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Series & Trilogias Literarias
A tripulação da Diane, capitaneada por Jack Aubrey, é assaltada por um grupo de ferozes piratas malaios; consegue escapar e zarpar com uma maltratada escuna com a qual deverão enfrentar-se com a Cornélie, uma poderosa fragata francesa de trinta e dois canhões, e como se fosse pouco, navegar por águas mal conhecidas pelos cartógrafos britânicos. O’Brian demostra neste romance um conhecimento realmente excepcional da época sobre a qual escreve, o que a converte em uma obra apaixonante.
Este é o décimo quarto romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos.
CAPÍTULO 1
Cento e cinqüenta e sete náufragos, os sobreviventes da Diane, uma fragata de Sua Majestade que havia encalhado em um arrecife não indicado nas cartas marítimas
e que fora destruída por um tufão vários dias depois, permaneciam em uma ilha deserta no sul do Mar da China. Era um grupo de apenas cento e cinqüenta e sete homens,
porém, sentados ao redor de um terreno plano e sem nenhuma vegetação que se estendia entre a marca d’água na maré alta e o início do bosque, parecia a tripulação
completa de um navio de linha. Isso se devia a ser um domingo pela tarde e a guarda de estibordo, encabeçada pelo capitão Aubrey, jogava críquete com os infantes
da marinha, capitaneados pelo oficial chefe, o senhor Welby.
A partida estava muito disputada e exaltava tanto os ânimos que se ouviam gritos, vivas e assobios de protesto depois de cada jogada. Para qualquer observador imparcial
esse era outro exemplo de que os homens do mar vivem intensamente o presente e se preocupam pouco ou nada com o futuro. Sua atitude denotava irresponsabilidade,
mas também uma grande fortaleza, pois o ambiente era úmido como uma esponja e o sol, oculto atrás das nuvens, irradiava um calor sufocante. O único observador imparcial
era Stephen Maturin, o cirurgião da fragata, que considerava o críquete a mais chata das atividades humanas. Agora subia lentamente para o bosque que cobria a ilha
com a intenção de caçar algum javali ou, no pior dos casos, alguns dos macacos de calda preénsil, e depois chegar até a parte norte, onde se aninhavam as andorinhas
das quais se fazia sopa de ninho de pássaro. Parou no arredondado cume de uma colina, onde o rastro de um javali adentrava na ilha, e olhou para a costa sul. À esquerda,
em alto mar, encontrava-se o arrecife onde encalhara a fragata, que agora, com três quartos da maré morta, estava coberto de espuma pelas ondas que rompiam nele,
mas que com a maré viva ficava oculto pelas águas; à direita ficava o lugar da praia aonde chegara um fragmento de bom tamanho da embarcação destroçada. Também à
esquerda se via a enseada para aonde tinham rebocado essa parte com um dos botes que restavam, e ali a desmontaram cuidadosamente e a uniram novamente para formar
a armação da escuna que lhes levaria a Batavia quando lhe pusessem as pranchas, as cobertas e a exárcia. No alto da colina em frente à enseada ficava o acampamento,
resguardado pelo bosque em que se refugiaram contra o tufão que destruiu a fragata e provocou a morte de muitos dos tripulantes e de quase todos os animais que levavam
a bordo, além de estragar quase toda a pólvora. E justo abaixo dele ficava o extenso terreno plano e firme onde corriam de um lado para outro os homens vestidos
de branco, não porque jogavam críquete, mas porque era domingo e teriam que passar revista formados em brigadas (barbeados e com camisa limpa) e depois assistir
ao ofício religioso.
Poderia parecer uma frivolidade que jogassem críquete quando ainda não tinham terminado a escuna, restavam muito poucas provisões e os recursos da ilha, os cocos,
os javalis e os macacos de calda preénsil estavam quase esgotados; contudo, Stephen sabia muito bem como funcionava a mente de Jack Aubrey. Os tripulantes haviam
se comportado exageradamente bem até agora e trabalharam denodadamente, mas nem todos eram marinheiros de barcos de guerra formados na Armada nem haviam servido
nela juntos durante muitos anos, aliás pelo menos um terço deles foram recrutados a força, alguns em levas muito recentes, e entre estes havia súditos do rei não
desejáveis, incluídos dois ou três brigões. Porém, mesmo quando todos fossem marinheiros que serviam na Armada desde o começo da guerra, um pouco de relaxamento
era essencial e, por outra parte, esperavam com ânsia essa partida. Os bastões, de madeira de canforeira ou de palma, careciam da elegância dos de salgueiro, mas
o veleiro fizera uma bola como as oficiais com o couro da boca da verga da carangueja, e os jogadores tinham praticado lançando-a aos cabos mais altos para jogar
dignamente. Ademais, o críquete era uma pequena parte da ordinária cerimônia que mantinha os ânimos elevados, cuja importância, naturalmente, não podia se comparar
com a dos nobres ritos que se celebravam a bordo, como a formação em brigadas, a solene leitura dos artigos do Código Naval, os funerais ou os ofícios religiosos,
mas contribuía para pôr ordem no caos.
O que Stephen não conseguia entender era a satisfação que Jack sentia ao participar dessa cerimônia. Como capitão, Aubrey estava muito preocupado com a escassez
de alimentos e de apetrechos, sobretudo de cabos, pela quase inexistência de pólvora e pela iminente falta de aguardente de palma e de tabaco; não obstante, como
jogador de críquete sabia que era necessário observar atentamente a parte central do campo, especialmente em um como esse, mais parecido com um terreno coberto de
concreto branco que a uma campina como Deus manda, e depois que o suboficial encarregado dos cabos pegou a bola lançada pelo sargento de Infantaria da Marinha e
conseguiu dezesseis pontos, quando foi sua vez de jogar, colocou-se no centro e lançou ao seu redor um olhar penetrante, como o de um predador, enquanto dava golpes
com o bastão no canto do bloco, e se concentrou no que estava fazendo.
- Jogo! - gritou o sargento, e depois de dar dois saltinhos jogou a bola bastante alto e descrevendo uma curva.
Jack lembrou-se do que Nelson havia dito: "Não importam as manobras. Sempre há que atacar com decisão". Então, obedecendo ao seu herói, saltou para frente e golpeou
a bola antes que caísse no solo lançando-a diretamente para a cabeça do lançador. O mal-humorado sargento não inclinou nem baixou a cabeça, senão que pegou a bola
no ar.
- Fora de jogo! - exclamou Edwards, o único civil que havia ali e, portanto, o árbitro perfeito. - Sinto dizer-lhe que está fora de jogo, senhor.
Entre os rugidos dos militares e os lamentos dos decepcionados marinheiros, que não só admiravam o capitão por ser um bom oficial como também por ser um potente
rebatedor, Jack gritou:
- Muito bem, sargento!
Dirigiu-se então até os três coqueiros (sem cocos já fazia tempo) que serviam de refúgio.
- Espero que isto não seja um mau presságio - disse Stephen, pendurando o rifle no ombro e voltando-se.
Aquele era um rifle extraordinariamente bom, um Joe Mantón de retrocarga. Herdara-o do senhor Fox, o enviado britânico que haviam trazido na Diane para contrariar
o trabalho dos franceses nas negociações que mantinham com o sultão de Pulo Prabang. Fox triunfou e logrou firmar um tratado de ajuda mútua, mas estava tão ansioso
para levá-lo à Inglaterra que decidiu percorrer as duzentas milhas que separavam essa ilha de Batavia na pinaça da Diane, uma embarcação robusta e com uma excelente
tripulação, enquanto a fragata permanecia encalhada no arrecife, de onde não poderia se mover até que chegasse a maré viva seguinte.
Aquele era um rifle muito bom. E como Stephen era um atirador certeiro e havia muito pouca pólvora (muito pouca para o uso geral de mosquetes), tinha o cargo de
caçador chefe do acampamento. Durante a primeira quinzena suas mãos ficaram esfoladas ao puxar cabos, ajudar a serrar madeira, cravar estacas e remeter cunhas, e
também, sofreu muito devido aos problemas inerentes a todas essas coisas (não houve nenhum cabo, ainda que passasse pela mais pura superfície, que não se enredasse
ou enganchasse em qualquer diminuta fenda ou protuberância, nem nenhuma serra que não se desviasse da linha que seguia, nem nenhum maço com que não se golpeasse
a mão, que tinha inchada e roxa), mas seus companheiros sofreram ainda mais refazendo todos os nós que havia feito, salvando-lhe dos improváveis perigos e vigiando-lhe
pelo rabo do olho enquanto faziam seu própio trabalho. Inclusive quando foi encarregado de sacar o que obstruía o poço, a tarefa menos dura na qual interveio, cravou
uma picareta no pé de William Gorges.
Apesar disso, tinha um valor inestimável para a tripulação como caçador que trazia comida para a panela. Não só manejava muito bem a arma, como era um eperimentado
naturalista acostumado a seguir o rastro dos animais, a aproximar-se silenciosamente contra a direção do vento e a esperar imóvel durante horas. Essas qualidades
eram necessárias, pois apesar de haver porcos de duas espécies (o javali de crina e a babirussa), como os tinham caçado há pouco tempo, desde o início haviam sido
cautelosos e agora os sobreviventes eram muito mais. Ademais, restavam muito menos, e ainda que a primeira semana, numa tarde proporcionara aos marinheiros o dobro
da ração de carne de porco que lhes davam na fragata, agora tinha que percorrer toda a ilha para conseguir um, às vezes muito pequeno; e em ocasiões nem isso lograva
porque a pólvora estragada ficava na recâmara sem explodir.
As pegadas que seguia agora, contudo, pareciam prometer algo mais concreto que as que havia seguido ultimamente. Eram recentes, tão recentes que quando ele olhou
para o ponto onde chegavam à beira de um conjunto de espinhosas canas-da-índia, viu aparecer o extremo de um. O animal era quase certo uma babirussa de cento e trinta
ou cento e quarenta libras, a primeira que via desde a quinta-feira da semana anterior. Alegrava-se com isso porque na tripulação havia vários judeus e muitos muçulmanos,
unidos somente pelo aborrecimento da carne de porco, e poderiam considerar a babirussa, por seus colmilhos muito similares aos cornos e suas longas pernas, uma espécie
de cervo que habitava aquela ilha remota.
"Vou dar a volta e esperar por ela", se disse Stephen, e deu a volta ao redor do canavial caminhando devagar em meio do calor.
Muito provavelmente o animal ia dormir. Tanto os javalis desse lugar como os que vira anteriormente eram animais muito pouco audazes, que preferiam os caminhos conhecidos,
e agora Stephen conhecia a maioria deles. Subiu em uma árvore de onde dominava a saída e se sentou na base de um largo galho coberto de musgo, entre orquídeas que
pertenciam a uma espécie de uma forma e um colorido que nunca tinha visto. O sol nascente apareceu entre o céu nublado, ainda que estava se pondo em Sumatra ou talvez
Biliton, em qualquer caso, para o oeste. Seus raios se deslizavam sob a abóbada celeste e iluminavam o conjunto de cinqüenta ou sessenta orquídeas, cujo colorido
vermelho vivo contrastava com o verde brilhante das úmidas folhas. Ainda contemplava o conjunto e os insetos que haviam nele quando a babirussa começou a se mover
outra vez entre as canas-da-índia. Os sons se ouviam cada vez mais perto. A babirussa emergiu, parou e começou a mover seu focinho quadrado de um lado para o outro.
Stephen, sem alterar-se, matou-a e desceu da árvore.
Levava um avental na mochila e o pôs para estripar a babirussa, pois não se importava em se melar de sangue mas sabia que Killick sim, e ouvir a voz fanhosa com
que se queixava uma e outra vez, ainda que com razão, era tão desagradável que o incômodo de pôr um avental não era nada comparado com isso. Também dispunha de um
pequeno moitão com o qual levantava o animal quase com uma só mão. Seu uso era um dos trabalhos própios de marinheiros cuja realização havia estudado com proveito,
e Bonden, o timoneiro do capitão, passara muitas horas ensinando-lhe a atar um extremo do cabo e a passar o restante pelo canal da roda. Se a polia fosse fixa muito
alta, geralmente tinha êxito na primeira tentativa, e nesta ocasião o teve. Retrocedeu e olhou a babirussa (que provavelmente pesava cento e cinqüenta libras em
vez de cento e quarenta) com verdadeira satisfação, pensando que poucos pratos agradavam mais a Jack que a cabeça de javali temperada e que ele gostava de patas
de porco fritas. Pendurou o avental em um galho para que servisse de guia aos que levariam a babirussa abaixo e secou suas mãos na casaca, do que foi consciente
um momento depois, quando, tarde demais, viu a mancha no linho branco.
- Tratarei de tirá-la na laguna das andorinhas - murmurou sem convicção.
Durante parte de sua infância estivera ao cuidado de uma terciária dominica chamada freira Luisa, descendente de um dos ramos mais respeitáveis dos Torquemada de
Valladolid (o primo e também padrinho de Stephen dava muita importância a essas coisas), uma mulher para quem a limpeza era sagrada, e nunca conseguira enganá-la
quando tentava "tirar as manchas". Agora seu lugar era ocupado por um marinheiro de idade indefinida, magro e com a cara curtida pelos elementos que usava uma trança
e um brinco dourado na orelha, tinha voz escandalosa e falava em tom mal-humorado. Killick não era seu servente, assim que não tinha os direitos de um servente;
era o despenseiro de Jack Aubrey. O servente de Stephen era um jovem, malaio amável e bobo chamado Ahmed, mas como Preserved Killick conhecia ao capitão e ao doutor
há muito tempo, tinha tanta autoridade moral que em certos casos a presença de Ahmed não lhe servia de proteção.
Como Stephen temia, não pôde eliminar a mancha na laguna das andorinhas, mas então cometeu um ato covarde, impróprio de sua idade e de sua educação: ocultou a mancha
de sangue e fluido peritoneal com uma capa de barro que pegou da margem, e também, como medida de segurança, passou por cima várias algas. O que ele chamava de laguna
das andorinhas ficava perto do espetacular escarpado onde essas aves se aninhavam, mas não formavam seus ninhos com o barro cinzento que havia nela. Os resguardados
ninhos eram translúcidos e brancos como pérolas e não tinham musgo nem fibras vegetais, nem barro. Encontravam-se no mais profundo das cavernas, nas fendas da face
do escarpado que dava para o mar, e Stephen só os podia ver bem de um lugar, do saliente de uma caverna que se elevava desde um amplo leito de seixos situado duzentos
pés mais abaixo até uma estreita fenda no alto. A altura o impressionava, e subir nas vergas superiores de uma simples fragata lhe produzia um medo espantoso que
só conseguia dominar por sua extraordinária força de vontade; contudo, ali estava deitado, com o corpo firmemente apoiado sobre a cálida rocha plana, os braços e
as pernas estendidos e a cabeça pendurando no vazio, para observar as aves. Viu uma revoada de passarinhos cinzentos entrar pela parte mais larga da caverna e formar
um redemoinho voando a grande velocidade, e depois observou que cada um se afastava para dirigir-se ao seu ninho. Inclinou-se ainda mais para frente para ver uma
parte mais profunda da caverna, protegeu os olhos com as mãos e quase imediatamente sua peruca caiu, dando voltas e voltas até que desapareceu entre as sombras cheias
de aves que se viam muito mais abaixo.
- Maldita seja! - exclamou, pois apesar de ser uma peruca velha, gasta e quase sem cabelo, Killick lhe fizera cachos e branqueara seus lados (a parte superior não
tinha remédio), e, também, sentia-se nú sem ela.
Mas a irritação durou pouco mais que a lenta queda. Sua vã tentativa de pegar a peruca o fez adotar uma posição muito melhor, pois ainda que o sol o atingisse em
cheio na parte posterior da cabeça, agora desprotegida, estava mais cômodo e podia ver uma parte mais profunda da caverna. Estava completamente relaxado, e quando
seus olhos se acostumaram a ver na escuridão pôde distinguir os ninhos, que tinham a forma de xícaras e, colados uns aos outros, formavam longas filas que cobriam
as paredes da caverna desde sessenta pés acima da marca da maré alta até o topo. Os mais brancos e mais bonitos não eram os das filas mais altas, que tinham em cima
um pouco de terra que o vento havia trazido consigo, mas os que ficavam abaixo da fila vinte aproximadamente, em uma parte muito estreita. Esses eram os ninhos que
se vendiam aos chineses a preço de ouro. Cada ninhada tinha duas crias, duas limpíssimas crias, e, como esperava, estariam prontas para voar de um momento para o
outro. Permaneceu ali uma hora depois da outra, sem notar o sol abrasador, observando como os pais das crias se amontoavam, que traziam alimentos e levavam os excrementos.
De repente franziu o cenho. Pôs toda sua atenção em um ninho muito bem iluminado e pouco depois se confirmaram suas suspeitas: o pássaro que regressava ali uma e
outra vez e apoiava os pés na borda tinha todos os dedos dirigidos para frente. Meia hora depois se levantou, pendurou o rifle no ombro, olhou para os pássaros com
desgosto e se afastou dali.
"Não são andorinhas", disse sentindo não só indignação como também náuseas, e se pôs atrás de um arbusto; e logo atrás de vários mais, pois depois de vomitar estava
solto de ventre.
Ainda que Stephen Maturin não tinha mau gênio, seu caráter não era muito alegre, e às vezes contrariedades desse tipo lhe causavam desagrado ou algo pior. Quando
chegou ao acampamento estava pronto para atacar a Killick, mas Killick o conhecia muito bem e, depois de dar uma rápida olhada para sua casaca suja e para sua cabeça
descoberta, e ao ver a expressão ameaçadora de seus claros olhos, limitou-se a dar-lhe um chapéu de palha de aba larga e dizer-lhe:
- O capitão acaba de despertar, senhor.
Stephen pensou: "A indignação que me provocaram os pássaros foi excessiva. Sem dúvida, a verdadeira causa foi um repentino aumento da bílis produzida pela pressão
sobre o ductus choledocus communis que provocava minha postura". Entrou na enfermaria, preparou uma poção, bebeu e, depois de um tempo, sentindo-se um pouco melhor,
foi até a tenda. Ali voltou a dizer-se: "Excessiva". Mas quando Jack o felicitou pela babirussa ("Alegro-me muito porque eu estava cansando dos malditos macacos,
inclusive dos bolos feitos com eles", havia dito), explicou:
- Com relação aos pássaros de cujos ninhos se faz sopa, tenho que dizer-te que não são andorinhas, mas aves diminutas que pertencem a um ramo dos vencelhos orientais.
- Não se incomode com isso, meu amigo. Que importância tem um nome? Enquanto façam esse tipo de ninho de tão bom sabor, dá no mesmo que se chamem avestruzes.
- Eles lhe agradaram quando os comeu na casa de Raffles?
- Achei que eram um prato excelente. Aquela foi uma tarde muito agradável.
- Então talvez poderíamos pegar alguns dentro de alguns dias. Esta é a época apropiada, pois as crias estão a ponto de alçar vôo. Um guarda-marinha magro, como Reade
ou Harper, poderia descer por uma corda até a caverna e pegar meia dúzia de ninhos vazios. Ademais, queria que pegassem um ou dois pássaros para examinar seus dedos.
Mas não lhe perguntei como terminou a partida. Ganhamos?
- Alegro-me em dizer que todos ganhamos. Houve um empate. Eles lograram mais corridas que nós, mas não conseguiram eliminar Fielding nem o contramestre antes que
derrubassem as estacas da meta. Por sorte, Edward é um árbitro neutro, assim que não houve olhares furiosos nem burburinhos de protesto e todos ganhamos.
- Não há dúvida de que todos pareciam muito alegres quando atravessei o acampamento, ainda que Deus sabe o esgotador que é um esporte desse tipo neste calor asfixiante.
Simplesmente por caminhar devagar sob as árvores eu estava empapado de suor, e isso não tem comparação com correr de um lado para o outro atrás de uma endemoninhada
e dura bola debaixo deste calor úmido e sufocante. Meu Deus!
- Sem dúvida, estou seguro de que os marinheiros trabalharão melhor amanhã. E creio que eu também. Pelo aspecto do céu me parece que o vento soprará do leste, e
espero que seja assim. Temos que serrar muita madeira, um trabalho esgotador mesmo quando a brisa leva o pó de serra e permite aos que serram no fundo da embarcação
respirar, mas quando começarmos a pôr as pranchas os tripulantes se animarão muito e poderemos fazer-nos ao mar antes do dia de Santa Fome. Vamos ao estaleiro, mostrarei
o que falta por fazer.
O acampamento, com suas ruas e valetas arrumadas outra vez depois do tufão, tinha uma disposição similar à de um barco de guerra, e Jack, para evitar molestar aos
marinheiros que conversavam sentados diante de suas tendas, no extremo do retângulo, subiu na carreta do canhão de bronze de nove libras que dominava o porto, saltou
para o outro lado e depois ajudou Stephen a saltar. Aquele era um excelente canhão, um dos dois que tanto apreciava e que os marinheiros haviam jogado pela borda
junto com os outros quando tentavam aliviar o peso da fragata para poder desencalhá-la do arrecife. Tinha ficado entre duas rochas e foi o único encontrado pela
brigada que tentou recuperá-los na baixa-mar. Era um excelente canhão, mas menos útil que as duas caronadas leves, pois ainda que dispusessem de muita pólvora, a
única bala de nove libras que tinham era a que estava dentro dele quando o recuperaram.
- Senhor, senhor! - gritaram os dois oficiais que restavam ao capitão Aubrey, subindo a ladeira ofegantes para aproximar-se dele. - Os guardas-marinhas agarraram
uma tartaruga junto ao cabo.
- É uma verdadeira tartaruga, senhor Fielding?
- Bem, senhor, acho que sim, ainda que Richardson achedite que tem um aspecto estranho. Esperamos que o doutor nos diga se é comestível.
Desceram a ladeira até o vale obliquamente dirigindo-se para a direita. Depois rodearam a massa formada pela terra e rochas que haviam deslizado pelo sopé da colina
no apogeu do tufão, uma massa na qual ainda cresciam alegremente algumas árvores e arbustos, mas outros murchavam. Depois atravessaram o leito seco escavado pela
torrente, muito conveniente como estaleiro, e caminharam pela praia quase até o lugar aonde chegou o que restava da fragata. Ali estavam todos os guardas-marinhas,
cujo silêncio contrastava com o estrondo das ondas. Estavam os dois ajudantes do oficial de derrota, o único guarda-marinha graduado (o outro tinha se afogado),
os dois cadetes, o escrevente do capitão e o ajudante do cirurgião. Como os outros oficiais, haviam tirado a elegante roupa dos domingos e agora usavam calças rotas
ou calções desabotoados no joelho, e alguns nem sequer tinham posta uma camisa que cobrisse costas suas bronzeadas. E, certamente, estavam descalços. Formavam um
grupo pobremente vestido e faminto, mas alegre.
- Gostaria de ver minha tartaruga, senhor? - perguntou Reade de uma distância de mais de cem jardas, e sua voz, que ainda não havia mudado, destacou-se entre os
rugidos do mar.
- Sua tartaruga, senhor Reade? - perguntou Jack enquanto se aproximava.
- Sim, senhor. Eu a vi primeiro.
Na presença do capitão, Seymour e Bennett, os altos ajudantes do oficial de derrota, que haviam virado a tartaruga, limitaram-se a olhar um para o outro, mas Reade,
ao vê-los, acrescentou:
- Naturalmente, senhor, os outros ajudaram um pouco.
Todos permaneceram um momento observando como movia inutilmente as patas no ar com muita força.
- Por que a tartaruga lhe parece rara, senhor Richardson? - perguntou Jack outra vez.
- Não sei, senhor - respondeu Richardson -, mas tem algo na boca que não me agrada.
- O doutor tirará nossas dúvidas - disse Jack, elevando a voz para que se ouvisse apesar do estrépito produzido pelo triplo choque das ondas, pois por um lado a
maré baixava e por outro a contramaré, combinada com a corrente, cruzava com ela frente ao cabo de modo que as águas se moviam caoticamente.
- É uma tartaruga verde, sem dúvida - anunciou Stephen também em voz alta, apesar de que lhe doía a cabeça, mas sua voz era muito diferente, era desagradável e mais
aguda. - E muito grande, porque deve pesar uns dois quintais. Mas é um macho e, certamente, tem a cara feia. Em Londres não a aceitariam no mercado nem poderia ser
eleita vereador.
- Mas é comestível, senhor? Pode ser comida? Não é daninha? Não é como o peixe roxo que nos fez jogar fora?
- Ainda que seja possível que esteja um pouco dura, não lhes fará estrago. Mas Deus sabe que não sou infalível, e se têm alguma dúvida talvez seja conveniente que
o senhor Reade comesse um pouco primeiro e o observassem durante várias horas. Em qualquer caso, peço que cortem sua cabeça imediatamente porque detesto ver estes
animais sofrendo. Lembro de um barco onde havia montes destas criaturas amarradas na coberta e com os olhos vermelhos como cerejas porque não as molhavam. Um amigo
e eu íamos de um lado para outro umedecendo-as com uma esponja.
Reade e Harper correram ao acampamento para buscar o machado do carpinteiro. Aubrey e Maturin deram a volta e foram até o estaleiro passeando pela areia endurecida
da praia.
- Uma horrível combinação de marés - disse Jack, assinalando o mar com a cabeça, e depois acrescentou: - Sabe que me faltou pouco para dizer algo engenhoso com referência
às tartarugas machos e fêmeas? Era algo relacionado com o molho, por comparação com o de ganso, já sabe. Mas me calei.
- Talvez fosse melhor assim, meu amigo. Um tenente divertido, é engraçado, é uma boa companhia; um capitão divertido pode sê-lo entre seus iguais; mas um capitão
de navio que faz rir aos oficiais possivelmente perderá parte de sua autoridade como oficial superior. Acaso Nelson contava piadas?
- Nunca o ouvi fazê-lo. Quase sempre estava alegre e sorridente, e uma vez me perguntou: "Importaria-se de me passar o sal, por favor?", em um tom tão amável que
foi melhor que um piada, mas não recordo que contasse piadas explicitamente. Talvez seja melhor que reserve minhas idéias, quando as tenha, para você e para Sophie.
Seguiram caminhando em silêncio. Stephen lamentava ter falado com rudeza e sentia ainda mais remorso devido à resposta de Jack. Viu passar por cima deles um inconfundível
pelicano das Filipinas, mas não o mostrou porque temia resultar mais chato falando das aves do que Jack dos jogos de palavras e as agudezas, e porque lhe parecia
que sua cabeça ia estourar.
- Mas diga-me, o que queria dizer com o dia de Santa Fome? - perguntou por fim. - Temos uma babirussa de cento e quarenta libras e uma tartaruga de dois quintais.
- Sim, e é estupendo. Disporemos de uma libra a mais de carne por pessoa durante dois dias, e isso poderia ser um banquete se tivéssemos bolachas ou ervilhas secas
para acompanhá-la. Mas não há, e acho que em boa medida a culpa é minha por não ter tirado mais bolachas, farinha, sal e carne salgada de vaca e de porco enquanto
havia tempo.
- Querido Jack, não podia predizer o tufão, e os botes não cessaram de ir de um lado para o outro.
- Sim, mas tiramos primeiro as coisas do enviado e seus acompanhantes. Killick, que Deus o perdoe, carregou a prataria no esquife em vez das ervilhas secas, como
devia. E o primeiro é o primeiro. Agora, como você mesmo disse, é difícil encontrar javalis e mesmo macacos. O caso é que quase não restam cocos e daquilo que pescamos
quase nada é comestível. Mas deixando isso de lado, é assombroso que um necessite de tão pouca comida. Um pode seguir ativo e trabalhar duro comendo somente botas
velhas, cinturões de pele e o que menos poderia um pensar se tem ânimo. Quando falei do dia de Santa Fome me referia ao dia em que tenha que anunciar que não há
mais tabaco nem grogue. Não pode imaginar o apego que têm a essas duas coisas. Esse dia chegará dentro de duas semanas.
- Teme que haja um motim?
- Um motim na forma de rebelião violenta contra a autoridade? Não. Contudo, espero burburinhos de descontentamento e amostras de hostilidade, e não há nada que faça
o trabalho mais lento nem menos produtivo que a hostilidade e as brigas que implica. É horrível ter que mandar em uma tripulação com metade dos membros ressentidos
e mal-humorados. Ademais, desde que se perde um barco do rei alguns rapidinhos dizem aos demais que, já que os oficiais foram designados para um determinado barco,
não têm mais autoridade sobre a tripulação quando o barco já não existe. Também dizem que os marinheiros não recebem mais pagamento a partir do dia do naufrágio,
assim que não têm a obrigação de trabalhar nem de obedecer nem estão sujeitos às leis do Código Naval.
- E isso é verdade?
- Oh, não! Isso era assim faz muito tempo, mas mudou depois da perda do Wager no tempo de Anson. Contudo, muitos marinheiros acreditam que voltará a ser como antes
porque a Armada tem muito má reputação no que se refere aos pagamentos e pensões.
Nesse ponto o nível da praia subia pela presença de um banco de dejetos arrastados montanha abaixo pela chuva torrencial. Ambos subiram nele e puderam ver abaixo,
no estaleiro natural, a armação da escuna, tão bem feita como era desejável.
- Ali está! - exclamou Jack. - Não lhe parece surpreendente?
- Muito - respondeu Stephen, fechando os olhos.
- Supus que acharia - disse Jack, assentindo com a cabeça e sorrindo. - Passaram dois ou três dias desde que a viu, e nesse tempo não só pudemos pôr-lhe as pranchas
que formam a parte inferior da popa como também os yugos{1} e as vagaras{2}. Só falta colocar as gambotas{3} para começar a pôr-lhe as pranchas.
- As gambotas?
- Sim, deixa-me explicar. Pode ver o codaste, naturalmente. Pois as pranchas do fundo se elevam por ambos os lados e em cima deles vão as gambotas...
Jack Aubrey falava com entusiasmo, pois, assim como o senhor Hadley, o carpinteiro, estava muito orgulhoso da elegante popa; contudo, seu entusiasmo o fez se estender
e dar muitos detalhes sobre os alefrices{4} e os chapuces{5}. Stephen teve que interrompê-lo:
- Desculpe-me, Jack - disse, virando a cabeça ao sentir um forte enjôo.
Poucas coisas podiam ser mais desconcertantes, já que o doutor Maturin, que não era somente um simples cirurgião como um médico, sabia perfeitamente como manter
a boa saúde, tanto a alheia como a sua própia. Ademais, as doenças não o faziam de presa, pois permanecera imune sob o frio Antártico e o calor do Equador, havia
cuidado de toda a tripulação de um barco durante uma epidemia de tifo sem se contagiar, e tratara a febre amarela, a peste bubônica e a varíola com tão pouco temor
como o resfriado comum. Contudo, agora estava pálido como um ovo de avestruz.
Jack ajudou Stephen a subir a colina muito devagar e este disse:
- Só é um enjôo passageiro. - E quando se aproximavam do parapeito acrescentou: - Acho que vou me sentar aqui para recuperar o fôlego. - Sentou-se em um canto do
acampamento onde o condestável e um de seus ajudantes estavam misturando a pólvora que formava uma torre em um pedaço de lona. - E aí, senhor White, como vai isso?
- Bem, senhor - respondeu o senhor White com sua voz estrondosa -, saquei a pólvora dos barris estragados, como lhe disse, e misturei e pulverizei os cristais. Mas
acha, senhor, que secará com este espantoso ar úmido? Não, senhor, não secará nem que permaneça embaixo do sol e lhe demos voltas.
- Acho que amanhã soprará o vento do leste, condestável - anunciou Jack com tanta calma que o condestável o olhou com os olhos descomedidamente abertos -, assim
que não terá problemas.
Então pegou Stephen pelo cotovelo, levou-lhe até a tenda e mandou um grumete chamar Macmillan, o ajudante de cirurgião.
- O doutor estava muito pálido - disse o condestável, ainda com os olhos descomedidamente abertos.
Ainda estava mais pálido quando Macmillan chegou. O jovem sentia grande afeto por seu chefe, porém, ainda que tenha feito uma viagem tão longa em sua companhia,
ainda o temia e agora estava totalmente desconcertado. Depois do reconhecimento de rotina (mandar mostrar a língua, tomar o pulso e outras coisas), em tom vacilante,
disse:
- Com sua permissão, sugiro que tome vinte gotas de tintura de ópio, senhor.
- Não, senhor! - gritou Stephen com surpreendente veemência. Durante anos fui viciado nessa droga, da qual tomei doses tão monstruosas que não suportaria tomar outra
vez, e sofrera consideravelmente quando a havia deixado. - Mas como o senhor terá percebido - disse quando passou a dor provocada por seu grito -, tenho febre alta,
assim que, indubtavelmente, as coisas mais recomendáveis são quina, ferro, um enema de uma solução salina, repouso e, sobretudo, silêncio. Ainda que, como o senhor
sabe muito bem, é impossível que haja silêncio absoluto em um acampamento cheio de marinheiros, com os tampões de cera se pode conseguir algo muito semelhante. Estão
detrás do bálsamo de Gilead.
Quando Macmillan regressou com todas essas coisas, Stephen lhe explicou:
- Certamente não produzirão efeito imediato, e é possível que entretanto tenha enjôos mais fortes. Notei que a febre subiu com rapidez e já tenho certa tendência
a ter fantasias, idéias desconexas e alucinações; quer dizer, os primeiros sinais do delírio. Tenha a amabilidade de dar-me três folhas de coca da caixinha que está
no bolso de meus calções e a sentar-me o mais comodamente possível nessa vela dobrada.
Depois de ter mastigado as folhas durante um tempo, prosseguiu:
- Um dos motivos de sofrimento dos médicos é que, por um lado, sabemos quantas coisas horríveis podem ocorrer ao corpo humano e, por outro, sabemos muito bem que
realmente podemos fazer muito pouco para combatê-las. Por isso, não podemos ter o consolo da fé. Muitas vezes ouvi que os pacientes com dores agudas, depois de tomar
uma poção de alguma substância nauseabunda mas neutra ou um comprimido de farinha açucarado, dizem que sentem um grande alívio. Isto não deve nem pode ocorrer conosco.
Os dois se puseram a recordar, e vieram a suas mentes casos de indivíduos a quem isso havia ocorrido, inclusive a eles mesmos, e pouco depois Stephen comentou:
- Mas lhe direi outra causa de sofrimento inegável. Em circunstâncias normais, os médicos, os cirurgiões e os boticários têm que responder a uma grande demanda de
compaixão e é possível que vejam meia dúzia de casos dignos de lástima em um só dia. Os que não são santos correm o risco de ficar sem fundos e ir à bancarrota,
quer dizer, ficar em um estado em que perdem grande parte de sua humanidade. Os que trabalham por sua conta têm que dizer palavras mais ou menos apropiadas para
manter sua clientela, seu meio de vida, e, como sem dúvida terá observado, pôr simplesmente uma expressão compassiva produz a impressão de que se sente ao menos
um pouco de lástima. Mas nossos pacientes não podem nos deixar, não têm alternativa. Não estamos obrigados a pôr uma expressão compassiva porque nossa falta de humanidade
não afeta o nosso meio de vida. Temos um monopólio e acredito que com o tempo muitos de nós pagaremos muito caro por isso. Provavelmente o senhor terá visto a muitos
bárbaros insensíveis, preguiçosos, presunçosos, egoístas e muitos práticos atendendo a pacientes que não têm escolha, e se permanece na Armada, verá a muitos mais.
Mas o monopólio ainda não convertera Macmillan em um prático bárbaro, e ele e Ahmed passaram toda a calorosa e úmida noite sentados junto a Stephen, abanando-lhe,
dando-lhe água fresca do poço profundo e mexendo sua rede com um rítmico movimento. Antes do amanhecer o prometido vento do leste começou a soprar e a refrescar
o ambiente, e ambos viram com satisfação como Stephen caía em um profundo e tranqüilo sono.
- Acho que está melhorando, senhor - disse Macmillan quando Jack lhe fez um sinal para que saísse da tenda. - A febre baixou tão rapidamente como subiu, acompanhada
de abundante suor, e se permanecer deitado hoje e tomar caldo de vez em quando, amanhã poderá levantar-se.
Stephen se equivocou ao pensar que em um acampamento cheio de marinheiros não podia haver silêncio absoluto. Quando as estrelas estavam ainda no céu, saíram todos
na ponta dos pés do acampamento e levaram seu frugal desjejum para comê-lo no estaleiro, deixando para trás somente alguns de seus companheiros que não faziam ruído
ao realizar seu trabalho. Alguns eram os cordoeiros, com cabos velhos, fio e uma roca; outro era o condestável, disposto a espalhar a pólvora assim que o sol lhe
desse esperanças de que a secaria; outro, o veleiro, que começara a fazer as bujarronas da escuna; e outro, Killick, que tinha a intenção de cerzir toda a roupa
do doutor (Ahmed não se dava bem com a costura) e realizar a digna tarefa de polir a prata do capitão.
Portanto, havia um inusual silêncio quando Stephen, pouco antes do meio-dia, saiu da tenda. Macmillan, como correspondia nesse momento, tinha ido para a cozinha
para ver se o caldo já estava preparado; Ahmed saíra muito antes em busca de cocos verdes; e Stephen, mesmo sentindo-se muito débil, teve que ir à latrina.
- Vejo que está melhor, senhor - disse o condestável com voz rouca.
- Muito melhor, obrigado, senhor White - respondeu Stephen. - E o senhor deve de estar contente com este forte vento.
Em tom satisfeito, o condestável explicou que talvez poderia meter a pólvora de novo no barril dentro de um par de dias e depois, muito mais alto e com muito mais
convicção, acrescentou:
- Mas não deveria ter se levantado nem caminhar por aí em camisa de dormir quando sopra o vento do leste. Se tivesse me avisado, teria mandado o preguiçoso do Killick
levar-lhe esse utensílio.
O condestável, como o própio doutor Maturin, era um oficial assimilado, e ainda que fosse de categoria inferior aos oficiais, tinha direito de expressar sua opinião.
Os veleiros, em troca, não; mas quando Stephen passou junto a eles e atravessou o espaço onde faziam os cabos, lançaram-lhe olhares tão cheios de sensuras, movendo
a cabeça de um lado para o outro, que se alegrou de regressar à tenda. Macmillan levou-lhe uma tijela de caldo de babirussa engrossado com bolachas moidas (pensava
que a sopa de tartaruga tinha demasiada gordura), felicitou-lhe por sua recuperação e, em um tom quase de censura, informou-lhe de que em um canto havia um pequeno
móvel com um urinol dentro. Acrescentou que Ahmed estava para chegar porque só tinha ido até a ponta oeste, que Killick se encontrava agora a uma distância desde
a qual podia ouvir-lhe e que queria dormir um pouco. Depois, respeitosamente, sugeriu que o doutor fizesse o mesmo.
E foi isso que o doutor fez, apesar de que era meio-dia e se ouviam os distantes risos dos marinheiros no estaleiro, onde giravam a babirussa sobre o fogo feito
com troncos flutuantes. Não despertou até que ouviu vozes malaias que não pôde reconhecer e a voz de Killick, que dizia:
- Ah, ah, ah, companheiro! Diga-lhes que há muitas mais no outro baú e que poderiam ter pego o dobro se houvesse tido espaço.
Ahmed traduziu isto e acrescentou que o capitão era exageradamente rico e importante, como um rajá em seu país. Depois, em resposta a uma pergunta feita em voz aguda
como a de um eunuco ou um menino, explicou o que o condestável fazia com a pólvora e por que. Também se ouviam vozes inglesas, mas eram muito baixas pois, como muitos
haviam dito a Ahmed repetidas vezes:
- Está muito melhor, companheiro, mas agora dorme, assim que há que falar baixo.
Mas quem falava com voz aguda não parecia disposta a baixar o tom. Fez insistentes perguntas a Ahmed sobre a pólvora: "É toda?", "está pronta?", "quando estará pronta?",
"será boa?". Finalmente Stephen se levantou, pôs a camisa e os calções e saiu da tenda. Então pôde identificar a propietária da voz aguda: uma mulher jovem, bastante
jovem, e delgada. Por seu rosto bonito e expressivo e sua pele fina deduziu que era uma dyak. Usava uma saia comprida que só lhe permitia caminhar com um movimento
oscilante, como o que faziam as mulheres chinesas com os pés vendados, e uma jaqueta curta que não ocultava nem tinha o propósito de ocultar completamente seus peitos
e que, para deleite dos marinheiros, amiúde o forte e caprichoso vento o abria. Tinha uma adaga com empunhadura de marfim metida na cinta e os incisivos laterais
rebaixados de modo que eram pontiagudos, pelo que parecia ter dois pares de caninos. Stephen pensou que talvez isso provocasse sua expressão malévola, que, contudo,
não intimidou aos poucos marinheiros e infantes da marinha que estavam no acampamento. Todos se agruparam em torno da jovem, olhando-a como tontos, e o condestável,
ainda que não se separou do monte de pólvora, que agora estava muito mais solta e quase pronta, mostrou-se desejoso de satisfazer sua curiosidade.
Stephen cumprimentou aos recém chegados, a jovem e o homem grisalho que a acompanhava, que responderam formalmente, como costumava-se fazer em malaio, mas com um
sotaque e algumas variações que nunca tinha ouvido. Ahmed deu um passo adiante e lhe contou que ao chegar na ponta oeste na inútil busca por cocos os vira desembarcando
de um pequeno paraú com cinco companheiros. Acrescentou que eles lhe perguntaram que fazia e que quando explicou a situação lhe deram cocos (apontou uma pequena
rede). Como a maré, que estava baixando, e a corrente agitavam tanto o mar que o paraú não podia bordejar a costa nem mesmo com o vento favorável, trouxera essas
duas pessoas pelo caminho interior.
- Como ela pôde caminhar com essa saia? - perguntou Stephen em inglês, desviando-se por um momento do tema.
- Ela a tirou - respondeu Ahmed, ruborizando.
- Admiro sua adaga - disse Stephen para a jovem. - Nunca existiu uma empunhadura tão apropiada para uma mão tão pequena e delicada.
- Dê-me seu honorável antebraço - respondeu a jovem com seu assombroso sorriso. E sacou a adaga, que tinha a lâmina reta de estilo damasquino, e lhe barbeou uma
meia face tão bem como o teria feito um barbeiro.
- Diga-lhe que barbeie a mim - disse o ajudante do condestável, dando um passo adiante e soltando a lona.
Então a lona, movida pelo vento leste, envolveu seu companheiro, e a pólvora se espalhou para bombordo formando uma volátil e irrecuperável nuvem de poeira.
- Olhe o que me fez fazer, Tom Evans, maldito estúpido! - gritou o senhor White.
- Ahmed - disse Stephen -, sirva o café na tenda, por favor. Traga uma cafeteira de prata, quatro xícaras e uma almofada para a jovem. Preserved Killick, desça correndo
tão rapido como possa, apresente meus respeitos ao capitão e diga-lhe que aqui há dois dyaks que chegaram pelo mar.
- E deixar a prataria? - perguntou Killick, estendendo o braço por cima do desordenado conjunto de objetos que brilhavam ao sol. - Oh, senhor, permita que vá o jovem
Aquiles! Pode correr mais rapidamente que qualquer membro da Armada.
- Muito bem. Por favor, vá o senhor, Aquiles, e não se esqueça de apresentar meus respeitos.
Depois, quando Aquiles saltou o parapeito e começou a descer a ladeira correndo como uma lebre, perguntou:
- Não confia em seus companheiros, Killick?
- Não, senhor, nem nestes estrangeiros tampouco. Ainda que não me agrada dizer nada contra uma dama, quando chegaram e cumprimentaram em sua língua seu olhar parecia
cobiçoso. Deus sabe que olharam as sopeiras com os olhos descomedidamente abertos.
Ainda olhavam cobiçosamente quando passaram junto de Killick, mas depois de trocarem umas palavras em um idioma que não era o malaio, desviaram o olhar e entraram
na barraca.
O homem grisalho era, obviamente, de importância inferior à mulher. Sentou-se no solo a certa distância dela e, ainda que se expressasse com elegância, de acordo
com as regras malaias, não o fazia com tanta como ela nem falava com tanta fluidez. Agora ela conversava animadamente e já não fazia rudes perguntas diretas, senão
observações que lhe teriam permitido obter informação se Stephen estivesse disposto a dá-las. Porém, certamente, não o estava. Depois de ter atuado com discrição
durante tão longo tempo, quase não era capaz de dizer as horas sem esforço. Mesmo assim, como mostrar-se resistente a falar era tão pouco discreto como murmurar,
contou-lhe coisas que ela já devia de saber e se estendeu tanto que ainda estava falando das vantagens do clima quente quando Jack chegou, com a cara mais vermelha
que o habitual, depois de ter subido a ladeira atrás de Aquiles.
Stephen fez as apresentações com a formalidade apropiada. Killick cobriu discretamente o pequeno móvel que continha o urinol com uma bandeira de saída e Jack sentou-se
em cima. Então chegou o café e Stephen anunciou:
- O capitão não entende o malaio, assim que me desculparão se falo inglês com ele.
- Nada nos proporcionaria mais prazer que escutar a língua inglesa - respondeu a jovem. - Disseram-me que se parece com a dos pássaros.
Stephen fez uma inclinação de cabeça e disse:
- Em primeiro lugar, Jack, peço que tente não lançar olhares notoriamente lascivos para a jovem, pois isso não só é descortês como põe sua moral em suspeita. Em
segundo lugar, diga-me se devo perguntar a estas pessoas se estão dispostas a levar uma mensagem a Batavia em troca de uma soma. E se for assim, diga-me qual deve
ser a mensagem.
- Eu a olhei com respeito e admiração. Olha quem fala! Mas para evitar suspeitas olharei para outra parte. - Tomou um trago de café para recobrar a serenidade e
depois continuou: - Sim, por favor, pergunte-lhes se iriam a Batavia em representação nossa. Com este vento forte e tão estável não tardarão mais de dois dias. E
quanto à mensagem, deixe-me pensar enquanto chega a um acordo sobre o primeiro ponto importante. Stephen fez a pergunta e escutou atentamente a longa e meditada
resposta enquanto pensava que estava diante da pessoa mais inteligente e perspicaz que conhecera em Pulo Prabang, com excessão de Wan Da, cuja mãe era dyak. Quando
ela terminou, Stephen se voltou para Jack e disse:
- Em poucas palavras, tudo depende da soma. Seu tio, um homem muito importante em Pontianak e capitão do paraú, tem muito interesse em estar em seu país para o Festival
das Caveiras. Seria um sacrifício tanto para ele como para a tripulação e para a dama perderem o Festival das Caveiras. Com vento favorável, tardariam dois dias
em chegar a Batavia.
Reiniciaram a negociação e fizeram comentários sobre as festas nos diferentes países e, em particular, sobre o Festival das Caveiras. Depois falaram das compensações
e das hipotéticas somas e as formas de pagamento. E quando voltaram a servir-lhes café, Stephen anunciou:
- Jack, acredito que chegaremos a um acordo muito cedo. Talvez poderíamos poupar tempo se fizesse uma lista das coisas que quer que o senhor Raffles lhe envie, pois
imagino que não tem a intenção de abandonar a escuna, que já está quase pronta para navegar.
- Deus me livre! - exclamou Jack. - Isso seria opor-se à Providência. Eu me limitarei a anotar algumas coisas essenciais que poderá mandar-me em qualquer barco pesqueiro
que esteja disponível, sem necessidade de esperar por um dos barcos que fazem o comércio com as Índias nem outro desse tipo.
Então começou a escrever: "1 quintal de tabaco, 20 galões de rum (ou aguardente de palma, se não encontrar rum...)" E quando estava escrevendo: "100 balas de 12
libras e 50 de 9 libras; 2 meios barris de pólvora vermelha de grão grosso e um de grão fino...", Stephen o interrompeu:
- Combinamos a quantidade de vinte johannes.
- Vinte johannes?
- É muito, concordo, mas é o valor da menor letra que Shao Yen me deu e não quero tentar à jovem... - Nesse momento viu que o capitão Aubrey começava a sorrir e
que um brilho premonitório aparecia em seus olhos e o atalhou: - Jack, peço que não tente ser gracioso neste momento. A dama é delicada como o âmbar e é muito inteligente;
não devemos ofendê-la. Como dizia, não quero tentá-la dando-lhe moedas, pois Satanás poderia induzi-la a fugir com o dinheiro. Ela conhece perfeitamente bem seu
selo e sabe que não receberá os johannes até que entregue a letra a Shao Yen com minha firma. Assim que, se já terminou a lista, dá-me para pôr as duas coisas juntas.
A dama, cujo nome é Kesegaran... Não faça comentários, por favor, e limite-se a olhar para baixo humildemente. A dama diz que gostaria de ver a escuna, e como o
vento não é favorável para navegar no paraú de seu tio mas sim em nosso cúter, poderíamos ganhar uma hora ou duas levando-a até a ponta sul. Ademais, a cortesia
não exige menos.
Ficaram olhando como o cúter zarpava, avançava bastante para o alto mar, virava e deslizava pelas agitadas águas azuis salpicadas de branco em direção à ponta sul.
Todos os marinheiros permaneciam sentados conforme o estabelecido na Armada; as únicas incongruências eram a falta de uniforme de Seymour e o modo com que Kesegaran,
segurando-se a um cabo da popa, inclinou-se para o lado de barlavento e ficou suspensa sobre o mar como se essa fosse a forma de navegar mais natural do mundo.
- Nunca tinha visto uma mulher tão interessada na fabricação de barcos - disse Jack.
- Nem nas ferramentas de quem os constroem - replicou Stephen. - Tanto ela como seu acompanhante quase expressaram seus desejos aos gritos. Ainda que estou seguro
de que estavam interessados em sua prataria, isso foi um desejo passageiro comparado com a cobiça das serras de cabo duplo, dos enxós, dos gatos e muitas outras
ferramentas brilhantes do senhor Hadley cujo nome desconheço.
- Em alguns lugares têm que unir as pranchas com uma costura - explicou Jack.
Mas Stephen, seguindo o fio de seu pensamento, disse:
- Quando falei de uma expressão malévola não me referia a malévola em sentido moral. Não devia ter usado essa palavra. Queria dizer feroz, isto é, potencialmente
feroz, de alguém com quem não se deve brincar.
- Não acredito que nenhum homem que valorize um pouco suas... quer dizer, que não queira terminar seus dias como um eunuco, seja capaz de brincar com Kesegaran.
- Já viu um arminho alguma vez, meu amigo? - perguntou Stephen depois de alguns momentos.
Jack, dando um suspiro, descartou um jogo de palavras com a palavra "arminho" e se limitou a responder que não, mas que acreditava que se parecia com a marta ainda
que de menor tamanho.
- Sim - respondeu Stephen. - A marta tem uma forma muito bonita, é uma criatura realmente bela, mas quando ataca ou se defende o faz com grande ferocidade. Esse
é o sentido que lhe dei impropriamente à palavra "malévola".
Houve uma pausa e Jack disse:
- Suponho que chegarão a Batavia na quarta-feira pela tarde, mas acredita que eles tardarão muito em encontrar ao banqueiro e ele em encontrar a Raffles?
- Meu amigo, sei tanto como você sobre suas festas e seu estado de saúde. Mas Shao Yen mantém uma estreita relação com o governador e poderia fazer-lhe chegar sua
mensagem em cinco minutos, se se encontrar ali. E como o governador nos apoia totalmente, em outros cinco minutos poderia passar a mão em qualquer barco, bote ou
lancha. Como já viu, Batavia, por seus caminhos, é como a esquina do Orador de Hyde Park em versão marítima.
- Então, no melhor dos casos, sob a condição de que escolha um barco que navegue bem de bolina, o que é provável porque nasceu no mar, poderemos ver-lhes de novo
no domingo. Cânhamo de Manila novo, pregos de seis polegadas novos, potes de tinta! E não esqueçamos as coisas essenciais como pólvora, balas, rum e tabaco. Viva
o domingo!
- Que viva o domingo! - exclamou Stephen, e começou a subir devagar a ladeira.
Mais tarde, enquanto se balançava na maca e tratava de encontrar no fundo de sua mente o motivo de sua enorme insatisfação, repetiu:
- Que viva o domingo!
Por sua profissão, era muito desconfiado e reconhecia que amiúde exagerava, sobretudo quando não se achava bem. Perguntava-se por que Kesegaran pedira a Ahmed que
a levasse ao acampamento pelo caminho interior, um caminho acidentado, em vez de pela praia. Era evidente que ela conhecia muito bem a ilha, ainda que tenha dito
de passagem, e sem dúvida com razão, que não era muito frequentada devido às perigosas correntes. Entrar pelo caminho interior era como ter visto o acampamento indefenso,
e o tonto de Ahmed havia feito ainda mais evidente sua indefensibilidade ao contar tudo sobre a pólvora. Tanto o encontro casual como as circunstâncias em que se
havia produzido não podiam ter sido mais desafortunados. Porém, por outra parte, ela havia visto no estaleiro mais de uma centena de homens fortes, um grupo que
não podia deixar de se levar em conta. E o fato de que seus incisivos laterais estivessem afiados (sem dúvida, um costume tribal), não negava precisamente a malevolência.
CAPÍTULO 2
- Outra desgraça na vida é ter um contubernal que ronca como dez - disse Stephen na escuridão da madrugada.
- Não estava roncando - replicou Jack. - estava muito acordado. Que significa contubernal?
- Você é um contubernal.
- E você é outro. estava muito acordado pensando no domingo. Se as provisões que solicitamos a Raffles chegarem, celebraremos uma cerimônia religiosa para agradecer
a Deus, almoçaremos uma ração inteira de pudim de passas e passaremos o restante do dia como um dia festivo. Então na segunda-feira nos poremos a...
- Que foi esse ruído? Queira o céu que não tenha sido um trovão.
- Só eram Lascas e o contramestre tratando de escapulir sem fazer ruído. Eles e seus homens vão começar o trabalho cedo e preparar a panela com o breu, e Joe Gower
levará o arpão com a esperança de pescar uma dessas saborosas arraias que permanecem nas águas pouco profundas durante a noite. Dentro de pouco começará a sentir
o cheiro de breu, se prestar atenção.
Deram-se o luxo de ficar ali, relaxados, durante vários minutos. Mas não foi o odor de breu o que fez Jack descer da maca de um salto. No estaleiro se ouviram gritos
confusos, golpes e berros de dor que cessaram de repente.
Ainda estava escuro quando chegou ao parapeito, mas abaixo e no mar se moviam algumas luzes. Pareceu ter visto muito perto da costa a silhueta de uma grande embarcação
iluminada pelas chamas que estavam debaixo da panela, mas antes de poder assegurar-se disso, os primeiros ajudantes do carpinteiro subiram correndo a ladeira.
- O que aconteceu, Jennings? - perguntou.
- Mataram Hadley, senhor, e também a Joe Gower. Alguns homens negros estão roubando nossas ferramentas.
- Chamem todos aos seus postos! - gritou Jack.
Quando o tambor começou a soar, vários marinheiros mais subiram a ladeira, e os últimos apoiavam o contramestre, que estava sangrando.
Apareceram as primeiras luzes a leste e chegou a alvorada. Logo assomou a vermelha auréola do sol e imediatamente depois chegou a brilhante luz do dia. O maior paraú
de dois cascos que Jack já vira em sua vida estava situado a poucas jardas da entrada do estaleiro. Como estava tão perto e tinha maré baixa, numerosos tripulantes,
formando muitas filas, levavam ferramentas, cabos, velas e objetos de metal para o barco caminhando pela água, enquanto outros ainda estavam ao redor de seus amigos
ou seus inimigos mortos.
- Posso abrir fogo, senhor? - perguntou o senhor Welby quando os infantes da marinha que estavam sob seu comando se alinharam atrás do parapeito.
- A esta distância e com pólvora tão pouco confiável? Não. Quantas cargas têm seus homens?
- A maioria tem duas, senhor, e em condições bastante boas.
Jack assentiu com a cabeça.
- Senhor Reade! - gritou. - Dê-me a luneta, por favor, e diga ao condestável que venha.
Com a luneta pôde ver a costa exageradamente perto. Os homens estavam cortando cuidadosamente a cabeça do carpinteiro. Gower e outro homem que não pôde identificar
já haviam perdido as suas. havia dois malaios ou dyaks mortos, e nesse momento observou com surpresa que uma era Kesegaran. Era perfeitamente reconhecível apesar
de que agora usava calças chinesas e estava coberta de feridas. Tinha a cara voltada para o céu e a mesma expressão feroz.
Jennings ainda estava de seu lado e falava muito devido à impressão recebida.
- Foi Joe Gower que o fez, senhor - disse. - O senhor White tentou evitar que ela pegasse seu machado grande e ela lhe deu um golpe na perna e depois, quando ele
estava no solo, cortou sua cabeça com a destreza de um lenhador enquanto ele gritava como um porco. Então Joe lhe deu seu merecido com o arpão. Foi uma reação natural,
pois é arpoador e ajudante do carpinteiro.
- Senhor! - gritou o condestável.
- Senhor White, mande sacar as caronadas e carregá-las de novo com metralha. Que acha das cargas?
- Não queria ter que responder sobre a caronada dianteira, senhor, mas o canhão de nove libras e a caronada posterior cumprirão com seu dever.
- Pelo menos troque o feltro velho por um pano seco e misture o conteúdo com um pouco de cevo, e deixe que se espalhe. Essa gente estará ocupada lá embaixo durante
um bom tempo.
Então voltou-se para o imediato e perguntou:
- Senhor Fielding, já as lanças e os sabres já foram distribuidos, não é?
- Oh, sim, senhor!
- Então mande os homens desjejuarem alternando-se em dois grupos e busque todos os objetos de onde possa tirar pólvora: frascos, armas defeituosas, foguetes, pistolas
que tenhamos passado por alto... Ah, doutor, está aí! Suponho que já sabe o que ocorre.
- Tenho uma ligeira idéia. Quer que eu desça para tentar negociar com eles a paz?
- Sabia que Kesegaran encontrava-se lá e está morta?
- Não - respondeu Stephen com semblante grave.
- Pegue minha luneta. Ainda não a levaram para o paraú. Pelo modo como agem, não acredito que seja possível acordar uma trégua, e lhe matariam de imediato. Em um
enfrentamento como este, um bando tem que derrotar o outro.
- Creio que tem razão.
Killick pôs uma bandeja sobre o parapeito e eles se sentaram um de cada lado e observaram o estaleiro e os atarefados dyaks.
- Como está o contramestre? - perguntou Jack, baixando a xícara na bandeja.
- Nós o costuramos - respondeu Stephen -, e a menos que contraia uma infecção, ele se salvará. Mas nunca poderá voltar a dançar. Uma das lesões lhe cortou um tendão
do joelho.
- O pobre gostava da dança típica dos marinheiros e da dança irlandesa. Já notou que estão pondo casacas esbranquiçadas?
- Os guardas dyaks de Prabang as usavam. Wan Da me disse que podiam rechaçar balas porque são forradas com kapok.
Seguiram observando em silêncio enquanto tomaram duas cafeteiras. A maior parte do saque havia cessado e agora o estaleiro estava rodeado de lanças com as pontas
brilhando ao sol. Ao terminar de beber uma xícara, o capitão Aubrey perguntou:
- Senhor Welby, que lhe parece a situação?
- Acredito que pensam em atacar, senhor, e de um modo inteligente. Estive observando ao que os dirige, esse velho com um lenço verde na cabeça. Já faz meia hora
que está enviando pequenos grupos para as árvores que se encontram a nossa esquerda, e dos que foram somente alguns poucos regressaram gritando e agitando galhos
no ar para serem vistos. Enviou a muitos mais para se colocarem atrás do banco de areia situado a leste do estaleiro, onde não poderemos ver-lhes porque essa parte
fica oculta pelo banco. Acho que o plano consiste em mandar um grande grupo subir a ladeira para nos atacar diretamente, entabular combate no parapeito, matar a
todos os homens que possam ali. Suponho que depois retrocederão devagar sem deixar de lutar e finalmente se voltarão e passarão a correr para que abandonemos nossos
postos e os persigamos. Então o grupo que está no bosque nos atacará por um flanco, os homens da parte oculta pelo banco começarão a subir a ladeira e, entre eles
e os primeiros atacantes, voltarão de novo, nos farão em pedaços. Além de tudo, são mais de trezentos e nós em torno da metade.
- Acho que já esteve em situações como esta, senhor Welby - disse Jack olhando atentamente as árvores que ficavam à esquerda, onde podia-se ver bem o brilho das
armas.
- Já vi muitas coisas durante meus longos anos de serviço, senhor - respondeu o senhor Welby.
Enquanto falava, um canhão giratório e um grande mosquete apoiado em uma carreta dispararam desde o paraú. A bala de canhão, de meia libra, fez saltar terra por
cima do parapeito, e a bala de mosquete, provavelmente uma pedra redonda, passou por cima de suas cabeças produzindo um assobio. Essa era aparentemente toda a artilharia
que os dyaks possuíam (não se viam outros mosquetes) e imediatamente depois da descarga, os homens com coletes brancos e lanças começaram a formar filas.
Depois de falar um momento em voz baixa com Jack, Welby disse:
- Infantes da marinha, para cada disparo, um homem. Disparem com discrição, mas ninguém deve fazer fogo se não estiver seguro de que vai matar. Ninguém deve abandonar
seu posto. Ninguém deve carregar de novo a arma, e sim calar a baioneta. Sargento, repita as ordens.
O sargento as repetiu e acrescentou:
- Depois de ter limpado a chave e o canhão da arma se o tempo o permite.
Então se ouviram uivos e o forte som de um tambor, e os homens armados com lanças, separados em grupos, começaram a subir a ladeira correndo. Quando estavam a cem
jardas, alguém disparou nervosamente um mosquete.
- Sargento, anote o nome desse homem!
Aproximaram-se mais e puderam ouvir seu ofegar; percorreram o último vão e se ouviram vinte ou trinta disparos de mosquete. Depois, todos agrupados e dando gritos,
chegaram ao parapeito e nesse momento se ouviram chocar as lanças, as piques, os sabres e as baionetas entre nuvens de poeira. Pouco depois um de seus chefes deu
um terrível grito e todos retrocederam, primeiro lentamente e sem deixar de olhar para o acampamento, depois mais rápido e de costas para ele e finalmente correndo.
Uma dúzia de furiosos marinheiros começaram a correr atrás deles uivando como cachorros de presa, mas Jack, Fielding e Richardson sabiam seus nomes e os chamaram
para que regressassem aos seus postos qualificando-lhes de tontos e insensatos, e lerdos como mulheres.
Os dyaks pararam na metade do caminho, agruparam-se, viraram para o acampamento e lançaram desafios e fizeram zombarias.
- A caronada dianteira! - gritou Jack. - Disparem nos morenos!
A pederneira não acendeu a carga da primeira vez que puxaram o rabicho, mas sim da segunda, e a caronada lançou a carga horizontalmente, espalhando metralha entre
os dyaks, que riam, gritavam e davam saltos. Ademais, alguns cumprimentavam os ingleses movendo o pênis e outros lhes mostravam as nádegas. Nesse momento saíram
correndo de entre as árvores os reforços, que iam se unir a eles para atacar com dureza.
- A caronada posterior! - gritou Jack.
Seu grito foi seguido imediatamente por um grande estrépito acompanhado de uma nuvem de fumaça com lampejos alaranjados. Enquanto se ouvia o eco do disparo, a nuvem
se deslocou para sotavento descobrindo a horrível fileira que a metralha havia deixado. Todos correram para o estaleiro, e ainda que alguns voltaram, meio agachados,
para ajudar seus amigos feridos a descer, deixaram para trás uma vintena de mortos.
Depois seguiu um período sem nenhuma ação que durou até a tarde, mas logo ficou claro que nem os dyaks nem seus amigos malaios (a tripulação era uma mistura de ambos)
haviam se desanimado. Via-se muito movimento junto ao estaleiro e entre o estaleiro e o paraú, e de vez em quando disparavam o canhão giratório. Ao meio-dia acenderam
o fogo para cozinhar e os homens do acampamento fizeram o mesmo.
Durante todo esse tempo Jack estivera observando o inimigo muito atentamente e tanto para ele como para seus oficiais era óbvio que o velho Lenço Verde tinha o comando.
O chefe dos dyaks observava os ingleses com a mesma atenção, amiúde situado sobre o banco de areia e fazendo-se sombra com a mão sobre os olhos, de modo que um bom
atirador com o rifle apoiado no parapeito poderia derrubá-lo. Tinha a certeza de que Stephen poderia fazê-lo, mas também de que nunca o faria, e, de toda maneira,
ambos médicos estavam atendendo aos feridos (vários homens ficaram feridos na luta junto ao parapeito). Tampouco ele o faria a sangue frio e a essa distância. Apesar
de não lhe desagrar ver como uma descarga arrasava o convés de um barco inimigo, ainda que parecesse um contra-senso, considerava sagrado o chefe dos oponentes e
sabia que havia uma diferença perceptível mas indefinível entre matar e assassinar. Pergunta: Isso era válido para um homem a quem se atribui a tarefa de franco-atirador?
Resposta: Não. E tampouco o era para um grupo de homens, ainda que fosse muito pequeno.
O capitão Aubrey seus oficiais e David Edwards, o secretário do enviado, comeram em pranchas colocadas sobre pés de tesoura junto à parte interior do parapeito,
que tinha em cima sacos de areia para proteger a cabeça dos freqüentes disparos do canhão giratório. Os disparos eram muito precisos e quase sempre batiam no parapeito
ou passavam justo acima dele; eram tão precisos que os marinheiros que estavam ao seu alcance se ajoelhavam quando viam o clarão. Mas a genuflexão nem sempre lhes
salvava, e duas vezes durante o almoço chamaram ao doutor Maturin para atender aos que foram feridos.
A refeição desse dia foi tão pouco formal que Richardson não cometeu um ato impróprio quando, quando olhava pela luneta por entre os sacos de areia, anunciou:
- Senhor, parece que o inimigo ficou sem água. Vejo três grupos tratando de fazer buracos onde supõem que passa uma corrente de água, e Lenço Verde os está insultando
como uma verdureira.
- Esperavam poder beber água de nosso poço - disse Welby, sorrindo, e depois, para não tentar à fortuna, acrescentou: - Mas cuidado: ainda é possível que o façam.
- Agora nossas possibilidades são mais parecidas - disse o contador. - E se as coisas seguem a este passo, logo teremos vantagem.
- Se isso ocorrer, não há dúvida de que partirão e regressarão com uma força três vezes maior - aventurou o oficial de derrota. - Senhor, seria disparatado sugerir
que destruíssemos o paraú? É sumamente frágil; não tem nenhuma parte de sua estrutura de metal e uma bala em cada um dos cascos ou, melhor ainda, onde se unem, o
faria pedaços.
- Seria, senhor Warren - respondeu Jack. - Isso nos deixaria com mais de duzentos vilãos sedentos que nos tirariam o abrigo e o sustento. O doutor diz que quase
não restam uma vintena de javalis e que só há macacos de calda preénsil para proporcionar-nos uma ração de carne durante alguns poucos dias. O que mais eu gostaria
seria vê-los zarpar em busca de reforços. Quase terminamos de serrar, e como, por sorte, o pobre senhor Hadley tinha deixado aqui algumas das ferramentas mais importantes
para afiá-las e ajustá-las, acho que se trabalharmos dia e noite poderemos botar a escuna e estar navegando rumo a Batavia antes que regressem. Creio que procedem
de Bornéu.
- Oh! - exclamou o contador como se lhe tivesse ocorrido outra idéia, mas não disse nada mais.
Tanto a bala do canhão giratório como a do grande mosquete perfuraram o saco de areia que tinha em sua frente, cobrindo ele e a mesa com o conteúdo. Quando os outros
tentaram levantá-lo já estava morto. Stephen lhe abriu a camisa, pôs a orelha em seu peito e disse a meia voz:
- Temo que seu coração falhou. Que Deus tenha piedade dele!
Durante as tranqüilas e calorosas horas que seguiram, Jack, Fielding e o condestável inspecionaram toda a pólvora que tinham encontrado no fundo dos barris ou em
frascos, cartuchos para fazer sinais e foguetes.
- Temos bastante para uma carga das caronadas e do canhão de nove libras, e nos sobra o suficiente para dar ao doutor meio frasco para seu rifle - sentenciou Jack.
- Condestável, seria conveniente carregá-los agora que o metal quase não se pode tocar, pois o calor fará que a pólvora exploda mais rapidamente. E ordene que raspem
cuidadosamente a bala de nove libras e depois a esfreguem com azeite.
- Sim, sim, senhor. Suponho que poremos metralha nas caronadas.
- Seria melhor pôr-lhes aquelas cargas que provocam uma carnificina a curta distância, mas suponho que não temos nenhuma.
O condestável, com expressão melancólica, negou com a cabeça.
- Todas ficaram nesse maldito arrecife, senhor, com perdão.
- Então ponha metralha, senhor White.
- Senhor, senhor, o capitão Welby diz que estão mandando os homens subirem pelo bosque! - gritou Bennett.
- Senhor - disse Welby quando Jack se reuniu com ele no posto de vigilância -, talvez fosse mais prudente que não dirigisse a luneta para lá porque poderiam pensar
que os vimos. Se observar a clareira situada à esquerda daquela enorme árvore com flores vermelhas que forma com a haste um ângulo como as onze em ponto, verá que
o estão atravessando com as lanças abaixadas e com as pontas cobertas de folha ou capim.
- Que acha que se propõem?
- Suponho que é um grupo preparado para um ataque surpresa e que foi enviado para atacar o acampamento pela parte de trás, onde está a prataria. Vão se apoderar
de um ou dois baús e depois correrão para o bosque que fica atrás, enquanto seus amigos nos entretêm lançando um falso ataque pela parte dianteira.
- Não sabem como é a parte traseira do acampamento. Poderemos protegê-la com meia dúzia de homens, pois quando ocorreu o desprendimento de terra na ladeira se formou
um grande socavão.
- Não o sabem, senhor. E como a jovem veio pela entrada oeste e saiu pela sul, não viu essa trincheira natural. Ainda que, indubtavelmente, seu general está empregando
sua estratégia, acho que também confia no fator surpresa.
- Quantos homens calcula que são?
- Contei vinte e nove, senhor, mas é possível que haja alguns mais.
- Bem, não acredito que isso nos cause problema. Senhor Reade, deixe de apontar tontalmente para as árvores. Pare imediatamente, entendeu? O senhor e Harper recolham
as pedras maiores que possam carregar e levem-nas imediatamente até os degraus da parede norte. Senhor Welby, acho que poderemos permitir-nos que oito dos melhores
atiradores que tenha entre seus homens disparem suas séries. Ver cair a quarta parte dos companheiros de um antes de começar um ataque é desalentador. Somente os
homens extraordinariamente valentes são capazes de continuar com semelhante perspectiva pela frente.
Quase imediatamente começou a diversão. O canhão giratório e o grande mosquete começaram a fazer disparos que se sucediam tão rapidamente como era possível; grandes
grupos de homens começaram a atravessar diagonalmente a ladeira que ficava entre o estaleiro e o acampamento e enquanto corriam davam gritos de alegria ou uivavam
como gibões. Pouco depois se ouviu a primeira descarga dentro do bosque, muito perto do limite. Jack teve que gritar para que o ouvissem.
- Senhor Seymour, um grupo está a ponto de chegar à parede norte para levar a prataria. Leve Killick, Bonden, os oito infantes da marinha escolhidos pelo senhor
Welby e a tantos marinheiros como necessite para formar uma linha ao longo do muro e fazer frente à situação. Enquanto isso, nós vigiaremos os que tentam nos entreter
para nos assegurarmos de que a situação não fique feia.
O falso ataque, o que pretendia distrair sua atenção, não se pôs feio, mas o real sim. Os membros do grupo que atacava de surpresa foram escolhidos por sua força
e coragem, e apesar das numerosas baixas que sofreram quando saíram de seu refúgio, correram pelos degraus do muro. Dali lhes atacou Killick, que cheio de ódio e
fúria os lançou pedras, junto com os infantes da marinha, todos os barqueiros do capitão e seu timoneiro, que estavam situados de ambos os lados dele. Uma e outra
vez, cada vez que um dyak tentava substituir a outro avançando com a lança preparada, faziam com que retrocedesse à ponta de pique, atravessavam-no com um sabre
ou o esmagavam com uma pedra de cinqüenta libras. Em pouco tempo já não restava nenhum que avançasse. Seymour, que estava nominalmente ao comando do grupo, teve
que bater-lhes nas costas para evitar que continuassem atirando pedras nos poucos homens malferidos que desciam com dificuldade por entre as rochas. E Killick ainda
permaneceu ali de pé um longo tempo, vermelho de ira e com um machado de abordagem na mão e um pedaço dentado de basalto na outra.
A diversão decaiu logo. Os homens que corriam diagonalmente de um lado para outro perderam energia; soou a última descarga; e o sol, cansado também daquele dia extraordinariamente
quente, começou a descer devagar pelo céu, de um intenso azul, em direção oeste.
- Apesar de tudo, senhor - disse Welby -, não acho que isto seja o final. O general perdeu homens muito fortes e não pode substituí-los. Ademais, não têm água...
Olhe como escavam ainda que não vão encontrá-la ali! Assim que não podem esperar. O general não pode esperar. Assim que tenham descansado um pouco, ordenará a todos
que nos ataquem de frente. Creio que é um tipo que luta de morte ou glória. Olhe como lhes arenga enquanto vai de um lado a outro. Oh, meu Deus, incendiaram a escuna!
Quando a negra fumaça se elevava com o ar, no acampamento se ouviram gritos de raiva, desespero, frustração e tristeza. Jack, elevando a voz, chamou o condestável.
- Senhor White! Senhor White! Saque as caronadas e carregue-as com as melhores balas que tenhamos. Seus homens têm cinco minutos, não mais, para raspá-las e deixá-las
o mais lisas possíveis. E prepare a mecha de combustão lenta.
Desta vez não houve manobras de distração. Subiram a ladeira primeiro a trote e depois correndo com fúria. Avançaram diretamente para as peças de artilharia sem
dar nenhum sinal de temor, mas sem nenhuma ordem, chegaram ao parapeito em ondas, os mais rápidos primeiro e muitos mais em pequenos grupos, de modo que não puderam
atravessar a massa de lanças e baionetas. Seu chefe chegou correndo na segunda onda, mas quase não podia ver nem recobrar o fôlego. Saltou por cima de um cadáver
e atacou ao marinheiro que tinha em frente dando golpes a cegas, mas caiu para trás com a cabeça partida em duas por um machado.
