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A ESCOLHA DE GISELLE / Penny Jordan
A ESCOLHA DE GISELLE / Penny Jordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Dinastia Parenti

Livro 2

A ESCOLHA DE GISELLE

 

Sofisticação e sensualidade em cenários internacionais.

Um herdeiro por decreto real!

Saul Parenti sempre fora agradecido por ser o segundo na linha sucessória da monarquia de Arezzio. Por isso, podia se concentrar em conduzir seus negócios... e reali­zar os caprichos de Giselle, sua nova mulher. Entretanto, com a morte de seu primo, Saul não só deveria ascender ao trono... como também seguir o protocolo real... Traumas do passado deixaram cicatrizes profundas em Giselle, e ela não desejava ser mãe. Agora, com o casamento em crise, ela deverá escolher entre superar suas dificulda­des... ou atender ao pedido de seu marido... pois como soberano de Arezzio, Saul precisava de um herdeiro.

 

O toque dele, tão sensual e habilidoso, tão masculino e po­derosamente exigente, causou uma onda de excitação e de­sejo que percorreu o corpo dela, espalhando-se como fogo selvagem de terminação nervosa para terminação nervosa, tornando mais intensa a fome que ele despertava nela, até que nada mais importava, a não ser a posse; súbita, quente e imediata. Era sempre assim, aquela primeira sensação de prazer, respondendo e incitando o desejo que ele sentia, que era parte dela tanto quanto sua respiração.

Ela sabia que aquilo aconteceria, quando deslizara o corpo nu para dentro da água morna da piscina particular deles, tendo apenas as estrelas e a lua no céu da noite tropical para testemunhar sua intimidade erótica. Nadou para longe dele, atormentando a si mesma com a sua ne­gação, talvez ainda mais do que o estivesse atormentan­do; e o som quente e doce de satisfação que ela emitiu quando ele a alcançou, nadando com ela e sob ela, para sugar seus mamilos com força, foi acompanhado de um estremecimento de prazer selvagem.

A mão dele se insinuou entre as pernas dela, cobrindo-lhe o sexo enquanto ele batia as pernas, o movimento poderoso de seu corpo carregava ambos pela água. Fome e necessidade a percorreram em ondas que pareciam lava incandescente, atravessando seu corpo e fazendo-o se mover no mesmo ritmo que as carícias dos dedos dele. Ela gemeu baixinho, chegando mais perto dele, impul­sionada pelo sentimento primitivo que o desejo por ele lhe despertava.

Eles chegaram à beira da piscina. Tonta de desejo, ela deixou que ele a tomasse nos braços e a levasse para uma cadeira larga, com um colchão e uma cobertura ato-alhada. Ele a deitou ali, o corpo suave e lânguido, expos­to para os olhos e o toque dele.

O olhar dele, seguido por sua mão, percorreu o corpo nu dela, acariciando-lhe o seio. O coração dela marte­lava contra suas costelas, e os músculos em seu ventre se contraíram com o mesmo desejo que fizera com que seus mamilos ficassem dolorosamente alertas, esperan­do pelo toque dele.

Os olhos dele registraram a mensagem sensual que os mamilos enrijecidos dela lhe transmitiram, mas sua mão desceu para acariciar-lhe o quadril. Automaticamente, as pernas dela se abriram, e o calor doce e úmido de seu desejo pulsava nela. Ele baixou a cabeça, seus cabelos escuros, espessos e ainda molhados faziam com que go­tas de água gelada caíssem sobre a pele dela, aquecida pela paixão. A ponta da língua dele circulou o umbigo dela, fazendo desenhos deliberadamente delicados em sua pele e arrancando dela um gemido agoniado que era o seu nome.

— Saul. Meu amor. Meu único e eterno amor.

Ela estava possuída, envolvida, queimando com o de­sejo que ele despertara. Saul a olhou, e ela soltou um pequeno e indefeso gemido, seu corpo se arqueando para encontrar o dele, como num sacrifício sensual. Ela viu o peito dele subir e descer, e então ele a estava abraçando, beijando, penetrando. Ela gritou de prazer, entrelaçando o corpo ao dele, movendo-se com ele, até que seus cor­pos assumissem o controle de seu desejo e de seu prazer, carregando-os ao ápice da excitação e além, lançando-os em queda livre para a liberação e a satisfação.

Ela havia fechado os olhos, mas abriu para vê-lo sor­rindo, um sorriso possessivo, terno e amoroso.

— Feliz aniversário, Sra. Parenti — ele disse suave­mente.

Giselle sorriu de volta para o marido, e a felicidade a invadiu. Tinha tanta sorte... A vida deles, juntos, era per­feita, e o peso da culpa que ela carregara por tanto tempo era como um dragão que ele matara em sua batalha para libertá-la. Não havia necessidade, naquele momento de felicidade e harmonia para ela, de se atormentar com as lembranças daquela outra verdade que escondera dele. Elas não tinham poder sobre Giselle agora, não tinham relevância na vida maravilhosa que eles compartilha­vam, uma vida de ambições artísticas realizadas para ela, trabalhando como arquiteta-chefe nos empreendimentos dos hotéis de luxo de Saul em todo o mundo, enquanto o amor que eles partilhavam criava um mundo perfeito de felicidade para os dois, que não queriam nem precisa­vam de ninguém mais, dentro daquele círculo mágico e protetor. Eles só precisavam um do outro.

O casamento deles não era do tipo que um dia inclui­ria filhos. Aquela havia sido uma promessa, um compromisso que fizeram um com o outro quando se casaram, 12 meses antes. Aquele era o alicerce sobre o qual seu casamento e a total confiança que Giselle tinha em Saul se erguiam. Para ambos, as causas da determinação em não ter filhos vinham de suas próprias infâncias e eram compreendidas e aceitas mutuamente. Da mesma forma que Saul havia curado uma boa parte da dor da infância dela, com seu amor por ela e sua aceitação de como Gi­selle era; Giselle ajudara Saul a fazer as pazes com seu próprio passado, e, mais especificamente, com a mãe, que ele pensava se importar mais com os órfãos das ca­tástrofes do mundo do que com ele. Fora um momento muito especial e tocante para ambos quando, finalmente, abriram a primeira unidade do que eles planejavam vir a ser uma rede mundial de orfanatos-escola, que incorpo­ravam um lar e uma sala de aula, e que levava o nome da falecida mãe de Saul.

Financiados por Saul, projetados por Giselle e cons­truídos pela empresa dele, os orfanatos seriam o presen­te de paz e aceitação para sua falecida mãe. A noite de amor que eles haviam passado logo depois da inaugura­ção oficial fora tão intensa, emocional e fisicamente, que a lembrança ainda trazia lágrimas aos olhos de Giselle. O caminho deles para a felicidade e o compromisso não fora fácil. Ambos haviam lutado muito contra a for­te onda de desejo que sentiam um pelo outro e que os afastara de sua zona de conforto, empurrando-os para uma zona de guerra onde eles lutaram desesperadamente contra seus sentimentos, agarrando-se às ruínas da se­gurança de suas antigas crenças. Fora Saul quem fize­ra o primeiro movimento para se aproximar dela, e ela, profundamente apaixonada por ele então, cedera a seu desejo. Afinal, ela havia descoberto que Saul também não queria filhos. Como um executivo bilionário que se satisfazia com a excitação e o desafio da competição, Saul havia feito um voto de não ter filhos que, como ele, fossem deixados para trás enquanto ele viajava pelo mundo. Diferentemente de seu primo Aldo, que chefiava o pequeno Estado europeu que sua família dominara por incontáveis gerações, Saul não tinha a obrigação de se casar e produzir um herdeiro legítimo.

E assim, Giselle colocara de lado os princípios pe­los quais vivera como adulta, que jamais se permitiria se apaixonar, porque não queria ter filhos, e não queria negar a nenhum homem que viesse a amar o direito de ser o pai daqueles filhos. Ela já havia, afinal de contas, quebrado a primeira promessa que fizera para si mesma quando se apaixonara por Saul, e ele jurara que ela era tudo o que ele queria e precisava. Mas mesmo no dia do casamento deles, Giselle sentira a sombra de seu passa­do pesar sobre sua felicidade. A culpa era um peso muito grande para carregar. E um peso solitário também. Gi­selle estremeceu, apesar do calor suave da noite tropical.

Saul sorriu para ela, levantando-se da espreguiçadeira e apanhando o roupão que ela tirara mais cedo, envolvendo-a nele com ternura. Ele deveria ter percebido aquele estremecimento involuntário, e, num gesto típico de sua personalidade, se preocupara em protegê-la. Ela sempre adorava aqueles momentos especiais logo de­pois que eles faziam amor, e a última coisa que queria era que as sombras do passado os estragassem. Certa­mente, agora o destino a havia libertado do peso de sua culpa. Certamente, agora ela não precisava se lembrar de que ainda era refém de uma parte de seu passado sobre a qual Saul não sabia nada. Não havia necessidade de ela exumar o cadáver apodrecido de seu remorso. As causas não importavam mais. Ela estava segura, protegida pelo amor de Saul e pela vida que eles compartilhavam, e que significava tanto para ambos.

— Está com fome? — perguntou Saul.

Giselle olhou para ele. Saul tinha o físico e a aparên­cia de um deus grego, a coragem de um guerreiro roma­no, a mente de um mestre de filosofia e uma consciência social que vinha de um altruísmo verdadeiro. Ela o ama­va com uma paixão e uma intensidade que preenchiam todos os seus sentimentos e emoções. Ele era o mundo dela; um mundo que ele criara e tornara seguro com o amor que sentia por ela.

Ela concordou com a cabeça, em resposta à pergunta dele. O mordomo havia assegurado que uma ceia deli­ciosa fosse servida na Villa logo depois da chegada do casal à ilha tropical particular, que abrigava um empre­endimento luxuoso e exclusivo no qual Saul tinha inte­resses financeiros, mas o apetite de Giselle se concentra­ra em seu marido. Eles haviam passado separados três dias da semana anterior, enquanto Saul visitava um novo terreno que pretendia adquirir, e Giselle viajara para Yorkshire Dales para visitar a tia-avó que a havia criado após a morte de seus pais e de seu irmãozinho pequeno. Três dias sem Saul haviam sido três dias e noites longos demais.

Agora, entretanto, ela estava faminta por comida, e se levantou nas pontas dos pés para beijar Saul afetuo­samente antes de ele apanhar seu próprio roupão. O ar da noite, que os envolvia, era lânguido com um calor suave e os sons dos trópicos, e as camadas vaporosas de bege e preto das cortinas de seda que eles atravessavam contribuíam para a atmosfera de intimidade romântica de sua suíte. A decoração da Villa era, ao mesmo tem­po, moderna e sensual, uma aquarela de tons pastel com brancos perolados e beges suaves, quebrada aqui e ali com o uso sutil e equilibrado de mobília preta. Tapetes bordados em tons de creme suavizavam a modernidade crua do chão de granito.

Uma bandeja coberta, em cima de um carrinho, exi­bia a ceia, com aperitivos, saladas exóticas de dar água na boca, frutos do mar e frutas frescas. Uma garrafa de champanhe havia sido colocada em um balde de gelo.

— A nós — Saul brindou, depois de abrir o champa­nhe e encher duas taças.

— A nós — concordou Giselle, rindo e sacudindo a cabeça em uma reclamação fingida, quando Saul colo­cou sua taça na mesa para lhe dar na boca um dos canapés elegantemente servidos.

Saul tinha as mãos masculinas mais lindas que ela já vira. Leonardo, ela estava certa, teria se orgulhado de pintar sua imagem, e Michelangelo, de esculpi-las. A visão familiar de sua sensualidade bronzeada fazia o corpo dela se contrair de prazer. Ele a havia alimentado assim na primeira noite da lua de mel, provocando-a e excitando-a com pequenos e deliciosos bocados, até que sua fome pela comida e por ele a fizeram lamber os de­dos dele, da mesma forma que ele, mais tarde, lamberia o suco da fruta que eles haviam dividido e que escorrera pela pele nua do corpo dela.

Eles estavam casados havia um ano, e ele ainda a ex­citava e seduzia tão rápida e intensamente quanto quan­do se conheceram. A intensidade feroz do desejo dela a consumia da mesma forma de quando, ele havia feito amor com ela pela primeira vez; mas agora existia uma profundidade maior na intimidade deles, que vinha não apenas do amor que compartilhavam, mas da confiança que Giselle tinha nele e da crença em que Saul sempre a manteria segura. Segura o suficiente para se entregar sem reservas, sabendo que podia confiar nele total e completamente.

— Eu quero que seja sempre assim entre nós, Saul — ela disse apaixonadamente.

— E sempre será — ele garantiu. — Como poderia ser diferente?

Giselle estremeceu novamente, olhando para o movi­mento das cortinas de seda como se tivesse medo de que escondessem a presença de um desconhecido.

— Não vamos desafiar o destino — ela implorou.

Saul riu, provocando-a.

— Eu acho que seria muito mais divertido desafiar você.

Eles podiam já ter feito amor, mas seu desejo um pelo outro era, para Giselle, como uma fonte de água crista­lina, sempre disponível para encher e reencher a taça de sua intimidade. Porém, os últimos minutos da visita que ela havia feito à sua tia-avó antes de partir para Londres, e a conversa que elas tiveram então, estavam lançando uma sombra indesejada sobre sua felicidade naquele momento, tornando-a vulnerável. Ela adorava a tia-avó, e sabia que a senhora também a amava, da mesma forma que sabia que as palavras de despedida dela tinham ape­nas a intenção de agradá-la.

— Foi maravilhoso vê-la tão feliz, Giselle — sua tia-avó dissera. — Houve um tempo em que eu me preocupava, achando que você negaria a si mesma a felicida­de de amar e ser amada, e não posso lhe dizer o quanto significa para mim ver você tão apaixonada e tão amada. Estou orgulhosa de você, minha querida, por tudo o que teve de superar. Quando eu lhe perguntei, no dia do seu casamento, se você havia contado tudo a Saul, fiquei tão aliviada ao ouvir você me dizer que sim; posso admitir isso para você, agora.

Giselle sorrira e beijara a tia-avó, mas sua culpa, como um espinho encravado na carne, a incomodara no caminho de volta a Londres. Não fora necessário contar a Saul o "tudo" a que sua tia-avó se referira; não havia motivo para liberar o medo particular que ela trancara dentro de si. Aquilo não era mais relevante, e ela tivera medo do que Saul poderia pensar, de que aquilo modifi­casse as coisas entre eles, roubando sua felicidade como havia acontecido tantos anos antes.

Ela não enganara Saul de propósito. Ele a amava do jeito que ela era. E, segura na certeza de seu amor e de sua promessa, ela jamais iria mudar. Sempre seria como era naquele momento. E sempre estaria segura.

— Ei, volte aqui. Detesto quando você se fecha e vai para esse lugar para onde não deixa que eu vá junto.

As palavras doces de Saul a chocaram, fazendo-a se defender imediatamente:

— Eu não estava me afastando, e não há nenhum lu­gar para onde deseje ir sem você.

Saul a observou. Ele a amava tanto que a força de seu amor ainda o assustava, às vezes, pegando-o desprevenido. Talvez fosse a intensidade daquele amor que o tornava tão profundamente consciente das mais ínfimas mudanças no humor dela.

— Você estava pensando em seus pais, sua família — ele disse. — Eu sempre posso perceber, porque, quando você pensa neles, seus olhos mudam de cor e escurecem, como as colunas verdes que vimos nos palácios reais de São Petersburgo.

— A minha tia-avó me disse o quanto estava feliz por mim, por tê-lo em minha vida — Giselle disse a ele sinceramente, completando com emoção. — Acho que morreria de dor se um dia perdesse você. Isso seria mais do que eu poderia suportar.

— Você nunca vai me perder — Saul afirmou, tomando-a nos braços. — Não há força nenhuma na Terra que possa ficar entre nós.

Eles fizeram amor novamente, no meio da noite, de forma lenta e sensual desta vez; uma jornada de mil carícias deliberadamente lentas, parte da enciclopédia par­ticular de prazer dos dois, enquanto eles alimentavam, passo a passo e toque a toque, o fogo que os consumia e que os libertava da mortalidade por alguns segundos preciosos de união perfeita. Depois, Giselle ficou dei­tada nos braços de Saul, segura e em paz, flutuando na euforia intensa que vinha depois da satisfação emocional e sexual, adormecendo envolvida no amor dele.

 

Saul estava se enxugando depois do banho quando seu telefone celular tocou, e o som o fez franzir a testa. Ele tinha dado à sua assistente pessoal, Moira, instruções claras para não perturbá-lo durante a preciosa semana que ele e Giselle haviam tirado de férias, longe da rotina atribulada de suas vidas, a não ser em circunstâncias ex­tremamente urgentes e importantes.

Giselle ouviu o toque do celular de Saul na cama, ainda quente com o calor do corpo dele e do amor que haviam feito logo de manhã, de forma relaxada e terna. Através das cortinas vaporosas, ela podia ver o sol bri­lhando na água da piscina onde eles nadaram na noite anterior. Ela podia ouvir a voz de Saul, que vinha do quarto ao lado, mas estava sonolenta demais para se concentrar no que ele estava dizendo, portanto, foi um choque quando ele entrou no quarto de repente, o cabelo ainda molhado, uma toalha enrolada na cintura e uma expressão no rosto que fez o coração dela disparar com a perspectiva de más notícias mesmo antes de ele lhe contar.

— Precisamos voltar para Londres imediatamente. Houve um acidente. Não tenho todos os detalhes ainda, mas parece que Aldo, Natasha e o pai dela foram vítimas de uma tentativa de assassinato planejada por um dos competidores do pai de Natasha. Havia uma bomba no carro em que eles viajavam. Aldo havia me dito que eles iriam à Inglaterra para inspecionar uma propriedade que o pai de Natasha queria comprar lá, uma grande proprie­dade no campo. Natasha e o pai estão mortos, mas Aldo ainda vive. Ele está em um hospital em Bristol. Moira organizou tudo para que nos apanhem aqui de helicópte­ro e nos levem para Barbados, onde pegaremos um jato particular que já está nos esperando. O helicóptero deve chegar dentro de uma hora.

Horrorizada, Giselle saltou da cama, correndo para Saul e abraçando-o com força, enquanto dizia:

— Eu sinto muito... vou me arrumar. Não demoro.

Ela sabia o quanto ele gostava do primo, embora eles vivessem vidas tão diferentes, e, enquanto se vestia e fazia as malas, rezava para que Aldo ficasse bem. Pobre Aldo. Ele era o mais gentil e bondoso dos homens, e merecia uma mulher mais dedicada que Natasha. Giselle estremeceu, lembrando-se do que Saul havia lhe con­tado. Aldo não tinha mais uma esposa. Natasha estava morta.

Ela e Saul acabavam de arrumar as malas quando ou­viram o som do helicóptero que se aproximava. Um dos carrinhos de golfe que o complexo oferecia aos visitan­tes para que se locomovessem já os aguardava do lado de fora da Villa. O café da manhã que fora servido quan­do Saul telefonara para a recepção para avisar que eles estavam partindo permaneceu intocado, com a exceção da xícara de café preto e forte que Giselle preparara para ele: o ponto fraco de Saul e único vício além dela pró­pria, como ele gostava de dizer.

Durante os vôos entre o complexo e Barbados, e de lá para Heathrow, e então novamente de helicóptero até o hospital em Bristol, o hospital de referência mais próxi­mo do local do acidente, Saul falou sobre seu primo, e Gi­selle o ouviu. Ela conhecera Aldo, naturalmente. Giselle e Saul haviam se tornado amantes durante uma viagem para Arezzio, quando ela o acompanhara como arquite­ta, prestando serviços para a empresa dele, cedida pela companhia onde trabalhava e que ele havia contratado para supervisionar um novo complexo hoteleiro. Aldo não se parecia nada com Saul. Enquanto Saul era incri­velmente másculo, carismático e sensual, Aldo era dis­creto, um artista sonhador. Natasha, a esposa russa dele, tentara convencer Giselle de que o motivo pelo qual Saul jurara nunca ter filhos era o ressentimento pelo fato de um filho seu jamais poder herdar o título de grão-duque de Arezzio. Saul, entretanto, deixara bem claro que suas razões para não querer ser pai tinham raízes em sua pró­pria infância, e tinham a ver com o fato de seus pais es­tarem ausentes de casa e longe dele, nada mais; e Giselle vira que ele falava a verdade. Aldo amava seu pequeno país à beira-mar, e era grato pela ajuda que Saul lhe dava em relação às finanças. Era um pequeno preço a pagar, Saul dissera a Giselle, pela liberdade que tinha de viver sua vida do modo que lhe agradava, porque seu pai fora o irmão mais novo, e não o mais velho.

Giselle podia não gostar de Natasha, mas jamais de­sejaria vê-la morta... especialmente naquelas circuns­tâncias terríveis. Os poucos detalhes revelados a Saul enquanto eles viajavam informavam que Aldo só havia sido poupado do impacto maior da explosão porque estava sentado no banco da frente do carro, ao lado do mo­torista; mas Natasha e seu pai morreram no local.

— Os negócios do pai de Natasha eram obscuros, para dizer o mínimo — Saul dizia a Giselle. — É claro que seus métodos lhe deram inimigos, e muitas pessoas poderosas não aprovam o que ele fez enquanto acumu­lava sua fortuna. E é culpa minha que Aldo tenha conhe­cido Natasha.

— Aldo se casou com Natasha de livre e espontânea vontade — disse Giselle, tentando confortá-lo, tomando-lhe a mão enquanto o helicóptero pousava em uma área livre próxima ao hospital.

— E agora ela está morta. Aldo vai ficar arrasado. Ele a adorava.

Um policial veterano, que esperava para acompa­nhá-los até o hospital, respondeu à pergunta ansiosa de Saul sobre seu primo de forma tensa:

— Ele está vivo, mas bastante ferido. Tem perguntado por você.

Saul assentiu com a cabeça.

— E o incidente?

— Ainda não falamos com ele sobre isso. O fato de que o carro tinha certa blindagem nos diz algo a respeito do estilo de vida do Sr. Petranovachov e suas preocupa­ções sobre sua segurança pessoal. O veículo era blinda­do, mas infelizmente não era à prova de bombas.

Eles haviam chegado à porta do hospital, e foram discreta e rapidamente levados por corredores desertos até uma sala de espera imaculadamente limpa e pou­co mobiliada, adjacente à área particular do hospital, onde o inspetor-chefe os apresentou a um consultor vestido com um terno preto, acompanhado de uma se­nhora que Gisele imaginou ser uma das enfermeiras mais graduadas.

— E o meu primo? — Saul perguntou novamente.

— Está consciente, e ansioso para vê-lo. Mas eu devo avisá-lo de que os ferimentos dele são gravíssimos.

Giselle olhou ansiosamente para Saul e disse:

— Se quiser que eu vá com você...

Saul sacudiu a cabeça.

— Não; Fique aqui.

— Vou pedir para levarem uma bebida quente para a senhora — o consultor disse a Giselle, antes de se virar para Saul. — A enfermeira Peters o conduzirá ao quarto do seu primo. Sinto muito, mas não posso permitir que o senhor passe mais de alguns minutos com ele. Nós o deixamos confortável temporariamente, mas precisamos sedá-lo e estabilizá-lo antes de podermos operá-lo e tra­tar dos danos causados pela bomba.

Os danos causados pela bomba. O que exatamen­te aquilo significava? Giselle começou a se preocupar, quando ficou sozinha. Nunca gostara de Natasha, mas sua morte violenta havia despertado de novo as lembran­ças das mortes trágicas de seus pais e de seu irmãozinho, que ela testemunhara, atropelados por um caminhão. Durante anos, Giselle carregara a culpa de ter sobrevi­vido, depois que palavras duras de sua mãe a haviam feito recuar quando ela começara a atravessar a rua com o carrinho. Aquele recuo salvara sua vida, e a enchera de culpa. Somente com o amor de Saul ela finalmente pôde lidar com o trauma do acidente. Pobre Natasha. Não im­portava o quanto ela fosse egoísta e desagradável; não merecia um destino tão cruel.

No quarto do hospital, Saul olhava para seu primo, en­volto por fios e cercado por aparelhos ruidosos, com a cabeça enfaixada e o corpo coberto pelos lençóis.

Ele perdeu as duas pernas — a enfermeira havia informado a Saul antes de abrir a porta do quarto — e há bastante dano aos órgãos internos.

— Ele está... Ele vai sobreviver? — Saul perguntou.

— Faremos o melhor para assegurar que sobreviva. — ela respondeu um tanto bruscamente, mas Saul viu a verdade e a realidade em seus olhos.

Os olhos dele se enevoaram ao fitar Aldo. Seu primo sempre fora tão amável, tão gentil e bondoso.

— Você está aqui. Eu sabia que viria. Estava à sua espera.

As palavras, embora perfeitamente audíveis, soavam arrastadas e lentas. Aldo ergueu a mão, e Saul a tomou entre as suas, sentando-se ao lado da cama. Apele de Aldo estava fria e seca. A expressão sem vida passou pela mente de Saul, e ele a afastou.

— Eu quero que você me prometa uma coisa.

Saul trincou os dentes. Se Aldo lhe pedisse para cui­dar de Natasha no caso de sua morte, ele iria concordar, e não contaria a ele que ela estava morta. Aldo adorava a esposa, embora na opinião de Saul ela não fosse digna daquele amor.

— Qualquer coisa — ele disse a Aldo, sinceramente.

— Quero que você me prometa que vai cuidar do nosso país e do nosso povo por mim, Saul. Eu quero que você tome o meu lugar como governante. Quero que você me prometa que vai assegurar o futuro da nossa terra com um herdeiro. Não podemos quebrar a sucessão familiar. O dever precisa vir em primeiro lugar...

Saul fechou os olhos. Governar o país era a última coisa que ele queria, e sempre acreditara que jamais precisaria fazê-lo. Aldo era mais jovem do que ele, afi­nal de contas, e havia se casado. Ele presumira que Aldo e Natasha teriam filhos que garantiriam a sucessão do título.

E quanto a Saul produzir um herdeiro... Aquilo era outra coisa que ele definitivamente não queria fazer. Não queria filhos, e Giselle tampouco. Para ambos, tudo o que haviam experimentado durante as respectivas infân­cias os enchera de determinação de não se tornar pais. Aquela decisão compartilhada produzira um laço muito forte entre eles, um laço ainda mais forte porque eles sabiam que as outras pessoas achariam difícil entender. Apenas um com o outro eles podiam falar sobre a dor de suas infâncias e a vulnerabilidade que aquela dor ainda lhes causava.

Como ele poderia discutir tudo aquilo agora, sobre­tudo quando seu primo estava morrendo e lhe pedia ajuda com seu último fôlego, sua ajuda e sua promes­sa? O que poderia fazer? Recusar o último pedido de Aldo?

Aldo havia tocado num ponto fraco, com o uso da palavra dever. A família deles havia governado Arezzio em uma linhagem sem interrupções que datava de in­contáveis gerações, e, mais importante do que isso, ele tinha uma dívida para com o homem deitado ali, seu pri­mo, sua carne e sangue; se não fosse por ele, Saul, Aldo jamais teria conhecido Natasha. Era sua culpa que Aldo estivesse deitado ali, morrendo diante de seus olhos, porque era aquilo que estava acontecendo.

— Prometa. Prometa-me, Saul. — A voz de Aldo se fortaleceu, e sua mão apertou a do primo, enquanto ele tentava se levantar. — Esperei você chegar. Não podia partir antes de você me dar sua palavra. Preciso cumprir o meu dever. Ainda que... — Uma careta de dor lhe retorceu a boca. — Dói como o diabo. —As lágrimas lhe encheram os olhos. — Prometa-me, Saul.

Saul hesitou. Ele podia, e iria, aceitar que era seu de­ver dar a seu país um líder forte, comprometido em fazer o melhor por seu povo. Podia prometer a Aldo que seria aquele líder. Quando se tratava de produzir um herdeiro, contudo, Saul era um democrata convicto que acreditava em governos eleitos. Se ele fosse ocupar o lugar de Aldo, aquela seria a direção em que levaria seu país, guiando-o pelo exemplo, para longe do paternalismo protetor de­fendido por séculos por seus ancestrais, para a maturida­de da democracia. E com aquela democracia, não have­ria necessidade de ele produzir um herdeiro.

Aldo conhecia as opiniões dele a respeito do privi­légio hereditário. Mas ainda estava lhe pedindo uma promessa, em seu leito de morte. Saul olhou para o pri­mo. Amava-o profundamente. O que importava mais, naquele momento? Ser fiel às suas próprias crenças e defendê-las? Ou tornar a passagem de seu primo mais fácil; na certeza de que, na realidade, não importava o que Aldo estivesse lhe pedindo agora, ele sabia quais eram os princípios e crenças de Saul? Saul fechou os olhos. Nunca desejara mais ter Giselle a seu lado, com seu conselho prudente e seu conforto para lhe oferecer. Mas ela não estava ali, e ele precisava tomar sua decisão sozinho.

— Prometo Aldo. Prometo que farei o melhor pelo nosso país e pelo nosso povo.

— Eu sabia que podia confiar em você. —A careta de dor se suavizou e foi substituída por algo que era quase um sorriso. —Natasha... — perguntou, dizendo a pala­vra de forma tão lenta e dolorosa que o coração de Saul se despedaçou. —... já se foi?

Saul baixou a cabeça.

— Foi o que pensei. Não há nada para me manter aqui, agora. — Aldo fechou os olhos, sua respiração tão calma e estável que Saul chegou a pensar, com um fio de esperança, que ele pudesse sobreviver.

Mas então Aldo respirou fundo, com dificuldade, e abriu os olhos, fixando-os em Saul enquanto expirava, e então disse claramente, em um tom de prazer e boas-vindas:

— Natasha...

Saul não precisou ver a linha reta na tela do aparelho para saber que Aldo partira. Ele podia sentir no toque flácido de sua mão, tão claramente como se tivesse visto o espírito do primo abandonar o corpo.

Na sala de espera, Giselle se levantou quando a porta se abriu e Saul entrou; ela soube imediatamente o que havia acontecido, e correu para o marido para tomá-lo nos braços e abraçá-lo com força.

Nenhum dos dois falou muito na viagem de volta para a casa deles, no bairro luxuoso de Chelsea, em Lon­dres. Quando entraram em casa, uma mansão do século XVIII, Saul finalmente baixou a guarda que mantivera enquanto estavam em público, caminhando de um lado para o outro da elegante sala de estar, os olhos verme­lhos com a dor e o choque.

— Eu lamento muito — Giselle disse, indo até ele e colocando a mão sobre seu braço, interrompendo-lhe os passos. — Sei o quanto Aldo significava para você.

— Ele era mais jovem que eu, meu primo mais novo, mas era mais um irmão do que um primo, em muitos aspectos. Especialmente depois que os nossos pais morreram, e passamos a ser os únicos parentes de sangue um do outro. Eu devia tê-lo protegido melhor, Giselle.

— Mas como você poderia ter feito isso?

— Eu sabia o que o pai de Natasha era. Eu deveria...

— O quê? Ter proibido Aldo de andar de carro com o sogro? Você não poderia imaginar que o pai de Natasha seria assassinado. — A voz de Giselle se suavizou: — Entendo como se sente, contudo.

É claro que ela entendia. Sofrera terrivelmente com a culpa e o sentimento de responsabilidade pelas mortes de sua mãe e do irmãozinho.

— Mas você não deve se culpar, Saul. Assim como eu não devo me culpar pelo que aconteceu com a minha família.

Saul colocou a mão sobre a de Giselle, que ainda re­pousava em seu braço. Ninguém melhor do que Giselle para compreender como ele se sentia. Sabia disso. Mas a situação com Aldo era muito diferente daquela por que ela passara. Ela era uma criança de 6 anos de idade, na ocasião. Ele era um homem, e sempre soubera o quanto seu primo tão gentil era vulnerável a Natasha e a toda a dor que ele sofreria por amá-la. Mas nunca imaginara aquilo, não a morte dele em um incidente, causada pelas ações de alguém cujo alvo não fora o próprio Aldo.

— Isto jamais deveria ter acontecido. Aldo tinha tanto para dar, em especial para seu país e seu povo.

— Ele desejava uma maior abertura democrática para o país — Giselle lembrou a Saul, com gentileza, sem querer dizer claramente, em um momento tão delicado, que a morte de Aldo havia aberto uma porta para que o país tomasse as rédeas de seu próprio futuro, elegendo o governante em vez de ser liderado por um membro da família real.

Falar sobre o futuro do país sem Aldo seria muito do­loroso para Saul.

— Vou precisar ir para a Rússia, e quanto mais cedo, melhor — Saul disse a ela abruptamente, e explicou quando ela franziu o rosto. — Por mais desagradável que seja ter de falar desses assuntos, o fato é que Aldo sobreviveu a Natasha e a seu pai. Conforme a lei, quan­do há mais de uma morte na família ao mesmo tempo, determina-se, considerando que o membro mais jovem da família sobreviverá por mais tempo, que Natasha, como filha única, herdaria os bens do pai no momento de sua morte. E isto significa que Aldo, como marido dela, herdaria estes bens por ter sobrevivido a ela.

— E isto significa que, como único parente vivo de Aldo, estes bens passarão para você? — Giselle pergun­tou. — Eu não gosto desta idéia, Saul. Não apenas por causa das circunstâncias da morte de Aldo, e do fato de que ele morreu tão jovem. É por causa da natureza destes bens, da forma como eles foram acumulados. Eu sinto que eles são...

— Maculados? — Saul sugeriu, e Giselle assentiu com a cabeça. — Compartilho dos seus sentimentos, e certamente a última coisa que quero ou que pretendo dei­xar acontecer é obter qualquer benefício pessoal daquele dinheiro. Entretanto, tenho um dever para com Aldo e o país: fazer o que é certo para todos. Foi graças aos maus conselhos de Ivan Petranovachov que Aldo investiu tão mal e tão pesadamente em negócios que o levaram a per­der muito dinheiro. Eu sei que o ajudei a pagar suas dívi­das pessoais, mas o país ainda está seriamente endividado por causa dos empréstimos que Aldo fez com a intenção de usar o dinheiro para beneficiar o povo. Infelizmente, a maior parte daquele dinheiro se perdeu em esquemas que beneficiaram aqueles que os propuseram, muitos deles parceiros de negócios do pai de Natasha.

