A noite era mais cálida que o habitual e eles seguiram ali sentados tranqüilamente em dois colchonetes, falando de coisas desconexas: aquela viagem que fizeram no Leopard, os aromas que agora vinham de terra, umas vezes o da fumaça produzido pela madeira ardendo e outras o de plantas, às vezes distinguíveis entre si, a água que jorrava do nariz de um pouco tempo após estar no mar e a extraordinária limpeza e a ausência de maus odores na Noz-moscada, inclusive na bodega.
A lua se pôs e as estrelas brilharam ainda mais. Então Jack falou do observatório que tinha em Ashgrove Cottage e comentou que em Batavia um inteligente holandês o havia ensinado uma forma melhor de colocar a cúpula, uma forma baseada nos métodos dos moendeiros de seu país, que, naturalmente, trabalhavam com moinhos de vento.
XXXXXX
Oito badaladas. Fielding se encarregou da guarda, mas Jack permaneceu na coberta e um pouco depois, quando Bonden foi até o convés na escuridão, disse:
- Bonden, terá que dizer a seus companheiros que o plano não serve. O fluxo da maré é muito forte e a fragata francesa lenta demais.
- Sim, senhor - respondeu Bonden. - Só vim para dizer que Killick já tem uma cafeteira e uma bandeja de mingau na prateleira da chaminé, e quer saber se gostaria de tomá-los aqui ou abaixo.
- Que acha, doutor? Encima ou abaixo?
- Abaixo, por favor, porque muito logo terei que ir ver meus pacientes.
- Você se importa de esperarmos cinco minutos? Queria ver Vênus sair.
- Vênus? - perguntou Stephen desconcertado. - Meu Deus! Sim, certamente. Provavelmente terá notado que o mar está muito menos agitado.
- Sim, isso costuma ocorrer antes da mudança da maré, como recordará. Dentro de pouco começará a baixar e toda esta massa de água, de milhões e milhões de toneladas, se moverá para o leste. E acho que se moverá mais rápido porque será impulsionada pelos aguaceiros e o vento que o céu promete, um vento que fará levar as gáveas rizadas.
Stephen não pôde perceber nenhuma promessa, além da total escuridão a oeste, mas como sabia que as salamandras, os gatos e os animais marinhos tinham sentidos que ele não possuía, deu-lhe razão. Também ele observou como saía Vênus, uma figura borrada que estava muito perto do horizonte, cujo brilho e cuja forma de corno podiam
ser apreciados muito bem com a luneta.
Desceram e com infinita satisfação tomaram o mingau e o café na câmara dos oficiais enquanto conversavam em voz baixa, apesar de que agora já haviam chamado os aleijados
para trabalhar e por toda a escuna se ouvia o ruído da pedra arenito raspando o convés na escuridão. Voltaram a falar da viagem que tinham feito no Leopard, dos
relativos prazeres que a ilha Desolação lhes proporcionou e da senhora Wogan.
- Era uma bonita mulher - disse Jack. - E muito rara. Se não recordo mal, deportaram-na por disparar nos aguazis que foram prendê-la, e eu gosto das mulheres de
caráter. Mas não é bom ter mulheres a bordo, sabe? Isso - acrescentou, assinalando a segundo tijela de papa de Stephen, que havia deslizado pela mesa -, isso é o
que queria dizer quando falava da mudança da maré. Agora está baixando, e como é empurrada por um vento forte, o mar mudará completamente. Ouve a chuva? Esse é um
dos aguaceiros. Choverá a cântaros durante vinte minutos e depois o céu ficará limpo. O sol sairá dentro de pouco.
- Tenho que ir ver meus pacientes. Não estou muito satisfeito do estado do jovem Harper.
Durante um tempo falaram dos grandes pedaços de madeira pontiagudos, os casos em que as feridas cicatrizavam bem desde o início e os casos em que havia infecção,
e quando Stephen se levantou, Jack disse:
- Vou contigo.
Desceram a escada e foram até o final da popa.
- Nota mesmo aqui o agradável odor?
Antes de que Jack pudesse responder, ouviram-se acima deles três estrondos e os disparos simultâneos dos dois canhões de popa. Jack subiu diversas escadas e chegou
ao castelo de popa quando caiam as últimas gotas de chuva e apareciam as primeiras luzes, e imediatamente compreendeu a situação. A Cornélie, desdobrando um pouco
mais do malfeito velame, aumentara a velocidade, depois havia orçado e avançado muito navegando contra a corrente. Depois, oculta atrás da cortina de chuva, posicionara-se
de maneira que a Noz-moscada estava ao alcance de seus canhões e então dera uma guinada e disparara um bombardeio. Uma das balas dera nos guinchos da verga da gávea
maior, e ainda que as adriças já haviam se soltado, a vela dava golpes em direção a sotavento produzindo um ruído estrondoso.
- Leme para bombordo! - ordenou, em parte para que a vela não se movesse tanto e em parte para que a Noz-moscada abandonasse o rumo que estava, que era convergente
ao da Cornélie.
- Não vira, senhor! - gritou Fielding para que pudesse ser ouvido apesar do rugido dos canhões. - Há uma bala entre a prancha do leme e o codaste e o cabo de sujeição
se rompeu!
Jack olhou para o castelo e gritou:
- Desdobrem a cevadeira e a gávea! Soltem a bóia! - Depois se voltou e disse: - Senhor Crown, ponha os aparelhos de emergência imediatamente. Senhor Seymour, desça
os punhos de barlavento, corte os estropos de bombordo e leve todos os cabos que possa para o cesto da gávea.
Correu para a cabine e, quando o canhão de estibordo disparou e retrocedeu, ordenou:
- Guardem-no!
Inclinou-se para fora e viu que Richardson, ainda com a camisa de dormir, pendurado da popa, com a água até o queixo a cada vez que uma onda chocava-se contra ela,
empurrava furiosamente a bala com uma alavanca.
- Dick! Perfurou o casco ou só está travada?
- Travada, senhor, entre o estropo superior e...!
Foi interrompido por uma grande onda com muita espuma. Jack retrocedeu e disse a Bonden:
- Dá-me um cabo amarrado a um gancho. Diga ao contramestre que vire para estibordo no momento em que estejam colocadas os aparelhos. Dá-me uma alavanca. Vamos, senhor
White.
Um momento depois estava na branca e turbulenta esteira. A pesada alavanca o fez afundar, mas dando um enérgico chute subiu para a superfície e agarrou o gancho
que pendurava do cabo quando a Cornélie voltou a disparar uma terrível descarga. Quando se metia debaixo da sacada de popa, Jack ouviu que uma das balas golpeou
o casco da Noz-moscada e depois o senhor White disparou um canhonaço que o ensurdeceu. Com um pé em um anel e o braço esquerdo ao redor da prancha, meteu a alavanca
no espaço que havia sob a bala meio sepultada e tentou tirá-la para fora enquanto Richardson tratava de movê-la pelo outro lado. Uma depois de outra as ondas os
cobriam de espuma, pois a Noz-moscada estava ganhando velocidade, e seu esforço lhes parecia inútil. As forças de Jack estavam se esgotando. Estava a ponto de cair
do anel de ferro quando a prancha que estava abraçando rangeu e se moveu levemente para bombordo. Um último empurrão e a bala saiu.
Fizeram uma inclinação de cabeça um para o outro, mantendo a boca fechada para esquivar os salpicos de água, e Jack deixou cair a alavanca e tratou de subir a bordo.
Os braços não lhe respondiam e teve que chamar o seu timoneiro, e enquanto os marinheiros o subiam, encheu-se de arranhões ao roçar o casco. Depois Richardson subiu,
com uma perna jorrando sangue que procedia de uma ferida despercebida.
Ambos, empapados, sentaram-se ofegando, e Jack disse:
- Tire o canhão, Bonden.
O canhão saiu com rapidez pela portaló e quase imediatamente fez fogo. Quando a fumaça se dissipou, Jack viu Fleming aproximar-se correndo e gritando:
- O senhor Fielding diz que vira, senhor!
No mesmo momento viu que a Cornélie começava a mudar de bordo para reduzir a crescente distância que separava as embarcações e disse:
- Obrigado, senhor Fleming. Diga-lhe que ponha a proa contra o vento e que mande um dos marinheiros do castelo. - Voltou-se para Richardson e perguntou: - Como está,
Dick?
- Perfeitamente bem, senhor. Não senti nada nesse momento. Acho que me espetei no gancho.
Chegou o marinheiro do castelo e cumprimentou tocando-se a testa.
- Jevons, ajude o senhor Richardson a descer. Dick, deve tratar essa ferida. Diga ao doutor que estamos navegando de bolina, e se achar que deve ficar abaixo, fique
lá.
A resposta que Richardson deu quando o marinheiro do castelo o levantou foi abafada pelo estrondo dos canhões e fortes vivas.
- Nós o acertamos no casco pela coxia, senhor! - gritou o senhor White. - Vi voar as lascas!
Jack olhou por uma pequena abertura e viu claramente a fragata. Estava a três quartos da distância anterior, iluminada pelo sol, cujos raios saíam por uma clareira
nas nuvens a leste. Também viu sob aquela luz o jorro de água que a bomba de estibordo da fragata jogava.
Levantou-se, dobrou os braços e as mãos e subiu a escada que levava ao castelo de popa. Ao chegar ali viu uma terrível confusão sob o céu encapotado.
- Já tiramos uma verga, senhor - informou Fleming -, e a gávea desceu, como vê, mas Seymour diz que o mastro tem sérios danos.
- Tem um corte até o centro justo um pé acima da cruzeta.
O contramestre reapareceu.
- Já estão postos os novos cabos da prancha do leme - disse.
- Muito bem, senhor Crown. Prepare-se para envergar uma vela na verga seca.
A Cornélie fez fogo com os canhões de proa outra vez e o penacho de água que fez saltar uma das balas os empapou.
- Sim, senhor - disse o contramestre por fim, mais surpreendido pela ordem do que pela água que o salpicou, ainda que foi muita, porque nunca em sua vida havia envergado
uma mezena redonda.
- Senhor Fielding, coloque os mastaréus de joanete de proa e de penico...
As ordens se sucederam rapidamente, sem ênfase mas com gravidade. Assim que a estranha vela estava envergada e inchada, os marinheiros subiram as macas e foram desjejuar
em dois turnos. Quatro marinheiros escolhidos pegaram o leme e o própio Fielding se encarregou do governo da escuna.
Durante todo esse tempo os canhões haviam seguido respondendo, sem mais efeito que a perfuração de algumas velas e o corte de alguns cabos da exárcia, mas quando
a desconhecida mezena redonda deu o potencialmente perigoso impulso, a Cornélie já havia avançado tanto como havia se retardado ao disparar as descargas e se aproximava
muito rapidamente. Jack mudou o rumo para receber o vento pela alheta em vez de pela popa, pois desse modo a mezena redonda não impediria que o vento chegasse à
vela maior, e imediatamente a escuna aumentou de velocidade. Depois de observar tudo com muita atenção durante dez minutos e de desdobrar duas bujarronas mais, chegou
à conclusão de que a velocidade que a escuna alcançara sem a gávea maior era a mais parecida à da fragata que lograria ter e disse a Seymour, que estava encarregado
das caronadas de popa de bombordo, e aos dois guardas-marinhas que ficassem preparados.
Assomou-se pela escotilha, que tinha o marco destroçado e salpicado de pedaços de vidro, e gritou:
- Senhor White, saque o canhão, ajuste-o bem e faça com que os canhões de bombordo respondam! - E depois disse: - Senhor Seymour, vamos mudar de bordo, leme para
bombordo. Dispare quando os canhões estiverem apontados. Dispare alto e rápido.
Inclinou-se para passar por debaixo da mezena redonda, essa vela anômala e incômoda, e pegou o leme ele mesmo. A Noz-moscada virava facilmente e com rapidez. Os
marinheiros estavam tão preocupados com as escotas e os aparelhos da estranha vela que não prestavam atenção aos canhões da Cornélie. Terminou de mudar de bordo
e então a primeira caronada fez fogo e logo dispararam outras duas ao mesmo tempo. Como Jack esperava, a Cornélie virou o leme e respondeu com uma descarga, e, também
como esperava, não foi tão precisa nem mortífera como a primeira. Não pôde contar quantas vezes disparou a brigada de Seymour, mas em uma ocasião os ouviu gritar
como loucos que lhes trouxessem balas porque os suportes estavam ficando vazios.
- Acho que dispararam seis vezes cada uma, senhor - observou Adams, que tomava notas ali de pé com um tinteiro pendurado no olhal e um relógio na mão.
A Cornélie não disparou, aliás reiniciou a perseguição, ainda que com a perda de dois cabos de avanço. Mas ainda navegava de bolina e lhe favorecia o rápido fluxo
da baixa-mar.
Assim seguiram navegando milha depois de milha. O capitão da Cornélie sabia muito bem que a Noz-moscada necessitava guindar um mastaréu maior para poder navegar
mais rapidamente que a fragata, mas estava decidido a que não o fizesse. Uma e outra vez a fragata dava uma guinada, disparava uma descarga e virava. E quando tinha
vantagem, como quando a sobremezena da Noz-moscada se desprendeu, disparou por bombordo e depois por estibordo com todos os canhões que possuía, produzindo um terrível
estrépito. A passagem pelo estreito foi marcada pela debandada das aves marinhas, que saíam assustadas de seus ninhos nos escarpados. A Noz-moscada costumava responder
com descargas das caronadas, também muito ruidosas, em uma sucessão assombrosamente rápida, e ambos os bandos disparavam quase o mesmo número de balas. Em geral,
os disparos da Cornélie eram muito menos precisos.
- Não me admira - disse Jack a Fielding quando estava descascando uma laranja junto ao coroamento -, porque estiveram bombeando por toda a noite e acho que não têm
forças para sacar os canhões, e muito menos para apontá-los bem.
Mas poucos minutos depois de fazer estes comentários, pelos quais se maldice, no momento em que por fim estavam a ponto de guindar o mastaréu, que se encontrava
em posição horizontal, e quando já podia se ver a boca do estreito, a Cornélie, a uma distância apropiada, deu uma guinada e disparou cuidadosamente duas lentas
descargas que causaram muitos danos. E o principal estrago foi a ruptura do virador e do aparelho por onde passava, o que provocou a queda do mastaréu, situado na
metade da altura necessária, que, por consequência disso, abriu um buraco na coberta e a abertura para a cunha e o talão se estragaram, tão meticulosamente preparados.
Mas a Cornélie se afastara por fazer guinadas duplas e não voltou a disparar antes que o carpinteiro e seus ajudantes começassem a recuperar o talão e pudesse ver-se
por estibordo, justo pelo través, a abertura por onde Jack pensava passar para se esquivar da fragata francesa. Foi então quando chegou ao convés, da verga de joanete
de proa, o grito:
- Barco à vista!
- Onde?
- Pela amura de bombordo, senhor. Vejo as joanetes pelas costas do cabo, senhor. Outro. Dois barcos, senhor. Três. Quatro. Meu Deus! Já os verá, senhor.
- O mastaréu está pronto, senhor - disse Fielding a Jack.
- Ordene guindá-lo, senhor Fielding, por favor - respondeu Jack. - E depois o mastaréu de joanete, e tão logo como seja possível, mande colocar as vergas.
Foi devagar até o castelo e dirigiu a luneta para o cabo. Depois de vários minutos, um dos canhões de popa disparou e o duelo começou de novo. A proibição de ferir
a Cornélie fazia tempo que terminara, e o único desejo dos tripulantes da Noz-moscada era causar-lhe graves danos antes que derrubasse algum mastro.
- Já os verá, senhor - disse o serviola em tom coloquial.
O primeiro barco saiu de detrás do terreno elevado que formava o cabo. Estava a pouco mais de uma milha de distância, usava grande quantidade de velame desdobrado
e navegava com o vento pelo través em direção sudeste e aproximadamente a dez nós, formando grandes ondas com a proa. O sol acabava de sair, e com aquela luz não
podia distinguir seu armamento, mas via bastante bem a bandeira estadunidense. O seguiram outros dois barcos, os dois de tamanho similar, potentes corvetas ou pequenas
fragatas, os dois navegando muito rapidamente e com o mesmo rumo e os dois com bandeira estadunidense. Fizeram rápidos sinais uns para os outros. Então apareceu
o quarto barco e o coração lhe pulou no peito. Começou a avançar rapidamente mas sem correr para a popa, e ao chegar ao castelo de popa ordenou:
- Que venham o senhor Richardson e o suboficial encarregado dos sinais.
Richardson, o tenente encarregado dos sinais, veio do castelo coxeando e com a perna coberta por abundante bandagem. Titus, o suboficial encarregado dos sinais,
que havia saído da proa, seguia-o.
- A bandeira britânica na haste, o sinal secreto, o número de identificação da Diane e a mensagem: "Perseguição pelo noroeste". Depois a mensagem telegráfica: "Bem-vindo
Tom". Tudo desde o mastaréu de joanete. E um par de bandeiras mais na verga.
Richardson o repetiu e Adams o escreveu. O suboficial correu até onde se achava o baú com as bandeiras e Jack disse:
- Senhor Reade, por favor, desça correndo para a enfermaria e felicite o doutor e diga-lhe que avistamos a Surprise.
Então olhou para o castelo, onde a guindaleza que enrolava o cabrestante inferior se punha tensa para subir o mastaréu até os vaus onde se apoiaria, e estava a ponto
de dizer-lhe a Fielding que içasse a flâmula assim que guindassem o mastaréu quando um pensamento fez encolher outra vez seu coração: "A Surprise foi capturada por
uma esquadra estadunidense?". Foi até a proa. Já estavam içadas a bandeira britânica, o sinal secreto e as bandeiras que indicavam a direção da perseguição. Observou
a Surprise com grande atenção. A fragata orçou e ultrapassou os outros três barcos com sua característica graça de lebre. O fogo tinha cessado atrás dele. Ouviu
chegar de longe as ordens pertinentes para guindar o mastaréu e depois, quando estava colocado, o grito "guindado!". Titus terminou de formar a mensagem telegráfica
com as letras T, O, M e por fim a bandeira que a Surpritinha, depois de estremecer, foi arriada rapidamente e substituída pela sua, que foi recebida pelos vivas
de muitos mais tripulantes da Noz-moscada que os que estavam desocupados nesse momento. Jack olhou para trás e viu que a Cornélie virara e avançava para o noroeste,
onde caía um forte aguaceiro.
- O doutor lhe apresenta seus respeitos, senhor - disse Reade -, e diz que o felicita pelo encontro e que subirá ao convés quando esteja livre.
O doutor Maturin ficou livre quando a Noz-moscada, com a gávea maior, a joanete maior e o galhardete reparados, acabava de mudar de bordo e perseguia a Cornélie.
Navegava de bolina e a grande velocidade, lançando jorros de espuma a muita distância do casco. A Surprise se aproximava por sotavento e havia tido que afrouxar
as escotas para não navegar mais rápido. Stephen viera correndo com a casaca e o avental negros que usava nas batalhas, e a cor de sangue ainda sem secar sobre as
escuras roupas contrastava com seu rosto resplandecente.
- Aí está! - exclamou. - A teria reconhecido em qualquer parte. Que alegria!
- Sim, é verdade - disse Jack. - E me alegro de que tenha vindo antes que arriemos a mezena redonda, porque é possível que nunca volte a ver outra.
- Por favor, mostre-me qual é - pediu Stephen.
- É esta que está justo acima de nossas cabeças - indicou Jack. - Está envergada na verga seca.
- É uma vela muito bonita, garanto. Adorna muito bem. Olhe como vem a valente fragata! Viva, viva! Aí está Martin, diante dessa coisa... Esqueci o nome. Vou agitar
o lenço.
A Surprise se situou paralela à Noz-moscada, a um tiro de pistola, e então mudou de orientação o velacho para seguir navegando mais ou menos na mesma velocidade.
Junto à borda estavam alinhados rostos alegres e sorridentes que Jack e Stephen conheciam muito bem, mas como em casos como esse se atuava conforme a etiqueta no
mar, ninguém disse nada até que estiveram frente a frente os dois capitães, Jack Aubrey ainda com seu horrível gorro de Monmouth e Tom Pullings com roupa de trabalho
e um chapéu de uniforme que tinha posto para a cerimônia, com seu horrível rosto cheio de cicatrizes radiante de alegria.
- Como vai, Tom? - perguntou Jack com seu vozeirão.
- Muito bem, senhor, muito bem - respondeu Tom, tirando o chapéu. - Espero que o senhor e todos nossos amigos estejam bem.
Jack devolveu a saldação e seus compridos cabelos loiros se estenderam para sotavento e começaram a ondear.
- Nunca estive melhor, obrigado. Adiante-se e se coloque em sua esteira. Não tardará muito tempo porque avança pesadamente. Mas não se aproxime até que eu chegue.
O capitão se renderá em quanto nos veja aos dois e não teremos que gastar pólvora nem haverá feridos. Quem são seus acompanhantes?
- O Tritão, um barco corsário inglês de vinte e oito canhões de doze libras e dois canhões longos de nove. Está ao comando do capitão Goffin. Os outros são presas
estadunidenses.
- Tanto melhor. Adiante, Tom! - gritou. - Chegou a tempo para um enxurrada - acrescentou ainda com o mesmo vozeirão quando começaram a cair as primeiras gotas de
chuva na coberta.
O velacho da Surprise se inchou e a fragata avançou imediatamente. Agora que haviam terminado as palavras oficiais começaram os cumprimentos de um barco para o outro,
apesar da chuva.
- Capitão Pullings, meu amigo, como está? Por favor, tenha cuidado com a umidade. Senhor Martin, como está? Eu vi um orangotango!
- Como está, Joe?
- Como está, Matusalém?
E na ponta da proa alguns marinheiros brincalhões gesticulando disseram:
- Vá, uma mezena redonda! Ah, ah, ah!
Os tripulantes da Noz-moscada se assombraram daquela familiaridade, pois ainda que Killick e Bonden (e especialmente Killick) lhes tinhvessem presenteado com histórias
sobre a importância e a riqueza do capitão Aubrey (seus serventes tinham um coche de cristal e rodas douradas e comiam duas sobremesas ao dia) e sobre a habilidade
sobrenatural e a vida mundana do doutor Maturin (chamava de Bill ao duque de Clarence e tomava chá com a senhora Jordán), nunca lhes falara da Surprise. Mas havia
pouco tempo para se assombrar, pois em quanto a Surprise se afastou até um ponto em que já não se podiam ouvir os gritos de uma embarcação para a outra, foram chamados
para aferrar e desenvergar a odiosa mezena redonda e desdobrar a apreciada carangueja, que aumentaria um nó mais a velocidade da Noz-moscada. Antes que a escuna
alcançasse a velocidade máxima, a Surprise havia desaparecido sob o aguaceiro, uma massa de água cinzenta.
A meia hora seguinte foi muito angustiante para todos e os minutos pareciam estender-se até extremos inconcebíveis. Mas a causa não era a quantidade de água que
havia no convés, que saía a jorros pelos embornais, nem que tivessem medo da costa rochosa, pois Jack havia medido bem as marcações, mas por que temiam que a Surprise
se equivocasse ao julgar a lentidão da Cornélie e se encontrasse de repente junto dela, ao alcance de seus canhões, mais potentes que os seus. Em meio desse penoso
período houve ensurdecedores trovões que se produziram quase à altura dos topes dos paus e que impediram fazer fogo, e, naturalmente, caíram trovões por todas partes,
como em um terrível dilúvio.
Jack pensou que Adams, ali ao seu lado, parecia um rato afogado, que todos pareciam ratos afogados, e que não tinha sentido mudar de bordo contra o vento do sudoeste
sob aquela copiosa chuva quente como caldo.
- Senhor - sussurrou Adams ao seu ouvido -, desculpe, mas o senhor Fielding disse que podia falar-lhe porque este é um caso especial. O condestável vai pôr dados
em seus livros; está muito preocupado pela alavanca que se perdeu no mar e diz que não gosta de pedir, mas consideraria um grande favor que lhe desse um certificado
firmado pelo senhor como contador e capitão e depois pelo senhor F...
Nesse momento lhe interrompeu um raro conjunto de três trovões seguidos que deixaram um odor de enxofre, e quando terminaram, Jack respondeu tranqüilamente:
- Recorde-me quando esteja firmando documentos.
Aquele enorme estrondo pôs fim ao aguaceiro. Os trovões se ouviam cada vez mais distantes por sotavento; a chuva era cada vez mais fina e por fim cessou. Lá adiante,
a quinhentas jardas, estava a Surprise a pairar, brilhante entre o límpido ar. Mas estava sozinha. Não havia nenhum outro barco no estreito iluminado pelo sol, e
tampouco junto à costa nem no horizonte ou a estibordo, nem em nenhuma parte do mar.
Seu assombro durou apenas o bastante para chamá-lo assim. Todos os botes que havia ao redor da Surprise, mais dos que uma fragata podia levar, e o fato de que deles
muitos homens subiam a bordo por ambos os costados e pela escada de popa significava que a Cornélie havia afundado. Com a luneta pôde ver que subiam com guinchos
muitos homens uniformizados e quase inanimados.
- Senhor Seymour, baixe um bote na água, qualquer um que flutue - ordenou e desceu correndo e pedindo aos gritos uma casaca decente, calções e um chapéu.
Lembrou-se que a Surprise era propriedade de Stephen e mandou perguntar-lhe se queria ir a bordo, ainda que o advertia que agora o mar estava bastante agitado. Ao
regressar o guarda-marinha informou de que o doutor Maturin apresentava seus respeitos e objetava que nesse momento Macmillan e ele estavam realizando uma tarefa
urgente.
- Estavam usando uma serra, senhor - acrescentou Bennett, ainda pálido e sentindo náuseas.
A única embarcação que não sofrera danos depois do longo ataque com os canhões era o pequeno cúter, e nele Jack chegou ao costado e os degraus que tão bem conhecia.
Na Surprise afinal. Haviam colocado guarda-mancebos e alinhado grumetes com luvas brancas para receber-lhe solenemente, e lhe deram vivas sem nenhuma ordem, mas
espontâneos e entusiastas, quando chegou ao portaló, onde Tom Pullings o cumprimentou com um férreo aperto de mãos.
- Afundou, senhor -informou. - Vimos como seus homens baixavam os botes pelo lado quando deixamos para trás o aguaceiro. Estava afundada até a base das portalós
e quando os homens estavam se afastando, virou a proa em direção contrária às ondas e deslizou para abaixo como se estivesse navegando. Recolhemos muitos homens
que estavam nadando ou agarrados a galinheiros. E aqui está o oficial que tinha o comando, que havia sucedido ao capitão na batalha. Fala inglês e disse que tinha
que render-se ao senhor.
Voltou-se e fez um gesto que indicava uma apresentação, e ali, no grupo de oficiais britânicos e franceses que estavam a sotavento, estava Jean-Pierre Dumesnil.
O jovem, pálido e quase morto de cansaço, avançou e lhe ofereceu sua espada.
- Jean-Pierre! - disse Jack, dando alguns passos para ir ao seu encontro. - Meu Deus, como estou contente de te ver! Tinha medo de que... Não, não. Guarde sua espada
e me dê a mão.
CAPÍTULO 7
"Não, não. Guarde sua espada e me dê a mão", disse. E talvez isso se pareça com o que Drury Lane disse quando o tipo de calções rosados e chapéu com plumas levantou
seu inimigo caído e descobriu que a criada era a filha do duque, mas te asseguro que naquele momento foi uma resposta espontânea. Alegrei-me muito em vê-lo. Se leu
a comprida carta que Raffles prometeu lhe enviar com o primeiro barco dos que fazem o comércio com as índias que chegasse, saberá a quem me refiro. É Jean-Pierre
Dumesnil, o sobrinho do capitão Christie-Pallière, que me capturou quando estava ao comando da Sophie e me tratou tão bem. Encontrei-me em Pulo Prabang com o sobrinho,
que passara de ser um gordo guarda-marinha a um esbelto oficial, segundo oficial da Cornélie. Naquele momento pensei que era um bom homem e agora penso que é ainda
melhor. Peço que busque o endereço de seus primos em Londres, os Christy, na gaveta da escrivaninha negra, concretamente no canto da direita. Acho que vivem na rua
Milsom, e o jovem, que foi à escola do doutor Hall em Bath durante a paz, visitava-os amiúde. Mande-lhes um respeitoso e caloroso cumprimento de sua parte e diga-lhes
que não está ferido. Durante a batalha, um de nossos canhões causou estragos no castelo de popa da Cornélie e Jean-Pierre teve que assumir o comando; outro destroçou
um penol na parte inferior da proa e como consequência entrou tanta água que bombeando dia e noite quase não podiam mantê-la flutuando, mesmo com o vento em popa.
Apesar disso e de ter poucos tripulantes, lutou nobremente com sua fragata. Poderia ter-nos capturado se não nos encontrássemos na boca do estreito com a Surprise
e outros três barcos. Tom Pullings ouviu os canhonaços antes do amanhecer e se dirigiu para lá a toda velocidade desde seu posto, muito mais ao norte. Avistamos
os quatro detrás do cabo, quando os estavam dobrando, e ao ver que todos tinham bandeira norte-americana, pensei: "Jack Aubrey, está entre a espada e a parede",
porque estava entre os endemoninhados canhões de dezoito libras da Cornélie e o armamento conjunto de uma esquadra estadunidense, e não tinha espaço para manobrar.
Mas quando vi aparecer a nossa amada Surprise... Meu Deus, quanta alegria! Então mandei içar um sinal para que iniciasse a perseguição para o oeste.
Obviamente, uma luta de cinco contra um era desigual, assim que Jean-Pierre orçou com a esperança de lograr ocultar-se atrás de uma das ilhas situadas ao sul amparado
por um aguaceiro. Mas os tripulantes, que a duras penas haviam podido sacar a água a medida que entrava com o vento de popa, agora que estavam exaustos e que o vento
era de proa não puderam mantê-la flutuando. Quase não tiveram tempo de descer para água os botes antes que a fragata afundasse. A Surprise os resgatou, e alguns
que quase não podiam se manter em pé tiveram que subir-lhes com guinchos. Quando a Noz-moscada chegou ao seu lado e eu subi a bordo, Jean-Pierre se rendeu a mim.
Depois, como o estreito não era um lugar cômodo para permanecer ao pairo, navegamos para leste até esta enseada abrigada, ancoramos em águas de sessenta braças de
profundidade e conhecemos os tripulantes dos outros barcos. O Tritão, um barco corsário potente e quase tão grande como a Surprise, está ao comando de Horse-Flesh
Goffin, que, como provavelmente recordará, foi julgado por um conselho de guerra por ter falsificado um rol. Já faz algum tempo navega com a fragata. Os outros são
esplêndidas presas estadunidenses capturadas por eles, esplêndidas presas porque contêm o carregamento de vários outros barcos tão pequenos que não valia a pena
trasladar para eles um grupo de tripulantes. Um está cheio de peles de nútria e outros animais parecidos, que são muito apreciadas na China, aonde ambas embarcações
se dirigiam. Parece que, em geral, a viagem da Surprise foi um grande êxito, pois antes de capturar estes dois mercantes aprisionaram baleeiros de Nantucket e New
Bedford e os mandaram para portos sul-americanos, ainda que não sei exatamente... Temos muito que contar-nos e havia tanto o que fazer na pobre Noz-moscada, que
sofreu tantos danos, que ainda não sei a metade do que teria que saber.
Estava sentado na cabine, junto ao extremo de estibordo do marco do janelão por onde entrava a luz do sol refletida pelo mar jaspeado, um janelão que lhe era mais
familiar que todos os que vira em terra. Olhou para fora e viu a Noz-moscada, com a exárcia em boas condições de novo, depois de passar um período surpreendentemente
curto nessa baía, e com o carpinteiro e seus ajudantes por fora do costado dando os últimos retoques na galeria. Olhou para o outro lado da mesa, mas ao ver que
Stephen estava muito concentrado na escrita e tinha um gesto austero, posou seu olhar na mesa, que excepcionalmente fora colocada na grande cabine e tinha espaço
para catorze comensais sentados comodamente. Não sem certa satisfação viu que estava posta com inusual suntuosidade. Essa era uma das ocasiões que Killick gostava
mais do que tudo no mundo, e agora a prataria de Jack, que haviam logrado conservar apesar das vicissitudes do viagem, lançava lampejos debaixo da oscilante luz.
Stephen seguia deslizando a pluma sobre o papel, mas seu gesto era mais amável, porque nesse momento escrevia:
...e portanto, depois de ter jogado por terra a tese de Baker sobre o funcionamento do organismo da abelha solitária, só quero acrescentar que estou muito cansado
de ser como uma abelha solitária. Não encontro palavras para expressar quanto desejo ter notícias suas outra vez e saber se você e a filha que talvez tenhamos se
recuperaram e estão em bem e contentes. E como as questões materiais afetam a felicidade, a sua pode aumentar tanto quanto a minha ao saber que, se estas presas
chegarem ao porto, nossa situação econômica não será tão cinzenta, tão má, nem tão angustiante.
Jack voltou para sua carta:
A parte do dinheiro obtido por esses dois mercantes que corresponde à Surprise será uma ajuda para o pobre Stephen, pois, por ser o dono e o armador, pertence-lhe
a parte maior, certamente. Será uma ajuda, como digo, mas só lhe servirá para recuperar uma pequena parte de sua fortuna. Não estou seguro de qual é sua situação.
Corri ao seu quarto quando me informei da quebra de Smith e Clowes e lhe disse que nunca em minha vida lamentara tanto nada como ter-lhe aconselhado a mudar de banco
e que esperava e rogava a Deus que não o tivesse seguido até o ponto de que o efeito fosse catastrófico; contudo, ainda que também pensava lhe dizer que tinhamos
vivido de um fundo comum antes e que indubtavelmente poderíamos voltar a fazê-lo, faltaram-me as palavras e não soube como me explicar bem. Nesse momento ele me
interrompeu dizendo: "Não, não. De nenhuma maneira. Não teve muita importância. Eu lhe estou infinitamente agradecido". Desde então não disse nada, e ainda que de
vez em quando, e espero que com delicadeza, dei a entender coisas e fiz sugestões a esse respeito, aparentemente ele não as entendeu. Mas como é um homem tão orgulhoso,
não posso lhe falar do tema abertamente. Mesmo assim, quando acabe esta viagem lhe rogarei que me venda a Surprise, pois isso me proporcionará uma grande satisfação
e também servirá pelo menos para que se mantenha flutuando.
Voltando aos outros barcos, direi que as presas têm muito poucos tripulantes porque, como medida sensata, para evitar que pudessem se amotinar e recuperar o barco,
muitos foram deixados em terra no Peru. Mas agora há muito poucas possibilidades de que isso ocorra, porque estarão escoltados não só pelo Tritão, um barco de potência
adequada para navegar por estas águas e cheio de tripulantes, como também pela Noz-moscada. O regresso da escuna a Batavia será mais rápido via Cantão, onde esperará
pelo monção do nordeste, mais rápido que navegando de bolina com este. Ofereci o comando a Tom, mas disse que preferia ficar conosco, assim que é Fielding quem tem
o comando, e está encantado.
Killick chegou e ficou no umbral da porta ofegando e com gesto mal-humorado, mas eles seguiram com a atenção posta em suas cartas e não lhe fizeram caso. Então se
aproximou da mesa e moveu desnecessariamente algumas facas e garfos para chamar sua atenção.
- Pare, Killick - ordenou Jack sem levantar a vista.
- Killick, interrompe o fio de meus pensamentos - acrescentou Stephen.
- Só vim dizer que o cozinheiro queimou a sopa, que o doutor não se barbeou ainda e que sua senhoria se manchou de tinta nos calções, os únicos calções decentes
que tem.
- Meu Deus! - exclamou Jack. - Maldito seja, é verdade! Vá e me traga os outros que são quase tão bons como estes. Stephen, podemos tirar-te um pouco de provisões,
né? Killick, vá ver o senhor Martin, apresente-lhe os respeitos do doutor e peça três tabletes de sopa dessecada.
- Sim, senhor, três tabletes de sopa dessecada - repetiu Killick e depois, quase para si mesmo, acrescentou: - Mas não será suficiente, não será suficiente.
Jack voltou para sua carta.
Minha querida, temos uma refeição de despedida dentro de meia hora. Ainda resta muito tempo, mas sei que todos os marinheiros relacionados com ela estão desejosos
de que seja um êxito, sobretudo porque a Noz-moscada é um barco de guerra com um galhardete. Provavelmente, guiados por Killick, virão com um pretexto ou outro ou
se assomarão pela escotilha e tossirão até que subamos ao convés vestidos impecavelmente de uniforme para receber os convidados.
Tinha terminado a carta, com querida e beijos para todos, quando a porta se abriu e entrou Tom Pullings, que era de novo o imediato da fragata. Não obstante isso,
usava o uniforme correspondente ao seu grau, o uniforme de capitão, que apesar de ser esplêndido estava um pouco enrugado e cheirava a mofo do trópico porque não
o usara nas últimas nove mil milhas.
- Desculpe, senhor - disse -, mas não me ouviu tocar. Um bote do Tritão zarpou.
- Obrigado, Tom - respondeu Jack. - Só vou lacrar esta carta e imediatamente irei contigo.
- E, senhor, envergonha-me dizer que me esqueci de lhe dar uma carta que me entregaram em Callao quando o senhor subiu a bordo. Estava no bolso desta casaca e me
esqueci dela até que a ouvi ranger.
Jack soube imediatamente que a carta era de seu filho natural, um filho concebido na base naval do Cabo quando era jovem, e apenas escutou Pullings relatar a confusa
história de um clérigo que visitara a Surprise quando chegara ao porto e que havia se decepcionado muito por não ter encontrado a bordo ao capitão Aubrey nem ao
doutor Maturin. Tom disse que falava inglês muito bem, ainda que com um sotaque irlandês tão forte que qualquer um teria dito que era realmente um irlandês se não
fosse negro, negro como o carvão. Tinha se encontrado com ele outra vez na casa do governador, onde estava junto com o bispo, vestido com uma túnica roxa e o tratavam
com grande respeito, e lhe dera a carta. Então voltou a se desculpar e se retirou.
- Uma carta de Sam - murmurou Jack, passando a primeira folha. - Como se expressa bem! Tem frases muito felizes, garanto. Aqui há uma mensagem para você e algo em
grego - acrescentou, passando a segunda. - Por favor, leia-o.
- Como progride! A esse passo logo chegará a vigário geral. Não é grego, é irlandês e tem relação com minha intercessão com o Patriarca. Diz: que Deus ponha uma
flor em sua cabeça.
- Isso é muito fino! Acho que eu não poderia me expressar melhor. Assim que os irlandeses têm uma escrita própia. Não tinha idéia.
- Certamente que têm uma escrita própia. Já a tinham desde antes que seus antepassados deixassem os obscuros bosques teutônicos. Na realidade, foram os irlandeses
os que ensinaram aos ingleses o alfabeto, ainda que tenho que admitir que com pouco êxito. Mas esta é uma bonita carta, realmente é.
- Senhor - Killick os interrompeu com a navalha na mão e uma toalha em cima do braço -, a água está esfriando.
Jack voltou a ler a carta de Sam e pensou: "É um jovem encantador, mas me alegro de que a carta tenha chegado quando já havia terminado a minha".
Em Ashgrove Cottage sabiam muito bem que Sam existia e o haviam aceitado; na Surprise o sabiam muito bem e era objeto de muitas brincadeiras, pois muitos de seus
tripulantes mais antigos tinham visto o jovem na primeira vez que subira a bordo e notaram que era a viva imagem de seu pai, ainda que de cor negro brilhante. Porém,
apesar de que a mente de Jack aplicava a lógica às matemáticas e à navegação conforme os astros (apresentara na Royal Society vários trabalhos, acolhidos com fortes
aplausos pelos que os entendiam e suportados com sombria fortaleza pelos demais) não a aplicava ao cumprimento das leis. Algumas, a maioria delas relacionadas com
a Armada, as obedecia cegamente; outras, as transgredia às vezes e depois sofria as consequências; outras as rechaçava. O lugar de Sam nesse complexo panorama não
estava claro. Não tinha um sentimento de culpa definido por aquela remota fornicação e sentia muito carinho por aquele sacerdote papista negro, mas ainda tinha sentimentos
contraditórios e teria se sentido incômodo se tivesse lido a carta de Sam quando ainda estava escrevendo para Sophie.
A carta era perfeita. Entre "Estimado senhor" e "Afetuosamente, seu mais humilde servidor", Sam falava de sua alegria ao ver a fragata, de sua decepção por não ter
podido apresentar seus respeitos ao capitão Aubrey e ao doutor Maturin, de sua viagem pelos Andes e da grande amabilidade do bispo, que era um velho cavalheiro de
Castilla la Vieja. Falava de tudo em tom discreto, pelo que qualquer um poderia ler a carta, mas toda ela ressumava afeto. Jack havia começado de novo a lê-la quando
Killick lhe tirou o sorriso dos lábios anunciando que a Noz-moscada também havia baixado um bote.
A verdade era que nem esse bote nem o do Tritão iam rumo à Surprise, tinham diferentes missões. A absurda ansiedade dos tripulantes da fragata teve como consequência
que Jack, vestido com seu melhor uniforme, tivesse que permanecer um período que lhe pareceu muito longo no castelo de popa, com muito calor, apesar do toldo, e
com muita fome. Ao grupo que estava a sotavento, Pullings, Davidge, West e Martin, respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro tenentes e o ajudante de cirurgião,
a espera também lhes pareceu comprida e tinham tanto calor como ele, e mesmo mais fome. Tinham calor porque Pullings vestia uniforme e os demais, ainda que não o
usassem (West e Davidge não tinham direito a usá-lo porque os haviam expulsado da Armada e Martin não usava por outras razões), estavam vestidos com roupa formal
e também lamentavam ter posto sapatos de pele, casacas, coletes e ajustadas gravatas-borboletas. Tinham mais fome porque tinham voltado a adotar o costume antigo
de almoçar às duas badaladas (Pullings costumava almoçar com os oficiais em vez de sozinho) e já passara uma hora e meia desde então. Pouco depois a situação de
Martin melhorou, pois Stephen subiu ao convés com a casaca abotoada, barbeado e escovado e ambos começaram a conversar animadamente detrás do cabrestante, em um
lugar neutro, sem violar a solidão do capitão no sagrado território de barlavento, e a imensa quantidade de coisas que tinham a se falar lhes impedira de pensar
no almoço. Esse alívio não pudo ser sentdo pelos tenentes, que constantemente pensavam na comida e sentiam grunhir suas tripas. Tragavam de vez em quando, mas falavam
pouco, tão pouco que ouviram como o contramestre repreendia em voz baixa no castelo a um de seus ajudantes por andar descalço:
- Que pensarão os cavalheiros de nós quando subam pelo costado?
Isso estava a ponto de ocorrer, porque agora os verdadeiros botes haviam zarpado. Killick e seus ajudantes chegaram com bandejas cheias de taças, garrafas, frituras
e outros manjares que o capitão da Surprise podia permitir-se o luxo de oferecer.
- Killick! - disseram eles, ainda que não muito alto.
Mas Killick fingiu não ter ouvido e com os lábios franzidos colocou as bandejas na parte superior do cabrestante, que brilhava ao sol, arrumou tudo com cuidado,
colocando inclusive os torresmos de bacon graciosamente uns contra os outros, e não permitiu que ninguém tocasse em nada até que começasse o banquete.
- Preparados! - gritou o contramestre, sustentando um pouco a ordem.
- Adiante os marinheiros do costado! - ordenou West, o oficial de guarda, quando o primeiro bote engatu o croque e subiram os primeiros convidados a bordo.
O primeiro foi Goffin, um homem alto e gordo de cabelo negro e cara vermelha. Era um capitão de navio que fora expulso da Armada (ainda que ainda usava o uniforme
com leves mudanças). Cumprimentou aos oficiais e todos lhe devolveram a saldação. Depois, sem sorrir, perguntou:
- Como está, Aubrey? - E imediatamente se voltou para o cabrestante, ao lado do qual estava Killick.
Seguiu-lhe seu sobrinho, um pouco mais cortês; depois os oficiais da Noz-moscada seguidos dos dois oficiais franceses sobreviventes e, finalmente, de Adams acompanhado
de Reade e Oakes, que, como haviam comido ao meio-dia, não esperavam almoçar outra vez. Este último, de quem Jack se sentia responsável, ia ficar na fragata.
Quando todos os oficiais tomaram o aperitivo, que só consistiu em genebra de Holanda ou Plymouth ou vinho de Madeira, Jack os conduziu abaixo. Quando entraram por
ordem hierárquica na cabine, enchendo-a por completo, Goffin exclamou:
- Por Deus, Aubrey, o senhor não se priva de nada! - Então avançou até a cabeceira da mesa esplendidamente preparada.
- Aqui, senhor, diante de seu guarda-marinha, por favor - indicou Killick, agora com luvas brancas, enquanto assinalava um lugar do outro lado, perto de Pullings.
Goffin, cheio de orgulho e com a cara mais vermelha, sentou-se onde lhe assinalavam. Era impossível declinar a ordem, pois desde tempos imemoriais existia uma convenção
conforme a qual os oficiais franceses capturados deviam sentar-se à direita e à esquerda de Jack e os oficiais do rei tinham preferência, para ocupar os postos,
aos que não o eram ou haviam deixado de sê-lo. Se essa fosse uma refeição informal e se Goffin fosse amigo de Jack, o capitão poderia dispor uma ordem diferente;
contudo, não o teria feito, pois quando o expulsaram da Armada, quando estava na mesma situação penosa que Goffin, alguns amigos com boa vontade mas tontos lhe haviam
dado a precedência devido ao sua antiga classe e ainda sentia a dor que lhe haviam causado. Mas Goffin via as coisas de outra maneira. Achava que sua condenação
pela leve falta de falsificar um rol era uma questão puramente técnica (havia inscrito o filho de um amigo no rol de seu barco para que o menino, ainda que estivesse
ausente, tivesse anos de antiguidade na Armada quando realmente se fizesse ao mar, o que era uma prática comum, mas ilegal, e fora denunciado por seu escrevente,
a quem havia chutado e insultado repetidamente) e pensava que merecia um tratamento melhor. Enquanto ficou ali sentado procurou durante algum tempo uma frase que
fosse ofensiva, mas não muito grosseira.
