Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A ESCOLA DOS ROBINSONS
ONDE O LEITOR ENCONTRARÁ, SE QUISER, OCASIÃO DE COMPRAR UMA ILHA NO OCEANO PACÍFICO
«Uma ilha à venda, a pronto pagamento, despesas à parte a quem der mais e fizer o último lanço» - dizia e tornava a dizer, quase sem retomar a respiração, Dean Felporg, corretor do leilão onde eram apresentadas as condições desta venda singular. "Uma ilha à venda, Uma ilha à venda", repetia com voz ainda mais vibrante o pregoeiro Gingraass andando de um lado para o outro pelo meio dos concorrentes, numerosos e excitados.
Era, de fato, muita a gente que se agrupava na vasta sala dos leilões, do número 10 da Rua do Sacramento. Havia ali, não só certo número de americanos dos Estados da Califórnia, do Oregon e do Utah, como também alguns franceses, que na cidade constituem talvez a sexta parte da população, mexicanos embrulhados na saraa (1), chineses com túnicas de mangas largas, sapatos bicudos e chapéu cônico, canacas da Oceania e até vários pés-negros, barrigas-grandes ou cabeças-chatas, vindos das margens do rio Trindade.
Digamos, em primeiro lugar, que a cena se passava na capital da Califórnia, em São Francisco; mas não no tempo em que os novos placers (2) tratam os exploradores de ouro de todas as partes do mundo, o que foi de 1849 a 1852. São Francisco já não era o que de princípio tinha sido,
(1) Espécie de manta, de cores variadas, que usam os habitantes do México.
(2) Nome dado aos jazigos auríferos.
isto é, um asilo de caravanas, um simples porto de desembarque, uma hospedaria que servia de passagem aos que tinham negócios a tratar à pressa nos terrenos auríferos da
vertente ocidental da serra Nevada. Havia já vinte anos que a antiga e hoje desconhecida Yerba-Buena dera lugar a outra cidade, única no seu gênero, povoada com cem mil habitantes (3), construída no reverso de duas colinas, pois lhe faltara espaço no litoral, mas com tendência a estender-se até às últimas alturas; uma cidade, enfim, que destronou Lima, Santiago, Valparaíso e todas as suas outras rivais do ocidente, e da qual os americanos fizeram a rainha do Pacífico, a maior glória da costa ocidental!
Naquele dia, 15 de Maio, fazia ainda bastante frio. Neste país, diretamente sujeito à ação das correntes polares, as primeiras semanas de Maio são como as últimas de Março nos países do centro da Europa. Não obstante, dentro da casa dos leilões nem sequer se dava por isso. A campainha, vibrando sem cessar, fizera afluir em ondas muita gente; e, lá dentro, uma temperatura estival chegava a fazer destilar nas frontes algumas bagas de suor, que bem depressa se teriam solidificado sob a ação do frio exterior.
Não se julgue, porém, que todos os que ali estavam tinham vindo à sala dos leilões no firme propósito de comprar alguma coisa. Podia até dizer-se que só havia ali curiosos. Quem, por muito rico que fosse, levaria a loucura a ponto de comprar uma ilha do Pacífico, posta em praça por um governo que tivera assim tão singular idéia? Era opinião geral que o preço não seria coberto, e que amador algum se deixaria levar pelo calor dos lanços. A culpa não era, contudo, do pregoeiro, que procurava excitar os concorrentes com as exclamações, gestos e comentários, engrinaldados pelas mais sedutoras metáforas.
O público ria muito, mas disso não passava:
"Uma ilha! Uma ilha para vender!" - repetiu Gingrass.
- Mas não para comprar - respondeu um irlandês, - A Rua Sacramento em cuja bolsa não haveria com que pagar uma só pedra dessa Ilha.
(3) Em 1840, São Francisco tinha pouco mais de mil habitantes.
- Uma ilha que, depois de comprada, não fica a seis dólares por acre (4) -gritou o corretor Dean Felporg.
- E que não rende um oitavo por cento! - replicou um rendeiro gordo, muito entendido em negócios de agricultura.
- Uma ilha que não tem menos de sessenta e quatro milhas de circunferência e duzentos e vinte e cinco mil acres (5) de superfície!
- Está ela, pelo menos, bem assente no fundo do mar? - perguntou um mexicano, antigo freqüentador de bares, ao qual nesse momento se podia bem contestar a solidez das pernas.
- Uma ilha com florestas virgens - repetiu o pregoeiro -, com prados, colinas, cursos de água...
- Garantidos? - perguntou um francês, que parecia pouco disposto a deixar-se engodar.
- Garantidos - respondeu o corretor Felporg, já velho no ofício para se atrapalhar com os gracejos do público.
- Por dois anos?
- Até ao fim do mundo.
- E por mais tempo ainda!
- Uma ilha sem nenhum encargo! - tornou a dizer o pregoeiro. - Uma ilha sem um único animal malfazejo, nem carnívoro, nem réptil.
- Nem um pássaro? - interrogou um farsista.
- Nem um inseto? - exclamou outro.
- Uma ilha a quem der mais! - replicou, sem hesitar, Dean Felporg. - Vamos, meus senhores. Puxem pelas bolsas com ânimo! Quem quer uma ilha em bom estado, com muito pouco uso, uma ilha do Pacífico, este oceano dos oceanos? Custa apenas uma
bagatela! Um milhão e cem mil dólares! Há quem mais lance?... Quem quer a ilha?... O senhor?... Ou é essoutro senhor, lá no fim da sala, que está a mexer a cabeça como um mandarim de porcelana?... Uma ilha!... Aqui está uma ilha!... Quem quer uma ilha?
(4) O acre corresponde a cinqüenta acres no sistema métrico e na Inglaterra vale quarenta ares.
(5) Noventa mil hectares.
- Ponha isso de lado e passe adiante - disse uma voz, como se se tratasse de um quadro ou de uma jarra.
E todos largaram a rir, sem que o lanço fosse coberto com meio dólar sequer.
Entretanto, se o objeto à venda não podia passar de mão em mão, o plano da ilha estava exposto ao público. Os amadores podiam fazer perfeito juízo deste bocado do Globo posto em adjudicação. Não havia que recear surpresa nem decepção alguma. Situação, orientação, disposição dos terrenos, relevo do solo, rede hidrográfica, climatológica, pontos de comunicação, tudo era fácil de verificar a priori. Não se podia comprar gato por lebre; e era fácil de ver que não deveria haver engano acerca da natureza da mercadoria vendida. Além disso, os numerosos jornais dos Estados Unidos e da Califórnia, as folhas diárias, bissemanais, hebdomadárias, quinzenais ou mensais, revistas, crônicas ou boletins, não tinham cessado, alguns meses antes, de chamar a atenção pública para esta ilha, cuja licitação fora autorizada por voto do Congresso.
Era esta ilha a ilha Spencer, que está situada a oés-sudoeste da baía de São Francisco, distante quatrocentas e sessenta milhas, pouco mais ou menos, do litoral da Califórnia, a 32 graus e 15 de latitude norte e 142 graus e 15 de longitude do meridiano de Greenwich.
Além disso, era impossível imaginar posição mais isolada e longe de todo o movimento marítimo ou comercial, se bem que a ilha Spencer estivesse a distância relativamente pequena das águas americanas, onde quase se podia julgar situada. Naquele sítio, porém, as correntes regulares, obliquando ao norte ou ao sul, têm disposto uma espécie de lago, de águas tranqüilas, algumas vezes ali designado pelo nome de «Rodeio de Fleurieu».
É no centro deste enorme redemoinho, sem direção apreciável, que fica a ilha Spencer. Por isso poucos são os navios que por ela passam.
As grandes derrotas do Pacífico, linhas de junção do novo continente ao antigo, quer levem ao Japão quer à China, são todas em zona mais meridional. Os navios de vela encontrariam calmarias sem fim na superfície deste lago, e os steamers, que seguem o caminho mais curto, não teriam vantagem alguma em o atravessar. Nem uns nem outros, portanto, passam pela ilha Spencer, que é ali como o vértice isolado de uma das montanhas submarinas do Pacífico. Na verdade, para um homem que quisesse fugir ao ruído do mundo, procurando a tranqüilidade na solidão, nada havia de melhor do que esta Islândia perdida a algumas centenas de léguas do litoral! Para um Robinson voluntário teria sido o ideal no gênero! Era preciso apenas pôr-lhe preço:
E por que razão queriam os Estados Unidos desfazer-se desta ilha? Era por simples fantasia? Não. Uma grande nação não procede por capricho, como qualquer Indivíduo. A verdade era a seguinte: na situação ocupada pela ilha Spencer, fora ela, de há muito, julgada absolutamente inútil. Colonizá-la não daria resultado prático. Sob o ponto de vista militar, não tinha interesse algum, pois apenas dominava uma porção completamente deserta do Pacífico. Pelo lado comercial, o inconveniente era o mesmo, visto que os seus produtos não dariam para pagar o valor do transporte, nem à ida nem à volta. Uma colônia penitenciária, ali estabelecida, ficaria muito próxima do litoral. Finalmente, ocupá-la, com um fim qualquer, seria negócio altamente dispendioso. Por tudo isso ela estava abandonada desde tempos imemoriais; e o Congresso, composto de homens eminentemente práticos, resolvera pô-la em praça, com uma condição, não obstante: a de que o adjudicatário fosse um cidadão da livre América.
Não queria, contudo, o Congresso ceder a ilha por uma bagatela, e por isso fixara o preço da venda em um milhão e cem mil dólares.
Esta soma, para uma sociedade financeira, que emitisse ações para a compra e exploração desta propriedade, teria sido insignificante se o negócio oferecesse algumas vantagens, mas vimos já que estas eram nulas; e os homens competentes não faziam mais caso daquela porção de território, destacado dos Estados Unidos, do que de uma ilhota perdida nos gelos do pólo. Para um particular a quantia era bastante considerável, Era preciso, portanto, ser rico para ter esta fantasia, que, por modo algum, podia render um por cento.
Era preciso, até, ser imensamente rico, pois o negócio tinha de ser feito a pronto pagamento, cash, segundo a expressão americana; e, nos próprios Estados Unidos, são ainda raros os cidadãos que têm assim um milhão e cem mil dólares para deitar fora sem esperança de reembolso.
Contudo, o Congresso estava bem decidido a não vender a ilha por menor preço. Um milhão e cem mil dólares! Nem um centésimo (6) de menos, ou a ilha Spencer continuaria a ser propriedade da União.
Era, pois, de supor que não houvesse um doido capaz de oferecer a tal quantia.
Além disso, fora expressamente determinado que o proprietário da ilha, caso aparecesse algum, não poderia ser rei da ilha Spencer, mas sim presidente da república. Por forma alguma teria o direito de ter súbditos, mas apenas concidadãos que o nomeariam por tempo indeterminado; salvo quererem-no eleger indefinidamente. Em todo o caso ser-lhe-ia proibido criar estirpe de monarcas. A União jamais teria consentido na fundação de um reino, por mais pequeno que fosse, nas águas americanas.
Esta condição era talvez de natureza a afastar algum milionário ambicioso, ou nababo decaído, que aspirasse a rivalizar com os reis selvagens das Sanduíches, Marquesas, Pomotu ou quaisquer outros arquipélagos do oceano Pacífico.
Por esta razão, ou por qualquer outra, ninguém aparecia a licitar. A hora adiantava-se, o pregoeiro esfalfava-se a provocar os lanços, o corretor gastava a sua eloqüência sem que lhe fizessem um só daqueles sinais de cabeça que estes respeitáveis agentes são tão hábeis em descobrir, e o preço estabelecido não entrava sequer em discussão.
Deve dizer-se, contudo, que, se o martelo não cessava de levantar-se acima da mesa, o público não se cansava de esperar. Continuavam a escutar-se os ditos engraçados e os comentários a circular em redor.
(6) O dólar valia, pouco mais ou menos, 800 réis da nossa moeda de então; portanto, o centésimo andava por 8 réis.
Uns ofereciam pela ilha dois dólares, compreendendo as despesas. Outros queriam que lhes pagassem, ainda por cima, para dela ficarem proprietários. E os gritos do pregoeiro continuavam:
"Uma ilha à venda! Uma ilha à venda!"
Mas ninguém aparecia a comprá-la.
- Garantem-me que ela tenha flats (7)? - perguntou o merceeiro Stumpy, de Merchant-Street.
- Não - respondeu o corretor -, mas não é impossível que os haja; e o Estado abandona ao comprador todos os seus direitos sobre esses terrenos auríferos.
- Há pelo menos um vulcão? - perguntou Oakhurst, taberneiro da Rua Montgomery.
- Não há vulcão nenhum - replicou Dean Felporg -, de contrário, seria mais cara.
Estrepitosa gargalhada seguiu esta resposta.
"Uma ilha à venda! Uma ilha à venda!" - gritava Gingrass, que fatigava debalde os pulmões.
- Um dólar, meio dólar, apenas um centésimo a mais do preço, e faço já a adjudicação - disse pela última vez o corretor. - Uma vez!... Duas vezes!...
Reinou completo silêncio.
- Se ninguém oferece coisa alguma, retiro a adjudicação!... Uma vez!... Duas vezes!...
- Um milhão e duzentos mil dólares!
Estas poucas palavras ressoaram, no meio da sala, como quatro tiros de revólver.
Todos se voltaram, silenciosos, para o audacioso que as pronunciara.
(7) Nome que tomam os terrenos baixos quando contêm depósitos de areias auríferas.
DE COMO WILLIAM, W. KOLDERUP, DE SÃO FRANCISCO, ENTROU EM LUTA COM J. R. TASKINAR, DE STOCKTON
Era uma vez um homem extraordinariamente rico, contando por milhões de dólares o que outros contam apenas por milhares. Esse homem era William W. Kolderup.
Dizia-se que ele era mais rico do que o duque de Westminster, cujo rendimento se eleva a oitocentas mil libras, e podia gastar cinqüenta mil francos por dia, ou trinta e seis francos por minuto, mais rico que o senador Jones, da Nevada, o qual tem trinta e cinco milhões de renda, mais rico ainda do que o próprio M. Mackay, que possui dois milhões e setecentas e cinqüenta mil libras anuais, ou seja sete mil e oitocentos francos por hora, ou seja ainda dois francos e alguns cêntimos por segundo.
E não se fala já desses pequenos milionários, os Rotschild, os Van Der Bilt, os Northumberland, os Stewart, nem dos diretores do poderoso Banco da Califórnia e outros capitalistas bem providos do novo e do antigo mundo, aos quais William W. Kolderup estaria nos casos de dar uma esmola. Sem se incomodar, ele teria dado um milhão, como outro qualquer pode dar cem soldos.
Este honrado especulador assentara os sólidos fundamentos da sua fortuna incalculável na exploração dos primeiros lacers da Califórnia. Tinha sido o principal sócio do capitão suíço Sutter, em cujos terrenos, em 1848, se descobriu o primeiro filão. Desde essa época, auxiliado pela fortuna e pela inteligência, começou a envolver-se em todas as grandes explorações dos dois mundos.
Em seguida lançou-se arrojadamente a várias especulações do comércio e da indústria. Os seus capitais inesgotáveis abriram centos de oficinas, cujos produtos fabris foram exportados, nos seus navios, para toda a parte. A riqueza aumentou-lhe, não em progressão aritmética, mas em progressão geométrica. Dizia-se dele o que geralmente se diz destes bilionários, isto é, que nem sabem o valor da própria fortuna. Apesar dessa opinião, ele conhecia-a, dólar por dólar, mas jamais disso se gabava.
Na ocasião em que o apresentamos aos leitores, com todas as atenções que merece homem de tal quilate, William W. Kolderup tinha dois mil escritórios, distribuídos por todos os pontos do Globo, oitenta mil empregados nas suas casas comerciais da América, Europa e Austrália, trezentos mil correspondentes, uma esquadra de quinhentos navios, correndo, sem cessar, os mares por sua conta, e não gastava menos de um milhão por ano só em selos e cartas flanqueadas. Era, enfim, a honra e a glória da opulenta Frisco, nome familiar que os americanos dão à capital da Califórnia.
Qualquer lanço feito por William W. Kolderup não podia, pois, deixar de ser dos mais sérios. Por isso, logo que os que estavam presentes conheceram quem tinha coberto, com cem mil dólares, o preço da ilha Spencer, houve um movimento espontâneo, os ditos cessaram imediatamente, os comentários deram lugar a interjeições de admiração, e vários hurras se ouviram na sala dos leilões.
Em seguida sucedeu a este bruaá um grande silêncio. Todos os olhos se abriram extraordinariamente para ver, e os ouvidos escutaram com avidez. Quanto a nós, se ali estivéssemos em tal momento, teríamos quase deixado de respirar, só para não perdermos uma palavra da cena interessante que se ia seguir, no caso de qualquer outro amador se atrever a entrar em luta com William W. Kolderup.
Era isto provável? Era mesmo possível?
Não era! E bastava olhar para William W. Kolderup, que logo se ficaria convencido de que jamais havia de ceder em questão na qual a sua honra financeira andasse interessada.
Era ele um homem alto, forte, de cabeça grande, ombros largos, bem dispostos os membros, e de construção de ferro, solidamente arquitetada. O olhar suave, mas firme, não se baixava com facilidade. Os cabelos grisalhos estufavam-se-lhe à roda do crânio, abundantes como nas idades primitivas. As linhas retas do nariz formavam um triângulo retângulo geometricamente desenhado. Não usava bigode. A barba, talhada à americana, muito espessa no queixo, subia pelos dois lados aos cantos da boca, estendendo-se até às fontes em suíças cor de sal e pimenta. Tinha os dentes brancos e dispostos com simetria na boca fina e estreita. Era, finalmente, uma verdadeira cabeça de comodoro, das que se erguem durante as tempestades e sabem afrontar o perigo. Nenhum furacão a teria curvado, tão solidamente fixa estava no pescoço que lhe servia de fulcro. Neste embate monetário cada movimento que ele fizesse de cima para baixo significava cem mil dólares a mais.
Não havia que lutar com ele.
- Um milhão e duzentos mil dólares, um milhão e duzentos mil - disse o corretor, com a pronúncia própria de um agente que vê por fim o negócio em bom caminho.
- Há quem lance um milhão e duzentos mil dólares! – repetiu o pregoeiro Gingrass.
- Podem lançar mais, sem receio algum! - murmurou o taberneiro Sakhurst. - Não é William Kolderup que cede.
- Ele bem sabe que ninguém se atreve a lutar! - respondeu o merceeiro de Merchant-Street.
Sinais de silêncio repetidos fizeram calar os dois respeitáveis negociantes. Todos queriam ouvir. Os corações palpitavam. Atrever-se-ia alguma voz a levantar-se em resposta à de William W. Kolderup? Este, admirável de pose, nem se mexia. Estava ali tão sossegado como se o negócio não fosse com ele. Contudo, quem estivesse próximo podia ver-lhe os olhos como duas pistolas carregadas de dólares e prontas a fazer fogo.
- Não há quem mais lance? - perguntou Dean Felporg.
Todos ficaram silenciosos.
- Uma vez!... duas vezes!...
- Uma vez!... duas vezes!... - repetiu Gingrass, já de há muito habituado a este diálogo com o corretor.
- Vai-se arrematar!
- Vai-se arrematar!
- Um milhão e duzentos mil dólares a ilha Spencer no estado em que se acha!
- Um milhão e duzentos mil dólares! -Ouviram todos?... Perceberam?
- Não há quem fique com pena?
- Um milhão e duzentos mil dólares a ilha Spencer!
Arfavam convulsivamente os peitos agitados. Haveria acaso no último segundo quem oferecesse mais?
O corretor Felporg, com a mão direita estendida por cima da mesa, agitava o martelo de marfim. Uma pancada, uma só pancada, e fazia-se a adjudicação!
O público não estaria decerto mais impressionado perante uma aplicação sumária da lei de Lynch.
O martelo abaixou-se lentamente, chegou quase á mesa, ergueu-se, estremeceu um instante, como uma espada quando o combatente cai a fundo, e em seguida desceu com bastante rapidez.
Mas, antes de se lhe ouvir a pancada, gritou uma voz estas palavras:
- Um milhão e trezentos mil dólares!
Ouviu-se um clamor geral de espanto, e outro não menos geral de satisfação. Havia quem desse mais pela ilha, haveria portanto luta.
Quem era, porém, o temerário que se atrevia a vir lutar a dólares com William W. Kolderup, de São Francisco?
Era J. R. Taskinar, de Stockton.
Este colosso, que necessitava de cadeiras especiais que pudessem agüentar o seu enorme peso, residia em Stockton, em São Joaquim. É esta uma das cidades mais importantes da Califórnia, um dos centros dos depósitos das minas do Sul, e rival de Sacramento, onde se encontram os produtos das minas do Norte. É dela também que os navios exportam a maior quantidade de trigo da Califórnia.
A exploração das minas e o comércio dos cereais não tinham sido as origens exclusivas da enorme fortuna de J. R. Taskinar, mas também o petróleo, o qual correra, como o rio Patolo (1), através do seu cofre. Era, além disso, grande jogador, jogador feliz, e o poker, a roleta da América do Norte, era pródigo sempre, para com ele, nos seus números em pleno.
Contudo, apesar de muito rico, tinha péssimas qualidades, e ninguém juntava de bom grado ao seu nome o título de honorable, tanto em uso no país. Atribuía-se-lhe talvez muita coisa que ele não tinha feito: era notória, porém, a sem-cerimônia com que usava do derringer, que é o revólver da América.
Como quer que fosse, J. R. Taskinar tinha ódio particular a William W. Kolderup. Tinha ciúmes da fortuna, da situação e da honradez deste último. Desprezava-o como um homem gordo despreza outro que por ele é considerado magro. Não era esta a vez primeira que o negociante de Stockton procurava tirar ao de São Francisco um negócio qualquer, bom ou mau, por simples espírito de rivalidade. William W. Kolderup conhecia-o a fundo e, sempre que o encontrava, tratava-o com ar desdenhoso, de propósito para o exasperar.
A última partida que J. R. Taskinar não podia perdoar ao seu adversário fora a derrota que este o fizera conhecer nas passadas eleições. Apesar dos seus esforços, difamações e ameaças - sem contar os milhares de dólares prodigalizados sem resultado, pelos seus agentes eleitorais -, era William W. Kolderup quem estava, em lugar dele, no Conselho Legislativo do Sacramento.
Ora J. R. Taskinar tinha sabido, não se pode dizer ao certo por que modo, que William Kolderup tencionava arrematar a ilha Spencer.
Esta ilha, sem dúvida, ser-lhe-ia tão inútil como ao seu rival, mas isso pouco importava. Havia de novo ensejo de entrar em luta, e J. R. Taskinar não podia perder tão boa ocasião.
(1) Patolo era um rio da Lídia, em cujas águas se banhara o rei Midas, depois disso, as suas ondas traziam grande quantidade de ouro.
Era este o motivo por que J. R. Taskinar tinha vindo à sala da auction misturar-se com os curiosos que não podiam adivinhar os seus desígnios, era por isso que ele tinha preparado as suas baterias e, antes de entrar em ação, resolvera esperar que o seu adversário cobrisse o preço, por muito grande que este fosse.
William W. Kolderup tinha, pois, oferecido:
- Um milhão e duzentos mil dólares!...
E J. R. Taskinar, no momento em que William V. Kolderup se julgava, sem contestação, proprietário da ilha, chamara a atenção com estas palavras, ditas com voz de estentor:
- Um milhão e trezentos mil dólares!...
Como se viu, todos se tinham voltado para ele.
- Olhem o gordo Taskinar!
Foi este o nome que passou de boca em boca. Era bem conhecido o gordo Taskinar. A sua corpulência dera assunto a mais de um artigo nos jornais da União. Até um matemático demonstrara, por meio de cálculos transcendentes, que a sua massa era bastante considerável para influenciar a do nosso satélite e perturbar, em proporção apreciável, os elementos da órbita lunar.
Não era, porém, o físico de J. R. Taskinar o que, neste momento, interessava os espectadores. O que deveras devia ser sensacional é que ele ia entrar em rivalidade pública e direta com William W. Kolderup. Estava prestes a travar-se um combate heróico, uma luta a dólares, e não se podia prever por qual das duas bolsas haveria mais apostas. Eram ambos enormemente ricos, estes dois inimigos mortais! A luta deveria pois tomar o caráter de uma questão de amor-próprio!
Passado o primeiro movimento de agitação, rapidamente comprimido, houve de novo silêncio em toda a sala. Poder-se-ia ouvir até nesse momento uma aranha a fazer a teia.
A voz do corretor Dean Felporg quebrou este pesado silêncio.
- Um milhão e trezentos mil dólares a ilha Spencer! - gritou, levantando-se, a fim de seguir melhor a série dos lanços.
William W. Kolderup tinha-se voltado para o lado de J. R. Taskinar. Os assistentes afastaram-se, para darem lugar aos dois adversários. O homem de Stockton e o de São Francisco podiam agora encarar-se, face a face, à vontade, o que eles, diga-se em abono da verdade, não deixavam de fazer. O olhar de um jamais se abaixava diante do olhar do outro.
- Um milhão e quatrocentos mil dólares! - disse William. Kolderup.
- Um milhão e quinhentos mil! - respondeu J. R. Taskinar.
- Um milhão e seiscentos mil!
- Um milhão e setecentos mil!
Não faz isto lembrar a história daqueles dois industriais de Glasgow, a verem quem elevava mais a chaminé das respectivas oficinas, com risco de uma catástrofe? Havia apenas a diferença de que, neste caso, as chaminés eram montes de ouro.
Não obstante, em seguida aos lanços de J. R. Taskinar, William W. Kolderup demorava-se algum tempo a reflexionar, antes de os cobrir novamente. Pelo contrário, Taskinar tinha a rapidez de uma bomba, e não se demorava um segundo sequer a pensar.
- Um milhão e setecentos mil dólares! - repetiu o corretor. - Vamos, meus senhores, a ilha é quase dada.
Parecia até que, pelo hábito da profissão, o digno Sr. Felporg ia acrescentar:
- A moldura vale mais do que isso!
- Um milhão e setecentos mil dólares! - gritou o pregoeiro Gingrass.
- Um milhão e oitocentos mil! - bradou William W. Kolderup.
- Um milhão e novecentos mil! - disse J. R. Taskinar.
- Dois milhões! - replicou imediatamente William W. Kolderup, e desta vez sem hesitar.
Ao pronunciar estas palavras, fez-se um tanto pálido, mas a sua atitude era a de um homem que não quer abandonar a luta.
- Dois milhões e quinhentos mil dólares! - disse ele por fim, com a esperança de evitar qualquer outro lanço por meio deste salto prodigioso.
- Dois milhões e setecentos mil! - retorquiu William Kolderup, com voz muito sossegada.
- Dois milhões e novecentos mil!
- Três milhões!
Era bem certo! William W. Kolderup, de São Francisco, tinha oferecido três milhões de dólares!
Os aplausos, prestes a ressoar, contiveram-se à voz do corretor, que repetia o lanço, e parecia querer baixar o martelo levantado com um movimento involuntário dos músculos. Era quase certo que Dean Felporg, apesar de muito habituado às vicissitudes dos leilões, não podia por mais tempo disfarçar a comoção.
Todos olhavam para J. R. Taskinar. O volumoso negociante sentia o peso desses olhares, mas muito mais o dos três milhões de dólares, que parecia esmagá-lo. Queria falar, sem dúvida para lançar mais, mas não podia. Queria mover a cabeça e também o não conseguia. Por fim resolveu-se a falar, com voz muito fraca, mas que bastava a comprometer a sua palavra.
- Três milhões e quinhentos mil! - murmurou.
- Quatro milhões! - respondeu William W. Kolderup.
Foi este o último golpe. J. R. Taskinar ficou prostrado. O martelo retiniu secamente no mármore da mesa.
A ilha Spencer foi adjudicada, por quatro milhões de dólares, a William W. Kolderup, de São Francisco.
- Hei-de vingar-me! - murmurou J. R. Taskinar. E olhando, com expressão de raiva, para o seu vencedor, voltou para o Hotel Ocidental.
Entretanto, os hurras e os hipes soavam aos ouvidos de William W. Kolderup, que foi acompanhado até Montgomery-Street. E foi tal o entusiasmo daqueles americanos em delírio que até se esqueceram de cantar o «Yankee-Doodle».
ONDE A CONVERSA DE PHINA HOLLANEY E DE GODFREY MORGAN É ACOMPANHADA AO PIANO
William W. Kolderup dirigira-se ao seu palácio da Rua Montgomery. É esta rua a Regent-Street, a Broadway, a bulevar dos Italianos de São Francisco. Ao longo desta grande artéria, que atravessa a cidade paralelamente ao cais, não há senão movimento, animação e vida: trâmueis que se cruzam, carruagens puxadas por cavalos ou por mulas, pessoas que se acotovelam, apressadas, nos passeios de pedra, diante das lojas cheias de compradores ricos, e amadores, mais numerosos ainda, às portas dos bares, onde se vendem bebidas de gênero especial.
É inútil descrever o palácio do nababo de Frisco. Apesar dos seus milhões, tinha luxo demasiado. Mais conforto do que bom gosto. Menos senso artístico do que senso prático. É bem certo que não é possível ter-se tudo a um tempo.
Contente-se o leitor em saber que havia nele uma esplêndida sala de visitas e, nesta sala, um piano, cujos acordes se ouviam através da atmosfera cálida na ocasião em que entrava o opulento Kolderup.
- Bem! - disse ele -, estão ambos na sala! Vou dizer uma palavra ao meu caixeiro e depois conversaremos!
Dizendo isto, dirigiu-se para o gabinete, a fim de terminar o negócio da ilha Spencer, e não pensar mais nela. Para isso bastava simplesmente vender alguns papéis de crédito e pagar a aquisição da ilha. Não era necessário mais do que escrever quatro palavras ao seu corretor de câmbio. Em seguida, William W. Kolderup devia tratar de outro negócio que lhe agradava muito mais.
Ambos eles estavam na sala, ela, sentada ao piano, ele, meio recostado num canapé, escutando vagamente as notas que se escapavam, como pérolas, dos arpejos vibrados pelos dedos daquela encantadora pessoa.
- Ouves-me? - perguntou ela.
- Sem dúvida alguma.
- Pois sim, mas ouves o que toco?
- Se ouço o que tocas, Phina? Nunca tocaste tão bem essas variações do «Auld Robin Gray».
- Não é o «Auld Robin Gray» que eu estou a tocar, Godfrey, é o «Happy Moment».
- Ah! não sabia! - respondeu Godfrey, com modo de indiferença difícil de apreciar.
Phina levantou as mãos e, por um momento, ficou com os dedos afastados, suspensos por cima do teclado, como se quisesse firmar um acorde. Depois, dando meia volta ao banco do piano, pôs-se a olhar para Godfrey, que estava muito tranqüilo e cujos olhares procuraram evitar os dela.
Phina Hollaney era afilhada de William W. Kolderup. Órfã, por ele educada, tinha o direito de se considerar como sua filha e o dever de o amar como pai, dever ao qual jamais ela faltaria.
Phina era muito nova e de beleza especial, mas decerto encantadora. Tinha dezesseis anos e era loura, com a viveza de uma morena, o que se estava vendo no cristal dos seus olhos azuis-escuros. Não deixaremos de a comparar a um lírio, pois esta imagem é empregada invariavelmente, na melhor sociedade, para designar as belezas americanas. Era pois um lírio, se assim se quiser, mas um lírio enxertado numa roseira brava, resistente e sólida. Tinha decerto muito bom coração esta menina, mas tinha também muito espírito prático e iniciativa própria, e não se deixaria atrair, mais do que devia, pelas ilusões ou pelos sonhos próprios do seu sexo e idade.
São agradáveis os sonhos quando se dorme, mas não quando se está acordado. Ora, neste momento nem ela dormia, nem pensava de forma alguma em dormir.
- Godfrey? - disse ela.
- Phina? - volveu aquele.
- Onde estás tu, agora?
- Junto de ti, nesta sala.
- Não, Godfrey, nem estás junto de mim, nem estás nesta sala. Andas longe, muito longe, para além-mar, não é verdade?
E, maquinalmente, a mão de Phina, procurando o teclado, perdeu-se numa série de sétimas diminutas, cuja tristeza era muito eloqüente, mas que não foi talvez compreendida pelo sobrinho de William W. Kolderup, que tal era o parentesco pelo qual Godfrey estava unido ao dono da casa.
Filho de uma irmã deste comprador de ilhas, sem pais havia muitos anos, Godfrey Morgan tinha sido, como Phina, educado em casa de seu tio, a quem a febre dos negócios não deixara um só instante pensar em casamento.
Godfrey tinha então vinte e dois anos. Terminada a sua educação, tinha ficado completamente ocioso. Doutorado na universidade, nem por isso se fizera mais sábio. A vida para ele só tinha sendas fáceis de trilhar. Podia tomar, à vontade, pela direita ou pela esquerda, que iria sempre ter a qualquer parte onde a fortuna decerto lhe não havia de faltar.
Além disso, Godfrey sabia apresentar-se, era distinto e elegante, e não tinha nunca enfiado a gravata por um anel ou coberto os dedos, os punhos ou o peitilho com esses produtos de ourivesaria que tão apreciados eram pelos seus compatriotas.
Não é portanto para admirar saber-se que Godfrey Morgan estava para casar com Phina Hollaney. Nem outra coisa podia ser, visto que todas as conveniências se juntavam. William W. Kolderup, além disso, era favorável a este casamento. Deixava, assim, a sua fortuna às duas pessoas para ele mais queridas neste mundo, além de que Phina agradava a Godfrey, e ele não desagradava a Phina. Esta união devia auxiliar a contabilidade da casa comercial. Cada um deles tinha aqui a sua conta aberta, desde a época do seu nascimento, e só restava, pois, saldar essas contas, abrindo-as para os dois esposos com escrituração nova. Esperava o negociante que isto fosse negócio corrente, e que a situação ficaria definitivamente regularizada, salvo erro ou omissão.
Ora o caso era que havia omissão, e talvez mesmo erro, como se vai ver.
Havia erro, pois Godfrey ainda não se sentia amadurecido de mais para o casamento, havia omissão porque, a tal respeito, se tinham esquecido de o consultar.
Com efeito, terminados os seus estudos, Godfrey sentiu um cansaço prematuro do mundo e da vida cheia de facilidades, em que nada havia de lhe faltar, nem podia ter desejo algum a formar ou coisa alguma a fazer. Teve então idéia de correr mundo, e percebeu que aprendera tudo menos a viajar. Do novo e do antigo continente não conhecia senão um único ponto, São Francisco, onde nascera e de onde jamais saíra, a não ser em sonhos. Ora de que vale um rapaz que não deu, pelo menos, duas ou três vezes o giro do Globo, principalmente se for americano? De que pode ele servir no decurso da vida? Deverá contar consigo mesmo nas várias peripécias por que pode fazê-lo passar uma grande viagem? Como poderá responder então por si, se não tiver experimentado, um pouco, a vida aventurosa? Finalmente, alguns milhares de léguas, percorridas na superfície do Globo, para ver, observar e instruir-se, não são porventura o complemento indispensável de uma boa educação? Com estes pensamentos, havia pouco mais ou menos um ano que Godfrey se tinha entregue à leitura de livros de viagens, dos que abundam nesta época, impressionando-o em extremo com essa leitura. Descobrira o Celeste Império com Marco Pólo, a América nas viagens de Colombo, o Pacífico nas de Cook, e o Pólo Sul com Dumont d'Urville. Vieram-lhe à idéia os pontos onde esses viajantes ilustres tinham estado sem ele. Por uma exploração de alguns anos não acharia demasiados vários ataques malaios, transes marítimos e naufrágios em alguma costa deserta, onde passasse a vida de um Selkirk (1) ou de um Robinson Crusoé!
(1) Alexandre Selkirk era um marinheiro escocês que foi abandonado pelo capitão Pradling na ilha deserta de João Fernandes, onde viveu quatro anos e meio. No fim desse tempo foi encontrado e regressou a Inglaterra. Daniel Defoe tomou-o para assunto do seu romance Robinson Crusoé.
Um Robinson! Ser um dia um Robinson! Qual é a imaginação exaltada que não tem sonhado isto, lendo, como Godfrey fizera amiúde, as aventuras dos heróis imaginários de Daniel Defoe ou de Wiss? Estava neste caso o sobrinho de William W. Kolderup na ocasião em que seu tio pensava em prendê-lo, como se diz, nos laços do casamento. Quanto a viajar com Phina, depois de já ser Mistress Morgan, nem pensar nisso! Ou só ou então nunca! Além disso, satisfeita que fosse a sua fantasia não ficaria Godfrey em melhores condições para firmar o contrato nupcial? Pode fazer-se, porventura, a felicidade de uma mulher quando não se tenha ido ao Japão, à China e mesmo à Europa? Com certeza que não!
Eram estas as razões por que, nesse momento, Godfrey estava distraído junto de Miss Phina, indiferente se ela lhe falava, e não a ouvindo se lhe tocava trechos que dantes o encantavam.
Phina, de caráter sério e pensador, já tudo percebera. Dizer que ficara levemente despeitada e pesarosa seria caluniá-la gratuitamente. Habituada, porém, a encarar as coisas pelo seu lado positivo, tinha já feito o seguinte raciocínio:
"Se é necessário absolutamente que ele parta, mais vale que seja antes do que depois do casamento!" Era essa a razão por que tinha dito a Godfrey estas palavras, lacônicas mas significativas:
- Não, Godfrey, neste momento não estás junto de mim, andas por além-mar!
Godfrey tinha-se levantado. Depois de haver dado alguns passos pela sala, sem olhar para Phina, apoiou o dedo inconscientemente em uma das teclas do piano.
Era um ré bemol grave, da quarta linha suplementar inferior, nota bem lastimosa, que estava em harmonia com o seu pensamento. Phina tinha-o já compreendido, e, sem mais discussão, ia facilitar o desenvolvimento da fantasia do seu noivo quando, de repente, se abriu a porta.
William W. Kolderup entrou, um tanto à pressa como de costume, na qualidade de negociante que, terminada uma operação comercial, vinha começar outra.
- Muito bem - começou ele -, não se trata agora senão de fixar definitivamente a data.
- A data? - respondeu Godfrey, estremecendo. - Mas qual data, meu tIo?
- A data do teu casamento com Phina! - esclareceu William W. Kolderup. - Creio bem que não julgas ser do meu!
- Talvez que isso fosse de mais urgência! - declarou Phina.
- Hem? Que dizes tu? - exclamou Kolderup. - Que significam essas palavras? Não está tudo já combinado?
- Meu padrinho - respondeu a menina -, não se trata hoje de fixar a data de um casamento, mas sim a de uma partida.
- De uma partida?...
- Sim, da partida de Godfrey. - explicou Miss Phina -, de Godfrey, que, antes de casar, sente o desejo de andar um pouco pelo mundo!
- Pois queres partir? - exclamou William W. Kolderup, indo direito a seu sobrinho, e agarrando-Lhe num braço, como se tivesse medo de que ele lhe fugisse.
- Quero sim, meu tio - respondeu Godfrey, sem hesitar.
- E por quanto tempo?
- Por ano e meio ou dois anos, ou mais, se...
- Se... -Se o meu tio der licença e Phina me esperar até então!
- Esperar-te! Tu és um pretendente que só aspira a ir-se embora! - exclamou William W. Kolderup.
- Deixe Godfrey fazer a sua vontade. Já pensei muito no caso, meu padrinho. Sou nova, mas Godfrey é ainda mais novo do que eu! Hão-de envelhecê-lo as viagens,e entendo que não se lhe devem contrariar os desejos! Se quer viajar, que viaje! Mais tarde sentirá a necessidade de descanso, e então na volta me encontrará.
- Pois quê! - objetou William W. Kolderup -, deixas partir esse estouvado?
- Deixo, pelos dois anos que ele me pede!
- E estás resolvida a esperá-lo?
- Se não fosse capaz de o fazer, meu padrinho, é porque já o não amava!
Dizendo isto, Miss Phina tinha voltado para junto do piano, e, ou por vontade ou por distração, estava a tocar em surdina um dos trechos muito em voga: «A Partida do Desposado», trecho, como se vê, muito apropriado às circunstâncias. Phina, contudo, talvez sem dar por isso, tocava-o em lá menor estando ele em lá maior. Com essa mudança de tom, todo o sentimento da melodia se transformava, e o colorido plangente reproduzia perfeitamente as íntimas impressões da tocadora.
Godfrey, entretanto, muito atrapalhado, não dizia palavra. O tio agarrara-lhe na cabeça, e, voltando-o para a luz, encarava-o com fixidez. Desta maneira podia interrogá-lo, sem ter necessidade de falar, enquanto Godfrey respondia sem ter necessidade de responder.
Os lamentos da melodia continuavam a deixar-se ouvir com tristeza. Por fim, William W. Kolderup, tendo dado alguns passos à roda da sala, voltou-se para Godfrey, que estava silencioso como o réu diante do juiz.
- É séria essa tenção? - perguntou.
- Muito séria - asseverou Miss Phina, sem se interromper, enquanto Godfrey se limitava a fazer um sinal afirmativo.
- All right! - replicou William Kolderup, fixando no sobrinho um olhar estranho.
Entretanto dizia por entre dentes:
- Ah! Tu queres ter aventuras antes de te casares com Phina! Muito bem! Descansa que hás-de tê-las!
E, dando ainda dois ou três passos, parou de braços cruzados diante de Godfrey.
- Aonde queres tu ir? - perguntou.
- A toda a parte.
- E quando tencionas partir?
- Quando o meu tio quiser.
- Pois então que seja o mais depressa possível.
Ouvindo estas palavras, Phina interrompeu-se bruscamente. Com o dedo mínimo da mão esquerda deu um sol sustenido, o quarto dedo, porém, não feriu a tônica do tom. Tinha ficado na sensível do acorde, como o Raul, nos «Huguenotes», ao fugir no final do seu duo com Valentina.
Miss Phina sentia decerto o coração apertar-se-lhe, já tinha feito propósito de não dizer uma só palavra.
Então, William Kolderup, sem olhar para Godfrey, aproximou-se do piano:
- Phina - disse ele muito sério -, nunca se deve ficar parado na sensível!
