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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ERVA DAS NOITES / Patrick Modiano
A ERVA DAS NOITES / Patrick Modiano

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No entanto, não foi um sonho. Por vezes, surpreendo-me a dizer esta frase na rua, como se ouvisse a voz de outro. Uma voz sem timbre. Ocorrem-me à ideia nomes, alguns rostos, certos pormenores. E ninguém com quem falar deles. Deve haver duas ou três testemunhas ainda vivas. Mas é provável que se tenham esquecido de tudo. E, depois, acabo por me perguntar se houve realmente testemunhas.
Não, não foi um sonho. A prova é que tenho um caderno preto cheio de apontamentos. Nesta incerteza, necessito de termos precisos e consulto o dicionário. Apontamento: escrito breve que se faz para recordar qualquer coisa. As páginas do caderno são uma sucessão de nomes, de números de telefone, de datas de encontros, bem como de textos curtos que podem ter qualquer coisa que ver com a literatura. Mas como classificá-los? Diário íntimo? Pedaços de memória? E ainda centenas de pequenos anúncios copiados dos jornais. Cães perdidos. Apartamentos mobilados. Pedidos e ofertas de emprego. Videntes.
No meio de todos esses apontamentos, uns têm mais ressonância do que outros. Principalmente quando nada perturba o silêncio. Há muito que o telefone não toca. E ninguém baterá à porta. Devem julgar que estou morto. Estou só, atento, como se quisesse captar os sinais de morse que um interlocutor desconhecido envia de muito longe. Evidentemente, muitos sinais chegam com interferências e, por mais que apure o ouvido, perdem-se para sempre. Mas há nomes que se destacam com clareza no silêncio e na página em branco...
Dannie, Paul Chastagnier, Aghamouri, Duwelz, Gérard Marciano, "Georges", o Hotel Unic, Rua de Montparnasse... Se bem me lembro, andava sempre alerta naquele bairro.

 


 


Um dia destes, calhou passar por lá. Tive uma sensação muito estranha. Não de que o tempo tivesse decorrido, mas de que um outro eu, um gémeo, andava por ali, sem
ter envelhecido, e continuava a viver nos mínimos pormenores, e até ao fim dos tempos, o que eu ali vivera durante um período muito curto.
O que causaria o mal-estar que sentira antigamente? Seria daquelas ruas à sombra de uma estação e de um cemitério? De repente, pareciam-me anódinas. As fachadas
tinham mudado de cor. Muito mais claras. Nada de particular. Uma zona neutra. Seria realmente possível que um duplo que ali deixara continuasse a repetir todos e
cada um dos meus velhos gestos, a seguir os meus antigos itinerários por toda a eternidade? Não, já nada restava de nós. O tempo levara tudo. O bairro era novo,
saneado, como se tivesse voltado a ser construído no local de uma ilhota insalubre. E ainda que a maior parte dos edifícios fosse a mesma, dava a impressão de se
estar na presença de um cão empalhado, um cão que fora nosso e do qual gostáramos em vida.
Nesse domingo à tarde, durante o meu passeio, tentava recordar-me do que estava escrito no caderno preto que lamentava não levar no bolso. As horas do encontro com
Dannie. O número de telefone do Hotel Unic. Os nomes daqueles com quem me encontrava lá. Chastagnier, Duwelz, Gérard Marciano. O número de telefone de Aghamouri
no pavilhão de Marrocos da Cidade Universitária. Descrições breves de várias zonas desse bairro a que tencionava chamar "O interior de Montparnasse", mas descobri,
trinta anos depois, que o título já fora usado por um tal Oser Warszawski.
Num domingo de outubro, ao entardecer, os meus pés tinham-me levado, portanto, a essa zona pela qual teria evitado passar durante a semana. Não, não se tratava verdadeiramente
de uma peregrinação. Mas os domingos, sobretudo ao entardecer e quando se está só, abrem uma brecha no tempo. Basta enfiarmo-nos por ela. Um cão empalhado de que
gostámos em vida. Quando passava defronte do edifício grande, branco e bege-sujo, o número 11 da Rua de Odessa - ia no
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passeio em frente, o da direita senti uma espécie de clique, aquela ligeira vertigem que se sente precisamente de todas as vezes que se abre uma brecha no tempo.
Quedei-me de olhos cravados nas paredes do edifício que rodeavam o pequeno pátio. Era ali que Paul Chastagnier deixava sempre o carro quando vivia num quarto no
Hotel Unic, na Rua de Montparnasse. Uma noite, perguntei-lhe por que não estacionava o carro diante do hotel. Fazendo um sorriso acanhado, respondeu-me com um encolher
de ombros: "Por precaução..."
Um Lancia vermelho. Podia chamar a atenção. Mas se não queria dar nas vistas, que ideia fora aquela de escolher uma tal marca e uma tal cor...? Explicou-me, então,
que um amigo dele vivia no edifício da Rua de Odessa e que lhe emprestava muitas vezes o carro. Sim, por isso o deixava lá.
"Por prudência", dizia. Depressa me apercebi de que aquele homem, na casa dos quarenta anos, moreno, sempre muito arranjado, de roupas cinzentas e casacos azuis-marinhos,
não exercia nenhuma profissão concreta. Ouvia-o telefonar no Hotel Unic, mas a parede era demasiado grossa para que conseguisse escutar a conversa. Só me chegava
o som da sua voz, grave, por vezes cortante. Silêncios prolongados. Conhecera Chastagnier no Hotel Unic, ao mesmo tempo que me cruzava com outras pessoas naquele
estabelecimento: Gérard Marciano, Duwelz, de cujo nome próprio não me recordo... Com o tempo, as suas silhuetas tornaram-se confusas e as suas vozes inaudíveis.
A de Paul Chastagnier recorta-se com mais precisão por causa das cores: cabelo muito preto, casaco azul-marinho, carro vermelho. Creio que passou uns anos na prisão,
tal como Duwelz e Marciano. Era o mais velho e já devia ter morrido. Levantava-se tarde e marcava os seus encontros em locais apartados, para sul, nessas zonas do
interior que ficam ao redor da antiga estação de mercadorias e cujos nomes tradicionais me eram também familiares: Falguière, Alleray, e mesmo, um pouco mais longe,
a Rua dos Favorites... Cafés desertos a que me levou algumas vezes e onde achava certamente que ninguém poderia descobri-lo. Nunca me atrevi a perguntar-lhe se tinha
uma proibição de residência, ainda que a ideia me tenha passado pela cabeça muita vez. Mas então porque estacionava ele o carro diante daqueles cafés? Não teria
sido mais prudente ir a pé, discretamente?
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Naquele tempo, eu andava sempre a pé por aquele bairro que começavam a destruir, por baldios, pequenos edifícios de janelas entaipadas, troços de ruas entre montes
de entulho, como depois de um bombardeamento. E aquele carro vermelho ali estacionado, aquele cheiro a couro, aquela mancha viva que faz acudir à memória recordações...
Recordações? Não. Naquele domingo ao entardecer, acabei por me convencer de que o tempo não se move e que se me enfiasse realmente pela brecha, voltaria a encontrar
tudo, intacto. E antes de mais, aquele carro vermelho. Decidi ir andando até à Rua Vandamme. Havia lá um café a que Paul Chastagnier me levara e onde a conversa
se tornara mais pessoal. Sentira mesmo que estava quase a fazer-me confidências. Propôs-me, por meias-palavras, que "trabalhasse" para ele. Mantive-me evasivo. Não
insistiu. Eu era muito novo, mas bastante desconfiado. Mais tarde, voltei àquele café com Dannie.
Naquele domingo, era quase noite quando cheguei à Avenida do Maine, e fui contornando os grandes edifícios novos do lado dos números pares. Formavam uma fachada
retilínea. Nem uma luz nas janelas. Não, não foi um sonho. A Rua Vandamme desembocava na avenida mais ou menos por ali, mas naquela tarde as fachadas eram lisas,
compactas, sem a mais pequena interrupção. Tinha de me render à evidência: a Rua Vandamme já não existia.
Transpus a porta envidraçada de um desses edifícios, mais ou menos no sítio em que entrávamos na Rua Vandamme. Uma luz de néon. Um corredor largo e comprido ladeado
de paredes de vidro por detrás das quais havia uma série de secretárias. Talvez restasse um troço da Rua Vandamme, cercado por aquela massa de edifícios novos. Este
pensamento causou-me um riso nervoso. Continuava a andar pelo corredor envidraçado. Não lhe via o fim e a luz de néon fazia-me piscar os olhos. Pensei que aquele
corredor seguia naturalmente o antigo traçado da Rua Vandamme. Fechei os olhos. O café ficava ao fundo da rua, prolongada por um beco sem saída que esbarrava no
muro das oficinas dos caminhos de ferro. Paul Chastagnier deixava o carro vermelho no beco sem saída, diante do muro negro. Por cima do café, havia um hotel, o Perceval,
assim chamado por causa de uma rua com o mesmo nome, rua que desaparecera também com os edifícios novos. Tinha tudo anotado no caderno preto.
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No final, Dannie já não se sentia muito bem no Unic - como dizia Chastagnier - e arranjara um quarto no Perceval. Daí em diante, queria evitar os outros, sem que
eu saiba a quem em particular: Chastagnier? Duwelz? Gérard Marciano? Quanto mais penso nisso agora mais me parece que comecei a vê-la apreensiva desde o dia em que
me chamou a atenção a presença de um homem no vestíbulo e por detrás do balcão da receção, um homem que Chastagnier me dissera ser o gerente do Hotel Unic e cujo
apelido consta no meu caderno: Lakhdar, seguido de outro apelido: Davin, este entre parêntesis.

* * *

Conhecera-a na cafetaria da Cidade Universitária, onde procurava muita vez refúgio. Vivia num quarto do pavilhão dos Estados Unidos e eu perguntava-me porquê, já
que não era nem estudante nem americana. Não ficou aí muito tempo depois de termos travado conhecimento. Apenas uma dezena de dias. Hesito em escrever por inteiro
o apelido que anotei no caderno preto depois do nosso primeiro encontro: Dannie R" pavilhão dos Estados Unidos, Avenida Jourdan, 15. Talvez o use de novo agora -
depois de tantos outros apelidos -e não quero atrair a atenção sobre ela caso esteja ainda viva algures. E, no entanto, se lesse esse apelido em letra de imprensa,
talvez se lembrasse de o ter usado numa certa época e eu tivesse notícias dela. Mas não, não tenho grandes ilusões a respeito disso.
No dia em que nos conhecemos, escrevi "Dany" no caderno. E ela corrigiu pessoalmente, com a minha esferográfica, a ortografia exata do seu nome próprio: Dannie.
Mais tarde, descobri que "Dannie" era o título de um poema de um escritor que admirava nesse tempo e a quem via de vez em quando, na Avenida Saint-German, sair do
Hotel Taranne. Há coincidências, por vezes, curiosas.
Na tarde do domingo em que deixou o pavilhão dos Estados Unidos, pediu-me que fosse buscá-la à Cidade Universitária. Esperava-me diante da entrada do pavilhão com
duas malas de mão. Disse-me que tinha encontrado um quarto num hotel de Montparnasse. Propus-lhe que fôssemos a pé. As duas malas não pesavam muito.
Tomámos a Avenida do Maine. Estava deserta, como na outra
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tarde, que também era um domingo, à mesma hora. Um amigo marroquino da Cidade Universitária falara-lhe do hotel, o amigo que ela me apresentara na cafetaria quando
nos conhecemos, um tal Aghamouri.
Sentámo-nos num banco à altura da rua que franqueia o cemitério. Revistou as duas malas a verificar se se tinha esquecido de alguma coisa. Depois continuámos a andar.
Ia-me contando que Aghamouri vivia nesse hotel porque um dos donos era marroquino. Mas, então, porque tinha vivido também na Cidade Universitária? Porque era estudante.
De resto, tinha outro domicílio em Paris. E ela, também era estudante? Aghamouri ia ajudá-la a matricular-se na Faculdade de Censier. Não parecia muito convencida
e disse esta última frase com indiferença. No entanto, recordo-me de que uma tarde a acompanhei no metro até à Faculdade de Censier, havia uma linha direta de Duroc
a Monge. Caía uma chuva miudinha, mas era coisa que não nos incomodava. Aghamouri tinha-lhe dito que era preciso ir pela Rua Monge e por fim lá chegámos: uma espécie
de esplanada, ou melhor, um baldio rodeado de casas baixas semi-destruídas. O solo era de terra batida e, na penumbra, tínhamos de andar com cuidado por causa das
poças de água. Ao fundo de tudo, um edifício moderno por certo recém-construído, uma vez que ainda tinha os andaimes... Aghamouri esperava-nos à entrada, com a luz
do vestíbulo a iluminar-lhe a silhueta. O olhar dele parecia-me menos intranquilo do que o habitual, como se, apesar do baldio e da chuva, lhe desse segurança estar
diante da Faculdade de Censier. Acodem-me à memória todos estes pormenores desordenados, ti-tubeantes, e a luz ofusca-se com frequência. E isto contrasta com os
apontamentos precisos que figuram no caderno. Esses apontamentos são-me úteis para dar um pouco de coerência às imagens que saltitam a tal ponto que o celulóide
da película corre o risco de romper-se. Curiosamente, outros apontamentos referentes a investigações que estava a fazer na mesma altura sobre acontecimentos que
não tinha vivido - remontam ao século XIX e mesmo ao século XVIII - pareciam-me mais límpidos. E os nomes que têm que ver com esses acontecimentos longínquos: a
baronesa Blanche, Tristan Corbière, Jeanne Duval, entre outros, e também Marie-Anne Leroy,
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guilhotinada no dia 26 de julho de 1794, com 21 anos de idade, parecem-me mais próximos e mais familiares que os nomes dos meus contemporâneos.
Naquele domingo ao final da tarde, quando chegámos ao Hotel Unic, Aghamouri estava à espera de Dannie, sentado no vestíbulo, na companhia de Duwelz e de Gérard Marciano.
Foi nesse dia que conheci os dois últimos. Quiseram que fôssemos ver o jardim por detrás do hotel onde havia duas mesas com guarda-sol. "A janela do teu quarto dá
para este lado", disse Aghamouri, mas o pormenor não parecia importar a Dannie. Duwelz. Marciano. Tento concentrar-me para lhes dar uma aparência de realidade, procuro
o que poderia fazê-los reviver, aqui, sob o meu olhar, o que me permitiria, depois de todo este tempo passado, sentir a sua presença. Não sei, um perfume... Duwelz
ostentava sempre um aspeto cuidado: bigode louro, gravata, fato cinzento, e cheirava a uma eau de toilette cujo nome descobri, muitos anos depois, através de um
frasco esquecido num quarto de hotel: Pino silvestre. Por segundos, o aroma do Pino silvestre trouxe-me à memória uma silhueta que vai, de costas, pela Rua de Montparnasse,
um louro de andar vagaroso: Duwelz. Depois, mais nada, como nesses sonhos em que não nos resta, ao acordar, senão um vago reflexo que se vai esfumando ao longo do
dia. Gérard Marciano, pelo contrário, era moreno, de pele branca e bastante baixo, sempre de olhar cravado no outro, mas sem o ver. Conheci melhor Aghamouri, com
quem convivi várias vezes ao final da tarde, num café da Praça Monge, quando saía das aulas na Censier. Ficava sempre com a impressão de que me queria fazer uma
confidência importante, de contrário não me teria marcado encontro a sós ali, longe dos outros. Era um café tranquilo quando a noite caía, no inverno, e estávamos
sós e em segurança ao fundo da sala. Um caniche preto apoiava o focinho sobre o banco e observava-nos piscando os olhos. Ao recordar alguns momentos da minha vida,
vêm-me à memória versos e procuro frequentemente recordar-me de quem eram. O café da Praça Monge ao entardecer associo-o eu ao seguinte verso: "As unhas afiadas
de um caniche golpeando as calçadas da noite..."
íamos a pé até Montparnasse. Durante esses trajetos, Aghamouri tinha-me revelado alguns pormenores, muito poucos, sobre si.
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Acabavam de expulsá-lo, na Cidade Universitária, do quarto no pavilhão de Marrocos, mas nunca soube se fora por razões políticas ou por outro motivo. Vivia num pequeno
apartamento que lhe haviam emprestado na 16ª circunscrição, junto à Casa da Rádio. No entanto, preferia o quarto que tinha no Hotel Unic, o qual conseguira graças
ao gerente, "um amigo marroquino". Porque não deixava, então, o apartamento na 16ª circunscrição? "É que a minha mulher vive lá. É verdade, sou casado." E percebi
que não me diria mais nada. De resto, nunca respondia às perguntas. As confidências que me fez - poderão, realmente, chamar-se confidências? - fê-las no caminho
da Praça Monge para Montparnasse, entre longos silêncios, como se andar o encorajasse a falar.
Havia algo que me intrigava. Seria mesmo estudante? Quando lhe perguntei a idade, respondeu-me: trinta anos. Poderia ainda ser estudante aos trinta anos? Não me
atrevia a fazer-lhe a pergunta por recear melindrá-lo. E Dannie? Porque queria ela ser estudante também? Era assim tão simples a matrícula, de um dia para o outro,
na Faculdade de Censier? Quando os observava aos dois no Hotel Unic, não tinham nada ar de estudantes, e lá para a zona de Monge, o edifício da faculdade, parcialmente
construído ao fundo do baldio, parecia-me de súbito pertencer a outra cidade, a outro país, a outra vida. Seria por causa de Paul Chastagnier, de Duwelz, de Marciano
e dos outros que avistava na receção do Hotel Unic? Mas eu nunca me sentia à vontade no bairro de Montparnasse. Não, a verdade é que as ruas não eram muito alegres.
Na minha memória, chove com frequência, ao passo que outros bairros de Paris vejo-os sempre no verão quando penso neles. Acho que Montparnasse se apagou desde o
final da guerra. Mais abaixo, na avenida, La Coupole e Le Select ainda tinham um certo esplendor, mas o bairro perdera a alma. Já não havia nem talento nem coração.
Um domingo à tarde, estava sozinho com Dannie, na parte de baixo da Rua de Odessa. Começou a chover e fomos refugiar-nos no vestíbulo do Cinema Montparnasse. Sentámo-nos
ao fundo da sala. Estava no intervalo e não sabíamos de que filme se tratava. Aquele cinema imenso e deteriorado causou-me o mesmo mal-estar que as ruas do bairro.
Havia no ar um cheiro a ozono, como quando
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se passa sobre um respiradouro do metro. Entre o público, uns quantos soldados de licença. Ao cair da noite, tomariam os comboios da Bretanha em direção a Brest
ou a Lorient. E em lugares retirados escondiam-se casais acidentais que não veriam o filme. Durante a sessão, ouvir-se-iam as suas queixas, os seus suspiros e, por
baixo deles, o rangido cada vez mais intenso dos assentos... Perguntei a Dannie se tencionava ficar muito mais tempo ainda no bairro. Não. Não muito. Teria preferido
viver num quarto grande na 16ª circunscrição. Era um sítio calmo e anónimo. E ninguém poderia já localizá-la. "Porquê? Tens de esconder-te?" "Não. De maneira nenhuma.
E tu, gostas do bairro?"
Aparentemente, tinha querido evitar responder a uma pergunta embaraçosa. E eu, que podia eu responder-lhe? Era indiferente que gostasse ou não do bairro. Agora parece-me
que estava a viver outra vida dentro da minha vida quotidiana. Ou, mais exatamente, que essa outra vida estava ligada à vida diária, bastante cinzenta, e lhe dava
uma luminosidade e um mistério que, na realidade, não tinha. Eis como os lugares que nos são familiares e que voltamos a ver em sonhos, muitos anos depois, adquirem
um aspeto estranho, como aquela triste Rua de Odessa e aquele Cinema Montparnasse com cheiro a metro.
Nesse domingo acompanhei Dannie ao Hotel Unic. Tinha encontro com Aghamouri. "Conheces a mulher dele?", perguntei-lhe. Pareceu surpreendê-la que eu estivesse ao
corrente da sua existência. "Não", respondeu-me. "Ele quase nunca a vê. Estão mais ou menos separados." Não tenho qualquer mérito em reproduzir esta frase com exatidão,
pois figura na parte de baixo de uma das folhas do meu caderno, a seguir ao nome "Aghamouri". Na mesma página há outros apontamentos que não têm qualquer relação
com esse triste bairro de Montparnasse, Dannie, Paul Chastagnier, Aghamouri, mas têm que ver com o poeta Tristan Corbière, e também com Jeanne Duval, a amante de
Baudelaire. Tinha descoberto os seus endereços, uma vez que está escrito no caderno: Corbière, Rua Frochot, 10; Jeanne Duval, Rua Sauffroy, 17, por volta de 1878.
Mais adiante, há páginas inteiras que lhes são dedicadas, o que tenderia a provar que tinham
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mais importância para mim que a maioria dos vivos com quem me relacionei naqueles anos.
Nessa noite, deixei-a à entrada do hotel. Vi de longe Aghamouri, que a esperava em pé no meio do vestíbulo. Vestia um casaco bege. Também apontei isso no caderno:
"Aghamouri, casaco bege." Com certeza para ter um ponto de referência mais tarde - com a maior quantidade possível de pormenores relativamente a essa etapa da minha
vida. "Conheces a mulher dele?" "Não. Ele quase nunca a vê. Estão mais ou menos separados." Frases que nos surpreendem quando nos cruzamos com duas pessoas que conversam
na rua. E nunca saberemos a quem se referiam. Um comboio passa por uma estação a uma velocidade que impede que se leia o nome da localidade. Então, com a testa colada
ao vidro da janela, reparamos em alguns pormenores: um rio, o campanário de uma aldeia, uma vaca preta meditabunda debaixo de uma árvore, afastada da manada. Temos
esperança de conseguir ler o nome da estação seguinte e saber, finalmente, onde estamos. Não voltei a ver nenhuma das pessoas cujos nomes figuram nas páginas daquele
caderno preto. Terá sido uma presença fugitiva, e corria mesmo o perigo de esquecer os seus nomes. Simples encontros que não sabemos se são fruto do acaso. Existe
uma etapa da vida para isso, uma encruzilhada em que podemos ainda hesitar entre vários caminhos. O tempo dos encontros, como estava escrito na capa de um livro
que encontrei numa plataforma de uma estação ferroviária. Precisamente nesse mesmo domingo em que deixei Dannie com Aghamouri, ia andando, não sei porquê, ao longo
da plataforma de Saint-Michel. Subi a avenida, tão lúgubre como Montparnasse, talvez porque não houvesse a balbúrdia dos dias de semana e as fachadas estivessem
sem luz. Na parte mais de cima, onde desemboca a Rua de Monsieur-le-Prince, depois do lanço de escadas e do corrimão de ferro, uma vidraça grande e iluminada, a
parte traseira de um café cuja esplanada dava para o gradeamento do Jardim do Luxembourg. A sala do café estava toda às escuras, menos essa vidraça, por detrás da
qual costumavam demorar-se, até altas horas da noite, alguns clientes diante de um balcão semicircular. Nessa noite havia duas pessoas que reconheci ao passar: Aghamouri,
por causa do casaco bege, de pé, e ao lado dele, Dannie, sentada num dos tamboretes.
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Aproximei-me. Podia ter aberto a porta envidraçada e juntar-me a eles. Mas o receio de ser um intruso conteve-me. Não estive eu, nessa altura, sempre à parte, na
posição de espectador, diria até daquele a quem chamava o "espectador noturno", o tal escritor do século XVIII de que gostava muito e cujo nome aparece várias vezes,
juntamente com alguns apontamentos, nas páginas do meu caderno preto? Paul Chastagnier, quando estávamos os dois para os lados de Falguière ou dos Favorites, disse-me
um dia: "Estranho... escutamos as pessoas com muita atenção... mas estamos noutro lado..." Por trás da vidraça do café, sob a luz demasiado intensa do néon, o cabelo
de Dannie já não era castanho-claro, mas louro, e a pele, mais pálida ainda do que de costume, leitosa e com sardas. Era a única pessoa sentada num tamborete. Por
detrás dela e de Aghamouri, havia um grupo de três ou quatro clientes de copos na mão. Aghamouri inclinava-se sobre ela e falava-lhe ao ouvido. Beijava-lhe o pescoço.
Ela ria e bebia um gole de licor que reconheci pela cor e porque era sempre o que pedia quando íamos a um café: Cointreau.
Perguntava-me se lhe diria no dia seguinte: vi-te a noite passada com Aghamouri no Café Luxembourg. Ainda não sabia que ligação eles tinham exatamente. Em todo o
caso, não estavam no mesmo quarto no Hotel Unic. Tentara compreender o que unia aquele pequeno grupo. Aparentemente, Gérard Marciano era amigo de Aghamouri há muito
tempo e este tinha-o apresentado a Dannie quando os dois viviam na Cidade Universitária. Paul Chastagnier e Marciano tratavam-se por tu, não obstante a diferença
de idades, e o mesmo sucedia com Duwelz. Mas nem Chastagnier nem Duwelz conheciam Dannie antes de ela ter ido viver para o Hotel Unic. Enfim, Aghamouri tinha uma
relação bastante estreita com o gerente do hotel, o que se chamava Lakhdar, que ia em dias alternados ao escritório que ficava por detrás do balcão da receção. Acompanhava-o
frequentemente um tal "Davin". Os dois pareciam conhecer Paul Chastagnier, Marciano e Duwelz de longa data. Tinha apontado tudo isso no caderno preto uma tarde em
que estava à espera de Dannie, um pouco como se estivesse a fazer palavras-cruzadas ou um esboço, para passar o tempo.
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* * *

