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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCOLHA DE ELPHANE / P. 2
A ESCOLHA DE ELPHANE / P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

A ESCOLHA DE ELPHANE / Parte II

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dezessete
ELPHAME PASSOU A mão trêmula pelos lábios enquanto corria da margem da floresta de volta para o grupo de rochedos. Só teve tempo de se erguer sobre a rocha e respirar
longa e profundamente por duas vezes antes de Brighid aparecer trotando ao longo do caminho de árvores, gritando-lhe um cumprimento. Elphame acenou com a mão em
resposta e obrigou-se a sorrir. Ninguém saberia só de olhar para ela que tinha acabado de ser beijada, lembrou a si mesma - nem mesmo a caçadora. Uma caçadora não
conseguia ler rostos, só conseguia ler rastros...
... A mente de Elphame se sacudiu como um potro assustado. Oh, Deusa! Brighid podia ler os rastros de Lochlan. A alegre expressão de saudação da caçadora se transformou
num franzir preocupado quando notou como o rosto de Elphame estava pálido.
- Cuchulainn disse que eu deveria levá-la de volta ao castelo, que já estava afastada por tempo suficiente para exigir demais de suas forças. Pela sua cara, ele
estava certo.
- Odeio quando ele está certo. - Elphame tentou mostrar indiferença, sempre tendo o cuidado de impedir que os olhos averiguassem obsessivamente a floresta em busca
do menor sinal denunciador de Lochlan.
- Todos nós odiamos quando ele está certo. Venha, ajudo você a descer. - Brighid a firmou enquanto El deslizava do rochedo. Depois ergueu uma sobrancelha para a
jovem descabelada e ofegante. - Precisa de uma carona de volta ao castelo?
- Não, estou bem.
- Tem certeza? Sabe que não me importo - disse Brighid.
- Sim, eu sei. - Ela sorriu do olhar sério da caçadora. - Obrigada, Brighid, aprecio a oferta, mas acho que só estou dura de ficar tanto tempo sentada.
Elphame estava emocionada com a oferta de auxílio de Brighid, assim como não esqueceria a noite em que Brighid carregara a ela - e Cuchulainn - da floresta até o
castelo. Nos últimos cinco dias, Brighid a visitara sempre que possível, mesmo que sua programação de caça fosse apertada. Brenna e Brighid fizeram todo o possível
para tornar seu cativeiro forçado suportável. E Elphame sentia-se uma traidora enquanto rezava para Epona para que Brighid não notasse os rastros incomuns de Lochlan.
Relaxe e converse com ela, Elphame ordenou-se. Deixe de parecer tão culpada.
- Estou contente que tenha vindo me apanhar. Senti falta de sua companhia nos últimos dias - disse Elphame.
- Ontem mais cinco homens, todos com as jovens esposas, se juntaram a nós.
- Eu não sabia. - Os olhos de Elphame se estreitaram. - Cuchulainn... - Ela pronunciou o nome do irmão como se fosse uma maldição. - Aquele estúpido superprotetor!
Ele não me contou que mais pessoas tinham se juntado a nós. Ele está me tratando como uma maldita inválida.
- Seu irmão é realmente inoportuno - disse Brighid, mas não conseguiu deixar de sorrir para Elphame. Ao menos ele não era chato, ou, apesar de todos os defeitos
irritantes, esquisito de se ter por perto. Exceto por Elphame, Brenna e alguns outros, ela geralmente achava difícil interagir facilmente com os humanos. Eles não
eram, claro, tão poderosos fisicamente como os centauros, mas lhe parecia que as limitadas habilidades físicas deles geralmente definiam suas personalidades também.
Tinha passado pouco tempo com humanos até recentemente, mas mesmo nesse curto período notara que humanos costumavam agir anormalmente perto daqueles de sua raça.
Ou os humanos exageravam - a ponto do embaraço - em demonstrações exuberantes de aceitação e fraternidade, ou pareciam precisar bufar, enfeitar-se ou tentar parecer
superiores. Brighid meneou a cabeça mentalmente. Não concordava com as visões da manada Dhianna sobre a separação das espécies, mas eles estavam certos quanto a
uma coisa: a maioria dos humanos era difícil de compreender.
Ela relanceou Elphame, que nem era humana nem centaura, e sorriu de sua expressão chateada. Embora não gostasse de ser diferenciada, Elphame nunca tentava fingir
ser nada senão o que era: uma líder natural que fora tocada por Epona. Brighid a respeitara por isso, antes mesmo de começar a gostar dela.
- Se está se sentindo bem o bastante para brigar com Cuchulainn, deve estar se recuperando. Isso certamente deixará Brenna contente - disse Brighid.
- Mas não Cuchulainn - disse Elphame com um sorrisinho satisfeito.
Elas caminhavam devagar de volta ao castelo, com a caçadora encurtando suas longas passadas para não incomodar os ferimentos de Elphame. Quando Brighid começou a
angular mais na direção da floresta do que do mar, Elphame sentiu sinos de alerta dispararem em sua cabeça e logo apontou para o imponente penhasco.
- Vamos caminhar ao longo da borda. Gosto de olhar para o mar.
Brighid mudou de direção, mas ela meneou a cabeça enquanto seguiam lentamente ao longo da borda traiçoeira.
- Não sei por que gosta daqui. Esse lugar me deixa nervosa.
Elphame lhe deu uma olhada surpresa.
- Não sabia que alguma coisa a deixava nervosa.
A caçadora bufou:
- Cair me deixa.... Muito nervosa. - Ela deu em Elphame uma cutucada gentil com o cotovelo. - Isso deve ser algo que você entende.
Elphame estremeceu num horror não tão zombeteiro.
- Está certa sobre isso. Não é uma experiência que eu queira repetir.
Brighid ficou em silêncio por mais várias passadas. Precisava conversar com Elphame sobre o acidente ou, mais especificamente, sobre a desconcertante evidência que
descobrira. Elphame parecia mais relaxada do que antes. Estava caminhando confortavelmente ao lado dela, deixando as mãos arrastarem pelos tufos de capim que cresciam
em moita perto do penhasco. Agora parecia uma hora tão boa quanto qualquer outra. Brighid pigarreou e a olhou de esguelha.
- Sempre quis perguntar uma coisa sobre aquela noite, mas pensei que deveria esperar até você estar recuperada - ou ao menos pensando com mais clareza.
- Pela Deusa! Não poderia estar mais cansada de ter meu juízo questionado. Garanto que estou pensando claramente. Quer que eu recite alguns poemas épicos como prova?
Brighid ergueu as mãos como se defendendo-se de um ataque.
- Acredito em sua palavra, deusa.
Elphame fez-lhe cara feia.
- Você me transportou nas costas. Deveria saber que não deve me chamar de deusa.
- Está certa. Uma deusa decente não seria tão pesada - disse Brighid sem pensar.
Com a expressão horrorizada no rosto da caçadora, Elphame explodiu numa gargalhada, segurando o flanco do corpo com a dor inesperada.
- Oh, pare! Não me faça rir. - Ela se apoiou em Brighid, tentando recuperar o fôlego, mas sempre que olhava para a caçadora recomeçava a rir.
- Pode parar de rir agora. Não foi tão engraçado. - Brighid franziu a testa. - Ou está histérica?
Elphame sacudiu a cabeça, buscando ar.
- Não, é que o que você disse é verdade. Não sou exatamente miúda.
Brighid bufou:
- Alguém a chamou de miúda?
- Não. - El se controlou e seguiu mancando um pouco, segurando o flanco dolorido. - Até chegar ao Castelo MacCallan, ninguém, exceto minha família, me chamava por
qualquer coisa normal. Sempre fui Aquela Tocada por Epona, A Especial. É uma bela mudança ser importunada e ouvir que meu traseiro é muito grande.
- Eu não importuno e não disse nada sobre suas ancas - Brighid bufou.
- Não diretamente, mas é bom que se sinta à vontade para me provocar um pouco. E você não é chata, essa é Brenna.
- Ela é mesmo - disse Brighid. - Sabia que ela anda insistindo para que eu beba um de seus preparados herbais? Disse que ajudará a aumentar minha força para que
a caçada não me deixe muito fatigada.
- O gosto é horrível? - perguntou Elphame com simpatia.
- Sim. - Brighid fez uma careta.
- Funciona?
- Claro.
As duas compartilharam um olhar de sofrimento.
- Talvez devêssemos dizer que Cuchulainn anda muito cansado ultimamente - disse Elphame com ar travesso.
- Excelente ideia. - Brighid riu. - E você está certa, não há nada de errado com seu juízo.
- Bem, faça-me um favor e passe a notícia adiante. Estou cansada das pessoas me tratando como se a queda tivesse desabilitado permanentemente minha capacidade de
raciocínio.
- Seria um grande prazer.
- E agora que esclarecemos que posso lhe dar uma resposta coerente, o que é que queria me perguntar?
Brighid ficou calada e juntou os pensamentos antes de falar. Quando o fez, sua voz perdeu seu tom provocador: - Naquela noite, quando matou o javali, havia alguma
outra criatura com você na ravina?
- Outra criatura? O que quer dizer? - Elphame teve que lutar para manter a expressão franca e neutra.
- Não tenho certeza - falou Brighid devagar, como se tentasse solucionar uma charada em voz alta. - Encontrei o javali com a garganta cortada, morto, no meio do
riacho. E pude ver com clareza onde você caiu. Mas vi outras coisas também. Rastros que não reconheci perto de você.
- Outros rastros? Não compreendo - disse Elphame, sentindo o peito constrito. Não gostava de mentir. Até o acidente não tinha prática nisso, e lhe doía enganar as
amigas.
- Também não compreendo. Admito, estava escuro e a chuva já tinha começado a lavar os rastros, mas tenho certeza de que o que vi era incomum. Eram os rastros de
um animal que nunca encontrei antes. - Brighid olhou para Elphame, a preocupação transparecendo em seus olhos. - E eu vi rastros similares desde então na floresta
que cerca o Castelo MacCallan.
Elphame lutou contra o pânico que ameaçava lhe bloquear a garganta. Na voz mais indiferente que conseguiu assumir, perguntou: - Poderia ser um urso grande? Você
sabe que a caça ficou abandonada nesses bosques por grande parte do último século. Não há como dizer se animais selvagens poderiam vicejar e vagar livremente.
Brighid suspirou:
- Pode ser, mas os rastros não são de urso. É uma criatura de duas pernas. Sei que parece absurdo, mas me pergunto se os dragões não retornaram a Partholon.
Elphame não precisou fingir surpresa. Dragões foram assunto de histórias de ninar e baladas por séculos. Se existiram, não eram vistos há centenas de anos.
- Acha que estou imaginando coisas - disse Brighid.
- Não! Não duvido de sua palavra. Talvez existam dragões nessa floresta. - Elphame encarou Brighid e exibiu um sorriso travesso. - Só não conte a Cuchulainn. Ele
insistirá em arranjar um arpão e um grupo de caça ao dragão.
Brighid riu.
- Brighid, eu ficaria tranquila se me prometesse uma coisa.
A caçadora ergueu as sobrancelhas para a amiga.
- Seja que criatura for, não vá atrás dela. Deixe como está - ao menos até estarmos mais acomodados aqui e você puder chamar mais caçadoras para ajudá-la. - Elphame
sentiu suas palavras dissimuladas marcarem-na como a pior das traidoras, tanto com Lochlan quanto com a amiga, mas não sabia mais o que dizer - ou fazer.
Brighid deu de ombros.
- Como quiser, Elphame. Estou bem ocupada fornecendo a carne diária para sua crescente horda.
Elas caminharam em silêncio, ambas pensando nos rastros de garras na floresta.
Dezoito
- EL! AQUI. - CUCHULAINN ergueu a mão chamando a irmã e a caçadora para se juntarem a ele perto da entrada do castelo.
Decepcionada por perceber o quão cansada a relativamente pequena caminhada a deixara, Elphame forçou um sorriso firme no rosto e endireitou os ombros. Conteve uma
careta quando o ombro direito a lembrou que ainda estava longe de estar recuperada. Enquanto ela e Brighid se aproximavam do irmão, Brenna surgiu do interior do
castelo, limpando as mãos em seu avental salpicado de sangue. Viu Elphame e Brighid e gritou um cumprimento entusiasmado, mas imediatamente se transformou de amiga
em curandeira preocupada quando chegaram perto o bastante para que desse uma boa olhada na paciente.
- Como está a mão do trabalhador? Espero que o ferimento não seja muito severo - perguntou Elphame a Brenna.
- Ele vai se recuperar, mas acredito que pensará duas vezes diante do impulso de piscar para uma moça atraente quando estiver cortando troncos. - Ela estreitou os
olhos para Elphame, percebendo o rosto pálido e tenso. - Posso ver que a surpresa que planejamos para você vem em boa hora - bufou. Ignorando os protestos dela,
ergueu o corpete de Elphame e verificou o curativo do ferimento.
- Ela está bem? Devo mandar que tragam uma chaise? - perguntou Cuchulainn, espiando por cima do ombro de Brenna.
- Não, ela não precisa de uma chaise! - retrucou Elphame, baixando a camisa e endereçando a Brenna e ao irmão olhares gêmeos de aborrecimento. - Ela precisa de um
banho, algo além de sopa para comer e um pouco de privacidade.
Os lábios de Brenna se inclinaram em seu encantador sorriso torto.
- Então sua surpresa será muito bem-vinda.
- De que surpresa estão falando? - perguntou Elphame, tentando não ranger os dentes. Sinceramente! Os três a deixariam louca. Só queria tomar banho e jantar - e
ficar algum tempo sozinha para analisar suas turbulentas emoções.
- Venha conosco, minha irmã - disse Cuchulainn misteriosamente. Enroscou um braço no dela e a conduziu ao castelo.
- Elphame! Que bom que está de pé novamente, minha senhora!
El ergueu a cabeça para a voz que vinha do caminho de ronda recém-reconstruído dentro dos muros principais do castelo. Ela acenou para o homem e vasculhou a memória
em procura do nome dele.
- Obrigado, Brendan - gritou.
Depois a voz dele foi acompanhada por muitas outras, às quais ela respondeu da mesma maneira enquanto caminhava lentamente pelo buraco no muro interno para o centro
do castelo, onde parou maravilhada com a mudança que cinco dias acarretara.
O grande coração do castelo parecia nascido há pouco. A fonte gorgolejava alegremente. Alguém trouxera grandes samambaias do chão da floresta, que foram plantadas
em imensos vasilhames de barro e dispostas num padrão curvado ao redor da garota de mármore. Candeeiros novos presos às paredes e colunas sustinham tochas que queimavam
brilhantes, levando luz, calor e uma pulsação cor de fogo ao castelo. O chão estava imaculado, liso e macio, e agora que fora limpo, a pedra parecia como se o desgaste
de mais de um século simplesmente tivesse servido para acentuar sua beleza.
- Oh, Cuchulainn! As colunas!
Ela apertou-lhe a mão carinhosamente antes de correr até a gigante coluna central. Firmava-se como um sentinela recém-admitido, vigilante e orgulhoso. Fora lindamente
restaurada. A dançante luz das tochas acariciava os intricados entalhes de nós entrelaçados e os adoráveis desenhos que formavam pássaros e éguas empinadas.
E a pedra sussurrou, com uma voz musical e reverberante que parecia ecoar por sua alma.
Automaticamente, Elphame se aproximou do pilar, ansiosa por uma comunicação mais íntima com a pedra. Depois sentiu dezenas de olhos observando-a e lembrou-se de
que não estava sozinha. Elphame cerrou os punhos ao lado do corpo. O que estava pensando? Não pretendia fazer uma exibição na frente do castelo inteiro.
Os cascos do centauro ressoaram solidamente no chão de pedra quando Danann destacou-se do grupo de trabalhadores que tinham se congregado perto da fonte.
- A pedra a chama. É um dom único, um dom que não deve hesitar em atender. - O velho centauro não ergueu a voz, mas ela se espalhou pelo ambiente cada vez mais lotado.
Elphame olhou nervosa de Danann para tudo ao redor.
- Não - disse ele, juntando-se a ela ao lado da coluna e baixando a voz apenas para os ouvidos dela: - Não fragmente sua atenção. Você só tem uma linha de ação.
Quando a pedra fala, você atende. - Ele suavizou a repreensão de suas palavras com um sorriso gentil. - Você está destinada a ser A MacCallan. Seu castelo a chamou
de uma grande distância e através do abismo do tempo. Agora você deve responder com sua alma, assim como com seu corpo.
Elphame lambeu os lábios e engoliu um nó na secura da garganta. As palavras dele faziam sentido. Ela estava conectada àquele castelo - aos muros, pisos e colunas,
e aos espíritos do passado. Queria aquela ligação, sua própria alma ansiava por ela.
Ela deu mais uma olhada em Danann. Ele assentiu em encorajamento.
Elphame limpou a mente e pressionou as palmas na coluna central. A antiga pedra se tornou fluida sob suas mãos quando o calor começou. O calor aumentou rápido, subindo
por seus braços e tomando seu corpo - e uma torrente de sentimento encheu sua mente com um único grito de júbilo: Fé e Fidelidade!
Seu coração pulou em reconhecimento ao lema do clã MacCallan que as pedras do castelo - seu castelo - gritaram numa única e vitoriosa voz. Elphame arfou com a doce
intensidade da alegria. De uma parte distante da mente, notou que Cuchulainn se aproximava dela, e que Danann o deteve pousando sua mão nodosa no braço do guerreiro.
- Sua irmã está segura. Ela tira sua força dessas pedras.
Elphame ouviu a voz do artífice como se viesse de uma grande distância, mas as palavras dele se gravaram fundo em sua consciência.
Ela podia tirar força das pedras? Que ideia incrível, mas como isso seria possível?
No instante em que pensou, o calor que a preenchia se transformou, mudou e reagiu a uma pergunta velada. O calor sob suas mãos aumentou e Elphame se sentiu afundar
um pouquinho na pedra temporariamente maleável.
Energia agitou-se em seu corpo. Como um mergulhador vindo à tona após uma busca submersa insuportavelmente longa, Elphame absorveu força da pedra. A dor no ombro
e no flanco foi abrandada, e a dor de cabeça que a perseguia há cinco dias evaporou-se.
Elphame fechou os olhos e respirou fundo, purificadoramente, centrando-se como Danann lhe ensinara dias atrás. Depois ela se concentrou em sua conexão com a pedra
viva. Obrigada. Não sei por que estão me oferecendo esse presente mágico, mas obrigada.
O espírito da coluna central do castelo lhe respondeu - dessa vez em mais do que fragmentos de sentimentos e ondas de emoções: Há muito aguardamos o retorno de MacCallan
e do pulso da vida dentro de nossos muros. Nós exultamos por ter vindo reclamar seu direito de nascença. Contemple o que é seu, deusa!
Com uma força que quase a assustou, Elphame sentiu seus sentidos se ampliarem conforme seu espírito se unia aos espíritos das pedras. Houve um momento de confusão
e rodopiante vertigem enquanto se acostumava à sua nova consciência. Então mais poder a preencheu e, com uma explosão de energia, ela subitamente era um só com o
castelo. As paredes se tornaram sua pele, seus membros eram torres e aposentos reconstruídos, e a espinha era a própria coluna central em si. Podia sentir cada esconderijo
e alcova do castelo. Eram tecido e sangue, assim como ela podia sentir que sublime prazer era seu "corpo" estar vivo e sendo cuidado. Este é meu lar. A adorável
carícia de seus pensamentos fluiu pela fundação do Castelo MacCallan. O lar de seu clã ancestral vivia mais uma vez.
Cuchulainn observou o reino espiritual envolver sua irmã. A mão firme de Danann permanecia uma pressão constante sobre seu braço, como se o velho centauro soubesse
o quanto lhe era difícil liberar a irmã para um reino que ele rejeitara tão completamente. Mas até ele tinha que admitir que era impressionante. Apenas momentos
antes Elphame parecia cansada e esgotada. Agora, diante de seus olhos, ele a observava mudar. Ela brilhava com o poder do antigo coração do castelo. Suas faces coraram
e o cabelo esvoaçava com a incorporação do espírito do castelo.
Pela primeira vez na vida, Cuchulainn viu a Deusa dentro de sua irmã ganhar vida por completo, e por um instante era como se estivesse observando uma espantosa estranha
tomar o lugar dela. Sabia que era o que ela sempre desejara, essa conexão com o reino espiritual, e sabia que devia se sentir feliz por ela - finalmente estava vivendo
seu destino, mas isso o entristecia quase tanto quanto o assombrava.
Ele tirou os olhos de Elphame para estudar as pessoas e centauros que os cercavam. Muitos deles estavam com as mãos unidas. Duas mulheres tinham caído de joelhos.
Em todos os rostos, Cuchulainn viu refletido o assombro e o amor que sentiam por sua irmã tocada pela Deusa. Eles a seguiriam a qualquer lugar. Nós, consertou ele,
nós a seguiríamos a qualquer lugar.
Naquele momento Elphame jogou a cabeça para trás e numa voz amplificada pelo poder dos espíritos do castelo gritou as palavras que a preenchiam até quase transbordar:
- Fé e Fidelidade!
- Fé e Fidelidade! - Automaticamente, a voz de Cuchulainn se uniu à da irmã no antigo grito de batalha do clã, e logo todas as vozes do Castelo MacCallan se misturaram
num grito que ecoou das paredes de pedra viva até a floresta ouvinte: - Fé e Fidelidade!
Dezenove
ELPHAME OLHOU AO redor enquanto esfregava as mãos que formigavam. Ainda cheia de energia pela comunhão com os espíritos das pedras, descobriu ser quase impossível
ficar de pé. Estava cheia de força, esperança e júbilo, mas seus olhos inquietos vasculhavam as pessoas que se juntaram ao redor dela. Ela se abraçou à espera da
reação ao que tinham acabado de testemunhar. Sim, eles responderam ao seu grito e foram capturados na magia do momento. Mas a que custo? Será que a veriam como a
chefe do clã e a aceitariam como tal, ou começariam a se afastar dela? Ou, pior, será que tentariam venerá-la?
A miúda governanta Meara foi a primeira a falar. Seu rosto rechonchudo fez covinhas adoráveis quando ela fez uma rápida mesura e sorriu para Elphame.
- Eu supervisionei a limpeza dessas colunas - começou a dizer numa voz suave e hesitante, mas conforme continuava a falar, o nervosismo se acalmava. - Eu mesma restaurei
a coluna central. - O olhar de Meara tocou a magnífica coluna com um olhar amoroso de orgulho e realização. - Não posso me comunicar com os espíritos das pedras
como você, mas juro que pude senti-los - a força e, acima de tudo, as boas-vindas. - Num impulso, ela se aproximou e apertou a mão de Elphame. - Você está certa.
Este é nosso lar. As próprias pedras nos dão boas-vindas.
Em meio a uma explosão de emoção, Elphame lutou para encontrar a voz.
Um jovem veio parar ao lado de Meara. Ele se curvou para Elphame, que pensou reconhecê-lo como um dos homens que ajudaram a erguê-la no lombo de Brighid na noite
do acidente. Mas antes que Elphame pudesse cumprimentá-lo, ele caiu dramaticamente de joelhos. Fixando os olhos nos dela, falou numa voz cheia da paixão da juventude:
- Nunca tive um lar para chamar de meu. Sou o mais novo de dez filhos e por toda a vida me senti deslocado, temporário. Acho que muitos de nós já se sentiram assim.
- Ele se calou e olhou ao redor pelo grupo misto de humanos e centauros. Várias cabeças assentiram e Elphame ouviu sons genéricos de concordância. - Mas não mais.
Não nasci no clã MacCallan, mas quando trabalhei para reconstruir essas paredes também senti o chamado das pedras. Eu me encaixo aqui, como nunca antes. Este castelo
pôs suas fundações em mim, e se A MacCallan me aceitar, juro aliança a você e carregarei orgulhosamente o nome do clã até minha morte e depois, se Epona permitir.
- Assim como eu! - gritou uma voz à direita de Elphame, e outro homem se pôs de joelhos.
- E eu!
- Eu também!
Impressionada, Elphame observou cada pessoa no grande aposento central do castelo, homens, mulheres e centauros igualmente, inclusive a orgulhosa caçadora Dhianna,
ficarem de joelhos, até apenas Cuchulainn e Danann permanecerem de pé. Então Cuchulainn foi para o lado da irmã.
- Eu, claro, já pertenço ao clã MacCallan, mas neste dia me junto a todos que estão aqui jurando aliança a você, minha irmã e minha chefe. - Cuchulainn se ajoelhou
diante dela.
- Há décadas jurei aliança ao Templo de Epona, e esse é um vínculo que não posso quebrar - disse Danann devagar. - Mas por meio disso reconheço que você é a herdeira
de direito do clã MacCallan, e me coloco como testemunha dos juramentos feitos a você neste dia. - Ele se curvou galantemente para Elphame.
- Obrigada, Danann. Então seja testemunha de que como A MacCallan aceito o juramento de cada humano e centauro presente hoje. - Suas palavras foram claras e repletas
com a força do castelo, mesmo quando lágrimas de alegria ameaçaram brotar de seus olhos brilhantes. - E selo esta aliança à moda antiga. - Elphame ergueu as mãos
e invocou as palavras imortais de vinculação ao clã: "Pela profunda paz do ar corrente, eu vos vinculo a mim.
Pela profunda paz do fogo crepitante, eu vos vinculo a mim.
Pela profunda paz da onda fluida, eu vos vinculo a mim.
Pela profunda paz da terra serena, eu vos vinculo a mim.
Pelos quatro elementos, vós estais vinculados a mim, A MacCallan, e pelo espírito de nosso clã o vínculo está selado. Assim foi dito, assim seja feito.
Erga-se, clã MacCallan!"
Com um grito, o lugar irrompeu em vivas enquanto o recém-formado clã se colocava de pé. Elphame secou lágrimas de felicidade do rosto enquanto observava seu clã
se congratular entre si. Odres subitamente apareceram e foram passados com entusiasmo enquanto brindes à saúde d'A MacCallan eram proclamados.
- Bom trabalho, minha irmã - disse Cuchulainn ao seu ouvido enquanto a abraçava com força.
- É como viver um sonho, Cuchulainn. - Um sonho... A palavra ecoou pela mente dela, evocando imagens que súbita e inesperadamente a fizeram desejar que Lochlan estivesse
ao seu lado. Será que ele lhe teria jurado aliança? Caso jurasse, será que faria diferença para Cuchulainn? Aquilo tornaria Lochlan um deles? Será que Cuchulainn
conseguiria enxergar que Lochlan era algo mais do que um antigo inimigo? Ou só seria visto como uma ameaça, algo que poderia criar um racha entre ela e seu clã?
- Eles são meus - disse com ferocidade.
- Eles são... Nós somos. - O guerreiro sorriu para sua chefe.
Eles lhe pertenciam, e através deles ela também encontrara seu lugar.
Um dos homens apareceu com uma flauta e começou a tocar uma melodia leve e animada, que logo foi acompanhada por outra flauta e o som distintivamente líquido de
uma lira. Elphame sorriu. Queria dançar, cantar e exultar pela noite inteira, mas antes que pudesse agarrar a mão de Cuchulainn e fazê-lo dançar com ela Elphame
sentiu uma mão refreadora em seu braço. Ergueu a cabeça para deparar com os olhos sábios de Danann.
- É apenas temporário - disse calmamente. - A força que tomou emprestada da pedra logo desaparecerá.
Imediatamente atento, Cuchulainn uniu o braço ao da irmã e vasculhou a multidão até encontrar a cabecinha morena de Brenna parada quieta por trás da caçadora, a
cabeça abaixada para que o espesso cabelo escondesse a metade desfigurada do rosto. Como se sentisse seu olhar, ela ergueu a cabeça e leu o familiar ar de preocupação
no rosto bonito de Cuchulainn. Ela assentiu, falou com Brighid e as duas começaram a abrir caminho até Elphame.
Satisfeito, Cuchulainn se virou para a irmã.
- Reconheço esse ar em seus olhos, minha irmã, mas a menos que queira ficar pálida e desmaiar na frente de todos, acho que deve reconsiderar a dança para a qual
pretendia me arrastar.
Elphame crispou os lábios e teria gritado uma rápida réplica lembrando Cuchulainn de que ela não tinha desmaiado se sua dor de cabeça não tivesse escolhido aquele
instante para voltar a martelar com uma vingança nauseante.
- Seu rosto acaba de perder a cor - disse Brenna quando se aproximou de Elphame. - É a cabeça?
- Se eu disser que sim, terei que tomar mais do seu chá?
Brenna tentou esconder o sorriso.
- Claro.
- Então minha cabeça está ótima. - Elphame sorriu, depois se encolheu quando uma pontada de dor martelou por sua têmpora em compasso com as batidas do coração.
- Você mente mal.
- Eu diria que é a hora perfeita para a surpresa dela - disse Danann.
Cuchulainn, Brenna e Brighid sorriram em concordância.
- Clã MacCallan! - A voz de Cuchulainn irrompeu pelos ruídos de celebração e a sala se aquietou. - Sua chefe vai se retirar aos seus aposentos para descansar e se
refrescar antes do banquete da noite.
A testa de Elphame se enrugou em confusão. Seus aposentos? Ele não queria dizer tenda?
Os olhares brilhantes da multidão e os gritos de "Descanse bem, MacCallan!" diziam que eles estavam a par do que era também - talvez Cuchulainn tivesse criado para
ela uma área improvisada dentro do terreno do castelo. Admitiu consigo mesma que a ideia era atraente, não importava o quão rudimentar fosse o abrigo temporário.
Então Elphame simplesmente sorriu e acenou enquanto Cuchulainn, acompanhado por Brenna e Brighid, a levava do salão principal por uma passagem que se curvava para
a direita, bem iluminada por candeeiros que ardiam brilhantes nas paredes. Ela olhou ao redor com curiosidade. Não tinha passado muito tempo naquele lado do castelo.
Sabia que abrigava os quartos particulares dos MacCallan, mas estivera mais preocupada com a renovação da cozinha e dos cômodos de reunião pública - e, claro, estivera
tão fascinada com a fonte e o coração do castelo que pouco pensara nos quartos particulares.
- Para onde está me levando?
Cuchulainn apenas sorriu enigmaticamente. Elphame suspirou. Conhecia aquele olhar; não arrancaria nada dele.
- Teimoso - disse El. - Você sempre foi tão teimoso.
Atrás deles, Brighid bufou e murmurou: - Tal irmão, tal irmã.
Brenna deu uma risadinha.
Elphame olhou por cima do ombro para as duas amigas.
- Sou a mais velha. Então, se for assim, é mais tal irmã, tal irmão.
A caçadora ergueu uma sobrancelha perfeitamente arqueada.
- Aceito a correção.
Foi a vez de Cuchulainn bufar.
Do corredor se ramificava uma passagem à esquerda, na qual Cuchulainn virou. Elphame piscou de surpresa por ela terminar diante de uma grossa porta de madeira na
qual estava esculpida a égua empinada da insígnia MacCallan. Candeeiros gêmeos queimavam a cada lado da porta, de modo que a novidade da madeira de pinho polida
resplandecia sob a luz do fogo com um rico lustre. Elphame traçou com os dedos o contorno da égua.
- Isto é lindo. Dificilmente teria sobrevivido ao fogo - disse.
- Não sobreviveu. Vários dos homens a cortaram de uma das árvores de sua floresta, e Danann a entalhou. Ele disse que era adequado a Insígnia MacCallan adornar a
porta do aposento da chefe - explicou Cuchulainn.
- O aposento da chefe? - repetiu Elphame. As palavras carregavam magia interminável.
- É um presente do seu clã. - Ele abriu a porta.
A primeira coisa que ela notou no quarto foi que estava cheio de luz. Candeeiros ardiam iluminando as paredes - altos candelabros de metal sustinham velas acesas
e numa das paredes o fogo em uma imensa lareira crepitava alegremente. Janelas altas e estreitas se espaçavam ao longo de duas das quatro paredes deixando entrar
a luz fraca do fim de tarde. O quarto imenso era mobiliado apenas com um jogo simples de mesa e cadeiras, uma pequena penteadeira sobre a qual estava suspenso um
espelho ornado e um chaise dourado que estava disposto próximo a uma cama grande coberta com pesados lençóis e mantas, que cintilavam com um brilhante brilho dourado
conforme as luzes das velas bruxuleantes capturavam as formas bordadas de nós entrelaçados.
Elphame caminhou até a cama e passou a mão sobre a manta mais próxima.
- Mamãe. - Ela sorriu para o irmão. - Mamãe mandou isso.
- Sim, chegou essa manhã, junto com vários barris de vinho excelente e mais duas coisas. - Ele apontou para o chaise dourado e o espelho vistoso.
Elphame sentiu uma risada borbulhar no peito.
- Mamãe enviou o essencial. - E numa torrente ela se lembrou do sonho e da voz da mãe perguntando a Epona: Posso ao menos enviar uma remessa especial de vinhos e
lençóis? A maneira como ela está vivendo é simplesmente selvagem. Era verdade! Por algum capricho da Deusa, ela ouvira a conversa da mãe. Sua mãe confiava nela,
e Epona estava cuidando dela.
Como poderia duvidar disso, Amada?
A voz que encheu sua cabeça era quase tão familiar quanto a da mãe, mesmo que só a tivesse ouvido uma vez. Epona! Ela pertencia à Deusa - não à maneira de sua mãe,
mas de uma maneira que era unicamente sua, assim como seu corpo era unicamente seu. E finalmente Elphame sentiu um impulso dentro dela, uma aceitação de si mesma
que demorara muito tempo. Com uma mão trêmula, acariciou a manta macia novamente e fez um agradecimento silencioso à Deusa.
- Eu disse que ela ficaria sem fala - disse Cuchulainn, sorrindo como um menino desobediente.
- Claro que está sem fala - disse Brenna, sorrindo em meio a lágrimas. - Vamos mostrar a ela o resto.
- Tem mais? - perguntou Elphame.
Três cabeças assentiram. Elphame pensou que eles pareciam crianças alegres. Brenna lhe tomou a mão e a guiou até uma pequena passagem de pedra que arqueava onde
as duas paredes externas se encontravam. Abria-se para uma torre redonda dentro da qual degraus de pedra curvavam-se cada vez mais alto, espiralando de encontro
à grossa parede de pedra. Elphame inclinou a cabeça para trás. Podia ver que os degraus levavam a algum tipo de plataforma.
- Lembra-se da torre que acabei de desenhar hoje? A única que os trabalhadores completaram? - perguntou Brenna.
Elphame assentiu:
- É esta. Sua torre está restaurada.
- Todos nós quisemos que a Torre do Chefe fosse restaurada primeiro - disse Cuchulainn.
- Todos concordamos que seria o certo - acrescentou Brighid.
- Está bem vazia agora, mas um dia você a encherá com todos os seus livros e afins. Você a tornará sua - disse o irmão.
- Eu... - El teve que parar e pigarrear. - Mal posso esperar para ver.
Brenna lhe segurou o punho, mudando de amiga para curandeira outra vez.
- Acho que não seria boa ideia. Sei que acabei de lhe jurar aliança, mas no que diz respeito à sua saúde, eu ainda a domino. E agora seu corpo precisa de descanso
e comida, não do exercício de subir todos aqueles degraus.
Antes que ela pudesse discutir, Cuchulainn disse: - A torre esteve aí por mais de cem anos. Pode esperar mais uma noite.
- Pensei que quisesse um banho - disse Brenna.
Os olhos de Elphame se iluminaram.
- Se puder arrastar uma banheira até aqui para que eu possa tomar banho, prometo esquecer a torre - ao menos até de manhã.
- Arrastar uma banheira? - Brighid riu e os outros dois a imitaram. - Acho que podemos fazer melhor do que isso para A MacCallan. - A caçadora apontou com a cabeça
para a parede na qual a lareira fora construída. - Essa é a minha parte favorita. Acompanhe-me, senhora. - Ela sorriu, farfalhando a cauda loira enquanto levava
Elphame para um buraco despercebido na parede situada perto do ponto mais distante da lareira. Parecia como se parte da parede tivesse se aberto pela mão de um gigante.
Intrigada, Elphame observou a caçadora desaparecer no vão escuro. Sua voz ressoou misteriosa e abafada pelas grossas paredes de pedra.
- Tenha cuidado. Há bastante espaço, mas é um pouco úmido e costuma ser escorregadio para cascos.
Elphame adentrou a parede seccionada e piscou de surpresa. Não era outro cômodo. Degraus amplos se abriram diante de seus pés. Estavam iluminados por tochas nas
paredes e ela observou o lombo de Brighid desaparecer conforme a escadaria afundava e virava gentilmente à esquerda.
- Vá em frente, vai adorar isso - persuadiu Cuchulainn quando ela hesitou.
Elphame desceu com cuidado pelos degraus, acompanhou a curva para a esquerda e seguiu vários passos mais até terminar num cômodo pequeno semelhante a uma caverna.
A caçadora estava junto a uma piscina funda da qual ondas de vapor se suspendiam no ar espesso e quente. Elphame podia ver que a piscina era alimentada por uma queda-d'água
que caía preguiçosamente de uma parede acima dela e escorria pela outra ponta por um canal escavado no chão de pedra. Braseiros abertos guardavam pedras lisas e
redondas que Elphame sabia que substituiriam as pedras quentes, que já deviam ter sido colocadas na piscina para aquecer a água normalmente fria.
- Os óleos e sabonetes são das mulheres - disse Brighid, apontando para uma impressionante coleção de garrafinhas e jarros dispostos ao lado da piscina. - Cada uma
trouxe seus favoritos. - Ela se inclinou e deu um tapinha num jarro grande de vidro com o dedo. - Minha oferta é pedra-sabão.
Brenna apontou para uma garrafa redonda.
- Eu escolhi um óleo com essência de camomila do qual particularmente gosto muito. Sempre o considerei tranquilizante. Não deixe de esfregar um pouco dele no flanco.
- A curandeira olhou atentamente para Elphame. - E não quero você se banhando por muito tempo.
- Prometo - disse Elphame, erguendo as mãos em rendição.
- Não trouxe óleo nem perfume - disse o irmão. - Mas consegui convencer o estalajadeiro a doar essas toalhas.
- É perfeito - suspirou Elphame.
- Não - disse Brighid, recuando em direção à escada. - Será perfeito quando a deixarmos sozinha para que se banhe sem uma audiência verificando seu pulso e sua respiração.
Brenna franziu a testa, mas não discutiu quando Brighid lhe segurou os ombros e a empurrou em direção à saída. Depois ela pôs o olhar em Cuchulainn.
- Sua irmã pode se banhar sozinha.
- Hrumph - resmungou ele, e saiu do cômodo.
- Obrigada, Brighid - disse Elphame. - Você é uma boa amiga.
- Qualquer coisa pela MacCallan. - A caçadora deu uma piscadela alegre. Começou a subir os degraus, depois parou e torceu a cintura para que pudesse buscar os olhos
de Elphame. - Quase esqueci... Estamos planejando um jantar especial esta noite em honra à sua recuperação. É uma coisinha que cacei especialmente com você em mente.
Mas não precisa se apressar, Wynne prometeu manter um prato aquecido para você.
- Você caçou apenas para mim? O que é?
- Javali.
Ignorando a dor entorpecedora na têmpora, Elphame jogou a cabeça para trás e riu.
Vinte
ELPHAME APERTOU A mão sobre o flanco e respirou fundo, tentando recuperar o fôlego. Brenna estava, claro, certa; a íngreme escada espiralada provavelmente era demais
para ela ter tentado naquela noite, mas não fora capaz de resistir à atração da famosa Torre do Chefe - sua torre. A verdade era que, exceto pela respiração curta
e pelas dores indistintas em seu corpo, sentia-se maravilhosa. O longo banho - durante o qual lavou e enxaguou o cabelo três vezes - fora exatamente o que precisava,
assim como a excelente refeição de javali assado. Pensar nisso ainda fazia Elphame sorrir. Eles se sentaram às mesas recém-produzidas, fabricadas longas e compridas
para acomodar tanto centauros quanto humanos, e festejaram. Não havia vidro nas janelas que se alinhavam no Grande Salão e as paredes ainda estavam enegrecidas pelo
fogo, além de adornadas por tapeçarias que ainda estavam sendo tecidas, mas a sensação de companheirismo era palpável. Com Brighid e Brenna num de seus lados, Cuchulainn
e Danann no outro e seu clã bradando ruidosamente entre si, as dores no corpo pareceram fáceis de esquecer... Diferentemente de Lochlan.
Se ocasionalmente olhava ao longe e perdia o fio da conversa à sua volta, ninguém estranhava aquilo. A MacCallan estava forte e em recuperação, mas sofrera um ferimento
terrível. Nunca poderiam imaginar para onde seus pensamentos eram levados.
Teria ficado lá a noite inteira, cercada por seu clã e imersa em pensamentos esparsos, se Brenna não tivesse insistido para se retirar e ter uma boa noite de descanso
- ameaçando preparar um novo lote de chá medicinal caso Elphame insistisse em ficar.
Ela se retirara em meio a calorosos desejos de boa noite, e apesar de seu aposento ser particular e maravilhosamente confortável e seu corpo estar definitivamente
cansado, sua mente não ficaria quieta o bastante para que descansasse.
Ela tinha seu lar e tinha seu clã; agora tudo o que faltava era seu companheiro...
Seu consorte. Mas seria mesmo ele? Enquanto subia a escada espiralada até a Torre do Chefe, sua mente se encheu de dúvidas. Na floresta, ao olhar nos olhos dele,
tudo fora tão claro. Sentira que seu futuro estava refletido ali, mas agora - sob a luz da realidade - ela só tinha perguntas. Queria vê-lo outra vez. Precisava
estar com ele, conversar com ele e passar algum tempo conhecendo-o melhor. Ele parecia conhecê-la tão bem; podia ler seu humor como se tivessem passado toda uma
vida juntos. Mas ele lhe era um estranho - um estranho misterioso e alado. E como ela poderia ficar com ele? Seu clã não entenderia - nem ela entendia. Será que
poderiam aceitá-lo, qualquer um deles?
Antes que a escadaria terminasse, a intermitente brisa noturna rodopiou ao redor dela, mergulhando-a no aroma da madeira recém-cortada para o telhado. Cheirava a
floresta - a floresta na qual seu amante a observava e esperava. Ela respirou fundo, automaticamente saboreando o aroma que já lhe recordava Lochlan.
Subiu pelo pavimento. A Torre do Chefe era maior do que vista de baixo. A sala era perfeitamente redonda; as janelas eram fendas que subiam do chão ao teto uniformemente
espaçadas ao redor da circunferência. As paredes sustinham tochas e uma ampla lareira, nenhuma delas acesa. Uma meia-lua lançava uma luz tímida e pálida dento da
torre escura, e Elphame girou lentamente num círculo, deixando os olhos se acostumarem à noite. Uma janela fendida era obviamente maior que as outras, então ela
se aproximou lentamente dela, saboreando a felicidade do pertencimento.
Quando alcançou a abertura, percebeu que não era nada de janela, mas uma saída que conduzia a um pequeno balcão. Sorrindo, ela saiu para o céu noturno. Elphame aspirou
a vista. O balcão da torre dava para a frente do castelo, voltada para o leste da floresta. De seu ângulo privilegiado ela fitou um interminável mar de pinheiros.
Galhos se moviam incansavelmente ao vento. Sombras se agitavam e esvoaçavam diante de sua vista. Elphame apertou os olhos. Aquilo era o contorno de uma asa farfalhando
em compasso com árvores escuras?
Impossível.
Suspirou e deixou o olhar descer para o castelo que se aninhava abaixo dela. Música e luz se infiltravam pelas brechas no telhado inacabado. Podia ver que algumas
pessoas do clã tinham começado a dispersar. Esporadicamente, grupos de pessoas e centauros, geralmente em pares, saíam do castelo e rumavam para o conjunto de tendas
que enchiam as terras. Cuchulainn dissera que dentro de mais duas passagens da lua cheia haveria quartos renovados suficientes para que a maioria do clã pudesse
ser abrigada dentro dos muros do castelo. A ideia a agradava; queria sua gente dentro de seus muros. Ela descansou o braço na balaustrada e sentiu uma leve pitada
de calor na pele quando o espírito do castelo reconheceu sua presença. O Castelo MacCallan espelhava seus sentimentos - ansiava viver novamente.
Um movimento no canto inferior de sua visão lhe chamou a atenção, então Elphame viu uma figura delgada surgir do castelo. Embora não pudesse ver o rosto da mulher,
as tochas suspensas de cada lado da entrada desdentada iluminaram bem o suficiente a figura para que Elphame reconhecesse Brenna. A pequena curandeira ficou muito
imóvel, como se precisasse recuperar o fôlego, e depois desabou de encontro à grossa parede. Suas costas se curvaram, depois ela escondeu o rosto entre as mãos.
Mesmo de longe, Elphame podia ver que os ombros dela tremiam com soluços.
Linhas de preocupação enrugaram a testa de Elphame. O que havia de errado com Brenna?
A ideia mal se formulara em sua mente quando a parte do braço repousando sobre a balaustrada se aqueceu, e de repente Elphame sentiu sua mente ligada à pedra, tanto
quanto se ligara antes à coluna central. O que havia de errado com Brenna...? Aquilo avançou pelo esqueleto do castelo numa torrente poderosa. Elphame ofegou. Podia
ver um fantasmagórico fio dourado se esticar de seu corpo, passar pela rocha condutora e descer diretamente ao lugar onde a pequena curandeira se apoiava ao muro
externo.
Desespero... Solidão... Anseio... Fragmentos de emoções desconsoladas explodiram de volta pelo fio e bombardearam Elphame. Instintivamente, ela começou a quebrar
o contato com a pedra - para terminar a ligação com emoções tão sofridas, mas quase imediatamente lamentou sua covardia. Aquelas eram as emoções de Brenna. Alguém
a ferira, e em vez de fugir da dor que descobrira dentro da amiga, Elphame deveria querer ajudá-la - assim como Brenna faria por ela.
Elphame rangeu os dentes e respirou fundo, centrando-se. Observou os ombros de Brenna sacudirem com os soluços e sentiu a aflição da amiga. Isso a deixou zangada.
Quando Elphame deixara o Grande Salão, Brighid estava tagarelando alegremente com uma sorridente Brenna. O que acontecera? Quem magoara tanto Brenna e num período
tão curto de tempo? Pela Deusa! E onde estava seu irmão enquanto alguém estava causando sofrimento a Brenna?
Uma raiva justiceira ferveu pelo sangue de Elphame, esquentando seu corpo e despejando-se como chumbo derretido sobre a pedra, tornando escarlate o fino fio dourado.