E, deixando cair verticalmente o dedo grande sobre uma das teclas, fez ressoar um lá natural.
ONDE TARTELETE, OU ANTES TARTELETT, É APRESENTADO, COMO DEVE SER, AO LEITOR
Se Tartelett tivesse nascido em França, não deixariam os seus compatriotas de lhe chamar, por brincadeira, Tartelett. Como este nome, contudo, lhe fica muito bem, não hesitaremos em por ele o designar. Além disso, se Tartelett não era francês, bem digno seria de o ser.
Chateaubriand, no seu «Itinerário de Paris a Jerusalém», conta de um homenzinho, «empoado e frisado como outrora, de sobrecasaca verde-maçã, colete de tecido de seda de bofes e punhos de musselina», que arranhava numa rabeca de algibeira e fazia dançar a Madelon Friquet» aos Iroqueses.
Não são decerto Iroqueses os habitantes da Califórnia, mas nem por isso Tartelett deixava de ser professor de dança e de boas maneiras na capital. Se não lhe pagavam as lições, como ao seu antecessor, com peles de castor e pernas de urso, davam-lhe, em compensação, muito bons dólares. Se, ao falar dos seus discípulos, não usava da expressão de «senhores selvagens» é que esses discípulos eram bastante civilizados, e a seu ver não tinha contribuído pouco para tal civilização.
Tartelett era solteiro e dizia ter quarenta e cinco anos na época desta sua apresentação aos leitores. Havia uns dez anos, porém, que tinha estado para se casar com uma donzela já de certa idade.
Por essa ocasião, e a esse respeito, alguém lhe pediu duas ou três linhas nas quais expusesse a idade, dotes pessoais e situação. A resposta foi a seguinte, e ela nos dispensará de apresentar o seu retrato, sob o duplo ponto de vista do moral e do físico:
“Tartelett nasceu em 17 de Julho de 1835, às três horas e um quarto da manhã”.
Tem de altura cinco pés, duas polegadas e três linhas. De largura, tomada acima dos quadris, tem exatamente dois pés e três polegadas.
Peso, cento e cinqüenta e uma libras e duas onças, seis libras a mais do que na última pesagem, feita no ano passado.
Tem a cabeça de forma oblonga.
Os cabelos, que lhe rareiam por cima da testa, são castanhos grisalhos, a testa é alta, o rosto oval e a tez corada.
Tem os olhos pardos-acastanhados, com vista magnífica, e cílios e sobrancelhas castanhos-claros, ficando as pálpebras um tanto escondidas debaixo da arcada superciliar.
O nariz, de tamanho regular, tem uma pequena fenda no fim da venta esquerda.
As faces e as fontes são chatas e imberbes.
As orelhas, grandes e muito pouco salientes.
A boca é regular e totalmente isenta de maus dentes.
O bigode e a pêra, espessos, contornam-lhe os lábios delgados, assombreando-lhe o queixo arredondado uma barba multicor.
O pescoço rechonchudo tem um arzinho de beleza junto à nuca.
Finalmente, quando está no banho, pode ver-se que tem a pele branca e coberta de raros cabelos.
Passa vída sossegada e regular. Apesar de não ter saúde em excesso, tem conseguido, graças à sua muita sobriedade, conservá-la intacta desde que nasceu. Tem os brônquios muito irritáveis, razão por que não contraiu o mau hábito de fumar. Também não usa de bebidas espirituosas, nem café, nem licores, nem vinho puro.
Numa palavra, suprimiu rigorosamente do seu regime higiênico tudo quanto lhe pudesse excitar o sistema nervoso. As únicas bebidas que toma, sem perigo, são a cerveja não fermentada, e o vinho com muita água. Deve a esta prudência não ter ainda consultado médico nenhum desde que existe.
Tem gesto decisivo, andar rápido e caráter franco e sincero. Além disso, leva a sua delicadeza ao último ponto, e o receio de fazer infeliz uma mulher é que o tem, por enquanto, impedido de contrair os laços do matrimônio.
Foi esta a descrição feita pelo próprio Tartelett, mas, por muito animadora que ela fosse para uma senhora solteira de certa idade, a união projetada caducou. Ficou, portanto, celibatário o professor, e continuou a dar as suas lições de dança e de boas maneiras.
Foi por esta ocasião que ele entrou, para esse fim, em casa de William W. Kolderup, até que, passado algum tempo, e como os seus discípulos o fossem abandonando a pouco e pouco, ficou fazendo parte do pessoal da casa.
No fim de contas era boa pessoa, apesar de tantos ridículos, e soube ganhar todas as afeições. Estimava Godfrey e estimava Phina, que lhe retribuíam o seu afeto. Por isso não tinha senão uma única ambição neste mundo: ensinar-lhes todas as delicadezas da sua arte, e fazer de ambos duas pessoas perfeitas no que diz respeito à boa presença.
É difícil de acreditar, mas foi ele próprio, o professor Tartelett, o escolhido por William W. Kolderup para companheiro de viagem de seu sobrinho. É que tinha Kolderup razões para supor que fora Tartelett quem sugerira a Godfrey essa mania de viagens, no intuito de o aperfeiçoar, fazendo-o correr mundo. William W. Kolderup decidiu então que também Tartelett o havia de correr. No dia seguinte, 16 de Abril, mandou pedir ao professor que lhe fosse falar ao gabinete.
Um pedido do nababo era uma ordem para Tartelett. Saiu pois de casa o professor, prevenido, para o que desse e viesse, com a rabecazinha de algibeira, subiu a escadaria do palácio com os pés em posição acadêmica, própria de um professor de dança, bateu à porta do gabinete, entrou meio curvado e de braços arqueados, e esperou na terceira posição, cruzando os pés um por diante do outro, a metade do comprimento, com os tornozelos unidos e as pontas voltadas para fora.
Nesta posição de equilíbrio instável, outro que não fosse o professor Tartelett não se sustentaria por muito tempo, ele, porém, ficou absolutamente firme.
- Sr. Tartelett - começou William W. Kolderup -, mandei-o chamar para lhe dar uma novidade que vai decerto causar-lhe admiração.
- Às suas ordens - respondeu o professor.
- O casamento de meu sobrinho não se realiza senão daqui a um ano ou ano e meio, e Godfrey, porque o pediu, vai partir a ver os diversos pontos do novo e do antigo mundo.
- Sr. Kolderup - afirmou Tartelett -, o meu discípulo Godfrey há-de sempre honrar o país que o viu nascer, e...
- E também o professor que o ensinou a apresentar-se na sociedade - respondeu o negociante, com ironia que o ingênuo Tartelett não percebeu.
Este, com efeito, julgando a propósito fazer um passo de dança, moveu alternadamente os pés, escorregando com eles de lado, e, logo em seguida, dobrando um pouco o joelho com agilidade, cumprimentou William W. Kolderup.
- Pensei comigo mesmo - prosseguiu este - que o senhor há-de ter decerto muita pena de separar-se do seu discípulo?
- Hei-de ter grande pena - confirmou Tartelett -, no entanto, se for preciso...
- Não há-de ser preciso - informou William W. Kolderup, carregando as espessas sobrancelhas.
- Ah!... - fez Tartelett.
E, um tanto perturbado, deu um passo à retaguarda, de forma a passar da terceira à quarta posição, e deixou entre os pés o comprimento de um deles, sem muita consciência do que estava fazendo.
- É verdade! - continuou o negociante com voz rápida e que não admitia réplica. - Pensei que era deveras cruel separar um professor e um discípulo que vivem em tão boa harmonia.
- Com certeza!... Estas viagens! - respondeu Tartelett, que se dava ares de não perceber coisa alguma.
- Sim, senhor, com certeza!... - concordou William W. Kolderup. - Esta viagem não só há-de pôr em relevo as aptidões do meu sobrinho, como também o talento do professor a quem ele deve a sua boa presença!
Nunca tinha vindo à idéia desta criança em ponto grande que teria de abandonar São Francisco, a Califórnia e a América para ir atravessar os mares. Não podiam gerar-se tais pensamentos no cérebro de um homem mais forte em coreografia do que em viagens, e que, num raio de dez milhas, ainda não conhecia todos os arrabaldes da capital. E era em tal ocasião que lhe ofereciam ou, antes, que o mandavam sair da pátria, e pôr em prática ele próprio os conselhos que dera ao seu discípulo, sujeito a todos os encargos e Inconvenientes que desses conselhos derivassem!
O caso era para endoidecer qualquer cabeça tão pouco sólida como a sua, e, pela primeira vez na sua vida, o infeliz Tartelett sentiu estremecerem-lhe involuntariamente os músculos das pernas, experimentados por trinta e cinco anos de exercícios!
- Talvez... - arriscou ele, procurando de novo esboçar o sorriso estereotipado dos dançarinos, que lhe fugira por instantes -, talvez que eu não tenha disposições para...
- Elas aparecerão! - garantiu William W. Kolderup com modo que não admitia discussão alguma.
Era impossível recusar, nem Tartelett pensava nisso. O que era ele naquela casa? Uma coisa, um volume, um fardo, que podia ser expedido, à vontade, para todas as partes do mundo! A expedição projetada, não obstante, fazia-lhe certa impressão.
- Quando se deve realizar a partida? - perguntou ele, tentando pôr-se de novo em posição acadêmica.
- Dentro de um mês.
- Que mar tempestuoso decidiu o Sr. Kolderup que eu e meu discípulo fôssemos atravessar?
- Em primeiro lugar o Pacífico.
- E em que ponto do globo terrestre hei-de eu pôr os pés pela vez primeira?
- No cabo da Nova Zelândia - esclareceu William W. Kolderup.
- Tenho notado que os indígenas ali não sabem arquear os braços com elegância. O senhor os ensinará.
Foi esta a maneira como o professor Tartelett foi escolhido para companheiro de viagem de Godfrey Morgan.
Um sinal, feito pelo negociante, deu-lhe a entender que a audiência tinha acabado. Retirou-se pois o professor, muito comovido, o que foi causa de que a sua despedida e as graças especiais, que habitualmente usava mostrar neste ato difícil da sua existência, deixassem alguma coisa a desejar.
Com efeito, pela primeira vez na sua vida, o professor Tartelett, esquecendo, no meio da sua preocupação, os mais elementares preceitos da arte, saiu do gabinete com os pés metidos para dentro.
DURANTE O QUAL SE FAZEM OS PREPARATIVOS DE PARTIDA, E POR FIM SE PARTE DEFINITIVAMENTE
Não era possível voltar atrás. Antes dessa comprida viagem a duo, através da vida, que se chama casamento, Godfrey ia viajar à roda do Globo, o que é algumas vezes mais perigoso. Fazia ele, porém, tenção de voltar com muita experiência do mundo, e, sendo ainda criança na ocasião da partida, regressar homem feito. Depois de ter visto, observado e comparado, ficaria satisfeita a sua curiosidade. Então só teria a desejar a vida tranqüila e sedentária, a existência feliz do lar doméstico, livre de qualquer tentação. Tinha ele ou não motivos para pensar assim? Ia receber, por acaso, alguma boa e proveitosa lição que lhe revertesse em utilidade própria? O futuro o dirá.
Em resumo, Godfrey estava deveras encantado. Phina, ansiosa, mas sem o dar a perceber, tinha-se resignado a esta aprendizagem.
O professor Tartelett, de ordinário tão firme nas pernas, peritas em todos os equilíbrios da dança, perdera o seu feitio aprumado, que em vão procurava reaver. Até andava com passo oscilante pelo seu quarto, como se já estivesse dentro de um camarote, agitado pelos balanços do navio.
Pelo que respeita a William W. Kolderup, depois de tomada a decisão, tinha ficado pouco comunicativo, principalmente para com Godfrey. Nos lábios contraídos e nos olhos meio fechados percebia-se que se tinha apoderado uma idéia fixa desta cabeça, na qual se elaboravam habitualmente as mais especulativas concepções comerciais.
- Ah!, tu queres viajar - dizia ele às vezes consigo mesmo -, queres viajar em vez de te casar, de ficar em tua casa, de ser estupidamente feliz! Pois bem! Descansa que hás-de viajar!
Dentro em pouco principiaram a fazer-se os preparativos. Em primeiro lugar discutiu-se e foi resolvida afinal a questão do itinerário.
Devia Godfrey ir pelo sul, pelo leste ou pelo oeste? Era a questão primeira a decidir. Querendo ir pelo sul, a companhia Panama to California and British Columbia e em seguida a Packet Southampton Rio Janeiro é que haviam de transportá-lo à Europa.
Se fosse pelo leste, o caminho de ferro do Pacífico podia levá-lo, em poucos dias, a Nova Iorque, e daqui às linhas férreas Cunard, Inman, White-Star, Hamburg-American ou a Transatlântica francesa transportá-lo-iam ao litoral do antigo mundo.
Se quisesse, finalmente, partir pelo oeste, a Steam Transoceanic Golden Age dava-lhe passagem para Melburne, e, em seguida, iria ao istmo de Suez nos vapores da Peninsular Oriental Stern C.a.
Não escasseavam pois os meios de transporte, e, graças à sua concordância matemática, a viagem atual à roda do mundo já não é mais do que um simples passeio de turista.
Não era, porém, desta forma que devia viajar o sobrinho herdeiro do nababo de Frisco.
Não. William W. Kolderup tinha às ordens, para as suas operações comerciais, uma esquadra inteira de navios de vela e de vapor, em conseqüência do que decidira que um desses navios seria posto à disposição de Gey Morgan, como se este fosse um príncipe de sangue, andando em viagem de recreio à custa dos súbditos de seu pai.
Por sua ordem, o «Dream», steamer de seiscentas toneladas e da força de duzentos cavalos, começou desde logo a aparelhar. Comandava-o o capitão Turcotte, marinheiro velho que já atravessara todos os oceanos e todas as latitudes. Perito e arrojado, este diletante dos tufões e dos ciclones tinha cinqüenta anos de idade e quarenta de vida de mar. Pôr-se de capa a fazer frente a um furacão era simples brincadeira para este homem, que se enjoava em terra, isto é, quando estava em descanso. Por isso a existência, passada na coberta dos navios, tinha-lhe feito contrair o hábito de andar sempre oscilando para a direita, para a esquerda, para trás e para diante. Era a monomania do balanço.
O imediato, um maquinista, quatro fogueiros e doze marinheiros, ao todo dezoito homens, completavam a tripulação do «Dream», que tinha excelentes qualidades náuticas apesar de se contentar em andar sossegadamente as suas oito milhas por hora. Não teria talvez velocidade bastante para vencer a vaga, em ocasiões de muito mar, mas esta também o não galgava, o que é uma vantagem compensadora da inferioridade do andamento, sobretudo quando não há pressa alguma. Além disso, o «Dream» armava em escuna e, com vento favorável e as suas quinhentas jardas quadradas de pano, podia dar grande auxílio à máquina.
Não se vá julgar, porém, que a viagem do «Dream» era simplesmente de recreio. William W. Kolderup era homem prático bastante para não deixar de aproveitar uma travessia de quinze ou dezesseis mil léguas por todos os mares do Globo. O navio devia partir sem carga, mas era fácil conservá-lo em boas condições de flutuação, enchendo de água os seus uater ballast (1), que o faziam mergulhar até ao nível da coberta em caso de necessidade. O «Dream» tencionava, pois, ir metendo carga pelo caminho, e passar pelos vários escritórios do rico negociante, andando assim de um mercado para outro. Desta forma o capitão Turcotte ganhava para as despesas da viagem, e a fantasia de Godfrey Morgan não custava nem um dólar à caixa de seu tio! É assim que se procede nas boas casas comerciais.
(1) Lastro de água, nome dado a uns compartimentos que se podem encher de água, a fim de lastrarem o navio, conservando-o na linha de flutuação.
Tudo isto foi decidido em conferências extensas e muito secretas entre William W. Kolderup e o capitão Turcotte. Parece contudo que a solução destes negócios, à primeira vista muito simples, era deveras intrincada, pois o capitão teve de ir muitas vezes ao gabinete do negociante. Quando dali saía, os mais perspicazes entre os freqüentadores do palácio poderiam ter notado o seu aspecto singular, ver que trazia os cabelos desgrenhados, como se os tivesse arrepelado com mão febril, e que, além disso, todo ele se balanceava mais do que de costume. Às vezes também se ouviam altercações violentas em voz alta, prova de que as conferências eram um pouco tempestuosas. É que o capitão Turcotte era de rude franqueza no falar e discutia com William W. Kolderup, o qual o estimava bastante para lhe permitir que o contradissesse.
Por fim, ao que parece, tudo se arranjou. Quem tinha cedido: William W. Kolderup ou Turcotte? Nada se podia dizer, porque nem mesmo se sabia o assunto das discussões. Podia, no entanto, apostar-se que fora o capitão.
Como quer que fosse, passados oito dias em combinações, o negociante e o marinheiro, ao que parece, chegaram a acordo, Turcotte, porém, não cessava de dizer por entre dentes:
- Que me levem quinhentos mil diabos para as profundezas do inferno se eu esperava ser um dia encarregado de semelhante coisa...
O «Dream», entretanto, aparelhava rapidamente, e o capitão de coisa alguma se esquecia para que ele pudesse sair na primeira quinzena de Junho. Tinha-o feito entrar no dique, e a quilha, pintada com mínio, destacava a cor vermelha sobre a cor negra das ondas mortas.
No porto de São Francisco entra sempre grande porção de navios de todos os gêneros e nacionalidades. Por isso há já muitos anos que os cais da cidade, construídos no litoral, não seriam bastantes para o embarque e desembarque das mercadorias, se os engenheiros não tivessem tratado de construir alguns cais improvisados. Enterraram-se no fundo várias estacas de pinheiro bravo e cobriram-se com um sobrado de certo número de milhas quadradas de pranchas. Entravam estes cais pela baía dentro, mas como esta é muito vasta, havia desta forma, sem inconveniente, vários pontos de descarga cheios de fardos e de guindastes, junto dos quais estavam atracados, em perfeita ordem e sem fazerem avaria uns aos outros, paquetes dos dois oceanos, vapores dos rios da Califórnia, clippers (2) de todos os países e navios costeiros da América.
Era a um desses cais improvisados, no extremo de Warf-Mission-Street, que estava solidamente amarrado o «Dream» depois de saído do dique.
Coisa alguma esqueceu para que o steamer, destinado á viagem de Godfrey, ficasse nas melhores condições de navegação. As provisões e o seu acondicionamento tudo foi minuciosamente estudado. As cordas e o velame estavam em perfeito estado, fora experimentada a caldeira e era excelente a hélice da máquina. Para as urgências do serviço e facilidade de comunicação com a terra havia a bordo uma lancha a vapor, de andamento rápido, insubmergível, e que muitos e bons serviços devia prestar no decurso da navegação.
Finalmente, e em resumo, no dia 9 de Junho estava tudo pronto. Só restava partir. Os marinheiros que o capitão Turcotte tinha no «Dream», para as manobras ou para a máquina, formavam uma equipagem escolhida e difícil teria sido encontrar outra melhor. Levava ele completo fornecimento de animais vivos, cutias, carneiros, cabras, galinhas e galos, e, além disso, as necessidades de alimentação estavam garantidas com certo número de caixas de conservas das melhores fábricas.
Quanto ao itinerário que o «Dream» devia seguir, foi ele, sem dúvida, o assunto das longas conferências havidas entre William W. Kolderup e o capitão. O que para logo se soube foi que o primeiro ponto onde o «Dream» devia tocar era Auckland, capital da Nova Zelândia, salvo o caso em que, precisando de meter carvão, se tivesse vento contrário por muito tempo, fosse obrigado a dele se fornecer, quer num dos arquipélagos do Pacífico, quer num dos portos da China.
A Godfrey, porém, eram indiferentes estas particularidades, desde o momento em que ia viajar, e não interessavam elas em coisa alguma a Tartelett, cujo espírito perturbado exagerava, dia a dia, a eventualidade de uma travessia pelo mar.
(2) Navios de vela de três mastros.
Já não restava senão uma formalidade a cumprir: a das fotografias.
Não é conveniente que um noivo parta para uma viagem à roda do mundo sem que leve consigo a imagem da mulher que ama, deixando-lhe em troca a sua.
Godfrey, portanto, em costume de turista, encarregou desse trabalho os fotógrafos Stephenson & C.a, de Montgomery-Street, e Phina, em toilette de cidade, deixou o sol fixar as suas feições encantadoras, mas um pouco entristecidas, sobre a chapa dos hábeis operadores.
Era isto ao mesmo tempo o modo de viajarem juntos.
O retrato de Phina tinha o seu lugar marcado no camarote de Godfrey, o de Godfrey no quarto de Phina.
Julgou-se também conveniente que Tartelett, embora não fosse noivo nem pensasse em sê-lo, reproduzisse a sua imagem no papel sensibilizado. Por muito, porém, que fosse o talento dos fotógrafos, não conseguiram eles obter uma prova satisfatória. O clichê oscilante assemelhava-se a confuso nevoeiro, no meio do qual era impossível reconhecer o célebre professor de dança e de boa presença.
É que Tartelett tinha alguma coisa que o fazia estar sempre a mexer-se, apesar da recomendação que é de uso fazer-se em todos os estúdios destinados a operações deste gênero.
Recorreu-se então a meios mais rápidos, às provas instantâneas. Foi completamente impossível. Tartelett balanceava-se já com antecipação, exatamente como o capitão do «Dream». Teve de se renunciar à conservação das feições deste homem notável para a posteridade se - mas longe de nós esta idéia -, crendo que partia para o antigo mundo, partisse Tartelett para essoutro donde se não volta.
No dia 9 de Junho, pois, estava tudo pronto. Ao «Dream» só restava aparelhar. Os seus papéis todos, conhecimento, carta de afretamento e apólice de seguro, estavam em regra, e, dois dias antes, tinha o agente da casa Kolderup enviado as últimas assinaturas.
Nesse dia houve um grande almoço de despedida no palácio de Montgomery-Street. Nele se fizeram vários brindes à feliz viagem de Godfrey e à sua volta breve.
Godfrey estava um tanto comovido e não tentava ocultá-lo.
Tartelett tratou de afogar as mágoas em vários copos de champanhe, sob cuja influência ainda estava na ocasião da partida. Até se esqueceu da sua rabecazinha de algibeira, a qual lhe levaram a bordo no momento em que o «Dream» largava a amarração. Trocaram-se no steamer as últimas despedidas, deram-se no convés os derradeiros apertos de mão, e, em seguida, a máquina deu algumas voltas de hélice, o que fez afastar o «Dream».
- Adeus! Phina.
- Adeus! Godfrey.
- Que o céu te guie! - disse-lhe o tio.
- E sobretudo que nos torne a trazer! - murmurou o professor Tartelett.
- E nunca te esqueças, Godfrey - recomendou William W. Kolderup -, da legenda gravada na popa do «Dream»:
CONFIDE, RECTE AGENS
- Nunca, meu tio! Adeus, Phina!
- Adeus! Godfrey.
O steamer afastou-se, e os lenços acenaram-lhe enquanto ele esteve à vista do cais, e por mais tempo ainda.
Dentro em pouco, atravessada a baía de São Francisco, a mais vasta do mundo, saía o «Dream» a abertura estreita de Golden-Gate, e cortava com a proa as águas do Pacífico, como se esta «Porta de ouro» se tivesse fechado sobre ele.
ONDE O LEITOR TRAVA CONHECIMENTO COM UMA NOVA PERSONAGEM
Começara, pois, a viagem, o que não era a parte mais difícil.
"Uma viagem tem sempre começo! O importante, porém, é saber onde e como ela acaba." Dizia isto amiúde e com incontestável lógica o professor Tartelett.
O camarote ocupado por Godfrey estava situado no fim do tombadilho do «Dream», por cima da sala de refeições. O moço viajante ficava instalado aí tão confortavelmente quanto possível, e tinha posto a fotografia de Phina no melhor lugar, sobre o mais iluminado dos vidros. Um catre para dormir, um lavatório para as abluções, alguns armários para fato e roupa, um maple para se recostar, que mais era preciso a este
passageiro de vinte e dois anos? Em tais condições teria andado vinte e duas vezes à roda do mundo! Não estava, porventura, na idade em que predomina a filosofia prática derivada da boa saúde e do bom humor? A gente moça deve viajar se puder, e, se não puder... viajar da mesma forma!
Tartelett é que já não andava de bom humor. Parecia-lhe muito acanhado o camarote que ocupava, situado junto do do seu discípulo, o catre muito duro, e as seis jardas quadradas que à ré ocupava o camarote eram muito curto espaço para nele ensaiar as inflexões e os passos de dança. Não absorvia, pois, a viagem a individualidade de professor de dança e de boa presença? Não, decerto, porque jamais se perde o que está na massa do sangue, e é por isso que Tartelett, até depois de morto, deveria ficar com os pés em linha horizontal, e de calcanhares unidos, na primeira posição.
As refeições deviam ser tomadas em comum, o que se fez, ficando Tartelett defronte de Godfrey, e o capitão e o imediato em cada uma das extremidades da «mesa de balanço» (1)
Este nome assustador, «mesa de balanço», fazia já prever que o lugar de Tartelett estaria vago muito amiúde! Na ocasião da partida, um belíssimo dia de Junho, corria excelente brisa do nordeste. Pôde, portanto, o capitão Turcotte largar as velas, a fim de aumentar a velocidade, e o «Dream», todo a barlavento e bem firme, não jogava muito de bombordo a estibordo. Além disso, como a vaga vinha pela parte posterior, o balanço de popa à proa não era excessivo. Um tal andamento não era pois de natureza a afilar o nariz dos passageiros, a fazer-lhes os olhos cavos, o rosto lívido e a tirar-lhes completamente a cor. Era, pelo contrário, muito suportável. Ia o «Dream» direito a sudoeste, com mar de aspecto lindo, apenas levemente encrespado, e dentro em pouco desaparecia no horizonte o litoral americano.
Durante dois dias não houve incidente algum de navegação que merecesse ser relatado. O «Dream» ia em bom caminho. Era, pois, favorável o comeÇo da viagem, se bem que o capitão Turcotte dava a conhecer, de quando em quando, certa inquietação que em vão tentava dissimular. Todos os dias, à passagem do Sol pelo meridiano, marcava precisamente a situação do navio.
Podia, contudo, notar-se que, logo em seguida, levava consigo o imediato para o camarote, onde ambos se demoravam em conferência secreta, como se tivessem de discutir alguma grave eventualidade. Este fato, sem dúvida, passava despercebido a Godfrey, que nada conhecia de assuntos de navegação, mas o mestre e alguns marinheiros ficaram um tanto admirados.
Tanta mais razão houve para isso que, passada a primeira semana, duas ou três vezes durante a noite e sem que fosse necessária a manobra, foi a direção do «Dream» sensivelmente modificada e retomada pelo dia. O que se explicaria facilmente em um navio de vela, sujeito às variações das correntes atmosféricas, não tinha razão de ser em um steamer, que pode seguir a linha dos círculos máximos e ferrar as velas quando o vento lhe não for favorável.
(1) Em francês table de roulis. Disposição de mesa para atenuar os efeitos do balanço, a qual consta de um mecanismo que mantém a mesa em posição horizontal tanto quanto possível. (N. do T.)
Na manhã de 12 de Junho houve a bordo inesperado incidente.
O capitão Turcotte, o imediato e Godfrey iam sentar-se à mesa para almoçar quando se ouviu em cima bulha desusada.
Quase em seguida o mestre, empurrando a porta, apareceu no limiar.
- Capitão! - chamou ele.
- O que há de novo? - perguntou Turcotte com vivacidade, como verdadeiro homem do mar sempre alerta.
- Há... um chinês! - disse o mestre.
- Um chinês?
- Sim, senhor! Um verdadeiro chinês, que se descobriu agora, por acaso, no fundo do porão.
- No fundo do porão! - exclamou o capitão Turcotte. – Com todos os diabos, mandem-no para o fundo do mar.
- All right - respondeu o mestre.
E o excelente homem, cheio do desprezo que deve sentir qualquer habitante da Califórnia por um filho do Celeste Império, e achando a ordem o mais natural possível, não teria tido o menor escrúpulo em a cumprir.
Levantara-se, no entanto, o capitão Turcotte e, seguido por Godfrey e pelo imediato, saiu da sala das refeições e dirigiu-se para o castelo de proa do «Dream».
Aí, com efeito, um chinês, muito bem seguro, forcejava por se livrar das mãos de dois ou três marinheiros que não se poupavam a zurzi-lo.
Era homem de trinta e cinco a quarenta anos, de fisionomia inteligente, bem constituído, e com a cara rapada e um tanto macilenta pela permanência de umas sessenta horas no fundo do porão mal arejado. Só o acaso fizera com que o descobrissem naquele retiro obscuro.
Fez Turcotte sinal aos marinheiros que largassem o infeliz intruso.
- Quem és tu? - perguntou-lhe.
- Um filho do Sol.
- E como te chamas?
- Seng-Vou - respondeu o chinês, nome que em língua celestial quer dizer «o que não vive».
- E que fazes aqui, a bordo?
- Navego! - respondeu serenamente Seng-Vou - mas não lhes faço com isso o menor mal possível.
- Já se vê! Não fazes mal nenhum!... E escondeste-te no porão na ocasião da partida?
- É como diz, capitão.
- Com o fim de teres passagem gratuita da América para a China, de um para o outro lado do Pacífico?
- Se mo consentirem.
- E se eu não quiser, meu velhaco de pele amarela, se te pedisse o favor de ires para a China a nado?
- Havia de tentá-lo - volveu, sorrindo, o chinês -, mas é provável que fosse a pique no caminho.
- Pois muito bem, John maldito (2) - exclamou o capitão Turcotte -, vou ensinar-te como se economiza o preço da passagem!
E Turcotte, mais encolerizado do que o pedia o caso, ia por certo pôr em prática essa ameaça quando Godfrey interveio.
- Capitão - disse ele -, um chinês de mais a bordo do «Dream» é um chinês de menos na Califórnia, onde há tantos!
- Onde os há de mais - respondeu o capitão Turcotte.
- De mais, com efeito - concordou Godfrey. - Pois bem, como este pobre diabo entendeu que era conveniente livrar São Francisco da sua presença, merece por isso alguma compaixão!... Basta que o larguemos em terra ao passar por Xangai, e não se tornará a falar no caso!
Pensava Godfrey como verdadeiro filho da Califórnia ao dizer que havia muitos chineses na sua terra. A imigração dos filhos do Celeste Império é perigo verdadeiro para as províncias do Far-West, pois são eles em número de trezentos milhões na China, enquanto os americanos nos Estados Unidos não excedem a trinta milhões.
(2) Sobrenome dado pelos americanos aos chineses.
Por isso os legisladores destes Estados, da Califórnia, Baixa Califórnia, Oregon, Nevada, Utah, e até o próprio Congresso, preocupam-se com a invasão deste novo gênero de epidemia, à qual os ianques deram o nome significativo de «peste amarela».
Por esta época havia mais de cinqüenta mil chineses só nos Estados da Califórnia. Porque são muito peritos na lavagem do ouro, sofredores de privações, e vivendo com um punhado de arroz, um pouco de chá e umas fumaças de ópio, tendem eles a fazer baixar o custo da mão-de-obra, em detrimento dos operários indígenas.
Têm, portanto, sido sujeitos a leis especiais, contrárias à constituição americana, as leis que regulam a sua imigração não lhes conferem o direito de se naturalizarem, pelo receio de que eles venham a ter a maioria no Congresso. Além disso, geralmente maltratados, e postos ao nível dos índios e dos negros, a fim de justificarem o nome de empestados que lhes dão, agremiam-se eles freqüentemente numa espécie de ghetto (3), onde seguem cuidadosamente os costumes do Celeste Império.
Na capital da Califórnia é nesse bairro, na Rua do Sacramento, enfeitado com as insígnias e lanternas, que eles têm sido concentrados pelos habitantes da outra raça.
Encontram-se aí aos milhares, caminhando a passos curtos, com as suas blusas de mangas largas, barrete cônico e sapatos de ponta bicuda. São na sua maior parte merceeiros, jardineiros ou lavadeiros, quando não servem de marinheiros ou não fazem parte dessas companhias dramáticas que representam peças chinesas no teatro francês de São Francisco.
E diga-se a propósito que Seng-Vou pertencia a uma dessas companhias heterogêneas, onde era o primeiro ator cômico, se porventura esta expressão técnica do teatro europeu se pode aplicar a qualquer artista chinês. São estes, com efeito, de tal forma sérios, ainda quando gracejam, que o romancista da Califórnia Hart-Bret disse que jamais vira rir-se um ator chinês e confessa até que nunca pôde saber se qualquer das peças que ouviu era tragédia ou simples farsa. Terminada a época teatral, cheio de êxito mais talvez do que de metal sonante, tinha querido regressar ao seu país, sem ir no estado de cadáver (4). Era por isso que, a todo o risco, se metera sorrateiramente no porão do «Dream».
(3) Bairro reservado aos judeus nalgumas cidades.
Levando consigo provisões, poderia ter a esperança de fazer incógnito essa travessia de algumas semanas, e desembarcar em seguida num ponto da costa chinesa, sem ser visto, da mesma forma que tinha embarcado.
Era provável. E, por fim, o caso não merecia forca.
Teve pois Godfrey razão em intervir a favor do intruso, e o capitão Turcotte, que se fazia pior do que realmente era, renunciou, sem muito custo, a mandar Seng-Vou, por cima da amurada, barafustar nas águas do Pacífico.
Seng-Vou, portanto, não voltou para o seu esconderijo no fundo do porão, mas nem por isso se tornou mais incômodo a bordo. Fleumático, metódico e pouco comunicativo, evitava cuidadosamente a companhia dos marinheiros, que tinham sempre um soco de reserva com que o mimosear, e sustentava-se das provisões que trouxera. Era além disso magro em demasia para que o seu peso, contado como sobrecarga, aumentasse sensivelmente as despesas de navegação do «Dream». Se Seng-Vou tinha passagem gratuita, esta passagem pelo menos não custava nem um cêntimo à caixa de William W. Kolderup.
Contudo, a presença dele a bordo sugeriu uma reflexão ao capitão Turcotte, reflexão que apenas poderia ser compreendida pelo imediato:
- Há-de incomodar-nos bastante este maldito chinês, quando chegar a ocasião!... Seja como for, tanto pior para ele!
- Para que embarcou ele às escondidas no «Dream» - resmungou o imediato.
- Sobretudo para ir a Xangai! - replicou o capitão Turcotte.
- Vão para o diabo John e os seus filhos!
(4) É uso dos chineses quererem ser enterrados no seu país, há até navios empregados unicamente no transporte de cadáveres.
NO QUAL SE VAI VER QUE WILLIAM W. KOLDERUP NÃO FEZ MAL EM SEGURAR O SEU NAVIO
Nos dias seguintes, 13, 14 e 15 de Junho, desceu o barômetro lentamente, de modo contínuo e sem interrupções, o que denotava tendência de modo contínuo e sem interrupções, a conservar-se abaixo da indicação de variável, entre chuva e vento ou tempestade. A brisa refrescou sensivelmente, passando para sudoeste. O «Dream» tinha vento pela proa e vagalhão forte por diante. Ferraram-se pois todas as velas e navegou-se apenas com a hélice, com pequena pressão, a fim de se evitar qualquer contratempo.
Godfrey passou muito bem pelas provas do balanço, sem perder um momento sequer do seu humor. Evidentemente este rapaz gostava do mar.
Tartelett, pelo contrário, não gostava nada dele, que lhe retribuía escrupulosamente. Valia a pena ver-se o infeliz professor de boa presença sem presença de qualidade alguma, o mestre de dança dançando ao contrário das regras da arte. Ficar no camarote, com esses abalos que sacudiam o steamer até às cavernas, era para ele coisa impossível.
- Ar! Ar! - gritava o mísero.
Não saía, por isso, do convés. Se o navio jogava de bordo, lá ia ele de um lado para o outro. Se o balanço era de popa a proa, ora caía para diante, ora para trás. Apoiava-se aos corrimãos, agarrava-se aos cabos, tomava posições absolutamente condenadas pelos princípios da moderna coreografia! Como ele desejaria subir aos ares num balão para fugir às oscilações daquele sobrado movente! Um dançarino dos seus antepassados dizia que não se apresentava em cena para evitar não humilhar os seus colegas. Tartelett, pelo contrário, de boa vontade não tornaria mais a pôr os pés nesse navio que os golpes de mar pareciam querer levar para o abismo.
Que idéia tivera o rico William W. Kolderup em mandá-lo para tal sítio!
- Durará ainda muito o mau tempo? - perguntava muitas vezes por dia ao capitão Turcotte.
- Hum! O barômetro não promete muito! – respondia invariavelmente o capitão, carregando os sobrolhos.
- E chegaremos muito depressa?
- Muito depressa, Sr. Tartelett!... Hum! Muito depressa!... Para tudo é preciso tempo!
- E chamam a isto o oceano Pacífico - murmurava o infeliz entre dois arrancos e duas oscilações.
É bom que se diga que Tartelett não somente enjoava, como também sentia um medo enorme ao ver as grandes vagas espumantes que rebentavam na altura dos paveses do «Dream», ao ouvir as válvulas levantarem-se com choques violentos, que deixavam fugir o vapor pelos tubos de esgoto, e ao sentir o steamer sacudido como uma rolha de cortiça por essas montanhas de água.
- Nada! É impossível que isto não vá para o fundo! – repetia ele, fixando no discípulo o olhar inerte.
- Sossegue, Tartelett! - respondia Godfrey. - Que diabo! Um navio foi feito para flutuar. Há para isso certas razões!
- E eu digo-lhe que não as há!
Com esta idéia fixa, tinha o professor posto o cinto de salvação. Trazia-o de noite e de dia, apertado fortemente contra o peito, e por preço algum Lho fariam tirar. Sempre que o mar lhe dava um momento de descanso, enchia-o de novo, assoprando-o com força. Apesar disso, nunca o achava cheio de mais!
É necessário ser-se indulgente para com os terrores de Tartelett.
Para quem não está habituado ao mar, tem este furores que causam certo espanto, e aquele passageiro forçado nem sequer se tinha até então arriscado a navegar nas águas tranqüilas da baía de São Francisco. Não deve pois causar estranheza o seu mal-estar a bordo de um navio açoutado por ventania forte, e o seu espanto ao sentir o choque das ondas.
Além disso, o tempo ia sempre a pior, e ameaçava o «Dream» com algum ciclone próximo, que os telégrafos semafóricos lhe teriam decerto anunciado se estivesse à vista do litoral.
Se durante o dia o navio era espantosamente sacudido, e navegava apenas com pequena pressão para não fazer avaria na máquina, acontecia às vezes que, nas grandes ascensões ou descensões de nível das camadas líquidas, a hélice imergia ou emergia alternadamente. Daí resultava que os seus braços davam formidáveis pancadas nas águas mais profundas ou batiam em falso acima da linha de flutuação, o que tudo podia comprometer a solidez do sistema. Ouvia-se então uma espécie de detonações surdas, por debaixo da popa do «Dream», e os êmbolos entravam de girar com tão grande velocidade que era difícil ao maquinista moderá-la.
Godfrey, no entanto, observou uma coisa, de que ao princípio não soube explicar o motivo, e foi que, durante a noite, as oscilações do steamer eram muito menores do que pelo dia. Poderia daí concluir-se que nessa ocasião abrandava o vento, e que, depois do pôr do Sol, havia alguma calma momentânea?
Foi até isto tão pronunciado que, na noite de 21 a 22 de Junho, quis ele ver o que se passava. Nesse dia precisamente piorara a situação, o vento tinha refrescado, e coisa alguma deixava supor que pela noite acalmasse o mar, tão caprichosamente açoutado durante muitas horas.
Pela meia-noite Godfrey levantou-se, agasalhou-se muito bem e subiu ao convés.
À proa estava o homem de quarto e sobre a ponte o capitão Turcotte.
Não tinha decerto diminuído a violência do vento, e apesar disso o embate das ondas na roda de proa do «Dream» era muito mais fraco.
Erguendo, porém, os olhos para a parte superior do cano, de onde saía um fumo negro, notou Godfrey que esse fumo, em vez de ir de proa a popa, ia, pelo contrário, de popa a proa e seguia a mesma direção que o navio.
- Mudaria o vento? - disse ele consigo mesmo.
E, contente com o caso, subiu à ponte e aproximou-se do capitão.
- Capitão! - chamou ele.
Este, com a cabeça envolta no capuz encerado, não tinha dado por ele, e ao princípio não conseguiu disfarçar um movimento de contrariedade vendo-o ali.
- O Sr. Godfrey por aqui, neste lugar!
- Eu mesmo, capitão, e venho perguntar-lhe...
- O quê? - volveu com vivacidade o capitão Turcotte.
- Se o vento não mudou...
- Não mudou, Sr. Godfrey, e receio infelizmente que sobre nós caia um temporal desfeito.
- No entanto temos agora vento pela popa.
- Vento pela popa... Com efeito... vento pela popa!... - respondeu o capitão, visivelmente contrariado por esta observação de Godfrey. - Mas não é por minha vontade.
- Que quer dizer com isso?
- Quero dizer que para segurança do navio tive de tomar o rumo contrário e fugir diante do tempo!
- Isso vai-nos demorar alguma coisa.
- Alguma coisa, com efeito - concordou o capitão Turcotte -, mas, logo que for dia, se o mar acalmar um pouco, aproveitarei a ocasião para tomar de novo o rumo de oeste. Peço-lhe pois, Sr. Godfrey, que volte para o seu camarote. Faça o que lhe digo! Veja se consegue dormir, enquanto nós vamos seguindo com o mar! Sentirá assim menos o balanço!
Fez Godfrey um sinal afirmativo, olhou, ansioso, pela última vez para as nuvens baixas, que fugiam com extrema velocidade, e, em seguida, descendo do convés, entrou de novo no camarote, onde não tardou muito a adormecer.
No dia seguinte de manhã, no dia 22 de Junho, conforme anunciara o capitão Turcotte, e se bem que o vento não tivesse abrandado sensivelmente, tinha o «Dream» retomado a direção primitiva.
Esta navegação, para oeste durante o dia e para este durante a noite, durou ainda quarenta e oito horas, o barômetro, porém, mostrava certa tendência a subir, as suas oscilações eram menos freqüentes, e tudo fazia presumir que o mau tempo ia acabar com a mudança de vento, que principiava de passar para o norte.
