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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCADA / Carlos Gouveia e Melo
A ESCADA / Carlos Gouveia e Melo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Sérgio Louro acordou e achou tudo normal: o quarto no mesmo sítio, as paredes da mesma cor, os ruídos habituais vindos do mesmo lado, o Cruas, o seu companheiro gato, a olhá-lo, no parapeito da janela: tudo normal.

Levantou-se. Na casa de banho repetiu com maior ou menor precisão os gestos de sempre e sentiu-se pronto como um produto na prateleira do supermercado. À saída dos lavabos não viu ninguém pelas portas entreabertas que serviam o corredor. Seria já o único na residencial? Embora não fosse estranho não era todavia costume. Mas o assunto não lhe mereceu mais atenção e, de novo no quarto, olhou-se, pela última vez, ao espelho: estava, de facto, pronto.

Saiu. Cruas, já empoleirado em cima da cómoda, viu-o partir: finalmente só, em casa!

Distraído com o aperfeiçoar do nó da gravata, tarefa que o entretinha enquanto descia os degraus - o prédio era antigo e sem elevador - Sérgio não deu de início por qualquer diferença: pareceram-lhe os mesmos noventa e nove patamares que, habitualmente, o conduziam à rua. Quantos galgara até compreender que não acabavam nunca?

Duzentos? Quatrocentos?

 

 

 

 

 

 

Assustou-se. Olhou para cima e não ficou mais calmo: na direcção de onde saíra (ou presumia ter saído?) não via senão mais escada, e tanta que a perdia de vista!

Entrara por que sítio? Fora dar aonde? Esfregou os olhos: não dormia. O desespero tomou-o e correu pelos degraus abaixo.

Quanto tempo mais? Cinco minutos? Uma hora? Extenuado, parou, mas nada de essencial mudara: a escada prolongava-se para o fundo e, naturalmente, crescera para o alto. Censurando-se por ainda o não ter feito, lembrou-se de bater numa porta perguntando o que se passava. Escolheu um lado direito, por provável afinidade com aquele onde morava.

Tocou. Delicadamente, apesar da ansiedade. Silêncio. Tocou de novo. Não havia ninguém? Seria uma casa desocupada? Tocou do outro lado.

Surgiu uma mulher.

- Que deseja?

O roupão deixava-lhe as pernas escanzeladas à mostra e, com os dentes saídos, ciciava: o cuspo acumulava-se-lhe nos cantos da boca. Talvez não fosse agradável viver com ela mas o problema de Sérgio era outro.

- A senhora... - Dizer o quê? Queixar-se do prédio? Acusá-lo de crescer? Perguntar onde se encontrava? A mulher não o consideraria doido? Ou, no fundo, desconfiava já de si? - A senhora mora aqui?

- Sim... Isto é... - Elsa hesitou e Sérgio intuiu que as coisas, ali, também não iam claras. Mas ela reganhou energia e, limpando com a língua, num movimento rápi

do de quem o faz muitas vezes ao dia, o cuspo nas comissuras dos lábios, elucidou: - Passo cá algum tempo...

- Ah, sim!... - exclamou ele como se apenas falasse

com uma vizinha, encontrada por acaso.

- O senhor é ... ?

- Moro no... - Ia a dizer "quarto andar" mas, pensando no sucedido, resignou-se e emendou: - Isto é: lá para cima... - E como quem procura algo de seguro e irrefutável em que se apoiar, acrescentou: - Chamo-me Sérgio Louro... Sou comissionista na Nada e Tudo, Lda. Vendo frigoríficos e arcas congeladoras... - Mais calmo, voltou ao assunto: - A escada...

A mulher sorriu.

- A escada? Não percebo o que diz...

- Não a consigo acabar. Está sempre a crescer..

O homem era suspeito. O primo que a albergava enquanto ela não arranjava sítio recomendara-lhe: "Todo o cuidado com a porta é pouco! Nunca a abras sem primeiro saber quem é! ". Desobedecera e agora sentia-se insegura. Imaginou o estranho a forçar a entrada, a roubar tudo, o primo a chegar a casa, a encontrá-la vazia e a ela violada! já em pânico, Elsa levou a mão ao trinco.

- Desculpe, estou ocupada... Sérgio, apesar de também aflito, compreendeu-lhe o receio: o assunto era deveras estranho. E se a escada se tomara interminável a mulher ainda não o notara.

Elsa tartamudeou nova desculpa e fechou apressadamente a porta.

Sentado num degrau, a cabeça entre as mãos, Sérgio Louro chorou como uma criança perdida dos pais. Por fim, sentiu-se roçado por uma coisa peluda e fofa: o Cruas!

- Tu aqui! - Por momentos imaginou o animal a responder-lhe em linguagem humana e, mais se assustou. Desta feita Sérgio esfregou os olhos até doerem. Mas as coisas continuaram idênticas e o Cruas ronronava em sinal de que o reconhecia. Pareceu-lhe, aliás, que o gato se queixava do que descera para ali chegar. E claro, fora ele, Sérgio Louro, quem não fechara bem a porta da residencial e o bicho escapulira-se! Que fazer? Tomar à pensão? Levá-lo a casa? A extensão dos degraus a perderem-se no alto, desanimou-o. Não. Regressar não queria. O importante era chegar à rua.

A rua!

Com Cruas atrás, e sempre a falar muito como era seu hábito, Sérgio retomou, resignado mas esperançoso, a já longa descida.

Andares mais abaixo ouvia-se uma porta que abria e fechava, a lembrar o expediente de um escritório em hora de grande actividade. Sem paciência para descer devagar, Sérgio Louro pôs-se a saltar dois degraus de cada vez, atingindo em pouco tempo o patamar em questão: lá estava a

porta a movimentar-se de um lado para o outro, como nos saloons dos filmes de far-west, com gente a entrar e a sair.

O alívio perante a descoberta foi tão grande que Sérgio julgou desmaiar de felicidade.

- O senhor tem alguma coisa? Sente-se mal? Precisa de ajuda? - Era um homem vestido com um fato impecável azul, e saía.

- Não... Não... Muito obrigado. Estou... Isto é... quero chegar à rua...

- A rua? - O indivíduo desatou a rir. - A rua! Ah! Ah! Essa é boa! A rua! Ah! Ah! - Apesar do aspecto idóneo, Sérgio intuiu que ele seria louco. O homem parou de rir. Com um ar já severo admoestou-o: - Para que queres tu a rua, meu esterco? Sim, para que queres tu a

rua? Queres mijar nela, é? - Sérgio obrigou-se a não o contrariar e o fulano, ajeitando o nó da gravata, deixou-o para seguir escadas abaixo, muito senhor de si.

já sem ver o Cruas - talvez o encontrasse noutro lance da escada... - Sérgio deu-se de novo conta da singula

ridade da sua situação . Do lado de lá da porta vinha um barulho de máquinas e empurrou-a: era uma companhia de seguros.

Uma mulher atendia.

- Faça o favor de dizer..

- Eu queria... - Embora tivesse para si que o homem do riso seria maluco, Sérgio intimidou-se ao explicar:

- Sabe, procuro...

- Procura...

- Gostava de ir à rua...

- Bom... - A empregada adaptou-se à questão:

- Temos vários seguros   ... o roubo com ou sem espancamento... a perda de vida ... o empurrão... o esmagamento... o atropelo com ou sem dolo... a colisão ou simples pisadela... o rapto... o desmaio com ou sem perda de memória... a desorientação ou mera perda...

A lista não acabava mas Sendo só reagiu quando a mulher enumerou os seguros para os animais domésticos. Lembrando o Cruas e imaginando-o perdido Sérgio entristeceu.

- Não é isso. Não a encontro... A rua... - Baixava o volume da voz como se já referisse algo clandestino.

A empregada - bonita, ar despachado, lábios muito pintados - com quem ele não se importaria de marcar um encontro pareceu finalmente compreendê-lo. Com um olhar furtivo em volta e, num registo também baixo, a imitar porventura o do interlocutor, ela retorquiu:

- Mas não há nada a saber! É sempre a descer!

- Pois é... Há algum tempo que tento...

- Sim? - Falava de novo num registo mais alto. Não sabia porquê mas o modo como a agente se expressava soou-lhe de repente falso, como se dirigido a mais alguém que, por perto, a devesse ouvir. - E então?

- Não chego. A escada cresce e cresce e cresce...

- Ora! Mas é sempre a descer! - repetiu ela sem fazer caso da queixa. E acentuou como quem confirma algo impensável doutra maneira:         Sempre foi a descer, é claro!

Observou-a. Aceitaria convite para uma bebida? Se tentasse? Talvez pudessem conversar sobre o que sucedia porque, afinal de contas, havia tanta coisa, isto é, quase tudo, por esclarecer. Ousou:

- Posso   ...?

- Pode   ...? Ela incitava-o?

Não nos podíamos encontrar? Estou confuso... Precisa de ajuda? Sem ser para seguros quero dizer? Eu... - Ia a acrescentar "sou de pouco préstimo", mas o homem talvez estivesse em piores condições que as suas. Calou-se. Sim, por que não encontrar-se com ele? Não tem mal algum... - Se quiser...

- Quero sim. Onde?

- Mais abaixo há um bar. Às cinco? Despediram-se. A luz surgia na escada? Pelo menos Sérgio Louro abandonou a agência mais satisfeito. E ao mesmo tempo, diga-se, surpreendido por descobrir a seguradora e um bar no prédio da residencial onde há vários anos habitava,

Como fora possível nunca ter reparado? Faltava algum tempo para a hora do encontro. Daria para chegar à rua e voltar? Se tentasse?...

Um rapaz subia. Sérgio Louro apontou-lhe o sentido descendente da escada:

- Desculpa. - Utilizou o "tu" para conseguir uma maior cumplicidade. - Sabes se isto leva à rua?

O interpelado, como que ouvindo uma pergunta inútil, arregalou os olhos e ergueu as sobrancelhas.

- Mas claro que sim! Eu nunca lá fui nem na verdade tenho essa necessidade, ando muito ocupado a tirar o meu curso e ainda o andarei mais a arranjar emprego, a consti

tuir família, a criar os filhos e depois, lá para diante, a conseguir um bom lar para morrer sem dar muito nas vistas! - Fez uma pausa. - Mas certamente que sim, certamente lá em baixo tudo isto termina na saída, porque perguntas isso?

Sérgio, estupefacto, olhava-o sem dizer palavra. Mas uma coisa, pelo menos, parecia certa: a escada terminava ainda na rua. O problema residiria apenas nos degraus.

O outro aproveitou o silêncio para se despedir:

- Desculpa, mas tenho de ir andando. Neste momento nem estou a trabalhar para mim mas para o meu irmão mais velho, o anterior a mim que ainda não terminou o curso e precisa de fazê-lo - Fez um silêncio - para que

eu o faça também. - E concluiu: - As coisas, como sabes, têm as suas regras e não lhes podemos dar a volta: é o que nos ensina o pai que ainda ajuda o avô... - Outra pausa, desta feita insinuando que a cadeia de socorro familiar estava longe de se esgotar naquele patamar: - Mas é claro que sim, a rua é lá no fundo! Sempre o foi e as coisas não mudarão muito neste aspecto. Sabes como a população é conservadora quanto a alguns valores... Olhou para cima e para baixo, a ver se vinha alguém e

baixou a voz: - Cá por mim, gostava da rua bem lá no alto, no cimo de tudo...

Com um ar comprometido de quem disse coisa perigosa, o jovem retomou a subida.

Se não fosse o rendez-vous com a agente de seguros Sérgio Louro atirar-se,ia da escada abaixo?

Não sabia. Mas lembrou a figura simpática da funcionária e, por momentos, esqueceu os degraus, a preocupação de alcançar o seu termo, a perda do Cruas, tudo o que naquela manhã lhe caíra em cima.

Eram quinze e quarenta e cinco. Que fazer? Aguardar a entrevista?

Ou descer mais lances? Como o bar também ficava para baixo conciliou as duas hipóteses. Ainda mal começara a descida e um homem, vindo do alto, passou a grande velocidade. Sérgio dirigiu-se-lhe:

- Desculpe, vai para a rua?

- Vou sim. Porquê?

O indivíduo, que andaria pelos trinta anos, calções, camisa desportiva e a fralda de fora, abrandou. Dado o comprimento das escadas seria o traje mais adequado ao percurso?

- Porque também vou para lá... Posso acompanhá-lo? perguntou quase a medo Sérgio.

- Evidentemente! Evidentemente!

O homem retomou a corrida saltando dois degraus de uma só vez e, até, três. Não habituado ao ritmo, Sérgio Louro receou magoar-se. Mas pensou que assim chegariam mais depressa e, ao cabo de alguns lances, já se acostumara. Os dois homens tomaram a falar. Foi o desconhecido que reiniciou a conversa:

- Desce há muito?

- Desde esta manhã...

- Ah!

O outro começou a saltar quatro degraus de cada vez.

Apanhado de surpresa, Sérgio conseguiu ainda imitá-lo. Mas o estranho ia muito depressa.

- Tem que ir assim tão rápido?

- Há que chegar antes que tranquem a porta!

- Trancar a porta?

- Sim, com a chave-mestra. Entre a escada e a rua havia mais obstáculos? Quase receando esclarecer-se Sérgio fez todavia um esforço:

- Explique-me!

- Então não sabe que só abrem a porta duas horas em cada quatro?

Quer dizer que podemos chegar lá abaixo e ela... Evidentemente! Evidentemente! Mas não falemos demasiado! Podemo-nos distrair e dar uma queda! Vamos saltar de cinco em cinco?

- Não sei se consigo!

- Agarre-se bem ao corrimão! Provocavam um barulho tremendo mas não surgia ninguém a reclamar. Passaram o patamar onde um dístico dizia BAR e Sérgio receou desencontrar-se da funcionária dos seguros. Mas se alcançasse a rua resolveria o seu problema, não precisando dela para nada. Pena tê-la achado tão atraente...

- Sabe... - As palavras saíam-lhe como se não as comandasse: - Eu se calhar vou fazer uma pausa...

- já não quer descer?

- Sim, quero. Mas... conheci alguém e... marquei um encontro.

- Ah, estou a ver! Vai desistir!

- Não é nada disso. Estou disposto a ir até ao fim, mas...

- Pois sim, pois sim! - retorquiu o outro. - Cá por mim continuo. Ou agora ou nunca! - Sérgio parou e ele fez o mesmo, olhando-o bem de frente: - Cheguei ao

momento da verdade, entende? Não posso esperar mais! Por isso vou tão depressa. São anos e anos a adiar e agora tem de ser! jurei-o a mim mesmo! - Citou a frase de H. Miller "até quando se pode adiar o inadiável" e recomeçou a descida, saltando seis degraus de uma vez.

Sérgio viu-o afundar-se no edifício. Recusara sair? Não compreendia a decisão: encontrara alguém que também ia para a rua e repudiara a companhia! Porquê? Por causa da agente de seguros? Apaixonara-se? Encostado ao corrimão não sabia o que pensar. Mas pouco tempo decorrera e já o homem dos calções surgia de novo. Galgando agora os degraus gritava:

- Esqueci-me dos documentos! E uma maçada! Tenho que voltar lá acima! É uma maçada!

Sérgio abandonou-o definitivamente à sua pressa e espreitou para baixo: os degraus eram tantos que não distinguia o fundo: a rua? A última porta? Por outro lado: como se chamaria a empregada dos seguros? Que diriam um ao outro? A consciência de trocar a saída por uma aventura

inquietava-o mas retomou a subida. Porém, absorvido nas suas questões, não deu por que um homem, de olhos vendados e guiando-se com a ajuda de uma bengala, descia: os dois esbarraram.

- Oh, perdão! - exclamou Sérgio. O invisual no entanto agrediu-o com a bengala. - O que faz? É doido? Pare com isso! Eu não fui contra si de propósito! Você é que esbarrou comigo!

Sérgio protegia a cabeça entre os braços e fugia com o

corpo mas o agressor encurralara-o num canto e fustigava-o. Por fim, saciado, ou suspendendo a sova devido ao cansaço, o estranho acalmou para, de imediato, retomar a descida, desaparecendo a grande velocidade. Sérgio mal teve tempo de lhe reparar no dístico colado na lapela do casaco: cego, surdo e mudo.

O relógio indicava a hora do encontro e faltava subir muitos lances: mesmo que galgasse os degraus a dois e dois ou, até, a três e três, Sérgio chegaria ao bar com, pelo menos, meia hora de atraso! Era necessário que a mulher o desejasse bastante para aguardar tanto tempo.

Sentindo-se o homem mais desamparado do mundo começou todavia a subida.

O bar tinha mesas e em todas havia um candeeiro. A escassa luz concentrava-se nelas deixando o resto na obscuridade. As dimensões do espaço não eram assim distintas nem se distinguia quem lá estava. Mas sentia-se o local cheio. Sérgio percorreu as mesas perscrutando de perto quem as ocupava. Espantado, descobriu um grupo elegantemente vestido que jogava à roleta-russa. Um dos sobreviventes convidou-o:

- Há lugar para mais um! Queira ter a bondade de se acomodar!

- Desculpe, mas estou muito ocupado.

- E nós não? - perguntou o jogador baixando a cabeça para o chão onde se acumulavam alguns cadáveres. Um outro também se lhes referiu:

- Assim não é correcto! Levam imenso tempo a retirar os corpos! Não tarda cheiram mal e entretanto já incomodam! E certamente dão mau aspecto!

Seria possível? Não se trataria de uma actividade parateatral?

- Os senhores... - Ia a perguntar: @<Estão a sério?" mas um dos participantes carregando no gatilho caiu para o lado e Sérgio mal teve tempo de se desviar, para não levar com massa encefálica em cima. Apanhado no meio do jogo, sem saber o que dizer ou fazer, viu a pistola, com indisfarçada sofreguidão, ser tirada da mão do morto.

- Então? Sempre experimenta? - perguntou a jogadora seguinte, uma mulher de bela cabeleira ruiva, já de arma apontada.

Não... Acho... que... - Sérgio titubeava nauseado pelo espectáculo. Ela, sofreando o desejo de disparar, afastou um pouco a pistola da fronte e incitou-o:

- Oh, porquê? É tão excitante! Conhece algum jogo melhor? Os outros entediam tanto! Ao fim de certo tempo tomam-se sempre monótonos! - E sem esperar mais encostou de novo a arma a si premindo o gatilho. Ouviu-se um "clic" seco e a sobrevivente ofereceu-lhe o revólver:

- Tome. Este meu colega... - Indicou o jogador à direita. - Dá-lhe a vez! Aceite!

Se morresse naquele momento fá-lo-ia antes de ver a agente de seguros e não o queria. O desejo era estranho porque mal a conhecera mas entretanto a ruiva persistia:

- Experimente! Não tem nada de mal! Vai ver como é tonificante!

É que... se calhar estou apaixonado... Eu amo... Ama! - comentaram os jogadores uns para os outros enquanto um aproveitou para lamentar:

- Coitado! É uma vítima dos sentimentos! Se calhar ainda crê que o Sol anda à volta da Terra!

Receando que não o entendessem Sérgio emendou:

- Eu quero viver! - E aí todos em coro protestaram:

- Ah, mas isso também nós!

- Nós também queremos viver!

- Ora essa! Só um doente é que se mata!

- Sim - explicou outro -, é necessário ter o instinto de conservação muito deteriorado para praticar um tal acto. - Por momentos pareceu que discutiam acerca da vida humana e alguém disse em tom de conclusão:

- Morrer é apenas um azar! Mais nada! Gotas de suor caíam pelo rosto de Sérgio Louro enquanto os dos jogadores se apresentavam frios e serenos. Uma voz apoiou o colega:

- Sim. Muito bem dito! Um azar! Como ir na rua e cair-nos um tijolo em cima!

Ao ouvir a palavra "rua" Sérgio, de novo consciente do que lhe sucedia e como se essa lucidez fosse impossível de suportar, desmaiou. Um dos parceiros, ao vê-lo prostrado, sentenciou:

- Os fracos caem sempre perto! - E acrescentou, como se os outros o entendessem: - Blá-blá-blá-blá-blá-blá.

O revólver foi tomado pelo jogador seguinte: um estampido e o corpo caiu sobre o de Sérgio que, abalado pelo choque, voltou a si. Mas já ninguém lhe ligou e pôde afastar-se tranquilo. Porém o fato sujara-se no sangue dos cadáveres e Sérgio achou melhor limpá-lo numa casa de banho: não queria ir ao encontro naquele estado, se é que, de facto, ela ainda o aguardava... Vendo um adolescente vestido de uniforme azul com dragonas douradas Sérgio dirigiu-se-lhe: - Por favor, indique-me os lavabos...

Mas o outro, em vez de responder, agarrou-lhe um braço e numa voz ansiosa pediu encarecidamente:

Ensine-me como se vai para a rua! Ensine-me! Oh, ensine-me!     Sérgio ia a responder "Mas é pela escada, naturalmente!" quando de novo recordou a sua própria situação.

- Pela escada, não é? - proferiu então, mas já num

tom de dúvida, talvez impotência e, com certeza, insegurança. Não continuara a descida por causa do encontro mas, no fundo, pressentia algo de mais grave, embora não soubesse o quê. Deixara de haver saída? Ele e os demais, incluindo o Cruas, estariam a partir dali condenados a viverem sobre si? Fechados? Levou as mãos aos olhos e o adolescente imitou-o. Também ele não queria acreditar no que sucedia? Sérgio fez um esforço e reafirmou:

- Pois, a escada. É pela escada. - E repetiu uma terceira vez, com a convicção de quem quer sair de um sonho mau: - Pela escada, é claro!

- Mas - balbuciou o outro - eu já tentei e... não encontrei!

- Não encontrou?

- Sim. Não há nada. É isso!

- Como assim? Nada? Teriam incumbido o jovem de espalhar aquela notícia falsa, e claro, para... A hipótese era disparatada e Sérgio interrompeu o raciocínio. Reparou uma vez mais no uniforme do interlocutor:

É empregado aqui? Sabe onde ficam os lavabos? Não. Não sou. Mas o meu fato sujou-se e emprestaram-me este... - Sérgio escandalizou-se: tê-lo-iam convidado para a roleta? A um adolescente? Teriam os outros ousado isso?

- Não me diga que... - Começou a dizer mas calou-se. O mais novo não o compreendeu e achou-o mesmo estranho, além de não lhe ver utilidade: não só desconhecia o caminho para a rua como, de certeza, ainda acabaria por lhe dar uma indicação falsa, à semelhança de tantos mais!

Dezenas de projectores acenderam-se e uma orquestra atacou o bolero de Ravel. Do tecto desceu uma plataforma onde uma rapariga executava uma frenética dança do ventre, Sérgio reconheceu nela a agente de seguros e logo sentiu o impulso de se aproximar do palco.

Dominou-se.

O adolescente desaparecera e urgia encontrar os lavabos. Sem desviar os olhos da pista, Sérgio tropeçava aqui e além. Um homem com não mais que um metro de altura e a quem pisou, zangou-se:

- Olhe lá para a frente! Que raio! Como quer chegar a algum lado assim! Fite o alvo e ele atraí-lo-á! - Sérgio não entendeu o que o outro dizia mas ele ainda resmungou: - Raça de imbecis! Confundem altura e poder!

- O indivíduo atirou-lhe um pontapé às canelas e sumiu-se em redor.

já a coxear Sérgio descobriu finalmente a porta do WC. Entretanto, na obscuridade, os espectadores imitavam grotescamente a mestria da agente na dança do ventre. Na casa de banho, porém, Sérgio teve nova surpresa: empoleirado no lavatório como habitualmente fazia em casa, o Cruas bebia água.

- Então, meu caro? Também vieste refrescar-te? Isto está difícil, não é? Pelo que me diz respeito, foi uma gata que me trouxe cá! Olha adeus e não te percas!

O Cruas a falar correcto português?! Alucinado, Sérgio Louro bebeu sofregamente da torneira, deixando a água escorrer pela cabeça como se o líquido limpasse tudo: imagens, pensamentos e nódoas! Ao cabo de algum tempo, mais calmo, fresco e, de facto, todo molhado viu que devia tirar a roupa para a secar no secador de mãos. Um homem entrou e encontrou-o em cuecas.

- Há muito que estás à minha espera?

- Mas eu não estou à sua espera!

- Então não és tu? - O desconhecido encarava-o como se esperasse qualquer coisa extraordinária do encontro. Na precipitação Sérgio acabou por responder:

- Não. Não sou eu! Idiota! Então não era ele? Estaria ali o cerne da questão? Naquela manhã acordara outro? O pensamento absorveu-o e

media agora as consequências: não ser o mesmo... Não ser sempre o mesmo... Agora era algures que procurava a rua, que via animais falarem, que... Estou doido! Completamente doido!

O homem insistia em olhá-lo, como se não estivesse convencido de que Sérgio não era quem ele julgava. já a

zangar-se com a teimosia do intruso, Louro deu-se conta de que encostara demasiado a roupa ao secador: um pouco por todo lado o fato queimara-se e apresentava enormes buracos! Nunca pensara que o tecido durasse toda a vida mas que fosse tão frágil era demais! Furioso, lançou a raiva por tudo o que lhe acontecia sobre o desconhecido:

- É você o culpado! Vem para aqui exigir que eu seja não sei quem e distraiu-me, está a ver? Está a ver? - Fora de si, excitado, à beira de um ataque de nervos, a voz tornara-se-lhe quase tão aguda como a de um soprano.

Está a ver? Esta...

O fulano vendo-o aos berros e naquela figura teve o bom senso de fugir dali para fora. Não sem pensar que os lavabos públicos são cada vez mais perigosos para uma pessoa de bem. _ Isto qualquer dia só se sai com escolta! - E bateu a porta com força.

De novo só, Sérgio vestiu o fato e olhou-se no espelho, lembrava um vagabundo dos filmes de Chaplin! Via-se a

roupa interior pelos buracos! Como ir ao encontro naquela figura? Tanto mais que a funcionária, da forma como ali se mostrava, possuiria imensos admiradores que no final a rodeariam. Destroçado como um náufrago cuja bóia a onda leva, Sérgio não sabia onde arranjar coragem para chegar à rua. Nem sequer via o Cruas ou a sua miragem!

Um bando de adolescentes entrou nos lavabos preparando com grande alarido uma droga. Ignoravam-no, faziam como se lá não estivesse e Sérgio atribuiu o facto ao seu novo aspecto: quantas vezes ele próprio não passara pelos miseráveis estendidos nas bermas dos passeios e nem os olhara, num misto de desprezo e pena Por não vencerem na vida! E agora? Como fora possível?

Deixou a casa de banho. Terminado o espectáculo grupos de espectadores gritavam em coro o nome da sua amada:

- Katy! Katy! Só ele não se lhe podia juntar para comemorarem o êxito! O desejo de lhe falar fazia-o mesmo Pensar que ela não o informara daquele trabalho para o surpreender. E afinal...

Sem se conformar, andando propositad:4mente pelas zonas mais obscuras do bat, Sérgio perguntava-se onde substituir o fato. Num prédio tão grande como este de certeza que há um prontO-a-vestir.. E se a Katy trabalha aqui, posso sempre encontrá-la! É isso! - decidiu. - Vou depressa ver se me mudo!

Dirigiu-se para a porta que dizia "Saída" e encontrou-se de novo no patamar, frente à outra por onde entrara.

O bar ocupava o piso todo.

Embora indiferente aos diversos credos, era porventura a influência cristã que levava Sérgio Louro a procurar a penumbra e o silêncio dos templos quando queria reflectir ou tomar decisões importantes. Se Deus lá estava, ou não, era-lhe indiferente, pois habituava-se a reflectir sozinho. Mas ali não conhecia nenhuma igreja e para resolver os seus problemas urgia uma reflexão. Aliás, o dia avançara e convinha justificar a falta no emprego.

Telefonaria. Infelizmente na noite anterior o Cruas - já em idade adulta mas brincando com tanto prazer como se continuasse infante - fizera cair o telemóvel e quebrara-o: Sérgio precisava de um telefone. No bar haveria um e, de novo, penetrou na atmosfera que pouco antes deixara.

Na pista exibia-se um rapaz magrizela em traje de palhaço. Sérgio não lhe ligou. Descobriu cabinas telefónicas num nicho e dirigiu-se para lá. No entanto, um homem veio-lhe ao caminho. Num tom cortês, embora firme, disse-lhe:

- Queira desculpar - o tom pretendia ser de súplica mas o senhor não pode andar aqui assim vestido... Se quiser passar para o nosso outro bar no andar de cima... Nele sentir-se-á mais à vontade...

- No andar de cima?

- Sim... - confirmou solicitamente o fulano que, de smoking, parecia o chefe de sala e olhava em tomo como que a verificar se tudo decorria como previsto. - Como vê... - concluiu - as pessoas aqui vestem de forma diferente da sua e... - Interrompeu a frase dando a entender que nem seria educado terminá-la. Ou que, fazendo-o, só corroboraria o bom fundamento da sua intervenção...

- Eu apenas quero telefonar. E estou neste estado devido a um incidente na casa de banho...

Ia informá-lo de que o fato se queimara mas isso acontecera também devido à sua fraca qualidade e Sérgio não quis reconhecê-lo perante quem, ainda por cima, o admoestava. Mas a sugestão do outro era de facto boa: procuraria um lugar onde não desse nas vistas e aí trataria então do vestuário.

- Por favor, venha comigo. Vou conduzi-lo a um local onde também há telefone - disse o homem num tom sempre amável.

Seguiu o funcionário com uma sensação de alívio: alguém se interessava pela sua sorte! Lembrou-se de lhe contar o que realmente o preocupava mas hesitou: compreenderia ele o problema? Com receio de ser mal entendido, preferiu de novo o silêncio. Afinal onde fazia falta era na Nada e Tudo e à empresa, sobretudo, é que importava o não ter ainda chegado à rua. A ela, sim, poria ao corrente do sucedido. O fulano conduziu-o para um elevador disfarçado atrás de uma cortina.

Na pista, desaparecido o palhaço, uma orquestra composta de africanos iniciou um espiritual. Ouvindo-o enquanto o elevador se afastava, pareceu a Sérgio que o conjunto tocava para a sua ascensão.

O chefe de sala, remetido ao papel de guia, calara-se. Passou um minuto. Estranhou a distância entre apenas dois pisos. Mas

com a colecção de factos que desde manhã se sucediam melhor era deixar de classificá-los como bizarros. Vivia um dia singular e oxalá tudo terminasse em bem. Ou seja, oxalá pudesse regressar ao quarto na residencial Vitória, abrir a cama e ver o Cruas enroscado a seus pés, o gato e ele entregues a um sono conciliador depois de mais um

dia de vida.

Voltou à realidade e ao desejo de telefonar. Dadas as

mudanças por que passava a Nada e Tudo, Lda. era mesmo melhor saberem por que faltava. Havia, pois, que fazer a ligação, substituir o fato, encontrar a mulher e sair dali para fora. Sérgio quase receou que o dia fosse curto para tanta tarefa. Porque a escada... Quanto tempo levaria a descê-la? A não ser que o elevador levasse também ao exterior... Com animação e esperança interrogou o guia:

- Isto chega lá abaixo? - Lá abaixo?

- Sim, à rua!

- Ah, a rua...

O homem ficou contemplativo a olhar algo que Sérgio Louro não via mas que não lhe seria menos real.

O ascensor parou. O funcionário abriu cerimoniosamente a porta:

- Faça o obséquio. Não insistiu na pergunta: o melhor seria despachar-se. Se substituísse o fato, telefonasse para a empresa, e encontrasse a funcionária, poder-se-ia entregar à descida. E, certamente antes do anoitecer chegaria ao fim de tudo.

Isto é: da escada.

O espaço onde entrou - sozinho porque o funcionário ficara no elevador - era grande como um hangar ou cais de estação. Ao contrário do outro andar apresentava-se claro e sem luxo. Devia ser uma plataforma de espera: gigantescas filas de gente entrecruzavam-se, de modo que à primeira vista não era fácil perceber quem estava numa ou fazia parte da fila do lado. Tão-pouco entendia para que serviam - não havia tabuletas a índicar secções ou departamentos - ou onde começavam. Lembrou as palavras do guia que ali o trouxera: "se quiser passar para o nosso outro bar". Levariam as bichas a um livre-serviço?

A urgência no telefonema fê-lo concentrar-se na busca da cabina. Encontrou-a, com outras, num recanto.

