ele pode dirigir o clero local?

– A pedido da Santa Sé, sim.

– Mas ele informa Roma regularmente sobre o estado da Igreja local... e, mesmo que ele não os use, ele tem amplos poderes de intervenção.

– Sim, mas espera-se que use esses poderes com prudência e discrição.

Rossini voltou-se para as duas mulheres.

– Alguma pergunta até aqui?

– Apenas uma – disse Rosalia Lodano. – Parece que temos um cão de guarda com duas cabeças. Qual delas devia ter latido quando o nosso povo estava sendo preso, torturado e morto?

– Poderia responder a essa pergunta, Eminência? – perguntou Rossini.

– Admito que nenhuma delas fez barulho o suficiente – Aquino estava surpreendentemente subjugado. – Um embaixador só pode atuar dentro de certos protocolos. Normalmente, suas transações com os governos... seu próprio governo e aquele ao qual está acreditado... são feitas em segredo. Muito de sua influência depende do tato ao lidar com as situações difíceis.

– Isso é compreensível – disse Rosalia Lodano, sinistramente calma. – Pergunta-se quanto tato alguém precisa ter ao lidar com a situação de uma jovem, uma estudante, pega na rua, aprisionada, torturada, estuprada, e depois assassinada. Isso foi o que aconteceu com minha filha. Meu filho? Nós não sabemos o que aconteceu com ele depois de sua prisão. Como o senhor se relaciona com isso?

– Ouvi muitas histórias semelhantes a essa durante o meu tempo como núncio. Não era possível determinar se eram fatos ou rumores.

– Mas o senhor estava bem próximo aos generais. Ninguém estava em melhor posição para indagar sobre os fatos.

– Não sei se entendo o que quer dizer, senhora.

– Acho que ela está falando sobre isso. – Rossini folheou o dossiê e retirou três fotografias brilhantes de um Aquino bem mais jovem, usando roupas de tênis, com um grupo de oficiais igualmente vestidos. Aquino deu uma olhada nelas e recusou pegá-las com um aceno.

– Isso, compreendo agora, foi uma indiscrição. Por outro lado, eu era um diplomata. Não se pratica a diplomacia da cadeira de um escritório. As pessoas tentam fazer amigos, cultivar pessoas. Eu fiz isso, em várias ocasiões importantes consegui fazer acordos para a libertação de prisioneiros que de outra forma teriam desaparecido.

– Temos o registro de pelo menos um desses acordos. – Rossini voltou ao dossiê. – Ofereceram-lhe... hã... quarenta presos, acabados de ser enviados a Buenos Aires de outras áreas. O comandante local não queria lidar com eles. Disseram-lhe que se o senhor conseguisse um arranjo para tirá-los do país, eles seriam poupados de experiências muito desagradáveis, terminando em morte ou desaparecimento. O senhor o fez. Conseguiu persuadir o governo venezuelano a recebê-los. Estes documentos confirmam isso.

– Sim, eu fiz isso. Não foi o bastante, mas foi alguma coisa.

– O senhor fez algo especial por mim também. Conseguiu-me um salvo-conduto para sair do país depois de minha própria experiência.

– Novamente, foi uma questão de fazer o que podia ser feito em tempos difíceis.

– Mas há uma anomalia aqui, não há?

– Que tipo de anomalia?

– Antes e depois desses eventos, em entrevistas públicas para a imprensa, o senhor negou qualquer conhecimento do que estava sendo feito sob o regime de terror do Estado.

– Quando se anda na corda bamba, cai-se de vez em quando. Isso foi, confesso, uma mentira diplomática.

– Mas a questão permanece, não é: o senhor sabia e ficou em silêncio?

– Já expliquei, como diplomata, eu tinha de trabalhar em silêncio.

– Nunca ocorreu ao senhor, Eminência – Rosalia Lodano estava implacável –, o senhor nunca se perguntou o que poderia ter acontecido se tivesse gritado a verdade apenas uma vez para o mundo?

– Eu me fiz essa pergunta muitas vezes.

– O senhor procurou se aconselhar com seus supervisores em Roma?

– Procurei. A resposta era sempre a mesma. Eu era o homem em situação difícil. Eles tinham de confiar no meu julgamento, e no julgamento da Igreja local.

– Outra vez – Rosalia Lodano o desafiou duramente. – Outra vez, o cachorro de duas cabeças, mas nenhuma delas late!

– Não, senhora! – Rossini voltou-se para ela rapidamente. – Não é verdade. Houve muitos outros que latiram e gritaram. E brigaram, também. Houve muito bons pastores que foram mortos. Houve freiras e monges entre os desaparecidos.

– Mas seus líderes ficaram calados! Continuam calados até agora. Eles jogam com as palavras, tentando construir documentos que dirão sim e não ao mesmo tempo.

– Novamente, senhora, nem todos. – Ele pegou outra vez o dossiê e lentamente leu uma passagem: – “Nós, os membros da Igreja da Argentina, temos muitas razões para confessar nossos pecados e implorar perdão por nossas insensibilidades, nossa covardia, nossas omissões, nossas cumplicidades...”

Ele parou de ler e voltou-se para Aquino:

– O senhor conhece o homem que escreveu isso, Eminência?

– Conheço. Ele era... ele é um bom bispo... mas esse é o seu testemunho e o testemunho do clero de sua diocese. A declaração dele não foi bem aceita por todo o clero. Eles ainda não a aceitam bem.

– Por que não?

Aquino não respondeu de imediato. Ele ficou sentado, as mãos cruzadas, a cabeça baixa, olhando fixamente para a mesa, procurando as palavras. Depois respondeu, com dolorosa reflexão e frases entrecortadas:

– É a história mais velha e mais triste do mundo. Muito pouco e muito tarde. O mal avoluma-se no silêncio. Pessoas boas são seduzidas pelo conforto a ser indiferentes. Homens de Deus se iludem de que estão revestidos de poderes pela Igreja. Eles saem para cear com o diabo, confiantes de que o converterão no final. Mas sempre ficam chocados quando veem sangue na sopa. Poucos deles... muito poucos, graças a Deus... parecem desenvolver o gosto por ele. – Aquino voltou-se para Rosalia Lodano e disse sombriamente: – Receio que isso seja o melhor que eu possa fazer pela senhora. Nós poderíamos discutir por horas. Mas daria no mesmo. Eu gostaria de poder trazer de volta aqueles que perdeu, senhora. Mas só posso rogar o seu perdão.

Rossini desligou o gravador e a sala encheu-se de silêncio. Depois, em um rompante de ira, Rosalia Lodano atacou novamente:

– Isso ainda cheira a conspiração! Os senhores usam o mesmo uniforme, dizem as mesmas palavras gentis. Ambos estão protegidos pela mesma instituição. Algum dos senhores já teve um filho; alimentou essa criança com amor, e depois a teve brutalizada e morta. Já?

– Basta! – A voz de Isabel soou como o estalido de uma bala. – Agora, Sra. Lodano, fique em silêncio e me ouça.

Isabel pegou a bolsa, abriu-a e retirou um pequeno álbum de capa de couro. Ela o abriu e o entregou a Rosalia Lodano.

– Olhe para isso e me diga o que vê.

A mulher olhou para o álbum por alguns instantes e depois perguntou:

– Por que me mostrou isso?

– A senhora fala sobre conspiração, proteção, palavras gentis. Essas imagens revelam conspiração para a senhora? Por favor, passe-o a Sua Eminência.

Aquino levantou a mão para recusar.

– Obrigado. Eu já vi. Tenho minhas próprias cópias.

Rossini pediu:

– Posso ver, por favor?

Rosalia Lodano entregou-lhe o álbum. Ele o abriu e se viu olhando para uma série de fotografias envoltas em plástico de si mesmo, nu, com as pernas e os braços abertos em uma roda como um animal esfolado com o chicote do sargento pendurado como um rabo em seu traseiro. O sargento aparecia em todas as fotos, em posições diferentes: desabotoando as calças, mostrando o pênis, e finalmente estendido no chão, a cabeça estourada como um melão.

Rossini voltou-se para Isabel. Ele estava tão pálido como a morte. Sua voz parecia congelar na garganta:

– Por que nunca vi isso?

– Porque meu pai as levou com ele para Buenos Aires. Elas foram o seu trunfo no acordo com os generais e com Sua Eminência aqui.

– Mas eu falei com ele antes de sair do país. Perguntei por que ele deixou a surra durar tanto tempo. Ele não disse que estava tirando fotografias! Por que ele não as mostrou para mim então?

– Porque achava que você não estava pronto. O médico concordou com ele. E eu também. Isso foi algo que você bloqueou completamente. Nós achamos que você devia estar inconsciente quando isso aconteceu.

– Então, conte-me o restante, pelo amor de Deus.

– Ele tirou as fotografias o mais rápido que pôde, mas com cuidado também. Depois jogou a máquina na cama, entregou-me o rifle e me disse: Assim que você me vir chegar à praça, mate o filho da puta e tire uma fotografia dele morto. Foi o que fiz. Eu o matei e tirei a última foto. Você sabe o resto.

– Eu pareço um animal. – Rossini ainda estava olhando para as fotografias. – Eles me esfolaram como uma besta em um matadouro e me estupraram com um chicote de montaria.

Ele jogou o álbum sobre a mesa e saiu da sala. No momento seguinte, ouviram-no vomitando as tripas no banheiro. Isabel levantou-se imediatamente, mas a velha senhora segurou-a pelo pulso com uma mão de ferro.

– Não! É melhor deixá-lo lidar com seus próprios demônios! – disse ela, voltando-se para Aquino. – Mesmo com essas fotos em suas mãos o senhor não falou alto?

– Havia vidas em jogo. Esse foi o acordo que tive de fazer.

– Esse foi o sangue na sopa – disse a mulher. – Qual é o gosto dele agora?

– Acalme-se, avó! – Havia muito cansaço na voz de Isabel. – Não adianta mais ficar zangada. É melhor pedir a Sua Eminência para celebrar uma missa para acalmar os mortos e dar um pouco de paz aos vivos!

Quinze minutos depois, Rossini saiu do quarto. Tirara as vestes clericais e vestira uma camisa branca. Estava pálido mas tranquilo. Ele foi diretamente até Isabel, colocou as mãos em seus ombros e disse claramente para todos ouvirem:

– Obrigado, meu amor, pelas fotografias. Elas eram a parte de mim que faltava que eu não me atrevia a procurar, não queria encontrar.

Ele tocou seus lábios nos cabelos dela. Aquino desviou os olhos do gesto íntimo e começou a brincar com o abridor de cartas. O rosto da velha senhora era ilegível. Isabel levantou a mão para tocar os dedos de Rossini. Depois, ele afastou-se e sentou-se novamente à mesa, virando-se para Aquino primeiro e depois para Rosalia Lodano.

Ele disse:

– A Srta. Guillermin em breve estará aqui. Eu gostaria de poupar os aqui presentes de mais interrogatórios. Proponho, portanto, que nós a deixemos ouvir a fita e direcione qualquer pergunta a mim. Os senhores só precisam intervir se sentirem que minhas respostas são inadequadas.

– Entendo o que você está fazendo – disse Aquino. – E agradeço pela consideração, mas você pode estar se abrindo para muitas críticas por parte de nossos colegas quando essa entrevista for publicada.

– Depois do dilúvio, o que se pode fazer? Esperar pela pomba com um ramo de oliveira no bico? O que acha, Sra. Lodano?

– Eu sou uma mulher velha com amargura na boca. Sinto muito pelas coisas que disse... não todas, mas algumas. Se essa mulher quiser mais informações, então eu darei a ela diretamente, mas não aqui. Já tivemos bastantes emoções para um só dia.

Alguns minutos mais tarde, Steffi Guillermin foi anunciada. Ela estava claramente surpresa pelo grupo que a esperava. Seu comentário foi direcionado a Rossini.

– Duas Eminências e duas damas distintas. Ótima pescaria para uma jornalista como eu.

– E a senhorita será apropriadamente grata – disse Rossini com um sorriso, mas ela ficou imediatamente alerta.

– E como devo mostrar minha gratidão?

– Em nossa entrevista anterior, aceitei jogar pelas suas regras... tudo para divulgação. Hoje a senhorita está em minha casa. Estou lhe dando uma notícia exclusiva sobre uma história importante. Outros assuntos poderão surgir, mas serão confidenciais. A senhorita tem uma ótima reputação como uma jornalista honesta. Se não puder aceitar essa condição, devemos parar por aqui. A senhorita concorda?

– Não tenho escolha, tenho?

– Tem. A senhorita pode me dar a sua palavra e depois descobrir uma desculpa plausível para quebrá-la. Ou pode me fazer uma promessa e cumpri-la.

Ela o deixou esperando alguns segundos pela resposta.

– O senhor tem minha promessa.

– Obrigado. Por favor, sente-se. Vou rodar uma fita gravada esta tarde nesta sala. Pode copiá-la em seu próprio gravador. O cardeal Aquino declinará de fazer qualquer comentário extra. A Sra. Lodano está preparada, se a senhorita quiser, a marcar um outro encontro para maiores esclarecimentos.

– E o senhor, Eminência?

– Estou reservando minha posição até ouvir as perguntas. Podemos começar?

A gravação os mantivera calados. Foi só quando ela terminou que perceberam o quanto Aquino se comprometera, e quão habilmente Rossini o levara à confissão. Até mesmo Rosalia Lodano prestou-lhe um elogio relutante.

– Vejo agora o que o senhor queria dizer. Se for publicado, isso pode nos poupar dinheiro e ressentimento.

– Será publicado – disse Guillermin. – Vamos redigir e publicar o material em cadeia. Precisamos de um documento de autorização e de uma cessão.

– Se todos estiverem de acordo, a senhorita pode prepará-los e enviá-los para mim para a execução – disse Rossini.

Os outros não fizeram objeção. Guillermin pressionou:

– Agora, Eminência, podemos tratar das perguntas que me trouxeram aqui, em primeiro lugar. Elas dizem respeito à entrevista que fiz com o senhor, e ao material que acabo de ouvir.

– Quais são as perguntas?

– Os tabloides da Inglaterra estão insinuando uma matéria ainda vaga, mas que pode explodir em algo mais substancial. Ela se refere a um crime violento relacionado a sua fuga da Argentina, uma agressão sexual a sua pessoa, um romance e uma criança ilegítima nascida depois que o senhor saiu da Argentina.

– Estamos agora falando confidencialmente – disse Rossini.

– Como combinamos – disse Guillermin.

– Eu desaconselho totalmente quaisquer revelações sobre esse assunto. – Aquino, com um único passo, colocou-se em destaque. – Elas não são oportunas. Não importa o que a Srta. Guillermin prometa, os rumores se multiplicam. Não se pode controlar todos eles.

– O acordo persiste – disse Rossini. – Estamos falando confidencialmente, senhorita?

– Estamos.

Rossini pegou o álbum de fotografias e o entregou a Guillermin. Ela também empalideceu ao ver as fotos. Fechou o álbum e o devolveu. Rossini falou francamente:

– O homem na roda sou eu. As fotografias foram tiradas pelo pai da Sra. Ortega antes de correr até a praça para me salvar.

– Quem atirou no sargento?

– Eu atirei – respondeu Isabel. – Meu pai assumiu o controle da tropa, mandou-a de volta ao quartel e nos enviou para um esconderijo enquanto negociava anistia para mim e salvo-conduto para Luca.

– E vocês se tornaram amantes?

– Apenas durante aquelas semanas – disse Rossini. – Agora, só temos o amor.

– Mas a senhora tem uma filha, não é Sra. Ortega?

– Tenho. Ela nasceu no Doctor’s Hospital, na cidade de Nova York. Ela foi batizada com o nome de Luisa Amelia Isabel Ortega na igreja de Saint Vincent Ferrer, em Nova York.

Guillermin voltou-se para Aquino:

– Tenho algumas perguntas para o senhor, Eminência.

– Continuamos falando confidencialmente, acredito?

– Continuamos. Primeira pergunta. Quanto o senhor sabia a respeito de Luca Rossini antes de trazê-lo para Roma?

– Tudo. Também recebi cópias das fotografias. Eu as entreguei ao Santo Padre quando apresentei meu relatório.

– E o senhor também contou a ele sobre a associação entre Luca Rossini, um padre, e Isabel Ortega, uma mulher casada?

– Contei.

– No entanto, apesar disso, o Santo Padre o tomou em sua confiança e o promoveu regularmente durante os anos. O senhor pode explicar isso?

– Seria uma presunção tentar. Em determinados assuntos, o Santo Padre atuava com absoluta discrição. Posso saber por que a senhorita está seguindo essa linha de interrogatório comigo?

– Porque dois dias antes do conclave, publicaremos minha entrevista com o cardeal Rossini e a parte final do diário papal. Há uma referência significativa no diário que só agora faz sentido para mim. O pontífice escreve: “Eu nunca conheci a ternura ou o terror do amor. Rossini pagou um alto preço por esse conhecimento. No final, acho que ele é mais afortunado do que eu.”

Ela voltou-se para Isabel e rendeu-lhe um inesperado tributo de admiração.

– Quando criança, na escola do convento, eu sempre admirava as mulheres valentes da Bíblia: Rute, Ester, Judite. Acho que a senhora conquistou o seu lugar entre elas.

Isabel reconheceu o elogio com um sorriso e um encolher de ombros.

– Estou lisonjeada, senhorita. Matar é muito fácil. A verdadeira arte é permanecer vivo. – Para Luca Rossini ela disse: – Devo ir agora. Luisa e eu temos um jantar. Você me telefonará de manhã?

– Certamente. Juan a levará até o hotel e a Sra. Lodano até o Monte Oppio.

– Ela poderá vir comigo. – Steffi Guillermin nunca perdia uma oportunidade. – Poderíamos conversar no trajeto.

– Obrigada. Há muito mais a dizer do que o que foi dito aqui. No entanto, sou grata ao cardeal Rossini pelo que fez e pelos bons préstimos da Sra. Ortega. Também não esqueço que custou algumas dores ao cardeal Aquino estar aqui hoje.

Nesse momento, Rossini achou prudente intervir:

– Sua Eminência tem transporte? Se não tem, Juan pode levá-lo com a Sra. Ortega.

– Meu motorista virá me buscar quando eu lhe telefonar; mas gostaria de lhe falar em particular antes de sair.

ENTÃO, DEPOIS QUE AS TRÊS mulheres saíram, Rossini viu-se entretendo seu antigo adversário com uma garrafa de conhaque. Aquino fez o primeiro brinde:

– Salud! Você me encostou contra a parede! Mas é um homem maior do que eu pensava, Luca Rossini.

– Estou feliz, por nós dois, que tenha acabado.

– Nunca acabará – disse Aquino sombriamente. – Mas agora, pelo menos está em campo aberto. Continuarei olhando para o mesmo homem no espelho, mas não preciso manter a porta fechada.

– Você disse que queria falar comigo – Rossini o lembrou. – Não quero parecer pouco hospitaleiro, mas acho que estou sofrendo de algum tipo de choque retardado. A visão daquelas fotografias foi como um soco no estômago.

– Não entendo por que ela as trouxe para Roma, em primeiro lugar.

– Negócios inacabados – disse Rossini simplesmente. – Nós não nos víamos há um quarto de século.

– Vi que você ficou chocado. Achei que você se recuperou muito rápido.

– Eu sabia o que ela estava tentando fazer. Quando nos encontramos pela primeira vez, eu me encontrava como um vaso quebrado. Pedaços de mim estavam espalhados por toda parte. – Rossini parecia estar pensando alto. – Dia após dia, pedaço por pedaço, ela me colou novamente. Quando nos separamos e vim para Roma, ainda havia pedaços faltando. Você estava comigo. Você se lembra de como eu estava.

– Lembro-me muito bem.

– Aquelas fotografias eram os pedaços que faltavam. Eu não podia admitir o terror da violação. Isabel sabia que eu finalmente teria de enfrentá-lo.

– E agora você pode?

– Sim, eu me sinto inteiro, mas, por favor, não me balance muito antes que a cola seque.

– Preciso confessar algo a você.

– O quê?

– Quando eu o trouxe de Buenos Aires para Roma, eu fiz um relatório para o Santo Padre. Disse a ele que você era um caso delicado e que havia elementos de escândalo em sua situação. Antes de voltar à Argentina, ele me convocou novamente e me disse que pensara muito sobre o jovem que eu lhe trouxera. Ele me fez um discurso sobre a carta de São Paulo a Timóteo: “Numa grande casa não há somente utensílios de ouro e prata; há também de madeira e barro.” Eu não sabia muito bem aonde queria chegar até que disse: “Nosso filho, Luca, ele é um vaso quebrado, mas um dia será um vaso para honra, para o uso do mestre.” Levei muito tempo para entender o que ele queria dizer. – Ele parou de falar e depois fez um convite a Rossini: – Tem algum plano para esta noite? Gostaria de jantar comigo? O pároco de Angelicum está oferecendo um jantar para alguns de nós, eleitores. Tenho certeza de que ficará feliz em recebê-lo. Você é muito comentado, mas pouco conhecido. Dentro de alguns dias, estaremos todos trancados na Casa de Santa Marta. Não fará mal algum nos condicionarmos um pouco. Eu o deixarei em casa depois do jantar.

Havia uma recusa na ponta de sua língua, mas ele não a proferiu. A perspectiva de uma noite solitária era avassaladora. Ele hesitou apenas um segundo e depois disse:

– É gentil de sua parte. Eu gostaria de ir.

– Ótimo! Deixe-me ligar para o pároco e avisar meu motorista. Depois, podemos relaxar por algum tempo... Esse conhaque é excelente. E mais tarde, se puder me emprestar um barbeador, eu me farei apresentável para nossos colegas.

O jantar fez bem a Luca. Tirou-o de seu isolamento e o forçou a assumir a função colegial implícita em seu ofício. Fez mais ainda, exigiu que se igualasse ao grupo fechado de prelados italianos, a maioria deles graduados pela instituição que os entretinha.

Não era apenas a linguagem e a tradição escolástica que os mantinham unidos. Os italianos eram agora minoria no colégio eleitoral. Eles contavam apenas com dezessete por cento dos votos. Certas posições-chave na Cúria foram assumidas por não italianos, de modo que agora os poderes deles dependiam de uma pequena oligarquia curiosa de homens altamente políticos, que eram chamados de “grandes eleitores” e às vezes de “pescadores noturnos”.

Suas redes eram extensamente estendidas, mesmo nas águas menos promissoras. Eles arrastavam-nas pacientemente em padrões intrigantes, ignorando as piabas na correnteza, esperando pelo peixe grande que, mais cedo ou mais tarde, deve cair em suas redes.

Nos velhos tempos, não tão distantes, um candidato precisava de dois terços mais um dos votos para ser eleito papa. Basicamente, isso significava que mesmo um candidato popular poderia perder se um terço dos eleitores o recusasse. Entretanto, desde 1996, uma provisão adicional entrou em vigor. Se faltassem mais de trinta votos normais, então uma maioria simples seria suficiente para a eleição. Isso significava que, se a votação fosse longa o bastante, um candidato poderia ter uma vitória apertada por uma maioria de apenas um voto. Esse não era um assunto em debate no jantar do pároco. Ele era, como tantas outras coisas em Roma, aceito como registro, arquivado para referência até que viesse o momento de invocá-lo. De qualquer modo, ele serviu de subtexto para o convite de Aquino. Em termos de nacionalidade, Luca Rossini, era um estrangeiro, um híbrido cultural. Em termos do evento vindouro, ele era um eleitor colegial e um candidato com chances desfavoráveis. Para os “grandes eleitores” ele era um membro dispensável, mas potencialmente útil, no jogo de xadrez que começaria dentro de alguns dias.

Então eles o cortejaram com pequenos aspectos e curiosidades lisonjeiras sobre suas missões. Eles também o testaram com alusões sutis de assuntos com os quais um novo pontífice devia lidar: um clérigo casado, como isso deveria ser abordado, como seria recebido neste ou naquele país, como, de qualquer modo, isso poderia ser administrado; e os poderes dos dicastérios? Deviam ser limitados ou aumentados? Um Concílio Vaticano III deveria completar o trabalho do Concílio Vaticano II ou não deveria haver um terceiro?

Eles não esperavam uma resposta textual a cada pergunta; eles o julgavam pela sua habilidade em situar as questões, pelo bom humor que demonstrou ao perceber a armadilha que prepararam para ele. Eles queriam saber como ele reagiria em uma crise: ele poderia ser manobrado, seduzido ou chantageado para entrar em acordo com um grupo poderoso como os “grandes eleitores”? Houve uma pergunta para a qual uma ênfase peculiar parecia atacar a própria pergunta. Ela foi descrita como um enigma.

– Você viaja muito, Luca. Como você vê a Igreja? Como uma ou muitas? O que nos tornaremos no novo milênio?

Rossini, menos prudente do que o normal pela fadiga, pela fraternidade e pelo vinho do pároco, mordeu a isca.

– De todos os homens neste lugar, sou o menos equipado para responder a essa pergunta... Já viajei o bastante para conhecer a diversidade do mundo. Já vivi o bastante em Roma para entender tanto a verdade quanto a falácia da reivindicação de que onde Pedro está, lá se encontra a Igreja. Acho que este é um dos conceitos históricos que aceitamos sem examinar. Há uma declaração bem mais antiga feita pelo próprio Cristo: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, estarei no meio deles.” Nesse sentido, muitas igrejas, uma em fé, sim. Mas isso depende, não é, de quem é o sinal sobre o batente da porta? “Com isso os homens saberão que vocês são meus discípulos se tiverem amor um para com o outro.” Mas o que estou dizendo? Vocês não me convidaram para vir aqui debater a primazia de Pedro. – Ele ergueu o cálice em um brinde: – À irmandade que compartilhamos, ao futuro que esperamos construir juntos!

Eles beberam. Deram-lhe uma salva de palmas. Alguns riram de sua preferência pela palavra irmandade à fratellanza, porque esta era uma palavra que apresentava muitas associações, boas e más. De qualquer modo, Rossini era um estrangeiro e não se esperava que entendesse todas as nuances da língua-mãe.

No caminho para o apartamento de Rossini, Aquino disse a ele:

– Você causou uma boa impressão esta noite, Luca. Eles o deixaram na fogueira mais tempo do que o normal, mas você saiu sorrindo como São Lourenço da grelha. Aquele pequeno sermão no final soou bem, também, porque isso era a última coisa que eles estavam esperando.

– Espero ter passado no teste.

– Oh, você passou, com nota alta! Tudo isso ajudará.

– Ajudará o quê?

O motorista estava quase chegando à casa de Rossini quando Aquino respondeu:

– Temo que você enfrentará outra fogueira com o artigo de Guillermin. Ela não vai perdoá-lo tão facilmente por manter a melhor parte da história confidencial. Não quero dizer que ela lhe será desleal, mas irá cravar algumas farpas em seu couro!

– Ela pode cravar a espada diretamente em meu pescoço. – Rossini estava exausto. – Eu não sentirei nada. Obrigado pelo jantar e pela companhia.

– Desejo-lhe áureos sonhos – disse Aquino. – Boa noite.

Às cinco da manhã, ele foi acordado de um sono profundo pelo tilintar do telefone. Tateou no escuro para encontrar o interruptor e o telefone. Luisa estava na linha, obviamente em desespero.