Foi o que de fato aconteceu.
No dia 25 de Junho, pelas oito horas da manhã, quando Godfrey subiu ao convés, as nuvens tinham-se dissipado com uma ligeira brisa de nordeste, e os raios do Sol, passando através das ondas, iluminavam de reflexos cor de fogo as partes mais salientes da borda.
O mar, de cor verde-carregado, resplandecia então num vasto sector, onde incidia diretamente a luz irradiante. O vento já não soprava senão em certos intervalos, cobrindo de espuma a crista das ondas, e por conseqüência puderam largar-se os papa-figos.
Para melhor dizer, já não era em verdadeiras ondas que o mar se levantava, mas apenas em largas ondulações, que embalavam suavemente o steamer.
Ondulações ou vagas, era tudo o mesmo para o professor Tartelett, doente da mesma forma, quer houvesse muito ou pouco balanço. Estava ali, meio deitado sobre a ponte, de boca entreaberta, como um barbo asfixiado fora de água.
Sobre o tombadilho, o imediato, de óculo assestado, olhava para os lados de nordeste.
Godfrey abeirou-se dele.
- Então o dia de hoje - observou ele alegremente -, está um pouco melhor do que o de ontem?
- É verdade, Sr. Godfrey - respondeu o imediato -, estamos agora com mar sossegado.
- E o «Dream» entrou de novo no rumo?
- Ainda não!
- Ainda não! E porquê?
- Porque foi evidentemente impelido para nordeste durante a tempestade, e é preciso tomar exatamente a sua posição.
Agora, porém, o sol está lindo, e o horizonte perfeitamente límpido. Ao meio-dia, tomando a altura Poderemos fazer uma boa observação, e o capitão marcará então o rumo.
- Onde está o capitão? - perguntou Godfrey.
- Não está a bordo.
- Não está a bordo?
- É verdade!... A gente de quarto julgou ver, pela brancura do mar, alguns rochedos para a banda de este, rochedos que não estão indicados nas cartas de bordo.
Aprontou-se pois a lancha a vapor, e o capitão Turcotte, com o mestre e dois ou três marinheiros, foram fazer um reconhecimento.
- Há muito tempo?
- Há hora e meia, pouco mais ou menos.
- Tenho pena de o não ter sabido - afirmou Godfrey. – Com grande prazer o teria acompanhado.
- O Sr. Godfrey estava a dormir - explicou o imediato - e o capitão não quis acordá-lo.
- Sinto-o deveras, mas diga-me, em que direção foi a lancha?
- Foi por ali - indicou o imediato -, direita pela serviola de estibordo, na direção nordeste.
- E com um óculo não se poderia vê-la?
- Não, porque ainda está muito longe.
- Mas não deve tardar por aí?
- Não pode tardar - elucidou o imediato - porque o capitão quer sempre fazer o ponto ele próprio, e para isso é preciso que esteja de volta antes do meio-dia!
Ouvindo isto, Godfrey foi sentar-se no extremo do castelo de proa, e mandou buscar o seu binóculo de marinha. Queria ver quando aparecia a lancha. Não se admirava contudo do reconhecimento que fora fazer o capitão Turcotte. Era natural, com efeito, que o «Dream» não se arriscasse a entrar numa parte onde se tinha suspeitado a existência de rochedos.
Passaram duas horas. Às dez horas e meia é que se começou a destacar no fim do horizonte um sinal de fumo, delgado como uma linha. Era com certeza a lancha a vapor, a qual, feito o reconhecimento, regressava a bordo.
Godfrey entreteve-se em segui-la com o binóculo. Viu-a acentuar-se a pouco e pouco em linhas mais definidas, crescer sobre a superfície do mar, e desenhar mais claramente o fumo, misturado com algumas emanações de vapor no fundo claro do horizonte. Era uma excelente embarcação, de grande velocidade, e, como vinha com toda a pressa, tornou-se para logo visível à vista desarmada. Pelas onze horas já se via bem a espuma branca levantada pela sua proa, e o seu rastro espumante, que se alargava como a cauda de um cometa.
Às onze horas e um quarto, o capitão Turcotte atracava e saltava a bordo do «Dream».
- Capitão, que há de novo? - perguntou Godfrey, apertando-lhe a mão.
- Ah! Bons dias, Sr. Godfrey.
- E os rochedos?...
- Simples aparência! - declarou o capitão Turcotte. – Nada encontramos de suspeito. A gente de quarto enganou-se com certeza. Bem me queria parecer.
- Vamos então no rumo desejado? - disse Godfrey.
- Podemos ir com certeza, mas antes disso é necessário que eu faça o ponto.
- Quer que se recolha a lancha a bordo, capitão? – perguntou o Imediato.
Cumpriram-se as ordens do capitão, e a lancha a vapor, de caldeiras acesas, foi levada a reboque à popa do «Dream».
Três quartos de hora depois, o capitão Turcotte, de sextante na mão, tomava a altura do Sol, e, depois de feito o ponto, marcava o rumo a seguir.
Feito isto, e tendo olhado ainda uma vez para o horizonte, chamou o imediato e levou-o consigo para a câmara, onde estiveram por muito tempo em conferência.
O dia estava muito bonito. Conseguiu por isso o «Dream» navegar rapidamente e sem auxílio das velas, que tiveram de se ferrar. O vento soprava muito fraco e, com a velocidade imprimida pela máquina, não haveria força bastante para as entufar.
Godfrey estava muito alegre. Pode haver alguma coisa de mais consolador e que dê mais liberdade ao pensamento, mais satisfação à alma, do que uma viagem com mar e sol tão belos como estavam então? E, não obstante, apesar destas circunstâncias favoráveis, nada havia que reanimasse um pouco o professor Tartelett. Se o estado do mar já lhe não causava receio imediato, nem por isso sentia reação alguma em contrário. Quis ver se comia, mas não teve paladar nem apetite. Godfrey procurou tirar-lhe o cinto de salvação que trazia junto ao peito, ao que ele se negou absolutamente. Porventura este conjunto de ferro e madeira que se chama um navio não estava sempre em risco de se abrir de um momento para o outro?
Chegou a tarde. No ar via-se espessa cerração, que não chegava contudo ao nível das águas. A noite ia decerto ser muito mais escura do que a beleza do dia o tinha feito supor.
Não havia, na verdade, escolho algum a recear nestas paragens, cuja posição acabava de ser marcada pelo capitão Turcotte nas cartas; era bom contudo precaverem-se contra um abalroamento, que sempre se poderia dar, sobretudo em noites brumosas.
Puseram-se pois as lanternas de bordo em estado de serviço, pouco depois do pôr do Sol; içou-se a luz branca no alto do mastro da mezena, e nos ovéns os fogos de posição, verde à direita e vermelho à esquerda. Se o «Dream» abalroasse, não seria decerto por falta de precauções, o que não é em extremo consolador. Ir a pique, ainda quando se está na ordem, é sempre ir a pique. E, se havia alguém a bordo que fizesse esta reflexão, era com certeza o professor Tartelett.
O digno homem, no entanto, sempre a cambalear, tinha voltado para o camarote e Godfrey para o seu; o primeiro com a certeza e o outro com a esperança de passarem uma boa noite, visto que o «Dream» se balançava apenas com suavidade sobre as ondas.
O capitão Turcotte, confiando o quarto ao imediato, desceu da mesma forma ao tombadilho, a fim de descansar por algumas horas. Tudo estava em ordem. O steamer podia navegar com perfeita segurança, visto que o nevoeiro não tendia a aumentar.
Vinte minutos depois Godfrey dormia, e a insônia de Tartelett, o qual, segundo usava, se tinha deitado completamente vestido, só dava a perceber-se por alguns suspiros longínquos.
De repente - devia ser uma hora da manhã - foi Godfrey despertado por gritos espantosos.
Saltou do catre, vestiu num segundo as calças e a camisola e calçou as botas altas.
Quase em seguida ouviram-se em cima estes gritos horríveis:
- Vamos a pique! Vamos a pique!
Godfrey saiu num momento do camarote e entrou na sala de jantar. Aí deparou-se-lhe uma massa informe, que não pôde reconhecer.
Devia ser o professor Tartelett.
Toda a tripulação estava em cima, obedecendo às ordens dadas pelo imediato e pelo capitão.
- É um abalroamento? - perguntou Godfrey.
- Não sei... não sei... Com este maldito nevoeiro... - respondeu o imediato. - O caso é que vamos a pique.
- Vamos a pique? - exclamou Godfrey.
Com efeito, o «Dream», que batera sem dúvida em qualquer rochedo, afundava-se sensivelmente. A água já quase que chegava à coberta. As caldeiras estavam já apagadas, sem dúvida alguma.
- Deite-se ao mar, Sr. Godfrey! - ordenou o capitão. – Não há um instante a perder! O navio vai para o fundo, e arrasta-o com certeza no redemoinho.
- E Tartelett?
- Eu me encarrego dele!... Estamos apenas a distância de meia amarra da costa.
- Mas o senhor?...
- O meu dever é ficar em último lugar a bordo, e fico!... - afirmou o capitão. - Fuja! fuja!
Hesitava ainda Godfrey em se lançar à água; esta no entanto chegava já ao nível dos paveses do «Dream».
O capitão Turcotte, sabendo que Godfrey nadava como um peixe, agarrou-o então pelos ombros e fez-lhe o obséquio de o deitar pela borda fora.
Era já tempo. Se não fosse a escuridão, ver-se-ia sem dúvida o sorvedouro que se abria no lugar ocupado pelo «Dream».
Godfrey, porém, dando algumas braçadas nesta água sossegada, conseguira afastar-se rapidamente desse funil que atraía como os redemoinhos do maelstrom.
Tudo isto se tinha passado em menos de um minuto.
Pouco depois, no meio de gritos de desespero, apagaram-se, uma a uma, as luzes de bordo.
Não restava já dúvida alguma. O «Dream» fora para o fundo.
Godfrey conseguira chegar a uma rocha alta e comprida, abrigada das ondas. Aí, chamando em vão por alguém no meio das trevas, não ouvindo voz alguma responder à sua, não sabendo se estava em um rochedo isolado ou no extremo de algum banco, e, sendo talvez o único sobrevivente desta catástrofe, esperou que raiasse o dia.
GODFREY FAZ SÉRIAS REFLEXÕES ACERCA DA MANIA DAS VIAGENS
Faltavam ainda três longas horas para que o Sol se tornasse a ver no horizonte. Dessas horas se pode dizer que duram séculos! Para estréia era rude o transe, mas já dissemos que Godfrey não partira para dar um simples passeio. Ao embarcar, tinha pensado que abandonava uma existência de felicidade e de repouso, a qual decerto não encontraria correndo em busca de aventuras. Era preciso pois mostrar-se à altura da situação.
Temporariamente estava ele abrigado. O mar não podia arrebatá-lo novamente desta rocha, que era apenas molhada pela espuma da ressaca. Seria de recear que a preia-mar ali chegasse? Não, decerto, porque, pensando no caso, reconheceu que o naufrágio se dera no mais alto da maré da lua nova.
Esta rocha, porém, estaria isolada? Dominaria porventura alguma série de rochedos dispersos nesta porção de mar? Que costa era essa que o capitão Turcotte julgava ter visto no meio das trevas? A que continente pertenceria? O «Dream» tinha sido com certeza desviado do rumo depois da tempestade dos dias precedentes. Não se tinha pois podido determinar com exatidão a situação do navio. Disto não havia que duvidar, pois afirmava o capitão, duas horas antes, que nas suas cartas não havia indicação alguma de rochedos nestas paragens! Tinha até feito mais, indo ele próprio reconhecer se existiam supostos escolhos, que a gente de quarto julgava ver a este.
O fato era, porém, verdadeiro, e se o capitão Turcotte tivesse levado mais longe o seu reconhecimento ter-se-ia com certeza evitado a catástrofe. De que serviam, contudo, estas lembranças do passado?
Perante o fato consumado, a questão importante - questão de vida ou de morte - era, para Godfrey, saber se estava próximo de qualquer terra. Mais tarde haveria tempo de reconhecer que terra era do Pacífico. Primeiro que tudo, convinha pensar, logo que amanhecesse, em deixar esta rocha, que na sua parte superior não chegava a ter vinte passos de comprimento e de largura.
Não se sai, porém, de um sítio senão para outro. E, se esse outro sítio não existisse, se o capitão se tivesse enganado no meio destas brumas, se à roda desse rochedo se estendesse o mar sem limites, se, quanto a vista pudesse alcançar, o céu e a água se confundissem no mesmo horizonte?
Neste ponto se concentravam as idéias do moço náufrago. Tanto quanto a vista lho permitia, esforçava-se por distinguir, no meio da noite negra, se alguma massa confusa, agrupamento de rochas ou penedia, não indicaria a proximidade da terra na parte este do recife.
E nada conseguiu ver. Nem um só aroma característico de terra, lhe chegava ao nariz, nem uma sensação de luz aos olhos, nem aos ouvidos sequer um só ruído.
Nenhuma ave atravessava aquela sombra. Parecia que em derredor só existia um vasto deserto de água.
Compreendeu então Godfrey que as probabilidades de salvação eram de uma contra mil. Nessa ocasião já se não tratava de dar tranqüilamente a volta à roda do mundo, mas sim de fazer frente à morte. Por isso, com todo o sossego e coragem, não pensou senão nessa Providência, que tanto pode fazer pela mais fraca das suas criaturas, no momento em que esta nada pode por si própria.
Quanto a si, não tinha Godfrey mais a fazer do que aguardar o dia, resignar-se se fosse impossível a salvação, mas tentar tudo, pelo contrário, se houvesse a mínima esperança.
Mais sossegado, em conseqüência destas reflexões, Godfrey tinha-se sentado sobre a rocha, despindo parte do vestuário embebido em água do mar, a camisa de lã e as botas, para estar pronto a deitar-se a nado, se fosse preciso.
Era, contudo, possível que nem uma só pessoa tivesse sobrevivido ao naufrágio?
Pois quê! Nem um dos homens do «Dream» teria alcançado a terra! Teriam sido todos arrastados por esse turbilhão irresistível que um navio faz ao ir para o fundo?
O último, com quem Godfrey falara, fora o capitão Turcotte, que resolvera firmemente não deixar o navio enquanto um só dos seus marinheiros aí estivesse! Fora ele próprio, o capitão, quem o tinha deitado ao mar no momento em que ia desaparecer a coberta do «Dream».
E os outros, o infeliz Tartelett, o desgraçado chinês, surpreendidos sem dúvida pelo naufrágio, um no tombadilho e o outro no fundo do porão, que era feito deles? Era ele, Godfrey, o único salvo de entre todos que iam no «Dream»? Mas a lancha tinha ficado a reboque do steamer! Não poderiam ter-se aí refugiado alguns dos passageiros e tripulantes a tempo de fugirem do sítio do naufrágio? Poderiam talvez tê-lo feito, mas era mais de recear que a lancha tivesse sido arrastada pelo navio na submersão, e estivesse nesse momento no fundo, a muitas braças de água!
Pensou então Godfrey que, se não podia ver nessa noite escura, podia pelo menos fazer-se ouvir. Coisa alguma o impedia de falar e de gritar no meio de tão profundo silêncio!
Talvez que a voz de algum dos seus companheiros respondesse à sua.
Chamou, portanto, por várias vezes, soltando um grito prolongado, que devia ouvir-se numa circunferência de grande raio.
Nem uma só voz lhe respondeu.
Tornou a gritar por várias vezes, voltando-se sucessivamente para todos os pontos do horizonte.
Silêncio absoluto.
- Só! só! - murmurou Godfrey.
É que não somente voz alguma respondera à sua, como também nenhum eco a reproduziu. Ora se ele estivesse próximo a uma penedia ou junto de um grupo de rochas, como muitas vezes existem nos litorais, os seus gritos, repercutidos por um obstáculo qualquer, ter-lhe-iam de novo chegado aos ouvidos. Por conseqüência, ou para este do recife se estendia uma costa baixa e imprópria para produzir eco, ou, o que era mais provável, não havia terra naquelas proximidades. O grupo de rochas, onde o náufrago tinha encontrado refúgio, era decerto isolado.
Decorreram três horas nestes transes. Godfrey, gelado e andando de um para outro lado por cima da rocha estreita, procurava reagir contra o frio. Por fim começaram de raiar uns clarões esbranquiçados nas nuvens do zênite. Era o reflexo das primeiras colorações do horizonte.
Godfrey, voltado para esse lado - único onde poderia existir terra -, esforçava-se por ver se alguma penedia se destacava no meio da sombra. O Sol nascente, contornando-a com os primeiros raios, devia destacá-la com mais clareza.
Nada, porém, aparecia ainda através desta aurora indecisa. Do mar elevava-se uma leve cerração, que não permitia sequer distinguir a extensão dos rochedos.
Não havia, portanto, ilusões possíveis. Se, com efeito, Godfrey tinha sido deposto sobre uma rocha isolada do Pacífico, aguardava-o a morte a curto prazo, a morte pela fome, pela sede, ou, sendo preciso, a morte pela água, como último recurso!
E, no entanto, ia sempre olhando, parecendo que lhe crescia sem limites a intensidade da vista, tal era a sua força de vontade!
Por fim começou a iluminar-se a penumbra da manhã. Godfrey viu sucessivamente as rochas, que formavam o escolho, destacarem-se em relevo sobre o mar, como um grupo de monstros marinhos. Viu então um amontoado extenso e irregular de rochas denegridas, recortadas caprichosamente, de várias formas e feitios, e projetadas a este e oeste. A pedra enorme, onde Godfrey estava, emergia no extremo ocidental do banco, a menos de trinta braças do sítio em que o «Dream» tinha ido para o fundo. O mar nesta parte devia ser muito profundo, pois não se via vestígio algum do steamer, nem mesmo a ponta de um mastro.
Talvez que, tendo escorregado sobre um fundo de rochas submarinas, fosse arrastado para longe do recife.
Um só olhar bastara a Godfrey para avaliar o estado das coisas. Por este lado não podia haver salvação. Fixou pois toda a sua atenção na outra parte dos rochedos, que a cerração, levantando-se, descobria pouco a pouco. O mar, baixo nessa ocasião, permitia que as rochas se destacassem mais completamente. Viam-se estas crescer, alargando a base úmida. Eram separadas, aqui por vastos intervalos líquidos, ali por simples poças de água. Se por acaso estavam ligadas a qualquer litoral, o acesso deste não seria difícil.
E nem sequer havia aparência de costa! Nada se via ainda que indicasse a proximidade de uma terra alta, mesmo nesta direção.
O crepúsculo continuava a dissipar-se, aumentando o campo de visão, no qual se fixava com tenacidade o olhar de Godfrey, que se estendia por esta forma em um espaço de meia milha. Viam-se já algumas línguas de areia aparecendo por entre as rochas, atapetadas de sargaços viçosos. Não indicaria pelo menos isto a presença de um areal? E, se este existia, poder-se-ia duvidar de que estivesse ligado à costa de alguma terra mais importante?
Por fim, um renque de montículos de areia, alternados com grandes rochas graníticas, destacando-se mais claramente, apareceu a limitar a este o horizonte. O Sol tinha dissipado todas as brumas da manhã, e o seu disco luminoso brilhava em todo o seu esplendor.
- Terra! terra! - exclamou Godfrey.
E estendeu os braços para esse plano sólido, ajoelhando sobre o rochedo, num ímpeto de reconhecimento para com Deus.
Era terra, com efeito. Neste sítio os rochedos não eram mais do que uma ponta avançada, cabo meridional de uma baía que se arredondava em um perímetro de duas milhas o máximo. O fundo desta cavidade tinha a aparência de um areal chato, contornado por uma série de montículos, ondulados caprichosamente com filetes de erva, muito pouco elevados.
Do lugar ocupado por Godfrey, pôde o seu olhar abranger todo o panorama da costa.
Limitada ao norte e ao sul por dois promontórios desiguais, não tinha de extensão mais de cinco a seis milhas. Era possível, contudo, que estivesse ligada a maior porção de terreno. Como quer que fosse, havia ali, pelo menos, a salvação momentânea. A respeito disto não podia Godfrey ter dúvida alguma, o mar não o depusera num rochedo solitário, e era-lhe lícito supor que esta porção de solo desconhecido poderia satisfazer às suas primeiras exigências de vida.
- Para terra! para terra! - resolveu ele.
Antes, porém, de deixar o escolho, voltou-se para trás pela última vez, interrogando ainda com vista o mar até ao extremo do horizonte. Veria acaso algum objeto perdido na superfície das ondas, qualquer fragmento do «Dream», um sobrevivente talvez?
Nada viu.
A própria lancha desaparecera, e devia ter sido arrastada para o abismo comum.
Veio-lhe então à idéia que algum dos seus companheiros teria achado abrigo nesses rochedos, e, como ele, aguardaria que recaísse o dia para ver se alcançava a costa.
Mas, nem nos rochedos nem no areal havia pessoa alguma! O recife estava tão deserto como o oceano! Todavia, à falta de sobreviventes, não teria o mar, por acaso, depositado ali alguns cadáveres? Encontraria ele entre os escolhos, no ponto aonde a ressaca chegava, o corpo inanimado de algum dos seus companheiros?
Olhou. Coisa alguma se via em toda aquela extensão dos rochedos, que a vazante, no seu fim, deixava então a descoberto.
Godfrey estava só. Apenas podia contar consigo na luta contra os perigos de todo o gênero que o ameaçavam! Digamos, não obstante, em seu favor, que, diante desta realidade, Godfrey não desanimou. Como, porém, antes de tudo, lhe convinha estar bem certo acerca da natureza do terreno do qual o separava uma pequena distância, deixou o cimo do rochedo e começou a aproximar-se da praia.
Quando o intervalo que separava as rochas era muito grande para que pudesse transpô-lo de um salto, deitava-se à água, e, a vau ou a nado, chegava facilmente ao rochedo mais próximo. Se, pelo contrário, não tinha diante de si um espaço maior que duas ou três jardas, saltava de uma para outra rocha. Não era isto fácil, e gastou muito tempo no caminho sobre estas pedras viscosas, atapetadas de sargaços escorregadios. Teve de andar assim mais de um quarto de milha.
Mas, por fim, como era ágil e destro, pôs os pés nessa terra onde o aguardava, talvez, se não a morte rápida, pelo menos uma vida miserável, pior ainda do que a morte. A fome, a sede, o frio, a nudez, os perigos de todo o gênero, sem uma arma para se defender, sem uma espingarda para caçar, sem roupa para vestir, eis a que extremos ele ia ficar reduzido! Que imprudente! Tinha querido saber de que era capaz em transes graves! Pois bem, ia passar por eles! Tinha invejado a sorte de um Robinson! Pois ia ver agora se essa sorte era digna de inveja! Veio-lhe então à idéia essa existência feliz, a vida fácil de São Francisco, no seio de uma família rica e desvelada, que ele abandonara para procurar aventuras. Lembrou-se do seu tio Will, da sua noiva Phina e dos seus amigos, aos quais sem dúvida não tornaria a ver! Com tais recordações apertou-se-lhe o coração, e, apesar do seu estoicismo,-vieram-lhe as lágrimas aos olhos.
Como seriam menos para recear as eventualidades futuras se ele porventura não estivesse só, se algum outro sobrevivente do naufrágio tivesse podido, como ele, alcançar esta costa, quando mesmo, à falta do capitão ou do imediato, fosse o mais ínfimo dos marinheiros, o próprio Tartelett, enfim, por muito pouco que se pudesse contar com as suas qualidades frívolas. Neste sentido ainda tinha alguma esperança. Se não achara vestígio algum humano em cima dos rochedos, não poderia talvez encontrá-lo no meio daquele areal? Quem poderia dizer se outro que não ele teria já entrado nesse litoral procurando um companheiro, como ele também procurava?
Godfrey demorou-se ainda a olhar para toda a parte norte e sul. Nem um único ser humano. Até onde pôde ver, toda esta porção de terra era evidentemente desabitada. Não havia um sinal único de habitação, um só vestígio de fumo.
- Vamos para diante! - disse Godfrey.
E começou a subir o areal, na direção do norte, antes de atravessar estes montículos de areia, que lhe facilitariam o reconhecimento do país, em maior espaço.
O silêncio era absoluto. Na areia não havia sinal algum de passagem. Na orla dos rochedos pousavam algumas aves do mar, guinchos ou gaivotas, únicos seres vivos no meio daquela solidão.
Caminhou assim Godfrey durante um quarto de hora. Por fim, quando ia a subir pelo mais elevado dos montículos, cheio de junco e de sarças, parou bruscamente.
A cinqüenta passos do sítio em que estava, no extremo do recife, via-se no solo um objeto informe, extraordinariamente inchado, semelhante ao cadáver de um monstro marinho, e que fora sem dúvida arremessado para ali pela última tempestade.
Godfrey correu à pressa para este lado.
À medida que se aproximava, batia-lhe mais rapidamente o coração. No animal que ali estava pareceu-lhe reconhecer forma humana.
A distância de uns dez passos, Godfrey parou, como pegado ao solo, exclamando:
- Tartelett!
Dirigiu-se então Godfrey precipitadamente para o seu companheiro, pensando que lhe restaria ainda algum alento de vida. Instantes depois reconheceu que era o cinto de salvação que lhe fazia aparentar aquele inchaço e o assemelhava a um monstro marinho.
Se Tartelett, porém, estava sem movimento algum, talvez que ainda não tivesse morrido. Podia o aparelho natatório tê-lo sustentado acima das águas, enquanto as ondulações da ressaca o levavam à praia.
Godfrey pôs-se em ação. Ajoelhou junto de Tartelett, tirou-lhe o cinto, friccionou-o com mão vigorosa, e ouviu por fim um suspiro brando soltar-se-lhe da boca entreaberta!... Pôs-lhe a mão sobre o peito!... O coração batia ainda.
Chamou então por ele.
Tartelett moveu a cabeça, e deixou ouvir um som rouco, seguido de palavras incoerentes.
Godfrey sacudiu-o com força.
O professor abriu então os olhos, passou a mão esquerda pela testa, levantou a direita, e certificou-se de que a preciosa rabecazinha e o respectivo arco, os quais jamais largara, estavam no seu lugar, junto dele.
- Tartelett, meu caro Tartelett! - chamou Godfrey, levantando-lhe suavemente a cabeça.
Então esta cabeça, com os poucos cabelos todos desgrenhados, fez um sinal afirmativo.
- Sou eu! Sou eu! Godfrey!
- Godfrey - perguntou o professor.
Em seguida, voltou-se, ajoelhou, olhou em derredor, sorriu-se e levantou-se!
Conhecera enfim que tinha um ponto de apoio sólido! Compreendera que já não estava na coberta de um navio, sujeito a todas as oscilações do balanço! O mar tinha deixado de conduzir a sua pessoa! Estava agora em solo firme!
Então o professor Tartelett adquiriu novamente o aprumo que, desde que partira, tinha perdido, colocou os pés com naturalidade para fora, na posição regulamentar, com a mão esquerda pegou na rabecazinha, enquanto a direita empunhava o arco, e depois, ao mesmo tempo que as cordas, vibradas com vigor, soltavam um som úmido e de sonoridade melancólica, pronunciou estas palavras, sorrindo:
- Ao seu lugar, minha senhora!...
É que o digno homem pensava em Phina.
DE COMO SE PROVA QUE NEM TUDO SÃO ROSAS NA PROFISSÃO DE ROBINSON
Depois disto, o professor e o discípulo lançaram-se nos braços um do outro.
- Meu bom Tartelett! - exclamou Godfrey.
- Até que chegamos ao porto! - suspirou o professor, como quem está farto de viagens por mar e dos seus contratempos.
Chamava ele àquilo chegar ao porto!
- Tire esse cinto de salvação - aconselhou Godfrey. -
Semelhante aparelho sufoca-o e impede-lhe os movimentos.
- Parece-lhe que posso tirá-lo já sem inconveniente? - perguntou Tartelett.
- Já se vê que sim. Agora, guarde a sua rabeca e vamos à descoberta.
- Vamos lá - anuiu o professor -, mas, se lhe parece, Godfrey, faremos uma paragem no primeiro botequim. Estou a morrer de fome, e uma dúzia de sanduíches, com alguns copos de Porto, restituir-me-ão o vigor às pernas!
- Pois sim! no primeiro botequim!... - prometeu Godfrey – e até no último, se não nos agradar o primeiro!
- Em seguida - continuou Tartelett -, perguntaremos a qualquer pessoa onde fica a estação telegráfica, a fim de enviarmos sem demora um telegrama ao seu tio Kolderup. Creio que esta excelente pessoa não deixará de nos mandar o dinheiro necessário para voltarmos ao palácio de Montgomery Street, porque não tenho um cêntimo na algibeira!
- Está dito, vamos lá à primeira estação telegráfica. - respondeu Godfrey -, ou, se não a houver neste país, à estação central do Post-Office. Vamos lá, Tartelett!...
O professor, tirando o aparelho natatório, pô-lo a tiracolo, como uma trompa de caça, e por esta forma marcharam ambos em direção à linha de montículos do litoral.
O que mais especialmente interessava Godfrey, a quem o ter achado Tartelett dera alguma esperança, era saber se apenas eles ambos se tinham salvo do naufrágio do «Dréam».
Um quarto de hora depois de terem saído do recife, subiam os dois exploradores por um montículo de sessenta a oitenta pés de altura, e chegavam à sua parte mais alta. Dominavam desse ponto grande extensão do litoral, e podiam investigar o horizonte do lado do oriente, até então oculto pelos acidentes da costa.
A duas ou três milhas de distância, nesta direção, o último plano de perspectiva que se via era formado por uma segunda série de colinas, e, para além, nada se descobria do horizonte.
A costa, para o lado do norte, parecia afilar-se em ponta, mas não se podia afirmar se estava ligada a algum cabo projetado á retaguarda.
Ao sul, entrava pelo litoral um braço de mar, e por este lado, ao menos, parecia que o oceano se estendia sem limites. Podia concluir-se daqui que esta terra do Pacífico era uma península, e, neste caso, devia procurar-se para o norte ou nordeste o istmo que a ligasse a qualquer continente.
Como quer que fosse, a região não era árida, pelo contrário, o solo estava atapetado de verdura, tinha prados extensos, onde corriam alguns riachos límpidos, e florestas altas e
espessas, cujas árvores estavam dispostas em escada em relação ao último plano das colinas. O aspecto era deveras encantador.
Não se via, porém, nem um grupo de casas que indicasse uma vila, uma aldeia ou um lugar! Nem sequer a aparência de quaisquer edifícios aglomerados e dispostos para a exploração de um estabelecimento agrícola, de uma fazenda, de uma herdade qualquer!
Nem uma nuvem de fumo que, espalhada pelos ares, revelasse qualquer habitação oculta pelas árvores! Nem um campanário por entre as ramarias, nem um moinho em qualquer elevação de terreno isolada! À falta de casas, não se via uma cabana, uma choça, uma ajoupa (1) um vigwan (2). Nada absolutamente! Se havia seres humanos que habitassem este solo desconhecido, não podiam existir senão por baixo dele e não por cima, deviam ser como os trogloditas (3). Não se via uma só estrada, uma vereda, um carreiro sequer. Parecia que jamais pés humanos tinham pisado uma pedra deste areal, ou uma erva apenas deste prado.
- Não vejo a cidade - declarou Tartelett, levantando-se no bico dos pés.
- É que provavelmente não a há nesta parte da província! - volveu Godfrey.
- Mas não haverá nem uma aldeia?
- Também não.
- Onde estamos pois?
- Não sei.
- O quê, não sabe?... Mas não pode decerto tardar que se saiba.
- Talvez que não!
- Que há-de então ser de nós? - exclamou Tartelett, levantando os braços para o céu.
- Seremos talvez uns Robinsons!
Ouvindo isto, o professor deu um salto como jamais o dera clazun algum.
Uns Robinsons, eles! Um Robinson, ele! Serem descendentes desse Selkirk, que por tantos anos viveu na ilha de João Fernandes! Seguirem as pisadas dos heróis imaginários de Daniel Defoe e de Wyss, cujas aventuras tanta vez tinha lido. Ficarem ali abandonados, afastados de suas famílias, dos seus amigos, separados dos seus semelhantes por milhares de milhas, tendo de defender as vidas contra os animais ferozes e talvez contra os selvagens que poderiam desembarcar nessa terra, serem finalmente uns miseráveis sem recursos, cheios de fome e de sede, sem armas, sem utensílios, quase nus, e não contando senão consigo mesmo!
(1) Espécie de cabana feita de estacas e coberta de ramos usadas pelos selvagens.
(2) A choupana dos índios da América.
(3) Os trogloditas são habitantes fabulosos da África Oriental, que se dizia viverem em cavernas no interior da Terra, de onde o seu nome, derivado do grego troglos, buraco.
Deve ter provindo a sua existência de que, por vezes, os habitantes primitivos de zona tórrida tinham cavernas subterrâneas onde se abrigavam dos ardores do sol. Alguns autores, entre eles Mr. Balte Brun, dão-lhes, contudo, afirmação étnica, fazendo-os viver ao Sul do Egito e pertencer ao ramo primitivo dos Camitas, na árvore genealógica das raças semíticas.
Nada! Isso era impossível.
- Não diga essas coisas nem por brincadeira, Sr. Godfrey. Só a idéia me faz tremer de susto! Isso é para rir um bocado, não é verdade?
- É sim, meu caro Tartelett - respondeu Godfrey -, esteja descansado, mas tratemos, em primeiro lugar, do que mais importa.
Tratava-se, com efeito, de achar uma caverna, uma gruta, qualquer buraco onde passar a noite, e, em seguida, procurar alguns mariscos a fim de satisfazer o melhor possível as exigências do estômago.
Começaram pois Tartelett e Godfrey a descer o talude dos montículos em direção ao recife. Godfrey fazia as suas investigações com muito ardor, e Tartelett andava embrutecido no meio dos seus transes de náufrago. Aquele olhava para diante, para trás, para todos os lados, este não era capaz de ver coisa alguma senão a dez passos.
Godfrey dizia consigo:
«Se nesta terra não há habitantes, haverá pelo menos animais?»
Queria dizer com isto animais domésticos, isto é, caça grossa ou aves, e não esses animais ferozes que abundam nas regiões intertropicais, e que só para mal lhe serviriam.
Disso não podiam certificar-se senão exteriormente.
Contudo, viam-se vários bandos de aves junto ao litoral: alcaravões, maçaricos reais, adens e cercetas que esvoaçavam, piavam e cortavam os ares com o bater das asas e os gritos, o que era sem dúvida o modo de protestarem contra a invasão dos seus domínios.
Da existência destes pássaros pôde Godfrey concluir a dos ninhos e daqui deduzir a dos ovos. Visto que esses voláteis andavam juntos em grande número, deviam ter nos rochedos milhares de buracos por moradia habitual.
Ao longe várias garças reais e alguns bandos de narcejas indicavam a proximidade de um pântano.
Não faltavam pois as aves, a dificuldade consistia apenas em agarrá-las sem uma espingarda para as matar.
Como isto era impossível, o melhor era utilizá-las no estado de ovos, e tomar a resolução de as comer sob esta forma elementar, mas nutritiva.
Mas se era esse o jantar, por que meio se havia de cozer? Como se poderia obter fogo? Era de importância esta questão, e por isso deixou-se a solução para mais tarde.
Godfrey e Tartelett voltaram pois diretamente para o recife, por cima do qual pairavam bandos de aves aquáticas.
Ali esperava-os agradável surpresa.
Com efeito, entre os voláteis indígenas, que andavam a correr pela areia e a esgaravatar no meio dos sargaços, e por baixo dos molhos de plantas aquáticas, viram eles uma dúzia de galinhas e dois ou três galos de raça americana. Não era decerto ilusão porque, ao aproximarem-se, ouviram vibrantes cocorocós, ressoando pelo ar como clarins.
Mais ao longe, vários quadrúpedes andavam por entre as rochas e tentavam subir pelos montículos, onde abundavam os arbustos verdejantes. Também não havia engano possível. Eram uma dúzia de cutias, cinco ou seis carneiros e outras tantas cabras, que roíam sossegadamente a erva, à entrada da floresta.
- Ó Tartelett - chamou Godfrey -, olhe para ali!
O professor olhou, mas nada viu, tal era o estado de absorção em que o tinha posto o sentimento dessa situação inesperada.
Assaltou o espírito de Godfrey justa reflexão, e foi que esses animais, galinhas, cutias, cabras e carneiros, deviam pertencer ao fornecimento culinário do «Dream». Com efeito, na ocasião em que o navio ia a pique, podiam os voláteis ter chegado com facilidade ao recife, e depois ao areal. Quanto aos quadrúpedes, teriam talvez vindo a nado até às primeiras rochas do litoral.
- De sorte que - observou Godfrey - o que nenhum dos nossos companheiros pôde fazer conseguiram-no estes animais, apenas guiados pelo instinto! De todos que vinham no «Dream», só os animais se salvaram.
- Contando conosco - acrescentou ingenuamente Tartelett.
Este, com efeito, se conseguira salvar-se, fora apenas como simples animal, inconscientemente, e sem que nisso entrassem para coisa alguma a sua energia moral.
O caso, porém, pouco importava. Para os dois náufragos era uma circunstância feliz que alguns desses animais tivessem chegado à praia. Juntando-os e arrebanhando-os, era possível que, com a fecundidade própria da sua espécie, os náufragos, ficando por muito tempo nessa terra, tivessem à sua disposição um rebanho de quadrúpedes e uma coleção de voláteis.
Nesse dia, porém, Godfrey quis cingir-se apenas aos recursos alimentícios que podia encontrar na costa, tais como as aves e mariscos. Tartelett e ele começaram pois a procurar nos interstícios das pedras e debaixo dos sargaços, com bastante êxito. Dentro em pouco apanharam grande quantidade de amêijoas e mexilhões, que se podiam comer crus, sendo preciso. Nas rochas altas, que fechavam a baía do lado do norte, acharam também algumas dúzias de ovos de adens. Tudo isto chegava para matar a fome a convivas mais numerosos do que eles. E, como a vontade fosse apertando, não repugnou muito a Godfrey e a Tartelett esta primeira refeição.
- E não há lume? - lembrou ele.
- É verdade, e o lume? - perguntou Godfrey.
Era essa a mais séria das questões, em vista do que cuidaram os dois náufragos em fazer o inventário das algibeiras.
As do professor estavam vazias ou quase vazias. Apenas trazia algumas cordas de reserva para a sua rabecazinha, e um bocado de resina para o arco. Por meio destes objetos quem seria capaz de fazer fogo?
As de Godfrey não tinham melhor fornecimento. Achou, contudo, na algibeira, com muita satisfação, uma belíssima navalha que o seu estojo de couro tinha livrado do contato do mar. Essa navalha, com folha, verruma, foice e serra, era em tal ocasião um instrumento precioso.
Além deste utensílio, Godfrey e o seu companheiro não tinham mais do que as duas mãos. As do professor, todavia, não estavam habituadas senão a tocar rabeca ou a fazer habilidades. Pensou pois Godfrey que só devia contar com as suas.
Apesar disso, quis utilizar-se de Tartelett em ver se obtinha lume por meio de dois bocados de pau esfregados rapidamente um contra o outro. Alguns ovos, cozidos debaixo das cinzas, teriam sido especialmente saboreados neste segundo almoço.
Portanto, enquanto Godfrey tratava de saquear os ninhos, mau grado dos seus proprietários, que procuravam defender a prole em casca, foi o professor apanhar vários bocados de pau que estavam espalhados pelo chão ao pé dos montículos. Este combustível foi conduzido para junto de um rochedo abrigado do vento do mar. Tartelett escolheu então dois fragmentos bem secos, no intuito de desenvolver calórico, pouco a pouco, por meio de fricção contínua e vigorosa.
O que fazem habitualmente os selvagens da Polinésia não poderia também fazê-lo o professor, que, a seu ver, tinha sobre eles grande superioridade?
Começou pois Tartelett a esfregar, esfregou sem cessar, quase que chegou a deslocar os músculos do braço e antebraço. O pobre homem estava possuído de verdadeiro frenesi. No entanto, ou que não fosse boa a qualidade da madeira, ou que esta não estivesse em grau suficiente de secura, ou finalmente porque não tivesse o professor jeito algum, nem mãos adequadas a esse gênero de operação, não conseguiu mais que aquecer um pouco dois bocados de pau, desenvolvendo em si próprio calor intenso. Foi apenas a sua testa que deitou fumo sob a influência da transpiração.
Quando Godfrey voltou com os ovos que apanhara, achou Tartelett alagado em suor, e em estado no qual jamais o teriam posto os seus exercícios coreográficos.
- Não se faz nada? - perguntou aquele.
- Nada, Godfrey, não é possível - respondeu o professor -, e começo a ver que as invenções dos selvagens não são mais do que histórias para enganar a pobre humanidade!
- Não são histórias! - replicou Godfrey -, o que é necessário aqui, como em tudo, é saber por que modo se fazem as coisas.
- E os ovos?...
- Poderia empregar-se outro meio - declarou Godfrey. - Prendendo um destes ovos a um fio, fazendo-o girar com rapidez, e parando em seguida bruscamente o movimento de rotação, talvez que esse movimento se transformasse em calor, e, nesse caso...
- Ficaria cozido o ovo?
- Pode ser, se a rotação fosse grande e a paragem brusca... Mas como se há-de fazer cessar o movimento sem quebrar o ovo? Por isso o mais simples é isto, meu caro Tartelett.
E Godfrey, pegando cuidadosamente em um dos ovos, quebrou-lhe a casca na extremidade, e engoliu o seu conteúdo com destreza e sem mais formalidades.
Tartelett não pôde resolver-se a imitá-lo, e teve de se contentar com o seu quinhão de mariscos.
Faltava depois procurar uma gruta, uma anfractuosidade qualquer onde passassem a noite.
- Não há exemplo - observou o professor - de que os Robinsons não achassem uma caverna qualquer, que mais tarde convertiam em habitação!
- Vamos lá procurá-la - disse Godfrey.
Mas, se até então não havia exemplo, mentia desta vez a tradição. Em vão ambos esquadrinharam todas as rochas na parte setentrional da baía. Nem caverna, nem gruta, nem um buraco apenas que pudesse servir de abrigo. Tiveram de renunciar a mais investigações. Resolveu então Godfrey fazer um reconhecimento até às primeiras árvores do último plano, além dos limites do areal.