A cabeça de Brenna se ergueu. Seus ombros pararam de sacudir e Elphame a observou secar o rosto com as costas da mão. Então a espinha da curandeira se endireitou
lentamente e ela se afastou resoluta do muro. Por um momento, Brenna se voltou para o interior do castelo e o olhou como se estivesse considerando voltar. Mas preferiu
recuar, finalmente desaparecendo nas sombras que cercavam as tendas.
Justamente quando ela desapareceu de vista, um homem saiu correndo do castelo. Elphame não precisou da luz das tochas para reconhecê-lo; sua forma lhe era tão familiar
quanto a dela mesma. Cuchulainn parou, espiando as sombras escuras que rodeavam o castelo. Mesmo de longe, Elphame pôde ouvir o eco das pragas do irmão quando as
sombras revelaram apenas a noite vazia. Cuchulainn praguejou novamente e saiu em largas passadas em direção às tendas.
- Não podemos escolher quando amar. Seria mais fácil se pudéssemos, mas não podemos.
A voz espectral surgiu ao lado dela, forte e brusca com seu sotaque fluido. Elphame deu dois passos agitados para trás, segurando o flanco do corpo por causa da
dor que o súbito movimento provocou.
- Tenha cuidado com seu ferimento, menina. Ainda não curou por completo.
- Meu ferimento! - Elphame sentiu o coração galopando no peito. - Você quase me matou de susto. Sorte que não caí da torre.
Ele deu uma risada.
- Não queria assustá-la, mas aquele garoto lá me distraiu. - O espírito ergueu o queixo na direção que Cuchulainn havia tomado. - Com aquela cabeça dura, o rapaz
está para quebrar a cara.
Ele encolheu os ombros largos num gesto que lembrou tanto seu irmão que Elphame sentiu a respiração prender na garganta.
- Mas não há nada a se fazer. O amor faz a nós todos de bobos. Porém me preocupo com a pequenina curandeira. Se ela não souber confiar, não saberá amar. - De repente
seu olhar sagaz trocou as tendas por Elphame. - O que acha, menina?
Elphame piscou, desconcertada com a pergunta.
- Não sabe responder? Não me diga que é tão cabeça-dura quanto seu irmão.
- Cuchulainn não é cabeça-dura - disse ela, imediatamente aborrecida. - Ele é obstinado e leal. E se me lembro bem de minha história, esses são dois traços que ele
compartilha com você.
O MacCallan riu animado.
- Sim, menina, você se lembra bem de sua história.
Elphame se sentiu relaxar enquanto a risada dele fluía pelas faces amigáveis. Ele se inclinou sobre a balaustrada.
- Mas não me respondeu a pergunta.
- Sei disso. Lembre-se, está falando com uma chefe de clã, e não apreciamos perguntas arrogantes. - Ela cruzou os braços e enfrentou-lhe o olhar.
O velho espírito sacudiu a cabeça com apreciação.
- Faz bem em me lembrar, menina. Sua boa e forte determinação é uma das coisas de que mais gosto em você. Deixe-me refazer a pergunta. Como chefe desse clã, aprova
uma união entre seu irmão e a pequenina curandeira?
- Sim, acho que eles fazem um bom par.
O MacCallan assentiu:
- É o que acho também. Mas isso não foi tudo que queria perguntar.
- O que mais quer saber?
- Quero saber se acredita que o amor pode realmente viver sem confiança. E antes que fique irritada, saiba que esta não é uma pergunta banal, menina. É uma pergunta
na qual todos os chefes devem pensar.
Elphame lhe retribuiu o olhar firme. Quanto o espírito conseguia ver? Seria seu reino limitado ao castelo ou ele observava as terras circundantes também? Poderia
saber sobre Lochlan? Ela sentiu um tremor de preocupação. Mas o que poderia fazer se ele soubesse? Já estava escondendo isso do irmão e do clã; não podia esconder
do reino espiritual também.
- Tenho pouca experiência com o amor, mas me conheço bem. Acho que não poderia amar alguém se não confiasse nele.
- Você parece sábia, menina. E me lembra sua tataravó. Apegue-se a essa sabedoria. Disponha de seu amor tão cuidadosamente quanto de sua confiança e será uma chefe
forte, além de uma companheira leal.
- Mas como ter certeza? - A pergunta escapou antes que ela pudesse impedir. - Como saber se é prudente confiar quando o amor, e o desejo... - ela podia sentir as
faces arderem, então seguiu apressada - ... estão misturados? Quero dizer, sou boa juíza de caráter, mas meu coração nunca se envolveu num julgamento. Será que o
coração não distorce tudo?
- Sim, ele faz isso, menina. - Ele entrelaçou os dedos e inclinou a cabeça, contemplando-a. - Como soube que devia vir para cá restaurar o Castelo MacCallan?
- Senti que era a coisa certa a ser feita. - Ela hesitou, olhando para o castelo adormecido abaixo deles. - Não, foi mais do que isso. A ideia não me deixava em
paz. Desde que me lembro, as histórias do Castelo MacCallan me intrigam. Era como se ele me chamasse até eu não encontrar paz em qualquer outro lugar.
O MacCallan balançou afirmativamente a cabeça.
- O amor é parecido com isso. Quando não conseguir encontrar paz em lugar nenhum que não seja ao lado dele, saberá.
- Então está dizendo para confiar no meu coração?
- Não no seu coração, menina! - A voz grave marcou as palavras. - Não seja boba. Seu coração não a levou a ser A MacCallan. Foi seu sangue, sua alma. Escute a eles,
não a algo tão inconstante como seu coração.
Elphame suspirou. Alguém poderia pensar que conversar com o fantasma de um ancestral seria uma experiência iluminadora. Essa pessoa estaria enganada. Deveria dar
ouvidos ao sangue e à alma? Ela não sabia o que ele queria dizer.
- Agrada-me que esteja usando meu presente. - Com um dedo transparente, ele apontou para o broche que mantinha presa a dobra de tecido cor de açafrão que lhe envolvia
o peito.
Ela tocou de leve o broche.
- É muito importante para mim que o tenha dado a mim. - A lembrança da morte dele cruzou seu rosto. - Mas preferiria não ter assistido à sua morte. Foi... Foi...
- Ela pigarreou. Só tinha falado com ele uma vez, mas já se sentia ligada ao velho espírito. Pelo sangue que compartilhavam... A ideia lhe veio de repente e Elphame
constatou que era verdade. Sentia-se ligava a ele pelo sangue, tanto quanto se sentia ligada à fundação do castelo. - Foi terrível. Sei que está morto. - Ela sorriu
envergonhada quando ele bufou: - Mas observar sua morte foi muito penoso.
O MacCallan a fitou nos olhos.
- Se não for penoso, não vale a pena ser feito.
Elphame sentiu um sobressalto com as palavras dele. Como palavras ditas pelo espírito de seu ancestral podiam lembrar tanto aquelas ditas por uma criatura que era
metade fomoriana? Criatura... Seu coração se rebelou quando a mente o rotulou assim.
- Você parece cansada, menina. Vou deixá-la descansar. E não pense que estou espiando e olhando você. O castelo e o clã agora lhe pertencem.
- Mas não se vai para sempre, vai? - perguntou ela quando a forma dele começou a tremular e sumir.
- Não, menina. Estarei aqui quando for necessário...
Lenta e cuidadosamente, Elphame voltou descendo pela escada espiralada. O MacCallan estava certo; ela estava exausta. Felizmente, o esforço exigido para subir e
descer a Torre do Chefe funcionou nela como uma das infames infusões de Brenna. Quando ela desabou na cama recém-construída, o sono veio com facilidade e ela entrou
gentilmente na inconsciência.
Ela sonhou que estava caminhando pelo Castelo MacCallan. Estava completamente restaurado e glorioso. Tapeçarias coloridas cobriam as paredes. Vidros chanfrados refletiam
a luz de centenas de candelabros suspensos do teto perfeitamente intacto. Elphame entrou no coração do castelo, o pátio principal, onde as colunas gigantescas mantinham-se
como protetores silenciosos. Sorrindo, ela se aproximou da fonte gotejante, mas uma visão inesperada a fez parar quase tropeçando. A estátua não era mais a versão
infantil de sua ancestral, Rhiannon. Fora substituída por uma réplica em tamanho real de Elphame. Sua imagem estava em pé no meio da bacia. Água tingida de escarlate
se derramava das fendas abertas de feridas que lhe cobriam o corpo. Figuras aladas iridescentes se atulhavam ao redor da bacia, silenciosamente afundando as mãos
na água sangrenta e depois bebendo-a, mas no sonho Elphame mal notava as criaturas aladas ou o sangue caindo de seu corpo de mármore. Sua atenção estava fixa no
rosto da estátua - seu rosto. Em meio ao caos e ao sangue, o rosto da estátua era radiante e sereno. Elphame sentiu-se impelida por aquele rosto e começou a seguir
adiante novamente até uma única palavra estilhaçar o sonho.
- Não! - berrou a voz de Lochlan.
Com o sono interrompido, Elphame se remexeu intermitentemente até a exaustão reclamá-la e ela cair num sono sem sonhos.
Vinte e Um
CUCHULAINN NÃO FAZIA ideia de como acontecera. Tudo andava muito bem. Havia vezes em que Brenna parecia quase relaxada perto dele tanto quanto perto da irmã. E ele
se esforçara muito para conseguir isso. Esfregou a rigidez no pescoço e tomou outro gole longo do odre meio vazio. Depois remexeu com inquietação os potinhos de
ervas e folhas de chá dispostos na escrivaninha. Brenna os deixara ali. Devia ter se esquecido deles na pressa com que mudaram as coisas de Elphame da tenda para
seus novos aposentos dentro dos muros do castelo. Cuchulainn tentara convencer Brenna a ficar com a tenda para si, mas ela insistira que ele a usasse.
- Ela gosta da própria tenda - resmungou ele. - Ela gosta dela porque está à margem das outras - bem longe de todos. Sozinha.
Em sua opinião, ela passava tempo demais à margem da vida. A menos que alguém estivesse doente ou ferido, claro. Então ela entrava no meio do combate, metamorfoseando-se
da donzela tímida e insegura em alguém que poderia comandar um exército com um único olhar.
Ou ao menos o coração de um guerreiro.
Cuchulainn suspirou de frustração numa explosão ruidosa de ar. Isso nunca fora difícil antes. Se queria uma mulher, ela vinha até ele. Só precisava sorrir, flertar,
talvez até provocar e bajular. Elas vinham por vontade própria. Mas não Brenna. Ele sabia que seria diferente com ela. Em primeiro lugar, ela era muito inexperiente.
Geralmente não preferia virgens, a não ser durante o festival da Deusa, quando o espírito de Epona caminhava livremente, desinibindo as donzelas, guiando seus corpos
e amenizando seus nervos. Mas com Brenna era diferente. Sua inocência o cativava. Pensava nela sem cessar.
Tomou outro longo gole do odre.
Então teve cuidado com ela, persuadindo-a gentilmente como se fosse um pássaro tímido que estivesse tentando atrair para sua mão. A reação dela era confusa e frustrante.
Quanto mais atenção gastava com ela, para mais longe dele fugia, mas quando não estava tentando encantá-la - como quando estavam trabalhando juntos na preparação
do aposento de Elphame, ou quando precisava buscá-la por causa de um acidente com um trabalhador -, ela falava tranquilamente com ele. Era como se nesses momentos
ela se esquecesse de quem ele era, o que parecia ser a única maneira de conseguir relaxar perto dele.
A ideia não era lisonjeadora.
Ele tentou compreendê-la. Sabia que a reticência dela perto dos outros, principalmente de homens, era causada pela lesão. Como Elphame dissera, suas cicatrizes eram
extensas e feriram sua alma, além do corpo. Mas ele estava achando incrivelmente difícil lembrar-se disso.
- Parei de enxergar as malditas cicatrizes. - Suas palavras eram insultantes, mas ele não se importou. Estava sozinho. Assim como ela estava sozinha. - Como posso
dizer a ela se ela não me deixa chegar perto? - Como poderia dizer a ela que seu rosto era apenas uma parte dela? Que as cicatrizes eram como seus olhos, seus cabelos
e o resto do corpo. Que eram ela.
Não deixou de perceber a ironia da situação. As palavras geralmente lhe vinham com facilidade. Ele sempre pensou que sua habilidade de conversar com as mulheres
as encantava mais do que seu corpo e seu rosto. Sabia que o caminho mais fácil para o corpo de uma mulher era lhe seduzir primeiro a mente. As mulheres queriam atenção
indivisível, queriam ser tratadas com respeito, o que se traduzia num homem que pudesse se concentrar e realmente ouvir suas necessidades individuais e desejos.
Ele se tornara um mestre naquele jogo. Agora se encontrava obcecado por uma mulher que fugia de suas palavras e só ficava à vontade em sua presença quando a atenção
dele não estava nela e não estavam conversando.
- Pela Deusa! Não sei o que fazer.
Ele queria se levantar e andar, mas o chão da tenda inesperadamente se tornara um pouco instável, então se contentou em tamborilar os dedos sobre o tampo da mesa.
Aquela noite fora um perfeito exemplo de sua inaptidão. Pensou que tudo estava bem. Brenna o surpreendera ao concordar em sentar à mesa principal com o resto deles,
então pensou que isso era um claro movimento na direção certa. O retrospecto lhe dizia que ela só concordara numa localização pública para que pudesse ficar de olho
na proeminente paciente, e que isso nada tinha a ver com ele, mas o juramento de Elphame com seu novo clã e a animação daquela noite o encheram com uma sensação
de cego otimismo.
Também o enchera, admitia com segurança a si mesmo, com vinho em demasia.
Depois que a irmã se retirou, como instruída pela atenta curandeira, a música começara. Um dos trabalhadores apareceu com um tambor, e quando ele se uniu aos outros
músicos, o clã urrou em aprovação. Empurraram as mesas para o canto e começaram a fazer pares e se mover em compasso com a batida da música. Cuchulainn se sentira
corado e entusiasmado - só conseguia pensar no quanto queria dançar com Brenna. Ela estava rindo animadamente com algo que a caçadora acabara de dizer quando ele
se aproximou e com uma reverência galante lhe pediu a indulgência de conceder uma dança.
Ele viu quando toda a cor sumiu do lado imaculado do rosto dela, deixando o outro ainda mais lívido em comparação. Num gesto que Cuchulainn estava aprendendo a odiar,
ela baixou a cabeça e se escondeu por trás da parede de seu cabelo preto.
- Não, não sei dançar.
A voz tinha reassumido o sussurro trêmulo com o qual ela costumava se dirigir a ele. Por alguma razão, ouvi-lo novamente o fez sentir-se subitamente muito zangado.
- Não sabe dançar? A mulher que pode costurar um ferimento, consertar um braço quebrado e trazer um bebê ao mundo não sabe dançar?
Ele não pretendia que a voz soasse sarcástica - realmente não queria.
Os olhos escuros de Brenna se ergueram, e através do véu de cabelos ele pensou ter visto um lampejo de raiva dentro deles. Lembrou-se de ter ficado feliz, pensando
que qualquer emoção era melhor que o recolhimento dela.
- Os talentos que mencionou foram os que tive a oportunidade de aprender. Não tive oportunidade de aprender a dançar.
- Agora tem.
Cuchulainn se encolheu, lembrando da maneira arrogante com que estendera a mão, certo de que ela a aceitaria. Tão certo que não notou que as pessoas mais próximas
estavam em silêncio, observando a discussão. Os olhos de Brenna dardejaram ao redor como um pequeno pássaro procurando por uma fuga, e ele apertou os dentes só de
lembrar. Sua arrogância a tornara o centro das atenções.
- Não. Eu... Não - disse ela.
- É só uma dança, Brenna. Não estou pedindo que seja minha companheira. - Ele deu uma risada, odiando a si mesmo enquanto ouvia as palavras petulantes escaparem
de sua boca.
- Eu não... Nunca pensaria...
- Sei qual é o problema - interrompeu Brighid, cobrindo as palavras baixas e tropeçantes de Brenna. - Cuchulainn nunca ouviu a palavra "não" proferida da boca de
uma mulher. É óbvio que desconhece o significado dela.
Risadas se espalharam pelo grupo ouvinte. Cuchulainn só teve tempo de perceber um lampejo de cor pelo canto dos olhos, e então Wynne se destacou vistosamente do
círculo que os rodeava. Caminhou com um passo ondulante e provocador que era um óbvio convite, balançou os cabelos flamejantes e pôs a mão firme sobre aquela que
ele ainda estendia para Brenna.
- A curandeira está certa, Cuchulainn. Talvez devesse escolher uma garota que tenha aprendido os talentos que você exige e que não lhe diga não. - Ela pronunciou
as palavras sedutoramente.
A multidão irrompeu em gritos ruidosos de encorajamento enquanto ela puxava Cuchulainn para a pista de dança improvisada e começava a se mover ao redor dele num
círculo lento e sedutor. Cuchulainn logo pegou o ritmo, espelhando os movimentos dela com a mesma graça sensual e natural que levava ao campo de batalha. Wynne provocou
e prometeu, tudo em compasso com a batida do tambor. Esfregou o corpo luxuriante no de Cuchulainn, que em meio ao nevoeiro do vinho sentiu seu perfume. Ela cheirava
a pão fresco, tempero e mulher, mas em vez de atiçá-lo como deveria, seu perfume só o lembrou do que faltava a ela. Ela não cheirava a grama recém-aparada e chuva
de primavera. Ela não era Brenna.
Ainda dançando, virou e olhou para a mesa. Brighid ainda estava lá, e por um momento seus olhos se encontraram. Depois os dela se afastaram dos dele com nojo, e
ela lhe deu as costas. O assento perto dela estava vazio.
Foi quando aquela sensação nauseante no estômago começou. Desculpou-se apressadamente com uma desapontada Wynne e deixou os dançarinos. Precisava encontrar Brenna
- disso ele sabia. Só não sabia o que diria a ela. Brenna não estava no Grande Salão, nem no pátio principal. Ele interrompeu um casal que se abraçava na sombra
da coluna central, e eles lhe disseram um tanto asperamente que a curandeira tinha saído correndo do castelo ainda há pouco.
Ele tentou alcançá-la antes que fosse para sua tenda solitária, mas estava atrasado. Lembrou-se de ter ficado parado do lado de fora da tenda dela, observando sua
pequena sombra passar diante da única vela que acendera. Se fosse qualquer outra mulher, teria entrado na tenda, implorado perdão e se chamado de idiota bêbado de
vinho e desejo. Depois teria feito amor com ela.
Mas Brenna não era qualquer outra mulher.
Em vez disso, retirou-se cambaleando para a própria tenda para se embebedar quieta e completamente até o esquecimento.
- Eu estava certo quanto a uma coisa. Sou um bêbado idiota.
Seu último pensamento antes que a abençoada inconsciência o reclamasse era que no dia seguinte teria que endireitar-se com Brenna, e que não tinha ideia de como
faria isso.
Antes de dormir, Brenna sempre conversava com Epona. Não chamava isso de rezar, não fazia pedidos à Deusa, em vez disso só falava com Ela como se fosse uma velha
amiga. E, na verdade, Brenna conversava com Ela há tanto tempo que era o que pensava da Deusa. Suas conversas com Epona começaram logo após o acidente. Soubera que
não havia nada a ser feito quanto aos seus ferimentos - de fato, a Brenna de dez anos de idade acreditara com absoluta e indiscutível certeza que estava morrendo.
A dor fora tão intensa por tanto tempo que não pensou em pedir a Epona que a salvasse; não queria salvação, simplesmente queria alívio. Em vez de dirigir preces
implorando que a Deusa a salvasse, Brenna passara longas horas conversando com a Deusa com quem acreditava que se encontraria em breve no reino espiritual. Mesmo
depois de surpreender a todos, inclusive a si mesma, por não morrer, não conseguiu abandonar as conversas com Epona. Tornou-se o hábito de toda uma vida que lhe
acalmava a mente e confortava o corpo.
Naquela noite precisava ser acalmada e confortada.
Sua mão tremia com os resquícios da raiva reprimida ao acender o pequeno feixe de ervas secas e aspirar o familiar perfume enfumaçado de lavanda. Ela se sentou diante
do pequeno altar improvisado e tocou cada item, tentando limpar a mente e preparar-se para falar com Epona. Mas naquela noite não encontrou nenhum consolo nos itens
amorosamente escolhidos - a turquesa que tinha a cor da espuma do mar, a pequena imagem da cabeça de uma égua que ela esculpira meticulosamente em madeira mole,
a única e solitária pérola em forma de gota, e a pena, que reluzia no mesmo verde-azulado que sua pedra...
... A mesma cor dos olhos dele.
Brenna fechou seus próprios olhou com desgosto. Pare de pensar nisso, ordenou-se. Mas seus pensamentos, que geralmente eram bem disciplinados e lógicos, fracassaram
em obedecê-la.
A raiva explodiu novamente em Brenna, que saboreou a frieza da emoção; era tão mais fácil de carregar do que o desespero e a solidão.
Como pôde ter sido tão ingênua? Pensava ter encontrado paz consigo mesma, pensava que anos antes tinha aceitado sua vida. Era uma curandeira. Nunca conheceria a
alegria de ter um marido e filhos, mas sua vida - a vida que deveria ter terminado uma década atrás - possuía significado. Ela tinha se dedicado a lutar contra dois
velhos conhecidos: dor e sofrimento.
O que lhe acontecera recentemente? Como seu plácido íntimo se tornara um oceano turbulento?
Distraída, Brenna tocou a face direita, sentindo a superfície escorregadia e irregular das cicatrizes. Quando foi a última vez em que pensara em amor? Tinha sido
anos atrás, logo depois que seu fluxo mensal começara. Durante a transição para mulher adulta, pensara em como sua vida teria sido se estivesse apenas um passo mais
longe da lareira - ou se sua mãe soubesse que o balde continha óleo, em vez de água - ou se sua mãe tivesse esperado para ver se ela sobreviveria - ou se seu pai
tivesse sido capaz de prosseguir com sua vida...
Fazia mais de uma década, mas nessa noite as recordações pareciam repentinamente recentes. Fazia muito tempo que não se permitia lidar com "ous". Geralmente era
mais lógica do que isso, e não havia lógica em ansiar pelo impossível ou em desejar que o feito fosse desfeito.
Então, por que agora? Por que os desejos, que foram incinerados em outra vida, renasciam dentro de olhos turquesa e um sorriso maroto?
Brenna quis tocar a pedra, mas suas mãos ainda tremiam, então ela as juntou sobre o colo. Tirou os olhos do altar. Naquela noite não via a Deusa refletida ali, só
via penumbras e sombras de Cuchulainn.
Aspirou o incenso de lavanda e obrigou seus pensamentos a focarem Epona. Felizmente, sua mente se limpou e a tensão nos ombros cessou. Ela aspirou profundamente
o incenso mais uma vez. Como era seu costume, não rezou, simplesmente conversou com a Deusa, embora naquela noite sua voz tivesse uma dureza incomum.
- Me pareceu tão certo hoje prestar o juramento de me tornar parte de um clã que sempre esteve tão perto de você. A sensação de integração é... - Ela se calou e
apertou tanto as mãos que os nós dos dedos ficaram brancos. - É algo que desconheci por tantos anos que me esqueci da alegria disto. Obrigada por isso, por me permitir
esse novo lar.
Pronunciadas em voz alta, suas palavras se tornaram os pedaços perdidos de um enigma preocupante. Seus olhos se arregalaram em súbita compreensão, então ela sentiu
parte da raiva dentro dela começar a ceder.
- Talvez o encanto de pertencer a um lugar tenha provocado meus pensamentos errantes. - Seu sorriso era amargo. - Como uma criança, deixei que lindas fantasias dominassem
meu bom-senso. Lindas fantasias centradas em torno de um rosto bonito. - Brenna suspirou. Não podia mais evitar o assunto, não quando conversava com a Deusa que
a conhecia tão bem. Deliberadamente, separou as mãos e acariciou com o dedo a lateral da pena cor de turquesa.
- Não foi só o rosto, Epona. Foi a gentileza que vi nos olhos dele. Me fez esquecer de que tudo que ele pode sentir por mim é pena, e não carinho verdadeiro. - Ela
sacudiu de leve a cabeça e a voz endureceu novamente. - Eles pensam que pena é carinho. Não é verdade. A pena é um confeito asqueroso - algo feito para esconder
o que é melhor se mantido escondido. Mas a vida às vezes elimina camadas, expondo até a verdade escondida. - Ela se enrijeceu antes de continuar falando seus pensamentos
mais secretos. - A verdade foi exposta esta noite. Ele pensou que podia se apiedar da curandeira desfigurada e dançar com ela. Como sempre, homens bonitos... - Brenna
bufou entre os lábios crispados - ... Pensam em pouca coisa além dos próprios desejos. Eu devia saber. Nunca devia ter acreditado...
Sua voz cedeu. Como pôde acreditar que ele estava começando a se importar com ela? Mas já sabia a resposta para sua pergunta silenciosa. Foram os olhos - aqueles
olhos magníficos, que possuíam a mesma cor da turquesa e de pássaros exóticos. Ele tinha olhado para ela com...
- Não! - A palavra lhe irrompeu da boca. - Já cansei de desejos vãos que só abrem velhas feridas.
Brenna saudou o retorno da raiva que de repente cessara o lamento daquela noite. Com um definido senso de decisão, ela se ajoelhou para que o corpo ficasse posicionado
sobre a lavanda que queimava. Resoluta, agitou as mãos pela fumaça doce, banhando o corpo na essência da erva. Repetiu o gesto ritualístico três vezes. Depois pegou
a cabeça esculpida de égua, fechou a mão sobre ela e posicionou o punho cerrado sobre o peito.
- Grande Deusa Epona, pela primeira vez em nossos anos juntas desejo lhe suplicar com minha própria oração. Peço que me ajude a encontrar meu calmo centro outra
vez para que a paz possa retornar ao meu coração e à minha alma. Selo minha prece invocando os quatro elementos. Ar, que guarda o sopro da vida. Fogo, que arde com
a pureza da lealdade. Água, que lava e restaura. E Terra, que conforta e nutre.
As palavras de Brenna não causaram nenhuma agitação mágica no ar ao redor, mas ela pensou detectar um novo calor na lisa figura de madeira que apertava, e com aquele
calor a persistente frieza da raiva que aflorara dentro dela derreteu e cessou. Brenna fechou os olhos e suspirou com tristeza. A raiva não era o caminho - só um
bálsamo temporário que apenas cuidava dos sintomas e não do problema em si.
Encontraria a paz dentro de si mesma novamente. Evitaria Cuchulainn, o que não devia ser difícil. Brenna tinha ficado no Grande Salão por tempo suficiente para ver
o corpo dele reagir à sedução de Wynne. A bela cozinheira o manteria bem ocupado.
Enquanto se entregava ao sono, ignorou a dor que lhe causava pensar em Cuchulainn com outra mulher.
Vinte e Dois
ERA UM VERDADEIRO prazer acordar no próprio aposento ao som abafado de trabalhadores já ocupados com a atividade de restauração do dia. Elphame se espreguiçou lentamente,
testando a dor no flanco e no ombro. Satisfeita, esfregou a cicatriz saliente que cortava sua cintura. A dor aguda se fora, substituída por uma dormência formigante.
Seria muita indulgência começar o dia com uma longa imersão no seu banho particular? Ela quase saltou da cama e se apressou até a entrada para o quarto de banho,
reduzindo o passo apenas quando começou a íngreme descida pela escada. Nem queria imaginar o que Cuchulainn diria se tropeçasse e sofresse outra queda. Para se equilibrar,
deixou as mãos deslizarem pela superfície áspera da parede de pedra. A conexão instantânea com o espírito do castelo vibrou por sua palma.
Em casa, disse-lhe. A MacCallan está em casa.
O castelo a encheu com uma sensação de pertencimento. Será que era feliz antes? Achava que não - não realmente. Antes de chegar ao Castelo MacCallan, sua felicidade
era uma criança comparada ao adulto no qual seu júbilo se tornara. Agora, se ao menos pudesse completar seu lar...
Lochlan... O nome dele sussurrou por seu sangue.
Precisava encontrar uma maneira de encontrá-lo secretamente. Passar algum tempo com ele era a única maneira de descobrir com certeza se... Como O MacCallan dissera?
Descobrir se só ao lado dele poderia encontrar paz. E depois o quê? Sua testa se enrugou. Teria que lidar com esse problema quando chegasse o momento. Primeiro precisava
se concentrar nos pequenos passos, executar uma coisa após a outra.
Talvez agora que estava firmemente instalada no próprio aposento fosse mais fácil. Definitivamente tinha mais privacidade. Conseguiria escapar do castelo à noite
para encontrá-lo?
De repente, as pedras sob sua mão esquentaram e a sensação de formigamento nos dedos se intensificou. Com uma sensação de crescente deslumbramento, Elphame desceu
para o quarto de banho. Propositalmente, virou-se de frente para a parede de pedra. Pressionou ambas as mãos sobre a pedra áspera do castelo e tentou repetir seu
último pensamento em voz alta: - Há alguma maneira de escapar do castelo e encontrá-lo?
Assim como acontecera na noite anterior, Elphame observou com assombro um fio dourado enrodilhar dentro da pedra debaixo de suas mãos. Correu com a rapidez do lampejo
de um relâmpago, cintilando pela parede, serpeando pelo cômodo até se deter num disquinho de ouro incandescente que reluzia numa área da parede do outro lado da
câmara. Mantendo a conexão com a pedra pela ponta dos dedos, ela caminhou pela circunferência do cômodo, seguindo o fio pulsante.
O disco cintilante estava situado ao nível dos olhos de Elphame no canto distante do quarto de banho. Nenhuma tocha iluminava aquela área e a esfera de brilho parecia
surpreendentemente com um olho aberto. Traçando o fim do fio, ela deslizou os dedos para cima até a palma da mão encontrá-lo. Seus olhos se estreitaram conforme
estudava a pedra debaixo de sua palma. Como o resto das pedras, esta esquentava ao toque, mas apesar da temperatura, parecia decididamente diferente do restante
das pedras que formavam as grossas paredes do castelo. Em vez de ser áspera e texturizada, a área do tamanho de sua palma era perfeitamente lisa. Assim de perto,
Elphame podia ver que não se nivelava com a parede, mas que era ligeiramente como um botão gigante feito de pedra. Testando, ela deslizou os dedos ao redor dele.
Não fora montado na parede. De fato, se encaixava na parede em si. Não como um botão, concluiu, como uma chave.
E ela piscou surpresa. Uma chave?
Elphame pressionou o disco. Com o som do exalar de um sopro, uma porção da parede do tamanho de uma porta deslizou diante dela. Sem acreditar, ela espiou os escuros
recessos de um túnel cheirando a mofo.
- Elphame! - A voz de Brenna ecoou pela escada do quarto acima. - Está aí embaixo?
Frenética, Elphame empurrou a imóvel laje de pedra, tentando fechá-la.
- Sim! Já estou subindo! - gritou ela por cima do ombro.
Sua mão encontrou o disco liso novamente e, dessa vez, ao pressioná-lo, ficou aliviada por ver que a porta escondida deslizou silenciosamente de volta ao lugar.
- Incrível... - murmurou antes de se apressar escada acima para cumprimentar a curandeira. Mais tarde, Elphame prometeu a si mesma, mais tarde, quando estivesse
sozinha e tivesse certeza de que não seria interrompida, poderia explorar sua nova descoberta.
- Bom dia! - disse Brenna quando Elphame surgiu da câmara inferior.
Elphame notou que o tom animado contrastava distintamente com as manchas escuras ao redor dos olhos.
- Bom dia. Você parece cansada. Não dormiu bem na noite passada? - perguntou Elphame.
A curandeira começou a remexer na bandeja que acabara de pôr sobre a mesa.
- Estou bem - disse ela, ignorando a pergunta de sua paciente. - É com seu sono que deveria se preocupar afinal, especialmente depois do dia agitado que teve ontem.
- Brenna gesticulou para que Elphame se sentasse e lhe tomou o punho, verificando o pulso com uma das mãos enquanto estudava os olhos e verificava cuidadosamente
a cabeça e o ombro com a outra. - Você parece bem esta manhã. Me deixe ver aquele ferimento no flanco.
Obedientemente, Elphame ergueu a camisola. Observou a amiga com atenção quando esta assentiu, obviamente satisfeita com o progresso do ferimento, e esfregou com
delicadeza uma pomada perfumada e tranquilizante sobre a cicatriz. Brenna parecia cansada - cansada e triste. Elphame precisava descobrir o que tinha acontecido
com ela.
- Detestei partir na noite passada - começou a dizer, observando Brenna de perto. - Foi uma celebração maravilhosa. Todos pareciam estar se divertindo.
Brenna fez um som indistinto de concordância. Elphame pensou ter detectado um enrijecimento ao redor dos lábios da amiga.
- Aconteceu alguma coisa especial depois que eu me retirei? - insistiu ela.
- Não. Só música e dança. Não fiquei por muito tempo.
Elphame arqueou as sobrancelhas em surpresa.
- Verdade? Isso me surpreende. Você parecia estar se divertindo quando saí.
- Não. Sim. Digo, eu estava me divertindo. Mas estava tarde. Estava cansada. Então fui dormir.
Elphame achou que a indiferença de Brenna soava forçada. A amiga não a olhava nos olhos. O rosto estava incomumente pálido e os olhos pareciam assombrados. Por um
momento, passou-lhe pela mente o pensamento ridículo de desejar que Brenna fosse de pedra para que pudesse simplesmente tocá-la e compreender seus pensamentos. Elphame
quase riu alto da ideia, mas ao observar Brenna, subitamente percebeu que a pequena curandeira realmente tinha muito em comum com a pedra do castelo. Elphame considerou
o que tinha testemunhado na noite passada da Torre do Chefe. Por fora Brenna parecia plácida, até estoica, mas por dentro devia estar tão cheia de emoções ricas
e variadas quanto o Castelo MacCallan.
Como poderia fazer Brenna confiar nela?
Confiança e amor... Uma andava lado a lado com o outro. Para que existisse confiança, deveria existir verdade. Devia simplesmente contar a verdade a Brenna e mostrar-lhe
que podia ser confiável.
- Subi à Torre do Chefe na noite passada - disse Elphame calmamente.
Brenna tirou os olhos do trato com o ferimento, um leve vinco enrugando sua testa.
- Não deveria ter feito isso. Sei que está se sentindo muito melhor, mas deve ter cuidado para não exagerar.
Elphame assentiu com impaciência:
- Eu sei, eu sei. Serei cuidadosa.
- Bem, ao menos não causou dano. - Brenna baixou a camisola. - Mas não recomendaria uma imersão na sua piscina esta manhã. - Ela sorriu torto para a cara feia de
Elphame. - À noite. Pode se banhar à noite. Só tome cuidado de reaplicar a pomada depois de secar a ferida. Agora - disse rapidamente, limpando as mãos no avental
e virando-se para a mesa -, trouxe para você um bom e forte chá de ervas e o desjejum. É importante que comece o dia bem abastecida.
- Tomo essa sua infusão desprezível - disse Elphame, apontando enfaticamente para a cadeira do outro lado da mesa. - Caso se sente e coma comigo.
- Muito bem. - Brenna parecia agradavelmente surpresa. - Ficaria contente em fazer o desjejum com você. - Então ela deu a Elphame um olhar provocador. - E creio
que vai achar minha "infusão desprezível" mais do que palatável. Nessa manhã acrescentei rosa selvagem e mel.
- Está me mimando - disse Elphame, olhando a chaleira com dúvida.
- Qualquer coisa para A MacCallan. - Brenna executou uma pequena mesura, sorrindo para a chefe.
Elphame sentiu os ombros relaxarem. Talvez fosse mais fácil convencer Brenna a conversar com ela do que pensava. As longas horas juntas desde seu acidente cimentaram
a amizade delas. Brenna inspecionava seu corpo como se tratar de uma mulher parte humana, parte centauro fosse completamente normal. E ela já não escondia mais o
rosto de Elphame. Havia uma sensação de tranquilidade entre as duas que, até chegar ao Castelo MacCallan, Elphame apenas sentira na presença da família.
E, Elphame lembrou a si mesma, certamente existia um relacionamento se desenvolvendo entre Brenna e Cuchulainn, mesmo que os dois ainda não estivessem completamente
cientes disso. Então ela devia isso a seu irmão também: descobrir quem magoara Brenna.
Esperou até que Brenna tivesse servido chá para as duas e começou a mordiscar os pãezinhos frios recheados com carne e queijo duro amarelo antes de começar a falar.
- A vista da Torre do Chefe é incrível.
- Sim, eu sei - disse Brenna entre mordidas. - A escada é muito estreita para que Brighid passe, então ela insistiu que eu fosse lá em cima e lhe relatasse cada
detalhe.
Elphame assentiu, tentando não ser impaciente e revelar o que queria dizer.
- Notou como de lá se pode ver bem quem entra e sai pela frente do castelo?
- Sim, essa provavelmente era a intenção original do construtor... Dar ao MacCallan uma maneira de observar sem ser facilmente notado.
- Também acho isso. - Elphame pigarreou. - Na verdade, foi exatamente o que aconteceu na noite passada.
- Verdade? - A expressão de Brenna era franca e curiosa. - Viu algo interessante?
Elphame não respondeu. Em vez disso, sustentou o olhar de Brenna até ver compreensão, seguida imediatamente por embaraço, lampejar nos olhos dela.
- Vi você deixar o castelo - disse Elphame gentilmente. - Estava muito angustiada.
- Eu... Eu só estava cansada - gaguejou Brenna.
- Não. Era mais do que isso. Alguém a magoou. E muito. - Lutando contra toda uma vida de lições que a ensinaram a não tocar nos outros, Elphame estendeu a mão. Cobriu
a de Brenna com a sua própria. - Não confia bastante em mim para me contar o que aconteceu?
Os olhos de Brenna brilhavam com uma ameaça de lágrimas.
- Claro que confio em você, Elphame. Você é minha amiga. - Ela hesitou, depois exibiu um sorriso triste, deformado. - É que me sinto muito idiota.
Elphame apertou-lhe a mão.
- Ao menos não caiu numa ravina e rachou a cabeça.
Brenna suspirou:
- Na verdade, de certa forma caí...
Suas palavras seguintes foram interrompidas quando a porta para o aposento de Elphame foi aberta e Cuchulainn irrompeu quarto adentro.
- Acorde, minha irmã! Não pode passar o dia...
As palavras de Cuchulainn cessaram quando ele viu Brenna. Elphame observou a expressão da amiga mudar quando seu olhar surpreso se fixou em Cuchulainn. Ela puxou
a mão da de Elphame, antes de curvar a cabeça e mirar a mesa. Não havia engano quanto ao lampejo de dor, brutal e feroz, que lhe contorceu o rosto antes que ela
limpasse todas as emoções e se escondesse atrás de um véu de cabelos.
- Não sabia que estava aqui, Brenna. Se soubesse, não teria entrado sem me anunciar. Não queria interromper.
Elphame olhou por cima do ombro para o irmão. Sua expressão, assim como a voz, era a de um garoto arrependido. Estava fitando Brenna pateticamente. El se voltou
para Brenna. A curandeira estava resoluta encarando a mesa, ignorando-o.
Era Cuchulainn, Elphame percebeu com um sobressalto. Cuchulainn de alguma forma magoara Brenna na noite anterior. Teria uma séria conversa com o irmãozinho. Como
O MacCallan o chamara? Cabeça-dura. Precisava admitir que o velho espírito tinha razão.
- Cuchulainn, deve aprender a bater. Mas agora que está aqui, sente-se. Brenna trouxe bastante comida, e mesmo que tenha os modos de um bárbaro, é bem-vindo a se
juntar a nós.
Brenna se levantou tão rápido que sua cadeira tombou.
- Devo ir. Ainda não verifiquei o trabalhador com o ferimento na mão esta manhã. O curativo precisará ser trocado - disse ela enquanto passava correndo por Cuchulainn
sem olhar para ele.
- Espere, Brenna. É claro que tem tempo para o desjejum - disse Elphame.
- Não. Eu... Eu devo ir. - Parou antes de deixar o quarto. - Encontro você aqui depois da refeição da noite para inspecionar seu ferimento novamente. Tente não exagerar
hoje, Elphame. - Ela correu pela porta como se não pudesse esperar para fugir.
Enraizado no lugar, Cuchulainn ficou em silêncio olhando-a sair.
Elphame fez cara feia e meneou a cabeça.
- Bom, por que está parado aí como uma estátua idiota? Vá atrás dela! Chegou atrasado na noite passada, tente fazer melhor agora de manhã.
O corpo de Cuchulainn pulou de surpresa.
- Como soube?
- Mais tarde. Agora vá.
Ele assentiu e sorriu com amargura. Antes de abrir a porta, olhou de volta para a irmã e soprou um beijo.
- Obrigado, minha irmã.
- Apenas conserte o que fez de errado - murmurou ela para a porta que se fechava.
Vinte e Três
- BRENNA, ESPERE! - CUCHULAINN corria pelo corredor atrás dela.
Brenna olhou para ele sobre o ombro e por um instante pensou em sair correndo. Estava quase no fim do corredor; caso se apressasse, provavelmente poderia chegar
a áreas mais públicas do castelo antes que ele a alcançasse. E então o quê? Estar em público tornaria a confrontação pior. Ao menos ali não havia ninguém para testemunhar
o que se passava entre eles. Brenna foi parando lentamente e virou-se para encarar Cuchulainn. Começou a baixar a cabeça para esconder o rosto quando, inesperadamente,
a raiva que sentira tão intensamente na noite anterior reluziu. Não, enfrentaria a pena dele cara a cara.
- Devo desculpas pelo meu comportamento de ontem à noite.
- Não me deve desculpas, Cuchulainn. - Brenna estendeu a mão para impedi-lo de falar. Para sua surpresa, ele tomou a mão dela e, antes que pudesse protestar, levou-a
aos lábios.
- Claro que devo. Bebi vinho demais. Fui rude e grosseiro. Por favor, me perdoe. - Ainda segurando-lhe a mão, o polegar traçava círculos preguiçosos na pele delicada
que acabara de beijar.
Brenna ficou paralisada. Ser beijada na mão... Era uma coisa tão simples. Homens e mulheres trocavam cumprimentos assim todos os dias. Porém, até aquele momento,
ninguém jamais lhe beijara a mão. Nem por cumprimento, nem por desejo. Brenna de repente teve que lutar contra a vontade de chorar.
- Por favor, não me toque assim.
- Por que, Brenna? - A voz de Cuchulainn era baixa e gentil.
O que poderia dizer a ele? Que não devia tocá-la porque ela queria isso desesperadamente ou que não devia tocá-la porque ele era um dano do qual ela não imaginava
ser capaz de se recuperar?
Não podia dizer nenhuma dessas coisas a ele. Se dissesse, achava que se despedaçaria em tantos pedaços que não poderia encontrar o jeito de se recompor por inteiro
novamente. Em vez disso, buscou pelo fio de raiva dentro de si e o encontrou ao se lembrar da visão do corpo dele contra o de Wynne enquanto os movimentos da dança
sensual imitavam o ato amoroso.
- Porque Wynne não gostaria disso, mas acima de tudo... Eu não gosto disso. - Com desdém deliberado, puxou a mão da dele. - Aceito suas desculpas. Sei que não tinha
intenção de ser cruel, mas não precisa fazer essa encenação toda comigo hoje. É degradante.
Ela se virou para ir embora, mas ele agarrou-lhe o punho.
- Espere, eu...
Brenna baixou o olhar para onde os dedos dele enrodilhavam seu punho, que Cuchulainn imediatamente soltou.
- Não a tocarei. Só não se vá ainda. Deixe-me explicar.
- Cuchulainn, não há nada que precise explicar.
- Sim! - A palavra explodiu da boca de Cuchulainn, que correu os dedos pelos cabelos, tentando colocar a frustração sob controle. Apenas fale com ela!, sua mente
gritou. - Sim, há - continuou, num tom mais civilizado. - Primeiro quero explicar que não estou interessado em Wynne.
- Isso não é assunto meu - disse Brenna apressadamente.
- Brenna! Pode me deixar continuar?
Brenna deu de ombros, fingindo uma indiferença que não sentia.
- Fui um beberrão imbecil na noite passada. Minha única defesa, por mais patética que seja, é dizer que geralmente tenho mais bom-senso - ao menos no que se refere
a vinho. Deixei que a celebração da noite interferisse no meu bom-senso. - Cuchulainn respirou fundo e olhou firme nos olhos escuros de Brenna. - Quando a música
começou, o único pensamento na minha mente estragada pelo vinho era o quanto eu queria dançar com você. Quando me rejeitou, fiquei surpreso e confuso. Pensei que
gostasse de mim, e por mais que me doa admitir, a caçadora estava certa. Não estou acostumado a ouvir um não de uma mulher que tenha capturado meu interesse. Reagi
como um garoto mimado. - Seus olhos expressivos cintilaram com travessura. - Quando disse que não sabia dançar, eu deveria ter sentado ao seu lado, murmurado passos
de dança ao seu ouvido e contado o quanto adoraria ensiná-la a dançar... A sós.
Brenna se lembrou de respirar.
- Eu a segui. Quando vi que tinha ido embora, tentei encontrá-la. Brenna, não quero Wynne. Quero você.
Brenna sentiu o rosto desfigurado corar de calor e a respiração escapulir enquanto a raiva se afiava.
- Como pode ser tão cruel?
- Cruel? Como pode ser cruel dizer que eu a desejo?
- Porque é uma mentira, ou um jogo, ou uma fantasia doentia e passageira.
- Agora está me insultando.
- Eu insulto você? - Ela praticamente berrou. - Como sempre, você acredita que tudo é sobre você. Você bebeu demais... Você pensou só no que você queria... Você
deveria ter feito isso ou aquilo. Você nunca considera os sentimentos dos outros?
- Sim, eu...
- Escute a si mesmo! - Ela achava que o coração fosse explodir. - Sim, eu. E quanto a mim? Alguma vez pensou que eu talvez não quisesse ser brinquedo para o grande
Cuchulainn? Alguma vez pensou que eu talvez não deseje você? Cuchulainn... - falou ela entre os dentes - ... Você é meu amigo e irmão da chefe, e é um guerreiro
cuja habilidade é muito admirada. Eu o tratarei com o respeito que merece por isso. E como qualquer outro membro do nosso clã, se for ferido, darei pontos. Se ficar
doente, farei o melhor para curá-lo. Mas não serei usada como forragem para sua diversão pessoal.
Dessa vez, quando lhe deu as costas e saiu apressada pelo corredor, ele não fez qualquer movimento para detê-la.
- Cuchulainn - a voz de Elphame se projetou facilmente pelo corredor. Seu irmão se virou devagar e olhou para ela com uma expressão estranha, vazia no rosto. - Venha
aqui, vamos conversar.