Giselle assentiu. Nada daquilo era novidade para ela. Sabia bem o quanto Saul ficara furioso quando Natasha anunciou de forma arrogante, logo depois do Natal, quando eles haviam ido visitá-los, que insistira para que Aldo ignorasse os conselhos de Saul e recorresse ao pai dela. Aldo, com sua natureza doce, jamais tivera uma cabeça boa para os negócios.

— O que estou planejando fazer primeiro é falar com os sócios e parceiros de negócios russos do pai de Natasha e descobrir qual é a situação exatamente. De­pois tratarei de vender os bens e usar o dinheiro para pagar as dívidas de Arezzio, causadas pelos investimen­tos desastrados de Aldo nos empreendimentos de Ivan Petranovachov. O que quer que sobre, pretendo doar para, instituições de caridade. Não para a nossa. Eu não a quero manchada com dinheiro vindo de negócios que dependem de mão de obra barata e semi-escrava, que é o que eu suspeito que muitos dos empreendimentos de Ivan Petranovachov sejam. Eu vou falar com alguma autoridade da embaixada russa e pedir que me recomen­dem destinos adequados para o dinheiro.

— Acho que essa é uma excelente idéia — Giselle aprovou. —- Quando precisaremos partir para a Rússia?

Saul sacudiu a cabeça.

— Eu não quero que você venha comigo, Giselle.

Ela tentou esconder o quanto a declaração dele a ma­goara, mas era impossível disfarçar seus sentimentos.

— Nós sempre tentamos viajar juntos, e, sobretudo em uma ocasião como esta, eu quero estar com você.

Para lhe dar apoio. Saul sabia que era isto que ela que­ria dizer.

— Eu sei querida, e acredite em mim, não há nada que queira mais do que ter você comigo me apoiando. — Ele deu a ela um sorriso terno. — Nós trabalhamos tão bem, juntos. Foi graças a você que fundamos nossa instituição de orfanatos, e isto, como você sabe, tem me ajudado tanto a lidar com a raiva e a negatividade que senti pela minha mãe, e superar. Mas duvido que eu vá ser bem recebido por alguns dos colegas de negócios de Ivan Petranovachov. E não quero que você seja sujeita a nenhuma situação desagradável... Ou perigosa.

O coração de Giselle começou a martelar em seu peito.

— E eu não quero que você corra perigo.

— Terei muito cuidado. Mas vai ser mais fácil, para mim, fazer o que precisa ser feito se eu não tiver de me preocupar com a sua segurança. Não demorarei muito tempo. Três ou quatro dias, no máximo.

Giselle respirou fundo, contrariada. O que Saul es­tava dizendo fazia sentido, mas eles tinham acabado de passar algum tempo separados. Contudo, ela não queria piorar as coisas e tornar ainda maior o peso que Saul estava carregando, em um momento tão infeliz e trágico, fazendo com que ele se preocupasse com ela, além de ter de lidar com as complicações causadas pela morte de Aldo.

— Eu compreendo — ela disse, incapaz de resistir e completando, tristemente, apesar das suas boas inten­ções: — Mas odeio quando ficamos separados por tanto tempo. E a culpa é sua, por me fazer tão feliz.

Saul sorriu para ela.

— Esta é uma via de mão dupla, você sabe. Você me faz mais feliz do que eu jamais imaginei que pudesse ser, e isso me faz sentir ainda mais culpado em relação a Aldo. Nós dois sabemos que o casamento dele não lhe trouxe nada parecido com a felicidade que compartilha­mos. Nunca houve nenhum compromisso ou envolvi­mento emocional real entre ele e Natasha.

— Ele amava Natasha, mas eu não acho que ela o amasse da mesma forma.

— O nosso relacionamento é construído sobre hones­tidade e confiança mútuas. Eu sei que você jamais esconderia algo de mim. Duvido muito que Aldo pudesse dizer o mesmo sobre Natasha.

Giselle pousou a cabeça no ombro de Saul, o coração martelando com a culpa que a consumia. Ela escondia algo de Saul. Mas não era nada que ele precisasse saber; nada que afetasse o amor que sentia por ele. De fato, o que ela não lhe contara apenas tornava seu amor por ele mais forte e mais profundo, porque sua decisão mútua de não ter filhos significava que o que ela não lhe contara não importava.

— Eu amo você tanto, Saul. A nossa vida juntos é tudo o que eu sempre sonhei que seria, e muito mais.

— Concordo. Você é a melhor coisa que me aconte­ceu, Giselle. Você desperta o que há de melhor em mim. Você é o meu amor e a minha vida. — Saul a puxou para si e a beijou, ternamente no começo, e logo com mais intensidade.

A vida era algo tão precioso, assim como o amor, e a necessidade de afastar a escuridão da morte de Aldo, e encontrar conforto e consolo no ato do amor se tornou premente. Giselle respondeu de imediato, retribuindo o beijo com seu próprio desejo. Às vezes, as ações e as emoções não precisavam de palavras, nem de explicação.

Saul partiu para a Rússia no dia seguinte, depois de um compromisso logo de manhã cedo na embaixada, para discutir os planos e obter aprovação para eles. Convence­ra a si mesmo de que Giselle, que havia acordado no meio da noite sentindo-se mal, resultado do vôo apressado de retorno ao Reino Unido e o choque do assassinato, estava de volta ao seu estado normal, ainda que seu estômago ainda estivesse um tanto sensível.

Os negócios deles teriam de esperar, agora, Giselle sabia. Haveria o funeral de Aldo para organizar, um fu­neral de Estado, é claro, dada a posição dele. Natasha seria enterrada junto do marido, mas a embaixada russa se encarregara de cuidar do enterro do pai dela.

Giselle decidiu passar o tempo, enquanto Saul estava longe, trabalhando em seus planos para a ilha que ele ha­via comprado; fora a aquisição daquela ilha que os reu­nira originalmente. Saul lhe dera a ilha como um presente-surpresa de casamento, e eles haviam decidido que em vez de construir um luxuoso complexo hoteleiro lá, como fora o plano inicial de Saul, a ilha se tornaria o lar de um complexo de férias para crianças órfãs e carentes. Giselle estava em negociações com vários parques temáticos, visando criar algo muito especial para aquelas crianças.

Uma das coisas que havia aprofundado o seu amor por Saul era o fato de que ele compreendia a necessi­dade dela de concentrar seus trabalhos de caridade nas crianças, por causa da morte do irmãozinho. Ela sabia, obviamente, que nada poderia trazer seu irmão de volta a vida, assim como nada poderia apagar completamente a culpa que experimentava, mas ela ainda se sentia im­pulsionada a fazer alguma coisa para ajudar as crianças cujas vidas podia salvar. Por causa de seu irmãozinho... Ou por causa dos filhos que ela nunca poderia ter?

Giselle empurrou para longe os planos em que estivera trabalhando no estúdio iluminado. Saul havia lhe entregado a casa logo depois de seu casamento, para ela reorganizar da maneira que achasse melhor, e o grande escritório duplo e área de trabalho que ela havia criado a partir da biblioteca original, formal e masculina, o encantaria tanto quanto a ela.

Aquelas crianças eram os filhos que ela jamais po­deria ter, pelo próprio bem deles, pela segurança deles quando fossem pequenos e vulneráveis, e pela possibili­dade de viverem suas vidas sem o medo, quando fossem adultos, que havia atormentado a vida dela.

Havia atormentado a vida dela? Giselle tinha certe­za de que aquele medo estava realmente no passado? É claro que tinha. Saul lhe dera o seu amor e sua garantia de que não desejava filhos, e seu marido era, acima de tudo, um homem de palavra. Um homem em quem ela podia confiar.

Giselle se levantou, piscando para afastar a súbita onda de lágrimas que lhe enevoara a visão. Por que esta­va chorando, quando tinha tanto? Quando tinha o amor de Saul? Quando era, em parte, a determinação que eles compartilhavam em não ter filhos que os ligava tão pro­fundamente? Ela realmente precisava se perguntar tudo aquilo? Todas as vezes que visitava as crianças assis­tidas por sua instituição, quando conversava com elas ou segurava uma delas nos braços, Giselle ansiava por segurar um filho de Saul, mas aquilo jamais poderia ou deveria acontecer.

Seu telefone celular tocou. Ela olhou para o aparelho, sorrindo quando viu que era Saul quem estava ligando.

— É apenas uma ligação rápida, querida. Só para ter certeza de que você está bem.

— Estou bem, e você? — ela perguntou, ansiosa.

— Estou resolvendo as coisas, e não deve demorar muito até eu poder voltar para casa.

— Sinto sua falta, Saul.

— Também sinto a sua.

Depois de desligar o aparelho, Giselle prometeu a si mesma que logo que todas as formalidades relaciona­das à morte de Aldo terminassem, ela sugeriria a Saul que tirassem alguns dias de folga juntos; não apenas para compensar pelo tempo que eles haviam perdido ao voltar correndo para a Inglaterra, mas também para que Saul pudesse viver seu luto por Aldo em privacidade.

 

Em moscou, Saul olhava pela janela de seu quarto de hotel. A promessa que Aldo lhe arrancara em seu leito de morte ainda pesava muito sobre seus ombros. Governar Arezzio sempre havia sido a última coisa que ele quisera fazer, e ele se sentia feliz por Aldo ter herdado aquela responsabilidade, e não ele. Saul adorava a vida que ele e Giselle haviam construído e sabia que ela também se sentia assim. A perda de seus pais e de suas infâncias deixara os dois com a impressão de que não importa­vam, de que não tinham sido amados por suas famílias, e aquilo os unira, assim como o compartilhamento de suas atividades de negócios, de que eles tanto gostavam. Suas vidas, durante aquele primeiro ano de casamento, se concentraram no amor um pelo outro e no dever que assumiram para com aquele amor.

Agora, entretanto, ele tinha outro dever a conside­rar. Um dever que mudaria totalmente o modo como ele o Giselle viviam suas vidas, e que imporia sobre eles todas as exigências que vinham com assumir o manto do governante herdeiro: o próximo em uma longa linha de sucessão, de pai para filho, por séculos e através de gerações.

Ele ficaria feliz em deixar a Rússia, e não apenas por­que sentia saudade de Giselle. O comportamento do pai de Natasha e de alguns de seus parceiros de negócios havia deixado um gosto ruim em sua boca, e ele vira, durante as reuniões que tivera com as autoridades russas, que eles compartilhavam de seu descontentamento pelo modo como Ivan Petranovachov acumulara sua imensa fortuna. Ao redor do pescoço de Natasha, na ocasião de sua morte, estava um colar que, como Saul havia sido in­formado, pertencera à última czarina; uma peça de tanto valor histórico certamente deveria estar em um museu. E mesmo assim, de alguma forma, o pai dela fora capaz de obter a jóia. Saul ficara feliz em entregar o colar para as autoridades russas, manchado como estava pelo destino da rainha para quem ele fora desenhado.

Sorriu para si mesmo, sabendo qual seria a reação de Giselle se ele lhe dissesse que desejava mandar fazer uma jóia para ela que valia um pequeno reino. Ela insis­tiria imediatamente para que ele investisse o dinheiro na instituição de caridade.

Giselle... Saul sentiu uma necessidade urgente de es­tar com ela, de abraçá-la, sentindo o calor vivo dela em seus braços enquanto faziam amor.

 

Os sinais do luto aumentavam conforme eles se aproxi­mavam da capital de Arezzio: bandeiras negras trazen­do o brasão de Aldo, hasteadas a meio mastro em cada poste, e penduradas das janelas das casas de seu povo. Aquilo formou um nó na garganta de Giselle. Ela se vi­rou para Saul para dizer algo a ele, mas se interrompeu. Saul não estava olhando para ela. Ele olhava para o outro lado. Ela sabia que ele seria muito afetado pela morte do primo, mas desde que havia voltado da Rússia, no começo da semana, e depois da primeira vez que fi­zeram amor, de forma intensa e feliz, Saul parecera se afastar dela e mergulhar nos próprios pensamentos. No início, ela imaginou que aquilo era um sinal natural da dor, mas agora estava começando a pensar que Saul a estava, deliberadamente, excluindo dos pensamentos e sentimentos relacionados com a perda de seu primo. Sempre que ela tentava falar com ele sobre Aldo, ele a interrompia e mudava de assunto, como se não quisesse dividir com Giselle o que estava sentindo. Por quê? Saul não compreendia que sua recusa em conversar com ela a respeito de Aldo a fazia se sentir afastada e rejeitada?

Ela tomou-lhe a mão, o movimento fazendo com que ele se virasse e olhasse para ela.

— Alguma coisa está errada — ele adivinhou. — O que foi?

O alívio a invadiu, e com ele a gratidão pela percep­ção aguda de Saul.

—Você tem estado tão distante e retraído desde que vol­tou da Rússia. Eu estava começando a ficar preocupada.

— Sinto muito. Tenho lutado para lidar com o que a morte de Aldo vai significar para nós. Nunca me passou pela cabeça que ele fosse morrer tão jovem, e nunca con­siderei o impacto que isto pudesse ter no futuro do país.

— O povo de Aldo irá sentir a falta dele — ela disse, baixinho. — Eu sei que nenhum de nós aprovava, real­mente, o modo como ele governava o país, com Natasha exercendo uma influência tão forte sobre Aldo e as nos­sas opiniões sobre democracia, mas ele fez o melhor que podia para ser um bom governante. Natasha gostava de reclamar que ele colocava o bem do país antes dela.

— Isso não era verdade, obviamente, mas Aldo ten­tava mesmo fazer o melhor para cumprir seu dever. Não era culpa dele que Natasha fosse tão determinada em conseguir as coisas de seu jeito. Ele também acredita­va sinceramente no direito das pessoas esperarem que ele colocasse seu dever para com elas antes de tudo, da mesma forma que acreditava na importância da tradição de aquele dever ser transmitido de geração para geração.

— O seu forte sentimento de dever e lealdade para com aqueles que você ama é algo que você e Aldo têm em comum... Tinham em comum — Giselle consertou rapidamente, aliviada quando Saul apertou sua mão, em vez de parecer chateado porque ela se referira a Aldo no tempo passado.

Ela se sentia muito melhor, agora que eles estavam conversando sobre Aldo, sobre os sentimentos de Saul. Sua infância a havia deixado com medo de ser excluída das emoções daqueles que amava, e Giselle suspeitava que às vezes aquilo a tornava sensível demais.

Eles finalmente chegaram ao palácio, onde a Guarda Real estava a postos, seu uniforme de honra normalmen­te colorido substituído pelo preto do luto, e suas túnicas, como as bandeiras, bordadas em vermelho e dourado, com o brasão da casa real. A tradição, como a pompa e a cerimônia, podia causar um forte impacto nos sentidos, como Giselle reconheceu ao serem recebidos, ao descer do carro, por um dos ministros mais antigos de Aldo, que se inclinou para Saul e em seguida os acompanhou pelo tapete negro até o palácio. Ela costumava se esquecer de que Saul carregava o mesmo sangue real de seu primo nas veias, principalmente porque o próprio Saul sempre deixara claro para ela que havia se distanciado de tudo o que envolvia a realeza.

Saul tinha seu próprio apartamento no palácio, e ela ficou aliviada com isso, porque eles podiam se recolher em privacidade depois do ritual e da cerimônia de de­claração de luto oficial que naturalmente dominava a atmosfera. Até mesmo os empregados estavam vestin­do preto, e todos na casa pareciam genuinamente tristes pela perda de seu líder. Giselle sabia que ele fora muito amado, apesar de sua natureza gentil ter tornado quase impossível para Aldo enfrentar a esposa e aqueles que queriam usar Arezzio para benefício próprio, por meio de uma série de esquemas que Giselle sabia que Saul havia tentado convencer o primo a não adotar.

—As coisas serão muito diferentes agora para o povo — ela comentou, quando se viu sozinha com Saul no apartamento.

— Sim — Saul concordou.

Ele se sentia aliviado pelo fato de que, embora ela não tivesse falado diretamente, os comentários de Gisel­le sobre o futuro do país davam a entender que ela estava consciente do papel que ele precisaria assumir. Ele esta­va grato a ela por não insistir em discutir o assunto, e por lhe dar o espaço que ele julgava ser necessário para lidar com o que viria pela frente. Quando ele fizera sua pro­messa a Aldo, seu comportamento fora instintivo e emo­cional. Só bem mais tarde realmente reconhecera o que aquela promessa significava. Então, Saul hesitou com o peso que Aldo havia deliberadamente colocado sobre seus ombros. Chegou a ficar ressentido e zangado com o primo, porque Aldo sabia que ele sempre se sentira feliz por seu pai ser o irmão mais jovem e por não herdar o título, nem a responsabilidade. Aqueles sentimentos o atormentaram durante sua estada na Rússia, e ele ansiara por Giselle ao seu lado, para que pudesse dividir aquele peso com ela.

Voltando para aquele lugar, naquele dia, ele sentia a hostilidade para com o peso que Aldo havia colocado sobre seus ombros dominá-lo. O peso de sua responsa­bilidade para com o primo e o sangue real o incomodava profundamente, assim como o luto que invadia o palá­cio e seus habitantes. Agora, só de entrar em seu próprio apartamento com Giselle, podia sentir aquele peso dimi­nuindo, a pressão da decisão que ele sabia que teria de tomar se dissipando. A calma e as palavras prudentes de Giselle sobre seu senso natural de dever o haviam ajuda­do a seguir na direção correta.

— As mudanças que terão de ser feitas beneficiarão o povo, mesmo que neste momento eles não sejam ca­pazes de perceber isso, meu querido. Todos nós amáva­mos Aldo, mas a realidade é que o país precisa de uma liderança forte e motivada. Talvez a morte dele tenha sido a maneira de o destino dizer que é hora de as coisas mudarem.

Saul estava ainda mais convencido de que ela havia percebido o impacto que a morte de Aldo causaria em suas vidas. Saber daquilo o confortava e fortalecia.

— Eu já lhe disse o quanto a amo? — ele perguntou.

Giselle sorriu para ele, aliviada. Saul parecera tão pre­ocupado e distante, mas agora ela podia ver que ele era seu amado novamente.

— Foi aqui que nós fizemos amor pela primeira vez. — Ele sorriu para ela e correu os dedos pela suavidade dos cabelos dela, puxando-a para perto de si.

Giselle retribuiu o sorriso, mas o movimento deles em direção um ao outro foi interrompido por uma batida forte na porta.

Soltando-a, Saul foi atender. Giselle pôde ver a figu­ra vestida de preto do ajudante de ordens da casa real, de pé no corredor; Saul inclinou a cabeça para ouvir o que ele dizia, antes de assentir e fechar a porta, voltan­do para perto dela. A intimidade calorosa desaparecera novamente da expressão dele, e uma tristeza velada as­sumira seu lugar.

— O corpo de Aldo será velado com honras de Esta­do na catedral, a partir de manhã. O ajudante de ordens disse que eu posso ir prestar a minha homenagem em particular agora, se eu quiser.

— Eu vou com você — Giselle começou a dizer, mas Saul sacudiu a cabeça.

— Não, é... melhor eu ir sozinho. Você e eu devemos abrir o cerimonial oficial amanhã. Poderemos ir juntos, então.

Ele partiu antes que Giselle pudesse protestar. A porta se fechou atrás dele com um clique alto, como um ma­chado que caísse entre eles, separando-os, Giselle pen­sou com apreensão.

Havia uma passagem subterrânea secreta que levava do palácio até a catedral, cavada na rocha sobre a qual a ci­dade fora construída. O túnel, agora, possuía luzes elétri­cas, mas enquanto seguia o ajudante de ordens, Saul teve de admitir que não era difícil imaginar o local iluminado apenas por tochas, enquanto aqueles que as carregavam se moviam com um propósito infinitamente mais peri­goso e sinistro, numa época em que o país estava sitiado pelos inimigos e por aqueles que o cobiçavam.

O país se separara da Igreja Católica ao mesmo tempo em que ocorrera a Reforma na Inglaterra, e agora sua religião poderia ser mais bem descrita como protestante.

O arcebispo estava esperando para recebê-los, e suas vestes formais eram um toque de cor brilhante depois da escuridão do túnel e da atmosfera do castelo invadido pelo luto. A catedral parecia, para Saul, uma versão me­nor da Abadia de Westminster. Sobre o altar principal, havia um vitral antigo contando os bravos feitos de seus ancestrais, antes de subirem aos céus acompanhados por arcanjos alados. O caixão de Aldo, forrado com seda branca, estava no centro da igreja. O próprio Aldo vestia os trajes cerimoniais do governante. O aroma de incenso pesava no ar, como as palavras da prece que o arcebispo murmurou antes de se retirar, junto com o ajudante de ordens, e deixar Saul sozinho com o corpo do primo.

Na morte, as feições de Aldo haviam assumido uma dignidade solene, que o fazia parecer mais severo do que realmente fora. Um homem tão gentil, que não merece­ra a crueldade de seu destino. Um homem a quem Saul dera sua palavra, sua promessa de que tomaria sobre si a responsabilidade da liderança que Aldo fora forçado a abandonar.

Silenciosamente, Saul se ajoelhou ao lado do caixão. Era tarde demais para mudar de idéia. Dera sua palavra. Com a aceitação do fato, veio uma sensação de alívio e liberação, diminuindo o ressentimento que o dominava. Giselle estivera certa quando dissera que o país precisa­va de um governante de pulso. Havia tanto que um líder forte poderia fazer por seu povo. Ele poderia dar a eles as escolas necessárias para uma educação de qualidade. Poderia disponibilizar fundos para que os jovens estu­dassem nas melhores universidades do mundo, e depois voltassem para seu país trazendo o que aprenderam lá fora. Ele poderia, com o tempo, construir sua própria universidade, onde aquelas pessoas pudessem transmitir seus conhecimentos para outras. Poderia transformar seu país, tirando-o da inércia e da pobreza, em uma usina de energia criativa. Aquele era um projeto que ele sabia que interessaria a Giselle. Ele poderia ser o líder que Aldo esperara que ele fosse, o governante que ele prometera que seria, mas para fazer isto, teria de dar as costas à vida que ele e Giselle haviam criado juntos. Eles teriam de sacrificar suas liberdades de escolha pelos compro­missos de Estado, pelas expectativas do povo, pela tra­dição e pela cerimônia. Saul se levantou.

A primeira coisa que ele fez quando voltou ao aparta­mento foi tomar Giselle nos braços, apertando-a contra si com força. Ele cheirava a ar frio e incenso, Giselle pensou, e sentiu o peito dele se expandir com a respi­ração profunda, antes de ele expirar pesadamente. Ela ergueu o rosto para olhá-lo, mas ele sacudiu a cabeça e a beijou, um beijo apaixonado e exigente, com tal in­tensidade que as emoções de Giselle responderam de imediato. Saul não confiava em si mesmo para falar a Giselle sobre a morte de Aldo, Saul reconhecia. A dor que sentia ao perder o primo, de modo tão inesperado e chocante, trazia ecos indesejados do desespero e da raiva que sentira com a morte de seus pais, e com eles, vinha a consciência de sua própria vulnerabilidade em relação àqueles que amava.

Se havia uma coisa que Saul achava difícil enfrentar era a idéia de ser emocionalmente vulnerável. Era muito mais fácil agir do que falar, muito mais fácil se perder na expressão física da necessidade que sentia da presença de Giselle, do conforto de sua proximidade, viva e respi­rando. Era muito mais fácil abraçá-la e fazer amor com ela do que dizer a ela o que sentia. Um homem não de­monstrava fraqueza, afinal de contas, nem mesmo para a mulher que amava, porque ela certamente precisava que ele fosse forte pelos dois.

Era como serem jovens amantes novamente, ou amantes que haviam passado um longo tempo separados, Giselle pensou. O desejo de Saul por ela era o de um homem que sufocara uma necessidade que não era mais capaz de controlar. Aquilo a excitava e desarmava ao mesmo tempo; fazia-a sentir que nada mais importa­va, além do amor de um pelo outro. A simpatia que ela desejara mostrar a ele, o conforto que quisera lhe dar eram mais bem expressos por meio do compromisso fí­sico que tinham um com o outro. Havia uma selvageria, uma intensidade, algo quase animalesco no modo como ele a tocava, grunhindo de prazer contra os lábios dela, enquanto lhe acariciava o seio. O desejo dele acendeu o dela, e o silêncio do quarto foi abafado rapidamente pe­los sons da fome que sentiam um pelo outro, da respira­ção acelerada, das mãos agarrando tecidos, dos gemidos de triunfo ou desespero quando uma nova intimidade ora alcançada ou negada pela barreira de roupas que a paixão crescente deles não apenas queria, mas precisava arrancar.

Aquele não era o jeito de fazer amor de um amante gentil e compreensivo. Era a satisfação da necessidade mais básica de um homem, sensual e predatória, e do desejo de uma mulher, da sua mulher, de atender àquela necessidade, Giselle reconheceu, enquanto Saul des­nudava-lhe os seios, admirando-os e depois tocando-os com um som primitivo de triunfo. As mãos dele em sua pele, as pontas de seus dedos acariciando e depois eroticamente beliscando-lhe os mamilos, faziam Giselle estremecer convulsivamente, em um prazer desinibido. Aquele era o desejo que sentiam um pelo outro, em sua forma mais básica, em seus elementos mais primitivos e sensuais. Aquilo era necessidade levada ao ponto máxi­mo de intensidade, quase perigoso, e absolutamente chocante. Uma mulher precisava confiar totalmente em um homem para se entregar a uma conflagração tão absoluta de desejo. E ela confiava nele, Giselle pensou, ao sentir as chamas queimando dentro de si, enquanto o calor do toque de Saul queimava-lhe a pele.

— Beije-me — ela ordenou ao marido, sabendo que estava indo em direção ao fogo, entregando-se para ele para que fizesse o que bem entendesse.

Eles não eram estranhos à intensidade da própria pai­xão, do desejo que sentiam um pelo outro, mas agora havia outro elemento presente na forma como faziam amor, ou assim parecia para Giselle. Como se a morte tivesse aumentado e intensificado o apetite de Saul pela vida, e por ela. Havia uma urgência, uma necessidade, um limite expandido na intimidade deles, enquanto Saul acariciava, em adoração, cada zona erógena e detalhe do corpo dela, até que a espiral de desejo em que ela caíra chegava ao ponto em que ela, incapaz de suportar mais, teve de implorar para ele acabar com aquela tortura e preencher o vazio dolorido dentro dela. O clímax ini­cial foi agudo e imediato, mas Saul continuou a excitá-la com movimentos profundos e apaixonados que a leva­ram muito além de sua experiência passada, para um lugar onde sua carne se colava à dele, buscando apoio, durante aquela jornada em comum, assim como Giselle se agarrava a ele. O grito que Saul deixou escapar nos segundos finais da liberação mútua pareceu a Giselle ter sido arrancado do coração dele.

Deitado ali, abraçado a Giselle, enquanto seu coração desacelerava e voltava ao normal, Saul sentiu o alívio invadi-lo. Eles estavam vivos e estavam juntos. Eles haviam ido às alturas e voltado juntos, na jornada que afastara a escuridão da morte de Aldo de seu coração e restaurara sua força e autoconfiança. O amor que eles haviam feito, tocara sua alma. Mas ele não podia falar sobre como se sentia. Ele não queria que Giselle, que ele amava tanto, pensasse nele como emocionalmente fraco e incapaz de lidar com tudo o que a morte de Aldo significava.

Ele precisava ser forte. Devia construir um futuro para os dois sobre a pira funerária que consumiria os planos que haviam feito antes. Saul tinha de provar a Giselle que era forte o suficiente para construir aquele futuro para eles. Ele devia mostrar a ela que podia confiar nele para assumir a responsabilidade que o destino havia co­locado sobre seus ombros e, ao mesmo tempo, permitir que vivessem uma vida o mais próximo possível daquela que eles haviam planejado originalmente, enquanto ele carregava o peso da promessa que fizera a Aldo. Até que ele pudesse descobrir por si mesmo a melhor forma de fazer aquilo, até que pudesse mostrar a Giselle que podia ser feito, ele não iria discutir a situação com ela.

A última coisa que queria era que ela fosse consumida pela ansiedade e pela preocupação com as mudanças em suas circunstâncias de vida. Ele podia dever uma pro­messa a Aldo, mas muito mais importante que isso era o seu dever de amor e proteção para com Giselle. A morte de Aldo havia mudado as vidas deles completamente, e a própria Giselle estava bem consciente disso, sabendo que ele era o parente vivo mais próximo de Aldo. Ela sabia e entendia que ele tinha o dever de tomar o lu­gar de Aldo, obviamente, porque eles sempre souberam que ele era o herdeiro de seu primo. Tecnicamente, sim. Mas nenhum dos dois esperara que Saul fosse chamado a assumir a responsabilidade de cumprir aquele dever. E por que deveriam, quando Aldo era mais jovem que Saul, e casado com uma mulher que não escondia o fato de que queria dar à luz o futuro grão-duque? O destino, contudo, tivera outras idéias, e agora era seu dever as­sumir a responsabilidade que a morte de Aldo havia lhe conferido. Com Giselle ao seu lado, ele construiria uma nova vida sobre os alicerces que seus ancestrais haviam fundado, não apenas para si mesmos, mas para todos que a promessa que Saul fizera a Aldo tornara dependentes dele.

 

O funeral de Estado, com toda a sua sobriedade e sole­nidade, terminara, e Aldo havia sido enterrado no Mauso­léu Real, com Natasha ao seu lado. Naturalmente, como primo de Aldo, Saul fora convidado para desempenhar o papel principal na cerimônia, ficando junto aos chefes das outras Casas Reais e dos representantes de outros gover­nos que haviam comparecido ao funeral. E Giselle, como esposa de Saul, também tinha o seu papel para desempe­nhar, um papel não muito diferente, na verdade, do que tinha nos negócios de Saul, como sua esposa e parceira.

Agora, os convidados haviam retornado a seus paí­ses, e dois dias depois do funeral de Estado, Giselle e Saul estavam finalmente livres para ficarem sozinhos no apartamento dele.

— Eu já lhe agradeci por tudo o que você tem feito nestes últimos dias? — Saul perguntou a Giselle cari­nhosamente, enquanto se sentavam juntos no pequeno jardim privado do apartamento, aproveitando o sol da manhã e tomando o café.

— Você não precisa me agradecer. Eu quis ajudar, e na verdade, não foi nada diferente da socialização que precisamos fazer para os negócios, embora eu tenha me sentido um pouco desconfortável em alguns momentos, com tantos membros das famílias reais que comparece­ram ao funeral imaginando que você irá assumir o lugar de Aldo. Eu perdi a conta do número de convites que re­cebemos para visitarmos suas cortes. Não que eu queira aceitá-los.

— Nem eu, se tiver escolha — Saul concordou. — Mas, como ambos sabemos, a morte de Aldo significa que não temos mais a liberdade de escolha.

O sorriso de Giselle se desvaneceu imediatamente.

— O que você quer dizer, Saul?

— Você sabe o que eu quero dizer: terei de assumir o lugar de Aldo, e por causa disso...

— O quê?! — O café espirrou da xícara de Giselle em seu vestido de linho preto, enquanto ela lutava, e perdia, uma batalha para controlar o choque e a incredulidade. — Não pode estar falando sério, Saul. Você sempre disse que governar era a última coisa que queria. Quando nós nos casamos, você...

A reação dela pegou Saul desprevenido. Não era aqui­lo que ele esperava. Ele havia imaginado que ela per­cebera o que deveria acontecer. Agora, a sua reação ao que o seu cérebro de macho alfa interpretava como um ataque à sua honestidade e à sua capacidade de despertar a total confiança dela o levou a uma imediata e aguda autodefesa, através de um ataque em retaliação.

— Sei o que eu disse Giselle. Mas as coisas muda­ram. A morte de Aldo mudou tudo, e você deve saber disso.

— Eu devo saber disto?

A declaração de Saul, totalmente inesperada e com­pletamente indesejada, encheu Giselle de um pânico misturado com raiva e uma sensação de traição.

— O que eu sei é que me casei com um homem que jurou para mim que jamais iria querer governar seu país!

— Eu ainda não quero governá-lo. Não se trata do que eu quero Giselle. Trata-se do que eu devo fazer.

O que havia acontecido com seus planos de colocar orgulhosamente à frente de Giselle a sua estratégia cui­dadosamente elaborada para o que ele esperava que fos­se o futuro deles e o futuro do país?

— Você mesma disse que a morte de Aldo significava que o país precisa de um líder forte — Saul lembrou a Giselle.

— Sim, disse. Mas não quis dizer que você deve­ria assumir o lugar de Aldo. Como pode pensar que eu diria isso, quando você sempre afirmou que era a últi­ma coisa que queria? Eu quis dizer que o país precisa eleger uma liderança forte, democraticamente. Como pode ficar sentado aí e declarar que vai tomar o lugar de Aldo? Isso vai contra tudo o que você sempre me disse, tudo o que me fez acreditar e confiar em você. Eu sinto que nunca o conheci de verdade. — A força das emoções dela fez sua voz tremer e encheu seus olhos de lágrimas.

Saul sentiu seu coração se apertar. Bem lá no fundo, não era aquilo que uma parte dele temia secretamente? Mesmo que ele tivesse escondido aquele medo e con­vencido a si mesmo de que Giselle devia saber o que a morte de Aldo significava.

— Não posso acreditar que você escolheu fazer algo assim, Saul.

— Eu não escolhi — Saul sussurrou. — Antes de morrer, Aldo me implorou que prometesse que o faria. Pelo bem do país, Giselle — completou quando ela sim­plesmente olhou para ele com um ar de rejeição furiosa. — Ele disse que era uma questão de dever para com o nosso povo e os nossos ancestrais. Entendo que isso é um choque para você, e é minha culpa, mas, por favor, tente ver o lado positivo das coisas.

— Que lado positivo? — Giselle estava tremendo de raiva e incredulidade. — Você me garantiu que governar Arezzio era a última coisa que queria, e agora está me dizendo para olhar o lado positivo? O lado positivo do que, Saul? De você mentir para mim? De me enganar?

— Eu não menti para você, nem a enganei. Quando eu disse aquilo, fui sincero.

— Mas agora mudou de idéia? Simples assim? Sem me dizer uma palavra?

— Não é simples assim. Nunca esperei que Aldo morresse antes de mim, mas aconteceu. Este país pre­cisa de nós, Giselle. Há tanto que podemos fazer aqui, para o povo e para o país. Eles precisam da nossa aju­da. Nós podemos construir escolas, educar as pessoas, mandá-las para as melhores universidades do mundo. Podemos construir um país que valoriza o seu povo, que o apóia e encoraja.

A paixão e o entusiasmo na voz dele atingiam o cora­ção de Giselle como golpes físicos.