Subiram pois de novo, ele e Tartelett, pelo talude da primeira linha de montículos, e meteram-se pelos prados adjacentes que algumas horas antes tinham visto.
Por um acaso, estranho e feliz ao mesmo tempo, foram seguidos voluntariamente pelos outros sobreviventes do naufrágio. Galos, galinhas, cabras, carneiros e cutias, levadas pelo instinto, iam-nos seguindo. Sentiam-se decerto muito sós naquele areal que lhes não dava recursos suficientes, nem de ervas nem de vermes.
Três quartos de hora depois, Godfrey e Tartelett, que não tinham dito uma palavra durante esta exploração, chegaram junto das árvores. Não viram, porém, um único vestígio de casas nem de habitantes. Era caso para perguntar se nesta parte da região tinham alguma vez estado pés humanos!
Havia nesse sítio grupos isolados de árvores, enquanto outras, mais aglomeradas a um quarto de milha à retaguarda, formavam uma verdadeira floresta de essências diversas.
Godfrey procurou qualquer tronco velho, cavado pelos anos, que pudesse abrigá-los no interior, foram, porém, baldadas as suas investigações, embora as prosseguisse até ao cair da tarde.
Nessa ocasião apertava-os a fome, e tiveram então ambos de se contentar com mariscos, que tinham apanhado com abundância no areal. Em seguida, cheios de cansaço, deitaram-se ao pé de uma árvore, e adormeceram, como se diz, na graça de Deus.
GODFREY FAZ O QUE TERIA FEITO QUALQUER OUTRO NÁUFRAGO EM IDÊNTICAS CIRCUNSTÂNCIAS
A noite passou-se sem novidade alguma.
Os dois náufragos, abatidos pelas comoções e pela fadiga, dormiram com tanto sossego como se estivessem deitados no quarto mais confortável de Montgomery Street.
No dia seguinte, 27 de Junho, foram despertados pelo canto do galo, aos primeiros raios do Sol nascente.
Godfrey readquiriu, desde logo, o conhecimento da situação em que se achava, Tartelett, pelo contrário, fartou-se de esfregar os olhos e estender os braços, antes de cair na realidade dos fatos.
- O almoço de hoje parecer-se-á porventura com o jantar de ontem? - perguntou ele em primeiro lugar.
- Assim o receio - respondeu Godfrey - mas sempre tenho esperança de que esta tarde havemos de jantar melhor!
Não pôde o professor deixar de fazer um gesto de um amuo significativo. Que era feito do chá e das sanduíches que até então usava tomar logo que acordava? Como poderia ele, sem esta refeição preparatória, aguardar a hora do almoço... que talvez nunca chegasse! Era preciso, no entanto, tomar qualquer decisão. Godfrey avaliava agora bem a responsabilidade que sobre ele pesava, sobre ele só, pois do seu companheiro nada
tinha a esperar. Nessa caixa que servia de crânio ao professor não podia nascer idéia alguma com forma prática: ele, Godfrey, devia pensar, imaginar e decidir pelos dois.
O seu primeiro pensamento foi para Phina, a sua noiva, de quem impensadamente não quisera ainda fazer sua mulher, o segundo para seu tio Will, que abandonara com tanta imprudência. Em seguida, dirigiu-se a Tartelett:
- Para variar a nossa alimentação habitual, aqui estão alguns mariscos e meia dúzia de ovos!
- E não há meio de os cozer?
- Não há - disse Godfrey. - Mas o que diria, Tartelett, se estes próprios alimentos nos faltassem?
- Diria que nada é de mais neste mundo - respondeu o professor com secura.
E tiveram de contentar-se com esta refeição, mais do que sumária, partido que, sem hesitar, tomaram.
A idéia mais natural, que então ocorreu a Godfrey, foi a de continuar o reconhecimento começado na véspera. Primeiro que tudo, era preciso saber, tanto quanto possível, em que parte do oceano Pacífico se tinha perdido o «Dream», com o fim de procurar algum sítio habitado do litoral, onde fosse possível, quer obter meio de voltar à pátria, quer aguardar a passagem de qualquer navio.
Pensou Godfrey que, se pudesse passar além da segunda linha de colinas, cujo contorno pitoresco se desenhava por cima da floresta, fixaria talvez as suas idéias a este respeito.
Ora, como não avaliava em mais de uma ou duas horas o caminho necessário para lá chegar, resolveu empregar nesta exploração urgente as primeiras horas do dia.
Olhou à roda de si. Os galos e as galinhas preparavam-se para debicar nas ervas altas.
As cutias, as cabras e os carneiros andavam de um para outro lado na linha extrema das árvores.
Ora Godfrey não estava disposto a levar atrás de si toda esta corte de voláteis e de quadrúpedes. Contudo, para que eles não saíssem daquele lugar, era necessário que Tartelett os ficasse guardando.
Consentiu este em ficar só, e em ser, por algumas horas, o pastor daquele rebanho.
Fez apenas a seguinte observação:
- Não tem medo de se perder, Godfrey?
- A esse respeito esteja descansado - respondeu este.
- Só há que atravessar esta floresta, e, se me esperar neste sítio, tenho a certeza de o encontrar de novo.
- Não se esqueça do telegrama para seu tio, e peça-lhe algumas centenas de dólares!
- O telegrama... ou a carta! Está dito-volveu Godfrey, que não queria desvanecer as ilusões de Tartelett, enquanto não estivesse bem certo da situação em que se achava.
Em seguida, apertando a mão ao professor, meteu-se por entre as árvores, cuja ramaria espessa apenas deixava passar alguns raios solares. Era a direção destes, contudo, que devia guiar o moço explorador até essa colina elevada, que ainda lhe ocultava todo o horizonte do lado de leste.
Não havia sequer o traço de uma vereda. O terreno, contudo, não estava virgem de vestígios de passagem. Notou Godfrey que havia em alguns sítios marcas de pés de animais.
Por duas ou três vezes pareceu-lhe ver fugir vários ruminantes ligeiros, antílopes, gamos ou veados wapitis, mas não se lhe deparou vestígio algum de animais ferozes, tais como tigres ou jaguares, ausência que certamente lhe não causava muito pesar.
A parte mais alta da floresta, isto é, toda a porção de árvores compreendida entre a primeira bifurcação e a extremidade dos ramos, abrigava grande número de pássaros.
Eram eles pombos bravos, aos centos, debaixo das matas; xofrangos; galos selvagens; araçaris de bico em forma de pé de lagosta; e, mais acima, pairando sobre as clareiras, dois ou três desses gipaetos, cujos olhos se assemelhavam a um laço de fita. Nenhum destes pássaros, contudo, era de espécie bastante característica para que dele se pudesse deduzir qual era a latitude do continente que habitavam.
Da natureza da vegetação nada também se podia concluir. Havia ali quase todas as árvores existentes na parte dos Estados Unidos que compreende a baixa Califórnia, a baía de Monterey e o Novo México. Eram elas medronheiros e cerejeiras bravas, cobertas de grandes flores, bordos, bétulas, carvalhos, quatro ou cinco variedades de magnólias e de pinheiros marítimos, desses que se encontram na Carolina do Sul, em seguida, no meio de vastas clareiras, algumas oliveiras e castanheiros, e, pelo que respeita a arbustos, maciços de tamarindos, lentiscos e murtas, como os produz o meio-Dia da zona temperada. Em geral, havia entre as árvores espaço suficiente para se poder passar, sem se ter de recorrer ao fogo ou ao machado. A brisa do mar circulava com facilidade por entre as altas ramarias, e, aqui e ali, espalhavam-se no solo extensas toalhas luminosas.
Desta forma, ia Godfrey atravessando em linha oblíqua por entre a espessa floresta. Nem sequer lhe vinha á idéia tomar quaisquer precauções. Absorvia-o completamente o desejo de chegar às alturas que do lado de leste limitavam a floresta. Por entre a folhagem procurava ver a direção dos raios solares, a fim de, mais diretamente, chegar ao fim a que se propunha.
Nem mesmo via esses pássaros-guias, assim chamados por irem voando sempre diante dos passos de quem vai andando, parando, voltando-se e tornando a voar, como que quisessem indicar o caminho. Coisa alguma podia distraí-lo.
Compreende-se bem esta absorção de espírito. Em menos de uma hora o seu destino ia decidir se! Em menos de uma hora ia saber se seria possível chegar a alguma parte habitada desse continente!
Godfrey, pelo que conhecia do roteiro seguido pelo «Dream» durante uma navegação de dezessete dias, tinha pensado já que o navio só podia ter naufragado no litoral japonês ou na costa chinesa. Além disso, a posição do Sol, que sempre lhe ia ficando ao sul, provava à evidência que o «Dream» não tinha passado o limite do hemisfério meridional.
Duas horas depois de ter começado a andar, avaliava Godfrey em cinco milhas, pouco mais ou menos, o caminho percorrido, metendo em conta algumas voltas que dera, forçado pela espessura da floresta. Não podia, pois, estar longe o segundo plano das colinas. As árvores começavam já a estar mais distanciadas, formando alguns grupos isolados, e os raios luminosos penetravam mais facilmente através das ramarias mais altas: O solo apresentava também certo declive, que foi aumentando até se converter em rampa muito inclinada.
Ainda que bastante fatigado, teve Godfrey a força de vontade necessária para não afrouxar o passo. Se não fosse a escabrosidade das primeiras subidas, teria decerto corrido.
Daí a pouco chegou a uma posição elevada bastante para dominar completamente a cúpula verdejante que se estendia atrás dele e da qual sobressaíam alguns ramos de árvores.
Não pensava, contudo, em olhar para trás. Não tirava os olhos dessa linha extrema que se destacava a quatrocentos ou quinhentos pés adiante do lado do oriente.
Para além desta linha acidentada destacava-se um cone de pequenas dimensões, truncado obliquamente, confundindo-se, por um esbatido suave, com a crista sinuosa que o conjunto das colinas desenhava.
- É ali!... é ali!... - disse Godfrey. - Aquele ponto é que é preciso chegar, ao vértice daquele cone!... Dali o que verei?... Uma cidade?... Uma aldeia?... O deserto?...
E, sobremaneira excitado, ia subindo e apertando o peito com os braços para conter as pulsações do coração. Fatigava-o a respiração arquejante, não tinha, porém, paciência de parar a fim de descansar um só momento. Não queria perder nem um minuto sequer, ainda que depois caísse extenuado no vértice do cone, que já não estava a mais do que cem pés acima da sua cabeça!
Ainda alguns Instantes, porém, e chegaria ao ponto desejado. A subida parecia mais difícil, por este lado, sob o ângulo de 30 a 35 graus. Auxiliava-se com os pés e com as mãos, agarrava-se aos molhos de ervas delgadas do talude, e a alguns raros maciços de lentiscos e de murtas que estavam dispostos em escada até à crista.
Por fim fez um esforço derradeiro. Passou a cabeça acima da plataforma do cone, enquanto que, deitado ao comprido, percorria com a vista todo o horizonte do lado de leste...
Este horizonte era formado pelo mar, que se ia confundir, a umas vinte milhas além, com a linha do céu.
Voltou-se então para o outro lado...
O mar, ainda o mar, a oeste, ao sul e ao norte!... O mar imenso rodeando-o por todos os lados.
- Uma ilha!
Ao dizer estas palavras, Godfrey sentiu apertar-se-lhe o coração. Não lhe tinha vindo à idéia que pudesse estar numa ilha! E assim era, não obstante. A cadeia terrestre, que ele
esperava que o ligasse ao continente, tinha-se quebrado bruscamente. Sentia a impressão de um homem que adormecesse dentro de um barco, arrastado em seguida pela corrente, e despertasse sem ter remos nem vela para poder voltar para terra.
Godfrey, contudo, cobrou depressa ânimo, tomando o partido de aceitar a situação. Enquanto às probabilidades de se salvar, era preciso que ele as inventasse, visto que não podiam vir do exterior.
Tratava-se em primeiro lugar, de reconhecer, com a maior exatidão possível, a disposição dessa ilha, cuja extensão a sua vista abrangia na totalidade. Calculou aproximadamente que ela devia ter umas sessenta milhas de circunferência, pois tinha, à simples vista, vinte milhas de comprimento de sul a norte e doze de largura de leste a oeste.
A parte central da ilha estava oculta sob a floresta espessa e verdejante que chegava à linha extrema, dominada pelo cone, cujo talude vinha terminar no litoral.
O resto era apenas composto de prados com maciços de árvores, ou areal com rochedos, que projetavam as últimas fiadas em forma de cabos e promontórios caprichosamente afilados. Na costa havia alguns ancoradouros, mas não podiam decerto dar abrigo a mais de dois ou três barcos de pesca. Unicamente a baía, onde o «Dream» naufragara, tinha sete a oito milhas de extensão. Muito pouco abrigada, contudo, não daria segurança a um navio qualquer, a menos que o vento não soprasse de leste.
Mas que ilha era essa? A que grupo geográfico pertencia? Faria parte de algum arquipélago ou estava isolada naquela parte do Pacífico?
Em todo o caso, nenhuma outra ilha, grande ou pequena, elevada ou baixa, aparecia em parte alguma.
Godfrey tinha-se levantado e interrogava o horizonte com a vista. Nada via, porém, nesta linha circular onde o mar e o céu se confundiam. Portanto, se, para qualquer lado, existia alguma ilha ou porção do continente, só podia ser a distância considerável.
Começou então a evocar os seus conhecimentos geográficos, a fim de adivinhar que ilha do Pacífico era aquela. De raciocínio em raciocínio, chegou a concluir que o «Dream» seguira com pouca diferença, durante dezessete dias, a direção sudoeste. Ora, com velocidade de 150 a 180 milhas em 24 horas, devia ter percorrido mais de 50 graus. Por outro lado, era certo que não tinha passado a linha do equador. Devia pois procurar a situação da ilha, ou do grupo a que talvez pertencia, na parte compreendida entre l60 graus e 170 graus de latitude norte.
Nesta parte do Pacífico parecia a Godfrey que nenhuma carta geográfica lhe teria indicado outro arquipélago senão o das ilhas Sanduíche, mas, além deste, não haveria ilhas isoladas, de cujos nomes se não recordava, e que formavam como um grande viveiro até ao litoral do Celeste Império?
Isto, porém, pouco importava. Não havia meio de ir procurar em outro ponto do oceano terra mais hospitaleira.
- Pois bem - concluiu Godfrey -, visto que não sei o nome desta ilha, chamar-lhe-ei a Ilha Phina, como lembrança dessa que eu não deveria ter abandonado para ir correr o mundo, e possa este nome trazer-nos a felicidade.
Cuidou então Godfrey em reconhecer se a ilha seria habitada na parte que ainda não tinha podido examinar.
Nada viu, porém, do vértice do cone, que lhe revelasse traços de indígenas, nem casas no prado ou no fim da floresta, nem ao menos uma cabana de pescador na costa.
Se a ilha, contudo, era deserta, não o era menos o mar que a rodeava, e não se via navio algum nos limites de uma periferia à qual a altura do cone dava desenvolvimento considerável.
Terminada a exploração, nada mais tinha a fazer Godfrey do que voltar ao sopé da colina e retomar o caminho da floresta, a fim de ir ter de novo com Tartelett: Antes, porém, de sair de onde estava, atraiu-lhe a vista um grupo de árvores de grandes dimensões, que se erguiam ao norte no fim dos prados. Era o grupo deveras gigantesco e excedia em dimensões todos os que até então Godfrey tinha visto.
- Talvez que este lugar seja bom para aqui ficarmos – pensou ele -, tanto mais que, se não me engano, vejo além um riacho que deve partir de alguma nascente central e vai correndo através dos prados.
Este exame tinha de ficar para o dia seguinte.
Para o sul o aspecto da ilha era um pouco diferente. Em vez de florestas e de prados, havia o tapete amarelo dos areais, e em alguns sítios o areal elevava-se em rochas pitorescas.
Qual foi, porém, a sua surpresa ao parecer-lhe que via um fumo ligeiro, que subia aos ares para além daquela barreira de rochas!
- Estarão ali alguns dos nossos companheiros? – exclamou ele. - Mas não, não é possível! Por que razão se teriam eles afastado desde ontem da baía, a muitas milhas do recife? Será aquilo alguma povoação de pescadores ou acampamento de tribo indígena?
E pôs-se a observar com extrema atenção. Seria com certeza fumo esse vapor subtil que a brisa fazia descobrir ligeiramente para oeste? Era bem fácil que se enganasse. O que quer que fosse, porém, não tardou em desvanecer-se e alguns minutos depois já se não via coisa alguma.
Era mais uma esperança perdida.
Godfrey olhou ainda uma vez naquela direção, em seguida, não vendo mais nada, deixou-se escorregar ao longo do talude, tornou a descer a encosta da colina e meteu-se de novo pelo meio das árvores.
Dali a uma hora, tinha atravessado toda a floresta e saía pelo extremo desta.
Aí aguardava-o Tartelett, no meio do seu rebanho de duas e de quatro patas. E em que se ocupava o obstinado professor? Sempre na mesma coisa: com um bocado de pau na mão direita e outro na esquerda, afadigava-se à força de os querer inflamar.
Esfregava, esfregava com constância digna de melhor sorte.
- Então - perguntou ele, mal viu Godfrey -, e a estação telegráfica?
- Não estava aberta! - respondeu Godfrey, que não se atrevia ainda a dizer coisa alguma acerca da situação.
- E o correio?
- Estava fechado!... Vamos almoçar! Estou a morrer de fome!... Depois conversaremos.
Nessa manhã, Godfrey e o seu companheiro tiveram de se contentar ainda com a parca refeição de ovos crus e de mariscos!
- Regime muito higiênico - repetia Godfrey a Tartelett, que não era deste parecer e mal tocava nesses alimentos.
RESOLVE-SE DA MELHOR MANEIRA POSSÍVEL O MODO DE HABITAÇÃO
Ia já o dia muito adiantado. Resolveu por isso Godfrey guardar para o dia seguinte o proceder a nova instalação. Às repetidas perguntas que lhe dirigiu o professor acerca dos resultados da sua exploração, satisfez respondendo que ambos tinham sido lançados numa ilha - a ilha Phina - e que era preciso pensar nos meios de viver ali, antes de procurar os de poder sair.
- Uma ilha! - exclamou Tartelett.
- É sim, é uma ilha!
- Rodeada pelo mar?...
- Naturalmente.
- Mas que ilha é?
- Já lhe disse que era a ilha Phina, e deve compreender bem a razão por que lhe dei este nome!
- Não percebo, não - volveu Tartelett, fazendo uma careta -, não vejo que haja semelhança alguma. Miss Phina está, pelo contrário, rodeada de terra.
Depois desta reflexão melancólica tratou-se de passar a noite o melhor possível. Godfrey voltou ao recife para fazer nova provisão de ovos e de moluscos, única refeição possível, e, em seguida, quebrantado pela fadiga, não tardou que adormecesse ao pé de uma árvore, enquanto Tartelett, cuja filosofia não queria aceitar esse estado de coisas, ficava entregue às mais amargas reflexões.
No dia seguinte, 28 de Junho, já ambos estavam a pé antes que o canto do galo lhes tivesse vindo interromper o sono.
Em primeiro lugar almoçaram por um processo sumário, da mesma forma que na véspera. Substituíram apenas com vantagem a água fresca por um pouco de leite que uma das cabras deixou mungir.
Ah!, digno Tartelett! Onde estavam esse mint-julep, o Port-wine sangrie, o sherry-cobbler e o sherry-cocktail, que ele jamais bebia, mas de que a todo o instante poderia servir-se nos botequins e restaurantes de São Francisco? Como ele invejava os voláteis, as cutias e os carneiros que se podiam dessedentar sem que precisassem que a água contivesse princípios açucarados ou alcoólicos! Esses animais não necessitavam de lume para a sua alimentação: raízes, ervas e sementes, tudo lhes servia, e o seu almoço estava sempre pronto e servido a tempo sobre a mesa verdejante.
- A caminho - decidiu Godfrey.
E partiram ambos, seguidos pelo cortejo dos animais domésticos, os quais, decididamente, se não resolviam a abandoná-los.
O projeto de Godfrey consistia em ir explorar, ao norte da ilha, a parte da costa onde se elevava o grupo de árvores que vira do cimo do cone. Para aí chegar, resolveu seguir o litoral. Talvez que a ressaca ali tivesse depositado algum destroço do naufrágio! Talvez que nesse lugar encontrasse, na areia, alguns dos seus companheiros do «Dream», privados de sepultura, e aos quais deveria enterrar como cristãos! O que não esperava, trinta e seis horas depois da catástrofe, era encontrar vivo um único marinheiro da equipagem, o qual, como ele, se tivesse salvo.
Atravessaram assim a primeira linha de montículos, e, dentro em pouco, chegaram ao começo do recife, que estava ainda tão deserto como de véspera o tinham deixado. Aqui, por cautela, forneceram-se novamente de ovos e de mariscos, prevendo que mesmo estes poucos recursos poderiam faltar-lhes ao norte da ilha. Depois, seguindo a orla dos sargaços, depositados pela última maré, tornaram a subir, investigando toda esta parte da costa.
Nada, sempre nada.
É preciso concordar que, se decididamente a má fortuna tinha convertido em Robinsons os dois sobreviventes do «Dream», ela mostrava-se: para com eles muito mais rigorosa do que o fora para com os seus antecessores. A estes sempre tinham ficado quaisquer restos do navio que naufragara. Depois de terem feito com eles muitos objetos de primeira necessidade, podiam utilizar-lhes ainda os fragmentos. Em outros casos salvavam-se alimentos que chegavam para algum tempo: roupa, utensílios quaisquer, armas, coisas enfim com as quais se podia prover às exigências mais elementares da vida. Aqui, porém, nada disso! No meio das trevas da noite o navio desaparecera nos abismos do mar, sem deixar no recife o menor dos seus vestígios! Coisa alguma se tinha podido salvar, nem sequer um fósforo, e nesse momento era na realidade um fósforo que mais falta fazia.
É bom de dizer-se o que algumas excelentes pessoas diriam de bom grado, acomodadas confortavelmente no seu quarto, diante de um bom fogão, onde cintila a madeira carbonizada:
- Mas nada há mais fácil do que ter-se fogo! Para isso há mil maneiras diversas! Duas pedras!... Um bocado de musgo seco!... Um pouco de linho queimado (e como se há-de queimar este linho?). Depois a folha de uma faca servindo de fuzil... ou esfregar simplesmente dois pedaços de pau, à moda da Polinésia!...
Pois experimentem!
Eram estas as reflexões que fazia Godfrey enquanto ia andando, e as que, por razões fortes, mais o preocupavam. Talvez que ele, também, atiçando o lume no seu braseiro cheio de coque, e lendo descrições de viagens, tivesse pensado como os outros! Na prática, porém, renegava tais idéias, e estava um tanto inquieto por lhe faltar o fogo, este auxiliar indispensável que nada pode substituir.
Caminhava assim, absorto por tais pensamentos, adiante de Tartelett, cujo cuidado único era ir chamando continuamente o rebanho dos carneiros, das cutias, das cabras e dos voláteis.
De repente feriram-lhe a vista as cores vivas de um cacho de maçãs pequenas, pendentes dos ramos de vários arbustos, disseminados às centenas na base dos montículos, e para logo reconheceu que eram algumas dessas manzanillas de que os índios se alimentam em certos pontos da Califórnia.
- Até que enfim - exclamou ele. - Aqui está uma pequena variante aos ovos e aos mariscos.
- Pois quê, isto come-se? - perguntou Tartelett, que, segundo o seu costume, começou por fazer caretas.
- Experimente - aconselhou Godfrey.
E, apanhando algumas das manzanillas, pôs-se a comê-las com avidez.
Não eram outra coisa senão maçãs bravas, mas a sua própria acidez não deixava de ser agradável. O professor não tardou em imitar o seu companheiro, e não ficou muito descontente com o achado. Godfrey pensou, e com razão, que destes frutos se poderia tirar uma bebida fermentada, a qual sempre seria preferível à água pura.
A marcha prosseguiu. Daí a pouco o extremo do montículo arenoso perdeu-se num prado atravessado por um pequeno rio de águas correntes. Era este o rio que fora visto por Godfrey do vértice do cone. As árvores grandes destacavam-se mais ao longe, e, depois de andarem nove milhas pouco mais ou menos, os dois exploradores, bastante fatigados com este passeio de quatro horas, chegaram junto delas alguns minutos depois do meio-dia.
O local merecia, na verdade, ser visto, visitado, escolhido e, sem dúvida, ocupado.
Ali, com efeito, no fim de um vasto prado, cortado por maciços de manzanillas e outros arbustos, erguiam-se umas vinte árvores gigantescas, que bem se podiam comparar com as próprias essências das florestas da Califórnia. Estavam dispostas em semicírculo. A verdura, que lhes atapetava os pés, depois de se prolongar no leito do rio por algumas centenas de passos ainda, dava lugar a extenso areal, cheio de rochas, de seixos e de sebas (1), cujo prolongamento se destacava no mar, para o lado do norte, por uma ponta afilada da ilha.
Essas árvores gigantescas, esses high-trees (2), como são vulgarmente chamadas na América de Oeste, pertenciam ao gênero das sequóias, coníferas da família dos abetos.
(1) Espécie de sargaço ou planta marinha.
(2) High, grande, tree, árvore.
Se perguntarem aos ingleses por que nome especial as designam, dirão: Welligtónia.s. A resposta dos americanos a pergunta idêntica seria: Washingtónias.
Percebe-se imediatamente a diferença.
Mas, quer elas comemorem o fleumático vencedor de Waterloo ou o ilustre fundador da república americana, é certo que são os mais gigantescos produtos conhecidos da flora da Califórnia e de Nevada.
Com efeito, em certas partes destes Estados, existem florestas inteiras destas árvores, tais como os grupos de Mariposa e Calavera, algumas das quais medem sessenta a oitenta pés de circunferência por trezentos de altura. Uma destas árvores, na entrada do vale de Yosemiti, não tem menos de cem pés de roda, enquanto era viva - pois agora está deitada por terra - os seus últimos ramos teriam chegado ao ponto mais alto da Munster (3) de Estrasburgo. Citam-se ainda a «Mãe da Floresta», a «Cabana do Trabalhador», as «Duas Sentinelas», a «Beleza da Floresta», o «General Grant», «Mademoiselle Ema», «Mademoiselle Marian», «Brigham Junior e sua Mulher», as «Três Graças» e o «Urso», que são verdadeiros prodígios vegetais. No tronco, serrado na base, de uma destas árvores, construiu-se um quiosque, onde pode dançar à vontade uma quadrilha de dezesseis a vinte pessoas. Mas, realmente, o gigante destes gigantes, no meio de uma floresta que é propriedade do Estado, a umas quinze milhas de Murphy, é o «Pai da Floresta», velha sequóia que tem quatro mil anos de idade e se eleva a quatrocentos e cinqüenta e dois pés do solo, mais alta do que a cruz de São Pedro em Roma (4), do que a pirâmide de Giseh, mais alta, enfim, do que esse campanário de ferro que atualmente existe numa das torres da catedral de Roma, e deve ser considerado como o monumento mais alto do mundo.
Era um grupo de uns vinte destes colossos que a natureza colocara neste ponto da ilha, talvez na época na qual o rei Salomão construiu o templo de Jerusalém, que jamais se elevou sobre as suas ruínas.
(3) Catedral de Estrasburgo, cuja torre tem 145 pés de altura.
(4) Esta cruz está a 408 pés do solo.
As maiores teriam perto de trezentos pés, e as mais pequenas duzentos e cinqüenta. Algumas delas, cavadas interiormente pela velhice, formavam na base um arco gigantesco, por sob o qual poderia passar uma cavalgada.
Godfrey ficou extasiado à vista destas árvores prodigiosas, que só se encontram geralmente nas altitudes de cinco a seis mil pés acima do nível do mar. Chegou a pensar que só aquela vista valeria os incômodos da viagem. Nada havia, com efeito, de comparável a essas colunas de um pardo-escuro, que se destacavam de perfil, quase sem diminuição sensível de diâmetro desde a raiz até à primeira bifurcação dos ramos. Esses fustes cilíndricos, na altura de oitenta a cem pés acima do solo, cheios de ramos fortes e espessos como troncos de árvores já enormes, pareciam sustentar uma floresta inteira nos ares.
Uma destas sequóias gigantescas - uma das maiores do grupo - atraiu mais particularmente a atenção de Godfrey. Cavada na base, tinha uma abertura, cujas dimensões, quatro a cinco pés de largura e dez de altura, facultavam a entrada no Interior. O coração do gigante tinha já desaparecido, pois o alburno (5) fora reduzido a pó tênue e esbranquiçado, mas, se a árvore já não firmava nas poderosas raízes senão a casca sólida, podia ainda viver assim durante séculos.
- À falta de uma caverna ou gruta - exclamou Godfrey -, aqui está uma habitação improvisada, uma casa de madeira e uma torre, como não há em países habitados! Ali poderemos estar abrigados e cobertos! Venha ver depressa, Tartelett!
E Godfrey, arrastando o seu companheiro, entrou dentro da sequóia.
O solo aí estava coberto de uma camada de poeira vegetal, e o seu diâmetro não era inferior a vinte pés ingleses.. A escuridão não deixava avaliar a altura da abóbada interna. Nenhum raio de luz, porém, se infiltrava através das paredes cascosas desta espécie de sótão. Não havia pois fendas, nem soluções de continuidade por onde a uva ou o vento pudessem entrar.
(5) Parte tenra e branca das árvores, entre a casca e o cerne, nas dicotiledôneas.
Os nossos dois Robinsons ficariam ali, com certeza, em condições suficientes para arrostarem impunemente com as intempéries atmosféricas. Uma caverna não teria sido mais sólida, nem mais seca, nem mais fechada. Seria difícil, na verdade, achar coisa melhor!
- Hem, Tartelett, que lhe parece este abrigo natural? - perguntou Godfrey.
- É muito bom, sim senhor, mas o fogão?
- Antes de pedir um fogão - redargüiu Godfrey - espere pelo menos que possamos ter lume!
Era isto o mais lógico possível.
Foi então Godfrey examinar as imediações do grupo de árvores. Como já se disse, o prado chegava até este enorme maciço de sequóias, que por esse lado o limitava. O rio, correndo pelo seu tapete verdejante, dava a essas terras frescura salutar.
Diversas espécies de arbustos cresciam nas bordas, eram murtas, lentiscos e grande quantidade dessas manzanillas que asseguravam a colheita das maçãs selvagens.
Mais ao longe, subindo, vários grupos de árvores, tais como carvalhos, faias, sicômoros e almezes, estavam dispersos por toda essa vasta zona de erva, mas, se bem que fossem também de grandes dimensões, pareciam simples arbustos ao pé desses mammoths Trees, cuja sombra o Sol nascente devia prolongar até ao oceano. Através dos prados havia também linhas sinuosas de arbustos, de maciços vegetais e de matas verdejantes, decidindo-se Godfrey a ir vê-los no dia seguinte.
Se a este agradara o local, não menos o tinham apreciado os animais domésticos. Cutias, cabras e carneiros tinham tomado posse desse domínio, que lhes dava raízes para eles roerem ou erva para pastarem muito mais de que precisavam. As galinhas debicavam avidamente nas sementes e nos vermes que havia nas bordas do riacho. A vida animal manifestava-se já por idas e vindas, voltas, vôos, balidos, grunhidos e cacarejos que, sem dúvida, nunca se tinham ouvido em tais paragens.
Voltou Godfrey ao grupo das sequóias e examinou, com mais atenção, a árvore aonde ia assentar domicílio. Pareceu-lhe que seria, se não impossível, pelo menos muito difícil, subir aos primeiros ramos, muito mais pelo lado exterior, visto que o tronco não tinha saliência alguma, dentro, porém, talvez a ascensão fosse mais fácil , caso a cavidade interna chegasse à bifurcação entre o alburno, o cerne e a casca.
Em caso de perigo, seria talvez útil procurar refúgio nesta espessa ramaria sustentada pelo enorme tronco. Esta questão devia ficar para ser resolvida mais tarde.
Quando terminou a exploração tinha já o Sol descido bastante no horizonte, e Godfrey julgou conveniente guardar para o dia seguinte os preparativos da instalação definitiva.
Naquela noite, porém, depois de um jantar cuja sobremesa constou de maçãs bravas, onde melhor se poderia dormir do que sobre a poeira vegetal que cobria o solo interior da sequóia? Foi o que fez sob a proteção da Providência, não sem que Godfrey, como recordação de seu tio William W. Kolderup, deixasse de pôr o nome de Will-Tree a essa árvore gigantesca, cujas similares das florestas da Califórnia e dos Estados Unidos têm todos o nome de um dos grandes cidadãos da república americana.
APARECE NO FIM, MUITO A PROPÓSITO, UM RAIO MAGNÍFICO
É preciso concordar com o seguinte: Godfrey estava em via de se tornar um novo homem no meio desta situação diferente para ele, tão frívolo, tão volúvel, tão pouco pensador quando não tinha mais do que deixar-se viver. Efetivamente o seu repouso nunca tinha sido perturbado pelos cuidados do dia seguinte. Na opulenta habitação de Montgomery-Street, onde dormia umas dez horas a seguir, nem as pregas de uma folha de rosa lhe tinham ainda incomodado o sono.
Daqui por diante já não podia ser assim.
Nesta ilha desconhecida estava completamente separado do mundo, entregue aos seus únicos recursos, e forçado a fazer face às necessidades da vida em condições que atrapalhariam qualquer homem mais prático. Não havia dúvida de que o iriam procurar, quando não vissem aparecer o «Dream». Mas o que eram eles ambos? Mil vezes menos da que uma agulha em palheiro, ou um grão de areia no fundo do mar! A fortuna incalculável do tio Kolderup não era resposta para tudo.
Por isso, embora tivesse encontrado um abrigo quase aceitável, Godfrey não dormiu nele senão com sono agitado. O cérebro trabalhava-lhe como nunca. É porque lhe acorriam as mais diversas idéias: as do passado, do qual tinha amarga saudade, as do presente, que procurava realizar, e as do futuro, que ainda mais o inquietavam!
No meio destas rudes provas, a razão, e portanto o raciocínio que muito naturalmente dela derivam, iam saindo, a pouco e pouco, do limbo em que até então tinham jazido.
Godfrey estava resolvido a lutar contra a má sorte, a tentar tudo, dentro dos limites do possível, para sair daquela situação. Se, por acaso, conseguisse escapar, a lição não seria perdida de futuro.
Ao romper da alva pôs-se a pé no intuito de proceder a instalação mais completa. A questão dos víveres, e sobretudo a do fogo, que com ela andava ligada, tinham primazia sobre as outras, tais como os meios de obter utensílios ou quaisquer arma e roupa para mudar, a qual era bem necessária, sob pena de ambos não tardarem a andar vestidos à moda da Polinésia.
Tartelett estava ainda a dormir. Na escuridão não se via o professor, mas ouvia-se. O pobre homem, salvo do naufrágio, e ainda tão frívolo aos quarenta e cinco anos como o seu discípulo o tinha sido até então, não podia servir a este de muito. Era até um encargo, visto que havia de ter muitas exigências, mas, enfim, era um companheiro! Valia mais, certamente, do que um cão dos mais inteligentes, se bem que era, sem dúvida, menos útil. Era uma criatura que podia falar, embora em demasia, se bem que sempre em assuntos pouco sérios, e queixar-se, o que decerto lhe havia de acontecer com mais freqüência! Como quer que fosse, Godfrey podia escutar o som da voz humana. Sempre era isto melhor do que a do papagaio de Robinson Crusoe! Embora, com Tartelett não estaria só, e coisa alguma lhe teria abatido mais o ânimo do que a perspectiva de uma solidão completa.
- Robinson antes de sexta-feira, Robinson depois de sexta-feira, que diferença! - pensava ele.
Nessa manhã, 29 de Junho, Godfrey não desgostou de estar só, a fim de pôr em prática o seu projeto de explorar as imediações do grupo das sequóias. Talvez que tivesse a felicidade de encontrar algum fruto, alguma raiz que se pudesse comer, e que trouxesse, com grande satisfação do professor. Deixou pois Tartelett entregue aos seus sonhos e pôs-se a caminho.
O litoral e o mar estavam ainda cobertos de nevoeiro pouco espesso, que já começava a dissipar-se, ao norte e ao leste, sob a influência dos raios solares, que deviam densá-lo pouco a pouco. O dia dava indícios de estar muito bonito.
Godfrey, depois de ter cortado um pau bastante sólido, subiu durante duas milhas até à parte da praia que ainda não conhecia, cuja volta formava a ponta alongada da ilha Phina.
Aí comeu mexilhões, amêijoas e principalmente ostras pequenas, mas excelentes, que achou em grande abundância.
- À falta de outra coisa - disse ele - com isto não se morre de fome! Há aqui milhões de dúzias de ostras, com as quais se podem sufocar os gritos mais exigentes do estômago. Se Tartelett se queixa, é porque não gosta destes moluscos!... Mas por fim não terá remédio senão habituar-se!
É certo que, se a ostra, absolutamente falando, não pode substituir o pão e a carne, não deixa pelo menos de conter alimento muito nutritivo, com a condição de ser comida em grande quantidade. Como este molusco é, porém, de digestão muito fácil, pode-se, sem receio, usar dele, para não dizer abusar.
Acabando de almoçar, Godfrey pegou de novo no pau, e dirigiu-se obliquamente para sudoeste, de forma a subir a margem direita do riacho. Este caminho devia levá-lo, pelo meio do prado, até aos grupos de árvores que na véspera tinha visto, para além das extensas linhas de silveirais e de arbustos que de perto queria examinar.
Caminhou, portanto, Godfrey nesta direção durante duas milhas pouco mais ou menos. Ia pela margem do rio, atapetada de erva curta e cerrada como um tecido de veludo. Vários bandos de aves aquáticas fugiam, com estrépito, diante deste ser, novo para elas, que vinha perturbar os seus domínios. Peixes de diversas espécies nadavam nas águas límpidas do riacho, cuja largura nesta parte se podia avaliar em quatro ou cinco jardas.
Não seria decerto difícil apanhar esses peixes, mas não se podiam comer crus, o que era sempre a questão irresolúvel.
Felizmente, Godfrey, chegando às primeiras linhas de silveiras, encontrou duas espécies de frutos ou de raízes, dos quais uns era necessário passá-los pela prova do fogo, antes de serem comidos, e outros podiam ingerir-se no estado natural.
Os índios da América fazem uso constante destes dois vegetais.
Era o primeiro um destes arbustos chamados camas, os quais crescem em todos os terrenos, ainda os impróprios para qualquer cultura. Com as suas raízes, semelhantes a uma cebola, faz-se uma espécie de farinha muito abundante em glúten e muito nutritiva, quando não se prefira comê-las como se fossem batatas.
Em qualquer dos casos, porém, é preciso sempre submetê-los a certa cocção ou torrefação.
O outro arbusto dava uma espécie de bolbo de forma oblonga que tem o nome indígena de yamh, e, se bem que contenha, talvez, menos princípios nutritivos do que o camas, era-lhe preferível nessa ocasião, pois que se podia comer cru.
Godfrey, muito satisfeito com este achado, comeu, sem demora, muitas destas excelentes raízes, e, não esquecendo o almoço de Tartelett, pôs às costas um grande molho delas e dirigiu-se de novo para Will-Tree.
É inútil descrever a recepção que teve ao aparecer com a provisão dos yamphs. O professor comeu deles com avidez e foi preciso que o seu discípulo o aconselhasse a ser mais moderado.
- Hoje temos destas raízes - dizia ele -, quem sabe se amanhã as teremos?
- Havemos de tê-las com certeza - replicou Godfrey -, amanhã, depois de amanhã e sempre! Não é necessário mais do que o trabalho de as ir apanhar!
- Ainda bem, Godfrey, e este camas?
- Poderemos fazer com ele farinha e pão, uma vez que haja fogo!
- Fogo! - exclamou o professor, abanando a cabeça. - Fogo! E por que meio se há-de obter?...
- Não sei ainda - respondeu Godfrey -, mas, de uma maneira ou de outra, havemos de consegui-lo.
- Que o céu o ouça, meu querido Godfrey, e pensar eu que há tantas pessoas que, para terem lume, não têm mais a fazer do que esfregar um bocadinho de pau na sola do sapato! Desespera-me isto! Nunca pensei que a sorte chegasse um dia a reduzir-me a esta miséria! Em Montgomery-Street não se dá três passos sem se entrar um cavalheiro de charuto na boca, que nos dá lume com o máximo prazer, enquanto aqui...
- Aqui, Tartelett, não estamos em São Francisco nem Montgomery-Street, e julgo mais prudente não contar com a delicadeza de quem for passando!
- Mas, também, por que razão precisam o pão e a carne de ser cozidos? Porque não nos faria a natureza de modo a vivermos de ar atmosférico?
- Há-de chegar esse tempo, talvez! - respondeu Godfrey, sorrindo-se com bom humor.
- Julga isso?...
- Julgo pelo menos que alguns sábios tratam de o resolver!
- É possível? E em que se fundam eles para procurarem esse novo modo de alimentação?
- No seguinte raciocínio - explicou Godfrey -: a digestão e a respiração são funções correlativas, uma das quais poderá talvez substituir a outra. Portanto, no dia em que a química tiver conseguido que os alimentos necessários ao sustento do homem possam assimilar-se pela respiração, o problema ficará resolvido. Basta apenas que se torne o ar nutriente. Por fim, tudo consistirá em respirar o jantar em lugar de o comer.
- Que pena que essa preciosa descoberta ainda não tenha sido feita! - exclamou o professor. - Agora de boa vontade respirava meia dúzia de sanduíches e um bocado de carnbeef, só para me abrir o apetite!
E Tartelett, caindo num êxtase sensual, no meio do qual entrevia suculentos jantares atmosféricos, abria a boca inconscientemente e respirava com toda a força dos pulmões, esquecendo-se de que tinha apenas com que se sustentar do modo mais simples que era possível.
Godfrey fê-lo sair da sua meditação, trazendo-o ao positivo da vida.
Tratava-se de proceder à instalação mais completa no interior de Will-Tree.