– Sei que é muito tarde, Luca, mas mamãe está passando mal. Eu queria chamar o médico do hotel. Ela o recusou e me pediu para esperar até de manhã e ligar para você. Ela disse que você poderia recomendar um bom médico.

– Como está ela agora?

– Ela parou de vomitar. Mas ainda está com febre alta. Está dormindo e acordando.

– Isso já aconteceu antes?

– Já, mas os intervalos estão diminuindo. Apesar dos remédios, esse foi o pior ataque que já vi.

– De onde você está ligando?

– Estou na sala da suíte dela.

– Ela me disse que carrega uma cópia do histórico médico.

– Está na pasta dela.

– Estarei aí o mais rápido que puder. Enquanto isso, eu chamo um médico e peço a ele para me encontrar no hotel.

– Estou preocupada. O que quer que tenha ocorrido ontem a deixou muito estressada. Ela conseguiu segurar durante o jantar, mas, quando chegamos ao hotel, estava à beira de um colapso.

– Mas os remédios ajudaram?

– Ajudaram. Eles sempre ajudam. Mais uma coisa, Luca. Eu realmente não quero que ela vá à Suíça. Sei que é para uma boa causa, mas ela não tem muita energia para desperdiçar. Você poderia falar com ela?

– Eu falarei. Agora, peça o café da manhã para você e um chá para sua mãe. Preciso me apressar. Estarei com vocês o mais rápido que puder.

Ele desligou e foi até o escritório pegar o número particular do Dr. Angelo Mottola, médico do falecido pontífice. O bom médico não ficou muito feliz por ser acordado, mas ele também tinha um respeito saudável por este singular e peremptório estrangeiro que parecia comandar os espíritos nas alturas, bem como os seus demônios particulares.

Ele ouviu atentamente enquanto Rossini esboçava o que Isabel dissera a ele sobre a doença, depois disse:

– Eu a examinarei, é claro. O fato de ter o histórico médico será útil. Como sabe, não sou um especialista em oncologia. Eu posso, é claro, levar um especialista comigo, mas mesmo sem vê-la, eu recomendaria o retorno imediato para Nova York, onde dispõem de melhores condições do que nós. Se ela permanecer aqui, eu teria de recomendar o tratamento em Milão em vez de Roma. Ela tem parentes próximos aqui?

– Uma filha adulta; o marido está em Nova York, mas é fácil de ser contatado.

– Então, que tal às oito horas no hotel?

– Obrigado, doutor. Estou muito agradecido.


11

O Dr. Angelo Mottola viera e se fora. Ele lera o histórico médico. Examinara a paciente cuidadosamente. Seu conselho, que custara duzentos dólares, fora simples: “Não há nada que eu possa fazer pela senhora, minha cara, além do que o seu médico já prescreveu. O seu estado continuará a piorar. O alívio será restrito. A senhora deve voltar para casa imediatamente e colocar-se aos cuidados clínicos de seu médico.”

Para o que, como dissera Luisa, só havia uma resposta: “Pague o homem e volte já para Nova York.” Isabel protestou. Luisa recusou-se a ouvir.

– Já organizei tudo, mamãe!

– Tudo o quê?

– Já liguei para a Sra. Lodano e disse a ela que você não podia ir à Suíça. Ela lamentou por você estar doente. Agradeceu pela sua ajuda ontem e disse para voltar com Deus para Nova York. Já organizei nossa viagem. Sairemos amanhã ao meio-dia em um voo da Delta para o Kennedy. O gerente reservou as passagens. E farei as suas malas. Eu já liguei para papai. Ele nos apanhará no JFK.

Isabel estava furiosa.

– Eu jurei que nunca deixaria isso acontecer. Recuso-me a entregar o controle de minha própria vida. Você entende o que estou dizendo, Luca! Diga a ela!

Rossini pousou a mão sobre a dela, num gesto consolador. Ela retirou a mão. Ele argumentou calmamente:

– Meu amor, o seu próprio corpo está lhe dizendo que chegou a hora de se entregar. Você sabe disso. O Dr. Mottola explicou para mim e para Luisa que mesmo que ficasse aqui, você teria de se tratar em Milão, e que o tratamento não seria de modo algum comparado ao que você receberia em Nova York. Por favor, acredite em mim!

– Eu esperava fazer tanta coisa com Luisa! Fiz tantos planos.

– Mamãe, eu troco tudo isso para ter você segura e bem cuidada em casa.

Isabel bateu com os punhos fechados no cobertor.

– Você não pode trocar nada! A vida é minha! Deixe-me vivê-la como eu quiser!

– Por favor, escute-me, meu amor – Rossini estava persuasivo mas firme. – Você se lembra do que costumava me dizer quando estava cuidando de mim na estância? “Poupe sua raiva. Viva da força que outros lhe darão. Lute de território amigo.” Ficar aqui só irá esgotar as suas forças. Mesmo entre as pessoas mais gentis, o viajante é sempre um estranho. Se eu pudesse ficar com você, poderia ser mais fácil, mas não tenho nada para lhe oferecer. Estou amarrado. Mesmo que eu quebre as amarras... o que pode vir a acontecer... quem sou eu? Um homem de cinquenta anos sem perspectivas. O que posso lhe oferecer?

Isabel fechou os olhos e recostou-se exausta no travesseiro. Luisa puxou os cobertores sobre ela, beijou-a e andou em direção à porta do quarto. Rossini a seguiu, fechando a porta atrás de si. Luisa disse:

– Essa foi a coisa mais triste que eu já ouvi, Luca.

– Tive que dizer isso.

– Eu sei. Você pode ficar mais um pouco?

– É claro. Falarei com meu escritório daqui. Você devia dormir um pouco. Pendure o aviso de “Não perturbe”.

– Prometa que me acordará antes de deixar o hotel. Nós precisamos conversar, também. Essa é a nossa última chance.

– Eu prometo. Agora vá!

Depois que ela saiu, Rossini ligou para o escritório; a única mensagem urgente era do secretário de Estado. Quando ligou para ele, o secretário perguntou:

– Onde você está agora?

– No Grand Hotel. A Sra. Ortega sentiu-se mal ontem à noite. Chamei o Dr. Mottola para vê-la. Ele recomendou o retorno imediato dela para os Estados Unidos. Ela partirá com a filha pela manhã.

– Sinto muito ouvir isso. Quando acha que estará livre?

– Por volta do meio-dia.

– Vamos tomar um lanche em meu escritório às treze horas. Há coisas que precisamos discutir. Aquino me ligou esta manhã. Ele me contou sobre sua reunião com a Sra. Lodano ontem. Aparentemente, deu tudo certo.

– Melhor do que eu esperava, mas, como sempre, há um preço a pagar.

– Ah, sim, a presença da imprensa! Uma pena que não tenha me avisado com antecedência. Eu o teria aconselhado contra.

– Então você ainda estaria com a guerra nas mãos, Turi. Desse modo, pelo menos, conseguiu uma trégua... e sempre poderá me culpar por qualquer recuo.

– Nessas circunstâncias, eu me pergunto por que você não convidou Angel-Novalis para monitorar a reunião.

– Porque os documentos delas... e os nossos, Turi... lançam algumas sombras na conduta do Opus Dei. Angel-Novalis é um bom homem. Preferi não embaraçá-lo... ou a nós.

– Provavelmente você está certo. Também me disseram que esteve em Angelicum ontem à noite.

– As notícias correm rápido nesta cidade!

– E há muitas circulando agora mesmo. Recebemos uma mensagem de nosso núncio no Brasil. Claudio Stagni está no Rio, residindo em um apartamento alugado e com certo estilo. É acompanhado por um guarda-costas aonde quer que vá.

– Isso certamente mostra um certo estilo. – Rossini riu. – Gostaria de saber quem guarda o guarda-costas. Disseram que há bandidos da pior espécie no Rio. Mais alguma coisa, Turi?

– O restante pode esperar até nos encontrarmos. Sinto muito pela Sra. Ortega, mas estou certo de que é bem mais sensato ela voltar para casa o mais rápido possível. Roma está se tornando inabitável rapidamente. Até mais tarde, então.

QUANDO VOLTOU ao quarto, Rossini encontrou Isabel acordada e fora da cama. Ela vestiu um robe, escovou os cabelos, e cheirava a flores de limão. Ela o beijou, mas recuou quando ele a tocou. Ele afastou-se instantaneamente. Ela explicou:

– Estou melhor agora, mas minhas juntas doem e minha pele está muito sensível. Sinto ter me comportado tão mal. Onde está Luisa?

– Descansando no quarto dela. Ela quer falar comigo antes de eu sair.

– Sinto muito, Luca! – Ela o direcionou para a sala. – Esse encontro era para ser muito feliz. Agora olhe para nós! Estamos enchendo você de problemas.

– Por favor, meu amor. Meu problema é que estou trabalhando com uma mão atada atrás das costas. Estou de plantão todas as horas... não tenho prática na vida familiar.

Então, sem aviso, ela desmoronou. As palavras saíam aos turbilhões:

– Estou com medo, Luca! Não aguento voltar para casa! Aquele tempo todo no avião, toda aquela espera na fila para checar o passaporte, todos os empurrões pela bagagem. Meu corpo dói quase o tempo todo agora. A dor não é insuportável, mas nunca passa. Quando chegarmos em casa, Raul estará lá. Ele será solícito e encantador. A casa estará cheia de flores. Os empregados tomarão conta de mim – disse ela com um pequeno sorriso. – Fique sabendo, meu amor, os Ortega administram um hotel de muita classe! Mas é isso o que ele é, um hotel onde todos nós temos nossos quartos separados. O meu terá de se transformar em uma clínica; até me embarcarem para os cuidados terminais. E no entanto, para dizer a verdade, do que posso reclamar? De nada na verdade! Desde minha juventude, agarrei a árvore da vida e a balancei e devorei a mim mesma nas frutas que caíram em minhas mãos. Agora, muito em breve, será hora de partir... Como era o pequeno verso em latim que você me ensinou Satis alguma coisa...?

– Satis bibisti, satis ludisti tempus est abire.

– É isso! Acabou a bebida, acabou a distração, é hora de partir. Isso me assusta mais do que tudo, Luca. Partir para onde? E quem estará esperando por mim do outro lado do rio?

E ficou lá, clara e sem pestanejar como o olho de Hórus, a pergunta da amada com pavor da partida final. Ele não mentiria para ela, mesmo assim não podia desenganá-la do consolo da Palavra, da qual ele, Luca, cardeal Rossini, ainda era um professor e servo acreditado. Ela ficou segurando as mãos dele enquanto ele falava calma e persuasivamente:

– Ninguém sabe o que acontece depois da morte, meu amor. Nós temos apenas símbolos e parábolas para expressar nossos desejos, nossas esperanças e nossas crenças. Não é apenas o desconhecido que nos amedronta, mas a perda do conhecido... das coisas às quais nos apegamos, como se nos fossem entregues perpetuamente e não temporariamente. Quando nascemos, mãos estranhas mas amorosas nos recebem dentro de um estranho mundo novo. Quando morremos, acreditamos, embora não saibamos, que seremos recebidos com amor, dentro de um mundo completamente diferente. Quando estava morrendo, o nosso Senhor clamou em agonia e desespero: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Mas quando ele morreu, foi com alívio, colocando a si mesmo nas mãos do Pai!

– Eu não sou Jesus Cristo. – Havia um tom de gozação na voz dela. – Estou mais para Maria Madalena.

– De quem muitos pecados foram perdoados, porque ela amou muito.

– Você poderia ouvir minha confissão, Luca, por favor?

O pedido o surpreendeu mais do que a declaração dos medos dela, impondo-lhe um teste ainda mais difícil. Do inverno da dúvida onde habitava, ele foi empurrado de volta ao antigo formalismo do qual Piers Hallet o acusara. Contudo, mais uma vez, não podia recusar o pedido dela.

– Se está certa de que é isso o que você quer, sim. Mas não precisa esforçar-se em um longo relato. Diga apenas o que acha que fez de errado. Expresse o seu arrependimento, o seu desejo de mudar. Em seguida, eu lhe darei a absolvição.

Isabel franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça.

– Sei que você quer facilitar tudo para mim, Luca, mas não pretendo fazer um relatório para você: quantas lascívias, quantos ódios, quantas mentiras. Quero lhe dizer as verdades reais: o que sou para mim mesma, o que tenho sido para Raul e Luisa... e até para você, que é mais querido para mim do que qualquer coisa no mundo. Você me ouvirá, Luca, por favor? Nunca mais quero passar por isso. Eu não poderia...

– Você não precisará. – Novamente, a entonação ritualista contagiou sua própria voz. – Cada absolvição é um novo começo. – Ele retirou as mãos das dela, segurou a cruz peitoral que estava sob o seu paletó e a ergueu para que ela o visse como um crucifixo separando o passado e o relacionamento atual deles. – Diga-me o que a está atormentando.

Desta vez, não houve um derramar descomedido de palavras, mas uma recitação lenta e gradual, como se as palavras amargassem em sua língua.

– Desde que me lembro, eu sempre quis ser uma vencedora. Em tudo que fazia. Eu tinha de ser a melhor e a mais esperta. Se assim não fosse, eu perdia o interesse no jogo. Não, isso não é bem verdade. Se eu não pudesse vencer hoje, esperaria até amanhã ou o dia seguinte, até o momento em que todos pensassem que eu havia perdido o interesse. Então eu surgia para fazer novos pontos e levar o prêmio. Pensando bem, vejo que, como os velhos bandidos e gângsteres, eu sempre andei armada e era perigosa. Não era por maldade, acho. Eu não tinha nada com que me indispor. Era a excitação da selva: matar ou morrer. Por isso eu e meu pai éramos tão próximos. Ele era um homem audacioso. Quando me atirou aquele rifle naquele dia e me disse para matar o sargento, ele depositou a vida dele e a vida de todos os aldeões em minhas mãos; mas ele sabia que eu podia fazer aquilo! Isso não é vanglória. Faz parte da verdade. Eu disse muitas coisas ruins sobre Raul e todas são verdadeiras. Uma coisa que eu não disse, que também é verdadeira, é que ele não participaria do jogo que eu estava jogando, então eu nunca pude vencê-lo. Porque eu nunca pude vencê-lo, nunca pude perdoá-lo. A coisa mais terrível é que houve momentos, meses até, quando senti que com um pouco de generosidade de minha parte, nós poderíamos ter nos aproximado mais. Mesmo quando descobri que estava muito doente, fui orgulhosa demais para pleitear uma trégua, muito irada para ceder mais um centímetro de terra. Você me perguntou outro dia, se ele sabia sobre você e eu. Ele sabia do assassinato. Quanto ao restante, ele estava pronto para aceitar que você era um homem em pedaços, de quem eu cuidei. Ele disse simplesmente: “Isso foi o mínimo que você poderia fazer por um pobre coitado como aquele. Não vamos mais falar sobre isso!” E nunca mais falamos; o que foi mais uma pílula amarga para engolir. Você era importante para mim, mas não era importante para ele. Fiquei furiosa quando ele desistiu, como um duelista, recusando-se a enfrentar um oponente que julgava indigno.

– Se estava tão desesperada por vingança – disse Luca Rossini –, por que não contou a ele sobre Luisa? Você disse que sempre andou armada e era perigosa. Por que depôs essa arma?

– Eu sabia que, se a usasse, poderia perder você e ela. Eu não suportaria isso.

Rossini não fez nenhum comentário. Ele ainda era o ministro conduzindo o ritual. O resto dele estava camuflado. Ele perguntou:

– Você está me dizendo que recusou qualquer reconciliação com seu marido, é isso?

– É.

– Como, então, pode pedir para ser reconciliada com Deus?

– É por isso que preciso de sua ajuda.

– Está arrependida do que fez?

– Eu estou sinceramente arrependida.

– Você se lembra do ato de contrição?

– Faz muito tempo que não o recito.

– Recite-o agora, por favor.

Ela recitou as palavras tão formalmente como ele as citou. “Ó meu Deus, arrependo-me de todo o coração pelas ofensas que cometi...” Quando a prece terminou, Rossini a advertiu novamente.

– Agora, se puder, você deve tentar reparar o dano que causou. E deve fazer penitência.

– Não tenho muito tempo para qualquer das duas coisas.

– Um ato será suficiente para os dois. Quando você for para casa, diga a seu marido que você encontrou as palavras para me dizer.

– E peço a ele para me perdoar?

– Por que não colocar de outra forma? Podemos ao menos perdoar um ao outro... por favor?

– Essa é a parte mais difícil, não é? Palavras tão simples: por favor. Você poderia explicar o que sinto para Luisa?

– Não. Você precisa fazer isso também. Mas acho que ela já entende a maior parte de tudo isso.

– Vou tentar. Agora, por favor, diga-me que estou perdoada.

Ele levantou a mão, fez o sinal da cruz e pronunciou as palavras da absolvição. Eu a absolvo dos seus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Isabel levantou-se. Seu rosto estava pálido e abatido, seus olhos úmidos pelas lágrimas não derramadas, mas a voz estava firme.

– Obrigada, mas você não está esquecendo nada?

– Acho que não.

– Você não deveria dizer, “Vá em paz.” Nós dois sabemos que agora é adeus.

– Não há adeus – disse Luca Rossini gentilmente. – O amor é a única coisa que levamos conosco na travessia. Já fizemos isso antes. Lembra-se do que me disse? “Vamos fazer isso com classe, Luca. A cabeça alta, sem lágrimas e sem olhar para trás.”

– Abrace-me com suavidade quando me beijar, meu amor. Todo o meu corpo dói.

ELE ENCONTROU Luisa sentada na escrivaninha de seu quarto, escrevendo cartões-postais. As malas estavam abertas sobre a cama. Ele teve de empurrar as roupas para poder se sentar na ponta do colchão. Luisa virou a cadeira a fim de olhar para ele, mas ele não fez um movimento para se aproximar. Ela perguntou:

– Como está mamãe?

– Ela está calma agora. Pronta para ir para casa. Ela só precisava de um pouco de confiança e ajuda.

– Obrigada por dar isso a ela.

– Ela precisa da sua ajuda também. Ela quer muito se reconciliar com Raul antes de morrer.

– Reconciliar? – Luisa pareceu surpresa. – O que ela espera exatamente?

– Ela quer dizer que está arrependida. O problema será encontrar o momento e as palavras.

– Esse também é o meu problema, Luca. Não consigo encontrar as palavras que preciso lhe dizer.

– Talvez eu possa ajudar. – Isso não era mais ritual. Não havia fórmula para recitar. Ele prosseguiu com um sorriso. – Você não sabe como lidar comigo. Sou a pedra no seu sapato que dói quando você anda. Estou certo?

– Está.

– E você ama Raul, que é mais pai para você do que jamais serei, e logo haverá tristeza na casa quando sua mãe se for. Portanto não há tempo agora para construir qualquer coisa entre você e eu.

– Tudo isso, sim! Mas parece um desperdício. Eu gosto de você, Luca. Eu acho que posso começar a amá-lo. Acho que devo ler algumas histórias e descobrir como os prelados renascentistas conviviam com seus filhos e filhas.

Rossini riu.

– Eles enriqueciam os filhos e conseguiam casamentos importantes para as filhas. As coisas não são mais assim. Os tempos mudaram.

– Mas não disponho de tempo algum. Não há o bastante de mim! E você é propriedade disso, desse monstro gigante e vasto que é a Igreja.

– A Igreja comanda os meus serviços. – Havia um limite em sua resposta. – Ela não é dona de mim.

– Desculpe-me. Não quis dizer isso.

– Sei o que você quis dizer. Eu sou como o centurião no Evangelho. Eles me dizem, “Vem”, e eu venho, “Vai”, e eu vou. Mas há algo mais importante. Você tem a sua própria vida para construir. Se você quiser ser uma boa artista, precisará viajar, conhecer os velhos e os novos mestres. Você precisará viajar com pouca bagagem. Um cardeal como pai é muita bagagem para carregar... mas aqui, ou em outro lugar qualquer, você pode achá-lo útil.

– Por favor, Luca! Não quero que você me retire completamente de sua vida.

– Como eu poderia fazê-lo? Você é minha filha. A minha marca está em você para sempre. Quando você tiver filhos, minha marca estará neles também. Haverá sempre uma inscrição genética que dirá “Luca Rossini”! É bem impressionante pensar nisso! Agora, posso beijar minha filha em despedida?

– VOCÊ TEVE UMA manhã difícil, Luca. – Essa foi uma observação, não uma pergunta do secretário de Estado.

– Você pode colocar desse modo, Turi. Esperava que Isabel e eu tivéssemos algum tempo juntos depois do conclave, mas não teremos. Já nos despedimos. Tenho um favor a lhe pedir.

– Peça, por favor.

– Sei que estaremos incomunicáveis durante o conclave. Sei também que há um canal de comunicação aberto do Sacro Penitenciário e do Vigário-Geral de São Pedro. Eu gostaria de poder receber notícias de Isabel. A filha dela concordou em me manter informado. Você poderia arranjar um intermediário para passar as mensagens? O Dr. Mottola me preveniu que o colapso final pode ocorrer muito em breve. Eu gostaria de dar a Luisa os detalhes para o contato antes de ela partir.

– Deixe comigo, Luca. Farei os arranjos e lhe telefonarei esta noite.

– Você é um bom amigo, Turi.

– Ela sentirá muita dor durante a viagem?

– É possível... mesmo com o melhor dos cuidados paliativos. Voltamos a velha questão, não é? Quando é que a paliação se torna uma intervenção positiva, e será que o Altíssimo demanda a morte por crucificação?

– Todos nós temos muitas questões para enfrentar durante o conclave, Luca. Foi por isso que o chamei aqui. – Tão rapidamente como entrou no assunto, ele saiu novamente. – Café ou chá? E finalmente ensinei o pessoal da cozinha a fazer sanduíches ingleses. Eles são muito bons.

– Eu quero chá, Turi. Mas não faça jogos comigo, está bem? Não estou disposto.

O secretário de Estado voltou rapidamente ao texto de sua agenda:

– Você já começou a ver as facções eleitorais se definirem, Luca. Elas mudarão, é claro, durante o conclave, e podem mudar dramaticamente, porque ninguém é responsável, exceto em relação a Deus ou ao seu próprio interesse, por qualquer mudança de aliança durante o processo de votação.

– Eu percebi. – Luca lançou-lhe um sorriso torto. – O nosso amigo Aquino é um mestre na arte de solicitação. Ele me lembra dos punguistas em Sri Lanka... aqueles chamados de “dedos dançantes”. Eles o cercavam e o distraíam fazendo seus dedos dançarem em volta de todo o seu corpo sem nunca tocar em você. Você nunca sabe de onde estão vindo até perceber que a sua carteira se foi e eles estão longe com ela.

– Isso faz parte do nosso bom treinamento diplomático! – O secretário de Estado riu. – Pelo menos você conhece o jogo... Mas, falando sério, essa eleição pode ser... a meu ver ela precisa ser... um novo começo para a Igreja. O nosso falecido pontífice... Deus lhe dê o descanso!... tentou encher o colégio e o episcopado com homens que, segundo ele, dariam prosseguimento às suas políticas como discípulos leais. Se eles votarem desse modo, serão partidários de um candidato interino... um com uma baixa probabilidade de vida mas bastante experiência para manter o barco firme no curso. Pessoalmente, não acho que possamos desperdiçar esse tempo. Estamos perdendo congregações com muita rapidez. Há muitos assuntos fechados, muitas questões não debatidas. Roma está perdendo a relevância, porque as pessoas não estão sendo ouvidas. Ontem à noite fui convidado para um pequeno jantar no colégio inglês. O orador era um antigo beneditino. Seu discurso foi uma citação do poeta puritano inglês, Milton: “As ovelhas famintas olham para cima e não são alimentadas.” Sua interpretação do texto foi surpreendentemente franca. “Elas estão sendo alimentadas,” disse ele, “mas nós as estamos alimentando com papel em vez do pão da vida!”

– Então – disse Rossini, zombando –, você me trouxe aqui para me alimentar com chá e sanduíches ingleses. Vamos logo ao ponto, Turi.

– O ponto é: não conseguiremos o candidato certo com disputa e dissidência entre os grupos partidários. A dissidência pode ascender, como fez no passado. Embora o sistema atual tenha sido feito para prevenir um conclave prolongado, pode chegar ao ponto onde uma maioria simples de eleitores decidirá a eleição. Esse é o perigo: um colégio dividido, uma Igreja dividida, administrada por um candidato conciliador. Estou sendo claro, Luca?

– Admiravelmente, meu amigo, e o chá e os sanduíches são excelentes. Mas diga-me o que espera de mim.

– Por favor! Seja paciente, Luca! Como você sabe, é de costume oferecer aos eleitores no início do conclave um sumário de toda a Igreja: “Cá estamos, quem é o melhor homem para nos guiar?” Como de costume, o secretário de Estado faz uma declaração sobre a situação política e seus efeitos na Igreja em cada país. Depois vem o discurso-chave, uma meditação sobre a Igreja como a Cidade de Deus, testemunha da Palavra para o Mundo. Considera-se que isso prepara o ânimo dos eleitores, lembrando-os da tarefa de encontrar o melhor pontífice para liderar o Povo de Deus. O camerlengo ofereceu algumas opções de oradores ao comitê do Sacro Colégio. O comitê escolheu você.

– Isso é uma piada, Turi?!

– Pelo contrário, é uma responsabilidade muito séria: preparar o ânimo de um momento histórico, abrir as mentes dos eleitores para a inspiração do Espírito.

– Turi, meu amigo, você sabe que detesto ser manipulado. Sabe que tive mais de uma dose disso nos últimos dias. Então, por favor, chega!

– Acalme-se, Luca! Vou repetir o que nosso amigo Baldassare me disse. O seu pedido para ter monsenhor Hallett como confessor particular durante o conclave não foi bem recebido. Certos membros da Cúria sentiram que isso cheirava a privilégio. O espaço na Casa de Santa Marta é muito valioso. Já existem confessores arrolados para o serviço no conclave. Entretanto, Baldassare pensou que poderia justificar se você estivesse disposto a pregar. Você sabe como são essas coisas, Luca. – O secretário de Estado estava provando de seu próprio humor seco. – Aos olhos de Deus, somos todos iguais, mas alguns precisam trabalhar mais para permanecer iguais!

– Você está me chantageando, Turi.

– Isso se chama equilíbrio amigável de interesses. É diplomacia pura.

– Não tenho nada para oferecer, Turi. – Uma paixão repentina invadiu Rossini. – Sou o homem errado na hora errada. Sou imperfeito. Você sabe disso. Estou passando por uma crise de fé, que só posso descrever como uma jornada noturna sob uma nuvem carregada em um mundo de onde Deus se retirou. A mulher que amei todos esses anos está sendo tirada de mim, e sequer posso culpar Deus por isso, porque Ele não está lá. Esta manhã ela me pediu para ouvir sua confissão e lhe dar a absolvição. Não pude recusar, mas passei pelo ritual como um mágico no palco, sabendo que a ilusão contentaria a plateia, mas que eu não podia enganar a mim mesmo. É por isso que quero Hallett comigo. Ele tem seus próprios problemas com os quais estou tentando ajudá-lo, mas também é um cético com quem posso falar sem dissimulação, e quem sabe, apenas quem sabe, Turi, eu possa me encontrar à luz do dia novamente. E há mais uma coisa. Eu já sangrei por essa Igreja. Ela me amparou e me promoveu além do meu valor pessoal. Não quero dividi-la por qualquer coisa que possa dizer ou fazer. Há muita coisa, muita coisa mesmo que desaprovo em sua política e procedimento. Se, conscientemente, não puder aceitar viver nesta casa, eu a deixarei silenciosamente depois do conclave. Com toda a excitação de um novo pontífice, ninguém estará interessado na aposentadoria precoce de Luca Rossini. Mas esse sermão que você quer que eu faça é outra questão inteiramente diferente. Não sei dizer banalidades. Eu não as direi. Estou preparado para ficar em silêncio, mas se você me chamar para falar, terá de correr o risco pelo que vou dizer, assim como correrei o risco pelo que disser.