Ele assentiu e caminhou de volta para o aposento dela. Elphame nunca o vira se mover tão desajeitado. Seu andar arrogante se fora. Seus ombros largos tombaram. Era
como se ele estivesse arrastando um peso terrível consigo. Enquanto o observava, as palavras d'O MacCallan ecoaram por sua memória: Com aquela cabeça dura, o rapaz
está para quebrar a cara. O velho espírito astuto certamente tinha razão.
- Sente. - Ela apontou para a cadeira que Brenna tinha derrubado e fechou a porta após ele passar. Depois serviu-lhe um pouco de chá fresco. - Beba. Brenna disse
que está gostoso e forte.
O arremedo de risada estava totalmente destituído de humor. Cuchulainn endireitou a cadeira e sentou.
- Se ela soubesse que eu o beberia, teria feito o chá gostoso, forte e venenoso.
- Não seja ridículo. Ela disse que o curaria se caísse doente. Se soubesse que você o beberia, só o teria deixado com um gosto horrível.
- Ela me odeia, El.
- Não acredito que odeie. Na verdade, sei que não, mas este não é o assunto aqui. - Ela pigarreou. - Cuchulainn, como chefe do clã de Brenna é meu dever perguntar
sobre suas intenções.
- Minhas intenções? - Ele ficou piscando.
Elphame começou a andar de lá para cá diante da mesa.
- Não banque o estúpido, Cuchulainn. Sabe muito bem que estou perguntando sobre suas intenções quanto a Brenna. Sabe, acho que ela tinha razão, ao menos em parte
do que disse. Claro que o conheço melhor, então não creio que tenha mentido quando disse que a deseja, mas não posso deixar de pensar que talvez esteja a persegui-la
como num jogo - afinal, você geralmente não ouve "não" das mulheres.
Os olhos de Cuchulainn se estreitaram perigosamente.
- Não estou fazendo um jogo com Brenna.
- Fico contente por ouvir. Então a quer porque não consegue deixar de provocar excitação na moça desfigurada? Ou porque só quer dar uma espiada no resto dela para
ver até onde as cicatrizes realmente vão?
O punho do irmão socou a mesa com tanta força que as xícaras pularam.
- Se não fosse minha irmã, esmurraria essas palavras de volta na sua boca!
Elphame parou de andar, plantando as mãos nos quadris e sorrindo desafiadoramente para o irmão.
- Eu sabia, você está apaixonado por ela.
A cabeça de Cuchulainn recuou como se ela o tivesse estapeado.
- Apaixonado? Não, eu...
- Ela é feia demais para o grande Cuchulainn admitir que a ama?
- Elphame. - A voz dele baixou ameaçadoramente: - Se não parar de falar assim dela, juro que...
A risada dela o interrompeu.
- Então está dizendo que não a acha feia.
Cuchulainn a encarou com fúria.
- Claro que não. Brenna é linda.
- E as cicatrizes?
- As cicatrizes? São apenas uma parte dela. Pela Deusa! Não acredito que está dizendo essas coisas. Pensei que fosse amiga dela.
O sorriso provocador de Elphame se aqueceu.
- Ela é, razão pela qual queria ter certeza sobre você, Cuchulainn. Não acho que vá brincar com ela, mas você precisava dizer em voz alta para que nós acreditássemos.
Cuchulainn olhou ao redor do quarto.
- Mas não tem ninguém aqui além de mim e você, Elphame.
- Exatamente. - Ela ergueu os olhos para o céu. - Você tinha razão. Ele é cabeça-dura.
O irmão lhe fez cara feia.
- Andou falando com aquele maldito fantasma velho de novo?
- Sim, mas este também não é o assunto. Tente manter o foco, meu irmão. Você está apaixonado por Brenna.
Cuchulainn curvou os ombros, assentiu com a cabeça e fitou a xícara de chá.
- E ela estava um pouquinho aborrecida com você.
- Hrumph! - resmungou ele.
- Certo, talvez "um pouquinho aborrecida" seja uma atenuação - consertou Elphame.
- Acho que ela me odeia, El.
- Bobagem. Ouça... - Ela puxou a cadeira para perto do irmão e sentou. - Na noite passada, subi à Torre do Chefe.
- El, não devia ter feito isso. Sabe que Brenna mandou você ter cuidado.
- Sim, sim, sim, ela já me repreendeu - disse Elphame com impaciência. - Esqueça isso e preste atenção no que eu vi lá de cima. Eu observei Brenna deixar o castelo.
Ela estava chorando, Cuchulainn, com tanto desespero que teve de se apoiar na parede do castelo.
- Foi por minha causa. Eu a embaracei. Isso não significa que ela me ama, El. Só significa que sou tão egoísta e insensível quando ela pensa.
Elphame meneou a cabeça.
- Não, Cuchulainn, não é isso. Brenna se encostou à parede do castelo enquanto eu estava com o braço apoiado na balaustrada da torre. É difícil explicar, mas de
alguma forma o espírito do castelo me conectou com ela e por um momento senti de verdade o que ela sentia - desespero, dor, solidão. O que quer que tenha acontecido
não a deixou só envergonhada ou aborrecida, mas partiu-lhe o coração.
Cuchulainn pôs as mãos no rosto e gemeu.
- Cuchulainn. - Elphame apertou-lhe o ombro. - Você pode consertar isso. Só o que tem a fazer é mostrar a ela seu amor e fazê-la acreditar que pode confiar em você.
O irmão a olhou por entre os dedos.
- Como eu faço isso?
Ela sorriu.
- Não faço ideia.
Vinte e Quatro
ELPHAME SE ALONGOU com cautela e girou o ombro dolorido, tendo o cuidado de não deixar sua expressão revelar nem o menor desconforto. Estava sentada na terra recém-cavada
entre duas fileiras do que um dia seriam viçosas hortelãs - ao menos era o que Wynne lhe garantira. Elphame não entendia muito de ervas ou jardinagem, então a velha
horta situada atrás da cozinha mais lhe parecia uma disposição confusa de plantas postas de pé e montes de terra erguidos ao acaso do que um lote de ervas sendo
meticulosamente restaurado, mas as militantes cozinheiras assistentes de Wynne pareciam saber o que estavam fazendo enquanto arrancavam ervas daninhas, transplantavam
e tagarelavam sobre essa e aquela planta. Na verdade, Elphame preferiria estar esfregando as paredes de pedra do Grande Salão, mas Brenna colocara um fim naquilo
antes mesmo que ela se lançasse ao trabalho. Elphame fez cara feia enquanto apertava a terra ao redor de uma pequena muda de hortelã. A curandeira se negara a deixar
que El fizesse qualquer coisa mais extenuante que ficar confortável e calmamente sentada transplantando mudinhas.
Elphame suspirou. Não devia reclamar, ao menos escapara do confinamento daquela chaise-longue horrorosa. O dia estava quente e claro, com apenas uma brisa trazendo
o perfume das flores brotando e do mar para dentro dos muros do castelo. O sol parecia maravilhoso sobre seu rosto, e os ruídos movimentados do clã a cercavam com
um sentimento de paz. E, ela admitiu para si mesma, estava descobrindo que gostava de colocar as mãos na rica terra de MacCallan. Alongou-se novamente e girou a
cabeça, aliviando a rigidez perto do pescoço. Olhando para cima, observou os homens no árduo trabalho de reparar a ruína da caserna dos guerreiros, cuja entrada
estava localizada perto dos fundos da cozinha. Elphame pensou que a localização fazia perfeito sentido. Guerreiros, ao que parecia, sempre estavam famintos. Ao menos
Cuchulainn estava sempre faminto.
Uma familiar figura de kilt se juntou aos trabalhadores, dando ordens e conferindo o progresso dos telhadeiros. El o observou com atenção. A voz de Cuchulainn estava
definitivamente mais irritada que o normal. Ela conteve um riso. Mas Cuchulainn não era bobo, e ela sabia o quanto ele podia ser obstinado quando realmente desejava
algo. Brenna não fazia ideia do escopo da batalha que estava sendo preparada contra suas defesas. Elphame esperava fervorosamente que a campanha de Cuchulainn -
fosse qual fosse - funcionasse. Os dois combinavam bem. Pensou brevemente em colocar sua mãe na briga. Etain seria uma aliada formidável quando descobrisse que o
precioso coração de seu filho estava perdido, e que o vislumbre de futuros netos brilhava diante dela.
Não, Elphame logo decidiu-se contra chamar a mãe. Que Cuchulainn trabalhasse para conquistar Brenna. O MacCallan não tinha certeza de que a curandeira poderia aprender
a confiar o bastante para amar, mas Elphame tinha muito mais fé na amiga - e na habilidade do irmão em cortejar e conquistar uma amante.
Distraída, Elphame escolheu outra muda e começou a preparar o local perto de outro broto de hortelã. E quanto à questão de seu próprio amante? Um pequeno estremecimento
de prazer correu por Elphame ao se lembrar de como ele reagira ao seu toque. Suas asas...
- Você parece corada. Talvez seja hora de descansar.
Elphame deu um pulo de culpa. Olhou para cima, protegendo os olhos do sol, silhuetando Brenna e Brighid.
- Não estou corada. Estou ótima. - Ela ficou de pé com o que esperava ser ágil graça para satisfazer sua amiga curandeira.
- Ela me parece bem descansada - disse Brighid.
Elphame poderia ter beijado a caçadora.
Brenna estreitou os olhos.
- Não está...
- Não! - Elphame interrompeu a amiga. - Não estou exagerando. Só estou plantando esses bebezinhos.
- Está transplantando mudas de hortelã. Elas não são criancinhas - disse Wynne alegremente ao adentrar a horta. A cozinheira inspecionou a pequena fileira que Elphame
tinha completado. - E está fazendo um ótimo trabalho.
Elphame sorriu.
- Viu? Estou ótima.
O rosto de Brenna relaxou só um pouquinho.
- Bom, tente ir devagar. E se o ombro começar a doer, não insista. - Sorriu de má vontade para a paciente hiperativa. Teria que ficar de olho em Elphame. A amiga
estava se curando bem, mas exigia demais de si mesma. Estava muito acostumada a depender das habilidades extraordinárias de seu corpo. Elphame não parecia compreender
que até sua força tinha limites.
Brenna deu uma rápida olhada em Wynne enquanto esta discutia as refeições do castelo com Elphame e Brighid. A cozinheira era voluptuosa e bonita. Não era possível
que Cuchulainn não desejasse Wynne. Assim como não era possível que o guerreiro realmente desejasse Brenna. Conforme o dia passava, a raiva com ele se abrandara,
deixando-a com uma confusa irritação. Por que ele insistira em dizer que a queria? Brenna mordeu o lábio, lembrando das palavras ríspidas que lhe dissera. Não achava
realmente que ele fosse egoísta e cruel - só estava completamente transtornada com a declaração dele. E com seu toque. E sua proximidade.
- Boa tarde, senhoras. - A voz profunda de Cuchulainn soava forçadamente animada. Ficara inquieto e irritado o dia inteiro, e sabia que estava mais prejudicando
do que fazendo bem ao repreender os telhadeiros. Por impulso, decidira procurar a irmã. Ela era uma donzela. Certamente saberia de algo que pudesse dizer a Brenna
para reparar o dano que tinha feito inconscientemente. Uma das mulheres lhe disse que Elphame estava na horta da cozinha, e ele foi depressa para lá com um obstinado
senso de propósito que bloqueava qualquer outra coisa. Até entrar na pequena horta e ver Brenna. Falou espontaneamente com as mulheres, que lhe acenaram calorosamente
conforme ele andava a largas passadas até a irmã - e Brenna. Cuchulainn ergueu os ombros. Não teria chance de conversar com a irmã a sós e lhe pedir um conselho
antes. Teria apenas que contar com o coração - com a coragem - ou ambos.
Elphame sorriu para ele, arrancando-lhe a atenção da silenciosa curandeira.
- Aposto que não sabia que eu entendo de jardinagem, Cuchulainn.
Ele não pôde deixar de sorrir para a irmã e limpar uma mancha de sujeira do rosto dela.
- Você não entende.
- Ficará surpreso, guerreiro - ronronou Wynne. - Nossa chefe tem muitos talentos escondidos.
Cuchulainn mal olhou para a bonita cozinheira. Em vez disso, seus olhos buscaram e encontraram os de Brenna. Seu sorriso era lento e sedutor, cujo calor iluminava
o rosto.
- Acho que tem razão, Wynne. Há muitas coisas sobre nossa chefe - e sobre outras pessoas - que fiquei surpreso em descobrir. E também estou percebendo que gostaria
de descobrir mais.
Brenna ficou atônita com o guerreiro. Ele estava olhando para ela daquele jeito, bem na frente de todos! A mensagem de Cuchulainn era clara. Estava anunciando a
todos que estava interessado. Nela. Brenna ficou ali, paralisada, sem saber se desejava poder desaparecer ou se desejava que ele continuasse olhando daquele jeito
para ela - e que fosse realmente sério.
Ele continuou olhando daquele jeito para ela.
- Hã, Cuchulainn... Precisa de alguma coisa? - perguntou Elphame.
Os olhos turquesa de Cuchulainn não abandonavam os de Brenna.
- Preciso de uma coisa, mas acho que já a encontrei, minha irmã.
A respiração de Brenna deixou o corpo num sopro surpreso e ela sentiu o lado esquerdo do rosto se incendiar.
- Se me dá licença, Elphame, tenho coisas que devo... Preciso... - Ela desviou bruscamente os olhos do olhar ardente de Cuchulainn e reordenou os pensamentos. -
Preciso ir - terminou de supetão, fez uma mesura para Elphame e saiu apressada da horta.
- Então é assim? - perguntou Wynne baixinho.
Ainda com o olhar em Brenna, Cuchulainn assentiu vagarosamente com a cabeça.
- É assim.
Wynne deu uma olhada apreciativa no guerreiro, jogou para trás os cabelos ruivos e saiu passeando da horta.
- Essa pode não ter sido a coisa mais inteligente a ser feita, Cuchulainn - disse Elphame, limpando as mãos nas coxas. - Sabe como Brenna é tímida. Acho que deve
tê-la deixado mais assustada que seduzida.
- Quero que ela saiba que é sério.
Brighid bufou.
- O que tem a dizer sobre isso? - Cuchulainn se virou para ela.
A caçadora encolheu os ombros torneados.
- Nada além de que você parece um touro na época do cio. Seu próximo passo será urinar no chão ao redor dela para demarcar território.
Elphame viu o irmão começar a inchar e logo se colocou entre os dois.
- Já chega. Levem isso para fora dos muros do castelo.
A caçadora e o guerreiro piscaram para a chefe sem entender. Ela sacudiu a cabeça com desgosto para os dois.
- Vão caçar. Os dois. Brighid, tente não antagonizar com meu irmão a cada segundo. Cuchulainn, tente liberar um pouco dessa... - ela apontou para a postura rígida
dos ombros - ... Tensão. Certamente não está ajudando você com Brenna.
A caçadora bufou novamente.
Elphame ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços.
Brighid suspirou e olhou contrafeita para Cuchulainn.
- Vamos, guerreiro. Vamos ver se consegue abater um cervo.
Cuchulainn fez cara feia para a caçadora. Não tinha qualquer intenção de sair do castelo. Deveria ir atrás de Brenna imediatamente e...
- Obrigada, Brighid, parece uma ideia maravilhosa. Que bom que pensou nisso. - Elphame empurrou o ombro dos dois na direção da saída da horta. - Wynne estava mesmo
dizendo que nunca tem carne de cervo suficiente. Vejo vocês dois na hora do jantar. - Ignorou placidamente a olhada zangada que o irmão lhe deu enquanto seguia a
caçadora pátio afora.
Com um suspiro, ela voltou a sentar em meio às hortelãs, contemplando os benefícios de se golpear Cuchulainn na cabeça para que Brenna fosse forçada a tratá-lo.
- Ele provavelmente seria um paciente pior do que eu, e ela terminaria envenenando o chá - não que alguém fosse culpá-la - murmurou.
Cuchulainn tinha que admitir, a ideia de Elphame era boa. Ele precisava se afastar do castelo e clarear as ideias. Sua mira certamente estava péssima - ficaria surpreso
se pudesse atingir a lateral da grossa muralha externa de MacCallan, mas seus músculos estavam quentes e a tensão tinha se dissipado. Também precisava admitir que
Brighid era uma excelente caçadora. Ele passara anos ao lado do pai, então a graça e a força de um centauro não eram nenhuma novidade para ele, mas Brighid se movia
com uma furtividade quase sobrenatural.
- Por aqui. - A voz era sussurrada, e ele seguiu-lhe o olhar até um riachinho que corria pela campina. O cervo estava justamente baixando a cabeça para beber.
Cuchulainn assentiu e desceu silenciosamente do capão. Ajustando uma flecha, esgueirou-se adiante para conseguir um disparo certeiro. Uma árvore meio tombada estava
no caminho, então ele se moveu lentamente ao redor do tronco despedaçado. A brisa se agitou e ele se paralisou, mesmo com o vento soprando para longe do cervo. Um
odor então veio até Cuchulainn, que inconscientemente curvou os lábios com o cheiro fétido. Morte e podridão - bem perto. Ele contornou a ponta do tronco caído,
e com um ruído enjoado e contraído pisou com a bota bem no meio do corpo em decomposição.
Antes que pudesse se conter, Cuchulainn pulou com o corpo para trás. Com as narinas dilatando, o cervo disparou para longe.
- Cuchulainn, o que... - começou a dizer Brighid, mas seu olhar de irritação mudou para um de surpresa ao se aproximar dele do outro lado da árvore.
- Lobo morto - disse ele, limpando a bota no chão musgoso. - Lamento ter assustado o cervo. Foi apenas... - ele fez uma careta para o corpo - ... Inesperado. Especialmente
assim.
Brighid estava estudando o corpo pensativamente.
- Empalado - disse ela.
- Estranho, não é? Ele deve ter corrido direto contra o tronco despedaçado.
- Ela - Brighid corrigiu-o.
Ele ergueu uma sobrancelha.
- O lobo é fêmea. - A caçadora apontou para a parte de baixo do corpo inchado. - E ela tem filhotes. Olhe as tetas.
Cuchulainn estava intrigado o bastante para ignorar o cheiro e chegar mais perto da loba morta.
- Já vi esse tipo de morte algumas vezes, e sempre com fêmeas solitárias que deram cria recentemente. Ficam desesperadas por comida. Só posso imaginar o frenesi
que as induz a correr atrás da presa com cegueira tão intensa para que percam o senso de tudo o mais ao redor. Ela provavelmente pulou o tronco e, com a velocidade
que corria, o fragmento da madeira fincou nela como uma lança.
Cuchulainn se abaixou. A loba tinha se empalado no peito. Ele meneou a cabeça.
- Mas por que estava caçando sozinha? Lobos vivem em alcateias.
- A maioria sim, mas olhe para o tamanho dela. É claramente subdesenvolvida. Nunca deveria ter procriado. Meu palpite é de que a fêmea-alfa a tenha expulsado da
alcateia. Não gostaria de ter que compartilhar o macho-alfa, e a alcateia raramente deixa membros precários procriarem. - A caçadora espiou a loba, lendo a história
que o corpo ainda contava. - Olhe para o corpo dela, especialmente ao redor da cabeça e do pescoço. Está cheia de cicatrizes - provavelmente devia ter morrido. É
impressionante que tenha se recuperado e vivido tanto tempo assim.
Cheia de cicatrizes... Devia ter morrido... O maxilar de Cuchulainn se apertou. Abruptamente, levantou-se e encarou a caçadora.
- Diria que está morta há quanto tempo?
Brighid encolheu os ombros.
- Talvez dois dias.
- Não faz muito tempo - murmurou como se pensasse em voz alta.
- Muito tempo para quê?
- Alguns deles ainda devem estar vivos. Vamos encontrá-los. - Cuchulainn encaminhou-se a largas passadas para o capão.
- Cuchulainn, em nome da Deusa, do que você está falando?
Ele montou no cavalo.
- Prove para mim que é a grande caçadora que pensa que é.
Surpresa, ela ergueu o queixo.
- E como sugere que eu faça isso?
Ele sorriu para ela de maneira inflexível.
- Quero que encontre os filhotes dela.
Vinte e Cinco
A REFEIÇÃO DA noite fora deliciosa e, mesmo que Elphame estivesse começando a se indagar sobre a prolongada ausência do irmão e da caçadora, bebericou seu vinho
e tagarelou com Danann. Não era ama-seca. Cuchulainn podia se cuidar sozinho - assim como Brighid.
Mas, por outro lado, havia Lochlan. Quando ela mandara Brighid levar Cuchulainn para caçar, só estava pensando em Brenna e no irmão. E se a caçadora tivesse deparado
com mais daqueles rastros "incomuns"? Ou, pior, e se Cuchulainn tivesse?
Tentou sorrir e dar educada atenção enquanto assentia para algo que o velho artífice estava dizendo, e depois se voltou para Brenna, mais uma vez tentando atraí-la
para a conversa. A curandeira não se deixava convencer. Estava silenciosa, olhando resoluta para o prato, só erguendo nervosamente o olhar ao som de alguém entrando
no aposento.
Talvez não tivesse sido boa ideia mandar Cuchulainn para longe. Talvez devesse tê-lo deixado cometendo asneiras com Brenna. Elphame suspirou e se serviu de mais
vinho quando o tropel de cascos anunciou o retorno de Brighid. A caçadora entrou na câmara com um meio-sorriso estranho nos lábios. Capturou o olhar de Elphame e
piscou antes que Cuchulainn irrompesse na sala.
- Brenna! - gritou. - Preciso de você.
Elphame viu o corpo da curandeira pular, mas quando Brenna registrou a expressão de Cuchulainn, a moça tímida desapareceu. Imediatamente estava de pé se aproximando
dele.
- Onde está ferido? - perguntou na voz calma e clara de uma curandeira experiente.
O estômago de Elphame revirou, a piscadela de Brighid esquecida. O irmão estava machucado? Ela se afastou da mesa e correu atrás de Brenna. A sala ficou abruptamente
silenciosa, fazendo as ordens que a curandeira disparava para Cuchulainn parecerem amplificadas.
- Sente aqui. - Ela expulsou dois trabalhadores do banco mais próximo e empurrou o ombro de Cuchulainn para baixo para que ele fosse obrigado a tomar o lugar dos
trabalhadores. - Não vejo sangue. Você caiu do cavalo? - Ela deu uma olhada em Brighid. - O que aconteceu com ele?
- Brenna. - Ele capturou a mão que estava tentando sentir a pulsação disparada em seu pulso. - Não sou eu. É ela. - O guerreiro abriu a frente da túnica e puxou
uma trouxinha desgrenhada de pelo cinza.
Brenna tentou recuar um passo, mas ele aumentou a pressão na mão dela e se recusou a deixá-la se retirar.
- Que brincadeira é essa, Cuchulainn? - Sua voz era fria e zangada.
Elphame espiou por cima do ombro da amiga a suja felpa cinza.
- Está viva?
- Por pouco - disse ele à irmã. Depois se voltou para Brenna. - E não estou fazendo nenhuma brincadeira. Preciso que me ajude a salvar o filhote.
- Onde está a mãe? - Brenna conseguiu se livrar da mão dele, mas dessa vez não recuou. Aproximou-se e começou a examinar o filhotinho.
- Morta na floresta. Assim como os quatro irmãos.
- Você a matou? - perguntou Brenna com severidade.
Brighid bufou uma risada.
- Cuchulainn não foi ameaça para nenhuma fera hoje. O guerreiro errava tudo em que mirava. - Ela ignorou a cara feia de Cuchulainn. - Encontramos a mãe morta. Ele
me fez rastrear seu caminho de volta até a toca.
Elphame veio para o lado do irmão e tocou com hesitação o pelo emaranhado da pequena criatura. A filhote de lobo era nova; ainda não era muito maior que a mão de
Cuchulainn. Os olhos estavam fechados e cobertos de sujeira, assim como o resto da pelagem. O focinho da filhote estava pálido e seco. Se não tivesse dado um fraco
resmungo, El não teria acreditado que estava viva.
- Está muito fraca e desidratada - provavelmente ficou uns dois dias sem alimentação nenhuma. - Brenna pôs o dedo na boca da filhote, que o sugou com fraqueza. -
É bom sinal que ainda queira mamar, mas ela precisa de leite - muito leite, e com regularidade. E talvez não viva, não importa o que você faça.
- O que eu faça? - disse Cuchulainn depressa. - Mas pensei que você...
O estreitar de olhos de Brenna o interrompeu.
Elphame riu da expressão do irmão.
- Parece que arranjou um cachorrinho, meu irmão.
- Filhote de lobo - resmungou Cuchulainn. - Ela não é um cachorrinho, é uma filhote de lobo.
- Leve sua filhote de lobo para a cozinha. Wynne deve ter tecido de algodão. Posso mostrar como fazer uma teta. - Toda séria, Brenna rumou para a entrada da cozinha.
Cuchulainn escondeu a filhotinha dentro da túnica e, junto com as risadinhas que varreram a sala, acompanhou-a.
- Uma filhote de lobo, hein? - Elphame sorriu para Brighid.
- Em teoria, era uma excelente ideia. Levar uma criaturinha que precise de cuidados para a curandeira que ele está tentando cortejar. Isso teria derretido o coração
da maioria das moças.
- Brenna não é como a maioria das moças.
- Exatamente.
- Ela está mamando!
O alívio inundou a voz de Cuchulainn. Ele estava sentado na cadeira que ficava ao lado da pequena escrivaninha na tenda que agora era sua em vez de ser da irmã.
Parte de seu plano definitivamente funcionara. Brenna estava sozinha com ele em sua tenda. Wynne os expulsara da cozinha dizendo que os únicos animais que permitia
ali estavam mortos e prontos para a panela. Ele tinha desenrolado um cobertor e ajeitado a filhote no colo, a teta improvisada cheia de leite pronta para reviver
a criatura. Mas ela se negava a sugar. Choramingando e ganindo, o animal parecia prestes a morrer.
- Com cuidado e aos poucos, ela não é uma batalha a ser ganha - instruíra Brenna. - Ela sofreu muito. Deve fazer com que se sinta segura o bastante para mamar.
Então Cuchulainn a bajulou e persuadiu até, enfim, a filhotinha morder o pano com leite. Ele abriu um largo sorriso para Brenna.
- É bom, não é! Veja como ela estava mamando bem.
Brenna rejeitou o sorriso que pairava logo abaixo da superfície do rosto. O viril e jovem guerreiro nunca parecera tão atraente como naquele momento, desgrenhado,
sujo de leite e fedendo a estrume de lobo.
- Não fique muito esperançoso. Ela não está fora de perigo.
Cuchulainn franziu a testa e deixou um dedo correr pela nuca emaranhada da filhote, o que fez a criaturinha resmungar baixinho e sugar ainda mais.
- Viu? - O sorriso de Cuchulainn era ardoroso. - Ela tem o coração de um guerreiro. Não morreu com os outros. Não vai morrer agora.
Os lábios de Brenna se ergueram só um pouquinho.
- Talvez tenha razão. Bom - disse, toda séria novamente -, você tem uma longa noite pela frente. Há bastante leite aqui, e também tecido de algodão limpo. Acho que
deve dormir com ela enroscada perto da sua pele. Ficará aquecida assim e acordará quando precisar ser alimentada mais uma vez. - Ela assentiu para Cuchulainn, que
a observava com olhos arregalados e incrédulos. - Você vai se sair bem. Venho vê-lo pela manhã.
- Espere... - Ele a teria agarrado para mantê-la ali, mas não tinha mãos livres. - Não pode simplesmente ir embora.
- Não acha que vou passar a noite com você, acha, Cuchulainn? - Ela não baixou a cabeça e nem se escondeu, mas a voz ficara mais suave e soava muito mais jovem do
que a da curandeira.
- Não comigo - garantiu ele depressa. - Conosco.
- Está dizendo que devo tratar essa situação como se ela fosse minha paciente humana? - perguntou, mudando imediatamente de donzela para curandeira.
Cuchulainn assentiu, parecendo aliviado.
- Então minha opinião como curandeira é de que minha paciente está nas mãos muito capazes do... Hã... Pai adotivo, e não precisa de mim até de manhã. Boa noite,
Cuchulainn. - Abrindo a aba da tenda, ela hesitou. - Duas últimas coisas. Primeiro, mesmo que ela cheire como o estrume de um ninho de cães selvagens, não dê banho
nela esta noite. Seria demais para o pequeno organismo dela. Pode dar banho amanhã - caso sobreviva. Segundo, não esqueça de arrumar um pano úmido para ajudá-la
a limpar a urina e as fezes, como a mãe dela faria. - Com essas palavras, ela realmente sorriu antes de se virar e sair da tenda.
Cuchulainn fechou a boca.
A filhote resmungou e empurrou a mão dele, procurando mais leite no pano de algodão vazio.
- Tudo bem, medrosa. Atenderei ao seu pedido. - Ele deixou a filhote sobre o colo e preparou mais leite. - Mas viu como ela sorriu para nós, não viu? É um bom sinal.
Não vai demorar para que ela admita que gosta de nós. - Ele manteve uma conversa unilateral com a criaturinha fedorenta. Vocalizar determinação era um passo positivo.
Se repetisse bastante, isso se tornaria realidade. Ao menos era isso o que Cuchulainn esperava fervorosamente.
Elphame estava finalmente sozinha e, graças à nova aquisição de Cuchulainn, estava segura de sua privacidade - embora a princípio ele fosse a razão para Brighid
ter insistido em acompanhá-la aos aposentos e até mesmo ficar com sua chefe durante o banho, regalando El com as desventuras do irmão naquele dia. Elphame sorriu
em recordação enquanto enrolava o macio tartã azul e verde ao redor do corpo e o mantinha no lugar com o broche MacCallan.
- Obrigada, mamãe - sussurrou ela enquanto a mão se demorava pelo excelente tecido que fora um dos muitos presentes que chegaram no dia anterior do Templo de Epona.
Honestamente, ela não se importava muito com os suntuosos lençóis e com as outras frivolidades que sua mãe via como necessidades, mas o tartã do clã - isto era uma
joia sem preço.
Vestida, aproximou-se da entrada arqueada que levava ao quarto de banho e à passagem secreta mais além.
Deixou as pontas dos dedos acariciarem as pedras que eram o corpo de seu lar conforme descia resoluta os degraus. Será que sabia o que estava fazendo? Elphame respirou
fundo. Sim - sim, ela sabia.
Mostre-me a porta para a passagem.
Instantaneamente o formigamento familiar pinicou seus dedos, acompanhado pelo calor criado pelo fio dourado que cintilou de sua mão e ao redor da parede, para terminar
numa esfera cintilante no meio da porta escondida. Ela seguia o fio à medida que as batidas do coração aumentavam. Pegando uma tocha de seu encaixe na parede do
quarto de banho, pressionou o ponto liso e saliente. Dessa vez a porta se abriu silenciosamente, como se estivesse esperando ofegantemente por seu toque.
Elphame ergueu a tocha e a manteve à entrada enquanto espiava o túnel escuro. As paredes eram estreitas e cobertas com uma película úmida de teia prateada. Ela estremeceu,
pensando nas aranhas assustadas. O teto era baixo e áspero; o ar velho cheirava a podridão úmida. Ela pressionou a mão sobre a parede do túnel. Através da superfície
fria e escorregadia, Elphame sentiu a pulsação do castelo e a rocha se aquecendo sob sua palma. Deu um longo suspiro de alívio enquanto observava o fio dourado se
estender e serpear rapidamente ao longo da parede. Não podia ver o fim com os olhos, mas podia senti-lo através do próprio sangue que pulsava em suas veias. Sabia
que em algum lugar no fim do antigo túnel a pedra encontrava a floresta e se abria para a noite.
Antes que sua determinação falhasse, Elphame entrou no túnel. Ele corria reto e nivelado, e mesmo que estivesse musgoso e frio, as paredes a cercavam com uma sensação
muda de força. O eco de seus cascos no chão de pedra era um som familiar, confortável. Enquanto seguia pelo túnel, os pensamentos de Elphame vagaram para os MacCallan
que viveram por gerações no castelo. Quantas vezes seus ancestrais pisaram naquela trilha? Quantos encontros aquele túnel possibilitara? Encontros... Seu estômago
se agitou de nervosismo.
- Epona, que eu esteja fazendo a coisa certa. - Sua voz ecoou assustadoramente ao redor de Elphame, que considerou chamar O MacCallan - a companhia dele seria definitivamente
confortadora. - Hrumph. - El copiou de propósito a expressão favorita do irmão. Ela era A MacCallan agora; precisava agir assim. Devia tomar suas próprias decisões
e agir de acordo.
Ela interrompeu o pensamento quando a luz bruxuleante da tocha dançou no fim do túnel. Havia degraus de pedra levando a uma massa intricada de raízes e moitas. Ela
colocou a tocha num suporte convenientemente localizado na beira da parede, liberando suas mãos para empurrar para longe o amontoado de plantas e folhas que obstruíam
a saída - e surpreendentemente com pouco esforço, ela saiu do túnel como uma cortiça subindo à superfície.
Elphame tirou folhas do cabelo enquanto os olhos se acostumavam à escuridão da noite. Estava bem dentro da floresta para não conseguir detectar qualquer sinal de
luzes do castelo, mas podia ouvir claramente o bater da arrebentação, então sabia que devia estar perto da beira do penhasco. Ela olhou para a entrada do túnel e
sacudiu a cabeça com espanto. Pelo lado de fora, parecia apenas outro buraco escabroso na floresta, onde um pequeno rebordo de terra se projetava e se curvava. Misturava-se
tão bem com a paisagem que ela teria que ter cuidado, do contrário teria trabalho para encontrá-lo quando estivesse pronta para retornar.
Ela olhou ao redor tentando ver a floresta escurecida pela noite. Deveria ter esperado mais, até a lua estar bem alta no céu para ser de mais ajuda. E depois o quê?
Claro, seria capaz de ver melhor, mas de que ajuda seria se não sabia onde procurar?
Não fazia ideia de onde Lochlan estava.
Ele tinha surgido quando o javali a atacara. Tinha surgido quando ela estava sozinha no dia anterior. Mas como ele sabia? Ela apertou os olhos, pensando. Nem sabia
se ele existia na primeira vez, mas no dia anterior apenas dissera o nome em voz alta, e ele simplesmente aparecera.
- Chame por mim, meu coração. Nunca estarei longe de você.
A memória repetiu-lhe as palavras na mente. Ela deu de ombros. Não havia realmente nada mais que pudesse fazer. Não podia vasculhar a floresta inteira atrás dele.
Sentindo-se um bocado tola, Elphame pigarreou e falou o nome dele com hesitação: - Lochlan. - Saiu um pouco mais alto que um sussurro.
Ela franziu a testa e se repreendeu - como se ele fosse ouvir aquilo.
- Lochlan! - Elphame gritou seu nome. Sua pele formigou com o poder que de repente a cercou. O vento levou o eco do som e soprou pelos galhos dos pinheiros sobre
os quais pairou, repetindo Lochlan... Lochlan... Lochlan... até se dissipar gentilmente, como neblina beijada pelo sol.
- Magia. - Seus lábios formaram a palavra, mas nenhum som emergiu. Não era a imaginação nem a batida na cabeça, o nome de Lochlan era mágico.
Elphame soube que ele estava ali antes que conseguisse vê-lo. Sentiu-o. Como sentia a pulsação do castelo através da pedra, podia pressentir a presença dele através
do sangue.
- Lochlan. - Ela repetiu-lhe o nome, deliciada mais uma vez com a magia criada conforme a palavra voava ao vento e a envolvia.
- Estou aqui, meu coração.
Vinte e Seis
ELE SAIU DAS sombras, as asas bem dobradas às costas. A pele e o cabelo pareciam atrair a luz prateada da lua que se erguia no céu, destacando os sulcos e planos
do corpo, silhuetando a escuridão aveludada das asas. Aproximou-se dela com as passadas silenciosas e planantes que eram únicas à raça de seu pai. Elphame não se
afastou dele, mas ele teve o cuidado de parar a praticamente um braço de distância.
- Senti que estava próxima, mas não quis acreditar.
- Então me ouviu chamar seu nome?
- Sim, veio até mim no vento da noite e eu segui o som até você.
Elphame sentiu-se corada e nervosa. Desejava ter alguma coisa para fazer com as mãos.
- Gostaria de dar um passeio? - falou ela por impulso.
- Seria uma honra. - Lochlan estendeu a mão.
Ela hesitou. Sob o luar, a mão dele parecia fantasmagórica e irreal.
- Já nos tocamos antes, Elphame.
Seu olhar trocou as mãos pelos olhos. Depois, ela entrelaçou os dedos nos dele. A pele era cálida e, onde os punhos se roçavam, ela podia sentir a firme batida da
pulsação dele.
- O penhasco é logo depois daquelas árvores. - Ele apontou por cima do ombro dela. - Se caminharmos até lá, a luz será melhor. Será mais fácil para que você enxergue.
Elphame assentiu entorpecidamente. Agora que ele estava ali, sentia-se completamente incerta de si mesma. Parecia nem conseguir mover as pernas - apenas ficou parada,
a mão presa à dele, fitando-o em silêncio.
O cintilar branco de seu sorriso bestial combinava com o brilho provocador dos olhos.
- Ou prefere correr?
As palavras dele quebraram o encanto da falta de jeito. Os lábios dela se contorceram.
- Nem de noite, nem pela floresta. - De mãos dadas, começaram a caminhar juntos. - Eu definitivamente aprendi a lição. Outra queda e Cuchulainn nunca me deixaria
sair de vista, o que seria quase tão inconveniente para ele no momento quanto seria para mim.
Lochlan acompanhou o fio da conversa.
- Posso imaginar. Cuchulainn está muito ocupado com a reconstrução do castelo. Seria difícil para ele se achasse que precisa ficar sempre de olho em você.
- Sem mencionar que está apaixonado.
Os olhos de Lochlan se arregalaram de surpresa. Quando falou, o polegar traçava círculos preguiçosos na mão dela.
- Compreendo como o amor pode complicar as coisas.
- Compreende? - Ela se sentia infantilmente tonta.
Eles saíram da floresta. A luz tocava o mar sonolento, matizando-o de prata e branco. O Castelo MacCallan se erguia ao longe, um escuro acompanhante, parcialmente
obscurecido pelo limite da floresta.
Lochlan virou-se para encará-la.
- Sim, compreendo.
Ela estava presa na intensidade daquele olhar. Os olhos dele eram repletos de mistério e da sedutora atração do desconhecido. De repente, teve medo de que se o amasse
ficaria perdida para si mesma, para sempre mudada, e não sabia se estava pronta para se renunciar por algum homem - especialmente um homem que era tão diferente
do que ela jamais imaginara. Elphame puxou a mão da dele. Com Lochlan a segui-la, caminhou agitada até um dos muitos rochedos que pontilhavam o penhasco. Sentou-se
nele, tentando ordenar os pensamentos.
- Conte-me. - Em vez de olhar para ele, fitou o mar iluminado pela lua. - Explique como é possível que você exista.
Lochlan sabia que o que contasse a ela estabeleceria o curso do relacionamento. Mantendo o olhar em seu perfil forte e familiar, fez uma oração silenciosa pedindo
ajuda a Epona.
- A questão de minha existência é complexa. Na verdade, não sei exatamente por que existo. Você sabe tão bem quanto eu sobre os eventos que levaram à Grande Guerra.
Há mais de cem anos algo cataclísmico aconteceu com a raça fomoriana. Suas fêmeas começaram a morrer. Às vezes pensei que fosse vontade de Epona que uma raça tão
demoníaca se extinguisse, mas se foi por vontade dela, por que então permitiu que a guerra acontecesse?
Sem olhar para ele, Elphame respondeu com palavras que ecoavam aquelas que ouvira a mãe falar muitas vezes: - Epona permite que seu povo faça as próprias escolhas
- não quer que sejamos escravos, quer súditos fortes e de pensamento livre. Com essa liberdade vem a possibilidade de erros - erros que às vezes levam ao mal. Se
os guerreiros no Castelo Guardião não tivessem relaxado de seus deveres, os fomorianos não poderiam ter entrado em Partholon e começado a roubar mulheres.
- Mas assim fizeram. Minha mãe explicou isso como sendo a maneira como começaram a repovoar sua raça moribunda. - Ele meneou a cabeça e expirou um sopro distinto,
frustrado. - Era de imaginar que a mistura ao sangue humano enfraqueceria os demônios, mas não. A raça prosperou, tanto que logo estavam prontos para invadir Partholon.
- Ele se calou, reordenando os pensamentos.
"Até a época de minha mãe, nenhuma mulher humana tinha sobrevivido ao nascimento de uma criança gerada por um fomoriano - continuou, escolhendo as palavras com cuidado.
- Ela era jovem e forte, mas sempre declarou que sua força pouco tinha a ver com isso. Ela dizia ter sobrevivido porque sou mais humano que fomoriano. - Ele fez
uma pausa e respirou fundo. - Minha mãe foi parte do que era, a princípio, só outro dos grandes grupos de mulheres que foram capturadas, violentadas e engravidadas
pelos fomorianos. Eram mantidas prisioneiras até ser época de os fetos demoníacos nascerem. Ser engravidada por um fomoriano era uma sentença de morte para uma mulher
humana; durante o processo de parto, seu corpo era fatalmente dilacerado. - Sua voz assumiu um tom distante conforme repetia a história que a mãe lhe contara inúmeras
vezes. - Os fomorianos viam as mulheres humanas como descartáveis, só um estorvo temporário, um meio necessário para atingir o objetivo de repovoar sua espécie.
As mulheres híbridas eram especialmente apreciadas na esperança de reconstruir a raça, mas todas as crianças eram necessárias.
"Quando Partholon se uniu e a maré da guerra se voltou contra eles, os fomorianos tentaram escapar pelas Montanhas Tier. Alguns conseguiram. Dividiram as mulheres
entre si, planejando enganar o exército de Partholon enquanto mantinham seu meio de procriação. Mas a Deusa tinha outros planos. Os demônios ficaram doentes com
a mesma praga que dizimou o núcleo de seu exército. Carregando um filho, minha mãe liderou as mulheres de seu grupo numa revolta. Então ela e as companheiras procuraram
por outras nas passagens das montanhas, destruindo os fomorianos que enfraqueciam. Devia ter retornado para sua casa em Partholon, para que, cercada pelo conforto
dos familiares, ela e as outras grávidas pudessem aguardar o fim inevitável. Era o que ela e as mulheres pretendiam. Mas então o inesperado aconteceu. Ela sobreviveu
ao meu nascimento.
Elphame era incapaz de continuar mantendo o olhar longe dele. Virou o rosto para encará-lo. A expressão de Lochlan estava rígida e contraída de emoção.
- E depois outra mãe sobreviveu ao nascimento do filho mutante, e outra e mais outra.
As palavras dele fizeram seu coração doer.
- Você não é mutante.
- Sou parte demônio, parte humano. O que mais isso faz de mim?
Ela respondeu à pergunta com outra:
- Sou parte centauro, parte humana. Isso faz de mim uma mutante?
- Isso faz de você um milagre.
Ela sustentou-lhe o olhar.
- Exatamente.
Ele continuou a recontar a história de sua vida com o fantasma de um sorriso nos lábios.
- Quase metade das mulheres sobreviveu. Minha mãe não tinha explicação para isso, exceto dizer que era trabalho da mão de Epona. - Suas sobrancelhas se ergueram.
- Esta sempre foi a explicação de minha mãe para qualquer pergunta que não conseguia responder. Mas seja qual fosse a razão, de repente havia um grupo de jovens
mulheres com bebês alados nos seios. - A expressão de Lochlan se abrandou. - E elas amavam os filhos com resguardo feroz. Sabiam que não poderiam voltar para Partholon
com seus bebês, e deixá-los era uma opção que rejeitavam considerar. Então atravessaram as montanhas e adentraram os Ermos. A vida era difícil ali, e nossas mães
sentiam falta de Partholon, mas nós sobrevivemos, até prosperamos. E nossas mães nos ensinaram a ser civilizados. A ser humanos.
- Mais de um século atrás... - As palavras dela eram um suspiro. Mesmo com ele de pé ali ao lado dela, alado, vivo e respirando, era difícil aceitar.
- Admito que seja um longo tempo. - Ele fez um gesto descuidado, como se não soubesse o que fazer com a própria longevidade. - Nenhuma de nossas mães tinha muito
conhecimento da raça fomoriana, mas logo se tornou aparente em nossas vidas que amadurecemos rápido e que nossos corpos eram extraordinariamente resistentes. Parece
que o envelhecimento é outra coisa da qual nosso sangue sombrio nos protege.
Elphame pensou no que tinha lido na extensa biblioteca da mãe.
- Os fomorianos tinham aversão à luz do sol, mas já vi você à luz do dia. Não parece machucar você.
- Não me machuca, mas sou mais forte à noite. Minha visão é melhor, meus sentidos de audição e olfato são mais apurados.
Abrindo os dedos, ele estendeu os braços para longe do corpo. Elphame pensou que ele parecia o espírito alado de um xamã se preparando para evocar a magia de uma
deusa.
- O céu da noite me chama.
- Pode voar?
Ele sorriu, largando as mãos nas laterais do corpo.
- Não penso nisso como voar; penso nisso como cavalgar o vento. Talvez eu mostre a você um dia.
Deslizar no ar nos braços dele... A ideia a deixou sem fôlego.
- Isso não parece real. Você não parece real - disse ela.
Lochlan se aproximou mais. Ergueu uma grossa mecha de cabelo que caíra sobre o ombro dela e a deixou escorregar como água entre os dedos.
- Numa noite tive um sonho. Mesmo que eu viva uma eternidade, nunca me esquecerei dele. No meu sonho vi o nascimento de uma criança. Ela era nascida de uma fêmea
humana e um macho centauro. Quando o centauro a ergueu e a proclamou uma deusa, soube que aquela criança espantosa de alguma forma alteraria de maneira irrevogável
o meu futuro. Você sempre foi real para mim, Elphame. É o resto da minha vida que é só um sonho. Você é o meu destino.
Elphame deixou escapar um longo suspiro.
- Não sei o que fazer a seu respeito.
- Não pode simplesmente fazer como minha mãe? Apenas se permitir me amar?
Tudo dentro dela - o coração, a alma e o sangue que enchia suas veias - gritou Sim! Sim, ela pode!, mas a lógica e os anos de hostilidade a avisaram para que fosse
cautelosa.
- Não posso. Não sou apenas uma jovem donzela. Fui nomeada A MacCallan. Meu povo me fez um juramento de lealdade. Minha primeira responsabilidade não é mais comigo
mesma, mas com meu clã.
O rosto de Lochlan explodiu num sorriso jubiloso.