O primeiro cuidado que tiveram foi de limpar a habitação futura. Em primeiro lugar foi necessário tirar muitos quintais desse pó vegetal que havia sobre o solo e chegava até meia perna.
Duas horas de trabalho foram bastantes para esta penosa tarefa, e por fim o chão ficou desembaraçado daquela camada pulverulenta que, ao menor movimento, se elevava em nuvem densa.
O solo era firme e resistente como se estivesse assoalhado com traves fortes, por causa das largas raízes da sequóia que se ramificavam na sua superfície. Era tosco mas sólido.
Godfrey e Tartelett escolheram dois cantos para colocarem os leitos, formados apenas de alguns molhos de ervas muito bem secas ao sol. Não seria talvez impossível fabricar outros móveis mais necessários, tais como bancos, mochos ou mesas, visto que Godfrey possuía uma navalha magnífica, com serra e foice. Era preciso ficarem em condições de residir no interior da árvore durante o mau tempo, para poderem comer e trabalhar.
Havia bastante luz, que entrava a jorros pela abertura. Se, mais tarde, fosse preciso fechar essa abertura, para segurança mais completa, trataria Godfrey de abrir na casca da sequóia uma ou duas frestas que serviriam de janelas.
Sem luz não podia Godfrey saber a que altura chegava a parte vazia do tronco. Pôde apenas certificar-se de que uma vara de dez a doze pés de comprimento não chegava ao teto quando se agitava por cima da cabeça.
Não era, porém, esta questão das mais urgentes e podia ficar para resolução ulterior.
Passou-se o dia nesse trabalho que não acabou antes , do pôr do Sol. Godfrey e Tartelett, muito fatigados, acharam excelente a cama, feita unicamente de erva seca, de que se tinham provido com abundância, mas tiveram de a disputar aos voláteis, que de boa vontade teriam escolhido Will-Tree por domicílio. Pensou, porém, Godfrey que seria conveniente arranjar uma capoeira em qualquer outra sequóia do grupo, e teve de tapar com molhos de tojo a entrada da câmara comum. Felizmente, nem os carneiros, nem as cutias, nem as cabras tiveram a mesma tentação: Estes animais ficaram tranqüilamente do lado de fora, e não sentiram desejos de transpor aquela fraca barreira.
Os dias seguintes foram empregados em diversos trabalhos de instalação e de colheita. Era preciso apanhar ovos e mariscos, raízes de yamh e manzanillas, e ostras que todas as manhãs eles iam procurar aos bancos do litoral. Tudo isto levava certo tempo e as horas passavam-se rapidamente.
Os utensílios que possuíam constavam apenas de algumas conchas de bivalves, que serviam de copos ou pratos. Verdade é que nada mais era necessário para o gênero de alimentação a que estavam reduzidos os hóspedes de Will-Tree. Um dos seus cuidados era a lavagem da roupa na água límpida do rio, no que se empregavam os ócios de Tartelett. Era a ele que esta tarefa incumbia, não se tratava, contudo, senão de duas camisas, dois lenços e dois pares de peúgas, em que consistia toda a roupa dos náufragos.
Por isso, durante esta operação, Godfrey e Tartelett ficavam unicamente com as calças e a camisola, mas, com o sol ardente dessa latitude, tudo secava depressa.
Desta forma chegaram ao dia 3 de Julho sem que sentissem chuva nem vento.
A instalação já se tinha tornado quase aceitável, atentas as condições de miséria no meio das quais Godfrey e Tartelett tinham sido lançados na ilha.
Não deviam, contudo, desprezar as probabilidades de salvação, que só de fora podiam vir. Por isso, todos os dias Godfrey ia ver o mar em toda a extensão do sector que se desenvolvia de este a noroeste, para além do promontório. Aquela parte do Pacífico estava sempre deserta. Nem um navio, nem um barco de pesca, nem qualquer fumo que se destacasse no horizonte e indicasse ao longe a passagem de um steamer. Parecia que a ilha Phina ficava situada fora dos itinerários do comércio e transporte de viajantes. Era necessário, pois, esperarem com paciência e confiarem no Todo-Poderoso, que nunca abandona os fracos.
Quando as necessidades imediatas da existência lhe deixavam alguns intervalos, Godfrey, instado sobretudo por Tartelett, volvia a pensar na importante e irritante questão do fogo.
Em primeiro lugar, tentou substituir a isca, que infelizmente lhe fazia tanta falta, por outra substância análoga. Era possível que algumas das árvores velhas pudessem transformar-se em substância combustível depois de bem secas.
Apanhou, pois, muitos destes cogumelos e expô-los à luz direta do sol, até ficarem completamente pulverizados. Em seguida, com a folha da navalha, em guisa de fuzil, tirou de um sílex algumas faíscas, as quais caíam sobre aquela substância... Tudo foi inútil. A massa esponjosa não se inflamou. Teve então a idéia de utilizar a fina poeira vegetal que havia no interior de Will-Tree, seca já havia muitos séculos.
Não conseguiu contudo com isso resultado algum.
Como recurso extremo procurou, ainda por meio de fuzil, inflamar uma espécie de esponjas que cresciam entre as rochas.
Não foi com isso mais feliz.
A partícula de aço, acesa ao choque do sílex, caía sobre essa substância, mas apagava-se imediatamente.
Godfrey e Tartelett ficaram verdadeiramente desesperados. Passar sem fogo era impossível. Começavam a estar fartos de frutos, de raízes e de moluscos, e não tardaria que os estômagos se lhes mostrassem absolutamente refratários a esse gênero de alimentação. Contemplavam - o professor sobretudo - os carneiros, as cutias e galinhas que andavam de cá para lá, à roda de Will-Tree, e sentiam-se atacados de desmaios de fome com tal vista. Com os olhos devoravam essas carnes vivas.
De forma alguma as coisas podiam continuar assim.
Uma circunstância inesperada - digamos até providencial - devia, contudo, vir em seu auxílio.
Em a noite de 8 a 9 de Julho, o tempo, que parecia querer mudar havia já alguns dias, começou a Indicar trovoada, depois de calor sufocante que a brisa do mar não podia temperar por forma alguma.
Pela uma hora da manhã, Godfrey e Tartelett acordaram aos estalidos dos raios, no meio de um verdadeiro fogo de artifício de relâmpagos. Ainda não chovia, mas não podia tardar. Deveriam então precipitar-se, da zona das nuvens, verdadeiras cataratas, em conseqüência da rápida condensação dos vapores.
Godfrey levantou-se e saiu para observar o estado atmosférico.
Estava tudo abrasado por cima da cúpula das grandes árvores, cuja ramaria se destacava no céu em fogo, como os recortes finos de uma sombra chinesa.
De repente, e no meio do estampido geral, um relâmpago mais ardente sulcou o espaço. O trovão seguiu-se imediatamente, e Will-Tree foi atravessada de cima a baixo pelo fluido elétrico.
Godfrey, deitado ao chão pelo choque reflexo, levantou-se no meio da chuva de fogo que lhe caía em redor. O raio inflamara os ramos secos da parte superior da árvore. Eram outros tantos carvões incandescentes crepitando sobre o solo.
Godfrey pôs-se a gritar pelo seu companheiro.
- Fogo! Fogo!
- Fogo! - repetiu Tartelett. - Abençoado seja o céu, que no-lo manda!
E arremessaram-se ambos a esses brandões, dos quais uns chamejavam ainda, enquanto outros se consumiam sem chamas. Ao mesmo tempo apanharam certa quantidade de madeira, que estava caída ao pé da sequóia, cujo tronco tinha sido tocado pelo raio. Em seguida tornaram a entrar no interior da árvore, enquanto a chuva, caindo torrencialmente, apagava o incêndio que ameaçava devorar a ramaria superior de Will-Tree.
GODFREY TORNA A VER ELEVAR-SE TÉNUE FUMO EM OUTRA PARTE DA ILHA
Essa trovoada tinha vindo muito a propósito! Godfrey e Tartelett não tinham necessitado, como Prometeu, de aventurar-se aos espaços para arrebatarem o fogo do céu. Era com efeito o céu, como dissera Tartelett, que tinha sido serviçal a ponto de lho enviar por meio de um raio. Cabia a eles agora o cuidado de o conservarem.
- Não havemos de deixá-lo apagar - recomendou Godfrey.
- Tanto mais que não falta madeira para o alimentar! - acrescentou Tartelett, cuja satisfação se traduzia por exclamações de alegria.
- Pois sim! Mas quem há-de velar por ele?
- Eu, que estarei alerta de dia e de noite, se for necessário - replicou Tartelett, brandindo um tição inflamado.
E foi o que fez até ao nascer do Sol.
Como se viu, não faltava a madeira espalhada por debaixo das sequóias. Por isso, desde a alvorada, Godfrey e o professor, depois de terem feito com ela uma pilha considerável, alimentaram constantemente a fogueira acesa pelo raio. Disposta ao pé das árvores, num espaço estreito entre as raízes, a fogueira cintilava, crepitando clara e alegremente.
Tartelett esforçava-se por assoprá-la, se bem que isso fosse completamente inútil. Nessa atitude tomava as posições mais características, seguindo o fumo pardacento, cujas espirais se perdiam nas altas ramarias.
Não era contudo para o admirar que ele tinha sido tão desejado, esse fogo indispensável, nem também para servir de calorífico. Era destinado a uso mais interessante. Tratava-se de acabar com as parcas refeições de mariscos crus e de raízes de yamph, que não podiam desenvolver os elementos nutritivos na água a ferver, ou simplesmente cozidos debaixo das cinzas. Foi neste trabalho que Godfrey e Tartelett empregaram parte da manhã.
- Agora poderemos comer uma ou duas galinhas! – exclamou Tartelett, que já estava a mexer os queixos com antecedência.
- Pode juntar-se-lhes uma perna de cutia, um gigote de carneiro, um bocado de cabra, e alguma dessa caça que anda pelo prado, sem contar dois ou três peixes de água doce, junto com alguns de água salgada.
- Não vamos tão depressa - respondeu Godfrey, a quem a exposição desta ementa pouco modesta tinha posto de bom humor -, não é bom arriscarmo-nos a ter alguma indigestão, para nos desforrarmos do passado jejum! Economizemos as provisões, Tartelett! Vá lá duas galinhas - uma para cada um - e, se não temos pão, é de esperar que as raízes de camas, convenientemente preparadas, possam substituí-lo sem muita desvantagem!
Custou a isto a vida a dois inocentes voláteis, os quais, depenados e preparados pelo professor, e em seguida espetados numa varinha, foram logo postos a assar em cima da chama crepitante.
Godfrey tratava, no entanto, de pôr as raízes de camas em estado de figurarem no primeiro almoço a valer que ia ser preparado na ilha Phina. Para ficarem em estado de serem comidas, não havia mais do que seguir o método índico, sabido por todos os americanos, por o terem visto empregar mais de uma vez nos campos da América de Oeste.
Godfrey procedeu da seguinte maneira: apanhando no areal certa quantidade de pedras chatas, pô-las em cima do braseiro, de forma que se impregnassem de calor intenso. Tartelett pensou talvez que era lástima empregar fogo tão bom em «assar pedras», mas como isto não impedia de modo algum a preparação das suas galinhas, entendeu que não era razoável queixar-se.
Enquanto as pedras se aqueciam, escolheu Godfrey sítio no solo, do qual arrancou a erva no espaço de uma jarda quadrada pouco mais ou menos, depois, por meio de conchas fundas, tirou a terra até uma profundidade de dez polegadas. Feito isto, dispôs no fundo do buraco pedaços de madeira seca, que acendeu, comunicando assim calor muito intenso à terra ali amontoada.
Depois de toda a madeira consumida, e de tiradas as cinzas, pôs no buraco as raízes de camas, previamente limpas e raspadas, cobriu-as com uma camada pouco espessa de erva, e as pedras esquentadas, colocadas por cima, serviram de base a nova fogueira que se lhe acendeu à superfície.
Era uma espécie de forno que ele tinha preparado, e a operação terminou assim em escasso tempo - meia hora o máximo.
Com efeito, tirada que foi a dupla camada de pedras e de erva, apareceram as raízes de «camas» modificadas pela ação violenta do calor. Esmagando-as, podia assim obter-se farinha muito própria para fazer uma espécie de pão, mas, deixando-as no estado natural, ficavam como batatas, de qualidade muito nutritiva.
Foi assim que as raízes desta vez foram comidas, e pode fazer-se uma idéia do almoço que os dois amigos tiveram com as galinhas, que foram devoradas até aos ossos, e os camas saborosos, que não havia necessidade de poupar. O campo onde eles cresciam não estava longe, e não era preciso senão abaixarem-se para os apanharem aos centos.
Acabando de comer, tratou Godfrey de preparar certa quantidade desta farinha, que se conserva quase indefinidamente, e pode ser transformada em pão para as necessidades diárias.
Passou-se o dia nestas diversas operações. A fogueira foi sempre alimentada com o maior cuidado. Durante a noite deitou-se-lhe maior quantidade de combustível, o que não impediu que Tartelett se levantasse, por várias vezes, para juntar os carvões e tornar a combustão mais ativa. Em seguida voltava a deitar-se, mas, como então sonhava que o fogo se ia apagando, levantava-se imediatamente, trabalho que durou até ao romper do dia.
A noite passou-se sem incidente algum. As crepitações da fogueira e o canto do galo despertaram Godfrey e o seu companheiro, que tinha acabado por adormecer.
Em primeiro lugar, Godfrey ficou admirado de ser uma espécie de corrente de ar, que vinha de cima, do interior de Will-Tree. Concluiu portanto que a sequóia era côncava até ao desvio dos ramos baixos, e que havia ali um orifício que convinha tapar, para que ficassem abrigados.
- Não obstante, este caso é singular! - disse Godfrey consigo mesmo. - Como é que, nas noites passadas, não senti esta corrente de ar? Seria por acaso o raio?...
E, para saber o que era, veio-lhe à idéia examinar por fora o tronco da árvore.
Feito o exame, compreendeu bem depressa Godfrey o que se passou durante a trovoada.
Os vestígios do raio tinham ficado marcados na árvore, a qual ficara descascada pela passagem do fluido, desde a origem dos ramos até às raízes. Se a faísca elétrica se tivesse introduzido no interior da sequóia, em vez de a contornar exteriormente, Godfrey e o seu companheiro teriam talvez sido fulminados. Sem darem por isso, tinham estado em verdadeiro perigo.
- Dizem que ninguém se deve refugiar debaixo das árvores durante as trovoadas - observou Godfrey. - Será isso muito bom para os que podem proceder de outro modo. Que meio teríamos nós de evitar esse perigo habitando, como nos sucede, numa árvore? Enfim, veremos!
Em seguida, olhando para a sequóia no ponto onde começava a ver-se o traço do fluido:
- É evidente - ponderou ele - que, tendo caído o raio naquele sítio, o vértice do tronco há-de ter sido aberto violentamente. Mas, nesse caso, como o ar penetra no interior, pelo orifício, a árvore é decerto côncava a toda a altura, e não tem senão a casca? É conveniente certificar-me desta disposição.
Procurou então Godfrey um ramo resinoso que lhe servisse de archote. Um ramo de pinheiro servia-lhe para este fim. A resina gotejava desse ramo que, depois de inflamado, deu luz muito brilhante.
Entrou então Godfrey na cavidade que lhe servia de habitação.
À sombra sucedeu logo a claridade, e foi-lhe fácil reconhecer qual era a disposição interior de Will-Tree. Uma espécie de abóbada cortada irregularmente elevava-se a uns quinze pés acima do solo. Levantando o archote viu Godfrey distintamente a abertura de um ramal estreito, cujo prolongamento se perdia na sombra. Era evidente que a árvore estava esvaziada em todo o comprimento, mas talvez que certas partes do alburno ainda estivessem intactas. Neste caso, com a ajuda destas saliências seria, se não fácil, pelo menos possível, elevar-se até à origem dos ramos.
Godfrey, que pensava no futuro, quis saber sem mais demora o estado das coisas.
Era duplo o fim a que se propunha. Primeiro, tapar hermeticamente aquele orifício, pelo qual podiam entrar o vento ou a chuva, o que tornaria Will-Tree quase inabitável, em seguida, certificar-se também se, em caso de perigo, como o ataque de animais ou de indígenas, os ramos superiores da sequóia serviriam de refúgio conveniente.
Em todo o caso era bom experimentar. Se no ramal estreito encontrasse algum obstáculo insuperável, voltaria para baixo sem mais inconveniente.
Depois de ter espetado o archote num intervalo entre duas raízes grossas, na superfície do terreno, começou a ascensão pelas primeiras saliências interiores da casca. Era ágil, vigoroso, destro e habituado à ginástica, como todos os rapazes americanos. Subiu portanto facilmente, e chegou bem depressa a uma parte mais estreita desse tubo desigual por onde, curvando as costas e os joelhos, podia trepar como um limpa-chaminés.
Apenas receava que um estreitamento qualquer lhe impedisse a subida.
Continuava no entretanto a ascensão e, sempre que encontrava uma saliência, descansava, tomando alento.
Três minutos depois, se Godfrey não estava a sessenta pés de altura do solo, não devia faltar-lhe muito, e não tinha portanto mais do que uns vinte pés a subir.
De fato, sentia já bater-lhe no rosto um ar mais vivo, que respirava com avidez, porque o interior da sequóia não estava muito fresco.
Descansando um minuto e varrendo a poeira toda, caídas das paredes, continuou Godfrey a elevar-se no ramal, que se estreitava pouco a pouco.
Neste momento atraiu-lhe a atenção certa bulha que lhe pareceu muito suspeita. Parecia que estavam a raspar no interior da árvore. Daí a pouco ouviu-se uma espécie de assobio. Godfrey parou imediatamente.
- Que é isto? - perguntou. - Estará algum animal refugiado nesta sequóia? Se fosse uma serpente?... Não é com certeza!... Ainda não vimos nenhuma nesta ilha!..: É talvez qualquer pássaro que trata de fugir!
Não se enganava Godfrey, e, continuando a subir, um grasnar mais acentuado, seguido de um forte bater de asas, deu-lhe a conhecer que não era aquilo mais do que um volátil aninhado na árvore, cujo repouso, sem dúvida, ele fora perturbar.
Vários «frrr! frrr!», lançados com toda a força dos pulmões, fizeram com que o intruso abandonasse a árvore.
Era, com efeito, uma espécie de gralha muito grande, que saiu sem demora pelo orifício e desapareceu à pressa pela cúpula de Will-Tree.
Instantes depois a cabeça de Godfrey passava pelo mesmo orifício, e, dentro em pouco, estava sentado muito à sua vontade na origem dos ramos baixos, separados do solo por oitenta pés de altura.
Aí, como se disse, o enorme tronco da sequóia servia de base a uma floresta inteira. A ramaria, enredada caprichosamente, apresentava o aspecto dessas matas cerradas que ainda se não puderam tornar praticáveis.
Conseguiu, contudo, Godfrey, não sem algum custo, escorregar de um para outro ramo, de forma a chegar, pouco a pouco, à parte mais alta daquela fenomenal vegetação.
Grande número de pássaros fugiam à sua aproximação, gritando muito, e iam esconder-se nas árvores próximas do grupo que Will-Tree dominava com a sua cúpula.
Godfrey continuou a trepar conforme pôde e só parou na ocasião em que os últimos ramos superiores começavam a dobrar com o seu peso.
A ilha Phina via-se rodeada de vasto horizonte de água, que se estendia a seus pés como uma carta em relevo.
Godfrey percorreu avidamente com a vista esta porção de mar. Notou que continuava a estar deserta. Podia concluir-se mais uma vez que a ilha estava situada fora dos roteiros comerciais do Pacífico.
O moço náufrago reprimiu um suspiro e em seguida baixou a vista para esse estreito domínio onde o destino o condenava a viver, por muito tempo sem dúvida, talvez sempre!...
Qual foi, porém, a sua surpresa quando tornou a ver, desta vez ao norte, fumo semelhante ao que já tinha julgado ver ao sul! Pôs-se a olhar com a máxima atenção.
No ar, sereno e puro, elevava-se um vapor adelgaçado de cor azul, mais carregada na extremidade.
- Não há engano, com certeza! - exclamou Godfrey.
- Aquilo é fumo, e há, por conseqüência, fogo que o produz! Ora este fogo só pode ter sido feito por... Por quem?...
Fez então Godfrey, com extrema precisão, o reconhecimento do sítio em que se via o fumo.
Elevava-se este a nordeste da ilha, no meio das rochas altas que limitavam a praia. Não havia erro possível. Era a menos de cinco milhas de Will-Tree. Cortando direito a nordeste, pelo meio do prado, e seguindo depois o litoral, devia necessariamente chegar-se aos rochedos coroados por aquele vapor tênue.
Cheio de comoção, Godfrey desceu pelos ramos até ao tronco. Parou aqui um momento para arrancar um molho de musgo e de folhas, e, em seguida, deixou-se escorregar pelo orifício, o qual tapou o melhor que pôde, e chegou rapidamente ao solo.
Tendo dito a Tartelett que não se inquietasse com a sua ausência, caminhou Godfrey para nordeste na direção do litoral.
Correu assim durante duas horas, primeiro através do prado verdejante, por meio das árvores que ali se viam disseminadas ou de extensos valados de giestas, e depois ao longo do litoral, até alcançar a última cadeia de rochas.
Em vão, porém, procurou de novo esse fumo que tinha visto de cima da árvore. Como tinha, contudo, determinado com exatidão a situação do lugar de onde ele saía, chegou aí sem se enganar, começando as suas investigações. Explorou cuidadosamente toda esta parte do litoral, e chamou em altos gritos...
Ninguém respondeu à chamada. Nenhum ser humano apareceu no areal. Nem um rochedo lhe mostrou o vestígio de fogo recentemente aceso nem de fogueira já apagada que tivesse sido alimentada pelas plantas marinhas e algas secas, depositadas pelas ondas.
- Não é possível que me tivesse enganado! - repetia Godfrey.
- Foi com certeza fumo o que vi!... E não obstante...
Como não era de supor que Godfrey tivesse sido vítima de uma ilusão, acabou por pensar que havia qualquer fonte de água termal, espécie de gêiser intermitente, de origem oculta, que projetava aquele vapor.
De fato, coisa alguma provava que não houvesse na ilha alguns desses poços naturais. Neste caso a aparição de uma coluna de fumo teria sido explicada por este simples fenômeno geológico.
Voltou pois Godfrey para Will-Tree, deixando o litoral e observando um pouco mais à volta do que tinha feito à vinda. Notou a existência de alguns ruminantes, entre outros, zuapitis, mas corriam estes com tal rapidez que teria sido impossível alcançá-los.
Pelas quatro horas Godfrey estava de volta. Cem passos antes de chegar, ouvia já o som áspero da rabecazinha, e encontrava de novo o professor Tartelett, que, na atitude de uma vestal, velava religiosamente junto do fogo sagrado confiado à sua guarda.
GODFREY ENCONTRA UM OBJETO QUE É MUITO BEM ACOLHIDO POR ELE E PELO SEU COMPANHEIRO
Sofrer o que se não pode impedir é uma máxima filosófica, não muito própria para levar a cabo grandes ações, mas pelo menos altamente prática.
Estava pois Godfrey resolvido a subordinar-lhe daí por diante todos os atos da sua vida. Uma vez que lhe era necessário viver naquela ilha, o mais avisado era viver o
melhor possível, até que houvesse ocasião de a deixar.
O primeiro cuidado foi de tornar, sem mais demora, o mais confortável possível o interior de Will-Tree. A falta de conforto, a questão de asseio teve a primazia sobre as outras.
As camadas de ervas, que serviam de cama, foram renovadas com freqüência. Os utensílios de comida não passavam de simples conchas, mas os pratos de qualquer hotel americano não seriam decerto mais limpos. Deve dizer-se em seu louvor que o professor Tartelett sabia lavar admiravelmente a baixela.
Com a ajuda da faca, de um grande bocado de casca aplainada e de quatro pés cravados no solo, conseguiu Godfrey dispor uma mesa no meio da câmara. Serviam de bancos troncos grosseiros.
Daí por diante, e sempre que o tempo Lhes não permitia jantar ao ar livre, os dois convivas já não tiveram de comer sobre os joelhos.
Era também importante a questão da roupa. Por isso poupava-se esta o mais possível. A temperatura e a latitude quase que permitiam que andassem meio nus. Mas, por fim, as calças, a camisola e a camisa de lã deviam acabar por gastar-se. E como se haviam então de substituir?
Teriam porventura de se cobrir com as peles de carneiros e de cabras, que, depois de os terem alimentado, serviriam ainda de os vestir? Era o mais provável.
Entretanto Godfrey determinou que a pouca roupa de que dispunham fosse lavada amiúde. Foi ainda Tartelett, transformado em lavadeira, quem se encarregou desse trabalho, que desempenhou com geral satisfação.
Godfrey ocupava-se, mais especialmente dos cuidados do abastecimento e disposição interna. Era também o fornecedor da casa. Consumia algumas horas por dia em a apanhar raízes e frutos de manzanillas, e outras tantas em pescar por meio de vimes entrançados que estendia nas águas do rio ou nas cavidades das rochas que o refluxo deixava a seco. Os meios eram bastante primitivos, sem dúvida, mas, de quando em quando, vinha um crustáceo ou qualquer peixe suculento aparecer na mesa de Will-Tree, não contando com os moluscos que eram apanhados, sem custo, à mão.
Entre os utensílios de cozinha faltava contudo o mais essencial, a simples panela de folha, e essa falta tornava-se deveras notável. Godfrey não sabia o que havia de imaginar para substituir aquela vasilha vulgar, cujo uso é universal. Não podia cozer a carne nem o peixe, que só eram comidos assados ou grelhados. No princípio dos jantares nunca aparecia uma boa sopa. Tartelett lastimava-se disso com amargura e freqüentemente, mas fossem lá satisfazer os seus desejos! Além disso, Godfrey tinha outros cuidados. Examinando as diferentes árvores do grupo, tinha encontrado outra sequóia de grandes dimensões, com uma grande cavidade na parte inferior.
Foi aí que dispôs uma capoeira para os voláteis. Os galos e as galinhas acostumaram-se depressa, os ovos abriam-se na erva seca e os pintos começavam a multiplicar-se. Todas as tardes estes animais eram fechados na árvore, a fim de os livrar das aves de rapina, que os espreitavam de cima dos ramos e teriam acabado por destruir todas as ninhadas.
As cutias, carneiros e cabras podiam esperar pelo mau tempo para se abrigarem em qualquer curral improvisado. Estes animais, entretanto, Iam-se dando muito bem com a erva luxuriante do prado, onde havia com abundância uma espécie de esparceto e grande quantidade de raízes que eram particularmente apreciadas pelos representantes da raça suína.
Várias cabras tinham dado à luz depois da sua estada na ilha e não se lhes tirava desde então o leite, a fim de que pudessem alimentar os filhos.
De tudo isto resultava que Will-Tree e as suas imediações estavam então muito animadas. Os animais domésticos, bem repletos, vinham, nas horas do calor, abrigar-se, debaixo das árvores, dos ardores do sol. Não era para recear que se perdessem nem havia que ter cuidado com os animais ferozes, pois não parecia que na ilha Phina houvesse um único animal perigoso.
As coisas caminhavam por essa forma, seguras no presente mas incertas no futuro, quando sobreveio um incidente que era de natureza a melhorar consideravelmente a situação.
Chegara o dia 29 de Julho.
Pela manhã, andava Godfrey naquela parte do areal que formava o litoral da grande baía que tinha sido denominada Dream-Bay.
O moço náufrago explorava-a minuciosamente para ver se nela havia tantos moluscos como no litoral do norte. Talvez que ainda tivesse a esperança de achar qualquer objeto, tão singular lhe parecia que a ressaca não tivesse arremessado à costa nem um só dos fragmentos do navio.
Ora nesse dia adiantara-se até à ponta setentrional, terminada por uma praia, quando lhe atraiu a atenção uma rocha de forma estranha, que convergia na última linha de algas e de vareques.
Teve então um pressentimento que lhe fez apressar o passo. Qual foi, porém, a sua surpresa, a sua alegria até, quando viu que o que pensava ser uma rocha era uma mala que estava meio enterrada na areia! Seria um dos fardos do «Dream»? Estaria ali desde o naufrágio? Ou seria o resto de catástrofe mais recente?
Seria difícil dizê-lo. Em qualquer caso, fosse qual fosse a sua proveniência e conteúdo, era aquela mala um excelente achado.
Godfrey examinou-a por fora, mas não lhe encontrou sinal algum de possuidor. Nem um só nome, nem uma única dessas grandes iniciais recortadas numa chapa delgada de metal, como têm as malas americanas. Talvez que tivesse dentro algum papel que indicasse a sua proveniência e nacionalidade e o nome do seu proprietário. Como quer que fosse, estava hermeticamente fechada e era de esperar que o seu conteúdo não tivesse sido estragado pela permanência nas águas do mar. Era, com efeito, uma mala muito forte de madeira, coberta de pele espessa, com reforços de cobre em todos os ângulos e correias compridas que a cingiam por todos os lados.
Por muita que fosse a sua impaciência de ver o que a mala continha, não pensou em quebrá-la, mas sim em a abrir, depois de lhe ter feito saltar a fechadura. O peso que tinha não a deixava transportar do fundo de Dream-Bay para Will-Tree, e nem devia pensar nisso.
- Pois bem - disse Godfrey - abri-la-ei aqui mesmo, e virei a este sítio tantas vezes quantas forem necessárias para transportar tudo que ela contém.
A distância do extremo do promontório ao grupo das sequóias podia calcular-se em quatro milhas. O expediente gastaria pois muito tempo e ocasionaria fadiga. Mas o tempo não faltava e da fadiga não valia a pena falar.
Que teria a mala dentro? Antes de voltar a Will-Tree, Godfrey quis ao menos tentar abri-la.
Começou, por isso, por desatar as correias e tirou depois com cautela o invólucro de couro que tapava a fechadura. Mas como havia de a arrombar? Era este o trabalho mais difícil. Godfrey não tinha alavanca de que pudesse servir-se. Não queria arriscar-se a partir a faca nesta operação. Procurou, portanto, um pedregulho pesado com que pudesse fazer saltar a chapa da fechadura.
O areal estava cheio de sílex duros de todos os feitios, que podiam servir de martelo.
Escolheu Godfrey um da grossura do punho e deu com ele uma forte pancada na chapa de cobre.
Com grande surpresa sua viu a lingüeta presa na chapa soltar-se imediatamente.
Ou a chapa se tinha quebrado com a pancada ou a fechadura não tinha sido fechada à chave.
O coração de Godfrey batia com violência no momento em que ia levantar a tampa da mala!
O caso é que ela estava aberta e diga-se em verdade que, se tivesse sido necessário quebrá-la, Godfrey ter-se-ia visto em sérios apuros.
Era um verdadeiro armário aquela mala. As paredes internas estavam forradas com uma folha de zinco, de forma que lhes não tinha chegado a água do mar. Por isso, os objetos que ela continha, por muito delicados que fossem, deviam estar em perfeito estado de conservação.
E que objetos! Tirando-os da mala, Godfrey não podia conter exclamações de alegria!
Essa mala tinha pertencido, com certeza, a algum viajante muito prático e que esperava aventurar-se a viajar em qualquer país onde ficasse reduzido aos seus únicos recursos.
Em primeiro lugar, roupa branca: camisas, guardanapos, lençóis e cobertas, depois vestuário: camisolas de lã, peúgas de lã e de algodão, boas calças de pano e veludilho, camisolas de flanela, coletes de pano grosso e bom, dois pares de botas muito grossas, sapatos de caça e chapéus de feltro.
Em segundo lugar, vários utensílios de cozinha e de toilette: panela - a célebre panela tão desejada -, chaleira, cafeteira, bule, algumas colheres, garfos e facas, um espelho pequeno e escovas de vários gêneros, enfim, o que não era para desprezar, três frascos contendo pouco mais ou menos cem litros de aguardente e de tafiá e algumas libras de chá e de café.
Em terceiro lugar, ferramentas várias: verrumas, serra, muitos pregos e tachas, enxadas, pás, picaretas, machado, enxó, etc., etc.
Em quarto lugar, armas: duas facas de mato com bainha de couro, uma carabina e duas espingardas de pressão, três revólveres de seis tiros, umas dez libras de pólvora, muitos milhares de cápsulas e uma provisão Importante de chumbo e de balas - sendo todas estas armas de fabrico inglês, finalmente, uma farmácia de algibeira, um óculo de ver ao longe, bússola e cronômetro.
Havia também alguns livros em inglês, várias mãos de papel branco, lápis, penas e tinta, um almanaque e uma bíblia, editada em Nova Iorque, e um «Manual Perfeito Cozinheiro».
Na verdade, era este um achado de preço incalculável em tais circunstâncias.
Por isso, Godfrey não cabia em si de contente. Se tivesse encomendado um enxoval para uso de náufrago em embaraços, não o teria tido mais completo.
Era caso para agradecer à Providência, e esta teve o seu agradecimento, partindo de um coração reconhecido.
Godfrey entregou-se ao prazer de estender esse tesouro sobre o areal. Tinha examinado cada objeto de per si, mas na mala não havia papel algum que mostrasse a sua proveniência nem em que navio tinha sido embarcado.
Além disso, nas imediações não tinha o mar depositado nenhum outro resto de naufrágio recente, nem sobre as rochas, nem sobre o areal. A mala devia ter sido transportada para ali pelo fluxo da maré, depois de ter andado a flutuar por algum tempo. De fato, o volume em relação ao peso garantia-lhe flutuação suficiente.
Os dois habitantes da ilha Phina tinham seguras por algum tempo as necessidades da vida material, ferramentas, armas, instrumentos, utensílios, tudo enfim lhes fora dado por um feliz acaso.
Godfrey não podia pensar em levar consigo todos aqueles objetos para Will-Tree. O transporte exigiria que ali voltasse muitas vezes, convinha, porém, apressar-se por causa do mau tempo.
Tornou a pôr, portanto, dentro da mala a maior parte desses diversos objetos. Guardou apenas uma espingarda, um revólver, certa porção de pólvora e de chumbo, uma faca de mato, o óculo de ver ao longe e a panela.
Em seguida fechou cuidadosamente a mala, afivelou-a e tomou, a passo rápido, o caminho do litoral.
Como ele foi recebido uma hora depois por Tartelett? Que alegria a do professor quando o seu discípulo lhe fez a enumeração das suas novas riquezas! A panela, a panela sobretudo, causou-lhe transportes de alegria que foram expressos por uma série de passos de dança, terminados por um passo triunfante de seis por oito!
Era ainda apenas meio-dia. Por isso Godfrey quis, depois do almoço, voltar a Dream-Bay. Tardava-lhe que tudo estivesse em segurança dentro de Will-Tree.
Tartelett não fez objeção alguma e declarou que estava pronto a partir. Nem mesmo tinha que velar já porque o fogo não se apagasse. Com pólvora tem-se lume em qualquer parte. Quis, porém, o professor que durante a sua ausência a panela ficasse ao lume.
Num instante deitou-lhe dentro, depois de a encher de água, um pedaço de cutia e uma dúzia de raízes de yamph, que deviam servir de legumes, junto com um punhado de sal que havia na concavidade das rochas.
- Há-de escumar sozinha - exclamou Tartelett, que parecia muito satisfeito com o seu trabalho.
E partiram em seguida ambos com passo ligeiro para Dream-Bay, cortando pelo caminho mais curto.
A mala continuava no mesmo sítio. Godfrey abriu-a com precaução. No meio das exclamações de admiração de Tartelett, procederam à separação dos objetos.
Nesta primeira viagem, Godfrey e o seu companheiro, transformados em bestas de carga, puderam trazer para Will-Tree as armas, as munições e parte da roupa.
Sentaram-se ambos então diante da mesa onde deitava fumo o caldo de cutia, que acharam excelente. Quanto à carne, no dizer do professor, não se podia imaginar nada de mais saboroso! Maravilhoso resultado das privações!
No dia seguinte, 30, Godfrey e Tartelett partiram pela madrugada e, por mais três vezes, acabaram de despejar e transportar o conteúdo da mala. Antes da tarde ferramentas, armas, instrumentos e utensílios tinha tudo sido levado, disposto e armazenado em Will-Tree.
Finalmente, no dia 1 de Agosto, a própria mala, arrastada, não sem custo, ao longo do areal, dava entrada na habitação, onde ficava servindo de guarda-roupa.
Tartelett, com a sua mobilidade de espírito, via agora o futuro cor-de-rosa. Não é, pois, de admirar que, nesse dia, com a rabecazinha na mão, fosse procurar o seu discípulo e lhe dissesse, com toda a seriedade, como se estivessem na sala da casa Kolderup:
- Então, meu querido Godfrey, não será tempo de continuarmos as nossas lições de dança?
ACONTECE O QUE SE DÁ UMA VEZ PELO MENOS NA VIDA DE QUALQUER ROBINSON, VERDADEIRO OU IMAGINÁRIO
Mostrava-se pois o futuro com aspecto menos sombrio. Se Tartelett, porém, todo entregue ao presente, não via na posse daqueles instrumentos, ferramentas e armas senão o meio de tornar esta vida de isolamento um pouco mais agradável, Godfrey pensava na possibilidade de sair da ilha Phina. Não poderia ele agora construir uma embarcação bastante sólida que lhe permitisse alcançar ou uma terra próxima ou um navio que passasse à vista da ilha?
Enquanto esperavam por esta ocasião, empregaram as semanas seguintes em realizar as idéias de Tartelett.
De fato, instalou-se bem depressa o guarda-roupa de Will-Tree, mas decidiu-se que só dele se faria uso com a discrição que impunha a incerteza do futuro. Godfrey impôs ao professor a regra de não se servir dessa roupa senão dentro dos limites do necessário.
- Para quê? - dizia o professor, resmungando. - É economia de mais, meu caro Godfrey. Que diabo! Nós não somos nenhuns selvagens para andarmos seminus!
- Peço perdão, Tartelett, o que nós somos é selvagens e mais nada!
- Como quiser, mas verá que havemos de deixar a ilha antes de gastar toda a roupa.
- Não quero saber disso, Tartelett, antes sobre do que falte! -Ao menos aos domingos. Nestes dias não se poderá fazer um pouco de toilette?
- Pois vá lá aos domingos e até nos dias santificados - respondeu Godfrey, que não queria contrariar muito o seu frívolo companheiro -, como hoje, porém, é precisamente segunda-feira, temos ainda uma semana inteira antes que principiemos a fazer-nos bonitos!
É sabido que, desde que chegara à ilha, Godfrey não se tinha esquecido de tomar nota de cada um dos dias decorridos. Por isso, e com o auxílio do almanaque achado na mala, tinha podido verificar que esse dia era realmente uma segunda-feira.
Cada um deles, entretanto, tinha dividido o trabalho diário conforme as suas aptidões. Não era já necessário velar de dia e de noite pelo fogo, pois que podia ser facilmente reacendido. Tartelett pôde, portanto, abandonar, com algumas saudades, a tarefa que tão bem lhe convinha. Daí por diante ficou encarregado do fornecimento de raízes de yamh e de camas, destas, sobretudo, que eram o pão quotidiano. Todos os dias o professor ia apanhá-las até às linhas de arbustos que se estendiam no prado atrás de Will-Tree. Tinha de andar duas ou três milhas, mas habituou-se depressa a essa marcha diária. Ao mesmo tempo, trazia consigo ostras e outros moluscos, que se consumiam em grande quantidade.
Godfrey tinha reservado para si o cuidado de tratar dos animais domésticos e dos habitantes da capoeira, não lhe agradava a profissão de magarefe, mas teve de vencer a natural repugnância. Era pois ele que fazia com que a panela aparecesse amiúde na mesa, acompanhada de qualquer bocado de carne assada, o que variava sensivelmente as comidas. Além disso, a caça abundava nas florestas da ilha Phina, e Godfrey estava disposto a começar as suas caçadas quando outros cuidados menos urgentes lhe dessem vagar. Contava utilizar o melhor possível as espingardas, a pólvora e o chumbo do seu arsenal, mas queria que, primeiro, tudo estivesse bem arranjado.
Com o auxílio das ferramentas pôde dispor de alguns bancos fora e dentro de Will-Tree. Os mochos foram aperfeiçoados a machado, a mesa, mesmo tosca, ficou sendo mais digna dos pratos e dos talheres com que a adornava o professor Tartelett. Os leitos foram emoldurados com madeira, e as camadas de erva seca ficaram tendo aspecto mais agradável. Se ainda não havia colchões nem cobertores, havia pelo menos cobertas. Os diversos utensílios de cozinha já não estavam no meio do chão, mas sim sobre pranchas fixas nas paredes internas. A roupa e o vestuário foram guardados cuidadosamente dentro de cavidades abertas na casca da sequóia, ao abrigo da poeira. As armas e os instrumentos ficaram suspensos de cavilhas fortes, adornando assim as paredes sob a forma de panóplias.
Quis também Godfrey vedar a habitação, a fim de que, à falta de outro motivo, os animais domésticos não viessem durante a noite interromper-lhes o sono. Como não podia cortar pranchas com a única serra de mão que possuía, o serrote, serviu-se para isso de bocados de casca espessos e compridos, que se podiam destacar das árvores com facilidade. Desta forma arranjou uma porta bastante sólida para que impedisse a entrada de Will-Tree. Ao mesmo tempo, abriu duas janelas pequenas, opostas entre si, de sorte que deixassem entrar o dia e o ar no interior da câmara. Durante a noite fechavam-se por meio de postigos, mas, ao menos, já não foi necessário, desde pela manhã até à tarde, recorrer à claridade dos archotes resinosos que enchiam de fumo a habitação.
Godfrey ainda não sabia o que havia de imaginar mais tarde para ter luz durante as longas noites de Inverno. Poderia arranjar algumas lâmpadas com sebo de carneiro ou teria de se contentar com velas de resina mais cuidadosamente preparadas? Havia de ver-se isso.
Era outra preocupação a de construir uma chaminé no interior de Will-Tree. Enquanto durasse o bom tempo, a fogueira que havia no exterior, no côncavo da sequóia, era suficiente para todas as necessidades da cozinha, mas, quando chegasse o Inverno, e a chuva caísse em torrentes, quando fosse necessário prevenirem-se contra o frio, que devia ser em extremo rigoroso durante certo período, tinha de pensar então no modo de cozinhar dentro da árvore, e dar ao fumo saída suficiente. Esta importante questão devia ser resolvida a seu tempo.
