Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 53
Às quatro da manhã conforme combinado, Xcor transferiu sua forma corpórea para o topo do prédio da Companhia de Seguros de Caldwell. Ao retomar sua forma nas rajadas de vento que atravessavam o espaço vazio no alto da cidade, ele inspirou fundo.
E quando olhou por cima do ombro, um a um seus machos apareceram: Zypher, Balthazar, Syphon e Syn. Quando todos se postaram diante dele, ele sentiu um instante de orgulho, pois os reunira por excelência, escolhendo a dedo os que considerava serem os melhores naquele acampamento de guerra. Aquele grupo de guerreiros o seguira em incontáveis batalhas, e juntos venceram muito assassinos, o total dessas mortes era algo impossível de contar...
De repente, a imagem de todos aqueles jarros na caverna da Irmandade surgiu em sua mente. Na verdade, se os dois grupos tivessem conseguido trabalhar juntos? Talvez a guerra já tivesse terminado àquela altura.
Zypher deu um passo à frente, evidentemente preparado a fazer algum tipo de declaração em nome do grupo.
– O que tiver a dizer – Xcor disse ao vento –, eu aceito e...
O grande guerreiro se ajoelhou e levantou o olhar silenciosamente para Xcor.
Enquanto o vento uivava e os cabelos de ambos eram açoitados de um lado a outro junto com as roupas invernais, Xcor descobriu que piscava rapidamente.
Em seguida, enfiou a mão no casaco e pegou uma faca que pegara na cozinha da casa segura e guardara nas dobras da parca preta emprestada. Curvando a mão ao redor da lâmina de fio duplo, ele apertou com força... e quando deslizou a arma da mão, o sangue fluiu.
Xcor estendeu a mão ferida para seu soldado, e Zypher abaixou a boca e bebeu o que ali se empoçava. Depois limpou a boca com o dorso do braço e se ergueu. Inclinou a cabeça e retrocedeu.
Um a um, os outros machos repetiram o ato de fidelidade, uma cerimônia que realizaram tantos anos atrás, ainda na floresta do Antigo País. Syn foi o último a se prontificar, assim como o fizera na primeira vez – e quando sorveu sua porção e se ergueu novamente, ele tirou algo das costas.
Quando Xcor viu o que era, ficou momentaneamente atordoado. Mas deslizou a língua sobre a ferida da palma para selá-la... e depois estendeu a mão para aceitar o que lhe era oferecido.
Era a sua foice. Aquela que o protegera dos machos de Bloodletter naquela floresta. Aquela que tomara para si e que usara como sendo sua por séculos. Aquela era tão parte do seu corpo quanto suas pernas e seus braços.
– Onde a encontraram? – sussurrou ao aceitar o cabo.
Era como voltar para casa.
Zypher olhou para os outros e respondeu:
– Na Escola para Moças de Brownswick. Foi a única coisa sua que encontramos.
Xcor passou seu peso para trás e girou a grande lâmina num arco. Era um antigo hábito alegremente renovado, e com o modo com que ela se movia sob seu comando... era prova de que a água não era a única coisa que podia existir em diferentes estados.
Uma lâmina nas mãos certas tanto podia ser sólida quanto líquida.
Só que, então, ele parou.
– Não usarei isto contra a Irmandade. Entendem a minha posição?
Zypher relanceou para o grupo. E no vento forte e gélido, ele disse:
– Estamos preparados para seguir você. E se você segue Wrath, então estamos preparados para seguir Wrath também.
– Ele espera que vocês jurem lealdade a ele. Por suas vidas de modo a permanecerem vivos.
– Nós seguimos você. Se você seguir Wrath, estamos preparados para seguir Wrath.
Xcor olhou para Balthazar.
– O que me diz?
– O mesmo – respondeu o macho.
– E você? – Xcor perguntou ao seguinte. Quando houve um aceno, ele perguntou ao outro.
Não era esse acordo que o Rei Cego desejava.
– Se isto custar suas vidas – Xcor entoou –, se acabarem caçados por isto, o que me dizem?
– Somos guerreiros – Zypher se pronunciou. – Vivemos e morremos pela adaga, e já somos caçados. Nada será diferente para nós salvo a integridade dos nossos permanentes e duradouros serviços ao nosso único senhor verdadeiro. Estamos em paz com o nosso posicionamento nesta questão. Em relação a outra, não estamos.
Evidentemente debateram o assunto por algum tempo... e chegaram a uma conclusão unificada e determinada, não a sujeitando a alterações tampouco negociações.
Xcor sentiu o coração inflar e seguiu o instinto de inclinar a cabeça.
– Apresentarei esta situação ao Rei e veremos o que ele tem a dizer.
– E depois iremos para casa – Zypher completou. Como se isso também fosse inalterável.
– Sim – Xcor disse para o vento. – Iremos para casa.
Layla saiu da casa pela porta de correr, indo para o frio e se encolhendo no casaco que pegara no armário. Ao fechar os olhos para se desmaterializar, seu coração batia forte e ela sentia uma raiva muito próxima de um sacrilégio.
Quando voltou à sua forma, foi numa península que se projetava no Rio Hudson, uns 25 quilômetros ao longo do curso do rio onde ficara umas boas duas horas andando de um lado a outro. O chalé de caçador que era seu destino era uma pequena construção, e tão modesta e resistente quanto um sapato velho bem consertado, situado de modo a ficar de frente para a cidade. Mais adiante na península, uma mansão de vidro elegante e de tamanho considerável jazia como um museu de exibição da riqueza, seu brilho alcançando todas as cercanias como o esplendor do sol que fortifica o sistema solar.
Mas aquela outra construção não lhe era importante.
O destino bem sabia que ela já tinha muito com que se preocupar.
Ao marchar sobre a neve na direção da porta dos fundos do chalé, suas pegadas foram as primeiras a perturbar a cobertura imaculada. Mas havia um indivíduo dentro da estruturam e ele lhe abriu a porta antes que ela batesse.
O corpo imenso do Irmão Tohrment ficou delineado pela luz atrás dele.
– Ei! Que surpresa! Desculpe eu ter demorado a responder, eu...
– Qual de vocês é o responsável? – ela estrepitou. – Quem de você atirou nele?
Quando o Irmão parou de falar, ela não lhe deu oportunidade para responder. Passou por ele para entrar no calor dali de dentro e de pronto começou a andar de um lado a outro ao redor do espaço parcamente decorado.
Manteve os olhos nele quando ele os fechou ali dentro, recostando-se na porta em seguida.
– E então? – ela exigiu. – E não venha me dizer que não sei o que estou falando. Ele disse que foi um redutor – e depois me disse que não via um desde que um monte de monstros o sequestrou...
– Monstros? – Tohr rebateu. – Está nos chamando de monstros? Depois que aquele merdinha botou uma bala no seu Rei?
Layla parou diante dele e apontou o dedo na direção dele, pontuando as palavras com o indicador.
– Aquele “merdinha” deixou a oportunidade de entregar o seu rabo. Portanto, veja bem como se refere a ele.
Tohr projetou o quadril à frente.
– Não o transforme num herói, Layla. Isso não a ajudou antes, e certo como o inferno não melhorará as coisas pra você agora.
– Para a sua informação, eu não ouvi você negar que tenha sido você. Qhuinn estava com você ou você decidiu ir atrás dele sozinho? E antes que me diga para que eu seja uma fêmea boazinha e cuide dos meus assuntos, eu estava lá quando Xcor se apoiou em um joelho e beijou o anel do Rei. Eu assisti quando ele fez um juramento, e sei muito bem que Wrath contou isso a todos vocês de modo a que ele ficasse seguro. Mas você não prestou atenção, prestou? Você se acha mais importante do que isto...
– Isso não é da sua conta, Layla.
– O caramba que não é. Eu o amo...
Tohr lançou as mãos para o alto.
– Tá, tá, tá, você se apaixonou por um assassino, um ladrão, um traidor, e de repente toda essa sujeira é zerada, todos esses detalhezinhos simplesmente desaparecem em pleno ar porque você está apaixonada! Ok, bom saber disso, então vou simplesmente apagar o fato de Wrath quase ter morrido na minha frente porque você quer chupar o pau de um mach...
Ela o esbofeteou com tanta força que sentiu a dor do impacto subindo pelo braço. E não sentiu absolutamente nenhum remorso em seguida.
– Devo lembrá-lo da minha posição – ela estrepitou. – Quer você goste ou não, sou uma Escolhida e não permitirei que me desrespeite. Conquistei esse direito pelos anos de serviço e não aceito ser tratada com menos do que isso.
Tohr nem pareceu perceber que ela o estapeara. Só se inclinou de novo para a frente e expôs as presas.
– E devo lembrar a você que é meu trabalho proteger o Rei. A sua vida amorosa não me interesse minimamente numa noite boa. Quando ela entra em conflito com a minha tarefa de manter vivo um macho de valor como Wrath? Eu passo por cima de você e das suas preciosas ilusões mais rápido do que uma hemorragia arterial daria conta deste problema.
– Você – ela apontou o indicador de novo – é quem será um assassino se o matar, assim como Qhuinn.
Ela esperou que ele negasse o envolvimento de Qhuinn. Não foi uma surpresa quando ele não fez isso.
Tohr só deu de ombros.
– Tenho uma ordem executiva que me diz que posso ser aquele que o levará para o túmulo.
– Que foi evidentemente revogada. – Ela meneou a cabeça e levou as mãos ao quadril. – Não sei o qual é o seu problema, mas está na cara que não tem nada a ver com Xcor...
– Ao diabo que não tem!
– Bobagem! Wrath já superou isso. Foi Wrath quem quase morreu. Você é quem está se apegando ao que aconteceu, e é por isso que o motivo por trás disto deve ser outro. Se fosse mesmo Xcor e o que ele fez com Wrath, isso teria se resolvido para você, assim como se resolveu para ele.
Tohr expôs as presas.
– Ouça bem o que eu tenho a dizer, porque só vou dizer uma única vez. Você pode ser uma Escolhida, e pode flanar nas suas vestes brancas e sua atitude sagrada o quanto quiser, mas você não faz parte desta guerra. Nunca fez e nunca fará. Portanto, volte para casa e sente-se num banquinho, comendo seu queijinho ou sei lá o que, porque nada do que me disser vai mudar a minha opinião ou alterar o meu curso de ação. Você não é tão importante assim para mim, fêmea, e mais do que isso, este seu papel através do qual você exige respeito não é assim tão significativo no que se refere à sobrevivência da raça.
Uma fúria de alta octanagem percorreu as veias dela.
– Seu misógino fanfarrão. Uau. Será que Autumn tem noção do quanto você sabe ser condescendente? Ou você esconde isso dela só para que ela consiga dormir ao seu lado durante o dia?
– Chame do que quiser. Rotule como achar melhor. Mas entre mime você, só um de nós sabe do que está falando.
Layla piscou uma vez. Depois duas. E então uma terceira vez.
Ela tinha alguma noção de que o caminho que tomaria não seria o melhor. Mas foi ele quem mencionou a palavra “pau” naquele espetáculo.
– Sei como era a sua primeira shellan. – Quando o sangue fugiu do rosto dele, ela seguiu em frente. – Enquanto me coloca numa caixinha por conta do meu par de ovários, você talvez queira considerar, nem que seja por apenas um instante, como Wellsie teria reagido ao saber que você disse o que disse a uma fêmea. Tenho quase certeza de que ela não ficaria impressionada.
Quando as palavras foram absorvidas, o Irmão pareceu inchar diante dos olhos dela, o corpo crescendo em tamanho, em força, em volume até se tornar um monstro letal.
Os punhos de Tohr se cerraram, o rosto de transformou numa máscara da mais absoluta violência. Numa voz que tremia, ele disse:
– Você precisa ir embora. Precisa ir embora agora. Nunca bati numa fêmea antes, e não vou começar esta noite.
– Não tenho medo de você. Não tenho medo de nada. – Ergueu o queixo. – No que se refere a proteger as vidas dos meus filhos e do macho que amo, eu ponho minha vida no caminho dos destinos deles, e se você me surrar até a morte por causa disso, eu me erguerei dos mortos e o amaldiçoarei até que fique louco. Não há nada que possa fazer para mim que me fará recuar. Nada.
Por um instante, o Irmão pareceu tão atordoado que não conseguiu falar. E ela imaginou qual seria o motivo. Pois lá estava ela, enfrentando a mais temida espécie de macho que a raça tinha a oferecer, um assassino treinado e armado e que devia ter uns cem quilos, no mínimo, a mais do que ela... E ela não estava nem tremendo.
Sim, ela pensou. Aquela que sempre se sentira um pouco perdida encontrara seu lugar e sua voz.
E, no fim, as duas coisas eram de um leão.
Tohr meneou a cabeça.
– Você está louca. De verdade... Pirou de vez, sabia. Está disposta a sacrificar seus filhos, sua família escolhida, o seu lar, o seu relacionamento com Qhuinn e Blay, o seu Rei – todos que sempre estiveram ao seu lado – tudo isso por um macho que cometeu um crime de guerra, o qual deve ter sido uma das coisas menos ofensivas que ele já fez nesta vida. Muito bem, então, quer saber o que Wellsie diria sobre isto? Eu te digo. Ela diria que você é uma traidora, uma enganadora, e que jamais deveria voltar a ver aqueles bebês de novo porque a primeira coisa que se faz com as crianças é protegê-las de todo e qualquer mal.
Ok. Estava farta de discutir sobre coisas hipotéticas.
– Estou te avisando agora, Tohrment, você precisa se perguntar o que de fato está fazendo aqui. – Layla meneou a cabeça. – Porque você está se rebelando. Quer falar de traição? Tenho quase certeza de que Wrath voltou para a mansão e disse a Irmandade o que estava fazendo com Xcor e com o Bando de Bastardos, e o que ele esperava conseguir com isso. E você não está seguindo as ordens, está? Isso o torna um traidor também? Eu acho que sim. Talvez, então, eu e você tenhamos que comprar umas pulseirinhas de melhores amigos ou algo assim.
– Vai se foder, Layla. Espero que aproveite a vida com aquele seu cretino. Sério, porque depois deste espetáculo todo, só posso deduzir que você pretende ir ao Antigo País com ele – isso se ele viver tempo suficiente para fazer essa viagem. Pois é, uma fêmea como você só podia mesmo abandonar os filhos e ir embora com o amante. Sabe do que mais? Sem dúvida será a única vez na minha vida em que vou considerar o abandono de menores como uma excelente ideia.
– Fique longe de Xcor.
– Você não está em posição de me dar ordens, fêmea. – Ele gargalhou. – Jesus Cristo. Custo a acreditar que tudo isso seja a respeito de um tipo como aquele. Afinal, quem diabos é aquele merdinha dos infern...
– Ele é a porra do seu irmão – ela estrepitou. – Isso é o que ele é.
CAPÍTULO 54
Existem momentos na vida em que você poderia estar envolvido num acidente de carro sem estar atrás do volante. Ou mesmo numa estrada. Ou em qualquer espécie de veículo automotivo.
Enquanto as palavras de Layla saíam da boca dela e entravam no cérebro de Tohr para serem processadas, ele sentiu como se estivesse girando descontrolado, e sim, houve o choque do impacto quando ele percebeu que ela dissera aquilo de fato. Isso mesmo, ela simplesmente quis dizer aquilo... E sim... ela ainda o encarava.
Ele é a porra do seu irmão.
– Você está mentindo – ele se ouviu dizer.
– Não estou. Está escrito na biblioteca do Santuário. Vá lá e leia.
– Eu já li o meu livro. Não existe menção alguma de um irmão...
– Está no volume do seu pai. Xcor é filho legítimo do Irmão da Adaga Negra Hharm. Assim como você.
Tohr cambaleou até o sofá diante da lareira e despencou sobre as almofadas.
– Não.
– Como já disse, vá lá e leia com seus próprios olhos. E depois processe o fato de que não só você está indo contra as ordens diretas de Wrath, mas também estará matando o seu parente mais próximo.
Ele não soube quanto tempo permaneceu sentado ali. Estava ocupado demais repassando sua antiga vida, antes de ter vindo para o Novo Mundo, procurando qualquer pista, qualquer indício... ou... qualquer coisa.
– Como eu não soube disso? – Ele meneou a cabeça. – Como algo assim foi mantido em segredo?
– Xcor foi rejeitado pela mahmen dele no parto ainda. O pai, o seu pai, fez o mesmo.
– Por causa do lábio.
– Sim. Pelo que eu soube, ele viveu com uma ama-seca que odiava olhar para ele e que o tratou abominavelmente até abandoná-lo. – Houve uma pausa. – Ele me disse que ficava acorrentado do lado de fora de onde morava. Como se fosse um cachorro.
Tohr fechou os olhos.
E como se Layla tivesse percebido a mudança em seu humor, a voz dela ficou menos aguda, menos raivosa.
– Ele não sabe a seu respeito. Até onde sei, ninguém sabe.
Tohr desviou rapidamente os olhos para ela.
– Está escondendo isto dele?
– Não, ele sabe que eu tenho uma informação. Mas disse que não quer saber. Que isso não mudará o passado e não terá impacto algum no seu futuro.
– Isto... não muda o que ele fez.
– Não, mas espero que mude o que você vai fazer.
Tohr se calou. E enquanto olhava para o vazio, foi difícil categorizar as emoções em lotes como choque, tristeza, raiva, lamento. Infernos, será que choque era uma emoção? Merda, ele nem entendia por que sentia alguma coisa. Não tivera uma relação pai/filho estreita com Hharm, então por que descobrir que seu pai tivera outro filho faria alguma diferença? E quanto a Xcor? Não havia nenhuma conexão com ele.
A não ser a proclamação de que ele o mataria.
Mas sobre a qual Layla tinha razão, fora rescindida.
Erguendo a cabeça, concentrou-se na Escolhida. Layla o encarava próxima à porta, o rosto composto como num retrato, apesar de os olhos estarem um pouco brilhantes demais por conta da discussão anterior entre eles.
Da quase luta corpo a corpo.
– Eu sinto muito – ele disse meio que distante. – Pelo que acabou de acontecer entre mim e você.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou me desculpar por quem eu amo. Na verdade, sinto-me grata por este ser o meu destino. Se eu tivesse me apaixonado por outro, eu não teria sido forçada a ser forte assim – e não há nada de errado neste mundo em descobrir a sua verdadeira força interior.
Que assim seja, Tohr pensou.
– Faça o certo, Tohr – ela disse. – Ouviu bem? Acerte esta situação e garanta que Xcor não seja ferido.
– Não posso controlar o mundo inteiro.
– Não, mas pode se controlar. Essa é uma lição que estou aprendendo.
Layla retornou para a casa segura logo em seguida. Ao passar pela porta de correr, fechou-a e aguçou os ouvidos. Xcor ainda não retornara, e isso era bom. Não queria que ele soubesse da sua dedução sobre quem atirara nele, nem que ela confrontara um Irmão a favor dele.
Sem falar na revelação da identidade do pai dele.
Santa Virgem... Hum, Sexual ao Excesso Lassiter... Como queria que Tohr ficasse de boca fechada. Mas ela fez o que tinha que ser feito a fim de garantir um cessar fogo da parte do Irmão.
Um macho que conhecia a dor de perder a shellan e o filho ainda não nascido não mataria um irmão de sangue. Simplesmente não faria isso.
Descendo até o porão, foi até o banheiro pensando em tomar uma chuveirada. Mas parou ao ver-se no reflexo do espelho acima da pia. Ainda trajava as vestes das Escolhidas que vestira depois que Xcor saíra, as dobras brancas tão familiares quanto seus cabelos, quanto o próprio corpo.
Pegando a ponta da faixa, puxou-a e afastou as duas metades, tirando o peso de sobre os ombros e braços.
Ao segurar a veste à frente, pensou nos muitos anos em que vestiu aquele uniforme. Mesmo depois de Phury ter libertado todas elas, ela ainda usara mais as vestes do que roupas normais. Eram convenientes, confortáveis, e acalentavam como uma mantinha ou um bichinho de pelúcia a uma criança.
Também eram um símbolo.
Não só do passado da raça, mas dela própria.
Layla dobrou a roupa com cuidado, respeitosa. Depois a colocou na bancada de mármore e recuou um passo.
Em seu coração, soube que jamais voltaria a vestir aquilo. Haveria outras peças de roupa que a lembraria dessas vestes: vestidos longos, casacos compridos, até mesmo uma coberta sobre os ombros que se arrastasse até os pés.
Mas ela já não era mais uma Escolhida, e não só porque a própria Virgem Escriba já não existia mais.
A questão era que, quando se serve a outra pessoa, quando você desempenha um papel determinado por outro... Você não consegue mais voltar a essa posição depois de descobrir quem verdadeiramente você é.
Ela era uma mahmen. Era uma amante. Era uma fêmea orgulhosa, uma fêmea forte que sabia a diferença entre o certo e o errado, família e desconhecidos, bem e mal. Sobrevivera a dois partos e acabara de enfrentar um Irmão, e seria capaz de enfrentar o Rei caso fosse necessário. Era falível e capaz de se confundir e poderia até se atrapalhar de tempos em tempos.
Mas sobreviveria. Ela era forte assim.
Enfrentando seu olhar através do espelho, olhou para um rosto que parecia ver pela primeira vez. Passara todos aqueles anos no Santuário à espera de ser chamada para desempenhar seu papel como ehros, sua existência então totalmente imposta e ainda assim infundada, visto que não havia Primale algum para ser satisfeito. E depois caiu na Terra, tropeçando e avançando, quando ela e suas irmãs foram libertadas, seguindo nas pontas dos pés no território desconhecido da vida moderna. Aconteceu o cio desesperado com Qhuinn, e depois a ansiedade enquanto os filhos cresciam dentro dela – período em que sua vida foi fendida em duas por causa de Xcor. E depois disso? O parto que quase a matara e agora a agonia da desintegração da sua unidade familiar... E a iminente perda de Xcor.
Ainda assim, estava viva, estava ali. Olhando-se no espelho.
E pela primeira vez na vida, respeitava aquilo que via.
Curvando-se diante do reflexo, disse com suavidade:
– Prazer em conhecê-la.
CAPÍTULO 55
Tchauzinho.
Quando Vishous apagou mais um vídeo no YouTube, concluiu que aquilo era tão fácil quanto atirar em peixes dentro de um barril. E caso fosse mais fácil invadir aquelas contas, só faltava pegar um saco de pipocas e um pacote de Milk Duds de graça pelos seus esforços. Mais um. E... outro.
De certa forma, tinha que agradecer a Jo Early, também conhecida como Damn Stoker, pela eficiência daquilo tudo. A seção dos links dela era um tesouro encontrado de conteúdo com múltiplos destinos postados por uma boa dúzia de pessoas. Então, depois de terminar de varrer o universo do YouTube, ele iria para o Insta e para o Face.
A caixinha de areia de Zuckerberg seria um pouco mais difícil de hackear, pois, como os dois outros, havia contas múltiplas na plataforma, mas encontraria todas elas.
Mais um. E outro...
Caraca, aquele usuário, o vamp9120 era um cara de bastante volume. Muito conteúdo ligado a ele.
Deveria ter ficado mais alerta quanto a esse assunto. Mas, pensando bem, estivera vivendo a vida em vez de sublimar seus problemas com esportes e a Internet.
Quando Bruno Mars apareceu pelo satélite, ele mudou de estação para Shade-45. Não que ele não considerasse “24K” mágico, mas a batida de boate não constava da sua playlist da noite. “All There” de Jeezy/Bankroll Fresh. Perfeito pra cacete. E enquanto a música saltava para fora dos alto-falantes, ele tomou mais um gole da sua Grey Goose com gelo e pensou se não era hora de tirar uns minutos de folga para enrolar o tabaco turco de mais alguns dos seus cigarros. Depois disso, pegaria mais uma garrafa da meia dúzia que pedira para Fritz. E depois voltaria para cá para...
– Mas que porra...? – ladrou.
Inclinando-se na direção da tela, franziu o cenho ao ver a imagem que estava passando ali.
– Espera aí, eu me lembro disso.
Pois é, estava falando sozinho. É isso o que você faz quando o seu colega de quarto, que estava fora da escala assim como você, transava com a fêmea dele no fim do corredor – e você é um coitado sentado numa cadeira de escritório na frente da casa.
Rebobinando o vídeo, V. assistiu de novo enquanto a ação se desenrolava. A filmagem foi feita a partir de um ponto mais alto num dos prédios do centro da cidade, como se o babaca com o celular estivesse olhando para fora do terceiro, talvez quarto andar. O centro da imagem era um beco abaixo – e uma figura que avançava andando.
Na direção de uma saraivada de balas.
A figura era Tohrment. As balas vinham de um assassino agachado no canto oposto. E a cena era absolutamente suicida.
V. não estivera presente para ver em primeira mão a estupidez da coisa, mas claro que ouvira a respeito de múltiplos guerreiros. Aquilo foi na época em que Tohr estivera enlouquecendo, determinado a mostrar a todos o quanto era forte o seu desejo de morrer. Sim, ele estava retribuindo as balas do redutor, a pistola estava erguida e o chumbo saía do cano... Mas estava sem colete, nada para cobri-lo e uns doze órgãos vitais diferentes que poderiam ter sido atingidos.
Puta que o pariu, se ele queria tanto ser alvejado, o único outro modo de garantir que isso aconteceria seria ele mesmo puxar o gatilho na sua direção.
Ainda assim, ele sobreviveu...
– Espera aí... O que é isso?
De repente, Vishous esfregou os olhos. Aproximou-se ainda mais do monitor. Ficou se perguntando se aquele vídeo não teria sido manipulado.
Ajustando o contraste da tela, voltou o vídeo. E uma vez mais.
Alguém estava atirando do prédio do outro lado. Era isso... Havia outra figura no alto de um prédio e ele... sim, ele estava inclinado sobre o beiral atirando no assassino que tentava matar Tohr.
Não havia sido um irmão, isso era certeza. V. saberia distinguir seus guerreiros no meio de uma neblina e meio quilômetro de distância, e seria fácil isolá-los nesta filmagem apesar de a imagem estar granulada. Sem falar que não havia a menor possibilidade de qualquer um deles estar em qualquer outra parte que não no chão ao lado do irmão.
Portanto, quem diabos era aquele ali? Não era um humano. De jeito nenhum um dos ratos sem cauda teria se metido numa situação assim naquela parte da cidade. Não havia nenhum cachorro naquela luta, então por que arriscariam ser presos? Mais provavelmente telefonariam para a polícia e se esconderiam...
Quando seu celular tocou, V. se sobressaltou – e, merda, não conseguia se lembrar da última vez em que isso aconteceu. Ainda mais por conta de um telefonema.
Mas considerando-se no que estava se ocupando...
Observou quando a mão se esticou para pegar o aparelho. Deixara-o voltado para a mesa, e virar a tela demandou certa coragem.
Quando viu quem era, prontamente voltou a operar.
– Meu senhor.
Wrath foi direto ao ponto, o que era um motivo a mais para gostar do cara.
– Preciso de você. Agora.
– Entendido. Onde você está?
– Estarei no átrio em cinco minutos.
– Me diga que não iremos a Disney World e eu estarei lá.
– Não, não está na hora de tirarmos férias.
– Ótimo.
Quando V. desligou, fez menção de apagar o vídeo e desligar tudo, mas algo lhe disse para salvar a merda, então foi o que ele fez. Afinal não tinha problemas de espaço no seu hard-drive.
Maldição, estava aliviado pra cacete por ter algo pra fazer.
Assim como no início da noite, não disse a ninguém que estava saindo, mas desta vez foi porque Butch e Marissa estavam ocupados se ocupando um com o outro. Mas acabou mandando uma mensagem para o seu melhor amigo... E depois pensou em mandar outra para Jane.
Mas, no fim, só guardou o celular, se armou e saiu.
Xcor estava desligando o telefone fixo da casa e começava a tirar a parca emprestada quando Layla subiu do porão.
No instante em que viu a tensão no rosto dela, arrependeu-se.
– Desculpe – disse. – Sei que estou atrasado.
Ela pareceu surpresa, e depois simplesmente meneou a cabeça ao se aproximar dele.
– Estou feliz que tenha voltado. Eu estava preocupada.
Quando ela ergueu os olhos para ele, Xcor odiou a tristeza que viu neles, ainda mais por saber qual era a causa – e não pela primeira vez desde que partira antes, desprezou a si mesmo e a posição em que a colocara.
– Venha cá – ele sussurrou ao atraí-la para junto de si.
Aninhando-a em seu peito, junto ao coração, apoiou o queixo no alto da cabeça dela. E teria ficado contente em ficar assim para sempre, mas havia coisas que precisava lhe contar.
– Meu amor – disse ele –, Wrath está...
Nessa mesma hora, a porta de correr se abriu e uma lufada de vento frio invadiu a pequena cozinha. O Rei Cego foi o primeiro a passar por ela, e Vishous o seguiu de perto.
– Você telefonou. – Wrath disse secamente. – Olá, Escolhida.
– Apenas Layla, por favor. – Quando ela disse isso, todos a fitaram.
– O quê? – o Rei perguntou.
– Sou apenas Layla, por favor, meu senhor.
O Rei deu de ombros.
– O que preferir. Então, Xcor, tem uma resposta para mim?
– Sim – Xcor olhou para Vishous, que observava cada movimento que ele fazia com aqueles seus olhos diamantinos. – E temo que não gostará dela.
– Eles disseram não, hum. Pena. – Agora o Rei olhou para o Irmão. – Acho que isso quer dizer que vamos para a guerra.
Isso foi enunciado com tranquilidade, como se não resultasse em nenhuma consequência, e Xcor teve que respeitar essa atitude. Guerreiros lutavam. Era para isso que foram criados e treinados. Se a Irmandade acreditava que um conflito com um grupo de cinco soldados tinha alguma importância, eles precisavam aposentar suas adagas.
– Não – Xcor interveio –, eles não disseram não. Mas não prestarão juramento de fidelidade a você.
Vishous se pronunciou, a voz saindo baixa e agressiva.
– Que porra isso quer dizer?
Xcor se dirigiu a Wrath.
– Eles juraram fidelidade a mim. Eu jurei a você. Eles o seguirão, mas apenas porque é aí que depositei a minha fidelidade. Eles não serão liderados por ninguém mais além de mim. É assim que vai ser.
– Não é bom o bastante – o Irmão Vishous estrepitou. – Nem perto disso, babaca.
Xcor tirou a luva e mostrou a palma.
– Foi um juramento de sangue. E aqueles machos morrerão por você, Wrath. Seguindo as minhas ordens.
– Isso é verdade – Vishous ladrou. – Quando nós os matarm...
– Basta – Wrath o interrompeu.
Houve um silêncio tenso, e Xcor conseguia sentir Layla ficar tensa ao seu lado. No entanto, não tentaria pedir que ela saísse. Ela não se afastaria dele assim como seus soldados não o fariam.
Parado diante do Rei, Xcor enfrentou o olhar direto dele, mesmo sabendo que o macho era cego. De fato, não tinha nada a esconder, nenhuma disputa naquele instante, nenhum subterfúgio nem segundas intenções na manga. E isto estava bem assim, pouco importando o resultado desta noite ou de qualquer outra. Não temia a morte; Bloodletter o ensinara isso. Também descobrira o que era o amor, e ela estava bem ao seu lado. Portanto, estava preparado para ir adiante com determinação tranquila, concordando com um destino que estava fora do seu controle.
A paz era isso, então, pensou ao retirar a outra luva. Quando estendeu a mão para segurar a de Layla, pareceu-lhe adequado que não fosse a sua mão da adaga.
– Acredita nisso – Wrath inquiriu. – Com toda franqueza.
– Sim. Estive numa guerra com esses meus guerreiros. Eles me seguiram através do oceano...
– E estão preparados para segui-lo de volta para lá? – Vishous murmurou. – Em sacos mortuários?
– Sim, estão. – Xcor olhou para o Irmão. – Mas eles não estão em guerra com você se eu não estiver.
Wrath cruzou os braços diante do peito, e Xcor teve que respeitar o tamanho e a musculatura daquele macho. Ele era enorme e letal, ainda que possuísse um cérebro civilizado.
Xcor acreditou que ele entenderia o sentido daquela proposta.
E, por certo, um momento depois o Rei assentiu uma vez.
– Que seja – Wrath disse repetindo o aceno. – Isso é bom o bastante para mim...
– Tá de brincadeira, porra!
A mão do Rei se projetou tão rapidamente que os olhos mal conseguiram acompanhar o movimento e, de alguma forma, mesmo sem a visão, ele conseguiu acertar a trajetória, agarrando o pescoço enorme do seu guerreiro. Nem olhou para Vishous, permanecendo atento a Xcor.
Em reação, Vishous não se defendeu, mesmo tento que se esforçar para respirar, com o queixo coberto pelo cavanhaque caindo.
– Você não adora quando as pessoas conhecem os seus lugares... – Wrath disse para Xcor com secura. – Quando eles entendem que existem momentos em que precisam ficar de bico fechado.
Xcor teve que sorrir. Wrath e ele eram bem parecidos em alguns pontos, não eram?
– Sim, meu senhor – ele murmurou.
Wrath abaixou a mão.
– Como eu dizia, isso basta para mim. Mas, como pode ver, meus rapazes precisarão de uma prova maior desse arranjo. – O Rei tocou a lateral do nariz. – Eu sinto o seu cheiro. Sei que acredita nisso, e, deixando de lado nossos conflitos passados, não creio que você seja uma idiota do cacete – e tampouco acredito, nem por um instante, que você colocaria aqueles seus machos num caminho perigoso.
– Ele fez isso uma vez – Vishous interrompeu com escárnio. – Foi assim que Throe acabou conosco.
– Mas parece que ele se livrou do certo.
Xcor assentiu.
– Exato. Motivo pelo qual o alertei a respeito dele.
Wrath inclinou a cabeça.
– Muito agradecido por isso. E lidaremos com ele depois que concluirmos nosso acordo com o seu pessoal.
– Você não vai ter nenhum problema com isso, vai? – Vishous perguntou a Xcor.
– Não. – Ele deu de ombros. – Aquele macho seguiu seu próprio caminho, que é incompatível com o seu, e, portanto com o meu. Como escolherem resolver a questão, isso é decisão sua.
– Está acertado, então. – Wrath sorriu, revelando as presas impressionantes. – Mas, como eu dizia, os meus rapazes vão precisar de provas. Portanto, teremos uma boa e velha cerimônia de juramento com testemunhas.
– Pensei que faria isso um a um – Vishous disse baixo, ao mesmo tempo em que se afastava do alcance das garras do Rei.
– O Bando de Bastardos não nos atacará. – Wrath meneou a cabeça. – Isso não vai acontecer. Ele tem as rédeas deles, sinto esse poder nele. Um macho como ele não fica impassível sem um bom motivo, não é verdade, Xcor?
– Exato. Eles não levantarão suas armas contra qualquer um dos Irmãos. Eu os reunirei amanhã à meia-noite e os levarei até você onde quiser. Não pode ser antes do que isso, porém, pois não tenho como localizá-los até essa hora. Estamos sem nos comunicar para a segurança deles para o caso – relanceou para Vishous – de algo sair errado. Você compreende.
Wrath deu uma risada de leve.
– Sim, entendo. Então, está acertado...
– E quanto à sua segurança, Xcor? – Layla disse com raiva. – Como você ficará seguro?
Wrath deu conta dessa resposta, falando com suavidade:
– Ele ficará bem, não precisa se preoc...
Layla se virou para Xcor.
– Por que não conta a ele como foi alvejado ontem à noite? E por quem.
Quando sua fêmea interrompeu o monarca, Xcor não mudou de expressão deliberadamente.
– Eu já lhe disse, meu amor, foi um redutor...
– Não, não foi. – Os olhos dela se viraram para Wrath. – Atiraram nele ontem à noite.
– Não – Xcor rebateu ao mesmo tempo em que apertava a mão dela, tentando silenciá-la. – Não foi nada além de um assassino.
Do lado oposto da cozinha organizada, as sobrancelhas de Wrath se abaixaram por trás dos óculos escuros, um frio permeando o ar. E, então, ele disse:
– Vou lhe perguntar isso uma vez, portanto é melhor ser honesto, cacete. Algum dos meus machos apontou uma arma para você desde que você jurou lealdade a mim?
Xcor enfrentou o olhar de Wrath e projetou confiança.
– Não, não atiraram.
A esta altura, ele agarrava a mão de Layla com tanta força que ele tinha certeza de que devia estar machucando-a, por isso afrouxou a pegada. Mas rezou para que ela ficasse calada.
As narinas de Wrath inflaram. E depois ele inclinou a cabeça uma vez.
– Que assim seja. Meia-noite amanhã. Vocês nos encontrarão no centro, na Décima Quinta com a Market. Há um depósito abandonado ali. Não há como errar.
– Chegaremos lá meia-noite e quinze. Eu os encontrarei à meia-noite e, em seguida, iremos até você.
Wrath se aproximou e levantou a mão da adaga.
– Você e seus machos têm a minha palavra. Desde que eles não ofereçam nenhum ameaça aos meus rapazes, ninguém sairá machucado.
Xcor segurou o que lhe era oferecido e apertou.
– Até amanhã – ele disse ao Rei no Antigo Idioma.
– Até amanhã – Wrath repetiu.
Quando Wrath e Vishous saíram, passando pelas portas corrediças, a Xcor só restava ter esperanças de que a promessa que o Rei lhe dera pudesse ser mantida.
– Eles vão te matar – Layla disse numa voz morta. – Você não sobreviverá a esse encontro.
Xcor olhou para ela. Odiou o medo no rosto pálido dela, o tremor em seu corpo. Na quietude da casa segura, quis mentir para ela. Queria saber como ela descobrira a verdade. Queria... ficar com ela para sempre.
Mas o destino já havia decidido essa última parte.
Estendendo a mão da paz, não a da guerra, afagou-lhe o rosto macio. Esfregou o lábio inferior com o polegar. Acariciou a veia vital que percorria a lateral do pescoço dela.
– Ele não pode garantir a sua segurança. – Com uma imprecação desesperada, ela virou o rosto contra a palma dele e beijou a pele calejada. – Não no que se refere a Tohrment e a Qhuinn. E você bem sabe disso.
– Como? – O ar escapou por entre os lábios dele. – Como soube?
– Isso importa?
Não, ele imaginava que não importava.
– Por que não disse alguma coisa? – ela suplicou. – Por que não contou a Wrath?
– Porque, no fim das contas, isso não é relevante. Segurança em época de conflito é uma ilusão que só pode ser solicitada, nunca prometida. Tanto ele quanto eu sabemos disso. Se um deles decidir resolver um problema inexistente de modo independente, ninguém conseguirá impedir isso. Livre arbítrio é uma liberdade universal, assim como a gravidade.
– Mas não é justo. E não é certo.
– E é por isso que eu tenho que me proteger e não esperar que ninguém, nem o poderoso Rei Cego, faça isso por mim.
– Xcor, você precisa...
– Shhh... – disse ao apoiar o indicador nos lábios dela. – Chega de falar da guerra. Existem coisas melhores que podemos fazer com o nosso tempo.
Quando a trouxe para junto de si, ele rolou a pelve, dando provas da sua excitação, apesar de ela, sem dúvida, já sentir o cheiro no ar.
– Deixe-me entrar em você – ele disse ao beijá-la. – Preciso de você agora.