Mais tarde, perguntaram-me coisas acerca deles. Recebi uma intimação de um tal Langlais. Esperei muito tempo num gabinete de um edifício do Cais de Gesvres, às dez
horas da manhã. Pela janela, via o mercado das flores e a fachada negra do Hotel-Dieu. Uma manhã outonal e soalheira nos cais. Langlais entrou no gabinete, um homem
de cabelo castanho e estatura média que me pareceu um tanto seco, apesar de ter uns grandes olhos azuis. Nem sequer me cumprimentou e começou a fazer-me perguntas
com uma certa severidade. Creio que a minha calma lhe suavizou o tom e compreendeu que, na realidade, eu não estava implicado no assunto. Dizia a mim mesmo que talvez
me encontrasse, naquele gabinete, no lugar exato em que Gérard de Nerval se tinha enforcado. Quem descesse às caves daquele edifício encontraria, ao fundo de uma
delas, um troço da Rua da Vieille-Lanterne. Não pude responder de maneira muito precisa às perguntas do tal Langlais. Citava-me os nomes de Paul Chastagnier, Gérard
Marciano, Duwelz, Aghamouri, e queria que lhe dissesse que relações tinha com eles. Foi então que compreendi que não, não tinham desempenhado um papel muito importante
na minha vida. Uns comparsas. Pensava em Nerval e na Rua da Vieille-Lanterne, rua em que tinham construído o edifício onde estávamos. Sabê-lo-ia Langlais? Estive
quase a perguntar-lho. Durante o interrogatório, mencionou várias vezes uma tal Mireille Sampierry que "teria frequentado" o Hotel Unic, mas eu não a conhecia. "Tem
a certeza de que nunca a encontrou?" O nome não me dizia nada. Deve ter percebido que não estava a mentir e não insistiu. Apontei "Mireille Sampierry" no meu caderno
essa noite e, no fundo da mesma página, escrevi: "Cais de Gesvres, 14. Langlais. Nerval. Rua da Vieille-Lanterne." Espantou-me que não tivesse feito qualquer alusão
a Dannie. Era como se não tivesse deixado rasto nos ficheiros dele. Como costuma dizer-se, tinha passado por entre as malhas da rede e esfumara-se. Melhor para ela.
Na noite em que a surpreendera em companhia de Aghamouri no balcão do Café Luxembourg, já não conseguia ver-lhe a cara por causa da luz demasiado intensa e branca
do néon. Não passava de uma mancha luminosa, sem relevo, como numa fotografia sobre-exposta.
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Um espaço em branco. Talvez se tivesse escapulido das investigações do tal Langlais pelo mesmo sistema. Mas estava enganado. No segundo interrogatório que me fez
na semana seguinte, descobri que sabia muita coisa sobre ela.
Uma noite, vivia ela ainda na Cidade Universitária, acompanhei-a até à estação de Luxembourg. Não queria voltar sozinha para o pavilhão dos Estados Unidos e pediu-me
que fosse de metro com ela. Quando descíamos as escadas em direção à plataforma, passou o último comboio. Podíamos fazer o caminho a pé, mas a perspetiva de ir àquela
hora pela interminável Rua da Santé e caminhar ao longo dos muros da prisão e, depois, do Hospital de Sainte-Anne, oprimiu-me o coração. Dannie levou-me até à saída
da Rua de Monsieur-le-Prince e acabámos diante do balcão semicircular, nos mesmos sítios em que ela e Aghamouri estavam na outra noite. Ela, sentada no tamborete,
eu, de pé. Estávamos muito juntos porque o balcão se encontrava apinhado de clientes. A luz era tão forte que eu tinha de piscar os olhos e não conseguíamos falar
porque havia muito barulho à nossa volta. Depois lá foram saindo uns após outros. Ao fundo, já só havia um cliente, tombado sobre o balcão, sem que se soubesse se
estava bêbedo ou adormecera simplesmente. A luz continuava muito branca e forte, mas agora parecia que abarcava um campo mais reduzido e que havia só um único projetor
fixado sobre nós. Quando saímos para o ar livre, pelo contrário, estava tudo mergulhado num silêncio sombrio e senti o mesmo alívio que uma borboleta que escapa
à atração e à queimadura da lâmpada.
Deviam ser umas duas ou três horas da manhã. Ela disse-me que perdia muitas vezes o último comboio na estação de Luxembourg e que por isso tinha descoberto aquele
café, ao qual chamava o 66, o único do bairro aberto toda a noite. Pouco depois do interrogatório do tal Langlais, ia eu a andar, muito tarde, para o alto da Avenida
Saint-Michel, vi de longe uma carrinha da polícia parada sobre o passeio, tapando a vidraça, demasiado iluminada, do 66. Estavam a mandar entrar os clientes. Sim,
era essa, realmente, a impressão que tivera diante do balcão com Dannie. Umas borboletas ofuscadas e enviscadas na luz antes de uma rusga. Creio até que lhe disse
a palavra "rusga" ao ouvido e que ela sorriu.
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Havia então em Paris, de noite, pontos assim, demasiado luminosos, que serviam de armadilha, e procurava evitá-los. Quando ia dar a um deles, rodeado de clientes
estranhos, mantinha-me alerta e procurava mesmo localizar as saídas de emergência. "Julgas que estás em Pigalle", disse-me ela. E surpreendeu-me ouvir a palavra
"Pigalle" pronunciada pela sua boca com uma certa familiaridade. Na rua, fomos ladeando o gradeamento do Jardim do Luxembourg. Repeti a palavra "Pigalle" e desatei
a rir. Ela também. Estava tudo silencioso à nossa volta. O rumor das árvores chegava-nos através das grades. A estação de Luxembourg estava fechada, era preciso
esperar até às seis horas para poder apanhar o primeiro metro. Ao longe, tinham-se apagado as luzes do 66. Podíamos ir a pé e estava disposto a enfrentar com ela
a longa e sinistra Rua da Santé.
No caminho, fomos procurando um atalho e perdemo-nos nas ruelas que há em torno de Val-de-Grâce. O silêncio era ainda mais profundo e ouvíamos o ruído dos nossos
passos. Perguntei-me se não estaríamos longe de Paris, numa cidade de província: Angers, Vendôme, Saumur, nomes de cidades que eu não conhecia e cujas ruas tranquilas
se pareciam com a Rua do Val-de-Grâce, ao fim da qual uma grande grade resguardava um jardim.
Dannie tinha-me dado o braço. Ao longe, havia uma luz muito menos forte do que a do 66 no rés do chão de um edifício.
Um hotel. A porta envidraçada estava aberta e a luz vinha do corredor, no meio do qual dormia um cão com o focinho apoiado no lajedo. Ao fundo de tudo, por detrás
do balcão da receção, o vigilante noturno, um homem calvo, folheava uma revista. Ali, no passeio, não me sentia já com forças para continuar ao longo do muro da
prisão e do hospital e seguir pela Rua da Santé cujo fim, à noite, não se via.
Não sei qual dos dois arrastou o outro. No corredor, passámos por cima do cão sem o acordar. O quarto nº 5 estava livre. Lembro-me desse número 5, eu que sempre
esqueci o número dos quartos de hotel, a cor das suas paredes, dos seus móveis e das suas cortinas, como se fosse preferível que a minha vida desses anos se apagasse
gradualmente. No entanto, as paredes do quarto nº 5 ficaram-me gravadas na memória, e as cortinas também: papel pintado com motivos azul-desmaiado e aquele tipo
de cortinas negras que, soube-o
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mais tarde, eram dos tempos da guerra e não deixavam passar nenhuma luz para o exterior, seguindo as instruções daquilo a que se chamava "a Defesa passiva".
Mais tarde, senti que ela queria contar-me qualquer coisa, mas estava hesitante. Porquê a Cidade Universitária, o pavilhão dos Estados Unidos, se não era nem estudante
nem americana? Mas, afinal de contas, os verdadeiros encontros são os de duas pessoas que não sabem nada uma da outra, mesmo de noite, num quarto de hotel. "Há pouco,
eram um bocado estranhos", disse-lhe eu, "os clientes do 66. Felizmente que não houve rusgas." Sim, aquela gente que tínhamos à volta, que falava demasiado alto
sob a luz branca, porque é que foi dar àquela hora tardia ao provinciano Quartier Latin? "Fazes demasiadas perguntas", respondeu-me ela em voz baixa. Um relógio
batia os quartos de hora. O cão ladrou. Voltava a ter a impressão de que me encontrava muito longe de Paris. Pareceu-me mesmo escutar, imediatamente antes do nascer
do dia, um ruído de tamancos que se afastava. Saumur? Muitos anos depois, uma tarde em que andava pelas imediações de Val-de-Grâce, procurei encontrar o hotel. Não
tinha apontado nem o nome nem o endereço no caderno preto, da mesma forma que evitamos escrever os pormenores demasiado íntimos da nossa vida, por receio de, uma
vez registados no papel, deixarem de pertencer-nos.

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No seu gabinete do Cais de Gesvres, o tal Langlais perguntou-me: "Vive num quarto do Hotel Unic?" Disse-o com uma voz distraída, como se já soubesse a resposta e
esperasse da minha parte uma simples confirmação. "Não." "Frequentava o 66?" Desta vez, olhou-me de frente. Estranhei que ele dissesse o 66. Até então, julgava que
Dannie era a única pessoa a chamar assim àquele sítio. Também a mim me acontecera dar nomes diferentes aos cafés, nomes de um Paris mais antigo, e dizer: "Encontramo-nos
no Tortoni", ou "Às nove horas, no Rocher de Cancale".
- O 66? - Fingi estar a tentar recordar-me. Ouvia de novo Dannie a dizer-me com a sua voz surda: "Julgas que estás em Pigalle?"
- O 66 em Pigalle? - disse eu ao tal Langlais com um ar fingidamente pensativo.
- Nada disso... É um café do Quartier Latin.
Talvez não fosse conveniente passar por espertalhão.
- Ah! Sim... devo ter lá ido uma ou duas vezes...
- À noite?
Hesitei em responder. Teria sido mais prudente dizer-lhe: de dia, quando todo o local estava aberto e a maioria dos clientes se sentava na esplanada, do lado do
gradeamento do Luxembourg. De dia, era um café que não se diferenciava dos outros. Mas para quê mentir?
- Sim. À noite.
Lembrava-me da sala mergulhada na obscuridade à nossa volta e daquela zona estreita iluminada, ao fundo de tudo, como um refúgio
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clandestino, passada a hora de encerrar. E o nome, o 66, um daqueles nomes que circulam em voz baixa, entre iniciados.
- Estava sozinho?
- Sim. Sozinho.
Ele consultava uma folha em cima da secretária, na qual me parecia ver uma lista de nomes. Esperava que o de Dannie não estivesse lá.
- E não conhecia ninguém entre os frequentadores do 66?
- Ninguém.
Ele continuava a fixar o olhar na folha de papel. Teria gostado que me dissesse os nomes dos "frequentadores do 66" e que me explicasse quem era toda aquela gente.
Talvez Dannie tivesse conhecido alguns. Ou Aghamouri. Nem Gérard Marciano, nem Duwelz, nem Paul Chastagnier pareciam frequentadores do 66. Mas não tinha certeza
de nada.
- Deve ser um café de estudantes, como todos os outros, no Quar-tier Latin - disse eu.
- De dia, sim, não à noite.
Falava agora com um tom seco, quase ameaçador.
- Sabe - disse-lhe eu, e esforçava-me por ser o mais afável e conciliador possível -, nunca fui um "frequentador noturno do 66".
Observou-me com os seus grandes olhos azuis e não havia nada de ameaçador no seu olhar, um olhar cansado e bastante indulgente.
- Em todo o caso, o seu nome não está na lista.
Vinte anos depois, no processo que me chegou às mãos graças ao tal Langlais - ele não me tinha esquecido; há sentinelas assim, postadas em todas as encruzilhadas
da nossa vida - figurava a lista dos "frequentadores do 66", e em primeiro lugar um certo "Willy des Go-belins". Hei de copiá-la quando tiver tempo. E copiarei também
algumas páginas desse processo que completam os apontamentos do meu velho caderno preto e coincidem com eles. Passei ontem defronte do 66 para ver se aquela parte
do café ainda existia. Empurrei a porta envidraçada, a mesma por onde Dannie e eu entrámos e por detrás da qual a observara, sentada ao balcão, em companhia de Aghamouri,
sob aquela luz demasiado intensa e demasiado branca. Sentei-me ao balcão. Eram cinco horas da tarde e os clientes estavam na outra parte
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do café, a que dá para o gradeamento do Luxembourg. O empregado pareceu admirar-se por eu pedir um Cointreau, mas fi-lo em memória de Dannie. E para o beber à saúde
daquele "Willy des Gobelins", o primeiro da lista e de quem não sabia nada.
- Continuam abertos até tarde? - perguntei ao empregado.
Franziu o sobrolho. Não parecia compreender a minha pergunta. Um jovem que deveria ter os seus vinte e cinco anos.
- Fechamos todas as noites às nove horas.
- Este café chama-se o 66, não é?
Disse estas palavras com uma voz de além-túmulo. O empregado mirou-me com um olhar preocupado.
- O 66, porquê? Chama-se Le Luxembourg.
Lembrei-me da lista dos "frequentadores do 66". Sim, hei de copiá-la quando tiver tempo. Mas ontem à tarde, vieram-me à memória alguns dos nomes dessa lista: Willy
des Gobelins, Simone Langelé, Orfanoudakis, o doutor Lucaszek, conhecido por "Doutor Jean", Jac-queline Giloupe e uma tal Mireille Sampierry que Langlais me citara
da primeira vez.
Por detrás de mim, na sala e na esplanada, turistas e estudantes. Na mesa mais próxima, um grupo, cuja conversa escutava distraidamente, era constituído por alunos
da École des Mines. Celebravam qualquer coisa, provavelmente o começo das férias grandes. Fotografavam-se com os iPhone na luz baça e neutra do presente. Uma tarde
banal. E, no entanto, era ali, no mesmo sítio, em plena noite, que os néones me faziam piscar os olhos e mal conseguíamos ouvir-nos, Dannie e eu, por causa do barulho
e das palavras, perdidas para sempre, que trocavam entre si Willy des Gobelins e todas aquelas sombras que nos rodeavam.