Houve um longo silêncio, durante o qual o secretário de Estado serviu-se de outra xícara de café, adoçou-a, mexeu lentamente para dissolver o açúcar e depois, com um cuidado exagerado, examinou a carne do último sanduíche antes de mordê-lo. Rossini olhava e esperava. Ele ficou tentado a aplaudir a representação familiar, mas belamente tímida, de Pascarelli. Um dos estudantes engenhosos na secretaria o apelidara de Fabius Cunctator, Fabius, o Moroso, por causa de seu talento para evitar confrontos embaraçosos. Finalmente, ele terminou o sanduíche, tomou um gole de café, limpou os lábios e fez suas considerações:

– Vamos separar as coisas, Luca. Eu não sou o seu confessor. Não desejo entrar no foro de sua consciência. Rezo por você em minha missa, para que receba a luz de que precisa. Quanto ao restante, você está adido à secretaria. Sou o seu legítimo superior no cargo. Eu poderia, se quisesse, designá-lo para esse serviço. No entanto eu tento persuadi-lo de que seu discurso pode não ser tão divisor quanto teme. Se ele despertar contendas, tanto melhor. Uma eleição papal não é lugar para nuances e declarações cuidadosamente organizadas. O seu crédito pessoal com seus pares é bem mais alto do que você imagina. Você tinha a confiança do falecido pontífice, e nunca a traiu. Pelo contrário, lutou por colegas que julgou sofrerem injustiças, e por causas consideradas impopulares. O seu caráter pessoal é outra questão. Há uma grande mancha negra sobre você: o seu adultério com a Sra. Ortega. O seu defensor mais determinado foi o falecido Santo Padre. Mas não faz diferença quem esteja a seu favor ou contra você. Você sempre fala com a própria voz, Luca, saída de um coração discernido.

– Ela sai da escuridão e do desolamento, Turi. O meu coração está partido, e mesmo assim sequer consigo chorar. O que espera que eu diga aos meus irmãos no conclave?

– Apenas diga – prosseguiu o secretário de Estado. – Apenas diga: sou Luca, vosso irmão. Quero vos falar sobre o que estamos prestes a fazer. – Ele fez um pequeno gesto de primazia e terminou com um sorriso torto. – Não precisa de mim ou de qualquer outra pessoa para escrever um sermão para você, Luca. Será o bastante se falar com o coração.

Luca Rossini não era tão fácil de comover.

– Você é uma pessoa muito persuasiva, Turi. Imagino o que poderia fazer com alguns instrumentos de tortura! Mas, por favor, pense um pouco no futuro. Eu faço esse eloquente apelo. Depois, um belo dia, enquanto você estiver aquecendo-se à luz de uma nova era apostólica, eu não estarei lá. Terei encontrado um retiro para mim e me tornado... não importa o quê. Então você, meu caro Turi, terá nas mãos um novo escândalo sobre o pregador hipócrita, o traidor da ceia da irmandade. Você está me oferecendo uma taça envenenada. Por que a está empurrando para mim tão decididamente?

– Porque o que você chama de veneno, Luca, pode muito bem ser o remédio que curará a doença da qual está padecendo tão agudamente. Quando se levantar para falar, estará confrontando seus irmãos de todas as partes do mundo. Você se verá nos rostos deles. Raciocinará consigo mesmo, quando estiver raciocinando com eles.

– Turi, você ainda não entendeu! Essa não é uma crise de raciocínio! Se fosse, eu poderia persuadir Gottfried Gruber e todo o seu time de assessores e inquisidores a se enterrarem, e a mim mesmo de ficar serreno imediatamente. O problema é outro. Sou prisioneiro das trevas, as trevas de uma casa vazia. Uma vez, Turi, Sua Santidade me perguntou se eu nunca lastimava ter saído de meu país. Respondi que não, que eu carregava os carvões da fogueira no meu coração. Eu só precisava soprá-los e eles voltariam a acender. Ele sabia que eu só estava lhe dizendo meia-verdade. Ele sorriu e me perguntou o que aconteceria quando finalmente os carvões virassem cinzas. Não pude responder. Agora posso. A casa fica muito, muito fria.

– Então você precisa fazer uma nova fogueira. Reze pela faísca que irá deixá-la novamente em chamas... Mas agora preciso saber, você falará no conclave?

Agora era a vez de Rossini fazer o jogo da demora. Havia mais nessa situação do que a apresentação de uma homilia para abrir os corações e as mentes de cem ou mais eleitores, todos com altos cargos, opiniões formadas; cada um com ciúmes de seu próprio principado. Rossini sabia que estava sendo imposto a eles como um profeta de uma nova era, que poderia ser facilmente rejeitado com desdém ou aceito com respeito. De qualquer modo, uma ou outra facção dos eleitores seria beneficiada; ou todas poderiam ser beneficiadas de imediato, unindo-se na condenação de um intruso. Então ele fez uma pergunta aparentemente inoportuna:

– Quando invocamos o Espírito Santo para nos inspirar no conclave, ele nos dota de imediato com o dom de línguas?

– Lamentavelmente, ele não nos dota, Luca. E muitos de nossos prelados perderam suas aptidões em latinidade. Qualquer língua que utilize, você perderá parte do conclave. É mais ou menos como uma ópera. Eles compartilharão a melodia... e se debaterão com as palavras.

– Então qual é o objetivo prático?

– O objetivo é que estaremos fornecendo um texto multilíngue. Essa é uma das coisas que fazemos bem aqui, como sabe. Dessa forma, teremos a música e as palavras. Você tem seis dias, Luca, e eu preciso de três deles para nossa tradução e impressão.

– O que me dá três dias para preparar o texto?

– Dois e meio. Preciso de uma manhã para ler e discutir o seu rascunho.

Foi então que a plena luz da revelação baixou. O titereiro já estava puxando os fios que movimentavam as marionetes. Rossini recostou-se na cadeira e gargalhou.

– Turi, você é bem cínico. Não haverá rascunhos, nem discussões. Não haverá interpolações, nuances ou comentários marginais. Eu concordei em falar. Esse pode ser o último testemunho que darei na assembleia de nossa irmandade, e quero usar minhas próprias palavras. Se eles o aceitarem, ótimo! Se o rejeitarem, podem rasgá-lo em pedaços. Simples. De qualquer modo, ninguém fora do conclave jamais saberá. Estaremos todos sob juramento de segredo, não estaremos?

– Estaremos, certamente – disse o secretário de Estado. – O que me faz pensar em como tantas colunas de informações conseguem vazar do conclave. Reconheço seu ponto de vista. Você fará o próprio sermão.

– E terei Piers Hallett e minha ligação com Nova York.

– Agora eu é que acho que está me chantageando, Luca!

– Pelo contrário, creio que acabamos de chegar a um belo equilíbrio de interesses.

– Eu ficaria bem mais feliz, Luca, se você discutisse o seu texto comigo. Assim, eu não me sentiria tão idiota quando o teto desabasse.

Naquele momento, o telefone tocou. O secretário de Estado atendeu. Um momento mais tarde, Angel-Novalis entrou na sala, acompanhado de um jovem clérigo que retirou as sobras da refeição. Após uma breve troca de saudações, Angel-Novalis explicou a razão de sua visita. Ele depositou sobre a mesa folhas de fax de duas reportagens do New York Times.

– Estamos seis horas na frente de Nova York. Esses dois artigos apareceram na edição desta manhã. Eu os mostrei ao camerlengo e ele recomendou que eu discutisse com o senhor imediatamente. O primeiro é a parte final do diário do pontífice.

Rossini inclinou-se sobre o ombro do secretário de Estado para lê-lo.

Não estou bem esta noite. Estou abatido por uma dor de cabeça e por esse estranho mal-estar, que no passado indicou o começo de um pequeno acidente vascular cerebral. Tento não exagerar as possibilidades, mas me advertiram várias vezes de que esse é o modo como a morte pode ocorrer. Carrego uma bomba-relógio em minha cabeça e um dia ela vai explodir e me matar. No entanto, eu devo continuar trabalhando “porque a noite subsiste quando nenhum homem pode trabalhar”.

Vivendo assim, à sombra do julgamento, sou forçado a me julgar mais severamente. Ainda estou revestido de autoridade, mas o poder para usá-la está escapando de minhas mãos. Por um longo tempo agora, estou sendo forçado a delegar mais e mais a homens designados por mim, contudo, no final, sou o responsável pelo que eles fazem. O que mais me preocupa nessas horas cinzentas é o uso do meu poder sobre as consciências dos homens e mulheres, o poder de união e separação que, durante os séculos, muitas vezes nos levou a tiranias.

O que eu mesmo pensei justificar como um exercício justo de autoridade, vejo agora como uma severa e frequente intervenção oportunista. Agi mais como um general destacando suas tropas sob comando do que como um pastor cuidando de suas ovelhas espalhadas, pastando sobre as vastas colinas, expostas aos ataques dos predadores. Condenei bravas mentes ao silêncio. Preferi esmagar, em vez de persuadir, os espíritos rebeldes. Recusei o conselho do Senhor para deixar a erva daninha e o trigo crescerem juntos até o tempo da colheita. Em vez disso, enviei rudes jardineiros para arrancar as ervas daninhas – e bons grãos foram arrancados com elas.

Em tudo isso, invoquei o conselho de homens que eu mesmo indiquei; assim, era sempre a minha própria voz que ouvia. Para justificar minhas decisões, contei com a tolerância dos cristãos leais e com a pura ignorância do vasto rebanho pastando em campos distantes. Por que razão sucumbi a essa débil traição? Porque vi isso como um meio de continuar minhas políticas para a Igreja por um longo tempo depois do final de meu reinado. Há um medo inerente em todos que governam, de que respeitar divergências é fomentar rebeliões. Assim, sejam nossos decretos bons ou maus, nós os deixamos pendurados nos muros da cidade até que sejam levados pelas chuvas dos séculos. Enquanto lá permanecerem, eles podem ser invocados contra os incautos e os descuidados.

É fácil encontrar colaboradores nessa continuidade do poder, porque sou visto como fiador deles, a justificativa deles contra todas as desonras. E mais, o poder deles continuará depois que o meu cair de minhas mãos. O hábito só confirmará isso. O desafio só tornará o seu exercício mais rigoroso.

O terror que me invade agora é: estou muito velho para mudar qualquer coisa. Eu concebo a minha vida, como uma criança, no dormir e acordar, nas preces na hora de dormir e nos agradecimentos por cada novo dia. O que responderei ao Deus em cujo nome governo, ao Senhor Jesus Cristo de quem alego ser Vigário...

Houve um longa quietude entre os três homens, quando cada um terminou a própria leitura silenciosa do texto. Então Luca Rossini deu um longo suspiro que terminou em pesar sussurrado.

– Santo Deus! Era isso o que ele estava tentando me dizer durante semanas, mas jamais conseguiu proferir as palavras. O pobre homem solitário.

– O segredo foi revelado – disse o secretário de Estado, com franqueza.

– Acho que o senhor deveria ler o editorial – disse Angel-Novalis respeitosamente. – Haverá muitos outros iguais a este.

Eles o leram em silêncio, Rossini inclinando-se sobre o ombro do secretário de Estado.

Embora a proveniência do diário papal ainda esteja obscurecida, parece não haver grandes dúvidas quanto a sua autenticidade textual.

Os trechos, escritos na noite anterior ao colapso final do pontífice, constituem um documento de singular importância. A confissão de um homem velho e poderoso no final de um longo reinado. Há uma grande tristeza neles: um sentimento de culpa, o reconhecimento de que o relógio não volta atrás para nenhum de nós.

Com frequência, especialmente nessa era de informação instantânea, autoridades vaticanistas se tornam ridículas e colocam a fé em descrédito com inversões tardias de decisões que deveriam ter sido eliminadas há séculos. O caso de Galileu é um exemplo notório. Menos evidente, embora talvez mais perigoso, são as cobranças das novas profissões de fé por parte dos professores nas universidades católicas, profissões que vão muito além das propostas tradicionais do credo de Niceia. Não é o bastante deixar a cura do erro ou do exagero ao simples lapso do tempo. O relato pungente da perturbação do falecido pontífice sob a ameaça da morte reconhece que as almas devem ser servidas aqui e agora, porque para elas, também, o tempo passa velozmente.

Espera-se, entretanto, que os eleitores, agora reunidos em Roma, leiam esse documento final e reflitam sobre ele enquanto consideram seus candidatos. Em breve, as decisões deles também se tornarão irreversíveis.

O secretário de Estado recostou-se na cadeira, cruzou as mãos atrás da cabeça e observou seus visitantes em silêncio. Angel-Novalis foi o primeiro a falar:

– Devem me pedir comentários. Os senhores têm algum?

– Nenhum, de minha parte – disse o secretário de Estado. – O homem está morto e enterrado. Comentários são flocos de neve caídos ontem sobre o túmulo.

– Requiescat – disse Luca Rossini. – Deixe-o descansar em paz.

– Talvez. – O secretário de Estado estava aparentemente calmo. – Talvez tenhamos deixado algo passar despercebido aqui.

– Então permita-me esclarecer a questão, Eminência. No registro de um diário particular, escrito logo antes de sua morte, o pontífice abjurou... ou pelo menos lançou sérias dúvidas sobre as políticas que ele levou duas décadas para implantar. Nós entendemos o estado de espírito em que ele se encontrava enquanto escrevia. Era um homem envelhecido que trabalhou excessivamente tentando ajustar as contas de sua vida antes da auditoria final. Lembre-se de que mencionei essa questão em uma declaração pública no Clube da Imprensa Estrangeira. Expressei minha opinião pessoal de que o diário, de fato, era propriedade roubada. Eu fiz isso, se recorda, atendendo a um pedido formal seu. Essa citação final é a maior prova interna para sustentar tal opinião. Eu, por exemplo, não posso acreditar que Sua Santidade tenha conspirado com seu mordomo para destruir o trabalho de sua vida. Acho que este comentário deve ser feito e feito com firmeza, de outra forma aqueles que, de boa-fé, executaram as políticas do pontífice ficarão sem recurso em suas congregações. E mais, haverá uma suspeita aceitável de que a publicação é perdoável. Isso é um presente nas mãos dos liberais, uma arma contra aqueles de pontos de vistas mais conservadores. Deixar isso passar sem comentários por parte do Vaticano cheira a oportunismo. Um crime é deixado sem desafio constante porque conduz a uma mudança de política.

O secretário de Estado brincava com a espátula sobre a mesa. Rossini fez um comentário direto:

– Se você quiser enfatizar o roubo, você precisa de mais provas contra Stagni. Se quiser salvar qualquer das políticas de Sua Santidade, você não fará isso polarizando os eleitores. Toda a Igreja está em estase nesse momento. A Sé está vaga. Estamos todos sob esse guarda-chuva simbólico, esperando por um novo nascer do sol sobre nós.

– Alguma coisa tem de ser feita. – Angel-Novalis era um homem seguro de suas convicções. – Serei solicitado para comentar o fato. E não posso me recusar a fazê-lo.

– Então elabore um parecer dentro das convenções de seu cargo – disse o secretário de Estado. – Você já tem uma declaração pública e pessoal registrada no Clube da Imprensa. Vá em frente, repita-a, mas lembre-se, você estará tocando a música do interlúdio nesse meio tempo, até a cortina subir para o grande ato, a eleição de um novo papa. Esse ato não foi escrito ainda. Seria um grande erro se você, em seu fervor por uma justiça impossível, tentasse intervir no script.

– Deixe-me ver se entendi, Eminência. O senhor está me instruindo para trabalhar dentro das discrições de meu cargo?

– Precisamente.

– Então é melhor eu ir cuidar de meus afazeres. Com sua licença, Eminências.

Quando a porta se fechou atrás dele, Rossini protestou brandamente:

– Você deu a ele uma dura cavalgada, Turi.

– Ele tem uma boa sela sobre o cavalo – disse o secretário de Estado, permitindo-se um sorriso de viés. – Mas ele foi treinado na escola de montaria espanhola: o estilo de adestramento é maravilhoso, mas não é o melhor para longas corridas com obstáculos.

JÁ ERA FIM DA TARDE quando Rossini deixou seu escritório, saiu do Vaticano pela Porta Angélica e passou pelo Borgo Santo Angelo em direção ao rio. Agora, uma depressão negra instalava-se sobre ele. Estava assombrado pelo conto de fadas sobre o garoto que perdeu sua sombra. Ele não tinha mais ponto de referência. Era um homem vazio indo para parte alguma.

Parecia um século, embora fizesse apenas seis horas, desde que dissera adeus a Isabel e Luisa. Elas ainda estavam no hotel. E estariam lá até de manhã. O desejo de vê-las novamente o consumia, mas era melhor não revisitar tão cedo o cenário de suas tristezas mútuas. O adeus fora dito. Não havia nada a acrescentar às últimas palavras incertas de ternura. Os abraços com intenção de consolo agora eram dolorosos para Isabel. Ele alimentava a esperança, embora tênue, de que poderia visitá-la em Nova York depois do conclave. Por enquanto, ele andaria calado e sozinho em sua própria escuridão e esperaria pelo nascer do sol, se de fato o sol voltasse a nascer de novo.

Então ele lembrou que tinha de pelo menos entrar em contato com Luisa e dar-lhe as instruções, que o secretário de Estado providenciara, para o contato com ele durante o conclave. Ele propusera enviá-las via fax ao hotel, mas o secretário rejeitara. A segurança estava envolvida. Recepções de hotéis eram lugares arriscados para deixar recados.

Então, quando finalmente chegou ao rio e entrou na Ponte Sant’Angelo, ligou para o hotel e deu o número do quarto de Luisa. Ficou aliviado mas constrangido quando ela atendeu e apressou-se em explicar:

– Consegui arranjar um meio de comunicação que poderá usar enquanto estivermos em conclave. É inteiramente oficial, mas depende do uso correto da diferença de fuso horário e do acesso direto à pessoa indicada. Então quero que copie as instruções cuidadosamente enquanto as dito, depois leia de volta para mim, a seguir certifique-se de tê-las sempre com você. O Vaticano é um lugar grande; em breve será um lugar abarrotado. Até o final do conclave, essa é a única ligação que terei com você. Entendido?

– Entendido. Estou aqui pronta com papel e caneta.

Ele ditou a informação lentamente, soletrando cada palavra, repetindo cada número. Depois pediu que ela repetisse as informações para ele, certificando-se de que a escrita e a pronúncia estavam corretas. Só depois de tudo terminar foi que se sentiu livre para perguntar:

– Como está a sua mãe?

– Ela passou por maus momentos depois que você saiu, mas agora está melhor. Acabo de vir do quarto dela. Está dormindo. Mais tarde a levarei ao restaurante para jantar. As malas já estão todas prontas. Não precisaremos nos preocupar de manhã.

– Você gostaria que eu fosse vê-la esta noite?

– É melhor não, acho. Por que passarem por isso de novo?

– Você está certa, claro. Apenas diga que liguei e dê a ela todo o meu amor.

– Eu queria de um pouco desse amor para mim também.

– Você o tem. Sempre o terá.

– E como é que você está suportando, Luca?

– Estou seguindo em frente... mesmo sem saber para onde estou indo.

– Eu também não sei. Só estou começando a perceber o que significa perder uma mãe.

Rapidamente ele foi tomado de ternura pela situação dela. A perda de um pai ou uma mãe era como o corte de uma raiz. O fluxo de nutrientes do passado cessava abruptamente. O futuro tornava-se uma incerteza.

– Minha querida, ninguém nunca está preparado para nada. O momento chega, você lida com ele. É o imposto que todos temos que pagar por sermos humanos. E deixe-me dizer mais uma coisa, que sua mãe já aprendeu e eu ainda estou tentando aprender. Há momentos para todos nós dos quais Deus parece estar ausente e somos deixados na escuridão e terrivelmente sozinhos. Lutamos para seguir em frente como um cego tateando o caminho à nossa frente com uma bengala, torcendo para que o chão permaneça firme, e que quaisquer criaturas que encontremos sejam amistosas. Nunca há garantias. Nós nos mantemos abertos ao amor porque, sem ele, nos tornamos feras bestiais.

Houve um silêncio na linha, como se a ligação tivesse caído. Então, em uma voz estranhamente cansada, ela perguntou:

– Você reza, Luca?

– Digo as palavras. Não sei quem as escuta.

– Vocês as diria por nós, por mim e pela mamãe?

– É claro.

– E nós vamos rezar por você. Vou manter contato de Nova York. – Houve outro silêncio rápido antes que ela perguntasse: – Diga que me ama, por favor!

– Eu te amo, minha filha.

– Eu te amo, papai.

A ligação foi interrompida. Ele botou o celular de volta no bolso, então se apoiou contra a balaustrada de pedra, olhando fixamente para as águas cinzentas através de uma névoa de lágrimas.


12

Monsenhor Domingo Angel-Novalis era um homem meticuloso. E também um homem irado. Não havia calor em sua ira, apenas uma análise fria. Coisas em desordem deviam ser organizadas. Ideias confusas deviam ser esclarecidas. O tempo estava expirando: restava menos de uma semana antes dos cardeais eleitos entrarem em conclave. Depois disso, as palavras e as ações de um pontífice morto serão notícias em jornais velhos, bons apenas para reciclagem. Portanto, as coisas deviam ser colocadas em pratos limpos imediatamente. Então, desde que deixou a sala do secretário de Estado, Angel-Novalis esteve muito ocupado.

Primeiro, ligou para um colega no Rio de Janeiro, um desses homens seculares que, no Opus Dei, eram chamados de “numeraries”. Chamava-se Eduardo de Souza e era diretor de um grande jornal conservador. Angel-Novalis pediu-lhe que descobrisse em seus arquivos qualquer notícia disponível sobre o recém-chegado Claudio Stagni. Ele gostaria de receber a informação em três horas. Era possível? Certamente, segundo o abençoado fundador, nada era impossível se a causa fosse boa e Deus estivesse do seu lado.

A ligação seguinte foi mais difícil, porque ele era um homem orgulhoso e detestava ficar devendo favores. A ordem natural das coisas era que a mídia viesse a ele pedir notícias. Ele nunca precisou mendigar espaço ou atenção. Hoje, ele estava pronto, se não para mendigar, pelo menos para solicitar alguns favores. O seu alvo mais provável era Frank Colson do Daily Telegraph, que fora seu interlocutor no Clube da Imprensa Estrangeira. O Telegraph tinha perdido a disputa pelo diário papal. Colson bem que poderia estar disposto a registrar uma história final, antes que a próxima eleição apagasse o passado recente. Colson estava aberto à ideia. Combinaram um encontro no Caffè Greco às cinco da tarde.

Angel-Novalis passou as duas horas seguintes em seu escritório, organizando uma breve história racional sobre a procedência suspeita do diário papal, e a possibilidade dos textos serem usados para mudar radicalmente as políticas disciplinares do falecido pontífice. Eram quase cinco horas quando a resposta veio do Rio pelo e-mail:

Claudio Stagni assinou um contrato de aluguel por três anos de um apartamento caro em um prédio de alta segurança na rua Bento Lisboa. Seus empregados são: um cozinheiro, uma arrumadeira e um motorista-segurança, contratados através de uma agência de empregos. Dadas as tolerâncias morais desta cidade, não há nada que provoque comentários sobre o estilo de vida de Stagni. Ele tem uma preferência por homens jovens e bonitos, prontamente disponíveis aqui, e dizem que está tentando se fazer conhecido nos meios artísticos e literários. Começou a frequentar galerias de arte e tem visitado um casal de editores locais interessados no trabalho em andamento sobre sua vida a serviço do falecido pontífice. Ele parece estar bem consciente dos riscos de uma vida muito pública ou muito dispersa nesta cidade. Apresenta-se com a discrição de um homem letrado com recursos substanciais. Por outro lado, não rejeita a companhia de mulheres – desde que sejam de uma certa idade e viciadas em fofocas de bom gosto. Resumindo, ele é um cliente muito calmo que sabe exatamente o que quer e como conseguir.

Há, no entanto, algumas notas úteis de rodapé. O Brasil está prestes a assinar tratados de extradição com certos países, como a Grã-Bretanha. Stagni consultou um advogado de renome, com quem mantinha contato, para informá-lo se ele corria algum risco. Não acredito que a Itália ou o Estado do Vaticano estejam listados como países prováveis, mas posso averiguar. E não faria mal algum começar uma pequena campanha de provocação para inquietá-lo.

Esse é um jogo comum neste país, que produz alguns subprodutos sinistros, como esquadrões da morte e outras formas de vigilância violenta. Não sugiro nem por um momento que você possa considerar tais métodos para atingir seus objetivos. Contudo, há meios mais fáceis de incomodar um residente indesejável. Se me ocorrer qualquer ideia boa, eu lhe informarei. Enquanto isso, continuarei cavando.

Fraternalmente,
Eduardo de Souza.

Não era muita coisa, mas forneceu um texto para sua discussão com Frank Colson. Ele imprimiu a mensagem, colocou-a na pasta com seu próprio material, depois digitou uma resposta para Souza.

Muito obrigado pelo seu tempo e preocupação. Parece que Stagni construiu para si um esconderijo consistente. Só podemos esperar que um dia ele seja expulso. Ninguém jamais concordaria com um ataque violento, mas um zumbido de insetos pode criar um desconforto.

Fraternalmente,
Domingo Angel-Novalis.

Quando a mensagem foi transmitida, ele desligou o computador e saiu apressado para seu encontro com Colson no Caffè Greco.

COLSON BEBIA SEU café e lia cuidadosamente os documentos. Depois, balançou a cabeça.

– Não há nenhuma novidade aqui... certamente nada que garanta uma história de qualquer repercussão.

– Você está esquecendo algo, Frank! Stagni sempre foi suspeito, como ladrão do diário do pontífice, como defensor absoluto de documentos forjados.

– Suspeito, sim, mas nunca acusado, porque não há provas em qualquer dos casos.

– Mas certamente ele está com medo de alguma coisa; por que então ele consultaria um advogado no Brasil?

– E por que esse advogado estaria pronto para trair a confiança de um cliente?

– Ele é amigo de amigos. Estava abrindo uma exceção para nos ajudar.

– Deus nos livre de tais advogados! E você, monsenhor, devia tomar cuidado com tais amigos.

– Você ainda está esquecendo algo, Frank: a evidência interna do texto; o pontífice abjurando suas políticas. Trabalhei para ele por longo tempo. Não posso imaginá-lo conspirando com seu mordomo em um projeto de destruição.