Ela não respondeu de imediato, e ele lhe deu o tempo de que ela precisava para diferençar o que era esperança do que era realidade, o que era um preceito e o que era um fato. Ela era uma fêmea inteligente, pouco versada na arte da guerra, mas também não era ingênua.
E, ao fim da noite seguinte, ela saberia que quer ele vivesse ou morresse, o futuro deles não seria juntos. Se ele sobrevivesse, partiria para o Antigo País e ela permaneceria em Caldwell. Caso ele morresse? Bem isso estaria resolvido de vez, provavelmente no Dhunhd.
– Eu te amo – ela sussurrou quando finalmente inclinou a cabeça para trás para receber mais um beijo. – Sempre.
Xcor afagou-lhe os cabelos loiros para trás.
– Você é mais do que eu mereço e tudo o que eu sempre quis.
Dito isso, ele selou as bocas e tentou se esquecer de que o tempo estava passando para eles. No entanto, isso era muito difícil.
E sabia que o mesmo acontecia com ela.
CAPÍTULO 56
Quando Vishous e Wrath regressaram ao pátio da mansão da Irmandade, V. estava sacudindo a cabeça. Ah, isso seria muito divertido. Bem parecido a uma estripação enquanto ainda se está vivo.
O Rei girou sobre os calcanhares e estava tão furioso que fumaça saía por suas orelhas.
– Diga àquele filho da puta para ir até o meu escritório.
– Quer todos ou só...
– Tohrment. Vá buscar aquele babaca agora e leve-o até mim! Que porra que ele estava pensando?
Wrath deu as costas e seguiu para a escada de pedras que levava até a entrada da mansão, evidentemente tão puto que até se esquecera de que não conseguia enxergar. Bem, por um segundo, V. se viu tentado a deixar o senhor Personalidade aprender do modo mais difícil que ainda estava cego.
Mas acabou desistindo, adiantando-se e pegando o braço do Rei.
– Cala a boca – ele disse antes que Wrath pudesse se afastar. – Quer um ferimento na cabeça para completar essa merda?
Foi o mesmo que tentar fazer amizade com gelo seco. O humor do Rei estava tão ruim que o ar ao redor dele ficou ainda mais ártico. Mas, pelo menos, V. conseguiu conduzir o cara até a porta e a entrada da mansão. Mas sabia que seria melhor soltá-lo depois disso.
Soltando o bíceps grosso, pegou o celular e ligou para o número de Tohr enquanto Wrath atravessava o mosaico da macieira em flor com passos duros, fiando-se na memória e contando as passadas até chegar ao primeiro degrau...
Um toque soou. E não só no ouvido de V.
O som vinha do segundo andar.
Vishous abaixou o aparelho enquanto Wrath galgava os degraus dois de cada vez.
– Bem na hora – V. murmurou ao se apressar para alcançá-lo.
E, dito e feito, Tohrment estava sentado numa das cadeiras do lado de fora do escritório de Wrath, como se tivesse previsto o futuro e soubesse que seria punido por ter atirado em Xcor. Evidentemente, o cara não estava se sentindo muito bem com a situação, embora fosse difícil precisar se o motivo era por se sentir mal por ter desobedecido uma ordem direta do rei ou porque seria recriminado em seguida. Em todo caso, a cabeça do irmão estava pensa; os ombros, curvados; o corpo, contido de modo pouco usual.
– Não preciso nem atender ao telefone, irmão – o cara disse ao virar o celular. – Estou bem aqui.
Wrath revelou as presas e sibilou:
– Entre. Não vamos discutir esta merda em público.
Quando Tohr se pôs de pé e obedeceu a ordem, V. não pediu permissão para se juntar aos dois. Entrou direto atrás de Wrath, fechou as portas e se recostou nelas, segurando as maçanetas.
Wrath não desperdiçou nem um segundo.
– Você está fora.
Tohr sacudiu a cabeça.
– O quê?
– Você está fora da Irmandade. Fora. Estou te expulsando, valendo a partir de agora.
Poooorra. Não foi bem assim que V. visualizou a situação.
Porque, vejam só, Tohr era a cola que unia a Irmandade. A não ser pelo período em que se afastou após Wellsie ter sido assassinada, ele era o firme, o estável, a força tranquilizadora que mantinha os caras sob controle.
– Você, vê se cala a boca.
V. precisou de um minuto para perceber que Wrath se dirigia a ele. Não teve tempo para responder, porque Tohr assumiu o controle do microfone.
– Ele está certo, V. Eu desobedeci a uma ordem direta. Atirei em Xcor na noite passada quando o vi na cidade. É preciso que haja consequências.
Wrath pareceu um pouco surpreso com a pronta aceitação.
Tohr só deu de ombros.
– Foi a coisa errada a fazer. Foi algo em conflito direto com a sua posição e com o que almeja conseguir. Imagino que ser um traidor seja um traço da família.
– O quê? – V. perguntou de pronto.
O irmão dispensou a pergunta com um gesto.
– Não importa. Autumn e eu partirem amanhã. A menos que queira que partamos agora.
Wrath franziu o cenho. E depois foi até a escrivaninha, desviando-se de sofás, encontrou o trono.
Ao se acomodar no assento do pai, pareceu absolutamente exausto, e, como era de se esperar, arrancou os óculos e esfregou os olhos.
– Por quê? – ele perguntou. – Que porra é essa contra Xcor? Por que não consegue deixar isso de lado?
– Farei isso agora. É só o que importa. Não tenho... mais nenhum interesse em matá-lo.
– O que mudou?
Tohr só meneou a cabeça.
– Nada de mais. Considerando-se tudo.
Algo tiniu nos recessos da mente de V., mas ele não conseguiu determinar o que era, e isso era irritante pra cacete. Mas estava cansado, e não só porque seu corpo estava exaurido pela privação de sono.
Wrath se sentou mais à frente.
– Preste atenção. A guerra está enfraquecendo, estamos muito próximos de acabar com ela. Não quero a distração de vocês. Não quero que vocês, cabeças duras, persigam um bando de cinco babacas só porque eles tinham aspirações políticas que incluíam a minha cabeça numa bandeja. Xcor sabe onde vivemos. E não fez merda nenhuma a esse repeito. Ficou com Layla nas últimas quarenta e oito horas e eu sinto a ligação entre eles. Ele também está comprometido com esta paz negociada e em sair de Caldwell de uma vez por todas. Não existe mais nenhum conflito e não é só porque eu estou dizendo isso.
– Eu sei. – Tohr se aproximou da lareira e ficou olhando para as chamas. – Eu... Hum... Minha Wellsie teria completado duzentos e vinte e seis anos há três noites. O meu filho que ela carregava no ventre estaria com dois e meio. Acho que isso me afetou.
– Porra – o Rei inspirou. – Eu tinha esquecido.
O irmão deu de ombros.
– Isso não me isenta das minhas ações. O que fiz não está nem a minha altura nem à sua. Mas vou lhe dizer uma coisa... – Ele pigarreou. – Já faz um tempo que venho querendo vingança, e eu a encontrei num marco inadequado. O verdadeiro alvo da minha raiva é o destino, e isso não é nada que eu possa esfaquear nem alvejar. É só que... em algumas noites... isso é mais difícil de aceitar do que em outras.
Wrath se recostou no trono e deixou a cabeça rolar contra o encosto alto de madeira entalhada. Depois de um momento, apontou para a porta.
– Deixem-me. Vocês dois. Meu crânio está prestes a explodir e não quero receber a conta da lavanderia por causa das suas malditas camisas.
Tohr se curvou.
– Como preferir, meu senhor. E Autumn e eu partiremos...
– Sem querer ofender – Wrath murmurou –, mas dá pra calar a boca? Só me deixa em paz. Eu te vejo no começo da noite de amanhã. E vê se traz o resto dos irmãos com você. Vai. Tchau.
Do lado de fora do escritório do Rei, Tohr parou quando V. fechou as portas e o encarou.
– Para sua informação – o macho disse –, Xcor negou.
Tohr franziu o cenho.
– Como que é?
V. acendeu um cigarro e exalou a fumaça como se ela fosse uma imprecação.
– Eu estava lá quando Wrath perguntou quem atirou nele, e ele se recusou a te entregar. Ele sabe que foi você?
– Sabe.
– Quem mais estava com você? – Quando Tohr não respondeu de imediato, o irmão se inclinou na sua direção e apontou com o cigarro. – Eu sabia. Diga a Qhuinn para parar de bobeira, ou eu o farei. Não tenho nenhuma simpatia por Xcor, estou pouco me fodendo com ele e o com o Bando de Bastardos. Mate-os, deixe-os viver, não estou nem aí. Mas Wrath tem razão. Lutamos há mil anos para conseguir meter a Profecia do Dhestroyer no cu de Ômega, e a hora está chegando. Nenhuma distração, entendido. Chega de nhe-nhe-nhém.
– Não tenho como controlar Qhuinn. Ninguém consegue. Todos nós vimos isso umas duas noites atrás, não foi?
– O filho da mãe. Ele tem que aprender a se controlar.
Enquanto V. olhava para o corredor como se tivesse a intenção de ir atrás do cara, Tohr se colocou no caminho dele.
– Eu falo com ele. Posso estar fora da Irmandade, mas o seu jeito de falar deixa muito a desejar.
– Não sou tão ruim assim.
– Comparado a uma serra elétrica, isso até pode ser verdade. Mas não precisamos de mais cabeças quentes descontroladas por enquanto. Todo mundo pode acabar indo pelos ares.
V. usou a ponta do cigarro para apontar.
– Dá um jeito nessa merda, Tohr. Ou eu dou.
– Você é a segunda pessoa que me diz isso esta noite.
– Então, bota a mão na massa.
Dito isso, V. saiu e desceu pela escadaria como se tivesse uma missão – que envolveria esganar alguém que o aborreceu.
Quando Tohr teve a certeza de que não havia ninguém por perto, desceu o corredor das estátuas e foi em frente, passando pelas figuras humanas em poses de guerra. Diante da terceira porta, bateu baixinho, e quando ouviu uma resposta, olhou para os dois lados de novo.
Esgueirando-se para o quarto de Qhuinn – ou melhor, aquele em que Layla ficara –, fechou a porta rapidamente e quase a trancou.
Qhuinn estava próximo aos berços, fazendo alguma coisa com a mamadeira.
– Ei – ele disse sem olhar.
– Precisamos conversar.
– Precisamos? – O irmão o fitou. – Você o matou?
– Não, mas acabei de ser expulso da Irmandade.
Qhuinn se endireitou e se virou.
– Como que é?
– Wrath tem o direito de fazer isso.
– Espera aí, quer dizer que Xcor foi correndo até o Rei que nem um covarde e...
– Ele mentiu. Por você e por mim. Xcor se recusou a nos entregar. Recusou-se a contar a Wrath o que nós fizemos.
– Ora, ora, se ele é um herói da porra. – Qhuinn franziu o cenho. – Mas se ele não abriu o bico, quem fez isso?
– Layla descobriu. Ela me procurou – viu que ele havia sido alvejado e não acreditou quando ele disse que foram assassinos. Não neguei.
– Ah, bem, o protótipo da Escolhida. – Qhuinn voltou a se concentrar nos filhos. – Que fiel que ela é, não? Sempre apoiando o homem dela. Uma pena que esse tipo de lealdade não seja direcionado para nós.
Tohr meneou a cabeça.
– Não faça isso, Qhuinn. Eu posso estar fora, mas você vai estar lá amanhã.
– Amanhã à noite? O que vai acontecer?
– A Irmandade e o Bando de Bastardos vão se encontrar. Vai ficar sabendo sobre isso logo depois do anoitecer amanhã. Wrath vai convocar os irmãos e levá-los para o encontro com eles para que possam testemunhar o juramento de fidelidade de Xcor.
– Que diabos eu tenho a ver com isso? – O irmão levou a mamadeira para o banheiro e voltou enxugando as mãos numa toalha. – Os garotos de Xcor querem zoar com o bastardo, isso não é da minha conta.
Tohr meneou a cabeça e sentiu como se estivesse entrando em sintonia com o crânio quase explodido de Wrath: em trinta minutos, quase atacou uma fêmea pela primeira vez na vida, descobriu a existência de um irmão desconhecido e foi expulso da Irmandade.
Era coisa demais para assimilar, coisa demais para processar.
Só o que ele queria era encontrar Autumn e conversar com ela, dizendo o quanto lamentava... Mas, graças à sua péssima decisão, eles teriam que encontrar outro lugar para morar.
Jesus, essa era mesmo a sua vida?
– Não faça isso – ele se ouviu dizer. – Por favor, eu desisti disso. Você também precisa.
– Eu não tenho que fazer merda nenhuma. – O irmão apontou para os berços. – A não ser cuidar destes dois e tentar convencer Blay a voltar para casa para ficar comigo e com eles. Não devo nada a ninguém.
– Inclusive Wrath? E a Irmandade?
Quando Qhuinn se calou, Tohr apontou para o canto onde estiveram os buracos das balas, a incontestável prova do temperamento de Qhuinn já tendo sido coberta e repintada.
– Todos andaram perdendo a cabeça por aqui recentemente. E é isso o que acontece quando as emoções correm à solta e a lógica sai voando pela janela, e o stress governa a noite. Você tem razão, tem que cuidar dessas crianças. Portanto, faça isso sem acabar se matando. Se atirar em Xcor antes, durante ou depois daquele encontro, pessoas morrerão. Talvez a maioria seja de Bastardos, talvez você até consiga abater Xcor, mas coletes a prova de balas só protegem o coração, e se quer cuidar dessas crianças, faça isso voltando para casa ao amanhecer. Porque eu te garanto que nós também perderemos alguns do nosso lado, e uma dessas perdas pode muito bem ser você.
Qhuinn se virou para os berços, e lhe pareceu impróprio, inadequado, bem ruim mesmo, terem aquele tipo de conversa perto daqueles inocentes.
– Não estamos falando de um punhado de civis – Tohr observou. – Não vai encontrar os Bastardos numa sala de estar amanhã à noite, para trocar alguns documentos. Vou repetir, pessoas morrerão se você tomar o assunto em suas mãos. E se isso acontecer, e irá acontecer, você vai ter que fitar os olhos dos seus filhos quando eles estiverem mais velhos com essas mortes na sua consciência. Você transformará o pai deles num assassino, e vai colocar Wrath numa posição horrível – mais uma vez –, desde que vocês dois sobrevivam. Pense nisso. Pergunte-se se a vingança vale esse preço.
Tohr se virou para sair, mas logo parou.
– Quase fui pai no passado. Esse era um emprego que eu queria muito ter, que tive esperanças de ter. Eu faria quase qualquer coisa para estar no seu lugar, perto dessas crianças. Sacrifício é algo relativo... E você tem muito a perder por conta de um macho que, no fim das contas, não significa muita coisa na sua vida. Não banque um babaca agora, meu irmão, não faça isso.
CAPÍTULO 57
– Bem, acredito que isso resolva a situação, certo?
Enquanto Throe pairava acima da cama ensanguentada, olhou para seu balão, que era como passara a pensar na sombra, e sorriu.
– Você é muito eficiente, não?
A coisa oscilou um pouco a partir de seu ponto de fixação, acima do tapete, como se estivesse satisfeito com o elogio. Ou talvez não. Mas o que isso importava? A sombra não negara seu pedido e matara o companheiro de sua amante e fora muito eficiente: a entidade prontamente pegara a adaga que Throe lhe dera, seguira-o pelo corredor como um cão atrás de seu mestre; depois Throe abrira a porta e apontara para o velho que estava acomodado contra a cabeceira da cama, e a morte acontecera mais rápido do que uma batida de coração.
Que era algo que aquele hellren já não tinha mais.
– O que você fez!
Um grito soou atrás dele. Throe virou de frente nos seus chinelos de veludo.
– Ah, olá, minha querida. Levantou cedo.
Antes que sua amante pudesse responder, Throe avançou e a prendeu pelo pescoço. Quando começou a apertar, os olhos dela esbugalharam e aquela boca talentosa dela se escancarou num grito mudo.
Arrastando-a para dentro do quarto, chutou a porta para fechá-la enquanto ela agarrava sua mão com as unhas e arfava como um peixe fora d’água.
A entidade se aproximou de lado como se estivesse perguntando algo, e Throe sorriu para ela de novo.
– Ah, quanta gentileza sua. Mas deixe que eu cuide disto.
Segurando-a agora pelo rosto, ele deu um puxão rápido e partiu-lhe o pescoço. Depois, para evitar qualquer barulho, conduziu-a gentilmente até o chão atapetado.
Pairando acima dela, percebeu que ela vestia aquele baby-doll de que ele tanto gostava, aquele com corpete de renda e saiazinha larga que chegava até abaixo da calcinha.
– Uma pena, de verdade. Ela era bem divertida.
Throe se aprumou dentro do roupão de seda. Acabara perdendo um dos chinelos, mas solucionou o problema simplesmente passando por cima do corpo da fêmea que já esfriava e enfiou o pé no devido lugar de novo.
– Muito bem, isto está ótimo. – Olhou ao redor da suíte muito bem decorada. – Sabe, acho que vou me mudar para cá. Assim que nos livrarmos desse colchão.
Só que nessa hora lembrou-se dos doggens. A casa devia ter pelo menos uns catorze.
Precisariam de algum tempo para eliminar a todos, e isso parecia um desperdício. Bons criados eram difíceis de ser encontrar.
E também havia as questões financeiras e de segurança com as quais precisaria lidar. Felizmente, já vinha trabalhando no roubo de identidade há algumas semanas, tendo invadido o computador do hellren no andar de baixo, inserindo rastreadores, conseguindo acesso às contas, dados e autorizações pouco a pouco.
Por um instante, considerou a ideia de dar à criadagem a opção de ficarem. Mas, em seguida, olhou para a bagunça sobre o colchão. Se sua sombra amiga podia matar assim?
Tinha o palpite de que ela poderia operar um aspirador de pó.
No entanto, necessitaria de mais delas. Throe consultara O Livro para ver se existia algum tipo de reprodução através do qual multiplicaria as sombras, mas ao que tudo levava a crer, se Throe desejava um exército, teria de criá-lo um a um. Do jeito mais difícil.
Muito inconveniente. E sua mão ainda estava se recuperando do ferimento feito com a adaga.
Precisaria de mais ingredientes. E tempo. E...
Ah, mas parecia muito severo, de fato improdutivo, desesperar-se por nada. Tinha dinheiro. Tinha um lar do qual gostava. E dispunha de uma arma que era melhor do que qualquer pistola, adaga ou punho.
– O meu destino – ele murmurou para o cômodo silencioso – está ao meu alcance.
Throe levantou as palmas – e quase as esfregou –, mas se conteve. Ninguém gostaria de se transformar na caricatura de um vilão. Não era adequado.
– Venha – disse ao seu balão. – Preciso me trocar e você me ajudará. E depois teremos que sair.
Testar seu brinquedinho contra um redutor seria importante e não havia motivos para esperar. A coisa se saíra muito bem agora, mas fora contra um velhote quase incapacitado. Se iria enfrentar os Irmãos e os lutadores de Ômega, até mesmo o Bando de Bastardos, teria que atingir o seu maior desempenho.
Ah, como detestava esses atrasos. Um bom estrategista, contudo, reconhecia a necessidade de se fazer as tarefas segundo uma ordem.
Como numa partida de xadrez, um movimento de cada vez.
– Venha – disse num tom entediado para a sombra. – Primeiro temos que limpar a casa. E preciso insistir para que o faça com certo comedimento desta vez. Não quero que estrague as obras de arte, nem os estofados. Além disso, toda a bagunça que fizer, você mesmo terá que limpar depois.
Dito isso, os dois saíram juntos em direção às escadas e aos doggens que estariam realizando suas tarefas no andar de baixo.
As cartas de demissão a serem entregues agora doeriam bastante.
CAPÍTULO 58
Quando o sol se pôs e a escuridão caiu sobre Caldwell, Layla se espreguiçou na cama que ela e Xcor usaram tão gloriosamente durante o dia. Às suas costas, o guerreiro estava aninhado nela como se fosse sua pele, o corpo procurando o seu mesmo durante o sono.
– Não pense nisso, meu amor – ele murmurou.
Virando-se no abraço dele, ela acariciou seus cabelos. Seu rosto. Seus ombros.
– Como é que você sempre sabe?
Ele não respondeu a isso, apenas a beijou no pescoço.
– Me diga uma coisa.
– O quê?
– Se eu fosse outro macho, se meu rosto fosse diferente, se o curso da minha vida tivesse sido outro, você...
– Eu o quê?
Demorou um pouco para ele lhe perguntar.
– Você teria se vinculado a mim adequadamente? E teria morado comigo sob o mesmo teto... e teria meus filhos, educando-os comigo? Se eu fosse um fazendeiro ou um sapateiro, um treinador de cavalos ou um açougueiro, você teria ficado ao meu lado e seria minha shellan?
Ela tocou o lábio superior dele.
– Eu já sou sua shellan agora.
Quando ele exalou, fechou os olhos.
– Eu queria que tudo fosse diferente. Eu queria que naquela noite, há tanto tempo, eu tivesse escolhido outro acampamento, outra floresta na qual entrar.
– Eu não. Pois caso você não tivesse ido até lá, onde quer que isso tenha sido, nós nunca teríamos nos conhecido.
– Talvez tivesse sido melhor assim.
– Não – ela disse com firmeza. – Tudo é como deveria ser.
A não ser pela parte em que ele teria que deixá-la.
– Talvez no futuro – ela sussurrou –, quando Lyric e Rhamp estiverem grandes, cuidando das suas vidas, eu possa ir me encontrar com você? Depois das transições deles e...
– Eles sempre precisarão da mahmen deles. E a sua vida sempre será aqui no Novo Mundo.
Mesmo enquanto queria debater isso com ele, ela sabia que ele estava certo. Décadas se passariam até que seus filhos fossem independentes de verdade, e quem haveria de saber em que pé estaria a guerra àquela altura? Se Rhamp seguisse os passos do pai e se tornasse um Irmão, Layla não sossegaria enquanto ele estivesse no campo de batalha mesmo estando em Caldwell. Do outro lado do oceano? Sequer conseguia imaginar isso.
E se Lyric também quisesse lutar? Havia fêmeas no programa do centro de treinamento. Lyric podia muito bem resolver empunhar uma adaga.
Teria assim dois filhos na guerra.
– Há mérito em não lutar contra aquilo que não pode ser alterado – ele disse ao beijar a clavícula dela. – Esqueça. Deixe-me partir quando a hora chegar.
– Mas talvez exista outra solução. – Ainda que não conseguisse pensar qual seria ela. – E se...
– Qhuinn jamais me aceitará perto das crianças. Mesmo que a Irmandade e o seu Rei aceitem a mim e aos meus machos, o pai do seu filho e da sua filha jamais quererá que eu os veja, e se eu não estiver na sua vida, a situação entre vocês dois poderá melhorar. Pelo menos é isso o que espero e pelo qual rezo, que um dia ele a aceite de volta à vida dele.
Mas isso jamais aconteceria, ela pensou. A fúria de Qhuinn desconhecia limites. Certas coisas, como tinta num pergaminho, eram indeléveis.
– Faça amor comigo? – ela sussurrou.
Com uma agora conhecida descarga de energia, Xcor se moveu para cima dela, os corpos tão à vontade a essa altura que o sexo dele entrou no dela sem necessitar de nenhum ajuste, apenas deslizando para seu interior.
Quando ele começou a penetrá-la repetidamente, ela pensou no sexo partilhado durante as horas do dia. Seu treinamento como ehros surgira à tona de maneiras que o chocaram, excitaram e surpreenderam – e ele não reclamou. Mas isso não significa que aquele fosse um momento de felicidade. Para ambos, as horas foram pontuadas por desespero, uma pressa nos toques, nos beijos, nas penetrações, como alguém que come apressado, pois seu prato lhe será tirado da frente.
No entanto, quando agora Xcor encontrou seu ritmo e ela o acompanhou, a relação foi diferente. Aquilo não se tratava de sexo apenas.
Aquilo era o mais próximo que duas almas podiam se unir, as partes dos corpos secundárias em relação à união dos corações.
Pouco antes de chegar ao clímax, ela lhe sussurrou ao ouvido:
– Você ficará seguro lá esta noite?
Quando ele não respondeu, ela ficou sem saber se foi pelo início do orgasmo dele... Ou porque ele sabia que não poderia lhe prometer isso, e não queria mentir para ela.
No Buraco, Vishous estava reclinado na sua cadeira e encarava a imagem no monitor. A combinação dos pixels, os escuros e os claros, os cinzas, os verdes e os azuis demandaram bem umas oito horas para serem isolados e processados até ele chegar ao ponto de ver o que estava vendo.
E enquanto olhava para o rosto do atirador misterioso, aquele que salvara a vida de Tohr naquele beco há algum tempo, só o que ele conseguia fazer era balançar a cabeça.
– Estranho pra cacete.
As feições estavam bastante claras agora, mas aquele lábio distorcido de Xcor foi o maior indicador. Sem aquilo, ele teria que se esforçar para descobrir quem era, visto que todos os guerreiros de cabelos escuros, sobrancelhas grossas e maxilares firmes eram todos parecidos, como um punhado de moedas iguais numa gaveta de meias.
Basicamente indistinguíveis.
Mas não, acrescente aquele lábio e você descobre um traidor. Que, no fim, já não era tão traidor assim...
– Oi.
Quando V. ouviu uma voz conhecia, levantou a cabeça. Jane estava parada diante dele, o jaleco todo amarrotado, os Crocs manchados de sangue, os cabelos todos espetados como se estivessem tentando fugir do cérebro dela. Ela parecia exausta, acabada, completamente exaurida.
Ele abriu a boca para lhe dizer algo, mas seu telefone tocou.
– Pode atender – ela disse bocejando. – Eu espero.
V. silenciou o telefone e não ouviu nada além do próprio coração batendo.
– Não é importante.
Jane foi para o sofá de couro e despencou sobre a almofada mais distante.
– Não sei o que fazer com Assail. Ele está num surto psicótico. Nunca vi nada semelhante, e nunca mais quero ver. – Esfregou o rosto. – Não consigo ajudá-lo. Não consigo trazê-lo para o lado de cá. Procurei Havers uma centena de vezes, li cada um dos casos dele, falei com a equipe dele e com ele. Manny consultou pessoas no mundo humano. Só chegamos a becos sem saída e isso está acabando comigo.
Ela fitava o vazio enquanto falava, os olhos agitados como se ela estivesse repassando conversas mentalmente, sempre à procura de uma nova abordagem, uma resposta que talvez tivesse deixado passar.
E esfregou as têmporas que sem dúvida deviam estar latejando.
– Nem sei te dizer como está sendo difícil. Observar o sofrimento dele e ser incapaz de fazer alguma coisa a respeito.
Quando o celular de V. voltou a tocar, ele quase lançou o aparelho na parede ao colocá-lo no mudo.
– Tem certeza de que não quer atender isso? – Jane perguntou. – Parece urgente.
– O que eu posso fazer para te ajudar? – ele perguntou.
– Nada. Só preciso dormir. Não consigo me lembrar da última vez em que descansei. – Olhou para ele. – Parece que mesmo fantasmas precisam recarregar as energias.
Mesmo enquanto dizia essas palavras, sua forma corpórea começava a se dissipar, a cor dos olhos e da pela, mesmo as roupas que cobriam o corpo imortal, sumiam.
Desaparecendo bem diante dos olhos dele.
Ela disse mais algumas coisas, e ele também, nada muito importante, tudo muito logístico, como a que horas ele sairia, ou quando voltaria.
Mas logo ela se pôs de pé de novo e se aproximou dele. Quando ele ergueu o olhar da sua posição na cadeira, viu os lábios dela se movendo e comandou que os seus sorrissem em resposta, mesmo não tendo a mínima ideia do que saíra da boca dela.
– E então? – ela instigou.
– O quê?
– Você está bem? Parece distraído.
– Muita coisa acontecendo. Você sabe, com a guerra.
– É, eu ouvi. Payne e Manny estavam conversando a esse respeito.
– Melhor você ir para a cama antes que desmaie.
– Você tem toda razão.
Mas em vez de se afastar, ela estendeu o braço e com a mão fantasmagórica acariciou seus cabelos – e quando ela fez isso, ele pensou que havia um motivo para ele não gostar que as pessoas o tocassem.
E isso era verdade em níveis mais que o literal.
– Eu te amo – ela disse. – Sinto muito que não estejamos passando muito tempo juntos.
– Não importa.
– Acho que importa sim.
Vishous estendeu a mão enluvada e afastou a dela. Forçando outro sorriso, disse:
– Você tem trabalho a fazer. E eu tenho o meu.
– Verdade, não vamos a parte alguma.
Ele sabia que ela dissera aquilo com uma intenção tranquilizadora, como quem diz que o relacionamento deles é sólido, e quando assentiu, ele também estava ciente de que ela interpretaria sua afirmação do mesmo modo.
Quando ela serpenteou pelo corredor indo até o quarto deles, contudo, ele sabia que havia concordado com aquela afirmação num sentido totalmente diverso.
E isso deveria deixá-lo triste.
Mas ele não sentiu nada.
CAPÍTULO 59
Quando alguém começou a bater na porta de Qhuinn, ele não estava com vontade de levantar para ver quem era. Ainda faltava meia hora para a reunião no escritório de Wrath na qual muito provavelmente teria o traseiro arrancado – e talvez fosse expulso da Irmandade como Tohr – e a não ser por ter conseguido tomar banho e se trocado, estava tão fora do seu normal que não conseguiria fazer mais nada.
Como, por exemplo, tentar manter uma conversa civilizada. Ou fazer qualquer outra coisa além de respirar.
A batida ficou mais alta.
Quando levantou a cabeça e arreganhou as presas, abrindo a boca para mandar a pessoa ir se...
Mas, em vez disso, se pôs de pé.
E se apressou a escancarar a porta como se escoteiras tivessem vindo trazer sua encomenda de biscoitos.
Blay estava no corredor tão apetitoso que aquilo devia ser ilegal, o corpo coberto por couro e armas – que por acaso, era o estilo preferido do cara para Qhuinn. Exceto pela versão completamente nua.
– Importa-se se eu entrar? – ele perguntou.
– Sim. Quero dizer, merda, não. Sim, por favor, entre.
Caraca, seria bom se conseguisse ser mais sutil.
Blay fechou a porta e aqueles lindos olhos se dirigiram para os berços.
– Quer vê-los? – Qhuinn disse, abrindo caminho, mesmo não estando na frente dele.
– Sim, quero.
Blay foi até lá, e embora o rosto estivesse virado, Qhuinn sentiu o sorriso do cara quando ele cumprimentou um depois o outro.
Mas quando ficou de frente, estava sério de novo.
Aqui vamos nós, Qhuinn pensou ao atravessar o quarto e se sentar na cama. A resposta para o resto da sua vida. E sabia, sem conhecer todos os detalhes, que aquilo doeria.
Blay enfiou a mão dentro da jaqueta.
– Não quero isto.
Quando ele mostrou os documentos providenciados por Saxton, Qhuinn sentiu o coração despencar. Não tinha muito a oferecer a não ser seus abençoados filhos. Se Lyric e Rhamp não fariam o macho mudar de ideia, nada mudaria...
– Eu te amo – Blay disse. – E eu te perdoo.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu decifrar as sílabas. E depois, quando elas foram absorvidas, ele ficou sem saber se havia ouvido direito.
– Vou repetir. Eu te amo... e eu te perdoo.
Qhuinn deu um salto e atravessou a distância que os separava mais rápido do que um fósforo sendo aceso. Mas foi impedido antes que conseguisse beijar o cara.
– Espere – Blay prosseguiu. – Tenho mais uma coisa pra dizer.
– O que quer que seja, eu concordo. Qualquer coisa, tudo, eu topo.
– Que bom. Então você vai se entender com a Layla.
Qhuinn recuou um passo. E depois outro.
Blay bateu os documentos na palma da mão.
– Você me ouviu. Não preciso receber direitos parentais. Você não precisa armar isso – embora eu agradeça a intenção e, francamente, isso de fato me convenceu de que estava falando sério. Mas você me disse que faria qualquer coisa, e eu estou presumindo que vai cumprir a sua promessa. Você não vai conseguir se acertar comigo até que tenha se acertado com Layla.
– Não sei se eu consigo fazer isso, Blay. – Qhuinn levantou as palmas. – E não estou bancando o cretino aqui. Não mesmo. Eu só... me conheço. E depois que ela os expôs ao perigo daquele jeito, e mentiu para acobertar tudo? Não consigo voltar ao que era, nem mesmo por você.
– Acho que você precisa se concentrar mais em quem Xcor é do que no que ela fez.
– Eu sei quem ele é. Esse é o problema.
– Bem, eu acabei de conversar com Tohr, que me contou tudo...
Qhuinn levantou as mãos e andou ao redor.
– Ah, para com isso...
– E eu acho mesmo que você tem que rever seus conceitos.
– Não vou esquecer o que aconteceu, Blay. Não consigo.
– Ninguém está pedindo para você fazer isso.
Enquanto Qhuinn andava dando voltas, concluiu que as conversas a respeito daquele Bastardo mais estavam parecendo um dia no filme Feitiço do Tempo. Sem o Bill Murray. Então, aquilo era uma droga.
– Olha só, não quero discutir com você – ele disse ao parar e olhar para Blay de onde estava.
– Nem eu quero isso. E não vamos discutir esse assunto porque eu não vou falar mais nada. Acerte as coisas com a Layla, ou eu não vou voltar.
– Mas que inferno, Blay... Como consegue fazer com que a minha situação com você se refira a ela?
– Estou fazendo com que eu e você sejamos parte de uma família. Esses dois – ele apontou para os berços – e nós três. Somos uma família, mas só se ficarmos juntos. Sangue é importante até certo ponto, e depois de todas as merdas que os seus pais fizeram com você, você sabe muito bem disso. Se nós não conseguirmos – se você não conseguir – perdoar e amar e seguir em frente, então você e eu não vamos durar, porque não vou ficar por perto fingindo que tudo bem você se ressentir com a sua filha só porque ela se parece com a mahmen dela. Nem vou ficar esperando pelo dia em que eu fizer alguma coisa que você não vai conseguir perdoar. Você me desafiou a te perdoar pelo que você fez – e eu perdoei. Agora estou esperando que você faça o mesmo em relação a Layla.
Blay voltou para a porta.
– Eu te amo de todo o meu coração, e quando você e a Layla tiveram esses bebês? Você me deu uma família completa. E eu quero a minha família de volta, o pacote todo – e isso inclui a Layla.
– Blay, por favor...
– Essa é a minha condição. E não vou mudar de ideia. Eu te vejo no trabalho.
Quando Xcor se preparou para sair de casa pouco antes da meia-noite, permitiu que sua shellan inspecionasse as amarrações do colete a prova de balas. Ela foi muito detalhista a ponto de ele achar que, se ela pudesse se prender ao peito dele, era o que faria.
Capturando-lhe as mãos, beijou as pontas dos dedos, uma a uma.
– Sou um macho de sorte para ser tão bem cuidado assim.
Como odiava a preocupação dela. Faria qualquer coisa se pudesse substituí-la por alegria – ainda mais por temer que mais tristeza a aguardava logo em seguida. Se sobrevivesse a esta noite, se a Irmandade cumprisse o que fora prometido por Wrath, ainda assim eles não teriam mais um caminho para trilhar juntos.
– Sinto muito, mas não posso deixar que saia – ela disse num sorriso trêmulo. – Eu sinto... que não vou suportar vê-lo indo embora.
Quando a voz dela se partiu, ele fechou os olhos.
– Voltarei para casa muito em breve.
Beijou-a de modo que ela não pudesse mais falar, e quando ela retribuiu o abraço com paixão, ele tentou se lembrar de cada detalhe de como era senti-la ao seu encontro, do sabor dos lábios dela, e qual era a sensação de sentir o perfume dela.
Quando, por fim, recuou alguns centímetros, encarou os olhos verdes claros. Sua cor favorita, descobriu. Quem haveria de saber que ele tinha uma?
E, então, recuou e não olhou para trás. Não ousava.
Aproximando-se da porta corrediça, sentiu as lágrimas dela, mas, de novo, não parou. Não havia mais como parar nada daquilo.
A porta não emitiu nenhum som quando ele a abriu e saiu, e ele teve o cuidado de não olhar para trás ao fechá-la atrás de si.
Avançando sob a iluminação das luzes da varanda, deu a volta do chalé. Havia um barracão velho ali, um grande o bastante para abrigar um cortador de grama e alto o bastante para as pás e os ancinhos e enxadas.
Ao empurrar a porta frágil, as dobradiças emitiram um rangido de protesto.
Estendendo a mão na escuridão, ele apanhou a foice e a ajustou às costas, prendendo-a com uma corda singela que atravessava seu peito. Não quisera levá-la para casa com Layla lá dentro. Pareceu-lhe simplesmente errado.
Com as facas e as pistolas já embainhadas, estava pronto para o que aparecesse, fosse um redutor ou um Irmão.
Ao fechar os olhos para se desmaterializar até o ponto de encontro com seus machos, rezou por duas coisas.
Uma, que conseguisse voltar ali para ver Layla uma última vez antes de partir.
E segundo, que Wrath tivesse tanto controle como parecia achar que tinha sobre a Irmandade.
Interessante como as duas coisas estavam intimamente ligadas.
CAPÍTULO 60
Sentando-se sozinho no quarto que partilhava com Autumn, Tohr segurava a adaga negra nas mãos. A lâmina fora tanto forjada como era mantida por Vishous; a arma era sempre mantida afiada, o cabo se encaixando perfeitamente à sua mão, e somente na sua mão.
Era inimaginável que nunca mais a empunharia.
Quando contou à sua shellan o que havia acontecido, e o motivo, ela ficara triste. Era a primeira vez, ele percebeu, que a desapontara de fato – e considerando-se que ainda era apenas meio macho devido a tudo o que aconteceu com Wellsie? Isso queria dizer muita coisa.
Pelo menos os dois tinham um lugar para ir. Xhex deixaria que ficassem naquele seu chalé de caça pelas próximas noites – o mesmo lugar em que ele e Layla brigaram a valer.
Ele estava tãããão feliz em voltar para lá.
Virando a adaga, deixou-a num ângulo de modo que o abajur aceso no criado mudo iluminasse as pequenas incisões nas pontas afiadas. Tinha pensado em pedir a V. que desse uma polida no objeto – pois ele mesmo não tinha permissão para fazer isso. O irmão se empenhava tanto em fazer aquelas armas que ficava maluco se qualquer um tentasse afiá-las em vez dele.
Mas agora, isso já não vinha ao caso...
Ok, mas que porra Simon e Garfunkel estavam fazendo na sua cabeça com o maldito trecho: Olá, escuridão, minha velha amiga...1
– Mas que porra.
Difícil decidir o que era pior. Aquele maldito trecho dos anos 1960 ecoando na sua massa cinzenta, ou o fato de ter sido demitido do único trabalho que já tivera, que sempre quisera realizar, e no qual era bom.
Mas, convenhamos, não devia ser muito difícil cuidar de uma fritadeira? Ele tinha isso para contemplar no seu futuro.
E, nesse meio tempo, sua linda fêmea estava no porão com Fritz tentando encontrar caixas para guardarem seus...
Uma batida na porta foi uma digressão bem-vinda. Naquele ritmo, ele logo teria que confiar no Prozac e nos M&Ms para lidar com a depressão que o acometia.