— Você já se decidiu, não é? Já resolveu o que vai fazer. E pensar que o nosso casamento deveria ser uma parceria igual e verdadeira. Quando se trata das coisas que mais importam, você nem sequer pensa em me consultar.

— Eu já lhe disse, pensei que você tivesse imaginado. Giselle, preciso que você me apóie nisso. Sinto muito se acha que eu falhei com você. Não era essa a minha inten­ção. — Saul queria desesperadamente que ela compre­endesse, e que compartilhasse com ele a determinação em encontrar algo positivo naquela mudança dramática em seu futuro.

Ele odiava vê-la tão aborrecida, sabendo que era a causa daquela perturbação, mas ao mesmo tempo uma parte dele sentia que ela poderia ser um pouco mais compreensiva a respeito de sua posição.

Ela obviamente não tinha a menor intenção de sê-lo, porque disse amargamente:

— Como posso confiar em você de novo, quando to­mou uma decisão tão importante sobre o nosso futuro em comum sem me dizer uma palavra?

Como os planos dele podiam ter dado tão errado?

— Eu já lhe expliquei. Pensei que você tivesse imagi­nado... percebido... eu acreditava, e ainda acredito agora, que você veria o potencial de fazer o bem nesta peça que o destino nos pregou, e que gostaria de responder a este desafio, a esta exigência de tudo o que temos e somos juntos, pelo bem dos outros.

— E quanto ao bem que nós já estamos fazendo atra­vés da nossa instituição, e quanto aos nossos planos? Você não pode governar este país e ainda ter o tempo e o compromisso que dedicamos a eles.

—A instituição chegou a um ponto em que um comi­tê e conselheiros nomeados por nós podem dirigi-la em nosso lugar. Você sabe que isso é verdade.

Giselle sabia, mas não queria admitir.

— Não pode ver, Giselle? Este é um novo desafio para nós, uma nova chance para tudo o que podemos oferecer, e para tudo o que já aprendemos sobre doa­ção. Foi você quem me deu a coragem e a inspiração para começar os projetos de caridade com as crianças. Eu preciso desse seu apoio, aqui e agora, mais do que nunca. Nós somos almas gêmeas, você e eu. Nós dois sabemos disso.

A dor dentro dela era insuportável, porque tudo o que ele dissera era verdade. Da mesma forma que era ver­dade que ela não poderia acompanhá-lo naquele futuro que ele estava planejando. Se ele seguisse em frente e tomasse o lugar de Aldo, teria que fazê-lo sozinho,

— Você fala sobre nós — ela disse a ele tristemente — mas pretende tomar o lugar de Aldo e não se importa com o que eu sinto, o que eu digo, nem com as promes­sas que me fez, não é?

Saul ansiava por tomá-la nos braços e implorar que compreendesse, mas tinha de comparecer a uma reunião, e uma vez que ela estivesse em seus braços, as coisas não iriam parar em um simples beijo. Nunca era assim. O laço mágico que os unia significava que cada vez que eles se tocavam, queriam o próximo toque, e provar o desejo e o amor que nutriam um pelo outro da forma mais íntima possível. Talvez fosse a falta de demonstra­ções físicas de afeição de seus pais que tornasse a inti­midade física que eles compartilhavam tão especial para os dois, e tão importante. Saul não sabia. Ele só sabia que ter Giselle em seus braços era querer continuar a abraçá-la.

— Eu preciso, Giselle — foi tudo o que ele pôde dizer. — Eu não queria, no começo; tudo o que você acabou de dizer eu também senti. Mas talvez seja mais ligado aos meus ancestrais, do que jamais imaginei. Aldo estava certo: é o meu dever fazer o melhor que posso pelo povo deste país.

Com cada palavra que Saul dizia, o coração de Giselle se apertava mais e seu pânico crescia... Até que ela sen­tiu que seu medo ameaçava sufocá-la.

— Posso ver que a choquei — Saul admitiu. — Mas, por favor, querida, tente pensar no quanto nós podere­mos realizar aqui juntos, no quanto poderemos melhorar a vida deste povo. Por favor, tente compreender que é aqui que está o meu dever, e é aqui que está o nosso futuro.

— E quanto ao seu dever comigo? Conosco? Você diz que prometeu a Aldo que tomaria seu lugar, mas e quanto à sua promessa para mim, antes de nos casarmos? O que você pretende fazer muda tudo entre nós. Ameaça tudo o que mais importa para mim, e tudo o que eu acre­ditava que importasse para você, também.

— Oh, minha querida... — Saul se encheu de remor­so, quando ouviu a ansiedade na voz dela, imaginando que o que a estava preocupando era a liberdade pessoal que ela achava que eles iriam perder, devido aos deveres da família real. Saul não tinha intenção nenhuma de permitir que aquilo acontecesse. — Eu vou assumir o lugar de Aldo, mas isso não nos afetará, ou ao nosso relacionamento. Eu jamais deixaria que isso aconteces­se. Sei que esta mudança nos nossos planos pode pa­recer assustadora, mas nós ainda seremos nós, Giselle.O nosso amor um pelo outro não irá mudar. Eu jamais permitiria.

A reação de Giselle às notícias não fora a que ele es­perava, Saul admitia, mas ele não iria deixar que o an­tagonismo dela em relação à situação ficasse entre eles. Como empresário bem-sucedido, sabia que às vezes os planos precisavam ser modificados no último minuto, e de modo a sobreviver em um mercado moderno e al­tamente competitivo, uma pessoa precisava se adaptar, ver oportunidades, e não problemas, e transformar pro­blemas em oportunidades. Ele acreditara que Giselle compartilhava daquela visão, mas agora, a recusa dela em perceber as oportunidades de fazer um bem maior que vinham com a mudança de circunstâncias estava criando uma barreira entre os dois; e Giselle, com suas acusações furiosas, parecia determinada a reforçá-la. Ele era um homem acostumado a assumir e exerci­tar controle, e estava determinado a fazer exatamente aquilo, agora.

— Isto não está ajudando a nenhum de nós, Giselle. Aceito que cometi um erro de julgamento ao acreditar que você já imaginasse o que estava acontecendo, e esti­vesse comigo nesta mudança em nossas vidas e no cami­nho à nossa frente. Eu deveria ter me certificado de es­tar certo, em vez de simplesmente presumir que estava. Reconheço que você tem todo o direito de estar zangada comigo, mas me acusar de não levar o nosso relaciona­mento, o nosso casamento, em consideração, e não colo­cá-lo em primeiro lugar, não é justo nem honesto. Nada a respeito do que compartilhamos mudou ou irá mudar por causa de circunstâncias externas. Apenas você e eu temos o poder de fazer isso. Pense nisso, Giselle — ele implorou, levantando-se e aproximando-se dela. — Pen­se no bem que podemos realizar juntos, aqui, trabalhan­do pelo povo. Pense em como o destino nos uniu, duas pessoas que compartilhavam do trauma que viveram com as mortes de seus pais, e com tudo o que veio de­pois, e pergunte a si mesma se o destino não está tra­balhando novamente agora, unindo-nos de novo em um lugar e em um momento em que podemos fazer tanto por pessoas que têm tão pouco. Você, mais do que ninguém, pode certamente entender o senso de responsabilidade que tenho para com essas pessoas, pelo meu sangue. Ad­mito que não me sentia nem pensava assim no passado, e que foi preciso a morte de Aldo para me conscientizar do meu dever, mas agora que isso aconteceu, não posso me afastar dele...

Ele se interrompeu e sacudiu a cabeça.

— Preciso ir, querida. Tenho uma reunião com os altos membros do governo de Aldo em dez minutos. Nós dois vamos ter de terminar essa conversa mais tarde, mas enquanto eu estiver fora, por favor, tente pensar de forma positiva sobre o futuro. Você é tudo para mim, Giselle. Sem você não tenho e não sou nada. O seu amor me sustenta e me apóia. Você é a minha vida.

Ele se foi antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

Depois que Saul se foi, Giselle caminhou inquieta pelo jardim, seu coração martelando, seus pensamentos per­didos em um pânico caótico. Ela nem sequer notava o sol brilhante e a tranqüila simetria do espaço elegante­mente projetado, que tanto a agradara menos de uma hora antes.

Saul havia feito um grande esforço para garantir a ela, repetidamente, que o fato de estar assumindo o lugar de Aldo não iria e não poderia alterar o relacionamento de­les; mas ele estava errado. Muito errado. Porque o que ele fizera iria destruir tudo.

O que Saul fizera? O corpo de Giselle estremeceu com a força de suas emoções. Aquela era a sua punição por enganá-lo, por não contar a ele toda a verdade sobre seu passado, e o segredo obscuro e perigoso que se es­condia nele. Ela havia jogado com o destino, e perdera. Assim como perderia Saul, agora.

A dor e o desespero a invadiram, tomando-lhe o corpo e a mente. Era egoísmo dela desejar que Aldo não tivesse morrido? Desejar que ela pudesse voltar os ponteiros do relógio, e para quando? Para o dia do casamento deles, quando sua tia-avó lhe perguntara se ela havia contado tudo a Saul, e ela dissera que sim? Para antes disso? Para a sua própria infância? Ela desejaria nunca ter nascido?

Sim, quando o preço dessa vida era o peso que ela era forçada a carregar: o conhecimento do horror do que ela podia ser capaz, e do medo de passar aquele horror para seu próprio filho, que a havia feito jurar que jamais seria mãe. A insistência de Saul de que também não deseja­va filhos era porque ele não queria infligir sobre eles a infância que tivera, com seus pais sempre ausentes. Ele sabia bem o quanto a excitação de uma vida profissional bem-sucedida significava para ele, e que isto necessa­riamente o afastaria de uma criança. Aquilo dera a ela a confiança para se casar com ele. Saul havia se mostra­do totalmente contrário à idéia de terem filhos... Bem, naquela época. Agora, entretanto, com Saul tomando o lugar de Aldo, aquilo teria de mudar. Ele iria querer um herdeiro, uma criança que ela não poderia lhe dar. Ela não tinha provas daquilo, e sabia, mas não podia evitar temer que estivesse certa. Ele já havia provado, embora na certa fosse negar, que assumir seu papel como herdei­ro de Aldo significava mais para ele do que ela própria. E um herdeiro também significaria.

O casamento deles estava condenado, e teria de termi­nar. Fatalmente, Saul se afastaria dela e se casaria com outra mulher, uma mulher que pudesse e quisesse lhe dar um herdeiro. Uma mulher que pudesse e quisesse dar a ele o que ela não podia.

Fatalmente. E, um dia, ela seria capaz de parar de amá-lo? Nunca! Seu corpo inteiro estremeceu. Ela o ama­va tanto que não conseguia imaginar parar de amá-lo, ja­mais. Outro peso intolerável para ela carregar. O que era a vida, se tudo o que envolvia era dor e perda? Melhor não viver, então.

Giselle estremeceu. Era assim que a sua própria mãe se sentira? Um pânico novo a invadiu. Não havia nin­guém a quem ela pudesse recorrer, ninguém que pudesse ajudá-la. Por que aquilo tivera de acontecer? Até mesmo o jardim e o palácio, agora, lhe pareciam um ambiente estranho e desconfortável, um lugar onde ela não que­ria estar, porque jamais poderia estar à altura do que ele representava: continuidade, um título, um lugar na vida e um dever a ser transmitido de geração para geração, de pai para filho. Ou filha. A história estava cheia de exemplos de mulheres que haviam provado serem líde­res fortes. Uma filha! Outro estremecimento selvagem a sacudiu. Ela precisava fugir de seus pensamentos e do próprio palácio, com tudo o que ele representava.

 

O sol de verão estava quente nas costas de Giselle, quando ela emergiu de uma viela estreita de pedra e chegou a uma das praças principais da cidade. Esta, em particular, era rodeada pelos prédios históricos das associações de comércio medievais, a associação dos joalheiros, a associação dos tecelões e a imponente sede da associação de comerciantes. Como um país in­dependente, Arezzio, com suas ricas fazendas e suas montanhas repletas de depósitos minerais, havia en­riquecido com o comércio durante a época medieval, uma riqueza que permitira a seus cidadãos tornarem-se patronos de pintores e escultores, muitos dos quais ha­viam viajado a Florença e outras partes da Itália para aperfeiçoar suas habilidades. Agora, contudo, o país caíra em declínio, sem novas indústrias para ajudá-lo a se desenvolver.

Os sinais daquele declínio, e da decadência, eram evidentes nos edifícios que rodeavam a praça, assim como os sinais da pobreza eram evidentes entre o povo. Aqueles que tinham dinheiro suficiente mandavam seus filhos para serem educados no exterior, e aquelas crian­ças acabavam construindo suas vidas em outros países; e a pobreza do país, atualmente, era também uma pobreza de inteligência e aspirações. Saul estivera certo quando afirmara que o trabalho que eles poderiam realizar ali seria importante e válido. Mas ela não seria a mulher, a parceira, a esposa que realizaria aquele trabalho junto dele. Um líder que precisava de um herdeiro também precisava de uma esposa que pudesse e quisesse lhe dar aquele herdeiro, e, ainda que Saul não tivesse dito nada a ela sobre a necessidade de ter um filho, fatalmente ele o faria. Teria de fazê-lo.

Da praça, Giselle conseguia ver o palácio, no alto de uma montanha rochosa, guardando a entrada para o vale fértil onde ficavam as fazendas do país, um símbolo do papel da família de Saul, de proteger o povo daquela ter­ra. A democracia podia andar de mãos dadas com aquele tipo de tradição, sob a liderança do homem certo, um ho­mem de talento e visão, um homem de grande coragem e honestidade maior ainda. Ela se orgulharia de ficar ao lado de um homem assim, mas aquilo não poderia ser. Ao caminhar de volta para o palácio, Giselle soube que, mesmo que Saul a amasse e não quisesse terminar o ca­samento, ele teria de fazer uma escolha: abandoná-la, ou ao seu povo.

Ela sabia também, depois de ouvi-lo falar sobre as di­ficuldades que seu país enfrentava, percebendo a paixão e a dedicação em sua voz, que a promessa que ele fizera a Aldo não lhe permitiria escolhê-la. Como o amor deles poderia ser levado em conta, em comparação às necessi­dades de tantos? Não poderia.

No caminho de volta, ela passou pelo local onde, an­tes de seu casamento, ela havia visto uma jovem mãe atravessando a rua e fora transportada de volta para a sua própria infância. Aquele incidente levara à revelação de parte do tormento de seu passado para Saul. Se ela tives­se contado tudo a ele, será que ele ainda a teria amado, e se casado com ela? Devia ficar agradecida pelo amor que havia tido, pela alegria que eles haviam compartilhado, e disse isso a si mesma. Ela devia se agarrar às lembranças e ser sustentada por elas. Não tinha outra escolha. E, por enquanto, ela ainda tinha Saul e seu amor. Por enquanto. E era no agora que devia se agarrar, para se sustentar; era agora a hora de preencher seus sentidos e seu coração com o amor deles, e de celebrá-lo com Saul, criando lembranças para os anos tristes que certamente viriam.

Quando Giselle se aproximou do palácio, notou distraidamente a atividade na butique cara e exclusiva aon­de Natasha a levara uma vez. Sua proprietária estava levando as roupas da loja para uma van estacionada em frente, deixando as araras vazias. Sem dúvida, sem sua freguesa, real, a proprietária da loja e suas mercadorias não eram mais necessárias.

Giselle se sentiu vulnerável, e muito assustada.

 

A reunião a que Saul comparecera havia exigido dele uma grande demonstração de tato, ele pensou, enquanto voltava ao apartamento. A velha guarda dos conselheiros de Aldo, homens idosos em sua maioria, contemporâne­os do pai de Saul em idade e hábitos, poderia ter rece­bido bem a sua decisão de tomar o lugar de Aldo, mas Saul não tinha ilusões. Eles acreditariam que continua­riam a governar o país, da mesma forma que o haviam feito com Aldo; o líder seria pouco mais do que uma presença simbólica da casa real. A natureza de Aldo era gentil demais para que ele os enfrentasse e colocasse sua própria marca no país. Não que eles tivessem feito algo de errado: eram respeitáveis, honestos; mas suas crenças e costumes estavam firmemente enraizados no passado, e não apoiariam as mudanças necessárias para levar o país para frente.

Todos eles pareceram espantados, e um ou dois haviam lançado um olhar de desaprovação quando Saul falara so­bre levar internet de alta velocidade a todas as partes do país, recusando-se a acreditar que era financeiramente possível fazer algo parecido, e muito menos reconhecer que havia a necessidade. A relutância deles simplesmen­te aumentara o apetite de Saul. Ele estava acostumado a lidar com objeções e problemas, e superá-los. Ele iria su­perar a relutância deles. Ele iria dar ao povo de seu país, o seu povo, o que ele precisava e merecia.

Naquele momento, contudo, sua principal preocupa­ção era Giselle.

Eles sempre haviam trabalhado tão bem juntos, com­partilhando a mesma visão em suas crenças e planos, que ele sentira a falta do apoio dela de forma tão aguda como se tivesse recebido uma rajada de vento na pele nua. A ausência dela dos seus planos e esperanças para o país doía. Saul queria que ela sentisse a mesma paixão dele pelo que eles poderiam realizar. Queria que os dois vivessem em harmonia. Ele queria ver o rosto dela se iluminar de excitação e entusiasmo quando conversas­sem sobre seus planos. E enquanto estava ouvindo as opiniões de seus ministros, formulara um plano que, ele esperava, a ajudaria a entender e apreciar o quanto as ha­bilidades deles — deles, não apenas dele — eram neces­sárias ali. Não se tratava de uma chantagem emocional, nem, o que seria pior, a manipulação de seus sentimen­tos sobre algo que ele sabia que era importante para ela, Saul disse a si mesmo. Seria algo que ela mesma veria como preocupante; algo que ela concordaria que preci­sava da intervenção deles. Algo que eles estavam numa posição privilegiada para realizar, por causa de suas ha­bilidades, conexões e conhecimentos.

Um dos ministros mencionara um desastre que atin­gira o país recentemente, quando atividades de mineração realizadas por uma das empresas do pai de Natasha resultaram em um desmoronamento sobre a pequena cidade que ficava nos arredores da mina. O desmoro­namento também soterrara a serraria que empregava a maioria dos habitantes da cidade, deixando centenas de pessoas feridas e suas casas destruídas. Os habitantes estavam, atualmente, vivendo numa pobreza extrema. Quando Saul perguntara ao ministro o que estava sendo feito para ajudar aquelas pessoas, ele respondera que não havia nada que pudesse ser feito. Não havia dinheiro no tesouro nacional suficiente para permitir que eles fizes­sem o que quer que fosse.

O país não tinha um sistema previdenciário formal. A ajuda, nestes casos de desastre, dependia muito das atitu­des do governo e de instituições locais. Aldo estava fora do país quando o desmoronamento acontecera, e morrera antes de poder tomar uma atitude a respeito.

Saul deixara bem claro para os ministros que este tipo de ação improvisada não era boa o suficiente. Ele tam­bém havia deixado claro que a licença de operação da companhia mineradora seria revogada, e fora informado pelo ministro que as atividades de mineração já haviam parado, e que os representantes da empresa, deixaram o país. Saul fizera preparativos para que Giselle e ele pró­prio visitassem a área naquela tarde, e esperava que o apelo do povo ajudasse a diminuir a resistência dela em construir suas vidas no país.

Ele a encontrou no pátio, e ela mal tocara no almoço.

— Não estou com fome, só isso — Giselle respondeu quando ele lhe perguntou por que ela não havia comido nada.

Era verdade, afinal de contas. A tristeza dela a esta­va deixando fisicamente doente, e ela se sentira tão mal depois de uma onda de náusea que simplesmente não conseguira comer. A simples idéia de comida estava fa­zendo seu estômago revirar, com a ameaça de uma nova onda de náusea.

— Você deveria comer alguma coisa, mesmo que seja apenas um sanduíche, querida. Temos uma tarde movi­mentada à nossa frente e uma longa viagem.

Giselle sacudiu a cabeça antes de perguntar:

— Uma longa viagem? Para onde?

— Há algo que eu quero que você veja — Saul res­pondeu, de forma enigmática. — Nunca passamos tem­po suficiente no interior, nas nossas outras visitas, para você ver o que existe além do palácio e da cidade.

— Segundo Natasha, existem apenas campos habita­dos por camponeses — Giselle disse a ele, secamente.

— Se os habitantes de Arezzio são camponeses é por­que nunca tiveram a oportunidade de ser outra coisa — Saul defendeu seu povo. — Pretendo mudar isso. Quan­do eu estava conversando com os ministros esta manhã sobre a necessidade de ter acesso à internet de alta velo­cidade em todo o país, eles me olharam tão espantados que imaginei se alguns deles realmente sabem o que é um computador. Sei que eles têm hábitos profundamente arraigados, mas confesso que não havia percebido como ainda pertencem ao século XX, se não forem do XIX.

Saul sorria ao falar, tentando alegrá-la, Giselle ima­ginou, e seu coração doeu com o amor por ele e com o medo ao pensar no futuro e o que ele poderia lhes trazer.

Mais cedo ou mais tarde, Saul iria querer discutir o assunto de eles produzirem um herdeiro. Ele teria de fazer aquilo, certamente. Aldo sempre deixara claro que produzir um herdeiro era muito importante para qual­quer governante de Arezzio. Quando Saul tocasse no as­sunto, ela teria de lhe contar a verdade sobre o segredo que escondera dele.

Giselle ficou satisfeita e aliviada quando descobriu que estariam a sós no carro que havia sido providenciado para Saul, e que ele estaria dirigindo.

— Eles queriam nos disponibilizar um motorista, mas eu conheço bem o interior, depois de todas as férias que passei aqui na minha adolescência — Saul disse a ela, em resposta ao comentário de que ela estava feliz em poder sair sem nenhuma pompa ou formalidade, com­pletando: — Já deixei bem claro para os ministros que não tenho a intenção de me esconder por detrás de ca­madas de procedimentos e protocolos da corte. Uma das primeiras coisas que pretendo colocar em prática é o estabelecimento de um sistema de votação democráti­co, de forma que a população possa eleger seu próprio governo, com o direito de elaborar suas próprias leis. O papel real será modernizado, para o de chefe de Estado hereditário.

— Democracia e acesso à internet de alta velocida­de? Você não está fazendo grande coisa, então — Gisel­le não pôde resistir à tentação de provocá-lo, enquanto entravam no veículo quatro por quatro, estacionado e esperando por eles com a chave na ignição.

A amplitude da visão dele e sua determinação em al­cançar os objetivos que estabelecera para si mesmo eram aspectos do caráter de Saul que Giselle realmente ad­mirava. Saul não apenas falava sobre o que era preciso ser feito; ele realmente fazia o que precisava ser feito. Ela sempre sentia, quando ouvia Saul falar sobre seus planos, que havia muito a aprender com ele, e especial­mente a respeito de não aceitar limitações.

A risada dele a fez lembrar-se de toda a diversão que sempre tiveram juntos, e de como suas mentes pensavam da mesma forma. Não era apenas o marido e o amante que ela iria perder; era o melhor amigo e mentor, tam­bém. E quanto a não aceitar limitações... havia algumas limitações que nem mesmo Saul podia superar, Giselle lembrou a si mesma, amargamente.

Quando estavam dentro no carro, e como se ele tives­se percebido algo lendo os pensamentos dela, Saul se virou para Giselle e lhe disse:

— É bom ver você sorrir de novo. Eu estava come­çando a pensar que tinha perdido a minha melhor amiga e a única pessoa que realmente compreende como me sinto em relação às coisas. Não quero jamais perder este aspecto do nosso relacionamento, Giselle. Na verdade, não quero jamais perder nada do nosso relacionamento.

Ela também não queria, mas eles iriam perder um ao outro. Aquilo fatalmente aconteceria. Quando ele ouvis­se o que tinha a dizer, o que ela escondera antes dele, Saul iria afastar-se dela. Ele teria de fazer aquilo, agora que concordara em governar Arezzio. Ela não iria pensar sobre isso agora, entretanto, Giselle disse a si mesma com determinação. Ela iria se concentrar no aqui e no agora, em estar com Saul, e na excitação e no entusias­mo dele sobre seus planos.

Ela não tinha idéia do que ele queria lhe mostrar, e sabia que não adiantava perguntar. Saul tinha seu modo particular de agir.

Quando eles saíram da cidade, tomando a direção sul para as planícies férteis que ladeavam o largo rio que cor­ria para o mar Adriático, Giselle não pôde evitar comentar:

— Estou surpresa que o potencial para o plantio des­sas terras não seja mais bem aproveitado, os grãos pode­riam ser exportados, com o clima do país.

— Concordo. Na verdade, isso era algo que eu já ha­via discutido com Aldo, como meio de aumentar a viabi­lidade financeira do país, especialmente com relação ao potencial para exportação, mas ele achou que o custo de comprar máquinas e treinar os fazendeiros era maior do que o Tesouro podia bancar. Isto é algo em que podemos trabalhar, entretanto. O vale tem um clima temperado, e com o tipo de estufas modernas que os holandeses es­tão usando hoje poderíamos facilmente nos tornar im­portantes na produção de legumes, grãos e até mesmo flores. Com tantos novos destinos turísticos aparecendo na Croácia e em Montenegro, teríamos um mercado fa­cilmente acessível, para começar.

Quando terminou de falar, Saul tomou a mão de Giselle e a levou aos lábios, beijando-a ternamente antes de dizer:

— Você é tudo o que eu sempre quis na mulher que eu amo, e sou realmente abençoado por tê-la encontrado, Giselle. Sei que neste momento você está decepciona­da comigo. Você acha que a desapontei, e eu sinto isso, também. Estes são meus erros e minha responsabilidade, mas você, meu amor... espero que encontre a bondade e a magnanimidade de espírito para superar as dificulda­des que criei para nós.

— Porque você acha que eu o amo demais para não fazer isso? É isso o que quer dizer? — Giselle o acusou secamente, completando, antes que ele pudesse respon­der: — Bem, é verdade, Saul. Eu o amo.

— Mas não está feliz por me amar com tanta intensi­dade? — ele perguntou.

— Não estou feliz de pensar que você passaria por cima das minhas opiniões — foi tudo o que Giselle se sentiu capaz de dizer.

Ela simplesmente não podia se forçar a dizer a ele que os dois, graças à mentira dela, escondendo um segredo, e à falha dele em cumprir uma promessa que lhe havia feito por causa de seu dever para com Arezzio, haviam se envolvido em uma situação que destruiria o amor que significava tanto para ambos.

A culpa maior era dela, contudo. Ela sabia, quando se casou com ele, que estava escondendo algo que, na verdade, deveria lhe contar. E arriscar-se a perder o amor dele? Fazer com que ele se afastasse dela, horrorizado? Ele não queria filhos, naquela época. O segredo que ela escondera dele não importava, então. Mas importava, agora.

Eles haviam saído do vale e estavam viajando por uma estrada sinuosa que circundava as montanhas ín­gremes, passando por pequenos vilarejos com constru­ções de pedra com telhados de madeira, cujos habitantes pareciam ter se perdido no tempo. Um viaduto antigo atravessava os dois vales à frente deles.

— Romano — Saul disse a ela de forma breve, acom­panhando o olhar de Giselle. — Aldo e eu costumáva­mos cavar perto das fundações, esperando encontrar artefatos romanos. Há alguns no palácio. Talvez devês­semos pensar em convidar alguns especialistas para vir até aqui e fazer escavações. Os exércitos de Napoleão Bonaparte marcharam por aqui, antes dele os romanos, e antes deles, segundo o que dizem, Alexandre, o Grande.

— As pessoas parecem tão pobres — foi tudo o que Giselle conseguiu dizer, observando uma velha senhora caminhando por uma estrada empoeirada, ao lado de um burrinho que carregava um grande peso.

— E são mesmo — Saul respondeu. — Aldo esta­va extremamente consciente da pobreza do povo, mas infelizmente ele se concentrou em tentar melhorar suas finanças pessoais, em vez de focar em encontrar meios de ajudar as pessoas a ajudarem a si mesmas.

— E é claro que os investimentos financeiros ligados ao sogro dele fracassaram desastrosamente. — Giselle hesitou. — Não seria possível usar parte dos bens do pai de Natasha para ajudar essa gente?

— Aquele dinheiro é sujo, Giselle. Não quero cons­truir o futuro do meu povo sobre tais alicerces.

Giselle assentiu. Aquilo era típico de tudo o que ela sabia a respeito de Saul, era natural que ele pensasse daquela forma. Ele era um homem de fortes princípios, mesmo que aqueles princípios às vezes tornassem seu julgamento um tanto rígido. Como seria quando ele a julgasse? A dor com que ela precisava conviver agora fazia seu coração martelar, com batidas ansiosas. Pense sobre outra coisa, ela disse a si mesma. Pense sobre o povo e seus problemas. Pense sobre qualquer coisa, me­nos na infelicidade que a espera.

Embora ela tivesse visto, agora, a pobreza em que as pessoas comuns do país viviam, nada havia preparado Giselle para o que ela viu quando, finalmente, eles con­tornaram uma montanha alta e chegaram a uma peque­na cidade, que era a maior do país, depois da capital, como Saul lhe disse tristemente depois de parar o carro. Ambos podiam ver a devastação lá embaixo, onde o que parecia ter sido uma encosta inteira simplesmente des­moronara e caíra por sobre a cidade, cobrindo cerca de um terço dela com terra e pedras.

— O que aconteceu? — Giselle perguntou a Saul, chocada.

— Um desmoronamento causado por atividades de mineração não fiscalizadas e totalmente inseguras, e uma tempestade. — Ele fez uma pausa e disse a ela, bai­xinho: — A única outra fonte de renda da área vinha do corte de madeira. Mas o desmoronamento atingiu a ser­raria e muitas das pessoas que trabalhavam nela, além de destruir as casas perto do local. Ao todo, quase um terço da população perdeu a vida. Muitas pessoas que sobreviveram perderam as casas e familiares próximos. E perderam a esperança, também. A esperança e a fé em si mesmas e em seu país. Você e eu, trabalhando juntos, podemos devolver tudo isso a esses cidadãos, Giselle, como fizemos por outras pessoas em outras situações de crise e de desastre.

Giselle engoliu em seco.

— Podemos voltar agora, se você quiser — Saul ofereceu.

Giselle hesitou. Ela sabia que se visse aquelas pes­soas, com tantas necessidades, não seria capaz de lhes virar as costas, e ela sabia que Saul sabia, também.

— Não. É tarde demais para voltar, Saul.

Giselle não era estranha a áreas de desastre nem a pes­soas em necessidade, mas ao ver tantas crianças, algumas delas vestidas com roupas que não passavam de trapos, todas parecendo fracas e famintas enquanto olhavam para eles em silêncio, seu coração e sua consciência doeram. Se ela não soubesse que eles podiam fazer algo para ajudar, sua simples presença ali seria uma afronta, um in­sulto ao sofrimento dessas pessoas, Giselle reconheceu.

O prefeito da cidade, chamado às pressas quando Saul se apresentara, fazia repetidas reverências para ele. Suas palavras, na língua local, podiam ser estranhas para Giselle, mas seu significado, assim como o medo e a culpa dele por causa do que havia acontecido com sua cidade e sua população, eram dolorosamente óbvios. Observar Saul falando com ele em seu próprio idioma, erguendo-o da posição ajoelhada em que se encontrava, aumentou a piedade que Giselle sentia pelo homem.

— Eu disse a ele que o que aconteceu não foi culpa dele, e que nós estamos aqui para ajudar, e não para acu­sá-lo — Saul traduziu para ela. — O problema é que a ci­dade é muito remota para que eles possam receber os su­primentos necessários para a reconstrução, ainda que eles tivessem dinheiro para isso. A mina pagava salários tão baixos que as pessoas mal podiam sobreviver, embora os diretores garantissem pagar muito bem aos funcionários.

— Podemos trazer os materiais necessários para a reconstrução, Saul. Já fizemos isso várias vezes antes. Mas antes de mais nada, precisamos encontrar um lugar seguro para reconstruir. Eles precisam de casas e esco­las, um hospital... Tudo isso e muito mais. E tudo deve ser construído longe da área do desmoronamento, para que as pessoas não tenham de observar enquanto todos esses destroços são retirados. Eles sabem, afinal de con­tas, que seus entes queridos estão sob toda aquela terra.

Saul ouviu a paixão na voz de Giselle, e seu coração se alegrou. Ele sabia que ela, a sua Giselle, não seria capaz de resistir ao desafio que havia ali. Afinal, ele ti­nha visto com tanta freqüência como sua mulher reagia ao apelo dos desfavorecidos, especialmente quando os desfavorecidos e necessitados eram crianças.

Giselle achava muito mais fácil se comportar natu­ralmente entre crianças do que Saul. Ele estava sempre muito consciente da criança zangada e ressentida que fora um dia, vendo sua mãe dedicar o amor que ele tanto queria aos órfãos com quem trabalhava, para se sentir totalmente relaxado. De forma egoísta, talvez, depois que havia encontrado o amor com Giselle, sua decisão de nunca ter filhos havia se tornado ainda mais firme porque ele não queria ter de dividir o amor dela com mais ninguém. Em algum momento, mas não muito em breve, esperava, eles começariam a sofrer pressões da velha guarda para produzir um herdeiro. Quando aquilo acontecesse, seria um problema que eles teriam de en­frentar juntos.

Ele se virou para olhar para Giselle e descobriu que ela observava um pequeno grupo de crianças, suas vo­zes expressando uma ansiedade óbvia. Meia dúzia de­las havia se atirado no chão, e se arrastavam no solo empoeirado da escola onde elas agora viviam, além de estudarem, com velhos sacos de dormir enrolados para lhes dar espaço para movimentação. Enquanto ela ob­servava, uma criança maior empurrou uma pequena, que havia apanhado o que quer que fosse que causara toda a confusão. A criança pequena, uma menininha, emitiu um som agudo de desespero, quando a palma de sua mão foi forçada a se abrir. A emoção invadiu Giselle quando ela viu o motivo da briga das crianças: um pequeno e sujo brinquedo de plástico.

Pobrezinhas. A menininha chorava silenciosamente, lágrimas escorrendo pelo rostinho muito pálido. Sem he­sitar, Giselle foi até ela, ajoelhando-se na frente da crian­ça e afastando os cabelos embaraçados de seu rosto. Ela só pretendia confortá-la. A última coisa que esperava era que a garotinha se atirasse em seus braços e se agarrasse a ela, as mãozinhas apertando-a com a força de pequenas garras. Giselle estava quase com medo de abraçá-la. Ela estava tão magrinha, seus ossos pareciam tão frágeis.