- Me pergunte o nome da minha mãe.
- Qual o nome da sua mãe? - perguntou ela, surpresa com a súbita pergunta.
- Ela se chamava Morrigan, batizada por um pai zeloso com o nome da lendária Rainha Fantasma. Ela estava morando no ancestral castelo de seu clã, onde seu irmão
mais velho presidia como chefe. Tinha acabado de completar sua educação no Templo da Musa e estava desfrutando de sua estadia junto ao mar enquanto esperava pelo
dia de seu casamento - um casamento que nunca aconteceu...
- ... Porque o Castelo MacCallan foi atacado e ela foi levada prisioneira. O irmão dela era O MacCallan. - Elphame terminou por ele, sentindo um formigamento sobrenatural
pela pele.
Com um farfalhar de asas, Lochlan se ajoelhou diante dela. Puxou a pequena espada da bainha presa à cintura e a colocou aos pés dela.
- O sangue do clã MacCallan corre grosso em minhas veias. Invoco o direito a este sangue, e por meio disso ofereço meu juramento e prometo minha lealdade desse momento
em diante, mesmo em face da morte e, se Epona permitir, além dela.
Elphame o encarava. A lua ascendera ao céu e se assentava sobre seu ombro, resplandecendo Lochlan em sua luz fria. Ele a observava com olhos que cintilavam o reflexo
brilhante do que ela subitamente aceitou como seu futuro.
Ele lhe parecia certo. Não poderia explicar racionalmente, mas ela tinha mudado desde que o conhecera.
O velho espírito tinha razão. Ela encontrara sua paz ao lado de Lochlan. Elphame escorregou de seu poleiro rochoso para que ela também ficasse de joelhos encarando
Lochlan. Primeiro, tomou a espada e a ofereceu de volta a ele.
- Fique com isto. Pode precisar dela para defender sua chefe.
- Então me aceita?
Reverentemente, ela tocou-lhe a face.
- Eu aceito você, Lochlan, no clã MacCallan - como é seu direito de nascença.
A tensão sumiu dos ombros de Lochlan, que curvou a cabeça.
- Obrigado, Epona - sussurrou ele.
Quando ele falou o nome da Deusa, Elphame experimentou uma torrente de premonição sobrenatural. Num lampejo ofuscante, ela o viu de joelhos, como estava agora, mas,
na visão que estava sobreposta ao tecido da realidade, Lochlan estava acorrentado, coberto de sangue... Aprisionado... Morrendo...
Sua mente gritou, rejeitando a visão. Não deixaria que ele fosse destruído. A visão tomou a decisão por ela, que soube o que devia fazer. Caso o aceitasse, caso
se permitisse amá-lo, isso alteraria o futuro dele - o feitiço de morte seria rompido. Como o amor da mãe dele conquistara a escuridão em seu sangue, o amor dela
derrotaria o ódio inapropriado de todo um mundo.
- Você diz que sou seu destino - disse ela.
Não era uma pergunta, mas Lochlan assentiu e falou com uma certeza que encerrava a brecha de tempo e sangue: - Eu te amo, Elphame.
- Então faça um pacto de casamento comigo.
O distinto inspirar de Lochlan foi o único sinal aparente de choque. Um pacto de casamento era uma união jurada para durar exatamente um ano. Ao fim de um ano, o
casal podia decidir se continuavam casados ou, se não desejassem mais ficar juntos, o casamento era dissolvido sem atribuição de culpa a nenhuma das partes. Mas
era um contrato de vínculo - selado por duas pessoas - testemunhado por Epona. Era um laço sagrado que não podia ser rompido pelo período de um ano.
- Sim! - Ele apertou-lhe as mãos. - Sim, eu faço. - E que a Profecia sangrenta e o mundo se danem, pensou ele com ferocidade. Antes que Elphame mudasse de ideia
ou hesitasse, ele começou a pronunciar as palavras imemoriais de união que lhe foram ensinadas pela mãe, que aprendera com a própria mãe, que aprendera antes com
a mãe dela.
- Eu, Lochlan, filho de Morrigan MacCallan, aceito você, Elphame, filha de Etain, em casamento neste dia. Admito protegê-la do fogo mesmo que o sol desabe, da água
mesmo que o mar se enfureça, e da terra mesmo que estremeça em desordem. E honrarei seu nome como se fosse o meu.
Enquanto ele pronunciava as palavras, ela soube que estava escolhendo o caminho certo - o caminho que vislumbrara nos olhos de Lochlan - o caminho que seu próprio
irmão tinha previsto.
- Eu, Elphame, chefe do Clã MacCallan, aceito você, Lochlan, em casamento neste dia. Admito que nem fogo ou chama nos afastará, nem lago ou mar nos afogará, e que
nenhuma montanha nos separará. E honrarei seu nome como se fosse o meu.
- E assim foi dito - disse Lochlan.
- E assim será feito. - Ela completou o ritual.
Eles se aproximaram num beijo que começou como uma terna consumação do pacto. Elphame se encostou a ele, cujos braços a envolveram. Os lábios dele eram macios -
muito mais macios que o resto do corpo. Seu perfume a envolvia. Mais uma vez Lochlan era a floresta viva, selvagem e masculino. Ela bebeu dele. Era seu oásis numa
vida que sempre imaginou estéril do amor de um consorte.
E agora ele pertencia a ela, e ela, a ele.
O ronronar das asas se flexionando e se abrindo era uma música sedutora aos seus sentidos já atiçados. Ela se afastou dele apenas o bastante para ter uma clara visão
delas.
- Suas asas - sussurrou Elphame - são como veludo vivo. Quero que me enrole nelas e me leve para os céus.
Ela estendeu a mão e tocou a penugem cor de manteiga da parte interna. A respiração de Lochlan explodiu. Ele estremeceu e fechou os olhos. Ela retirou a mão e tocou-lhe
o rosto. Lentamente, ele abriu os olhos.
- Você me observou a vida inteira, então já deve saber o que vou contar. Sou completamente inexperiente no amor. Então, quando você se fecha para mim, não sei o
porquê. Precisa me contar, me guiar. Quando toco suas asas, você age como se estivesse com dor, mas ontem me implorou para que não parasse de tocá-lo. Não entendo,
mas gostaria de entender - preciso entender. Me ajude a entender, marido.
O termo carinhoso o abalou até a alma. Ele era seu marido. Ela era sua esposa. Uma sensação de integração se assentou sobre ele. Ao ganhá-la, tinha encontrado seu
lugar no mundo e nenhuma força jamais os separaria realmente.
- Minhas asas são uma extensão das minhas emoções mais profundas. Elas resultam do sangue de meu pai, então reagem com uma ferocidade elementar que nem sempre é
fácil de controlar. Quando você as toca, toca o que há de mais vil em mim.
- Acha que seu desejo por mim é vil?
- Não! Claro que não. Mas às vezes a profundidade disso me sobrepuja. Quando você desperta minha vontade por você, a luxúria sombria que pulsa através do demônio
em meu sangue se agita também. Pode ser brutal e perigoso.
Ela pensou na sede de sangue dos fomorianos e na admissão de Lochlan de que o desejo de beber seu sangue se escondia dentro dele. Elphame olhou com firmeza dentro
de seus olhos assombrados; não viu nenhum demônio ali, só o homem que fora criado para ser seu consorte.
- Acredito que seu amor por mim é mais forte do que o demônio em você.
Ele vestia uma simples camisa de algodão cru. Os olhos de Elphame permaneceram nos dele enquanto desamarrava a camisa, que ele arrancou rudemente do peito. A respiração
dela ficou presa na garganta diante de sua beleza esguia.
Lentamente, ela desprendeu o broche do chefe que mantinha o tartã no lugar e desenrolou o tecido macio do corpo. Puxou a blusa de linho puro pela cabeça. O vento
frio da noite tocou a pele nua, disparando por ela um delicioso tremor.
Exceto pelas asas, Lochlan permanecia imóvel.
Pressionando o bico dos seios no calor do peito dele, Elphame estendeu a mão sobre seu ombro para lhe tocar a asa, deixando os dedos acariciarem a maciez que a fazia
pensar em veludo e creme. Lochlan estremeceu e a tomou nos braços. Ela se moldou nele, aceitando o beijo feroz. Os braços o envolveram, e ela encontrou o lugar onde
as asas se uniam ao corpo dele e deixou os dedos brincarem ali num jogo provocador, acariciando, massageando e até deixando que as unhas corressem pelas costas dele.
Com um súbito movimento, Lochlan a ergueu e depois a deitou na cama macia de grama e tartã MacCallan. Agachou-se ao lado dela, asas estendidas, enquanto tentava
recobrar o controle de suas emoções tempestuosas. Ela buscou por ele, querendo sentir-lhe o corpo junto ao seu.
Lochlan interceptou a mão dela, rindo ofegante.
- Devagar, meu coração. Me deixe explorá-la. Quero descobrir seu corpo maravilhoso.
Elphame gemeu quando a palma da mão dele descobriu seu mamilo firme.
- Sim... - a voz dele estava grossa de desejo - ... Você é meu chamado da sereia, e eu a seguiria mesmo que isso me levasse à morte. - Ao falar a palavra morte,
seus dedos delinearam o talho que lhe enrugava a pele macia da cintura. - Mas nunca deixarei nada machucá-la. Fiz aquela jura com minha vida e a defenderei até a
última gota do meu sangue.
Não chegará a tanto, pensou Elphame com ferocidade. Não agora. Os dois ficariam bem. Seu clã tinha que aceitá-lo. Então todos os pensamentos, exceto pelo calor das
carícias dele, escaparam de sua mente quando a mão desceu pela curva de sua cintura para encontrar a pelagem que cobria sua metade inferior.
- Você é de uma maciez indescritível - sussurrou ele roucamente enquanto acariciava-lhe a coxa -, misturada com força insinuante. Perguntei-me durante todos esses
anos como seria tocá-la, e como seria ser tocado por você, sem nunca realmente acreditar que teria a chance de saber. - Lochlan afagou a parte de dentro da coxa
de pelagem castanho-avermelhada. - Foi por isso que enfim descobri meu caminho até você. Não podia mais suportar a ideia de ficar sem você.
Ele deslizou a mão até encontrar o âmago de seu calor úmido. Elphame gemeu e mexeu os quadris com inquietação. As asas dele pulsaram com vida e o sangue sombrio
de seu pai se agitou com calor e força por seu corpo. Por um instante, ele se viu tomando-a violentamente, esmagando-a no chão enquanto se alimentava em seu pescoço
em compasso com os gritos dela, que ecoavam na noite.
Não! A mente racional de Lochlan se rebelou contra a imagem, então ele se afastou abruptamente do corpo dela. Respirando em arfadas irregulares, sentou do lado dela,
tremendo, a cabeça enterrada nas mãos conforme a dor cascateava por sua mente.
Dessa vez foi ela quem se ajoelhou ao lado dele. Elphame acariciou-lhe os cabelos e murmurou sons indistintos de conforto. Quando as asas dele começaram a se fechar,
ela afastou-lhe delicadamente as mãos do rosto.
- Do que tem medo? Por que se afasta de mim?
Ele olhou dentro de seus olhos claros e sinceros. O que ela faria se soubesse que tinha seguido não só o coração para chegar até ela, mas também uma sombria profecia
que exigia seu sangue? Importaria para ela que tivesse decidido trair seu povo e rejeitar a Profecia?
- Fale comigo, Lochlan. Está arrependido de ter feito o pacto?
- Não! - gritou ele. - Jamais! É você quem deveria estar arrependida. Sou um demônio, mal capaz de controlar meus impulsos. Não posso fazer amor com você sem ver
violência e sangue. E isso abastece minha luxúria, Elphame. Não compreende? Mesmo que a ame e deseje acima de todas as coisas, minha herança sombria só ambiciona
rasgar, provar e devastá-la.
Elphame controlou cuidadosamente a ponta de medo que aquelas palavras lhe causaram. Sua reação agora selaria o futuro de ambos. Não poderia amá-lo sem confiar nele.
Lochlan era sua escolha. Se ele não fosse digno dela, digno de sua confiança, estaria em tamanha agonia agora? Elphame achava que não. Se fosse realmente um demônio,
não haveria nenhuma luta para reter sua humanidade - ele abdicaria sua alma para a escuridão. Ela acreditava nele; precisava acreditar.
- Quando faz amor comigo, tem pensamentos sombrios e violentos? - perguntou Elphame.
- Sim. - A voz dele falhou. - Não consigo detê-los.
Elphame se pôs de pé, e Lochlan soube com uma sensação sufocante de pesar que ela o abandonaria.
- Então basta que eu faça amor com você.
Em vez de se afastar, ela entreabriu a pernas dele e se sentou com uma graça branda e sensual no colo de Lochlan. Elphame o puxou para si com infinita gentileza,
beijou-lhe os lábios e acariciou a parte interna das asas, que pulsaram, imediatamente recomeçando a inflar de desejo.
- Elphame, você não sabe...
- Shhh. - Ela pressionou um dedo nos lábios dele, detendo suas palavras enquanto desatava o nó da calça e deixava sua ereção livre.
Ele parou de respirar enquanto ela explorava sua rigidez, mas quando Elphame se ergueu para alojar sua extremidade pulsante em sua umidade, ele só conseguiu cravar
as mãos na terra gramada e lutar contra a urgência de afundar os dedos em sua cintura macia e empalá-la.
- Abra os olhos, marido. Olhe para mim.
Ele abriu os olhos para deparar com seu olhar luminoso ao receber sua rigidez dentro de si. E tudo que enxergou foi ela, sua esposa, seu coração - as visões sedentas
de sangue se acalmaram quando o calor macio o envolveu e Elphame começou a se mover para cima e para baixo com uma lentidão excruciante.
Ela precisou se estender para recebê-lo, mas depois do choque inicial de senti-lo adentrar seu corpo o desejo que fervia lentamente em seus sonhos e fantasias se
inflamou. Aconchegou-se a ele, sentindo a tensão aumentar. Quando Lochlan investiu de encontro a ela, Elphame jogou a cabeça para trás e aumentou o ritmo do corpo.
Acima deles, viu que as asas de Lochlan se estendiam completamente eretas. Tapavam o céu e a floresta, fazendo de Lochlan todo o seu mundo. Quando ele gritou seu
nome ao deixar sua semente quente dentro dela, Elphame se jogou nele e o abraçou apertado enquanto o próprio corpo explodia num espasmo de alívio.
Ficaram em silêncio enquanto refaziam o caminho até a entrada do túnel. O céu já começava a clarear. Elphame mal podia acreditar que se passara tanto da noite. Parecia
que só ficara por um breve momento nos braços dele. Apertou-lhe a mão com mais força. Lochlan sorriu e levou-lhe a palma aos lábios.
- Tem certeza de que não a machuquei? - perguntou ele outra vez.
- Bastante certeza. Agora pare de me perguntar. Não sou uma donzela delicada e melindrosa. - Ela retorceu os lábios. - Aliás, nem sou mais donzela.
- Isso para mim é um verdadeiro milagre. Eu nunca pensei que conseguiria controlar... - Ele se calou, cerrando o maxilar ao lembrar os torrões de grama e terra que
arrancara do chão durante o orgasmo. E se suas mãos não estivessem paradas no chão? E se estivessem na curva da cintura, ou no contorno do seio, ou no arco delicado
do pescoço?
- Lochlan. - Ela falou o nome dele com nitidez, deliberadamente interrompendo a autoabominação que estava escrita no rosto dele. - Nada de mau aconteceu. - Tocou-lhe
a face. - Não pode apenas desfrutar do prazer que compartilhamos?
Ele a puxou para os braços, pousando a testa na dela.
- Perdoe-me, meu coração. É que os demônios estão dentro de mim, então é difícil não estar em constante batalha contra eles. A verdade é que você me deu grande felicidade
esta noite, e eu não deveria permitir que nada manche isso.
- Você não manchou. Nada poderia manchar esta noite.
Lochlan se inclinou para beijá-la, esperando que as palavras dela fossem verdadeiras. Caminharam pela floresta até chegarem ao reboco de terra que disfarçava a entrada
do túnel. Os dois amantes pararam diante dela.
- Deixe-me ir com você - pediu Lochlan de repente, emoldurando-lhe o rosto com as mãos. - Estamos unidos, e fiz meu juramento a você. Com certeza poderemos fazer
com que vejam que meu amor por você é mais forte que o sangue do meu pai.
Elphame cobriu-lhe as mãos com as suas.
- Então eu simplesmente atiro esse casamento sobre minha família como se não fossem importantes para mim, como se eu não respeitasse o direito de saberem antes que
os estranhos? Lochlan, me magoaria terrivelmente se Cuchulainn de repente anunciasse que escolheu uma companheira sem primeiro me revelar o segredo. Compreende que
não posso fazer isso?
- Você ama muito sua família. Eu compreendo.
- Não diz respeito apenas a amor. É sobre confiança, respeito e lealdade. E não é nada menos do que jurei oferecer a você.
- Eu sei disso, meu coração. É que só não sei como suportarei ficar afastado de você.
- Chamarei meus pais. Então nós todos pensaremos em como nos explicar para o resto de Partholon. - A voz de Elphame expressava mais confiança do que ela sentia.
- Quanto tempo?
- Soltarei o pombo-mensageiro hoje. Assim que receber a mensagem, minha mãe com certeza não perderá tempo em vir. Ela ficará animada com meu pedido de que venham
para o Castelo MacCallan - provavelmente anda ressentida por não estar envolvida na decoração, então virá trazendo carroças carregadas de coisas bonitas e brilhantes.
- O sorriso de Elphame refletia o amor que sentia pela mãe. - Serão apenas sete dias, talvez um pouquinho mais. - Ela vasculhou os olhos dele procurando compreensão.
- Esperei anos por você - mais alguns dias é coisa pequena a se pedir.
Elphame o abraçou.
- Tentarei vir todas as noites. Estará aqui, não é?
- Sempre, meu coração - disse ele de encontro aos seus cabelos -, sempre.
Relutantemente, Elphame deixou os braços dele. Não olhou para trás enquanto descia pelo túnel, mas o sentia atrás dela, observando-a deixá-lo. A tocha faiscou e
lançou uma débil luz que refletia a tristeza de Elphame. Cansada, ela entrou na câmara e fechou a porta secreta. Ao se enroscar no grosso cobertor, ainda podia sentir
o cheiro do marido prolongando-se sobre sua pele como uma efêmera carícia.
Antes que o sono a tomasse, Elphame fez uma sincera oração à Deusa. Por favor, Epona, ajude-os a ver o homem e não o demônio.
Vinte e Sete
BRENNA DISSE FIRMEMENTE a si mesma que era perfeitamente natural querer verificar sua nova e incomum paciente tão cedo. Não importava que o cinza que precede o amanhecer
só estivesse começando a clarear e que a névoa da noite ainda permeasse o chão do castelo como uma cortina cor de ardósia. A filhote de lobo era jovem e tinha passado
por uma experiência terrível. Na verdade, não deveria ter deixado a criaturinha sozinha com Cuchulainn. O que o guerreiro sabia sobre cuidar de algo tão frágil?
Por isso seu sono fora tão conturbado. Estava preocupada com a filhote. Não era porque Cuchulainn assombrava sua mente.
A tenda dele estava silenciosa, mas ela podia ver as sombras bruxuleantes estampadas nas laterais de lona por uma vela acesa.
- Cuchulainn? - Brenna hesitou, a mão na aba da tenda.
Nenhuma resposta.
- Olá? Cuchulainn? - chamou um pouco mais alto e pensou ouvir um som abafado em resposta. Ela afastou a aba e entrou na tenda.
Brenna torceu o nariz. A forma volumosa sobre a cama estreita se mexeu, atraindo os olhos de Brenna. Cuchulainn estava deitado de costas, dormindo profundamente
com um cobertor jogado ao acaso sobre a parte inferior do corpo. A túnica estava aberta, então a luz da vela captava o escuro pelo castanho-avermelhado que cintilava
sobre o peito. A visão intrigou Brenna, o que ela considerou ridículo. Tinha visto o peito nu de homens antes - muitas vezes. Claro que nenhum desses homens era
Cuchulainn, e nenhum deles sequer tinha olhado para ela como ele, proclamando abertamente que era na curandeira desfigurada que estava interessado, e não na bela
e receptiva cozinheira. O estômago de Brenna se agitou com a lembrança. Então um movimento atraiu seu olhar. A filhote deu um ganido infantil. Estava enrolada no
pescoço do guerreiro como se fosse um cachecol imundo. Uma das mãos de Cuchulainn pendia da lateral da cama, a outra repousava sobre o corpo da filhote.
Brenna tentou não sorrir da visão, e fracassou miseravelmente.
Andou na ponta dos pés até a mesa, fazendo cara feia para a bagunça. Panos estavam largados sobre poças de leite. Ela apanhou um trapo de linho e o cheirou com suspeita,
fazendo careta por causa do odor de urina. Teria que voltar mais tarde com escova e balde. Como um homem e uma lobinha conseguiam fazer tamanha bagunça? Brenna pôs
as mãos nos quadris, meneou a cabeça e se perguntou se o leite tinha acabado porque ele o dera à filhote ou porque o derramara pela tenda inteira. Relanceou o homem
adormecido. Pela tenda inteira e sobre si mesmo, corrigiu mentalmente.
A filhote se remexeu e Brenna suspirou. Pegaria mais leite na cozinha - e mandaria trazerem outro jarro de água com panos limpos. A filhote estava para acordar seu
pai adotivo em breve e, como era óbvio que ainda estava bem viva, estaria com fome. Brenna sorriu. O pai adotivo, sem dúvida, estaria com fome também. Ela recolheu
alguns dos trapos imundos. Trazer algo para ele comer não seria diferente de trazer leite para a filhote. Ela estava simplesmente cuidando de suas responsabilidades
como curandeira do clã. Era apenas lógico que a saúde do irmão da chefe lhe fosse importante. Como se tivessem vontade própria, seus olhos procuraram a cama.
Cuchulainn estava acordado e a observava com um meio-sorriso maroto.
- Bom dia - murmurou ele.
Ela limpou nervosamente as mãos no avental e marchou de propósito até ele, ignorando seu estado sonolento de roupas desgrenhadas, ignorando a singularidade da cor
turquesa de seus olhos, ignorando como seu sorriso a fazia ficar tonta e desequilibrada.
- Bom. Agora que está acordado, posso examinar a filhote e...
Segurando-lhe o pulso, ele interrompeu suas palavras: - Deixe Fand dormir - disse baixinho.
Brenna baixou a voz para se equiparar à dele: - Você a batizou de Fand? - Como se respondendo por ele, a filhote enfiou o nariz no pescoço de Cuchulainn e resmungou
antes de voltar a dormir.
- Sim, afinal, ela foi a fada esposa de meu lendário homônimo. - Seus olhos se iluminaram. - Depois da noite íntima que ela e eu passamos juntos, achei adequado.
Brenna teve que sorrir para ele. Os dedos de Cuchulainn escorregaram por seu pulso de modo a lhe segurarem a mão.
- Estava sonhando com você - disse Cuchulainn.
- Pare...
Ele continuou tagarelando como se ela não estivesse tentando falar: - Estávamos velhos. Seu cabelo estava todo branco e eu estava curvado e manco. - Ele sorriu.
- Você envelhecerá melhor do que eu. Mas isso pouco importa. Estávamos cercados pelos nossos filhos e pelos filhos dos nossos filhos. E brincando entre eles estavam
dúzias de filhotes de lobo. - Ele conteve a risada quando Fand rosnou. - Fand é uma garota ciumenta - murmurou ele, piscando para Brenna.
- Cuchulainn, por favor, pare de brincar...
Dessa vez, quando a interrompeu, os olhos dele faiscaram e todo o humor zombeteiro tinha sumido de seu rosto expressivo.
- Não diga que estou brincando com você!
Largou a mão dela e gentilmente removeu a filhote adormecida do peito, aninhando-a no travesseiro que ainda estava quente de seu corpo. Quando ficou de pé, recuperou
a mão de Brenna e a puxou para fora da tenda. A manhã nevoenta estava escura e quieta, e Cuchulainn manteve a voz baixa para não despertar os trabalhadores que ainda
dormiam nas tendas ao redor: - O que fiz para levá-la a acreditar que sou o tipo de homem que tem tão pouca honra para fazer uma donzela de brinquedinho?
- N-na outra noite. A dança... - gaguejou ela.
- Eu me desculpei por isso - disse ele entre dentes trincados de frustração. - Meu comportamento foi estúpido e insensível, mas não é meu comportamento típico. Sou
um guerreiro cuja reputação é conhecida por toda Partholon. Quando disseram que não tenho honra?
- Não disseram - afirmou ela depressa. - Sua honra nunca foi questionada.
- Não foi? - explodiu ele. Cuchulainn ergueu as mãos no ar. - Você diz que estou brincando com seus sentimentos, usando você, fingindo que a quero. Como isso não
seria questionar minha honra? - Com esforço, ele pôs a voz sob controle: - Não queria gritar com você. Não quero afastá-la de mim. Pela Deusa! No que diz respeito
a você, parece que perdi a capacidade de conversa ou pensamento racional. - Ele pôs as mãos sobre os ombros dela e apertou, efetivamente ancorando-a diante dele.
- Brenna, eu gostaria de cortejá-la. Oficialmente. Se me disser como entrar em contato com seu pai, pedirei formalmente a permissão dele.
- Meu pai está morto - disse Brenna através de lábios dormentes.
O rosto de Cuchulainn se suavizou.
- A sua mãe, então. Pedirei a ela.
- Ela está morta também. Não tenho família.
Cuchulainn baixou a cabeça quando uma maré de sentimento o engolfou. Que dor terrível devia preencher o passado dela. Não mais, prometeu a si mesmo. Não deixaria
nada magoá-la novamente. Quando ele ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com a profundidade de suas emoções.
- Então sua família é nosso clã. A MacCallan e eu já discutimos minhas intenções, e, apesar de acreditar que ela não me ache merecedor de você, estou certo de que
me concederá permissão para cortejá-la.
- Elphame sabe? Falou sobre mim com ela?
- Claro. Ela é minha irmã.
- Não! Isso não pode ser... Isso não é possível. - Brenna piscou rapidamente, como se estivesse com problemas para manter o foco.
Cuchulainn podia sentir o corpo dela tremendo sob suas mãos, e de repente teve uma sensação terrível, nauseante por dentro. E se a relutância não fosse por causa
das cicatrizes ou da timidez? E se na verdade ela não o quisesse?
- Brenna, eu nunca forçaria meu amor, não se não me desejasse também. Se não me deseja, tudo o que precisa fazer é me falar e eu darei minha palavra, embora isso
vá me doer, de que a deixarei em paz.
Ela o encarou.
- Amor? Olhe para mim, Cuchulainn! Estou arruinada. E não termina no meu rosto. - Ela passou a mão pelo pescoço marcado, sobre o seio, e desceu até a cintura, claramente
mostrando a ele o amplo caminho de suas cicatrizes.
Movendo-se com cuidado, ele ergueu uma das mãos do ombro dela. Com uma carícia leve como pena, traçou o caminho que a mão dela acabara de fazer. Lentamente, tocou
as cicatrizes enrugadas que lhe cobriam o lado direito do rosto. Como ela não fez qualquer movimento para detê-lo, Cuchulainn deixou as pontas dos dedos descerem
por seu pescoço, deslizando suavemente pelo tecido que cobria o seio e, finalmente, parar na curva de seu quadril.
- Como pode pensar que não é desejável? Quando olho para você, vejo a primeira mulher que já fez amizade com minha irmã. Vejo a curandeira, que tem o coração de
um guerreiro. E vejo a delicada beleza de uma donzela que preenche meus devaneios com desejo e meus sonhos com visões de nosso futuro.
- Cuchulainn, já houve tantas perdas na minha vida. Não sei se posso arriscar mais.
- É por isso? - O alívio inundou Cuchulainn. - Não é porque não me quer?
- Eu quero você.
A voz não era o de uma donzela tímida. Mais uma vez, ela era a curandeira. Suas palavras eram fortes e seguras. Cuchulainn sorriu e começou a puxá-la para seus braços,
mas sua ordem o deteve imediatamente: - Não, não terminei. Admito que o quero, mas não sei se estou disposta a deixar que você entre no meu coração. Se eu deixar,
e depois perdê-lo, temo que seria uma ferida da qual talvez nunca vá me recuperar.
A mente dele trabalhava em pânico. O que podia dizer? O que podia fazer para tranquilizá-la? Respirando fundo, ele manteve as mãos abertas.
- Só posso prometer minha palavra. Se não confiar que será suficiente, então nada do que eu fizer ou disser seria bastante para garanti-la do meu amor. Você deve
escolher acreditar em mim, Brenna.
Ela estudou o guerreiro. Era sua escolha - será que era forte o bastante para fazê-la? Seus olhos se arregalaram. Aquela era realmente a resposta; a única coisa
na qual sem dúvida sabia poder confiar era em sua força. Ela tinha sido testada pelo fogo e tinha triunfado.
- Escolho acreditar em você, Cuchulainn - disse lenta e distintamente. E depois sorriu seu sorriso torto diante de seu ar espantado.
Cuchulainn berrou e a ergueu nos braços.
- Garantirei que nunca me perca.
Ele a pôs de pé, mas manteve os braços em volta dela. Era tão indescritivelmente bom ficar ali, segurando o corpo dela no seu. Nenhuma mulher jamais parecera tão
certa em seus braços. Nem a tinha beijado ainda, mas Brenna já tinha lhe oferecido mais do que qualquer outra das belas mulheres com quem esbanjara tanto do seu
tempo.
Quando sentiu os ombros dela tremendo, pensou que seu coração fosse se partir. Será que ela não acreditava nele? Não podia ver que ele nunca a magoaria?
- O que foi, amor? - Ele se afastou apenas o bastante para poder ver o rosto dela, e ficou surpreso por ver seus olhos brilhando com a risada que silenciosamente
lhe sacudia o corpo.
- Ah, Cuchulainn - disse ela em meio a risadinhas. - Você cheira a urina de cachorro e leite velho.
Cuchulainn fez cara feia, com fingida severidade.
- Fand não é cachorro. É uma loba.
Como se para apoiar suas palavras, de lá de dentro da tenda veio um choramingo que quase instantaneamente se transformou numa versão infantil do uivo desolado de
um lobo.
- Mencionei que terá que me dividir com Fand? - disse Cuchulainn.
O uivo lastimável aumentou em volume.
- Vou pegar mais leite. - Brenna já estava se afastando, mas Cuchulainn não estava pronto para largar os ombros dela.
- Vai voltar?
Ela olhou dentro dos olhos que eternamente lhe recordariam o altar de Epona e a magia das segundas chances.
- Sim, Cuchulainn. Vou voltar.
Ele tirou as mãos dos ombros para que ela pudesse ir, mas Brenna sentiu que ele a observava enquanto desaparecia na neblina do começo de manhã.
- Volte logo! - gritou ele, a urgência em sua voz pontuada pelos uivos lamentáveis ecoando da tenda.
O castelo estava quieto, mas quando Brenna atravessou apressada o Grande Salão até a entrada para a cozinha, foi rapidamente cercada pelos sons e aromas de um castelo
despertando. A cozinha era um centro de atividade e cheirava deliciosamente a pão fresquinho. Tentando ficar fora do caminho, a própria Brenna pegou um jarro do
armário bem arrumado e o afundou num barril de leite fresco.
- Bom dia, curandeira - disse Wynne. Várias das suas assistentes assentiram cumprimentos amigáveis.
- Bom... Bom dia - disse Brenna um pouco ofegante. Não tinha se esquecido da beleza de Wynne, mas ao vê-la ali, com o cabelo ardente puxado numa massa de cachos
que se derramavam ao redor do rosto perfeito, o coração de Brenna vacilou.
Como Cuchulainn podia preferi-la a essa mulher vivaz?
- Está pegando leite para a ferinha do guerreiro?
- Sim. - Brenna disse a palavra com brusquidão. Não pretendia falar de maneira tão agressiva, mas a lembrança do corpo de Wynne pressionado ao de Cuchulainn enquanto
se moviam juntos ao ritmo do tambor subitamente a deixou enjoada e incerta. E, pior, podia sentir o olhar sagaz da cozinheira estudando-a intencionalmente.
- Há pão fresco e um bom pedaço de queijo se os dois quiserem fazer o desjejum depois de alimentar a criaturinha.
- Obrigada, colocarei na bandeja - disse Brenna às pressas, querendo apenas sair da cozinha. As assistentes de Wynne, as mesmas mulheres que estavam na horta no
dia anterior, tinham parado seu serviço para observar a conversa das duas.
- Ajudo você - disse Wynne, subitamente aparecendo ao lado de Brenna. Com movimentos precisos e diligentes, a cozinheira encheu uma cesta com um pão ainda quente,
um pedaço de aromático queijo amarelo e várias fatias de carne fria. Colocou tudo isso sobre a bandeja de Brenna depois de vasculhar a despensa e acrescentar um
odre à refeição.
Surpresa, Brenna ergueu a cabeça e olhou diretamente para a bela cozinheira, que a observava com grandes olhos esmeralda.
- Desejo-lhe felicidades, Brenna. O guerreiro escolheu bem.
Brenna corou com prazer inesperado. Abobalhada, não conseguiu mais do que sorrir e murmurar "Obrigada".
Wynne piscou para ela.
- As mulheres devem cuidar umas das outras. Da próxima vez em que eu tiver febre, estarei esperando que uma das suas lendárias poções repulsivas me coloque inteira
novamente. Agora, vá e coma bastante porque, Brenna, menina, você vai precisar de suas forças.
Sorrindo e corando, Brenna carregou sua bandeja abarrotada da cozinha, apanhando alguns panos limpos de uma cesta perto da porta enquanto as mulheres riam e gritavam
alguns encorajamentos desbocados.
Nunca na vida pensaria que isso fosse possível. Elas a aceitavam. Elas a incluíam. E Cuchulainn a desejava. A alegria que comovia seu peito era a de um passarinho
recém-emplumado começando a abrir as asas e voar do lugar secreto em seu coração.
Cuchulainn deu-lhe um sorriso cansado quando ela entrou na tenda.
- Fand está com fome - disse ele, fazendo careta enquanto a filhote sugava seu dedo e resmungava descontente por não receber nada por seus esforços.
- Se está bem o bastante para se zangar com você, acho que posso dizer com segurança que ela vai sobreviver.
Brenna encheu a teta enquanto Cuchulainn lutava com a esquiva bola de pelo. Quando a filhote atacou a bola de tecido cheia de leite, Brenna de repente desejou ter
uma ferida para cuidar ou um braço para consertar.
- Não quer sentar comigo, Brenna? - Cuchulainn apontou com a cabeça para um espaço ao lado dele na cama estreita.
Brenna se sentou, apertando as mãos para esconder o tremor. Por algum tempo o único som na tenda era Fand, mamando ruidosamente e dando pequenos resmungos infantis.
Brenna observou a filhote, notando a maneira gentil como a mão de Cuchulainn a segurava. De vez em quanto ele acariciava a filhote e murmurava palavras de encorajamento.
- Sou apenas eu, sabia? - disse Cuchulainn, usando com Brenna o mesmo tom de voz tranquilizador que usava com a lobinha.
- Apenas você? - ela repetiu, sentindo-se incrivelmente estúpida.
- Sim. O mesmo a quem deu ordens na noite em que El se machucou. O mesmo cujo rosto você consegue ler no instante em que algo dá errado com alguém do nosso clã.
O mesmo que trabalhou lado a lado com você para deixar nosso lar vivo novamente. - Ele sorriu e girou o corpo, de modo que seus ombros e as laterais das pernas se
tocassem. - Vou contar um segredo. Apesar dos meus modos libertinos, você, minha doce curandeira, quase me deixa sem fala de medo.
Sem acreditar, Brenna meneou a cabeça.
- Isso não faz sentido.
- Contei-lhe um segredo - de fato, um bem embaraçoso. Agora é a sua vez.
Ela o fitou. Sua mente lógica berrava para que se protegesse - para que não se abrisse para ele - não dissesse nada. Mas os olhos dele estavam fixos nos dela, cálidos
e ansiosos, e a esperança que se guarnecera de penas dentro de seu peito se agitou novamente, afastando o medo.
- Seus olhos são da mesma cor de dois presentes que Epona me deu. - Sua voz soava macia e um pouquinho insegura, mas ela susteve o olhar dele e não encobriu o rosto
com o cabelo.
- Presentes de Epona? Que presentes?
- Uma turquesa e a pena da asa de um pássaro. - Falar em voz alta subitamente fez isso parecer trivial e ela pôde sentir o rosto esquentar de vergonha, mas Cuchulainn
nem riu nem a provocou.
- Você me mostra um dia?
Brenna assentiu. Como uma simples pergunta podia deixá-la tão feliz?
A filhote finalmente deixou de mamar tão ferozmente. Cuchulainn olhou para ela.
- Por favor, me diga que é seguro lavar esta fera agora.
Brenna olhou para Fand. Estava enroscada em Cuchulainn, a barriga bem distendida, leite gotejando do canto da boca. Então seu olhar buscou Cuchulainn. Seus cabelos
estavam uma bagunça emaranhada e havia sono no canto de seus olhos. A camisa de linho estava desatada e mostrava que uma grande extensão do peito estava manchada
e encrustrada de leite e sujeira da filhote, assim como o kilt enrolado precariamente ao redor dele. Guerreiro e filhote precisavam desesperadamente de um banho.
- Como sua curandeira, posso dizer com grande certeza que pode dar banho em Fand. - Ela torceu o nariz para os dois.
Cuchulainn ergueu uma sobrancelha.
- Mesmo que eu às vezes pareça um idiota atrapalhado em sua presença, até eu posso dizer que minha intenção declarada de cortejá-la teria mais chance de sucesso
se eu não fedesse a urina de lobo. Você concorda?
O estômago de Brenna deu uma pequena reviravolta.
- Sim.
- Ótimo! - disse ele, ficando de pé tão de repente que Fand deu um ganido irritado. Cuchulainn silenciou a filhote enfiando-a aconchegantemente dentro da camisa.
- Trouxe comida? - Ele viu a cesta e o vinho. - Excelente. - Então se virou e vasculhou o baú junto ao pé da cama, do qual logo tirou um kilt limpo e camisa. Satisfeito,
pegou a cesta de comida e jogou os panos limpos sobre ela. Depois estendeu a mão livre para Brenna, que apenas observava.
- Bom, você precisa vir conosco - disse ele. - É cedo demais para perturbar minha irmã. Por mais que eu goste de atormentá-la, nada deixa El mais mal-humorada do
que interromper seu sono. E quero que ela esteja de bom humor mais tarde, quando pedir formalmente permissão para cortejá-la - então usar o quarto de banho está
fora de questão. Fand e eu poderíamos tomar banho numa bacia. - Ele espiou a filhote imunda aninhada contra sua pele. - Mas na verdade acho que não seria suficiente.
- Distraído, coçou a cabeça e murmurou: - Espero que a fera não tenha me dado pulgas. - Então o rosto dele se abriu num sorriso maroto. - Então simplesmente terá
que me mostrar o caminho para a piscina que você, Brighid e El usaram.
Brenna o encarou, sem saber o que dizer. Apesar de toda sua manifesta força, podia sentir o medo de aproveitar essa chance maravilhosa, surpreendente, brigando com
seu desejo pelo guerreiro.
Cuchulainn cobriu o curto espaço entre eles e tomou-lhe a mão, colocando-a de pé.
- Prefere não ficar sozinha comigo, Brenna?
Brenna engoliu em seco e ouviu-se dizendo a verdade: - Estou com medo.
Ele levou a mão dela ao rosto e a manteve contra a face enquanto olhava firmemente nos olhos dela.
- Eu também, amor.
A honestidade da resposta tornou a decisão dela infinitamente mais fácil. Brenna deixou a respiração escapar num sopro.
- Então vamos sentir medo juntos.
Vinte e Oito
A NÉVOA AINDA estava grossa e Brenna estava preocupada em não ser capaz de encontrar a piscina, mas quando a estrada se curvou tão perto do pinheiro de forma estranha
soube instantaneamente que aquele era o lugar em que ela e as amigas tinham entrado na floresta. E, para confirmar, a apenas alguns passos ela pôde ouvir o som musical
da água caindo na queda de três faixas feita de rochas alisadas pelo tempo.
O nevoeiro estava mais grosso ao redor da piscina, e parecia a Brenna que Epona tinha convenientemente os velado de olhos curiosos do mundo.
- Parece frio - disse Cuchulainn.
Fand tinha se contorcido até a cabeça sair da abertura da camisa do guerreiro e olhava ao redor com olhos brilhantes, farejando o ar e dando ganidos infantis.
- Lembro que foi refrescante. - Brenna sorriu para ele. Às vezes Cuchulainn soava exatamente como a irmã.
- Hrumph - resmungou ele. Resoluto, deixou a cesta cheia de comida numa rocha próxima e depois tirou a filhote da camisa. - Bom, quanto antes eu terminar isso, mais
cedo poderei comer. - Entregou Fand para a surpresa Brenna, que segurou a filhote que esperneava e rosnava com um pouco de incerteza.
- Cuchulainn, acho mesmo que seria melhor você dar banho nela. Ela se sente mais confortável com você.
Cuchulainn assentiu enquanto desenrolava o kilt.
- Apenas a segure para mim enquanto tiro a roupa.
Tirar a roupa... A frase ecoou pela mente de Brenna fazendo seus pensamentos se agitarem como pássaros em disparada. Bom, o que você pensava, Brenna?, disse a parte
racional de seu cérebro. Que ele fosse tomar banho completamente vestido? Sinceramente, ela não tinha pensado nisso até o momento. Até ele desenrolar o kilt, tirar
os sapatos de couro e...
... Parar, antes de tirar a camisa que o cobria até as coxas - a única coisa que ainda o cobria. Ele a observava com um meio-sorrisinho provocador nos lábios.
- Se minha nudez a deixa desconfortável, pode fechar os olhos. Pego Fand e depois aviso quando estiver na água para que seja seguro que abra os olhos.
- Me deixa desconfortável - admitiu Brenna. - Mas não quero fechar meus olhos.
O sorriso de resposta de Cuchulainn estava impregnado do charme libertino pelo qual o guerreiro era tão bem conhecido. Ainda estava sorrindo quando puxou a camisa
pela cabeça e, nu, recuperou a filhote e mergulhou com respingos ruidosos e pragas na piscina.
Ela ficou lá parada e o observou, pensando que a visão das costas largas e nuas e das nádegas firmes talvez ficasse marcada para sempre em seus olhos.
- Brenna! - chamou ele, sobrepondo-se aos protestos choramingados de Fand por ser submersa em água fria. - Pode esmagar um pouco dessa pedra-sabão? Só água - não
importa quão fria - não vai lavar toda essa imundície.
Brenna assentiu e ficou ocupada procurando uma rocha do tamanho de um punho que pudesse usar para quebrar a pedra mole que se espalhava pela margem da piscina. Claro
que quase esmagou vários dedos junto com a pedra-sabão porque não conseguia evitar que seus olhos vagassem para a piscina.
- Está pronto - disse ela, tentando soar indiferente quanto a esmagar sabão para um guerreiro nu que tinha acabado de declarar sua intenção de cortejá-la para ser
sua amante.
Ele veio chapinhando até ela, expondo cada vez mais do corpo a cada passada. Brenna acomodou a pedra-sabão na concha que as mãos unidas faziam e tentou não deixar
os olhos vagarem baixo pelo corpo emergente - sem sucesso. Sorrindo, Cuchulainn ficou parado diante dela. A água só o cobria até os joelhos. Ele abarcava a filhote
ensopada nos braços, tremendo e parecendo um pouco azulado ao redor dos lábios, mas seu sorriso era caloroso, travesso e enternecedor. Ele se inclinou na direção
dela.
- Minhas mãos estão cheias. Pode me ajudar, amor? - perguntou, olhos brilhando.
Sentindo como se estivesse se movendo num sonho deliciosamente malicioso, Brenna salpicou uma boa quantidade de pedra-sabão na filhote reclamona. Cuchulainn começou
a transformar o pó em bolhas, mas os olhos de Brenna não conseguiam ficar na filhote. Continuavam retornando ao corpo nu do guerreiro que estava tão perto dela.
Antes que a parte lógica da mente, que ditara seu comportamento tão racional e responsável pela última década, pudesse interferir, Brenna estendeu a mão e pulverizou
pedra-sabão sobre o peito e os ombros dele. Com movimentos suaves e hesitantes, se concentrou em esfregar o sabão pelo peito, contornando a filhote esperneante.
Cuchulainn não se moveu, exceto para ajeitar Fand em seus braços para que Brenna tivesse acesso melhor ao seu corpo.
Brenna, enfim, buscou os olhos dele.
- Poderia se juntar a mim, amor. Não seria tão frio, com a água cobrindo nós dois e o calor da sua pele nua junto à minha.
Ela queria, queria muito. Mas quando pensou em expor seu corpo danificado perto do dele - aquela expansão de músculos que era coberta pela perfeita pele dourada
- seu coração subiu à garganta, deixando o sabor do medo denso em sua boca.
- Não posso - murmurou ela, rezando para que Cuchulainn não lhe desse as costas e a rejeitasse como covarde.
- Em outra hora então, amor. Em outra hora. E teremos muito tempo - disse ele com uma certeza gentil. - Até lá é melhor ensaboar meu cabelo também. Pulgas são desconfortáveis
para casais fazendo a corte. - Ele ficou de joelhos para que Brenna pudesse juntar mais pedra-sabão e esfregá-la nos cabelos espessos.
Lavou-lhe o cabelo, enquanto ele esfregava, reprovava e persuadia a filhote que choramingava e esperneava, ralhando de sua falta de modos e gratidão. Brenna ria
da brincadeira deles e tentava manter as bolhas granulosas longe dos olhos de Cuchulainn, ao mesmo tempo que tentava se manter seca.
Não conseguia se lembrar de já ter sentido tanta felicidade.
- Hora de enxaguar, minha menina - disse Cuchulainn à filhote, e, prendendo a loba rosnante ao peito nu, ele ficou de pé, piscou para Brenna em meio às bolhas de
sabão e com um grito mergulhou no meio da piscina fria.
Brenna balançava a cabeça à medida que eles submergiam, fazendo estardalhaço, depois saíam e começavam a se secar. Tudo que o guerreiro fazia era extremamente significante.
Uma aura acompanhava Cuchulainn - uma aura cheia de poder e da promessa da capacidade de alcançar o impossível. E Brenna estava começando a acreditar nisso, que
o impossível tinha acontecido. Seu desejo mais profundo e secreto fora atendido. Cuchulainn a escolhera.
- Estou faminto - disse ele, arrumando um dos panos secos sobre o chão da floresta. Pegando a cesta, acenou para que Brenna se juntasse a ele.