Um trabalho dos mais úteis foi o que Godfrey empreendeu a fim de pôr em comunicação as duas margens do curso de água, na orla do grupo das sequóias. Conseguiu, não sem custo, enterrar algumas estacas no fundo do rio e sobre elas dispôs várias árvores novas, que ficaram servindo de ponte. Desta forma podia-se ir ao litoral do norte sem se passar um vau que obrigava a dar uma volta de duas milhas água abaixo.
Se Godfrey, porém, tomava assim todas as precauções para que a existência fosse quase possível nesta ilha perdida do Pacífico - no caso em que ele e o seu companheiro estivessem destinados a viver nela por muito tempo, para sempre talvez -, não quis desprezar coisa alguma do que podia aumentar as probabilidades de salvação.
Era bem evidente que a ilha Phina não estava situada no roteiro dos navios. Não tinha porto algum de arribação, nem recursos para abastecimentos. Não havia motivo, pois, para que os navios tocassem ali. Contudo, não era impossível que passasse à vista qualquer navio de guerra ou mercante. Convinha pois procurar o meio de lhe atrair a atenção e de lhe mostrar que a ilha era habitada.
Com este fim Godfrey entendeu que devia levantar uma bandeira na extremidade do cabo que se projetava ao norte, e serviu-se para isso de metade de um dos lençóis encontrados na mala. Como receava, além disso, que a cor branca só fosse visível a pequena distância, experimentou se podia tingir a bandeira com as frutas de uma espécie de medroeiros que crescia junto dos montículos. Obteve assim cor vermelha muito viva, que não pôde tornar indelével, por falta de mordente, restando-lhe o recurso de tingir de novo a bandeira quando o vento ou a chuva lhe tivessem feito perder a cor.
Estes diversos trabalhos entretiveram-no até 15 de Agosto. Havia já muitas semanas que o céu estava quase sempre bonito, à parte duas ou três trovoadas de extrema violência que tinham deitado grande quantidade de água, da qual o solo se embebera.
Por esta época, principiou Godfrey a fazer as suas caçadas. Se era, porém hábil no manejo da espingarda, não podia contar com Tartelett, que em toda a sua vida não tinha disparado um único tiro.
Empregou, pois, Godfrey alguns dias por semana na caça aos animais de pelo ou aos voláteis, os quais, sem serem muito abundantes, deviam, contudo, ser suficientes para as necessidades de Will-Tree. Algumas perdizes, várias bartavelas e certo número de narcejas vieram felizmente variar a ementa habitual. Dois ou três antílopes caíram também aos tiros do moço caçador, e, apesar de não ter concorrido para essa presa, o professor não os recebeu com menos satisfação quando eles se apresentaram sob a forma de pernas e costeletas.
Ao mesmo tempo que ia caçando não se esquecia Godfrey de tomar conhecimento mais minucioso da ilha. Penetrava no interior dessas espessas florestas que havia na parte central. Subia o rio até à nascente, alimentada pelas águas da vertente ocidental da colina. Ascendia de novo ao vértice do cone e descia pelos taludes do lado contrário em direção ao litoral de este, que não tinha ainda examinado.
- De todas estas explorações - dizia muitas vezes Godfrey -pode concluir-se que a ilha Phina não tem animais daninhos, nem carnívoros, nem serpentes, nem saurianos. Não vi ainda nem um! Se os houvesse, com certeza que a bulha dos tiros lhes teria despertado a atenção! É bem propícia esta circunstância! Não sei como conseguiríamos pôr Will-Tree ao abrigo dos seus ataques!
Em seguida continuou, passando a outra dedução mais natural: - Deve também concluir-se que a ilha não é habitada, quando não, já de há muito que, indígenas ou náufragos, teriam aparecido ao ouvirem a bulha das detonações! Não resta, pois, a explicar senão a origem do fumo que por duas vezes já vi!...
O fato é que Godfrey jamais encontrara um só vestígio de fogo. Quanto às águas termais, às quais queria atribuir a causa dos vapores que notara, não parecia haver nenhumas na ilha Phina, que não era de natureza vulcânica.
Além disso, a aparição de fumo ou de vapores não mais se reproduzira. Quando, pela segunda vez, Godfrey subiu ao cone central, bem como quando ascendeu novamente às ramarias altas de Will-Tree, nada viu que lhe atraísse a atenção. Acabou, pois, por esquecer aquela circunstância.
Nestes diversos trabalhos de arranjo doméstico e nestas excursões venatórias passaram-se algumas semanas: Cada dia trazia um melhoramento à vida comum.
Todos os domingos, conforme fora combinado, Tartelett se vestia o melhor possível. Nesse dia não cuidava senão em passear debaixo das árvores grandes, tocando na rabecazinha. Executava passos de escorregamento, dando lições a si próprio, visto que o seu discípulo se tinha recusado obstinadamente a continuar as lições.
- Para quê - respondia Godfrey às repetidas instâncias do professor. - Pode, por acaso, imaginar-se um Robinson a tomar lições de dança e de boa presença?
- E porque não? - retorquia Tartelett, com toda a seriedade -, porque há-de um Robinson prescindir de boas maneiras? Não é para os outros, é para nós mesmos que é bom tê-las!
A isto não tinha que responder Godfrey.
Não se deixou contudo convencer, e o professor teve de se resignar a não dar lições.
O dia 13 de Setembro foi assinalado por uma das maiores e mais tristes decepções que podem ter os infelizes que um naufrágio lançou numa ilha deserta.
Godfrey não tinha tornado a ver em nenhum ponto da ilha os tais fumos inexplicáveis e de origem misteriosa, mas nesse dia, pelas três horas da tarde, chamou-lhe a atenção uma coluna extensa de vapor, cuja origem não era duvidosa.
Tinha ele ido passear até ao extremo de Flag-Point, nome que dera ao cabo sobre o qual se erguia a bandeira. Olhando pelo óculo viu acima do horizonte algum fumo que o vento de oeste fazia descer em direção à ilha.
O coração de Godfrey pulsou com violência.
- Um navio! - exclamou.
Mas esse navio, esse steamer, ia passar à vista da ilha Phina? E, sendo assim, aproximar-se-ia dela o bastante para que de bordo pudessem ver ou ouvir os sinais que ele fizesse? Ou seria que esse fumo, logo depois de ser visto, ia desaparecer com o navio a noroeste ou sudoeste do horizonte?
Godfrey esteve, durante duas horas, entregue a comoções alternadas mais fáceis de sentir do que de descrever.
O fumo, com efeito, aumentava pouco a pouco. Tornava-se mais espesso quando o steamer metia carvão, e, em seguida, diminuía, a ponto de desaparecer, quando esse carvão era consumido. O navio, contudo, aproximava-se visivelmente. Pelas quatro horas da tarde já se lhe distinguia o casco ao lume de água.
Era um vapor muito grande que navegava para nordeste, o que facilmente foi reconhecido por Godfrey. Essa direção, a ser mantida, devia inevitavelmente aproximá-lo da ilha Phina.
Godfrey tinha pensado primeiro em correr a Will-Tree a prevenir Tartelett. Mas para quê? A vista de um só homem, fazendo sinais, valia tanto como a de dois. Deixou-se, pois, estar de óculo assestado, e sem perder um só dos movimentos do navio.
O steamer ia-se aproximando sempre da costa, se bem que não navegasse diretamente para a ilha. Pelas cinco horas, a linha do horizonte não estava mais elevada do que o seu casco, e viam-se bem os seus três mastros. Godfrey reconheceu até as cores que flutuavam no gurupés.
Eram as cores americanas.
- Mas - ponderou ele - se eu vejo esta bandeira, não é possível que de bordo não vejam a minha? O vento faz que ela ondule de forma que pode ser vista facilmente por meio de um óculo! Se eu fizesse sinais, levantando-a e abaixando-a, por várias vezes, para indicar melhor que de terra se quer entrar em comunicação com o navio? Vamos lá, não há um instante a perder!
A idéia era boa. Godfrey, correndo para o extremo de Flag-Point, começou a fazer mexer a bandeira, como em continência, e, em seguida, deixou-a enrolada a meio pau, o que, segundo os usos americanos, quer dizer que se pede socorro.
O steamer aproximou-se ainda, a menos de três milhas do respondeu à de Flag-Point!
Sentiu Godfrey apertar-se-lhe o coração. Com certeza que não tinha sido visto!... Eram seis horas e meia e o crepúsculo não tardava! O steamer já não estava senão a duas milhas da ponta do cabo, em direção ao qual corria com rapidez.
Nesse momento, desaparecia o Sol no horizonte. Com as primeiras sombras da noite, devia Godfrey perder a esperança de ser visto.
Recomeçou pois, mas sem maior êxito, a içar e a arriar a bandeira. Não lhe responderam.
Disparou então vários tiros de espingarda, se bem que a distância fosse grande, e o vento não soprasse em direção favorável... De bordo não lhe chegou som de detonação alguma.
Entretanto anoitecia pouco a pouco, e bem depressa o casco do steamer deixou de se ver. Já não restava dúvida de que, antes de uma hora, teria passado para além da ilha Phina.
Godfrey, não sabendo o que havia de fazer, teve então a idéia de inflamar um grupo de árvores resinosas, que cresciam atrás de Flag-Point. Por meio de uma escorva acendeu um molho de folhas secas e pôs fogo a um grupo de pinheiros, os quais começaram a arder como um archote enorme.
Os fogos de bordo, porém, não responderam a este fogo de terra, e Godfrey voltou muito mais triste para Will-Tree, sentindo-se mais abandonado, talvez, do que nunca até então tinha estado.
SOBREVÉM UM INCIDENTE DE QUE O LEITOR NÃO DEVE ADMIRAR-SE
Esse revés de fortuna abateu Godfrey. Apresentar-se-ia outra vez essa probabilidade inesperada que lhe tinha escapado? Podia ter esperanças disso? Não! A indiferença desse navio, ao passar à vista da ilha Phina, sem mesmo procurar reconhecê-la, seria decerto seguida, por todos os outros que aparecessem nesta porção do Pacífico. Não havia razão para que uns tocassem e outros não naquela ilha, visto que nela não havia ancoradouro seguro.
Godfrey passou a noite muito triste. A cada momento, despertado em sobressalto, como se ouvisse ao largo um tiro de artilharia, perguntava a si mesmo se o steamer não teria visto por fim essa fogueira que ardia ainda no litoral, e não daria sinal da sua presença por meio de uma detonação?
Pôs-se então de ouvido à escuta... Tudo aquilo não seria mais do que ilusão do cérebro sobre excitádo? Quando o dia rompeu, chegou a persuadir-se de que a aparição do navio não fora mais do que um sonho, que tinha começado no dia antecedente às três horas da tarde! Mas reconheceu logo que era bem certo ter aparecido um navio à vista da ilha Phina, a menos de duas milhas talvez, que tinha passado ao largo!
Godfrey não disse a Tartelett uma palavra acerca desta decepção. De que serviria contar-lho? Além disso, este espírito frívolo nunca via mais longe do que vinte e quatro horas. Nem sequer pensava nas probabilidades que podia haver de sair da Ilha. Não imaginava que o futuro pudesse reservar-lhe graves eventualidades.
São Francisco começava a desaparecer-lhe da idéia. Não tinha noiva que o esperasse nem tio Will que tornar a ver. Se, nesse bocado de terra, tivesse podido abrir um curso de dança, os seus desejos teriam atingido o cúmulo, ainda que tivesse um só discípulo.
Não tinha, contudo, razão o professor em não pensar em qualquer perigo imediato e que pusesse em risco a sua segurança nesta ilha, que não tinha animais ferozes nem indígenas. Nesse mesmo dia o seu otimismo ia passar por prova bem rude.
Pelas quatro horas da tarde, Tartelett tinha ido, segundo usava, apanhar ostras e amêijoas à praia que ficava atrás de Plag-Point, quando notou Godfrey que ele voltava, correndo a toda a pressa, para Will-Tree. Eriçavam-se-lhe na cabeça os raros cabelos. Apresentava, em geral, o aspecto de um homem que foge, sem mesmo se atrever a voltar-se para trás.
- Que há de novo? - perguntou Godfrey, com alguma inquietação, indo ao encontro do seu companheiro.
- Ali!... Ali!... - indicou Tartelett, apontando com o dedo para a porção de mar, da qual se via um segmento estreito, ao norte, por entre as árvores grandes de Will-Tree.
- Mas que é? - insistiu Godfrey, cujo primeiro movimento foi o de correr para a orla das sequóias.
- Uma canoa!
- Uma canoa?
- Sim!... e com selvagens!... Uma esquadrilha inteira de selvagens!... Canibais, com certeza.
Godfrey olhou na direção indicada.
Não era uma esquadrilha, como dizia o professor Tartelett no meio da sua atrapalhação, mas o seu erro era só na quantidade. Com efeito, uma embarcação pequena, escorregando sobre o mar, nesse momento muito sossegado, navegava a meia milha da costa, de forma a dobrar Flag-Point.
- E porque hão-de ser canibais? - disse Godfrey, voltando-se para o professor.
- Porque aos Robinsons - respondeu Tartelett -, tarde ou cedo são sempre canibais os selvagens que aparecem!
- Não será antes o escaler de um navio mercante? De um navio? Sim... de um steamer que ontem de tarde passou?
- E não me disse coisa alguma! - exclamou Tartelett, levantando com desespero os braços ao céu!
- Para quê? - respondeu Godfrey - se eu tinha a certeza de que esse navio tinha desaparecido! Pode ser, contudo, que essa embarcação lhe pertença! Vamos já ver!
E, voltando rapidamente a Will-Tree, pegou no óculo e volveu a postar-se na orla das árvores.
Dali pôde observar, com muita atenção, a canoa, de onde devia distinguir-se necessariamente a bandeira de Flag-Point, que se desenrolava sob a ação da brisa ligeira.
O óculo caiu dos olhos de Godfrey.
- São selvagens!... São com certeza selvagens! – exclamou ele.
Tartelett sentiu vergarem-lhe as pernas e agitar-lhe o corpo um tremor convulsivo.
Era, com efeito, uma embarcação de selvagens a que acabava de ser vista por Godfrey, dirigindo-se para a ilha. Construída como uma piroga das ilhas Polinésias, trazia uma vela grande de bambus entrançados, e um balancim, sobreposto a bombordo, equilibrava-se nos bordos que dava com o impulso do vento.
Distinguiu perfeitamente Godfrey o feitio da embarcação: era um prao - o que parecia indicar que a ilha Phina não podia estar muito afastada das paragens da Malásia. Mas os tripulantes da piroga não eram malaios, eram negros seminus em número de uma dúzia pouco mais ou menos.
O grande perigo, portanto, estava em serem vistos. Arrependeu-se então Godfrey de ter içado a bandeira que não fora vista pelo navio e que o fora naturalmente pelos tripulantes do prao. Para a arriar agora era muito tarde.
Com efeito, o caso era para lamentar. Se, com grande probabilidade, o fim dos selvagens tinha sido, deixando qualquer ilha próxima, dirigirem-se para esta, talvez que a julgassem desabitada, como realmente o era antes do naufrágio do «Dream»... Mas a bandeira, que ali flutuava, indicava a presença de habitantes nesta ilha. E que meio, então, havia de escapar-lhes caso eles desembarcassem?
Godfrey não sabia o que devia fazer. Em todo o caso urgia ver se os selvagens punham ou não os pés na ilha, Em seguida pensaria no que tinha a fazer.
De óculo assestado foi seguindo, portanto, o prao, Viu-o contornar a ponta do promontório, dobrá-lo, depois descer ao longo do litoral e atracar finalmente na própria embocadura do rio que passava, duas milhas acima, em Will-Tree.
Se, pois, eles se expusessem a seguir o curso do rio, em pouco tempo chegariam ao grupo das sequóias, sem impedimento de espécie alguma.
Godfrey e Tartelett voltaram rapidamente à sua habitação. Primeiro que tudo era necessário tomar algumas precauções que pudessem pô-los ao abrigo de uma surpresa e dar-lhes tempo a prepararem-se para se defender. Era nisto que pensava unicamente Godfrey. As idéias do professor seguiam outro curso.
- Não querem ver - dizia - é uma verdadeira fatalidade! Está escrito no livro dos destinos! Não se lhe pode escapar! Não é possível ser-se Robinson sem que uma piroga venha atracar à ilha onde se está e sem que apareçam canibais um dia ou outro. Ainda aqui não estamos senão há três meses e ei-los que aí chegam! Decididamente, nem Defoe nem Wyss exageraram as coisas! E haja alguém que deseje ser Robinson, à vista disto!
Não pensava o digno Tartelett que ninguém aspira a ser Robinson, mas chega a sê-lo pelos baldões da sorte, e não falava talvez assisadamente comparando a sua situação à dos heróis dos dois romancistas, inglês e suíço.
À sua chegada a Will-Tree, Godfrey tomou as precauções seguintes: apagou a fogueira acesa no côncavo da sequóia e espalhou as cinzas para não deixar vestígio algum, os galos, as galinhas e os frangãos estavam já recolhidos na capoeira para aí passarem a noite e não foi necessário mais do que vedar-lhes a entrada por meio de tojos, de forma a
dissimulá-la o mais possível, os outros animais, cutias, carneiros e cabras, foram enxotados para o prado, pois que, por uma circunstância desagradável, não havia curral para os fechar, todos os instrumentos e ferramentas estavam guardados na árvore e não havia coisa alguma de fora que pudesse indicar a presença ou a passagem do homem. Em seguida fechou hermeticamente a porta, e ele e Tartelett ficaram encerrados em Will-Tree.
A porta, feita de casca de sequóia, confundia-se com o tronco, e poderia decerto escapar à vista dos selvagens, que não a examinariam, talvez, muito de perto. Fez o mesmo às duas janelas, tapando-as com os postigos. Depois apagou todas as luzes e o interior da árvore ficou em completa escuridão.
Como a noite foi comprida! Godfrey e Tartelett estavam com a atenção fixa nos mínimos ruídos externos.
O estalar de um ramo seco, o soprar do vento faziam-nos estremecer. Julgavam ouvir passos por debaixo das árvores. Parecia-lhes que havia quem andasse à roda de Will-Tree. Então Godfrey, chegando a uma das janelas, levantava um pouco o postigo e interrogava ansiosamente a sombra.
Mas coisa alguma via.
De uma vez Godfrey sentiu passos sobre o solo. Desta vez os seus ouvidos não o tinham enganado. Olhou para fora e viu uma das cabras que tinha vindo abrigar-se debaixo das árvores.
Afinal, se alguns dos selvagens chegassem a descobrir a habitação oculta na enorme sequóia, o partido de Godfrey estava tomado: levaria Tartelett consigo pelo ramal interior e abrigar-se-ia nos ramos mais altos, onde melhor resistência poderia oferecer. Com espingardas e revólveres à sua disposição e abundância de munições, talvez tivesse alguma probabilidade de fazer frente a uma dúzia de selvagens, que não tinham armas de fogo. Se estes, no caso de trazerem consigo arcos e flechas, os atacassem de baixo, não era provável que levassem a melhor contra os tiros dirigidos de cima com precisão. Se, pelo contrário, forçassem a porta da habitação, e tentassem subir às ramarias altas pelo interior, ser-lhes-ia difícil chegar ali, uma vez que tinham de passar por um orifício estreito que podia facilmente ser defendido.
Por cautela, Godfrey não falou desta eventualidade a Tartelett. O pobre homem estava já muito assustado com a chegada do prao. A idéia de ter de se refugiar na parte superior da árvore, como em um ninho de águia, não era tranqüilizadora em demasia. Se isto fosse necessário, na própria ocasião Godfrey o arrastaria, sem mesmo lhe dar tempo a refletir.
A noite passou-se em alternativas de receio e de esperança. Não houve, contudo, nenhum ataque direto. Os selvagens não tinham com certeza chegado ainda ao grupo das sequóias. Talvez que esperassem pelo dia para se aventurarem a dirigir-se para a Ilha.
- É provavelmente o que fazem - raciocinava Godfrey -, pois a bandeira dá-lhes a conhecer que a ilha é habitada! Eles, porém, não são mais do que uma dúzia e devem tomar algumas precauções! Como hão-de supor que só encontram aqui dois náufragos? Nada, não é provável que venham para aqui nenhuns senão quando for dia claro, caso não estejam acampados...
- Ou não tenham de novo embarcado ao romper do dia ... - sugeriu Tartelett.
- Embarcado de novo? Mas, nesse caso, o que teriam vindo fazer por uma noite à ilha Phina?
- Não sei!... - respondeu o professor, o qual, com o medo que tinha, não sabia explicar a chegada dos selvagens senão pela necessidade de se alimentarem de carne humana.
- Como quer que seja - acrescentou Godfrey -, se eles, amanhã pela manhã, não tiverem vindo a Will-Tree, iremos fazer um reconhecimento.
- Nós ambos?!
- Sim! nós ambos!... Nada haveria de mais imprudente do que separarmo-nos! Quem sabe se será necessário refugiarmo-nos no bosque central, escondermo-nos aí por alguns dias... até à partida do prao! Temos de andar juntos, Tartelett!
- Sim!... - disse o professor, com voz trêmula. - Parece que ouço ruído fora...
Godfrey chegou de novo à janela e voltou para dentro sem demora.
- Não é nada de suspeito - informou. - São os animais que vêm para aqui.
- Afugentados, talvez! - exclamou Tartelett.
- Parecem, pelo contrário, muito sossegados – respondeu Godfrey. - É de crer que venham apenas abrigar-se do orvalho da manhã.
- Ah! - murmurou Tartelett com voz digna de piedade, que, se não fosse a gravidade das circunstâncias, Godfrey teria rido com vontade -, isto não nos aconteceria na casa Kolderup, em Montgomery-Street!
- O dia não tarda a romper - declarou então Godfrey. - Se, daqui a uma hora, os indígenas não aparecerem, sairemos de Will-Tree, e iremos fazer um reconhecimento ao norte da ilha. É capaz de pegar numa espingarda, Tartelett?
- De pegar nela!... Sim!...
- E de atirar numa direção determinada?
- Lá isso não sei!... Nunca experimentei, e pode estar certo, Godfrey, de que a minha bala não irá...
- Quem sabe se a detonação será bastante para espantar os selvagens?
Daí a uma hora já era dia claro bastante para que se pudesse ver para além do grupo das sequóias.
Godfrey levantou então sucessivamente, mas com precaução, os postigos das duas janelas. Pela que deitava para o sul, nada viu de extraordinário. Os animais domésticos andavam com todo o sossego por debaixo das árvores, e não pareciam, por forma alguma assustados. Feita a observação, Godfrey fechou cuidadosamente a janela. Através da abertura que dava para o norte a vista podia alcançar até ao litoral. Via-se até, a duas milhas pouco mais ou menos, o extremo de Flag-Point, mas a embocadura do rio, o sítio em que os selvagens na véspera tinham desembarcado, não era visível.
Godfrey olhou primeiro, sem se servir do óculo, a fim de observar as imediações de Will-Tree.
Tudo estava perfeitamente sossegado.
Pegando então no óculo, percorreu com ele o contorno do litoral até à ponta do promontório de Flag-Point. Talvez que, segundo Tartelett dissera, e se bem que isso fosse inexplicável, os selvagens tivessem embarcado de novo, depois de passarem uma noite em terra, sem que tivessem procurado reconhecer se a ilha era habitada.
A ESPINGARDA DO PROFESSOR TARTELET FAZ VERDADEIRAS MARAVILHAS
Ouviu-se então um grito de Godfrey que fez dar um pulo ao professor. Já não lhe restava dúvida de que os selvagens soubessem que a ilha era habitada, visto que a bandeira, içada até então no extremo do cabo, tinha desaparecido e já não se via flutuando no mastro de Flag-Point.
Era pois chegado o momento de pôr em execução o projeto de reconhecimento, tendente a ver se os selvagens estavam ainda na ilha, e o que nela estariam fazendo.
- Partamos - disse Godfrey ao seu companheiro...
- Pois sim! Mas... - hesitou Tartelett.
- Quer antes ficar aqui?
- Consigo, com o maior prazer!
- Não... sozinho!
- Sozinho!... Isso nunca!...
- Então venha!
Tartelett, compreendendo que não havia que demudar Godfrey desta decisão, resolveu-se a acompanhá-lo. Não teria tido ânimo para ficar só em Will-Tree.
Antes de partir, examinou Godfrey o estado das suas armas. Carregou com balas as duas espingardas, e entregou uma ao professor, que ficou tão embaraçado com ela na mão como um indígena das Pomotu. Teve, além disso, Tartelett de pendurar à cinta uma das facas de mato, levando ali já presa a cartucheira. Passara-lhe pela idéia levar também a rabecazinha, imaginando talvez que os selvagens seriam sensíveis ao encanto da sua chiada, que nem o talento de um artista tornaria suportável.
Custou um tanto a Godfrey fazer-lhe perder essa idéia, tão ridícula como pouco prática.
Seriam então seis horas da manhã. A cúpula das sequóias começava de iluminar-se com os primeiros raios do Sol.
Godfrey entreabriu a porta, deu um passo para fora e examinou o grupo das árvores.
A solidão era completa.
Os animais tinham voltado para o prado. Andavam pastando tranqüilamente à distância de um quarto de milha. Coisa alguma denotava neles a menor inquietação.
Godfrey fez sinal a Tartelett para ir ter com ele. O professor obedeceu, com alguma hesitação e completamente contrafeito com a armadura de combate.
Tornou então Godfrey a fechar a porta, certificando-se de que esta se confundia com a casca da sequóia. Em seguida deitou junto da árvore um molho de tojo, seguro com várias pedras, e dirigiu-se para o rio, com tenção de descer as margens, sendo preciso, até à sua embocadura.
Tartelett seguiu-o, olhando com inquietação até aos limites do horizonte antes de cada passo que dava, mas o receio de se ver só fez com que não ficasse para trás.
Chegando ao extremo do grupo de árvores, Godfrey parou. Tirando então o óculo do estojo, examinou, com a máxima atenção, toda a porção do litoral que se estendia do promontório de Flag Point ao ângulo nordeste da ilha.
Ninguém aí se via, nem se elevava aos ares o fumo sequer de um acampamento.
A extremidade do cabo estava igualmente deserta, mas talvez que aí se achassem algumas pegadas recentes. Quanto à bandeira, Godfrey não se tinha enganado. A haste via-se erguida na última rocha do cabo, mas o pano desaparecera. Era evidente que os selvagens, depois de ali terem chegado, se tinham apoderado do pano vermelho, que lhes excitara a cobiça, e tinham, talvez, em seguida embarcado em direção à embocadura do rio.
Voltou-se então Godfrey para trás, percorrendo com a vista todo o litoral de oeste.
Não viu mais do que um vasto deserto desde Flag-Point até além do perímetro de Dream-Bay.
Além disso, no mar não se via nenhuma embarcação. Se os selvagens tinham voltado para o prao, é que este agora andava terra a terra, oculto pelas rochas, e tão próximo destas que não era possível distingui-lo.
Godfrey não podia nem queria, contudo, permanecer em tal incerteza. Importava-lhe saber se o prao efetivamente tinha abandonado a ilha.
Ora, para isto, era necessário ver o sítio em que os selvagens tinham, na véspera, desembarcado, isto é, a própria embocadura do rio, que formava uma calheta estreita.
Foi o que fez imediatamente.
As bordas desse filete de água, assombreadas por algumas árvores, eram bordadas por arbustos num espaço de duas milhas pouco mais ou menos. Para além, durante quinhentas a seiscentas jardas, até ao mar, o rio corria com as margens descobertas. Esta disposição permitia que se aproximassem, sem risco de serem vistos, muito perto do ponto de desembarque. Podia ser, contudo, que os selvagens se tivessem já aventurado a subir o curso do riacho. Por isso, e para se prever esta eventualidade, a marcha devia ser prosseguida com extrema prudência.
Entretanto Godfrey pensava, com alguma razão, que, àquela hora matinal, os selvagens, fatigados pela comprida travessia, não deviam ter ainda saído do ponto em que tinham parado. Era até provável que ainda estivessem a dormir, ou na piroga ou em terra. Nesse caso talvez fosse conveniente atacá-los de surpresa.
Pôs-se, portanto, sem demora, em execução este projeto. Era importante ter a precedência. Em tais circunstâncias a vantagem é muitas vezes do agressor. Armaram as espingardas, verificaram as escorvas, examinaram bem os revólveres e começaram a descer, um a um, pela margem esquerda do rio.
Nas imediações tudo estava sossegado. Andavam bandos de pássaros de uma para outra margem, por entre os ramos altos, sem darem o menor sinal de inquietação.
Godfrey ia adiante, e pode calcular-se a fadiga do seu companheiro em lhe seguir os passos. Passando de uma para outra árvore, aproximavam-se ambos assim do litoral, sem grande risco de serem vistos. Umas vezes os arbustos ocultavam-nos da margem oposta, outras enterravam-se até acima da cabeça nas ervas, que se agitavam, indicando a passagem de homens e não de animais. Como quer que fosse, porém, podiam sempre chegar de súbito ou a flecha de um arco ou a pedra de uma funda. Convinha, portanto, estar alerta.
Apesar das recomendações que lhe tinham sido feitas, Tartelett, tropeçando fora de propósito em alguns troncos à flor do terreno, caiu duas ou três vezes, com risco de comprometer a situação. Godfrey arrependeu-se, por vezes, de se ter feito acompanhar por criatura tão desastrada. Falando a verdade, o pobre homem não podia servir-lhe de muito. Valeria bem mais, sem dúvida, tê-lo deixado em Will-Tree, ou, em caso de recusa da sua parte, escondê-lo em qualquer souto da floresta. Agora, porém, era já tarde.
Uma hora depois de partirem do grupo das sequóias, tinham Godfrey e o seu companheiro andado uma milha - apenas uma milha -, pois a marcha era difícil pelo meio das ervas e entre essas fileiras de arbustos. Nem um nem outro tinham ainda visto coisa alguma suspeita.
Naquele sítio não havia árvores num espaço de umas cem jardas pelo menos, o rio corria por entre as margens desadornadas, e o terreno mostrava-se mais a descoberto.
Godfrey parou e observou cuidadosamente todo o prado à direita e à esquerda do rio.
Nada viu ainda que pudesse inquietá-lo, coisa alguma que indicasse a aproximação dos selvagens. Verdade é que estes, tendo a certeza de que a ilha era habitada, não teriam avançado sem precauções, e tanta prudência teriam, ao subirem ao longo do riacho, como Godfrey a descer. Devia, pois, supor-se que, se andavam errando pelas imediações, estariam também ocultos entre as árvores ou entre os lentiscos e murtas, perfeitamente dispostos para uma emboscada.
Por um efeito, estranho e singular ao mesmo tempo, Tartelett, à medida que avançava, sem ver nenhum inimigo, perdia pouco a pouco o medo e começava de falar com desprezo destes canibais para rir. Pelo contrário, Godfrey parecia estar cada vez mais ansioso. Depois de ter atravessado o espaço descoberto, continuou com todas as precauções pela margem esquerda, oculto pelas árvores.
Depois de uma hora de marcha chegou então ao sítio onde as margens só tinham arbustos definhados e a erva menos espessa começava a ressentir-se das proximidades do mar.
Nestas condições, não podia esconder-se, a menos que andasse de rastos pelo chão.
Foi o que fez Godfrey e o que disse a Tartelett que fizesse também.
- Já não há selvagens! Já não há antropófagos! Foram-se embora! - declarou o professor.
- Há, sim! - respondeu Godfrey, com vivacidade, mas em voz baixa. - Devem estar ali!... Deite-se no chão, Tartelett, deite-se no chão! Prepare-se para fazer fogo, mas não atire sem minha ordem!
Tinha Godfrey dito estas palavras de modo tão imperioso que o professor, sentindo vergar-se-lhe as pernas, ficou, sem querer, na posição que lhe fora exigida.
E fez assim muito bem! Com efeito, não era sem razão que Godfrey tinha falado por essa forma.
Do sítio em que ambos estavam não se via nem o litoral nem o ponto em que o rio entrava no mar. Provinha isto de um ângulo feito pelas margens à distância de uns cem passos, acima, porém, deste horizonte curto, limitado pelas elevações dessas margens, elevava-se perpendicularmente fumo espesso.
Godfrey, estendido por entre as ervas e com o dedo no gatilho da espingarda, observava o litoral.
- Não será este fumo da mesma origem desses que já vi por duas vezes? - disse ele. - Terão já alguns selvagens desembarcado ao norte e ao sul da ilha, e provirá o fumo de fogos que eles acendam? Não! Não é possível, visto que jamais encontrei cinzas, restos de fogueiras ou carvões apagados! Desta vez hei-de saber a causa disto!
E, arrastando-se com perícia, que Tartelett imitou o pihor que pôde, conseguiu, sempre debaixo das ervas, chegar até ao ângulo do rio.
Desse ponto podia observar facilmente toda a porção de terreno para onde se desviava o riacho.
Por pouco que não deu um grito!... Carregou nos ombros do professor para que este não pudesse fazer o mínimo movimento!... Era inútil ir mais longe!... Acabava de ver o que andava procurando! Uma fogueira, acesa no areal, no meio das rochas baixas, elevava aos ares uma espiral de fumo. À roda dela, deitando-lhe braçadas de madeira, andavam os selvagens desembarcados na véspera. A piroga estava amarrada a uma pedra grossa e, pela ação da enchente, balouçava-se nas ondas da ressaca.
Godfrey podia ver tudo o que na praia se passava, sem auxílio do óculo. Já não estava senão a uns duzentos passos da fogueira, ouvindo-lhe já os estalidos. Percebeu logo que não devia ter receio de ser surpreendido por detrás, pois que todos os negros do prao estavam reunidos naquele sítio.
Dez dentre eles, com efeito, estavam ocupados, uns em alimentar a fogueira, outros em cravar estacas no terreno, para lhes porem por cima um espeto à moda da Polinésia. O undécimo, que parecia ser o chefe, andava passeando no areal, e olhando com freqüência para o interior da ilha, como se se temesse de qualquer ataque.
Nos ombros deste selvagem viu Godfrey o pano vermelho da bandeira, convertido em objeto de toilette.
O duodécimo dos selvagens estava estendido no chão, muito bem preso a uma estaca.
Compreendeu sem demora Godfrey a sorte que esperava este desgraçado. O espeto era para o atravessar! A fogueira era para o assar!.. Tartelett, na véspera, não se tinha pois enganado, quando, por um pressentimento, qualificava de canibais os selvagens.
Diga-se também que não se tinha enganado ao declarar que as aventuras dos Robinsons, verdadeiros ou imaginários, eram todas modeladas umas pelas outras! Ele e Godfrey estavam agora, evidentemente, na mesma situação que o herói de Daniel Defoe, quando os selvagens desembarcaram na ilha onde ele estava. Iam ambos, sem dúvida, assistir a idêntica cena de canibalismo.
Estava, porém, Godfrey decidido a proceder como aquele herói! Por forma alguma deixaria assassinar o prisioneiro destinado àqueles estômagos de antropófagos! Estava bem armado. Os quatro tiros das espingardas e os doze de revólver podiam dar conta, com facilidade, de onze velhacos, aos quais a simples detonação de uma arma de fogo bastaria talvez para espantar. Tomada esta resolução, aguardou, com perfeito sangue-frio, a ocasião de aparecer como um raio.
Não devia esperar por muito tempo.
Com efeito, apenas tinham passado vinte minutos, o chefe aproximou-se da fogueira, e indicou, com um gesto, o prisioneiro aos selvagens, que esperavam as suas ordens.
Godfrey levantou-se. Tartelett, sem saber porquê, fez outro tanto. Não percebia, contudo, o que ia fazer o seu companheiro, que nada lhe tinha dito dos seus projetos.
Imaginava Godfrey, com certeza, que os selvagens, à vista dele, fariam qualquer movimento, ou para fugirem para a embarcação ou para o agredirem.
Nada disto aconteceu. Até parecia que o não tinham visto, naquele momento, porém, o chefe fez um gesto mais significativo. Então, três dos seus companheiros, dirigindo-se para o prisioneiro, desamarraram-no e obrigaram-no a caminhar para a fogueira.
Era ele um homem, ainda moço, que se dispôs a resistir, quando sentiu a sua hora chegada. Decidido, como pudesse, a vender muito cara a vida, começou por empurrar os que o seguravam, mas foi para logo deitado ao chão, e o chefe, pegando numa espécie de machado de pedra, preparou-se para lhe abrir a cabeça.
Godfrey deu um grito seguido de uma detonação. Silvou pelo ar uma bala, a qual feriu com certeza mortalmente o chefe, pois que este caiu no chão.
A esta bulha, os selvagens detiveram-se pasmados, como se nunca tivessem ouvido um tiro. Vendo Godfrey, os que estavam segurando o prisioneiro largaram-no por um momento.
O pobre diabo levantou-se imediatamente e correu para o sítio onde aparecia esse libertador inesperado.
Ouviu-se nesse momento segunda detonação.
Era Tartelett que, sem fazer pontaria, pois que o pobre homem tinha os olhos muito bem fechados, disparara a sua espingarda, cuja coronha lhe tinha dado no rosto a mais mimosa das bofetadas que nunca apanhou um professor de dança e de boa presença.
Mas veja-se o que pode o acaso: outro selvagem caiu junto do chefe! Foi então completa a derrota. Os que restavam pensaram talvez que tinham de se haver com grande número de indígenas, aos quais não poderiam resistir. Ficaram, com certeza, espantados à vista daqueles dois homens brancos, que pareciam dispor assim de raios! E, sem demora, levantaram os dois feridos, levaram-nos consigo, correram para a praia, fizeram força de pangaios para saírem da calheta, largaram a vela, tomaram vento ao largo e navegaram para o promontório de Flag-Point, que dobraram sem tardar.
Não veio à idéia de Godfrey ir em perseguição deles. De que lhe serviria matar mais algum? Tinha salvo aquela vítima e tinha-os afugentado, o que era o importante. Fizera as coisas em tais condições que aqueles canibais não voltariam com certeza à ilha Phina. Correra tudo o melhor possível. Restava só desfrutar a vitória, grande parte da qual Tartelett não punha dúvida em atribuir a si próprio.
O prisioneiro, entretanto, tinha-se dirigido para junto de quem o salvara. Deteve-se por um momento, com o receio que lhe inspiravam aqueles entes superiores, mas, logo depois, continuou a caminhar para eles. Quando chegou próximo dos dois brancos, curvou-se até ao chão, e, em seguida, pegando num dos pés de Godfrey, pô-lo sobre a cabeça em sinal de escravidão.
Parecia que este indígena da Polinésia tinha, ele também, lido Robinson Crusoé!
TRATA-SE DA EDUCAÇÃO MORAL E FÍSICA DE UM SIMPLES INDÍGENA DO PACÍFICO
Godfrey fez levantar, sem demora, o pobre diabo, que continuava a estar prostrado diante dele. Olhou então para a sua fisionomia bem de frente:
Era um homem de trinta e cinco anos de idade no máximo, vestido unicamente com um bocado de pano que lhe tapava os rins. Nos traços fisionômicos, como na conformação da cabeça, reconhecia-se com facilidade o tipo do negro africano. Não era possível confundi-lo com esses miseráveis de raça degenerada das ilhas da Polinésia, que, pelas depressões do crânio e comprimento de braços, se aproximam tão caracteristicamente do macaco.
Não podia, contudo, saber-se a razão por que um negro do Sudão ou da Abissínia caíra nas mãos dos selvagens de um arquipélago do Pacífico, senão dado o caso em que esse negro falasse o inglês ou uma das duas ou três línguas européias que eram compreendidas por Godfrey. Percebeu, porém, este bem depressa que ele só fazia uso de um idioma absolutamente incompreensível - provavelmente o desses indígenas entre os quais, sem dúvida, vivia desde muito moço.
Com efeito, às interrogações, feitas por Godfrey em inglês, não respondera uma só palavra.
Disse-lhe aquele então por sinais, não sem bastante custo, que desejava saber-lhe o nome.
Depois de várias tentativas infrutuosas, o negro, que afinal tinha aspecto inteligente e simpático, respondeu à pergunta que lhe era dirigida com esta única palavra:
- Carefinotu.
- Carefinotu! - exclamou Tartelett. - Vejam lá que nome!...Proponho que se fique chamando «Quarta-Feira», que é o dia de hoje, como sempre se fez nas ilhas dos Robinsons! É porventura lícito que alguém se chame Carefinotu?
- Se é o nome deste homem - contestou Godfrey -, porque não há-de continuar a chamar-se assim?
Dizendo isto, sentiu encostar-se-lhe no peito uma mão, enquanto que toda a fisionomia do negro parecia que lhe perguntava também o nome.
- Godfrey! - respondeu este.
Tentou o negro dizer este nome, mas, embora lho repetissem muitas vezes, não conseguiu pronunciá-lo de modo inteligível. Voltou-se então para o professor, como para saber o nome deste.
- Tartelett - respondeu o professor, com tom de voz muito amável.
- Tartelett! - repetiu Carefinotu.
Este agrupamento de sílabas harmonizava-se bem, com certeza, com a disposição das suas cordas vocais, pois que foi pronunciado distintamente.
O professor pareceu ficar extremamente lisonjeado.
Então Godfrey, querendo pôr à prova a inteligência do negro, tratou de lhe dar a perceber que desejava saber o nome daquela ilha.
Com a mão indicou-lhe os bosques, os prados, as colinas, o litoral que os emoldurava e em seguida o horizonte do mar, e interrogou-o com a vista.
Carefinotu, não compreendendo imediatamente do que se tratava, imitou o gesto de Godfrey e girou sobre si mesmo, percorrendo com os olhos todo o espaço:
- Arneka - disse ele por fim.
- Arneka? - repetiu interrogativamente Godfrey, batendo com o pé no chão para acentuar melhor a pergunta.
- Arneka - confirmou o negro.
Godfrey não ficava sabendo com isto coisa alguma, nem a respeito do nome geográfico da ilha, nem da situação desta no Pacífico.
Não tinha idéia alguma de tal nome, era provavelmente qualquer denominação indígena, desconhecida talvez dos cartógrafos.