– Ele escreveu o texto! – Colson estava impaciente. – Por quê? Certamente não para enterrá-lo por séculos no Arquivo Secreto, foi? Todos nós escrevemos para nos comunicar com alguém. O mordomo era o último ser humano com quem ele falava à noite. Ele era o mediador mais natural entre o pontífice e qualquer eleitorado que quisesse alcançar!

– Se está dizendo que o eleitorado é a Igreja como um todo, você está errado! Todos os seus esforços foram para confirmar a autoridade da hierarquia e reduzir a intervenção da laicidade. Por que ele se engajaria em destruir seu próprio trabalho?

– Porque, no final, ele não gostou do resultado! Escultores destroem seus trabalhos. Pintores rasgam suas telas. Para mim, isso parece uma confissão de advertência: “A estrutura que construí é defeituosa. Não ponha muito peso sobre ela. Estenda-a em outras direções. Examine os alicerces.”

– Eu não vejo assim, Frank!

– Como vê, então?

– Um súbito esgotamento nervoso por parte de um homem muito velho e sobrecarregado de trabalho. Em pânico, ele confessa um medo interior. O que ele escreveu caiu nas mãos de um ladrão. E agora pode ser usado para subverter a vida espiritual da Igreja.

– Subverter? Essa é uma palavra forte e positiva. Você está dizendo que o próprio pontífice escreveu a fórmula da subversão.

– Não creio que ele pretendesse que fosse usada com esse fim.

– O texto é claro. Se isso não vale, quem vai interpretar a intenção dele?

– O novo pontífice. Nada muda enquanto a Sé estiver vaga.

Colson não pôde conter um sorriso.

– Isso, meu caro monsenhor, é puro mito e conto de fadas. É claro que as coisas mudam! Pontos de vista, políticas, aparências, tudo isso muda enquanto falamos, enquanto clérigos se reúnem em instituições religiosas por toda a cidade. O mundo não espera pelo novo residente dos aposentos papais... ele continua girando e nós, pobres-diabos, nos agarramos a ele por um triz.

– É uma pena que pense assim, Frank. Eu tinha esperança...

– Relaxe, meu amigo. Você terá sua história. Precisarei ajeitá-la um pouco, usar algumas das coisas que acabamos de falar, mas, sim, daremos ao assunto uma boa atmosfera.

– Obrigado. Pelo menos posso sentir que fui leal com ele. Não me esquecerei disso, Frank.

– Eu nunca o vi ansioso para plantar uma história.

– Estou furioso. Um erro foi cometido. E quero vê-lo consertado.

– A melhor maneira de fazer isso é reencenar o evento no meio do palco e deixar a plateia decidir. Você se incomoda se eu sair agora? Preciso escrever a matéria e enviá-la a Londres.

– Ela será publicada na edição de amanhã?

– Espero que sim. Pedi que reservassem espaço.

– Mas pensei que tivesse dito que não havia nada de novo nisso.

– Um velho truque, monsenhor: fazer o narrador justificar os elementos da trama. O seu texto foi bom. A sua interpretação foi bem mais eloquente.

Monsenhor Angel-Novalis pediu outra xícara de café e um pedaço de bolo de chocolate. Era um homem muito inteligente para saber que fora induzido a cometer uma indiscrição. Não estava mais fornecendo opiniões oficiais do Vaticano mas acrescentando comentários pessoais. Por outro lado, que importância tinha isso? O seu tempo no cargo estava expirando. Sob um novo pontífice, o próprio Opus Dei poderia muito bem passar uma curta temporada nos desertos dos desfavores oficiais. Essa era a natureza da vida em uma Igreja imperial. Instituições religiosas eram ducados, baronatos, marquesados e corporações dos comuns, onde propriedade e dinheiro, poderes de homens e mulheres, eram reunidos e colocados à disposição de um pontífice para o povo de Deus. Às vezes eles caíam nas boas graças. Às vezes incorriam no desagrado. Raramente, no entanto, suas patentes oficiais eram rescindidas. Era necessário uma grande mancha na reputação para tê-las removidas completamente.

Portanto, calma e paciência, Domingo! Você tentou proteger a honra de um homem a quem serviu com dignidade. Se tropeçar nesse serviço final e derrubar vinho no tapete, peça desculpas, limpe a sujeira e depois retire-se com toda a dignidade que puder reunir. Se Deus permitir, amanhã será um novo dia.

Agora que a sua própria história estava seguramente alicerçada, Angel-Novalis pensou que poderia fazer um desvio até o Clube da Imprensa Estrangeira e ver que outras histórias andavam circulando pelo mundo, e como a lista de apostas para o novo pontífice estava começando a se delinear. Verificou a carteira para ver se tinha dinheiro suficiente para algumas rodadas de drinques no bar. Ele mesmo só bebia água mineral, mas acreditava que um clérigo assalariado devia pagar seu quinhão, como o resto da humanidade. Percebeu, divertido, que Frank Colson havia deixado a conta do café para ele. Pagou-a e saiu para a noite barulhenta de outono.

NO CLUBE DA IMPRENSA, Fritz Ulrich estava radiante com a apresentação editorial de sua reportagem sobre os janízaros do Império Otomano. Um redator astuto reconhecera as possibilidades do artigo e o dilatou em duas páginas inteiras, com ilustrações de um conhecido cartunista satírico, Georg Albrecht Kirchner.

A simples analogia de Ulrich entre os janízaros e o clero celibatário da Igreja romana, reduzido em números, empestado pelos escândalos sexuais e pelos grandes processos que resultaram deles, fora interpretada dentro do contexto de um confronto global entre o cristianismo e o fundamentalismo islâmico ressurgente. Era uma reportagem poderosa, e foi muito elogiada. Steffi Guillermin foi generosa na apreciação:

– Confesso, Fritz, que não dei muita importância quando falou sobre isso. Mas com essa exibição e com as charges sublinhando a narrativa, a reportagem ficou fantástica. Haverá muitos elementos para discussão: Argélia, Sérvia, Indonésia, Paquistão...

– Estou orgulhoso dela. – Ulrich estava alegre como um garoto. – E Kirchner é tão esperto. Viu como ele fez tudo parecer tão simples? Troque as mitras pelos turbantes, depois enfatize as vestimentas por um lado e as panóplias das tropas otomanas por outro. Presto! O tema é claro, e o meu texto compõe o argumento! Como está indo a sua reportagem... o perfil do cardeal Rossini?

– Não sei, não. Algumas partes estão boas, mas há áreas obscuras no homem que ainda não alcancei. Contudo, o tempo está se esgotando. Preciso enviá-la até amanhã de manhã.

– Você se incomoda se eu der uma olhada? Nós a publicaremos na Alemanha, como sabe.

– À vontade.

Ela puxou a matéria em seu laptop. Enquanto Ulrich sentava-se para lê-la, Angel-Novalis veio até a mesa e cumprimentou os dois. Ele perguntou se estava interrompendo alguma coisa. Guillermin garantiu que não e explicou o que estavam fazendo:

– É uma revisão final da reportagem sobre o cardeal Rossini.

– Seria inoportuno se eu a lesse por sobre os seus ombros? Eu estava lá, lembra-se, monitorando a entrevista. Adoraria ver o que a senhorita fez dela.

– Talvez o senhor possa me ajudar a ajeitá-la.

Angel-Novalis posicionou-se atrás deles e lia o texto conforme ia aparecendo na tela. Guillermin bebericava seu drinque e esperava. Qualquer coisa que Angel-Novalis dissesse poderia ser valiosa ou irrelevante. Ulrich, porém, era um profissional e o seu pessoal na Alemanha pagara muito pelos direitos. Ele tinha um claro interesse no texto final. Seu primeiro comentário foi um elogio:

– É um bom perfil, Steffi... embora você tivesse que esculpi-lo em uma pedra muito dura. Mas você deixou de responder uma pergunta.

– Qual?

– O falecido papa era um homem autêntico. “Intrinsecamente bom e intrinsecamente mau.” Essas duas frases aparecem em toda parte nos documentos de seu reinado. Então por que ele protegeria um homem danificado como Rossini? Por que ofereceria a ele o solidéu vermelho? Por que o enviaria como seu delegado pessoal em missões de confiança por todo o mundo?

– Acho que deixei isso bem claro – disse Guillermin. – Se você voltar ao parágrafo três, encontrará a resposta no texto. Desde o seu retorno a Roma, há anos, Rossini teve uma vida irrepreensível. Recusou-se a negar sua dívida para com a mulher que salvou sua vida, ou o seu afeto por ela. O falecido pontífice respeitou essa atitude. Como poderia não respeitar? O cristianismo é isso: reconciliação, crescimento, progresso no caminho do peregrino... e amor sempre!

Esse foi o momento que Angel-Novalis escolheu para intervir na discussão. Ele perguntou:

– Qual é a sua conclusão sobre Rossini?

Guillermin franziu o cenho diante de sua própria admissão.

– Esse é o meu problema. Não tenho uma conclusão. O senhor estava presente na entrevista. E viu o que aconteceu. Ele nunca se esquiva a uma pergunta. Responde tudo que lhe é perguntado. Mas não explica nada, e muito menos a si mesmo. Eu entendo isso em parte. Vi as provas do que foi feito a ele anos atrás. Foi uma violação terrível.

– Vinte e cinco anos atrás – disse Ulrich. – De quanto tempo um homem precisa para se curar?

Guillermin voltou-se para ele, zangada:

– Às vezes uma vida inteira não é o bastante!

– E como sabe disso?

– Porque o meu pai era um bruto – disse Guillermin, de um só fôlego. – Ele me afastou dos homens para sempre.

– Sinto muito – disse Ulrich. – Desculpe pelas piadas de mau gosto. Eu sinto muito mesmo.

– Pelo amor de Deus, Fritz! Volte aos seus malditos janízaros e me deixe em paz.

Ulrich levantou-se sem dizer uma palavra e saiu vacilante em direção ao bar. Angel-Novalis mudou o assunto para outro tópico.

– Eu compreendo o problema que você teve para definir esse Rossini. Por mais de um quarto de século agora, ele tentou tornar-se invulnerável. Ele se tornou... como dizer isso?... parecido com um grande iceberg no centro do qual queima uma fogueira. Pode-se ver o fogo, mas não se pode chegar perto o bastante para sentir o calor. E não se sabe se um dia o fogo derreterá o gelo ou o gelo congelará o fogo.

– Não gostaria de arriscar um palpite, monsenhor? Afinal, o senhor descreveu a sua própria experiência depois da perda de sua esposa. O senhor encontrou a salvação, ou pelo menos um porto seguro, em uma fraternidade religiosa. O senhor diria que a Igreja preencheu essa necessidade para o cardeal Rossini?

– Eu diria que provavelmente ela não preencheu... pelo menos até esse momento de sua vida.

– Por que não?

– Porque ele nunca confiou completamente na Igreja, que em seu país viu com muita frequência como uma conspiradora com os governos militares. Ela teve seus mártires, sem dúvida! O próprio Rossini sofreu pela fé, mas os seus mártires eram o que os mártires normalmente são, estranhos que se tornam heróis e heroínas depois de suas mortes. Apesar de sua ascensão ao poder... e ele exerce o poder... o que restou de Rossini foi construído em torno da mulher que foi verdadeiramente “o salvador tangível”, a restauradora do vaso quebrado. A senhorita sabia que ela estava aqui em Roma?

– Estive com ela, mas nossa conversa foi confidencial. Eu soube no hotel que ela adoeceu e está partindo amanhã para Nova York com a filha.

– Na verdade, ela está mortalmente doente – disse Angel-Novalis. – Rossini chamou o médico papal, Dr. Mottola, para atendê-la.

– O que acontecerá quando ela se ausentar dele para sempre?

– Não sei. Eu me perguntei algumas vezes o que teria acontecido comigo se todos os meus apoios tivessem me abandonado. Às vezes me perguntava se não seria um homem mais sábio, um homem melhor no final, se eu tivesse sido forçado a entrar em outro padrão de crescimento. Outras vezes, eu pensava...

– Pensava o quê, monsenhor?

– Sobre a parábola da casa vazia, toda varrida e enfeitada, e nos sete demônios que foram viver nela.

– E o senhor acha que Rossini tem demônios na casa dele?

– Todos nós temos, mas a senhorita terá de dar seus próprios nomes aos demônios de Rossini.

No mesmo instante em que pronunciava as palavras, ele lembrou-se de que havia um diabinho travesso batendo na janela de sua alma. O seu fraterno amigo do Rio apresentara o pequeno demônio, não como um sério morador, porém mais propriamente como um comediante na casa. Era divertido imaginar Claudio Stagni, seguro em seu exílio em sua nova prosperidade, de repente importunado por moscardos e picadas de vespas. Depois, por ser um homem com uma consciência finamente afiada, Angel-Novalis compreendeu que este não era um moleque brincalhão mas um demônio muito gentil, demonstrando com raciocínio claro como as perversões do poder podem servir à causa da justiça. Sentiu um pequeno arrepio involuntário. Steffi Guillermin olhou para ele, curiosa.

– Há algum problema?

Angel-Novalis sorriu, embaraçado.

– Um pensamento íntimo. Estávamos falando de demônios. Acabo de ver um de soslaio.

– Essa é uma ideia! – disse Guillermin, voltando à tela do computador. – Quem sabe não é essa a chave para ele? Rossini é um homem que já viu a face nua da maldade e ele não consegue olhar além dela para qualquer boa visão. Acreditar em um criador benevolente é difícil de sustentar. Entendo isso muito bem.

– A senhorita já leu Dom Quixote?

– Anos atrás. Por que pergunta?

– Há uma frase que não sai de minha cabeça. “Tras la cruz está el Diablo.” Atrás da cruz está o diabo!

– Não me lembro dela, mas faz sentido. Deixe-me brincar um pouco com isso. Poderia me comprar, por favor, um gim-tônica e oferecê-lo ao Fritz Ulrich com meus cumprimentos? Ele estava tentando ser legal e rosnei para ele. Mas, pelo amor de Deus, não o traga de volta aqui!

Ela voltou-se para a tela e escreveu uma nova sentença introdutória:

“Luca, cardeal Rossini, que está emergindo lentamente como um possível candidato papal, é um homem complexo, não facilmente decifrado.”

NA PRIVACIDADE de seu escritório, Frank Colson estava organizando sua versão da teoria de subversão de Angel-Novalis. Ele sabia que a procedência e a autenticidade dos documentos eram assuntos mortos, que em breve seriam enterrados por uma avalanche de especulações sobre a eleição e por ilustrações jornalísticas do novo encarregado da Sé de Pedro. Ele tinha dois motivos para selecionar a parte final da história: o próprio Angel-Novalis e o futuro do Opus Dei sob um novo pontificado.

Angel-Novalis estava adequadamente explicado pela sua história pessoal. Um homem enviuvado, ele se entregara ao ponto da obsessão a uma fraternidade que dera razão e direção à sua vida. Ele fora treinado no mundo dos banqueiros onde todos os itens em uma auditoria devem ser constantemente notados. O Opus Dei, por conseguinte, apresentava-se como o último e mais seguro refúgio da ortodoxia em um mundo descendo velozmente para o inferno em um carrinho de mão. A noção perigosa de uma Igreja remanescente, fiel no meio da decadência universal, estava gravada em seus pensamentos. A ênfase na palavra altamente tendenciosa “subversão” parecia ser a chave de grandes áreas de seus pensamentos, e do senso de ultraje do próprio Angel-Novalis. Colson começou, como sempre fazia, anotando a linha de orientação.

O diário papal, supostamente roubado e publicado com procedência forjada, pode muito bem ser algo mais: um plano para subversão da vida espiritual e da disciplina da Igreja.

Esse foi o ponto de vista pessoal claramente expressado hoje pelo monsenhor Domingo Angel-Novalis, chefe do departamento de imprensa do Vaticano e seu porta-voz oficial. Devemos deixar claro que esse comentário não foi solicitado por nós. Monsenhor Angel-Novalis pediu que seu ponto de vista pessoal fosse publicado. Ele nos procurou porque não somos um dos publicadores do diário.

Desafiado por este escritor pelo uso da palavra “subversão”, Angel-Novalis insistiu que ela era exata. Ele alegou que as anotações no diário feitas pelo falecido pontífice na noite anterior ao seu colapso foi uma “revelação de pânico, um esgotamento nervoso por parte de um homem muito velho e sobrecarregado de trabalho”. Ele manifestou o medo de que essa momentânea falta de confiança pudesse ser usada para destruir as políticas e disciplinas do pontífice.

Foi mostrado a ele que havia uma contradição inerente no argumento, a saber: que as palavras eram do próprio pontífice. Angel-Novalis refugiou-se imediatamente em um legalismo: a Sé de Pedro está vazia. Todas as determinações existentes permanecem até um novo pontífice mudá-las. Ele foi além, afirmando, novamente, que os documentos que foram roubados eram na verdade expressões particulares sem nenhuma validade canônica.

Questionado, Angel-Novalis admitiu que não havia provas apresentadas contra o vendedor do documento, Claudio Stagni, agora vivendo luxuosamente no Rio de Janeiro. Tais provas foram claramente procuradas, ao menos extraoficialmente, por um colega de Angel-Novalis no Brasil.

Para este correspondente, as características mais curiosas dessa situação são: primeiro, a aparente indiferença das autoridades do Vaticano, que parecem resignadas com a escrita do diário como um incidente desafortunado que será esquecido com o tempo, e, segundo, a súbita explosão de raiva e zelo por parte do próprio Angel-Novalis.

A sua lealdade pessoal ao falecido pontífice é bem conhecida. Sua conduta sempre foi de um desprendimento calmo das controvérsias e de uma precisão purista nas declarações sobre as teorias do Vaticano.

Será que ele se tornou sensível de repente ao partidarismo inevitável do período da sede vacante, ou será que ele também se tornou bastante partidário para inventar rótulos para aqueles que discordam das políticas vigentes e buscam mudanças através do processo eleitoral? Meu ponto de vista é que, tendo estabelecido sua vida na fraternidade do Opus Dei, ele fica incomodado por qualquer desafio ao seu rígido condicionamento. Aqueles que vivem perto do centro do poder ficam inquietos quando o poder está em suspenso, ou quando ele começa a passar para outras mãos...

Quanto mais escrevia, mais eloquente Colson se tornava. Quando fechou a história, ele compreendeu que o que escrevera era o obituário de um servo leal que colocara sua carreira em risco para defender uma posição de que seu falecido mestre já abdicara. No entanto, Colson sentiu muito pouco remorso. Esse era o nome do jogo das notícias. Todos jogavam para ganhar. Alguém tinha de perder.

Ele releu a matéria e decidiu que não mudaria nada do que escrevera. Esse era, afinal, o modo de agir do próprio Vaticano. Quod scripsi, scripsi. O que escrevi, escrevi. Uma mudança poderia ser considerada, mas levaria séculos para chegar a ela – a não ser que um novo pontífice interviesse, mas mesmo esse nome ainda estava guardado na mente de Deus.

Frank Colson assinou a matéria e enviou-a para Londres.

LUCA, CARDEAL ROSSINI, voltou cedo para casa naquela noite. O inverno escuro ainda estava sobre ele, a sensação de desolação e de esforço inútil. Sabia pela longa experiência que o único remédio contra isso era a rotina, a monotonia do hábito sem expectativa de alívio.

Cumprimentou seus empregados, pediu que lhe preparassem um jantar leve, depois foi para o quarto tomar banho, vestir um pijama e um roupão. Em seguida, leu as últimas horas de seu breviário – vésperas e completas. A cadência dos salmos era familiar em sua língua, suave aos ouvidos, mas era como se as palavras estivessem sendo pronunciadas por outro. Elas eram encantamentos, não orações. A sua vontade quase que se retesava contra elas, como aconteceria contra o retumbar de tambores e o bater de címbalos no templo dos deuses estranhos.

Ele jantou ao som de música, a Sinfonia de Oxford de Haydn tocada pela Filarmônica de Viena. A música fez por ele o que os salmos não puderam fazer. Ela afastou os fantasmas tagarelas. Silenciou argumentos e impôs a estrutura irracional do puro som na racionalidade intricada dos teólogos e filósofos, e no legalismo obstinado dos cânones.

Quando a música terminou e o seu jantar também, ele levou a bandeja para a cozinha, deu boa-noite aos empregados e voltou à mesa, onde pegou papel e caneta. Normalmente usaria seu processador de textos, mas a tarefa em que estava envolvido era uma aventura íntima e particular, na qual a máquina de repente se tornou uma intrusa. Ele não tropeçou ou hesitou sobre o começo, mas escreveu as palavras que o secretário de Estado sugerira. “Eu sou Luca, vosso irmão...”

Mesmo ao escrevê-las, sabia que elas não seriam aceitas por toda a sua audiência. Em uma segunda olhada, talvez não fosse um começo tão bom. Irmandade era uma palavra carregada mesmo na Igreja milenar. A mancha do populismo ainda pairava sobre ela. Ordens e hierarquias eram uma moeda corrente mais estável e mais reconhecível. Até no próprio colégio eleitoral, havia categorias e classes: cardeal-arcebispos, cardeal-bispos, cardeal-padres, cardeal-diáconos – e não muito tempo atrás, leigos também portavam o título e os benefícios do posto. No colégio eleitoral todos os homens eram iguais – mas na ordem dos seres, alguns eram mais iguais do que outros. Então, ele mudou um pouco a frase: “Eu sou Luca, vosso irmão. Como vós, sou um servo da Palavra.”

Que mais? O que de valor poderia ele dizer a esta assembleia de homens decisivos que eles não ouviram e pregaram mais de mil vezes? O que ele, o cético na escuridão, poderia oferecer a eles de luz e energia para guiá-los na escolha do Servo dos Servos de Deus? Então, recomeçar. “Eu sou Luca, vosso irmão. Como vós, sou um servo da Palavra. Quero abrir meu coração a vós. Não estou aqui para vos ensinar nada. Já sabeis tudo, melhor do que eu. Permitam-me apenas expressar meus pensamentos, como um irmão naquela enorme família de fiéis que sequer sabem nossos nomes, que não nos reconheceriam se esbarrassem conosco na rua.”

Ele fez uma pausa. E voltou a se perguntar o que estava tentando fazer nesse discurso. Ele queria que eles se sentissem vulneráveis, responsáveis; que se auto-investigassem, que duvidassem de si mesmos. Eles viveram tanto tempo sob a proteção da instituição que muitos tinham medo ou relutavam em se aventurar além dela. Para estes, a obediência formal era como o velho testudo romano: um dossel de escudos sob o qual eles se abrigavam das decisões perigosas ou ameaçadoras.

Desde que alguém permanecesse em obediência, esse alguém vivia seguro e meritoriamente sob o sistema. Proteste-a, no entanto, e estará marcado, ou pensará estar marcado, como um perturbador da paz. Penalidades sutis eram exigidas. O acesso direto ao pontífice era diminuído. As visitas a ele eram difíceis de arranjar e reduzidas a cumprimentos formais. O Vaticano ainda era uma corte, e se alguém não aprende os modos da corte, esse alguém deve esperar ficar em desvantagem. Então, esqueça a irmandade. Pense novamente em seu caminho através do labirinto. Prepare-se para os becos sem saída e as armadilhas.

Ele lutou com o texto por longo tempo, enchendo a cesta de lixo com papéis amassados. Finalmente o humor da situação desceu sobre ele. O secretário de Estado, seu bom amigo, Turi Pascarelli, o presenteara com um abacaxi – um papel não simpatizante na peça ritual mais longa e cansativa.

Turi ficou com a parte mais fácil: demonstrar a demografia, a geografia e as geopolíticas de uma Igreja milenar. Ele tinha todos os dados na cabeça e nos arquivos. Ele podia, como dissera, demonstrá-los com um globo e luzes coloridas.

Mas a mente da assembleia de peregrinos, a disposição de todas as igrejas em toda parte, suas lealdades, suas tristezas, seus ódios, essas coisas não eram fáceis de ser compreendidas. Elas eram detestavelmente difíceis de comunicar a esse grupo poliglota de eleitores, cada um com ciúme de seu próprio pedaço do vinhedo e da qualidade do vinho que ele produzia.

Havia muito mais coisas, porém. Nesta assembleia de celibatários, não havia uma voz para as mulheres, que sustentavam mais da metade do mundo. Não havia ninguém para falar a língua delas, expressar suas preocupações crescentes, suas relações com Deus, que só eram expressas no gênero masculino. Luca Rossini, lacônico e sem firmeza para expressar a paixão de sua própria vida, teria de lembrá-los de suas obrigações e falhas. Ele, o cético na escuridão, foi nomeado iluminador para essa assembleia de eleitores que apontaria um pontifex, um construtor da ponte para diminuir a vasta lacuna entre os sexos. E, para piorar um pouco mais, Turi Pascarelli dera-lhe dois dias para apresentar um texto.

Certamente ele não seria escrito hoje. Ele serviu-se de um copo de água mineral, ligou o aparelho de som e entregou-se ao Concerto para Oboé de Mozart. A música estava quase terminando quando Isabel ligou do hotel. O coração dele disparou ao som da voz dela. Gaguejou como um adolescente:

– Eu queria ver você, mas Luisa achou que eu não devia...

– Ela estava certa. Fiquei muito fragilizada depois que você saiu, mas estou calma agora. Queria que você soubesse que falei com Raul. Disse a ele que me culpava por muito de nossa infelicidade, que eu queria que vivêssemos em paz pelo tempo que ainda me resta. Disse que não esperava que ele mudasse sua vida, apenas que mantivesse a nossa parte dela em um compartimento separado. Ele ficou sério, quieto e gentil... o que provou que o seu conselho de confissão estava certo. Isso também faz com que a volta para casa fique mais fácil para mim e Luisa. Como é que você está, meu amor?

– Estou aqui, ouvindo Mozart e tentando buscar sentido em uma tarefa que me passaram. É um verdadeiro copo de veneno. Eu, entre todas as pessoas, tenho de falar aos eleitores no início do conclave e direcionar seus pensamentos para as consequências de suas escolhas. Minha cesta de lixo está cheia dos meus fracassos. Desisti por hoje.

– Por que você aceitou a tarefa?

– Fui pressionado a aceitar.

– Desculpe-me, Luca, meu amor, mas você nunca foi pressionado a nada... exceto a sair da Argentina.

– E você nunca me deixa mentir, nem um pouquinho. Muito bem, então! Eu estava disposto a falar. Por um momento, pensei haver coisas que eu quisesse dizer. Agora elas bateram as asas como os pombos de uma torre de sino.

– Isso significa que é hora de parar de pensar e deixar o seu coração falar.

– Tenho de escrever as palavras. Os tradutores precisam de um texto.

– Então volte à mesa e escreva o que pensamos, dissemos e argumentamos naquelas poucas semanas que passamos juntos no campo perto de Córdoba, quando jogamos nossos bonés para o ar e deixamos os ventos dos pampas levá-los embora. Você estava tão zangado naquele tempo, tão apaixonado. Lembro de uma coisa que você disse: “Temos de chamar Cristo de onde estiver para que ande entre nós de novo. Se não vier, seremos todos feras perdidas em um matadouro, esperando pelos magarefes.” Aquela foi a primeira noite em que fizemos amor... Você era um jovem padre naquela época. Agora é uma Eminência. Sua Eminência se lembra?

– Lembro – disse Luca Rossini.