- Fique com sua loba do reino das fadas. Eu me encarrego da comida. - Ela devolveu a filhote a Cuchulainn, que fez careta, mas a enfiou - com toalha úmida e tudo
- dentro da túnica limpa.
Brenna o olhou de esguelha, observando-o tentar posicionar a filhote confortavelmente enquanto ela descarregava a comida. Em sua melhor voz de curandeira, disse:
- Agora sabe um pouquinho como uma mulher se sente quando está carregando um filho dentro do corpo por todas as longas fases da lua.
Cuchulainn tombou deitado de lado, finalmente conseguindo ajeitar a filhote para que parasse de espernear inquieta e se acomodasse sonolenta junto a ele. Depois
voltou toda a sua atenção a Brenna.
- Um filho, hã? Quer falar de ter filhos tão cedo? - Ele coçou o queixo como se considerasse a ideia. - Mamãe certamente ficará satisfeita.
Brenna parou no meio do ato de lhe passar um pedaço de pão e um corte de queijo. Sentiu o rosto inflamar de calor e soube que o rubor do lado perfeito do rosto só
atraía mais atenção para suas feias cicatrizes. Por hábito, baixou a cabeça, deixando o cabelo encobrir a vergonha.
- Não, Brenna! - Cuchulainn inclinou-se à frente, pôs um dedo sob o queixo dela e gentilmente ergueu seu rosto. - Não se esconda de mim.
- Não foi o que eu quis dizer. Eu... Eu só estava... - As palavras sumiram ao encontrarem o firme olhar dele. Ela respirou fundo e preferiu novamente contar-lhe
a verdade: - Sou feia quando ruborizo. Não queria que me visse.
E então Cuchulainn fez algo totalmente inesperado. Não falou banalidades para tentar encobrir a estranheza do momento ou repudiar seus sentimentos. Simplesmente
se inclinou e roçou os lábios nos dela. O beijo foi gentil, mas Cuchulainn deslizou a mão do queixo dela até a nuca e manteve-lhe a boca presa para poder aprofundar
lentamente o beijo. Brenna não pensou no fato de a mão dele estar pousada em seu lado desfigurado do pescoço; não pensou no quão furiosamente ruborizada deveria
estar; não pensou no desejo dele por ela ser impossível. Apenas fechou os olhos e apoiou-se nele. Quando finalmente se separaram, ambos um pouquinho sem fôlego,
Cuchulainn a fitava com olhos cheios de luxúria.
- Gosto do seu rubor. - Sua voz estava rouca. - Me lembra que não sou o único aqui que está nervoso.
- Não é - disse ela, engolindo uma frívola vontade de rir.
- Me promete uma coisa, Brenna?
Ela assentiu, pensando que havia pouca coisa que pudesse negar àquele homem.
- Prometa que não vai me dar as costas, nem se esconder de mim de novo. Prometa que confiará que não a magoarei.
Brenna olhou fundo naqueles olhos mágicos. Seus próprios olhos se arregalaram com surpresa ao compreender o que vislumbrou ali - vulnerabilidade. Ela podia magoá-lo
com sua resposta. Cuchulainn nunca tinha desnudado o coração para nenhuma mulher antes como estava se desnudando para ela agora.
- Não vai ser fácil, mas prometo que não darei as costas ou me esconderei de você novamente.
- Obrigado, Brenna, pelo presente de sua confiança. Não farei mau uso disso. - Ele beijou a face desfigurada enquanto ela permanecia bem parada. E depois, como se
beijá-la fosse algo que fizesse todo dia, Cuchulainn sorriu e pegou o pão e o queijo de sua mão passiva. - Preciso comer. Tenho que enfrentar minha irmã logo. Melhor
fazer isso de estômago cheio.
Brenna pegou carne fatiada da cesta e a dispôs sobre outro pedaço de pão e queijo.
- Ah - acrescentou ele com um pouco de timidez. - Para que você saiba logo. Chamarei meus pais para que venham conhecê-la também. Talvez seja melhor passar logo
por isso. - Ele jogou a cabeça sobre o ombro na direção da piscina de água fria. - Não vai ser muito pior que mergulhar ali.
O coração de Brenna disparou.
- Conheci seu pai. Ele é um grande xamã.
- Isso ele é - disse Cuchulainn em meio a grandes mordidas.
- Mas nunca conheci a Amada de Epona. Ouvi falar que ela é muito bonita.
- É quase tão bonita quanto a jovem curandeira com quem pretendo me casar.
- Ooh! - O ar saiu dos pulmões de Brenna, que teve uma estonteante sensação de deleite misturada a um nauseante aperto no estômago.
Cuchulainn sorriu.
- Não se preocupe, amor. Minha mãe está tentando me ver casado há anos. Ela vai te amar. - Depois, preocupado com o quanto Brenna tinha ficado pálida de repente,
ficou sério e se inclinou para sussurrar de encontro aos seus lábios: - E essa é minha promessa para você.
A névoa da manhã não mostrava nenhum sinal de se dissipar conforme Cuchulainn e Brenna seguiam a estrada de volta para o castelo. Caminhavam lentamente, de mãos
dadas e deixando os braços roçarem intimamente um no outro. Brenna pensou que o cinza do dia era mágico. Parecia que o portão para o reino espiritual fora deixado
entreaberto para ela, que mudara facilmente de um mundo para outro, levando Cuchulainn consigo. Em vez de achar isso assustador, a ideia de que o reino espiritual
a abraçava era de alguma forma confortadora. Ela estava tão contente que não notou quando Cuchulainn estreitou os olhos e começou a espiar com suspeita a floresta
encoberta pelo nevoeiro.
Uma vaga e desconhecida sensação de inquietação incomodava a mente de Cuchulainn, e ele odiava isso. Será que o maldito fardo sobrenatural não o deixaria em paz?
Elphame estava a salvo no castelo. Brenna caminhava alegremente a seu lado. A floresta não guardava nada mais maligno que um ocasional javali mal-humorado. Porém,
de repente ele teve uma arrepiante sensação de premonição - e o pressentimento emanava da floresta, muito semelhante à premonição que tivera antes do acidente de
Elphame. Talvez a irmã estivesse contemplando outra corrida. Se fosse o caso, simplesmente a manteria longe disso. Ela podia ser chamada à razão - ocasionalmente
- e o acidente ainda era recente demais para que ela se metesse em exercícios exaustivos.
Um pensamento lhe passou pela mente, tão breve que sua mente mal reconheceu. Sussurrou um lembrete do que acontecia quando os humanos rejeitavam dons ofertados pelos
deuses.
Brenna riu quando fizeram a curva na estrada e assustaram um esquilo, que pulou e depois ralhou ruidosamente.
- Oh, coisinha tola! Não machucaremos você - disse Brenna.
Era isso o que ele estava sendo, pensou Cuchulainn com desgosto, um esquilo permitindo que medos sem sentido o governassem. Obrigou os ombros a relaxarem e voltou
a concentrar sua atenção na mulher adorável que caminhava tão feliz ao seu lado. Ela era seu futuro, não um pressentimento sem nome ou rosto. Ele escolhera viver
com os pés plantados firmemente na realidade - deixaria a magia e o reino dos espíritos para a irmã.
Vinte e Nove
ELPHAME CRUZOU O pátio principal, dando bom dia em resposta aos trabalhadores que a cumprimentavam. Parou junto à fonte que ressoava alegremente. Precisaria lembrar-se
de encarregar Danann de esculpir um banco de pedra para que pudesse se sentar e desfrutar da beleza bem ali, no coração do castelo. A manhã cinzenta lançava uma
luz relutante através do telhado inacabado, mas não podia turvar o brilho que cintilava dentro dela. O sorriso refletia sua alegria secreta, e nem notou que vários
homens que estavam a caminho do salão principal para o desjejum perderam o fio da conversa para fitar, boquiabertos, sua beleza radiante. Elphame traçou os dedos
pela água da fonte, lembrando no tanto de tempo que precisou ficar imersa em sua piscina naquela manhã para se livrar do desconforto que persistia da noite de amor.
Lochlan... Queria gritar alto o nome dele e contar a toda Partholon que ela amava e era amada também. Que tinha realmente acontecido - Epona lhe criara um consorte;
não teria que viver a vida como uma criatura solitária, preenchendo os dias com o reflexo do amor das outras pessoas.
O clã MacCallan tinha que aceitá-lo como seu companheiro. E se não aceitassem? Estaria disposta a desistir de sua posição como chefe e retornar aos Ermos com seu
amante? A ideia provocou um calafrio em seu sangue. Com um suspiro, sentou-se na beira da bacia da fonte e fitou a garota de mármore com quem se parecia tanto.
- O que faria se estivesse dividida entre dois mundos? - sussurrou.
- Minha irmã!
A voz retumbante de Cuchulainn assustou El, mas a cara feia que dirigiu ao irmão logo se transformou num grande sorriso ao ver que Brenna caminhava ao lado dele,
a mão na dele. O cabelo de Cuchulainn parecia úmido e havia um calombo do tamanho de um filhote dentro de sua túnica.
- Bom dia, Elphame - disse Brenna.
El podia dizer pelo rubor que escurecia o lado limpo do rosto da curandeira que suas emoções corriam soltas - podia bem imaginar como lhe devia ser assustador. Muito
a exemplo de Elphame, Brenna nunca esperara encontrar amor, e quando o encontrou, ele veio do lugar mais incomum. Era - para dizer o mínimo - uma reviravolta à qual
se levava tempo para acostumar.
- Bom dia, Brenna - disse calorosamente. Então seus olhos cintilaram de humor. - É bom vê-la, mesmo que tenha passado seu tempo com indivíduos questionáveis e animais
selvagens.
- Fale sério, El - disse Cuchulainn. - Ela vai pensar que está falando a verdade.
Elphame sorriu para Brenna.
- Estou falando a verdade.
Brenna sorriu de volta, e o rosto perdeu um pouco da cor nervosa.
Cuchulainn pigarreou e depois, para surpresa da irmã, largou a mão de Brenna e cobriu rapidamente o espaço entre eles para ficar num dos joelhos diante dela. Elphame
ergueu uma das sobrancelhas, mas, notando sua expressão séria, não disse nada, esperando a próxima atitude.
- Elphame, venho pedir formalmente sua permissão como chefe do clã MacCallan para cortejar sua curandeira, Brenna. Deve saber que faço isso com a honrada intenção
de casamento.
Elphame queria gritar de júbilo e abraçar o irmão, mas não desonraria a solenidade do pedido, nem demonstraria desrespeito à amiga parada aguardando muito silenciosa
pela resposta que provaria se seria aceita ou rejeitada, de uma vez por todas. O olhar de Elphame buscou o de Brenna.
- Não tem mãe ou pai vivos a quem Cuchulainn possa fazer seu pedido?
- Não. Eu era a filha única de meus pais. Eles estão mortos há uma década.
- Então é adequado que como A MacCallan eu assuma o lugar deles. Brenna, está disposta a aceitar o pedido de Cuchulainn? E, antes que responda, saiba que a apoiarei,
não importa a sua escolha. - Não precisava olhar para o irmão para sentir sua cara feia.
Os olhos de corça de Brenna trocaram a chefe pelo guerreiro ajoelhado diante dela. Cuchulainn não se virou para fitá-la, apenas manteve os olhos fixos na irmã. Podia
ver a tensão nos ombros largos e percebeu que a tensão era porque estava realmente preocupado com sua resposta. O conhecimento de que ele não a admitia como certa
encheu seu coração, e Brenna teve que piscar às pressas para impedir que as lágrimas caíssem. Cuchulainn a escolhera acima de todas as mulheres, e agora estava esperando
ouvir se ela o aceitaria.
- Sim - disse ela numa voz clara e forte. - Aceito o pedido de Cuchulainn, de todo o coração.
- Então, como sua chefe, concedo a você, Cuchulainn, permissão para cortejar Brenna. E como sua irmã, quero que saiba que sua escolha me deixou muito feliz. - Por
impulso, Elphame ergueu as mãos e inclinou o rosto para a luz da manhã brumosa que gotejava acima deles. - Peço a bênção de Epona para essa união.
No momento em que invocou o nome da Deusa, ela sentiu o calor do poder formigar por seu corpo e o céu da manhã nebulosa de repente ficou borrado. Pelo espaço de
tempo necessário para se inspirar, tudo pareceu suspenso. Naquele momento congelado, Elphame sentiu uma grande torrente de tristeza e ouviu o som de choro.
Ela piscou e a ilusão se foi, deixando apenas uma sensação de perda e um arrepio no sangue. Cuchulainn a observava com uma expressão estranha, e Elphame logo encobriu
seu desconforto dando tapinhas no ombro do irmão.
- Levante-se, Cuchulainn, fez boa escolha.
Os membros do clã que tinham parado para observar irromperam em vivas espontâneos. Logo os três estavam cercados por uma multidão de congratulantes, e Elphame achou
fácil se livrar da sensação misteriosa que a visão fugaz lhe deixara.
- El, sabe o que significa? - Cuchulainn pôs um braço ao redor de Brenna e prendeu o outro ao da irmã. - Podíamos muito bem chamar mamãe. Se ela souber por outros
meios, nunca nos deixará em paz.
Elphame sorriu da ironia das palavras do irmão.
- Sim, vamos chamar mamãe. Eu estava mesmo pensando que já era hora de ela vir nos visitar.
Elphame estava sozinha na Torre do Chefe. Dessa vez não olhou pelo balcão que dava para a floresta, preferindo se encostar ao batente de uma das longas e estreitas
janelas que davam para o mar de B'an. O dia não tinha clareado; só tinha limpado o bastante para permitir que o céu servisse de pano de fundo brilhante para iluminar
a tempestade que estava avançando do oeste. Imensas e onduladas nuvens grávidas de chuva estavam sendo sopradas para cada vez mais perto da costa. Elphame e Cuchulainn
tinham ordenado ao clã que reconferissem a ancoragem das tendas e até tinham transferido várias delas para dentro dos muros do castelo. O trabalho de restauração
parou enquanto eles se preparavam para a tempestade de primavera.
Relâmpagos cruzaram o céu, depois desceram para cortar a água distante. Isso lembrou Elphame de outra noite cheia de chuva, trovão e dor - assim como do milagre
de seu primeiro encontro com Lochlan. Sabia que devia amaldiçoar a tempestade por retardar o trabalho no castelo, mas não podia negar a animação que parecia aumentar
dentro dela a cada estrondo de trovão e lampejo de relâmpago. Iria até ele, e só teria que esperar o céu se abrir numa chuva acobertadora para isso. Não fora difícil
assegurar privacidade, embora sentisse uma pontada de culpa por ter dito a Brenna que a dor de cabeça retornara. A curandeira assegurara que era a mudança de tempo
irritando o ferimento recém-curado e gentilmente preparara um chá para ajudá-la a dormir profundamente ao longo da noite. Elphame, claro, não tocara no chá. Brenna
não a verificaria até a manhã, o olhar ardente e as palavras sussurradas de Cuchulainn deixaram claro que os dois novos amantes estariam muito ocupados ao longo
da noite.
Não mais do que sete dias, lembrou a si mesma. Só teria que manter a farsa por mais alguns poucos dias. Então revelaria seu segredo e confiaria que a família o aceitaria,
como a aceitaram por toda a vida.
- Não acha que a torre é um bom lugar para pensar, menina?
Dessa vez o sobressalto de surpresa com a aparição do velho espírito só durou um momento, e Elphame percebeu que devia estar esperando pela companhia dele.
- Sim, acho que sim. Vinha aqui com frequência?
Ele assentiu e ergueu uma sobrancelha semitransparente.
- Sim, sempre vim. Especialmente quando eu tinha um problema que não me deixava em paz.
- Sempre quis ser O MacCallan?
As duas sobrancelhas se ergueram enquanto ele a estudava, considerando a pergunta.
- Sim, sempre quis.
- Você... - Ela fez uma pausa, e virou-se da vista do mar turbulento para fitá-lo nos olhos. - Você alguma vez sentiu vontade de fugir?
- Sim, menina. - Seu sorriso estava cheio de compreensão.
- Mas não fugiu.
Os olhos dele cintilaram.
- E nem você fugirá. Ser A MacCallan está no seu sangue. Não pode rejeitar seu destino, tanto quanto eu não pude escapar do meu. - Ele se aproximou dela e pôs uma
mão gelada com gentileza sobre seu ombro. - Seria bom que se lembrasse disso, menina. O destino pode ser uma dama cruel. Traz grande tristeza e também grande alegria.
A breve visão que experimentara mais cedo de repente veio à tona de sua memória, e Elphame sentiu o calafrio no sangue retornar.
- Hoje Cuchulainn declarou sua intenção de cortejar e casar com Brenna, e ela o aceitou.
O velho espírito assentiu pensativamente, mas continuou em silêncio.
Elphame respirou fundo, tentando decidir se realmente queria saber mais alguma coisa. Estava apaixonada; Cuchulainn estava apaixonado. Não seria mais fácil se apenas
se deixasse levar pela maré de felicidade mútua, ao menos por mais alguns dias? Deixou escapar o ar que tinha inspirado. Já sabia a resposta da pergunta - ela ressoava
por seu sangue. Elphame não podia escolher a ignorância, mesmo que fosse enganadoramente jubilosa.
- Invoquei a bênção de Epona para a união deles, e quando o fiz, experimentei uma ilusão estranha.
- Estranha?
Ela engoliu em seco.
- Estranha e perturbadora. Ouvi choro e fui tomada por grande tristeza. Então tudo desapareceu tão rápido quanto surgiu.
O espírito tirou a mão do ombro dela e transferiu o olhar de modo a fitar o mar de B'an.
- Mais ninguém viu o sinal?
Entorpecida, Elphame meneou a cabeça.
- Ninguém pareceu notar nada. As pessoas ao nosso redor festejavam. Cuchulainn não disse nada sobre isso, e tudo que Brenna fez foi arder de felicidade.
O velho fantasma se voltou para encará-la.
- Epona enviou o sinal só para mim. - Ela falou seus pensamentos mais aterrorizantes em voz alta para o espírito silencioso. - É uma previsão do que está por vir.
A Deusa está me preparando.
- É responsabilidade d'A MacCallan apenas. E a sua força é que será necessária quando o momento chegar. - Sua voz ecoante soava triste e cansada.
- Eu poderia impedi-los! - Ela se sentia fria e nauseada. - Como A MacCallan, poderia proibir a união.
- A que preço, menina? Não se pode enganar o destino, mas se pode provocar muita infelicidade ao se tentar isso. Entendo sua dor. Eu tive uma irmã, uma moça bonita
que me era tão querida quanto meu próprio coração. Queria ter poupado Morrigan da dor.
O coração de Elphame palpitou. A irmã dele - a mãe de Lochlan. Será que ele sabia? O que estava realmente tentando dizer a ela?
O olhar do velho espírito vagou novamente para o mar.
- Prepare-se para a tempestade, está chegando...
Antes que pudesse questioná-lo mais, a forma do espírito desbotou e sumiu no chão da torre, deixando Elphame sozinha com sua tristeza silenciosa. Um trovão ribombou
e o céu finalmente se abriu, despejando chuva no castelo. Elphame deixou a janela e refez lentamente seu caminho pela escada de caracol. Seus ombros tombaram; sentia-se
fria e vazia. Não se sentia forte nem a chefe do clã - sentia-se uma irmã assustada.
E a sua força é que será necessária quando o momento chegar.
As palavras do fantasma sussurravam sem cessar por sua mente preocupada. Queria se livrar delas...
Só haveria um lugar onde certamente encontraria paz naquela noite.
Trinta
A CHUVA PROVOCAVA um tamborilar confortador de encontro à tenda enquanto Brenna observava Cuchulainn cobrir a filhote abastecida de leite na cama confortável que
ela fizera para a criaturinha. Era tão estranho ter um homem em sua tenda - não um estranho ruim, apenas diferente... Desconcertante... Perturbadoramente íntimo.
Porém ele estava ali a seu convite, em sua tenda, assim como em sua vida. Fand choramingou, então Cuchulainn a acariciou atrás das orelhas, sussurrando melodicamente
o que Brenna ficou surpresa por reconhecer como uma canção de ninar. Ela sorriu. O guerreiro tinha uma capacidade tão incrível para a gentileza - essa era uma das
coisas que o distinguiam de outros homens. Possuía uma profundidade de emoções dentro de si que não combinava com o exterior embrutecido de um guerreiro. A habilidade
de amar a filhote, e de amá-la, era evidência da diferença dentro dele, e Brenna fez uma prece silenciosa de agradecimento a Epona por criá-lo.
Cuchulainn se levantou devagarinho e com furtividade exagerada foi se juntar a Brenna, que estava sentada recatadamente na beira da cama. Ele tomou-lhe a mão e a
levou aos lábios.
- Obrigada por fazer a cama para ela. Foi uma confusão ficar com uma filhote de lobo dormindo a noite inteira no meu peito. - A voz era pouco mais que um sussurro.
Ele olhou ao redor, assimilando a organização da pequena tenda. A cama era idêntica à dele, só que a de Brenna estava bem arrumada e exibia um travesseiro recheado
com ervas perfumadas. Ela possuía dois baús, um estava ao pé da cama, o outro fora colocado perto da escrivaninha. Estava aberto, e Cuchulainn podia ver que estava
cheio de potes e garrafas, tiras de linho e um sortimento ferino de faquinhas. Ele ergueu as sobrancelhas. - É daqui que se originam seus chás lendários?
- Sim, além dos emplastros, unguentos e muitas outras coisas que curam.
- Tem sangue de dragão ou língua de sapo?
- Provavelmente, se eu procurar bem. Quer que eu veja? Eu poderia preparar alguma coisa com eles - declarou, fingindo inocência.
- Não! - disse ele, depois baixou a voz novamente quando Fand se remexeu: - Mas eu gostaria muito de ver os presentes que Epona lhe deu que a fazem se lembrar dos
meus olhos.
A respiração de Brenna ficou presa. Não devia ficar surpresa por ele ter lembrado; não devia ficar surpresa com nada que ele dissesse ou fizesse. Mas o amor dele
era tão inesperado que não podia deixar de se sentir vivendo um sonho, e que logo acordaria e descobriria que não tinha sido nada mais do que uma ilusão.
- Brenna? Não precisa me mostrar, não se isso a deixa desconfortável.
- Não me deixa desconfortável. Quero dividi-los com você. - Ela se levantou e pegou-lhe a mão para guiá-lo ao redor da cama até o canto da tenda que era coberto
em sombras. Ela se ajoelhou, gesticulando para que Cuchulainn se ajoelhasse ao seu lado. Então acendeu as quatro velinhas, uma para cada uma das direções, e o altar
ganhou vida.
Brenna apontou para o primeiro item.
- Entalhei a cabeça dessa égua da recordação de um sonho recorrente que eu costumava ter quando era criança. No sonho sempre havia uma bela mulher cavalgando a égua.
Ela tinha cabelo ruivo-dourado com cachos revoltos. - Brenna sorriu timidamente. - Não poderia reproduzir a beleza do rosto da mulher, então me concentrei na égua.
- Posso tocar? - perguntou ele.
Brenna assentiu.
Cuchulainn pegou com reverência a escultura de madeira, estudando-a com atenção.
- Fez um bom trabalho ao recriar a Égua Escolhida. Até reproduziu o arco arrogante do pescoço dela.
- A Escolhida de Epona? Mas não pretendia esculpir a Égua Escolhida.
Cuchulainn sorriu e tocou-lhe o rosto.
- Como não? Você sonhou com ela, assim como sonhou com minha mãe.
- Não... Eu...
- Ainda se lembra bem do sonho?
- Sim.
- Pense nos olhos da mulher.
Brenna se concentrou em recobrar a lembrança do sonho que tivera tantas vezes durante a sofrida infância. Não era difícil. Isso sempre lhe dera prazer. A égua e
a mulher eram tão bonitas e sempre pareciam tão felizes, tão livres dos horrores que Brenna andava suportando. Pensou na mulher e a visualizou claramente na mente,
concentrando-se nos olhos...
E os próprios olhos de Brenna se arregalaram de surpresa.
- Ela tem seus olhos! - Não eram exatamente da mesma cor, os olhos de Etain eram mais verdes que azuis, mas o formato era definitivamente o mesmo.
- Na verdade, como ela dirá, eu tenho os olhos dela.
Brenna sentiu um pequeno tremor percorrer o corpo. Tinha sonhado com a mãe de Cuchulainn vezes e vezes sem conta.
Cuchulainn recolocou com cuidado a cabeça da égua no altar. Primeiro, passou um dedo pela turquesa, depois tocou delicadamente a brilhante pena azul.
- Tem razão, Brenna, elas carregam a cor dos meus olhos. - Depois sua atenção se voltou para a singular pérola no perfeito formato de lágrima, e o guerreiro começou
a rir.
- O que foi? - perguntou Brenna.
- Ah, amor! Estamos destinados a ficar juntos. - Ele tocou-lhe o rosto. - Você sonhou com minha mãe e possui uma escultura da Égua Escolhida em seu altar. Coleciona
coisas que têm o tom exato dos meus olhos, e agora a pérola. - Ele riu novamente. - Meu pai trará consigo um anel com que pretendo presenteá-la. Está na família
dele há gerações. É uma aliança de prata, intricadamente entalhada com folhas de hera entrelaçadas, e engastada no meio está uma única pérola no formato perfeito
de uma lágrima. A gêmea exata da que você tem aqui.
- Eu a encontrei - disse ela, quase incapaz de falar em meio à alegria vinda do peito que lhe invadia a garganta. - Foi no ano em que me tornei mulher. Eu estava
sozinha e muito infeliz. Estava sentada ao lado de um riacho, e algo chamou minha atenção. Olhei para baixo e lá estava.
Cuchulainn a puxou para os braços e a manteve contra si.
- Nunca mais. Prometo a você, Brenna, nunca mais será infeliz novamente.
Pressionada bem forte junto a ele, compartilhando da força de seu corpo além de seu amor, Brenna sentiu os últimos vestígios da gaiola de gelo que prendia seu coração
derreterem e quebrarem. Ela ergueu os olhos para o homem em quem decidira confiar e amar.
- Faria algo por mim, Cuchulainn?
- Qualquer coisa, amor.
Ela respirou fundo.
- Faça amor comigo.
Em vez de responder, ele se levantou, erguendo-a consigo. Com Brenna apertada no círculo de seu braço, Cuchulainn a levou até a cama pequena e bem-arrumada.
- Apague as velas - sussurrou ela.
Ele ergueu-lhe o queixo com o dedo.
- Passaremos o resto de nossas vidas juntos. Eu a verei, Brenna, por inteiro - e com frequência. Sei que isso é difícil para você, mas prefiro começar esta noite
com nada além de honestidade entre nós.
A chuva batia na tenda, isolando-os em seu mundinho. Brenna conteve o medo e enfrentou seu olhar firme.
- Apagaria algumas delas?
Ele sorriu e beijou a testa dela antes de rodar pelo espaço para apagar todas, menos a única vela mantida dentro de uma lamparina de vidro. Levou a lamparina até
a mesinha ao lado da cama. Por alguns instantes ficaram de pé juntos, cara a cara, apenas olhando um para o outro.
- Estou nervosa. - Brenna sorriu hesitante e ergueu a mão para tocar-lhe o rosto.
Cuchulainn segurou-lhe a mão e a pressionou sobre o coração. Ela podia sentir suas rápidas batidas.
- Estou nervoso também, amor.
- Talvez devesse me beijar. É melhor quando nos tocamos.
Cuchulainn se inclinou para beijá-la, e Brenna se entregou ansiosa aos seus braços. Tinha falado a verdade, quando se tocavam assim, a proximidade e o poder que
se irradiava do corpo dele sobrepunha seu medo. Como antes, os lábios dele a fizeram esquecer que era desfigurada. Só conseguia pensar no sabor e no toque dele -
e como ele fazia seu corpo cantar em resposta.
Em algum momento em meio ao nevoeiro de beijos, pôde sentir as mãos dele vagando incessantemente por cima da roupa, moldando um seio com o calor da palma, apalpando
seu traseiro. Brenna gemeu ao se pressionar mais contra sua crescente rigidez. Logo suas próprias mãos estavam explorando o corpo dele. Encontraram o gancho que
mantinha o kilt preso no ombro e soltou o tartã. Cuchulainn a ajudou a desenrolá-lo do corpo, depois puxou a camisa de linho do peito e, quase sem compreender conscientemente
como, Brenna estava pressionada em seu corpo nu, deixando as mãos viajarem pela extensão dele para se deliciar na força controlada das linhas musculosas e firmes.
Cuchulainn se virou abruptamente, de modo a ficar sentado na cama e ela de pé entre suas pernas. As mãos pararam sobre o laço que mantinha o vestido fechado à garganta.
- Deixe-me vê-la, amor. - Sua voz estava rouca de paixão. - Deixe-me sentir seu corpo nu no meu.
Tentando acalmar o tremor que as palavras dele precipitaram, ela mordeu o lábio e assentiu. Cuchulainn desatou o corpete empertigado, ajudando-a a livrar-se dele
antes de desenrolar a saia. Ela ficou parada diante dele com a camisola de gola alta. Lentamente, Brenna ergueu o tecido macio do corpo pela cabeça e o deixou cair
no chão ao seu lado. Então ficou diante dele, bem parada, com os olhos bem fechados. Quando sentiu a suave carícia dos dedos dele seguindo o contorno do grosso tecido
cicatrizado que vinha do rosto, descendo pelo pescoço, cobrindo desde o seio direito até o topo do braço e se estendendo até quase a cintura, não pôde conter os
tremores que sacudiram seu corpo.
- Ah, amor. - A voz dele soava descarnada. - Queria ter estado lá. Teria encontrado uma maneira de impedir isso, ou confortado você de alguma maneira para tentar
diminuir sua dor.
Lágrimas escorreram de seus olhos fechados quando Cuchulainn se inclinou para beijar a trilha que seus dedos percorriam. Quando ela enfim abriu os olhos para vê-lo,
viu que o rosto de Cuchulainn também estava molhado de lágrimas.
- Você está aqui agora - disse ela.
- E estarei para sempre.
Brenna se deitou na cama com ele, alegrando-se com a sensação de ter seu corpo nu pressionado ao dela - por inteiro. Ele não se afastou dela, nem seu desejo por
ela minguou.
Pelo resto da noite, Brenna manteve os olhos abertos.
Lochlan ergueu a cabeça surpreso. Ainda não estava escuro, mas podia senti-la. Através do vento e da chuva, ela chamara seu nome. O poder do chamado dela formigou
por seu sangue. Suas asas se agitaram e começaram a se desdobrar antes mesmo que ele saltasse de sua caverna escondida e começasse o voo veloz que o levaria até
Elphame. Seu corpo saudou o toque frio da chuva. Ansiava por envolvê-la nos braços, senti-la afagar suas asas e acariciar seu corpo. Dessa vez queria tomá-la por
completo; queria saborear seu sangue. Não devia - sabia disso. Era demoníaco, vil, errado. Sua respiração se aprofundou. Com um esforço que lhe fazia a dor nas têmporas
latejar com familiaridade, Lochlan se forçou a parar. Tinha que assumir o controle de si mesmo. Não podia ir até ela envolto num nevoeiro de paixão e sede de sangue.
Fechou os olhos e curvou a cabeça contra a dor de negar aquilo que seu sangue exigia.
Ele a amava! Forçou seus pensamentos a trocarem o calor fluido do corpo dela pelo sorriso, pela confiança que demonstrava tão claramente em seus olhos. Ela era sua
esposa, pactuada com ele perante Epona. Sua respiração se regularizou. Conversariam. Talvez esta noite ele encontrasse uma maneira de contar a ela sobre a Profecia;
juntos certamente poderiam descobrir um modo de salvar sua gente sem o sacrifício que ele jurara não cometer.
Retomou sua corrida planante, dessa vez com suas vontades sombrias represadas. Ela o chamava, e ele deveria atendê-la, mas o faria como homem, não como monstro.
Elphame estava parada ao lado da abertura da passagem escondida. A chuva escorria por seu rosto e corpo, e Lochlan pensou que ela parecia coberta por lágrimas. Quando
o viu, ela sorriu, mas havia uma grande tristeza dentro dela que formava uma aura quase palpável ao redor. Sem falar, foi até Elphame e a envolveu nos braços. As
asas se ergueram sobre ela, abrigando-a do toque frio da chuva, mas o corpo dela ainda tremia.
- Venha comigo para meu abrigo. É uma simples caverna, mas está seca e quente. - Ele beijou-lhe o topo da cabeça e a manteve bem apertada contra si.
Ela ergueu a cabeça, e Lochlan pôde ver que andara chorando. As lágrimas tinham se misturado à chuva, envolvendo o rosto em tristeza.
- Em vez disso, viria comigo para os meus aposentos? - perguntou ela numa voz carregada de emoção. - Esta noite preciso das paredes do meu castelo ao meu redor,
e dos seus braços também.
- Quer contar a Cuchulainn esta noite, meu coração?
Ela meneou a cabeça em movimentos curtos e rápidos.
- Não, mandei chamar meus pais. Vamos esperar que eles cheguem. Cuchulainn não nos interromperá esta noite. Está com seu novo amor.
- É por isso que está triste? Cuchulainn escolheu mal?
- Ele escolheu Brenna.
- A pequena curandeira? Pensei que fosse sua amiga.
- Ela é - disse Elphame apressada. - Fiquei incrivelmente feliz quando eles declararam o amor de um pelo outro hoje. Mas tive um pressentimento - um tipo de premonição
- de grande tristeza que está por vir. - Elphame voltou a estremecer incontrolavelmente.
- Vamos voltar para seu castelo. Você precisa da força de suas paredes.
- Também preciso de você, Lochlan. Preciso muito de você esta noite.
Ele a abraçou com força.
- Estou aqui para você, meu coração.
Trinta e Um
LOCHLAN ENTROU NOS aposentos do chefe ao lado de Elphame. Manteve a mão dela apertada na sua enquanto uma maré de emoções desabava sobre ele.
- Minha mãe caminhou aqui. - Sua voz era um sussurro áspero. - Antes de conhecer a dor e o banimento autoimposto, ela conheceu amor e felicidade aqui.
- Não faça isso consigo mesmo. Acha que sua mãe por algum instante lamentou seu nascimento?
Lochlan piscou e se focou no rosto de Elphame. Tirou a autodepreciação da mente e respondeu com honestidade: - Não, desde o momento do meu nascimento até o momento
de sua morte, ela me amou ardorosa e completamente.
Pelas mãos unidas, Elphame podia sentir a tensão dentro dele relaxando. Lochlan olhou ao redor do aposento e continuou falando, a voz retomando o tom profundo e
rico que ela conhecia tão bem: - Sei que é estranho, e seu irmão, além do resto de seu clã, provavelmente nunca entenderá, mas me parece certo estar aqui. Isso de
alguma forma completa as coisas. - Ele sorriu para ela, e a tristeza estava longe de seus olhos. - Minha mãe ficaria muito feliz de saber que retornei.
Elphame se aproximou mais dele e se recostou em seu ombro. O braço dele a envolveu junto com a ponta de uma das asas escuras. Lochlan se curvou para beijá-la com
uma doce ternura que a deixou sem fôlego. Compreendia o que a mãe dele tinha sentido - ela também o amava ardorosa e completamente.
- Agora, me conte sobre esse pressentimento que tanto a perturbou - pediu ele, levando-a para a chaise dourada que ficava adjacente à cama.
Com um farfalhar, as asas de Lochlan se encaixaram perfeitamente às costas para que ele se reclinasse confortavelmente na chaise. Ele dobrou os joelhos para que
formassem um apoio para as costas de Elphame, que se enroscou apoiada nele, olhando-o de frente.
- Aconteceu quando Cuchulainn veio pedir minha permissão como chefe de Brenna para cortejá-la. Claro que aceitei com satisfação o pedido. - Os olhos de Elphame miravam
acima dos olhos de Lochlan, como se ela tentasse reconstruir o passado. - Depois, quase automaticamente, invoquei a bênção de Epona. No momento em que falei o nome
da Deusa, fui tomada por uma tristeza terrível e ouvi o som de choro.
- Talvez sua premonição não tivesse nada a ver com Cuchulainn e Brenna. Epona não poderia ter enviado uma visão do que aconteceria quando anunciasse seu próprio
casamento? Não poderia estar tentando prepará-la para a luta que teremos à nossa frente?
Elphame meneou a cabeça.
- Já considerei isso. Não, esse pressentimento era definitivamente relacionado a Cuchulainn e Brenna. - Ela respirou fundo. - E depois tem o espírito d'O MacCallan.
Ele concordou que era uma visão enviada para me preparar para ser forte.
As sobrancelhas de Lochlan se ergueram.
- Falou com o fantasma d'O MacCallan?
- Mais de uma vez. Na verdade, ele até apareceu para Cuchulainn. Foi como ele soube que devia me procurar na noite do meu acidente. O MacCallan o mandou.
- Meu tio... - Lochlan balançou a cabeça, mal conseguindo acreditar.
- E meu bisavô. - Ela hesitou antes de acrescentar com delicadeza: - Ele mencionou sua mãe na última vez em que nos falamos. Ele a amava muito.
A tristeza nublou os olhos de Lochlan novamente.
- Acha que ele me odiaria?
- Não sei - respondeu ela honestamente. - Mas acho um bom sinal ele não ter aparecido para expulsá-lo do castelo. Não tenho dúvida de que o velho espírito sabe de
tudo que acontece dentro dos muros de MacCallan.
- Devo partir? Não quero incomodá-lo.
Elphame lhe tomou a mão.
- Não vá. Quero você aqui. Preciso de você aqui. Lembre-se, você é do clã MacCallan, por juramento e também por sangue.
- Não é o sangue MacCallan que me preocupa. - Ele levou a mão dela aos lábios para um breve beijo. - O que pretende fazer a respeito de sua visão?
Elphame suspirou:
- Acho que não há nada que eu possa fazer. O MacCallan alertou que me preparasse para o que está por vir. - Ela encolheu os ombros, sentindo o grande peso das responsabilidades
que os pressionavam. - Só o que posso fazer é tentar ser forte, e esperar.
- Você é forte, meu coração. E esperaremos juntos pelo que está por vir.
As palavras dele a confortaram, mesmo quando percebeu que não deveriam. A visão não dizia respeito a ele, mas Lochlan sem dúvida era parte da iminente tempestade.
Ela sabia que o relacionamento deles seria uma coisa amarga para a família e o clã descobrirem, mas não podia rejeitá-lo. Por toda a vida tinha sonhado, desejado
e rezado por um consorte, sem jamais acreditar realmente que tal presente lhe seria concedido. E agora que o encontrara, não poderia perdê-lo.
Ela apertou a mão de Lochlan.
- Sim, mesmo uma grande tristeza será mais fácil de suportarmos juntos.
- Chegou a pensar que Epona poderia estar prevendo a rejeição de Brenna ao seu irmão? Se ele realmente a ama, seria uma grande tristeza para ele, mas algo do qual
poderia se recuperar.
- Brenna não o rejeitará. Deveria ter visto os dois juntos hoje, Lochlan. Era como se tivessem descoberto um grande segredo.
Trovões ribombavam fora do castelo e relâmpagos chicotearam perigosamente perto. Elphame estremeceu quando um súbito calafrio percorreu seu sangue.
- A tempestade está chegando - disse, olhando pelas janelas fendidas que cintilavam intermitentemente com relâmpagos.
- Vai passar, meu coração.
Os olhos de Elphame buscaram novamente seu consorte. Lochlan a observava com olhar seguro e firme, o que evocava confiança e de repente a fez querer acreditar nas
palavras dele. Imaginou que ele devia ser um grande líder entre seu povo.
Envergonhada, percebeu que, apesar de ele ter mencionado outras mulheres que sobreviveram ao nascimento dos filhos meio-fomorianos, e apesar de compreender que deviam
existir mais seres como ele, não perguntou sobre os outros que ele deixara para trás.
- Lochlan, fale-me do seu povo.
Toda a expressão sumiu do rosto de Lochlan, que ficou em silêncio por tanto tempo que Elphame achou que não receberia resposta. Quando ele começou a falar, suas
palavras soavam tensas: - Meu povo vive nos Ermos. A vida é difícil, mas, como já sabe, vivemos por muito tempo, poucos de nós morrem. E, apesar de me perguntar
sobre a sabedoria disso, muitas crianças nascem a cada ano.
- Crianças?
O sorriso de Lochlan não continha nenhum humor.
- Sim, podemos procriar. Seja qual for a anomalia que fez com que as fêmeas na época de meu pai se tornassem estéreis, ela foi curada conosco. Somos fortes e resilientes.
Meu povo prospera quase tanto quanto sofre.
Elphame meneou a cabeça.
- Eles sofrem? Não compreendo.
- Todos aqueles dentre nós que nasceram das mães sobreviventes compartilham certas similaridades - nossa aparência é mais humana que demoníaca, temos a habilidade
de caminhar durante o dia sem que o sol nos cause dor, não precisamos nos alimentar de sangue fresco para manter nossas vidas, e todos nós penamos para nos prender
à humanidade enquanto combatemos o impulso de nossa herança sombria. Você já compreende mais do que percebe, Elphame. Viu a evidência desse combate em mim. O que
não sabe é que sempre que luto contra o demônio dentro de mim, sempre que escolho a humanidade em vez do caminho sombrio, isso me causa dor. A dor que eu e meu povo
sentimos como preço por nossa humanidade está deixando muitos de nós insanos. - O maxilar de Lochlan se apertou. - É especialmente difícil para as crianças. Elas
também nascem mais humanas que demônios, mas não têm mães humanas que as guiem, e nossas próprias mães morreram há muito tempo.
Elphame ficou devastada com a ideia de um pequeno Lochlan lutando para ser humano sem a ajuda da força e da crença da mãe.
- Então eles devem vir para cá! - Ela apertou as mãos dele, subitamente não se importando por soar jovem e idealista. - Podemos ajudá-los. Minha família vai aceitá-lo
- eles têm que aceitar. Quando enxergarem o quanto você é bom, que você luta contra a escuridão a cada dia e a derrota, começarão a confiar em você como eu confio,
e através de você seu povo ganhará a confiança deles também.
Lochlan não conseguia deixar de olhar a brilhante fé nos olhos dela. Agora era a hora de contar sobre a Profecia. Agora era a hora de admitir que sua missão era
selar sua perdição, mas que tinha abandonado seu povo e a Profecia por amá-la. Mas não conseguia. Ela o envolveu na teia reluzente de seu sonho, do qual Lochlan
não queria despertar.
- Se fosse assim tão fácil - disse ele.
- Se fosse fácil, não valeria a pena ser feito. - Ela ecoou as palavras da mãe dele com um sorriso.
- Eu te amo, meu coração. - Ele a puxou para os braços. - Sempre te amarei.
Elphame se apoiou nele, retribuindo o beijo. Quando ouviu as asas começarem a farfalhar de excitação, murmurou junto aos lábios dele: - Leve-me para a cama, marido.
Com força que era mais do que humana, Lochlan se levantou rápido, carregando Elphame nos braços. Seus passos bravios e esvoaçantes cobriram o espaço até a cama numa
única batida do coração dela. Logo as roupas, ainda úmidas de chuva, estavam juntas numa pilha descartada aos pés deles. Nua, Elphame deslizou sobre os lençóis luxuriosos.
Lochlan deitou sobre ela, as asas desdobradas como uma enorme ave de rapina. Sustentava a maior parte do peso sobre os cotovelos; suas mãos estavam bem fechadas
sobre a grossa coberta. Ela sentiu a tensão que tremia pelo corpo dele e, quando tentou aprofundar os beijos, Lochlan se conteve visivelmente, tentando firmar a
respiração e manter sob controle sua paixão.
- Lochlan, você é meu marido. Não pode ter medo de me amar.
- Não tenho medo de amá-la! - Sua voz estava grossa de luxúria e frustração. - Tenho medo de machucá-la! - Ele inspirou tremulamente e pressionou a testa na dela.
- Minhas mãos se transformam em garras. Meu prazer se transforma em sede de sangue. Não posso amá-la sem temer por você.
Algo no tom das palavras dele agitou um instinto bem no fundo de Elphame, que sentiu a ira de uma deusa ganhar vida num fogo lento e constante. A pele formigou e
o sangue pulsou num ritmo quente e sensual.
- Você me insulta.
Lochlan ergueu a cabeça, a surpresa claramente refletida em seu rosto. Ela o empurrou para longe com uma força que arregalou os olhos dele.
Deliberadamente, ela se inclinou e afagou a parte interna da asa de Lochlan, cuja respiração escapou num gemido.
- Eu não fujo do seu toque. Esqueceu que sou mais do que humana? Sou mais rápida, sou mais forte. - Acariciou a asa novamente e, quando ele gemeu, mordeu provocadoramente
seu ombro, deixando uma marca vermelha destacada como uma mancha. - Alguns até dizem que sou uma deusa. Não me trate como se eu fosse menos do que isso. - Ela prendeu
seu lábio inferior entre os dentes e puxou.
Os olhos de Lochlan lampejaram com uma luz negra que incitou uma reação de luxúria dentro dela. Elphame se lembrou da sede de sangue que ele admitiu. Não pretendia
que fosse assim, mas havia algo eroticamente atraente na ideia de Lochlan pressionando os dentes na sua pele - um tipo de invasão sensual, nada diferente de ele
entrar em seu corpo. A aura de violência pouco contida que o cercava era palpável, mas isso não a assustava - a atraía para ele. Não via seu companheiro como anomalia
ou mutação, mas sentia que finalmente tinha descoberto seu par.
- Me ame, Lochlan - ronronou ela. - Não vou quebrar nem fugir de você.
O beijo de resposta a esmagou contra a cama. Ela correspondeu à paixão dele com igual força, provocando e incitando com as mãos e a boca. Quando Lochlan a penetrou,
não foi com nenhuma da contenção que mostrara na noite anterior, e Elphame se arqueou debaixo dele, encorajando-o a continuar. Ele prendeu as mãos dela nas suas,
depois as puxou acima da cabeça dela. Sua respiração vinha em arfadas ardentes ao curvar a cabeça sobre Elphame, que mal reconheceu a voz que sussurrava palavras
sombrias em seu ouvido: - Não faz ideia do que pede.
- Minha confiança não é algo dado pela metade. - Ela ergueu a cabeça e mordeu o ombro dele novamente, com força, enquanto se movia ritmicamente contra ele.
Lochlan deixou um gemido baixo escapar pela garganta. Pressionou os dentes afiados como adagas na maciez de seu pescoço. Elphame sentiu uma breve ardência e depois
uma lâmina de sensação erótica escorrer da garganta por todo o corpo. Foi tomada por ondas de prazer enquanto Lochlan bebia seu sangue, ao mesmo tempo que a preenchia
com sua semente.