Carefinotu, entretanto, olhava sem cessar para os dois brancos, com algum pasmo, como se quisesse ficar bem certificado das diferenças que faziam. Ao mesmo tempo sorria mostrando uns dentes brancos e magníficos, que Tartelett examinava com alguma desconfiança.
- Aposto a minha rabeca em como aqueles dentes já trincaram carne humana - declarou ele.
- Seja como for, Tartelett - replicou Godfrey -, o nosso novo companheiro já não tem o aspecto de um pobre diabo que vai ser assado e comido! É isto o principal!
O que atraía particularmente a atenção de Carefinotu eram as armas de Godfrey e de Tartelett - tanto as espingardas que tinham na mão como os revólveres que traziam à cinta.
Godfrey compreendeu facilmente esse sentimento de curiosidade. Era evidente que aquele selvagem nunca tinha visto armas de fogo.
Era provável que pensasse ter sido um desses tubos de ferro que, lançando um raio, o tinha libertado.
Quis então Godfrey dar-lhe, e com razão, uma idéia elevada do poder dos brancos. Engatilhou a espingarda, e, em seguida, mostrando-lhe uma bartavela que esvoaçava sobre o prado a uns cinqüenta passos de distância, pôs a arma ao ombro e fez fogo. A ave caiu imediatamente.
À bulha da detonação, o negro deu um salto prodigioso, que Tartelett admirou somente sob o aspecto coreográfico. Vencendo então o receio e vendo o volátil que com a asa quebrada se arrastava pelas ervas, deu Impulso ao corpo e, com a rapidez de um cão de caça, correu para o pássaro, que trouxe ao seu senhor, fazendo muitas cabriolas, alegre e pasmado ao mesmo tempo.
Veio então à idéia de Tartelett mostrar a Carefinotu que o Supremo Espírito o tinha também dotado do poder de fulminar.
Por Isso, vendo um pica-peixe, empoleirado sossegadamente num tronco velho, perto do rio, fez-lhe pontaria.
- Não atire, Tartelett! - recomendou então Godfrey.
- Porquê?
- Pois não percebe? Se, por falta de jeito, não acertar nesse pássaro, ficaremos valendo menos para este negro!
- E porque não hei-de eu acertar-lhe? - volveu Tartelett com seu bocadinho de despeito. - Na ocasião da batalha, a mais de cem passos e pela primeira vez que me servi de uma espingarda, não dei em cheio no peito de um desses antropófagos?
- Com certeza que lhe acertou - admitiu Godfrey -, visto que ele caiu, mas creia, Tartelett, que, pelo interesse de nós ambos, não deve tentar duas vezes a sorte!
O professor, apesar de um tanto despeitado, deixou-se convencer, tornou a pôr a arma ao ombro com arrogância, e ambos então, seguidos por Carefinotu, voltaram para Will-Tree.
Aqui o novo habitante da ilha Phina ficou verdadeiramente surpreendido ao ver a disposição interna da parte inferior da sequóia. Tiveram de Lhe indicar, primeiro, manuseando-os, o uso a que serviam as ferramentas, os instrumentos e os utensílios. Carefinotu pertencia, com certeza, ou tinha vivido, pelo menos, entre selvagens do último grau da escala humana, pois desconhecia até o uso do próprio ferro. Não percebia a razão por que a panela não ardia, quando a punham em cima dos carvões ardentes, e queria tirá-la dali, com grande descontentamento de Tartelett, que se encarregara de velar pelas diferentes fases do caldo. Ficou também pasmado diante de um espelho que Lhe mostraram: voltando-o e tornando a voltá-lo para ver se a sua própria pessoa não estava atrás dele.
- Não é mais do que um macaco, este tição! - exclamou o professor, com um gesto de desdém.
- Não é, Tartelett - corrigiu Godfrey -, é mais do que um macaco, pois foi ver a parte posterior do espelho, o que, da parte dele, prova que fez um raciocínio que nenhum animal faria!
- Pois bem, admitamos que não seja um macaco – retorquiu Tartelett, abanando a cabeça com modo de quem estava pouco convencido -, havemos de ver de que nos servirá semelhante criatura.
- Há-de servir-nos de alguma coisa, tenho a certeza! - afirmou Godfrey.
Carefinotu não se mostrou de má boca para a comida que lhe apresentaram. Primeiro cheirou-a, e provou-a apenas, mas por fim comeu da sopa de cutia, da bartavela morta por Godfrey e uma costeleta de carneiro, tudo isto acompanhado de camas e de yamhs.
- Vê-se bem que este pobre diabo tem apetite! – notou Godfrey.
- Lá isso é verdade - concordou Tartelett - e bom será ter cautela com os instintos de canibal deste brejeiro!
- Descanse, Tartelett! Havemos de lhe fazer perder o gosto pela carne humana, se é que alguma vez o teve!
- Eu não ia jurá-lo - respondeu o professor. - Diz- se que depois de se provar uma vez!...
Enquanto ambos assim conversavam, Carefinotu escutava-os com atenção extrema. Os olhos brilhavam-lhe de inteligência. Via-se bem como desejaria compreender o que se estava dizendo na sua presença. Punha-se então a falar também com extrema volubilidade, mas não se ouvia senão uma série de onomatopéias sem sentido algum, interjeições em forma de gritos, onde predominavam os A e OS ou, como na maioria dos idiomas da Polinésia.
Afinal, qualquer que fosse a sua natureza, este negro, salvo tão providencialmente, era um companheiro novo, pode até dizer-se que um servo dedicado, verdadeiro escravo que o mais inesperado acaso tinha deparado aos dois habitantes de Will-Tree. Era vigoroso, ágil e ativo, e, por isso, trabalho algum lhe repugnava. Tinha aptidão verdadeira para imitar tudo quanto vIa fazer, e foi desta maneira que a sua educação foi feita por Godfrey. Fazia cuidadosamente tudo o que lhe ensinavam: o tratamento dos animais domésticos, a apanha das raízes e dos frutos, o sacrifício dos carneiros ou das cutias que deviam servir para o sustento diário e o fabrico de uma espécie de sidra que era extraída dos frutos selvagens da manzanilla.
Por mal que dele pensasse Tartelett, Godfrey não desconfiou nunca daquele selvagem, e não parecia que tivesse jamais ocasião de se arrepender. Inquietava-se, sim, mas era com a volta possível dos canibais, que já deviam conhecer a situação da ilha Phina.
Desde o dia em que aqui estava, que tinha Carefinotu uma cama reservada dentro de Will-Tree, a maior parte das vezes, porém, se não chovia, preferia dormir fora, no côncavo de alguma árvore, como se em melhor posto estivesse para guardar a habitação.
Nos primeiros quinze dias, depois de chegar à ilha, Carefinotu acompanhou, por várias vezes, Godfrey à caça. Admirava-se sempre muito de ver cair os animais, feridos assim a essa distância, mas fazia depois de cão de caça com alegria e entusiasmo a que obstáculo algum, sebe, mata ou ribeira, podia pôr termo. Pouco a pouco Godfrey afeiçoou-se bastante a esse negro. Havia só um progresso a que ele era absolutamente refratário: o uso da língua inglesa. Por muitos esforços que fizesse, não conseguia pronunciar os vocábulos mais usuais que Godfrey, e sobretudo o professor Tartelett, teimando nesse empreendimento, queriam ensinar-lhe.
Passava-se assim o tempo. Contudo, se o presente era suportável, graças a uma série feliz de circunstâncias, se não havia perigo algum iminente, não devia pensar Godfrey no meio de sair da ilha e de voltar à pátria? Não se passava nem um só dia sem pensar no seu tio Will e na sua noiva Via aproximar-se a estação má com secreta apreensão, pois que ela poria entre ele e os seus amigos e família uma barreira ainda mais difícil de transpor!
No dia 27 de Setembro ocorreu um caso novo que, se trouxe acréscimo de trabalho para Godfrey e os seus dois companheiros, afiançou-lhes, pelo menos, que teriam reserva abundante de alimentação.
Godfrey e Carefinotu andavam a apanhar mariscos, no extremo de Dream-Bay, quando viram, trazida pelo vento, grande quantidade de pequenas ilhotas móveis, que a enchente Impelia brandamente para o litoral. Era uma espécie de arquipélago flutuante, em cuja superfície divagavam e esvoaçavam algumas destas aves aquáticas de grande envergadura que são designadas pelo nome de gaviões.
Que massas eram aquelas, navegando assim de conserva e elevando-se ou abaixando-se com a ondulação das vagas?
Não sabia Godfrey o que seria aquilo, quando Carefinotu se estendeu no meio do chão, e, em seguida, encolhendo a cabeça nos ombros, e dobrando os braços e as pernas, começou de imitar os movimentos de um animal que se arrasta lentamente pelo solo.
Godfrey pôs-se a olhar para ele, sem perceber coisa alguma dessa ginástica extravagante. De repente, exclamou:
- Tartarugas!
Não se tinha enganado Carefinotu. No espaço de uma milha quadrada miríades de tartarugas vinham nadando à flor de água. Cem braças antes de chegarem ao litoral, a maior parte delas desapareceu mergulhando na água, e os gaviões, sentindo faltar-lhes esse ponto de apoio, elevaram-se no ar, descrevendo compridas espirais. Felizmente, porém, uns cem destes anfíbios vieram ter dentro em pouco à praia.
Godfrey e o negro correram a toda a pressa para o areal ao encontro desta caça marítima, dessas tartarugas, cada uma das quais não tinha menos de três a quatro pés de diâmetro. Havia uma única maneira de lhes impossibilitar a volta para o mar, que era voltando-as de costas, e foi nesse trabalho que Godfrey e Carefinotu estiveram ocupados, com bastante fadiga.
Os dias seguintes foram destinados a transportar toda esta presa. A carne de tartaruga, que é excelente ou fresca ou de conserva, podia ser guardada destas duas maneiras.
Prevendo o Inverno, fez Godfrey salgar a maior parte, de forma que dela se pudesse servir à medida que fosse necessitando. Contudo, durante algum tempo, apareceram na mesa certos caldos de tartaruga, que não foram apreciados apenas por Tartelett.
Além deste incidente, a monotonia habitual da existência não cessou. Em cada dia, as mesmas horas eram empregadas nos mesmos trabalhos. Não seria ainda mais triste a vida quando a estação invernosa obrigasse Godfrey e os seus companheiros a estar encerrados dentro de Will-Tree?
Godfrey pensava nisto com bastante ansiedade. Mas que havia de fazer?, Entretanto, continuava a explorar a ilha Phina e empregava na caça todo o tempo de que não necessitava dispor para trabalho mais urgente. A maior parte das vezes Carefinotu acompanhava-o, enquanto Tartelett ficava em Will-Tree. É que este não tinha vocação para caçador, se bem que o seu primeiro tiro de espingarda tivesse sido de mestre!
Foi durante uma destas excursões que se deu um caso inesperado, de natureza a comprometer gravemente de futuro a segurança dos habitantes da ilha Phina.
Godfrey e o negro tinham ido caçar à floresta central, junto da colina que formava a aresta principal da ilha. Desde pela manhã que não tinham visto passar senão dois ou três antílopes por entre as matas altas, mas a distância em que não havia probabilidade de lhes acertar.
Ora como Godfrey, que não andava procurando caça miúda, não queria matar simplesmente por matar, estava resignado a voltar como havia ido. Tinha pena, não tanto pela carne dos antílopes, mas pela pele destes ruminantes, que de muito lhe serviria.
Eram já três horas da tarde. Tanto antes como depois do almoço, que ele e o seu companheiro tinham comido dentro do bosque, não lhe haviam corrido as coisas melhor. Estavam ambos dispostos a voltar para Will-Tree, a horas de aqui jantarem, quando, ao passar pelo extremo da floresta, Carefinotu deu um pulo, e, lançando-se a Godfrey, agarrou-o pelos ombros e arrastou-o com tal vigor que não pôde resistir-lhe.
Depois de andarem uns vinte passos, Godfrey parou, tomou alento e, voltando-se para Carefinotu, interrogou-o com o olhar.
O negro, muito assustado e de mão estendida, mostrava um animal imóvel, a menos de cinqüenta passos de distância.
Era ele um urso pardo, abraçado com as patas ao tronco de uma das árvores, e mexendo a grande cabeça de cima para baixo, como se estivesse prestes a atirar-se aos dois caçadores.
Sem gastar tempo em reflexionar, Godfrey armou sem demora a espingarda e fez fogo, antes mesmo que fosse impedido por Carefinotu.
O plantígrado enorme foi ferido pela bala? É provável. Ficaria morto? Não podia dizer-se ao certo, mas o certo é que, deixando afrouxar as patas, caiu junto da árvore.
Não havia que demorar ali. A luta braço a braço com aquele formidável animal poderia trazer resultados mais funestos. É sabido que, nas florestas da Califórnia, o ataque dos ursos pardos faz passar os próprios caçadores de profissão pelos perigos mais terríveis.
Por isso o negro pegou em Godfrey pelo braço e arrastou-o rapidamente para Will-Tree. Godfrey seguiu-o, compreendendo que era prudente obedecer-lhe.
A SITUAÇÃO JÁ MUITO COMPROMETEDORA COMPLICA-SE CADA VEZ MAIS
Deve concordar-se em que a presença de animal tão temível na ilha Phina era de molde a preocupar o mais possível esses aos quais a sorte adversa tinha aí lançado.
Godfrey - e talvez nisto procedesse mal - não ocultou a Tartelett o que se acabava de passar.
- Um urso - exclamou o professor, olhando à roda com modos assustados, como se as imediações de Will-Tree tivessem sido atacadas por um bando destes animais. - E porque há-de ser um urso? Até agora não os havia nesta ilha! Se apareceu um, é possível que haja mais e até muitos outros animais ferozes: jaguares, panteras, tigres, hienas e leões!
Tartelett via já a ilha Phina povoada de uma coleção completa de bichos.
Godfrey replicou-lhe que não devia exagerar os fatos. Era aparecido até esse momento nenhum desses animais, quando ele andava percorrendo as florestas da ilha, não só o não podia explicar, como até era deveras inexplicável. Daí, porém, a concluir que toda a espécie de animais ferozes andava pelos bosques e pelos prados, havia certa distância. Era conveniente, não obstante, que tivessem prudência e nunca mais saíssem senão armados.
Que infeliz era Tartelett! Desde esse dia começou para ele uma existência inquieta, cheia de comoções, de transes e de espantos desarrazoados que lhe trouxe no maior grau a nostalgia do país natal.
- Não, não pode ser - repetia. - Se há animais ferozes aqui... já basta, e quero ir-me embora!
Era necessário que o pudesse fazer.
Godfrey e os seus companheiros tiveram, pois, daí por diante, de andar sempre alerta.
Podia haver agressão não só do lado do litoral e do prado, mas até no próprio grupo das sequóias. Por isso tomaram-se sérias medidas para pôr a habitação ao abrigo de um ataque súbito. A porta foi reforçada com solidez, de forma que pudesse resistir às garras de qualquer animal. Quanto aos animais domésticos, bem desejaria Godfrey arranjar-lhes um curral, onde ficassem encerrados, pelo menos de noite, não era, porém, isso coisa fácil. Contentou-se, pois, em os ter, tanto quanto possível, nos arredores de Will-Tree, dentro de uma espécie de cerca feita de ramos, da qual não podiam sair. Este círculo, porém, não era sólido, nem elevado bastante para que impedisse um urso ou uma hiena de o deitar a terra ou de o transpor.
Contudo, como Carefinotu, apesar de instarem com ele, continuava a ficar de fora durante a noite, esperava Godfrey ter tempo de prevenir uma agressão direta .
Carefinotu expunha-se com certeza assim, fazendo-se o guarda de Will-Tree, mas, como tinha decerto compreendido que prestava por tal forma serviço aos seus libertadores, persistiu, apesar do que lhe disse Godfrey, em velar como de costume pela segurança comum.
Passou-se uma semana sem que nas imediações aparecesse nenhum desses terríveis visitantes. Godfrey, além disso, já se não afastava da habitação, senão em caso de extrema necessidade. Enquanto os carneiros, as cabras e os outros animais andavam pastando no prado, não eram perdidos de vista.
As mais das vezes Carefinotu fazia de pastor. Não pegava em espingarda alguma porque parecia que ainda não tinha compreendido o manejo das armas de fogo, mas trazia à cinta uma das facas de mato e um machado na mão direita. Armado por esta forma, o negro, vigoroso bastante, não hesitaria em se lançar a um tigre ou qualquer outro animal de pior espécie.
Entretanto, como nem o urso nem nenhum dos seus congêneres tinham reaparecido desde o último encontro, começou Godfrey a recobrar o sossego. Pouco a pouco reiniciou as explorações e as caçadas, sem contudo as levar tão longe para o interior da
ilha. Quando o negro o acompanhava, Tartelett, bem fechado dentro de Will-Tree, não se arriscaria por coisa alguma a sair, ainda que se tratasse de ir dar uma lição de dança!
Outras vezes, também, Godfrey partia sozinho, e o professor ficava então com um companheiro, a cuja instrução se dedicava com insistência.
Sim! Tartelett tinha tido primeiro a idéia de ensinar a Carefinotu os vocábulos mais usuais da língua inglesa, mas teve de renunciar a isso, tão mal conformado parecia o aparelho fonético do negro para esse gênero de pronúncia.
- Pois bem - decidiu Tartelett -, uma vez que não posso ser seu professor, hei-de ser discípulo dele!
E meteu-se-lhe na cabeça aprender o idioma falado por Carefinotu.
Cansou-se Godfrey em lhe dizer que isso de pouco lhe serviria. Tartelett não desistiu da sua idéia. Envidou pois os esforços no sentido de fazer perceber a Carefinotu que lhe dissesse na sua língua os objetos que ele mostrava.
Deve acreditar-se que o discípulo Tartelett tinha excelentes disposições, pois que, ao cabo de quinze dias, percebia com certeza as suas quinze palavras! Sabia que Carefinotu dizia «birsi» para designar o fogo, «aradou» para o céu, «mervira» para o mar, «doura» para uma árvore, etc. Estava com isso tão orgulhoso como se tivesse obtido o primeiro prêmio de língua polinésia em algum grande concurso.
Foi então que, desejando ser grato ao negro, quis mostrar-se reconhecido ao que este fizera por ele, não já tentando fazer-lhe torturar algumas palavras inglesas, mas sim ensinando-lhe as bonitas maneiras e os verdadeiros princípios da coreografia moderna.
Vendo isto, não pôde Godfrey deixar de se rir com muito boa vontade! Por fim, isso fazia passar o tempo, e ao domingo, quando não havia coisa alguma que fazer, assistia com agrado ao curso do professor Tartelett, de São Francisco.
Era curioso deveras! O pobre Carefinotu suava por todos os poros com esses exercícios elementares de dança! Era dócil e tinha vontade, mas, como todos os seus semelhantes, tinha os ombros encolhidos, a barriga proeminente, os joelhos metidos para dentro e os pés da mesma maneira! Fossem lá fazer um Vestris ou um Saint-Léon de um selvagem deste feitio! Como quer que fosse, o professor teimou obstinadamente – Além disso, Carefinotu, se bem que torturado, era dócil. Não se pode imaginar o que ele teve de sofrer para pôr os pés na primeira posição! E pior ainda foi quando teve de passar à segunda, e em seguida à terceira...
- Olha para mim, cabeçudo! - gritava Tartelett, exemplificando. - Os pés para fora. Mais para fora ainda! Abre os joelhos, velhaco! Recolhe os ombros, biltre! A cabeça direita!... Os braços arqueados!...
- Mas quer que ele faça impossíveis! - observava Godfrey.
- Nada é impossível ao homem inteligente! – respondia invariavelmente Tartelett.
- Mas se a sua conformação não se presta. ...
- Pois há-de prestar-se a sua conformação. É necessário que se preste, e mais tarde este selvagem dever-me-á o saber-se apresentar convenientemente numa sala.
- Mas, Tartelett, olhe que ele nunca há-de ter ocasião para isso!
- Como o sabe, Godfrey? - replicava o professor, pondo-se nos bicos dos pés. - Não está o futuro destinado para as camadas novas?
Era esta a última palavra de todas as discussões de Tartelett. Pegava então na rabecazinha e tirava com o arco uns sons ásperos, que eram a alegria de Carefinotu. Já não era necessário incitá-lo! Sem se importar com as regras coreográficas, punha-se aos saltos, às contorções e às cabriolas!
E Tartelett, pensativo, vendo aquele filho da Polinésia menear-se de tal maneira, perguntava a si mesmo se esses passos, talvez demasiadamente caracterizados, não eram naturais à organização humana, se bem que estivessem fora de todas as regras da arte!
Deixemos contudo o professor de dança e de boas maneiras entregue às suas meditações filosóficas e voltemos a questões mais práticas e mais oportunas.
Durante as suas últimas excursões na floresta ou na planície, quer só, quer acompanhado de Carefinotu, Godfrey não tinha visto nenhum outro animal feroz. Nem sequer tinha encontrado vestígio algum deles. O rio, ao qual teriam vindo beber, não deixava ver traço nenhum nas margens. De noite também se não ouvia rugido algum suspeito. Além disso, os animais domésticos continuaram a não mostrar sinais de inquietação.
- Isto é singular! - pensava às vezes Godfrey -, e eu, contudo, não me enganei, nem também Carefinotu! Foi realmente um urso que ele me mostrou! Foi a um urso que eu atirei!
Supondo que o tivesse morto, era por acaso este urso o último representante da família dos plantígrados naquela ilha?
O caso era absolutamente inexplicável! E, depois, se Godfrey tinha morto o urso, deveria ter encontrado o corpo no sítio onde o havia ferido. Tinha-o, porém, procurado debalde! Devia pensar que o animal, ferido mortalmente, tivesse ido morrer mais longe em qualquer covil. Era possível, talvez, mas, nesse caso, ao pé da árvore devia haver nódoas de sangue, e não as havia.
- Como quer que seja - rematava Godfrey -, não importa muito, e sempre é bom estar prevenido!
Pode dizer-se que a estação invernosa tinha começado nesta latitude desconhecida com os primeiros dias de Novembro. Durante muitas horas caiu chuva grossa. Mais tarde, provavelmente, haveria dessas chuvas torrenciais, que duram semanas inteiras e caracterizam o período chuvoso do Inverno na altura daquele paralelo.
Godfrey teve então de se ocupar na disposição de uma fogueira no interior de Will-Tree - fogueira indispensável,
que havia de servir para aquecer a habitação durante o Inverno e para se poder cozinhar abrigado dos aguaceiros e das ventanias.
Podia pôr-se a fogueira a um canto da habitação, no meio de pedras grossas, postas umas ao alto e outras ao comprido. A questão era poder dirigir o fumo para fora, pois que não era possível deixá-lo escapar-se pelo orifício que partia do interior da sequóia até à parte superior do tronco.
Veio então à idéia de Godfrey fazer um tubo com alguns dos bambus compridos e grossos que havia em certos pontos das margens do rio.
Neste trabalho foi auxiliado o mais possível por Carefinotu. Compreendeu o negro, e sem algum custo, o que desejava Godfrey. Foi ele quem o acompanhou a duas milhas de Will-Tree, a fim de colher os bambus mais grossos, foi ainda ele quem o ajudou a dispor a fogueira. As pedras foram postas no solo, no fundo, em frente da porta, os bambus, depois de lhes ser tirada a medula e de furados junto aos nós, formaram, por ajustamentos sucessivos, um tubo de comprimento suficiente, que entrava numa abertura feita na casca da sequóia. Era isto bastante, quando se tomasse bem sentido em que o fogo não pegasse nos bambus, e Godfrey, daí a pouco, teve a satisfação de ver cintilar um belo fogo no interior de Will-Tree, sem tornar o ar irrespirável.
Havia razão para se proceder a esse trabalho, e mais razão ainda para se apressar em o fazer.
Com efeito, de 3 a 10 de Novembro, não cessou de cair chuva torrencial. Teria sido impossível conservar o fogo ao ar livre. Nesses dias, demasiadamente tristes, só se podia sair da habitação para os cuidados mais urgentes do rebanho e da capoeira.
Aconteceu, por esta ocasião, faltar a reserva de camas, os quais, sendo a substância que servia de pão, eram indispensáveis.
Godfrey anunciou pois a Tartelett um dia, em 10 de Novembro, que, logo que o tempo começasse a melhorar, ele e Carefinotu iriam apanhar mais camas. Tartelett, que não estava disposto a ir a duas milhas de distância, pelo meio dos campos encharcados, encarregou-se de ficar guardando a casa durante a ausência de Godfrey.
Nessa tarde, o céu começou a limpar-se das nuvens grossas que o vento de oeste tinha acumulado desde o princípio do mês, a chuva cessou pouco a pouco, e o Sol deixou ver alguns raios crepusculares. Havia esperança de que o dia seguinte apresentaria qualquer mudanÇa que era urgente aproveitar.
- Amanhã - declarou Godfrey - partirei de madrugada, acompanhado por Carefinotu.
- Está dito! - respondeu Tartelett.
Pela tarde, depois da ceia, e como no céu, limpo de todo, brilhavam de novo as estrelas, quis o negro ir outra vez para o seu posto habitual no exterior, que tivera de largar nas noites chuvosas. Godfrey procurou em vão fazer-lhe perceber que era melhor ficar dentro da árvore, e que coisa alguma obrigava a esse excesso de vigilância, pois que não havia indício algum de animais ferozes.
Carefinotu insistiu na sua idéia. Não houve remédio senão deixá-lo proceder como entendesse.
No dia seguinte, conforme Godfrey tinha previsto, não chovia. Por isso, quando saiu de Will-Tree, pelas sete horas, os primeiros raios do Sol começavam a dourar a cúpula espessa das sequóias.
Carefinotu estava no seu posto, onde tinha passado a noite. Esperava aí Godfrey. Ambos então, bem armados e levando sacos muito grandes, despediram-se de Tartelett, e dirigiram-se para o rio, cuja margem esquerda contavam subir até ao sítio onde havia camas.
Daí a uma hora tinham chegado, sem nenhum encontro mau.
As raízes foram arrancadas rapidamente e em quantidade suficiente para encherem dois sacos. Gastaram-se nisto umas três horas, de sorte que eram pouco mais ou menos onze horas da manhã quando Godfrey e o seu companheiro regressaram a Will-Tree.
Caminhando um ao pé do outro, e contentando-se em falar com o olhar, visto que não podiam conversar de outra forma, tinham chegado a uma volta do riacho, por cima do qual se cruzavam árvores grandes, dispostas de uma a outra margem como uma abóbada natural, quando, de repente, Godfrey parou.
Desta vez era ele quem mostrava a Carefinotu um animal imóvel, parado ao pé de uma árvore, e cujos olhos cintilavam com brilho singular.
- Um tigre! - exclamou.
Não se tinha enganado. Era, com efeito, um tigre de grandes dimensões, escorado nas patas traseiras, rasgando com as unhas o tronco da árvore, enfim, pronto a atirar-se!
Godfrey largou imediatamente o saco das raízes. Passou para a mão direita a espingarda carregada, armou-a, levou-a à cara, e fez pontaria e fogo.
- Hurra! Hurra! - exclamou.
Desta vez não havia que duvidar. O tigre, ferido pela bala, tinha dado um pulo para trás. Talvez, contudo, que não estivesse ferido mortalmente, e que voltasse de novo para avante, mais furioso ainda na agressão!
Conservava Godfrey a espingarda assestada, ameaçando sempre o animal com segundo tiro.
Antes porém que pudesse ser impedido, Carefinotu tinha-se precipitado para o sítio no qual desaparecera o tigre, com a faca de mato na mão.
Gritou-lhe Godfrey que parasse e que voltasse! Foi debalde. O negro, decidido, ainda com perigo da própria vida, a acabar com o animal, que talvez apenas tivesse ficado ferido, ou não o ouviu ou não quis ouvi-lo.
Foi portanto Godfrey no rasto dele...
Ao chegar junto da margem, viu Carefinotu lutando com o tigre, agarrando-o pelas goelas, sustentando combate terrível e ferindo-o, finalmente, no coração com mão vigorosa.
Rolou então o tigre para o rio, cujas águas engrossadas pelas chuvas precedentes, o arrastaram com extrema velocidade. O cadáver do animal, flutuando por um momento à superfície, foi levado rapidamente para o mar. Um urso! Um tigre! Já não era possível duvidar de que na ilha houvesse animais terríveis.
Godfrey chegado junto de Carefinotu, certificou-se de que ao negro não tinha resultado da luta mais do que algumas arranhaduras sem gravidade. Em seguida, muito ansioso com a perspectiva das eventualidades que o futuro lhe reservava, retomou o caminho de Will-Tree.
TARTELETT REPETE EM TODOS OS TONS QUE SE QUER IR EMBORA
Quando Tartelett soube que na ilha havia não somente ursos, mas também tigres, começou a lamentar-se cada vez mais. Agora já não se atrevia a sair! Os animais acabariam por dar com o caminho que levava a Will-Tree! Não haveria segurança em parte alguma! Por isso o que o professor, no meio do seu espanto, queria para o proteger, era, pelo menos, muralhas de pedra, com escarpas e contra-escarpas, cortinas e bastiões, trincheiras, enfim, que fizessem do grupo das sequóias abrigo seguro. À falta disto queria ou, pelo menos, desejava muito ir-se embora.
- E eu também - respondeu simplesmente Godfrey.
Com efeito, as condições em que os habitantes da ilha Phina tinham vivido até então já não eram as mesmas. Haviam conseguido, graças a circunstâncias felizes, lutar contra a miséria e pelas necessidades da vida material. Saberiam também precaver-se contra a estação invernosa que os ameaçava, mas terem de se defender de animais ferozes, cujo ataque era possível a cada momento, era coisa bem diferente, e, na realidade, careciam de meios para isso.
A situação, complicada por esta forma, tornava-se pois muito grave, enquanto não chegasse a ser insustentável.
- Mas - repetia sem cessar Godfrey -, como é possível que, durante quatro meses, não tenha aparecido na ilha um único animal feroz, e, há quinze dias para cá, tenhamos tido luta com um urso e um tigre?... Que quer isto dizer?
Podia o fato ser inexplicável, mas deve confessar-se era bem real.
Godfrey, cujo sangue-frio e coragem aumentavam com provas, não desanimou completamente. Visto que os animais perigosos ameaçavam agora a pequena colônia, a prudência mandava que, sem tardar, se prevenissem contra as suas agressões.
Mas que meios se deviam empregar?
Decidiu-se, em primeiro lugar, que as excursões ao bosque ou ao litoral seriam raras, e que apenas sairiam bem armados e quando fosse absolutamente necessário para as exigências da vida material.
- Fomos muito felizes nestes dois encontros – dizia freqüentemente Godfrey -, mas quem sabe se da próxima vez nos sairemos tão bem da situação? Portanto, não nos devemos expor sem necessidade absoluta!
Não bastava contudo limitar as excursões, era necessário também proteger Will-Tree, tanto a habitação como as suas dependências, capoeiras, parque de animais, etc., onde os animais ferozes podiam causar desastres irreparáveis.
Pensou pois Godfrey, não em fortificar Will-Tree, segundo os famosos planos de Tartelett, mas, pelo menos, em ligar entre si as quatro ou cinco sequóias grandes que a rodeavam. Se conseguisse estabelecer uma paliçada sólida e alta de um tronco a outro, poderiam aí ficar em segurança relativa ou, pelo menos, ao abrigo de qualquer surpresa.
Era isso possível, como Godfrey verificou depois de o ter examinado, mas era realmente um trabalho insano.
Por pouco que se fizesse, era ainda necessário elevar a paliçada num perímetro de trezentos pés, pelo menos.
Pode calcular-se, à vista disto, a quantidade de árvores que era necessário escolher, deitar abaixo, acarretar, e dispor a fim de que o recinto ficasse completo.
Godfrey não recuou diante do trabalho. Deu parte dos seus projetos a Tartelett, que os aprovou, prometendo ajudá-lo com a máxima atividade, e, o que ainda era mais importante, conseguiu que o seu plano fosse compreendido por Carefinotu, pronto sempre a auxiliá-lo em tudo.
Sem mais demora, começou o trabalho.
Perto do cotovelo, formado pelo rio, a menos de uma milha para cima de Will-Tree, havia um pequeno bosque de pinheiros marítimos, medianamente grossos, cujos troncos, à falta de tábuas ou de pranchas, e sem que necessitassem ser previamente aplainados, poderiam, pela sua justaposição, formar um recinto em forma de paliçada.
Foi para este sítio que Godfrey e os seus dois companheiros se dirigiram no dia seguinte, 12 de Novembro, ao romper da alva.
Iam bem armados e caminhavam com extrema prudência.
- Não sou feito para estas expedições! – murmurava Tartelett, cujo mau humor aumentava com estas novas provações. - O que eu queria era ir-me embora!
Godfrey, porém, nem se dava ao incômodo de lhe responder. Naquela ocasião não havia tempo para consultar os gostos do professor, nem para recorrer à sua inteligência. O interesse comum reclamava apenas o auxílio dos seus braços.
Era necessário que ele se resignasse a este papel de besta de carga.
Não tiveram nenhum encontro mau na distância de uma milha que havia entre Will-Tree e o bosque pequeno. Os soutos tinham sido esquadrinhados com cuidado e o prado visto de um e outro lado. Os animais domésticos, que tinham sido aí deixados na pastagem, não mostravam sinal algum de medo. Os pássaros andavam esvoaçando, sem a mais pequena preocupação.
Começaram, sem demora, os trabalhos. Queria Godfrey, e com razão, que só se acarretassem as árvores todas depois de abatidas. No próprio lugar podia-se dispô-las com mais segurança.
Carefinotu prestou grandes serviços neste trabalho difícil. Mostrara muita aptidão em servir-se do machado e da serra. O vigor de que era dotado permitia que ele continuasse o trabalho quando Godfrey era obrigado a parar para tomar algum descanso, e quando Tartelett, com as mãos quebradas de fadiga e os membros estafados, nem teria sequer força para pegar na rabecazinha.
Não obstante, Godfrey tinha reservado a parte menos elegante do trabalho para o infeliz professor de dança e boas maneiras, transformado em lenhador, quer dizer, desbaste dos ramos pequenos. Apesar disso, ainda que Tartelett devesse receber por isso meio dólar por dia, com certeza teria roubado quatro quintos do seu salário!
Os trabalhos não se interromperam durante seis dias, 12 a 17 de Novembro. Partiam de manhã ao romper da aurora, levando o almoço, e só regressavam a Will-Tree às horas do jantar. O céu não se mostrava muito bonito. Apareciam às vezes nuvens grossas. O tempo era de aguaceiros, com alternativas de chuva e de sol. Por isso, quando chovia, os lenhadores abrigavam-se o melhor possível debaixo das árvores, pegando depois de novo no trabalho interrompido.
No dia 18, todas as árvores, decepadas e sem ramos, estavam no chão e prontas a ser levadas para Will-Tree.
Durante isto não tinha aparecido nenhum animal feroz nas imediações do rio. Era caso para se perguntar se havia ainda alguns na ilha, e se o urso e o tigre, feridos mortalmente, não eram - coisa bem inverossímil - os últimos da sua espécie.
Como quer que fosse, Godfrey não desistiu do seu projeto de levantar uma paliçada sólida, a fim de ficar igualmente ao abrigo de uma agressão de selvagens e de um ataque de ursos ou de tigres. Além disso, o principal estava feito, pois que só restava conduzir essa madeira para o sítio em que devia ser colocada.
Dizemos que o principal estava feito, se bem que pareça que o transporte havia de ser muito custoso. Se não o foi é que tivera Godfrey uma idéia muito prática, e que devia aliviar em extremo o trabalho: era a de empregar a corrente do rio, que a cheia, promovida pelas últimas chuvas, tornara muito rápida, em transportar essa madeira. Fazendo com ela pequenas porções, iriam tranqüilamente até à altura do grupo das sequóias que era atravessado obliquamente pelo riacho. Aqui, o obstáculo, formado pela ponte pequena, não os deixaria ir mais além. Do sítio em que estavam a Will-Tree não havia mais de vinte passos.
O professor Tartelett foi quem ficou mais satisfeito com o processo, que o ia reabilitar na sua força de homem, tão comprometida.
Desde o dia 18 que se puseram a flutuar as primeiras porções de madeira.
Foram levadas sem obstáculo até ao tapume.
Antes de três dias, no dia 20, à tarde, toda esta estacaria tinha chegado ao seu destino.
No dia seguinte, os primeiros troncos, enterrados no chão dois pés, começavam a levantar-se de forma que ligassem entre si as principais sequóias que cercavam Will-Tree.
Muitos ramos fortes e flexíveis, aguçados a machado, e colocados por cima, asseguravam a solidez do sistema.
Via Godfrey, com extrema satisfação, os progressos deste trabalho e tardava-lhe que tudo estivesse acabado.
- Depois de pronta a paliçada - dizia ele a Tartelett -, é que poderemos dizer que estamos em nossa casa.
- Não estaremos em nossa casa - respondeu o professor, com modos secos - senão quando chegarmos a Montgomery-Street, aos nossos quartos do palácio Kolderup!
Não se podia discutir esta opinião.
No dia 26 de Novembro três quartos da paliçada estavam prontos. Dentro do seu recinto, e entre as sequóias presas umas às outras, estava aquela em cujo tronco havia a capoeira, e Godfrey tencionava arranjar aí um curral.
O recinto devia ficar pronto dentro de três ou quatro dias. Depois, nada mais seria preciso do que fazer uma porta sólida que fechasse definitivamente Will-Tree. No dia seguinte, 27 de Novembro, foi contudo este trabalho interrompido por uma circunstância que convém narrar minuciosamente, pois que entrava na ordem das coisas inexplicáveis particulares à ilha Phina.
Pelas oito horas da manhã, Carefinotu tinha subido pelo canal interno até à bifurcação da sequóia, com o fIm de tapar hermeticamente o orifício por onde podiam entrar o frio e a chuva, quando soltou um grito singular.
Godfrey, que trabalhava na paliçada, levantou a cabeça e viu o negro, cujos gestos expressivos lhe diziam que fosse ter com ele sem demora.
Godfrey, pensando que Carefinotu não o incomodaria para isso se não tivesse motivo sério, pegou no óculo, subiu pelo canal interno, passou pelo orifício e dentro em pouco estava a cavalo num dos ramos maiores.
Carefinotu, estendendo então o braço para o ângulo arredondado que a ilha Phina fazia a nordeste, mostrou-lhe uma coluna de fumo que se elevava aos ares como um penacho muito extenso.
- Ainda! - exclamou Godfrey.
E, assestando o óculo no ponto indicado, viu bem desta vez que não havia erro possível, que era fumo com certeza, e que devia sair de foco importante, pois que se via distintamente à distância de cinco milhas.
Voltou-se então para o negro.
Este deixava ver a sua surpresa no olhar, nas exclamações e em toda a atitude. Com certeza que não estava menos admirado desta aparição do que Godfrey.
Além disso, ao largo, não se via um só navio, uma só embarcação indígena ou outra qualquer, coisa alguma indicativa de que alguém tivesse recentemente embarcado no litoral.
- Ah! Desta vez hei-de descobrir qual é o fogo que produz este fumo.
E, indicando o ângulo nordeste da ilha, em seguida à parte inferior da sequóia, fez a Carefinotu o gesto de quem queria ir àquele sítio sem perder um só instante.
Carefinotu compreendeu. Fez até mais do que isso: aprovou-o com um sinal de cabeça.
- Sim - afirmou Godfrey -, se está ali alguém, é preciso saber quem é, de onde veio, e por que razão se esconde! Importa isto a segurança de todos nós!
Momentos depois, ele e Carefinotu tinham chegado abaixo. Em seguida, Godfrey, contando a Tartelett o que tinha visto e o que ia fazer, perguntou-lhe se os queria acompanhar a ambos até ao norte do litoral.
Andar umas dez milhas durante o dia não era coisa para tentar um homem que tinha as pernas em consideração, como sendo a parte mais preciosa do seu organismo, destinada a exercícios nobres. Respondeu, pois, o professor que preferia ficar em Will-Tree.
- Bem, nesse caso iremos sós - redargüiu Godfrey -, mas não nos espere antes da tarde.
Dizendo isto, partiram, ele e Carefinotu, levando consigo algumas provisões para almoçarem no caminho, e despedindo-se previamente do professor, cuja opinião era que coisa alguma achariam e que se iam fatigar debalde.
Godfrey levava a espingarda e o revólver, o negro, o machado e a faca de mato, de que fizera a sua arma favorita.
Atravessaram a ponte de pranchas, chegaram à margem direita do rio, e depois, por meio do prado, dirigiram-se para a ponta do litoral, onde se via o fumo elevando-se entre as rochas.
Era mais para este do que o sítio aonde Godfrey tinha ido inutilmente na sua segunda exploração.
Caminhavam ambos rapidamente, vendo se o caminho era seguro, e se as matas e as latadas não ocultariam algum animal cujo ataque fosse de recear.
Nada encontraram, porém, que lhes fosse desagradável. Pelo meio-dia, depois de terem comido, e sem pararem um só instante, chegaram ambos ao primeiro plano de rochas que limitavam a costa. O fumo, visível sempre, via-se ainda a menos de um quarto de milha. Não havia mais do que caminhar em linha reta para chegar ao fim.
Apressaram portanto a marcha, tomando sempre algumas precauções, a fim de não serem surpreendidos.
Dois minutos depois, o fumo dissipava-se, como se o foco se tivesse subitamente apagado.
Godfrey, porém, tinha marcado com precisão o sítio por cima do qual o tinha visto. Era na ponta de um rochedo de forma extravagante, uma espécie de pirâmide truncada, que facilmente se podia reconhecer.
Mostrando-o ao seu companheiro, marchou em direção ao local apontado.
O quarto de milha foi atravessado rapidamente e, depois de escalado o plano da retaguarda, Godfrey e Carefinotu chegaram ao areal, a menos de cinqüenta passos do rochedo.
Correram para lá... não viram ninguém!... Mas, desta vez, um fogo mal apagado e carvões meio calcinados provavam à evidência que se tinha acendido uma fogueira naquele lugar.
- Estava aqui alguém! - exclamou Godfrey -, estava aqui alguém ainda há pouco! E preciso saber quem era!...