Uma fila de gente queria também servir-se dos aparelhos mas despachou-se rapidamente. Aliás todos naquele enorme espaço pareciam apressados e entre as bichas havia movimentos furtivos de umas para as outras como se, de vez em quando, os de uma pensassem que chegariam mais depressa ao respectivo objectivo se mudassem para a do lado. Da firma atenderam:

- Nada e Tudo, Lda. - disse uma voz automática.

- Passe-me à manutenção, por favor. Do outro lado houve uma pausa entretida por uma música em voga.

- Que deseja?

- Fala Sérgio Louro, ligue-me ao chefe Silva, por favor.

Alguns segundos.

- Aqui chefe Silva. O que é que quer?

- Chefe, aconteceu uma coisa estranha. Não consigo chegar à rua!

- O quê? O que é que diz?

- Que ainda aí não cheguei porque não encontro a saída do meu prédio!

- Mas quem fala?

- Sérgio, Sérgio Louro, o seu vendedor.

- Mas diz o quê? Que não consegue chegar à rua? Caramba! Você está onde?

- No meu prédio. Estou no meu prédio. Isto é... Aconteceu qualquer coisa...

- Qualquer coisa?

- Sim... Narrou o sucedido desde que saíra de casa mas o outro interrompeu-o:

-- Estou a ver.. Estou a ver.. Caramba! Não consegue chegar à rua? Você tem trabalhado muito! Caramba!... Chegar à rua é difícil, eu sei... Olhe, Sérgio, consulte o seu médico, ponha-se em forma e vai ver que consegue... Caramba! Isso mesmo: há-de conseguir! Caramba!... Eu consegui, percebe? Lembre-se do meu exemplo! Olhe que é possível... E não se esqueça, vá ao médico! Peça-lhe baixa que eu aqui trato do assunto... Caramba! Mas tente, homem, tente! Olhe que é possível! Lembre-se de mim... do meu exemplo! Caramba!

Surgiram na linha vozes que tomaram a conversação impraticável e a ligação acabou cortada.

Sentindo-se de novo como criança perdida no caminho para casa, Sérgio ganhara no entanto uma razão de peso para a sua esperança: o Silva conseguira!

As bichas continuavam como se lá, onde tinham início, não houvesse qualquer avanço: à parte os furtivos movimentos dos que passavam de umas para as outras, não se notava mais nenhuma mudança.

Sérgio Louro, saído da cabina e observando em redor, conjecturou sobre o que faria esperar tanta gente. Um homem deu-lhe um encontrão grunhindo com maus modos:

- Chegue-se para lá! Eu estou à sua frente!

- Sim,senhor.. Sim, senhor - concordou Sérgio de imediato que, de facto e sem querer, se aproximara demasiado duma das filas. Mas, apesar da antipatia do outro, perguntou-lhe:

- E está à minha frente para quê?

- Para quê? Para quê o quê? Estou à sua frente e é tudo! Ora essa!

- Sim, senhor! O senhor está primeiro, eu também vi que esse senhor chegou depois - disse logo uma voz em

socorro do que reclamava e outras mais se levantaram também a opinar sobre as precedências.

O assunto era indiferente a Sérgio Louro que nem sabia por que haveria de estar na bicha mas nenhum dos que intervinham no debate se parecia importar com isso. Dava a ideia de que, entediados pela espera, o incidente os divertia e nem o desejavam resolvido. Porém as vozes assanhavam-se: se havia umas tantas a favor do homem também já Sérgio ganhara adeptos e a luta tomou-se renhida.

Na confusão afastou-se. Fazendo o balanço da situação continuava sem fato, sem encontrar a agente de seguros, ganhara dispensa do emprego e devia ir ao médico pedir baixa. Além, é claro, de ter de resolver o problema da escada! O chefe, afinal, tomara-se uma referência: ele conseguira e, segundo percebera, passara por algo idêntico. Portanto, não estava maluco, não tresvariara durante o sono e tudo se apresentava normal. Havia, apenas, que manter a cabeça fria, não cometendo nenhum erro de que se viesse a arrepender quando as coisas se deslindassem e atingisse a rua.

Cansaço. Andava naquilo desde manhãzinha e ainda não almoçara. Como o homem do smoking dissera, havia ali um bar: iria lá comer e voltaria para saber da utilidade da espera. Com fome, Sérgio Louro não resolvia coisa alguma e esta sua característica vinha de longe, dos tempos de estudante, tomando dela consciência sentiu-se melhor: a sua personagem existia, possuía hábitos antigos. Postos à prova.

Na vastidão do hangar e no meio de tanta gente modestamente vestida, com vagabundos aqui e além pedinchando, Sérgio Louro, no seu fato esburacado mas de bom corte, quase passava por um rico excêntrico. Com o à-vontade que o estar bem com o meio nos prodigaliza, instalou-se ao balcão do bar.

- Que deseja? - perguntou o empregado, um rapaz simpático com a cara cheia de borbulhas.

- O combinado número cinco e uma taça de vinho.

- Muito bem. Outros como ele comiam refeições rápidas e Sérgio reconheceu rostos que, pouco antes, engrossavam as fileiras de gente. Prometeu a si mesmo que, se algum deles se sentasse a seu lado, entabularia conversa procurando tirar a limpo a razão de tanta espera.

Coisa importante devia ser.

O rapaz trouxe o combinado. Esvaziada a taça enquanto aguardava a comida, Sérgio pediu outra. Sentindo-se melhor lembrou-se do Silva. O chefe teria razão: o que ele, Sérgio Louro, necessitava era

de descanso! Quantas preocupações não nascem exclusivamente de uma sobrecarga de trabalho?

Um homem aproximou-se. Pediu lume. Embora não fumasse, Sérgio Louro trazia sempre consigo uma fábrica de fogo: ofereceu-lha. Mas vira o fulano numa das filas e meteu conversa:

O senhor desculpe se o incomodo... estava há bocado numa das bichas. Importa-se de me explicar para que servem?

- As bichas? - O homem reagiu como se a resposta fosse evidente e inútil. - Mas é para ir prá rua! - E olhou-o com um ar que punha em dúvida a sanidade mental do autor da pergunta! - Para a rua, ora para que é que havia de ser!

A cabeça de Sérgio trabalhou a grande velocidade: portanto àquela gente sucedera o mesmo que consigo mas

tendo todos descoberto a resolução do problema obrigavam-se à medonha espera! Mas os degraus, a velha escada?

- Por que não utilizam a escada? A escada não conduz lá abaixo?

- A escada? Manuel, que já não sabia há quanto tempo por ali andava, na esperança de encontrar uma saída, e pensava até no suicídio como a única possível, teve vontade de perguntar ao intruso de onde viera, ou se não troçava dele fazendo-se inocente, Mas, pela maneira clara e directa como o outro o olhava, estava, sem dúvida, diante de um simplório, um desses fulanos que, de tão afastados de tudo, perguntam o inconcebível, por mero desconhecimento das regras do jogo; vítimas, afinal, dos que as conhecem e não lhes respeitam a pureza. Ele, no entanto, considerando-se diferente, instruiu o desconhecido na melhor das intenções:

- É claro! A escada está sempre à disposição mas não se sabe de ninguém que tenha chegado ao fim, e depois, com a confusão que reina por todo o lado, nem mesmo há a certeza de que a rua seja para baixo! Suponha o senhor

- continuou cheio de boa vontade - que tudo isto não passa de uma imensa cave e o nosso objectivo fica no último andar? Ou no meio? Vá-se lá saber! - Manuel, habituado a que ninguém o escutasse, via já no esfarrapado um enviado dos céus e, sentindo-se útil, falava, pela primeira vez desde há muito, com verdadeiro entusiasmo: - É claro! Vá-se lá saber! Hoje em dia os prédios tanto podem ter trinta andares para cima como mais tantos no sentido contrário e, logo, toma-se difícil acertar com o piso certo... Este é um dos problemas, outro... - Calou-se. Manuel parara talvez para ordenar melhor o pensamento e Sérgio não o quis interromper. Chegara ao fim do combinado, e a refeição, ainda que pequena, satisfizera-o. O outro bebeu um trago de vinho e retomou: - A escada tomou-se muito insegura, compreende? Tanto pode levar à rua como não, além de... - Sérgio lembrou o telefonema para o Silva e achou por bem informar:

- O Silva chegou à rua pela escada.

- Como?

- O Silva! O Silva conseguiu!

- O Silva?

- Sim, o Silva!

- Pela escada?

- Sim, pela escada. Houve um silêncio: Manuel refazia-se da notícia.

- Pela escada, mesmo?

- Sim, pela escada. Falei com ele há pouco.

- O chefe?

- Sim, o meu chefe, o Silva!

O desconhecido fez um sorriso que Sérgio não podia compreender. Nova pausa, e o primeiro quis saber:

- Como se chama?

- Sérgio Louro. Manuel apresentou-se. Convidou-o para um copo.

- Com que então o chefe conseguiu?

- Foi o que ele me disse. E incentivou-me a não desistir ... ... A comunidade deve ouvir os profetas porque são eles que lhe dão ânimo...

- O senhor importa-se de dizer a outros o que me disse a mim, isto é, que... a escada tem saída?

Embora espantado pelo rumo da conversa, Sérgio, até por honestidade para com alguém tão sedento das suas palavras, informou:

- Em todo o caso o chefe disse-me que antes de tentar eu devia preparar-me.

- Claro, uma meditação prévia...

- Repousar.. Ficar bem... Talvez fazer uma paragem... Sérgio, no entanto, não queria aprofundar demasiado o que o Silva lhe dissera: graças ao que o outro contava, ao tempo decorrido desde o telefonema, as palavras do superior já não lhe soavam tão claras. Mas Manuel parecia entendê-las:

- Pois, ele quis dizer que tudo se ganha, tudo se merece... - E voltou com mais força à ideia: - Não quer mesmo discursar para as massas? Tomar-se o seu profeta? Você ouviu a voz do Chefe!

- Quem? Eu?

- Sim, você! Sabe que há muitos que se suicidam por não encontrarem a saída? Se lhes falar do Silva pode ajudá-los a manterem a esperança. É um gesto humanitário... Você acredita no que diz, ao passo que muitos que nos prometem a salvação é só para se promoverem e ganharem dinheiro. Faça-o por nós! Ajude-nos!

Que diria o Silva? Ia perguntar se o outro não estaria doido mas coibiu-se. A verdade e que ele próprio ainda ali estava e os das filas também... Mas por que não andavam elas? As portas eram estreitas? Manuel porém não parava:

- Então, decide-se a ser Aquele?

- Aquele?

- Sim, o profeta da saída! Nós precisamos de um, isto é, de um autêntico. Repare, eu     ... Eu quando lhe pedi lume... Estava a cair no desespero ... Precisava de ouvir alguém... Que alguém me falasse e   ... Encontrei-o! Isto não lhe diz nada?

"Talvez coincidência ... ", pensou Sérgio, que, para evitar no interlocutor a recaída nos abismos da desesperança, preferiu no entanto perguntar:

- Mas por que é que as bichas não andam?

- Também não sabe, não é? Você está mesmo imaculado contra o desespero... É como se acabasse de chegar cheio de força e energia! E é o que é, não é verdade?

- Mas diga-me, por que razão as bichas não andam?

- Bem... E porque... Se calhar não há saída!

O empregado viu as taças de vinho vazias e perguntou se as deveria encher.

Disseram que sim. Entre os dois homens fizera-se um pesado silêncio. Sérgio Louro percebera o valor do testemunho do Silva e desejava já ouvi-lo dizer de novo que a rua existia como consequência da escada e que esta a justificava. Manuel pegou noutro cigarro. Mais uma vez pediu lume. Estava nervoso senão esgotado.

- Então? Compreende agora a importância do que sabe?

- Sim, isto é, acho que talvez... - debatia-se com questões que nunca imaginara. - Deixe-me ir telefonar ao chefe...

- Falar outra vez com ele?

- Sim. Confirmar o que ouvi há bocado.

- Acha possível?

- Por que não? Basta chegar a um telefone!

- Pois... - comentou o outro enigmaticamente.

- Temos de tirar isto a limpo. De certeza que o Silva não se vai desdizer.

Manuel pagou a segunda rodada. Saíram. Atravessaram de novo as bichas. Desta vez, Sérgio olhou-as de forma diferente, imaginando-se numa, pacientemente aguardando sem mesmo saber se ela levaria aonde queria. Ficava ali, apenas para não perder o lugar, caso elas subitamente avançassem, esvaziando o espaço do cheiro a suor e da paciência que já o tomara. Aqui e além reacendiam-se rixas por causa das precedências. Nas cabinas telefónicas havia também uma longa fila de espera. Os dois homens integraram-na, mantendo-se calados. Sérgio Louro teve vontade de perguntar ao outro se conheceria a agente de seguros mas, em vez disso, deu por si a ouvir bocados das conversas dos que telefonavam:

- Olha, ainda aqui estou! - dizia uma mulher nova vestida de saia muito curta e casaco amarelo. - Pedi para me guardarem o lugar e vim telefonar-te. Isto não anda nem desanda! Começo a desesperar! - No outro extremo responderam certamente com palavras de esperança porque ela retorquiu: - Oxalá seja assim!

Noutra cabina falava um homem:

- É para dizer que finalmente arranjei bilhetes para a Rua. Continua esgotado mas um amigo deu-me convites! Sim, às nove horas. Até logo!

Conseguido um telefone, Sérgio discou o número. Atenderam. Pediu que ligassem ao Silva.

- Chefe Silva? Já não é aqui. Passou para a sede.

- Ah!... E não será possível ligar-me para lá? Ou seja, não poderei falar com ele agora?

- E muito difícil. Anda sempre em reuniões e está totalmente incomunicável.

O desânimo invadiu-o. A seu lado Manuel intuía o que diziam ao seu novel companheiro. Este desligou.

- Acabou. O Silva foi transferido. Devem-no ter passado para outro escalão.

- É normal. Ele conseguiu e quem consegue fica logo outro. É o que dizem as escrituras.

- As escrituras?

- Sim. Os escritos! Os profetas! É necessário espalhar a boa nova. O exemplo do Chefe deve ficar conhecido. Venha falar à multidão. Você conheceu-o...

- Mas eu nem sequer sei...

- Não tem importância! O que interessa é o que se diz. Com ou sem jeito a esperança tem de ser propagada. Veja! - Manuel apontara para um estrado onde, elevando-se sobre a multidão, um homem perorava.

- Aquele além é um falso profeta: um vendilhão do templo!

Aproximaram-se.

O indivíduo, um tipo esquálido, de fato muito apertado e gravata a condizer, ameaçava de dedo no ar:

- Quem não me seguir não consegue! E quem não consegue ficará para sempre danado! A Lei é só uma e por isso raros são os que alcançam! Conseguir exige sacrifício!

- De dedo sempre em riste, apontou um desgraçado que, no meio da multidão e do seu lugar na fila, o escutava piamente: - Tu aí! Será que estás em paz com a tua consciência? Será que pagaste o teu imposto? Será que não pecaste por pensamentos? Será que fizeste hoje tudo o que devias ter feito? Será que perdoaste ao teu vizinho? Será que... - A lista das exigências era grande. A multidão pôs-se a olhar para quem o orador apontava. Esquecera a espera e, suspensa das palavras, evidenciava já má vontade contra o interpelado. Este, sentindo aumentar a tensão em redor, começou a recear o que lhe pudessem fazer. Mas o orador não desistia: - Sim, pelos teus pecados é que nós pagamos! Pelo teu mal é que nós somos obrigados a esperar tempos e tempos e mesmo assim tudo é duvidoso e

nevoento! Pela tua imprevidência é que ficamos todos conspurcados!

- A morte! À morte!

As vozes vinham daqui e d'além e logo outras se seguiram, procurando o homem já mudar de sítio, perder-se no meio de todos, fugir ao dedo espetado do profeta. Ele insistia:

- Enquanto houver um ímpio não há saída para ninguém! O pecado tem de ser exterminado da face da Terra! Não podemos pagar pelas faltas dos outros! Todos somos responsáveis por cada um e cada qual tem nas suas mãos o destino de todos!, Esta é a verdade!

- A morte! A morte! Matem-no! Matem-no! Queremos a saída! Queremos a saída!

Pegaram no culpado arremessando-o de uns para os outros como uma bola de andebol. A vítima gritava mas logo deixou de se lhe ver o corpo ou ouvir a voz.

Fez-se um prolongado silêncio. Cada um temeu ser o próximo denunciado. Porém o orador propôs:

- Vamos rezar pela paz e pela nossa salvação! Sérgio Louro estava sem fôlego. Assistira a uma barbaridade mas conteve-se de expressar o seu descontentamento. Entretanto a multidão concentrara-se de novo na preservação do lugar que cada um ocupava na espera.

O pregador, efusivamente cumprimentado e rodeado por um corpo de segurança, abandonou o palco.

Sérgio estava de novo só. Nunca lhe passara pela cabeça tomar-se profeta ou anunciar o Silva! Que fossem para o diabo!

Que fazer? Continuava com o fato por trocar, necessitava como o chefe aconselhara - de passar pelo médico e

tinha ainda esperança de ver a agente de seguros. O melhor, de facto, era começar pelo pronto-a-vestir. Com esta intenção, mas também levado pelo receio de reencontrar Manuel, procurou a saída.

O ambiente tomara-se de novo pesado e triste à semelhança de quando ali desembarcara.

Perto da porta para a escada um rapazito entregou-lhe um prospecto. Dizia:

"Reza e conseguirás!"

Por prudência guardou-o. Mas o bolso estava todo esburacado e a folha caiu no chão. Sérgio apanhou-a sob o olhar desconfiado do miúdo.

Uma criança com ar de querubim.

Sentado num degrau, Sérgio Louro adormeceu.

O sono foi agitado e cheio de sonhos. Um dizia respeito ao chefe: nas vestes de um ser alado e luminoso, ele incitava-o a não desistir, a fazer o que devia, independentemente das condições serem ou não adversas:

- Para a frente! Para a frente! - dizia o Silva batendo celestialmente as asas. Com a sua ajuda, Sérgio encontrava a agente de seguros e partia com ela para uma terra inundada de água: Veneza?

Acordou. Um indivíduo de ar severo observava-o, talvez um dos locatários do andar, impressionado pelo facto de um vagabundo lhe dormir à porta. Sérgio levantou-se:

- Acho que... - balbuciou enquanto fazia por despertar. - Acho que... adormeci... - Mas lembrando-se do pronto-a-vestir, mais o clínico a consultar, perguntou, antes que o outro dissesse alguma coisa: - Por acaso, sabe onde é o posto médico? - O lógico seria o interlocutor responder: "O senhor está enganado, no prédio não há consultório algum", mas a esperança de que isto acontecesse era já longínqua. Lançando um olhar rápido em ambos os sentidos pelo vão da escada Sérgio verificou que a

situação se mantinha e, mesmo em baixo (no fim de tudo?), formara-se uma névoa que não deixava ver mais degraus. Desanimado, a voz sumida, explicou ao indivíduo que, calado, o continuava a fitar: - O meu chefe recomendou-me que fosse ao médico e também preciso de substituir o fato. Sucedeu-me um imprevisto...

O homem, de boa aparência, entre os cinquenta e os

sessenta anos, falou:

- Se quiser posso ajudá-lo. Venha comigo. Moro aqui mesmo. - Sérgio ia a dizer eu também" mas receou que a frase fosse já incorrecta. O outro insistiu: - Não faça cerimónia. É mesmo aqui...

Talvez fosse bom, ainda que por breves momentos, o conforto do interior de uma casa.

Aceitou.

- E muito gentil. Se me permite descansarei um pouco... O dia tem sido estranho...

- Venha. Chamo-me Mário. E você?

- Sérgio. Sérgio Louro.

- O meu apelido é Silva. Mário Silva.

- Como o meu chefe - disse Sérgio, como que vendo na coincidência um motivo para se animar. Mas o outro não o compreendera:

- Disse?

- Disse que o meu chefe na Nada e Tudo, Lda. Se chama também Silva.

O homem não respondeu. Começaram a descer os degraus. Ao cabo de alguns lances pararam frente a uma porta. Mário abriu-a.

- Faça o favor de entrar. Era um hall atulhado de livros e, de repente, Sérgio recordou-se de algo que o deixou exultante: naquela casa de certeza haveria janelas e, através de uma, veria a altura a que estava da rua! A lembrança causou-lhe tal excitação que Mário, notando-lha mas interpretando-a a seu modo, o sossegou:

- Fique descansado. Aqui estamos em paz e livres do burburinho lá de fora. Nada o perturbará. - Sérgio ouviu, calou-se mas, de si para si, sorriu: "Nada o perturbará! ". Como se a invulgaridade do que, desde manhãzinha, lhe acontecia, não tivesse, daí em diante, contaminado tudo de um carácter excepcional e único! Mesmo aquela visita, noutras circunstâncias porventura corriqueira, não se tinha tornado já um "acontecimento "?

"Nada o perturbará!" Como se ele fosse uma mera máquina registadora de acontecimentos. - Podemo-nos sentar aqui - convidou Mário depois de seguirem pelo corredor e desembocarem numa sala.

Uma projecção gigantesca, na vasta parede fronteira ao enorme sofá, representava árvores, um rio, uma cascata por entre pedras e, ao fundo, montes cobertos de neve. Ouvia-se o pilrear de pássaros e o correr fresco da água. A temperatura era agradável, o ambiente perfumado mas não havia qualquer janela. No entanto, não pensasse Sérgio na utilidade para si de um tal buraco, provavelmente nem lhe notaria a ausência. Porém, decepcionado, com raiva ao espaço, não se conteve e comentou:

- Não tem janelas.

- janela? - repetiu Mário como se guardasse a palavra nos esconsos da memória: - janela?

- Sim, janela!       corroborou já energicamente Sérgio.

- Claro! Claro!     anuiu Mário ao ver a exaltação do outro. Depois, com todo o cuidado, por nada deste mundo queria desentender-se com a visita que tanto lhe agradava tornou ao assunto: - Disse "janela"?...

- Sim, janela - confirmou Sérgio aparentemente mais calmo. E recordando a origem da palavra na língua que ambos falavam, citou-a: - Januella, januellae...

Mário, definitivamente convencido da importância para o outro do objecto em questão, tentou ainda satisfazê-lo.

- Deixe ver. Talvez consiga. É só um momento...

- Numa estante procurou um livro e voltou a sentar-se junto do hóspede. Abriu o volume, um grosso e respeitável dicionário. Folheou-o. - Ah, estou a ver... Pois, janela... - E com a naturalidade de quem, sem problemas, chama as coisas pelo seu devido nome, confessou: - Não. Não tenho. Lamento muito mas não tenho mesmo... Fechando o calhamaço, explicou perante o mal disfarça do pasmo de Sérgio: - Podia ver no terminal mas sou dos antigos: gosto imenso de livros como deve ter reparado logo à entrada... - E parecendo lembrar-se de algo acrescentou: - Mas talvez sim, ora deixe ver... - Manipulou um comando: uma ampla vidraça com vista para uma estufa repleta de plantas substituiu o rio, a cascata e os montes. Sérgio Louro teve o impulso de se levantar para ir até lá, mas a meio caminho ficou paralisado: o que ia fazer? Sorridente e satisfeito consigo próprio Mário, de comando na mão, olhava-o: - É isto, não é? Sabe, estes mecanismos contêm tantas possibilidades que mal chegamos a utilizá-los numa décima parte! Gosta? Talvez haja outros modelos... - E enquanto teclava no dispositivo, repetia, como criança que brinca com uma nova palavra: - Januella, januellae, janue... - De pé, Sérgio Louro não ousava aproximar-se da parede nem sentar-se no sofá. O outro, descoberto o filão, divertia-se a projectar as mais diversas janelas, desde clarabóias incrustadas em tectos a largas panorâmicas sobre o mar. - Sente-se aqui junto de mim... Qual prefere?

Através dos vidros via-se um pomar. Ao longe um homem e uma mulher nus, animais: o paraíso. Mas Sérgio Louro, como um sonâmbulo, percorria o espaço que o separava do sofá e, ao mesmo tempo, pela forma afectuosa como o outro o convidara a juntar-se-lhe, entendia claraMente o significado do convite. Ainda mais derrotado, reagiu lembrando-se de Katy, das suas belas formas, do seu

corpo ondulando ao som da música. Sem se sentar, desculpou-se:

- Se não se importa, tenho de ir. Marquei um encontro e não posso demorar mais. Virei noutra altura, sim?

- Oh que pena... Iria ser tão agradável... Afinal, sempre tenho januellas! Nunca mais esquecerei a palavra, sabe? E logo mudou a projecção para outra também com inexcedíveis vistas: o gosto de Mário, formado por constantes viagens através dos melhores museus e em contacto com as mais destacadas obras de arte, era a

toda a prova.

Sérgio, como que tolhido, encaminhou-se para o corredor:

- Desculpe-me, sim?

- Eu conduzo-o à porta. - O tom era de pesar evidente. Nos seus melhores momentos, Mário, unindo ética e estética, sentia-se um guardião da humanidade e Sérgio, que lhe parecera abandonado e perdido no meio da escada, despertara-lhe esse sentimento. Tal convicção, que aceitava como mero delírio, ajudava-o no entanto a manter-se vivo: era a sua loucura e não prejudicava ninguém.

- Venha sempre que quiser. Olharemos todas as janelas que existem no programa... - Atravessavam o corredor e Sérgio lembrou-se de perguntar se ele nunca vira janelas a sério. Mas recordando o imbróglio que a palavra ocasionara, foi-se abaixo: caíram-lhe lágrimas. Mário não reparou porque a passagem era iluminada por uma luz indirecta e escassa. Porém, ao agradecer a estadia, a voz da visita estava embargada por um misto de raiva e impotência. O anfitrião ofereceu-lhe um cartão. - Tem a certeza de que se sente melhor? Não quer ficar mais um bocado? - E como se intuísse que ao outro fora claro o seu desejo, sentiu-se na necessidade de tranquilizá-lo: - Eu não faço mal...

- Não. Não é isso. É que... já não sabia o que dizia. Na iminência de forte ataque de choro Sérgio pegou com rapidez, senão violência, no cartão de visita e saiu porta fora, fechando-a atrás de si com estrondo.

Mário ficou especado. Sem perceber por que o hóspede partira tão bruscamente caiu por fim em si: há quanto tempo não recebia a

carícia de um ser que o quisesse mesmo, há quanto tempo não se entregava a alguém, há quanto tempo...?

Cambaleando pelo corredor até à sala olhou por momentos a vista. De uma gaveta tirou uma velha relíquia: a voz de Piaf no La Vie en Rose. E cansado da incompreensão humana deu um tiro na nuca.

Fora, ouvia-se o mar.

O dia estava claro e límpido.

Assustado pela forma violenta como se despedira de Mário e com o estrondo da porta ainda nos tímpanos, Sérgio Louro desceu desenfreadamente a escada, como se fugisse de alguém ou apenas de si.

Por fim, parou. Estava de certeza muito mais abaixo e não encontrara senão a mesma coisa: portas - duas e por vezes três em cada andar - mas nenhuma para a rua. A não ser... Sim, como a escada já não era a que durante anos e anos de sensata residência na pensão Vitória conhecera, talvez a rua também não fosse mais lá no fundo. Ou seja: como Manuel dissera, era provável que tudo consistisse numa imensa cave e a saída fosse no cimo ou numa das muitas portas que cruzara. Deveria daí em diante bater em todas, verificando o que estaria para além delas? Observou o cartão de visita que o homem lhe dera:

Mário Intermediário.

Ia deitá-lo fora mas guardou-o, tendo o cuidado de o colocar num dos bolsos sem buracos. Não fosse a esperança de ainda encontrar Katy já nem se lembraria do fato roto! Em todo o caso, que tinham os outros a ver com a sua imagem? Não era o seu único senhor? Ao pensar nisto

rememorou as palavras do Silva aconselhando-o a consultar o médico. Mas onde?

Debruçado do corrimão tentou ver se haveria muitos mais andares para baixo. Mas lá continuava no fim de tudo a névoa a impedi-lo de lobrigar para diante! Aliás o nevoeiro podia estar a meio da escada: dizer que ele se formara no fundo não passava de especulação.

Sem motivo para preferir um sentido a outro, desceu degraus como um jogador solitário que, para passar o tempo, ou até por impossibilidade de fazer outra coisa, tira cartas de um baralho, e as coloca na mesa: elas lá estão mas ele não constrói jogo algum.

Desceu centenas e centenas de degraus, dezenas e dezenas de lances, talvez cem a cento e cinquenta andares' descobrindo que a tarefa o acalmava, mesmo se, por vezes, a inquietação o invadia: não terminava nunca? Mas a maior parte do tempo nem nisso pensava, mudando o sentido e tornando a subir o já descido para, de seguida e devagar, repisar os mesmos degraus. Talvez parecesse louco, mas loucura era o que lhe estava a acontecer e não fora ele quem construíra o prédio.

Passou em revista a vida. Não fora famosa e, em comparação com o sucedido, nem, em boa verdade, podia afirmar que as coisas haviam sido sempre claras ou o seu sentido evidente. Algumas descobria, enquanto naquele abaixo e acima insano, que as realizara por razões diferentes das que pensara, e outras para as quais nem sequer via já racionalmente motivo, ao contrário do que então se convencera. A odisseia que desde manhã vivia deixou de parecer assim tão bizarra e se a constatação o entristeceu, também o reconfortou: o absurdo da jornada vinha de longe e, se até ali sobrevivera, as coisas podiam continuar idênticas. Ou haveria um limite?

Lembrou-se das filas de espera. Se era possível passar sem a rua (explicando-se assim as gargalhadas com que, lá atrás, o homem do fato azul a referira?) por que não desistiam os das bichas? A questão não deixava Sérgio Louro entregar-se completamente ao mero subir e descer: no fundo, o desejo obrigava-o à saída. Mas viria isso de si ou do hábito de se dirigir diariamente à Nada e Tudo, Lda2 De facto, a rua para quê? Não poderiam passar sem ela? O que, desde manhãzinha, intentava não se tomara inútil ou a sua necessidade mesmo um sinal de fraqueza? Teria sido por isso que ainda só encontrara duas pessoas decididas a descer: o inválido e o corredor que, aliás, voltara para cima? A rua não se tomara também um outro absurdo como os demais descobertos na sua vida? Ou já era o tanto andar acima e abaixo que lhe punha a cabeça à roda, incapaz de pensamento lúcido e o melhor seria nem confiar, dadas as circunstâncias, na própria capacidade reflexiva, sendo preferível resignar-se a fazer as coisas como sempre fizera, e descer a escada, convencendo-se de que, se até ao dia anterior resultara e fora normal chegar à rua, não havia razão alguma para não ser mais uma vez assim? Isto é: não seria mais seguro submeter-se à tradição, cujos efeitos já pusera à prova?

Entre subidas e descidas Sérgio Louro quase não acreditou no que os seus olhos viam: Katy, sentada num degrau e com o rosto escondido nas mãos, como ele há algum tempo antes, chorava!

- Katy, minha boa Katy! Antonieta, surpreendida pelo desconhecido que solicitamente lhe oferecia um lenço com que limpasse as lágrimas, recompôs-se o melhor que pôde e ergueu-se. Mas o homem, lendo-lhe o espanto no Olhar, atribuiu-o à figura em que se apresentava, e apontou os buracos do fato:

- Queimou-se! Ficou todo queimado! Por isso não fui ao encontro! Peço mil desculpas!

- Quem é você? Não o conheço...

- Mas Katy!...

- Katy é a minha irmã! Está a tomar-me pela minha irmã gémea! - Lembrou a frequência com que lhe sucediam estas situações e apesar de tudo sorriu. - Somos muito parecidas, é isso...

Quer dizer que não trabalha na seguradora?

- Não. Sim. Isto é: trabalhava... Ou seja... - Não desejava fazê-lo junto do desconhecido mas explodiu: - Fui despedida! Puseram-me na rua!

- Na rua? Foi até lá? Ultrapassou o nevoeiro?

- Você é doido ou goza comigo? Despediram-me, não compreende? Estou mesmo em baixo! Deixe-me, por favor! Deixe-me!

- Mas, se trabalha na seguradora, encontrámo-nos. Eu vi-a dançar!

- Oh não! Quem dança no bar é a minha irmã, sempre a minha irmã! - Tais confusões saturavam-na tanto mais quanto, possuindo má memória visual, muitas vezes

nem sabia se conhecia ou não as pessoas que a cumprimentavam. Não teria conversado com o fulano ao balcão da agência? Apesar de se encontrar num estado lastimável, pareceu-lhe simpático. - Você conheceu foi a minha irmã gémea, a Katy. Ela dança no Nirvana.