De repente, com um grito agoniado, Lochlan se distanciou do corpo dela. Sentindo-se desorientada, Elphame se ergueu sobre um cotovelo, piscando em confusão. Ele
estava de pé ao lado da cama, encarando-a com olhos arregalados. Havia sangue em seus lábios e um pequeno filete vermelho corria pelo canto da boca até o queixo.
A mão de Elphame foi ao pescoço, sentindo duas feridinhas perfuradas e úmidas. Ela lhe sorriu trôpega.
- Estou bem, Lochlan. Não me machucou.
Ele limpou a boca com as costas da mão, depois fitou com horror o sangue impregnado ali.
- Não! - berrou ele numa voz destroçada. - Não pode ser assim! Não deixarei que seja assim!
Lochlan cambaleou para trás, sacudindo a cabeça de um lado para o outro.
Elphame sentou-se imediatamente, sentindo uma onda de tontura.
- Lochlan, o que foi? Olhe para mim... Você não me machucou.
- Não! - repetiu ele. - Não deixarei que seja assim!
Com a incrível velocidade da raça de seu pai, ele planou pela sala e desapareceu pela entrada que levava ao quarto de banho e ao túnel escondido.
- Lochlan! - gritou Elphame ao pular da cama.
- Não me siga. Fique longe... - A voz ecoou assustadoramente da escadaria.
Elphame caiu de joelhos e chorou.
Lochlan irrompeu do túnel e correu. Não importava para onde ia, só sabia que precisava se afastar. A noite estava impiedosamente escura, mas sua visão era aguçada,
então ele se manobrava entre as árvores com pouco esforço. A chuva fustigava seu corpo nu, mas Lochlan a recebia com prazer. Não era nada se comparado aos resquícios
estilhaçados de seu coração. Ele berrou sua agonia para a noite surda. Ainda podia sentir o gosto do sangue dela, e ainda podia ouvir a história sussurrada que ele
lhe revelara.
Ele estava enganado. Todos estavam enganados.
A Profecia era verdadeira: ele e seu povo poderiam ser salvos pela morte de uma deusa. Mas não era o sangue dela que era necessário como sacrifício, e não era sua
morte física que era exigida. Agora ele sabia disso. Ao beber de seu sangue, Lochlan foi abastecido do conhecimento infalível de uma deusa. O sangue de Elphame não
os salvaria. Só se ela aceitasse seu sangue é que seu povo encontraria a salvação, e através dele Elphame absorveria a escuridão do sangue deles e abrigaria dentro
do próprio corpo a loucura de uma raça inteira.
Seria pior do que uma morte física. Se ela bebesse seu sangue, ficaria impregnada pelo mal. Elphame viveria. Os pensamentos de Lochlan berravam em sua mente numa
cacofonia de agonia... Não era a morte física que a Profecia profetizava. Ela viveria a longa vida de qualquer ser cujo corpo carregasse o sangue da demoníaca raça
fomoriana, mas ficaria completamente louca. Ele sabia muito bem no que a transformaria, no que o sangue a distorceria a ser. Não podia sentenciá-la a séculos de
agonia. Nem mesmo para salvar seu povo.
Devia ficar afastado dela, e devia garantir que ninguém de seu povo sequer descobrisse a trilha pelas pedregosas Montanhas Tier que levava à luxuriosa floresta de
pinheiros de Partholon e ao Castelo MacCallan. Devia manter o castelo de seu clã, o lar de sua amada, em segurança.
Seus braços se movimentavam em compasso com suas pernas poderosas. Seu coração trovejava com a tempestade. Mais longe... Precisava ir longe o bastante para não poder
ouvir o som mágico do chamado dela, nem sentir sua presença tão dolorosamente próxima. O terreno se elevava gradualmente, e Lochlan saudou a dor ardente que agitava
seus músculos extenuados. Relâmpagos lampejavam e, em meio à chuva que caía sobre seu rosto, ele pensou ver o contorno de silhuetas escuras em cima do cume seguinte.
Com uma terrível sensação de presságio, Lochlan retardou a subida, esperando o próximo lampejo de luz para ter certeza. Quando veio, ele parou cambaleando. De pé
sobre o cume, silhuetados pela tempestade, estavam quatro figuras aladas.
Trinta e Dois
EM ASAS COR de nuvem de tempestade eles desceram planando do cume. Lochlan se susteve forte e nu, esperando que o alcançassem. Embora não pudessem ler literalmente
a mente uns dos outros, seu povo era intuitivamente ligado pela herança de seu sangue sombrio, e Lochlan sabia que não deviam detectar a turbulência de suas emoções.
Puxou de dentro de si o manto de liderança que vestia tão naturalmente e encobriu a mente e o coração com silêncio. Conforme se aproximavam, podia ver seus rostos
registrando em choque sua nudez. Então eles curvaram a cabeça respeitosamente.
Como era comportamento típico do teimoso meio-fomoriano, Keir foi o primeiro a falar: - O que aconteceu com você, Lochlan?
- Não me oferece nenhum cumprimento, nenhuma explicação de por que estão aqui, mas acredita que tem o direito de começar a me questionar? - Lochlan atirou as palavras
através dos dentes trincados.
Os olhos de Keir lampejaram perigosamente, mas ele não conseguiu sustentar o olhar de Lochlan. Baixou a cabeça.
- Está certo em me repreender - disse ele, mas a voz guardava pouco arrependimento. - É bom vê-lo, Lochlan.
Seus três companheiros curvaram a cabeça e ecoaram seu cumprimento.
- Não é nada bom! - exclamou Lochlan. - Não deveriam estar aqui.
Keir inspirou sibilando, mas, antes que pudesse falar, a mulher alada ao seu lado deu um passo à frente, fazendo uma grande mesura diante de Lochlan.
- Ficou muito tempo separado de nós, Lochlan. Estávamos com medo de que algum destino ruim tivesse recaído sobre você.
A voz de Fallon era doce, e por um instante a familiaridade da voz foi um bálsamo para sua mente dolorida.
- Seus instintos não estavam errados, Fallon. O destino não foi gentil.
- Não encontrou a deusa ungulada? - perguntou Keir.
O olhar de Lochlan era gélido.
- Eu a encontrei, mas descobri que não é dela que a Profecia fala.
Os seres alados se mexeram inquietos, olhando de Keir para Lochlan.
- Como pode saber disso?
- Sei porque ela não é uma deusa, é simplesmente uma mutação de duas raças. Não é diferente de nós! - resmungou Lochlan.
- Não pode ser - disse Fallon desanimada.
- A esperança não acabou. Tenho um plano. - Lochlan ergueu a voz acima da tempestade.
Relâmpagos cortaram a noite novamente, e a chuva se intensificou.
- Precisamos ficar aqui? Não há nenhum abrigo que possa nos oferecer? - perguntou Fallon.
Lochlan queria gritar que não havia abrigo nenhum e obrigá-los a começar a retroceder pela trilha naquela mesma noite, mas sabia que se os afastasse eles perceberiam
a falta de lógica de suas ações - saberiam que ele estava escondendo algo. E não descansariam até descobrir seu segredo.
- Sigam-me, rápido e em silêncio. Eu os levarei ao meu abrigo. - Mas ao se virar, Fallon o deteve com a mão suave sobre seu braço.
- Sente-se bem, Lochlan? Por que o encontramos correndo nu na tempestade?
Lochlan desviou o olhar da gentil Fallon para seu companheiro, e depois para os outros membros do grupo. Eles o observavam com cautela, como se achassem que o tempo
afastado talvez o tivesse levado à loucura que permeava em cada um deles. Naquele momento não se importava com o que eles pensavam - só lhe importava que o tecido
de seu mundo fora rasgado em pedaços. O sonho estava acabado e ele não sabia se poderia suportar a luz do dia.
- Nenhum de vocês já quis correr na turbulência de uma tempestade? - perguntou, mostrando os dentes ao grupo. Desdobrando as asas, planou para longe deles, estabelecendo
um passo que sabia que eles teriam que lutar para acompanhar.
A caverna que ele estava usando como abrigo era apenas larga o bastante para acomodar todos eles. Em silêncio, Lochlan se pôs a acender uma fogueira, algo a que
raramente se dava ao luxo, mas com a tempestade e a escuridão da noite havia pouca chance de que a fumaça levasse alguém a descobrir o esconderijo. Ele se vestiu
e dividiu suas parcas provisões com seu povo, que ainda o observava com cautela. Devia ter descoberto quando entraram em Partholon; devia ter sentido a presença
deles. Era uma prova do quanto se distraíra com Elphame para não perceber que eles se aproximavam. Keir escolhera bem os companheiros, Lochlan admitia consigo mesmo.
Fallon, claro, não ficaria longe dele. Os gêmeos, Curran e Nevin, sempre foram completamente leais a uma coisa - o cumprimento da Profecia, a qualquer custo. O próprio
Lochlan os teria escolhido para acompanhá-lo na missão que Keir planejara.
E ele sabia acima de qualquer dúvida o que Keir tinha planejado. Keir viera para ter certeza de que Lochlan levaria a deusa ungulada para seu povo como um sacrifício
vivo.
- Fale sobre ela, Lochlan - pediu Nevin.
- Como pode ter tanta certeza de que não é ela? - Como sempre, Curran pegou o fio de pensamento do irmão e o completou.
Lochlan falou cuidadosamente, ciente do fato de que suas palavras poderiam salvar ou condenar Elphame.
- Passei muito tempo observando-a. Ela não é uma deusa. É simplesmente uma jovem mulher cujo corpo, seja lá por qual razão, carrega a marca da mãe humana e também
a do pai centauro. Não guia o povo nos ritos de Epona. É apenas uma chefe de clã, não uma deusa. Não carrega o poder da Deusa dentro de si.
- Você não poderia saber disso. - Keir manteve a voz baixa, e não confrontadora, mas seus olhos estavam estreitos e curvados.
- Sei disso sem qualquer dúvida. Eu li no sangue dela.
- Como?
- Por quê?
- Que direito você tinha?
Lochlan ergueu a mão para deter os gritos. Como um animal enjaulado, caminhou de um lado para o outro na boca da estreita caverna.
- Eu a encontrei no fundo de uma ravina. Tinha caído e estava muito ferida. Estava sendo atacada por um javali. Eu matei o javali e depois a carreguei para um lugar
seguro. Seu sangue corria livremente naquela noite, e nele eu li a verdade sobre sua humanidade. Ela não é uma deusa - é apenas uma aberração, nada mais do que uma
humana mutante.
- Você se revelou a ela? - Fallon o encarou com surpreendente descrença.
- Ela ficou inconsciente e depois começou a delirar. Só se lembra de mim como um sonho que dificilmente seria verdadeiro. - Lochlan quase engasgou com a amarga verdade
que suas palavras guardavam.
- Se não é ela quem satisfaz a Profecia, por que você sonhou com ela por todos os anos da vida dela? - As palavras de Keir cortaram o ar.
Mas Lochlan já tinha se preparado para a pergunta, e a resposta veio fácil: - Os sonhos eram visões enviadas por meu sangue sombrio para me atormentar, para me enlouquecer
quando eu acompanhasse seu rastro e descobrisse que não passavam de uma tolice que persegui por um quarto de século.
- Você disse que tinha um plano. O que devemos fazer agora? - perguntou Fallon.
Lochlan se aproximou da bela mulher alada que fora sua companheira de brincadeiras na juventude e sua amiga na vida adulta. O cabelo loiro-branco tinha secado e
brilhava à luz do fogo, caído até a cintura como uma cortina espessa e reta. Os traços eram delicados e sobrenaturais. Os olhos eram de um azul tão claro que às
vezes pareciam sem cor. Ele odiava mentir para ela; odiava mentir para todos eles. Mas não podia trair sua esposa.
- Enquanto eu estava observando a mulher ungulada, ouvi muitas coisas. Os humanos falavam com frequência do Templo da Musa.
Curran e Nevin assentiram.
- Nossa mãe foi educada lá.
- Assim como a minha - disse Lochlan. - Assim como muitas de nossas mães. Lembra do que elas nos ensinaram? O Templo da Musa é um lugar de aprendizado superior,
onde as professoras são todas Deusas Encarnadas, cada uma representante física viva de uma das nove Musas.
- Acredita que uma delas possa satisfazer a Profecia - disse Keir lentamente.
Lochlan o fitou nos olhos.
- Acredito que qualquer uma delas possa satisfazer a Profecia. Pensem nisso! A resposta é simples. Eu teria percebido anos atrás se não estivesse sendo atormentado
por sonhos provocadores há tanto tempo, razão pela qual meu sangue sombrio fazia essas brincadeiras comigo - para impedir que minha mente reconhecesse o óbvio. A
Profecia não diz que seremos salvos pelo sangue de uma deusa agonizante ungulada. Diz que o sangue de uma deusa nos salvará. Qualquer deusa.
- Então nós vamos ao Templo da Musa - disse Nevin.
- E capturamos uma deusa - Curran completou por ele.
Lochlan meneou a cabeça com indignação.
- E como planejam fazer isso? Como acreditam ser possível que todos nós possamos seguir caminho sem sermos descobertos?
- Talvez seja hora de sermos descobertos! - exclamou Keir. - Talvez já tenha passado da hora!
- Você pretende atacar Partholon? - A voz de Lochlan soava severa e perigosa.
- Não atacar! Só quero tomar nosso lugar de direito dentro de Partholon.
- E acha que esse lugar de direito - zombou Lochlan - está na vanguarda de um exército de demônios alados?
- Não somos demônios! - gritou Fallon.
- Se formos a Partholon como uma força invasora e roubarmos uma das deusas para um sacrifício de sangue, como possivelmente nos enxergariam? - disse Lochlan. Como
ninguém respondeu, ele meneou a cabeça com repulsa. - Se pensarmos apenas com a raiva do sangue de nossos pais, não seremos melhores do que eles, e apesar de todos
os nossos esforços contra nosso legado sombrio, não seremos mais humanos do que eles foram.
- E o que sugere? - perguntou Keir com amargura.
- Voltem para casa. Cuidem do bem-estar do nosso povo. Viajarei sozinho ao Templo da Musa, e quando eu voltar aos Ermos será na presença de uma deusa. Quando o sangue
dela lavar a loucura sombria de nosso sangue, entraremos pacificamente em Partholon. Nenhum partholoniano jamais saberá que o preço de nossa salvação foi o sangue
de um deles.
- Há... - principiou Curran.
- ... Uma certa lógica nisso - concluiu Nevin.
Lochlan virou as costas para eles e encarou a chuva. Para seu deleite pareciam aceitar suas invenções e meias-verdades, mas não poderia sentir alívio até saber que
os quatro tinham retornado aos Ermos - até garantir que Elphame estivesse segura.
Keir franziu o cenho e se acomodou contra a parede dos fundos da caverna. Os olhos de Fallon seguiram o companheiro antes que ela fosse até Lochlan na boca da caverna.
- Ainda a ama, meu amigo? - perguntou ela baixinho.
- Não. - Lochlan saboreou a falsidade amarga da mentira. - Nunca a amei. Era tudo uma ilusão.
- É melhor assim. Agora pode enfim escolher uma companheira de nosso próprio povo.
Lochlan conseguiu assentir de leve.
- Você parece diferente, Lochlan. - Os olhos de Fallon estavam nublados de preocupação.
- Você estava certa. Fiquei tempo demais longe do meu povo. - Ele se forçou a sorrir para ela. - Agora deve descansar. Vocês devem começar a viagem de volta amanhã.
O castelo é muito próximo e está cheio de trabalhadores humanos e centauros. Não é seguro para nenhum de vocês permanecer aqui.
- Como quiser, Lochlan. - Fallon inclinou a cabeça respeitosamente antes de voltar para seu companheiro.
Atrás de si, Lochlan podia ouvir os quatro se acomodando para dormir. Seu próprio cansaço o arrastava, mas ele sabia que não dormiria. Se dormisse, sonharia. Sonharia
com ela. Não poderia suportar isso essa noite. Em silêncio, esgueirou-se para fora da caverna. Os trovões e relâmpagos tinham passado, mas a chuva ainda caía sem
trégua. Ele escalou o cume acima da caverna escondida, sentou-se num monte rochoso e fitou a terra que começara a acreditar que poderia ser seu lar. A terra dos
MacCallan o chamara, mas era um chamado ao qual nunca poderia atender novamente. Não importava o que seu coração e seu sangue dissessem, não importava que Elphame
acreditasse que ele a traíra e abandonara, ele deveria deixar esse lugar.
Viajaria até o Templo da Musa. Sabia que era uma viagem fútil. A ideia de que uma Deusa Encarnada tivesse a capacidade de satisfazer a Profecia não lhe era nova.
Ele e a mãe a discutiram com frequência. Não parecera correta a nenhum dos dois. Sua mãe sempre fora inflexível de que a chave da Profecia se revelaria quando Epona
enviasse uma mulher tocada pela Deusa para cumpri-la. Que sua mãe estivesse certa era de pouco consolo agora.
E quanto à inofensiva Deusa Encarnada da Musa? Seria capaz de roubar uma jovem inocente e carregá-la para a morte? Isso não serviria apenas para alimentar a escuridão
dentro dele e arrancá-lo ainda mais do domínio da humanidade? Ele cerrou o maxilar. Não importava. Assim faria - se significava salvar Elphame, havia pouca coisa
que não fizesse. Poderia até abandoná-la.
Seus ombros tombaram. Mas isso não salvaria Elphame, não permanentemente. Seu povo descobriria que a morte da Deusa Encarnada não cumpriria a Profecia. Por anos
eles acreditaram que a deusa ungulada que assombrava seus sonhos era a resposta da sua loucura transgressora. Como num círculo interminável, eles inevitavelmente
retomariam aquela crença.
Teria então que batalhar contra seu próprio povo pela vida dela?
Lochlan pôs o rosto entre as mãos e fez algo que não fazia desde a morte da mãe. Chorou.

Fallon se aninhou ao corpo de Keir. Ele a cobriu com suas asas, embrulhando-a em seu calor. Depois pressionou os lábios no ouvido dela.
- Seu amigo mente - sussurrou.
Ela se afastou apenas o suficiente para ler os olhos dele.
- O que quer dizer, Keir?
- Mesmo apesar da chuva e do suor, pude sentir o cheiro dela nele. Estava repleto do sangue e do sexo dela - sibilou Keir.
Fallon olhou fundo nos olhos dele. Não tinha cheirado nada estranho no corpo de Lochlan, mas o senso de olfato de Keir era mais aguçado que o dela; houve momentos
notáveis em que ele até superara a incrível capacidade de Lochlan rastrear através do cheiro.
- Tudo o que precisa fazer é pensar no que viu nos olhos dele, e saberá que falo a verdade. A deusa ungulada é a Escolhida, mas Lochlan prefere mantê-la para si.
Fallon fechou os olhos e repousou a cabeça novamente no peito do companheiro. Pensou no que vira refletido nos olhos de Lochlan naquela noite. A resposta veio bem
fácil. Ela vira agonia e aflição - todas as coisas que o nobre Lochlan sentiria se tivesse preferido a amante dos seus sonhos à salvação de seu povo.
Keir estava certo. Fallon sentiu a raiva se agitar dentro dela.
Trinta e Três
A LUZ DO sol espreitou pelas altas janelas fendidas do aposento do chefe, e Elphame piscou contra o brilho do começo de manhã. Sentou abruptamente, e o cômodo oscilou.
A cabeça parecia pesada e a boca estava muito seca. Era como se tivesse se permitido muito vinho na noite anterior, mesmo que não tivesse tocado na bebida. O que
havia de errado com ela? Esfregou o pescoço, que coçava vagamente, e os dedos encontraram as cascas que cobriam os dois furinhos.
Lochlan...
A noite lhe voltou numa torrente.
Ele a deixara. Elphame respirou profunda e uniformemente. Não choraria outra vez, só pensaria. Apenas volte ao que aconteceu, disse a si mesma, deve existir uma
razão racional para o comportamento de Lochlan.
Tudo estava bem a princípio. Ele lhe confortara os temores sobre a futura tristeza de Cuchulainn. Prometera que enfrentariam juntos o que quer que o futuro trouxesse.
Fizera amor com ela.
E provara seu sangue. Foi quando ele se distanciou dela. O que ele tinha dito?
- Não pode ser assim! Não deixarei que seja assim!
O que ele queria dizer? Sim, a sangria a deixou estranhamente eufórica e depois agiu nela como uma potente droga sonífera. Ainda podia sentir seus efeitos. Mas não
fora nada terrível. Sua mão encontrou as feridinhas no pescoço novamente ao se lembrar das sensações incrivelmente eróticas que fluíram por seu corpo quando Lochlan
bebeu seu sangue.
Sabia que Lochlan passara a vida rejeitando sua herança sombria, e na última noite ele tinha até revelado que aquela luta estava deixando seu povo louco. Ela estremeceu
ao recordar a tristeza na voz dele ao falar das crianças. Talvez provar seu sangue tivesse sido, para ele, uma desistência - um tipo de aceitação, uma batalha perdida
para o que ele mais odiava em si mesmo. Isso significava que na mente dele agora ela estava atrelada àquela autodepreciação?
Não! Não acreditaria nisso. Lochlan era seu marido, jurado de amá-la perante Epona. Na noite em que se uniram num pacto de matrimônio, escolheu confiar nele. A estrada
deles não seria fácil - os dois já sabiam disso. Ela não vacilaria ao primeiro obstáculo que enfrentavam.
Lochlan a mandou não segui-lo. Então acreditaria nele, e esperaria. Até ele reaparecer, teria que prosseguir com as atividades diárias de restauração do castelo
e a liderança do clã. Não podia se dar ao luxo de outras mulheres. Seu clã não precisava de uma chefe que não fazia nada além de sonhar com o amor perdido.
Estaria perdido? A ideia lhe provocou um calafrio, então ela a sacudiu da mente.
Tentando recuperar algum senso de normalidade, foi até o jarro e o copo deixados sobre a penteadeira. Ela terminou com três copos cheios de água antes que as mãos
parassem de tremer.
Elphame olhou para a cama. As roupas deles ainda estavam jogadas em montinhos amarrotados ao lado dela. Um tremor de medo sacudiu sua espinha. Ele tinha fugido dela,
nu e sozinho. Por quê?, gritava sua mente. Oh, Lochlan, o que há de errado?
Normalidade. Ela tomaria banho, faria o desjejum e depois se lançaria na restauração do castelo. Fazia muito tempo que não exigia de seu corpo trabalho físico pesado.
Hoje usaria a força sobre-humana da qual tanto se orgulhava. Precisava fazer algo fisicamente cansativo. Algo que obrigasse seu corpo a parar de ansiar pelas carícias
dele.
Num nevoeiro que era muito como se estivesse andando por um sonho febril, Elphame desceu para o quarto de banho. A porta do túnel ainda estava entreaberta. Esvaziando
cuidadosamente a mente, ela a fechou. Depois, rápida e impessoalmente, se banhou, lavando o cheiro persistente de Lochlan.
Voltando ao quarto, escolheu uma simples blusa de linho e depois se enrolou no tartã do clã, prendendo-o bem com o broche d'O MacCallan. Virou-se para encarar a
cama. Seu estado amarrotado e as pilhas de roupas descartadas ao lado fizeram seu estômago apertar.
Duas batidas soaram à porta de madeira. Por um momento Elphame sentiu-se como transformada em pedra, mas quando as batidas se repetiram com mais insistência, ela
deu uma guinada, chutando o monte de roupas para fora de vista debaixo da cama.
A porta se abriu lentamente.
- Elphame? - a voz suave de Brenna chamou com hesitação.
- Entre, Brenna - disse Elphame, pintando um sorriso de boas-vindas no rosto rígido. - Bom dia.
A pequena curandeira entrou no cômodo, e pareceu a Elphame que todo o esplendor que sumira de seu próprio corpo encontrara nova vida em Brenna. O cabelo, que ela
costumava deixar puxado sobre o ombro direito para que pudesse facilmente baixar a cabeça e deixá-lo cair como cortinas sobre suas cicatrizes, se espalhava em confusa
profusão pelas costas, deixando o rosto aberto e resplandecente. Seu passo era leve como se ela quase saltitasse pelo cômodo. Elphame até achou que o vestido parecia
diferente - então percebeu que a roupa não tinha mudado, simplesmente não estava mais amarrada até o queixo.
- O amor lhe cai bem, Brenna - disse Elphame.
- É Cuchulainn que me cai bem. - As faces de Brenna coraram, mas ela não desviou os olhos do olhar cândido da amiga.
- É bom ver que todas as antigas indiscrições dele tenham finalmente servido de alguma coisa. - Tão logo disse aquelas palavras, a mão dela voou até a boca. Que
coisa ridiculamente insensível de se dizer! Será que não conseguia pensar com clareza suficiente para não magoar a amiga? - Perdoe-me, Brenna! Foi uma coisa horrível
de se dizer.
A animada gargalhada de Brenna preencheu o cômodo.
- Não é horrível, é verdadeira. Eu não acreditava nem um pouco que Cuchulainn fosse um virgem inexperiente. - Ela baixou a voz conspiratoriamente: - Foi bom um de
nós saber o que fazer na noite passada. - Ela riu como uma menininha. - Foi muito bom. E de qualquer forma, não posso mudar o passado de seu irmão. Por que deveria?
A vida dele o fez como é, e eu o amo como é. - Ela pegou a mão de Elphame e confessou: - Ah, estou tão feliz! Nunca me permiti sonhar em ser amada por um homem,
qualquer homem, mas ter ganho o amor de um homem como Cuchulainn! Se meu coração parasse de bater agora, neste exato segundo, eu morreria feliz e completa!
Elphame sorriu carinhosamente. A felicidade de Brenna era como um bálsamo para seu coração ferido. Lembrava-lhe que o amor realmente acontecia - que finais felizes
eram possíveis.
- Seu coração não pode parar de bater ainda, não até ter me dado pelo menos uma dúzia de sobrinhas e sobrinhos para mimar.
Brenna deu tapinhas no queixo, considerando.
- Uma dúzia no total ou uma dúzia de cada?
- Deixarei minha mãe responder a essa pergunta. E, falando da Deusa Encarnada de Epona, esteja preparada quando ela insistir em conduzir ela mesma seu matrimônio
- e em breve -, mesmo que provavelmente chore durante o serviço inteiro.
Um pouco do rosa feliz abandonou as faces de Brenna.
- Cuchulainn disse que ela vai gostar de mim.
- Não se preocupe, Brenna, ela vai adorar você. Onde está esse meu irmão? Ainda na cama?
- Não, ele foi para o Grande Salão. Eu disse a ele que queria ter certeza de que você estava se sentindo bem esta manhã. - Ela estreitou os olhos e estudou Elphame,
mudando facilmente de jovem amante eufórica para a curandeira. - Você parece pálida. Dormiu direito?
- Dormi bem. Provavelmente estou pálida porque passei muito tempo reclusa e tempo insuficiente sob céu aberto. Vamos fazer nosso desjejum juntas e depois vou remediar
isso. - Ela rumou para a porta, mas a pergunta seguinte de Brenna a fez se deter de pronto.
- O que aconteceu com seu pescoço?
Elphame passou o dedo pelas marquinhas e se obrigou a dar de ombros com indiferença.
- Eu devo ter me arranhado.
- Mais parecem picadas.
- Pode ter sido uma aranhazinha. Imagino que isso prove que nosso lar não é perfeito. - Ela pegou a mão de Brenna e a puxou em direção à porta.
- Lembrarei Meara de verificar os cantos dos seus aposentos à procura de teias.
Elphame fez um som vago de concordância, e depois logo mudou de assunto: - Como está a filhote do meu irmão?
Brenna revirou os olhos.
- Ele contou que a batizou de Fand?
Elphame sentiu uma verdadeira gargalhada borbulhar do peito, e, enquanto ria com a amiga, o nó dentro dela se dissipou. Tagarelando amigavelmente, caminharam através
do belo pátio principal e adentraram o Grande Salão, onde o clã estava se reunindo e um aromático desjejum estava sendo servido. Elphame foi cumprimentada calorosamente,
e seu coração ficou contente por ver o irmão pegar Brenna nos braços e beijá-la profundamente.
Ela era a chefe desse clã maravilhoso. Se Lochlan tivesse abandonado o amor deles, ela sobreviveria. Não, faria melhor do que sobreviver. Viveria, prosperaria e
passaria o resto de seus dias rodeada pelo amor e o respeito de seu povo. E talvez algum dia pudesse contar aos sobrinhos e sobrinhas uma lenda sobre uma criatura
alada e uma deusa que, por um curto período, a amara.
Elphame sorriu para a filhote que saltitava desajeitada ao redor dos pés do irmão enquanto caminhavam em direção ao grupo de trabalhadores que aguardavam do lado
de dentro dos muros do castelo. Mal podia acreditar que a enérgica e gorda Fand era a mesma criatura que Cuchulainn tinha resgatado quase morta da toca apenas dois
dias antes.
- El, tem certeza de que se sente bem o bastante para isso?
- Não comece, Cuchulainn. Você ouviu Brenna. Ela disse que me curei o bastante para voltar ao trabalho. E esse é exatamente o tipo de trabalho que quero fazer hoje.
Cuchulainn ergueu uma sobrancelha.
- Por que prefere nos ajudar a cortar árvores, limpar o mato da floresta em vez de algo...
- Algo mais fácil? - Elphame o interrompeu com um bufo de aversão. - Nunca fui uma pessoa particularmente interessada no que é mais fácil, Cuchulainn. Me diga -
o que escolheria fazer se fosse forçado a ficar inativo por tanto tempo quanto eu?
- Você estava seriamente ferida, El - lembrou-lhe.
- O que escolheria? - insistiu ela.
O suspiro dele se transformou em risada.
- Eu escolheria ficar com minhas mãos sujas e meus músculos quentes.
- Assim como eu. - Ela sorriu.
Os trabalhadores os cumprimentaram e ficaram agradavelmente surpresos por ouvir que A MacCallan se juntaria a eles no trabalho. Ergueram machados e lâminas e acompanharam
Cuchulainn e Elphame pelos muros dianteiros.
- Minha ideia é a seguinte - disse Cuchulainn, apontando a floresta circundante -, já limpamos os terrenos do castelo, mas ainda gostaria que o limite florestal
em si recuasse vários passos. Os telhadeiros pediram mais madeira, então isso beneficiaria as duas partes. - Ele estava para dar instruções específicas quando sentiu
um formigamento no lado esquerdo do corpo. Virou a cabeça e suas palavras morreram. A irmã estava à sua esquerda e ondas de calor emanavam dela. Cuchulainn sentiu
um tremor familiar, conforme testemunhava, novamente, o poder da Deusa ganhar vida nela.
Elphame olhava acima das árvores. O céu estava de um azul surpreendente que só parecia acontecer em manhãs de primavera que se seguiam a chuvas noturnas. O sol tinha
acabado de se elevar sobre o mar de pinheiros e espalhar ondas de calor e luz sobre as paredes vivas do Castelo MacCallan. O corpo de Elphame absorveu os raios de
sol como o toque de um pai há muito ausente, e ela sentiu o poder da Deusa preenchê-la.
- Epona tocou este dia - a voz de Elphame era reverente. - Vamos agradecer à Deusa por Sua presença e pedir Sua bênção sobre nosso clã.
Quando Elphame ergueu o rosto para o calor do sol da manhã, sentiu os homens se ajoelharem ao seu redor. Ela olhou para o lado, e Cuchulainn também tinha se colocado
de joelhos. Ela olhou para seu povo. Estavam ajoelhados respeitosamente, mas as cabeças não estavam abaixadas. Acompanhando sua orientação, tinham erguido o rosto
para a luz do sol. Elphame sentiu que isso estava certo, e ao erguer os braços para evocar o nome de Epona, o poder caloroso da Deusa dançou ao longo de sua pele.
"Oh, Grande Deusa Epona, sentimos Sua presença poderosa hoje e pedimos que Seu espírito flua por nosso clã.
Nós estabelecemos um novo caminho aqui, e com Sua ajuda divina continuaremos a soprar vida no Castelo MacCallan, o lar ancestral daqueles cujo sangue Você sempre
considerou querido.
Agradecemos a Você e pedimos Sua benção nos ventos leves e sussurrantes que vêm de longe, nas águas frescas dos mares e riachos, e nas terras distantes e lugares
selvagens.
Estamos honrados por ter Seu espírito entre nós.
Salve, Epona!"
Aqueles que a cercavam acolheram o grito e, para a alegria de Elphame, as palavras "Salve, Epona!" ecoaram dos muros do castelo, enchendo a manhã com uma sensação
de amor e magia que permaneceria entre eles como lembrete daquele dia.
As criaturas aladas observavam da segurança das sombras da floresta. Lochlan tinha mentido para eles; ali estava a prova inegável. A deusa ungulada estava diante
dos muros do castelo, cercada por seu povo que se ajoelhava em reconhecimento ao seu poder. Epona a preenchia - ela cintilava com o espírito incorporador da Deusa.
E ela evocava a bênção de Epona com palavras simples, como se fosse seu direito por nascença - o que obviamente era. Ela era, de fato, uma deusa viva.
Não deviam deixar Partholon sem ela. O destino de seu povo dependia disso. Pensamentos sombrios agitaram-se na mente das criaturas, que dessa vez não fizeram qualquer
tentativa de represá-los. A deusa ungulada precisava ser atraída para a floresta, para longe da proteção dos muros de seu castelo. Lochlan não faria isso, então
eles precisariam encontrar outra maneira.
Dentro da escuridão da mente das criaturas, uma ideia se formou, nascida em loucura e banhada em sangue.
Trinta e Quatro
O SOL ESTAVA bem alto e a dor nos músculos de Elphame era uma queimação lenta e satisfatória quando Brenna apareceu, uma cesta de piquenique em mãos. Ela fez careta
e riu quando Cuchulainn a puxou para seus braços e lhe deu um beijo suado.
- Ugh! Vocês dois estão pingando de suor. - Então o olhar da curandeira se aguçou ao estudar Elphame.
- Não, não estou exagerando. Sim, estou me sentindo bem - Elphame rapidamente lhe garantiu.
Fand, que estava tirando uma soneca na sombra do pinheiro mais próximo, escolheu aquele momento para acordar e veio galopando desajeitadamente até Brenna, que se
ajoelhou para coçar atrás da orelha da filhote.
- Bom, você parece melhor do que de manhã, apesar de todo suor e sujeira, mas já passou da hora de um descanso. - O sorriso se aqueceu e se tornou íntimo quando
seus olhos se fixaram nos do amante. - Trouxe a refeição do meio-dia. Gostaria de dividi-la comigo?
Elphame observou Brenna literalmente flertar com seu irmão. Era como se o amor que aceitara de Cuchulainn a tivesse preenchido tão completamente que ela, como o
Castelo MacCallan, tivesse renascido.
- Sim, moça, eu adoraria. - Cuchulainn a fitou maliciosamente enquanto ela dava um gritinho e se remexia em seus braços suados. Fand latiu para os dois.
- Não só você, Cuchulainn - disse Brenna sorridente. - Nossa chefe está convidada também.
- Eu adoraria me juntar a vocês, mas Wynne é uma verdadeira mandona. Lembram de quando ela me puxou para um canto hoje de manhã no desjejum? - Cuchulainn e Brenna
assentiram. - Prometi que me sentaria com ela para aprovar as seleções de cardápio e conversar sobre a expansão da equipe da cozinha. Na verdade, tenho que ajudá-la
a entrevistar assistentes de cozinha. - Elphame deu um suspiro dramático. Na verdade, estava satisfeita por Wynne ter pedido seu conselho na seleção da crescente
equipe de assistentes. Também estava satisfeita por isso lhe dar uma desculpa aceitável para se livrar de ficar grudada no irmão e em Brenna durante um de seus primeiros
encontros amorosos.
- Então, somos apenas nós dois. - Cuchulainn deu uma piscadinha para Brenna. Fand uivou e o guerreiro a aninhou nos braços. - Quero dizer, nós três - corrigiu-se.
Brenna fez cara feia enquanto ele coçava Fand debaixo do queixo.
- Cuchulainn, se pretende tocar em alguma coisa além desse animal, melhor se lavar.
Cuchulainn inclinou-se e baixou a voz: - Encontro você na nossa piscina, Brenna. - Quando ela sorriu, ele largou a filhote esperneante nos braços dela. - Você e
Fand vão na frente. El e eu vamos terminar com essa árvore e depois eu me coloco a caminho. - Sua voz mudou para um sussurro fingido enquanto seus olhos lançavam
uma olhada provocadora na irmã. - Não diga à nossa chefe, mas pretendo tirar uma folga essa tarde...
- Ah, você é terrível, Cuchulainn! - Elphame lhe deu um soco.
- Concordo - disse Brenna alegremente, segurando a filhote contra o seio. - Mas esperarei por ele mesmo assim. - E com uma olhada garbosa sobre o ombro, foi caminhando
pela estrada.
Cuchulainn a observou partir, sorrindo como bobo. Elphame meneou a cabeça.
- Você não a merece.
A voz de Cuchulainn soava jubilosa:
- Está certa, minha irmã! Mas ela me ama de verdade. Agora, vamos cortar essa árvore para que eu possa passar o resto da tarde nos braços dela.
Eles se voltaram para o tronco do grosso pinheiro que estavam arrancando. Elphame buscou o olhar do irmão.
- Eu disse que ela o amava.
Cuchulainn riu entusiasmado.
- Nesse caso em particular, não poderia estar mais contente por você estar certa, minha irmã.
Rindo, Elphame o encarou. E seu sorriso congelou. Por trás do ombro de Cuchulainn, uma única nuvem negra de repente obscureceu o brilho da luz do sol. Havia algo
nisso - algo frio e sinistro - que fez um dedo de pavor descer por sua espinha. Elphame estremeceu.
- O que foi? - perguntou ele.
Ela piscou e a nuvem sumiu. Será que tinha mesmo estado ali? O calor brilhante do dia irrompeu novamente em sua alma, e o calafrio que a abalara se tornou nada mais
do que um truque da luz do sol entre as árvores.
- El?
Ela meneou a cabeça e segurou a árvore com mais força.
- Não é nada, só minha mente vagando. Vamos nos apressar. Você não quer fazer Brenna esperar, e eu concordo com ela. Você realmente precisa de um banho. - Ela riu
e torceu o nariz para o irmão suado.

Brenna sentia-se leve, feliz e muito, muito linda. Balançava a cesta que enchera com queijos aromáticos, pão fresco, ovos cozidos de codorna e fatias de carne de
porco defumada. Tinha até conseguido um odre do melhor vinho da mãe de Cuchulainn. Ela saiu da estrada e sorriu de como tudo estava ficando verde. Florzinhas roxas
tinham brotado durante a noite e plantinhas cor de lima que pareciam cestas viradas de ponta-cabeça formavam bonitas moitas ovais. A floresta parecia ter se vestido
apenas para ela - e o pensamento bobo e romântico a fez dar um sorriso largo.
O choramingo de Fand deixou Brenna saber que a filhote ficara para trás. Ela se virou e espiou entre as árvores. A filhote tinha sentado seu traseiro rechonchudo
no meio da estrada e estava encarando Brenna lastimosamente.
- Venha - chamou Brenna. - O pinheiro grande está ali - ela apontou para cima -, o que significa que não estamos longe da piscina.
Fand não se mexeu.
Brenna cacarejou com a filhotinha.
- Venha, docinho. Eu trouxe um pouco de leite e um pano de algodão para você. Vou estender um cobertor e você pode dormir até ele se juntar a nós. - Claro que sabia
que a filhote não podia realmente compreender o que ela estava dizendo, mas seu tom era suave e persuasivo, então ela deu tapinhas na coxa e bajulou a criatura obstinada
a deixar a estrada e segui-la para a floresta. - Boa menina! - exclamou. - Cuchulainn vai ficar orgulhoso de você.
A atenção de Brenna estava focada na filhote, então ela não notou quando a sombra se destacou do pinheiro mais próximo e começou a segui-la.
O som musical da água caindo estava muito próximo quando Fand de repente rosnou.
- Fand? O que foi, bebê? - Sua reação inicial foi rir. Os pelos da nuca se eriçaram quando a filhote exibiu seus dentinhos e recuou lentamente até Brenna. A lobinha
parecia adoravelmente nada impressionante. Só era uma bolinha de pelo cinza, simulando pequenos rosnados de lobo. Brenna achou que ela se parecia mais com um ouriço.
A escuridão lampejou como uma sombra no canto de sua visão. Os rosnados de Fand aumentaram. Brenna virou a cabeça e sua respiração fugiu dos pulmões num uh! apressado.
A criatura alada era muito linda. Brenna notou a cor única de seus olhos e a força ágil de seu corpo, quase como se estivesse catalogando os sintomas de uma doença
recém-descoberta. Brenna não entrou em pânico, nem gritou e lutou. Com uma velocidade selvagem que era mais do que humana, a criatura se aproximou dela. A luz clara
do novo dia cintilava perigosamente de suas presas.
- Faço isso porque ele me obrigou. É a única maneira. - A voz da criatura alada era surpreendentemente macia e melódica.
Mesmo que Brenna enxergasse a certeza de sua morte nos olhos da criatura, não conseguiu forçar o corpo a se mexer. Estava paralisada, presa naquele olhar cheio de
perdição. Embora o corpo não respondesse, a mente de Brenna permanecia muito clara. Seu primeiro pensamento foi de como aquilo era diferente do acidente. Aquele
fora um dia cheio de fogo e dor. Este, a princípio, uma doce invasão. A criatura a segurou bem de perto e a cabeça baixou até o lado não desfigurado do pescoço.
Brenna sentiu os dentes pressionarem a maciez de sua pele. Quando eles a furaram, foi tomada por um ímpeto de euforia e não pôde conter um gemido. Depois houve uma
sensação quente, dilacerante, e, como se bem ao longe, Brenna ouviu o ruído distinto de carne se rasgando.
Fechou os olhos e pensou em Cuchulainn. Epona, ajude-o a não lamentar por muito tempo. Parecia que o tempo estava suspenso enquanto sua mente formara sua oração
final: E obrigada, Deusa, por me permitir conhecer o amor e a aceitação antes de conhecer a morte. A sensação de dilaceramento em seu pescoço aumentou e Brenna pôde
ouvir a própria respiração escapando em altas arfadas. Suas pernas perderam as forças. Ainda bebendo de seu pescoço, a criatura a segurou numa rude paródia do abraço
de um amante. O mundo sob as pálpebras fechadas mudou de escarlate para negro, mas antes que a dor, que a morte em si pudesse reclamá-la, Brenna se sentiu sendo
tirada para fora do corpo que desmoronava, e sua alma se encheu da indescritível paz dos braços acolhedores de Epona.
- Acho que Kathryn seria a melhor adição à minha equipe - disse Wynne, afastando um cacho fujão do rosto.
Elphame falou depois de outra mordida no excelente cozido de cervo que Wynne preparou para a refeição do meio-dia.
- Ela admite ter pouca experiência como cozinheira, mas é jovem e muito disposta. Concordo com você, ela vai aprender rápido.
- Meara vai ficar zangada. Ela odeia perder suas subordinadas.
Elphame pensou na silhueta agradavelmente arredondada da governanta-chefe. Ela sorriu.
- Cozinhe algo especial para Meara como uma oferenda de paz.
Wynne assentiu pensativa.
- Algo doce.
- Muitas coisas doces.
Um som súbito interrompeu a risada de Elphame, que espiou ao redor de Wynne para tentar ver o que estava causando a comoção quando ouviu o primeiro grito: - Elphame!
Ela reconheceu a voz grave de Danann e já estava saindo apressada do Grande Salão quando o velho centauro adentrou o pátio. A respiração dela ficou presa diante
de sua expressão amarga.
- Seu irmão precisa de você.
O centauro girou e correu na direção da entrada do castelo. Elphame o alcançou lá. Fora dos muros do castelo estava um mar de confusão. Homens selavam cavalos freneticamente.
Centauros surgiam correndo das margens da floresta. Elphame conseguiu ouvir o nome de Brighid sendo gritado. E em meio a essa peleja Cuchulainn permanecia completamente
imóvel enquanto seu cavalo era selado. Nos braços, seu irmão de rosto pálido apertava a filhote de lobo, que estava salpicada de sangue. Elphame disparou até ele.
- É Brenna - disse Cuchulainn.
- O que houve? Onde está ela? - Elphame olhou rapidamente para a filhote. Fand não tinha ferimentos no corpo. Não era o sangue da loba que manchava seu pelo.
- Encontrei Fand na floresta perto da piscina. Ela estava sozinha. Chamei e procurei por Brenna. Vi rastros estranhos. Não os compreendi. - Cuchulainn falava rapidamente
em frases curtas, reduzidas, como se formar palavras fosse difícil: - Vim buscar Brighid por causa disso. - Sua mão buscou a claymore, agora bem presa às costas.
O dedo apavorante que mais cedo lhe tocara a espinha formou um punho gelado que se fechou sobre o coração de Elphame.
Os cascos de Brighid golpeavam o chão gramado à medida que ela galopava até eles.
- O que aconteceu?
- Alguma coisa atacou Brenna. - Cuchulainn entregou a filhote ao homem que terminara de selar o cavalo. Então pulou sobre o capão. - Perto da piscina onde vocês
três tomaram banho. Não consigo ler os rastros.
- Me mostre - disse Brighid.
Cuchulainn direcionou o capão estrada abaixo e, sem qualquer palavra, o grupo disparou atrás dele. Elphame corria ao lado do irmão. Tentava não pensar.
Na base do imenso pinheiro, Cuchulainn saiu da estrada. Desmontou depressa e continuou por mais alguns metros até parar ao lado de uma cesta de piquenique abandonada.
- Aqui. - Ele apontou para uma pequena seção do chão da floresta. As flores silvestres recém-despertas estavam esmagadas e pingos escarlates escureciam a delicada
folhagem verde.
Brighid gesticulou para que o grupo ficasse afastado enquanto ela se inclinava para estudar o chão. Elphame viu o rosto dela ficar tenso e, por um instante, o olhar
da caçadora se ergueu e buscou os olhos da chefe antes de voltar seu olhar investigativo para o chão da floresta. Quando falou, o fez sem desviar os olhos da história
que os rastros contavam: - Fiquem atrás de mim.
O grupo se moveu numa silenciosa coluna de duas pessoas, Elphame e Cuchulainn liderando os que seguiam Brighid. Ela se afastou depressa da piscina de volta para
a estrada, seguindo os rastros que corriam assustadoramente perto dos passos originais de Brenna. A caçadora cruzou a estrada não muito longe de onde o grupo a deixara
e mergulhou novamente na floresta. Logo se virou abruptamente para o norte.
Elphame correu até junto dela.