Foi uma luta encarniçada, de matar ou morrer, entre a poeira, o ruído de espadas e lanças ao chocar, gritos, gemidos, e às vezes uivos. Durante um período que pareceu
muito comprido, o inimigo não retrocedeu salvo para voltar a avançar. Os dyaks e os malaios tinham que lutar subindo a ladeira e contra inimigos protegidos por um
parapeito de moderada altura que obedeciam a chefes navais e militares competentes e de voz potente. Ademais, apesar de sua valentia, eram mais baixos e magros que
os ingleses, e em um dado momento, quando os que estavam no centro e na direita se retiraram para reagrupar-se e lançar um novo assalto, Jack Aubrey percebeu que
o rumo da batalha havia mudado e gritou:
- Senhor Welby, a carga! Tripulantes da Diane, sigam-me!
Todo o acampamento começou a avançar pelo parapeito dando vivas. O tambor redobrou e todos correram para frente. Depois do espantoso primeiro choque, os infantes
da marinha, por sua potência e sua perfeita ordem, abateram todos os homens que tinham na frente. Aquela foi uma derrota, uma derrota para os dyaks, que fugiram
para se salvar.
Os quase cem homens que ficavam corriam mais que os ingleses e, ao chegar à praia, entraram no mar e foram até o paraú nadando com rapidez, ágeis como nútrias.
Jack se deteve na margem ofegando e com o sabre pendurando da munheca. Enxugou o sangue dos olhos (sangue de algum golpe que não sentira) e olhou para a escuna,
cujas balizas se recortavam sobre as luminosas chamas e depois para os dyaks, que já estavam recolhendo âncora.
- Senhor Fielding - gritou com voz rouca -, vá ver o que se pode fazer para extinguir o fogo! Senhor White, artilheiros, repito, artilheiros, venham comigo!
Os que haviam saído incólumes voltaram a subir trabalhosamente, e Jack sentiu como nunca antes a carga de seu pesado corpo. A meio caminho do acampamento havia muitos
cadáveres amontoados e diante do parapeito havia muitos mais, mas Jack quase não se fixou nisso enquanto avançava para situar-se junto ao canhão de bronze de nove
libras. Bonden, que estava encarregado do canhão e corria mais rapidamente que ele, ajudou-lhe a saltar por cima do parapeito dizendo.
- Já recolheram a âncora, senhor.
Jack se voltou e viu que, de fato, o paraú orçava e tratava de que a proa formasse com a direção do desfavorável vento o menor ângulo possível. A maré estivera baixando
durante um tempo bastante longo para que o arrecife estivesse descoberto, e o paraú tinha que se aproximar do alto mar o máximo possível com as velas amuradas para
estibordo para poder dobrar o cabo oeste, diante do qual havia um horrível redemoinho provocado pela maré e por uma corrente em direção norte.
O condestável chegou um momento depois auxiliado por um ajudante sobrevivente.
- Há mais mechas em minha tenda, senhor - anunciou com uma voz que quase não se ouvia do outro lado do parapeito.
- Não se preocupe com isso, senhor White - Jack respondeu sorrindo. - Metade da primeira ainda falta ser consumida.
Efetivamente, ainda estava lá, ardendo dentro do recipiente metálico ao qual ninguém dera um chute nem havia tocado durante a batalha, apesar da confusão, e agora
a fumaça saía dela e atravessava o acampamento vazio.
- Que Deus nos ajude - sussurrou o condestável quando todos se agacharam para colocar a caronada dianteira. - Pensava que o combate ia ser muito mais longo. Quatro
graus lhe parece bem, senhor?
- Aponte bastante acima, condestável.
- Bastante acima, senhor - disse o condestável, dando meia volta mais no parafuso.
Durante um breve momento, a mecha produziu um som sibilante ao entrar em contato com o cevo e imediatamente a caronada disparou com estrépito e retrocedeu rangendo.
Todos os marinheiros olharam por baixo da fumaça e alguns puderam ver a bala descrevendo uma trajetória curva. Jack a observou com tanta atenção que só seu coração,
que batiu com tanta força que quase o deixou sem fôlego, reconheceu com alegria que a pólvora reagira bem. A direção era acertada, mas a bala caiu a vinte jardas
do alvo.
Jack se aproximou correndo do canhão de nove libras enquanto gritava ao encarregado da outra caronada:
- Quatro e meio, Willet! Dispare quando suba!
A caronada disparou um momento depois e voltou-se a ouvir um grande estrépito. Desta vez Jack não viu a bala, mas o penacho de espuma que se formou no mar, justo
diante do paraú, e notou que a direção era tão acertada como a primeira. Então subiu a alavanca para inclinar o canhão um pouco para a direita e disse:
- Preparados!
Depois aproximou a mecha do ouvido e, nesse mesmo instante, o timoneiro do paraú virou o quanto pôde o leme para esquivar-se da bala, mas levou o barco precisamente
para o lugar onde ela ia cair. Não saltou espuma para o ar e os marinheiros se olharam perplexos durante alguns momentos. Então os dois cascos se separaram, a grande
vela desabou e o barco se desintegrou. Todos os pedaços, espalhados por uma zona do mar de vinte ou trinta jardas, começaram a avançar com rapidez para a ponta oeste
e o terrível redemoinho.
- Por que dão vivas? - perguntou Stephen, saindo da tenda-hospital com as mãos cheias de sangue e com os olhos como bolinhas atrás das lentes dos óculos que agora
usava para as operações mais delicadas.
- Afundamos o paraú - respondeu Jack. - Pode ver os pedaços passando pela frente do cabo. Dentro de pouco chegarão ao redemoinho. Meu Deus, como se move! Nenhum
homem pode nadar ali. Pelo menos, não teremos temor de que venham reforços.
- Ante seus triunfos se mostra muito triste, não é verdade, meu amigo?
- Queimaram a escuna, sabia? E pelo pouco que vi, parece que não há esperança de salvar nem uma só baliza.
Fielding passou trabalhosamente por em cima dos cadáveres e do parapeito, tirou seu destroçado chapéu e disse:
- Senhor, felicito-lhe pelo estupendo disparo. Nunca tinha visto um tão extraordinário. Mas lamento ter que informar que apesar de que alguns marinheiros, por seu
zelo, sofreram queimaduras, não pudemos fazer nada para salvar a escuna e não restou inteira nem uma só baliza. Inclusive a sobrequilha ficou destruída, e, certamente,
também as pranchas do convés e o cúter.
- Sinto muito, senhor Fielding - disse Jack no tom de voz apropriado para fazer uma declaração pública, pois uns vinte marinheiros que estavam ao redor podiam ouvir-lhe.
- Estou seguro de que todos os marinheiros fizeram tudo o que puderam, mas já não era possível extinguir o fogo quando chegaram. Sem dúvida, eles espalharam breu
de proa a popa. Mas estamos vivos, e a maioria de nós nos encontramos em condições de cumprir com nosso dever. Ademais, dispomos de muitas das ferramentas do pobre
senhor Hadley e de madeira, e creio que encontraremos uma solução.
Tinha a esperança de que o tom de suas palavras tivesse parecido alegre e convincente, mas não estava seguro de que assim fosse. Como costumava ocorrer depois de
um combate, começava a sentir uma profunda tristeza. Até certo ponto, isso se devia ao contraste entre dois modos de vida. Na luta corpo a corpo não havia lugar
para o tempo, a reflexão, a inimizade nem a dor, a menos que o resultado deste último fosse a incapacidade. Tudo sucedia com grande rapidez: um dava rápidos cortes
e defesas com o sabre sem pensar, vigiava automaticamente a três ou quatro homens próximos e lhes cravava o sabre quando baixavam a guarda, dava gritos para prevenir
a algum amigo ou para que o inimigo retardasse um golpe. E entretanto a mente estava extraordinariamente lúcida e um, com uma espécie de furiosa exaltação, vivia
com intensidade o presente. Mas agora o tempo regressara com todo seu agoniante peso (o sustento do amanhã e do próximo ano, a ascensão a almirante, o futuro de
seus filhos), e também a responsabilidade, a enorme responsabilidade que tinha o capitão de um barco de guerra. Outra diferença residia na decisão; durante a batalha
os olhos e a espada tomavam decisões com inconcebível rapidez, pois não havia tempo para pensar antes de agir.
Por outra parte estavam as coisas desagradáveis que se deviam fazer depois de uma vitória, e também as tristes. Olhou ao seu redor buscando com a vista aos guardas-marinhas,
posto que a maioria dos homens já haviam subido a ladeira outra vez; mas como não viu a nenhum, chamou Bonden, o invulnerável Bonden, e lhe ordenou que perguntasse
ao doutor se achava conveniente que o visitasse.
- Sim, certamente, senhor - disse Bonden, e depois de vacilar um momento, esfregando o couro cabeludo, acrescentou: - Tem um buraco aí em cima que deveria ser examinado.
- Ah, sim! - exclamou Jack, tocando-se a cabeça. - Mas não tem importância. Agora vá embora.
Antes que Bonden regressasse, Richardson chegou coxeando e informou que os dyaks tinham cortado a cabeça não só do carpinteiro e de seu ajudante, como também de
todos os que haviam matado no terreno central e no mais baixo, pelo que alguns não podiam ser identificados. Depois perguntou se deviam subir os cadáveres, se os
companheiros que morreram junto ao acampamento tinham que ser separados de acordo com sua religião e o que deviam fazer com os nativos mortos.
- Senhor - disse Bonden com uma estranha expressão -, o doutor apresenta seus respeitos e lhe espera dentro de cinco minutos, com sua permissão.
Para cada homem cinco minutos têm distinta equivalência. Os de Jack Aubrey eram mais curtos que os de Stephen, e por isso entrou na tenda antes do tempo. Nesse momento
Stephen levava um pequeno braço para o monte de membros amputados e cadáveres de pacientes. O pôs sobre um pé destroçado e disse:
- Posso ver sua cabeça? Sente-se neste barril.
- De quem era esse braço? - perguntou Jack.
- De Reade - respondeu Stephen. - Acabo de amputá-lo pelo ombro.
- Como ele está? Posso falar com ele? Ficará bem?
- Se Deus quiser se curará - disse Stephen. - Se Deus quiser. A bala do canhão giratório o fez cair para trás e golpear a cabeça em uma rocha, assim que está completamente
aturdido. Sente-se no barril. Senhor Macmillan, traga água quente e a tesoura grande e chata, por favor.
Depois, enquanto limpava e cortava acrescentou:
- Naturalmente, não posso dar uma lista completa porque ainda não contaram todos os mortos e há que subir a alguns feridos, mas temo que será comprida. Os guardas-marinhas
sofreram muitos danos. O seu escrevente foi morto na carga fechada, e também o pequeno Harper; Bennett quase teve as entranhas arrancadas e, ainda que o tenhamos
costurado, duvido que chegue a amanhã.
Butcher, Harper, Bennett e Reade estavam mortos ou aleijados. Enquanto Jack estava sentado ali, com a cabeça inclinada diante da tesoura, da gaze e da sonda e com
as mãos juntas, as lágrimas caiam sobre elas sem cessar.
Passaram os primeiros dias tristes e esgotadores de enterros massivos (havia mais homens mortos, contando os de ambos os lados, do que vivos) e de visitas aos feridos,
quase todos homens bons e honestos cujos rostos havia se acostumado a ver durante a missão, que agora estavam macilentos, doloridos ou às vezes com uma infecção
mortal e jaziam ali em meio do calor e do espantoso e bem conhecido odor. Depois se celebraram funerais quando os que estavam em piores condições morriam, às vezes
um, dois ou mesmo três por dia. E tinham muito pouca comida. Stephen só matou uma pequena babirussa; não valia a pena atirar nos macacos que restavam; e dos poucos
peixes que se pescavam com vara nas rochas ou com rede, a maioria eram peixes sem escamas e de cor plúmbeo que nem mesmo as gaivotas comiam.
Na manhã depois da morte do último paciente da lista dos que corriam perigo, um dyak que suportara um corte depois de outro em sua perna gangrenosa com admirável
fortaleza, Stephen tardou em obedecer ao toque do pífano "Todos ao convés, todos para popa", que precedia a alocução que o capitão fazia aos tripulantes. Quando
chegou ao seu posto, Jack ainda falava das normas navais, do caráter permanente das missões, do Código Naval e coisas similares. Todos os marinheiros o escutaram
atentamente, com expressão grave e sensata, quando repetiu os pontos principais, especialmente os referidos à continuidade de seu pagamento, sempre de acordo com
sua classificação, e à compensação que receberiam se não se lhes dessem álcool. Permaneciam ali muito unidos entre imaginários costados, exatamente como se estivessem
a bordo da Diane, e analisando cada palavra. Stephen prestou pouca atenção porque ouvira a essência do discurso antes e, também, tinha o pensamento em outra parte.
Havia se afetuado ao dyak, que confiava totalmente em sua habilidade e suas boas intenções e só comia de suas mãos. Acreditara que poderia salvá-lo como ao jovem
Reade, encolhido agora em uma carreta com a manga vazia presa no peito, ou como a Edwards, que estava sozinho no lugar que costumavam ocupar o enviado e seu séquito.
- Mas agora, companheiros de tripulação - disse Jack com voz grave -, vou tratar de outro ponto. Todos ouviram falar do pote da viúva.
Nenhum oficial, nenhum marinheiro nem nenhum infante da marinha deu sinais de já ter ouvido falar do pote da viúva nem de saber o que significava.
- Bem - continuou o capitão Aubrey depois de uma pausa -, pois na Diane não ficava o pote da viúva, e com isto quero dizer que amanhã é o dia de Santa Fome.
Nos rostos dos marinheiros de barcos de guerra mais veteranos apareceram sinais de compreensão, alarme, desalento e desgosto. E Jack permaneceu silencioso um longo
momento enquanto sussurravam a explicação para os que seguiam sem compreender.
- Mas não é o pior dia de Santa Fome que já conheci - prosseguiu. - Se bem que é verdade que hoje receberão a última ração de grogue e a última pitada de tabaco,
ainda temos algumas bolachas e um barril de carne de cavalo de Dublim que não está muito estragada. Ademais, é possível que o doutor mate outra das gazelas da ilha.
E há outro ponto importante. Os oficiais e eu não vamos nos sentar em almofadas de seda para beber vinho e conhaque. O despenseiro dos oficiais e Killick juntarão
nossas provisões para reparti-las entre todos e as terão sob vigilância dia e noite, e, enquanto durem, todos terão a possibilidade de conseguir uma ração tirando
a sorte. Isso é o que vão fazer o despenseiro dos oficiais e Killick, tanto se gostarem como se não.
Estas palavras foram bem recebidas. Killick era bem conhecido pelo zelo com que guardava as provisões do capitão, inclusive a borra das mais velhas garrafas de vinho,
e o do despenseiro dos oficiais não era menor. Ambos fizeram um gesto de irritação e desaprovação, mas quase todos os marinheiros riram como não tinham rido desde
antes da batalha.
- Ademais, Deus ajuda a quem se ajuda. Ainda temos Neil Walker e outros dois homens classificados como ajudantes de carpinteiro; ainda temos muita lona para velas
e uma considerável quantidade de cabos; e podemos recuperar muitos dos pregos e chavetas das cinzas da escuna. Meu plano é construir um cúter de seis remos para
substituir o que se queimou, escolher uma tripulação entre os melhores marinheiros e um oficial para que o governe e enviar-lhes a Batavia para buscar ajuda. Eu
ficarei aqui, certamente.
Todas estas idéias expressadas de repente confundiram a audiência. Ouviu-se um burburinho geral de conformidade e inclusive aprovação, mas um homem, alçando a voz,
perguntou:
- Duzentas milhas em uma embarcação aberta quando o monção está a ponto de mudar?
- Bligh navegou quatro mil em um bote de vinte e três pés abarrotado de homens. Ademais, o monção não mudará até dentro de duas semanas, e mesmo um grupo de estúpidos
marinheiros de água doce poderia construir nesse tempo um cúter seguro para fazer uma longa viagem pelo mar. E por outra parte, qual é a alternativa? Permanecer
aqui sentados e ver morrer o último macaco de calda preénsil? Não, não. Mais vale um cachorro morto que um leão vivo, quero dizer...
- Três vivas ao plano do capitão Aubrey! - gritou inesperadamente um homem taciturno de meia idade e respeitado por todos chamado Nicholl.
Os marinheiros ainda davam vivas quando Stephen, com o fuzil debaixo do braço, foi andando até além dos enegrecidos restos da escuna no estaleiro. Ainda podia reconhecer-se
seu esqueleto, com suas elegantes curvas, e como havia chovido muito pela noite, perdera um pouco do odor acre que expelia no primeiro dia.
Seguiu caminhando pela praia para o oeste, com a intenção de subir pela vereda que usualmente tomava, pelas costas do campo de críquete. Mas depois de avançar um
pouco, viu algo movendo-se no mar; e como já estava muito acima da marca da maré alta, onde as mais fortes tempestades, como a que destroçara a Diane, deixavam grande
quantidade de despojos em que cresciam curiosas plantas, às vezes com assombrosa rapidez sentou-se comodamente no tronco de uma árvore à sombra das samambaias e
pegou a luneta de bolso. Tão logo como o enfocou, confirmou sua primeira impressão: tinha diante de si a cara enorme, insípida, de nariz quase quadrado e expressão
doce de um dugongo. Não era o primeiro que via, mas sim o primeiro nessas águas, e, sem dúvida, nunca pudera ver melhor a nenhum. Era um dugongo fêmea e jovem, de
uns oito pés de comprimento, e tinha uma cria que umas vezes se colocava junto ao peito com ajuda de uma barbatana, situava-se de maneira que as duas ficavam em
posição vertical no mar, e olhava para o vazio; outras comia algas marinhas que cresciam nas distantes rochas. Mas em todo momento era solícita com ela, tanto que
às vezes lhe lavava a cara, o que parecia uma tarefa absurda naquelas límpidas águas. Perguntou-se se sua presença e a de outras sereias que se viam muito mais longe
eram um sinal da iminente mudança de estação.
- Me alegro de que esse cúter seja ainda um projeto - disse, depois de refletir sobre o assunto. - Se não fosse assim, teria a obrigação de perseguir ao inocente
dugongo. Dizem que sua carne é excelente, como a da vaca marinha do pobre Steller, isto é, a pobre vaca marinha de Steller.
Pouco depois o dugongo mergulhou e foi se reunir com suas companheiras, que comiam no distante extremo do arrecife. Stephen pensou em se levantar, mas nesse momento
um ruído reclamou sua atenção.
"Juraria que é um javali buscando raizes na terra", disse, virando devagar a cabeça para a direita. Efetivamente, era um javali buscando raizes, a maior babirussa
que havia visto. Ofegava e grunhia amiúde enquanto dedicava toda sua atenção a um monte de tubérculos. Era um alvo perfeito e Stephen apontou o rifle muito devagar.
A babirussa era tão inocente como o dugongo, mas Stephen a matou sem escrúpulos.
Enquanto pendurava a babirussa em uma árvore com o moitão, pensou: "Aposto que pesa trezentas libras. Mãe de Deus, como ficarão contentes! Vou seguir a vereda por
onde chegou até onde possa para ver de onde saiu. Nunca houve um dia melhor para seguir veredas. Depois acho que vou dar-me o prazer de ir ver os vencelhos. Acho
que já não lhes guardo mais rancor e queria ver em que estado se encontram os ninhos vazios. Por desgraça, o pobre Reade nunca poderá entrar para pegar. Céus, o
que fazem o vigor da juventude e o otimismo frente a uma horrível ferida! Dentro de duas semanas estará correndo, e o contramestre, em troca, como é um homem de
meia idade e está deprimido, tardará muito mais em se recuperar de uma ferida muito menos grave". Pensava estas coisas enquanto seguia aquela vereda bem delimitada
e por fim chegou a um popular lamaçal na parte superior da ilha. Tempos atrás vira convergir naquele lamaçal uma dúzia ou mais de veredas, novas ou velhas, mas agora
só via uma procedente do nordeste. "Eu me desviarei aqui", decidiu ao chegar a uma árvore de onde havia matado um javali uma vez. Continuou subindo para aproximar-se
da borda da face norte do escarpado. Quando ainda estava longe do precipício, teve que rodear o que havia sido um charco durante a noite e agora era um espaço coberto
de lama. Junto à parte da borda mais distante pôde ver a pegada de um menino tão clara como era possível, mas notou que nenhum rastro levava até ela nem partia dela.
"OU esse menino é extraordinariamente ágil e saltou oito pés, ou um anjo deixou sua pegada na terra - pensou, depois de revistar os arbustos sem encontrar a explicação.
- Ademais, não temos grumetes tão pequenos na tripulação." Cem jardas mais adiante achou a solução do enigma. Perto da borda do precipício, onde ele se deitara com
a cabeça inclinada para abaixo para ver aquela estreita caverna, a caverna na qual iam descer a Reade, havia sete cestos cheios dos melhores ninhos e cuidadosamente
calçados com pedras. E caso isso não fosse bastante claro, havia um junco ancorado frente à costa e vários botes iam e vinham da pequena praia de areia.
Depois de permanecer sentado ali durante vários minutos, pensando muitas nas diversas possibilidades, ouviu vozes de crianças entre as árvores que ficavam mais abaixo.
Falavam em tom incômodo, brincalhão, desafiante ou depreciativo, tanto em malaio como em chinês. As vozes eram cada vez mais audíveis até que se ouviu um golpe seguido
por um grito de dor e vários lamentos de uma só vez.
Stephen desceu e debaixo de uma árvore alta encontrou quatro crianças: três meninas dando gritos de aflição e um menino berrando de dor e agarrando uma perna que
estava coberta de sangue. Todos eram chineses, estavam vestidos de forma muito parecida e tinham almofadinhas nos joelhos e nos cotovelos para escalar pelas paredes
das cavernas.
Voltaram-se para ele e pararam de gritar.
- Li Po disse que podíamos brincar quando enchêssemos sete cestos - queixou-se uma menina em malaio.
- Não dissemos a ele que subisse até o cume - interveio outra. - Não é culpa nossa.
- Li Po nos açoitará até que não possamos aguentar - disse a terceira antes de começar a lamentar-se outra vez.
A aparição de Stephen não os assustou, ele também vestia calça curta e larga, casaca aberta e um chapéu de aba larga e, também, tinha uma rara cor amarelada pois
tinha passado muito tempo ao sol. O menino, um pouco aturdido, deixou que lhe examinasse a perna sem opor resistência.
Depois de conter quase por completo a hemorragia com o lenço e de fazer o diagnóstico, Stephen disse:
- Fique tranqüilo e cortarei sete ripas.
Usou a faca de caça para fazê-las, e ainda que o tempo instava, obrigado por sua consciência de profissional, retocou-as antes de fazer tiras de sua fina casaca
para usá-las como vendas e cataplasmas. Trabalhava tão rapidamente como podia, mas as meninas, tranqüilizadas pela presença de uma pessoa adulta e competente, falavam
ainda mais rápido. A mais velha, Mai-mai, era a irmã do menino, e Li Po, o dono do junco, era o pai de ambos. Tinham chegado de Batavia para recolher um carregamento
de mineral de ferro em Ketaman, Bornéu, como faziam a cada estação quando o vento era favorável e o mar estava calmo. Haviam se desviado de seu rumo para ir à ilha
dos ninhos de pássaros. Quando eram muito pequenos deslizavam pelas cordas partindo de cima, mas agora não necessitavam delas porque podiam chegar por baixo metendo
estacas aqui e ali quando era necessário. Geralmente era muito fácil subir pelas ladeiras e os ressaltos sustentando um pequeno cesto com os dentes e enchendo os
grandes no alto. Só as pessoas delgadas podiam passar por alguns lugares. O irmão de Li Po, a quem os piratas dyaks haviam matado, tinha engordado muito quando tinha
quinze anos.
- Assim! - exclamou Stephen, fazendo o último nó devagar. - Acredito que isto servirá. Agora, Mai-mai, querida, deve descer imediatamente e contar a seu pai o que
aconteceu. Diga-lhe que sou médico, que curei a ferida de seu irmão e que vou levá-lo ao nosso acampamento, que fica na parte sul. Não é possível descê-lo até o
junco neste estado. Conte para Li Po que há cem ingleses em um acampamento fortificado perto do arrecife do lado oposto, e que nos alegraremos de vê-lo quando leve
o junco até lá. Agora corra como uma boa menina e diga-lhe que tudo sairá bem. As outras podem ir contigo ou vir comigo, como prefiram.
As outras preferiram ir com ele porque lhes atraía a novidade, não queriam ver a Li Po nesse momento e lhes parecia uma glória levar o rifle. Como a vereda era estreita
e suas pernas curtas, tinham que correr na frente de Stephen, que levava o menino com dificuldade, e falar por cima do ombro ou correr para trás e falar olhando
a parte posterior de sua cabeça. Mas era impossível que não falassem, pois tinham muitas coisas que comunicar e muitas que aprender. A mais delgada das duas, cujos
olhos eram formados por linhas curvas de uma perfeição que só se encontrava entre as crianças chinesas, queria que Stephen soubesse que sua melhor amiga em Batavia,
uma menina cujo nome significava Flor Dourada do Dia, tinha um gato holandês rajado. E depois disse que não duvidava que o velho cavalheiro tinha visto algum gato
holandês rajado. Depois perguntou se o velho cavalheiro queria que lhe contasse que plantas tinha no jardim e a cerimônia pelo noivado de sua tia Wang. Tudo isto
e uma relação das variedades de ninhos de pássaros com seus correspondentes preços duraram quase até que chegaram ao limite do bosque, e desde o acampamento puderam
ouvir-lhes muito antes de ver suas silhuetas.
Stephen, depois de deitar o menino em uma maca, cubrir-lhe a perna com um cesto e encarregar Ahmed que ficasse de seu lado para consolá-lo, e depois de que as meninas
se foram sozinhas para admirar as maravilhas do acampamento, exclamou:
- Oh, Jack! Quanto valor tem a tradição confucionista!
- Isso minha aia sempre dizia - disse Jack. - Permita-me que mande buscar sua bendita gazela antes de contar-me onde os encontrou e por que parece tão contente.
- Esta tradição, isto é, esta doutrina inculca nas crianças um infinito respeito pela velhice. Quando eu disse para aquela menina exemplar que corresse como uma
menina boa, levantou-se e, juntando as mãos diante do corpo, fez uma inclinação de cabeça e imediatamente passou a correr. Esse foi o momento decisivo, crítico:
ou tudo se estragava ou tudo saía bem. Se houvesse sido obstinada, rebelde ou desobediente, eu teria fracassado... O animal está do outro lado do campo de críquete,
em uma árvore que tem a metade enegrecida por causa de um raio e a outra verde. É assim como vou criar minha filha.
- E quer ter êxito, verdade? Ah, ah, ah! Bonden, Bonden, o doutor salvou nosso bacon outra vez! Salvou nosso bacon! Pegue um bom pau e vá com outros três homens
até a árvore fendida por um raio que fica junto à parte central do campo de críquete. Corra tão rápido como possa. - E voltando-se para Stephen acrescentou: - Pode
começar.
- Agora, senhor, prepare-se para se assombrar. Um junco com a bodega vazia estava ancorado diante da costa norte da ilha e as crianças desceram para terra para colher
os ninhos de pássaros comestíveis. Acho que o junco virá até aqui quando o vento for favorável, e é provável que seu dono e capitão nos leve de regresso a Batavia.
Esse garoto enfaixado é seu filho, e, ademais, tenho letras emitidas por Shao Yen, um banqueiro de Batavia que ele tem que conhecer forçosamente e cujo valor permitirá
pagar nossa passagem. E se não pedir uma quantia exorbitante, sobrará dinheiro para comprar uma modesta embarcação em que possamos comparecer ao nosso encontro em
Nova Gales do Sul ou chegar antes.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack. - Que idéia estupenda! - Juntou as mãos de golpe, como costumava fazer quando estava emocionado, e continuou: - Oxalá não peça uma
quantia exorbitante... meu Deus, comparecer ao nosso encontro...! Com este vento tardaríamos no máximo três dias para chegar a Batavia, e se Raffles puder nos ajudar
a conseguir algo que possa navegar a pouco mais de cinco nós, teríamos tempo de comparecer inclusive a um encontro muito anterior, teríamos tempo de sobra. Meu Deus,
foi um feito providencial que estivesse ali quando o menino quebou a perna!
- Talvez seria mais preciso dizer que a machucou. Não posso assegurar que tenha uma fratura.
- Mas está enfaixado.
- Nestes casos, todas as precauções são poucas. Que agradável é esta forte brisa!
- A condição de que o junco navegue bem de bolina, e estou seguro de que navega assim extraordinariamente bem, com este vento chegará aqui pela tarde. De que tamanho
é? - Ao ver o gesto estúpido de Stephen, acrescentou: - Quero dizer, que quantidade de água desloca? Qual é a tonelagem? Qual é o arqueio?
- Não sei. É possível que tenha dez mil toneladas?
- Que tipo mais raro és, Stephen! - exclamou Jack. - A Surprise não chega às seiscentas toneladas. Como é o bendito junco comparado com ela?
- Minha querida Surprise... - disse Stephen, mas imediatamente reagiu e continuou: - Não presumo ser um especialista em questões náuticas, sabia?, mas me parece
que o junco, sem ser tão comprido como a Surprise, é muito mais largo e está menos afundado na água. Estou seguro de que há lugar para todos, e para as posses que
nos restam.
- Com sua permissão, senhor - Killick os interrompeu. - O almoço está servido.
- Killick - respondeu Jack, sorrindo de uma forma que seria incompreensível para Killick se ele não houvesse estado escutando atentamente -, ainda não pusemos todo
o vinho no fundo comum, né?
- Oh, não, senhor! Hoje ainda há grogue para todos os marinheiros.
- Então, traga um par de garrafas de Haut Brion com a rolha comprida, as de 1789. E diga ao cozinheiro que prepare algo para aplacar a fome das meninas até que a
gazela chegue. - Se voltou para Stephen e disse: - O Haut Brion deve de ir bem com o cavalo de Dublim, ah, ah, ah! Não sou agudo? Você entendeu, não foi, Stephen?
Certamente que não quiz ofender ao seu país, que Deus bendiga. Só foi uma brincadeira.
Sem parar de rir, tirou a rolha, deu um copo para Stephen e levantou o seu, e então disse:
- Pelo magnífico, magnífico junco, o junco mais oportuno que já se viu.
O magnífico junco apareceu frente ao cabo antes que terminassem a segunda garrafa e imediatamente virou para barlavento e começou a avançar para o ancoradouro.
- Antes que tomemos o café, vou dar uma espiada na bandagem - anunciou Stephen.
E ao chegar à tenda-hospital disse:
- Senhor Macmillan, tenha a amabilidade de dar-me duas ripas de bom aspecto e muitas vendas.
Ambos tiraram as tiras da casaca e limparam bem o arranhão.
- Noto um entorse, senhor - informou Macmillan -, e também uma considerável intumescida em o maléolo, porém, onde está a fratura? Por que lhe enfaixou?
- É possível que tenha uma fissura quase imperceptível - respondeu Stephen -, mas devemos tratá-la com tanto cuidado como se fosse uma fratura permuta da pior tipo.
Ademais, devemos untar-lhe a perna com gordura de porco mesclada com argila de Camboja.
Quando regressou para tomar o café, observou que Jack Aubrey, apesar de suas brincadeiras, não havia passado por alto a necessidade de fazer uma demonstração de
força. Agora atrás do parapeito havia numerosos homens armados e todos eles eram visíveis desde o junco.
Portanto, Li Po subiu a ladeira em atitude humilde e submissa, acompanhado somente de um jovem que levava uma miserável caixa cheia de litchis secos e uma lata de
chá verde de má classe. Li Po rogou ao eminente médico que aceitasse esses insignificantes artigos que eram um pálido reflexo de seu respeito e sua gratidão. Depois
perguntou se podia ver ao seu filho.
O pequeno não pôde representar melhor seu papel. Gemeu e se queixou, moveu os olhos de um lado para outro dentro das órbitas em sinal de angústia, falou com uma
voz débil como a de um moribundo e, com petulância, tratou de esquivar uma carícia de seu pai.
- Não se preocupe - disse Stephen. - Seu sofrimento diminuirá enquanto estejamos navegando. Eu o atenderei dia e noite, e quando lhe tire a bandagem em Batavia,
verá que a perna estará completamente curada.
CAPÍTULO 3
Quando a Diane encalhou no arrecife que não aparecia nas cartas marítimas, levava de regresso a Batavia ao enviado britânico encarregado de negociar com o sultão
de Pulo Prabang, e cobria a primeira etapa de sua viagem de volta para a Inglaterra. O senhor Fox havia concluído com êxito as negociações de um tratado de amizade
com o sultão, apesar da inflamada concorrência dos franceses, e como estava desejoso de levá-lo a Londres, quando o tempo era aparentemente bom zarpou na pinaça
da fragata, junto com seu séquito, uma tripulação e um oficial, para percorrer as duzentas milhas que faltavam. Ao mesmo tempo deixou uma cópia oficial, firmada
e selada para seu secretário, David Edwards, tanto como razoável medida de precaução como meio para desfazer-se dele, já que a tinha cismado com o jovem e não desejava
estar em sua companhia durante a comprida viagem de Batavia para a Inglaterra.
Mas a pinaça a havia sido surpreendida pelo mesmo tufão que destruiu a fragata encalhada, e se o original e o enviado haviam desaparecido, a importância da cópia
era maior. O alegre e otimista jovem, que carecia de dinheiro e necessitava encontrar um trabalho fixo, tinha cifradas suas esperanças nela. Pensava que se chegasse
a Whitehall e dissesse ao ministro: "Senhor, aqui tem o tratado firmado com o sultão de Pulo Prabang" ou "Senhor, tenho a honra de trazer-lhe o tratado firmado entre
sua majestade e o sultão de Pulo Prabang", isso o conduziria a algo. Naturalmente, não à nomeação de cavalheiro ou barão, como Fox esperava, porém, sem dúvida, a
algum posto de pouca importância no Governo, talvez adido de alguma das legações menores e remotas ou vice-legado da Junta do Forro Verde. Era um homem honorável
e ignorava que a carta que Fox havia adjuntado à cópia estava envenenada, pois nela falava mal de quase todos os que iam a bordo da Diane e especialmente de seu
secretário; contudo, Stephen, que por ser agente secreto vivia conforme um código diferente, conhecia muito bem seu conteúdo.
Edwards, guiado por seu senso do dever, pelo afeto que ainda sentia por seu chefe, seu honesto interesse e tudo o que era apropriado, havia envolvido o tratado em
um pedaço de linho e depois em um pedaço de seda coberto de cera, e depois o havia metido em um estojo. Sempre levava o estojo no peito, e agora, estando junto com
Stephen na alta popa do junco de Li Po olhando para trás, deu-se umas palmadinhas no peito e, ao ouvir o som apagado do cartão, disse:
- Às vezes me parece que este documento é maldito. Esteve em um naufrágio e quase chegou a afundar; sofreu o ataque dos dyaks e esteve a ponto de ser queimado; e
agora está em perigo de ser apreendido por piratas, pelo que se perderão irremediavelmente todos os nossos esforços.
- Não há dúvida de que este espetáculo é capaz de gelar o sangue nas veias de qualquer homem - sentenciou Stephen, olhando o temível paraú que avançava velozmente
pela esteir do junco, navegando com o vento do sudeste em contra e ambos balancins brancos de espuma roçando o mar.
Era temível porque, obviamente, era um barco pirata, e muito mais rápido que o junco, mas não era muito perigoso: era pequeno, não levava a bordo mais que cinqüenta
homens muito apertados e não tinha nenhum canhão.
- Apesar de tudo - acrescentou -, acredito que se largará, como diria o capitão Aubrey, tão logo como ele e o senhor Welby tenham alinhado os infantes da marinha
nos costados. Ademais, Mai-mai, que sabe mais dos marinheiros dyaks e dos piratas em geral que doze de nós juntos, assegurou-me que é simplesmente um pequeno paraú
de Karimata, e está assombrada de que navegue tão confiante porque isto é território de Wan Da. Quando ele não está caçando nem de serviço no palácio, navega de
um lado para outro pelo estreito e cobra tributos para quem aceitou sua proteção e afunda ou queima os barcos dos outros.
Por fim os infantes da marinha subiram pesadamente, com suas casacas vermelhas, suas brancas bandoleiras e seus brilhantes mosquetes, aptos a participar em um desfile
em terra. Alinharam-se junto à borda, junto a todas as bordas, e o capitão Aubrey gritou para Stephen:
- Por favor, diga-lhe que vire para bombordo!
Ouviram-se vários gritos em falsete dando ordens em chinês e depois o junco descreveu uma suave curva que lhe permitiu mostrar seu esmagador armamento, que incluía
duas caronadas. Depois de contemplá-lo durante um momento, os piratas viraram e se afastaram com rapidez navegando para o norte, em busca de outra presa mais fácil.
- Senhor Welby - disse Jack -, salvaria algumas vidas se ordenasse seus homens romperem filas imediatamente. E permita-lhes que tirem as meias.
Trocou vários sorrisos e inclinações de cabeça com Li Po e depois disse a Stephen e a Edwards:
- Sinto muito ter deixado que tremessem de medo tanto tempo, mas a construção do junco é tão diferente com as que estamos acostumados a ver que os pobres homens
não podiam encontrar suas coisas. As botas estavam em uma bodega; a roupa, em outra; as baionetas, separadas das bandoleiras; e o calcário no porão de popa, junto
com a pólvora. Acreditariam, cavalheiros, se lhes dissesse que este barco tem nada menos que seis porões separados? E quando digo separados quero dizer divididos
entre si por um anteparo impermeável.
Nesse momento seus oficiais subiram em grupo a escada e chegaram ao curioso castelo de popa ou pequena plataforma para o qual não havia nenhum termo no vocabulário
da Armada Real. Olharam ao seu redor com a mesma expressão de assombro que geralmente põem os homens do interior quando estão a bordo de um barco de guerra.
- Senhor Fielding, não tenho razão ao dizer ao doutor que há nada menos que seis porões separados?
- Esse é um cálculo moderado, senhor - respondeu Fielding. - Richardson e eu contamos sete, e o oficial de derrota, oito, assim que vamos fazer outro percurso. Os
guardas-marinhas dizem que contaram um número de dois dígitos.
- Mai-mai, querida - disse Stephen assomando-se em um gradeado abaixo do qual se via as duas meninas brincarem de um jogo similar à amarelinha -, seria tão amável
de mostrar a estes senhores todos e cada um dos compartimentos do junco? Estou seguro de que lhe darão uma bolacha de barco inteira para você sozinha. - As meninas
adoravam as bolachas de barco, apesar de velhas, e não podiam acreditar que em tempos normais dessem uma libra aos marinheiros todos os dias úteis.
- Esta forma de construir um barco é estranha - disse Jack -, mas bem sabe Deus que tem suas vantagens. Se a Diane tivesse estes anteparos, agora estaria navegando.
Depois seguiu falando das manobras que se poupavam e da solidez e da flexibilidade, que eram maiores que as que outras estruturas proporcionavam, mas se interrompeu
ao notar que seu interlocutor punha cara de não entender nada.
- Tenho que curar o menino - Stephen se desculpou. - Ali à direita há outro pelicano.
Além de ter que revisar as ripas e voltar a pôr no menino o chamativo bálsamo violeta debaixo do atento olhar de seu pai, tinha que fazer algo realmente sério, uma
ronda em companhia de Macmillan, a quem, para sua surpresa, encontrou bêbado. Era comum que nos barcos de guerra os homens estivessem um pouco bêbados depois do
almoço, e nesse barco ficavam mais que o usual, pois o grogue estava mesclado com a aguardente de palma de Li Po, uma bebida alcoólica quase duas vezes mais forte
que a que haviam tirado da Diane depois que o contador a aumentasse jogando-lhe água de chuva e um pouco de vitríolo. E Macmillan, certamente, havia comido no camarote
dos guardas-marinhas ao meio-dia. Apesar disso, Stephen se assombrou porque Macmillan geralmente ficava sóbrio. Inclusive agora mantinha perfeitamente o equilíbrio
e punha bem as vendas, mas sua língua natal, o escocês, com suas curiosas interrupções glóticas, sons aspirados e fortes erres, interferia no inglês que costumava
falar. Ademais, atuava com maior segurança e estava mais loquaz que de costume.
- Passei a noite toda acordado e de repente compreendi por que entalou a perna do menino - disse. - Ah, ah! Deve de ter pensado que eu era um tonto.
- Não, em absoluto - respondeu Stephen. - Tem uma deformação congênita na canela que talvez tenhamos que cauterizar para evitar problemas no futuro. Notou?
- Sim, notei. Minha mulher tinha uma igual, mas em cima do joelho.
Encontravam-se em um lugar quase privado, um lugar que servia como sótão do capitão e ambulatório, e Stephen, que sinceramente apreciava e inclusive sentia afeto
por seu ajudante, pensou que devia dizer:
- Não sabia que era casado, senhor Macmillan.
Macmillan tardou um pouco em falar porque estava muito ocupado pegando os comprimidos, o gesso, as poções e as vendas com seu obsessivo perfeccionismo, e quando
por fim começou, fez como se já tivesse respondido e essa fosse a continuação da resposta.
- Pensava que uma esposa era uma pessoa a quem se podia contar seus sonhos, mas um dia ela me jogou na cara as fatias de bacon que estava fritando na frigideira
e gritou: "Ao diabo com seus malditos sonhos!" e partiu dando batendo a porta. - Então fechou o estojo de remédios, repetindo o mesmo movimento de sempre com a chave,
e prosseguiu: - Nunca voltei a vê-la.
Em um parêntese contou que viviam no andar mais alto de um edifício em Canongate e depois, em um tom de voz diferente, acrescentou:
- Eu não era um bom esposo para uma jovem tão alegre como ela. De menino sonhava com velas que se dobravam debaixo do sol até que chegavam a tocar a prateleira;
quando já era um homem, tinha sonhos muito parecidos, como, por exemplo, que estava apontando uma pistola com gesto triunfal e o canhão se dobrava, se dobrava...
Mais lá de várias cobertas e várias bodegas Stephen ouviu o tambor tocar Roast Beef of Old England para convocar aos oficiais para o almoço.
- Desculpe-me, Macmillan - Stephen o interrompeu-, mas o capitão é muito estrito quanto à pontualidade.
Nesse dia, em lugar de rosbife havia restos da babirussa, alguns cozidos ao estilo inglês e outros ao estilo chinês, uma pequena variedade de pratos javaneses e
a melhor sopa de ninho de pássaro que um homem que não fosse o imperador podia tomar em sua vida.
- Acho, cavalheiros - disse o capitão dois minutos depois que brindaram ao rei -, que estamos orçando. Doutor, permitiria que Ahmed subisse até o convés para saber
o que se passa?
Ahmed regressou em um momento e, fazendo uma inclinação de cabeça, explicou em tom de desaprovação, mas conciliatório, que estavam detendo o junco, soltando as velas
para permitir a aproximação de um barco pirata com o dobro do tamanho do junco, e que Li Po lhe havia dito que não era possível nem desejável fugir e que poderia
ser fatal.
- Saímos da frigideira para o fogo - disse Edwards a Stephen quando estavam sobre os cabos aduchados, justo atrás de Jack e seus oficiais, olhando o paraú extraordinariamente
grande que estava por barlavento e a canoa que se aproximava deles.
- Com sua permissão, senhor posso subir nos mesmos cabos que o senhor? - perguntou Reade em voz baixa.
- Certamente que pode, senhor Reade! - respondeu Stephen. - Dê-me a mão. E, pelo amor de Deus, tenha cuidado com esta madeira para que o toco não bata nele, porque
me partiria o coração ver estragada uma união tão perfeita. - Voltou-se de novo para o secretário e continuou: - É uma assombrosa figura retórica, senhor Edwards,
porém, se me perdoa, não muito exata. Seria melhor dizer "grelha", pois os malaios sempre assam na grelha os seus prisioneiros cristãos, isto é, a todos os que não
crucificam. Pode ler muitas coisas sobre este assunto no livro de Pére du Halde.
- Acho que se não fosse por este tratado, estaria muito disposto a apostatar - disse Edwards.
A canoa se abordou com o junco e seu capitão e dois subordinados foram levados à imitação de portaló, onde Li Po e seus companheiros os receberam com uma profunda
reverência. Quando Li Po pronunciou as primeiras palavras, o capitão olhou com assombro para os marinheiros ingleses, para os infantes da marinha (agora vestidos
com velhas calças e camisas), aos oficiais e finalmente para Stephen.
- Wan Da, meu amigo, como está? - perguntou Stephen. - Sem dúvida, terá reconhecido ao capitão Aubrey e a seus respeitáveis oficiais, e também ao senhor Edwards,
que guarda o valioso tratado.
Indubtavelmente, os reconhecera, e disse que ficaria encantado de tomar café com o doutor Maturin e o capitão Aubrey tão logo seus subordinados tivessem terminado
seu trabalho, que consistia em recolher cento e vinte e cinco moedas de prata e três cestos de ninhos de pássaro como pagamento pelo pedágio. Posto que Li Po, desde
que vira aquele paraú tão bem conhecido, estivera reunindo com cuidado as moedas, escolhendo as menos valiosas e mais duvidosas que tinha em sua cabine, a operação
não durou muito. Mas durante este tempo, ainda que foi breve, Stephen pôde informar-se por Wan Da de várias coisas sobre a fragata francesa Cornélie, já pronta em
Pulo Prabang para navegar mas ainda sem um mínimo de provisões, que os franceses faziam grandes esforços para conseguir, e essas coisas lhe pareceram suficientes
para declinar um convite em nome de Jack, a quem disse em um aparte:
- Escute, meu amigo, nos convidaram para ir ao outro barco, mas para você isso só significaria ficar ouvindo falarmos por longo tempo, um tempo que poderia alongar-se
devido à tradução. Eu lhe contarei o principal quando regressar.
Assim, foi sozinho ao outro barco.
- Sim - disse Wan Da, conduzindo Stephen até uma fila de almofadas -, está pronta para navegar. Já se encontra na baía; todos os navegantes experimentados aconselharam
aos franceses que passem pelo estreito de Salibabu nesta época do ano e eles juram que isso é o que farão assim que possam carregar provisões suficientes para chegar
até ali. E estão conseguindo bastantes coisas. Naturalmente, não têm dinheiro nem crédito, mas trocaram seus seis canhões de nove libras, certa quantidade de balas
e metralha, vinte e sete mosquetes, duas correntes de âncora, uma âncora e uma âncora pequena por comida, principalmente sagu. Estarão fartos do sagu muito antes
de chegarem ao estreito de Salibabu, ah, ah, ah!
- O senhor realmente acredita, senhor Wan Da, que a desesperada tripulação de um barco bem armado pode limitar-se a viver de sagu?
- Não se pode encontrar um barco mais débil em algum canto do mar. Os tigres necessitam saciar-se. Porém, como lhe dizia no junco, seu problema é a pólvora. O condestável
era um homem negligente e já havia vários barris estragados pouco depois de chegarem; depois, a chuva caiu muito quando desatou o tufão, o mesmo que afetou aos senhores.
Causou-me muita tristeza saber o que lhes ocorreu - acrescentou, colocando a mão no joelho de Stephen. - Assim que toda a que tinham na costa se empapou. Agora o
enviado francês, o capitão e todos os oficiais hão reunido seus anéis, relógios, accesórios, os talheres e objetos de prata, como as fivelas dos sapatos, fechaduras
e dobradiças, para conseguir uma quantidade de dinheiro com que comprar tantos barris ou meios barris como o sultão lhes permita.
- Esse é um monopólio da coroa, claro.
- Oh, sim! Com excessão da pólvora que usam os chineses para os fogos de artifício. Não sei que quantidade os franceses puderam obter secretamente deles, mas não
creio que seja muita, e além de ser pouca terá força escassa.
- Que opina o sultão?
- Não se preocupa. Como Hafsa está em um estado de gestação avançado, comprou em Bali uma concubina, uma encantadora criatura de pernas compridas que parece um garoto
e que, conforme dizem, é perversa. - Wan Da esteve alguns momentos pensando e rindo para seu interior e depois sentenciou: - Está obcecado por ela e larga tudo nas
mãos do vizir.
Stephen conhecia bem a Wan Da. Haviam caçado juntos e Wan Da agira como intermediário quando Stephen comprou o favor do governo com letras emitidas por Shao Yen.
Depois de refletir alguns momentos, pegou outra dessas letras com o bem conhecido selo do banqueiro chinês e disse:
- Wan Da, por favor, tenha a amabilidade de averiguar se isto pode persuadir ao vizir de que se oponha à venda de pólvora aos franceses. Diga-lhe que poderiam usá-la
para atacar Pulo Prabang, em vingança por não ter firmado o tratado com eles, e também apoderar-se do dinheiro do subsídio inglês e do tesouro real e violar as concubinas.
O senhor não deve nada aos franceses. Já cumpriu a sua palavra de protegê-los. O que lhes ocorra longe (por exemplo, no remoto estreito de Salibabu), não é assunto
seu. De toda forma, como bem sabe, o que vai suceder já está decidido, o que está escrito, está escrito.
- Muito verdade - respondeu Wan Da. - O que está escrito, indubtavelmente, está escrito. Seria uma bobagem negá-lo.
Mas não parecia muito decidido nem convencido, e quando cogía a cafeteira para voltar a se servir, sorriu forçadamente.
- Recorda-se do rifle de Fox, o que se chamava O Xale? - perguntou Stephen depois de tomar outra xícara de café e de fazer um comentário sobre o urso apicultor.
A expressão de Wan Da se mostrou alegre ao recordá-lo.
- O que tinha a cabeça de um cisne no ferrolho?
Stephen assentiu com a cabeça e disse:
- Agora é meu. Far-me-ia a honra de aceitá-lo como prova de amizade? Eu o entregarei aos tripulantes do bote quando me levem de regresso ao barco. Agora, amigo Wan
Da, tenho que deixar-lhe.
- Sua excelência, um dos grandes juncos locais acaba de chegar ao porto carregado até os topes de envergonhados marinheiros britânicos.
- São de alguma das Companhias das Índias?
- Oh, não, senhor! - Pelo o que se pode ver, apesar de sua sujeira, são brancos; ou bastante brancos. Jackson os observou com a luneta e pensa que pertencem ao barco
corsário de Mauricio que zarpou no mês passado.
- Malditos sejam! Senhor Warner, faça todo o necessário para que se alojem nas barracas da cavalaria, que estão bastante limpas. E pode pedir ajuda ao major Bentinck.
O governador voltou a se ocupar de sua orquídea. Era uma epifita que estava colocada em um suporte alto de modo que o conjunto de suas quase cinqüenta flores brancas
(de um branco purísimo com o centro dourado) pendurava para o lado próximo ao cavalete e quase roçava o relógio, um raro relógio pelo qual media seus momentos de
ócio. Preocupava-se muito com a exatidão das coisas como para trabalhar rapidamente, e só havia pintado dezenove quando o secretário regressou e anunciou:
- Desculpe, excelência, mas há um tipo do junco que insiste em ver-lhe. Conforme diz, possue documentos que só entregará ao senhor pessoalmente. Diz que é médico,
mas não usa peruca e não se há barbeado em uma semana.
- Ele se chama Maturin?
- Envergonha-me dizer que não ouvi seu nome, senhor, porque estava feito uma fera quando cheguei ao saguão. É um homem feio, baixo, de compleição débil e de tez
pálida.
- Diga-lhe que entre e cancele meus encontros com o adido Selim e o senhor Pierson.
Então pôs cuidadosamente o cavalete, as aquarelas e a orquídea de um lado, apertou o gasto botão do relógio e quando a porta se abriu, avançou para ela apressadamente
exclamando:
- Meu querido Maturin, quanto me alegro de ver-lhe! Nós lhe dávamos por perdido. Espero que esteja bem.
- Perfeitamente bem, obrigado, governador, só um pouco agitado - respondeu Stephen, cujo rosto, em verdade, não estava amarelado como era habitual. - O sargento
me ofereceu quatro peniques para que me fosse.
- Sinto muito. Quase todas as pessoas foram trocadas. Mas sente-se, por favor, e tome um pouco de laranjada. Aqui tem uma jarra muito fria. E agora conte-me o que
se passou em todo este tempo.
- Fox teve êxito nas negociações do tratado. Imediatamente a Diane zarpou para chegar ao encontro que tinha diante das Falsas Nantunas. O outro barco não apareceu,
e Aubrey, depois de esperar o tempo estipulado, pôs rumo a Batavia. Durante a noite, a fragata encalhou em um arrecife que não figurava nas cartas marítimas quando
havia maré viva. O mar estava bastante calmo e o acidente não causou nenhum desastre nem, certamente, um naufrágio; contudo, foi impossível desencalhá-la apesar
dos enormes esforços realizados e tivemos que resignar-nos a esperar a seguinte maré viva que se formaria com a mudança da lua. Mas o senhor Fox pensou que não devia
perder tempo e zarpou rumo a Batavia com seu séquito no mais sólido dos botes da fragata. O bote foi açoitado pelo mesmo tufão que destruiu a Diane enquanto permanecia
no arrecife, pelo que suponho que se terá perdido. Não teve notícias dele?
- Nenhuma em absoluto. E não acredito que pudesse tê-las, pois esse tufão foi tremendamente destruidor. Dois barcos que fazem o comércio com as índias ficaram desmantelados
e muitos, muitos barcos do país se encheram de água e afundaram. Não há esperança possível de que uma embarcação aberta tenha se salvado.
Depois de uma pausa Maturin disse:
- Ele deixou uma cópia oficial com seu secretário, o senhor Edwards, como precaução. Estou com ela aqui - acrescentou, entregando-lhe uma pasta. - Certamente que
era um dever e um privilégio de Edwards trazê-la, mas o pobre jovem está prostrado por causa da disenteria e, para não perder tempo, pediu que lhe entregasse e lhe
apresentasse seus respeitos.
- Muito correto de sua parte.
Raffles tirou o envelope da pasta e perguntou:
- Permite-me?
- Certamente!
- Nenhum enviado já conseguiu melhores termos - disse depois de sua leitura -, parecem ditados pelos ministros. - Apesar disso, não parecia totalmente satisfeito,
e depois de ter olhado inquisitivamente para Stephen, acrescentou: - Mas há uma carta adjunta.
- Isso mesmo - confirmou Stephen. - Eu a li para ver se nela se revelava minha participação na operação, para não dizer que me atraiçoava. Algo estranho me fez supor
que era possível.
- Pelo menos não fez isso - disse Raffles -, mas a carta é uma violenta e injuriosa denúncia. Pobre Fox! Eu via isto acontecendo há vários anos, mas que chegasse
a tal extremo... talvez não o creia, Maturin, mas de jovem era uma excelente companhia. É terrivelmente injuriosa - repetiu, olhando a mal-intencionada carta com
pesar.
- É tão injuriosa que estive tentado de destruí-la.
- O senhor Edwards conhece o conteúdo da carta?
- Não, o pobre jovem não sabe. Tem todas suas esperanças postas na entrega do tratado, com o que isso implica em Whitehall.
- Compreendo, compreendo. Pode assegurá-lo, verdade, Maturin?
- Certamente!
- Se se fizesse pública, destruiria a boa reputação de Fox. Todos seus amigos lamentariam extraordinariamente... - Então viu a sua mulher passar pela frente da porta
de vidro com luvas de jardinagem e disse: - Olivia, querida, aqui está o doutor Maturin, que regressou de sua viagem junto com a maioria de seus companheiros.
- Senhora - disse Stephen -, peço perdão humildemente por aparecer neste estado, com estas calças, com o cabelo sem empoar e isto que quase se poderia chamar de
barba. Ainda que o capitão Aubrey considerou que não devia vir, que desprestigiaria a Armada, desprezo seu conselho. Nem ele nem nenhum de seus homens porão um pé
na costa até que estejam arrumados como para passar pela inspeção de um almirante. Tem que compreender, senhora, que viajamos em um sujo junco empregado geralmente
para transportar minério de ferro, que é uma importante fonte de sujeira. Como nossa roupa está guardada em múltiplos compartimentos, o capitão tardará em torno
de uma hora antes de ter a honra de visitar-lhes, mas me há dito que entretanto lhes apresente seus respeitos.
A senhora Raffles sorriu. Expressou a alegria que lhe produzia voltar a ver o doutor Maturin, e anunciou que imediatamente mandaria um mensageiro para convidar ao
capitão Aubrey e seus oficiais para almoçarem nessa tarde e pediu licença e saiu.
- Bem - disse Raffles quando ambos se sentaram de novo -, quer me dizer como o tratado foi obtido?
- Desde logo, influíram muitos fatores: o subsídio, os argumentos que deu Fox e outros. Mas um foi o fato de seu banqueiro e o amável Van Buren me apresentar aos
intermediários apropiados, e pude ganhar assim o favor da maioria dos membros do gabinete.
- Confio em que não suporá que o Governo lhe reembolsará mais de um décimo dos gastos. E somente o fará depois de sete anos de impertinente insistência.
- Não. Eu me permiti o luxo de fazê-lo principalmente para defender uma boa causa, mas tenho que admitir que também por um veemente desejo de derrotar a Ledward
e ao seu amigo.
- Oh! E o que lhes aconteceu?
- Morreram em um distúrbio depois de perder seu prestígio na corte.
- Que Deus lhes perdoe.
- Posto que os franceses quase não tinham dinheiro, pois Ledward o gastara jogando, não tinha concorrência, assim que o luxo não foi tão caro. E agora quero permitir-me
outro: a compra de um mercante mediano que possa navegar velozmente.
- Então, não tem intenção de regressar à Inglaterra em algum dos barcos que fazem o comércio com as índias?
- Absolutamente nenhuma. Não lhe falei do encontro que temos com... com outro barco nestas águas ou suas proximidades, e de que temos que regressar passando por
Nova Gales do Sul?
- Sim, mas pensei que já tinha passado o momento.
- Não, porque se previram várias possibilidades. Também, em confiança, direi que é possível que nos encontremos com a Cornélie.
- Não seria necessário nesse caso um barco de maior potência e, portanto, fazer um considerável gasto?
- Sem dúvida, é necessário fazer um considerável gasto, mas me resta bastante dinheiro depositado nas mãos de Shao Yen, e os presentes que fiz foram muito pequenos.
E se isso não for suficiente, sempre posso trazer dinheiro de Londres. - Fez uma pausa com estranheza e depois continuou: - Parece triste, senhor. Tem, se me permite
dizê-lo, uma expressão triste e desconcertada.
- Bem, para lhe ser sincero, Maturin, devo confessar que estou triste e desconcertado. Não há cartas pessoais para o senhor nem para Aubrey, provavelmente porque
as levaram para Nova Gales do Sul, mas tenho más notícias para lhe dar. Não me disse que trocara de banco porque não estava satisfeito com o que tinha?
- Isso mesmo. Só havia ali um monte de porcos ignorantes, mal-humorados e ingratos.
- E elegeu o banco de Smith e Clowes para substituí-lo, verdade?
- Exatamente.
- Então, sinto muito em lhe dizer que o banco de Smith e Clowes suspendeu os pagamentos. Está na bancarrota. É possível que pague pequenos dividendos aos credores,
mas até agora não há nem a mais remota possibilidade de que o senhor possa sacar dinheiro.
Nesse momento, Stephen lembrou claramente o escritório do advogado de Portsmouth onde se redigiu o documento em que pedia ao seu banco que transferisse tudo o que
possuía para o banco de Smith e Clowes. Também lá se escreveu a procuração que outorgou a sir Joseph Blaine, que também era o executor de seu testamento. O advogado
que redigiu o documento era muito competente e estava acostumado a enfrentar-se a estratagemas, fraudes e má fé. Era um velho empoeirado que desfrutava muito com
seu trabalho e mastigava com suas desdentadas gengivas enquanto a pluma deslizava sobre o papel. A empoeirada habitação tinha as paredes cobertas de livros, para
usar como referência mais que por prazer, e a empoeirada janela dava para uma parede, de cujo canto pendurava uma lamparina que iluminava tenuamente o escuro teto,
e a sombra de uma gaivota que passou pela frente se projetou sobre aquela desordem.
- Aqui tem, senhor - havia dito o advogado. - Se fizer cópias, e em assuntos como estes um documento autógrafo é sempre melhor, desafio ao homem mais polêmico, crítico
e sabichão do reino a superá-lo. Não esqueça de firmar os dois documentos e mandá-los a Sir Joseph com o correio da tarde. Não selam a saca até as cinco, pelo que
terá tempo para fazer duas cópias com letra pequena e embarcar antes que a maré mude.
Quase não pasarra um instante em recordar tudo aquilo, incluído o pequeno discurso que com voz escandalosa o advogado deu, pois agora, ao ouvir Raffles, parecia
que não se havia perdido nem uma palavra.
- Mas por outra parte, alegra-me dizer-lhe que tenho uma notícia menos desagradável para dar-lhe, uma notícia que de certa forma compensa a anterior. Faz pouco tiramos
da água uma escuna holandesa de vinte canhões que, por causa de uma infecção, foi afundada de propósito há vários meses e agora é tão estanque e está em tão boas
condições como no dia que a lançaram n’água. Se estivéssemos no terraço poderia vê-la com uma luneta. Encontra-se justo em frente da ilhota próxima ao estaleiro
da Companhia das índias holandesa. Como lhe digo, não é mais do que uma embarcação de vinte canhões, assim que não pode enfrentar a Cornélie, mas pelo menos lhes
permitirá comparecer ao encontro.
- O senhor me surpreende, governador - disse Stephen. - Estou surpreso e contente.
- Fico alegre - respondeu Raffles, olhando-lhe desconcertado.
- Permite que eu vá comunicar a boa nova a Aubrey? Eu o deixei muito aflito, examinando cuidadosamente os inumeráveis livros e documentos da Diane que deve apresentar
ao oficial de marinha de maior patente daqui. Está em um mar de confusões, pois quando os dyaks nos atacaram na ilha, perdeu o contador e seu escrevente.
- Oh, Maturin, não me disse nada disso!
- Posso contar muito pouco sobre as batalhas. Geralmente, não as vejo nem participo delas. Nesta precisamente estive na tenda-hospital quase todo o tempo e nem ao
menos cheguei a tomar parte na carga final. Foi uma luta ensangüentada, e ainda que eles tenham matado ou ferido a muitos de nossos homens, nós os aniquilamos. Mas
o capitão lhe contará com precisão. Moveu-se de um lado para o outro do campo de batalha como se aquela fosse sua terra natal. Sem dúvida, o senhor saberá como rugem
os filhotes de tigre.
- Sem dúvida!
- Esse é o ruído que ele faz quando empreende uma batalha. Permite-me ir buscá-lo agora e trocar minha roupa por outra mais apropiada para sentar-me à mesa da senhora
Raffles?
- Certamente! Minha falua lhe levará ao barco imediatamente e trará a todos nossos convidados. Por favor, diga-me quantos oficiais sobreviveram.
- Todos menos o contador, o escrevente e um guarda-marinha, ainda que Fielding ficou coxo para o resto de sua vida, Bennett, um ajudante de oficial de derrota, ainda
encontra-se em um estado delicado, e Reade perdeu um braço.
- O garoto de cabelo cacheado?
- Não. O garoto de cabelo cacheado morreu.
Raffles moveu de um lado para outro a cabeça, mas como não era possível fazer nenhum comentário apropriado, limitou-se a dizer:
- Mandarei buscar a falua. - E depois de uma pausa acrescentou: - Com relação à apresentação dos livros da fragata que Aubrey pensa fazer a um oficial superior,
não há nenhum aqui, o mais próximo está em Colombo. Por essa razão tenho tanta liberdade para dispor da escuna holandesa. Além disso, permita-me dizer que conheço
casos em que se hão perdido todos os livros e documentos de um barco em um naufrágio ou devido ao ataque do inimigo e as autoridades não se alteraram; em troca,
em casos em que faltava um só certificado de aduana, um recibo ou uma firma em um dos muitos, muitos livros, houve uma interminável disputa por carta e as contas
não se ajustaram até sete ou dez anos depois. Digo-lhe isto extra-oficialmente.
Quando descia para a costa, Stephen pediu ao timoneiro do governador que o levasse a uma loja de brinquedos.
- Quero comprar três bonecas para as meninas - disse.
Talvez essa fosse a última vez que ia vê-las, porque havia se decidido que Jack e ele se alojariam na residência do governador e Li Po tinha pressa para recolher
o carregamento de minério de ferro e zarpar quando a maré mudasse.
- Bonecas, senhor? - perguntou o timoneiro com assombro e, depois de pensar um pouco, acrescentou: - Só conheço uma loja holandesa, e não sei que pensará uma menina
chinesa de uma boneca holandesa. Provavelmente o senhor o saberá melhor que eu, senhor, dado que conhece às interessadas. Dado que conhece às interessadas - repetiu
com satisfação.
Levou Stephen a uma loja situada junto a um canal que tinha janelas de ambos os lados da porta. E diante da porta aberta estava sentada a vendedora, uma mulher bátava.
- O cavalheiro quer comprar uma boneca - anunciou o timoneiro. - Uma boneca - repetiu em voz mais alta, fazendo um estranho gesto com o braço e a cabeça.
A vendedora os olhou com seus claros olhos semicerrados e uma expressão de desconfiança, mas ao reconhecer a libré dos servidores do governador, levantou-se e lhes
permitiu entrar. Só podia escolher entre meia dúzia de bonecas vestidas com a roupa da moda em Paris há vários anos. A mulher lhes levantou a saia e o saiote para
mostrar as calcinhas com babados, que eram de tira e põe.
- Autêntica renda, sim, sim.
Depois de observá-las alguns minutos, Stephen, presa do desespero, escolheu as três com vestidos menos atrevidos.
A vendedora escreveu o preço claramente em um cartão e deu ao timoneiro repetindo:
- Autêntica renda, sim, sim.
- Diz que valem meio joe cada uma - informou o timoneiro, surpreendido, pois meio joe equivalia quase a duas libras.
Stephen entregou o dinheiro, e a vendedora, com um olhar malicioso, acrescentou três urinóis ao pacote.
- Não sei... - disse o timoneiro. - Nunca vi nenhuma menina chinesa com nada como isto, e tampouco a uma moura.
Quando a falua do governador começou a navegar em direção ao junco, Stephen pensou na pobreza em que se encontrava de novo, mas muito superficialmente. Não analisou
quais eram seus sentimentos, isto é, o sentimento que se estava formando no profundo de seu ser. De momento, só sentia tristeza por ter perdido algo e certa inquietação.
Pensou que às vezes, nas batalhas, tinham lhe levado homens que malferidos que não se davam conta disso, sobretudo se as feridas não se viam.
"Eu me esquecerei disto em uma semana", pensou. Isso é o que havia feito quando lhe ocorrera outras desgraças e sofrera por causa de perdas e infidelidades. Ainda
que tinha algumas desvantagens e às vezes os sonhos o atormentavam durante a noite, ainda lhe parecia que era o melhor modo de enfrentar uma situação em que provavelmente
não se poderiam controlar a emoção e a angústia. Amiúde a importância relativa do assunto era menor que a que lhe outorgava nos primeiros momentos de confusão mental.
Quando subiu a bordo do junco chamou Mai-mai, Lou-Mêng e Pen T'sao e lhes deu seus presentes. Elas lhe agradeceram cortesmente, fizeram repetidas inclinações de
cabeça e pegaram com cuidado os objetos envolvidos cuidadosamente em papel de presente. Porém, pelo assombro com que olharam as bonecas e a expressão surpresa e
ao mesmo tempo indignada que puseram ao reconhecer os urinóis com adornos, Stephen compreendeu que não lhes havia proporcionado o prazer que esperava, ainda que
não estava muito seguro.
Teve melhor sorte na cabine que compartia com Jack Aubrey. Quando caminhava pelo labiríntico interior do grande junco, avançando pelas cobertas curtas e largas,
deu-se conta de que já teria recebido o convite da senhora Raffles, pois nos lugares sombrios havia penduradas elegantes casacas (feitas para resistir a uma tempestade
no pólo ártico), escovadas e arrumadas, junto às quais estavam seus donos vestidos com calções brancos tratando de manter afastados o calor e a poeira.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack com um sorriso involuntário que arruinou a gravidade de seu tom. - E provavelmente terá dado muito prestígio à Armada.
Admira-me que os cachorros não o tenham perseguido. Ahmed e Killick se ocuparam de preparar sua roupa quanto chegou o convite, e já está sobre o baú. Vou chamar
o barbeiro da fragata.
- Antes que venha deixe dizer-lhe duas ou três coisas - disse Stephen. - A primeira é que Raffles tem um barco para você, uma escuna de vinte canhões que esteve
totalmente imersa a propósito durante vários meses e acaba de ser tirada da água.
- Oh! - exclamou Jack radiante de alegria, quer dizer, com a cara vermelha, onde ressaltavam seus dentes brancos e seus olhos de um azul intenso, e apertou a mão
de Stephen com uma força tremenda.
- A segunda é que quando nos encontramos com Wan Da e me disse, como sabe, que a Cornélie zarparia logo, não lhe contei que tomaria uma rota muito parecida à que
deveria ter seguido a Diane e terá que seguir a corveta holandesa recém recuperada, a que quase obrigatoriamente passa pelo estreito de Salibabu. Tampouco lhe disse
que tem escassez de pólvora e que, como o comércio desta é um monopólio do Estado, pedi a ele que persuadisse ao vizir a não lhe dar mais.
Jack baixou a vista e a cor vermelho-ameixa que denotava sua alegria desapareceu de sua cara.
- Naquele momento pensei no mercante que pensávamos comprar e queria evitar que o capturassem ou o destruíssem no meio do mar. Mas provavelmente a Cornélie tenha
um pouco de pólvora, quer seja porque a conservaram ou porque a compraram dos comerciantes chineses, e, também, não sei se Wan Da terá êxito.
Pensou que era melhor não dizer nada sobre os livros da fragata nesse momento. Fez uma pausa e então começou o toque de um tambor anunciando a monção, um toque forte,
cada vez mais forte.
- Bem - disse Jack, recuperando um pouco do colorido do princípio -, não tenho palavras para expressar o contente que estou pelo barco do governador.
Depois, alçando a voz, gritou:
- Killick, Killick! Diga ao barbeiro que venha.
- Cavalheiros - disse o governador -, não encontro palavras para expressar a alegria que sentimos a senhora Raffles e eu ao ver-lhes sentados a esta mesa. Sinceramente,
gostaríamos que estivessem aqui mais homens de seu grupo, todos os de seu grupo - acrescentou, fazendo uma inclinação de cabeça para os feridos e sorrindo para Reade,
que se ruborizou e olhou para seu prato -, ainda que há muitos precedentes gloriosos...
Foi um discurso de boas-vindas bem estruturado e sincero, pronunciado com uma alegria que amiúde lhe havia permitido ter êxito ante os comitês, mas chegou a alcançar
o tom dos da Armada. Ademais, os ouvintes de Raffles, que geralmente comiam muito mais cedo, estavam famintos, afogados de calor e sedentos apesar da chuva que havia
traspassado suas capas de chuva, e qualquer discurso lhes teria parecido muito longo. Não mostraram desgosto, mas tampouco prestaram muita atenção, e quando Reade
se pôs pálido, o governador terminou repentinamente, saltando cinco parágrafos, e bebeu por seu feliz retorno uma taça de clarete frio, que nesse clima se considerava
mais são para os enfermos e os jovens.
Comeram um prato depois de outro com alegria propiciada pela cordialidade da senhora Raffles, por sua habilidade natural para ser uma anfitriã e pela fresca brisa
que seguiu à chuva. Foi maravilhoso ver quanto chegaram a comer os enfermos e os jovens e com que amabilidade lhes persuadiram de que partissem sem formalismos quando
sentissem o menor cansaço.
Foi um grupo mais reduzido o que chegou a tomar o vinho do porto e um ainda menor o que se reuniu com a senhora Raffles e as outras duas damas para tomar café e
chá. E só Jack, Stephen e Fielding chegaram a entrar na biblioteca com o governador. Jack já havia mostrado seu agradecimento, seu profundo agradecimento a Raffles
por ter tido a amabilidade de oferecer-lhe a escuna holandesa, a Gelijkheid, e agora o governador lhe entregou uma pasta que continha os planos, um esboço do costado
e outro do convés, uma seção longitudinal e todos os dados que lhe permitiriam formar uma idéia de sua forma e saber suas medidas exatas. Os marinheiros os examinaram
detalhadamente enquanto Ahmed trazia as espécies botânicas sobreviventes da viagem. Antes de abrir o pacote, Stephen contou sucintamente a Raffles como era Kumai,
o outro edén, com seus orangotangos, seus tarsios e suas tupaias.
- Se dispusesse de quinze dias de descanso, eu iria ali amanhã mesmo - disse Raffles. - A desculpa perfeita seria uma visita de cortesia ao sultão para ratificar
a aliança, e a corveta Plover, que chegará de Colombo no final do mês, proporcionaria a pompa necessária. Mas não se pode imaginar quantas preocupações tem em mente
quem ostenta uma parte de uma coroa, ainda que seja minúscula. Em Java e nos territórios que estão sob seu domínio há grande quantidade de rajás, sultães e grandes
latifundiários, e todos com tendência a cometer parricídio e fratricídio e a dar golpes de estado. Além disso, sempre há conflitos entre javaneses, madureses, simples
malaios, naturalmente, kalangs, buduwis, amboneses, bugis, hindus, armênios e os outros. Detestam-se uns aos outros, mas estão dispostos a se unir para enfrentar
os chineses, e uma pequena revolta pode estender-se com uma rapidez extraordinária.
Olhou com atenção o pacote e depois perguntou:
- Quer uma faca?
- Acho que poderei desfazer o nó - respondeu Stephen, pegando-o com os caninos. - Os marinheiros detestam ver cortarem cabos, cordas e mesmo barbantes - acrescentou
com voz apagada. - Aí está. Neste primeiro pacote há uma coleção do que cresce no bosque que há atrás da casa de Van Buren. Provavelmente a maioria das plantas lhe
sejam familiares.
- Em absoluto! - exclamou Raffles, e enquanto as distribuía em dois montes comentou: - Esta tarde vem um homem que sabe muito das epifitas. Ele se chama Jacob Sowerby
e publicou vários trabalhos em Transactions. Recomendaram-no para o posto de naturalista do Governo. Já entrevistei a um ou dois mais, mas... Oh, nunca vi nada como
isto, nem sequer parecido! - exclamou, apoiando no alto uma planta murcha que só poderia ter atraído a atenção de um devoto botânico.