A oportunidade se apresentou com a sopa, que cheirava tanto a cola que os dois franceses afastaram a colher e trocaram um angustiante olhar antes de se submeterem
aos horrores da guerra. Pullings, para proteger a honra da fragata, voltou-se para Stephen e disse:
- Uma estupenda sopa, doutor.
Jack, por sua parte, murmurou ao jovem que estava ao seu lado:
- Sinto muito, Jean-Pierre. Foi uma medida desesperada. Por favor, diga ao seu amigo que não têm por que tomá-la toda.
Mas Goffin perdeu a oportunidade. Todas as sopas lhe pareciam iguais e a comeu mecanicamente, e inclusive passou o prato para que lhe servissem mais. Por fim, quando
o prato já estava vazio, olhou para o outro lado da mesa, onde se encontrava seu sobrinho, um guarda-marinha que não passara no exame de tenente, e perguntou:
- Já esteve em algum banquete oferecido pelo alcaide de Londres, Art?
- Não, senhor.
- E a algum oferecido por outra prefeitura ou pelas associações dos que comerciam com comestíveis ou pescado ou coisas parecidas? Este é o tipo de prato que um encontra
entre comerciantes.
A pulha não cumpriu seu objetivo, pois nesse momento Jack estava rindo a gargalhadas de algo de suas própios piadas; contudo, esta e outras repentinas amostras de
má intenção foram percebidas pelos que estavam no outro extremo da mesa, e Jack não tardou em dar-se conta de que se sentiam incômodos. Supôs qual era a causa quando
viu aquele rosto sombrio à direita de Pullings e ficou seguro dela um momento depois.
Fielding acabava de interromper uma pausa dizendo:
- Falando de ursos, senhor, já lhe contei que meu pai era guarda-marinha no Racehorse quando estava ao comando de lorde Mulgrave, que então era o capitão Phipps,
e fez a viagem ao pólo norte? Não foi exatamente companheiro de Nelson, que estava no Carcass, mas ambos se viam amiúde em terra e se davam muito bem. Nelson...
- Não deveria falar de Nelson na presença de dois oficiais franceses - gritou Horse-Flesh. - É uma descortesia.
- Oh, não se preocupe conosco! - exclamou Jean-Pierre, rindo. - Nossos críticos não escasseiam. Temos, para citar a algum, a Duguay-Trouin.
- Duguay-Trouin? Nunca ouvi falar dele.
- Então tem algo bom a descobrir, senhor - disse Jean - Pierre. - Bebamos a sua saúde, senhor.
- Bebamos todos - propôs Jack. - Encham a taça até a borda, cavalheiros, e bebam até a última gota. Pelo incomparável Dugua-Trouin.
Depois, por sugestão de Stephen, brindaram por Jean Bart também. Killick e seus companheiros entraram e saíram várias vezes apressadamente, o monte de garrafas vazias
aumentou e numerosos pratos muito mais dignos cobriram a mesa.
Então Jack disse:
- Por favor, senhor Fielding, continue com sua história. Se não recordo mal era sobre a famosa tentativa de Nelson de conseguir uma pele de urso.
- Oh, não, senhor! Não é uma grande história salvo quando meu pai a conta, mas lhe contarei para mostrar-lhe o outro lado do animal.
- Muito bem - disse o senhor Welby olhando sorridente a taça de vinho.
- Quando os barcos regressavam dos oitenta e um graus norte aproximadamente, onde todos os homens estiveram a ponto de se congelarem, fazendo um grande esforço lograram
chegar à baía Smeerenburg, em Spitzbergen, e se puseram a pairar. Deram para a maioria dos tripulantes licença para descer a terra, e alguns jogaram pídola ou futebol
com a bexiga de um animal inchada e outros correram pelo lugar em busca de caça. Os que se ficaram na margem mataram uma morsa, um enorme animal que provavelmente
o senhor conhecerá, senhor. Tiraram a sua gordura e comeram a parte melhor conforme o baleeiro da tripulação, depois de cozinhá-la sobre a própia gordura, que arde
muito bem. Pouco depois, acredito que meu pai disse que dois ou três dias mais tarde, viram se aproximarem caminhando pelo gelo três ursos brancos, uma ursa e dois
filhotes de urso. A gordura ainda estava ardendo, mas a ursa pegou vários pedaços que não estavam acesos e tinham um pouco de carne. Os três comeram vorazmente e
os marinheiros lançaram para a ursa alguns pedaços de carne que restavam. A ursa os recolhia um a um, os levava ao lugar onde estavam os filhotes de urso e os dividia,
mas no momento em que estava recolhendo o último, os marinheiros mataram a tiros os filhotes de urso, e quando ela fugiu, a feriram gravemente. Ela avançou pesadamente
até onde se encontravam os filhotes de urso, ainda com o pedaço de carne, e o partiu e pôs um pedaço diante de cada um. Quando viu que não comiam, roçou com as garras
a um e depois ao outro e tentou levantá-los, mas ao ver que não podia movê-los, partiu. Afastou-se até certa distância e então olhou para trás e deu um grunhido,
mas como não pôde induzi-los a se reunirem com ela, regressou. Farejou ao seu redor e começou a lamber suas feridas. Pouco depois voltou a partir, e após ter avançado
com dificuldade alguns passos, voltou a olhar para trás e ficou ali gemendo durante um tempo. Mas como os filhotes de urso tampouco se levantaram nem a seguiram,
aproximou-se deles de novo e, dando mostras de grande carinho, deu uma volta ao redor de um e depois do outro gemendo e acariciando-os com as garras. Ao compreender
enfim que estavam mortos, levantou a cabeça e a voltou para os marinheiros grunhindo, e vários dispararam de uma vez e também a mataram.
Houve um respeitoso silêncio. Depois Stephen, em voz baixa, disse:
- Lorde Mulgrave era o mais afável dos capitães. Foi ele que descreveu pela primeira vez a gaivota branca e prestou especial atenção às medusas dos mares do norte.
Soou uma badalada na guarda de primeiro quartilho. A conversa tinha voltado a versar sobre temas gerais e em um dos extremos da mesa se ouvia um incessante burburinho.
Welby apenas tinha começado a falar com o terceiro a bordo da Cornélie, que era monolíngüe, com mais segurança e em um francês muito mais compreensível do que esperavam
seus companheiros, ouviu-se na outra ponta a potente voz de Goffin, que, aparentemente sem controle, queixava-se:
- Bem, posto que muitos de nós não gozamos do favor de Whitehall, proponho um brinde: pelas ovelhas negras da Armada e para que logo as pintem de branco com a mesma
broxa.
Todos acharam bom e tanto West como Davidge fizeram um esforço para sorrir. Beberam e depois contaram todas as anedotas ou comentários sobre a maré, o tempo ou a
corrente que tinham de reserva, contaram qualquer coisa para evitar o silêncio. Welby, com inusual loquacidade, contou uma história sobre a estreita e longa enseada
de Pentland; Martin e Macmillan falaram extensamente do escorbuto, sua cura e sua prevenção. Mas depois da sobremesa, um excelente "cachorro manchado"{9} que foi
o melhor prato da refeição, ouviram Jack dizer:
- Doutor, por favor, diga a quem tem do seu lado que vamos brindar por sua majestade e que é perfeitamente aceitável que não se junte a nós, ainda que se quiser
fazê-lo, será uma honra para nós brindarmos juntos.
O terceiro a bordo da Cornélie quis brindar e também Jean-Pierre, que inclusive acrescentou:
- Que Deus lhe bendiga.
Pouco depois Jack sugeriu que tomassem o café no castelo de popa. Tomaram café e pouco conhaque, e logo chegaram as despedidas, a de Goffin com justificada indignação,
as dos tripulantes da Noz-moscada, que iam levar um monte de cartas para Cantão, muito afetuosas, e a de Jean-Pierre, muito carinhosa.
- Acho que o almoço foi um fracasso - observou Jack enquanto ele e Stephen olhavam os botes se afastarem, em um dos quais estava Horse-Flesh vomitando para fora
da borda. - As refeições deste tipo são muito delicadas e já comprovei muitas vezes que um só homem pode estragá-las.
- É um tipo grosseiro e se lhe sobe o vinho à cabeça - sentenciou Stephen.
- Agora está botando tudo para fora - observou Jack. - Porém, diga-me, os enfermos realmente têm que tomar essa sopa?
- Fizeram-na quatro vezes mais concentrada que o normal e depois lhe acrescentaram o caldo original, que além de estar queimado era feito de carne de porco em mau
estado. Mas não foi a sopa que o fez vomitar, mas a raiva.
- Ah! Estou certo de que tem razão. Talvez devesse tê-lo convidado de maneira que lhe fosse mais fácil recusar o convite. Quando estava em sua situação estraguei
muitas refeições por causa de minha tristeza antes de aprender a ter compromissos anteriores. É quase incrível a importância que adquire para um homem sua categoria;
quero dizer, a posição que ocupa no mundo, em nosso rígido mundo, quando serviu nele por vinte anos e lhe parece que suas leis, seus costumes e mesmo sua roupa são
algo natural. O pobre Horse-Flesh... meu Deus, como vomita! Deve de ter servido por quase trinta anos. Era o segundo a bordo no Bellerophon em 1793, quando eu fiz
uma viagem a bordo, e estava cinco postos acima de mim na lista de capitães de navio.
- Mas violou uma das leis.
- Oh, sim! Falsificou um rol. Mas me refiro às leis importantes, as que têm a ver com uma obediência total, uma férrea disciplina, pontualidade, limpeza e essas
coisas. Sempre pensei que tinham grande valor, e agora que regressei, pelo que dou graças a Deus todos os dias, as respeito ainda mais, mesmo as menos importantes.
A disciplina é tão importante como todas as outras, como disse Saint Vincent, e não acho que eu possa pôr indevidamente o nome de alguém no rol, a menos que você,
em vez de uma filha, tenha um filho que goste do mar. Capitão Pullings, parece que tem algo a me dizer.
- Sim, senhor, se me permite o atrevimento. Quando levantarmos âncoras e nos separarmos dos outros barcos, os marinheiros apreciariam muito que fizesse um percurso
pela fragata...
- Isso é exatamente o que estava pensando, Tom. Tão logo zarpemos, que se preparem para a revista, mas sem fazer preparativos de combate, e então percorrerei a fragata.
- Sim, senhor. Muito bem, senhor. Mas o que eu quero é esteja de uniforme. Desde que saíram de Lisboa, a única casaca com galões que viram foi a minha, e somente
duas vezes. Ademais, isso tem pouca importância, porque não sou mais que um voluntário.
Jack tinha muito afeto pela tripulação da Surprise, uma tripulação difícil de manejar, mas formada por muitos marinheiros experimentados procedentes de barcos de
guerra, de barcos corsários e alguns poucos de mercantes; e a tripulação lhe tinha muito afeto. Não só lhes havia feito sentirem-se orgulhosos pelos butins obtidos
quando a Surprise navegava com patente de corso, como também lhes havia protegido contra o recrutamento forçado. Ainda que na viagem atual Jack fora tirado da fragata
em Lisboa para que tomasse o comando de outro barco, também lhe haviam reabilitado e haviam feito pública sua reabilitação, assim que agora voltara com o esplêndido
uniforme com galões dourados de capitão de navio, fato que dignificava a fragata e seus tripulantes. Como os barcos corsários tinham má reputação (alguns deles quase
não se diferenciavam dos piratas), os marinheiros de barcos corsários a bordo da fragata estavam muito contentes de seu novo estado, de terem se livrado das críticas,
e gostavam de ver a enorme figura que simbolizava isso com sua medalha da batalha do Nilo no olhal e seu melhor chapéu de dois bicos. A opinião da maioria dos tripulantes
da Surprise era que agora tinham o melhor dos dois mundos: por uma parte, a relativa liberdade e igualdade que existia nos barcos corsários, e por outra, a honra
e a glória adquiridos por servir ao rei, e esse estado lhes parecia muito bom, sobretudo porque comportava a possibilidade de receber grandes recompensas. Mas até
então o capitão só havia feito uma breve aparição oficial.
De águas distantes chegaram os gritos dos contramestres das presas e de suas escoltas, onde os tripulantes se preparavam para colocar as barras do cabrestante.
- Muito bem, Tom - disse Jack. - Esta casaca está me matando, assim que vou descer e tirá-la para ver se consigo me refrescar um pouco. Zarparemos quando os outros
oficiais e você tenham trocado os trajes para a roupa de dril, e então irei cumprimentar a tripulação. Vem comigo, doutor? Não está com calor?
- Não - respondeu Stephen. - A sobriedade me protege da pletora e da moléstia produzida por este moderado calor.
- A sobriedade é uma excelente virtude e a tenho praticado desde o início de minha juventude - explicou Jack -, mas está fora de lugar em um anfitrião, que deve
animar a seus convidados a comer e beber dando o exemplo. Quando em Roma, faça...
Jack, em mangas de camisa, deitado sobre o baú que estava junto ao janelão de popa e com a cinta mais frouxa, ficou refletindo um tempo. Os nomes de Roland e Oliver
vieram a sua mente entre uma vintena mais e então gritou:
- Killick, Killick!
- Que foi? - perguntou Killick, também em mangas de camisa.
Trabalhara muito duro para recolher a mesa e não gostava que o afastassem do enorme monte de coisas que tinha que lavar, coisas muito delicadas para confiá-las a
marinheiros que seriam capazes de usar pó de tijolo para lavar os pratos se ficassem sozinhos.
- Já ouviu falar de Roland e Oliver?
- Há um Roland que fabrica armas perto do mercado Haymarket e há um Oliver que fabrica as "autênticas salsichas de Leadenhall". Comi muitas dessas salsichas no Grapes
quando estávamos em terra.
- Bem - disse Jack sem convicção. - É possível que durma um pouco, e se for assim, chame-me quando tenhamos zarpado.
Ouviu o grito "todos a desamarrar!" seguido por uma invariável série de coisas que reconheceu imediatamente: o ruído amortecido de passos rápidos, ordens, apitos,
os seguidos cliques das catracas, os fortes gritos dos homens que moviam as barras e as agudas notas do pífano desde a parte superior do cabrestante. Tentou recordar
com precisão quem integrava a tripulação da fragata quando a deixara em Portugal, todos os homens inscritos no rol então, mas como comera e bebera tanto durante
o ágape, sua mente se negou a cumprir com seu dever, e quando se ouvia o grito "prontos para recolher âncoras!" dormiu.
Depois de jogar âncoras nessa baía houve um período de extraordinária atividade, pois tiveram que distribuir os prisioneiros franceses, inspecionar as presas, reparar
a Noz-moscada, trasladar seus pertences e os de Stephen para a Surprise e se despedir de seus antigos companheiros de tripulação, que deram entusiastas vivas na
última vez que desceu pelo costado. Durante essas horas em que ia de um lado para outro constantemente vira os tripulantes da Surprise, certamente, mas só de passagem,
e tinha trocado muito poucas palavras com eles, salvo com seus barqueiros, que lhe levavam de um barco para outro pelas cálidas e tranqüilas águas. Dormiu, mas seu
sono foi acompanhado pela ansiedade, pois poucas coisas feriam mais profundamente a um marinheiro do que esquecerem de seu nome, e um oficial tinha a obrigação de
recordá-lo.
Na realidade, não foi Killick que o despertou, mas Reade.
- Senhor, o senhor West, que está encarregado da guarda, apresenta-lhe seus respeitos e diz que a Noz-moscada pediu "permissão para se separar do grupo".
- Responda afirmativamente e acrescente "feliz Natal", ainda que isso terá que se feito usando o sistema telegráfico.
- Acabamos de recolher uma âncora, senhor, e estávamos a ponto de colocá-la no pescante quando um homem chamado Davis caiu pela borda. O senhor West lhe jogou um
cabo e os marinheiros o subiram a bordo cheio de arranhões há menos de um minuto.
Jack esteve a ponto de dizer: "Então podem descê-lo outra vez", mas como todos a bordo mimavam tanto a Reade (na Noz-moscada até os velhos e curtidos marinheiros
do castelo corriam de uma ponta a outra do corrimão para ajudar-lhe a subir a escada), que o garoto tinha tendência ao convencimento, não quis aumentá-la e mudou
o comentário para a frase:
- Obrigado, senhor Reade.
Mas o sentimento que havia atrás de o comentário permaneceu. Davis era um homem muito corpulento, de pele escura, peludo, violento e desajeitado (por essa qualidade
seus companheiros de tripulação o chamavam de Davis O Lerdo) e com tão pouca habilidade para a navegação que quase sempre o destinavam ao castelo, onde sua enorme
força era útil para subir coisas. Jack o salvara uma vez de morrer afogado, como tinha salvado a muitos homens, pois era um excelente nadador, e ele, agradecido,
havia lhe perseguido desde então, tinha lhe seguido de um barco para outro, e para Jack havia sido impossível desfazer-se dele ainda que lhe havia oferecido a oportunidade
de desertar em portos onde os mercantes ofereciam um pagamento muito mais alto que na Armada, que era de 1 libra, 5 xelins e 6 peniques.
Era inútil, violento e capaz de ferir ou matar um marinheiro por ciúmes ou por uma ofensa imaginária. Mas meia hora depois, Jack sentiu com satisfação o aperto de
mãos que lhe deu, um terrível aperto ao qual seguiram outros quase tão fortes, pois, embora os tripulantes da Surprise gostassem ver de novo ao capitão com o uniforme
de gala da Armada, os calções de seda brancos, o sabre de cem guinéus e o broche turco no chapéu, tudo isso lhes intimidava um pouco, e posto que falavam muito mais
que os de um barco do rei (mas menos que os de um barco corsário), expressavam por meio do aperto o calor com que lhe davam as boas-vindas. Por sorte Jack também
tinha mãos tão grandes, tão fortes e com tantos calos como eles; e também por sorte a Surprise, que havia saído da Inglaterra como um barco corsário, tinha muitos
menos tripulantes que um barco de guerra e não tinha infantes da marinha, assim que Jack só teria que apertar a mão de pouco mais de cem homens. Em quanto aos nomes,
algo que lhe preocupara tanto, lembrou-se sem dificuldade. Naturalmente, isso foi fácil com os velhos companheiros de tripulação, como Joe Plaice, que navegara com
ele em muitas missões.
- Bem, Joe, como está? Como vai a cabeça?
- Estupendamente, senhor, muito obrigado - respondeu Joe, dando-se palmadinhas na placa de prata convexa que o doutor Maturin lhe pusera no crânio fazia muito tempo,
nos 49° de latitude sul. - E o felicito de todo coração pelas duas dragonas - acrescentou, assinalando com a cabeça as duas dragonas que Jack não havia voltado a
usar até que sua reabilitação saiu publicada na Londres Gazette.
Também lembrou com facilidade os nomes de todos os marinheiros que havia contratado em Shelmerston, alguns corsários e outros contrabandistas.
- Harvey, Wall, Curtís, Fisher, Waites, Hakett, como estão? - perguntou ao grupo seguinte de artilheiros, que estavam colocados informalmente junto ao seu canhão,
Cruel assassino, enquanto lhes apertava a mão.
Continuou assim até que chegou ao Morte súbita, frente ao qual esteve a ponto de ficar paralizado ao ver seis rostos com uma espessa barba e debaixo dela uma ampla
sorriso expectante.
- Slade, Auden, Hinckley, Mould, Vaggers, Brampton, espero que se encontrem bem - disse quando de repente lembrou os nomes dos seguidores de Set pela posição do
canhão e da maneira com que eles estavam em pé.
- Muito bem, senhor, obrigado por sua amabilidade - respondeu Slade. - Mas aqui, Auden - acrescentou assinalando para o homem que estava a seu lado - perdeu dois
dedos dos pés na Terra do Fogo e John Brampton pecou com uma mulher no Tahiti e ainda está na enfermaria.
- Fico triste ao saber. Visitarei a John de vez em quando. Mas espero que lhes tenha ido bem em todo o demais.
- Oh, sim, senhor! - exclamou Slade. - Não conseguimos uma fortuna como a obtida com o senhor, que era comparável à de Nabucodonosor, mas Set foi muito bom conosco.
Então ele e todos seus companheiros moveram os polegares, um gesto que faziam em sua seita ao ouvir aquele nome considerado sagrado e portador de boa sorte.
- Ah, Ah! - Jack riu, pensando nas magníficas presas capturadas na primeira viagem que tinham feito juntos. - Alegro-me de que a fragata se tenha dado bem.
Todos olharam para a Noz-moscada, o Tritão e os dois mercantes cheios de valiosos bens, dos quais já se via menos da metade do casco e que navegavam com rumo noroeste
e com o vento a trinta graus pela alheta.
- Mas não esperem voltar a conseguir uma fortuna como a de Nabucodonosor nestas águas.
- Oh, não! - respondeu Slade e seus companheiros seguiram dizendo que não, que não e que não. - Só o que esperamos é regressar tranqüilamente para nosso país com
o que temos. E se chegarmos - acrescentou ao tempo que os seis polegares voltavam a se mover -, construiremos um tabernáculo de madeira preciosa junto à nossa capela...
Já viu nossa capela, senhor?
- Oh, sim, certamente!
E a haviam visto todos os que chegavam a Shelmerston, pois, apesar de não ser muito grande, era feita de mármore branco adornado com detalhes dourados e fazia um
forte contraste com o resto da cidade, cujas construções tinham em sua maioria tetos de palha e forma vaga.
- No tabernáculo queremos depositar nossas barbas como oferenda.
- Acho muito apropriado - disse Jack. Depois de apertar-lhes a mão avançou até o Cospe-fogo, cujo chefe muito provavelmente havia sido pirata e canibal e tinha,
sem sombra de dúvidas, a mão mais áspera e maligna em toda a fragata.
- Bem, Johnson, Penderecki, John Smith e Peter Smith... - Jack os cumprimentou.
Depois avançou pelo lado de estibordo, onde só o subchefe das brigadas e um dos marinheiros que iniciavam a abordagem estavam situados junto aos canhões, e depois
desceu para as entranhas da fragata.
O percurso parecia uma revista, mas agora Jack não estava acompanhado do imediato nem dos oficiais encarregados das brigadas. Era um assunto pessoal, e ainda que
o almoço não havia sido um êxito e ainda lhe refletia a sopa, tinha uma expressão satisfeita enquanto caminhava por aquele espaço escuro e fedorento em direção à
enfermaria. A fragata estava tão arrumada como um barco de guerra, e só perdera cinco tripulantes, três marinheiros das Índias Orientais que morreram de pneumonia
durante a tediosa passagem pelo frio e úmido estreito de Magalhães, outro que foi arrastado pelas ondas para fora da proa durante a noite, em meio de uma tormenta
que desatou justo quando chegava ao Pacífico, e outro que morreu na abordagem do primeiro mercante. E não havia dúvida de que sob o comando de Tom Pullings era um
barco em harmonia. Mas o odor, inclusive na coberta inferior, era pior que o normal.
Dentro da enfermaria ouviam-se vozes e saía luz por debaixo da porta, e quando Jack a abriu, ouviu com satisfação que os dois médicos estavam falando em latim. As
únicas outras pessoas que havia ali eram Wilkins, que quebrara um braço e ainda não estava curado, pelo que não podia apertar-lhe a mão, e o mais tonto dos irmãos
Brampton, que contraíra sífilis no Tahiti e estava muito envergonhado para se mover ou falar.
- Senhor Martin - disse Jack depois de ver os enfermos -, isto não é uma crítica ao senhor nem ao capitão Pullings, porém, não lhe parece que aqui embaixo a atmosfera
está excessivamente carregada, o que não é saudável? Doutor Maturin, não acha que a atmosfera está excessivamente carregada?
- Sim, porém, em minha opinião, esta atmosfera e este fedor são normais em um velho barco de guerra como este. Tenha em conta que, quando faz mau tempo, os marinheiros
com peristaltismo ou desejos de realizar a micção procuram um canto isolado dentro do barco em vez de ir ao sanitário ao ar livre situado na proa, onde correm o
risco de serem arrastados pelas ondas para fora da borda, de modo que depois da passagem de várias gerações, estamos em um esgoto flutuante. E o odor piora por muitos
outros fatores, como as toneladas e toneladas, e digo toneladas com conhecimento de causa, de horrível lama que as amarras da âncora trazem para bordo quando a embarcação
ancora em portos como Batavia ou Mahón, onde a lama se forma a partir da imundice dos matadouros e das casas e dos dejetos putrefatos arrastados pelos rios. O lodo
e o barro que jorram das amarras caem do lugar onde se guardam para o fundo da embarcação, que nunca, nunca se limpa. A Noz-moscada, querido colega - acrescentou,
voltando-se para Martin, que estava visivelmente desconcertado -, cheirava muito bem e não tinha baratas nem ratos e muito menos ratazanas, pois esteve no fundo
do mar durante meses. Todas as madeiras que a formam se incharam e se uniram solidamente, como as de um barril de vinho quando um logra por fim que não soltem, e
quando terminaram de bombear a água de dentro e a deixaram secar, o interior permaneceu seco, sem água na sentina movendo-se de um lado para outro. Acho que passamos
a bordo tempo suficiente para que nosso olfato se refinasse.
- Levaremos Hayes amanhã para um lugar bem ventilado mais acima - interveio Martin -, mas Brampton deveria terminar seu ptialismo com tranqüilidade e calma aqui.
- Providenciarei que coloquem outra mangueira de ventilação - Jack disse. Depois, antes de ir, inclinou-se sobre a maca de Brampton e, em voz bastante alta, acrescentou:
- Anime-se, Brampton. Muitos homens já estiveram pior que você e está em boas mãos.
- A mulher me tentou - desculpou-se Brampton e, depois de um breve silêncio, continuou: - Irei para o inferno.
Então virou a cabeça para o outro lado e seu corpo se estremeceu com os soluços.
Quando o capitão se foi, Martin e Stephen voltaram a falar em latim, e Martin perguntou:
- Acha que realmente podemos aliviá-lo?
- Não sei - respondeu Stephen. - Pelo momento vou dar-lhe uma poção de limo com duas gramas de assa-fétida - acrescentou e se voltou para o estojo de remédios. -
Vejo que não mudou nada.
- Oh, não! - exclamou Martin e acrescentou: - Acho que o capitão não estava muito satisfeito.
- O que se passa é que disse sem pensar que a fragata era velha e ele não pode suportá-lo - disse Stephen e, depois de cheirar a mistura, acrescentou um pouco mais
de assa-fétida e perguntou: - Por que disse que o paciente tinha que esperar para passar seu excesso de salivação na enfermaria?
- Porque em qualquer outro lugar terá que suportar as zombarias, as alusões e as perguntas sarcásticas sobre seu membro viril que seus companheiros lhe farão. Não
têm má intenção, dessa maneira expulsam os humores e sua jocosidade, mas isso pode matá-lo antes que recobre a saúde. Não tem a mente muito forte, e me parece uma
imprudência que seus amigos sigam falando-lhe do pecado e de suas consequências.
Apenas deram o remédio a Brampton e encarregaram ao seu ajudante que ficasse vigiando os pacientes e que não permitisse nenhuma visita até nova ordem, o ar fresco
começou a entrar ali embaixo pela nova mangueira de ventilação, e quando chegaram ao castelo de popa, Jack explicava a Pullings:
- Se cuidamos de que se mantenha navegando com o vento contrário, isso melhorará muito a situação. Mas ouvi comentários de que o espaço entre as cobertas cheira
como um esgoto, assim que talvez seria conveniente abrir a válvula de entrada de água.
- Lamento muito que tenha mau odor, senhor. Não o havia notado. Mas também, quando tem o vento em popa, lá embaixo o ar fica rarefeito e faz muito calor.
- Senhor Oakes e senhor Reade! - gritou Jack.
- Senhor? - cumprimentaram eles, tirando seus chapéus.
- Sabem onde fica a válvula de entrada de água?
Os dois ficaram perplexos e Oakes, em tom vacilante, respondeu:
- Na bodega, senhor.
- Então vão ver o carpinteiro e digam-lhe de minha parte que lhes ensine a abri-la. E deixem-na aberta até que haja dezoito polegadas de água na sentina.
Quando se foram, Jack virou-se de novo para Pullings e disse:
- Sem dúvida, teremos que bombear em torno de uma hora a mais, o que é muito duro com este calor, mas pelo menos a sentina ficará limpa, limpa como os cântaros de
uma leiteira.
Isso foi ouvido por todos os que estavam no castelo de popa, exceto os dois médicos, que subiam lentamente pelos amantilhos do pau mezena e estavam muito concentrados
nessa árdua tarefa para escutar ironias. A intimidade era o mais raro que podia encontrar-se em um barco. Ainda que cada um deles tivesse uma cabine, só a usavam
para ler tranqüilos, escrever, refletir ou dormir, porque eram tão pequenas que pareciam galinheiros para criar uma só ave. Por outro lado, apesar de Stephen poder
usar a grande cabine, a cabine-refeitório e a cabine-dormitório (como era justo porque era propietário da fragata), nenhuma era apropiada para falar largamente e
com paixão das aves, das feras e das flores, porque também pertenciam ao capitão. Tampouco era apropiada para isso a câmara dos oficiais, devido a seus muitos outros
ocupantes. Se bem todos esses lugares eram adequados para colocar ocasionalmente os exemplares de peles, ossos, penas e plantas, pois tinham compridas mesas que
pareciam feitas para isso, em viagens anteriores ambos haviam descoberto que o único lugar apropriado para uma longa e ininterrupta conversa era o cesto da gávea
do mezena, uma plataforma bastante espaçosa em torno da ponta do mastro e da base do pau situado sobre ele. Ficava a uma altura de aproximadamente quarenta pés acima
da coberta e tinha os amantilhos do mastaréu com suas vigotas dos lados, uma pequena parede de lona estendida até um cabillero{10} detrás e nada adiante, assim que
quando a sobremezena não estava desdobrada, podiam ver bem toda a parte do oceano que a vela maior e a gávea maior não ocultavam. A cesto da gávea do maior era mais
alta e do cesto da gávea do traquete havia um vista melhor (incomparável quando o velacho estava aferrado), mas ao subir em qualquer uma delas mais marinheiros lhes
veriam, e alguns lhes colocavam os pés nos enfrechates desde baixo e outros, em voz alta e às vezes em tom jocoso, davam conselhos. Isso ocorria porque, apesar de
que não davam importância ao perigo e mesmo tiravam uma mão dos amantilhos e a agitavam no ar para demostrar o pouco que lhes importava a altura, sua posição e seu
ritmo de avanço bastavam para convencer a quem os observava de que não eram homens do mar nem se pareciam remotamente a eles, apesar das milhares de milhas marítimas
que haviam percorrido. Mas ao castelo de popa (lugar de onde se subia para o cesto da gávea do mezena) só tinha acesso a quarta parte da tripulação, e, ademais,
enquanto o cesto da gávea do maior e o do traquete amiúde ficavam cheios de marinheiros trabalhando, o da mezena era usado em muito poucas ocasiões, especialmente
com o vento soprando pela alheta.
Usava-se em muito poucas ocasiões, mas as abas, que eram de grande importância, permaneciam nela dobradas de maneira que formavam pacotes compridos e brandos. Sobre
esses pacotes se sentaram ofegando e apoiaram a costas na parede de lona, como tantas vezes haviam feito.
- Bem, cá estamos aqui outra vez - disse Martin, olhando-lhe com afeto. - Não tenho palavras para expressar o quanto lamentei que deixasse a fragata há tantas milhas
atraz. Entre outros motivos, porque fiquei sem um mentor em uma enfermaria onde possivelmente encontraria doenças cujo nome e, sobretudo, cujo tratamento desconhecia.
- Mas se saiu muito bem. Não mais que três mortos em cem graus de latitude está muito bom. Afinal de contas, em medicina se pode fazer muito pouco além de fazer
suar, fazer sangrias e administrar uma purga, como a pílula azul ou um ungüento ainda mais forte. Mas a cirurgia é outra coisa. Por certo, que corrigiu muito bem
o nariz do pobre West.
- Foi muito simples: um pequeno corte, para o qual usei tesouras, e alguns poucos pontos que não causaram dor. E a medida que ia recobrando a sensibilidade ia se
curando.
- Sem um pouco de pus, como costuma ocorrer?
- Sem pus em absoluto. A causa do problema foi o congelamento, sabe?, não a sífilis.
- Isso nos disse a mim e ao capitão imediatamente. Acredito que a gente tem tato suficiente para desviar a vista e não fazer-lhe perguntas nem voltar a olhar-lhe.
- Acho que sim. Mas conte-me, conte-me o que esteve fazendo por todo este tempo e o que viu, além do orangotango.
Stephen sorriu e nesse momento os fatos dos meses passados vieram a sua mente não em uma seqüência cronológica, mas quase como um todo. Escolheu o que era apropriado
contar e fez interiormente a seguinte reflexão: "Quais são as três coisas que não se podem esconder? As três coisas que não se podem esconder são: o amor, a tristeza
e a riqueza. E acredito que a quarta é a inteligência". Todo aquele processo mental não durou mais que dois balanços da fragata, cujo movimento espacial aumentava
ali encima, porém, obviamente, o temporal não.
- Deve o senhor saber que o capitão Aubrey foi chamado para a Inglaterra para ser reabilitado e tomar o comando da Diane, que levaria um enviado do rei a Pulo Prabang
para falar com o sultão, que estava considerando a possibilidade de formar uma aliança com os franceses. Posto que a ilha... Oh, Martin! Que orquídeas e que coleópteros
havia além do maravilhoso símio e do enorme rinoceronte! Posto que fica no mar da China Meridional, quase no meio da rota dos mercantes ingleses quando vêm de Cantão,
e como não seríamos nada sem ruibarbo e sem chá, que Deus não queira que faltem, a missão do enviado era conseguir que o sultão mudasse de opinião. Pensaram que
era conveniente que eu também fosse porque sei francês e um pouco de malaio, além de ter conhecimentos de medicina. Assim que zarpamos e navegamos tão rapidamente
como pudemos e fizemos uma única escala, em Tristán da Cunha. Mas essa escala esteve a ponto de ser a última, porque a fragata se aproximava mais e mais e mais de
um escarpado onde rompiam ondas da altura dos mastaréus e não havia nem um sopro de vento que lhe permitisse se mover. Mas sobrevivemos, e inclusive desci para terra
e me congratulei de que ia ver maravilhas enquanto os marinheiros pegavam água e verdura; mas não lhe surpreenderá ouvir que me tiraram dali em poucas horas, e sublinho
"poucas horas", com a desculpa de que não podiam desperdiçar não sei que vento favorável ou maré ou algo parecido. Depois avançamos para o sul e nessas águas vi
albatrozes e petréis gigantes, fétidos e pintados, mas a que preço! As ondas eram enormes; o vento, incessante, e uivava de tal maneira que somente podíamos pensar
ou falar quando a fragata estava nos seios formados pelas ondas. Havia gelo, gelo no convés, gelo nos cabos, gelo no mar em forma de montanhas de imenso tamanho
e, tenho que confessar, de imensa beleza, que ameaçavam acabar conosco, como dizem os marinheiros. Então o capitão mudou o rumo para águas mais cristãs e concebi
a esperança de ver a ilha Amsterdã, uma ilha remota e desabitada desconhecida pelos naturalistas, cujas flora, fauna e geologia ainda não foram descritas. Na verdade,
eu a vi, mas só ao longe por barlavento, enquanto a fragata navegava a toda vela rumo ao cabo Java.
O sol se pôs abruptamente, como costumava fazê-lo no trópico, justo depois de que se acomodaram bem. A escuridão da noite se estendeu pelo céu e no leste apareceram
as estrelas depois de alguns minutos de penumbra. Agora, pela amura de bombordo, assomou acima do horizonte um brilhante astro, que permaneceu lá alguns momentos,
como se fosse o farol de popa de um grande barco. Ainda que Martin fosse um homem pacífico e Maturin, salvo em raras ocasiões, opunha-se por princípio à violência,
ambos haviam absorvido até tal ponto o afã de predador existente nos barcos de guerra e nos corsários, onde era ainda mais forte, que ficaram silenciosos e observaram
aquele astro como tigres até que subiu e se separou do mar, demostrando que era um corpo celestial.
- Tenho que perguntar ao capitão Aubrey o nome dessa maravilhosa estrela - disse Stephen. - Com certeza ele sabe.
Como em resposta a estas palavras, ouviu-se como Jack afinava seu violino muito mais abaixo.
- Por agora mencionarei só de passagem Java e governador Raffles - continuou Stephen -, um homem exageradamente amável e um distinto naturalista, ainda que lhe mostrarei
alguns dos exemplares de lá quando encontre uma mesa livre. O senhor sabia que há um pavão real de Java? Que Deus me perdoe, mas eu não sabia. É uma ave muito bonita.
Limitar-me-ei a dizer que chegamos a Pulo Prabang e que, apesar dos franceses terem chegado antes de nós, o enviado foi mais astuto que eles e convenceu ao sultão
de que firmasse um tratado com a Grã-Bretanha. Tudo isto levou algum tempo, mas não me importaria se fosse mais longo, e nesse tempo tive a grande sorte de conhecer
o doutor Van Buren, de quem possivelmente terá ouvido falar.
- Um holandês famoso por seus estudos do baço?
- O própio. Mas está interessado em muitas outras coisas.
- No estudo do pâncreas? No da tireóide?
- Em mais coisas ainda. Não há nada no reino animal nem no vegetal que não desperte sua curiosidade, uma curiosidade que o leva a se informar muito bem. Devo a ele
ter conhecido um paraíso extraordinariamente remoto onde habitam monges budistas e nem as aves nem as feras temem ao homem porque nunca ninguém os feriu. Caminhei
por ali agarrado na mão de um afetuoso orangotango fêmea de certa idade.
- Oh, Maturin!
- Anotei outras maravilhas, mas se lhe contasse só a metade delas e lhe mostrasse somente a metade dos exemplares que recolhi com os pertinentes comentários, ainda
estaríamos falando quando chegássemos a Nova Gales do Sul. Mas o senhor ainda não me contou nada. Terminarei meu resumo dizendo que zarpamos dali satisfeitos de
ter conseguido o tratado, que percorremos de um lado a outro, sem êxito, o lugar de um dos encontros e que, quando regressávamos na Diane para Batavia, a fragata
encalhou em um arrecife que não aparecia nas cartas marítimas, um dos muitos que aparentemente há por lá, durante a noite e quando a maré estava muito alta. Não
pudemos desencalhá-la, mas como havia uma ilha bastante perto levamos a maioria de nossas posses para lá nos botes, fizemos um acampamento militar e nos sentamos
a esperar com bastante tranqüilidade que chegasse a próxima maré viva, que, como provavelmente saberá, depende da lua. Estávamos bastante tranqüilos porque obtínhamos
água do poço e javalis dos bosques. Ademais, a ilha não carecia de interesse, pois habitavam nela macacos de calda preénsil, duas espécies de javalis, basbirussa
e barbatus e as aves chamadas andorinhas, de cujos ninhos se faz sopa, mas que sinto dizer que não são andorinhas mas vencelhos de uma espécie oriental, de tamanho
muito pequeno. Mas o enviado não esperou para que nos instalassemos ali. Estava desejoso de regressar com o tratado, assim que o capitão lhe deu o novo bote com
uma quantidade de provisões e tripulantes adequada para fazer a viagem a Batavia, uma viagem de menos de duzentas milhas que não impunha dificuldades se não houvesse
se formado o tufão que destruiu nossa fragata e, sem dúvida, virou o bote. Estávamos contruindo uma escuna com os restos da fragata quando fomos atacados por uma
horda de malvados piratas, dyaks e malaios liderados por uma desprezível e arrogante prostituta, uma prostituta sanguinária, avara e petulante. Mataram muitos de
nossos homens, mas nós matamos muitos mais dos deles; queimaram nossa escuna, os canalhas, mas nós destruímos seu paraú com um excelente disparo do canhão de nove
libras propriedade do capitão. Depois passamos um período angustiante, pois restavam poucos javalis e ainda menos macacos, mas um junco que ancorou diante da ilha
para colher ninhos de aves nos levou até Batavia, onde o governador Raffles nos deu essa encantadora escuna, a Noz-moscada, a bordo da qual nos encontraram os senhores.
Cá está. Estes são os dados básicos, que espero completar mostrando-lhe as notas e os exemplares quando estejamos navegando. Agora, por favor, conte-me o que fez
e o que viu. - Bem - começou Martin -, ainda que não tenha visto nenhum orangotango, minha viagem não esteve isenta de momentos interessantes. Como provavelmente
o senhor recordará, a última vez que tivemos a sorte de caminhar pela selva brasileira fui mordido por um macaco noturno com cara de coruja.
- Sim, recordo. E como sangrou!
- Desta vez me mordeu uma anta e sangrei mais ainda.
- Uma anta?
- Uma anta jovem com riscas e manchas, um Tapirus americanos. Na curva de uma vereda próxima a um rio vi a mãe, um enorme animal de cor marrom-escuro, que estava
distraída e de repente se meteu na água e se perdeu de vista. Percebi que o filhote havia caído em uma armadilha e depois de levá-lo com infinito esforço até a borda
ele me mordeu. Se tivesse luz, mostraria a cicatriz. Mas antes de poder sair do buraco, chegou um grupo de índios, provavelmente os que o haviam escavado, e me admoestaram
com violência enquanto agitavam as lanças no ar. Estava muito angustiado, tão angustiado que não sentia a dor, porém, por sorte, um grupo de tripulantes da fragata
passou por ali e um deles, que falava português, deu-lhes um pouco de tabaco e disse que fossem se ocupar de seus assuntos. Agora que recordo, um dos que estava
no grupo era Wilkins, o marinheiro com o braço quebrado que viu na enfermaria. Seria um incômodo se interrompesse o relato e pedisse sua opinião?
- Acho que é uma fratura transversal distal radial ordinária com certo deslocamento lateral eficazmente reduzido. É o tipo de fratura que pode se esperar em uma
queda. Mas não pude ver uma grande parte do braço porque está vendado conforme o método Basra. Quando se produziu?
- Faz três semanas. Mas ainda não começou a soldar-se. Os extremos estão muito próximos, mas não unidos.
- Suspeita que tem escorbuto, certo? Sem dúvida, esse é um sintoma típico, mas não inequívoco. Contudo, o incipiente escorbuto poderia ser uma das causas da depressão
de John Brampton. O sumo acabou?
- Não, mas abri um barrilete faz pouco e duvido que seja de boa qualidade. Nós o compramos em Buenos Aires.
- Tenho uma rede cheia de limões frescos e um bonito barrilete de origem confiável que durará vários meses. Como o capitão Aubrey não quer fazer escala em Nova Guinéu
e a viagem é comprida, seria conveniente pedir-lhe que, quando estime oportuno, pare em uma ilha bem representada nas cartas marítimas e com abundantes recursos.
Soaram as oito badaladas e se ouviram os inconfundíveis gritos e apitos com que chamavam os homens de guarda.
- Meu Deus, vou chegar tarde outra vez! - exclamou Stephen. - Quer jantar conosco?
- Obrigado. O senhor é muito amável, mas peço que me desculpe por não aceitar desta vez - respondeu Martin, olhando a boca de lobo com angústia. - Teremos que descer
na escuridão.
- Realmente - confirmou Stephen. - Se não fosse porque tenho um compromisso, ficaria aqui encima encantado com esta noite tão fresca e agradável, sem medo do sereno,
quer dizer, da umidade do ambiente.
- Se tivéssemos uma pequena lanterna, veríamos melhor.
- Certamente - disse Stephen -, mas não quero pedir um porque isso seria impróprio de bons marinheiros.
- Foi deste mesmo cesto da gávea que Wilkins caiu e rompeu o braço. É verdade que estava bêbado então, mas a altura é a mesma.
- Vamos, demostremos que temos mais fortaleza que os romanos - disse Stephen. - A gravidade nos ajudará e talvez São Brendan também.
Passou pelo buraco e procurou com os pés os enfrechates, que eram muito estreitos ali encima, onde os amantilhos estavam tão perto. Encontrou um muito abaixo com
os dedos de um pé e se soltou da borda do cesto da gávea, mas o fez sem pensar que devia esperar até que o balanço o empurrasse para o mastro. Durante um momento
mais desagradável que nenhum outro arranhou com as mãos o vazio na escuridão e por fim agarrou um amantilho, o mais distante de todos, porque tampouco esperou o
cabeceio. Ficou agarrado a ele tempo suficiente para poder responder com voz serena quando Martin, que estava do outro lado e havia aproveitado o balanço, perguntou
como estava.
- Perfeitamente bem, obrigado - respondeu.
- Perdoe-me por chegar um pouco tarde - disse ao entrar na cabine e cheirar as torradas com queijo. - Acabo de chegar do cesto da gávea do mezena.
- Não tem importância - disse Jack. - Como vê, não lhe esperei.
- Estive no cesto da gávea do mezena desde antes do crepúsculo até alguns minutos atrás.
- Bom! - exclamou Jack. - Gostaria de um pouco de vinho ou prefere esperar pelo ponche?
- Tendo em conta os excessos que fiz no almoço e o efeito do vinho neste clima, acho que me limitarei a beber o ponche, uma pequena quantidade de ponche. Que vasilha
mais elegante para servir o queijo derretido! Eu já havia visto antes?
- Não. É a primeira vez que a tiro da caixa. Eu a encomendei ao comerciante de Dublim que me recomendou e a peguei da última vez que estivemos em casa, mas me esqueci
por completo dela.
Stephen levantou a tampa, viu no interior seis pratinhos dos quais saía um suave som sibilante e que ficavam acima do fornilho de álcool que havia sob o fundo do
recipiente, e notou que tudo brilhava graças às laboriosas mãos de Killick. Virou-a para um lado e depois para o outro admirando o trabalho artesanal, e depois disse:
- Percorreu um longo caminho, Jack. Agora não dá mais importância a cem guinéus.
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Quanto pobres éramos! Lembro daquela vez que você regressou para a casa que tínhamos em Hampstead com um estupendo bife envolvido em
uma folha de couve e o contentes que nos pusemos.
Falaram de sua pobreza, dos aguazis, da prisão por dívidas, das casas de aguazis onde se podiam cumprir condenações por um alto preço, do medo de novas prisões e
dos ardis para evitá-las. Mas depois de falar sobre a riqueza e a pobreza, sobre a roda da fortuna e coisas parecidas, a conversa perdeu viveza e alegria, e quando
Stephen comeu o segundo prato de queijo, observou que algo preocupava o seu amigo. Jack não voltou a soltar suas francas risadas e dedicava mais atenção aos enormes
canhões que compartiam a cabine com eles que ao rosto de Stephen. Houve silêncio, tanto silêncio como era possível em uma embarcação que navegava a oito nós acompanhada
de um ruído geral formado pelo burburinho da água ao passar pelos costados e da turbulenta esteira e os peculiares sons da exárcia fixa e da móvel com seus inumeráveis
moitões.