* * *

A fazer fé nas minhas recordações, o 66 não se diferenciava verdadeiramente do Hotel Unic nem dos outros sítios de Paris que conheci naquele tempo. Pairava no ar,
por todo o lado, uma ameaça que dava uma cor particular à vida. E acontecia o mesmo quando não estava em Paris. Um dia, Dannie pediu-me que fosse com ela a uma casa
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campo. Numa das páginas do meu caderno preto, está escrito: "Casa de campo. Com Dannie." Nada mais. Na página anterior, leio: "Dannie, Avenida Victor-Hugo, edifício
com duas saídas. Encontro às dezanove horas, na outra saída do edifício, na Rua Léonard-de-Vinci."
Esperei-a ali várias vezes, sempre à mesma hora, diante da mesma entrada. Na altura, tinha relacionado aquela pessoa a quem ela "visitava amiúde" - uma palavra antiquada
que me surpreendeu ouvir na boca dela - e a casa de campo. Sim, se não me falha a memória, ela disse-me que a "casa de campo" pertencia à "pessoa" da Avenida Victor-Hugo.
"Casa de campo com Dannie." Não escrevi o nome da povoação. Folheando o caderno preto, tenho dois sentimentos contraditórios. Como nas suas páginas não há pormenores
concretos, penso para comigo que naquele tempo nada me surpreendia. A despreocupação da juventude? Mas volto a ler algumas frases, alguns nomes, certas indicações
e dá-me a impressão de que estava a enviar comunicações em morse para mais tarde. Sim, era como se quisesse deixar, por escrito, indícios que me permitissem, num
futuro remoto, esclarecer o que tinha vivido mas que, ao mesmo tempo, ainda não conseguia entender. Comunicações em morse feitas ao acaso, na maior confusão. E seria
preciso esperar anos e anos até que conseguisse decifrá-las.
Na página do caderno em que está escrito a tinta preta "Casa de campo com Dannie", há uma lista de povoações que apontei a esferográfica azul, há uma dezena de anos,
quando enfiei na cabeça que tinha de localizar aquela "casa de campo". Ficaria nos arredores de Paris ou mais longe, para a zona de Sologne? Não me lembro porque
escolhi aquelas povoações e não outras. Creio que a sonoridade dos seus nomes me recordava uma em que parámos para meter gasolina. Saint-Léger-des-Aubées. Vaucourtois.
Dormelles-sur-Orvanne. Ormoy-la-Rivière. Lorrez-le-Bocage. Chevry-en-Sereine. Boisemont. Achères-la-Fôret. La Selle-en-Hermoy. Saint-Vincent-des-Bois.
Comprei um mapa Michelin que ainda conservo e que tem esta indicação: 150 km em redor de Paris. Norte-Sul. Depois, uma carta topográfica militar de Sologne. Passei
umas tardes debruçado sobre eles, tentando recordar o nosso itinerário num carro que
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Paul Chastagnier nos emprestara - não o Lancia vermelho, mas um carro mais discreto, de cor cinzenta. Saímos de Paris pela Porta de Saint-Cloud, o túnel e a autoestrada.
Porquê aquele caminho para ocidente se a casa de campo ficava algures para sul, para os lados de Sologne?
Um pouco mais tarde, no fundo de uma página do caderno em que tinha feito muitos apontamentos sobre o poeta Tristan Corbière, descobri, escrito em letras minúsculas,
feuilleuse, seguido de um número de telefone. O nome dessa povoação podia ter continuado invisível para sempre entre os apontamentos relativos a Corbière feitos
com uma letra cerrada. Feuilleuse. 437.41.10. É verdade, uma vez fui ter com Dannie à casa de campo e ela deu-me o número de telefone. Apanhei um transporte na Porta
de Saint-Cloud. O autocarro parou numa cidade pequena. Telefonei a Dannie de um café. Ela foi buscar-me de carro - uma vez mais, aquele carro cinzento que Paul Chastagnier
nos tinha emprestado. A "casa de campo" ficava a uns vinte quilómetros. Procurei saber onde se situava Feuilleuse: não em Sologne, mas em Eure-et-Loir.
437.41.10. O telefone tocava, mas ninguém atendia, e surpreendeu-me que, depois de tantos anos, o número ainda existisse. Uma noite em que marquei de novo 437.41.10,
ouvi uns ruídos e vozes abafadas. Talvez fosse uma daquelas linhas abandonadas há muito. Esses números eram conhecidos apenas de uns quantos iniciados que deles
se serviam para comunicar entre si de forma clandestina. Acabei por distinguir uma voz de mulher que repetia sempre a mesma frase e cujas palavras não conseguia
entender - um telefonema monótono, como se fosse um disco riscado. A voz do serviço de informação horária? Ou a voz de Dannie, que me telefonava de um tempo diferente
e daquela casa de campo perdida?
Consultei uma lista telefónica antiga de Eure-et-Loir que encontrei no mercado de velharias de Saint-Ouen, num depósito, entre centenas de outras. Só havia uma dezena
de assinantes em Feuilleuse, e lá estava efetivamente o número, um número secreto que abria "As Portas do Passado". Era o título de um romance policial que escolhi
na biblioteca da casa de campo e que Dannie e eu lemos. Feuilleuse (E.-et-L.). Cantão de Senonches. Sr.a Dorme. La Barberie. 437.41.10.
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Quem era aquela Sr.a Dorme? Alguma vez Dannie dissera aquele nome diante de mim? Talvez ainda estivesse viva. Bastava entrar em contacto com ela. Saberia o que era
feito de Dannie.
Telefonei para as informações. Pedi o novo número de telefone de La Barberie, em Feuilleuse, Eure-et-Loir. E tal como no outro dia em que estava a falar com o empregado
do Café Luxembourg, a minha voz era uma voz de além-túmulo. "Feuilleuse, com dois L, senhor?" Desliguei. Não merecia a pena. Depois de tanto tempo, o nome da Sr.a
Dorme tinha com certeza desaparecido da lista. Pela casa haveriam de ter passado vários ocupantes que lhe tinham modificado tanto o aspeto que não a teria reconhecido.
Estendi sobre a mesa o mapa dos arredores de Paris e senti-me dececionado ao separar-me do de Sologne, que me tinha ocupado uma tarde inteira. A sonoridade acariciadora
da palavra "Sologne" induzira-me em erro. E recordava-me também dos tanques, não muito longe da casa, e que me faziam pensar naquela terra. Mas pouco importam os
mapas Michelin. Para mim, aquela casa continuará a situar-se num enclave imaginário de Sologne.
Ontem à noite, fui correndo, com o dedo indicador sobre o mapa, o trajeto de Paris a Feuilleuse. Recuava no tempo. O presente já não tinha qualquer importância,
com os dias todos iguais na sua luz sombria, uma luz que deve ser a da velhice e dá a impressão de nos sobreviver. Pensava para os meus botões que voltaria a encontrar
a fila de árvores e as vedações brancas. O cão aproximar-se-ia lentamente de mim ao longo da álea. Tinha pensado muita vez que, com exceção de nós, era o único habitante
da casa, seu dono mesmo. Cada vez que voltávamos a Paris, dizia a Dannie: "Devíamos levar o cão connosco." Colocava-se diante do carro cinzento para assistir à nossa
partida. Depois, quando já tínhamos entrado e fechado as portas, ia para a cabana que servia para guardar a lenha e onde costumava dormir quando não estávamos. E
de todas as vezes lamentava ter de voltar a Paris. Tinha perguntado a Dannie se não seria possível refugiarmo-nos durante algum tempo naquela casa. Seria possível,
respondeu-me, mas não de imediato. Tinha-me enganado, ou compreendido mal, mas não havia nenhuma relação entre a "pessoa" da Avenida Victor-Hugo, que ela visitava
muita vez, e aquela casa. A dona - sim,
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era uma mulher - estava de momento no estrangeiro. Explicou-me que a tinha conhecido no ano anterior quando procurava trabalho. Mas não especificava que tipo de
"trabalho". Nem Aghamouri nem aqueles a quem chamava "o grupo de Montparnasse" - Paul Chastagnier, Duwelz, Gérard Marciano e outras silhuetas que via, frequentemente,
no vestíbulo do Hotel Unic - sabiam da existência daquela casa. "Melhor", disse eu. Ela sorriu. Aparentemente, era da minha opinião. Uma noite, tínhamos acendido
a lareira e estávamos sentados no canapé, diante da chaminé, com o cão deitado aos nossos pés, disse-me que estava arrependida de ter pedido emprestado o carro cinzento
a Paul Chastagnier. E acrescentou mesmo que já não queria ter nada que ver com aqueles "imbecis". Estranhei que usasse aquele termo, ela que media sempre as palavras
e se mantinha normalmente calada. Uma vez mais, não tive a curiosidade de perguntar o que a ligava exatamente àqueles "imbecis" e por que razão tinha ido viver para
o Hotel Unic por influência de Aghamouri. A bem dizer, na tranquilidade daquela casa protegida pela cortina de árvores e pelas vedações brancas, já não me apetecia
fazer perguntas.
Não obstante, uma tarde, voltávamos nós de um passeio pelo caminho de Moulin d'Étrelles - os nomes que pensamos ter esquecido, ou que não dizemos em voz alta por
receio de parecer comovidos, vêm-nos à memória, e a verdade é que isso não é assim tão doloroso -, e o cão ia à nossa frente sob um sol outonal. Acabávamos de entrar
e fechar a porta da casa quando ouvimos o ruído de um motor. Estava a aproximar-se. Dannie pegou-me na mão e levou-me para o primeiro andar. No quarto, fez sinal
para que me sentasse e acercou-se de uma das janelas. O motor parou. Ouviu-se uma porta a bater. Um ruído de passos na parte da álea coberta de cascalho. "Quem é?",
perguntei. Não me respondeu. Assomei à outra janela. Um carro grande e preto de marca americana. Pareceu-me ter ficado alguém ao volante. Um toque de campainha.
A seguir, dois. E três. Em baixo, o cão ladrou. Dannie estava petrificada e apertava a cortina com uma das mãos. Uma voz masculina: "Está alguém em casa? Está alguém
em casa? Estão a ouvir?" Uma voz forte com um ligeiro sotaque belga, ou suíço, o sotaque internacional que têm aquelas pessoas cuja língua
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desconhecemos ao certo qual seja, e nem elas próprias sabem. "Está alguém em casa?"
O cão ladrava cada vez mais. Tinha-se mantido à entrada, e, se a porta estava mal fechada, abri-la-ia com a pata. Sussurrei: "Não achas que o tipo pode entrar em
casa?" Ela acenou-me que não com a cabeça. Estava sentada na borda da cama de braços cruzados. A cara que tinha uma expressão mais de tédio do que de receio, estava
ali, imóvel, de cabeça baixa. E eu pensava que o tipo iria ficar à espera na sala e que nos seria difícil sair de casa sem dar com ele. Mas mantinha o sangue-frio.
Vira-me muita vez metido em situações daquele género, fugindo das pessoas que conhecia porque me cansava ter de falar com elas. Mudava de passeio quando as via aproximarem-se
ou então refugiava-me na entrada de um edifício à espera que passassem. Acontecera-me até saltar por uma janela de um rés do chão para fugir a alguém que me fora
visitar sem que eu esperasse. Conhecia muitos edifícios com duas saídas e no caderno preto tenho uma lista delas.
A campainha não voltou a tocar. O cão tinha-se calado. Da janela via o homem dirigir-se para o carro estacionado. Era moreno e bastante alto e vestia uma peliça.
Inclinou-se sobre a janela aberta e falou à pessoa que estava ao volante, a quem não conseguia ver a cara. Depois entrou no carro e este afastou-se álea fora.
À noite, Dannie disse-me que valia mais não acender a luz. Correu as cortinas na sala e na divisão em que comíamos. Fizemos luz com uma vela. "Achas que eles voltam
cá?", perguntei-lhe. Ela encolheu os ombros. Disse-me que seriam com certeza amigos da dona da casa. Que preferia evitar os contactos com eles, de contrário "tê-los-ia
à perna". De tempos a tempos, saía-lhe uma expressão vulgar na sua forma de falar muito cuidada. Ali, na penumbra, com as cortinas corridas, dizia para comigo que
entráramos naquela casa por arrombamento. E isso parecia-me quase normal, pois estava acostumado a viver sem o mais pequeno sentimento de legitimidade, um sentimento
que experimentam aqueles que tiveram bons e honrados pais e pertencem a um meio social muito concreto. À luz da vela, falávamos em voz baixa para não sermos ouvidos
no exterior, e Dannie também não estranhava a situação. Não sabia grande coisa dela, mas estava seguro de que tínhamos alguns pontos em comum e que
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pertencíamos ao mesmo mundo. Mas não teria sido capaz de dizer que mundo era.
Estivemos duas ou três noites sem acender a luz elétrica. Por meias palavras, Dannie explicou-me que não tinha nenhum "direito" de estar naquela casa. Tinha ficado,
simplesmente, com uma chave no ano anterior. E não avisara a "dona" de que tencionava passar ali uma temporada. Quando menos esperasse, teria de se explicar junto
da pessoa à guarda de quem estava a casa e que tratava também do parque. Não, a casa não estava abandonada como eu pensara. Passaram os dias. O guarda chegava de
manhã e não estranhava a nossa presença. Um homem pequeno, de cabelo cinzento, que usava umas calças de veludo canelado e uma jaqueta de caça. Dannie não lhe deu
qualquer explicação e ele não nos fez nenhuma pergunta. Disse-nos até que se precisássemos de alguma coisa, podia ir arranjá-la. Levou-nos muitas vezes, com o cão,
a fazer compras a Châteauneuf-en-Thymerais. Ou mais perto, a Maillebois e a Dampierre-sur-Blévy. São nomes adormecidos na minha memória, mas que não se apagaram.
E, do mesmo modo, voltou ontem a surgir-me uma recordação enterrada. Uns dias antes de irmos para Feuilleuse, tinha-a acompanhado ao edifício da Avenida Victor-Hugo.
Dessa vez, ela pediu-me que não a esperasse do outro lado, diante do pórtico da Rua Léonard-de-Vinci, mas num café que havia na praça, um pouco mais longe. Não sabia
a que horas ela iria sair. Esperei quase uma hora. Quando chegou, estava muito pálida. Pediu um Cointreau e bebeu-o de um trago para obter o que chamava "uma chicotada".
E pagou a despesa com uma nota de quinhentos francos que tirou de um maço atado com uma tira de papel vermelho. Não tinha o maço quando íamos no metro, porque naquela
tarde só tínhamos dinheiro para comprar dois bilhetes em segunda classe.
Barberie. Moulin d'Étrelles. Framboisière. As palavras ressurgem, intactas, como os corpos daqueles dois noivos encontrados na montanha, presos no gelo, e que não
tinham envelhecido ao fim de centenas de anos. Barberie. Era o nome da casa cuja fachada branca e simétrica veio ainda entre as filas de árvores. Há três anos, num
comboio, lia distraidamente os anúncios de um jornal, reparando que eram muito menos numerosos do que na altura em que eu os copiava para
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as páginas do meu caderno preto. Já não havia ofertas nem pedidos de emprego. Nem cães perdidos. Nem videntes. Nem nenhuma daquelas mensagens que desconhecidos trocavam
entre si: "Martine. Telefona-nos. Yvon, a Juanita e eu estamos muito preocupados." Um anúncio atraíra a minha atenção: "Vende-se. Casa antiga. Eure-et-Loir. Lugar
entre Châteauneuf e Brezolles. Parque. Tanques. Cavalariças. Tel. Agência Paccardy. 02.07.33.71.22." Pareceu-me reconhecer a casa. Copiei o anúncio no fundo da última
página do meu velho caderno preto, à maneira de conclusão. No entanto, das cavalariças não me lembrava nada. Tanques, havia-os - ou melhor, charcos em que o cão
se banhava durante os nossos passeios. Barberie não era só o nome da casa, mas o do lugar cujo castelo devia ser antigamente a casa. À volta, lanços de muro semiderrubados
sob a vegetação, talvez partes do edifício principal e as ruínas de uma capela e até, porque não, de uma cavalariça. Uma tarde em que passeávamos com o cão -foi
por ele que descobrimos as ruínas, ia-nos guiando sucessivamente até elas como um cão trufeiro -, fomos fazendo projetos para reabilitar tudo como se fôssemos os
proprietários. Talvez Dannie não se atrevesse a dizer-mo, mas a casa tinha pertencido realmente, havia vários séculos, aos seus antepassados, os senhores de Barberie.
E havia muito que desejava voltar às escondidas para a visitar. Pelo menos, era o que eu gostava de imaginar.
Deixei esquecidas na Barberie uma centena de páginas de um manuscrito que estava a escrever recorrendo aos apontamentos tomados no meu caderno preto. Ou melhor,
deixei o manuscrito na sala em que trabalhava, pensando que voltaríamos na semana seguinte. Mas nunca mais pudemos voltar, por isso deixámos lá, abandonados para
sempre, o cão e o manuscrito.
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Nestes anos todos, pensei mais de uma vez que teria podido recuperar aquele manuscrito, tal como recuperamos uma recordação - um desses objetos ligados a um momento
das nossas vidas: uma flor seca, um trevo de quatro folhas. No entanto, já não sabia onde ficava a casa de campo. E dava-me preguiça e uma certa apreensão folhear
o velho caderno preto em que, por outro lado, demorei muito a descobrir o nome do lugar e o número de telefone, tão minúscula era a letra em que estavam escritos.
Agora já não receio aquele caderno preto. Ajuda-me a debruçar-me sobre o passado e esta expressão faz-me sorrir. Era o título de um romance: Um homem debruça-se
sobre o seu passado, que tinha encontrado na biblioteca da casa - umas quantas estantes de livros ao lado de uma das janelas da sala. O passado? Não, não se trata
do passado, mas de episódios de uma vida sonhada, intemporal, que arranco, página a página, à triste vida quotidiana para lhe dar algumas sombras e luzes. Esta tarde,
estamos no presente, chove, as pessoas e as coisas estão imersas num tom pardacento, e aguardo impacientemente a noite, quando tudo se destacará de maneira clara
justamente pelos contrastes de sombra e de luz.
Na outra noite, ao atravessar Paris de carro, sentia-me comovido com aquelas luzes e aquelas sombras, com os diferentes tipos de candeeiros ou lampadários que, ao
longo de uma avenida ou na esquina de uma rua, davam a impressão de me estar a fazer sinais. Era a mesma sensação que se tem quando se contempla muito tempo uma
janela iluminada: uma sensação de presença e de ausência. Por detrás da vidraça, o quarto está vazio, mas alguém deixou a luz acesa.
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Para mim, nunca houve nem presente nem passado. Tudo se confunde, como naquele quarto vazio em que brilha uma luz todas as noites. Sonho muita vez que encontro o
manuscrito. Entro na sala de ladrilhos pretos e brancos e remexo as gavetas por debaixo das estantes de livros. Ou um misterioso correspondente, cujo nome não consigo
perceber na parte posterior do sobrescrito, depois da palavra "remetente", envia-mo por via postal. E o carimbo dos correios indica o ano em que íamos, Dannie e
eu, àquela casa de campo. Não me surpreende, porém, que a encomenda tenha demorado tanto tempo a chegar. Decididamente, não há passado nem presente. Pelos apontamentos
do caderno preto, lembro-me de alguns dos capítulos daquele manuscrito dedicados à baronesa Blanche, a Marie-Anne Leroy, guilhotinada no dia 26 de julho de 1794,
com vinte anos, à Casa de Radziwill durante a Revolução, a Jeanne Duval, a Tristan Corbière e aos seus amigos, Rodolphe de Battine e Herminie Cucchiani... Nenhuma
daquelas páginas se referia ao século XX, o século em que eu vivia. Não obstante, se pudesse voltar a lê-las, ressuscitariam através delas as cores exatas e os odores
das noites e dos dias em que estive a escrevê-las. A fazer fé nos meus apontamentos do caderno preto, a Casa de Radziwill de 1791 não era muito diferente do Hotel
Unic da Rua de Montparnasse: o mesmo ambiente equívoco. E agora que penso nisso, não tinha Dannie aspetos em comum com a baronesa Blanche? Tive muita dificuldade
em seguir o percurso dessa mulher. Perde-se-lhe frequentemente o rasto, embora surja nas Mémoires de Casanova, que eu então estava a ler, e em alguns relatórios
dos inspetores da polícia de Luís XV. E tinham estes mudado verdadeiramente desde o século XVIII? Um dia, Duwelz e Gérard Marciano contaram-me em voz baixa que o
Hotel Unic era simultaneamente vigiado e protegido por um inspetor da Brigada de Costumes. Também ele escrevia certamente relatórios. E mais de vinte anos depois,
no tal processo que Langlais me tinha dado - fiquei verdadeiramente surpreendido que não se tenha esquecido de mim durante todos aqueles anos, dizia-me a sorrir:
"pois claro que não, fui-o seguindo "de longe"" -, havia, entre os demais documentos, um relatório sobre Dannie redigido com a mesma precisão que os de há dois séculos
sobre a baronesa Blanche.
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Tudo considerado, não lamento a perda daquele manuscrito. Se não tivesse desaparecido, creio que agora já não teria vontade de escrever. O tempo é abolido e tudo
recomeça: como outrora, com o mesmo tipo de esferográfica e com a mesma letra, preencho páginas enquanto consulto de novo os apontamentos do meu antigo caderno preto.
Precisei de quase uma vida inteira para voltar ao ponto de partida.
A noite passada voltei a sonhar que ia aos correios e me dirigia ao balcão com um aviso em meu nome. Deram-me então uma encomenda que sabia o que continha de antemão:
o manuscrito esquecido na Barberie no século anterior. Desta vez, conseguia ler o nome do remetente: Sr.a Dorme. Barberie. Feuilleuse. Eure-et-Loir. E o carimbo
dos correios era do ano de 1966. Na rua, abria a encomenda, era efetivamente o manuscrito. Tinha-me esquecido de que na altura usava folhas quadriculadas das que
se vão arrancando daqueles blocos de cor laranja da marca Rhodia. A tinta era azul Florida, disso também me tinha esquecido. Noventa e nove páginas e a última incompleta.
Uma escrita cerrada, com muitas emendas.
Caminhava a direito, com o manuscrito apertado debaixo do braço. Receava perdê-lo. Era um final de tarde de verão. Seguia pela Rua da Convention em direção à fachada
negra e ao gradeamento do Hospital Boucicaut.
Quando despertei, percebi que, no meu sonho, a estação dos correios aonde fora buscar a encomenda era a mesma onde acompanhava Dannie muita vez. Ia lá buscar a sua
correspondência. Perguntei porque lhe mandavam o correio para a posta-restante na Rua da Convention. Explicou-me que tinha vivido durante algum tempo naquele bairro
e que depois se vira "sem domicílio fixo".
Não recebia muita correspondência. De cada vez, uma única carta. Parávamos num café, mais abaixo, na esquina da Rua da Convention com a Avenida Félix-Faure, mesmo
em frente da entrada do metro. Abria a carta e lia-a na minha frente. Depois metia-a no bolso do casaco. Disse-me da primeira vez que estivemos nesse café: "Um familiar
da província que me escreve."
Parecia-me lamentar já não viver naquele bairro. Pelo que percebi - mas, por vezes, ela contradizia-se e parecia não ter realmente
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o sentido daquilo a que se chama cronologia era o primeiro sítio em que vivera ao chegar a Paris. Não muito tempo. Uns meses. Senti logo uma certa reticência em
dizer-me de que província, ou de que terra, vinha exatamente. Um dia, contou-me: "Quando cheguei a Paris, à estação de Lyon...", e aquela frase devia ter-me chamado
a atenção porque a apontei no meu caderno preto. Era raro que me desse uma indicação tão concreta relativamente a si. Era uma tarde em que tínhamos ido buscar a
sua correspondência à Rua da Convention, muito mais tarde do que era costume. Quando estávamos a chegar à estação dos correios, já fazia noite e estava quase na
hora de fecho. Fomos para o café. O empregado, que a conhecia certamente desde que vivera no bairro, serviu-lhe, sem que o pedisse, um Cointreau. Ela leu a carta
e meteu-a no bolso.
"Quando cheguei a Paris, à estação de Lyon..." Explicou-me que naquele dia tomara o metro. E que depois de uma série de transbordos, tinha saído aqui, na estação
de Boucicaut. E apontava, por detrás da vidraça do café, para a entrada do metro. Além disso, tinha-se enganado nos transbordos e saíra primeiro em Michel-Ange-Auteuil.
Deixei-a falar, sabendo como ela fugia às perguntas demasiado concretas: mudava de conversa, como se estivesse a pensar noutra coisa, com o ar de não ter entendido
o interlocutor. No entanto, perguntei-lhe: "Ninguém foi buscar-te à estação de Lyon nesse dia?" "Não, ninguém." Tinham-lhe emprestado um pequeno apartamento, muito
perto daqui, na Avenida Félix-Faure. Estivera lá uns meses. Antes da Cidade Universitária. Baixei a cabeça. Uma palavra, um olhar demasiado insistente e corria o
risco de que se calasse. "Já te mostro o edifício onde vivia." Espantou-me a proposta e principalmente a voz, triste, como se se quisesse mal por ter deixado aquele
sítio. De repente, estava perdida nos seus pensamentos. Sim, nesse momento, dava-me a impressão de alguém que teria gostado de voltar atrás depois de se ter apercebido
de que se equivocara no caminho. Meteu a carta no bolso. No fundo, a única ligação que mantivera com o bairro era aquela estação dos correios.
Naquela noite, fomos andando pela Rua da Convention, em direção ao Sena. Mais tarde, fizemos duas ou três vezes o mesmo percurso quando tinha encontros na margem
direita, na Avenida Victor-Hugo,
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e nessa mesma tarde fora primeiro com ela aos correios buscar a carta do costume. Ao passar, mostrou-me a igreja de Saint-Christophe-de-Javel, à qual ia regularmente,
disse-me, acender uma vela, não porque acreditasse realmente em Deus, mas mais por superstição. Era nos primeiros tempos da sua vida em Paris. Por isso, senti sempre
um carinho particular por aquela igreja de tijolo, e ainda hoje me apetece ir lá acender também uma vela. Mas para quê?
Essa noite, na margem do Sena, não tomámos o metro na estação de Javel, como fazíamos para ir para a margem direita. Demos meia-volta e subimos pela Rua da Convention.
Queria muito mostrar-me o edifício em que vivera. À altura do café, virámos na avenida pelo passeio da direita. Quando nos aproximávamos do edifício, disse: "Vou
mostrar-te o apartamento... Fiquei com a chave." Provavelmente, tinha premeditado a visita, uma vez que tinha a chave com ela. Disse-me também, depois de espreitar
pela janela obscura do cubículo da porteira: "A porteira nunca está a esta hora, mas não faças barulho nas escadas." Não acendeu a luz. Via-se mais ou menos porque
havia uma vaga claridade de uma luz de emergência no rés do chão. Apoiou-se no meu braço, subimos apertados um contra o outro e eu recordava-me de uma expressão
que me dava vontade de rir: "A passo de lobo." Dannie abriu a porta na obscuridade e mal entrámos fechou-a com cuidado. Procurava o interruptor às apalpadelas e
acendeu-se uma luz amarela de um candeeiro da entrada. Avisou-me de que teríamos de falar em voz baixa e não acender mais luzes. Logo à direita, estava a porta entreaberta
de um quarto de dormir que me disse ter sido o dela. Levou-me pelo corredor, que ficava à nossa frente, iluminado pela luz da entrada. À esquerda, uma divisão mobilada
com uma mesa e um guarda-louça. A sala de jantar? À direita, a sala de estar, a julgar pelo canapé e pelo pequeno armário envidraçado com estatuetas de marfim. Como
as cortinas estavam fechadas, acendeu um candeeiro sobre uma mesinha. Era a mesma luz amarela e velada do candeeiro da entrada. Ao fundo de tudo, um quarto com uma
grande cama de barras de cobre e papel pintado com motivos azul-celeste. Havia alguns livros empilhados sobre uma das mesinhas de cabeceira. De repente, temi ouvir
a porta de entrada e sermos surpreendidos pela pessoa que ali vivia. Dannie abria as gavetas
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das mesinhas de cabeceira umas após outras, esquadrinhando-as. Ao mesmo tempo, ia tirando papéis que metia no bolso do casaco. E eu ali estava, de pé, imóvel, a
olhar para ela, à espera do bater da porta. Abriu uma das portas do guarda-fatos que havia em frente da cama, mas as prateleiras estavam vazias. Voltou a fechá-la.
"Não achas que pode aparecer alguém?", perguntei-lhe em voz baixa. Encolheu os ombros. Pôs-se a observar os títulos dos livros sobre a mesinha de cabeceira. Pegou
num, de capa vermelha, e enfiou-o também no bolso do casaco. Devia conhecer a pessoa que ali vivia, porque a chave do apartamento continuava a ser a mesma. Apagou
a luz da mesinha e saímos do quarto. Ao fundo, a luz amarela da entrada e o candeeiro da sala de estar, que ficara aceso, acentuavam ainda mais aquele aspeto ultrapassado
do pequeno apartamento, com o armário de madeira escura, as estatuetas de marfim na vitrina, os tapetes gastos. "Conheces as pessoas que vivem aqui?", perguntei-lhe.
Não me respondeu. Não podiam ser os pais, pois chegara um dia da província, ou do estrangeiro, à estação de Lyon. Uma pessoa que vivia sozinha e lhe alugara um quarto
no apartamento?
Levou-me para o quarto da esquerda, o que ficava antes da entrada. Não acendeu a luz. Deixou a porta aberta de par em par. Via-se bastante bem graças à luz que vinha
da entrada. Uma cama mais pequena do que a do quarto do fundo e com o colchão a descoberto. As cortinas estavam corridas, as mesmas cortinas negras do hotel a que
tínhamos ido dar em Val-de-Grâce. Junto à parede da esquerda, na parte contrária à da cama, uma mesa montada sobre cavaletes em cima da qual havia um gira-discos
envolto num estojo de couro e dois ou três discos de trinta e três rotações. Com a manga, limpou o pó das capas. Disse-me: "Espera um momento." Sentei-me no colchão.
Quando voltou, trazia na mão um cesto no qual meteu o gira-discos e os discos. Sentou-se ao meu lado no colchão e pareceu refletir, como se receasse esquecer-se
de alguma coisa. "É pena", proferiu em voz alta, "que não possamos ficar neste quarto." Sorriu um pouco crispada. A sua voz tinha uma ressonância estranha naquele
apartamento vazio. Fechámos a porta do quarto ao sair. Eu levava o cesto com o gira-discos e os discos. Ela desligou a luz da entrada. Abriu a porta de entrada e
disse-me: "A porteira deve estar a chegar. Temos
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de passar diante do cubículo dela o mais rápido possível." Tinha medo de tropeçar na penumbra das escadas com aquele cesto na mão. Descia os degraus diante dela.
A luz acendeu-se e detivemo-nos um momento no patamar do primeiro andar. Bateu uma porta. Dannie cochichou-me que era a porta do cubículo da porteira. Começámos
outra vez a descer as escadas iluminadas por uma luz forte, que contrastava com a luz velada do apartamento. No rés do chão, a porta envidraçada da porteira estava
iluminada. Era preciso carregar no botão para abrir a porta-cocheira. E se estivesse bloqueada? Impossível esconder o cesto que me parecia muito pesado e me dava
o aspeto de um ladrão. A porta bloqueada, a porteira que telefona à polícia, o carro celular em que entramos, Dannie e eu. Sim, evidentemente, é inevitável, sentimo-nos
sempre culpados quando uns pais nobres e honrados nos não convenceram na infância dos nossos legítimos direitos e até da nossa clara superioridade em quaisquer circunstâncias
da vida. Ela carregou no botão e a porta-cocheira abriu-se. Na rua, não conseguia deixar de andar rápido e ela acompanhava-me. Talvez receasse cruzar-se com a pessoa
que vivia no apartamento.
Quando chegámos à Rua da Convention, pensei que fôssemos entrar para o metro, mas ela levou-me para o café para onde costumávamos ir depois de passarmos pelos correios.
Nenhum cliente àquela hora. Sentámo-nos numa mesa do fundo. O empregado serviu-lhe um Cointreau e eu perguntava-me se seria prudente mostrarmo-nos ali depois da
visita clandestina ao apartamento. Tinha escondido o cesto debaixo da mesa. Ela tirou o livro e os papéis dos bolsos do casaco. Mais tarde, disse-me que estava contente
por ter recuperado aquele livro que tinha há muito e lhe fora oferecido na infância. Quase o perdera em várias ocasiões, e voltava sempre a encontrá-lo, como aqueles
objetos fiéis que não querem separar-se de nós. Era Service de la reine(1), de Anthony Hope, numa velha coleção de capa vermelha danificada. Entre os papéis que
examinava estavam cartas, um velho passaporte, cartões de visita... Eram nove horas da noite, mas o empregado e o chefe dele, que estava ao telefone por detrás do
balcão, pareciam ter-se esquecido da nossa presença. "Deixámos a luz da sala