– Entre. – Talvez fosse um doggen com um carregamento de caixas de papelão. – Oi? Pode entrar.
Quando não teve resposta nenhuma, franziu o cenho e se levantou para atender a porta. Já vestira as calças de couro e calçara os coturnos quando se trocou porque era isso o que sempre fazia. Talvez agora devesse trocá-los por um punhado de suéteres e calças cáqui folgadas que formavam uma poça no traseiro e que só ficavam no lugar com o uso de suspensórios.
Pois é, porque isso era sensual pra...
Quando abriu a porta, suas palavras o abandonaram.
Wrath estava ali parado, parecendo o Rei que era, todo vestido de preto e com aqueles seus conhecidos óculos escuros. Atrás dele, formando um semicírculo, a Irmandade, e Blay e John Matthew, como uma guerra prestes a acontecer, com todos aqueles machos armados prontos para lutar.
– Olá, meu velho amigo – Wrath disse ao estender a mão. – Quer vir a uma festa?
Tohr engoliu em seco.
– O que... hum... Como assim?
Wrath só deu de ombros.
– Saxton está me enchendo o saco com procedimentos e políticas de recursos humanos dos humanos. Pelo visto, hoje em dia, a gente tem que dar algum tipo de comunicado antes de mandar alguém passear. Você sabe, mandá-los a um treinamento, limpar as bundas deles por eles, esse tipo de coisa. Antes de demiti-las.
Rhage deu sua opinião:
– Convenhamos, você é o único que tem a cabeça mais no lugar.
– Que entra de cabeça inteira – alguém opinou. – Em vez de meia, como a maioria de nós.
– Um quarto de cabeça no caso do Rhage...
Hollywood se virou e encarou V.
– Olha só, eu vou te fod...
– Com o quê? Com seu quarto de...
Wrath levou a mão ao rosto.
– Jesus, vocês conseguem dar um tempo? – Abaixando o braço, disse exausto: – Então, só vamos deixar o seu traseiro na condicional, está bom assim? Maravilha. Ótimo poder tocar a bola pra frente.
O Rei o agarrou e o puxou para um abraço forte.
– Agora vamos dar conta dessa situação com Xcor de uma vez, ok? E Beth já foi falar com Autumn. Você não tem tempo para isso, temos que ir agora.
Atordoado, mas ficando menos confuso a cada segundo, Tohr abaixou os olhos e deu uma enxugada bem masculina neles. Há muito, muito tempo atrás, ele fora escolhido para se juntar à Irmandade e nunca lhe ocorrera que, a não ser morto, ele estaria do lado de fora. Mas por certo merecera isso e muito mais pelo que fizera.
E embora não pudesse colocar a situação no mesmo nível da perda da sua companheira e do seu filho? Isso o fez se lembrar de que o destino não era totalmente cruel.
Com voz rouca, ele disse:
– Ok, tudo bem. Vamos em frente.
Houve um grito geral de contentamento e muitos tapas nas costas. E claro que queria ir atrás da sua companheira para conversar com ela, mas o relógio antigo no átrio começou a bater.
Não havia mais tempo. Era meia-noite.
A Irmandade e o Bando de Bastardos iriam tentar encontrar a paz. E ele tinha que ir ver o irmão cara a cara.
Quando V. reassumiu sua forma diante do armazém abandonado, testou o ar com o nariz e permitiu que seus instintos agissem.
Nada.
A esquina da Décima Quinta com a Market era um bom cenário para aquele encontro histórico e potencialmente perigoso, porque o armazém estilo celeiro tinha suficientes janelas quebradas naquela versão capitalista da estrutura clerestória de modo que, se tivessem que fugir depois de entrarem, seria fácil chegar a qualquer uma das saídas.
Andando a frente, tinha Rhage à sua direita e Butch à esquerda, e se sentiu ótimo por possivelmente se dirigir a um conflito. Queria muito brigar com alguma coisa e deduziu que, se os Bastardos não se mostrassem um bando de idiotas, depois que terminassem com aquilo, ele e os seus irmãos poderiam ir atrás de alguns assassinos.
Ou talvez ele saísse dali sozinho para fazer alguma outra coisa.
O que quer que acabasse fazendo, não precisaria voltar para casa nas próximas seis horas e pretendia fazer bom uso desse tempo.
Porra, será que acabaria mesmo por...
Tanto faz, pensou ao pôr um fim aos seus ataques epilépticos mentais. Uma coisa que nem quem não era gênio sabia era que se você entra distraído numa briga, não vai precisar se preocupar com mais nada, porque na manhã seguinte você vai estar morto.
O armazém era a gaiola deserta padrão de uns quatro mil metros quadrados, sem nada além do seu esqueleto meio apodrecido e um teto metálico que parecia um capacete para alguém com desejo de morrer. Havia algumas portas, e depois que o trio passou pela lateral que lhes fora designada, aguardaram pelo sinal de permissão para entrarem assim que Phury e Z. terminassem a inspeção interna.
Com as costas apoiadas na lateral escura e a arma empunhada, V. perscrutou a área. A visibilidade estava fantástica, sem nenhuma árvore para impedir a visão, nada além de prédio atrás de prédio abandonado, entulho e asfalto por quarteirões e quarteirões; o bairro uma verdadeira terra de ninguém depois de ter sido uma região industrial que sustentara aquela parte da cidade por tanto tempo...
Bem quando os celulares de todos tocaram anunciando que poderiam entrar, cinco figuras apareceram, uma a uma no lote vazio do lado oposto da rua.
V. pegou o celular e enviou: Chegaram. Vamos abordar.
Não teve que dizer a Rhage e Butch o que fazer, e era por isso que os amava. Os três se adiantaram ao mesmo tempo, atravessando a faixa de neve gelada antes de galgar o monte formado na beirada da calçada e chegar ao meio da rua. Como se o Bando de Bastardos tivesse lido o mesmo manual, eles também avançaram em sua formação, os imensos corpos se movendo em sintonia, as armas empunhadas, mas não erguidas, e Xcor no centro.
Os dois grupos se encontraram no meio da rua.
Vishous se pronunciou primeiro.
– Boa noite, rapazes. Como estão?
Não sentiu nem ódio nem amor emanando dos outros guerreiros. Bem, exceto pelo cara da ponta: o da extremidade esquerda emanava uma vibração como se talvez quisesse ser agressivo, mas V. tinha a impressão de que essa era a sua costumeira disposição e não algo específico para a atual situação.
V. não abaixou as armas, mas tampouco exigiu que se desarmassem, mesmo que isso o deixasse alerta. O tal do “abaixem suas armas” aconteceria lá dentro.
– Estamos preparados para segui-los – Xcor disse com clareza.
– Ótimo. – V. os encarou nos olhos um a um. – É assim que vai acontecer, ok? Nós os acompanhamos até lá dentro. Vocês conhecem todos, e depois tomaremos alguns coquetéis enquanto os hors d’ouvre forem servidos. Depois veremos um espetáculo, e encerraremos a noite com uma rodada de compras na Saks e, quem sabe, uma sessão de pedicure conjunta. Está bem assim? Maravilha. Em frente, filhos da mãe.
Xcor não hesitou, e V. interpretou isso como sendo um bom sinal.
E os outros o seguiram de pronto.
Isso ele considerou isso um sinal ainda melhor. Se aqueles meninos estavam dispostos a lhes darem as costas, havia confiança correndo a solta ali.
Pondo-se em fila atrás do Bando de Bastardos, V. os seguiu, retornando ao banco de neve baixo, atravessando o “gramado” de neve e gelo e chegando à porta.
V. juntou os lábios e assobiou. Assim que fez isso, uma porta de metal se abriu e John Matthew a manteve aberta.
Quer falar sobre tensão? O Bando de Bastardos, ao entrar no galpão cheio de correntes de vento, estava tão relaxado quanto prisioneiros a caminho da cadeira elétrica. Mas sustentaram suas posições ao olharem ao redor e ninguém começou a atirar quando continuaram em frente.
V. estava disposto a apostar que avaliavam as mesmas saídas do espaço aberto assim como a Irmandade fazia. As mesmas portas. As mesmas vigas. As mesmas janelas quebradas.
– Parem aqui – ele lhes disse. E eles pararam.
Hora do espetáculo, V. pensou quando deu a volta e ficou de frente à fileira.
– Agora, cavalheiros, antes que tragamos o Rei, sinto informar que terão que se despir. – Apontou para o piso de concreto. – Todas as suas armas aqui. Comportem-se e nós as devolveremos. Se não se comportarem, faremos com que sangrem sobre elas.
Excerto inicial da célebre canção “The Sound of Silence” (1964): “Hello, darkness, my old friend...” (N.T.)
CAPÍTULO 61
O coração de Tohr batia forte quando ele se distanciou da posição que mantinha junto à parede do armazém. Deveria se postar junto à porta à esquerda, mas não conseguiu ficar parado. Seus pés o levaram inexoravelmente para a frente, os olhos estavam fixos em Xcor.
– Aonde você vai? – Blay sibilou atrás dele.
– Só um pouco mais perto. Fique aqui.
Um pouco mais perto o caralho. Ele atravessou toda a distância até onde o Bando de Bastardos estava perfilado no meio do armazém vazio.
V. estava se dirigindo a eles, e a voz do irmão ecoava até o teto.
– Bem aqui – ele repetiu ao apontar para os seus pés.
Nos recessos da mente, Tohr sabia que isso revelaria muito. Se os Bastardos titubeassem ao serem desarmados, ou ao serem revistados, seria seguro apostar que aquilo era uma emboscada de proporções troianas. Mas se eles...
Um a um, cada um dos guerreiros de Xcor acatou a ordem, largando pistolas e adagas no chão de concreto, chutando-as na direção de V. Até mesmo a imensa foice de Xcor saiu das suas costas e foi lançada para V.
– Quer ajudar a revistá-los? – V. perguntou. – Ou só veio até aqui para dar mais uma passada de protetor labial em mim?
Levou um momento para que ele percebesse que V. se dirigia a ele.
– Eu faço a revista.
Quando o irmão assentiu, e Rhage e Butch encararam os Bastardos como se os machos tivessem granadas sem os pinos de segurança. Tohr foi direto até Xcor e o encarou nos olhos.
Deus, como não notara antes? Eram da exata mesma cor que os seus.
– Tohr? – V. disse com aspereza. – O que está fazendo, meu chapa?
E aquele maxilar. Era do mesmo formato que o seu. Os cabelos negros. O lábio era uma distração que fazia com que não se considerasse o resto, mas agora que olhava além dele?
Tohr sentiu uma mão pesada sobre o ombro. E a voz de V. soou alta e clara em seu ouvido.
– Eu preferiria que, se alguém tiver que fazer alguma cagada, que seja um deles. Que tal que não seja um de nós?
Xcor retribuía seu olhar placidamente, sem medo nem agressividade. Era um macho resignado ao seu destino, destemido diante do que jazia à sua frente, e merecia ser respeitado por isso.
– Tohr. Está se lembrando daquela coisa de condicional?
Tohr assentiu meio distraído, mas sem prestar muita atenção. A questão era que, desde a morte de Wellsie com o seu filho ainda no ventre, ele se perguntava como seria olhar nos olhos de um parente consanguíneo. A perda dessa possibilidade fora mais uma coisa a lamentar.
Jamais imaginara que uma noite dessas acabaria se deparando com o olhar do irmão.
Xcor falou com suavidade:
– O que vai fazer?
Foi nessa hora que Tohr percebeu que não havia abaixado a arma. Mas antes que pudesse corrigir isso, V. disse:
– Para a sua informação, é bom você saber que, se está vivo hoje, é por causa dele.
Isso desviou a atenção de Tohr, que olhou para Vishous.
– O que disse?
– Encontrei um vídeo na Internet desse filho da mãe aí, te defendendo contra um redutor. Um verdadeiro clássico. Fiquei olhando para aquela imagem durante horas hoje.
– Espera aí, como assim?
– Você se lembra da época em que tentava se transformar numa porta de tela enfrentando uma chuva de balas? Bons tempos aqueles. – V. revirou os olhos. – Olha só, tive uma ideia. Por que não o aceita como amigo no Facebook, e depois pode ficar esperando até o dia em que receberá uma postagem de lembrança com ele nela. Coisa de primeira qualidade. Digna de um cartão da Hallmark. Agora, ou você o desarma de vez ou volta para a sua posição, cacete.
Tohr sabia exatamente sobre qual loucura V. se referia, lembrando-se precisamente do momento em que ignorara a própria mortalidade e todas as leis da física e se colocara na linha de fogo do inimigo.
Franzindo o cenho, perguntou a Xcor:
– Isso é verdade?
Quando o Bastardo assentiu uma vez, Tohr exalou.
– Por quê?
– Isso não é importante agora – o Bastardo respondeu.
– Não, é sim. Por quê?
Xcor olhou para V. para tentar descobrir se o irmão iria ou não perder completamente a paciência com tudo aquilo.
Tarde demais pra isso, Tohr pensou. Ao diabo com tudo, talvez ele não voltasse a ter essa chance de novo.
– Por quê? – exigiu saber. – Éramos inimigos.
Quando Xcor finalmente respondeu, sua voz saiu calma e com um sotaque forte.
– Você foi muito corajoso. Colocou-se na linha de fogo sem medo. A despeito dos nossos posicionamentos na época, eu não quis que um guerreiro com aquela coragem morresse daquele modo. Num conflito honesto, tudo bem. Mas não daquele jeito, como um alvo imóvel. Por isso atirei no atirador.
Tohr piscou e pensou em tudo o que teria perdido se tivesse morrido naquela noite. Autumn. A oportunidade de fazer parte daquele acordo de paz. O futuro.
Pelo canto do olho, ele viu algo se mover...
Não, era apenas Lassiter. O anjo caído viera, e isso não era surpresa alguma. Ele era como o fofoqueiro do bairro que está sempre olhando para os acontecimentos por cima da cerca.
Tohr voltou a se concentrar nos olhos azuis marinhos, tão parecidos com os seus. E então abaixou uma das suas armas e guardou a outra no coldre.
Estendendo a mão da adaga, ofereceu-lhe a palma.
Xcor olhou para ela.
Depois de um longo momento, o Bastardo aceitou o gesto... E os dois irmãos se deram as mãos pela primeira vez.
Apesar de apenas um deles saber disso.
Do seu ponto de observação na extremidade oposta do armazém, Qhuinn observou a cena se desenrolar: o Bando de Bastardos entrando na construção abandonada, parando no centro, ouvindo a V. e desarmando-se ao seu comando. Tudo isso fora planejado. Mas então Tohr se adiantou.
Enquanto o irmão avançava com seus coturnos pesados até o meio, todos os demais daquele maldito lugar prenderam as respirações, mas Qhuinn não. O irmão não seria idiota. Primeiro, porque essa não era a sua natureza, e segundo, ele tinha honra...
– Como que é? – Qhuinn cuspiu quando V. falou sobre Xcor ter salvado a vida de Tohr.
Ora, ele mesmo testemunhara aquele espetáculo suicida, aquela insanidade. Era uma daquelas histórias que a Irmandade sussurrava quando estavam bêbados ou eram três da tarde e não havia mais ninguém por perto, uma passagem de um catálogo do passado que tornava o custo do trauma da guerra algo muito real.
Mas que diabos? Como V. tinha isso filmado? Era uma imagem de um circuito interno de segurança? Algum humano assistindo a tudo na periferia?
O que isso importava...
Quando uma figura se materializou bem ao seu lado, Qhuinn quase apertou o gatilho, mas a cabeleira loira e negra era inconfundível.
– Quer levar bala? – Qhuinn perguntou.
Numa voz de Darth Vader, o anjo rebateu:
– Suas armas não são nada para mim.
– Pelo amor de Deus...
Mas, de repente, o rosto de Lassiter ficou bem na frente do dele, e não havia nenhum indício de brincadeira nos estranhos olhos coloridos.
– Prepare-se.
– Pra quê?
Nesse instante, Wrath surgiu no centro do armazém, bem ao lado de Vishous. E era por isso que escolheram aquele espaço amplo. Considerando a cegueira de Wrath, não haveria nada em seu caminho, nada em que pudesse tropeçar, nada que o estorvasse, nem que o enfraquecesse por depender da ajuda dos irmãos para se locomover.
Cara, Qhuinn pensou ao medir os corpos dos Bastardos. Não gostava nem um pouco de tê-los tão perto assim do Rei, mesmo estando desarmados.
– Quer dizer que isso vai mesmo acontecer... – Qhuinn meneou a cabeça ao ver os Bastardos e a Irmandade tão próxima assim. – Nunca pensei que veria esta noite, vou te dizer.
Quando Lassiter não respondeu, relanceou na direção dele. O anjo caído já se fora.
Qhuinn se concentrou e ouviu com atenção. O que não foi nada difícil porque a voz de Wrath se projetava como se um órgão de igreja.
– Compreendo que devem lealdade ao líder de vocês. Tudo bem. Mas ele jurou lealdade a mim, dessa forma, isso obriga o seu grupo. Existe alguma discordância aqui?
Um a um, os Bastardos disseram um não ressonante, e era óbvio pelo modo como as narinas de Wrath inflavam que o Rei estava testando a veracidade da declaração nos cheiros deles.
– Bem – Wrath disse. Depois passou para o Antigo Idioma. – Por meio disso, comando que a assembleia jure sua lealdade ao líder deles diante da presença do Rei ao qual ele mesmo se jurou. Prossigam agora com os joelhos dobrados, as cabeças pensas e o coração fiel.
Sem conversa nem hesitação, um a um, o Bando de Bastardos se ajoelhou diante de Xcor, abaixando as cabeças e beijando-lhe os nós dos dedos da mão da adaga. E, durante todo o tempo, Wrath esteve ao lado deles, testando o ar, procurando, mas evidentemente não encontrando, nenhum subterfúgio.
Quando terminaram, Xcor se virou para Wrath.
O coração de Qhuinn batia forte enquanto olhava para o rosto do macho. Apesar de estarem distantes, ele tracejou aquelas feições, os ombros, o corpo. Lembrou-se dos dois trocando socos, atacando-se na Tumba.
Pensou em Layla, grávida de Lyric e Rhamp.
E depois ouviu Blay lhe dizendo que deveria fazer as pazes com a Escolhida para que eles também pudessem ficar bem. Para que a família deles ficasse completa. Para que o passado pudesse ser visto com a razão e não com a emoção.
Foi com a imagem dos filhos na cabeça que ele observou quando Xcor se abaixou sobre um joelho diante de Wrath.
Wrath estendeu o diamante negro, o símbolo do trono, o anel que fora do pai e do pai do pai antes disso.
O anel que talvez L.W. usaria um dia.
– Incline a cabeça para mim – Wrath comandou no Antigo Idioma. – Jure os seus serviços a mim desta noite em diante. Que não haja mais conflitos entre nós.
Qhuinn inspirou fundo.
E depois soltou o ar quando Xcor abaixou a cabeça, beijou a pedra e disse alto e claro:
– Aos seus pés, empenho minha vida e meu sangue. Não haverá nenhum outro governante para mim e para os meus, nenhum conflito até que meu túmulo clame por minhas carnes mortais. Esta é a minha promessa solene.
Qhuinn fechou os olhos e abaixou a cabeça.
Bem quando redutores invadiram todas as portas dali.
CAPÍTULO 62
As portas do armazém se abriram numa rápida sucessão, bam! bam! bam! e os assassinos que invadiram se moveram com presteza.
Aquele era o pior pesadelo de Vishous.
E a primeira coisa que fez foi ir atrás de Wrath. Com um salto veloz, abalroou o Rei e o cobriu com o corpo.
Que teve o mesmo resultado de uma pessoa tentando manter um cavalo indomado no chão.
– Fica deitado, porra! – Vishous sibilou enquanto a luta começava a se desenrolar.
– Me dá uma arma! Me dá uma maldita arma!
Tiros. Xingamentos. Adagas sendo empunhadas. Todos os Irmãos contra-atacaram e os Bastardos mergulharam para recuperar suas armas para ajudar.
– Não me faça te derrubar com uma pancada! – V. grunhiu ao passar os braços na parte superior do corpo de Wrath, tentando derrubá-lo com seu peso. – Puta que o pariu!
Seguindo a teoria de que não conseguimos manter um bom lutador no chão – mesmo que a vida do cretino filho da mãe dependa disso –, Wrath, na verdade, ficou de pé e levantou a ambos, apesar do fato de V. estar enroscado ao redor da cabeça e pescoço dele como se fosse um cachecol, com o tronco contra suas costas e as pernas chutando à frente.
Era uma espécie de pegada de bombeiro dos infernos e tão sacolejante quanto um Jeep despencando ladeira abaixo.
A boa notícia? Pelo visto estavam testando a veracidade dos malditos juramentos da noite – e a coisa estava dando certo. Os Bastardos estavam lutando lado a lado da Irmandade contra os assassinos e, cara, que tremendos FDP eles eram.
Mas V. não pretendia dar uma de Dana White naquele octógono improvisado. Ele tinha que manter aquele Rei idiota vivo.
– Cacete, dá pra...
– Perdoe-me, meu senhor.
Heim? Quando V. olhou para trás, viu Xcor se agachando perto deles.
– Mas aqui não é seguro para você. – Dito isso, o líder dos Bastardos deu um de defensor de futebol americano para cima do Rei de todos os vampiros, apanhando as coxas de Wrath num abraço de urso e derrubando o cara no concreto. O que significou que V. o acompanhou na queda.
... aterrissando tão forte de cabeça que ouviu um baque e sentiu uma tontura aterrorizante se irradiar pelo corpo.
Com um gemido de dor, V. sentiu os braços afrouxarem por vontade própria; mesmo quando ordenou que os músculos permanecessem contraídos, eles caíram inúteis no concreto.
O rosto de Xcor apareceu acima do seu.
– Muito ruim?
– Isto aqui é revide por eu... – V. arfou em busca de ar – ter te acertado na cabeça naquela escola pra moças, não é?
Xcor sorriu de leve e depois abaixou a cabeça quando outra bala passou voando.
– Então foi você, amigo?
– É, fui eu.
– Você tem um belo gancho. – Xcor ficou sério. – Tenho que te tirar daqui.
– Wrath?
– Tohrment o levou. O Irmão Tohrment.
– Bom. – V. engoliu com esforço. – Olha só, estou quase desmaiando. Não mexa em mim. Posso ter fraturado as costas e não quero piorar qualquer dano à coluna que eu já possa ter.
Lutou contra a onda que começava a tomar conta dele, a visão indo e vindo.
– Diga a Jane... Sinto muito.
– É a sua companheira?
– Sim, as pessoas vão saber quem ela é. Só diga a ela... Sei lá. Que eu a amo, acho. Não sei.
Uma incrível onda de tristeza o levou à completa escuridão, os sons da luta, a dor, um pânico lento que surgiu com o pensamento: Ai, cacete, agora eu me fodi, recuando para o vácuo do nada.
No fim, não é que V. tenha perdido a vontade de lutar... Mas abaixou a espada para permanecer vivo.
Quando uma nova onda de inimigos atravessou a porta, Qhuinn ficou sem munição pela quarta vez – e quando a semiautomática começou a estalar em vez de atirar, ele praguejou e se jogou de costas contra a parede do armazém.
Dispensando o magazine vazio, recolocou um cheio e mirou na porta que estava cobrindo, atingindo três assassinos apressados um em seguida do outro, e os corpos fedidos se retorcendo foram formando uma pilha que obstruía a entrada dos de trás.
Mas logo ele ficou sem balas de novo, e se livrou da arma. A situação, de todo modo, estava ficando perigosa para a troca de tiros, pois a Irmandade lutava em toda parte ao lado dos Bastardos, a vastidão do armazém agora um problema, pois não havia lugar para se protegerem.
A lâmina da adaga veio do nada, e atingiu um lugar certeiro.
Seu ombro ruim. Bem fundo.
– Filho da puta...
Bem quando ele ia tentar avançar sobre o assassino que tentou, mas não conseguiu, acertar seu coração, um dos maiores e mais malvados vampiros que já viu na vida surgiu por baixo, vindo sabe-se lá de onde e atacou o assassino, empurrando-o para a parede. E então...
Puuuuxa vidaaaa...
Pegando a deixa de George Takei.
O Bastardo em questão arreganhou as presas e arrancou o rosto do assassino numa mordida. Literalmente, como se fosse Hannibal Lecter arrancando o nariz e uma face até chegar ao osso, revelando sangue e músculos negros.
Em seguida, o macho o largou de lado como se ele fosse o centro de uma maçã mordida.
Quando o Bastardo se voltou para Qhuinn, havia um fio negro escorrendo pelo queixo até o peito, e o cara sorria como se tivesse ganhado uma competição da Nathan’s Famous.
– Precisa de ajuda para tirar essa adaga do ombro?
Pareceu ridículo que o cara estivesse perguntando algo tão surpreendentemente civilizado.
Qhuinn agarrou o cabo, cerrou os dentes e puxou a adaga, libertando o ombro. Enquanto a dor quase fez com que vomitasse, ele conseguiu dizer:
– Na verdade, pensei em te servir um bom Chianti.
– O quê?
– Cuidado!
Quando um assassino se aproximou do Bastardo por trás, Qhuinn se moveu, saltando e tirando a adaga da sua mão dominante, que agora estava presa a um maldito ombro machucado.
Felizmente, era ambidestro.
Qhuinn cravou a lâmina bem no globo ocular do agressor, depois girou o cabo com tanta força que o punhal se partiu ficando bem aninhado em seu novo lar.
Ele e o assassino caíram no chão, bem quando o ombro de Qhuinn anunciou que chegara ao limite. Quando ele se virou para vomitar, acabou fazendo isso de frente para um imenso par de botas de combate.
O assassino foi tirado de cima dele como se fosse um catavento, o pedaço de merda morto-vivo pesando menos de um elástico. Em seguida, o Bastardo durão se agachou.
– Vou te tirar daqui – disse ele com um sotaque forte.
Qhuinn foi jogado por cima de um ombro do tamanho de uma casa, e lá se foram num trajeto cheio de solavancos sabe lá Deus para onde.
Quando ele e seu repentino melhor amigo começaram a se mover, ele deu uma boa olhada no que estava acontecendo do seu ponto de vista invertido. Irmãos, Bastardos, ajudando-se mutuamente, trabalhando juntos, combatendo um inimigo comum.
E lá estava Xcor, bem no meio de tudo...
Lágrimas surgiram nos olhos de Qhuinn quando ele percebeu que o guerreiro, o líder dos Bastardos, estava lado a lado simplesmente no único ruivo do recinto.
Os dois estavam com as costas coladas um no outro, movendo-se num círculo lento, trocando golpes e punhaladas com um enxame de redutores. Blay estava espetacular como sempre, e o Bastardo mais do que o acompanhava em desempenho.
– Vou desmaiar – Qhuinn anunciou para ninguém em particular.
E ao fazer exatamente isso, a imagem do amor da sua vida e o macho que considerava seu inimigo pairou, cruzando a barreira entre a realidade e os sonhos.
CAPÍTULO 63
Layla andava de um lado a outro diante da fonte dos aposentos da Virgem Escriba – ou melhor, de Lassiter – quando subitamente não ficou mais sozinha, e não só por causa dos filhos que dormiam envolvidos em mantas macias junto à árvore cheia de passarinhos.
Quando o anjo caído, agora divindade encarregada, se materializou em pleno ar, seu primeiro pensamento foi o de que ele era portador de notícias terríveis.
No pouco tempo em que o conhecia, ele nunca esteve com a aparência tão ruim, a pele pálida, acinzentada, a aura diminuída de modo a parecer apenas uma sombra de si mesmo.
Layla se apressou até ele e quase não conseguiu alcançá-lo quando ele caiu de joelhos sobre o piso de mármore branco.
– O que aconteceu? Está machucado?
Ele fora ao encontro da Irmandade com os Bastardos? Algo de errado aconteceu lá...
– Lassiter – ela exclamou ao se ajoelhar ao lado dele. – Lassiter...
Ele não respondeu. Apoiou a cabeça nas mãos e se debruçou no mármore, como se tivesse perdido a consciência.
Ela olhou ao redor, imaginando o que poderia fazer. Talvez chamar Amalya...
Só que quando o rolou de costas, surpreendeu-se ao ver lágrimas prateadas saindo dos seus olhos e caindo como diamantes na pedra abaixo dele.
– Não consigo fazer isto... Este trabalho... não é para mim...
– O que está acontecendo? – ela perguntou aterrorizada. – O que você fez lá embaixo?
Em resposta, as palavras que saíram dele estavam amortecidas, tão indistintas que ela teve que se inclinar sobre ele para decifrá-las:
– A guerra tem que terminar. E só existe um modo de destruir Ômega. Isso foi previsto. A profecia tem que se concretizar, e isso só pode acontecer de uma maneira.
Quando os olhos dele se encontraram com os dela, o medo a gelou.
– O que você fez?
– Os redutores têm que ser eliminados. Eles têm que matar a todos eles e depois pegar Ômega. A guerra tem que terminar.
– O que você fez!
– Eles são a minha família – o anjo caído se engasgou ao cobrir o rosto. – São a minha família...
Um pensamento horrível cruzou a mente dela, e ela disse:
– Me diga que você não...
– Os assassinos têm que ser eliminados. Cada um deles. Só depois disso eles podem ir atrás de Ômega...
Layla caiu sobre o traseiro e levou as mãos ao rosto. Os Irmãos e os Bastardos em um lugar. Um juramento de lealdade dado e aceito.
De modo que, caso a Sociedade Redutora aparecesse, os dois lados anteriormente opostos lutariam juntos contra um inimigo comum.
– Alguém deles morrerá? – perguntou ao anjo. – Quem vai morrer?
– Eu não sei – ele disse numa voz partida. – Não consigo prever...
– Por que você teve que fazer isso? – Mesmo ele já tendo explicado o motivo. – Por quê?
Quando os olhos começaram a se encher de lágrimas, ela pensou em descer para a Terra. Mas não poderia deixar os filhos.
– Por que agora?
Lassiter parou de balbuciar, os olhos se fixando no céu leitoso acima deles – a ponto de ela imaginar se ele conseguia enxergar o que se sucedia lá embaixo.
Deixando-o estar, ela engatinhou para onde Lyric e Rhamp dormiam o sono dos abençoados, completamente alheios ao que muito bem poderia estar mudando o curso das suas vidas para sempre.
Deitando-se com eles nas dobras do cobertor macio que havia colocado ali para que ficassem aquecidos, deixou as lágrimas correndo soltas.
Teria rezado.
Mas o salvador da raça não estava em condições de atender aos seus pedidos. Além disso, estava claro que ele já sabia o que ela teria suplicado – e partilhava os seus temores.
Também era óbvio que, de todas as dádivas que poderia distribuir, apesar dos poderes que tinha, garantir que nenhum Irmão ou Bastardo caísse em batalha não estava entre elas.
CAPÍTULO 64
No fim, a batalha no armazém provou que as guerras, no fim das contas, estavam sujeitas às mesmas regras no tocante a começos, meios e fins, assim como todo o resto no planeta.
O arauto do seu fim não foi o silêncio. Não, nada estava silencioso na caverna fria feita pelos humanos. Havia gemidos e arrastos pelo chão em demasia, o campo de batalha disseminado com corpos móveis e cadáveres, o ar carregado dos cheios da pólvora e do sangue.
– Acabou?
Quando Wrath falou, Tohr relaxou um pouco a pegada que tinha no Rei. Mas não muito. Ainda tinha os braços e as pernas ao redor do corpanzil do macho, os dois num bolo num canto formado graças ao único espaço delineado no imenso interior vazio: as costas do Rei estavam na junção das paredes e Tohr era o escudo mortal que protegia os órgãos vitais dele, embora Wrath também estivesse usando um colete à prova de balas.
Mas, no fim, eles nem sempre cumpriam seu dever.
E a vida de Wrath não era algo com que se pudesse barganhar.
– Terminou? – Wrath exigiu saber. – Não ouço mais brigas.
A cabeça de Tohr se virou para o lado, e quando ele se endireitou um pouco, o pescoço estalou. Olhando ao redor, tentou identificar os corpos, mas não havia como entender alguma coisa naquela carnificina. Havia uns vinte e cinco ou mais mortos no concreto frio, e havia sangue tanto rubro quanto negro em toda parte.
Ele temia verdadeiramente que a Irmandade tivesse sofrido perdas...
Do meio do grupo de corpos, uma figura solitária se ergueu.
Estava coberta de sangue e se locomovia com dificuldade. E tinha uma arma na mão. Mas havia fumaça demais no lugar para discernir se aquele era um assassino, um Irmão ou um Bastardo.
– Cacete – Tohr exalou.
Ele não queria ter que se levantar para lutar e deixar Wrath desprotegido, porque o cara era simplesmente um idiota e estava puto da vida com a emboscada e poderia muito bem tentar se armar de novo e...
O assobio que ecoou foi como uma benção.
E Tohr respondeu com outro assobio.
Vishous se virou no meio do campo de batalha e começou a claudicar na sua direção; os passos estavam desiguais e um braço estava dobrado num ângulo horrendo. Mas ele era mais durão do que tudo isso e estava determinado a chegar ao seu Rei...
Não era Vishous.
Quando a figura se aproximou mais, Tohr percebeu... era Xcor. Era Xcor quem se aproximava.
Quando o Bastardo se aproximou o suficiente, ficou evidente que estava bastante ferido, e a coisa vermelha vazando pelos ferimentos parecia acometer quase todas as partes do seu corpo.
– Precisamos retirar o Rei – o Bastardo sussurrou numa voz rouca. – Eu cubro a retaguarda.
– Espere – Tohr disse quando segurou o braço do macho. – Você está ferido.
– E você é o escudo do nosso Rei. É perigoso demais deixá-lo desprotegido. Se eu morrer, não fará diferença. Se ele morrer, toda a esperança da raça morrerá também e Ômega vencerá.
Tohr encarou os olhos do irmão de sangue.
– Se conseguir sair, temos ajuda. Quatro quarteirões a oeste. Receberam ordens de não se aproximarem a menos que alguém os chamasse. Não queríamos sacrificar os médicos.
Xcor assentiu.
– Voltarei.
E numa demonstração de desejo e força, o macho desapareceu no ar. Apesar de estar brutalmente ferido.
– A gente vai ter que comprar um relógio de ouro ou algo assim para o filho da mãe – Wrath murmurou.
– Não é isso que se recebe na aposentaria?
– Acha que ele vai voltar a lutar depois desta merda toda?
Tohr esperou. E esperou. E esperou. E tentou conter o pânico de pensar que pessoas a quem amava poderiam estar mortas ou moribundas ao seu redor e ele não podia cuidar de ninguém.
Disse a si mesmo que contanto que não ouvisse nenhuma bala voando nem nada assim, Xcor talvez tivesse conseguido chegar...
O som começou baixo, um rugido ao longe. E logo foi crescendo, crescendo e crescendo mais... tão alto até que o estrondo estivesse próximo o bastante para sacudir as paredes finas do armazém...
A Mercedes S600 preta explodiu para dentro uns seis metros de onde Tohr e Wrath estavam amontoados, o entulho voou por toda parte, placas metálicas se chocando na cabeça e nos ombros de Tohr.
Xcor saltou para fora do banco de trás, Fritz abaixou o vidro do motorista, revelando o rosto enrugado tomado de preocupação.
– Meus senhores, entrem. A polícia humana logo chegará.
Tohr tentou se levantar, mas sentiu câimbras e os joelhos cederam.
Foi Xcor quem agarrou o Rei e quase o jogou no banco de trás do carro.
– Estou ficando de saco cheio de ser jogado de um lado pro outro assim! – Wrath estrepitou.
Tohr foi o segundo na lista de Xcor, o Bastardo o segurava com força surpreendente e quase o lançou como um dardo.
Mas Tohr não aceitaria isso. Sabia muito bem o que aconteceria em seguida.
Agarrando o braço do Bastardo, arrastou o macho para dentro com eles e berrou:
– Pisa fundo, Fritz!
O doggen com seu pé de piloto da NASCAR afundou o acelerador, virou o volante e com os pneus cantando manobrou de modo que a porta de trás se fechou sozinha. E logo saíram atravessando outro painel, dando uma de Velozes e Furiosos enquanto a Mercedes se projetava para fora do armazém, atingindo a neve do lado de fora.
Os olhos de Xcor se arregalaram de surpresa enquanto eles sacolejavam no banco de trás.
– Não precisava me salvar.
Tohr pensou na situação por um instante. E depois se resolveu. Ao diabo com tudo. Quem poderia saber quantos mortos havia lá atrás e sequer se Xcor conseguiria sobreviver ou se morreria, a julgar pelos seus ferimentos? Se Fritz conseguiria tirá-los do centro da cidade em segurança?
– Eu não deixaria o meu irmão para trás.
A princípio, Xcor resolveu reinterpretar as palavras ditas a ele. Por certo, devia haver algum problema de tradução ali, apesar de que o que ele dissera ter parecido algo em inglês.
– Desculpe... O que disse?
Wrath também se inclinou para a frente, de modo que Tohr, ensanduichado entre eles, foi o único que permaneceu com as costas encostadas no banco.
– Isso mesmo – o Rei disse enquanto o motor roncava mais alto. – O que foi que você disse?
O Irmão olhou direto nos olhos de Xcor.
– Sou filho de Hharm. E você também é. Somos irmãos de sangue.
O coração de Xcor começou a bater tão forte que sua cabeça latejou. Em seguida percebeu seu olhar recaindo sobre as feições de Tohr por vontade própria.
– Os olhos – o Irmão disse. – Perceberá isso nos olhos. E não, eu também não o conheci de verdade. Suponho que não fosse um bom macho.
– Hharm? – Wrath murmurou. – Não, ele não era. E é só isso que vou dizer a respeito.
Xcor engoliu através da garganta contraída.
– Você... é meu irmão?
No entanto, uma confirmação seria mesmo necessária? Tohrment tinha razão... aqueles olhos... eram do mesmo formato e da mesma cor dos seus.
– Sou – Tohr afirmou emocionado. – Sou seu parente consanguíneo.
Todo tipo de coisa passou pela mente de Xcor, flashes de imagens, ecos de tristeza, lembranças de solidão. No fim, quando a Mercedes chegou à velocidade de cruzeiro e eles estavam na autoestrada, só conseguiu abaixar o olhar e ficar calado.
Quando se recebe algo secretamente desejado e completamente inesperado, quando uma repentina revelação parece remendar um buraco na vida de alguém, a única resposta é o choque, muito semelhante ao que acontece quando se é ferido.
Ou talvez fosse só isso mesmo. Estava gravemente ferido e perdia a consciência.
Ficaram calados pelo resto do trajeto para onde quer que estivessem indo, e Xcor passou o tempo observando o manto de neve enquanto ele se esvaía em sangue sobre si mesmo, sobre o banco... sobre o irmão.
Um tempo depois, uma vida depois ao que lhe pareceu, começaram a parar e ir, parar e ir, parar e ir. No fim, pararam de vez. Wrath abriu a porta de pronto, como se o Rei soubesse que estavam em local seguro, e Tohr seguiu o monarca.
Xcor foi abrir a porta ao seu lado...
A mão não parou na maçaneta. Nem na segunda tentativa.
Tohr a abriu por ele e se inclinou no interior do carro.
– Vamos tratar de você. Venha.