Em meio do relativo silêncio Jack explicou:
- Fiz um percurso pela fragata esta tarde para perguntar a nossos companheiros de tripulação como se achavam e notei que muitos deles estavam mais velhos que da
última vez que os vi. Isso me fez pensar que talvez eu também esteja mais velho. E quando disse que a fragata era um "velho barco de guerra" aumentou minha preocupação.
Contudo, é um absurdo medir pelo mesmo padrão todas as coisas. Ainda que aos seguidores de Set lhes tenha crescido uma barba de uma jarda e eu, indubtavelmente,
estaria melhor com calças largas e leves, um barco e um homem são coisas muito diferentes.
- Está seguro, meu amigo?
- Sim. Ainda que não o creia, são coisas muito diferentes. A Surprise não está velha. Olhe a Victory, que é bastante veloz e que acho que ninguém a considera velha,
ainda que tenha sido construída vários anos antes que a Surprise. Olhe o Royal William. Conhece o Royal William, Stephen, né? Eu lhe o mostrei muitas vezes entre
os barcos de Pompey. É um navio de primeira classe de cento e dez canhões.
- Eu lembro. Tinha um aspecto horrível.
- Isso se deve aos usos que são obrigados a dar-lhe. Eu me refiro é a suas entranhas. Suas balizas estão tão bem ou melhor que quando o construiram, e se um crava
uma faca em uma de suas curvas ela se dobrará ou se partirá na mão. Ademais, vi um pedaço de um de seus amantilhos quando estavam começando a cubri-los de breu,
e comprovei que também estava em perfeitas condições. E foi lançada à água em 1676. Em 1676! Talvez a Surprise não seja como essas embarcações modernas, chamativas
mas inservíveis, construídas com balizas de madeira que não curada conforme um contrato com um estaleiro clandestino. Foi construída faz certo tempo, mas não é "velha".
E você sabe como ninguém as melhorias que lhe fizemos: suportes diagonais, curvas reforçadas, placas de cobre...
- Meu amigo, defende-a com a mesma veemência com que defenderia a sua esposa se eu dissesse algo desagradável dela.
- Isso é porque eu sinto realmente que devo defendê-la. Eu a conheço há muitos anos e naveguei nela desde menino, e não me agrada que a ofendam.
- Jack, quando disse que era "velha" me referia à sujeira acumulada abaixo durante gerações. Estava tão longe de minha intenção ofendê-la como ofender a Sophie,
livre-me Deus.
- Bem, lamento ter estourado - desculpou-se Jack. - Lamento ter falado com rudeza. Foi a minha língua e meti os pés pelas mãos outra vez, o que me parece absurdo
porque tinha a intenção de ser muito amável e agradável. Tinha a intenção de reconhecer que as cem toneladas de seixos que leva como lastro lá embaixo deveriam ter
sido trocadas há muito tempo. E depois de admitir isso e dizer que íamos limpá-la abrindo a válvula de entrada de água e depois tirando a água com as bombas, ia
perguntar se queria me vendê-la. Isso me proporcionaria uma grande satisfação.
Stephen estava mastigando um pedaço de queijo bastante grande e rebelde, e quando por fim o engoliu, disse em tom indiferente:
- Muito bem, Jack.
Então olhou de esguelha o rosto de seu amigo, cujo gesto transluzia a alegria que dignamente tentava reprimir, e pensou: "Como é possível, do ponto de vista físico,
que seus olhos adquiram esse colorido azul tão intenso?".
Apertaram as mãos em sinal de acordo e Jack perguntou:
- Não falamos do preço. Quer me dizer agora ou prefere pensar?
- Pague-me o mesmo que paguei por ela - respondeu Stephen. - Neste momento não sei exatamente quanto foi, mas Tom Pullings nos dirá. Foi ele que fez o lance por
mim.
Jack consentiu com a cabeça.
- Nós lhe perguntaremos pela manhã porque agora está como um tronco. - Depois, gritou: - Killick!
- Senhor? - disse Killick, entrando após um momento.
- Traga para o doutor a melhor poncheira e tudo o necessário para o ponche. Depois leve seu violoncelo e meu violino para a grande cabine e coloque os atris para
as partituras.
- Uma poncheira, senhor - repetiu Killick, quase rindo ao falar. - E a água já está fervendo.
- Killick - disse Stephen -, em vez dos limões, traga o barrilete menor que há em minha cabine, por favor. Pode tirar-lhe a capa de lona.
Chegou a poncheira acompanhada da graciosa concha e passou algum tempo antes que pudessem ouvir Killick dando fortes pisadas na entrecoberta. A julgar pelas irritadas
maldições que se ouviam, um de seus companheiros o estava ajudando, mas entrou na cabine sozinho e com o barrilete apoiado contra o ventre.
- Ponha-o em cima do escaninho, Killick - pediu Stephen.
- Não sabia que o tinha - disse Killick com uma mistura de admiração e ressentimento quando se afastava do barrilete.
Era um barrilete de carvalho com aros de cobre polido. Na parte superior tinha o selo BRONTE XXX e debaixo uma placa onde estava gravada a inscrição:
Ao eminente doutor Stephen Maturin,
cuja habilidade só é superada pelo agradecimento
de quem se beneficiou dela.
Clarence.
- Bronte! - exclamou Jack. - É possível que seja...?
- É. É sumo de limão de seu própio imóvel. É um presente do príncipe William. Queria abri-lo no dia de Trafalgar, mas como esta é uma ocasião especial, penso que
poderíamos pegar uma onça para brindar por esta noite inesquecível.
Quando saía o vapor da poncheira, o açúcar derretia e o forte odor de aguardente palma se propagava, Stephen acrescentou o sumo de limão concentrado dizendo:
- Tenho que te advertir que talvez haja alguns casos de escorbuto incipiente na fragata. O primeiro a perceber, para minha vergonha, foi Martin, esse homem admirável.
- Sem dúvida, ele o é. Todos os marinheiros dizem que é uma sorte tê-lo entre nós.
- Sugeriu que fizéssemos escala em alguma ilha com abundantes árvores frutíferas e estou completamente de acordo. Não é urgente, pois temos este barril, mas do ponto
de vista médico é aconselhável conseguir algo de reserva quando tenhamos consumido a metade, se puder encontrar alguma ilha no ilimitado oceano.
CAPÍTULO 8
Precisamente desde o cesto da gávea do mezena, os dois médicos avistaram essa ilha; isto é, a pequena nuvem achatada que indicava sua presença. Já haviam passado
tantas léguas, tantos graus de longitude sob a quilha da Surprise que agora ambos, depois de ser treinados pacientemente por Bonden, subiam pelas arraigadas como
Deus manda e há duas semanas subiam sem ajuda e sem linhas de vida nem nenhuma outra coisa para evitar que caíssem de cabeça. Mas subir ao cesto da gávea dessa forma,
a forma típica dos marinheiros, requeria ascender pelo que era na realidade uma escada de corda formando um ângulo de cinqüenta graus com a vertical, assim que tinha
que ficar pendurado como uma preguiça, olhando para o céu. Os movimentos de ambos tampouco eram muito distintos dos de uma preguiça, mas confessavam que esse método
era mais simples e muito mais agradável que o anterior, que implicava em contorcer-se para atravessar pela tensa e densa exárcia. E se sentiram satisfeitos quando
Pullings, durante um almoço que os oficiais ofereceram ao capitão, disse que a Surprise era a única embarcação onde vira os dois doutores subirem ao alto da exárcia
sem passar pela boca de lobo.
Porém, apesar de terem progredido tanto e da fragata ter avançado tanto para leste, Martin não havia esgotado as coisas que observara na América do Sul, senão que
ainda contava o que vira em uma zona da selva amazônica. Contou que tinha um extenso leito de vegetação morta, com enormes árvores caídas e cruzadas, e em alguns
lugares havia madeira apodrecida até uma grande profundidade, pelo que um, para evitar cair vinte ou trinta pés dentro daquela caótica putrefação, tinha que escolher
os troncos caídos mais recentemente e mais fortes, que só podiam ser distinguidos porque estavam cobertos por uma confusão de cipós. Acrescentou que naquela parte
tão profunda o crepúsculo e o meio-dia eram iguais, e que era quase total a ausência de mamíferos, répteis e mesmo aves, que se encontravam nas altas copas das árvores,
onde batia o sol. Mas exclamou:
- Oh, Maturin, que abundância de insetos!
Tampouco Stephen tinha tocado muitos aspectos de sua visita a Java nem falara ainda de Pulo Prabang, ainda que tivesse mostrado a Martin as peles de aves e os interessantes
ossos das patas do Tapirus indicus, quando ambos ouviram que o serviola, que estava na cruzeta do mastaréu maior, muito mais alto do que eles, gritou:
- Terra à vista a dez graus pela amura de bombordo!
O grito interrompeu sua conversa. Também interrompeu a de muitos marinheiros no convés e no castelo, já que era a hora da guarda da tarde e esse era o dia que dedicavam
a lavar e costurar sua roupa. Muitos dos mais jovens e impetuosos tripulantes da Surprise largaram de um lado suas agulhas, carretéis de fio, dedais e caixas de
costura e subiram correndo para o alto da exárcia e se aglomeraram nas vergas superiores e na parte superior dos amantilhos, ainda que deixaram passagem para Oakes,
que, por ser o mais ágil e menos pesado dos oficiais do castelo de popa, tinha sido enviado para a cruzeta do mastaréu com uma luneta.
- Já a vejo, senhor! - gritou. - Vejo-a quando a fragata sobe com o balanço. É verde e está rodeada de uma ampla faixa de espuma. Está a umas cinco léguas, quase
exatamente a sotavento, justo debaixo daquela nuvenzinha.
Jack e Tom Pullings se olharam sorridentes. Avistar terra dali era a surpresa mais agradável que podiam ter, pois, ainda que os dois, separadamente, tivessem calculado
a posição da fragata com seus dois cronômetros e pelas precisas medições lunares feitas nos últimos dias, nenhum supunha que iam avistar a ilha Sweeting sem mudar
o rumo mais que cinco graus, nem duas ou três horas antes do tempo previsto.
- Os marinheiros nos atrapalham e estamos muito baixos - disse Martin. - Não acha que poderíamos ter uma vista melhor se subimos um pouco mais, acima desta frustrante
gávea, por exemplo, até a cruzeta do mastaréu de sobremezena?
- Não - respondeu Stephen. - E ainda que a tivéssemos, o senhor acha que um homem sensato e prudente, com obrigações com seus pacientes, subiria a essa vertiginosa
altura para ver melhor uma ilha por onde estará caminhando, se Deus quiser, amanhã ou mesmo nesta mesma tarde, uma ilha que tem pouco a oferecer ao naturalista?
Pois deve o senhor saber que em ilhas tão remotas e pequenas como esta não há uma superfície bastante extensa para que se desenvolvam uma fauna ou uma flora peculiares.
Pense, por exemplo, na assombrosa escassez de aves terrestres que há no Tahiti, que é muito mais extensa. Banks assinalou isso com tristeza, quase com ressentimento.
Não, senhor. Pelo que eu sei, a ilha Sweeting tem mais valor para os médicos que procuram antiescorbúticos que para os naturalistas. E permita-me dizer-lhe que me
assombra sua impaciência.
- Responde a uma causa muito menos importante. Mas permita-me dizer de passagem que em Saint Kilda tem uma estrelinha peculiar e nas Orkney, uma espécie de roedores
curiosos.
O que ocorre é que não sou uma criatura anfíbia, como o senhor ou o capitão Aubrey. Ainda que poucos acreditem, sou essencialmente um homem do interior, um descendente
de Anteo, sem dúvida, e estou ansioso para voltar a pisar em terra, da qual tirarei a força necessária para suportar os próximos meses de vida no oceano. Estou ansioso
para caminhar por uma superfície que não esteja em perpétuo movimento, balançando e cabeceando, onde não é provável que um solavanco me pegue desprevenido e me lance
contra os embornais, provocando que meus amigos gritem: "Isto é criminoso!" e os marinheiros reprimam o riso. Não creia que não estou contente com minha sorte, Maturin,
eu lhe rogo. Gosto muito das longas viagens pelo mar e as excelentes oportunidades que podem oferecer; como, por exemplo, ver os framboyants nas margens do rio São
Francisco e os vampiros em Penedo. Mas de vez em quando desejo com veemência sentar-me em meu elemento, de onde regresso como um gigante cheio de nova vida, pronto
para suportar um vento tão forte que obrigue a rizar as gáveas ou o nauseabundo odor da coberta inferior em meio do sufocante calor da zona das calmarias, sem uma
pitada de ar para respirar, ou o movimento da fragata que ameaça derrubar seus paus. Acho que faz um século que não me sento em uma cadeira da qual possa confiar,
pois ainda que tenhamos passado por muitas ilhas ao cruzar uma vasta extensão de mar, o que fizemos é, precisamente, passá-las. Ventos desfavoráveis e correntes
adversas nos fizeram chegar tarde a encontros anteriores e esta última era nossa única oportunidade, assim que o capitão Pullings governou a fragata de uma forma
despiedosa, com duras palavras e ordens imperiosas, não como o amável jovem que conhecíamos, mas como um oficial Bajazet, e, naturalmente, sem pensar em deter-se
ainda que visse na costa casuares com cristas amarelas. Porém, diga-me, Maturin, em verdade a ilha Sweeting é tão pobre e tão pouco fértil? Nunca ouvi falar dela.
- Nem eu, como bem sabe Deus, até que o capitão Aubrey me disse seu nome. Foi um primo dele por parte de mãe que a descobriu, o almirante Carteret, que deu a volta
ao mundo com Byron e depois com Wallis, desta vez como capitão do Swallow, um barco bem menor. Por causa do mau tempo separou-se de Wallis frente ao arquipélago
de Terra do Fogo, provavelmente não sem certo regozijo porque isso lhe permitiu descobrir sozinho alguns territórios, incluindo esta ilha, à qual pôs o nome do guarda-marinha
que a avistou primeiro. Não era como Golconda nem Tahiti, pois estava habitada por um grupo de irascíveis negros desnudos, que eram corpulentos e tinham a cara muito
feia, os olhos afundados, o queixo retraído, os colmilhos afiados e um monte de cabelo duro e cacheado pintado com mais ou menos êxito de marrom claro ou amarelo.
Não falavam nenhum dos dialetos conhecidos da Polinésia e todos pensaram que estavam mais estreitamente vinculados aos papúes...
- Parece que nunca vamos ver Papuasia - observou Martin, dando um suspiro -, porém, desculpe-me por lhe interromper.
- Não, nunca. Acho que a intenção do capitão Aubrey, por motivos relacionados com o vento, as correntes e a difícil navegação pelo estreito de Torres, era deixar
Nova Guinéu a considerável distância por estibordo, avançar para o alto mar até a ilha Sweeting e, depois de reabastecer, mudar de bordo e fazer rumo à zona onde
sopram os ventos alísios do sudeste e dali dirigir-se para a baía de Sidney navegando de bolina, a forma com que a fragata navega melhor, no que supera todos os
outros barcos. Tampouco tem intenção de fazer escala nas ilhas Salomão, e muito menos passar do outro lado da grande barreira de coral ou aproximar-se dela.
Ambos moveram a cabeça de um lado para o outro com tristeza e depois Stephen continuou:
- Pelo que sir Joseph me contou de Nova Guinéu, acredito que não perdemos muito. Ele e Cook desceram em terra e percorreram um extenso terreno pantanoso até chegar
a uma praia comum, onde de improviso se lançaram sobre eles os nativos gritando palavras ofensivas, alguns fazendo explodir coisas que pareciam bombas e outros jogando
lanças. Só teve tempo para recolher vinte e três plantas, nenhuma delas realmente interessante. Com relação à grande barreira de coral, não me surpreende que o capitão
queira que a evitemos, depois da horrível experiência de Cook, ainda que isso não quer dizer que não lamente a necessidade de fazê-lo. Parte-me o coração.
- Talvez o vento amaine e possamos nos aproximar do arrecife em um bote.
- Espero que assim seja, especialmente perto da ilha de onde Cook e Banks exploraram uma vasta zona do arrecife, na qual Banks recolheu alguns dos muitos lagartos
que colecionou. Mas voltando à ilha Sweeting, da qual me parece que agora posso ver um ápice no horizonte, o capitão Carteret não encontrou ali nem pó de ouro nem
pedras preciosas nem amáveis habitantes, senão cocos, batata-doce, colocasias e frutas de vários tipos. Só havia um povoado, pois ainda que no interior seja bastante
fértil, a maioria dos habitantes vivem principalmente do mar e se concentram na única praia. Como quase todo o litoral é formado por um escarpado com zonas mais
ou menos próximas à vertical, imagino que se formou pela erupção de um antigo vulcão ou que é uma cratera desabada e reduzida. Ainda que as pessoas fossem desagradáveis
e inospitas, o capitão Carteret as convenceu a comerciarem com ele e regressou ao barco com provisões que mantiveram saudáveis seus tripulantes até o estreito de
Macasar. Determinou sua posição cuidadosamente e sondou as águas ao redor, mas não é uma ilha muito conhecida, ainda que o capitão Aubrey diz que muitos baleeiros
do Pacífico Sul às vezes se detém lá. Não recordo de tê-la visto em nenhum mapa.
- Talvez esteja habitada por sereias - disse Martin.
- Meu querido Martin - replicou Stephen, que em ocasiões podia ser mais obtuso que ninguém -, um momento de reflexão bastaria para fazer-lhe recordar que todos os
sirênios necessitam águas pouco profundas com um extenso leito de algas e que os únicos membros dessa inofensiva espécie no Pacífico são a vaca marinha que Steller
encontrou no norte e o dugongo, que vive em zonas privilegiadas próximas a Nova Holanda ou no mar da China Meridional. Não espero encontrar mais que vegetais e frutas.
Isso me recorda... Gostaria de jantar conosco? Temos geléia de manga.
Martin voltou a desculpar-se. E muito mais tarde, quando Stephen e Jack haviam terminado de comer a geléia de manga e estavam sentados preparando-se para tocar música,
Stephen anunciou:
- Vou fazer uma pergunta que talvez seja impertinente, mas só porque quero me poupar de fazer convites que serão recusados. Martin e você discutiram?
- Oh, não! O que lhe fez pensar isso?
- Eu o convidei para jantar conosco várias vezes e sempre recusou o convite. Logo ficará sem desculpas verossímeis.
- Oh! - exclamou Jack e, com gesto preocupado, largou de um lado o arco do violino. - É verdade que não posso me esquecer de que é um pastor, assim que tenho que
ter cuidado com o que digo. Porém, por outro lado, não sei o que dizer. Sinto um grande respeito por Martin, certamente, e a tripulação também, mas me é difícil
falar com ele, e talvez isso me faça parecer reservado. Não posso conversar com um homem instruído como contigo e com Tom Pullings, ou seja... Não quiz dizer que
não lhe considere mais instruído que Job, nada mais longe de minha intenção, dou minha palavra de honra, mas nos conhecemos há muito tempo. Martin e eu nunca nos
ofendemos, o que é uma vantagem porque seria muito desagradável para uma pessoa ficar encerrado um tempo indefinido com alguém que lhe é antipático, e ainda é muito
pior quando isso ocorre a dois oficiais, porque teriam que se ver todos os dias na câmara dos oficiais, também é ruim que ocorra ao capitão, ainda que alguns não
se importam. Talvez pense que não tenho lhe dado atenção. Eu o convidarei para almoçar amanhã.
A Surprise começou a aproximar-se da ilha Sweeting com o vento a vinte e cinco graus pela alheta. Permanecera a pairar durante a maior parte das guardas de meia
e da alvorada, pois ainda que se recordasse muito bem da carta marítima de seu primo e dos dados da sondagem que fizera, as condições podiam ter mudado desde 1768,
e queria atravessar o estreito e entrar na baía em pleno dia. Ele a recordava agora, sentado comodamente no castelo de popa depois do desjejum, enquanto governava
a fragata desde a verga velacho. O sol havia subido quarenta e cinco graus a leste no perfeito céu e lançava seus raios nas águas cristalinas, tão cristalinas que
Jack pôde ver o brilho de um peixe que passou muito abaixo da superfície, talvez a cinqüenta braças. Não havia nada mais que ver; não se via o fundo e, de acordo
com a carta marítima do almirante Carteret, não se veria até que estivessem a um tiro de mosquete do arrecife, pois a costa era cortada quase verticalmente. A fragata,
com o vento entabulado, navegava na forma típica com que se atravessava um arrecife para passar para uma típica enseada de águas pouco profundas. Só com o velacho
aberto tinha velocidade suficiente para manobrar, e a proa se inclinava levemente porque tinha pouco abatimento. Jack teria muito tempo para examinar o arrecife
(muito largo e cheio de coqueiros) a enseada e a ilha. Não era como uma dessas ilhas coralíneas de forma ligeiramente abaulada que vira amiúde no sudeste do Pacífico,
senão muito mais rochosa. Tinha uma massa de árvores rodeadas de plantas de variados tons de verde, muitos deles intensos, em um elevado semicírculo situado justo
detrás do povoado, que formava uma meia lua acima da marca da maré alta, e em ambos os lugares se refletia a clara luz da manhã. Era um povoado típico, com canoas
alinhadas na praia, mas a maior parte do espaço era ocupado por uma grande casa alongada construída sobre postes, um tipo de casa que nunca vira.
Também tinha tempo para examinar a coberta da fragata. Desde o pôr do sol estava, se era possível, mais limpa que o habitual, e tudo se achava colocado em perfeita
ordem, as betas estavam enroladas à flamenga e os objetos de latão que possuía brilhavam como o ouro, já que havia a possibilidade de que convidasse ao rei da ilha
para subir a bordo. Mas muitos marinheiros, e não só os mais jovens, haviam encontrado tempo para pôr a roupa de descer a terra: camisa bordada, calça de dril branco
como a neve com fitas costuradas nas costuras, chapéu de palha de aba larga com uma cinta com o nome Surprise e brilhantes sapatos negros com laços. E é que o capitão
da Surprise era muito generoso concedendo permissões para descer a terra porque todos os tripulantes eram voluntários. A maioria deles havia preparado pequenas bolsas
com pregos, garrafas e pedaços de espelho, já que, como era sabido de todos, presentes desse tipo tinham agradado muito as jovens do Tahiti e essa também era uma
ilha do Pacífico sul. Os marinheiros sabiam que estavam no Pacífico sul desde que haviam passado os cento e dezesseis graus de longitude leste, e dissesse o que
dissesse o doutor, todos (exceto alguns poucos estúpidos como Flood, o cozinheiro, cujo irmão fora comido nas ilhas Salomão) confiavam em que encontrariam sereias.
No castelo estavam os dois médicos e Stephen olhava tão ansiosamente a ilha como Martin, apesar de ter menosprezado sua potencial.
Mas o povoado tinha algo raro. Não havia movimento, além do vaivém das palmas. Todas as canoas estavam na praia: não tinha nenhuma na enseada nem em alto mar.
O som das ondas, as moderadas ondas que rompiam na praia era cada vez mais forte. Jack gritou para os homens que estavam no pescante:
- Hooper, adiante! Crook, adiante!
- Sim, senhor - responderam os dois, o que estava a estibordo, com voz rouca; o que estava a bombordo, com voz escandalosa.
Houve uma pausa e depois se ouviram chapes perto da proa e os gritos, alternando-se, diziam:
- Não toca o fundo este cabo. Não toca o fundo este cabo. Não toca o fundo...
A entrada se via claramente um pouco mais adiante e a água tomou um colorido mais verdoso que azulado.
- Subam a escota uma braça - ordenou Jack. - Leme a bombordo meia cana. Firme, firme.
- Firme, senhor.
- Marca dezoito - anunciou a voz de estibordo.
- Marca dezenove - disse a voz de bombordo.
- Leme a bombordo uma cana - indicou Jack, vendo uma parte esbranquiçada adiante.
- Leme a bombordo, senhor.
Agora a fragata estava no meio do estreito, com o arrecife e seus altos coqueiros de ambos os lados. O vento chegava pelo través. De repente, cessou o ruído das
ondas ao romperem na parte exterior do arrecife e o prolongado burburinho da espuma quando se retiravam. A fragata se movia em silêncio, com as sondas submerss de
ambos os lados, e ocasionalmente fazendo leves mudanças de rumo. Além dessas vozes e o canto de uma andorinha, não se ouvia nada. Houve silêncio no convés até que
se adentrou na enseada, virou a proa contra o vento e jogou a âncora. Nenhum som chegou desde a costa.
- Vem conosco, doutor? - perguntou Jack.
Os dois médicos haviam corrido de uma ponta a outra do corrimão no momento em que os marinheiros tinham descido o bote e estavam ali, de pé, rodeados de estojos
para guardar exemplares, caixas e redes.
- Sim, com sua permissão, senhor - respondeu o doutor Maturin. - Nosso dever é buscar antiescorbúticos imediatamente.
Jack assentiu com a cabeça e enquanto os marinheiros desciam para o bote os mosquetes, os presentes e os objetos geralmente empregados para comerciar, perguntou:
- Não acha muito rara a tranqüilidade que há nesta ilha?
- Sim, parece desabitada. Mas três homens de vista aguda e separados uns dos outros asseguraram que viram gente movendo-se no limite do bosque, concretamente jovens
com saias de folhas.
- Talvez tenham se reunido no bosque para celebrar uma cerimônia religiosa - aventurou Martin. - Não há nada mais propício para a espiritualidade que um bosque,
como sabiam os antigos hebreus.
- Bonden, tampe os mosquetes com a lona de cobrir a popa - ordenou Jack, antes de ir para o castelo de popa. - Senhor West, saque um barrilete de pólvora, mantenha
a fragata com a bateria de frente para a costa. Saque dois canhões e dispare ao menor sinal de dificuldades. Dispare a bastante distância de nós se levanto a mão
e com metralha se nos perseguem com as canoas. Adiante, senhor Reade.
Reade já havia se acostumado perfeitamente a andar por todas as partes com um só braço, mas sempre tinha um grupo de ansiosos marinheiros preparados para pegá-lo
caso caisse, um grupo de marinheiros que seguiram sendo tão amáveis como antes, mas agiram mais razoavelmente, quando desceram os dois médicos seguidos do capitão.
- Zarpar! - gritou Reade. - Retroceder! Agora todos juntos, se podem conseguir. Davis, reme no tempo, uma vez em sua vida.
Essas foram as últimas palavras que se ouviram durante todo o tempo que estiveram atravessando a enseada enquanto os oficiais, pensativos, olhavam fixamente a costa.
- Parem de remar! - ordenou Reade por fim. Os barqueiros meteram os remos no bote ao estilo da Armada. O bote deslizou um momento e imediatamente a proa se introduziu
na areia. O primeiro remador desceu de um salto e colocou a prancha.
- Virem-na, coloquem-na com a popa para a praia e mantenha-a flutuando segura por uma pequena âncora - ordenou Jack. - Wilkinson, James e Parfitt cuidarão dela durante
esta maré e manterão os mosquetes ocultos. Os demais virão para a praia comigo. Não a movam até que dê a ordem.
Subiram pela branca areia com os olhos semicerrados por causa do resplendor, mas olhando com expectativa para direita e esquerda, para as canoas, o bosque e a casa
alongada. Apesar das ordens, Reade, que ia detrás do grupo principal, aproximou-se das canoas dando saltos.
Alguns momentos depois, ao mesmo tempo em que um cachorro saiu apressadamente de trás da canoa mais próxima para meter-se no bosque, regressou correndo. Havia ficado
pálido, ainda que estivesse moreno, e anunciou:
- Há algo horrível ali. Acho que é uma mulher - o grupo se deteve e todos o olharam - ... morta - acrescentou com voz trêmula.
- Importar-se-ia de não seguir adiante e esperar-me aqui, senhor? - perguntou Stephen.
Ali ficaram todos, muito preocupados, enquanto ele se afastava seguido de Martin. Sob a brilhante luz o silêncio era inquietante. Olharam-se uns para os outros inquisitivamente,
mas não disseram nem uma palavra, nem sequer murmuraram, até que o doutor, quando voltava, gritou a certa distância:
- Senhor, todos os homens que não tenham tido a varicela devem regressar ao bote.
E quando chegou ao seu lado, perguntou:
- Senhor Reade, já teve varicela?
- Não, senhor.
- Então, tire a roupa, banhe-se no mar, molhe bem o cabelo e sente-se sozinho na proa. Não toque em ninguém. Quem tem um isqueiro?
- Aqui tem, senhor - respondeu Bonden.
- Por favor, faça saltar uma faísca e queime a roupa do senhor Reade. O senhor já teve a doença, senhor, se não me recordo mal.
- Sim, quando era menino - disse Jack.
Então olhou para os marinheiros que estavam um pouco afastados e ordenou:
- Johnson, Davis e Hedges, regressem ao bote.
Eles se voltaram, tocaram-se a testa e, decepcionados, mas sobretudo preocupados, começaram a descer, e um redemoinho de fumaça de um crematório os seguiu até o
mar.
- E todos os outros? - perguntou Stephen. - Assegurem-se agora, porque esta variedade é muito má e produz erupções perigosas.
Outro homem se separou do grupo murmurando algo e inclinando a cabeça vergonhosamente.
- Bem, senhor, vou revistar a casa alongada - continuou. - Depois, talvez possamos buscar os antiescorbúticos. Será melhor que os marinheiros se fiquem aqui um pouco.
Quer vir comigo, senhor?
Jack, com gesto preocupado, começou a seguir Stephen e Martin. Esperava ver algo desagradável, repulsivo, mas o que viu e cheirou quando subiu atrás deles a escada
e penetrou na penumbra da casa alongada, onde se ouvia um zumbido, foi muito pior. Quase todos os habitantes do povoado haviam morrido ali.
- Aqui não podemos fazer nada - sentenciou Stephen, depois de examinar cuidadosamente a casa de uma ponta a outra duas vezes.
Quando estavam fora, na plataforma elevada sobre a qual havia uma ancestral pirâmide de crânios, os da base cobertos de mofo verde, disse:
- Tinha razão, senhor Martin, quando falou de uma cerimônia religiosa. E acredito que aqui - acrescentou, apontando dois machados novos, mas um pouco oxidados, que
estavam sobre o que havia sido recentemente um leito de flores -, aqui fizeram sacrifícios para salvar a tribo, os pobres.
Jack voltou a segui-los enquanto eles falavam da natureza da doença, dos estragos que causava em nações e comunidades que não haviam padecido dela antes, da grande
quantidade de mortes que ocasionava entre os esquimós e de que fora levada para ali por um baleeiro, de cuja presença os machados eram uma prova. Sentia aversão
pelos baleeiros e indignação por não poder compartir com eles seu horror, e se limitou a aceder com um triste olhar e uma formal inclinação de cabeça quando Stephen,
no momento em que se reuniam com os outros, disse:
- Acho que podemos colher cocos, frutas e vegetais, porque não roubamos a ninguém.
Stephen observou qual era seu estado de ânimo e o dos marinheiros, que pela mudança da direção do vento tinham se informado do que não haviam deduzido da expressão
de seu capitão, de seus ombros caídos e de seu andar trabalhoso, e acrescentou:
- Permita-me sugerir-lhe que o senhor colha os cocos das árvores que estão no arrecife, principalmente os mais verdes, enquanto o senhor Martin e eu buscamos outras
plantas no interior. Porém, sobretudo, não permaneça nesta atmosfera mefítica. Primeiro, contudo, peço que mande Reade para a fragata e ordene ao meu ajudante que
antes de que suba a bordo lhe esfregue todo o corpo com vinagre e lhe corte o cabelo. E Reade terá que permanecer em quarentena.
- Muito bem - disse Jack. - Enviarei o bote outra vez para recolher-lhe quando queira.
- Este bote não, senhor, se me permite. Também tem que ser esfregado com vinagre, mas devem fazê-lo marinheiros que possam mostrar as marcas da doença. Outro bote,
por favor, e com tripulantes que não corram nenhum risco.
Um caminho ia do povoado ao interior da ilha. Era muito empinado, era feito de grandes pedras e beirado por arbustos e enredadeiras. Debaixo dos arbustos havia vários
ilhéus quase convertidos em esqueletos, com os membros espalhados ao redor. Passava junto a um terreno plano, uma clareira do bosque rodeado de um muro de pedra
para evitar que os porcos entrassem, que podiam ser ouvidos grunhindo e escavando entre as plantas que cresciam sob as árvores. Nesse terreno cercado, de considerável
extensão, havia batata-doce, bananeiras de diferentes tipos e diversos vegetais que cresciam amontoados, era evidente que haviam sido deliberadamente plantados,
porque ainda podia se ver a terra removida sob o capim.
- Essa deve de ser uma arácea - disse Martin, recostando-se no muro.
- É. Acho que é uma colocasia. Sim, de fato, é uma colocasia. As folhas são amargas, mas o sabor melhora quando se fervem. É um excelente antiescorbútico.
Seguiram avançando, sempre subindo, pelas pedras do caminho, muitas delas polidas pelo atrito dos pés de numerosas gerações. Encontraram mais três terrenos cercados
e no último viram um grande javali apoiado no muro, tentando subir. Ali já se encontravam muito longe da pestilência. Martin recolheu vários moluscos e, depois de
examiná-los com cuidado, os deixou cair em uma caixa com os lados acolchoados. Stephen assinalou uma orquidácea cujas flores brancas com pontas douradas caiam em
cascata da fenda de uma árvore.
- Estava preparado para a escassez de aves terrestres, mamíferos e répteis, sobretudo depois de ver os porcos aparecerem - disse Martin -, mas não para ver tanta
variedade de plantas. À direita do caminho, depois de passar o último grupo de colocasias... Ouve esse ruído parecido ao de um pássaro carpinteiro?
Ambos praram e aguçaram o ouvido. Ali o caminho passava entre um grupo de coqueiros e sândalos e depois levava até um grupo de rochas altas, diante das quais havia
uma pequena plataforma coberta por orquídeas rastreiras de agradável odor. O som, que parecia vir dali, cessou.
- ... vi não menos que dezoito espécies de rubiáceas.
Continuaram subindo em silêncio. Quando Stephen, que ia dois passos adiante de Martin, teve a plataforma ao nível da vista, inclinou-se e, voltando-se para ele,
murmurou:
- Um macaco. Um pequeno macaco negro.
O débil martelo voltou a começar e eles se aproximaram. Stephen, cuidadosamente, fez um sítio para Martin, que, depois de um momento, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Não tem pêlo.
Então, detrás de um coqueiro saiu outra figura igual, mas quando eles a viram erguida, acima da capa de orquídeas que tinham à altura da vista, deram-se conta de
que era uma menina negra muito magra que também tinha um coco nas mãos. A menina se reuniu com a primeira, agachou-se e começou a dar golpes com o coco sobre a enorme
pedra plana, que, era evidente, cobria um poço ou um manancial. Ambas tinham aspecto doentio. Stephen se ergueu e ao mesmo tempo tossiu. As pequenas deram-se a mão
sem dizer nada, mas não passaram a correr.
- Vamos nos sentar aqui sem olhá-las, sem fazer-lhes caso - propôs Stephen. - Já passaram a doença e, sem dúvida, foram as primeiras a pegá-la, mas se encontram
em muito mau estado.
- Que idade terão?
- Quem sabe! Nunca atendi a crianças, ainda que tenha feito a dissecação de muitas. Terão uns cinco ou seis anos. Pobres criaturas tão pouco agraciadas e tão pouco
afortunadas! Não podem abrir o coco.
Deu meia volta, estendeu o braço e perguntou:
- Deixa-me tentar?
Tinham a mente embotada não tanto por causa do terror ou da tristeza mas pela surpresa e falta de compreensão. Ademais, estavam sedentas porque não havia chovido
durante os últimos dias. Mas ainda tinham capacidade de razoamento suficiente para compreender o significado do tom e o gesto, e a primeira menina lhe estendeu o
coco. Stephen o perfurou pela parte branda com uma lanceta e a menina bebeu com grande avidez. Martin fez igual com a segunda menina.
Agora as meninas podiam falar e diziam a mesma palavra uma e outra vez, assinalando a lage e puxando-lhes as mãos. Quando eles a tiraram, as meninas meteram a cabeça
na água e beberam sem moderação, até que seus ventres vazios se incharam como melões.
- Acho que devemos levá-las para a fragata, dar-lhes de comer e deitá-las - disse Stephen enquanto olhava como devoravam o coco recém partido. - enquanto alguns
marinheiros recolhem as batata-doce, as bananas e as colucasias, outros podem rastrear a ilha para ver se há sobreviventes.
- Indubtavelmente, não podemos largá-las aqui porque morreriam de fome - concordou Martin. - Porém, Maturin, se tivessem sido macacos não descritos, teríamos causado
assombro em Londres, Paris, São Petersburgo... Vamos, menina...
Desceram o caminho devagar, de mãos dadas, mas quando chegaram ao cercado mais alto, as meninas começaram a gritar e Stephen e Martin tiveram que passá-las por cima
do muro para que entrassem. Elas correram para um bananal que lhes era familiar e comeram todas as bananas que estavam ao seu alcance. O mesmo ocorreu com o segundo
cercado, mas quando chegaram ao terceiro, as meninas estavam muito cansadas e débeis para seguir andando e eles as levaram até a margem do mar adormecidas em seus
braços.
- Não podemos chamr ao sem despertá-las - disse Martin.
- Que dilema! - exclamou Stephen, observando que a menina que tinha nos braços estava cheia de piolhos. - Talvez poderia colocá-la no solo.
Mas quando tentou, os dedos negros se agarraram a sua camisa com tanta força que teve que erguer-se de novo e abandonar a idéia de fazê-lo.
Não tiveram necessidade de chamar o bote. Qualquer um com a vista menos aguda que Jack Aubrey poderia ter visto a meia milha de distância que eles não tinham nos
braços antiescorbúticos, mas criaturas parecidas a preguiças ou ursos australianos. Não obstante, Jack assombrou-se quando as viu de perto e se informou do que tinha
que fazer.
- Bem, subam-nas a bordo - ordenou. - Pollack, deite-as sobre os sacos que estão junto à bancada de popa.
- Mas assim elas despertarão - Martin se queixou. - Posso subir a bordo com cuidado pela prancha.
- Bobagem! - exclamou Jack. - Qualquer um pode perceber de que o senhor não é pai, senhor Martin.
Pegou a menina, que tinha a cabeça pendurando, e, passando-a acima da borda, entregou-a a Pollack, que a deitou sobre os sacos como um habilidoso e diligente esposo.
- Quando as crianças estão dormidos desta maneira, com a cabeça pendurando e a baba escorrendo da boca - acrescentou Jack em um tom mais amável -, pode contorcê-las
e fazer nós com elas sem que se queixem nem despertem.
Isso era totalmente verdade. As meninas estavam frouxas como bonecas de palha quando as subiram pelo costado, e não se moveram quando as puseram em um colchonete
junto à escada do castelo.
- Digam a Jemmy Ducks que venha - disse Jack Aubrey.
- Senhor? - apresentou-se Jemmy Ducks, cujo verdadeiro nome era John Thurlow e tinha como ofício cuidar das aves da fragata, e às vezes também coelhos e outros animais
maiores.
- Jemy Ducks, é pai de família, verdade?
Ao ouvir o inusual tom amável do capitão e ver seu sorriso, Jemmy Ducks semicerrou os olhos e o olhou com receio, porém, depois de vacilar alguns momentos, admitiu
que tinha sete ou oito pequenos monstros em Flicken, ao sudeste de Shelmerston.
- E alguma é fêmea?
- Três, senhor. Não, minto, quatro.
- Então provavelmente estará acostumado com crianças.
- Pode afirmar que sim, senhor. Gritos, berros, empurrões, gengivas vermelhas, cair os dentes, faringite, sarampo, dores de estômago... E o pobre Thurlow toda a
noite caminhando de um lado para outro balançando-os em seus braços e perguntando-se se seria capaz de jogar-lhes pela janela... Urinóis, vasilhas de mingau, fraldas
secando na cozinha... Por isso me alistei aqui para fazer um viagem longa, muito longa, senhor.
- Nesse caso, sinto muito encarregá-lo desta tarefa. Olhe o colchonete que está à sombra da borda de estibordo. Essas duas meninas que estão adormecidas aí foram
trazidas da ilha e um grupo de marinheiros está buscando outros sobreviventes. Tem que lavá-las com água morna e sabão assim que despertem, e, quando estejam secas,
o ajudante do doutor lhes administrará um ungüento que o própio doutor está preparando.
- Têm piolhos além de sujeira e varicela, senhor?
- Certamente! E me parece que o doutor ordenará que corte seus cabelos. Quando tudo isso esteja feito, dara comida a elas, o melhor que possa, e as deitará onde
antes ficavam os cordeiros. Se necessitar de algo, peça a Lascas ou ao contramestre. Adiante, Jemmy Ducks.
- Sim, senhor.
- Se isto durar, terá um ajudante todo o tempo.
- Muito obrigado, senhor. Será como estar em terra. Dizem que os homens não podem escapar de seus destinos.
- E se não houver sobreviventes, receberá dois xelins ao mês por este duro trabalho.
Não havia sobreviventes. A Surprise afastou-se e se afastou buscando os ventos alísios do sudoeste, mas eram escorregadios e esse ano sopravam muito mais ao sul
da linha do Equador. Para alcançá-los teria que enfrentar a corrente equatorial e ventos tão fracos, às vezes desfavoráveis, que o avanço de meio grau para o sul
de um meio-dia ao do dia seguinte seria digno de se celebrar.
Mas a travessia era agradável. O céu tinha cor azul e o mar tinha um tom mais escuro; ocasionalmente havia rajadas de chuva quente que refrescava o ar; a água do
mar estava bastante fria, o bastante para que Jack se refrescasse pelas manhãs quando se jogava do pescante de popa. Ainda restavam muitas das provisões do contramestre,
do carpinteiro e do condestável que estavam a bordo desde que a haviam armado ao princípio, e, também, tinha muitos produtos frescos de longa duração. O incipiente
escorbuto havia remitido (o braço de Hayes havia se soldado e Brampton estava mais animado).
Os produtos eram de longa duração, e isso foi uma sorte, porque passaram muitas semanas antes que a Surprise alcançasse os ventos alísios, que, além disso, eram
tão fracos e caprichosos que não faziam honra ao seu nome nem a sua fama de fixos e constantes. A fragata navegava devagar, quase sempre completamente horizontal,
e as semanas deram um ritmo constante à vida dos tripulantes. Pela manhã bombeavam as dezoito polegadas de água de mar que tinham deixado entrar pela válvula, uma
tarefa que compartiam Stephen e Martin revezando-se para mover as alavancas, pois se sentiam em parte culpados daquela situação. Ao princípio os homens da guarda
da alvorada fizeram essa tarefa com desgosto, mas estavam acostumados a fazê-la e não se queixavam, nem sequer agora que a Surprise tinha tão bom odor como a Noz-moscada.
Na guarda da manhã, depois de atender aos poucos pacientes que tinham, regressavam à câmara dos oficiais e, como as ondas que vinham do sudeste eram suaves e predizíveis,
não tinham receios em pôr inclusive os espécimes mais frágeis sobre a mesa do refeitório. A parte da guarda da tarde em que não estavam comendo passavam no cesto
da gávea do mezena, revezando-se contando suas experiências e o que tinham observado. Stephen chegara agora à parte da viagem em que subira a ladeira de um imenso
vulcão adormecido, em cuja cratera havia um afastado paraíso onde os animais ficavam protegidos pela religião (no lugar viviam monges budistas), a piedade, a superstição
e o isolamento, e nunca os tinham caçado nem matado nem incomodado de nenhuma forma, assim que um homem podia caminhar entre eles sem despertar muita curiosidade.
Ali havia aberto passagem entre manadas de cervos que pastavam e se sentara com orangotangos. Martin não tinha coisas tão boas a contar das frias estepes da Patagônia,
aonde agora a narração tinha levado a Surprise, mas se esforçou o quanto pôde para fazer um bom papel. Falou do avestruz americano de patas com três dedos, do beija-flor
austral, da mesma coruja real que haviam visto no deserto do Sinai, do pato da Terra do Fogo que não voava, cujo ninho havia encontrado perto de porto Famine sob
um arbusto piroláceo coberto de neve (era o primeiro ornitólogo ocidental em vê-lo), e do periquito verde de calda longa, que, ao contrário do que se supunha, podia
ver-se voando muito ao sul, até a entrada do horrível estreito de Magalhães, sobre revoadas de pingüins que habitavam no árido litoral.
O assunto do qual tinha que contar era menos importante, mas sua exposição foi muito melhor já que estava acostumado a falar em público. Além do mais, como era um
homem alto e de peito largo, sua voz chegava mais longe que a de Stephen, que era um homem magro. Quando falava dos maravilhosos ovos, sua voz entrou pela clarabóia
da cabine, onde Jack estava escrevendo para sua casa:
Como lhe dizia, tínhamos a intenção de passar entre as ilhas Salomão e o arquipélago da Rainha Carlota, mas é possível que tenhamos que fazer escala em um ou outro
lugar para tratar de comprar alguns porcos, porque o avanço da fragata é lento.
Fez uma pausa e, depois de morder por um momento a ponta da pluma (a haste da pena de um albatroz menor), continuou:
Sei que não gosta que fale assim de nenhum homem, mas só direi que há momentos em que eu gostaria de mandar o senhor Martin ao diabo. Não é que não seja um amável
cavalheiro, como sabe muito bem, mas passa tanto tempo com Stephen que quase não posso vê-lo. Teria gostado de tocar com ele a partitura que vou executar esta noite,
mas os dois estão falando pelos cotovelos no cesto da gávea do mezena e não me agrada interrompê-los. Sem dúvida, o destino de um capitão de barco de guerra é viver
na solidão rodeado de esplendor, somente mitigada pelos banquetes mais ou menos formais e obrigatórios que dá ou lhe oferecem, porém, depois de ter um amigo íntimo
a bordo durante tantas missões, eu me acostumei a esse luxo e me incomoda muito que o afastem de mim.