1. Título em francês do romance inglês, de 1898, Rupert of Hentzau. (N. do T.)
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de estar acesa", disse-me Dannie de repente. E mais do que preocupação, a sua constatação causava-lhe tristeza ou pesar, como se um gesto tão banal como aquele de
voltar ao apartamento que fora seu para apagar a luz lhe estivesse vedado. "Eu sabia que me tinha esquecido de alguma coisa... devia ter visto se havia ainda roupa
minha no guarda-fatos do meu quarto..." Ofereci-me, se ela me desse a chave, para voltar ao apartamento, apagar a luz e trazer-lhe as roupas, mas talvez não precisasse
da chave, bastaria tocar à porta. A pessoa que vivia no apartamento, caso tivesse já voltado, abrir-me-ia a porta e eu explicar-lhe-ia que ia da parte de Dannie.
Disse-lhe isto como se fosse a coisa mais natural, esperando que me desse mais explicações. Tinha acabado de perceber que não valia a pena fazer-lhe perguntas diretas.
"Não, é impossível", afirmou numa voz muito calma. "Devem pensar que estou morta" "Morta?" "Sim... enfim, desaparecida..." Sorriu-me para atenuar a gravidade que
pusera nas palavras. Observei-lhe que, de qualquer modo, "eles" se dariam conta de que alguém acendera o candeeiro na sala de estar e levara os papéis, o livro,
o gira-discos e os discos... Encolheu os ombros. "Eles pensarão que é um fantasma." Desatou a rir por um breve momento. Depois daquela indecisão e daquela tristeza
que estranhei, parecia-me relaxada. "É uma idosa que me alugava um quarto", disse-me. "E não deve ter percebido que me vim embora da noite para o dia sem a avisar.
Mas prefiro ir direta ao assunto. Não gosto de despedidas." Perguntei-me se seria verdade ou se me queria tranquilizar e evitar outras perguntas. Por que razão,
se se tratava de uma "idosa", tinha dito anteriormente "eles"? Que importava. A verdade é que ali, naquele café, não sentia necessidade de lhe fazer perguntas. Vale
mais, em vez de estarmos sempre a sujeitar os outros a interrogatórios, aceitá-los como são, em silêncio. Além disso, é possível que tivesse o vago pressentimento
de que me iria fazer essas perguntas mais tarde. Efetivamente, três ou quatro anos depois, estava uma noite num carro na rotunda de Mirabeau e via diante de mim
como começava a Rua da Convention. Tive a ilusão de que bastava sair do carro, deixá-lo abandonado em pleno engarrafamento e meter-me a pé pela rua. Estaria, finalmente,
ao ar livre, em estado de imponderabilidade. Caminharia, a passo ligeiro, pelo passeio da direita. Ao passar, entraria na igreja
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de Saint-Christophe-de-Javel e acenderia uma vela. E ver-me-ia, um pouco mais acima, entre o café e a entrada do metro. O empregado não se surpreenderia ao voltar
a ver-me e, sem que lhe pedisse nada, traria dois Cointreau e poria os copos um em frente do outro. Eu tocaria à porta do apartamento para reaver as roupas de Dannie.
O problema é que não sabia o número exato do edifício, e naquele sítio da Avenida Félix-Faure as fachadas e as entradas assemelhavam-se demasiado para conseguir
reconhecer o que procurava. Nessa mesma noite, pareceu-me ouvir a sua voz, ligeiramente rouca, dizer-me: "Uma idosa que me alugava um quarto", e a voz parecia-me
tão próxima... Uma idosa... Consultei o guia de ruas a tentar averiguar qual seria o número. Lembrava-me de que tínhamos passado diante de um hotel e de uma grande
montra na qual me surpreendera ver filas de telefones que luziam na penumbra. Uma tarde em que Dannie ia aos correios, marcou-me encontro no café e andei um pouco
pela Avenida Félix-Faure em direção ao edifício em que tínhamos entrado como ladrões na outra noite. Havia pais no passeio à espera da hora de saída de uma escola
de raparigas. O guia de ruas confirmava as minhas recordações. Os Telefones Burgunder. O Hotel Aviation: ficava antes do edifício, disso tinha a certeza. Mas a escola
de raparigas, no número 56? Antes ou depois? Em todo o caso, o edifício ficava antes do cruzamento da avenida com a Rua Duranton. Queria comprová-lo no sítio. Mas
para quê? Todas aquelas fachadas eram parecidíssimas. "Uma idosa que me alugava um quarto..." Na lista telefónica havia realmente uma Sr.a Baulé.
Dannie tinha-me dado o livro de capa vermelha, Service de la reine, de Anthony Hope, para que o pusesse no cesto juntamente com o gira-discos e os discos. Perguntei-lhe
se o tinha lido. Sim, a primeira vez na infância, até ao fim, sem compreender nada do que tinha lido. Mais tarde, lia um capítulo ao acaso. Eram cerca das nove horas
da noite. O empregado informou-nos de que o café ia fechar. Vimo-nos na rua, à chuva. Eu levava o cesto e ela tinha um dos bolsos do casaco a abarrotar por causa
dos papéis que lá metera. O metro fez-nos esperar muito tempo, e ainda mais esperámos no transbordo da Motte-Picquet. Àquela hora, a carruagem ia vazia. Ela vasculhava
o bolso e tirou dele o que me pareceu serem uns cartões
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de visita. Como percebeu que a estava a observar com uma certa curiosidade, disse-me a sorrir: "Logo te mostro isto tudo... Verás... Nada que tenha um interesse
por aí além..." A perspetiva de voltar para o quarto de Montparnasse não parecia entusiasmá-la. Foi nessa noite, no metro, que ela aludiu pela primeira vez à casa
de campo para onde poderíamos ir, mas não devia falar nisso aos outros. Os outros eram Aghamouri e aqueles com quem se dava: Duwelz, Marciano, Chastagnier... Perguntei-lhe
se Aghamouri sabia que tinha vivido no apartamento da Avenida Félix-Faure. Mas não, não sabia. Dannie só o tinha conhecido depois, na Cidade Universitária. E também
não sabia da existência da casa de campo que acabava de me mencionar. Uma casa de campo a uma centena de quilómetros de Paris, contou-me. Não, nem Aghamouri nem
nenhum dos outros fora alguma vez com ela à estação levantar o correio. "Então, sou o único que conhece os teus segredos?", perguntei-lhe. Caminhávamos pelo interminável
corredor da estação de Montparnasse e estávamos no tapete rolante. Ela deu-me o braço e encostou a cabeça ao meu ombro. "Espero que saibas guardar segredo." Fomos
andando pela avenida até ao Dôme e depois fizemos um desvio seguindo os muros do cemitério. Dannie procurava ganhar tempo para não ter de se cruzar no vestíbulo
do hotel com Aghamouri e os outros. Sobretudo, queria evitar Aghamouri. Estive, vai, não vai, para lhe perguntar porque tinha de dar-lhe conta dos seus assuntos,
mas depois de pensar pareceu-me inútil. Acho que naquele tempo já compreendera que nunca ninguém responde às perguntas que lhe fazem. "Convinha esperar que apaguem
a luz do vestíbulo para entrarmos", disse-lhe num tom algo desenvolto. "Como fizemos há pouco para entrar no apartamento... Mas corremos o risco de o vigilante noturno
nos ver..." À medida que nos aproximávamos do hotel, notava-lhe uma certa apreensão. Esperemos que não haja ninguém no vestíbulo, pensava eu. Dannie acabou por me
contagiar com a sua apreensão. Já ouvia Paul Chastagnier a dizer-me com a sua voz metálica: "Mas o que é que você leva nesse cesto?" Ela hesitou antes de entrar
na rua do hotel. Eram quase onze horas da noite. "Esperamos mais um pouco?", disse-me. Sentámo-nos num banco no meio da Avenida Edgar-Quinet. Tinha pousado o cesto
ao meu lado. "Foi mesmo uma estupidez termos deixado
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há bocado a luz acesa na sala de estar", insistiu. Surpreendeu-me que lhe desse tanta importância. Mas agora, passados todos estes anos, compreendo melhor a tristeza
repentina que lhe ensombrou o olhar. Eu também tenho uma sensação muito estranha quando penso nas luzes que nos esquecemos de apagar em sítios aos quais nunca mais
voltamos... Não tivemos culpa. De todas as vezes, tivemos de sair à pressa e em bicos de pés. Tenho a certeza de que na casa de campo deixámos alguma luz acesa.
E se fosse eu o único responsável por aquela negligência ou esquecimento? Hoje, estou convencido de que não se tratava nem de esquecimento nem de negligência, mas
que era eu que, ao sair, acendia deliberadamente uma luz. Talvez por superstição, para conjurar a má sorte e, sobretudo, para que restasse um vestígio de nós, um
sinal que indicasse que não tínhamos partido realmente e voltaríamos um dia ou outro.
"Estão todos no vestíbulo", sussurrou-me Dannie ao ouvido. Tinha decidido ir à minha frente quando estávamos a chegar perto do hotel e espreitar pela vidraça se
o vestíbulo estava vazio e o caminho livre. Não queria que o cesto atraísse a atenção sobre nós. A mim, o cesto também me incomodava, como se fosse a prova de que
acabávamos de cometer uma má ação, e agora espanta-me que me incomodasse. Porquê este constante sentimento de incerteza e de culpabilidade? Culpado de quê, exatamente?
Espreitei pela vidraça. Estavam sentados nas poltronas do vestíbulo, Aghamouri sobre o braço da poltrona em que Marciano se instalara, ocupando os outros, Paul Chastagnier,
Duwelz e o homem a quem chamavam simplesmente "Georges", cada um a sua, umas poltronas velhas de couro castanho. Dir-se-ia que estavam em conselho de guerra. Sim,
culpados de quê? Isso é o que me pergunto. Além disso, não era aquele tipo de pessoas que estivesse em condições de dar lições de moral. Peguei em Dannie pelo braço
e fi-la entrar no vestíbulo do hotel. O primeiro a ver-nos foi "Georges", um homem cuja cara contrastava com o corpo robusto, entroncado: uma cara e uns olhos sonhadores,
mas logo se percebia que a cara expressava tanta violência quanto o corpo. E quando dava um aperto de mão, sentia-se uma brusca sensação de frio, como se transmitisse
aquilo a que se chama fluido glacial. Avançámos para eles e ouvi a voz metálica de Paul Chastagnier:
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- Então, vimos das compras?
E cravou os olhos no cesto que eu levava na mão esquerda.
- Sim... sim... Vimos das compras - respondeu Dannie, num tom muito suave. Queria, provavelmente, instilar-se de coragem. O seu sangue-frio espantava-me, ela que
ainda havia pouco estava tão preocupada à medida que nos aproximávamos do hotel. O que se chamava "Georges" observava-nos com a sua cara redonda e uma pele branca,
tão branca que parecia maquilhado. Arqueava as sobrancelhas com uma expressão de curiosidade e desconfiança que constatara nele de cada vez que estava em presença
de alguém. Talvez fosse dele que Dannie tinha medo. Ela tinha-mo apresentado da primeira vez que nos cruzámos no vestíbulo: "Georges." Ficara em silêncio e, simplesmente,
encolhera os ombros. Georges: a sonoridade do nome tinha, de repente, algo de inquietante e de cavernoso, o que correspondia perfeitamente com o seu rosto.
Quando saímos do hotel, Dannie confidenciou-me: "Parece que este tipo é perigoso", mas não me explicou porquê. Sabê-lo-ia, exatamente? Segundo ela, era um homem
que Aghamouri tinha conhecido em Marrocos. Sorriu e encolheu os ombros: "Olha, sabes, vale mais não nos intrometermos..."
- Tomam um copo connosco? - propôs Paul Chastagnier.
- É um bocado tarde - respondeu Dannie, ainda com a mesma voz suave.
Aghamouri, que não se levantara do braço da poltrona em que Gérard Marciano estava sentado, observava-nos, a ela e a mim, com um olhar espantado. Pareceu-me que
ficara pálido.
- É pena que não se juntem a nós. Explicar-nos-iam o que compraram.
E, desta vez, Paul Chastagnier dirigia-se a mim. Era manifesto que o cesto o intrigava.
- Ajuda-me a levá-lo para o meu quarto? - Dannie virou-se para mim e, de repente, começou a tratar-me por você, apontando para o cesto. Parecia que estava a fazer
de propósito para atrair a atenção dos outros para o cesto, talvez para os provocar.
Segui-a até ao elevador, mas ela começou a subir as escadas. Subia
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à minha frente. No patamar do primeiro andar, onde eles já não conseguiam ver-nos, aproximou-se de mim e disse-me ao ouvido:
- É melhor que vás embora, senão vou ter problemas com Aghamouri.
Acompanhei-a até à porta do quarto. Dannie pegou no cesto. Disse-me em voz baixa, como se nos pudessem ouvir:
- Amanhã, ao meio-dia, no Chat blanc.
Era um café um pouco triste, na Rua de Odessa, com uma sala traseira em que podíamos passar despercebidos entre umas quantas pessoas que jogavam bilhar. Bretões
com chapéus de marinheiro.
Antes de fechar a porta, confidenciou-me ainda mais baixo:
- Seria bom que pudéssemos ir à casa de campo de que te falei.
Para descer, optei pelo elevador. Não queria cruzar-me com um
deles na escada. Sobretudo com Aghamouri. Receava que se pusesse com perguntas e me pedisse contas. Uma vez mais, revelava a falta de confiança em mim ou a timidez
que Paul Chastagnier notara e que o levara a dizer um dia em que íamos juntos pelas ruas cinzentas do interior de Montparnasse:
- É curioso... um tipo sensível e dotado como você... Porque é que é uma pessoa sempre tão discreta?
No vestíbulo, eles ainda estavam sentados nas poltronas. Infelizmente, tinha de passar por eles para sair do hotel e não me apetecia falar-lhes. Aghamouri levantara
a cabeça e observava-me com um olhar frio que não era habitual nele. Talvez tivesse estado a vigiar a porta do elevador para saber se eu ficava ou não no quarto
de Dannie. Paul Chastagnier, Duwelz e Gérard Marciano estavam debruçados sobre "Georges" e ouviam-no atentamente, como se este lhes estivesse a dar instruções. Esgueirei-me
para a entrada do hotel com ar de não querer incomodá-los. Receava que Aghamouri viesse atrás de mim. Mas não, continuava sentado com os outros. É só um adiamento,
pensava eu. Amanhã vai pedir-me contas sobre Dannie, o que me afligia de antemão. Não tinha nada a dizer-lhe. Nada. E de resto, nunca soubera responder a perguntas.
No exterior, não pude impedir-me de os observar através da vidraça. E agora, à medida que escrevo, parece que os observo ainda, de pé, no passeio, como se não tivesse
mudado de sítio. Por mais que
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olhe para "Georges", aquele que Dannie dizia ser "perigoso", deixei de ter a sensação de sobressalto que me tomava às vezes quando me cruzava com aquela gente no
vestíbulo do Hotel Unic. Paul Chastagnier, Duwelz e Gérard Marciano estão debruçados sobre "Georges" para sempre e preparam o que Aghamouri chamava "as suas maldades".
Hão de acabar mal, na prisão ou em sombrios ajustes de contas. Aghamouri, sentado no braço da poltrona, cala-se e observa-os com um olhar preocupado. Foi ele que
me avisou: "Cuidado. Eles podem levá-lo por muito maus caminhos. Aconselho-o a cortar com eles enquanto ainda é tempo." Nessa tarde, tinha-me marcado encontro à
saída da Universidade de Censier. Queria a todo o custo uma "explicação". Mas eu tinha pensado que queria assustar-me para que não visse mais Dannie. E agora ali
está, por detrás da vidraça, também ele, para sempre, com o seu olhar intranquilo, cravado nos outros, que conspiram em voz baixa. E tenho vontade de ser eu agora
a dizer-lhe: "Cuidado." Eu não corria perigo nenhum. Mas, na altura, não tinha claramente consciência disso. Foi preciso que passassem vários anos para o compreender.
Se a memória não me falha, tinha, mesmo assim, o vago pressentimento de que nenhum deles me levaria nunca por "maus caminhos". Langlais, ao interrogar-me no Cais
de Gesvres, disse-me: "Realmente, você dá-se com gente muito estranha." Estava enganado. A toda aquela gente com que me cruzei, topava-a eu à distância. Nessa noite,
não sei quanto tempo fiquei diante da vidraça do hotel a observá-los. Houve um momento em que Aghamouri se levantou e caminhou em direção a ela. Ia dar-se conta
de que eu estava especado no passeio a observá-los. Não me mexi um milímetro. Que mais dava que saísse à rua e viesse ter comigo. Mas ele tinha o olhar vazio, não
me via. Aquele que se chamava "Georges" - o mais perigoso, ao que parecia - levantou-se por sua vez e foi ter com Aghamouri no seu andar pesado. Estavam a poucos
centímetros de mim, por detrás da vidraça, e o outro, com a sua cara redonda e o seu olhar duro, também não me via. Talvez o vidro fosse opaco da parte de dentro,
como os espelhos sem estanho. Ou pura e simplesmente, separavam-nos dezenas e dezenas de anos, eles continuavam cristalizados no passado, no meio daquele vestíbulo
de hotel, e já não vivêssemos, eles e eu, no mesmo tempo.
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No caderno preto, anotava muito poucos encontros. Receava sempre que a pessoa não aparecesse caso eu não apontasse de antemão a hora e a data do nosso encontro.
Convém não ter tanta segurança no futuro. Como dizia Paul Chastagnier, eu era "uma pessoa discreta". Tinha a impressão de levar uma vida clandestina e, por isso,
neste tipo de vida, evito deixar vestígios e pôr por escrito o que faço ou deixo de fazer. E, no entanto, leio, no meio de uma das páginas do caderno: "Terça-feira.
Aghamouri. 19 horas. Censier." Não dava nenhuma importância a este encontro e não me incomodava que ficasse registado preto no branco.
Devia ser dois ou três dias depois da nossa chegada tardia ao Hotel Unic, quando eu levava o cesto. Estranhei receber um bilhete de Aghamouri no nº 28 da Rua de
Aude, onde tinha um quarto alugado. Como podia ele saber a minha morada? Por Dannie? Tinha-a levado várias vezes à Rua de Aude, mas muito mais tarde, parece-me.
As minhas recordações são confusas. Aghamouri tinha escrito na carta: "Não fale deste encontro a ninguém. Principalmente a Dannie. Que fique só entre nós. Logo perceberá."
O "Logo perceberá" deixou-me preocupado.
Já tinha anoitecido. Esperava por ele caminhando pelo baldio que havia diante do edifício novo da universidade. Naquele dia, tinha levado o meu caderno preto e,
para passar o tempo, tomava apontamento dos letreiros que havia ainda em algumas casas e armazéns que iriam ser derrubados ao longo do baldio. Leio:
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Irmãos Sommet - Couros e peles
Blumet (B.) e filho - Comissionista de couros e peles
Curtimentos de Beaugency
Casa A. Martin - Couros em bruto
Secadouro do Mercado de Couros de Paris

À medida que tomava apontamento destes nomes, sentia um crescente mal-estar. Acho que se nota na minha letra, irregular, quase ilegível no final. Acrescentei a lápis,
com letra mais firme:
Orfanato das Cent Filies.
Era uma mania minha querer saber tudo quanto existira, ao longo dos anos e nas suas sucessivas camadas, naquele sítio de Paris. Desta vez, parecia-me sentir o cheiro
enjoativo das peles e dos couros em bruto. Vinha-me à memória o título de um documentário que vira muito novo e me marcara para sempre: O Sangue dos Animais(2).
Os animais eram mortos em Vaugirard, La Villette, e as suas peles trazidas para aqui a fim de serem comercializadas. Milhares e milhares de animais anónimos. E de
tudo aquilo, restava apenas um baldio, e, por muito pouco tempo, os nomes de alguns carniceiros e assassinos em paredes meio derrubadas. Tinha tomado nota deles
todos naquela tarde no meu caderno. Para quê? Teria preferido saber os nomes das cem raparigas do orfanato que havia naquele baldio muito antes do mercado de couros.
- Está muito pálido... passa-se alguma coisa?
Aghamouri estava na minha frente. Não o vira sair da faculdade. Trazia o casaco bege e uma pasta preta. Eu ainda estava absorto nos meus apontamentos. Disse-me com
um sorriso forçado:
- Reconhece-me, não?
Estava disposto a mostrar-lhe os nomes que acabava de apontar, mas naquela altura tinha a sensação de que as pessoas desconfiavam de mim se se davam conta de que
eu estava para ali, sozinho,

2. Le Sang des bêtes, no título original, é um documentário escrito e realizado em 1949 por Georges Franju. (N. do T.)
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a escrever a um canto. Receavam, provavelmente, que lhes roubasse qualquer coisa, as suas palavras, pedaços das suas vidas.
- As aulas foram interessantes?
Eu nunca tinha sido estudante e imaginava-o numa sala de aulas como as da escola municipal, a abrir a carteira para tirar a gramática e o caderno de redações e a
meter a caneta no tinteiro.
Atravessámos o baldio fugindo às poças de água. O seu casaco bege e a pasta preta reforçavam ainda mais a minha opinião: não podia ser estudante. Dir-se-ia que ia
a uma reunião de negócios no vestíbulo de um hotel de Genebra. Pensara que iríamos, como de costume, até ao café da Praça de Monge, mas tomámos o caminho inverso,
em direção ao Jardim Botânico.
- Incomoda-o que falemos calmamente enquanto vamos passeando um pouco?
Tinha um tom desenvolto e amistoso, mas sentia nele um certo desconforto, como se procurasse as palavras e esperasse encontrar-se num lugar afastado em que não pudéssemos
dar com ninguém conhecido. E, precisamente, abria-se diante de nós a Rua Cuvier, deserta e silenciosa até ao Sena.
- Queria pô-lo de sobreaviso...
Disse aquelas palavras muito sério. Depois, nada. Talvez, no último momento, não se atrevesse a entrar em pormenores.
- De sobreaviso em relação a quê?
Fiz-lhe a pergunta com demasiada gravidade. Se sou uma pessoa "discreta" - como dizia Paul Chastagnier -, nunca segui os conselhos dos outros. Nunca. E de todas
as vezes ficavam surpreendidos - e dececionados - porque os tinha escutado atentamente, com os olhos arregalados de um bom aluno ou de um bom rapaz. íamos seguindo
ao longo de uma série de pequenos edifícios que marginavam o Jardim Botânico. Em minha opinião, era a parte do jardim onde estava a Casa das Feras. Havia muito pouca
luz na rua e, ao fundo dessa penumbra e desse silêncio, era possível que ouvíssemos o rugido das feras.
- Devia ter-lhe dito antes... Trata-se de Dannie...
Voltei-me para Aghamouri, mas ele continuava de cabeça erguida
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e olhando em frente. Perguntava-me se não quereria evitar o meu olhar.
- Conheci Dannie na Cidade Universitária... Ela andava à procura de alguém que lhe emprestasse lá um quarto e pudesse emprestar-lhe até mesmo um cartão de estudante...
Falava lentamente, como se tentasse deixar o mais claro possível um assunto tão enredado.
- Sempre tive a impressão de que alguém lhe dissera que fosse ter comigo... De contrário, nunca teria tido a ideia da Cidade Universitária...
Também eu me tinha perguntado muita vez como é que uma rapariga como Dannie pudera saber da existência daquela Cidade Universitária. Perguntara-lho uma tarde em
que a tinha acompanhado aos correios. "Sabes", disse-me, "vim para Paris para estudar." Sim, mas estudar o quê?
- Graças a um amigo do pavilhão de Marrocos, arranjei-lhe um cartão de estudante e de residente... Em nome da minha mulher...
Mas porquê em nome da mulher dele? Parara de andar.
-Tinha medo de usar o seu próprio bilhete de identidade... Quando eu tive de sair da Cidade Universitária, já não quis ficar lá. Apresentei-a aos outros, no hotel
de Montparnasse... Creio que conseguiu obter documentos falsos graças a eles...
Apertou-me o braço e obrigou-me a ir para o outro passeio. Estranhei que, de repente, tivesse querido atravessar a rua. Estávamos parados diante de um edifício pequeno
e talvez receasse que o ouvissem falar de uma das janelas. Do outro lado, não corria esse risco. Continuámos a andar ao longo do Mercado dos Vinhos, mergulhado na
penumbra e ainda mais deserto e silencioso do que a rua.
- E porque é que ela precisava de documentos falsos? - perguntei-lhe.
Parecia estar a sonhar. Acontecia-me, com frequência, nesse tempo, sobretudo quando já tinha anoitecido. Cansaço? Ou seria aquela sensação estranha de já se ter
vivido o mesmo que se apodera de nós quando não temos sono? Então, tudo se mistura na nossa cabeça, o passado, o presente, o futuro, por um fenómeno de sobreimpressão.
Ainda hoje a Rua Cuvier me parece distante de Paris,
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numa cidade desconhecida de província, e custa-me a crer que aquele homem que caminhava ao meu lado tenha verdadeiramente existido. Ouço a minha voz num eco longínquo:
"Porque é que ela precisava de documentos falsos?"
- Mas ela, ao menos, chama-se Dannie? - perguntei a Aghamouri num tom fingidamente desenvolto, tal era a apreensão que sentia perante o que ia revelar-me.
- Sim, acho que sim... - respondeu-me num tom seco. - No novo bilhete de identidade, não sei. Isso não tem grande importância... No cartão que lhe dei na Cidade
Universitária, está o nome da minha mulher... Michèle Aghamouri...
Fiz-lhe uma pergunta que logo lamentei a seguir:
- E a sua mulher, sabe?
- Não.
Voltava a ser o que era poucos momentos antes e a pessoa de que ainda hoje conservo uma recordação bastante precisa: um homem intranquilo, sempre vigilante.
- Isto fica entre nós, não é assim?
- Sabe, desde criança que aprendi a calar-me - respondi-lhe.
A maneira solene como disse a frase espantou-me a mim mesmo.
- Ela fez algo bastante grave e corria o risco de lhe pedirem contas disso - revelou Aghamouri, muito depressa. - Por isso é que ela queria novos documentos.
- Algo bastante grave?
- Pergunte-lhe a ela. O problema é que se lhe falar nisso, saberá que a informação vem de mim...
Havia um portão aberto que dava acesso ao Mercado dos Vinhos e Aghamouri parou diante dele.
- Podemos cortar por aqui - afirmou. - Conheço um café na Rua Jussieu. Não está farto de andar?
Passei o portão atrás dele e fomos dar a um grande pátio rodeado de edifícios meio destruídos, como os do antigo Mercado dos Couros. E a mesma penumbra do baldio
em que estivera à espera dele... Ao longe, um candeeiro com uma luz branca iluminava uns armazéns ainda intactos e que tinham uns letreiros nas paredes do
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género dos que me tinham chamado a atenção nas ruínas do Mercado dos Couros.
Voltei-me para Aghamouri:
- Dá-me licença?
Tirei do bolso o caderno preto e volto agora a ler os apontamentos que tinha feito nessa noite com uma escrita rápida enquanto caminhávamos em direção à Rua Jussieu:

Marie Brizard e Roger
Butte de la Gironde
Os Bons Vinhos da Argélia
Armazéns do Loire
Libaud, Margerand e Blonde
Pátio das aguardentes. Caves La Roseraie...