- Sua excelência - interrompeu um secretário. - O major Bushel mandou um mensageiro para rogar-lhe que compareça ao mercado chinês porque sua presença terminará
com o distúrbio imediatamente. O capitão West já convocou a guarda para se o senhor estimar conveniente ir. E o senhor Sowerby já está aqui.
- Sinto muito - o governador desculpou-se para Stephen. - Depois voltou-se para seu secretário e disse: - Muito bem, senhor Akers. Sairei pelo Pátio do Leão. Por
favor, apresente minhas desculpas ao senhor Sowerby. Espero voltar dentro de meia hora.
E depois, da porta mais distante, gritou:
- Seria melhor que o mandasse subir!
O senhor Sowerby entrou na habitação. Era um homem magro e de uns quarenta anos. Pela expressão tensa que tinha era óbvio que estava nervoso; por suas primeiras
palavras era claro que o nervosismo o fazia adotar uma atitude agressiva.
Stephen fez uma inclinação de cabeça e disse:
- O senhor deve de ser o senhor Sowerby, verdade? Meu nome é Stephen Maturin.
- O senhor é botânico, não é verdade? - perguntou Sowerby olhando para os espécimes.
- Não me atreveria a dizer que sou botânico - respondeu Stephen -, ainda que publiquei um pequeno trabalho sobre as fanerógamas de Upper Ossory.
- Então, é naturalista?
- Acredito que poderia me definir como naturalista - respondeu Stephen.
Sowerby não respondeu imediatamente, permaneceu sentado roendo as unhas. Stephen se deu conta de que o considerava um rival, mas como suas maneiras eram tão grosseiras,
não o tirou de seu erro. Por fim Sowerby, olhando suas unhas roidas, disse:
- As fanerógamas de Ossory cabem em um minúsculo livro. Ossory fica na Irlanda, e não seria necessário trabalhar muito para estudar todo o país, salvo, talvez, as
formas de vida primitivas dos pantanais. Estive lá, sim, estive lá, e ainda que tinham me falado de sua pobreza, surpreendeu-me ver o pobre que eram na realidade
a flora, a fauna e a população.
- Vamos! Não é qualquer ilha que pode gabar-se de ter o medronheiro e o falaropo.
- Não é qualquer ilha que pode gabar-se de ter a capital cheia de líquen islandês e de crianças selvagens e descalças. Há extrema pobreza...
Ainda que a pobreza de que falava Sowerby nesse momento tinha relação com as aves (não havia pássaros carpinteiros, nem picanços, nem rouxinóis), a palavra lembrou
a Stephen a quebra do Smith e Clowes, o que acrescentou um novo elemento aos seus já complexos sentimentos. Estava decidido a não demostrar a Sowerby quanto o incomodavam
e quanta raiva lhe causavam seus comentários, mas lhe resultou difícil suportar que comparasse o Trinity College de Dublim e "o raquítico edifício de tijolo onde
se alojam os estudantes" com "as esplêndidas residências do Trinity em Cambridge, que faz parte de uma universidade muito maior" e que dissesse que "as diferenças
entre as duas ilhas guardam a mesma proporção". Também lhe foi quase impossível escutar com integridade a comprida série de diatribes que lançou contra "os vergonhosos
fatos de 1798, quando um numeroso grupo de traidores se sublevaram contra seu soberano natural, queimaram a reitoria de meu tio e lhe roubaram três vacas" e a afirmação
de que a pobreza e a ignorância sempre foram e seriam o destino dessa desafortunada comunidade dominada pelo clero enquanto seguissem sendo adeptos da superstição
romana.
- Ah, governador! - exclamou Stephen, voltando-se para a porta aberta por onde Raffles entrava com a expressão própia de alguém que cumpriu sua missão. - Alegro-me
de que tenha chegado no momento oportuno para ouvir-me destroçar a... não direi meu oponente, mas meu interlocutor, com uma citação muito apropiada que acaba de
vir a minha mente. O senhor Sowerby sustenta que os irlandeses sempre foram pobres e ignorantes e eu digo que isso nem sempre foi assim, e apoio minha afirmação
não em palavras de crônicas como as dos Quatro Mestres, pois em tal caso poderia ser tachado de parcial, mas nas de um erudito inglês, Beda o Venerável, que Deus
o tenha em sua glória. Na História Eclesiástica, Beda diz: "no ano 664, uma epidemia de peste aniquilou a população da costa sul da Inglaterra". Em irlandês a chamamos
buidhe connail, que significa "praga amarela". E continua: "Pouco depois passou ao território de Northumbria, estendendo-se por toda parte e causando a morte de
uma multidão de homens... Não causou menos danos na Irlanda, onde muitos dos nobres e das pessoas da classe mais baixa... - Tossiu e prosseguiu: - Onde muitos dos
nobres e das pessoas da mais baixa classe da nação inglesa se encontravam então estudando teologia ou vivendo em monastérios, e recebendo dos irlandeses comida e
livros e ensino grátis pró Deo".
Jack o estivera observando atentamente e com grande angústia. Notou que Stephen estava furioso e sabia o que era capaz de fazer. Quando seu amigo se sentou, a quem
lhe haviam deixado de tremer as mãos, exclamou:
- Muito boa citação, doutor! Muito boa citação, palavra de honra. Eu não poderia ter dito nenhuma nem a metade de apropiada se não fosse o Código Naval.
- Indubtavelmente, foi um argumento contundente, meu querido Maturin - disse Raffles. - Foi uma resposta como as que geralmente se dá depois de um sucesso importante.
Que tem a dizer, senhor Sowerby?
O senhor Sowerby só tinha que dizer que não era sua intenção ofender a outra nação, que não sabia que o cavalheiro era da Irlanda e que lhe pedia perdão por qualquer
agravo que involuntariamente lhe tivesse feito. Depois, aproveitando que os marinheiros saiam, partiu.
- Espero que tudo tenha ido bem - disse Stephen.
- Oh, sim! - exclamou Raffles. - O Ramadã está a ponto de terminar, sabe?, e os muçulmanos mais estritos se tornam irritáveis ao final do dia, sobretudo em um dia
tão quente como este. Amanhã voltarão a ser amáveis pessoas manchadas de gordura de cordeiro. Sinto que tenha tido que suportar a este tipo. A entrevista deve ter
lhe parecido eterna.
- O segundo nome do cavalheiro é Prolixo - brincou Stephen.
Durante um tempo ambos classificaram as orquídeas em silêncio e depois, em tom vacilante, Raffles disse:
- Sem dúvida, o senhor costuma estar rodeado de cavalheiros e de seus companheiros oficiais, de pessoas que conhecem sua origem e seu valor. Não sei se saberá que
as más opiniões como essa com respeito à pobreza, a ignorância e a Igreja Católica Romana estão muito propagadas e que os que se relacionaram de alguma maneira com
a sublevação sentem um profundo ressentimento. Se o senhor nunca se relacionou com o tipo de pessoas que têm a autoridade em Nova Gales do Sul, temo que se terá
uma grande surpresa se ficar ali um longo período.
- Relacionei-me brevemente com as que governavam o infortunado William Bligh, pois fizemos escala na baía de Sidney para carregar algumas provisões essenciais no
Leopard. O povoado tinha começado uma insurreição, e pelo pouco que tratei com os oficiais, pareceram-me um monte de déspotas a cavalo, com toda a arrogância e a
vaidade que o termo implica.
- Por desgraça, as coisas não melhoraram desde então.
- É estranho que quando os habitantes das colônias inglesas da América se separaram da Inglaterra - disse Stephen depois de uma pausa -, muitos ingleses os apoiaram,
inclusive James Boswell, em oposição ao doutor Johnson, e em troca, quando os irlandeses tentaram fazer o mesmo, ninguém, que eu saiba, falou a favor deles. É verdade
que Johnson, ao referir-se à desonrosa união com Kevin FitzGerald, disse: "Não se una a nós, senhor. Nós nos uniríamos ao senhor só para roubar-lhe", mas isso foi
muito antes da sublevação.
- Maravilha-me que Johnson fosse tão paciente com o simples de Boswell e que o este tenha escrito um livro tão importante. Recordo de uma passagem na qual o doutor
expressa sua aversão pelos colonos insurretos e diz que formavam "uma raça de convictos que deveriam nos agradecer por tudo o que lhes damos menos a morte na forca".
E também outro no qual diz: "Estou preparado para amar a todos os homens, exceto aos americanos", depois os chama de "pilantras, ladrões, piratas" e afirma que os
vai "queimar e destruir". Mas então a intrépida senhorita Steward diz: "Senhor, este é um exemplo de que sempre atuamos com extrema violência contra aqueles a quem
ferimos". Talvez agora se age com essa mesma violência contra os irlandeses. Gostaria de tomar um ponche comigo?
- Não me apetece, Raffles, ainda que lhe agradeço muito a sua amabilidade. De fato, tão logo como tenhamos classificado este monte, eu me retirarei para descansar.
O dia foi bastante fatigoso.
Quando atravessava a galeria onde ficavam os quartos dos secretários sentiu o odor de ópio, uma droga que tomara durante muitos anos em uma forma mais conveniente,
transformada em láudano. Ele a havia tomado umas vezes por prazer e para relaxar; outras, para aliviar dores; outras, as mais numerosas, para eliminar a excitação
emocional. Abandonou-a quando se reconciliou com Diana, e foi impulsionado a fazê-lo por muitas razões, uma das quais era a crença de que um homem deve arrumar-se
sem fortaleza engarrafada e de que a foça verdadeiramente importante é a que procede de seu interior. Mas ao reconhecer aquele odor, pensou que se tivesse um frasco
a mão seria tentado a quebrar sua resolução, pois sabia que essa noite necessitaria de uma extraordinária presença de ânimo. Em primeiro lugar, porque tinha se chateado
muito e achava que isso não o ajudaria a dormir em absoluto; em segundo, porque provavelmente a parte mais loquaz de seu ser, por muita disciplina que lhe impulsesse,
atormentar-lhe-ia quando estivesse distraído ou próximo a dormir com observações sobre sua atual pobreza: a impossibilidade de manter Diana, dotar uma cátedra de
osteologia, fazer boas obras de vez em quando, pagar algumas rendas vitalícias que prometera, viajar a lugares remotos na Surprise quando por fim se firmasse a paz...
E pensava que, se conseguisse dormir, o despertar seria pior, pois a sua mente limpa compareceriam todas estas idéias, acompanhadas, indubtavelmente, por outras
que ainda não lhe haviam ocorrido.
Mas os fatos demonstraram que as duas suposições eram errôneas. Dormiu quase sem transição, com a conseguinte confusão das últimas palavras do pai nosso. Foi um
sono profundo e relaxado, do qual não saiu até que, ao riscar a alvorada, percebeu que era um luxo estar deitado ali, experimentando um grande bem-estar e sentindo-se
quase liberado do corpo; lembrou com satisfação que tinham um barco, notou que uma enorme figura se interpunha entre a fonte da débil luz e ele, e ouviu que Jack,
com voz suave e apagada, perguntava se estava acordado.
- E se estiver, meu amigo? - perguntou Stephen.
- Bem - disse Jack, e seu vozeirão, como costumava acontecer, encheu o quarto -, então lhe direi que Bonden encontrou um esquife verde, de algum modo, e pensei que
você gostaria de vir comigo para ver a escuna holandesa, cujo nome eu nunca lembro.
- Claro que sim! - exclamou Stephen, saltando da cama e pondo rapidamente a roupa.
- Suponho que poderá se lavar e barbear logo - disse Jack. - Temos que desjejuar com o governador, lembra?
- Sim. Bem, acho que devo, ainda que uma peruca ocultaria uma multidão de pecados.
A cidadela de Batavia, em cujo interior ficava a residência do governador, encontrava-se em um estado quase caótico. A última administração holandesa, em uma tentativa
de acabar com a alta mortalidade causada pelas febres, tinha fechado boa parte do fosso e eliminara ou desviara temporariamente muitos canais, e devido a tudo isso,
Stephen pôde descer desde a janela até o esquife, onde Bonden lhe ajudou a se sentar na popa sobre uma almofada e Jack se reuniu a ele. Percorreram lentamente umas
cem jardas pelo apertado e sinuoso canal, onde em uma ocasião puderam ver de perto às assombradas pessoas que estavam em uma cozinha, e em outra, as ruborizadas
caras de quem se encontrava em um quarto; depois atravessaram a desconjuntada comporta; seguiram avançando por outro canal de águas pouco profundas; e finalmente,
empurrados suavemente pela corrente, chegaram à baía. Era um dia aprazível, e somente havia ali alguns paraús de pescadores que, na bruma, moviam os remos produzindo
um suave burburinho.
Stephen voltou a dormir. Quando despertou, Bonden ainda remava no mesmo ritmo, mas o sol nascente, situado atrás deles, havia dissipado toda a névoa. O mar estava
em calmaria e tinha um colorido azul delicado e uniforme, e Jack Aubrey, através do luminoso ar, olhava para frente com grande atenção.
- Aí está - anunciou ao notar o movimento de Stephen.
Stephen, seguindo seu olhar, viu uma ilhota com um cais e diante dele o casco de um barco pequeno e de cor marrom apagado.
- Oh! - exclamou antes de recuperar do toda sua capacidade de razoamento. - Não tem mastros!
- Que linhas tão delicadas! - exclamou Jack e depois, voltando-se para Stephen, fez um parêntese: - Será rebocada até o dique seco dentro de um ou dois dias, e tem
mastros em abundância. Já viu alguma vez linhas tão delicadas, Bonden?
- Nunca, senhor, excetuando a Surprise, claro.
- De que barco é? - gritou alguém.
- Diane! - respondeu Bonden com voz clara e aguda.
O ajudante de capitão interino recebeu o capitão da Diane com tanta formalidade e cortesia, como era possível com uma brigada de quatro homens, mas a cerimônia acabou
por se estragar quando de baixo chegou um grito em tom enfático e irritado:
- John, se não vier neste momento, os ovos ficarão duros e o bacon queimará!
- Por favor, vá tomar o café da manhã, senhor - disse Jack. - Posso encontrar meu caminho sem dificuldade, pois sua excelência me deu os planos ontem à noite.
De fato, a escuna lhe parecia familiar porque estudara os planos na noite anterior; contudo, enquanto guiava Stephen pelas escadas e cobertas e o levava ao porão,
não parava de exclamar:
- Que embarcação mais bonita! Que embarcação mais bonita!
E quando estavam de novo no castelo, olhando para Batavia, disse:
- Não se preocupe com a pintura nem com os mastros, Stephen. Em poucas semanas de trabalho no estaleiro tudo isso será providenciado. Mas somente a mão de um homem
brilhante com madeira nobre ao seu alcance é capaz de criar uma pequena obra prima como esta. Percebeu suas perfeitas balizas?
Ficou um tempo pensando e sorrindo e depois disse:
- Diga-me, qual foi o epíteto com o qual o pobre Fox se confundiu na primeira vez que o sultão nos recebeu em audiência?
- Resegaran mawar, bunga budi bahasa, hiburan buah pala.
- Está bem, mas o que queria saber era a tradução. Qual era o último?
- Fruto do consolo.
- É isso! Essas eram as palavras que há um tempo estavam em algum canto de minha mente. Acho que para esta pequena escuna de bonitas linhas e placas de cobre novas,
que por ser estanque e ter a popa larga, pode dar consolo a qualquer homem, seria um nome excelente o de um fruto pequeno, por exemplo, noz-moscada Querida Noz-moscada!
Que encanto!
CAPÍTULO 4
Em Batavia ocorriam poucas coisas que tardassem em saber-se em Pulo Prabang, e pouco depois que a Noz-moscada foi incorporada à Armada como correio, com todas as
formalidades que as circunstâncias permitiam, chegou uma carta de Van Buren na qual felicitava Stephen por ter sobrevivido, falava sobre um orangotango de curta
idade, afetuoso e de muito talento que o sultão lhe havia presenteado e terminava dizendo: "Fui encarregado de lhe dizer que o barco se fará ao mar no dia 17, e
ainda que meu informante não pôde dizer se está muito bem abastecido ou não, espera que seus desejos tenham se cumprido pelo menos em parte".
O dia 17. E a Noz-moscada apenas tinha os paus inferiores dos mastros colocados e a bodega, muito limpa, cheirosa e seca, pois inumeráveis trabalhadores indígenas
haviam lixado as paredes até chegar à madeira em estado natural e a haviam secado com os quartéis tirados e as portalós abertas durante as últimas rajadas sufocantes
do passado monção (não havia baratas, nem pulgas, nem piolhos, muito menos ratos ou sujeira do antigo lastro incrustado), estava vazia, tão vazia que a embarcação
quase não estava afundada na água e se via grande parte das brilhantes placas de cobre da proa à popa.
Os encarregados do estaleiro holandês, e sobretudo os trabalhadores, eram muito competentes e conscienciosos inclusive comparados com os da Armada Real; contudo,
formavam uma corporação e não podiam suportar os intrusos. Estavam dispostos a trabalhar tão rapidamente como o limitado número de membros o permitisse e também
(por consideração) várias horas mais das estipuladas, mas não permitiam que se contratasse a nenhum artesão de fora, por mais perícia que tivesse. Somente admitiam
aos que se dedicavam a lixar, um trabalho realmente mesquinho que só se atribuía a uma casta de bugis, e pensavam que não necessitavam de nenhum tipo de ajuda de
nenhum tripulante da Noz-moscada. No estaleiro, a escuna era o terreno dos trabalhadores. Se o senhor Crown, o contramestre, que estava muito impaciente, punha um
dedo em uma vinhateira, algo que estritamente concernia aos aparelhadores, ouvia-se o grito "Todos para fora!" e os membros de todos os grêmios largavam as ferramentas
e desciam pela prancha lavando as mãos simbolicamente, e, depois de longas negociações e de receberem um pagamento pelas horas perdidas, eram chamados ao trabalho
outra vez. Eram, teoricamente, membros de uma nação conquistada, e o estaleiro, a madeira, os cabos e a lona que usavam pertencia ao rei Jorge, mas um observador
objetivo não o perceberia, e o velho chefe, a pobre vítima, que fazia julgamentos muito subjetivos e ficava pálido de frustração, gritava duas ou três vezes por
dia: "Traição!", "amotinamento!", "vão ao inferno!" ou "açoitem a todos diante de todos os barcos da frota!"
- Suponho que os senhores, os cavalheiros da Armada, opõe-se redondamente à corrupção - disse Raffles.
- A corrupção, senhor? - perguntou Jack. - Encanta-me essa palavra. Desde que tive o comando de um barco pela primeira vez, corrompi a todos os encarregados de estaleiros
e de serviços de material de guerra ou de aprovisionamento com um mínimo apego à tradição que puderam ajudar-me a conseguir que meu barco zarpasse mais rápido e
preparado para o combate ligeiramente melhor que outros. Corrompi na medida de minhas possibilidades, e às vezes pedi emprestado para fazê-lo, mas acho que não feri
seriamente a reputação de nenhum homem e que valeu a pena fazê-lo pela Armada, por meus companheiros de tripulação e por mim. Se eu soubesse que cordas mover aqui,
ou se ainda estivessem comigo o contador ou meu escrevente, ambos especialistas no assunto a um nível inferior, faria igual em Batavia, com todo meu respeito, senhor,
e numa escala muito maior, porque tenho mais recursos agora que então.
- É uma lástima, mas até dentro de dois meses não virá nenhum dos barcos que fazem o comércio com as índias, pois seus capitães entendem esta questão perfeitamente
bem. Apesar de tudo, acredito que se o empregado que se ocupa de todas as construções falasse com o superintendente, poderia conseguir algo. Certamente que nem o
senhor nem eu podemos aparecer nem, obviamente, usar fundos oficiais, mas extra-oficialmente farei tudo o que esteja ao meu alcance para ajudar-lhe a zarpar o mais
cedo possível. Detesto que seja necessário untar as pessoas que deveriam agir por si mesmas, mas reconheço que essa necessidade existe, sobretudo nesta parte do
mundo. E no caso da Noz-moscada quero ajudar a satisfazê-la com tudo o possível.
- Fico-lhe sumamente agradecido, senhor, e se por meio de seu valioso empregado posso averiguar o preço aproximado da solução, farei todo o possível para pagá-lo
com o dinheiro que tenho aqui. E se não posso, provavelmente poderei encontrar algum estabelecimento que aceite letras emitidas em Londres.
- Qual é seu banco, capitão Aubrey?
- Hoare, senhor.
- O senhor não mudou como o pobre Maturin?
- Não, não, por Deus! - exclamou Jack, golpeando a palma de uma mão com o punho da outra. - O pior ato que cometi em minha vida foi o de falar-lhe do banco Smith
e Cloves e me maldigo por tê-lo feito. No que me diz respeito, tinha vários milhares de libras depositados ali, por conveniência, mas o restante o deixei no Hoare.
- Nesse caso, um amigo de Maturin e meu, Shao Yen, proporcionar-lhe-á o dinheiro.
Shao Yen lhe proporcionou o dinheiro, e os diversos grêmios relacionados com o caso foram persuadidos de que abandonassem suas práticas habituais por um tempo, pelo
que em menos de trinta e seis horas a escuna se encheu de entusiastas trabalhadores, incluídos todos os tripulantes da Noz-moscada que podiam encontrar um lugar
onde ficar de pé. Amiúde, muito amiúde, Jack e seus oficiais haviam tido que animar aos tripulantes (Fielding o fazia extraordinariamente bem e Crown não ficava
atrás), mas nunca antes haviam tido que instar-lhes a que se abstivessem de fazer muitas coisas, a rogar-lhes que não fizessem muitos esforços naquele clima úmido
e pouco saudável nem corressem tantos riscos no alto. Os tripulantes da Noz-moscada e os integrantes da guarda de popa que não tinham que fazer tarefas de tipo técnico,
pintavam a escuna supervisionados a distância por Bennett, o mais improvável sobrevivente da batalha, que de um esquife imóvel na água dava gritos do tipo: "Meia
polegada mais para debaixo da portaló!", enquanto a Noz-moscada ia se cobrindo de quadros brancos e negros ao estilo de Nelson. Essa era, na opinião de Jack, o desenho
mais apropriado para um barco de guerra, e pôde encontrar muita tinta em Batavia para fazê-lo, pois apesar da Armada Real só estar representada ali por um tenente
e uma vintena de empregados de diversas categorias, estivera no porto uma grande esquadra que, ante a possibilidade de regressar, deixara grande quantidade de apetrechos,
a maioria procedentes de capturas. Com esses abundantes apetrechos Jack Aubrey armou a Noz-moscada. Passeava com inteira liberdade pelo armazém, como pela caverna
de Ali Babá; isto é, as cavernas, pois a parte onde ficava a vasta seleção de cabos estava completamente separada do recinto encouraçado onde se encontrava a pólvora.
Tudo o que um marinheiro, de profissão, podia desejar, estava ali em perfeita ordem.
Fazia algum tempo chegara à conclusão de que se se encontrasse com a Cornélie, tinha somente duas possibilidades (a menos que o objetável plano de Stephen tivesse
êxito): fugir ou lutar penol a penol. A Noz-moscada, com seus vinte canhões de nove libras, não poderia sustentar um longo combate com a fragata francesa de trinta
e dois canhões de dezoito libras, sobretudo se os canhões franceses estavam tão bem apontados como geralmente o estavam; contudo, se a armasse com caronadas de trinta
e duas libras e conseguisse que ambas ficassem situadas a tocar penóis, poderia disparar uma descarga de trezentas e vinte libras em vez de noventa e seus homens
passariam para a abordagem ocultos pela fumaça.
Então, caronadas. Em companhia do condestável e seus ajudantes percorreu o escuro armazém situado atrás do cais do serviço de material de guerra, e todos se assombraram
com a abundância que tinham ante a vista e de que tinham a liberdade de escolha (porque o governador dera carta branca ao capitão Aubrey). Iam apressadamente de
uma peça de artilharia a outra, provando-as para encontrar as que se pudessem apontar à perfeição, e lhes era quase impossível decidir-se. Com uma mistura de alegria
e angústia escolheram finalmente as vinte caronadas e depois tiveram que ocupar-se das balas, uma questão delicada, pois nas caronadas, ao contrário do que sucedia
com os canhões longos, quase não podia ficar folga entre a bala e o cilindro, e era necessário que as balas fossem quase perfeitamente esféricas para disparar com
precisão ainda que fosse a curto alcance. Cada bala pesava trinta e duas libras; cada caronada requeria muitas balas (tinha que ter uma grande quantidade para fazer
práticas, já que todos os tripulantes estavam acostumados a usar os canhões da pobre Diane); e entre todas rodaram toneladas e toneladas pelo empoeirado piso e o
círculo de prova.
Apesar de suas virtudes (pouco peso, carga ligeira, brigadas de poucos artilheiros, grande poder letal), as caronadas eram peças delicadas. Eram tão curtas que,
em ocasiões, ainda que as tivessem sacado completamente, o clarão podia incendiar a exárcia, sobretudo se estivessem inclinadas para os lados. Ademais, esquentavam
com facilidade e podiam saltar e se soltar. Como Jack decidiu que a Noz-moscada fosse armada principalmente com caronadas (ainda que tenha conservado seu velho canhão
de bronze de nove libras e outro muito parecido para usar nas perseguições), passou horas com as pessoas indicadas para conseguir que as portalós fossem perfeitamente
adequadas para as pequenas e rebeldes criaturas e assegurar-se de que nenhuma parte da exárcia ficasse perto de suas bocas por mais que se inclinassem para os lados.
Por outra parte, a custa de quantiosos subornos para os holandeses, conseguiu que um grupo de excelentes carpinteiros se incorporasse ao trabalho e trocasse as ordinárias
carretas por outras inclinadas, que absorveriam boa parte da energia no retrocesso. E não foi essa sua única extravagância.
- Para que serve ser quase rico se um não pode fazer grandes gastos em certas ocasiões? - perguntou a Raffles quando Stephen não podia ouvir-lhe.
Nessa ocasião em particular, gastou muito em velas, velas para todo tipo de tempo, desde o acompanhado de um vento suave e errático até o que era provável encontrar
frente ao cabo de Hornos, e também em cabos, pois queria pôr o melhor cânhamo de Manila quase em toda parte, especialmente na exárcia fixa, onde, conforme ele, nenhum
outro tipo podia superar em resistência ao caro cânhamo de três cabos.
Entre tudo isto e a procura de um carpinteiro, um contador, um escrevente e dois ou três jovens aptos para ser guardas-marinhas (Reade e Bennett, ainda que tivessem
boa vontade, não podiam subir na exárcia nem estavam em condições de fazer guarda de noite quando havia mau tempo), quase não via Stephen. Além disso, posto que
os pacientes que sobreviveram estavam melhorando muito, Stephen passava boa parte de seu tempo com Raffles, quer na cidadela, quer em Buitenzorg, a residência de
verão do governador, onde se encontravam seus jardins e a maioria de suas coleções, que examinava com sumo interesse.
Pouco depois que os carpinteiros chineses subissem a bordo, numa calorosa manhã em que o céu ameaçava chuva, Stephen, que se dirigia a Buitenzorg, desceu de sua
bonita égua e, enquanto Ahmed segurava com paciência as rédeas, perguntou-se se valia a pena levar uma capa de chuva grande, pesada e não totalmente impermeável
enrolada atrás da sela, com a possibilidade de ficar rígido e molhar-se se chegava o mau tempo, ou se era melhor arriscar-se a empapar-se, ainda que isso lhe permitiria
ficar um pouco mais descansado. Depois pensou que possivelmente não choveria. E enquanto estava fazendo estas considerações viu que Sowerby se aproximava com passo
vacilante e que às vezes inclusive se detinha. Quando já se achava a pouca distância tirou o chapéu e lhe cumprimentou:
- Bom dia, senhor.
- Bom dia, senhor - respondeu Stephen, pondo o pé no estribo.
Apesar do gesto, Sowerby se aproximou e disse:
- Estava a ponto de deixar esta carta para o senhor, senhor, mas agora que tive a satisfação de encontrar-lhe, espero que me permita agradecer-lhe pessoalmente sua
generosidade. Sua excelência me disse que devo minha recomendação a sua nomeação, quero dizer, minha nomeação a sua recomendação.
- A verdade é que não tem muito o que me agradecer - disse Stephen. - Mostraram-me os currículos apresentados pelos diversos candidatos e pensei que o seu era muito
melhor que os outros, e isso foi o que disse, nada mais.
- Mesmo assim, senhor, estou-lhe profundamente agradecido. E em prova de minha estima pelo senhor, se me permite, darei um nome em sua honra a uma planta não descrita.
Mas não quero entreter-lhe. Por favor, aceite esta carta que contém o exemplar de uma planta e uma completa descrição. Bom dia, senhor. Que tenha um boa viagem.
Nesse momento Sowerby estava quase cego pela tensão nervosa, a cor de sua cara ia e vinha e suas palavras se empilhavam, mas por milagre entregou a carta em vez
de deixá-la cair, passou sem sofrer danos pela frente do intranqüilo cavalo de Ahmed, pôs o chapéu, esquivou-se de um poste no caminho por meia polegada e se afastou
caminhando muito rapidamente.
Cavalgaram sem parar e choveu sem parar. De vez em quando as tartarugas fluviais cruzavam o caminho, às vezes caminhando e outras nadando, mas sempre em direção
sudoeste. Com mais freqüência e em maior quantidade, depois da primeira hora, volumosos sapos de ventre avermelhado cruzaram em grupos também em direção sudoeste.
Mas os cavalos, que haviam pulado ao ver as tartarugas, já estavam muito cansados para assustar-se inclusive com um grupo de sapos e continuaram avançando pesadamente
com as orelhas baixas e com o lombo jorrando água.
As costas de Stephen também jorravam água, pois como decidira não usar capa, a chuva se metia entre a casaca e a pele. E o espécime de Sowerby também teria jorrado
se não fosse porque Stephen economizava exageradamente no que gastava em perucas. Sua comodidade, a posição que ocupava como médico e seu senso de correção, recomendavam
que tivesse uma peruca, mas era resistente a pagar por ela. Agora somente lhe restava uma peruca como a que os médicos usavam, e como lhe parecia que os fabricantes
de perucas de Batavia cobravam preços exorbitantes por elas, usava-a em todas as ocasiões. Nesse momento a inestimável peruca estava protegida por um chapéu sombreiro,
por sua vez coberto com uma capa de lona alcatroada para que não se molhasse com a chuva torrencial, e estava amarrado por debaixo do queixo com dois pedaços de
merlín branco e preso ao cabelo com um forte grampo que ia de um lado ao outro, pelo que estava tão fortemente seguro em sua cabeça como seu própio couro cabeludo.
E sob a copa do chapéu se encontrava a carta de Sowerby.
Quando já estava sentado na sala de desjejum de Buitenzorg e usava uma bata do governador enquanto esperava que sua roupa se secasse em outra parte, levantou o envelope,
que estava completamente seco, e disse:
- Estou a ponto de alcançar a imortalidade. O senhor Sowerby quer pôr em minha honra um nome a uma planta não descrita.
- Então conseguirá a glória! - exclamou Raffles. - Podemos vê-la?
Stephen rompeu o selo e, do interior de um envoltório de muitas capas do papel usado para recobrir espécimes, tirou uma flor e duas folhas.
- Nunca a vi antes - disse Raffles, observando o receptáculo de cor marrom e púrpura. - Parece-se um pouco com a Stapelia, porém, sem dúvida, tem que pertencer a
uma família totalmente distinta.
- E é indubitável que também cheira como a Stapelia mais fétida - brincou Stephen. - talvez deveria pô-la no parapeito da janela. Quando ele a encontrou vivia como
planta parasita sobre o liso tronco de uma árvore. Pela forma das folhas, com as bordas curvadas para o interior, e sua viscosidade e grossura, inclino-me a pensar
que também é insetívora.
Ambos observaram a planta em silêncio, respirando, por assim dizer, de lado, e depois Stephen perguntou:
- O senhor acha que o cavalheiro tencionava ser sarcástico?
- Não, de nenhuma maneira - respondeu Raffles. - Nunca lhe ocorreria algo assim. É um homem metódico e sem senso de humor. Dedica-se a classificar e não se ocupa
do valor moral.
- Oh, Raffles! - exclamou sua esposa ao entrar -, De que é esse odor? Terá algo morto detrás do painel de madeira?
- Minha querida, é da planta à qual darão um nome em honra do doutor Maturin.
- Bem, é melhor que ponham um nome em honra de um em uma planta do que em uma doença ou uma fratura. Pensem no pobre doutor Ward e a hidropisia. Sem dúvida, é uma
planta muito curiosa, mas talvez deveria dizer a Abdul que a leve ao alpendre. Meu querido doutor, disseram-me que sua roupa estará totalmente seca dentro de meia
hora, assim que almoçaremos cedo. Deve estar morto de fome.
- Nomear as criaturas em honra de um amigo ou colega é um costume muito bonito - observou o governador quando ela se foi. - E ninguém, ao segui-lo, demostrou mais
generosidade do que o senhor com a Testudo aubreii, esse magnífico réptil. A propósito de Aubrey, faz dias que não o vejo. Como está?
- Muito bem, obrigado. Vai correndo de um lado para outro de dia e de noite para que seu barco possa fazer-se ao mar ainda mais rapidamente que a pressa demente
característica da Armada. Vai correndo com tanto entusiasmo que me alegra dizer que tem pouco tempo para comer e nenhum para comer em excesso.
- Necessita de mais marinheiros?
- Acredito que não. restaram cento e trinta homens da tripulação, e como a Noz-moscada não necessitará de grandes brigadas de artilheiros mas só três ou quatro homens
por caronada, se não me equivoco, pensa que são suficientes para tripulá-la. Ademais, agrada-lhe a idéia de ascender ao ajudante de carpinteiro ao posto do pobre
senhor Hadley. Mas ainda lhe falta um contador, um escrevente e dois ou três guardas-marinhas.
- Com respeito ao contador, apesar das averiguações que fiz, não encontrei a nenhum homem que possa recomendar. Mas encontrei um excelente escrevente, um homem que
ficou ferido quando tomamos este lugar mas que se recuperou e agora é bastante ágil, e dois guardas-marinhas que talvez sejam adequados. Acha que Aubrey poderá almoçar
conosco na quinta-feira? Poderia apresentar-lhe aos candidatos antes ou depois, como prefira. Também poderia formular-lhe perguntas gerais sobre seus planos imediatos.
Confio em que poderei fazê-lo sem que o considere uma indiscrição, pois independentemente de ter uma grande curiosidade em saber se vai se arriscar a enfrentar a
Cornélie ou fugir dela, tenho a possibilidade de estender um pouco minha autoridade e ordenar que uma corveta, a Kestrel, acompanhe-o até o estreito, se assim desejar.
A corveta chegará no final desta semana.
- Quem sou eu para dizer... - começou Stephen. - Que é isso que está na janela?
- Um tangalung, uma espécie de civeta de Java - respondeu Raffles, abrindo a jaula. - Venha, Tabitha.
Depois de um momento, a bonita criatura com riscas negras se aproximou dele e se sentou em seu colo olhando para Stephen com o cenho franzido.
Stephen baixou a voz em sinal de respeito e continuou:
- Quem sou eu para dizer isto, mas me atrevo a assegurar que nenhuma oferta seria pior acolhida.
- Ah, é?
- Tenho a impressão, e é só uma impressão, assim que não revelo uma confidência muito pelo contrário uma consulta, de que Aubrey tentará atacar a Cornélie se puder
encontrá-la. A presença da Kestrel não influiria no resultado do combate, pois só leva catorze canhões e não é mais apta para enfrentar-se com uma fragata que uma
fragata com um barco de linha; contudo, teria uma péssima influência no resultado moral. Se Aubrey fracassasse em sua tentativa, a Cornélie teria que afundar ou
apresar a Kestrel também, e assim venceria a dois oponentes e se cobriria de louros; em troca, se Aubrey, queira Deus, triunfasse em sua tentativa, seriam dois oponentes
em conjunto que derrotariam a Cornélie, e a Kestrel não sofreria danos nem Aubrey alcançaria a glória, pois deve o senhor saber que os jornalistas e o público quase
não se fixam na potência relativa de dois barcos que atacam juntos.
- Aubrey se importa muito com a glória?
- Certamente! Venera a Nelson. Mas acho que não tem nem um pingo de vaidade, ao contrário de seu herói. Para Aubrey não lhe importa o triunfo pessoal nesse hipotético
combate, mas o seu objetivo principal, como ele própio distingue com total claridade, é minar o amor própio dos franceses, especialmente o dos membros da Armada.
Eu lhe asseguro que isso é tão importante que eu chegaria... já cheguei a extremos surpreendentes...
A natureza dos extremos nunca foi revelada, pois a porta se abriu e o mordomo inglês, que em seu tempo era um digno exemplar roliço e rosado e agora estava amarelado
e encolhido devido à febre intermitente de Java, anunciou a sua excelência que o almoço estava servido.
- Oh, Richardson, meu amigo, que confusão! - exclamou Stephen ao subir a bordo da Noz-moscada. - Que está fazendo toda esta gente?
- Bom dia, senhor - disse Richardson. - Estão colocando os amantilhos.
- Que Deus os proteja - suspirou Stephen. - Esse trabalho me parece muito perigoso. E estará ele na escuna?
Estava na cabine, tomando café tranqüilamente depois de uma manhã muito dura que havia começado quando ainda estava escuro. Estava pálido e parecia cansado mas contente.
- Nunca teria acreditado que se pudessem fazer tantas coisas em três dias, porque não hão passado mais desde que estive aqui - disse Stephen olhando ao redor. -
A cabine está quase igual à nossa antiga cabine: cômoda, arrumada e limpa. E as pequenas caronadas deixam muito mais espaço livre. Que alegria! Raffles nos convidou
para almoçar na quinta-feira aqui em Batavia. Encontrou um escrevente de cuja valia está seguro e dois guardas-marinhas de cuja valia não o está, mas não encontrou
nenhum contador honrado.
- Na quinta-feira? - perguntou Jack. - Havia planejado rebocar a escuna mar adentro amanhã para nos reunirmos com a barcaça que transporta a pólvora pela manhã,
carregar o gado durante a maré baixa e fazer-me ao mar pela noite quando mudasse a maré.
- Sei que amanhã tem uma reunião com o conselho e depois oferece um almoço para uma vintena de potentados em Buitenzorg.
- Está muito ocupado, sem dúvida - confirmou Jack e, depois de refletir um momento, continuou: - Esperar quinta-feira significa perder dois dias; contudo, desagradaria-me
muito não ser cortês com o governador, que foi tão amável comigo. Mas lhe direi uma coisa, Stephen. Se visse ao governador antes da quinta-feira, seria melhor que
lhe rogasse que não se ocupasse com o escrevente nem com os guardas-marinhas, mas que simplesmente dissesse a um secretário que lhes desse uma nota minha. Assim
nem ele nem a senhora Raffles teriam que suportar a um par de mal-educados e eu poderia julgar melhor suas qualidades. Por que os expulsaram do barco?
- Por embriaguez, fornicação e preguiça. Mas não os expulsaram, os abandonaram. Saíram de um bordel ao meio-dia, percorreram cambaleantes o caminho até a praia e
viram que a esquadra havia zarpado ao amanhecer. Viveram na miséria desde então, pois apesar do governador ter se ocupado indiretamente deles, parece que seus amigos
não lhes ajudaram, talvez por falta de tempo, não de vontade. Afinal de contas, os mercantes que fazem o comércio com as índias demoram uma eternidade em ir e vir.
Jack esteve olhando o Mar da China Meridional por um momento. Debaixo do brilhante sol, as inumeráveis embarcações locais se moviam de um lado para outro sobre as
águas verdosas e, a um palmo do horizonte, ao sul havia nuvens carregadas de chuva. Então serviu outra xícara de café para Stephen e disse:
- Com relação ao contador, posso passar sem ele. O pobre Bigh tinha um despenseiro inteligente e bastante honesto e um ajudante de contador sensato; e o capitão
Cook era seu própio contador. Mas receberia de braços abertos um bom escrevente. Eu ficaria triste se nos desfizéssemos, como sugeriu, de todas as nossas anotações,
em parte porque estão mescladas com as observações que fiz para entregar a Humboldt, e talvez um homem entendido e acostumado a usar os livros dos barcos poderia
fazê-las inteligíveis. Ademais, há o caso de Macintosh. Recorda-se de Macintosh? Capturou a Sybille, de trinta e seis canhões, em uma batalha que se desenrolou ao
longo do Canal. Tratou de solucionar as coisas da mesma maneira quando desembarcou nas ilhas Cicladas e perdeu a metade de seus papéis. Envolveu a outra metade em
uma lâmina de chumbo onde escreveu: "À m... a Junta Naval. Que se f... o Almirantado. Vá tomar no c... o Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos" e a jogou pela borda.
Uma semana depois um pescador de esponjas grego a encontrou, levou-a ao navio insígnia em perfeitas condições e pediu uma recompensa.
- Cantou vitória antes da hora - disse Stephen.
- Sim. Quanto aos guardas-marinhas, eu lhes darei uma espiada, naturalmente, mas se não têm recomendação e, também, já são um pouco mais velhos... Estive pensando
em Conway, um dos gavieiros do traquete, mas seria difícil para ele deixar a coberta inferior de seu própio barco e dar ordens aos homens que até ontem sentavam-se
ao seu lado na mesa do refeitório e, como se fosse pouco, trasladar-se ao camarote de guardas-marinhas, que está cheio de homens que eram seus superiores. Além disso,
amiúde as ascensões que concedi foram desafortunadas. O castelo de popa é um lugar muito perigoso nas batalhas, sabia?
- Não entendo muito de batalhas - respondeu Stephen -, mas achava que nelas os guardas-marinhas ficavam com as brigadas de artilheiros ou com os homens que disparavam
as armas leves no cesto da gávea.
- A maioria deles ficam ali, mas sempre há algum no castelo de popa com o capitão e o imediato, cumprindo funções, por assim dizer, de assessor.
Na quarta-feira a Noz-moscada se trasladou da baía e ancorou no ancoradouro que a Diane havia usado; e o capitão, o oficial de derrota e seu ajudante a inspecionaram
rigorosamente. Nem no estaleiro nem quando estava abordada com a barcaça que transportava a pólvora puderam afastar-se o bastante para apreciar bem a forma com que
se mantinha na água, mas agora tinham todo o espaço do mundo e os três concordaram em que tinha a popa um pouco mais afundada. A colocação do lastro e da carga era
um processo exageradamente laborioso e que requeria muita perícia. Já havia chegado até a incorporação do gado, pelo que o conhecido odor dos porcos saía agora pela
escotilha de proa e se estendia pelas cobertas. Ainda que eliminar tudo aquilo talvez não provocasse um motim, sem dúvida daria lugar a burburinhos de protesto.
Por sorte, o senhor Warren, que conhecia o afã de Jack por conseguir uma perfeita distribuição do carregamento e fazer que seu barco navegasse tão rapidamente como
pudesse, colocara as mangueiras de maneira que poderia trasladar várias toneladas de água de um lado para outro da coberta inferior.
- Acredito que com meia fileira da coberta bastará, senhor - anunciou.
Jack consentiu e, depois de encher os pulmões, gritou:
- Senhor Fielding, por favor, que comecem a bombear na proa!!!
- Que voz tem o capitão! - exclamou Stephen, dirigindo-se para o bote com o senhor Welby. - Chega a uma grande distância. Mas devo dizer que não é áspera nem metálica,
como as vozes de leiloeiros, políticos ou mulheres de mau caráter.
- Na parte da Inglaterra de onde sou, há um pássaro que chamamos de touro dos lamaçais que é quase tão bom como ele. Em uma noite com o vento em calmaria se pode
ouvir seu grito a três milhas de distância. Mas aposto que sabe tudo isto, doutor.
- Oh, senhor, por favor! - gritou atrás deles um jovem que corria ofegante pelo cais. - Se vão para a Noz-moscada, poderiam nos levar com os senhores por favor?
Temos uma nota para o capitão.
- Que queres dizer com nos? - perguntou Welby, franzindo o cenho.
- Meu amigo também vai, senhor. Está justo do outro lado da ponte. Seu salto do sapato caiu.
- Então diga-lhe que tire o outro e que venha com os dois na mão - disse Welby. - E rápido, porque não vamos esperar aqui toda a noite!
- Vamos, Miller, vamos! - gritou o jovem com todas suas forças. - Venha com os dois sapatos na mão, que o cavalheiro não vai esperar aqui a noite toda!
Enquanto o bote deslizava pelas tranqüilas águas, Stephen observou os garotos. Viu que tinham a cara amarelada e eram só pele e ossos, e se perguntou qual seria
a tradução de âge ingrat. Estavam magros e mal nutridos, e ainda que era óbvio que tinham se esforçado muito para ter boa aparência e para arrumar a roupa gasta
que ainda conservavam e que agora estavam folgadas, estavam escassamente apresentáveis. Na realidade, seus cuidados lhes haviam prejudicado, pois nenhum dos dois
tinha prática em se barbear, tinham se cortado e esfolado a cara, e como ambos estavam na idade de ter acne, seu aspecto de adolescentes normais resultava repulsivo.
Inspiravam-lhe lástima como qualquer outro jovem ansioso e desconcertado, mas não lhe pareceram interessantes até que um deles, ao notar que o olhava fixamente,
justo antes que o bote chegasse, murmurou:
- Acho que temos um aspecto lamentável, senhor. - Mas olhou para Stephen com uma confiança em sua boa vontade tão óbvia que o comoveu.
- Oh, não, não! - exclamou.
Quando subia pelo costado, pensou: "Não sei o que Jack pensará deles. Espero que sejam bons marinheiros, pois do contrário terão que trabalhar em um tear ou arar
a terra". Uma mão amiga lhe ajudou a subir o último degrau, e depois viu a Fielding sorridente.
- Ah, o senhor está aqui, doutor! - exclamou. - O capitão me pediu que lhe dissesse que o espera na cabine com uma surpresa.
Na cabine viu mais sorrisos, um amplo no rosto avermelhado de Jack e um tímido no do homem que havia junto a ele, um homem baixo que se estava de pé atrás de um
monte de papéis.
- Ah, está aqui doutor! - exclamou Jack. - E aqui está um velho companheiro de tripulação nosso.
- Senhor Adams! - Stephen o cumprimentou, apertando-lhe a mão. - Alegro-me muito de voltar a vê-lo. E o felicito por sua recuperação.
- O senhor Adams assegura que poderá pôr em ordem este caos, fazer as necessárias substituições e proporcionar-nos um equipamento completo. Conservaremos tudo e
poderemos arrumar nossas contas!
- Confio no senhor Adams e em seu poder taumatúrgico - disse Stephen, falando com toda sinceridade.
Adams ocupava o posto de escrevente e secretário do capitão na Lively quando esteve sob o comando de Jack temporariamente, e era conhecido por seu talento no Mediterrâneo,
onde muitos contadores de outros barcos com problemas iam vê-lo secretamente para pedir conselho e muitos capitães haviam escrito despachos em que relatavam com
exatidão a resolução complicadas batalhas graças a sua caneta. Há tempos poderia ter sido um contador, mas não gostava de ter que contar as coisas e, também, para
um escrevente era mais fácil tomar parte em ataques surpresa, que era o que mais gostava.
- Deveria tê-lo visitado quando chegou - disse Adams a Jack -, mas estava no balneário de Barlabang e não me informei de que havia chegado até a terça-feira, quando
o governador, que Deus o bendiga, chamou-me para dizer.
Quando soaram as três badaladas e houve uma pequena pausa, Stephen exclamou:
- Mas me esqueci desses desgraçados jovens! Vieram em nosso bote e estão esperando... aí fora!
- Eu os receberei assim que possa - disse Jack.
- Por mim pode recebê-los imediatamente, senhor - interveio Adams, ordenando os papéis. - Vou ver o ajudante do contador, e se tem um pouco de cabeça, juntos poderemos
preencher todas estas lacunas.
Cinco minutos depois fizeram entrar os jovens, que estavam pálidos pela espera e o medo. Jack os recebeu com indiferença. A alegria que sentia não afetou sua capacidade
de julgamento em assuntos relacionados com a escuna, e a primeira impressão não foi muito favorável. Pensou que eram de um tipo de guardas-marinhas que qualquer
capitão largaria em terra sem fazer uma rigorosa investigação. Imediatamente soube que sua folha de serviços era medíocre e que suas aptidões eram escassas. E depois
de refletir um pouco disse:
- Não sei nada sobre os senhores. Não sei nada dos capitães a cujas ordens serviram nem tenho nenhuma nota deles. O secretário somente os menciona, não lhes recomenda.
Por outra parte, haverá sem dúvida um R junto aos seus nomes nos livros da Clio, assim que os senhores são teoricamente desertores. Não posso admitir-lhes em meu
castelo de popa. Mas se quiserem, posso inscrever-lhes nos livros como marinheiros de primeira.
- Obrigado, senhor - disseram com voz débil.
- Não lhes agrada a idéia de ficar na coberta inferior? - perguntou Jack. - Está bem. Não me fazem falta tripulantes e não vou recrutá-los à força. Tampouco vou
aprisionar-lhes como desertores. Podem ir para a costa no próximo bote.
- Preferiríamos ficar, senhor, por favor - solicitaram.
- Está bem - disse Jack. - Naturalmente, a vida na coberta inferior é dura, como sabem muito bem, mas a tripulação da Noz-moscada é formada por homens honestos,
e se os senhores se mantiverem calados, cumprirem com suas obrigações e não procurarem problemas, sobretudo se não procurarem problemas, passarão muito bem; e além
do mais, entenderão melhor o que é a Armada. Muitos bons oficiais começaram sua carreira como marinheiros ou foram degradados quando eram guardas-marinhas e finalmente
chegaram a almirantes. Killick, Killick, diga ao senhor Fielding que venha! Senhor Fielding, Oakes e Miller serão inscritos nos livros da corveta como marinheiros
de primeira. Formarão parte da guarda de estibordo e trabalharão como gavieiros do traquete. O ajudante do contador deve entregar-lhes calças, macas e colchonetes
sob a supervisão de Adams.
- Sim, senhor - consentiu Fielding.
- Muitas obrigado, senhor - disseram Oakes e Miller, ocultando, isto é, tratando de ocultar seu desgosto atrás de uma expressão de gratidão bastante bem fingida.
Na quinta-feira Ahmed entrou na cabine de Stephen com gesto preocupado e com um discurso preparado. Ajoelhou-se, bateu a escrivaninha com a testa e lhe rogou que
lhe desse permissão para ir embora. Disse que sentia saudade de sua família e de seu povoado e que sempre acreditara que voltaria a Java com tuan, mas agora o barco
estava a ponto de zarpar rumo a um mundo desconhecido, pior que a Inglaterra. Acrescentou que como presente de despedida havia trazido a tuan uma caixa para guardar
folhas de betel, onde ele poderia levar suas folhas de coca, e uma peruca, que, ainda que não fosse muito boa, era a melhor que se podia encontrar na ilha.
Stephen esperava isto, sobretudo porque tinham visto a Ahmed acompanhar a uma bonita jovem de Sumatra. Quando lhe deu permissão para ir embora, entregou-lhe uma
bolsa com johannes e grandes moedas de ouro portuguesas, e depois escreveu uma boa recomendação caso desejasse buscar emprego outra vez. Separaram-se amigavelmente
e Stephen pôs a peruca, adequadamente empoada, para ir ao almoço do governador.
A refeição transcorreu de maneira agradável, e ainda que Jack e Stephen eram os únicos homens convidados, a senhora Raffles tinha convidado nada menos que a quatro
damas holandesas para que lhes fizessem companhia. As damas holandesas, que falavam bastante inglês, haviam se arrumado para proteger sua delicada pele do clima
de Batavia e para manter-se roliças e alegres. Stephen se deu conta pela primeira vez em sua vida de que Rubens e ele eram da mesma opinião, sobretudo ao notar que
seus generosos decotes e seus diáfanos vestidos permitiam ver amplos pedaços da carne firme e da pele nacarada que pintava Rubens e que tanto lhe haviam desconcertado.
A idéia de estar na cama com uma dessas criaturas alegres e de exuberantes formas lhe turbou um momento, e lamentou que a senhora Raffles fizesse um sinal para que
todas se fossem enquanto os homens se agrupavam em um extremo da mesa.
- Aubrey - começou o governador -, suponho que Maturin lhe disse como acolheu minha proposta de mandar a Kestrel até o estreito quando ela chegue.
- Sim, senhor - respondeu Jack, sorrindo.
- Sem dúvida, tinha razão, ainda que falou como um homem cuja principal preocupação é o aspecto político, e eu gostaria de escutar a opinião de um oficial, de um
capitão combativo.
- Bem, senhor, do ponto de vista tático, lamentaria ser acompanhado pela corveta. Sua presença poderia ter como consequência que não houvesse combate. É possível
que a Cornélie, ao avistar-nos quando ainda não pudesse ver o casco das embarcações, fizesse um cálculo exagerado da potência da Kestrel, pois tem aparelho de navio,
e fugisse e não voltasse a aparecer jamais. Por outra parte, a corveta não chegará até dentro de vários dias e logo terá que repor apetrechos, água e provisões,
e cada dia perdido significa deixar de avançar cento e cinqüenta ou duzentas milhas para o leste com o vento que sopra agora. E quanto ao demais, ao aspecto político,
que eu chamaria espiritual, estou totalmente de acordo com Maturin: quanto mais oportunidades aproveitemos para tentar persuadir a Armada francesa de que sempre
vai ser derrotada, menos probabilidades terá de que ganhe. Assim que, com sua permissão, senhor, vou soltar as amarras cinco minutos depois de despedir-me da senhora
Raffles. E assim que tenha perdido de vista a costa, a escuna navegará com rumo leste com a maior quantidade de velas desdobradas que possa levar.
- Querida - disse o governador no salão -, não devemos reter o senhor Aubrey mais tempo que o necessário para o café. Está impaciente para navegar para o leste e
convencer aos franceses de que sempre vão ser derrotados.
- Antes de ir tem que me dizer o que fez com aqueles pobres e infortunados jovens. Partia meu coração vê-los perambular pelo mercado chinês tão pálidos, tristes
e descuidados. Isso teria causado em suas mães uma tristeza indescritível.
- Eu lhes permiti ficar a bordo, senhora, mas não no castelo de popa, mas na coberta inferior.
- Entre simples marinheiros? Que barbaridade, capitão Aubrey! São filhos de cavalheiros!
- Eu também o era, senhora, quando me degradaram e me mandaram para a coberta inferior. Foi muito duro e na guarda de meia, quando ninguém me via, chorava como uma
menina, mas me fez bem. E lhe asseguro, senhora, que em geral, os simples marinheiros são homens honestos. Todos meus companheiros da coberta inferior, exceto um,
eram muito amáveis. Eram grosseiros às vezes, mas estive em camarotes de guardas-marinhas e em câmaras de oficiais onde havia homens muito mais grosseiros.
- Seria uma indiscrição perguntar-lhe por que o degradaram, verdade? - disse a dama holandesa que falava inglês com mais soltura.
- Bem, senhora - respondeu Jack com um olhar malicioso -, foi em parte foi por minha devoção ao sexo, mas principalmente porque roubei a lingüiça do capitão.
- Sexo? - perguntaram com rubor as damas holandesas. - Lingüiça?
Depois cochicharam algo entre elas, ruborizaram, puseram uma expressão grave e guardaram silêncio.
Em meio do silêncio Jack explicou à senhora Raffles:
- Voltando aos infortunados jovens, acho que têm madeira de oficial, mas quero ver como se comportam na coberta inferior durante umas semanas. Se minha impressão
é acertada, eu os levarei ao castelo de popa, o que farei coincidir com a ascensão de um estupendo jovem gavieiro do traquete. Esse jovem que virá ao castelo de
popa com eles não se sentirá só nem como um estranho no camarote de guardas-marinhas, pois lhes designei a mesma guarda e a mesma mesa do refeitório.
Os tripulantes da Noz-moscada receberam ao seu capitão sem cerimônia e imediatamente içaram sua falua e soltaram amarras. Enquanto uma pequena banda (formada por
um trompete marítimo, dois violinos, um oboé, duas gigas e, certamente, um tambor) tocava Loath to Depart, clara expressão da dor da partida, a Noz-moscada saía
do porto passando entre os barcos com os últimos movimentos da maré e com um vento muito débil. Ainda que os tripulantes estiveram muito ocupados, tiveram tempo
para fazer amizades em terra, e um pequeno grupo de jovens de Java, Sumatra, Madura e Holanda agitaram seus lenços no ar até que os perderam de vista e a escuna
parecia uma pequena mancha branca na capa de névoa que rodeava o cabo Krawang.
Ainda estava lá na sexta-feira e no sábado e no domingo, pois o monção, que era tão forte e tão estável enquanto permaneceram em Batavia, dera passagem a ventos
tão fracos e desfavoráveis que parecia que a Noz-moscada nunca poderia dobrar o maldito cabo. Jack tentou de tudo o que os marinheiros podiam tentar, ancorar com
três amarras juntas para resistir o embate da corrente e depois aproveitar a baixa-mar, sair para o alto mar para encontrar algum vento favorável, navegar dando
bordejadas de modo que a Noz-moscada alcançasse uma velocidade tão grande como a atenção e a perícia dos bons marinheiros permitia; contudo, a escuna não avançava
porque a massa de água pela qual deslizava se movia em direção oeste a uma velocidade igual ou maior. Algumas vezes, quando o vento se acalmava, tentava avançar
a remo, pois os tripulantes, apesar de que fosse uma embarcação maior que as que recorriam ao uso dos enormes remos, não se incomodavam em avançar uma ou duas milhas
da costa através de um trabalho penoso e de certa forma ignominioso. Outras vezes mandava rebocá-la, e os tripulantes dos botes remavam com todas suas forças. Mas
a maior parte do tempo, como o ar se movia um pouco, podia navegar, e embora não avançasse para o leste, Jack pôde conhecer muitas de suas características. Não navegava
fácil nem rapidamente com o vento pela alheta, mas era muito veloz navegando com o vento em contra, tão veloz como a Surprise, e não tinha a mesma tendência de mudar
de bordo, mais ainda, a proa para o lugar de onde vinha o vento se não estava no leme um experimentado marinheiro. Durante os freqüentes e inoportunos períodos de
calmaria, ele e o oficial de derrota fizeram mudanças na exárcia até que encontraram a disposição das velas que mais convinha para a Noz-moscada (além da troca de
meia traca{6} que tinham feito no início), e a escuna aumentou sua capacidade de manobra.
Apesar da disposição das velas ser perfeita, não podia desafiar a natureza, não podia avançar com o vento e a maré contrários para sudoeste do mar de Java. No domingo,
na hora do café da manhã, Jack disse:
- Raras vezes agi por princípio, e quando o fiz me dei mal. Uma vez uma jovem me disse: "Senhor Aubrey, apelo a sua honra para que responda com sinceridade a minha
pergunta: o senhor acredita que Caroline é mais bonita que eu?". E, de acordo com o princípio que diz que a honra é sagrada, eu lhe respondi que sim, que era um
pouco mais bonita, e ela se chateou tanto que rompeu relações comigo, sabia? Agora, outra vez simplesmente por princípio, eu fiquei até a quinta-feira para assistir
ao almoço do governador... Não te ponho a culpa, Stephen, e sei que, em realidade, nunca poderei fazer-te compreender que o tempo e a maré não esperam ninguém. E
quando penso em que desperdicei um vento do sudoeste que faria levar as gáveas com dois rizes e com o qual teríamos chegado aos 112º leste, maldigo os princípios.
- Há mais geléia?
Jack lhe passou e continuou:
- Mas a religião é outra coisa, compreende? Quero celebrar a cerimônia religiosa esta manhã e não sei se será inapropiado rogar a Deus que o vento seja favorável.
- Sem dúvida, é permitido rogar a Deus que chova, e sei que se faz amiúde. Mas com relação ao vento... Não acha que teria uma grande semelhança com um de seus costumes
pagãos? Não acredita que pareceria um reforço dos arranhões que faz nas brandais e os assobios que dá até que ficar com a cara roxa? Ou acaso, Deus não o queira,
um reforço do papismo? Martin nos teria dito qual é o costume da Igreja anglicana. Nós, os papistas, rogamos a nosso padroeiro ou outro santo mais apropriado que
interceda, e isso é o que vou fazer em minhas orações. Independentemente do que dissesse Martin, acho que não terá problemas se formular um desejo mentalmente ou
mesmo em voz alta.
- Eu gostaria muito que Martin estivesse aqui, ou melhor ainda, que nós estivéssemos lá, do outro lado do estreito. Como estarão? Como terão ido as coisas? Chegarão
a tempo? Meu Deus, eu me faço tantas perguntas!
- Quem é esse Martin do qual falam na cabine? - perguntou o novo ajudante de Killick, um marinheiro do Thunderer, originário de Wapping, que tinha ficado em terra
com outros seis para recuperar-se da febre de Batavia e era o único sobrevivente do grupo. Como tinha a baixa oficial e uma recomendação de seu capitão e viajara
com Jack e Killick em várias ocasiões, fora admitido na escuna imediatamente. Não tinha nenhuma habilidade especial e não era um servente delicado (era inclusive
mais rude que Killick) nem era um experto marinheiro (fora classificado como marinheiro de primeira só por cortesia), mas era um homem alegre e serviçal e, sobretudo,
um velho companheiro de tripulação.
- Não ouviu falar do senhor Martin? - perguntou Killick, interrompendo a limpeza de uma bandeja de prata.
- Não, companheiro, nem uma palavra - respondeu o marinheiro, que se chamava William Grimshaw.
- Nunca ouviu falar tampouco do reverendo Martin?
- Tampouco do reverendo Martin.
- Tem um só olho - disse Killick e, depois de refletir, acrescentou: - Claro que não. Chegou quando você havia partido. Ocupou o posto de capelão da Surprise quando
estávamos no Pacífico porque é muito amigo do doutor. Iam juntos para recolher animais selvagens e mariposas nas colônias espanholas. Encontraram serpentes, cabeças
reduzidas, bebês dissecados... em fim, curiosidades, e as puseram em álcool.
- Uma vez vi um cordeiro com cinco patas - disse William Grimshaw.
- Depois, quando ocorreu aquela desgraça ao capitão e ele teve que fazer-se corsário, o reverendo Martin veio conosco porque também a ele havia sofrido uma desgraça.
Foi algo em relação com a mulher do bispo de sua diocese, conforme me contaram.
- Os bispos não têm esposas, companheiro - corrigiu Grimshaw.
- Bem, então sua amante, ou sua namorada. Mas viajou como ajudante de cirurgião, não como capelão, porque nos barcos corsários os capelões não são bem recebidos.
- Nem tampouco nos barcos de guerra.
- Neste momento trabalha como cirurgião da Surprise, cortando seus companheiros de tripulação com a navalha, que já maneja com grande habilidade depois de ter dissecado
tantos crocodilos, babuínos e animais parecidos. E provavelmente, se Deus o permite, estará esperando-nos frente a umas ilhas do outro lado do estreito. É um cavalheiro
calado e agradável. Além disso, não se incomoda de escrever uma carta em nome de alguém ou uma petição em nome da tripulação, e sempre faz rezar aos peticionários.
Navegou com os outros para o oeste e nós para o leste, e teremos que reunir-nos nos confins do mundo, sabia? E o capitão queria que o reverendo estivesse aqui neste
momento para perguntar-lhe se é correto rogar a Deus que sopre o vento ou se é algo que tem que ver com o papismo.
- Pobrezinhos! - exclamou Grimshaw, sem se importar com a questão das orações.
- Por que diz isso? - perguntou Killick.
- Porque se um navega direto para o oeste e chega à linha onde muda a data, e, por exemplo, cruza-a numa segunda-feira, o dia seguinte também é segunda-feira, assim
que um perde um dia de pagamento.
Killick, receioso e mal-humorado, refletiu alguns momentos, mas depois, com o rosto radiante, anunciou:
- Mas nós estamos navegando direto para o leste, assim que, se a cruzarmos numa segunda-feira, o dia seguinte será quarta-feira, e nos pagarão a terça-feira sem
trabalhar, ah, ah, ah! Não é verdade, companheiro?
- Tão certo como que dois e dois são quatro.
- Que Deus lhe bendiga, William Grimshaw!
A magnífica notícia se difundiu por toda a escuna e provocou um entusiasmo que durou até o dia seguinte. E quando tudo estava preparado para a cerimônia religiosa,
Jack notou que os marinheiros não estavam tranqüilos nem sossegados nem prestavam toda sua atenção, como era usual, assim que depois de cantar vários hinos e salmos,
fechou o livro, fez uma pausa como prelúdio do final e disse:
- E todos os que o considerem oportuno, podem formular humildemente o desejo de que sopre um vento favorável, mas não uma petição formal.
Em resposta se ouviu um conjunto de sons bastante altos, composto pelos burburinhos que costumavam ouvir-se nas capelas (muitos dos homens da região ocidental da
Inglaterra eram partidários do inconformismo), numerosos "sim" e algumas frases como "sigamos". Era uma onda de adesões, mas tão ruidosa que lhe desgostou.
Tão ruidosa que desgostou ainda mais a muitos dos tripulantes da Noz-moscada, que culparam abertamente a falta de discrição de seus companheiros de que fizesse um
tempo totalmente mau durante um período que lhes pareceu inconcebível, interminável. Nesse período, em que as águas brilhantes e cálidas se moviam tumultuosamente
e se amontoavam no castelo, tinham que manter as linhas de vida colocadas de proa a popa e permanecer na convés boa parte da noite.
Jack já sabia como a Noz-moscada navegava com vento fraco, acalmado ou desfavorável, e nesse tempo descobriu como se comportava nas tormentas com ventos fortes de
diversas intensidades. Às vezes eram tão fortes que, se a escuna tinha espaço suficiente, navegava empopada, com o velacho rizado e os tripulantes vigiando para
ver se viam algum arrecife que não figurasse nas cartas marítimas, e se não o tinha, como quando passou pelo estreito de Macassar, onde havia perigosos arrecifes
e ilhotas, punha-se ao pairo com a vela de estai maior mantendo-se tão seca como um pato. Além de manter-se ao pairo admiravelmente, quando o vento era de grande
intensidade, conservava sua capacidade de navegar bem de bolina, e se aproximava dos 60° ou um pouco mais da direção do vento com escasso abatimento. E isso tinha
que fazê-lo com freqüência, quando inesperadamente aparecia a silhueta de alguma ilha e tinha que mudar o leme de bordo para esquivá-la.
Era verdade que, além das três ou quatro rajadas que lhes pegaram desprevenidos frente às ilhas Celebes, cada vez que tinha uma forte tormenta, o vento era favorável,
pois passava acima das ondas de brancas cristas em direção sul ou sudoeste; era verdade que todos os tripulantes da Noz-moscada, quando viajavam na desaparecida
Diane rumo leste pelas altas latitudes sul, tinham navegado com ventos muito mais fortes e entre ondas muito mais altas com vários inconvenientes acrescentados,
como ter as mãos geladas, gelo cobrindo o convés e a exárcia e o risco durante a noite de encontrar-se com perigosos icebergs do tamanho de uma catedral; mas agora
consideravam injusto o mau tempo porque tinha chegado inesperadamente e lhes parecia antinatural haver tido que trocar a distribuição de todo o velame três vezes,
até que acharam a complexa disposição que geralmente usavam para fazer uma difícil viagem para o sul do cabo de Hornos. Também, ainda que trabalhassem duramente,
a Noz-moscada avançava muito pouco, pois apesar dos ventos serem favoráveis, não podiam aproveitá-los naquelas águas perigosas e em boa parte desconhecidas.
Só quando chegaram perto do Equador de novo, o monção não voltou a ser como devia, e então puderam voltar a colocar os mastaréus. Isso ocorreu numa sexta-feira,
e esse dia e a maior parte do seguinte todos se dedicaram a trocar, secar e reparar as velas, enquanto a Noz-moscada deslizava suavemente pelas plácidas águas, avançando
a quatro nós de velocidade e com serviolas nos lugares mais altos. Ao final, quando chegou a paz da noite, ela foi destroçada pelo estrondo das caronadas e o ruído
mais grave dos isolados disparos dos canhões longos fazendo práticas de tiro.
Durante os dias anteriores de calmaria, todos os marinheiros tinham chegado a ter muita prática com as pequenas caronadas, que só pesavam dezessete quintais cada
uma, e os artilheiros inclusive lhes tinham tomado afeto. Jack tinha razões para dizer:
- Foi uma boa prática, Fielding. - E acrescentou: - Mas teria sido melhor com mais guardas-marinhas. Necessitamos de pelo menos mais dois na proa e outro no castelo
de popa.
- Estou completamente de acordo, senhor - disse Fielding e, ao notar que o capitão não pensava em falar mais, perguntou: - Vai celebrar a cerimônia religiosa amanhã,
senhor?
- Acho que não - respondeu Jack. - talvez seja melhor deixar que as coisas passem por si mesmas. Contentemo-nos com a revista e a leitura do Código Naval por hora,
ao menos até que cheguemos ao alto mar. E creio que tampouco chamaremos a todos para seus postos de combate. Os marinheiros precisam de um descanso.
Fez uma pausa e depois propôs:
- Vamos tomar um copo de vinho abaixo tão logo a cabine exista de novo.
Os marinheiros haviam descido para o porão os anteparos e os móveis da cabine, o violino do capitão, a miniatura de Sophie e tudo o que interferia no funcionamento
dos canhões (os obstáculos que impediam que as cobertas dos barcos sob o comando de Jack Aubrey estivessem vazias de proa a popa todas as noites) em quando ouviram
o toque do tambor que chamava todos a seus postos de combate. Agora o jovem carpinteiro e seus ajudantes, que eram realmente hábeis, estavam recolocando tudo com
extraordinária rapidez e após cinco minutos voltou a existir uma habitação cristã com xerez e bolachas sobre uma bandeja.
- Estive pensado em ascender Conway, Oakes e Miller - anunciou Jack. - Tem alguma observação que fazer?
- Sem dúvida, Conway é um jovem excelente - disse Fielding. - E Oakes e Miller se comportaram bem no recente período de mau tempo.
- Eu me dei conta. E sei muito bem que não são perfeitos, mas necessitamos de guardas-marinhas. Pode recomendar algum outro marinheiro que seja melhor?
- Não, senhor - respondeu Fielding depois de refletir um momento. - Sendo sincero, não.
A idéia que tinham os marinheiros do descanso poderia desconcertar aos homens do interior. Tiveram que subir as macas meia hora antes do costume e durante o café
da manhã o contramestre se assomou na escotilha central e gritou:
- Ouvem-me de proa a popa? Lavem-se para a revista quando soem as cinco badaladas! Com calças brancas e casaca!
Entretanto, seus companheiros gritavam na proa:
- Ouvem-me? Barbeiem-se e ponham camisa limpa para a revista quando soem as cinco badaladas!
Esses gritos eram tão comuns em um barco de guerra como as flores na primavera.
Desde o final do café da manhã começou, como sempre, uma grande atividade. Todos os marinheiros, exceto os poucos grumetes que ainda não tinham barba, barbeavam-se
com suas própias navalhas ou se submetiam à ação do barbeiro da Noz-moscada. Ademais, os que usavam trança as penteavam e voltavam a fazê-las uns nos outros. Depois
que muitos deles limparam o convés com a pedra arenito seca e todos lavaram as mãos e a cara em bacias junto ao tonel situado no convés, fizeram sua aparição as
impecáveis calças e casacas que haviam lavado na quinta-feira, quando o vento fazia usar as gáveas rizadas, e que em muitos casos estavam adornadas com fitas nas
costuras, também nos chapéus de palha de aba larga com fitas que já tinham bordado o nome da escuna. Ao mesmo tempo, os infantes da marinha abrilhantaram, limparam
com calcário e escovaram o que não haviam abrilhantado, limpado com calcário nem escovado no sábado pela tarde. E certamente, todos os tripulantes subiram suas trouxas
e as colocaram formando uma pirâmide onde ficavam amontoados os paus. Ainda que os oficiais puderam esperar até o último momento para pôr seu melhor uniforme, já
estavam assando antes que Richardson ordenasse a Bennett, seu companheiro de guarda:
- Toque para a revista.
Bennett se voltou para o homem que tocava o tambor e ordenou:
- Toque para a revista.
Ao primeiro golpe do tambor, os infantes da marinha foram para a popa, ao final da popa, caminhando pesadamente, e quando ouviram os primeiros gritos militares formaram
em filas de um lado ao outro da convés com Welby na frente, flanqueado pelos suboficiais e o homem que tocava o tambor. Enquanto isso, os marinheiros se dirigiram
aos seus postos e formaram em filas na parte do castelo de popa que restava livre, os corrimãos e o castelo enquanto os oficiais e os guardas-marinhas gritavam:
- Em fila! Malditos marinheiros de água doce! Em fila!
Quando estavam mais ou menos ordenados, o oficial de cada brigada informou a Fielding de que seus homens estavam presentes, limpos e adequadamente vestidos. Fielding
atravessou a coberta, aproximou-se de Jack e, tirando o chapéu, anunciou:
- Todos os oficiais deram seu informe, senhor.
- Muito bem, senhor Fielding - respondeu Jack. - Então percorreremos a escuna.
Fizeram isso e, como era habitual, começaram inspecionando os infantes da marinha. Depois inspecionaram os marinheiros da guarda de proa e os aleijados (que na Noz-moscada
formavam uma só brigada), sob as ordens do senhor Warren e Bennett; depois os artilheiros, sob as ordens do senhor White, por falta de um oficial no castelo de popa,
e Fleming; e depois os gavieiros, sob as ordens de Richardson e Reade. Estes últimos eram os membros da tripulação mais jovens, mais ágeis e mais esmerados. Gostavam
de estar elegantes, e muitos, também de enfeitar-se com fitas e bordados de cima abaixo, exibiam várias tatuagens. Entre eles estavam Conway, um jovem alegre que
usava fitas azuis costuradas nas costuras das calças, e Oakes e Miller, que eram menos alegres, mas também gostavam de se vestir bem, até tal ponto que tinham se
atrevido a pôr uma cinta rosa por toda a borda da casaca, e em cada revista estavam menos pálidos e com menos espinhas. Chegou a vez dos marinheiros do castelo,
mais velhos e mais experientes, que estavam sob as ordens de Seymour. Nem mesmo entre estes marinheiros, que em alguns casos navegavam há quarenta anos, havia algum
que tivesse feito a circunavegação do globo, nem tampouco alguém que tivesse previsto que ganhariam um dia, e também eles tinham ainda um pouco daquele inusual entusiasmo.