- Algum sinal de Brenna? - perguntou baixinho.
- Ela foi carregada.
Sentindo-se enjoada, Elphame voltou para o lado do irmão. Seguiram a caçadora sem falar. A princípio Brighid se movia com rápida certeza, mas conforme o terreno
começou a formar o padrão nortista de saliências rochosas entremeadas por riachos e abismos, o passo da caçadora se reduziu notavelmente, até ela por fim parar.
Quando se voltou para encarar Cuchulainn, sua voz estava estridente de frustração: - Eu a perdi. Essa criatura se move como nada que eu tenha rastreado antes. As
passadas são impossivelmente distantes - quase como se pudesse voar.
Cuchulainn largou as rédeas do cavalo e cobriu o espaço entre ele e a caçadora de tal modo que seu corpo quase tocava o dela de tão próximo que estavam.
- Não pode tê-la perdido. Ela está com Brenna.
- Sei disso! - gritou Brighid. - Eu daria qualquer coisa para que não fosse assim, mas não posso rastrear uma coisa que se move pelo ar.
Cuchulainn recuou um passo, quase como se ela o tivesse estapeado.
- Se não pode rastreá-la, então como a encontraremos?
- Vamos formar uma linha de caça e vasculhar - falou Elphame de repente. Apontou para um dos homens que vinha atrás. Vá para Loth Tor. Convoque a aldeia. Mande-os
trazerem tochas. Vá, homem, rápido! - ordenou quando ele ficou encarando-a estupidamente. Depois Elphame se voltou para a caçadora e o irmão. - Espalhem-se aqui.
Comecem a vasculhar. Voltarei ao castelo para convocar o clã. Vamos percorrer essa floresta como gafanhotos. Vamos encontrar Brenna. - Ela abraçou o irmão com força
e sentiu o tremor que passou pelo corpo dele quando abrandou o suficiente para devolver o abraço.
Com um aceno de cabeça para Brighid, ela disparou de volta pela floresta. A princípio Elphame se concentrou na velocidade e na viagem pelo terreno bruto e rochoso,
mas ao se aproximar do castelo seus pensamentos explodiram pela parede de choque silencioso que os mantiveram acuados.
Os rastros foram feitos por uma criatura de origem fomoriana. Teria as reconhecido mesmo sem o olhar significativo de Brighid. Não podia ser Lochlan. Não podia acreditar.
Não era possível. Ou era?
Seus braços se moviam e os músculos ardiam em compasso com o tumulto dentro de sua mente.
Seus pensamentos circulavam freneticamente, apanhando palavras e imagens e formando com elas um quadro medonho de condenação... Sua lembrança da luz do sol cintilando
nas presas de Lochlan se juntou com suas palavras: Tenho o sangue de uma raça de demônios dentro do meu corpo, e isso é algo que nenhum de nós jamais poderá esquecer.
Os furinhos em seu pescoço pareciam arder.
E se ele tivesse enlouquecido ao provar seu sangue? Será que tinha fugido dela por causa disso - tinha se forçado a partir antes que perdesse o controle? E agora
Brenna estava pagando o preço pelo silêncio de Elphame e por sua decisão de confiar numa criatura que era metade demônio.
Não! Seu coração gritou. Ele era seu consorte; sua vinda tinha sido prevista pelo próprio Cuchulainn. Ele não podia ser um monstro insano. Sim, os rastros foram
feitos por uma criatura fomoriana, mas Lochlan lhe dissera que existiam outros de sua raça que estavam lutando contra o impulso de loucura do sangue demoníaco. Podia
ser que uma dessas criaturas o tivesse seguido e finalmente sucumbido às compulsões sombrias.
Mas ela precisava saber. Precisava ter certeza. Só havia uma maneira.
Elphame parou à beira do limite florestal que rodeava o amado castelo. Ficando na cobertura dos pinheiros, virou-se para o norte - a direção na qual Lochlan entrara
em Partholon. Ela ergueu as mãos e falou ao vento: - Lochlan! Venha até mim...
O nome do amante cintilou numa neblina mágica diante dela, e depois o vento rodopiou através e ao redor da neblina, apanhou-a e se espalhou na floresta.
Por um momento ela baixou a cabeça, sentindo o peso da decisão pressionando sua alma. Depois se afastou das árvores.
Trinta e Cinco
- FIQUEM A DEZ passos um do outro. Enquanto os outros não se juntarem a nós, não podemos esticar demais nossa linha. O objetivo é encontrar evidências da trilha
da criatura, então devemos ter certeza de que direção vasculhar - explicou Brighid, olhando de Cuchulainn para o grupo de homens e centauros que a rodeava. - Vamos
seguir em frente unidos numa linha. Vão devagar, ajustem o passo ao meu. Os rastros são incomuns, distintos. Procurem por talhos semelhantes a garras na terra. São
grandes, maiores que o casco de um centauro.
Com pouca conversa, os homens se dispersaram. Cuchulainn assumiu posição perto da caçadora.
- Que criatura é essa? - Sua voz sussurrada foi levada facilmente até Brighid no silêncio atípico da floresta.
Ela fitou as árvores, lembrando do olhar que ela e a chefe compartilharam perto da piscina. Elphame sabia que os rastros eram os mesmos sobre os quais conversaram
dias antes, porém ela nada admitira. O que Brighid deveria fazer agora: contar a Cuchulainn que tinham conhecimento de uma criatura com garras espreitando na floresta,
mas que elas decidiram ignorá-la? Como se para se livrar da confusão, Brighid esfregou as costas da mão sobre a testa e falou ao guerreiro uma verdade parcial: -
Não sei, Cuchulainn. Nunca encontrei uma criatura que pudesse fazer tais rastros.
- Ela a matou, não é? - A voz estava destituída de expressão, mas os olhos imploravam para que Brighid discutisse com ele, dissesse que ele estava errado.
- Ela carregou Brenna, disso sabemos, mas não encontramos maiores evidências de sangue, e havia muito pouco sangue no local do rapto. Isso nos diz que ela não sangrou
até a morte.
Velado entre eles estava o entendimento de que havia inúmeras maneiras de morrer sem sangrar até a morte. Brighid deixou de lado o olhar torturado de Cuchulainn
para verificar a linha de vasculhadores que se esticava a cada lado deles. Ergueu a mão para que concentrassem a atenção nela e acenou com a cabeça com seriedade.
- Vamos começar! - gritou.
Como se fossem um, eles seguiram em frente devagar. Para Cuchulainn, o tempo parecia se curvar sobre si mesmo. Sua mente lógica sabia que o tempo estava passando
normalmente - as sombras da floresta estavam se alongando, dando evidência do esvanecer do dia -, mas era como se apenas o espaço de poucas respirações tivesse passado
desde que segurara uma sorridente Brenna em seus braços suados e depois a vira saltitar pela estrada para esperar pelo encontro deles. E ainda mais próximo de sua
mente estava o pressentimento que tinha se esgueirado quando ele e Brenna retornaram da piscina na manhã anterior. Tinha sido um alerta; ele tinha sentido a perdição
de Brenna e a ignorara, assim como ignorara o conhecimento que vinha do reino espiritual por tantas vezes no passado. O que estava acontecendo agora era culpa dele.
Se não tivesse rejeitado o reino espiritual, estaria preparado. Não teria deixado Brenna sair de vista. Autoabominação revolvia por sua mente.
E depois o eco de um som distante roçou sua pele, fazendo os pelos de seu braço se arrepiarem. Veio rodopiando às costas dele; não era tanto um som, um toque ou
um pressentimento. Era uma magia viva que viajava no sopro do vento.
- Esperem! - gritou ele.
Imediatamente, Brighid ergueu a mão e fez a linha parar.
Concentrando-se em ouvir com mais do que os ouvidos, Cuchulainn estendeu os sentidos sobrenaturais subdesenvolvidos que geralmente rejeitava. O som tangível passou
zunindo, subiu a inclinação rochosa que se angulava diante deles e depois, tão de repente quanto o pressentimento tinha surgido, se foi. Ele suspirou pela perda
e amaldiçoou a própria incompetência. Quando o assunto era lidar com o reino espiritual, ele era um bebê em meio a anciões. Derrotado, quase acenou para que Brighid
mandasse a linha seguir adiante quando sentiu uma percepção de resposta derramar-se do outro lado do declive e transbordar através e além dele num tumulto de sensações.
Cuchulainn ergueu a cabeça e apontou para a inclinação.
- Tem... Alguma coisa ali.
Juntos, guerreiro e caçadora lideraram o trajeto. Pararam no cume, sendo surpreendidos ao se depararem com uma falha na floresta implacável. A área tinha apenas
uns 12 passos ou menos de extensão, um mini-oásis de campina gramada rodeada pelo que Cuchulainn reconheceu como antigos carvalhos, em vez dos altos e imponentes
pinheiros que proliferavam na maioria da área circundando o Castelo MacCallan. Um movimento na escuridão das árvores do lado oposto da campina atraiu a atenção de
Cuchulainn exatamente quando a criatura alada saiu do abrigo das árvores para a ravina. Ele carregava nos braços o corpo frouxo de Brenna.
Fomoriano! Num ímpeto de reconhecimento, sua mente registrou o que o monstro devia ser. Então o tempo se dobrou e mudou novamente, acelerando de forma que os movimentos
e sons se tornaram borrados e surreais. A criatura parou e seus olhos se fixaram em Cuchulainn. O satisfatório twang do arco de Brighid disparando uma flecha ecoou
o som da claymore de Cuchulainn sendo puxada da bainha. A criatura arremeteu para o lado, e mesmo quando a flecha se cravou até a pena no ombro dele, Cuchulainn
notou que o monstro parecia amparar o corpo de Brenna com cuidado, como se em algum canto doentio da mente ele fingisse mantê-la segura.
- Brenna! - O nome rasgou a garganta de Cuchulainn quando ele cortou a clareira.
A criatura permaneceu em silêncio e não fez qualquer movimento para correr ou se proteger. Só as asas se moveram. Elas farfalharam e se abriram, mas os olhos cinzentos
como tempestade da criatura não piscaram. Cuchulainn podia sentir Brighid e o resto do grupo atrás de si conforme se aproximava da criatura. Tentou não olhar para
Brenna. Tentou não ver o quanto ela estava pálida e imóvel.
Quando estava à distância de um braço da criatura, ela falou: - Cheguei tarde demais. Ela está morta.
A voz era profunda e poderosa, e a óbvia tristeza contida nela atingiu Cuchulainn como um soco. O guerreiro apontou a claymore para o pescoço da criatura.
- Coloque-a no chão e encontre sua própria ruína.
Lentamente, o ser alado se ajoelhou e com óbvia gentileza pôs o corpo imóvel de Brenna no chão gramado. Quando ficou de pé, os vasculhadores avançaram com uma só
ideia, mas a ordem raivosa de Cuchulainn os deteve: - Não! Ele é meu.
Com velocidade ofuscante, Cuchulainn se arremessou na criatura que não oferecia resistência. Mas no instante antes que a lâmina atravessasse o pescoço do monstro,
ele falou novamente, e a única palavra que gritou fez o braço de Cuchulainn vacilar, então a investida rasgou a asa da criatura e cortou o mesmo ombro que a flecha
tinha penetrado em vez de decepar seu pescoço.
- Elphame!
O nome pareceu se tornar algo vivo. Pairou no ar ao redor deles como uma oração antes de subir ao céu expectante.
Cuchulainn estreitou os olhos e manteve a claymore de prontidão, apontando a lâmina perigosa para a garganta da criatura.
- Como ousa falar o nome de minha irmã? - berrou ele.
Lochlan tinha caído sobre um dos joelhos. Sua asa rasgada pendia fraca e frouxa sobre o chão ensanguentado, e a mão dele tentava estancar o sangue que fluía livremente
do ombro ferido, mas os olhos cinza que buscaram os de Cuchulainn eram inabaláveis e a voz era forte e segura: - Falo o nome de minha chefe por direito de sangue
e juramento, e invoco o direito do clã de que ela ouça meu pedido. Só ela pode decidir meu destino.
- Você não é do clã MacCallan! - rosnou Cuchulainn.
Lochlan lutou para se firmar de pé. Através dos dentes trincados para conter a dor, fez sua proclamação numa voz que ressoou pelos antigos carvalhos: - Minha mãe
era Morrigan, irmã mais nova d'O MacCallan que governou essas terras. Hoje reclamo publicamente meu direito. Só a própria MacCallan pode me chamar de mentiroso!
- Leve-o até sua irmã. - A voz cruel de Brighid cortou o ecoante silêncio. - Ela amou Brenna tanto quanto você. Será um grande prazer para ela ver essa fera estripada.
Ouvindo as palavras de Brighid, Cuchulainn fitou a criatura. As asas, garras e dentes diziam inegavelmente que ele era um fomoriano, mas mesmo através da fúria e
do pesar Cuchulainn conseguia enxergar a clara marca de humanidade em seus traços.
- Amarrem as mãos dele e o prendam na minha sela. Se não puder andar até A MacCallan, será arrastado até ela.
Enquanto amarravam o inofensivo Lochlan, Cuchulainn se ajoelhou ao lado de Brenna. Ela estava tão pálida. Ele tocou-lhe o rosto. Tão frio - a pele estava tão fria.
Brenna parecia em paz, como se estivesse simplesmente dormindo. Exceto pelo pescoço. A criatura tinha arrancado um pedaço de carne do tamanho de um punho de sua
pele macia. Cuchulainn sentiu a realidade da morte dela se assentar através das camadas de sua mente e em seu coração e sua alma.
- Tragam uma tira de pano! - gritou sem tirar os olhos de seu doce rosto.
O luzidio da pelagem de Brighid apenas se registrou no canto de sua visão quando a caçadora lhe entregou uma tira de seda rasgada do forro do colete. Cuchulainn
a enrolou com cuidado ao redor do pescoço de Brenna, para que ninguém ficasse olhando a obscenidade do estrago terrível feito a ela. Depois se curvou e beijou seus
lábios frios.
- Vou levá-la para casa, amor - murmurou.
Brighid segurou o cavalo enquanto ele montava, depois lhe passou com delicadeza o corpo de Brenna. Segurando sua amante com firmeza nos braços, Cuchulainn escoiceou
o capão num meio-galope. Sentiu uma satisfação cruel ao ouvir a criatura alada tropeçar, cair e ser arrastada por vários passos antes de recuperar o equilíbrio.
- Deixe-o sofrer como Brenna sofreu. - Ele apertou seu corpo inerte, tentando não pensar na realidade do que a morte dela significava - que ela estava perdida para
sempre, que jamais conheceria novamente seu toque gentil ou veria refletido em seu sorriso a maravilha com que ela enxergava o novo mundo de amor e acolhimento que
estava se desdobrando ao redor dela. Não podia pensar nisso agora. Agora só pensaria em duas coisas. Levaria Brenna para casa e garantiria que seu assassino não
respirasse mais.
O clã estava em silêncio, reunido e pronto, esperando apenas que as últimas tochas fossem recolhidas e acesas. Elphame estava um pouco distante de onde eles se reuniram
diante dos muros do castelo. Uma brisa fria roçou minuciosamente sua pele, trazendo consigo o eco quase mudo de um chamado por seu nome. Elphame estremeceu. O sol
estava começando a se pôr, fazendo seu caminho rumo ao mar numa labareda escarlate e ferrugem. Sua boca estava estranhamente seca. Mesmo o céu estava repleto de
sangue.
- Está tudo pronto - avisou-lhe Danann.
Elphame se virou para olhar as pessoas e um movimento no balcão da Torre do Chefe chamou sua atenção. Por um instante o sol poente iluminou a forma etérea do velho
espírito, O MacCallan, que ergueu a mão num cumprimento silencioso. Ela piscou e o fantasma sumiu. Seus olhos desceram em direção ao grupo melancólico de humanos
e centauros.
- Ainda há luz suficiente para andarmos rápido. Fiquem juntos. Deixei Cuchulainn e o grupo não muito longe daqui. Quando os alcançarmos, Brighid vai reordená-los.
Cabeças assentiram. Satisfeita, Elphame virou-se para começar a guiar o grupo através do lado norte das terras limpas recentemente, mas antes que pudesse começar
sua corrida veloz, luzes lampejaram nas sombras escuras da margem da floresta diretamente à frente. Seu coração parou e seus passos falharam quando primeiro Brighid,
depois Cuchulainn, deixaram os pinheiros.
Não! Sua mente gritou a palavra, mas os lábios apenas formaram um grito silencioso e agoniado. Elphame não precisou olhar para nada além do rosto do irmão para saber
que a amiga estava morta.
E então, em meio à maré de pesar, Elphame viu que Cuchulainn arrastava algo atrás do capão. A pessoa tropeçou e caiu quando o irmão escoiceou o cavalo a um galope
que logo cobriu a distância entre eles. Cuchulainn freou o cavalo para o lado e parou de repente para que a criatura ensanguentada e lacerada rolasse e depois tombasse
a poucos passos de Elphame e do clã MacCallan.
A princípio ela só viu asas e longas pernas respingadas de escarlate. Deixou o coração acreditar por um instante que talvez não fosse ele. Então Lochlan se esforçou
para ficar de joelhos e ergueu o rosto.
- Elphame, não a alcancei a tempo - murmurou Lochlan. - Me perdoe por não saber o que fariam até ser tarde demais.
Ela ouviu arfadas e exclamações espantadas atrás de si. A palavra fomoriano foi sussurrada pelas terras do castelo como uma maldição terrível demais para ser dita
em voz alta. Elphame podia sentir o choque e o horror do clã, mas não tirou os olhos de Lochlan - nem para olhar o irmão e a amiga assassinada, nem para olhar a
caçadora cujo olhar sagaz era quase uma pressão tangível sobre sua pele.
- Quem a matou?
Lochlan falou no súbito silêncio que a pergunta de Elphame invocou: - Quatro do meu povo me seguiram. Ordenei que voltassem para os Ermos e esperassem por mim lá.
Pensei que tivessem partido. Eles me juraram que sairiam de Partholon. Em vez disso, mataram Brenna.
- Você conhece esta criatura! - rosnou Cuchulainn.
Elphame deixou de olhar Lochlan para olhar fundo nos olhos repletos de dor do irmão.
- Eu o conheço. Ele está jurado a mim. - Os murmúrios se tornaram mais altos e ela ergueu a voz para ser ouvida acima da aflição do clã: - Era direito dele. Sua
mãe era Morrigan, a própria irmã d'O MacCallan, raptada durante a guerra fomoriana, violentada e largada à morte nos Ermos. Ela sobreviveu ao parto - e muitas outras
como ela.
Lentamente, Cuchulainn escorregou da sela, cuidadoso em sustentar o corpo sem vida de Brenna. Caminhou a largas passadas até a irmã e a encarou, apenas com o corpo
da amante a separá-los.
- Como pode dizer essas coisas do monstro que matou Brenna? - Sua voz era rude.
- Ele não é um monstro, Cuchulainn. Nós nos pactuamos em casamento. Ele é o consorte que você previu que eu encontraria aqui.
Gritos de descrença soaram ao redor deles, mas Elphame não deixou de encarar o irmão. Sacudindo a cabeça selvagemente, Cuchulainn cambaleou para trás. Quando Elphame
se aproximou dele, o irmão evitou seu toque. Ela afastou a mão como se ele a tivesse queimado.
- Pela Deusa, não pode ser possível. - A voz de Cuchulainn parecia vir de uma tumba.
- Cuchulainn! - Lochlan conseguira se colocar de pé. As mãos atadas e sangrando puxavam com firmeza a corda. - Vá ao norte de onde me encontrou. Lá encontrará os
responsáveis por essa atrocidade. Minha gente não deve ter ido longe.
Com olhos crepitando, a cabeça do guerreiro girou.
- E por que estariam lá, criatura? Será que não preparou uma armadilha e eles nos esperam lá para lançá-la sobre nós?
- Eles não podem lutar com você, não podem fugir de você. Rasguei as asas deles. Estão à sua mercê, assim como eu.
Para a mente adormecida de Elphame, as palavras de Lochlan foram um choque sobreposto a outro e outro. Brenna assassinada, Lochlan capturado, o irmão encarando-a
com olhos que não pareciam reconhecê-la, e agora Lochlan dizia ter rasgado as asas - aquelas extensões essencialmente sensíveis da alma - de sua própria gente. A
única coisa que a impedia de gritar em agonia era o peso do broche d'O MacCallan que sustinha o tartã no lugar.
Então a voz de Cuchulainn adentrou seu choque:
- Se estivesse à minha mercê, criatura, não respiraria novamente.
A reação de Elphame nasceu em seu sangue. A MacCallan ergueu o queixo e empurrou os ombros para trás. Destemida, buscou o olhar flamejante do irmão.
- Está correto, Cuchulainn. - Sua voz era de pedra. - Ele não está à sua mercê, está à minha. Leve um grupo de homens e centauros de sua escolha. - Elphame olhou
para a caçadora. - Vá com eles. Rastreie os fomorianos híbridos. - Brighid curvou a cabeça, reconhecendo a ordem da líder. Depois o olhar de Elphame retornou ao
irmão. - Traga-os para que sejam julgados. - Endurecendo a si mesma, aproximou-se dele outra vez. Dessa vez Cuchulainn não recuou dela, mas sua expressão não se
abrandou. Ela abriu os braços.
- Fico com Brenna. Ela está em casa agora.
Cuchulainn hesitou, e então um tremor passou por seu corpo. Relutantemente, pôs Brenna nos braços da irmã.
Sem tirar os olhos dos dela, Cuchulainn apontou o queixo para Lochlan.
- O que fará com ele? - A voz soava tão morta como seu coração.
- Ele é meu prisioneiro e permanecerá assim até a justiça ser feita.
Ele estreitou os olhos.
- Veja se o mantém bem vigiado.
- Veja se traz os outros vivos - retrucou ela.
Rigidamente, como se vendo uma estranha, Cuchulainn se curvou diante dela antes de começar a gritar ordens. Desamarrou a corda à qual Lochlan estava preso da sela
e a atirou para um dos homens parados ali perto.
- Vigie-o bem - disse para o homem carrancudo. Depois, sem olhar outra vez para a irmã, ele e Brighid lideraram o grupo de homens e centauros bem armados para a
floresta.
Elphame sabia o que devia fazer, e deu a ordem sem hesitação, mas era como se o coração pesasse chumbo dentro do peito, por isso não conseguia olhar para Lochlan.
O lendário Castelo MacCallan não possuía calabouços úmidos ou prisões com barras de ferro. Quando um membro do clã cometia um crime, a justiça era rápida e permanente
- de acordo com a vontade do chefe, ou a vida do criminoso era tomada ou ele era banido. O clã cujo grito de batalha era "Fé e Fidelidade" não tolerava quem quebrava
um juramento.
- Levem-no para dentro dos muros do castelo e o amarrem a uma das colunas. Ele será tratado como meu prisioneiro enquanto aguardamos o retorno de Cuchulainn.
Então o homem segurando a corda de Lochlan a puxou com crueldade. A resposta de Elphame foi imediata - a voz, uma adaga: - Eu reconheci a reivindicação dele como
membro de nosso clã e aceitei seu juramento. Seria prudente lembrar-se de tratá-lo como tal.
O homem logo desviou o olhar. O fogo nos olhos de Elphame dizia que ela era mais do que uma chefe; era tocada pela Deusa. Não se invocava a ira de uma deusa levianamente.
Conforme o grupo passava por ela em silêncio e entrava no castelo, Danann se aproximou de Elphame.
- Deixe-me ajudá-la com a pequena curandeira, deusa.
Seus olhos estavam cheios de compaixão e a raiva dentro de Elphame se extinguiu, deixando-a perdida e exausta.
- Ela é tão leve - disse Elphame, hesitante.
- O corpo de Brenna não a definia. Ela tinha uma grande vontade abrigada numa forma pequena - disse Danann.
- Seu coração era sua força - disse Wynne, vindo parar ao lado do centauro. Trilhas de lágrimas manchavam caminhos por suas faces de mármore.
- Assim como sua gentileza - disse Meara ao se juntar a eles. Sua voz tremia de emoção, e ela também chorava abertamente. - Ficaríamos honradas se nos permitissem
ajudar a untar o corpo de Brenna.
O olhar de Elphame trocou o velho e sábio centauro pelas duas jovens mulheres. Elas não se afastaram dela nem a acusaram de ser defensora de um monstro. Não retiraram
a lealdade por ela; ainda era chefe delas. Elphame lutou contra as próprias lágrimas. Ela era A MacCallan; o clã dependia de sua força. Não choraria.
- Aceito a oferta de ajuda. Venham comigo para a tenda de Brenna, vamos prepará-la lá.
Os quatro fizeram uma triste procissão, caminhando entre as tendas vazias no lado sul das terras do castelo até o lar temporário de Brenna. Sentada perto da entrada
estava a pequena filhote de lobo. Elphame tinha se esquecido de Fand e ficou surpresa por ver que alguém a tinha amarrado num dos postes da tenda. A filhote saltou
de pé, retorcendo-se num cumprimento, mas quando Elphame e seu fardo se aproximaram, o comportamento da jovem loba mudou drasticamente. Orelhas e cauda tombaram.
Choramingando tristemente, ela se encolheu no chão. Elphame entrou na tenda e deitou Brenna na cama benfeita. Começaram a untar seu corpo enquanto o som sombrio
dos uivos lamentosos de Fand ecoava pelo fim do dia.
Trinta e Seis
ELPHAME ESTAVA ENCOBERTA nas sombras do lado de fora do pátio principal. A cena diante dela possuía uma sensação macabra, sobrenatural. Tochas ardiam brilhantes
e o som confortador de pessoas conversando e terminando a refeição da noite fluía do Grande Salão misturando-se ao familiar chapinhar da água incessante da fonte.
Eram os ruídos de seu castelo ao fim de um dia. Tudo estaria normal se não fosse pelo cheiro dos óleos que usara para untar o corpo de Brenna ainda perfumar suas
mãos e se os guardas não estivessem posicionados no pátio, mantendo vigilância sobre Lochlan.
Grilhões de ferro presos a pesadas correntes algemavam os punhos e tornozelos de Lochlan. As correntes tinham sido bem presas ao redor da grande coluna central do
castelo. Lochlan estava sentado à base da coluna, pesadamente recostado nela. Uma flecha se projetava do ombro esquerdo. Acima da pena, o músculo fora cutilhado
e a laceração estava aberta com feia opressão. O sangue cobria a lateral do corpo de Lochlan. Mas o ferimento que chamou a atenção de Elphame e fez seu estômago
apertar era o longo rasgo que corria quase o comprimento da asa. A asa intacta estava bem dobrada às costas de Lochlan, mas a outra pendia frouxa e parcialmente
aberta, lembrando a Elphame um pássaro moribundo.
Elphame respirou fundo várias vezes, tentando ignorar o cheiro muito adocicado dos óleos funerários. O sangue latejava furiosamente nas têmporas. Ela queria correr
até Lochlan e exigir que o soltassem. Se fosse qualquer uma que não A MacCallan, o teria feito. Berraria aos guardas que ele não tinha matado Brenna - que não era
um demônio. Mas não podia reagir como uma esposa louca. Deveria oferecer justiça, não histeria e lágrimas. Não podia salvar Lochlan. Ele devia salvar a si mesmo.
Devia provar sua inocência da morte de Brenna, ou ela teria que submetê-lo à punição, como faria com qualquer outro membro do clã MacCallan.
Mas como qualquer outro membro do clã, ele estava sob seu cuidado e proteção até o julgamento estar completo. Como tinha visto Brenna fazer muitas vezes, arrumou
a sacola de couro até a alça assentar confortavelmente sob os ombros e saiu às luzes bruxuleantes das tochas. Seus cascos estalaram solidamente no mármore liso.
Os dois guardas armados curvaram a cabeça.
- Brendan, Duncan. - Ela os cumprimentou com um aceno de cabeça.
Lochlan ergueu o rosto.
- Preciso que um de vocês vá à cozinha. Wynne logo terá preparado um caldo. Tragam para mim, junto com um odre de vinho tinto forte.
Brendan curvou a cabeça novamente antes de sair para obedecer suas ordens. Ela buscou os olhos de Duncan.
- Quero falar com Lochlan em particular.
Duncan hesitou apenas um momento antes de se retirar com relutância pelo pátio. Elphame notou que ele permaneceu longe o bastante para que a conversa não fosse ouvida,
mas perto o bastante para que pudesse voltar rápido para junto dela caso achasse que estava em perigo.
- Está muito ferido? - perguntou a Lochlan.
Ele não respondeu a princípio, apenas a encarou enquanto balançava lentamente a cabeça de um lado para o outro, e Elphame imaginou novamente se a loucura não teria
começado a reclamá-lo.
- Não matei Brenna. - Ele enunciou as palavras lenta e distintamente.
Em vez de falar, ela se agachou perto dele e abriu a sacola de Brenna à procura do unguento que a amiga usara para curar suas feridas e tiras de linho para amarrar
o corte grave no ombro.
As correntes retiniram quando Lochlan agarrou o punho dela. Puxando a claymore, Duncan deu um passo na direção deles, mas Elphame o dispensou com um gesto.
- Preciso saber se acredita em mim - disse Lochlan.
Elphame olhou em seus olhos cinza e descobriu que não conseguia responder.
- O espírito das pedras pode dizer, deusa. - A voz desencarnada de Danann veio da entrada do pátio.
Elphame desvencilhou-se de Lochlan e ficou de pé para encarar o centauro. Ele também cheirava a óleos funerários. Ela não sabia que óleos escolher da grande seleção
de Brenna; nunca antes supervisionara a preparação de um corpo, mas sabia que o cuidado com que Danann escolhera os óleos e as guiara na preparação de Brenna estava
tão indelevelmente impresso em sua memória quanto a sensação frouxa da pele sem vida da amiga. O rosto bem vincado do centauro refletia a tensão das últimas horas,
mas os olhos ainda eram gentis e sábios. Ele se aproximou dela e estudou Lochlan com franca e aberta avaliação antes de retornar o olhar para Elphame.
- Pergunte ao espírito da grande coluna. Através dele saberá a verdade.
Os olhos de Elphame se arregalaram. A ideia não tinha lhe passado pela mente, mas ela percebeu que o artífice estava correto. Ela possuía dentro de si a habilidade
de dizer infalivelmente se Lochlan tinha qualquer parte na morte de Brenna.
As correntes retiniram quando Lochlan se esforçou para ficar de pé.
- O que o centauro quer dizer? - murmurou ele dolorosamente.
- Ele quer dizer que o espírito dentro da pedra desta coluna e eu somos conectados. Através dela posso ver dentro de você e saber se machucou Brenna ou não.
Lochlan fechou os olhos com cansaço, e por um momento Elphame pensou que ele pudesse ter perdido a consciência, mas eles se abriram. A tristeza que viu neles a inundou
com suas palavras: - Não deveria precisar dos espíritos do seu castelo para dizer que eu não seria capaz de ter cometido tal crime.
- Não deveria? - interrompeu Danann, falando com Lochlan como se estivesse repreendendo um estudante vagabundo. - Talvez sua consorte devesse confiar implicitamente
em você, mas sua consorte é também A MacCallan. Ela deve ser mais perspicaz. Não subestime a profundidade da responsabilidade que ela carrega no sangue.
Ao ouvir as palavras de Danann, uma transformação aconteceu no rosto de Lochlan. A tristeza sumiu e apenas o cansaço permaneceu.
- Faz bem em me repreender, mestre centauro - disse Lochlan. - Eu sabia quem Elphame era quando fiz meu juramento. Não deveria esperar menos dela. - Ele olhou para
sua chefe e esposa. - Pergunte aos espíritos para que a mente d'A MacCallan fique em paz.
Elphame se aproximou dele. Ainda estava pesadamente recostado à coluna. Ela tocou a pedra esculpida ao lado dele. Sua mão formigou com o calor quando o espírito
debaixo de sua palma acordou e respondeu ao toque. Ela fixou o olhar ao dele enquanto falava: - Preciso saber se Lochlan é culpado da morte de Brenna.
Ela sentiu a onda de calor e a conexão fundida quando seu espírito se misturou ao da grande coluna. Como o expirar de um fôlego muito contido, parte de sua consciência
sumiu por sua mão, enroscou-se e depois despejou-se da pedra em Lochlan.
Ele inspirou acentuadamente de surpresa ao sentir o calor invadir seu corpo surrado, mas os olhos não desviaram de Elphame.
- Eu não matei Brenna - repetiu ele as palavras cuidadosamente.
E de repente Elphame foi abalada por descargas de emoção ao sentir a verdade dentro de Lochlan. Choque... Raiva... Desespero! El conheceu a devastação dele ao descobrir
o que acontecera com Brenna. E depois sentiu a recordação de seu próprio chamado engolfá-lo. Resignação... Pesar... E ele atendeu ao chamado mesmo compreendendo
que ao fazê-lo provavelmente estaria abraçando sua ruína.
Seu coração estava certo; ele não era culpado pela morte de Brenna. Só era culpado de encontrá-la. Ela queria chorar e festejar. A MacCallan não podia fazer nada
disso, mas com seu poder havia uma coisa que podia.
- Perdoe-me por duvidar. - Elphame sussurrou antes de baixar a cabeça e concentrar-se em enviar calor de cura de seu próprio corpo, através do coração do castelo,
para o corpo ferido do consorte.
Ela o ouviu arfar conforme sua força se despejava sobre ele, e através da conexão sentiu o eco de seus pensamentos: Não há nada a ser perdoado, meu coração.
Uma mão forte lhe agarrou o ombro e a cabeça dela se levantou.
- Basta, deusa - disse Danann. - Poderá precisar de sua força em breve.
Relutantemente, Elphame puxou a palma da pedra viva. Sua cabeça girava estranhamente e os braços pareciam incomumente pesados.
- Traga vinho para sua chefe! - berrou o centauro para Duncan. - E água morna e faixas para que possamos cuidar dos ferimentos de Lochlan. - Quando Duncan hesitou,
Danann falou com irritado aborrecimento: - Ele mal consegue se mexer, homem! Posso ser velho, mas certamente posso proteger Elphame de alguém que está semimorto.
- Vá - disse Elphame fracamente.
Fazendo cara feia, Duncan correu rumo à cozinha.
- Sente-se antes que caia - disse-lhe Danann.
Elphame obedeceu e sentou-se no chão de mármore, perto de Lochlan. Ele sorriu com fraqueza e deslizou pela coluna lentamente, juntando-se a ela no chão. Ainda parecia
horrível, mas a respiração estava mais fácil e havia um toque de cor em suas faces.
- Ele não matou Brenna - disse ela ao centauro, que estava remexendo na sacola da curandeira.
Danann parou e a encarou.
- Claro que não - disse irritado.
- Não acredita que eu a matei? - perguntou Lochlan.
Danann ergueu uma das sobrancelhas grisalhas.
- Nossa Elphame não é uma tola para ter escolhido casar com um monstro.
- Então por que me mandou perguntar ao espírito da coluna? - perguntou Elphame.
- Você já sabe a resposta disso, deusa - disse Danann.
Mas foi Lochlan quem falou antes que Elphame pudesse: - Por causa do que está por vir - ela precisava ter certeza, não apenas no coração. Precisava saber a verdade
na alma.
- Você sabe que a verdade pode não mudar as coisas. - O velho centauro olhou incisivamente de Lochlan para Elphame.
A força que Lochlan recebera da amante pareceu se esvair, e ele tombou cansado na coluna.
- Só tenho certeza de uma coisa. Estou cansado de me esconder, e aconteça o que acontecer, Partholon saberá que existimos. O que acontecerá depois está nas mãos
de Epona.
- Bom, se vai se impor a Partholon, sugiro que se limpe e cuide de seus ferimentos.
Duncan retornou primeiro, com um odre de vinho jogado no braço e carregando uma pequena bacia, um jarro de água e alguns panos limpos. Danann pegou o jarro e os
panos e apontou para que Duncan entregasse a Elphame o vinho antes que o guarda se retirasse para seu lugar ao lado da fonte.
- Beba bastante - aconselhou-lhe Danann.
Ela ficou contente em obedecer; a boca parecia incrivelmente seca. Bebeu o líquido revigorante e sentiu um pouco da fraqueza recuar, junto com a leve tontura na
cabeça. Depois acompanhou Danann ao lado de Lochlan.
- Beba bastante. - Elphame ecoou as palavras do velho centauro conforme ajudava Lochlan a levar o odre à boca. Ele bebeu, e Elphame tentou avaliar as feridas.
- A flecha tem que sair - disse Danann, a refletir seus pensamentos. - O ferimento do ombro provavelmente precisa ser costurado, mas já se passou muito tempo agora
e acho que a dor não compensaria o benefício.
Elphame assentiu apressadamente. Seu estômago tremia ao pensar em costurar a pele de Lochlan.
- Tire a camisa dele e limpe o melhor que puder. Depois que a flecha sair, o buraco que ficar precisará ser cauterizado. Vou à tenda de Brenna procurar o ferro que
ela usava, depois mando aquecê-lo - disse Danann seriamente, apertando o ombro dela antes de deixá-los sozinhos.
Lochlan estava segurando o odre sozinho, deixando as mãos de Elphame livres para despejar a água do jarro na bacia. Ela sentia os olhos dele sobre si enquanto molhava
um dos panos.
- Não era como pretendíamos fazer minha apresentação ao clã.
- Não - murmurou ela, pensando no corpo sem vida de Brenna. Com dedos que pareciam atrapalhados, ela começou a desatar a camisa encrustada de sangue. - Tudo deu
tão errado, Lochlan - disse enquanto lidava com os cordões. A mão dele se fechou sobre a dela, que ergueu os olhos para ele.
- Não nosso amor, meu coração. Nosso amor não deu errado. Lembre-se de que, aconteça o que acontecer, não me arrependo nem por um instante do tempo que amei você.
- Trouxe o caldo, minha senhora.
A voz de Brendan se intrometeu entre eles, e Elphame levantou a cabeça para se deparar com o homem olhando suas mãos unidas. Lochlan lentamente afastou a mão da
dela, embora devolvesse com frieza o olhar de Brendan.
- Me dê sua faca - pediu Elphame.
Embora houvesse um claro questionamento em sua expressão, Brendan obedeceu e depois a observou cortar a camisa coberta de sangue de Lochlan. Ela devolveu a faca
ao homem, que estava observando com curiosidade o peito poderoso de Lochlan e as enormes asas que nasciam de suas costas.
- Quer tomar o caldo agora ou esperar até terminarmos...? - Elphame apontou nervosa para a flecha que deveria ser arrancada de seu corpo.
- Agora - respondeu ele, tocando-lhe a face gentilmente numa rápida carícia. - Pelo que o centauro disse, creio que precisarei de sua força.
Sem olhar para Brendan, Elphame estendeu a mão e o homem lhe entregou silenciosamente a caneca fumegante. Lochlan bebeu depressa e depois assentiu para ela. Endurecendo-se
contra a dor que sabia que lhe causaria, Elphame se pôs a limpar os ferimentos do consorte. Lochlan fechou os olhos e recostou-se na coluna de pedra. De vez em quando
levava o odre aos lábios com uma das mãos, que tremia levemente.
Os cascos de Danann anunciaram sua aproximação. Ele trazia uma podadeira de aparência perigosa na mão. Com muitos estalos dos joelhos antigos, o centauro acomodou-se
ao lado de Lochlan.
- Isso é o que devemos fazer - explicou ele à criatura alada. - Cortarei aqui, logo abaixo da pena. - Ele apontou para a flecha. - Vou contar até três e a puxo fora.
E depois vem a parte desconfortável. - O olhar do centauro procurou o homem parado ali perto. - Brendan, o ferro de cauterização está na lareira da cozinha. Quando
a flecha for removida, vá rápido buscá-la.
- Essa seria a parte desconfortável - disse Lochlan ironicamente.
Danann sorriu.
- Não o fato de ir buscá-la.
Uma risada inesperada sacudiu os ombros de Lochlan, que se encolheu de dor.
- Vamos logo com isso então, mestre centauro.
- Agarre a pena - disse Danann a Elphame.
Não pense nele como Lochlan, ordenou-se ela freneticamente ao segurar a ponta da flecha. Pense nele como um estranho que você está tentando ajudar. Ela trincou os
dentes, tentando esquecer que tinha repousado naquele ombro e provado-lhe o suor com lábios perscrutadores.
Com um estalo a podadeira rachou a haste de madeira.
- Agora se incline para a frente - ordenou Danann.
Elphame achava que Lochlan caiu em vez de se inclinar. A asa rasgada pendia sobre ele, cobrindo as costas. Sem olhar para Danann, Elphame recolheu a asa frouxa nas
mãos e a ergueu, depois a dobrou para que a ponta protuberante da seta ensanguentada ficasse exposta. O único som que Lochlan deu foi um gemido cheio de dor ao primeiro
toque de suas mãos na asa.
Uma das mãos nodosas do centauro se fechou na seta, a outra segurava firmemente as costas de Lochlan.
- No três - disse ele. - Um, dois, três!
Os músculos do braço do velho artífice incharam ao arrancar a flecha do corpo de Lochlan num puxão limpo, depois ele pressionou um pano no buraco aberto, tentando
conter o rio escarlate que se seguiu.
- Rápido! Traga o ferro - Elphame ordenou a Brendan, que já estava se virando para o Grande Salão.
Lochlan ficou bem parado no chão de mármore, a cabeça escondida na curva do braço direito.
Elphame acariciou-lhe o cabelo, sentindo os tremores que corriam pelo corpo dele.
- Está quase no fim - disse-lhe, tentando evitar que a voz falhasse.
No espaço de apenas algumas respirações, Brendan voltou carregando um bastão de metal do tamanho do braço de um homem. A ponta arredondada brilhava com uma luz vermelha
doentia. Elphame mal notou que ele fora seguido por vários membros do clã, que ficaram parados observando num silêncio desconfiado.
Danann acenou para que Brendan trouxesse o ferro.
- Lochlan - a voz do velho centauro estava calma. - Deve ficar bem parado enquanto eu fecho a ferida. Quer que o segurem? - perguntou-lhe Danann.
Lochlan virou a cabeça para poder olhar Elphame.
- O toque dela basta.
Ele puxou a mão debaixo do corpo e a ofereceu a ela. Sem hesitação, Elphame a segurou entre as suas.
- Segure-se - disse Danann para Lochlan um instante antes de enterrar o ferro cintilante na ferida.
Foi Elphame quem gritou quando o corpo de Lochlan se curvou de dor e o fedor de carne queimando pairou como uma névoa tóxica ao redor deles. Os olhos de Lochlan
não abandonaram os dela e ele não fez um ruído. Quando Danann finalmente afastou o ferro ardente da carne e começou a aliviar a ferida com bálsamo, só então Lochlan
fechou os olhos e escondeu a cabeça novamente no braço. Ele não deixou de segurar a mão de Elphame.
- Elphame? Trouxe isso para ele.
Através da visão embaçada por lágrimas que ela não percebeu que caíam, Elphame ergueu os olhos para Meara. A governanta estava segurando um cobertor bem dobrado,
que deixou no mármore frio perto de Lochlan.
Quando Meara se afastou, outra mulher tomou seu lugar.
- Wynne mandou mais caldo. O cozido é para você, minha senhora. - Kathryn, a nova adição à equipe da cozinha, fez uma rápida mesura antes de deixar a bandeja que
continha uma caneca de caldo e uma vasilha aromática de cozido perto de Elphame.
Depois outra mulher, que Elphame reconheceu como uma das tecelãs, saiu do grupo de observadores e se aproximou dela. Estava carregando uma pequena manta de lã nos
braços. Com um sorriso tímido, envolveu com ela os ombros da chefe.
- É frio aqui à noite, minha senhora. Cuide de sua saúde. - As palavras fluíram musicalmente, identificando-a como uma das locais.
Incapaz de falar, Elphame sorriu em agradecimento e seu olhar borrado passou pelo clã. As expressões eram tristes, mas ela não viu raiva ou ressentimento entre eles,
só reflexo da preocupação que as três mulheres tinham demonstrado.
- Sim, cuide de sua saúde, minha senhora - pediu um homem que Elphame reconheceu como Angus.
As palavras dele quebraram o estranho silêncio do clã. Vários homens se aproximaram de Elphame, falando baixinho com ela e fitando com franca curiosidade o ser alado
que só precisava do toque de sua chefe para suportar uma provação tão agoniante.
Trinta e Sete
A NOITE PASSOU lenta. Lochlan falou pouco enquanto ela e Danann terminavam de cuidar de seus ferimentos. Ele tomou a segunda caneca de caldo e depois, enrolado num
cobertor de Meara, acomodou-se novamente contra a poderosa coluna e pareceu dormir.
Elphame não queria deixar seu amado, mas podia sentir que seu clã precisava dela, por isso, enquanto Lochlan descansava, caminhou entre eles, que estavam reunidos
no Grande Salão, parando para conversar aqui e ali, mas principalmente para ser vista e deixar que eles sentissem sua presença. As lágrimas tinham sumido e ela tinha
penteado o cabelo e colocado um tartã limpo, com o broche ancestral d'O MacCallan exibido claramente em seu corpete. A conversa do clã se concentrava no castelo
e no trabalho ainda por vir. Ninguém mencionou o homem alado acorrentado no cômodo ao lado, nem falou na missão de Cuchulainn, mas existia uma sensação tangível
de espera, e muitos olhares lançados furtivamente em direção à entrada do castelo ao menor som do vento roçando as paredes grossas e expectantes. Ninguém saiu para
dormir no conforto das tendas, em vez disso cabeças oscilavam e depois reviviam ocasionalmente conforme a noite avançava. Wynne e suas cozinheiras se mantiveram
ocupadas enchendo canecas de café puro forte e enchendo o estômago com cozido espesso.
A escuridão do céu noturno estava sendo substituída pelo cinza suave que antecede o amanhecer quando Elphame cruzou o pátio principal para verificar Lochlan. Alguém
tinha levado cadeiras para Brendan e Duncan, que recusaram que qualquer outro homem os aliviasse do encargo de guardar o prisioneiro alado. Os dois homens estavam
sentados perto de Lochlan, e Elphame sentiu um abalo de surpresa quando percebeu que os homens estavam numa profunda conversa com ele. De propósito, caminhou suavemente
para que não notassem sua aproximação.
- Cento e vinte e cinco anos. - Brendan sacudiu a cabeça. A expressão era cansada, mas a curiosidade soava grossa em sua voz. - Não consigo imaginar viver por tanto
tempo. Você nem parece tão velho quanto Danann.
O sorriso de Elphame refletia aquele ouvido na voz de Lochlan.
- Eu não gostaria de contrapor minha sabedoria com a do centauro. Meus anos podem superar os dele, mas a experiência pesa muito a favor de Danann. Eu não gostaria
de competir com ele.