O avanço da fragata era lento. Apesar de que lhe haviam limpado os fundos em Callao e da proteção das placas de cobre, havia ficado muito sujo naquelas águas cálidas,
tão sujo que alcançava meio nó a menos de velocidade com o vento fraco. O avanço das meninas na aprendizagem do inglês, em troca, era extraordinariamente rápido,
e teria sido mais se alguns marinheiros não lhes tivessem falado na gíria que empregavam na costa ocidental da África.
Chamavam-nas de Sarah e Emily, já que Stephen, que era indiscutivelmente responsável por elas já que as havia encontrado e as levara até a praia, tinha direito de
pôr-lhes nome e havia se oposto a dar-lhes os de Quinta-feira e Hipopótamo. Geralmente passava algum tempo com elas a cada dia. Quando se viram a bordo, estavam
assombradas e desconcertadas e permaneciam com as mãos dadas em seu escuro e resguardado alojamento, mas agora corriam pelo castelo com seus vestidos de lona retos,
sobretudo durante a guarda da tarde. Às vezes saltavam de prancha em prancha sem tocar as juntas enquanto cantavam com estranhos sons guturais ou imitavam a forma
de cantar dos marinheiros. Eram bem mais tontas e, em geral, comportavam-se bem, ainda que Emily às vezes mostrava-se obstinada e violenta. Não deixavam de ser magras
por mais que comessem e não tinham nem um pingo de beleza. Jemmy Ducks não teve dificuldade para ensinar-lhes as normas de asseio, já que haviam se acostumado a
se lavar quando estavam sanas, e o fato de que estivessem piolhentas se devia, em parte, ao tipo de cabelo que tinham, que era grosso e cacheado e se estendia seis
polegadas ao redor da cabeça até que o barbeiro da fragata o cortou rente e, em parte, porque naquela zona ainda não haviam inventado o pente. Tampouco teve dificuldade
para ensiná-las a ser pontuais, já que imediatamente compreenderam o significado das badaladas da fragata. Obviamente, tinham adquirido a noção do sagrado muito
antes de subir a bordo, pois punham uma expressão grave quando Jemmy Ducks as levava para a popa limpas e com o cabelo escovado, guardavam silêncio quando chegavam
ao castelo de popa e permaneciam junto dele como duas estátuas enquanto durava a cerimônia de passar revista.
Uma vez que foi possível estabelecer comunicação com elas, pareciam desassossegadas quando lhes perguntavam por sua vida anterior. Dava a impressão de que a consideravam
um sonho do qual haviam despertado para a vida real, que consistia em navegar eternamente, sempre para o sul-sudoeste, entre badaladas que soavam a um ritmo invariável,
usando vestidos de lona retos que se lavavam duas vezes por semana, falando algo parecido com o inglês, tomando no café da manhã mingau sem leite (o chocolate se
considerava um alimento muito gorduroso para meninas), no almoço, refogado de carne ou bolo de carne, vegetais e pescado com bolachas de barco (que lhes encantavam),
e na janta, caldo e mais bolachas. E até tal ponto era assim, até tal ponto acreditavam que essa era realmente sua vida que, depois de um tempo, quando uma canoa
cheia de habitantes das ilhas Salomão se abordou com a fragata, sentiram tanta angústia e tanto medo que gritaram "negros sacanas!" e foram correndo para baixo,
ainda que nunca deram mostras de aversão pelos tripulantes negros da Surprise, muito pelo contrário. E quando as trouxeram para o convés, Stephen com Emily pela
mão e Jemmy Ducks com Sarah, para ver se entendiam o chefe de um povoado que, obviamente, possuía porcos, protestaram, disseram que não podiam entender nem uma palavra
e prorromperam em tão amargos soluços que tiveram que levá-las dali.
- O senhor dirá que são tontas - disse Martin enquanto comiam na cabine -, porém, já percebeu que no castelo falam inglês com o sotaque da região ocidental da Inglaterra
e que no castelo de popa com outro muito distinto?
- Sem dúvida, têm uma extraordinária capacidade para as línguas - reconheceu Stephen. - E tenho a impressão de que em sua ilha usavam uma linguagem ou, pelo menos,
um vocabulário para comunicar-se com sua família, outro para falar com adultos fora da família e um terceiro para falar em lugares sagrados ou dirigir-se às deidades.
Talvez fossem variantes da mesma língua, ainda que estou seguro de que eram variantes muito diferentes.
- Acho que estão se esquecendo de sua própia língua - interveio Jack. - Já não se ouve falar entre elas em língua estrangeira, como costumavam fazer.
- É possível que uma pessoa chegue a se esquecer de sua própia língua? - perguntou Pullings. - De línguas que aprendeu, como o latim e o grego, sim, mas da própia,
não acredito. Claro que posso estar equivocado, senhor, porque um capitão de navio sabe mais que um capitão de corveta, naturalmente.
Stephen tomou um trago de vinho. Em certo momento estivera a ponto de esquecer-se do irlandês, sua língua nativa, a primeira que falara, já que fora criado no condado
de Claire, e, ainda que houvesse ressurgido das profundidades depois dos três anos que estivera usando-a para falar com Padeen (seu servente quase monolíngüe), ainda
havia palavras, algumas delas muito comuns, cujo som lhe era familiar mas cujo significado havia esquecido por completo.
Padeen Colman, apesar de ser um homem analfabeto, incapaz de revelar, ainda que fosse inocentemente, qualquer informação que pudesse obter, já que sabia muito pouco
inglês e, além disso, o pouco que sabia era quase incompreensível para seus amigos porque sua fala era defeituosa, era o servente ideal para alguém tão vinculado
à política e ao Serviço Secreto Naval como Stephen; contudo, era muito mais que isso, um homem amável e muito afetuoso. Stephen lhe tinha muito carinho e esperava
encontrar-lhe nos presídios de Nova Gales do Sul, aonde o tinham trasladado, e fazer por ele tudo o que pudesse.
Stephen se deu conta de que todos os que estavam na mesa estavam em silêncio, e ao levantar a vista notou que lhe sorriam.
- Peço desculpas - disse. - Minha mente estava muito longe daqui. Perdoem-me, peço. Alguém me fez alguma pergunta? - Não, ninguém - respondeu Jack, enchendo sua
taça. - Estava dizendo ao Tom que havia chegado o momento de diminuir velame, e que quando o convés já não pareça o costado de uma casa, talvez gostassem de se livrarem
de suas elegantes casacas e levarem suas lunetas ao cesto da gávea. Nestes arrecifes, ilhas e ilhotas rochosas, amiúde há aves a cinqüenta milhas ao redor. Há algumas
aves muito curiosas que fazem ninho na ilha Norfolk e regressam para eles de noite.
Até pouco antes que a Surprise cruzasse o trópico de Capricórnio, os ventos alísios não começaram a soprar realmente, mas desde então a fragata, navegando de bolina
ou com o vento a dez graus pela popa, demostrou o que era capaz de fazer com as joanetes desdobradas, as gáveas rizadas e uma longa série de bujarronas e velas de
estai. A espuma e também a água às vezes saltavam acima da amura de barlavento, e as meninas se empapavam e gritavam de alegria. A oscilante coberta chegava a um
ângulo de inclinação do qual era impossível enfocar uma ave com a luneta, a menos que a pessoa fosse atada a uma base firme, ainda que, de qualquer maneira, era
provável que a espuma cobrisse a sua luneta, independentemente de que fosse uma valiosa luneta acromático de grande potência. Ainda que estivesse com os fundos sujos,
durante o dia a Surprise navegava a doze ou treze nós e durante a noite, com as joanetes arriadas, a sete ou oito, entre enormes ondas, por águas sempre transparentes
(excetuando a espuma), como se tivessem sido criadas no dia anterior, que variavam de cor, desde o índigo ao água-marinha. A velocidade só diminuía na alvorada e
no crepúsculo, quando Jack e o senhor Adams, a quem lhes encantavam os números, mediam a temperatura da água a várias profundidades, a salinidade e a pressão atmosférica.
Durante esses dias, revoadas de nuvens brancas passavam muito alto pelo céu, em alguns muito mais alto e em direção contrária ao vento que soprava do oeste acima
dos alísios, um interessante fenômeno que raras vezes podia ver-se tão bem. Mas isso tinha o inconveniente de ocultar as estrelas e mesmo o sol, o que impedia fazer
medições precisas. E como Jack não gostava de depender de estimativa, sobretudo nessas águas, decidiu navegar a moderada velocidade numa tarde para ver se os serviolas
podiam avistar algum dos famosos arrecifes dessas latitudes, como o Angerich, onde a espuma das grandes ondas que rompiam parecia água fervendo mesmo quando havia
maré viva, que muitos capitães o usavam como ponto de referência.
Jack pediu café e lhe trouxeram em uma elegante cafeteira de prata protegida por um forro de branco cânhamo de Manila, um forro primorosamente tecido por Bonden.
Enquanto todos o tomavam, a fragata diminuiu a velocidade, o ruído que a água fazia ao passar por seus costados diminuiu e eles deixaram de se sentar atados às cadeiras.
- Quando suba ao convés, não tenha receio de ir ao lado de barlavento. Desse lado é onde deveria estar o arrecife, se tem senso do dever.
Fez extensiva sua cortesia a Martin, convidando-lhe a jantar na cabine e a tocar música essa noite, apesar de Martin tocar sem brilhantismo e com bastante rudeza
e de não saber calcular bem nem o tempo nem o tom.
Stephen e Martin se situaram discretamente no final do castelo de popa, junto ao lado de barlavento. Dali podiam ver uma extensa zona de águas azuis e uma interminável
série de ondas de cristas redondas, algumas coroadas de espuma branca, bastante separadas entre si e interceptadas por ondas transversais que a corrente) local formava.
Estavam apoiados na borda, em mangas de camisa, e de vez em quando lhes salpicava a espuma, mas se sentiam a vontade ao sol, que esquentava apesar de permanecer
oculto.
- O senhor chegou a conhecer Macmillan, meu ajudante na Noz-moscada, né? - perguntou Stephen.
- Eu o vi somente um momento. É um escocês jovem e magro que se preocupa muito que o deixem encarregado da enfermaria.
- É um jovem amável, consciencioso e diligente, porém, sem dúvida, inexperiente. Recordo-me que lhe falei das penalidades da vida humana, especialmente as que os
médicos sofrem. Falei da contínua e insistente demanda de compreensão e atenção pessoal que chega a esgotar a paciência de qualquer homem, a menos que seja santo,
ao final do dia, o que lhe faz mostrar-se abertamente indiferente em um hospital ou ante pacientes pobres e veladamente indiferente ante pacientes ricos, ainda que
se envergonhe de sua indiferença quando chega a dominar de alguma forma a situação. Mas me esqueci de outro aspecto insignificante, mas que pode chegar a ser sumamente
irritante.
Então olhou para onde estava Davies O Lerdo guardando uma camisa remendada em sua bolsa. O corpulento e aterrador marinheiro às vezes ficava possuído de alegria
durante breves períodos, e nesse momento pegou a Emily, colocou-a sobre suas costas, justo detrás do pescoço, e, depois de observar-lhe: "segura-te bem", subiu correndo
pelos amantilhos do mastaréu até o cesto da gávea, depois passou por cima da grade e seguiu subindo até a cruzeta, enquanto a menina dava gritos de alegria.
- Esse é um exemplo. Esse tipo gigantesco, por quem admito que sinto verdadeira simpatia, é meio louco, como o senhor sabe muito bem, e lhe dou semanalmente uma
poção de eléboro para evitar que cause danos a seus companheiros, porque é irrascível e extraordinariamente forte. Pois bem, cada vez que vai buscar o remédio vai
arrastando os pés, põe uma expressão triste, franze os lábios, inclina sua enorme cabeça para um lado e responde a minhas perguntas com a mansidão de um cordeiro.
Eu lhe daria um chute se me atrevesse.
- Arrecife à vista! - ouviu-se do tope.
Depois, a habitual pergunta, a habitual localização, o habitual ir e vir apressado, e por fim o inconfundível torvelinho de espuma, situado pela amura de bombordo,
pôde ser visto do convés.
- Está muito bom e seria um ingrato se me queixasse - disse Martin depois de observá-lo durante algum tempo com a luneta -, mas gostaria que o capitão Aubrey nos
tivesse permitido ver tão claramente a grande barreira do coral.
- Eu também teria gostado de vê-lo, sobretudo, a ilha Lizard, da qual Cook e sir Joseph exploraram os estreitos, mas compreendo que o capitão pusesse obstáculos.
O Endeavour finalmente pôde passar ao exterior do arrecife por um destes estreitos, mas então o vento rolou e começou a soprar para terra e o forte fluxo de ondas
o empurrou pouco a pouco, inevitavelmente e, sem que seus homens pudessem fazer nada, para o grande muro coralíneo coberto de gigantescas ondas. No último instante
um cisco de vento o empurrou o suficiente para que a corrente, no momento em que a maré subia, outra vez o arrastasse para um canal do outro lado do arrecife. Recordo
que quando sir Joseph me contou, ainda sentia o horror que experimentou nos últimos momentos diante da aparente destruição. Ocoreu-nos algo muito parecido quando
estávamos na Diane frente ao arquipélago de Tristão da Cunha, como lhe contei. Nesse momento eu me encontrava abaixo do convés, mas a fragata já estava a dez jardas
do impressionante escarpado da ilha Inacessível quando uma rajada de vento, também providencial, a afastou dali. E o capitão está firmemente decidido a não voltar
a depender dessa forma da Providência. Não quer ter absolutamente nada que ver com arrecifes de coral nem de nenhum outro tipo.
Martin ficou digerindo isso durante algum tempo e depois, em voz baixa, disse:
- As meninas já têm uma grande família de ratos domesticados.
- Ah, é? Sabia que cada uma tinha um, não vários.
- Pelo menos têm meia dúzia - acrescentou Martin. - Acha que esse é um petrel da ilha Norfolk?
- Poderia ser - respondeu Stephen. - Há um grupo um pouco mais ao leste. Não, querido Martin, o leste é a direita.
- Porém, indubtavelmente, não no hemisfério sul.
- Perguntaremos ao capitão Aubrey, que provavelmente o saberá. Mas estão à direita, de toda forma. Ah, desapareceram!
Voltaram a falar dos ratos, de como eram mansos e de que agora podiam ser vistos indo de um lado a outro em pleno dia e muito acima da bodega e do lugar onde se
guardava a amarra da âncora, o que os marinheiros atribuíam à desacostumada limpeza do lastro, coberto a cada noite por grande quantidade de água que se bombeava
todas as manhãs. Sabia-se que os ratos engordavam com o mau odor, e como agora tratavam a fragata de tal maneira que o lastro ficava muito limpo, tão limpo como
uma praia paradisíaca, não havia mau cheiro.
- Barco à vista! - gritou o serviola desde o tope de um mastro.
- Onde? - perguntou Jack.
E desta vez o serviola respondeu:
- Justo adiante, senhor, quase exatamente em frente. Tem exárcia de cruz, mas não sei se é um navio ou um bergantim.
Desde que se havia feito a marcação tomando como ponto fixo o arrecife Angerich, a Surprise havia desdobrado metodicamente uma vela depois de outra e agora navegava
a uns dez nós, mas o barco que estava adiante navegava a mais velocidade. Pouco depois Oakes, da cruzeta do mastaréu, gritou que era um navio e que tinha abertas
as abas de barlavento superiores e inferiores.
Um pouco mais tarde, acrescentou:
- Tem um galhardete de barco de guerra, senhor.
E ainda mais tarde acrescentou:
- Tem duas pontes, senhor.
- Ah, ah, ah, deve de ser o velho Tromp, de cinqüenta e quatro canhões! - exclamou Jack dirigindo-se a Pullings. - Billy Holroyd está ao comando agora. Conhece o
capitão Holroyd, Tom?
- Não, senhor, ainda que já ouvi falar dele, certamente.
- Fomos companheiros de tripulação no Sylph quando éramos garotos - explicou, e depois, alçando a voz, acrescentou: - Digam a Killick que venha.
- Senhor? - disse Killick, que apareceu como o boneco de uma caixa surpresa.
- Reviste a despensa para ver o que temos para dar um banquete.
- Ele fez o sinal secreto, senhor - anunciou Reade ao senhor Davidge, o oficial de guarda.
Davidge repetiu isso a Pullings, que ocupava outra vez o posto de imediato, e Pullings, a Jack, que ordenou dar a resposta habitual e acrescentar o sinal que indicava
"ponha o barco em pairo e venha jantar". A Surprise virou para que pudessem ler melhor a mensagem e ao mesmo tempo Jack disse:
- Preparados para diminuir velame e pô-la a pairar.
Durante alguns momentos não se pôde ver a resposta do Tromp, já que se aproximava de frente e tinha o vento a vinte e cinco graus pela alheta, mas por fim Reade,
que adquirira agilidade para sustentar uma luneta apoiando o extremo em algum lugar da exárcia, gritou:
- Diz: "Levo despachos", senhor.
- Não pode parar - informou Stephen a Martin. - Acho que não poderia parar nem ainda que estivéssemos acossados por vorazes tubarões em vez de por uma voraz curiosidade.
Realmente não se deteve, mas o capitão não seguiu estritamente as régras, pois mandou afrouxar as escotas, e o barco, que era de construção holandesa e de costados
quase retos e se dirigia à Índia pela rota que passava pelo estreito de Torres, passou a menos de vinte jardas da Surprise, que estava ao pairo. Então os dois capitães
subiram nos parapeitos.
- Como está, Billy? - inquiriu Jack, agitando o chapéu no ar.
- Como está, Jack? - perguntou Billy.
- Que notícias tem?
- Na Índia dizem que Boney conseguiu outra vez em algum lugar da Alemanha, acho que em Silésia. Apoderou-se de cento e vinte canhões e fez em pedaços a ala direita
do exército prussiano.
- Que notícias tem da Inglaterra?
- Não havia nenhuma quando saí da baía de Sidney. O Amelia tinha quatro meses de atraso e...
As outras palavras o vento levou junto com o barco. Todos os tripulantes da Surprise estavam escutando descaradamente e nos rostos de todos se refletiu a decepção,
e ao ouvir a ordem de Jack "puxar das braças para trás!" não a cumpriram com tanto zelo como costumavam fazê-lo.
- Sinto muito que não tenha conhecido o capitão Holroyd desta vez - disse Jack quando se reuniram para jantar. - Estou seguro de que o acharia simpático. Tem uma
voz muito doce, de tenor, que é algo raro na Armada, onde tem que se gritar desaforadamente. Espero que pelo menos nos beneficiemos da procura de Killick na despensa.
Talvez tenha alguns dos manjares que nos presenteou amavelmente a senhora Raffles.
A guarda havia começado, e há tempo os marinheiros tinham arriado as joanetes e colocado dois rizes nas gáveas. Quando soaram as três badaladas da guarda de prima,
a última delas desigual, puderam ouvir suas vozes na grande cabine, distantes mas claras. Imediatamente Jack olhou para a porta da cabine-refeitório, que geralmente
se abria tão pontualmente como a de um relógio de cuco, dando passagem, em vez de a um pássaro, a Killick, que dizia: "O jantar está servido, senhor, com sua permissão"
ou "o jantar está na mesa", dependendo da companhia.
Não se abriu, mas detrás parecia que havia uma briga. Jack serviu mais vinho de Madeira.
- Agora que o penso, senhor Martin - disse -, acho que o senhor preferia xerez como aperitivo. Por favor, desculpe-me ... - estendeu o braço para pegar outra garrafa.
- Oh, não, senhor, não! - exclamou Martin. - Prefiro beber vinho de Madeira. Não trocaria este vinho por nenhum xerez. É seco, mas tem muito corpo. Despertou-me
um apetite de leão.
Stephen foi pegar seu violoncelo, sentou-se no escaninho que ficava junto ao janelão de popa e tocou em pizicato Rakes of Kerry enquanto cantarolava:
- "Escutará em uma distante encruzilhada coberta pela grama, na noite da festa pela chegada do verão, quando a fogueira arde na montanha, muitos pífanos e cinco
violinos, a cujo ritmo bailarão os jovens como possuídos e as jovens, mansas como pombas, mas sem perder o passo."
- Por favor, toque-a outra vez - rogou Jack.
Stephen a tocou outra vez e depois voltou a tocá-la com variações e acrescentando alguns pensamentos seus. Por fim a porta se abriu e Killick, com a cara pálida
e aspecto de louco, ficou no umbral.
- Está pronto o jantar? - perguntou Jack.
- Bem, a sopa, sim - respondeu Killick depois de vacilar um momento. - Quer dizer, mais ou menos. - Então estourou de raiva e disse: - Porém, senhor, os ratos comeram
as línguas defumadas... comeram as geléias... comeram o chá enlatado... e comeram os últimos pepinos curtidos de Java... E agora estão passeando por aí despreocupadamente
e olhando com impertinência. Revirei tudo, senhor, tardei horas mexendo em tudo.
- Bem, pelo menos não beberam o vinho. Ponha isso na mesa, sirva a sopa e diga ao cozinheiro que faça o que possa. Vamos, jogar uma mão.
- Acho que este banquete foi um fiasco, senhor - desculpou-se Jack.
- Oh, não, senhor! - exclamou Martin, e acrescentou: - Não há nada que eu goste mais que o... - mas vacilou um momento tratando de encontrar um nome para o prato
preparado com carne de vaca ainda meio salgada, depois de conservada em sal num barril por dezoito meses, cortada e frita com bolachas de barco trituradas e muita
pimenta - ...fricasé.
- Bem - disse Jack. - Mas acho que o divertimento em dó maior que o doutor tocará... - e se interrompeu quando estava a ponto de dizer: "nos divertirá", mas acrescentou:
- ...servirá como compensação.
Vários dias depois, após uma violenta tempestade que, conforme profetizaram todos, e muito acertadamente, precederia a um período de calmaria, quando se achavam
aproximadamente a duas milhas de Sidney, Stephen se deu conta de que a caixa para guardar folhas de coca que tinha na mesinha estava vazia, assim que desceu para
a cabine que compartia com Jack para buscar mais. As folhas estavam imprensadas dentro de brandas fundas de couro em forma de salsichas e com costuras tão perfeitas
como as que se faziam em cirurgia, cada uma metida em uma bolsa de pele de duas capas untada com azeite para protegê-la da umidade. Havia calculado quase exatamente
a duração de cada uma, e além da bolsa que usava agora, a bolsa que estava aberta, havia suficientes para que durassem até que chegasse a Callao. Porque as folhas
procediam de Peru.
As bolsas ficavam guardadas em um enorme baú de quebraço, um elegante baú javanês com intrincadas incrustações de latão na tampa e nos lados, e ainda que ouvira
falar da atitude confiada dos ratos e os vira, pensava que não tinha por que temê-los nesse caso, sobretudo porque aquele paiol era usado para guardar vinho, roupa
de inverno e livros, coisas que não tinham nada que ver com a despensa. Mas os ratos o enganaram, ainda que não a ele primeiro que a outros tripulantes. Roeram as
pranchas do piso e o fundo do baú, e dentro não havia nada mais que excremento de rato. Nada. Haviam comido todas as folhas e todas as bolsas impregnadas da essência
das folhas. Além disso, era óbvio que estavam desejosos de entrar outra vez, que estavam impacientes para voltar a roer a madeira sobre a qual ficavam colocadas
as bolsas, já que um grupo deles estavam justo fora do feixe luminoso projetado pela lanterna.
"Tenho que cuidar das ervas e da sopa dessecada", pensou e se foi para a enfermaria, onde Martin estava fazendo o inventário do estojo de remédios para repor o que
faltava em Sidney.
- Escute, colega - disse: - esses infernais ratos comeram minhas folhas de coca, as folhas de coca, lembra?, as que mastigava de vez em quando.
- Lembro muito bem. Deu-me algumas quando estávamos frente ao cabo de Hornos e eu tinha muito frio e muita fome. Acho que o decepcionei, pois me queixei de que não
me fez nenhum efeito e da subseqüente falta de sensibilidade no paladar primeiro e em toda a boca depois, pelo que a pouca comida que ingerimos me pareceu insípida.
- Sem dúvida, o efeito depende da idiossincrasia. Em mim, e acho que na maioria dos peruanos, produz certa euforia e serenidade, aumenta nossa capacidade de reflexão
e suprime o sono e a fome. E é evidente que os ratos sentiram tudo isso inclusive mais intensamente. Agora recordo que a última vez que abri o baú para sacar folhas
de uma bolsa aberta e encher a caixa que tenho sobre a mesinha, faz aproximadamente duas semanas, deixei cair alguns fragmentos no piso, e como tinha tanta abundância,
cometi a insolência de não recolhê-los. Provavelmente eles encontraram isso, comeram e gostaram tanto do resultado que trataram por todos os meios de pegar o restante,
assim que terminaram por abrir um buraco no fundo. Penso que deveríamos guardar todas as ervas e coisas similares em caixas metálicas forradas. Como os ratos sentiram
tanta satisfação ao comer a coca e devoraram até a última folha, é indubitável que estão buscando mais desesperadamente.
- Isso explicaria a devastação que causaram na despensa do capitão, que nunca antes haviam atacado.
- Também explicaria a mudança de comportamento que observamos: a mansidão, a atitude confiante com que vão de um lado para outro e a contemplação dos que passam
por seu lado. Assim ficavam quando comiam as folhas. E agora estão desejosos de conseguir mais. Quando contemplava as ruínas de minhas provisões, de minha única
gratificação, Martin, estavam ao meu redor guaguejando, quase sem poderem se conter.
- Suponho que lhe terá causado muita tristeza ver destruída toda sua reserva - disse Martin -, mas espero que sua falta não seja tão grave como a do tabaco.
- Oh, não! Não causam um vício tão forte como o tabaco ocasiona às vezes, ainda que, curiosamente, alguns de seus efeitos são similares. Além do mais, tiram a vontade
de fumar. Ainda que ainda me compraz fumar um charuto ocasionalmente depois de uma boa refeição, se tivesse pelas manhãs minha pequena bola de folhas orvalhavas
com suco de lima, estaria feliz sem isso.
No dia seguinte, Emily e Sarah foram mordidas por seus ratos domesticados. Choraram, e quando Stephen cauterizou suas feridas, choraram ainda mais. Pela tarde os
ratos desapareceram dos lugares da fragata onde haviam causado mais assombro, mas podia-se ouvi-los brigando onde se guardavam as amarras da âncora e no porão. Contudo,
na fragata havia poucos tripulantes que pudessem ouvi-los roendo furiosamente, dando gritos de raiva e berros de morte de proa a popa, porque na calmaria haviam
aparecido na superfície várias tartarugas, tartarugas verdes, e eles tinham baixado os botes da Surprise com muito cuidado e se aproximaram delas remando suavemente.
Pegaram quatro, todas fêmeas e muito pesadas, de não menos que um quintal. Ademais, teve lugar a matança do último porco comprado nas ilhas Salomão, pois Jack Aubrey
insistiu em oferecer a Martin algo realmente comestível que fizesse esquecer o desafortunada jantar. Essa era uma cerimônia para quem se criara rodeados de porcos,
como era o caso da maioria dos tripulantes da Surprise, e a seguiam chouriços e muitos outros manjares.
A tarde seguinte a esse almoço Stephen foi para a cabine alternativa, a que ficava mais abaixo, onde poderia escrever sozinho. Pôs tampões de cera nos ouvidos para
poder escrever em silêncio, ajustou a tela verde da lâmparina, apoiou o charuto em um prato de peltre e escreveu:
É absurdo, minha querida, que neste dia, quase o último de nossa viagem, todos os homens do mar tenham que almoçar como condes; contudo, foi assim e assim será amanhã,
porque os oficiais convidaram Jack e os dois guardas-marinhas para o que provavelmente será o último almoço antes de chegarmos à baía de Sidney, pois o vento reviveu,
e, apesar dos tampões, posso ouvir o moderado impacto das ondas contra a proa da fragata. Carne de porco fresca e carne de tartaruga! Ambas são boas e, certamente,
parecem muito mais depois de ter passado um tempo com muito poucos víveres. Comi vorazmente e agora estou fumando como um voluptuoso turco, o que me recorda o curioso
incidente do outro dia. Desci para encher com folhas de coca a caixa que tinha na mesinha e vi que os ratos haviam comido toda minha reserva. Comeram tudo, até as
bolsas untadas com azeite. Há algum tempo o comportamento dos ratos da fragata (muito numerosos) provoca comentários, e agora está claro para mim que se converteram
em escravos da coca. Depois de tê-las comido todas, agora que se vêem privados delas, sua mansidão, o que poderíamos chamar sua complacência e seu atrevimento desapareceram.
São ratos ou algo pior que ratos e brigam e se matam uns aos outros. Se destampasse os ouvidos poderia ouvir seus chiados. Até agora não matei nenhum nem tive desejo
de fazê-lo, mas eu também manifesto essa falta, ainda que de outra maneira: como vorazmente e com os olhos exorbitados (enquanto que a coca impõe moderação), fumo
e com muito prazer (enquanto que a coca tira a vontade de fumar) e o sono agora faz com que meus olhos fechem (enquanto que a coca me fazia manter-me bem acordado
até a guarda de meia). Espero poder chegar a Sidney depois de amanhã ou no primeiro, segundo, terceiro dia depois ou infinitos dias depois, porque, apesar das decepcionantes
palavras "não há notícias da Inglaterra", é possível que logre saber algo de ti por um barco que tenha chegado antes, e, também, ainda que isto não possa se comparar
com o anterior, porque poderia conseguir uma nova reserva graças a algum médico ou algum boticário, como ocorreu em Estocolmo. Lamentaria ver-me reduzido ao estado
dos dois animais que agora vejo em um canto perto de minha banqueta, mas não os ouço, e como não os ouço, o horror que sua feroz luta produz é mais intenso. Mas
o homem (pelo menos este homem em particular) é tão débil que se uma inocente folha pode proteger-lhe ainda que seja um pouco, que viva a inocente folha!
O almoço que os oficiais ofereceram ao capitão foi mais copioso que o do dia anterior, se era possível. Não foi tão elegante, pois como os oficiais da Surprise eram
simplesmente tripulantes de uma embarcação alugada pelo rei, não tinham outros objetos de qualidade maior que o peltre que não fossem as colheres e os garfos; contudo,
o cozinheiro da câmara dos oficiais, por meios que só ele conhecia, havia conservado a habilidade de fazer um excelente pudim de sebo que chamavam de "menino afogado",
que, como todos sabiam, era a sobremesa favorita de Jack, e o serviu em uma tampa de escotilha bem lavado entre gritos de alegria. Outra diferença entre a Surprise
que era propriedade do rei e a Surprise alugada pelo rei era que na segunda não havia serventes atrás das cadeiras dos oficiais. Isso se devia, em parte, a não haver
a bordo nem infantes da marinha nem grumetes, a principal fonte de suprimento, e, em parte, a que destoaria do atual estado de ânimo da tripulação. Esse almoço não
teve tanta magnificência e a sucessão de pratos foi mais lenta, mas a conversa foi muito mais animada. Quando Killick e o despenseiro da câmara dos oficiais partiram,
Jack, com a cara vermelha pela saciedade, olhou ao seu redor sorrindo para os anfitriões e disse:
- Não sei se algum dos senhores, cavalheiros, já esteve em Sidney antes.
Todos responderam negando.
- O doutor e eu estivemos lá faz vários anos, quando eu estava ao comando do Leopard. Foi no momento em que havia uma difícil situação porque os militares e o governador
Bligh estavam em desacordo, assim que não fizemos mais que pegar as poucas provisões que os militares nos permitiram pegar e seguimos navegando. Mas estive em terra
o tempo suficiente para fazer uma idéia da situação, e foi realmente desagradável. O lugar era governado pelos militares então, e ainda que pouco depois puseram
à sombra aos que depuseram ao governador, ouvi que as coisas seguem mais ou menos igual. Vou contar-lhes o que vi, que provavelmente será o que os senhores verão
quando desçam a terra. Não tenho nada que dizer do desacordo entre o almirante Bligh e o Exército, mas lhes direi que, deixando de um lado essa discórdia, nunca
conheci a nenhum militar que não sentisse antipatia pelos marinheiros. Esses tipos me pareceram exagerados no vestir, mal-educados, inospitaleiros e brigões. Sei
que o Exército não põe muitos obstáculos às pessoas que compram um cargo em regimentos recém criados e isolados, e mesmo assim, fiquei assombrado. Tinham monopolizado
o comércio, tinham formado um cerco que não permitia a concorrência; haviam se apoderado de toda a terra boa, que cultivavam empregando os presos como mão-de-obra
sem pagar-lhes nada; exploravam o lugar ao máximo. Mas muito pior que isso, muito pior que a fraudulenta venda ao governo a preços exorbitados, era o tratamento
que davam aos presos. Estive a bordo de mais de um inferno flutuante e lhes asseguro que partem o coração de qualquer homem, mas nunca vi nada parecido à crueldade
que vi em Nova Gales do Sul. Eram comuns castigos de quinhentos açoites, e no breve tempo que estive ali pude ver como matavam a dois homens a chicotadas. Conto-lhes
isto porque, como esses tipos sabem muito bem que os recém chegados se surpreendem e lhes consideram sem-vergonhas e são muito susceptíveis, muito propensos a sentir-se
ofendidos, poderiam os senhores encontrar-se de repente desafiados a um duelo por um insignificante comentário. A meu ver, o melhor é tratar-lhes com distante cortesia
e aceitar somente os convites oficiais. Aqui não tem ninguém que possa ser acusado de má conduta, mas em uma disputa com um sem-vergonha estará nas mesmas condições
que um pobre em um pleito, porque em ambos os casos se resolvem a cara ou coroa e em nenhum deles se faz justiça, e, além disso, um não tem nada que ganhar e ele
não tem nada que perder.
- Disse o senhor pleito? - perguntou West.
- Sim - respondeu Jack. - O que realmente queria dizer era que um sem-vergonha pode apontar uma pistola tão bem como um homem decente e que é muito melhor evitar
a possibilidade de semelhante briga. Havia lá um tipo arrogante chamado MacArthur que meteu uma bala no ombro do coronel Patterson, ainda que Patterson fosse um
oficial como deve ser e o outro fosse um canalha.
- Conheci MacArthur em Londres - interveio Stephen. - Estava ali porque ia ser julgado por um conselho de guerra; e saiu absolvido, certamente. Southdown Kemsley,
que há tempo mantinha correspondência com ele com respeito às ovelhas, levou-lhe para almoçar na Royal Society. É um tipo arrogante, dogmático e vulgar. A princípio
seu comportamento é formal, mas depois excessivamente familiar, e então diz muitas obscenidades. Queria comprar algumas ovelhas merinas do rei e tinha a intenção
de visitar a sir Joseph Banks, que tem a seu cargo o rebanho, mas sir Joseph, que está a par dia do que ocorre na colônia, tinha tantos informes sobre ele que o
qualificavam de indesejável que se negou a receber-lhe. O seu regimento é conhecido em todas as partes como Corpo de Rum porque é o rum a base dos negócios, a riqueza,
o poder, a influência e a corrupção de seus membros. Acredito que algumas coisas devem ter mudado com a chegada do governador Macquarie e o 73º Regimento, mas os
oficiais do velho Corpo de Rum ainda estão aqui, na Administração ou sentados em grandes extensões de terreno fértil que eles mesmos se adjudicaram; ou seja, mais
ou menos governando o país, por desgraça.
A refeição não terminou com essas graves palavras, mas com uma alegre canção. Mas o desjejum da manhã seguinte foi muito triste, ainda que já se pudesse ver claramente
a costa de Nova Gales do Sul pelo oeste e o prático de porto estivesse a bordo. De um lado e do outro da cafeteira havia um desacostumado silêncio. Jack, que não
se banhara no mar pela manhã como costumava fazer, tinha a cara inchada e amarelada, e seus olhos, geralmente de um brilhante azul, agora estavam cinzentos e tinham
debaixo bolsas descoloridas. Também tinha muito mau hálito.
- É verdade que o doutor não se embebedou? - perguntou Bonden a Killick na cozinha, onde este moia os grãos de café para fazer outra cafeteira.
- Não se embebedou, mas gostaria que assim fosse - respondeu Killick -, porque isso teria diminuído sua irritabilidade. Não sei o que lhe ocorreu, pois geralmente
é um tipo comedido.
- Pegou Sarah e Emily até que gritaram, e disse a Joe Plaice algo horrível quando tropeçou com ele no castelo caminhando para trás, algo como: "Não vê por onde anda?
Não tem olhos na cara maldito e estúpido traseiro gordo, filho de um estivador?".
- Eu te digo uma coisa, Stephen - disse Jack depois de um prolongado silêncio. - Acho que a tartaruga dos oficiais não estava em boas condições.
- Bobagem - respondeu Stephen. - Esse era o réptil em melhores condições do mundo. O problema é que comeu demais, igual que anteontem e desde que há algo para comer.
Já lhe disse uma e outra vez que está cavando sua sepultura com os dentes. Agora tem pletora, simples e claramente pletora. E posso aliviar os sintomas, mas não
posso fazer nada por sua falta de moderação para satisfazer seus desejos.
- Por favor, faça algo para aliviá-los, Stephen - Jack pediu. - A menos que o vento amaine, esta tarde jogaremos a âncora, e provavelmente o governador nos convidará
para almoçar amanhã, mas neste estado não poderia suportar ver uma mesa servida.
- Teria que tomar remédios, sem dúvida, e isso o obrigaria a ficar sentado no sanitário quase todo o dia e talvez parte da noite. Nas pessoas obesas como você o
funcionamento do reto é lento.
- Tomarei o que me ordene - assegurou Jack. - Para limpar e voltar a aprovisionar uma embarcação adequadamente e sem perda de tempo, tem que se ter bastante boas
relações com as autoridades, e para estabelecer boas relações com as autoridades um tem que comer muito e beber o vinho que lhe sirvam como se gostasse. Mas neste
momento, a idéia de qualquer coisa de comer que não sejam bolachas de barco - acrescentou, levantando um pedaço - e café negro me dá repugnância.
- Vou trazer o necessário - disse Stephen.
Regressou vários minutos depois com um pote de comprimidos, um frasco e um copo graduado.
- Engula isto bebendo este outro - ordenou Stephen dando-lhe um comprimido e o copo meio cheio.
- Estás seguro de que é suficiente? - perguntou Jack. - Não sou um desses tipos de pouco peso ou doentes que costuma tratar, e esta pílula é muito pequena.
- Pode ficar tranqüilo - replicou Stephen. - Ainda que seja o maior homem da terra, a poção negra e a pílula azul limparão suas entranhas, estimularão seu fígado
e lhe farão sentir-se bem.
Voltou a pôr a rolha no frasco dando um golpe seco e saiu refletindo sobre a exasperação, um sentimento que algumas pessoas e algumas situações provocavam em grau
supremo.
Depois de ter vencido por uma estreita margem a três ratos na enfermaria, trabalhou em seus arquivos um pouco. Depois fez um cigarro com papel de fumar e subiu ao
castelo de popa para acendê-lo. Haviam lhe feito alguns comentários a respeito de fumar abaixo do convés, na cabine mais baixa, e tivera que reconhecer que a fumaça
do tabaco que passava dali para a câmara dos oficiais contribuía para que ao amanhecer o ar se parecesse com o de uma taberna e fosse muito desagradável.
Martin estava no convés há um tempo, observando a bonita baía que se abria diante deles.
- Aí está a baía de Sidney afinal - anunciou em tom entusiasta e de certa forma desafiante.
- Lamento contradizer-lhe - disse Stephen -, mas isto é Port Jackson, a baía de Sidney é uma pequena baía situada a umas cinco milhas para a esquerda.
- Meu Deus! Quer dizer que é o própio? Não tinha idéia.
- Claro, porque não o disse mais de cem vezes.
- Assim que aqui habita o tubarão de Port Jackson! - exclamou Martin, olhando ansiosamente fora da borda.
- É isso! - disse Stephen, que havia pensado então muitas vezes antes, mas não nesse dia. - Vejamos se podemos pescar um.
Passou por entre um grupo de marinheiros que estavam ajoelhados no convés melhorando o aspecto das juntas e por fim chegou até as adriças da sobremezena, onde estavam
pendurados os arpões com cabos amarrados. Mas antes que pudesse pegá-los, Pullings se aproximou e disse com firmeza:
- Não, senhor. Hoje não, por favor. Hoje não se podem pescar tubarões porque estivemos limpando a coberta desde que soaram as duas badaladas na guarda da alvorada.
Estou seguro de que o senhor não quererá que a Surprise faça o ridículo na baía de Sidney.
Stephen poderia ter dito que aquele tubarão inofensivo, com uma curiosa disposição dos dentes e de tamanho muito pequeno, de não mais de quatro pés de comprimento,
não causaria muitos inconvenientes, mas as palavras se atravessaram na garganta ao ver a expressão grave de Tom Pullings, dos tripulantes da Surprise, que tinham
largado seu trabalho para olhá-lo, e inclusive do piloto, que havia sido marinheiro de barco de guerra.
- Pescaremos um par deles para o senhor depois de amanhã - tentou dissuadir-lhe Pullings.
- Meia dúzia - acrescentou o contramestre.
- Oh, por favor, senhor, venha para a cabine imediatamente! - exclamou Jemmy Ducks. - Sarah engoliu um alfinete.
Os médicos tiveram muita dificuldade e passaram muito tempo tentando sacar o alfinete, mais que curando feridas feitas por pedaços de madeira pontiagudos e fraturas
e fazendo amputações de pouca envergadura. Quando por fim recuperaram o alfinete e deitaram a menina exausta, compreenderam que haviam perdido a entrada de Sidney
e não puderam ver os estratificados escarpados de Port Jackson nem as diversas ramificações do porto, do qual Martin ouvira dizer grandes coisas. Também perderam
a chegada na fragata de um oficial do porto e o almoço, ainda que não se importavam nem um pouco com estas duas coisas. Como Stephen pensou que provavelmente o capitão
Aubrey seguiria indisposto, ficou com Martin comendo os restos. Depois foi invadido pelo sono, apesar do café que o despenseiro da câmara dos oficiais preparara,
e se foi para sua cabine.
Nessa mesma cabine estava sentado no dia seguinte recém barbeado, com uma trança nova e vestido com calções brancos, meias de seda, sapatos com brilhantes fivelas
e sua melhor casaca de uniforme. Também tinha à mão sua peruca acabada de empoar, que não tocaria até que descessem a falua na água.
Para provar sua nova pena, um haste recém cortada, escreveu a palavra "exasperação" seis vezes e depois reiniciou a carta:
Não há notícias, naturalmente. Jack mandou verificar quando atracamos, mas não havia notícias de casa. Havia documentos oficiais que chegaram através da Índia, mas
o importante ainda se encontra na faixa do oceano Pacífico entre aqui e O Cabo. Eu me consolo pensando que é possível que chegue enquanto ainda esteja aqui. E necessito
de consolo. Eu lhe disse muitas vezes que acho que os marinheiros simples acreditam que "mais é melhor", pelo que há que vigiar-lhes para evitar que engulam várias
ampolas de remédio inteiros. Então Jack é igual a um deles e pode causar a si mesmo mais estrago porque está acostumado a exercer a autoridade. Ontem a tarde, como
pensou que a poção negra e a pílula azul que lhe dei não faziam efeito com bastante rapidez, enquanto eu dormia enganou Martin valendo-se de meios que não o dignificam
e conseguiu outra dose. Agora, como é natural, não pode sair do sanitário nem pôde aceitar o convite do governador para almoçar esta tarde, assim que Tom Pullings
e eu temos que ir sem ele. Mas não tenho desejo de comparecer ao almoço. Esta manhã estive em terra buscando em vão a um boticário, um comerciante ou um médico que
tivesse folhas de coca, e encontrei este horrível lugar quase como o deixei: asqueroso, informe, salpicado de cabanas de madeira bagunçadas que foram construídas
vinte anos atrás atendendo somente às necessidades do momento, cheio de convictos esfarrapados, sujos e empoeirados, alguns deles com grilhões, cujo ruído se ouve
por toda parte. Ao chegar a uma espécie de praça, que tinha o solo desigual e sem pavimentar, vi um desses desprezíveis triângulos com o qual castigavam com as habituais
chicotadas a um homem que pendurava do vértice. Já vi dar açoites muito amiúde na Armada, mas raras vezes mais de uma dúzia, e sempre com relativo respeito, mas
a esse homem, pelo que me disse um espectador, já haviam lhe dado cento e oitenta e cinco das duzentas que lhe correspondiam, e o corpulento carrasco retrocedia
e logo dava um grande salto para golpear-lhe com a máxima força possível e lhe arrancava carne a cada vez. O piso estava empapado de sangue fresco, e ao pé dos outros
triângulos havia um círculo vermelho escuro. Para minha surpresa, o homem pôde manter-se em pé quando lhe desataram e seu rosto transluzia menos sofrimento que desespero.
Seus amigos o levaram dali, e a cada passo que dava se formava um charco de sangue debaixo de seus pés.
Um pouco mais longe encontrei outras lúgubres cabanas, depois uma rua que um grupo de homens com grilhões estavam contruindo e mais lá o que, conforme me disseram
esses homens, eram os alicerce do que ia ser um hospital que estavam contruindo por ordem do novo governador, o coronel Macquarie. Lamento não poder ver-lhe, pois
está fora de...
- A falua já está abordada com a fragata, senhor, com sua permissão - interrompeu-lhe Killick, que era capaz de perdoá-lo por tudo, e pegou a casaca. - Primeiro
o braço direito. Agora deixe-me pôr-lhe a peruca e ajustá-la bem. Mantenha a cabeça erguida e não a mova, pois do contrário lhe cairá pó no colarinho. E aí tem o
bengala de empunhadura de ouro - acrescentou simulando que o mencionava por casualidade.
- Vá ao diabo, Killick - disse Stephen. - Acha que vou apresentar-me ante um grupo de oficiais com uma bengala como um civil, como um tipo do interior?
- Então deixe-me trazer-lhe o sabre da Associação Patriótica - Killick lhe recomendou-, porque o seu tem a empunhadura muito velha e gasta.
- Pendure-o ao cinto e pronto - grunhiu Stephen. - Como o capitão se sentiu desde que desci?
- Parece que vai passar noventa anos no jardim. Não saiu dali desde que o senhor se foi. Só se lhe ouve gemer e ofegar.
Stephen foi baixado cuidadosamente pelo costado e quando chegou embaixo se sentou na bancada. Pullings o seguiu, com seu uniforme com brilhantes galões dourados
que cheirava a mofo, e então a falua zarpou.