Em cada brigada o oficial cumprimentava e os marinheiros tiravam os chapéus, alisavam o cabelo e se endireitavam. Jack caminhava pela fila olhando atentamente a
todos e cada um dos homens, a todos e cada um dos rostos conhecidos.
Isso era quase uma façanha quando o mar estava agitado, pois como todos estavam convencidos de que a Noz-moscada quase podia se considerar uma fragata, porque apesar
de ser pequena seu aparelho era semelhante ao de um navio, formavam filas no portaló sem ter em conta que deixavam pouco espaço entre elas para que passasse um corpulento
capitão e muito menos para que inspecionasse a um robusto marinheiro.
Em pouco tempo terminou essa etapa. Depois, Jack inspecionou a imaculada cozinha com suas brilhantes panelas de cobre e o imediato revisou os camarotes, que estavam
adornados com quadros, brilhantes vasilhas de cerâmica e penas de pavões reais de Java e uma vela sobre o baú mais alto, e juntos inspecionaram a coberta inferior
e os paióis. Finalmente foram à enfermaria, onde Stephen, Macmillan e um garoto recém contratado como ajudante lhes receberam e informaram sobre os cinco obstinados
casos de sífilis procedentes de Batavia e sobre o enfermo que tinha a clavícula quebada (um marinheiro encarregado da âncora de emergência que estava tão contente
porque ia ganhar um dia, que decidiu ensinar a seus companheiros a dançar uma dança típica irlandesa em cima de uma bita).
O capitão voltou ao castelo de popa e à brilhante luz do sol. Os infantes da marinha apresentaram armas com um estalido seguido de um golpe seco. Todos os oficiais
cumprimentaram e todos os marinheiros tiraram os chapéus.
- Muito bem, senhor Fielding - disse. - Nós nos contentaremos em ler os artigos do Código Naval e depois almoçaremos.
O móvel onde se guardavam as espadas que utilizavam como atril e as tabuinhas onde estavam escritos os artigos estavam preparados. Jack leu com rapidez o conhecido
texto e terminou dizendo:
- Todos os outros delitos não castigados com a pena capital que sejam cometidos por qualquer pessoa ou pessoas da Armada e não estejam mencionados nestes artigos
e, por isso, não tenham um castigo atribuído a eles, serão castigados de acordo com os costumes e as leis aplicadas nesses casos no mar.
depois virou-se para o senhor Fielding e disse:
- Senhor Fielding, como resta pouco tempo antes que soem as oito badaladas, pode ordenar que arriem as sobrejoanetes e a bujarrona.
Para ele, em troca, faltavam mais de duas horas para almoçar, mas esse tempo foi ainda pior para seus convidados, Richardson e Seymour, porque os oficiais geralmente
comiam muito antes que o capitão, e os guardas-marinhas ainda antes, ao meio-dia.
Mas foi uma refeição pela qual valia a pena esperar. Wilson, o cozinheiro de Jack, havia se esmerado em preparar uma sopa de pescado e mariscos, feita principalmente
com lagostins que haviam comprado a um paraú que passou perto, uma perna de cordeiro assada e várias sobremesas. Ademais, o fino xerez que beberam não se ressentira
de sua passagem pelo Equador pelo menos três vezes. Para Stephen era um mistério como podiam tragar tudo aquilo a uma temperatura de oitenta graus Farenheit, em
uma atmosfera carregada e vestidos com casacas de pano. Agora os três, a quem desejava que Deus protegesse, estavam comendo com aparente bom apetite arroz com leite,
bolo de melaço, pudim de sagu e doces de Shrewsbury. Porém, sob a jocosidade de Jack, um observador acostumado a vê-lo podia distinguir um estado de ânimo completamente
diferente.
- É estranho que todos tenham se surpreendido e alegrado tanto de ganhar um dia - observou Jack. - Afinal de contas, há mais de vinte anos os barcos ingleses usam
convictos a Botany Bay e regressam à Inglaterra pelo cabo de Hornos, assim que era de esperar que fosse do domínio público. Mas me alegro de que haja a bordo tanta
alegria como se todos estivessem de férias, porque é apropiada para o que penso fazer esta tarde.
- Com sua permissão, senhor - disse Killick, irrompendo na cabine com uma grande bandeja de prata em chamas que pôs diante de Jack, uma bandeja com uma fritada açucarada
flameada que era o broche de ouro do banquete, e o orgulho de Wilson.
Só depois de comê-la e de brindar ao rei e a várias pessoas mais que Jack continuou:
- Desculpem-me se por um momento falo de assuntos da Armada. Tenho a intenção de promover Conway, Oakes e Miller a guardas-marinhas antes da segunda guarda de quartilho.
Posso contar com o senhor para facilitar-lhes a adaptação ao camarote, senhor Seymour? Entrar nele pode ser difícil.
- Eu o farei com muito prazer, senhor - respondeu Seymour. - E Bennett e eu lhes emprestaremos os uniformes até que possam ir ver a um bom alfaiate. Compramos as
coisas do pobre Clerke quando as venderam junto ao mastro maior, e estava muito bem abastecido, pois tinha três peças de cada coisa.
- Bem, senhor - disse Richardson, levantando-se -, alegro-me muito de ouvir essa notícia, e ainda que não tenho a presunção de felicitar-lhe por sua escolha, devo
dizer que facilitará muito o trabalho na Noz-moscada. E, naturalmente, quero agradecer-lhe de todo coração a esplêndida refeição.
O dia languideceu, e a brisa, com ele. Quando chamaram os marinheiros para trocar a guarda, a Noz-moscada deslizava pelas águas tranqüilas e quentes como caldo com
uma velocidade mais que suficiente para manobrar. Quase todos os tripulantes estavam tomando ar, bastante fresco, no convés. Fazia muito calor e umidade para bailar,
mas podia ouvir-se a muitos marinheiros cantando no castelo e na entrecoberta. Também cantavam os guardas-marinhas no camarote, onde os três novos, com fio, agulha
e tesouras, estavam arrumando os tão ansiados uniformes.
- O que acha de um pouco de música, Jack? - perguntou Stephen, entrando com uma partitura na mão. - Faz muito que não tocamos e acabo de encontrar aquela peça de
Clementi com a qual desfrutamos tanto no Mediterrâneo.
- Para dizer a verdade, Stephen - respondeu Jack -, não estou de humor para isso. Eu a converteria em um maldito canto fúnebre; converteria qualquer coisa em um
maldito canto fúnebre. Estive comparando meus cálculos com os do oficial de derrota e são muito parecidos. Tomei uma decisão equivocada. Devia ter esperado na entrada
do estreito de Salibabu com a escuna a pairar em frente ao extremo oriental da ilha, porque assim poderia atacar a fragata quando estivesse a um tiro de mosquete
e depois penol a penol.
Então mostrou a Stephen a grande carta marítima que estava estendida sobre a mesa.
- Com o monção do sudoeste, a Cornélie tinha que navegar para o norte e contornar Bornéu para chegar ao mar de Sulú, e depois fazer rumo e atravessar o estreito
de Sibutu para chegar ao mar de Celebes, pois ninguém em seu juizo perfeito se atreveria a passar pelo arquipélago de Sulú. Então, depois de cruzar o estreito, tinha
que mudar de bordo e fazer rumo a Salibabu. E ali, se meus planos tivessem saído bem, eu a estaria esperando. Mas meus planos estavam baseados na regularidade do
monção, e o monção foi irregular. O mau tempo que nos forçou a navegar lentamente e com prudência no estreito de Macassar ajudou a fragata a chegar rapidamente ao
mar de Celebes, e se eu tivesse me dirigido diretamente para Sibutu em vez de desviar-me para o leste com estes miseráveis ventos e ao abrigo da costa, acho que
teria chegado ali primeiro. Estou convencido de que já passou o estreito e agora navega velozmente rumo a Salibabu. Possivelmente, se tem poucos víveres e uma tripulação
lerda, possa alcançá-la antes que chegue, mas isso não me beneficiará muito. O tipo de combate que quero entabular não consiste em uma perseguição pela popa, mas
um ataque penol a penol seguido da abordagem em meio da fumaça. Mas há mil, dez mil possibilidades de que não volte mais a vê-la. Acho que estes dias de calmaria
foram fatais.
- Mas se a Cornélie passar pelo estreito de Salibabu, não se topará com Tom Pullings e a Surprise?
- A primeira condição é que Tom Pullings esteja lá.
- E isso não é provável?
- Há muitas possibilidades de que não seja assim porque os separa de nós a metade do mundo e sabe Deus quantos mares. A segunda condição é que a Cornélie se mantenha
na parte direita do canal, afastada da melhor rota, porque assim a poderiam avistar, mesmo sem ver ainda o casco, de Kabruang, onde espero que Tom esteja com a fragata
a pairar até o dia 20. E não só têm que ser capazes de avistá-la, como também de reconhecê-la de certa distância, pois quem esperaria ver um barco francês nessas
águas? Inclusive se essas três condições se cumprissem, Tom teria que abandonar o lugar do encontro para empreender uma perseguição que lhe afastaria duzentas ou
trezentas milhas, e não sei se o faria. Não é provável que se dêem essas condições em separado, e para que as quatro coincidam... Pelo que vejo, nossa única esperança
é navegar a toda vela, rindo de tudo outra vez, para recuperar esses condenados dias que passamos a pairar. Afinal de contas, os fundos da escuna estão limpíssimos.
- Quando fala do ataque surpresa e da abordagem em meio da fumaça, esqueceu da possibilidade de que não tenha pólvora?
- Não a esqueci - respondeu Jack secamente. - Certamente que não a esqueci. E capturar um barco nessas circunstâncias seria tão honroso como... Sem dúvida, existe
essa possibilidade, mas não posso baseiar nela meu plano de ataque. Só o que está claro é que tenho que tratar de encontrar-me com ela e agir em consequência...
agir como um bom marinheiro - acrescentou, sorrindo com amabilidade depois de ter usado um tom agressivo, pois, como Stephen sabia perfeitamente, estava muito nervoso.
Quando chegou a guarda da alvorada, já estavam navegando a toda vela, e quando todos os marinheiros terminaram de desjejuar e subiram para o convés, aumentou de
velocidade porque colocaram os mastaréus de sobrejoanetes e içaram as correspondentes velas, de uma lona de grande qualidade. Como o vento, um vento estável que
permitia usar abertas as joanetes, soprava agora pela alheta, logo fizeram sua aparição as alas no costado de barlavento, quatro no pau traquete e duas no maior,
e uma multidão de velas de estai. Também apareceram a cevadeira e a sobrecevadeira, certamente, e todos as bujarronas que podiam desdobrar-se. Era um magnífico conjunto
de velas. Pouco depois assomaram as monterillas{7} acima das sobrejoanetes e os marinheiros observaram como a água subia pelos lados da proa, descia até as placas
de cobre detrás do pescante de proa, passava rapidamente pelos costados produzindo um som sibilante e formava uma esteira ampla e reta que se estendia para o sudoeste.
CAPÍTULO 5
Miller, o mais feio dos dois guardas-marinhas ressuscitados, havia sido elogiado por sua vista aguda e por sua diligência como serviola, e não só Richardson, o oficial
de sua brigada, como também o própio capitão, e agora quase nunca podiam tirar-lhe do tope do mastro maior. Sentia um imenso respeito pelo capitão Aubrey, em parte
porque Jack tinha autoridade natural, fama de capitão combativo e capacidade para enaltecer ou difamar os outros; contudo, o que fazia que esse respeito alcançasse
o grau de veneração era o caráter de Jack de navegar a toda vela. Nos cinco anos que passara no mar nunca vira nada igual, e seus companheiros de tripulação, alguns
dos quais estavam no mar dez vezes esse tempo, asseguraram que nunca voltaria vê-la. Sem dúvida, posto que Jack Aubrey tinha uma embarcação robusta, com novos mastros
e nova exárcia e os fundos limpos, podia fazê-la navegar agora a grande velocidade pelas profundas águas do mar de Celebes. Também, tinha bons oficiais, uma tripulação
bastante boa (ainda não era como a da Surprise, mas era muito melhor que a maioria) e se sentia angustiado e culpado por ter tomado uma decisão equivocada. Dia após
dia a Noz-moscada avançava velozmente para o leste, com enormes pirâmides de velas, enquanto Jack ficava colado ao castelo de popa e Miller ao tope do mastro maior.
Miller desejava mais do que tudo comprazer e assombrar ao capitão Aubrey com o anúncio de que as joanetes da Cornélie acabavam de aparecer no horizonte.
Dia após dia largava atrás muitos graus de longitude. Enquanto isso, Jack e o oficial de derrota comprovavam e voltavam a comprovar sua posição com os cronômetros
e as medições lunares e Miller passava inclusive o tempo de descanso justo acima deles e às vezes levava para cima a comida envolvida em um lenço. Miller sempre
levava a luneta que Reade lhe dera dizendo-lhe: "Não é útil para um tipo com um só braço, sabe? Pode convidar a Harper e a mim para um pote de ponche quando chegarmos
a Botany Bay". Viu muitos paraús, sobretudo a oeste dos 123º E, e ocasionalmente algum junco que vinha das Filipinas. Comunicava sua presença em tom indiferente,
amiúde irritando os serviolas oficiais, e raras vezes recebia muitas mostras de agradecimento dos oficiais. Contudo, durante os dois últimos dias permanecera calado
não só porque não tinha avistado nenhum barco, como também porque não se podia ver o horizonte. Uma massa de diminutas e cálidas gotas de água enchia o ar, fazendo
difícil respirar e quase impossível diferenciar o mar do céu, pelo que o mundo parecia não ter limites. Foi graças a uma providencial clareira na névoa, a nor-noroeste,
que pôde avistar um barco aproximadamente a duas milhas de distância, um barco que navegava rumo sudeste, com apeas as gáveas desdobradas. Em tom convencido, olhando
para abaixo, gritou:
- Convés, um barco pela alheta de bombordo rumo sudeste! Já se lhe vê o casco!
Um momento depois sentiu uma vibração, que transmitiram sucessivamente distintos fragmentos da exárcia e foi produzida pelo rápido movimento ascendente de um corpo
pesado, e depois ouviu a voz do capitão, que do cesto da gávea lhe pedia que desse passagem. Colocaram-se um de cada lado do mastaréu maior, junto aos amantilhos,
e Jack perguntou:
- Onde está, senhor Miller?
- Mais ou menos a cinco graus pela alheta, senhor. Mas se vai e volta.
Jack se sentou na cruzeta e dirigiu a vista para o nor-noroeste acima do aprazível mar azul. Aumentaram suas esperanças, que quase tinham dado passagem à resignação,
fazendo seu coração bater tão rapidamente que lhe parecia que o tinha na garganta. Voltou a surgir uma clareira na névoa, de modo que o barco pôde ser visto muito
perto, e as esperanças diminuiram até um nível razoável. Certamente que uma embarcação que navegasse rumo sudeste não podia ser a Cornélie, contudo, Jack deu as
ordens necessárias para que içassem a bandeira, e a Noz-moscada, descrevendo uma elegante curva, se aproximasse do barco desconhecido, um mercante holandês de aspecto
abandonado, largo e pesado. O mercante não tentou escapar, aliás permaneceu ali com a gávea em pairo até que a Noz-moscada se aproximou pelo lado de barlavento.
Seus tripulantes, a maioria homens negros ou de pele de cor marrom-cinzento, alinharam-se no lado com expressão satisfeita e não sacaram nenhum de seus canhões,
que provavelmente eram de seis libras.
- Que barco vai? - perguntou Jack.
- Alkmaar, senhor, que vai de Manila a Menardo.
- Que se apresente o capitão com seus documentos.
Um bote caiu na água e o capitão foi nele para a escuna. Todos seus documentos estavam em ordem e entre eles se achava uma licença de comércio emitida pela administração
de Raffles em Batavia. Jack os devolveu ao holandês e lhe ofereceu um copo de vinho de Madeira.
- Para dizer a verdade - disse o holandês -, preferiria um barrilete de água, ainda que não fosse fresca.
Depois, em resposta às perguntas de Jack, acrescentou:
- Agradeceria se me desse dois ou três barris, se puder. Durante os últimos dias só havemos tomado meio balde por dia, porém, apesar disso, duvido que possamos chegar
a Menardo sem reabastecer. Os marinheiros estão mortos de sede, senhor.
- Acredito que poderemos dá-los, capitão - Jack lhe tranqüilizou. - Mas antes beba o vinho e conte-me como é que fala tão bem o inglês e por que tem pouca água.
- Com relação ao inglês, senhor, passei minha infância e minha juventude navegando em arenqueiros holandeses e ingleses indistintamente, entrando e saindo de Yarmouth.
Ali me recrutaram a força e me mandaram ao Billy Ruffian, que estava sob as ordens do capitão Hammond, e permaneci a bordo por dois anos, até que a paz foi assinada.
No que diz respeito à água, jogamos pela borda os barris de água das duas filas superiores para escapar de um par de juncos de piratas diante das ilhas Cagayan,
e quando nos livramos deles me dei conta de que algum tonto, contra de minhas ordens, havia jogado quase todos os da inferior. Esta viagem foi muito desafortunada,
senhor. Depois disso fomos capturados por uma fragata francesa, pode acreditar, senhor?, uma fragata francesa.
- Quantos canhões tinha?
- Trinta e dois, senhor. Muitos para que me atrevesse a opor-me a ela. Também tinha pouca água, mas quando demostrei ao seu capitão que apenas tínhamos o suficiente
para chegar ao nosso destino e que encontraria um bom lugar para pegar água em sua rota, já que navegava rumo ao estreito e um tempo depois, ela nos deixou. Devo
dizer que todos se comportaram muito bem, tendo em conta que não houve pilhagem nem tocaram nada do carregamento nem fizeram nada cruel, e ainda que tenham levado
toda a pólvora e todas as velas menos as que o senhor vê, senhor, o capitão me falou com cortesia e me deu uma letra emitida para um banco de Paris que espero receber
algum dia.
- Quanta pólvora?
- Quatro barris, senhor.
- Barris pela metade?
- Não, senhor, barris inteiros, e da melhor pólvora de grãos grandes de Manila.
- Onde fica esse lugar onde se pode pegar água?
- Em uma ilha que se chama Nil Desperandum, senhor. Mas não é a que se encontra no mar de Banda, mas a que fica mais ao norte. Demora-se muito para pegar água ali
porque tem que passar por um estreito sinuoso, a corrente de água é muito pequena e não há nenhuma laguna. Eu mesmo teria ido com ele se não fosse porque meu barco
nunca poderia regressar navegando em direção contrária ao monção. Meu barco não é a Gelijkheid. Como a chama agora, senhor?
- Noz-moscada - respondeu Jack.
Depois de conversar um pouco mais sobre a fragata francesa, que indubtavelmente era a Cornélie, de sua tripulação e suas qualidades, e também do lugar onde se podia
pegar água em Nil Desperandum, Jack disse:
- Desculpe-me, capitão, mas tenho pressa. Eu lhe darei a água empregando a bomba. Aproximarei a escuna tanto como possa e mandarei colocarem a mangueira. É melhor
que volte ao seu barco agora e prepare tudo.
As embarcações se separaram depois do mais desagradável quarto de hora que Fielding passara em todos seus anos de serviço como imediato. Havia uma forte marejada,
a mangueira da bomba era muito curta, os tripulantes do Alkmaar não tinham cuidado ao empurrar a escuna com o croque, não cuidavam da pintura, e os da Noz-moscada
não eram mais cuidadosos que eles. Além disso, ouvia ao capitão Aubrey dizer-he uma e outra vez que não tinha nem um momento a perder. Inclusive depois que a faixa
d’água que separava as duas embarcações chegou a uma milha de largura e os gritos de agradecimento da tripulação do mercante holandês se ouviam debilmente no ar,
estava tão irritado que deu um chute em um grumete por arrancar pedaços de tinta que haviam desgrudado da faixa negra.
Imediatamente depois foi chamado à cabine e, cheio de preocupação, aproximou-se da popa coxeando e estirando a roupa. Não lhe agradava a idéia de que o repreendessem
e sabia muito bem que o capitão não gostava de chicotadas, chutes, golpes com varas e dos que se batiam no traseiro com tábuas, além de palavras de censura como
"marinheiro de água doce" ou "malditos sejam teus membros", a menos que ele mesmo as dissesse.
Sem embargo, quando abriu a porta, encontrou o capitão inclinado sobre uma carta marítima com o doutor de um lado e o senhor Warren do outro.
- Senhor Fielding - disse Jack, levantando a vista e sorrindo -, sabe o que quer dizer nil desperandum?
- Não, senhor - respondeu Fielding.
- Significa "não há que dar-se por vencido" ou "enquanto há vida há esperança" - explicou Jack. - E esse é o nome de uma ilha situada a umas trezentas milhas a bombordo,
justo antes do estreito.
- Ah, é, senhor? Achava que ficava ao leste de Timor.
- Não, não, essa é outra. Ocorre o mesmo que com a Desolação. Há muitas ilhas chamadas Desolação e muitas chamadas Nil Desperandum, ah, ah! Com um pouco de sorte
encontraremos a Cornélie carregando água na ilha. Meu objetivo é ir até lá e aproximar-me dela o mais possível, e para isso é necessário que a escuna se pareça o
mais possível a um mercante. Oxalá se me tivesse ocorrido trocar com o capitão do Alkmaar suas velas finas, velhas e cheias de remendos por um conjunto nosso. Mas
a diligência dos marinheiros fará maravilhas.
- Sim, senhor - disse Fielding.
- Não se preocupe com a pintura, senhor Fielding - murmurou Jack. - E tampouco com as bonitas vergas enegrecidas e mantidas perpendiculares aos paus pelos moitões
e braças. Tome como modelo o Alkmaar e ao diabo a limpeza.
- Sim, senhor - replicou de novo Fielding, que se preocupava muito com a pintura e tinha cuidado excepcionalmente da aparência da Noz-moscada, até tal ponto que
era a escuna de vinte canhões da Armada de melhor aspecto, uma escuna pronta para passar pela inspeção de qualquer almirante.
- Ah, ah, ah! - estourou Maturin de repente. - Recordo-me quando fizemos com que nossa querida Surprise se parecesse com uma draga para enganar ao Spartan. Havia
porcaria por toda parte.
- Oh, senhor! - exclamou o oficial de derrota em tom de protesto.
- Na realidade, senhor Fielding, a sujeira não é fundamental, porque a escuna não vai ser submetida a uma rigorosa inspeção. Só tem que se parecer com um mercante
o suficiente para que possa se aproximar até que a fragata esteja ao alcance dos canhões, porque quando começarmos a disparar teremos que fazê-lo sob nossa própia
bandeira, certamente.
Stephen os deixou discutindo os detalhes da horrível mudança e foi fazer a ronda. Macmillan o recebeu com uma expressão angustiada.
- Sinto muito comunicar-lhe, senhor, que chegaram dois casos de problemas dentais, e devo confessar que estou desorientado, completamente desorientado.
Macmillan disse essas palavras o melhor que pôde em latim, porque os pacientes estavam ali mesmo, com a vista fixa nos dois cirurgiões. O latim os tranqüilizou porque
era a língua dos sábios, não de curandeiros de animais que entravam na Armada para receber uma gratificação e davam uma de médicos no castelo.
- Não vai ser fácil - confirmou Stephen depois de examinar os dentes, que em ambos os casos se encontravam em lugares difíceis e tinham cáries muito profundas. -
Contudo, faremos todo o que possamos. Deixe-me ver de que instrumentos dispomos...
Depois de olhá-los negou com a cabeça e disse:
- Bem, pelo menos poderemos untá-las com óleo de alho e depois completar as cavidades com chumbo. Espero que não se rompam sob a pressão do fórceps.
Uma vã esperança. E quando por fim deixou os marinheiros aos cuidados de seus companheiros e o açougueiro do barco, que lhes havia segurado a cabeça, estava mais
pálido do que eles.
- É estranho... - queixou-se ao voltar para a cabine, onde Jack, sentado sobre a capa do leme, brincava com as cordas de seu violino enquanto observava como se estendia
a ampla esteira. - É estranho que apesar de poder cortar um membro destroçado, abrir o crânio de um homem, cortar um homem para tirar-lhe um cálculo e ajudar uma
mulher em um difícil parto de nádegas como corresponde, e sem sentir náuseas, não direi que indiferente à dor nem ao dano sofrido, mas com o que talvez poderia se
chamar de tranqüilidade profissional, apesar de tudo isso, não posso arrancar um dente sem ficar nervoso. O mesmo sucede a Macmillan, ainda que é um jovem excelente
em qualquer outro aspecto. Não voltarei partir para o mar sem um experiente dentista, ainda que seja um ignorante.
- Sinto que tenha passado tão mal momento - disse Jack. - Tomemos uma xícara de café.
Considerava o café a panacéia universal, como Stephen considerava a tintura de ópio em outro tempo, e o pediu em voz alta e clara.
Killick pôs uma expressão que parecia mais mal-humorada que outras vezes, pensando que não era costume servir café a essa hora do dia.
- Terá que ser puro - anunciou. - Não posso ordenhar a Nanny em todas as horas. Se o faço, ela ficará seca. Uma cabra não é uma cisterna, senhor.
- Café forte puro! - exclamou Stephen vários minutos depois. - Que bem sinto! E me alegro muito de não ter satisfeito o desejo de mascar as folhas de coca quando
terminei a ronda na enfermaria, como tinha pensado. Indubtavelmente, acalmam a mente, mas anulam o senso do gosto. Não obstante, mascarei três quando a cafeteira
acabar.
Vira as folhas de coca pela primeira vez na América do Sul, e atualmente as considerava a panacéia. Ainda que viajava com uma grande quantidade guardada em suaves
bolsas de couro, uma quantidade que bastava para dar duas vezes a volta ao mundo, procurava abster-se delas, e com essas três folhas que mascaria mais tarde faria
uma inusual concessão ao seu capricho.
- Sem dúvida, a escuna navega a uma extraordinária velocidade - observou, olhando ao seu redor. - Olha só como a água é projetada para longe, o quanto longe chega
a turbulência! Ao nosso redor já há tanto ruído que nos obriga a levantar a voz, como terá notado, um ruído geral que não se pode definir, mas cuja nota predominante
é quase exatamente esse si que está tocando com o polegar.
Apenas terminou de dizer estas palavras, Reade chegou dando saltos. Suas feridas haviam sarado estupendamente, mas Stephen ainda o obrigava a usar uma bandoleira
com uma almofadinha para proteger o toco em caso de que caísse ou de que a escuna desse solavancos, e a manga vazia ficava presa a ela. Todos os marinheiros o tratavam
com extraordinário afeto, e já tinha recuperado o ânimo e adquirira uma agilidade que quase compensava sua perda.
- O senhor Richardson presenta seu;s respeitos e pensa que lhe agradará saber que navegamos quase exatamente a doze nós e uma braça. Eu mesmo o escrevi na tabuinha.
Jack riu a gargalhadas.
- Doze nós e uma braça apesar de ter o vento pela alheta! Obrigado, senhor Reade. Por favor, diga ao senhor Richardson que pode desdobrar uma sossobre no pau traquete
se o estima oportuno e que não passaremos revista esta tarde.
- Sim, senhor. E, com sua permissão, pediu-me que se visse o doutor lhe dissesse que nos segue uma ave muito curiosa. Ela parece muito com o albatroz e tem algo
no bico.
Stephen subiu correndo para o convés e chegou a tempo de ver a longa luta da ave para tirar de seu bico a concha interna de uma sépia estava enganchada. Quando a
concha interna saiu, o albatroz virou para o sul, afastou-se voando com grande rapidez e quase imediatamente desapareceu entre as nuvens.
- Agradeço-lhe de todo coração por ter me mostrado a ave - disse a Richardson.
- Não por isso, senhor - respondeu Richardson e depois, pegando-lhe pelo cotovelo, acrescentou: - E se ficar aqui e se inclinar um pouco para ver o cesto da gávea
do traquete, dentro de um minuto lhe mostrarei uma sossobre. Nós a colocamos voando, sabia?
Stephen se inclinou e olhou para lá. Em meio de uma série de ordens, apitos e gritos como "amarrar!", sob o brilhante sol, apareceu um pequeno triângulo branco acima
de todas as outras formas brancas, para satisfação dos numerosos marinheiros que estavam na imaculada coberta, que acabava de ser varrida pela segunda vez depois
do almoço.
- Era um dos albatrozes menores - anunciou ao regressar. - Estava lutando para tirar uma concha interna de uma sépia do bico. Provavelmente a levara ali ao longo
de mil milhas ou mais.
- Oxalá tivesse sido uma carta de casa - brincou amargamente Jack e, depois de um momento em que ambos permaneceram em silêncio, continuou: - Sempre relacionara
os albatrozes com as altas latitudes sul. De que tipo é este?
- Não sei. Só sei que não é o Diomedea exulans de Linneo, ainda que tenha dito que ele também habita os trópicos. Também já descreveram uma espécie do Japão e uma
das ilhas Sandwich. Este pode pertencer a uma delas ou a outra espécie desconhecida, mas teria que tê-lo matado para saber e estou cansado de matar... Suponho que
terá notado que agora o horizonte se vê claramente.
- Sim, a névoa se dissipou durante a noite. Pudemos fazer medições muito exatas com relação a Rasalagui e a lua, que coincidiram quase até o último minuto de longitude
não só com o cálculo de nossa posição feito com o cronômetro, como também com a estimativa, o que é bastante satisfatório, creio.
Ao ver que essa esplêndida notícia não provocava emoção, senão nada mais que uma cortês inclinação de cabeça, propôs:
- Que acha de retomarmos o jogo onde o deixamos? Eu estava ganhando, como se recordará.
- Ganhando? - perguntou Stephen, pegando seu violoncelo. - Como te atraiçoa sua memória em pleno envelhecimento, meu pobre amigo!
Ambos se puseram a afinar seus instrumentos, e a pouca distância dali, Killick disse ao seu companheiro:
- Já começam outra vez: ñii, ñii, pum, pum. E quando começam a tocar não é melhor. Não se pode distinguir uma coisa da outra. Não tocam nunca nada que um homem seja
capaz de cantar, nem mesmo que esteja bêbado como um gambá.
- Recordo-me deles na Lively. Mas isto não é tão grave como uma câmara dos oficiais cheia de cavalheiros com flautas travessas queixando-se dia e noite, como havia
no Thunderer. Não. Como eu digo, viva e deixe viver.
- Vá à merda, William Grimshaw.
O jogo consistia em um improvisar um fragmento musical de algum eminente compositor (o melhor que sua moderada habilidade e sua falta de inspiração permitiam) e
o outro, depois de adivinhar o compositor, tinha que acompanhá-lo e continuar o fragmento até um ponto subentendido por ambos e depois começar outro, do mesmo autor
ou de outro. Pelo menos eles desfrutavam muito com esse exercício e seguiram tocando até a noite, fazendo só uma pausa ao final da guarda do primeiro quartilho,
quando Jack subiu ao convés para medir a temperatura e a salinidade da água com Adams e diminuir o velame para a navegação durante a noite.
Ainda estavam tocando quando chegou a guarda de prima, e Killick, enquanto punha a mesa na cabine-refeitório, disse:
- Isto deterá esse lixo por um tempo, graças a Deus. Tire seus dedos gordurentos dos pratos, Bill. Ponha as luvas brancas. Corte rente o pavio das velas com as malditas
espevitadeiras e não deixe cair cera nem fuligem. Não, não, dá-me.
Killick se encantava ao ver a louça de prata brilhando na mesa, mas detestava vê-las sendo usadas por uma infinidade de razões menos por uma: que o costume lhe permitia
voltar a poli-las. Não obstante, o costume devia ser moderado, mais que moderado.
Abriu a porta que dava para a grande cabine, iluminada pela lua e cheia de música, e ficou ali de pé com um gesto grave até que fizeram a primeira pausa, na qual
anunciou:
- O jantar está servido, senhor, com sua permissão.
A janta foi boa e consistiu, graças à amabilidade da senhora Raffles, em espaguetes, costeletas de cordeiro e torradas com queijo, seguidas, também graças à amabilidade
da senhora Raffles, de pudim de passas. Durante a refeição fizeram os brindes costumeiros, e com as últimas taças de vinho Jack disse:
- Por nossa querida Surprise e para que nos reunamos com ela logo.
- De mil amores - respondeu Stephen.
Permaneceram uns minutos silenciosos e pensativos enquanto a água sussurrava ao passar pelo costado até que Jack disse:
- Acho que seria melhor que dormisse lá embaixo esta noite. Vou encarregar-me da guarda de meia e estarei entrando e saindo constantemente. Penso em deixar que navegue
a toda vela durante a noite e começar a prepará-la para combate pela manhã. Na primeira hora esvaziaremos a cabine e levaremos os canhões para o final da popa.
Na maioria dos barcos que Jack Aubrey tivera sob seu comando, Stephen, por ser o cirurgião, tinha outra cabine que dava para a sala dos oficiais, e em uma dessas
cabines se encontrava agora, balançando com o cabeceio e o balanço da Noz-moscada enquanto navegava velozmente na escuridão. Estava deitado de costas, com as mãos
atrás da cabeça, e se achava muito à vontade. Não dormia, pois o café e as folhas de coca lhe haviam feito mais efeito que o vinho do porto, mas isso não lhe importava.
Suas idéias fluíam com a mesma facilidade com que a Noz-moscada se movia, e com um ouvido estava atento aos habituais ruídos de uma embarcação com a exárcia tensa
e grande quantidade de velame desdobrado, os invariáveis sons navais, as badaladas que se ouviam debilmente na deviada sucessão, o grito "tudo bem!", que se repetia
por todo o convés, o ruído surdo dos passos dos marinheiros descalços, que se sentiam durante a troca das guardas. Não seguiam um determinado curso, umas iam seguidas
de outras com as quais tinham uma vaga associação, até que chegaram as relacionadas com a possibilidade, bastante remota, de encontrar a Surprise - do outro lado
do estreito de Salibabu. Quando lembrou o nome, viu sua imagem e sorriu na escuridão. E de repente voltou para sua mente a perda de sua fortuna, sua relativa pobreza.
Apesar da Surprise lhe pertencer, não poderia fazer nenhum daquelas esplêndidas viagens que se prometera realizar quando a paz voltasse, viagens em que nenhuma voz
em tom imperioso diria: "Não há nem um momento a perder", e em que Martin e ele poderiam percorrer a seu arbítrio litorais desconhecidos e ilhas remotas nunca vistas
pelos naturalistas nem por nenhum outro homem, ilhas onde era possível pegar uma ave, examiná-la e voltar a pô-la em seu ninho.
Relativa pobreza. Não poderia fazer viagens; não poderia dotar cátedras de osteologia comparada; teria que vender a casa da rua Half Moon. Ainda que estivesse comprometido
a pagar certo número de anualidades, conforme seus cálculos (tal como eram então), ainda teria uma modesta quantia para cobrir suas necessidades se continuasse na
Armada, e talvez poderia conservar a nova propriedade de Diana em Hampshire, a destinada a seus cavalos árabes.
De qualquer maneira, estava completamente seguro de que ela se sairia bem, ainda que tivessem que ir viver em seu castelo meio em ruínas situado na zona montanhosa
da Catalunha. Seu único temor era que Diana, ao ouvir a notícia, vendesse seu famoso diamante, um grande diamante azul que era a alegria de sua vida, pois ao fazê-lo
não só perderia a alegria, como adquiriria uma imensa superioridade moral, e estava convencido de que a superioridade moral era um perigosíssimo inimigo do matrimônio.
Conhecia muitos poucos matrimônios felizes entre seus amigos e conhecidos, e nesses poucos parecia haver equilíbrio. Por outro lado, causava-lhe mais satisfação
dar que receber e detestava ter que agradecer algo, até tal ponto que às vezes, quando ficava deprimido, era totalmente incapaz de mostrar gratidão.
Superioridade moral. Depois da morte de seus pais, passara grande parte de sua infância e juventude na Espanha vivendo na casa de vários membros da família de sua
mãe, até que encontrou um verdadeiro lar na casa de Ramón, seu primo e padrinho. A dois desses parentes, seus primos Francesc e Eulalia, a quem conhecia bem, vira-os
em três períodos diferentes de sua vida: na infância, na adolescência e na idade adulta. Quando os visitou pela primeira vez, eram recém casados e pareciam muito
enamorados um pelo outro, ainda que fossem muito sérios e tivessem uma moral estrita (todos os dias iam a missa na gelada catedral de Teruel); durante a segunda
permanência em sua casa, o carinho só se notava nas mostras de altruísmo que davam ao respeitar a vontade do outro; na terceira compreendeu que qualquer que fosse
o carinho que havia entre eles, a luta pela superioridade moral havia acabado com ele. Sua vida se convertera em uma competição para o martírio: pelo jejum, pela
santidade, pela fortaleza e pelo sacrifício. Em sua antiga casa de pedra fria e úmida tinha uma espantosa alegria carregada de resignação, uma repreendida concorrência
que só podia ganhar quem morresse primeiro. Mas Eulalia lhe contou um segredo que não devia divulgar, que durante os últimos três anos gastara o dinheiro que tinha
para vestir-se e o que Ramón lhe presenteava em orações e missas pelo bem-estar espiritual de seu esposo.
Não pensava que Diana se aproveitasse de sua superioridade, em caso de que a tivesse, porque esse não era seu estilo. O que ocorria era que ele tinha um caráter
inferior e se sentiria constrangido por sua generosidade.
Soaram claramente as seis badaladas. Perguntou-se que guarda seria aquela. Notou que a escuna, sem dúvida, estava navegando ainda mais rapidamente, pois o som dominante
aumentara meio tom. Pensou que não tinha uma vida mais chata que a dos marinheiros, pois eram obrigados perpetuamente a sair da maca e correr por entre a umidade.
Recordou-se de sua filha, que provavelmente, quase com toda segurança, era pouco mais que uma larva, ainda incapaz de manter uma conversa interessante, mas com muitas
possibilidades. Nesse momento começou a cantarolar mentalmente um quarteto de cordas de Mozart.
- Por favor, senhor - disse uma voz que se ouvia há um tempo e que ele relacionou com o movimento irregular da maca. - Por favor, senhor.
- O senhor está movendo os cabos ou os moitões de minha maca, senhor Conway? - perguntou Stephen, lançando-lhe um olhar malévolo.
- Sim, senhor - respondeu Conway. - Desculpe, senhor. O capitão lhe apresenta seus respeitos e informa que já acabou tudo. Diz que espera que não lhe tenham incomodado
muito e que vá desjejuar com ele.
- Apresente meus respeitos ao capitão, por favor, e diga que irei visitá-lo com muito prazer.
- Ah, já está aqui, Stephen! - exclamou o capitão Aubrey. - Bom dia. Pensei que te assombraria.
De fato estava assombrado, e pela primeira vez transparecia em seu rosto. Ainda que o anteparo da parte anterior da cabine já estivesse colocado outra vez, de modo
que pôde entrar na cabine-refeitório pela porta habitual, junto à qual estava de sentinela um infante da marinha, o resto era um espaço vazio, sem nenhum anteparo
que separasse a cabine-refeitório da grande cabine. Naquele imenso espaço só havia duas cadeiras, a mesa de desjejum e, ao fundo, os dois canhões de nove libras
encostados nas portalós da popa, que eram quase imperceptíveis. Haviam tirado a lona de quadros com que cobria o piso, e a habitação parecia maior por estar quase
vazia, sem baús nem estantes nem cadeiras com braços e com os canhões sobre as pranchas descobertas junto com a cevo, os calços, os atacantes, as chilleras{8} e
as outras coisas. O único conhecido que restava na cabine eram a mesa, as distantes janelas de popa, as caronadas de cada lado e os deliciosos aromas do café e do
bacon frito, trazidos para a popa por desconhecidos e complexos redemoinhos e correntes de ar.
Jack fez soar a campainha enquanto dizia:
- Não convidei nenhum oficial nem nenhum guarda-marinha porque estão muito sujos e porque é muito tarde. Você se assombrará ainda mais quando suba ao convés. Começamos
a arruinar a aparência da Noz-moscada, quando normalmente limpamos o convés, e asseguro que o castelo já tem um aspecto asqueroso e abominável.
Chegou o café da manhã, um café da manhã calculado para um homem corpulento, pesado e forte que se levantara antes do amanhecer e não tinha comido mais que um pedaço
de bolacha até esse momento. Ouvia-se o ruído das facas e dos garfos ao se chocarem e o rumor dos objetos de porcelana ao se moverem, e também o som do café ao vertê-lo.
A conversa se reduzia a frases do tipo: "Quer que lhe sirva outro ovo?".
- Não é possível que essas sejam as quatro badaladas - disse Stephen, aguçando o ouvido e levantando a vista do prato.
- Temo que sejam - replicou Jack, que agora havia agarrado a geléia e a segunda cafeteira.
- É muito amável por me esperar, meu amigo - continuou Stephen. - Eu lhe agradeço muito.
- Espero que tenha dormido um pouco apesar de tudo.
- Dormir? Por que não ia dormir?
- Tão logo como chamaram os limpadores do convés - explicou Jack -, fizemos um ruído capaz de levantar os mortos trasladando os canhões para trás e abrindo as portalós.
Duvido que as tenham aberto quando tiraram a escuna do fundo do mar, porque estavam muito apertadas. Ademais, naturalmente, para embelezar a parte superior da abobadilha
as pintaram de modo que não se pudessem ver. Pensei que o coração de Fielding se partiria ao ver como as golpeávamos para que desempenhassem sua função, mas parecia
um pouco menos triste quando pusemos os canhões em seu lugar. Agora as retrancas e os aparelhos ocultam algumas das cicatrizes. Então estava dormindo enquanto isso.
Bem, bem.
Stephen franziu o cenho e disse:
- Não posso imaginar o que espera conseguir pondo-os ali e arruinando nossa sala de estar e a sala de música, nosso lazer no seio do oceano. Mas é que não sou um
bom marinheiro.
- Oh, não, nunca diria isso! - exclamou Jack. - Não, não, de nenhuma maneira! Porém, se quiser, explicarei o motivo contando meu plano de ataque, se a algo que depende
de uma conjetura bem fundada e inumeráveis imprevistos se pode chamar de plano.
- O escutarei com muito prazer.
Como sabe, esperamos encontrar a Cornélie carregando água em Nil Desperandum, na enseada que fica ao sul. Esta esperança é bastante razoável, porque pegar água ali
é um processo muito lento e seus tripulantes necessitam de muita para fazer a etapa seguinte de sua viagem. No melhor dos casos, a escuna, com aspecto de mercante
holandês e, certamente, com bandeira holandesa, aproximar-se-á da ilha como se também necessitasse de água. Só terá abertas umas gáveas descuidadas, e, se tivermos
sorte, poderá se aproximar muito da fragata e colocar-se paralela a ela. Então içarei nossa bandeira, dispararei uma descarga e a abordarei em meio da fumaça. Não
será difícil passar para a abordagem, pois há pelo menos um pequeno grupo de homens em terra, o número de tripulantes de ambas embarcações será quase igual, e, também,
temos a vantagem do fator surpresa. Mas isso ocorrerá no melhor dos casos, e tenho que me preparar para outros. Suponhamos, por exemplo, que esteja ancorada de uma
maneira inapropiada ou que não encontro o canal; quer dizer, suponhamos que a Noz-moscada não possa se aproximar muito nem se colocar paralela a ela. Então terei
que mudar de bordo em redondo, porque de nenhuma distância posso entabular um combate no qual nos disparemos descargas, em que oponhamos nossas caronadas a canhões
de dezoito libras. Terei que mudar de bordo e atrai-la para que saia. Não duvido que vá nos perseguir, pois sei que tem poucas provisões, provavelmente muito poucas.
Pelo fato de ter ficado sem água tão cedo, deduzo que saiu de Pulo Prabang muito depressa.
- Nada seria mais provável que um motim nessas circunstâncias. Os franceses haviam perdido o crédito.
- Assim que estou certo de que nos perseguirá, como poderá compreender. E também estou seguro de que a Noz-moscada navega mais rapidamente tanto de bolina como ao
largo. O holandês me assegurou que a proa não pode formar um ângulo menor de 75º com a direção do vento e que está muito mal equipada para pegar o vento pela alheta.
A lona que tinha era tão pouca e tão má que o capitão pegou a do Alkmaar, que estava feita farrapos, porque lhe pareceu melhor. Meu plano consiste em fazer com que
o capitão da fragata pense que tentamos escapar, um velho estratagema. Depois que atravessarmos o estreito de Salibabu de noite, e nos escondermos atrás de uma ilha
perto do extremo mais distante, mandar um bote bem iluminado seguir avançando e, finalmente, sair após a fragata passar. Quando ela passar nós estaremos a barlavento
e seria estranho que não pudéssemos nos colocar junto dela para abordá-la em trinta minutos ou uma hora.
- Acha de verdade que nos perseguirá por toda a noite nestas águas perigosas?
- Acredito que sim. Salibabu é um estreito de águas profundas e melhor conhecido que o mar da China Meridional. Além disso, o capitão é um homem de brio e arrojado.
Querenou a fragata em Pulo Prabang, algo que não me atreveria a fazer, e, como disse, tem muito poucas provisões. Como ainda tem que percorrer uma enorme extensão
de mar, arriscaria qualquer coisa para apresar um barco bem aprovisionado, tanto se for um barco de guerra como se não. Por outro lado, o estreito se encontra em
sua rota, assim que não terá que desviar-se dela nem uma polegada. Estou tão seguro de que tentará nos pegar que coloquei os canhões para trás, como pode ver. É
indubitável que nos disparará enquanto fugimos e gostaria de poder responder. Poderá dizer que um canhão de nove libras - acrescentou, olhando afetuosamente para
Belzebu, o canhão de bronze de sua propriedade -, à distância que penso manter a escuna, não pode derrubar a verga traquete nem o velacho de uma fragata, o que é
totalmente verdade; contudo, sempre há disparos afortunados que podem cortar um brandal ou o cabo de um moitão e provocar uma grande confusão. Recordo-me que quando
estava nas Antilhas, aindo menino, um canhão de seis libras do castelo disparou e cortou as adriças da carangueja da presa, uma valiosa escuna que fugia de nós a
toda velocidade. Então o mastro maior caiu e, certamente, capturamos a presa. Porém, indubtavelmente, isso pode ocorrer nos dois sentidos, e às vezes os franceses
apontam os canhões endiabradamente bem.
- De acordo com a suposição, talvez disparatada, de que a Cornélie só tenha os quatro barris de pólvora que tomou da Alkmaar, quanto acha que durariam os disparos?
Arrependeu-se de ter feito essa pergunta assim que a formulou, e Jack respondeu secamente:
- Quatro barris permitem fazer cento e vinte disparos com um canhão de nove libras ou disparar quatro descargas com uma bateria de canhões de dezoito libras sem
incluir o de proa, como se faz amiúde.
Mas nesse momento chegou Fielding, bastante olheirudo, para informar-lhe dos progressos.
- Qual a reação dos marinheiros? - perguntou Jack.
- Um encontra certa resistência aqui e ali, como o senhor mesmo notou, senhor - respondeu Fielding -, mas agora todos parecem interessados nesta empresa e alguns
dos gavieiros mais jovens, em vez de animados, tem que ser freados. Agora a proa parece uma andrajosa feira: há flâmulas irlandesas penduradas, os costados estão
manchados de barro e os sanitários da proa estão sujos o bastante para ruborizar os residentes de um manicômio.
- Subirei tão logo o doutor termine esta xícara - respondeu Jack. - Eu lhe prometi que se assombraria.
- Agora mesmo vou com os senhores - disse Stephen, levantando-se. - Por favor, vão na frente.
- Aqui está - exclamou Jack quando os três estavam junto à grade do castelo de popa olhando para frente.
Havia vários oficiais no lado de sotavento do castelo de popa e eles também observaram atentamente o rosto de Stephen.
- Aonde tenho que olhar? - perguntou.
- Ora, para todas as partes! - exclamaram Jack e Fielding.
- Para mim parece que tudo está quase igual - disse Stephen.
- Deveria tar vergonha! - Jack o admoestou em meio de um burburinho de desaprovação. - Não nota o aspecto repulsivo da coberta?
- Nem os pedaços de fio que pendurados por toda a exárcia? - inquiriu Fielding.
- Nem os rizes soltos? - perguntou o oficial de derrota, tão alterado que não podia dissimular.
- Nem os extremos de cabos soltos por todas as partes?
- Há um remendo azul nessa gávea que não estava aí ontem - observou Stephen, ansioso por comprazer-lhes. - E acho que a vela tem um colorido menos brilhante que
o habitual.
Mas não teve êxito e viu que os que lhe rodeavam franziam os lábios, negavam com a cabeça ou se olhavam com perspicácia, e ouviu detrás um involuntário grunhido
do suboficial que governava a escuna.
- Acho que é melhor que ir ocupar-me de coisas que estou mais capacitado para julgar - anunciou. - Vou fazer a ronda matutina. Quer acompanhar-me, senhor?
Geralmente Jack visitava os enfermos com o cirurgião para perguntar-lhes como estavam, uma atenção que eles apreciavam muito, mas nessa manhã desculpou-se e disse:
- Deve estar confuso porque não trocamos as outras velas, mas depois do almoço verá tudo mais claro.
Inclusive antes do almoço a mudança era mais apreciável. Stephen subiu para o convés a tempo de ver como mediam a altitude do sol quando este passava o meridiano.
Presenciara essa cerimônia inumeráveis vezes; contudo, nunca vira levá-la a cabo com a embarcação nessas condições e poucas vezes com tanto zelo, com todos os sextantes
e quadrantes da Noz-moscada e com todos os guardas-marinhas cotovelo a cotovelo no corrimão de bombordo. A onda de sujeira havia se estendido para a popa e quase
chegara ao castelo de popa, e nem mesmo uma pessoa pouco observadora poderia deixar de notar a sujeira e os remendos das gáveas (cujo colorido contrastava com o
branco brilhante pelo sol das maiores, das joanetes e das sobrejoanetes e suas imaculadas abas), o cuidadoso oscurecimiento do bronze, a desigualdade entre os enfrechates,
os baldes sujos pendurados aqui e ali desafiando toda decência e o aspecto geral de degradação avançada. Muitos dos tripulantes passaram a vida em barcos de linha,
onde havia que varrer quase a cada meia hora e onde nunca, nunca se recorria a coisas deste tipo, e no início ficaram horrorizados com aquela deliberada profanação.
Mas pouco a pouco lhes convenceram de que a levassem a cabo, e agora, com um entusiasmo própio de convertidos, sujavam os costados quase excessivamente.
A cerimônia chegou ao seu invariável fim quando o imediato atravessou a coberta, tirou o chapéu que pusera para a ocasião e informou ao capitão Aubrey de que era
meio-dia. Então o capitão, dando existência legal a um novo dia na Armada, respondeu:
- Que assim seja, senhor Fielding.
Imediatamente depois disto, quando soaram as oito badaladas e chamaram os marinheiros para almoçarem com os habituais gritos seguidos por fortes passos, notou que
Jack e o oficial de derrota se fizeram uma inclinação de cabeça que indicava satisfação, do que Stephen deduziu que a Noz-moscada, que navegava velozmente formando
grandes ondas de proa e lançando espuma longe dos lados, avançava pelo paralelo correto.
Seu própio almoço, que também comeram sozinhos na grande cabine, agora austera e retumbante, era apenas comestível, pois o entusiasmo fizera Wilson perder a cabeça.
Mas Jack não lhe prestou muita atenção e só se referiu a ela dizendo:
- Bem, pelo menos o vinho cai bem. E acho que vão trazer arroz com leite.
Depois de beber um ou dois copos de vinho, explicou:
- Compreende que isto é provisório e que foi feita para o caso da Cornélie ter feito exatamente o que eu queria que fizesse, né, Stephen?
Stephen assentiu com a cabeça e, sorrindo, disse:
- E compreendo como se pode tratar de esquivar o mau-olhado.
Jack prosseguiu:
- Esta manhã não lhe falei da seqüência de nossas ações, ainda que seja sumamente importante. Em primeiro lugar, temos que avistar a ilha amanhã com as primeiras
luzes para saber se a Cornélie está lá ou não, pois seria absurdo fazer alguns dos estratagemas mais extravagantes que tenho em mente antes de determinar isso. Tenho
boas razões para acreditar que poderemos conseguir e que nos sobrará a maior parte da noite. A estima do oficial de derrota, a de Dick Richardson e a minha quase
coincidem, e, além do mais, poderemos fazer uma medição lunar muito precisa esta noite porque o céu está limpo. Se essa medição nos indicar que estamos onde acreditamos
que estamos, diminuiremos velame e avançaremos devagar até a alvorada, quando espero avistar Nil Desperandum muito longe a sotavento.
- Ah, ah! - riu Stephen, inflamado pela primeira vez de fervor guerreiro. - Direi a Welby que me chame a... às quatro badaladas seria uma boa hora? Dorme na cabine
ao lado, quer dizer, dorme quando não está tentando aprender francês, o pobre.
- Mandarei o ajudante do oficial de guarda - disse Jack. - Então, supondo que se encontre lá, desceremos os mastaréus para o convés muito antes que nos vejam no
horizonte e faremos os outros estratagemas. Aí nos aproximaremos da ilha só com as gáveas desdobradas e muito devagar, sabe?, porque se as circunstâncias não forem
as adequadas, e tudo depende das circunstâncias, ou se fracassa nosso ataque direto, teremos que atrai-la para que saia depois do meio-dia com o fim de que ambas
embarcações possam atravessar o estreito de noite. Quando a lua se ocultar, poderemos mudar de bordo e nos esconder atrás de uma ilha, diminuir o velame até que
não se veja nem um pingo e deixar a escuna ancorada com uma só âncora até que a fragata passe guiada pelas luzes do bote que teremos mandado continuar avançando.
Quando a fragata se encontre a sotavento, pois, ali é onde estaremos. E ficaremos a barlavento!
- Ah, muito bem! Quer que te sirva um pouco de vinho?
- Sim, por favor. É um vinho do porto excelente. Raras vezes bebi um melhor. Stephen, sabe a importância que tem de estar a barlavento, né? Não necessito explicar
que a embarcação situada a barlavent além de mais veloz e pode obrigar a outra a combater como e quando queira. A Noz-moscada não pode sustentar uma longa batalha
com a Cornélie, não pode combater fazendo descargas a longa distância, mas se cruzar com rapidez sua esteira pode colocar-se paralela a ela, e então poderemos disparar
um descarga e abordá-la. Porém, naturalmente, não necessito explicar-te isso.
- Seria estranho que tivesse que explicar a importância de ficar a barlavento a um lobo do mar como eu, ainda que devo confessar que houve um tempo em que acreditei
que tinha relação com essa coisa chiante que se põe no teto e que indica a direção do vento. Porém, não poderia conseguir essa posição vantajosa por algum meio menos
difícil que percorrendo com rapidez umas cem milhas na escuridão e escondendo a escuna atrás de uma ilha mais ou menos mítica, que ninguém nunca viu, um procedimento
perigoso em qualquer lugar?
- Oh, não! Não se pode colocar a barlavento da fragata sem se arriscar a que lhe dispare uma descarga de certa distância, o que não poderia suportar. Por outra parte,
se diminuirmos velame para deixar que a fragata se aproxime, naturalmente, ela se negará, virará e disparará na Noz-moscada a uma distância superior ao alcance das
caronadas. E não posso agir baseando-me na suposição de que a Cornélie não tem mais pólvora que os quatro barris da Alkmaar. Com relação à ilha, não é mítica em
absoluto. Lá há duas ilhas que foram exploradas a fundo, duas ilhas com altas montanhas e rodeadas de águas de cinqüenta braças. Os holandeses usavam muito o estreito
e Raffles me deu uma excelente carta marítima. Mesmo assim, espero que o primeiro plano de aproximar-nos da ilha e abordá-la imediatamente possa dar raizes, isto
é...
Fez uma pausa e franziu o cenho.
- Floresça?
- Não... não.
- Dê fruto?
- Maldito seja! O problema contigo, Stephen, se não se importa que lhe diga, é que, ainda que de todos os companheiros de tripulação que já tive, é o que mais línguas
sabe, como o Papa, que sabe cem, ou como os que estavam juntos no dia de Pentecostes ou como...
- Estava pensando em Magliabechi?
- Acredito que sim. De toda maneira, era um estrangeiro. E estou certo de que fala tantas línguas como ele e como se fosse um nativo ou melhor, mas o inglês não
é uma delas. Não se dá muito bem com as figuras retóricas e agora me tirou a palavra da mente.
O lobo do mar apareceu no convés ao amanhecer do dia seguinte, com o mesmo aspecto de outros lobos do mar quando lhes tiravam inoportunamente de sua guarida, com
o cabelo emaranhado por não tê-lo penteado nem escovado. Mas nada disso era excepcional. Quase todos os oficiais usavam sua roupa de trabalho mais velha e alguns
se levantaram há muito mais tempo. Mas ainda que o doutor Maturin estivesse coberto de breu e plumas, não teria provocado nenhum comentário. Todos tinham a vista
fixa no serviola que estava sentado na cruzeta e o serviola tinha a vista fixa no nítido horizonte para o este-nordeste. O sol havia saído e já estava muito separado
do mar. Parecia uma bola incandescente e seus raios iluminavam quase toda a parte superior da ilha. Os que estavam no convés não podiam ver mais; somente o serviola
que estava no alto podia ver pela luneta a distante costa. Agora o vento soprava pela alheta e, como havia amainado, quase não se produziam sons na exárcia. Todos
os tripulantes da escuna estavam ali de pé e em silêncio enquanto os raios do sol desciam pela parte sudoeste de Nil Desperandum.
Warren deixou escapar um sonoro peido, mas ninguém sorriu nem franziu o cenho nem afastou a vista do tope do mastro. A Noz-moscada atravessava as altas cristas das
ondas que vinham do sudoeste a intervalos compridos e regulares e o quebra-mar produzia um som sibilante.
Por fim se ouviu abaixo o grito emocionado:
- Convés!
Houve uma pausa na qual passaram duas ondas.
- Está aí, senhor! Quero dizer que vejo um barco com as vergas colocadas a meia milha da margem. Tem as gáveas soltas para que se sequem.
- Vire rapidamente - ordenou Jack ao timoneiro e, alçando a voz, disse: - Muito bem, senhor Miller! Agora desça para o convés! Senhor Fielding, por favor, vamos
tirar os mastaréus imediatamente.
Quando os mastaréus estavam no convés e a Noz-moscada estava segura porque não podia ser vista desde a costa, Jack explicou seus planos:
- Depois de aferrar todas as velas exceto as gáveas e a vela de estai de proa, começaremos a pintar as faixas. Mas tem que aferrar sem apertar muito, deixando penduricalhos
por toda parte, entendeu, senhor Seymour?
Ainda que tenha se dirigido formalmente a Seymour, que estava no castelo, na realidade se dirigia a todos os tripulantes. Até então eles tinham sido animados a aferrar
com extrema precisão, com a mesma correção e firmeza que em um iate real, e agora se olhavam inquisitivamente, pois apesar de tudo o que passara antes, aquilo era
tão inapropiado que mesmo para os mais liberais era inconcebível.
As faixas a que o capitão se referia eram tiras de lona onde se pintavam portalós, como as quais muitos mercantes com poucos ou nenhum canhão colocavam nos costados,
com a esperança de dissuadir os piratas de que os atacassem. Os marinheiros ocupavam muito espaço no convés para prepará-las, como Stephen sabia muito bem porque
vira Jack usá-las antes, mas agora, como aquela tripulação não estava acostumada às coisas que o capitão Aubrey fazia, ocupavam mais ainda, e Stephen tinha que retroceder
mais e mais. Quando chegou ao coroamento pensou que realmente estava incomodando e decidiu ir embora, apesar de que o mar e o céu eram de uma extraordinária beleza
e o ar mostrava as qualidades do champanhe, algo raro entre os trópicos e que o doutor Maturin nunca vira antes porque não se levantava cedo.
- Bonden, por favor, diga a seus companheiros que parem um momento - pediu ao seu velho amigo, o timoneiro do capitão. - Desejo descer, mas por nada desse mundo
gostaria de pisar seu trabalho.
- Sim, senhor - disse Bonden. - deem passagem, por favor, deem passagem ao doutor.
Levou-lhe pela mão por entre os potes de tinta e as broxas até a escada do castelinho, pois a Noz-moscada estava a pairar com as ondas de través e o doutor Maturin
não podia manter o equilíbrio salvo montado em um cavalo. Quando o deixou agarrado fortemente à grade, com um sorriso de cúmplice, disse:
- Acho que teremos um pouco de diversão depois do almoço, senhor.
Stephen encontrou Macmillan tentando livrar-se de um pouco de tinta das calças e, depois de falar um pouco sobre o álcool como solvente e a extraordinária diligência
com que os marinheiros cooperavam em qualquer ação que fosse pelo menos um pouco enganosa e tivesse certa falta de legitimidade, acrescentou:
- Certamente, como provavelmente terá notado, o trabalho da escuna se desenrola, por assim dizer, por inércia: vira-se o relógio de areia, tocam-se as badaladas,
a guarda é substituída. E quando é necessário ajustar uma braça ou apertá-la, como nós dizemos, lá estão os marinheiros; e a carne de porco salgada está de molho
nos potes para que se possa almoçar um pouco melhor, e estou seguro de que os marinheiros a comerão quando soem as oito badaladas. Vamos à enfermaria.
Ali passaram ao latim e depois de examinar um caso de hérnia e os dois obstinados casos de sífilis, os que restavam dos que foram contraídos em Batavia, Stephen
perguntou:
- Como está o quarto homem?
Referia-se a Abse, um membro da guarda de popa afetado de uma doença que se manifestava com cólicas no mar e espasmos intestinais em terra, uma doença cuja causa
Stephen desconhecia e cujos sintomas só podia fazer um pouco suportáveis mediante a administração de opiáceos, mas que não podia curar.
- Acho que se irá dentro de uma hora mais ou menos - aventurou Macmillan ao afastar a antepara.
Stephen observou o rosto do enfermo comatoso, observou sua respiração entrecortada e lhe tomou o pulso, que era quase imperceptível.
- Tem razão - disse. - Será um alívio como nenhum outro. Eu gostaria de abri-lo. Gostaria mais que tudo no mundo.
- Eu também - exclamou Macmillan com entusiasmo.
- Mas isso molestaria seus companheiros e amigos.
- Não tem nenhum. Era um ajudante de cozinha que comia sozinho. Ninguém veio vê-lo exceto o capitão e o oficial chefe de sua brigada.
- Então talvez tenhamos a oportunidade de fazê-lo - disse Stephen e voltou a colocar a antepara. - Que descanse em paz.
O doutor Maturin se equivocou com respeito à carne de porco salgada. O vento, contrariamente ao que prometia o céu e ao que indicava o barômetro, amainou tanto durante
a guarda da manhã que o capitão Aubrey adiantou seu plano em uma hora e, portanto, os marinheiros comeram a carne, meio crua no centro, quando soaram as seis badaladas.
Mas os marinheiros não se queixaram. Já haviam conseguido que a Noz-moscada tivesse o mesmo aspecto miserável que o Alkmaar e se aproximavam da ilha com a esperança
de sustentar um combate extraordinariamente rápido dentro de uma hora mais ou menos. Entre eles não havia tanta tensão como emoções intensas, e não aumentaram quando
lhes deram o grogue, aliás foram complementadas com uma grande alegria. Houve muitos comentários graciosos sobre os homens que seriam autorizados a permanecer no
convés enquanto se aproximavam, vestidos como marinheiros holandeses, e os que não.
- Há alguns tipos magros como os holandeses a quem permitem se exibir. E por quê? Porque parecem inofensivos e ninguém os temeria. Nenhuma virgem e tampouco suas
esposas os temeriam, ah, ah, ah!
- Raras vezes vi os marinheiros tão contentes - observou Stephen no paiol onde se guardavam as posses do capitão.
Depois de colocar cuidadosamente o cadáver de Abse entre dois baús, continuou:
- Acredito que irei ao convés para perguntar ao capitão se teremos tempo de fazê-lo antes do combate, porque é terrível ter que lutar contra o rigor mortis.
Mas quando subiu as sucessivas escadas viu com tristeza e surpresa que a Noz-moscada já estava perto de terra e que, apesar de navegar lentamente, como um mercante,
não teria tempo para a autópsia que pensava fazer. Jack estava comendo um sanduíche e falando com Richardson, mas dirigiu a vista para onde Stephen aparecera e sorriu.
O doutor Maturin havia posto a velha casaca negra com que geralmente operava e lhe podiam tomar pelo sujo responsável pelo carregamento de um mercante. Por sua parte,
Jack estava em mangas de camisa e com calças amplas e usava um chapéu de Monmouth, um horrível chapéu de flanela achatado que alguns marinheiros antiquados ainda
usavam e que tinha a vantagem de que lhe cabia dentro todo o cabelo, já não tão brilhante como nos tempos em que era conhecido como Cachos de ouro, mas ainda chamativo.
- Lá está - disse, voltando-se para Stephen.
De fato, ali, sob o céu azul, estava a fragata ancorada, um barco bonito e elegante com as vermelhas portalós abertas para arejar a coberta. Havia adentrado dois
terços da baía onde entrava agora a Noz-moscada, e estava rodeada de uma faixa branca de costa, e as montanhas florestadas que se elevavam atrás dela, com algumas
zonas de cor verde-brilhante. Havia muito fluxo de ondas e se podia ver a espuma do outro lado da amura de estibordo da Cornélie e em diversos pontos da baía.
- A maré está alta - explicou Jack. - Subiu lentamente desde meia hora atrás. Estava muito ocupado? Se quiser tomar algo, há sanduíches e café na cabine. O almoço
tardará bastante. Faz séculos que se apagaram os fogos da cozinha.
- Estivemos trabalhando como formigas, levando os enfermos para a coberta inferior e preparando tudo na enfermaria: montes de linhas, tampões, bolas-de-algodão,
correias, serras e mordaças. Quando supõe que a batalha vai começar?
- Dentro de uma hora aproximadamente, a menos que nos descubram. Como vê, não há um arrecife de coral contínuo formando uma espécie de laguna, mas dois arrecifes
independentes com um sinuoso estreito no meio e um enorme banco onde termina a corrente d’água. Sem dúvida, é por isso que a fragata está tão longe da costa. É pouco
conveniente para seus botes, e faz um momento, quando um de seus cúteres o atravessou, pensei que havia roçado na ponta do banco. Vê o grupo que está pegando água?
- Acho que sim.
- Está ao pé do negro escarpado, a vinte e cinco graus pela amura de estibordo. Pegue minha luneta.
Então viu muito de perto o escarpado, a corrente de água que caía para ele e os marinheiros ao redor dos tonéis.
- Deve de ter plantas muito interessantes nessa parede rochosa - disse Stephen. - Posso observar a Cornélie?
- Seria uma indiscrição olhá-la do castelo de popa. É melhor fazê-lo do quarto de asseio que fica na galeria. Vê a Dick na verga do velacho? Vai governar a escuna
dali. Teria que ser feito pelo oficial de derrota, mas está com o estômago revirado. Temos que avançar quase em direção ao lugar onde se pega a água, depois passar
duas curvas pronunciadas separadas por quase meia milha e depois orçar para podermos nos colocar junto a ela.
- Vou observá-la do quarto de asseio enquanto como um sanduíche.
- Stephen - murmurou Jack -, poderia tentar encontrar a Pierrot, o sobrinho de Christy-Pallière? Espero que não o veja, porque isso confirmaria minha idéia de que
está em terra. Tenho muito medo de que possa matá-lo.
- Refere-se ao jovem oficial sobrinho de nosso amigo com quem se encontrou em Pulo Prabang? Você se esquece de que nunca o vi antes, nem menino nem homem.
- É verdade - disse Jack. - Desculpe-me.
A Noz-moscada seguiu avançando. No castelo de popa só estava o capitão, além do homem que levava o leme e de Hooper, que parecia um grumete e se encontrava no lado
de sotavento. Richardson seguia trepado na verga, observando as águas cristalinas que tinha na frente, de cor azul-escuro no estreito, onde eram muito profundas,
e de cor azul-claro de ambos os lados, onde tinham pouca profundidade. Uma vintena de marinheiros estavam No castelo, com as mãos nos bolsos, ou descansavam no corrimão,
alguns deles apoiados na borda. Os demais tripulantes estavam ocultos abaixo do castelo e dos corrimãos, na entrecoberta e na cabine. Todos os artilheiros estavam
em seus postos e todos os que podiam ver algo pelas frestas das portalós ou pelos vãos das faixas pintadas contavam a seus companheiros o que viam em voz baixa e
com grande exatidão. Os que iam fazer a abordagem tinham preparadas suas armas: sabres, pistolas, machados de abordagem e piques. As mechas de combustão lenta já
ardiam dentro de recipientes de metal junto às caronadas, pois Jack nunca gostava de depender apenas da pederneira. Agora o ambiente era tenso.
A porta corrediça da galeria a afastava da multidão e do ruído de suas vozes. Ali ficava o recinto onde o capitão se lavava, barbeava e empoava, e, assim como seu
companheiro situado do outro lado (o sanitário), era um dos poucos lugares da parte superior da escuna que permaneciam intactos quando se fazia preparativos de combate.
Se a bacia fosse tirada, era um lugar de onde se podiam observar comodamente os fatos, e Stephen, por estar ali, considerava-se mais afortunado que a centena de
homens que estavam abaixo do convés, exceto aqueles que podiam ver por um escotilhão.
Como eles, viu que a Cornélie foi se aproximando da Noz-moscada enquanto a escuna atravessava obliquamente a baía, depois desapareceu de seu campo visual quando
a escuna dobrou a primeira curva do canal e reapareceu dez minutos depois, quando dobrou a segunda, muito mais perto, ainda firmemente ancorada. E quando a Noz-moscada
continuou sua viragem, a estática Cornélie, junto com as águas que a rodeavam, moveu-se para frente a velocidade constante quase até o extremo de seu campo visual.
Foi nesse momento que viu um sinal aparecer no tope do mastro maior. Eram somente duas bandeiras, mas o sinal foi reforçado por um canhonaço disparado do castelo
de popa. Viu a fumaça e imediatamente ouviu o estalido, que ressoou no silêncio da espera. Ouviu no convés uma potente voz que gritava:
- Atenção! Atenção! Todos para as braças de sotavento!
Então a fragata desapareceu atrás da borda do quarto de sanitário.
Mas Jack ainda podia vê-la claramente e não necessitava de luneta para ver como os canhões de dezoito libras assomavam pelas portalós.
A Noz-moscada continuava dobrando a curva que a conduziria até a fragata, que agora se encontrava justo diante e do lado. Nesse momento apareceu a bandeira francesa
no tope do pau mezena. Jack esperou ouvir o canhonaço de advertência.
Não houve canhonaço de advertência. Em vez disso, os três canhões posteriores dispararam mortalmente quase simultaneamente.
- Todos para o convés! - gritou Jack quando as balas passavam acima da escuna pelo lado de estibordo à altura das gáveas.
Era evidente que haviam descoberto que usavam um disfarce, mas apesar de poderem disparar-lhe um bombardeio de proa a popa, tinha a esperança de aproximar a Noz-moscada
da fragata o suficiente para lançar um ataque realmente efetivo. Abaixo dele, no castelo, o contramestre repetiu a chamada. Os oficiais subiram correndo ao castelo
de popa.
- Maiores e velas de estai! - ordenou Jack. - Tire uma mão, tire uma mão! Senhor Crown, tire as faixas pintadas. Senhor Fielding, ice a bandeira e o galhardete.
Stephen ouviu o estrépito de uma bala ao cair em algum lugar da proa. Depois, em meio de uma confusão mais aparente que real, a porta corrediça se abriu e Seymour
entrou no quarto sanitário e lhe disse ao ouvido:
- Nos descobriram, senhor. O capitão deseja que o senhor vá para baixo.
Os canhões restantes da bateria da Cornélie dispararam em rápida sucessão e o costado ficou oculto pela fumaça. Apareceram buracos nas gáveas e nas maiores; soltou-se
o moitão da vela maior, que estava recém ajustado; algumas balas lançaram jorros de água desde o castelo até a popa e outras formaram penachos de água perto dos
costados; a última bala destroçou o pescante de bombordo.
- Boa pontaria, a tanta distância - disse Jack.
- Digna de elogio, senhor - consentiu Fielding. - Mas espero que não melhore.
Houve uma pausa durante a qual a Noz-moscada, apesar da instabilidade da vela maior, avançou duzentas jardas. Depois fizeram fogo um atrás do outro todos os canhões
da bateria de bombordo da Cornélie. Seis balas acertaram o casco, nos mastros ou nas velas; uma destruiu a metade da galeria de bombordo; a décimo sexta passou de
uma ponta a outra da corveta à altura do peito e causou a morte de dois homens no castelo e outros três no castelo de popa: Miller, que estava junto a Jack Aubrey,
um marinheiro que levava o leme e o oficial de derrota.
- Braças de sotavento! - ordenou Jack, enxugando o sangue do rosto de Miller. Depois, voltando-se para os homens que haviam agarrado o leme, gritou: - Leme a bombordo!
A Noz-moscada virou rapidamente para estibordo, e então Jack, com uma voz que chegou até a coberta inferior, deu a ordem que todos ansiavam ouvir:
- Disparem agora!
Então na enfermaria, além de retumbar o estrépito das balas do inimigo, ouviu-se o ruído ainda mais forte das caronadas de trinta e duas libras e o chiado das carretas
quando retrocediam. Ainda que Stephen, Macmillan e Suleiman, o ajudante, já estivessem muito ocupados (curando feridas provocadas por grandes pedaços de madeira
pontiagudos, contusões e um antebraço quebrado por causa da queda de um moitão), enquanto davam pontos e punham vendas e ripas, mostravam sua satisfação fazendo
inclinações de cabeça uns para os outros. Nesse momento Bonden trouxe Harper nos braços e disse:
- Nós os estamos triturando, senhor. Dá gosto de ver.
Assim era, e no céu retumbava e voltava a retumbar aquele ruído ensurdecedor, um estrondo contínuo sob os sucessivos estalidos.