– Então fale isso! Fale como o seu coração lembrar. Fale por mim.

– Mas você terá partido.

– Eu nunca partirei de você, nem você de mim. Pegue a sua caneta e escreva!


13

Agora Isabel se fora, e Luisa com ela. O trabalho que ela impusera a ele – transformar a experiência do amor deles em um apelo apaixonado por mudança – havia amenizado, pelo menos por enquanto, o impacto da perda e do medo de um futuro privado da presença dela. Embora estivesse grato pelo breve consolo, ele sabia que a agonia adviria, tão certo como a noite segue o dia.

Às dez da manhã, fatigado mas de banho tomado, barba feita e arrumado como um guarda em parada militar, ele se apresentou ao secretário de Estado e colocou o manuscrito em sua mesa. O secretário o reconheceu com cauteloso respeito.

– Pontual como sempre, Luca! Obrigado. Eu o lerei mais tarde, se não se importa. Você marcou o tempo?

– Quinze minutos, mais ou menos. Espero que o teto não caia enquanto eu o estiver lendo.

Essa foi uma pequena piada, mas o secretário preferiu levá-la a sério. Ele franziu o cenho e balançou a cabeça.

– Eles serão uma plateia severa, Luca. Você falará a eles em sua língua-mãe. Os nórdicos são céticos quanto à eloquência latina; então eles estarão lendo o texto traduzido. Não fique muito desanimado se a reação deles parecer morna. Há muita inquietação, muito descontentamento com os trabalhos da burocracia curial da qual você e eu fazemos parte.

– E da qual certos membros ambiciosos tentarão manter controle.

– Como a lista está parecendo no momento, eles podem muito bem conseguir. – O secretário de Estado estava sombrio. – Nós chegamos, meu caro Luca, a um momento crítico na história: o fim de um longo reinado papal, o fim de um século, o começo de um novo milênio. É bobagem fingir que tais eventos não afetam as pessoas. Eles afetam, muito profundamente. Eles nos afetam também, muito mais do que estamos preparados para admitir. Somos os mandarins da burocracia, mas estamos tão vulneráveis como o mais humilde lavrador às mudanças dos tempos e costumes.

– Seria uma ajuda para mim, Turi, saber sua opinião sobre o conclave, como ele está constituído agora.

– Bem! – O secretário de Estado levou um tempo para organizar os pensamentos. – Primeiro, seremos uma assembleia profundamente dividida. Não é fácil rotular as divisões porque elas não são fundamentadas na crença religiosa ou na política disciplinar. Algumas são fundamentadas em puro interesse próprio. Nem todos nós somos homens bons. Nem todos nós somos metade bons. Alguns de nós são vilões secretos que fizeram os próprios pactos com homens gananciosos e tiranos. Você sabe disso. Todos nós sabemos, mesmo que não desejemos confessar. A maioria dos homens de boa vontade admite que a mudança é necessária. Todos enfrentam duas questões básicas: o que mudar, e com que rapidez? Quanto maior o barco, mais difícil e mais lenta é a alteração do curso. O nosso falecido pontífice tentou, embora ele nunca fosse admiti-lo, reverter o curso traçado pelo Concílio Vaticano II rumo a um governo colegial e a uma Assembléia compassiva. Ele quase conseguiu, mas pôs amarras ao barco, impedindo seu progresso, tanto que, neste momento, está inerte na água. A tripulação encontra-se desestimulada; há rumores de motim nos conveses. Os oficiais... você, eu e outros milhares... tentam manter a ordem, a disciplina e a confiança em nossa navegação celestial. Muitos de nós nos encontramos transformados em oficiais, céticos de nosso sacerdócio. As pessoas também estão descrentes do ministério que oferecemos. Foi-nos imposto silêncio sobre muitas questões que deveriam estar abertas para discussões calorosas. Você e eu podemos enumerar um catálogo inteiro de outras questões clamando por atenção: o celibato do clero, uma Igreja imperial ou colegial, a teologia do sexo e casamento, a permanência de práticas inquisitoriais dentro da Igreja, a imposição de novos juramentos e profissões de fé nos educadores em nossas escolas e universidades. A supressão de debate é uma posição insustentável no mundo de hoje. As pessoas pedem luz. Nós as condenamos à escuridão. Elas imploram calor. Nós, que alegamos ser os guardiões do fogo, lhes oferecemos uma fria penitência. Sentado aqui onde estou, Luca, provavelmente sou o homem menos reprimido na Igreja... mas, Deus me perdoe, tenho sentido os cordões da camisa de força apertando a cada ano!

– Suponha – Luca Rossini o desafiou calmamente –, apenas suponha, que você se encontra em minha posição... não por frustração, mas pela lenta erosão da própria fé... o que você faria, Turi?

– Não sei, Luca, porque não faço ideia de como o problema se apresenta para você. O meu problema é uma fé não questionada. Eu a uso como uso minha própria pele. Eu a aceito, como aceito minha própria identidade genética. Não vejo mérito nisso. É um conforto que nada fiz para merecer.

– O que eu tenho sentido – Luca Rossini escolheu as palavras com muito cuidado –, que venho sentindo há algum tempo é como uma ameaça de cegueira. Sei que posso acordar um dia e não ver nada do que vejo agora. E isso será escuridão ou luz para mim? Não tenho como saber. Que sentido farei do mundo... o mesmo mundo, Turi... quando todos os aparatos intricados da razão, da revelação, do mito, da bela lenda, mesmo da continuidade familiar, forem destruídos, desaparecerem com uma simples frase mágica: non credo, não creio, não posso mais aceitar acreditar?

– Não sei, meu amigo. Não sei. Imagino, no entanto, que a vida ficaria um pouco mais fácil, se a pessoa fosse absolvida de todas as cargas da fé. Ela poderia seguir qualquer caminho que escolhesse, adaptar-se de qualquer modo possível a um universo acidental. Eu poderia ver certas vantagens, por exemplo, em um papa descrente, um secretário de Estado oportunista. Nós já tivemos um pouco de cada durante os séculos. – O sorriso lento contradisse a ironia do enunciado. A explicação posterior enfraqueceu a ironia: – Não estou zombando de você. Vi o sofrimento nos seus olhos. A sua Isabel se foi. Você teme nunca mais vê-la. Porém você não me pedirá para compartilhar o seu lamento. Você entregou o que lhe ordenei... quinze minutos de sermão, cuidadosamente cronometrado. Admiro isso. Eu o invejo. Entenda bem, Luca! Eu o invejo pela experiência de amor, que eu nunca conheci mas que você teve com Isabel. Não posso imaginar como você conseguiu viver, como eu sei que viveu, todos esses anos de celibato sem ela. Eu compreendo, ou penso que compreendo, o seu temor do vazio que ficará depois que ela morrer. A fé, como os sentidos, é um dom que pode ser retirado. Mas o amor não o abandonará, como Isabel não o abandonou na época do terror.

– Espero que esteja certo. Eu não me atrevo a pensar muito além do momento atual. Nunca lhe pedi isso antes, eu era muito orgulhoso, acho. Quanto você sabe sobre o que aconteceu na Argentina?

– A maior parte das coisas está em nossos arquivos e nos do Santo Padre, depositados no Arquivo Secreto. O nosso amigo Aquino foi um cuidadoso registrador, embora um intérprete autoprotetor. O governo argentino também foi diligente ao registrar o seu lado da história... incluindo o nascimento da filha de Isabel Ortega, de uma cesariana em um hospital de Nova York.

– Você precisa saber que, na verdade, Luisa é minha filha – disse Luca Rossini. – Isabel nunca me contou antes dessa visita. Luisa não sabia. Como você pode imaginar, o nosso primeiro encontro foi um tanto dramático.

– E como Luisa se sente sobre isso?

– Confusa, acho, mas ela é gentilmente receptiva comigo. Mais importante do que isso, ela nos viu juntos. O nosso amor foi exposto a ela. Ela entende e aprova. Talvez eu possa dar-lhe algum apoio quando sua mãe se for. É muito cedo para saber.

– E Raul Ortega?

– Entendo que ele a ama e a aceita como filha. Não fiz mais perguntas.

– Eu perguntei – disse o secretário de Estado calmamente – porque, devido a esse novo conhecimento, você pode querer rever a sua um tanto morna recomendação de Ortega como embaixador para a Santa Sé. A carta ainda está comigo. Ainda não foi arquivada no dossiê. Se ele for indicado, isso pode deixar você e a sua filha um pouco mais acessíveis um ao outro.

– Você é um bom homem, Turi. – Sua voz estava embargada e os olhos marejados. – Mas eu não poderia deixá-lo fazer isso. Minha filha e eu nos encontraremos no tempo certo.

– Tenho certeza que sim. – O secretário de Estado mudou de assunto bruscamente. – Agora, preciso de sua ajuda em alguns assuntos. Primeiro, recebi esta mensagem de nosso núncio no Brasil. – Ele empurrou o papel sobre a mesa na direção de Rossini:

Ontem à noite, em uma reunião social, falei com um editor importante, Eduardo de Souza, que sei ser um guarda-livros do Opus Dei. Ele falou de modo precavido sobre um comunicado de um colega romano sobre o assunto Claudio Stagni e o efeito perturbador do diário papal dentro e fora da hierarquia. Aparentemente, houve uma sugestão daquilo que ele chamou de “um incômodo discreto” de Stagni poder ser o primeiro passo em direção ao descrédito da procedência do documento. Eu disse a ele que não tinha conhecimento de tal sugestão e que a desaprovava totalmente. De Souza recusou-se a revelar a sua fonte romana. Recomendo uma investigação de sua parte.

Rossini ainda estava franzindo o cenho sobre o documento quando o secretário de Estado empurrou outro em sua direção.

– Esta reportagem me foi enviada de Londres esta manhã via fax. Ela foi publicada no Telegraph e é atribuída ao correspondente deles em Roma, Frank Colson.

Rossini leu a reportagem cuidadosamente e depois perguntou:

– Você tem algum problema com isso, Turi?

– Você não?

– À primeira vista, não. Eu estava aqui quando você o instruiu. Você lhe disse que ele estava livre para “agir dentro da discrição de seu posto”; suas palavras textuais, Turi. Parece-me que ele fez exatamente isso.

– Não, ele não fez. Eu o questionei logo antes de você chegar. Ele admite que buscou provas sobre Stagni com um colega no Rio de Janeiro. Ele admite que não tinha o resumo dos fatos para conduzir o processo investigativo. E depois, atribui motivos e condições mentais ao falecido pontífice: “revelação de pânico, um esgotamento nervoso por parte de um homem muito velho e sobrecarregado de trabalho.” Só isso, já é o bastante. Finalmente, ele deposita uma ênfase especial em uma palavra altamente desvirtuada: “subversão.” Isso deprecia todos nós!

– Lembre-se, Turi, de que essa é a versão de um repórter, que não alega ser uma entrevista textual.

– Essa foi uma oportunidade pensada por Angel-Novalis para expressar suas convicções pessoais. Isso está fora do compêndio de sua função. Ele alega que tinha uma obrigação moral de defender a reputação do pontífice e defender a Igreja dos danos emergindo do mau uso do documento particular. Ele teve bastante estado de espírito para pedir desculpa pelo que chamou de “um toque de ira” em suas ações.

– Acho que você foi muito duro com ele, Turi. Ele é como um cavalo adestrado. Ele corre melhor quando está usando antolhos.

O secretário de Estado ficou uns instantes ruminando a ideia e depois assentiu, cauteloso, com um movimento de cabeça.

– Você pode estar certo, Luca. Eu estava zangado com ele. Ele continua firme sobre si mesmo. E me ofereceu sua demissão imediata.

– Você aceitou?

– Não. Eu disse a ele que, como havia sido indicado pelo falecido pontífice, ele devia seguir a prática comum e oferecer sua demissão ao novo homem.

– Uma sábia decisão de sua parte, Turi.

– Fico feliz que pense assim, Luca – disse o secretário de Estado em seu modo direto. – Eu também disse a ele que a última coisa de que precisamos é qualquer envolvimento com seus colegas em Buenos Aires, ou qualquer envolvimento por parte deles no caso Stagni.

– É de se pensar que Angel-Novalis tem bastante influência para evitar isso.

– Quem sabe? – O secretário de Estado encolheu os ombros, resignado. – Nós criamos nossos monstros sagrados na Igreja, tanto indivíduos quanto organizações. Os monstros criam suas próprias pautas e carimbam os documentos com seus selos de divindade ou perversidade. Há grandes santos, grandes instituições de devoção, ensino e caridade. Há também caçadores de bruxas, cruzados assassinos, perseguidores de judeus, inquisidores que condenariam uma mente pensante ao silêncio e à solidão. E agora, meu caro Luca, depois de cometer todas essas indiscrições, terei de pôr você à prova. O camerlengo quer nos ver em seu escritório.

– Algum assunto em particular?

– Acredito que a sua entrevista para o Le Monde será ao menos mencionada.

– Eu não a vi, Turi.

– Outras pessoas viram.

– Tem uma cópia?

– Tenho. – Ele retirou os outros papéis da mesa e deu a Rossini a reportagem, grampeada em uma pasta. Ele também fez um comentário cauteloso:

– Leia atentamente enquanto dou uma olhada em seu texto. Depois sairemos para ver Baldassare.

– Sobre o que mais ele quer falar?

– Ele não me disse. A Sé de Pedro está vazia. Simplesmente fomos convidados para sentar sob o guarda-chuva do tesoureiro e tomar o café da manhã. Vou dizer a ele que nos aguarde em quinze minutos!

A REPORTAGEM DE Steffi Guillermin era bem mais longa do que ele esperara. Fora organizada com muito cuidado, dividida em duas partes distintas, com trechos relevantes do texto em negrito. O título era: “Inquirição de uma pessoa eminente.” O subtítulo dizia simplesmente: “Perfil de um candidato papal.” A introdução era enganosamente prosaica:

Esse perfil foi composto durante duas entrevistas com a pessoa de Luca, cardeal Rossini, italiano por descendência, argentino de nascimento e criação, que viveu em exílio distinto por um quarto de século, e foi sucessivamente promovido pelo falecido pontífice ao posto curial.

A primeira entrevista foi formal, supervisionada pelo chefe do departamento de imprensa do Vaticano, monsenhor Domingo Angel-Novalis. As condições foram acordadas previamente. Eu estava livre para fazer qualquer pergunta. Sua Eminência poderia recusar-se a responder, mas tudo o que disse durante a entrevista foi registrado. E está impresso aqui na íntegra e sem censura.

A segunda sessão foi bem menos formal. E aconteceu no apartamento de Sua Eminência em Roma. Estavam presentes Sua Eminência o cardeal Aquino, antigo núncio apostólico na Argentina, a Sra. Isabel Ortega e a líder das Mães da Praça de Maio, Sra. Rosalia Lodano. As condições também foram mudadas. Concordei previamente que certos assuntos seriam discutidos confidencialmente. Concordei com esse arranjo e o mantive. Contudo, certas informações barradas durante a discussão me ficaram disponíveis por outros setores. E não hesito em usá-las. O que espero ter captado é a face pública e privada de um homem complexo que, embora seja pouco conhecido na Igreja como um todo, não falhará em impressionar seus colegas no conclave.

O homem público é fácil de retratar. Ele é uma presença em qualquer companhia. Ele é alto, magro e bonito, com feições aquilinas e observadores olhos escuros. Quando sorri, seu rosto ilumina-se e ele irradia um vívido interesse. Quando está insatisfeito, suas feições endurecem e se tornam uma máscara ilegível. Ele é sempre cortês, mas, como descobri em meu primeiro encontro, não tolera subterfúgios e truques profissionais. Aprendi rapidamente a manobrar do convés superior. Em termos profissionais o considerei sério, ocasionalmente engraçado e sempre preciso. Ele apreciou o fato de eu estar bem preparada e saber escrever corretamente. Ele replicou o cumprimento, com as respostas bem elaboradas que os senhores lerão nesta página.

O homem privado revelou-se através de dissimulação. Primeiro, ele estava envolvido em uma delicada aventura diplomática. As Mães da Praça de Maio queriam levar o cardeal Aquino ao tribunal italiano sob acusação de cumplicidade e colaboração com o regime militar ditatorial argentino na morte e desaparecimento de italianos nativos, tanto pessoas leigas como em profissões religiosas, que foram torturadas, mortas ou simplesmente desapareceram durante a guerra suja. Para realizar isso, elas precisavam de uma desistência de imunidade por parte da Cidade do Vaticano. Isso, presume-se, seria uma concessão improvável. Então, entra o cardeal Rossini, ele próprio uma vítima da guerra suja que, como um jovem padre, foi açoitado e violentado na frente de sua igreja. Ele foi salvo de adicionais horrores pela Sra. Ortega e o pai dela.

Enquanto o seu pai ia a Buenos Aires negociar um acordo para obter o salvo-conduto para Rossini sair da Argentina, a Sra. Ortega fugiu com ele para o campo e cuidou de sua saúde.

Vi provas fotográficas – que concordei em não descrever aqui – do que foi feito a Rossini.

Eu pude ver então, muito claramente, como Rossini obteve uma salvação pessoal através de uma mulher. Tive o privilégio de vê-los juntos sob circunstâncias de extremo paradoxo. Ambos estão na casa dos cinquenta anos. Não se viam por um quarto de século. Mesmo assim, não tive dúvidas de que algum dia, por menor que tenha sido o tempo, eles foram amantes e que o mesmo amor ainda existia em ambos. Esse amor iluminou a sala parca de homem solteiro na residência do cardeal. Podia-se senti-lo em cada olhar e gesto. E ele deu um caráter especial ao apelo de Rossini por uma trégua, se não um acordo entre Aquino e as mulheres que o acusavam.

Isabel Ortega é casada. O marido é um diplomata em serviço nas Nações Unidas. Ela seguiu uma carreira de sucesso como especialista em relações hispano-americanas. A filha deles é uma artista, trabalhando com restaurações no Metropolitan Museum of Art.

O cardeal Rossini, por outro lado, era altamente estimado pelo falecido pontífice, que o enviou em muitas missões fora do país. É evidente que a estima papal trouxe suas próprias penalidades. Alguns de seus colegas o invejam. Outros estão prontos a fofocar sobre sua história pregressa, cuidadosamente plantada desde os primeiros dias pelo governo ditatorial militar através de sua embaixada em Roma. Mas nem mesmo esses julgamentos hostis jamais conseguiram desafiar a integridade e fidelidade de sua vida clerical em Roma.

Há em Rossini uma dimensão e uma estatura que impressiona instantaneamente. Este, sabe-se, é um homem que pagou suas dívidas. É um homem em quem eu acreditaria se falasse ou pregasse sobre o amor. Imagino que ele destranca o seu coração muito raramente, mas, quando o abre, pode-se ver os carvões em brasa lá dentro. Sei de fato que ele está enfrentando outra tragédia. A Sra. Ortega está retornando com urgência aos Estados Unidos para o tratamento de uma doença já diagnosticada como terminal.

Como Rossini será aceito no conclave? Possivelmente será melhor recebido do que espera. Ele é conhecido como um homem que viaja leve, anda rápido, vê e informa claramente. Determinadas pessoas subestimam a impressão que causa, porque ele não se concentra em si mesmo, mas no assunto em questão.

Ouvi os dois lados da história de Aquino: do cardeal, a quem entrevistei para este jornal, e das Mães da Praça de Maio. Aquino e Rossini não morrem de amores um pelo outro. São tão diferentes como água e vinho. São colegas curiais, mas certamente não amigos. Eu diria que o cardeal Aquino teve sorte em encontrar um advogado tão forte e, me permitam dizer, tão generoso como seu colega Rossini.

O caso dos desaparecidos, e dos outros milhares cujo destino é conhecido, não desvanecerá. Nenhum silêncio é profundo o bastante para engolfar tantos acusadores. Ele não desaparecerá para o cardeal Aquino. Minha suposição é que o novo pontífice, seja quem for, não o entregará a uma corte civil – embora mais e mais clérigos estejam sendo levados às cortes civis por crime de abuso contra jovens, uma tragédia bem menor em escala do que as brutalidades da guerra suja. Contudo, Aquino ainda terá de prestar contas à própria consciência, como Luca, o cardeal Rossini terá de carregar pelo resto da vida as cicatrizes nas costas e na alma.

Agora vem o novo paradoxo. Tanto Aquino quanto Rossini estarão no conclave para eleger o novo papa. Ambos são, por definição, candidatos ao cargo. Dado o clima de reação que já está surgindo, nenhum dos dois pode ser facilmente dispensado. Aquino é madeira madura, sazonada – alguns acreditam tratada – pelo longo serviço diplomático e curial. Rossini, por outro lado, é o lobo solitário, familiarizado com terras estrangeiras e regiões montanhosas, alimentando seu amor e lentamente transformando suas mágoas em serviço. Dos dois, prefiro apostar nele para a eleição. Por quê? Porque acredito que ele pode manter as brasas do amor acesas, mesmo que seja eleito e o grande gelo do poder absoluto caia sobre ele.

Havia mais, mas Rossini já lera o bastante para saber que sua ligação com Isabel não era mais segredo. E que isso seria mencionado de uma forma ou de outra pela imprensa mundial. Estava feliz por Isabel ter feito as pazes com o marido e por ter ajudado nessa reconciliação. A revelação de sua doença à imprensa foi um choque inesperado, mas tinha de admitir que, de modo geral, Steffi Guillermin mantivera a promessa e que suas observações foram mais do que ele esperava. Ficou imaginando que comentários o camerlengo faria sobre o assunto. Ele ainda estava pensando no possível desenrolar da reportagem quando o secretário de Estado levantou os olhos de sua própria leitura e disse:

– Espero que meus tradutores consigam fazer uma interpretação decente de seu texto, Luca. Há bem mais paixão nele do que eu esperava.

– Isso é mau, Turi?

– Não, acho que condiz bem com o perfil que Steffi Guillermin fez de você, como um homem muito passional.

– Isso o incomoda?

– Em absoluto! Se não houver paixão nessa eleição, a chance de mudança estará perdida. Se não votarmos no homem certo, estaremos todos em apuros. Essa é a nossa oportunidade de deixar o barco de Pedro pronto para uma jornada milenar.

– Sempre gostei dessa metáfora – disse Rossini com sinceridade. – Eu a usei na entrevista com Guillermin.

– Eu sei. Suas palavras também me impressionaram. Como você sabe, meu pai era um capitão de mar e guerra – disse o secretário de Estado. – Ele sabia ler as estrelas e adorava o mar. Disseram que suas tripulações sempre o respeitavam porque ele dirigia um navio seguro e se preocupava com seus homens.

– Ele ainda está vivo?

– Não. Morreu no início da década de cinquenta. Minha mãe cuidou de duas meninas e dois meninos na viuvez. Fui para a Igreja. Meu irmão passou a ser o chefe da família. Ele é um executivo da Italcabele. Minhas irmãs estão casadas. Minha mãe é nonna por seis vezes... – Ele deu um de seus raros sorrisos e fez um gesto de rendição. – Pronto! Você finalmente me persuadiu a falar de assuntos familiares. Mais alguma coisa que gostaria de saber?

– Sim. Por que essa reunião com o camerlengo? Detesto entrar em uma conferência sem saber do que se trata. Seu pai entenderia isso, acho.

– Entenderia muito bem. Ele costumava me dizer: “Os homens sábios receberam uma estrela para guiá-los ao menino Jesus. Todo marujo deve conhecer a estrela que o guia para casa.” Vamos indo? Baldassare detesta ficar esperando, e nesse momento está carregando a Igreja toda nas costas. Isso o deixa um pouco irritadiço.

A REUNIÃO NO ESCRITÓRIO do camerlengo era maior do que qualquer dos dois esperara. O arcebispo de Los Angeles estava presente, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o maronita patriarca de Antioquia, os Arcebispos de Tóquio e Bangcoc e o arcebispo de Ernakulam, na Índia, que era do rito siro-malabar. Aquino também estava lá, com o arcebispo de Seul. Havia onze pessoas ao todo. Rossini estava curioso para saber por que, e com que padrão especial eles foram escolhidos. O camerlengo explicou com a suavidade habitual:

– Não seria possível, sequer desejável, fazer um consistório geral de cardeais antes do conclave. Essa é a última de uma longa série de pequenas reuniões, onde conversas acontecem e nossos irmãos seniores, excluídos do conclave, têm a possibilidade de compartilhar suas opiniões e experiências conosco. Amanhã, entre quatro e cinco horas da tarde, os senhores irão para a Casa de Santa Marta, onde ficarão alojados... espero que mais confortavelmente do que os conclavistas em outras épocas. Quando chegarem, seus quartos serão alocados e os senhores receberão os documentos necessários: os horários, as ordens dos rituais, os juramentos de sigilo, as regras do conclave, os nomes das várias pessoas que estarão lá para auxiliá-los: secretários, confessores, um médico, um cirurgião, enfermeiros, e assim por diante. Se qualquer dos senhores estiver em uma dieta especial, o pessoal da cozinha fará o possível para atendê-lo. Haverá comunicação de quarto para quarto via telefone, mas nenhum contato externo, exceto em casos de extrema urgência mas apenas com a permissão do mestre de cerimônias do conclave. Há, no entanto, um assunto sobre o qual algumas palavras especiais parecem necessárias. Alguns de nossos irmãos me pediram para revelar, muito formalmente, que, se porventura forem eleitos, declinarão da honra. Eles justificaram que, se abdicassem da candidatura com antecedência, poderiam poupar tempo e problemas aos eleitores. Eu os informei, é claro, que todos os eleitores devem estar livres para escolher seus candidatos, mesmo sabendo que o candidato abdicou previamente. Isso pode sugerir uma imperfeição no sistema. Contudo, os eleitores são livres para usar o sistema do modo que escolherem para apresentar a eleição válida de seus próprios candidatos. Levanto a questão agora, informalmente, porque quando entrarem em conclave, encontrarão uma lista completa que também estará sob o juramento de sigilo e que se aplica a todos os conclavistas. Contudo, alguns de nossos irmãos já tornaram suas intenções claras e públicas. Nosso irmão de Westminster já anunciou sua intenção de aposentar-se de seu monastério para ir pescar. Matteo Aquino, que está aqui conosco esta manhã, abdicou de sua candidatura para que não haja discórdia no novo pontificado oriunda de eventos passados na Argentina.

– Pergunta-se. – A intervenção foi feita por Gottfried Gruber. – Fica-se inclinado a perguntar se, no mesmo contexto e pela mesma boa razão, nosso eminente colega Rossini não consideraria uma remoção pública de sua candidatura?

Houve um silêncio mortal e repentino no ambiente. Rossini levantou-se lentamente. Ignorando Gruber, virou-se para encarar o camerlengo. Muito calmo, deliberado, ele perguntou:

– Nós nos conhecemos há muito tempo, Baldassare. O senhor tinha algum conhecimento de que esse desafio me seria feito nesta reunião?

– Não, Luca.

Ele esperou por acréscimos. O camerlengo não acrescentou outra palavra.

Rossini virou-se para Aquino:

– E o senhor, Matteo, endossou a pergunta?

Aquino minimizou o desafio.