"Outro banquete. Que seja para o bem", pensou Stephen, sentando e pondo o guardanapo estendido no colo. A tarde havia começado bem. A senhora e o vice-governador,
o coronel MacPherson, receberam aos convidados, a maioria oficiais do antigo Corpo de Nova Gales do Sul, agora ricos propietários de terras, do 73º Regimento e da
Armada. A senhora Macquarie, a mulher mais importante da colônia, não se deu ares de grande senhora, aliás os fez se sentirem muito a vontade. Stephen simpatizou
imediatamente com ela e ambos falaram durante um tempo. O coronel MacPherson passara muitos anos de serviço na Índia e era óbvio que levara muito sol na cabeça,
mas era muito amável e gostava de animar os homens a beber (os homens, pois a senhora Macquarie não permaneceu no banquete e não havia outras mulheres convidadas).
- Sinto que sua excelência nos tenha abandonado - disse Stephen ao senhor Hamlyn, um cirurgião, que estava sentado a sua esquerda. - Acho muito compassiva e teria
gostado de lhe pedir um conselho. Recolhemos a duas meninas, as únicas sobreviventes de uma pequena tribo que se extinguiu por causa da varicela, e tenho medo de
levá-las pelas geladas águas do cabo de Hornos e depois para a Inglaterra, que lhes resultará também inóspita porque nasceram abaixo da linha do Equador.
- Sem dúvida, ela lhe teria dito o que devia fazer - respondeu Hamlyn. - Esta mesma tarde vai passar no orfanato. Aqui há muitos bastardos, sabia? Foram concebidos
por Deus sabe quem durante a viagem e depois abandonados. Além disso, como o senhor diz, ela é uma dama muito compassiva. Passamos grande parte da manhã falando
dos planos do hospital.
Stephen e o cirurgião fizeram igual até o momento em que deviam falar com quem estava sentado do outro lado. Hamlyn imediatamente começou uma acalorada discussão
sobre alguns cavalos que iam correr breve; em troca, Stephen ficou um pouco observando os comensais porque à direita tinha o secretário judicial (a quem ele apelidou
Eufemístico, mas que em realidade se chamava Firkins) que mantinha uma conversa com outros quatro ou cinco homens sobre os convictos, sua preguiça, sua imoralidade,
sua distribuição e sua maldade e, também, sobre a impossibilidade de redimir a alguém malvado. Stephen se deu conta de que Eufemístico só bebia água, mas isso não
lhe estranhou, depois de ter provado o vinho local. Justo na frente dele estava um homem de cara larga e tez morena, tão corpulento ou mais que Jack Aubrey. Usava
o uniforme de um regimento que Stephen não reconheceu, provavelmente o do Corpo de Rum. Tinha uma expressão estúpida e mal-humorada e usava muitos anéis. À direita
desse homem estava o clérigo que havia bendito a mesa e que também parecia descontente. Tinha a cara completamente redonda e se punha cada vez mais vermelha. Entre
a confusão de vozes e o pouco familiares que eram os temas de conversa, para Stephen não lhe foi fácil entender a princípio mais que a idéia geral, ainda que muito
bem porque repetiam amiúde "irlandeses unidos" e "defensores", que eram os prisioneiros transportados para ali em grandes quantidades, especialmente depois do levante
ocorrido na Irlanda em 1798. Notou que os oficiais escoceses do 73º Regimento não tomavam partido, mas estavam em minoria, e a opinião geral foi resumida pelo clérigo,
que explicou:
- Os irlandeses não merecem a denominação de homens. E se for necessário citar uma autoridade na matéria para apoiar minha afirmação, citarei ao governador Collins
do território Van Diemen, que disse essas mesmas palavras, acho que no segundo livro de sua obra. Mas não é necessário citar a nenhuma autoridade para reforçar o
que está claro para os menos inteligentes. Agora, para completar, permitem que também tenham sacerdotes. Um sacerdote inteligente pode lograr que façam qualquer
coisa, e é previsível um estado de anarquia no futuro.
- Quem é esse cavalheiro? - perguntou Stephen em voz baixa a Hamlyn quando deixou de falar das corridas de cavalos por um momento.
- Chama-se Marsden - respondeu Hamlyn. - É um rico criador de ovelhas e um magistrado de Parramata. Quando começa a falar do Papa e da igreja Católica Romana não
há quem o detenha.
Era verdade. Stephen olhou para Tom Pullings, que estava sentado perto da cabeceira da mesa, à direita do coronel MacPherson, com uma expressão chateada ainda que
sorria por obrigação, e nesse momento Tom lhe olhou com angústia.
- Desculpe-me por ter sido terrivelmente descuidado - disse o secretário judicial. - Permita-me que lhe sirva um pouco deste prato. É canguru, o animal de caça daqui.
- O senhor é muito amável, senhor - respondeu Stephen olhando o prato com interesse. - Pode dizer-me...?
Mas Firkins já estava expondo suas própias idéias sobre a pobreza da Irlanda e sua inevitabilidade. Dirigia-se principalmente aos que estavam do outro lado da mesa,
ainda que quando terminou sua exposição se voltou para Stephen e disse:
- Não são muito diferentes dos aborígines daqui, senhor, que são as pessoas mais preguiçosas do mundo. Se o senhor lhes dá ovelhas, não esperam para que formem um
rebanho, senão que as comem imediatamente. Entre eles tem que haver forçosamente pobreza, sujeira e ignorância.
- Já leu alguma vez a Beda, senhor? - perguntou Stephen.
- Beda? Acho que não conheço esse nome. Escrevia sobre o direito?
- Acredito que o conhecem sobretudo pela história eclesiástica da nação inglesa.
- Ah! Então o senhor Marsden o conhecerá. Senhor Marsden! - disse, alçando a voz. - Conhece a um tal Beda que escreveu uma história eclesiástica?
- Beda... Beda... - murmurou Marsden, interrompendo sua conversa com o homem que estava sentado ao seu lado. - Nunca ouvi falar dele. Não era mais que um menino
- disse, reiniciando-a -, assim que lhe demos somente cem chicotadas nas costas e os restantes no traseiro e nas pernas.
- Beda viveu no condado de Durham - contou Stephen quando fizeram uma breve pausa. - Tanto eu como outros naturalistas conhecemos muito pouco o norte da Inglaterra,
mas espero que no futuro algum que seja especializado no estudo de animais e seja reflexivo e rico o percorra em companhia de um botânico e um desenhista e depois
relate sua viagem. Acho que os costumes, as superstições, os preconceitos e a sórdida vida dos aborígines lhe inspirarão muitas reflexões interessantes e que o desenhista
poderá retratar as ruínas dos grandes monastérios de Wearmouth e Jarrow, a morada dos homens mais instruídos da Inglaterra há mil anos, que foram famosos em toda
a cristandade e agora estão esquecidos. Um trabalho assim seria muito bem recebido.
As observações foram acolhidas com um silêncio desaprovatório e olhares desconfiados ou surpreendidos. Por fim o homem que estava diante de Stephen disse:
- Não há aborígines em Durham.
Enquanto os homens instruídos lhe explicavam o que queria dizer a palavra, Stephen pensou: "meu Deus, não me deixe cometer uma estupidez. Salve-me da cólera". A
conversa voltou a animar-se em um extremo da mesa e isso serviu para que o incidente fosse esquecido.
- Sinto muito - desculpou-se Stephen de repente ao perceber que Hamlyn estava falando-lhe. - Estava distraído outra vez. Estava pensando nas ovelhas.
- Que gracioso! - exclamou Hamlyn. - Eu também estava falando-lhe de ovelhas. Dizia que o homem que está enfrente do senhor, o capitão Lowe, importou algumas ovelhas
merinas da Saxônia para fazer um novo cruzamento.
- Tem muitas ovelhas?
- Provavelmente mais que ninguém. Dizem que é o homem mais rico da colônia.
O pastor flagelante, com a cara ainda mais vermelha, estava maldizendo ao Papa de novo, e para conseguir que se calasse, Stephen disse em voz bastante alta:
- Curiosamente estava pensando em ovelhas merinas, nas ovelhas merinas do rei, que, contudo, são de raça espanhola.
- Está falando de ovelhas merinas? - perguntou o capitão Lowe.
- Sim - respondeu Hamlyn. - O doutor Maturin aqui já viu o rebanho do rei.
- Sir Joseph Banks teve a amabilidade de mostrar-me - concretizou Stephen.
Lowe o olhou com desprezo e depois de refletir um momento disse:
- Estou me... lixando para sir Joseph Banks.
- Estou seguro de que lhe penalizaria ouvir isso.
- Por que tentou evitar que o capitão MacArthur conseguisse algumas ovelhas do rei? Eu acho que é porque MacArthur era da colônia.
- Eu lhe asseguro que não. Sir Joseph sempre se preocupou muito com a colônia e, como o senhor recordará, foi fundada em boa parte graças a sua influência.
- Então, por que se negou a receber MacArthur?
- Suponho que pensou que o trato com um homem com os antecedentes do capitão MacArthur não era desejável - disse Stephen em meio de um silêncio interrompido somente
pela extensa história que o coronel MacPherson contava com voz monótona do nababo de Oduh. - Ademais, sir Joseph é contrário aos duelos, por razões morais, e o capitão
MacArthur se achava em Londres para comparecer ante um tribunal de guerra por ter participado de um.
Lowe, aparentemente, não ouviu as últimas palavras. A princípio se pôs vermelho e até que terminou a refeição não disse nada, se limitou a murmurar de vez em quando:
"Trato não desejável". E entretanto Stephen também murmurava para si: "meu Deus, dá-me paciência. Santa mãe de Deus, dá-me paciência", porque tinham reiniciado a
conversa sobre os prisioneiros irlandeses, uma cantinela tão chata como as das mulheres européias, que sempre falavam do serviço doméstico, mas muito pior intencionada.
Quando se foram para tomar o chá e o café, Stephen ouvira mais coisas das que podia suportar, apesar de sua deliberada distração, e a raiva contida o fez tremer
a mão e o café se derramou no pires. Mas depois houve um agradável intervalo em que sua tensão diminuiu um pouco, pois esteve no terraço do salão fumando um charuto
e conversando com dois oficiais do 73° Regimento das ilhas Hébridas que sabiam falar gaélico.
Pullings e ele se despediram do coronel MacPherson. Então o coronel reteve a Pullings para dizer-lhe que lamentava que o capitão Aubrey não tivesse podido comparecer,
que apesar de ter cartas oficiais para ele não podia mandá-las porque devia entregá-las em mãos e que lhe aconselhava que bebesse duas pintas de água de arroz morna,
e enquanto isso Stephen foi ao pequeno quarto onde os oficiais punham os sabres. Restavam poucos: o regulamentar de Tom, com uma empunhadura em forma de cabeça de
leão, três de oficiais das terras altas da Escócia, com empunhadura em forma de cesta, e o seu. Pendurou o sabre no cinto, desceu a escada e saiu para o agradável
frescor. Quando já estava no cascalho viu ao capitão Lowe, que lhe disse:
- Importa-me um pepino Joseph Banks e me importa um pepino o senhor, porcaria de aprendiz de cirurgião naval.
Falou em voz alta e rouca, e dois ou três oficiais se voltaram.
Stephen o olhou atentamente e notou que estava furioso, mas que podia manter-se bem em pé, que não estava bêbado.
- Vai me dar uma satisfação, senhor? - perguntou.
- Aqui tem minha resposta - replicou o corpulento capitão, dando-lhe um soco que fez cair sua peruca.
Stephen deu um salto para trás, sacou o sabre e gritou:
- Desembainhe, desembainhe ou o matarei como a um porco!
Lowe desenbainhou o sabre, mas isso não lhe beneficiou muito. Ao segundo passo que deu Stephen lhe fez um talho na coxa direita, e no terceiro lhe atravessou o ombro.
E depois de uma confusa luta corpo a corpo, quando caiu ao solo de costas, Stephen lhe pôs o pé no peito, aproximou a ponta do sabre de sua garganta e disse secamente:
- Peça-me perdão ou é um homem morto. Eu disse que me peça perdão ou é um homem morto, um homem morto.
- Eu lhe peço perdão - murmurou Lowe, com os olhos ensangüentados.
CAPÍTULO 9
- Se é sangue, tenho que pôr isto em água fria imediatamente - disse Killick, que sabia perfeitamente bem que o era.
A notícia de que o doutor havia atravessado com seu sabre a um militar e o deixara estendido sobre um charco de sangue, o que tinha arruinado a escadaria de pedra
de Bath, além do tapete do hall da residência do governador, que valia cem guinéus, e tinha feito a sua esposa desmaiar, chegou à Surprise antes que a falua, e isso
explicava a extraordinária gentileza com que os marinheiros o haviam subido pelo costado e suas mostras de afeto e respeito. Mas Killick queria que Stephen a confirmasse,
queria ouvir de seus lábios.
- Suponho que sim - Stephen limitou-se a dizer, olhando o forro da casaca, onde inconscientemente limpara o sabre como fazia com seus instrumentos quando estava
operando. - Como está o capitão?
- Terminou faz um quarto de hora - respondeu Killick. - Esvaziou-se como um tonel, ah, ah, ah! Meu Deus, investiu nisso toda a noite! Não teve nem um momento de
tranqüilidade! Agora está deitado e roncando mais alto que... - acrescentou sorrindo ainda, mas pensou que a comparação não era muito apropiada e prosseguiu: - Eu
lhe trarei a casaca de dril velha.
- Não se preocupe - disse Stephen. - Acho que seguirei o exemplo do capitão e me deitarei um pouco.
- Não, com esses calções não, senhor - Killick o admoestou. - Nem com as meias de seda.
Stephen deitou-se com uma camisa velha, remendada e lavada tantas vezes que em alguns pontos estava muito suave e em outros cerzida. A tensão desaparecera e agora
tinha o corpo completamente relaxado. Sentia a fragata mover-se debaixo dele o suficiente para demostrar que estava flutuando e tinha vida. Atravessou uma depois
de outra as capas da sonolência, depois caiu em um sono agitado e finalmente em um sono profundo, tão profundo que era quase um coma.
O sono era tão profundo que teve que sair dele por etapas, reconstruindo pouco a pouco os fatos do dia anterior. Lembrou a chateação e a tristeza que sentira no
banquete do palácio do Governo, a inusual violência do final, que durou alguns segundos, a amabilidade e a discrição dos oficiais escoceses, um dos quais recolheu
sua peruca, e a silenciosa consternação de Tom. A luz foi fazendo-se mais intensa gradualmente e viu um olho olhando pela abertura da porta.
- Que hora é? - perguntou.
- Acabam de soar as quatro badaladas, senhor.
- De que guarda?
- Oh, da guarda da manhã! - respondeu Killick em tom tranqüilizador. - Mas o senhor Martin estava com medo de que o senhor estivesse em um letargia. Trago água quente,
senhor?
- Sim, água quente, por favor. Como está o capitão?
- Dormiu toda a noite, mas está pálido e magro. Agora está em terra.
- Muito bem. Agora faça-me o favor de preparar café. Eu o tomarei acima. E apresente meus respeitos a Martin e diga-lhe que eu gostaria de comparti-lo com ele, se
estiver livre.
Martin entrou na grande cabine com expressão satisfeita e seu único olho brilhando mais que de costume, mas era evidente que estava um pouco perturbado.
- Meu querido Martin - Stephen o cumprimentou-, sei o que acha sobre este caso. Para tranqüilizar-lhe em certa medida, direi sem perda de tempo que me vi obrigado
a lutar por uma grave ofensa, por um golpe físico, que me esforcei para não fazer mais do que desarmar àquele homem e que se fizer dieta estará reposto dentro de
quinze dias.
- Agradeço que haja tido a amabilidade de dizer-me, Maturin. Conforme os rumores que com evidente satisfação se difundem pela fragata, o senhor é o Átila reencarnado.
A verdade é que não sei se por meus princípios suportaria uma grave ofensa.
- Espero que tenha passado uma tarde mais agradável que a minha.
- Oh, sim, obrigado! - exclamou Martin. - Foi realmente agradável. Quando atravessava este desanimador, sujo... como o chamaria?, assentamento, talvez, e me aproximava
do moinho de vento, ouvi alguém dizer meu nome. E lá estava Paulton! Eu lhe falei de Paulton, verdade?
- O cavalheiro que tocava tão bem o violino e que escreveu aqueles comoventes versos de amor?
- Sim, sim. Costumávamos chamá-lo de Paulton, O Angustiante e, por desgraça, ao final resultou que era assim de verdade. Fomos grandes amigos na escola e estudamos
na mesma faculdade na universidade. Não teríamos deixado de ficar em contato se não tivesse sido por seu lamentável matrimônio e, sem dúvida, minhas viagens. Sabia
que tinha um primo em Nova Gales do Sul e pensava procurá-lo para ver se podia dar-me notícias de John, mas ali estava ele! Quero dizer que ali estava John. Ficamos
muito contentes. John passou muito mal, o pobre, por ter-se convertido ao catolicismo, como me parece que lhe contei, já que não podia pertencer a nenhuma associação
na universidade, apesar de que era um excelente aluno e gozava de muitas simpatias, e tampouco podia pertencer às forças armadas. E quando a mulher e seu amante
dilapidaram sua fortuna, toda sua fortuna, não lhe restou mais remédio, como ocorreu a mim, que dedicar-se ao jornalismo, à correção de publicações ou à tradução.
- Espero que esteja mais feliz em Nova Gales do Sul.
- Tem o suficiente para comer e um teto, mas me parece que é ingrato e ansia mais. Seu primo tem uma extensão de terra de considerável tamanho, de centenas ou mesmo
milhares de acres, na costa norte, perto de um rio cujo nome não recordo. Os dois se revezam para cuidá-la e para John é difícil suportar a solidão. Pensou que o
silêncio e o isolamento seriam ideais para escrever, mas não foi assim, porque se sente melancólico constantemente.
- A flora e a fauna não são um consolo para seu espírito, sendo as mais estranhas do mundo?
- Não, em absoluto. Nem lhe interessam nem nunca foi capaz de distinguir entre uma ave e outra ou entre uma violeta e um amor-perfeito. Só sente satisfação com os
livros e as boas companhias, e para ele o campo é como um deserto.
- Porém, e o tempo que passa longe dali?
- Para John Sidney também é um deserto que tem, além disso, crueldade, pobreza e delinqüência. Aqui há divisões por razões políticas e o primo de John pertence ao
grupo minoritário. John conhece poucas pessoas, e as poucas que conhece só falam de carneiros castrados e ovelhas que não foram tosquiadas. E um homem como ele,
erudito, que bebe pouco vinho, que detesta caçar e que dá tanta importância aos livros e à música, tem pouco a dizer-lhes. Como seu rosto se iluminou quando lhe
falei do senhor! Pediu-me que lhe apresentasse seus respeitos e que lhe rogasse que fosse comigo a sua casa esta noite. Tem a esperança de regressar à terra dos
vivos graças a um romance do qual já terminou três volumes, mas não é capaz de finalizar o quarto e pensa que mesmo uma curta conversa com pessoas civilizadas lhe
permitirá fazê-lo.
- Com muito prazer - disse Stephen e então voltou-se e gritou: - Killick, deixe de arranhar a porta dessa forma tão incômoda! Entre ou saia, pode ser?
Killick entrou e se desculpou:
- É que Slade, senhor, pede que permita dizer-lhe duas palavras quando esteja livre.
Stephen já estava livre, mas para Slade, o mais velho dos seguidores de Set, foi muito difícil fazer sair as palavras. Depois de falar largamente do costume do comércio
livre estabelecido em Shelmerston muito tempo atrás e da odiosa brutalidade dos funcionários encarregados de impedi-lo, parecia que um seguidor de Set, Harry Fell,
havia sido enviado a Botany Bay por golpear um agente de aduana. Mas não só Harry, como também William, George, Mordecai e a tia Smailes, esta última por guardar
mercadoria não declarada na aduana. Disse que os seguidores de Set queriam visitar seus amigos, se era possível, mas não sabiam onde encontr-los nem como obter a
licença, e esperavam que o doutor tivesse a bondade de...
- Naturalmente! - exclamou Stephen. - De todas formas, vou ter que ir ao escritório do palácio do governo.
Escreveu os nomes e as datas em que tinham sido condenados e ouviu contar por que meios ilícitos os funcionários encarregados de impedir o comércio logravam uma
condenação, que meios violentos empregavam com os prisioneiros e como cometiam perjúrio nos tribunais.
Bonden, que chegou quando Slade já tinha terminado, expôs o assunto de uma maneira mais simples. Deu ao doutor uma lista com os nomes de parentes de vários tripulantes
da Surprise e disse que lhe agradeceriam que perguntasse por eles se fosse visitar ao pobre Padeen. Acrescentou que não tinham justificação moral, mas que as palavras
"companheiros de tripulação" bastavam e que tinham que perguntar pelos amigos ainda que tivessem cometido assassinatos ou estupros ou tivessem se amotinado.
- Tenho que ir - disse Stephen. - Espero não chegar tarde ao almoço, mas se for assim, por favor, diga ao capitão que não se preocupe e que não me espere por cortesia.
Chegou tarde e o capitão o havia esperado, ainda que, aparentemente, não por cortesia.
- Bem, Stephen - disse com expressão mal-humorada -, a verdade é que causou uma confusão tremenda. Em uma curta tarde conseguiu ganhar a antipatia oficial e não
oficial, a antipatia de todos os setores. Sofri as consequências em cada uma das visitas que fiz. Deus sabe quando a fragata poderá ter os fundos limpos e estar
pronta para fazer-se ao mar.
- Eu também. O sorriso do secretário judicial se apagara e esquivou-se de meus pedidos com uma desculpa atrás da outra: que as petições tinham que sr feitas em papel
timbrado e deviam estar assinadas por algum oficial ou juiz de paz, que atualmente não havia papel timbrado disponível...
- Firkins é primo de Lowe e está relacionado com toda a tribo de MacArthur. Que demônios lhe empurrou a atravessar o corpo desse tipo com o sabre?
- Não o atravessei o corpo. Não lhe fiz quase nada mais que espetar-lhe o braço com que sustentava o sabre, que, em minha opinião, foi bastante pouco. Afinal de
contas, ele me tirou a peruca com um soco.
- Porém, sem dúvida, ele não se aproximou de você e fez isso sem que anteriormente houvessem discutido ou brigado.
- Só lhe disse, no transcurso daquele horrível banquete, que Banks não queria ter nenhuma relação com um homem como MacArthur. Passou toda a refeição pensando nisso
e me atacou quando desci a escadaria.
- Mas isso não foi como é devido. Se o tivesse matado sem desafiá-lo formalmente, sem padrinhos, teria lhe custado caro.
- Se tivesse sido um combate como é devido, não teria me aproximado dele com o fim de dar-lhe com a empunhadura na cara para parar-lhe em seco. Ademais, um duelo
formal teria dado muito mais o que falar e conferido honra àquele imbecil. Mas admito que foi lamentável. Sinto muito, Jack, e lhe peço perdão.
A comida estava servida há algum tempo, mas Killick estava tão desejoso de ouvir o que diziam que não a tinha anunciado. Porém, pelos longos anos de amizade com
o capitão Aubrey, sabia que agora era inútil esperar que soltasse furiosas sensuras ou blasfêmias, assim que abriu a porta e disse:
- O almoço já está servido, senhor, por favor.
- Este pescado é muito bom, ainda que esteja morno - observou Jack após um tempo.
- Acho que é uma espécie de pargo. É o melhor pescado que já comi. Algumas coisas são melhores quando estão mornas, como por exemplo, as batatas novas e o bacalhau
com creme de leite.
Em efeito, era um pescado excelente, e também o era o capão que seguiu depois e o consistente pudim, mas mesmo depois que a refeição terminou e voltaram a sentar-se
na grande cabine, Stephen notou que a irritação de Jack não passara, muito pelo contrário. Os obstáculos oficiais (tão difíceis de saltar em um lugar dirigido por
um governador novo e quase desconhecido) haviam lhe desalentado e pensava que o causador era Stephen.
Não obstante, quando beberam o conhaque Jack se levantou e pegou um pacote que estava em uma estante junto a suas lunetas, e antes de abri-lo disse:
- Posto que Firkins não quer atender suas petições, irei falar com o vice-governador na qualidade de oficial da marinha de mais antiguidade e de membro do Parlamento
por Milport. Desse modo obteremos a informação requerida. Eles detestam que se fale do assunto no Parlamento ou que se envie uma carta aos ministros.
- É muito amável. Além disso, há vários membros da tripulação que têm parentes aqui e teria perguntado por eles também se tivesse sido oportuno. Aqui estão as listas.
E se puder incluir Padeen em uma delas, estupendo. Seu nome é Patrick Colman. Porém, por favor, Jack, espera um dia ou dois.
- Muito bem - respondeu Jack, pegando os papéis. - Direi a Adams que as copie. Aqui tens os documentos oficiais que chegaram via Madras - acrescentou, dando-lhe
o pacote. - Minhas instruções são para prosseguir a viagem o quanto antes de acordo com as ordens que me deram os lordes do Almirantado e as indicações que me fez
o conselheiro para este caso. E tenho que entregar-te esta carta e uma nota da senhora Macquarie. Acredito que é uma mulher encantadora.
- É mesmo - concordou Stephen. - Desculpe-me, mas quero ler esta carta com o selo negro.
Sentou-se em sua cabine com o livro de códigos com capas de chumbo de um lado, mas antes de abri-lo leu a nota. Nela a senhora Macquarie apresentava seus respeitos
com aroma de lavanda. Dizia que o senhor Hamlyn lhe contara que o doutor Maturin queria que ela lhe aconselhasse o que fazer com as duas meninas órfãs, que estaria
em sua casa entre as cinco e as seis e que, se o doutor Maturin não estivesse comprometido, com muito prazer lhe daria a pouca informação que tinha. A letra, a ortografia
e a bondade de sua excelência para Stephen lembravam as de Diana. Largou-a de lado sorrindo e pegou a carta com o selo negro. Ao decifrá-la obteve os nomes de vários
homens que no Chile e Peru estavam a favor da independência e se opunham à escravidão, com os quais era recomendável pôr-se em contato discretamente. E viu com grande
satisfação que entre eles estava o bispo de Lima. Dentro do envelope havia outra carta, uma carta pessoal do chefe do Serviço Secreto Naval, sir Joseph Blaine, que
não requeria decodificação, e o coração lhe pulou no peito.
Meu querido Stephen (posto que me há feito a honra de permitir-me chamá-lo por seu nome de batismo):
Senti uma grande emoção ao receber a carta que me enviou de Portsmouth, uma carta bajuladora porque era a maior prova de confiança que alguém pode dar, um poder
para sacar todo o dinheiro da conta que tinha em um banco cujos serviços considerava insatisfatórios e depositá-lo no de Smith e Clowes.
E com maior emoção lhe digo que não pude cumprir seus desejos, pois, apesar da carta estar escrita impecavelmente, só estava firmada com o nome Stephen. Terminava:
"Despede-se do senhor, meu querido sir Joseph, seu estimado e mais humilde servidor, Stephen".
O propósito da carta estava muito clara e o banqueiro mais antigo o admitiu, mas disse que o banco não podia fazer nada. Pedi conselho a dois advogados e os dois
concordaram que a postura do banco era inatacável.
Isso me deu muita raiva, mas ainda não passara muito tempo quando a raiva diminuiu consideravelmente ao ouvir a notícia de que o banco de Smith e Clowes havia apresentado
suspensão de pagamentos. Pouco depois foi a bancarrota, como muitas outras entidades rurais, por desgraça, e os credores não têm esperanças de recuperar nem seis
peniques por libra. Em contraste, o banco que lhe oferecia serviços insatisfatórios foi fundado há muito tempo e é mais estável. Ademais, seus donos gozam da confiança
da Cidade e saíram da crise fortalecidos e, se cabe, mais ricos. Por isso sua fortuna, ainda que cuidada por pessoas rudes e descorteses, encontra-se intacta em
seus porões e talvez, quem sabe?, tenha aumentado. Posso assegurar-lhe que a partir de agora suas ordens sobre anualidades, subscrições e outras coisas serão cumpridas
estritamente. Dou-lhe os parabéns por isso e me despeço, meu querido Stephen.
Seu estimado (ainda que desobediente) e humilde servidor,
Joseph
P.S.: Se por casualidade passar por um mangue e encontra algum exemplar (ainda que seja insignificante) do Eupator ingens, por favor, pense em mim."
Passou algum tempo antes que pudesse distinguir o que sentia, qual era o sentimento que prevalecia entre tantos e tão confusos. Experimentava satisfação, sem dúvida,
mas também uma espécie de rebeldia contra ela e contra a perturbação de sua mente, que havia alcançado a serenidade. Além disso, estava com raiva por suas mãos tremerem.
Refletiu alguns momentos sobre os diferentes níveis de credulidade. A fortuna que herdara e que sempre lhe parecera desproporcionada e pouco digna estava, afinal
de contas, intacta, mas agora era só um conjunto de obscuras cifras em um livro que ficava nas antípodas de Sidney. Até que ponto sua existência ou sua falta afetara
sua mente além da superfície? Quando a corrente de sentimentos diminuiu não até alcançar a calma total, mas pelo menos até chegar a um nível de escassa agitação,
pareceu-lhe que, em geral, fossem quais fossem as desvantagens, era melhor ser rico do que pobre mas ter uma fortuna própia, como aquele assombroso homem de Goldsmith.
E esteve a ponto de acrescentar "e provavelmente é melhor ser saudável do que estar enfermo, diga o que diga Pascal", quando se deu conta de que as fortes emoções
do dia anterior e do presente haviam acabado com a exasperação, a sonolência e o desejo de fumar que sentia ultimamente.
- Apesar de tudo, dar-me-ei o prazer de fumar um charuto enquanto vou ao palácio do Governo - disse quando pôs a que era quase sua melhor casaca.
Quando caminhava pelo cais, depois que uma fragante nuvem passou devagar ante ele, pensou: "Satisfação e inclusive alegria, mas não febril exaltação". Não obstante,
depois de passar em um curto percurso junto de três grupos de homens acorrentados entre si, várias figuras sem correntes que usavam roupa grosseira marcada com uma
grande ponta de flecha e algumas lamentáveis prostitutas, quase não sentia alegria. Mas logo veio à sua mente a explicação do ocorrido com a carta enviada a sir
Joseph, e lembrou claramente a inusual mas agradável familiaridade com que sir Joseph lhe tratava em sua carta, quando se deteve um momento para contemplar Port
Jackson, onde um bergantim local de umas duzentas toneladas preparado para sair do porto estava a pairar, com vários botes muito perto a barlavento e com fumaça
saindo das portalós em meio da indiferença geral. A explicação era que, depois de copiar tediosamente o poder notarial, havia centrado sua atenção em uma nota que
quase acabara de escrever para Diana, na qual provavelmente assinara como S. Maturin enquanto que assinara Stephen na de sir Joseph.
No jardim do palácio do Governo havia um dos cangurus menores e Stephen o observou desde a escadaria até as dez para cinco, quando entregou um cartão com seu nome
e o fizeram passar para uma sala de espera. A senhora Macquarie não foi pontual, e nisso também se parecia com Diana. Por sorte, as janelas davam para o jardim onde
estavam o canguru e vários grupos de papagaios de colorido azul-verdoso muito pequenos e com calda muito comprida, e Stephen permaneceu ali sentado, tranqüilo e
alegre, observando-os sob uma luz extraordinária. Então pensou: "Essa claridade se deve, pelo menos em parte, a que muitas das árvores têm as folhas com as pontas
para cima, pelo que há pouca sombra. Isso dá um aspecto desolado à terra e inclusive ao céu".
A porta se abriu, mas em vez de um servente entrou a própia senhora Macquarie com o cabelo um pouco alvoroçado. Stephen se levantou, fez uma inclinação de cabeça
e sorriu, mas com timidez, porque não sabia se lhe haviam contado sobre sua briga com Lowe antes de escrever-lhe. Mas seu amável sorriso e suas desculpas pelo seu
atraso o tranqüilizaram e depois de refletir um momento, lembrou que ela, também como Diana, passara muitos anos na Índia, onde os oficiais brancos, que comiam em
excesso, suportavam um sufocante calor e eram arrogantes, brigavam tão amiúde que uma simples ferida quase não chamava a atenção.
Ela escutou atentamente o que Stephen tinha a dizer e depois perguntou:
- São bonitas?
- Não, senhora - respondeu Stephen. - São delgadas, de cor negro-fosco, de olhos pequenos e não têm nenhuma graça. Porém, por outro lado, acho que são meninas de
bons sentimentos, que sentem muito afeto uma pela outra e por seus amigos e que pelo menos têm talento para as línguas, pois já falam muito bem o inglês e usam uma
variante com os marinheiros e outra com os oficiais.
- E não pensou em levá-las para Inglaterra?
- Nasceram quase na linha do Equador e não me atrevo a levá-las para o cabo de Hornos até umas ilhas tão frias, úmidas e com tanta névoa como as nossas. Se pudesse
encontrar-lhes um lar aqui, com muito prazer as manteria e lhes designaria um dote.
- Se pudesse vê-las, seria mais fácil para nós encontrar uma solução para o problema. Terá tempo para trazê-las amanhã pela tarde?
- Naturalmente, senhora - respondeu Stephen, levantando-se. - Agradeço infinitamente sua amabilidade.
Cruzou o jardim em direção à grade e o canguru aproximou-se dele caminhando torpemente em quatro patas e depois se deteve, olhou-lhe a cara e deixou escapar um débil
berro. Mas como Stephen não tinha nada o que dar-lhe e o canguru recusou sua carícia, separou-se do animal, que o seguiu com o olhar até que chegou à grade.
Perguntou a rígido sentinela como chegar ao hotel Riley, mas o homem não respondeu, aliás, adotou uma expressão austera e se pôs ainda mais rígido. Então o guarda
saiu e disse:
- Se lhe respondesse, senhor, se respondesse a qualquer um que não fosse um oficial do Exército, amanhã teria a camisa ensangüentada, não é verdade, Jock?
Jock piscou um olho sem mover a cabeça e muito menos o corpo e o guarda prosseguiu.
- O hotel Riley, senhor? Siga direto e depois dobre à esquerda. Fica antes da primeira casa de tijolo que encontrará.
Stephen lhe agradeceu e o bendisse, já que suas indicações eram precisas. O passeio foi triste, pois viu a muitos presos com os sujos uniformes da prisão, alguns
olhando o vácuo e outros com uma expressão malévola ou melancólica, e também a muitos de seus guardiães, que apesar de encontrar-se em sua mesma penosa situação
de escravos pelo menos podiam dar chutes nos menos afortunados de vez em quando; contudo, se alegrou quando o coronel MacPherson e outro oficial do 73º Regimento
o cumprimentaram risonhos ao passar por seu lado e ainda mais quando viu Martin no lugar do encontro, que qualquer poderia tomar por uma taberna situada em um cruzamento
de caminhos perto do lamaçal de Alien a não ser pela ausência de chuva e barro ao seu redor e a presença de três tipos de papagaios selvagens sobre o teto meio desabado
e de uma ampla variedade de papagaios domesticados enjaulados ou em prateleiras no interior. Martin ainda estava junto a uma lúgubre cacatua envolvendo no lenço
o dedo que lhe havia picado.
- Paga, o senhor, um alto preço por sua experiência - disse Stephen, observando como a sangue traspassava o lenço.
- Não devi ter retirado a mão tão depressa - replicou Martin. - A pobre ave se assustou.
A pobre ave passou sua negra língua pela borda do bico e calculando a distância que os separava com um olhar malévolo, pelo que parecia possível outra envestida.
- Vamos? - perguntou, olhando seu relógio. - É quase a hora.
- Devemos tomar algo na taberna - Stephen lhe informou.
Sentou-se junto a um conjunto de objetos postos ali com a intenção de que os marinheiros visitantes os comprassem: bonitas cascas de ovos de emu de cor verde, machados
de pedra dos aborígines, lanças apoiadas contra a parede e uma peça de madeira plana e em forma de ângulo que parecia um enorme acento circunflexo cujos vértices
distavam dois pés.
- Taberneiro! - gritou. - Taberneiro! Me ouve?
O taberneiro chegou secando as mãos no avental.
- Uma jovem não lhes atendeu, cavalheiros?
Ambos negaram com a cabeça.
- Estará com um militar lá encima por mil libras. Em que posso servir-lhes, suas senhorias?
- Que tem de leve e fresco? - perguntou Stephen.
- Bem, senhor, tenho rio Parramatta, que é leve e fresco, nesse balde coberto por uma lona, e vou pegar um galão de meu própio uísque, uma bebida delicada onde quer
que seja. A esta hora do dia, mesclados os dois na proporção justa formam uma bebida leve e fresca comparável ao melhor champanhe.
- Então tenha a amabilidade de trazer-me uma pinta do primeiro e um copo pequeno do segundo - pediu Stephen. - Mas antes de ir, faça o favor de me dizer para que
se usa este objeto de madeira parecido com uma cimitarra ou uma foice.
- Isto, senhor, é, por assim dizer, um brinquedo dos aborígines, posto que eles só o usam para brincar. Seguram-no por um extremo e o lançam de maneira que dê voltas
como uma girândola, e quando percorre umas cinqüenta jardas se eleva, dá a volta e volta para a mão. Havia um aborígine que costumava fazer uma demonstração por
um gole de rum e isso foi sua ruína.
- Assim que um o lança e depois volta sem cair - disse Martin, que não podia entender facilmente o forte sotaque de Munster.
- Compreendo que acha difícil de acreditar, senhor, e o é se um não há visto fazê-lo. Mas pense, senhor, que está nos antípodas, que está de cabeça para baixo, igual
a uma mosca no teto. Todos estamos de cabeça para baixo, o que é muito mais raro que um cisne negro ou um pau que regressa voando para a mão.
Quando beberam o uísque, reiniciaram a marcha e Martin explicou:
- Tem razão. Em muitos aspectos este mundo é oposto ao nosso. Diria que é tão diferente dele como o Hades da Terra, se não fosse pela intensa luz. Não acha deprimente
o constante ruído de correntes e a onipresença de homens sujos, esfarrapados e tristes a quem devemos considerar criminosos?
- Sim, e se não fosse pela possibilidade de percorrer o interior do país, estaria remando pelo imenso porto em meu esquife ou a bordo da fragata, classificando minhas
coleções e examinado cuidadosamente as suas. Mas acho que me deprime ainda mais a tremenda crueldade dos opressores.
Pararam antes de cruzar o caminho trilhado e empoeirado para deixar passar a dois grupos de homens acorrentados, um para um lado e o outro para o lado oposto, e
nesse momento tropeçou com eles uma jovem bêbada, desgrenhada e com o peito descoberto, uma jovem bonita apesar de ter a cara cheia de manchas-roxas.
- Não vêem por onde andam, malditos sacanas? Que Deus os castigue...
Os presos passaram; eles cruzaram a rua e lhes seguiram os insultos da jovem, cada vez mais ofensivos, muito piores que os que se ouviam no castelo.
Andavam em silêncio durante algum tempo e depois Martin assinalou:
- Esta é a casa de Paulton.
Foi o própio Paulton que abriu a porta e lhes deu as boas-vindas. Era um homem alto e magro e usava óculos pequenos com armação de aço e lentes grossas que não pareciam
apropiadas para ele, porque umas vezes olhava através delas e outras por cima. Amiúde tirava-os e limpava com o lenço, e esse gesto nervoso era um dos muitos que
fazia. Era verdadeiramente um homem nervoso, mas também, na opinião de Stephen, inteligente e amável.
- Gostariam de um pouco de chá? - propôs depois das habituais preliminares. - Neste clima tão seco em que se forma tanta poeira, acho que o chá quente é melhor que
qualquer outra coisa.
Eles fizeram burburinhos de aprovação e agradecimento, e pouco depois chegou uma anciã com a bandeja com o chá.
- Agradeço que haja tido a amabilidade de vir, senhor - disse Paulton, servindo-lhe uma xícara. - Martin me disse que o senhor escreveu muitos livros.
- Só escrivi sobre medicina e alguns elementos de história natural.
- Se me permite, senhor, queria lhe fazer uma pergunta: pode escrever no mar, ou tem que esperar encontrar-se em um lugar isolado e tranqüilo no campo?
- Escrevi muito no mar - respondeu Stephen -, mas a menos que haja calmaria suficiente para que a tinta não saia do tinteiro, espero até descer a terra para escrever
longos tratados ou artigos, ao encontrar-me em um lugar isolado e tranqüilo no campo, como diz o senhor. Porém, por outro lado, a agitação de um barco não me impede
ler. Se tenho na lanterna uma vela que dê boa luz e tampões de cera nos ouvidos, leio muito a vontade. E a solidão de minha cabine, o movimento da maca, as distantes
ordens e suas respostas e os ruídos das manobras me fazem desfrutar ainda mais.
- Eu pus tampões de cera, como o senhor - disse Martin -, mas me dão medo. Tenho medo de que gritem "a fragata está afundando, está afundando! Tudo está perdido!
A fragata não pode manter-se flutuando!" e que não o ouça.
- Sempre foste medroso, Nathaniel - observou Paulton, tirando os óculos e lançando-lhe uma olhada afetuosa com seus olhos míopes. - Recordo que quando era pequeno
se assustava achando que eu, na realidade, era um cadáver habitado por um fantasma de abundante cabelo grisalho. Mas suponho, senhor, que lerá livros de medicina,
história natural e história, mas não romances nem obras de teatro.
- Leio romances com muita freqüência, senhor - explicou Stephen. - Considero os romances, os bons romances, parte importante da literatura, porque nos fazem conhecer
a alma e a mente humanas melhor que quase todos os outros gêneros, mais detalhada e profundamente e com menos dificuldades. Se não tivesse lido as obras de madame
da Fayette, do clérigo Prévost e do homem que escreveu Clarissa, essa extraordinária façanha, seria muito mais pobre do que sou. E creio que depois de refletir um
momento poderei acrescentar muitos outros autores.
Martin e Paulton acrescentaram imediatamente muitos mais, e Paulton, que até então havia sentido bastante timidez e nervosismo, apertou a mão de Stephen dizendo:
- Admiro seu julgamento, senhor. Porém, esqueceu-se o nome de Richardson quando falou de Clarissa?
- Não. Sei que o nome de Samuel Richardson está na página de créditos, mas antes de ler Clarissa Harlowe li Grandison, pelo que houve muitos protestos contra os
editores irlandeses por seu desleal comportamento, já que não respeitaram os direitos do autor. Foi escrito por um comerciante que sabia muito de contabilidade e
é indubitável que Richardson é o autor, porém, em minha opinião, Clarissa, com sua prosa delicada, foi escrito por outra mão. O homem que escreveu a carta não pôde
escrever o livro. Richardson, como o senhor sabe, certamente, era amigo íntimo de outros impressores e editores da época, e estou convencido de que algum de seus
devedores, provavelmente encarcerado em Fleet ou Marshalsea, escreveu o livro.
Os outros dois assentiram com a cabeça, pensando que eles também se haviam alojado na morada dos escritorzinhos.
- Depois de tudo, os governantes não escrevem seus própios discursos.
Depois de uma pausa bastante solene, Paulton pediu mais chá. E enquanto o bebiam seguiram falando dos romances, do processo de escrevê-los, do fato de que um escritor
poderia ser muito fecundo e de repente, inexplicavelmente, tornar-se estéril.
- A última vez que estive em Sidney estava seguro de que poderia terminar o quarto volume do romance quando regressasse a Woolloo-Woolloo. É que meu primo e eu nos
revezamos para vigiar ao capataz, sabe? Mas as semanas passaram e não pude escrever nem uma palavra que não apagasse na manhã seguinte.
- Pelo que vejo, o campo não lhe cai bem.
- Não, senhor, em absoluto. Contudo, dava-lhe um grande valor quando estava em Londres, distraído por cem bobagens e por coisas da vida cotidiana e quase não tinha
duas horas para dedicar a meus própios assuntos ao final da noite, quando já não servia para nada. Achava que não poderia encontrar mais tranqüilidade no campo que
em Nova Gales do Sul, em um lugar isolado de Nova Gales do Sul onde não chegam o correio nem os jornais nem há visitantes inoportunos.
- E não é assim em Woolloo-Woolloo?
- Ali não chegam o correio nem os jornais nem há visitantes inoportunos, sem dúvida, mas tampouco há campo. Não há campo como eu o concebia e como me parece que
o concebem outras pessoas, não tem nada que se possa chamar de rural. Imagine cavalgar desde Sidney por uma planície de cor parda, por um terreno pedregoso coberto
de espesso capim e arbustos e salpicada de melancólicas árvores. Nunca pensei que uma árvore podia ser feia até que vi um eucalipto. Também há outras parecidas,
com folhas grossas e opacas e enormes tiras de casca pendurando, como marcas de uma espécie de lepra vegetal. Quando um deixa para trás os poucos assentamentos e
caminhos de ovelhas que há, o caminho se estreita e passa por entre um conjunto de arbustos de cor cinza-verdoso e empoeirados, nunca verdes nem limpos, e há vastas
áreas onde os aborígines os arrancaram ou os queimaram e agora estão negros. E devia ter dito que estão sempre iguais, que nunca perdem as folhas nem parece que
lhes saiam novas. Mais adiante o caminho beira raquíticas lagunas onde os mosquitos são muito piores e depois por fim, ascende por entre arbustos mais baixos. Desde
a ladeira pode-se ver um rio que em alguns lugares é uma corrente e em outros, a maioria, converte-se em charcos disseminados pelo vale. Do outro lado se encontra
Woolloo-Woolloo, com uma simples casa em meio ao deserto; à esquerda fica o terreno cercado onde vivem os presos e junto a ele a casa do capataz; muito mais para
o interior quase não se pode distinguir a casa de Wilkins, o único vizinho. É verdade que os presos despovoaram a margem mais distante e semearam trigo, mas parece
uma espécie de cicatriz comercial em vez de um campo semeado e, de toda forma, quase não muda a enorme extensão de terreno insípido, monótono, descolorido, desumanizado,
primitivo e estéril que se estende a frente e à esquerda. O rio tem um nome aborígine muito comprido, mas o chamo de Estígio.
- Esse retiro campestre parece muito triste - disse Stephen. - E Estígio tem horríveis conotações.