Quando o Irmão, e o irmão, estendeu a mão, Xcor comandou o corpo a se mover. Mas este se rebelou. Ele parecia ter...
Uma onda de tontura fez com que perdesse o controle do estômago, mas ele sacudiu a cabeça para clareá-la e exigiu que seus músculos o obedecessem. Dessa vez, o corpo o atendeu. Seu corpo surrado, apunhalado e alvejado conseguiu se levantar do banco de trás e se mover à frente.
Um passo.
Quando ele despencou, braços fortes o seguraram, impedindo-o de bater no piso de concreto do que parecia ser uma garagem.
Tohrment sustentou seu corpo com facilidade.
– Tô contigo. – Essa foi a segurança que ele lhe passou.
Com uma série de movimentos pouco graciosos, Xcor se segurou aos ombros fortes do macho e se suspendeu um pouco. Deparando-se com o olhar de Tohrment, disse:
– Meu irmão.
– Isso – o macho disse rouco, uma camada de lágrimas fazendo com que os olhos azuis se tornassem um par de safiras. – Sou o seu irmão.
Foi difícil saber quem abraçou quem, mas, de repente, estavam os dois abraçados, sustentando-se, guerreiro contra guerreiro.
Xcor pensara em muitos resultados para aquela noite, muitas contingências e probabilidades que ele, como qualquer outro bom líder, teria avaliado e reavaliado.
Encontrar um pedaço da sua família jamais passou pelo seu radar.
E por mais que o pai não tivesse aparecido na forma de um guerreiro corajoso montado num cavalo para resgatá-lo... seu irmão de sangue por certo cumpriu essa função muitíssimo bem.
CAPÍTULO 65
Quando Cormia apareceu no pátio, Layla se levantou no mesmo instante.
– Me diga tudo.
Lassiter há tempos partira, desaparecendo numa chuva de partículas douradas, deixando-a sozinha com o seu pavor.
A Escolhida estava agitada.
– Você precisa descer agora. Precisam de sangue e eu já doei tudo o que posso. Eu ficarei com os pequenos.
As duas se abraçaram e Layla se foi, viajando entre os dois reinos apressada, retomando sua forma no lado de fora da mansão, pois ela não teria como passar pela estrutura de aço.
Não notou o frio ao correr escada acima e puxar a pesada porta externa da entrada e mostrar o rosto para o circuito de segurança... E, enquanto esperava, queria gritar.
Foi Beth quem abriu.
– Ah, Graças a Deus – a Rainha exclamou dando-lhe um abraço forte. – Vá, corra para o centro de treinamento. É lá que todos estão.
Layla começou a correr e depois perguntou por sobre o ombro:
– Alguém morreu?
– Ainda não. Mas... Ah, vá, vá agora. Tenho que esperar por Wrath e voltar a acompanhá-lo para baixo.
Layla passou pelo túnel subterrâneo e chegou ao centro de treinamento em tempo recorde, mas assim que chegou ao corredor, parou de repente.
O cheiro de sangue era intenso, portanto havia uma grande quantidade de machos com diversos graus de ferimento ali.
E não eram apenas Irmãos. Na verdade... pareceu ver todos os guerreiros de Xcor ombro a ombro com a Irmandade, com Ehlena, a enfermeira, e todas as outras Escolhidas, cuidando deles.
Enquanto Manny e a doutora Jane sem dúvida se ocupavam com cirurgias.
– Estou aqui – disse a ninguém e a todos.
Em sua cabeça, estava gritando com todos eles, exigindo saber o que acontecera com Xcor, pois não o via e não o sentia, e isso a aterrorizava.
Mesmo assim, aproximou-se do primeiro ferido com que se deparou e arregaçou a manga, expondo o pulso.
Reconheceu o macho. Era um dos de Xcor.
Zypher meneou a cabeça.
– Estou honrado, sagrada Escolhida. Mas não posso tomar sua veia.
– Mas você deve – ela sussurrou.
– Não posso. Você é a fêmea do meu líder. Morrerei antes de conhecer o sabor do seu sangue.
Uma das suas irmãs se aproximou.
– Eu o alimentarei. Vá até Rhage.
E foi o que Layla fez, oferecendo sua veia. Quando o Irmão sorveu o que necessitava e agradeceu, ela foi para o macho seguinte na fila.
Mas ele era um Bastardo, e ele também meneou a cabeça e a rejeitou.
– Não posso receber seu sangue. Você é a fêmea do meu líder.
E foi assim por toda a fila, até que acabou se concentrando apenas na Irmandade, sem nem tentar os outros.
Tantos ferimentos, alguns tão profundos que ela via uma anatomia que a aterrorizava. E durante todo o tempo, preocupou-se com Xcor, entrou em pânico com o que Lassiter fizera e rezou para que ninguém morresse.
Estava prestes a se aproximar de Phury, que precisava de mais uma dose de tão graves que eram seus ferimentos, quando sentiu uma pegada no cotovelo.
Ao erguer o olhar, deparou-se com o rosto sério de Tohr.
– Xcor precisa de você. Agora.
Layla se levantou tão rápido que ficou tonta, e Tohr a ajudou a caminhar pelo corredor.
– Você ficaria orgulhosa dele – Tohr lhe disse ao se aproximarem de uma porta fechada que parecia uma sala de operações. – Foi incrivelmente valente e foi ele quem tirou Wrath de lá.
– Foi ele?
– Sim. E ele sabe. Sobre mim e ele. Eu contei porque... Por que não depois de uma noite horrível como esta?
Tohr abriu a porta e Layla arquejou. Xcor estava na mesa operatória, com o abdômen aberto, os intestinos aparecendo – no entanto, estava consciente.
Virou a cabeça na sua direção e tentou sorrir.
– Meu amor.
A voz dele estava tão fraca... Ah, sua coloração estava péssima. E mesmo assim ele tentou se soerguer.
O tom de Manny foi firme.
– Ok, isto não está dando certo pra mim. Não enquanto estou suturando seu intestino.
– Não olhe – Xcor ordenou a ela. – Não olhe para o meu corpo.
Num vívido flashback, ela se lembrou de que ele não queria ter tirado as roupas perto dela.
Layla se apressou para junto dele e encostou-lhe o pulso na boca.
– Beba. Tome o meu sangue.
– Já fizemos isso antes – ele fez uma careta e tossiu –, uma vez antes enquanto eu estava morrendo. Não fizemos?
– Duas vezes já fizemos isso. E nas duas vezes estava mais frio – ela disse entre lágrimas. – Oh, Deus. Não morra. Não esta noite. Nunca.
– Você é a coisa mais linda que eu já vi. – Os olhos dele estavam enfraquecendo, a luz deles sumia. – Partilhei meu corpo com outros, mas fui virgem com você, pois minha alma nunca pertenceu a ninguém antes. Só você... Só você me tem...
Uma máquina começou a apitar.
– Alguém pegue o maldito desfribilador!
Tohr se aproximou na mesma hora, formando um punho com as duas mãos, e disse:
– Respire por ele! Respire por ele!
Mesmo que seu coração estivesse batendo descontrolado e ela sentisse que não suportaria nada daquilo, Layla selou os lábios de Xcor com os seus e soprou ar para dentro dos pulmões dele. E Tohr começou a massagear o coração.
– Respire! Agora!
Ela se inclinou de novo e exalou todo o ar de que dispunha.
E mesmo assim o alarme continuava disparado...
– De novo! – Manny gritou enquanto as mãos enluvadas e ensanguentadas trabalhavam rápido com a linha e a agulha.
CAPÍTULO 66
Quando Qhuinn recobrou a consciência, por um minuto pensou estar retornando ao começo do pesadelo, para aquela fantasia em que Blay estava sentado na cadeira ali no quarto da clínica.
– Ah, graças a Deus.
– O quê? – Qhuinn murmurou.
Blay deu um salto e se apressou apesar de ter um braço numa tipoia e estar mancando como se alguém tivesse derrubado uma caixa de ferramentas no seu pé.
Qhuinn estava para perguntar se o macho estava bem quando aqueles lindos lábios pousaram nos seus e aquela magnífica fragrância da vinculação chegou ao seu nariz... Ah, aquilo era melhor do que qualquer fantasia.
– Ai!
Quando Qhuinn soltou o grito, o braço voltou para a cama e uma dor, quente e profunda como o oceano, trespassou o lado direito inteiro.
Blay recuou e sorriu.
– Veja por este lado. Finalmente consertou o ombro. Quando costuraram o ferimento, acabaram dando uma olhada na sua bursite.
Assim que conseguiu, Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Dois por um.
– Pague um, leve dois.
Mas nessa hora ele ficou sério.
– Perdemos alguém?
– Nenhum dos nossos, mas todos teremos que nos curar. Isto foi quase um massacre.
– E quanto a eles. Os Bastardos.
Blay desviou o olhar.
– Xcor não está nada bem. E se tem algo a dizer a respeito disso, é melhor não dizer. Foi ele quem tirou Tohr e Wrath de lá. E Layla está no corredor alimentando o pessoal, pra sua informação – e também não quero nenhum comentário a esse respeito. Isto é uma emergência.
Qhuinn fechou os olhos.
– Estou tão feliz por você estar bem – Blay sussurrou. – Eu teria morrido junto com você se isso não tivesse acontecido.
Levantando as pálpebras, Qhuinn disse:
– Sinto muito.
– Pelo quê?
– Não sei. – Apontou com a cabeça para o maquinário à cabeceira. – Isso está injetando morfina?
– Sim.
– Então acho que não estou dizendo coisa com coisa.
– Ok. Pode falar toda besteira que quiser.
Blay se sentou com cuidado na beirada da cama, e quando Qhuinn sentiu a mão ser segurada, apertou de volta.
Ficaram assim só olhando um para o outro por um bom tempo. Sim, olhos marejaram e gargantas se contraíram... Mas os corações estavam inteiros.
– Nunca mais quero ficar sem você – Qhuinn disse. – Nada vale isso.
O sorriso de Blay era genuinamente precioso.
– Não tenho como discordar disso.
O macho se inclinou para baixo e eles resvalaram os lábios. Duas vezes.
– Hummm. Sabe o que não aguento esperar?
– Fazer xixi sem a sonda?
– Sexo de reconciliação. – Qhuinn abaixou as pálpebras. – Eu quero você aqui mesmo, pra falar a verdade.
O rubor que atingiu o rosto de Blay foi uma provocação criminosa – já que ele estava atrelado a um dispensador de ópio.
– Então descanse – o macho disse numa fala arrastada. – E absorva todos os fluidos que puder. Vai precisar deles.
Vishous abriu os olhos e, por um instante, ficou imaginando onde estaria. O teto branco não dava muitos indícios, e...
O rosto de Jane, logo à frente do seu, foi uma surpresa que fez com que ele se encostasse no travesseiro.
– Oi – ela disse com voz trêmula. – Você voltou.
– Para onde eu fui... – Maldição, a garganta doía. Será que o tinham intubado? – O que aconteceu?
E, ao mesmo tempo em que perguntava isso, aquela horrível cena do armazém voltou à sua mente... Ele caindo e batendo a cabeça, e depois paralisado no chão enquanto balas voavam por todos os lados. Considerando-se a distribuição de dores pelo seu corpo, ele deduziu algumas coisas: primeiro, não estava paralisado de fato; segundo, fora alvejado em múltiplos lugares, tendo sido, sem dúvida, pego no meio do fogo cruzado; e em terceiro lugar...
– Quase te perdi – Jane disse, aqueles olhos verde-abacate estavam brilhantes de lágrimas. – Fiquei neste quarto nas duas últimas horas rezando para que você recobrasse a consciência.
– Duas horas?
Ela assentiu.
– Assim que saí da operação, eu vim para cá... – Ela franziu o cenho. – O que foi? Está com dor? Precisa de mais morfina?
– Por que...
Quando ela esfregou debaixo dos seus olhos, ele percebeu que estivera chorando – e no instante em que isso foi registrado, calou as emoções, obrigando-as a se submeterem. Nada de chorar. Não mesmo. Não faria isso.
– Olha só, deixa eu chamar a Ehlena.
Jane atravessou o quarto e chegou à porta mais rápido do que o coração dele batia – o que, na verdade, não queria dizer muita coisa. E quando a ouviu pedindo mais medicamentos para ele, e depois começar a responder as perguntas de outras pessoas, todas as dores dele desapareceram.
A não ser por uma no meio do peito.
E era exatamente essa que não reagiria a nenhuma droga.
Ele a viu se inclinar mais para fora ainda e assentir para alguém, e depois sair de vez. Bem quando a porta se fechava, ela olhou por cima do ombro, e seus olhos estavam carregados de preocupação.
– Eu já volto.
Não, ele pensou, acho que você não vai voltar.
Dito e feito, cinco minutos mais tarde, Ehlena foi entrando com um frasco e uma agulha para o acesso intravenoso.
– Oi – ela disse com um sorriso acolhedor. – Jane está dando uma olhada nuns curativos. Ela não queria que você tivesse que esperar por ela.
– Tá tudo bem, não preciso disso.
– Ela disse que você estava com dor.
Com um grunhido, V. se sentou e passou as pernas para o lado da maca. Quando ele começou a puxar o acesso, Ehlena se retraiu.
– O que está fazendo?
– Me dando alta. Mas não se preocupe, isso não vai contra as ordens médicas e nada disso, porque a esta altura eu já estou bem treinado. E eu gostaria de um pouco de privacidade, se não se importa. A menos que queria assistir enquanto retiro a sonda?
– Que tal eu ir chamar a Jane?
Quando a fêmea começou a se dirigir para a porta, ele disse:
– Existem pacientes demais para vocês cuidarem, portanto presumo que podem estar precisando deste leito. E meus sinais vitais estão estáveis, eu já estou me curando, ou seja, alguma Escolhida deve ter me alimentado. Acho que você deveria se preocupar em cuidar dos que estão mais precisando do que perder tempo me impedindo de ir embora – ou preocupando Jane quando ela tem pacientes mais críticos.
Bem nessa hora, Manny passou a cabeça pela porta.
– Ei! Olha só você quase na vertical. Olha só, Ehlena, preciso de você. Agora.
V. lançou um olhar do tipo “eu te disse” para a fêmea. E depois deduziu pela imprecação e pelo desaparecimento dela que ela não discutiria com a sua incontestável lógica.
Tirar a sonda foi uma droga. Seu pau não vinha sendo muito usado ultimamente, e não gostou muito do desrespeito quando por fim foi tocado de novo.
Saindo do leito para ficar de pé, juntou as metades da roupa hospitalar na parte de trás e saiu do quarto.
Todos os Bastardos estavam no corredor, e todos estavam machucados. Não viu nenhum dos seus irmãos, mas sentia os cheiros deles na fragrância que pairava dos seus sangues, e deduziu que haviam subido para a mansão para se recuperarem.
Ou pelo menos aqueles que não estavam deitados na clínica.
Jane não estava em nenhum lugar dali.
Quando começou a andar, assentiu para os Bastardos, apertando as mãos que lhe eram estendidas e chocando as juntas dos dedos, pois a batalha que enfrentaram juntos os uniu mais do que qualquer juramento formal de lealdade e joelhos dobrados fariam.
Engraçado, ele se maravilhou, que é assim que se forja o aço. Você pega ferro, aplica um calor intenso, e tira todas as impurezas. O que resta é força bruta e indissolúvel.
Como quando dois grupos de guerreiros eliminam conflitos desnecessários e se ladeiam para formar uma unidade contra um inimigo comum e são capazes de conseguir muito mais do que jamais fariam separadamente.
Seguindo em frente, pensou ter ouvido a voz de Jane atrás dele. E ouviu. Ela falava com Manny, trocando informações.
V. pensou por um instante que ela notaria que ele estava se afastando pelo corredor e que viria atrás dele. Mas ela não fez isso.
E de novo, ele pensou ao claudicar para dentro do escritório e seguir para o túnel sozinho, isso não o surpreendeu.
CAPÍTULO 67
– Acorde, meu amor.
Quando uma voz grave entrou no ouvido dela, os olhos de Layla se abriram de uma vez e ela se ergueu na cadeira – o que fez com que fosse parar cara a cara com Xcor.
– Você está vivo! – ela exclamou. Só que então ela viu todos os tubos e cabos que foram desconectados e agora pediam dele. – Que diabos você está fazendo fora da cama...?
– Shhh – ele disse. – Venha.
– O quê?
– Estamos indo embora.
– Mas por...
Ele assentiu e se levantou. Estava coberto com curativos, ainda na camisola hospitalar, pálido como um fantasma, mas o olhar dele lhe disse que não ouviria nada que ela tinha a dizer.
Estavam mesmo de saída.
– Para onde vamos? – ela perguntou ao ficar de pé.
– Para a casa segura. Há um carro à nossa espera.
– Mas não seria melhor ficarmos aqui onde estão os médicos...
– Só quero ficar sozinho com você. Você é tudo de que preciso.
Quando ele a encarou, uma sensação de amor se espalhou pelo corpo dela.
– Não acredito que você esteja vivo.
– Tudo por sua causa. Por tantos motivos.
Um rápido flashback dela e de Tohr fazendo manobras de ressuscitação deixou-a sem fala. Mas não tirou sua capacidade de se ajustar debaixo do seu macho e ajudá-lo até a porta.
O corredor estava vazio, com apenas um doggen limpando as manchas de sangue do chão, prova dos ferimentos.
– Para onde foram os seus soldados? – ela perguntou quando começaram a ir na direção da garagem. – Por quanto tempo eu dormi?
– Horas, meu amor. E todos foram tratados e liberados. O amanhecer chega em trinta minutos.
– Eles vão ficar bem?
– Sim. Todos eles e todos os Irmãos também. A equipe médica daqui é incrível.
– Ah, graças a La... – Ela se deteve. – Graças aos céus. Ao destino. A tudo.
Foi então que ela notou uma figura parada no fim do corredor junto à saída, e quando eles se aproximaram, ela percebeu que era Tohr.
Quando finalmente pararam diante do Irmão, os dois machos só ficaram olhando um para o outro. E foi então que as semelhanças entre eles se tornou verdadeiramente evidente para ela. Mesma altura, mesmo porte físico, mesmo maxilar... E aqueles olhos.
– Obrigado por salvar a minha vida naquele beco – Tohr disse rouco.
– E obrigado por salvar a minha naquela mesa cirúrgica – Xcor entoou.
Os dois sorriram um pouco depois ficaram sérios.
Foi então que um frio a percorreu por dentro – um que foi intensificado quando Xcor se soltou dela e se inclinou na direção do Irmão.
Enquanto os machos se abraçavam, ela percebeu com horror que... era aquilo. Esse seria o último dia juntos para ela e Xcor. Era por isso que ele estava tão determinado a sair da clínica, e o motivo pelo qual Tohr os estava ajudando.
E também por que o Irmão olhou para ela com tanta compaixão quando os dois machos se afastaram.
Tohr abriu a porta da saída e esperou de lado que passassem.
Ninguém disse nada enquanto ela e Xcor seguiam para a Mercedes. Mesmo o mordomo parecia sóbrio quando deu a volta no carro para abrir-lhes a porta.
Layla abaixou a cabeça e deslizou pelo banco, depois Xcor a acompanhou e Fritz fechou a porta.
Xcor abaixou o vidro escuro ao seu lado e levantou a mão da adaga quando o carro começou a se movimentar – e Tohr retribuiu o gesto quando eles se afastaram, esses adeus tão permanentes quanto a tinta nos volumes sagrados do Santuário.
Não tem que ser assim, ela gritava na cabeça. Podemos fazer isto dar certo. De alguma forma, podemos...
Mas ela sabia que lutava uma batalha perdida há algumas noites quando Xcor fizera seu juramento perante Wrath e concordaram que ele e seu grupo deveriam retornar para o Antigo País.
Olhando para as mãos no colo, porque não ousava olhar para o rosto dele, ela sussurrou:
– Fiquei sabendo da sua bravura.
– Não é verdade.
– Foi o que Tohr disse.
– Ele está sendo generoso. Mas vou lhe dizer uma coisa, meus machos lutaram com muita honra e, sem eles, a Irmandade teria se perdido. Disso eu tenho certeza.
Ela assentiu e percebeu que mordia o lábio.
– Meu amor – ele sussurrou. – Não esconda os seus olhos de mim.
– Se eu olhar para você, eu desmoronarei.
– Então, permita que eu seja forte quando você sentir que não consegue. Venha cá.
A despeito dos ferimentos, ele a puxou para o colo e passou os braços ao redor dela. E a beijou na clavícula. E na garganta... e nos lábios.
O calor já conhecido surgiu de novo, e quando ele a suspendeu sobre o quadril, ela afastou as coxas e o cavalgou, e ficou contente por haver uma divisória no carro que lhes dava privacidade.
Mudando de posição meio desajeitadamente, tirou uma das pernas da legging e afastou a calcinha enquanto ele puxava a bainha da roupa hospitalar.
– Tomarei cuidado – ela disse quando ele fez uma careta de dor.
– Não sentirei nada a não ser você.
Xcor segurou a ereção com a mão enquanto ela deslizava lentamente ao redor dela.
– Meu amor – ele sussurrou ao deixar a cabeça pender para trás e fechar os olhos. – Ah, você me completa.
Com uma suavidade ansiosa, as mãos dele deslizaram por debaixo da blusa dela e ele afagou os seios, e ela se assentou num ritmo sobre ele, passando os braços ao redor do encosto da cabeça, encostando os lábios nos dele.
Quando as paradas e partidas nos portões de segurança começaram, um orgasmo agridoce atravessou o corpo dela... Levando consigo o seu coração.
Foi como se o fim entre eles tivesse vindo assim como foi o começo.
CAPÍTULO 68
Na noite seguinte, enquanto subia do porão da casa, Layla sentiu como se estivesse envelhecendo cem anos a cada degrau que subia.
Xcor já estava diante do fogão, preparando ovos, bacon e, mais uma vez, torrando mais uma embalagem inteira de pães de forma.
Ele a fitou. E o modo como os olhos a percorreram, dos cabelos ainda úmidos e agasalho que vestira com os jeans encontrados na cômoda, ela entendeu que ele estava memorizando cada detalhe seu.
– Eu queria estar vestindo uma roupa de gala – ela disse rouca.
– Por quê? – ele perguntou. – Você está linda agora.
Ele ajustou a bainha do blusão no qual se lia SUNY CALDWELL.
– Meio desarrumada, na verdade.
Xcor lentamente balançou a cabeça.
– Não reparo nas suas roupas, nunca faço isso, e um vestido elegante não mudaria isso. Não vejo cabelos molhados, sinto as mechas entre meus dedos. Não vejo faces pálidas, saboreio seus lábios na minha mente. Você atiça meus sentidos todos de uma só vez, minha fêmea. Você é muito mais do que cada uma das coisas que a formam.
Ela piscou para afastar as lágrimas e foi até o armário. Tentando não se descontrolar, disse:
– Vamos precisar de facas, além de garfos e pratos?
No fim, nada disso foi necessário.
Depois que ele terminou de preparar a comida, acomodaram-se à mesa, e a comida permaneceu intocada, esfriando e perdendo o seu aroma. E ela soube que estavam mesmo ficando sem tempo quando ele começou a verificar continuamente o relógio da parede.
E chegaram ao fim.
– Tenho que ir – ele disse rouco.
Quando seus olhos se depararam, ele estendeu o braço por cima da mesa e tomou sua mão. Seu olhar estava brilhante, pois ele também estava emocionado, os olhos azuis marinhos brilhavam de tristeza e de amor.
– Quero que se lembre de uma coisa – ele sussurrou.
Layla fungou e tentou ser tão forte quanto ele.
– Do quê?
No Antigo Idioma ele disse:
– Onde quer que eu vá, você nunca estará longe de mim. Onde quer que eu durma, você estará ao meu lado. O que quer que eu coma, eu partilharei com você, e quando eu sonhar, estaremos juntos novamente. Meu amor, você nunca estará afastada de mim, e eu não ficarei com mais ninguém. Até a noite da minha morte.
Estava na ponta da língua dela dizer que isso seria impossível.
Mas como se soubesse o que ela estava pensando – como sempre – ele apenas meneou a cabeça.
– Como eu poderia ficar com outra que não fosse você?
Layla se ergueu nas pernas trêmulas, e quando se aproximou, ele afastou os joelhos de modo que ela pudesse se postar entre eles.
Quando se inclinou para beijá-lo pela última vez, suas lágrimas caíram no rosto dele.
– Eu amo voc...
Ela não conseguiu terminar a última palavra, pois a garganta se fechou.
As mãos de Xcor subiram pelo corpo dela até chegarem ao rosto.
– Valeu a pena.
– O quê? – Ela forçou as palavras a saírem.
– Tudo o que aconteceu antes deste momento no qual sou amado por você. Embora tenhamos que nos separar, posso dizer que o que sinto por você faz com tudo tenha valido a pena.
E então, o beijo final... e ele partiu.
CAPÍTULO 69
Uma hora mais tarde, Layla foi à mansão da Irmandade. Sentia-se leve demais, como se seu interior tivesse sido esvaziado dos seus órgãos vitais – e ela deduziu que isso devia ser verdade. Não havia muito mais dela agora.
Engraçado ter se encontrado e se perdido em tão pouco tempo.
Contudo, enquanto galgava os degraus de pedra da entrada da mansão e se aproximava da imensa porta externa do vestíbulo, ela sabia que isso era apenas seu luto falando mais alto.
Ou, pelo menos, ela esperava que fosse.
Se isto era como seriam todas as noites da sua vida dali por diante? Ela estaria num mundo de sofrimento. Literalmente.
Empurrando a porta, mostrou o rosto para o monitor e esperou que alguém atendesse à campainha. Tecnicamente, aquela era a noite de Qhuinn com as crianças, mas ele ainda estava na cama do hospital, por isso Beth lhe telefonara lá pelas cinco da tarde dizendo que ela poderia ficar com os filhos se assim o desejasse.
Como se ela fosse dizer não.
De acordo com o que lhe disseram, Rhamp e Lyric foram trazidos do santuário por Cormia algumas horas atrás, portanto eles estavam no andar de cima – ou seja, tiveram esperanças de que Qhuinn já tivesse se recuperado. Mas, aparentemente, isso não aconteceu.
Não perguntou quais eram os ferimentos dele. Não era muito da sua conta, e isso a entristeceu. Mas o que poderia fazer?
– Ah, boa noite, Escolhida.
Quando a voz alegre de Fritz a acolheu, ela percebeu que não tinha visto a porta se abrir.
– Olá, Fritz. Como vai?
– Muito bem. Muito contente por todos estarem bem.
– Sim – concordou atordoada. – Eu também.
– Existe ago que eu possa fazer por você?
Bem, você pode fazer com que o avião em que o amor da minha vida está dê meia volta agora mesmo, trazendo-o de volta para mim. Faça com que ele fique comigo. Dê um jeito para que...
Ela pigarreou.
– Não, obrigada. Vou apenas subir para pegar as crianças.
O mordomo se curvou bem baixo, e depois Layla caminhou lentamente em direção à grande escadaria. Ao pousar o pé no primeiro degrau, lembrou-se do trajeto do porão até o andar térreo daquela casinha charmosa – e ficou se perguntando se sua vida seria sempre assim.
Emocionando-se a ponto de ter lágrimas nos olhos toda vez que fosse subir um lance de escadas.
No entanto, conseguiu seguir em frente.
No fim das contas, é isso o que precisamos fazer, mesmo com o coração partido. Céus, ela não fazia ideia do que faria consigo mesmo nas noites em que não teria Lyric e Rhamp, mas teria que encontrar algo. Ficar à toa provavelmente a afundaria em tristeza pela ausência de Xcor...
Parou na metade do caminho quando um macho surgiu no alto da escada.
Levantando as mãos defensivamente, disse a Blay:
– Tenho permissão para levá-los. Beth me disse isso. Não estou aqui sem permissão.
Pareceu-lhe uma eternidade desde que vira aquele macho, e odiou a necessária distância entre elas. Mas de que outro modo poderiam agir? Ah, Deus, e se ele não lhe entregasse as crianças? E se Qhuinn tivesse ficado sabendo que ela estava recebendo uma noite extra e ordenara de seu leito no hospital que ela não recebesse esse privilégio?
Esta noite, dentre todas as noites, ela precisava de um lembrete visceral do que a faria seguir adiante...
Antes que Blay pudesse dizer qualquer coisa, a campainha tocou de novo anunciando a chegada de mais alguém na mansão. Mas Layla não deu atenção. E por que o faria? Já não morava mais ali...
Mas se virou.
E piscou ante o impossível.
Qhuinn passava pelo vestíbulo... Com Xcor ao seu lado.
Layla piscou de novo e esfregou os olhos, o cérebro incapaz de compreender o que estava vendo. Por certo Qhuinn, dentre todas as pessoas, não poderia... não estaria...
Espere, por que seu macho não estava num avião?
Xcor ergueu o olhar para ela e deu um passo à frente... e depois mais um. Não se concentrou em nada a não ser nela, toda a grandiosidade e as cores do átrio parecendo desimportantes para ele.
Ao diabo os comos e os porquês, Layla pensou ao se mover num impulso, disparando escada abaixo, imaginando que, se aquilo fosse fruto da sua imaginação, seria bom descobrir de uma vez.
E se caísse de cara no piso de mosaico?
Não sofreria mais do que já estava sofrendo.
– Meu amor – Xcor disse ao apanhá-la e suspendê-la do chão.
Quando ela começou a chorar absolutamente confusa, e com uma alegria experimental, ela olhou por cima do ombro dele.
Qhuinn encarava os dois. E depois desviou os olhos azul e verde para onde Blay estava no alto das escadas – e começou a sorrir.
Layla se afastou dos braços de Xcor. Aproximando-se do pai dos seus filhos, teve que pigarrear e enxugar o rosto.
– Qhuinn...
– Eu sinto muito – ele disse rouco. – Sinto muito... Muito mesmo.
Só o que ela conseguiu fazer foi fitá-lo atordoada.
Com mais um rápido olhar para Blay, Qhuinn inspirou fundo.
– Olha só, você fez o melhor que pôde, e isso foi difícil para todos. Sinto muito por ter reagido como reagi, foi errado da minha parte. Mas eu... Eu amo nossos filhos, e a ideia de que poderiam ter corrido perigo? Isso me aterrorizou de um modo que me enlouqueceu. Sei que o seu perdão não pode ser dado de imediato...
Layla se jogou sobre ele e passou os braços ao redor do pai dos seus filhos, e o abraçou com tanta força que nem conseguia respirar, suspeitando que nem ele estava conseguindo.
– Eu também sinto muito... Deus, Qhuinn, me desculpe...
Lágrimas desordenadas de desculpas eram as do melhor tipo, ainda mais quando eram aceitas de coração aberto por ambas as partes.
Quando, por fim, se afastaram, ela se aninhou debaixo do braço de Xcor, e Qhuinn estendeu a mão para o outro macho.
– Como já lhe disse no carro vindo para cá – ele disse –, não que você precise, nem queira, mas vocês dois têm a minha benção. Cem por cento.
Xcor sorriu e apertou a mão estendida.
– Pelo seu apoio, sinto-me mais que honrado esta noite do que em todas as outras.
– Maravilha. De verdade. – Qhuinn se inclinou na direção de Layla. – No fim das contas, o cara não é tão ruim assim. Quem poderia imaginar?
Enquanto ela ria, Qhuinn deu um tapa no ombro do macho.
– Então, vamos lá, hora de você conhecer as crianças. E ver onde vocês vão ficar.
O mundo todo girou ao redor de Layla de novo quando ela olhou de Qhuinn para Xcor.
– Espere, o que... Como assim?
– Se vocês dois estarão apropriadamente vinculados – o Irmão ergueu o indicador –, e já vou dizendo que sou um cara antiquado, portanto quero que a mãe dos meus filhos esteja apropriadamente vinculada, ele vai ter que morar aqui.
Nesse instante, a campainha tocou de novo, e Fritz, que estava enxugando os olhos com um lenço branco, voltou correndo para atender a porta.
O mordomo deixou Tohr entrar – o que não era nenhuma surpresa – e depois todos os Bastardos foram entrando no átrio. Cada um deles.
Ela olhou de Xcor para Qhuinn em estado de choque.
– Eles também vêm para cá?
– É uma espécie de pacote – Qhuinn explicou com um sorriso. – Além do mais, fiquei sabendo que são péssimos no bilhar, o que é um bônus. Peguem suas tranqueiras, rapazes. Este é Fritz. Vocês aprenderão a amá-lo, ainda mais depois que ele passar as suas meias.
Layla estava absolutamente atordoada quando os guerreiros começaram a trazer todo tipo de bolsas e sacolas para dentro. Em seguida, foi acompanhada escada acima por dois dos três machos mais importantes da sua vida.
Blay, o terceiro, sorriu e lhe deu um forte abraço. Depois, o trio passou pelo escritório de Wrath em direção ao corredor das estátuas.
O que fez com que ela perguntasse:
– E Wrath está de acordo com isto?
Qhuinn assentiu enquanto Blay respondia:
– Mais guerreiros é sempre melhor. E Deus bem sabe que temos espaço. Além do mais, Fritz ficará extasiado: mais gente para quem cozinhar, mais limpeza a fazer...
– E, caramba, como aqueles machos são bons no campo de batalha. – Qhuinn relanceou para ela. – A noite passada? Teria sido uma tragédia nos registros da história sem o seu macho.
Xcor não reagiu ante o elogio. Bem, a menos que se contasse o rubor que cobriu suas faces.
– Bem, o mesmo pode ser dito dos Irmãos.
Quando chegaram à suíte onde os bebês estavam, Qhuinn foi quem se adiantou e abriu a porta.
Blay foi o primeiro a entrar e depois Xcor hesitou... antes de colocar um pé indeciso além da porta. E depois o outro. Como se tivesse medo de algum monstro debaixo da cama.
Layla olhou para Qhuinn. E depois segurou sua mão.
– Obrigada. Por isto.
Qhuinn se curvou tão baixo que chegou a ficar paralelo com o chão. Quando voltou a se endireitar, depositou um beijo na testa dela e murmurou:
– Obrigada você, pelos nossos filhos.
Layla deu um aperto no braço dele e depois entrou.
Xcor parou no meio do quarto e olhava na direção dos berços como se estivesse aterrorizado.
– Está tudo bem – ela disse, incentivando-o a ir em frente. – Eles não vão morder.
Ela o levou até Rhamp primeiro, e quando Xcor olhou para baixo, maravilhado, para a pequena criança, recebeu uma carranca em resposta.
Xcor riu de pronto.
– Céus, temos um guerreiro aqui.
Qhuinn e Blay se aproximaram abraçados, e Qhuinn disse:
– É mesmo, não? É isso o que eu também acho. Ele é durão. Não é, Rhamp? E emite lixo tóxico. Você vai descobrir isso mais tarde.
As sobrancelhas de Xcor se levantaram.
– Lixo tóxico...?
– Modo de falar. Mas você vai sentir o cheiro. Faz com que cresçam pelos no peito, e olha que vampiros nem têm isso.
– E esta é Lyric – Layla disse.
Xcor estava com uma expressão divertida no rosto quando olhou para o outro berço – e então tudo mudou.
Seus olhos marejavam e, desta vez, as lágrimas caíram. Relanceando para Layla, disse:
– Ela se parece... exatamente com você.
Enquanto Xcor tentava se recompor, Blay e Qhuinn se aproximaram por trás dele.
– Ela não é linda? – Qhuinn disse rouco. – Igual a nossa Layla.
Layla olhou para os três grandes guerreiros inclinados sobre a pequenina fêmea... E se sentiu tomada por uma sensação de amor e completude. Fora uma jornada longa e difícil, em que tudo poderia ter se perdido muitas vezes. E, no entanto, lá estavam eles, como uma família de sangue... e por escolha.
Naquele momento ela percebeu que Lassiter estava à soleira do quarto.
Levando o indicador aos lábios, ele fez um silencioso “psiu”. Depois piscou para ela e desapareceu em silêncio.
Ela sorriu quando as centelhas iluminadas surgiram no rastro dele.
– Este anjo pode estar mais preparado para o trabalho do que imagina...
– O que foi? – Xcor perguntou.
– Nada, nada – ela disse ao se inclinar para beijá-lo.
Ou talvez fosse tudo. Quem poderia dizer?
– Quer segurá-la? – Qhuinn perguntou.
Xcor se retraiu como se alguém tivesse lhe perguntado se gostaria de segurar um atiçador de lareira quente. Depois se recobrou, balançando a cabeça ao enxugar as lágrimas do rosto de um modo bem masculino, como se estivesse querendo tirar uma mancha de caneta permanente.
– Acho que ainda não estou pronto para isso. Ela perece tão... tão delicada.
– Mas ela é forte. E também tem o sangue da mahmen dela nas veias. – Qhuinn olhou para Blay. – E ela tem bons pais. Os dois têm. Estamos nisto juntos, pessoal, três pais e uma mãe, dois filhos. Bam!
A voz de Xcor se abaixou.
– Pai? – Ele riu com suavidade. – Passei de família nenhuma a uma companheira, um irmão e agora...
Qhuinn assentiu.
– Um filho e uma filha. Contanto que seja o hellren de Layla, você também será pai deles.
O sorriso de Xcor foi transformador, tão amplo que esticou o rosto dele de uma maneira que ela nunca vira antes.
– Um filho e uma filha.
– Isso mesmo – Layla sussurrou alegre.
Mas, no mesmo instante, aquela expressão desapareceu do rosto dele, os lábios se afinaram e as sobrancelhas desceram sobre os olhos como se ele estivesse pronto para atacar.
– Ela nunca vai namorar. Não me importo quem ele possa ser...
– Isso mesmo! – Qhuinn levantou a palma para um cumprimento. – E exatamente isso que eu estou falando!
– Não, não, esperem um instante. – Blay interveio quando eles chocaram as mãos. – Ela tem todo o direito de levar a vida que escolher.
– Isso mesmo – Layla concordou. – Isso de “dois pesos, duas medidas” é ridículo. Ela terá permissão para...
Quando a discussão começou, ela e Blay se apoiaram, e Qhuinn e Xcor ficaram ombro a ombro, com os braços imensos cruzados diante dos peitos.
– Sou bom com uma arma – Xcor disse como se aquilo encerrasse o assunto.
– E eu fico com a pá – Qhuinn completou. – Jamais encontrarão o corpo.
Os dois chocaram as juntas dos dedos e pareciam tão sérios que Layla teve que revirar os olhos. Mas logo sorriu.
– Sabem de uma coisa? – ela disse para os três. – Acho mesmo... que isto vai dar certo. Vamos, juntos, resolver tudo isso, porque é isso o que as famílias fazem.
Quando se colocou nas pontas dos pés para beijar seu macho, ela disse:
– O amor consegue consertar qualquer coisa... mesmo quando sua filha começar a namorar.
– Isso não vai acontecer – Xcor rebateu. – Nunca.
– Cara – Qhuinn disse, apoiando-o –, eu sabia que gostava que você...
– Ah, pelo amor de Deus... – Layla murmurou quando o debate foi retomado, e Blay começou a rir enquanto Qhuinn e Xcor continuavam a se entender.
Mas, no fim, ela acabou tendo razão.
Tudo deu muito certo como deveria dar, e o amor triunfou sobre todos os desafios. E anos mais tarde, muito mais tarde... Lyric namorou alguém.
Só que isso é outra história, para ser contada noutro dia.