– De certo modo, acho que sim. Depois de ler a reportagem de sua entrevista no Le Monde fiz uma observação jocosa com Gruber: algo como o fato de vivermos em tempos menos tolerantes e mais escandalosos, e da imprensa dominar nossas vidas muito mais do que estamos preparados para admitir. Por outro lado, eu disse que o senhor havia sobrevivido ao escândalo melhor do que eu.

– Que escândalo?

– O seu relacionamento, por mais breve que seja, com a Sra. Ortega: um padre e uma mulher casada. Isso foi o que aconteceu, isso é o que voltará a acontecer. Quando estivermos nos livros da história, não poderemos pular as páginas.

Rossini voltou-se lentamente para enfrentar Gruber.

– E o senhor, Gottfried, que é o cão de guarda da Igreja, mestre dos cães de Deus? Acha que devo fazer uma abdicação pública de minha candidatura, por causa desse episódio de minha juventude?

– No clima atual, sim.

– E o senhor, Turi, meu superior imediato. O que tem a dizer?

– Não tenho nenhum comentário – respondeu o secretário de Estado.

Rossini desviou os olhos dele e dirigiu-se mais uma vez ao camerlengo:

– Com sua permissão, Baldassare, e com o consentimento de nossos irmãos, eu gostaria de lidar com esse assunto agora.

O camerlengo franziu o cenho mas fez a pergunta formal:

– Placetne fratres?

A resposta foi unânime:

– Placet.

Rossini ficou um longo tempo em silêncio, se recompondo, organizando suas emoções turbulentas, buscando as palavras apropriadas:

– Meus irmãos. Todos nós já nos conhecemos. Algumas vezes os procurei como emissário pessoal de Sua Santidade. Algumas vezes os recebi em minha casa aqui em Roma. Já celebramos a Eucaristia juntos. Agora ficam em silêncio, enquanto sou induzido a abdicar dos direitos e privilégios conferidos a mim pelo falecido pontífice. Por quê? Estou sendo julgado aqui? Ou simplesmente desafiado? Não me defenderei porque não tenho nada para defender. Não apelarei porque não tenho causa para justificar. Eu não apelei quando me amarraram em uma roda de carroça e me esfolaram, me violentaram com um chicote de montaria na frente de minha igreja e de meu povo. Eu gritei, urrei, rezei... sim, eu amaldiçoei meus tormentos... mas não apelei. Mas quando Isabel Ortega matou um homem para me salvar, depois cuidou de mim e fugiu comigo para um esconderijo, então eu apelei! Eu apelei como um homem-criança para a mãe, como homem para mulher, a quem renunciara sem conhecer: faça-me inteiro! Faça um homem dessa ruína. Ela o fez. Ela fez isso pelo dom próprio e por toda a sua feminilidade. Ela fez isso com o risco iminente de ser presa, torturada e morta. Os senhores acham isso escandaloso? Eu nunca pude ver isso como nada além de um ato de amor e cura... Como meu irmão Gottfried Gruber me julga, como seus assessores classificarão meus atos e atitudes, é irrelevante para mim. Vim para Roma sem pretensão. Fui trazido para cá sob um acordo feito pelo nosso irmão Aquino com o governo militar na Argentina. Fui entregue, um pacote de mercadoria estragada, ao pontífice. Havia um preço colado no pacote, e o preço era o silêncio. Isabel Ortega e sua família foram mantidos como reféns desse silêncio. Eu fui mantido, também, como um servo cativo da Igreja Mãe, a quem tenho servido, nem sempre com alegria ou amor, mas fiel e pontualmente até este dia. Tornei-me um defensor público de nosso irmão Aquino, que ainda está vulnerável às consequências de seus serviços na Argentina. As Mães da Praça de Maio têm uma causa contra ele. Tentei abrandar seu ódio contra ele, embora agora permaneça em silêncio... O falecido Santo Padre me instruiu brevemente. Fiz minha primeira confissão nesta cidade com ele pessoalmente. Eu disse a ele que me arrependia de qualquer culpa residente em meus atos, e que aceitava qualquer penitência que ele me desse, mas que não aceitaria sua absolvição se ela envolvesse a condenação ou censura do amor e gratidão que eu sentia, e ainda sinto, por Isabel Ortega. Ele não exigiu isso. Mas a penitência foi bastante severa: uma vida de separação – em exílio distinto, sim, mas, não obstante, como refém. Cumpri a penitência. Paguei a dívida. Isabel Ortega veio a Roma por alguns dias para me dizer adeus. Ela está irremediavelmente doente. A presença dela também o ajudou, Matteo. Ela abrandou o conceito das Mães da Praça de Maio a seu respeito. Espero que se lembre dela em suas preces. Agora deixe-me perguntar a todos: ainda estamos apregoando escândalo aqui? Não aceitarei isso dos senhores, meus irmãos! Se querem uma Igreja do perfeito, não vejo lugar nela para mim. Pedro traiu seu mestre, Paulo não levantou a mão ou a voz na execução de Estevão, a primeira mártir, Maria Madalena, foi amada pelo Mestre porque ela amou muito, Agostinho foi tanto um libertino quanto herege antes de crer. Tertuliano desligou-se porque não podia perdoar aqueles que se acovardavam sob perseguição... Nesse momento, os senhores são guardiães dessa nossa Igreja. Os senhores não a possuem: respondem a Deus pelo Povo de Deus. Finalmente, respondo ao nosso irmão Gottfried. O cargo que ocupo foi-me conferido legalmente, com todos os seus direitos e privilégios. Não renunciarei a nenhum deles por uma falsa alegação de escândalo. Deus me livre que pensem em fazer de mim papa! Deus me livre que qualquer um aqui pense em restringir meu direito de candidatura. Meus agradecimentos, Eminências, pela paciente atenção. Peço-lhes que me deem licença.

Ele estava a meio caminho da porta quando o camerlengo o chamou de volta:

– Espere, Luca! Por favor, volte a sentar-se. Temos mais negócios a tratar.

Rossini hesitou por um segundo, depois voltou-se para o camerlengo, fez uma reverência e sentou-se. O camerlengo olhou para sua plateia e perguntou formalmente:

– Algum dos senhores deseja comentar sobre as observações de nosso irmão Luca?

Ninguém respondeu. Rossini sabia que tinha conseguido uma vitória: ele tinha abaixado a cabeça dos Grandes Eleitores, mas o gosto do triunfo era como fel na boca. Aquino ele podia entender, e também Gottfried Gruber. Mas Baldassare e Turi eram seus amigos, e mesmo assim não levantaram a voz para defendê-lo. Então o camerlengo deu a palavra ao cardeal-arcebispo de Tóquio, um homem pequeno e gentil, que parecia mais jovem do que os seus 78 anos de idade. Ele falava em um italiano perfeito, prejudicado apenas pelo salto japonês nas frases. O seu tom era reprovador e gentil.

– Devo dizer que estou preocupado pelo que ouvi aqui esta manhã e pelo que tenho ouvido em outras reuniões desde que cheguei. Há um desentendimento entre irmãos que considero estranho e preocupante. Há pressão para impor pontos de vista e disciplinas como se fôssemos um exército e não uma família unida em amor. Deixe-me tentar explicar algo. Nós, cristãos asiáticos, vivemos como exóticos em grandes comunidades que possuem suas próprias crenças, muito mais velhas do que a nossa. Mas eles continuam sendo nosso povo, nossos amigos, nossos familiares. Somos forçados, portanto, a cumprir nossa missão de espalhar o Evangelho com humildade, discrição e grande caridade. Para usar as palavras do papa João XXIII: “Nós sempre buscamos aquilo que nos une em vez daquilo que nos divide.” Isso significa que, em nossos ensinamentos, temos de passar por um grande número de barreiras semânticas. Temos de lançar o nosso pensamento cristão nos termos de outras línguas e outras culturas. Temos de examinar, com a mente aberta, as proposições das outras grandes religiões, sempre com a convicção de que qualquer que seja a verdade dita, por quem quer que seja, é uma autêntica revelação do Espírito. Precisamos ter muito cuidado e muito discernimento para nos colocarmos nesse estado de espírito. Temos de reconhecer emocionalmente o que admitimos intelectualmente, que mesmo as mais refinadas percepções dos teólogos, as prescrições mais exatas das leis canônicas, são uma barreira para o entendimento religioso se não forem expressas na língua do coração. O reconhecimento de Deus e das verdades da salvação é ofertado a todos; portanto, deve estar disponível em todos os modos de comunicação humana... Há um grande mistério aqui: o mistério do próprio Deus silencioso trabalhando em cada vida humana, que a própria Divindade sustenta como existência. É sempre uma aventura perigosa impor uma definição verbal a esse mistério, ou condenar aqueles que buscam explorá-lo com novas ferramentas ou por caminhos não conhecidos. Nossa fé não é uma série de proposições que impomos sobre as pessoas como um tipo de taxa para entrar no Reino. Fé é um esplendor que ilumina tudo e todos os eventos no mundo. É como uma vela em uma sala cheia de espelhos, se repetindo e se refletindo infinitamente. Nós não definimos Cristo em nossas crenças. Nós o proclamamos: “Luz da luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, unigênito e não feito de uma substância com o Pai.” Essa proclamação foi construída pelo povo mediterrâneo. Como eu, um japonês cristão, explico isso ao meu povo? Eu o faço da única maneira que posso, me tornando o espelho que reflete a luz, embora imperfeitamente. Estamos aqui reunidos para nos eleger um Bispo de Roma. Ele se tornará por tradição sucessor de Pedro, o pescador, que foi o primeiro a negar seu mestre mas que foi nomeado por ele como a pedra angular sobre a qual edificaria sua Igreja. Nós temos de encontrar outro Pedro, consciente de sua fragilidade, consciente das necessidades de um rebanho vastamente espalhado. Não devemos criar mitos sobre ele. Não devemos alegar que toda a criação se fará clara para ele no momento em que for eleito. Devemos escolher um homem que esteja atento ao seu povo, aberto para eles, e não sempre procurando dirigi-los em todos os atos de suas vidas, usando as burocracias poderosas da Igreja, mas tentando aprender com eles, através das parábolas cotidianas de suas experiências humanas. Uma vez que o elejamos, não poderemos depô-lo. Não devemos, portanto, satisfazer invejas pessoais, mas buscar entre nós aquele em quem confiamos para guiar o rebanho em direção a novas e mais abertas pastagens.

– Amém. – Foi forte a aceitação de Luca Rossini, mas, mesmo enquanto pronunciava a palavra, ele questionava se a sua própria fé sobreviveria ao resultado.

A reunião prosseguiu por mais meia hora. Quando terminou, ele trocou cortesias formais, alegou outro compromisso urgente e saiu apressado.

Luca Rossini andou pela Via della Conciliazione e entrou em uma loja de artigos religiosos para turistas. Passou meia hora na loja, comprando uma medalha de ouro da Virgem e uma bonita caixa para guardá-la. E escreveu, com uma bela letra italiana, o cartão que Isabel lhe pedira: “A pequena Virgem que você me deu deixou-me muito feliz. Estou lhe enviando a imagem dela, assim você não se sentirá só sem ela. Envio-lhe uma medalha de ouro como agradecimento por você ter se tornado minha irmã. Ore por mim como orarei por você. Isabel Ortega.”

Ele pediu à vendedora que caprichasse na embalagem para presente, pois pediria ao novo papa para abençoá-la. Ele pagou a conta, reconheceu o desconto imaginário “para nossos distintos prelados”, enfiou o pacote no bolso e saiu como qualquer turista em direção ao rio. Enquanto andava, descobriu-se perseguido pelo refrão irrelevante de um verso que Piers Hallett tinha lançado sobre ele na mesa de jantar:

Pense você, se Laura tivesse sido esposa de Petrarca.
Ele teria escrito sonetos toda a sua vida?

De volta ao apartamento, ele começou instruindo seus empregados. Esta noite, às oito, ele jantaria em casa na companhia de Piers Hallett. Amanhã ele entraria em conclave. Sua mala poderia ser feita pelo que seria considerado uma semana de viagem – mais ou menos, de acordo com a boa cooperação dos eleitores com o Espírito, trabalhando entre eles!

O seu uniforme diário seria a batina preta com debrum escarlate, o solidéu escarlate e a cruz peitoral. Ele precisaria de bastante roupa de baixo para compensar por qualquer acidente nos serviços da lavanderia da Casa de Santa Marta. Ele precisaria de um par de sobrepelizes brancas e sua mitra para a cerimônia final, porque, embora fosse um cardeal-presbítero pelo posto, era também um bispo titular da Igreja de São Sebastião no Palatino.

Ele precisaria de seu diário e de alguns artigos pessoais de papelaria. Nenhuma correspondência poderia ser enviada ou recebida durante o conclave, mas a comunicação particular dentro dele era permitida, se possivelmente discreta. No rumo desses pensamentos veio o impulso errante de escrever para Isabel e Luisa. Instantaneamente, ele o reteve. Isso, também, poderia ser uma indiscrição. Elas estavam sob os cuidados de Raul Ortega agora; tudo o que Luca Rossini podia fazer era esperar por notícias.

Seus pensamentos voltaram-se para os eventos da manhã: a eloquência do cardeal japonês, e o silêncio inesperado do camerlengo e do secretário de Estado. O seu ressentimento morreu tão depressa como surgiu. Esse era, afinal, o nome do jogo político na hierarquia da corte papal. O silêncio tinha mil interpretações e portava penalidades. As palavras estavam sempre sujeitas ao brilho, à interpretação e à acentuação alterada. Elas eram armas para os hostis, mas frágeis defesas como fios de teia de aranha contra um atacante determinado. Contudo nem Baldassare nem Turi o atacaram. Eles simplesmente recuaram para observar como seu colega júnior se sairia no combate com os Grandes Eleitores.

Eles estariam mais combativos para entrar no próprio conclave, quando os Grandes Eleitores e os estrangeiros se encontrassem no saguão, no bar e na sala para fumantes na Casa de Santa Marta, ou quando andassem em procissão para a Capela onde os eleitores são lançados, quatro vezes por dia, até que um novo papa seja nomeado.

Sozinho agora, e com o coração frio, Luca, cardeal Rossini, raciocinava consigo mesmo. Até agora andara com os próprios pés. Ele caminharia o próximo quilômetro e deixaria o futuro para Deus – desde que Deus ainda estivesse presente no cosmo e no caos humano.


14

Luca, cardeal Rossini, e seu confessor pessoal, monsenhor Piers Hallett, apresentaram-se à mesa de recepção da Casa de Santa Marta às quatro horas da tarde.

Em homenagem à dona de casa atarefada, irmã de Lázaro ressuscitado, o edifício fora projetado em 1993 como um hotel-residência para os oficiais da igreja e para o pessoal semipermanente do Vaticano. O capital para a construção, segundo registro, foi fornecido pelos Cavaleiros de Columbus nos Estados Unidos. Agora ele estava à disposição dos conclavistas e seu pequeno exército de assistentes; de lavadores de pratos a sacristãos. O arquiteto do conclave e seus assistentes trabalharam desesperadamente para mantê-lo seguro contra invasões de estranhos ou fugas dos habitantes, que seriam mantidos lá incomunicáveis até conseguirem anunciar a eleição de um novo pontífice.

A construção não aconteceu sem problemas. O Partido Verde da Itália protestou porque a construção bloquearia a vista da abóbada de São Pedro da Via Porta Cavalleggeri. Então os arquitetos podaram um andar e construíram um porão. Depois veio a dificuldade de providenciar uma entrada e saída segura nos limites do Vaticano para os cardeais reclusos. Então, uma passagem temporariamente fechada foi oferecida através da própria Basílica para a Capela Sistina, onde os eleitores estavam reunidos.

Quando chegaram para se registrar, com uma longa fila de colegas internacionais, um quarto foi designado ao cardeal Rossini junto com seus pares no segundo andar, enquanto Hallett foi relegado ao porão. Nesse lugar, alguns servos de Deus eram mais iguais do que outros. Suas bagagens, no entanto, foram igualmente revistadas pela segurança do Vaticano para assegurar que ninguém estava portando um telefone celular, aparelhos de escuta, ou qualquer outro item eletrônico suspeito. Certamente a Igreja tinha pouca confiança na integridade de seus príncipes. Foi explicitamente prescrito, por exemplo, na Constituição Apostólica que o crime de simonia, a compra ou venda do cargo papal, não invalidaria a eleição. Foi adicionalmente prescrito que qualquer promessa feita para obter uma eleição seria inexequível depois. Em tempos passados, o cargo fora comprado e vendido. Às vezes, foram cometidos assassinatos por ele. Era claramente reconhecido que antigas artimanhas poderiam ser repetidas nessa era milenar. Cada convidado recebia uma pasta contendo todas as informações necessárias para a sua estada: as comodidades da casa, suas restrições, os nomes e telefones de seus residentes e funcionários, um mapa dos ambientes públicos, precauções em caso de incêndio, os textos dos juramentos de sigilo que seriam efetuados em público naquela mesma noite, tanto para os eleitores como para o pessoal do conclave, uma lista de confessores, secretários e assistentes clínicos. Todos esses itens continham o símbolo em relevo da Sede Vacante, o guarda-chuva listrado de vermelho e amarelo, chamado Pavilion.

Houve uma confusão momentânea quando Rossini pensou em confirmar o arranjo especial que fora feito para que ele recebesse notícias de Isabel de Nova York. Vieram os habituais encolher de ombros romano, retorcer de lábios, busca de papéis, informação errada enviada ao computador. Não parecia haver registro de tal arranjo.

Rossini ficou parado na frente do balcão, ameaçador como um condor andino, até que as instruções relevantes foram localizadas e o contato aprovado apresentado a ele e a Hallett. Depois ele exigiu que uma cópia das instruções fosse imediatamente providenciada para ele e para Piers Hallett. Isso não poderia esperar, Eminência? Não, não poderia. Amanhã seria um novo dia. Haveria outra pessoa atrás do balcão e, de qualquer modo, os conclavistas não teriam acesso a esta parte da casa. Então, por favor, meu amigo, entregue os papéis – com cópias.

Quando os papéis lhe foram entregues, ele respondeu com um fraco sorriso de agradecimento; depois permitiu ao carregador acompanhá-los do saguão aos elevadores que os levariam às suas prisões temporárias. Piers Hallett celebrou o momento com uma observação espirituosa cromweliana:

– Aprecio o modo como negocia, Eminência. Confie em Deus e mantenha a sua autoridade!

– A sua primeira tarefa, Piers, é checar o escritório do vicariato três vezes por dia. Não quero mensagens perdidas ou arquivadas até o juízo final.

– Confie em mim, Eminência.

– Eu confio, Piers! Os outros é que me preocupam. Nós nos encontraremos em meu quarto depois da segunda votação da tarde todos os dias para uma libação e bate-papo.

– Quanto tempo acha que a eleição vai durar?

– É difícil dizer. Tenho a impressão de que esse pode ser um longo processo. As fendas entre os partidos são largas. As apostas para os conservadores são muito altas. O medo dos liberais de que talvez tenhamos uma nova era glacial é profundo. Não há como prever até que a votação comece amanhã. Eles estarão administrando os juramentos às sete horas hoje à noite. O secretário de Estado transmitirá sua mensagem sobre o estado da Igreja. Eu lerei meu texto. Depois jantaremos todos juntos, como bons irmãos. Haverá uma votação na primeira manhã e quatro por dia depois disso, manhã e tarde, até um novo papa ser nomeado. Você terá muito tempo livre. Mantenha os ouvidos abertos e me informe sobre qualquer fofoca que ouvir pelos cantos!

– Que vergonha, Eminência! – disse Hallett com um sorriso. – Esse é um empreendimento sagrado. O que poderia acontecer para ser motivo de fofoca?

– Como disse, Piers, o que poderia acontecer?

– Enquanto isso, fora as fofocas, o que devo fazer comigo?

– Reze, se puder, e pense muito – disse Rossini, solene. – Esse é o avesso da tapeçaria, meu amigo. Você verá o melhor e o pior dessa nossa Igreja. Não há ilusões aqui e você tem uma decisão a tomar. Como, de fato, eu também.

– Desejo-lhe luz e coragem, Eminência!

O carregador levou a bagagem de Rossini para o elevador enquanto Hallett, carregando suas malas, desceu a pé para as profundezas.

Depois de acomodar-se em seu aposento, um compacto mas confortável quarto com banheiro, escrivaninha, poltrona e um genuflexório com um crucifixo acima, Rossini verificou a lista de conclavistas, marcando os nomes que conhecera em suas viagens, fazendo suas próprias anotações cabalísticas sobre a carreira e experiência de cada um e sobre suas tendências em termos de caráter e lealdade pessoal.

Eles vieram de todas as partes do mundo: Etiópia e África, Líbano, Índia, China, das Filipinas e das Américas, Ásia, Indonésia e ilhas do Pacífico. Suas peles eram negras como o ébano, amarelas, morenas e brancas como a porcelana. Seus nomes faziam uma litania polifônica. Suas falas eram uma mistura de línguas, ajudadas pelo latim de suas instruções, entremeadas pelos vestígios dos sotaques regionais e tribais de suas línguas mães. Eram todos altos em dignidade. Em tempos normais seus poderes eram medidos pelo tamanho da população que governavam, pelas sua proximidade ou pela sua distância da sede do poder em Roma, pelo peso de suas deliberações na corte papal.

Os próprios cortesãos – os cardeais da Cúria – caminhavam entre eles com certa superioridade. Afinal, eram os castelãos dessa fortaleza romana. Conheciam todos os seus corredores sinuosos, todos os acessos a todas as congregações, conselhos e comitês, e eram os tentáculos espiralados do poder, e como – rapidamente ou através de uma vida de lentos circuitos – um estrangeiro poderia chegar a um diálogo pessoal com o pontífice. Eles não eram todos italianos como eram no passado. A Cúria fora internacionalizada para incluir ingleses, belgas, franceses, alemães, italianos, eslovacos, espanhóis, sul-americanos, africanos, asiáticos e australianos.

Havia outro grupo também, periférico a esse e menor, mas ainda poderoso – os metropolitas das grandes sés italianas, Milão, Bolonha, Veneza, Nápoles, Florença, Palermo, Turim. Eles eram cobertos com outro tipo de autoridade: pastores de grandes cidades com longas histórias independentes. Na própria eleição, eram homens para ser estimados porque eram conhecidos como pastores e não como burocratas, e suas vidas estavam estabelecidas entre as pessoas comuns.

Os arcebispos dos Estados Unidos eram – como dissera um comediante – mutantes dos antigos imigrantes da Europa: irlandeses, italianos, poloneses. Qualquer um desses era um possível candidato, mas todos estavam marcados com um sinal invisível. Eram descendentes de uma revolução democrática, que em termos históricos ainda era muito recente para comodidade. Mais importante ainda, eram membros de uma sociedade agressivamente capitalista, onde a profissão e prática de qualquer religião era uma opção livre, enquanto sua imposição era criminosa.

Por estranho que pareça, o maior contingente de eleitores veio dos antigos territórios coloniais da África: Angola, Benin, Camarões, Quênia, Nigéria, Senegal etc. A imagem de um papa africano era sedutora. Ela despertaria a imagem de uma Igreja universal, a Casa de todas as Nações. Ela refutaria para sempre as acusações de uma religião racista, de um cristianismo eurocêntrico. Mas, à luz fria da história moderna, também poderia enfatizar as organizações tribais sangrentas que continuavam atormentando o continente africano.

De sua parte, Rossini estava convencido de que eles deviam descobrir e eleger um homem por seus próprios méritos e virtudes, um homem bom, um homem simples, o que não significava um homem tolo, mas um homem que pudesse falar de coração para coração ao povo de Deus. Os políticos do Sacro Colégio eram um mal necessário, mas seus truques e estratagemas não combinavam com a total simplicidade do Evangelho. Os homens do dinheiro do clero estavam sempre presentes nos distritos de todos os templos, mas não deviam controlar o Santo dos Santos. Os censores e inquisidores deviam ser mantidos em seus lugares: no serviço do depósito sagrado da fé. Eles não deviam – nunca novamente – ser apontados como juízes do povo, ou usurpar a primazia de suas consciências.

Então, enquanto andava casualmente de grupo para grupo, cumprimentando velhos conhecidos e apresentando-se aos novos, Luca Rossini tentou decidir a quem daria o primeiro voto na primeira votação da manhã seguinte. Essa primeira votação era sempre um teste para estabelecer, se possível, a divulgação dos candidatos e para identificar, se possível, os blocos de eleitores que os estavam impulsionando. Esta noite, entretanto, era simplesmente um preâmbulo: a reunião do menor e mais poderoso clube no mundo. Foram servidos drinques, canapés. A conversa era temperada, as trocas eram experimentais. Os membros estavam mais ansiosos para ouvir as opiniões do que para oferecê-las.

Rossini não permaneceu muito tempo com nenhum grupo em particular. Ele sabia que estava sendo cortejado, solicitado, estudado, não apenas pelo seu voto, mas pela influência que poderia exercer depois de sobreviver um quarto de século dentro do Vaticano. Havia piadas ocasionais sobre a sua notoriedade recente na imprensa. Ele poderia interpretá-las como quisesse: zombarias ou gestos de respeito para um veterano experimentado. Parou um instante para conversar com dois prelados dos Estados Unidos. Um deles era o cardeal-arcebispo de Baltimore, o outro era o homem de Los Angeles que esteve presente na reunião do dia anterior com o camerlengo. O último tinha uma grande freguesia de imigrantes e refugiados da América do Sul e um comando fluente do castelhano e dialetos espanhóis. Ele parecia ansioso para recuperar sua oportunidade perdida com Rossini.

– Aquela entrevista com Guillermin no Le Monde; que desempenho excelente! Gostei de seu estilo defensor na questão da sexualidade. Muy viril! Isso nos ajuda a todos. Você sabe da tempestade que acabamos de enfrentar com as questões sobre sexualidade! Eu achei que Gruber estava totalmente fora de propósito quando sugeriu que renunciasse a sua candidatura. Eu estava prestes a intervir, mas...

– Isso não importa. – Rossini estava liso como o mel. – Nosso colega de Tóquio disse o que era necessário, e ainda evitou contendas.

– Ele é um sujeito impressionante. Um pouco exótico em suas teologias, talvez; mas essa é uma opinião pessoal. Nós ocidentais estamos bem mais adaptados às de Aquino, você não diria?

– Vai depender de como o ensinamos – disse Rossini. – Tivemos algumas teologias perigosamente mesquinhas recentemente.

– Você está sugerindo – interveio o homem de Baltimore –, está realmente propondo que devemos mudar nossos ensinamentos?

– Mais exatamente que sejamos prudentes na escolha de nosso novo líder – disse Luca Rossini.

– O que você acha de um papa dos Estados Unidos? – Ele fez a pergunta com um sorriso, mas o sorriso não estava em seus olhos. Dessa vez, provavelmente, é muito cedo, mas os americanos, do Norte ou do Sul, cedo ou tarde terão de fazer um lance para a Sé de Pedro. Afinal, os Estados Unidos continuam mantendo o mundo em equilíbrio financeiro e militar.

– Espiritualmente – disse Rossini – vocês me parecem bem divididos. Professam liberdade de expressão e consciência, mas ainda treinam matadores para conter revoltas nos países da América do Sul. Alegam o direito à vida, mas ainda têm pena de morte. Alegam liberdade de consciência, mas lideram violentas obstruções às clínicas de aborto. Eu detestaria ser o primeiro papa americano.