- Nenhuma horrível demais para Woolloo-Woolloo, senhor, asseguro. Em Hades não havia nenhum triângulo instalado permanentemente, como na pracinha de Woolloo-Woolloo
e na do imóvel de Wilkins. E ainda que esteja proibido que um homem açoite aos serventes que lhe designaram, como meu primo e Wilkins são magistrados, cada um pode
açoitar os serventes do outro. Além do mais, em Hades as pessoas tinham companhia, ainda que não fosse muita, e podia conversar um pouco pelo menos; em Woolloo-Woolloo,
em troca, um está completamente sozinho. O capataz é um homem rude que só pensa nos benefícios que obterá da terra, a quantidade de arbustos que tem que destruir
e a colheita que Stanley vai levar no bergantim até Sidney. E como me disse que só devia falar com os presos para dar-lhes ordens, ainda que os negros com quem me
encontro às vezes em nossa praia ou caminhando pela margem do rio sejam bastante amáveis, até tal ponto que com freqüência muitos me hão untado os braços com um
óleo extraído de peixes mortos para repelir os mosquitos, um óleo que eles passam em todo o corpo, e um me deu um pedaço de ocre, limitamo-nos a trocar quatro palavras.
Assim que, como vê, não posso conversar. Meu retiro campestre não é diferente do lugar isolado e solitário aonde se retirou Bentham. Ainda que, sem dúvida, haja
autores que podem escrever um esplêndido e impressionante final para seus romances quando estão em um lugar isolado e solitário, não sou um deles, apesar de que
Deus sabe que necessito desesperadamente de um final.
- O panorama que o senhor pinta de Nova Holanda é sombrio, senhor. Não tem compensações?, não tem aves ou feras ou flores?
- Disseram-me que nosso imóvel fica em uma das partes menos favorecidas do país, senhor. Tem poucos animais de caça, e esses poucos são caçados furtivamente por
um grupo de homens que fugiram da prisão e se tornaram amigos dos aborígines que vivem além dos arbustos situados ao norte. Poucos animais de caça... Se bem é verdade
que me disseram que alguns emus passaram por nosso caminho, nunca os vi. Tampouco vi as cacatuas nem os papagaios mais que como manchas borradas, porque sou míope.
Na verdade, não posso apreciar as coisas bonitas da natureza, ainda que sim as feias: ouço os estridentes gritos das aves e sinto as inumeráveis picadas dos mosquitos,
que constituem uma praga aqui, sobretudo depois das chuvas.
- E quanto aos finais, acham que são muito importantes? - perguntou Martin. - Sterne saiu-se bem sem um. Ademais, amiúde os quadros inacabados são mais interessantes
porque têm uma parte da tela em branco. Recordo-me que Bourville definia o romance como uma obra em que a vida flue e dá voltas sem pausa nem, por assim dizer, um
fim, um fim definido. Pelo menos um dos quartetos de Mozart termina sem cerimônias, e resulta muito agradável quando um se acostuma a ouvi-lo.
- Há outro francês de cujo nome não posso lembrar-me que diz algo ainda mais apropriado: a bêtise c'est de vouloir conclure. O final convencional, no qual se premia
a virtude e se atam todos os cabos soltos, é amiúde arrepiante, e os tópicos e falsidades que inclue tendem a contaminar o que se escreveu antes, mesmo que seja
excelente. Muitos livros seriam melhores sem o último capítulo ou somente com uma breve informação sobre o desenlace em tom desapaixonado, quase indiferente.
- De verdade pensam isso? - perguntou Paulton, olhando alternativamente para um e para o outro. - Queria acreditar-lhes, sobretudo porque a narração chegou a um
ponto em que... Nathaniel, peço que a leia, se não se importa. Se acredita que realmente fica bem sem o redobrar de tambores ou se me der alguma idéia para escrever
um bom final, alegrar-me-ei muito porque poderia escapar deste desolado lugar cheio de crueldade e corrupção.
- Eu a lerei com muito prazer - disse Martin. - Sempre gostei de teus livros.
- O escrevente do governador está copiando o manuscrito, pois já sabe como é minha letra, Nathaniel. A corrupção tem utilidade, apesar de que a condeno.
- Então, não o permitem copiar?
- Naturalmente, não tanto como está copiando para mim. É a melhor pena da colônia e trabalha permanentemente para o Governo, redigindo documentos de traspasso e
aluguel de propriedades, mas até que não termine com meu manuscrito não apresentará nem um só para que o lacrem. Antes era um falsificador e quando está sóbrio e
encontra o papel apropriado, pode fazer as melhores notas falsas do Banco da Inglaterra.
- Há muita corrupção na colônia?
- Tirando o novo governador e os oficiais que chegaram com ele, diria que o toca tudo. Nas capas mais baixas da administração, por exemplo, todos os empregados são
presos, muitos deles muito educados, e sob a condição de que um seja bastante discreto, fazem o que lhes peça.
- Ah! - exclamou Stephen. - Perguntei porque vários dos tripulantes da Surprise têm amigos que foram deportados e fui falar com o secretário penal para perguntar
por eles, mas percebi que não queria me dar nenhuma informação. E ainda que o capitão Aubrey, que tem muito mais autoridade, poderia obrigá-lo a fazê-lo, temo que
sua intervenção perjudique aos presos.
- Com um tipo como Firkins estou seguro de que sim. A forma mais simples e menos prejudicial é dirigir-se a um dos empregados que trabalham no registro. O melhor
é Painter. É um homem astuto e inteligente e nos designou dois ou três pastores e alguns autênticos lavradores, raras aves em um conjunto formado principalmente
por pecadores das cidades, substituindo-os por outros.
- Como devo abordá-lo?
- Como é um homem em liberdade condicional, não será difícil. Se lhe deixar um recado no hotel Riley, encontrar-se-á com o senhor em um lugar discreto. Mas seria
mais prudente que não fosse o senhor mesmo, porque há muitos informadores por aí e sua briga com Lowe fez com que todo o grupo do distrito de Camden lhe tenha ódio,
o que poderia ter más consequências para o senhor. Se a bordo da fragata não houver ninguém adequado, irei eu mesmo.
- O senhor é muito amável, senhor, na verdade muito amável, mas acho que tenho o homem adequado. Mesmo assim, se me equivoco, poderia vir ver-lhe de novo? De qualquer
maneira, eu gostaria de vir desde que o senhor esteja livre.
- Uma das muitas coisas que me gosta de seu amigo é que não é mais santo do que o senhor ou, pelo menos, que eu - disse Stephen enquanto olhava para as escuras águas
da baía de Sidney. - Ainda que, obviamente, seja um homem virtuoso, não se horroriza com um leve pecado. Pode distinguir o cais? Vou dar um grito. Ei, da falua!
Olá! Acendam alguma luz, malditos porcos!
- Se seguirmos adiante, tão perto da margem como seja possível, acredito que com o tempo a encontraremos. Gostaria de não ter recusado a proposta de Paulton de acompanhar-nos
com uma lanterna.
A teoria era certa, mas como a noite era exageradamente escura porque não havia estrelas nem indícios de que a lua sairia, puseram-na em prática com lentidão, vacilação
e angústia até que lhes alcançou um grupo de companheiros de tripulação de licença que ainda estavam quase sóbrios e levavam pederneiras nas mãos.
- Ali está, senhor - disseram. - Está justo em frente do cais, nós a aproximamos com uma espia quando a última maré mudou. Não a reconheceu, senhor? O doutor não
reconheceu a fragata.
A notícia se difundiu até o final do grupo e uma voz distante exclamou:
- Os doutores estão tão ébrios que não reconheceram a fragata, ah, ah, ah!
Depois Stephen, quando estava no corrimão, pensou: "E pensar que não reconheci minha própia fragata". Mas então lembrou com tristeza que a Surprise já não era sua
e pensou: "Que importa isso? Os distintos tipos de felicidade não podem se comparar". Depois entrou na cabine e se deteve um momento pestanejando por causa da luz.
Jack estava sentado em sua escrivaninha com vários montes de papéis diante de si e não parecia muito contente, mas levantou a cabeça, sorriu e o cumprimentou a seu
modo:
- Ah, está aqui, Stephen!
- Parece velho e cansado, meu amigo - disse Stephen. - Mostre a língua - acrescentou e, depois de examiná-la, continuou: - Ainda não se recuperou da pletora.
- O que tenho é uma pletora de malditos oficiais - replicou Jack. - Encontrei obstáculos em cada condenada volta que dei. Ninguém sabe quando o governador Macquarie
regressará e, por desgraça, o vice-governador esteve sob as ordens de meu pai. Não sei o que seria de mim sem Adams, mas só pôde solucionar o referente a pequenos
reparos e necessidades, e necessito muito mais que isso e muito rápido, como requerem as ordens que recebi.
- Adams teve muito êxito em Java - disse Stephen. - Com sua permissão, queria pedir-lhe que fizesse em meu nome uma tentativa de corrupção, mas de pouca importância.
Martin e eu fomos ver um amigo seu, um afável cavalheiro que vive aqui faz algum tempo e que me assegurou que a corrupção na administração é generalizada. Ele me
deu o nome de um empregado a quem poderíamos pedir informação sobre Padeen e os homens e mulheres das listas que te entreguei, e acho que Adams é o homem indicado
para fazer a petição.
Consultaram Adams depois do café da manhã do dia seguinte e ele achou o mesmo.
- Sem falsa modéstia, senhor - começou -, acho que não há ninguém na Armada melhor preparado para chegar a um acordo amistoso ou, por assim dizer, a um arranjo,
que os escreventes de capitães com mais experiência. Já viram todas as cores do arco íris, não têm nada que perder e são difíceis de enganar. Quanto pensava em dar
para averiguar o paradeiro destes homens, isto é, o lugar de destino?
- Pegou-me desprevenido, senhor Adams. Acredita que um johannes é suficiente?
- Que Deus lhe bendiga, senhor! Um johannes vale quatro libras aqui. Pelo que vi, acho que um bom preço para começar seria um galão de rum ou do que estes pobres
diabos chamam de rum. Não devemos estragar o mercado dando moedas de ouro a torto e a direita.
- Estou convencido de que tem razão, senhor Adams. Porém, por favor, seja generoso para que Painter não economize o tempo que dedicará para obter informação sobre
Colman. Era ajudante de cirurgião, como acho que lhe disse, e lhe aprecio muito.
- Muito bem, doutor. Farei o que esteja a meu alcance. Posso oferecer-lhe mais de dois galões se for muito difícil; se, por exemplo, Painter tiver que pedir ajuda
de outros empregados?
- Certamente! Afogue-lhe em rum se for necessário. Mas primeiro tenho que trazer-lhe dinheiro para comprá-lo e algumas moedas de grande valor para se necessitar
de algo. Garanto, senhor Adams, que neste caso não me importaria de gastar um chapéu cheio de moedas de grande valor.
Na coberta do meio se encontrou com Reade, a quem pediu:
- Oh, senhor Reade, meu amigo, diga-me se Bonden se foi com o capitão.
- Não, senhor - respondeu Reade. - Está ajudando Jemmy Ducks a fazer a roupa de Sarah. Quer que vá chamá-lo?
- Oh, não! - exclamou Stephen. - Quero ver como está ficando.
Estava ficando muito bom, pois Bonden era o tripulante da fragata com mais habilidade para costurar. Nesse momento, com a boca cheia de alfinetes, estava provando
um vestido reto de dril, apropriado para ir ao palácio do Governo, em Sarah, que estava muito quieta e rígida como um mastro, enquanto que Jemmy Ducks, que sabia
mais do comportamento e da vida mundana, mostrava a Emily a fazer uma reverência.
- Não se preocupem por mim - disse quando entrou na escura cabine. - Continuem. Porém, Bonden, queria que quando esteja livre venha ajudar-me no paiol onde o capitão
guarda seus pertences.
- Sim, senhor - murmurou Bonden quase ininteligivelmente.
E as meninas esboçaram um tímido sorriso.
O paiol onde o capitão guardava seus pertences tinha vários desses cantos geometricamente impossíveis que abundavam nos barcos, e em um deles, encerrado em um baú
de madeira grossa guarnecido com peças de ferro e atado a várias cavilhas, estava a fortuna tangível de Stephen, certa quantidade de moedas de ouro, muitas mais
de prata e algumas notas do Banco da Inglaterra, que estavam metidos em um cofre menor, também de madeira, guarnecido com peças de ferro e fechado com chave. enquanto
esperava ali por Bonden, ocorreu-lhe que os ratos, acometidos de frenesi pela privação, também podiam ter perfurado esse cofre.
Então pensou: "Sem dúvida, terão deixado as moedas de ouro e prata. Não obstante, farei papel de bobo se ao abrir encontro um cômodo ninho de pequenos pedaços de
papel com várias crias rosadas dentro. Isso foi o que ocorreu em Ballynahinch, recordo-me muito bem, mas com as listas da lavanderia".
- Senhor, se o mover um pouquinho para popa, poderei desatá-lo - disse Bonden. - Não, senhor, para popa.
Tudo estava bem. Os ratos desdenharam o cofre onde ficava a fortuna e, por sorte, as elegantes notas do Banco da Inglaterra, feitas do único papel moeda que, em
sua opinião, tinha aspecto de valer dois peniques, tinham se mantido ou tornaram-se outra vez rangentes, como em seu estado original. Quando estava contando-as com
certa voluptuosidade (afastando o fantasma de sua antiga pobreza), Oakes desceu e anunciou:
- Há um cavalheiro perguntando pelo senhor no castelo de popa, com sua permissão, senhor.
- Um civil ou um militar, senhor Oakes?
- Um civil, senhor.
Era o senhor Paulton, que lhe devolvia a visita. Stephen o levou para a cabine, mandou chamar Martin e os três ficaram sentados bebendo vinho de Madeira até que
Jack regressou, esgotado, empoeirado e desejoso de almoçar. Jack convidou imediatamente ao senhor Paulton.
- Na Armada seguimos comendo em horas estranhas, nas quais já não se costuma almoçar, mas gostaria muito que nos fizesse a honra de nos acompanhar.
- Sim, por favor - rogou Stephen. - Como é sexta-feira, pegamos uma abundante redada de peixes.
- Convidaram ao cavalheiro esfarrapado- comunicou Killick ao seu ajudante -, assim que avise ao cozinheiro.
Paulton estava perturbado. Disse que se soubesse quais eram os costumes da Armada, nunca teria ido fazer uma visita a essa hora, e que não era sua intenção molestar.
Mas com o tempo deixou de lado seus escrúpulos. A refeição foi muito agradável para todos, pois como tantos tripulantes estavam de licença, não havia mais convidados,
e puderam falar abertamente de música (pelo que descobriram que compartiam a admiração pelos quartetos de corda de Haydn, Mozart e Dittersdorf) e de Nova Gales do
Sul, que Paulton, obviamente, conhecia melhor que os outros.
- Pode ser que seja um país com muito futuro, mas no presente não tem mais que pobreza, delinqüência e corrupção. Pode oferecer um futuro a pessoas como os MacArthurs
e os pioneiros, homens infinitamente duros capazes de suportar a solidão, a seca, as inundações e uma terra geralmente pouco fértil; contudo, não é mais que um desolador
deserto para a maioria de seus habitantes, que buscam refúgio na bebida ou na crueldade com os outros. Há mais bêbados aqui do que em qualquer outra parte, e quanto
aos açoites...
Nesse momento pensou que talvez tinha falado por muito tempo e guardou silêncio durante um momento, mas quando lhes trocaram os pratos e eles lhe perguntaram por
Woolloo-Woolloo, descreveu a propriedade bastante detalhadamente.
- Pelo momento é como os assentamentos livres da costa norte - explicou -, e as partes que ainda não foram desmatadas estão como as viu o primeiro contingente de
presos que chegou. Ninguém poderia tomá-la pelo Edén, mas é considerada de certos pontos de vista, tem uma sóbria beleza e não carece por completo de interesse.
Com muito prazer lhe mostrarei no fim do mês, quando regresse para supervisioná-las. Ainda que a viagem a cavalo seja muito longa porque um tem que bordejar numerosas
lagunas, não se encontra a muita distância pelo mar. O bergantim que vem para buscar a lã e o milho não tarda mais de três ou quatro horas com um vento do sudeste
favorável. Se me permitem que lhes mostre sua posição nessa carta marítima que está sobre o assento próximo da janela, verão que a entrada de nosso porto é muito
ampla. Aqui, marcado por uma haste de bandeira e um monte de pedras, fica o canal por onde entra e sai a água de nossa enseada particular quando a maré muda e por
onde passa com sua ajuda o bergantim. E aqui fica a desembocadura do rio que vai até a laguna pelo terreno onde pastam as ovelhas. Amiúde se vêem cangurus entre
as ovelhas e acho que poderia mostrar-lhes a toupeira de água, que, conforme dizem, é muito curiosa. Sem dúvida, também há inumeráveis plantas não descritas. Com
muito prazer lhes mostraria o lugar.
- E com muito prazer irei vê-lo se não zarpamos antes do fim do mês e a fragata puder prescindir de mim - disse Jack, a quem principalmente haviam sido dirigidas
essas palavras. - Mas se não me for possível, estou seguro de que o doutor e Martin gostariam de ir. Podem pegar o cúter em qualquer momento.
Assim que tomaram o café, soaram duas badaladas, e então Jack se desculpou por ter que ir embora porque ia com o carpinteiro ao rio Parramatta para ver alguns paus,
mas rogou ao senhor Paulton que não se movesse. Stephen notou que, apesar do gesto de Jack transluzir cansaço e certa irritação, parecia ter simpatizado com Paulton.
Quando Jack se foi, Paulton falou-lhes confidencialmente. Disse que lhe dava vergonha não tê-los convidado antes do fim do mês, mas que pensava que sua visita antes
não seria agradável. Explicou que seu primo Matthews, apesar de ter muitas virtudes, pois era um dono justo, apesar de que nunca castigava por bobagens nem por raiva,
como seu vizinho Wilkins, e de dar-se bem com os aborígines, ainda que às vezes pegassem uma ovelha e uma tribo da costa aparentada com eles tivesse escondido um
grupo de presos fugidos, nunca convidava a ninguém, nem permitia que em sua casa se tomasse nada além de água ou chá verde muito fraco. Repetiu que tinha muitas
virtudes, mas acrescentou que possivelmente seus inimigos diriam que era rígido e pouco sociável.
- O cavalheiro é casado? - perguntou Martin.
- Oh, não! - respondeu Paulton, sorrindo.
- Suponho que terá muitas aves ancudas na margem de sua laguna - disse Stephen depois de um momento de silêncio.
- Estou seguro disso - respondeu Paulton. - Quando vou lá para tocar o violino vejo amiúde revoadas de aves passar voando, e é muito provável que sejam ancudas.
Bem, agradeço muito que me tenham feito passar uma tarde agradável, mas já tenho que me despedir. Ah, uma coisa mais! - acrescentou em voz baixa. - É comum dar propinas
na Armada?
- Não, não -responderam os dois de uma vez.
Como essa era quase a hora em que Stephen devia lear Sarah e Emily para ver a senhora Macquarie, só Martin acompanhou o convidado na viagem de regresso.
As meninas estavam muito esticadas com seus novos vestidos e tinham uma expressão grave. Stephen pensou que as coitadas tinham menos graça e pareciam mais negras
do que nunca.
- Vamos para ver uma senhora muito amável no palácio do Governo - explicou em um tom exageradamente alegre. - É uma senhora boa e bonita.
Os quatro subiram a ladeira quase em silêncio, Stephen com Sarah pela mão e Jemmy Ducks com Emily. E tiveram a má sorte de encontrar-se com dois grupos de presos
acorrentados.
- Por que esses homens estão acorrentados? - perguntou Sarah quando o primeiro grupo passava lentamente junto deles com grande estrondo.
- Porque se comportaram mal - respondeu Stephen.
Quando se encontraram com o segundo, viram que um soldado estava açoitando um homem que havia caído. Devido à peculiar condição da Surprise e sua inusual tripulação,
as meninas nunca tinham açoitar a ninguém a bordo da fragata, nem mesmo bater-lhes com uma vara como a que usava o contramestre ou com um cabo com um nó no extremo.
As duas se sobressaltaram e se agarraram mais forte, mas não disseram nada. Stephen tinha a esperança de que os coches (que elas olhavam com os olhos descomedidamente
abertos), os cavalos, as pessoas que passavam, especialmente os casacas vermelhas, e os edifícios as distrairiam. Além disso, assinalou com o dedo o canguru que
ficava no jardim.
- Sim - disseram, mas sem sorrir e sem dirigir o olhar para onde assinalava.
A senhora Macquarie os recebeu imediatamente.
- Quanto me alegro de vê-las, queridas meninas! - exclamou, e deu um beijo em cada uma quando lhes fizeram uma reverência. - Que vestidos mais bonitos!
Um servente trouxe sucos de fruta e bolos e Stephen viu com alívio que as meninas estavam menos tensas enquanto comiam e bebiam. Depois que a senhora Macquarie disse
ao doutor Maturin que esperava que um barco de Madras chegaria em breve e fez comentários sobre a viagem do governador, voltou-se para elas e lhes falou do orfanato.
Contou que em uma parte havia muitas meninas de sua idade e que brincavam correndo por um parque cheio de árvores. As meninas pareciam muito satisfeitas e aceitaram
mais suco e mais bolo e depois disseram:
- Obrigada, senhora.
E Sarah perguntou:
- Têm vestidos bonitos?
- Não tão bonitos como os seus - respondeu a senhora Macquarie. - Venham comigo e lhes mostrarei.
Levou-as até o estábulo, onde seu coche estava esperando, e ambas pareciam bastante contentes. Stephen, de pé junto ao assento, disse:
- Jemmy Ducks ou eu iremos visitá-las amanhã, assim que até lá. Comportem-se bem. Deus lhes bendiga.
- Não vamos regressar para a fragata? - inquiriu Emily, e seu olhar assustado voltou a aparecer.
- Hoje não, companheiras - respondeu Jemmy Ducks. - Têm que ir para ver o orfanato.
O coche começou a afastar-se e as duas se levantaram, e até que dobrou a esquina estiveram olhando-lhes com uma mistura de medo, tristeza e angústia.
Os dois desceram a ladeira quase tão silenciosos como a haviam subido. Só Jemmy Ducks, involuntariamente, exclamou:
- E em um país como este, Meu Deus!
Stephen se deteve ao chegar em uma esquina para se orientar e depois disse:
- Jemmy Ducks, aqui tem um xelim. Avance umas duzentas jardas por alí e encontrará uma taberna decente onde poderá tomar algo.
Prosseguiu sozinho, caminhando devagar, estabelecendo mecanicamente as diferenças entre as aves marítimas que passavam acima da água a sua esquerda, e repetindo-se
os razoáveis motivos de sua ação. Quando lhe repetia pela terceira vez, viu dois homens atravessarem o caminho rindo e imediatamente teve diante de si a Davidge
e a West, vestidos com sua melhor roupa de descer a terra.
- Oh, doutor, acho que interrompemos seus pensamentos! - exclamou West.
- Não, em absoluto - tranqüilizou-lhe Stephen. - Porém, diga-me, o capitão já regressou?
- Não, ainda não - responderam em uníssono.
E Davidge acrescentou:
- Mas Adams subia a bordo quando saíamos e nos perguntou pelo senhor.
Apenas cinco minutos depois que Stephen sentou na cabine, Adams bateu na porta.
- Bem, senhor, cumpri sua encomenda - anunciou. - Não faz nem dez minutos que deixei o senhor Painter. E quando vinha para cá me encontrei com o pobre Jemmy Ducks,
a quem se lhe notava nos olhos que estivera chorando. Espero que não lhe tenha passado nada mau, doutor.
- Levamos as meninas ao orfanato.
- Que? - disse. - Em um país como este? Bem... - continuou, tratando de retificar. - Estou seguro de que sabe mais do que eu, senhor. Desculpe-me, por favor. Pois,
como lhe dizia, falei com o senhor Painter, tal como me pediu, e foi muito amável. Procurou imediatamente entre todos os processos, incluídos os de distribuição
e traslados, mas temo que não gostará de algumas das notícias que tenho a lhe dar. - pegou as listas, cada uma presa a um monte de papéis, e as pôs sobre a mesa.
- No que diz respeito aos amigos de Slade - prosseguiu -, tudo está bastante bem. A senhora Smailes foi designada a um homem que terminou sua condenação, um emancipado,
como dizem aqui. Está estabelecido em um lugar onde a terra é bastante boa, perto do rio Hawkesbury, e se casou com ela. Outros três estão em liberdade condicional
e trabalham em barcos pesqueiros. Só um, Harry Fell, fugiu e se foi com alguns baleeiros. Aqui estão os endereços dos outros.
Entregou a Stephen uma folha onde havia uma série de nomes e endereços escritos com letra muito clara e sublinhados em vermelho e passou para a lista seguinte.
- Quanto a lista de Bonden, as notícias não são tão boas. Dois homens nunca chegaram aqui, pois morreram durante a viagem; um morreu aqui de morte natural; outro
fugiu e é possível tenha morrido de fome no bosque ou que tenha sido salvo pelos aborígines; e dois foram trasladados para Norfolk.
- Onde fica isso?
- No meio do oceano, acho que a umas mil milhas. Converteram-na em um presídio com o fim de aterrorizar aos presos daqui e conseguir assim um comportamento submisso.
Receberam tão maus tratos que já não estão em seu juízo perfeito. Com relação aos demais, alguns ainda são serventes designados a alguém e outros gozam de liberdade
condicional. Mas em relação a Colman, senhor, sinto dizer que passou muito mal. Tentou fugir uma e outra vez e na última foi com outros três irlandeses. Um deles
ouvira que se um caminhasse reto um bom trecho para o norte, encontraria com um rio não muito largo nem muito profundo, e que do outro lado do rio ficava a China,
onde as pessoas eram amáveis e poderiam encontrar um barco dos que fazem o comércio com as índias que os levasse para a Inglaterra. Os aborígines os capturaram meio
mortos de fome e sede e os devolveram para obter uma recompensa. Um deles morreu em consequência da surra que lhes deram, duzentas chicotadas em dois turnos, mas
Colman sobreviveu. Iam mandá-lo para uma colônia-penal, mas não o fizeram graças à intervenção do doutor Redfern, que disse que isso seria sua morte. Vai ser designado
ao dono de uma propriedade em Parramatta junto com meia dúzia de homens mais. O senhor Painter diz que se estima que seja um pouco melhor que uma colônia-penal,
porém não muito, porque pertence ao senhor Marsden, um clérigo ao qual chamam de "Pastor Rapina", que gosta de açoitar seus homens, especialmente os irlandeses papistas.
O senhor Painter não acredita que sobreviva mais de um ano.
- Onde está Colman agora?
- No hospital do cabo Dawes, na entrada que há na parte norte desta baía.
- Quando o vão tranferir?
- Qualquer dia das próximas semanas. Os empregados se ocupam disso a medida que dispõem de tempo.
- Quem é Redfern?
- Bem, senhor, nosso doutor Redfern. O doutor Redfern que estava no Nore. Mas o senhor não se lembra porque, se me permite dizer, está a muito pouco tempo na Armada.
O capitão se recordará dele.
- Sei que houve um começo de motim no Nore em 1797, depois da revolta de Spithead.
- Sim. Pois bem, o doutor Redfern disse aos amotinados que se unissem mais, que ficassem mais unidos, e por isso um conselho de guerra o condenou a morrer na forca.
Mas pouco depois o mandaram aqui e imediatamente lhe concederam o perdão graças ao capitão King, a cujas ordens servi no Aquiles. Goza da simpatia de todos aqui
e é o médico que tem mais pacientes, mas a maioria são presos. Sempre tem uma palavra amável para um preso enfermo e passa grande parte do dia no hospital.
- Obrigado, senhor Adams. Agradeço-lhe muito que se tenha esforçado tanto e estou certo de que ninguém teria logrado tão bom resultado. Estes casos são delicados
e dar uma nota discordante pode ser fatal. - Adams fez uma inclinação de cabeça sorrindo, mas não o negou, e Stephen continuou: - Alegro-me que aqui haja um homem
como o doutor Redfern. Já viu algum lugar como este?
- Não, senhor, nem espero vê-lo deste lado do inferno. E aqui, senhor, está a relação dos gastos e aqui...
- Por favor, deixe-a para outro momento, senhor Adams. Acrescente isto para pagar o que falta - acrescentou, entregando-lhe outro johannes. - Se não lhe desagrada,
pode inclusive convidar Painter e seus mais respeitáveis companheiros para almoçar no melhor lugar de Sidney. Temos que cuidar de aliados como esses.
Quando Martin regressou para a fragata, levava um pacote que continha a esperança de Paulton se não de conseguir fama e fortuna, pelo menos de escapar, de voltar
para a Inglaterra e a um mundo que conhecia, de ter liberdade para nadar no mar da existência humana com a maré alta.
- O capitão já regressou? - perguntou.
- Não. Mandou dizer que dormiria em Parramatta. Desça e sente-se comigo e dentro de pouco poderemos jantar juntos. Não há ninguém na câmara dos oficiais. Não tenho
dúvida de que esse é o livro de seu amigo.
- Bem, esses são os três primeiros volumes e o quarto menos o último capítulo. Devo ter muito cuidado para não manchá-los nem dobrar as páginas. Pobre homem! Esforça-se
muito para escrever um final, mas acho que não o logrará se for ânimado. Seu primo pensa que todas as obras de ficção são imorais. A propósito do primo, não é um
homem como é devido. Não só é contrário às obras de ficção por serem falsas, como proibiu usar sal e pimenta na cozinha e na mesa porque excitam os sentidos. Ademais,
obriga o pobre John a levar o violino até um lugar de onde não possa ouvi-lo inclusive antes de afiná-lo. E não lhe dá dinheiro metálico... Mas estou cometendo uma
indiscrição. John nos convidou para almoçar no domingo e sugeriu que tocássemos uma peça que todos conhecêssemos bem, como o quarteto em ré menor de Mozart, do qual
estivemos falando. Aceitei o convite com receio, porque sei que minha forma de tocar é no mínimo medíocre.
- Não, em absoluto! Nenhum de nós é um Tartini. Seu senso do tempo é admirável e se tem algum defeito, o que não acho, é que às vezes parece que dá uma nota um quarto
de tom mais alta. Mas não tenho um ouvido perfeito muito pelo contrário, e um monocórdio ou um diapasão seriam infinitamente mais confiáveis.
- Espero que seja bom - disse Martin, olhando com angústia o romance. - Os falsos elogios nunca têm o valor das sinceras bajulações. Não me desagrada a primeira
página. Permite que a leia?
- Por favor.
- O matrimônio tem muitas virtudes - disse Emund -, e uma que os solteiros não notam amiúde é que ajuda o homem a convencer-se de que não é onisciente nem infalível.
Um esposo não tem mais que formular um desejo para que lhe seja negado, contrariado ou trocado imediatamente, ou para ouvir a palavra "mas" seguida de uma pausa,
geralmente muito curta, na qual se ordenam as razões por as quais esse desejo não pode se cumprir, como, por exemplo, que é produto de uma má interpretação, contrário
ao que mais lhe convém ou contrário ao que realmente lhe convém.
- Tenho ouvido dizer isso com freqüência, senhor Vernon - disse sua esposa -, mas o senhor não tem em conta que geralmente as esposas são menos educadas, mais pobres
e fisicamente mais débeis que seus esposos e que se não reafirmam sua existência correm o perigo de ser sepultadas por completo.
- Se ele não objetar, eu gostaria muito de lê-lo quando tenha a mente limpa - disse Stephen. - Mas agora não tenho a mente limpa, Martin. Já sabe como estou preocupado
com Padeen.
- Certamente! Eu também. Como recordará, eu estava lá quando o pobre Padeen subiu a bordo pela primeira vez e lhe tenho simpatia desde então. Tem notícias suas?
- Sim. Adams foi ver o homem de que John Paulton nos falou, e este é o relatório que lhe deram.
Entregou o documento, que parecia a folha de um livro de contabilidade, pois tinha quantidades postas em colunas, mas os números representavam as chicotadas, os
dias de encarceramento na cela de castigo da prisão, o peso dos grilhões que usou como castigo e o tempo que os levou.
- Oh, Meu Deus! - exclamou Martin ao dar-se conta de seu significado. - Duzentas chicotadas... Isso é inumano.
- Este é um país inumano - sentenciou Stephen. - Aqui o contrato social se rompeu e o estrago que isso pode causar a quem está muito abaixo do nível de santo é incalculável.
Mas quero que saiba, Martin, que logo vai ser designado ao pastor flagelante que conheci no palácio do Governo e que o empregado que se encarregará disso, um homem
maduro e com experiência que está em liberdade condicional, diz que não sobreviverá mais de um ano nessas circunstâncias. Pois bem, pelo que contou o senhor Paulton,
tenho a impressão de que os empregados podem mudar a distribuição. Recordo-me que ele disse que o própio Painter havia enviado a Woolloo-Woolloo experientes camponeses
em vez de ignorantes das cidades, provavelmente por uma dádiva.
- Também tenho essa impressão.
- Paulton tinha razão com respeito ao relatório secreto. E Painter foi amável, rápido e eficiente. O que agora lhe peço encarecidamente é que volte a visitar Paulton
amanhã, exponha abertamente o caso de Padeen e pergunte primeiro se Painter é realmente capaz de mudar a distribuição e depois se estaria disposto a admitir Padeen
em Woolloo-Woolloo quando regresse para supervisioná-la.
- Claro! Irei na hora mais provável de que esteja acordado. Pensa em ver Padeen?
- Estou pensando no assunto. Os sentimentos dizem que sim, naturalmente, mas a prudência diz que não por temor de que ele tenha um arrebatamento ou que isso atraia
a atenção ao que deveria passar desapercebido. Mas a prudência é às vezes como uma velha resmungona. Ainda estou indeciso.
Ficou indeciso durante grande parte da noite, às vezes lendo o romance de Paulton e outras tentando encontrar o melhor caminho. Ainda estava observando a chama da
vela, agora a ponto de extinguir-se, quando ouviu alvoroço no convés. Marinheiros arrastando os pés ou correndo e confusas vozes, e depois, claramente, a voz do
senhor Bulkeley que na distante proa gritou:
- Salid daí, demônios!
Mas como a fragata estava no porto e lhe estavam trocando a exárcia fixa e fazendo diversas reparações, sua aparência era mais desordenada e a disciplina mais relaxada,
assim que um ruído como esse não lhe perturbava. Seguiu observando a chama até que se extinguiu. Dormiu e o som das badaladas penetrou levemente em seu sono.
- Bom dia, Tom - cumprimentou, saindo da cabine na hora acostumada.
- Bom dia, doutor - respondeu-lhe Pullings, o único que estava sentado à mesa. - Ouviu os ruídos na guarda de meia?
- Muito bem. Espero que o jogo tenha sido incruento.
- Só pela graça de Deus. Suas duas meninas subiram a bordo correndo quase quando iam soar as três badaladas e assustaram os marinheiros de guarda. Chamaram Jemmy
Ducks, mas como estava bêbado como um gambá e não sentia nada, subiram para o cesto da gávea do traquete. Depois, quando Oakes, acompanhado dos outros tripulantes
de guarda, tentou pegá-las, elas jogaram no convés a maça do cesto da gávea, que quase o mata, e tudo o que tinham à mão. E não paravam de gritar que não sairiam
da fragata.
- Ouvi o contramestre falar demônios, mas não sabia que se referia a Sarah e a Emily.
- Depois tiraram seus vestidos brancos e as calcinhas e subiram para a cruzeta, onde não podiam ser vistas na escuridão da noite porque são muito negras. Ainda estão
lá, como gatinhos que subiram em uma árvore e não sabem como descer. Estendemos uma rede para pegá-las caso caiam.
Depois que Stephen digeriu isso, bebeu o café que haviam preparado na câmara dos oficiais, que não era tão bom como o que Killick fazia, e perguntou:
- O senhor Martin desceu para terra?
- Sim e acho que se foi muito cedo. Davidge o ouviu pedir água assim que amanheceu.
- Despenseiro! - gritou Stephen. - Por favor, traga-me mais torradas. O pão é uma delícia, não acha?
- Oh, sim! Quando alguém leva cinco meses comendo bolachas de barco acha pouco todo o pão. Porém, doutor, que há com as meninas?
- O que há com elas? A geléia, por favor.
- Como Jemmy Ducks ainda não se levantou e nem em seus melhores dias foi um bom gavieiro, o senhor acha que Bonden deveria subir para a cruzeta? Tem uma rara habilidade
para subir a exárcia, e o conhecem bem.
- Com respeito a isso, a fome e a sede as farão descer. Não serei eu que subirei em escadas movidas pelo vento, como fazia em minha juventude, para depois ver que
o gatinho decide descer por si mesmo quando por fim estava ao meu alcance. Que ninguém lhes faça caso nem olhe para cima.
Ao final a fome e a sede não foram as que as fizeram descer, mas uma urgente necessidade. Ainda que durante a primeira parte da guarda da manhã gritaram amiúde que
não desceriam, que ficariam na fragata para; sempre e que as meninas do orfanato eram feias e estúpidas, depois de um tempo ficaram silenciosas. Na fragata lhes
haviam ensinado a seguir estritamente as normas de asseio e sentiam um grande respeito pelo que era sagrado e tabu. Por isso foi que Emily, com voz angustiada, gritou:
- Coberta! Quero ir à proa e Sarah também! Não podemos esperar!
Os tripulantes olharam para Stephen, que gritou:
- Então desçam! E depois de ir à proa irão direto para suas macas! Não lhes voltaremos a levar à terra!
Pouco depois Martin regressou, e como havia homens trabalhando por toda a popa da fragata, Stephen sugeriu que fossem andando até o cabo Dawes e visitassem o hospital.
- Encontrei John em casa e lhe expliquei o caso claramente e acho que de forma adequada - informou Martin quando chegaram ao cais. - Eu lhe disse que Padeen era
seu ajudante na enfermaria, que devido a uma forte dor que sentia se lhe receitou um tratamento com láudano e que não nos demos conta de que tinha acesso ao estojo
de remédios e se medicava sem vigilância, pelo que se converteu em um viciado em ópio. Também lhe disse que quando o senhor se encontrava no Báltico, isto é, quando
o barco regressava dali, Padeen foi privado das doses e, como não podia expressar-se bem porque tinha um defeito na fala e sabia um inglês rudimentar, roubou um
boticário escocês, pelo que o condenaram a morte, mas pela influência do capitão Aubrey, em vez de mandar-lhe para as galeras o deportaram. Acrescentei que sempre
me havia parecido um homem bom e muito amável e que sentia devoção pelo senhor. E também que como era irlandês e católico, provavelmente sofreria muito nas mãos
de um homem como Marsden. John me escutou com grande atenção e está completamente de acordo comigo co relação ao último ponto. Quanto à troca, disse que só era questão
de deixar meio guinéu no lugar apropriado e que estava disposto a fazer a vida de Padeen menos horrível. Mas depois disse: "este pobre homem foi castigado repetidamente
por fugir. O doutor Maturin já pensou que se escapar daqui, no próximo ano minha situação será insuportável?".
- No próximo ano? - inquiriu Stephen.
- Sim. Nas atuais circunstâncias, John não pode permitir-se viajar em um barco para levar pessoalmente o manuscrito a Londres e tem que enviá-lo. Mas tanto a viagem
de ida como a de volta demoram cada uma quatro ou cinco meses e, além do mais, John tem que terminar o livro, dar tempo ao editor para que o leia e acordar com o
amigo que atuará em seu nome quais serão suas condições, assim que talvez um ano seja um cálculo bastante moderado. Por isso quer saber se o senhor lhe garante que
Padeen não voltará a escapar durante esse tempo.
Stephen seguiu refletindo enquanto passeavam, às vezes olhando o espantoso e desproporcional edifício que ficava no cabo, ainda que sua mente seguia buscando o que
havia por trás das palavras de Paulton e da forma em que Martin as tinha apresentado. Em Nova Gales do Sul quase sempre usavam a palavra "fugir", enquanto que aqui
usavam "escapar", mas era absurdo tratar de buscar a definição exata quando um desejava chegar a um acordo tácito e tinha que conformar-se com termos médios.
- Não - disse, detendo-se perto da grade do hospital. - Não posso dar garantia de que Padeen não escapará, mas entregarei ao senhor Paulton uma soma equivalente
ao preço da passagem para o caso dele escapar. Também lhe darei algo como reconhecimento, por exemplo, um presente ou uma gratificação, se dedicar o livro (que é
mais uma disquisição sobre a posição da mulher em uma sociedade ideal e um debate sobre o contrato entre os dois sexos atualmente aceito que um romance ou um conto),
ou se dedicar o livro, repito, a Lavoisier, que foi amável comigo quando era jovem. Diana e eu sentimos muito afeto por sua viúva e estou seguro de que isso lhe
produzirá uma grande satisfação. Porém, Martin, como o senhor sabe mais que eu deste tipo de coisas porque está mais familiarizado com os homens de letras, peço
que me aconselhe quanto é o mais apropriado para dar como reconhecimento. E quero que tenha em conta que não sou eu sozinho que deseja honrar a memória de Lavoisier.
Poderia mencionar pelo menos uma dúzia de membros de nossa sociedade.
A grade do hospital se abriu e um homem com casaca negra e uma peruca de médico saiu montado em uma égua. Olhou atentamente para Stephen, que vestia uniforme, e
freou a égua, mas depois seguiu adiante.
- Suponho que esse é o doutor Redfern - disse Stephen, e se pôs a pensar nas razões a favor e em contra de fazer-lhe uma visita, pelo que não escutou os comentários
de Martin sobre as dedicações, apenas a soma que mencionou em tom vacilante.
- O senhor não é muito generoso com seu amigo nem com a memória de Lavoisier - observou. - Mas casualmente tenho uma quantia similar em meu poder, em notas do Banco
da Inglaterra, que são melhores que uma promissória endossada a um distante banco. Permita-me que abuse de sua amabilidade e lhe rogue que faça estas propostas ao
seu amigo. O senhor se dará conta antes que eu do menor sinal que indique que a recusa ou se sente ofendido, o senhor não confundirá o formal com o real. Voltemos
para a fragata e porei as notas em um envelope para que as guarde. De toda forma, tenho que regressar porque devo barbear-me e pôr os sapatos de fivela para ir ao
palácio do governo. Eu lhe contei que aquelas pilantras escaparam do orfanato e voltaram para a Surprise durante a guarda de meia e assegurando que nunca mais partiriam?
- Oh, não! Pensa em devolvê-las?
- Não. Esse ato, ainda que razoável e sensato, foi um crasso erro, um erro para o qual contribuiu em certa medida meu afeto pela senhora Macquarie. Agora tenho que
ir apresentar-lhe minhas desculpas o mais dignamente possível, porque ela se mostrou muito amável.
- De que se queixaram as meninas?
- De tudo, mas especialmente do fato de que algumas das outras crianças eram negras.
Ainda que Stephen tinha a cara, que normalmente estava pálida, quase rosada devido ao barbeado e a peruca empoada, não viu a sua excelência porque não estava em
casa. Havia se preparado tanto para a entrevista com desculpas, explicações e fórmulas de agradecimento, que sofreu uma decepção e só logrou animar-se um pouco quando
descia a escadaria e viu uma cacatua que não vira até então pousar em um eucalipto e estirar a crista como a popa, que tão bem conhecia.
- Sairei alguma vez, em algum momento de minha vida, deste poço de iniquidade e viajarei ao interior do país com uma escopeta e um estojo para guardar espécimes?
- perguntou ao canguru.
A pouca distância do palácio do Governo, reapareceram as horríveis multidões de presos e soldados, às quais acrescentava certa alegria a presença dos tripulantes
da Surprise que estavam de licença em terra. Abriu passagem entre eles lentamente, chegou ao hotel Riley's e pediu um copo de uísque. Foi o própio dono que o serviu
e ao ver Stephen exclamou:
- Vá, se é sua senhoria outra vez! Bom dia, senhor. Que bom aspecto tem sua senhoria!
- Diga-me, senhor Riley, há na cidade algum negociante de cavalos honesto ou que pelo menos mereça o purgatório em lugar do inferno? - perguntou Stephen. - Vi alguns
animais em um estábulo que leva o nome de Irmãos Wilkins e não pareceram saudáveis.
- É que são dromedários roxos, senhor.
- Ah! Pareceram cavalos, mas adoentados.
- Referia-me aos irmãos Wilkins. Pelo que vejo, sua senhoria não está relacionado com os assuntos penais.
- Oh, não, em absoluto! Sou o cirurgião de uma fragata que está lá abaixo.
- E estou seguro de que será uma embarcação muito elegante. Na colônia chamamos de dromedários roxos aos ladrões desajeitados e de pouca monta, a ladrões que enviaram
aqui por ter roubado as escovas dos pobres ou os pratos dos cegos. Pensava alugar um cavalo, não é assim?
- Teremos que ficar aqui em torno de um mês, assim que seria melhor comprá-lo e depois vendê-lo.
- Oh, muito mais fácil! E assim a égua sempre estaria a sua disposição e se acostumaria ao senhor.
- Por que diz a égua?
- Porque tenho três bonitas éguas detrás do hotel e qualquer uma delas poderia percorrer cinqüenta milhas irlandesas por dia durante meses.
As três eram velhas, mas Stephen se decidiu por uma égua cinza cheia de pulgas, com gesto amável e passo agradável, o passo ao que tinha mais probabilidades de viajar,
e comprou para Martin, que não era um bom jóquei, uma égua baia muito tranqüila e um pouco mais velha.
Pegou o cinzento caminho em direção a Parramatta, e quase não tinha deixado para trás as casas, as barracas e as choças encontrou-se com Jack e o carpinteiro. Regressou
com eles e o carpinteiro lhe disse que a viagem não podia ser considerada um êxito, pois apesar dos paus estarem lá e de serem de excelente madeira, como eram propriedade
do Governo, tinha que pedir permissão aos chefes de diferentes departamentos e conseguir primeiro a autorização do senhor Jenks, que não estava.
- Obstáculos a cada maldito passo - queixou-se Jack. - Detesto os funcionários!
Mas o rosto se iluminou quando Stephen lhe disse que as meninas escaparam e haviam perguntado que se ele se incomodaria que ficassem a bordo.
- Não, em absoluto - disse. - Eu gosto de vê-las saltando daqui para ali. São melhores que os ursos australianos. A última vez que fizemos escala aqui você comprou
um wombat, recorda-se?, e ele comeu meu chapéu. Isso foi quando estávamos no Leopard. Meu Deus, que horrível era o Leopard, como resistia a se mover!