A Noz-moscada, como todos os mercantes holandeses de vinte canhões, tinha todo o armamento em uma só coberta. Como estava disparando contra o vento, a fumaça se
dissipava imediatamente, e, portanto, era fácil ver desde o castelo de popa onde caiam as balas de trinta e duas libras. Disparava com rapidez, pelo menos duas vezes
mais rápido que a Cornélie, e as brigadas de artilheiros trabalhavam com perfeita coordenação e as munições chegavam da santa-bárbara com pontualidade; não obstante,
quando estavam muito elevadas, os disparos eram erráticos, e quando as desciam, ainda que as apontassem na direção adequada, as balas não chegavam a acertar o alvo.
Ainda que a Cornélie disparasse com lentidão, em comparação com qualquer outro barco (em parte porque o fazia de sotavento e a nuvem de fumaça fazia com que seus
homens não vissem nada), mesmo a três quartos de milha de distância seus disparos eram exageradamente precisos. Ademais, ainda que economizasse pólvora, pois nunca
desperdiçava nenhum tiro, era óbvio que não tinha somente quatro barris ou uma quantidade parecida.
- Preparem os canhões - ordenou Jack. - Senhor Fielding, vamos mudar de bordo.
A Noz-moscada virou, colocando-se de maneira que tinha o vento pela alheta, e depois voltou a mudar de bordo para estibordo e começou a afastar-se por onde havia
vindo. Quando virava, os canhões de popa lograram disparar três balas cada um, dois dos quais deram indubtavelmente no alvo. Mas a Cornélie lançou duas descargas,
das quais a primeira teria desaparelhado a Noz-moscada se não tivesse virado o leme muito rápido no momento oportuno, e a segunda não a alcançou. "Se seus disparos
tivessem sido tão rápidos como precisos - pensou Jack -, necessitaríamos atar tantos cabos que as facas não teriam bastado para cortar as ligaduras". Contudo, não
confiou o que pensava ao imediato.
- Parece que têm problemas para recolher a âncora.
Sem a luneta pôde ver que os poucos tripulantes da Cornélie tinham dificuldades no cabrestante, e com ela viu seus rostos avermelhados pelo esforço que faziam para
que o chapéu girase e notou que em algumas barras só haviam três homens. Então viu que tentaram recolher a outra amarra, depois afrouxaram a primeira e depois tentaram
recolhê-la de novo, em vez de largar as amarras e as âncoras, porque teriam que percorrer milhares de milhas de distância para encontrar peças.
- Pois me atreveria a dizer que tampouco foram mais afortunados com o bote - observou Fielding com um elegante tom irônico.
Jack virou-se e, em um pequeno arrecife, a menos de um quarto de milha da costa, viu o enorme bote da Cornélie imóvel no meio da maré que baixava. A julgar pela
espuma que havia em ambos os lados, o timoneiro, ao se apressar em reunir-se com a fragata, tentara atravessar uma passagem estreita que havia no arrecife de coral,
que era o caminho mais curto, e calculara mal o vento, o calado do bote, o abatimento ou as três coisas. Então Jack, com verdadeira satisfação, viu que o oficial
que de um esquife coordenava os esforços para descarregar urgentemente os tonéis e pôr o bote flutuando outra vez, era Pierrot Dumesnil, o alegre jovem que agora
estava exasperado.
- Levarão um certo tempo para terminar seu trabalho, mas espero que não muito - disse Jack, olhando para o sol. - Não temos todo o tempo do mundo. O que houve, senhor
Walker?
- Há um pé de água na sentina, com sua permissão, senhor - informou o carpinteiro -, mas meus ajudantes e eu pusemos três espigões bem ajustados nos buracos, e é
que só três balas acertara abaixo da linha de flutuação. Mas o bote e vários paus de ambos os lados sofreram muitos danos e a galeria de estibordo está destroçada.
Jack também ouviu o relatório do contramestre, que contribuía poucas surpresas porque ele podia ver os cabos dos aparelhos cortados e as velas estragadas por toda
parte. Depois disse a Fielding:
- Pararemos a Noz-moscada em pairo no canal e colocaremos um salva-vidas no costado, como se corressemos o perigo de afundar. Meia dúzia de marinheiros podem fazer
a representação enquanto os demais fazem nós e atam. Também, bombearemos a água, mas do outro lado. Senhor Conway, por favor, pergunte ao doutor se acha oportuno
que desça agora.
- Senhor Adams, tomou nota de tudo? - perguntou ao seu escrevente.
- Bem, senhor - respondeu Adams -, não sabia muito bem o que fazer. Como não chamou todos a seus postos, oficialmente não entabulamos um combate, assim que fiz algumas
anotações que poderia qualificar de extra-oficiais. E como nossos companheiros de tripulação não morreram em uma batalha normal, disse ao veleiro que pensava que
não deviam ser sepultados da forma habitual, mas metendo-lhes em suas macas e costurando depois as bordas. Espero ter feito bem, senhor.
- Muito bem, senhor Adams.
Desceu para a coberta inferior. Quando chegou, seus olhos já haviam se acostumado bastante à escuridão abaixo do convés e pôde ver sob a luz da lâmparina pingente
que Stephen tinha as mãos tingida de vermelho vivo.
- Quantas vítimas tivemos? - perguntou.
- Três homens feridos por grandes pedaços de madeira morreram por causa da hemorragia ao chegar ou antes - anunciou Stephen. - Além deles, há outros seis que ficarão
bem, se Deus quiser. Também há um homem com o braço quebrado e vários com contusões. Nada mais. Com respeito aos mortos, você debe saber mais do que eu.
- O oficial de derrota, lamentavelmente; o jovem Miller; Gray, um bom timoneiro; e dois homens mais no castelo. Uma única bala...
Sentou-se entre Semple, um de seus barqueiros, e Harper, os dois feridos por grandes pedaços de madeira, e lhes perguntou como estavam.
- Nos bateu muito duro e nós quase não pudemos revidar...
- Nosso Agag o perfurou no casco duas vezes justo detrás do talha-mar - disse Harper, que estava enjoado porque perdera muito sangue. - Vi cair as balas com meus
própios olhos. Como gritamos de alegria!
- Estou seguro de que foi assim. Mas agora tentaremos que nos siga, a esperaremos ao final do estreito e depois a atacaremos penol a penol. Tem a âncora travada
e seu bote está encalhado, mas acredito que dentro de uma hora tudo terá se resolvido, e nós podemos esperar uma hora.
CAPÍTULO 6
O capitão Aubrey não teve que esperar tanto. Em quarenta e sete minutos os homens da Cornélie lograram liberar a fragata, desencalharam o bote e o subiram a bordo
como bons marinheiros e começaram a perseguir a Noz-moscada. Assim que terminaram de atravessar o canal que ia de Nil Desperandum para o alto mar começaram a longa
perseguição que os levaria ao estreito de Salibabu, e ficou claro que seu propósito não era avançar mais rapidamente que a Noz-moscada e aproximar-se dela para pegá-la.
Viram chegar a bordo algumas de suas balas de trinta e duas libras e não tinha desejos de ver mais, por isso tinham a intenção de entabular um combate a certa distância.
Cada vez que Jack lhes dava a oportunidade de se aproximar, desperdiçavam-na. Seu plano era reduzir a velocidade da escuna causando danos às velas e aos aparelhos
e depois dar uma guinada e disparar-lhe um bombardeio pela popa a uma distância de meia milha ou mais.
Também estava claro para Jack que fizera um cálculo exagerado da capacidade da Cornélie. Tinha suposto que a fragata, por ter os fundos limpos e uma disposição do
velame bastante adequada, podia navegar no mínimo a oito ou nove nós com o forte monção do sudoeste pela alheta, ainda que tivesse amainado um pouco durante o dia;
contudo, equivocara-se. Mesmo com todas as gastas e remendadas velas desdobradas, a Cornélie não podia navegar a mais de sete e meio, e apesar da Noz-moscada arrastar
uma pesada baliza que não podia ser vista, era difícil simular que fugia a toda velocidade, que tratava de escapar, ainda que o conseguia porque usava as escotas
um pouco menos esticadas do que devia, fazia rápidas viradas (Bonden era um mestre nisso e sabia fazer vários truques com o leme) e não tinha muito bem colocadas
as braças das vergas. Portanto, a escuna avançava com rapidez para o oeste, disparando constantemente para a fragata, situada quase ao alcance máximo de seus canhões.
Jack permaneceu no castelo de popa até que a velocidade da Noz-moscada se adaptou o melhor possível à da Cornélie e depois chamou Seymour para dizer-lhe:
- Senhor Seymour, vou designar-lhe o posto de terceiro de a bordo provisoriamente. Já informei ao senhor Fielding, assim que poderá pôr-se de acordo com ele sobre
os assuntos concernentes a isso depois da cerimônia.
Era de esperar. Seymour tinha que encarregar-se da guarda do oficial de derrota, por mais jovem que fosse. Apesar de tudo, Seymour ruborizou e, em um tom que denotava
sua emoção, respondeu:
- Obrigado, senhor, muito obrigado.
Enquanto falava, o canhão de popa de estibordo fez fogo, justo abaixo deles. Jack assentiu com a cabeça e desceu correndo pela envolvida pela fumaça, entrou na cabine
também cheia de fumaça (o vento, que chegava pela alheta, enchia de fumaça todo aquele espaço por um minuto após cada disparo) e, apesar da escuridão, viu as duas
brigadas de artilheiros olhando-se uma para a outra com raiva e a alguns de seus membros, os mais afortunados, com a cabeça para fora das portalós.
A discussão foi diminuindo a medida que se aproximava, e por fim o condestável disse:
- Desta vez lhe acertamos no casco, senhor.
- Acredito que passou acima - replicou Reade, alçando a voz.
- Cale-se, senhor Reade.
- Sim, senhor. Perdoe-me, senhor.
Jack pegou uma luneta, inclinou-se para frente e olhou para fora, acima do extenso mar, onde se moviam em diagonal ondas longas, pequenas e de abundante espuma,
cujo colorido branco fazia o mar parecer mais escuro. A esteir da Noz-moscada era muito comprida e mais larga que o normal devido à turbulência provocada pela baliza
que levava escondida, e justo na prolongação da linha em que estava situada se encontrava a Cornélie, que formava com a proa ondas bastante grandes nas mesmas águas
pelas quais a Noz-moscada passara oito minutos antes. A fragata tinha desdobradas todas as velas que possuía e provavelmente tinha muito poucas ou nenhuma de reserva.
Jack se achava em uma situação difícil. Se lhe causasse danos leves que a obrigassem a reduzir a velocidade um ou dois nós, provavelmente desistiria da perseguição
por considerá-la inútil; se não disparasse com razoável precisão, os franceses não acreditariam que estava fugindo. Por outra parte, se um desafortunado disparo
fizesse a Noz-moscada navegar mais devagar, ainda que fosse poucos minutos, a Cornélie poderia mudar de bordo e disparar-lhe uma descarga com seus canhões de dezoito
libras terrivelmente bem apontados. E era mais provável que houvesse um desafortunado disparo da Cornélie que o contrário, pois disparava com os canhões de proa
situados no castelo, que estava aproximadamente oito pés mais alto que a coberta da Noz-moscada. Além disso, disparava para a popa da escuna, onde ficava a vulnerável
prancha do leme. Enquanto esses pensamentos cruzavam sua mente, observou que os tripulantes da fragata estavam bombeando água e lançavam um grosso jorro por sotavento.
"Quando terminem de tirá-la, talvez a fragata navegue mais rápido", pensou. Depois, em voz alta, perguntou:
- Com que elevação estão disparando?
- Não mais de seis, senhor - respondeu o condestável, colocando o canhão de estibordo enquanto Bonden colocava o Belzebu.
A Cornélie disparou nesse momento, quando subia com o balanço, e ainda que a bala não alcançou a Noz-moscada, quicou várias vezes junto ao costado e o último quase
lançou um jorro de água para bordo.
Jack inclinou-se sobre Belzebu, apoiando a mão sobre o morno cilindro, e enquanto Bonden tirava com a alavanca a cunha com que se subia e descia, o puxava para trás.
Os dois se entendiam só com grunhidos e inclinações de cabeça. O capitão se encantava em apontar os canhões e ambos tinham feito esses movimentos milhares de vezes.
Quando o elevaram de modo que apareceu o centro da verga velacho na mira, projetando a voz para a escotilha gritou:
- Senhor Fielding, senhor Fielding! Por favor, olhe se pode ver onde cai a bala! Vou lançá-la muito alto!
- Sim, senhor - disse Fielding.
Então Jack procedeu para pôr o canhão na posição exata, e enquanto os artilheiros o moviam delicadamente com as alavancas, ia indicando-lhes:
- Um pouco mais para a direita... Um pouco mais... Um cabelo para trás...
Sem afastar a vista da mira moveu a mão para pegar a mecha. A Noz-moscada subiu com o balanço e, justo antes que o canhão estivesse dirigido para o alvo, aproximou
a mecha ardendo da isca. Ouviu-se um som sibilante que apenas durou um instante e depois o canhão disparou e imediatamente retrocedeu por baixo dele com extraordinária
força, enchendo a popa de fumaça e de pedaços de madeira dos calços. Já havia colocado a cabeça pela portaló quando a retranca impediu o canhão de seguir retrocedendo,
com o desagradável mas satisfatório chiado de sempre, e, graças a um afortunado movimento do vento, pôde ver por mais de um segundo a trajetória da bala, que era
como uma borrada mancha negra que pouco a pouco diminuía.
- A pouca distância do pescante de popa de estibordo, senhor! - gritou Fielding.
Jack assentiu com a cabeça. Havia outras manobras possíveis, como avançar a toda vela e finalmente colocar-se a barlavento da fragata, mas tardavam muito, pelo que
poderiam atrasar a chegada ao encontro, e pôr em perigo a escuna. Ainda que, indubtavelmente, essa fosse uma estratégia perigosa, era a melhor.
- Sigamos assim, senhor White, mas com discrição, não como se fosse a noite de Guy Fawkes.
Seguiram disparando com regularidade. Em uma ocasião, uma bala da Cornélie que quicou causou danos à grinalda que havia abaixo do coroamento da Noz-moscada, e em
outras duas, apareceram buracos na vela maior e na traquete. Belzebu já estava muito quente quando Jack notou que Reade estava muito perto e parecia querer lhe dar
uma mensagem. Na realidade queria fazer-lhe um convite. Disse que como o capitão ainda não pudera almoçar, os oficiais o convidavam para uma colação fria com eles.
Jack notou que tinha muita fome. Ao pensar na comida, ficou com água na boca e sentiu uma pontada no estômago.
- Irei com muito prazer - disse, afastando-se dos aglomerados artilheiros.
Bonden ocupou seu lugar e ele se dirigiu à galeria para lavar as mãos. Abriu a porta ainda olhando para o canhão e esteve a ponto de cair de cabeça na água, mas
logrou evitá-lo dando um rápido salto para trás.
- Amarrem este atirador ao degrau da escada de corda da galeria - ordenou -, porque se não, o doutor poderia ter problemas.
O doutor já estava na câmara dos oficiais, e ele e os outros oficiais deram as boas-vindas a Jack com carne e anchovas em conserva, ovos duros, presunto, pepinos
curtidos, cebolas e mangas. Foram tão amáveis como puderam e Welby inclusive fez ponche com aguardente de palma, mas como a cadeira de Warren estava vazia, a refeição
foi triste. Ao final, Adams trouxe um livro de orações e, alçando a voz para que pudesse ser ouvido apesar do estrondo produzido por um canhão de popa ao disparar
e retroceder, sussurrou ao ouvido de Jack:
- Marquei a página com um pedaço de merlín, senhor.
- Obrigado, senhor Adams - disse Jack e, depois de ficar pensativo alguns minutos, acrescentou: -Parece, cavalheiros, que nossos queridos companheiros de tripulação
nos perdoarão se os despedirmos da maneira mais simples e vestidos com roupa de trabalho.
Houve um burburinho de aprovação, um movimento de cadeiras e certa vacilação antes de terminar o ponche.
Cinco minutos depois soaram as oito badaladas e em continuação várias outras que duraram meio segundo. Imediatamente, Jack se colocou junto à grade do castelo de
popa. Os canhões agora estavam guardados e silenciosos; todos os marinheiros estavam presentes. Jack leu as palavras bonitas e solenes; as macas, com um peso adicional,
deslizaram-se pelo lado um atrás do outro quase sem salpicar, justo onde a água subia depois de formar um buraco atrás das ondas de proa.
A Noz-moscada virou vinte e cinco graus para celebrar a cerimônia e os homens da Cornélie, depois de fazer um disparo sem obter resposta, compreenderam o que se
passava e não voltaram a fazer fogo.
Quando Jack fechou o livro, os tripulantes voltaram ao trabalho e a Noz-moscada retomou o rumo. Depois disse a Fielding:
- Devemos fazer uma salva para bombordo em sua honra.
Fielding encarregou a Oakes que se ocupasse disso e, para evitar erros, acrescentou:
- A última caronada de bombordo.
Como Oakes ainda estava muito alterado pela morte de seu amigo e nunca antes estivera em uma batalha, era melhor manter-lhe entretido.
O capitão e o imediato se aproximaram do coroamento, e quando a caronada disparou, Jack tirou o chapéu. Ele e o capitão francês se haviam visto mutuamente pela luneta
muitas vezes e tinha bastantes razões para acreditar que o capitão francês estava no castelo.
- Ainda estão bombeando - observou Fielding.
- Acho que sim - assentiu Jack sem prestar-lhe muita atenção. - Meu Deus, como o sol se moveu rápido pelo céu! E a maldita lua já está aí.
De fato, lá estava, claramente visível no fulgurante céu. Estava pálida, inclinada para um lado e mais horrível que nunca. Há mais de uma hora se via a vinte graus
da negra silhueta da terra.
- A esta velocidade não conseguiremos que a fragata atravesse o estreito antes do amanhecer. Espero que navegue mais rápido quando tenha tirado toda a água da sentina.
- Senhor, acho que está içando algo - disse Fielding. - É uma monterilla.
Ambos a observaram com a luneta.
- São dois lençóis - aclarou Jack. - Dois lençóis costurados lado a lado e com uma ponta dobrada. Temos que admitir! Não lhe falta boa vontade.
Inclinou-se sobre a escotilha e, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Parem de disparar!
- Já - disse o infante de marinha que estava onde habitualmente se encontrava a porta da cabine, girou o relógio de areia e depois deu um passo para frente para
dar duas badaladas.
Como figuras em um relógio antigo, o guarda-marinha e o suboficial de guarda abandonaram seus respectivos postos e se reuniram junto ao lado de bombordo, um com
a nacela e o carretel e o outro com um pequeno relógio de areia. O suboficial deixou cair a nacela e imediatamente o barbante começou a separar-se do carretel.
- Volta! - gritou.
O guarda-marinha mantinha fixa a vista no relógio enquanto o cordel se desenrolava.
- Parar! - disse.
Então o suboficial examinou o cordel.
- Quanto mediu, senhor Conwall? - perguntou Jack.
- Sete nós e pouco mais de três braças, senhor.
Jack moveu a cabeça de um lado para o outro, desceu e disse:
- Senhor White, pode animar a fragata fazendo fogo mais amiúde, ainda que somente com um canhão de cada vez. E dispare as balas de modo que lhes falte pouco para
atingir o alvo, porque se queremos que atravesse o estreito antes da alvorada não devemos tocar-lhe nem um cabelo, e mesmo depois teremos que cuidá-la. Disparos
que pareçam reais, mas de trajetória curta, compreende?
- Sim, sim, senhor, disparos que pareçam reais, mas de trajetória curta - respondeu o condestável, mas era evidente que não estava satisfeito.
- Senhor Fielding - disse Jack ao regressar ao castelo de popa -, quando tenha falado com Lascas, subirei a exárcia. Se essa monterilla aproximar um pouco a Cornélie
e suas balas chegarem a bordo, trate de adiantar-se mais.
O carpinteiro e seus ajudantes estavam muito ocupados no castelo. Estavam fazendo um marco com a forma do janelão de popa da Noz-moscada, uma parte essencial do
plano de Jack para enganar a Cornélie quando a lua se ocultasse.
- Como vai isso, senhor Walker? - perguntou.
- Muito bem, senhor, obrigado, mas temo que isto entorpecerá o bote.
- Não se preocupe com isso, Lascas - Jack o tranqüilizou. - Se tudo for bem, não terá que navegar mais de meia hora.
Então repetiu para si: "Se tudo for bem". Subiu ao cesto da gávea do traquete e, sem pausa, seguiu até a cruzeta e se colocou perto de um extremo da verga. Sentado
ali podia ver perfeitamente a metade oriental do céu, claro e sóbrio, que parecia uma cúpula, e abaixo as claras e serenas águas que se estendiam até a metade da
distância que havia até o horizonte, onde, formando uma linha reta como um meridiano, mudava da cor azul-claro para azul-escuro manchado de branco e depois para
o tom que o Mediterrâneo tinha no outono e que Stephen costumava chamar de vermelho-vinho. Além dessa linha se elevava a escura terra por ambos os lados e se estendia
para o sudeste até onde a vista não alcançava, mas parecia que os lados convergiam em um ponto, a saída do estreito de Salibabu. Navegando a essa velocidade ainda
tardariam muito em chegar, e a julgar pela posição da maldita lua, o sol, agora oculto pela gávea maior, estava muito baixo pelo oeste.
- Não há dúvida de que o vento soprará com mais força no estreito - sentenciou -, porque tem a forma de funil. Mas a maré é o que tem que ser levada em conta. Terá
que dar uma maldita corrida.
Olhando para o convés deu a ordem de que desviassem a Noz-moscada cinco graus de seu rumo para que se mantivesse mais perto da costa sul. Isso seria necessário quando
tivesse que mudar de bordo, ainda que agora o objetivo era atenuar a força da maré, que começaria a se mover para oeste ao cabo de poucas horas.
Quando Jack Aubrey estava no mar, quando tinha tão perto o presente e o futuro imediato e, sobretudo, quando participava de uma batalha, ainda que fosse de tão pouca
envergadura como essa, passava pouco tempo pensando no passado; contudo, agora era diferente, pois se sentia abatido. Contrário à sua própia lógica, era supersticioso,
como muitos marinheiros, e não gostava do aspecto daquela terra escura nem das horríveis cores do mar que tinha em frente, com seu maciço banco de areia. E a morte
de Miller, além de penalizar-lhe, havia confirmado muitas idéias irracionais.
Permaneceu sentado ali por muito tempo. Sentiu em duas ocasiões como se movia a verga quando os marinheiros a bracejavam para melhorar sua posição em relação ao
vento, e enquanto refletia, os canhões seguiam disparando, ainda que os da Noz-moscada com menos freqüência, a intervalos mais compridos.
O tempo passava, e enquanto isso se ouviam ordens, marteladas no castelo e os ruídos própios de uma embarcação que navegava sem muita pressa. Ali acima o efeito
do balanço e do cabeceio constantes parecia maior, ainda que não o suficiente para interromper seus pensamentos.
Soaram as três badaladas justo abaixo e na parte de sua mente mais ou menos autônoma se formou o pensamento:
"Três badaladas na guarda do primeiro quartilho". Essas palavras o fizeram sentir de novo certa alegria, porque lhe recordaram a resposta à pergunta "Por que chamam
de penico o joanete do mastro mezena?" que dera Stephen Maturin: "Porque quando a fragata aumenta de velocidade lhe saem asas". Essa lhe parecia a melhor idéia que
ouvira em sua vida. Considerava-a extraordinária, e com freqüência, talvez demasiada, contava a anedota, ainda que aos mais lerdos da tripulação e a alguns que não
tinham senso de humor tinha que explicar. A resposta foi dada por Stephen muitos anos atrás, mas parecia ter melhorado com o tempo. Sorrindo Jack se deixou cair
da verga ao mesmo tempo que se segurava em um brandal e deslizou por ele até o castelo. Quando se dirigia ao castelo de popa pelo corrimão notou novos buracos em
um lado da vela maior e viu que Fielding e o contramestre, por meio de aparelhos, colocavam antecipadamente para fora da borda o bote chamariz.
- Como vamos, Richardson? - perguntou, olhando para atrás dele para a distante Cornélie.
- Somente oito nós quando soaram as quatro badaladas, senhor. Como estava se aproximando e outra bala deu na galeria de bombordo, movi as escotas para a popa.
- Maldita galeria! tinha posto uma bacia nova, uma bacia linda de autêntica porcelana.
- Sim, senhor. Quer que voltem a medir a velocidade, senhor?
- Não. A guarda quase já terminou.
Começava a se dissipar a escassa névoa que cobria o céu a oeste, de colorido rosa-pálido e dourado, e o sol estava separado do mar por uma distância quase igual
ao seu diâmetro. Jack se inclinou sobre um costado, olhou com atenção o rastro e pensou que provavelmente a fragata ganhara outra braça, mas o desejava mais do que
o acreditava. Então disse:
- Bem, talvez. É muito mais fácil fazer uma precisa leitura do tempo quando há luz.
- Oito nós e só uma braça, senhor, com sua permissão - propôs Reade, o guarda-marinha de guarda uns momentos depois.
A Cornélie, que se mantinha à mesma distância, fez fogo e a bala formou um penacho de água a apenas cinqüenta jardas da popa.
- Isto é alentador! - exclamou Jack.
Ficou ali observando como o sol se punha, rodeando por alguns momentos a fragata francesa com uma bonita auréola, e cinco minutos depois, quando desceu para a cabine,
a escuridão já cobria o mar pelo leste e a lua ganhara visibilidade.
- Senhor - disse Killick ao pé da escada do castelinho. - Levei sua maca para a cabine do pobre Warren. O senhor Seymour está encantado de ficar no camarote dos
guardas-marinhas até que sua cabine dormitório esteja disponível.
Killick tinha o rosto impassível, como ficava quando omitia a verdade ou sugeria algo que era falso, e Jack sabia perfeitamente que obrigara Seymour e os oficiais
a aceitarem aquele acordo, mas desnecessariamente, porque, sem dúvida, todos teriam oferecido.
- Compreendo. Então traga uma caixa de vinho do porto de oitenta e sete - disse, e se dirigiu à câmara dos oficiais, onde encontrou todos menos a Richardson agrupados
ao redor de uma carta marítima estendida sobre a mesa.
- Cavalheiros - começou -, vou abusar de sua hospitalidade esta noite, se me permitirem. A cabine tem que ficar acesa e terá que responder à Cornélie se continuar
disparando, porque assim a manteremos animada. Os oficiais disseram que estavam encantados e Jack prosseguiu:
- Senhor Fielding, perdoe que fale aqui de questões da Armada, mas tenho que dizer que quando estejamos no estreito seria conveniente fazer medições com a barquilha
cada vez que soem as badaladas. Ademais, os marinheiros podem levar as macas abaixo para dormir um pouco até amanhã e os fogos da cozinha podem voltar a serem acesos.
Por último, vou encarregar-me da guarda da alvorada e me deitarei após jantarmos... Senhor Seymour, agradeço-lhe muito a sua amabilidade.
Seymour baixou a cabeça e procurou uma resposta elegante, mas antes que a encontrasse, Jack continuou:
- Doutor, podemos visitar a enfermaria quando acenderem os faróis?
Quando caminhavam para lá, Jack disse:
- Stephen, como sei que os oficiais devem se reprimir de fazer muitas coisas quando o capitão está entre eles, pois têm que se sentar retos e não podem arrotar nem
contar histórias obscenas, ordenei que tragam uma caixa de nosso vinho do porto de oitenta e sete. Espero que não se importe.
- Importa-me muito. Dar esse insubstituível líquido a meus companheiros é uma ação ímpia.
- Mas eles apreciarão o gesto. Além do mais, tirará um pouco da solenidade e será um alívio para mim, pois não pode fazer idéia do desagradável que é sentir-se como
um desmancha-prazeres. Você é mais afortunado do que eu. Eles não lhe têm respeito, ou seja, não um respeito indevido. Quero dizer que lhe respeitam muito, sem dúvida,
mas não o consideram um ser superior.
- Ah, não? Indubtavelmente me consideram um muito desagradável desde esta tarde. Discuti, maldisse e insultei a todos.
- Você me deixa assombrado. O que lhe incomodou?
- havia afastado um cadáver para abri-lo. Era um interessante caso de cólicas. Ia pedir sua permissão, como é meu dever, mas antes que tivesse oportunidade de fazê-lo,
algum delinqüente ou talvez algum marinheiro muito atarefado costurou as bordas da maca em que estava e o colocou entre os outros que sepultaste.
- É um demônio, Stephen, eu te asseguro.
O jantar foi solene, mas muito copioso. Ainda que não fizesse muito tempo que os oficiais navegavam juntos, passaram tantas vicissitudes que lhes parecia que estavam
a cinco anos nessa missão, o que, sem dúvida, diminuia a formalidade do ambiente. Seymour, que comia pela primeira vez com os oficiais, não dizia nada, naturalmente;
Stephen, como sempre, ficava absorto em suas meditações; mas Fielding e Welby se animaram a contar compridas anedotas. Apesar das profecias do demônio, todos se
deleitaram com o vinho do porto de 1787, possivelmente até certo ponto porque Killick, em tom enfático, havia dito:
- Destampei o vinho de oitenta e sete, senhor, e como é tão envelhecido, a rolha estava muito incrustada.
Estavam fazendo a rodada com a terceira garrafa quando de repente Stephen, alçando a voz para que o ouvissem apesar do ruído do canhão que estava acima deles, perguntou:
- Isto é uma escuna?
Tinham ouvido o doutor dizer algumas coisas muito estranhas, mas nenhuma tão pouco provável, e durante um momento houve silêncio absoluto.
- Refere-se à Noz-moscada, doutor? - perguntou Jack por fim.
- Naturalmente, a Noz-moscada, que Deus a bendiga.
- Que Deus a bendiga. Não pode ser uma escuna enquanto esteja sob meu comando, sabia? Se estivesse sob o comando de um capitão de escuna, seria uma escuna, mas eu
tenho a honra de estar na lista de capitães de navio e isso a converte em um navio equiparável a um de três pontes da Armada. Como lhe ocorreu essa idéia tão rara?
- Estava refletindo sobre as escunas. Um amigo meu escreveu um romance e me mostrou para que eu desse minha opinião como marinheiro.
Os oficiais baixaram a vista para o prato com uma expressão bastante serena.
- Pensei que era uma história muito bonita - continuou -, mas objetei que se o herói estava ao comando de uma escuna, não podia capturar uma fragata. Contudo, acaba
de me ocorrer que a Cornélie, indubtavelmente, é uma fragata, que nós, ainda que a Noz-moscada seja pequena, aspiramos capturá-la, e que talvez minha objeção não
tinha fundamento, que as escunas realmente podem capturar fragatas.
- Oh, não! - exclamaram.
Acrescentaram que o doutor tinha toda razão e que em toda a história da Armada real nunca nenhuma escuna capturara uma fragata, porque isso seria desafiar o destino.
- Porém, por outro lado - disse Jack -, alguns navios com um calado e baterias similares aos de uma escuna o fizeram. A presença de um capitão de navio e sua autoridade
moral são o que inclinam a balança. Bebamos a sua saúde, estimado senhor. Bem, cavalheiros, dentro de poucos minutos começará a guarda, assim que lhes agradeço o
esplêndido jantar, darei uma espiada no céu e depois me deitarei.
- E nós lhe agradecemos o esplêndido vinho, senhor - disse Fielding. - Será meu padrão de excelência desde que beba vinho do porto de agora em diante.
- Tem razão, tem razão - concordou Welby.
No convés observava-se que o vento, que agora chegava pela alheta, aumentara bastante de intensidade. À luz da bitácula podia se ver que a velocidade aumentara para
oito nós. A Cornélie seguia na mesma distância. A lua era claramente visível, mas não brilhava o bastante para que não se notasse a luz dos faróis preparados para
a batalha no castelo nem o tênue resplendor que havia nas portalós abertas ao longo do costado muito menos as línguas de fogo que saíam do canhão de popa de estibordo
quando disparava. Ambas as embarcações haviam adentrado bastante no estreito. Jack pôde ver as luzes de um povoado de pescadores ao sul, justo onde indicava a carta
marítima. A outra margem estva muito distante para vê-la com nitidez, mas lá estava, prateada pela luz da lua e salpicada de sombras negras.
Soaram as oito badaladas. Seymour substituiu Richardson. Chamaram os marinheiros de guarda e os outros desceram para dormir o quanto podiam apesar dos rugidos dos
canhões na coberta. Fielding havia subido para ajudar Seymour na primeira guarda que tinha a seu cargo e agora estava no castelo dando os passos necessários para
colocar o marco e os faróis no bote isca, situado de maneira que poderia ser baixado em um momento, passos que já tinha sido feito uma outra vez pela brigada integrada
por Bonden, dois ajudantes do contramestre e um forte marinheiro negro encarregado da âncora a quem chamavam de Negro.
Jack os observou um pouco e depois se foi para a proa com Fielding.
- Surpreenderia-me que a Cornélie não parasse de disparar agora - disse. - Contudo, quero separar a escuna dela um par de cabos a mais para evitar que alguma bala
perdida lhe cause sérios danos, ainda que, naturalmente, tem que seguir vendo bem a popa iluminada. Vou ordenar que ajustem as braças e alarguem a bóia e depois
irei dormir. Boas noites.
- Boa noite, senhor.
Quando Jack descia, o fogo cessou, e foi a Noz-moscada a última que disparou. Quando foi deitar-se viu que não teria que dormir na maca do pobre morto porque a sua,
extraordinariamente longa, estava lá pendurada de proa a popa. Killick era um servente espantoso em muitos aspectos e um homem irritável, avarento, abusador dos
que tinham uma classe inferior e grosseiro, mas em outros era uma pérola. Durante alguns momentos pensou em outros elogios e depois de decidir que não tinha preço
dormiu.
Despertou, como tantas vezes, ao ver a débil luz de uma lanterna na escuridão, e ouviu as palavras:
- Senhor, quase vão soar as oito badaladas.
Despertou imediatamente, como o havia feito desde sua infância, e, saltando da maca, disse:
- Obrigado, senhor Conway.
Uma parte de sua mente que não estava adormecida de tudo, advertira o progresso da Noz-moscada durante todo esse tempo, por isso Jack não se assombrou ao notar pela
água que passava pelos costados que tinha perdido velocidade.
Pôs a camisa, as calças e os sapatos de lona e saiu devagar da escura câmara dos oficiais. Ao chegar ao convés iluminado pela lua, formou uma tigela com as mãos,
pegou um pouco de água do tonel que ficava junto ao escotilhão, molhou a cara e se dirigiu à popa quando o sentinela avançava para tocar as oito badaladas.
- É um alívio que tenha chegado, senhor - Seymour o cumprimentou. - Sinto dizer-lhe que o vento amainou.
- Já! - gritou Conway junto ao lado de bombordo e depois se aproximou e informou. - Sete nós, senhor. Sete nós.
- Desejo boa noite aos dois - disse Jack.
Quando o timoneiro, o vigia e os artilheiros foram substituídos, Jack se aproximou do coroamento. A Cornélie estava agora pela alheta de bombordo, ainda perto da
entrada do estreito, e um pouco mais distante e escura. A lua, cujos raios atravessavam um véu de nuvens, estava próxima do zênite, e a maré aumentaria quando começasse
a descer para o sul. Ainda que, conforme o que havia dito o capitão do Alkmaar, ali era três horas mais tarde que em Nil Desperandum, a maré estivera se movendo
para o oeste há algum tempo. Aproximou a tabuinha com os dados da navegação de um farol de popa e acrescentou as cifras que refletiam o progresso nas últimas quatro
horas. Trinta e uma milhas. Não era tanto como desejava, mas não estava mau. Ainda havia possibilidades. A guarda atual, a guarda de meia, era um período decisivo,
porque agora se notaria o efeito da maré. Naturalmente, solicitara informação sobre o estreito quando soube que a Cornélie ia atravessá-lo, e lhe disseram que, ao
contrário de outras partes do Pacífico, havia duas mudanças de maré em um dia lunar, a primeira com um fluxo débil e a segunda, com o qual a Noz-moscada se encontraria
durante essa guarda, com um fluxo mais forte. Mas em Batavia ninguém pôde lhe dizer se era pouco ou muito mais forte. Certamente que isso dependia da lua, e a julgar
por sua atual forma convexa, não exerceria muita influência. Por seus cálculos e pelos poucos dados obtidos por Darlymple, Horsburgh e outros em suas observações,
o oficial de derrota (um excelente navegante) e ele tinham deduzido que nesse momento do mês lunar provavelmente haveria um fluxo em direção oeste de dois nós e
meio, e fizera o plano considerando que seriam três nós.
Poucas coisas eram mais difíceis do que julgar o movimento relativo com relação a uma costa desconhecida com poucos pontos de referência e de noite. Quase todos
os escassos povoados de pescadores espalhados por ela já tinham apagado as luzes e era ainda mais difícil localizá-los pelas fogueiras para queimar matos que ainda
ardiam nos bosques.
Hora depois de hora o guarda-marinha de guarda lhe informava sobre a velocidade: sete nós, sete nós e duas braças, sete nós e uma braça. Também hora após hora o
carpinteiro ou um de seus ajudantes lhe informava sobre a profundidade da água na sentina: nunca mais de seis polegadas. Enquanto isso Jack observava a costa com
a luneta, tratando de encontrar uma marca que lhe permitisse ter uma idéia aproximada da velocidade da corrente. Uma vã tentativa, porque não apareceu um ponto fixo
e claro de que necessitava.
Justo depois de soar as três badaladas, apareceram pela amura de estibordo quatro pontos fixos em vez de um, quatro barcos de pescadores ancorados a dois cabos de
distância que tinham luzes brilhantes para atrair os peixes.
- Senhor Oakes, traga a tabuinha, o giz, um relógio de areia de meio minuto e uma lanterna - ordenou.
Correu para a proa pelo corrimão e quando o primeiro barco estava pelo través gritou:
- Vire!
A partir de então o seguiu com a bússola para medir o azimute até que Oakes disse:
- Já!
Então marcou a diferença. Depois fez o mesmo com o segundo, o terceiro e o quarto, todos separados entre si o suficiente para lhe dar tempo de calcular aproximadamente
o surpreendente valor dos ângulos.
Desceu e fez os cálculos com sumo cuidado. Eram piores do que supunha. Havia um fluxo de cinco graus e meio, e quando a lua estivesse um pouco mais para oeste, seria
ainda mais rápido. O fluxo continuaria por seis horas. A velocidade da escuna com relação à costa era de duas milhas e uma hora menor do que calculara e o final
do estreito estava doze milhas mais longe do que pensava. Quando chegassem lá, o sol já estaria no alto do céu.
O plano não serviria. Por uma questão de consciência revisou os cálculos outra vez, mas comprovou que os que obtivera na primeira e na segunda vez estavam corretos
e se decepcionou muito.
Quando regressou ao convés diminuiu a velocidade pela segunda vez porque a Cornélie, por causa da forte corrente, estava ficando afastada, e ainda que não estivesse
seguro do que devia fazer, não queria perder contato com ela. Ficou apoiado no coroamento olhando afastar-se a esteira levemente fosforescente iluminada pela lua.
Era óbvio que não havia esperanças de poder levar a cabo o plano e, cheio de tristeza e amargura, esteve refletindo durante um tempo. Enquanto isso, continuou a
silenciosa vida noturna da escuna, própia de um barco de guerra: a voz baixa do suboficial que a governava, as respostas do timoneiro, o burburinho dos homens de
guarda abaixo da escada do castelo e o dos artilheiros que ficavam abaixo e das badaladas, seguidas por "tudo bem, o serviola do castelo!" e depois "tudo bem!" de
todos os postos de uma ponta a outra da escuna.
Porém, por seu caráter otimista, recobrou o ânimo pouco antes das cinco badaladas, quando começava a parte mais tranqüila da noite, e cumprimentou Stephen com bastante
alegria:
- Ah, Stephen, está aqui! Alegro-me de vê-lo.
- Lamento chegar tão tarde. Caí em um sono profundo.
- Suponho que queria ver como Menkar se ocultava.
- Não. Queria vir para sentar-me aqui contigo, pois, conforme entendi, não haverá batalha até que a lua se ponha.
- É muito amável, meu amigo, mas lamento dizer que não haverá nenhuma batalha, ou ao menos nenhuma até dentro de muito tempo e não será como eu esperava. A Cornélie
tem muito pouca facilidade para navegar, é muito lenta, e, por outra parte, cometi um erro tão bobo ao calcular o fluxo da maré que é impossível que atravessemos
o estreito antes do amanhecer.
Cinco badaladas e a medição ritual com a barquilha.
- Sete nós, com sua permissão - anunciou Oakes, e sua cara cheia de espinhas parecia mais pálida e tinha um aspecto mais desagradável àluz da lua.
- Parece uma boa cifra, né? - perguntou Jack quando se foi. - Mas a massa de água por onde a escuna navega a sete nós se move para o oeste a cinco ou mais, assim
que nos aproximamos da boca do estreito somente duas milhas por hora, em vez de quatro, como esperava. Isso me desanimou bastante, eu lhe asseguro, e durante um
tempo o vi tudo negro; contudo, logo pensei que não chegar ao encontro com Tom não era o fim do mundo e que o correto era não perder de vista a Cornélie, levá-la
além do estreito e, depois de fazer uma ampla virada, aproximar-nos por barlavento em alto mar. Com este vento a escuna pode alcançar doze nós, frente aos sete da
fragata.
- Não poderia comparecer ao encontro com Tom Pullings e também perseguir a Cornélie?
- Oh, não! Tom está ou deve estar situado bastante ao norte. A Noz-moscada teria que desdobrar todo o velame que possue para chegar até lá a tempo e o capitão da
Cornélie descobrirá imediatamente o que tramamos. Não é nenhum tonto. Lembre-se como nos descobriu em Nil Desperandum. Teria que correr muito para reunir-me com
Tom e possivelmente não o encontraria e perderia de vista a Cornélie. Não pode fazer idéia de como e fácil para um barco escapulir, apenas em algumas horas, em uma
zona do mar salpicada de ilhas.
- Estou seguro de que tem razão. Além do mais, há outro encontro ao qual se pode chegar mais comodamente, em um lugar melhor, o encontro em Botany Bay ou, para ser
mais exato, na baía de Sidney. Não tenho palavras para expressar quanto desejo ver um ornitorrinco.
- Lembro de que me falau dele da última vez que estivemos lá.
- Foi uma horrível ocasião, garanto. Os militares nos olhavam com receio e quase não nos deram tempo para descer em terra. Tivemos que partir rapidamente, quase
sem provisões, e o único que consegui foi uma catorra conhecidíssima e comum. Que vergonha! Nova Holanda me deve muito.
- Não importa. Desta vez será muito melhor. Poderá ver a vontade como voam os ornitorrincos.
- Meu amigo, é um mamífero, um animal com pêlo.
- Acreditava que havia dito que punha ovos.
- Sim, ele os põe. Isso é o extraordinário. Também tem bico como o pato.
- Não me admira que queira vê-lo.
A noite era mais cálida que o habitual e eles seguiram ali sentados tranqüilamente em dois colchonetes, falando de coisas desconexas: aquela viagem que fizeram no
Leopard, os aromas que agora vinham de terra, umas vezes o da fumaça produzido pela madeira ardendo e outras o de plantas, às vezes distinguíveis entre si, a água
que jorrava do nariz de um pouco tempo após estar no mar e a extraordinária limpeza e a ausência de maus odores na Noz-moscada, inclusive na bodega.
A lua se pôs e as estrelas brilharam ainda mais. Então Jack falou do observatório que tinha em Ashgrove Cottage e comentou que em Batavia um inteligente holandês
o havia ensinado uma forma melhor de colocar a cúpula, uma forma baseada nos métodos dos moendeiros de seu país, que, naturalmente, trabalhavam com moinhos de vento.
Oito badaladas. Fielding se encarregou da guarda, mas Jack permaneceu na coberta e um pouco depois, quando Bonden foi até o convés na escuridão, disse:
- Bonden, terá que dizer a seus companheiros que o plano não serve. O fluxo da maré é muito forte e a fragata francesa lenta demais.
- Sim, senhor - respondeu Bonden. - Só vim para dizer que Killick já tem uma cafeteira e uma bandeja de mingau na prateleira da chaminé, e quer saber se gostaria
de tomá-los aqui ou abaixo.
- Que acha, doutor? Encima ou abaixo?
- Abaixo, por favor, porque muito logo terei que ir ver meus pacientes.
- Você se importa de esperarmos cinco minutos? Queria ver Vênus sair.
- Vênus? - perguntou Stephen desconcertado. - Meu Deus! Sim, certamente. Provavelmente terá notado que o mar está muito menos agitado.
- Sim, isso costuma ocorrer antes da mudança da maré, como recordará. Dentro de pouco começará a baixar e toda esta massa de água, de milhões e milhões de toneladas,
se moverá para o leste. E acho que se moverá mais rápido porque será impulsionada pelos aguaceiros e o vento que o céu promete, um vento que fará levar as gáveas
rizadas.
Stephen não pôde perceber nenhuma promessa, além da total escuridão a oeste, mas como sabia que as salamandras, os gatos e os animais marinhos tinham sentidos que
ele não possuía, deu-lhe razão. Também ele observou como saía Vênus, uma figura borrada que estava muito perto do horizonte, cujo brilho e cuja forma de corno podiam
ser apreciados muito bem com a luneta.
Desceram e com infinita satisfação tomaram o mingau e o café na câmara dos oficiais enquanto conversavam em voz baixa, apesar de que agora já haviam chamado os aleijados
para trabalhar e por toda a escuna se ouvia o ruído da pedra arenito raspando o convés na escuridão. Voltaram a falar da viagem que tinham feito no Leopard, dos
relativos prazeres que a ilha Desolação lhes proporcionou e da senhora Wogan.
- Era uma bonita mulher - disse Jack. - E muito rara. Se não recordo mal, deportaram-na por disparar nos aguazis que foram prendê-la, e eu gosto das mulheres de
caráter. Mas não é bom ter mulheres a bordo, sabe? Isso - acrescentou, assinalando a segundo tijela de papa de Stephen, que havia deslizado pela mesa -, isso é o
que queria dizer quando falava da mudança da maré. Agora está baixando, e como é empurrada por um vento forte, o mar mudará completamente. Ouve a chuva? Esse é um
dos aguaceiros. Choverá a cântaros durante vinte minutos e depois o céu ficará limpo. O sol sairá dentro de pouco.
- Tenho que ir ver meus pacientes. Não estou muito satisfeito do estado do jovem Harper.
Durante um tempo falaram dos grandes pedaços de madeira pontiagudos, os casos em que as feridas cicatrizavam bem desde o início e os casos em que havia infecção,
e quando Stephen se levantou, Jack disse:
- Vou contigo.
Desceram a escada e foram até o final da popa.
- Nota mesmo aqui o agradável odor?
Antes de que Jack pudesse responder, ouviram-se acima deles três estrondos e os disparos simultâneos dos dois canhões de popa. Jack subiu diversas escadas e chegou
ao castelo de popa quando caiam as últimas gotas de chuva e apareciam as primeiras luzes, e imediatamente compreendeu a situação. A Cornélie, desdobrando um pouco
mais do malfeito velame, aumentara a velocidade, depois havia orçado e avançado muito navegando contra a corrente. Depois, oculta atrás da cortina de chuva, posicionara-se
de maneira que a Noz-moscada estava ao alcance de seus canhões e então dera uma guinada e disparara um bombardeio. Uma das balas dera nos guinchos da verga da gávea
maior, e ainda que as adriças já haviam se soltado, a vela dava golpes em direção a sotavento produzindo um ruído estrondoso.
- Leme para bombordo! - ordenou, em parte para que a vela não se movesse tanto e em parte para que a Noz-moscada abandonasse o rumo que estava, que era convergente
ao da Cornélie.
- Não vira, senhor! - gritou Fielding para que pudesse ser ouvido apesar do rugido dos canhões. - Há uma bala entre a prancha do leme e o codaste e o cabo de sujeição
se rompeu!
Jack olhou para o castelo e gritou:
- Desdobrem a cevadeira e a gávea! Soltem a bóia! - Depois se voltou e disse: - Senhor Crown, ponha os aparelhos de emergência imediatamente. Senhor Seymour, desça
os punhos de barlavento, corte os estropos de bombordo e leve todos os cabos que possa para o cesto da gávea.
Correu para a cabine e, quando o canhão de estibordo disparou e retrocedeu, ordenou:
- Guardem-no!
Inclinou-se para fora e viu que Richardson, ainda com a camisa de dormir, pendurado da popa, com a água até o queixo a cada vez que uma onda chocava-se contra ela,
empurrava furiosamente a bala com uma alavanca.
- Dick! Perfurou o casco ou só está travada?
- Travada, senhor, entre o estropo superior e...!
Foi interrompido por uma grande onda com muita espuma. Jack retrocedeu e disse a Bonden:
- Dá-me um cabo amarrado a um gancho. Diga ao contramestre que vire para estibordo no momento em que estejam colocadas os aparelhos. Dá-me uma alavanca. Vamos, senhor
White.
Um momento depois estava na branca e turbulenta esteira. A pesada alavanca o fez afundar, mas dando um enérgico chute subiu para a superfície e agarrou o gancho
que pendurava do cabo quando a Cornélie voltou a disparar uma terrível descarga. Quando se metia debaixo da sacada de popa, Jack ouviu que uma das balas golpeou
o casco da Noz-moscada e depois o senhor White disparou um canhonaço que o ensurdeceu. Com um pé em um anel e o braço esquerdo ao redor da prancha, meteu a alavanca
no espaço que havia sob a bala meio sepultada e tentou tirá-la para fora enquanto Richardson tratava de movê-la pelo outro lado. Uma depois de outra as ondas os
cobriam de espuma, pois a Noz-moscada estava ganhando velocidade, e seu esforço lhes parecia inútil. As forças de Jack estavam se esgotando. Estava a ponto de cair
do anel de ferro quando a prancha que estava abraçando rangeu e se moveu levemente para bombordo. Um último empurrão e a bala saiu.
Fizeram uma inclinação de cabeça um para o outro, mantendo a boca fechada para esquivar os salpicos de água, e Jack deixou cair a alavanca e tratou de subir a bordo.
Os braços não lhe respondiam e teve que chamar o seu timoneiro, e enquanto os marinheiros o subiam, encheu-se de arranhões ao roçar o casco. Depois Richardson subiu,
com uma perna jorrando sangue que procedia de uma ferida despercebida.
Ambos, empapados, sentaram-se ofegando, e Jack disse:
- Tire o canhão, Bonden.
O canhão saiu com rapidez pela portaló e quase imediatamente fez fogo. Quando a fumaça se dissipou, Jack viu Fleming aproximar-se correndo e gritando:
- O senhor Fielding diz que vira, senhor!
No mesmo momento viu que a Cornélie começava a mudar de bordo para reduzir a crescente distância que separava as embarcações e disse:
- Obrigado, senhor Fleming. Diga-lhe que ponha a proa contra o vento e que mande um dos marinheiros do castelo. - Voltou-se para Richardson e perguntou: - Como está,
Dick?
- Perfeitamente bem, senhor. Não senti nada nesse momento. Acho que me espetei no gancho.
Chegou o marinheiro do castelo e cumprimentou tocando-se a testa.
- Jevons, ajude o senhor Richardson a descer. Dick, deve tratar essa ferida. Diga ao doutor que estamos navegando de bolina, e se achar que deve ficar abaixo, fique
lá.
A resposta que Richardson deu quando o marinheiro do castelo o levantou foi abafada pelo estrondo dos canhões e fortes vivas.
- Nós o acertamos no casco pela coxia, senhor! - gritou o senhor White. - Vi voar as lascas!
Jack olhou por uma pequena abertura e viu claramente a fragata. Estava a três quartos da distância anterior, iluminada pelo sol, cujos raios saíam por uma clareira
nas nuvens a leste. Também viu sob aquela luz o jorro de água que a bomba de estibordo da fragata jogava.
Levantou-se, dobrou os braços e as mãos e subiu a escada que levava ao castelo de popa. Ao chegar ali viu uma terrível confusão sob o céu encapotado.
- Já tiramos uma verga, senhor - informou Fleming -, e a gávea desceu, como vê, mas Seymour diz que o mastro tem sérios danos.
- Tem um corte até o centro justo um pé acima da cruzeta.
O contramestre reapareceu.
- Já estão postos os novos cabos da prancha do leme - disse.
- Muito bem, senhor Crown. Prepare-se para envergar uma vela na verga seca.
A Cornélie fez fogo com os canhões de proa outra vez e o penacho de água que fez saltar uma das balas os empapou.
- Sim, senhor - disse o contramestre por fim, mais surpreendido pela ordem do que pela água que o salpicou, ainda que foi muita, porque nunca em sua vida havia envergado
uma mezena redonda.
- Senhor Fielding, coloque os mastaréus de joanete de proa e de penico...
As ordens se sucederam rapidamente, sem ênfase mas com gravidade. Assim que a estranha vela estava envergada e inchada, os marinheiros subiram as macas e foram desjejuar
em dois turnos. Quatro marinheiros escolhidos pegaram o leme e o própio Fielding se encarregou do governo da escuna.
Durante todo esse tempo os canhões haviam seguido respondendo, sem mais efeito que a perfuração de algumas velas e o corte de alguns cabos da exárcia, mas quando
a desconhecida mezena redonda deu o potencialmente perigoso impulso, a Cornélie já havia avançado tanto como havia se retardado ao disparar as descargas e se aproximava
muito rapidamente. Jack mudou o rumo para receber o vento pela alheta em vez de pela popa, pois desse modo a mezena redonda não impediria que o vento chegasse à
vela maior, e imediatamente a escuna aumentou de velocidade. Depois de observar tudo com muita atenção durante dez minutos e de desdobrar duas bujarronas mais, chegou
à conclusão de que a velocidade que a escuna alcançara sem a gávea maior era a mais parecida à da fragata que lograria ter e disse a Seymour, que estava encarregado
das caronadas de popa de bombordo, e aos dois guardas-marinhas que ficassem preparados.
Assomou-se pela escotilha, que tinha o marco destroçado e salpicado de pedaços de vidro, e gritou:
- Senhor White, saque o canhão, ajuste-o bem e faça com que os canhões de bombordo respondam! - E depois disse: - Senhor Seymour, vamos mudar de bordo, leme para
bombordo. Dispare quando os canhões estiverem apontados. Dispare alto e rápido.
Inclinou-se para passar por debaixo da mezena redonda, essa vela anômala e incômoda, e pegou o leme ele mesmo. A Noz-moscada virava facilmente e com rapidez. Os
marinheiros estavam tão preocupados com as escotas e os aparelhos da estranha vela que não prestavam atenção aos canhões da Cornélie. Terminou de mudar de bordo
e então a primeira caronada fez fogo e logo dispararam outras duas ao mesmo tempo. Como Jack esperava, a Cornélie virou o leme e respondeu com uma descarga, e, também
como esperava, não foi tão precisa nem mortífera como a primeira. Não pôde contar quantas vezes disparou a brigada de Seymour, mas em uma ocasião os ouviu gritar
como loucos que lhes trouxessem balas porque os suportes estavam ficando vazios.
- Acho que dispararam seis vezes cada uma, senhor - observou Adams, que tomava notas ali de pé com um tinteiro pendurado no olhal e um relógio na mão.
A Cornélie não disparou, aliás reiniciou a perseguição, ainda que com a perda de dois cabos de avanço. Mas ainda navegava de bolina e lhe favorecia o rápido fluxo
da baixa-mar.
Assim seguiram navegando milha depois de milha. O capitão da Cornélie sabia muito bem que a Noz-moscada necessitava guindar um mastaréu maior para poder navegar
mais rapidamente que a fragata, mas estava decidido a que não o fizesse. Uma e outra vez a fragata dava uma guinada, disparava uma descarga e virava. E quando tinha
vantagem, como quando a sobremezena da Noz-moscada se desprendeu, disparou por bombordo e depois por estibordo com todos os canhões que possuía, produzindo um terrível
estrépito. A passagem pelo estreito foi marcada pela debandada das aves marinhas, que saíam assustadas de seus ninhos nos escarpados. A Noz-moscada costumava responder
com descargas das caronadas, também muito ruidosas, em uma sucessão assombrosamente rápida, e ambos os bandos disparavam quase o mesmo número de balas. Em geral,
os disparos da Cornélie eram muito menos precisos.
- Não me admira - disse Jack a Fielding quando estava descascando uma laranja junto ao coroamento -, porque estiveram bombeando por toda a noite e acho que não têm
forças para sacar os canhões, e muito menos para apontá-los bem.
Mas poucos minutos depois de fazer estes comentários, pelos quais se maldice, no momento em que por fim estavam a ponto de guindar o mastaréu, que se encontrava
em posição horizontal, e quando já podia se ver a boca do estreito, a Cornélie, a uma distância apropiada, deu uma guinada e disparou cuidadosamente duas lentas
descargas que causaram muitos danos. E o principal estrago foi a ruptura do virador e do aparelho por onde passava, o que provocou a queda do mastaréu, situado na
metade da altura necessária, que, por consequência disso, abriu um buraco na coberta e a abertura para a cunha e o talão se estragaram, tão meticulosamente preparados.
Mas a Cornélie se afastara por fazer guinadas duplas e não voltou a disparar antes que o carpinteiro e seus ajudantes começassem a recuperar o talão e pudesse ver-se
por estibordo, justo pelo través, a abertura por onde Jack pensava passar para se esquivar da fragata francesa. Foi então quando chegou ao convés, da verga de joanete
de proa, o grito:
- Barco à vista!
- Onde?
- Pela amura de bombordo, senhor. Vejo as joanetes pelas costas do cabo, senhor. Outro. Dois barcos, senhor. Três. Quatro. Meu Deus! Já os verá, senhor.
- O mastaréu está pronto, senhor - disse Fielding a Jack.
- Ordene guindá-lo, senhor Fielding, por favor - respondeu Jack. - E depois o mastaréu de joanete, e tão logo como seja possível, mande colocar as vergas.
Foi devagar até o castelo e dirigiu a luneta para o cabo. Depois de vários minutos, um dos canhões de popa disparou e o duelo começou de novo. A proibição de ferir
a Cornélie fazia tempo que terminara, e o único desejo dos tripulantes da Noz-moscada era causar-lhe graves danos antes que derrubasse algum mastro.
- Já os verá, senhor - disse o serviola em tom coloquial.
O primeiro barco saiu de detrás do terreno elevado que formava o cabo. Estava a pouco mais de uma milha de distância, usava grande quantidade de velame desdobrado
e navegava com o vento pelo través em direção sudeste e aproximadamente a dez nós, formando grandes ondas com a proa. O sol acabava de sair, e com aquela luz não
podia distinguir seu armamento, mas via bastante bem a bandeira estadunidense. O seguiram outros dois barcos, os dois de tamanho similar, potentes corvetas ou pequenas
fragatas, os dois navegando muito rapidamente e com o mesmo rumo e os dois com bandeira estadunidense. Fizeram rápidos sinais uns para os outros. Então apareceu
o quarto barco e o coração lhe pulou no peito. Começou a avançar rapidamente mas sem correr para a popa, e ao chegar ao castelo de popa ordenou:
- Que venham o senhor Richardson e o suboficial encarregado dos sinais.
Richardson, o tenente encarregado dos sinais, veio do castelo coxeando e com a perna coberta por abundante bandagem. Titus, o suboficial encarregado dos sinais,
que havia saído da proa, seguia-o.
- A bandeira britânica na haste, o sinal secreto, o número de identificação da Diane e a mensagem: "Perseguição pelo noroeste". Depois a mensagem telegráfica: "Bem-vindo
Tom". Tudo desde o mastaréu de joanete. E um par de bandeiras mais na verga.
Richardson o repetiu e Adams o escreveu. O suboficial correu até onde se achava o baú com as bandeiras e Jack disse:
- Senhor Reade, por favor, desça correndo para a enfermaria e felicite o doutor e diga-lhe que avistamos a Surprise.
Então olhou para o castelo, onde a guindaleza que enrolava o cabrestante inferior se punha tensa para subir o mastaréu até os vaus onde se apoiaria, e estava a ponto
de dizer-lhe a Fielding que içasse a flâmula assim que guindassem o mastaréu quando um pensamento fez encolher outra vez seu coração: "A Surprise foi capturada por
uma esquadra estadunidense?". Foi até a proa. Já estavam içadas a bandeira britânica, o sinal secreto e as bandeiras que indicavam a direção da perseguição. Observou
a Surprise com grande atenção. A fragata orçou e ultrapassou os outros três barcos com sua característica graça de lebre. O fogo tinha cessado atrás dele. Ouviu
chegar de longe as ordens pertinentes para guindar o mastaréu e depois, quando estava colocado, o grito "guindado!". Titus terminou de formar a mensagem telegráfica
com as letras T, O, M e por fim a bandeira que a Surpritinha, depois de estremecer, foi arriada rapidamente e substituída pela sua, que foi recebida pelos vivas
de muitos mais tripulantes da Noz-moscada que os que estavam desocupados nesse momento. Jack olhou para trás e viu que a Cornélie virara e avançava para o noroeste,
onde caía um forte aguaceiro.
- O doutor lhe apresenta seus respeitos, senhor - disse Reade -, e diz que o felicita pelo encontro e que subirá ao convés quando esteja livre.
O doutor Maturin ficou livre quando a Noz-moscada, com a gávea maior, a joanete maior e o galhardete reparados, acabava de mudar de bordo e perseguia a Cornélie.
Navegava de bolina e a grande velocidade, lançando jorros de espuma a muita distância do casco. A Surprise se aproximava por sotavento e havia tido que afrouxar
as escotas para não navegar mais rápido. Stephen viera correndo com a casaca e o avental negros que usava nas batalhas, e a cor de sangue ainda sem secar sobre as
escuras roupas contrastava com seu rosto resplandecente.
- Aí está! - exclamou. - A teria reconhecido em qualquer parte. Que alegria!
- Sim, é verdade - disse Jack. - E me alegro de que tenha vindo antes que arriemos a mezena redonda, porque é possível que nunca volte a ver outra.
- Por favor, mostre-me qual é - pediu Stephen.
- É esta que está justo acima de nossas cabeças - indicou Jack. - Está envergada na verga seca.
- É uma vela muito bonita, garanto. Adorna muito bem. Olhe como vem a valente fragata! Viva, viva! Aí está Martin, diante dessa coisa... Esqueci o nome. Vou agitar
o lenço.
A Surprise se situou paralela à Noz-moscada, a um tiro de pistola, e então mudou de orientação o velacho para seguir navegando mais ou menos na mesma velocidade.
Junto à borda estavam alinhados rostos alegres e sorridentes que Jack e Stephen conheciam muito bem, mas como em casos como esse se atuava conforme a etiqueta no
mar, ninguém disse nada até que estiveram frente a frente os dois capitães, Jack Aubrey ainda com seu horrível gorro de Monmouth e Tom Pullings com roupa de trabalho
e um chapéu de uniforme que tinha posto para a cerimônia, com seu horrível rosto cheio de cicatrizes radiante de alegria.
- Como vai, Tom? - perguntou Jack com seu vozeirão.
- Muito bem, senhor, muito bem - respondeu Tom, tirando o chapéu. - Espero que o senhor e todos nossos amigos estejam bem.
Jack devolveu a saldação e seus compridos cabelos loiros se estenderam para sotavento e começaram a ondear.
- Nunca estive melhor, obrigado. Adiante-se e se coloque em sua esteira. Não tardará muito tempo porque avança pesadamente. Mas não se aproxime até que eu chegue.
O capitão se renderá em quanto nos veja aos dois e não teremos que gastar pólvora nem haverá feridos. Quem são seus acompanhantes?
- O Tritão, um barco corsário inglês de vinte e oito canhões de doze libras e dois canhões longos de nove. Está ao comando do capitão Goffin. Os outros são presas
estadunidenses.
- Tanto melhor. Adiante, Tom! - gritou. - Chegou a tempo para um enxurrada - acrescentou ainda com o mesmo vozeirão quando começaram a cair as primeiras gotas de
chuva na coberta.
O velacho da Surprise se inchou e a fragata avançou imediatamente. Agora que haviam terminado as palavras oficiais começaram os cumprimentos de um barco para o outro,
apesar da chuva.
- Capitão Pullings, meu amigo, como está? Por favor, tenha cuidado com a umidade. Senhor Martin, como está? Eu vi um orangotango!
- Como está, Joe?
- Como está, Matusalém?
E na ponta da proa alguns marinheiros brincalhões gesticulando disseram:
- Vá, uma mezena redonda! Ah, ah, ah!
Os tripulantes da Noz-moscada se assombraram daquela familiaridade, pois ainda que Killick e Bonden (e especialmente Killick) lhes tinhvessem presenteado com histórias
sobre a importância e a riqueza do capitão Aubrey (seus serventes tinham um coche de cristal e rodas douradas e comiam duas sobremesas ao dia) e sobre a habilidade
sobrenatural e a vida mundana do doutor Maturin (chamava de Bill ao duque de Clarence e tomava chá com a senhora Jordán), nunca lhes falara da Surprise. Mas havia
pouco tempo para se assombrar, pois em quanto a Surprise se afastou até um ponto em que já não se podiam ouvir os gritos de uma embarcação para a outra, foram chamados
para aferrar e desenvergar a odiosa mezena redonda e desdobrar a apreciada carangueja, que aumentaria um nó mais a velocidade da Noz-moscada. Antes que a escuna
alcançasse a velocidade máxima, a Surprise havia desaparecido sob o aguaceiro, uma massa de água cinzenta.
A meia hora seguinte foi muito angustiante para todos e os minutos pareciam estender-se até extremos inconcebíveis. Mas a causa não era a quantidade de água que
havia no convés, que saía a jorros pelos embornais, nem que tivessem medo da costa rochosa, pois Jack havia medido bem as marcações, mas por que temiam que a Surprise
se equivocasse ao julgar a lentidão da Cornélie e se encontrasse de repente junto dela, ao alcance de seus canhões, mais potentes que os seus. Em meio desse penoso
período houve ensurdecedores trovões que se produziram quase à altura dos topes dos paus e que impediram fazer fogo, e, naturalmente, caíram trovões por todas partes,
como em um terrível dilúvio.
Jack pensou que Adams, ali ao seu lado, parecia um rato afogado, que todos pareciam ratos afogados, e que não tinha sentido mudar de bordo contra o vento do sudoeste
sob aquela copiosa chuva quente como caldo.
- Senhor - sussurrou Adams ao seu ouvido -, desculpe, mas o senhor Fielding disse que podia falar-lhe porque este é um caso especial. O condestável vai pôr dados
em seus livros; está muito preocupado pela alavanca que se perdeu no mar e diz que não gosta de pedir, mas consideraria um grande favor que lhe desse um certificado
firmado pelo senhor como contador e capitão e depois pelo senhor F...
Nesse momento lhe interrompeu um raro conjunto de três trovões seguidos que deixaram um odor de enxofre, e quando terminaram, Jack respondeu tranqüilamente:
- Recorde-me quando esteja firmando documentos.
Aquele enorme estrondo pôs fim ao aguaceiro. Os trovões se ouviam cada vez mais distantes por sotavento; a chuva era cada vez mais fina e por fim cessou. Lá adiante,
a quinhentas jardas, estava a Surprise a pairar, brilhante entre o límpido ar. Mas estava sozinha. Não havia nenhum outro barco no estreito iluminado pelo sol, e
tampouco junto à costa nem no horizonte ou a estibordo, nem em nenhuma parte do mar.
Seu assombro durou apenas o bastante para chamá-lo assim. Todos os botes que havia ao redor da Surprise, mais dos que uma fragata podia levar, e o fato de que deles
muitos homens subiam a bordo por ambos os costados e pela escada de popa significava que a Cornélie havia afundado. Com a luneta pôde ver que subiam com guinchos
muitos homens uniformizados e quase inanimados.
- Senhor Seymour, baixe um bote na água, qualquer um que flutue - ordenou e desceu correndo e pedindo aos gritos uma casaca decente, calções e um chapéu.
Lembrou-se que a Surprise era propriedade de Stephen e mandou perguntar-lhe se queria ir a bordo, ainda que o advertia que agora o mar estava bastante agitado. Ao
regressar o guarda-marinha informou de que o doutor Maturin apresentava seus respeitos e objetava que nesse momento Macmillan e ele estavam realizando uma tarefa
urgente.
- Estavam usando uma serra, senhor - acrescentou Bennett, ainda pálido e sentindo náuseas.
A única embarcação que não sofrera danos depois do longo ataque com os canhões era o pequeno cúter, e nele Jack chegou ao costado e os degraus que tão bem conhecia.
Na Surprise afinal. Haviam colocado guarda-mancebos e alinhado grumetes com luvas brancas para receber-lhe solenemente, e lhe deram vivas sem nenhuma ordem, mas
espontâneos e entusiastas, quando chegou ao portaló, onde Tom Pullings o cumprimentou com um férreo aperto de mãos.
- Afundou, senhor -informou. - Vimos como seus homens baixavam os botes pelo lado quando deixamos para trás o aguaceiro. Estava afundada até a base das portalós
e quando os homens estavam se afastando, virou a proa em direção contrária às ondas e deslizou para abaixo como se estivesse navegando. Recolhemos muitos homens
que estavam nadando ou agarrados a galinheiros. E aqui está o oficial que tinha o comando, que havia sucedido ao capitão na batalha. Fala inglês e disse que tinha
que render-se ao senhor.
Voltou-se e fez um gesto que indicava uma apresentação, e ali, no grupo de oficiais britânicos e franceses que estavam a sotavento, estava Jean-Pierre Dumesnil.
O jovem, pálido e quase morto de cansaço, avançou e lhe ofereceu sua espada.
- Jean-Pierre! - disse Jack, dando alguns passos para ir ao seu encontro. - Meu Deus, como estou contente de te ver! Tinha medo de que... Não, não. Guarde sua espada
e me dê a mão.
CAPÍTULO 7
"Não, não. Guarde sua espada e me dê a mão", disse. E talvez isso se pareça com o que Drury Lane disse quando o tipo de calções rosados e chapéu com plumas levantou
seu inimigo caído e descobriu que a criada era a filha do duque, mas te asseguro que naquele momento foi uma resposta espontânea. Alegrei-me muito em vê-lo. Se leu
a comprida carta que Raffles prometeu lhe enviar com o primeiro barco dos que fazem o comércio com as índias que chegasse, saberá a quem me refiro. É Jean-Pierre
Dumesnil, o sobrinho do capitão Christie-Pallière, que me capturou quando estava ao comando da Sophie e me tratou tão bem. Encontrei-me em Pulo Prabang com o sobrinho,
que passara de ser um gordo guarda-marinha a um esbelto oficial, segundo oficial da Cornélie. Naquele momento pensei que era um bom homem e agora penso que é ainda
melhor. Peço que busque o endereço de seus primos em Londres, os Christy, na gaveta da escrivaninha negra, concretamente no canto da direita. Acho que vivem na rua
Milsom, e o jovem, que foi à escola do doutor Hall em Bath durante a paz, visitava-os amiúde. Mande-lhes um respeitoso e caloroso cumprimento de sua parte e diga-lhes
que não está ferido. Durante a batalha, um de nossos canhões causou estragos no castelo de popa da Cornélie e Jean-Pierre teve que assumir o comando; outro destroçou
um penol na parte inferior da proa e como consequência entrou tanta água que bombeando dia e noite quase não podiam mantê-la flutuando, mesmo com o vento em popa.
Apesar disso e de ter poucos tripulantes, lutou nobremente com sua fragata. Poderia ter-nos capturado se não nos encontrássemos na boca do estreito com a Surprise
e outros três barcos. Tom Pullings ouviu os canhonaços antes do amanhecer e se dirigiu para lá a toda velocidade desde seu posto, muito mais ao norte. Avistamos
os quatro detrás do cabo, quando os estavam dobrando, e ao ver que todos tinham bandeira norte-americana, pensei: "Jack Aubrey, está entre a espada e a parede",
porque estava entre os endemoninhados canhões de dezoito libras da Cornélie e o armamento conjunto de uma esquadra estadunidense, e não tinha espaço para manobrar.
Mas quando vi aparecer a nossa amada Surprise... Meu Deus, quanta alegria! Então mandei içar um sinal para que iniciasse a perseguição para o oeste.
Obviamente, uma luta de cinco contra um era desigual, assim que Jean-Pierre orçou com a esperança de lograr ocultar-se atrás de uma das ilhas situadas ao sul amparado
por um aguaceiro. Mas os tripulantes, que a duras penas haviam podido sacar a água a medida que entrava com o vento de popa, agora que estavam exaustos e que o vento
era de proa não puderam mantê-la flutuando. Quase não tiveram tempo de descer para água os botes antes que a fragata afundasse. A Surprise os resgatou, e alguns
que quase não podiam se manter em pé tiveram que subir-lhes com guinchos. Quando a Noz-moscada chegou ao seu lado e eu subi a bordo, Jean-Pierre se rendeu a mim.
Depois, como o estreito não era um lugar cômodo para permanecer ao pairo, navegamos para leste até esta enseada abrigada, ancoramos em águas de sessenta braças de
profundidade e conhecemos os tripulantes dos outros barcos. O Tritão, um barco corsário potente e quase tão grande como a Surprise, está ao comando de Horse-Flesh
Goffin, que, como provavelmente recordará, foi julgado por um conselho de guerra por ter falsificado um rol. Já faz algum tempo navega com a fragata. Os outros são
esplêndidas presas estadunidenses capturadas por eles, esplêndidas presas porque contêm o carregamento de vários outros barcos tão pequenos que não valia a pena
trasladar para eles um grupo de tripulantes. Um está cheio de peles de nútria e outros animais parecidos, que são muito apreciadas na China, aonde ambas embarcações
se dirigiam. Parece que, em geral, a viagem da Surprise foi um grande êxito, pois antes de capturar estes dois mercantes aprisionaram baleeiros de Nantucket e New
Bedford e os mandaram para portos sul-americanos, ainda que não sei exatamente... Temos muito que contar-nos e havia tanto o que fazer na pobre Noz-moscada, que
sofreu tantos danos, que ainda não sei a metade do que teria que saber.