– Alguém precisa começar. – Lacey, de Los Angeles, tinha senso de humor. Baltimore era menos tolerante. Ele desafiou Rossini:

– Então, quem você nos sugere?

– Não sugiro ninguém – respondeu Rossini amigavelmente. – Eu voto e deixo o Espírito cuidar do resultado. Com licença, senhores.

Enquanto ele desaparecia no aglomerado de pessoas, Baltimore disse em poucas palavras:

– Eis aí outro arrogante. O que Roma faz com essas pessoas?

– Não acho que ele seja arrogante – disse Lacey, de Los Angeles. – Ele é um homem austero que conhece o jogo. Pode ser a melhor proteção que temos contra o Opus Dei e os Grandes Eleitores.

– E o que você acha que tem de errado com o Opus Dei? – demandou Baltimore. – Temos nos saído muito bem trabalhando com eles.

– Estou certo que sim – disse Lacey. – Mas eu reservaria meu julgamento até ver a conta final deles.

O encontro seguinte de Rossini foi mais agradável, com seu antigo professor e estudioso bíblico, que agora era o arcebispo de Milão, a diocese mais importante da Itália. Ele era um homem de emoções moderadas e rico conhecimento que, quando não estava visitando seu distrito paroquial, conduzia seminários em sua catedral para cristãos, judeus, muçulmanos e estudiosos seculares de todas as fés, a quem oferecia um foro aberto à discussão e ao debate. Com ele estava o arcebispo de Montreal, que acabara de fazer a pergunta:

– Quem nós temos que possa galgar os séculos e nos levar de volta às simplicidades da Igreja Apostólica?

– Ninguém – disse Rossini. – Todos nós carregamos muita história em nossas costas, e a história qualifica tudo que fazemos ou dizemos. O Santo Padre foi a Paris para saudar os jovens. Grandes demonstrações, grande fervor e entusiasmo... até que de repente o massacre do Dia de São Bartolomeu surgiu como uma nuvem negra vinda do passado!

– Aí é que está a questão, acredito – disse o homem estudioso de Milão. – Não podemos mudar a história. Cometemos nossos maiores erros quando tentamos lustrá-la ou reescrevê-la. Os cativeiros da Babilônia e do Egito são uma parte tão permanente da história dos judeus como o holocausto de nosso tempo. Nosso problema é que acreditamos que o tempo retirará parte da sujeira em nós antes de termos de reconhecer nossas más ações. Ele nunca retira.

– A confissão pública é, no mínimo, um processo apaziguante. – Rossini sentia-se confortável com esses homens. Todo o seu comportamento era diferente, aberto e descontraído. – De minha parte, sei que não poderia ter sobrevivido nesta cidade se tivesse tentado viver de disfarce e ostentação. Mas com muita frequência nos expomos ao ridículo. Agora, foi proposto que tenhamos confessionários de vidro, para que o fiel possa monitorar a conduta do confessor e penitente! Ao mesmo tempo, tentamos cortar a prática mais antiga de uma reconciliação pública por parte de todos os fiéis na missa! Não sei o que nós ou os fiéis ganhamos com isso.

– Muito pouco – disse o homem de Milão. – A privacidade está disponível àqueles que precisam dela. A reconciliação tem sido um ato público desde os primórdios, quando Cristo veio para ser batizado por João Batista no rio Jordão. O problema é que nós, os pastores, não podemos ser vistos quebrando as regras de Roma, e só conseguimos curvá-las até agora.

– Esse é um dos problemas que estamos aqui para resolver – disse Luca Rossini – Temos de abrir as janelas novamente, deixar o ar fresco soprar na Casa de Deus.

– As janelas estão fechadas há muito tempo – disse o canadense. – As venezianas estão emperradas e tortas. Será preciso um homem forte para conseguir abri-las novamente.

– Ou um homem simples – disse Rossini. – Um simples carpinteiro que não tema usar um formão e um pé de cabra para quebrar a madeira desnecessária.

Quando Rossini apartou-se deles no momento seguinte, os dois prelados se entreolharam. Seus olhares carregavam a mesma pergunta não formulada: “Ele poderia fazer o trabalho?” Para Rossini, a pergunta tinha uma proposta diferente. A Igreja precisava de um conciliador, um homem de mente e coração abertos e uma compreensão da história. Dezesseis séculos antes, Milão fora a capital do Império Ocidental e Ambrósio, o governador da Emília e Ligúria, viera à cidade para mediar a disputa entre os candidatos pela diocese cristã. Segundo os historiadores, ele mesmo fora proclamado bispo, embora ainda não fosse um cristão. Ambrósio fora um fenômeno em seu próprio tempo – e talvez, pensou Rossini, um paradigma profético do futuro. Ele fora nascido e criado para o serviço senatorial no período de declínio de um império; no entanto, conseguiu preservar e passar adiante para sucessivas eras o melhor dos tempos passados: a crença na perseverança, na justiça fundamental, o respeito pela ordem cívica. Ele foi um homem que andou com um pé no mundo do espírito e o outro no mundo da razão, e manteve os pés firmes nos dois.

Rossini descobriu-se questionando se o seu antigo mentor, um homem de muito raciocínio, sábio em história, esperançoso para o futuro, não poderia ser o homem para guiar a Igreja para dentro do século XX. Certamente seria uma batalha elegê-lo; pois não apreciava intriga. Ele era um jesuíta e os jesuítas estavam longe das graças fazia muito tempo. Os homens do Opus Dei estavam havia tempos entrincheirados em seus postos de observação e de controle financeiro.

Mesmo assim, esse era um homem em quem confiar, um homem em quem arriscar seu voto pessoal.

ÀS SEIS E MEIA DA NOITE, a Casa de Santa Marta fora esvaziada de todo o pessoal não autorizado. Os conclavistas e seus assistentes foram trancados em seu interior e os membros da Vigilanza do Vaticano tomaram seus postos nas entradas e saídas. Às sete horas, o primeiro juramento do conclave foi administrado a todos os participantes e funcionários.

Eu prometo e juro que manterei inviolável o sigilo sobre todos os assuntos referentes à eleição do novo pontífice que sejam discutidos ou decididos na congregação dos cardeais, e também sobre qualquer acontecimento no conclave ou lugar de eleição, direta ou indiretamente, e finalmente sobre a votação e qualquer outro assunto que possa de alguma forma chegar ao meu conhecimento.

Não violarei esse sigilo de nenhum modo, direta ou indiretamente, através de sinais, palavras, escrita ou de nenhuma outra forma. Além disso, prometo e juro não usar no conclave qualquer tipo de instrumento transmissor ou receptor, nem usar máquinas para tirar fotografias; e isso sob pena de excomunhão latae sententiae (isso é, automaticamente) reservada de modo especial à Sé Apostólica.

Manterei esse sigilo escrupulosa e conscientemente, mesmo depois da eleição do pontífice, a não ser que uma permissão especial ou autorização explícita me seja outorgada pelo mesmo pontífice.

Do mesmo modo prometo e juro que não ajudarei ou apoiarei qualquer interferência, oposição ou hostilidade ou outra forma de intervenção pelas quais os poderes civis de qualquer ordem ou grau, ou qualquer grupo de indivíduos que possa querer interferir na eleição.

Que Deus me ajude, e estes santos Evangelhos que toco com minha mão.

Depois disso, os eleitores fizeram um juramento à parte para apoiar a Constituição Apostólica, defender os direitos da Santa Sé, refugar todos os vetos de qualquer poder secular na eleição. Novamente, o sigilo foi administrado e afirmado:

Acima de tudo, prometemos e juramos observar com a maior fidelidade e com todas as pessoas, incluindo os conclavistas, o sigilo referente ao que acontece no conclave ou na eleição, direta ou indiretamente relacionado à apuração dos votos; não quebraremos esse sigilo de modo algum, tanto durante o conclave quanto depois da eleição do novo pontífice, a não ser que recebamos autorização explícita do pontífice.

Exatamente às sete e meia, o secretário de Estado levantou-se para transmitir seu relatório formal sobre as condições da Igreja. Ele começou com breves palavras sobre o falecido pontífice:

– Nós o pranteamos. Nós oramos por ele e o encomendamos a Deus como um servo bom e fiel. Para nós o trabalho continua. Primeiro, temos de seguir a tradição apostólica e eleger um novo pontífice. Deixe-me mostrar-lhes o mundo que ele irá enfrentar...

Resumidamente, ele os levou em turnê pelas regiões dos poderes do mundo: o Islã ressurgente, a China explodindo no século XX, a América olhando com desconfiança para as incursões em seus mercados, a África morrendo lentamente de Aids, Índia e Paquistão construindo seus arsenais nucleares, árabes e israelenses ainda em guerra sobre pedaços de terra do tamanho de remendos, as tribos da Europa ainda lutando para manter suas etnias e identidades religiosas, os recursos do planeta – florestas, água e oxigênio – sendo consumidos em velocidade preocupante enquanto a Igreja continuava rejeitando discutir sobre a dura realidade da superpopulação. Então, do mesmo modo seco, ele lançou uma granada viva dentro da assembleia:

– Nós, meus irmãos, temos nossa parcela de culpa em tudo isso. Também temos fomentado nossas guerras, estabelecido nossos massacres em nome de Deus. Nós nos arrependemos de nossos erros muito lentamente. Fazemos nossas reformas muito tarde. Temos alimentado dentro da Igreja uma organização poderosa de clérigos e leigos, uma organização rica e reservada, perseguindo em nome de Deus programas que, não obstante o modo como são formulados em documentos e expressões, deturpam a prática da mensagem do Salvador. Não somos um santuário secreto. Não somos, embora alguns gostassem de acreditar que sim, os fiéis privilegiados de uma Igreja remanescente, perseverando até o final da era apocalíptica. Somos uma cidade no topo de uma montanha, visível ao mundo todo. Pensem nisso! Pensem nos escândalos nos quais os intercâmbios de nosso dinheiro secreto têm nos envolvido.

Ouvindo-o, Luca Rossini estava surpreso por ter esperado tão pouco dele, e pelo quanto ele estava preparado para se arriscar contra os moinhos de vento. O discurso dele assumiu outro tom ao encaminhar-se para o final:

– Pensem nessas coisas. Tentem discernir os sinais dos tempos, que são as mensagens constantes de Deus para nós. Tentem discernir onde nós, como o Povo de Deus, devemos nos arrepender e mudar. Quero lembrar-lhes que até que elejam um novo pontífice, o mandato do velho pontífice ainda vigora. Há aqueles que dizem que ele deveria continuar de hoje até a eternidade. Nada disso! Ele continua até que a sabedoria de um pontífice ulterior e de seu colégio episcopal o mudem... Todos ficamos chocados com as publicações do diário do falecido pontífice, roubado e vendido para a imprensa por seu mordomo. Porém, mesmo aqui, há algo para ser discernido. O próprio pontífice, velho e doente, estava preocupado com algumas de suas políticas e decisões, e desejou poder revertê-las. Ele já está além de nosso julgamento nas mãos misericordiosas de Deus. Mas ainda temos nossos julgamentos para fazer e devemos fazê-los com sabedoria. Que Deus ajude a todos nós!

Ele sentou-se em um silêncio indecifrável. Faltavam exatamente vinte minutos para às oito horas da noite quando o mestre de cerimônias convocou Luca Rossini para pregar sua homilia a seus pares. O texto já se encontrava nas mãos deles, mas nenhum o estava lendo. A hora do jantar se aproximava. Os cardeais eleitores estavam com fome. Luca Rossini teve um pensamento macabro de que se os entediasse ou irritasse, eles bem que poderiam comê-lo no jantar. Ele fez o sinal da cruz e anunciou:

– Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Não busquei lhes falar esta noite. Fui ordenado a fazê-lo, mas o que lhes falo vem do coração. Faço-lhes uma simples pergunta: Quem devemos escolher para nosso papa? Teoricamente, seria qualquer homem cristão. Na verdade, ele está sentado nesta sala agora. Para o bem ou para o mal, é assim que acontece em nossa Igreja hoje em dia. Essa é a medida talvez do centralismo no qual decaímos, da ignorância de nossa própria diversidade. Deixem-me informá-los das perguntas que me fiz sobre o nosso próximo papa... Que idade ele deve ter? Se for muito jovem, pode durar muito tempo, e as artérias da Igreja podem endurecer junto com as dele. Se for muito velho ou fraco, podemos ter uma situação da qual escapamos por pouco, uma crise constitucional na Igreja, uma crise de consciência para os fiéis cristãos. Já somos uma comunidade profundamente ferida...

“Portanto, precisamos de alguém que nos cure, de um homem piedoso, um homem que se compadecerá da multidão como fez o próprio Jesus. Infelizmente, palavras de compaixão e conforto não têm sido fáceis de ser decifradas ultimamente nos textos do Vaticano. Muitas delas têm sido mais intencionadas para exposições dogmáticas do que para os confusos porém sonoros gritos dos corações humanos. A nossa missão é espalhar a boa palavra, a simples palavra. ‘Olhai os lírios do campo, como crescem... Muitos de seus pecados foram perdoados porque ela amou muito. Ame os seus inimigos.’ Para essa exposição tão simples, precisamos de um homem calmo em sua crença nos propósitos da bondade definitiva do Criador: ‘Agora restam estas três, fé, esperança e caridade, mas o maior delas é a caridade.’ A sabedoria do amor vê e aceita todo o mistério da criação, claro e escuro. O amor medeia o mistério com aqueles que vivem aflitos, com medo e desconhecem...

“O nosso novo pontífice deve ser aberto. Ele deve ouvir antes de se pronunciar. Ele precisa entender que a linguagem é um instrumento imperfeito, que muda o tempo todo e é o meio mais inadequado que temos para expressar a relação entre as criaturas humanas e o Deus que os criou. Essa é a raiz de nossos problemas. O nosso povo não acredita em nós quando propomos uma moralidade sexual. Eles sabem que desconhecemos sua linguagem e sua prática; que também somos proibidos de aprender em uma relação conjugal...

“Portanto, o nosso homem escolherá muito bem quem falará em seu nome. Ele se lembrará do respeito que deve à sua irmandade colegial que, como Pedro, está incumbido de confirmar e fortalecer. Ele se lembrará disso, embora o princípio da primazia de Pedro tenha sido reconhecida através dos séculos, ele não é e nunca foi o único pastor na Igreja. Aquele que, por lealdade equivocada ou interesse partidário, pensou em inflar o cargo ou a autoridade do ocupante, sempre prestou um desserviço à Igreja... Finalmente, seguro na própria fé, ele respeitará os filósofos e teólogos. Ele encorajará discussões abertas sobre questões difíceis. Na liberdade da vida familiar, encorajará debates entre os filhos e filhas da casa. Colocará um fim definitivo nas denúncias secretas e nas inquisições secretas dentro da ortodoxia dos estudiosos honestos. Ele os protegerá com caridade contra os difamadores...

“Caridade! Amor! Voltamos ao centro da questão, não voltamos? ‘Caridade é um longo padecimento e bondade. Caridade não inveja, caridade não vangloria-se, não é vaidade. Caridade tolera todas as coisas, acredita em todas as coisas. Caridade nunca falha.’ Os senhores veem esse homem de caridade entre nós? Os senhores o conhecem? Os senhores, na mais antiga acepção da palavra, o discernem? Se o discernem, elejam-no corajosamente e vamos todos cuidar das coisas de Deus!

O silêncio reinou novamente. Depois, o mestre de cerimônias recitou as preces de encerramento. Então, com certo alívio, anunciou:

– Haverá agora cinco minutos de intervalo para a toalete antes do jantar ser servido. Não há lugares reservados, portanto, sentem-se onde quiserem. Todos são muito bem-vindos na Casa de Santa Marta. Bom apetite!

LUCA ROSSINI PASSOU a noite inquieto, perseguido por um sonho frustrante onde perambulava por um labirinto de corredores de um hospital, procurando Isabel. Todas as portas estavam fechadas. Todas as suas perguntas eram respondidas em um show de mímica por pessoas sem rosto que apontavam, aprofundando-o cada vez mais no labirinto.

Ele acordou, suando e com os olhos ardendo, às quatro horas da manhã, e decidiu, como fazia muitas vezes, afastar os pesadelos com uma caminhada matutina. Então, pela primeira vez, a situação tornou-se real para ele. Não havia lugar para ir. A Casa de Santa Marta era uma prisão, bem fechada até que os ocupantes terminassem suas tarefas.

Deitado no escuro, ficou imaginando se o seu sermão havia significado alguma coisa para alguém. Ele não acreditava que houvesse. Os mais antigos na assembleia já tinham ouvido todas as palavras antes. E tinham um escudo contra eloquência; eram tão descrentes de simplicidade como de astúcia serpentina. Ele julgava – se um veredicto às quatro da manhã tivesse alguma validade – que a calma acusação de Turi Pascarelli sobre os movimentos de partidos secretos na Igreja tinha chocado muitos na plateia. Turi não era um adivinho lendo as entranhas de pássaros. Ele era um homem de respeito: um diplomata que lia as letras maiúsculas e minúsculas de todos os documentos, depois examinava cada argumento ou linguagem, e finalmente exigia os dossiês sobre os próprios negociantes.

Talvez Turi tivesse abandonado sua intervenção muito tarde, ou talvez ele a tivesse cronometrado com exatidão. Tecnicamente, já se achava fora do cargo. Todas as suas funções estavam suspensas. Efetivamente, continuava sujeito às ordens de um homem morto. Ele não violara nenhuma delas, mas questionara todas. Sem dúvida, fizera inimigos, mas era invulnerável a eles; pois não tinha ambição para governar. Ele era o mais poderoso dos persuasores – o homem que não tinha nada a pedir e nada a perder.

Enquanto tentava voltar a dormir, Luca Rossini fez a pergunta mais radical a si mesmo: depois que Isabel o deixasse, quem ele seria, o que poderia ser com convicção e certeza? Então, inconscientemente, viu-se pensando em Angel-Novalis. Na morte de sua mulher, ele optara pela certeza absoluta oferecida pelo autoritarismo partidário do Opus Dei. Ele servira com sinceridade e lealdade; porém, em um momento crucial, envolvera-se em uma insensatez profissional. Para defender a memória e as políticas de um homem morto, iniciara uma perseguição não autorizada ao infiel mordomo que roubara seus papéis. Ele buscara a ajuda de seus próprios colegas, instigando assim eventos que não podia mais controlar. Esse era o problema de todas as intrigas. Era também a rede emaranhada do sonho em que caíra Rossini na madrugada. Agora ele era um fugitivo nos becos e travessas de uma cidade sinistra, sendo perseguido por assassinos que riam abafado no escuro e gritavam com escárnio: “Quem gostaria de foder um padre?”

AS CERIMÔNIAS da eleição começaram com a celebração da Eucaristia e uma invocação do Espírito Santo. Os cardeais eleitores então seguiram em procissão para a Capela Sistina, onde sentaram, cada qual em seu lugar, sob o olhar inspirador do Cristo de Miguel Ângelo, renovado e vivificado pelos modernos restauradores custeados pela Nippon Television Corporation.

Foi entregue a cada eleitor uma pequena pilha de cédulas com uma inscrição em latim: “Eu escolho como Sumo Pontífice...” O eleitor escreveria o nome do candidato em letra de forma e não assinaria a cédula.

O altar da capela estava adornado com uma pátena de ouro e um grande cálice dourado. À medida que cada eleitor marcasse sua cédula, ele a dobrava ao meio. Depois, em ordem de precedência por posto, cada homem prosseguia até o altar, se ajoelhava por um momento em oração e declarava: “Eu convoco como minha testemunha Cristo o Senhor, que será meu juiz no voto dado ao homem que na presença de Deus eu acredito deva ser eleito.” Ele depositava o voto na pátena e, com a ponta do dedo, derrubava-o dentro do cálice e retornava a seu assento.

Quando todos votavam, três escrutinadores, sorteados entre os eleitores, faziam a contagem. A contagem deles seria conferida por outros três, escolhidos similarmente. Luca Rossini estava no primeiro grupo de escrutinadores.

Havia certa solenidade na cerimônia e na sua organização, que tocava a todos, contudo, havia também um paradoxo. Os juramentos repetidos, as checagens duplicadas, a destruição imediata dos papéis depois de cada votação malsucedida, indicava uma desconfiança dos seres humanos mesmo quando estavam agindo, como juraram que estavam, no Espírito, cuja presença permanente fora garantida até o final dos tempos.

A primeira votação resultou no que todos esperavam. Na apresentação de dez candidatos, dos quais o mais votado recebeu dezoito votos e o menos votado oito. A votação foi significativa apenas porque exibiu um leque de possibilidades, sul-americano, norte-americano, espanhol, belga, italiano e africano. Os europeus centrais, os franceses e os orientais não apareceram. Nenhum deles estava próximo da maioria exigida de dois terços dos votos mais um. Dois dos sul-americanos, o espanhol e o norte-americano foram apontados pelo falecido pontífice. O africano era um membro da Cúria há muito tempo. Os dois candidatos italianos eram de Veneza e Milão. O nome de Luca Rossini não apareceu.

Naquela tarde houve mais duas votações. No final do dia, as linhas de batalha recuaram. O número de candidatos foi reduzido para oito. Um dos sul-americanos saiu da lista, com o africano e o norte-americano. Luca Rossini apareceu pela primeira vez na votação.

O DIA FORA LONGO e arrastado. Quando retornou ao seu quarto, às cinco da tarde, Rossini estava convencido de que uma das ameaças mais letais na vida de um pontífice romano era a espera cansativa das cerimônias e protocolos pelos quais tinha de passar todos os dias. O pensamento surgiu por causa de seu aparecimento inesperado como candidato, embora ele soubesse – ou pensasse que soubesse – que estava sendo introduzido como um “saqueador”, cuja presença expulsaria pretendentes improváveis e concentraria as mentes dos eleitores nas possibilidades mais fortes.

Ainda era muito cedo para determinar quem seriam eles, mas Milão subira para 25 votos, o espanhol para dezenove e o homem do Brasil estava três votos à frente do candidato mexicano. Politicamente, ambos estavam firmemente posicionados à direita do centro.

Às cinco e meia, monsenhor Piers Hallett chegou no quarto com uma garrafa de uísque em um dos bolsos de sua batina e um pacote de amendoins no outro. Ele os colocou sobre a escrivaninha com um floreio.

– E por falar em disputa! Suas Eminências formam uma tribo letal em torno da cisterna! Acho que não há gelo. Posso servi-lo? Parece que precisa de um drinque.

– Não gosto muito de rituais. Como foi o seu dia?

– Longo, mas cheio de fofocas interessantes. As palavras do momento agora, cortesia do Opus Dei, são: estabilidade, continuidade, fidelidade. Os espanhóis, locais ou coloniais, são os apoiadores-padrão. Não! Não subestime! A Espanha é a base do poder, a base do dinheiro e tem uma monarquia estável que ainda faz sentido ao mundo árabe tradicional que lembra Alhambra.

– Eles estão assumindo um risco e tanto – disse Luca Rossini.

– Estão preparados para isso.

– Quem é o candidato favorito deles?

– Rumores dizem que o Chile. Os que apostam dizem que o espanhol já está escondido na Cúria. Dizem que eles gostariam de inscrevê-lo como um marca-passo para os corredores.

– Eu estou do lado errado, Piers. Eles sabem disso.

– Isso não os preocupa. Eles estão certos de que você perderá o gás no momento em que o pessoal deles passar à frente.

Luca Rossini deu uma gargalhada.

– Sem comentários!

– Eu não estava esperando um comentário – disse Hallett. – Mas gostaria de um para o meu próximo item, que sou eu. Sei que este é só o primeiro dia e que estou preso aqui até o final do conclave, mas a questão é que já decidi.

– A fazer o quê?

– Sair do sacerdócio e voltar a trabalhar como um estudioso secular.

– Você quer me dizer por quê?

– Sim. O seu conhecimento é importante para mim. Você tem sido sempre o meu notável amigo. Aceitou-me como eu era, como sou: um estudioso de algum valor, um clérigo indiferente e bastante impassível. Pensei em ficar longe de problemas e desfrutar os prazeres do aprendizado e da amizade. Até agora isso tem funcionado bem. Mas acho que não pode mais. O clero está muito em evidência agora. Sou vulnerável e um dia posso ficar muito desesperado por companheirismo para ser discreto. Além disso, se eu quiser encontrar um emprego lucrativo, agora é a hora de procurá-lo. Há duas ofertas de trabalho: uma em Harvard, outra no Getty em Los Angeles. O dinheiro é melhor no Getty, mas há aposentadoria em Harvard. Assim, minha primeira petição será para eles. Algum comentário de meu eminente amigo?

– Não muito. Acho que é uma decisão sábia. Farei o melhor que puder para facilitar a sua laicidade, mas se elegermos um pontífice linha dura, você poderá enfrentar algumas dores de cabeça processuais, que, avaliando, eu o aconselharia a enfrentar e ignorar.

– E isso é tudo?

– Não acho que tenha muito mais a dizer. É uma situação simples. Você não precisa transformá-la em uma situação desesperadora. Pode, no entanto, me servir outro drinque.

– Com prazer – disse Piers Hallett. – Não posso lhe dizer como temi esse momento.

– Que parte dele? A decisão ou a revelação?

– Ambas. Muita gente teria cedido a uma situação preparada. Você sabe...tirar umas férias, procurar orientação, encontrar um confessor sensato, tomar banhos frios!

Luca Rossini sorriu e balançou a cabeça.

– Não há posições preparadas, nenhuma que dure muito tempo pelo menos. Cedo ou tarde, chegamos ao impasse final de onde lutamos ou morremos. Salud amigo!

Depois de beberem seu brinde, Piers Hallett descansou o copo e disse:

– Verifiquei se havia mensagens, como pediu. Não havia nenhuma.

– É muito cedo – disse Rossini. – Muito cedo mesmo. Estou rezando para que estejamos fora daqui muito antes de qualquer coisa acontecer a Isabel.

– E quando acontecer?

– Esse é o meu impasse.

– Para lutar ou morrer, você disse.

– Isso mesmo.

– É uma escolha drástica – disse Piers Hallett. – Mas você não a ofereceu a mim. Por que não?

– Tenho uma discussão com Deus que precisa ser esclarecida.

– E Jacó lutou a noite toda com o anjo – disse Piers Hallett. – E Jacó saiu mancando. Se não se importa, vou tomar outro drinque.

– A bebida é sua – disse Rossini, erguendo o copo para um brinde. – À saúde, dinheiro e amor... e tempo para desfrutá-los. Desejo-lhe toda a boa fortuna, meu amigo!


15

Depois do jantar naquela noite, Luca Rossini foi convidado para tomar café com o secretário de Estado e o camerlengo no escritório particular de Baldassare. Agora que o seu nome aparecera na votação, ele questionava se seria cortejado ou advertido. Decidiu esvaziar a questão com antecedência:

– Quem está me colocando em votação?

– Quinze eleitores, segundo a contagem. – O camerlengo estava convenientemente vago. – Você é um escrutinador, você mesmo conferiu os votos.

– Quem são os eleitores? Seus ou deles?

O camerlengo balançou a cabeça.

– Não há como saber; e a pergunta está errada de qualquer forma. Os dois lados veem certo mérito em sua candidatura. O seu sermão tocou muita gente.