Riu ao se recordar, mas Stephen notou imediatamente que seu amigo não estava como sempre, que sentia ressentimento, e, também, que tinha a cara pálida, como se não
se estivesse bem.
Quando se separaram para deixar os cavalos em diferentes estábulos, Jack comentou:
- Sem dúvida, é surpreendente que tanto o governador como o vice-governador tenham se ausentado ao mesmo tempo. Não se pode falar razoavelmente com o coronel MacPherson.
Quanto eu gostaria de saber quando Macquarie voltará!
- Amanhã vou visitar outra vez a a senhora Macquarie e talvez ela me diga - aventurou Stephen.
Pela manhã, de novo saiu bem arrumado, mas desta vez além da cara lisa tinha uma inusual expressão satisfeita ou esperançosa, já que Martin regressara com muito
boas notícias com respeito à sua entrevista: John Paulton aceitara ambas as propostas (comovera-se muito que o doutor Maturin pensasse que seu livro era o veículo
apropriado para render tributo a Lavoisier, cuja morte ele também lamentava; ademais, dissera que receberia com prazer a Padeen e lhe atribuiria uma tarefa fácil,
como cuidar das ovelhas) e lhe mandara uma amável nota que tinha como posdata um lembrete de seu encontro do domingo, que esperava ansiosamente. Por outro lado,
três quartos de hora antes de ter deixado a fragata, Adams regressou com a notícia de que a mudança da designação já estava feita. Acrescentou que não houvera nenhuma
dificuldade e que qualquer outra petição sua seria atendida com presteza.
Cumprimentou ao guarda e depois ao sentinela, que lhe fez uma saldação porque usava uniforme, seu melhor uniforme, e subiu a escadaria. Além de onde estava o canguru
viu o doutor Redfern descendo, e quando estavam a uma distância prudente tirou seu chapéu dizendo:
- O doutor Redfern, verdade? Meu nome é Maturin, e sou o cirurgião da Surprise.
- Como está? - perguntou Redfern, e sua expressão grave deu passagem a outra sorridente quando devolveu a saldação. - Conheço seu nome por seus escritos e me alegro
muito de conhecer-lhe pessoalmente. Posso ser-lhe de alguma utilidade neste remoto canto do mundo? Conheço bem seus costumes e suas doenças.
- O senhor é muito amável, querido colega. E acredito que, de fato, poderia fazer-me um favor. Eu gostaria de ver o meu antigo ajudante, Patrick Colman. Foi deportado
para cá e parece que agora se encontra no hospital. Se o senhor dissesse ao guarda da grade que me deixe passar, eu lhe agradeceria muito.
- É um irlandês com uma complexa disfonia que sabe pouco inglês e que fugiu?
- O própio.
- Se vier comigo, eu mesmo o levarei para vê-lo. Porém, sem dúvida, o senhor ia entrar no palácio do Governo.
- Tenho que fazer uma visita para sua excelência.
- Temo que sua visita será em vão. Acabo de examiná-la e terá que ficar de cama por vários dias mais.
Desceram pelo caminho juntos, conversando quase sem pausa, e o doutor Redfern cumprimentando a cada passo.
- O que diz do fígado é muito interessante - disse Stephen em determinado momento. - O do capitão não está nada bom e eu gostaria que me desse sua opinião.
E em outro momento observou:
- Aí tem outra embarcação emitindo fumaça. É uma medida para combater pragas de insetos ou doenças?
- É de enxofre ardendo e se usa para fazer os presos que estão escondidos sairem ou se asfixiarem. Muitos desses pobres diabos tentam viajar como clandestinos. Todos
os barcos que vão zarpar se enchem de fumaça e depois são detidos por uma patrulha no cabo South.
Mas a maior parte do tempo falaram de temas como a ligadura das artérias com um fio fino, os êxitos de Abernethy e as atas da Royal Society.
Quando já estavam perto do cabo Dawes, Redfern perdeu a alegria e disse:
- Envergonha-me mostrar-lhe este hospital paupérrimo. Afortunadamente, o governador e a senhora Macquarie se comprometeram a construir um novo edifício.
Depois, quando entraram, acrescentou:
- Colman está na pequena sala da direita. As costas estão se curando, mas a depressão e a recusa dos alimentos me preocupam. Espero que sua visita o anime.
- Sabe por casualidade se há mais irlandeses na sala?
- Agora não. Perdemos os outros faz uma semana e desde então não tem companhia, pois a disfonia se agrava quando fala inglês, o pouco inglês que sabe.
- Sem dúvida. Quando tem um bom dia, pode falar com fluidez o irlandês e escrevê-lo sem erros.
- O senhor fala essa língua, né, senhor?
- Regularmente. Só o que aprendi quando era menino. Mas ele me entende.
- Eu lhes deixarei juntos enquanto examino outros enfermos com meus ajudantes. Espero que não se sinta coibido.
Passaram junto a um grupo que estava no corredor e entraram na sala, Redfern acompanhado do enfermeiro que curava as feridas e de duas enfermeiras. Padeen estava
no lado direito, junto à janela, no final de uma fila de camas bastante separadas. Estava deitado de bruços e, como estava quase adormecido, não se moveu quando
Redfern afastou o lençol que o cobria.
- Como pode ver - indicou Redfern -, as lesões da pele estão se curando, tem pouca inflamação e os ossos estão quase completamente cobertos. As chicotadas anteriores
partiram a pele coriácea. Nós o curamos com uma esponja com água morna e gordura da lã. - Então voltou-se e disse: - Senhor Herold, deixaremos Colman po enquanto
e examinaremos as amputações.
Não foi as costas esfoladas de Padeen o que mais impressionou a Stephen, que como cirurgião naval vira os resultados de muitas surras (ainda que nunca nessa escala
monstruosa), mas sua extrema magreza. Padeen era um homem alto e robusto e anteriormente pesava entre cento e oitenta e cinco e cento e noventa e cinco libras, mas
agora percebiam-se as costelas por baixo das cicatrizes, quase não pesava umas cento e quinze libras e a cabeça parecia uma caveira. Tinha a cara sobre o travesseiro,
virada para Stephen, e os olhos fechados. Stephen pôs a mão em suas costas com a firmeza e a autoridade própias de um médico e lhe sussurrou:
- Não se mova. Que Deus e a virgem Maria estejam contigo, Padeen.
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, doutor - respondeu Padeen lentamente, como se falasse em sonhos, abrindo um olho e esboçando um doce
sorriso que iluminou seu esquálido rosto, e depois apertou a mão de Stephen e acrescentou: - Sabia que viria.
- Calma Padeen - disse Stephen e esperou que as convulsões terminassem para agregar: - Escute, Padeen, meu amigo, e não diga nada a ninguém: vai para um lugar onde
lhe tratarão melhor e lá voltarei a te ver. Até então, deve comer tudo o que possa e até então que Deus te acompanhe, que Deus e a virgem Maria te acompanhem.
Stephen saiu mais emocionado do que acreditava possível e quando regressou à fragata, depois de ter uma conversa muito interessante com o doutor Redfern, notou que
ainda não estava tão sereno como desejaria. Um lourinho ou o que lhe parecia um lourinho saiu voando de um grupo de banksias{11} e atraiu sua atenção por um momento.
O mesmo ocorreu com o som da música que saía da cabine, que ouviu desde antes de passar pela prancha. Procedia de Jack e Martin, que estavam estudando algumas passagens
do quarteto em ré menor. Stephen notou que a interpretação da viola era muito mais precisa que de costume e no mesmo momento lembrou que tinha um encontro para jantar
com John Paulton. Afortunadamente, já estava arrumado.
- Acabo de ver a Padeen no hospital - disse e logo, em resposta a suas perguntas, acrescentou: - Está em boas mãos. O doutor Redfern é um homem admirável. Contou-me
uma infinidade de coisas sobre as doenças locais, muitas delas aparentemente provocadas pela poeira, e também sobre o estado de ânimo dos presos. Diz que apesar
de suas carências, sempre tratam com amabilidade e ternura aos companheiros que foram açoitados e tentam aliviar seus sofrimentos tanto como seja possível.
- Recordo que quando me degradaram - contou Jack -, sendo um garoto, vi que desde quando os marinheiros recebiam uma dúzia de açoites no gradeado, seus companheiros
lhes tratavam bem, davam-lhes grogue, untavam-lhes as costas com azeite de oliva e faziam tudo o imaginável por eles.
- O doutor Redfern também me orientou com respeito ao nosso projeto de viagem - disse Stephen, pegando o violoncelo. - E me dará cartas para alguns dos colonos mais
respeitáveis ou, pelo menos, inteligentes.
- De fato, falou-me de uma viagem antes de cruzarmos o trópico de Capricórnio - lembrou Jack -, mas me esqueci do que se tratava.
- Já que provavelmente a fragata ficará aqui em torno de um mês - continuou Stephen -, pensei que Martin e eu, com sua permissão, poderíamos fazer uma viagem de
quinze dias adentrando-nos na ilha até Blue Mountains e descendo para o sul até Botany Bay, depois subir a bordo para ver se necessitam de nossos serviços e depois
fazer um percurso para o norte, passando pela propriedade de Paulton, até que a fragata esteja pronta para zarpar.
- De todo o meu coração - disse Jack. - E espero que encontre um fênix em seu ninho.
CAPÍTULO 10
- Acho que estamos vivendo errantes, como ciganos, por toda a vida - disse Stephen. - E devo confessar que gosto muito, porque estamos sem incômodas badaladas, sem
responsabilidades, sem preocupação com o amanhã e dependemos somente da benevolência de outros ou da Providência.
- Estamos nisso há tanto tempo que quase já cheguei a gostar desta paisagem desolada - observou Martin, olhando para a planície coberta, se é que chegava a ficar
em algum lugar, de áspera erva e baixos arbustos, e salpicada de eucaliptos de vários tipos.
O conjunto, que apesar de ter faixas de pedra arenito era predominantemente de cor verde e cinza-prateado fosco, estava iluminado por uma intensa luz e o ar era
quente e seco. No princípio parecia completamente vazio, mas ao longe, a sudeste, qualquer com vista aguda ou, melhor ainda, com uma pequena luneta podia distinguir
um grupo de cangurus dos maiores e revoadas de cacatuas que se moviam entre as árvores mais altas e distantes.
- Acredito que estou me comportando como um ingrato - prosseguiu Martin -, pois além desta terra ter me dado muito bem de comer, tanto excelentes codornas como costeletas,
é uma mina de conhecimentos para os naturalistas, e só Deus sabe que quantidade de plantas desconhecidas leva esse asno em sua apreciada carga, por não falar das
peles de aves. Mas me refiro a carecer de bonitas paragens virgens e de tudo o que faz uma paisagem digna de ser contemplada, além da flora e da fauna.
- Blaxland me assegurou que havia bonitos lugares virgens perto das Blue Mountains - disse Stephen.
Comeram durante um tempo. A refeição consistiu de urso australiano grelhado (toda refeição tinha que ser forçosamente grelhada ou assada) que tinha gosto de cordeiro.
- Aí vão! - gritou Stephen. - E os dingos vão atrás!
Os cangurus desapareceram atrás de uma dobra da planície situada a meia milha de distância, correndo a grande velocidade, e os dingos, que provavelmente confiavam
no fator surpresa, abandonaram a inútil perseguição.
- É muito acertado o termo desolado - prosseguiu Stephen, olhando para o leste e o oeste. - Recordo que Banks me disse que quando viu Nova Holanda pela primeira
vez e bordejou o litoral, o país lhe lembrou uma vaca magra com os ossos das cadeiras pontiagudos e protuberantes. O senhor sabe que sinto muito afeto por sir Joseph
e um enorme respeito pelo capitão Cook, esse grande cientista e intrépido marinheiro, mas não entendo o que os impulsionou a recomendar ao Governo esta parte do
mundo como colônia. Cook criou-se em uma fazenda e Banks era propietário de terras, e ambos eram homens de talento e tinham visto grande parte desta terra desolada.
Acaso foi um capricho, uma obstinada...?
Interrompeu-se e Martin disse:
- Talvez depois de terem navegado tantas milhas acharam que tinha mais possibilidades.
Depois de um silêncio, Stephen voltou a falar da vida errante.
- Acho tanto tempo! - exclamou. - Nossa cara, e perdoe-me que o diga, Martin, está quase da cor vermelho-tijolo, essa cor tão comum em Nova Gales do Sul, e acho
que vimos tudo o que nossos predecessores viram...
- O emu! - exclamou Martin. - A equidna!
- ...exceto o ornitorrinco. Blaxland me assegurou que não se podia encontrar nesta zona, mas que se via com freqüência nos rios próximos à costa. Nunca o viu nem
sabia mais dele do que eu. É estranho que um animal tão notável seja tão pouco conhecido na Europa. Só vi o exemplar dessecado de Banks, não dissecado, pois não
foi possível, e li em Transações o estudo superficial de Home e a descrição de Shaw, nenhum dos dois baseados na observação de um animal vivo. É possível que no
próximo rio que vamos ver, o último, por desgraça, encontremos um.
- Que amável foi o senhor Blaxland e que esplêndido almoço nos ofereceu! - exclamou Martin. - Sei que falo como um homem cujo Deus é seu estômago, mas tanto cavalgar,
caminhar e buscar espécimes depois de navegar durante tantos meses torna o apetite de uma pessoa igual ao de um ogro.
- De fato, foi muito amável - concordou Stephen. - Não sei o que teria sido de nós sem ele. Neste país é perigoso perder o caminho, e provavelmente depois de vagar
durante alguns dias entre arbustos do pior tipo, se tivéssemos sobrevivido, teríamos regressado para casa docilmente.
O senhor Blaxland, um colega da Royal Society com um vasto imóvel no interior do país, a certa distância de Sidney, dispensou-lhes uma calorosa acolhida. Também
lhes advertiu que era perigoso perder-se, sobretudo porque ao sul do imóvel, onde a ressecada terra estava salpicada de ossos dos presos fugidos, havia grandes faixas
de terra cobertas de um tipo de arbusto cujas folhas se juntavam na copa, pelo que se podia perder o senso de orientação com facilidade. Emprestou-lhes um asno para
transportar a enorme quantidade de espécimes que haviam recolhido e também um aborígine chamado Ben, um homem barbudo, de meia idade e muito lento. Ben lhes mostrava
as plantas comestíveis e lhes levava até onde sua comida ficava a um tiro de pistola, como se a planície deserta e sem traços distintivos estivesse marcada com sinais,
apontava para lugares parecidos a zoológicos com poucos animais, que eles quase não podiam distinguir, e fazia fogo. Às vezes, quando tinham que esperar por uma
serpente noturna, um lagarto, um gambá, um coala ou um wombat, construía cabanas com enormes pedaços de cascas de eucaliptos que pendiam dos troncos ou estavam ao
pé deles.
Por motivos desconhecidos sentia muito afeto pelo o senhor Blaxland, mas não por Stephen nem Martin, e sua ignorância o impacientava. Como havia aprendido um pouco
de inglês com os presos procedentes de Newgate, quando eles olhavam com os olhos descomedidamente abertos o que lhes parecia um terreno deserto formado por lousa
e frisado de erva morta, pensava:
- Os sacanas não distinguem o maldito caminho. Não vêem, são cegos.
Stephen voltou a falar de Blaxland:
- De fato, foi uma excelente refeição, mas de todas às que compareci a que mais me agradou foi a que nos ofereceram antes de empreendermos a viagem. Acho que para
que uma refeição tenha mais êxito que o normal o anfitrião deve estar mais alegre que o normal, e o senhor Paulton estava pletórico de alegria. E como tocou bem!
Ele e Aubrey tocaram como se estivessem inventando a música de comum acordo. Foi uma delícia ouvi-los. - Sorriu ao se recordar e acrescentou: - Não lhe deu a impressão
de que se alegrava de não saber nada sobre a evasão de Padeen?
- E ainda mais. Ele me disse em um aparte que se fossemos discretos pensariam que havia ido se reunir com seus companheiros no bosque, onde vivem com os negros.
- Alegra-me ouvir-lhe - disse Stephen. - E falando de negros, acho que a razão pela qual nos é difícil comunicar-nos com este - continuou, assinalando para Ben,
que estava sentado a certa distância de costas para eles -, além da língua, é que nem ele nem sua gente têm noção de propriedade. Cada tribo tem suas fronteiras,
sem dúvida, mas dentro de seu território tudo é comum. Além disso, como não têm gado nem terreno cultivado e têm que ir constantemente de um lado para outro para
buscar sua subsistência, qualquer outra coisa que não sejam suas lanças e seus bumerangues seria uma carga inútil. Para nós é fundamental a propriedade, real ou
simbólica. Sua ausência significa miséria, e sua existência, felicidade. A linguagem de nossa mente é completamente diferente da sua.
Nesse momento Ben ordenou:
- Calem-se e montem a cavalo.
Selaram suas velhas e pacientes éguas, porque Ben não se ocupava de atar correias nem fivelas, já que simplesmente era seu guia e protetor para comprazer a Blaxland,
não um servente. Na realidade, em seu mundo não existia a relação amo-servente nem desejava nada do que eles podiam lhe dar. Montaram e cavalgaram devagar em direção
ao último rio.
No último rio não havia ornitorrincos nem água, assim que cruzaram o leito seco. Durante várias horas tinham observado como a monótona planície descia levemente
e agora as árvores eram muito mais abundantes e mais frondosas, pelo que podia se dizer, sem temor de exagerar, que o lugar parecia um parque, ainda que de um colorido
apagado e desatendido. Mas não carecia de encanto. Ben lhes mostrou um enorme lagarto que estava no tronco de uma das árvores mais altas, imóvel e convencido de
que não podiam vê-lo. Não permitiu que disparassem nem lançou nele nenhuma lança da meia dúzia que levava e, aparentemente, disse que o réptil era sua tia, ainda
que isso podia ter sido um erro de interpretação. Depois de observar o lagarto vinte minutos, o animal perdeu a cabeça e tratou de subir pela árvore correndo, mas
caiu junto com um enorme pedaço de casca desprendida. Então lhes olhou desafiante com a boca aberta alguns momentos e se afastou correndo pela erva, elevando seu
corpo sobre suas curtas patas.
- Era um pleurodonto - informou Martin.
- Isso mesmo. Além disso, tinha a língua em forma de forquilha e, sem dúvida, pertence a um grupo raro.
Graças a este encontro, ficaram alegres o resto da tarde. No dia seguinte, depois de explorar Botany Bay a baía descoberta por Banks, cavalgaram até Sidney. Imediatamente
as éguas se dirigiram para o estábulo junto com o asno. Ben se encontrou com um grupo de homens de sua tribo, alguns deles vestidos, em um bairro miserável dos arredores.
Foram com ele até o hotel, falando muito rapidamente, e quando chegaram, Stephen disse:
- Senhor Riley, aqui Ben, enviado pelo senhor Blaxland, nos acompanhou durante estes dez dias. Por favor, dê-lhe o que seja apropriado.
- Rum - pediu Ben com voz escandalosa.
- Não lhe permita fazer-se muito estrago, senhor Riley -recomendou Stephen, e depois de pegar o asno pela braçadeira, acrescentou: - Este asno é do senhor Blaxland
e o devolverei por um marinheiro quando venha uma de suas carroças.
- Boa noite, senhor Davidge - disse quando subiu a bordo e cumprimentou aos oficiais. - Teria a amabilidade de ordenar que desçam estes pacotes com sumo cuidado?
Senhor Martin, importar-se-ia de garantir de que coloquem as peles, sobretudo as dos emus, com muito cuidado no paiol onde o capitão guarda suas coisas? Ele não
se importará porque o odor sairá logo. Devo ir informar-lhe de nossa chegada. Ah, senhor Davidge! Poderia mandar um marinheiro sério, sóbrio e confiável, por exemplo
Plaice, levar este asno de volta ao imóvel do senhor Riley?
- Bem, doutor, acredito que poderei encontrar algum em seu juízo perfeito, mas Plaice está agora amarrado à sua maca porque se embebedou. Se aguçar o ouvido poderá
ouvir como canta Greensleeves.
Stephen também pôde ouvir na cabine a voz do capitão Aubrey, que em tom duro e formal, um tom que refletia sua autoridade, dirigia-se a alguém que indubtavelmente
não pertencia à tripulação da fragata. Ao mesmo tempo notou que a bordo havia uma tensão nervosa, olhares ansiosos e comentários furtivos, e que quase todos os tripulantes
estavam nos postos que ocupavam quando iam zarpar.
- Diga ao cavalheiro que lhe enviou que esta nota está mal dirigida e mal redigida e que não posso aceitá-la - dizia o capitão Aubrey com voz clara em meio do ar
imóvel. - Bom dia, senhor.
Várias portas se abriram e se fecharam. Um oficial do Exército com a cara vermelha como sua casaca saiu, devolveu o cumprimento de Davidge sem sorrir e atravessou
a proa. No momento em que o asno de Stephen tocou terra, começou a lançar desoladores zurros e a dar sacudidas, e os marinheiros de barcos de guerra menos respeitosos
e todos os de Shelmerston começaram a rir estrepitosamente, dando chutes no piso e palmadinhas nas costas uns dos outros, algo pouco usual.
Tom Pullings apareceu no convés como o boneco de uma caixa surpresa e gritou:
- Silêncio de proa a popa! Silêncio!, ouviram?
Gritou tão alto e com tanta indignação que os risos cessaram de repente, e em meio do silêncio Stephen foi até a cabine. Jack estava sentado atrás dos montes de
papéis que geralmente um capitão tinha na mesa quando estava no porto e era seu própio contador, mas sua expressão austera se transformou em uma alegre quando a
porta se abriu.
- Ah, está aqui, Stephen! Quanto me alegro de vê-lo! Não o esperávamos até amanhã. Espero que tenha tido uma viagem agradável.
- Muito agradável, obrigado. Blaxland foi muito amável e hospitaleiro. A propósito disso, encarregou-me de lhe apresentar seus respeitos. Vimos o emu, vários tipos
de cangurus, a equidna, oh, meu Deus, a equidna!, esse animal pequeno, gordo e de cor cinza que dorme no alto dos eucaliptos e que absurdamente acredita ser um urso,
além de muitos papagaios e um lagarto raro de nome desconhecido, ou seja, tudo o que queríamos ver e mais, exceto o ornitorrinco.
- Porém, em geral, o campo era um lugar agradável, não?
- Bem, tem grande interesse para os botânicos e produz assombro e satisfação ver seus animais, sobretudo a equidna, que é algo incrível; contudo, como paisagem não
acho que tenha visto nada tão deprimente nem tão parecido à idéia que tenho das planícies do purgatório. Talvez melhore com a chuva, mas agora tudo está seco. Inclusive
o rio que há entre Botany Bay e este lugar estava seco. Mas parece mal-humorado, Jack.
- Estou mal-humorado. Na realidade, sinto tanta raiva que quase não posso controlar minha mente e mantê-la fixa nestes papéis - reconheceu Jack.
Stephen, com o coração encolhido, notou que não compreendia as coisas.
- Quando Tom e eu estávamos fora dando uma espiada em alguns paus com Lascas - prosseguiu -, veio um grupo de soldados com dois oficiais e disseram que havia a bordo
um preso que escapara e insistiram em procurá-lo imediatamente, sem esperar que eu regressasse, porque tinham uma ordem judicial. A maioria dos tripulantes estavam
em terra de licença ou tinham ido nos botes para trazer provisões. O grupo era forte e estava encabeçado por um capitão. Já que West, como sabe, não está autorizado
oficialmente a ocupar seu posto e por temer que fizéssemos o ridículo se resistíssemos, limitou-se a protestar o mais energicamente possível diante de uma testemunha
e saiu da fragata. Revistaram-na junto com alguns velhos marinheiros da baía de Sidney que tinham trazido, encontraram o homem quase imediatamente e o levaram. O
homem soluçava de uma forma que partia o coração, conforme diz o pequeno Reade, que tropeçou com eles quando regressava da cidade. Podia ser reconhecido porque tinha
os tornozelos esfolados e ensangüentados onde antes tinha colocados os grilhões.
- Era amigo de algum dos tripulantes?
- Creio que sim, mas não sei de qual. Ninguém vai querer problema nem causar problemas para seus companheiros; por isso se um pergunta só respondem "Não sei, senhor",
com um olhar indiferente de soslaio que já vi em todos os barcos em que naveguei. Mas perceba, Stephen, que é uma monstruosidade revistar um barco do rei sem a permissão
do capitão.
- É realmente ofensivo.
- E trataram de justificar-se aduzindo como causa a categoria da Surprise. Mas lhes disse que sabiam tão pouco de leis navais como de boas maneiras, e que uma embarcação
alugada por sua majestade e sob o comando de um de seus oficiais tinha os mesmos direitos que um barco de guerra do Governo e para terminar, citei como exemplos
o Ariadne, o Beaver, o Hecate e o Fly, que é o mais significativo.
- Espero e confio em que não tenha se metido em um confusão.
- Não - respondeu tranqüilo. - Assim como o rei Carlos, não vou percorrer o mesmo caminho outra vez, porque o percurso foi muito penoso, Stephen. Eu me mantive frio
como um juiz ou, pelo menos, tão frio como deveria ser um juiz - acrescentou, recordando-se de um homem com a cara vermelha, malvado, estúpido, pomposo e de mente
tortuosa que vira em Guildhall com uma peruca e uma toga de juiz.
- Quando falava no plural se referia aos soldados?
- Não - respondeu. - Aos civis, às pessoas que vivem há bastante tempo na colônia e se entrincheiraram aqui, e também a seus aliados. Chamam-lhe de o clã MacArthur
e conseguem que o coronel MacPherson firme qualquer papel que lhe ponham na frente. O jovem que acabo de mandar passear me trouxe uma nota que dizia que, para evitar
desafortunados incidentes no futuro, as autoridades pensavam pôr sentinelas na proa, uma nota que MacPherson teve que firmar e o desgraçado tenente teve que trazer.
Essa é uma das razões pelas quais vamos soltar as amarras da proa e da popa e rebocar a fragata para a entrada da baía outra vez. Que o diabo me leve se tenho que
entrar e sair de meu própio barco passando por entre dois casacas vermelhas. Mas também há outra razão. O jovem Hopkins, um gavieiro da guarda de estibordo, o muito
tonto, ontem à noite trouxe para bordo uma jovem camareira que estava em liberdade provisória. Por sorte, West a ouviu rir na parte da coberta inferior onde se guardam
as amarras da âncora e a descemos para terra mais rápido do que subiu sem que ninguém a visse. Hopkins está preso e lhe arrancarei a pele a chicotadas tão logo termine
o reboque.
- Oh, não, Jack! Mais surras não neste espantoso lugar, eu lhe suplico.
- Como? Bem, talvez não. Entendo o que quer dizer. - Então alçou a voz e ordenou: - Entre!
Reade, com expressão grave, anunciou:
- O capitão Pullings está de guarda, senhor, e tudo está pronto.
- Obrigado, senhor Reade - respondeu Jack. - Apresente meus respeitos ao capitão Pullings e diga-lhe que proceda.
Um momento depois se ouviram as ordens própias da navegação no castelo de popa e as correspondentes respostas na proa e na popa, mescladas com os gritos do contramestre,
às vezes estridentes e outras como horríveis lamúrias; ou seja, o ritual do processo de pôr em movimento uma embarcação. Jack estava com a atenção na sucessão de
ações e enquanto isso Stephen escrutinava seu rosto. A parte branca dos olhos estava amarelada e a expressão mal-humorada não havia desaparecido ao ver Reade, como
costumava ocorrer. Além disso, ainda que tenha falado com raiva, era evidente que sentia muito mais do que havia expressado. Para Jack lhe molestava mais do que
para a maioria dos oficiais que faltassem com o respeito à Armada, e essa falta fora muito grave e era evidente que se produzira por antipatia.
Há pouco tinham colocado as barras do cabrestante e agora começaram a mover-se, mas os marinheiros não as empurraram com força nem acompanhados pelo som do pífano
nem do violino, senão pelo de seus pés descalços. O cais se deslizou lentamente pela popa, fazendo-se cada vez menor, e a vista que havia desde as escotilhas que
Stephen tinha em frente se ampliou até que o palácio do Governo ficou dentro do marco. Então a fragata virou noventa graus para estibordo e no grande janelão de
popa apareceu de novo o palácio do Governo junto com grande parte da colônia.
-Alegro-me de irmos para a entrada da baía - disse Jack. - Teremos muito mais trabalho levando e trazendo coisas, mas mesmo assim... Stephen, não pode imaginar o
quão estúpidos, imprudentes e desenfreados que os marinheiros nos portos chegam a ser. Aí tem Hopkins, que trouxe essa jovem imediatamente depois do horrível incidente
que os militares provocaram. Um momento de reflexão teria bastado para que visse que trazê-la a bordo era, em primeiro lugar, um delito, e em segundo, uma ação que
poderia acarretar problemas para todos. E creio que se a fragata tivesse seguido atracada à margem, qualquer outro jovem enlouquecido ou mesmo meia dúzia de homens,
jovens ou velhos, teriam feito o mesmo. Não pode imaginar.
Nada disso era novo para Stephen. Sabia melhor do que Jack quais eram as consequências de permanecer em um porto e até onde os marinheiros eram capazes de chegar
para satisfazer seus desejos. Também sabia que a necessidade de satisfazê-lo aumentava ao longo dos meses que passavam navegando, talvez em parte pela dieta disparatada
(seis libras de carne por semana, ainda que estivesse bem conservada, era demais). Vira que mesmo os oficiais, que tinham certa educação e presumivelmente sabiam
reprimir-se e podiam inculcar contenção, em certas ocasiões arriscavam um matrimônio feliz para fornicar estúpida, imprudente e desenfreadamente. Mas esse não era
momento para dizer a Jack o que sabia e tampouco para pedir que lhe contasse o que tinha nas entranhas. Depois de um momento exclamou:
- A propósito! Como estão as meninas? Espero que não tenham causado problemas.
- Acho que estão muito bem, e não causaram nenhum problema. Quase não as tenho visto, porque não sobem para o convés até que anoitece por medo de serem capturadas,
mas as ouvido cantar lá embaixo.
- E Paulton? Teve notícias dele enquanto estávamos de viagem?
- Oh, sim! - respondeu Jack, com o rosto radiante. - Veio despedir-se faz vários dias porque tinha que partir para o imóvel que seu primo tem na costa, perto da
ilha Bird. Espera que vamos vê-lo em um bote ou, caso não seja possível, que lhe faça uma visita quando viage para o norte. Que tarde mais agradável passamos com
ele! Que divertido é e como toca bem o violino! Alegro-me de ter insistido em ser o segundo violinista. Mesmo assim, fez-me ruborizar.
A notícia de que a fragata já estava ancorada chegou abaixo e pouco depois Stephen disse:
- Jack, amanhã tenho que ir visitar a senhora Macquarie e tentar por fim apresentar-lhe minhas desculpas, mas antes disso, antes inclusive do café da manhã, eu gostaria
examiná-lo para ver se já não tem pletora e receitar algo no caso de que não seja assim.
- Muito bem. Mas deixe-me dizer que zarparemos no dia 24, Stephen. Ainda que então o governador tenha regressado, o que é muito provável, e a situação tenha melhorado,
o que é possível, decidi renunciar a algumas das reparações e zarpar comamudança da lua. Lamento que isto possa interromper sua viagem ou interferir em seus planos.
- Oh, não, em absoluto! Começarei a viagem um pouco antes, talvez amanhã mesmo, e a menos que algum animal selvagem não descrito nos devore ou nos percamos em um
lugar povoado de arbustos do pior tipo junto ao qual o labirinto de Creta pareça um jogo de crianças e o de Hampton Court um simples brinquedo, estaremos de volta
no dia 23. Falarei com Padeen quando passarmos pela casa de Paulton.
- O que foi agora? - perguntou Jack, voltando-se para a porta.
- Há um maldito problema, senhor - anunciou Pullings. - Os guardas de South Point insistiram em revistar o cúter azul e trataram de detê-lo, mas Oakes, que estava
ao comando, disse que explodiria os miolos do primeiro que pusesse uma mão na borda.
- Muito bem feito. O bote levava a bandeira britânica?
- Sim, senhor.
- Isso converte o ato em algo ainda mais espantoso. Darei parte ao Almirantado e falarei disso no Parlamento. Maldito seja! O ato seguinte será abrir minhas cartas
e meus despachos e dormir em minha maca.
Uma vez mais, Stephen, barbeado, escovado, empoado e vestido de acordo com o alto nível estabelecido por Killick, entregou seu cartão de visita, mas desta vez, ainda
que sua excelência tivesse um compromisso, mandou dizer-lhe que lhe rogava que a esperasse porque só tardaria cinco minutos. Os cinco minutos se estenderam para
dez e quando a porta se abriu, apareceu seu primo James Fitzgerald, um homem do mundo e sacerdote da ordem portuguesa dos Padres da fé. Olharam um para o outro com
a mesma determinação que os gatos de não expressar sua surpresa, mas se cumprimentaram e se abraçaram afetuosamente. Haviam passado muitos dias felizes correndo
pelas montanhas de Galtee ao redor da casa de um tio avô comum. Trocaram as notícias que tinham da família desde a última vez que haviam se visto, que fora, como
agora, em uma ante-sala, mas naquela ocasião era a da casa do patriarca de Lisboa. Finalmente James disse:
- Stephen, perdoe-me se sou indiscreto, mas ouvi que dentro de pouco vai fazer uma viagem para o norte passando por Woolloo-Woolloo.
- Ah, foi, primo?
- Se for assim, aconselho que tenha muito cuidado porque entre este lugar e Newcastle há um bando de fugitivos pertencentes aos Irlandeses Unidos, que são tipos
muito duros, e alguns pensam que mudou de lado depois de 1798. Eles o viram no convés de um navio inglês que perseguia a Gough quando se dirigia a Solway Firth e
depois disso enforcaram ou deportaram vários de seus amigos.
- Não podem ser homens que me conheçam. Sempre me opus à violência na Irlanda e deploro o levante. Roguei ao primo Edward que não usasse a força. Inclusive agora,
a situação se resolviria com a emancipação dos católicos e a dissolução da união; ou seja, simplesmente com decretos do Parlamento. Mas a tirania de Bonaparte é
algo completamente novo, está muito mais estendida e exercida com mais inteligência, assim que a força é o único remédio. Estou disposto a ajudar a qualquer um a
derrubar-lhe e sei muito bem que você e sua ordem também. Seu êxito seria a ruína da Europa, e sua ajuda, péssimo para a Irlanda. Mas nunca, nunca, nunca em minha
vida fui um delator.
Antes que o padre Fitzgerald pudesse responder entrou um servente e disse:
- Doutor Maturin, por favor.
- Doutor Maturin - cumprimentou a senhora Macquarie -, sinto muito tê-lo feito esperar. O coronel MacPherson estava tão angustiado...
Parecia que ia seguir falando disso, mas mudou de opinião. Então pediu ao doutor Maturin que se sentasse e continuou:
- Assim que fez uma viagem entre os juncos. Espero que tenha gostado.
- Foi uma viagem muito interessante, senhora. Sobrevivemos graças a um inteligente negro e trouxemos um asno carregado de espécimes que nos manterão ocupados nos
próximos doze meses, ou mesmo mais. Mas antes de continuar, permita-me apresentar-lhe humildemente desculpas pelo comportamento dessas meninas travessas. Pagaram
realmente mal sua amabilidade e ainda me ruborizo ao recordá-lo.
- Devo confessar que não me surpreendeu. As coitadas são selvagens como crias de falcões. Mas antes de perder a cabeça, morder a governanta, romper a janela e descer
pela parede da casa, o que não entendo como conseguiram fazer sem quebrarem as pernas, disseram que não gostavam de ficar em companhia de meninas, senão que preferiam
ficar com homens. Gostaria de tentar de novo?
- Não, senhora, ainda que lhe agradeço muito. Acho que não sairia bem e, além disso, a tripulação se voltaria contra mim. Como não posso voltar a levá-las para sua
ilha, porque agora está deserta, acredito que a solução é que quando estejamos nas altas latitudes sul as mantenhamos envolvidas em um pedaço de lã e sob o convés,
e que quando cheguemos a Londres as deixemos aos cuidados de uma mulher maternal que conheço há muitos anos. É a dona de uma hospedaria no distrito independente
de Savoy, um lugar agradável que ela mantém sempre cálido.
Falaram das qualidades da senhora Broad e dos numerosos negros que haviam se aclimatado a Londres, e depois a senhora Macquarie perguntou:
- Doutor Maturin, posso falar-lhe extra-oficialmente das más relações atuais? Meu esposo chegará por fim dentro de poucos dias e lhe desgostarão inclusive mais que
a mim, assim que eu gostaria lograr que melhorassem um pouco antes que voltasse, se posso. Sei que aqui sempre houve rivalidade entre a Armada e o Exército, e o
senhor conhece melhor as razões do que eu, pois esteve aqui em tempos do almirante Bligh; mas o pobre coronel MacPherson é um recém chegado, desconhece tudo isto,
e lhe preocupa muito que lhe devolvam cartas por não estarem bem dirigidas. O conteúdo, deixa-o a cargo dos civis, mas cuida muito da forma. Com lágrimas nos olhos
me mostrou este envelope e me rogou que lhe dissesse se via algo incorreto na forma em que está dirigido.
Stephen olhou o envelope e tentou explicar:
- Bem, senhora, acho que é habitual acrescentar MP ao nome de um oficial quando também é um membro do Parlamento, por não falar de MRS quando é membro da Royal Society
e JP se é, além disso, um magistrado. Mas o capitão Aubrey não é minucioso e não teria se fixado nestes detalhes se não estivesse com raiva e frustrado por causa
do deliberado atraso e dos atos de alguns funcionários que parecem feitos com má vontade. Já se encontrou com isto antes, quando fez escala aqui com seu barco, justo
depois do desacordo do governador Bligh com o senhor MacArthur e seus amigos.
- O capitão Aubrey é membro do Parlamento? - inquiriu a senhora Macquarie com assombro, e quando se recuperou da surpresa riu baixo e acrescentou: - Oh, oh, alguns
civis vão empalidecer! Temem mais um interrogatório no Parlamento que a condenação eterna.
Quando Stephen levantou-se para se despedir, a senhora perguntou se ele gostaria de almoçar com ela informalmente no dia seguinte, pois o doutor Redfern ia estar
presente e ambos queriam saber sua opinião sobre o projeto do hospital.
- Por desgraça, senhora - respondeu Stephen -, amanhã estou comprometido, pois ao riscar a alvorada partirei para os bosques que rodeiam o rio Hunter, onde, conforme
me disseram, têm sua morada a serpente tigre e muitas aves curiosas.
- Por favor, tenham muito cuidado de não se perder - disse ela, dando-lhe a mão. - Quase todo mundo vai ali pelo mar. E avise-me quando regresse, porque quero que
conheça meu esposo, que é um grande naturalista.
Apesar da advertência da senhora Macquarie, perderam-se na primeira tarde. O caminho, que era relativamente largo porque ainda não havia se afastado dos disseminados
assentamentos, conduzia primeiro a um terreno de pedra arenito elevado e despovoado, de onde se via um complexo grupo de lagunas, e depois descia pela suave ladeira
entre arbustos e árvores dispersas, e ouviram à direita as doces notas de um canto que só podia ser de uma ave lira, uma distante ave lira.
- Sabia que nenhum anatomista competente já examinou uma até agora? - perguntou Stephen.
- Sei muito bem - respondeu Martin com seu único olho brilhando.
Deixaram o caminho e cavalgaram por entre os arbustos em direção ao lugar onde as notas se ouviam com freqüência até que chegaram a uma acácia. Lá fizeram uma inclinação
de cabeça um para o outro, desmontaram sem fazer ruído, ataram as éguas e o asno (que também haviam trazido porque anteciparam a viagem) e adentraram no bosque o
mais silenciosamente possível. Stephen levava o rifle, pois como Martin tinha um só olho e o coração muito brando, não era confiável como caçador. Ainda que se adentraram
o mais silenciosamente possível, o solo estava coberto de lixo, folhas secas, galhos e pedaços de lenha, e a medida que avançavam havia mais. Quando se encontravam
a cinqüenta jardas de onde se ouvia o canto, ele cessou repentinamente. Esperaram ali agachados uns dez minutos e no momento em que se olharam com expressão ao mesmo
tempo desencantada e resignada, outras duas aves começaram a cantar. Para aproximar-se da mais próxima, tinham que andar trabalhosamente, pois não só havia ali outro
tipo de eucalipto, como o terreno era rochoso. Mas ambos eram experientes caçadores de aves, e agora, com enormes dificuldades e acompanhados de inumeráveis mosquitos
(pois estavam na sombra), lograram aproximar-se da ave o suficiente para ouvi-la escavar a terra e emitir sons para si entre gorgeio e gorgeio. Quando por fim chegaram
a uma pequena clareira em cujo centro estava o montículo onde a ave se encontrava, só acharam suas marcas e seus excrementos. Esse foi a tentativa de aproximação
que esteve mais perto do êxito. Depois de tratar de aproximar-se da sétima ave, pensaram que era tão tarde que seria absurdo afastar-se mais das éguas e decidiram
regressar ao lugar onde estava a acácia em que as haviam atado.
- Mas este não é o caminho - observou Martin. - Tínhamos a grande laguna justo pela frente quando a deixamos.
- Aqui tenho a bússola - disse Stephen. - A bússola não mente.
Depois de seguir um tempo a indicação da bússola ou sua interpretação dela, passaram por entre alguns arbustos espinhosos que não tinham visto antes e cuja classificação
botânica não puderam determinar, e depois tomaram uma vereda que parecia formada pela passagem freqüente de animais. Martin se deteve de repente e, voltando-se,
observou:
- Aqui há um homem morto.
Era um preso que havia fugido e que fora atravessado por uma lança há uma semana ou dez dias. Pelo menos os outros, simbolicamente, haviam lhe posto por cima um
galho antes de seguir andando em zig zag, já que a vegetação em algumas partes do bosque era impenetrável, mas sempre subindo e com a esperança de encontrar campo
raso.
Quando o sol estava tão baixo como seu ânimo e pararam vacilantes onde havia aves lira cantando de ambos os lados, ouviram o zurro do asno a menos de um quarto de
milha atrás. Com tanto nervosismo tinham cruzado a vereda sem vê-la, e em quanto regressaram para ela, a paisagem voltou a ser como antes, a direção clara, e a grande
laguna, onde devia estar em relação com o restante.
Despertaram com um amanhecer precioso: era de dia ao leste, ainda de noite a oeste e entre ambos o céu variava quase imperceptivelmente desde a cor violeta até a
água-marinha. Havia muito orvalho e o ar imóvel estava cheio de aromas desconhecidos no resto do mundo. As éguas caminhavam de um lado para outro como boas companheiras,
desprendendo seu odor característico, e o asno ainda estava adormecido.
Uma coluna de fumaça; o odor do café. Então Martin perguntou:
- Já viu alguma vez um dia mais bonito?
- Não -respondeu Stephen. - Mesmo esta paisagem pouco atraente parece ter se transformado.
Em uma ladeira situada a umas vinte jardas dali uma ave lira cantou, uma ave de calda comprida parecida com o faisão, e quando iam largar as xícaras, passou voando
acima deles. Desceu do outro lado de uns arbustos e as éguas levantaram as orelhas e o asno despertou.
- Gostaria de persegui-la? - inquiriu Stephen.
- Não - respondeu Martin. - Já vimos uma e se queremos fazer a dissecação de um exemplar, estou seguro de que Paulton nos fará o favor de nos dar um. Seus homens
soltam cachorros para espantá-las e quando voam disparam. Acho que não deveríamos nos desviar do caminho, aliás dedicar toda nossa atenção às aves ancudas. Nas lagunas
deve de ter muitas revoadas, além dos poucos patos deste país, e, como Paulton disse, o caminho as beira todas.
De fato, havia nas margens muitas revoadas de aves ancudas, aves de patas compridas que andavam majestosamente pela água, e também de aves de patas curtas que corriam
pelo barro. Além disso, às vezes grupos de cerca de mil aves passavam voando e virando, com as asas desprendendo lampejos. Por todas as partes se ouviam os característicos
gritos das aves das marismas e das costas, amiúde similares aos que tinham ouvido em sua juventude, que se bem não pertenciam à mesma espécie, eram de outras muito
parecidas. Entre elas havia tringas, martinetes, avocetas e maçaricos de todo tipo.
- Aí tem um ostreiro! - exclamou Martin. - Não encontro palavras para expressar a alegria que me produz ficar deitado em um salicórnia sob o sol olhando esse ostreiro
pela luneta.
- Ele se parece tanto com o de nosso país que não sei dizer em que se diferenciam - disse Stephen -, porém, indubtavelmente, não é como ele.
- Bem, não tem nada de branco nas primeiras.
- Isso mesmo. E o bico é uma polegada mais comprido.
- Mas acho que não é a diferença, mas a semelhança o que me causa alegria.
A alegria que invadiu a ambos diminuiu um pouco quando a vereda, depois de atravessar três rios seguidos, dividiu-se em dois estreitos ramais ao descer pela ladeira
de uma colina que separava o terceiro rio do quarto, uma ladeira coberta de capim onde havia uma fonte. Desmontaram para que as éguas bebessem e pastassem e observaram
o sinuoso riacho que se estendia ante eles sob a imensa abóbada celeste, por onde passavam as nuvens empurradas pelos ventos alísios do sudeste. Não encontraram
nenhuma solução satisfatória, assim que soltaram as rédeas das éguas com a esperança de que o instinto as guiasse, mas ambas lhes olharam fixamente com cara estúpida,
esperando que eles indicassem onde ir, e o asno permaneceu indiferente. Então, jogando uma moeda para o ar, decidiram que seguiriam o ramal da direita. Decidiram
que ainda que se terminasse, como ocorria amiúde com as veredas, sob a condição de que andassem pela margem do rio não poderiam se perder em um perigoso bosque,
porque abaixo não havia nenhum, e a condição de que avançassem para a costa mais ou menos em direção norte, encontrariam Woolloo-Woolloo. Já tranqüilizados, recolheram
alguns exemplares das mais raras plantas (aquele era um hábitat excepcional), alguns insetos e o esqueleto quase completo de um marsupial da família Peramelidae,
e seguiram cavalgando. Ao chegar ao patamar da colina assustaram um grupo de cangurus.