- O nome do bar não sei. Fui lá ter por... - Emendou. Ela não disse como se chamava...       Ouvi tratarem-na por Katy. Acha mesmo que não marcamos encontro quando falámos na agência? Se calhar foi consigo e a confusão veio depois...

A expressão gélida da mulher tirou a Sérgio Louro qualquer veleidade na insistência. Convencido de que devia começar pelo princípio, apresentou-se.

- Agora já nos conhecemos... Estava a chorar quando a encontrei. Foi despedida?

- Eu e a minha irmã trabalhamos na mesma empresa. Entrámos ao mesmo tempo e uma de nós vai ter de sair, isto é, não renovam o contrato a uma de nós. Só querem uma. Mas somos ambas competentes e fisicamente idênticas...

- Então isso quer dizer que... Não tem de ser você!

- Pois não. Eles deixam-nos a escolha. Mas somos muito amigas, percebe? Percebe? - Repetia a palavra como se Sérgio não a pudesse de facto compreender. Em seguida estendeu-lhe a mão e começou a afastar-se na direcção ascendente. - Quer que cumprimente a Katy?

- Tem a certeza que não foi consigo que marquei encontro

É possível. É possível... - Galgara meio lance de escadas e virara-se para trás: a posição realçava-lhe a figura. - A gente corre tanto durante o dia que não se lembra de tudo. Se calhar até nos fazia mal...

Sorriu tristemente, virou-se para a frente e desapareceu, tragada pelos degraus.

Sérgio ouviu-lhe o pisar leve, por fim a sua ausência, tomava-o uma impressão de grande desconforto. Teria sido aquela mulher que tanto o atraíra?

Ou a irmã?

Parado num patamar, Sérgio Louro lembrava uma estátua que ali haviam esquecido.

Uma criança colocou-lhe um prospecto nas mãos. Saindo finalmente do seu torpor, olhou o papel sem lhe perceber a utilidade. Nele, impressas a grandes letras negras para se verem ao longe, três frases, umas por debaixo das outras, como nas listas oftálmicas, mas todas com os caracteres do mesmo tamanho. Assim

O CAMINHO É SILVA! CRÊ EM SILVA! SEGUE A SILVA!

A petiza desaparecera, não se ouvindo nem a subir, nem a descer.

Que significava aquilo?

O chefe divinizado?

O facínora do Silva, bilioso, colérico, sempre a praguejar e com pêlos a saírem-lhe do nariz, elevado à categoria de deus ou guru?

Não podia ser! Não podia mesmo ser! No entanto era o que ali estava! E se calhar.. Se calhar, dado o encontro com Manuel, fora ele, Sérgio Louro, quem contribuíra para o acontecimento! Ou seja: ainda que involuntariamente tomara-se o apóstolo do Silva! Tomado pelo espanto nem reparou que a mesma criança corria para baixo, deixando-lhe nas mãos segundo prospecto. Quis alcançá-la mas perdeu-a de vista na fundura do edifício.

O novo papel convocava para a pregação de um tal Manuel que tivera conhecimento da palavra do Silva!

Enojado, Sérgio Louro amarrotou o folheto e também aquele que, por não ousar destruí-lo frente ao miúdo que lho dera, conservara na algibeira. Amassou-os numa bola que lançou pelo vão da escada.

Encontrava-se só, perdido, e nem na aparência se reconhecia!

Reflectia nisto quando a criança tomou a passar. Segurou-a por um braço:

- Quem te manda entregar esses papéis?

- Manuel, o apóstolo - disse a miúda que teria uns

dez anos, os cabelos louros encaracolados e evidenciava medo do desconhecido. Sérgio tentou acalmá-la:

- Não te faço mal, descansa. Mas diz-me: esse senhor é magro e com pouco cabelo?

- Sim...

- Pronto. Está bem. - Ia a deixá-la partir, mas lembrou-se de perguntar, enquanto apontava a neblina no fundo da escada: - Diz-me ainda, se fazes o favor, foste até lá muito abaixo? Conta, que já vais embora.

- Não desci mais do que trinta andares... - Fez uma pausa e confessou: - Eu do nevoeiro tenho medo... Dizem que tem Escalatores!

- Escalatores?

- Sim, insectos gigantes... Monstros das escadas! E verdade?

Olhava-o como se ele a pudesse livrar de uma coisa má. Sérgio respondeu sem olhar ao que dizia.

- Não sei. E possível. Tudo é possível...

- Tudo? - A criança ganhara gosto e à-vontade na conversa com o adulto.

- Bem, tudo não sei. Há coisas... Impossíveis?

O Silva não passara à categoria de mito? Olhou de novo a gaiata e emendou:

- Bem   ... Nós não sabemos tudo. Nunca poderemos saber tudo ...

A petiza encarou-o decepcionada.

- Nunca?! Porquê? Eu quero saber tudo! Mostrava-se chorosa e irritada. Com que direito lhe colocavam limites? Era para isso que serviam as pessoas crescidas? Sérgio Louro explicou:

- Sabes, a nossa curiosidade é infinita e...

- Mas poderemos saber ao menos o que se passa para lá do nevoeiro?

- Certamente há pessoas que já o atravessaram. Isso dos monstros gigantes devem ser histórias antigas, quando ainda ninguém cruzara o...

Homem e criança quedaram-se silenciosos, absortos nos respectivos pensamentos. A garota foi a primeira a falar.

- O que é que o senhor faz aqui?

- Eu? - Surpreendido pela questão acabou por reconhecer: - Acho que desço...

- Desce? Quer dizer que vai até ao nevoeiro? Não tem medo?

- Não sei... Há coisas que só quando se nos apresentam é que lhes percebemos o efeito... Até lá... - Calou-se. Que ia a dizer? Falava com inteira propriedade das suas palavras ou embalava-se já no seu som, na autoridade que a idade da interlocutora lhe permitia? Por momentos ela observou-o em silêncio como que pensando se o deveria levar a sério ou se aquele senhor não lhe estaria simplesmente a contar histórias, aproveitando-se da sua ignorância. De qualquer modo, saciada a curiosidade pelo adulto, e concluindo, de toda a maneira, que as pessoas crescidas complicam muito as coisas, entregou o homem à sua sorte.

- Adeus! Quer outro papel?

- Não. Já tive que chegasse. Obrigado. A garota desapareceu em pequenas corridas pelos lances superiores.

Se Sérgio casasse teria nove ou dez filhos. Imaginou Katy (ou a irmã?), uma casa, o jardim, os catraios a brincarem na relva, a felicidade!

Na vivenda, nem um escadote! Para baixo a névoa, para cima escadas e mais escadas, igualmente a perderem-se de vista!

No meio, o quê?

O Silva conseguira? Servir-lhe-ia a receita que ele tinha utilizado? Não devia cada um inventar a sua? O êxito não validiria qualquer, por mais estranha que parecesse ao início?

Reflectia como se, depois de muito descer e subir, fosse a altura de parar e ver o que andara a fazer. Naquelas circunstâncias não seria idiota querer chegar à rua apenas movido por um impulso cego, como quem se mete no carro e carrega no acelerador, indo contra a parede fronteira, na esperança de ir sempre a direito?

Olhou as mandalas - pequenos círculos e losangos que, entretido, desenhara no pó do corrimão: eram sinais da sua passagem pela escada e acalmaram-no.

Subir? Descer? Se fosse a casa e saísse de novo? Talvez tudo (mas por que artes?) voltasse ao que fora,

as coisas se tornassem outra vez simples, escorreitas, funcionais, sem atritos. De facto, na residencial mudaria de fato, tomaria banho e preparar-se-ia para a descida, sabendo o que o esperava. Ou telefonaria para o médico a marcar consulta por causa da baixa. Isto se tudo continuasse como até ali e não conseguisse chegar à rua... Ou poderia falar de novo com o Silva, confirmar o que ele dissera, enfim, tirar todas as dúvidas.

O regresso à pensão pareceu a coisa mais acertada para prosseguir o seu caminho e encontrar a saída. Se não passasse primeiro por casa se calhar nem se sentiria bem na rua, faltar-lhe-ia algo que, além do mais, o obrigaria a subir outra vez. O homem com quem descera velozmente alguns lances não voltara atrás por causa dos documentos?

Isso só provava que não se chegava à rua assim, sem mais nem menos!

Mas deveria subir ou descer? A Vitória ficaria já em baixo, no nevoeiro? No passo de quem pensa se o tempo gasto fora de casa

foi mal ou bem ocupado, se as tarefas que projectou levar a cabo foram ou não feitas, Sérgio Louro começou a subir, olhando curiosamente cada porta na esperança de encontrar a da residencial. Não seria difícil identificá-la porque um letreiro anunciava "QUARTOS COM TODO O ACEIO", assim mesmo, mal escrito, com c em vez de dois esses. A razão do erro que se perpetuava, quer na entrada da escada, quer na da rua, nunca fora esclarecida e, da vez em que Sérgio Louro para ele chamara a atenção da dona do negócio, ela respondera, num tom deveras assanhado: "Ora essa! Eu cá sei do que vendo! ".

O hóspede nunca mais se atrevera a levantar o problema, achando, por fim, que a proprietária tinha razão: os quartos não eram extremamente limpos mas também não se poderia dizer que eram porcos. Como dona Vitória tão bem anunciava, possuíam "aceio".

Ao cabo de trinta e três lances devagarmente subidos continuava a caminho mas sem notícia da residencial. Todavia, e com motivo, a esperança não o abandonava: se não chegara à rua tinha, pelo menos, a certeza de que, de manhã, saíra de casa e tudo acontecera naquele prédio. A escalada apresentava-se, pois, menos dolorosa: era evidente que encontraria a sua residencial, os seus aposentos, a sua cama e, quem sabe se não mesmo o Cruas que, por intuição, poderia ter tido impulso idêntico ao seu, regressando, também, à sua almofada no parapeito da janela. A janela... Ao recordá-la Sérgio Louro sentiu-se tão excitado como na altura em que, na casa de Mário, lembrara que a deste também possuiria uma! Mas no seu quarto existia de facto uma ampla vidraça e, finalmente, veria se a rua continuava lá em baixo! Aliás, analisando tudo com a necessária calma, logo às primeiras dificuldades deveria regressar à pensão, olhando o que se passava lá do alto. Certamente descobriria as coisas tal e qual como dantes, com a rua cheia de trânsito, gente, e tudo ao nível do rés-do-chão, como de costume.

Galgou mais quarenta lances sem que a residencial Vitória tivesse aparecido.

Parado num patamar a descansar, sentia de novo fome. Consultou o relógio: o dia passara. Recolher era fundamental e, àquela hora, muitos outros faziam o mesmo: o trabalho terminara. O seu não fora habitual mas cumprira a jornada: não chegara ao emprego porém fizera por isso. Neste aspecto tinha a consciência tranquila. Aliás, havia falado com o chefe e ele compreendera o sucedido.

Tudo em ordem, portanto. Ao cabo de mais vinte lances surgiu um homem a descer. Puxando com grande fragor um carrinho de hamburguers esforçava-se para que ele não se despenhasse pelos degraus abaixo. Entretanto o cansaço de Sérgio Louro aumentara consideravelmente assim como a sua inquietação: teria a escada crescido indefinidamente no sentido ascendente? Onde ficava a Vitória?

O comerciante dirigiu-se-lhe:

Pode dar-me uma ajuda?

- Certamente. E o senhor vende-me um hamburguer?

- Tome. Leva o último. Agora preciso de me reabastecer. - Entregou-lhe um pequeno embrulho quente. Isto dos elevadores se avariarem todos ao mesmo tempo é uma grande chatice!

- Elevadores?!

O vendedor olhou-o espantado: então ele não sabia da explosão no motor central dos ascensores? Nesse caso por que viria a pé? Por gosto? A hipótese fê-lo suspeitar do indivíduo que lhe comprava o último hamburguer: quem seria? Um excêntrico? Ou ... ?

Medo. António Montez sentiu medo. A escada era enorme, a condizer com o prédio, naturalmente, e ninguém mais subia ou descia. Olhou de novo

o estranho. Comia com sofreguidão como se estivesse esfomeado! Donde viria? E todo esburacado! Vagabundo?... Ou ladrão?... Assassino?

O medo aumentou. Ninguém o socorreria e seria o fim de tudo. Lá terminavam ingloriamente todos aqueles anos a lutar pelo negócio dos hamburguers e quando estava a resultar, zás! Morto às mãos de um patifório!

- Não. Não quero dinheiro nenhum. já não tencionava vender mais... Foi o último... Deixe estar, é oferta...

- E recusou o dinheiro que o outro lhe estendia. Tornando-se simpático aos olhos do meliante talvez ele o poupasse. Mas teria ele coração? Que iria acontecer? Tremendo por dentro, Montez recomeçou a puxar o carro, aos sacões pelas escadas abaixo. Fazia um som cavo a acentuar-lhe ainda mais o presságio do seu trágico e iminente fim, como quem executa a sua própria marcha fúnebre!

- já não quer ajuda?

- Não. Não vale a pena! Aliás o senhor vai a subir e eu desço! Não se incomode, isto agora vai bem! Adeus e muito obrigado!

Quase sem acreditar que escapava com vida, o vendedor sumiu-se nos lances inferiores: para a próxima vez esperaria que arranjassem os elevadores!

Não se tenta a sorte duas vezes! Sérgio Louro, agradecendo à providência o alimento que ela lhe pusera no caminho, sentou-se num degrau a digerir a sandes. A fome, como lera em Séneca, é o condimento por excelência.

Reconciliado com o estômago e mitigado o cansaço, retomou a subida: quantos andares faltariam? A pensão Vitória ficava - ou pelo menos sempre tinha ficado - num quarto piso mas dados os acontecimentos...

"Home sweet home! "

Finalmente, frente à residencial não encontrava a chave da porta! Por várias vezes a esquecera (provavelmente tinha-a perdido por um dos buracos do fato) mas sempre a dona Vitória aparecia a abri-la. Confiante de que, pelo menos alguém estivesse em casa, tocou. Tocou até uma segunda vez, porventura devido ao estado de impaciência.

Esperou. Bateu de novo. Do lado de lá surgiu a voz da dona Vitória:

- Quem é?, quem é?

- Faça o favor, dona Vitória! A porta abriu-se e a proprietária sorriu como fazia sempre que atendia um pensionista.

- O que deseja?

- O que desejo?!

- Sim, o que deseja?

- Ora essa, dona Vitória! Quero entrar!

- Entrar. Entrar para quê?

- Mas... Dona Vitória...

- Se é um quarto que pretende, lamento informá-lo mas está tudo tomado.

No último encontro em que tinham falado com mais vagar (num sábado; ao fim-de-semana Sérgio Louro dava-se tempo para ficar em casa a recuperar das vendas na Nada e Tudo, Lda.) a dona da residencial, mulher de sessenta anos e aspecto atraente, confessara, por entre os tiques da coquette que em tempos fora, que o médico lhe diagnosticara um princípio de arteriosclerose: "É só um bocadito! Coisa sem importância! ".

Admirou-o a rápida evolução da doença. Mas seria isso? Ou a proprietária brincava?

- vá lá, dona Vitória, deixe-me entrar que estou muito cansado...

A mulher, que estava a meio de um documentário na TV dedicado a roubos e violações, perdeu por completo a boa vontade.

- Afinal, o que é que o senhor pretende?

- Então, dona Vitória, não posso entrar? Não me está a reconhecer? Sou Sérgio Louro, o seu hóspede!

- Sérgio Louro? Você não é o senhor Sérgio Louro! E finalmente realizando que era vítima de um malandrim, idêntico aos que vira na TV, Vitória fechou com estrondo e aflição a porta na cara do malvado. Do lado de dentro pôs-se aos gritos:

- Socorro! Socorro! Acudam que é ladrão! Acudam que me violam! Socorro! Socorro!

Desalojado, com a sensação de que a realidade o expulsava dos seus antros (mas empurrava-o para qual?), e antes que alguém acudisse aos gritos da dona da pensão, resignou-se, depois de alguns momentos de paralisia e pasmo, a procurar refúgio na Viúva Mesquita, a outra residencial dois andares abaixo. A não ser que esta também mudasse de sítio ou se afastasse enquanto para lá caminhava: a sua confiança na solidez das coisas caíra para um nível inqualificável.

Bateu à porta.

Atendeu um garoto:

- O que é?

- Preciso de um quarto...

- Mãe! Ó mãe! Está aqui um senhor!

O miúdo falara para dentro de casa e as suas palavras no meio de tanto desconcerto foram já um alívio: ao menos no aspecto geral mantinha-se masculino! Até ver?

Uma mulher: a dona Mesquita. Vestida de negro carregado, excepcionalmente nutrida, dava a ideia de andar de lado, como se se deslocasse por partes, primeiro a esquerda, depois a direita e assim sucessivamente.

- Deseja...

- Um quarto. Fui... - Ia a dizer nem sabia bem o quê mas reprimiu-se: era melhor nem contar nada. Se o que sucedia era estranho aos seus próprios olhos não podia arriscar-se a que também o parecesse aos dos outros: uma coisa era o que pensava de si para si mas diferente seria já a força da opinião pública. Explicou, pois, mudando o rumo à conversa: - E para mim só. - E acrescentou, num tom de firmeza que não deixava dúvidas: - Ah, é verdade! Quero um quarto com um espelho e janela para a rua. - Poderia esclarecer: "Preciso de ver se continuo igual e se a rua também está no mesmo sítio" mas calou-se. À beira de uma crise desejava que a mulher lhe indicasse o mais depressa possível o aposento. Com a sensação de que iria chorar, não queria que isso acontecesse à vista de ninguém.

- Com espelho e janela para rua?

- Sim, minha senhora, com espelho e janela para a rua. Acentuou no tom de quem afirma algo que, embora desagradável, passou a fazer parte do seu quotidiano.

- Entre...

O tom subitamente contristado da viúva condizia já com a cor dos seus pensamentos a indicarem-lhe que o homem, ao querer um quarto com aquelas características, não era senão para se suicidar: o espelho para se ver uma última vez, a janela para o fazer. Talvez a influenciasse o recente passamento do marido, mas atormentada pelo mau agoiro e incapaz de despedir o desgraçado - abandona-se lá uma pessoa assim?! - deixou-o penetrar no corredor. Naquela manhã recebera o catálogo da agência com as excursões aos lugares santos. Se lho mostrasse? O seu título era mesmo Viagem da Esperança... Mas como falar no assunto? Se o salvasse não acabaria por ser mal interpretada? E depois?

- Quer ver-se ao espelho? - perguntou o filho que os seguia corredor fora. A mãe achou-o impertinente e mal-educado mas muito oportuno: não admoestando a criança nem socorrendo o hóspede, abandonou-o a uma salutar resposta.

- Sou vaidoso - cortou com secura. Que podia dizer? O miúdo olhou-lhe os buracos no fato...

Chegaram à porta do quarto. A viúva empurrou-a:

- Tem este... Era uma divisão grande, com um guarda-fatos munido de um enorme espelho e uma larga janela: o pretendente a hóspede foi direito a ela abrindo-a de par em par: mãe e

filho viram-no debruçar-se no parapeito e olhar fixamente o abismo...

- Serve? - perguntou a viúva no intuito de o subtrair à fatal atracção. Mas ele não a ouviu e ela teve de repetir: - Serve? - Só então se dando conta do infeliz verbo que utilizava! Mas, continuando sem resposta, foi até junto do homem. Tocou-lhe no ombro: ele virou-se. Dona Mesquita reparou-lhe no olhar brilhante e alegre: o coitado encontrara o que queria!...

Demorara-se a ver a rua? Era possível. Mas ela lá estava, existia e a felicidade que a constatação lhe prodigalizou dificilmente se traduziria por palavras.

Sim, minha senhora. Serve às mil maravilhas, muito obrigado! Dona Mesquita compreendeu, pelo tom em que o hóspede falava, o seu desejo de ficar só e, embora contrariada, teve de concordar com ele: há coisas que, de facto, não se fazem à frente dos outros. No entanto, nos limites do possível, lembrou:

- Não se esqueça de passar pela recepção... Temos uma bela sala de estar e hoje há um bom programa na TV.. - E não ousou mais. Em todo o caso, para animar o suicida, a viúva, pela primeira vez desde a partida do seu defunto, fez também um largo sorriso, fechando sobre ele devagarinho a porta. Depois encarregou o miúdo, que por sinal se esqueceu do recado, de levar revistas, entre as quais o folheto das viagens, àquele senhor.

Trancado por dentro olhou-se no espelho: tudo bem, embora tivesse um aspecto cansado. Quanto ao telefonema para o chefe já não valia a pena: o escritório encerrara.

Deitou-se. Exausto. De manhã cedo acordou bem-disposto. À janela, certificou-se de que a rua ainda lá estava e achou-a mais animada do que nunca como se as pessoas que nela via, fossem, só por isso, as mais felizes do mundo.

Saiu do quarto. Na recepção pediu autorização para telefonar. O empregado era mal-encarado mas passou-lhe o telefone sem qualquer contrariedade.

Discou o número do Silva.

- Nada e Tudo, Lda. - disseram do outro lado.

- Ligue-me ao chefe Silva.

- Um momento, se faz favor. Vou passar ao departamento.

Houve uma pausa, uma musiqueta irritante e, por fim, a voz sua conhecida:

- Sim.

- Sou eu, chefe, o Sérgio Louro.

- Sérgio Louro? Caramba! Mas onde é que você está?

- É para dizer que hoje já vou trabalhar... - Ia a acrescentar "Isto é, se encontrar a saída" mas achou melhor não dar sinais de insegurança. Todavia, do lado de lá o tom alterou-se:

- Que vem trabalhar? Mas que brincadeira é esta? Ainda agora me entregou um dossier e diz-me que vem trabalhar?! - No extremo da linha pareceu que finalmente descobriam o que naquilo estava errado: - Quem fala? Quem está ao telefone?

- O Sérgio... O Sérgio Louro, o seu vendedor! - O tom era o de quem pede misericórdia depois de uma catrefada de golpes baixos a que foi submetido.

- Sérgio Louro? - A voz do Silva que, apesar da distância, soava tonitruante, gritou para alguém que estaria perto: - Sérgio Louro! Caramba! Você esta aí, não está?

Houve um silêncio. Ou pelo menos o auscultador não transmitiu nada. Depois o telefone foi desligado.

Na recepção o empregado ficou a olhar o hóspede que continuava de aparelho colado ao ouvido, a boca aberta mas não dizia nada. Ao cabo de algum tempo achou por bem intervir:

- O senhor... Retornou a si. No quarto havia o espelho e, já em passo de corrida, percorreu o corredor. Fechou-se no aposento: não havia dúvida: continuava igual! então?

A janela olhou a rua: tinha o ar normal de todos os dias. Num movimento incontrolado abriu a porta do quarto e dirigiu-se outra vez à recepção. O porteiro preenchia, com a resignação habitual de quem sabe de antemão que não terá sorte alguma, um boletim de apostas mútuas. Levantou os olhos inquisitivamente para o hóspede porque hesitava entre o cinco e o seis para quinto número. Aquele olhou-o também e ia a perguntar qualquer coisa acerca da escada mas preferiu calar-se e regressar ao quarto: tinha de reflectir, perceber o que se passava.

Quem era? Um outro tomara o seu corpo? Ou seria já ele outro, sendo aquele de que ouvia falar ele próprio?

Deixou uma vez mais o aposento, encaminhando-se desta vez para a porta que, no corredor, dava para a escada. Transpô-la e, no patamar, espreitou para baixo: era fundo, muito fundo mesmo mas deu-lhe a ideia de que os degraus acabavam. Voltou a entrar e a ir à recepção: o homem, terminado o preenchimento do boletim da sorte, imaginava, olhos em alvo, o que faria se ficasse multimilionário. Até um penico em ouro hei-de ter!...

Interrompeu-o:

- A escada tem fim, não tem? Isto é, leva à rua?...

O recepcionista, obrigado a aterrar neste mundo, confirmou o que já intuíra no hóspede: tem pancada. Há que pô-lo o mais depressa possível daqui para fora!

- É claro que sim! - O que havia de responder? Mas subrepticiamente tocou uma campainha: a viúva surgiu e ele contou-lhe, enquanto fixava o desvairado: - Este senhor veio perguntar se a escada, a nossa escada, tem fim...

- E com uma entoação toda especial, acrescentou: - Se ela leva à rua... A mulher lembrou-se de que, no dia anterior, fora aquele indivíduo que tanto a ralara por causa do espelho e da janela... Depois, no meio das contas da jornada esquecera-o mas, dado que o assunto retomava, cortaria o mal pela raiz. Pelos vistos nem se suicidara e ali estava, vivo, enquanto o seu defunto, o seu querido Mesquita, esse

sim, jazia bem morto! Falou-lhe com mal disfarçada raiva:

- Quero dizer-lhe, senhor.. Titubeou porque não lhe sabia o nome. Era normal pois só tinham falado uma vez e não lhe lera a graça no registo. Mas o lapso pareceu à sua vítima, dadas as circunstâncias, um novo ataque. Revoltou-se:

- Sérgio, sou Sérgio Louro. Sérgio Louro, estão a ouvir? Sérgio! Sérgio Louro! Louro! Louro! Sérgio Louro!

Repetia o nome num tal tom e atitude que os outros dois só o compreendiam porque combinava com o resto.

- Não se irrite, não se irrite! - Tentou acalmá-lo a dona do negócio.

Excedera-se e emendou:

- Desculpe, estou cansado... É só isso! Mas a proprietária não estava disposta a mais enganos:

- De qualquer modo - afirmou peremptoriamente só tem quarto até ao meio-dia. Precisamos dele para um hóspede habitual. E não há outro livre.

Sobressaltou-se. O indivíduo de quem ela falava seria ainda um Sérgio Louro?! No limite de extravasar a ideia conteve-se. Por fim, aceitou a saída agradecendo, até, com um tom excessivo, o terem-no albergado naquela noite. E explicou:

- Eu só quero chegar à rua...

O recepcionista e a mulher olharam-se. Mas o assunto parecia resolvido e sorriram-lhe compreensivamente. O miúdo, a pedalar no triciclo pelo corredor, perdeu de repente o controlo do veículo e esbarrou no homem do fato esburacado. A guisa de desculpa perguntou-lhe:

- Sempre gostou de se ver ao espelho? Achou que tudo aquilo era uma provocação ou fazia mesmo parte de um acto conspiratório. Retirou a carteira e, já com alguma violência, pôs uma nota em cima do balcão. O recepcionista fez apressadamente o troco e o garoto, desistindo da resposta, desapareceu na obscuridade do corredor. De caso arrumado, para nem haver mais conversas, a proprietária afastou-se com um seco bom dia. Mas por dentro fervia: o seu marido, esse sim, é que tinha morrido e sem dizer nada!

No quarto, aproveitando o tempo de que ainda o usufruía, deitou contas à vida: perdera o emprego, perdera a casa, isto é, a residencial Vitória e, em contrapartida, ganhara problemas de identidade. Como saldo de umas vinte e quatro horas não era mau! Faltava saber se conseguia chegar à rua e esse era o passo seguinte.

Pediu na recepção uma agulha e linha da cor do fato. Deram-lhas com a brevidade de quem atende a última vontade de um moribundo que há muito, para alívio de todos e até do próprio, se espera que parta. Remendado o traje, banhou-se. Contrariado por ter de vestir a mesma roupa, sentiu-se no entanto em forma.

Preparado para uma longa viagem dispunha-se a enfrentar os piores obstáculos ou, até, a passar o resto dos seus dias a descer degraus. Mas nada o desviaria da rua e este comprometimento dava-lhe um outro sentido à descida.

Saiu. No patamar tão-pouco olhou para baixo a certificar-se de que a escada lá permanecia (reaprendera a total possibilidade de tudo e esta crença, que tinha em criança, quanto não lhe estava a custar a readquirir!) e iniciou a caminhada.

Dividido, dilacerado por dúvidas atrozes queria no entanto ir.

No percurso visitaria o Centro do Desemprego para expor o sucedido.

Ao longo de lances e lances a escada manteve-se igual. Depois tornou-se húmida e logo molhada: uma mulher lavava-a e de si para si dizia:

- Ora para cima, ora para baixo! Vejam-me estas pegadas! Iguaizinhas e marcadas quer num quer noutro sentido! Saberão eles o que fazem? Ou onde vão? Ou por que passam? Bah! A maioria anda por andar!

As palavras corroboravam a decisão de se entregar com consciência e afinco à descida e satisfizeram-no. Tossiu para se fazer notado e a mulher soergueu-se: estava grávida.

- A senhora sabe dalgum Centro do Desemprego aqui no prédio?

- Hum... - A voz era profunda, como que nascida nos fundos do abismo. - Talvez a Felizmina saiba... Ela mora mais para baixo e tem o nome na porta...

Agradeceu a informação, retomou a descida e a mulher o solilóquio:

- Pois é! Eles sujam e eu limpo - E dirigiu-se ao feto que trazia na barriga: - Lá estás tu aos pontapés!...

Ao cabo de muito tempo, sempre para baixo, ainda só tinha encontrado a funcionária da limpeza e não vira a porta da Felizmina: sentiu-se só.

Onde estavam os elevadores que o homem dos hamburguers referira? No entanto pensava:

Ainda que existam se calhar prefiro chegar ao fundo de tudo pelos degraus...

Será o hábito de os ter descido sempre a pé? Adaptei-me ao esforço e já não consigo ver uma alternativa?

O mesmo terá sucedido às multidões nas bichas, apesar de nem saberem onde terminavam?

Resigno-me com o pretexto de que tem de ser assim?

O medo da mudança nem me deixa já espaço à imaginação?

E entretanto olho cada parapeito como se fosse o único, bem longe da pressa que ao início tive...

Cansaço? Ou convenço-me que quero apenas o percurso para os degraus se deixarem surpreender, não se multiplicando sempre mais e mais?

A minha prisão torna-me supersticioso? Mas é verdade que, ao concentrar-me em cada degrau como se tivesse chegado...

Alienação?

Ou sabedoria. E descia. Máquinas auto-serviço com alimentos e bebidas começaram a surgir regularmente nos patamares. Serviu-se e, mais animado, acabou por encontrar a porta que dizia Felizmina. Compôs o fato, o gesto lembrou-lhe Katy (ou a irmã e sentiu saudades sem saber de qual das mulheres).

Tocou. Do lado de lá soou uma voz muito clara:

- Quem é?

- Chamo-me Sérgio Louro...

- Sérgio Louro? Não conheço! Vieram-lhe à memória os problemas de identidade e a sua confusão. Para acabar de vez com as lembranças acrescentou: - Sou alguém que precisa de uma informação. Gostava de...

A porta abriu-se e surgiu uma bela mulher envolta num robe carmim, descalça e com os cabelos soltos sobre as costas. Imaginou que a funcionária da limpeza lhe dera a morada de um prostíbulo mas logo se maldisse pela torpe suposição. Por que razão teria de ser um prostíbulo? E já estes pensamentos lhe causavam uma funda mágoa.

Por que não vejo as coisas apenas como elas são e imagino sempre isto e mais aquilo?

Mas se sou assim? Felizmina, com um largo sorriso, interrompeu-lhe a tortura:

- Que deseja?

- Procuro o Desemprego...

- O desemprego? Não compreendo... De tão submerso em conjecturas e especulações perdia a clareza no contacto.

- Uma senhora que lavava as escadas deu-me a sua morada. Ela disse que talvez aqui soubessem onde fica o Centro de Desemprego...

Felizmina escutava-o como se estivesse habituada a que lhe pedissem informações. Pondo fim à atrapalhação do desconhecido convidou-o:

- Entre! Tome chá comigo. Estou a fazê-lo. Os pensamentos sexuais que o haviam atacado desvaneceram-se e, lembrando-os, riu para consigo: ao fim e ao cabo não passava de um macho e ali estava, após uma boa caminhada, junto de uma bela fêmea.