Chamou então em altos gritos, mas não obteve resposta!... Carefinotu soltou também um grito estridente, mas ninguém apareceu.
Começaram então ambos a explorar as rochas próximas, procurando uma caverna, uma gruta qualquer, que tivesse podido servir de abrigo a um náufrago, a um indígena ou a um selvagem...
Mas foi debalde que examinaram as menores anfractuosidades do litoral. Nada se via de qualquer acampamento, recente ou antigo, e nem mesmo vestígios da passagem de um homem, qualquer que ele fosse.
- E, no entanto - repetia Godfrey -, desta vez não era o fumo de uma fonte termal! Provinha, pelo contrário, de um fogo de madeira e de erva, e este fogo não se acendeu espontaneamente!
Procuraram contudo em vão.
Por isso, pelas duas horas, Godfrey e Carefinotu, inquietos e desanimados por não terem podido descobrir coisa alguma, retomavam o caminho de Will-Tree.
Não era para admirar que Godfrey voltasse muito pensativo. Parecia-lhe que a ilha estava agora sob o império de algum poder oculto.
A reaparição deste fumo e a presença dos animais ferozes não denotavam acaso alguma complicação extraordinária? Esta idéia afirmou-se mais quando, uma hora depois de ter chegado ao prado, ouviu um ruído singular, uma espécie de estalido seco. Carefinotu puxou-o então para si, na ocasião em que uma serpente, enrolada debaixo das ervas, ia atirar-se a ele!
- Serpentes agora, serpentes na ilha, depois dos ursos e dos tigres! - exclamou Godfrey.
Era bem verdade! Era um desses répteis que se reconhecem facilmente pela bulha que fazem quando fogem, uma serpente de campainhas, da espécie mais venenosa, um gigante da família dos crótalos!
Tinha-se Carefinotu colocado entre Godfrey e o réptil, que sem tardar desapareceu por uma latada espessa.
O negro, porém, correndo em sua perseguição, cortou-lhe a cabeça com um golpe de machado, e, quando Godfrey foi ter com ele, os dois pedaços do réptil estavam saltando sobre o solo ensangüentado.
Daí por diante viram outras serpentes não menos perigosas, em grande número, em toda a parte do prado, separado de Will-Tree pelo riacho.
Que invasão era essa de répteis que aparecia assim de repente?
Iria por acaso a ilha Phina tornar-se rival dessa antiga Tenos, cujos terríveis ofídios a tornaram célebre na antiguidade, e que deu o seu nome à víbora?
- Vamos! Vamos embora! - bradou Godfrey, fazendo sinal a Carefinotu para apressar o passo.
O moço náufrago sentia-se inquieto. Agitavam-no tristes pressentimentos, sem que conseguisse dominá-los, e, debaixo da sua influência e pressentindo qualquer desgraça próxima, tinha pressa de voltar a Will-Tree.
Foi grande, porém, o seu pasmo quando se aproximou da prancha lançada sobre o rio.
Debaixo do grupo das sequóias ouviam-se gritos angustiosos.
Gritava-se por socorro, com tal expressão de terror, que não havia engano possível!
- É Tartelett! É Tartelett! - disse Godfrey. - O infeliz foi atacado!... Depressa! Depressa!...
Atravessando a ponte, à distância de vinte passos, viram eles o pobre Tartelett fugindo com toda a velocidade das pernas.
Um crocodilo enorme, saído do rio, ia em sua perseguição, de queixadas abertas. O pobre homem, coitado, perdido e doido de espanto, em vez de fazer ziguezagues, fugia em linha reta, arriscando-se assim a ser alcançado!... De repente, tropeçou e caiu... Estava perdido. Godfrey parou. Neste perigo iminente, não perdeu um só instante o sangue-frio. Encostou a espingarda ao ombro, e fez pontaria ao crocodilo por cima do olho.
A bala, bem dirigida, fulminou o monstro, que deu um pulo para o lado e caiu sem movimento no chão.
Carefinotu, caminhando então para Tartelett, fê-lo levantar...
Tartelett sofrera apenas o susto! Mas que susto!
Eram seis horas da tarde.
Um instante depois, Godfrey e os seus companheiros entravam de novo em Will-Tree.
Que reflexões amargas não fizeram durante o jantar! e longas horas de Insônia se preparavam para estes habitantes da ilha Phina, contra os quais se encarniçava agora a má sorte!
Quanto ao professor, no meio das suas angústias, não fazia mais do que repetir estas palavras, que resumiam todo o seu pensamento:
- Eu desejava bem ir-me embora!
TERMINA-SE ESTE CAPÍTULO POR UMA REFLEXÃO EM EXTREMO SURPREENDENTE DO NEGRO CAREFINOTU
Tinha chegado enfim a estação invernosa, de tanto rigor nestas latitudes. Sentiam-se já os primeiros frios e devia contar-se com o extremo abaixamento de temperatura. Estimou então Godfrey ter disposto uma fogueira no interior.
Deve dizer-se que se tinha acabado o trabalho da paliçada e que o recinto estava agora fechado por meio de uma porta sólida.
Durante as seis semanas seguintes, quer dizer, até meado de Dezembro, houve muitos dias maus, durante os quais não era possível sair.
Primeiramente, houve tempestades terríveis, que abalaram o grupo das sequóias até às raízes e juncaram o solo de ramos quebrados, dos quais se fez amplo fornecimento para as necessidades da alimentação da fogueira.
Os habitantes de Will-Tree vestiram-se então o mais confortavelmente que puderam, os vestuários de lã, encontrados na mala, foram aproveitados durante as excursões necessárias ao aprovisionamento, mas o tempo pôs-se tão mau que os não deixou sair.
Interrompeu-se a caça, e bem depressa a neve caiu com tal violência que Godfrey poderia crer que estava nas paragens inóspitas do oceano polar.
É sabido, com efeito, que a América setentrional, varrida pelos ventos do norte, sem que obstáculo algum os detenha, é dos países mais frios do Globo. O Inverno prolonga-se aí até depois do mês de Abril, e para lutar contra ele é preciso tomar precauções extraordinárias.
Fazia isto pensar que a ilha Phina estava em muito maior grau de latitude do que Godfrey tinha imaginado.
Era necessário, pois, dispor o mais confortavelmente possível o interior de Will-Tree, o que não impediu que o frio e a chuva se fizessem sentir com rigor. A alimentação de reserva era infelizmente pouca, a carne de tartaruga, posta de conserva, ia-se consumindo pouco a pouco, e por várias vezes foi necessário sacrificar algumas cabeças do rebanho dos carneiros, cutias ou cabras, cujo número havia aumentado pouco desde a sua chegada à ilha.
Com estas novas provações, o espírito de Godfrey foi assaltado por pensamentos tristes.
Além disto, durante talvez uns quinze dias, o moço náufrago foi atacado de febre intensa, e, se não fosse a farmácia portátil, onde encontrou os medicamentos necessários para o seu tratamento, talvez que se não tivesse podido restabelecer.
Por outro lado, Tartelett era pouco próprio para ter com ele os cuidados indispensáveis durante essa doença. Foi principalmente Carefinotu quem lhe fez readquirir a saúde.
E que saudades e remorsos ele teve então! Como se acusava a si próprio de ter criado uma situação à qual não via fim!
Quantas vezes, no meio do delírio, chamou por Phina, que já não esperava ver, e por seu tio Will, de quem se via separado para sempre! Como detestava agora essa vida dos Robinsons, que a sua imaginação de criança idealizara! Nessa ocasião via-se em luta com a realidade dos fatos! Nem sequer tinha esperança de tornar a ver o lar doméstico!
Passou assim todo aquele triste mês de Dezembro, e só no fim é que Godfrey começou a recobrar algumas forças.
Quanto a Tartelett, coisa alguma havia, que lhe tivesse alterado a saúde. Mas que lamentos incessantes e que jeremiadas sem fim! Da mesma forma que a gruta de Calipso, depois da partida de Ulisses, Will-Tree já não fazia ecoar o seu canto, o da rabecazinha, bem entendido, que tinha as cordas contraídas pelo frio.
Deve dizer-se também que uma das mais graves preocupações de Godfrey era, juntamente com a aparição dos animais ferozes, o receio de ver os selvagens voltarem em grande número à ilha Phina, cuja situação já conheciam.
Contra tal agressão, o recinto protegido pela paliçada tinha sido defesa insuficiente.
Bem considerado, o abrigo que ofereciam os ramos espessos da sequóia pareceu-lhe ainda assim o que havia de mais seguro. Tratou por isso de os tornar mais acessíveis. Era fácil sempre defender o orifício estreito por onde seria preciso sair para se chegar ao cimo do tronco.
Foi com o auxílio de Carefinotu que Godfrey conseguiu dispor saliências regularmente espaçadas de uma parede a outra, como os degraus de uma escada, as quais, ligadas por uma comprida corda vegetal, permitiam que se subisse com mais rapidez para o interior.
- Está bom - disse Godfrey, sorrindo-se, quando acabou este trabalho -, temos uma casa de cidade em baixo, e uma casa de campo em cima!
- Antes queria um sótão, contanto que fosse em Montgomery-Street! - redargüiu Tartelett.
Chegou o Natal, esse «Christmas» tão festejado em todos os Estados Unidos da América! Depois, veio o dia de Ano Bom, com as recordações da infância, frio, chuvoso, cheio de neve e sombrio, que iniciou o ano novo sob os piores auspícios! Havia então seis meses que os náufragos do «Dream» estavam sem comunicação com o resto do mundo.
O começo do ano não foi dos mais felizes e deixava presumir que Godfrey e os seus companheiros iam passar por privações ainda mais cruéis.
A neve não cessou de cair até 18 de Janeiro. Tinha sido necessário deixar que o rebanho fosse pastar fora, a fim de procurar como pudesse o seu sustento.
Pelo fim do dia a ilha estava imersa em uma noite úmida e muito fria, e a parte inferior das sequóias mergulhada em funda escuridão.
Godfrey e Carefinotu, deitados na cama, no interior de Will-Tree, procuravam em vão dormir. Godfrey, à luz incerta de um archote de resina, folheava algumas páginas da Bíblia.
Pelas dez horas ouviu-se, para o lado do norte da ilha, um ruído afastado que se ia aproximando a pouco e pouco.
Não havia engano possível. Eram animais ferozes que andavam por ali, e, o que era ainda mais assustador, os rugidos da pantera e do leão confundiam-se desta vez num concerto formidável.
Godfrey, Tartelett e o negro tinham-se levantado de repente, cheios de angústia inexprimível. Se, perante esta invasão inexplicável de animais ferozes, Carefinotu participava do espanto dos seus companheiros, devia notar-se, além disso, que o pasmo corria nele parelhas com o terror.
Durante duas horas de mortal angústia, todos três estiveram alerta. Os rugidos sentiam-se às vezes a pouca distância, e depois cessavam de repente, como se o bando de animais ferozes, não conhecendo o país que percorria, andasse vagueando ao acaso. Seria portanto possível que Will-Tree escapasse ao seu ataque!
- Não importa - pensava Godfrey -, se não conseguirmos destruir estes animais até ao último, já para nós não haverá segurança na ilha!
Pouco depois da meia-noite, os rugidos recomeçaram com mais força a menor distância. Era já impossível duvidar de que todo o bando de animais se aproximava de Will-Tree.
Era bem verdade! E, entretanto, de onde vinham esses animais ferozes? Não era possível que tivessem desembarcado recentemente na ilha Phina! Era preciso então que tivessem chegado antes de Godfrey! Mas, nesse caso, como se tinham podido esconder tão bem que, durante as caçadas e as excursões no bosque central e nas partes mais recônditas da ilha, Godfrey não tinha visto deles nenhuns vestígios? Onde estaria o covil misterioso que havia deixado sair esses leões, essas hienas, panteras e tigres? Entre todas as coisas até então inexplicáveis, não seria esta a mais indecifrável de todas?
Carefinotu não podia acreditar no que estava ouvindo. Viu-se já que estava pasmado o mais que podia ser. À luz da fogueira que alumiava o interior de Will-Tree poderia ver-se sob o negro das suas feições a mais estranha das caretas.
Tartelett gemia, lamentava-se e resmungava metido a um canto. Queria interrogar Godfrey acerca de tudo aquilo, este, porém, não podia nem queria responder-lhe. Tinha o pressentimento de grande perigo, e procurava os meios de o evitar. Por uma ou duas vezes, ele e Carefinotu avançaram até meio do recinto. Pretendiam certificar-se de que a porta estava fechada solidamente por dentro.
De repente, sentiu-se uma avalancha de animais dirigir-se com grande ruído para os lados de Will-Tree.
Era, por enquanto, o rebanho das cabras, dos carneiros e das cutias. Cheios de terror, ao ouvirem os rugidos dos animais ferozes, e sentindo a sua aproximação, estes animais acossados tinham fugido da pastagem e vinham abrigar-se atrás da paliçada.
- É necessário abrir-lhes a porta! - disse Godfrey.
Carefinotu abanava a cabeça de cima para baixo. Não lhe era necessário falar a mesma língua do que Godfrey para o compreender! Abriu-se a porta e todo o rebanho, cheio de susto, se precipitou no recinto.
Neste instante, porém, através da entrada livre, viu-se uma espécie de cintilação de olhos, no meio da escuridão que a cúpula das sequóias ainda tornava mais espessa.
Já não era sem tempo de fechar o recinto!
Lançar-se a Godfrey, arrastá-lo contra vontade, e empurrá-lo para a habitação, cuja porta fechou bruscamente, foi para Carefinotu obra de um instante.
Neste momento alguns rugidos deram a conhecer que três ou quatro animais ferozes tinham atravessado a paliçada.
Então misturou-se com esses rugidos horríveis um coro de balidos de terror. O rebanho doméstico, apanhado como em um laço, estava à mercê dos assaltantes.
Godfrey e Carefinotu, que tinham chegado às duas janelas abertas na casca da sequóia, tentavam ver o que se passava no meio da sombra.
Era evidente que os animais ferozes - tigres ou leões, panteras ou hienas, o que ainda não se podia saber - se tinham atirado ao rebanho e começado a carnificina.
Nessa ocasião, Tartelett, num acesso de terror e de cegueira desarrazoados, pegando em uma das espingardas, quis atirar por uma das janelas, ao acaso!
Godfrey deteve-o.
- Não! - disse ele. - No meio desta escuridão é muito provável que sejam tiros perdidos. Não devemos gastar inutilmente as munições! Esperemos pelo dia.
E tinha razão, as balas teriam alcançado da mesma forma os animais domésticos e os ferozes - aqueles com mais certeza, pois que eram em maior número. Salvá-los agora era impossível. Sacrificados que fossem, talvez que os animais ferozes, já fartos, saíssem do recinto antes do nascer do Sol. Tratar-se-ia então de ver como se poderia prevenir nova agressão.
Era também melhor, nessa noite escura, e conforme fosse possível, não dar a perceber a existência de homens, que poderiam ser preferidos aos outros animais.
Desta forma talvez se evitasse um ataque direto a Will-Tree.
Como Tartelett era incapaz de compreender um raciocínio deste gênero ou qualquer outro que fosse, Godfrey tirou-lhe a arma. Foi então o professor deitar-se em cima da cama, amaldiçoando as viagens, os viajantes e os maníacos que não podem ficar tranqüilamente no lar doméstico! Os seus dois companheiros tinham voltado ao seu posto de observação nas janelas. Assistiam daí, sem a poderem remediar, a essa horrorosa carnificina que se passava no meio da sombra. Os gritos dos carneiros e das cabras iam diminuindo a pouco e pouco, ou porque os animais iam sendo mortos, ou porque a maior parte deles tivesse fugido para fora, onde os aguardava a morte não menos certa. Era isso uma perda irreparável para a pequena colônia, mas Godfrey não se preocupou com o futuro. O presente era inquietador bastante para lhe absorver todos os pensamentos.
Não havia coisa alguma a fazer nem a tentar para impedir essa obra de destruição.
Deviam ser umas onze horas da noite quando os gritos pararam por um momento.
Godfrey e Carefinotu não cessavam de observar e parecia-lhes que viam ainda umas grandes sombras girando no recinto, enquanto aos seus ouvidos chegava ruído de passos.
Era evidente que eram outros animais ferozes que tinham chegado mais tarde, atraídos pelo cheiro do sangue de que o ar estava impregnado, e farejavam emanações especiais à roda de Will-Tree. Iam, vinham e giravam em redor da árvore, deixando ouvir os gritos surdos de cólera. Alguns deles pulavam na sombra, como gatos enormes. O rebanho não fora suficiente para lhes conter a raiva.
Godfrey e os seus companheiros não se mexiam. Conservando completa imobilidade talvez que pudessem evitar uma agressão direta.
Um acaso desastroso revelou de repente a sua presença e expô-los a perigos maiores.
Tartelett, possuído de verdadeira alucinação, tinha-se levantado. Agarrou num revólver, e, desta vez, antes que Godfrey e Carefinotu o pudessem impedir, não sabendo o que fazia, julgando talvez ver um tigre diante de si, disparou!... A bala atravessou a porta de Will-Tree.
- Desgraçado!... - exclamou Godfrey, atirando-se a Tartelett, a quem o negro tinha tirado a arma.
Era, porém, muito tarde. Feito o apelo, sentiram-se de fora rugidos mais fortes ainda, e ouviram-se unhas formidáveis arranhando na casca da sequóia. A porta foi abalada com força, e era fraca em demasia para resistir.
- Defendamo-nos! - exclamou Godfrey.
E, de espingarda na mão e cartucheira à cinta, foi outra vez para junto de uma das janelas.
Com grande espanto seu, notou que Carefinotu tinha feito o mesmo! Sim!, o negro, pegando na outra espingarda - arma que nunca tinha manejado -, enchia os bolsos de cartuchos e ia pôr-se junto de outra janela.
Então começaram os tiros a ressoar através das janelas. Ao clarão destes, Godfrey de um lado e Carefinotu do outro, podiam ver com que inimigos tinham de lutar.
Além, no recinto, soltando urros de raiva, rugindo no meio das detonações, e rolando no chão feridos por algumas balas, viam-se aos pulos leões, tigres, hienas e panteras - uns vinte pelo menos destes animais! Estes rugidos, que se ouviam ao longe, serviriam decerto para chamar outros animais ferozes. Podiam-se mesmo ouvir desde já outros urros, mais afastados, que se iam aproximando de Will-Tree. Parecia que se tinha deitado na ilha uma coleção completa de animais ferozes! Entretanto, sem se importarem com Tartelett, que de coisa alguma Lhes poderia servir, Godfrey e Carefinotu, conservando todo o sangue-frio, só procuravam dar tiros certeiros. Não querendo perder um só cartucho, esperavam que passasse ao seu alcance qualquer sombra.
Ouvia-se então o tiro, conhecia-se que acertava, porque um rugido doloroso dava a entender que o animal tinha sido alcançado.
No fim de um quarto de hora, houve algum tempo de descanso.
Estariam porventura os animais ferozes cansados de um ataque que tinha custado a vida a muitos deles, ou estavam à espera que rompesse o dia para recomeçarem a agressão em condições mais favoráveis? Como quer que fosse, nem Godfrey nem Carefinotu tinham abandonado o seu posto. O negro tinha-se servido da espingarda com tanta habilidade como Godfrey. Se não era mais do que instinto de imitação, deve concordar-se que era admirável.
Pelas duas horas da manhã, o perigo reapareceu mais iminente do que dantes. A posição no interior de Will-Tree ia tornar-se insustentável.
Com efeito, junto da sequóia sentiram-se novos rugidos. Nem Godfrey nem Carefinotu, em resultado da disposição das janelas, abertas lateralmente, podiam ver os agressores, nem, por conseqüência, atirar sobre eles com probabilidade de os alcançar.
Desta vez era a porta que os animais atacavam, e era mais que certo que essa porta cederia ao seu impulso ou às suas garras.
Godfrey e o negro tinham descido das janelas. Sentia-se já a porta abalada com as pancadas de fora, e um hálito quente passava através das fendas da casca.
Godfrey e Carefinotu quiseram consolidar a porta, escorando-a com as estacas que serviam para lhes amparar as camas, mas não era isso suficiente.
Era evidente que dentro em pouco a porta cederia, porque os animais estavam cada vez mais furiosos, sobretudo desde que os tiros os não podiam alcançar.
Estava pois Godfrey reduzido a não poder fazer coisa alguma.
Se ele e os seus companheiros estivessem ainda no interior de Will-Tree na ocasião em que os animais aí entraram, as armas seriam insuficientes para os defender.
Godfrey estava de braços cruzados. Via as portas estalarem pouco a pouco, e nada podia fazer. Desanimado por um momento, passou a mão pela testa, cheio de desespero, mas, recobrando de novo ânimo, ordenou:
- Para cima, para cima!... Todos!
E, dizendo isto, indicava o ramal estreito que ia ter à bifurcação dos ramos pelo interior de Will-Tree.
Carefinotu e Godfrey, pegando nas espingardas e nos revólveres, levaram consigo grande provisão de cartuchos.
Tratou-se então de obrigar Tartelett a segui-los a estas alturas, aonde nunca tinha querido ir.
Tartelett já não estava ali. Havia tomado a dianteira, enquanto os seus companheiros faziam fogo.
- Para cima! - repetiu Godfrey.
Tinham ali um derradeiro asilo, onde ficariam certamente ao abrigo dos animais. Em todo o caso, se um deles, tigre ou pantera, quisesse subir à ramaria da sequóia, seria fácil defender o orifício por onde ele quisesse passar.
Ainda Godfrey e Carefinotu não estavam a uma altura de trinta pés quando sentiram rugidos no interior de Will-Tree.
Um momento antes teriam sido surpreendidos. A porta fora arrombada.
Ambos então trataram de subir, e chegaram finalmente ao orifício superior do tronco.
À sua chegada ouviram um grito de terror. Era Tartelett, o qual julgara ver diante de si uma pantera ou um tigre! O infeliz professor estava agarrado a um ramo, com um medo horrível de cair.
Carefinotu dirigiu-se para ele e obrigou-o a encostar-se a um ramo secundário, onde o prendeu solidamente com o cinto. Em seguida, enquanto Godfrey ia colocar-se num sítio que lhe permitia dominar o orifício, Carefinotu procurou outro lugar, de forma que pudesse cruzar o seu fogo com o dele.
Feito isto, esperaram os acontecimentos.
Nestas condições era provável que estivessem ao abrigo de qualquer ataque.
Godfrey, no entanto, queria ver o que se passava por baixo, mas a noite era ainda muito profunda. Punha-se então de ouvido à escuta, e os rugidos, que subiam sem cessar, mostravam bem como os agressores não pensavam em sair dali.
De repente, pelas quatro horas da manhã, viu-se na parte inferior da árvore uma grande claridade que irradiou bem depressa através das janelas e da porta. Ao mesmo tempo, um fumo espesso, que saía pelo orifício superior, foi perder-se nos ramos mais altos.
- Que será isto agora? - exclamou Godfrey.
Era coisa bem fácil de explicar. Os animais, andando pelo interior de Will-Tree, tinham espalhado os carvões da fogueira.
O fogo comunicara-se logo aos objetos contidos na habitação.
A chama inflamara a casca, muito combustível pela secura em que estava.
A gigantesca sequóia ardia pela base.
A situação era agora mais terrível ainda do que até então o fora.
Neste momento, ao clarão do incêndio, que alumiava com violência a parte inferior do grupo de árvores, podiam ver-se os animais pulando, junto de Will-Tree.
Quase no mesmo instante sentiu-se uma horrível explosão.
A sequóia, abalada espantosamente, tremeu desde as raízes até aos últimos ramos da cúpula.
Era a reserva de pólvora que acabava de explodir de repente no interior de Will-Tree, enquanto o ar, expulso com violência, irrompeu pelo orifício, como os gases numa boca de fogo.
Godfrey e Carefinotu estiveram para ser arremessados ao longe, e com certeza que, se Tartelett não tivesse sido tão solidamente preso, teria sido atirado ao chão.
Os animais, espantados com a explosão e mais ou menos feridos, tinham fugido.
Ao mesmo tempo, porém, o incêndio, alentado por esta combustão súbita da pólvora, desenvolveu-se em área mais considerável.
As labaredas subiam por dentro do enorme tronco, como por uma chaminé. As mais altas dessas chamas compridas, que lambiam as paredes interiores, propagaram-se bem depressa até à bifurcação, no meio dos estalidos da madeira, semelhantes a tiros de revólver.
Uma claridade intensa iluminava, não só o grupo das árvores gigantescas, como também todo o litoral, desde Flag-Point até ao cabo meridional de Dream-Bay.
O incêndio alcançou bem depressa os primeiros ramos da sequóia, ameaçando chegar ao sítio onde estavam refugiados Godfrey e os seus dois companheiros. Iriam eles pois ser devorados por esse fogo que não podiam combater, ou não teriam outro meio de escapar às chamas senão precipitando-se de cima da árvore?
Em qualquer dos casos era certamente a morte que os esperava!
Godfrey procurava ainda qualquer meio de se livrarem, mas não o encontrava!
Os ramos baixos já estavam a arder, enquanto o fumo espesso se misturava às primeiras claridades do dia, que começava a despontar no oriente.
Nesse momento sentiu-se um ruído horroroso. A sequóia, que ardia então até às raízes, estalava com violência, inclinava-se e caía...
Mas, na sua queda, o tronco encontrou as árvores que lhe estavam próximas, os seus ramos misturaram-se com os delas, ficando nessa posição, deitada obliquamente, num ângulo de pouco mais ou menos quarenta e cinco graus com o chão.
No momento em que a sequóia ia a cair, Godfrey e os seus companheiros pensaram que estavam perdidos!...
- Dezenove de Janeiro - pronunciou então uma voz, que Godfrey, muito admirado, reconheceu!...
Era Carefinotu!...
Sim, Carefinotu, que acabava de pronunciar essas palavras, e nessa língua inglesa que até então parecia não ter podido falar nem compreender!
- O que dizes tu?... - exclamou, surpreendido, Godfrey, que se tinha deixado escorregar junto dele por entre os ramos.
- Digo - respondeu Carefinotu - que é hoje que deve chegar seu tio Will, e que, se ele não vem, estamos bem arranjados!
TERMINA-SE POR EXPLICAR TUDO O QUE ATÉ AGORA TINHA PARECIDO ABSOLUTAMENTE INEXPLICÁVEL
Nesta ocasião, e antes que Godfrey pudesse objetar, sentiram-se tiros de espingarda a pouca distância de Will-Tree.
Ao mesmo tempo, uma dessas chuvas torrenciais que são verdadeiras cataratas veio muito a propósito cair quando as chamas, devorando os primeiros ramos, iam comunicar-se às árvores a que se encostara Will-Tree.
O que devia pensar Godfrey desta série de acontecimentos inexplicáveis?... Carefinotu falando inglês como um inglês de Londres, chamando pelo seu nome, anunciando-lhe a chegada próxima do tio Will, e, em seguida, essas detonações que acabavam de se sentir de repente?
Perguntou a si mesmo se estava doido, mas teve apenas tempo para formular estas interrogações insolúveis Nesse momento - cinco minutos apenas depois de se ouvirem os primeiros tiros - apareceu uma força de marinheiros debaixo da cúpula das árvores.
Godfrey e Carefinotu deixaram-se então escorregar ao longo do tronco, cujas paredes interiores ardiam ainda.
Mas, na ocasião em que Godfrey chegava ao chão, sentiu que o chamavam duas vozes, as quais, mesmo perturbado como estava, não podia deixar de conhecer.
- Meu querido sobrinho Godfrey, tenho a honra de te cumprimentar!
- Godfrey! Querido Godfrey!
- Tio Will!... Phina!... - exclamou Godfrey, cheio de pasmo.
Três segundos depois estava nos braços de ambos.
Ao mesmo tempo, dois marinheiros, por ordem do capitão Turcotte, que comandava essa pequena força, subiam à sequóia para livrarem Tartelett, e pegavam nele com todas as atenções devidas à sua pessoa.
Começaram então a trocar-se as perguntas, as respostas e as explicações.
- O tio Will aqui?
- Sim, aqui estamos!
- E como é que descobriu a ilha Phina?
- A ilha Phina! - respondeu William W. Kolderup -, queres dizer a ilha Spencer! Não era difícil: há seis meses que a comprei.
- A ilha Spencer!...
- À qual tinhas posto o meu nome, querido Godfrey – disse Phina.
- Serve-me este nome, e havemos de conservá-lo - respondeu o tio -, mas até aqui, e para os geógrafos, é ainda a ilha Spencer, que está a três dias de viagem de São Francisco, e à qual pensei que era conveniente mandar-te fazer a tua aprendizagem de Robinson!
- Oh!, meu tio, que está a dizer? - exclamou Godfrey. – Se fala verdade, só lhe posso dizer que bem o mereci! Mas, nesse caso, o naufrágio do «Dream»?...
- Foi fingido! - explicou William W. Kolderup, que nunca tinha estado de tão bom humor. - O «Dream» afundou-se tranqüilamente, conforme instruções que eu tinha dado a Turcotte, enchendo de água os seus water-ballest. Pensaste que ele ia a pique, mas quando o capitão viu que tu e Tartelett estavam a caminho da costa, voltou para trás! Três dias depois entrava em São Francisco, e foi ele quem nos trouxe à ilha Spencer no dia combinado!
- Nesse caso, ninguém da tripulação morreu no naufrágio? - perguntou Godfrey.
- Ninguém... a não ser esse desgraçado chinês que estava escondido a bordo, e que não se tornou a encontrar.
- E essa piroga?...
- Era falsa a piroga, que eu próprio mandei arranjar!
- E os selvagens?...
- Eram fingidos os selvagens, que felizmente os teus tiros deixaram Ilesos.
- E Carefinotu?...
- É falso Carefinotu, ou, antes, é o meu fiel Jup Brass, que, pelo que vejo, representou maravilhosamente o seu papel de Sexta-Feira!
- Sim! - concordou Godfrey - e até me salvou duas vezes a vida quando encontrei um urso e um tigre...
- Era fingido o urso! Era fingido o tigre! – exclamou William W, Kolderup, rindo cada vez mais. - Ambos tinham sido empalhados e desembarcados, sem que tu o visses, com Jup Brass e os seus companheiros!
- Mas eles mexiam a cabeça e as patas!...
- Por meio de corda que Jup Brass lhes ia dar durante a noite, algumas horas antes desses encontros que te preparava.
- Pois quê! Foi tudo assim?... - disse Godfrey um pouco envergonhado de se ter deixado cair em todos aqueles embustes.
- É verdade, nesta ilha ficava tudo isso muito bem, e era preciso que tivesses comoções, meu sobrinho.
- Nesse caso - volveu Godfrey, que tomou o partido de se rir -, se nos queria experimentar dessa forma, meu tio, para que nos mandou uma mala com todos os objetos de que tanta necessidade tínhamos?
- Uma mala? - interrogou William W. Kolderup. - Que mala foi essa? Nunca te mandei mala nenhuma! Seria por acaso?...
E, dizendo isto, voltou-se para Phina, que abaixou os olhos, voltando a cabeça.
- Ah!, realmente!... Uma mala. Mas nesse caso é preciso que Phina tivesse por cúmplice...
E o tio Will voltou-se para o capitão Turcotte, que deu uma grande gargalhada.
- Que quer, Sr. Kolderup? - respondeu ele. - Pode-se algumas vezes resistir às suas ordens... mas às de Miss Phina... é muito difícil!... E há quatro meses quando por sua ordem vim observar a ilha, deitei um escaler ao mar com a sobredita mala...
- Phina, minha querida Phina - agradeceu Godfrey estendendo-lhe a mão.
- Tinha-me prometido guardar segredo, Turcotte! – lembrou Phina, fazendo-se corada.
O tio William W. Kolderup, abanando a cabeça, quis debalde ocultar a sua comoção. Se Godfrey, porém, tinha sorrido com bom humor ouvindo as explicações que lhe dera o tio Will, o professor Tartelett, por seu lado, não ria! Mortificava-se muito com o que acabava de ouvir! Ter sido o alvo de semelhante burla, ele, professor de dança e de boa presença! Por isso, dando um passo em frente, com muita dignidade, disse:
- O Sr. William Kolderup não há-de afirmar, creio, que o enorme crocodilo, do qual eu estive a ponto de ser vítima, era de cartão e com molas?
- Um crocodilo? - estranhou o tio.
- Sim, Sr. Kolderup - interveio então Carefinotu, a quem se pode agora dar o seu verdadeiro nome de Jup Brass -, sim, um verdadeiro crocodilo, que se atirou ao Sr. Tartelett, e esse não o tinha eu trazido na minha coleção!
Contou então Godfrey o que desde certo tempo se tinha passado, a aparição súbita e em grande número dos animais ferozes, verdadeiros leões, verdadeiros tigres, verdadeiras panteras e várias serpentes, das quais, durante quatro meses, não se tinha visto um só exemplar na ilha!
William W. Kolderup, perplexo a seu turno, não percebeu nada daquilo. A ilha Spencer, como era sabido há muito, não tinha nenhum animal feroz, e fora estipulado nas condições da venda que não devia conter nenhum animal prejudicial.
Não percebeu muito mais do que Godfrey lhe contou acerca de todas as tentativas que tinha feito, a propósito do fumo que várias vezes tinha visto em diversos pontos da ilha. Ficou por isso muito intrigado com essas revelações que lhe faziam pensar que não se tinha tudo passado conforme as suas instruções e de acordo com o programa que ele só estava no direito de formular. Tartelett é que não queria ouvir nada disto. Não acreditou em coisa alguma que lhe contaram, nem do naufrágio, nem dos selvagens, nem dos animais, e sobretudo não quis renunciar à glória, que tinha adquirido, deitando a terra
com o seu primeiro tiro de espingarda o chefe de uma tribo da Polinésia, um dos criados do palácio Kolderup, que estava nesse momento tão bom de saúde como ele próprio!
Estava tudo explicado, exceto a grave questão dos verdadeiros animais ferozes e do fumo desconhecido. O tio Will ficou pensando muito no caso. Mas, como homem prático que era, adiou por um esforço de vontade a solução desses problemas, e, dirigindo-se ao sobrinho, declarou:
- Godfrey, gostaste sempre tanto das ilhas que te sou com certeza agradável, e realizo os teus desejos, dizendo-te que esta é tua, e só tua! Faço-te presente dela, e dela podes fazer o que quiseres. Não quero tirar-te daqui à força, e fica portanto sendo um Robinson toda a tua vida se o coração to pedir...
- Eu, um Robinson, toda a vida! - respondeu Godfrey.
Phina, então, disse-lhe por seu turno:
- Godfrey, queres com efeito ficar nesta ilha?
- Antes morrer - disse ele, com uma expressão cuja franqueza não era duvidosa. Mas, caindo em si...
- Pois bem, quero - continuou, pegando na mão de Phina -, quero ficar aqui, mas, com três condições: a primeira é de tu ficaras comigo, minha querida Phina, a segunda é que o tio Will ficará também conosco, e a terceira é que o capelão do «Dream» há-de vir hoje mesmo casar-nos.
- Godfrey, no «Dream» não há capelão, bem o sabes - respondeu o tio Will -, mas penso que os há ainda em São Francisco, e que aí encontraremos mais de um que nos queira prestar esse serviço! Parece-me, pois, que estou de acordo contigo dizendo-te que amanhã embarcaremos!
Phina e o tio Will quiseram então que Godfrey lhes fizesse as honras da ilha.
Começaram pois a passear por entre o grupo das sequóias, e ao longo do rio, até à ponte pequena.
De Will-Tree já se não via coisa alguma! O incêndio tinha completamente devorado essa habitação arranjada na base da árvore! Sem a chegada de William W. Kolderup, com a aproximação do Inverno, com o material todo perdido, os nossos Robinsons, como verdadeiros animais ferozes que andassem divagando pela ilha, teriam ficado numa situação bem lastimosa!
- Meu tio - revelou então Godfrey -, eu pus à ilha o nome de Phina, mas deixe-me dizer-lhe que a árvore em que habitávamos chamava-se Will-Tree.
- Está bem - respondeu o tio -, havemos de levar semente dela para o meu jardim de Frisco!
Durante o passeio, viram-se de longe alguns animais ferozes, os quais contudo não se atreveram a atacar a força numerosa e bem armada dos marinheiros do «Dream». A sua presença era, no entanto, um fato absolutamente incompreensível. Logo em seguida voltaram para bordo, pedindo Tartelett licença para levar «o seu crocodilo» como peça comprovativa, licença que lhe concederam.
Pela tarde, estavam todos reunidos no salão do «Dream», festejando num alegre jantar o fim das provações de Godfrey Morgan e o seu casamento com Phina Hollaney.
No dia seguinte, 20 de Janeiro, fazia-se ao largo o «Dream», sob o comando do capitão Turcotte.
Pelas oito horas da manhã, Godfrey, um tanto comovido, via desaparecer no horizonte, do lado do ocidente, essa ilha na qual tinha feito seis meses de uma aprendizagem que jamais devia esquecer.
A travessia fez-se rapidamente, com mar magnífico e vento favorável que deixou largar as velas ao «Dream». Desta vez ia direito ao seu fim, e não queria enganar pessoa alguma! Não dava voltas sem cessar, como na primeira viagem! Não perdia de noite o que tinha ganho durante o dia! Por isso, no dia 23 de Janeiro, ao meio-dia, depois de ter entrado pela Porta de Oiro, na vasta baía de São Francisco, foi atracar tranqüilamente ao cais de Merchant-Stree.
E que se viu então? Viu-se sair do fundo do porão um homem, que, tendo alcançado o «Dream» a nado, enquanto este estivera ancorado na ilha Phina, tinha conseguido esconder-se aqui outra vez! Mas quem era esse homem? Era o chinês Seng-Vou, que tinha feito esta viagem da mesma sorte que a outra!
Seng-Vou dirigiu-se para William W. Kolderup:
- Peço perdão ao Sr. Kolderup - disse cortesmente. – Quando embarquei no «Dream», pensei que ele ia diretamente a Xangai, mas visto que ele volta a São Francisco, também eu volto.
Pasmados todos com esta aparição, não sabiam que responder ao intruso, que os olhava sorrindo.
- Mas - volveu por fim William W. Kolderup -, suponho que não ficaste seis meses no fundo do porão?
- Não - respondeu Seng-Vou.
- Onde estavas então escondido?
- Na ilha!
- Tu? - exclamou Godfrey.
- Eu!
- Então esse fumo?...
- Eu precisava de fogo!
- E não procuravas então aproximar-te de nós e participar da vida comum?
- Um chinês gosta de viver só - respondeu tranqüilamente Seng-Vou -, e não precisa de pessoa alguma para viver!
E, dizendo isto, esta criatura original cumprimentou William W. Kolderup, desembarcou e desapareceu.
- Eis como são feitos os verdadeiros Robinsons! - exclamou o tio Will. - Olha para ele, e vê se tem semelhança contigo! É o mesmo, a raça anglo-saxônica fará mal em absorver gente deste quilate!
- Bem - observou então Godfrey -, o fumo já está explicado pela presença de Seng-Vou, mas os animais ferozes?...
- E o meu crocodilo? - reforçou Tartelett. - Quero que me expliquem o meu crocodilo!
William W. Kolderup, muito atrapalhado e sentindo-se confuso neste ponto, passou a mão pela testa.
- Mais tarde saberemos tudo. Quem sabe procurar sempre encontra!
Alguns dias depois celebrava-se com grande pompa o casamento do sobrinho e da pupila de William Kolderup. Imagine-se como os dois noivos foram cumulados de atenções e festejados por todos os amigos do rico negociante.
Nesta cerimônia, Tartelett foi perfeito de maneiras, de distinção, de «comme il faut», e o discípulo honrou igualmente o célebre professor de dança e de boa presença. O professor tinha, no entanto, uma idéia, e era a de empalhar o crocodilo. Desta forma, o animal, bem preparado, com os queixos abertos, as patas estendidas e suspenso no teto, seria o mais belo ornato do seu quarto.
Foi portanto o crocodilo mandado a um preparador célebre, que o trouxe ao hotel alguns dias depois.
Vieram então todos admirar o monstro, ao qual Tartelett tinha quase estado a servir de alimento!
- Sabe decerto, Sr. Kolderup, de onde provinha este animal - perguntou o célebre preparador, apresentando-lhe a conta.
- Não - respondeu o tio Will.
- Mas ele tinha um letreiro colado por debaixo.
- Um letreiro! - exclamou Godfrey.
- Ei-lo aqui - declarou o célebre preparador, mostrando-lhe um bocado de couro, onde estavam escritas estas palavras com tinta indelével:
Enviado por Hagenbek, de Hamburgo, a J. R. Taskinar, de Stockton - U. S. A.
William W. Kolderup, ao ler estas palavras, soltou uma estrondosa gargalhada.
Tinha percebido tudo. Era o seu adversário J. R. Taskinar, o seu competidor vencido, que para se vingar, depois de ter comprado grande número de animais ferozes e répteis ao conhecido fornecedor dos Dois Mundos, os tinha desembarcado de noite, e por muitas vezes, na ilha Spencer. Devia ter-lhe custado bem cara esta fantasia, mas tinha assim conseguido infestar a propriedade do seu rival como fizeram os ingleses com a Martinica, a acreditar-se na lenda, antes de a entregarem à França.
Já nada havia de inexplicável daí por diante nos fatos memoráveis da ilha Phina.
- Bem pregada peça! - exclamou William W. Kolderup. - E eu teria feito o mesmo que esse velhaco.
- Mas com esses terríveis habitantes - observou Phina -, a ilha Spencer agora...
- A ilha Phina... - corrigiu Godfrey.
- A ilha Phina - repetiu ela, sorrindo - está absolutamente inabitável.
- Ora adeus - respondeu o tio Will -, esperaremos que o último leão tenha devorado o último tigre!
- E então, minha querida Phina - perguntou Godfrey -, não terás medo de ir aí passar uma estação comigo?
- Contigo, meu caro marido, nada receio em parte alguma! - respondeu Phina. - E como, por fim, tu não fizeste a tua viagem á roda do mundo...
- Fá-la-emos juntos, e se a má fortuna fizer um dia de mim um verdadeiro Robinson...
- Terás ao menos junto de ti a mais dedicada companheira de um Robinson!
Júlio Verne
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