A teoria em que se basearam era lógica, mas não tinha em conta a sinuosidade das margens das lagunas que bordejavam nem o fato de que muitas não fossem na realidade
lacunas, mas profundas marismas com numerosos braços. A vereda, naturalmente, desapareceu ao chegar a uma plataforma de pedra arenito e não voltou a aparecer. Perguntaram-se
se os cangurus a teriam formado, mas seguiram avançando alegremente, ainda que os mosquitos os perseguiam em todo momento, encantados de ver as aves, até que o tempo
e a comida já eram escassos.
Um incauto canguru que apareceu numa brumosa manhã, um canguru alto e cinzento provavelmente muito velho, serviu-lhes de alimento, mas nada podia proporcionar-lhes
tempo. Chegaram a Woolloo-Woolloo pela parte da laguna mais próxima do mar, reconheceram-no, com grande alívio (confirmaram sua teoria e se salvaram de uma ignominiosa
morte), pelo monte de pedras e a haste de bandeira que Paulton lhes havia descrito e porque a ilha Bird ficava justo ao norte, mas não puderam ficar mais de uma
noite, apesar dos rogos de Paulton, e muito menos seguir até o vale do rio Hunter.
- Estimado senhor, o senhor é muito amável, mas quase havemos superado o tempo de licença - explicou Stephen. - Prometi ao capitão que regressaríamos no dia 23,
e com as éguas neste estado e este asno tão lento, devemos partir amanhã cedo. Se é tão amável, gostaria que nos acompanhasse até um ponto do caminho em que nem
mesmo um homem sumamente estúpido possa se perder.
- Certamente que sim! - exclamou Paulton. - Neste momento seus animais estão sendo escovados e mimados por dois tratadores de cavalos do mesmíssimo Newmarket, dois
especialistas em preparar cavalos.
Para manter a discrição Stephen perguntou:
- Poderia mostrar-me as árvores frutíferas que tem diante da casa?
Quando chegaram lá, onde as macieiras, ainda desconcertados porque as estações estavam invertidas, achavam-se cheias de incongruentes cigarras, e algumas, estranhamente,
cresciam inclinadas para a esquerda, Paulton disse:
- Queria ser capaz de expressar meu agradecimento por sua amabilidade com respeito a meu romance. Isso significa liberdade para mim.
- Expressou-se muito bem em sua carta - respondeu Stephen -, muito melhor do que qualquer um poderia fazê-lo, e lhe rogo que não diga mais nada, mas que me fale
de Padeen Colman.
- Acho que lhe agradará ver como está - disse Paulton com um sorriso. - Quando chegou era só pele e ossos, mas o bondoso doutor Redfern quase já havia lhe curado
as costas. A propósito disso, chegou com outro nome, o de Padeen Walsh, uma mudança que, conforme acredito, fazem os escreventes encarregados do registro para que
se perca o rastro dos presos e se atrapalhem as coisas em grau sumo. E come desde que chegou. Fiz com que os outros soubessem que é um enfermo infeccioso e o pus
sozinho na cabana do pastor de ovelhas. Se tivesse chegado seguindo o rio desde a laguna, o teria visto. Quer que o leve lá agora?
- Sim, por favor.
Aquele era realmente um pasto, a maior extensão de terreno coberto de capim que Stephen vira em Nova Gales do Sul. Havia ali dispersas ovelhas de grossa lã, algumas
das quais ainda podiam saltar, ainda que com dificuldade. No centro havia uma cabana feita de tepes e com o teto de juncos reforçado com fileiras de pedras para
que o vento não lhe levasse. Os juncos procediam do lugar onde o rio se unia com a laguna, no extremo do pasto, formando uma pequena baía de onde se mandavam os
produtos do imóvel para Sidney. Na frente da cabana Padeen estava sentado, ele parecia mais alto e magro diante de dois jovens para quem cantava Con Céad Cathach.
- Suponho que quererá falar com ele - disse Paulton. - Regressarei para ferroar ao cozinheiro.
- Não tardarei nem cinco minutos - respondeu Stephen. - Só lhe direi que estarei em um bote na desembocadura do rio no dia 24 ou, em caso de que haja mau tempo,
dois ou três dias depois, mas nunca antes do meio-dia. Serei breve. Não quero perturbá-lo porque já há estado bastante transtornado.
Não tardou muito, mas seus companheiros notaram que esse pouco tempo bastou para alterá-lo.
- Esses jovens negros...? - perguntou em tom grave quando se sentaram para almoçar os infinitamente bem recebidos alimentos. - Esses jovens negros correram quando
me aproximei vivem neste lugar?
- Oh, não! - exclamou Paulton. - Vão e vêm quando querem porque fazem vida errante, mas quase sempre há uns poucos nas proximidades. Meu primo não permite que lhes
maltratem nem se aproveitem de suas mulheres. Simpatiza com eles e às vezes lhes dá uma ovelha ou um caldeirão de arroz doce. Está tentando reunir o vocabulário
de sua língua, mas como têm pelo menos dez sinônimos para cada palavra, a lista aumenta muito devagar.
Falaram sem ordem nem acordo das extraordinárias mariposas que tinham visto por todo o caminho, especialmente perto da última laguna, de que não tinham rede porque
havia ficado na hospedaria de Riley, do curioso pau curvo que haviam visto ali, dos aborígines... Em determinado momento Paulton perguntou:
- O senhor acredita realmente que são inteligentes?
- Se definimos a inteligência como a capacidade para resolver problemas, são inteligentes - sentenciou Stephen. - Sem dúvida, o principal problema é manter-se vivo,
e em um país deserdado como este, esse problema é grave, mas eles o resolveram. Eu não poderia.
- Eu tampouco - disse Paulton. - Porém, acha que sua definição resistiria a uma análise profunda?
- Talvez não, porém, de toda maneira, sou muito estúpido para defendê-la.
- Oh, meu Deus! - exclamou Paulton. - Os dois devem estar mortos de cansaço. Permita-me recomendar-lhes que tomem um banho quente antes de deitar. Sei por experiência
própia que não tem nada mais relaxante para o corpo. A água já deve de estar fervendo nas panelas.
- Acho que fomos hóspedes muito chatos - disse Stephen quando estavam entre os arbustos, virando-se na sela para apertar a mão de Paulton, ao qual quase não podia
ver.
Paulton escolheu o mesmo momento para olhar para trás e fazer-lhes também um gesto de despedida, e desapareceu ao pé da colina e se adentrou no bosque.
- Inclusive nesta manhã estava um pouco preocupado - acrescentou. - Queria evitar que se comprometesse para que sempre pudesse afirmar que não colaborou em meus
atos.
- Moralmente não podia fazer isso. Sabe perfeitamente o que vamos fazer.
- Quero dizer legalmente. As absurdas leis se aplicam com absurdo rigor e quero que possa firmar uma declaração jurada que diga: "Maturin nunca me disse isto" ou
"nunca disse o outro a Maturin". Acha que isso pode ser um falcão?
- Acho que sim - respondeu Martin, fazendo-se sombra no olho com a mão. - É um terzuelo. Lewin diz que podem ser encontrados em Nova Holanda.
- Essa ave me produz tanta satisfação como o ostreiro ao senhor- disse Stephen, olhando o falcão até que se perdeu de vista, e depois voltou a falar de Paulton:
- Indubtavelmente, é um homem muito amável e é um prazer estar em sua companhia. Desejaria que visse bastante bem para distinguir uma ave de um morcego. Talvez se
conseguisse um microscópio, um bom microscópio com variedade de lentes e uma ampla platina, poderia desfrutar observando as pequenas criaturas, por exemplo, os rizópodes,
os rotíferos e mesmo os piolhos... Conheci um cavalheiro, um pastor anglicano, a quem lhe encantavam os acarídeos.
Agora que seus conhecimentos eram algo supérfluo, já que a vereda se convertera quase em um caminho de carroças, as éguas puseram uma expressão inteligente e começaram
a avançar com passo firme em direção ao distante estábulo. Avançavam tão rapidamente que, apesar deles pararem várias vezes para recolher plantas ou matar papagaios
raros e aves que viviam nos arbustos, quando chegaram na hospedaria Newberry, situado em um caminho de vaqueiros, a certa distância ao norte da vereda que ia para
Woolloo-Woolloo, já era pleno dia. E assim, a pleno dia, Stephen viu por fim o bumerangue. Um negro dissoluto, que havia se corrompido pelo contato com os brancos,
mas que ainda conservava suas habilidades, jogava-o em troca de um gole de rum. O bumerangue fez tudo o que Riley disse que fazia e ainda mais. Em certo momento,
depois de regressar, elevou-se, ficou flutuando no ar sobre a cabeça do aborígine e descreveu lentamente um círculo antes de descer até sua mão. Stephen e Martin
olhavam com assombro aquele objeto girando em suas mãos.
- Não entendo o princípio disto - confessou Stephen -, mas eu gostaria de mostrá-lo ao capitão Aubrey, que sabe muito de matemática, dinâmica e navegação. Hospedeiro,
por favor, pergunte-lhe se está disposto a desfazer-se do instrumento.
- Nunca em sua maldita vida - respondeu irado o aborígine, arrebatando-lhe o bumerangue e apertando-o contra seu peito.
- Diz que não quer desfazer-se dele, sua senhoria - explicou o hospedeiro. - Mas não se preocupe porque tenho uma dúzia detrás do bar e os vendo por meio guinéu
aos viajantes engenhosos. Escolha o que queira, senhor, e Bennelong o jogará para demostrar-lhe que regressa como uma pomba mensageira, como dizemos aqui. Né Verdade?
- disse ao negro, muito mais alto que ele.
- Verdade o que?
- Que vai jogar para que o cavalheiro veja.
- Maldito seja!
- Senhor, diz que com muito prazer jogará para que o veja e espera que lhe anime com um trago de rum.
Na clara manhã, depois de se refrescarem, seguiram cavalgando. Stephen tinha sobre a parte dianteira da sela de montar uma pomba mensageira e Martin levava atadas
várias bolsas cheias de exemplares de plantas, pois o asno estava sobrecarregado.
A medida que desciam e se aproximavam de Port Jackson, aumentava a variedade de papagaios e seus gritos discordantes. Também encontraram revoadas de cacatuas, lourinhos
e periquitos. Quando por fim avistaram a baía de Sidney não viram a fragata atracada onde a tinham deixado.
- Hoje é dia 23, né? - perguntou Stephen.
- Acho que sim - respondeu Martin. - Estou quase seguro de que ontem foi 22.
Ambos conheciam o estrito que era o capitão Aubrey com relação à data de fazer-se ao mar e olharam angustiados a baía deserta.
- Ali está nosso bote, passando por South Point! - gritou Stephen, olhando pela luneta. - Leva uma bandeira na proa.
- E lá está a fragata, atracada no cais onde estava antes, ah, ah, ah! - exclamou Martin com grande alívio e alegria. - E justo detrás há outro barco muito maior
atracado.
- Tenho o pressentimento de que é o tão anunciado barco que vem de Madras - disse Stephen.
O pressentimento foi reforçado pela presença na cidade de marinheiros das Índias Orientais que usavam apertados turbantes e olhavam com satisfação para os grupos
de homens acorrentados e, pelos oficiais com estranhos uniformes que olhavam ao seu redor como recém chegados. Dirigiram-se à taberna de Riley, que agora estava
abarrotada, e enquanto Stephen esperava para fazer contas com o taberneiro, Martin foi à fragata com dois pilantrinhas que levavam um carrinho de mão carregado com
os espécimes.
Riley, que sabia de tudo, disse a Stephen que o Waverly, de fato, viera de Madras, mas que não trazia sacas de cartas oficiais da Índia e muito menos de cartas de
outros continentes para os civis, mas isso não lhe causou decepção, porque não as esperava. Contudo, sim tinha trazido para muitos oficiais, e Stephen foi sentar-se
no salão, quase cheio deles, para esperar que o senhor Riley ficasse livre e pudesse ocupar-se das éguas.
Quando estava sentado ali, olhando o bumerangue da taberna e tratando de encontrar uma razão verossímil para seu comportamento, percebeu de que um dos oficiais,
um infante de marinha perto da porta, olhava-o com mais atenção que o normal. Então começou a pensar em tudo o relacionado com a percepção dos olhares fixos em um:
que um os notava ainda que a pessoa que olhava estivesse fora de seu campo de visão, que causavam intranqüilidade a muitos, que era importante não olhar nunca para
a presa de um, que as pessoas de distinto sexo trocavam olhares com uma infinidade de significados... Ainda estava pensando quando o oficial se aproximou e perguntou:
- É o doutor Maturin, verdade?
- Sim, senhor - respondeu Stephen com reserva, mas sem descortesia.
- O senhor não me recorda, senhor, porque então estava muito ocupado, mas me salvou a perna depois da batalha sob as ordens de Saumárez no estreito de Gibraltar.
Meu nome é Hastings.
- Claro que sim! - exclamou Stephen. - Foi um problema na rótula. Lembro-me perfeitamente. Sir William Hastings, verdade? Permite-me que lhe arregace a calça? Sim,
sim, muito bem costurada! E aquele charlatão sem-vergonha queria cortá-la! Sem dúvida, uma precisa amputação sempre é um prazer, mas mesmo assim... Agora tem um
membro são em vez de uma perna de pau. Muito bem - acrescentou dando-lhe palmadinhas na panturrilha. - Eu o felicito.
- Também felicito o senhor, doutor.
- Muito amável, sir William. Fala isso pela rótula, não?
- Não, senhor, por sua filha. Mas talvez o senhor não pense que isso é motivo para receber felicitações. Sei que há preconceitos contra as filhas porque são vaidosas
e outras coisas, é preciso dar-lhes um dote e parte da herança e pagar a festa do casamento. Desculpe.
- Não estou lhe entendendo, senhor - disse Stephen, olhando-o com a cabeça inclinada, e seu coração começou a bater muito rapidamente.
- Bem, provavelmente estou equivocado. Mas quando estava em Madras chegou o Andromache e pedi emprestado um exemplar da Crônica Naval, e ao folhear as páginas onde
vêm as ascensões, os nascimentos, as mortes e os casamentos, vi um nome que achei que fosse o seu, ainda que talvez fosse o de outro cavalheiro.
- Sir William, de que mês era e o que dizia?
- Acho que era do mês de abril e dizia: "Em Ashgrove Cottage, perto de Portsmouth, a esposa do doutor Maturin, da Armada Real, teve uma menina".
- Querido sir William, não poderia ter-me dado uma notícia melhor! Riley! Riley! Ouviu? Traga uma garrafa do melhor que tenha na casa!
A garrafa do melhor que havia na casa não afetou Stephen, pois a alegria sozinha o fez percorrer a proa da fragata dando saltos até chegar ao castelo de popa, onde
havia tantos tripulantes trabalhando que achou que eram todos eles, ainda que não era possível porque muitos estavam martelando na proa em meio do eco das ordens.
Enquanto observava as grinaldas, o empavesado e os cabos perfeitamente enrolados, apareceu o capitão Aubrey acompanhado de Reade, que levava uma cinta métrica em
sua única mão. Jack parecia mais magro, mais pálido e mais preocupado, mas sorriu e perguntou:
- Já está de volta, doutor? O senhor Martin me disse que passou muito bem.
- Isso mesmo - confirmou Stephen. - Porém, Jack, não imagina quanto desejo voltar para a Inglaterra.
- Estou seguro de que muito - disse Jack. - E eu também. Senhor Oakes! - gritou projetando a voz para o mastaréu. - Vai colocar essa grinalda durante esta guarda
ou quer que lhe levem a maca para o alto da exárcia? Doutor, estamos a ponto de dar uma refeição de despedida ao qual assistirão o governador e seus subalternos,
e por isso há tanta confusão. Terá tempo de trocar-se, mas temo que Killick não poderá ajudá-lo porque está trabalhando como uma abelha em uma colméia. Senhor Reade,
mantenha a cinta exatamente aí e não se mova até que lhe dê um grito.
Depois de dizer isto, foi correndo para baixo, onde estavam transformando as três cabines em uma só e o acossado carpinteiro estava pondo uma folha mais na mesa.
Ainda que nesse momento não tinha a mente muito limpa, Stephen compreendeu a situação e observou a inusual limpeza de todos os marinheiros, o brilho extraordinário
de todas as coisas que a pedra arenito e o pó de tijolo podiam abrilhantar e a profunda angústia que costumavam sentir os marinheiros antes de qualquer ato oficial
de grande escala, para o qual, como sabia por experiência, preparavam tudo como se os convidados fossem velhos e experimentados marinheiros ou censores ou almirantes
hostis dispostos a revisar o enegrecimento das velas ou olhar se havia poeira debaixo das carretas das caronadas. Desceu para sua cabine com a mente ainda perturbada
pela felicidade e viu que, apesar de tudo, Killick havia lhe preparado toda a roupa que tinha que usar. Começou a se vestir devagar e depois de pôr a casaca com
muito cuidado saiu para a câmara dos oficiais, onde viu Pullings com seu esplêndido uniforme de capitão, com galões dourados, sentando-se cuidadosamente.
- Ah, doutor, quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou com o rosto radiante. - Parece mais alegre que uma cascavel, tão alegre como se se tivesse encontrado uma nota
de cinco libras. Espero que traga por fim um pouco de sorte para nossa querida fragata, coitada. Meu Deus, que semana!
- Parece que esteve em uma batalha entre esquadras, Tom.
- Voltarei a sorrir amanhã pela tarde, quando tenhamos zarpado e perdido de vista a terra, não antes. Qualquer um pensaria que os marinheiros conspiraram para causar-nos
problemas e dar má fama à Surprise. As "lagostas" trouxeram muitos marinheiros bêbados que não podiam se mover e nos deram conselhos para conseguir que se comportassem
bem. Davis, O Lerdo e Sanguinário o prenderam por fazer mingau de duas sentinelas e atirar seus mosquetes no mar quando trataram de impedir que pegasse uma jovem
em um bote; Jack, O Mal-encarado, em troca, pegou uma jovem, e como é tão amigo do cozinheiro, trouxe-a a bordo envolvida de maneira que parecesse uma peça de bacon.
Colocou-a na bodega de proa e a alimentava como a um galo de briga pela escotilha. Quando o descobriram disse que a jovem não era uma mulher comum e que queria casar-se
com ela porque assim conseguiria a liberdade, e perguntou se o capitão teria a amabilidade de casá-los. O capitão afirmou que não via inconveniente nisso desde que
depois pegasse seu pagamento e ficasse em terra com ela porque na fragata não viajavam esposas. Então Jack, O Mal-encarado, pensou melhor, ela desceu para terra
sozinha e agora todos o desprezam. E um pobre diabo escapou a nado... e ocorreram algumas outras coisas. Quanto roguei a Deus por uma brigada de infantes da marinha!
Quando o governador regressou, os mal-intencionados funcionários já haviam suavizado sua postura, mas os marinheiros tinham prejudicado nossa causa e nossa reputação.
Ainda que as arestas já tenham sido retiradas e a fragata esteja de novo atracada ao cais, não acredito que ela e a costa estejam unidas por fortes laços. Nunca
vi o capitão mais cansado, nem mais irritável, nem mais... como poderia dizer?, teimoso.
Soaram as quatro badaladas.
- Bem, doutor - continuou Pullings -, é hora de ir dar uma espiada em tudo e do senhor ir pôr os calções.
- Que Deus lhe bendiga, Tom - disse Stephen, olhando com angústia seus joelhos ossudos. - Me alegro de que tenha percebido. Devo de ter estado distraído e, sem dúvida,
teria prejudicado ainda mais a reputação da fragata.
Quando Stephen pôs os calções, sentou-se em sua escrivaninha dobrável e escreveu para Diana. Sua pena deslizava com extraordinária rapidez pelas folhas de papel,
que iam amontoando-se na maca.
- Com sua licença, senhor - Reade se desculpou da porta. - O capitão pensou que gostaria de saber que os convidados já saíram do palácio do Governo.
- Obrigado, senhor Reade - respondeu Stephen. - Eu me reunirei com os senhores assim que termine este parágrafo.
Chegou ao convés justo antes de que soasse a primeira salva em honra do governador e observou com satisfação, ainda que sem muito assombro, que a embarcação a meio
arrumar e com tripulantes angustiados que vira antes era agora um barco de guerra onde os marinheiros estavam sossegados e seguros de que os moitões e as braças
manteriam as vergas perpendiculares aos paus com uma margem de um oitavo de polegada e que os convidados poderiam almoçar em qualquer parte das cobertas.
Na verdade, os convidados comeram em toda a louça de prata do capitão Aubrey pois nos baús forrados de feltro só restaram umas de ferro para o açúcar quebadas. De
trás do capitão, Killick contemplava sua obra com gesto de triunfo e profunda satisfação, um gesto raro em sua cara, que costumava ter uma expressão mal-humorada.
Os convidados entraram e Stephen se informou de que ia se sentar entre o doutor Redfern e Firkins, o secretário judicial.
- Quanto me alegro de que nos sentemos juntos! - exclamou Stephen dirigindo-se a Redfern. - Temia que depois de trocar essas poucas palavras no castelo de popa fossemos
separados.
- Eu também - disse Redfern. - E se observar esta mesa poderá ver que se não fosse assim seria difícil que pudéssemos nos ouvir. Meu Deus! Nunca vira tanta magnificência
em uma fragata nem uma toalha de mesa tão grande.
- Nem eu - interveio Firkins, e em voz baixa comentou para Stephen: - O capitão Aubrey deve de ser um cavalheiro de uma fortuna considerável.
- Realmente considerável - confirmou Stephen. - Também controla não sei quantos votos na Câmara dos Lores e na dos Comuns, e é muito apreciado pelos ministros.
Acrescentou alguns detalhes mais para amargar a Firkins, mas muito poucos, porque se sentia alegre, e durante o restante da refeição, durante quase todo o período
relativamente longo em que beberam o vinho do porto e enquanto tomavam o café, esteve conversando com Redfern. O cirurgião não era um experimentado naturalista,
pois vacilou quando Stephen lhe perguntou se vira o ornitorrinco.
- Ornitorrinco é o nome mais moderno - explicou Stephen.
- Sim, sim, sei que animal é - disse Redfern. - Já ouvi falar muito dele. Não é raro. Estava tratando de recordar se o vi ou não. Provavelmente não. A propósito,
aqui o chamam de toupeira d’água e ninguém entenderia o nome científico.
Porém, por outro lado, pôde dar a Stephen muitos detalhes sobre a atitude de alguns homens com os outros em Nova Gales do Sul e na ilha Norfolk, um lugar ainda pior,
onde passara algum tempo, e contar-lhe qual era a resposta habitual, ainda que não invariável, ao poder absoluto, e, também, informou-lhe de que não havia opinião
pública. Stephen estava tão atento à conversa e tão perturbado pela alegria que quase não observou como se desenrolava o banquete, mas quando regressou de acompanhar
ao doutor Redfern ao hospital e dar-lhe sua opinião sobre uma hidrocele e viu Jack sentado na cabine reconstruída e bebendo uma jarra de água de cevada, exclamou:
- Como tudo correu bem! Foi uma excelente refeição.
- Alegro-me de que pense assim. Achei muito pesada, ainda que trabalhei como um burro, e temia que outros pensassem assim também.
- Não, em absoluto, meu amigo. Hoje, antes de subir a bordo, encontrei-me com um homem que veio no barco de Madras, ah, ah, ah! Mas antes que me esqueça, é confiável
este vento do sudeste?
- Oh, sim! Esteve soprando durante os últimos dez dias e o barômetro não se moveu.
- Então, por favor, poderia dispor de um cúter amanhã cedo?, e poderia recolher-me frente à ilha Bird?
- Sem dúvida! - exclamou Jack, movendo no ar a jarra vazia. - Gostaria de tomar um pouco disto? É água de cevada.
- Sim, por favor - respondeu Stephen.
- Killick, Killick! - gritou Jack, e quando Killick chegou, ordenou: - Duas jarras de água de cevada a mais, Killick, e diga a Ronden que o doutor quer que o cúter
esteja preparado quando soem as três badaladas na guarda da alvorada.
- Duas jarras e três badaladas, senhor - disse Killick, dirigindo-se para a porta. - Duas jarras e três badaladas.
Esbarrou-se com força com o marco da porta porque, como era habitual depois de um banquete, estava bêbado, mas a atravessou muito erguido.
- O que espera encontrar na ilha Bird?
- Provavelmente terá petréis, mas não penso descer a terra porque não me sobrará muito tempo.
- Então, a que vais?
- Não tenho que ir para recolher Padeen?
- Certamente que não tem que ir para recolher Padeen.
- Porém, Jack, eu lhe disse que ia para avisá-lo. Disse antes que Martin e eu partíssemos, quando falou que zarparíamos no dia 24. Eu lhe avisei e estará esperando
ali na praia.
- A verdade é que não entendi isso. Stephen, já tive muitos problemas por causa de presos que tentavam escapar. Por essa razão, entre outras, os funcionários me
acossaram, importunaram-me com perguntas, limitaram-me os apetrechos, as provisões e as reparações, e tive que rebocar a fragata até a entrada da baía para evitar
que ocorresse algo realmente grave, o que atrasou tudo ainda mais. Quando o governador regressou, fui vê-lo e lhe expliquei o caso o melhor que pude e admitiu que
a revista da fragata sem o meu consentimento fora inapropiada, e me perguntou se queria que me apresentassem desculpas. Respondi que não, mas que se me desse sua
palavra de que não voltaria a suceder nada parecido, eu lhe daria a minha de que nenhum preso sairia da baía de Sidney em minha fragata, e que assim ficaria concluído
o assunto. Concordou e então voltamos a rebocar a fragata para o interior da baía.
- Estamos falando de um companheiro de tripulação, Jack. Além disso, estou comprometido.
- Eu também. Mas como pode pedir ao capitão de um barco do rei que faça uma coisa assim? Farei todas as petições que seja possível em favor de Padeen, mas não colaborarei
na fuga de um preso. Já devolvi vários.
- Isso é o que tenho que dizer a Padeen?
- Estou com as mãos atadas. Dei minha palavra ao governador. Poderiam dizer que abusei de minha autoridade como capitão de navio e que me aproveitei de que tenho
imunidade por ser membro do Parlamento.
Stephen o olhou durante algum tempo enquanto pensava no que responder. Jack achou que em seu olhar havia uma mistura de lástima e desprezo e sentiu uma grande dor.
- Você gostava dele - disse Stephen, e saiu.
Então se topou com Killick, que trazia as jarras, e pegou uma.
- Obrigado, Killick - murmurou e a levou abaixo.
Davidge estava sentado na câmara dos oficiais e lhe disse que Martin estava lá embaixo, onde se achavam os espécimes, pondo as peles de aves em uma tina com água
e sal, e depois prosseguiu:
- Que almoço horrível! Estou seguro de que Jack, O Mal-encarado, estava tão desgostoso que deve ter jogado sal nas conchas. E com qualquer tema os civis ficavam
calados como se estivessem em um funeral. Fiz o possível para animá-los, mas nada lhes comprazia. Suponho que era igual no extremo da mesa onde o senhor estava.
Não me estranha que tenha esse gesto mal-humorado.
- Martin - disse Stephen quando chegou ao paiol, que cheirava a penas. - Parece que houve um mal-entendido e talvez não possa trazer Padeen a bordo. Não sei o que
devo fazer. Contudo, o cúter estará preparado quando soarem as três badaladas na guarda da alvorada. Gostaria de vir comigo? Eu lhe pergunto porque durante a refeição
o doutor Redfern me disse que na colônia chamam ao ornitorrinco de toupeira d’água, o que eu ignorava quando seu amigo Paulton nos disse que no riacho que passa
por Woolloo-Woolloo viviam toupeiras d’água. Talvez essa seja sua última oportunidade de ver um.
- Muito obrigado - respondeu Martin, aproximando-lhe a lanterna para ver seu rosto e afastando-a imediatamente. - Estarei pronto quando soarem as três badaladas.
Stephen lhe pediu ajuda para alcançar seu baú, pegou uma soma considerável em moedas de ouro e notas de banco, voltou a trancar o baú e depois disse:
- Se eu não regressar para a fragata amanhã, teria a amabilidade de mandar isto para minha esposa?
- Certamente! - disse Martin.
Quando Stephen saía de Sidney pelo caminho que ia para Parramatta pensou: "Acho que nunca em minha vida senti emoções tão fortes e contraditórias como neste momento".
Tinha a intenção de diminuir suas forças caminhando muito e rápido, pois comprovara que o cansaço físico podia eliminar aspectos secundários das coisas, como a exasperação
neste caso, e também que depois de algumas horas aparecia a forma correta de agir. Contudo, nada disso ocorreu durante as horas que caminhou. Sua mente abandonava
o assunto uma e outra vez para voltar a ocupar-se de sua felicidade presente e futura. Percorreu um grande vão na escuridão e a parte de sua mente livre para se
assombrar assombrou-se ante a grande quantidade de animais noturnos que ouviu, e ocasionalmente viu, sob pálida luz da lua perto do povoado, entre os quais havia
vários falangeros e ursos australianos e um coala.
Então disse para si: "Nelson, o herói de Jack, não teria agido como ele, mas Nelson não era um homem justo, não pensava sempre em conservar a virtude. A maturidade
finalmente alcançou Jack, para o seu bem. Pensei que nunca o alcançaria". Murmurou isto sem rancor, limitando-se a constatar um fato, e depois acrescentou: "Uma
das vantagens da riqueza é que um não tem que engulir sapos, aliás, pode fazer o que acha correto".
Ainda não estava seguro do que era correto naquelas circunstâncias quando, depois da lua se pôr, começou a regressar para a fragata. Sua análise do problema fora
interrompido frequentemente por ações de agradecimento, entre elas um canto simples para agradecer a Deus que ouvira no monastério de Montserrat antes que os franceses
o saqueassem, profanassem e destruíssem, que tardou em cantar o mesmo tempo que tardou em percorrer uma milha e meia. Tampouco estava seguro quando chegou à fragata
molhado por causa de um aguaceiro que veio do sudeste e com os pés inchados, nem quando ouviu a Bonden murmurar-lhe ao ouvido que o cúter já estava abordado com
a fragata, depois de ter passado a noite em vela e muito agitado.
A alegria se reanimou, e com ela a tristeza. Vestiu-se, passou silenciosamente pela câmara dos oficiais para não despertar aos demais, deu o bom dia a Martin em
voz baixa e tomou uma xícara de café.
Os paus do cúter já estavam colocados, e quando descia para subir a bordo, notou com satisfação que todos os tripulantes eram marinheiros de barcos de guerra e antigos
companheiros de tripulação. Bonden, que pensava que o doutor e Martin não tinham senso comum, apesar de que eram muito instruídos, forneceu-lhes capas de lona para
que se protegessem do penetrante vento da noite e depois perguntou:
- Aonde vamos, senhor?
- Conhece a ilha Bird?
- Sim, senhor. Eu a vi quando nos aproximávamos e o capitão Pullings a tomou como referência.
- Bem. Antes da ilha, a duas ou três milhas ao sul, há um cabo, e ao sul desse cabo, onde a costa é plana, fica a entrada de uma enseada marcada com uma haste de
bandeira e um monte de pedras. Ali é onde temos que ir. Quanto tempo acha que levaremos?
- Com este vento pela alheta, senhor, poderemos chegar lá antes do meio-dia. Separe a proa, Joe.
Quando terminaram de percorrer o comprido porto, amanheceu, um amanhecer de uma beleza tão excelente que até Joe Plaice, que vira dez mil no mar, contemplou-o com
um olhar aprovatório e Martin com as mãos juntas. Stephen não o viu porque estava adormecido envolto na capa. O cúter contornou os cabos, começou a atravessar as
espaçadas ondas de alto mar, avançou um pouco navegando de bolina e depois virou para nordeste, onde o balanço se converteu em um movimento parecido ao de um saca-rolhas,
um movimento capaz de causar enjôo inclusive nos marinheiros mais curtidos que acabassem de passar algum tempo em terra, mas Stephen seguiu dormindo. E seguiu dormindo
quando as ondas provocadas pela mudança da maré lançaram espuma acima do cúter. Martin lhe arrumou a capa de maneira que a cabeça ficasse coberta e como viu que
não se despertava com facilidade, em voz baixa disse a Bonden:
- Vamos a grande velocidade.
- Sim, senhor - confirmou Bonden. - E nos sobrará tempo, mas teremos que navegar um pouco afastados da costa para que o doutor não se molhe tanto, e me preocupa
que passemos pela haste da bandeira sem vê-la.
- Acha que estamos perto? - perguntou Stephen, despertando de repente.
- Bem, senhor, acredito que não podemos estar muito longe.
- Então, assim avistemos a ilha Bird, começarei a olhar a costa com a luneta. Não importa que nos molhemos porque o sol nos secará imediatamente. Está bastante mais
alto do que esperava e esquenta muito.
O cúter seguiu navegando e movendo-se com viveza. Enquanto isso, os marinheiros da proa falavam muito baixo e o sol seguiu subindo até que a fria espuma era agradável
e as capas foram deixadas de lado.
- Aí está a ilha, senhor - anunciou Bonden.
Quando o cúter subiu com o balanço, Stephen pôde vê-la claramente além do cabo, justo no horizonte.
- Ah, sim! - exclamou.
Tanto ele como Martin pegaram as lunetas. O terreno arenoso que formava o baixo litoral desfilou devagar ante eles, e pouco depois estiveram de acordo em que esta
ou aquela parte lhes eram familiares. Contudo, do mar uma duna se parece com outra, e um grupo de árvores baixas com outro, e não tiveram a certeza até que, com
o mesmo alívio que antes, voltaram a ver a haste de bandeira e o monte de pedras.
- Ainda não são nem sequer as onze - observou Stephen. - Acho que lhes tirei da maca cedo demais, marinheiros.
- Não se preocupe conosco, senhor - Plaice lhe tranqüilizou, rindo. - Se não estivéssemos aqui, a esta hora estaríamos limpando o convés. Isto é como ir a um piquenique,
como se costuma dizer.
Bonden dirigiu o cúter pela entrada e se assombrou que Stephen fosse capaz de lhe dizer que havia uma braça de profundidade acima do banco de areia na baixa-mar
e que encontrariam um canal mais profundo ao leste do lugar de onde se viam a haste da bandeira e o monte de pedras em linha. Fez o cúter passar pelo canal de entrada,
entre as moderadas ondas que rompiam no banco, e depois deslizar por entre as tranqüilas águas da enseada e deter-se junto ao cais onde carregavam as colheitas de
Woolloo-Woolloo no bergantim.
- Bonden, tem que acender uma fogueira - ordenou Stephen. - Todos hão trouxeram comida, verdade?
- Sim, senhor. E Killick pôs este pacote com sanduíches para o senhor e o senhor Martin.
- Muito bem. Então podem acender uma fogueira, comer a comida e, se quiserem, dormir ao sol. A fragata nos recolherá em frente da ilha Bird esta tarde. É possível
que eu não volte, mas o senhor Martin virá e não mais tarde das duas ou duas e meia. Não deixe que ninguém se afaste, pois é provável que tenha serpentes venenosas
entre estas canas.
O que indubtavelmente havia eram mariposas. Algumas eram de tipos que tinham visto antes e outras eram maiores e muito mais chamativas, e caçaram várias enquanto
caminhavam pela margem do rio, entre as canas e os arbustos. A contradição entre os sentimentos de Stephen, uma enorme alegria e uma enorme tristeza, era tão forte
como antes, e não se sentia muito animado. Tampouco o estava Martin. Ainda que Stephen não fosse loquaz, raras vezes estivera tão silencioso como agora e seu estado
de ânimo era contagioso.
Atravessaram o canavial e chegaram a um terreno firme, um pasto onde o ar corria e o céu parecia imenso. Agora o rio estava à sua esquerda, enquanto que na primeira
visita estava à direita. Ademais, eles o haviam cruzado por uma parte muito mais alta.
- Estamos em uma parte do pasto desconhecida - disse Stephen. - Quase não consigo ver a cabana e está aproximadamente meia milha mais longe do que esperava.
Logo viu ovelhas, uma revoada de cacatuas brancas e ao longe um pouco de fumaça.
- Poderíamos andar pela margem do rio um estádio mais ou menos, porque chegamos muito cedo.
O rio, que tinha o leito bastante profundo, alcançava em tempo de cheia dez ou quinze jardas de largura, mas fazia vários anos que não tinha uma cheia e agora o
leito estava coberto de numerosos arbustos entre os quais havia capim alto. Agora não tinha mais de um passo de largura, era simplesmente um arroio que serpenteava
pelo pasto e unia várias lagunas. Ao chegar à primeira recolheram algumas plantas interessantes e um centopéia; ao chegar à segunda, Martin, que ia na frente, parou
dizendo:
- Oh, meu Deus! - Então retrocedeu cautelosamente e sussurrou para Stephen ao ouvido: - Estão ali!
Avançaram pelo terreno alto próximo à margem muito devagar, percorrendo um pé depois do outro, e dobrados para frente. Quando levantaram a cabeça para olhar por
entre as folhas dos arbustos e das canas, quase não podiam ver a superfície da água. Os ornitorrincos não lhes prestaram atenção. Quando Martin os vira pela primeira
vez nadavam e nadavam entorno da laguna, e agora seguiram nadando e nadando um detrás do outro, descrevendo uma grande circunferência, entregues por completo ao
seu ritual. Ambos nadavam bastante submersos na água, mas devido ao ângulo que a luz formava com a superfície, os dois observadores não recebiam seus reflexos e
podiam ver tudo sob a água, desde o bico incrivelmente parecido com o de um pato até a calda larga e plana, que ficava entre as patas com quatro dedos revestidos
por uma membrana.
Pouco depois Stephen murmurou:
- Acho que podemos nos aproximar mais.
Martin assentiu com a cabeça.
Então, com muita precaução, desceram para aproximar-se à margem, e Stephen ia apoiando-se no cabo da rede. Agora avançavam polegada a polegada, detendo-se junto
a cada arbusto, cada árvore, cada vão coberto de capim e observando tudo antes de continuar. Quando chegaram ao nível da água, puderam andar mais facilmente e seguiram
movendo-se sinuosamente até a faixa de barro que havia justo à margem da laguna. Cada um se colocou atrás de um grupo de arbustos e olharam através dele para a zona
sombreada que os separava. Stephen fechou a boca para que não se ouvisse seu coração, cujas fortes batidas pareciam as graves badaladas de um velho relógio, como
fez quando era menino numa primavera ao chegar a um lugar onde tinha ao seu alcance um tetraz, que cantava e abria suas asas.
Teria dado no mesmo se a mantivesse aberta, pois os ornitorrincos tinham posta toda sua atenção na dança. Stephen e Martin sentaram-se tranqüilamente ali, no terreno
brando, e enquanto observavam os ornitorrincos e faziam comparações, os animais seguiam girando. Devido à circunferência que descreviam, passavam pelo lado oposto
da laguna, onde o sol permitia ver perfeitamente sua brilhante cor marrom, e pela parte sombreada próxima às canas.
Ouviu-se um zurro e em meio do ruído Stephen disse:
- Vou tentar pegar um.
Quando os ornitorrincos estavam na parte mais distante, meteu lentamente, muito lentamente, a rede na água; depois a empurrou devagar, muito devagar para o interior
da laguna, até o lugar por onde sempre passavam. Deixou que passassem por cima duas vezes e na terceira levantou a borda da rede diante do segundo ornitorrinco,
o qual perseguia ao primeiro. O animal se moveu para o fundo imediatamente, mas entrou na rede. Stephen se meteu entre as canas com a água na cintura, duvidando
que o cabo e o tecido resistissem a tanto peso, e depois retrocedeu para a margem a grandes passos com a cara radiante voltada para Martin e apalpando o interior
da rede. Notou que o animal tinha a pele suave, úmida e quente e que o coração batia com força.
- Não vou lhe ferir, querido - tentou sossegá-lo, e imediatamente sentiu uma espetada e logo uma horrível dor que lhe subiu pelo braço.
Avançou com dificuldade até a margem, soltou a rede e se sentou. Então olhou seu braço, que usava desnudo porque estava em mangas de camisa, e viu um pequeno orifício
e uma linha pálida em relevo que ia do pulso ao cotovelo.
- Tenha cuidado, Martin - disse. - Jogue-o aí outra vez. Uma faca... Um lenço...
Fez um corte profundo e depois um torniquete muito apertado, mas já estava com a garganta rígida e a voz pastosa. Deitou-se no barro e começou a falar de casos similares
conhecidos, de picadas de abelha, de escorpião e mesmo de uma arranha grande. Contou que alguns haviam sobrevivido e outros não, e que alguns tinham durado um dia,
tanto atendidos de uma maneira como de outra. De repente viu a cara angustiada de Padeen em cima dele e ouviu que Paulton gritava:
- Oh, querido Martin! Pensei que um naturalista saberia que o macho tem um esporão venenoso. Oh, Meu Deus! Oh, Meu Deus! Está ficando inchando! Está ficando azul!
- Um esporão venenoso? - perguntou Stephen em meio da dor com voz irreconhecível, enrouquecida. - Só o macho? Em toda a espécie de mafímeros, mamíferos...?
As palavras rápidas e mais ou menos coerentes cessaram; Stephen perdeu a capacidade de falar e pouco depois a capacidade de ver. Não obstante, seguiu presente, ainda
que a grande distância. Não estava na escuridão total, mas em um mundo de um intenso colorido violeta que lhe recordava um estado prévio, quando, surpreendido pela
tristeza e uma involuntária overdose de láudano, havia desabado no interior de uma alta torre na Suécia. Naquela ocasião também ouvia as vozes de seus amigos, mas
agora as alucinações eram benignas e quase inexistentes.
A voz que mais ouvia era a de Paulton (ainda que também ouvisse os negros, que com estrondosos sinais, aconselharam aos gritos: "Não o toquem"). Parecia atormentado
pela culpa e dizia uma e outra vez que em Woolloo-Woolloo todo mundo sabia que tinha que ter muito cuidado com os toupeiras d’água, que vira um cachorro europeu
morrer em questão de minutos, que sentia-se culpado por não ter falado do perigo, que supunha que era do domínio público...
- Como pode falar assim, Nathaniel? - perguntou Martin. - Em Londres não existe mais de dois ou três exemplares dessecados e encolhidos que não estavam em perfeito
estado, e todos eram fêmeas.
- Quanto o sinto! - exclamou Paulton. - Oh, quanto o sinto!
Havia algumas lacunas na consciência de Stephen, mas muitas mais na percepção das coisas, e após um desses espaços em branco ou pausas, ouviu Bonden dizer a Padeen:
- Levante-lhe a cabeça, companheiro, e ponha em meu ombro. Não importa o sangue.
E um tremendo vozeirão disse:
- Temos que voltar para a fragata.
Não tinha dúvida de que o estavam transportando. E com a parte de sua mente que não se ocupava da terrível dor ou do irreal mundo violeta onde era observado, notou
que para os marinheiros lhes parecia natural a presença de Padeen e tratavam de acalmar sua tristeza.
Agora notou o suave movimento do cúter, o rangido dos toletes, a suave brisa marítima que lhe acariciava o rosto, rígido e entorpecido, e os olhos, que não podiam
ver. Entre as coisas que não podia perceber bem estavam a dor e o tempo, e não pôde determinar a ordem cronológica das explicações repetidas por Jack aos oficiais
e a ordem que deu a Padeen com voz angustiada:
- Deite-o na maca, Colman, e depois desça correndo para a câmara dos oficiais e traga sua almofada de couro. Já sabe onde fica.
Mas a ordem cronológica não importava naquele incomensurável poço violeta.
Finalmente, desapareceu sua preocupação com a impossibilidade de distinguir a seqüência dos acontecimentos, e quando a luz voltou e recuperou a percepção do tempo,
a recordação dessa impossibilidade se dissipou. O tempo voltou a começar muito atrás, quando aquele vozeirão disse que tinham que voltar para a fragata e então ocuparam
o lugar correspondente os fatos que o levaram a pronunciar essas palavras e o motivo de sua atual felicidade, ainda que depois de passar por uma etapa em que lhe
pareciam imprecisos, parte de um sonho, enquanto se achava ali, muito a vontade e absorto em suas reflexões.
Voltara à fragata e, de fato, notava o familiar balanço, o rangido da maca e o suave odor do mar e do breu. Mas lhe parecia que nem tudo estava bem, pois via a cara
de Padeen acima dele, o que estava mais próximo do delírio e do sonho que da realidade, porém, na dúvida, deu-lhe o bom dia. Então Padeen se ergueu e, ao mesmo tempo
que em sua cara curtida e inexpressiva aparecia um grande sorriso, disse:
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, sua senhoria.
Depois voltou-se para o capitão e explicou em inglês:
- Capitão, senhor, ele..., ele..., falou como quando estava em seu..., seu..., juízo perfeito.
- Meu Deus, quanto me alegro de ouvir isso! - exclamou Jack e depois, com voz suave, perguntou: - Como se sente, Stephen?
- Parece que sobrevivi - respondeu Stephen, pegando-lhe a mão. - Jack, não tenho palavras para expressar com que ânsia desejo regressar para casa.
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{1} Yugo: Mar. Cada uma das madeiras de diversas dimensões que cruzam o codaste e nele se engancha, para formar a popa.
{2} Vagara: Barra de madeira, comprida, estreita e flexível que se prega de popa à proa sobre as ligações do navio a várias distâncias verticais, para mantê-las
na situação conveniente, enquanto se sujeitam os vaus e se colocam as cintas.
{3} Gambota Mar. Cada uma das madeiras curvas presas na espiga por seu pé no yugo principal, que formam a abobadilha e são como outras tantas colunas da fachada
ou painel de popa.
{4} Alefrisi: Cavidade, ranhura, canal angular que se faz longitudinalmente na quilha, roda e codaste para que ela encaixem os cantos ou as cabeças das pranchas.
{5} Chapuz: Pau que se finca nas paredes para nele se pregar alguma coisa.
{6} Traca: Mar. Cada uma das três fileiras da coberta imediatas ao trancanil.
{7} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{8} Chillera: Mar. barra de ferro dobrada em ângulo reto nos extremos que se encaixam na amurada, deixando o espaço necessário para poder estivar de modo que não
se movam com o balanço do navio certas munições de artilharia, como balas, sacos de metralha, etc.
{9} Cachorro com manchas: Pudim de sebo com passas.
{10} Cabillero: Mar. Peça de madeira ou metal com furos, pelos quais se atravessam as barras que servem para amarrar e dar voltas nos cabos de trabalho.
{11} Banksia é um gênero botânico pertencente à família Proteaceae.
Patrick O'brian
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