- Faz isso muita vez? - perguntou-me Aghamouri.
Parecia dececionado, como se temesse que tudo quanto queria contar-me não me interessasse verdadeiramente e eu tivesse outras preocupações. Mas é algo que não consigo
evitar, já nesse tempo era tão sensível como agora às pessoas e às coisas que estão em vias de desaparecer. Encontrávamo-nos diante de um edifício moderno cujo átrio
estava iluminado e ostentava no frontão a inscrição: Faculdade de Ciências.
Atravessámos o átrio dessa faculdade e depois, de novo, um baldio até chegar à Rua Jussieu.
- É aqui - informou Aghamouri.
E indicava, do outro lado da rua, um café, passado o Teatro de Lutèce. Havia um grupo de gente no passeio à espera do início do espetáculo.
Sentámo-nos num canto, junto ao balcão. Na nossa frente, do outro lado da sala, havia uma fila de mesas com gente a jantar.
Era a minha vez de tomar a iniciativa para o fazer falar. De contrário, arrepender-se-ia de já me ter dito demasiado.
- Há pouco, referiu-se a algo bastante grave relativamente a Dannie... Gostava que fosse um pouco mais explícito.
Hesitou por instantes.
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- Ela tem graves problemas judiciais...
Procurava as palavras, palavras que fossem precisas, profissionais, palavras de advogado ou de polícia.
- Por agora, está mais ou menos segura... Mas existe o perigo de que se apercebam de que está implicada num caso muito feio...
- A que é que se refere quando diz "um caso muito feio"?
- Isso tem de lho perguntar diretamente.
Houve um momento de silêncio. Mal-estar mesmo. Ouvi o toque, ao lado, a anunciar o começo da peça no teatro. Meu Deus, como gostaria nessa noite de estar na sala
com ela entre os espectadores e que já não estivesse implicada num "caso muito feio".
- Parece-me que tem bastante intimidade com Dannie... - afirmei. Fixou-me com um olhar embaraçado.
- Vi-o com ela, uma noite, muito tarde, no 66...
Não parecia saber o que era o 66. Disse-lhe que se tratava do café que ficava na parte de cima da Avenida Saint-Michel, próximo da estação de Luxembourg.
- É possível... íamos lá quando ainda vivíamos na Cidade Universitária.
Sorria-me como se pretendesse, doravante, que a conversa se tornasse mais anódina, mas eu queria que fôssemos ao fundo da questão. Afinal, fora ele que marcara o
encontro. Tinha a carta dele, dirigida a mim e enviada para o nº 28 da Rua de Aude. Metera-a entre as páginas do caderno preto. Aliás, conservei-a e reli-a ainda
hoje antes de copiar o que dizia, fielmente, para uma das folhas deste papel de carta Clairefontaine no qual estou a escrever desde há uns dias.
- E não acha que devia avisar a sua mulher de que Dannie tem um bilhete de identidade com o nome dela...?
Senti que ele ficou "feito em cacos". Nunca esta expressão me tinha parecido tão oportuna. Ainda hoje, quando penso nisso, vejo até as fissuras na pele da cara dele.
Parecia tão aflito que quis tranquilizá-lo. Não, nada daquilo tinha qualquer importância.
- Se conseguisse recuperar esse cartão que lhe dei com o nome da minha mulher, seria estupendo...
Ele sabia perfeitamente que eu não era mau tipo. Afinal, as duas ou três vezes que tinha ido ter com ele à tardinha, à Faculdade
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de Censier, faláramos de literatura. Conhecia bastante a fundo Baudelaire e pedira-me mesmo que lhe lesse os meus apontamentos sobre Jeanne Duval.
- Seja como for - prosseguiu - os outros conseguiram arranjar-lhe documentos falsos, já não precisa do cartão... Mas, principalmente, não lhe diga que lhe falei
disto...
Parecia tão preocupado que estava decidido a ajudá-lo sem saber muito bem como. Tinha alguns escrúpulos em mexer na carteira de Dannie. De início, quando a acompanhava
aos correios, ela apresentava ao empregado que estava no postigo de atendimento algo parecido com um bilhete de identidade. Estaria em nome de Michèle Aghamouri?
Seria esse o nome que constava nos documentos falsos que o pequeno grupo do Hotel Unic lhe arranjara? E qual deles precisamente lhe fizera esse favor? Paul Chastagnier,
Duwelz, Gérard Marciano? Inclinava-me mais para "Georges", o homem da cara redonda e expressão glacial, mais velho do que os outros, e que lhes inspirava um certo
temor, aquele de quem Paul Chastagnier me dissera uma vez que lhe perguntara qualquer coisa acerca dele: "Sabe, não se pode dizer que seja propriamente um menino
de coro..."
- Pelos vistos, tem um apartamento com a sua mulher para os lados da Casa da Rádio...
Pensei que fosse achar-me indiscreto, mas não. Sorriu-me e deu-me a sensação de que ficara aliviado por abordar o assunto.
- Sim... um apartamento minúsculo... Gostaria muito de o convidar para que conhecesse a minha mulher... mas só se não disser nada acerca de Dannie, do Hotel Unic
e dos outros quando lá estivermos...
Tinha dito "lá" como se dissesse o nome de um país longínquo e neutral onde se estivesse protegido do perigo.
- Na realidade - adiantei -, basta atravessar o Sena para esquecer tudo o que se deixa para trás.
- Acha mesmo?
Vi perfeitamente que procurava que o reconfortassem. Acho que sentia confiança em mim... Sempre que estávamos a sós ou íamos andando desde a Praça de Monge até Montparnasse,
falávamos de literatura. Não era com os outros, os do Hotel Unic, que ele poderia fazer
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isso. Não estou a ver que Paul Chastagnier ou Duwelz, ou "Georges" se interessassem pela sorte de Jeanne Duval. Gérard Marciano, quem sabe? Contara-me um dia que
queria começar a pintar e que conhecia um "bar de artistas" na Rua Delambre: Le Rosebud. Anos mais tarde, no processo que o tal Langlais me dera, havia uma ficha
policial de Marciano com duas fotografias antropométricas de frente e de perfil, e Le Rosebud era mencionado como um dos sítios a que ia com frequência.
Aghamouri levantou a cabeça para mim.
- Infelizmente, não penso que baste atravessar o Sena...
Estava de novo com aquele sorriso tímido que podia desaparecer de um momento para o outro.
- Dannie não é a única... Também eu, Jean, me meti em maus lençóis...
Era a primeira vez que me tratava pelo meu nome e isso como-veu-me. Mantive-me calado para o deixar falar. Receava que a mais pequena coisa que dissesse pudesse
terminar com as confidências.
- Tenho medo de voltar a Marrocos... Seria o mesmo que em Paris... Depois de metermos um dedinho na engrenagem, é muito difícil tirar de lá a mão...
A que engrenagem estaria a referir-se? Com a voz mais suave de que fui capaz, próximo do sussurro, fiz-lhe mesmo assim, pelo sim pelo não, uma pergunta:
- Quando vivia na Cidade Universitária, não se sentia seguro?
Franziu as sobrancelhas com um ar aplicado, provavelmente
o que fazia nas aulas, na Universidade de Censier, para se tranquilizar a si mesmo dizendo-se que não passava de um simples estudante.
- Sabe, Jean, havia um ambiente curioso na Cidade Universitária, no pavilhão de Marrocos... Muitos controlos policiais... Queriam vigiar os residentes do ponto de
vista político. Alguns estudantes estavam contra o governo marroquino... e Marrocos pedia à França que os vigiasse... Era assim a situação...
Parecia aliviado por me ter contado aquilo. Esbaforido mesmo. Era assim a situação. Depois deste preâmbulo, era certamente mais fácil para ele ir ao fundo da questão.
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- Tudo junto, digamos assim, a minha posição era bastante delicada... estava entalado entre os dois... dava-me com gente dos dois lados ao mesmo tempo... Poderia
dizer-se que fazia jogo duplo... mas é muito mais complicado do que isso... No fundo, nunca se faz jogo duplo...
Devia ter razão, tal era a seriedade com que mo dizia... Curiosamente, esta frase ficou-me na memória. Nos anos seguintes, quando estava sozinho na rua, de preferência
à noite e em alguns bairros do oeste - uma noite foi, precisamente, na Casa da Rádio -, ouvia a voz distante de Aghamouri dizer-me: "No fundo, nunca se faz jogo
duplo."
-Fui descuidado... Deixei-me levar numa espécie de engrenagem... Sabe, Jean, algumas das pessoas que frequentam o Hotel Unic têm relações estreitas com Marrocos...
À medida que as horas iam passando, havia cada vez mais barulho e gente a jantar nas mesas que tínhamos em frente. Aghamouri falava em voz baixa e não ouvia tudo
o que ele dizia. Sim, o Hotel Unic era o local de aterragem de alguns marroquinos e franceses que tinham "negócios" com eles... Mas que género de "negócios"? Aquele
"Georges" de cara redonda e de quem Paul Chastagnier me tinha dito não ser um "menino de coro" possuía, também ele, um hotel em Marrocos... Paul Chastagnier tinha
vivido durante muito tempo em Casablanca... E Marciano nascera lá... E ele, Aghamouri, tinha acabado entre aquela gente por causa de um amigo marroquino que ia à
Cidade Universitária, mas que na realidade tinha um posto na embaixada, um posto de conselheiro em assuntos "de segurança"...
Falava cada vez mais depressa e era difícil não me perder naquela enxurrada de pormenores. Talvez quisesse livrar-se de um fardo ou de um segredo que transportara
às costas sozinho demasiado tempo. Disse-me de repente:
- Desculpe... Tudo isto lhe deve parecer incoerente...
Mas não. Tinha o hábito de ouvir as pessoas. E mesmo quando não compreendia nada do que me diziam, continuava de olhos muito abertos, fixando-as com um olhar penetrante,
o que lhes dava a ilusão de que tinham diante deles um ouvinte particularmente atento. Pensava noutra coisa, mas o meu olhar continuava fixo neles, como
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se lhes estivesse a beber as palavras. Com Aghamouri, era diferente. Como fazia parte do círculo de Dannie, tentava compreender. E tinha esperança de que lhe escapassem
algumas palavras relativamente ao "caso muito feio" no qual me tinha dito que ela estava "implicada".
- Tem sorte... Não tem de sujar as mãos como nós... Pode continuar de mãos limpas...
Por estas últimas palavras perpassava uma censura. Que queria dizer com aquele "nós"? Ele e Dannie? Observei-lhe as mãos. Eram delicadas, muito mais delicadas do
que as minhas. E brancas. As de Dannie também me tinham chamado a atenção pela sua elegância. Tinha uns pulsos gráceis.
- Mas há que ter cuidado com os maus encontros... Por mais invulneráveis que nos julguemos, há sempre um ponto fraco... Sempre... Tenha cuidado, Jean...
Era como se me invejasse por ter ainda "as mãos limpas" e estivesse à espera do momento em que acabaria por as sujar. A sua voz tornava-se cada vez mais distante.
E no momento em que escrevo estas linhas, a sua voz é tão débil como as que nos chegam pela rádio, noite fora, confusas devido às interferências. Creio que na altura
já tinha essa impressão. Parece que os via a todos como se estivessem por detrás de um vidro de aquário e esse vidro nos separasse, a eles e a mim. É como nos sonhos,
vemos os outros viver as incertezas do presente, mas conhecemos o seu futuro. Tentamos, então, convencer Madame du Barry a não voltar a França para que não a guilhotinem.
Nessa noite, penso para comigo que vou tomar o metro até Jussieu. À medida que as estações forem desfilando, recuarei no tempo. Encontrarei Aghamouri sentado à mesma
mesa, junto ao balcão, com o seu casaco bege, a pasta preta em cima da mesa, pasta que me perguntava se conteria as sebentas da Universidade de Censier que lhe iriam
permitir, dizia ele, fazer o exame de "acesso à universidade". Não me teria espantado se dela saíssem maços de notas, um revólver ou fichas de informações que tinha
de dar ao amigo marroquino da Cidade Universitária de que me falara e que tinha um posto de "conselheiro" na embaixada. Levá-lo-ia até à estação de Jussieu e faríamos
a viagem inversa no tempo. No final da linha, sairíamos em Église-dAuteuil. Uma noite calma,
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um local agradável, quase aldeão. Dir-lhe-ia: "Aqui tem. Está no Paris de hoje. Já não tem nada que temer. Os que queriam fazer-lhe mal estão todos mortos há muito.
Está fora do alcance deles. Já não há cabinas telefónicas. Para telefonar para mim, a qualquer hora do dia ou da noite, pode usar este objeto." E dar-lhe-ia um telemóvel.
- Sim... Tenha cuidado, Jean... Quando estava no Hotel Unic, vi-o várias vezes falar com Paul Chastagnier... Vai metê-lo também a si num caso muito feio...
Era tarde. As pessoas saíam do Teatro de Lutèce. E já não havia ninguém a jantar nas mesas que tínhamos em frente. Aghamouri parecia ainda mais preocupado do que
no início do nosso encontro. Tinha a impressão de que receava sair para a rua e que ficaria no café até à hora do fecho.
Voltei a fazer-lhe a pergunta:
-E Dannie?... Acha mesmo que aquele "caso muito feio" de que falava...
Não me deu tempo de acabar a frase. Declarou num tom seco:
- Pode sair-lhe muito caro... Mesmo com documentos falsos, corre o risco de ser localizada... Fiz mal em levá-la ao Hotel Unic e apresentá-la aos outros... Mas foi
só para lhe dar um tempo de descanso... A seguir, devia ter saído de Paris...
Tinha-se esquecido da minha presença. Provavelmente, estava a repetir as mesmas palavras de quando estava só, à noite, àquela hora. Depois, abanou a cabeça como
se acordasse de um mau sonho.
- Estava a falar-lhe de Paul Chastagnier... Mas o mais perigoso ainda é "Georges"... Foi ele que arranjou os documentos falsos a Dannie. Tem apoios muito importantes
em Marrocos e contactos com esse amigo da embaixada... Querem que eu lhes faça um trabalho...
Esteve quase a revelar-me tudo, mas conteve-se a tempo.
- Não percebo como é que um tipo como você convive com aquela gente... Eu não tenho outro remédio, agora você.
Encolhi os ombros.
- Sabe, eu não convivo com ninguém - afirmei. - A maior parte das pessoas é-me indiferente. Exceto Restif de La Bretonne, Tristan Corbière, Jeanne Duval e uns poucos
mais.
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- Então, tem muita sorte...
E como teria feito um polícia que quisesse obter uma confissão e finge cumplicidade, disse:
- No fundo, a culpa disto tudo é de Dannie, hein! Se há conselho que possa dar-lhe, é que deve romper com essa rapariga...
- Nunca faço caso de conselhos.
Esforçava-me por lhe sorrir, um sorriso cândido.
- Tenha cuidado... A Dannie e eu somos uns pestíferos... Connosco, corre o risco de apanhar a lepra...
Resumindo, o que me queria dizer era que havia laços estreitos entre eles os dois, pontos em comum, cumplicidade.
- Não se preocupe demasiado comigo - respondi-lhe.
Quando saímos do café, era quase meia-noite. Ele ia muito hirto
no seu casaco bege e pasta preta na mão.
- Desculpe... Esta noite, perdi um pouco a cabeça... Não faça caso do que lhe disse... Deve ser por causa dos exames. Ando a dormir muito mal... Tenho um exame oral
dentro de poucos dias...
Tinha recuperado toda a sua dignidade e seriedade de estudante.
- Não sou tão bom na oral como na escrita.
Aghamouri esforçava-se por sorrir. Propus-me acompanhá-lo até à estação de metro de Jussieu.
- Que parvo que sou... Nem sequer me ocorreu convidá-lo para jantar.
Já não era o mesmo homem. Tinha retomado completamente o domínio de si.
Atravessámos a praça em passo tranquilo. Ainda tínhamos tempo antes do último metro.
- Não faça caso do que lhe disse acerca de Dannie... Não é assim tão grave... Quando se tem ternura por uma pessoa, leva-se demasiado a peito o que tem que ver com
ela e pomo-nos com preocupações inúteis...
Falava com uma voz clara, sublinhando cada palavra. Ocorreu-me uma frase feita: está a ver se me enrola.
Preparava-se para descer as escadas de acesso ao metro. Não consegui impedir-me de lhe perguntar:
- Vai dormir ao Hotel Unic?
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Aghamouri não estava à espera da pergunta. Hesitou por momentos:
- Creio que não... Consegui, finalmente, recuperar o meu quarto na Cidade Universitária... sempre é um sítio mais agradável.
Deu-me um aperto de mão. Estava impaciente por me deixar, porque desceu as escadas a toda a pressa. Antes de desaparecer no corredor, virou-se como se receasse que
eu o seguisse. E tive vontade de o fazer. Imaginava-nos sentados juntos, um ao lado do outro, num dos bancos grenás do cais, à espera do comboio, que tardava em
chegar devido à hora. Tinha-me mentido, não ia para a Cidade Universitária. De contrário, teria tomado a linha da Porte d'Italie. Voltava para o Hotel Unic. Sairia
em Duroc. Uma vez mais, tentava saber em que "caso muito feio" se tinha metido Dannie. Mas ele não me respondia. Ali, no banco, fingia mesmo que não me conhecia.
Entrava para a carruagem, as portas fechavam-se e, de fronte colada ao vidro, mirava-me de olhar amortecido.
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Nessa noite, voltei a pé para o meu quarto na Rua de Aude. Como era uma longa caminhada, podia perder-me nos meus pensamentos. Quando Dannie lá ia ter comigo, chegava
geralmente pela uma da manhã. Por vezes, dizia-me: "Fui ver o meu irmão", ou "Estava em casa da minha amiga de Ranelagh", sem me dar muitos pormenores. Pelo que
me parecia entender, esse irmão - uma vez por outra chamava-lhe "Pierre" - não vivia em Paris, mas vinha com regularidade à capital. E a "amiga de Ranelagh" chamava-se
assim porque a sua casa ficava nas imediações do Jardim de Ranelagh. Nunca tinha falado em apresentar-me o irmão, mas, em contrapartida, dizia que um dia me daria
a conhecer a sua "amiga de Ranelagh". Os dias passavam e ela não cumpria a promessa.
Talvez Aghamouri não me tivesse mentido e, enquanto eu caminhava até à Rua de Aude, já tivesse chegado ao seu quarto na Cidade Universitária. Mas e Dannie? Continuava
a ouvir, como um eco cada vez mais fraco, a voz de Aghamouri: "Ela fez algo bastante grave... Pode sair-lhe muito caro..." Temia estar à espera dela em vão nessa
noite. Ainda que, afinal, a esperasse todas as noites sem ter a certeza de que chegaria. Ou então, chegava inesperadamente, pelas quatro da madrugada. Eu tinha adormecido
com um sono leve e o ruído da chave acordava-me sobressaltado. Os serões tornavam-se longos quando não saía do bairro e ficava à espera dela, mas isso parecia-me
natural. Lamentava aqueles que tinham de apontar nas suas agendas incontáveis encontros, alguns com dois meses de antecedência. Tudo estava decidido para eles e
nunca esperavam
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e, pouco a pouco, vai-nos dando aquela sensação de férias e de infinito que outros procuram na droga, mas que eu encontrava simplesmente na espera. No fundo, tinha
quase a certeza de que, tarde ou cedo, chegarias. Pelas oito horas da noite, ouvia a minha vizinha fechar a porta e os seus passos iam deixando de se ouvir nas escadas.
Vivia no andar de cima. À porta, tinha um cartãozinho branco em que estava escrito o seu nome a tinta vermelha: Kim. Tinha mais ou menos a nossa idade. Trabalhava
numa peça de teatro e tinha-me dito que estava sempre com medo de chegar atrasada, depois do correr do pano. Oferecera-nos dois bilhetes, a Dannie e a mim, e fomos
a um teatro dos bulevares que atualmente já não existe. Um táxi esperava-a todas as noites da semana - exceto às segundas-feiras - às oito horas em ponto, e ao domingo
às duas horas da tarde, diante do nº 28 da Rua de Aude. Pela janela, via-a entrar para o táxi, vestida com uma canadiana, e fechar a porta. Estávamos em janeiro,
fazia muito frio e a certa altura uma camada de neve cobriu a rua, afastando-nos de Paris durante vários dias, numa aldeia de montanha. Já não me lembro nem do título
da peça nem da intriga. Ela entrava em cena depois do entreato. Tinha tomado nota de uma das suas deixas e a hora exata: às vinte e uma horas e quarenta e cinco
minutos. Se me tivessem perguntado porquê, não creio que tivesse podido responder de maneira precisa. Mas agora entendo melhor: precisava de pontos de referência,
de nomes de estações de metro, de números de polícia, do pedigree de cães, como se receasse que, de um momento para o outro, as pessoas e as coisas se nos escapassem
ou desaparecessem e fosse preciso, ao menos, conservar uma prova da sua existência.
Sabia que todas as noites, mais ou menos às vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos, Kim diria, no palco, para o público:
- Tivemos tão pouca importância na sua vida...
E quando o escrevo agora, meio século depois - ou um século mesmo, já não sei contar os anos -, esqueço-me por momentos dessa sensação de vazio que noto. Táxi à
espera às oito horas da noite, medo de chegar depois do correr do pano, canadiana por causa do inverno e da neve, gestos que eram quotidianos e foram abolidos, peça
de
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teatro que ninguém voltará a ver nunca mais, risos e aplausos perdidos e o próprio teatro já destruído... Tivemos tão pouca importância na sua vida... Às segundas-feiras,
dia de descanso, havia luz na sua janela e isso tranquilizava-me. Nas outras noites, estava só naquele pequeno edifício. Tinha, por vezes, a impressão de perder
a memória e já não sabia muito bem o que estava ali a fazer. Até que Dannie chegava.