Felizmina conduziu-o por um corredor atapetado e estreito. A passagem era funda com recantos e curvas. A imagem de um lobo chamou-lhe a atenção mas havia na parede outras gravuras que não conseguia decifrar: umas humanas, outras meio animais ou talvez do reino vegetal. A anfitriã virou-se para trás com um ar bem-disposto:

- É uma casa muito grande. Cuidado não se perca! Cada vez mais calmo, ao desembocarem na sala de estar, onde se sentaram, esquecera os problemas que o atormentavam. Influência da mulher? Ou chegara a um tal ponto de confusão e cansaço que não havia senão a hipótese de fazer uma pausa, programada da mesma forma que um ferro de engomar automático se desliga após atingir determinada temperatura? Olhava Felizmina como se a conhecesse há muito. - Encontrou então a minha amiga da limpeza? Aposto que está grávida!

- Sim. Pareceu-me que sim. Mas continuava a trabalhar...

- Ah, "aquilo" nunca pára! E eles lá nascem!

- Procuro o Centro de Desemprego...

- O Centro... - Ela desviou os olhos para o desenho no tapete da sala: um "São Jorge a lutar contra o Dragão". Ele seguiu-lhe o olhar. Ambos se mantiveram em silêncio. Ela interrompeu-o:

- A água para o chá deve estar quente. - Levantou-se e saiu da sala.

Aproveitou para observar em redor: uma divisão forrada a papel com motivos de flores de lótus entrançadas. Fixá-los causava impressão.

A dona da casa surgiu com um tabuleiro onde havia um bule e chávenas. Vestira um fato azul-marinho e parecia um belo rapaz de cabelos amarrados em rabo-de-cavalo.

A visão perturbou-o. Felizmina desviou-lhe à atenção para o chá. Ele, ao oferecer a sua chávena para o receber quase a deixou cair.

- Não faz mal! É o apelo da Terra... - A mesma razão justificaria o crescimento da escada? A questão absorveu-o. A mulher notou-lhe a disposição: - Não quer ser sincero e dizer-me o que se passa?

Sentiu-se apanhado.

- Ser sincero?... Ela fitou-o. Seria capaz? Ou os anos passados como vendedor de sucesso na Nada e Tudo, Lda., a quantidade de encontros, a maioria com pessoas que pouco lhe diziam, as conversas a que se vira obrigado, os sorrisos que sem vontade fizera, as mentiras a que recorrera para despachar mais esta ou aquela mercadoria e aumentar o ordenado ao fim do mês, tudo isso não o afastara pouco a pouco mas irremediavelmente da verdade? Sim, como seria possível mantê-la para si, levando parte do dia a esquecê-la junto dos outros? Eles por fim não lhe devolviam uma sua imagem a que já conseguia corresponder com mais mentira ainda? Afastara-se da verdade e a pergunta causou-lhe sobressalto. Poderia ainda falar com alguém, ou até consigo, sinceramente? Encontrava-se tão perdido... Se é que a sua perda não era, inclusive, o resultado do que descobria... Sim, que raio de coisas o tinham levado a transviar-se nos degraus, a não chegar à rua? Certamente esgueirara-se por um forro desconhecido e... Pela primeira vez experimentou raiva pelo trabalho que, ao longo do tempo, desenvolvera na Nada e Tudo. O emprego aparecia-lhe como o culpado da situação que o levara a tomar o falso por verdadeiro e, ainda por cima, quando desencaminhado, o substituíam como a uma peça que, de gasta, já não serve a engrenagem. Falava verdade quando disse: - Não sei. Não sei se sou capaz de ser sincero.

- Só se encontra o que se procura... O que nos é indiferente, foge-nos... - Felizmina citava Sófocles.

Olhou-a. A mulher - talvez pensasse isto pela primeira vez era alguém que o aproximava de si. Mas alturas houvera em que acontecera o contrário, em que a presença feminina o obrigara a um teatro ainda maior para não perder a face. Mas qual face e qual presença feminina? A face a que os demais, com a sua própria cumplicidade, o queriam obrigar e o gineceu das que de si guardam o asco das suas imitações de "el macho"? Este pensamento que até então nunca tivera, surpreendeu-o. Por que o tenho?

- Porquê tanta luta?

- Porquê? - retorquia como se não entendesse a pergunta mas sentindo-lhe a razão. - Não sei... Tudo corria bem... Tinha um emprego, o Silva, o meu chefe, dizia sempre o melhor de mim e apontava-me como exemplo

aos meus colegas e agora... - No meio do que lhe acontecia falava sem já necessitar que o incentivassem. Talvez não pudesse mais e fosse imperioso desabafar. Sim, porque tinha de haver um motivo para aquilo tudo. Ou não? Era o absurdo? Mas neste caso o seu papel... Inútil? Gratuito? Sentiu-se desamparado. Devia afinal contar apenas consigo? Com o seu feixe de incertezas, dúvidas, fragilidade, a sua capacidade de morte? A sua morte? Mergulhar no seu medo? Felizmina pareceu-lhe mais real e a mulher que lhe abrira a porta cedeu o lugar a um ser tão desprovido e frágil como ele. Teve o impulso de lhe tomar as mãos e confortá-la. Ou afinal a si. A consciência deste facto fê-lo suspender o gesto: não desejava enganar-se de novo, nem enganar mais, fingindo que dava quando recebia. Depois sim. Depois, talvez fosse possível entregar-se a todo o teatro mas, aí, já consciente de que o fazia. No fundo, ultrapassado ou submerso pelo comprimento da escada, mantinha a esperança de retomar o seu domínio, regressar à boa harmonia com a ordem reinante das coisas. Seria ainda possível? Entretanto o esforço que os degraus exigiam obrigavam-no a justificar providencialmente a falta de um elevador, tornando assim o cansaço necessário: a descida até à rua era difícil mas não poderia fazer-se doutro modo e, se a realizasse por elevador, escada mecânica ou qualquer outra técnica mais sofisticada - coisas que nem estavam ao seu alcance no momento - a rua a que então não chegaria nunca seria a que lá de cima teria visto, ambicionado, cheia de esplanadas, música, sol, alegria e capaz de levar a toda a parte! Na verdade, sentia os degraus como merecidos e por isso se encontrava na casa daquela mulher, vestida de homem - a atestar a relatividade de todas as máscaras? - no andar não sabia quantos de um prédio que, embora não soubesse o motivo, dera em crescer, mas cujo rés-do-chão ele, Sérgio Louro, ou quem fosse, haveria de alcançar. Fez menção de se retirar e disse, como que no fim de longa e penosa confissão: - Devo ir-me embora.

Mas só agora começámos a falar! Vai já? E melhor.. Ainda tenho bastante para andar... Poderia perguntar se a rua ficava lá muito para baixo mas não o fez: que tinha ela a ver com aquilo? A questão não era sua, não diria respeito apenas ao seu destino? Porquê sobrecarregar estranhos? Não era de si que se tratava? Fechado, preocupava-o a sua necessidade, como se fora o único elemento da raça humana. Ou não houvesse outro meio de atingir a rua.

Felizmina levantou-se para o acompanhar à porta. Antes entregou-lhe um cartão com um nome e endereço:

- Mora mais para baixo. Visite-a se passar por lá. Aceitou o papel e achou a coincidência curiosa: a nova personagem chamava-se Felizberta.

junto à saída a anfitriã estendeu-lhe a mão e o homem sentiu na sua uma pele maravilhosa e íntima. Por que não deixar a descida e ficar ali, não perder nunca aquela sensação de conforto? Felizmina dirigiu-lhe um sorriso.

- Até à próxima... Gostei muito de estar consigo confessou ela. E a voz soou mais quente e sedutora do que qualquer outra. Num momento de hesitação olhou-a. Desenrolara o rabo-de-cavalo e os cabelos caíam-lhe de novo sobre os ombros. Por que não declarar-se e propor-lhe viverem juntos? Como que adivinhando-lhe o pensamento ela não o repelia, ambos de mão dada, sem se desligarem, conscientes do futuro que encerravam: um lar, a vida a dois.

- Eu acho que... - começou ele a dizer. Mas num dos andares inferiores soou um estrondo e afastou-se para ver o que era. Debruçado no corrimão viu uma cortina de fumo e, dissipada a nuvem, ressurgiu a escada. Ao olhar de novo na direcção da porta, esta fechara-se e Felizmina desaparecera.

Retomou a descida. Talvez encontrasse Katy (ou a irmã?) e possuía o endereço de Felizberta.

Decorrera algum tempo quando verificou que Felizmina não lhe dera a morada do Centro. Em todo o caso não quis voltar atrás resolvendo que o encontraria por si: quem tem boca vai a Roma.

A escada tornou-se mais escura, iluminada apenas em alguns patamares.

Desapareceram as portas. Numa zona de menor claridade deu com um vulto. Gemia e receou que fosse um malfeitor utilizando um ardil para o roubar. Mas como os gemidos não paravam e

pareciam sinceros prestou-lhes atenção.

Precisa de ajuda?

- Não vale a pena. Muito obrigado. Isto é assim mesmo.

A voz que respondia tanto podia ser de mulher como de homem. A sombra não se mexia.

- Como?

- Digo que é assim mesmo! Deixe-me em paz, sim?

- Então não quer ajuda?

- Para quê? Isto não tem remédio! Ou antes tinha: se eu soubesse ontem o que sei hoje. Mas agora é tarde! Ai!

O vulto não deixava de gemer.

- Dói-lhe alguma coisa?

- Dói-me tudo. O que fiz, o que não fiz. Mas sobretudo o que fiz! Sim, porque eu fui jovem e crente! Mas de que me serviram a força e a fé? Gastei-as inutilmente! Claro, ao princípio é tudo muito bonito... As coisas brilham... Como eu fui pateta! Ai!

- Foi pateta como?

- Quer saber? Pus-me a andar por aí! Quis chegar, imagine!

- Chegar? - Teve um pressentimento mau mas quis saber: - Chegar aonde?

- Ora aonde havia de ser! A toda a parte! Chegar! Partir! Partir! Chegar! Coisas desse género! Manias, entende? - Fez uma pausa - E você? - O tom da voz foi de fina ironia: - Desce?

- Desço. Quero... - hesitou no que ia a dizer e concluiu com um gesto na direcção do fundo da escada:

- Vou até lá abaixo...

O vulto fungou.

- Coitado! A raça é muito lamentável, não acha?

- A raça?

- Sim, o ser humano! Com que então quer ir até ao

fim? Mas se ele não existe? Correr, correr uma vida para virmos dar atrás das nossas costas! Que idiotia!

- Não compreendo!

- Pois não. Se compreendesse, parava! Não ia!

- Importa-se de me explicar melhor?

- Meu jovem - a sombra falava num tom paciente como se fosse a milionésima vez que explicava o mesmo e, ainda assim, não tivesse grande esperança em ser entendida -, fim e começo são apenas ideias, ilusões humanas. Nada começa e nada finda. Logo, correr para o fim é correr para o começo e pôr-se no começo é estar no fim... E o processo, percebe?

- Quer dizer que...

- Não adianta ir!

- E para além do nevoeiro? Não há nada?

- Há... o agora... Mas ele lá está a desafiar-nos o desejo e a fazer de nós infelizes... Sabe, corremos atrás da mentira e quando o descobrimos, queimámos a vida! - Deu uma risada seca: - Ah! Ah! Pobres diabos! Como a raça é cega! Mas nós não aprendemos! A vaidade ofusca-nos e o desejo não nos abandona... Se eu ontem soubesse o que sei hoje... Ai! Ai!

- Quer dizer que é inútil eu...

- Eu não quero dizer coisíssima nenhuma! Eu disse alguma coisa? Deixe-me! Deixe-me e siga o seu caminho! Um dia verá que é tudo aqui mas, se calhar, tem mesmo de ir lá abaixo primeiro! Que destino!

Lamentou-se:

- Eu só vejo escada! A voz calou-se e o vulto acomodou-se como que a dar por finda a curta entrevista.

Apreensivo, retomou a descida. Começou a fazer frio. Era inútil o que tentava? Também se arrependeria? Mas que fazer? Deitar-se num patamar como o vulto? Seria isso a sabedoria? Devia desistir?

Cada vez descia mais devagar e mais cheio de dúvidas: o encontro com a sombra florescia.

Para se obrigar a galgar mais degraus começou a contá-los em voz alta: um... dois... três... quatro... cinco... seis... Chegou ao trimilésimo seiscentésimo trigésimo terceiro. Depois... por mais alto que contasse a voz do vulto sobrepunha-se-lhe e as palavras dele eram mais fortes que as suas. E, de facto, porquê não viver num prédio? Para quê sair? No entanto a jura que se fizera ao abandonar a mesquita, impedia-o de parar. Um degrau agora, outro depois, lá ia descendo. Ao mesmo tempo servia-se copiosamente nas máquinas abastecedoras como se fora esse o objectivo: o estômago inchou, a barriga cresceu, ficou mais pesado e a descida tornou-se ainda mais difícil.

Lembrou-se dos encontros que tivera. Quantos haviam sido os desistentes? E como deveria classificar os das filas de espera? Não saberiam eles que não chegavam, permanecendo nelas apenas para poderem dizer que tentavam? Para não assumirem a desistência? Mas na realidade quem eram? Comodistas? Cobardes? Gente que se resignara a nunca alcançar? Ou sabendo que não havia saída aguardavam-na, firmes e de pé, só para assinalarem a sua necessidade? E Katy? E Felizmina? E como teria reagido ao dar com a escada alongada a mulher a quem primeiro pedira ajuda, a ciciosa dos dentes saídos? Como se tem de fazer às crianças pequenas quando se recusam a comer a sopa, resolveu que desceria lances de escada a dividir por todos aqueles de quem se lembrava: cinquenta por Katy, outros tantos pela irmã, mais muitos por Felizmina, pela memória do pai, da mãe, do primo Licínio - morto por uma dose excessiva de droga - e cada um teve a sua conta e, naturalmente, o Silva. O Silva...

Felizberta, a hipotética Felizberta, cujo endereço guardava também, recebeu o seu quinhão e ele sentiu que se aproximava um pouco mais da saída.

Mas os degraus sucediam-se como altares ao deus da vertigem e dançavam-lhe sob os pés, não os conseguindo já olhar, não suportando mais aquela construção que se segregava e o afastava da rua. Lembrou-se do cego com quem lá atrás esbarrara. Não o seria? Fora uma solução e por isso ele lhe acertara sempre com a bengala? Deveria imitá-lo?

Pegou num lenço. Vendou os olhos. Agarrado ao corrimão desceu à desfilada.

Tropeçou. A dor da queda deu-lhe novo valor à saúde e, devagar e de olhos bem abertos, retomou a descida.

Um... dois... três...

De novo surgiram portas nos patamares. Deixou de se compensar nas máquinas auto-serviço, o estômago desinchou e a barriga diminuiu: a descida tornou-se mais fácil.

Notava-se um ligeiro abaixamento de temperatura à medida que se aproximava o nevoeiro.

Concentrado a contar, por mero entretenimento, os patamares que cruzava, inesperadamente, ao vigésimo oitavo de uma terceira série de contagem (estipulara a série em mil degraus e o "serião" nas dez séries) isto é, pelo degrau três mil quinhentos e sessenta de um primeiro serião, uma porta atraiu-o. Cruzara muitas, mas aquela...

Que teria? Não a olhara com especial cuidado e nem sequer interrompera o andamento, com medo de vir a parar de todo. Mas a imagem daquele acesso nunca mais o largou.

No degrau novecentos e oitenta (desembocava no quadragésimo nono patamar da quinta série de um primeiro serião) compreendeu que não conseguiria ir mais além: algo exigia que voltasse dois mil quatrocentos e vinte degraus atrás para observar a porta.

Mais do que ficar preso nas palavras da sombra, que apenas o tinham desmotivado, desta vez experimentou o pânico.

Por onde metera? A quem obedecia? Quem em si clamava por causa de uma simples porta? Na verdade as coisas já não eram "simples" ou "complexas", mas merecedoras ou não do seu interesse... A voz que exigia voltar para cima queria que ele não a descurasse mesmo se ela se referisse ao que há de mais reles e desprezível: ele e os seus valores deviam vergar-se-lhe!

Aonde me leva esta conduta? Tornar-me-ei um louco seguindo o que a razão não entende? Na verdade posso analisar cada apelo que sinta, ver aonde me conduz... Mas

se me engano? Se o que me parece aproximar do desejo afinal me afasta dele?

Angustiado, com um pé no degrau de cima logo o descia.

Quem me deseja ver a subir? Donde me vem isto? Da loucura? Da desrazão? Do que vejo, ouço e leio? Da descida? Ou disto tudo mas já coado pela minha escolha? Sim, quem quer voltar dois mil quatrocentos e vinte degraus atrás?

A matriz ou a cópia?

O espírito ou a massa? Eu ou os outros?

Eram duas pranchas de madeira pintadas de verde,escuro e unidas por um trinco, com um puxador numa delas como é normal numa entrada. A pintura, feita há algum tempo, apresentava falhas. No resto, por mais que olhasse, nada se destacava em particular: era uma porta das que existem em qualquer casa. Mas, absorvido nela, sentiu-se como se estivesse na rua.

Fechou os olhos.

O vazio.

Não fora tudo o que lhe sucedera até ao momento nunca suporia poder agir assim! Mas apanhado num mar de mistérios, deixara de lhe importar a boa aparência das coisas ou o que as más-línguas dissessem: descobrira do que o mundo gasta! Por isso, sentindo um cão a farejá-lo, abriu os olhos e reconheceu, tranquilamente, o cenário onde momentos antes os fechara. De diferente, dois animais ligados por uma trela: numa extremidade um homem, na outra um buldogue. Ambos rosnavam, dizendo Lázaro, o primeiro:

- O que é isto? O que é que faz à minha porta? Saia já daí!

Obedeceu. Mas numa voz que era ainda a de quem se sente de acordo consigo e com o mundo, explicou:

- Vim vê-la...

- O quê?!

- A porta.

- Como?

- Não sei... Vim vê-la.

- Veio ver a ... ?! Mas que tem a minha porta?!

- Não sei... Não sei... Não consigo descobrir. E esse o problema...

- Você é doido? Sê-lo-ia? Não tinha argumentos nem para o sim nem para o não. Seguia à mercê dos acontecimentos, isto é, do que eles lhe exigiam.

Sansão continuava a rosnar e o homem mandou-o calar. Mas, de volta ao intruso, explodiu:

- Seu grandessíssimo gatuno! Você queria arrombar-me a casa, ah? Vá embora! Vá embora senão chamo a polícia! Rua!

Rua! Lázaro fez um sinal ao buldogue e, se o desconhecido não salta para os degraus, descendo-os a toda a pressa, ficava em sangue. No patamar, debruçado no vão da escada, o homem invectivou ainda o fugitivo. Finalmente, entrou em casa.

Sans, como de costume de cada vez que era levado a passeio, mal se viu livre da trela foi ao bebedouro.

Lázaro, que tivera um dia tenso no escritório e a quem nem a volta com o cão no terraço do condomínio descontraíra, achou melhor mandar inspeccionar a segurança da porta. Pegou no telefone para encomendar o serviço. No incidente também o impressionara o olhar do homem, de um transparência que raro encontrara. Recordou-lhe as palavras "vim vê-la ... ".

Pousou o auscultador. Dirigiu-se à entrada. Olhou-a: era verde-escuro, banal e... nunca a vira.

O animal, saciada a sede, veio saracotear-se à sua volta.

Está quieto Sans! Deixa-me... A voz sumia-se-lhe. o cão, pelo tom da fala, sentiu-o finalmente bem. Vendo o que o amigo fazia, imitou-o.

Sans nunca lambera aquela porta.

Durante muito tempo desceu a uma velocidade vertiginosa. Percebera no olhar que o dono do animal lhe lançara que ultrapassara a marca da normalidade, correndo o risco de a maioria já não o entender. Em que daria? Num bobo da corte? Quais seriam já os seus interlocutores? Os doidos? Os imbecis? Katy (ou a irmã?) e Felizmina ainda o compreenderiam? A sua solidão, grande como a de qualquer humano, cresceu muito mais.

Acabrunhado pelos obstáculos recordou o chefe:

- Há-de conseguir! Eu consegui, percebe? Olhe que é possível!

O chefe... Num dos patamares inferiores soou um estrondo idêntico ao ocorrido quando se despedia de Felizmina e logo surgiram vozes que discutiam acaloradamente, falando por vezes ao mesmo tempo:

- Eu acho inútil. Esse caminho não leva lá...

- Pois! - refutava outra. - Tu queres é ficar só no mercado!

- Ora! - interrompia uma terceira. - A vida são dois dias e não os gastemos em discussões! Vamos indo e logo se vê!

- Cá por mim - insistia uma quarta - plantava árvores de fruto por todo o lado! E quem quisesse enriquecer que trabalhasse!

- Ora! Ora! O Estado, se não alfabetiza, perece!

- E se alfabetiza demais, perece também.

- Onde é que há alfabetização a mais?

- Que se lixe! Por algum tempo, sem que visse alguém, continuou a

ouvir estas e outras vozes. Depois, outra vez os estrondos, também gritos, imprecações e, por fim, o silêncio retomou a escada.

Atingiu o sítio onde voltara atrás e finalmente não repetiu caminho.

Nos patamares desapareceram as portas: entrou num deserto.

Numa solitária máquina de comida abasteceu-se de sumos e sandes. Ia calado, metido consigo e descia a passo certo.

Mais tempo decorreu. Os lances de degraus sucediam-se na maior monotonia, identicamente iluminados por lâmpadas brancas e

fósforescentes sendo elas o único sinal de vida: alguém um

dia as ligara. Mas quando? Há uma semana? Meses? Anos?

Após algum tempo, o grande cansaço tomou-o. Parou.

Num patamar vazio e despido como as centenas e centenas que acabava de passar sentiu a angústia. Lembrou o

vulto e as suas palavras: além de difícil a descida ainda era inútil?

Chorou. Uma vez mais chorou. Nem a lembrança dos momentos frente à porta o acalmaram.

Chorou ainda. Chorou convulsivamente. Chorou até não poder mais. Estava no nevoeiro, na escuridão total e não encontrava a saída. Escadas mais escadas e tudo inútil, tudo em vão!

Por que não havia elevador? Por que tinha de descer, lutar contra degraus que teimavam em reproduzir-se, escadas que esticavam até ao infinito?

Quem eram? Por que não lhe permitiam o fim? Assim, como era possível? Teve vontade de gritar até os degraus todos do mundo se desmoronarem com o seu grito, todas as escadas à face da terra ficarem em ruínas.

E gritou. Gritou. E de cansado e exausto enrouqueceu. E tornou ao choro, um choro de quem já não tem força para o expressar mas que nem por isso chora menos.

Recordou o episódio da porta envergonhando-se da figura que fizera: não fora ridículo?

E competir com uma escada viva não era ainda mais idiota?

Porque - à medida que de novo serenava, adquiria essa impressão - tudo, afinal, não passaria de um tremendo escárnio, o divertimento gratuito de um deus sádico!

E ele, Sérgio Louro - se é que ainda tinha esse nome!

- não deveria senão escarnecer de si, da sua vida, do seu próprio choro!

E riu. Riu e pareceu que rebentava de riso, com as gargalhadas, a ecoarem sacudidas e descontroladas pelos patamares acima, pelos lances de escada abaixo, como que aos tropeções no vazio do prédio!

E as filas de espera! E Katy! (Ou a irmã?) E Felizmina! E mais a roleta-russa! E Mário, o intermediário! E assim, cada coisa, cada episódio da sua vida, a contar com o nascimento e até que desaparecesse definitivamente!

Tudo uma comédia baixa e degradante com o actor por último a desfazer-se em pó, tragado pelos parasitas.

Valia a pena? Valia? Por mera impossibilidade física de rir mais, calou-se. Na escada não se ouvia barulho algum. Escutando o silêncio lembrou o primeiro dia na Nada e Tudo, Lda.

- Quais são as suas habilitações?

- O curso geral.

- Fica como vendedor comissionista. Precisamos de um para os frigoríficos e arcas congeladoras.

O Silva sorrira, os novos colegas haviam feito o mesmo, ele dissera sim e começara a despachar vendas, a saber como levar a melhor sobre a desconfiança do Cliente, a conseguir provar-lhe que só não compra quem não quer.

Anos a fio. Até àquela manhã. E lá estava a neblina em baixo e, no sentido contrário, a atestar a distância percorrida, outra mancha branca nascendo no topo.

"Eu do nevoeiro tenho medo... Dizem que tem Escalatores! "

"Escalatores?" "Sim, insectos gigantes... Monstros das escadas! "

Mais essa! Por que não me mato? Não aceitei o convite da roleta-russa mas posso fazê-lo agora. Isto é inútil quer para um lado, quer para o outro: o vulto estava certo!

" E um dia verá se tive ou não razão! "

Sérgio Louro, ou lá quem fosse, não lhe seguiria o exemplo: acabava ali.

Fim. Fim de tudo, das canseiras, ilusões, descidas e subidas para descer de novo.

Paz àquele frenesi estúpido, fútil, e a si também! Sim, quero o fim! Numa serenidade idêntica à experimentada frente à porta, levantou-se do degrau onde descansava, alçando a perna sobre o gradeamento que o separava do fundo de tudo.

Talvez a rua seja mesmo além! É este o meu elevador, o

que eu mereço...

Fechou os olhos e... MIAUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!

O Cruas, que subia de cauda orgulhosamente espetada, agitava-a, furioso:

- Mas o que é isso? 'Tás parvo ou quê?! E depois, quem me dá de comer? Sim, depois? Lembra-te que estou à tua responsabilidade! E que me lembre nunca me ensinaste a trabalhar! É assim que posso confiar em ti? É? Venho eu lá de baixo, com fome!... Tens alguma coisa que se

coma? Ora esta! Se queres chegar mais depressa ao fundo, é claro que te partes todo! Olha a soberba! Ainda se tivesses uma cauda como eu! - De olhos arregalados a ver o animal, envergonhado, subtraiu a perna ao abismo.

Como fora possível? Como pudera esquecer o Cruas?! Quase a deixando cair, devido ao nervoso, tirou uma sandes do bolso. Entregou-lha. Cruas fez um gesto de desagrado: - Nem sequer ma desembrulhas? Decepcionas-me! Decepcionas-me! Passa-me só a carne! Apesar de ter conseguido descer toda a escada, coisa que enquanto estive ao

pé de ti nunca me deixaste, continuo o mesmo! - Obedeceu e o gato comeu sofregamente. Lambeu-se como

costumava fazer e roçou-lhe o pêlo pelas pernas. - Passaste um mau bocado, foi? Estavas com saudades minhas? Também eu gosto muito de ti, acredita! Olha, vou indo para cima e espero-te lá. - Meteu a cabeça por entre as grades do corrimão e, com os bigodes, apontou o nevoeiro em baixo. - Aquela zona já explorei! - E retomou a subida em curtas correrias.

Estaria doido? Em todo o caso não se atirara! Tentando saber se fora ou não vítima de uma miragem, espreitou para cima: já não viu o Cruas mas era possível que ele se

tivesse escapulido.

Eu sou Sérgio Louro. Curara-se dos problemas de identidade? De qualquer modo passara uma barreira...

Sentado num degrau encostou a cabeça à parede.

O nevoeiro envolveu-o. Em sonhos também descia e, à medida que galgava degraus, ia encontrando gente. Cumprimentou o primo Licínio e perguntou-lhe:

- Mas afinal o que há no fundo de tudo?

- Mais escada ainda. A escada não acaba nunca.

- Como assim? Não há fim?

- O fim é a morte e como vês ela não existe. A aparição desapareceu. Não há fim algum... Não perguntara acerca da rua e surgiam-lhe outras questões que poderia ter colocado. Para a próxima vez...

Retomou a descida.

Encontrou o pai.

- Por que me fizeste? - A pergunta talvez fosse estranha mas foi a que lhe saiu. Lamentou-se: - Não chego nunca!

O progenitor, que em vida fora boémio acabando numa rixa de bêbados, endireitou-se - subia todo inclinado sobre o corrimão por causa da bebedeira - e disse:

- Meu filho! Que há-de a gente fazer na vida? Eu não te fiz! Nasceste! Mas depois, por que te puseste a caminho? Vês alguma coisa adiante? Ou para trás? Repara que em ambos os extremos há nevoeiro! _ Meu pai, não quer que eu passe a vida sem me mexer.

- Não sejas parvo! Digo que olhes à volta e te deixes ir!

O pai continuou escada acima, provavelmente a caminho de outro bar.

A mãe. Trazia numa mão o saco das compras e na outra o do lixo. Cumprimentou o filho, perguntou-lhe se queria alguma coisa, se andava a comer bem, e acrescentou:

- Isto por cá é sempre assim. Uma mão enche e a outra despeja. Mas ai de nós se esquecemos uma das funções! Repara no que digo e porta-te de acordo com o que te foi ensinado.

Desapareceu. Estava precisamente a pensar que as aparições seguiam sempre para cima quando se cruzou com um miúdo no sentido contrário:

- O que fazes?

- Brinco! - disse a criança - Brinco na escada! Pôs um ar contrariado e explicou: - Os meu pais só me deixam ir à rua com eles! Mas quando for grande quero ir sozinho! - Abriu muito os olhos como se tivesse visto a coisa mais maravilhosa que a sua imaginação lhe oferecesse e quis saber: - Na rua é bom, não é? Lá podemos fazer tudo!

O garoto desapareceu nos lances inferiores. Durante algum tempo teve a sensação de não sonhar e logo surgiu outra cena: num bar, ele cobria-se com um rutilante vestido vermelho e o jovem que lhe servia o vinho atraía-o fisicamente. Depois ouviu-se um estrondo igual aos que escutara no prédio e acordou perturbado.

Nunca sonhara assim! Que significava? Reflectia quando passaram, no sentido ascendente, dois indivíduos com uma maca. Transportavam o que seria um corpo envolto num lençol sujo de sangue. Esfregou os olhos a ver se ainda dormia mas a imagem manteve-se.

De tão surpreso nem esboçou uma tentativa para falar e o conjunto desapareceu nos lances superiores.

De baixo, surgiram outros dois homens: um muito velho e obeso e o outro novo. Vestiam túnicas brancas e seguravam grandes bastões. Espantado, reconheceu no último o jovem que o atraíra no sonho. Este, na altura de dar um caminho à vida, desde há algum tempo que inquiria sobre a de quem encontrava. Assim, interrogou-o:

- Quem és tu? Qual é a tua posição? Com quem estás?

- Com quem estou?

O idoso, tutor do outro, também o pressionou:

- Vá! Diz! - E apontou-lhe o bastão à cabeça. A causa das suas dificuldades ficaria naquela parte do corpo? Haveria razão em ameaçá-la? Mas com que direito? Quem eram eles?

- Não sei.

- Não sabes? - E o novo acrescentou em tom de sentença o que, no intuito de apressá-lo na escolha do modo de vida, o tutor bastas vezes lhe repetia: - Quem não escolhe, encolhe!

- Quero chegar à rua. É para lá que vou - defendeu-se.

- Estás disposto a tudo? - quis saber o idealizado.

- Sim. Estou! - Dava livre curso aos seus desejos?

Seria o caminho? Havia em si um manancial de sensações e apetites que nunca explorara...       Se os soltasse? Esfumar-se-iam nessa nova liberdade ou, pelo contrário, assolá-lo-iam até que os realizasse? A partir do momento em que o fizesse, logo se impediria de chegar à rua? O jovem parecia ainda mais atraente do que no sonho: o nariz aquilino, os olhos grandes e rasgados, os cabelos cingidos por uma grinalda de louros como nas imagens da Grécia Antiga...

Pensei que para chegar lá abaixo bastasse descer os degraus...

Há guerra na escada - explicou ele. - O inimigo tomou-a. Se te dispuseres a morrer para libertá-la...

De novo o grande cansaço da altura em que se quisera suicidar o tomou. Mas que guardava que não pusesse ao serviço da rua? Não era ela o seu objectivo?

Saí de casa para chegar lá abaixo. Estou disposto a derrubar o que se me atravesse no caminho.

- Ah! Ah! - riu o mais velho escancarando a boca sem dentes ao mesmo tempo que um fedor a álcool invadia a escada. _   Viva! Estamos do mesmo lado! - saudou o jovem e, envolvendo-o, aproximou a sua boca da dele.

O calor do corpo... O hálito a húmus da terra   ... Uma entrega que o libertava e nunca pensara possível   ... Mas algo em si se fechou e afastou o outro com violência.

Novo estrondo. Um clarão feroz cegou-o.

Não sabia como ali viera ter mas estava no exterior, um vasto descampado cheio de pedras e terra seca, aqui e além cortado por arbustos ressequidos: uma paisagem árida que não terminava nunca, a natureza condenada à indiferença. Mesmo por cima de si, no firmamento cinzento e baço, o brilho de um olho, uma gigantesca íris da cor da gema do ovo. O que era? Um "ovolho"?