Estava sentado na cabine, junto ao extremo de estibordo do marco do janelão por onde entrava a luz do sol refletida pelo mar jaspeado, um janelão que lhe era mais
familiar que todos os que vira em terra. Olhou para fora e viu a Noz-moscada, com a exárcia em boas condições de novo, depois de passar um período surpreendentemente
curto nessa baía, e com o carpinteiro e seus ajudantes por fora do costado dando os últimos retoques na galeria. Olhou para o outro lado da mesa, mas ao ver que
Stephen estava muito concentrado na escrita e tinha um gesto austero, posou seu olhar na mesa, que excepcionalmente fora colocada na grande cabine e tinha espaço
para catorze comensais sentados comodamente. Não sem certa satisfação viu que estava posta com inusual suntuosidade. Essa era uma das ocasiões que Killick gostava
mais do que tudo no mundo, e agora a prataria de Jack, que haviam logrado conservar apesar das vicissitudes do viagem, lançava lampejos debaixo da oscilante luz.
Stephen seguia deslizando a pluma sobre o papel, mas seu gesto era mais amável, porque nesse momento escrevia:
...e portanto, depois de ter jogado por terra a tese de Baker sobre o funcionamento do organismo da abelha solitária, só quero acrescentar que estou muito cansado
de ser como uma abelha solitária. Não encontro palavras para expressar quanto desejo ter notícias suas outra vez e saber se você e a filha que talvez tenhamos se
recuperaram e estão em bem e contentes. E como as questões materiais afetam a felicidade, a sua pode aumentar tanto quanto a minha ao saber que, se estas presas
chegarem ao porto, nossa situação econômica não será tão cinzenta, tão má, nem tão angustiante.
Jack voltou para sua carta:
A parte do dinheiro obtido por esses dois mercantes que corresponde à Surprise será uma ajuda para o pobre Stephen, pois, por ser o dono e o armador, pertence-lhe
a parte maior, certamente. Será uma ajuda, como digo, mas só lhe servirá para recuperar uma pequena parte de sua fortuna. Não estou seguro de qual é sua situação.
Corri ao seu quarto quando me informei da quebra de Smith e Clowes e lhe disse que nunca em minha vida lamentara tanto nada como ter-lhe aconselhado a mudar de banco
e que esperava e rogava a Deus que não o tivesse seguido até o ponto de que o efeito fosse catastrófico; contudo, ainda que também pensava lhe dizer que tinhamos
vivido de um fundo comum antes e que indubtavelmente poderíamos voltar a fazê-lo, faltaram-me as palavras e não soube como me explicar bem. Nesse momento ele me
interrompeu dizendo: "Não, não. De nenhuma maneira. Não teve muita importância. Eu lhe estou infinitamente agradecido". Desde então não disse nada, e ainda que de
vez em quando, e espero que com delicadeza, dei a entender coisas e fiz sugestões a esse respeito, aparentemente ele não as entendeu. Mas como é um homem tão orgulhoso,
não posso lhe falar do tema abertamente. Mesmo assim, quando acabe esta viagem lhe rogarei que me venda a Surprise, pois isso me proporcionará uma grande satisfação
e também servirá pelo menos para que se mantenha flutuando.
Voltando aos outros barcos, direi que as presas têm muito poucos tripulantes porque, como medida sensata, para evitar que pudessem se amotinar e recuperar o barco,
muitos foram deixados em terra no Peru. Mas agora há muito poucas possibilidades de que isso ocorra, porque estarão escoltados não só pelo Tritão, um barco de potência
adequada para navegar por estas águas e cheio de tripulantes, como também pela Noz-moscada. O regresso da escuna a Batavia será mais rápido via Cantão, onde esperará
pelo monção do nordeste, mais rápido que navegando de bolina com este. Ofereci o comando a Tom, mas disse que preferia ficar conosco, assim que é Fielding quem tem
o comando, e está encantado.
Killick chegou e ficou no umbral da porta ofegando e com gesto mal-humorado, mas eles seguiram com a atenção posta em suas cartas e não lhe fizeram caso. Então se
aproximou da mesa e moveu desnecessariamente algumas facas e garfos para chamar sua atenção.
- Pare, Killick - ordenou Jack sem levantar a vista.
- Killick, interrompe o fio de meus pensamentos - acrescentou Stephen.
- Só vim dizer que o cozinheiro queimou a sopa, que o doutor não se barbeou ainda e que sua senhoria se manchou de tinta nos calções, os únicos calções decentes
que tem.
- Meu Deus! - exclamou Jack. - Maldito seja, é verdade! Vá e me traga os outros que são quase tão bons como estes. Stephen, podemos tirar-te um pouco de provisões,
né? Killick, vá ver o senhor Martin, apresente-lhe os respeitos do doutor e peça três tabletes de sopa dessecada.
- Sim, senhor, três tabletes de sopa dessecada - repetiu Killick e depois, quase para si mesmo, acrescentou: - Mas não será suficiente, não será suficiente.
Jack voltou para sua carta.
Minha querida, temos uma refeição de despedida dentro de meia hora. Ainda resta muito tempo, mas sei que todos os marinheiros relacionados com ela estão desejosos
de que seja um êxito, sobretudo porque a Noz-moscada é um barco de guerra com um galhardete. Provavelmente, guiados por Killick, virão com um pretexto ou outro ou
se assomarão pela escotilha e tossirão até que subamos ao convés vestidos impecavelmente de uniforme para receber os convidados.
Tinha terminado a carta, com querida e beijos para todos, quando a porta se abriu e entrou Tom Pullings, que era de novo o imediato da fragata. Não obstante isso,
usava o uniforme correspondente ao seu grau, o uniforme de capitão, que apesar de ser esplêndido estava um pouco enrugado e cheirava a mofo do trópico porque não
o usara nas últimas nove mil milhas.
- Desculpe, senhor - disse -, mas não me ouviu tocar. Um bote do Tritão zarpou.
- Obrigado, Tom - respondeu Jack. - Só vou lacrar esta carta e imediatamente irei contigo.
- E, senhor, envergonha-me dizer que me esqueci de lhe dar uma carta que me entregaram em Callao quando o senhor subiu a bordo. Estava no bolso desta casaca e me
esqueci dela até que a ouvi ranger.
Jack soube imediatamente que a carta era de seu filho natural, um filho concebido na base naval do Cabo quando era jovem, e apenas escutou Pullings relatar a confusa
história de um clérigo que visitara a Surprise quando chegara ao porto e que havia se decepcionado muito por não ter encontrado a bordo ao capitão Aubrey nem ao
doutor Maturin. Tom disse que falava inglês muito bem, ainda que com um sotaque irlandês tão forte que qualquer um teria dito que era realmente um irlandês se não
fosse negro, negro como o carvão. Tinha se encontrado com ele outra vez na casa do governador, onde estava junto com o bispo, vestido com uma túnica roxa e o tratavam
com grande respeito, e lhe dera a carta. Então voltou a se desculpar e se retirou.
- Uma carta de Sam - murmurou Jack, passando a primeira folha. - Como se expressa bem! Tem frases muito felizes, garanto. Aqui há uma mensagem para você e algo em
grego - acrescentou, passando a segunda. - Por favor, leia-o.
- Como progride! A esse passo logo chegará a vigário geral. Não é grego, é irlandês e tem relação com minha intercessão com o Patriarca. Diz: que Deus ponha uma
flor em sua cabeça.
- Isso é muito fino! Acho que eu não poderia me expressar melhor. Assim que os irlandeses têm uma escrita própia. Não tinha idéia.
- Certamente que têm uma escrita própia. Já a tinham desde antes que seus antepassados deixassem os obscuros bosques teutônicos. Na realidade, foram os irlandeses
os que ensinaram aos ingleses o alfabeto, ainda que tenho que admitir que com pouco êxito. Mas esta é uma bonita carta, realmente é.
- Senhor - Killick os interrompeu com a navalha na mão e uma toalha em cima do braço -, a água está esfriando.
Jack voltou a ler a carta de Sam e pensou: "É um jovem encantador, mas me alegro de que a carta tenha chegado quando já havia terminado a minha".
Em Ashgrove Cottage sabiam muito bem que Sam existia e o haviam aceitado; na Surprise o sabiam muito bem e era objeto de muitas brincadeiras, pois muitos de seus
tripulantes mais antigos tinham visto o jovem na primeira vez que subira a bordo e notaram que era a viva imagem de seu pai, ainda que de cor negro brilhante. Porém,
apesar de que a mente de Jack aplicava a lógica às matemáticas e à navegação conforme os astros (apresentara na Royal Society vários trabalhos, acolhidos com fortes
aplausos pelos que os entendiam e suportados com sombria fortaleza pelos demais) não a aplicava ao cumprimento das leis. Algumas, a maioria delas relacionadas com
a Armada, as obedecia cegamente; outras, as transgredia às vezes e depois sofria as consequências; outras as rechaçava. O lugar de Sam nesse complexo panorama não
estava claro. Não tinha um sentimento de culpa definido por aquela remota fornicação e sentia muito carinho por aquele sacerdote papista negro, mas ainda tinha sentimentos
contraditórios e teria se sentido incômodo se tivesse lido a carta de Sam quando ainda estava escrevendo para Sophie.
A carta era perfeita. Entre "Estimado senhor" e "Afetuosamente, seu mais humilde servidor", Sam falava de sua alegria ao ver a fragata, de sua decepção por não ter
podido apresentar seus respeitos ao capitão Aubrey e ao doutor Maturin, de sua viagem pelos Andes e da grande amabilidade do bispo, que era um velho cavalheiro de
Castilla la Vieja. Falava de tudo em tom discreto, pelo que qualquer um poderia ler a carta, mas toda ela ressumava afeto. Jack havia começado de novo a lê-la quando
Killick lhe tirou o sorriso dos lábios anunciando que a Noz-moscada também havia baixado um bote.
A verdade era que nem esse bote nem o do Tritão iam rumo à Surprise, tinham diferentes missões. A absurda ansiedade dos tripulantes da fragata teve como consequência
que Jack, vestido com seu melhor uniforme, tivesse que permanecer um período que lhe pareceu muito longo no castelo de popa, com muito calor, apesar do toldo, e
com muita fome. Ao grupo que estava a sotavento, Pullings, Davidge, West e Martin, respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro tenentes e o ajudante de cirurgião,
a espera também lhes pareceu comprida e tinham tanto calor como ele, e mesmo mais fome. Tinham calor porque Pullings vestia uniforme e os demais, ainda que não o
usassem (West e Davidge não tinham direito a usá-lo porque os haviam expulsado da Armada e Martin não usava por outras razões), estavam vestidos com roupa formal
e também lamentavam ter posto sapatos de pele, casacas, coletes e ajustadas gravatas-borboletas. Tinham mais fome porque tinham voltado a adotar o costume antigo
de almoçar às duas badaladas (Pullings costumava almoçar com os oficiais em vez de sozinho) e já passara uma hora e meia desde então. Pouco depois a situação de
Martin melhorou, pois Stephen subiu ao convés com a casaca abotoada, barbeado e escovado e ambos começaram a conversar animadamente detrás do cabrestante, em um
lugar neutro, sem violar a solidão do capitão no sagrado território de barlavento, e a imensa quantidade de coisas que tinham a se falar lhes impedira de pensar
no almoço. Esse alívio não pudo ser sentdo pelos tenentes, que constantemente pensavam na comida e sentiam grunhir suas tripas. Tragavam de vez em quando, mas falavam
pouco, tão pouco que ouviram como o contramestre repreendia em voz baixa no castelo a um de seus ajudantes por andar descalço:
- Que pensarão os cavalheiros de nós quando subam pelo costado?
Isso estava a ponto de ocorrer, porque agora os verdadeiros botes haviam zarpado. Killick e seus ajudantes chegaram com bandejas cheias de taças, garrafas, frituras
e outros manjares que o capitão da Surprise podia permitir-se o luxo de oferecer.
- Killick! - disseram eles, ainda que não muito alto.
Mas Killick fingiu não ter ouvido e com os lábios franzidos colocou as bandejas na parte superior do cabrestante, que brilhava ao sol, arrumou tudo com cuidado,
colocando inclusive os torresmos de bacon graciosamente uns contra os outros, e não permitiu que ninguém tocasse em nada até que começasse o banquete.
- Preparados! - gritou o contramestre, sustentando um pouco a ordem.
- Adiante os marinheiros do costado! - ordenou West, o oficial de guarda, quando o primeiro bote engatu o croque e subiram os primeiros convidados a bordo.
O primeiro foi Goffin, um homem alto e gordo de cabelo negro e cara vermelha. Era um capitão de navio que fora expulso da Armada (ainda que ainda usava o uniforme
com leves mudanças). Cumprimentou aos oficiais e todos lhe devolveram a saldação. Depois, sem sorrir, perguntou:
- Como está, Aubrey? - E imediatamente se voltou para o cabrestante, ao lado do qual estava Killick.
Seguiu-lhe seu sobrinho, um pouco mais cortês; depois os oficiais da Noz-moscada seguidos dos dois oficiais franceses sobreviventes e, finalmente, de Adams acompanhado
de Reade e Oakes, que, como haviam comido ao meio-dia, não esperavam almoçar outra vez. Este último, de quem Jack se sentia responsável, ia ficar na fragata.
Quando todos os oficiais tomaram o aperitivo, que só consistiu em genebra de Holanda ou Plymouth ou vinho de Madeira, Jack os conduziu abaixo. Quando entraram por
ordem hierárquica na cabine, enchendo-a por completo, Goffin exclamou:
- Por Deus, Aubrey, o senhor não se priva de nada! - Então avançou até a cabeceira da mesa esplendidamente preparada.
- Aqui, senhor, diante de seu guarda-marinha, por favor - indicou Killick, agora com luvas brancas, enquanto assinalava um lugar do outro lado, perto de Pullings.
Goffin, cheio de orgulho e com a cara mais vermelha, sentou-se onde lhe assinalavam. Era impossível declinar a ordem, pois desde tempos imemoriais existia uma convenção
conforme a qual os oficiais franceses capturados deviam sentar-se à direita e à esquerda de Jack e os oficiais do rei tinham preferência, para ocupar os postos,
aos que não o eram ou haviam deixado de sê-lo. Se essa fosse uma refeição informal e se Goffin fosse amigo de Jack, o capitão poderia dispor uma ordem diferente;
contudo, não o teria feito, pois quando o expulsaram da Armada, quando estava na mesma situação penosa que Goffin, alguns amigos com boa vontade mas tontos lhe haviam
dado a precedência devido ao sua antiga classe e ainda sentia a dor que lhe haviam causado. Mas Goffin via as coisas de outra maneira. Achava que sua condenação
pela leve falta de falsificar um rol era uma questão puramente técnica (havia inscrito o filho de um amigo no rol de seu barco para que o menino, ainda que estivesse
ausente, tivesse anos de antiguidade na Armada quando realmente se fizesse ao mar, o que era uma prática comum, mas ilegal, e fora denunciado por seu escrevente,
a quem havia chutado e insultado repetidamente) e pensava que merecia um tratamento melhor. Enquanto ficou ali sentado procurou durante algum tempo uma frase que
fosse ofensiva, mas não muito grosseira.
A oportunidade se apresentou com a sopa, que cheirava tanto a cola que os dois franceses afastaram a colher e trocaram um angustiante olhar antes de se submeterem
aos horrores da guerra. Pullings, para proteger a honra da fragata, voltou-se para Stephen e disse:
- Uma estupenda sopa, doutor.
Jack, por sua parte, murmurou ao jovem que estava ao seu lado:
- Sinto muito, Jean-Pierre. Foi uma medida desesperada. Por favor, diga ao seu amigo que não têm por que tomá-la toda.
Mas Goffin perdeu a oportunidade. Todas as sopas lhe pareciam iguais e a comeu mecanicamente, e inclusive passou o prato para que lhe servissem mais. Por fim, quando
o prato já estava vazio, olhou para o outro lado da mesa, onde se encontrava seu sobrinho, um guarda-marinha que não passara no exame de tenente, e perguntou:
- Já esteve em algum banquete oferecido pelo alcaide de Londres, Art?
- Não, senhor.
- E a algum oferecido por outra prefeitura ou pelas associações dos que comerciam com comestíveis ou pescado ou coisas parecidas? Este é o tipo de prato que um encontra
entre comerciantes.
A pulha não cumpriu seu objetivo, pois nesse momento Jack estava rindo a gargalhadas de algo de suas própios piadas; contudo, esta e outras repentinas amostras de
má intenção foram percebidas pelos que estavam no outro extremo da mesa, e Jack não tardou em dar-se conta de que se sentiam incômodos. Supôs qual era a causa quando
viu aquele rosto sombrio à direita de Pullings e ficou seguro dela um momento depois.
Fielding acabava de interromper uma pausa dizendo:
- Falando de ursos, senhor, já lhe contei que meu pai era guarda-marinha no Racehorse quando estava ao comando de lorde Mulgrave, que então era o capitão Phipps,
e fez a viagem ao pólo norte? Não foi exatamente companheiro de Nelson, que estava no Carcass, mas ambos se viam amiúde em terra e se davam muito bem. Nelson...
- Não deveria falar de Nelson na presença de dois oficiais franceses - gritou Horse-Flesh. - É uma descortesia.
- Oh, não se preocupe conosco! - exclamou Jean-Pierre, rindo. - Nossos críticos não escasseiam. Temos, para citar a algum, a Duguay-Trouin.
- Duguay-Trouin? Nunca ouvi falar dele.
- Então tem algo bom a descobrir, senhor - disse Jean - Pierre. - Bebamos a sua saúde, senhor.
- Bebamos todos - propôs Jack. - Encham a taça até a borda, cavalheiros, e bebam até a última gota. Pelo incomparável Dugua-Trouin.
Depois, por sugestão de Stephen, brindaram por Jean Bart também. Killick e seus companheiros entraram e saíram várias vezes apressadamente, o monte de garrafas vazias
aumentou e numerosos pratos muito mais dignos cobriram a mesa.
Então Jack disse:
- Por favor, senhor Fielding, continue com sua história. Se não recordo mal era sobre a famosa tentativa de Nelson de conseguir uma pele de urso.
- Oh, não, senhor! Não é uma grande história salvo quando meu pai a conta, mas lhe contarei para mostrar-lhe o outro lado do animal.
- Muito bem - disse o senhor Welby olhando sorridente a taça de vinho.
- Quando os barcos regressavam dos oitenta e um graus norte aproximadamente, onde todos os homens estiveram a ponto de se congelarem, fazendo um grande esforço lograram
chegar à baía Smeerenburg, em Spitzbergen, e se puseram a pairar. Deram para a maioria dos tripulantes licença para descer a terra, e alguns jogaram pídola ou futebol
com a bexiga de um animal inchada e outros correram pelo lugar em busca de caça. Os que se ficaram na margem mataram uma morsa, um enorme animal que provavelmente
o senhor conhecerá, senhor. Tiraram a sua gordura e comeram a parte melhor conforme o baleeiro da tripulação, depois de cozinhá-la sobre a própia gordura, que arde
muito bem. Pouco depois, acredito que meu pai disse que dois ou três dias mais tarde, viram se aproximarem caminhando pelo gelo três ursos brancos, uma ursa e dois
filhotes de urso. A gordura ainda estava ardendo, mas a ursa pegou vários pedaços que não estavam acesos e tinham um pouco de carne. Os três comeram vorazmente e
os marinheiros lançaram para a ursa alguns pedaços de carne que restavam. A ursa os recolhia um a um, os levava ao lugar onde estavam os filhotes de urso e os dividia,
mas no momento em que estava recolhendo o último, os marinheiros mataram a tiros os filhotes de urso, e quando ela fugiu, a feriram gravemente. Ela avançou pesadamente
até onde se encontravam os filhotes de urso, ainda com o pedaço de carne, e o partiu e pôs um pedaço diante de cada um. Quando viu que não comiam, roçou com as garras
a um e depois ao outro e tentou levantá-los, mas ao ver que não podia movê-los, partiu. Afastou-se até certa distância e então olhou para trás e deu um grunhido,
mas como não pôde induzi-los a se reunirem com ela, regressou. Farejou ao seu redor e começou a lamber suas feridas. Pouco depois voltou a partir, e após ter avançado
com dificuldade alguns passos, voltou a olhar para trás e ficou ali gemendo durante um tempo. Mas como os filhotes de urso tampouco se levantaram nem a seguiram,
aproximou-se deles de novo e, dando mostras de grande carinho, deu uma volta ao redor de um e depois do outro gemendo e acariciando-os com as garras. Ao compreender
enfim que estavam mortos, levantou a cabeça e a voltou para os marinheiros grunhindo, e vários dispararam de uma vez e também a mataram.
Houve um respeitoso silêncio. Depois Stephen, em voz baixa, disse:
- Lorde Mulgrave era o mais afável dos capitães. Foi ele que descreveu pela primeira vez a gaivota branca e prestou especial atenção às medusas dos mares do norte.
Soou uma badalada na guarda de primeiro quartilho. A conversa tinha voltado a versar sobre temas gerais e em um dos extremos da mesa se ouvia um incessante burburinho.
Welby apenas tinha começado a falar com o terceiro a bordo da Cornélie, que era monolíngüe, com mais segurança e em um francês muito mais compreensível do que esperavam
seus companheiros, ouviu-se na outra ponta a potente voz de Goffin, que, aparentemente sem controle, queixava-se:
- Bem, posto que muitos de nós não gozamos do favor de Whitehall, proponho um brinde: pelas ovelhas negras da Armada e para que logo as pintem de branco com a mesma
broxa.
Todos acharam bom e tanto West como Davidge fizeram um esforço para sorrir. Beberam e depois contaram todas as anedotas ou comentários sobre a maré, o tempo ou a
corrente que tinham de reserva, contaram qualquer coisa para evitar o silêncio. Welby, com inusual loquacidade, contou uma história sobre a estreita e longa enseada
de Pentland; Martin e Macmillan falaram extensamente do escorbuto, sua cura e sua prevenção. Mas depois da sobremesa, um excelente "cachorro manchado"{9} que foi
o melhor prato da refeição, ouviram Jack dizer:
- Doutor, por favor, diga a quem tem do seu lado que vamos brindar por sua majestade e que é perfeitamente aceitável que não se junte a nós, ainda que se quiser
fazê-lo, será uma honra para nós brindarmos juntos.
O terceiro a bordo da Cornélie quis brindar e também Jean-Pierre, que inclusive acrescentou:
- Que Deus lhe bendiga.
Pouco depois Jack sugeriu que tomassem o café no castelo de popa. Tomaram café e pouco conhaque, e logo chegaram as despedidas, a de Goffin com justificada indignação,
as dos tripulantes da Noz-moscada, que iam levar um monte de cartas para Cantão, muito afetuosas, e a de Jean-Pierre, muito carinhosa.
- Acho que o almoço foi um fracasso - observou Jack enquanto ele e Stephen olhavam os botes se afastarem, em um dos quais estava Horse-Flesh vomitando para fora
da borda. - As refeições deste tipo são muito delicadas e já comprovei muitas vezes que um só homem pode estragá-las.
- É um tipo grosseiro e se lhe sobe o vinho à cabeça - sentenciou Stephen.
- Agora está botando tudo para fora - observou Jack. - Porém, diga-me, os enfermos realmente têm que tomar essa sopa?
- Fizeram-na quatro vezes mais concentrada que o normal e depois lhe acrescentaram o caldo original, que além de estar queimado era feito de carne de porco em mau
estado. Mas não foi a sopa que o fez vomitar, mas a raiva.
- Ah! Estou certo de que tem razão. Talvez devesse tê-lo convidado de maneira que lhe fosse mais fácil recusar o convite. Quando estava em sua situação estraguei
muitas refeições por causa de minha tristeza antes de aprender a ter compromissos anteriores. É quase incrível a importância que adquire para um homem sua categoria;
quero dizer, a posição que ocupa no mundo, em nosso rígido mundo, quando serviu nele por vinte anos e lhe parece que suas leis, seus costumes e mesmo sua roupa são
algo natural. O pobre Horse-Flesh... meu Deus, como vomita! Deve de ter servido por quase trinta anos. Era o segundo a bordo no Bellerophon em 1793, quando eu fiz
uma viagem a bordo, e estava cinco postos acima de mim na lista de capitães de navio.
- Mas violou uma das leis.
- Oh, sim! Falsificou um rol. Mas me refiro às leis importantes, as que têm a ver com uma obediência total, uma férrea disciplina, pontualidade, limpeza e essas
coisas. Sempre pensei que tinham grande valor, e agora que regressei, pelo que dou graças a Deus todos os dias, as respeito ainda mais, mesmo as menos importantes.
A disciplina é tão importante como todas as outras, como disse Saint Vincent, e não acho que eu possa pôr indevidamente o nome de alguém no rol, a menos que você,
em vez de uma filha, tenha um filho que goste do mar. Capitão Pullings, parece que tem algo a me dizer.
- Sim, senhor, se me permite o atrevimento. Quando levantarmos âncoras e nos separarmos dos outros barcos, os marinheiros apreciariam muito que fizesse um percurso
pela fragata...
- Isso é exatamente o que estava pensando, Tom. Tão logo zarpemos, que se preparem para a revista, mas sem fazer preparativos de combate, e então percorrerei a fragata.
- Sim, senhor. Muito bem, senhor. Mas o que eu quero é esteja de uniforme. Desde que saíram de Lisboa, a única casaca com galões que viram foi a minha, e somente
duas vezes. Ademais, isso tem pouca importância, porque não sou mais que um voluntário.
Jack tinha muito afeto pela tripulação da Surprise, uma tripulação difícil de manejar, mas formada por muitos marinheiros experimentados procedentes de barcos de
guerra, de barcos corsários e alguns poucos de mercantes; e a tripulação lhe tinha muito afeto. Não só lhes havia feito sentirem-se orgulhosos pelos butins obtidos
quando a Surprise navegava com patente de corso, como também lhes havia protegido contra o recrutamento forçado. Ainda que na viagem atual Jack fora tirado da fragata
em Lisboa para que tomasse o comando de outro barco, também lhe haviam reabilitado e haviam feito pública sua reabilitação, assim que agora voltara com o esplêndido
uniforme com galões dourados de capitão de navio, fato que dignificava a fragata e seus tripulantes. Como os barcos corsários tinham má reputação (alguns deles quase
não se diferenciavam dos piratas), os marinheiros de barcos corsários a bordo da fragata estavam muito contentes de seu novo estado, de terem se livrado das críticas,
e gostavam de ver a enorme figura que simbolizava isso com sua medalha da batalha do Nilo no olhal e seu melhor chapéu de dois bicos. A opinião da maioria dos tripulantes
da Surprise era que agora tinham o melhor dos dois mundos: por uma parte, a relativa liberdade e igualdade que existia nos barcos corsários, e por outra, a honra
e a glória adquiridos por servir ao rei, e esse estado lhes parecia muito bom, sobretudo porque comportava a possibilidade de receber grandes recompensas. Mas até
então o capitão só havia feito uma breve aparição oficial.
De águas distantes chegaram os gritos dos contramestres das presas e de suas escoltas, onde os tripulantes se preparavam para colocar as barras do cabrestante.
- Muito bem, Tom - disse Jack. - Esta casaca está me matando, assim que vou descer e tirá-la para ver se consigo me refrescar um pouco. Zarparemos quando os outros
oficiais e você tenham trocado os trajes para a roupa de dril, e então irei cumprimentar a tripulação. Vem comigo, doutor? Não está com calor?
- Não - respondeu Stephen. - A sobriedade me protege da pletora e da moléstia produzida por este moderado calor.
- A sobriedade é uma excelente virtude e a tenho praticado desde o início de minha juventude - explicou Jack -, mas está fora de lugar em um anfitrião, que deve
animar a seus convidados a comer e beber dando o exemplo. Quando em Roma, faça...
Jack, em mangas de camisa, deitado sobre o baú que estava junto ao janelão de popa e com a cinta mais frouxa, ficou refletindo um tempo. Os nomes de Roland e Oliver
vieram a sua mente entre uma vintena mais e então gritou:
- Killick, Killick!
- Que foi? - perguntou Killick, também em mangas de camisa.
Trabalhara muito duro para recolher a mesa e não gostava que o afastassem do enorme monte de coisas que tinha que lavar, coisas muito delicadas para confiá-las a
marinheiros que seriam capazes de usar pó de tijolo para lavar os pratos se ficassem sozinhos.
- Já ouviu falar de Roland e Oliver?
- Há um Roland que fabrica armas perto do mercado Haymarket e há um Oliver que fabrica as "autênticas salsichas de Leadenhall". Comi muitas dessas salsichas no Grapes
quando estávamos em terra.
- Bem - disse Jack sem convicção. - É possível que durma um pouco, e se for assim, chame-me quando tenhamos zarpado.
Ouviu o grito "todos a desamarrar!" seguido por uma invariável série de coisas que reconheceu imediatamente: o ruído amortecido de passos rápidos, ordens, apitos,
os seguidos cliques das catracas, os fortes gritos dos homens que moviam as barras e as agudas notas do pífano desde a parte superior do cabrestante. Tentou recordar
com precisão quem integrava a tripulação da fragata quando a deixara em Portugal, todos os homens inscritos no rol então, mas como comera e bebera tanto durante
o ágape, sua mente se negou a cumprir com seu dever, e quando se ouvia o grito "prontos para recolher âncoras!" dormiu.
Depois de jogar âncoras nessa baía houve um período de extraordinária atividade, pois tiveram que distribuir os prisioneiros franceses, inspecionar as presas, reparar
a Noz-moscada, trasladar seus pertences e os de Stephen para a Surprise e se despedir de seus antigos companheiros de tripulação, que deram entusiastas vivas na
última vez que desceu pelo costado. Durante essas horas em que ia de um lado para outro constantemente vira os tripulantes da Surprise, certamente, mas só de passagem,
e tinha trocado muito poucas palavras com eles, salvo com seus barqueiros, que lhe levavam de um barco para outro pelas cálidas e tranqüilas águas. Dormiu, mas seu
sono foi acompanhado pela ansiedade, pois poucas coisas feriam mais profundamente a um marinheiro do que esquecerem de seu nome, e um oficial tinha a obrigação de
recordá-lo.
Na realidade, não foi Killick que o despertou, mas Reade.
- Senhor, o senhor West, que está encarregado da guarda, apresenta-lhe seus respeitos e diz que a Noz-moscada pediu "permissão para se separar do grupo".
- Responda afirmativamente e acrescente "feliz Natal", ainda que isso terá que se feito usando o sistema telegráfico.
- Acabamos de recolher uma âncora, senhor, e estávamos a ponto de colocá-la no pescante quando um homem chamado Davis caiu pela borda. O senhor West lhe jogou um
cabo e os marinheiros o subiram a bordo cheio de arranhões há menos de um minuto.
Jack esteve a ponto de dizer: "Então podem descê-lo outra vez", mas como todos a bordo mimavam tanto a Reade (na Noz-moscada até os velhos e curtidos marinheiros
do castelo corriam de uma ponta a outra do corrimão para ajudar-lhe a subir a escada), que o garoto tinha tendência ao convencimento, não quis aumentá-la e mudou
o comentário para a frase:
- Obrigado, senhor Reade.
Mas o sentimento que havia atrás de o comentário permaneceu. Davis era um homem muito corpulento, de pele escura, peludo, violento e desajeitado (por essa qualidade
seus companheiros de tripulação o chamavam de Davis O Lerdo) e com tão pouca habilidade para a navegação que quase sempre o destinavam ao castelo, onde sua enorme
força era útil para subir coisas. Jack o salvara uma vez de morrer afogado, como tinha salvado a muitos homens, pois era um excelente nadador, e ele, agradecido,
havia lhe perseguido desde então, tinha lhe seguido de um barco para outro, e para Jack havia sido impossível desfazer-se dele ainda que lhe havia oferecido a oportunidade
de desertar em portos onde os mercantes ofereciam um pagamento muito mais alto que na Armada, que era de 1 libra, 5 xelins e 6 peniques.
Era inútil, violento e capaz de ferir ou matar um marinheiro por ciúmes ou por uma ofensa imaginária. Mas meia hora depois, Jack sentiu com satisfação o aperto de
mãos que lhe deu, um terrível aperto ao qual seguiram outros quase tão fortes, pois, embora os tripulantes da Surprise gostassem ver de novo ao capitão com o uniforme
de gala da Armada, os calções de seda brancos, o sabre de cem guinéus e o broche turco no chapéu, tudo isso lhes intimidava um pouco, e posto que falavam muito mais
que os de um barco do rei (mas menos que os de um barco corsário), expressavam por meio do aperto o calor com que lhe davam as boas-vindas. Por sorte Jack também
tinha mãos tão grandes, tão fortes e com tantos calos como eles; e também por sorte a Surprise, que havia saído da Inglaterra como um barco corsário, tinha muitos
menos tripulantes que um barco de guerra e não tinha infantes da marinha, assim que Jack só teria que apertar a mão de pouco mais de cem homens. Em quanto aos nomes,
algo que lhe preocupara tanto, lembrou-se sem dificuldade. Naturalmente, isso foi fácil com os velhos companheiros de tripulação, como Joe Plaice, que navegara com
ele em muitas missões.
- Bem, Joe, como está? Como vai a cabeça?
- Estupendamente, senhor, muito obrigado - respondeu Joe, dando-se palmadinhas na placa de prata convexa que o doutor Maturin lhe pusera no crânio fazia muito tempo,
nos 49° de latitude sul. - E o felicito de todo coração pelas duas dragonas - acrescentou, assinalando com a cabeça as duas dragonas que Jack não havia voltado a
usar até que sua reabilitação saiu publicada na Londres Gazette.
Também lembrou com facilidade os nomes de todos os marinheiros que havia contratado em Shelmerston, alguns corsários e outros contrabandistas.
- Harvey, Wall, Curtís, Fisher, Waites, Hakett, como estão? - perguntou ao grupo seguinte de artilheiros, que estavam colocados informalmente junto ao seu canhão,
Cruel assassino, enquanto lhes apertava a mão.
Continuou assim até que chegou ao Morte súbita, frente ao qual esteve a ponto de ficar paralizado ao ver seis rostos com uma espessa barba e debaixo dela uma ampla
sorriso expectante.
- Slade, Auden, Hinckley, Mould, Vaggers, Brampton, espero que se encontrem bem - disse quando de repente lembrou os nomes dos seguidores de Set pela posição do
canhão e da maneira com que eles estavam em pé.
- Muito bem, senhor, obrigado por sua amabilidade - respondeu Slade. - Mas aqui, Auden - acrescentou assinalando para o homem que estava a seu lado - perdeu dois
dedos dos pés na Terra do Fogo e John Brampton pecou com uma mulher no Tahiti e ainda está na enfermaria.
- Fico triste ao saber. Visitarei a John de vez em quando. Mas espero que lhes tenha ido bem em todo o demais.
- Oh, sim, senhor! - exclamou Slade. - Não conseguimos uma fortuna como a obtida com o senhor, que era comparável à de Nabucodonosor, mas Set foi muito bom conosco.
Então ele e todos seus companheiros moveram os polegares, um gesto que faziam em sua seita ao ouvir aquele nome considerado sagrado e portador de boa sorte.
- Ah, Ah! - Jack riu, pensando nas magníficas presas capturadas na primeira viagem que tinham feito juntos. - Alegro-me de que a fragata se tenha dado bem.
Todos olharam para a Noz-moscada, o Tritão e os dois mercantes cheios de valiosos bens, dos quais já se via menos da metade do casco e que navegavam com rumo noroeste
e com o vento a trinta graus pela alheta.
- Mas não esperem voltar a conseguir uma fortuna como a de Nabucodonosor nestas águas.
- Oh, não! - respondeu Slade e seus companheiros seguiram dizendo que não, que não e que não. - Só o que esperamos é regressar tranqüilamente para nosso país com
o que temos. E se chegarmos - acrescentou ao tempo que os seis polegares voltavam a se mover -, construiremos um tabernáculo de madeira preciosa junto à nossa capela...
Já viu nossa capela, senhor?
- Oh, sim, certamente!
E a haviam visto todos os que chegavam a Shelmerston, pois, apesar de não ser muito grande, era feita de mármore branco adornado com detalhes dourados e fazia um
forte contraste com o resto da cidade, cujas construções tinham em sua maioria tetos de palha e forma vaga.
- No tabernáculo queremos depositar nossas barbas como oferenda.
- Acho muito apropriado - disse Jack. Depois de apertar-lhes a mão avançou até o Cospe-fogo, cujo chefe muito provavelmente havia sido pirata e canibal e tinha,
sem sombra de dúvidas, a mão mais áspera e maligna em toda a fragata.
- Bem, Johnson, Penderecki, John Smith e Peter Smith... - Jack os cumprimentou.
Depois avançou pelo lado de estibordo, onde só o subchefe das brigadas e um dos marinheiros que iniciavam a abordagem estavam situados junto aos canhões, e depois
desceu para as entranhas da fragata.
O percurso parecia uma revista, mas agora Jack não estava acompanhado do imediato nem dos oficiais encarregados das brigadas. Era um assunto pessoal, e ainda que
o almoço não havia sido um êxito e ainda lhe refletia a sopa, tinha uma expressão satisfeita enquanto caminhava por aquele espaço escuro e fedorento em direção à
enfermaria. A fragata estava tão arrumada como um barco de guerra, e só perdera cinco tripulantes, três marinheiros das Índias Orientais que morreram de pneumonia
durante a tediosa passagem pelo frio e úmido estreito de Magalhães, outro que foi arrastado pelas ondas para fora da proa durante a noite, em meio de uma tormenta
que desatou justo quando chegava ao Pacífico, e outro que morreu na abordagem do primeiro mercante. E não havia dúvida de que sob o comando de Tom Pullings era um
barco em harmonia. Mas o odor, inclusive na coberta inferior, era pior que o normal.
Dentro da enfermaria ouviam-se vozes e saía luz por debaixo da porta, e quando Jack a abriu, ouviu com satisfação que os dois médicos estavam falando em latim. As
únicas outras pessoas que havia ali eram Wilkins, que quebrara um braço e ainda não estava curado, pelo que não podia apertar-lhe a mão, e o mais tonto dos irmãos
Brampton, que contraíra sífilis no Tahiti e estava muito envergonhado para se mover ou falar.
- Senhor Martin - disse Jack depois de ver os enfermos -, isto não é uma crítica ao senhor nem ao capitão Pullings, porém, não lhe parece que aqui embaixo a atmosfera
está excessivamente carregada, o que não é saudável? Doutor Maturin, não acha que a atmosfera está excessivamente carregada?
- Sim, porém, em minha opinião, esta atmosfera e este fedor são normais em um velho barco de guerra como este. Tenha em conta que, quando faz mau tempo, os marinheiros
com peristaltismo ou desejos de realizar a micção procuram um canto isolado dentro do barco em vez de ir ao sanitário ao ar livre situado na proa, onde correm o
risco de serem arrastados pelas ondas para fora da borda, de modo que depois da passagem de várias gerações, estamos em um esgoto flutuante. E o odor piora por muitos
outros fatores, como as toneladas e toneladas, e digo toneladas com conhecimento de causa, de horrível lama que as amarras da âncora trazem para bordo quando a embarcação
ancora em portos como Batavia ou Mahón, onde a lama se forma a partir da imundice dos matadouros e das casas e dos dejetos putrefatos arrastados pelos rios. O lodo
e o barro que jorram das amarras caem do lugar onde se guardam para o fundo da embarcação, que nunca, nunca se limpa. A Noz-moscada, querido colega - acrescentou,
voltando-se para Martin, que estava visivelmente desconcertado -, cheirava muito bem e não tinha baratas nem ratos e muito menos ratazanas, pois esteve no fundo
do mar durante meses. Todas as madeiras que a formam se incharam e se uniram solidamente, como as de um barril de vinho quando um logra por fim que não soltem, e
quando terminaram de bombear a água de dentro e a deixaram secar, o interior permaneceu seco, sem água na sentina movendo-se de um lado para outro. Acho que passamos
a bordo tempo suficiente para que nosso olfato se refinasse.
- Levaremos Hayes amanhã para um lugar bem ventilado mais acima - interveio Martin -, mas Brampton deveria terminar seu ptialismo com tranqüilidade e calma aqui.
- Providenciarei que coloquem outra mangueira de ventilação - Jack disse. Depois, antes de ir, inclinou-se sobre a maca de Brampton e, em voz bastante alta, acrescentou:
- Anime-se, Brampton. Muitos homens já estiveram pior que você e está em boas mãos.
- A mulher me tentou - desculpou-se Brampton e, depois de um breve silêncio, continuou: - Irei para o inferno.
Então virou a cabeça para o outro lado e seu corpo se estremeceu com os soluços.
Quando o capitão se foi, Martin e Stephen voltaram a falar em latim, e Martin perguntou:
- Acha que realmente podemos aliviá-lo?
- Não sei - respondeu Stephen. - Pelo momento vou dar-lhe uma poção de limo com duas gramas de assa-fétida - acrescentou e se voltou para o estojo de remédios. -
Vejo que não mudou nada.
- Oh, não! - exclamou Martin e acrescentou: - Acho que o capitão não estava muito satisfeito.
- O que se passa é que disse sem pensar que a fragata era velha e ele não pode suportá-lo - disse Stephen e, depois de cheirar a mistura, acrescentou um pouco mais
de assa-fétida e perguntou: - Por que disse que o paciente tinha que esperar para passar seu excesso de salivação na enfermaria?
- Porque em qualquer outro lugar terá que suportar as zombarias, as alusões e as perguntas sarcásticas sobre seu membro viril que seus companheiros lhe farão. Não
têm má intenção, dessa maneira expulsam os humores e sua jocosidade, mas isso pode matá-lo antes que recobre a saúde. Não tem a mente muito forte, e me parece uma
imprudência que seus amigos sigam falando-lhe do pecado e de suas consequências.
Apenas deram o remédio a Brampton e encarregaram ao seu ajudante que ficasse vigiando os pacientes e que não permitisse nenhuma visita até nova ordem, o ar fresco
começou a entrar ali embaixo pela nova mangueira de ventilação, e quando chegaram ao castelo de popa, Jack explicava a Pullings:
- Se cuidamos de que se mantenha navegando com o vento contrário, isso melhorará muito a situação. Mas ouvi comentários de que o espaço entre as cobertas cheira
como um esgoto, assim que talvez seria conveniente abrir a válvula de entrada de água.
- Lamento muito que tenha mau odor, senhor. Não o havia notado. Mas também, quando tem o vento em popa, lá embaixo o ar fica rarefeito e faz muito calor.
- Senhor Oakes e senhor Reade! - gritou Jack.
- Senhor? - cumprimentaram eles, tirando seus chapéus.
- Sabem onde fica a válvula de entrada de água?
Os dois ficaram perplexos e Oakes, em tom vacilante, respondeu:
- Na bodega, senhor.
- Então vão ver o carpinteiro e digam-lhe de minha parte que lhes ensine a abri-la. E deixem-na aberta até que haja dezoito polegadas de água na sentina.
Quando se foram, Jack virou-se de novo para Pullings e disse:
- Sem dúvida, teremos que bombear em torno de uma hora a mais, o que é muito duro com este calor, mas pelo menos a sentina ficará limpa, limpa como os cântaros de
uma leiteira.
Isso foi ouvido por todos os que estavam no castelo de popa, exceto os dois médicos, que subiam lentamente pelos amantilhos do pau mezena e estavam muito concentrados
nessa árdua tarefa para escutar ironias. A intimidade era o mais raro que podia encontrar-se em um barco. Ainda que cada um deles tivesse uma cabine, só a usavam
para ler tranqüilos, escrever, refletir ou dormir, porque eram tão pequenas que pareciam galinheiros para criar uma só ave. Por outro lado, apesar de Stephen poder
usar a grande cabine, a cabine-refeitório e a cabine-dormitório (como era justo porque era propietário da fragata), nenhuma era apropiada para falar largamente e
com paixão das aves, das feras e das flores, porque também pertenciam ao capitão. Tampouco era apropiada para isso a câmara dos oficiais, devido a seus muitos outros
ocupantes. Se bem todos esses lugares eram adequados para colocar ocasionalmente os exemplares de peles, ossos, penas e plantas, pois tinham compridas mesas que
pareciam feitas para isso, em viagens anteriores ambos haviam descoberto que o único lugar apropriado para uma longa e ininterrupta conversa era o cesto da gávea
do mezena, uma plataforma bastante espaçosa em torno da ponta do mastro e da base do pau situado sobre ele. Ficava a uma altura de aproximadamente quarenta pés acima
da coberta e tinha os amantilhos do mastaréu com suas vigotas dos lados, uma pequena parede de lona estendida até um cabillero{10} detrás e nada adiante, assim que
quando a sobremezena não estava desdobrada, podiam ver bem toda a parte do oceano que a vela maior e a gávea maior não ocultavam. A cesto da gávea do maior era mais
alta e do cesto da gávea do traquete havia um vista melhor (incomparável quando o velacho estava aferrado), mas ao subir em qualquer uma delas mais marinheiros lhes
veriam, e alguns lhes colocavam os pés nos enfrechates desde baixo e outros, em voz alta e às vezes em tom jocoso, davam conselhos. Isso ocorria porque, apesar de
que não davam importância ao perigo e mesmo tiravam uma mão dos amantilhos e a agitavam no ar para demostrar o pouco que lhes importava a altura, sua posição e seu
ritmo de avanço bastavam para convencer a quem os observava de que não eram homens do mar nem se pareciam remotamente a eles, apesar das milhares de milhas marítimas
que haviam percorrido. Mas ao castelo de popa (lugar de onde se subia para o cesto da gávea do mezena) só tinha acesso a quarta parte da tripulação, e, ademais,
enquanto o cesto da gávea do maior e o do traquete amiúde ficavam cheios de marinheiros trabalhando, o da mezena era usado em muito poucas ocasiões, especialmente
com o vento soprando pela alheta.
Usava-se em muito poucas ocasiões, mas as abas, que eram de grande importância, permaneciam nela dobradas de maneira que formavam pacotes compridos e brandos. Sobre
esses pacotes se sentaram ofegando e apoiaram a costas na parede de lona, como tantas vezes haviam feito.
- Bem, cá estamos aqui outra vez - disse Martin, olhando-lhe com afeto. - Não tenho palavras para expressar o quanto lamentei que deixasse a fragata há tantas milhas
atraz. Entre outros motivos, porque fiquei sem um mentor em uma enfermaria onde possivelmente encontraria doenças cujo nome e, sobretudo, cujo tratamento desconhecia.
- Mas se saiu muito bem. Não mais que três mortos em cem graus de latitude está muito bom. Afinal de contas, em medicina se pode fazer muito pouco além de fazer
suar, fazer sangrias e administrar uma purga, como a pílula azul ou um ungüento ainda mais forte. Mas a cirurgia é outra coisa. Por certo, que corrigiu muito bem
o nariz do pobre West.
- Foi muito simples: um pequeno corte, para o qual usei tesouras, e alguns poucos pontos que não causaram dor. E a medida que ia recobrando a sensibilidade ia se
curando.
- Sem um pouco de pus, como costuma ocorrer?
- Sem pus em absoluto. A causa do problema foi o congelamento, sabe?, não a sífilis.
- Isso nos disse a mim e ao capitão imediatamente. Acredito que a gente tem tato suficiente para desviar a vista e não fazer-lhe perguntas nem voltar a olhar-lhe.
- Acho que sim. Mas conte-me, conte-me o que esteve fazendo por todo este tempo e o que viu, além do orangotango.
Stephen sorriu e nesse momento os fatos dos meses passados vieram a sua mente não em uma seqüência cronológica, mas quase como um todo. Escolheu o que era apropriado
contar e fez interiormente a seguinte reflexão: "Quais são as três coisas que não se podem esconder? As três coisas que não se podem esconder são: o amor, a tristeza
e a riqueza. E acredito que a quarta é a inteligência". Todo aquele processo mental não durou mais que dois balanços da fragata, cujo movimento espacial aumentava
ali encima, porém, obviamente, o temporal não.
- Deve o senhor saber que o capitão Aubrey foi chamado para a Inglaterra para ser reabilitado e tomar o comando da Diane, que levaria um enviado do rei a Pulo Prabang
para falar com o sultão, que estava considerando a possibilidade de formar uma aliança com os franceses. Posto que a ilha... Oh, Martin! Que orquídeas e que coleópteros
havia além do maravilhoso símio e do enorme rinoceronte! Posto que fica no mar da China Meridional, quase no meio da rota dos mercantes ingleses quando vêm de Cantão,
e como não seríamos nada sem ruibarbo e sem chá, que Deus não queira que faltem, a missão do enviado era conseguir que o sultão mudasse de opinião. Pensaram que
era conveniente que eu também fosse porque sei francês e um pouco de malaio, além de ter conhecimentos de medicina. Assim que zarpamos e navegamos tão rapidamente
como pudemos e fizemos uma única escala, em Tristán da Cunha. Mas essa escala esteve a ponto de ser a última, porque a fragata se aproximava mais e mais e mais de
um escarpado onde rompiam ondas da altura dos mastaréus e não havia nem um sopro de vento que lhe permitisse se mover. Mas sobrevivemos, e inclusive desci para terra
e me congratulei de que ia ver maravilhas enquanto os marinheiros pegavam água e verdura; mas não lhe surpreenderá ouvir que me tiraram dali em poucas horas, e sublinho
"poucas horas", com a desculpa de que não podiam desperdiçar não sei que vento favorável ou maré ou algo parecido. Depois avançamos para o sul e nessas águas vi
albatrozes e petréis gigantes, fétidos e pintados, mas a que preço! As ondas eram enormes; o vento, incessante, e uivava de tal maneira que somente podíamos pensar
ou falar quando a fragata estava nos seios formados pelas ondas. Havia gelo, gelo no convés, gelo nos cabos, gelo no mar em forma de montanhas de imenso tamanho
e, tenho que confessar, de imensa beleza, que ameaçavam acabar conosco, como dizem os marinheiros. Então o capitão mudou o rumo para águas mais cristãs e concebi
a esperança de ver a ilha Amsterdã, uma ilha remota e desabitada desconhecida pelos naturalistas, cujas flora, fauna e geologia ainda não foram descritas. Na verdade,
eu a vi, mas só ao longe por barlavento, enquanto a fragata navegava a toda vela rumo ao cabo Java.
O sol se pôs abruptamente, como costumava fazê-lo no trópico, justo depois de que se acomodaram bem. A escuridão da noite se estendeu pelo céu e no leste apareceram
as estrelas depois de alguns minutos de penumbra. Agora, pela amura de bombordo, assomou acima do horizonte um brilhante astro, que permaneceu lá alguns momentos,
como se fosse o farol de popa de um grande barco. Ainda que Martin fosse um homem pacífico e Maturin, salvo em raras ocasiões, opunha-se por princípio à violência,
ambos haviam absorvido até tal ponto o afã de predador existente nos barcos de guerra e nos corsários, onde era ainda mais forte, que ficaram silenciosos e observaram
aquele astro como tigres até que subiu e se separou do mar, demostrando que era um corpo celestial.
- Tenho que perguntar ao capitão Aubrey o nome dessa maravilhosa estrela - disse Stephen. - Com certeza ele sabe.
Como em resposta a estas palavras, ouviu-se como Jack afinava seu violino muito mais abaixo.
- Por agora mencionarei só de passagem Java e governador Raffles - continuou Stephen -, um homem exageradamente amável e um distinto naturalista, ainda que lhe mostrarei
alguns dos exemplares de lá quando encontre uma mesa livre. O senhor sabia que há um pavão real de Java? Que Deus me perdoe, mas eu não sabia. É uma ave muito bonita.
Limitar-me-ei a dizer que chegamos a Pulo Prabang e que, apesar dos franceses terem chegado antes de nós, o enviado foi mais astuto que eles e convenceu ao sultão
de que firmasse um tratado com a Grã-Bretanha. Tudo isto levou algum tempo, mas não me importaria se fosse mais longo, e nesse tempo tive a grande sorte de conhecer
o doutor Van Buren, de quem possivelmente terá ouvido falar.
- Um holandês famoso por seus estudos do baço?
- O própio. Mas está interessado em muitas outras coisas.
- No estudo do pâncreas? No da tireóide?
- Em mais coisas ainda. Não há nada no reino animal nem no vegetal que não desperte sua curiosidade, uma curiosidade que o leva a se informar muito bem. Devo a ele
ter conhecido um paraíso extraordinariamente remoto onde habitam monges budistas e nem as aves nem as feras temem ao homem porque nunca ninguém os feriu. Caminhei
por ali agarrado na mão de um afetuoso orangotango fêmea de certa idade.
- Oh, Maturin!
- Anotei outras maravilhas, mas se lhe contasse só a metade delas e lhe mostrasse somente a metade dos exemplares que recolhi com os pertinentes comentários, ainda
estaríamos falando quando chegássemos a Nova Gales do Sul. Mas o senhor ainda não me contou nada. Terminarei meu resumo dizendo que zarpamos dali satisfeitos de
ter conseguido o tratado, que percorremos de um lado a outro, sem êxito, o lugar de um dos encontros e que, quando regressávamos na Diane para Batavia, a fragata
encalhou em um arrecife que não aparecia nas cartas marítimas, um dos muitos que aparentemente há por lá, durante a noite e quando a maré estava muito alta. Não
pudemos desencalhá-la, mas como havia uma ilha bastante perto levamos a maioria de nossas posses para lá nos botes, fizemos um acampamento militar e nos sentamos
a esperar com bastante tranqüilidade que chegasse a próxima maré viva, que, como provavelmente saberá, depende da lua. Estávamos bastante tranqüilos porque obtínhamos
água do poço e javalis dos bosques. Ademais, a ilha não carecia de interesse, pois habitavam nela macacos de calda preénsil, duas espécies de javalis, basbirussa
e barbatus e as aves chamadas andorinhas, de cujos ninhos se faz sopa, mas que sinto dizer que não são andorinhas mas vencelhos de uma espécie oriental, de tamanho
muito pequeno. Mas o enviado não esperou para que nos instalassemos ali. Estava desejoso de regressar com o tratado, assim que o capitão lhe deu o novo bote com
uma quantidade de provisões e tripulantes adequada para fazer a viagem a Batavia, uma viagem de menos de duzentas milhas que não impunha dificuldades se não houvesse
se formado o tufão que destruiu nossa fragata e, sem dúvida, virou o bote. Estávamos contruindo uma escuna com os restos da fragata quando fomos atacados por uma
horda de malvados piratas, dyaks e malaios liderados por uma desprezível e arrogante prostituta, uma prostituta sanguinária, avara e petulante. Mataram muitos de
nossos homens, mas nós matamos muitos mais dos deles; queimaram nossa escuna, os canalhas, mas nós destruímos seu paraú com um excelente disparo do canhão de nove
libras propriedade do capitão. Depois passamos um período angustiante, pois restavam poucos javalis e ainda menos macacos, mas um junco que ancorou diante da ilha
para colher ninhos de aves nos levou até Batavia, onde o governador Raffles nos deu essa encantadora escuna, a Noz-moscada, a bordo da qual nos encontraram os senhores.
Cá está. Estes são os dados básicos, que espero completar mostrando-lhe as notas e os exemplares quando estejamos navegando. Agora, por favor, conte-me o que fez
e o que viu. - Bem - começou Martin -, ainda que não tenha visto nenhum orangotango, minha viagem não esteve isenta de momentos interessantes. Como provavelmente
o senhor recordará, a última vez que tivemos a sorte de caminhar pela selva brasileira fui mordido por um macaco noturno com cara de coruja.
- Sim, recordo. E como sangrou!
- Desta vez me mordeu uma anta e sangrei mais ainda.
- Uma anta?
- Uma anta jovem com riscas e manchas, um Tapirus americanos. Na curva de uma vereda próxima a um rio vi a mãe, um enorme animal de cor marrom-escuro, que estava
distraída e de repente se meteu na água e se perdeu de vista. Percebi que o filhote havia caído em uma armadilha e depois de levá-lo com infinito esforço até a borda
ele me mordeu. Se tivesse luz, mostraria a cicatriz. Mas antes de poder sair do buraco, chegou um grupo de índios, provavelmente os que o haviam escavado, e me admoestaram
com violência enquanto agitavam as lanças no ar. Estava muito angustiado, tão angustiado que não sentia a dor, porém, por sorte, um grupo de tripulantes da fragata
passou por ali e um deles, que falava português, deu-lhes um pouco de tabaco e disse que fossem se ocupar de seus assuntos. Agora que recordo, um dos que estava
no grupo era Wilkins, o marinheiro com o braço quebrado que viu na enfermaria. Seria um incômodo se interrompesse o relato e pedisse sua opinião?
- Acho que é uma fratura transversal distal radial ordinária com certo deslocamento lateral eficazmente reduzido. É o tipo de fratura que pode se esperar em uma
queda. Mas não pude ver uma grande parte do braço porque está vendado conforme o método Basra. Quando se produziu?
- Faz três semanas. Mas ainda não começou a soldar-se. Os extremos estão muito próximos, mas não unidos.
- Suspeita que tem escorbuto, certo? Sem dúvida, esse é um sintoma típico, mas não inequívoco. Contudo, o incipiente escorbuto poderia ser uma das causas da depressão
de John Brampton. O sumo acabou?
- Não, mas abri um barrilete faz pouco e duvido que seja de boa qualidade. Nós o compramos em Buenos Aires.
- Tenho uma rede cheia de limões frescos e um bonito barrilete de origem confiável que durará vários meses. Como o capitão Aubrey não quer fazer escala em Nova Guinéu
e a viagem é comprida, seria conveniente pedir-lhe que, quando estime oportuno, pare em uma ilha bem representada nas cartas marítimas e com abundantes recursos.
Soaram as oito badaladas e se ouviram os inconfundíveis gritos e apitos com que chamavam os homens de guarda.
- Meu Deus, vou chegar tarde outra vez! - exclamou Stephen. - Quer jantar conosco?
- Obrigado. O senhor é muito amável, mas peço que me desculpe por não aceitar desta vez - respondeu Martin, olhando a boca de lobo com angústia. - Teremos que descer
na escuridão.
- Realmente - confirmou Stephen. - Se não fosse porque tenho um compromisso, ficaria aqui encima encantado com esta noite tão fresca e agradável, sem medo do sereno,
quer dizer, da umidade do ambiente.
- Se tivéssemos uma pequena lanterna, veríamos melhor.
- Certamente - disse Stephen -, mas não quero pedir um porque isso seria impróprio de bons marinheiros.
- Foi deste mesmo cesto da gávea que Wilkins caiu e rompeu o braço. É verdade que estava bêbado então, mas a altura é a mesma.
- Vamos, demostremos que temos mais fortaleza que os romanos - disse Stephen. - A gravidade nos ajudará e talvez São Brendan também.
Passou pelo buraco e procurou com os pés os enfrechates, que eram muito estreitos ali encima, onde os amantilhos estavam tão perto. Encontrou um muito abaixo com
os dedos de um pé e se soltou da borda do cesto da gávea, mas o fez sem pensar que devia esperar até que o balanço o empurrasse para o mastro. Durante um momento
mais desagradável que nenhum outro arranhou com as mãos o vazio na escuridão e por fim agarrou um amantilho, o mais distante de todos, porque tampouco esperou o
cabeceio. Ficou agarrado a ele tempo suficiente para poder responder com voz serena quando Martin, que estava do outro lado e havia aproveitado o balanço, perguntou
como estava.
- Perfeitamente bem, obrigado - respondeu.
- Perdoe-me por chegar um pouco tarde - disse ao entrar na cabine e cheirar as torradas com queijo. - Acabo de chegar do cesto da gávea do mezena.
- Não tem importância - disse Jack. - Como vê, não lhe esperei.
- Estive no cesto da gávea do mezena desde antes do crepúsculo até alguns minutos atrás.
- Bom! - exclamou Jack. - Gostaria de um pouco de vinho ou prefere esperar pelo ponche?
- Tendo em conta os excessos que fiz no almoço e o efeito do vinho neste clima, acho que me limitarei a beber o ponche, uma pequena quantidade de ponche. Que vasilha
mais elegante para servir o queijo derretido! Eu já havia visto antes?
- Não. É a primeira vez que a tiro da caixa. Eu a encomendei ao comerciante de Dublim que me recomendou e a peguei da última vez que estivemos em casa, mas me esqueci
por completo dela.
Stephen levantou a tampa, viu no interior seis pratinhos dos quais saía um suave som sibilante e que ficavam acima do fornilho de álcool que havia sob o fundo do
recipiente, e notou que tudo brilhava graças às laboriosas mãos de Killick. Virou-a para um lado e depois para o outro admirando o trabalho artesanal, e depois disse:
- Percorreu um longo caminho, Jack. Agora não dá mais importância a cem guinéus.
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Quanto pobres éramos! Lembro daquela vez que você regressou para a casa que tínhamos em Hampstead com um estupendo bife envolvido em
uma folha de couve e o contentes que nos pusemos.
Falaram de sua pobreza, dos aguazis, da prisão por dívidas, das casas de aguazis onde se podiam cumprir condenações por um alto preço, do medo de novas prisões e
dos ardis para evitá-las. Mas depois de falar sobre a riqueza e a pobreza, sobre a roda da fortuna e coisas parecidas, a conversa perdeu viveza e alegria, e quando
Stephen comeu o segundo prato de queijo, observou que algo preocupava o seu amigo. Jack não voltou a soltar suas francas risadas e dedicava mais atenção aos enormes
canhões que compartiam a cabine com eles que ao rosto de Stephen. Houve silêncio, tanto silêncio como era possível em uma embarcação que navegava a oito nós acompanhada
de um ruído geral formado pelo burburinho da água ao passar pelos costados e da turbulenta esteira e os peculiares sons da exárcia fixa e da móvel com seus inumeráveis
moitões.
Em meio do relativo silêncio Jack explicou:
- Fiz um percurso pela fragata esta tarde para perguntar a nossos companheiros de tripulação como se achavam e notei que muitos deles estavam mais velhos que da
última vez que os vi. Isso me fez pensar que talvez eu também esteja mais velho. E quando disse que a fragata era um "velho barco de guerra" aumentou minha preocupação.
Contudo, é um absurdo medir pelo mesmo padrão todas as coisas. Ainda que aos seguidores de Set lhes tenha crescido uma barba de uma jarda e eu, indubtavelmente,
estaria melhor com calças largas e leves, um barco e um homem são coisas muito diferentes.
- Está seguro, meu amigo?
- Sim. Ainda que não o creia, são coisas muito diferentes. A Surprise não está velha. Olhe a Victory, que é bastante veloz e que acho que ninguém a considera velha,
ainda que tenha sido construída vários anos antes que a Surprise. Olhe o Royal William. Conhece o Royal William, Stephen, né? Eu lhe o mostrei muitas vezes entre
os barcos de Pompey. É um navio de primeira classe de cento e dez canhões.
- Eu lembro. Tinha um aspecto horrível.
- Isso se deve aos usos que são obrigados a dar-lhe. Eu me refiro é a suas entranhas. Suas balizas estão tão bem ou melhor que quando o construiram, e se um crava
uma faca em uma de suas curvas ela se dobrará ou se partirá na mão. Ademais, vi um pedaço de um de seus amantilhos quando estavam começando a cubri-los de breu,
e comprovei que também estava em perfeitas condições. E foi lançada à água em 1676. Em 1676! Talvez a Surprise não seja como essas embarcações modernas, chamativas
mas inservíveis, construídas com balizas de madeira que não curada conforme um contrato com um estaleiro clandestino. Foi construída faz certo tempo, mas não é "velha".
E você sabe como ninguém as melhorias que lhe fizemos: suportes diagonais, curvas reforçadas, placas de cobre...
- Meu amigo, defende-a com a mesma veemência com que defenderia a sua esposa se eu dissesse algo desagradável dela.
- Isso é porque eu sinto realmente que devo defendê-la. Eu a conheço há muitos anos e naveguei nela desde menino, e não me agrada que a ofendam.
- Jack, quando disse que era "velha" me referia à sujeira acumulada abaixo durante gerações. Estava tão longe de minha intenção ofendê-la como ofender a Sophie,
livre-me Deus.
- Bem, lamento ter estourado - desculpou-se Jack. - Lamento ter falado com rudeza. Foi a minha língua e meti os pés pelas mãos outra vez, o que me parece absurdo
porque tinha a intenção de ser muito amável e agradável. Tinha a intenção de reconhecer que as cem toneladas de seixos que leva como lastro lá embaixo deveriam ter
sido trocadas há muito tempo. E depois de admitir isso e dizer que íamos limpá-la abrindo a válvula de entrada de água e depois tirando a água com as bombas, ia
perguntar se queria me vendê-la. Isso me proporcionaria uma grande satisfação.
Stephen estava mastigando um pedaço de queijo bastante grande e rebelde, e quando por fim o engoliu, disse em tom indiferente:
- Muito bem, Jack.
Então olhou de esguelha o rosto de seu amigo, cujo gesto transluzia a alegria que dignamente tentava reprimir, e pensou: "Como é possível, do ponto de vista físico,
que seus olhos adquiram esse colorido azul tão intenso?".
Apertaram as mãos em sinal de acordo e Jack perguntou:
- Não falamos do preço. Quer me dizer agora ou prefere pensar?
- Pague-me o mesmo que paguei por ela - respondeu Stephen. - Neste momento não sei exatamente quanto foi, mas Tom Pullings nos dirá. Foi ele que fez o lance por
mim.
Jack consentiu com a cabeça.
- Nós lhe perguntaremos pela manhã porque agora está como um tronco. - Depois, gritou: - Killick!
- Senhor? - disse Killick, entrando após um momento.
- Traga para o doutor a melhor poncheira e tudo o necessário para o ponche. Depois leve seu violoncelo e meu violino para a grande cabine e coloque os atris para
as partituras.
- Uma poncheira, senhor - repetiu Killick, quase rindo ao falar. - E a água já está fervendo.
- Killick - disse Stephen -, em vez dos limões, traga o barrilete menor que há em minha cabine, por favor. Pode tirar-lhe a capa de lona.
Chegou a poncheira acompanhada da graciosa concha e passou algum tempo antes que pudessem ouvir Killick dando fortes pisadas na entrecoberta. A julgar pelas irritadas
maldições que se ouviam, um de seus companheiros o estava ajudando, mas entrou na cabine sozinho e com o barrilete apoiado contra o ventre.
- Ponha-o em cima do escaninho, Killick - pediu Stephen.
- Não sabia que o tinha - disse Killick com uma mistura de admiração e ressentimento quando se afastava do barrilete.
Era um barrilete de carvalho com aros de cobre polido. Na parte superior tinha o selo BRONTE XXX e debaixo uma placa onde estava gravada a inscrição:
Ao eminente doutor Stephen Maturin,
cuja habilidade só é superada pelo agradecimento
de quem se beneficiou dela.
Clarence.
- Bronte! - exclamou Jack. - É possível que seja...?
- É. É sumo de limão de seu própio imóvel. É um presente do príncipe William. Queria abri-lo no dia de Trafalgar, mas como esta é uma ocasião especial, penso que
poderíamos pegar uma onça para brindar por esta noite inesquecível.
Quando saía o vapor da poncheira, o açúcar derretia e o forte odor de aguardente palma se propagava, Stephen acrescentou o sumo de limão concentrado dizendo:
- Tenho que te advertir que talvez haja alguns casos de escorbuto incipiente na fragata. O primeiro a perceber, para minha vergonha, foi Martin, esse homem admirável.
- Sem dúvida, ele o é. Todos os marinheiros dizem que é uma sorte tê-lo entre nós.
- Sugeriu que fizéssemos escala em alguma ilha com abundantes árvores frutíferas e estou completamente de acordo. Não é urgente, pois temos este barril, mas do ponto
de vista médico é aconselhável conseguir algo de reserva quando tenhamos consumido a metade, se puder encontrar alguma ilha no ilimitado oceano.
CAPÍTULO 8
Precisamente desde o cesto da gávea do mezena, os dois médicos avistaram essa ilha; isto é, a pequena nuvem achatada que indicava sua presença. Já haviam passado
tantas léguas, tantos graus de longitude sob a quilha da Surprise que agora ambos, depois de ser treinados pacientemente por Bonden, subiam pelas arraigadas como
Deus manda e há duas semanas subiam sem ajuda e sem linhas de vida nem nenhuma outra coisa para evitar que caíssem de cabeça. Mas subir ao cesto da gávea dessa forma,
a forma típica dos marinheiros, requeria ascender pelo que era na realidade uma escada de corda formando um ângulo de cinqüenta graus com a vertical, assim que tinha
que ficar pendurado como uma preguiça, olhando para o céu. Os movimentos de ambos tampouco eram muito distintos dos de uma preguiça, mas confessavam que esse método
era mais simples e muito mais agradável que o anterior, que implicava em contorcer-se para atravessar pela tensa e densa exárcia. E se sentiram satisfeitos quando
Pullings, durante um almoço que os oficiais ofereceram ao capitão, disse que a Surprise era a única embarcação onde vira os dois doutores subirem ao alto da exárcia
sem passar pela boca de lobo.
Porém, apesar de terem progredido tanto e da fragata ter avançado tanto para leste, Martin não havia esgotado as coisas que observara na América do Sul, senão que
ainda contava o que vira em uma zona da selva amazônica. Contou que tinha um extenso leito de vegetação morta, com enormes árvores caídas e cruzadas, e em alguns
lugares havia madeira apodrecida até uma grande profundidade, pelo que um, para evitar cair vinte ou trinta pés dentro daquela caótica putrefação, tinha que escolher
os troncos caídos mais recentemente e mais fortes, que só podiam ser distinguidos porque estavam cobertos por uma confusão de cipós. Acrescentou que naquela parte
tão profunda o crepúsculo e o meio-dia eram iguais, e que era quase total a ausência de mamíferos, répteis e mesmo aves, que se encontravam nas altas copas das árvores,
onde batia o sol. Mas exclamou:
- Oh, Maturin, que abundância de insetos!
Tampouco Stephen tinha tocado muitos aspectos de sua visita a Java nem falara ainda de Pulo Prabang, ainda que tivesse mostrado a Martin as peles de aves e os interessantes
ossos das patas do Tapirus indicus, quando ambos ouviram que o serviola, que estava na cruzeta do mastaréu maior, muito mais alto do que eles, gritou:
- Terra à vista a dez graus pela amura de bombordo!
O grito interrompeu sua conversa. Também interrompeu a de muitos marinheiros no convés e no castelo, já que era a hora da guarda da tarde e esse era o dia que dedicavam
a lavar e costurar sua roupa. Muitos dos mais jovens e impetuosos tripulantes da Surprise largaram de um lado suas agulhas, carretéis de fio, dedais e caixas de
costura e subiram correndo para o alto da exárcia e se aglomeraram nas vergas superiores e na parte superior dos amantilhos, ainda que deixaram passagem para Oakes,
que, por ser o mais ágil e menos pesado dos oficiais do castelo de popa, tinha sido enviado para a cruzeta do mastaréu com uma luneta.
- Já a vejo, senhor! - gritou. - Vejo-a quando a fragata sobe com o balanço. É verde e está rodeada de uma ampla faixa de espuma. Está a umas cinco léguas, quase
exatamente a sotavento, justo debaixo daquela nuvenzinha.
Jack e Tom Pullings se olharam sorridentes. Avistar terra dali era a surpresa mais agradável que podiam ter, pois, ainda que os dois, separadamente, tivessem calculado
a posição da fragata com seus dois cronômetros e pelas precisas medições lunares feitas nos últimos dias, nenhum supunha que iam avistar a ilha Sweeting sem mudar
o rumo mais que cinco graus, nem duas ou três horas antes do tempo previsto.
- Os marinheiros nos atrapalham e estamos muito baixos - disse Martin. - Não acha que poderíamos ter uma vista melhor se subimos um pouco mais, acima desta frustrante
gávea, por exemplo, até a cruzeta do mastaréu de sobremezena?
- Não - respondeu Stephen. - E ainda que a tivéssemos, o senhor acha que um homem sensato e prudente, com obrigações com seus pacientes, subiria a essa vertiginosa
altura para ver melhor uma ilha por onde estará caminhando, se Deus quiser, amanhã ou mesmo nesta mesma tarde, uma ilha que tem pouco a oferecer ao naturalista?
Pois deve o senhor saber que em ilhas tão remotas e pequenas como esta não há uma superfície bastante extensa para que se desenvolvam uma fauna ou uma flora peculiares.
Pense, por exemplo, na assombrosa escassez de aves terrestres que há no Tahiti, que é muito mais extensa. Banks assinalou isso com tristeza, quase com ressentimento.
Não, senhor. Pelo que eu sei, a ilha Sweeting tem mais valor para os médicos que procuram antiescorbúticos que para os naturalistas. E permita-me dizer-lhe que me
assombra sua impaciência.
- Responde a uma causa muito menos importante. Mas permita-me dizer de passagem que em Saint Kilda tem uma estrelinha peculiar e nas Orkney, uma espécie de roedores
curiosos.
O que ocorre é que não sou uma criatura anfíbia, como o senhor ou o capitão Aubrey. Ainda que poucos acreditem, sou essencialmente um homem do interior, um descendente
de Anteo, sem dúvida, e estou ansioso para voltar a pisar em terra, da qual tirarei a força necessária para suportar os próximos meses de vida no oceano. Estou ansioso
para caminhar por uma superfície que não esteja em perpétuo movimento, balançando e cabeceando, onde não é provável que um solavanco me pegue desprevenido e me lance
contra os embornais, provocando que meus amigos gritem: "Isto é criminoso!" e os marinheiros reprimam o riso. Não creia que não estou contente com minha sorte, Maturin,
eu lhe rogo. Gosto muito das longas viagens pelo mar e as excelentes oportunidades que podem oferecer; como, por exemplo, ver os framboyants nas margens do rio São
Francisco e os vampiros em Penedo. Mas de vez em quando desejo com veemência sentar-me em meu elemento, de onde regresso como um gigante cheio de nova vida, pronto
para suportar um vento tão forte que obrigue a rizar as gáveas ou o nauseabundo odor da coberta inferior em meio do sufocante calor da zona das calmarias, sem uma
pitada de ar para respirar, ou o movimento da fragata que ameaça derrubar seus paus. Acho que faz um século que não me sento em uma cadeira da qual possa confiar,
pois ainda que tenhamos passado por muitas ilhas ao cruzar uma vasta extensão de mar, o que fizemos é, precisamente, passá-las. Ventos desfavoráveis e correntes
adversas nos fizeram chegar tarde a encontros anteriores e esta última era nossa única oportunidade, assim que o capitão Pullings governou a fragata de uma forma
despiedosa, com duras palavras e ordens imperiosas, não como o amável jovem que conhecíamos, mas como um oficial Bajazet, e, naturalmente, sem pensar em deter-se
ainda que visse na costa casuares com cristas amarelas. Porém, diga-me, Maturin, em verdade a ilha Sweeting é tão pobre e tão pouco fértil? Nunca ouvi falar dela.