CAPÍTULO 53
Às quatro da manhã conforme combinado, Xcor transferiu sua forma corpórea para o topo do prédio da Companhia de Seguros de Caldwell. Ao retomar sua forma nas rajadas de vento que atravessavam o espaço vazio no alto da cidade, ele inspirou fundo.
E quando olhou por cima do ombro, um a um seus machos apareceram: Zypher, Balthazar, Syphon e Syn. Quando todos se postaram diante dele, ele sentiu um instante de orgulho, pois os reunira por excelência, escolhendo a dedo os que considerava serem os melhores naquele acampamento de guerra. Aquele grupo de guerreiros o seguira em incontáveis batalhas, e juntos venceram muito assassinos, o total dessas mortes era algo impossível de contar...
De repente, a imagem de todos aqueles jarros na caverna da Irmandade surgiu em sua mente. Na verdade, se os dois grupos tivessem conseguido trabalhar juntos? Talvez a guerra já tivesse terminado àquela altura.
Zypher deu um passo à frente, evidentemente preparado a fazer algum tipo de declaração em nome do grupo.
– O que tiver a dizer – Xcor disse ao vento –, eu aceito e...
O grande guerreiro se ajoelhou e levantou o olhar silenciosamente para Xcor.
Enquanto o vento uivava e os cabelos de ambos eram açoitados de um lado a outro junto com as roupas invernais, Xcor descobriu que piscava rapidamente.
Em seguida, enfiou a mão no casaco e pegou uma faca que pegara na cozinha da casa segura e guardara nas dobras da parca preta emprestada. Curvando a mão ao redor da lâmina de fio duplo, ele apertou com força... e quando deslizou a arma da mão, o sangue fluiu.
Xcor estendeu a mão ferida para seu soldado, e Zypher abaixou a boca e bebeu o que ali se empoçava. Depois limpou a boca com o dorso do braço e se ergueu. Inclinou a cabeça e retrocedeu.
Um a um, os outros machos repetiram o ato de fidelidade, uma cerimônia que realizaram tantos anos atrás, ainda na floresta do Antigo País. Syn foi o último a se prontificar, assim como o fizera na primeira vez – e quando sorveu sua porção e se ergueu novamente, ele tirou algo das costas.
Quando Xcor viu o que era, ficou momentaneamente atordoado. Mas deslizou a língua sobre a ferida da palma para selá-la... e depois estendeu a mão para aceitar o que lhe era oferecido.
Era a sua foice. Aquela que o protegera dos machos de Bloodletter naquela floresta. Aquela que tomara para si e que usara como sendo sua por séculos. Aquela era tão parte do seu corpo quanto suas pernas e seus braços.
– Onde a encontraram? – sussurrou ao aceitar o cabo.
Era como voltar para casa.
Zypher olhou para os outros e respondeu:
– Na Escola para Moças de Brownswick. Foi a única coisa sua que encontramos.
Xcor passou seu peso para trás e girou a grande lâmina num arco. Era um antigo hábito alegremente renovado, e com o modo com que ela se movia sob seu comando... era prova de que a água não era a única coisa que podia existir em diferentes estados.
Uma lâmina nas mãos certas tanto podia ser sólida quanto líquida.
Só que, então, ele parou.
– Não usarei isto contra a Irmandade. Entendem a minha posição?
Zypher relanceou para o grupo. E no vento forte e gélido, ele disse:
– Estamos preparados para seguir você. E se você segue Wrath, então estamos preparados para seguir Wrath também.
– Ele espera que vocês jurem lealdade a ele. Por suas vidas de modo a permanecerem vivos.
– Nós seguimos você. Se você seguir Wrath, estamos preparados para seguir Wrath.
Xcor olhou para Balthazar.
– O que me diz?
– O mesmo – respondeu o macho.
– E você? – Xcor perguntou ao seguinte. Quando houve um aceno, ele perguntou ao outro.
Não era esse acordo que o Rei Cego desejava.
– Se isto custar suas vidas – Xcor entoou –, se acabarem caçados por isto, o que me dizem?
– Somos guerreiros – Zypher se pronunciou. – Vivemos e morremos pela adaga, e já somos caçados. Nada será diferente para nós salvo a integridade dos nossos permanentes e duradouros serviços ao nosso único senhor verdadeiro. Estamos em paz com o nosso posicionamento nesta questão. Em relação a outra, não estamos.
Evidentemente debateram o assunto por algum tempo... e chegaram a uma conclusão unificada e determinada, não a sujeitando a alterações tampouco negociações.
Xcor sentiu o coração inflar e seguiu o instinto de inclinar a cabeça.
– Apresentarei esta situação ao Rei e veremos o que ele tem a dizer.
– E depois iremos para casa – Zypher completou. Como se isso também fosse inalterável.
– Sim – Xcor disse para o vento. – Iremos para casa.
Layla saiu da casa pela porta de correr, indo para o frio e se encolhendo no casaco que pegara no armário. Ao fechar os olhos para se desmaterializar, seu coração batia forte e ela sentia uma raiva muito próxima de um sacrilégio.
Quando voltou à sua forma, foi numa península que se projetava no Rio Hudson, uns 25 quilômetros ao longo do curso do rio onde ficara umas boas duas horas andando de um lado a outro. O chalé de caçador que era seu destino era uma pequena construção, e tão modesta e resistente quanto um sapato velho bem consertado, situado de modo a ficar de frente para a cidade. Mais adiante na península, uma mansão de vidro elegante e de tamanho considerável jazia como um museu de exibição da riqueza, seu brilho alcançando todas as cercanias como o esplendor do sol que fortifica o sistema solar.
Mas aquela outra construção não lhe era importante.
O destino bem sabia que ela já tinha muito com que se preocupar.
Ao marchar sobre a neve na direção da porta dos fundos do chalé, suas pegadas foram as primeiras a perturbar a cobertura imaculada. Mas havia um indivíduo dentro da estruturam e ele lhe abriu a porta antes que ela batesse.
O corpo imenso do Irmão Tohrment ficou delineado pela luz atrás dele.
– Ei! Que surpresa! Desculpe eu ter demorado a responder, eu...
– Qual de vocês é o responsável? – ela estrepitou. – Quem de você atirou nele?
Quando o Irmão parou de falar, ela não lhe deu oportunidade para responder. Passou por ele para entrar no calor dali de dentro e de pronto começou a andar de um lado a outro ao redor do espaço parcamente decorado.
Manteve os olhos nele quando ele os fechou ali dentro, recostando-se na porta em seguida.
– E então? – ela exigiu. – E não venha me dizer que não sei o que estou falando. Ele disse que foi um redutor – e depois me disse que não via um desde que um monte de monstros o sequestrou...
– Monstros? – Tohr rebateu. – Está nos chamando de monstros? Depois que aquele merdinha botou uma bala no seu Rei?
Layla parou diante dele e apontou o dedo na direção dele, pontuando as palavras com o indicador.
– Aquele “merdinha” deixou a oportunidade de entregar o seu rabo. Portanto, veja bem como se refere a ele.
Tohr projetou o quadril à frente.
– Não o transforme num herói, Layla. Isso não a ajudou antes, e certo como o inferno não melhorará as coisas pra você agora.
– Para a sua informação, eu não ouvi você negar que tenha sido você. Qhuinn estava com você ou você decidiu ir atrás dele sozinho? E antes que me diga para que eu seja uma fêmea boazinha e cuide dos meus assuntos, eu estava lá quando Xcor se apoiou em um joelho e beijou o anel do Rei. Eu assisti quando ele fez um juramento, e sei muito bem que Wrath contou isso a todos vocês de modo a que ele ficasse seguro. Mas você não prestou atenção, prestou? Você se acha mais importante do que isto...
– Isso não é da sua conta, Layla.
– O caramba que não é. Eu o amo...
Tohr lançou as mãos para o alto.
– Tá, tá, tá, você se apaixonou por um assassino, um ladrão, um traidor, e de repente toda essa sujeira é zerada, todos esses detalhezinhos simplesmente desaparecem em pleno ar porque você está apaixonada! Ok, bom saber disso, então vou simplesmente apagar o fato de Wrath quase ter morrido na minha frente porque você quer chupar o pau de um mach...
Ela o esbofeteou com tanta força que sentiu a dor do impacto subindo pelo braço. E não sentiu absolutamente nenhum remorso em seguida.
– Devo lembrá-lo da minha posição – ela estrepitou. – Quer você goste ou não, sou uma Escolhida e não permitirei que me desrespeite. Conquistei esse direito pelos anos de serviço e não aceito ser tratada com menos do que isso.
Tohr nem pareceu perceber que ela o estapeara. Só se inclinou de novo para a frente e expôs as presas.
– E devo lembrar a você que é meu trabalho proteger o Rei. A sua vida amorosa não me interesse minimamente numa noite boa. Quando ela entra em conflito com a minha tarefa de manter vivo um macho de valor como Wrath? Eu passo por cima de você e das suas preciosas ilusões mais rápido do que uma hemorragia arterial daria conta deste problema.
– Você – ela apontou o indicador de novo – é quem será um assassino se o matar, assim como Qhuinn.
Ela esperou que ele negasse o envolvimento de Qhuinn. Não foi uma surpresa quando ele não fez isso.
Tohr só deu de ombros.
– Tenho uma ordem executiva que me diz que posso ser aquele que o levará para o túmulo.
– Que foi evidentemente revogada. – Ela meneou a cabeça e levou as mãos ao quadril. – Não sei o qual é o seu problema, mas está na cara que não tem nada a ver com Xcor...
– Ao diabo que não tem!
– Bobagem! Wrath já superou isso. Foi Wrath quem quase morreu. Você é quem está se apegando ao que aconteceu, e é por isso que o motivo por trás disto deve ser outro. Se fosse mesmo Xcor e o que ele fez com Wrath, isso teria se resolvido para você, assim como se resolveu para ele.
Tohr expôs as presas.
– Ouça bem o que eu tenho a dizer, porque só vou dizer uma única vez. Você pode ser uma Escolhida, e pode flanar nas suas vestes brancas e sua atitude sagrada o quanto quiser, mas você não faz parte desta guerra. Nunca fez e nunca fará. Portanto, volte para casa e sente-se num banquinho, comendo seu queijinho ou sei lá o que, porque nada do que me disser vai mudar a minha opinião ou alterar o meu curso de ação. Você não é tão importante assim para mim, fêmea, e mais do que isso, este seu papel através do qual você exige respeito não é assim tão significativo no que se refere à sobrevivência da raça.
Uma fúria de alta octanagem percorreu as veias dela.
– Seu misógino fanfarrão. Uau. Será que Autumn tem noção do quanto você sabe ser condescendente? Ou você esconde isso dela só para que ela consiga dormir ao seu lado durante o dia?
– Chame do que quiser. Rotule como achar melhor. Mas entre mime você, só um de nós sabe do que está falando.
Layla piscou uma vez. Depois duas. E então uma terceira vez.
Ela tinha alguma noção de que o caminho que tomaria não seria o melhor. Mas foi ele quem mencionou a palavra “pau” naquele espetáculo.
– Sei como era a sua primeira shellan. – Quando o sangue fugiu do rosto dele, ela seguiu em frente. – Enquanto me coloca numa caixinha por conta do meu par de ovários, você talvez queira considerar, nem que seja por apenas um instante, como Wellsie teria reagido ao saber que você disse o que disse a uma fêmea. Tenho quase certeza de que ela não ficaria impressionada.
Quando as palavras foram absorvidas, o Irmão pareceu inchar diante dos olhos dela, o corpo crescendo em tamanho, em força, em volume até se tornar um monstro letal.
Os punhos de Tohr se cerraram, o rosto de transformou numa máscara da mais absoluta violência. Numa voz que tremia, ele disse:
– Você precisa ir embora. Precisa ir embora agora. Nunca bati numa fêmea antes, e não vou começar esta noite.
– Não tenho medo de você. Não tenho medo de nada. – Ergueu o queixo. – No que se refere a proteger as vidas dos meus filhos e do macho que amo, eu ponho minha vida no caminho dos destinos deles, e se você me surrar até a morte por causa disso, eu me erguerei dos mortos e o amaldiçoarei até que fique louco. Não há nada que possa fazer para mim que me fará recuar. Nada.
Por um instante, o Irmão pareceu tão atordoado que não conseguiu falar. E ela imaginou qual seria o motivo. Pois lá estava ela, enfrentando a mais temida espécie de macho que a raça tinha a oferecer, um assassino treinado e armado e que devia ter uns cem quilos, no mínimo, a mais do que ela... E ela não estava nem tremendo.
Sim, ela pensou. Aquela que sempre se sentira um pouco perdida encontrara seu lugar e sua voz.
E, no fim, as duas coisas eram de um leão.
Tohr meneou a cabeça.
– Você está louca. De verdade... Pirou de vez, sabia. Está disposta a sacrificar seus filhos, sua família escolhida, o seu lar, o seu relacionamento com Qhuinn e Blay, o seu Rei – todos que sempre estiveram ao seu lado – tudo isso por um macho que cometeu um crime de guerra, o qual deve ter sido uma das coisas menos ofensivas que ele já fez nesta vida. Muito bem, então, quer saber o que Wellsie diria sobre isto? Eu te digo. Ela diria que você é uma traidora, uma enganadora, e que jamais deveria voltar a ver aqueles bebês de novo porque a primeira coisa que se faz com as crianças é protegê-las de todo e qualquer mal.
Ok. Estava farta de discutir sobre coisas hipotéticas.
– Estou te avisando agora, Tohrment, você precisa se perguntar o que de fato está fazendo aqui. – Layla meneou a cabeça. – Porque você está se rebelando. Quer falar de traição? Tenho quase certeza de que Wrath voltou para a mansão e disse a Irmandade o que estava fazendo com Xcor e com o Bando de Bastardos, e o que ele esperava conseguir com isso. E você não está seguindo as ordens, está? Isso o torna um traidor também? Eu acho que sim. Talvez, então, eu e você tenhamos que comprar umas pulseirinhas de melhores amigos ou algo assim.
– Vai se foder, Layla. Espero que aproveite a vida com aquele seu cretino. Sério, porque depois deste espetáculo todo, só posso deduzir que você pretende ir ao Antigo País com ele – isso se ele viver tempo suficiente para fazer essa viagem. Pois é, uma fêmea como você só podia mesmo abandonar os filhos e ir embora com o amante. Sabe do que mais? Sem dúvida será a única vez na minha vida em que vou considerar o abandono de menores como uma excelente ideia.
– Fique longe de Xcor.
– Você não está em posição de me dar ordens, fêmea. – Ele gargalhou. – Jesus Cristo. Custo a acreditar que tudo isso seja a respeito de um tipo como aquele. Afinal, quem diabos é aquele merdinha dos infern...
– Ele é a porra do seu irmão – ela estrepitou. – Isso é o que ele é.
CAPÍTULO 54
Existem momentos na vida em que você poderia estar envolvido num acidente de carro sem estar atrás do volante. Ou mesmo numa estrada. Ou em qualquer espécie de veículo automotivo.
Enquanto as palavras de Layla saíam da boca dela e entravam no cérebro de Tohr para serem processadas, ele sentiu como se estivesse girando descontrolado, e sim, houve o choque do impacto quando ele percebeu que ela dissera aquilo de fato. Isso mesmo, ela simplesmente quis dizer aquilo... E sim... ela ainda o encarava.
Ele é a porra do seu irmão.
– Você está mentindo – ele se ouviu dizer.
– Não estou. Está escrito na biblioteca do Santuário. Vá lá e leia.
– Eu já li o meu livro. Não existe menção alguma de um irmão...
– Está no volume do seu pai. Xcor é filho legítimo do Irmão da Adaga Negra Hharm. Assim como você.
Tohr cambaleou até o sofá diante da lareira e despencou sobre as almofadas.
– Não.
– Como já disse, vá lá e leia com seus próprios olhos. E depois processe o fato de que não só você está indo contra as ordens diretas de Wrath, mas também estará matando o seu parente mais próximo.
Ele não soube quanto tempo permaneceu sentado ali. Estava ocupado demais repassando sua antiga vida, antes de ter vindo para o Novo Mundo, procurando qualquer pista, qualquer indício... ou... qualquer coisa.
– Como eu não soube disso? – Ele meneou a cabeça. – Como algo assim foi mantido em segredo?
– Xcor foi rejeitado pela mahmen dele no parto ainda. O pai, o seu pai, fez o mesmo.
– Por causa do lábio.
– Sim. Pelo que eu soube, ele viveu com uma ama-seca que odiava olhar para ele e que o tratou abominavelmente até abandoná-lo. – Houve uma pausa. – Ele me disse que ficava acorrentado do lado de fora de onde morava. Como se fosse um cachorro.
Tohr fechou os olhos.
E como se Layla tivesse percebido a mudança em seu humor, a voz dela ficou menos aguda, menos raivosa.
– Ele não sabe a seu respeito. Até onde sei, ninguém sabe.
Tohr desviou rapidamente os olhos para ela.
– Está escondendo isto dele?
– Não, ele sabe que eu tenho uma informação. Mas disse que não quer saber. Que isso não mudará o passado e não terá impacto algum no seu futuro.
– Isto... não muda o que ele fez.
– Não, mas espero que mude o que você vai fazer.
Tohr se calou. E enquanto olhava para o vazio, foi difícil categorizar as emoções em lotes como choque, tristeza, raiva, lamento. Infernos, será que choque era uma emoção? Merda, ele nem entendia por que sentia alguma coisa. Não tivera uma relação pai/filho estreita com Hharm, então por que descobrir que seu pai tivera outro filho faria alguma diferença? E quanto a Xcor? Não havia nenhuma conexão com ele.
A não ser a proclamação de que ele o mataria.
Mas sobre a qual Layla tinha razão, fora rescindida.
Erguendo a cabeça, concentrou-se na Escolhida. Layla o encarava próxima à porta, o rosto composto como num retrato, apesar de os olhos estarem um pouco brilhantes demais por conta da discussão anterior entre eles.
Da quase luta corpo a corpo.
– Eu sinto muito – ele disse meio que distante. – Pelo que acabou de acontecer entre mim e você.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou me desculpar por quem eu amo. Na verdade, sinto-me grata por este ser o meu destino. Se eu tivesse me apaixonado por outro, eu não teria sido forçada a ser forte assim – e não há nada de errado neste mundo em descobrir a sua verdadeira força interior.
Que assim seja, Tohr pensou.
– Faça o certo, Tohr – ela disse. – Ouviu bem? Acerte esta situação e garanta que Xcor não seja ferido.
– Não posso controlar o mundo inteiro.
– Não, mas pode se controlar. Essa é uma lição que estou aprendendo.
Layla retornou para a casa segura logo em seguida. Ao passar pela porta de correr, fechou-a e aguçou os ouvidos. Xcor ainda não retornara, e isso era bom. Não queria que ele soubesse da sua dedução sobre quem atirara nele, nem que ela confrontara um Irmão a favor dele.
Sem falar na revelação da identidade do pai dele.
Santa Virgem... Hum, Sexual ao Excesso Lassiter... Como queria que Tohr ficasse de boca fechada. Mas ela fez o que tinha que ser feito a fim de garantir um cessar fogo da parte do Irmão.
Um macho que conhecia a dor de perder a shellan e o filho ainda não nascido não mataria um irmão de sangue. Simplesmente não faria isso.
Descendo até o porão, foi até o banheiro pensando em tomar uma chuveirada. Mas parou ao ver-se no reflexo do espelho acima da pia. Ainda trajava as vestes das Escolhidas que vestira depois que Xcor saíra, as dobras brancas tão familiares quanto seus cabelos, quanto o próprio corpo.
Pegando a ponta da faixa, puxou-a e afastou as duas metades, tirando o peso de sobre os ombros e braços.
Ao segurar a veste à frente, pensou nos muitos anos em que vestiu aquele uniforme. Mesmo depois de Phury ter libertado todas elas, ela ainda usara mais as vestes do que roupas normais. Eram convenientes, confortáveis, e acalentavam como uma mantinha ou um bichinho de pelúcia a uma criança.
Também eram um símbolo.
Não só do passado da raça, mas dela própria.
Layla dobrou a roupa com cuidado, respeitosa. Depois a colocou na bancada de mármore e recuou um passo.
Em seu coração, soube que jamais voltaria a vestir aquilo. Haveria outras peças de roupa que a lembraria dessas vestes: vestidos longos, casacos compridos, até mesmo uma coberta sobre os ombros que se arrastasse até os pés.
Mas ela já não era mais uma Escolhida, e não só porque a própria Virgem Escriba já não existia mais.
A questão era que, quando se serve a outra pessoa, quando você desempenha um papel determinado por outro... Você não consegue mais voltar a essa posição depois de descobrir quem verdadeiramente você é.
Ela era uma mahmen. Era uma amante. Era uma fêmea orgulhosa, uma fêmea forte que sabia a diferença entre o certo e o errado, família e desconhecidos, bem e mal. Sobrevivera a dois partos e acabara de enfrentar um Irmão, e seria capaz de enfrentar o Rei caso fosse necessário. Era falível e capaz de se confundir e poderia até se atrapalhar de tempos em tempos.
Mas sobreviveria. Ela era forte assim.
Enfrentando seu olhar através do espelho, olhou para um rosto que parecia ver pela primeira vez. Passara todos aqueles anos no Santuário à espera de ser chamada para desempenhar seu papel como ehros, sua existência então totalmente imposta e ainda assim infundada, visto que não havia Primale algum para ser satisfeito. E depois caiu na Terra, tropeçando e avançando, quando ela e suas irmãs foram libertadas, seguindo nas pontas dos pés no território desconhecido da vida moderna. Aconteceu o cio desesperado com Qhuinn, e depois a ansiedade enquanto os filhos cresciam dentro dela – período em que sua vida foi fendida em duas por causa de Xcor. E depois disso? O parto que quase a matara e agora a agonia da desintegração da sua unidade familiar... E a iminente perda de Xcor.
Ainda assim, estava viva, estava ali. Olhando-se no espelho.
E pela primeira vez na vida, respeitava aquilo que via.
Curvando-se diante do reflexo, disse com suavidade:
– Prazer em conhecê-la.
CAPÍTULO 55
Tchauzinho.
Quando Vishous apagou mais um vídeo no YouTube, concluiu que aquilo era tão fácil quanto atirar em peixes dentro de um barril. E caso fosse mais fácil invadir aquelas contas, só faltava pegar um saco de pipocas e um pacote de Milk Duds de graça pelos seus esforços. Mais um. E... outro.
De certa forma, tinha que agradecer a Jo Early, também conhecida como Damn Stoker, pela eficiência daquilo tudo. A seção dos links dela era um tesouro encontrado de conteúdo com múltiplos destinos postados por uma boa dúzia de pessoas. Então, depois de terminar de varrer o universo do YouTube, ele iria para o Insta e para o Face.
A caixinha de areia de Zuckerberg seria um pouco mais difícil de hackear, pois, como os dois outros, havia contas múltiplas na plataforma, mas encontraria todas elas.
Mais um. E outro...
Caraca, aquele usuário, o vamp9120 era um cara de bastante volume. Muito conteúdo ligado a ele.
Deveria ter ficado mais alerta quanto a esse assunto. Mas, pensando bem, estivera vivendo a vida em vez de sublimar seus problemas com esportes e a Internet.
Quando Bruno Mars apareceu pelo satélite, ele mudou de estação para Shade-45. Não que ele não considerasse “24K” mágico, mas a batida de boate não constava da sua playlist da noite. “All There” de Jeezy/Bankroll Fresh. Perfeito pra cacete. E enquanto a música saltava para fora dos alto-falantes, ele tomou mais um gole da sua Grey Goose com gelo e pensou se não era hora de tirar uns minutos de folga para enrolar o tabaco turco de mais alguns dos seus cigarros. Depois disso, pegaria mais uma garrafa da meia dúzia que pedira para Fritz. E depois voltaria para cá para...
– Mas que porra...? – ladrou.
Inclinando-se na direção da tela, franziu o cenho ao ver a imagem que estava passando ali.
– Espera aí, eu me lembro disso.
Pois é, estava falando sozinho. É isso o que você faz quando o seu colega de quarto, que estava fora da escala assim como você, transava com a fêmea dele no fim do corredor – e você é um coitado sentado numa cadeira de escritório na frente da casa.
Rebobinando o vídeo, V. assistiu de novo enquanto a ação se desenrolava. A filmagem foi feita a partir de um ponto mais alto num dos prédios do centro da cidade, como se o babaca com o celular estivesse olhando para fora do terceiro, talvez quarto andar. O centro da imagem era um beco abaixo – e uma figura que avançava andando.
Na direção de uma saraivada de balas.
A figura era Tohrment. As balas vinham de um assassino agachado no canto oposto. E a cena era absolutamente suicida.
V. não estivera presente para ver em primeira mão a estupidez da coisa, mas claro que ouvira a respeito de múltiplos guerreiros. Aquilo foi na época em que Tohr estivera enlouquecendo, determinado a mostrar a todos o quanto era forte o seu desejo de morrer. Sim, ele estava retribuindo as balas do redutor, a pistola estava erguida e o chumbo saía do cano... Mas estava sem colete, nada para cobri-lo e uns doze órgãos vitais diferentes que poderiam ter sido atingidos.
Puta que o pariu, se ele queria tanto ser alvejado, o único outro modo de garantir que isso aconteceria seria ele mesmo puxar o gatilho na sua direção.
Ainda assim, ele sobreviveu...
– Espera aí... O que é isso?
De repente, Vishous esfregou os olhos. Aproximou-se ainda mais do monitor. Ficou se perguntando se aquele vídeo não teria sido manipulado.
Ajustando o contraste da tela, voltou o vídeo. E uma vez mais.
Alguém estava atirando do prédio do outro lado. Era isso... Havia outra figura no alto de um prédio e ele... sim, ele estava inclinado sobre o beiral atirando no assassino que tentava matar Tohr.
Não havia sido um irmão, isso era certeza. V. saberia distinguir seus guerreiros no meio de uma neblina e meio quilômetro de distância, e seria fácil isolá-los nesta filmagem apesar de a imagem estar granulada. Sem falar que não havia a menor possibilidade de qualquer um deles estar em qualquer outra parte que não no chão ao lado do irmão.
Portanto, quem diabos era aquele ali? Não era um humano. De jeito nenhum um dos ratos sem cauda teria se metido numa situação assim naquela parte da cidade. Não havia nenhum cachorro naquela luta, então por que arriscariam ser presos? Mais provavelmente telefonariam para a polícia e se esconderiam...
Quando seu celular tocou, V. se sobressaltou – e, merda, não conseguia se lembrar da última vez em que isso aconteceu. Ainda mais por conta de um telefonema.
Mas considerando-se no que estava se ocupando...
Observou quando a mão se esticou para pegar o aparelho. Deixara-o voltado para a mesa, e virar a tela demandou certa coragem.
Quando viu quem era, prontamente voltou a operar.
– Meu senhor.
Wrath foi direto ao ponto, o que era um motivo a mais para gostar do cara.
– Preciso de você. Agora.
– Entendido. Onde você está?
– Estarei no átrio em cinco minutos.
– Me diga que não iremos a Disney World e eu estarei lá.
– Não, não está na hora de tirarmos férias.
– Ótimo.
Quando V. desligou, fez menção de apagar o vídeo e desligar tudo, mas algo lhe disse para salvar a merda, então foi o que ele fez. Afinal não tinha problemas de espaço no seu hard-drive.
Maldição, estava aliviado pra cacete por ter algo pra fazer.
Assim como no início da noite, não disse a ninguém que estava saindo, mas desta vez foi porque Butch e Marissa estavam ocupados se ocupando um com o outro. Mas acabou mandando uma mensagem para o seu melhor amigo... E depois pensou em mandar outra para Jane.
Mas, no fim, só guardou o celular, se armou e saiu.
Xcor estava desligando o telefone fixo da casa e começava a tirar a parca emprestada quando Layla subiu do porão.
No instante em que viu a tensão no rosto dela, arrependeu-se.
– Desculpe – disse. – Sei que estou atrasado.
Ela pareceu surpresa, e depois simplesmente meneou a cabeça ao se aproximar dele.
– Estou feliz que tenha voltado. Eu estava preocupada.
Quando ela ergueu os olhos para ele, Xcor odiou a tristeza que viu neles, ainda mais por saber qual era a causa – e não pela primeira vez desde que partira antes, desprezou a si mesmo e a posição em que a colocara.
– Venha cá – ele sussurrou ao atraí-la para junto de si.
Aninhando-a em seu peito, junto ao coração, apoiou o queixo no alto da cabeça dela. E teria ficado contente em ficar assim para sempre, mas havia coisas que precisava lhe contar.
– Meu amor – disse ele –, Wrath está...
Nessa mesma hora, a porta de correr se abriu e uma lufada de vento frio invadiu a pequena cozinha. O Rei Cego foi o primeiro a passar por ela, e Vishous o seguiu de perto.
– Você telefonou. – Wrath disse secamente. – Olá, Escolhida.
– Apenas Layla, por favor. – Quando ela disse isso, todos a fitaram.
– O quê? – o Rei perguntou.
– Sou apenas Layla, por favor, meu senhor.
O Rei deu de ombros.
– O que preferir. Então, Xcor, tem uma resposta para mim?
– Sim – Xcor olhou para Vishous, que observava cada movimento que ele fazia com aqueles seus olhos diamantinos. – E temo que não gostará dela.
– Eles disseram não, hum. Pena. – Agora o Rei olhou para o Irmão. – Acho que isso quer dizer que vamos para a guerra.
Isso foi enunciado com tranquilidade, como se não resultasse em nenhuma consequência, e Xcor teve que respeitar essa atitude. Guerreiros lutavam. Era para isso que foram criados e treinados. Se a Irmandade acreditava que um conflito com um grupo de cinco soldados tinha alguma importância, eles precisavam aposentar suas adagas.
– Não – Xcor interveio –, eles não disseram não. Mas não prestarão juramento de fidelidade a você.
Vishous se pronunciou, a voz saindo baixa e agressiva.
– Que porra isso quer dizer?
Xcor se dirigiu a Wrath.
– Eles juraram fidelidade a mim. Eu jurei a você. Eles o seguirão, mas apenas porque é aí que depositei a minha fidelidade. Eles não serão liderados por ninguém mais além de mim. É assim que vai ser.
– Não é bom o bastante – o Irmão Vishous estrepitou. – Nem perto disso, babaca.
Xcor tirou a luva e mostrou a palma.
– Foi um juramento de sangue. E aqueles machos morrerão por você, Wrath. Seguindo as minhas ordens.
– Isso é verdade – Vishous ladrou. – Quando nós os matarm...
– Basta – Wrath o interrompeu.
Houve um silêncio tenso, e Xcor conseguia sentir Layla ficar tensa ao seu lado. No entanto, não tentaria pedir que ela saísse. Ela não se afastaria dele assim como seus soldados não o fariam.
Parado diante do Rei, Xcor enfrentou o olhar direto dele, mesmo sabendo que o macho era cego. De fato, não tinha nada a esconder, nenhuma disputa naquele instante, nenhum subterfúgio nem segundas intenções na manga. E isto estava bem assim, pouco importando o resultado desta noite ou de qualquer outra. Não temia a morte; Bloodletter o ensinara isso. Também descobrira o que era o amor, e ela estava bem ao seu lado. Portanto, estava preparado para ir adiante com determinação tranquila, concordando com um destino que estava fora do seu controle.
A paz era isso, então, pensou ao retirar a outra luva. Quando estendeu a mão para segurar a de Layla, pareceu-lhe adequado que não fosse a sua mão da adaga.
– Acredita nisso – Wrath inquiriu. – Com toda franqueza.
– Sim. Estive numa guerra com esses meus guerreiros. Eles me seguiram através do oceano...
– E estão preparados para segui-lo de volta para lá? – Vishous murmurou. – Em sacos mortuários?
– Sim, estão. – Xcor olhou para o Irmão. – Mas eles não estão em guerra com você se eu não estiver.
Wrath cruzou os braços diante do peito, e Xcor teve que respeitar o tamanho e a musculatura daquele macho. Ele era enorme e letal, ainda que possuísse um cérebro civilizado.
Xcor acreditou que ele entenderia o sentido daquela proposta.
E, por certo, um momento depois o Rei assentiu uma vez.
– Que seja – Wrath disse repetindo o aceno. – Isso é bom o bastante para mim...
– Tá de brincadeira, porra!
A mão do Rei se projetou tão rapidamente que os olhos mal conseguiram acompanhar o movimento e, de alguma forma, mesmo sem a visão, ele conseguiu acertar a trajetória, agarrando o pescoço enorme do seu guerreiro. Nem olhou para Vishous, permanecendo atento a Xcor.
Em reação, Vishous não se defendeu, mesmo tento que se esforçar para respirar, com o queixo coberto pelo cavanhaque caindo.
– Você não adora quando as pessoas conhecem os seus lugares... – Wrath disse para Xcor com secura. – Quando eles entendem que existem momentos em que precisam ficar de bico fechado.
Xcor teve que sorrir. Wrath e ele eram bem parecidos em alguns pontos, não eram?
– Sim, meu senhor – ele murmurou.
Wrath abaixou a mão.
– Como eu dizia, isso basta para mim. Mas, como pode ver, meus rapazes precisarão de uma prova maior desse arranjo. – O Rei tocou a lateral do nariz. – Eu sinto o seu cheiro. Sei que acredita nisso, e, deixando de lado nossos conflitos passados, não creio que você seja uma idiota do cacete – e tampouco acredito, nem por um instante, que você colocaria aqueles seus machos num caminho perigoso.
– Ele fez isso uma vez – Vishous interrompeu com escárnio. – Foi assim que Throe acabou conosco.
– Mas parece que ele se livrou do certo.
Xcor assentiu.
– Exato. Motivo pelo qual o alertei a respeito dele.
Wrath inclinou a cabeça.
– Muito agradecido por isso. E lidaremos com ele depois que concluirmos nosso acordo com o seu pessoal.
– Você não vai ter nenhum problema com isso, vai? – Vishous perguntou a Xcor.
– Não. – Ele deu de ombros. – Aquele macho seguiu seu próprio caminho, que é incompatível com o seu, e, portanto com o meu. Como escolherem resolver a questão, isso é decisão sua.
– Está acertado, então. – Wrath sorriu, revelando as presas impressionantes. – Mas, como eu dizia, os meus rapazes vão precisar de provas. Portanto, teremos uma boa e velha cerimônia de juramento com testemunhas.
– Pensei que faria isso um a um – Vishous disse baixo, ao mesmo tempo em que se afastava do alcance das garras do Rei.
– O Bando de Bastardos não nos atacará. – Wrath meneou a cabeça. – Isso não vai acontecer. Ele tem as rédeas deles, sinto esse poder nele. Um macho como ele não fica impassível sem um bom motivo, não é verdade, Xcor?
– Exato. Eles não levantarão suas armas contra qualquer um dos Irmãos. Eu os reunirei amanhã à meia-noite e os levarei até você onde quiser. Não pode ser antes do que isso, porém, pois não tenho como localizá-los até essa hora. Estamos sem nos comunicar para a segurança deles para o caso – relanceou para Vishous – de algo sair errado. Você compreende.
Wrath deu uma risada de leve.
– Sim, entendo. Então, está acertado...
– E quanto à sua segurança, Xcor? – Layla disse com raiva. – Como você ficará seguro?
Wrath deu conta dessa resposta, falando com suavidade:
– Ele ficará bem, não precisa se preoc...
Layla se virou para Xcor.
– Por que não conta a ele como foi alvejado ontem à noite? E por quem.
Quando sua fêmea interrompeu o monarca, Xcor não mudou de expressão deliberadamente.
– Eu já lhe disse, meu amor, foi um redutor...
– Não, não foi. – Os olhos dela se viraram para Wrath. – Atiraram nele ontem à noite.
– Não – Xcor rebateu ao mesmo tempo em que apertava a mão dela, tentando silenciá-la. – Não foi nada além de um assassino.
Do lado oposto da cozinha organizada, as sobrancelhas de Wrath se abaixaram por trás dos óculos escuros, um frio permeando o ar. E, então, ele disse:
– Vou lhe perguntar isso uma vez, portanto é melhor ser honesto, cacete. Algum dos meus machos apontou uma arma para você desde que você jurou lealdade a mim?
Xcor enfrentou o olhar de Wrath e projetou confiança.
– Não, não atiraram.
A esta altura, ele agarrava a mão de Layla com tanta força que ele tinha certeza de que devia estar machucando-a, por isso afrouxou a pegada. Mas rezou para que ela ficasse calada.
As narinas de Wrath inflaram. E depois ele inclinou a cabeça uma vez.
– Que assim seja. Meia-noite amanhã. Vocês nos encontrarão no centro, na Décima Quinta com a Market. Há um depósito abandonado ali. Não há como errar.
– Chegaremos lá meia-noite e quinze. Eu os encontrarei à meia-noite e, em seguida, iremos até você.
Wrath se aproximou e levantou a mão da adaga.
– Você e seus machos têm a minha palavra. Desde que eles não ofereçam nenhum ameaça aos meus rapazes, ninguém sairá machucado.
Xcor segurou o que lhe era oferecido e apertou.
– Até amanhã – ele disse ao Rei no Antigo Idioma.
– Até amanhã – Wrath repetiu.
Quando Wrath e Vishous saíram, passando pelas portas corrediças, a Xcor só restava ter esperanças de que a promessa que o Rei lhe dera pudesse ser mantida.
– Eles vão te matar – Layla disse numa voz morta. – Você não sobreviverá a esse encontro.
Xcor olhou para ela. Odiou o medo no rosto pálido dela, o tremor em seu corpo. Na quietude da casa segura, quis mentir para ela. Queria saber como ela descobrira a verdade. Queria... ficar com ela para sempre.
Mas o destino já havia decidido essa última parte.
Estendendo a mão da paz, não a da guerra, afagou-lhe o rosto macio. Esfregou o lábio inferior com o polegar. Acariciou a veia vital que percorria a lateral do pescoço dela.
– Ele não pode garantir a sua segurança. – Com uma imprecação desesperada, ela virou o rosto contra a palma dele e beijou a pele calejada. – Não no que se refere a Tohrment e a Qhuinn. E você bem sabe disso.
– Como? – O ar escapou por entre os lábios dele. – Como soube?
– Isso importa?
Não, ele imaginava que não importava.
– Por que não disse alguma coisa? – ela suplicou. – Por que não contou a Wrath?
– Porque, no fim das contas, isso não é relevante. Segurança em época de conflito é uma ilusão que só pode ser solicitada, nunca prometida. Tanto ele quanto eu sabemos disso. Se um deles decidir resolver um problema inexistente de modo independente, ninguém conseguirá impedir isso. Livre arbítrio é uma liberdade universal, assim como a gravidade.
– Mas não é justo. E não é certo.
– E é por isso que eu tenho que me proteger e não esperar que ninguém, nem o poderoso Rei Cego, faça isso por mim.
– Xcor, você precisa...
– Shhh... – disse ao apoiar o indicador nos lábios dela. – Chega de falar da guerra. Existem coisas melhores que podemos fazer com o nosso tempo.
Quando a trouxe para junto de si, ele rolou a pelve, dando provas da sua excitação, apesar de ela, sem dúvida, já sentir o cheiro no ar.
– Deixe-me entrar em você – ele disse ao beijá-la. – Preciso de você agora.