E a rua? Esfregou a vista. A íris empalideceu, sumiu-se no cinzento geral mas logo reapareceu no mesmo sítio. Olhava-o. Estaria num campo de prisioneiros da guerra em que fora envolvido? O olho seria um vigia tecnológico? Ou fora drogado e sofria uma alucinação? Como saber? Só confrontando a sua opinião com a de outrem. Mas onde? Lembrado de que se estivesse preso haveria de encontrar algures uma cerca (a não ser que o globo ocular de facto a substituísse) decidiu avançar sempre a direito.

Ao cabo de muito caminho, atiçado pelas dúvidas que já trazia e açoitado pelas novas que se punha, ainda nenhum obstáculo se interpusera entre si e a direcção em frente! Era ainda o mesmo terreno, cheio de calhaus e arbustos que pareciam nunca florescer. E a íris, ora se mostrava, ora se escondia por detrás de uma nuvem a espreitar. Achava isto uma injustiça atroz! Ao fim de tanto descer ainda acontecia uma coisa assim? Tentou lembrar-se do que ouvira acerca da guerra mas apenas retivera que o inimigo tomara a escada. Também recordava que se dispusera a derrubar o que se lhe atravessasse no caminho para a rua mas, precisamente ali, não havia coisa alguma a deitar abaixo, salvo a ausência que, por todo o lado, o rodeava. Além de não conseguir afastar de si a imagem do jovem que, afinal tinha de reconhecê-lo desejara. Isto... humilhava-o!

Viu as horas. Há várias que corria naquele cenário totalmente avesso a humanos sem encontrar vivalma.

O dia declinou. Encontrou uma máquina auto-serviço que distribuía não só alimentos mas também sacos~camas. Mais animado (uma vez, pelo menos de quando em quando, alguém ali viria colocar os mantimentos! Um ser humano!), envolvido num saco e com uma pedra a fazer de travesseiro, adormeceu.

Sonhou com escadas. Umas eram para subir, outras para descer, havia as que passavam por cima, como gigantescos viadutos, algumas eram em caracol e onde mal caberia uma pessoa, escadas ainda como as que os aztecas construíram em direcção ao Sol (uma levava ao ovolho), outras espiraladas, rectas, curvas à esquerda e à direita e uma rolante, que conduzia a uma portentosa luz que destruía tudo em redor. Eram feitas de borracha, gelo, lama (quem andava netas enterrava-se), vidro (estas cortavam à menor distracção), papel, espaguete, cuspo e carne humana! As últimas, ao subi-las, soltavam gritos e segregavam uma substância viscosa que associou a lágrimas...

Também as havia carnívoras e devoradoras. Quando despertou escurecera e não viu o "ovolho". Só por isso o descampado pareceu menos agreste.

Pouco depois o clarão de um projector surgiu no firmamento. Teve esperança de que não proviesse da gema: a sua visão angustiava-o. Mas, decidido a descobrir a origem da luz, foi em sua busca.

Estaria numa ilha? Seria um farol? De vez em quando tropeçava nas pedras do caminho mas não desistia.

Finalmente chegou. A claridade provinha de um velho casarão em forma de templo onde, à entrada, sobressaía um anúncio: A Rua!

Em redor aglomerava-se uma multidão compacta.

A Rua! Não era o que esperara encontrar no fundo da escada mas depois do que passara era já gratificante ver aquele nome!

Avançou com passo rápido. Entre a multidão e a majestosa escadaria do templo, forrada a passadeira vermelha e ladeada de guardas com libré segurando archotes, um gradeamento delimitava um vasto espaço vazio. Neste, elevados em gruas, porteiros vestidos como operários da construção civil, munidos de binóculos, assinalavam, com potentes lanternas os admitidos à entrada. Os iluminados, sob a luz dos finos focos, ultrapassavam as cancelas desaparecendo no interior do edifício,

Obrigou-se a esperar até passarem o cansaço e a excitação que a longa caminhada e aquela descoberta lhe causavam. Depois, dirigiu-se a um homem que vestia um luxuoso fato:

- Vossa excelência desculpe - pediu, utilizando o tratamento que parecia indicado à importância que o outro ostentava. - Isto aqui é o quê?

Samuel, cansado das inúmeras tentativas goradas para se fazer admitir na Rua, fora, em desespero de causa, alugar um díspendioso traje. Reparou no do interlocutor: se um dos porteiros o visse a falar com alguém de fato remendado não estragaria o investimento que fizera? Olhando o desconhecido com ar de quem não entende a língua em que lhe falam, afastou-se para junto de um grupo que também vestia caro. Este acolheu-o com um sorriso cúmplice e Samuel sentiu-se gratificado: o dinheiro gasto no fato já mostrava as suas vantagens.

O seu aspecto impressionara mal o outro. Culpando-se por, na excitação do encontrar gente, se ter esquecido de se arranjar, afastou-se da multidão para, pelo menos, sacudir o pó do caminho.

Quando voltou, escolheu já lugar ao pé de um grupo que vestia vulgarmente. Com um indivíduo de fato idêntico ao seu, mas inteiro, meteu de novo conversa.

- O senhor desculpe, mas importa-se de me dizer onde estamos?

Gabriel olhou-o e logo recordou as palavras do porteiro seu recém- conhecido: "Venha quando estiver eu de serviço e facilito-lhe a entrada". Como dar a impressão que aparecia, sim, mas acompanhado? Com um gesto que nem sequer procurou disfarçar, virou as costas ao inoportuno. Mas este não desistiu e abordou outro indivíduo:

- Importa-se de me dizer o que é isto?

O novo interrogado, ao contrário dos anteriores, não pareceu incomodado por falar. O tom era mesmo de revolta e desabafo:

- Isto? Eu sei lá o que é isto! Ando aqui há anos! Há anos, está a ouvir? E ainda não entrei! Eu sei lá o que é isto! Eu nem quero pensar! E como se houvesse eleitos! São sempre os mesmos que entram! Sempre! E eu? Não mereço entrar, é' - Virou-se na direcção de uma das torres e vociferou de punho erguido para um dos porteiros que, naturalmente, não o olhava nem ouvia: - Eu quero entrar, estão a ouvir? Tenho esse direito! A vossa luz não é senão o reconhecimento daquilo que cá em baixo nós fazemos! Quem se julgam? Vós não decidis nada! Somos nós que nos elegemos pelos nossos actos e pela nossa decisão! E se não reconheceis isso é porque estais enganados! É porque alguém vos enganou! - Fez um pausa para limpar a voz que a comoção sufocava e retomou: - A justiça e o amor são cegos, nunca o esqueçam! Nunca!

Levado nas suas palavras o homem começou a avançar por entre a multidão que, como se o conhecesse, abria alas no meio da maior indiferença, enquanto algumas vozes comentavam: "Coitado!" "Endoideceu!" "Não aguentou! " "É um fraco! ". Mas o ronco de um helicóptero que aterrou entre a cerca e a escadaria do edifício sobrepôs-se-lhes. Seguranças rodearam o aparelho e um casal, vestindo gigantescos fatos, dirigiu-se para a entrada. Lenços brancos agitaram-se na noite, de permeio com gritos de entusiasmo.

Haveria alguma relação entre o que pretendia e aquele casarão? Ou, por mais estranho que parecesse, lá dentro estaria a caminho para a Nada e Tudo, Lda., onde iria esclarecer quem era o outro?

Um guardião focou o primeiro homem com quem falara e ele, no seu fato de extremo luxo, cheio de altivez, pavoneou-se até à escadaria, desaparecendo no edifício.

Ficou-se a pensar na atitude impante do homem. O seu rosto expressara apenas a responsabilidade de ter sido eleito? Na verdade, nada sabia do percurso dos que o rodeavam. Não teriam também vencido difíceis provas até ali chegarem? Lembrou as pessoas que lá atrás vira nas bichas. Em comparação com as que o cercavam pareceu-lhe que as primeiras sofriam mais. Nem ao menos sabiam, como Manuel dissera, se as filas levavam aonde queriam. E no entanto... Além de que o seu próprio caso...

Confuso, desanimado, incapaz de discernir, viu-se a furar caminho até à cerca - no que não teve dificuldade porque, evidenciando que não o conheciam, todos se afastavam à sua passagem - e, chegado ao gradeamento, encostou-se. Nem sequer era movido pelo desejo da luz mas agia assim porque não sabia que mais fazer! Um indivíduo a quem, por descargo de consciência, ainda perguntara: "Diga-me, por favor, onde estamos?", respondera: "Na rua, é claro! ". Mas ele dissera Rua ou rua?

Alheio à ansiedade em redor foi quando um porteiro casualmente o focou.

Apanhado desprevenido fez um gesto de repugnância pelo encandeamento de que era vítima e o guardião reparou no seu fato.

A ousadia! Não era o cúmulo do "snobismo" apresentar-se ali daquela maneira? Roto e remendado como um vagabundo!

Satisfeito por desencantar tal indivíduo o operário focou-o de forma decidida.

A Rua abriu-se para o iluminado. Era noite de "bar aberto". Uma célebre vedeta que, durante a longa carreira nunca fora vista senão em imagem multidistribuída, mostrava-se finalmente em pessoa: numa chaise longue tatuava autógrafos nos corpos que se lhe ofereciam.

Empregados nus serviam bebidas e monumentais fontes jorravam champanhe. Grupos banhavam-se atirando-o em redor.

Riam-se gargalhadas ostensivamente falsas. Serviu-se abundantemente nas bandejas que corriam e as questões que o preocupavam desvaneceram-se. Por que não fundar uma religião se o da pensão, mais o da empresa e ele próprio fossem o mesmo? Triplos e unos!

Riu também. Quanto ao ovolho, fora de certeza um anúncio publicitário ou o papagaio mais alto de uma criança!

Feliz pela facilidade com que resolvia os problemas, às gargalhadas sozinho, exultava: atingira a rua!

Riu ainda. Um estilista a quem a sua alegria e forma de vestir chamaram a atenção, achou-o digno de inspirar uma nova

moda: a Vagabunda despreocupada e livre.

Clareava de novo no descampado. Um cão falava-lhe:

- Pode não parecer - dizia num tom cabisbaixo

- mas sou um puro pastor alemão que fez serviço na polícia! Mas um dia um maldito qualquer inventou um detector de cheiros e eu e todos os meus colegas tivemos que nos reformar! Agora andamos por aí... E, é claro, a pensão que nos dão não chega para nada... Permitem-nos pernoitar no canil público... Mas quem gosta daquilo? Enfim, esta é a minha cruz!

O animal tinha o pêlo hirsuto e ar de abandonado. Quanto a si sentia-se terrivelmente embriagado.

Caiu para o lado.

Despertou. Estivera onde? Na Rua? E um cão falara-lhe? Ou fora a proximidade do que dormia enroscado junto de si que lhe dera esse sonho?

O animal, um pastor alemão com mau aspecto, trazia escrito na coleira o nome Ruas. Acordou e também pareceu admirado por estar a dormir ali. Encarou com ar estranho o homem, ganiu duas vezes como que a lamentar-se da vida e olhou para o alto.

Seguiu-lhe o movimento e viu o que por algum tempo esquecera: a íris! A gema! O ovolho! Irritado pela descoberta levantou-se.

Continuou caminho.

O cão por momentos seguiu-o mas rosnou e afastou-se noutro sentido.

Encontrou uma máquina de alimentos. Serviu-se. Entardecia quando viu gente: um grupo escutava um homem em cima de um palanque.

- Assim não pode ser! Cada vez há menos máquinas que nos sirvam! Temos de fazer qualquer coisa!

Um dos que ouviam, interveio:

- Fazem de propósito! É só para nos chatearem e obrigarem a andar mais depressa! Ora, nós temos o direito de

não correr!

Consciente de que queria sair dali mas incapaz, devido à confusão (ou ressaca?), de organizar o pensamento, interpelou um dos assistentes.

- Desculpe, importa-se de me indicar a saída?

- Saída?

- Sim, a saída disto! Quero encontrar a saída! - Ruben identificou o desconhecido como mais um em busca da solução ideal que, bastas vezes, se confundira com a solução final... Não poderia o homem viver no mundo que tinha, melhorando-o, sem dúvida, mas sem esperar o paraíso? A saída! No entanto, o indivíduo não desistia e, com uma expressão ansiosa, de novo o interpelava agarrando-lhe já o braço: - Nós estamos presos?

- Como?

O outro não percebeu a questão e o inquiridor olhou em redor, dando a entender que, embora não vendo cerca alguma, era como se ela fosse omnipresente. Ruben porém libertou-se:

- Você é que me prende!

- Eu quero dizer prisão de verdade! Com guardas... Ergueu os olhos e mostrou o ovolho: - O que é aquilo? Para que serve?

- Aquilo o quê?

- O olho! Ruben observou o céu: nuvens e um dia possivelmente a terminar em chuva. E logo saíra sem qualquer agasalho... Encarou o "chato" (seria um doido?) e atirou:

- O olho? O olho é o do nosso cu e todos temos um! Ora para que serve? - Afastou-se. Além de o orador não dizer nada de novo; na mira dos votos e de protagonismo político mais parecia um vendedor da banha da cobra a arranjar remédio imediato para tudo! Ora bolas!

Uma mulher grávida, de aspecto miserável, subiu ao palanque. Socava violentamente o ventre e gritava:

- Sabem quantos filhos já tive que deitar fora, sabem? E dava mais socos. Desanimado, sem conseguir entabular conversa com

ninguém, retomou a marcha sempre em frente, encontrando ainda e sempre o mesmo descampado: como prisão era a perder de vista! Entretanto o céu descobrira-se e não viu a íris: fora vítima de uma ilusão óptica? E na noite anterior estivera de facto na Rua? Ou sonhara-a? Neste caso sentia já saudades do que idealizara... Era possível? Com o cair da noite averiguaria, então, da existência ou não do holofote: no mais fundo de si desejava-o: "lá" fora feliz.

Encostado a uma máquina abastecedora repousou. Sonhou ainda com o jovem da escada e reviveu a cena do beijo. Acordando razoavelmente irritado olhou o firmamento: o ovolho observava-o. Mas uma nuvem tapou-o e, nesse momento, alguém começou a esmurrar a parte da frente da máquina a que se encostara:

- Bolas para isto!! O cartão não dá nada! Mas que culpa tenho eu? Agora tenho de me abastecer nas outras e vai ser uma merda!

Espreitou a ver quem falava: um homem de fato e gravata com a indumentária acusando grande uso.

No intuito de o acalmar, perguntou-lhe:

- Não funciona?

- Sei lá se funciona ou não! O meu cartão não dá e é tudo! E para encontrar uma que dê, agora tenho de percorrer quilómetros e quilómetros! Estou furioso! - O indivíduo continuou a pontapear o robô sem que este desse sinal de resposta. Interrompendo os insultos indagou:

E você? Quem é? De novo sem saber de si, achou a questão inoportuna e infeliz. Num gesto de boa vontade esforçou-se por ser

convincente mas o tom em que respondeu foi inseguro:

- Bem... Eu sou... Quer dizer.. Eu fui... Isto é... - Entaramelava-se numa explicação que o outro, por falta de paciência ou por querer esmurrar a máquina sem interferências, atalhou:

- Ah! já percebi! Deixe lá que eu também já fui! A rematar a frase, assentou mais um punho fechado na

carcaça do robô. Ele continuou mudo.

- Quer dizer que ... ?

- O mesmo que consigo, certamente! - O homem apresentou-se: - Ex-António Dias, à sua disposição.

- E eu sou... ex-Sérgio Louro... - Pela primeira vez

aceitava que deixara de o ser? Mas seria o quê?

Silêncio. As palavras, não só as que acabava de proferir como as idênticas de ex-António Dias, ribombavam-lhe no cérebro como se o quisessem fazer explodir. Seria possível? Iria aceitar que não era quem tinha sido? Que já fora? O outro continuou:

- Roubam-nos tudo, não é verdade? Até os cartões já só dão para certas máquinas! As piores, está-se mesmo a

ver! Os gajos - fazia uma expressão de desagrado que dava a entender a pouca conta em que tinha aqueles a

quem se referia - sabem-na toda! E a gente que se lixe!

- enquanto acrescentava, ao mesmo tempo que entremeava a frase com mais socos e pontapés na parte de baixo da máquina. - Nós tornamo-nos ex-"eles". - De novo a expressão de desagrado ou careta. - São cada vez mais os mesmos! Qualquer dia até já nem nascemos! Olhe, descemos! - E deu o maior murro de quantos a

máquina recebera. Esta devia ser de algum material preparado para receber semelhantes tratos pois nem uma amolgadela apresentava como resultado da fúria do utente.

- Estou aqui por causa duma guerra... - disse ex-Sérgio Louro sem saber por que se confessava a um estranho ou se o que dizia era verdade.

- Guerra? Não conheço eu outra coisa! Aliás, quando começou7 O meu bisavô já a fazia e o pai dele contava que o seu bisavô morrera nela! Olhe, resistirmos é uma grande vitória! Mas havemos de ganhá-la, olá se não! - Com isto deu mais um sopapo na máquina sem lhe provocar qualquer dano visível. - Eles - de novo a careta - lá sabem por que as fazem blindadas, olá se sabem!

Cansava-se da violência tanto mais que, acabado de acordar, o estrondo oco dos socos no maquinismo lhe ressoava dentro da própria cabeça.

Talvez consciente do mal-estar ocasionado no interlocutor, de qualquer modo também um "sido", ex-António Dias fez uma pausa na sessão de pancadaria.

Com cautela, para não cair nos erros anteriores, aproveitou para saber mais acerca daquele sítio:

- Isto vai ter aonde? Tem saída, não tem? - Não ousava inquirir se estaria numa prisão porque não encontrara nem guarda nem cerca, mal-grado o ovolho que, para evitar problemas, preferiu não referir. Mas ainda acrescentou: - Este campo é normal, não é? - Logo se arrependendo da fórmula usada para perceber se não fora metido num qualquer campo de concentração. A confusão era tal que nem sabia o que perguntar!

Ex-António Dias não pareceu surpreso e encarou-o. Por momentos não disseram nada. Depois, o homem virou costas metendo-se a caminho. Mas avisou:

- Tenho de encontrar outra máquina. Uma que não saiba que des-sou, senão estou lixado! - Pôs-se a correr

como se algo de mau o ameaçasse.

Viu-o afastar-se. Levado pelo exemplo e contagiado pelo gesto deu também um murro na abastecedora. Para sua surpresa ela debitou uma lata de feijoada, outra de sumo e uma pequena garrafa de espumante! Enfim, contando com a sobremesa e uma entrada que saíram de seguida, acompanhadas de uma embalagem de pão, foi um repasto completo o que, de um momento para outro, e inesperadamente ganhou. Era ex-António Dias o autor da dádiva mas ele já mal se via no horizonte e, apesar de o chamar, ele não o ouviu. Porém a máquina não se ficou por aquela proeza: vomitou ainda mais latas pejando a terra em redor de conservas que não paravam de cair: a violência sempre surtira efeito.

No entanto o festim não foi completamente profícuo: sem saber bem como, uma pequena multidão surgida do nada, rodeou-o, pondo-se a insultá-lo.

Eram homens e mulheres esfarrapados, miseráveis, escurecidos pelo que seria a sujidade e más condições de vida, com crianças sebentas e ranhosas ao colo ou violentamente puxadas pela mão. Numa luta feroz pelos alimentos caídos no solo digladiavam-se sem o mínimo respeito. Uma mãe tirava das unhas do filho um resto de pão.

Esgotada a comida, num ápice, todos se lhe viraram ameaçadoramente:

- Abuur! Abuur! - dizia uma mulher apontando-o e

que, de tão esquelética, havia muito que passaria fome. E acrescentava: - Abuur irotio riejtu dur trufuti girto ivvil

- Abuur! Abuur! - corroborava uma mais jovem e não menos aguerrida embora mais bem constituída

- Abuur! - E atiçando com um dedo escanzelado os demais, gritava: - Dur abuur iroto futu iturritu dituti ivvi! Durtuf ivu furue girto!

Que diziam? Teria alguma coisa a ver com aquilo? Ter-se-iam também perdido na escada? Entretanto já o agrediam e uma mulher berrou-lhe mesmo em cima do ouvido:

- Rutifur rutiiyu i uti i uyirrt gitui? - E não contente acentuou extraordinariamente a última palavra: - GituuuuuuiiiiM?

Derrubado pela violência dos golpes encolhia-se no chão, protegendo a cabeça o melhor que podia. Mas a agressão não parava e, por fim, fingiu-se inanimado. Ao verem que não se defendia, o grupo, talvez por medo das consequências do seu acto ou porque se encontrava saciado, não o espancou mais.

Tal como surgira, a pequena multidão desapareceu. Crivado de dores e contusões desmaiou sobre o seu mal.

Não havia ninguém em volta, salvo o pastor-alemão que, de manhã, acordara a seu lado: ele lambia-o.

Levantou-se.

O corpo dorido, andando com dificuldade, deu no entanto graças por não sentir nada partido.

Afinal no descampado falavam-se vários idiomas e a convivência não era pacífica. Assim, mal-grado o aspecto pouco próspero do cão, a sua presença reconfortava-o: talvez ele o livrasse dalguns incómodos. E encontrando pela frente sempre o mesmo terreno inóspito, o homem serviu-se do animal como confidente:

- Sabes, desde a guerra acho que a descida se complicou...

Ruas escutava-o mas não respondia, ao contrário do que o homem sentia que já sucedera, embora não soubesse explicar como. Mas não se importou: o fundamental era abandonar o descampado ou, pelo menos, descobrir onde estava. O ovolho não tornara a surgir: vira-se livre do empecilho? Não tinha a certeza e imaginava-o a espreitá-lo por detrás das nuvens.

Andaram o dia todo e a noite caiu. Os caminhantes pararam a descansar.

Um holofote iluminou os céus.

- Vês? - disse para o cão. - Sempre foi verdade o que sonhei! Isto é, não sonhei coisa alguma.

A Rua... Devia lá voltar? O desejo era grande mas se o fizesse... E por que não? Não se sentira lá bem? Lá, não fora feliz? Não seria isso o importante? Porém, o adiar a busca da sua rua para mais tarde causava-lhe problemas de consciência. Queria saber quem era... Mas não seria o que fizesse? E fazia o quê?... Lembrando, no entanto, a promessa feita à saída da Viúva Mesquita de não se desviar do caminho para a rua, o homem reuniu esforços e reafirmou aos céus, tendo como testemunha o cão:

- Não faltaremos à nossa promessa. - E como a Lua rompesse no sentido oposto ao do projector e alheia à sua luminosidade, decidiu-se a segui-la.

O que anda alto não sofre. Observa apenas...

A Lua rompeu no sentido oposto ao do projector.

- Faremos dela o nosso guia - disse o homem. O holofote não a atingia, e ele pensou: - O que vai alto não sofre. Observa, apenas.

O animal acompanhava-o submisso e o astro amarelo guiava-os. Encontraram um lago.

Na água o caminhante viu reflectido o seu rosto e também o que se passara desde que naquela manhã lá atrás, deixara o seu quarto na residencial Vitória: a surpresa pelo comprimento das escadas, Katy (ou a irmã?), o bar e o convite para a roleta-russa, Manuel a querê-lo profeta, Mário a desejá-lo, Felizmina com quem quase ficara, o vulto, tudo até surgir na escada o jovem idealizado. Mas esta última lembrança inquietava-o não conseguindo arrumá-la no meio das outras. Por isso ela o obcecava? Por isso também via o rapaz na água?

O rosto transformou-se no ovolho.

- Vês? - indicou-o o homem. - Persegue-me desde que aqui cheguei! Nem mesmo sei o que quer!

O cão seguiu a direcção que ele apontava e, numa atitude de espera, pareceu aguardar voz de comando. Depois o ovolho desapareceu e o lago voltou a espelhar a Lua.

Perturbado pela experiência pôs-se a caminho. Ao cabo de muito andarem, homem e animal descansaram. Um, travesseiro do outro. Como se fossem o Mesmo.

* luz da Rua perdia-se no infinito. * Sol levantara-se, mas pela altura a que ia seria ainda manhã.

A visão do lago continuava-lhe na memória e inspeccionou o firmamento: não descobriu o ovolho.

Era o terceiro desde que ali chegara. Que fazer? Para onde seria o Centro do Desemprego? Ou a Nada e Tudo?

Ruas reapareceu e uma mulher cruzou o caminho. Apressada, calçando sapatos de tacão muito alto, andava com dificuldade no terreno. Tropeçou.

O homem foi em seu socorro:

- Sente-se bem?

- Sim... Sim... Acho que não parti nada. Muito obrigada.

De pintura no rosto muito marcada, fez uma festa no cão, que soltou um latido satisfeito.

- A senhora diz-me para que lado é o Centro do Desemprego?

- Ah, isso não sei!

- E o olho?

- O olho? A que se refere? - Pouco à vontade, Alcina achou melhor não forçar a sorte depois da aventura que quase acabava em mal, que a trouxera àquelas paragens. Além disso que perguntava o fulano? Pelo olho? Observou-o desarranjado como o último cliente de má memória... Decidida a terminar a conversa justificou:

- Desculpe mas estou atrasada. Vou indo, obrigada pela ajuda. E quanto ao olho - acrescentou com um sorrisozinho malicioso - neste momento não estou para aí virada... - Consultou o relógio e mentiu: - Tenho de ir.

Não posso chegar tarde! - Descalçou-se e começou a andar de sapatos na mão.

Ficou a vê-la afastar-se. Afinal devia ter perguntado pelo nome do sítio onde estavam ou pela paragem de autocarro mais próxima... Mas sobretudo censurou-se por haver colocado a questão do olho.

Estarei doido? Por que não consigo sair daqui?

O cão. Pensou que ele talvez soubesse responder às suas questões e ainda se sentiu pior. Com um berro enxotou-o.

- Some-te! Some-te! Deixa-me ficar só! Preciso de saber onde isto vai ter. E tenho de fazê-lo sozinho, entendes?

O animal passou a segui-lo de longe e, mesmo assim, desconfiado. Como se o seu guia não soubesse o que queria ou fosse levado por uma amálgama de sentimentos.

E o ovolho? Espreitá-lo-ia? Por que não aparecera ainda? Não se atrevia?

Contrariado, percebeu que se habituara à sua presença.

Andou mais aquele dia fora de si, sem resposta e sem norte.

Perdera as referências, perdera as certezas, perdera o que era possível perder e em contrapartida ganhara caos e insegurança. Por culpa da escada! Por culpa da maldita escada! Se tivesse escolhido quarto num prédio com elevador nada teria sucedido!

Ruas acompanhava-o a uma prudente distância mas parecia resolvido a não o abandonar.

- Tanto pior para ti! Ainda se seguisses alguém que soubesse para onde vai!

Meio-dia: o Sol ia alto. Calor.

Parou junto de um arbusto ressequido como os demais. Ouviu risos de crianças e surgiram três meninas, vestidas de branco, talvez entre os oito e os dez anos de idade. Traziam piões nas mãos e uma tinha o seu enrolado na corda, a segunda trazia o seu meio desenrolado e o da última não possuia guita. Talvez a tivesse perdido e a procura as trouxesse ali. Ao darem com o homem pararam a olhá-lo.

- Venham cá. Não vos faço mal. - Elas não se mexeram. - Está bem. Deixem-se estar aí mas por favor falem comigo. - Ia perguntar-lhes o nome daquele sítio, mas a do pião sem guita interrogou-o:

- Quem é o senhor? Esforçou-se por dizer com segurança o nome e o apelido.

-   O que é que faz? - quis saber a do pião meio desenrolado.

- Não sei. Ando perdido. Caminho há uma data de tempo mas não sei onde me encontro... - Embora convencido da pouca importância que a explicação teria para as crianças, acrescentou: - Na verdade também não sei quem sou... Ou como se sai daqui...

A questão pareceu deixá-las admiradas.

- Daqui? - A que falava, a mais pequena em altura, fez uma pausa. A do brinquedo todo enrolado interveio:

- Nós vimos d'além.... - E com um dedito indicou a linha do horizonte. A que se pronunciara anteriormente explicou:

- Não podemos demorar! - E virando-se para as colegas perguntou-lhes num tom de quem se decide a fazer a boa acção do dia: - Levamo-lo para casa?

As três olharam-se. Encararam-no, e a mais pequena, sentindo que recebera permissão para isso, convidou:

- O senhor vem connosco?

- Para onde?

- Para ao pé dos nossos pais...

Falavam-lhe como se também ele fosse uma criança, incapaz de se guiar no mundo e por isso nem sequer merecendo ser deixado sozinho: um irresponsável que não aprendera o norte e o sul, o bem e o mal, alguém inútil e porventura perigoso, susceptível de se destruir e aos demais, como quem não descobre o valor que em si tem. Ou, pelo menos e na melhor das hipóteses, um que ainda não encontrara a sua razão de ser, se desconhece, se separa e mata.

- Para ao pé dos vossos pais? Mas... eu ainda não acabei... Digam-lhe que procuro...

- E nunca vai encontrar, não é? - ouviu uma das crianças dizer em tom escaminho...

- Nós também não vimos a guita do pião dela... queixou-se uma indicando a colega do brinquedo sem cordel.

- Por que é que ele não nos ajuda a encontrá-la? questionou a mais alta. - Assim não vale! Ele só pensa nas suas coisas...

As três observavam-no em silêncio e percebeu que delirava e que, provavelmente, apanhara muito Sol desde que se pusera a andar naquela manhã. Recompôs-se e perguntou-lhes:

- Vocês também o vêem?

- A quem? - interrogou a mais pequena, já verdadeiramente desconfiada.

- A gema amarela! O olho! O... - Interrompeu-se. Que sabia? Talvez não fosse nada daquilo. Talvez... As crianças sorriam entre si: o desconhecido era cómico! Sentiu-se ridículo mas olhou para cima e viu-o. Apontou-o: - Lá esta! - Mas nesse preciso momento o ovolho desapareceu. As miúdas entretanto perscrutavam o firmamento na zona que ele lhes indicara.

- Não vejo nada! - constatou a do pião meio enrolado, os olhos fitos no céu.

- Pois não!... - secundaram-na as amigas baixando os rostos e todas definitivamente desiludidas, senão zangadas: aquele senhor, afinal, prometia-lhes coisas que não se verificavam! Sem mais palavra deram as mãos e desataram a correr. A mais pequenita ainda se voltou para trás e, numa voz esganiçada, ameaçou:

Nós vamos contar tudo lá em casa! Vêm buscar-te! Não nos ajudaste!

- Não serves para nada! És mau! - secundou outra. Desapareceram no horizonte. De novo só, deprimido, olhou o firmamento: lá estava outra vez aquilo! Ganhara inclusivamente uma pálpebra e piscava-lha! Revoltado pegou numa pedra: atirou-lha. Mas o Sol encandeou-o e ela caiu-lhe em cima. Teve um ataque de raiva e chorou. Mais calmo, mas de galo a crescer na cabeça retomou o caminho. Sabia lá para onde! Com tanta pressão sobre a sua pessoa nem ousava erguer os olhos para o alto! Porque aquilo não o deixava? Para quê tanta prova? Porque andava como que nas trevas? Onde estava a luz? Relembrou a Rua. Ia lá voltar: necessitava de uma compensação. Chegaria mais tarde à Nada e Tudo mas qual o mal? A vida talvez fosse uma escada mas não levava a parte alguma! Ou para que ser herói se nunca havia troféu? Lutar contra a força das coisas? O melhor era gozar a vida que, segundo uma das vozes na escada, não durava mais que dois dias, e

um, naquele para a frente e para trás, já passara! A sua escada terminara no descampado: era sua a culpa?

Não. Nos céus o ovolho sumira-se, o que lhe pareceu de bom augúrio: dirigir-se para a Rua era a decisão certa.

Andou o resto do dia de um lado para o outro a fazer tempo: desinteressado do caminho repetia o mesmo. Na verdade só esperava a luz!

A noite caiu e surgiu mais voraz do que nunca. Ruas, de cauda a abanar como se soubesse ao que ia, precedia-o.