- Nem eu, como bem sabe Deus, até que o capitão Aubrey me disse seu nome. Foi um primo dele por parte de mãe que a descobriu, o almirante Carteret, que deu a volta
ao mundo com Byron e depois com Wallis, desta vez como capitão do Swallow, um barco bem menor. Por causa do mau tempo separou-se de Wallis frente ao arquipélago
de Terra do Fogo, provavelmente não sem certo regozijo porque isso lhe permitiu descobrir sozinho alguns territórios, incluindo esta ilha, à qual pôs o nome do guarda-marinha
que a avistou primeiro. Não era como Golconda nem Tahiti, pois estava habitada por um grupo de irascíveis negros desnudos, que eram corpulentos e tinham a cara muito
feia, os olhos afundados, o queixo retraído, os colmilhos afiados e um monte de cabelo duro e cacheado pintado com mais ou menos êxito de marrom claro ou amarelo.
Não falavam nenhum dos dialetos conhecidos da Polinésia e todos pensaram que estavam mais estreitamente vinculados aos papúes...
- Parece que nunca vamos ver Papuasia - observou Martin, dando um suspiro -, porém, desculpe-me por lhe interromper.
- Não, nunca. Acho que a intenção do capitão Aubrey, por motivos relacionados com o vento, as correntes e a difícil navegação pelo estreito de Torres, era deixar
Nova Guinéu a considerável distância por estibordo, avançar para o alto mar até a ilha Sweeting e, depois de reabastecer, mudar de bordo e fazer rumo à zona onde
sopram os ventos alísios do sudeste e dali dirigir-se para a baía de Sidney navegando de bolina, a forma com que a fragata navega melhor, no que supera todos os
outros barcos. Tampouco tem intenção de fazer escala nas ilhas Salomão, e muito menos passar do outro lado da grande barreira de coral ou aproximar-se dela.
Ambos moveram a cabeça de um lado para o outro com tristeza e depois Stephen continuou:
- Pelo que sir Joseph me contou de Nova Guinéu, acredito que não perdemos muito. Ele e Cook desceram em terra e percorreram um extenso terreno pantanoso até chegar
a uma praia comum, onde de improviso se lançaram sobre eles os nativos gritando palavras ofensivas, alguns fazendo explodir coisas que pareciam bombas e outros jogando
lanças. Só teve tempo para recolher vinte e três plantas, nenhuma delas realmente interessante. Com relação à grande barreira de coral, não me surpreende que o capitão
queira que a evitemos, depois da horrível experiência de Cook, ainda que isso não quer dizer que não lamente a necessidade de fazê-lo. Parte-me o coração.
- Talvez o vento amaine e possamos nos aproximar do arrecife em um bote.
- Espero que assim seja, especialmente perto da ilha de onde Cook e Banks exploraram uma vasta zona do arrecife, na qual Banks recolheu alguns dos muitos lagartos
que colecionou. Mas voltando à ilha Sweeting, da qual me parece que agora posso ver um ápice no horizonte, o capitão Carteret não encontrou ali nem pó de ouro nem
pedras preciosas nem amáveis habitantes, senão cocos, batata-doce, colocasias e frutas de vários tipos. Só havia um povoado, pois ainda que no interior seja bastante
fértil, a maioria dos habitantes vivem principalmente do mar e se concentram na única praia. Como quase todo o litoral é formado por um escarpado com zonas mais
ou menos próximas à vertical, imagino que se formou pela erupção de um antigo vulcão ou que é uma cratera desabada e reduzida. Ainda que as pessoas fossem desagradáveis
e inospitas, o capitão Carteret as convenceu a comerciarem com ele e regressou ao barco com provisões que mantiveram saudáveis seus tripulantes até o estreito de
Macasar. Determinou sua posição cuidadosamente e sondou as águas ao redor, mas não é uma ilha muito conhecida, ainda que o capitão Aubrey diz que muitos baleeiros
do Pacífico Sul às vezes se detém lá. Não recordo de tê-la visto em nenhum mapa.
- Talvez esteja habitada por sereias - disse Martin.
- Meu querido Martin - replicou Stephen, que em ocasiões podia ser mais obtuso que ninguém -, um momento de reflexão bastaria para fazer-lhe recordar que todos os
sirênios necessitam águas pouco profundas com um extenso leito de algas e que os únicos membros dessa inofensiva espécie no Pacífico são a vaca marinha que Steller
encontrou no norte e o dugongo, que vive em zonas privilegiadas próximas a Nova Holanda ou no mar da China Meridional. Não espero encontrar mais que vegetais e frutas.
Isso me recorda... Gostaria de jantar conosco? Temos geléia de manga.
Martin voltou a desculpar-se. E muito mais tarde, quando Stephen e Jack haviam terminado de comer a geléia de manga e estavam sentados preparando-se para tocar música,
Stephen anunciou:
- Vou fazer uma pergunta que talvez seja impertinente, mas só porque quero me poupar de fazer convites que serão recusados. Martin e você discutiram?
- Oh, não! O que lhe fez pensar isso?
- Eu o convidei para jantar conosco várias vezes e sempre recusou o convite. Logo ficará sem desculpas verossímeis.
- Oh! - exclamou Jack e, com gesto preocupado, largou de um lado o arco do violino. - É verdade que não posso me esquecer de que é um pastor, assim que tenho que
ter cuidado com o que digo. Porém, por outro lado, não sei o que dizer. Sinto um grande respeito por Martin, certamente, e a tripulação também, mas me é difícil
falar com ele, e talvez isso me faça parecer reservado. Não posso conversar com um homem instruído como contigo e com Tom Pullings, ou seja... Não quiz dizer que
não lhe considere mais instruído que Job, nada mais longe de minha intenção, dou minha palavra de honra, mas nos conhecemos há muito tempo. Martin e eu nunca nos
ofendemos, o que é uma vantagem porque seria muito desagradável para uma pessoa ficar encerrado um tempo indefinido com alguém que lhe é antipático, e ainda é muito
pior quando isso ocorre a dois oficiais, porque teriam que se ver todos os dias na câmara dos oficiais, também é ruim que ocorra ao capitão, ainda que alguns não
se importam. Talvez pense que não tenho lhe dado atenção. Eu o convidarei para almoçar amanhã.
A Surprise começou a aproximar-se da ilha Sweeting com o vento a vinte e cinco graus pela alheta. Permanecera a pairar durante a maior parte das guardas de meia
e da alvorada, pois ainda que se recordasse muito bem da carta marítima de seu primo e dos dados da sondagem que fizera, as condições podiam ter mudado desde 1768,
e queria atravessar o estreito e entrar na baía em pleno dia. Ele a recordava agora, sentado comodamente no castelo de popa depois do desjejum, enquanto governava
a fragata desde a verga velacho. O sol havia subido quarenta e cinco graus a leste no perfeito céu e lançava seus raios nas águas cristalinas, tão cristalinas que
Jack pôde ver o brilho de um peixe que passou muito abaixo da superfície, talvez a cinqüenta braças. Não havia nada mais que ver; não se via o fundo e, de acordo
com a carta marítima do almirante Carteret, não se veria até que estivessem a um tiro de mosquete do arrecife, pois a costa era cortada quase verticalmente. A fragata,
com o vento entabulado, navegava na forma típica com que se atravessava um arrecife para passar para uma típica enseada de águas pouco profundas. Só com o velacho
aberto tinha velocidade suficiente para manobrar, e a proa se inclinava levemente porque tinha pouco abatimento. Jack teria muito tempo para examinar o arrecife
(muito largo e cheio de coqueiros) a enseada e a ilha. Não era como uma dessas ilhas coralíneas de forma ligeiramente abaulada que vira amiúde no sudeste do Pacífico,
senão muito mais rochosa. Tinha uma massa de árvores rodeadas de plantas de variados tons de verde, muitos deles intensos, em um elevado semicírculo situado justo
detrás do povoado, que formava uma meia lua acima da marca da maré alta, e em ambos os lugares se refletia a clara luz da manhã. Era um povoado típico, com canoas
alinhadas na praia, mas a maior parte do espaço era ocupado por uma grande casa alongada construída sobre postes, um tipo de casa que nunca vira.
Também tinha tempo para examinar a coberta da fragata. Desde o pôr do sol estava, se era possível, mais limpa que o habitual, e tudo se achava colocado em perfeita
ordem, as betas estavam enroladas à flamenga e os objetos de latão que possuía brilhavam como o ouro, já que havia a possibilidade de que convidasse ao rei da ilha
para subir a bordo. Mas muitos marinheiros, e não só os mais jovens, haviam encontrado tempo para pôr a roupa de descer a terra: camisa bordada, calça de dril branco
como a neve com fitas costuradas nas costuras, chapéu de palha de aba larga com uma cinta com o nome Surprise e brilhantes sapatos negros com laços. E é que o capitão
da Surprise era muito generoso concedendo permissões para descer a terra porque todos os tripulantes eram voluntários. A maioria deles havia preparado pequenas bolsas
com pregos, garrafas e pedaços de espelho, já que, como era sabido de todos, presentes desse tipo tinham agradado muito as jovens do Tahiti e essa também era uma
ilha do Pacífico sul. Os marinheiros sabiam que estavam no Pacífico sul desde que haviam passado os cento e dezesseis graus de longitude leste, e dissesse o que
dissesse o doutor, todos (exceto alguns poucos estúpidos como Flood, o cozinheiro, cujo irmão fora comido nas ilhas Salomão) confiavam em que encontrariam sereias.
No castelo estavam os dois médicos e Stephen olhava tão ansiosamente a ilha como Martin, apesar de ter menosprezado sua potencial.
Mas o povoado tinha algo raro. Não havia movimento, além do vaivém das palmas. Todas as canoas estavam na praia: não tinha nenhuma na enseada nem em alto mar.
O som das ondas, as moderadas ondas que rompiam na praia era cada vez mais forte. Jack gritou para os homens que estavam no pescante:
- Hooper, adiante! Crook, adiante!
- Sim, senhor - responderam os dois, o que estava a estibordo, com voz rouca; o que estava a bombordo, com voz escandalosa.
Houve uma pausa e depois se ouviram chapes perto da proa e os gritos, alternando-se, diziam:
- Não toca o fundo este cabo. Não toca o fundo este cabo. Não toca o fundo...
A entrada se via claramente um pouco mais adiante e a água tomou um colorido mais verdoso que azulado.
- Subam a escota uma braça - ordenou Jack. - Leme a bombordo meia cana. Firme, firme.
- Firme, senhor.
- Marca dezoito - anunciou a voz de estibordo.
- Marca dezenove - disse a voz de bombordo.
- Leme a bombordo uma cana - indicou Jack, vendo uma parte esbranquiçada adiante.
- Leme a bombordo, senhor.
Agora a fragata estava no meio do estreito, com o arrecife e seus altos coqueiros de ambos os lados. O vento chegava pelo través. De repente, cessou o ruído das
ondas ao romperem na parte exterior do arrecife e o prolongado burburinho da espuma quando se retiravam. A fragata se movia em silêncio, com as sondas submerss de
ambos os lados, e ocasionalmente fazendo leves mudanças de rumo. Além dessas vozes e o canto de uma andorinha, não se ouvia nada. Houve silêncio no convés até que
se adentrou na enseada, virou a proa contra o vento e jogou a âncora. Nenhum som chegou desde a costa.
- Vem conosco, doutor? - perguntou Jack.
Os dois médicos haviam corrido de uma ponta a outra do corrimão no momento em que os marinheiros tinham descido o bote e estavam ali, de pé, rodeados de estojos
para guardar exemplares, caixas e redes.
- Sim, com sua permissão, senhor - respondeu o doutor Maturin. - Nosso dever é buscar antiescorbúticos imediatamente.
Jack assentiu com a cabeça e enquanto os marinheiros desciam para o bote os mosquetes, os presentes e os objetos geralmente empregados para comerciar, perguntou:
- Não acha muito rara a tranqüilidade que há nesta ilha?
- Sim, parece desabitada. Mas três homens de vista aguda e separados uns dos outros asseguraram que viram gente movendo-se no limite do bosque, concretamente jovens
com saias de folhas.
- Talvez tenham se reunido no bosque para celebrar uma cerimônia religiosa - aventurou Martin. - Não há nada mais propício para a espiritualidade que um bosque,
como sabiam os antigos hebreus.
- Bonden, tampe os mosquetes com a lona de cobrir a popa - ordenou Jack, antes de ir para o castelo de popa. - Senhor West, saque um barrilete de pólvora, mantenha
a fragata com a bateria de frente para a costa. Saque dois canhões e dispare ao menor sinal de dificuldades. Dispare a bastante distância de nós se levanto a mão
e com metralha se nos perseguem com as canoas. Adiante, senhor Reade.
Reade já havia se acostumado perfeitamente a andar por todas as partes com um só braço, mas sempre tinha um grupo de ansiosos marinheiros preparados para pegá-lo
caso caisse, um grupo de marinheiros que seguiram sendo tão amáveis como antes, mas agiram mais razoavelmente, quando desceram os dois médicos seguidos do capitão.
- Zarpar! - gritou Reade. - Retroceder! Agora todos juntos, se podem conseguir. Davis, reme no tempo, uma vez em sua vida.
Essas foram as últimas palavras que se ouviram durante todo o tempo que estiveram atravessando a enseada enquanto os oficiais, pensativos, olhavam fixamente a costa.
- Parem de remar! - ordenou Reade por fim. Os barqueiros meteram os remos no bote ao estilo da Armada. O bote deslizou um momento e imediatamente a proa se introduziu
na areia. O primeiro remador desceu de um salto e colocou a prancha.
- Virem-na, coloquem-na com a popa para a praia e mantenha-a flutuando segura por uma pequena âncora - ordenou Jack. - Wilkinson, James e Parfitt cuidarão dela durante
esta maré e manterão os mosquetes ocultos. Os demais virão para a praia comigo. Não a movam até que dê a ordem.
Subiram pela branca areia com os olhos semicerrados por causa do resplendor, mas olhando com expectativa para direita e esquerda, para as canoas, o bosque e a casa
alongada. Apesar das ordens, Reade, que ia detrás do grupo principal, aproximou-se das canoas dando saltos.
Alguns momentos depois, ao mesmo tempo em que um cachorro saiu apressadamente de trás da canoa mais próxima para meter-se no bosque, regressou correndo. Havia ficado
pálido, ainda que estivesse moreno, e anunciou:
- Há algo horrível ali. Acho que é uma mulher - o grupo se deteve e todos o olharam - ... morta - acrescentou com voz trêmula.
- Importar-se-ia de não seguir adiante e esperar-me aqui, senhor? - perguntou Stephen.
Ali ficaram todos, muito preocupados, enquanto ele se afastava seguido de Martin. Sob a brilhante luz o silêncio era inquietante. Olharam-se uns para os outros inquisitivamente,
mas não disseram nem uma palavra, nem sequer murmuraram, até que o doutor, quando voltava, gritou a certa distância:
- Senhor, todos os homens que não tenham tido a varicela devem regressar ao bote.
E quando chegou ao seu lado, perguntou:
- Senhor Reade, já teve varicela?
- Não, senhor.
- Então, tire a roupa, banhe-se no mar, molhe bem o cabelo e sente-se sozinho na proa. Não toque em ninguém. Quem tem um isqueiro?
- Aqui tem, senhor - respondeu Bonden.
- Por favor, faça saltar uma faísca e queime a roupa do senhor Reade. O senhor já teve a doença, senhor, se não me recordo mal.
- Sim, quando era menino - disse Jack.
Então olhou para os marinheiros que estavam um pouco afastados e ordenou:
- Johnson, Davis e Hedges, regressem ao bote.
Eles se voltaram, tocaram-se a testa e, decepcionados, mas sobretudo preocupados, começaram a descer, e um redemoinho de fumaça de um crematório os seguiu até o
mar.
- E todos os outros? - perguntou Stephen. - Assegurem-se agora, porque esta variedade é muito má e produz erupções perigosas.
Outro homem se separou do grupo murmurando algo e inclinando a cabeça vergonhosamente.
- Bem, senhor, vou revistar a casa alongada - continuou. - Depois, talvez possamos buscar os antiescorbúticos. Será melhor que os marinheiros se fiquem aqui um pouco.
Quer vir comigo, senhor?
Jack, com gesto preocupado, começou a seguir Stephen e Martin. Esperava ver algo desagradável, repulsivo, mas o que viu e cheirou quando subiu atrás deles a escada
e penetrou na penumbra da casa alongada, onde se ouvia um zumbido, foi muito pior. Quase todos os habitantes do povoado haviam morrido ali.
- Aqui não podemos fazer nada - sentenciou Stephen, depois de examinar cuidadosamente a casa de uma ponta a outra duas vezes.
Quando estavam fora, na plataforma elevada sobre a qual havia uma ancestral pirâmide de crânios, os da base cobertos de mofo verde, disse:
- Tinha razão, senhor Martin, quando falou de uma cerimônia religiosa. E acredito que aqui - acrescentou, apontando dois machados novos, mas um pouco oxidados, que
estavam sobre o que havia sido recentemente um leito de flores -, aqui fizeram sacrifícios para salvar a tribo, os pobres.
Jack voltou a segui-los enquanto eles falavam da natureza da doença, dos estragos que causava em nações e comunidades que não haviam padecido dela antes, da grande
quantidade de mortes que ocasionava entre os esquimós e de que fora levada para ali por um baleeiro, de cuja presença os machados eram uma prova. Sentia aversão
pelos baleeiros e indignação por não poder compartir com eles seu horror, e se limitou a aceder com um triste olhar e uma formal inclinação de cabeça quando Stephen,
no momento em que se reuniam com os outros, disse:
- Acho que podemos colher cocos, frutas e vegetais, porque não roubamos a ninguém.
Stephen observou qual era seu estado de ânimo e o dos marinheiros, que pela mudança da direção do vento tinham se informado do que não haviam deduzido da expressão
de seu capitão, de seus ombros caídos e de seu andar trabalhoso, e acrescentou:
- Permita-me sugerir-lhe que o senhor colha os cocos das árvores que estão no arrecife, principalmente os mais verdes, enquanto o senhor Martin e eu buscamos outras
plantas no interior. Porém, sobretudo, não permaneça nesta atmosfera mefítica. Primeiro, contudo, peço que mande Reade para a fragata e ordene ao meu ajudante que
antes de que suba a bordo lhe esfregue todo o corpo com vinagre e lhe corte o cabelo. E Reade terá que permanecer em quarentena.
- Muito bem - disse Jack. - Enviarei o bote outra vez para recolher-lhe quando queira.
- Este bote não, senhor, se me permite. Também tem que ser esfregado com vinagre, mas devem fazê-lo marinheiros que possam mostrar as marcas da doença. Outro bote,
por favor, e com tripulantes que não corram nenhum risco.
Um caminho ia do povoado ao interior da ilha. Era muito empinado, era feito de grandes pedras e beirado por arbustos e enredadeiras. Debaixo dos arbustos havia vários
ilhéus quase convertidos em esqueletos, com os membros espalhados ao redor. Passava junto a um terreno plano, uma clareira do bosque rodeado de um muro de pedra
para evitar que os porcos entrassem, que podiam ser ouvidos grunhindo e escavando entre as plantas que cresciam sob as árvores. Nesse terreno cercado, de considerável
extensão, havia batata-doce, bananeiras de diferentes tipos e diversos vegetais que cresciam amontoados, era evidente que haviam sido deliberadamente plantados,
porque ainda podia se ver a terra removida sob o capim.
- Essa deve de ser uma arácea - disse Martin, recostando-se no muro.
- É. Acho que é uma colocasia. Sim, de fato, é uma colocasia. As folhas são amargas, mas o sabor melhora quando se fervem. É um excelente antiescorbútico.
Seguiram avançando, sempre subindo, pelas pedras do caminho, muitas delas polidas pelo atrito dos pés de numerosas gerações. Encontraram mais três terrenos cercados
e no último viram um grande javali apoiado no muro, tentando subir. Ali já se encontravam muito longe da pestilência. Martin recolheu vários moluscos e, depois de
examiná-los com cuidado, os deixou cair em uma caixa com os lados acolchoados. Stephen assinalou uma orquidácea cujas flores brancas com pontas douradas caiam em
cascata da fenda de uma árvore.
- Estava preparado para a escassez de aves terrestres, mamíferos e répteis, sobretudo depois de ver os porcos aparecerem - disse Martin -, mas não para ver tanta
variedade de plantas. À direita do caminho, depois de passar o último grupo de colocasias... Ouve esse ruído parecido ao de um pássaro carpinteiro?
Ambos praram e aguçaram o ouvido. Ali o caminho passava entre um grupo de coqueiros e sândalos e depois levava até um grupo de rochas altas, diante das quais havia
uma pequena plataforma coberta por orquídeas rastreiras de agradável odor. O som, que parecia vir dali, cessou.
- ... vi não menos que dezoito espécies de rubiáceas.
Continuaram subindo em silêncio. Quando Stephen, que ia dois passos adiante de Martin, teve a plataforma ao nível da vista, inclinou-se e, voltando-se para ele,
murmurou:
- Um macaco. Um pequeno macaco negro.
O débil martelo voltou a começar e eles se aproximaram. Stephen, cuidadosamente, fez um sítio para Martin, que, depois de um momento, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Não tem pêlo.
Então, detrás de um coqueiro saiu outra figura igual, mas quando eles a viram erguida, acima da capa de orquídeas que tinham à altura da vista, deram-se conta de
que era uma menina negra muito magra que também tinha um coco nas mãos. A menina se reuniu com a primeira, agachou-se e começou a dar golpes com o coco sobre a enorme
pedra plana, que, era evidente, cobria um poço ou um manancial. Ambas tinham aspecto doentio. Stephen se ergueu e ao mesmo tempo tossiu. As pequenas deram-se a mão
sem dizer nada, mas não passaram a correr.
- Vamos nos sentar aqui sem olhá-las, sem fazer-lhes caso - propôs Stephen. - Já passaram a doença e, sem dúvida, foram as primeiras a pegá-la, mas se encontram
em muito mau estado.
- Que idade terão?
- Quem sabe! Nunca atendi a crianças, ainda que tenha feito a dissecação de muitas. Terão uns cinco ou seis anos. Pobres criaturas tão pouco agraciadas e tão pouco
afortunadas! Não podem abrir o coco.
Deu meia volta, estendeu o braço e perguntou:
- Deixa-me tentar?
Tinham a mente embotada não tanto por causa do terror ou da tristeza mas pela surpresa e falta de compreensão. Ademais, estavam sedentas porque não havia chovido
durante os últimos dias. Mas ainda tinham capacidade de razoamento suficiente para compreender o significado do tom e o gesto, e a primeira menina lhe estendeu o
coco. Stephen o perfurou pela parte branda com uma lanceta e a menina bebeu com grande avidez. Martin fez igual com a segunda menina.
Agora as meninas podiam falar e diziam a mesma palavra uma e outra vez, assinalando a lage e puxando-lhes as mãos. Quando eles a tiraram, as meninas meteram a cabeça
na água e beberam sem moderação, até que seus ventres vazios se incharam como melões.
- Acho que devemos levá-las para a fragata, dar-lhes de comer e deitá-las - disse Stephen enquanto olhava como devoravam o coco recém partido. - enquanto alguns
marinheiros recolhem as batata-doce, as bananas e as colucasias, outros podem rastrear a ilha para ver se há sobreviventes.
- Indubtavelmente, não podemos largá-las aqui porque morreriam de fome - concordou Martin. - Porém, Maturin, se tivessem sido macacos não descritos, teríamos causado
assombro em Londres, Paris, São Petersburgo... Vamos, menina...
Desceram o caminho devagar, de mãos dadas, mas quando chegaram ao cercado mais alto, as meninas começaram a gritar e Stephen e Martin tiveram que passá-las por cima
do muro para que entrassem. Elas correram para um bananal que lhes era familiar e comeram todas as bananas que estavam ao seu alcance. O mesmo ocorreu com o segundo
cercado, mas quando chegaram ao terceiro, as meninas estavam muito cansadas e débeis para seguir andando e eles as levaram até a margem do mar adormecidas em seus
braços.
- Não podemos chamr ao sem despertá-las - disse Martin.
- Que dilema! - exclamou Stephen, observando que a menina que tinha nos braços estava cheia de piolhos. - Talvez poderia colocá-la no solo.
Mas quando tentou, os dedos negros se agarraram a sua camisa com tanta força que teve que erguer-se de novo e abandonar a idéia de fazê-lo.
Não tiveram necessidade de chamar o bote. Qualquer um com a vista menos aguda que Jack Aubrey poderia ter visto a meia milha de distância que eles não tinham nos
braços antiescorbúticos, mas criaturas parecidas a preguiças ou ursos australianos. Não obstante, Jack assombrou-se quando as viu de perto e se informou do que tinha
que fazer.
- Bem, subam-nas a bordo - ordenou. - Pollack, deite-as sobre os sacos que estão junto à bancada de popa.
- Mas assim elas despertarão - Martin se queixou. - Posso subir a bordo com cuidado pela prancha.
- Bobagem! - exclamou Jack. - Qualquer um pode perceber de que o senhor não é pai, senhor Martin.
Pegou a menina, que tinha a cabeça pendurando, e, passando-a acima da borda, entregou-a a Pollack, que a deitou sobre os sacos como um habilidoso e diligente esposo.
- Quando as crianças estão dormidos desta maneira, com a cabeça pendurando e a baba escorrendo da boca - acrescentou Jack em um tom mais amável -, pode contorcê-las
e fazer nós com elas sem que se queixem nem despertem.
Isso era totalmente verdade. As meninas estavam frouxas como bonecas de palha quando as subiram pelo costado, e não se moveram quando as puseram em um colchonete
junto à escada do castelo.
- Digam a Jemmy Ducks que venha - disse Jack Aubrey.
- Senhor? - apresentou-se Jemmy Ducks, cujo verdadeiro nome era John Thurlow e tinha como ofício cuidar das aves da fragata, e às vezes também coelhos e outros animais
maiores.
- Jemy Ducks, é pai de família, verdade?
Ao ouvir o inusual tom amável do capitão e ver seu sorriso, Jemmy Ducks semicerrou os olhos e o olhou com receio, porém, depois de vacilar alguns momentos, admitiu
que tinha sete ou oito pequenos monstros em Flicken, ao sudeste de Shelmerston.
- E alguma é fêmea?
- Três, senhor. Não, minto, quatro.
- Então provavelmente estará acostumado com crianças.
- Pode afirmar que sim, senhor. Gritos, berros, empurrões, gengivas vermelhas, cair os dentes, faringite, sarampo, dores de estômago... E o pobre Thurlow toda a
noite caminhando de um lado para outro balançando-os em seus braços e perguntando-se se seria capaz de jogar-lhes pela janela... Urinóis, vasilhas de mingau, fraldas
secando na cozinha... Por isso me alistei aqui para fazer um viagem longa, muito longa, senhor.
- Nesse caso, sinto muito encarregá-lo desta tarefa. Olhe o colchonete que está à sombra da borda de estibordo. Essas duas meninas que estão adormecidas aí foram
trazidas da ilha e um grupo de marinheiros está buscando outros sobreviventes. Tem que lavá-las com água morna e sabão assim que despertem, e, quando estejam secas,
o ajudante do doutor lhes administrará um ungüento que o própio doutor está preparando.
- Têm piolhos além de sujeira e varicela, senhor?
- Certamente! E me parece que o doutor ordenará que corte seus cabelos. Quando tudo isso esteja feito, dara comida a elas, o melhor que possa, e as deitará onde
antes ficavam os cordeiros. Se necessitar de algo, peça a Lascas ou ao contramestre. Adiante, Jemmy Ducks.
- Sim, senhor.
- Se isto durar, terá um ajudante todo o tempo.
- Muito obrigado, senhor. Será como estar em terra. Dizem que os homens não podem escapar de seus destinos.
- E se não houver sobreviventes, receberá dois xelins ao mês por este duro trabalho.
Não havia sobreviventes. A Surprise afastou-se e se afastou buscando os ventos alísios do sudoeste, mas eram escorregadios e esse ano sopravam muito mais ao sul
da linha do Equador. Para alcançá-los teria que enfrentar a corrente equatorial e ventos tão fracos, às vezes desfavoráveis, que o avanço de meio grau para o sul
de um meio-dia ao do dia seguinte seria digno de se celebrar.
Mas a travessia era agradável. O céu tinha cor azul e o mar tinha um tom mais escuro; ocasionalmente havia rajadas de chuva quente que refrescava o ar; a água do
mar estava bastante fria, o bastante para que Jack se refrescasse pelas manhãs quando se jogava do pescante de popa. Ainda restavam muitas das provisões do contramestre,
do carpinteiro e do condestável que estavam a bordo desde que a haviam armado ao princípio, e, também, tinha muitos produtos frescos de longa duração. O incipiente
escorbuto havia remitido (o braço de Hayes havia se soldado e Brampton estava mais animado).
Os produtos eram de longa duração, e isso foi uma sorte, porque passaram muitas semanas antes que a Surprise alcançasse os ventos alísios, que, além disso, eram
tão fracos e caprichosos que não faziam honra ao seu nome nem a sua fama de fixos e constantes. A fragata navegava devagar, quase sempre completamente horizontal,
e as semanas deram um ritmo constante à vida dos tripulantes. Pela manhã bombeavam as dezoito polegadas de água de mar que tinham deixado entrar pela válvula, uma
tarefa que compartiam Stephen e Martin revezando-se para mover as alavancas, pois se sentiam em parte culpados daquela situação. Ao princípio os homens da guarda
da alvorada fizeram essa tarefa com desgosto, mas estavam acostumados a fazê-la e não se queixavam, nem sequer agora que a Surprise tinha tão bom odor como a Noz-moscada.
Na guarda da manhã, depois de atender aos poucos pacientes que tinham, regressavam à câmara dos oficiais e, como as ondas que vinham do sudeste eram suaves e predizíveis,
não tinham receios em pôr inclusive os espécimes mais frágeis sobre a mesa do refeitório. A parte da guarda da tarde em que não estavam comendo passavam no cesto
da gávea do mezena, revezando-se contando suas experiências e o que tinham observado. Stephen chegara agora à parte da viagem em que subira a ladeira de um imenso
vulcão adormecido, em cuja cratera havia um afastado paraíso onde os animais ficavam protegidos pela religião (no lugar viviam monges budistas), a piedade, a superstição
e o isolamento, e nunca os tinham caçado nem matado nem incomodado de nenhuma forma, assim que um homem podia caminhar entre eles sem despertar muita curiosidade.
Ali havia aberto passagem entre manadas de cervos que pastavam e se sentara com orangotangos. Martin não tinha coisas tão boas a contar das frias estepes da Patagônia,
aonde agora a narração tinha levado a Surprise, mas se esforçou o quanto pôde para fazer um bom papel. Falou do avestruz americano de patas com três dedos, do beija-flor
austral, da mesma coruja real que haviam visto no deserto do Sinai, do pato da Terra do Fogo que não voava, cujo ninho havia encontrado perto de porto Famine sob
um arbusto piroláceo coberto de neve (era o primeiro ornitólogo ocidental em vê-lo), e do periquito verde de calda longa, que, ao contrário do que se supunha, podia
ver-se voando muito ao sul, até a entrada do horrível estreito de Magalhães, sobre revoadas de pingüins que habitavam no árido litoral.
O assunto do qual tinha que contar era menos importante, mas sua exposição foi muito melhor já que estava acostumado a falar em público. Além do mais, como era um
homem alto e de peito largo, sua voz chegava mais longe que a de Stephen, que era um homem magro. Quando falava dos maravilhosos ovos, sua voz entrou pela clarabóia
da cabine, onde Jack estava escrevendo para sua casa:
Como lhe dizia, tínhamos a intenção de passar entre as ilhas Salomão e o arquipélago da Rainha Carlota, mas é possível que tenhamos que fazer escala em um ou outro
lugar para tratar de comprar alguns porcos, porque o avanço da fragata é lento.
Fez uma pausa e, depois de morder por um momento a ponta da pluma (a haste da pena de um albatroz menor), continuou:
Sei que não gosta que fale assim de nenhum homem, mas só direi que há momentos em que eu gostaria de mandar o senhor Martin ao diabo. Não é que não seja um amável
cavalheiro, como sabe muito bem, mas passa tanto tempo com Stephen que quase não posso vê-lo. Teria gostado de tocar com ele a partitura que vou executar esta noite,
mas os dois estão falando pelos cotovelos no cesto da gávea do mezena e não me agrada interrompê-los. Sem dúvida, o destino de um capitão de barco de guerra é viver
na solidão rodeado de esplendor, somente mitigada pelos banquetes mais ou menos formais e obrigatórios que dá ou lhe oferecem, porém, depois de ter um amigo íntimo
a bordo durante tantas missões, eu me acostumei a esse luxo e me incomoda muito que o afastem de mim.
O avanço da fragata era lento. Apesar de que lhe haviam limpado os fundos em Callao e da proteção das placas de cobre, havia ficado muito sujo naquelas águas cálidas,
tão sujo que alcançava meio nó a menos de velocidade com o vento fraco. O avanço das meninas na aprendizagem do inglês, em troca, era extraordinariamente rápido,
e teria sido mais se alguns marinheiros não lhes tivessem falado na gíria que empregavam na costa ocidental da África.
Chamavam-nas de Sarah e Emily, já que Stephen, que era indiscutivelmente responsável por elas já que as havia encontrado e as levara até a praia, tinha direito de
pôr-lhes nome e havia se oposto a dar-lhes os de Quinta-feira e Hipopótamo. Geralmente passava algum tempo com elas a cada dia. Quando se viram a bordo, estavam
assombradas e desconcertadas e permaneciam com as mãos dadas em seu escuro e resguardado alojamento, mas agora corriam pelo castelo com seus vestidos de lona retos,
sobretudo durante a guarda da tarde. Às vezes saltavam de prancha em prancha sem tocar as juntas enquanto cantavam com estranhos sons guturais ou imitavam a forma
de cantar dos marinheiros. Eram bem mais tontas e, em geral, comportavam-se bem, ainda que Emily às vezes mostrava-se obstinada e violenta. Não deixavam de ser magras
por mais que comessem e não tinham nem um pingo de beleza. Jemmy Ducks não teve dificuldade para ensinar-lhes as normas de asseio, já que haviam se acostumado a
se lavar quando estavam sanas, e o fato de que estivessem piolhentas se devia, em parte, ao tipo de cabelo que tinham, que era grosso e cacheado e se estendia seis
polegadas ao redor da cabeça até que o barbeiro da fragata o cortou rente e, em parte, porque naquela zona ainda não haviam inventado o pente. Tampouco teve dificuldade
para ensiná-las a ser pontuais, já que imediatamente compreenderam o significado das badaladas da fragata. Obviamente, tinham adquirido a noção do sagrado muito
antes de subir a bordo, pois punham uma expressão grave quando Jemmy Ducks as levava para a popa limpas e com o cabelo escovado, guardavam silêncio quando chegavam
ao castelo de popa e permaneciam junto dele como duas estátuas enquanto durava a cerimônia de passar revista.
Uma vez que foi possível estabelecer comunicação com elas, pareciam desassossegadas quando lhes perguntavam por sua vida anterior. Dava a impressão de que a consideravam
um sonho do qual haviam despertado para a vida real, que consistia em navegar eternamente, sempre para o sul-sudoeste, entre badaladas que soavam a um ritmo invariável,
usando vestidos de lona retos que se lavavam duas vezes por semana, falando algo parecido com o inglês, tomando no café da manhã mingau sem leite (o chocolate se
considerava um alimento muito gorduroso para meninas), no almoço, refogado de carne ou bolo de carne, vegetais e pescado com bolachas de barco (que lhes encantavam),
e na janta, caldo e mais bolachas. E até tal ponto era assim, até tal ponto acreditavam que essa era realmente sua vida que, depois de um tempo, quando uma canoa
cheia de habitantes das ilhas Salomão se abordou com a fragata, sentiram tanta angústia e tanto medo que gritaram "negros sacanas!" e foram correndo para baixo,
ainda que nunca deram mostras de aversão pelos tripulantes negros da Surprise, muito pelo contrário. E quando as trouxeram para o convés, Stephen com Emily pela
mão e Jemmy Ducks com Sarah, para ver se entendiam o chefe de um povoado que, obviamente, possuía porcos, protestaram, disseram que não podiam entender nem uma palavra
e prorromperam em tão amargos soluços que tiveram que levá-las dali.
- O senhor dirá que são tontas - disse Martin enquanto comiam na cabine -, porém, já percebeu que no castelo falam inglês com o sotaque da região ocidental da Inglaterra
e que no castelo de popa com outro muito distinto?
- Sem dúvida, têm uma extraordinária capacidade para as línguas - reconheceu Stephen. - E tenho a impressão de que em sua ilha usavam uma linguagem ou, pelo menos,
um vocabulário para comunicar-se com sua família, outro para falar com adultos fora da família e um terceiro para falar em lugares sagrados ou dirigir-se às deidades.
Talvez fossem variantes da mesma língua, ainda que estou seguro de que eram variantes muito diferentes.
- Acho que estão se esquecendo de sua própia língua - interveio Jack. - Já não se ouve falar entre elas em língua estrangeira, como costumavam fazer.
- É possível que uma pessoa chegue a se esquecer de sua própia língua? - perguntou Pullings. - De línguas que aprendeu, como o latim e o grego, sim, mas da própia,
não acredito. Claro que posso estar equivocado, senhor, porque um capitão de navio sabe mais que um capitão de corveta, naturalmente.
Stephen tomou um trago de vinho. Em certo momento estivera a ponto de esquecer-se do irlandês, sua língua nativa, a primeira que falara, já que fora criado no condado
de Claire, e, ainda que houvesse ressurgido das profundidades depois dos três anos que estivera usando-a para falar com Padeen (seu servente quase monolíngüe), ainda
havia palavras, algumas delas muito comuns, cujo som lhe era familiar mas cujo significado havia esquecido por completo.
Padeen Colman, apesar de ser um homem analfabeto, incapaz de revelar, ainda que fosse inocentemente, qualquer informação que pudesse obter, já que sabia muito pouco
inglês e, além disso, o pouco que sabia era quase incompreensível para seus amigos porque sua fala era defeituosa, era o servente ideal para alguém tão vinculado
à política e ao Serviço Secreto Naval como Stephen; contudo, era muito mais que isso, um homem amável e muito afetuoso. Stephen lhe tinha muito carinho e esperava
encontrar-lhe nos presídios de Nova Gales do Sul, aonde o tinham trasladado, e fazer por ele tudo o que pudesse.
Stephen se deu conta de que todos os que estavam na mesa estavam em silêncio, e ao levantar a vista notou que lhe sorriam.
- Peço desculpas - disse. - Minha mente estava muito longe daqui. Perdoem-me, peço. Alguém me fez alguma pergunta? - Não, ninguém - respondeu Jack, enchendo sua
taça. - Estava dizendo ao Tom que havia chegado o momento de diminuir velame, e que quando o convés já não pareça o costado de uma casa, talvez gostassem de se livrarem
de suas elegantes casacas e levarem suas lunetas ao cesto da gávea. Nestes arrecifes, ilhas e ilhotas rochosas, amiúde há aves a cinqüenta milhas ao redor. Há algumas
aves muito curiosas que fazem ninho na ilha Norfolk e regressam para eles de noite.
Até pouco antes que a Surprise cruzasse o trópico de Capricórnio, os ventos alísios não começaram a soprar realmente, mas desde então a fragata, navegando de bolina
ou com o vento a dez graus pela popa, demostrou o que era capaz de fazer com as joanetes desdobradas, as gáveas rizadas e uma longa série de bujarronas e velas de
estai. A espuma e também a água às vezes saltavam acima da amura de barlavento, e as meninas se empapavam e gritavam de alegria. A oscilante coberta chegava a um
ângulo de inclinação do qual era impossível enfocar uma ave com a luneta, a menos que a pessoa fosse atada a uma base firme, ainda que, de qualquer maneira, era
provável que a espuma cobrisse a sua luneta, independentemente de que fosse uma valiosa luneta acromático de grande potência. Ainda que estivesse com os fundos sujos,
durante o dia a Surprise navegava a doze ou treze nós e durante a noite, com as joanetes arriadas, a sete ou oito, entre enormes ondas, por águas sempre transparentes
(excetuando a espuma), como se tivessem sido criadas no dia anterior, que variavam de cor, desde o índigo ao água-marinha. A velocidade só diminuía na alvorada e
no crepúsculo, quando Jack e o senhor Adams, a quem lhes encantavam os números, mediam a temperatura da água a várias profundidades, a salinidade e a pressão atmosférica.
Durante esses dias, revoadas de nuvens brancas passavam muito alto pelo céu, em alguns muito mais alto e em direção contrária ao vento que soprava do oeste acima
dos alísios, um interessante fenômeno que raras vezes podia ver-se tão bem. Mas isso tinha o inconveniente de ocultar as estrelas e mesmo o sol, o que impedia fazer
medições precisas. E como Jack não gostava de depender de estimativa, sobretudo nessas águas, decidiu navegar a moderada velocidade numa tarde para ver se os serviolas
podiam avistar algum dos famosos arrecifes dessas latitudes, como o Angerich, onde a espuma das grandes ondas que rompiam parecia água fervendo mesmo quando havia
maré viva, que muitos capitães o usavam como ponto de referência.
Jack pediu café e lhe trouxeram em uma elegante cafeteira de prata protegida por um forro de branco cânhamo de Manila, um forro primorosamente tecido por Bonden.
Enquanto todos o tomavam, a fragata diminuiu a velocidade, o ruído que a água fazia ao passar por seus costados diminuiu e eles deixaram de se sentar atados às cadeiras.
- Quando suba ao convés, não tenha receio de ir ao lado de barlavento. Desse lado é onde deveria estar o arrecife, se tem senso do dever.
Fez extensiva sua cortesia a Martin, convidando-lhe a jantar na cabine e a tocar música essa noite, apesar de Martin tocar sem brilhantismo e com bastante rudeza
e de não saber calcular bem nem o tempo nem o tom.
Stephen e Martin se situaram discretamente no final do castelo de popa, junto ao lado de barlavento. Dali podiam ver uma extensa zona de águas azuis e uma interminável
série de ondas de cristas redondas, algumas coroadas de espuma branca, bastante separadas entre si e interceptadas por ondas transversais que a corrente) local formava.
Estavam apoiados na borda, em mangas de camisa, e de vez em quando lhes salpicava a espuma, mas se sentiam a vontade ao sol, que esquentava apesar de permanecer
oculto.
- O senhor chegou a conhecer Macmillan, meu ajudante na Noz-moscada, né? - perguntou Stephen.
- Eu o vi somente um momento. É um escocês jovem e magro que se preocupa muito que o deixem encarregado da enfermaria.
- É um jovem amável, consciencioso e diligente, porém, sem dúvida, inexperiente. Recordo-me que lhe falei das penalidades da vida humana, especialmente as que os
médicos sofrem. Falei da contínua e insistente demanda de compreensão e atenção pessoal que chega a esgotar a paciência de qualquer homem, a menos que seja santo,
ao final do dia, o que lhe faz mostrar-se abertamente indiferente em um hospital ou ante pacientes pobres e veladamente indiferente ante pacientes ricos, ainda que
se envergonhe de sua indiferença quando chega a dominar de alguma forma a situação. Mas me esqueci de outro aspecto insignificante, mas que pode chegar a ser sumamente
irritante.
Então olhou para onde estava Davies O Lerdo guardando uma camisa remendada em sua bolsa. O corpulento e aterrador marinheiro às vezes ficava possuído de alegria
durante breves períodos, e nesse momento pegou a Emily, colocou-a sobre suas costas, justo detrás do pescoço, e, depois de observar-lhe: "segura-te bem", subiu correndo
pelos amantilhos do mastaréu até o cesto da gávea, depois passou por cima da grade e seguiu subindo até a cruzeta, enquanto a menina dava gritos de alegria.
- Esse é um exemplo. Esse tipo gigantesco, por quem admito que sinto verdadeira simpatia, é meio louco, como o senhor sabe muito bem, e lhe dou semanalmente uma
poção de eléboro para evitar que cause danos a seus companheiros, porque é irrascível e extraordinariamente forte. Pois bem, cada vez que vai buscar o remédio vai
arrastando os pés, põe uma expressão triste, franze os lábios, inclina sua enorme cabeça para um lado e responde a minhas perguntas com a mansidão de um cordeiro.
Eu lhe daria um chute se me atrevesse.
- Arrecife à vista! - ouviu-se do tope.
Depois, a habitual pergunta, a habitual localização, o habitual ir e vir apressado, e por fim o inconfundível torvelinho de espuma, situado pela amura de bombordo,
pôde ser visto do convés.
- Está muito bom e seria um ingrato se me queixasse - disse Martin depois de observá-lo durante algum tempo com a luneta -, mas gostaria que o capitão Aubrey nos
tivesse permitido ver tão claramente a grande barreira do coral.
- Eu também teria gostado de vê-lo, sobretudo, a ilha Lizard, da qual Cook e sir Joseph exploraram os estreitos, mas compreendo que o capitão pusesse obstáculos.
O Endeavour finalmente pôde passar ao exterior do arrecife por um destes estreitos, mas então o vento rolou e começou a soprar para terra e o forte fluxo de ondas
o empurrou pouco a pouco, inevitavelmente e, sem que seus homens pudessem fazer nada, para o grande muro coralíneo coberto de gigantescas ondas. No último instante
um cisco de vento o empurrou o suficiente para que a corrente, no momento em que a maré subia, outra vez o arrastasse para um canal do outro lado do arrecife. Recordo
que quando sir Joseph me contou, ainda sentia o horror que experimentou nos últimos momentos diante da aparente destruição. Ocoreu-nos algo muito parecido quando
estávamos na Diane frente ao arquipélago de Tristão da Cunha, como lhe contei. Nesse momento eu me encontrava abaixo do convés, mas a fragata já estava a dez jardas
do impressionante escarpado da ilha Inacessível quando uma rajada de vento, também providencial, a afastou dali. E o capitão está firmemente decidido a não voltar
a depender dessa forma da Providência. Não quer ter absolutamente nada que ver com arrecifes de coral nem de nenhum outro tipo.
Martin ficou digerindo isso durante algum tempo e depois, em voz baixa, disse:
- As meninas já têm uma grande família de ratos domesticados.
- Ah, é? Sabia que cada uma tinha um, não vários.
- Pelo menos têm meia dúzia - acrescentou Martin. - Acha que esse é um petrel da ilha Norfolk?
- Poderia ser - respondeu Stephen. - Há um grupo um pouco mais ao leste. Não, querido Martin, o leste é a direita.
- Porém, indubtavelmente, não no hemisfério sul.
- Perguntaremos ao capitão Aubrey, que provavelmente o saberá. Mas estão à direita, de toda forma. Ah, desapareceram!
Voltaram a falar dos ratos, de como eram mansos e de que agora podiam ser vistos indo de um lado a outro em pleno dia e muito acima da bodega e do lugar onde se
guardava a amarra da âncora, o que os marinheiros atribuíam à desacostumada limpeza do lastro, coberto a cada noite por grande quantidade de água que se bombeava
todas as manhãs. Sabia-se que os ratos engordavam com o mau odor, e como agora tratavam a fragata de tal maneira que o lastro ficava muito limpo, tão limpo como
uma praia paradisíaca, não havia mau cheiro.
- Barco à vista! - gritou o serviola desde o tope de um mastro.
- Onde? - perguntou Jack.
E desta vez o serviola respondeu:
- Justo adiante, senhor, quase exatamente em frente. Tem exárcia de cruz, mas não sei se é um navio ou um bergantim.
Desde que se havia feito a marcação tomando como ponto fixo o arrecife Angerich, a Surprise havia desdobrado metodicamente uma vela depois de outra e agora navegava
a uns dez nós, mas o barco que estava adiante navegava a mais velocidade. Pouco depois Oakes, da cruzeta do mastaréu, gritou que era um navio e que tinha abertas
as abas de barlavento superiores e inferiores.
Um pouco mais tarde, acrescentou:
- Tem um galhardete de barco de guerra, senhor.
E ainda mais tarde acrescentou:
- Tem duas pontes, senhor.
- Ah, ah, ah, deve de ser o velho Tromp, de cinqüenta e quatro canhões! - exclamou Jack dirigindo-se a Pullings. - Billy Holroyd está ao comando agora. Conhece o
capitão Holroyd, Tom?
- Não, senhor, ainda que já ouvi falar dele, certamente.
- Fomos companheiros de tripulação no Sylph quando éramos garotos - explicou, e depois, alçando a voz, acrescentou: - Digam a Killick que venha.
- Senhor? - disse Killick, que apareceu como o boneco de uma caixa surpresa.
- Reviste a despensa para ver o que temos para dar um banquete.
- Ele fez o sinal secreto, senhor - anunciou Reade ao senhor Davidge, o oficial de guarda.
Davidge repetiu isso a Pullings, que ocupava outra vez o posto de imediato, e Pullings, a Jack, que ordenou dar a resposta habitual e acrescentar o sinal que indicava
"ponha o barco em pairo e venha jantar". A Surprise virou para que pudessem ler melhor a mensagem e ao mesmo tempo Jack disse:
- Preparados para diminuir velame e pô-la a pairar.
Durante alguns momentos não se pôde ver a resposta do Tromp, já que se aproximava de frente e tinha o vento a vinte e cinco graus pela alheta, mas por fim Reade,
que adquirira agilidade para sustentar uma luneta apoiando o extremo em algum lugar da exárcia, gritou:
- Diz: "Levo despachos", senhor.
- Não pode parar - informou Stephen a Martin. - Acho que não poderia parar nem ainda que estivéssemos acossados por vorazes tubarões em vez de por uma voraz curiosidade.
Realmente não se deteve, mas o capitão não seguiu estritamente as régras, pois mandou afrouxar as escotas, e o barco, que era de construção holandesa e de costados
quase retos e se dirigia à Índia pela rota que passava pelo estreito de Torres, passou a menos de vinte jardas da Surprise, que estava ao pairo. Então os dois capitães
subiram nos parapeitos.
- Como está, Billy? - inquiriu Jack, agitando o chapéu no ar.
- Como está, Jack? - perguntou Billy.
- Que notícias tem?
- Na Índia dizem que Boney conseguiu outra vez em algum lugar da Alemanha, acho que em Silésia. Apoderou-se de cento e vinte canhões e fez em pedaços a ala direita
do exército prussiano.
- Que notícias tem da Inglaterra?
- Não havia nenhuma quando saí da baía de Sidney. O Amelia tinha quatro meses de atraso e...
As outras palavras o vento levou junto com o barco. Todos os tripulantes da Surprise estavam escutando descaradamente e nos rostos de todos se refletiu a decepção,
e ao ouvir a ordem de Jack "puxar das braças para trás!" não a cumpriram com tanto zelo como costumavam fazê-lo.
- Sinto muito que não tenha conhecido o capitão Holroyd desta vez - disse Jack quando se reuniram para jantar. - Estou seguro de que o acharia simpático. Tem uma
voz muito doce, de tenor, que é algo raro na Armada, onde tem que se gritar desaforadamente. Espero que pelo menos nos beneficiemos da procura de Killick na despensa.
Talvez tenha alguns dos manjares que nos presenteou amavelmente a senhora Raffles.
A guarda havia começado, e há tempo os marinheiros tinham arriado as joanetes e colocado dois rizes nas gáveas. Quando soaram as três badaladas da guarda de prima,
a última delas desigual, puderam ouvir suas vozes na grande cabine, distantes mas claras. Imediatamente Jack olhou para a porta da cabine-refeitório, que geralmente
se abria tão pontualmente como a de um relógio de cuco, dando passagem, em vez de a um pássaro, a Killick, que dizia: "O jantar está servido, senhor, com sua permissão"
ou "o jantar está na mesa", dependendo da companhia.
Não se abriu, mas detrás parecia que havia uma briga. Jack serviu mais vinho de Madeira.
- Agora que o penso, senhor Martin - disse -, acho que o senhor preferia xerez como aperitivo. Por favor, desculpe-me ... - estendeu o braço para pegar outra garrafa.
- Oh, não, senhor, não! - exclamou Martin. - Prefiro beber vinho de Madeira. Não trocaria este vinho por nenhum xerez. É seco, mas tem muito corpo. Despertou-me
um apetite de leão.
Stephen foi pegar seu violoncelo, sentou-se no escaninho que ficava junto ao janelão de popa e tocou em pizicato Rakes of Kerry enquanto cantarolava:
- "Escutará em uma distante encruzilhada coberta pela grama, na noite da festa pela chegada do verão, quando a fogueira arde na montanha, muitos pífanos e cinco
violinos, a cujo ritmo bailarão os jovens como possuídos e as jovens, mansas como pombas, mas sem perder o passo."
- Por favor, toque-a outra vez - rogou Jack.
Stephen a tocou outra vez e depois voltou a tocá-la com variações e acrescentando alguns pensamentos seus. Por fim a porta se abriu e Killick, com a cara pálida
e aspecto de louco, ficou no umbral.
- Está pronto o jantar? - perguntou Jack.
- Bem, a sopa, sim - respondeu Killick depois de vacilar um momento. - Quer dizer, mais ou menos. - Então estourou de raiva e disse: - Porém, senhor, os ratos comeram
as línguas defumadas... comeram as geléias... comeram o chá enlatado... e comeram os últimos pepinos curtidos de Java... E agora estão passeando por aí despreocupadamente
e olhando com impertinência. Revirei tudo, senhor, tardei horas mexendo em tudo.
- Bem, pelo menos não beberam o vinho. Ponha isso na mesa, sirva a sopa e diga ao cozinheiro que faça o que possa. Vamos, jogar uma mão.
- Acho que este banquete foi um fiasco, senhor - desculpou-se Jack.
- Oh, não, senhor! - exclamou Martin, e acrescentou: - Não há nada que eu goste mais que o... - mas vacilou um momento tratando de encontrar um nome para o prato
preparado com carne de vaca ainda meio salgada, depois de conservada em sal num barril por dezoito meses, cortada e frita com bolachas de barco trituradas e muita
pimenta - ...fricasé.
- Bem - disse Jack. - Mas acho que o divertimento em dó maior que o doutor tocará... - e se interrompeu quando estava a ponto de dizer: "nos divertirá", mas acrescentou:
- ...servirá como compensação.
Vários dias depois, após uma violenta tempestade que, conforme profetizaram todos, e muito acertadamente, precederia a um período de calmaria, quando se achavam
aproximadamente a duas milhas de Sidney, Stephen se deu conta de que a caixa para guardar folhas de coca que tinha na mesinha estava vazia, assim que desceu para
a cabine que compartia com Jack para buscar mais. As folhas estavam imprensadas dentro de brandas fundas de couro em forma de salsichas e com costuras tão perfeitas
como as que se faziam em cirurgia, cada uma metida em uma bolsa de pele de duas capas untada com azeite para protegê-la da umidade. Havia calculado quase exatamente
a duração de cada uma, e além da bolsa que usava agora, a bolsa que estava aberta, havia suficientes para que durassem até que chegasse a Callao. Porque as folhas
procediam de Peru.
As bolsas ficavam guardadas em um enorme baú de quebraço, um elegante baú javanês com intrincadas incrustações de latão na tampa e nos lados, e ainda que ouvira
falar da atitude confiada dos ratos e os vira, pensava que não tinha por que temê-los nesse caso, sobretudo porque aquele paiol era usado para guardar vinho, roupa
de inverno e livros, coisas que não tinham nada que ver com a despensa. Mas os ratos o enganaram, ainda que não a ele primeiro que a outros tripulantes. Roeram as
pranchas do piso e o fundo do baú, e dentro não havia nada mais que excremento de rato. Nada. Haviam comido todas as folhas e todas as bolsas impregnadas da essência
das folhas. Além disso, era óbvio que estavam desejosos de entrar outra vez, que estavam impacientes para voltar a roer a madeira sobre a qual ficavam colocadas
as bolsas, já que um grupo deles estavam justo fora do feixe luminoso projetado pela lanterna.
"Tenho que cuidar das ervas e da sopa dessecada", pensou e se foi para a enfermaria, onde Martin estava fazendo o inventário do estojo de remédios para repor o que
faltava em Sidney.
- Escute, colega - disse: - esses infernais ratos comeram minhas folhas de coca, as folhas de coca, lembra?, as que mastigava de vez em quando.
- Lembro muito bem. Deu-me algumas quando estávamos frente ao cabo de Hornos e eu tinha muito frio e muita fome. Acho que o decepcionei, pois me queixei de que não
me fez nenhum efeito e da subseqüente falta de sensibilidade no paladar primeiro e em toda a boca depois, pelo que a pouca comida que ingerimos me pareceu insípida.
- Sem dúvida, o efeito depende da idiossincrasia. Em mim, e acho que na maioria dos peruanos, produz certa euforia e serenidade, aumenta nossa capacidade de reflexão
e suprime o sono e a fome. E é evidente que os ratos sentiram tudo isso inclusive mais intensamente. Agora recordo que a última vez que abri o baú para sacar folhas
de uma bolsa aberta e encher a caixa que tenho sobre a mesinha, faz aproximadamente duas semanas, deixei cair alguns fragmentos no piso, e como tinha tanta abundância,
cometi a insolência de não recolhê-los. Provavelmente eles encontraram isso, comeram e gostaram tanto do resultado que trataram por todos os meios de pegar o restante,
assim que terminaram por abrir um buraco no fundo. Penso que deveríamos guardar todas as ervas e coisas similares em caixas metálicas forradas. Como os ratos sentiram
tanta satisfação ao comer a coca e devoraram até a última folha, é indubitável que estão buscando mais desesperadamente.
- Isso explicaria a devastação que causaram na despensa do capitão, que nunca antes haviam atacado.
- Também explicaria a mudança de comportamento que observamos: a mansidão, a atitude confiante com que vão de um lado para outro e a contemplação dos que passam
por seu lado. Assim ficavam quando comiam as folhas. E agora estão desejosos de conseguir mais. Quando contemplava as ruínas de minhas provisões, de minha única
gratificação, Martin, estavam ao meu redor guaguejando, quase sem poderem se conter.
- Suponho que lhe terá causado muita tristeza ver destruída toda sua reserva - disse Martin -, mas espero que sua falta não seja tão grave como a do tabaco.
- Oh, não! Não causam um vício tão forte como o tabaco ocasiona às vezes, ainda que, curiosamente, alguns de seus efeitos são similares. Além do mais, tiram a vontade
de fumar. Ainda que ainda me compraz fumar um charuto ocasionalmente depois de uma boa refeição, se tivesse pelas manhãs minha pequena bola de folhas orvalhavas
com suco de lima, estaria feliz sem isso.
No dia seguinte, Emily e Sarah foram mordidas por seus ratos domesticados. Choraram, e quando Stephen cauterizou suas feridas, choraram ainda mais. Pela tarde os
ratos desapareceram dos lugares da fragata onde haviam causado mais assombro, mas podia-se ouvi-los brigando onde se guardavam as amarras da âncora e no porão. Contudo,
na fragata havia poucos tripulantes que pudessem ouvi-los roendo furiosamente, dando gritos de raiva e berros de morte de proa a popa, porque na calmaria haviam
aparecido na superfície várias tartarugas, tartarugas verdes, e eles tinham baixado os botes da Surprise com muito cuidado e se aproximaram delas remando suavemente.
Pegaram quatro, todas fêmeas e muito pesadas, de não menos que um quintal. Ademais, teve lugar a matança do último porco comprado nas ilhas Salomão, pois Jack Aubrey
insistiu em oferecer a Martin algo realmente comestível que fizesse esquecer o desafortunada jantar. Essa era uma cerimônia para quem se criara rodeados de porcos,
como era o caso da maioria dos tripulantes da Surprise, e a seguiam chouriços e muitos outros manjares.
A tarde seguinte a esse almoço Stephen foi para a cabine alternativa, a que ficava mais abaixo, onde poderia escrever sozinho. Pôs tampões de cera nos ouvidos para
poder escrever em silêncio, ajustou a tela verde da lâmparina, apoiou o charuto em um prato de peltre e escreveu:
É absurdo, minha querida, que neste dia, quase o último de nossa viagem, todos os homens do mar tenham que almoçar como condes; contudo, foi assim e assim será amanhã,
porque os oficiais convidaram Jack e os dois guardas-marinhas para o que provavelmente será o último almoço antes de chegarmos à baía de Sidney, pois o vento reviveu,
e, apesar dos tampões, posso ouvir o moderado impacto das ondas contra a proa da fragata. Carne de porco fresca e carne de tartaruga! Ambas são boas e, certamente,
parecem muito mais depois de ter passado um tempo com muito poucos víveres. Comi vorazmente e agora estou fumando como um voluptuoso turco, o que me recorda o curioso
incidente do outro dia. Desci para encher com folhas de coca a caixa que tinha na mesinha e vi que os ratos haviam comido toda minha reserva. Comeram tudo, até as
bolsas untadas com azeite. Há algum tempo o comportamento dos ratos da fragata (muito numerosos) provoca comentários, e agora está claro para mim que se converteram
em escravos da coca. Depois de tê-las comido todas, agora que se vêem privados delas, sua mansidão, o que poderíamos chamar sua complacência e seu atrevimento desapareceram.
São ratos ou algo pior que ratos e brigam e se matam uns aos outros. Se destampasse os ouvidos poderia ouvir seus chiados. Até agora não matei nenhum nem tive desejo
de fazê-lo, mas eu também manifesto essa falta, ainda que de outra maneira: como vorazmente e com os olhos exorbitados (enquanto que a coca impõe moderação), fumo
e com muito prazer (enquanto que a coca tira a vontade de fumar) e o sono agora faz com que meus olhos fechem (enquanto que a coca me fazia manter-me bem acordado
até a guarda de meia). Espero poder chegar a Sidney depois de amanhã ou no primeiro, segundo, terceiro dia depois ou infinitos dias depois, porque, apesar das decepcionantes
palavras "não há notícias da Inglaterra", é possível que logre saber algo de ti por um barco que tenha chegado antes, e, também, ainda que isto não possa se comparar
com o anterior, porque poderia conseguir uma nova reserva graças a algum médico ou algum boticário, como ocorreu em Estocolmo. Lamentaria ver-me reduzido ao estado
dos dois animais que agora vejo em um canto perto de minha banqueta, mas não os ouço, e como não os ouço, o horror que sua feroz luta produz é mais intenso. Mas
o homem (pelo menos este homem em particular) é tão débil que se uma inocente folha pode proteger-lhe ainda que seja um pouco, que viva a inocente folha!
O almoço que os oficiais ofereceram ao capitão foi mais copioso que o do dia anterior, se era possível. Não foi tão elegante, pois como os oficiais da Surprise eram
simplesmente tripulantes de uma embarcação alugada pelo rei, não tinham outros objetos de qualidade maior que o peltre que não fossem as colheres e os garfos; contudo,
o cozinheiro da câmara dos oficiais, por meios que só ele conhecia, havia conservado a habilidade de fazer um excelente pudim de sebo que chamavam de "menino afogado",
que, como todos sabiam, era a sobremesa favorita de Jack, e o serviu em uma tampa de escotilha bem lavado entre gritos de alegria. Outra diferença entre a Surprise
que era propriedade do rei e a Surprise alugada pelo rei era que na segunda não havia serventes atrás das cadeiras dos oficiais. Isso se devia, em parte, a não haver
a bordo nem infantes da marinha nem grumetes, a principal fonte de suprimento, e, em parte, a que destoaria do atual estado de ânimo da tripulação. Esse almoço não
teve tanta magnificência e a sucessão de pratos foi mais lenta, mas a conversa foi muito mais animada. Quando Killick e o despenseiro da câmara dos oficiais partiram,
Jack, com a cara vermelha pela saciedade, olhou ao seu redor sorrindo para os anfitriões e disse:
- Não sei se algum dos senhores, cavalheiros, já esteve em Sidney antes.
Todos responderam negando.
- O doutor e eu estivemos lá faz vários anos, quando eu estava ao comando do Leopard. Foi no momento em que havia uma difícil situação porque os militares e o governador
Bligh estavam em desacordo, assim que não fizemos mais que pegar as poucas provisões que os militares nos permitiram pegar e seguimos navegando. Mas estive em terra
o tempo suficiente para fazer uma idéia da situação, e foi realmente desagradável. O lugar era governado pelos militares então, e ainda que pouco depois puseram
à sombra aos que depuseram ao governador, ouvi que as coisas seguem mais ou menos igual. Vou contar-lhes o que vi, que provavelmente será o que os senhores verão
quando desçam a terra. Não tenho nada que dizer do desacordo entre o almirante Bligh e o Exército, mas lhes direi que, deixando de um lado essa discórdia, nunca
conheci a nenhum militar que não sentisse antipatia pelos marinheiros. Esses tipos me pareceram exagerados no vestir, mal-educados, inospitaleiros e brigões. Sei
que o Exército não põe muitos obstáculos às pessoas que compram um cargo em regimentos recém criados e isolados, e mesmo assim, fiquei assombrado. Tinham monopolizado
o comércio, tinham formado um cerco que não permitia a concorrência; haviam se apoderado de toda a terra boa, que cultivavam empregando os presos como mão-de-obra
sem pagar-lhes nada; exploravam o lugar ao máximo. Mas muito pior que isso, muito pior que a fraudulenta venda ao governo a preços exorbitados, era o tratamento
que davam aos presos. Estive a bordo de mais de um inferno flutuante e lhes asseguro que partem o coração de qualquer homem, mas nunca vi nada parecido à crueldade
que vi em Nova Gales do Sul. Eram comuns castigos de quinhentos açoites, e no breve tempo que estive ali pude ver como matavam a dois homens a chicotadas. Conto-lhes
isto porque, como esses tipos sabem muito bem que os recém chegados se surpreendem e lhes consideram sem-vergonhas e são muito susceptíveis, muito propensos a sentir-se
ofendidos, poderiam os senhores encontrar-se de repente desafiados a um duelo por um insignificante comentário. A meu ver, o melhor é tratar-lhes com distante cortesia
e aceitar somente os convites oficiais. Aqui não tem ninguém que possa ser acusado de má conduta, mas em uma disputa com um sem-vergonha estará nas mesmas condições
que um pobre em um pleito, porque em ambos os casos se resolvem a cara ou coroa e em nenhum deles se faz justiça, e, além disso, um não tem nada que ganhar e ele
não tem nada que perder.
- Disse o senhor pleito? - perguntou West.
- Sim - respondeu Jack. - O que realmente queria dizer era que um sem-vergonha pode apontar uma pistola tão bem como um homem decente e que é muito melhor evitar
a possibilidade de semelhante briga. Havia lá um tipo arrogante chamado MacArthur que meteu uma bala no ombro do coronel Patterson, ainda que Patterson fosse um
oficial como deve ser e o outro fosse um canalha.
- Conheci MacArthur em Londres - interveio Stephen. - Estava ali porque ia ser julgado por um conselho de guerra; e saiu absolvido, certamente. Southdown Kemsley,
que há tempo mantinha correspondência com ele com respeito às ovelhas, levou-lhe para almoçar na Royal Society. É um tipo arrogante, dogmático e vulgar. A princípio
seu comportamento é formal, mas depois excessivamente familiar, e então diz muitas obscenidades. Queria comprar algumas ovelhas merinas do rei e tinha a intenção
de visitar a sir Joseph Banks, que tem a seu cargo o rebanho, mas sir Joseph, que está a par dia do que ocorre na colônia, tinha tantos informes sobre ele que o
qualificavam de indesejável que se negou a receber-lhe. O seu regimento é conhecido em todas as partes como Corpo de Rum porque é o rum a base dos negócios, a riqueza,
o poder, a influência e a corrupção de seus membros. Acredito que algumas coisas devem ter mudado com a chegada do governador Macquarie e o 73º Regimento, mas os
oficiais do velho Corpo de Rum ainda estão aqui, na Administração ou sentados em grandes extensões de terreno fértil que eles mesmos se adjudicaram; ou seja, mais
ou menos governando o país, por desgraça.
A refeição não terminou com essas graves palavras, mas com uma alegre canção. Mas o desjejum da manhã seguinte foi muito triste, ainda que já se pudesse ver claramente
a costa de Nova Gales do Sul pelo oeste e o prático de porto estivesse a bordo. De um lado e do outro da cafeteira havia um desacostumado silêncio. Jack, que não
se banhara no mar pela manhã como costumava fazer, tinha a cara inchada e amarelada, e seus olhos, geralmente de um brilhante azul, agora estavam cinzentos e tinham
debaixo bolsas descoloridas. Também tinha muito mau hálito.
- É verdade que o doutor não se embebedou? - perguntou Bonden a Killick na cozinha, onde este moia os grãos de café para fazer outra cafeteira.
- Não se embebedou, mas gostaria que assim fosse - respondeu Killick -, porque isso teria diminuído sua irritabilidade. Não sei o que lhe ocorreu, pois geralmente
é um tipo comedido.
- Pegou Sarah e Emily até que gritaram, e disse a Joe Plaice algo horrível quando tropeçou com ele no castelo caminhando para trás, algo como: "Não vê por onde anda?
Não tem olhos na cara maldito e estúpido traseiro gordo, filho de um estivador?".
- Eu te digo uma coisa, Stephen - disse Jack depois de um prolongado silêncio. - Acho que a tartaruga dos oficiais não estava em boas condições.
- Bobagem - respondeu Stephen. - Esse era o réptil em melhores condições do mundo. O problema é que comeu demais, igual que anteontem e desde que há algo para comer.
Já lhe disse uma e outra vez que está cavando sua sepultura com os dentes. Agora tem pletora, simples e claramente pletora. E posso aliviar os sintomas, mas não
posso fazer nada por sua falta de moderação para satisfazer seus desejos.
- Por favor, faça algo para aliviá-los, Stephen - Jack pediu. - A menos que o vento amaine, esta tarde jogaremos a âncora, e provavelmente o governador nos convidará
para almoçar amanhã, mas neste estado não poderia suportar ver uma mesa servida.
- Teria que tomar remédios, sem dúvida, e isso o obrigaria a ficar sentado no sanitário quase todo o dia e talvez parte da noite. Nas pessoas obesas como você o
funcionamento do reto é lento.
- Tomarei o que me ordene - assegurou Jack. - Para limpar e voltar a aprovisionar uma embarcação adequadamente e sem perda de tempo, tem que se ter bastante boas
relações com as autoridades, e para estabelecer boas relações com as autoridades um tem que comer muito e beber o vinho que lhe sirvam como se gostasse. Mas neste
momento, a idéia de qualquer coisa de comer que não sejam bolachas de barco - acrescentou, levantando um pedaço - e café negro me dá repugnância.
- Vou trazer o necessário - disse Stephen.
Regressou vários minutos depois com um pote de comprimidos, um frasco e um copo graduado.
- Engula isto bebendo este outro - ordenou Stephen dando-lhe um comprimido e o copo meio cheio.
- Estás seguro de que é suficiente? - perguntou Jack. - Não sou um desses tipos de pouco peso ou doentes que costuma tratar, e esta pílula é muito pequena.
- Pode ficar tranqüilo - replicou Stephen. - Ainda que seja o maior homem da terra, a poção negra e a pílula azul limparão suas entranhas, estimularão seu fígado
e lhe farão sentir-se bem.
Voltou a pôr a rolha no frasco dando um golpe seco e saiu refletindo sobre a exasperação, um sentimento que algumas pessoas e algumas situações provocavam em grau
supremo.
Depois de ter vencido por uma estreita margem a três ratos na enfermaria, trabalhou em seus arquivos um pouco. Depois fez um cigarro com papel de fumar e subiu ao
castelo de popa para acendê-lo. Haviam lhe feito alguns comentários a respeito de fumar abaixo do convés, na cabine mais baixa, e tivera que reconhecer que a fumaça
do tabaco que passava dali para a câmara dos oficiais contribuía para que ao amanhecer o ar se parecesse com o de uma taberna e fosse muito desagradável.
Martin estava no convés há um tempo, observando a bonita baía que se abria diante deles.
- Aí está a baía de Sidney afinal - anunciou em tom entusiasta e de certa forma desafiante.
- Lamento contradizer-lhe - disse Stephen -, mas isto é Port Jackson, a baía de Sidney é uma pequena baía situada a umas cinco milhas para a esquerda.
- Meu Deus! Quer dizer que é o própio? Não tinha idéia.
- Claro, porque não o disse mais de cem vezes.
- Assim que aqui habita o tubarão de Port Jackson! - exclamou Martin, olhando ansiosamente fora da borda.
- É isso! - disse Stephen, que havia pensado então muitas vezes antes, mas não nesse dia. - Vejamos se podemos pescar um.
Passou por entre um grupo de marinheiros que estavam ajoelhados no convés melhorando o aspecto das juntas e por fim chegou até as adriças da sobremezena, onde estavam
pendurados os arpões com cabos amarrados. Mas antes que pudesse pegá-los, Pullings se aproximou e disse com firmeza:
- Não, senhor. Hoje não, por favor. Hoje não se podem pescar tubarões porque estivemos limpando a coberta desde que soaram as duas badaladas na guarda da alvorada.
Estou seguro de que o senhor não quererá que a Surprise faça o ridículo na baía de Sidney.
Stephen poderia ter dito que aquele tubarão inofensivo, com uma curiosa disposição dos dentes e de tamanho muito pequeno, de não mais de quatro pés de comprimento,
não causaria muitos inconvenientes, mas as palavras se atravessaram na garganta ao ver a expressão grave de Tom Pullings, dos tripulantes da Surprise, que tinham
largado seu trabalho para olhá-lo, e inclusive do piloto, que havia sido marinheiro de barco de guerra.
- Pescaremos um par deles para o senhor depois de amanhã - tentou dissuadir-lhe Pullings.
- Meia dúzia - acrescentou o contramestre.
- Oh, por favor, senhor, venha para a cabine imediatamente! - exclamou Jemmy Ducks. - Sarah engoliu um alfinete.
Os médicos tiveram muita dificuldade e passaram muito tempo tentando sacar o alfinete, mais que curando feridas feitas por pedaços de madeira pontiagudos e fraturas
e fazendo amputações de pouca envergadura. Quando por fim recuperaram o alfinete e deitaram a menina exausta, compreenderam que haviam perdido a entrada de Sidney
e não puderam ver os estratificados escarpados de Port Jackson nem as diversas ramificações do porto, do qual Martin ouvira dizer grandes coisas. Também perderam
a chegada na fragata de um oficial do porto e o almoço, ainda que não se importavam nem um pouco com estas duas coisas. Como Stephen pensou que provavelmente o capitão
Aubrey seguiria indisposto, ficou com Martin comendo os restos. Depois foi invadido pelo sono, apesar do café que o despenseiro da câmara dos oficiais preparara,
e se foi para sua cabine.