Uma mulher mais velha, com uma expressão cansa­da, aproximou-se deles, gesticulando e dizendo algo que Giselle não conseguia entender.

— Saul? — ela pediu a ajuda do marido.

Ele foi até ela imediatamente, falando com a mulher e então dizendo a Giselle:

— Ela está se desculpando com você, por causa da criança. A menininha perdeu os pais, e, embora seu ir­mão tenha sido recolhido por outra família porque logo terá idade suficiente para trabalhar, e é um menino, eles não a quiseram.

— Quantos anos ela tem? — Giselle perguntou a Saul. Ele falou novamente com a mulher.

— Ela tem 6 anos.

Seis anos de idade. A mesma idade que Giselle tinha quando perdera sua mãe. Separando-se gentilmente da criança, ela disse:

— Nós temos de fazer alguma coisa por eles, e logo, Saul.

— Eu já mandei providenciar acomodações temporá­rias. Os suprimentos devem chegar ao aeroporto em uma semana. Depois, teremos de trazer tudo para cá de heli­cóptero. Por sorte, estamos no verão, e não no inverno, mas quero garantir que eles tenham acomodações apro­priadas antes de o inverno chegar. Vamos trabalhar juntos e organizar tudo, Giselle. Preciso que você faça o projeto das novas casas, da nova escola e do hospital que você mencionou. Por sorte, você tem o conhecimento e a ex­periência de que precisamos para lidar com algo assim.

— Sim — ela concordou. — Mas essa vai ser a pri­meira vez que reconstruiremos uma cidade inteira.

— É um desafio. Mas sei que poderemos superá-lo, juntos.

Giselle assentiu com a cabeça. Juntos. Certamente, aquela era uma das palavras mais doces em qualquer idioma... Mesmo que agora parecesse amarga para ela.

 

Já estava escuro quando eles voltaram para a cidade e para o palácio. A luz das luminárias instaladas nas paredes do palácio banhava as pedras antigas de uma resplandecência dourada que aquecia, mas ao mesmo tempo projetava sombras profundas e escuras, evocando lugares escondidos e perigos.

Luz e escuridão, verdade e mentira, amor e a perda do amor.

Giselle tropeçou quando eles subiam os degraus da escadaria até o palácio, e Saul, pouco atrás dela, parou para conversar com o ajudante de ordens. Instantanea­mente ele estava ao lado dela, com a mão em seu braço para apoiá-la, e o olhar que ele lhe dirigiu foi de afeição protetora.

Ela tinha de contar a Saul. Aquilo não podia esperar mais. Na privacidade familiar de seu próprio apartamen­to, ela ficou de pé, de frente para o jardim suavemente iluminado. O apartamento tinha uma cozinha particular, na qual Saul havia desaparecido, retornando com duas xícaras de café, que ele colocou na mesinha em frente ao sofá de couro preto.

— Eu quero começar com as obras de reconstrução logo que for possível — ele disse a ela, caminhando em sua direção.

Saul franziu o rosto quando Giselle se afastou dele.

— O que foi?

— Há uma coisa que eu preciso lhe contar, Saul. Algo importante, que precisamos... discutir.

— O que é?

Giselle respirou fundo.

— Agora que você vai assumir o lugar de Aldo, preci­sará de um herdeiro. O povo vai esperar de você que pas­se o governo do país para um filho de seu próprio sangue.

— Bem, sim, eu imagino que isso vai acontecer — Saul concordou despreocupadamente, como se aquilo fosse algo em que ele não tivesse pensado. Antes de ela poder lhe dizer que não podia ser a mãe daquele herdei­ro, ele continuou: — Mas não ainda. Você e eu temos bons motivos para não querer ter filhos, e estes motivos continuam a existir. Neste momento, o país necessita que tanta coisa seja feita, para ajudar as pessoas, que a realidade é que você e eu não teremos tempo para dedi­car ao que ambos acreditamos que uma criança precisa. É claro que viremos morar aqui, e não poderemos viajar tanto pelo mundo como costumávamos, mas nosso tem­po ainda será dedicado ao trabalho que tem de ser feito. Um herdeiro ainda é uma criança, e uma criança neces­sita do amor, da atenção dos pais. Sabemos disso muito melhor que a maioria das pessoas, Giselle.

Cada palavra que Saul dizia fazia o aperto no cora­ção de Giselle diminuir um pouco. Ela estava recebendo uma extensão de prazo. O destino lhe estava concedendo um precioso tempo extra com Saul. Vários anos, segun­do o que Saul estava lhe dizendo, e ela não tinha nenhu­ma razão para suspeitar de que ele não estivesse sendo sincero.

Saul olhou para Giselle. Ela parecia cansada e ansio­sa, e ele imediatamente se aproximou dela, recusando-se a permitir que ela se afastasse dele desta vez, e colo­cando as mãos nos ombros dela. Seus corpos estavam separados, mas próximos o bastante para ele sentir o perfume dela e se lembrar de como era enterrar o rosto em seu pescoço e sentir seu cheiro, como se estivesse absorvendo uma parte dela dentro de si, enchendo mais uma vez seu coração, que ele precisava manter repleto da proximidade dela.

A intensidade do relacionamento deles e do que eles sentiam um pelo outro o havia chocado, inicialmente. Ainda que não fosse exatamente correto dizer que ele tivera medo de sua reação apaixonada a Giselle quando ele percebera que estava se envolvendo com ela, Saul podia sem dúvida admitir que no começo se sentira ator­doado, e mesmo chocado, com aquilo. Querer estar tão absolutamente próximo a outra pessoa não havia sido o tipo de coisa que ele esperara de si mesmo, ou para si mesmo. Envolvimentos emocionais de qualquer tipo simplesmente não eram "a cara dele". Sua infância, e o que ele percebera como a rejeição de sua mãe em favor das crianças órfãs que ela ajudava como diretora de uma grande instituição de caridade, o haviam torna­do desconfiado, e passou a evitar deixar que alguém se aproximasse muito, além de determinado a nunca permi­tir que alguém atravessasse suas barreiras emocionais.

E então, Giselle aparecera. Tão na defensiva quanto ele próprio, e muito orgulhosa também. Ela o irritara ini­cialmente; depois o intrigara, e finalmente o fascinara, impelindo-o a querer saber tudo o que havia para saber a respeito dela. O modo como eles haviam escolhido viver suas vidas poderia parecer estranho para os outros, mas era adequado para os dois, e atendia à necessidade que eles sentiam um do outro.

Fora Giselle quem o ajudara a encontrar o caminho de volta para sua infância, e lidar com os demônios que esperavam em suas lembranças. A primeira vez que ele a vira interagindo com alguns órfãos que eles haviam encontrado acidentalmente enquanto vistoriavam o local de um de seus complexos de hotel e spa, ele ficara furio­so e sentira ciúme da atenção que ela lhes dedicara, ven­do no comportamento dela um reflexo do modo como sua mãe o tratara. Mas quando ela lhe dissera que os bebês a faziam lembrar-se de seu irmãozinho, e quando chorara em seus braços pela perda do irmão, deixando-o ver a extensão da dor que carregava por causa daquela perda, a necessidade que ele sentira de consolá-la apaga­ra os outros sentimentos.

Com Giselle, ele aprendera a ver e acreditar que quan­do eles ajudavam as crianças órfãs e necessitadas tam­bém estavam ajudando os pequenos e solitários fantas­mas de sua infância.

— Tudo o que damos a elas, damos para as crianças que fomos um dia. Quando curamos as feridas delas, curamos também as nossas — Giselle havia lhe dito, e ele sabia que era verdade.

Contudo, as perguntas dela sobre um dia transmitir sua posição como líder para um filho de seu próprio sangue, combinadas com a expressão em seu rosto mais cedo, quando ela abraçara a garotinha órfã, o fizeram perguntar, de forma um tanto brusca:

— Você está me dizendo que agora mudou de idéia e quer ter um filho?

— Não, não estou. Não quero isso — Giselle negou imediatamente. — Tudo o que eu quero é você, Saul.

— Ótimo — ele disse, com a voz rouca e abalada pela emoção. — Um dia, sim, suponho que iremos ter de pensar em ter um herdeiro. Mas não agora, Giselle. Não estou pronto para dividir você com ninguém. Eu vi como você olhou para aquela menininha. Quando a hora che­gar, você vai ser uma mãe devotada e eu não duvido de que vou sentir um ciúme ridículo do meu próprio filho, mas não quero ter esse filho ainda. Não quero que nada, nem ninguém se interponha entre nós.

— Nem eu. — Giselle fechou os olhos para bloquear as lágrimas de culpa e gratidão.

Ela não percebeu que erguera o rosto para o dele até que ele a beijou, e então a beijou de novo, seu carinho afastan­do dela o veneno do desespero e da dor de antes. Nos bra­ços de Saul, ela estava segura e protegida; nada poderia atingi-la ou machucá-la, ali. Os braços de Saul eram o seu lar, seu lugar seguro. Segurança contra o mundo exterior, talvez, mas não havia segurança contra o desejo que eles despertavam um no outro; não que ela quisesse aquela se­gurança, admitiu Giselle com determinação quando Saul a puxou para si, sua excitação evidente.

Eles despiram um ao outro lentamente, entre beijos que se tornavam cada vez mais longos e profundos. A língua de Saul se enroscava à dela, e a acariciava, uma carícia que se transformava em movimentos mais agressivos dentro de sua boca faminta, como um tambor cuja batida se acelerava, fazendo com que a ânsia que crescia no corpo dela virasse um desejo cego.

Agora, enquanto Giselle pressionava os quadris con­tra os de Saul, girando seu corpo contra o dele, esfregando-se nele, buscando a sensação de seu membro rígido apertado contra ela tão urgentemente quanto a umidade provocada pelo desejo que sentia por ele se espalhava por sua carne febril, tudo o que ela queria era ele.

— Molhada... — Saul sussurrou desnecessariamen­te contra os lábios dela, quando sua mão acariciou-lhe o interior da coxa e escorregou para dentro da calcinha rendada.

Os dedos dele separaram as dobras protetoras do sexo dela, tocando a umidade suave que se escondia ali. Os seios dela pareciam taças de carne rígida, cheios de ter­minações nervosas repletas de uma eletricidade sensual que aumentava a sensibilidade dos mamilos. O desejo dela era tanto que Giselle quase queria arrancar as rou­pas do próprio corpo, para poder revelar totalmente a ele a necessidade que sentia de seu toque. Em sua cabeça, ela já imaginava Saul acariciando sua pele, tocando eroticamente a dureza de seus mamilos, primeiro com os dedos e depois com a boca. Um gemido suave de ânsia lhe escapou da garganta, e se transformou em um soluço de delícia agoniada quando ele deslizou os dedos pelo local úmido entre as pernas dela para circular o clitóris dolorido, penetrando-a em seguida.

—Não! —Giselle tentou evitar, mas era tarde demais.

Seu orgasmo já tomara conta dela, enchendo-a com um prazer imediato, a urgência, lhe dizendo o que Saul já sabia. Aquela seria uma das vezes em que a capacidade dele de excitá-la e a dela em responder à excitação leva­vam ambos de clímax a clímax, até que as alturas para onde iam se tornavam tão rarefeitas que estarem ali, jun­tos, lhes parecia viajar para além do tempo e da realidade; ambos pertencendo a um mundo que era muito mais do que simplesmente humano.

Almas gêmeas: era o que Saul sempre dizia que eles eram, e em momentos como aquele Giselle acreditava sinceramente que ele tinha razão.

Depois do orgasmo dela, eles tiraram as roupas deva­gar e com grande apreciação sensual, cada ponto fami­liar de prazer revelado para olhos, lábios e dedos amo­rosos. A ereção de Saul, seu membro liso e rígido com o desejo que o preenchia, incitou o toque explorador de Giselle, e o coração dela começou a bater mais depressa enquanto ela assumia o controle, sabendo que Saul esta­va em seu poder. Ela deslizou os dedos pela pele quente dele, enquanto ele se deitava de costas na cama, seu pei­to subindo e descendo com as batidas aceleradas de seu coração, lutando por autocontrole. Uma pequena gota de sêmen escapou daquele controle, fazendo com que Giselle sorrisse de modo cúmplice para ele e baixasse a cabeça para lambê-la delicadamente, antes de acariciar o membro dele com a língua.

Saul grunhiu e implorou a ela:

— Pare com isso... a menos que...

— A menos que o quê? — Giselle o provocou.

— A menos que você queira isto — Saul disse a ela, agarrando-a e puxando-a contra si.

Giselle montou sobre ele, com uma expressão triunfante.

— Você é meu prisioneiro, meu escravo sexual. — Ela se inclinou sobre ele, sussurrando palavras contra sua boca: — Você não pode se mover nem falar até eu lhe dizer que pode. Você só pode olhar.

Ajoelhando-se, ela se abaixou lentamente por sobre a ereção dele, inicialmente apenas deixando a cabeça cor-de-rosa penetrar em seu canal úmido, e movendo seu corpo de forma a deslizar repetidamente pelo membro dele. Ela podia ver os músculos no pescoço de Saul tensionando, enquanto ele lutava para não se mover, nem emitir nenhum som; mas a fome pulsante de sua excitação o venceu, e ele gemeu alto, fazendo Giselle soltar um muxoxo e sacudir a cabeça.

— Agora, eu vou ter de castigá-lo — ela disse, antes de se abaixar e passar a língua de leve pelos mamilos duros dele.

O gemido de puro prazer de Saul a fez sorrir de modo triunfante, enquanto ela se endireitava e se abaixava mais completamente sobre a ereção dele, deixando-o penetrá-la um pouco mais, acariciando-o com sua pró­pria carne, e provocando-o ao conceder-lhe a intimidade quente e úmida de seu corpo só para negá-la em seguida, aprofundando cada vez mais a penetração e mantendo-a por um pouco mais de tempo, e perguntando com uma voz suave e sensual:

— Você está olhando, Saul?

O peito de Saul estava vermelho com o esforço, e gotas de suor lhe escorriam do rosto. Giselle riu e se inclinou para lambê-las... E foi aí que Saul atacou, esten­dendo os braços e segurando os quadris dela, assumindo o controle, penetrando-a profundamente e então se afas­tando, perguntou a ela:

— Como você se sente quando é você quem está proi­bida de me tocar?

Aquele era um jogo que eles já haviam jogado muitas vezes antes, mas Giselle estremeceu com um desejo sel­vagem quando ele a segurou, até que a força e a veloci­dade dos movimentos dele tomaram conta dos dois com urgência, e suas vozes se misturaram em sons recípro­cos de encorajamento, abandono e desejo. Finalmente, a liberação final veio, unindo-os nas convulsões intensas que sacudiram seus corpos.

Giselle olhou para o rosto adormecido de Saul, acom­panhando gentilmente a curva de suas sobrancelhas com a ponta dos dedos, e depois o ângulo forte de seu nariz. Ele era um homem intensamente másculo, viril e orgu­lhoso, e, sim, às vezes era exigente, mas a sua essência tinha um eco da doçura que ele deveria ter tido quando garotinho.

O sorriso dela desapareceu, seus lábios começaram a tremer e seus olhos se encheram de lágrimas, quando lhe ocorreu a imagem mental do filho que ela jamais te­ria: o filho de Saul, com os traços dele, a atormentava. Suas emoções eram tão intensas e estavam tão à flor da pele naquele momento que as lágrimas a venceram. Uma escapou antes que pudesse enxugá-la com as costas da mão, e caiu sobre o rosto de Saul. Ele acordou imedia­tamente, seu sorriso matinal transformando-se em uma expressão preocupada, quando viu as lágrimas dela.

— O que foi, querida? Por que está chorando?

— Não é nada — Giselle tentou disfarçar. — Só estou emocionada demais.

— Emocionada demais por quê? — Saul quis saber.

—Não sei — Giselle disfarçou novamente. — Prova­velmente por causa das crianças que vimos ontem.

— As crianças, ou uma criança? — Saul franziu o rosto.

A culpa queimou sob a pele de Giselle.

— É aquela garotinha, não é? — Saul perguntou bruscamente, vendo o rosto dela manchado pela culpa e entendendo mal a causa, por seu medo crescente de que Giselle estivesse se cansando de serem só os dois e começasse a desejar filhos.

Logicamente, Saul deveria saber que seus pensamen­tos tinham raízes em sua própria infância, mas como um macho alfa que às vezes ainda se sentia enervado com a força de seus sentimentos pela esposa, ele nem sempre era muito bom em entender as correntes mais profundas de suas próprias emoções. Ele se sentia vulnerável e rea­gia atacando, esperando vencer a causa da ameaça.

— Não — respondeu Giselle, dividida entre alívio e culpa.

Afinal de contas, a última coisa que ela queria era que Saul lhe dissesse para começar a tentar engravidar, ainda que bem lá no fundo, cada vez que ela segurava uma criança nos braços, ansiasse para que aquela criança fos­se sua.

Como se não a tivesse ouvido, Saul se sentou na cama, a luz da manhã que entrava pelas janelas abertas para o pequeno jardim enfatizando o tom dourado de sua pele bronzeada e a estrutura dos músculos sob ela. Saul tinha um corpo digno de posar para qualquer propaganda de roupa íntima masculina, Giselle pensou.

— É disso que toda aquela conversa sobre eu precisar de um herdeiro se trata, não é? — ele a acusou, secamente. — Você quer voltar atrás no nosso acordo de não ter filhos e...

— Não — Giselle afirmou novamente, sua voz se su­avizando com o amor que sentia por ele, enquanto ga­rantia: — Não foi por isso que mencionei o assunto de você precisar de um herdeiro, Saul. Se você quer saber a verdade, estou feliz por você querer que as coisas conti­nuem como estão, só nós dois.

Saul sacudiu a cabeça e pediu desculpas:

— Eu sinto muito. Suponho que a verdade seja que eu tenho medo de perder você. E por causa disso não que­ro ter de dividir você com ninguém, nem mesmo nosso próprio filho.

— Por causa de sua mãe? — Giselle perguntou gen­tilmente.

Por um minuto, ela pensou que Saul não iria respon­der, mas então ele concordou, com relutância:

— Provavelmente. Embora o porquê de eu me sentir assim a respeito de você ter um filho nosso, quando mi­nha mãe nunca se importou muito comigo, seu próprio filho, eu não sei.

— Você se sente assim porque a sua mãe nunca o co­locou, nem a suas necessidades, em primeiro lugar, por­que ela deixou você ver que as necessidades das outras pessoas eram mais importantes para ela do que as suas. Ninguém jamais será mais importante para mim do que você, Saul. — Ela fez uma pausa, então, incapaz de im­pedir que as emoções lhe escapassem, e disse a ele: — Foi você quem decidiu que a sua promessa a Aldo era mais importante do que o futuro que concordamos em ter antes de nos casarmos, não eu. É só por causa disso que nós precisamos falar sobre ter um filho. Você escolheu cumprir a sua promessa a Aldo, e isso significa que irá precisar ter um herdeiro.

— E você ainda está zangada comigo porque nós es­tamos aqui — Saul adivinhou.

— Não estou realmente zangada, agora — ela disse a ele sinceramente. — Você estava certo quando disse que há muito a ser feito aqui pelo povo, mas estávamos tão felizes quando éramos só nós dois.

Aquilo era o mais perto que ela podia chegar de admi­tir seus próprios medos.

— Seremos sempre só nós dois, e seremos sempre felizes juntos — Saul disse a ela firmemente, antes de tomá-la nos braços e beijá-la.

Eles se levantaram tarde e tomaram um café da manhã preguiçoso no jardim, vestidos com roupões brancos atoalhados, depois de tomarem um banho juntos. Quando Saul anunciou que tinha uma reunião no almoço com os ministros de Aldo, Giselle decidiu que começaria a traba­lhar nos planos para o novo orfanato, a escola e o hospital. Eles costumavam a usar um padrão parecido para os orfanatos: casas simples e seguras, nas quais tentavam manter irmãos juntos, e nunca mais de dez crianças na mesma casa, nunca mais de duas crianças do mesmo sexo em cada quarto, um quarto para os pais adotivos que tomavam conta da casa, uma copa-cozinha, uma sala de estar e uma sala de estudos onde as crianças podiam ler e fazer as lições. Cada orfanato tinha a sua própria horta, que os pequenos ajudavam a manter, e uma pracinha central. No meio de tudo, ficava a escola, o centro das vidas dos garotos, que lhes proporcionaria uma edu­cação, e com esperanças, um futuro.

Além dos orfanatos, a instituição de Saul e Giselle também proporcionava educação e ajuda para os pais adotivos, e oferecia viagens monitoradas, durante seis meses, para estudantes que quisessem fazer trabalhos vo­luntários. Ali, construir casas, um orfanato, um hospital e uma escola seria muito mais difícil por causa da natureza isolada da cidadezinha, rodeada de montanhas, e o fato de que não havia muito terreno disponível. Seria fácil empurrar o futuro para o lado e se concentrar nas neces­sidades imediatas dos órfãos, pelo menos por enquanto. Mas a culpa de Giselle se recusava a ser controlada por muito tempo. Depois de Saul ter lhe dito que pretendia assumir o lugar de Aldo, ela se concentrara inicialmente no quanto aquilo afetaria a ela, e no quanto ela se sentira desorientada e desesperada com a perspectiva de perder Saul. Agora, entretanto, depois de ouvir o que ele lhe dis­sera naquela manhã, percebera que havia se fechado tan­to em sua própria tristeza que não reconhecera totalmente como sua partida iria afetar Saul. Ele a amava.

Mas o coração humano era capaz de amar mais de uma vez, e Saul tinha um dever com seu país, e devia produzir um herdeiro, ela raciocinou. O que significava que ele encontraria outra mulher para tomar o lugar dela, outra mulher para amar como ele a havia amado, outra mulher para lhe dar o filho, ou filhos, que ela não podia dar.

Entretanto, em meio a todas essas racionalizações, ela havia se esquecido de um fato muito importante, que era o dano emocional que a mãe de Saul havia causado nele, e a vulnerabilidade que aquele dano havia deixa­do. Quando chegasse a hora de ela partir, embora logi­camente ele compreendesse os motivos pelos quais ela deveria fazê-lo, bem lá no fundo ele poderia terminar acreditando que ela o estava abandonando, virando-lhe as costas, como sua mãe havia feito.

A culpa de Giselle se intensificou. A perspectiva da dor que ela poderia causar a Saul era cem vezes pior do que qualquer dor que ela própria tivesse de enfrentar; agora, ela podia ver a profundidade real do dano que sua mentira iria causar, e como a sua covardia e seu egoísmo magoariam Saul, que era inocente de qualquer coisa a não ser amá-la e confiar nela, acreditando que ela tivesse lhe contado a verdade sobre as razões pelas quais não queria ter filhos.

Era tarde demais, agora, para lembrar a si mesma da promessa original de que jamais deixaria alguém se aproximar dela, não apenas porque tinha medo de se apaixonar, mas para proteger um homem de se apaixonar por ela, quando sabia das limitações que deveriam haver no relacionamento. Ela sabia daquilo, e mesmo assim ignorara, porque não tinha sido capaz de suportar amar Saul e não estar com ele. Agora, ela seria tão culpada de lhe causar uma dor terrível como a mãe dele havia sido.

Ela tentou se defender de sua própria voz interna, tão crítica. Não planejara aquilo. Acreditara que era seguro para ambos ficarem juntos. Mas ela, melhor do que ninguém, deveria ter imaginado que a vida humana não é imortal, e que o destino exige um pagamento daqueles que escolhem ignorar seus avisos.

 

Saul olhou ao redor da sala do apartamento, que havia sido transformada em um escritório. Suas janelas altas se abriam para parte dos jardins formais do palácio; o Jardim da Duquesa, assim chamado porque fora projeta­do como um presente de casamento para a esposa de um líder do século XVI. Seu projeto clássico incorporava um lago retangular e uma casa de verão em estilo italia­no. Giselle, entretanto, ignorava a vista além da janela. Ela estava trabalhando em seu computador, seus cabelos loiros presos no alto da cabeça, pequenas mechas esca­pando para emoldurar a delicadeza de seu rosto oval. A atitude dela era de total concentração na tela do compu­tador à sua frente.

Apesar do fato de ele ter aberto contas ilimitadas para ela na Harvey Nichols, em Londres, e na Barney's, em Nova York, Giselle ainda preferia se vestir de forma casual, com jeans e uma camiseta simples, quando eles estavam sozinhos, e ela, trabalhando, guardando seus vestidos de marca para eventos oficiais e cerimônias formais, diferentemente da falecida esposa de seu pri­mo, Natasha, que havia sido quase viciada em compras e freqüentemente trocava de roupas várias vezes por dia. Saul tentara alertar Aldo de que a extravagância de sua esposa só contribuiria para o antagonismo da população de um país que tinha tão poucos recursos.

Mas era Giselle que o preocupava e ocupava seus pensamentos naquele momento, e não seu falecido pri­mo. Ela andava muito quieta naqueles últimos dias, qua­se reservada, seu humor, sombrio e reflexivo. Seria por causa da enormidade do desafio que eles enfrentariam para modernizar o país? Ele estaria pedindo demais dela? Esperando demais, querendo que ela compartilhasse sua visão para o futuro do país, e que ela trabalhasse com ele para alcançar aquele futuro?

A noite, em seus braços, em contraste com sua atitude durante o dia, a sensualidade dela era ainda mais forte e apaixonada do que nunca, seu desejo por ele tão in­tenso que Saul achava que eles estavam constantemente atingindo novas alturas. E mesmo assim, Saul sentia que havia uma distância entre os dois, como uma parede de vidro tão fina que você nem percebe que está lá, até que esbarra nela. E ele era o motivo de aquela parede estar ali, Saul suspeitava, por causa da promessa que fizera a Aldo. Por causa daquilo, e também por causa da discussão que eles haviam tido sobre ele precisar de um herdeiro.

No que se referia a Aldo, Giselle podia entender lo­gicamente como Saul se sentia obrigado a cumprir sua promessa, mas lá no fundo ele acreditava que ela ainda considerava aquela promessa um ato de traição. E, de certa forma, Giselle tinha razão, Saul foi forçado a reco­nhecer. Mas que alternativa ele tivera? Seu primo estava morrendo. Poderia haver algumas pessoas capazes de ignorar um pedido feito no leito de morte, mas ele não era uma delas. Quanto à questão do herdeiro, entretanto, ele não iria cometer o mesmo erro. A discussão original deles o fizera pensar muito seriamente sobre o problema do futuro do país. A verdade era, contudo, que ele não estava absolutamente convencido de que ela concordaria com o que ele queria fazer. E se ela não concordasse...

— Como estão indo os planos para o orfanato? — ele perguntou a Giselle, afastando aqueles pensamentos e dizendo a si mesmo que o melhor modo de diminuir a distância entre eles era mostrar a Giselle o quanto ela era importante para ele.

— Devagar — Giselle admitiu, empurrando uma mecha de cabelo para longe do rosto e virando-se na ca­deira para olhá-lo. — A falta de terreno disponível é um problema... Embora eu acredite ter resolvido isso, pla­nejando a construção em blocos de quatro, com quatro andares, para ocupar menos espaço. Os edifícios serão altos e estreitos, em vez de baixos e largos. Isto resol­ve a questão da falta de espaço, mas estou preocupada com diferentes andares separando a casa, quando o que queremos é que as crianças criem laços entre si e com os pais adotivos. Normalmente, teríamos uma copa-co­zinha grande, uma sala de estar e uma sala de estudos, tudo no mesmo andar. Com este projeto, haverá uma copa-cozinha grande no andar térreo, com a sala de estar o a sala de estudo no andar logo acima.

— E se colocarmos uma escada circular levando da copa-cozinha à sala de estar, além das escadarias nor­mais? — Saul sugeriu.

O franzido no rosto de Giselle desapareceu.

— Obrigada, esta é uma excelente idéia! — ela disse a ele sinceramente, dirigindo-lhe um olhar de reconhe­cimento.

— Trabalho de equipe. — Saul sorriu. — Uma coisa em que você e eu somos muito bons, quando a equipe somos nós dois. — Fez uma pausa. — Há algo que eu quero discutir com você sobre o futuro do país, e sobre o nosso futuro, também. Mas se agora não for um bom momento...

O coração de Giselle começou a martelar pesadamen­te contra suas costelas. Ela podia dizer, pela expressão de Saul e pelo que ele acabara de falar, que o que quer que ele quisesse discutir era algo importante.

— Pode ser agora — ela respondeu.

Já era quase hora do almoço, afinal de contas, e eles haviam planejado ir até um lugar que Saul havia descri­to como a linda região dos lagos do país, levando uma cesta de piquenique. Houve uma batida leve na porta, e uma empregada apareceu com o que era, normalmente, a indulgência de um café fresco para ambos, no meio da manhã.

Giselle ergueu uma sobrancelha questionadora quan­do ela saiu, perguntando a Saul secamente:

— Imagino que você ache que eu preciso disto. Isto significa que o que quer que você queira discutir comi­go, é algo muito importante.

Ela estava tentando assumir um tom relaxado, mas, quando Saul não negou o que ela sugerira, sua ansiedade e tensão aumentaram. Ela sabia que Saul havia reconhe­cido a apreensão dela quando ele se adiantou para servir o café, adicionando a quantidade de leite quente que ela gostava. As ações dele a faziam lembrar que, embora Saul nem sempre falasse muito, ele era um observador extremamente atento, que capturava até o menor dos de­talhes. Ele teria adivinhado que ela estava escondendo algo dele?

Saul lhe entregou o café e então disse, baixinho:

— O que eu quero discutir com você é o assunto da tradição da sucessão real.

Giselle quase derramou o café. Suas mãos tremeram violentamente com o medo.

— Achei que nós já havíamos discutido isso, e que você tinha decidido que isso podia esperar até você ter realizado outras coisas. — Giselle podia ouvir a raiva defensiva em sua própria voz, mas se Saul também po­dia ouvir, não estava deixando transparecer.

Na verdade, a atitude dele era exatamente a que ela se lembrava quando eles haviam se conhecido: tranqüila, de­terminada e muito masculina. A atitude e as maneiras de um homem que estava acostumado a ter o que desejava.

— Sim — Saul concordou, o tom profissional de sua voz confirmando o que ela estava pensando. — E aquela foi uma decisão acertada. Contudo, isto apenas coloca a questão da futura liderança do país em banho-maria, em vez de lidar com ela diretamente. Preciso aceitar que quando Aldo me pediu para assumir seu lugar, como seu primo e único parente homem vivo, e na verdade o úl­timo de nossa linhagem, ele esperava que eu seguisse a tradição da nossa família e produzisse um herdeiro, de preferência um filho, que eu pudesse criar e preparar para governar depois de mim.

Agora era a hora de Giselle concordar, e ela se for­çou a dizer um "Sim", que ela esperava que soasse neu­tro o suficiente para não revelar o que estava realmente sentindo. Para esconder a apreensão, ela levou a xícara aos lábios, e precisou colocá-la na mesa em seguida, quando seu estômago se revirou com a náusea. O fato de o cheiro do café que ela normalmente adorava torná-la fisicamente doente era, sem dúvida, um sinal de seu medo e sua apreensão.

—Preciso da sua ajuda, Giselle Eu sei o que quero fazer, e acredito cem por cento que é a coisa certa, mas não posso fazer nada sem o seu apoio.

Aquela humildade não era nada característica de Saul, e só aumentou o desespero dela. Ele deveria estar real­mente desesperado para ter um herdeiro, se estava pre­parado para implorar pela aceitação dela. Mas ele já sa­bia como Giselle se sentia, e ela acreditara que também sabia como ele se sentia.

Lágrimas de angústia que ela não podia se permitir derramar queimavam seus olhos. Saul lhe dissera que não iria querer um herdeiro por vários anos, e ela havia acreditado nele, e confiado em sua declaração. Assim como ele acreditara e confiara nela quando ela o havia deixado pensar que sabia o motivo dela de não querer filhos, quando na realidade ele não sabia nada sobre a verdade real, porque Giselle a escondera dele.

Agora, ele iria dizer-lhe que havia mudado de idéia e queria que eles começassem a tentar ter um bebê, um herdeiro. Ela sabia.

O silêncio de Giselle e sua falta de resposta não eram a reação que Saul havia esperado, mas ele não iria desis­tir. Não era esse o tipo de homem que ele era, especial­mente quando os princípios que ele defendia estavam envolvidos.

— Parte do motivo pelo qual eu fiz aquela promes­sa a Aldo foi o fato de eu me sentir, e ainda me sinto, culpado por ele ter se casado com Natasha — ele lem­brou a Giselle, antes de completar: — Sim, eu sei o que você vai dizer. Aldo amava Natasha. E é verdade. Ele a amava. Mas ela não o amava, e infelizmente, acho que no fundo do coração ele sabia disso. Se eu não os tivesse apresentado, a vida dele poderia ter sido muito diferente. Aldo teria, eu acredito, sido mais aberto ao tipo de casamento arranjado, semi tradicional, que seus conselheiros teriam recomendado. Ele poderia até mes­mo ter tido um filho a esta altura, e certamente não teria, sido morto em um atentado dirigido ao seu sogro. Por causa disso...

— Você quer um filho... Um herdeiro. Por Aldo — Giselle adivinhou.

Com cada palavra que Saul dizia, ela se tornava mais e mais revoltada com o que ouvia, com a presunção de Saul de que ela permitiria que qualquer criança, e prin­cipalmente um filho deles, fosse usada como uma peça num tabuleiro de xadrez, forçada a viver uma vida que não desejava, por causa de um senso de dever distorcido a uma tradição de família que Giselle acreditava que não tinha mais lugar na sociedade moderna.

A força daqueles sentimentos superou a culpa e o desespero que Giselle sentia. O que Saul queria propor ia contra tudo o que ela acreditava a respeito dele, con­tra as crenças democráticas que ela imaginava que eles compartilhavam. A fúria que experimentava em relação à traição dele era tão forte como se ele tivesse dormido com outra mulher, e sua voz estava carregada de uma paixão raivosa e desprezo quando ela disse:

— Mesmo se quisesse ter um filho, eu jamais con­cordaria em ter um porque você acha que deve isso a Aldo. Eu nunca sacrificaria o meu filho no altar da sua promessa no leito de morte do seu primo, condenando uma criança a um papel determinado antes de ela ser concebida. Não concordo com isso, Saul. E não é porque eu não quero ter filhos, mas porque jamais concordaria com... com o sacrifício de uma criança a uma vida de tanta rigidez, que ela jamais seria livre para fazer as pró­prias escolhas.