À porta da Rua aglomerava-se uma multidão coberta de faustosos andrajos. Não teve dificuldade na entrada porque o porteiro, que da vez anterior o iluminara, reconheceu-o como o grande iniciador da moda que, desde então, fazia furor. Entretanto, lá dentro, a indústria do lazer lançava a "Vaga", cujo efeito era sonhar-se livre, que nem afectos, posse ou dor causavam preocupações e o ser "reduzido à bagagem mínima mas disponível para a amplitude máxima" ficava capaz de vagabundagens cósmicas: daí o nome, dizia o apresentador. Portanto, por toda a Rua "vagava-se" com desprendida alegria, e gentis "maltrapilhos" distribuíam pílulas coloridas, acompanhadas por sumos e águas minerais: tomou cinco para obter um efeito mais rápido.

Esperou.

Passados vinte minutos sem observar qualquer efeito tomou mais dois comprimidos: um verde e outro azul. Só queria sair de si, e não matar-se.

Meia hora mais tarde não sentia ainda nada. Por que não se evadia? Fechara-se tanto que já nem a droga o libertava? A seu lado no bar havia um indivíduo de semblante sereno. Lamentou-se-lhe:

- Afinal isto não resulta.

- Não há nada que resulte... - E o outro acrescentou: Pela minha parte é assim mesmo: estou condenado...

- Condenado? Condenado a quê? Não o estaria também?

- Condenado, apenas. Chamo-me Acácio. E você? Falhara a escada, falhara a saída e o mais que podia dizer era que em tempos fora Sérgio Louro. Mas compreendê-lo-ia o outro? E depois, viera ali para se meter em conversas? Não fora antes para esquecer tudo? Para se sentir, já que não ele mesmo, ao menos alguém? Um dos apresentadores da "Vaga" retomou:

- O ser puro, o ser sem complicações... Acácio sacudiu os ombros:

- Tanto faz! Aquilo não é para nós. Estamos condenados... - De idade idêntica à sua, o corpo franzino, sorria. Satisfação? Pelo menos falava num tom sereno e os olhos irradiavam a luz de quem se sente bem consigo e em paz com o mundo. A mesma serenidade que também teria se encontrasse a sua rua, se a escada não lhe acabasse ali... De súbito ouviu-se a dizer:

- Parece que a encontrou, ah?...

- Encontrei o quê?

- A rua! Acácio ouviu as palavras do desconhecido e interpretou-as a seu modo. Com novo encolher de ombros repisou:

- Pois é: cá estamos. - Uma adolescente "maltrapilha" aproximou-se oferecendo a bandeja com mais pílulas. Acácio recusou-as mas pela sua parte tirou algumas e

outro sumo. A grácil "vagabunda" não disse nada mas sorriu continuando a distribuição: pela primeira vez comercializavam uma substância que ingerida em excesso se anulava... Acácio esperou que o seu interlocutor tomasse os comprimidos. Repetiu: - Cá estamos...

- Cá estamos? - Esquecera a razão daquele "cá estamos" e perguntou num tom já agreste:

- Cá estamos? Cá estamos onde?

- Na Rua, é claro! Teve a impressão de que se descontrolava: seria a droga? Resultava? Mas não era bem-estar o que sentia, era...

Alheio ao vulcão que se preparava a seu lado, o homem acrescentou com outro encolher de ombros:

- Cá estamos! Não pôde mais. A ira contra o produto que afinal não anestesiava – se não era o contrário que sucedia! - e sobretudo contra si, contra a sua incapacidade e impotência, virou-se para o parceiro. Agarrando-lhe as bandas do casaco ergueu-o alguns centímetros acima do solo:

- Na rua? Ah? Na rua? É na rua que eu estou?! - gritava-lhe contra a cara. - Com que então isto é a rua, é?! Você está a gozar comigo? E não é só você! É também a porcaria desta droga! E mais o ovolho! É tudo! É tudo!

- Um grupo aglomerou-se em redor dos dois homens. Deixou Acácio cair no chão e dirigiu-se aos circunstantes. Furioso espumava pelos cantos da boca:

- Seus falhados! Falhados estão a ouvir? - O público começara a sorrir cúmplice entre si: anunciavam para a noite uma intervenção para-teatral e seria aquilo: ali os espectáculos eram famosos pela sua violência e aquele já cumpria! Todos seguiam o acontecimento com a máxima atenção: - Cambada de perdidos! Palhaços! Incapazes! - Um empregado aproximou-se do provocador e quis imobilizá-lo. Mas só lhe redobrou a fúria: - Fantoches! Fantoches! Robôs! - Acácio, sempre calmo, assim que liberto afastara-se do agressor. Mas uma chusma de seguranças arrastava-o já na direcção da saída. Todavia, apesar do gigantismo do espaço, ouvia-se-lhe bem a voz porque o disc-jockey parara a música e os polícias colocavam-lhe microfones junto à boca: a gerência, levada pela reacção dos clientes, assumira-o, de facto, como o show da noite e toda a gente acompanhava já o grupo para não o perder.

- Falhados! Cobardes! Falhados! Vêm aqui esquecer isso! Porque não têm força para ir mais longe! Porque se demitiram! Porque se querem enganar! Porque não querem ser! Mas eu não! Eu hei-de encontrar a minha escada! Sim, porque me quiseram convencer de que ela acabou mas não é verdade! Eu hei-de encontrá-la! Ela continua, estão a ouvir! Ela continua e chega lá mesmo, à rua, à rua, à rua! E se não a encontrar sabem o que faço? Construo-a com a minha merda e moldo-a com os meus dentes! - A tirada foi saudada com gritos, assobios e salvas de palmas. Duplamente furioso chamou a todos de cópias: - Cópias! Cópias!

O disc-jockey achou que a última versão do I Can't Get No Satisfaction caía ali bem e fê-la tocar: rodeado por seguranças e público, o actor atingiu a saída num frenesim de gestos porque o volume da música já não permitia ouvi-lo.

Na rua escutou ainda os aplausos que lhe pertenciam, enquanto lá dentro, Acácio, a quem a gerência, no intuito de premiar a sua colaboração no espectáculo, oferecera uma garrafa de Porto, brindava com os amigos.

Mas a calma que a "Vaga" lhe proporcionara fora igualmente responsável pela sua serenidade durante o show.

Afastou-se da Rua como se do seu maior inimigo se tratasse.

A sua escada não terminara e mais havia, compondo-a os degraus que lhe faltavam até à Nada e Tudo para então saber de si, do outro, do que fosse.

No descampado, os arbustos ressequidos pareciam já, por excesso de vida, um incentivo a que ultrapassasse também os seus limites.

Encontrou uma vinha. Pousado numa vide julgou ver o ovolho e, vencendo o medo, perguntou-lhe:

- Por que me persegues? Quem és tu? A planta oscilou. A terra tremeu e ouviu-se uma voz:

- Somos o antes e o depois... A totalidade de que és a parte, o uno de que te separaste, a tua matriz, o teu espe- lho...

Aterrorizado reuniu ainda forças para inquirir:

- Que devo fazer?

- Dá-te e acompanha-te. Depois...

O gigantesco ser apresentava-se mais terrível do que nunca e cobria tudo, sentindo-se-lhe a intensidade amarela do Olhar, a viscosidade das membranas.

Somos o macho e a fêmea... Somos...

A descomunal gelatina preparava-se para o ensalivar e num novo esforço repetiu com ela:

- Somos o macho e a fêmea... Somos... Aquilo roçava-o já na sua humidade escorregadia, envolvendo-o em movimentos de peixe. Num último élan fechou os olhos e entregou-se: ouviu um estrondo, uma gargalhada e quando os abriu abraçava o jovem que lá atrás recusara.

Diluído nas vides sentiu o Todo e, pela primeira vez desde há muito, a si como Sérgio Louro.

Aceitara de facto o seu semelhante.

No seio do seu sonho, na paz da vinha, Sérgio Louro acordou quando um cacho de uvas lhe caiu em cima. Estremunhado, olhou para o alto e viu um apêndice mecânico que terminava num homem novo. Falava este a medo:

- Desculpe. Não foi por mal. Eu não queria incomodá-lo mas ainda estou pouco prático... Puseram-mos a semana passada. Caem-me sempre alguns cachos... - Golias percebeu o espanto nos olhos do turista e explicou:

- Foi no Centro de Formação Profissional. E o meu primeiro emprego! Estou muito contente! Encolhem e esticam à minha vontade! E não fazem barulho!

Cerebralmente ordenou aos seus braços-tentáculos que mudassem de tamanho para o estranho ver do que era capaz. Tomaram-se tão pequenos sob as mangas da camisa que, não fossem as tenazes saindo dos punhos, não se notariam. Mas Sérgio Louro, já refeito e porque o outro falara no Centro de Formação Profissional, perguntou:

- Sabes onde é o Centro de Desemprego?

- Então não sei? É mesmo aí em frente! - Um dos tentáculos cresceu e apontou a direcção: - Não tem que enganar! - Encolheu-o de novo e tirou uma foto do bolso das calças:   É o meu pai. Se o vir por lá diga-lhe que trabalho nesta vinha... Sabe, perdemo-nos um do outro. Eu fui posto aqui e não sei onde ele estará... ou mesmo se o reconhecerei... - Percebeu o que Golias insinuava mas, talvez não crente da sua dedução, este acrescentou:

- Suponha que lhe tiraram as orelhas para ir trabalhar num sítio de muito barulho... Ou puseram uma boca de peixe para escavar o fundo do mar... E comigo assim...

O rapaz não seria muito versado em anatomia mas Sérgio prometeu fazer o possível por lhe ser útil e guardou a foto para facilitar o reconhecimento. Recordou um encontro que tivera por altura dos primeiros lances da escada: um adolescente que o agarrara perguntando-lhe aflitivamente pelo caminho para a rua. Não seria ele, agora mais crescido, que estava na sua frente? Os olhos e a expressão pareceram-lhe idênticos. Levado pela lembrança indagou:

- Não nos vimos já? Não foste tu que uma vez me perguntaste pela rua? Antes de... - Apontou os enxertos.

- A rua? - A palavra parecia evocar-lhe algo. - A rua... Não sei... Em todo o caso não me posso ausentar.. Logo de manhã entro a trabalhar... - Num registo baixo como se não desejasse ser ouvido ou houvesse esse perigo, o colector informou: - Sabe, isto é vigiado por um olho electrónico...

- Um olho electrónico?

- Sim. - O apanhador continuava a falar num tom de voz baixo. - Está por cima de nós... Lá no alto...

- Golias não se atrevia a erguer os olhos para a direcção que indicava mas aconselhou: - Experimente ver..

Fez como ele dizia e não viu coisa alguma para além do Sol.

- não vejo nada...

- E que não está habituado senão descobria-o logo... Não era essa a sua história mas não quis entrar em pormenores. Em todo o caso a situação mudara e não via o que, outrora, também quisera que outros vissem. Golias estendeu-lhe a tenaz: - Tenho de ir. Ainda me falta apanhar muita uva! - Os braços cresceram-lhe ao pronunciar a frase. - Se vir o meu pai não se esqueça!

Viu-o afastar-se em direcção às vides mais longínquas. Por causa dos enxertos andava de forma estranha.

- Olha rua! - gritou-lhe Sérgio de braço erguido. Golias, lá longe, parecia ter escutado. Parado fazia sinais com os gigantescos apêndices. Mas talvez os mexesse por qualquer outra razão e, devido à distância, nem já ouvisse.

Efeito porventura do pouco adestramento do colector no manejo da prótese ao indicar a direcção do Centro, por mais que andasse no sentido que ele dissera, não o encontrava: era de novo, e apenas, o descampado. As máquinas abastecedoras rarearam (colhera alguns cachos de uvas e assim matava a sede e iludia a fome) o dia acabou por dar lugar à noite e nem a luz da Rua surgiu.

Tudo de breu. Para não tropeçar num calhau ou cair nalgum abismo acolheu-se junto de um arbusto.

A manhã clareou. Sem saber ainda que direcção tomar, rodeado de solidão e aridez, de novo as dúvidas o assaltaram.

Quem quer que eu seja, independentemente de ser Sérgio Louro, único, fotocópia, equívoco, mero resquício ou outra coisa qualquer, sinto-me e sou alguém... Esta certeza, eu, Sérgio, como por mera questão formal admito já chamar-me, não posso no entanto ignorá-la: existo e, à medida que mais busco a solução dos meus, sejam eles de quem forem, problemas, com maior nitidez a provo. Vivo e ninguém é mais responsável do que eu, aqui com o meu corpo presente, pelo que me aconteça, mesmo que, por opção, limitação ou entrega invoque o deus ou o acaso para meu fundador...

Todavia a ausência que o cercava tomara-o igualmente por dentro: era, sim, mas só saudade. O mundo de outrora, que, mal ou bem, o saciara, afastara-se: as pontes levavam já a outro lado.

Imerso em profundo nevoeiro não via nada. Passaram um, dois, três, muitos dias, porventura quarenta ou o dobro, e a necessidade de encontrar alguém para além de si, apesar do medo, das lutas e respectivas feridas, do sofrimento que dos demais sempre brota, tornou-se premente. No ramo ressequido de um arbusto, como florescência da sua agonia, viu algumas folhas manuscritas. Não ainda gente mas já o seu testemunho numa caligrafia pequenina e nervosa. Sôfrego, entregou-se à sua leitura como a afagos no seu corpo.

Rezavam assim:

Diário

10 de julho Sem forças. Não avanço. Será que não quero ou não posso?

13 de julho Não. Não quero. Mas então?

17 de julho Que fazer?

21 de julho A situação agudiza-se.

25 de julho Teve de ser. Dei início. Seguir sempre a direito! Seguir sempre a direito! Olhar sempre em frente!

28 de julho Ontem tenho a certeza que ouvi gritos. No limite consegui conter-me. Mas parece que os ouço ainda.

Quem seria?

1 de Agosto Uma grande vontade de desistência. Será possível? Aqueles gritos...

4 de Agosto Não consigo dormir. Tenho sonhos horríveis e acordo em sobressalto. A continuar assim não resisto.

Tenho de vencer. Não posso deixar-me abater. Seguir sempre a direito! Seguir sempre direito! Olhar sempre em frente!

11 de Agosto A semana inteira sem dormir. Os gritos... Os gritos... Lembro-os a todo o momento. De quem seriam?

Preciso de ir ao médico.

19 de Agosto Enfim algum descanso. Durmo.

25 de Agosto Este fim-de-semana ofereço-me um passeio.

30 de Agosto Dias calmos.

O passeio fez-me bem. Entregar-me ao trabalho.

4 de Setembro Desde há muito tempo que não ouvia gritos. Porquê agora?

Tenho medo. Quem?

7 de Setembro Outra vez estranha. Porquê? Ia tudo tão bem! Que tenho? Por que não me adapto?

Não sou normal?

10 de Setembro Mal. Ranjo por tudo quanto é eu. Com quem devo falar? Que irão dizer? De um passei para três calmantes. Oxalá...

15 de Setembro Deve ter sido do período. Agora já sei: quando ele vier tenho de aumentar os calmantes, o sangue torna-me mais sensível. De novo tudo bem.

21 de Setembro Outra vez a calma. Os gritos não tornaram a aparecer. Não passo de uma tonta. Vá lá que profissionalmente as coisas tornam a correr.

Seguir sempre a direito! Seguir sempre a direito! Olhar sempre em frente!

10 de Outubro Sonho esquisito. Se os outros soubessem! Que culpa há no que fazemos enquanto dormimos?

30 de Outubro Deixei de ter sonhos. Talvez tenha a ver com os novos calmantes.

Durmo bem.

17 de Novembro Fui elogiada! O meu nome no quadro de honra! Uauu!

30 de Novembro Será que vou comprar novo carro? Se ganhar aquele prémio...

Seguir sempre em frente! Seguir sempre em frente! Olhar sempre a direito!

15 de Dezembro Uma calma que há muito não acontecia. Sei do ofício. Começo a fazer-me notada... Altura de arranjar nova casa. Fugir aos gritos dos filhos das vizinhas. Nem sequer os entendo!

Havia mais folhas mas em branco e lamentou que assim fosse. Talvez por isso e sob a anotação "data desconhecida" escreveu por debaixo da última inscrição:

Não vejo nada! Não vejo nada! Não vejo nada!

Recolocou o manuscrito no lugar onde o encontrara. Olhou em volta e vislumbrou um fosso. Era um buraco subitamente cavado na planície com gente no fundo. Desceu por uma das ravinas que o ladeavam e, ao aproximar-se das cerca de trezentas pessoas que o enchiam, viu que eram pardas.

Um homem, em cima de um estrado, arengava numa linguagem mais inteligível do que a daqueles que o haviam espancado mas, em todo o caso, diferente da sua. No entanto a atenção dos ouvintes não era grande e a maioria mostrava-se ostensivamente desinteressada. Dir-se-ia que ali viviam, vendo no animador uma visita inoportuna, senão desnecessária. Grupos passavam entre si garrafas que esvaziavam sofregamente. Dirigiu-se a um deles:

- Posso beber um pouco? Estou em viagem...

O homem que segurava o recipiente olhou os da sua companhia como que a inquirir se a bebida, depois do acto de benemerência, daria para mais uma rodada. Pareceu que anuíam e, assim que o grupo recebeu a garrafa de volta, tornou a dobrar-se sobre si. Talvez em resposta a alguma palavra de ordem emitida pelo orador, ouviu-se uma meia dúzia de pessoas gritarem:

- Estamos na fossa! Estamos na fossa! - Ao que outras contrapuseram:

- Des-semos! Des-semos!

O homem fez subir ao estrado um rapaz. Num tom dramático acompanhado por grandes gestos, como se soubesse3 de antemão, que era difícil captar e manter a atenção da assistência, interrogou-o:

- Que idade tens?

- vinte anos.

O interpelado mostrava-se tímido e baixava a cabeça com vergonha da exposição a que o submetiam. Insensível a isso, o orador continuou:

- Bejam! - disse para os poucos que o escutavam Tenão fova a sov - Fez o rapaz levantar a t-shirt para mostrar a sua pele parda - não acham que este jobem fambém podevia viv nas sapas das vevisfas e fornav-se numa bedefa? Não é, quanfo ao vesfo, fão havrnonioso como os demais? - Vozes disseram - Tim! - e uns poucos assobiaram maliciosamente. O orador não lhes ligou importância restituindo o mancebo ao seu lugar. Chamou um segundo. Possuía como o primeiro um corpo perfeito e a cor era igualmente parda. Este, no entanto, trazia consigo uma garrafa. Mais à vontade que o anterior, bebia a grandes tragos enquanto olhava com desdém em redor. O homem pôs-lhe o braço por cima do ombro como já fizera com o outro e mostrou-o ao minúsculo auditório: - E aqui? Não femos um exemplo fambém do que asabo de dizev? Povque não hã-de esfé vapaz esfav enfve os que ganham sonsuvsos e vesebev pvémios?

Não percebia a que se referia o apresentador mas era claro que ele se queixava de uma pretendida segregação. Uns tantos espectadores gritaram:

- É das máquinas! E das máquinas! - E alguém acrescentou:

- Sada vez há menos! Num momento de entusiasmo um maior número de assistentes clamou:

- Mais sebola! Mais sebola nos hambuvgevs! - Enquanto alguns, saindo da moleza e alheamento a que até ali se entregavam, sugeriam:

- A savne! É a savne que não pvesfa!

- Apoiado! Apoiado! - corroborou uma voz, cujo dono, masturbando,se num canto da fossa, e de repente tomado pelo fulminar do acto, findou a intervenção num clamoroso "Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! 0000hhhhhhhh!!!!!".

O orador não se intimidou:

- Muifo bem difo! - E ele próprio levantou um bocado da sua camisa mostrando um peito também pardo.

Sentiu-se inquieto: desde que ali andava, alimentava-se nos robôs... Que cor não teria já? Na água do lago e à luz da Lua não reparara nesse pormenor... Pormenor? E se fosse já pardo como a maior parte dos que o rodeavam? Outra mudança? Quando retomaria a normalidade o seu lugar? Tomado pela nova dúvida tornou-se difícil continuar ali.

Deixou a fossa. Na planície, entre uns escassos arbustos, despiu-se e examinou-se. Concluída a análise sentiu-se mais calmo: estava da cor com que sempre se conhecera!

Estava ainda nu quando passou junto de si um homem que vinha também da valeta. Este, sem parar, referiu-se ao orador:

- O que o gajo quev e apalpav rapazinhos! - E prosseguiu caminho.

Vendo o fulano afastar-se e porque gostaria de o interrogar sobre o que presenciara na fossa, acenou-lhe:

- Hei! Hei! Espere aí!

O outro, que já ia longe, parou a olhar para trás. O tipo seminu fazia-lhe sinais?

E com uma expressão de nojo, Tomás acelerou ainda mais o andamento.

- Tão fodos o mesmo!

Acabara de se vestir, quando passou alguns metros adiante um ancião que empurrava um carrinho de supermercado a transbordar de volumes. Lamentava-se:

- Ai de mim que não consigo avançar mais!... Ai de mim!... Ai!...

Uma das muitas caixas descaiu do transporte, estarelando-se por terra.

Aproximou-se:

- Deseja ajuda?

O sujeito, muito aflito, pegara no volume caído, todo ele envolto em faixas vermelhas com a palavra frágil escrita muitas vezes, e acarinhava-o. Ao mesmo tempo falava-lhe:

- Oh Mich! Minha querida Mich! Perdoa-me! Perdoa-me! Mas é a estrada! - O carro devia encalhar em tudo quanto era pedra, ou seja, por todo o lado. De vez em quando ouvia-se o rumorejar de vozes vindo do lado da fossa. Embora se sentisse atraído a voltar, para compreender melhor o que vira, decidiu interessar-se pelo homem e pela sua carga. Sendo ancião talvez, pelo menos, soubesse onde estavam, onde que levava o descampado ou mesmo para que lado ficava o Centro de Desemprego. Mas o proprietário, com receio de que a ajuda escondesse um intuito de roubo, encarou com desconfiança o desconhecido:

Quem é você? O que quer?

- Bem... Eu... Ia a passar... Isto é, vestia-me ali atrás dos arbustos... - Parou com a explicação. Por que a devia7 Não quisera apenas ajudar? O outro pareceu finalmente compreendê-lo e estendeu-lhe a mão.

- Chamo-me Todo Teres. Muito prazer.

- Igualmente... Outra vez muito confuso nem tinha coragem para se

intitular... acaso não estaria já pardo? O indivíduo na sua frente não estava...

Silêncio. Ambos pareceram muito cansados como se tivessem feito um longo percurso. O homem mais novo perguntou:

- Sabe onde fica o Centro de Desemprego?

- O Centro de Desemprego? - Esforçava-se para encontrar o nome na memória. - O Centro de Desemprego? Ah!... Isso... já sei, mas não se chama assim! Está a falar do Centro de Emprego, não é verdade?

No meio de tanta coisa confundira-lhe o nome? Por isso lá atrás, Felizmina não o tinha compreendido quando se lhe referira? E ainda não encontrara Felizberta, a que moraria mais para baixo... Mas como fazê-lo se perdera a escada?

Concordou com Teres na nova denominação a dar ao Centro porque, fosse o que fosse que ele lhe indicasse, qualquer referência era boa para se libertar daquele deserto. Ou o homem seria doido? Estaria perante um maluco? Observara-o a prestar uma atenção toda cheia de ternura ao volume caído. O que estaria lá dentro? Seria o descampado um manicómio? Mas, se assim era, quando começara ele próprio a ficar louco? Ou fora a escada que dera azo a tudo? E as crianças? Estariam também malucas? Ou educadas por pais já tresvariados acabariam por fatalmente sê-lo? Ao cabo de muitas gerações não se correria o perigo de confundir sanidade e loucura? Como evitá-lo? Qual a medida ou o critério? Mas por outro lado quem primeiro concebera o campo? Ou nele metera os loucos iniciais? E onde estava agora? Feito louco também?

- Ah, muito bem! Então siga-me!

- Eu puxo o carrinho pela frente e o senhor empurra-o por detrás.

- Boa ideia! - concordou Todo Teres. Durante algum tempo nenhum dos dois homens trocou Palavra, COMO Se O esforço que nisso despendessem fosse vital para moverem o veículo num terreno tão pedregoso e acidentado.

Teres respirava ruidosamente. De vez em quando paravam para ele encher melhor o peito de ar. Mas, assim que o ancião ficava mais descansado, retomavam a marcha, sempre nas respectivas posições: um atrás e o outro à frente. Porém, tinham andado ainda pouco e logo o transporte se atolou num banco de areia.

O silêncio entre os dois carregadores foi quebrado dadas as circunstâncias.

- É melhor fazermos uma pausa antes de o tirarmos daqui.

- Isto vai dar trabalho - opinou Teres. O companheiro concordou. Sentados em cima de uma enorme pedra, o homem de mais idade confessou: - Desde que caí numa escada nunca mais fui o mesmo...

Numa escada?

- Sim, no meu prédio, pus o pé em falso...

- Ah! E chegou à rua?

- Como?

- Se chegou ao fim da escada, isto é... - A interrogação soara estranha; para não levantar suspeitas emendou:

- Quer dizer: caiu e... continuou a descê-la? Até à rua...

- Ah, isso! Infelizmente não! Levaram-me de maca.

Estive muito tempo imobilizado. Foi aqui na coluna.

- Com uma mão indicou o sítio do mal. - Agora só subo ou desço de elevador. - Olhou o veículo encalhado

e o ajudante, deixando de lado a questão da rua, aproveitou para saber o que, desde o início do encontro, o intrigava: ,

- E muito frágil o que ali vai? - Apontou a caixa merecedora dos desvelos do mais velho.

- Oh sim. É um último modelo. Só para o ter já acho que valeu a pena chegar à idade que cheguei... Sabe...

- O tom era o de desabafo como quem conclui algo ao cabo de longa e dura aprendizagem: - Isto afinal é tudo uma questão de resistência... O meu fornecedor já me tinha avisado de que esperavam este modelo mas eu é que não sabia se ainda estaria vivo quando o comercializassem. Felizmente, aconteceu! Sinto-me feliz! Posso não chegar ao seguinte mas este, 0h este!... - Continuava sem compreender o que o volume albergava, mas um escorpião, saído 'debaixo da pedra onde se sentavam, desviou-lhes a atenção: - É melhor matá-lo - disse Teres.

- É um inimigo e um inimigo só nos dá descanso depois de morto! - Sem esperar o parecer do companheiro, o animal ficou-lhe debaixo da bota: ouviu-se um "crach", um pequeno silêncio como que a comprovar que a vítima fora definitivamente esmagada e o assassino comentou:

Ou eles ou nós. A vida é uma guerra!

- Sei de uma! - disse, também na expectativa de ouvir algo que o elucidasse acerca da que o envolvera. Teres retorquiu:

- Há-as para todos os gostos. O necessário é vontade de guerrear. Fui voluntário em África...

- Sim?...

- Sim, senhor - corroborou alegremente o indivíduo. - Não encontrava emprego na altura... Se quer que lhe diga ainda hoje não sei as razoes por que matei! Era uma coisa muito complicada... Ninguém se entendia... Felizmente, senão lá se ia o trabalhinho! Mas cumpria o dever e ganhava bem. Sabe, de todas as actividades que tive foi onde mais lucrei! Por fim até ajudei a montar duas empresas: numa vendíamos armas e na outra abríamos valetas! - Apesar da idade, e como que ressuscitado pela lembrança, Teres pôs-se a fazer de conta que lançava granadas ao mesmo tempo que, baixando-se, imitava o ruído da deflagração: - PAum! PAum! PAUM! - Levantou-se e concluiu: - Uma guerra purifica! Senão qual seria o valor da paz? - Levado pela sua própria agitação, aproximou-se do carrinho por desatolar: - Vamos tirá-lo daqui?

Recomeçaram a puxar o veículo.

- Talvez seja melhor esvaziá-lo um pouco... – propôs o ajudante dado os esforços resultarem infrutíferos.

O primeiro pacote a ser tirado e, é evidente, com todo o cuidado, foi o que parecia mais precioso do que qualquer dos outros. Depois os restantes.

Tentaram de novo. O carro ainda não andava. Ao cabo de mais tempo ficou praticamente vazio. Em redor, espalhados pelo terreno, os mil e um volumes que Todo Teres transportava. Finalmente conseguiram soltar o veículo, tornando a empoleirar tudo no seu minúsculo espaço, e passando cordas à volta da carga.

Retomaram a marcha. Ainda não haviam andado uma dúzia de metros já o ancião voltava a dar sinais de grande cansaço.

- Temos de parar - avisou. - Aqui a minha coluna não me deixa fazer muitos esforços. - E a justificar a necessidade de mais repouso acrescentou: - Não é só ela, o coração também...

Ouviu-se, não muito longe, do fundo da terra, ruído de aplausos e gritos. Mal-grado o tempo decorrido continuavam perto da fossa onde a reunião, a avaliar pelo barulho, prosseguia, provavelmente com maior entusiasmo. Querendo saber mais acerca do que vira, disse, enquanto Teres descansava encostado a um arbusto:

- Pouco antes de o encontrar estive num comício, ali em baixo... - Apontou na direcção do buraco.

- Ah. sim? - comentou o proprietário sem todavia olhar na direcção da fossa. Parecia extremamente cansado e receou que não conseguissem mover o carro com a mercadoria. Começava a não ver solução para o transporte. Como se lhe adivinhasse o pensamento, o outro propôs:

- Talvez o melhor seja ficarmos por aqui... Descansamos e amanhã voltamos à marcha.

- E o Centro de... - Ia ainda a dizer Desemprego mas passou adiante. - Onde é afinal?

- Ora, não tem tanta pressa assim, pois não? Aliás, as bichas são intermináveis e chegar lá hoje ou amanhã não faz grande diferença. Há dias em que aquilo nem sequer avança! Casos difíceis, percebe? - Pensou nas filas de espera que já encontrara e se o seu problema seria de resolução complicada. Teres apontou para o carro: - Tenho aí uma tenda. Montamo-la e ficamos recolhidos. Como já está a entardecer...

Não lhe agradava a ideia de mais um dia ali.

- Eu por mim gostaria de ir andando. De qualquer forma tenho pressa de chegar.

- Não há problema. Estamos a caminho, é isso que importa... - Sem aguardar resposta pôs-lhe nas mãos um pacote cilíndrico. - Vá desembrulhando a estrutura e as cavilhas que eu estendo o pano.

Era uma barraca de modelo antigo e custosa de pôr de pé.

Teres queixava-se também de dores no peito e, de vez em quando, interrompia a montagem para descansar. Nestas alturas exclamava:

- Sempre a guerra! A gente paga bem o que faz, não há dúvida!

Nem sempre seria assim mas não o contrariou: a ideia de uma justiça absoluta talvez inibisse um ou outro no exercício da sua maldade... Quanto ao descampado já não se lhe afigurava como um local unicamente negativo: também ali fora feliz. Ou seja, nada seria completamente preto nem totalmente branco. Mas não o sentia como coisa definitivamente sua ou que (também por um direito absoluto?) tivesse direito a uma paisagem menos árida. De qualquer modo fartava-se de deserto! O caminho para a

rua passava por ali? O descampado era afinal o seu preço? Urgia então chegar ao Centro de Emprego, concluir aquela etapa. Entretanto faria por não desesperar, entregar-se à passagem como quem mergulha na onda, consciente de que ela faz parte do mar.

Ergueram a tenda, um cubículo envolto em pano azul que dava à vontade para duas pessoas.

Cobriram o carrinho com uma lona para proteger a mercadoria do fresco da noite que já caía. De acordo com a preocupação que Teres mostrara, o único volume a ser colocado dentro da barraca, além de mantas, artigos de higiene, latas de comida e água, era o seu favorito. Depois ele perguntou:

- Importa-se que eu fique algum tempo sozinho na tenda? É só um pouco...

Teve a certeza de que o pedido dizia respeito ao objecto que tanto cuidado lhe merecia e, satisfazendo o desejo do ancião, sentou-se afastado do abrigo.

Da fossa chegava o rumor de vozes que gritavam de novo "Des-semos! Des-semos!". Lembrou o problema da cor: estaria pardo? Olhou as mãos.

O proprietário demorava na tenda.

Puxou uma vez mais as calças para baixo e a camisa para cima. Não contente descalçou-se também: até onde podia examinar estava normal.

Recompôs-se. Da tenda chegavam sons de alguém gozando o prazer sexual. Pouco depois Teres abandonou-a. Parecia ainda mais cansado mas nos olhos, ao vê-los de perto, notava-se-lhes um brilho como se nova juventude o tomasse.