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Caminhava com ela pelo bairro da minha infância, esse bairro pelo qual costumava evitar passar porque me trazia recordações dolorosas e estava tão mudado que me
era totalmente estranho e indiferente atualmente. Tínhamos passado o Royal Saint-Germain e estávamos a chegar à entrada do Hotel Taranne. Vi sair do hotel o escritor
que admirava e que tem um poema intitulado "Dannie". Detrás de nós, uma voz masculina chamou: "Jacques!..." e voltou-se. Olhou para mim com estranheza, pois pensou
que era eu quem estava a chamá-lo. Deu-me vontade de aproveitar aquele acaso, de me aproximar dele e de lhe estender a mão. Ter-lhe-ia perguntado por que razão o
poema se intitulava "Dannie" e se também ele conhecera uma rapariga com o mesmo nome. Mas não me atrevi. Apareceu alguém a chamá-lo de novo, "Jacques...", e percebeu
a confusão. Creio mesmo que me sorriu. Os dois homens seguiram, diante de nós, pela avenida em direção ao Sena.
- Devias ir cumprimentá-lo - disse-me Dannie. Ofereceu-se mesmo para ir ela falar-lhe, mas detive-a. E, além disso, era demasiado tarde, os homens tinham desaparecido
da nossa vista depois de virarem à esquerda, na Avenida Raspail. Demos meia-volta. Estávamos, de novo, diante da entrada do Hotel Taranne.
- Porque não lhe deixas uma carta a pedir um encontro? - perguntou-me Dannie.
Nem pensar. Da próxima vez que o encontrar, perco a timidez e vou falar-lhe. Infelizmente, nunca mais o encontrei e, dezenas de anos mais tarde, soube por um dos
seus amigos que se alguém lhe
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estendia a mão, olhava para a pessoa com uma expressão cansada e dizia:
"Continuamos com cinco dedos?" Sim, por vezes, a vida é monótona e quotidiana como hoje em que estou a escrever estas páginas para achar linhas de fuga e evadir-me
pelas brechas do tempo. Estávamos os dois sentados num banco entre a estação de táxis e o Hotel Taranne. No ano seguinte, soube também que fora ali cometido um crime,
naquele passeio, por detrás de onde estávamos. Obrigaram a entrar para um carro - que disse ser da polícia - um político marroquino, mas tratava-se de um rapto e,
depois, de um assassínio. E o nome de "Georges", aquele que estava frequentemente no vestíbulo do Hotel Unic, saiu nos jornais como um dos executantes desse crime,
e estava sempre à espera de dar com os nomes de Paul Chastagnier, Duwelz, Gérard Marciano e Aghamouri, cuja opinião sobre o caso teria gostado muito de saber. No
entanto, tinha medo e recordava-me da frase que me dissera, na noite em que estivéramos no café perto do Teatro de Lutèce: "Somos uns pestíferos... Connosco, corre
o risco de apanhar a lepra..." Uma tarde, entrei numa cabina telefónica afastada, a oeste, para os lados de Auteuil. Encontrar-me longe dava-me alguma tranquilidade.
Parecia-me que o Hotel Unic ficava noutra cidade. Marquei o número do pavilhão de Marrocos, na Cidade Universitária, que Aghamouri me dera no nosso primeiro encontro
com Dannie e que apontara no caderno preto: POR 58.17. Não era muito provável que continuasse a viver lá. Ouvi-me a dizer com uma voz inexpressiva:
- Será possível falar com Ghali Aghamouri?
Houve um momento de silêncio. Estive quase a desligar. Mas tive uma tentação súbita, como alguém que pudesse abrigar-se mas sente de repente o desejo de correr diante
do perigo.
- Da parte de quem?
O homem fizera-me a pergunta com uma voz seca, como a de um inspetor da polícia.
- De um amigo.
- Perguntei-lhe o seu nome.
Estava quase a ceder: a dar-lhe o meu apelido, o meu nome, a minha direção. Contive-me a tempo.
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- Tristan Corbière.
Silêncio. Devia estar a apontar o nome.
- E porque quer falar com Ghali Aghamouri?
- Porque quero falar com ele.
Tinha feito também uma voz seca, mais seca ainda do que a dele.
- Ghali Aghamouri já não vive no pavilhão de Marrocos. Está a ouvir-me? Está a ouvir-me?
Era a minha vez de não dizer nada. E sentia, na outra ponta da linha, a perturbação do meu interlocutor e a sua preocupação por causa do meu silêncio. Desliguei.
Mais tarde, passei muita vez pelo passeio em que estavam o Royal Saint-Germain e o Hotel Taranne, mas já não existiam nem um nem outro, como se alguém tivesse querido
mudar o cenário do crime para o fazer esquecer. A semana passada, reparei que tinham tirado o banco diante da estação de táxis em que estivéramos sentados, Dannie
e eu, nessa noite.
- Tonta... há pouco, podia ter ido ter com ele e dizer-lhe que me chamava Dannie... como o poema dele...
Desatou a rir. Sim, aquele homem, pelo que lera dele e pelo seu aspeto bonacheirão, teria certamente tido a gentileza de estar uns momentos connosco. Recitava por
vezes na rua, quando ia sozinho, versos que ele tinha escrito:
Se morrer, que minha viúva vá Para Javel, perto de Citron...
Saint-Christophe-de-Javel. Voltávamos precisamente desse bairro a que havia acompanhado Dannie, como de costume, aos correios. Durante o trajeto, quis contar-lhe
tudo o que Aghamouri me tinha dito, o "caso muito feio" a que aludira e que tinha que ver com ela, mas procurava as palavras, ou melhor, o tom que devia usar, um
tom ligeiro, quase brincalhão, para não a assustar... Temia que se achasse encurralada - como se dizia em certos meios, no do Hotel Unic certamente - e nos sentíssemos
mal um com o outro.
Estávamos prestes a meter pela Rua de Rennes e a seguir até Montparnasse, mas à entrada dessa rua larga, triste e reta que se perdia no horizonte - ainda não a vestia
de luto a barra negrucha
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da torre de Montparnasse tive um gesto de recuo. Perguntei-lhe se tinha mesmo intenção de voltar ao Hotel Unic.
- Tenho de me encontrar com Aghamouri - disse - para ele me dar uns papéis.
Era o momento de esclarecer as coisas. Hesitei ainda alguns segundos. Logo depois, questionei:
- Que tipo de papéis? Documentos em nome de Michèle Aghamouri?
Ela olhava-me estupefacta, imóvel no passeio, à altura do que é agora a entrada do Monoprix e era então um jardim abandonado em que se refugiavam dezenas e dezenas
de gatos vagabundos.
- Foi ele que te disse?
- Sim.
A expressão dela tornou-se dura e pensei em Aghamouri. Se estivesse presente naquele momento, Dannie ter-se-ia mostrado violenta com ele. Depois encolheu os ombros
e revelou num tom indiferente:
-Parece um pouco estranho, mas é perfeitamente natural... A Michèle emprestou-me o cartão de estudante dela... Perdi os meus documentos todos e tenho de dar uma
série de passos complicados para obter uma certidão de nascimento... Nasci em Casablanca...
Seria uma coincidência? Também ela tinha uma relação com Marrocos.
- Também me contou que alguém te tinha arranjado documentos falsos.
Disse "alguém" porque não sabia como se chamava realmente o homem de cara redonda que os outros tratavam por "Georges", nem se era o nome dele, um pseudónimo ou
um apelido.
- Não, nada de documentos falsos... Estás a falar de Rochard? O que está muitas vezes no vestíbulo do hotel?
- Aquele a quem chamam "Georges"...
- Sim, esse - confirmou. - Rochard... Costuma ir com frequência a Marrocos... Tem um hotel em Casablanca... E, como eu nasci lá, conseguiu arranjar-me uns documentos
provisórios... Até ter os
autênticos...
Não metemos pela Rua de Rennes. Talvez a perspetiva de ir até Montparnasse, seguindo aquela rua larga e triste, e de chegar ao
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Hotel Unic, lhe causasse também uma certa apreensão. Dirigimo-nos para o Sena.
- Aghamouri contou-me que precisavas de documentos falsos porque estavas implicada num caso muito feio...
Tínhamos chegado à altura da Escola de Belas-Artes. Havia grupos de estudantes no passeio. Estavam a festejar qualquer coisa. Uns tinham instrumentos de música,
outros estavam mascarados de várias coisas: mosqueteiros, presidiários ou pura e simplesmente de tronco nu e a pele pintada de cores várias. Como índios.
- Ele disse-te "um caso muito feio"?
Olhava-me fixamente, franzindo as sobrancelhas. Parecia não estar a entender. Os estudantes à nossa volta gritavam e começavam a tocar os instrumentos. Arrependi-me
do que tinha dito: documentos falsos, caso muito feio. E pensar que podíamos ter sido como aqueles estudantes tão simpáticos que nos barravam a passagem... Convidavam-nos
para o baile daquela noite. O baile dos Quafzarts. Foi difícil desembaraçarmo-nos do grupo e as suas vozes e a sua música acabaram por deixar de se ouvir atrás de
nós.
- Aghamouri até queria que eu tentasse reaver o cartão que te deu em nome da mulher...
Dannie desatou a rir e eu não sabia se o seu riso era natural ou forçado.
- E ainda te disse que estava implicada num caso muito feio? E tu acreditaste nisso tudo, Jean?
Caminhávamos ao longo dos cais e sentia-me aliviado por estarmos ali em vez de na monótona e asfixiante Rua de Rennes. Ao menos, ali havia espaço aberto e podia
respirar. E muito pouco trânsito. Silêncio. Ouvia-se o barulho dos nossos passos.
- Ele diz o que lhe vem à cabeça... Ele é que está metido num caso muito feio... Não te disse nada?
- Não.
Tudo aquilo não tinha qualquer importância. A única coisa que importava era que caminhávamos pelos cais sem pedir autorização a ninguém e sem deixar nada atrás de
nós. E podíamos mesmo atravessar o Sena e perder-nos noutros bairros e até deixar Paris e partir para outras cidades e para outra vida.
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- Servem-se dele para fazer cair numa armadilha um marroquino que vem muita vez a Paris... Não está completamente de acordo com eles, mas entrou na engrenagem...
Não pode recusar-lhes nada... - Mal ouvia o que me dizia. Chegava-me poder caminhar com ela ao longo dos cais e ouvir-lhe o som da voz. Na realidade, não me interessavam
os comparsas do Hotel Unic: Chastagnier, Marciano, Duwelz, aquele a quem tratavam por "Georges" e se chamava Rochard, pessoas cujos nomes me esforço por repetir
para que não desapareçam totalmente da minha memória.
- E tu? - perguntei-lhe. - És obrigada a dar-te com eles?
- De maneira nenhuma... Foi o Aghamouri que mos apresentou. Não tenho nada que ver com eles.
- Nem com Rochard?
Custou-me fazer-lhe a pergunta. Rochard, a quem chamavam "Georges", era-me tão indiferente como os outros.
- Pedi-lhe um favor sem importância... apenas...
- E continuas a chamar-te Dannie nos documentos falsos?
- Não te rias de mim, Jean...
Tinha-me dado o braço e atravessávamos Pont Royal. Tivera sempre, não sei porquê, uma sensação de leveza e de alívio ao atravessar o Sena para a margem direita naquela
ponte.
A meio da ponte, Dannie parou. E indagou:
- Sejam os documentos falsos ou autênticos, achas que isso tem mesmo importância para nós?
Não, na verdade. Nenhuma importância. Naquele tempo, não estava seguro da minha própria identidade, e porque o estaria ela mais do que eu? Ainda hoje tenho dúvidas
de que o meu extrato de certidão de nascimento esteja correto, e esperarei até ao fim que me deem o registo que se perdeu e onde constavam o meu verdadeiro nome,
data de nascimento e nomes e apelidos dos meus pais verdadeiros que nunca conheci.
Dannie aproximava a sua cara da minha e sussurrava-me ao ouvido:
- Fazes-te sempre demasiadas perguntas...
Acho que estava enganada. É agora, dezenas e dezenas de anos depois, que tento decifrar os sinais de morse que me envia aquele
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misterioso interlocutor do fundo do passado. Mas, naquela altura, contentava-me com viver o dia a dia, sem me fazer demasiadas perguntas. De resto, as que lhe fiz
- não eram muitas e também não insistia muito -, nunca obtiveram resposta. Salvo uma noite, com meias-palavras. Só vinte anos mais tarde soube, graças ao processo
que me tinha dado o tal Langlais, em que "caso muito feio ela estava implicada", segundo a expressão de Aghamouri. E tinha mesmo especificado: "Algo bastante grave."
Sim, efetivamente, era grave. Matara um homem, o que não era pouco.
Nessa noite, folheei o processo de Langlais e voltei a dar com uma daquelas páginas de papel transparente e fino em que aparecem uns pormenores muito precisos que
copio: "A vítima foi atingida por dois projéteis. Um deles foi disparado à queima-roupa. O outro não foi disparado nem à queima-roupa nem a curta distância... Foram
encontrados os dois invólucros correspondentes às munições disparadas..." Mas não tenho coragem para copiar o resto. Voltarei a isso mais tarde, um dia em que faça
bom tempo e o sol e o azul do céu dissipem as sombras.
íamos a atravessar o Jardim das Tulherias. Pergunto-me qual seria a estação do ano. Agora, enquanto escrevo estas linhas, parece-me que era janeiro. Vejo as camadas
de neve nos Jardins do Carroussel, e até no passeio em que íamos, ladeando as Tulherias. Na nossa frente, os candeeiros, sob as arcadas da Rua de Rivoli, estão envoltos
numa auréola de bruma. E, no entanto, tenho dúvidas: poderia ser nos inícios de outono. As árvores das Tulherias ainda conservam as folhas. Cairão em breve, mas
o outono, para mim, não representa o fim de nada. Creio que o ano começa no mês de outubro. Inverno. Outono. As estações variam e confundem a recordação, como se
esta, com o passar dos anos, vivesse a sua própria vida, uma vida vegetal, e nunca uma imagem fixa e morta. Sim, as estações misturam-se muita vez umas com as outras:
a primavera do inverno, o verão de São Martinho... Quando chegámos às arcadas estava a chover, uma chuva muito forte, ou melhor, uma dessas chuvadas que nos apanham
desprevenidos no verão.
- Achas que tenho mesmo pinta de quem se mete em casos feios?
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E aproximava a cara de mim, como se quisesse que a examinasse atentamente, e fitava-me nos olhos com um olhar tão sincero...
- Se me tivesse metido num caso feio, dir-to-ia...
Ainda ouço esta frase durante a noite, nas horas de insónia. Tinha-a apontado no meu caderno preto. Devia ter alguma suspeita, um vago pressentimento para a ter
escrito, como eu o fiz. Porque não me disse ela nada? Ou porque mo disse por meias-palavras, uma noite em que saíamos da estação de Lyon. Naquele momento, não prestei
muita atenção. Talvez evitasse assustar-me, mas nesse caso conhecia-me mal. Não sei já que moralista andava eu a ler nos tempos da Rua de Aude que dizia que se devem
aceitar as pessoas como elas são e, sobretudo, não se lhes pedir contas.
- Sabes - disse-me ela - não tarda, vou romper com os imbecis do Hotel Unic.
Ela tinha cuidado com o vocabulário, e com a dicção inclusive, mas de vez em quando usava um calão que eu não conhecia e apontava no meu caderno preto: banheira,
lerpar, ramona, cu de Judas. Encontrei também numa das páginas do caderno preto, escrito entre aspas "os imbecis do Hotel Unic", e pergunto-me se não estaria a pensar
na altura em servir-me da frase como título de um romance.
- Tens razão - declarei. - Podes contar sempre com os que te escrevem para a posta-restante.
Tinha posto naquelas palavras uma ironia de que logo me arrependi. Mas, afinal, fora ela que tinha começado ao pronunciar num tom gracejador "os imbecis do Hotel
Unic".
Dannie ficou, de repente, com uma expressão triste.
- Quem me escreve para a posta-restante é, sobretudo, o meu irmão...
Disse-o muito rápido, com uma voz rouca que não lhe conhecia, e havia tanta sinceridade naquela confissão que me quis mal por ter duvidado até então da existência
de um irmão que ela recusava apresentar-me.
Posta-restante. No processo do tal Langlais, havia uma folha de papel branco-sujo que era parecida com uma ficha de identidade. Esta noite volto a examiná-la esperando
que acabe por me revelar o seu segredo: na fotografia tipo passe de má qualidade agrafada
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do lado esquerdo, reconheço Dannie com o cabelo mais curto. E, no entanto, o nome escrito é o de uma tal Mireille Sampierry, residente na 9ª circunscrição, Rua Blanche,
nº 23. Data do ano que precedera o nosso encontro e tem a menção: "Certificado de uma autorização de receção sem sobretaxa de correspondência na posta-restante e
telégrafo-postal." E, contudo, não se trata da estação dos correios da Rua da Convention, aonde a acompanhei várias vezes, mas do "posto nº 84", no nº 31 da Rua
Baliu (9º circunscrição). Em quantas estações recebia ela correio? Como é que aquela ficha tinha ido parar às mãos de Langlais ou dos agentes do seu serviço? Tê-la-ia
Dannie esquecido nalgum sítio? E aquele nome "Mireille Sampierry", não o tinha Langlais pronunciado no seu gabinete do Cais de Gesvres quando me interrogou? É curiosa
a maneira como alguns pormenores da existência, que não vemos de imediato, nos são revelados vinte anos mais tarde, como quando observamos à lupa uma velha fotografia
de família e um rosto ou um objeto de que não nos tínhamos dado conta até aí nos salta aos olhos...
Ela levava-me para a direita pelas arcadas da Rua de Castiglione.
- Convido-te para jantar... Não fica longe... Podemos ir a pé...
Àquela hora, o bairro estava deserto e o barulho dos nossos passos
ressoava sob as arcadas. Reinava à nossa volta tal silêncio que já não podia ser perturbado pela passagem de um carro, apenas pelo golpear dos cascos de um cavalo
de fiacre. Não sei se o pensei naquele momento ou se a ideia me veio hoje ao escrever estas linhas. Estávamos perdidos no Paris noturno de Charles Cros e do seu
cão Satin, de Tristan Corbière e até no de Jeanne Duval. Pela ópera, passavam carros, e voltávamos a estar no Paris do século XX, que me parece tão distante hoje
em dia... íamos pela Calçada de Antin e, no final de tudo, via-se a fachada escura da igreja, qual ave gigante em repouso.
- Estamos quase a chegar - anunciou. - Fica no início da Rua Blanche.
A noite passada, sonhei que íamos pelo mesmo caminho, provavelmente devido ao que acabava de escrever. Ouvia a sua voz: "Fica no início da Rua Blanche", e voltava-me
lentamente para ela. Dizia-lhe:
- No número 23?
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Ela não parecia ouvir-me. Caminhávamos num passo regular, de braço dado.
- Conheci uma rapariga chamada Mireille Sampierry, no número 23 da Rua Blanche.
Ela ia impassível, em silêncio, como se eu não tivesse dito nada ou a distância do tempo fosse tão grande entre nós que a minha voz não podia chegar-lhe.
Nessa noite, porém, ainda não sabia nada daquele nome, Mireille Sampierry. Seguíamos pelo jardim da Praça da Trinité.
-Verás... é um sítio de que gosto muito... Ia lá muita vez quando vivia na Rua Blanche.
Lembro-me de que, por associação de ideias, pensei na baronesa Blanche. Tinha estado a tomar notas sobre ela, uns dias antes, no meu caderno, copiando uma das páginas
de um livro sobre Paris no reinado de Luís XV: era um relato onde constava o pouco que se sabia da vida caótica e aventurosa da baronesa.
- Sabes porque é que a rua se chama assim? - perguntei a Dannie. - Por causa da baronesa Blanche.
- Então, vivi na rua da baronesa Blanche? - disse a sorrir.
O restaurante fazia esquina com a Rua Blanche e uma ruela que ia até à Igreja da Trinité. Por detrás dos vidros da fachada, as cortinas estavam corridas. Ela entrou
à minha frente, como se o sítio lhe fosse familiar. Ao fundo, um grande bar e, de ambos os lados, uma fila de mesas redondas com toalhas brancas. As paredes eram
vermelho-escuras devido à luz coada. Havia apenas dois clientes - um homem e uma mulher - a uma mesa perto do balcão do bar, por detrás do qual estava um homem moreno
dos seus quarenta anos de idade.
- Então, por cá... - declarou o homem a Dannie, como se estranhasse a presença dela.
Dannie parecia um pouco embaraçada. Respondeu ao homem:
- Estive uns tempos fora de Paris...
O homem cumprimentou-me com um aceno de cabeça. Dannie apresentou-me.
- Um amigo.
Sentou-nos a uma das mesas, junto à porta, talvez para estarmos
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sossegados, longe dos outros dois clientes. Mas estes não falavam muito ou então faziam-no em voz baixa.
- Está-se bem aqui - comentou ela. - Já devia ter-te cá trazido.
Era a primeira vez que a via relaxada. A todos os locais de Paris
a que a acompanhara, notava-lhe sempre uma pontinha de desassossego no fundo do olhar.
-Vivi um pouco mais acima... num hotel... quando deixei o apartamento da Avenida Félix-Faure...
Antes de escrever estas linhas, volto a ler a ficha: "Mireille Sampierry, residente na 9ª circunscrição, Rua Blanche, nº 23." Mas o 23 não é um hotel, verifiquei-o.
Então, porque me dissera ela que tinha vivido num hotel? Porquê aquela mentira aparentemente anódina? E aquele nome: Mireille Sampierry? É demasiado tarde para lho
perguntar, salvo nos meus sonhos, em que o tempo se confunde e posso fazer-lhe todas as perguntas graças ao que fiquei a saber através do processo do tal Langlais.
Mas não serve de nada. Ela não ouve e noto aquela estranha sensação de ausência que se sente quando sonhamos com amigos que, apesar de já terem morrido, vemos no
sonho, tão próximos.
- E que tens andado a fazer este tempo todo?
O homem estava de pé diante da nossa mesa. Servira-nos dois Cointreau, pensando, porventura, que tínhamos os mesmos gostos.
- A tentar arranjar trabalho...
Ele voltou-se para mim e lançou-me um olhar irónico, como se não acreditasse no que Dannie acabava de dizer e me tomasse por testemunha.
- Ela nem nos apresentou. André Falvet.
Apertou-me a mão, continuando a sorrir. Eu balbuciei:
- Jean...
Incomodava-me sempre ter de me apresentar e entrar na vida de alguém daquela maneira abrupta, quase militar, que exige algo parecido com o pôr-se numa posição de
sentido. Para que fosse menos solene, evitava dizer o meu apelido.
- E arranjaste trabalho?
No olhar dele, não havia apenas ironia. Dir-se-ia que estava a dirigir-se a uma criança.
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- Sim... Um trabalho de secretariado... com ele...
E apontava o dedo para mim.
- Secretariado?
O homem abanava a cabeça com uma expressão de admiração fingida.
- Há pessoas que têm querido saber de ti. E fizeram-me mesmo muitas perguntas a teu respeito, mas podes estar descansada... a minha boca é um túmulo... Disse-lhes
que tinhas ido para o estrangeiro...
- Fizeste bem.
Dannie olhava à sua volta para verificar, provavelmente, que nada mudara no lugar. Depois, voltou-se para mim:
- É muito calmo, isto aqui...
Sentia-me afastado de tudo, numa gruta onde ninguém podia penetrar porque uma cortina espessa de cor vermelha estava corrida diante da porta de entrada. O homem
e a mulher da mesa do fundo tinham desaparecido sem que me tivesse apercebido e já não havia maneira de saber quem eram.
- Sim, muito calmo - comentou ele. - Esqueceste-te de que hoje era o dia de fecho...
Dirigiu-se para o bar e, antes de passar a porta que devia conduzir à cozinha, adiantou:
- Não estava à espera de ninguém para jantar esta noite... terão de contentar-se com o que houver...
Ela inclinou-se para mim e as nossas frontes tocaram-se. Sussurrou-me:
- Ele é muito simpático... Não tem nada que ver com os do Hotel Unic... Podes estar sossegado...
Não percebi logo por que razão procurava tranquilizar-me. O nome daquele homem, André Falvet, consta do processo que Langlais me entregou; como é estranha a impressão
que temos sempre que nos chegam explicações, vinte anos mais tarde, a respeito de pessoas com quem nos cruzámos... Deciframos, então, graças a um código secreto,
quão confusos vivemos sem o percebermos verdadeiramente... Um trajeto de carro, à noite, com as luzes desligadas, e por mais que colemos a fronte ao vidro da janela
não descortinamos
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nenhum ponto de referência. Aliás, será que nos interrogávamos realmente muito sobre o propósito da viagem? Vinte anos depois, fazemos o mesmo trajeto, durante o
dia, e vemos, finalmente, todos os pormenores da paisagem. Mas para quê? É demasiado tarde, já não há ninguém. André Falvet, membro do bando Stéfani. Detido na Penitenciária
Central de Poissy. Criador de cães em Porcheville. Gerente do Carrol's Beach em La Garoupe. Restaurante La Passée, na Avenida Gouvion-Saint-Cyr. Le Sévigné, Rua
Blanche.
- Devíamos vir cá mais vezes - comentou ela.
E fomos, várias vezes. A sala já não estava vazia como na primeira noite, mas perguntava-me se os estranhos clientes que ocupavam as mesas viveriam no bairro. Havia
vários sentados no balcão do bar e falavam com o chamado André Falvet. Alguns deles são citados no processo de Langlais. Nomes, simples nomes que, pelo sim pelo
não, podia copiar para aqui, mas não me atrevo. Fá-lo-ei mais tarde, por descargo de consciência. Nunca se sabe, é preciso continuar a enviar sinais. A luz estava
um pouco sumida, como se as lâmpadas não tivessem voltagem suficiente. A não ser que o chamado Falvet tivesse procurado tornar a atmosfera mais íntima. Depois de
escrever isto, fica-me uma dúvida. A luz é a mesma que a do apartamento da Avenida Félix-Faure, aonde ela me levara uma noite, como é também a mesma da casa de campo
La Barberie, em Feuilleuse, quando a noite caíra. Dir-se-ia que as lâmpadas tinham ficado gastas com o tempo. Mas às vezes desarma-se uma mola. Ontem, estava sozinho
na rua e levantou-se o véu. Já não havia nem passado nem presente, o tempo parara. Tudo encontrara a sua verdadeira luz. Eram oito horas da noite, aproximadamente,
e ainda havia sol na parte de baixo da Rua Blanche. Tinham sido postas duas ou três mesas no passeio, diante do restaurante. A porta deste estava aberta de par em
par e ouvia-se o barulho das conversas vindo da sala. Dannie e eu estávamos sentados cá fora. A claridade causava-nos impressão.
- Devia mostrar-te o hotel em que vivi, um pouco mais acima -dizia-me ela.
- No 23?
- Sim, no 23.
E não parecia estranhar que eu conhecesse o número.
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- Mas não é um hotel.
Ela não respondia e esse facto não tinha qualquer importância. Dannie queria caminhar pelo bairro antes do cair da noite. Mas tínhamos muito tempo. Graças à hora
de verão, ainda haveria luz às dez da noite. E eu achava mesmo que iria ser uma noite em claro.