Lágrimas de decepção por ele e seus valores, enevoaram a visão dela, transformando Saul em uma figura alta e escura cuja expressão ela não conseguia ver. Po­dia imaginar como ele se parecia, entretanto. Ele estaria olhando para ela com a mesma hostilidade taciturna que ela vira em seus olhos quando eles se conheceram, e ela havia roubado a sua vaga de estacionamento. Naquela ocasião, ela fora moralmente culpada, mas agora esta posição era dele. Giselle queria chorar de dor, mas não iria voltar atrás no que dissera. Não podia.

— Eu não quero mais falar sobre isso, Saul. Na ver­dade, não quero. Ouso dizer que deixei você zangado, mas você me decepcionou. Aceito que existe algo no seu sangue e na sua linhagem que significa que uma parte de você pertence a este país e ao papel que desempenha, mas não vou aceitar ou concordar em ter um filho só porque você acha que deve isso a Aldo.

Quando ela passou por ele, decidida a escapar, Saul se colocou em seu caminho, suas mãos se fechando ao redor dos pulsos dela quando ela ergueu os braços para empurrá-lo, aprisionando-a. E então, para sua incredu­lidade, Saul baixou a cabeça e à beijou, não de forma gentil ou cuidadosa, mas com uma emoção feroz e crua, encostando-se na porta fechada e puxando-a contra si, de modo que ela foi forçada a se apoiar no corpo dele para não perder o equilíbrio.

Furiosa, ela lutou contra o domínio do beijo dele, ten­tando fechar a boca contra a invasão de sua língua, ten­tando negar a seu corpo a imediata e instintiva resposta à sensação do toque dele, tentando controlar as lágrimas, a emoção, o amor por ele, até que no final percebeu que seu único meio de defesa seria retribuir o beijo da mes­ma forma apaixonada. A intimidade sexual podia, afinal de contas, expressar outras coisas além do amor e do desejo mútuos; podia expressar amargura, desprezo e raiva, um desejo de magoar e destruir, um desejo de...

— Como você pode pensar uma coisa dessas de mim? — Saul perguntou, de encontro aos lábios dela, suas mãos segurando-lhe o rosto. — Como pode acre­ditar que eu forçaria outro ser humano, principalmente uma criança, a viver uma vida que não escolheu para si mesmo? Eu poderia estar zangado, Giselle, mas a sua defesa apaixonada dos valores que são tão importantes para mim torna isto impossível. Não tenho intenção de ter um filho para diminuir a culpa que sinto a respeito de Aldo. Não era isso que eu estava planejando discutir com você.

Giselle se sentia estremecendo. Precisava do apoio do corpo dele, agora, vendo-o como uma forma de abrigo contra o redemoinho de suas emoções e o efeito que elas estavam causando em sua própria carne.

— Então, o que você pretendia dizer, Saul? — Ela sentiu seu peito subir e descer, enquanto ele inspirava e expirava.

— O que eu queria, o que ainda quero discutir com você, é sua opinião sobre o meu desejo de transformar este país em uma democracia. Quando Aldo me pediu para lhe prometer que faria tudo ao meu alcance por este país, eu sabia que não era isto que ele tinha em mente, mas às vezes amar algo ou alguém significa dar a ele a liberdade, respeitando sua capacidade de fazer suas pró­prias escolhas, dando-lhe as condições de fazer estas escolhas. O que quero dar ao povo deste país não é um herdeiro, mas o direito e a habilidade de governarem a si mesmos. Eu quero, um dia, ser capaz de abolir o papel de líder hereditário e o título que o acompanha, e é claro que um dos melhores modos de fazermos isso é não ter um filho. Este país pode ser o nosso filho, o nosso refém do destino, Giselle. Se quisermos. Podemos protegê-lo, guiá-lo e amá-lo, e finalmente vê-lo crescer, amadurecer e ter a capacidade de continuar em sua própria jornada sem nós, com o conhecimento de que lhe fornecemos as ferra­mentas, a educação, o amor para seguir nesta jornada com confiança e habilidade. Se for o meu destino estar aqui, no lugar de Aldo, também devo fazer meu destino dar a este país o melhor que eu puder. Mas preciso do seu apoio para isso. Preciso do seu compromisso com o trabalho que irá se seguir, e preciso da sua garantia de que não irá mudar de idéia sobre a nossa decisão mútua de não ter um filho.

Lágrimas encheram os olhos de Giselle e rolaram por suas faces, até que chegaram à barreira das mãos de Saul. Com imensa gentileza, ele as enxugou.

— Você é maravilhoso, Saul. Verdadeiramente nobre e... E um visionário. E claro que eu o apoiarei. Você sabe que eu o apoiarei. Não posso pensar em nada que eu queira mais do que apoiá-lo no que você está planejando.

— Posso contar com você? É importante, Giselle, porque certamente haverá pressão da velha guarda. Se não tivermos um filho, eles não terão um herdeiro com o qual sustentar seus argumentos para manter o status quo.

— Sim, você pode contar comigo — Giselle prometeu a ele. Como tivera tanta sorte, não sabia, mas qualquer que fosse a causa da libertação do tormento que estava sofrendo, ela era grata por isso. — Eu amo seus planos de uma democracia, mas você vai enfrentar uma oposição terrível dos ministros de Aldo e dos membros da corte.

— Eu gosto de oposição — ele respondeu, com um brilho no olhar. — Você, mais do que todos, deveria sa­ber disso. Lembra-se de como você lutou contra mim?

— E, já que eu tive de lutar com você, e contra que­rer você, não é de admirar que eu tenha perdido. E per­dendo, ganhei o maior prêmio de todos — Giselle disse suavemente.

Mais tarde, naquele dia, sentados na toalha que haviam estendido na areia aquecida pelo sol em uma pequena baía à beira do lago, com Saul deitado com a cabeça em seu colo, Giselle pensou que aquele dia, aquela tarde, aquele minuto, deveria ser o mais feliz que já vivera. Sua culpa havia sido afastada dela, e flutuava para longe, tão fácil e levemente como as pequenas nuvens brancas lá no alto, no céu azul, e a perfeição da paisagem que os rodeava ecoava a perfeição de seu amor e de sua felici­dade. Não havia nada para ela temer, nada que a pudesse magoar, agora. Ela não precisava mais se preocupar com o que temera revelar a Saul, porque não importava mais. Ela estava segura. Seu amor estava seguro, e permane­ceria seguro para sempre.

 

Dois meses depois, sentada à sua mesa, Giselle obser­vava o calendário à sua frente e pensava em como pu­dera ser tola o suficiente para acreditar que escaparia tão fácil. Ela quisera tanto acreditar que estava com­pletamente, totalmente errada em suas suspeitas, mas o calendário não mentia, nem seu corpo. No primeiro mês, ela havia simplesmente imaginado que a assusta­dora e indesejada suspensão do ritmo familiar e regular de sua menstruação fora causada pelo estresse e pela confusão em sua vida, depois da notícia chocante da morte de Aldo. Mas agora suas regras falhavam pela segunda vez.

De início, quando sua menstruação não viera, ela dissera a si mesma que era uma idiotice se preocupar, já que ela estava perdendo peso, e não ganhando. E ela não estava enjoada, descontando a vez em que se sentira desesperadamente nauseada, logo que eles chegaram ao país, e aquilo tinha sido causado pelo impacto da morte de Aldo, um longo vôo e seus medos sobre o futuro.

Ela certamente não havia experimentado nenhuma outra mudança em seu corpo que pudesse ser associada a uma gravidez. Mas não teria deliberadamente igno­rado tais mudanças, se elas tivessem se manifestado? Não, ela insistiu para si mesma, porque elas não haviam acontecido.

Sabia que não se esquecera de tomar a pílula nem um único dia, e, depois de a menstruação falhar pela primei­ra vez, ela tirara a questão de sua cabeça. Ou pelo menos havia tentado fingir para si mesma que esquecera. En­tretanto, enquanto a data para o início da próxima regra se aproximava, seu estômago começara a se retorcer de ansiedade. E agora a data havia chegado e passado, mais de uma semana atrás, e ainda assim, nada havia aconte­cido. Um nó gelado de medo e incredulidade obstruía a boca de seu estômago. Ela se lembrou daquele acesso de náusea, e do fato de que o vômito poderia eliminar a efi­ciência da pílula anticoncepcional. Mas certamente, ela não poderia estar grávida. O destino não podia ser tão cruel, quando sabia que ela não deveria estar grávida. Não apenas por causa do medo secreto que carregava em sua mente, mas também porque Saul havia deixado bem claro que eles não poderiam ter um filho.

Ela havia lhe feito a promessa de que aquilo não acon­teceria, não sabendo, na ocasião, que já era tarde demais e que ela já havia concebido. Poderia ter concebido, corrigiu-se. Ela não tinha provas disso, além do medo provocado pelo fato de que, agora, sua menstruação havia falhado duas vezes. Ela não se sentia grávida, e certamente não queria estar grávida. Mas e se estivesse? Ela precisava saber. Ela precisava descobrir a verdade, e aquilo não poderia acontecer em Arezzio, onde eles viviam em uma comunidade fechada, onde ainda havia um médico com o título de Clínico da Corte Real.

Uma bolha de ansiedade atormentada que se formara em sua garganta ameaçou se transformar em uma gar­galhada de pânico histérico, mas ela a controlou. Não podia continuar assim, sem saber, como uma adolescen­te aterrorizada, incapaz de enfrentar as conseqüências potenciais de uma gravidez indesejada. Atualmente, contudo, a maioria das adolescentes modernas era mui­to mais consciente e responsável do que ela estava sen­do, Giselle disse a si mesma. Era ela quem tinha sido ingênua, que tinha tentado enterrar a cabeça na areia e esperar que a situação simplesmente desaparecesse. Ela não poderia continuar com aquilo, entretanto. Não ago­ra. Ela precisava descobrir a verdade, e se necessário, tomar uma atitude a respeito.

Para isso, precisava do anonimato de uma cidade grande, Londres, com instalações médicas que lhe per­mitissem descobrir a verdade discretamente. E, da mes­ma forma discreta, fazer preparativos para terminar uma gravidez indesejada? Giselle estremeceu.

Como sempre imaginara que nunca engravidaria, também nunca havia pensado na necessidade de ter­minar uma gravidez, a não ser quando sentia pena das mulheres que, por um motivo ou outro, achavam ne­cessário fazer aquilo. Tal possibilidade sempre lhe pa­recera distante, o tipo de decisão terrível que ela jamais precisaria tomar. Mas agora, ela poderia ter de tomá-la. Aquele pensamento só aumentou seu medo e seu deses­pero. Ela estava tão assustada e vulnerável que queria desesperadamente se agarrar a Saul, ser protegida pela presença dele. Mas não era possível. Saul não poderia protegê-la do que ela talvez tivesse de enfrentar. Ela precisava ir a Londres.

Giselle tocou no assunto durante o almoço, uma salada rápida com um sanduíche, consumidos no jardim, en­quanto ela e Saul discutiam os progressos feitos com o projeto para o orfanato, e outros problemas a serem re­solvidos.

— Eu gostaria de passar alguns dias em Londres para pegar mais algumas das minhas roupas, e ir a Yorkshire para ver a minha tia-avó — ela disse a Saul, da forma mais casual possível. — Não há necessidade de você ir comigo.

— Eu preciso marcar algumas reuniões em Londres. Posso lidar com a maior parte do trabalho envolvendo os negócios daqui, mas preciso ver algumas pessoas, e será mais fácil fazer isso em Londres — Saul respondeu tão calmamente que sua mentira era ainda mais dolorosa para ela. — Então, podemos ir juntos.

Com a boca seca, Giselle assentiu com a cabeça. Ela não ousou insistir que queria ir sozinha. Aquilo certa­mente iria fazer Saul perguntar-lhe mais do que ela po­dia responder, especialmente quando, em geral, ela sem­pre queria que eles fizessem tudo juntos.

Eles voaram para Londres em um jatinho particular dois dias depois, e Giselle teve de lutar para esconder o alívio quando Saul lhe perguntou, quando estavam sentados juntos no banco traseiro do carro guiado pelo motorista, enquanto saíam do aeroporto de Heathrow e se dirigiam à cidade, se ela se importaria em ir até a casa deles, em Chelsea, sozinha. Ele queria ir direto para o escritório e começar a trabalhar imediatamente.

— Eu não devo demorar muito, querida. Vamos jantar fora esta noite? Pedirei a Moira que reserve uma mesa para nós em algum lugar. Há algum restaurante que você prefira?

— Não, escolha você. — No fundo, Giselle só conse­guia pensar na necessidade de comprar um kit de teste de gravidez, e quanto mais cedo, melhor.

Ela não quis pedir ao motorista para levá-la para a farmácia mais próxima, e não podia se arriscar a ir a uma farmácia perto de casa, em Chelsea, com medo de ser reconhecida.

O sorriso de Saul, o beijo leve que ele lhe deu ao sair do carro quando chegaram ao prédio que era a sede dos escritórios de sua empresa e a promessa de não demorar mais do que o necessário antes de voltar para junto dela só aumentaram o desespero e a tristeza de Giselle. Se ao menos ela pudesse simplesmente fechar os olhos, e abri-los novamente para descobrir que tudo aquilo era apenas um pesadelo horrível, e que na verdade estava se­gura, e não grávida. Ela podia não estar, afinal de contas. Não havia nada para provar que estivesse. Nada, a não ser os dois meses de atraso em sua menstruação, Giselle lembrou a si mesma, amargamente.

Depois de o motorista deixá-la em casa, ela entrou rapidamente, checando se o serviço de manutenção que eles usavam havia enchido a geladeira e assegurando que tudo estava em ordem para que eles pudessem pas­sar algumas noites ali, as camas estavam arrumadas com os lençóis de algodão egípcio que Saul insistia que eles tivessem, as toalhas, penduradas nos banhei­ros, e havia um bom estoque de produtos de higiene. Então, ela se apressou de novo, pegando o metrô até a rua Oxford e suas multidões anônimas, e hesitando de forma apreensiva na porta de uma grande rede de farmácias antes de entrar.

Foi bastante fácil encontrar o que procurava; de fato, as opções de kits de testes de gravidez eram tantas que ela ficou atordoada, confusa enquanto exa­minava um modelo e outro, seus dedos semi entorpecidos com o nervosismo ao tentar ler as instruções. Queria um teste que pudesse usar imediatamente, que lhe mostrasse irremediavelmente se ela estava ou não grávida. Enfim, como estava demorando demais e porque se sentia tão autoconsciente, Giselle apanhou rapidamente três kits diferentes e os colocou na cestinha, movendo-se entre as prateleiras para adicionar um tubo de pasta de dentes e outros artigos de higiene para esconder os kits enquanto se dirigia para o caixa, no caso de encontrar alguém que conhecia. Admitiu que provavelmente estava exagerando. Era isso que a culpa fazia com uma pessoa. Fazia com que a pessoa se sentisse super consciente do perigo e hipersensível ao seu próprio medo.

Não foi a multidão, nem o ar poluído com a fumaça dos carros da cidade, que a fez começar a suar quando saiu para a rua Oxford, Giselle sabia. Era seu próprio medo e apreensão. O toque repentino de seu telefone ce­lular a fez parar, petrificada, e suas mãos tremiam quan­do ela viu que era Saul quem ligava.

— Pensei que podíamos ir jantar naquele restaurante da rua Berkeley, já que é um dos seus favoritos — ele disse a ela, mencionando um lugar caro e exclusivo de Londres. — Mas vou levar pelo menos uma hora antes de poder ir para casa.

— Está tudo bem — Giselle conseguiu responder, apertando o telefone com força.

— Que barulho é esse? — Saul perguntou, obviamen­te ouvindo o ruído do trânsito e das pessoas na rua.

— Oh, não é nada. Eu saí para comprar suco de la­ranja para o café da manhã. O pessoal da manutenção se esqueceu de comprar para nós.

— Vejo você em uma hora — Saul repetiu, antes de desligar.

Uma hora. Giselle se sentia como se seu corpo intei­ro estivesse banhado num suor apreensivo, enquanto se apressava para chegar ao metrô.

O horário do rush havia começado, e o trem estava lotado; o calor a fazia se sentir tonta e levemente enjoa­da. Talvez fosse isso. Talvez sua menstruação estivesse para chegar. Giselle rezou para que fosse isso, lutando contra a náusea, franzindo involuntariamente o rosto ao ver uma mulher com a gestação adiantada sentada à sua frente, e desesperada para desviar os olhos dela. Ficou grata quando finalmente pôde sair do metrô e voltar para a rua, onde o ar estava levemente mais fresco.

Apesar de correr, e de acabar com uma dor em um dos lados do corpo por se apressar tanto, ela ainda levou quase meia hora para chegar em casa, em Chelsea, de­pois de ter falado com Saul. Quando entrou, Giselle se apoiou na porta fechada, agradecendo mentalmente pelo silêncio. Sua cabeça estava latejando, e tudo o que ela queria era tomar um banho e se deitar, mas não podia. Precisava fazer o teste primeiro.

No quarto principal, ela leu as instruções no primeiro pacote que removeu da sacola da farmácia e foi para o banheiro.

Dois minutos depois, enquanto esperava o resultado, ela estava tão nervosa e tremia tanto que mal podia se concentrar na linha à sua frente, que lhe dava, indubita­velmente, a notícia que não queria e temera receber. Ela estava grávida.

Freneticamente, ela repetiu o procedimento com os outros dois testes, esperando, contra todas as probabi­lidades, obter um resultado diferente, e caindo num de­sespero ainda maior quando suas esperanças foram des­truídas. Ela ainda estava olhando para a terceira linha positiva quando ouviu a porta da frente se abrir, seguida pela voz de Saul chamando por ela.

— Estou em casa!

Apavorada, Giselle olhou para as embalagens espa­lhadas pelo chão do banheiro. Não havia nenhum lugar para escondê-las, assim, apanhou-as e as enfiou apressa­damente na bolsa, junto com os resultados, forçando-a a fechar bem na hora que Saul entrava no quarto, tirando o paletó do terno.

— Por que é que Londres parece muito mais descon­fortável que outras cidades? — ele perguntou. — Está fazendo dez graus a menos que em Arezzio, mas parece vinte graus mais quente.

Giselle forçou um sorriso que a fez sentir como se sua pele estivesse arrebentando. Ainda que ela soubesse o que esperar, os resultados dos testes a haviam chocado, reforçando a realidade de que estava presa no pior tipo de armadilha.

— Eu marquei uma reunião com o chefe da empre­sa holandesa que esteve envolvida na organização do sistema de estufas para a plantação de grãos em Kent, amanhã. Concordo com o que você disse quando começamos a discutir o projeto, sobre não começar nada formalmente até que possamos treinar o nosso povo su­ficientemente para instalar, executar e gerenciar todos os aspectos da operação, para oferecer empregos para as pessoas, além de comida, mas eu também quero ter algumas discussões preliminares com ele. Eu quero des­cobrir quanta ajuda eles estão dispostos a nos dar, como especialistas na área. E, o que é mais importante, quero ver se podemos convencê-lo a nos oferecer treinamento.

Giselle tentou se forçar a agir normalmente, e se con­centrar no que Saul lhe dizia. Ela assentiu com a cabeça. O projeto em desenvolvimento seria um passo imensa­mente importante para a modernização do país, mas na­quele momento era uma luta para ela pensar em qualquer outra coisa além dos testes escondidos em sua bolsa.

Normalmente, quando eles iam jantar fora à noite, era porque precisavam se reunir com parceiros de negócios, e o tempo que passavam se preparando era um momento precioso de intimidade compartilhada, quando discutiam os eventos do dia e o que esperavam alcançar durante a noite que se seguiria. Naquela noite, contudo, a familiaridade confortável de sua rotina em comum, Saul saindo do chuveiro para dizer algo a ela, sua resposta imediata à proximidade e à nudez dele fazendo-a sorrir por causa do amor e do desejo que sentia, os comentários provo­cantes dele ao ver a expressão dela, convidando-a para dividir o chuveiro, tudo o que era parte da vida conjugal deles, os laços que os uniam apenas reforçava a culpa e o desespero de Giselle.

Ela não deveria estar naquela situação horrível. Não havia, afinal de contas, feito nada deliberadamente para causá-la. Não desejara aquilo secretamente, nem encorajara a situação de forma alguma. Ficar grávida era a última coisa que queria. A última coisa que poderia ter lhe acontecido. Mas acontecera.

— Você está com um cheiro gostoso. Perfume novo? — Saul perguntou, saindo do banheiro com uma toa­lha enrolada na cintura, chegando por trás dela e beijando-lhe a nuca, exposta porque ela havia prendido os cabelos para tomar banho.

O elogio dele fez com que Giselle congelasse. O per­fume não era novo, era o mesmo que ela sempre usava, mas obviamente ela estava com um cheiro diferente, por causa das mudanças hormonais em seu corpo. Uma sensação familiar, que lembrava sua infância, a invadiu. Um sentimento de puro pânico e impotência, de estar em uma situação assustadora da qual ela não tinha ne­nhum controle. Agora, como naquela época, sua primei­ra reação foi procurar alguém a quem recorrer, alguém para ajudá-la, mas, como antes, não havia ninguém e ela estava, mais uma vez, sozinha em meio ao horror da situação.

Talvez não fosse mera coincidência que o primeiro vestido que ela apanhou automaticamente no armário que continha seus trajes de noite fosse preto, a cor do luto, um tubinho de jérsei no qual o corte e as dobras, quando vestidos por um corpo feminino, assumiam uma sensualidade sutil, que era a marca registrada da estilis­ta. Giselle hesitou, sua mão parada no cabide, mas Saul disse, fazendo com que ela tirasse o vestido do armário que o colocasse.

— A mesa está reservada para as 20:00h, e já são 19:00h. — Saul entrou no quarto enquanto ela calçava um par de sandálias pretas de saltos altos. — Lindo.

— É Donna Karan — Giselle respondeu, seus lábios estranhamente rígidos ao formarem as palavras, como se falar normalmente fosse uma nova habilidade que ela precisava aprender.

— Não — Saul corrigiu suavemente. — É você.

Sentindo que ele iria beijá-la, Giselle se afastou dele.

Ela não merecia os elogios de Saul, não merecia seus beijos, e certamente não merecia seu amor.

Passava pouco das 20:00h quando eles entraram no restau­rante exclusivo na rua Berkeley, com seu interior luxuosa­mente decorado. O restaurante operava com uma política de não fazer reservas, mas, como eles jantavam ali regu­larmente e era o meio da semana, não tiveram dificulda­des em conseguir sua mesa favorita, que lhes dava priva­cidade e ao mesmo tempo a oportunidade de ver todo o estabelecimento e os outros clientes, se desejassem.

Depois de recusar a oferta de Saul de pedir uma bebi­da no bar antes de irem para a mesa, Giselle soube que teria problemas em conseguir comer, mas ela deveria tentar, ou se arriscaria a despertar as suspeitas dele. Sus­peitas. Até mesmo a linguagem que ela estava usando em seus pensamentos mais íntimos era a linguagem da mentira e da culpa, reconheceu, sem espanto. Ela estava, afinal de contas, mentindo, e era culpada. Não de estar grávida. Nenhuma parte dela desejara aquilo.

Ela havia examinado repetidamente, em sua cabeça, como aquilo poderia ter acontecido, e a única explicação que podia encontrar era que os enjôos que sentira depois da morte de Aldo deveriam, de algum modo, ter neutra­lizado o efeito da pílula anticoncepcional. Se ela tivesse prestado atenção àquilo, poderia ter evitado o que estava enfrentando agora. Mas não havia, e agora seria forçada a pagar um preço terrível. Ela e a criança que carregava.

Seu coração pulava dentro do peito, e sua agitação fez com que ela derrubasse um talher no chão. Quando um garçom se abaixou para recolhê-lo, Giselle tentou controlar as batidas frenéticas do coração. Aquela gravidez teria de ser interrompida, secretamente e logo. Não apenas porque Saul não queria um filho, mas por causa dela, por causa do segredo chocante e obscuro que carregava consigo, em seus genes. Ela não podia e não iria trazer ao mundo uma criança que sofreria o que ela tivera de sofrer, uma criança que carregaria o peso da escuridão que havia dentro dela, e sobre a qual ela não podia fazer absolutamente nada.

 

Saul observava enquanto Giselle brincava com a comi­da. Ela se assustava nervosa, sempre que ele falava com ela, e em alguns momentos parecia tão perdida em pen­samentos que mal percebia que ele dissera alguma coisa.

Havia algo errado, Saul sabia. A atitude dela o fazia lembrar-se de como Giselle agira quando eles começa­ram a ter um relacionamento íntimo, quando ainda trazia consigo o medo do abandono que havia sofrido, como resultado da morte de seus pais.

Embora o bar ficasse aberto até as 2h da manhã, pas­sava um pouco da 1h quando eles saíram do restauran­te, e Saul chamou um táxi para levá-los para casa.

Saul esperou até que eles estivessem se preparando para ir dormir antes de dizer, de forma suave, mas firme:

— Tem alguma coisa errada. Algo a está chateando. O que é?

— Nada — Giselle negou imediatamente, e então, sabendo que sua negativa não satisfaria Saul, comple­tou: — Eu só estou um pouco preocupada com a minha tia-avó.

— Quer que eu vá a Yorkshire também, quando você for visitá-la?

— Não! — Giselle recusou, horrorizada com o pen­samento. Pretendia usar algum tempo, quando Saul pen­saria que ela estava com sua tia-avó, para interromper a gravidez. — Quero dizer, não há necessidade de você fazer isso. Não quando já tem tanta coisa para fazer — completou temerosa de que seu não frenético pudesse despertar as suspeitas dele. — Eu me sinto culpada por estar tão longe dela, agora que vamos morar permanen­temente no palácio — explicou sinceramente, já que re­almente se preocupava com a distância entre Arezzio e Yorkshire.

— Não há nada que nos impeça de convidar a sua tia-avó para ir morar conosco. Podemos facilmente ofe­recer a ela seu próprio apartamento, e ajudá-la no que for necessário. Na verdade, acho que seria uma ótima idéia. Ela tem uma mente formidável, e eu aprecio a compa­nhia dela. Ela joga xadrez muito melhor do que você — provocou.

Ela conseguiu dar um sorriso fraco em resposta à brincadeira dele, mesmo que seu coração estivesse dis­parado de ansiedade.

— Vou sondá-la a respeito de se mudar, embora eu não ache que ela vá querer. Titia fez tantos amigos entre os residentes da casa de repouso que talvez não queira sair de lá.

Era realmente por isso que ela não queria incomodar a tia-avó? Ou estaria com medo de que a senhora deixas­se algo escapar, algo que revelasse o segredo dela para Saul? Afinal de contas, sua tia-avó acreditava que ele já soubesse da verdade, e seria muito fácil para ela discutir a infância de Giselle com Saul, sem perceber que ela não havia revelado tudo para ele.

Odiando a si mesma pelo que estava pensando, Giselle foi até o closet, de onde tirou as sandálias e o vestido, antes de abrir a porta que levava ao grande banheiro que ela e Saul dividiam. Com o chuveiro duplo, duas pias e uma grande banheira redonda, o aposento era o paraíso. Da banheira, era possível ver, pela parede de vidro, o jar­dim lá fora. Quando estava escuro, como agora, o jardim era iluminado de forma inteligente e discreta, que enfa­tizava as oliveiras e as estátuas, bem como uma fonte, e normalmente não havia nada de que Giselle gostasse mais que simplesmente relaxar ali. A banheira tinha um pequeno banquinho onde podia se sentar, e jatos d'água poderosos que podiam ser ativados quando ela desejava. Ela e Saul freqüentemente aproveitavam a banheira para desfrutar de um prelúdio sensual antes de fazerem amor, mas, naquela noite, fazer amor era a última coisa que ela queria. Não merecia o calor e o conforto do amor de Saul, e estava apavorada com a possibilidade de se des­controlar em seus braços e contar a ele o que não podia ser revelado.

Então, em vez de tomar um banho longo e sensual, ela optou por uma chuveirada rápida, saindo do boxe rapi­damente quando Saul se aproximou e mordendo o lábio quando viu a expressão de surpresa nos olhos dele, ao vê-la rejeitar sua presença ao seu lado. Pela primeira vez em sua vida de casada, Giselle fez algo que jamais ima­ginara que faria: fingiu estar dormindo quando o marido deitou-se na cama, ficando de costas para ele, com os olhos firmemente fechados. Se ele a tocasse agora, ela temia que se descontrolasse e se atirasse aos pés dele.

— Giselle?

Ela congelou quando sentiu o calor do corpo de Saul contra suas costas e ouviu a voz dele em seu ouvido.

— Eu sei que você não está dormindo.

— Mas eu quero dormir — ela disse a ele, honesta­mente. — Foi um dia longo, e eu estou cansada.

Giselle nunca antes virara as costas para ele na cama. Eles podiam não fazer amor apaixonadamente todas as noites, mas sempre se tocavam e se beijavam, e dormiam abraçados. Inexplicavelmente, ela queria manter distân­cia dele. Ao dizer que estava muito cansada, Saul sabia que ela queria dizer que não desejava que ele a tocasse, e algo nele reagiu, com a determinação de um macho alfa ao que parecia ser uma rejeição.

— Talvez eu devesse tentar fazê-la mudar de idéia... — ele sugeriu, aproximando-se dela, e murmurando as palavras ao ouvido dela, depois de correr os dedos por seus cabelos, levantando-lhe a cabeça, de modo que a respiração dele aqueceu o ponto sensível e erógeno atrás da orelha da esposa.

A tentação de relaxar e se virar nos braços dele foi tão . intensa que ameaçou tomar-lhe o controle. O corpo de Giselle estava tão bem sintonizado com o toque dele, seu desejo por ele era tão forte, que já estava respondendo ao calor de sua respiração. Pequenos tremores de excitação já percorriam suas terminações nervosas. Mas aquele prazer não diminuía o desespero gelado que apertava seu coração, nem desfazia o nó de terror que lhe embrulhava o estômago. Ela não podia se entregar a Saul, aceitar o prazer que sabia que ele lhe daria, e sofrer ainda mais culpa. Seria errado desfrutar de qualquer coisa agora, principalmente da intimidade de fazer amor, nas circunstâncias que a envolviam no momento. Ela não merecia afastar sua mentira para o lado, para poder se perder no calor do amor de Saul e ser abraçada por ele. O que ela realmente e verdadeiramente merecia era o desprezo frio e a rejeição dele.

A mão de Saul estava em sua cintura, e logo ele lhe acariciaria os seios, beliscando-lhe os mamilos, provo­cando e atormentando-a até que ela se virasse em seus braços e o beijasse com toda a paixão que sentia por ele. Mas aquilo não deveria acontecer.

— Agora não, Saul. Estou realmente cansada — ela se forçou a dizer secamente, e afastou-se dele, de modo que estava deitada bem na beirada da cama enorme, de costas para ele, em uma posição rígida que sinalizava a rejeição.

Ela pôde sentir o colchão se movendo enquanto Saul se virava para o próprio lado da cama, deixando um va­zio gelado entre os dois. Giselle queria muito chorar, mas sentiu que não merecia o alívio das lágrimas.

Já era quase de manhã quando ela finalmente caiu em um sono cheio de pesadelos, durante os quais podia ou­vir um bebezinho chorando, em algum lugar. Em seu pesadelo, ela havia verificado quarto após quarto, pro­curando a criança, para enfim ver sua mãe empurrando um carrinho de bebê. Giselle havia gritado para que sua mãe parasse, mas ela simplesmente se virará e olhara para a filha, gritando "A culpa é sua" antes de desapa­recer com a criança. Agora o pesadelo a despertara, e seu corpo estava banhado em suor, e ela tremia.

Giselle tivera medo de voltar a dormir depois daquilo, mas deveria ter adormecido finalmente, porque quando acordou de novo já passava de 9h, e não havia sinal de Saul, nem mesmo um dos pequenos bilhetes afetuosos que ele costumava deixar para ela, quando precisava sair antes de ela acordar.

Giselle não estava nem um pouco entusiasmada para se levantar e se vestir: preferia ficar exatamente onde estava; com as cobertas puxadas sobre a cabeça, isolan­do a realidade de sua vida. Mas a natureza não lhe per­mitiria fazer isso. Sua cabeça estava latejando de dor. E ela sabia que havia alguns comprimidos no armário do banheiro, mas logo que pensou em tomá-los uma voz in­terna a lembrou que estava grávida, e pelo bem do bebê não deveria tomar nenhuma medicação que não fosse aprovada por um médico.

Pelo bem do bebê? Não haveria um bebê! Ela não poderia, não deveria ter um filho, pelo bem da própria criança, além do seu. Ela se lembrou do pesadelo, e do grito agudo de dor da criança que desaparecera. Seu cor­po inteiro começou a tremer.

Não devia pensar naquilo. Ela precisava ser forte, e não vacilar. Não havia um ditado sobre tarefas desagra­dáveis? Já que precisavam ser feitas, deveriam ser fei­tas rapidamente? Ela certamente não podia perder mais tempo. Estava, pelos seus cálculos, grávida de 14 sema­nas. Precisava fazer o que devia ser feito o mais rápi­do possível. Tinha de encontrar um médico, não o seu médico particular, que também atendia Saul, mas outro profissional.

O que uma "pessoa fazia em tais circunstâncias? Ha­via clínicas, ela sabia, e linhas telefônicas de ajuda. Sua dor de cabeça havia piorado, um latejar constante nas têmporas, e pela primeira vez, Giselle sentiu uma náusea que a deixou completamente atordoada. Essa náusea, entretanto, era causada por seu estado emocional, e não por sua condição física, tinha certeza.

Letargicamente, ela empurrou as cobertas e foi para o banheiro, onde tomou uma chuveirada rápida, mal capaz de tocar o próprio corpo, ainda que seu ventre ainda es­tivesse liso, e sua cintura, estreita.

Meia hora depois, estava sentada à frente de seu com­putador, checando os detalhes da busca que fizera na internet, e que lhe fornecera os endereços de várias clí­nicas particulares. Com um telefonema para uma delas, descobriu que a primeira data que eles podiam lhe ofere­cer para consultar um médico e falar com um psicólogo era só no final da semana. As outras clínicas informaram mais ou menos a mesma coisa, e no final Giselle tele­fonou novamente para a primeira clínica e marcou uma consulta com eles.

Quando eles a liberassem, depois do procedimento, ela viajaria para Yorkshire para ver sua tia-avó, embora sua estada lá devesse ser mais curta do que o que Saul acreditava que seria. Ela fez uma reserva em um hotel diferente do que usava normalmente, um lugar mais discreto. Quanto tempo aquilo tudo levaria? Não fazia idéia. No meio-tempo antes de sua consulta, havia pro­vidências a tomar. Conseguir algum dinheiro, por exem­plo, o suficiente para pagar a conta da clínica.