- Tudo muito bem... Tudo muito bem... - dizia mas estava verdadeiramente fatigado. - O pior... - Levou a mão ao coração e caiu paralisado.

Ficou-se a olhá-lo e levou alguns segundos a reagir.

- Senhor Teres! Teres! Senhor Teres! Ele não respondia. Abanou-o. Pôs-lhe o ouvido junto à boca: parecia que dizia "Mich! "... mas talvez fosse a forma que lhe tomara o último suspiro: Todo Teres sucumbira.

O primeiro pensamento foi o de atribuir o falecimento ao que se teria passado na tenda. Dirigindo-se a ela descerrou-a: de novo, viu apenas um computador: fora aquilo que o falecido tanto amara? Fora pela saída daquele modelo que quisera resistir mais tempo à morte? Procurando nos bolsos do defunto algo que o identificasse, achou um

cartão de crédito e uma folha de papel dobrada em quatro.

Abriu-a. Era uma carta escrita à mão, em letra pequenina e nervosa, semelhante à do diário entalado no arbusto.

Meu Pai, Votos de saúde. Nem imagina como me sinto feliz. Obtive a classificação máxima e agora tudo corre pelo melhor. Ofereci-me uma avioneta com o produto deste êxito. No entanto, não pense que ao início foi fácil. Mas com o tempo os problemas de adaptação foram passando. Vou visitá-lo em breve. O único senão é que desde há algum tempo para cá reparo que fiquei surda. Mas felizmente ninguém parece dar por isso.

Sua filha extremada, Maria

Olhou o documento. Se era dirigido a Teres isso queria dizer que ele tinha uma filha e deveria avisá-la. Mas como?

O cadáver tomava o tom pardo das pessoas que encontrara na fossa. A constatação tomou a preocupá-lo quanto à sua própria cor. Como não podia controlá-la a todo o momento entregou-se à tarefa de abrir os sacos e caixas do falecido, na esperança, ainda, de encontrar uma agenda com endereços.

A busca mostrou-se infrutífera, mas, a breve trecho, viu-se rodeado de um tapete de arraiolos, um moinho de café, uma aparelhagem de som, uma batedeira eléctrica, duas mesas desmontáveis, várias garrafas de vinho, um serviço de chá da China, um candeeiro de pé, um escadote, um planisfério, um telefone - que lamentavelmente não funcionava - uma centena de latas de comida além de água, catálogos de compras, certificados de garantia, um televisor e ainda um objecto, nas circunstâncias de extrema utilidade: um espelho, por sinal ricamente emoldurado, onde podia controlar o tom da pele.

Mirou-se e remirou-se: achou-se diferente - e quem o não estaria depois do que já passara? - mas ainda não pardo.

Ligou a TV No único canal que conseguiu sintonizar uma mulher, luxuosamente vestida, descia uma soberba escada, por entre fumos coloridos. Uma orquestra acompanhava-a e ela cantava: "vou ter contigo, tu e eu seremos um só. Mas ver degraus tornara-se-lhe um espectáculo banal e, embora procurasse os seus, aqueles de certeza não serviam.

Desligou o aparelho. Era necessário abrir uma cova para o morto. Pôs-se a fazê-la. Ao cabo de duas hora e meia, sem ferramentas, à custa de escarafunchar o solo com as mãos e os pés, cavara o buraco.

Atirou Todo Teres lá para dentro. Com dois paus compôs uma cruz e espetou-a na campa. Talvez o falecido não fosse cristão mas era o que, em género de sepultura, o sobrevivente mais se habituara a ver.

Porém, começando a chuviscar, lembrou-se de proteger o símbolo católico com sacos de plástico. Eles possuíam garridos anúncios e o resultado final foi uma cruz publicitária.

Reunida a bagagem numa só zona, excepto o espelho, que levou para dentro da tenda, cobriu-a com a lona que Teres também já usara para o mesmo fim.

Recolheu-se no abrigo. Fora despontava a luz da Rua.

Quando acordou era dia. Olhou-se no espelho: estava com mau aspecto mas não pardo.

Pingos de chuva caíam sobre a tenda. Reparou no computador a seu lado. Apesar da Nada e Tudo, Lda. estar informatizada segundo a última tecnologia, este era de um modelo que lá não havia.

Ligou-o. A máquina fez um ruído característico e apareceram no minúsculo ecrã dados e instruções: colocar os óculos auscultadores e proferir algumas palavras.

Obedeceu.

Uma imagem a três dimensões projectou-se ao seu alcance:

- Olá! Chamo-me Michele... Podes chamar-me Mich... Qual é o teu nome?

De facto, ou virtualmente, estava diante de uma mulher entre os vinte e cinco e os trinta anos, o corpo oculto por umas calças justas e uma t-shirt a condizer, que lhe sorria e o olhava com cumplicidade.

- Sérgio... Sou Sérgio Louro - disse, subitamente esquecido de qualquer problema de identidade.

- Fica-te muito bem. Gosto imenso. As minhas medidas são 95, 62, 92. Gostas?

- Acho que sim... - balbuciou o homem emocionado e surpreendido com o género de despojo deixado por Teres.

- O que fazes aqui?

- Na realidade, não sei... Tudo começou com uma escada...

- Pois é, tudo começa sempre... Até aquilo que não tem princípio... - E a imagem riu uma gargalhada que associou com Katy (ou a irmã?), Felizmina e todas as mulheres que já conhecera e junto das quais passara momentos memoráveis.

A chuva sobre a tenda aumentou de intensidade mas não deu por isso: estava encantado com a máquina, isto é, por Mich. Ela era de uma verdade impossível de duvidar e na t-shirt trazia escrito o nome, na forma abreviada por que pedira que a chamasse.

Fixou-lhe o busto. Apercebendo-se da intensidade desse olhar, Mich mordia os lábios ao mesmo tempo que, com um dedo, acariciava o colo.

- Queres que ponha aqui o teu nome?

- Qual? - perguntou, não devido à confusão de identidade mas porque continuava incapaz de reagir normalmente.

- Sérgio... Não és o Sérgio? - A entoação das palavras faziam-nas expressar mil saborosos convites. - É um nome tão sensual... - E a imagem repetiu numa voz arrastada e sussurrante: - Sssééérgiio...

A questão que a máquina pusera fê-lo no entanto retomar à sua própria realidade:

- A verdade é que me roubaram o nome... Outro tomou-mo... Isto é....

- Ora, que importância tem? Um nome não passa de um nome e tu serás sempre tu... - E de novo aquele modo de pronunciar Sérgio que antes nunca ouvira: - Sssééérgiio... - Colocou a mão sobre o peito e tomou a querer saber: - Posso? Posso pôr-te aqui? Gostava tanto...

- Sim, claro... - Mich escondeu o seio com os braços, como se aí guardasse o maior bem e, quando o desvendou, a palavra SÉRGIO inscrevia-se a ouro no fundo vermelho-sangue da t-shirt. - Agora eu sou tu. Diz-me o que devo fazer..

- Sinto-me confuso. Não sei onde estou... Na verdade sentia-se estupefacto.

- Junto a mim. Estás junto a mim... Encosta os teus lábios ao meus... - Obedeceu. Um caos de sensações rompeu-lhe o corpo e um colossal mas esplendoroso choque eléctrico tomou-o num derrame tremendo e húmido. Sem poder articular palavra, ficou extenuado pela sensação de prazer. Não admirava que, sofrendo Todo Teres do coração, momentos como aqueles contribuíssem para o

seu passamento. - Gostaste? - O operador recompusera-se ao fim de setenta e três segundos e dois décimos, tempo normal para a sua condição. Mas de emocionado não conseguia falar e a tenda parecia-lhe a das mil e uma noites. A máquina tomou a indagar:

- Gostaste?

- Oh sim!... Sim!... Quem és tu?

- Mich... A tua Mich... De ti e de mais ninguém...

- Beijas-me outra vez? - De novo a sensação de esvaimento, convulsões de prazer que não paravam nunca, a perda num mar de si, no desejo, em Mich, no ser. Quanto tempo assim? Depois a voz chamou:

- Sssééérgiio...

- Sim...

- Estás bem?... Do lado de fora da tenda soaram passos e uma réstia de realidade conseguiu romper a barreira eléctrica que o envolvia. Num tom débil e afogado, sem sequer perceber se falava apenas para si, comentou:

- Outros... Devem ser os outros... - E a palavra projectou-se em redor, nos grafismos mais diversos, ridículos ou delirantes: outros... outros... outros... outros... outros... outros... numa infinidade de representações que não terminavam nunca: outros... outros... outros... outros... apenas... outros! Para se fundir, por fim, num remoinho repugnante de lama até de novo surgir, bela e segura, a figura de Mich, envolta num halo de luz e firmeza. De saia curta plissada e o nome Sérgio tatuado nos seios nus, levou um dedo aos lábios encostando-o à boca do homem.

- Tu e eu existimos! Nós somos! - Sentiu que se perdia, que tudo o que quisera (se é que quisera pois já nem disso tinha a certeza) se diluía naquela invenção, naquela mulher platónica e mais real do que todas as que até ali conhecera, mais capaz de lhe corresponder aos pensamentos e satisfazer as necessidades. Ela acariciava as ancas.

- Se me quiseres um pouco mais larga aqui, basta pressionares o botão da esquerda... - E, alheia à carga de sensações que vitimavam o manipulador, prosseguia no jogo sedutor: - Nós existimos... Nós... - Requebrava o corpo oferecendo-o em trejeitos também viris que lembravam, numa confusão orgíaca de sexos, géneros e modos, o jovem que encontrara na escada, que aceitara na vinha, proporcionando-lhe mais umas tantas e raras sensações.

Tu e eu somos! Teve a impressão de que não iria aguentar, que não suportaria tanto sentimento de união consigo, com o outro, o nada, o tudo... Como se sucumbisse a um excesso de bem-estar! Mas, simultaneamente, nascia-lhe, bem lá no fundo da consciência, uma irremediável tristeza pela forma como vivera até ali.

Como fora possível?! Como tinha sido baça e miserável a sua existência!

Como o mundo fora medíocre e ele mesquinho e sem préstimo!

Sabiamente, Mich prodigalizou-lhe uma descarga tranquilizante.

No doce embalo da sua voz sussurrando, com a cabeça no colo da imagem, numa paz etérea que nem o fumador do ópio alguma vez sente, o manipulador adormeceu.

Sem sonhos, num sono justo e reparador. Quando acordou havia no ecrã um recado a bâton:

Encontramo-nos daqui a duas horas?

Toda Tua, Mich

Meio estonteado pelos últimos acontecimentos saiu da campânula.

Fazia escuro, salvo nas zonas que, por fracções de segundo, o holofote iluminava. Sem distinguir o terreno não tardou a tropeçar na sepultura de Teres.

A questão que o preocupava já não era saber que direcção seguir mas como ocupar o tempo, até à hora do encontro com Mich: a ideia de ligar a máquina mais cedo parecia-lhe autoritária e pouco gentil.

E, no entanto, que saudades! Quase sem dar por isso aproximou-se do halo de luz que provinha de debaixo da terra. Tratava-se da fossa, e desceu as paredes do declive.

No fundo, o estrado de onde falara o homem contra a cor parda que a todos ali tomava, fora aumentado de forma a fazer um grandioso palco. Archotes iluminavam-no e uma multidão maciça também os empunhava, rodeando-o. Ao ver tanta gente reunida lembrou ainda Mich: outros... apenas outros...

Um indivíduo envolto numa túnica branca ocupou a ribalta.

Numa linguagem ainda não tão distante como a dos que o haviam agredido, mas, sem dúvida, mais do que a daqueles que já ali ouvira, começou a discursar:

- Fernop sonnopso op que hoje pe deppedem. Penfem-pe inúfeip. Penfera-pe a maip. - A entoação era enfática com profundas pausas e o auditório escutava-o atento e em silêncio: - Não podemop fazev nada por elep penão epfa ulfima homenagem. Map é pinpera e por ido aqui epfamop!

- Biba a foda! - gritou uma voz e logo outras se elevarem a denunciar:

- E um pvobosadov! E um pvobosadov! A multidão vaiou o autor do primeiro grito e o apresentador, ao ver gerar-se burburinho, pediu calma. A sessão prosseguiu, tornando o último ao uso da palavra:

- Não bou demovav maip. Op que hoje pe deppedem exigemnop afendão. - E retirou-se.

No palco surgiram cinco personagens de túnicas lilases que se dispuseram defronte da plateia. Uma primeira avançou. Era um homem e disse:

- Genfe! vendo-me à boda fovda! Bop sonfinuaip! Nop... - emendou. - Eu, pvefivo falav po em meu nome, epfou pafuvado de fanfa lufa pava não chegav a pavfe alguma. Há fanfop anop que epfou pem ufilidade que nem pequev me pinfo, ou pei quem pou! Sveiam que admivo a voda vetipfencia e vogo que a sonfinuaip, poip, adim, peveip dignop do meu pasvifípio e etfe não fevá pido inúfil!

Percebia-se a voz embargada pela comoção. Num gesto brusco o personagem tirou da túnica um frasco levando-o à boca. Acto contínuo, caiu, estrebuchou e ficou imóvel. A multidão ergueu os archotes enquanto mantinha um rigoroso silêncio. Do grupo em cima do palco destacou-se outro vulto que avançou para a boca de cena.

- Abé! - saudou.

- Abé! - respondeu em uníssono o público e o novo personagem explicou:

- Abé povque oufvova eu finha fé e hoje não a fenho. Pim! Pava que pivvo ou epfou aqui? - A interrogação era feita elevando as mãos no ar e o próprio se dava a resposta: - Pava nada! Ninguém nop vepponde!

- Ninguém! Ninguém! - secundou a assistência enquanto uma voz protestava:

- O mundo emudeseu!

- E puvdo! Complefamente puvdo – acrescentaram outras vozes e o personagem retomou:

- Map vop biepfeip aqui pava vesebev o meu asfo e, adim, pelo menop, o meu fim na-o feva pido fão em bão quanfo fudo o vepfo.

O público calara-se suspenso das palavras mas elas não continuaram: o homem sacou uma pistola, apontou-a à nuca e disparou. O corpo tombou junto do que já jazia.

- Não há em mim qualquev nobidade em veladão ao que os meup sompanheivop vefevivam. Não fado e não me pinfo há já nem pei quanto fempo e fudo pe me fovnou igual, num pirculo de tédio que me apfixia lentamente. A quê, poip, a vida adim? Pava que sonfinuav nipfo?

- Era o novo interveniente que tomara o lugar do acabado de cair. - No enfanfo - prosseguiu - ó adçmbleia, agvadedo-bop o erde-hop deplosado aqui pava adipfir ao meu dewadeiro asfo afvibuindo-lhe, adim, impovfansia. Nepfé úlfimo minufo, o bodo olhav palva-me! Obvigado!

- E o personagem, sentando-se sobre os joelhos, enfiou no ventre a lâmina de um florete: remoeu a carne até os intestinos se soltarem.

A assistência elevou os archotes mantendo novo silêncio.

Avançou o quarto participante e a primeira mulher da noite:

- Não fiz nada. Não fui sapaz de fazev nada, de vealizav o maip pequeno epfôrço. O meu sovpo vecupou-te mepmo a dav-me um filho map fambem e bevdade que pe ele napseva fevia de lhe chamav pelo nome de Ôso. Povque nula foi a minha bida. E é-o ainda e pov ido epfou aqui. Obvigado. Obvigada a bop que me quizetfeip bev nepfe ulfimo momenfo e pelo menop movvo jupfificada.

- Despiu o seio esquerdo e cravou-lhe logo abaixo um punhal. Emitiu um grito surdo e imobililizou-se ao lado dos outros corpos.

Nova pausa com erguer de archotes. Saiu o quinto componente do grupo:

- Pou o ulfimo. Map não habeveip de fisav defraudadop na boda expesfafiva. O meu depeppero e a minha inufilidade pão famanhãp que não há fim que op palve. Gopfavia de explodiv a boda fvenfe map a ovganizadão achou que pevia pevigopo. Adim, epcolhi oufva via.

No palco surgiu uma jaula com um leão. O homem abriu a porta e fechou-se lá dentro. Não se ouviu um queixume. Aqui e além, entre a assistência, soluços comovidos de respeito e agradecimento.

A caixa foi retirada, a cena limpa e o apresentador reapareceu:

- Asabamop pov hoje e femop a sevfeza que os que aqi epfiberam epfa noife não foi em bão que o fizevam. Vepfa-nop agvadeser op pafvosíniop que fovnavam podibel a sessão, nomeadamenfe o zoo munisipal que nop sedeu a feva, fendo-a manfido 48 hovas pem sornev.

Referiu os bens que os sacrificados tinham doado à organização, anunciando ainda a data do próximo encontro e o nome das suas vedetas.

Era a hora do rendez-vous com Mich.

Na companhia doutros, que também abandonavam a fossa, subiu em direcção à planície. Tomou a tropeçar na sepultura de Teres percebendo, assim, que estava perto da tenda. Mas esta, porventura devido à má visibilidade, tinha sido deitada abaixo e destruída.

- Mich! - gritava ferido de morte e enquanto a procurava entre as ruínas.

Por fim, reunidos os seus restos enterrou-os numa nova cova aberta ao lado da de Teres. A lápide, escrita a marcador fosforescente num bocado de lona atado à antena da TV e cravada na sepultura, dizia apenas:

"Ao meu ideal! Sem Ti, como viver?"

Tomado pela dor e atenazado pelo desespero, chorou um ser que nunca tinha existido, lamentou a perda de uma imagem. Mas tal não o impedia de sofrer por ela e desejá-la. E a possibilidade de, através doutra máquina de modelo igual à desaparecida, reencontrar Mich fazia-o sentir-se traidor.

No limite da lucidez, na fronteira da loucura, acorrentado pela carência, queria acreditar que o que vivera fora único e insubstituível: Mich nunca seria duplicável! Nenhum outro mecanismo ou situação voltaria a produzir alguém igual!

Incapaz já de prosseguir caminho, desinteressava-se de procurar a saída.

Para quê? Que significado dar à vida? Irremediavelmente perdido, arrumou no carrinho os bens de que, pela morte de Teres, ficara possuidor, pelo menos até ao aparecimento de alguém a reclamá-los. Mas fazia-o com indiferença, apenas por dever. E também com

pressa; não queria permanecer no sítio cuja memória lhe reavivava a viuvez.

Com o veículo atulhado de coisas, à semelhança de quando encontrara o ancião empurrava penosamente a

sua carga.

Feita só de pesar.

O dia caiu, veio outro, a seguir outro mais, dormia onde calhava e muitos sóis e luas passaram.

Não encontrava ninguém, não procurava quem quer que fosse e acabou por se entreter com os bens que afinal, ninguém reclamou. Ao serviço de chá deu um nome, à cafeteira eléctrica outro, um diferente ao tapete de arraiolos - estendia-o à noite sob o saco para as pedras do terreno não o ferirem

- a cada coisa animou de vida numa meia- inconsciência e desejo de perda, de necessidade de se entregar a algo mais que ao desgosto por Mich, associando, finalmente, a mercadoria consigo. Era a sua cafeteira, o seu tapete, a sua batedeira, a sua televisão, o seu escadote, o seu telefone avariado, os seus catálogos, etc., etc. e etc. Se, o que não era raro, por excesso de carga, um dos volumes caía do carrinho, logo o abria a verificar se alguma das coisas se partia. Também passava grande parte do dia a contar e recontá-las no pavor de perder alguma.

A vida não se tornou mais fácil mas mais ocupada. Nenhum dos objectivos que o preocupavam, como a procura da rua, o desejo de saber quem era, por que viera ali ter, seria no entanto posto de parte. Mas o peso e a dificuldade no transporte dos bens contribuíram, igualmente, para fazer da ida à Nada e Tudo um desejo sucessivamente adiado. Por fim esqueceu-o de todo, e o

descampado surgiu como um cenário natural, senão até insubstituível: era a pista onde devia correr, carregando cada vez mais objectos.

Para o problema de quem era, Sérgio Louro ou outrem, encontrou então resposta: chamou-se proprietário.

Passaram dias e dias, meses e meses. Tempo. Frequentava a Rua, os bens garantiam-lhe a entrada e se, ao fim de uma noite mais fatigante, lembrava certa escada que, numa manhã esticara, ela aparecia-lhe tão distante como se nunca tivesse existido. Mas, se mesmo assim, a memória o inquietava, logo se dizia:

"Bah! Mesmo que a encontre como descê-la carregado?"

A culpa fora de Todo Teres que o deixara naquele estado!

Um dia surgiu um distribuidor de prospectos.

O homem disse boa tarde, colocou-lhe um panfleto no carro e seguiu caminho num passo apressado.

Ficou a vê-lo afastar-se.

O papel dizia: DEIXA FUDO E PEGUE-ME!

Como se o tivessem provocado olhou ciosamente os seus bens. Como poderia abandoná-los? Não eram o seu entretém, não lhe tinham mitigado o desgosto por Mich e aberto, definitivamente, as portas da Rua? Naquela noite ainda lá estivera e a moda "Vagabunda" há muito dera lugar à dos lábios cerrados por um alfinete. Esse, talvez, fosse o problema: os que ainda não a seguiam, por receio de parecerem vulgares, também não abriam a boca. Sentira-se só. Com quem dialogar? Com as suas coisas? Mas há tanto, tanto tempo que não fazia senão isso!

Tomou a olhar o homem dos prospectos, cada vez mais distante. Um humano... Se o chamasse? O problema era se ele o roubava!

Decidiu-se.

- Ei! Ei! Espere aí! Ao cabo de vários apelos o fulano olhou para trás.

O receio de deixar o carro sozinho impedia-o de correr até ao distribuidor. Mas ele parara e, através de grandes gestos, perguntava-lhe o que queria...

Finalmente, atou o transporte a uma haste esquálida de um arbusto indo ao encontro do outro. Ele viu-o andar na sua direcção e fez também caminho: encontraram-se a meia distância.

- O que é? - perguntou o indivíduo. Era um homem que, pela cor da pele, lhe lembrou os pardos e o seu antigo receio de contrair o estigma. Acaso já o teria? Possuía um espelho, mas desde quando não se observava? Levado por uma irresistível vontade de saber qual o seu aspecto perguntou:

- Eu sou pardo?

- Como? Na ânsia duma resposta, emendou:

- Desculpe, chamo-me Sérgio Louro e gostava de saber se me acha pardo?

Francisco que, finalmente, arranjara trabalho distribuindo folhetos de uma empresa de espectáculos, olhava-o sem entender. O tipo chamara-o para saber se era da cor do papel de embrulho? Seria doido? Várias vezes encontrara indivíduos que, de tanto se afastarem das normas, acabavam pírulas. O vagabundo na sua frente tinha todo o ar de ser um desses...

Apontando resignadamente os muitos papéis ainda por distribuir, Francisco desabafou:

- Pensei que quisesse mais... Leu a perplexidade no rosto do distribuidor e achou-se ridículo. Não era mais fácil voltar para junto das suas coisas e ver-se no espelho? Resolvido a fazê-lo, rematou:

- Deixe lá. Não tem importância - mas para o homem não se sentir chamado em vão, concordou: - Sim, sim, dê-me mais dessas folhas se faz favor. Tenho lá em baixo o carro e levo-as para os meus amigos.

Então tome! Fique com o resto!

Francisco já poderia ir à produtora buscar o pagamento e finalmente passar pelo supermercado: andava necessitado de tanta coisa!

Abarrotado de folhetos a pregarem "DEIXA FUDO E PEGUE-ME! " chorou a sua má sorte: os ladrões, enquanto falava com o distribuidor, haviam-lhe levado o carrinho com todos os bens. Restara o espelho que, talvez por receio de o partirem na fuga, tinham abandonado.

No meio do seu desespero olhou-se: pardo não estava, mas lívido de raiva.

O choque por se achar sem nada relembrou-lhe, como se no divã de um psicanalista, o que passara até àquele momento. Porquê? Como chegara até ali? Por que esquecera a escada? Ou a rua que o levaria à Nada e Tudo?

Espantado ou, mais do que isso, perplexo pelas voltas que o mundo lhe dera e pelas que a si próprio se oferecera, reconheceu-se, no entanto, nas dúvidas que de novo tinha.

Quis abandonar de vez o descampado e pegou no seu derradeiro bem, o espelho: pôs-se de novo em marcha.

Descansava o indispensável para retemperar as forças, e prosseguia: animava-o a fé, a certeza de que haveria uma saída.

Ao longo da noite a luz da Rua acenava-lhe mas, no máximo, servia-se dela para distinguir melhor o caminho. Ao cabo de uma jornada especialmente fatigante viu uma escada.

Miragem? Alucinação? Milagre não seria, pois desde que se pusera de novo em marcha nunca duvidara de que ela surgisse. Mas incapaz de manter o passo calmo, correu na sua direcção: era uma

entrada de metro.

Começou a descê-la. o Sol, no pino, iluminou-lhe o espelho e o seu reflexo cegou-o.

Estatelou-se nos degraus.

Onde estou?

- No Centro de Recuperação de São Jorge... Retomara a consciência depois de uma pequena intervenção cirúrgica que no entanto necessitara de anestesia geral. Ainda estonteado e de cabeça ligada, lembrou-se de que conhecia um hospital com aquele nome. Ou era São José?

- São Jorge? - perguntou à mulher que limpava o pó à mesinha de cabeceira ao lado da cama onde se deitava.

- Sim. São Jorge e o Dragão.

- E o Dragão? Onde?

- Em Lisboa, é claro! Onde é que havia de ser? De qualquer modo a empregada da limpeza já se habituara ao despertar dos operados mais as suas confusões. Sem ligar ao doente - ele havia lá tantos! - virou-se para a mesa do paciente do lado, também recém-saído de uma intervenção e ainda a dormir.

Débil, entre a sonolência e a lucidez, interrogava-se se os acontecimentos que recordava teriam sucedido. Ou fora delírio motivado pela anestesia? Mas por que estava ali? Fez um esforço e perguntou de novo à mulher, já a tratar dos vidros da janela:

- Por que me trouxeram para aqui?

- Ah isso... - começou ela. Mas surgiu um enfermeiro e a funcionária calou-se, remetida à sua exclusiva competência.

- Então acordou? - Era um homem com aspecto bem disposto e idade próxima da sua.

- Parece que sim... - E pôs mais uma vez a questão: Por que me internaram?

- Foi encontrado caído numa entrada do metro com um golpe na cabeça. Como era profundo teve de ser anestesiado para o tratarmos à vontade. Eu sou o enfermeiro Orfeu.

- Muito... prazer - balbuciou. As regras da boa educação, sobretudo nas alturas difíceis, nunca deviam ser esquecidas! Ia acrescentar: "eu sou ... " mas parou, porque a confusão tomou-o. Recompôs-se. - O que me vão fazer?

- Pô-lo bom, é claro! E depois... Tudo é outra vez possível... - Orfeu fez um sorriso que pretendia ser animador.

O acamado do lado deu sinais de ir acordar e o enfermeiro prestou-lhe atenção. Porém a palavra "tudo" que o último proferira recordou-lhe a empresa onde trabalhava (ou trabalhara?) e pediu:

- Posso telefonar?

- Nesta altura não convém... - O homem verificou o pulso do outro doente e viu que voltara a cair num sono profundo. Deixou-o e aproximou-se de novo da sua cama. Explicou: - O senhor teve de levar pontos no maxilar e por alguns dias deve falar pouco. Ou mesmo nada!

Ah!     Entregue a um prudente silêncio compreendeu a impressão incómoda que tinha na boca. Além de, descobria-o agora, ser esse o motivo porque sonhara com gente que falava estranhamente!

Orfeu enviou-lhe outro sorriso confiante e saiu porta fora.

No quarto onde havia três camas - a do lado com o homem a dormir e outra vazia - ficaram os dois doentes. A mulher da limpeza desaparecera.

A iluminação vinha, sobretudo, de um globo no tecto porque os vidros da janela eram pintados de um branco fosco. Talvez o dia estivesse nublado e a luz do Sol não chegasse para iluminar convenientemente o espaço.

Adormeceu.

O sono assumiu a forma de pesadelo e, a dada altura, pôs-se aos gritos de "Eu venci! Eu venci!". junto da sua cama acorreu algum do pessoal clínico que andava por perto.

- Então o que há? - perguntou Orfeu que fazia parte daquele grupo.

- Eu venci! - repetiu ainda. Depois acordou mas, sem se dar conta de que já estava noutra realidade insistiu: - Eu venci!

- Venceu? - interrogou-o uma mulher que também se incluía entre os que haviam acorrido. - E venceu o quê? - O tom da pergunta exprimia alguma contrariedade ou mesmo provocação.

- O... - constatou que falava e, ainda por cima, dizia qualquer coisa que só ele podia entender. Timidamente explicou: - Foi um sonho... Havia um monstro e... Venci-o.

Ninguém se deu ao trabalho de lhe responder e o grupo abandonou em silêncio o quarto. Teve a impressão de que a sua manifestação não fora apreciada.

De novo só com o anestesiado apeteceu-lhe ir à janela. Tentou erguer-se mas o esforço causou-lhe tonturas e desistiu. Quanto tempo teria de ficar deitado? Os acontecimentos que retinha na memória, como sendo os que vivera nos últimos tempos, seriam reais? Ou caído na tal escada sonhara-os durante o desmaio e a anestesia? No desejo de que a verdade coincidisse com a última hipótese fez novo esforço por se levantar e ir à janela espreitar a

rua. Este objectivo no entanto tomou-lhe mais vivas as estranhas memórias. Como se o desejo de ver o que se passava lá em baixo tivesse uma origem muito profunda.

O doente do lado voltou a dar sinais de que ia acordar, ao mesmo tempo que pronunciava palavras esquisitas. Elas também lhe acentuaram a sensação de estranheza relativa ao passado. Dizia ele, contorcendo-se violentamente na cama:

- Yduur ifutii eeurii irufúti ufii ud ufidu gitu au!

- E emitia grunhidos que ecoavam no espaço.

- Grrruuuuuvvv.. Prrrrrrruuur... - Depois gritava por Laura repetindo a palavra numa grande aflição e vezes

sem conta: - Laura! Laura! Laura! Laura! Laura! Laura!

Uma enfermeira acercou-se:

- Então? Estamos a regressar, ahn? Isso é que foi uma viagem! - Mas ele virou-lhe as costas e remeteu-se a novo silêncio adormecendo profundamente. A mulher abandonou o quarto.

Talvez já conseguisse ir à janela e tentou novo esforço: apoiado nas paredes atingiu a vidraça.

Abriu-a. A sua rua ficava uns cem andares abaixo! Orfeu entrou e surpreendeu-o:

- Que faz aí? Ainda não pode sair da cama! Nada nem ninguém lhe dissera que estaria ao nível do rés-do-chão mas os acontecimentos que a memória apresentava como sucedidos ganharam consistência e adquiriu a certeza de que existira uma escada e - pior ainda! - que continuava nela com muitos e muitos pisos por descer! O descampado de que se lembrava ganhou o estatuto duma realidade exterior a si e, juntamente com o centro onde jazia, erigiram-se em degraus.

Levado pelo turbilhonar das descobertas olhou o enfermeiro com inquietação:

- A escada? Onde fica a escada? Quero descê-la!

- Calma! Calma! Aqui é o Centro de São Jorge e o Dragão. Descanse!

Agarrado à vidraça, ouvia o homem falar mas algo na sua voz não lhe inspirava confiança, e esse aspecto só agora lhe era evidente! E a confirmar as suspeitas, embora não soubesse quais, Orfeu piscava continuamente os olhos!

De mãos na cabeça - com a vertigem provocada pela visão da rua ela como que rodava - fazia por dominar o enfermeiro:

- Está nervoso? Quem é o senhor?

O homem não perdeu tempo: aproximou-se do doente e, de dedo espetado, indicou-lhe a cama:

- Faça o favor de se deitar! Você está muito fraco para andar de pé!

Orfeu obrigou-o a ingerir um calmante. Sem resistência, obedeceu.

O acamado do lado começou de novo a agitar-se:

- Grrrruuuuuuurrr! Prrrrrruuuuuuurrr! Laura! Laura! Abutir! Abutir! Dur abuur! Dur abuur! Laura! Laura!

O enfermeiro prestou-lhe atenção:

- Como se sente senhor Dantes?

- Ytu... Ytu... - Mas tomado por nova inconsciência o doente calou-se.

O esforço despendido na ida à janela e a certeza na veracidade do se que lembrava, assim como o constatar que ainda não chegara à rua derrotaram-no. Mas o soporífero produziu efeito e acabou por adormecer.