Ela não respondeu de imediato, e ele lhe deu o tempo de que ela precisava para diferençar o que era esperança do que era realidade, o que era um preceito e o que era um fato. Ela era uma fêmea inteligente, pouco versada na arte da guerra, mas também não era ingênua.
E, ao fim da noite seguinte, ela saberia que quer ele vivesse ou morresse, o futuro deles não seria juntos. Se ele sobrevivesse, partiria para o Antigo País e ela permaneceria em Caldwell. Caso ele morresse? Bem isso estaria resolvido de vez, provavelmente no Dhunhd.
– Eu te amo – ela sussurrou quando finalmente inclinou a cabeça para trás para receber mais um beijo. – Sempre.
Xcor afagou-lhe os cabelos loiros para trás.
– Você é mais do que eu mereço e tudo o que eu sempre quis.
Dito isso, ele selou as bocas e tentou se esquecer de que o tempo estava passando para eles. No entanto, isso era muito difícil.
E sabia que o mesmo acontecia com ela.
CAPÍTULO 56
Quando Vishous e Wrath regressaram ao pátio da mansão da Irmandade, V. estava sacudindo a cabeça. Ah, isso seria muito divertido. Bem parecido a uma estripação enquanto ainda se está vivo.
O Rei girou sobre os calcanhares e estava tão furioso que fumaça saía por suas orelhas.
– Diga àquele filho da puta para ir até o meu escritório.
– Quer todos ou só...
– Tohrment. Vá buscar aquele babaca agora e leve-o até mim! Que porra que ele estava pensando?
Wrath deu as costas e seguiu para a escada de pedras que levava até a entrada da mansão, evidentemente tão puto que até se esquecera de que não conseguia enxergar. Bem, por um segundo, V. se viu tentado a deixar o senhor Personalidade aprender do modo mais difícil que ainda estava cego.
Mas acabou desistindo, adiantando-se e pegando o braço do Rei.
– Cala a boca – ele disse antes que Wrath pudesse se afastar. – Quer um ferimento na cabeça para completar essa merda?
Foi o mesmo que tentar fazer amizade com gelo seco. O humor do Rei estava tão ruim que o ar ao redor dele ficou ainda mais ártico. Mas, pelo menos, V. conseguiu conduzir o cara até a porta e a entrada da mansão. Mas sabia que seria melhor soltá-lo depois disso.
Soltando o bíceps grosso, pegou o celular e ligou para o número de Tohr enquanto Wrath atravessava o mosaico da macieira em flor com passos duros, fiando-se na memória e contando as passadas até chegar ao primeiro degrau...
Um toque soou. E não só no ouvido de V.
O som vinha do segundo andar.
Vishous abaixou o aparelho enquanto Wrath galgava os degraus dois de cada vez.
– Bem na hora – V. murmurou ao se apressar para alcançá-lo.
E, dito e feito, Tohrment estava sentado numa das cadeiras do lado de fora do escritório de Wrath, como se tivesse previsto o futuro e soubesse que seria punido por ter atirado em Xcor. Evidentemente, o cara não estava se sentindo muito bem com a situação, embora fosse difícil precisar se o motivo era por se sentir mal por ter desobedecido uma ordem direta do rei ou porque seria recriminado em seguida. Em todo caso, a cabeça do irmão estava pensa; os ombros, curvados; o corpo, contido de modo pouco usual.
– Não preciso nem atender ao telefone, irmão – o cara disse ao virar o celular. – Estou bem aqui.
Wrath revelou as presas e sibilou:
– Entre. Não vamos discutir esta merda em público.
Quando Tohr se pôs de pé e obedeceu a ordem, V. não pediu permissão para se juntar aos dois. Entrou direto atrás de Wrath, fechou as portas e se recostou nelas, segurando as maçanetas.
Wrath não desperdiçou nem um segundo.
– Você está fora.
Tohr sacudiu a cabeça.
– O quê?
– Você está fora da Irmandade. Fora. Estou te expulsando, valendo a partir de agora.
Poooorra. Não foi bem assim que V. visualizou a situação.
Porque, vejam só, Tohr era a cola que unia a Irmandade. A não ser pelo período em que se afastou após Wellsie ter sido assassinada, ele era o firme, o estável, a força tranquilizadora que mantinha os caras sob controle.
– Você, vê se cala a boca.
V. precisou de um minuto para perceber que Wrath se dirigia a ele. Não teve tempo para responder, porque Tohr assumiu o controle do microfone.
– Ele está certo, V. Eu desobedeci a uma ordem direta. Atirei em Xcor na noite passada quando o vi na cidade. É preciso que haja consequências.
Wrath pareceu um pouco surpreso com a pronta aceitação.
Tohr só deu de ombros.
– Foi a coisa errada a fazer. Foi algo em conflito direto com a sua posição e com o que almeja conseguir. Imagino que ser um traidor seja um traço da família.
– O quê? – V. perguntou de pronto.
O irmão dispensou a pergunta com um gesto.
– Não importa. Autumn e eu partirem amanhã. A menos que queira que partamos agora.
Wrath franziu o cenho. E depois foi até a escrivaninha, desviando-se de sofás, encontrou o trono.
Ao se acomodar no assento do pai, pareceu absolutamente exausto, e, como era de se esperar, arrancou os óculos e esfregou os olhos.
– Por quê? – ele perguntou. – Que porra é essa contra Xcor? Por que não consegue deixar isso de lado?
– Farei isso agora. É só o que importa. Não tenho... mais nenhum interesse em matá-lo.
– O que mudou?
Tohr só meneou a cabeça.
– Nada de mais. Considerando-se tudo.
Algo tiniu nos recessos da mente de V., mas ele não conseguiu determinar o que era, e isso era irritante pra cacete. Mas estava cansado, e não só porque seu corpo estava exaurido pela privação de sono.
Wrath se sentou mais à frente.
– Preste atenção. A guerra está enfraquecendo, estamos muito próximos de acabar com ela. Não quero a distração de vocês. Não quero que vocês, cabeças duras, persigam um bando de cinco babacas só porque eles tinham aspirações políticas que incluíam a minha cabeça numa bandeja. Xcor sabe onde vivemos. E não fez merda nenhuma a esse repeito. Ficou com Layla nas últimas quarenta e oito horas e eu sinto a ligação entre eles. Ele também está comprometido com esta paz negociada e em sair de Caldwell de uma vez por todas. Não existe mais nenhum conflito e não é só porque eu estou dizendo isso.
– Eu sei. – Tohr se aproximou da lareira e ficou olhando para as chamas. – Eu... Hum... Minha Wellsie teria completado duzentos e vinte e seis anos há três noites. O meu filho que ela carregava no ventre estaria com dois e meio. Acho que isso me afetou.
– Porra – o Rei inspirou. – Eu tinha esquecido.
O irmão deu de ombros.
– Isso não me isenta das minhas ações. O que fiz não está nem a minha altura nem à sua. Mas vou lhe dizer uma coisa... – Ele pigarreou. – Já faz um tempo que venho querendo vingança, e eu a encontrei num marco inadequado. O verdadeiro alvo da minha raiva é o destino, e isso não é nada que eu possa esfaquear nem alvejar. É só que... em algumas noites... isso é mais difícil de aceitar do que em outras.
Wrath se recostou no trono e deixou a cabeça rolar contra o encosto alto de madeira entalhada. Depois de um momento, apontou para a porta.
– Deixem-me. Vocês dois. Meu crânio está prestes a explodir e não quero receber a conta da lavanderia por causa das suas malditas camisas.
Tohr se curvou.
– Como preferir, meu senhor. E Autumn e eu partiremos...
– Sem querer ofender – Wrath murmurou –, mas dá pra calar a boca? Só me deixa em paz. Eu te vejo no começo da noite de amanhã. E vê se traz o resto dos irmãos com você. Vai. Tchau.
Do lado de fora do escritório do Rei, Tohr parou quando V. fechou as portas e o encarou.
– Para sua informação – o macho disse –, Xcor negou.
Tohr franziu o cenho.
– Como que é?
V. acendeu um cigarro e exalou a fumaça como se ela fosse uma imprecação.
– Eu estava lá quando Wrath perguntou quem atirou nele, e ele se recusou a te entregar. Ele sabe que foi você?
– Sabe.
– Quem mais estava com você? – Quando Tohr não respondeu de imediato, o irmão se inclinou na sua direção e apontou com o cigarro. – Eu sabia. Diga a Qhuinn para parar de bobeira, ou eu o farei. Não tenho nenhuma simpatia por Xcor, estou pouco me fodendo com ele e o com o Bando de Bastardos. Mate-os, deixe-os viver, não estou nem aí. Mas Wrath tem razão. Lutamos há mil anos para conseguir meter a Profecia do Dhestroyer no cu de Ômega, e a hora está chegando. Nenhuma distração, entendido. Chega de nhe-nhe-nhém.
– Não tenho como controlar Qhuinn. Ninguém consegue. Todos nós vimos isso umas duas noites atrás, não foi?
– O filho da mãe. Ele tem que aprender a se controlar.
Enquanto V. olhava para o corredor como se tivesse a intenção de ir atrás do cara, Tohr se colocou no caminho dele.
– Eu falo com ele. Posso estar fora da Irmandade, mas o seu jeito de falar deixa muito a desejar.
– Não sou tão ruim assim.
– Comparado a uma serra elétrica, isso até pode ser verdade. Mas não precisamos de mais cabeças quentes descontroladas por enquanto. Todo mundo pode acabar indo pelos ares.
V. usou a ponta do cigarro para apontar.
– Dá um jeito nessa merda, Tohr. Ou eu dou.
– Você é a segunda pessoa que me diz isso esta noite.
– Então, bota a mão na massa.
Dito isso, V. saiu e desceu pela escadaria como se tivesse uma missão – que envolveria esganar alguém que o aborreceu.
Quando Tohr teve a certeza de que não havia ninguém por perto, desceu o corredor das estátuas e foi em frente, passando pelas figuras humanas em poses de guerra. Diante da terceira porta, bateu baixinho, e quando ouviu uma resposta, olhou para os dois lados de novo.
Esgueirando-se para o quarto de Qhuinn – ou melhor, aquele em que Layla ficara –, fechou a porta rapidamente e quase a trancou.
Qhuinn estava próximo aos berços, fazendo alguma coisa com a mamadeira.
– Ei – ele disse sem olhar.
– Precisamos conversar.
– Precisamos? – O irmão o fitou. – Você o matou?
– Não, mas acabei de ser expulso da Irmandade.
Qhuinn se endireitou e se virou.
– Como que é?
– Wrath tem o direito de fazer isso.
– Espera aí, quer dizer que Xcor foi correndo até o Rei que nem um covarde e...
– Ele mentiu. Por você e por mim. Xcor se recusou a nos entregar. Recusou-se a contar a Wrath o que nós fizemos.
– Ora, ora, se ele é um herói da porra. – Qhuinn franziu o cenho. – Mas se ele não abriu o bico, quem fez isso?
– Layla descobriu. Ela me procurou – viu que ele havia sido alvejado e não acreditou quando ele disse que foram assassinos. Não neguei.
– Ah, bem, o protótipo da Escolhida. – Qhuinn voltou a se concentrar nos filhos. – Que fiel que ela é, não? Sempre apoiando o homem dela. Uma pena que esse tipo de lealdade não seja direcionado para nós.
Tohr meneou a cabeça.
– Não faça isso, Qhuinn. Eu posso estar fora, mas você vai estar lá amanhã.
– Amanhã à noite? O que vai acontecer?
– A Irmandade e o Bando de Bastardos vão se encontrar. Vai ficar sabendo sobre isso logo depois do anoitecer amanhã. Wrath vai convocar os irmãos e levá-los para o encontro com eles para que possam testemunhar o juramento de fidelidade de Xcor.
– Que diabos eu tenho a ver com isso? – O irmão levou a mamadeira para o banheiro e voltou enxugando as mãos numa toalha. – Os garotos de Xcor querem zoar com o bastardo, isso não é da minha conta.
Tohr meneou a cabeça e sentiu como se estivesse entrando em sintonia com o crânio quase explodido de Wrath: em trinta minutos, quase atacou uma fêmea pela primeira vez na vida, descobriu a existência de um irmão desconhecido e foi expulso da Irmandade.
Era coisa demais para assimilar, coisa demais para processar.
Só o que ele queria era encontrar Autumn e conversar com ela, dizendo o quanto lamentava... Mas, graças à sua péssima decisão, eles teriam que encontrar outro lugar para morar.
Jesus, essa era mesmo a sua vida?
– Não faça isso – ele se ouviu dizer. – Por favor, eu desisti disso. Você também precisa.
– Eu não tenho que fazer merda nenhuma. – O irmão apontou para os berços. – A não ser cuidar destes dois e tentar convencer Blay a voltar para casa para ficar comigo e com eles. Não devo nada a ninguém.
– Inclusive Wrath? E a Irmandade?
Quando Qhuinn se calou, Tohr apontou para o canto onde estiveram os buracos das balas, a incontestável prova do temperamento de Qhuinn já tendo sido coberta e repintada.
– Todos andaram perdendo a cabeça por aqui recentemente. E é isso o que acontece quando as emoções correm à solta e a lógica sai voando pela janela, e o stress governa a noite. Você tem razão, tem que cuidar dessas crianças. Portanto, faça isso sem acabar se matando. Se atirar em Xcor antes, durante ou depois daquele encontro, pessoas morrerão. Talvez a maioria seja de Bastardos, talvez você até consiga abater Xcor, mas coletes a prova de balas só protegem o coração, e se quer cuidar dessas crianças, faça isso voltando para casa ao amanhecer. Porque eu te garanto que nós também perderemos alguns do nosso lado, e uma dessas perdas pode muito bem ser você.
Qhuinn se virou para os berços, e lhe pareceu impróprio, inadequado, bem ruim mesmo, terem aquele tipo de conversa perto daqueles inocentes.
– Não estamos falando de um punhado de civis – Tohr observou. – Não vai encontrar os Bastardos numa sala de estar amanhã à noite, para trocar alguns documentos. Vou repetir, pessoas morrerão se você tomar o assunto em suas mãos. E se isso acontecer, e irá acontecer, você vai ter que fitar os olhos dos seus filhos quando eles estiverem mais velhos com essas mortes na sua consciência. Você transformará o pai deles num assassino, e vai colocar Wrath numa posição horrível – mais uma vez –, desde que vocês dois sobrevivam. Pense nisso. Pergunte-se se a vingança vale esse preço.
Tohr se virou para sair, mas logo parou.
– Quase fui pai no passado. Esse era um emprego que eu queria muito ter, que tive esperanças de ter. Eu faria quase qualquer coisa para estar no seu lugar, perto dessas crianças. Sacrifício é algo relativo... E você tem muito a perder por conta de um macho que, no fim das contas, não significa muita coisa na sua vida. Não banque um babaca agora, meu irmão, não faça isso.
CAPÍTULO 57
– Bem, acredito que isso resolva a situação, certo?
Enquanto Throe pairava acima da cama ensanguentada, olhou para seu balão, que era como passara a pensar na sombra, e sorriu.
– Você é muito eficiente, não?
A coisa oscilou um pouco a partir de seu ponto de fixação, acima do tapete, como se estivesse satisfeito com o elogio. Ou talvez não. Mas o que isso importava? A sombra não negara seu pedido e matara o companheiro de sua amante e fora muito eficiente: a entidade prontamente pegara a adaga que Throe lhe dera, seguira-o pelo corredor como um cão atrás de seu mestre; depois Throe abrira a porta e apontara para o velho que estava acomodado contra a cabeceira da cama, e a morte acontecera mais rápido do que uma batida de coração.
Que era algo que aquele hellren já não tinha mais.
– O que você fez!
Um grito soou atrás dele. Throe virou de frente nos seus chinelos de veludo.
– Ah, olá, minha querida. Levantou cedo.
Antes que sua amante pudesse responder, Throe avançou e a prendeu pelo pescoço. Quando começou a apertar, os olhos dela esbugalharam e aquela boca talentosa dela se escancarou num grito mudo.
Arrastando-a para dentro do quarto, chutou a porta para fechá-la enquanto ela agarrava sua mão com as unhas e arfava como um peixe fora d’água.
A entidade se aproximou de lado como se estivesse perguntando algo, e Throe sorriu para ela de novo.
– Ah, quanta gentileza sua. Mas deixe que eu cuide disto.
Segurando-a agora pelo rosto, ele deu um puxão rápido e partiu-lhe o pescoço. Depois, para evitar qualquer barulho, conduziu-a gentilmente até o chão atapetado.
Pairando acima dela, percebeu que ela vestia aquele baby-doll de que ele tanto gostava, aquele com corpete de renda e saiazinha larga que chegava até abaixo da calcinha.
– Uma pena, de verdade. Ela era bem divertida.
Throe se aprumou dentro do roupão de seda. Acabara perdendo um dos chinelos, mas solucionou o problema simplesmente passando por cima do corpo da fêmea que já esfriava e enfiou o pé no devido lugar de novo.
– Muito bem, isto está ótimo. – Olhou ao redor da suíte muito bem decorada. – Sabe, acho que vou me mudar para cá. Assim que nos livrarmos desse colchão.
Só que nessa hora lembrou-se dos doggens. A casa devia ter pelo menos uns catorze.
Precisariam de algum tempo para eliminar a todos, e isso parecia um desperdício. Bons criados eram difíceis de ser encontrar.
E também havia as questões financeiras e de segurança com as quais precisaria lidar. Felizmente, já vinha trabalhando no roubo de identidade há algumas semanas, tendo invadido o computador do hellren no andar de baixo, inserindo rastreadores, conseguindo acesso às contas, dados e autorizações pouco a pouco.
Por um instante, considerou a ideia de dar à criadagem a opção de ficarem. Mas, em seguida, olhou para a bagunça sobre o colchão. Se sua sombra amiga podia matar assim?
Tinha o palpite de que ela poderia operar um aspirador de pó.
No entanto, necessitaria de mais delas. Throe consultara O Livro para ver se existia algum tipo de reprodução através do qual multiplicaria as sombras, mas ao que tudo levava a crer, se Throe desejava um exército, teria de criá-lo um a um. Do jeito mais difícil.
Muito inconveniente. E sua mão ainda estava se recuperando do ferimento feito com a adaga.
Precisaria de mais ingredientes. E tempo. E...
Ah, mas parecia muito severo, de fato improdutivo, desesperar-se por nada. Tinha dinheiro. Tinha um lar do qual gostava. E dispunha de uma arma que era melhor do que qualquer pistola, adaga ou punho.
– O meu destino – ele murmurou para o cômodo silencioso – está ao meu alcance.
Throe levantou as palmas – e quase as esfregou –, mas se conteve. Ninguém gostaria de se transformar na caricatura de um vilão. Não era adequado.
– Venha – disse ao seu balão. – Preciso me trocar e você me ajudará. E depois teremos que sair.
Testar seu brinquedinho contra um redutor seria importante e não havia motivos para esperar. A coisa se saíra muito bem agora, mas fora contra um velhote quase incapacitado. Se iria enfrentar os Irmãos e os lutadores de Ômega, até mesmo o Bando de Bastardos, teria que atingir o seu maior desempenho.
Ah, como detestava esses atrasos. Um bom estrategista, contudo, reconhecia a necessidade de se fazer as tarefas segundo uma ordem.
Como numa partida de xadrez, um movimento de cada vez.
– Venha – disse num tom entediado para a sombra. – Primeiro temos que limpar a casa. E preciso insistir para que o faça com certo comedimento desta vez. Não quero que estrague as obras de arte, nem os estofados. Além disso, toda a bagunça que fizer, você mesmo terá que limpar depois.
Dito isso, os dois saíram juntos em direção às escadas e aos doggens que estariam realizando suas tarefas no andar de baixo.
As cartas de demissão a serem entregues agora doeriam bastante.
CAPÍTULO 58
Quando o sol se pôs e a escuridão caiu sobre Caldwell, Layla se espreguiçou na cama que ela e Xcor usaram tão gloriosamente durante o dia. Às suas costas, o guerreiro estava aninhado nela como se fosse sua pele, o corpo procurando o seu mesmo durante o sono.
– Não pense nisso, meu amor – ele murmurou.
Virando-se no abraço dele, ela acariciou seus cabelos. Seu rosto. Seus ombros.
– Como é que você sempre sabe?
Ele não respondeu a isso, apenas a beijou no pescoço.
– Me diga uma coisa.
– O quê?
– Se eu fosse outro macho, se meu rosto fosse diferente, se o curso da minha vida tivesse sido outro, você...
– Eu o quê?
Demorou um pouco para ele lhe perguntar.
– Você teria se vinculado a mim adequadamente? E teria morado comigo sob o mesmo teto... e teria meus filhos, educando-os comigo? Se eu fosse um fazendeiro ou um sapateiro, um treinador de cavalos ou um açougueiro, você teria ficado ao meu lado e seria minha shellan?
Ela tocou o lábio superior dele.
– Eu já sou sua shellan agora.
Quando ele exalou, fechou os olhos.
– Eu queria que tudo fosse diferente. Eu queria que naquela noite, há tanto tempo, eu tivesse escolhido outro acampamento, outra floresta na qual entrar.
– Eu não. Pois caso você não tivesse ido até lá, onde quer que isso tenha sido, nós nunca teríamos nos conhecido.
– Talvez tivesse sido melhor assim.
– Não – ela disse com firmeza. – Tudo é como deveria ser.
A não ser pela parte em que ele teria que deixá-la.
– Talvez no futuro – ela sussurrou –, quando Lyric e Rhamp estiverem grandes, cuidando das suas vidas, eu possa ir me encontrar com você? Depois das transições deles e...
– Eles sempre precisarão da mahmen deles. E a sua vida sempre será aqui no Novo Mundo.
Mesmo enquanto queria debater isso com ele, ela sabia que ele estava certo. Décadas se passariam até que seus filhos fossem independentes de verdade, e quem haveria de saber em que pé estaria a guerra àquela altura? Se Rhamp seguisse os passos do pai e se tornasse um Irmão, Layla não sossegaria enquanto ele estivesse no campo de batalha mesmo estando em Caldwell. Do outro lado do oceano? Sequer conseguia imaginar isso.
E se Lyric também quisesse lutar? Havia fêmeas no programa do centro de treinamento. Lyric podia muito bem resolver empunhar uma adaga.
Teria assim dois filhos na guerra.
– Há mérito em não lutar contra aquilo que não pode ser alterado – ele disse ao beijar a clavícula dela. – Esqueça. Deixe-me partir quando a hora chegar.
– Mas talvez exista outra solução. – Ainda que não conseguisse pensar qual seria ela. – E se...
– Qhuinn jamais me aceitará perto das crianças. Mesmo que a Irmandade e o seu Rei aceitem a mim e aos meus machos, o pai do seu filho e da sua filha jamais quererá que eu os veja, e se eu não estiver na sua vida, a situação entre vocês dois poderá melhorar. Pelo menos é isso o que espero e pelo qual rezo, que um dia ele a aceite de volta à vida dele.
Mas isso jamais aconteceria, ela pensou. A fúria de Qhuinn desconhecia limites. Certas coisas, como tinta num pergaminho, eram indeléveis.
– Faça amor comigo? – ela sussurrou.
Com uma agora conhecida descarga de energia, Xcor se moveu para cima dela, os corpos tão à vontade a essa altura que o sexo dele entrou no dela sem necessitar de nenhum ajuste, apenas deslizando para seu interior.
Quando ele começou a penetrá-la repetidamente, ela pensou no sexo partilhado durante as horas do dia. Seu treinamento como ehros surgira à tona de maneiras que o chocaram, excitaram e surpreenderam – e ele não reclamou. Mas isso não significa que aquele fosse um momento de felicidade. Para ambos, as horas foram pontuadas por desespero, uma pressa nos toques, nos beijos, nas penetrações, como alguém que come apressado, pois seu prato lhe será tirado da frente.
No entanto, quando agora Xcor encontrou seu ritmo e ela o acompanhou, a relação foi diferente. Aquilo não se tratava de sexo apenas.
Aquilo era o mais próximo que duas almas podiam se unir, as partes dos corpos secundárias em relação à união dos corações.
Pouco antes de chegar ao clímax, ela lhe sussurrou ao ouvido:
– Você ficará seguro lá esta noite?
Quando ele não respondeu, ela ficou sem saber se foi pelo início do orgasmo dele... Ou porque ele sabia que não poderia lhe prometer isso, e não queria mentir para ela.
No Buraco, Vishous estava reclinado na sua cadeira e encarava a imagem no monitor. A combinação dos pixels, os escuros e os claros, os cinzas, os verdes e os azuis demandaram bem umas oito horas para serem isolados e processados até ele chegar ao ponto de ver o que estava vendo.
E enquanto olhava para o rosto do atirador misterioso, aquele que salvara a vida de Tohr naquele beco há algum tempo, só o que ele conseguia fazer era balançar a cabeça.
– Estranho pra cacete.
As feições estavam bastante claras agora, mas aquele lábio distorcido de Xcor foi o maior indicador. Sem aquilo, ele teria que se esforçar para descobrir quem era, visto que todos os guerreiros de cabelos escuros, sobrancelhas grossas e maxilares firmes eram todos parecidos, como um punhado de moedas iguais numa gaveta de meias.
Basicamente indistinguíveis.
Mas não, acrescente aquele lábio e você descobre um traidor. Que, no fim, já não era tão traidor assim...
– Oi.
Quando V. ouviu uma voz conhecia, levantou a cabeça. Jane estava parada diante dele, o jaleco todo amarrotado, os Crocs manchados de sangue, os cabelos todos espetados como se estivessem tentando fugir do cérebro dela. Ela parecia exausta, acabada, completamente exaurida.
Ele abriu a boca para lhe dizer algo, mas seu telefone tocou.
– Pode atender – ela disse bocejando. – Eu espero.
V. silenciou o telefone e não ouviu nada além do próprio coração batendo.
– Não é importante.
Jane foi para o sofá de couro e despencou sobre a almofada mais distante.
– Não sei o que fazer com Assail. Ele está num surto psicótico. Nunca vi nada semelhante, e nunca mais quero ver. – Esfregou o rosto. – Não consigo ajudá-lo. Não consigo trazê-lo para o lado de cá. Procurei Havers uma centena de vezes, li cada um dos casos dele, falei com a equipe dele e com ele. Manny consultou pessoas no mundo humano. Só chegamos a becos sem saída e isso está acabando comigo.
Ela fitava o vazio enquanto falava, os olhos agitados como se ela estivesse repassando conversas mentalmente, sempre à procura de uma nova abordagem, uma resposta que talvez tivesse deixado passar.
E esfregou as têmporas que sem dúvida deviam estar latejando.
– Nem sei te dizer como está sendo difícil. Observar o sofrimento dele e ser incapaz de fazer alguma coisa a respeito.
Quando o celular de V. voltou a tocar, ele quase lançou o aparelho na parede ao colocá-lo no mudo.
– Tem certeza de que não quer atender isso? – Jane perguntou. – Parece urgente.
– O que eu posso fazer para te ajudar? – ele perguntou.
– Nada. Só preciso dormir. Não consigo me lembrar da última vez em que descansei. – Olhou para ele. – Parece que mesmo fantasmas precisam recarregar as energias.
Mesmo enquanto dizia essas palavras, sua forma corpórea começava a se dissipar, a cor dos olhos e da pela, mesmo as roupas que cobriam o corpo imortal, sumiam.
Desaparecendo bem diante dos olhos dele.
Ela disse mais algumas coisas, e ele também, nada muito importante, tudo muito logístico, como a que horas ele sairia, ou quando voltaria.
Mas logo ela se pôs de pé de novo e se aproximou dele. Quando ele ergueu o olhar da sua posição na cadeira, viu os lábios dela se movendo e comandou que os seus sorrissem em resposta, mesmo não tendo a mínima ideia do que saíra da boca dela.
– E então? – ela instigou.
– O quê?
– Você está bem? Parece distraído.
– Muita coisa acontecendo. Você sabe, com a guerra.
– É, eu ouvi. Payne e Manny estavam conversando a esse respeito.
– Melhor você ir para a cama antes que desmaie.
– Você tem toda razão.
Mas em vez de se afastar, ela estendeu o braço e com a mão fantasmagórica acariciou seus cabelos – e quando ela fez isso, ele pensou que havia um motivo para ele não gostar que as pessoas o tocassem.
E isso era verdade em níveis mais que o literal.
– Eu te amo – ela disse. – Sinto muito que não estejamos passando muito tempo juntos.
– Não importa.
– Acho que importa sim.
Vishous estendeu a mão enluvada e afastou a dela. Forçando outro sorriso, disse:
– Você tem trabalho a fazer. E eu tenho o meu.
– Verdade, não vamos a parte alguma.
Ele sabia que ela dissera aquilo com uma intenção tranquilizadora, como quem diz que o relacionamento deles é sólido, e quando assentiu, ele também estava ciente de que ela interpretaria sua afirmação do mesmo modo.
Quando ela serpenteou pelo corredor indo até o quarto deles, contudo, ele sabia que havia concordado com aquela afirmação num sentido totalmente diverso.
E isso deveria deixá-lo triste.
Mas ele não sentiu nada.
CAPÍTULO 59
Quando alguém começou a bater na porta de Qhuinn, ele não estava com vontade de levantar para ver quem era. Ainda faltava meia hora para a reunião no escritório de Wrath na qual muito provavelmente teria o traseiro arrancado – e talvez fosse expulso da Irmandade como Tohr – e a não ser por ter conseguido tomar banho e se trocado, estava tão fora do seu normal que não conseguiria fazer mais nada.
Como, por exemplo, tentar manter uma conversa civilizada. Ou fazer qualquer outra coisa além de respirar.
A batida ficou mais alta.
Quando levantou a cabeça e arreganhou as presas, abrindo a boca para mandar a pessoa ir se...
Mas, em vez disso, se pôs de pé.
E se apressou a escancarar a porta como se escoteiras tivessem vindo trazer sua encomenda de biscoitos.
Blay estava no corredor tão apetitoso que aquilo devia ser ilegal, o corpo coberto por couro e armas – que por acaso, era o estilo preferido do cara para Qhuinn. Exceto pela versão completamente nua.
– Importa-se se eu entrar? – ele perguntou.
– Sim. Quero dizer, merda, não. Sim, por favor, entre.
Caraca, seria bom se conseguisse ser mais sutil.
Blay fechou a porta e aqueles lindos olhos se dirigiram para os berços.
– Quer vê-los? – Qhuinn disse, abrindo caminho, mesmo não estando na frente dele.
– Sim, quero.
Blay foi até lá, e embora o rosto estivesse virado, Qhuinn sentiu o sorriso do cara quando ele cumprimentou um depois o outro.
Mas quando ficou de frente, estava sério de novo.
Aqui vamos nós, Qhuinn pensou ao atravessar o quarto e se sentar na cama. A resposta para o resto da sua vida. E sabia, sem conhecer todos os detalhes, que aquilo doeria.
Blay enfiou a mão dentro da jaqueta.
– Não quero isto.
Quando ele mostrou os documentos providenciados por Saxton, Qhuinn sentiu o coração despencar. Não tinha muito a oferecer a não ser seus abençoados filhos. Se Lyric e Rhamp não fariam o macho mudar de ideia, nada mudaria...
– Eu te amo – Blay disse. – E eu te perdoo.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu decifrar as sílabas. E depois, quando elas foram absorvidas, ele ficou sem saber se havia ouvido direito.
– Vou repetir. Eu te amo... e eu te perdoo.
Qhuinn deu um salto e atravessou a distância que os separava mais rápido do que um fósforo sendo aceso. Mas foi impedido antes que conseguisse beijar o cara.
– Espere – Blay prosseguiu. – Tenho mais uma coisa pra dizer.
– O que quer que seja, eu concordo. Qualquer coisa, tudo, eu topo.
– Que bom. Então você vai se entender com a Layla.
Qhuinn recuou um passo. E depois outro.
Blay bateu os documentos na palma da mão.
– Você me ouviu. Não preciso receber direitos parentais. Você não precisa armar isso – embora eu agradeça a intenção e, francamente, isso de fato me convenceu de que estava falando sério. Mas você me disse que faria qualquer coisa, e eu estou presumindo que vai cumprir a sua promessa. Você não vai conseguir se acertar comigo até que tenha se acertado com Layla.
– Não sei se eu consigo fazer isso, Blay. – Qhuinn levantou as palmas. – E não estou bancando o cretino aqui. Não mesmo. Eu só... me conheço. E depois que ela os expôs ao perigo daquele jeito, e mentiu para acobertar tudo? Não consigo voltar ao que era, nem mesmo por você.
– Acho que você precisa se concentrar mais em quem Xcor é do que no que ela fez.
– Eu sei quem ele é. Esse é o problema.
– Bem, eu acabei de conversar com Tohr, que me contou tudo...
Qhuinn levantou as mãos e andou ao redor.
– Ah, para com isso...
– E eu acho mesmo que você tem que rever seus conceitos.
– Não vou esquecer o que aconteceu, Blay. Não consigo.
– Ninguém está pedindo para você fazer isso.
Enquanto Qhuinn andava dando voltas, concluiu que as conversas a respeito daquele Bastardo mais estavam parecendo um dia no filme Feitiço do Tempo. Sem o Bill Murray. Então, aquilo era uma droga.
– Olha só, não quero discutir com você – ele disse ao parar e olhar para Blay de onde estava.
– Nem eu quero isso. E não vamos discutir esse assunto porque eu não vou falar mais nada. Acerte as coisas com a Layla, ou eu não vou voltar.
– Mas que inferno, Blay... Como consegue fazer com que a minha situação com você se refira a ela?
– Estou fazendo com que eu e você sejamos parte de uma família. Esses dois – ele apontou para os berços – e nós três. Somos uma família, mas só se ficarmos juntos. Sangue é importante até certo ponto, e depois de todas as merdas que os seus pais fizeram com você, você sabe muito bem disso. Se nós não conseguirmos – se você não conseguir – perdoar e amar e seguir em frente, então você e eu não vamos durar, porque não vou ficar por perto fingindo que tudo bem você se ressentir com a sua filha só porque ela se parece com a mahmen dela. Nem vou ficar esperando pelo dia em que eu fizer alguma coisa que você não vai conseguir perdoar. Você me desafiou a te perdoar pelo que você fez – e eu perdoei. Agora estou esperando que você faça o mesmo em relação a Layla.
Blay voltou para a porta.
– Eu te amo de todo o meu coração, e quando você e a Layla tiveram esses bebês? Você me deu uma família completa. E eu quero a minha família de volta, o pacote todo – e isso inclui a Layla.
– Blay, por favor...
– Essa é a minha condição. E não vou mudar de ideia. Eu te vejo no trabalho.
Quando Xcor se preparou para sair de casa pouco antes da meia-noite, permitiu que sua shellan inspecionasse as amarrações do colete a prova de balas. Ela foi muito detalhista a ponto de ele achar que, se ela pudesse se prender ao peito dele, era o que faria.
Capturando-lhe as mãos, beijou as pontas dos dedos, uma a uma.
– Sou um macho de sorte para ser tão bem cuidado assim.
Como odiava a preocupação dela. Faria qualquer coisa se pudesse substituí-la por alegria – ainda mais por temer que mais tristeza a aguardava logo em seguida. Se sobrevivesse a esta noite, se a Irmandade cumprisse o que fora prometido por Wrath, ainda assim eles não teriam mais um caminho para trilhar juntos.
– Sinto muito, mas não posso deixar que saia – ela disse num sorriso trêmulo. – Eu sinto... que não vou suportar vê-lo indo embora.
Quando a voz dela se partiu, ele fechou os olhos.
– Voltarei para casa muito em breve.
Beijou-a de modo que ela não pudesse mais falar, e quando ela retribuiu o abraço com paixão, ele tentou se lembrar de cada detalhe de como era senti-la ao seu encontro, do sabor dos lábios dela, e qual era a sensação de sentir o perfume dela.
Quando, por fim, recuou alguns centímetros, encarou os olhos verdes claros. Sua cor favorita, descobriu. Quem haveria de saber que ele tinha uma?
E, então, recuou e não olhou para trás. Não ousava.
Aproximando-se da porta corrediça, sentiu as lágrimas dela, mas, de novo, não parou. Não havia mais como parar nada daquilo.
A porta não emitiu nenhum som quando ele a abriu e saiu, e ele teve o cuidado de não olhar para trás ao fechá-la atrás de si.
Avançando sob a iluminação das luzes da varanda, deu a volta do chalé. Havia um barracão velho ali, um grande o bastante para abrigar um cortador de grama e alto o bastante para as pás e os ancinhos e enxadas.
Ao empurrar a porta frágil, as dobradiças emitiram um rangido de protesto.
Estendendo a mão na escuridão, ele apanhou a foice e a ajustou às costas, prendendo-a com uma corda singela que atravessava seu peito. Não quisera levá-la para casa com Layla lá dentro. Pareceu-lhe simplesmente errado.
Com as facas e as pistolas já embainhadas, estava pronto para o que aparecesse, fosse um redutor ou um Irmão.
Ao fechar os olhos para se desmaterializar até o ponto de encontro com seus machos, rezou por duas coisas.
Uma, que conseguisse voltar ali para ver Layla uma última vez antes de partir.
E segundo, que Wrath tivesse tanto controle como parecia achar que tinha sobre a Irmandade.
Interessante como as duas coisas estavam intimamente ligadas.
CAPÍTULO 60
Sentando-se sozinho no quarto que partilhava com Autumn, Tohr segurava a adaga negra nas mãos. A lâmina fora tanto forjada como era mantida por Vishous; a arma era sempre mantida afiada, o cabo se encaixando perfeitamente à sua mão, e somente na sua mão.
Era inimaginável que nunca mais a empunharia.
Quando contou à sua shellan o que havia acontecido, e o motivo, ela ficara triste. Era a primeira vez, ele percebeu, que a desapontara de fato – e considerando-se que ainda era apenas meio macho devido a tudo o que aconteceu com Wellsie? Isso queria dizer muita coisa.
Pelo menos os dois tinham um lugar para ir. Xhex deixaria que ficassem naquele seu chalé de caça pelas próximas noites – o mesmo lugar em que ele e Layla brigaram a valer.
Ele estava tãããão feliz em voltar para lá.
Virando a adaga, deixou-a num ângulo de modo que o abajur aceso no criado mudo iluminasse as pequenas incisões nas pontas afiadas. Tinha pensado em pedir a V. que desse uma polida no objeto – pois ele mesmo não tinha permissão para fazer isso. O irmão se empenhava tanto em fazer aquelas armas que ficava maluco se qualquer um tentasse afiá-las em vez dele.
Mas agora, isso já não vinha ao caso...
Ok, mas que porra Simon e Garfunkel estavam fazendo na sua cabeça com o maldito trecho: Olá, escuridão, minha velha amiga...1
– Mas que porra.
Difícil decidir o que era pior. Aquele maldito trecho dos anos 1960 ecoando na sua massa cinzenta, ou o fato de ter sido demitido do único trabalho que já tivera, que sempre quisera realizar, e no qual era bom.
Mas, convenhamos, não devia ser muito difícil cuidar de uma fritadeira? Ele tinha isso para contemplar no seu futuro.
E, nesse meio tempo, sua linda fêmea estava no porão com Fritz tentando encontrar caixas para guardarem seus...
Uma batida na porta foi uma digressão bem-vinda. Naquele ritmo, ele logo teria que confiar no Prozac e nos M&Ms para lidar com a depressão que o acometia.