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Há pouco tempo, estava numa livraria na Rua de Odéon. Já era noite. Tinha encontrado, nas estantes de livros em saldo, um romance com uma encadernação vermelho-sujo
cujo título era: Acabaram-se os sonhos. O livreiro, na sua mesa, tinha acabado de meter o livro num saco de plástico branco e estava a dar-mo quando entrou uma mulher.
Não fechou a porta envidraçada depois de entrar, como se não quisesse demorar-se. Uma mulata da minha idade, alta, vestida com um velho casaco de cor ferrugem com
o cinto pendente. Levava um cesto. Dirigiu-se para nós e pôs o cesto na mesa do livreiro.
- Compra livros?
A pergunta fora feita de uma maneira abrupta e com o sotaque dos antigos subúrbios de Paris.
- Depende - respondeu-lhe o livreiro.
- Venho da parte de uma idosa... Trabalho em casa dela...
Tirou os livros do cesto: livros de arte, volumes da coleção da
Plêiade... Um colar e um broche estavam agarrados a um dos livros, e ela voltou a metê-los no cesto. Com os seus movimentos bruscos, caíram algumas notas. Apanhou-as
e meteu-as no bolso do casaco.
- E essa idosa vive no bairro? - perguntou o livreiro.
- Não, vive na 17ª circunscrição. É a minha patroa...
- Terá de me dar a morada dela - afirmou o livreiro.
- E para que quer a morada dela?
De repente, tinha-se tornado agressiva. O colar, o broche e as notas davam a impressão de um roubo feito à pressa. Os livros estavam empilhados em cima da mesa.
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- Então, não quer ficar com eles?
- Agora, não - respondeu o livreiro.
Furiosa, ela foi-os metendo, um a um, no cesto. O livreiro olhava para as capas como se quisesse descobrir manchas de sangue. Talvez pensasse que ela tinha assassinado
a velha, a "sua patroa", como dizia.
Encolheu os ombros e saiu sem fechar a porta. Receando que se esfumasse, fui imediatamente no seu encalço.
Ao vê-la na livraria, disse para comigo que era a reincarnação de Jeanne Duval, ou Jeanne Duval em pessoa. A sua estatura alta, o sotaque parisiense e o cesto em
que amontoara livros, joias e notas correspondiam na perfeição aos poucos pormenores que lera sobre ela e de que tomara nota no meu caderno preto. Caminhava uma
dezena de metros à minha frente e coxeava ligeiramente. Podia tê-la alcançado, mas preferia segui-la à distância para me convencer de que era ela. O cinto do casaco
pendia-lhe dos dois lados e o cesto que levava na mão esquerda, com o peso, fazia-a inclinar o busto de lado. Os candeeiros nas fachadas dos edifícios da rua não
tinham mudado desde o século XIX, iluminando-a mal. Receava perdê-la de vista. No cruzamento da Odéon, dirigiu-se para a entrada do metro. Estuguei o passo. No momento
em que ia começar a descer as escadas, gritei:
- Jeanne...
Ela voltou-se. Lançou-me um olhar intranquilo, como se a tivesse apanhado em flagrante delito. Por momentos, ficámos imóveis, observando-nos mutuamente. Quis aproximar-me
e acompanhá-la até ao cais do metro para lhe levar o cesto. Não consegui mexer-me. As pernas pesavam-me como chumbo, o que me sucede frequentemente nos sonhos. Ela
desceu as escadas rapidamente. Receava, provavelmente, que a seguisse. Devia tomar-me por um polícia à paisana. Impressionado, sentei-me ao pé da estátua de Danton.
Ela tinha dito ao livreiro que a "sua patroa" vivia na 17ª circunscrição. Sim, aquilo correspondia ao último testemunho que lera sobre ela. Nunca se conseguiu saber
em que data morrera. Aliás, nem a data em que nascera. A sua sombra continuava ainda muito presente em certos bairros de Paris. A última testemunha, que a identificou
porque vivia próximo, disse que a casa dela ficava no nº 17 da Rua Sauffroy. Que se situava
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no fim da 17ª circunscrição. Um longo percurso de metro. Partindo de Odéon, fazia o transbordo em Sèvres-Babylone. E a seguir em Saint-Lazare. Sairia em Brochant.
Prometi a mim mesmo ir um dia à Rua Sauffroy. Ao menos, tinha um vago ponto de referência. Mas não podia dizer o mesmo das pessoas que conhecera numa época mais
próxima que a de Jeanne Duval e que apareciam mencionadas no meu caderno preto. Não sabia que era feito delas. Creio que aqueles a quem Dannie chamava "os imbecis
do Hotel Unic" tinham morrido, pelo menos "Georges", aliás, Rochard, e Paul Chastagnier. Não tenho tanta certeza quanto a Duwelz e a Gérard Marciano. Também não
voltei a ter notícias de Aghamouri. E Dannie tinha desaparecido definitivamente. No entanto, elaborara na última página do meu caderno preto uma lista de certos
pormenores de que me lembrava e que deveriam ter-me posto no seu encalço. Acrescentei-lhe mais pormenores que desconhecia e ficara a saber ao folhear as páginas
do processo de Langlais. No entanto, as minhas investigações não haviam dado resultados e acabara por as abandonar ao fim de um certo tempo. Já não tinha grandes
ilusões. Tudo acabaria por, um dia ou outro, cair no esquecimento.

* * *

Desde que comecei a escrever estas páginas que me digo que sim, que há uma maneira de lutar contra o esquecimento. É ir a certas zonas de Paris aonde já não vamos
há trinta, quarenta anos, e ficar lá uma tarde inteira à espreita. Talvez as pessoas de que não sabemos o que é feito surjam na esquina de uma rua ou na álea de
um parque, ou saiam de um dos edifícios que flanqueiam esses becos chamados "praça" ou "vila". Vivem uma vida secreta, o que só lhes é possível em locais silenciosos,
longe do centro. Apesar disso, as raras vezes que me pareceu reconhecer Dannie foi sempre no meio da multidão. Uma noite, na estação de Lyon, ia apanhar um comboio,
no meio da multidão das partidas para férias. Um final de tarde de um sábado, no cruzamento da avenida e da Chaussée d'Antin, na enchente daqueles que se acotovelavam
às portas dos grandes armazéns. De todas as vezes, porém, tinha-me enganado.
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Uma manhã de inverno, há vinte anos, fui convocado para ir ao tribunal de primeira instância da 13ª circunscrição, e cerca das onze horas, à saída do tribunal, encontrava-me
no passeio da Praça de Italie. Não voltara àquela praça desde a primavera de 1964, um período em que frequentava o bairro. De repente, apercebi-me de que não tinha
nem um tostão no bolso para apanhar um táxi ou o metro e voltar para casa. Descobri um multibanco numa ruela por detrás da câmara municipal, mas depois de ter marcado
o código saiu, em vez de dinheiro, um papel em que estava escrito: "Pedimos desculpa. Saldo indisponível." Dei a volta ao edifício da câmara e voltei ao passeio
da Praça de Italie.
O destino queria reter-me ali e não convinha contrariá-lo. Talvez nunca conseguisse deixar o bairro tal era a minha falta de meios. Sentia-me leve por causa do sol
e do céu azul de janeiro. Os arranha-céus não existiam em 1964, mas dissipavam-se pouco a pouco no ar límpido para dar lugar ao café Clair de Lune e às casas baixas
da Avenida da Gare. Entraria num tempo paralelo onde ninguém poderia já alcançar-me.
As paulóvnias de flores cor de malva da Praça de Italie... Repetia esta frase e devo confessar que me fazia vir as lágrimas aos olhos, ou seria o frio do inverno?
Resumindo, tinha regressado ao ponto de partida, e se os multibancos tivessem existido em 1964, o papel teria escrito a mesma coisa: saldo indisponível. Nessa época,
não tinha nenhum direito nem nenhuma legitimidade. Nem família nem categoria social bem definida. Flutuava no ar de Paris.
Ia andando até ao que havia sido o local do Clair de Lune. Ficávamos sentados nas mesas do fundo, junto do estrado dos músicos, sem fazer qualquer despesa. Estava
a dar a volta à praça. Precisava de arranjar um quarto num hotel modesto, talvez no Coypel, se ainda existisse, ou num outro cujo nome não me lembrava e que ficava
para os lados de Gobelins. Tinha chegado à esquina com a Avenida de Soeur-Rosalie e dirigia-me de novo para a câmara municipal perguntando-me até quando iria andar
às voltas pela praça como se fosse um campo magnético que me atraía. Detive-me diante da esplanada de um café. Um homem de uma certa idade estava sentado a uma mesa,
por detrás do vidro, e observava-me. E eu também não tirava o olhar
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dele. A cara do homem lembrava-me alguém. Traços bastante regulares. Cabelo cinzento - ou branco - cortado à máquina com pente grande. Fez-me sinal com o braço.
Queria que entrasse no café.
Levantou-se quando me aproximei e estendeu-me a mão.
- Langlais. Recorda-se de mim?
Tive um momento de hesitação. Foi com certeza o seu porte militar e o "recorda-se de mim" que me ajudaram a identificá-lo. Além de que os rostos com quem nos cruzámos
em momentos difíceis nunca se esquecem.
- O Cais de Gesvres...
Pareceu surpreendido que eu lhe dissesse isto:
- Vejo que tem muito boa memória...
Sentou-se e fez-me sinal para que me sentasse na cadeira que tinha em frente.
- Segui-o de longe todo este tempo - afirmou. - Li até o seu último livro sobre aquela... Jeanne Duval...
Não sabia muito bem que havia de responder-lhe. Repeti:
- Seguiu-me?
Sorriu e lembrei-me de que anteriormente se tinha mostrado algo benevolente.
- Sim... segui-o... Era o meu trabalho até certo ponto...
Observava-me franzindo as sobrancelhas, como no século anterior no seu gabinete do Cais de Gesvres. Com exceção do cabelo cinzento, cortado à máquina com pente grande,
não mudara grande coisa. Não fazia muito calor naquela esplanada envidraçada e ele não despiu a gabardina, que poderia datar do longínquo tempo em que me tinha interrogado.
- Suponho que não viva no bairro... de contrário, tê-lo-ia encontrado...
- Não, não vivo no bairro - respondi. - E há muito tempo que cá não vinha... desde o tempo do Cais de Gesvres...
- Quer tomar alguma coisa?
O empregado encontrava-se diante da nossa mesa. Estive quase a pedir um Cointreau, em lembrança de Dannie, mas não tinha um tostão no bolso e sentia-me mal fazer-me
de convidado.
- Não, estou bem assim - balbuciei.
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- Sim... tome qualquer coisa...
- Um café.
- O mesmo para mim - pediu Langlais.
Houve um silêncio. Era a minha vez de o romper:
- Vive no bairro?
- Sim, desde sempre.
- Também eu, quando era novo, conheci bem este bairro... Lembra-se do Clair de Lune?
- Claro que lembro. Mas que fazia você no Clair de Lune?
O tom era igual ao do tempo em que me interrogara. Sorria.
- Não é obrigado a responder. Já não estamos no meu gabinete...
Por detrás do envidraçado da esplanada, via parte da Praça de
Italie, que não tinha mudado sob o sol e o azul do céu. Parecia que me tinha interrogado no dia anterior. Sorri-lhe.
- E quando quer continuar o interrogatório? - perguntei.
Tinha a certeza de que sentia o mesmo que eu. O tempo fora
abolido. Não passara mais de um dia entre o Cais de Gesvres e a Praça de Italie.
- Curioso - comentou. - Várias vezes quis voltar a entrar em contacto consigo... Telefonei até para a sua editora, mas não me quiseram dar a sua morada.
Inclinava-se para mim e franzia os olhos.
- A verdade é que... teria podido encontrar eu próprio a morada... Era o meu trabalho...
Voltava ao tom seco do Cais de Gesvres. Já não sabia se estava ou não a falar a sério.
- Mas receava incomodá-lo... estar a importuná-lo com a minha atitude...
Abanava a cabeça como se hesitasse dizer-me qualquer coisa. Eu esperava, de braços cruzados. Parecia que, de repente, os papéis se tinham invertido e era eu que
estava por detrás da secretária e ia começar o interrogatório.
- Bem... quando me reformei, fiquei com dois ou três processos como recordação... e, entre eles, o daqueles por causa de quem foi interrogado no meu serviço no Cais
de Gesvres...
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Mostrava-se embaraçado, quase tímido, como se me tivesse confessado algo comprometedor que pudesse melindrar-me.
- Se tiver interesse...
Perguntei-me se estava a sonhar ou não. Um homem acabava de sentar-se numa das mesas da esplanada, ao fundo de tudo, e marcava com o dedo indicador um número no
telemóvel. Ver aquele objeto confirmou-me que não era um sonho e que estávamos ambos no presente, no mundo real.
- Claro que me interessa - respondi.
- Por isso queria saber a sua morada... Pensava enviar-lhe tudo por correio...
- Gente muito estranha - comentei. - Penso frequentemente naquele tempo...
Apetecia-me explicar-lhe a razão por que aquele processo de há quase meio século me interessava. Vivemos um período curto da vida - dia a dia, sem nos fazermos muitas
perguntas - em circunstâncias estranhas, no meio de pessoas também estranhas. E é muito mais tarde que podemos, finalmente, compreender o que vivemos e quem eram
exatamente as pessoas que nos rodeavam, contanto que nos deem, enfim, o meio de deslindar uma linguagem cifrada. A maioria das pessoas não está nessa situação: as
suas recordações são simples, sem altos e baixos, basta-se a si própria e não precisa de dezenas e dezenas de anos para as explicar.
- Compreendo - anuiu, como se me tivesse adivinhado os pensamentos. - O processo será para si, até certo ponto, uma bomba de explosão retardada...
Olhou para o talão da despesa. Sentia-me muito embaraçado por não poder convidá-lo, mas não me atrevia a confessar-lhe que estava sem dinheiro.
Lá fora, no passeio da praça, Langlais e eu ficámos parados e silenciosos. Aparentemente, não queríamos separar-nos de imediato.
- Posso dar-lhe o processo em mãos... Não tenho de lho mandar por correio... vivo pertinho daqui...
- É muito amável - respondi.
Demos a volta à praça e apontou-me com o dedo um arranha-céus na esquina da Avenida de Choisy.
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- Era além que ficava o Clair de Lune - disse, indicando a parte inferior do arranha-céus. - O meu pai levava-me lá muitas vezes... Conhecia a dona...
Entrámos na Avenida de Choisy.
- Vivo um pouco mais abaixo... Pode estar tranquilo que não vou fazê-lo andar quilómetros...
Chegámos à altura da Praça de Choisy. Recordava-me bem da praça, que mais parecia um parque, do grande edifício de tijolos vermelhos a que chamavam Instituto Dentário,
e do liceu feminino, ao fundo de tudo. Do outro lado da avenida, depois do arranha-céus, havia umas casas baixas que estavam tal qual as conhecera. Mas por quanto
tempo ainda? Langlais parou diante de um edifício que fazia esquina com um beco sem saída e em cujo rés do chão havia um restaurante chinês.
- Não lhe vou pedir que suba... teria vergonha... aquilo está uma desordem... não demoro nada...
Sozinho no passeio, pus-me a ver as árvores desnudadas da Praça de Choisy e, mais adiante, a massa vermelha do Instituto Dentário. O edifício sempre me parecera
insólito no parque. As minhas lembranças da Praça de Choisy não eram lembranças do inverno, mas da primavera e do verão, quando as folhas das árvores contrastavam
com o vermelho-escuro do Instituto.
- Em que estava a pensar?
Não o ouvira chegar. Trazia na mão uma capa de plástico amarelo. Estendia-ma.
- Tome... é o seu processo... É pequeno, mas poderá interessar-lhe...
Hesitámos ambos em separar-nos. Teria gostado de o convidar para almoçar.
- Não me leve a mal se não o mandei entrar... é um apartamento minúsculo onde os meus pais viviam... A única vantagem é a vista sobre todas as árvores...
E apontava para a entrada da Praça de Choisy.
- Há pouco, falámos do Clair de Lune... A dona foi assassinada além, na praça... Está a Ver... o edifício de tijolos vermelhos... o Instituto Dentário...
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Estava absorto numa recordação dolorosa.
- Levaram-na para o Instituto... Encostaram-na a uma parede e fuzilaram-na pelas costas... Depois perceberam que tinham cometido um erro...
Tinha visto a cena da janela do seu apartamento?
- Foi na Libertação de Paris... Um grupo inteiro tinha-se instalado no Instituto Dentário... de falsos resistentes... o capitão Bernard e o capitão Manu... e um
tenente cujo nome esqueci...
Não conhecia nenhum daqueles pormenores quando atravessava a Praça de Choisy, noutros tempos, para ir esperar à saída do liceu uma amiga de infância.
- Não convém revolver demasiado o passado. E pergunto-me se fiz bem em dar-lhe o processo... Voltou a ver a rapariga? Aquela que tinha vários nomes?
Não percebi logo a quem estava ele a referir-se.
- Aquela por causa de quem o interroguei no Cais de Gesvres. Como é que lhe chamava?
- Dannie.
- Na verdade, chamava-se Dominique Roger, mas tinha outros nomes.
Dominique Roger. Talvez fosse com esse nome que ia levantar as cartas à posta-restante. Nunca tinha conseguido ver o nome nos sobrescritos. Metia logo as cartas
no bolso do casaco mal as lia.
- Talvez a tivesse conhecido com o nome de Mireille Sampierry - sugeriu Langlais.
- Não.
Afastou os braços e observava-me com um olhar cheio de compaixão.
- Acha que ainda está viva? - perguntei-lhe.
- Quer mesmo saber?
Nunca me fizera a pergunta de maneira tão concreta. Se fosse honesto comigo mesmo, poderia responder-lhe: não, na verdade, não.
- Não merece a pena - afirmou Langlais. - Não devemos forçar as coisas. Um dia, talvez se cruze com ela na rua. Nós reencontrámo-nos...
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Tinha aberto a capa de plástico amarelo. À primeira vista, continha umas dez folhas.
- Vale mais ler isso tudo com a cabeça descansada... Se precisar de alguma explicação, diga.
Procurou no bolso de dentro do casaco e deu-me um cartão de visita em que estava escrito: Langlais, Avenida de Choisy, 159, e um número de telefone.
Andei uns passos e voltei-me. Não entrara em casa. Continuava no meio do passeio, a observar-me de longe. Seguir-me-ia certamente com o olhar até que desaparecesse
no fim da avenida. No tempo em que trabalhava, devia estar de atalaia muita vez em dias como aquele, ou mesmo de noite, de mãos enfiadas nos bolsos da gabardina.
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"Não convém revolver o passado", dissera-me Langlais quando nos separámos, mas naquela manhã de inverno tinha ainda de fazer uma longa caminhada para regressar a
casa, na outra ponta de Paris. Seria realmente um acaso estar na Praça de Italie ao fim de mais de vinte anos e sair-me do multibanco um papel a dizer: "Pedimos
desculpa. Saldo indisponível"? Pedir desculpa de quê? Eu sentia-me feliz, naquela manhã, e leve. De bolsos vazios. E a longa caminhada, em passo regular, fazendo
pausas nos bancos... Tinha pena de não levar o meu caderno preto. Fizera um registo dos bancos de Paris ao longo de diferentes trajetos: de norte para sul, de oeste
para este, bancos que assinalavam, de cada uma das vezes, uma etapa em que se podia descansar um pouco e sonhar. Já não percebia muito bem a diferença entre passado
e presente. Tinha chegado a Les Gobelins. Desde a juventude - desde a infância inclusive - que não fazia outra coisa senão andar, e sempre pelas mesmas ruas, de
tal maneira que o tempo se tornara transparente.
Atravessei o Jardim Botânico e sentei-me num banco na álea central. Poucos transeuntes, estava frio. Mas continuava a haver sol e o azul do céu confirmava-me que
o tempo se havia detido. Bastava ficar ali até ao cair da noite e perscrutar o céu para descobrir nele umas quantas estrelas às quais daria nomes sem saber verdadeiramente
se eram os delas. E vinham-me à memória passagens inteiras do meu livro de cabeceira na altura da Rua de Aude: A eternidade pelos astros. Era uma leitura que me
ajudava a esperar por Dannie. Fazia tanto frio naquela época como neste banco do Jardim Botânico, e a Rua de
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Aude estava coberta de neve. Mas apesar do frio, fui vendo as folhas que vinham na capa amarela. Havia também uma carta assinada por Langlais e na qual não reparara
quando tinha aberto a capa e ele me dissera: "Vale mais ler isso tudo com a cabeça descansada." Uma carta escrita à pressa - era quase ilegível - no seu apartamento,
antes de vir ter comigo com o processo.

Estimado senhor,

Reformei-me há dez anos, de modo que ainda trabalhei muito tempo nos serviços do Cais de Gesvres e do Cais de Orfèvres enquanto o senhor escrevia os seus livros,
que li com bastante atenção.
É claro que me lembrava da sua passagem pelo meu gabinete no Cais de Gesvres para um interrogatório, quando era bastante novo. Tenho boa memória para caras. Brincavam
muitas vezes comigo dizendo que conseguia reconhecer uma pessoa de costas, passados dez anos, mesmo que só a tivesse visto uma vez.
Quando deixei o serviço, permiti-me trazer comigo, dos arquivos da antiga Brigada de Costumes, umas quantas recordações do meu trabalho e, entre elas, este processo
incompleto que lhe dizia respeito e que sempre quis dar-lhe a conhecer. Esse momento chegou graças ao nosso encontro de hoje.
Conte com a minha discrição. De resto, creio que escreveu algures que vivemos à mercê de certos silêncios.

Com amizade,
LANGLAIS

P.S. - Para que fique completamente tranquilo: o inquérito de que tem aqui algumas peças foi definitivamente abandonado.

À medida que folheava o processo, ia encontrando fichas de identidade, relatórios, atas de interrogatórios. Saltavam-me à vista alguns nomes: "Aghamouri, Ghali,
pavilhão de Marrocos, Cidade Universitária, nascido a 6 de junho de 1938 em Fez. Pretenso "estudante", membro dos serviços de segurança marroquinos. Embaixada de
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Marrocos... Georges B" conhecido por "Rochard", cabelo castanho, estatura média, nariz retilíneo, proeminente. Por favor, entrar em contacto com o meu Departamento,
TURBIGO 92.00 para informações complementares... Perante nós compareceu a pessoa a seguir denominada Duwelz, nome e apelido: Pierre. O acusado leu, confirmou e assinou...
Chastagnier, Paul, Emmanuel. Altura: 1,80 m. Utiliza o automóvel Lancia com a matrícula 1934 GD 75... Marciano, Gérard. Sinais particulares: cicatriz de 2 cm, externa,
sobrancelha esquerda..." Passava as folhas rapidamente, evitando demorar-me numa delas e temendo descobrir em todas um novo pormenor ou uma ficha referente a Dannie.
"Dominique Roger, conhecida por "Dannie". Com o nome de Mireille Sampierry (Rua Blanche, 23), ou seja, Michèle Aghamouri, ou seja, Jeannine de Chillaud... Segundo
as informações de Davin, viveria no Hotel Unic com o nome de Jeannine de Chillaud, nascida em Casablanca a... Recebia a sua correspondência na posta-restante, como
prova o cartão junto emitido pelo posto nº 84 de Paris."
E na parte de baixo das páginas, unidas por um clipe:
"A vítima foi atingida por dois projéteis. Um deles foi disparado à queima-roupa... Foram encontrados os dois invólucros correspondentes às munições disparadas.
O porteiro do nº 46r.c do Cais de Henri-IV..."