Orfeu, com as duas camas silenciosas, abandonou a sala. Missão cumprida.

O indivíduo da cama ao lado fora embora. Lembrou-se das circunstâncias em que adormecera e teve a certeza de que o enfermeiro o drogara de modo a dominá-lo mais facilmente. Mas que podia fazer? Não estava ele à mercê dos outros?

O pior no entanto fora a descoberta de que a descida não era irreversível tanto podendo estar no que lhe parecia já ser o exterior como, no momento seguinte, encontrar-se andares e andares acima!

Não havia antes nem depois? A luta contra os degraus era contínua como quem desce uma escada-rolante que sobe?

Procurava resolver estes problemas quando uma mulher, entre os quarenta e os cinquenta anos, entrou com

um bloco de apontamentos na mão e se lhe dirigiu:

- Muito bom dia! Sou a Irínia do Departamento de Acolhimento. Importa-se que conversemos um pouco?

- Confortou-o ouvir-lhe a voz afável e doce. Respondeu com um sim sincero, cheio de boa vontade, e a funcionária, sentando-se familiarmente no leito, preparou o bloco.

- Então vamos a isto! Queira dizer-me, por favor, qual é o seu nome?

-O ... ?

- O nome.

- O nome ... ?

- Sim, o nome. Calou-se.

- Se faz favor...

- Pois, o nome, não é?

- Sim, o nome. Diga-o, se faz o favor!

- Sou...

- E... Calou-se de novo. Apesar do serviço por despachar, Irínia sorriu e brincou:

- Afinal: é... ou não?

- Talvez... - O melhor seria não complicar as coisas e passar por cima do problema. Mas a solução pela via do mais fácil, que outrora não lhe causaria engulho, tornara-se já a mais custosa. No entanto, tentou-a. - Sérgio... Sou Sérgio Louro. - A fala, como se o esforço posto nas

palavras fosse demasiado, ou até por vingança, emudeceu-lhe, mal as findou. Irínia achou o doente mentalmente confuso mas quis confiar nos serviços que lhe ordenavam o interrogatório; e continuou:

Muito bem, senhor Sérgio Louro. Agora diga-me, se faz favor... - Anteviu nova tortura. Qual seria? A da morada? já não podia dizer a da pensão Vitória... Ou podia? O outro que lá estava... Olhou a mulher. Ela não compreendeu o que os seus olhos expressavam e acabou a frase: - E trabalha onde? Ou em quê?

- Eu... Eu... Tomou a calar-se. A funcionária intuiu no doente mais qualquer coisa para além do cansaço ou esgotamento pós-operatório. Por consciência profissional resolveu ser directa:

que há, senhor Sérgio Louro? Fale francamente!

que... É que... que - o quê? Diga! E que... se calhar eu não sou esse... Mas já fui! Acentuara a última frase com a força de quem agarra a bóia que o há-de salvar.

- já foi? Decidido a explicar o imbróglio não sabia como fazê-lo.

- Diga... Diga o que o preocupa!

- Não sei... Tenho medo... - confessou, receoso que o tomassem por maluco se contasse, assim, sem mais nem menos, a história dos degraus que se tinham reproduzido. Irínia, no entanto, tranquilizou-o:

- Vá! Sinta-se à sua vontade! - E, já curiosa por ouvi-lo, animou-o: - Aqui está em segurança. Somos o Centro de São Jorge e o Dragão. Não há nada a recear!

- Sabe... Foram os degraus...

- Os degraus?

- Sim... Como os pães... A comparação entre o milagre cristão e a multiplicação dos degraus, parecendo-lhe clara, não o foi na compreensão da funcionária que, por sinal, até era de confissão budista. Mas com vinte e dois acamados por inquirir ainda naquela tarde, ela já passara da curiosidade à impaciência:

- Veja se é mais explícito senhor...

- Pois... E que... ambos se multiplicaram!

- Os pães e os degraus?

- Bem... Comigo foram só os últimos...

- Ah... E qual a relação com o sítio onde trabalha? ou * seu emprego? Tudo partiu daí, não foi?

- Nunca mais lá cheguei, percebe? - Satisfeito com * sua síntese sorriu timidamente. Baixou o tom de voz e confessou como se dissesse o maior segredo: - Ainda vou a caminho...

Irínia, apesar de se considerar inteligente, não o compreendia.

- Quer dizer que...

- Sim... - concluiu com o ar de quem desvenda o último elo de uma cadeia de mistérios. - Uma manhã a escada apareceu maior..

Silêncio. As palavras--As palavras que troco com esta mulher são também degraus, assim como o mais que ainda me aconteça até chegar à rua. E a rua...

A funcionária, pouco à vontade, arriscou uma conclusão:

- Nunca chegou ao emprego e... perdeu-o. Foi?

- Em parte talvez sim mas não há a certeza. Está lá outro...

- Outro?

- Sim. Eu... Antes que ela lhe chamasse doido apelou a todas as suas energias. E como quem, de antemão, sabe que não vai ser compreendido, mas cuja única alternativa é a de ser fiel a si, embora ganhe com isso o escárnio dos demais, narrou de uma assentada, num tom resignado senão já derrotado, o que acontecera.

Ao cabo de hora e meia de relato pormenorizado a mulher perdera o resto do dia com aquele caso mas ficara consciente de que ele era complicado e bem pouco da sua competência.

Finda a narrativa, olhou-a com olhos esbugalhados, e ainda húmidos pela evocação de Mich e com o sentimento de que o conto era, na realidade, do domínio do fantástico.

- Acredita em mim?

- Claro que sim! - Irínia encarou-o também como se, daí em diante, ele e ela ficassem unidos pelo segredo mais absoluto. Compenetrando-se no que dizia, acrescentou: - Descanse, senhor... - E hesitante na forma como o deveria tratar, decidiu-se no entanto por uma salutar prova de confiança no doente: chamou-lhe Sérgio Louro.

- Há-de ver que o é! - Espreitou um e outro lado a confirmar que ninguém os ouvia, e num tom de confidência ou até de pura bisbilhotice, informou:

- Cá a escada do Centro é de confiança! Nunca nos decepcionou. A sério: é totalmente fixa! Vai ver que connosco está seguro. Os nossos degraus não encolhem nem esticam! Eles nunca fizeram isso! É tudo seguro! - Com uma expressão que mostrava bem a pouca conta em que tinha as que assim não agiam, Irínia acrescentou: - A nossa escada é decente! - Concluindo com um piscar de olhos: - Aliás nós usamos os elevadores e eles também não nos fazem surpresas! Param mesmo onde mandamos!

Sorriu e abandonou-o.

Arrependido por se ter confessado à funcionária (não tardaria que todo o hospital lhe chamasse o maluquinho dos degraus!), aproveitou o estar só no quarto para sair e espreitar o corredor: descobriu uma profunda ala, a perder de vista, ladeada de portas e mais portas.

Entretanto descobrira um meio de saber se o que contara a Irínia fora realidade ou sonho: indagar se, quando o tinham recolhido, havia junto de si um espelho. Este enigma pelo menos resolver-se-ia. Mas, à medida que o tempo passava sobre a entrevista, maior era a convicção de que a mulher o julgara louco. Tido como tal que lhe fariam?

Parado no corredor sem fim olhava os acessos que o serviam. Como numa encruzilhada de cujos caminhos nada soubesse, sentiu-se desorientado. Porém, numa reacção que também suspeitava já sucedida, apesar das dificuldades, dos degraus, da rua que não atingia, apesar do pesar que a perda de referências e certezas lhe trazia, apesar disso tudo, um avassalador sentimento de união consigo invadiu-o: por longos momentos não pensou, não fez, não mexeu, em solitário recolhimento, prostrado no meio do corredor.

- Credo! - gritou Alice, a encarregada da limpeza.

O que é que o senhor tem? Levante-se já daí que quero limpar a passadeira!

Ele continuou recolhido e a mulher não esperou mais: em passo rápido buscou socorro. Orfeu levou o enfermo, que não opôs resistência, de volta ao quarto. Alice, ao vê-lo conduzido, suspirou:

- Coitado, um homem ainda tão capaz!

Desgostou-o ser apanhado em flagrante. A questão devia ficar entre si e as portas e nem no relato a Irínia referira o que lá atrás, também sentira pela outra. Aliás conservava na memória o indivíduo cobardemente linchado em nome do transcendente! A sociedade não condena quem se faz passar por outro? Por que não

também o que segrega em nome do Deus? Corno pode o todo excluir a parte?

Mas a sua pergunta era: o efeito que as portas lhe provocavam estender-se-ia a outros objectos? Andaria por fim em constante entrega como se, vazio de si, fosse Tudo? Nada e Tudo? Que significava? já era - ou tinha sido?

funcionário de uma empresa assim...

O doente precisava de um estupefaciente e Orfeu injectou-o. Quando acordou, a cama antes ocupada pelo doente Dantes possuía novo ocupante. Este dormia mas na sua mesinha de cabeceira uma pequena brochura, com um ar muito gasto, chamou-lhe a atenção.

Pegou-lhe.

O escrito intitulava-se O Manual da Espera. Dividia-se em parágrafos numerados e folheou-o. O capítulo dos "PERIGOS A TER EM CONTA" chamou-lhe a atenção. Começava assim:

  1. A FESTA Quando atingir os primeiros lugares na fila mantenha o sangue-frio. Muitos dos que se embriagam para comemorarem o acontecimento acabam em coma e, é claro, nunca são atendidos!

Não deite tudo a perder nos últimos momentos.

  1. A INÉRCIA Para resistir à espera, o organismo cria defesas. Tenha em atenção este dado e não mude de intenção: você integrou a fila para chegar e ser atendido. Desconfie do seu apego à espera; ela é um meio e não o seu objectivo.

A vida não é uma espera!

  1. A PEREGRINAÇÃO Se conseguir que lhe guardem o lugar e fizer uma excursão aos primeiros lugares, no intuito de regressar ao

seu com mais coragem, tenha em atenção a festa que aí há sempre e mantenha-se distante. Leia de novo o parágrafo 1.

  1. O COMÉRCIO Muitos dos produtos vendidos ao longo da fila, sob o pretexto de lhe aumentarem a resistência, só o farão gastar dinheiro e, ainda, correr o perigo da intoxicação, senão mesmo o da viciação. Lembre-se que ao ser atendido será submetido a testes eliminatórios para os dependentes de substâncias tóxicas!

O dono do manual mexeu-se e, interrompendo a leitura, colocou-lho de novo na mesinha de cabeceira. De facto Adelino acordou e logo meteu conversa:

- Cá estou! Consegui! Nem imagina como me sinto contente! Operam-me esta semana e começo o trabalho daqui a quinze dias. Não é bom? - A sua alegria era grande. - Esperei sete anos e sete meses mas consegui. Uf! Aliás a bicha deve-se ver daqui! - Saiu da cama e, da janela, convidou: - Venha espreitar!

Olhou a porta do quarto a certificar-se que Orfeu não aparecia. Levantou-se. Junto à vidraça espreitou cautelosamente para baixo a fim de evitar nova vertigem. No fundo de tudo, na rua, formigava uma fila de espera com milhares de pessoas. Ocupava a largura do passeio, ao longo da avenida e a gigantesca cauda perdia-se atrás doutros arranha-céus. Carros e grupos de polícias com cães patrulhavam-na. Adelino foi junto da sua mesinha de cabeceira regressando com umas poderosas tentes:

- Veja, veja c'os meus binóculos. Foram-me muito úteis enquanto lá estive. Dava-me conta do andamento da fila antes dos outros e a esperança renascia-me mais cedo. Talvez por isso tenha sobrevivido.

Aceitou o convite. Homens e mulheres empoleirados em bancos, estrados ou no que servisse para melhor serem vistos pelos das filas dirigiam-se-lhes através de megafones, com grande agitação de gestos. Outros indivíduos vendiam bugigangas ou distribuíam panfletos. Um destes era espancado pelos que esperavam. A polícia não o socorria. Adelino chamou-lhe a atenção para a imagem de um pequeno ídolo com corpo de homem e cabeça de leão que trazia num fio ao pescoço:

- É um Zharos. O meu Deus! Comprei-o enquanto esperava. Tenho a certeza que me deu sorte! Um dia Ele virá para nos libertar! - Apontou a fila e explicou: - Muitas vezes aquilo só anda graças aos que desistem! Tantas vezes que avancei sobre cadáveres!

Devolveu os binóculos e os dois homens regressaram às camas.

- Então - continuou Adelino já refastelado no colchão - não é motivo para estar contente? Daqui a duas semanas tenho emprego e, aqui no hospital, asseguram que é coisa fácil, sem qualquer problema. Está cá pelo mesmo, não? - Lembrou a Nada e Tudo, Lda. mas naquela altura não lhe apetecia falar de si. Desviou ainda a conversa para o interlocutor:

- A que é que vai ser operado?

- Oh, é simples! Vão-me pôr o perfil do empregado que eles necessitam. - Colocou a cabeça de lado, com a cana do nariz em evidência e exemplificou: - É aqui, está a ver? - Com um dedo indicou a sua parte média.

- Falta-lhe um alto... Passei muito tempo lá em baixo mas valeu a pena! E aquilo - fez uma careta - agora está calmo mas, ao início, nem polícia havia!

Calados e absortos. Era verdade que já antes encontrara o apanhador de fruta no pomar mas desde quando acontecia isso? Desde quando operavam as pessoas para as tomar mais rentáveis? Ou o mercado tomara-se o Deus ao qual tudo se sacrificava? Na manhã em que iniciara a descida isso já sucedia? Ou ela fizera-lhe ver as coisas de forma diferente? Seria de facto já outro? Não ousava confessar nenhuma das interrogações ao vizinho e ele, como quem pode por fim descansar, enroscara-se para dormir. Porém o sono era agitado e de vez em quando, de punho ameaçadoramente erguido, avisava: - Olhem que eu mato quem me passar à frente! Olhem que eu mato! Já acabei com dez e posso bem livrar-me de mais um! As capicuas até me dão sorte! Olhem que eu mato! Olhem que eu mato!

Levado ainda pela incredulidade foi até à janela.

Vira onde o companheiro guardara os binóculos e utilizou-os. Mas a vertigem tomou-o de novo, assim como o enjoo: fechou a vidraça e guardou as lentes. Era aquela a sua rua? Que iria lá fazer? Pôr-se numa bicha? Ou retomar o lugar na Nada e... De repente nem isso importou. Como se algo sucedesse e um certo mundo até aqui, apesar dos acontecimentos, ainda preservado, ruísse definitivamente. Para quê a Nada e Tudo, Lda.? Que tinha a ver com ela? Que lhe importava que o Silva e os outros andassem, hora a hora, minuto a minuto, afadigados de um lado para o outro a venderem arcas congeladoras e frigoríficos? Que tinha ele - Sérgio Louro ou não - a ver com aquilo?

Nada e tudo?

Uma mulher atraente entrou no quarto, pedindo licença para se sentar na cama.

- Posso? Sou a doutora Arlete, assistente social. Temos algumas dúvidas no preenchimento da sua ficha e gostaríamos que nos esclarecesse. - Colocou a perna direita sobre a esquerda mostrando uma coxa torneada e rija.

A visão pôs-lhe a boca seca e bebeu da água que havia na mesinha de cabeceira. Na cama ao lado Adelino ressonava. Arlete começou:

- Como se chama?

- já disse à sua colega. - Delicadamente a assistente refutou:

- Sim. Mas diga-mo agora a mim, se não se importa. Isto é outra coisa.

- Sou... - Pela primeira vez desde há muito acreditava no que dizia e acentuou, com algum orgulho: - Sou Sérgio Louro.

- Sérgio Louro?

- Sim. Sérgio Louro. Irritou-o a insistência: ela não o faria cair de novo na incerteza? Afinal o que queria a mulher?

- Diga-me continuou ela, alheia ao que passava com o paciente.     Trabalha ou trabalhou onde?

- Sou empregado na Nada e Tudo, Lda. Achou que de facto era assim: prevenira o Silva da impossibilidade de comparecer e o ocorrido não fora apenas da sua responsabilidade. Além disso estava sindicalizado.

- Na Nada e Tudo, Lda2

- Sim. Na Nada e Tudo, Lda. Sou vendedor comissionista e estou lá há dez anos. Isto é, nos últimos tempos não tenho ido mas avisei o chefe.

Preferiu não entrar em pormenores. Se o tivessem substituído adiante se veria. Para quê eliminar-se à partida? No entanto era contraditório porque já não se sentia vendedor e não experimentava o orgulho que em tempos isso lhe dera. Mas se havia falta de emprego e ele, Sérgio Louro, devia ter um para prover as suas necessidades, então já o possuía e não o perderia por razões alheias à sua pessoa.

- Muito bem - concluiu Arlete tirando da pasta uma credencial que ele logo reconheceu: - Agora diga-me, se faz favor, onde foi buscar este cartão de crédito em nome de Todo Teres?

- Ah, isso é uma longa história. Mas para abreviar ponha aí que o achei e ainda não encontrei a pessoa a quem o devo entregar.

Arlete olhou a folha que preenchera. Descruzou a perna e pelo caminho compôs a saia. Tomou fôlego e falou:

- Isto é assim, senhor... - Hesitou no nome. Ele foi em seu socorro:

- Sérgio Louro.

- Pois, senhor.. Sérgio Louro... - Ela pronunciara o nome com um leve sorriso nos lábios. - Não ponho em

dúvida o que me conta, compreende? - Falava num tom calmo e seguro, a compreensão implícita na forma como dizia as palavras. - Mas a verdade dos factos e da nossa investigação é a seguinte: na realidade existe alguém com o nome que o senhor pretende ter na Nada e Tudo, Lda. Mas essa pessoa é o administrador-geral... E além dele não há lá outro que se chame assim. Está-me a compreender?...

- Como diz?

- Digo-lhe que o administrador da Nada e Tudo, Lda. se chama Sérgio Louro e não é o senhor. É verdade que nos primeiros tempos ele foi vendedor comissionista mas ninguém mais, com o mesmo nome, o tomou a ser. Nem é! Mesmo que esteja a faltar..

- Ah!... - As dúvidas submergiram-no de novo e com mais força ainda. Arlete, sem lhe conceder tempo para reflectir mostrava-lhe, bem à frente dos olhos, o cartão de crédito de Teres. - O senhor tem a certeza que não fez compras com ele? Alguém o usou e não se preocupou em ir aos saldos...

Nunca imaginara o outro a guindar-se tão depressa à posição máxima, assim como o espantou a notícia de que Todo Teres também não o seria: que significava? Lidara com um gatuno? Ou ele fora igualmente vítima de um roubo de si? Ou.2

- O cartão é furtado?

- Exactamente. E o senhor quando foi encontrado tinha a seu lado um espelho que fazia parte das compras feitas pelo ladrão. Ele partiu-se mas foi possível reconhecê-lo pela moldura.

No meio de tanta identidade perdida e ganha confirmou a realidade das lembranças. Tudo fora verdade! Com a segurança de quem, pelo menos, assume o passado, retorquiu.

- Sim. Sou capaz de ser eu o gatuno... - A funcionária, informada do caso pela colega Irínia, e habituada a que alguns delinquentes se fizessem de doidos para se ilibarem da responsabilidade dos seus actos, achou que a entrevista estava a dar fruto. Mas ainda acentuou:

- Para quem confessa o juiz costuma ser indulgente... Só queremos ajudar!

Sorriu. Também se tornara indulgente consigo já não se importando que lhe chamassem ladrão, qualquer outra coisa ou até nada. O seu amor próprio despedira-se do reconhecimento e dependência dos outros buscando o prazer na verdade e rigor para consigo, para com o seu devir, para que se realizasse em si essa promessa. Sabia que não fora o gatuno. Mas se o fosse?

Arlete encaminhou-se para a porta e ele viu-a afastar-se. À distância pareceu-lhe ridícula. Quando ela saía para o corredor voltou atrás e tirou da pasta um monte de papéis:

- já me esquecia! Também o encontraram com isto! Tome! São seus! - E entregou-lhe dezenas e dezenas de panfletos com a frase "DEIXA FUDO E PEGUE-ME!" que se espalharam por cima da cama.

Serenamente deixou-se adormecer. Na paz do... Penhor?

Adelino acordou e o vizinho dormia. Aborrecido, porque lhe apetecia conversar, não teve outra alternativa senão pensar ou falar com os seus botões. Mas lembrou-se de que conservava o anúncio do emprego a que se candidatava e releu-o uma e outra vez: em breve tudo se resolveria.

O vizinho despertou mas, sem vontade de ver ninguém, manteve a cabeça debaixo das cobertas: cansado de reflectir no que lhe acontecia, queria estar quieto. Enquanto isso o mundo que andasse. Decorrido algum tempo o ar começou a faltar sob a roupa e houve que assumir, perante o colega de quarto, que acordara. Adelino, mal o viu tirar a cabeça para fora, exclamou:

- Oh, ainda bem! Estava farto de estar sozinho!

- Exibiu o anúncio a que respondia: - Veja! - Achou-o doido. Ou tudo em redor, já não sabia. Na verdade, era como se tivesse perdido a paciência para tanta loucura. O homem continuava a falar mas não o escutava. Aliás, na sua euforia nem necessitava que lhe respondessem.

- Agora tudo vai ser diferente! Vou finalmente fazer alguma coisa! Há anos que quase não sei quem sou!

A última frase obrigou-o a prestar-lhe atenção:

- Não sabe quem é? - Pois não. Ou seja: ao cabo de muito tempo sem utilidade, uma pessoa perde-se.

- Sem utilidade?

- Sim. Sem fazer.. Sem... - Talvez ele, na sua dificuldade em expressar-se quisesse dizer: "sem servir, ser útil, aos outros, ou à sociedade" mas não o ajudou.

Sentou-se na cama. Em redor, as coisas estavam como no primeiro dia em que ali acordara mas via-as sob outra luz. Adelino entretanto observava-o mas não lhe entendia o olhar: o de alguém que, após muito guerrear e levar de vencida o mundo, verifica que afinal lutou contra si próprio. Inquieto, o candidato a emprego perguntou:

- Sente-se bem?

- Como?

- Parece-me estranho. Passa-se alguma coisa? Quer que chame o enfermeiro? - Nos anos passados na bicha Adelino fora também testemunha de gente que enlouquecera. O receio de que sucedesse o mesmo ao companheiro de quarto, cujo olhar vazio de sentimentos (e idêntico - sabia-o agora o próprio - ao do ovolho) era como que uma ameaça ou porta aberta a todas as possibilidades, ao Nada e ao Tudo, desumano e impossível de suportar, levou Adelino a acrescentar: - Lá em baixo, enquanto esperava, um homem gritava: "Se quereis morrer vivos não podeis fazer tudo! Se quereis morrer vivos ... ". - Repetia a citação como se ela o libertasse dos perigos que no outro projectava.

Continuou calado e foi à janela: lá estava a rua. Faltava descobrir a escada. Porque, fosse ou não Sérgio Louro, queria ser alguém capaz de descer uma escada.

A sua.

- Não se preocupe. Sinto-me muito bem - disse finalmente a Adelino. Numa das mesinhas de cabeceira ha- . 1a7 via um jogo de xadrez e convidou-o: - joga uma partida.

Arquitectava o plano de fuga.

- Não sei jogar.

- Não tem importância. Eu jogo comigo e conto-lhe como faço.

Assim foi. Os comentários do observador eram inteligentes e quando, no fim da partida, o jogador ganhou a si próprio, disse:

- Se o Adelino quisesse, jogaria bem. - Ele ficou contente.

Calaram-se. A melhor altura para a fuga era antes do jantar.

- Vou à casa de banho - informou. No corredor não havia ninguém e descobriu uma porta com um dístico onde se lia: "saída de emergência".

Empurrou-a. Encontrou-se num patamar de paredes de cimento, iluminado por uma luz branca, fosforescente, igual aos muitos que lá atrás cruzara. Olhou para baixo, pelo vão das escadas: via-se-lhes o fim e começou a descê-las. De vez em quando saltava dois degraus de uma só vez.

Ao cabo de poucos minutos atingiu o último patamar. Não havia saída.

Talvez nunca tivesse sentido tanto a falta de uma porta como naquele último patamar, de paredes despidas e luz crua.

Enganara-se? Entrara por outro lado pensando que o fazia pela saída de emergência? Tinha quase a certeza que não. Então que fizera de mal? Deveria tomar a subir? A ideia de voltar ao corredor de onde se esgueirara assustou-o: certamente já teriam dado pela sua fuga e procurá-lo-iam.

Tinha de agir rapidamente. Sentado no último degrau reflectia na decisão a tomar quando sentiu um vulto atrás.

Virou-se. Um homem de rosto incaracterístico perguntou-lhe solicitamente:

- Procura a rua? Não entendia de onde ele saíra ou se lhe viera no encalço e não dera por nada. Neste caso seria um guarda e reconduzi-lo-ia ao quarto para mais uma vez o adormecerem. Resolveu que não titubearia na luta pelo seu desejo.

- Sim. É isso! - O tom não admitia dúvida.

O homem fitou-o como que a apreciar o tipo de pessoa que tinha pela frente e as palavras a utilizar.

Ambos em silêncio, aguardava que o desconhecido se identificasse como vigilante do Centro de São Jorge e o Dragão. Mas numa voz também senhora de si o personagem afirmou:

- Isto aqui não tem saída.

- Mas há ou não há?

- Não aqui. - E num gesto expressivo o indivíduo sacudiu os ombros. Continuava sem entender quem ele era ou o que pretendia. Para acabar com a questão interrogou-o:

- O senhor é ... ?

- O meu nome? Há muito que ninguém me chama. Perdi-o. - Sacudiu ainda os ombros. - Também de que me serviria? Se quer... - Fez um esforço de memória que não o satisfez. - Não sei... Acho que me chamava... Mas?... Terminaria assim? Lamas? Seria Lamas? Não sei... Mas talvez sim: visto que deixei de estar só e que terá de me tratar por alguma coisa, pode chamar-me isso: Lamas

- Ensaiou: - Senhor Lamas... - Com uma careta concluiu: - Bah! Ou outra coisa qualquer!

Apesar de tudo o que sucedera, estava espantado. Quem era o indivíduo? Um que também tentara fugir e ali ficara?

Olhou em redor. As paredes eram compactas não indicando que num tal sítio vivesse alguém. Lamas, como se lhe adivinhasse o pensamento, explicou:

- Alimento-me de restos... Fiz um buraco na conduta do lixo. Quer ver? É aqui ao lado ... E arranjei forma de ter água... Não me apetece aturá-los ... Assim ninguém me incomoda... - Fez uma pausa. Depois, num tom onde havia já entusiasmo e, enquanto lhe agarrava um braço, rogou:

- Fiquemos juntos. Eu mando e tu obedeces. Não terás que decidir nada e como faço tudo por hábito tão-pouco eu já penso. Seremos felizes. Temos água e comida. Que mais falta? - Sacudiu a mão que o prendia e Lamas em resposta, colocou-se de tal forma nos degraus que lhe impediu a passagem. - Ficas? - Colara-se-lhe e sentiu-lhe o hálito fedorento. - Depressa te acostumarás... A gente habitua-se a tudo e lá em cima é bem pior.

- Sim... É pior... - anuiu, fazendo por ganhar tempo e também por não vomitar. Mas, com um súbito empurrão, deslocou Lamas para um dos lados da escada, abrindo passagem. A três de cada vez pôs-se a subir os degraus. Porém Lamas recompôs-se e seguiu-o.

- Eu quero-te! Estás a ouvir? Não fujas! Também podes mandar e eu obedeço... Seremos felizes! Não precisamos dos outros para nada! - As últimas palavras "... para nada... Nada... Nada..." perdiam-se no espaço vazio.

Parou para ver se ainda era perseguido. Mas o vulto fizera o mesmo e espreitava pelo vão da escada. O rosto sem brilho nem definição do caçador tomou então, aos olhos do fugitivo, a aparência daqueles que ao longo da vida o haviam fascinado.

A alucinação paralisou-o.

- Fica! Fica comigo! Seremos felizes! - repetia Lamas e a voz também se lhe metamorfoseava. Iria vacilar? Desistir? Passar a existência numa caverna alimentando-se de restos? - Fica! Fica comigo! Aqui ninguém nos incomoda. Logo te habituarás! - A atracção pelo abismo tomava-se quase irresistível quando o rosto de Lamas se transformava no de Mich, no do jovem do sonho ou ainda no seu próprio!

Eu mando e tu obedeces! Não terás de decidir nada! Não soube quanto tempo parou ou se chegou a retroceder alguns degraus ou mesmo lances de escada. Mas o outro, talvez devido a falta de exercício, subia devagar dando-lhe tempo para reganhar o seu próprio desejo.

Evitava olhar para baixo para não se encantar mas a voz era já a da mãe:

- Filho, o mundo está cheio de perigos! Por que sais de casa? Joga pelo seguro! A vida é uma floresta de enganos! Olha a quem te quer bem! Não me faças sofrer!

Surgiu uma porta. Com a velocidade a que descera não a tinha visto, e abriu-a.

Entrou e ela fechou-se. Era um elevador e alguém o puxou. No mostrador luminoso surgiram os pisos em contagem decrescente.

A máquina abriu-se aparecendo uma bela mulher.

- Peço desculpa... - disse Felizberta - chamei-o sem querer..

- De forma alguma! Eu queria descer! Abandonou o compartimento e deu-lhe passagem. O mecanismo fechou-se.

No patamar onde viera ter encontrava-se uma escada rolante que conduzia ao rés-do-chão. Neste havia uma ampla porta.

Do lado de lá, a rua.

Manhã cedo. Saboreou o ar fresco. As pessoas caminhavam apressadamente para os empregos e pôs-se a fazer o mesmo. Mas ainda olhou para trás: no prédio donde saíra reconheceu o velho letreiro: Residencial Vitória - Quartos Com Todo o Aceio.

Tudo normal. Antes de chegar à empresa entrou no café onde habitualmente tomava o pequeno-almoço. No entanto a casa fizera obras e mudara inclusivamente de nome: agora chamava-se "Fénix". Pediu um chocolate e uma sandes. Uma bica. Pagou e retomou o percurso. já na Nada e Tudo deu também com um novo porteiro. Cumprimentou-o:

- Bom dia.

O guarda, de vinte e poucos anos, no seu primeiro emprego, com voz firme mas não indelicada, quis saber:

- O senhor vai aonde?

- Para o meu gabinete. A resposta desarmou-o. Há pouco na firma, não reconhecia todos os que lá trabalhavam e até poderiam ter um posto de chefia. Mas ainda arriscou:

O senhor é... Sérgio Louro. Ah!... É o senhor administrador! Queira desculpar! Ouviu as palavras e reconheceu-as. Mas o porteiro estava confuso: - Pensei que tivesse saído. Vi o seu rolIs partir há pouco...

- Pois... - sorriu um sorriso amável. - Voltei atrás. E proferiu um segundo bom dia que não tolerava mais perguntas. Dirigiu-se a um dos elevadores. O recepcionista explicou:

- Olhe que se avariaram! Começaram a arranjá-los há um quarto de hora.

Sorriu ainda para o funcionário e usou a porta de serviço: deparou-se-lhe a escada.

Pôs o pé no primeiro degrau.

O seu gabinete ficava no último andar e deu por si a

cantarolar o Hino da Alegria na nona de Beethoven: não o

trauteava há muito porque andara muito ocupado. A certa altura olhou para baixo. Escalara imenso e os primeiros andares, vistos donde já ia, envolviam-se em névoa. O espectáculo pareceu-lhe familiar e, mais uma vez, tudo corria da forma a que se habituara.

Subindo e cantarolando, não se cansava ou talvez fosse já a inércia a impeli-lo.

De um ou outro patamar vinha o barulho de máquinas em funcionamento.

Ao cabo de algum tempo voltou a parar: a bruma, em baixo, tomara-se mais densa mas, em contrapartida, bem lá no topo, onde o esperava o seu gabinete, a luz era feroz e ouvia-se um miado familiar.

Na recepção, o jovem penalizava-se por não ter reconhecido o administrador. O erro não lhe seria fatal? Só fora contratado a prazo... Afoito, decidiu telefonar-lhe e apresentar desculpas.

Apesar do tempo decorrido, Felizbela, do gabinete da administração, informou que o colega administrador ainda não chegara.

 

                                                                               Carlos Gouveia e Melo 

 

 

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