– Entre. – Talvez fosse um doggen com um carregamento de caixas de papelão. – Oi? Pode entrar.
Quando não teve resposta nenhuma, franziu o cenho e se levantou para atender a porta. Já vestira as calças de couro e calçara os coturnos quando se trocou porque era isso o que sempre fazia. Talvez agora devesse trocá-los por um punhado de suéteres e calças cáqui folgadas que formavam uma poça no traseiro e que só ficavam no lugar com o uso de suspensórios.
Pois é, porque isso era sensual pra...
Quando abriu a porta, suas palavras o abandonaram.
Wrath estava ali parado, parecendo o Rei que era, todo vestido de preto e com aqueles seus conhecidos óculos escuros. Atrás dele, formando um semicírculo, a Irmandade, e Blay e John Matthew, como uma guerra prestes a acontecer, com todos aqueles machos armados prontos para lutar.
– Olá, meu velho amigo – Wrath disse ao estender a mão. – Quer vir a uma festa?
Tohr engoliu em seco.
– O que... hum... Como assim?
Wrath só deu de ombros.
– Saxton está me enchendo o saco com procedimentos e políticas de recursos humanos dos humanos. Pelo visto, hoje em dia, a gente tem que dar algum tipo de comunicado antes de mandar alguém passear. Você sabe, mandá-los a um treinamento, limpar as bundas deles por eles, esse tipo de coisa. Antes de demiti-las.
Rhage deu sua opinião:
– Convenhamos, você é o único que tem a cabeça mais no lugar.
– Que entra de cabeça inteira – alguém opinou. – Em vez de meia, como a maioria de nós.
– Um quarto de cabeça no caso do Rhage...
Hollywood se virou e encarou V.
– Olha só, eu vou te fod...
– Com o quê? Com seu quarto de...
Wrath levou a mão ao rosto.
– Jesus, vocês conseguem dar um tempo? – Abaixando o braço, disse exausto: – Então, só vamos deixar o seu traseiro na condicional, está bom assim? Maravilha. Ótimo poder tocar a bola pra frente.
O Rei o agarrou e o puxou para um abraço forte.
– Agora vamos dar conta dessa situação com Xcor de uma vez, ok? E Beth já foi falar com Autumn. Você não tem tempo para isso, temos que ir agora.
Atordoado, mas ficando menos confuso a cada segundo, Tohr abaixou os olhos e deu uma enxugada bem masculina neles. Há muito, muito tempo atrás, ele fora escolhido para se juntar à Irmandade e nunca lhe ocorrera que, a não ser morto, ele estaria do lado de fora. Mas por certo merecera isso e muito mais pelo que fizera.
E embora não pudesse colocar a situação no mesmo nível da perda da sua companheira e do seu filho? Isso o fez se lembrar de que o destino não era totalmente cruel.
Com voz rouca, ele disse:
– Ok, tudo bem. Vamos em frente.
Houve um grito geral de contentamento e muitos tapas nas costas. E claro que queria ir atrás da sua companheira para conversar com ela, mas o relógio antigo no átrio começou a bater.
Não havia mais tempo. Era meia-noite.
A Irmandade e o Bando de Bastardos iriam tentar encontrar a paz. E ele tinha que ir ver o irmão cara a cara.
Quando V. reassumiu sua forma diante do armazém abandonado, testou o ar com o nariz e permitiu que seus instintos agissem.
Nada.
A esquina da Décima Quinta com a Market era um bom cenário para aquele encontro histórico e potencialmente perigoso, porque o armazém estilo celeiro tinha suficientes janelas quebradas naquela versão capitalista da estrutura clerestória de modo que, se tivessem que fugir depois de entrarem, seria fácil chegar a qualquer uma das saídas.
Andando a frente, tinha Rhage à sua direita e Butch à esquerda, e se sentiu ótimo por possivelmente se dirigir a um conflito. Queria muito brigar com alguma coisa e deduziu que, se os Bastardos não se mostrassem um bando de idiotas, depois que terminassem com aquilo, ele e os seus irmãos poderiam ir atrás de alguns assassinos.
Ou talvez ele saísse dali sozinho para fazer alguma outra coisa.
O que quer que acabasse fazendo, não precisaria voltar para casa nas próximas seis horas e pretendia fazer bom uso desse tempo.
Porra, será que acabaria mesmo por...
Tanto faz, pensou ao pôr um fim aos seus ataques epilépticos mentais. Uma coisa que nem quem não era gênio sabia era que se você entra distraído numa briga, não vai precisar se preocupar com mais nada, porque na manhã seguinte você vai estar morto.
O armazém era a gaiola deserta padrão de uns quatro mil metros quadrados, sem nada além do seu esqueleto meio apodrecido e um teto metálico que parecia um capacete para alguém com desejo de morrer. Havia algumas portas, e depois que o trio passou pela lateral que lhes fora designada, aguardaram pelo sinal de permissão para entrarem assim que Phury e Z. terminassem a inspeção interna.
Com as costas apoiadas na lateral escura e a arma empunhada, V. perscrutou a área. A visibilidade estava fantástica, sem nenhuma árvore para impedir a visão, nada além de prédio atrás de prédio abandonado, entulho e asfalto por quarteirões e quarteirões; o bairro uma verdadeira terra de ninguém depois de ter sido uma região industrial que sustentara aquela parte da cidade por tanto tempo...
Bem quando os celulares de todos tocaram anunciando que poderiam entrar, cinco figuras apareceram, uma a uma no lote vazio do lado oposto da rua.
V. pegou o celular e enviou: Chegaram. Vamos abordar.
Não teve que dizer a Rhage e Butch o que fazer, e era por isso que os amava. Os três se adiantaram ao mesmo tempo, atravessando a faixa de neve gelada antes de galgar o monte formado na beirada da calçada e chegar ao meio da rua. Como se o Bando de Bastardos tivesse lido o mesmo manual, eles também avançaram em sua formação, os imensos corpos se movendo em sintonia, as armas empunhadas, mas não erguidas, e Xcor no centro.
Os dois grupos se encontraram no meio da rua.
Vishous se pronunciou primeiro.
– Boa noite, rapazes. Como estão?
Não sentiu nem ódio nem amor emanando dos outros guerreiros. Bem, exceto pelo cara da ponta: o da extremidade esquerda emanava uma vibração como se talvez quisesse ser agressivo, mas V. tinha a impressão de que essa era a sua costumeira disposição e não algo específico para a atual situação.
V. não abaixou as armas, mas tampouco exigiu que se desarmassem, mesmo que isso o deixasse alerta. O tal do “abaixem suas armas” aconteceria lá dentro.
– Estamos preparados para segui-los – Xcor disse com clareza.
– Ótimo. – V. os encarou nos olhos um a um. – É assim que vai acontecer, ok? Nós os acompanhamos até lá dentro. Vocês conhecem todos, e depois tomaremos alguns coquetéis enquanto os hors d’ouvre forem servidos. Depois veremos um espetáculo, e encerraremos a noite com uma rodada de compras na Saks e, quem sabe, uma sessão de pedicure conjunta. Está bem assim? Maravilha. Em frente, filhos da mãe.
Xcor não hesitou, e V. interpretou isso como sendo um bom sinal.
E os outros o seguiram de pronto.
Isso ele considerou isso um sinal ainda melhor. Se aqueles meninos estavam dispostos a lhes darem as costas, havia confiança correndo a solta ali.
Pondo-se em fila atrás do Bando de Bastardos, V. os seguiu, retornando ao banco de neve baixo, atravessando o “gramado” de neve e gelo e chegando à porta.
V. juntou os lábios e assobiou. Assim que fez isso, uma porta de metal se abriu e John Matthew a manteve aberta.
Quer falar sobre tensão? O Bando de Bastardos, ao entrar no galpão cheio de correntes de vento, estava tão relaxado quanto prisioneiros a caminho da cadeira elétrica. Mas sustentaram suas posições ao olharem ao redor e ninguém começou a atirar quando continuaram em frente.
V. estava disposto a apostar que avaliavam as mesmas saídas do espaço aberto assim como a Irmandade fazia. As mesmas portas. As mesmas vigas. As mesmas janelas quebradas.
– Parem aqui – ele lhes disse. E eles pararam.
Hora do espetáculo, V. pensou quando deu a volta e ficou de frente à fileira.
– Agora, cavalheiros, antes que tragamos o Rei, sinto informar que terão que se despir. – Apontou para o piso de concreto. – Todas as suas armas aqui. Comportem-se e nós as devolveremos. Se não se comportarem, faremos com que sangrem sobre elas.
Excerto inicial da célebre canção “The Sound of Silence” (1964): “Hello, darkness, my old friend...” (N.T.)
CAPÍTULO 61
O coração de Tohr batia forte quando ele se distanciou da posição que mantinha junto à parede do armazém. Deveria se postar junto à porta à esquerda, mas não conseguiu ficar parado. Seus pés o levaram inexoravelmente para a frente, os olhos estavam fixos em Xcor.
– Aonde você vai? – Blay sibilou atrás dele.
– Só um pouco mais perto. Fique aqui.
Um pouco mais perto o caralho. Ele atravessou toda a distância até onde o Bando de Bastardos estava perfilado no meio do armazém vazio.
V. estava se dirigindo a eles, e a voz do irmão ecoava até o teto.
– Bem aqui – ele repetiu ao apontar para os seus pés.
Nos recessos da mente, Tohr sabia que isso revelaria muito. Se os Bastardos titubeassem ao serem desarmados, ou ao serem revistados, seria seguro apostar que aquilo era uma emboscada de proporções troianas. Mas se eles...
Um a um, cada um dos guerreiros de Xcor acatou a ordem, largando pistolas e adagas no chão de concreto, chutando-as na direção de V. Até mesmo a imensa foice de Xcor saiu das suas costas e foi lançada para V.
– Quer ajudar a revistá-los? – V. perguntou. – Ou só veio até aqui para dar mais uma passada de protetor labial em mim?
Levou um momento para que ele percebesse que V. se dirigia a ele.
– Eu faço a revista.
Quando o irmão assentiu, e Rhage e Butch encararam os Bastardos como se os machos tivessem granadas sem os pinos de segurança. Tohr foi direto até Xcor e o encarou nos olhos.
Deus, como não notara antes? Eram da exata mesma cor que os seus.
– Tohr? – V. disse com aspereza. – O que está fazendo, meu chapa?
E aquele maxilar. Era do mesmo formato que o seu. Os cabelos negros. O lábio era uma distração que fazia com que não se considerasse o resto, mas agora que olhava além dele?
Tohr sentiu uma mão pesada sobre o ombro. E a voz de V. soou alta e clara em seu ouvido.
– Eu preferiria que, se alguém tiver que fazer alguma cagada, que seja um deles. Que tal que não seja um de nós?
Xcor retribuía seu olhar placidamente, sem medo nem agressividade. Era um macho resignado ao seu destino, destemido diante do que jazia à sua frente, e merecia ser respeitado por isso.
– Tohr. Está se lembrando daquela coisa de condicional?
Tohr assentiu meio distraído, mas sem prestar muita atenção. A questão era que, desde a morte de Wellsie com o seu filho ainda no ventre, ele se perguntava como seria olhar nos olhos de um parente consanguíneo. A perda dessa possibilidade fora mais uma coisa a lamentar.
Jamais imaginara que uma noite dessas acabaria se deparando com o olhar do irmão.
Xcor falou com suavidade:
– O que vai fazer?
Foi nessa hora que Tohr percebeu que não havia abaixado a arma. Mas antes que pudesse corrigir isso, V. disse:
– Para a sua informação, é bom você saber que, se está vivo hoje, é por causa dele.
Isso desviou a atenção de Tohr, que olhou para Vishous.
– O que disse?
– Encontrei um vídeo na Internet desse filho da mãe aí, te defendendo contra um redutor. Um verdadeiro clássico. Fiquei olhando para aquela imagem durante horas hoje.
– Espera aí, como assim?
– Você se lembra da época em que tentava se transformar numa porta de tela enfrentando uma chuva de balas? Bons tempos aqueles. – V. revirou os olhos. – Olha só, tive uma ideia. Por que não o aceita como amigo no Facebook, e depois pode ficar esperando até o dia em que receberá uma postagem de lembrança com ele nela. Coisa de primeira qualidade. Digna de um cartão da Hallmark. Agora, ou você o desarma de vez ou volta para a sua posição, cacete.
Tohr sabia exatamente sobre qual loucura V. se referia, lembrando-se precisamente do momento em que ignorara a própria mortalidade e todas as leis da física e se colocara na linha de fogo do inimigo.
Franzindo o cenho, perguntou a Xcor:
– Isso é verdade?
Quando o Bastardo assentiu uma vez, Tohr exalou.
– Por quê?
– Isso não é importante agora – o Bastardo respondeu.
– Não, é sim. Por quê?
Xcor olhou para V. para tentar descobrir se o irmão iria ou não perder completamente a paciência com tudo aquilo.
Tarde demais pra isso, Tohr pensou. Ao diabo com tudo, talvez ele não voltasse a ter essa chance de novo.
– Por quê? – exigiu saber. – Éramos inimigos.
Quando Xcor finalmente respondeu, sua voz saiu calma e com um sotaque forte.
– Você foi muito corajoso. Colocou-se na linha de fogo sem medo. A despeito dos nossos posicionamentos na época, eu não quis que um guerreiro com aquela coragem morresse daquele modo. Num conflito honesto, tudo bem. Mas não daquele jeito, como um alvo imóvel. Por isso atirei no atirador.
Tohr piscou e pensou em tudo o que teria perdido se tivesse morrido naquela noite. Autumn. A oportunidade de fazer parte daquele acordo de paz. O futuro.
Pelo canto do olho, ele viu algo se mover...
Não, era apenas Lassiter. O anjo caído viera, e isso não era surpresa alguma. Ele era como o fofoqueiro do bairro que está sempre olhando para os acontecimentos por cima da cerca.
Tohr voltou a se concentrar nos olhos azuis marinhos, tão parecidos com os seus. E então abaixou uma das suas armas e guardou a outra no coldre.
Estendendo a mão da adaga, ofereceu-lhe a palma.
Xcor olhou para ela.
Depois de um longo momento, o Bastardo aceitou o gesto... E os dois irmãos se deram as mãos pela primeira vez.
Apesar de apenas um deles saber disso.
Do seu ponto de observação na extremidade oposta do armazém, Qhuinn observou a cena se desenrolar: o Bando de Bastardos entrando na construção abandonada, parando no centro, ouvindo a V. e desarmando-se ao seu comando. Tudo isso fora planejado. Mas então Tohr se adiantou.
Enquanto o irmão avançava com seus coturnos pesados até o meio, todos os demais daquele maldito lugar prenderam as respirações, mas Qhuinn não. O irmão não seria idiota. Primeiro, porque essa não era a sua natureza, e segundo, ele tinha honra...
– Como que é? – Qhuinn cuspiu quando V. falou sobre Xcor ter salvado a vida de Tohr.
Ora, ele mesmo testemunhara aquele espetáculo suicida, aquela insanidade. Era uma daquelas histórias que a Irmandade sussurrava quando estavam bêbados ou eram três da tarde e não havia mais ninguém por perto, uma passagem de um catálogo do passado que tornava o custo do trauma da guerra algo muito real.
Mas que diabos? Como V. tinha isso filmado? Era uma imagem de um circuito interno de segurança? Algum humano assistindo a tudo na periferia?
O que isso importava...
Quando uma figura se materializou bem ao seu lado, Qhuinn quase apertou o gatilho, mas a cabeleira loira e negra era inconfundível.
– Quer levar bala? – Qhuinn perguntou.
Numa voz de Darth Vader, o anjo rebateu:
– Suas armas não são nada para mim.
– Pelo amor de Deus...
Mas, de repente, o rosto de Lassiter ficou bem na frente do dele, e não havia nenhum indício de brincadeira nos estranhos olhos coloridos.
– Prepare-se.
– Pra quê?
Nesse instante, Wrath surgiu no centro do armazém, bem ao lado de Vishous. E era por isso que escolheram aquele espaço amplo. Considerando a cegueira de Wrath, não haveria nada em seu caminho, nada em que pudesse tropeçar, nada que o estorvasse, nem que o enfraquecesse por depender da ajuda dos irmãos para se locomover.
Cara, Qhuinn pensou ao medir os corpos dos Bastardos. Não gostava nem um pouco de tê-los tão perto assim do Rei, mesmo estando desarmados.
– Quer dizer que isso vai mesmo acontecer... – Qhuinn meneou a cabeça ao ver os Bastardos e a Irmandade tão próxima assim. – Nunca pensei que veria esta noite, vou te dizer.
Quando Lassiter não respondeu, relanceou na direção dele. O anjo caído já se fora.
Qhuinn se concentrou e ouviu com atenção. O que não foi nada difícil porque a voz de Wrath se projetava como se um órgão de igreja.
– Compreendo que devem lealdade ao líder de vocês. Tudo bem. Mas ele jurou lealdade a mim, dessa forma, isso obriga o seu grupo. Existe alguma discordância aqui?
Um a um, os Bastardos disseram um não ressonante, e era óbvio pelo modo como as narinas de Wrath inflavam que o Rei estava testando a veracidade da declaração nos cheiros deles.
– Bem – Wrath disse. Depois passou para o Antigo Idioma. – Por meio disso, comando que a assembleia jure sua lealdade ao líder deles diante da presença do Rei ao qual ele mesmo se jurou. Prossigam agora com os joelhos dobrados, as cabeças pensas e o coração fiel.
Sem conversa nem hesitação, um a um, o Bando de Bastardos se ajoelhou diante de Xcor, abaixando as cabeças e beijando-lhe os nós dos dedos da mão da adaga. E, durante todo o tempo, Wrath esteve ao lado deles, testando o ar, procurando, mas evidentemente não encontrando, nenhum subterfúgio.
Quando terminaram, Xcor se virou para Wrath.
O coração de Qhuinn batia forte enquanto olhava para o rosto do macho. Apesar de estarem distantes, ele tracejou aquelas feições, os ombros, o corpo. Lembrou-se dos dois trocando socos, atacando-se na Tumba.
Pensou em Layla, grávida de Lyric e Rhamp.
E depois ouviu Blay lhe dizendo que deveria fazer as pazes com a Escolhida para que eles também pudessem ficar bem. Para que a família deles ficasse completa. Para que o passado pudesse ser visto com a razão e não com a emoção.
Foi com a imagem dos filhos na cabeça que ele observou quando Xcor se abaixou sobre um joelho diante de Wrath.
Wrath estendeu o diamante negro, o símbolo do trono, o anel que fora do pai e do pai do pai antes disso.
O anel que talvez L.W. usaria um dia.
– Incline a cabeça para mim – Wrath comandou no Antigo Idioma. – Jure os seus serviços a mim desta noite em diante. Que não haja mais conflitos entre nós.
Qhuinn inspirou fundo.
E depois soltou o ar quando Xcor abaixou a cabeça, beijou a pedra e disse alto e claro:
– Aos seus pés, empenho minha vida e meu sangue. Não haverá nenhum outro governante para mim e para os meus, nenhum conflito até que meu túmulo clame por minhas carnes mortais. Esta é a minha promessa solene.
Qhuinn fechou os olhos e abaixou a cabeça.
Bem quando redutores invadiram todas as portas dali.
CAPÍTULO 62
As portas do armazém se abriram numa rápida sucessão, bam! bam! bam! e os assassinos que invadiram se moveram com presteza.
Aquele era o pior pesadelo de Vishous.
E a primeira coisa que fez foi ir atrás de Wrath. Com um salto veloz, abalroou o Rei e o cobriu com o corpo.
Que teve o mesmo resultado de uma pessoa tentando manter um cavalo indomado no chão.
– Fica deitado, porra! – Vishous sibilou enquanto a luta começava a se desenrolar.
– Me dá uma arma! Me dá uma maldita arma!
Tiros. Xingamentos. Adagas sendo empunhadas. Todos os Irmãos contra-atacaram e os Bastardos mergulharam para recuperar suas armas para ajudar.
– Não me faça te derrubar com uma pancada! – V. grunhiu ao passar os braços na parte superior do corpo de Wrath, tentando derrubá-lo com seu peso. – Puta que o pariu!
Seguindo a teoria de que não conseguimos manter um bom lutador no chão – mesmo que a vida do cretino filho da mãe dependa disso –, Wrath, na verdade, ficou de pé e levantou a ambos, apesar do fato de V. estar enroscado ao redor da cabeça e pescoço dele como se fosse um cachecol, com o tronco contra suas costas e as pernas chutando à frente.
Era uma espécie de pegada de bombeiro dos infernos e tão sacolejante quanto um Jeep despencando ladeira abaixo.
A boa notícia? Pelo visto estavam testando a veracidade dos malditos juramentos da noite – e a coisa estava dando certo. Os Bastardos estavam lutando lado a lado da Irmandade contra os assassinos e, cara, que tremendos FDP eles eram.
Mas V. não pretendia dar uma de Dana White naquele octógono improvisado. Ele tinha que manter aquele Rei idiota vivo.
– Cacete, dá pra...
– Perdoe-me, meu senhor.
Heim? Quando V. olhou para trás, viu Xcor se agachando perto deles.
– Mas aqui não é seguro para você. – Dito isso, o líder dos Bastardos deu um de defensor de futebol americano para cima do Rei de todos os vampiros, apanhando as coxas de Wrath num abraço de urso e derrubando o cara no concreto. O que significou que V. o acompanhou na queda.
... aterrissando tão forte de cabeça que ouviu um baque e sentiu uma tontura aterrorizante se irradiar pelo corpo.
Com um gemido de dor, V. sentiu os braços afrouxarem por vontade própria; mesmo quando ordenou que os músculos permanecessem contraídos, eles caíram inúteis no concreto.
O rosto de Xcor apareceu acima do seu.
– Muito ruim?
– Isto aqui é revide por eu... – V. arfou em busca de ar – ter te acertado na cabeça naquela escola pra moças, não é?
Xcor sorriu de leve e depois abaixou a cabeça quando outra bala passou voando.
– Então foi você, amigo?
– É, fui eu.
– Você tem um belo gancho. – Xcor ficou sério. – Tenho que te tirar daqui.
– Wrath?
– Tohrment o levou. O Irmão Tohrment.
– Bom. – V. engoliu com esforço. – Olha só, estou quase desmaiando. Não mexa em mim. Posso ter fraturado as costas e não quero piorar qualquer dano à coluna que eu já possa ter.
Lutou contra a onda que começava a tomar conta dele, a visão indo e vindo.
– Diga a Jane... Sinto muito.
– É a sua companheira?
– Sim, as pessoas vão saber quem ela é. Só diga a ela... Sei lá. Que eu a amo, acho. Não sei.
Uma incrível onda de tristeza o levou à completa escuridão, os sons da luta, a dor, um pânico lento que surgiu com o pensamento: Ai, cacete, agora eu me fodi, recuando para o vácuo do nada.
No fim, não é que V. tenha perdido a vontade de lutar... Mas abaixou a espada para permanecer vivo.
Quando uma nova onda de inimigos atravessou a porta, Qhuinn ficou sem munição pela quarta vez – e quando a semiautomática começou a estalar em vez de atirar, ele praguejou e se jogou de costas contra a parede do armazém.
Dispensando o magazine vazio, recolocou um cheio e mirou na porta que estava cobrindo, atingindo três assassinos apressados um em seguida do outro, e os corpos fedidos se retorcendo foram formando uma pilha que obstruía a entrada dos de trás.
Mas logo ele ficou sem balas de novo, e se livrou da arma. A situação, de todo modo, estava ficando perigosa para a troca de tiros, pois a Irmandade lutava em toda parte ao lado dos Bastardos, a vastidão do armazém agora um problema, pois não havia lugar para se protegerem.
A lâmina da adaga veio do nada, e atingiu um lugar certeiro.
Seu ombro ruim. Bem fundo.
– Filho da puta...
Bem quando ele ia tentar avançar sobre o assassino que tentou, mas não conseguiu, acertar seu coração, um dos maiores e mais malvados vampiros que já viu na vida surgiu por baixo, vindo sabe-se lá de onde e atacou o assassino, empurrando-o para a parede. E então...
Puuuuxa vidaaaa...
Pegando a deixa de George Takei.
O Bastardo em questão arreganhou as presas e arrancou o rosto do assassino numa mordida. Literalmente, como se fosse Hannibal Lecter arrancando o nariz e uma face até chegar ao osso, revelando sangue e músculos negros.
Em seguida, o macho o largou de lado como se ele fosse o centro de uma maçã mordida.
Quando o Bastardo se voltou para Qhuinn, havia um fio negro escorrendo pelo queixo até o peito, e o cara sorria como se tivesse ganhado uma competição da Nathan’s Famous.
– Precisa de ajuda para tirar essa adaga do ombro?
Pareceu ridículo que o cara estivesse perguntando algo tão surpreendentemente civilizado.
Qhuinn agarrou o cabo, cerrou os dentes e puxou a adaga, libertando o ombro. Enquanto a dor quase fez com que vomitasse, ele conseguiu dizer:
– Na verdade, pensei em te servir um bom Chianti.
– O quê?
– Cuidado!
Quando um assassino se aproximou do Bastardo por trás, Qhuinn se moveu, saltando e tirando a adaga da sua mão dominante, que agora estava presa a um maldito ombro machucado.
Felizmente, era ambidestro.
Qhuinn cravou a lâmina bem no globo ocular do agressor, depois girou o cabo com tanta força que o punhal se partiu ficando bem aninhado em seu novo lar.
Ele e o assassino caíram no chão, bem quando o ombro de Qhuinn anunciou que chegara ao limite. Quando ele se virou para vomitar, acabou fazendo isso de frente para um imenso par de botas de combate.
O assassino foi tirado de cima dele como se fosse um catavento, o pedaço de merda morto-vivo pesando menos de um elástico. Em seguida, o Bastardo durão se agachou.
– Vou te tirar daqui – disse ele com um sotaque forte.
Qhuinn foi jogado por cima de um ombro do tamanho de uma casa, e lá se foram num trajeto cheio de solavancos sabe lá Deus para onde.
Quando ele e seu repentino melhor amigo começaram a se mover, ele deu uma boa olhada no que estava acontecendo do seu ponto de vista invertido. Irmãos, Bastardos, ajudando-se mutuamente, trabalhando juntos, combatendo um inimigo comum.
E lá estava Xcor, bem no meio de tudo...
Lágrimas surgiram nos olhos de Qhuinn quando ele percebeu que o guerreiro, o líder dos Bastardos, estava lado a lado simplesmente no único ruivo do recinto.
Os dois estavam com as costas coladas um no outro, movendo-se num círculo lento, trocando golpes e punhaladas com um enxame de redutores. Blay estava espetacular como sempre, e o Bastardo mais do que o acompanhava em desempenho.
– Vou desmaiar – Qhuinn anunciou para ninguém em particular.
E ao fazer exatamente isso, a imagem do amor da sua vida e o macho que considerava seu inimigo pairou, cruzando a barreira entre a realidade e os sonhos.
CAPÍTULO 63
Layla andava de um lado a outro diante da fonte dos aposentos da Virgem Escriba – ou melhor, de Lassiter – quando subitamente não ficou mais sozinha, e não só por causa dos filhos que dormiam envolvidos em mantas macias junto à árvore cheia de passarinhos.
Quando o anjo caído, agora divindade encarregada, se materializou em pleno ar, seu primeiro pensamento foi o de que ele era portador de notícias terríveis.
No pouco tempo em que o conhecia, ele nunca esteve com a aparência tão ruim, a pele pálida, acinzentada, a aura diminuída de modo a parecer apenas uma sombra de si mesmo.
Layla se apressou até ele e quase não conseguiu alcançá-lo quando ele caiu de joelhos sobre o piso de mármore branco.
– O que aconteceu? Está machucado?
Ele fora ao encontro da Irmandade com os Bastardos? Algo de errado aconteceu lá...
– Lassiter – ela exclamou ao se ajoelhar ao lado dele. – Lassiter...
Ele não respondeu. Apoiou a cabeça nas mãos e se debruçou no mármore, como se tivesse perdido a consciência.
Ela olhou ao redor, imaginando o que poderia fazer. Talvez chamar Amalya...
Só que quando o rolou de costas, surpreendeu-se ao ver lágrimas prateadas saindo dos seus olhos e caindo como diamantes na pedra abaixo dele.
– Não consigo fazer isto... Este trabalho... não é para mim...
– O que está acontecendo? – ela perguntou aterrorizada. – O que você fez lá embaixo?
Em resposta, as palavras que saíram dele estavam amortecidas, tão indistintas que ela teve que se inclinar sobre ele para decifrá-las:
– A guerra tem que terminar. E só existe um modo de destruir Ômega. Isso foi previsto. A profecia tem que se concretizar, e isso só pode acontecer de uma maneira.
Quando os olhos dele se encontraram com os dela, o medo a gelou.
– O que você fez?
– Os redutores têm que ser eliminados. Eles têm que matar a todos eles e depois pegar Ômega. A guerra tem que terminar.
– O que você fez!
– Eles são a minha família – o anjo caído se engasgou ao cobrir o rosto. – São a minha família...
Um pensamento horrível cruzou a mente dela, e ela disse:
– Me diga que você não...
– Os assassinos têm que ser eliminados. Cada um deles. Só depois disso eles podem ir atrás de Ômega...
Layla caiu sobre o traseiro e levou as mãos ao rosto. Os Irmãos e os Bastardos em um lugar. Um juramento de lealdade dado e aceito.
De modo que, caso a Sociedade Redutora aparecesse, os dois lados anteriormente opostos lutariam juntos contra um inimigo comum.
– Alguém deles morrerá? – perguntou ao anjo. – Quem vai morrer?
– Eu não sei – ele disse numa voz partida. – Não consigo prever...
– Por que você teve que fazer isso? – Mesmo ele já tendo explicado o motivo. – Por quê?
Quando os olhos começaram a se encher de lágrimas, ela pensou em descer para a Terra. Mas não poderia deixar os filhos.
– Por que agora?
Lassiter parou de balbuciar, os olhos se fixando no céu leitoso acima deles – a ponto de ela imaginar se ele conseguia enxergar o que se sucedia lá embaixo.
Deixando-o estar, ela engatinhou para onde Lyric e Rhamp dormiam o sono dos abençoados, completamente alheios ao que muito bem poderia estar mudando o curso das suas vidas para sempre.
Deitando-se com eles nas dobras do cobertor macio que havia colocado ali para que ficassem aquecidos, deixou as lágrimas correndo soltas.
Teria rezado.
Mas o salvador da raça não estava em condições de atender aos seus pedidos. Além disso, estava claro que ele já sabia o que ela teria suplicado – e partilhava os seus temores.
Também era óbvio que, de todas as dádivas que poderia distribuir, apesar dos poderes que tinha, garantir que nenhum Irmão ou Bastardo caísse em batalha não estava entre elas.
CAPÍTULO 64
No fim, a batalha no armazém provou que as guerras, no fim das contas, estavam sujeitas às mesmas regras no tocante a começos, meios e fins, assim como todo o resto no planeta.
O arauto do seu fim não foi o silêncio. Não, nada estava silencioso na caverna fria feita pelos humanos. Havia gemidos e arrastos pelo chão em demasia, o campo de batalha disseminado com corpos móveis e cadáveres, o ar carregado dos cheios da pólvora e do sangue.
– Acabou?
Quando Wrath falou, Tohr relaxou um pouco a pegada que tinha no Rei. Mas não muito. Ainda tinha os braços e as pernas ao redor do corpanzil do macho, os dois num bolo num canto formado graças ao único espaço delineado no imenso interior vazio: as costas do Rei estavam na junção das paredes e Tohr era o escudo mortal que protegia os órgãos vitais dele, embora Wrath também estivesse usando um colete à prova de balas.
Mas, no fim, eles nem sempre cumpriam seu dever.
E a vida de Wrath não era algo com que se pudesse barganhar.
– Terminou? – Wrath exigiu saber. – Não ouço mais brigas.
A cabeça de Tohr se virou para o lado, e quando ele se endireitou um pouco, o pescoço estalou. Olhando ao redor, tentou identificar os corpos, mas não havia como entender alguma coisa naquela carnificina. Havia uns vinte e cinco ou mais mortos no concreto frio, e havia sangue tanto rubro quanto negro em toda parte.
Ele temia verdadeiramente que a Irmandade tivesse sofrido perdas...
Do meio do grupo de corpos, uma figura solitária se ergueu.
Estava coberta de sangue e se locomovia com dificuldade. E tinha uma arma na mão. Mas havia fumaça demais no lugar para discernir se aquele era um assassino, um Irmão ou um Bastardo.
– Cacete – Tohr exalou.
Ele não queria ter que se levantar para lutar e deixar Wrath desprotegido, porque o cara era simplesmente um idiota e estava puto da vida com a emboscada e poderia muito bem tentar se armar de novo e...
O assobio que ecoou foi como uma benção.
E Tohr respondeu com outro assobio.
Vishous se virou no meio do campo de batalha e começou a claudicar na sua direção; os passos estavam desiguais e um braço estava dobrado num ângulo horrendo. Mas ele era mais durão do que tudo isso e estava determinado a chegar ao seu Rei...
Não era Vishous.
Quando a figura se aproximou mais, Tohr percebeu... era Xcor. Era Xcor quem se aproximava.
Quando o Bastardo se aproximou o suficiente, ficou evidente que estava bastante ferido, e a coisa vermelha vazando pelos ferimentos parecia acometer quase todas as partes do seu corpo.
– Precisamos retirar o Rei – o Bastardo sussurrou numa voz rouca. – Eu cubro a retaguarda.
– Espere – Tohr disse quando segurou o braço do macho. – Você está ferido.
– E você é o escudo do nosso Rei. É perigoso demais deixá-lo desprotegido. Se eu morrer, não fará diferença. Se ele morrer, toda a esperança da raça morrerá também e Ômega vencerá.
Tohr encarou os olhos do irmão de sangue.
– Se conseguir sair, temos ajuda. Quatro quarteirões a oeste. Receberam ordens de não se aproximarem a menos que alguém os chamasse. Não queríamos sacrificar os médicos.
Xcor assentiu.
– Voltarei.
E numa demonstração de desejo e força, o macho desapareceu no ar. Apesar de estar brutalmente ferido.
– A gente vai ter que comprar um relógio de ouro ou algo assim para o filho da mãe – Wrath murmurou.
– Não é isso que se recebe na aposentaria?
– Acha que ele vai voltar a lutar depois desta merda toda?
Tohr esperou. E esperou. E esperou. E tentou conter o pânico de pensar que pessoas a quem amava poderiam estar mortas ou moribundas ao seu redor e ele não podia cuidar de ninguém.
Disse a si mesmo que contanto que não ouvisse nenhuma bala voando nem nada assim, Xcor talvez tivesse conseguido chegar...
O som começou baixo, um rugido ao longe. E logo foi crescendo, crescendo e crescendo mais... tão alto até que o estrondo estivesse próximo o bastante para sacudir as paredes finas do armazém...
A Mercedes S600 preta explodiu para dentro uns seis metros de onde Tohr e Wrath estavam amontoados, o entulho voou por toda parte, placas metálicas se chocando na cabeça e nos ombros de Tohr.
Xcor saltou para fora do banco de trás, Fritz abaixou o vidro do motorista, revelando o rosto enrugado tomado de preocupação.
– Meus senhores, entrem. A polícia humana logo chegará.
Tohr tentou se levantar, mas sentiu câimbras e os joelhos cederam.
Foi Xcor quem agarrou o Rei e quase o jogou no banco de trás do carro.
– Estou ficando de saco cheio de ser jogado de um lado pro outro assim! – Wrath estrepitou.
Tohr foi o segundo na lista de Xcor, o Bastardo o segurava com força surpreendente e quase o lançou como um dardo.
Mas Tohr não aceitaria isso. Sabia muito bem o que aconteceria em seguida.
Agarrando o braço do Bastardo, arrastou o macho para dentro com eles e berrou:
– Pisa fundo, Fritz!
O doggen com seu pé de piloto da NASCAR afundou o acelerador, virou o volante e com os pneus cantando manobrou de modo que a porta de trás se fechou sozinha. E logo saíram atravessando outro painel, dando uma de Velozes e Furiosos enquanto a Mercedes se projetava para fora do armazém, atingindo a neve do lado de fora.
Os olhos de Xcor se arregalaram de surpresa enquanto eles sacolejavam no banco de trás.
– Não precisava me salvar.
Tohr pensou na situação por um instante. E depois se resolveu. Ao diabo com tudo. Quem poderia saber quantos mortos havia lá atrás e sequer se Xcor conseguiria sobreviver ou se morreria, a julgar pelos seus ferimentos? Se Fritz conseguiria tirá-los do centro da cidade em segurança?
– Eu não deixaria o meu irmão para trás.
A princípio, Xcor resolveu reinterpretar as palavras ditas a ele. Por certo, devia haver algum problema de tradução ali, apesar de que o que ele dissera ter parecido algo em inglês.
– Desculpe... O que disse?
Wrath também se inclinou para a frente, de modo que Tohr, ensanduichado entre eles, foi o único que permaneceu com as costas encostadas no banco.
– Isso mesmo – o Rei disse enquanto o motor roncava mais alto. – O que foi que você disse?
O Irmão olhou direto nos olhos de Xcor.
– Sou filho de Hharm. E você também é. Somos irmãos de sangue.
O coração de Xcor começou a bater tão forte que sua cabeça latejou. Em seguida percebeu seu olhar recaindo sobre as feições de Tohr por vontade própria.
– Os olhos – o Irmão disse. – Perceberá isso nos olhos. E não, eu também não o conheci de verdade. Suponho que não fosse um bom macho.
– Hharm? – Wrath murmurou. – Não, ele não era. E é só isso que vou dizer a respeito.
Xcor engoliu através da garganta contraída.
– Você... é meu irmão?
No entanto, uma confirmação seria mesmo necessária? Tohrment tinha razão... aqueles olhos... eram do mesmo formato e da mesma cor dos seus.
– Sou – Tohr afirmou emocionado. – Sou seu parente consanguíneo.
Todo tipo de coisa passou pela mente de Xcor, flashes de imagens, ecos de tristeza, lembranças de solidão. No fim, quando a Mercedes chegou à velocidade de cruzeiro e eles estavam na autoestrada, só conseguiu abaixar o olhar e ficar calado.
Quando se recebe algo secretamente desejado e completamente inesperado, quando uma repentina revelação parece remendar um buraco na vida de alguém, a única resposta é o choque, muito semelhante ao que acontece quando se é ferido.
Ou talvez fosse só isso mesmo. Estava gravemente ferido e perdia a consciência.
Ficaram calados pelo resto do trajeto para onde quer que estivessem indo, e Xcor passou o tempo observando o manto de neve enquanto ele se esvaía em sangue sobre si mesmo, sobre o banco... sobre o irmão.
Um tempo depois, uma vida depois ao que lhe pareceu, começaram a parar e ir, parar e ir, parar e ir. No fim, pararam de vez. Wrath abriu a porta de pronto, como se o Rei soubesse que estavam em local seguro, e Tohr seguiu o monarca.
Xcor foi abrir a porta ao seu lado...
A mão não parou na maçaneta. Nem na segunda tentativa.
Tohr a abriu por ele e se inclinou no interior do carro.
– Vamos tratar de você. Venha.