Uma noite, tínhamos saído de um comboio, Dannie e eu, na estação de Lyon. Creio que voltávamos daquela casa de campo que se chamava La Barberie. Não tínhamos bagagem.
O átrio da estação estava a abarrotar de gente, era verão e, se a memória não me falha, o primeiro dia das férias grandes. À saída da estação, não apanhámos o metro.
Nessa noite, ela não queria voltar para o Hotel Unic e decidimos ir para minha casa, na Rua de Aude. Ao passarmos o Sena, disse-me:
- Não te importas que façamos um desvio?
Levou-me pelos cais em direção à Ilha de Saint-Louis. Paris estava deserta, como acontece tantas vezes nas noites de verão, o que contrastava com a multidão da estação
de Lyon. Quase não havia movimento. Uma sensação de leveza e de vacância. Escrevi esta última palavra no singular e com letras grandes no meu caderno preto com
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uma data: 1 de julho, a data dessa noite. E acrescentei mesmo a definição de "vacância" tal como a tinha lido num dicionário: "Diz-se do que está vacante, disponível."
íamos pelo Cais de Henri-IV, que é referido precisamente na parte de baixo daquela página do processo de Langlais, uma página em que se especifica claramente que
houve "um morto". Dannie parou diante de um dos últimos edifícios, o nº 46r.c, o mesmo número que consta nessa página - verifiquei-o no dia em que me encontrei com
Langlais, vinte anos depois. Nesse dia, bastou-me atravessar a ponte desde o Jardim Botânico.
Dannie dirigiu-se para a porta-cocheira e hesitou um momento:
- Fazias-me um favor?
Falava com uma voz pouco firme, como se estivesse numa zona perigosa onde pudessem surpreendê-la.
- Tocas à porta do rés do chão esquerdo e perguntas pela senhora Dorme.
Espreitava pelas janelas do rés do chão, as quais tinham as portas metálicas fechadas. Pelas frestas passava uma luz débil.
- Vês luz? - perguntou-me em voz baixa.
- Sim.
- Se falares com a senhora Dorme, pergunta-lhe quando é que a Dannie pode telefonar-lhe.
Parecia tensa e talvez estivesse arrependida da sua iniciativa. Acho que esteve quase a impedir-me que fosse.
- Espero por ti na ponte. É melhor não ficar diante da casa.
E indicava-me a ponte que atravessa a extremidade da Ilha de Saint-Louis.
Entrei e parei à esquerda, diante de uma porta maciça de madeira clara. Toquei. Ninguém foi abrir. Não ouvia qualquer barulho no interior. No entanto, tínhamos visto
luz pelas frestas das portadas. A luz automática das escadas desligou-se. Na obscuridade, toquei de novo. Ninguém. Ali estava eu, à espera, na obscuridade. Tinha
a vaga esperança de que alguém acabasse por abrir, de que se quebrasse o silêncio e voltasse a haver luz. A certa altura, bati com os dois punhos na porta, mas a
madeira era tão grossa que não fazia o mais pequeno ruído. Terei realmente, nessa noite, batido à porta? Sonhei tantas vezes mais
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tarde com esta cena que o sonho se confunde com a vida. A noite passada, estava na obscuridade total, sem qualquer ponto de referência, e batia com ambos os punhos
na porta, como se me tivessem encarcerado. Sentia-me asfixiar. Acordei sobressaltado. Sim, outra vez o mesmo sonho. Procurei lembrar-me se teria batido naquela noite
de há tanto tempo. Fosse como fosse, o facto é que toquei várias vezes no escuro e tinha sido surpreendido pelo som, cristalino e perfurante a um só tempo, daquela
campainha. Ninguém. O silêncio.
Saí às apalpadelas do edifício. Dannie andava de um lado para o outro na ponte. Agarrou-me o braço e apertou-mo. Sentia-se aliviada com o meu regresso e perguntei-me
se teria corrido perigo. Disse-lhe que ninguém me tinha aberto a porta.
- Não devia ter-te lá mandado - declarou. - Mas há alturas em que creio que as coisas continuam a ser como dantes...
- Antes de quê?
Encolheu os ombros.
Atravessámos a ponte e fomos pelo Cais de La Tournelle. Dannie não dizia nada e não era altura de lhe fazer perguntas. Ali estava tudo calmo e tranquilo: as antigas
fachadas das casas, as árvores, os candeeiros acesos, as ruas estreitas que desembocavam no cais e me recordavam Restif de La Bretonne. O meu caderno preto estava
cheio de apontamentos relativos a ele. Nem sequer me apetecia fazer-lhe perguntas. Sentia-me leve, despreocupado, feliz por andar nessa noite com ela pelo cais e
de repetir para mim o nome de doces e misteriosas consonâncias, Restif de La Bretonne.
- Jean... Queria pedir-te uma coisa...
íamos caminhando por aquela zona, numa reentrância do cais, no meio da qual há mesas e vasos com plantas a delimitar a esplanada de um café. Naquela noite, as mesas
tinham guarda-sóis. Uma noite de verão num pequeno porto do sul. Murmúrios de conversas.
- Jean... Que dirias se eu tivesse feito algo de grave?
Confesso que a pergunta não me inquietou. Talvez por causa do
tom indiferente que ela tinha empregado, como se citasse a letra de uma canção ou os versos de um poema. E porque o "Jean... Que dirias..." era precisamente um verso
que me tinha vindo à memória: "... Diz-me, Blaise, estamos muito longe de Montmartre?"
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- Que dirias se eu tivesse matado alguém?
Pensei que estava a brincar ou que me fazia aquela pergunta por causa dos romances policiais que tinha o hábito de ler. Era, aliás, a sua única leitura. Talvez num
desses romances uma mulher fizesse a mesma pergunta ao noivo.
- O que diria? Nada.
Hoje, ter-lhe-ia dado a mesma resposta. Teremos o direito de julgar aqueles de quem gostamos? Se gostamos, há de ser por algo, e esse algo impede-nos de os julgar.
Ou não?
- Bem... Se não tivesse morto realmente... Se fosse um acidente...
- Tranquilizas-me.
Parecia dececionada com aquela resposta que demorei tantos anos a perceber ser seca e com um sentido de humor pobre e involuntário.
- Sim... um acidente... disparou sozinho...
- Há muitas balas perdidas - assegurei.
Pensara logo em tiros de revólver. Não me tinha enganado, porque ela prosseguiu:
- Tens razão... balas perdidas...
Desatei a rir. Lançou-me um olhar de censura. Depois, apertou-me o braço.
- Não falemos mais de coisas tristes... Tive um sonho mau ontem à noite... sonhei que estava num apartamento e disparava sobre um tipo para me defender... um tipo
horrível, de pálpebras pesadas...
- Pálpebras pesadas?
- Sim...
Devia ainda estar perdida no seu sonho, mas isso não me preocupava. Tivera muita vez a mesma experiência: alguns sonhos - ou melhor, alguns pesadelos - que se tiveram
na noite anterior, vamo-los arrastando durante todo o dia. Misturam-se com os nossos gestos mais quotidianos, e bem podemos encontrar-nos com os amigos, pôr-nos
ao sol, ir para uma esplanada de um café, que eles continuam a perseguir-nos em pedaços e colam-se-nos à vida real como uma espécie de eco ou de interferência de
que não conseguimos livrar-nos. Por vezes, essa confusão deve-se à falta de sono. Tinha vontade de lho dizer para a sossegar. Tínhamos chegado à altura de
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Saint-Julien-le-Pauvre. Diante da livraria americana, havia bancos e cadeiras como se fosse uma esplanada e uma dezena de pessoas estava sentada a ouvir a música
jazz que vinha da livraria.
- Devíamos sentar-nos com eles - propus. - Esquecias o mau sonho.
- Achas?
Mas continuámos a andar, já não sei por onde. Lembro-me de avenidas silenciosas onde a folhagem dos plátanos formava uma abóbada, de umas quantas janelas iluminadas
nas fachadas dos prédios e do leão de Belfort de guarda, olhando fixamente para sul. Dannie tinha saído do mau sonho. Sentámo-nos nos degraus da escada íngreme que
vai dar à Rua de Aude. Ouvia água a correr algures. Ela aproximou o seu rosto ao meu.
- Não faças caso do que te disse há pouco... Nada mudou... Está tudo exatamente como dantes...
Nessa noite de verão, aquele correr de água de uma cascata ou de uma fonte, aqueles degraus íngremes cavados na parede alta e de onde dominávamos a folhagem das
árvores... Tudo estava calmo e eu tinha a certeza de que se abriam diante de nós as linhas de fuga para o futuro.

* * *

Não retorno muitas vezes aos bairros do sul. É uma zona que acabou por se tornar numa paisagem interior, imaginária, ao ponto de me surpreender que nomes como Tombe-Issoire,
Glacière, Montsouris, o Castelo de la Reine Blanche figurem efetiva e claramente nos planos de Paris. Nunca mais voltei à Rua de Aude, a não ser em sonhos. Vejo-a
em diferentes estações. Das janelas do meu antigo quarto, está coberta de neve, mas se acedermos a ela através da avenida, pela escada íngreme, é sempre verão.
Em contrapartida, passei muita vez de carro pelo Cais de Henri-IV para ir à estação de Lyon. E sentia sempre um aperto no coração e uma espécie de inquietude. Uma
noite em que tinha apanhado um táxi ao sair da estação, disse ao taxista que parasse em frente ao 46r.c com o pretexto de que estava à espera de alguém. Cravei o
olhar na
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porta-cocheira. Tinha-a aberto mais ou menos à mesma hora num mês de julho. E nessa noite também era julho. Procurava contar os anos. Ao fim de algum tempo, o taxista
disse-me:
- Acha que a pessoa vem mesmo?
Pedi-lhe que esperasse um momento e saí do táxi. Quando cheguei diante da porta, chamou-me a atenção, à direita, o sistema de acesso com código. Naquele tempo, não
existia. Carreguei com o dedo indicador, ao acaso, em quatro números e na letra D. A porta manteve-se fechada. Voltei para o táxi.
- Esqueceu-se do número de código, hein! - comentou o taxista. - Continuamos à espera?
- Não.
Por vezes, nos meus sonhos, sei o número de código e não preciso de empurrar a porta. Assim que carrego com o indicador na letra D, a porta abre-se automaticamente
e fecha-se atrás de mim. O grande corredor de entrada está iluminado pela luz do dia que chega de uma vidraça do fundo. Vejo-me diante da outra porta, a do apartamento
do rés do chão, a porta de madeira maciça e clara que uma tal Sr.a Dorme devia ter-me aberto na outra noite de julho em que estava com Dannie. Espero um pouco antes
de tocar. Na porta há manchas de sol. Sinto-me leve, sim, liberto de um arrependimento de não sei que culpabilidade. Tudo será como dantes, ou melhor, nunca houve
nem antes nem depois nas nossas vidas, nem aquele "algo grave", aquela fratura, aquele entrave, aquele pecado original - tento em vão encontrar as palavras acertadas
-, aquele peso que arrastávamos apesar de sermos jovens e despreocupados. Vou tocar e o som será tão cristalino como na primeira noite. As portas abrir-se-ão de
par em par com o mesmo movimento lento que o da porta-cocheira e uma mulher loura dos seus cinquenta anos, traços regulares e vestida de maneira elegante, dir-me-á:
"A Dannie está à espera de si na sala." Será a Sr.a Dorme? Desperto sempre com esta pergunta, mas nunca obtenho resposta. No processo de Langlais, ela é citada e
são dadas várias informações sem importância. Não há nenhuma fotografia dela... "conhecida por Sr.a Dorme, associada a princípio de Paul Milani no "4" da Rua de
Douai... Diretora do Buffet 48... e da Étoile-Iéna... Teria comprado
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vários cavalos de corrida há quinze anos... É possível que tenha partido para a Suíça em data indeterminada..." Uma mulher sem rosto, como o morto que meteram num
carro estacionado diante do edifício. Cerca da uma hora da manhã, segundo declarou o porteiro do nº 46r.c, foi ele em pessoa que abriu a porta-cocheira para os deixar
passar. Eram quatro. Ele, o porteiro, não sabia que o homem estava morto; um dos que o seguravam disse-lhe apenas que o tipo teve uma indisposição e o levavam para
o Hospital Lariboisière. Porquê o Lariboisière? Ficava longe, na outra ponta de Paris. Na verdade, segundo as informações recolhidas por Langlais, o morto foi levado
"para o seu domicílio" para que lá pudesse morrer oficialmente na sua cama, sem que nunca chegasse a saber-se que tivera lugar num apartamento do rés do chão do
nº 46r.c do Cais de Henri-IV. O porteiro vinha notando, havia alguns meses, a partir das vinte e uma horas, e durante a noite, numerosas idas e vindas. Ouvia frequentemente
música, mas nessa noite, dissera ele, não havia barulho no apartamento. Tu devias estar com aquele a quem chamam "o morto", sem nunca dizer como se chamava. E, no
entanto, na parte de baixo de uma página, percebe-se que o nome foi escrito à máquina e depois apagado. Só se conseguem distinguir duas letras: um S e um V. Estavas,
pois, naquela noite, no apartamento com um desconhecido, com outras pessoas - uma reunião "bastante restrita", indica o relatório - e a tal Sr.a Dorme. O porteiro
ouviu dois disparos imediatamente antes da meia-noite. Ao fim de cerca de dez minutos, viu sair do apartamento dois homens e duas mulheres e, a seguir, "uma jovem",
que descreve com bastante precisão, porque havia vários meses que ia ao apartamento, tinha falado com ela várias vezes e recolhia com regularidade correspondência
que lhe era dirigida em nome de "Mireille Sampierry". Eras tu. Os outros quatro chegaram cerca de uma hora depois para transportar o homem sem nome e sem rosto no
carro estacionado diante do edifício. Uma das pessoas presentes nessa noite - um tal Jean Terrail - declarou que foste tu que disparaste, mas a arma pertencia ao
desconhecido, e que este te tinha ameaçado "de maneira brutal e obscena". Provavelmente, tinha bebido. Já cá não está para o dizer. É como se nunca tivesse existido.
Supõe-se que conseguiste tirar-lhe a arma, que disparaste, ou que os disparos "se
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deram por si" devido a um gesto demasiado brusco da tua parte. Duas balas perdidas? Os invólucros foram encontrados num quarto do apartamento durante a investigação.
Mas quem lhes abriu a porta? A Sr.a Dorme? Sobre ti, não há grande coisa no processo. Não nasceste em Casablanca, como me tinhas dito uma noite enquanto falávamos
de Aghamouri e de alguns frequentadores do Hotel Unic que tinham "laços estreitos" com Marrocos. Nasceste pura e simplesmente em Paris durante a guerra, dois anos
antes de mim. De pai desconhecido e de Andrée Lydia Roger, no nº 7 da Rua Narcisse-Diaz, 16ª circunscrição. Clínica Mirabeau. Mas algum tempo depois da guerra, é
dito que a tua mãe, Andrée Lydia Roger, está a morar no nº 16 da Rua Vitruve, na 20ª circunscrição. Porquê esta precisão e porquê esta passagem brusca da 16ª circunscrição
para o bairro de Charonne? Talvez só tu mo pudesses dizer. Não é mencionado o teu irmão Pierre, de quem me falavas muita vez. Eles sabem que vivias na Rua Blanche
com o nome de Mireille Sampierry, mas não dizem porque utilizavas esse nome. Não é feita qualquer alusão ao teu quarto na Cidade Universitária nem ao pavilhão dos
Estados Unidos. Nem à Avenida de Victor-Hugo. No entanto, acompanhava-te aí frequentemente e esperava-te por detrás do edifício com duas saídas. E tu voltavas sempre
com um maço de notas e eu perguntava-me quem to havia dado, mas disso eles não se aperceberam. Também não há nada acerca do pequeno apartamento da Avenida Félix-Faure
e da Barberie, a casa de campo em Feuilleuse. Sabem que foste para um quarto no Hotel Unic através de uma informação dada por "Davin", mas não pareciam ter pressa
de interrogar-te, de contrário bastaria esperar por ti no vestíbulo ou por um simples telefonema de "Davin" que os avisasse que estavas no hotel. Devem ter abandonado
rapidamente a investigação e, em qualquer caso, quando fui intimado por Langlais, tu já tinhas "desaparecido". Está escrito numa ficha. Desaparecida como a Sr.a
Dorme, cujo rasto não encontraram na Suíça.
Não sei se a investigação foi mal conduzida ou se as informações que têm guardadas nos seus arquivos sobre milhares e milhares de pessoas são tão incompletas, mas
confesso que me dececionaram. Julgava, até agora, que eles esquadrinhavam o coração e os pensamentos, que os seus ficheiros continham os mais ínfimos
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pormenores das nossas vidas, todos os nossos humildes segredos, e que estávamos à mercê dos seus silêncios. Mas que sabem realmente de nós dois, e de ti, além das
balas perdidas e do morto fantasma? No interrogatório que me obrigaram a assinar por baixo da fórmula "confirmo e assino", não lhes digo quase nada de ti. Nem de
mim. Digo-lhes que nos conhecemos há muito pouco tempo através de um estudante marroquino da Cidade Universitária e que também tu querias matricular-te na Faculdade
de Censier. E que nos vimos apenas durante três meses no Quartier Latin e em Montparnasse, entre os estudantes aplicados e os velhos pintores de cabelos ondulados
e jaquetas de veludo que frequentavam aquelas zonas. íamos ao cinema. E às livrarias. Especifiquei até que dávamos grandes passeios por Paris e pelo Bois de Boulogne.
Enquanto ia respondendo às perguntas nesse gabinete do Cais de Gesvres, ouvia o matraquear da máquina de escrever. Era o próprio Langlais que escrevia, com dois
dedos. Sim, também íamos aos cafés da Avenida Saint-Michel e, como não tínhamos muito dinheiro, comíamos por vezes na cantina da Cidade Universitária. E como Langlais
me tinha perguntado: "Que faziam nos tempos livres?", para, ao que me disse, "precisar melhor as nossas personalidades", acabei por lhe dar mais pormenores: frequentávamos
a cinemateca da Rua de Ulm e íamos inscrever-nos na Juventude Musical Francesa. Quando me fez perguntas acerca de Aghamouri e do hotel Unic, senti que estava em
terreno escorregadio. Tínhamos conhecido Aghamouri na cafetaria da Cidade Universitária. Realmente, para mim, era um simples estudante. Aliás, fui várias vezes ter
com ele a Censier depois das aulas. Não, nunca me passaria pela cabeça que pertencesse aos "serviços especiais marroquinos". Mas, afinal, era coisa que não nos dizia
respeito. E o Hotel Unic? Não, não fora Aghamouri que nos levara lá. Tinha ouvido dizer que se alugavam quartos no Hotel Unic, mesmo sendo-se menor de idade, e a
mim faltava-me um ano para a maioridade. Por isso arranjávamos lá um quarto de vez em quando, a minha amiga e eu. Reparei que Langlais não escreveu esta resposta
à máquina, e que todas as minhas mentiras lhe eram, aparentemente, indiferentes.
- Se bem percebi, então, Ghali Aghamouri nunca vos apresentou,
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à sua amiga e a si, a Duwelz, Marciano, Chastagnier e Georges B., conhecido por Rochard?
- Não... - respondi.
Enquanto batia as teclas com os dois dedos indicadores, ia dizendo a frase em meu lugar: "O denominado Aghamouri Ghali nunca apresentou os chamados Duwelz, Marciano,
Chastagnier e Rochard. A minha amiga e eu cruzávamo-nos apenas no vestíbulo do hotel." Depois sorriu-me e encolheu os ombros. Talvez pensasse como eu: no fundo,
todos aqueles pormenores não nos diziam respeito. Em breve deixariam de ter qualquer peso nas nossas vidas. Ficou pensativo um bom momento, de braços cruzados por
detrás da máquina de escrever, cabeça baixa, e pensei que se tivesse esquecido de mim. E com uma voz afável, sem olhar para mim, disse: "Sabe que a sua amiga esteve
dois anos presa na Petite-Roquette?" Sorriu-me, uma vez mais. Senti um aperto no coração. "Não era nada de muito grave... Esteve lá oito meses...", e estendeu-me
uma ficha que tentava ler rapidamente, pois tinha-a segura entre o polegar e o indicador e receava que ma tirasse da vista de um momento para o outro. As linhas
e as palavras dançavam-me diante dos olhos: "... furtos em vários armazéns de luxo... detida na Avenida de Victor-Hugo com uma carteira de pele de crocodilo... "Entrava
num armazém sem carteira. Lá dentro, escolhia uma e saía com ela... e fazia o mesmo com os casacos...""
Não me deu tempo de ler tudo e pousou a ficha sobre a secretária. Parecia embaraçado por me ter mostrado um tal documento... "Não era nada de muito grave", repetiu,
"infantilidades, cleptomania... Sabe o que dizem da cleptomania?" - estava espantado por o interrogatório se tornar, de repente, numa conversa normal, quase amiga,
entre nós - "falta de carinho... Rouba-se o que os outros nunca nos deram. Tinha falta de carinho?" Fixava-me com os seus grandes olhos azuis e eu tinha a sensação
de que estava a tentar ler-me os pensamentos e o conseguia.
- Evidentemente, agora está metida em algo muito mais sério... Aconteceu há três meses... mesmo antes de a ter conhecido... Morreu um homem.
Acho que fiquei muito pálido, porque os seus olhos azuis fixados
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em mim exprimiam agora uma certa inquietude. Parecia estar a espiar-me.
- Claro que pode considerar-se um acidente... duas balas perdidas...
Com um gesto de cansaço, meteu uma folha em branco na máquina de escrever e perguntou-me:
- A sua amiga nunca lhe confidenciou nada a respeito de uma noite, em setembro último, num apartamento do 46r.c, no Cais de Henri-IV, em Paris?
Respondi negativamente e voltei a ouvir o matraquear da máquina de escrever. A seguir, nova pergunta: "A sua amiga disse-lhe porque é que mudava continuamente de
nome?" Não estava ao corrente de tal pormenor mas, se estivesse, não teria estranhado grande coisa. Também eu tinha mudado de nome próprio e falsificado a minha
data de nascimento para ter mais idade e tornar-me maior. Em todo o caso, só a conhecia como "Dannie". Enquanto batia à máquina a minha resposta, soletrei-lhe o
nome porque me recordei do erro de ortografia que dera quando nos encontrámos a primeira vez.
- Deu-lhe sinal de vida desde que desapareceu e faz alguma ideia de onde possa estar?
A pergunta causou-me tal tristeza que fiquei em silêncio. Respondeu ele em meu lugar, batendo à máquina enquanto falava com os dois dedos indicadores: "A minha amiga
não deu qualquer sinal de vida desde que desapareceu e suponho que tenha partido para o estrangeiro."
Interrompeu-me:
- Nunca lhe falou numa tal senhora Dorme?
- Não.
Ficou a pensar por momentos e continuou em voz alta a bater nas teclas com os indicadores:
- ... Que tenha partido para o estrangeiro, provavelmente na companhia da denominada Méreux Hélène, conhecida por senhora Dorme.
Soltou um suspiro, como se se tivesse livrado de uma maçada. Estendeu-me a folha.
- Assine aqui.
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Também eu estava aliviado por ter acabado.
- É uma investigação de rotina que temos pendente há meses - referiu com cara de querer tranquilizar-me. - O caso vai com certeza ser esquecido... Supostamente,
o morto faleceu de morte natural no seu domicílio. Espero que não tenha consequências para si, mas nunca se sabe...
Eu procurava arranjar palavras amáveis antes de me ir embora.
- Escreve as declarações à máquina? - perguntei-lhe. - Parece que antes se escrevia tudo à mão.
- Tem razão. E a maioria dos inspetores na altura tinha uma letra estupenda. E redigia os relatórios num excelente francês.
Foi-me guiando pelo corredor e descemos as escadas juntos. Antes de nos separarmos, no vão da porta que dava para o cais, disse-me:
- Você também começou a escrever, pelo que me pareceu entender. À mão?
- Sim, à mão.

* * *

A Petite-Roquette foi demolida. No seu lugar está agora uma praça. Quando tinha os meus vinte anos, ia muitas vezes visitar um tal Adolfo Kaminsky, um fotógrafo
que vivia num dos edifícios grandes que bordejava a rua, em frente à prisão. Das suas janelas via-se, mais abaixo, o edifício em forma de hexágono, com as suas seis
torres. Era a época em que te tinham encarcerado naquele sítio, mas eu não sabia. A outra noite, eu estava à espera diante do portão da prisão, em frente à casa
de Kaminsky, e deixaram-me entrar. Levaram-me ao locutório. Mandaram-me sentar atrás de um separador de vidro e tu estavas sentada do outro lado. Falava-te e parecia
que me entendias, mas por mais que mexesses os lábios e colasses a fronte ao vidro, não ouvia a tua voz. Eu fazia-te perguntas: "Quem era a senhora Dorme? O morto
fantasma do Cais de Henri-IV? E a pessoa que visitavas tantas vezes no edifício de duas saídas enquanto eu ficava à tua espera?" Pelo movimento dos teus lábios,
via que tentavas responder-me, mas o vidro que nos separava abafava-te a voz. Um silêncio de aquário.
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Lembro-me de que passeávamos amiúde pelo bosque de Boulogne. Era a meio da tarde, os dias em que tinha de esperá-la na parte de trás do edifício da Avenida Victor-Hugo.
Nunca saberei por que razão Dannie saía por ali e não pela entrada principal, como se receasse cruzar-se com alguém àquela hora. íamos pela avenida até à Muette.
À medida que íamos andando pelo caminho dos lagos, sentia que tirava um peso de cima. Ela também, porque me dizia que seria bom que vivêssemos num quarto daqueles
blocos de edifícios na orla do bosque. Uma zona neutra, isolada de tudo, no meio de vizinhos cuja língua nem sequer compreenderíamos, de modo que não precisaríamos
de lhes falar nem de responder às suas perguntas. Não mais teríamos de prestar contas a ninguém. Acabaríamos por esquecer os buracos negros de Paris: o Hotel Unic,
a Petite-Roquette, o rés do chão do cais com o seu morto, todos esses maus lugares que nos davam, a um e ao outro, a forma de andar errática.
Um fim de tarde de outubro, fazia já noite e flutuava à nossa volta um aroma de folhas mortas, de terra molhada e estrebaria, caminhávamos ao longo do jardim de
aclimatação e tínhamos chegado ao lago de Saint-James. Sentámo-nos num banco. Eu estava preocupado por causa do manuscrito que tinha esquecido na casa de campo.
Dannie tinha-me dito que não podíamos voltar lá. Que seria perigoso para nós. Não me especificou realmente a natureza do perigo. Tinha ficado com as chaves da casa
de campo, bem como com a chave do apartamento da Avenida Félix-Faure, mas devia tê-las já devolvido há muito tempo. Suspeitava até que tivesse feito cópias sem que
os donos soubessem. Receava provavelmente que nos surpreendessem na casa como se fôssemos ladrões.
"Não te apoquentes, Jean. Havemos de acabar por recuperar o teu manuscrito." E acrescentou que eu levava as coisas demasiado a peito. Bastava vasculhar nos alfarrabistas
e escolher um daqueles velhos romances cujos escassos leitores já haviam morrido há muito e de cuja existência os vivos nem suspeitavam. E copiá-lo. À mão. E dizer
que era o autor.
- Que achas da minha ideia, Jean?
Já não sabia que responder-lhe. Lembrava-me da primeira frase do meu manuscrito: "É imperioso que volte a um período da minha
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juventude em que me chamavam o falso cavaleiro de Warwick..." Pensei para comigo que, com a ajuda do meu caderno preto, seria capaz de voltar a escrever e a corrigir
aquelas páginas perdidas. No fundo, ela tinha razão. Quase teria a impressão de que estava a copiá-las. À mão. É o que estou a fazer agora.
Dannie tinha-se abraçado a mim e repetiu em voz baixa: "Não te apoquentes, Jean..."
Pouco tempo depois, uma manhã, encontrei um sobrescrito que tinham metido por baixo da porta do meu quarto:

Jean,

Parto e desta vez é provável que não nos vejamos por muito tempo. Não te digo para onde vou porque nem eu própria sei. Não me encontrarás no sítio para onde vou.
Estarei muito longe - e, seja como for, não estarei em Paris. Se parto, é porque não queria arranjar-te problemas...

P.S. - Preguei-te uma mentirinha que me pesa na consciência. Não tenho 21 anos como te tinha dito. Tenho 24. Bem vês, não tarda, estarei velha.

Tinha copiado a carta de um antigo romance que compráramos uma tarde nos cais. Ainda a ouço dizer: "Não te apoquentes, Jean..." O bosque, os passeios vazios, a massa
escura dos edifícios, uma janela iluminada que nos dá a impressão de termos esquecido de apagar a luz numa outra vida, ou de que alguém ainda espera por nós... Deves estar escondida nesses bairros. Com que nome? Hei de acabar por dar com a rua. Mas o tempo é sempre curto e todos os dias penso para comigo que fica para outra vez.

 

 

                                                                  Patrick Modiano

 

 

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