– Você também é um símbolo esplêndido. – Turi Pascarelli disse isso com um sorriso. – É um penitente sobrevivente, agora vivendo uma vida irrepreensível, não corrompida pelo poder. Seria uma escolha muito popular com o povo.

– Mas o povo não tem voz na eleição... e imagine o que a imprensa faria depois!

– Não estamos pensando no depois – disse Turi Pascarelli. – Estamos pensando no agora... nos próximos dias.

– O que estão pensando?

– Estratégia – disse o camerlengo. – A estratégia da Velha Guarda é estender o conclave ao máximo, sem precisar invocar a regra da maioria absoluta, que, a nosso ver, eles podem não atingir. A melhor chance deles é manter a posição até o estágio final, o empate forçado, quando o colégio eleitoral concordará com uma eleição pela maioria simples, na verdade, uma simples cabeça basta, a primeira a passar a marca de chegada.

– Quanto tempo até isso acontecer?

– Com um pequeno campo e quatro votações por dia, não demorará muito até a pressão para uma resolução aumentar. Não esqueça todas as pessoas esperando do lado de fora na piazza, todos os milhões assistindo televisão no mundo todo. Eles são nossos constituintes. Nós estamos na terra da fantasia aqui. Gostamos de acreditar que somos os árbitros do destino humano, mas não somos invencíveis. Nunca fomos.

– Então, digam-me agora, meus amigos, digam-me claramente, qual é o resultado que estão esperando?

– Desta vez? Um pontífice italiano, politicamente limpo, tranquilo o bastante para acalmar as coisas e criar novamente uma atmosfera de confiança na Igreja.

– Milão, em outras palavras.

– Sim.

– Ele é a minha escolha também – disse Luca Rossini.

– Você cederia seu lugar a ele? – Foi o camerlengo quem fez a pergunta.

Rossini olhou para ele, incrédulo.

– Ceder meu lugar? Não estou sequer disputando. Não há nenhuma chance de que eu possa ser eleito. Toda a minha história fala contra essa possibilidade.

– A sua história fala a seu favor. – O secretário de Estado foi enfático. – Não percebe? Você é um homem carismático, Luca. A sua própria fraqueza o recomenda. Quem agrada mais do que o penitente Pedro, ou Saulo ficando cego a caminho de Damasco? Você não tem consciência do poder que irradia, inclusive entre os nossos colegas mais céticos. Você é muito admirado pelos cardeais pastorais com quem esteve em suas várias missões. Aposto que o seu número de votos aumentará a cada votação, de agora em diante.

– E vocês, é claro, contribuirão para isso.

– Sem garantias, mas sim, contribuiremos.

– E estão esperando que Milão suba também?

– Temos certeza de que ele subirá.

– Mas estão igualmente certos de que ele é a melhor escolha como pontífice do que eu sou.

– Você não concorda?

– É claro que concordo. Então por que se preocupar em representar essa comédia? Já lhes disse que Milão é o meu candidato também. Não tenho ambição ou talento para o cargo. Se isso ajudar, retiro minha candidatura antes da próxima votação.

– Pedimos-lhe encarecidamente que não o faça – disse o camerlengo. – Precisamos de você na votação. Esperamos poder construir a sua volta um bloco de eleitores que eliminará a Velha Guarda e nos levará rapidamente a uma corrida final entre você e Milão.

Rossini ficou olhando para ele completamente incrédulo. Depois caiu na gargalhada, um cacarejo ruidoso com uma pontinha de humor negro no final.

– Não posso acreditar no que estou ouvindo. Vocês me conhecem melhor do que qualquer homem em Roma. Conhecem meu passado, meu presente... conhecem até a nuvem da incerteza que paira sobre meu futuro na Igreja, e na própria Fé. E, no entanto, estão influenciando os eleitores a meu favor, e até me colocando em posição de desafio a Milão em uma votação final. Não posso levar isso a sério.

– Por que não?

– Porque vocês estão apostando muito alto em minha fidelidade. Deem-me o número suficiente de eleitores; posso me transformar num velhaco e ficar com o Anel do Pescador para mim.

– Nós arriscamos menos com você do que com as ambições de certos colegas, que devem permanecer anônimos.

– Talvez vocês os julguem mais severamente do que julgam a mim.

– Nós acreditamos que você seria um pontífice melhor do que qualquer um deles – disse o camerlengo. – As suas faltas o recomendam mais do que as virtudes deles.

– Mas continuamos acreditando que Milão é o melhor homem para a Igreja nesse momento. – O secretário de Estado foi rápido em acrescentar. – Há uma forte oposição a ele. É um estudioso. É um jesuíta. Acolheu vozes estranhas no púlpito. Mas ele pode trazer nova luz e novas esperanças para a Igreja. Apesar disso, precisamos de mais alavancas para elevá-lo à cadeira de Pedro. Precisamos que você continue candidato até lhe dissermos que está na hora de abdicar. Faria isso?

– Suponhamos que vocês julguem mal a situação? Suponhamos que Milão caia em desprestígio e eu me torne o favorito? Suponhamos que meu rival mais próximo seja um homem que todos nós desaprovamos. Onde eu fico nessa história?

– Sozinho no Monte das Tentações. – O secretário de Estado estava sombrio. – Com todos os reinos da terra espalhados aos seus pés como um tapete.

– E vocês dois me deixariam lá, sozinho?

– Você não estaria sozinho, Luca, meu amigo.

– Por que não?

– Pense sobre isso – disse o secretário de Estado e depois, abruptamente, mudou de assunto: – Esse café está horrível, Baldassare. Você não pode fazer nada?

– É tradição – disse o camerlengo, alegre. – Os membros do conclave devem ser mantidos em desconforto para encorajá-los a terminar seus trabalhos!

O CAFÉ O MANTEVE acordado e a conversa alimentou sua insônia até depois da meia-noite. Apesar de todos os seus protestos, havia uma sedução curiosa no pensamento de que ele, Luca Rossini, poderia suceder à Sé de Pedro. A imaginação sedutora de repente se tornou uma tentação que se insinuava como um vapor dentro da fortaleza fechada dele mesmo. Era lá onde os ódios residuais se escondiam, as lembranças passadas da injúria impune, a repulsa por todas as imagens de tirania dentro e fora da Igreja.

Ele começou a fazer um jogo mental consigo mesmo. Estabeleceu as regras com cuidado. Não desejo me tornar um tirano ou bruto. Desejo apenas equilibrar a balança da justiça. Como um pontífice putativo, tenho poder nas mãos. Já vi como esse poder se estende, com que potência pode ser usado, como bons homens e boas mulheres podem ser persuadidos a servi-lo, como outros igualmente bons podem ser oprimidos por ele. Por onde começo? Que peças tiro do tabuleiro? A quem outorgo patentes de poder? Quem serão meus conselheiros, meus seguidores?

Ele ficou surpreso com o quanto as permutas e combinações do jogo o intrigavam. Ficou chocado com a intensidade da cobiça primitiva que elas evocavam nele.

Houve um momento em que as imagens da represália tornaram-se tão intensas que não pôde fechar sua mente para elas, nem sequer buscar qualquer determinação para fazê-lo. Suas costas marcadas começaram a coçar e a queimar. O coração disparou e ele suava abundantemente. Ele forçou-se a sair da cama, tirou o pijama ensopado e tomou um longo banho para tirar a sujeira do passado que ainda parecia estar grudada nele. Desejou ter música para poder afugentar os demônios. Não tinha rádio. Ele lembrou-se de que estava na prisão, tão escravizado como o antigo papa Ponciano banido para trabalhar nas pedreiras da Sardenha.

Ele pegou seu breviário e tentou ler. As palavras flutuavam diante de seus olhos. Tentou meditar e o primeiro texto que lhe veio à mente foi o de Paulo aos Romanos: “Ó homem, quem és tu para discutires com Deus? Não tem o oleiro poder sobre a argila, para fazer um vaso para a honra e outro para a desonra?”

O seu falecido patrono o persuadira várias vezes a pensar sobre esse texto. Ele o mastigara como um talo de grama até não haver mais suco nele, mas ainda se encontrava em disputa com quem o criara. Ainda queria saber, “Por que, por que eu? Por que ela? Por que o seu mundo é feito assim e não de outro modo? Tenho lutado contigo por muito tempo. Vou revogar a contenda e mandá-lo para casa – onde quer que seja a sua casa. Todo esse amontoado de galáxias e me dizem que você se estende para preencher todos os vazios entre elas!”

Em alguma hora da madrugada, ele pegou no sono.

AS DUAS PRIMEIRAS votações do dia seguinte mostraram uma pequena mudança no padrão dos votos. Milão assegurou mais votos. Rossini registrou um modesto ganho. O brasileiro e o americano perderam apoio e se retiraram. Os ganhos e perdas no restante da lista refletiram as discussões da noite anterior e as manobras dos grandes eleitores e de um grupo rival de centro-europeus.

Rumores durante o almoço refletiam certas ansiedades. Uma eleição prolongada poderia enfatizar as fissuras da Igreja. Poderia sugerir que o candidato vitorioso seria uma escolha comprometida. Isso tornaria a tarefa de reunificação mais difícil. Quisessem ou não, todo novo pontífice tinha de ser provido de uma imagem pública, que ele usaria, inevitavelmente, durante todo o tempo de seu reinado. Se os criadores de imagens fizessem mal o trabalho deles, ou se o próprio indivíduo fosse uma pessoa difícil, o fiel poderia ficar ainda mais alienado.

Quando saíram da sala de jantar, o secretário de Estado passou uma rápida mensagem a Rossini:

– A última votação de hoje deve nos dar algum entendimento sobre a tendência dos acontecimentos.

– Fico feliz em saber que alguém consiga entendê-los, Turi. Apesar de toda a multidão esperando na praça de São Pedro, fico pensando em quão relevante realmente somos para o Povo de Deus.

O secretário de Estado encolheu os ombros, bem ao estilo romano.

– Quem sabe? Vou dizer-lhe uma coisa, Luca. Se não estivéssemos aqui, e se não defendêssemos tudo o que defendemos, haveria um grande espaço vazio na história da humanidade e também um grande vazio na mente humana.

A seguir ele se foi, e Luca Rossini saiu apressado para um canto particular dos jardins do Vaticano para ler seu breviário e oferecer as velhas preces para a pessoa amada que agora estava além de seus cuidados.

Como o secretário de Estado previra, a última votação produziu, se não um terremoto, pelo menos um tremor forte o bastante para eliminar um grupo de candidatos mais fracos e confirmar Milão e Rossini como os concorrentes em liderança, com o belga e o chileno ainda como possíveis competidores.

Três horas depois, Rossini foi novamente convocado para uma reunião com o camerlengo e o secretário de Estado. O camerlengo informou os últimos acontecimentos:

– Podemos terminar isso amanhã na primeira votação. Chile e Bélgica desistirão. A decisão entre você e Milão será feita através da maioria simples de votos.

– Isso é legal?

– É uma situação existente – disse o secretário de Estado. – Ela não agrada todo mundo, mas ninguém no colégio eleitoral está preparado para desafiá-la.

– Há um problema, porém – disse o camerlengo. – Há um sólido coro de oposição a Milão. Existem pessoas que não gostam da conexão jesuíta. Existem outros... que Deus nos ajude!... que desconfiam de seu conhecimento liberal e de sua acessibilidade aos não crentes. Assim, Turi e eu julgamos que a disputa pode ser apertada. Você pode ganhar a eleição.

– E colocar a culpa no Espírito Santo! – De repente ele estava rindo, um riso feliz de garoto que brotava na garganta e aparecia nos olhos. – Desculpem-me, meus amigos! Eu os preveni, não foi?

– Preveniu – disse o secretário de Estado.

– E você também fez uma promessa – disse o camerlengo.

– Que certamente manterei. – Rossini voltou a ficar sério. – Mas precisam me instruir como fazer isso da melhor forma. Eu renuncio a minha candidatura antes do voto ser dado?

– Nesse caso – respondeu o camerlengo –, você teria de pedir que os eleitores expressassem a aceitação de Milão por aclamação. Seria embaraçoso se eles se recusassem a fazê-lo.

– Se, por outro lado, eu fosse eleito e me recusasse a aceitar?

– Então poderia ser feita uma alegação de que o processo foi fraudado ou manipulado, e teríamos de começar tudo de novo. Coisas estranhas têm acontecido durante os séculos.

Houve um longo silêncio. Então, Rossini levantou-se.

– Não tenho soluções, cavalheiros. Agirei como prometi. Não posso dizer mais nada nesse momento. Talvez devamos rezar para sermos inspirados pela sabedoria do Espírito Santo enquanto dormimos.

ELE FOI DESPERTADO pela campainha de um telefone – um som suspeito na Casa de Santa Marta. Teve de tatear para achar o aparelho e esfregar a areia dos olhos para ver o relógio. Eram oito horas da manhã. A voz do outro lado era de Piers Hallett:

– Posso subir, por favor?

– É claro. Estou feliz que tenha ligado. Tive uma noite ruim. E passei da hora de acordar. Dê-me quinze minutos para ficar apresentável. Se não for pedir muito, traga-me um café e um panino.

– Certamente – disse Hallett e desligou.

Rossini fez a sua toalete às pressas, mas ele ainda estava em mangas de camisa quando Hallett chegou com a bandeja do café da manhã, onde também tinha uma cópia do Ordo para o dia. Não havia nada nele: duas votações de manhã e de tarde, a lista habitual de médicos, sacristãos e confessores. Rossini deu uma rápida olhada em tudo, depois tomou o café. Foi só alguns minutos mais tarde que perguntou a Hallett:

– Perdoe-me. Ainda não acordei direito. Você queria falar comigo sobre alguma coisa?

– Isso – disse Piers Hallett, entregando-lhe uma mensagem enviada por fax para o escritório do vicariato. – Foi recebido às sete esta manhã, enviado a uma da manhã, hora de Nova York.

Rossini ficou olhando para o papel por longo tempo, depois leu a mensagem em voz alta para certificar-se se era autêntica.

O Sr. Raul Ortega e sua filha Luisa pediram-me para informar Sua Eminência que a Sra. Isabel Ortega, uma paciente deste hospital, faleceu às 22h30 desta noite. Ela estava sob o efeito de fortes sedativos e o seu fim foi tranquilo. A família entrará em contato com o senhor na ocasião oportuna. Assinado Olaf Wintergroen, Doctors Hospital.

– Sinto muito – disse Hallett. – Tem algo que eu possa fazer?

– Tem sim – disse Rossini. – Mostre a mensagem ao camerlengo e ao secretário de Estado. Peça que mantenham segredo. Depois, diga-lhes que os verei na primeira votação.

– Sim, Eminência – disse Hallett e saiu, fechando a porta atrás de si.

Rossini ficou olhando para a porta depois que ele saiu. Depois, lentamente, voltou-se para o genuflexório. Ele não ajoelhou-se, mas permaneceu olhando para a figura do crucificado pregado na parede branca. Em tom moderado, quase informal, falou com o Cristo:

– Então, ela se foi sem dor. Obrigado por isso, se foi o Senhor quem fez o arranjo. Agora, se o Senhor estiver disposto, gostaria que falasse comigo... isto é, claro, que esteja realmente aqui e não na ficção cósmica. Essa é a nossa última chance para um diálogo, como vê. Não tenho mais palavras, nem sangue ou lágrimas. Estou vazio de tudo. Se o Senhor não tiver nada para me dizer, vamos terminar a conversa. Não vamos mais argumentar. Representarei esse drama pomposo e seguirei minha vida. Sou apenas humano. O Senhor sabe o que é isso, não sabe? Nós somos criaturas limitadas. Não pode nos içar como balões para dimensões infinitas. Até o Senhor desistiu no final, não foi? O Senhor disse: “Chega disso. Acabou!” É o que estou dizendo agora. Exceto que ainda tenho uma dívida com o Senhor por causa de Isabel. Gostaria de liquidá-la. Então, se o Senhor está aqui, fale comigo, por favor!

– ELE ESTÁ EM ESTADO de choque. – Monsenhor Hallett, o lânguido inglês, confrontava os dois prelados mais superiores da Igreja Universal. – Ele não admite. Ele não consegue admitir. Os senhores não conseguirão ver isso naquele formidável rosto de pedra, mas senhores, é melhor acreditar! Ele precisa de ajuda, e nessa nossa Igreja, não somos mais muito bons em fazer isso.

– O senhor está fora de si, monsenhor Hallett. – O camerlengo estava ofendido.

– Não, ele não está – disse o secretário de Estado. – Ele está nos lembrando de simples caridade. Rossini precisa de irmãos e irmãs para ajudá-lo nesse momento de perda. Nós perdemos a arte de fazer isso. Nossas irmãs estão muito ocupadas reclamando os direitos que lhes negamos. Nossos irmãos estão muito ocupados juntando os pedaços de nossa remanescente Igreja. Escute-me, Hallett! Fique perto dele. Se precisar, quebre algumas regras para fazê-lo... cuide dele. Por favor!

– Farei o melhor que puder, Eminência – disse Hallett solenemente. – Mas esse é um homem que teve o coração partido duas vezes, enquanto ainda está vivo. Qual é o remédio para isso no Rituale Romanum?

– Há uma receita, mas não um remédio – disse o secretário de Estado. – Volte para perto dele. Fique o mais perto possível dele o dia todo. Baldassare e eu conversaremos sobre isso.

– Não sei o que há para conversar – disse o camerlengo, breve. – Pessoas morrem todos os dias. Nós oferecemos nossa simpatia, nosso apoio, nossas preces, nossa parte nos méritos redentores de Cristo. O que mais podemos fazer?

– Pelo amor de Deus! – blasfemou Hallett brandamente. – Pelo doce amor de Deus! Como nós cristãos amamos um ao outro!

– O senhor está dispensado, monsenhor Hallett. – O tom do camerlengo era frio. Hallett fez uma reverência e saiu sem dizer uma palavra. O secretário de Estado balançou a cabeça.

– Não devia ter feito isso, Baldassare. Ele é um amigo leal. Ele falou o que sentia pelo nosso amigo Luca.

– Eu sei! Eu sei! Pedirei desculpas mais tarde. Estou preocupado, Turi. O que vai acontecer agora em nossa votação?

– Talvez – respondeu o secretário de Estado –, simplesmente talvez essa seja a intervenção do Espírito pela qual oramos.

– O que diremos a Rossini?

– Nada, até ele decidir a se abrir conosco. Ele é um homem de aço! Fará o que prometeu. Não devemos tentar ditar como ele o fará.

– Seremos chamados à capela em vinte minutos. Devemos ter algum tipo de plano.

– Por que não deixar o resultado para Deus? – disse o secretário de Estado.

– Gostaria de ter a fé suficiente – replicou o camerlengo, abatido. – Acho que tenho permanecido muito tempo em Roma.

ANTES DO INÍCIO da primeira votação da manhã, o secretário do conclave fez um anúncio:

– A Constituição Apostólica declara que se, depois de uma série de votações, um candidato não for eleito, a eleição deve ser decidida através da maioria simples de votos. Agora chegamos a uma situação completamente diferente. Restam apenas dois candidatos na disputa. Tenho uma proposta a fazer aos senhores que, fui aconselhado, está dentro do espírito, se não da Constituição Apostólica. Proponho que essa votação seja decidida pela maioria simples. Os senhores estão livres para decidir o contrário e manter estritamente a regra de uma maioria absoluta de dois terços mais um voto. Contudo, com dois candidatos isso pareceria de pouca valia. Peço-lhes para expressar seus consentimentos levantando as mãos.

Levou algum tempo para eles se declararem, mas finalmente todos levantaram as mãos.

– Ótimo – disse o secretário. – Os escrutinadores serão: Sua Eminência de Nova York e Sua Eminência de Munique. Eles serão assistidos pelos seus colegas de Sidney e Paris. Invoquemos a orientação do Espírito Santo.

Luca Rossini elevou sua voz com os outros na solene invocação:

– Vinde, Ó Espírito Criador, enchei os corações dos fiéis e ateai neles o fogo do Vosso amor.

Essa era uma oração que tocava fundo o coração da mais antiga crença trinitária do cristianismo, e estendia-se para incluir as percepções mais primitivas de uma divindade existente em toda a criação. Ela invocava a luz na escuridão, fogo em um mundo frio, cura para as feridas da vida. Houve um tempo em que Rossini relacionava todo esse significado a Isabel. Certa vez, entre os gregos, ele fizera um sermão apaixonado sobre os elementos femininos implícitos no mistério. Agora a lembrança desse sermão farfalhava como folhas mortas ao vento, seco.

O exercício solene no qual estava engajado era uma irrelevância teatral. Mal podia esperar para se ver livre dele. Rossini escreveu o nome de seu candidato na cédula e tomou seu lugar na fila para depositá-la na pátena e recitar a afirmação de que havia escolhido de boa-fé o melhor candidato possível.

Ele observava, indiferente e com os olhos embotados, enquanto os escrutinadores contavam e recontavam os votos, e quando concordavam com a contagem, escreviam os números e os entregavam ao secretário do conclave. O secretário então dirigiu-se à assembleia e anunciou que Sua Eminência o cardeal Luca Rossini fora eleito Bispo de Roma e sucessor de Pedro o Príncipe dos Apóstolos pela maioria de dois votos.

Houve um momento de silêncio atordoante, depois uma explosão de aplausos que foi rapidamente interrompida pelo secretário do conclave.

– Por favor! Ainda não! Ainda há uma formalidade necessária.

Ele desceu a nave e parou em frente a Rossini, que estava rígido em seu assento como uma figura esculpida. Então, em voz alta, o secretário fez a pergunta:

– Acceptasne electionem? Aceitais a eleição?

Lentamente, muito lentamente, Luca Rossini levantou-se e olhou para a assembleia. A aparência dele, a rigidez de seu corpo, a elevação de sua cabeça, a descensão da luz em seu rosto magro e angustiado, submeteu todos ao silêncio. Seu pronunciamento foi o de um sentenciado comunicando a própria condenação:

– Minha resposta é não! Não aceito. Não posso aceitar. Não estou preparado para esse cargo. Sei que quebraria sob o peso dele. Os senhores perguntarão como têm todo o direito de perguntar: por que então me apresentei como candidato? A resposta é muito simples. Alguém da minha irmandade, sua irmandade, queria que eu renunciasse por causa de uma breve associação com uma mulher casada que salvou minha vida na Argentina, e por quem desde então sinto um constante e profundo amor. O falecido Santo Padre estava ciente dessas coisas. Elas não eram segredos dos quais eu me envergonhava, ou me envergonhe. Aceitei as penitências que me foram impostas: um exílio permanente de meu país, honras além do meu merecimento, uma disciplina de silêncio sobre o que acontecera em meu país e sobre a conivência da minha Igreja, sua Igreja, meus irmãos, com o que foi feito. Meu posto tornou-me um candidato nesta eleição. Eu não permitiria qualquer abreviação adicional dos meus direitos na Igreja ou fora dela. Eu não esperava ser escolhido. O ódio que sentem em minha voz desqualifica-me para o cargo que me ofereceram, porque embora eu tenha aprendido a controlá-lo, ainda não o purguei completamente...

“Outra coisa, a mulher que amei por tanto tempo a distância morreu ontem em Nova York. Recebi a notícia às sete horas da manhã de hoje. Na minha primeira agonia, há muitos anos, tive pouco tempo para cura e lamentos. Agora confesso: preciso de tempo. Essa necessidade é a medida de minha fraqueza e não de minha força. A própria base de minha fé estremece sob os meus pés. Não sou o homem que querem. Não sou o homem de que precisam. Ele está diante a mim: nosso irmão de Milão. Não sei quais são as formalidades para ratificá-lo, mas sei que tenho o direito de aclamá-lo, e persuadi-los a confirmá-lo para o lugar que me ofereceram. Ele foi meu mestre. É um homem sábio. Acredito que ele pode curar as feridas que afligem a Igreja e nos unir na caridade de Cristo. Nós precisamos disso. Precisamos estabelecer um limite para o passado e voltar ao nosso verdadeiro dever, que é o de demonstrar em nossas próprias vidas o Evangelho salvador. Peço a todos que aceitem esse homem. Deem a ele os votos que dedicaram a mim, que sou menos merecedor. Levantem e proclamem sua aceitação. Sejam vistos e ouvidos.

O camerlengo e o secretário de Estado foram os primeiros a se levantar, então a manifestação começou. Os outros levantaram-se em grupos de cinco, dez e vinte pessoas, até que não restou ninguém sentado e todos estavam aplaudindo quando o secretário repetiu a pergunta que fizera primeiro a Rossini:

– Acceptasne electionem?

Para a qual a resposta veio calma e clara:

– Eu aceito.

Eles o aplaudiram novamente, mas dessa vez ele os interrompeu, levantando as mãos. Conferenciou brevemente com o camerlengo e depois anunciou:

– Eu gostaria que este fosse visto como o meu primeiro ato como chefe desta família. Oremos pela nossa falecida irmã, Isabel Ortega, a quem Deus já recebeu em casa. Oremos pelo nosso irmão aflito, Luca Rossini, para que a paz lhe venha em breve, através de Cristo nosso Senhor.

O “Amém” murmurado ecoou pela capela como uma onda em difusão. Depois o novo pontífice atravessou a nave para abraçar Rossini. O secretário do conclave apressou-se para interceptá-lo:

– Por favor! Santidade! Ainda há a questão do nome pelo qual deseja ser chamado. Precisamos anunciar ao povo e ao mundo.

– Primeiro, preciso de um momento para o meu amigo Luca.

O secretário recuou. Os outros prelados mantiveram-se a distância, observando cada detalhe da cena, tentando sem sucesso ouvir o diálogo particular.

– Como está se sentindo, Luca?

– Muito estranho! Como o homem cego na árvore, ouvindo a multidão se mover e gritar quando Jesus passou, mas não vendo nada.

– Mas Ele o verá e Ele abrirá os seus olhos novamente.

– Espero que sim. Não tenho mais certeza.

– A minha porta sempre estará aberta para você, como esteve nos velhos tempos. Você colocou-me aqui. Vou precisar de sua ajuda.

– Obrigado, santidade, mas no momento preciso me afastar, ficar quieto e ignorado. O senhor me concederia isso?

– O tempo que precisar. Mais tarde, quando você estiver pronto para voltar, diga-me.

– Obrigado, santidade.

– Deseja mais alguma coisa?

– Uma liberação rápida para um clérigo a quem tenho aconselhado. Ele é um bom homem, mas não está feliz no ministério. Será melhor para ele e para a Igreja se ele se for.

– Envie-me os papéis. Eu os expedirei. Algo mais?

Rossini procurou no bolso de sua batina o pacote com a medalha de ouro.

– Poderia abençoar isto, por favor? É apenas uma medalha.

– Para alguém especial?

– Digamos que sim, santidade. Ela é uma mulher errante da Via Flaminia. Estou certo de que ela voltará lá algum dia; ela está muito segura de que a Madona a protegerá. Essa é só uma parte da história.

– O resto você me contará quando voltar. Esteja certo de que estarei esperando-o. Vá com Deus e volte em segurança para casa.

– Seja benevolente com seu povo, santidade – disse Luca Rossini. – Eles vivem em um mundo tempestuoso. Frequentemente estão com medo e sozinhos. Eles precisam de um pastor caridoso.

 

 

                                                                  Morris West

 

 

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