Quando o Irmão, e o irmão, estendeu a mão, Xcor comandou o corpo a se mover. Mas este se rebelou. Ele parecia ter...
Uma onda de tontura fez com que perdesse o controle do estômago, mas ele sacudiu a cabeça para clareá-la e exigiu que seus músculos o obedecessem. Dessa vez, o corpo o atendeu. Seu corpo surrado, apunhalado e alvejado conseguiu se levantar do banco de trás e se mover à frente.
Um passo.
Quando ele despencou, braços fortes o seguraram, impedindo-o de bater no piso de concreto do que parecia ser uma garagem.
Tohrment sustentou seu corpo com facilidade.
– Tô contigo. – Essa foi a segurança que ele lhe passou.
Com uma série de movimentos pouco graciosos, Xcor se segurou aos ombros fortes do macho e se suspendeu um pouco. Deparando-se com o olhar de Tohrment, disse:
– Meu irmão.
– Isso – o macho disse rouco, uma camada de lágrimas fazendo com que os olhos azuis se tornassem um par de safiras. – Sou o seu irmão.
Foi difícil saber quem abraçou quem, mas, de repente, estavam os dois abraçados, sustentando-se, guerreiro contra guerreiro.
Xcor pensara em muitos resultados para aquela noite, muitas contingências e probabilidades que ele, como qualquer outro bom líder, teria avaliado e reavaliado.
Encontrar um pedaço da sua família jamais passou pelo seu radar.
E por mais que o pai não tivesse aparecido na forma de um guerreiro corajoso montado num cavalo para resgatá-lo... seu irmão de sangue por certo cumpriu essa função muitíssimo bem.
CAPÍTULO 65
Quando Cormia apareceu no pátio, Layla se levantou no mesmo instante.
– Me diga tudo.
Lassiter há tempos partira, desaparecendo numa chuva de partículas douradas, deixando-a sozinha com o seu pavor.
A Escolhida estava agitada.
– Você precisa descer agora. Precisam de sangue e eu já doei tudo o que posso. Eu ficarei com os pequenos.
As duas se abraçaram e Layla se foi, viajando entre os dois reinos apressada, retomando sua forma no lado de fora da mansão, pois ela não teria como passar pela estrutura de aço.
Não notou o frio ao correr escada acima e puxar a pesada porta externa da entrada e mostrar o rosto para o circuito de segurança... E, enquanto esperava, queria gritar.
Foi Beth quem abriu.
– Ah, Graças a Deus – a Rainha exclamou dando-lhe um abraço forte. – Vá, corra para o centro de treinamento. É lá que todos estão.
Layla começou a correr e depois perguntou por sobre o ombro:
– Alguém morreu?
– Ainda não. Mas... Ah, vá, vá agora. Tenho que esperar por Wrath e voltar a acompanhá-lo para baixo.
Layla passou pelo túnel subterrâneo e chegou ao centro de treinamento em tempo recorde, mas assim que chegou ao corredor, parou de repente.
O cheiro de sangue era intenso, portanto havia uma grande quantidade de machos com diversos graus de ferimento ali.
E não eram apenas Irmãos. Na verdade... pareceu ver todos os guerreiros de Xcor ombro a ombro com a Irmandade, com Ehlena, a enfermeira, e todas as outras Escolhidas, cuidando deles.
Enquanto Manny e a doutora Jane sem dúvida se ocupavam com cirurgias.
– Estou aqui – disse a ninguém e a todos.
Em sua cabeça, estava gritando com todos eles, exigindo saber o que acontecera com Xcor, pois não o via e não o sentia, e isso a aterrorizava.
Mesmo assim, aproximou-se do primeiro ferido com que se deparou e arregaçou a manga, expondo o pulso.
Reconheceu o macho. Era um dos de Xcor.
Zypher meneou a cabeça.
– Estou honrado, sagrada Escolhida. Mas não posso tomar sua veia.
– Mas você deve – ela sussurrou.
– Não posso. Você é a fêmea do meu líder. Morrerei antes de conhecer o sabor do seu sangue.
Uma das suas irmãs se aproximou.
– Eu o alimentarei. Vá até Rhage.
E foi o que Layla fez, oferecendo sua veia. Quando o Irmão sorveu o que necessitava e agradeceu, ela foi para o macho seguinte na fila.
Mas ele era um Bastardo, e ele também meneou a cabeça e a rejeitou.
– Não posso receber seu sangue. Você é a fêmea do meu líder.
E foi assim por toda a fila, até que acabou se concentrando apenas na Irmandade, sem nem tentar os outros.
Tantos ferimentos, alguns tão profundos que ela via uma anatomia que a aterrorizava. E durante todo o tempo, preocupou-se com Xcor, entrou em pânico com o que Lassiter fizera e rezou para que ninguém morresse.
Estava prestes a se aproximar de Phury, que precisava de mais uma dose de tão graves que eram seus ferimentos, quando sentiu uma pegada no cotovelo.
Ao erguer o olhar, deparou-se com o rosto sério de Tohr.
– Xcor precisa de você. Agora.
Layla se levantou tão rápido que ficou tonta, e Tohr a ajudou a caminhar pelo corredor.
– Você ficaria orgulhosa dele – Tohr lhe disse ao se aproximarem de uma porta fechada que parecia uma sala de operações. – Foi incrivelmente valente e foi ele quem tirou Wrath de lá.
– Foi ele?
– Sim. E ele sabe. Sobre mim e ele. Eu contei porque... Por que não depois de uma noite horrível como esta?
Tohr abriu a porta e Layla arquejou. Xcor estava na mesa operatória, com o abdômen aberto, os intestinos aparecendo – no entanto, estava consciente.
Virou a cabeça na sua direção e tentou sorrir.
– Meu amor.
A voz dele estava tão fraca... Ah, sua coloração estava péssima. E mesmo assim ele tentou se soerguer.
O tom de Manny foi firme.
– Ok, isto não está dando certo pra mim. Não enquanto estou suturando seu intestino.
– Não olhe – Xcor ordenou a ela. – Não olhe para o meu corpo.
Num vívido flashback, ela se lembrou de que ele não queria ter tirado as roupas perto dela.
Layla se apressou para junto dele e encostou-lhe o pulso na boca.
– Beba. Tome o meu sangue.
– Já fizemos isso antes – ele fez uma careta e tossiu –, uma vez antes enquanto eu estava morrendo. Não fizemos?
– Duas vezes já fizemos isso. E nas duas vezes estava mais frio – ela disse entre lágrimas. – Oh, Deus. Não morra. Não esta noite. Nunca.
– Você é a coisa mais linda que eu já vi. – Os olhos dele estavam enfraquecendo, a luz deles sumia. – Partilhei meu corpo com outros, mas fui virgem com você, pois minha alma nunca pertenceu a ninguém antes. Só você... Só você me tem...
Uma máquina começou a apitar.
– Alguém pegue o maldito desfribilador!
Tohr se aproximou na mesma hora, formando um punho com as duas mãos, e disse:
– Respire por ele! Respire por ele!
Mesmo que seu coração estivesse batendo descontrolado e ela sentisse que não suportaria nada daquilo, Layla selou os lábios de Xcor com os seus e soprou ar para dentro dos pulmões dele. E Tohr começou a massagear o coração.
– Respire! Agora!
Ela se inclinou de novo e exalou todo o ar de que dispunha.
E mesmo assim o alarme continuava disparado...
– De novo! – Manny gritou enquanto as mãos enluvadas e ensanguentadas trabalhavam rápido com a linha e a agulha.
CAPÍTULO 66
Quando Qhuinn recobrou a consciência, por um minuto pensou estar retornando ao começo do pesadelo, para aquela fantasia em que Blay estava sentado na cadeira ali no quarto da clínica.
– Ah, graças a Deus.
– O quê? – Qhuinn murmurou.
Blay deu um salto e se apressou apesar de ter um braço numa tipoia e estar mancando como se alguém tivesse derrubado uma caixa de ferramentas no seu pé.
Qhuinn estava para perguntar se o macho estava bem quando aqueles lindos lábios pousaram nos seus e aquela magnífica fragrância da vinculação chegou ao seu nariz... Ah, aquilo era melhor do que qualquer fantasia.
– Ai!
Quando Qhuinn soltou o grito, o braço voltou para a cama e uma dor, quente e profunda como o oceano, trespassou o lado direito inteiro.
Blay recuou e sorriu.
– Veja por este lado. Finalmente consertou o ombro. Quando costuraram o ferimento, acabaram dando uma olhada na sua bursite.
Assim que conseguiu, Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Dois por um.
– Pague um, leve dois.
Mas nessa hora ele ficou sério.
– Perdemos alguém?
– Nenhum dos nossos, mas todos teremos que nos curar. Isto foi quase um massacre.
– E quanto a eles. Os Bastardos.
Blay desviou o olhar.
– Xcor não está nada bem. E se tem algo a dizer a respeito disso, é melhor não dizer. Foi ele quem tirou Tohr e Wrath de lá. E Layla está no corredor alimentando o pessoal, pra sua informação – e também não quero nenhum comentário a esse respeito. Isto é uma emergência.
Qhuinn fechou os olhos.
– Estou tão feliz por você estar bem – Blay sussurrou. – Eu teria morrido junto com você se isso não tivesse acontecido.
Levantando as pálpebras, Qhuinn disse:
– Sinto muito.
– Pelo quê?
– Não sei. – Apontou com a cabeça para o maquinário à cabeceira. – Isso está injetando morfina?
– Sim.
– Então acho que não estou dizendo coisa com coisa.
– Ok. Pode falar toda besteira que quiser.
Blay se sentou com cuidado na beirada da cama, e quando Qhuinn sentiu a mão ser segurada, apertou de volta.
Ficaram assim só olhando um para o outro por um bom tempo. Sim, olhos marejaram e gargantas se contraíram... Mas os corações estavam inteiros.
– Nunca mais quero ficar sem você – Qhuinn disse. – Nada vale isso.
O sorriso de Blay era genuinamente precioso.
– Não tenho como discordar disso.
O macho se inclinou para baixo e eles resvalaram os lábios. Duas vezes.
– Hummm. Sabe o que não aguento esperar?
– Fazer xixi sem a sonda?
– Sexo de reconciliação. – Qhuinn abaixou as pálpebras. – Eu quero você aqui mesmo, pra falar a verdade.
O rubor que atingiu o rosto de Blay foi uma provocação criminosa – já que ele estava atrelado a um dispensador de ópio.
– Então descanse – o macho disse numa fala arrastada. – E absorva todos os fluidos que puder. Vai precisar deles.
Vishous abriu os olhos e, por um instante, ficou imaginando onde estaria. O teto branco não dava muitos indícios, e...
O rosto de Jane, logo à frente do seu, foi uma surpresa que fez com que ele se encostasse no travesseiro.
– Oi – ela disse com voz trêmula. – Você voltou.
– Para onde eu fui... – Maldição, a garganta doía. Será que o tinham intubado? – O que aconteceu?
E, ao mesmo tempo em que perguntava isso, aquela horrível cena do armazém voltou à sua mente... Ele caindo e batendo a cabeça, e depois paralisado no chão enquanto balas voavam por todos os lados. Considerando-se a distribuição de dores pelo seu corpo, ele deduziu algumas coisas: primeiro, não estava paralisado de fato; segundo, fora alvejado em múltiplos lugares, tendo sido, sem dúvida, pego no meio do fogo cruzado; e em terceiro lugar...
– Quase te perdi – Jane disse, aqueles olhos verde-abacate estavam brilhantes de lágrimas. – Fiquei neste quarto nas duas últimas horas rezando para que você recobrasse a consciência.
– Duas horas?
Ela assentiu.
– Assim que saí da operação, eu vim para cá... – Ela franziu o cenho. – O que foi? Está com dor? Precisa de mais morfina?
– Por que...
Quando ela esfregou debaixo dos seus olhos, ele percebeu que estivera chorando – e no instante em que isso foi registrado, calou as emoções, obrigando-as a se submeterem. Nada de chorar. Não mesmo. Não faria isso.
– Olha só, deixa eu chamar a Ehlena.
Jane atravessou o quarto e chegou à porta mais rápido do que o coração dele batia – o que, na verdade, não queria dizer muita coisa. E quando a ouviu pedindo mais medicamentos para ele, e depois começar a responder as perguntas de outras pessoas, todas as dores dele desapareceram.
A não ser por uma no meio do peito.
E era exatamente essa que não reagiria a nenhuma droga.
Ele a viu se inclinar mais para fora ainda e assentir para alguém, e depois sair de vez. Bem quando a porta se fechava, ela olhou por cima do ombro, e seus olhos estavam carregados de preocupação.
– Eu já volto.
Não, ele pensou, acho que você não vai voltar.
Dito e feito, cinco minutos mais tarde, Ehlena foi entrando com um frasco e uma agulha para o acesso intravenoso.
– Oi – ela disse com um sorriso acolhedor. – Jane está dando uma olhada nuns curativos. Ela não queria que você tivesse que esperar por ela.
– Tá tudo bem, não preciso disso.
– Ela disse que você estava com dor.
Com um grunhido, V. se sentou e passou as pernas para o lado da maca. Quando ele começou a puxar o acesso, Ehlena se retraiu.
– O que está fazendo?
– Me dando alta. Mas não se preocupe, isso não vai contra as ordens médicas e nada disso, porque a esta altura eu já estou bem treinado. E eu gostaria de um pouco de privacidade, se não se importa. A menos que queria assistir enquanto retiro a sonda?
– Que tal eu ir chamar a Jane?
Quando a fêmea começou a se dirigir para a porta, ele disse:
– Existem pacientes demais para vocês cuidarem, portanto presumo que podem estar precisando deste leito. E meus sinais vitais estão estáveis, eu já estou me curando, ou seja, alguma Escolhida deve ter me alimentado. Acho que você deveria se preocupar em cuidar dos que estão mais precisando do que perder tempo me impedindo de ir embora – ou preocupando Jane quando ela tem pacientes mais críticos.
Bem nessa hora, Manny passou a cabeça pela porta.
– Ei! Olha só você quase na vertical. Olha só, Ehlena, preciso de você. Agora.
V. lançou um olhar do tipo “eu te disse” para a fêmea. E depois deduziu pela imprecação e pelo desaparecimento dela que ela não discutiria com a sua incontestável lógica.
Tirar a sonda foi uma droga. Seu pau não vinha sendo muito usado ultimamente, e não gostou muito do desrespeito quando por fim foi tocado de novo.
Saindo do leito para ficar de pé, juntou as metades da roupa hospitalar na parte de trás e saiu do quarto.
Todos os Bastardos estavam no corredor, e todos estavam machucados. Não viu nenhum dos seus irmãos, mas sentia os cheiros deles na fragrância que pairava dos seus sangues, e deduziu que haviam subido para a mansão para se recuperarem.
Ou pelo menos aqueles que não estavam deitados na clínica.
Jane não estava em nenhum lugar dali.
Quando começou a andar, assentiu para os Bastardos, apertando as mãos que lhe eram estendidas e chocando as juntas dos dedos, pois a batalha que enfrentaram juntos os uniu mais do que qualquer juramento formal de lealdade e joelhos dobrados fariam.
Engraçado, ele se maravilhou, que é assim que se forja o aço. Você pega ferro, aplica um calor intenso, e tira todas as impurezas. O que resta é força bruta e indissolúvel.
Como quando dois grupos de guerreiros eliminam conflitos desnecessários e se ladeiam para formar uma unidade contra um inimigo comum e são capazes de conseguir muito mais do que jamais fariam separadamente.
Seguindo em frente, pensou ter ouvido a voz de Jane atrás dele. E ouviu. Ela falava com Manny, trocando informações.
V. pensou por um instante que ela notaria que ele estava se afastando pelo corredor e que viria atrás dele. Mas ela não fez isso.
E de novo, ele pensou ao claudicar para dentro do escritório e seguir para o túnel sozinho, isso não o surpreendeu.
CAPÍTULO 67
– Acorde, meu amor.
Quando uma voz grave entrou no ouvido dela, os olhos de Layla se abriram de uma vez e ela se ergueu na cadeira – o que fez com que fosse parar cara a cara com Xcor.
– Você está vivo! – ela exclamou. Só que então ela viu todos os tubos e cabos que foram desconectados e agora pediam dele. – Que diabos você está fazendo fora da cama...?
– Shhh – ele disse. – Venha.
– O quê?
– Estamos indo embora.
– Mas por...
Ele assentiu e se levantou. Estava coberto com curativos, ainda na camisola hospitalar, pálido como um fantasma, mas o olhar dele lhe disse que não ouviria nada que ela tinha a dizer.
Estavam mesmo de saída.
– Para onde vamos? – ela perguntou ao ficar de pé.
– Para a casa segura. Há um carro à nossa espera.
– Mas não seria melhor ficarmos aqui onde estão os médicos...
– Só quero ficar sozinho com você. Você é tudo de que preciso.
Quando ele a encarou, uma sensação de amor se espalhou pelo corpo dela.
– Não acredito que você esteja vivo.
– Tudo por sua causa. Por tantos motivos.
Um rápido flashback dela e de Tohr fazendo manobras de ressuscitação deixou-a sem fala. Mas não tirou sua capacidade de se ajustar debaixo do seu macho e ajudá-lo até a porta.
O corredor estava vazio, com apenas um doggen limpando as manchas de sangue do chão, prova dos ferimentos.
– Para onde foram os seus soldados? – ela perguntou quando começaram a ir na direção da garagem. – Por quanto tempo eu dormi?
– Horas, meu amor. E todos foram tratados e liberados. O amanhecer chega em trinta minutos.
– Eles vão ficar bem?
– Sim. Todos eles e todos os Irmãos também. A equipe médica daqui é incrível.
– Ah, graças a La... – Ela se deteve. – Graças aos céus. Ao destino. A tudo.
Foi então que ela notou uma figura parada no fim do corredor junto à saída, e quando eles se aproximaram, ela percebeu que era Tohr.
Quando finalmente pararam diante do Irmão, os dois machos só ficaram olhando um para o outro. E foi então que as semelhanças entre eles se tornou verdadeiramente evidente para ela. Mesma altura, mesmo porte físico, mesmo maxilar... E aqueles olhos.
– Obrigado por salvar a minha vida naquele beco – Tohr disse rouco.
– E obrigado por salvar a minha naquela mesa cirúrgica – Xcor entoou.
Os dois sorriram um pouco depois ficaram sérios.
Foi então que um frio a percorreu por dentro – um que foi intensificado quando Xcor se soltou dela e se inclinou na direção do Irmão.
Enquanto os machos se abraçavam, ela percebeu com horror que... era aquilo. Esse seria o último dia juntos para ela e Xcor. Era por isso que ele estava tão determinado a sair da clínica, e o motivo pelo qual Tohr os estava ajudando.
E também por que o Irmão olhou para ela com tanta compaixão quando os dois machos se afastaram.
Tohr abriu a porta da saída e esperou de lado que passassem.
Ninguém disse nada enquanto ela e Xcor seguiam para a Mercedes. Mesmo o mordomo parecia sóbrio quando deu a volta no carro para abrir-lhes a porta.
Layla abaixou a cabeça e deslizou pelo banco, depois Xcor a acompanhou e Fritz fechou a porta.
Xcor abaixou o vidro escuro ao seu lado e levantou a mão da adaga quando o carro começou a se movimentar – e Tohr retribuiu o gesto quando eles se afastaram, esses adeus tão permanentes quanto a tinta nos volumes sagrados do Santuário.
Não tem que ser assim, ela gritava na cabeça. Podemos fazer isto dar certo. De alguma forma, podemos...
Mas ela sabia que lutava uma batalha perdida há algumas noites quando Xcor fizera seu juramento perante Wrath e concordaram que ele e seu grupo deveriam retornar para o Antigo País.
Olhando para as mãos no colo, porque não ousava olhar para o rosto dele, ela sussurrou:
– Fiquei sabendo da sua bravura.
– Não é verdade.
– Foi o que Tohr disse.
– Ele está sendo generoso. Mas vou lhe dizer uma coisa, meus machos lutaram com muita honra e, sem eles, a Irmandade teria se perdido. Disso eu tenho certeza.
Ela assentiu e percebeu que mordia o lábio.
– Meu amor – ele sussurrou. – Não esconda os seus olhos de mim.
– Se eu olhar para você, eu desmoronarei.
– Então, permita que eu seja forte quando você sentir que não consegue. Venha cá.
A despeito dos ferimentos, ele a puxou para o colo e passou os braços ao redor dela. E a beijou na clavícula. E na garganta... e nos lábios.
O calor já conhecido surgiu de novo, e quando ele a suspendeu sobre o quadril, ela afastou as coxas e o cavalgou, e ficou contente por haver uma divisória no carro que lhes dava privacidade.
Mudando de posição meio desajeitadamente, tirou uma das pernas da legging e afastou a calcinha enquanto ele puxava a bainha da roupa hospitalar.
– Tomarei cuidado – ela disse quando ele fez uma careta de dor.
– Não sentirei nada a não ser você.
Xcor segurou a ereção com a mão enquanto ela deslizava lentamente ao redor dela.
– Meu amor – ele sussurrou ao deixar a cabeça pender para trás e fechar os olhos. – Ah, você me completa.
Com uma suavidade ansiosa, as mãos dele deslizaram por debaixo da blusa dela e ele afagou os seios, e ela se assentou num ritmo sobre ele, passando os braços ao redor do encosto da cabeça, encostando os lábios nos dele.
Quando as paradas e partidas nos portões de segurança começaram, um orgasmo agridoce atravessou o corpo dela... Levando consigo o seu coração.
Foi como se o fim entre eles tivesse vindo assim como foi o começo.
CAPÍTULO 68
Na noite seguinte, enquanto subia do porão da casa, Layla sentiu como se estivesse envelhecendo cem anos a cada degrau que subia.
Xcor já estava diante do fogão, preparando ovos, bacon e, mais uma vez, torrando mais uma embalagem inteira de pães de forma.
Ele a fitou. E o modo como os olhos a percorreram, dos cabelos ainda úmidos e agasalho que vestira com os jeans encontrados na cômoda, ela entendeu que ele estava memorizando cada detalhe seu.
– Eu queria estar vestindo uma roupa de gala – ela disse rouca.
– Por quê? – ele perguntou. – Você está linda agora.
Ele ajustou a bainha do blusão no qual se lia SUNY CALDWELL.
– Meio desarrumada, na verdade.
Xcor lentamente balançou a cabeça.
– Não reparo nas suas roupas, nunca faço isso, e um vestido elegante não mudaria isso. Não vejo cabelos molhados, sinto as mechas entre meus dedos. Não vejo faces pálidas, saboreio seus lábios na minha mente. Você atiça meus sentidos todos de uma só vez, minha fêmea. Você é muito mais do que cada uma das coisas que a formam.
Ela piscou para afastar as lágrimas e foi até o armário. Tentando não se descontrolar, disse:
– Vamos precisar de facas, além de garfos e pratos?
No fim, nada disso foi necessário.
Depois que ele terminou de preparar a comida, acomodaram-se à mesa, e a comida permaneceu intocada, esfriando e perdendo o seu aroma. E ela soube que estavam mesmo ficando sem tempo quando ele começou a verificar continuamente o relógio da parede.
E chegaram ao fim.
– Tenho que ir – ele disse rouco.
Quando seus olhos se depararam, ele estendeu o braço por cima da mesa e tomou sua mão. Seu olhar estava brilhante, pois ele também estava emocionado, os olhos azuis marinhos brilhavam de tristeza e de amor.
– Quero que se lembre de uma coisa – ele sussurrou.
Layla fungou e tentou ser tão forte quanto ele.
– Do quê?
No Antigo Idioma ele disse:
– Onde quer que eu vá, você nunca estará longe de mim. Onde quer que eu durma, você estará ao meu lado. O que quer que eu coma, eu partilharei com você, e quando eu sonhar, estaremos juntos novamente. Meu amor, você nunca estará afastada de mim, e eu não ficarei com mais ninguém. Até a noite da minha morte.
Estava na ponta da língua dela dizer que isso seria impossível.
Mas como se soubesse o que ela estava pensando – como sempre – ele apenas meneou a cabeça.
– Como eu poderia ficar com outra que não fosse você?
Layla se ergueu nas pernas trêmulas, e quando se aproximou, ele afastou os joelhos de modo que ela pudesse se postar entre eles.
Quando se inclinou para beijá-lo pela última vez, suas lágrimas caíram no rosto dele.
– Eu amo voc...
Ela não conseguiu terminar a última palavra, pois a garganta se fechou.
As mãos de Xcor subiram pelo corpo dela até chegarem ao rosto.
– Valeu a pena.
– O quê? – Ela forçou as palavras a saírem.
– Tudo o que aconteceu antes deste momento no qual sou amado por você. Embora tenhamos que nos separar, posso dizer que o que sinto por você faz com tudo tenha valido a pena.
E então, o beijo final... e ele partiu.
CAPÍTULO 69
Uma hora mais tarde, Layla foi à mansão da Irmandade. Sentia-se leve demais, como se seu interior tivesse sido esvaziado dos seus órgãos vitais – e ela deduziu que isso devia ser verdade. Não havia muito mais dela agora.
Engraçado ter se encontrado e se perdido em tão pouco tempo.
Contudo, enquanto galgava os degraus de pedra da entrada da mansão e se aproximava da imensa porta externa do vestíbulo, ela sabia que isso era apenas seu luto falando mais alto.
Ou, pelo menos, ela esperava que fosse.
Se isto era como seriam todas as noites da sua vida dali por diante? Ela estaria num mundo de sofrimento. Literalmente.
Empurrando a porta, mostrou o rosto para o monitor e esperou que alguém atendesse à campainha. Tecnicamente, aquela era a noite de Qhuinn com as crianças, mas ele ainda estava na cama do hospital, por isso Beth lhe telefonara lá pelas cinco da tarde dizendo que ela poderia ficar com os filhos se assim o desejasse.
Como se ela fosse dizer não.
De acordo com o que lhe disseram, Rhamp e Lyric foram trazidos do santuário por Cormia algumas horas atrás, portanto eles estavam no andar de cima – ou seja, tiveram esperanças de que Qhuinn já tivesse se recuperado. Mas, aparentemente, isso não aconteceu.
Não perguntou quais eram os ferimentos dele. Não era muito da sua conta, e isso a entristeceu. Mas o que poderia fazer?
– Ah, boa noite, Escolhida.
Quando a voz alegre de Fritz a acolheu, ela percebeu que não tinha visto a porta se abrir.
– Olá, Fritz. Como vai?
– Muito bem. Muito contente por todos estarem bem.
– Sim – concordou atordoada. – Eu também.
– Existe ago que eu possa fazer por você?
Bem, você pode fazer com que o avião em que o amor da minha vida está dê meia volta agora mesmo, trazendo-o de volta para mim. Faça com que ele fique comigo. Dê um jeito para que...
Ela pigarreou.
– Não, obrigada. Vou apenas subir para pegar as crianças.
O mordomo se curvou bem baixo, e depois Layla caminhou lentamente em direção à grande escadaria. Ao pousar o pé no primeiro degrau, lembrou-se do trajeto do porão até o andar térreo daquela casinha charmosa – e ficou se perguntando se sua vida seria sempre assim.
Emocionando-se a ponto de ter lágrimas nos olhos toda vez que fosse subir um lance de escadas.
No entanto, conseguiu seguir em frente.
No fim das contas, é isso o que precisamos fazer, mesmo com o coração partido. Céus, ela não fazia ideia do que faria consigo mesmo nas noites em que não teria Lyric e Rhamp, mas teria que encontrar algo. Ficar à toa provavelmente a afundaria em tristeza pela ausência de Xcor...
Parou na metade do caminho quando um macho surgiu no alto da escada.
Levantando as mãos defensivamente, disse a Blay:
– Tenho permissão para levá-los. Beth me disse isso. Não estou aqui sem permissão.
Pareceu-lhe uma eternidade desde que vira aquele macho, e odiou a necessária distância entre elas. Mas de que outro modo poderiam agir? Ah, Deus, e se ele não lhe entregasse as crianças? E se Qhuinn tivesse ficado sabendo que ela estava recebendo uma noite extra e ordenara de seu leito no hospital que ela não recebesse esse privilégio?
Esta noite, dentre todas as noites, ela precisava de um lembrete visceral do que a faria seguir adiante...
Antes que Blay pudesse dizer qualquer coisa, a campainha tocou de novo anunciando a chegada de mais alguém na mansão. Mas Layla não deu atenção. E por que o faria? Já não morava mais ali...
Mas se virou.
E piscou ante o impossível.
Qhuinn passava pelo vestíbulo... Com Xcor ao seu lado.
Layla piscou de novo e esfregou os olhos, o cérebro incapaz de compreender o que estava vendo. Por certo Qhuinn, dentre todas as pessoas, não poderia... não estaria...
Espere, por que seu macho não estava num avião?
Xcor ergueu o olhar para ela e deu um passo à frente... e depois mais um. Não se concentrou em nada a não ser nela, toda a grandiosidade e as cores do átrio parecendo desimportantes para ele.
Ao diabo os comos e os porquês, Layla pensou ao se mover num impulso, disparando escada abaixo, imaginando que, se aquilo fosse fruto da sua imaginação, seria bom descobrir de uma vez.
E se caísse de cara no piso de mosaico?
Não sofreria mais do que já estava sofrendo.
– Meu amor – Xcor disse ao apanhá-la e suspendê-la do chão.
Quando ela começou a chorar absolutamente confusa, e com uma alegria experimental, ela olhou por cima do ombro dele.
Qhuinn encarava os dois. E depois desviou os olhos azul e verde para onde Blay estava no alto das escadas – e começou a sorrir.
Layla se afastou dos braços de Xcor. Aproximando-se do pai dos seus filhos, teve que pigarrear e enxugar o rosto.
– Qhuinn...
– Eu sinto muito – ele disse rouco. – Sinto muito... Muito mesmo.
Só o que ela conseguiu fazer foi fitá-lo atordoada.
Com mais um rápido olhar para Blay, Qhuinn inspirou fundo.
– Olha só, você fez o melhor que pôde, e isso foi difícil para todos. Sinto muito por ter reagido como reagi, foi errado da minha parte. Mas eu... Eu amo nossos filhos, e a ideia de que poderiam ter corrido perigo? Isso me aterrorizou de um modo que me enlouqueceu. Sei que o seu perdão não pode ser dado de imediato...
Layla se jogou sobre ele e passou os braços ao redor do pai dos seus filhos, e o abraçou com tanta força que nem conseguia respirar, suspeitando que nem ele estava conseguindo.
– Eu também sinto muito... Deus, Qhuinn, me desculpe...
Lágrimas desordenadas de desculpas eram as do melhor tipo, ainda mais quando eram aceitas de coração aberto por ambas as partes.
Quando, por fim, se afastaram, ela se aninhou debaixo do braço de Xcor, e Qhuinn estendeu a mão para o outro macho.
– Como já lhe disse no carro vindo para cá – ele disse –, não que você precise, nem queira, mas vocês dois têm a minha benção. Cem por cento.
Xcor sorriu e apertou a mão estendida.
– Pelo seu apoio, sinto-me mais que honrado esta noite do que em todas as outras.
– Maravilha. De verdade. – Qhuinn se inclinou na direção de Layla. – No fim das contas, o cara não é tão ruim assim. Quem poderia imaginar?
Enquanto ela ria, Qhuinn deu um tapa no ombro do macho.
– Então, vamos lá, hora de você conhecer as crianças. E ver onde vocês vão ficar.
O mundo todo girou ao redor de Layla de novo quando ela olhou de Qhuinn para Xcor.
– Espere, o que... Como assim?
– Se vocês dois estarão apropriadamente vinculados – o Irmão ergueu o indicador –, e já vou dizendo que sou um cara antiquado, portanto quero que a mãe dos meus filhos esteja apropriadamente vinculada, ele vai ter que morar aqui.
Nesse instante, a campainha tocou de novo, e Fritz, que estava enxugando os olhos com um lenço branco, voltou correndo para atender a porta.
O mordomo deixou Tohr entrar – o que não era nenhuma surpresa – e depois todos os Bastardos foram entrando no átrio. Cada um deles.
Ela olhou de Xcor para Qhuinn em estado de choque.
– Eles também vêm para cá?
– É uma espécie de pacote – Qhuinn explicou com um sorriso. – Além do mais, fiquei sabendo que são péssimos no bilhar, o que é um bônus. Peguem suas tranqueiras, rapazes. Este é Fritz. Vocês aprenderão a amá-lo, ainda mais depois que ele passar as suas meias.
Layla estava absolutamente atordoada quando os guerreiros começaram a trazer todo tipo de bolsas e sacolas para dentro. Em seguida, foi acompanhada escada acima por dois dos três machos mais importantes da sua vida.
Blay, o terceiro, sorriu e lhe deu um forte abraço. Depois, o trio passou pelo escritório de Wrath em direção ao corredor das estátuas.
O que fez com que ela perguntasse:
– E Wrath está de acordo com isto?
Qhuinn assentiu enquanto Blay respondia:
– Mais guerreiros é sempre melhor. E Deus bem sabe que temos espaço. Além do mais, Fritz ficará extasiado: mais gente para quem cozinhar, mais limpeza a fazer...
– E, caramba, como aqueles machos são bons no campo de batalha. – Qhuinn relanceou para ela. – A noite passada? Teria sido uma tragédia nos registros da história sem o seu macho.
Xcor não reagiu ante o elogio. Bem, a menos que se contasse o rubor que cobriu suas faces.
– Bem, o mesmo pode ser dito dos Irmãos.
Quando chegaram à suíte onde os bebês estavam, Qhuinn foi quem se adiantou e abriu a porta.
Blay foi o primeiro a entrar e depois Xcor hesitou... antes de colocar um pé indeciso além da porta. E depois o outro. Como se tivesse medo de algum monstro debaixo da cama.
Layla olhou para Qhuinn. E depois segurou sua mão.
– Obrigada. Por isto.
Qhuinn se curvou tão baixo que chegou a ficar paralelo com o chão. Quando voltou a se endireitar, depositou um beijo na testa dela e murmurou:
– Obrigada você, pelos nossos filhos.
Layla deu um aperto no braço dele e depois entrou.
Xcor parou no meio do quarto e olhava na direção dos berços como se estivesse aterrorizado.
– Está tudo bem – ela disse, incentivando-o a ir em frente. – Eles não vão morder.
Ela o levou até Rhamp primeiro, e quando Xcor olhou para baixo, maravilhado, para a pequena criança, recebeu uma carranca em resposta.
Xcor riu de pronto.
– Céus, temos um guerreiro aqui.
Qhuinn e Blay se aproximaram abraçados, e Qhuinn disse:
– É mesmo, não? É isso o que eu também acho. Ele é durão. Não é, Rhamp? E emite lixo tóxico. Você vai descobrir isso mais tarde.
As sobrancelhas de Xcor se levantaram.
– Lixo tóxico...?
– Modo de falar. Mas você vai sentir o cheiro. Faz com que cresçam pelos no peito, e olha que vampiros nem têm isso.
– E esta é Lyric – Layla disse.
Xcor estava com uma expressão divertida no rosto quando olhou para o outro berço – e então tudo mudou.
Seus olhos marejavam e, desta vez, as lágrimas caíram. Relanceando para Layla, disse:
– Ela se parece... exatamente com você.
Enquanto Xcor tentava se recompor, Blay e Qhuinn se aproximaram por trás dele.
– Ela não é linda? – Qhuinn disse rouco. – Igual a nossa Layla.
Layla olhou para os três grandes guerreiros inclinados sobre a pequenina fêmea... E se sentiu tomada por uma sensação de amor e completude. Fora uma jornada longa e difícil, em que tudo poderia ter se perdido muitas vezes. E, no entanto, lá estavam eles, como uma família de sangue... e por escolha.
Naquele momento ela percebeu que Lassiter estava à soleira do quarto.
Levando o indicador aos lábios, ele fez um silencioso “psiu”. Depois piscou para ela e desapareceu em silêncio.
Ela sorriu quando as centelhas iluminadas surgiram no rastro dele.
– Este anjo pode estar mais preparado para o trabalho do que imagina...
– O que foi? – Xcor perguntou.
– Nada, nada – ela disse ao se inclinar para beijá-lo.
Ou talvez fosse tudo. Quem poderia dizer?
– Quer segurá-la? – Qhuinn perguntou.
Xcor se retraiu como se alguém tivesse lhe perguntado se gostaria de segurar um atiçador de lareira quente. Depois se recobrou, balançando a cabeça ao enxugar as lágrimas do rosto de um modo bem masculino, como se estivesse querendo tirar uma mancha de caneta permanente.
– Acho que ainda não estou pronto para isso. Ela perece tão... tão delicada.
– Mas ela é forte. E também tem o sangue da mahmen dela nas veias. – Qhuinn olhou para Blay. – E ela tem bons pais. Os dois têm. Estamos nisto juntos, pessoal, três pais e uma mãe, dois filhos. Bam!
A voz de Xcor se abaixou.
– Pai? – Ele riu com suavidade. – Passei de família nenhuma a uma companheira, um irmão e agora...
Qhuinn assentiu.
– Um filho e uma filha. Contanto que seja o hellren de Layla, você também será pai deles.
O sorriso de Xcor foi transformador, tão amplo que esticou o rosto dele de uma maneira que ela nunca vira antes.
– Um filho e uma filha.
– Isso mesmo – Layla sussurrou alegre.
Mas, no mesmo instante, aquela expressão desapareceu do rosto dele, os lábios se afinaram e as sobrancelhas desceram sobre os olhos como se ele estivesse pronto para atacar.
– Ela nunca vai namorar. Não me importo quem ele possa ser...
– Isso mesmo! – Qhuinn levantou a palma para um cumprimento. – E exatamente isso que eu estou falando!
– Não, não, esperem um instante. – Blay interveio quando eles chocaram as mãos. – Ela tem todo o direito de levar a vida que escolher.
– Isso mesmo – Layla concordou. – Isso de “dois pesos, duas medidas” é ridículo. Ela terá permissão para...
Quando a discussão começou, ela e Blay se apoiaram, e Qhuinn e Xcor ficaram ombro a ombro, com os braços imensos cruzados diante dos peitos.
– Sou bom com uma arma – Xcor disse como se aquilo encerrasse o assunto.
– E eu fico com a pá – Qhuinn completou. – Jamais encontrarão o corpo.
Os dois chocaram as juntas dos dedos e pareciam tão sérios que Layla teve que revirar os olhos. Mas logo sorriu.
– Sabem de uma coisa? – ela disse para os três. – Acho mesmo... que isto vai dar certo. Vamos, juntos, resolver tudo isso, porque é isso o que as famílias fazem.
Quando se colocou nas pontas dos pés para beijar seu macho, ela disse:
– O amor consegue consertar qualquer coisa... mesmo quando sua filha começar a namorar.
– Isso não vai acontecer – Xcor rebateu. – Nunca.
– Cara – Qhuinn disse, apoiando-o –, eu sabia que gostava que você...
– Ah, pelo amor de Deus... – Layla murmurou quando o debate foi retomado, e Blay começou a rir enquanto Qhuinn e Xcor continuavam a se entender.
Mas, no fim, ela acabou tendo razão.
Tudo deu muito certo como deveria dar, e o amor triunfou sobre todos os desafios. E anos mais tarde, muito mais tarde... Lyric namorou alguém.
Só que isso é outra história, para ser contada noutro dia.
J. R. Ward
O melhor da literatura para todos os gostos e idades