 

Saul não conseguia se concentrar no e-mail que deveria estar lendo. Ele não conseguia se concentrar em nada, admitiu, enquanto sua mente se recusava a parar de pensar no que havia acontecido na noite anterior. Giselle nunca lhe dera as costas na cama antes. Normalmente, ela queria que eles dormissem abraçados, e havia várias vezes comentado, de forma um pouco tímida, que ado­rava acordar no meio da noite e perceber que ele atirara uma perna por sobre a dela durante o sono, como se para mantê-la perto de si.

— Isso me faz sentir necessária, como se eu fosse uma parte de você — ela lhe dissera.

Mas agora lhe parecia, ou pelo menos tinha lhe pare­cido na noite passada, que ela definitivamente não que­ria mais sentir nada daquilo.

Ele empurrou o laptop para longe e se levantou, seu movimento atraindo a atenção de Moira, sua assistente pessoal, que entrou no escritório.

— Eu acabei de me lembrar de que deixei em casa alguns papéis de que preciso — ele mentiu. — Tenho de voltar para apanhá-los.

— Mas e quanto ao seu compromisso? — Moira lhe perguntou.

— Cancele. — Saul apanhou o paletó, e o movimento dos músculos fortes de seu torso atraiu o olhar da jovem executiva vestida com elegância que passava pelo vestíbulo logo abaixo do escritório envidraçado de Saul, e fazendo-a comparar a excitante masculinidade dele com a suavidade metrossexual de seu namorado atual, cujo corpo não estava nem de perto tão em forma.

Machos alfa podiam ser arrogantes e exigentes, en­raizados em sua masculinidade com tudo o que a pa­lavra significava, mas não havia como negar o apelo sexual deles, ela reconheceu, com um pequeno suspiro de inveja da mulher do chefe, a mulher a quem, todos sabiam, ele era totalmente devotado. E aquilo era outra coisa. Quando você conseguia domar um macho alfa,e ele decidia se comprometer, passava a ser seu para o resto da vida.

No andar de cima, Saul, ignorando a existência dela, fechou o laptop e o colocou na pasta de couro, apanhan­do o BlackBerry. Sua intenção era dizer a Giselle que es­tava a caminho de casa. Mas então ele parou e simples­mente olhou para o telefone, antes de colocá-lo de volta no bolso. Por quê? Por que ele não estava telefonando para Giselle? Certamente, não era porque pensava que se não o fizesse a apanharia em flagrante, de algum modo? Saul não gostava muito da direção que seus pensamen­tos estavam tomando, e o que aquilo dizia sobre ele, as­sim como não gostava do egoísmo instintivo e machista que o impedia de afastar o lado mais questionador e, na verdade, desconfiado de sua natureza, que o casamento com Giselle havia despertado dentro dele. Mas o com­portamento dela na noite anterior fora tão fora do normal como a sugestão de viajar para a Inglaterra sozinha. Ela estava zangada, com justificativas, por causa da promes­sa que ele fizera a Aldo, feita sem consultá-la. Aquilo significava... O quê? Que ela não o amava mais? Que ela não era honesta o suficiente para discutir seus sentimen­tos com ele? Se havia uma coisa que Saul não conseguia tolerar era desonestidade. Em qualquer pessoa.

Giselle estava no quarto quando Saul abriu a porta da frente e olhou silenciosamente para os outros quartos vazios, antes de subir. Ela estava vestida e pronta para sair, e já teria deixado a casa, antes de Saul chegar, se não tivesse sido distraída pelo fato de que as embalagens dos testes de gravidez e os próprios kits ainda estavam em sua bolsa. Ela teria de jogar tudo fora discretamente; secretamente, corrigiu-se, com um desprezo agudo pela sua necessidade constante de mentir. Seus dedos toca­ram um dos testes positivos. Incapaz de se controlar, ela o tirou da bolsa, impelida por seu desejo de que as coisas fossem diferentes a olhar para ele de novo, como se ao fazer aquilo ela pudesse, de alguma forma, mudar o re­sultado e desfazer tudo o que ele significava.

Foi enquanto ela olhava para o teste que Saul abriu a porta do quarto. Imediatamente, Giselle enfiou o tubo de volta na bolsa, seu rosto mudando de cor com o gesto, sua voz soando alta e estridente ao perguntar:

— O que você está fazendo em casa? Eu pensei que fosse passar o dia inteiro no escritório.

— Talvez eu tenha sentido vontade de ver a minha es­posa e descobrir por que ela se afastou de mim na cama na noite passada — Saul respondeu sem emoção, seu olhar percebendo a mudança de cor no rosto dela e sua evidente apreensão.

Ela havia colocado algo apressadamente na bolsa quando ele entrara. O que seria? Seu telefone, com uma mensagem comprometedora? Uma carta?

— Eu lhe disse. Estava cansada — Giselle afirmou.

— Cansada demais para se importar comigo, mas não cansada demais para sair hoje. Para onde você está indo, a propósito?

— Para lugar nenhum.

As sobrancelhas de Saul se ergueram.

— Eu ia ao banco, apenas. Queria retirar algum di­nheiro. Pensei que minha tia-avó podia precisar de algu­mas roupas, e talvez eu pudesse sair com ela para fazer compras quando fosse visitá-la. — Giselle se sentiu en­vergonhada ao ver a expressão dele e lhe dizer algo que era apenas parcialmente verdade, e que escondia o real motivo de estar saindo.

Era uma explicação bastante plausível, Saul reconhe­ceu, mas o fato de que Giselle não havia olhado para ele uma vez sequer enquanto falava chamou-lhe a aten­ção. Na verdade, ela estava evitando desesperadamente encará-lo. Além da suspeita que o havia levado para casa e da raiva que queimava dentro dele, Saul agora sentia uma dor profunda. De todas as pessoas que ele conhecia, Giselle era a única que acreditava que jamais mentiria para ele. Nunca.

— Venha almoçar comigo, e iremos ao banco juntos — ele sugeriu, testando-a.

— Não! Quero dizer, eu adoraria, mas sei como você deve estar ocupado.

Aquele "não" imediato fora um grande erro, Giselle sabia. Podia ver, pela reação de Saul. Ele estava, agora, se aproximando dela, com uma expressão bastante fe­chada no rosto. Em seu pânico, a bolsa de Giselle lhe escapou das mãos úmidas de suor. O fecho, não total­mente travado, se abriu ao tocar o chão, e o impacto des­locou uma parte do conteúdo da bolsa em uma bagunça de embalagens, batom e... o coração dela pulou dentro de seu peito, em uma onda de medo cego, quando ela viu o teste comprometedor no chão, mal escondido pela embalagem. Freneticamente, caiu de joelhos, mas era tarde demais. Saul chegara primeiro, e estava juntando tudo do chão. Ajoelhada no carpete, olhando para ele, Giselle viu primeiro a confusão e então a percepção no olhar dele, quando Saul apanhou o kit de teste do chão e o fitou. Então, ele se virou para encará-la, perguntando em uma voz quase baixa demais:

— Isto significa o que eu acho que significa?

— Se você está me perguntando se eu estou grávida, sim, estou — Giselle foi forçada a confirmar. — Não olhe para mim desse jeito — implorou. — Não foi de propósito. Ficar grávida era a última coisa que eu queria. Era a última coisa que eu jamais quis.

— Então, como é que você esta? — Saul perguntou bruscamente, lutando contra a fúria que estava sentindo e chocado demais para permitir que ela visse.

   Giselle o havia enganado. Ela engravidara, indo totalmente contra os desejos dele, enquanto fingia concordar com ele a respeito de nunca ter filhos. Ele confiara nela, e ela o enganara. Ela mentira para ele. Aquilo era algo que o orgulho de Saul não podia tolerar.

— Eu não sei como isso aconteceu, Saul. Não estava me sentindo muito bem, depois que deixamos a ilha, e uma doença pode afetar a eficiência da pílula. É a verdade — ela insistiu, quando viu o modo como ele a olhava.

—De quanto tempo você está grávida? — Saul perguntou secamente.

—De pouco mais de dois meses, eu acho.

— Dois meses? — A raiva e a incredulidade dele eram claras. — Devo acreditar que você sabia a dois meses que poderia estar grávida, mas esperou até agora para descobrir? Você mentiu para mim, Giselle. Você mentiu para mim sobre não querer filhos, e agora está tentando me enganar...

— Não, não é verdade. Eu não quero um filho tan­to quanto você. Estava tomando a pílula. Eu não tinha razão para desconfiar ou me preocupar... Simplesmente pensei, no começo, que o choque da morte de Aldo era o motivo de a minha menstruação ter falhado. Não havia nenhum outro sintoma, como enjôo matinal. Gostaria que tivesse havido, porque teria deixado tudo isso para trás, e... Eu não tinha motivos para suspeitar que esti­vesse grávida — repetiu. — E quanto a enganar você... Enganar você a respeito do quê? Você acha que eu o forçaria a ser pai, quando você não quer isso? Você re­almente acha que eu faria isso, quando sei tanto quanto você como é importante para uma criança ser amada? Sim, eu menti sobre o motivo por que eu queria vir a Londres, mas foi apenas porque precisava descobrir se as minhas suspeitas estavam corretas.

Havia convicção demais na voz dela para ela estar mentindo, Saul reconheceu, e uma parte de sua raiva di­minuiu, ao admitir que sua explosão tinha sido causada pelo choque, e não pelo fato de acreditar honestamente que Giselle tivesse arquitetado um plano para eles terem um filho. Ele se sentiu até mesmo culpado por ter estou­rado. A verdade era que ele não podia suportar pensar em Giselle sentindo que tinha de esconder alguma coisa dele.

— E agora que você sabe que suas suspeitas estavam certas, quando planejava me contar?

— Nunca — Giselle admitiu sinceramente.

— Nunca? — Agora, ele estava chocado e ferido. — Você teria escondido algo tão importante de mim, quan­do sempre concordamos sobre a importância da confian­ça mútua?

— Pelo seu bem, eu não queria colocar mais um peso sobre você. — Ela não queria que ele sofresse com a culpa e a dor horríveis que a afligiam.

Mas, como homem, ela suspeitava que Saul conside­raria sua responsabilidade protegê-la, e não o contrário.

— Eu não achei certo envolvê-lo — ela continuou, completando tristemente: — Não haveria motivo. Co­nheço as suas opiniões, e a sua reação agora só as re­forçou. O problema é meu, e não seu, já que se trata do meu corpo.

— E você jamais teria me dito nada?

Giselle se levantou e foi até a janela.

— O problema é meu, Saul. Sou eu quem está grávi­da, e cabe a mim tomar as devidas providências. Fazer... Fazer as coisas como concordamos que deveriam ser.

Saul descobriu que não gostava muito da imagem de si mesmo que as palavras de Giselle estavam transmitin­do para sua consciência.

— É mesmo? Ou aquelas conversas que você ins­tigou, sobre a minha necessidade de ter um herdeiro, aconteceram porque você já sabia que estava esperando um filho meu?

O orgulho dele o estava fazendo se defender da ima­gem insuportável que as palavras dela haviam transmiti­do a ele, atacando-a. Mas seu orgulho não era capaz de aliviar sua consciência, nem diminuir sua preocupação com Giselle.

— Não! — Com o rosto branco, Giselle se voltou para confrontá-lo. — Não. Você continua com isso. Você continua a me acusar de querer um filho secreta­mente, e forçá-lo a ter um, quando isso é a última coisa que eu faria.

A expressão no rosto de Saul lhe dizia que ele não acreditava totalmente nela. Vendo-a, Giselle sentiu seu autocontrole lhe escapar. A dor a invadiu, sabotando suas forças e suas intenções. Ela não podia agüentar mais, e disse a ele, ferozmente:

— Você está tão errado, Saul. Tão, tão errado. E eu vou lhe dizer por quê. Mesmo se eu quisesse ter um filho, não poderia. E foi por isso que instiguei aquelas conver­sas sobre a sua "necessidade de ter um herdeiro", como você colocou. Porque se você quisesse um filho, então...

— Então, o quê? Eu quero a verdade, Giselle, toda a verdade.

Ela foi apanhada em uma armadilha que havia arma­do por si mesma, Giselle percebeu.

— Então, você teria de encontrar outra pessoa para ter esse filho. Porque eu não posso ser mãe de uma criança, pelo bem dela, e pelo seu. E quanto à verdade... — Lá­grimas encheram os olhos dela, como pequenos cacos de vidro.

Ela havia lutado tanto, e por tanto tempo, para prote­ger seus segredos, para proteger também as pessoas que amava — primeiro, sua mãe e seu pai, e agora Saul —, mas suas forças se esgotaram, sugadas pela acusação de Saul e pelo choque da gravidez. Ainda assim, tentou desesperadamente se agarrar à sua determinação de jamais deixar que alguém soubesse o que a atormentava.

— Você sabe a verdade. Estou grávida, esperando um filho que você não quer e que não posso ter. Pretendo in­terromper esta gravidez, para poder cumprir a promessa que lhe fiz.

— Está mentindo para mim, Giselle. Existe mais por detrás de tudo isso. Posso sentir, não importa o quanto você tente negar.

Quando Giselle olhou para Saul, pôde ver a hostilida­de e o cansaço em seus olhos, junto com a incredulidade. A dor de ver aquelas emoções nos olhos do homem que ela amava, nos olhos que normalmente a fitavam com amor, tirou o resto de suas forças. Ela estava muito fraca para continuar escondendo a verdade, e parte dela ansia­va por se livrar daquele peso, por poder caminhar livre daquilo, não importava o custo. Ela devia aquilo a Saul: afastar-se da proteção de seu segredo, e deixá-lo vê-la não apenas como era, mas como poderia se tornar.

— Muito bem — ela disse a ele exausta. — Se você quer saber a verdade, eu lhe direi.

E então Giselle o veria olhando para ela com horror e rejeição, antes de ele se afastar dela para sempre. Ela respirou fundo, e Saul se levantou.

— Eu menti para você sem intenção, Saul, quando o deixei pensar que sabia tudo o que havia para saber sobre a minha mãe e a minha infância.

O que quer que ele estivesse esperando ouvir, não era aquilo, Saul reconheceu. Eles certamente haviam lidado com todo o trauma que Giselle sofrera com a morte de sua mãe e seu irmãozinho, em um acidente de trânsito, antes deles se casarem.

— Se você vai me dizer que ainda se sente culpada porque estava segura e não ficou ferida enquanto eles morreram no acidente...

Ele não sabia que o que ela carregava dentro de si iria destruir sua vida juntos, e seu amor. Ele não sabia por que ela havia mentido para ele. Ele não sabia o que ela era realmente: uma louca em potencial e uma assassina de crianças.

— Não foi um acidente.

 

A convicção total na voz de Giselle fez os cabelos da nuca de Saul se arrepiarem. Havia uma expressão as­sombrada, agoniada no rosto dela, uma impassibilidade e uma dor que o faziam querer correr para ela, mas no minuto em que ele tentou se aproximar, ela se afastou, levantando a mão como se quisesse alertá-lo.

— Giselle, sei o quanto as mortes deles afetaram você, e é compreensível.

Como se não o tivesse ouvido, Giselle continuou a falar, no mesmo tom monótono:

— A minha mãe cometeu suicídio. Ela tirou a própria vida, e a do meu irmãozinho, e teria tirado a minha tam­bém, se pudesse. Ela já tinha tentado, antes... Antes de o meu irmão nascer, quando eu ainda era um bebê. Ela tomou um monte de comprimidos, e ia me sufocar, mas meu pai percebeu e a impediu. Foi o fato de nos ter que causou aquilo: o fato de ter filhos. Aquilo a enlouque­ceu. Muitas mulheres sofrem de depressão pós-parto, mas a da minha mãe era muito séria. Era um tipo de psicose. Ela não podia se controlar. Achava, que, se nos matasse, e a si mesma, nos manteria seguros. Ela deveria estar tomando medicação, para melhorar. Meu pai até mesmo contratou uma enfermeira para morar conosco. Oficialmente, ela estava ali para ajudar minha mãe com o bebê, mas na verdade seu trabalho era protegê-lo. Você sabe,o especialista que o meu pai consultou tinha dito a ele que, depois que mamãe tentou o suicídio pela primei­ra vez, não seria aconselhável ter outro filho. Segundo a minha tia-avó, contudo, depois que ela se recuperou do meu nascimento e dos problemas mentais que o parto lhe causou, mamãe quis mostrar ao meu pai que esta­va completamente recuperada. Ela queria ter outro filho para provar a ele que eu havia sido a causa de seus pro­blemas, porque era uma criança difícil. Meu pai a ama­va tanto que acabou cedendo. Aparentemente, durante a gravidez, ela estava felicíssima. Eu era pequena demais para me lembrar. Ela estava tão excitada com o nasci­mento que meu pai pensou que tudo ficaria bem. Ele a amava, você sabe, e acreditou nela quando ela lhe disse que foi o fato de eu ser uma criança difícil que provocara a depressão. Ela não queria que a enfermeira Edwards morasse conosco. Ela queria fazer tudo por Thomas, so­zinha. Então, um dia, a enfermeira Edwards o encon­trou deitado de rosto para baixo em seu berço, lutando para respirar. Minha mãe disse que eu havia feito aqui­lo, porque tinha ciúme dele. Ela queria que meu pai me mandasse para um colégio interno. Eu me lembro dele conversando comigo a respeito. Dizendo que eu deveria ser uma menina boazinha e não aborrecer a minha mãe. Ele disse que queria que eu amasse Thomas e sempre me certificasse de que ele estava seguro e bem.

Giselle fez uma pausa para olhar pela janela, mas Saul sabia que seus pensamentos, na verdade todo o seu ser, estavam de volta ao passado. Houvera vários mo­mentos, durante a explicação dela, em que ele quisera interrompê-la, comentar e questionar, e acima de tudo confortá-la e consolá-la, mas havia se obrigado a per­manecer em silêncio, temendo que qualquer interrupção fizesse com que ela parasse de falar e se recusasse a continuar.

Tantas emoções diferentes o haviam assaltado en­quanto ele a ouvia. Inicialmente, ele ficara atônito, e então uma consciência chocada de como Giselle deve­ria ter sofrido quando criança — seguida pela raiva pelo sofrimento dela — o invadiu. Ele se sentia culpado, tam­bém, por não ter percebido que podia haver mais a res­peito da morte da mãe dela do que ela havia lhe contado.

— No dia em que aconteceu, o meu pai foi chama­do inesperadamente para atender a uma emergência no hospital — Giselle continuou, baixinho. — Era o dia de folga da enfermeira Edwards. Antes de sair de casa, ele me pediu para prometer que eu cuidaria da minha mãe e de Thomas. E eu disse que cuidaria.

Ela parou novamente de falar, antes de se virar para Saul e dizer a ele, emocionada:

— Eu prometi a ele, mas não pude cumprir. Quando minha mãe disse que precisávamos sair, eu não quis ir, mas ela insistiu. Eu deveria tê-la impedido...

— Não, Giselle — Saul interrompeu, forçado a fazê-lo quando viu o quanto ela estava sofrendo, aproxi­mando-se dela e chegando mais perto mesmo quando ela se afastou, até que ela não podia recuar mais por causa da parede atrás de si.

— Não. — Ele colocou as mãos nos braços dela, seu coração doendo por ela quando sen­tiu a tensão rígida de seu corpo.

— Sim — ela o enfrentou. — Sim, eu deveria tê-la impedido.

— Você tinha 6 anos! — Saul a lembrou, repetindo o que lhe dissera quando Giselle lhe revelara pela primeira vez sua culpa sobre as mortes da mãe e do irmão.

— Eu prometi ao meu pai e quebrei minha promessa. Fiz uma promessa a você, também, Saul, e juro que não vou quebrá-la. Eu deveria ter lhe contado sobre a minha mãe antes de nos casarmos. Minha tia-avó pensa que lhe contei, mas tive tanto medo de você não me querer mais, se soubesse. Que homem iria querer se casar com uma mulher que tem a loucura em seus genes?

— Depressão pós-parto não é loucura, querida. Pelo que eu já li, acontece com muitas mulheres, e pode ser tratada, curada.

— Nem sempre. Não quando é tão séria como no caso da minha mãe, e, segundo a minha tia-avó, a mãe dela, também, embora ela não sofresse de forma tão grave. Mas não era uma doença tão rapidamente diagnosticada naquela época. Meu pai tinha sido avisado de que o caso da minha mãe era sério, por causa do comportamento dela depois que nasci. Durante toda a minha vida, eu disse a mim mesma que nunca poderia me apaixonar ou deixar que alguém se apaixonasse por mim, porque não seria justo. Eu sabia que não podia me arriscar a ter um filho que poderia tentar matar, como minha mãe tentou me matar, e como matou meu irmão. E então, eu conheci você, e me apaixonei por você tão rápido que já era tarde demais para tentar evitar. Mas não era tarde demais para evitar que você fosse afetado por... pelos genes destrutivos que herdei. Você diz que não quer ter filhos, e que jamais os desejaria, e eu acreditei que o destino estava me poupando, porque eu já havia sido punida o suficien­te. Eu estava tão feliz, mesmo sabendo que não estava sendo totalmente honesta com você.

— Você deveria ter me contado.

— Sim, deveria, porque assim o teria poupado de tudo isso. Você jamais teria se casado comigo.

— Não foi isso que eu quis dizer. Você devia ter me contado porque amo você, Giselle, e me magoa pensar que você sofreu tanto sem que eu soubesse. Fere meu orgulho, como homem, saber que você suportou tanto peso sozinha. Como o homem que a ama, eu deveria di­vidir esse peso com você. Magoa-me também saber que você imaginou que não podia confiar em mim, ou no meu amor por você, o suficiente para ser honesta comigo e deixar que eu carregasse um pouco desse peso.

Enquanto Saul falava, lágrimas começaram a encher os olhos de Giselle e a escorrer por seu rosto. Com muito carinho, Saul as enxugou e a tomou cuidadosamente nos braços.

— Você deve ter sentido tanta dor e tanto medo. — Ele mal podia pensar no tormento que ela devia ter sofri­do quando criança, sem compreender o comportamento da mãe, mas se sentindo culpada depois de sua morte porque não pudera salvá-la, e mais tarde, ao crescer e começar a entender a realidade e a complexidade das causas do que havia acontecido.

Ele ansiava por poder fazer algo para ajudá-la.

— Não posso pensar em ninguém que seja mais sau­dável do que você, meu amor. Só porque a sua mãe...

Giselle o interrompeu:

— Ouso dizer que ela também era saudável antes de eu nascer. Ela deve ter sido, porque meu pai teria sabido se não fosse. — Olhou para ele, e então lhe disse, com um tom exausto: — Agora você sabe por que a última coisa que eu faria seria tentar conceber acidentalmente. Eu tive tanto medo, quando percebi que poderia estar grávida...

Ela havia começado a tremer nos braços dele.

— Eu queria tanto que não fosse verdade, Saul. Você não sabe o quanto me faz sentir mal saber que se eu tiver um filho posso acabar tentando matá-lo. A minha mãe queria nos matar porque achava que era o único modo de nos proteger da dor de viver. Como eu já lhe disse, é uma forma de loucura. Uma forma de loucura que pode ser transmitida de mãe para filha e neta.

A voz dela se suavizou, com emoção e amor:

— Vou ser honesta com você, Saul, se as coisas fos­sem diferentes, eu adoraria ter filhos. Especialmente os seus filhos. Eu adoraria criá-los e vê-los crescerem, e se tornarem tudo o que vejo em você. Mas isso nunca po­derá acontecer. Eu não posso suportar saber que poderia passar isso adiante, e que outra geração, a minha própria filha, carregasse o peso que eu tive de carregar. O fato de você não querer filhos foi, literalmente, a minha salva­ção. Da mesma forma que o seu amor tem sido a melhor coisa na minha vida.

Saul só podia abraçá-la. Ele sentia que mal conseguia entender tudo o que ela já havia passado, mesmo antes daquela gravidez acidental. A coragem e o altruísmo dela o faziam se sentir humilde, e ele podia perceber, pelo tom da voz dela, que desistir de algo tão profundamente desejado para proteger os outros devia, sem dúvida, ser a maior de todas as bravuras morais.

— Você deveria ter me contado tudo isto antes. Isto deveria ser algo para enfrentarmos juntos.

— Não é problema seu, nem sua responsabilidade.

— Mas é claro que é. Você é a mulher que eu amo. Realmente acha que eu quereria que você passasse por tudo isso sozinha? Que tipo de homem pensa que sou, Giselle? Achei que você me conhecesse.

— E conheço. Eu sei que você não quer ter filhos, e que eu não devo tê-los. Sei do meu dever e da minha responsabilidade, Saul. Já marquei uma consulta, daqui a alguns dias, em uma clínica aqui em Londres. Foi a primeira que eu encontrei, e decidi ir até lá.

Saul a abraçou com mais força ainda. A dor e o deses­pero dela tocavam as emoções dele de tal forma que era como se ele estivesse sentindo tudo junto com Giselle.

— Não precisa ser assim, querida. Sim, sei o que eu disse, e o que concordamos, mas isso foi antes... Eu não posso fingir que queria que você ficasse grávida, mas agora você está. Por que não procuramos ajuda médica especializada, para nos aconselhar a respeito da depres­são pós-parto da sua mãe?

— Não há motivos. Eu sei o que ela fez. Sei o que eu mesma sou capaz de fazer. Você não percebe, Saul? — Giselle podia sentir o pânico crescendo, e com ele, o medo.

Ela se sentia como se fosse incapaz de pensar logi­camente, e a criança nem havia nascido ainda. O filho deles. A dor apertou seu coração.

— Tudo bem, não vamos falar sobre isso agora — Saul a confortou.

— Para onde você está indo? — Giselle perguntou, freneticamente.

— Telefonar para Moira e avisar a ela que não vol­tarei para o escritório hoje. Vou preparar uma xícara de café para nós dois, e então, se você quiser, podemos con­versar mais.

— Não há nada mais a dizer, Saul. Você sabe de tudo, agora. — Ela fechou os olhos e disse, em desespero: — Eu só queria que nada disso tivesse acontecido.

Não mais do que ele, Saul reconheceu. Não pelo seu próprio bem, mas pelo dela.

No final, Saul decidiu que faria bem a Giselle sair um pouco de casa, então ele a levou ao Parque Richmond, aliviado ao ver um breve sorriso chegar aos lábios dela quando Giselle percebeu para onde eles estavam indo. Ela sempre adorara aquele parque, e eles iam até lá fre­qüentemente, para andar e caminhar juntos, quando es­tavam em Londres.

No começo, Saul achou que havia feito a coisa certa. Ele se esquecera, contudo, que as escolas estavam fecha­das para as férias do meio do semestre, e ver Giselle con­trair o rosto ao som das vozes das crianças o fez desejar ter escolhido outro lugar, onde não houvesse crianças.

Quando ele olhou para Giselle, os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Crianças. Ela queria tanto poder se­gurar seu próprio filho. Ela se sentia tão dividida, tão assustada. Ela não se importava que Saul falasse sobre consultar especialistas; dava no mesmo. Eles não pode­riam lhe dizer nada que ela já não soubesse. Giselle tinha visto o que uma severa depressão pós-parto podia cau­sar. Passara pelo horror daquilo em primeira mão.

Saul a puxou contra si, e passou o braço ao redor de sua cintura. Ele a amava tanto, e sentia-se culpado por não ter percebido que ela escondia algo dele, algo que a magoava tanto.

O pânico que crescia dentro de Giselle era como uma dor física. E quando, imersa em pensamentos, ela escor­regou e perdeu o passo, seu primeiro instinto, quando Saul a agarrou e a sustentou antes que ela caísse, foi de colocar a mão protetoramente sobre a barriga, defenden­do a vida que carregava ali dentro. Novas lágrimas lhe encheram os olhos e escorreram por seu rosto.

Giselle não estava realmente com fome, mas Saul in­sistira em dirigir até Richmond para que eles pudessem comer alguma coisa em um pequeno restaurante que dava para o rio. Ele iria cancelar todos os seus compro­missos e ficar com Giselle até chegar a hora de voltarem para Arezzio, Saul disse a si mesmo, observando-a brin­car com a comida, o rosto pálido de tristeza e dor. Ele estava desesperadamente assustado por ela, tendo visto o estado em que ela se encontrava, mas não ousava dizer nada, para não fazê-la se sentir pior.

Mais do que qualquer coisa, ele acreditava que eles precisavam da opinião de um especialista, que preci­savam ouvir um médico, mais bem qualificado para ajudá-los.

Já passava das 10 h quando eles voltaram para casa, e Saul disse a Giselle:

—Você parece muito cansada. Por que não vai se dei­tar? Não irei perturbá-la se você quiser ir dormir. Tenho muito trabalho a fazer.

Ele estava dizendo aquilo por causa da noite anterior, Giselle sabia. Mas ela jamais precisara mais dele do que naquele momento.

— Não. Quero que você venha comigo. Eu quero você, Saul. Preciso de você.

Havia um tom suplicante na voz dela, que fez o cora­ção dele se apertar. Giselle, a sua Giselle, não precisava lhe implorar para amá-la ou abraçá-la.

Eles tomaram um banho juntos, e o toque de Saul no corpo de Giselle era tão cuidadoso quando observador. Quando Giselle o viu olhando para seu ventre ainda liso, ela sacudiu a cabeça.

—Não há nada para ver. Se algo mudou, eu perdi peso.

Porque andava preocupada, Saul reconheceu. Mas ela estava errada. Havia algo para ver. Os seios dela es­tavam diferentes sob seus dedos, enchendo suas mãos quando ele os tocou. Saul fechou os olhos, lutando con­tra o sentimento agudo de culpa que o invadia, vindo do nada. Quando ele a beijou, ela se agarrou a ele quase em desespero, enterrando o rosto no ombro dele, sua pele quente, úmida e lisa contra a dele.

— Se você não quiser... — Ele começou a dizer. Sua preocupação era com ela, não com seu próprio desejo ou necessidade, mas ela imediatamente sacudiu a cabeça, de forma quase violenta, e se agarrou a ele.

— Eu quero, Saul. Eu preciso. Preciso de você.

Era verdade, Giselle sabia. Ela precisava afastar os demônios de dentro de si, aceitando novamente a intimi­dade e a proximidade que achava que havia perdido. Ela precisava restabelecer o relacionamento deles, protegendo-se da dor que sabia que a aguardava. Precisava da liberação que fazer amor com ele lhe traria, a liberação de todos os laços sombrios que a aprisionavam. Ela pre­cisava de Saul e de seu amor mais do que jamais havia precisado antes.

Ele foi cuidadoso e gentil com ela, seu amor por ela brilhando através dos limites que estava colocan­do em sua paixão. Mas seu cuidado com ela não era o que Giselle queria. Ela não queria ser tratada como al­guém vulnerável e frágil; não queria que a mimassem, nem que a protegessem, nem que fossem indulgentes com ela. Fora assim que seu pai tratara sua mãe, como uma mulher fraca que precisava de cuidados, o lado mais frágil do casamento. E ela não era sua mãe. Não ainda...

Ela queria que Saul a tratasse como sempre a trata­ra, como uma mulher cuja sensualidade e desejo por ele eram iguais ao que ele sentia por ela. Queria que os dois fossem metades perfeitas de um todo, tão perfeitamente encaixadas que era impossível dizer onde um terminava e o outro começava.

O beijo carinhoso de Saul, tão gentil como seu toque cuidadoso, a fez pressionar seu corpo com força contra o dele, erguendo as mãos para segurar-lhe a cabeça, e lhe mostrar como ela queria que ele a beijasse. Sua língua acariciou-lhe os lábios, forçando-os a se abrirem, inva­dindo rapidamente a intimidade sensual da boca de Saul e tocando-lhe a língua com movimentos curtos e rápi­dos, seguidos por outros mais longos e lentos, até que ela pôde sentir o coração dele acelerando, sincronizado com o bater frenético do dela.

Ela tomou-lhe a mão, colocando-a contra seu seio nu e sussurrando em seu ouvido

— Toque-me, Saul. Deseje-me e mostre-me o quanto esse desejo é forte.

Quando ele hesitou, ela lhe disse com urgência:

— Não é a sua piedade que eu quero. É sua paixão. Preciso que esse fogo queime tudo, menos isto, nós dois, agora. Tão perto que nada nem ninguém pode se colocar entre nós.

A voz dela estava rouca com a emoção, seus olhos brilhavam, e o modo como Giselle revelava seu desejo para ele derrubou as defesas de Saul, fazendo-o sentir como se alguém tivesse arrancado uma camada de sua pele. Ele podia sentir a dor dela.

Quando Saul levantou a mão que não estava acari­ciando o seio dela, abrindo os dedos, com a palma virada para ela, Giselle colocou sua própria mão contra a dele, dedo contra dedo, palma contra palma, seus olhos se fe­chando com a onda de amor que tomou conta de seu ser. Saul moveu a mão levemente, de forma que seus dedos se entrelaçassem aos dela, formando um único punho fechado.

— Amo você mais do que a minha própria vida — ele disse a Giselle, com a voz embargada, e com toda a sinceridade.

— Você é a minha vida, meu tudo — Giselle sussur­rou para ele, com a voz entrecortada.

Desta vez, quando ela se inclinou para ele, foi ele quem a beijou, até que o controle do beijo foi tomado dos dois pela paixão que queimava em seu íntimo. Eles eram uma única entidade, unida pela intensa excitação e desejo, e sua necessidade em comum era uma força que ligava seus corpos, dissolvendo carne, músculo e osso.

Quando Giselle tocou e acariciou o corpo de Saul, sentiu a resposta dele como se fosse sua própria carne. Quando Saul tomou o mamilo duro dela em sua boca e o sugou, sentiu as ondas do prazer quase insuportável que galvanizavam o corpo dela, em tremores que pulsavam por seu próprio corpo.

Não houve necessidade de ele perguntar a Giselle quando ela estaria pronta; seu próprio corpo lhe disse, da mesma forma que seus sentidos lhe diziam, tão cla­ramente como se ela tivesse pronunciado as palavras, que seu desejo não podia esperar. Ele a ergueu contra a parede do chuveiro, e ela envolveu-lhe a cintura com as pernas com força, exatamente como queria que fosse.

Ele se movimentou dentro dela, lentamente, prolon­gando o seu prazer, recuando um pouco para depois des­lizar novamente contra a musculatura úmida e firme que o agarrava e acariciava, e Saul sabia que seu desejo e sua necessidade eram absolutamente iguais.