Duncan bufou:
- Nenhum de nós gostaria. - Ele parou, como se considerando cuidadosamente suas próximas palavras: - Observei o que aconteceu quando A MacCallan pediu ao espírito
da coluna que contasse a verdade sobre você. Se fosse culpado da morte da pequena curandeira, nossa senhora então teria descoberto.
- Não, não matei Brenna, mais digo com honestidade que carregarei a culpa pela morte dela para o túmulo. Devia ter encontrado uma maneira de prevenir isso - disse
Lochlan.
- Destino... Ele pode ser cruel - disse Brendan.
Duncan resmungou em concordância.
- Cavalheiros, a manhã se aproxima. Wynne tem comida quente e bebida para vocês. Eu os aliviarei temporariamente da vigia - disse Elphame, aparecendo na luz das
tochas que iluminavam o pequeno grupo.
Dessa vez, em vez de hesitar, os dois homens se colocaram de pé, curvaram-se para a chefe e saíram silenciosamente do pátio. Sozinha com Lochlan, Elphame de repente
descobriu que não sabia o que dizer. Arrumou uma pilha de bandagens descartadas e pôs a tampa num jarro de bálsamo.
- Sente um pouco aqui ao meu lado, meu coração.
As mãos de Elphame congelaram quando ela olhou nos olhos dele. O rosto estava pálido e círculos escuros envolviam os olhos expressivos. O cobertor que o cobria escorregara
do ombro ferido e um matiz rosa de sangue se infiltrara manchando as bandagem brancas. Lochlan estava sentado mais ereto do que antes, quando imaginou que ele estava
dormindo, mas ainda estava recostado na coluna, como se também ganhasse força por tocá-la.
Com um suspiro, Elphame sentou-se no mármore frio perto dele.
- É tão difícil saber o que fazer, Lochlan - disse ela com tristeza. - Como equilibrar quem sou com o que sinto?
As correntes retiniram quando ele tomou a mão dela na sua.
- Você está indo bem. Eles são leais a você, Elphame. Não precisa se preocupar em perder seu clã.
- E você? Não devo me preocupar em perder você?
- Não pode me perder, meu coração.
- E se Cuchulainn não encontrar sua gente, ou, pior ainda, matá-los e não deixar que a história deles seja contada? Ou o que acontecerá se ele os trouxer vivos e
mentirem - disserem que foi você o culpado pela morte de Brenna? Ninguém no clã pode sentir a verdade através dos espíritos da pedra. Posso evitar que Cuchulainn
o mate, mas talvez tenha que bani-lo, Lochlan. Compreende isso?
- Compreendo que fará o que deve ser feito. Mas nem o banimento nem a morte podem destruir meu amor por você. E não se esqueça de que há a mão de Epona nisso, Elphame.
Decidi confiar na Deusa como minha mãe fazia.
Elphame sacudiu a cabeça.
- Acho que não possuo a sua fé.
Lochlan sorriu intencionalmente.
- Não, meu coração? Você foi tocada pela Deusa desde o nascimento. Talvez só precise confiar em si mesma para ouvir a voz Dela.
Elphame ergueu a mão dele para poder encostar a face no calor de sua palma.
- Tem certeza de que não é tão sábio quanto Danann?
- Vasta certeza.
Ele acariciou a lateral do rosto de Elphame, que se inclinou para beijá-lo gentilmente. Involuntariamente, as asas dele se agitaram e Lochlan não pôde reprimir um
gemido de dor. Elphame logo se afastou dele, o rosto cheio de preocupação. Estendeu a mão para tocar a asa, mas deteve o gesto, com medo de causar-lhe mais dor.
- A asa vai sarar - disse Lochlan, tentando confortá-la, embora a voz soasse áspera. - Não teria sobrevivido nos Ermos se fosse frágil e facilmente quebrável.
- Mas é sua asa - disse ela.
- Vai sarar - repetiu ele. - Não tenha medo de me tocar.
Ela estava se recostando nele com cuidado quando o tropel de muitos cascos entrando no castelo a fizeram se afastar num sobressalto. Coração disparado, Elphame se
levantou para encarar Cuchulainn e as notícias sombrias que trazia consigo.
Quando o irmão entrou cavalgando no pátio, ela quase não o reconheceu. Ele estava manchado de sangue e terra, assim como a dourada Brighid, que entrou no cômodo
ao lado dele. Mas não era simplesmente que a aparência de Cuchulainn tivesse se transformado com a batalha e a exaustão; seu rosto tinha endurecido na máscara de
um estranho. Por trás do guerreiro e da caçadora, homens e centauros entulharam o castelo. Elphame reconheceu que vários dos homens tinham vindo de Loth Tor. Alguém
gritou de dentro do Grande Salão e o clã expectante saiu para o pátio.
Só dentro da luz das tochas Cuchulainn refreou o cavalo e desmontou rigidamente. Depois desenrolou uma grossa extensão de corda da parte mais alta da sela. Elphame
conteve o fôlego enquanto os músculos maciços do braço do irmão inchavam conforme ele caminhava firmemente em sua direção, arrastando o que quer que estivesse amarrado
na corda consigo. A distinta liberação do fôlego de Elphame se perdeu no arfar coletivo que encheu o pátio quando as figuras aladas tropeçaram na luz. Ela ouviu
Lochlan lutar para ficar de pé às suas costas, mas não conseguia tirar os olhos dos prisioneiros do irmão.
Havia quatro deles, três homens e uma mulher. As mãos estavam atadas diante deles, e a corda que amarrava seus punhos subia para dar uma volta em cada pescoço antes
de se conectar ao prisioneiro seguinte, então se um tivesse caído e sido arrastado pelo cavalo de Cuchulainn, ele ou ela teria feito os outros sufocarem. Eles sangravam
de múltiplas lacerações e estavam cobertos de terra e sangue, mas os ferimentos os mais terríveis não estavam nos corpos. Os ferimentos que fizeram o estômago de
Elphame revirar e a respiração prender foram os retalhos sangrentos no qual as asas orgulhosas tinham se tornado. Só os esqueletos restavam. O que costumava ser
evidência da força recebida pelo sangue sombrio agora eram apenas faixas de carne mutilada.
Eles não sarariam, concluiu Elphame com um entendimento que a deixou enjoada.
- As criaturas estavam onde ele disse que estariam - disse Cuchulainn na voz de um estranho. - Não foram capturadas facilmente, mas criminosos dificilmente são.
- Deu outro puxão cruel na corda e o homem próximo a ele, que era visivelmente gêmeo do prisioneiro ao qual estava amarrado, tropeçou e caiu de joelhos, fazendo
os outros serem arrastados dolorosamente juntos.
A corrente de Lochlan retiniu quando ele caminhou até o fim de sua amarra de metal.
- Eles já estão derrotados. Não há necessidade de torturá-los.
Cuchulainn se voltou para ele, os olhos cheios de fúria.
- Eles mataram Brenna!
- Eles não a mataram, eu a matei.
Todos os olhos foram atraídos para a mulher alada. O corpo exibia os menores sinais de ferimento; nem as asas estavam tão destruídas quanto a dos homens. Enquanto
falava, endireitou a espinha e tentou manter as asas danificadas bem apertadas no corpo. Jogou o cabelo prateado para trás e os olhos cor de gelo fitaram desdenhosamente
a multidão. Elphame achou que ela tinha uma beleza terrível que ardia de dentro dela como uma perigosa chama pálida.
- Não fale, Fallon - sibilou o alto homem amarrado ao lado dela.
Ela o ignorou e buscou os olhos de Lochlan.
- O tempo para o silêncio passou, não é, Lochlan?
- Fallon, por que...
Elphame tocou o braço de Lochlan, interrompendo a reação dele, e o rosto bonito de Fallon se contorceu no feio desdém.
- Isso mesmo, Lochlan. Não fale, a não ser que ela permita. Como sempre, você é um fantoche da deusa ungulada.
Elphame sentiu a raiva irradiar dentro dela, e o gelo em sua voz rivalizava com a frieza nos olhos da fêmea.
- Cuidado quando se dirigir a mim. Sou A MacCallan, chefe do clã MacCallan, e seu destino está em minhas mãos.
A risada da mulher alada era cruel e destituída de humor, por isso Elphame soube sem qualquer dúvida que estava olhando nos olhos da loucura.
- Minha mãe humana há muito falecida ficaria contente por eu ter finalmente entendido o conceito de ironia. Meu destino realmente está em suas mãos, deusa, exceto
que até hoje era você quem devia ser sacrificada para cumprir esse destino.
- Basta, Fallon!
Lochlan teve que urrar acima do som das vozes zangadas do clã. Ninguém entrava no Castelo MacCallan e ameaçava sua chefe sem responder à ira do clã.
Elphame ergueu a mão pedindo silêncio. Caminhou na direção de Fallon, e Cuchulainn se aproximou para ficar ao lado dela. Conforme se aproximavam da fêmea alada,
o macho amarrado ao lado dela se agitava. Elphame ignorou o som metálico das correntes de Lochlan, que lutava contra elas, assim como a raiva selvagem que irradiava
do irmão; todo seu foco estava em Fallon.
- Explique-se - ordenou Elphame.
Fallon ergueu o queixo.
- Pergunte ao seu amante a verdadeira razão de entrar em Partholon sozinho e procurar por você. Não era só porque sonhava com você desde que nasceu. Há mais, muito
mais. - Seus olhos ficaram dissimulados. - Mas talvez uma parte sua já saiba disso.
O clã de Elphame murmurou zangado, e ela ergueu a mão novamente pedindo silêncio.
- Por admissão própria, o sangue de uma mulher inocente está em suas mãos, e agora você para no coração do meu castelo e cospe meias-verdades e enigmas. - A raiva
pulsava pelo corpo de Elphame, que ao preenchê-la oscilou e se transformou em fúria justiceira que formigou por sua pele e fez o cabelo espesso ondular e estalar
sobre seus ombros. Numa voz ampliada magicamente, ela repetiu a ordem: - Explique-se!
Os olhos de Fallon se arregalaram com a clara evidência da existência do poder de uma deusa, mas em vez de ser humilde isso só pareceu abastecer sua loucura. Ela
virou seu olhar acalorado para Lochlan.
- Veja o que suas mentiras conseguiram! Não há como negar que você a reconheceu como deusa, porém na sua obsessão por ela só pensou em mantê-la para si. Quando sugou
sangue dela e a maldição foi removida de você, o que pensou fazer conosco? Ou se importou tão pouco com sua própria gente que nem pensou em nós?
- Você matou e abraçou a loucura, Fallon. Suas palavras são insignificantes - disse Lochlan.
Mas Elphame estivera observando seu amante cuidadosamente enquanto Fallon falava, e viu nos olhos dele a culpa antes que pudesse ocultar a expressão.
- Dessa vez concordo com a criatura alada. Essas palavras são insignificantes. A fêmea matou Brenna, a fêmea deve morrer. - A voz de Cuchulainn era tão destituída
de emoção que fez o coração de Elphame doer.
- Não! - O macho ao lado dela rosnou através de lábios sangrentos. - O que ela fez, fez apenas para salvar nossa gente. Lochlan abdicou da responsabilidade que tinha
como nosso líder. Quando nos traiu e recusou-se a sacrificar a deusa ungulada, Fallon acreditou que não tinha outra escolha.
O urro zangado de Cuchulainn foi ecoado pelo clã MacCallan, e vários dos homens puxaram suas claymores assassinas e avançaram como se fossem abater os seres alados.
- Silêncio! - A voz de Elphame chiou pelo cômodo, erguendo os pelos nos antebraços e causando arrepios de poder sobre a pele. O silêncio caiu como uma tocha apagada.
A risada sarcástica de Fallon encheu o ar grosso de poder com ódio.
- Eu estava enganada sobre você, deusa. Com todo seu poder, você realmente não sabe. Não fazia ideia de que Lochlan a procurou para cumprir a Profecia. Acreditou
em suas palavras doces e sentimentais de amor.
As correntes de Lochlan retiniram quando eles as puxou.
- Você não sabe nada do que está falando!
- Sei que é sua culpa a fêmea humana ter morrido! - Fallon cuspiu seu veneno. - Se tivesse cumprido a Profecia, eu não teria que ter matado para atrair sua amante
para fora da fortaleza. - Outra vez sua risada maníaca ecoou pelo pátio. Depois sua expressão enlouquecida desmoronou, como cera derretendo de uma vela, e seus olhos
sem cor se encheram de lágrimas. - Mas eu não estava preparada para sua traição final. - A mão longa e esguia tocou a beira esfarrapada da asa rasgada como se não
pertencesse realmente a ela. - Oh, Keir, veja o que ele fez conosco. - Ela desabou em soluços enquanto o macho ao seu lado a tomava nos braços.
Elphame deliberadamente virou de costas para Fallon. Com a crescente sensação de entorpecimento, buscou o olhar de Lochlan.
- Fale-me da Profecia.
Lochlan respirou fundo. Mesmo estando acorrentado e ferido, sustentava-se alto e orgulhoso, parecendo mais um deus alado que um prisioneiro. Quando falou, sua voz
profunda se espalhou claramente pelo castelo, hipnotizando o clã reunido, mas seus olhos só enxergavam Elphame: - Você já sabe que minha mãe era Morrigan, irmã mais
nova d'O MacCallan, que foi o último chefe deste clã. Assim como muitas das mulheres MacCallan, minha mãe foi tocada por Epona. Ela me passou sua profunda fé, assim
como uma Profecia que jurava que Epona lhe sussurrara num sonho. A Profecia previa que através do sangue de uma deusa agonizante nosso povo seria salvo.
Ele se calou. Suas palavras pareciam pairar no ar ao redor, lembrando a Elphame de repente o modo como seu nome se tornou magicamente tangível quando ela o chamou.
Ela estremeceu, sentindo um mau sinal acariciar a extensão de sua espinha.
- Minha mãe disse que a Deusa lhe prometeu que eu estava destinado a cumprir a Profecia. Mesmo no leito de morte, sua fé nunca falhou. Morreu acreditando que eu
algum dia encontraria uma maneira de tornar a promessa de Epona realidade. Quando comecei a sonhar com uma criança tocada pela Deusa, nascida de um centauro e uma
humana, soube que as orações dela tinham sido atendidas.
O sorriso de Lochlan aqueceu-lhe o rosto e por um instante era como se a multidão ouvinte desaparecesse e os dois estivessem sozinhos.
- Acho que comecei a amá-la quando era criança, e depois me apaixonei por você quando amadureceu numa bela mulher. Mas foi quando a observei falando com seu povo
diante dos portões arruinados do Castelo MacCallan que percebi que não havia nada que não sacrificasse para mantê-la segura, mesmo que estivesse condenando minha
gente ao banimento e à loucura.
- Foi você - disse Brighid de repente. - Você salvou Elphame na noite do acidente.
- Sim - disse Elphame, sem desviar os olhos de Lochlan. - O javali teria me matado se Lochlan não o tivesse matado primeiro.
- Não entendo. - A voz de Brighid interrompeu as exclamações de surpresa que vinham do clã reunido. - A que propósito serve essa Profecia? Se não são inimigos dispostos
a reviver o passado de seus pais e reacender a guerra, por que simplesmente não entram em Partholon pacificamente? Porque acham que precisam do sacrifício da vida
de Elphame?
- Eles estão enlouquecendo - disse Elphame com súbito entendimento. - A escuridão que carregam no sangue chama por eles. Quanto mais lutam contra ela, mais doloroso
se torna para eles. - Ela apontou para Fallon, que ainda estava agarrada ao companheiro. - Por fim, a loucura vence. - Seus olhos varreram seu povo enquanto falava
calmamente: - E existem crianças que carregam o sangue de seus ancestrais humanos - sangue que muitos de nós compartilhamos com eles. É pior para elas. Não tiveram
nenhuma mãe humana que nutrisse sua humanidade.
- Então você acredita que Epona deseja que Elphame seja sacrificada para que seu sangue de alguma forma lave a loucura de sua gente? - zombou Cuchulainn. - A Profecia
em si soa louca.
- Você pode estar parcialmente certo, Cuchulainn. Descobri que todos interpretamos mal a Profecia - disse Lochlan.
As asas rasgadas de Fallon farfalharam quando ela se afastou dolorosamente do companheiro.
- Você mente! - Ela cuspiu as palavras.
- Não - disse Lochlan simplesmente. - Provei o sangue dela. E vi a verdade contida nele.
No abismado silêncio que acompanhou suas palavras, Elphame não pôde evitar que a mão tocasse os dois furinhos no pescoço.
- O que ele está dizendo? - As palavras eram baixas e zangadas, e soavam como se alguém as tivesse arrancado de Cuchulainn.
Elphame não se esquivou da fúria do irmão.
- Lochlan é meu consorte. Ele e eu nos pactuamos e nosso casamento foi consumado. Ele provou meu sangue como parte do ritual de acasalamento.
Cuchulainn encarava a irmã como se não a reconhecesse. Elphame se obrigou a desviar o olhar antes que seu verniz de coragem rachasse.
- O que meu sangue contou a você? - perguntou a Lochlan, impressionada pela voz não trair nada do tumulto que acontecia dentro dela.
- A Profecia diz que é através do sangue de uma deusa agonizante que seremos salvos, mas não estava falando de uma morte física, assim como não era literalmente
seu sangue que devia ser sacrificado. O que a Profecia realmente quer dizer é que você deve aceitar o sangue sombrio de nossos pais dentro do seu corpo, para que
se misture e por fim substitua seu próprio sangue. Quando isso acontecer - por ter sido tocada pela Deusa -, você assumirá a loucura de nossos pais. As batalhas
que meu povo enfrenta diariamente para manter a humanidade serão transferidas para você. - Ele se calou, o horror do que estava dizendo refletido no rosto. - A loucura
será levada de nós, mas para você seria pior que a morte física. Seria a morte de sua humanidade.
- Isso é impossível - zombou Cuchulainn. Gritos zangados de concordância irromperam do clã MacCallan.
Os olhos de Elphame permaneciam fixos nos do amante. Na mente, ela revia a expressão horrorizada dele ao fugir de sua cama depois de beber seu sangue. Com uma certeza
que ecoava por sua alma, soube que o marido tinha falado a verdade. A veracidade ressoava dentro dela quando finalmente compreendeu, e depois aceitou, a escolha
que devia fazer. Afastou apressadamente o olhar de Lochlan antes que ele pudesse ler a decisão dentro de seus olhos.
Sua mão erguida pedia silêncio.
- Meu julgamento está completo. - Naquele momento não era nem irmã nem esposa, era A MacCallan, e suas palavras vibraram nas paredes ouvintes do castelo. - Cuchulainn,
sua perda e a do clã foi grande. Uma reparação deve ser feita. - Virou-se do irmão para Fallon. - Você tirou uma vida inocente. Sua vida é exigida em retorno.
Cuchulainn se aproximou da mulher calada, a espada desembainhada e pronta.
- Não! - berrou Keir.
- Não pode salvá-la, mas pode morrer com ela. - A morte preenchia a voz de Cuchulainn.
Fallon ignorou o parceiro e deu um passo adiante, como se estivesse ansiosa para encontrar a espada do guerreiro.
- Então me mate e mostre seu barbarismo, humano - disse ela com arrogância. Com um simples movimento, rasgou a roupa esfarrapada que cobria sua nudez e expôs o corpo
pálido. Uma mão desceu para acariciar o volume que era seu abdômen. - Mas saiba que quando me matar, também matará meu filho que está por nascer.
Elphame não precisou ordenar que o irmão parasse. A espada de Cuchulainn, que estava erguida para um golpe assassino, vacilou. Lentamente, baixou a ponta dela para
o chão de mármore. Com os olhos cheios de dor, ele olhou para a irmã.
- Brenna chamaria isso de vingança e não de justiça se uma criança inocente fosse morta para reparar sua morte, embora eu fosse quase capaz de cometer tal ato se
soubesse que o espírito dela me assombraria como consequência disso.
- Concordo, Cuchulainn. Não seria justo tirar a vida de um inocente. - A voz de Elphame era de aço. - Mas alguém deve pagar o preço pela morte de Brenna.
- Fallon é minha companheira. A criança é minha. Pagarei o preço - disse Keir. Fazendo uma careta de dor, abaixou-se para recuperar a roupa de Fallon, a quem entregou
sem olhar. Fallon nada falou, mas Elphame pensou ver um lampejo de emoção nos olhos da mulher alada, nem ódio nem loucura.
- Sabia que Fallon planejava matar Brenna? - perguntou Elphame a Keir.
- Não, deusa. - Ele não se acovardou, mas sua voz estava carregada de amargura. - Só viemos garantir o cumprimento da Profecia, nossos modos não são os de nossos
pais.
- Keir, não foi por culpa sua que Fallon caiu na loucura. Você não é culpado pela morte de Brenna - disse ela.
Lenta e distintamente, Elphame virou-se para encarar Lochlan. Os murmúrios e conversas sussurradas cessaram. No silêncio que os enquadrou, as palavras de Lochlan
eram claras e fortes: - Keir não é culpado pela morte de Brenna, mas eu sou. Sou líder de meu povo. Sou também seu traidor.
- Suas palavras são sábias, marido. - No sobrenatural silêncio, marido foi um eco delicado, como se ao ser pronunciada a palavra se cristalizasse e depois se estilhaçasse.
A mão não estava firme ao ser estendida, palma aberta, para a espada de Cuchulainn. Sem falar, o irmão colocou o pomo em sua mão. Depois, com passos lentos e metódicos,
ela caminhou em direção a Lochlan. Ele permaneceu bem parado, observando sua aproximação. Próxima a ele, mas ainda longe de seu alcance acorrentado, Elphame parou.
Lochlan ignorou a multidão observadora e falou apenas para ela: - Quando nos unimos, eu lhe disse que a seguiria, mesmo que isso levasse à minha morte. Quando atendi
ao seu chamado e trouxe o corpo de Brenna, sabia qual seria meu fim. Eu aceitei então, eu o aceito agora. - O sorriso não guardava amargura e a voz refletia a profundidade
de seu amor por ela.
Em vez de se mexer para golpeá-lo, Elphame retribuiu o sorriso.
- Lembra de quando me disse que eu precisava confiar bastante em mim mesma para ouvir a voz de Epona? Você estava certo, Lochlan. Finalmente encontrei essa confiança,
e com ela ouvi a voz da Deusa. Agora você precisa confiar em mim também.
- Confio em você, meu coração - disse ele, estendendo as mãos abertas para longe do corpo para que ela pudesse facilmente executar um golpe mortal.
- Bom, logo precisarei dessa confiança. - Olhou por cima do ombro para o irmão. - Perdoe-me, Cuchulainn - disse ela.
Ao inspirar um profundo sopro purificador, os olhos do irmão se arregalaram e um súbito entendimento do que ela pretendia lampejou nele.
- Detenham-na! - gritou, disparando em frente.
Seu grito foi ecoado por Lochlan, e o ser alado se machucou selvagemente na corrente que o prendia, tentando alcançar a amante, enquanto Elphame rapidamente passou
a ponta afiada da espada ao longo da própria carne desde o punho até o cotovelo num corte longo, profundo e mortal. Temendo que Cuchulainn a alcançasse cedo demais,
tentou se apressar e mudar a espada de mão para que pudesse terminar o que tinha começado, mas a força já estava deixando seu corpo e ela se atrapalhava ao segurar
a claymore. Em silêncio, sua alma clamava por mais tempo - e a pedra sobre a qual estava ouviu seu apelo silencioso.
Numa neblina escarlate, Elphame viu o espírito d'O MacCallan se materializar ao seu lado.
- Estou aqui, menina.
Ele levantou a mão cintilante e, um instante antes de o irmão alcançá-la, Elphame foi enclausurada num círculo de poder transparente. O corpo de Cuchulainn parou
como se tivesse trombado numa parede invisível.
- Não, Cuchulainn. - Como o badalar de um sino de morte, a voz assustadora do espírito cortou a gritaria que irrompera ao redor deles: - Você não pode mudar o destino
d'A MacCallan. A escolha é dela, não sua.
- Não, Elphame! - gritou Cuchulainn, batendo os punhos com impotência na barreira invisível de poder espiritual.
Movendo-se estranhamente, Elphame transferiu a espada para a mão direita e lutou contra uma maré de tontura para manter o domínio. O sangue se derramava do longo
talho como um protuberante rio escarlate. Apertando os dentes, ignorou a dor e pressionou a lâmina na pele ilesa do punho direito, seguindo o caminho da veia até
o cotovelo. Só então deixou a espada retinir no chão de mármore. Sentia o calor do líquido que corria do corpo banhando braços e pernas. Como se dentro de um sonho,
ela olhou através do círculo de poder que o espírito de seu ancestral tinha invocado para Lochlan. Lágrimas desciam pelo rosto dele conforme forçava as correntes
para alcançá-la.
Através do sangue pulsando em sua cabeça, mal podia ouvir o som da própria voz: - Salve-me, e em troca salvo você. - O esforço exigido para formar as palavras foi
demais, e o mundo começou a escurecer conforme caía de joelhos num lento movimento.
- Você sabe o que deve fazer, sobrinho.
Com as palavras d'O MacCallan, o círculo de poder se dissipou junto com o espírito, e com um grito aflito Cuchulainn puxou Elphame para seus braços.
- Traga-a até mim antes que perca a consciência! - gritou Lochlan.
Os olhos frenéticos de Cuchulainn vasculharam o rosto do homem alado.
- Confie em mim - disse Lochlan.
O guerreiro não hesitou nem mais um instante, simplesmente começou a arrastar a irmã até Lochlan. Foi auxiliado por outras mãos fortes, conforme o clã atravessava
o rastro de sangue cada vez mais amplo para alcançar a chefe.
Lochlan caiu de joelhos quando seus braços se fecharam ao redor do corpo passivo de Elphame.
- A espada! Me dê a espada! - urrou ele. O punho avermelhado foi enfiado em sua mão. Num movimento ofuscantemente rápido, Lochlan raspou a ponta da espada na pele
nua acima do coração. Depois atirou a espada para o lado como se fosse um inseto repulsivo. Aninhou a cabeça de Elphame nas mãos e pressionou-lhe os lábios frios
na ferida.
- Beba, meu coração - implorou ele.
Os olhos estavam fechados e ela não respondeu.
- Beba, Elphame - chorou ele, a voz quebrada. - Fiz o que pediu - sua única chance de vida agora é cumprir a Profecia. Beba!
Lentamente, os lábios se moveram sobre sua pele, e com um som de engasgo Elphame engoliu. Seus olhos se abriram e lágrimas tingidas de vermelho brotaram deles conforme
a boca apertava o peito e o sangue dos demônios invadia seu corpo. A princípio ela não conhecia nada e não sentia nada além do gosto metálico do sangue de Lochlan.
Depois o calor começou. Estava bebendo de um rio vulcânico, mas não conseguia se afastar, e logo não mais desejou se afastar. O calor a seduziu. Preencheu seu corpo
e acariciou sua alma com o poder hipnótico da escuridão conforme a loucura de uma raça inteira fluía dentro dela. As feridas sangrando nos braços secaram e depois
selaram. Pensamentos estranhos começaram a espiralar em sua mente: Sangue... Nunca teria o bastante... Poderia sorver dele até secar... Poderia sorver de todos até
secarem... Poderia começar seu próprio exército... Parte demônio, parte deusa... Primeiro devia matar Lochlan... Matar o traidor...
Matar Lochlan? Matar seu consorte?
Sua própria consciência interrompeu a névoa de sussurros demoníacos, e com um arfar Elphame afastou a boca do peito de Lochlan. Sobre mãos e joelhos afastou-se dele,
sentindo o pânico dentro dela aumentar ao perceber que a poça rubra que cobria o chão e revestia seu corpo era seu próprio sangue. Não, aquilo não estava certo,
corrigiu freneticamente sua mente. O sangue que a cobria não era mais seu, pois o seu estava agora irrevogavelmente misturado ao dos demônios.
Agora ela era um demônio... Sua única escolha era aceitar e abraçar isso.
- Não escute os sussurros sombrios - arfou Lochlan. Ele tombou no chão parecendo pálido e doente. - Lute, Elphame!
O som fantasmagórico da risada louca de Fallon dançava em volta dela.
- Elphame? - Cuchulainn se aproximou dela lentamente, as mãos estendidas. - Venha até mim. - Como ela não respondeu, a voz dele falhou. - Não pode me deixar também,
minha irmã. Não posso suportar.
Ainda sobre mãos e joelhos, ela estremeceu com o familiar vocativo carinhoso. A escuridão que ela aceitara era responsável pela perda de Cuchulainn. E agora ela
era parte disso. Sim... Ela sentia as vozes se agitarem e se contorcerem dentro dela como se milhares de insetos escuros tremulassem debaixo de sua pele. Sim...
Nos sinta... Nos escute... Agora somos você.
- Não sou mais sua irmã. Não pode me ajudar.
Não reconhecia o som estranho da própria voz. Não reconhecia as faces das pessoas ao redor que a encaravam. Pensamentos e lembranças se fragmentavam - tudo o que
ela era começava a se esvair, afogado na maré escura que pulsava dentro dela. Sentindo-se presa, girou pelo chão e foi confrontada pelo velho centauro que assomou
diante dela.
- Chame o espírito das pedras... Elas ajudarão você - disse ele.
Elphame sacudiu a cabeça selvagemente. Não, os espíritos não mais atenderiam ao seu chamado. Estava sozinha, vencida pela voz da loucura em seu sangue que silenciava
seu mundo.
Fique em paz, Amada. Nunca abandonarei você.
As palavras frescas lavaram seu corpo. E Elphame se agarrou a elas como uma alma moribunda ao sopro da vida.
- Epona! - soluçou Elphame. Ao falar o nome da Deusa, sentiu um tremor dentro do corpo e uma ideia menos substancial que névoa flutuou em sua mente surrada; agarrou-se
a ela com toda a humanidade restante em sua alma.
Precisava confiar em si mesma.
Lutando contra medo e escuridão, Elphame se pôs de pé. Cambaleou adiante e a multidão de pessoas e centauros espantados se abriu até ela estar parada diante da fonte
no meio do Grande Pátio. Ela encarou o rosto da garota de mármore que era sua ancestral e o primeiro raio de luz da manhã a tocou. Com uma mão limpa e carinhosa,
o raio encontrou o broche d'O MacCallan, que faiscou com luz brilhante. Dentro daquela luz, Elphame procurou e encontrou sua herança - uma herança de fé e fidelidade
e a força do amor triunfante que não podiam ser usurpados pelo fascínio sombrio lançado pelo mal. O novo dia irrompeu como um facho de esperança e Elphame lembrou
quem era. E, com esse conhecimento, a escuridão estranha que tinha pensado em roubar dela a força do amor de uma deusa padeceu e gritou, mas foi forçada a se retirar
perante a ofuscante luz da confiança e da coragem. Com um som parecido com os passos apressados de uma aranha, os sussurros malignos recuaram até não serem mais
do que uma lembrança de ecos.
Como se despertando de um longo sono, Elphame estendeu languidamente os braços ensopados de sangue sob o rio de água limpa e observou o líquido frio lavar a mancha,
rodopiando-a pela bacia, diluindo e enfraquecendo-a antes de drená-la. Quando os braços estavam livres de mancha, Elphame jogou a cabeça para trás e banhou o rosto
na pura luz da manhã de Epona. Um grito se inflou dentro dela como o desenvolver de uma criança e depois explodiu para ecoar pelas paredes, onde foi recebido por
vozes jubilosas, primeiro a do irmão, depois a do marido e depois a do clã: - FÉ E FIDELIDADE!
- FÉ E FIDELIDADE!
- FÉ E FIDELIDADE!
Sorrindo em triunfo, Elphame desabou no chão de mármore e saudou a paz da inconsciência.
Trinta e Oito
COMO A DOCE fragrância de madressilva numa brisa de primavera, a voz da mãe fluiu no sonho de Elphame: - Queria que tivesse sido mais fácil para ela.
- Eu sei, Amada. - Dessa vez Elphame reconheceu imediatamente a voz de Epona. - Eu também queria que ela pudesse ter sido poupada dessa agonia, mas o caminho de
sua filha nunca foi fácil. Agora você vê o quanto as dificuldades do passado a prepararam para enfrentar seu destino.
- Ela fez bem, não é?
- Muito bem. Ela me deixou orgulhosa.
A alma de Elphame se revigorou com alegria pelo elogio delas.
- O caminho dela ainda será difícil - continuou a Deusa. - Grande parte do clã MacCallan aceitará Lochlan e seu povo por amor a ela, mas o resto de Partholon não
será tão facilmente conquistado.
A mãe suspirou:
- Agora me permite ir até ela? Ao menos posso formalizar o casamento deles. - Depois a voz da mãe se entristeceu: - E Cuchulainn precisa do carinho de mãe.
- Vá até eles - disse a Deusa. - Mas não fique surpresa se a dor de Cuchulainn for maior que o carinho de uma mãe possa confortar...
A resposta da mãe se dissipou conforme Elphame navegava pelas camadas do sono. Enquanto seus sentidos adormecidos voltavam lentamente à vida, o corpo lhe dizia que
estava repousando confortavelmente sobre penugem e lençóis finos. A luz bruxuleava delicadamente sobre suas pálpebras fechadas. Seus olhos adejaram, depois abriram.
Seu primeiro pensamento foi de que devia ser noite, porque a única luz no cômodo vinha de um grande candelabro de ferro e do fogo que queimava alegremente na lareira,
então ela se perguntou por quanto tempo tinha dormido. Não tinha acabado de amanhecer? Então algo tomou forma no canto de seus olhos, e ela se virou para ver Lochlan.
Ele estava sentado numa cadeira ao lado da cama. A cabeça pendia sobre o peito e ele estava dormindo. Seus olhos se banquetearam com ele. Ainda parecia surrado e
machucado, mas a pele tinha perdido a cor de porcelana do choque desde a última vez em que o vira, quando estava caído fraco no chão e coberto com seu sangue...
E sua memória retornou. Por um momento o pânico apertou seu estômago enquanto ouvia o interior de seu ser, esperando que a voz louca da escuridão começasse seu sussurro
letal no seu sangue maculado. Mas a voz não veio. Sentiu uma vaga agitação de algo enterrado bem fundo, como um sonho meio esquecido. Com a intuição gerada pelo
toque da Deusa, Elphame soube que embora carregasse dentro de si a loucura de uma raça, o amor, a confiança e a fé tinham sido vitoriosos contra o legado maligno.
Deve permanecer vigilante contra a escuridão enquanto houver vida em seu corpo, Amada. A voz de Epona inundou sua mente. Mas lembre-se que sempre estarei com você.
Você foi tocada pela Deusa...
Talvez ela tivesse feito algum ruído involuntário em resposta, pois os olhos de Lochlan se abriram de repente. Quando percebeu que Elphame tinha acordado, buscou-lhe
a mão.
- Cuchulainn! - gritou ele.
Quase imediatamente o irmão se juntou a Lochlan ao lado da cama.
Círculos escuros contornavam os olhos de Cuchulainn e um restolho de barba cobria o queixo geralmente bem barbeado. Elphame achou que o irmão parecia ter envelhecido
uma vida inteira.
- Você está terrível - grasnou Elphame.
O rosto cansado de Cuchulainn se abriu num sorriso, e a risada aliviada de Lochlan mais parecia um soluço. Ela olhou do marido para o irmão.
Elphame pigarreou antes de tentar falar novamente: - Bom, nenhum de vocês está acorrentado e não vejo ferimentos que pareçam novos. Posso presumir que os dois estão
aprendendo a se entender? - murmurou.
- Ela não está louca. - Lochlan levou-lhe a mão aos lábios, deixando Elphame chocada por ver que lágrimas silenciosas molhavam o rosto dele.
- Eu disse a você que ela não ficaria - disse Cuchulainn. Seus olhos também estavam suspeitamente brilhantes.
- Ela consegue ouvir vocês dois - disse Elphame, exasperada.
- Seja bem-vinda de volta, minha irmã - disse Cuchulainn.
- Por quanto tempo dormi?
- É a noite do quinto dia - disse Lochlan.
Ela piscou surpresa.
- Não é de admirar que esteja com tanta fome.
O sorriso de Cuchulainn parecia fora de contexto no rosto profundamente marcado.
- Wynne vai ficar muito contente por ouvir isso. - Ele começou a se apressar em direção à porta.
- Cuchulainn, espere.
Lendo a expressão em seu rosto, Lochlan beijou sua mão com carinho antes de soltá-la, e depois ficou de lado para que Cuchulainn pudesse tomar seu lugar.
Elphame sentou e estendeu a mão para o irmão.
- Eu queria contar sobre Lochlan...
Parecendo incrivelmente cansado, Cuchulainn meneou a cabeça.
- Não precisa explicar, El.
- Sim, preciso. Eu queria contar sobre Lochlan desde o momento em que eu o conheci. Só não sabia como, mas não queria que descobrisse sozinho e achasse que não o
amo bastante ou não confio bastante em você para não ter revelado. Não conseguia encontrar as palavras, e por outro lado você estava muito apaixonado por Brenna.
Cuchulainn cerrou o maxilar e desviou o olhar.
- Não culpo você ou Lochlan pela morte de Brenna. - Ele fez uma pausa e inspirou de modo profundo e trêmulo. - Nem mesmo culpo Fallon. A loucura não era culpa dela.
- Cuchulainn, olhe para mim - pediu Elphame. Quando o irmão encontrou seus olhos, ela viu nas profundezas de seu lamento e compreendeu que Cuchulainn estava dizendo
a verdade. Não os culpava pela morte de Brenna, culpava a si mesmo.
- Cuchulainn - ela começou a dizer, mas ele largou sua mão e se levantou tão abruptamente que a cadeira quase caiu.
- Não consigo falar sobre isso, El. - Sem olhar para ela, virou e foi apressado para a porta. Por cima do ombro, disse antes de fechar a porta sobre sua dor: - Vou
trazer algo para você comer.
- Ele não deixou que ela fosse queimada numa pira funerária - disse Lochlan. Em vez de pegar a cadeira, ele se sentou na cama, de frente para ela. Tomou-lhe as mãos
entre as suas. - Disse que o fogo já tinha causado a ela muita dor.
- Oh, Cuchulainn. - Elphame ofegou, encarando a porta fechada.
- Então o mestre centauro fez uma tumba e esculpiu a efígie de Brenna para selá-la. Cuchulainn finalmente a deixou descansar nela hoje de manhã.
- Onde? - sussurrou Elphame, secando lágrimas das faces.
- No lugar onde estava a tenda dela. - Lochlan sacudiu a cabeça com tristeza. - Acho que ele sepultou o coração junto com Brenna.
- Eu devia estar lá com ele. Ele precisava de mim.
- Você precisava muito se recuperar. Não se culpe. Seu irmão falou a verdade. Não culpa você, nem culpa meu povo ou a mim. Agiu nobremente em seu lugar nos últimos
dias.
- Fallon, Keir e os outros dois, o que aconteceu com eles? - perguntou ela.
- Cuchulainn ordenou que ela fosse aprisionada no Castelo Guardião, onde vai esperar pelo nascimento da criança e também pela sua decisão quanto à penalidade que
deve pagar pelo crime que cometeu. Keir escolheu ir com ela. Curran e Nevin continuam aqui, sarando dos ferimentos.
Elphame estudou-lhe o rosto.
- A loucura foi mesmo embora?
- Foi. - O assombro disso ainda permanecia em sua voz. - Ela me deixou, e também deixou os outros. Você cumpriu a Profecia e salvou meu povo. - Ele acariciou-lhe
a face com carinho. - E dentro de você, meu coração? Sente o fardo desse peso?
O olhar de Elphame se tornou introspectivo. Como um sopro sobre um lago tranquilo, sentia-se bem lá no fundo um ondular sombrio.
- Está aqui, dentro de mim. Posso sentir sua presença. A loucura foi conquistada, mas não totalmente silenciada. Tenho a palavra de Epona de que venci uma batalha
contra ela, mas a Deusa me avisou que preciso ser sempre vigilante para permanecer vitoriosa. - Elphame estremeceu.
- Não há outra possibilidade que não seja a vitória - disse Lochlan ferozmente. - Juntos, não deixaremos que ela conquiste você.
A vívida força do amor dele preencheu Elphame, que sentiu a expectante escuridão dentro de si recuar novamente.
Ela inspirou de modo profundo e satisfeito.
- Devemos avisar seu povo. Eles devem trazer as crianças para cá.
Lochlan a puxou para os braços e suas asas em recuperação a envolveram, enchendo-a com seu calor.
- Assim faremos, meu coração, assim faremos - disse ele.
Elphame parou diante da tumba de mármore conforme o céu matutino enviava gavinhas hesitantes de malva e violeta. A efígie era muito bonita, era quase como se Brenna
tivesse dormido e virado pedra. Exceto por Danann ter esculpido sua imagem livre de qualquer cicatriz.
- Não pedi que tirasse as cicatrizes. Isso nem me ocorreu. - A voz assombrada de Cuchulainn surgiu do lado da irmã. Ele deu um passo adiante, inclinou-se e colocou
uma braçada de flores selvagens cor de turquesa nos braços da garota de pedra.
- Quando perguntei a Danann por que não tinha mostrado as cicatrizes, ele respondeu que simplesmente a esculpiu da maneira que se recordava dela - disse Brighid.
A caçadora tocou a face direita da efígie, que agora era tão clara e lisa quanto o lado esquerdo do rosto.
- Brenna ficaria contente por ser lembrada assim - disse Elphame. Virou-se para o irmão e segurou sua mão. - Por favor, não vá, Cuchulainn.
- Eu preciso. - Ele olhou por cima do ombro para o castelo que estava começando a despertar. - Tudo aqui me lembra ela... Cada aroma e cada som parecem falar seu
nome. - Os olhos cheios de lamento encontraram o olhar preocupado da irmã. - Não é que eu queira me livrar dela, só quero aprender a suportar a perda. Não posso
fazer isso aqui. - Apertou a mão dela antes de soltá-la.
A mente de Elphame compreendia o que ele dizia, mas o coração doía por pensar na ausência do irmão.
- Vou sentir sua falta, Cuchulainn - anunciou Brighid baixinho enquanto estendia a mão para apertar o braço dele num cumprimento de guerreiro.
Sua pele parecia quente de encontro ao aperto forte.
- Estava enganado a seu respeito, Brighid Dhianna. Você foi uma amiga dedicada.
- Talvez algum dia possamos sair para caçar juntos outra vez. - Ela sorriu com tristeza para ele.
Um woof abafado chamou a atenção deles para baixo quando Fand pulou de uma moita de capim alto para rosnar e morder os cascos de Brighid. A caçadora fez cara feia.
- Corrigirei minha oferta. Caço com você novamente, desde que prometa não trazer de volta nada que esteja vivo.
Cuchulainn deu um tapinha na coxa e a filhote veio saltando até ele para se retorcer entre suas pernas.
- Da próxima vez que vir Fand, ela terá boas maneiras.
- É o que todos os pais dizem - murmurou Brighid enquanto retornava para o castelo.
Irmão e irmã ficaram em silêncio olhando um para o outro. Depois Elphame estava nos braços dele, abraçando-o com força e enterrando a cabeça no ombro familiar.
- Não pode esperar pela mamãe? - perguntou entre lágrimas. - Você sabe que o mensageiro disse que ela está a um dia de viagem.
Cuchulainn deu tapinhas nas costas dela.
- Ela vai entender.
- Não vai, não. Vai ficar doida.
Elphame ouviu a leve risada. Soava grave e penosa, completamente diferente do irmão alegre que ela conhecia tão bem, que seu coração se contraiu numa torrente de
tristeza.
- Tem razão, mas ela vai ficar tão ocupada cacarejando ao redor de você e de Lochlan que não vai ter tempo de pensar nisso. - Gentilmente, Cuchulainn afastou-se
e beijou-lhe as faces. - É algo que eu preciso fazer. - Depois se virou e atirou as rédeas sobre o pescoço do capão e o montou num fácil movimento.
Como se notando a deixa, Fand se lançou numa série de choramingos lastimosos e Elphame logo a pegou no colo, entregando a filhote gorducha para o irmão.
- Amo você, minha irmã - disse, depois direcionou o cavalo para o norte e com a pressão dos joelhos o pôs a trotar.
Elphame observou quando ele se juntou às duas figuras aladas que esperavam pacientemente diante da entrada principal do castelo. Os ferimentos não estavam completamente
curados e as asas ainda muito esfarrapadas, mas Curran e Nevin insistiram em acompanhar Cuchulainn quando ele anunciou que viajaria para os Ermos para guiar as crianças
deslocadas de seu lar em Partholon.
Elphame ficou observando até eles sumirem nas árvores. Sentiu como se o passado tivesse desaparecido com Cuchulainn, e com sua ausência a parte mais feliz de sua
juventude também tinha partido. O que aconteceria com seu amado irmão? Será que seria para sempre uma carapaça rachada ou de alguma forma poderia ser curado? Elphame
sabia da amarga ironia de seus pensamentos. Cuchulainn precisava encontrar uma maneira de remendar o que estava quebrado dentro dele sem uma curandeira. Sentira-se
muito impotente nos últimos dias enquanto observava um vazio horrível penetrar a alma dele. Será que ele encontraria a felicidade sem Brenna? Ela não sabia. Tinha
acreditado que perderia Lochlan, então sabia um pouco do que o irmão estava sentindo. Poderia ter seguido em frente sem seu consorte, assim como Cuchulainn, mas
poderia realmente encontrar a felicidade outra vez? Disso ela não sabia.
Por favor, Epona. Ela fez uma oração silenciosa e fervorosa à Deusa. Cuide de trazê-lo em segurança para casa. E ajude-o a encontrar a felicidade outra vez.
O coração de Elphame doía e ela já sentia saudades da presença familiar de Cuchulainn. Seus ombros tremiam com os soluços e seus passos estavam pesados quando começou
a fazer o caminho de volta para o castelo.
Como se fosse uma carícia física, sentiu o olhar dele tocá-la. A luz matutina de Epona moldava a forma alada de Lochlan parado no balcão da Torre do Chefe. Não podia
ler o rosto dele, mas enquanto observava, viu-o tocar o lugar acima do coração, depois os lábios, depois estender a mão para ela.
Cuchulainn guardava seu passado, mas seu futuro estava com Lochlan e o clã MacCallan. Eles teriam que enfrentar uma terra cheia de pessoas que desconfiavam deles
e os julgavam com crueldade. Partholon não seria facilmente conquistada, mas com a bênção de Epona enfrentariam o futuro juntos. A chefe do clã MacCallan secou o
rosto e endireitou os ombros. Os passos de Elphame eram fortes e seguros quando ela correu para se juntar ao consorte, e assim dar início a um novo dia.

 

 

                                                                  P.C. Cast

 

 

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