Ela atingiu o clímax primeiro, e o grito rouco de Saul, de um prazer quase doloroso, se misturou com os gemi­dos de satisfação dela em poucos segundos.

Mais tarde, com Giselle dormindo em seus braços, Saul olhou para ela e abraçou-a com mais força. O que ela havia lhe contado naquele dia só servira para aprofundar seu amor por ela, e o fizera querer ainda mais poder protegê-la de tudo o que ela havia sofrido. Quando a escuridão do agora passasse, o relaciona­mento dos dois seria ainda mais forte. Ele queria se certificar disso.

Em seu sono, Giselle ouviu o som de uma criança cho­rando, o choro alto, impotente e agudo de um recém-nas­cido que sofria. Em seu sonho, ela podia ver o bebê, tão pequeno e indefeso. Ela se aproximou para tomá-lo nos braços, mas ele não estava mais lá, embora ela pudesse ouvi-lo chorar. Giselle acordou no escuro, o rosto banha­do em lágrimas, o corpo dolorido de tensão e dor. Seu bebê. Ela o queria tanto. Queria segurá-lo e protegê-lo. Queria lhe dar todo o seu amor, e mais do que tudo, que­ria lhe dar a vida.

 

Saul olhou para o relógio. Faltava uma hora para a sua reunião com Hans de Kyper. Depois de descobrir que Giselle estava grávida e de se conscientizar de sua vulnerabilidade, ele havia cancelado todos os compro­missos, exceto a reunião com o empresário holandês responsável pelo extremamente bem-sucedido progra­ma de crescimento que ele e Giselle queriam copiar em Arezzio. Fora impossível marcar outra data. Ele tentara persuadir Giselle a ir ao encontro também, lembrando-a de seu entusiasmo sobre o projeto, mas ela simplesmente sacudira a cabeça. Saul estava desesperadamente preo­cupado com ela, que parecia estar emagrecendo mais e mais a cada dia, seu peso diminuindo enquanto a tristeza e o desespero que ele podia ver em seus olhos cresciam. Logo, ela iria à clínica, e, embora tivesse lhe dito que iria sozinha, Saul estava decidido a acompanhá-la. Ele desenhava automaticamente em seu bloquinho de ano­tações enquanto pensava na noite anterior, quando acor­dara para encontrar Giselle soluçando durante o sono.

Quando ele a despertara, ela parecera confusa, dizen­do-lhe que tinha ouvido um bebê chorar.

Saul fechou os olhos, e os abriu novamente em se­guida. Giselle havia deixado claro que, se não tivesse tanto medo de ter herdado a vulnerabilidade de sua mãe a uma severa depressão pós-parto, gostaria de ter filhos, um filho... o filho dele. Saul olhou distraidamente para os desenhos que fizera, e ficou tenso. No bloquinho que gostava de usar quando trabalhava em sua escrivaninha havia o desenho inconfundível de uma cegonha carre­gando um bebê.

Saul olhou para o desenho por vários segundos, en­quanto sua mente acelerava. Então, abruptamente, em­purrou sua cadeira para trás e se levantou, chamando por sua assistente pessoal e abrindo a porta que dava para o escritório dela.

— Eu tenho de sair.

— Mas e quanto ao Sr. de Kyper? — Moira protestou.

— Voltarei a tempo de me reunir com ele. Se eu não chegar, mantenha-o distraído. Eu preciso vê-lo.

Antes que ela pudesse dizer qualquer outra coisa, ele já estava abrindo a porta externa do escritório, e colo­cando o paletó.

Quando chegou à rua, Saul apanhou o telefone celu­lar. Ele havia saído porque não queria que ninguém mais, nem mesmo Moira, que era um exemplo de discrição, ouvisse o que ele sabia que tinha de dizer. Quando en­controu o número de que precisava e fez a ligação, Saul pediu para ser transferido para a pessoa responsável pela clínica. A médica com quem ele finalmente conseguiu fa­lar se apresentou como Dra. Smithers. Ela pareceu pensar que Saul estava tentando impedir que Giselle interrompesse a gravidez contra a vontade dela, e insistiu que a consulta só poderia ser desmarcada pela própria Giselle.

— A minha esposa só está indo à clínica para um aconselhamento prévio — Saul explicou. — Eu acho que ela precisa falar com outros médicos especialistas, primeiro.

— Então, acho que o senhor deveria estar conversan­do com a sua esposa agora, e não comigo — a Dra. Smi­thers disse a ele, secamente.

Saul suspirou ao desligar o telefone. Ele tentara con­vencer Giselle de que eles deviam ao menos procurar um aconselhamento médico apropriado sobre a depressão pós-parto, mas a cada vez que ele tocava no assunto, ela ficava tão emocionada e era dominada por tal pânico que ele se sentia obrigado a deixar tudo de lado. Giselle esta­va totalmente convencida de que iria se comportar como sua mãe, mas Saul não podia imaginá-la fazendo uma coisa daquelas. Agora, depois de falar com a diretora da clínica, ele estava ainda mais determinado a acompanhar Giselle na consulta, embora ela continuasse a insistir que não queria que ele fosse.

Saul voltou para o escritório. Ele poderia não ter ne­nhuma vontade de ser pai, e certamente teria argumen­tado ferozmente contra isso, se Giselle tivesse se apro­ximado dele com a idéia de que deveriam repensar o acordo original, mas a situação em que eles se encontra­vam agora os havia levado muito além daquele cenário. Giselle já estava grávida, por acidente, por uma ação do destino. E uma ação do destino fora o que os unira, para começar. Ele poderia, em sã consciência, rejeitar uma ação do destino e aceitar outra, como um presente que não fosse capaz de recusar?

Giselle estava preocupada com o efeito que ter um fi­lho poderia causar nela, mentalmente. Depois de ouvi-la chorar enquanto dormia, e lembrando-se de tudo o que ela lhe dissera, Saul estava agora igualmente preocupa­do com o efeito que a interrupção da gravidez já estava causando nela.

Ele olhou para o relógio. Agora, tinha menos de uma hora antes da reunião. Logo que voltou ao escritório, Saul ligou seu laptop. Menos de meia hora mais tarde, ele já tinha o nome de um professor, que morava em Londres, e era um dos maiores especialistas do mundo no campo da depressão pós-parto. Giselle estava em to­tal confusão, perdida, de fato. Ele sabia disso sem que ela tivesse de lhe dizer. Sua dor e seu desespero fala­vam muito mais claramente a ele sobre seus sentimen­tos reais do que qualquer palavra poderia. E, como ele a amava tanto que não podia suportar vê-la sofrer, iria certificar-se de que não deixaria pedra sobre pedra em seus esforços para ajudá-la.

O professor estava atualmente nos Estados Unidos dando uma série de palestras, mas voltaria a Londres em vinte e quatro horas. Se necessário, Saul estava disposto a alugar um jatinho particular e levar Giselle aos Estados Unidos para que ela pudesse conversar com o especialis­ta. Ele a amava tanto assim. Não havia nada que ele não fizesse por ela. Nada. E isso incluía tornar-se pai.

Tornar-se pai. Enquanto a percepção chocante o atin­gia, Saul sabia que bem lá no fundo, embora ele tives­se jurado para Giselle que jamais quereria filhos, havia algo, uma urgência, uma necessidade poderosa, que que­ria proteger a vulnerável nova vida que Giselle estava carregando.

 

Hans de Kyper era um empresário habilidoso, e em qualquer outra circunstância, Saul teria se divertido ao travar uma batalha com ele, enquanto discutiam os ter­mos sob os quais poderiam trabalhar, negociando até as primeiras horas da manhã, se fosse necessário. Mas não naquele dia. Naquele dia, quando a reunião se prolongou de uma para quase três horas, Saul soube que deveria colocar um fim na discussão. Mas, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, o próprio holandês já sugeria que eles continuassem a conversa dois dias depois.

— Mas por que você quer que eu vá conversar com esse professor? A minha decisão já está tomada.

— Está? — Saul desafiou Giselle, suavemente. — Você já tomou mesmo a decisão que quer tomar, Giselle? Ou você tomou a decisão que acha que deve tomar?

— Eu sei o que ele vai dizer Saul. Sei que ele vai me dizer que eu tomei a decisão acertada.

Saul sacudiu a cabeça.

— Não, você não sabe de nada disso, Giselle. Você não pode saber antes de conversar com ele. Você sim­plesmente acredita nisso. Eu quero ir conversar com ele, junto com você, e ouvir o que ele tem a dizer.

Saul detestava pressionar Giselle quando ela já es­tava tão estressada. As lágrimas estavam escorrendo pelos novos ângulos de seu rosto emagrecido, en­quanto ela andava de um lado para o outro da sala de estar. Ela estava estressada e magra demais, seus olhos enormes e luminosos com as lágrimas e a emoção, en­quanto sacudia a cabeça, negando a sugestão dele de que eles deviam consultar o professor. Mas Saul não iria desistir.

— Apenas me escute — ele implorou a ela. — Você tinha 6 anos de idade quando a sua mãe morreu. Isso já faz quase vinte anos, pense nos avanços que ocorreram nas ciências médicas desde então.

— Nas ciências, sim. Mas isto é mais complexo. Não existe uma fórmula que possa ser aplicada para resolver as coisas. É um problema mental, uma... uma forma de loucura.

— Giselle, por favor, faça isso por mim. Vá falar com ele, por mim, se você não quiser fazer isso por si mesma. — Saul observou os olhos dela se arregalarem, tomados por uma sombra.

— Você faria isso comigo? — ela perguntou, incré­dula. — Você usaria esse tipo de chantagem emocional contra mim?

— É para o seu próprio bem, para ajudar você.

—Ajudar? Ê o que acontecerá se esse professor disser que acha que eu serei como a minha mãe? Você realmen­te acredita que esse conhecimento vai me ajudar?

— Eu não acho que ele vai dizer isso. Porque não acho que você será igual a ela.

— Você não tem como afirmar isso, Saul. Talvez você esteja esperando que ele diga que eu serei igual a ela. Você não quer ter filhos, afinal de contas.

— Como você pode dizer isso? Confie em mim, por favor, Giselle. Eu amo você, e estou tentando ajudá-la. Apenas converse com ele. É só o que eu lhe peço para fazer. Marque uma consulta com ele e ouça o que ele tem a dizer.

— Muito bem — disse Giselle, concordando com re­lutância. Talvez fosse justo ouvir o que esse professor tinha a dizer.

As palavras pareceram pesar entre eles. O coração de Giselle estava martelando, suas emoções eram um re­demoinho, como se ela reconhecesse exatamente o que aquelas palavras realmente significavam. A cada dia que passava, cada hora, cada minuto, o bebê que ela carre­gava se tornava mais precioso para ela. Havia pensado sobre tudo até sua cabeça doer, até ficar tão confusa que era incapaz de continuar pensando. Tinha sido simples, antes de Giselle saber que estava grávida, dizer a si mes­ma que nunca poderia haver um bebê, pelo próprio bem da criança. Agora que um filho era uma realidade que crescia dentro dela, nem toda a lógica do mundo podia competir com a determinação feroz e a força de seu ins­tinto maternal. Ela queria aquele bebê. Ela o queria com uma intensidade dolorosa que era forte demais para ela lutar, ou resistir.

—Você quer que eu marque a consulta? — Saul ofereceu.

Giselle sacudiu a cabeça.

— Não, não, farei isso eu mesma.

— Aqui estão os detalhes. — Saul lhe entregou as in­formações que ele havia imprimido depois de sua pes­quisa no computador. — Por que não marca a consulta agora, enquanto eu vou trabalhar um pouco?

Giselle assentiu com a cabeça.

Assim que se viu sozinha, Giselle examinou os papéis que Saul lhe dera. Ela se sentia doente só de pensar em ver esse professor, sobre quem não sabia nada. E se ele confirmasse que ainda não havia muito a ser feito? Que aquela forma rara de psicose ainda podia acontecer com ela? Não sabia o que fazer. Sentia-se doente, de medo e pânico. Mas prometera a Saul.

Assim, apanhou o celular e começou a digitar o nú­mero, mas então parou. Não iria adiantar. Ela não podia fazer aquilo. Ela não suportaria ouvir, em palavras dire­tas, o que já temia. Amassando o papel, atirou-o no cesto de lixo.

— Você já marcou a consulta com o professor? — Saul lhe perguntou algumas horas depois.

Eles estavam na cozinha, onde Saul preparava uma bebida quente para os dois, chá para Giselle, agora que ela não conseguia mais tolerar o café forte que adorava.

— Não, ainda não, está ficando um pouco tarde, ago­ra. Farei isso amanhã. — Giselle disse a ele.

A verdade era que ela não havia sequer tentado mar­car a consulta, porque tivera tanto medo do que ela po­deria revelar.

Mais de 24 horas depois, com a consulta ainda não mar­cada e Giselle se recusando a lhe dar uma resposta direta a cada vez que ele lhe perguntava por que não havia te­lefonado para o professor, Saul estava começando a se preocupar ainda mais com ela. Tudo o que ele queria era poder ajudá-la, mas ela parecia determinada a não acei­tar ajuda. Era quase como se ela já tivesse se convencido de que ninguém nem nada poderia ajudar, mas Saul se recusava a acreditar naquilo. Tinha certeza de que ela se­ria uma mãe maravilhosa. Como poderia não ser, quando era uma pessoa tão incrível? Ele acreditava firmemente que o professor seria capaz de ajudá-la e acalmar seus medos. Mas como aquilo poderia acontecer, se ela se re­cusava a ir vê-lo?

Já passava da meia-noite, e Giselle estava adorme­cida, na cama. Saul tinha ido dar uma olhada nela dez minutos antes e, à luz da lua que entrava pela janela, vira os rastros das lágrimas em seu rosto.

Ele a amava tanto.

E a criança que ela estava esperando? O filho dele.

Uma sensação que não esperava e não estava prepa­rado para enfrentar apertou seu coração. Eles tinham de ir ver o professor, para poderem obter sua opinião pro­fissional e serem guiados pelos conselhos dele. A situ­ação era importante demais para que tentassem tomar qualquer decisão sozinhos, e sem um aconselhamento apropriado.

De alguma forma, ele teria de encontrar um meio de persuadir Giselle a concordar em ir ver o professor. Pelo bem de ambos. Não, Saul se corrigiu mentalmente, pelo bem de todos. Não havia outro caminho. Ele iria seguir em frente, e marcar a consulta para irem ver o especia­lista. Encontraria um modo de convencer Giselle de que aquilo era a coisa certa a se fazer. Já era hora de ele to­mar as rédeas da situação, Saul decidiu.

Pela manhã, Saul já havia tomado sua decisão, e agira a respeito. Ele leu novamente o e-mail que acabara de receber do assistente pessoal do professor, confirmando a consulta urgente que solicitara. A única data em que poderia atendê-los era o mesmo dia em que Giselle tinha sua consulta na clínica, duas horas antes do horário que ela marcara.

Imprimindo o e-mail, Saul saiu do estúdio e foi para o andar de cima, onde Giselle ainda dormia. Ele não queria acordá-la, sentindo que ela precisava de repou­so, mas queria que ela soubesse sobre a consulta. He­sitou, dividido entre deixá-la dormir, sabendo o quanto ela estivera cansada na noite anterior, e acordá-la, para poder contar-lhe sobre a consulta pessoalmente. Ele aca­bou decidindo que era melhor deixá-la dormir. Rápido, escreveu-lhe um bilhete, explicando o que havia feito, e anexou o e-mail impresso a ele.

Quando Giselle acordou, a primeira coisa que viu foi o bilhete que Saul havia lhe deixado, em seu próprio travesseiro:

“Minha querida Giselle,

Você vai ver no e-mail anexo que fui em frente e marquei uma consulta para irmos ver o professor. Eu realmente sinto que esta é a coisa certa, algo que devemos fazer. Sei que a idéia de vê-lo a assus­ta, e eu entendo o motivo, mas vê-lo será o melhor caminho a seguir. Acho que no fundo do seu coração você sabe disso. Não importa o que ele diga, nada vai mudar o meu amor por você. Você sempre o terá. Eu amo você, minha querida. Saul.”

O bilhete terminava com três beijos.

Saul havia seguido em frente e marcado a consul­ta. Porque ele não acreditara que ela o faria? Ele tinha razão em pensar aquilo, depois que ela dissera que ia marcar a consulta, e não havia tomado uma atitude. Gi­selle sabia, mas suas ações ainda a magoavam. Depois de ler o bilhete três outras vezes, ela começou a entrar em pânico.

Àquela altura, já sabia cada palavra do bilhete de Saul de cor, e seu coração estava batendo freneticamente, em reação a ele. Saul iria forçá-la a ver o professor. Ele havia lhe dito que não acreditava que pudesse vir a ser como sua mãe, mas e se o professor discordasse? E se ele lhes dissesse que depois de dar à luz ela seria um risco, uma ameaça ao bebê? E então?

Seria a insistência de Saul em consultarem o professor provocada pela esperança que ele tinha de que o especia­lista dissesse que havia um risco muito grande se ela se tornasse mãe? Ela ainda não tinha certeza de como Saul se sentia a respeito da gravidez... Tivera muito medo de perguntar.

Sua cabeça latejava com a ansiedade, e com a onda de adrenalina produzida por seu corpo, para protegê-la, o mecanismo instintivo: lute ou fuja. Lutar? Fugir não se­ria uma melhor opção para ela? Fugir para algum lugar, para alguém, alguém com quem ela se sentisse segura, como se sentira, com aquela mesma pessoa, durante os anos em que crescia? Sua tia-avó poderia estar velha agora, mas ainda se achava muito lúcida e era ferozmen­te protetora em relação às pessoas que ela amava.

Giselle não hesitou. Segundos depois de tomar sua decisão, ela já estava arrumando uma pequena mala. Iria fugir para Yorkshire.

A segunda reunião com Hans de Kyper poderia ter pro­duzido o tipo de resultado que Saul normalmente come­moraria, com Giselle, mas naquele momento, celebrar o que quer que fosse era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Já fazia meia hora que o holandês havia par­tido, e, apesar das repetidas tentativas de telefonar para ela, ele não conseguira entrar em contato com Giselle.

Saul havia telefonado, e depois enviara uma mensa­gem de texto para o celular dela, e então, descobrindo que o telefone estava desligado, ligara para o conven­cional da casa. Agora, depois de não conseguir resposta de nenhum dos aparelhos, ele enviara outra mensagem de texto para o BlackBerry de Giselle, pedindo-lhe que respondesse, e então dissera a Moira que estava indo para casa.

Inicialmente, quando Saul entrou na mansão em Chelsea, não havia nada que despertasse suas suspeitas. As faxineiras, contratadas pelo serviço de manutenção que eles usavam, haviam vindo. Flores frescas haviam sido colocadas nos vasos do corredor e da sala de estar, e o quarto deles cheirava levemente ao perfume de Giselle, o perfume que ele mandara fabricar especialmente para ela, em seu aniversário. O laptop dela estava no escri­tório que compartilhavam, mas Giselle não estava em lugar algum.

Saul ficou preocupado. Era totalmente atípico de Giselle não estar com o celular ligado. Ele estava mui­to consciente do quanto ela se encontrava perturbada, e agora começava a desejar não ter lhe deixado o bilhete a respeito da consulta. Ele pretendia, com o bilhete, acal­mar os medos dela, mas e se ela tivesse interpretado as coisas de outra forma? E se, em seu estado emocional atual, Giselle tivesse entendido tudo como uma ameaça?

Amaldiçoando a si mesmo por sua falta de consciên­cia, Saul sentiu a preocupação, que o havia acompanhado o dia inteiro, se transformar em algo vivo e incontrolável.

 

— Você está bem?

A voz feminina bondosa atravessou a névoa de con­fusão que rodeava Giselle como se fosse uma parede, distanciando-a de tudo o que a rodeava.

— Sim. Sim, obrigada — ela agradeceu à mulher, enquanto uma voz interna gritava como um prisioneiro esmurrando uma porta fechada e trancada: Não, não... Não estou bem. Por favor, me ajude.

Ajudá-la? Ela deveria ajudar a si mesma. Não havia ninguém mais para ajudá-la. Colocou a mão sobre o ven­tre ainda liso, e a náusea a fez engasgar. Ela estava tão assustada, tão desesperadamente assustada, e se sentia tão fraca. Tudo o que queria era estar com sua tia-avó e buscar seu conselho.

Estação Central de York. Giselle verificou o bolso de seu casaco elegante de cashmere branca para ver se a passagem para a pequena cidade onde sua tia-avó mora­va ainda estava lá. Só de pensar em sua tia-avó e em sua sabedoria, ela conseguia se acalmar um pouco. A velha senhora a entenderia, tinha certeza.

Ela não estava com fome, mas sentia sede, e comprou uma garrafa de água em uma das lojinhas da estação, agradecendo ao homem que a servira, para depois se aconchegar mais ao casaco. Estava mais frio ali do que em Londres, mas talvez fosse porque ela estava mais fria. Caminhou até a plataforma onde o trem já esperava e tomou seu assento.

Já era noite quando seu táxi finalmente a deixou do lado de fora da entrada da casa de repouso onde sua tia-avó vivia. Ela havia ido da estação para um hotel e se registrara, primeiro, antes de vir direto para lá. Giselle parou apenas para trocar algumas palavras com o guarda e explicar que tinha vindo visitar sua tia-avó.

As primeiras palavras que sua tia-avó lhe disse, de­pois que ela a cumprimentou e abraçou, foram:

— Saul está desesperadamente preocupado com você, Giselle. Ele quer que você entre em contato imediatamente.

— Ele lhe contou sobre... — Giselle começou a dizer.

— Sobre o bebê? Sim. — Ela tomou a mão de Giselle, e a segurou com firmeza entre as suas. Sua pele estava fina como papel, com a idade, mas seu toque ainda era fir­me e confortador, como fora durante todos aqueles anos, quando Giselle tinha ido morar com ela. — Precisamos contar a ele que você está aqui. Ele está muito apreensivo.

Giselle quis recusar, mas não encontrou a energia para resistir. Só de ouvir o nome de Saul dos lábios de sua tia-avó a havia enchido de tanto desejo de vê-lo, e de ser abraçada por ele, que ela foi invadida por uma onda de tristeza profunda, porque sabia que devia negar seu amor por ele.

— Muito bem — concordou, assentindo com a cabeça, sua boca seca ao procurar o BlackBerry dentro da bolsa.

Giselle ligou o telefone, e seu coração começou a ba­ter mais rápido e depois a doer, quando ela viu todas as ligações e mensagens que Saul havia feito e deixado. Ela não era forte o suficiente para falar pessoalmente com ele. Giselle sabia que se descontrolaria se o fizesse, e lhe imploraria pelo que ele não queria lhe dar. Em vez disso, enviou uma mensagem de texto, dizendo-lhe que estava com sua tia-avó e que ele não precisava mais se preo­cupar, antes de desligar o celular rapidamente de novo. Esperava que Saul não enfiasse na cabeça que devia ir até York, atrás dela. Mas, mesmo que ele o fizesse, já se­ria de manhã antes dele conseguir chegar até lá, e então ela esperava estar mais composta, e ter seus argumentos todos na ponta da língua.

— Saul quer que eu vá consultar esse professor — ela contou à sua tia-avó. — Ele é especialista no campo da depressão pós-parto. Saul acha que esse professor pode nos aconselhar sobre... sobre a decisão que devemos to­mar, mas eu já me decidi. Eu já amo demais o meu bebê.

Era simpatia ou tristeza que ela estava vendo nos olhos de sua tia-avó? Será que a velha senhora a decep­cionaria agora, depois de tudo, e ficaria do lado de Saul? A tensão contraiu os músculos de Giselle.

— Giselle, minha querida, há uma coisa que eu pre­ciso dizer a você. Embora eu compreenda como você se sente em relação à doença mental da sua mãe, isso não significa que você será igual a ela. Eu tentei lhe dizer isso quando você estava crescendo, mas os efeitos do trauma que você viveu foram tão grandes que nunca sen­ti que você estava ouvindo o que eu lhe dizia. A verdade é que sempre senti que você puxou muito mais pelo lado Freeman da família, como a minha mãe e a sua bisavó pelo lado do seu pai. Eu vejo tanto da minha própria mãe em você, Giselle. Sempre vi. Você se parece com ela, tem seu tom de pele. E sua coragem.

O alívio e a gratidão invadiram Giselle. Sua tia-avó estava tentando fazer com que ela se sentisse melhor, mas era verdade que, em se tratando do físico, Giselle não tinha nada a ver com sua própria mãe, que tinha cabelos e olhos escuros. Ate mesmo o formato do rosto de Giselle e suas feições eram diferentes das de sua mãe. Seus gestos e seu tom de voz eram muito mais parecidos com os de sua tia-avó, Giselle sabia, mas afi­nal de contas fora a velha senhora quem a criara e lhe dera carinho.

Por mais que quisesse acreditar no que sua tia-avó ha­via lhe dito, Giselle sacudiu a cabeça e disse a ela:

— Não importa o que eu diga, Saul está determinado a falar com esse professor. Mas eu não quero.

— Giselle, minha querida, eu entendo como você se sente. Mas você não acha que está sendo injusta com Saul?

— Porque não quero falar com o professor? Mas eu estou com tanto medo do que ele possa me dizer. — Gisele levantou as mãos, em um gesto de derrota e um pe­dido de compreensão.

Já passava das 9h, e, sabendo que os residentes da casa de repouso normalmente iam para a cama cedo, Gi­selle disse à sua tia-avó que iria pedir ao guarda para chamar um táxi para ela.

— Você não pode ir ainda — sua tia-avó protestou, parecendo agitada enquanto olhava para a porta de seu pequeno quarto. — Por que não fica mais um pouco e janta comigo? Você deve estar com fome.

Fome? Ela estava com fome? Comida era a última coisa em que havia pensado durante aquele dia, mas sua tia-avó estava insistindo, e ficando cada vez mais agita­da ao pensar em Giselle partindo sem comer nada; as­sim, sentiu-se obrigada a ceder e concordar, dizendo que um jantar seria ótimo.

Embora a casa de repouso tivesse um serviço 24 horas para os residentes, Giselle já estava lutando para contro­lar os bocejos quando uma jovem garota chegou, empur­rando um carrinho onde havia um bule de chá e alguns sanduíches. A visão da comida fez, inesperadamente, seu estômago roncar.

Meia hora depois, encorajada pela tia-avó a comer o último dos sanduíches e tomar mais uma xícara de chá, ela estava protestando, dizendo que não poderia manter a velha senhora acordada por mais tempo, quando o som de um helicóptero cortou o silêncio da noite.

— Que diabos... — Gisele começou a dizer, mas sua tia-avó a interrompeu imediatamente.

— Oh, deve ser Sir John Haycroft. O helicóptero é o seu brinquedinho novo, e ele vive voando pelo lugar.

Giselle assentiu com a cabeça, sufocando outro bo­cejo, ignorando os olhares ansiosos de sua tia-avó em direção à porta de seu pequeno apartamento.

O súbito som da campainha fez Giselle dar um pulo, e dizer, um tanto melancólica:

— Deve ser o guarda, dizendo que já passou da minha hora. Vou falar para ele que já estou indo embora.

Mas, quando Giselle abriu a porta, não era o guarda quem estava à espera, e sim Saul, e Saul como nunca o vira antes. Ele parecia ter envelhecido uma década; precisava se barbear, e, de forma um tanto ridícula, não parecia apenas ter envelhecido durante as 24 horas em que ela não o vira, mas também aparentava estar mais magro.

Enquanto voltava para dentro do quarto, Giselle lan­çou um olhar para sua tia-avó, que parecia envergonha­da, mas estava determinada, ao dizer triunfalmente para Saul:

— Eu fiz o que você pediu, e a mantive aqui. Mas foi por pouco.

Observando seu marido abraçar sua tia-avó, e vendo a afeição sincera entre eles, Giselle sentiu seu coração doer novamente. Quando um relacionamento acabava, não eram apenas as duas pessoas envolvidas que eram afetadas. Os efeitos da separação se espalhavam, e afe­tavam os outros, também.

— Eu vim para levar você para casa. — Foi tudo o que Saul disse a ela, mas olhava para ela de um modo que fez seu coração virar do avesso, em uma mistura de amor intenso e agonia profunda. — Precisamos conver­sar sobre tudo.

Sua tia-avó interrompeu inesperadamente, para per­guntar de forma direta a Giselle:

— Você quer esse bebê, não quer, Giselle?

A sinceridade da pergunta derrubou as defesas de Giselle.

— Sim — admitiu — sim, quero. A criação de uma nova vida é algo tão especial. —

A voz dela se tornou um sussurro: — Um presente, um privilégio. O meu bebê, o nosso bebê, tem o direito de viver. — Respirou fundo e levantou a cabeça, olhando para os dois, mas especial­mente para Saul. — Eu vou ver o professor, mas decidi que... Que quero que nosso filho nasça... Mesmo que isto signifique que, para sua própria segurança e felicidade, outra mulher tenha de criá-lo. Eu prefiro isto a me arris­car a machucá-lo.

Giselle não tinha certeza de como chegara àquela decisão dolorosa; sabia apenas que, tendo decidido, ela agora experimentava uma grande sensação de paz, uma sensação de ter dado ao seu bebê segurança, da melhor forma que podia.

— Giselle! — Saul protestou, chocado com a realida­de brutal que as palavras dela haviam revelado.

Mas ela simplesmente sacudiu a cabeça.

— É a coisa certa a se fazer, Saul. Eu amo você, mas amo nosso bebê também. Vou ter esse filho, e nada que você possa dizer fará com que eu mude de idéia.

— Eu não quero que você mude de idéia.

Giselle olhou para ele, convencida de que devia ter ouvido mal.

— Vá com ele, Giselle — sua tia-avó estava lhe pe­dindo.

A energia para resistir a eles estava sendo drenada rapidamente dela, e, como se fosse impelida por uma força maior do que ela própria, se descobriu caminhan­do na direção de Saul. Porque queria estar com ele, Giselle admitiu para si mesma, fracamente. Porque ela ansiava por estar com ele. Queria a força de seus braços em torno de si, o conforto de seu ombro onde se apoiar, o amor que sabia que ele sentia por ela para sustentá-la. Cansada, cedeu à sua própria fraqueza e assentiu com a cabeça, beijando sua tia-avó no rosto antes de se juntar a Saul.

— Vou ter de cancelar meu quarto no hotel — ela murmurou.

— Já foi feito — Saul disse, deixando claro que nun­ca pretendera voltar para Londres sem ela. — Vamos, o piloto do helicóptero está esperando. Eu teria pilotado, mas não confiei em mim mesmo para me concentrar no vôo e não me preocupar com você.

Enquanto ouvia Saul falar, a culpa invadiu Giselle, mas ela não disse nada. E como poderia? Com qualquer decisão que tomasse, alguém sofreria, e ela sabia que sempre se sentiria culpada pela decisão que escolhera tomar. Como poderia ser diferente?

No helicóptero, com Saul sentado no banco da frente como co-piloto, não houve uma oportunidade real para eles conversarem com privacidade. E Giselle estava tão cansada e esgotada com os acontecimentos do dia que praticamente apagara quando eles pousaram no aeropor­to City. Dali, era um percurso rápido de táxi até a casa deles em Chelsea.

O corredor estava repleto do aroma dos lírios que ha­viam sido trazidos pela manhã, e iluminado pela luz bri­lhante dos candelabros, escolhidos cuidadosamente por Giselle, porque eram fabricados em uma fábrica iniciante na Polônia que treinava e empregava jovens aprendizes de­sempregados. A luz iluminava a pintura clara que ela passa­ra tanto tempo escolhendo, certificando-se de que seu tom cinza-azulado adicionasse um pouco de cor ao corredor, completando o efeito do céu de Chelsea e do rio ao fundo. Mas naquela noite a atmosfera de elegância aconchegante e de conforto refletida pelas suas escolhas de decoração fa­lhou em causar seu efeito restaurador sobre Giselle.

— Você parece absolutamente esgotada, querida. Vá se preparar para dormir, enquanto eu preparo uma bebi­da para nós dois e levo lá para cima.

Por mais que desejasse um longo banho quente, Giselle teve de se contentar com uma chuveirada, com medo de dormir na banheira, tamanho era seu cansaço. Estava realmente exausta, mas precisava muito saber se Saul havia realmente sido sincero quando dissera a ela, na casa de sua tia-avó, que queria o bebê.

Ele entrou no quarto enquanto ela saía do banheiro, vestindo um roupão atoalhado.

— Chocolate quente! — ela exclamou, surpresa, quando viu as bebidas que ele havia preparado.

— Eles sempre faziam chocolate quente para nós, no colégio interno, quando estávamos meio para baixo — Saul disse, simplesmente.

— Não sabia que nós tínhamos chocolate em casa.

— Não tínhamos. Eu comprei esta tarde. — Ele colo­cou as xícaras na mesa de cabeceira e se virou para ela. — Giselle, você não pode ter falado sério a respeito de entregar o nosso bebê para outra mulher criar.

— Eu falei sério. Pelo menos, desse jeito, ele terá vida, e... e segurança.

— E o amor da mãe? — Saul perguntou, apaixona­damente.

O corpo inteiro de Giselle estremeceu. Ela sabia o quan­to Saul acreditava que uma criança precisava do amor de sua mãe, porque aquilo lhe havia sido negado.

— Eu sempre amarei o nosso filho. Mas para o bem dele...

— Nós vamos ver o professor, Giselle, e eu não vou aceitar um "não" como resposta. Você vai ser uma mãe maravilhosa, e eu não posso permitir que sequer pense em privar o nosso filho do amor e da presença da mãe dele.

— Ele terá você, se você foi sincero na casa da minha tia-avó. — Giselle tremia.

— Fui. — A voz de Saul era firme. — Estarei lá, ao lado do nosso filho, Giselle, e prometo que você também estará.

— Eu adoraria acreditar nisso, mas não ouso. Quero tanto o nosso bebê, Saul!

— Somos dois. — O sorriso dele era levemente me­lancólico. -— Eu não sei como isso aconteceu, Giselle, mas só consigo pensar, desde que você me contou, em como você disse que gostaria de ter filhos, nossos filhos, se as coisas fossem diferentes. Pouco a pouco, quase sem que eu percebesse, enquanto o bebê crescia dentro de você, um amor protetor crescia dentro de mim. Eu senti uma onda tão grande de amor paternal dentro de mim que fiquei atordoado, e perdi a habilidade de di­zer ou fazer qualquer coisa. Fiquei chocado, admito. Foi por isso que eu não disse nada a você imediatamente. A forma como me senti era tão completamente contrária a tudo que eu sempre pensei que sentiria, se me permitisse imaginar um filho nosso. O ressentimento, o ciúme, o medo de perder você que eu pensava que sentiria sim­plesmente não existiam. Fiquei atordoado.

Ele respirou fundo e prosseguiu:

— Deveria ter dito isso a você. Eu queria dizer. Mas fiquei com medo de colocar mais pressão sobre você, e que você ficaria com mais medo ainda de agir como a sua mãe. É por isso que quero que você vá ver o profes­sor, para que ele possa acalmar os seus medos e lhe dizer o que eu já sei. Você vai ser uma mãe maravilhosa.

Esperança, fé, alegria, amor, Como estrelas brilhando no céu escuro da noite, as palavras iluminaram a mente de Giselle, até que a luz delas, e de seu alívio, a deixa­ram tonta.

— Você mudou de idéia? Você quer o nosso filho? — As palavras de Giselle eram suaves e transmitiam tudo o que ela sentia por aquele homem maravilhoso, um homem forte o suficiente para mostrar sua fraqueza para ela, e forte o suficiente para permitir que o curso que traçara para sua vida fosse desviado pelo bem da pequena centelha de vida que eles haviam criado juntos.

Saul assentiu com a cabeça.

—Não me pergunte como aconteceu, porque não te­nho uma resposta. Eu só sei que dentro da minha mente tenho uma imagem de vocês dois juntos que causa um efeito em mim que eu julgava impossível.

— Oh, Saul, você não sabe o quanto significa, para mim, saber que você estará ao lado do nosso filho, mes­mo que eu não possa estar. Saber que ele irá crescer ten­do você para amá-lo e protegê-lo.

— Não fale assim, Giselle, como se você não fosse participar de tudo isso. Porque você vai.

— Você não pode afirmar isso. Nós não temos cer­teza. Não importa o quanto eu queira que isso aconte­ça. Mas eu me sinto muito melhor agora, Saul, tão mais forte. Sabendo que o nosso bebê terá o seu amor me dá essa força. Eu vou ver o professor, e poderemos dizer a ele que não importa o que aconteça com... comigo, você sempre estará ao lado do nosso filho. Isto é, se ele concordar em me ver, depois de eu ter faltado à consulta que você marcou.

— Ele irá vê-la. Já falei com ele, e ele me pediu para lhe dizer que entende perfeitamente como você se sente. Nós dois estaremos ao lado do nosso filho, Giselle. Eu sei disso. — A voz de Saul estava rouca de emoção. Ele tomou a mão dela, e a segurou enquanto olhavam um para o outro. — Nós vamos encontrar um meio de pas­sar por isso. Encontraremos uma forma de fazer isso dar certo, e haverá um modo. O que aconteceu com a sua mãe foi horrível e trágico, e eu nem posso imaginar o trauma que você sofreu, uma criança de 6 anos tendo de lidar com algo assim, sem ajuda.

— Eu tinha a minha tia-avó— Giselle lembrou a ele, gentilmente. — Ela foi maravilhosa. Ela me explicou tudo assim que eu tive idade para entender.

— Mas as explicações dela não diminuíram o seu medo, nem a dor que você sentia lá no fundo, não é? — Saul a desafiou, de forma igualmente gentil. — Não a impediram de se sentir culpada, ainda que você de­vesse ser a última pessoa, naquela situação, a se sentir assim. — A mão dele apertou a dela com mais força.

— Você não precisa ser nada diferente do que é, porque você é tudo o que deveria e poderia ser. Você é a roda que impulsiona a minha vida, Giselle, o coração de tudo o que faço. Eu lhe prometo que, de algum modo, encon­traremos uma forma de libertá-la do seu medo. A ciência médica melhorou dramaticamente desde que a sua mãe deu à luz.

— É o que você diz. Mas a depressão pós-parto ainda atinge muitas, muitas mães. Eu vi na internet. Li histó­rias de mulheres que sofreram com isso.

Quando Saul sacudiu a cabeça, ela disse:

— Sim, sei que talvez fosse melhor que eu evitasse ler a respeito, mas tinha que saber, Saul. Eu tinha que saber.

Ela lera tantas histórias de partir o coração sobre mães que haviam sofrido de depressão pós-parto. E outras de mulheres que a haviam superado, com ajuda médica e apoio da família.

—A depressão da minha mãe era mais como uma psi­cose. Eu descobri, pela minha tia-avó, que disseram ao meu pai que ela deveria ter sido operada, mas ele recu­sou, por amor a ela e por medo do efeito que isso teria nos pacientes dele, quando descobrissem que ele era in­capaz de curar a própria esposa.

— Bem, eu lhe prometo isso, Giselle. Eu pretendo lutar tanto para você ter o nosso filho, agora, como teria um dia lutado para evitar essa concepção. Como desco­bri, a realidade de uma criança concebida é muito dife­rente do conceito de uma criança que só existe na cabeça de alguém. A verdade é que nenhum de nós dois pode rejeitar a vida que criamos. Já estamos ligados a ela, pelo mais forte dos laços humanos. Ela é parte de nós, e so­mos parte dela.

— Oh, Saul — Giselle sussurrou, quando ele a tomou nos braços e a apertou com força. — Se existe um anjo da guarda, o meu deve ter olhado por mim hoje. Estou tão agradecida, tenho tanta sorte, sou tão abençoada. Como você soube que eu tinha ido para a casa da minha tia-avó?

— E para onde mais você iria? Eu não conseguia encontrá-la pelo celular, e você não voltou para casa. Eu imaginei que você iria para Yorkshire, procurar sua tia-avó, então telefonei para ela e ela concordou em me avisar se você aparecesse. Ela me telefonou enquanto você falava com o guarda, que a avisara da sua chegada. Tome. — Saul a soltou e pegou uma das xícaras, estendendo-a para ela. — Beba isto antes que esfrie. Vai ficar tudo bem, Giselle — ele garantiu, sua voz cheia de cer­teza. — Prometo a você que vai.

 

— Encontraremos um modo — Saul havia prometido a ela, pouco mais de seis meses antes.

E ele havia, certamente, feito tudo o que alguém po­deria fazer, e mais, para encontrar aquele modo, Giselle reconheceu.

Houvera consultas, exames, discussões, pesquisas, e mais consultas. No final de tudo, o eminente especialis­ta no campo da depressão pós-parto, professor Edward Green, cuja atitude havia dissipado os últimos temores de Giselle por seu bebê no minuto em que ele apertara a sua mão e ela vira a compaixão e a compreensão em seus olhos, elaborara o que tanto ele quanto Saul con­sideravam ser um plano à prova de falhas para cuidar de Giselle e do bebê. Ambos garantiram a ela que seria impossível que até mesmo o menor sintoma da depres­são pós-parto não fosse notado e tratado imediatamente. O filho deles, o bebê que ela estava esperando, era um menino, nasceria de cesariana em cinco semanas, com nove meses completos; o professor Green não gostava da moda das mães quererem suas cirurgias realizadas antes do tempo pelo bem de suas formas, e daquele momento em diante, enquanto ela estivesse na caríssima materni­dade particular em Londres, e depois quando fosse para casa em Chelsea, Giselle teria uma enfermeira especia­lizada 24 horas por dia, para monitorar a situação pelo tempo que ela, Saul e o professor achassem necessário.

Sem dúvida, Giselle pensou, ela era realmente aben­çoada por ter um marido tão dedicado, por estar espe­rando um bebê saudável e por ter os cuidados médicos de um profissional tão compreensivo e compassivo. Em­bora Giselle quisesse cuidar do bebê sozinha, ela havia concordado que fazia sentido contratar uma governanta, além da enfermeira. Na verdade, se ela fosse honesta consigo mesma, tinha de admitir que tivera um pouco de medo de recusar, no caso de o professor ou de Saul imaginarem que a recusa poderia indicar um problema hormonal antes mesmo de ela dar à luz.

Giselle arrumou as roupas que havia separado antes da partida deles para uma visita rápida, de três dias, a Arezzio, para a coroação de Saul. Ele lhe dissera que entenderia se ela preferisse ficar em Londres, mas ela insistira que queria estar com ele, e o fez.

O problema era que Saul, sendo Saul, havia mergu­lhado tão profundamente em cada aspecto da depressão pós-parto que Giselle, às vezes, se sentia como se Saul e o professor Edwards estivessem do lado de fora de uma cerca, observando-a. Ela havia visto a expressão de preocupação no rosto de Saul quando dissera a ele que preferia não ter uma governanta, e instantaneamente se sentira ansiosa e apreensiva, sem querer dizer a ele o quanto a onda intensamente poderosa de possessividade maternal crescia dentro de si. Ela queria ser a pessoa que cuidaria de seu filho. Ela queria segurá-lo, dar banho nele, ser sua mãe em todos os sentidos, em vez de apenas alimentá-lo. Nos primeiros estágios de suas discussões com o professor, quando Giselle havia lhe perguntado o que aconteceria se ela realmente desenvolvesse uma se­vera depressão pós-parto, ele lhe respondera que na pior das hipóteses ela seria hospitalizada para tratamento, e se as coisas chegassem àquele ponto, ele faria prepara­tivos para que a governanta do bebê tivesse um quarto na clínica particular onde Giselle seria tratada, para que pudesse continuar a ver o filho sob supervisão, "para que o laço do bebê com a mãe não seja prejudicado".

Ela ficara aliviada, obviamente, em saber que, não importava o que acontecesse, seu filho estaria seguro, mas ao mesmo tempo, quanto mais perto ela chegava da hora do parto, mais ansiosa ficava, temendo que sem querer fizesse algo que sinalizasse para os dois homens que cuidavam dela que não era capaz de cuidar de seu próprio bebê. Giselle achava que não seria capaz de su­portar aquilo.

À medida que seu filho crescia na segurança prote­tora de seu ventre, também crescia o amor que Giselle tinha por ele, e agora ela se sentia tão possessiva e pro­tetora em relação ao bebê como uma leoa defendendo a cria. Às vezes, nos momentos mais escuros e solitá­rios, ela chegou a imaginar se a profundidade de seus sentimentos maternais em relação ao filho não seria um sinal de algo mais obscuro, um sintoma da depressão pós-parto que viria. Mas aquilo era algo que ela não podia discutir com ninguém, muito menos com Saul, que havia se tornado o tipo de futuro pai que ela suspeitava que a maioria das mulheres desejaria. Ele era terno e carinhoso com ela, colocando as necessidades de sua gravidez antes de qualquer outra coisa. Por causa das várias consultas que eles haviam feito com o pro­fessor, e seu conselho de que o bebê deveria nascer na Inglaterra, Saul insistira que eles ficassem morando na casa de Londres, de onde ele podia trabalhar. E aquilo fora outro problema. Ela tivera de lutar muito para fazer Saul aceitar que estava perfeitamente saudável e podia trabalhar, e mais ainda para fazê-lo entender que ela, na verdade, precisava trabalhar.

De fato, a gravidez de Giselle a tornara ainda mais ansiosa para prosseguir com os planos de ajudar os ne­cessitados. Com relutância, Saul cedera.

Pelo menos ele havia concordado que ela podia con­tinuar a viajar com ele, e ela pudera testemunhar os pre­parativos para a coroação dele, que fora marcada para coincidir com o mesmo mês em que seus ancestrais mais antigos haviam subido ao trono.

Giselle sorriu consigo mesma. Sabia que jamais es­queceria a expressão nos olhos de Saul quando eles haviam sido informados de que o bebê era um menino. Embora seus próprios sentimentos fossem de alívio, por­que ao menos aquela criança seria poupada da herança genética que ela temia, a expressão de Saul tinha lhe dito tudo o que Giselle precisava saber sobre homens e seu orgulho em ter filhos.

— Eu falei sério quando disse que queria que este país fosse uma democracia — Saul disse a ela naquela noite.

— Ótimo — Giselle respondeu sinceramente.

— Os negócios estarão à disposição do nosso filho se ele quiser se envolver, assim como haverá um lugar para ele como Chefe de Estado, se ele desejar. Mas ele não vai ser o governante absoluto do país.

— Nenhum de nós desejaria isso para ele — Giselle concordara. — Esse tipo de herança pode ser tanto um peso quanto um benefício.

— Eu quero que ele cresça e se torne um homem pe­los próprios méritos, que forme suas próprias opiniões, e que seja...

— Como você? — Giselle sugeriu, maliciosamente. Eles haviam feito amor naquela noite. Saul fora terno e cuidadoso, e tudo o que, ele sentia por ela e pelo bebê que viria fora expresso em seu toque e suas palavras de amor para ela. Agora, entretanto, e às vezes em seus momen­tos mais ansiosos e desesperadores, ela imaginava se ele amava a criança que ela esperava mais que a ela própria.

Ela tivera consultas com o professor, o obstetra e a parteira no dia anterior, para checar se estava tudo bem para voar, agora que ela estava com oito meses de ges­tação; e todos haviam lhe assegurado que tudo estava perfeitamente bem. Giselle tinha ficado satisfeita com aquilo. Ela queria desesperadamente ver Saul coroado, e estar ao seu lado em uma ocasião tão importante e única na vida. Tornar-se o líder do país poderia não ser o que ele havia sonhado — ele não era do tipo que gosta de pompa e cerimônia, mas ela sabia que logo que pudesse Saul iria começar gentilmente, mas com firmeza, a levar o país em direção à democracia.

Saul entrou no quarto no momento em que ela fecha­va sua mala, franzindo o rosto quando viu o que ela es­tava fazendo.

— Você devia ter deixado que eu fizesse isso, Giselle. Estes próximos dias vão ser muito cansativos para você.

— Eu vou ter um bebê, Saul, não sou uma inválida — ela lembrou a ele.

A roupa de gestante que ela usava, camadas suaves e elásticas de cashmere fina em tons de creme e caramelo, ficaria perfeita sob o casaco, também de cashmere. Ago­ra, embora fosse abril, havia definitivamente uma friagem no ar, apesar dos dias de sol que eles estavam tendo.

— Você não precisa ir, sabe disso — Saul disse a ela. — Só ficarei fora por três dias.

— Quatro, incluindo hoje, e, além do mais, eu quero ir — Giselle disse, completando com um sorriso: — Nós dois queremos. Posso assegurar que o seu filho se com­portou muito bem hoje, apenas uma meia dúzia de cam­balhotas e alguns chutes, depois que eu lhe disse que se ele continuasse hiperativo eu não poderia estar presente quando o papai fosse coroado.

— Ele não sabe o que está acontecendo! — Saul deu risada.

— Ele sabe que algo está acontecendo — Giselle insistiu. — Ele poderá sentir. Eu quero estar presente, Saul. — A voz dela ficou mais séria. — Quando o arce­bispo colocar aquela coroa na sua cabeça, sei que você vai estar pensando em Aldo, e em tudo o que poderia ter sido para ele. Vai ser um momento solene e sagrado, o último momento, talvez, em que o sentirá perto de você.

Saul se virou para ela e colocou as mãos em seus ombros.

— Como é que você sempre consegue verbalizar exa­tamente o que estou sentindo, quando eu mesmo não con­sigo formular nem encontrar sentido nestas emoções?

— Eu sou uma mulher — Giselle disse a ele. — So­mos boas nisso.

 

Já era quase meia-noite quando eles finalmente chega­ram a seus aposentos no palácio, e Giselle admitiu para si mesma, embora não estivesse disposta a admitir para Saul, que ela se sentia realmente muito cansada. Saul, entretanto, era obviamente mais perceptivo do que ela imaginara, porque, logo que eles se deitaram na cama, a cabeça dela repousando no ombro dele, ele sussurrou:

— Eu sei que você fez planos para ir ver como as coi­sas estão progredindo com o trabalho de reconstrução na cidade dos mineiros, mas acho que devíamos cancelar. Não quero que você exagere.

— É uma viagem de duas horas, Saul, só isso. E eu vou ficar sentada no carro o tempo todo, e depois andar apenas uns poucos metros.

— Veremos — foi tudo o que Saul teve a dizer.

Quando a respiração regular de Giselle lhe disse que ela estava dormindo, ele se recostou nos travesseiros, no escuro, pensando nas mudanças dramáticas que o des­tino havia lhe trazido. Em sua carteira, e normalmente próxima ao seu coração, estava a primeira imagem do ultrassom que eles haviam visto de seu bebê, seu filho, e com ela, uma fotografia de Giselle. Quando ele fechou os olhos, seus pensamentos finais sobre o dia eram os de todos os dias, suas esperanças de que ela não sofresse da depressão pós-parto que tanto temia.

— Eu realmente preferiria que você não fosse, Giselle. Você diz que dormiu bem ontem à noite, mas ainda pare­ce cansada, e como eu não posso ir com você por causa dos compromissos a que preciso comparecer, e do ensaio para a coroação, não fico contente deixando-a ir sozinha.

— Mas eu vou, e nada que você diga irá me dissuadir — Giselle respondeu a Saul, enquanto eles tomavam o café da manhã em seu apartamento particular.

O sol estava brilhando, mas o ar lá fora ainda era muito frio para permitir que eles fizessem a refeição no jardim.

Dois pavões haviam subido no muro que separava o jardim dos gramados principais do palácio, e sua curio­sidade estava fazendo Giselle rir.

— Eu ainda acho que deveríamos ter um cachorro. Crianças precisam de animais de estimação — ela disse, rindo quando sentiu o filho chutar entusiasticamente.

— Sempre quis ter um cachorro, mas meus pais nunca me deixaram ter um, porque eles viajavam demais — disse Saul.

Uma batida leve na porta anunciou a chegada do aju­dante de ordens, com uma pilha de documentos embaixo do braço.

— Eu preciso ir — Saul disse a Giselle, beijando-a e acariciando-lhe a barriga. — Gostaria que você reconsi­derasse a visita à cidade.

— Pare de se preocupar. Vamos ficar bem. — Ela fez uma pausa, e então disse a Saul baixinho, enquanto o ajudante de ordens esperava discretamente do lado de fora: — Quero que o nosso filho saiba o quanto ele tem sorte, Saul. Eu quero que ele saiba, desde o início, como eu e você nos sentimos a respeito dos necessitados, e sobre o nosso dever de ajudá-los.

A visita a cidade dos mineradores levou mais tempo do que Giselle imaginara. Mas, exausta como estava ao agradecer ao motorista, que a havia acompanhado até o apartamento, ela estava feliz por ter ido.

Todos os envolvidos no trabalho de reconstrução fi­caram excitados ao vê-la, e estavam agradecidos por tudo o que ela e Saul haviam feito, além de ansiosos por contar a ela, em um inglês hesitante, o quanto estavam felizes por ter Saul como seu novo governante.

Ela havia até mesmo visto a garotinha que abraçara no dia em que estiveram ali pela primeira vez. Gordinha e sorridente agora, e vestida com as roupas novas que ela e Saul haviam providenciado para todas as crianças, a visão dela aquecera o coração de Giselle.

Agora, entretanto, ela estava tão cansada que tudo o que queria era deitar e dormir. Mas Saul ficaria chate­ado se percebesse o quanto ela estava exausta, e, além disso, ela queria ouvir tudo sobre o dia dele. Ela havia tirado muitas fotografias do trabalho de reconstrução para armazenar em seu laptop, e poderia comparti­lhá-las com Saul mais tarde, quando a coroação tivesse passado.

Giselle ficou desapontada ao ver que ele não estava no apartamento. Ele lhe enviara uma mensagem de texto meia hora antes, dizendo-lhe que já tinha quase acabado os compromissos do dia, e que providenciara o jantar para os dois.

Giselle estendeu o braço para massagear a base da es­pinha, onde uma dor começara a incomodá-la durante o trajeto para a cidade, pela manhã. A dor estava parando e voltando desde então, e agora tinha piorado muito.

Saul entrou bem na hora em que ela massageava o ponto dolorido, e seu olhar preocupado fez Giselle parar e perguntar a ele:

— Como foi o ensaio?

— Muito bem, na maior parte. Eles encontraram um ponto meio esfarrapado no manto, mas, como é nas cos­tas, ninguém vai notar. Há tanto ouro bordado no unifor­me real oficial que ele parece pesar uma tonelada, e a co­roa é pior. Eu nunca a havia visto de perto antes, embora tenha ido à coroação de Aldo. Ela é incrivelmente linda: cravejada de pérolas, diamantes, rubis, esmeraldas, o que você imaginar. Foi feita em Florença, aparentemen­te, e sem dúvida vale o preço do resgate de um rei, como se diz. O orbe e o cetro são igualmente impressionantes. Estou tentando persuadir os ministros a permitir que as jóias de Estado sejam exibidas, para que o povo possa vê-las. É melhor que mantê-las escondidas em um cofre escuro... O que foi? — perguntou, quando Giselle soltou um pequeno gemido de repente.

— Nada — ela o tranqüilizou. — É o seu filho treinan­do futebol, ou talvez concordando com os seus planos.

Ela deu a Saul um sorriso confortador, mas de repente foi surpreendida por uma onda de dor aguda. Não que Saul precisasse saber disso. Ele só iria piorar as coisas. Afinal de contas, ela ainda tinha cinco semanas de gravidez pela frente, e todos haviam lhe dito que era perfei­tamente seguro viajar.

Meia hora depois, quando a bolsa d'água estourou en­quanto Giselle escovava os dentes, de pé no banheiro, ela chamou Saul, agarrando-se à beirada da pia quando outra súbita onda de dor a envolveu:

— É o bebê — ela disse a ele, quando Saul correu para responder a seu chamado. — Eu acho... — Inter­rompeu-se, apanhada por outra contração.

— Fique aí. Não se mexa. Vou chamar o médico da corte.

Mexer-se era a última coisa que ela estava pensando em fazer, mas Giselle sabia que era necessário. Saul saíra havia apenas dez minutos, e naquele espaço de tempo ela sentira as dores duas vezes. Ela acabara de chegar ao quarto quando a porta se abriu, e uma mulher de meia-idade com uma expressão séria entrou.

— Sou a parteira da corte — ela disse a Giselle, em um inglês básico. — Eu examinar você, se você deixa?

Atrás dela, duas empregadas se apressaram para arru­mar a cama, enquanto Saul saía correndo novamente para procurar o médico, que ainda não tinha sido encontrado.

Giselle foi ajudada a deitar-se na cama, e a parteira lhe dirigiu um sorriso tranquilizador antes de dizer:

— Eu vou me lavar. Um minuto.

Um minuto. As dores vinham a cada dois minutos agora, profundas e intensas, muito diferentes daquelas que ela vinha experimentando mais cedo. A parteira vol­tou, mas Giselle mal se dava conta de sua presença, a não ser pelo fato de que tê-la ali a confortava. Ela seguiu a direção mostrada por seu corpo e seus instintos, e se entregou à tarefa de trazer ao mundo a vida que parecia tão ansiosa por nascer.

— Empurre. Você empurra, agora. — A voz da partei­ra chegou aos ouvidos de Giselle em meio a uma névoa de dor e resistência.

Saul fora expulso do quarto. Nascimentos que inclu­íam a presença do pai à cabeceira eram, aparentemente, algo que ainda não havia chegado ao país. Partos eram trabalho de mulheres, segundo a parteira, que havia transmitido estas e mais várias outras pérolas de sabedo­ria a Giselle, enquanto a acompanhava em sua jornada para dar à luz.

O esforço de empurrar tencionara os músculos do pes­coço de Gisele. Ela estava tão cansada, e a dor era tão excruciante. Ela só queria descansar e escapar da dor, mas uma súbita urgência a forçou a fazer um esforço maior, colocando todo o seu coração e sua energia no empurrão. Houve uma dor aguda, e então, quase inacre­ditavelmente, uma sensação de alívio, liberação e final­mente alegria. A parteira deu um grito de triunfo:

— Ele nasceu! O seu filho! — E entregou o bebê para ela.

Quando Saul finalmente teve permissão para entrar, após cinco minutos, depois que a parteira já havia orga­nizado as coisas, Giselle estava amamentando seu filho com uma expressão de alegria tão profunda e amor tão transparente no rosto que Saul teve de controlar as lágri­mas só de olhar para os dois juntos.

Eles já haviam escolhido um nome para ele, Lucas, e agora, vendo Saul parado ao lado da cama, Giselle entre­gou o bebê para ele e disse, suavemente:

— Lucas, diga olá para o papai. Ele é a sua imagem, Saul. — ela completou, emocionada. — Ele tem os seus olhos e o seu nariz. É exatamente como você.

Saul não iria discordar. Ele já estava tão encantado com o pequenino pedaço de humanidade que segurava nos braços como Giselle.

Foi somente mais tarde, quando mãe e bebê dormiam, descansando, depois do trabalho conjunto que fora o nas­cimento, que Saul reconheceu a situação em que eles se encontravam. Giselle dera à luz. Ela e o bebê estavam bem. Por enquanto. Mas se ela desenvolvesse depressão pós-parto,o que aconteceria? Todas as salvaguardas que eles haviam planejado estavam em Londres. Ela e o bebê estavam ali.

A coroação teria de ser cancelada, Saul decidiu. Giselle era muito mais importante para ele. O bem-estar dela vinha primeiro.

— Cancelar a coroação? — Ela foi tomada pelo choque. — Mas você não pode fazer isso — Giselle protestou para Saul. Tinha acabado de amamentar Lucas, e o havia entregado para o pai, para que o colocasse no berço ao lado da cama. — Se você quer saber o que penso, é que o seu filho se apressou tanto para nascer porque queria estar presente.

Saul dirigiu a ela um olhar indulgente, mas disse, de modo prático:

— Precisamos voltar para Londres, e quanto mais cedo, melhor. Não quero adiar o nosso retorno mais do que o necessário. Já falei com o professor, e ele concorda comi­go que devemos levar você de volta para Londres o mais rápido possível.

— Por que nenhum de vocês dois confia em mim para cuidar de Lucas? — A acusação lhe escapou antes que Giselle pudesse evitar.

— É claro que eu confio em você para cuidar dele — Saul afirmou. — É com você que eu estou preocupa­do, Giselle. Você sempre disse o quanto se sentia segura com tudo o que organizamos.

Aquilo era verdade, mas o que ela não dissera a ele era o quanto aquelas salvaguardas haviam começado a fazê-la se sentir uma prisioneira. E aquele sentimento au­mentara dez vezes pelo nascimento de Lucas. Agora, tudo o que ela queria era ficar sozinha com seu bebê e Saul. A idéia de ter de dividir os cuidados com Lucas com outras pessoas fazia seu coração se apertar, e ela queria tomar seu filho nos braços e apertá-lo contra o peito.

— Eu não quero voltar, Saul. Não ainda. Não antes da sua coroação — Giselle insistiu. — Três dias a mais não vão fazer muita diferença. Pergunte ao professor, se você não acredita em mim, ou se sente que não pode confiar em mim para cuidar de Lucas.

Saul tentou confortá-la:

— É claro que confio em você para cuidar dele.

Giselle lhe dirigiu um olhar de desculpas.

— Eu sinto muito. É que... — Como poderia dizer a ele que suas palavras haviam tirado dela parte da ale­gria que sentira com o nascimento do filho? Que elas a faziam lembrar-se de coisas em que não queria pensar? Não agora, nas preciosas primeiras horas da vida de seu filho.

Vinte e quatro horas mais tarde, acontecia a coroação de Saul, com Giselle assistindo, sentada com Lucas em seus braços, e um carrinho discretamente camuflado por perto. Saul estava magnífico, como Giselle sabia que es­taria, e seu discurso para seu povo depois da coroação, transmitido ao vivo para todo o país pela rede de tevê estatal, e em um telão para os que se aglomeravam na praça em frente ao palácio, fez os olhos de Giselle arde­rem, ao controlar as lágrimas de orgulho de seu marido.

Não havia deixado de perceber o olhar especial e priva­do que Saul lançara a ela e Lucas quando ele falou sobre a importância da vida em família e sobre a necessidade de o país trabalhar junto, como se fosse uma só família.

Logo que as formalidades terminassem, ela iria se re­colher a seu apartamento, deixando Saul cumprimentan­do o povo enquanto ela descansava, e a parteira insistira que ela deveria fazer isso.

Embora todos os livros sobre bebês que ela lera hou­vessem alertado que, durante os dois ou três dias que se seguiam ao nascimento, era normal que ela fosse assal­tada por crises de choro e de tristeza súbita, que isso era muito natural e não havia nada com que se preocupar, Giselle ficou aliviada ao perceber que não parecia ser o caso dela. Lucas era o bebê mais maravilhoso do mundo, forte, mas não muito exigente, dormindo e se alimentan­do bem, mas ele já mostrava uma força de caráter que encantava aos pais.

Depois de alimentar Lucas e trocar-lhe as fraldas, ela o colocou no berço para tirar uma soneca. Eles haviam transformado o closet dela em um berçário temporário, e Giselle deixou a porta aberta quando voltou para o quar­to para descansar, de modo a ouvir se ele acordasse e começasse a chorar.

Giselle parecia ainda adormecida, deitada na cama com os olhos fechados, quando Saul entrou no quarto duas horas depois, franzindo o rosto enquanto ouvia o professor, que havia telefonado para ele.

— Sim, naturalmente eu estou de olho em, tudo, es­pecialmente em Giselle — ele confirmou para o outro homem. — Ela está muito sensível, como eu já lhe disse.

Na cama, onde ela estava simplesmente deitada de olhos fechados, pensando em como tinha sorte, Giselle ficou tensa de apreensão. Saul a estava observando, ele dissera. Porque não confiava nela para cuidar de seu filho. Giselle sabia que a intensidade da dor que isso lhe causava era ilógica, mas sua sensação de separação de Saul, o sentimento que ela não podia falar com ele aberta e honestamente sobre como se sentia, por medo de ele pensar que o que ela dizia podia ser um sinal de uma depressão pós-parto incipiente, a fazia ficar na defensiva e se sentir muito sozinha, como se Saul não estivesse mais a seu lado.

Estranhamente, o seu próprio medo de que fosse ca­paz de machucar seu filho havia desaparecido no primei­ro momento em que ela segurara Lucas em seus braços. Ela soubera instintivamente e de imediato, mas era claro que não podia esperar que as outras pessoas confiassem nela. Outras pessoas, como o professor, mas certamente, não Saul, também. Certamente ele seria capaz de perce­ber o que ela sentia e acreditar nela.

Dois dias depois, eles estavam de volta a Londres, onde Giselle agüentou exatas duas semanas do que lhe pareceu um inferno, com cada minuto ao lado de Lu­cas e cada respiração sua monitorados pela enfermeira indicada pelo professor, enquanto ela precisava assistir a governanta assumindo o que ela sentia que era o seu papel de direito como mãe de Lucas, antes de finalmente estourar. Giselle descontou tudo em cima de Saul uma noite, depois de eles terem jantado juntos, quando ele lhe perguntara, solicito, como estava se sentindo.

— Você não se importa com a maneira como eu me sin­to! — ela o acusou, com raiva. —Ninguém se importa. Eu já estou cansada de ser observada o tempo todo, de ter discussões diárias com a enfermeira sobre os meus senti­mentos para que ela possa enviar um relatório ao professor, como se eu estivesse passando por um período de experi­ência como mãe. Não posso nem mesmo passear com Lucas em seu carrinho sem que a enfermeira ou a governanta me sufoquem, olhando para mim como se não confiassem em mim. Eu quero que as duas sejam demitidas!

Esperou que Saul protestasse, que a alertasse para se lembrar do motivo de elas estarem ali, mas em vez disso, e para espanto dela, ele disse simplesmente:

— Muito bem.

— Muito bem? — Giselle repetiu.

— Sim, muito bem — Saul concordou. — Quando eu disse ao professor que, na minha opinião, você esta­va perfeitamente estável, mental e emocionalmente, ele concordou comigo. Mas disse que não adiantava lhe di­zer isso, e que você teria de chegar a essa conclusão por si mesma, antes de podermos tirar você das restrições que nenhum de nós acreditava que você precisasse.

— Chegar a essa conclusão por mim mesma? Eu soube no minuto em que Lucas nasceu que tudo ficaria bem. Foi você quem insistiu em me trazer de volta para cá, como... uma prisioneira. Foi você quem não confiou em mim.

— Não confiar em você? Mas claro que eu confiava em você. Como você, eu soube no primeiro segundo em que a vi com Lucas que jamais o machucaria.

Eles olharam um para o outro por um minuto, e Giselle disse a ele, trêmula:

— Eu me senti tão sozinha, Saul. Como se estivés­semos em lados diferentes, ou algo assim. Senti tanto a sua falta.

— Eu só queria me afastar um pouco e lhe dar tempo e espaço para decidir, sozinha, o que era certo para você.

Os dois começaram a rir.

Seis semanas depois, quando o professor e o obstetra de Giselle anunciaram que ela estava bem e saudável, ela e Saul comemoraram as boas novas nos braços um do outro, enquanto o filho deles, muito bonzinho, dormia feliz e satisfeito.

 

— Viu? Eu disse que você havia puxado aos Freeman, não à sua mãe — a tia-avó de Giselle disse, seis meses mais tarde, enquanto trazia, cheia de orgulho, seu sobrinho-neto no colo, para a foto oficial do batismo.

Giselle riu, incapaz de resistir ao rosto de seu filho, que estendia a mão para ela.

Parecia impossível agora imaginar que ela já tinha pensado em prejudicar aquela criança, ou que acreditara sofrer da mesma doença devastadora que se abatera so­bre sua mãe.

A maternidade para ela era a jóia da coroa em sua feli­cidade, uma verdadeira alegria, que a tornara completa e que enriquecera o amor que ela e Saul compartilhavam.

Ainda que não tivesse dito nada a Saul, Giselle já pen­sava em aumentar a família.

—Por que você está sorrindo? — Saul perguntou, afas­tando-se do grupo de ministros e se aproximando dela.

—Ah, por nada...

. Saul inclinou-se e disse baixinho:

— Esse nada não estaria relacionado com algum plano seu para aumentar o tamanho da ala infantil do palácio, teria?

— Saul! Como você adivinhou? — Ela deu risada.

Seu riso foi silenciado por um beijo breve, mas inten­so e apaixonado.

— Eu conheço você e amo você, e é por isso que sem­pre soube que nosso filho teria a melhor mãe do mundo.

Giselle tinha tanta sorte. Ela era tão incrivelmente, tão maravilhosamente abençoada e cheia de sorte. E sabia dis­so. Ela jamais deixaria de dar graças por tudo o que tinha.

Jamais pararia de contar suas bênçãos.

 

                                                                                Penny Jordan  

 

                      

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