Nessa mesma cabine estava sentado no dia seguinte recém barbeado, com uma trança nova e vestido com calções brancos, meias de seda, sapatos com brilhantes fivelas
e sua melhor casaca de uniforme. Também tinha à mão sua peruca acabada de empoar, que não tocaria até que descessem a falua na água.
Para provar sua nova pena, um haste recém cortada, escreveu a palavra "exasperação" seis vezes e depois reiniciou a carta:
Não há notícias, naturalmente. Jack mandou verificar quando atracamos, mas não havia notícias de casa. Havia documentos oficiais que chegaram através da Índia, mas
o importante ainda se encontra na faixa do oceano Pacífico entre aqui e O Cabo. Eu me consolo pensando que é possível que chegue enquanto ainda esteja aqui. E necessito
de consolo. Eu lhe disse muitas vezes que acho que os marinheiros simples acreditam que "mais é melhor", pelo que há que vigiar-lhes para evitar que engulam várias
ampolas de remédio inteiros. Então Jack é igual a um deles e pode causar a si mesmo mais estrago porque está acostumado a exercer a autoridade. Ontem a tarde, como
pensou que a poção negra e a pílula azul que lhe dei não faziam efeito com bastante rapidez, enquanto eu dormia enganou Martin valendo-se de meios que não o dignificam
e conseguiu outra dose. Agora, como é natural, não pode sair do sanitário nem pôde aceitar o convite do governador para almoçar esta tarde, assim que Tom Pullings
e eu temos que ir sem ele. Mas não tenho desejo de comparecer ao almoço. Esta manhã estive em terra buscando em vão a um boticário, um comerciante ou um médico que
tivesse folhas de coca, e encontrei este horrível lugar quase como o deixei: asqueroso, informe, salpicado de cabanas de madeira bagunçadas que foram construídas
vinte anos atrás atendendo somente às necessidades do momento, cheio de convictos esfarrapados, sujos e empoeirados, alguns deles com grilhões, cujo ruído se ouve
por toda parte. Ao chegar a uma espécie de praça, que tinha o solo desigual e sem pavimentar, vi um desses desprezíveis triângulos com o qual castigavam com as habituais
chicotadas a um homem que pendurava do vértice. Já vi dar açoites muito amiúde na Armada, mas raras vezes mais de uma dúzia, e sempre com relativo respeito, mas
a esse homem, pelo que me disse um espectador, já haviam lhe dado cento e oitenta e cinco das duzentas que lhe correspondiam, e o corpulento carrasco retrocedia
e logo dava um grande salto para golpear-lhe com a máxima força possível e lhe arrancava carne a cada vez. O piso estava empapado de sangue fresco, e ao pé dos outros
triângulos havia um círculo vermelho escuro. Para minha surpresa, o homem pôde manter-se em pé quando lhe desataram e seu rosto transluzia menos sofrimento que desespero.
Seus amigos o levaram dali, e a cada passo que dava se formava um charco de sangue debaixo de seus pés.
Um pouco mais longe encontrei outras lúgubres cabanas, depois uma rua que um grupo de homens com grilhões estavam contruindo e mais lá o que, conforme me disseram
esses homens, eram os alicerce do que ia ser um hospital que estavam contruindo por ordem do novo governador, o coronel Macquarie. Lamento não poder ver-lhe, pois
está fora de...
- A falua já está abordada com a fragata, senhor, com sua permissão - interrompeu-lhe Killick, que era capaz de perdoá-lo por tudo, e pegou a casaca. - Primeiro
o braço direito. Agora deixe-me pôr-lhe a peruca e ajustá-la bem. Mantenha a cabeça erguida e não a mova, pois do contrário lhe cairá pó no colarinho. E aí tem o
bengala de empunhadura de ouro - acrescentou simulando que o mencionava por casualidade.
- Vá ao diabo, Killick - disse Stephen. - Acha que vou apresentar-me ante um grupo de oficiais com uma bengala como um civil, como um tipo do interior?
- Então deixe-me trazer-lhe o sabre da Associação Patriótica - Killick lhe recomendou-, porque o seu tem a empunhadura muito velha e gasta.
- Pendure-o ao cinto e pronto - grunhiu Stephen. - Como o capitão se sentiu desde que desci?
- Parece que vai passar noventa anos no jardim. Não saiu dali desde que o senhor se foi. Só se lhe ouve gemer e ofegar.
Stephen foi baixado cuidadosamente pelo costado e quando chegou embaixo se sentou na bancada. Pullings o seguiu, com seu uniforme com brilhantes galões dourados
que cheirava a mofo, e então a falua zarpou.
"Outro banquete. Que seja para o bem", pensou Stephen, sentando e pondo o guardanapo estendido no colo. A tarde havia começado bem. A senhora e o vice-governador,
o coronel MacPherson, receberam aos convidados, a maioria oficiais do antigo Corpo de Nova Gales do Sul, agora ricos propietários de terras, do 73º Regimento e da
Armada. A senhora Macquarie, a mulher mais importante da colônia, não se deu ares de grande senhora, aliás os fez se sentirem muito a vontade. Stephen simpatizou
imediatamente com ela e ambos falaram durante um tempo. O coronel MacPherson passara muitos anos de serviço na Índia e era óbvio que levara muito sol na cabeça,
mas era muito amável e gostava de animar os homens a beber (os homens, pois a senhora Macquarie não permaneceu no banquete e não havia outras mulheres convidadas).
- Sinto que sua excelência nos tenha abandonado - disse Stephen ao senhor Hamlyn, um cirurgião, que estava sentado a sua esquerda. - Acho muito compassiva e teria
gostado de lhe pedir um conselho. Recolhemos a duas meninas, as únicas sobreviventes de uma pequena tribo que se extinguiu por causa da varicela, e tenho medo de
levá-las pelas geladas águas do cabo de Hornos e depois para a Inglaterra, que lhes resultará também inóspita porque nasceram abaixo da linha do Equador.
- Sem dúvida, ela lhe teria dito o que devia fazer - respondeu Hamlyn. - Esta mesma tarde vai passar no orfanato. Aqui há muitos bastardos, sabia? Foram concebidos
por Deus sabe quem durante a viagem e depois abandonados. Além disso, como o senhor diz, ela é uma dama muito compassiva. Passamos grande parte da manhã falando
dos planos do hospital.
Stephen e o cirurgião fizeram igual até o momento em que deviam falar com quem estava sentado do outro lado. Hamlyn imediatamente começou uma acalorada discussão
sobre alguns cavalos que iam correr breve; em troca, Stephen ficou um pouco observando os comensais porque à direita tinha o secretário judicial (a quem ele apelidou
Eufemístico, mas que em realidade se chamava Firkins) que mantinha uma conversa com outros quatro ou cinco homens sobre os convictos, sua preguiça, sua imoralidade,
sua distribuição e sua maldade e, também, sobre a impossibilidade de redimir a alguém malvado. Stephen se deu conta de que Eufemístico só bebia água, mas isso não
lhe estranhou, depois de ter provado o vinho local. Justo na frente dele estava um homem de cara larga e tez morena, tão corpulento ou mais que Jack Aubrey. Usava
o uniforme de um regimento que Stephen não reconheceu, provavelmente o do Corpo de Rum. Tinha uma expressão estúpida e mal-humorada e usava muitos anéis. À direita
desse homem estava o clérigo que havia bendito a mesa e que também parecia descontente. Tinha a cara completamente redonda e se punha cada vez mais vermelha. Entre
a confusão de vozes e o pouco familiares que eram os temas de conversa, para Stephen não lhe foi fácil entender a princípio mais que a idéia geral, ainda que muito
bem porque repetiam amiúde "irlandeses unidos" e "defensores", que eram os prisioneiros transportados para ali em grandes quantidades, especialmente depois do levante
ocorrido na Irlanda em 1798. Notou que os oficiais escoceses do 73º Regimento não tomavam partido, mas estavam em minoria, e a opinião geral foi resumida pelo clérigo,
que explicou:
- Os irlandeses não merecem a denominação de homens. E se for necessário citar uma autoridade na matéria para apoiar minha afirmação, citarei ao governador Collins
do território Van Diemen, que disse essas mesmas palavras, acho que no segundo livro de sua obra. Mas não é necessário citar a nenhuma autoridade para reforçar o
que está claro para os menos inteligentes. Agora, para completar, permitem que também tenham sacerdotes. Um sacerdote inteligente pode lograr que façam qualquer
coisa, e é previsível um estado de anarquia no futuro.
- Quem é esse cavalheiro? - perguntou Stephen em voz baixa a Hamlyn quando deixou de falar das corridas de cavalos por um momento.
- Chama-se Marsden - respondeu Hamlyn. - É um rico criador de ovelhas e um magistrado de Parramata. Quando começa a falar do Papa e da igreja Católica Romana não
há quem o detenha.
Era verdade. Stephen olhou para Tom Pullings, que estava sentado perto da cabeceira da mesa, à direita do coronel MacPherson, com uma expressão chateada ainda que
sorria por obrigação, e nesse momento Tom lhe olhou com angústia.
- Desculpe-me por ter sido terrivelmente descuidado - disse o secretário judicial. - Permita-me que lhe sirva um pouco deste prato. É canguru, o animal de caça daqui.
- O senhor é muito amável, senhor - respondeu Stephen olhando o prato com interesse. - Pode dizer-me...?
Mas Firkins já estava expondo suas própias idéias sobre a pobreza da Irlanda e sua inevitabilidade. Dirigia-se principalmente aos que estavam do outro lado da mesa,
ainda que quando terminou sua exposição se voltou para Stephen e disse:
- Não são muito diferentes dos aborígines daqui, senhor, que são as pessoas mais preguiçosas do mundo. Se o senhor lhes dá ovelhas, não esperam para que formem um
rebanho, senão que as comem imediatamente. Entre eles tem que haver forçosamente pobreza, sujeira e ignorância.
- Já leu alguma vez a Beda, senhor? - perguntou Stephen.
- Beda? Acho que não conheço esse nome. Escrevia sobre o direito?
- Acredito que o conhecem sobretudo pela história eclesiástica da nação inglesa.
- Ah! Então o senhor Marsden o conhecerá. Senhor Marsden! - disse, alçando a voz. - Conhece a um tal Beda que escreveu uma história eclesiástica?
- Beda... Beda... - murmurou Marsden, interrompendo sua conversa com o homem que estava sentado ao seu lado. - Nunca ouvi falar dele. Não era mais que um menino
- disse, reiniciando-a -, assim que lhe demos somente cem chicotadas nas costas e os restantes no traseiro e nas pernas.
- Beda viveu no condado de Durham - contou Stephen quando fizeram uma breve pausa. - Tanto eu como outros naturalistas conhecemos muito pouco o norte da Inglaterra,
mas espero que no futuro algum que seja especializado no estudo de animais e seja reflexivo e rico o percorra em companhia de um botânico e um desenhista e depois
relate sua viagem. Acho que os costumes, as superstições, os preconceitos e a sórdida vida dos aborígines lhe inspirarão muitas reflexões interessantes e que o desenhista
poderá retratar as ruínas dos grandes monastérios de Wearmouth e Jarrow, a morada dos homens mais instruídos da Inglaterra há mil anos, que foram famosos em toda
a cristandade e agora estão esquecidos. Um trabalho assim seria muito bem recebido.
As observações foram acolhidas com um silêncio desaprovatório e olhares desconfiados ou surpreendidos. Por fim o homem que estava diante de Stephen disse:
- Não há aborígines em Durham.
Enquanto os homens instruídos lhe explicavam o que queria dizer a palavra, Stephen pensou: "meu Deus, não me deixe cometer uma estupidez. Salve-me da cólera". A
conversa voltou a animar-se em um extremo da mesa e isso serviu para que o incidente fosse esquecido.
- Sinto muito - desculpou-se Stephen de repente ao perceber que Hamlyn estava falando-lhe. - Estava distraído outra vez. Estava pensando nas ovelhas.
- Que gracioso! - exclamou Hamlyn. - Eu também estava falando-lhe de ovelhas. Dizia que o homem que está enfrente do senhor, o capitão Lowe, importou algumas ovelhas
merinas da Saxônia para fazer um novo cruzamento.
- Tem muitas ovelhas?
- Provavelmente mais que ninguém. Dizem que é o homem mais rico da colônia.
O pastor flagelante, com a cara ainda mais vermelha, estava maldizendo ao Papa de novo, e para conseguir que se calasse, Stephen disse em voz bastante alta:
- Curiosamente estava pensando em ovelhas merinas, nas ovelhas merinas do rei, que, contudo, são de raça espanhola.
- Está falando de ovelhas merinas? - perguntou o capitão Lowe.
- Sim - respondeu Hamlyn. - O doutor Maturin aqui já viu o rebanho do rei.
- Sir Joseph Banks teve a amabilidade de mostrar-me - concretizou Stephen.
Lowe o olhou com desprezo e depois de refletir um momento disse:
- Estou me... lixando para sir Joseph Banks.
- Estou seguro de que lhe penalizaria ouvir isso.
- Por que tentou evitar que o capitão MacArthur conseguisse algumas ovelhas do rei? Eu acho que é porque MacArthur era da colônia.
- Eu lhe asseguro que não. Sir Joseph sempre se preocupou muito com a colônia e, como o senhor recordará, foi fundada em boa parte graças a sua influência.
- Então, por que se negou a receber MacArthur?
- Suponho que pensou que o trato com um homem com os antecedentes do capitão MacArthur não era desejável - disse Stephen em meio de um silêncio interrompido somente
pela extensa história que o coronel MacPherson contava com voz monótona do nababo de Oduh. - Ademais, sir Joseph é contrário aos duelos, por razões morais, e o capitão
MacArthur se achava em Londres para comparecer ante um tribunal de guerra por ter participado de um.
Lowe, aparentemente, não ouviu as últimas palavras. A princípio se pôs vermelho e até que terminou a refeição não disse nada, se limitou a murmurar de vez em quando:
"Trato não desejável". E entretanto Stephen também murmurava para si: "meu Deus, dá-me paciência. Santa mãe de Deus, dá-me paciência", porque tinham reiniciado a
conversa sobre os prisioneiros irlandeses, uma cantinela tão chata como as das mulheres européias, que sempre falavam do serviço doméstico, mas muito pior intencionada.
Quando se foram para tomar o chá e o café, Stephen ouvira mais coisas das que podia suportar, apesar de sua deliberada distração, e a raiva contida o fez tremer
a mão e o café se derramou no pires. Mas depois houve um agradável intervalo em que sua tensão diminuiu um pouco, pois esteve no terraço do salão fumando um charuto
e conversando com dois oficiais do 73° Regimento das ilhas Hébridas que sabiam falar gaélico.
Pullings e ele se despediram do coronel MacPherson. Então o coronel reteve a Pullings para dizer-lhe que lamentava que o capitão Aubrey não tivesse podido comparecer,
que apesar de ter cartas oficiais para ele não podia mandá-las porque devia entregá-las em mãos e que lhe aconselhava que bebesse duas pintas de água de arroz morna,
e enquanto isso Stephen foi ao pequeno quarto onde os oficiais punham os sabres. Restavam poucos: o regulamentar de Tom, com uma empunhadura em forma de cabeça de
leão, três de oficiais das terras altas da Escócia, com empunhadura em forma de cesta, e o seu. Pendurou o sabre no cinto, desceu a escada e saiu para o agradável
frescor. Quando já estava no cascalho viu ao capitão Lowe, que lhe disse:
- Importa-me um pepino Joseph Banks e me importa um pepino o senhor, porcaria de aprendiz de cirurgião naval.
Falou em voz alta e rouca, e dois ou três oficiais se voltaram.
Stephen o olhou atentamente e notou que estava furioso, mas que podia manter-se bem em pé, que não estava bêbado.
- Vai me dar uma satisfação, senhor? - perguntou.
- Aqui tem minha resposta - replicou o corpulento capitão, dando-lhe um soco que fez cair sua peruca.
Stephen deu um salto para trás, sacou o sabre e gritou:
- Desembainhe, desembainhe ou o matarei como a um porco!
Lowe desenbainhou o sabre, mas isso não lhe beneficiou muito. Ao segundo passo que deu Stephen lhe fez um talho na coxa direita, e no terceiro lhe atravessou o ombro.
E depois de uma confusa luta corpo a corpo, quando caiu ao solo de costas, Stephen lhe pôs o pé no peito, aproximou a ponta do sabre de sua garganta e disse secamente:
- Peça-me perdão ou é um homem morto. Eu disse que me peça perdão ou é um homem morto, um homem morto.
- Eu lhe peço perdão - murmurou Lowe, com os olhos ensangüentados.
CAPÍTULO 9
- Se é sangue, tenho que pôr isto em água fria imediatamente - disse Killick, que sabia perfeitamente bem que o era.
A notícia de que o doutor havia atravessado com seu sabre a um militar e o deixara estendido sobre um charco de sangue, o que tinha arruinado a escadaria de pedra
de Bath, além do tapete do hall da residência do governador, que valia cem guinéus, e tinha feito a sua esposa desmaiar, chegou à Surprise antes que a falua, e isso
explicava a extraordinária gentileza com que os marinheiros o haviam subido pelo costado e suas mostras de afeto e respeito. Mas Killick queria que Stephen a confirmasse,
queria ouvir de seus lábios.
- Suponho que sim - Stephen limitou-se a dizer, olhando o forro da casaca, onde inconscientemente limpara o sabre como fazia com seus instrumentos quando estava
operando. - Como está o capitão?
- Terminou faz um quarto de hora - respondeu Killick. - Esvaziou-se como um tonel, ah, ah, ah! Meu Deus, investiu nisso toda a noite! Não teve nem um momento de
tranqüilidade! Agora está deitado e roncando mais alto que... - acrescentou sorrindo ainda, mas pensou que a comparação não era muito apropiada e prosseguiu: - Eu
lhe trarei a casaca de dril velha.
- Não se preocupe - disse Stephen. - Acho que seguirei o exemplo do capitão e me deitarei um pouco.
- Não, com esses calções não, senhor - Killick o admoestou. - Nem com as meias de seda.
Stephen deitou-se com uma camisa velha, remendada e lavada tantas vezes que em alguns pontos estava muito suave e em outros cerzida. A tensão desaparecera e agora
tinha o corpo completamente relaxado. Sentia a fragata mover-se debaixo dele o suficiente para demostrar que estava flutuando e tinha vida. Atravessou uma depois
de outra as capas da sonolência, depois caiu em um sono agitado e finalmente em um sono profundo, tão profundo que era quase um coma.
O sono era tão profundo que teve que sair dele por etapas, reconstruindo pouco a pouco os fatos do dia anterior. Lembrou a chateação e a tristeza que sentira no
banquete do palácio do Governo, a inusual violência do final, que durou alguns segundos, a amabilidade e a discrição dos oficiais escoceses, um dos quais recolheu
sua peruca, e a silenciosa consternação de Tom. A luz foi fazendo-se mais intensa gradualmente e viu um olho olhando pela abertura da porta.
- Que hora é? - perguntou.
- Acabam de soar as quatro badaladas, senhor.
- De que guarda?
- Oh, da guarda da manhã! - respondeu Killick em tom tranqüilizador. - Mas o senhor Martin estava com medo de que o senhor estivesse em um letargia. Trago água quente,
senhor?
- Sim, água quente, por favor. Como está o capitão?
- Dormiu toda a noite, mas está pálido e magro. Agora está em terra.
- Muito bem. Agora faça-me o favor de preparar café. Eu o tomarei acima. E apresente meus respeitos a Martin e diga-lhe que eu gostaria de comparti-lo com ele, se
estiver livre.
Martin entrou na grande cabine com expressão satisfeita e seu único olho brilhando mais que de costume, mas era evidente que estava um pouco perturbado.
- Meu querido Martin - Stephen o cumprimentou-, sei o que acha sobre este caso. Para tranqüilizar-lhe em certa medida, direi sem perda de tempo que me vi obrigado
a lutar por uma grave ofensa, por um golpe físico, que me esforcei para não fazer mais do que desarmar àquele homem e que se fizer dieta estará reposto dentro de
quinze dias.
- Agradeço que haja tido a amabilidade de dizer-me, Maturin. Conforme os rumores que com evidente satisfação se difundem pela fragata, o senhor é o Átila reencarnado.
A verdade é que não sei se por meus princípios suportaria uma grave ofensa.
- Espero que tenha passado uma tarde mais agradável que a minha.
- Oh, sim, obrigado! - exclamou Martin. - Foi realmente agradável. Quando atravessava este desanimador, sujo... como o chamaria?, assentamento, talvez, e me aproximava
do moinho de vento, ouvi alguém dizer meu nome. E lá estava Paulton! Eu lhe falei de Paulton, verdade?
- O cavalheiro que tocava tão bem o violino e que escreveu aqueles comoventes versos de amor?
- Sim, sim. Costumávamos chamá-lo de Paulton, O Angustiante e, por desgraça, ao final resultou que era assim de verdade. Fomos grandes amigos na escola e estudamos
na mesma faculdade na universidade. Não teríamos deixado de ficar em contato se não tivesse sido por seu lamentável matrimônio e, sem dúvida, minhas viagens. Sabia
que tinha um primo em Nova Gales do Sul e pensava procurá-lo para ver se podia dar-me notícias de John, mas ali estava ele! Quero dizer que ali estava John. Ficamos
muito contentes. John passou muito mal, o pobre, por ter-se convertido ao catolicismo, como me parece que lhe contei, já que não podia pertencer a nenhuma associação
na universidade, apesar de que era um excelente aluno e gozava de muitas simpatias, e tampouco podia pertencer às forças armadas. E quando a mulher e seu amante
dilapidaram sua fortuna, toda sua fortuna, não lhe restou mais remédio, como ocorreu a mim, que dedicar-se ao jornalismo, à correção de publicações ou à tradução.
- Espero que esteja mais feliz em Nova Gales do Sul.
- Tem o suficiente para comer e um teto, mas me parece que é ingrato e ansia mais. Seu primo tem uma extensão de terra de considerável tamanho, de centenas ou mesmo
milhares de acres, na costa norte, perto de um rio cujo nome não recordo. Os dois se revezam para cuidá-la e para John é difícil suportar a solidão. Pensou que o
silêncio e o isolamento seriam ideais para escrever, mas não foi assim, porque se sente melancólico constantemente.
- A flora e a fauna não são um consolo para seu espírito, sendo as mais estranhas do mundo?
- Não, em absoluto. Nem lhe interessam nem nunca foi capaz de distinguir entre uma ave e outra ou entre uma violeta e um amor-perfeito. Só sente satisfação com os
livros e as boas companhias, e para ele o campo é como um deserto.
- Porém, e o tempo que passa longe dali?
- Para John Sidney também é um deserto que tem, além disso, crueldade, pobreza e delinqüência. Aqui há divisões por razões políticas e o primo de John pertence ao
grupo minoritário. John conhece poucas pessoas, e as poucas que conhece só falam de carneiros castrados e ovelhas que não foram tosquiadas. E um homem como ele,
erudito, que bebe pouco vinho, que detesta caçar e que dá tanta importância aos livros e à música, tem pouco a dizer-lhes. Como seu rosto se iluminou quando lhe
falei do senhor! Pediu-me que lhe apresentasse seus respeitos e que lhe rogasse que fosse comigo a sua casa esta noite. Tem a esperança de regressar à terra dos
vivos graças a um romance do qual já terminou três volumes, mas não é capaz de finalizar o quarto e pensa que mesmo uma curta conversa com pessoas civilizadas lhe
permitirá fazê-lo.
- Com muito prazer - disse Stephen e então voltou-se e gritou: - Killick, deixe de arranhar a porta dessa forma tão incômoda! Entre ou saia, pode ser?
Killick entrou e se desculpou:
- É que Slade, senhor, pede que permita dizer-lhe duas palavras quando esteja livre.
Stephen já estava livre, mas para Slade, o mais velho dos seguidores de Set, foi muito difícil fazer sair as palavras. Depois de falar largamente do costume do comércio
livre estabelecido em Shelmerston muito tempo atrás e da odiosa brutalidade dos funcionários encarregados de impedi-lo, parecia que um seguidor de Set, Harry Fell,
havia sido enviado a Botany Bay por golpear um agente de aduana. Mas não só Harry, como também William, George, Mordecai e a tia Smailes, esta última por guardar
mercadoria não declarada na aduana. Disse que os seguidores de Set queriam visitar seus amigos, se era possível, mas não sabiam onde encontr-los nem como obter a
licença, e esperavam que o doutor tivesse a bondade de...
- Naturalmente! - exclamou Stephen. - De todas formas, vou ter que ir ao escritório do palácio do governo.
Escreveu os nomes e as datas em que tinham sido condenados e ouviu contar por que meios ilícitos os funcionários encarregados de impedir o comércio logravam uma
condenação, que meios violentos empregavam com os prisioneiros e como cometiam perjúrio nos tribunais.
Bonden, que chegou quando Slade já tinha terminado, expôs o assunto de uma maneira mais simples. Deu ao doutor uma lista com os nomes de parentes de vários tripulantes
da Surprise e disse que lhe agradeceriam que perguntasse por eles se fosse visitar ao pobre Padeen. Acrescentou que não tinham justificação moral, mas que as palavras
"companheiros de tripulação" bastavam e que tinham que perguntar pelos amigos ainda que tivessem cometido assassinatos ou estupros ou tivessem se amotinado.
- Tenho que ir - disse Stephen. - Espero não chegar tarde ao almoço, mas se for assim, por favor, diga ao capitão que não se preocupe e que não me espere por cortesia.
Chegou tarde e o capitão o havia esperado, ainda que, aparentemente, não por cortesia.
- Bem, Stephen - disse com expressão mal-humorada -, a verdade é que causou uma confusão tremenda. Em uma curta tarde conseguiu ganhar a antipatia oficial e não
oficial, a antipatia de todos os setores. Sofri as consequências em cada uma das visitas que fiz. Deus sabe quando a fragata poderá ter os fundos limpos e estar
pronta para fazer-se ao mar.
- Eu também. O sorriso do secretário judicial se apagara e esquivou-se de meus pedidos com uma desculpa atrás da outra: que as petições tinham que sr feitas em papel
timbrado e deviam estar assinadas por algum oficial ou juiz de paz, que atualmente não havia papel timbrado disponível...
- Firkins é primo de Lowe e está relacionado com toda a tribo de MacArthur. Que demônios lhe empurrou a atravessar o corpo desse tipo com o sabre?
- Não o atravessei o corpo. Não lhe fiz quase nada mais que espetar-lhe o braço com que sustentava o sabre, que, em minha opinião, foi bastante pouco. Afinal de
contas, ele me tirou a peruca com um soco.
- Porém, sem dúvida, ele não se aproximou de você e fez isso sem que anteriormente houvessem discutido ou brigado.
- Só lhe disse, no transcurso daquele horrível banquete, que Banks não queria ter nenhuma relação com um homem como MacArthur. Passou toda a refeição pensando nisso
e me atacou quando desci a escadaria.
- Mas isso não foi como é devido. Se o tivesse matado sem desafiá-lo formalmente, sem padrinhos, teria lhe custado caro.
- Se tivesse sido um combate como é devido, não teria me aproximado dele com o fim de dar-lhe com a empunhadura na cara para parar-lhe em seco. Ademais, um duelo
formal teria dado muito mais o que falar e conferido honra àquele imbecil. Mas admito que foi lamentável. Sinto muito, Jack, e lhe peço perdão.
A comida estava servida há algum tempo, mas Killick estava tão desejoso de ouvir o que diziam que não a tinha anunciado. Porém, pelos longos anos de amizade com
o capitão Aubrey, sabia que agora era inútil esperar que soltasse furiosas sensuras ou blasfêmias, assim que abriu a porta e disse:
- O almoço já está servido, senhor, por favor.
- Este pescado é muito bom, ainda que esteja morno - observou Jack após um tempo.
- Acho que é uma espécie de pargo. É o melhor pescado que já comi. Algumas coisas são melhores quando estão mornas, como por exemplo, as batatas novas e o bacalhau
com creme de leite.
Em efeito, era um pescado excelente, e também o era o capão que seguiu depois e o consistente pudim, mas mesmo depois que a refeição terminou e voltaram a sentar-se
na grande cabine, Stephen notou que a irritação de Jack não passara, muito pelo contrário. Os obstáculos oficiais (tão difíceis de saltar em um lugar dirigido por
um governador novo e quase desconhecido) haviam lhe desalentado e pensava que o causador era Stephen.
Não obstante, quando beberam o conhaque Jack se levantou e pegou um pacote que estava em uma estante junto a suas lunetas, e antes de abri-lo disse:
- Posto que Firkins não quer atender suas petições, irei falar com o vice-governador na qualidade de oficial da marinha de mais antiguidade e de membro do Parlamento
por Milport. Desse modo obteremos a informação requerida. Eles detestam que se fale do assunto no Parlamento ou que se envie uma carta aos ministros.
- É muito amável. Além disso, há vários membros da tripulação que têm parentes aqui e teria perguntado por eles também se tivesse sido oportuno. Aqui estão as listas.
E se puder incluir Padeen em uma delas, estupendo. Seu nome é Patrick Colman. Porém, por favor, Jack, espera um dia ou dois.
- Muito bem - respondeu Jack, pegando os papéis. - Direi a Adams que as copie. Aqui tens os documentos oficiais que chegaram via Madras - acrescentou, dando-lhe
o pacote. - Minhas instruções são para prosseguir a viagem o quanto antes de acordo com as ordens que me deram os lordes do Almirantado e as indicações que me fez
o conselheiro para este caso. E tenho que entregar-te esta carta e uma nota da senhora Macquarie. Acredito que é uma mulher encantadora.
- É mesmo - concordou Stephen. - Desculpe-me, mas quero ler esta carta com o selo negro.
Sentou-se em sua cabine com o livro de códigos com capas de chumbo de um lado, mas antes de abri-lo leu a nota. Nela a senhora Macquarie apresentava seus respeitos
com aroma de lavanda. Dizia que o senhor Hamlyn lhe contara que o doutor Maturin queria que ela lhe aconselhasse o que fazer com as duas meninas órfãs, que estaria
em sua casa entre as cinco e as seis e que, se o doutor Maturin não estivesse comprometido, com muito prazer lhe daria a pouca informação que tinha. A letra, a ortografia
e a bondade de sua excelência para Stephen lembravam as de Diana. Largou-a de lado sorrindo e pegou a carta com o selo negro. Ao decifrá-la obteve os nomes de vários
homens que no Chile e Peru estavam a favor da independência e se opunham à escravidão, com os quais era recomendável pôr-se em contato discretamente. E viu com grande
satisfação que entre eles estava o bispo de Lima. Dentro do envelope havia outra carta, uma carta pessoal do chefe do Serviço Secreto Naval, sir Joseph Blaine, que
não requeria decodificação, e o coração lhe pulou no peito.
Meu querido Stephen (posto que me há feito a honra de permitir-me chamá-lo por seu nome de batismo):
Senti uma grande emoção ao receber a carta que me enviou de Portsmouth, uma carta bajuladora porque era a maior prova de confiança que alguém pode dar, um poder
para sacar todo o dinheiro da conta que tinha em um banco cujos serviços considerava insatisfatórios e depositá-lo no de Smith e Clowes.
E com maior emoção lhe digo que não pude cumprir seus desejos, pois, apesar da carta estar escrita impecavelmente, só estava firmada com o nome Stephen. Terminava:
"Despede-se do senhor, meu querido sir Joseph, seu estimado e mais humilde servidor, Stephen".
O propósito da carta estava muito clara e o banqueiro mais antigo o admitiu, mas disse que o banco não podia fazer nada. Pedi conselho a dois advogados e os dois
concordaram que a postura do banco era inatacável.
Isso me deu muita raiva, mas ainda não passara muito tempo quando a raiva diminuiu consideravelmente ao ouvir a notícia de que o banco de Smith e Clowes havia apresentado
suspensão de pagamentos. Pouco depois foi a bancarrota, como muitas outras entidades rurais, por desgraça, e os credores não têm esperanças de recuperar nem seis
peniques por libra. Em contraste, o banco que lhe oferecia serviços insatisfatórios foi fundado há muito tempo e é mais estável. Ademais, seus donos gozam da confiança
da Cidade e saíram da crise fortalecidos e, se cabe, mais ricos. Por isso sua fortuna, ainda que cuidada por pessoas rudes e descorteses, encontra-se intacta em
seus porões e talvez, quem sabe?, tenha aumentado. Posso assegurar-lhe que a partir de agora suas ordens sobre anualidades, subscrições e outras coisas serão cumpridas
estritamente. Dou-lhe os parabéns por isso e me despeço, meu querido Stephen.
Seu estimado (ainda que desobediente) e humilde servidor,
Joseph
P.S.: Se por casualidade passar por um mangue e encontra algum exemplar (ainda que seja insignificante) do Eupator ingens, por favor, pense em mim."
Passou algum tempo antes que pudesse distinguir o que sentia, qual era o sentimento que prevalecia entre tantos e tão confusos. Experimentava satisfação, sem dúvida,
mas também uma espécie de rebeldia contra ela e contra a perturbação de sua mente, que havia alcançado a serenidade. Além disso, estava com raiva por suas mãos tremerem.
Refletiu alguns momentos sobre os diferentes níveis de credulidade. A fortuna que herdara e que sempre lhe parecera desproporcionada e pouco digna estava, afinal
de contas, intacta, mas agora era só um conjunto de obscuras cifras em um livro que ficava nas antípodas de Sidney. Até que ponto sua existência ou sua falta afetara
sua mente além da superfície? Quando a corrente de sentimentos diminuiu não até alcançar a calma total, mas pelo menos até chegar a um nível de escassa agitação,
pareceu-lhe que, em geral, fossem quais fossem as desvantagens, era melhor ser rico do que pobre mas ter uma fortuna própia, como aquele assombroso homem de Goldsmith.
E esteve a ponto de acrescentar "e provavelmente é melhor ser saudável do que estar enfermo, diga o que diga Pascal", quando se deu conta de que as fortes emoções
do dia anterior e do presente haviam acabado com a exasperação, a sonolência e o desejo de fumar que sentia ultimamente.
- Apesar de tudo, dar-me-ei o prazer de fumar um charuto enquanto vou ao palácio do Governo - disse quando pôs a que era quase sua melhor casaca.
Quando caminhava pelo cais, depois que uma fragante nuvem passou devagar ante ele, pensou: "Satisfação e inclusive alegria, mas não febril exaltação". Não obstante,
depois de passar em um curto percurso junto de três grupos de homens acorrentados entre si, várias figuras sem correntes que usavam roupa grosseira marcada com uma
grande ponta de flecha e algumas lamentáveis prostitutas, quase não sentia alegria. Mas logo veio à sua mente a explicação do ocorrido com a carta enviada a sir
Joseph, e lembrou claramente a inusual mas agradável familiaridade com que sir Joseph lhe tratava em sua carta, quando se deteve um momento para contemplar Port
Jackson, onde um bergantim local de umas duzentas toneladas preparado para sair do porto estava a pairar, com vários botes muito perto a barlavento e com fumaça
saindo das portalós em meio da indiferença geral. A explicação era que, depois de copiar tediosamente o poder notarial, havia centrado sua atenção em uma nota que
quase acabara de escrever para Diana, na qual provavelmente assinara como S. Maturin enquanto que assinara Stephen na de sir Joseph.
No jardim do palácio do Governo havia um dos cangurus menores e Stephen o observou desde a escadaria até as dez para cinco, quando entregou um cartão com seu nome
e o fizeram passar para uma sala de espera. A senhora Macquarie não foi pontual, e nisso também se parecia com Diana. Por sorte, as janelas davam para o jardim onde
estavam o canguru e vários grupos de papagaios de colorido azul-verdoso muito pequenos e com calda muito comprida, e Stephen permaneceu ali sentado, tranqüilo e
alegre, observando-os sob uma luz extraordinária. Então pensou: "Essa claridade se deve, pelo menos em parte, a que muitas das árvores têm as folhas com as pontas
para cima, pelo que há pouca sombra. Isso dá um aspecto desolado à terra e inclusive ao céu".
A porta se abriu, mas em vez de um servente entrou a própia senhora Macquarie com o cabelo um pouco alvoroçado. Stephen se levantou, fez uma inclinação de cabeça
e sorriu, mas com timidez, porque não sabia se lhe haviam contado sobre sua briga com Lowe antes de escrever-lhe. Mas seu amável sorriso e suas desculpas pelo seu
atraso o tranqüilizaram e depois de refletir um momento, lembrou que ela, também como Diana, passara muitos anos na Índia, onde os oficiais brancos, que comiam em
excesso, suportavam um sufocante calor e eram arrogantes, brigavam tão amiúde que uma simples ferida quase não chamava a atenção.
Ela escutou atentamente o que Stephen tinha a dizer e depois perguntou:
- São bonitas?
- Não, senhora - respondeu Stephen. - São delgadas, de cor negro-fosco, de olhos pequenos e não têm nenhuma graça. Porém, por outro lado, acho que são meninas de
bons sentimentos, que sentem muito afeto uma pela outra e por seus amigos e que pelo menos têm talento para as línguas, pois já falam muito bem o inglês e usam uma
variante com os marinheiros e outra com os oficiais.
- E não pensou em levá-las para Inglaterra?
- Nasceram quase na linha do Equador e não me atrevo a levá-las para o cabo de Hornos até umas ilhas tão frias, úmidas e com tanta névoa como as nossas. Se pudesse
encontrar-lhes um lar aqui, com muito prazer as manteria e lhes designaria um dote.
- Se pudesse vê-las, seria mais fácil para nós encontrar uma solução para o problema. Terá tempo para trazê-las amanhã pela tarde?
- Naturalmente, senhora - respondeu Stephen, levantando-se. - Agradeço infinitamente sua amabilidade.
Cruzou o jardim em direção à grade e o canguru aproximou-se dele caminhando torpemente em quatro patas e depois se deteve, olhou-lhe a cara e deixou escapar um débil
berro. Mas como Stephen não tinha nada o que dar-lhe e o canguru recusou sua carícia, separou-se do animal, que o seguiu com o olhar até que chegou à grade.
Perguntou a rígido sentinela como chegar ao hotel Riley, mas o homem não respondeu, aliás, adotou uma expressão austera e se pôs ainda mais rígido. Então o guarda
saiu e disse:
- Se lhe respondesse, senhor, se respondesse a qualquer um que não fosse um oficial do Exército, amanhã teria a camisa ensangüentada, não é verdade, Jock?
Jock piscou um olho sem mover a cabeça e muito menos o corpo e o guarda prosseguiu.
- O hotel Riley, senhor? Siga direto e depois dobre à esquerda. Fica antes da primeira casa de tijolo que encontrará.
Stephen lhe agradeceu e o bendisse, já que suas indicações eram precisas. O passeio foi triste, pois viu a muitos presos com os sujos uniformes da prisão, alguns
olhando o vácuo e outros com uma expressão malévola ou melancólica, e também a muitos de seus guardiães, que apesar de encontrar-se em sua mesma penosa situação
de escravos pelo menos podiam dar chutes nos menos afortunados de vez em quando; contudo, se alegrou quando o coronel MacPherson e outro oficial do 73º Regimento
o cumprimentaram risonhos ao passar por seu lado e ainda mais quando viu Martin no lugar do encontro, que qualquer poderia tomar por uma taberna situada em um cruzamento
de caminhos perto do lamaçal de Alien a não ser pela ausência de chuva e barro ao seu redor e a presença de três tipos de papagaios selvagens sobre o teto meio desabado
e de uma ampla variedade de papagaios domesticados enjaulados ou em prateleiras no interior. Martin ainda estava junto a uma lúgubre cacatua envolvendo no lenço
o dedo que lhe havia picado.
- Paga, o senhor, um alto preço por sua experiência - disse Stephen, observando como a sangue traspassava o lenço.
- Não devi ter retirado a mão tão depressa - replicou Martin. - A pobre ave se assustou.
A pobre ave passou sua negra língua pela borda do bico e calculando a distância que os separava com um olhar malévolo, pelo que parecia possível outra envestida.
- Vamos? - perguntou, olhando seu relógio. - É quase a hora.
- Devemos tomar algo na taberna - Stephen lhe informou.
Sentou-se junto a um conjunto de objetos postos ali com a intenção de que os marinheiros visitantes os comprassem: bonitas cascas de ovos de emu de cor verde, machados
de pedra dos aborígines, lanças apoiadas contra a parede e uma peça de madeira plana e em forma de ângulo que parecia um enorme acento circunflexo cujos vértices
distavam dois pés.
- Taberneiro! - gritou. - Taberneiro! Me ouve?
O taberneiro chegou secando as mãos no avental.
- Uma jovem não lhes atendeu, cavalheiros?
Ambos negaram com a cabeça.
- Estará com um militar lá encima por mil libras. Em que posso servir-lhes, suas senhorias?
- Que tem de leve e fresco? - perguntou Stephen.
- Bem, senhor, tenho rio Parramatta, que é leve e fresco, nesse balde coberto por uma lona, e vou pegar um galão de meu própio uísque, uma bebida delicada onde quer
que seja. A esta hora do dia, mesclados os dois na proporção justa formam uma bebida leve e fresca comparável ao melhor champanhe.
- Então tenha a amabilidade de trazer-me uma pinta do primeiro e um copo pequeno do segundo - pediu Stephen. - Mas antes de ir, faça o favor de me dizer para que
se usa este objeto de madeira parecido com uma cimitarra ou uma foice.
- Isto, senhor, é, por assim dizer, um brinquedo dos aborígines, posto que eles só o usam para brincar. Seguram-no por um extremo e o lançam de maneira que dê voltas
como uma girândola, e quando percorre umas cinqüenta jardas se eleva, dá a volta e volta para a mão. Havia um aborígine que costumava fazer uma demonstração por
um gole de rum e isso foi sua ruína.
- Assim que um o lança e depois volta sem cair - disse Martin, que não podia entender facilmente o forte sotaque de Munster.
- Compreendo que acha difícil de acreditar, senhor, e o é se um não há visto fazê-lo. Mas pense, senhor, que está nos antípodas, que está de cabeça para baixo, igual
a uma mosca no teto. Todos estamos de cabeça para baixo, o que é muito mais raro que um cisne negro ou um pau que regressa voando para a mão.
Quando beberam o uísque, reiniciaram a marcha e Martin explicou:
- Tem razão. Em muitos aspectos este mundo é oposto ao nosso. Diria que é tão diferente dele como o Hades da Terra, se não fosse pela intensa luz. Não acha deprimente
o constante ruído de correntes e a onipresença de homens sujos, esfarrapados e tristes a quem devemos considerar criminosos?
- Sim, e se não fosse pela possibilidade de percorrer o interior do país, estaria remando pelo imenso porto em meu esquife ou a bordo da fragata, classificando minhas
coleções e examinado cuidadosamente as suas. Mas acho que me deprime ainda mais a tremenda crueldade dos opressores.
Pararam antes de cruzar o caminho trilhado e empoeirado para deixar passar a dois grupos de homens acorrentados, um para um lado e o outro para o lado oposto, e
nesse momento tropeçou com eles uma jovem bêbada, desgrenhada e com o peito descoberto, uma jovem bonita apesar de ter a cara cheia de manchas-roxas.
- Não vêem por onde andam, malditos sacanas? Que Deus os castigue...
Os presos passaram; eles cruzaram a rua e lhes seguiram os insultos da jovem, cada vez mais ofensivos, muito piores que os que se ouviam no castelo.
Andavam em silêncio durante algum tempo e depois Martin assinalou:
- Esta é a casa de Paulton.
Foi o própio Paulton que abriu a porta e lhes deu as boas-vindas. Era um homem alto e magro e usava óculos pequenos com armação de aço e lentes grossas que não pareciam
apropiadas para ele, porque umas vezes olhava através delas e outras por cima. Amiúde tirava-os e limpava com o lenço, e esse gesto nervoso era um dos muitos que
fazia. Era verdadeiramente um homem nervoso, mas também, na opinião de Stephen, inteligente e amável.
- Gostariam de um pouco de chá? - propôs depois das habituais preliminares. - Neste clima tão seco em que se forma tanta poeira, acho que o chá quente é melhor que
qualquer outra coisa.
Eles fizeram burburinhos de aprovação e agradecimento, e pouco depois chegou uma anciã com a bandeja com o chá.
- Agradeço que haja tido a amabilidade de vir, senhor - disse Paulton, servindo-lhe uma xícara. - Martin me disse que o senhor escreveu muitos livros.
- Só escrivi sobre medicina e alguns elementos de história natural.
- Se me permite, senhor, queria lhe fazer uma pergunta: pode escrever no mar, ou tem que esperar encontrar-se em um lugar isolado e tranqüilo no campo?
- Escrevi muito no mar - respondeu Stephen -, mas a menos que haja calmaria suficiente para que a tinta não saia do tinteiro, espero até descer a terra para escrever
longos tratados ou artigos, ao encontrar-me em um lugar isolado e tranqüilo no campo, como diz o senhor. Porém, por outro lado, a agitação de um barco não me impede
ler. Se tenho na lanterna uma vela que dê boa luz e tampões de cera nos ouvidos, leio muito a vontade. E a solidão de minha cabine, o movimento da maca, as distantes
ordens e suas respostas e os ruídos das manobras me fazem desfrutar ainda mais.
- Eu pus tampões de cera, como o senhor - disse Martin -, mas me dão medo. Tenho medo de que gritem "a fragata está afundando, está afundando! Tudo está perdido!
A fragata não pode manter-se flutuando!" e que não o ouça.
- Sempre foste medroso, Nathaniel - observou Paulton, tirando os óculos e lançando-lhe uma olhada afetuosa com seus olhos míopes. - Recordo que quando era pequeno
se assustava achando que eu, na realidade, era um cadáver habitado por um fantasma de abundante cabelo grisalho. Mas suponho, senhor, que lerá livros de medicina,
história natural e história, mas não romances nem obras de teatro.
- Leio romances com muita freqüência, senhor - explicou Stephen. - Considero os romances, os bons romances, parte importante da literatura, porque nos fazem conhecer
a alma e a mente humanas melhor que quase todos os outros gêneros, mais detalhada e profundamente e com menos dificuldades. Se não tivesse lido as obras de madame
da Fayette, do clérigo Prévost e do homem que escreveu Clarissa, essa extraordinária façanha, seria muito mais pobre do que sou. E creio que depois de refletir um
momento poderei acrescentar muitos outros autores.
Martin e Paulton acrescentaram imediatamente muitos mais, e Paulton, que até então havia sentido bastante timidez e nervosismo, apertou a mão de Stephen dizendo:
- Admiro seu julgamento, senhor. Porém, esqueceu-se o nome de Richardson quando falou de Clarissa?
- Não. Sei que o nome de Samuel Richardson está na página de créditos, mas antes de ler Clarissa Harlowe li Grandison, pelo que houve muitos protestos contra os
editores irlandeses por seu desleal comportamento, já que não respeitaram os direitos do autor. Foi escrito por um comerciante que sabia muito de contabilidade e
é indubitável que Richardson é o autor, porém, em minha opinião, Clarissa, com sua prosa delicada, foi escrito por outra mão. O homem que escreveu a carta não pôde
escrever o livro. Richardson, como o senhor sabe, certamente, era amigo íntimo de outros impressores e editores da época, e estou convencido de que algum de seus
devedores, provavelmente encarcerado em Fleet ou Marshalsea, escreveu o livro.
Os outros dois assentiram com a cabeça, pensando que eles também se haviam alojado na morada dos escritorzinhos.
- Depois de tudo, os governantes não escrevem seus própios discursos.
Depois de uma pausa bastante solene, Paulton pediu mais chá. E enquanto o bebiam seguiram falando dos romances, do processo de escrevê-los, do fato de que um escritor
poderia ser muito fecundo e de repente, inexplicavelmente, tornar-se estéril.
- A última vez que estive em Sidney estava seguro de que poderia terminar o quarto volume do romance quando regressasse a Woolloo-Woolloo. É que meu primo e eu nos
revezamos para vigiar ao capataz, sabe? Mas as semanas passaram e não pude escrever nem uma palavra que não apagasse na manhã seguinte.
- Pelo que vejo, o campo não lhe cai bem.
- Não, senhor, em absoluto. Contudo, dava-lhe um grande valor quando estava em Londres, distraído por cem bobagens e por coisas da vida cotidiana e quase não tinha
duas horas para dedicar a meus própios assuntos ao final da noite, quando já não servia para nada. Achava que não poderia encontrar mais tranqüilidade no campo que
em Nova Gales do Sul, em um lugar isolado de Nova Gales do Sul onde não chegam o correio nem os jornais nem há visitantes inoportunos.
- E não é assim em Woolloo-Woolloo?
- Ali não chegam o correio nem os jornais nem há visitantes inoportunos, sem dúvida, mas tampouco há campo. Não há campo como eu o concebia e como me parece que
o concebem outras pessoas, não tem nada que se possa chamar de rural. Imagine cavalgar desde Sidney por uma planície de cor parda, por um terreno pedregoso coberto
de espesso capim e arbustos e salpicada de melancólicas árvores. Nunca pensei que uma árvore podia ser feia até que vi um eucalipto. Também há outras parecidas,
com folhas grossas e opacas e enormes tiras de casca pendurando, como marcas de uma espécie de lepra vegetal. Quando um deixa para trás os poucos assentamentos e
caminhos de ovelhas que há, o caminho se estreita e passa por entre um conjunto de arbustos de cor cinza-verdoso e empoeirados, nunca verdes nem limpos, e há vastas
áreas onde os aborígines os arrancaram ou os queimaram e agora estão negros. E devia ter dito que estão sempre iguais, que nunca perdem as folhas nem parece que
lhes saiam novas. Mais adiante o caminho beira raquíticas lagunas onde os mosquitos são muito piores e depois por fim, ascende por entre arbustos mais baixos. Desde
a ladeira pode-se ver um rio que em alguns lugares é uma corrente e em outros, a maioria, converte-se em charcos disseminados pelo vale. Do outro lado se encontra
Woolloo-Woolloo, com uma simples casa em meio ao deserto; à esquerda fica o terreno cercado onde vivem os presos e junto a ele a casa do capataz; muito mais para
o interior quase não se pode distinguir a casa de Wilkins, o único vizinho. É verdade que os presos despovoaram a margem mais distante e semearam trigo, mas parece
uma espécie de cicatriz comercial em vez de um campo semeado e, de toda forma, quase não muda a enorme extensão de terreno insípido, monótono, descolorido, desumanizado,
primitivo e estéril que se estende a frente e à esquerda. O rio tem um nome aborígine muito comprido, mas o chamo de Estígio.
- Esse retiro campestre parece muito triste - disse Stephen. - E Estígio tem horríveis conotações.
- Nenhuma horrível demais para Woolloo-Woolloo, senhor, asseguro. Em Hades não havia nenhum triângulo instalado permanentemente, como na pracinha de Woolloo-Woolloo
e na do imóvel de Wilkins. E ainda que esteja proibido que um homem açoite aos serventes que lhe designaram, como meu primo e Wilkins são magistrados, cada um pode
açoitar os serventes do outro. Além do mais, em Hades as pessoas tinham companhia, ainda que não fosse muita, e podia conversar um pouco pelo menos; em Woolloo-Woolloo,
em troca, um está completamente sozinho. O capataz é um homem rude que só pensa nos benefícios que obterá da terra, a quantidade de arbustos que tem que destruir
e a colheita que Stanley vai levar no bergantim até Sidney. E como me disse que só devia falar com os presos para dar-lhes ordens, ainda que os negros com quem me
encontro às vezes em nossa praia ou caminhando pela margem do rio sejam bastante amáveis, até tal ponto que com freqüência muitos me hão untado os braços com um
óleo extraído de peixes mortos para repelir os mosquitos, um óleo que eles passam em todo o corpo, e um me deu um pedaço de ocre, limitamo-nos a trocar quatro palavras.
Assim que, como vê, não posso conversar. Meu retiro campestre não é diferente do lugar isolado e solitário aonde se retirou Bentham. Ainda que, sem dúvida, haja
autores que podem escrever um esplêndido e impressionante final para seus romances quando estão em um lugar isolado e solitário, não sou um deles, apesar de que
Deus sabe que necessito desesperadamente de um final.
- O panorama que o senhor pinta de Nova Holanda é sombrio, senhor. Não tem compensações?, não tem aves ou feras ou flores?
- Disseram-me que nosso imóvel fica em uma das partes menos favorecidas do país, senhor. Tem poucos animais de caça, e esses poucos são caçados furtivamente por
um grupo de homens que fugiram da prisão e se tornaram amigos dos aborígines que vivem além dos arbustos situados ao norte. Poucos animais de caça... Se bem é verdade
que me disseram que alguns emus passaram por nosso caminho, nunca os vi. Tampouco vi as cacatuas nem os papagaios mais que como manchas borradas, porque sou míope.
Na verdade, não posso apreciar as coisas bonitas da natureza, ainda que sim as feias: ouço os estridentes gritos das aves e sinto as inumeráveis picadas dos mosquitos,
que constituem uma praga aqui, sobretudo depois das chuvas.
- E quanto aos finais, acham que são muito importantes? - perguntou Martin. - Sterne saiu-se bem sem um. Ademais, amiúde os quadros inacabados são mais interessantes
porque têm uma parte da tela em branco. Recordo-me que Bourville definia o romance como uma obra em que a vida flue e dá voltas sem pausa nem, por assim dizer, um
fim, um fim definido. Pelo menos um dos quartetos de Mozart termina sem cerimônias, e resulta muito agradável quando um se acostuma a ouvi-lo.
- Há outro francês de cujo nome não posso lembrar-me que diz algo ainda mais apropriado: a bêtise c'est de vouloir conclure. O final convencional, no qual se premia
a virtude e se atam todos os cabos soltos, é amiúde arrepiante, e os tópicos e falsidades que inclue tendem a contaminar o que se escreveu antes, mesmo que seja
excelente. Muitos livros seriam melhores sem o último capítulo ou somente com uma breve informação sobre o desenlace em tom desapaixonado, quase indiferente.
- De verdade pensam isso? - perguntou Paulton, olhando alternativamente para um e para o outro. - Queria acreditar-lhes, sobretudo porque a narração chegou a um
ponto em que... Nathaniel, peço que a leia, se não se importa. Se acredita que realmente fica bem sem o redobrar de tambores ou se me der alguma idéia para escrever
um bom final, alegrar-me-ei muito porque poderia escapar deste desolado lugar cheio de crueldade e corrupção.
- Eu a lerei com muito prazer - disse Martin. - Sempre gostei de teus livros.
- O escrevente do governador está copiando o manuscrito, pois já sabe como é minha letra, Nathaniel. A corrupção tem utilidade, apesar de que a condeno.
- Então, não o permitem copiar?
- Naturalmente, não tanto como está copiando para mim. É a melhor pena da colônia e trabalha permanentemente para o Governo, redigindo documentos de traspasso e
aluguel de propriedades, mas até que não termine com meu manuscrito não apresentará nem um só para que o lacrem. Antes era um falsificador e quando está sóbrio e
encontra o papel apropriado, pode fazer as melhores notas falsas do Banco da Inglaterra.
- Há muita corrupção na colônia?
- Tirando o novo governador e os oficiais que chegaram com ele, diria que o toca tudo. Nas capas mais baixas da administração, por exemplo, todos os empregados são
presos, muitos deles muito educados, e sob a condição de que um seja bastante discreto, fazem o que lhes peça.
- Ah! - exclamou Stephen. - Perguntei porque vários dos tripulantes da Surprise têm amigos que foram deportados e fui falar com o secretário penal para perguntar
por eles, mas percebi que não queria me dar nenhuma informação. E ainda que o capitão Aubrey, que tem muito mais autoridade, poderia obrigá-lo a fazê-lo, temo que
sua intervenção perjudique aos presos.
- Com um tipo como Firkins estou seguro de que sim. A forma mais simples e menos prejudicial é dirigir-se a um dos empregados que trabalham no registro. O melhor
é Painter. É um homem astuto e inteligente e nos designou dois ou três pastores e alguns autênticos lavradores, raras aves em um conjunto formado principalmente
por pecadores das cidades, substituindo-os por outros.
- Como devo abordá-lo?
- Como é um homem em liberdade condicional, não será difícil. Se lhe deixar um recado no hotel Riley, encontrar-se-á com o senhor em um lugar discreto. Mas seria
mais prudente que não fosse o senhor mesmo, porque há muitos informadores por aí e sua briga com Lowe fez com que todo o grupo do distrito de Camden lhe tenha ódio,
o que poderia ter más consequências para o senhor. Se a bordo da fragata não houver ninguém adequado, irei eu mesmo.
- O senhor é muito amável, senhor, na verdade muito amável, mas acho que tenho o homem adequado. Mesmo assim, se me equivoco, poderia vir ver-lhe de novo? De qualquer
maneira, eu gostaria de vir desde que o senhor esteja livre.
- Uma das muitas coisas que me gosta de seu amigo é que não é mais santo do que o senhor ou, pelo menos, que eu - disse Stephen enquanto olhava para as escuras águas
da baía de Sidney. - Ainda que, obviamente, seja um homem virtuoso, não se horroriza com um leve pecado. Pode distinguir o cais? Vou dar um grito. Ei, da falua!
Olá! Acendam alguma luz, malditos porcos!
- Se seguirmos adiante, tão perto da margem como seja possível, acredito que com o tempo a encontraremos. Gostaria de não ter recusado a proposta de Paulton de acompanhar-nos
com uma lanterna.
A teoria era certa, mas como a noite era exageradamente escura porque não havia estrelas nem indícios de que a lua sairia, puseram-na em prática com lentidão, vacilação
e angústia até que lhes alcançou um grupo de companheiros de tripulação de licença que ainda estavam quase sóbrios e levavam pederneiras nas mãos.
- Ali está, senhor - disseram. - Está justo em frente do cais, nós a aproximamos com uma espia quando a última maré mudou. Não a reconheceu, senhor? O doutor não
reconheceu a fragata.
A notícia se difundiu até o final do grupo e uma voz distante exclamou:
- Os doutores estão tão ébrios que não reconheceram a fragata, ah, ah, ah!
Depois Stephen, quando estava no corrimão, pensou: "E pensar que não reconheci minha própia fragata". Mas então lembrou com tristeza que a Surprise já não era sua
e pensou: "Que importa isso? Os distintos tipos de felicidade não podem se comparar". Depois entrou na cabine e se deteve um momento pestanejando por causa da luz.
Jack estava sentado em sua escrivaninha com vários montes de papéis diante de si e não parecia muito contente, mas levantou a cabeça, sorriu e o cumprimentou a seu
modo:
- Ah, está aqui, Stephen!
- Parece velho e cansado, meu amigo - disse Stephen. - Mostre a língua - acrescentou e, depois de examiná-la, continuou: - Ainda não se recuperou da pletora.
- O que tenho é uma pletora de malditos oficiais - replicou Jack. - Encontrei obstáculos em cada condenada volta que dei. Ninguém sabe quando o governador Macquarie
regressará e, por desgraça, o vice-governador esteve sob as ordens de meu pai. Não sei o que seria de mim sem Adams, mas só pôde solucionar o referente a pequenos
reparos e necessidades, e necessito muito mais que isso e muito rápido, como requerem as ordens que recebi.
- Adams teve muito êxito em Java - disse Stephen. - Com sua permissão, queria pedir-lhe que fizesse em meu nome uma tentativa de corrupção, mas de pouca importância.
Martin e eu fomos ver um amigo seu, um afável cavalheiro que vive aqui faz algum tempo e que me assegurou que a corrupção na administração é generalizada. Ele me
deu o nome de um empregado a quem poderíamos pedir informação sobre Padeen e os homens e mulheres das listas que te entreguei, e acho que Adams é o homem indicado
para fazer a petição.
Consultaram Adams depois do café da manhã do dia seguinte e ele achou o mesmo.
- Sem falsa modéstia, senhor - começou -, acho que não há ninguém na Armada melhor preparado para chegar a um acordo amistoso ou, por assim dizer, a um arranjo,
que os escreventes de capitães com mais experiência. Já viram todas as cores do arco íris, não têm nada que perder e são difíceis de enganar. Quanto pensava em dar
para averiguar o paradeiro destes homens, isto é, o lugar de destino?
- Pegou-me desprevenido, senhor Adams. Acredita que um johannes é suficiente?
- Que Deus lhe bendiga, senhor! Um johannes vale quatro libras aqui. Pelo que vi, acho que um bom preço para começar seria um galão de rum ou do que estes pobres
diabos chamam de rum. Não devemos estragar o mercado dando moedas de ouro a torto e a direita.
- Estou convencido de que tem razão, senhor Adams. Porém, por favor, seja generoso para que Painter não economize o tempo que dedicará para obter informação sobre
Colman. Era ajudante de cirurgião, como acho que lhe disse, e lhe aprecio muito.
- Muito bem, doutor. Farei o que esteja a meu alcance. Posso oferecer-lhe mais de dois galões se for muito difícil; se, por exemplo, Painter tiver que pedir ajuda
de outros empregados?
- Certamente! Afogue-lhe em rum se for necessário. Mas primeiro tenho que trazer-lhe dinheiro para comprá-lo e algumas moedas de grande valor para se necessitar
de algo. Garanto, senhor Adams, que neste caso não me importaria de gastar um chapéu cheio de moedas de grande valor.
Na coberta do meio se encontrou com Reade, a quem pediu:
- Oh, senhor Reade, meu amigo, diga-me se Bonden se foi com o capitão.
- Não, senhor - respondeu Reade. - Está ajudando Jemmy Ducks a fazer a roupa de Sarah. Quer que vá chamá-lo?
- Oh, não! - exclamou Stephen. - Quero ver como está ficando.
Estava ficando muito bom, pois Bonden era o tripulante da fragata com mais habilidade para costurar. Nesse momento, com a boca cheia de alfinetes, estava provando
um vestido reto de dril, apropriado para ir ao palácio do Governo, em Sarah, que estava muito quieta e rígida como um mastro, enquanto que Jemmy Ducks, que sabia
mais do comportamento e da vida mundana, mostrava a Emily a fazer uma reverência.
- Não se preocupem por mim - disse quando entrou na escura cabine. - Continuem. Porém, Bonden, queria que quando esteja livre venha ajudar-me no paiol onde o capitão
guarda seus pertences.
- Sim, senhor - murmurou Bonden quase ininteligivelmente.
E as meninas esboçaram um tímido sorriso.
O paiol onde o capitão guardava seus pertences tinha vários desses cantos geometricamente impossíveis que abundavam nos barcos, e em um deles, encerrado em um baú
de madeira grossa guarnecido com peças de ferro e atado a várias cavilhas, estava a fortuna tangível de Stephen, certa quantidade de moedas de ouro, muitas mais
de prata e algumas notas do Banco da Inglaterra, que estavam metidos em um cofre menor, também de madeira, guarnecido com peças de ferro e fechado com chave. enquanto
esperava ali por Bonden, ocorreu-lhe que os ratos, acometidos de frenesi pela privação, também podiam ter perfurado esse cofre.
Então pensou: "Sem dúvida, terão deixado as moedas de ouro e prata. Não obstante, farei papel de bobo se ao abrir encontro um cômodo ninho de pequenos pedaços de
papel com várias crias rosadas dentro. Isso foi o que ocorreu em Ballynahinch, recordo-me muito bem, mas com as listas da lavanderia".
- Senhor, se o mover um pouquinho para popa, poderei desatá-lo - disse Bonden. - Não, senhor, para popa.
Tudo estava bem. Os ratos desdenharam o cofre onde ficava a fortuna e, por sorte, as elegantes notas do Banco da Inglaterra, feitas do único papel moeda que, em
sua opinião, tinha aspecto de valer dois peniques, tinham se mantido ou tornaram-se outra vez rangentes, como em seu estado original. Quando estava contando-as com
certa voluptuosidade (afastando o fantasma de sua antiga pobreza), Oakes desceu e anunciou:
- Há um cavalheiro perguntando pelo senhor no castelo de popa, com sua permissão, senhor.
- Um civil ou um militar, senhor Oakes?
- Um civil, senhor.
Era o senhor Paulton, que lhe devolvia a visita. Stephen o levou para a cabine, mandou chamar Martin e os três ficaram sentados bebendo vinho de Madeira até que
Jack regressou, esgotado, empoeirado e desejoso de almoçar. Jack convidou imediatamente ao senhor Paulton.
- Na Armada seguimos comendo em horas estranhas, nas quais já não se costuma almoçar, mas gostaria muito que nos fizesse a honra de nos acompanhar.
- Sim, por favor - rogou Stephen. - Como é sexta-feira, pegamos uma abundante redada de peixes.
- Convidaram ao cavalheiro esfarrapado- comunicou Killick ao seu ajudante -, assim que avise ao cozinheiro.
Paulton estava perturbado. Disse que se soubesse quais eram os costumes da Armada, nunca teria ido fazer uma visita a essa hora, e que não era sua intenção molestar.
Mas com o tempo deixou de lado seus escrúpulos. A refeição foi muito agradável para todos, pois como tantos tripulantes estavam de licença, não havia mais convidados,
e puderam falar abertamente de música (pelo que descobriram que compartiam a admiração pelos quartetos de corda de Haydn, Mozart e Dittersdorf) e de Nova Gales do
Sul, que Paulton, obviamente, conhecia melhor que os outros.
- Pode ser que seja um país com muito futuro, mas no presente não tem mais que pobreza, delinqüência e corrupção. Pode oferecer um futuro a pessoas como os MacArthurs
e os pioneiros, homens infinitamente duros capazes de suportar a solidão, a seca, as inundações e uma terra geralmente pouco fértil; contudo, não é mais que um desolador
deserto para a maioria de seus habitantes, que buscam refúgio na bebida ou na crueldade com os outros. Há mais bêbados aqui do que em qualquer outra parte, e quanto
aos açoites...
Nesse momento pensou que talvez tinha falado por muito tempo e guardou silêncio durante um momento, mas quando lhes trocaram os pratos e eles lhe perguntaram por
Woolloo-Woolloo, descreveu a propriedade bastante detalhadamente.
- Pelo momento é como os assentamentos livres da costa norte - explicou -, e as partes que ainda não foram desmatadas estão como as viu o primeiro contingente de
presos que chegou. Ninguém poderia tomá-la pelo Edén, mas é considerada de certos pontos de vista, tem uma sóbria beleza e não carece por completo de interesse.
Com muito prazer lhe mostrarei no fim do mês, quando regresse para supervisioná-las. Ainda que a viagem a cavalo seja muito longa porque um tem que bordejar numerosas
lagunas, não se encontra a muita distância pelo mar. O bergantim que vem para buscar a lã e o milho não tarda mais de três ou quatro horas com um vento do sudeste
favorável. Se me permitem que lhes mostre sua posição nessa carta marítima que está sobre o assento próximo da janela, verão que a entrada de nosso porto é muito
ampla. Aqui, marcado por uma haste de bandeira e um monte de pedras, fica o canal por onde entra e sai a água de nossa enseada particular quando a maré muda e por
onde passa com sua ajuda o bergantim. E aqui fica a desembocadura do rio que vai até a laguna pelo terreno onde pastam as ovelhas. Amiúde se vêem cangurus entre
as ovelhas e acho que poderia mostrar-lhes a toupeira de água, que, conforme dizem, é muito curiosa. Sem dúvida, também há inumeráveis plantas não descritas. Com
muito prazer lhes mostraria o lugar.
- E com muito prazer irei vê-lo se não zarpamos antes do fim do mês e a fragata puder prescindir de mim - disse Jack, a quem principalmente haviam sido dirigidas
essas palavras. - Mas se não me for possível, estou seguro de que o doutor e Martin gostariam de ir. Podem pegar o cúter em qualquer momento.
Assim que tomaram o café, soaram duas badaladas, e então Jack se desculpou por ter que ir embora porque ia com o carpinteiro ao rio Parramatta para ver alguns paus,
mas rogou ao senhor Paulton que não se movesse. Stephen notou que, apesar do gesto de Jack transluzir cansaço e certa irritação, parecia ter simpatizado com Paulton.
Quando Jack se foi, Paulton falou-lhes confidencialmente. Disse que lhe dava vergonha não tê-los convidado antes do fim do mês, mas que pensava que sua visita antes
não seria agradável. Explicou que seu primo Matthews, apesar de ter muitas virtudes, pois era um dono justo, apesar de que nunca castigava por bobagens nem por raiva,
como seu vizinho Wilkins, e de dar-se bem com os aborígines, ainda que às vezes pegassem uma ovelha e uma tribo da costa aparentada com eles tivesse escondido um
grupo de presos fugidos, nunca convidava a ninguém, nem permitia que em sua casa se tomasse nada além de água ou chá verde muito fraco. Repetiu que tinha muitas
virtudes, mas acrescentou que possivelmente seus inimigos diriam que era rígido e pouco sociável.
- O cavalheiro é casado? - perguntou Martin.
- Oh, não! - respondeu Paulton, sorrindo.
- Suponho que terá muitas aves ancudas na margem de sua laguna - disse Stephen depois de um momento de silêncio.
- Estou seguro disso - respondeu Paulton. - Quando vou lá para tocar o violino vejo amiúde revoadas de aves passar voando, e é muito provável que sejam ancudas.
Bem, agradeço muito que me tenham feito passar uma tarde agradável, mas já tenho que me despedir. Ah, uma coisa mais! - acrescentou em voz baixa. - É comum dar propinas
na Armada?
- Não, não -responderam os dois de uma vez.
Como essa era quase a hora em que Stephen devia lear Sarah e Emily para ver a senhora Macquarie, só Martin acompanhou o convidado na viagem de regresso.
As meninas estavam muito esticadas com seus novos vestidos e tinham uma expressão grave. Stephen pensou que as coitadas tinham menos graça e pareciam mais negras
do que nunca.
- Vamos para ver uma senhora muito amável no palácio do Governo - explicou em um tom exageradamente alegre. - É uma senhora boa e bonita.
Os quatro subiram a ladeira quase em silêncio, Stephen com Sarah pela mão e Jemmy Ducks com Emily. E tiveram a má sorte de encontrar-se com dois grupos de presos
acorrentados.
- Por que esses homens estão acorrentados? - perguntou Sarah quando o primeiro grupo passava lentamente junto deles com grande estrondo.
- Porque se comportaram mal - respondeu Stephen.
Quando se encontraram com o segundo, viram que um soldado estava açoitando um homem que havia caído. Devido à peculiar condição da Surprise e sua inusual tripulação,
as meninas nunca tinham açoitar a ninguém a bordo da fragata, nem mesmo bater-lhes com uma vara como a que usava o contramestre ou com um cabo com um nó no extremo.
As duas se sobressaltaram e se agarraram mais forte, mas não disseram nada. Stephen tinha a esperança de que os coches (que elas olhavam com os olhos descomedidamente
abertos), os cavalos, as pessoas que passavam, especialmente os casacas vermelhas, e os edifícios as distrairiam. Além disso, assinalou com o dedo o canguru que
ficava no jardim.
- Sim - disseram, mas sem sorrir e sem dirigir o olhar para onde assinalava.
A senhora Macquarie os recebeu imediatamente.
- Quanto me alegro de vê-las, queridas meninas! - exclamou, e deu um beijo em cada uma quando lhes fizeram uma reverência. - Que vestidos mais bonitos!
Um servente trouxe sucos de fruta e bolos e Stephen viu com alívio que as meninas estavam menos tensas enquanto comiam e bebiam. Depois que a senhora Macquarie disse
ao doutor Maturin que esperava que um barco de Madras chegaria em breve e fez comentários sobre a viagem do governador, voltou-se para elas e lhes falou do orfanato.
Contou que em uma parte havia muitas meninas de sua idade e que brincavam correndo por um parque cheio de árvores. As meninas pareciam muito satisfeitas e aceitaram
mais suco e mais bolo e depois disseram:
- Obrigada, senhora.
E Sarah perguntou:
- Têm vestidos bonitos?
- Não tão bonitos como os seus - respondeu a senhora Macquarie. - Venham comigo e lhes mostrarei.
Levou-as até o estábulo, onde seu coche estava esperando, e ambas pareciam bastante contentes. Stephen, de pé junto ao assento, disse:
- Jemmy Ducks ou eu iremos visitá-las amanhã, assim que até lá. Comportem-se bem. Deus lhes bendiga.
- Não vamos regressar para a fragata? - inquiriu Emily, e seu olhar assustado voltou a aparecer.
- Hoje não, companheiras - respondeu Jemmy Ducks. - Têm que ir para ver o orfanato.
O coche começou a afastar-se e as duas se levantaram, e até que dobrou a esquina estiveram olhando-lhes com uma mistura de medo, tristeza e angústia.
Os dois desceram a ladeira quase tão silenciosos como a haviam subido. Só Jemmy Ducks, involuntariamente, exclamou:
- E em um país como este, Meu Deus!
Stephen se deteve ao chegar em uma esquina para se orientar e depois disse:
- Jemmy Ducks, aqui tem um xelim. Avance umas duzentas jardas por alí e encontrará uma taberna decente onde poderá tomar algo.
Prosseguiu sozinho, caminhando devagar, estabelecendo mecanicamente as diferenças entre as aves marítimas que passavam acima da água a sua esquerda, e repetindo-se
os razoáveis motivos de sua ação. Quando lhe repetia pela terceira vez, viu dois homens atravessarem o caminho rindo e imediatamente teve diante de si a Davidge
e a West, vestidos com sua melhor roupa de descer a terra.
- Oh, doutor, acho que interrompemos seus pensamentos! - exclamou West.
- Não, em absoluto - tranqüilizou-lhe Stephen. - Porém, diga-me, o capitão já regressou?
- Não, ainda não - responderam em uníssono.
E Davidge acrescentou:
- Mas Adams subia a bordo quando saíamos e nos perguntou pelo senhor.
Apenas cinco minutos depois que Stephen sentou na cabine, Adams bateu na porta.
- Bem, senhor, cumpri sua encomenda - anunciou. - Não faz nem dez minutos que deixei o senhor Painter. E quando vinha para cá me encontrei com o pobre Jemmy Ducks,
a quem se lhe notava nos olhos que estivera chorando. Espero que não lhe tenha passado nada mau, doutor.
- Levamos as meninas ao orfanato.
- Que? - disse. - Em um país como este? Bem... - continuou, tratando de retificar. - Estou seguro de que sabe mais do que eu, senhor. Desculpe-me, por favor. Pois,
como lhe dizia, falei com o senhor Painter, tal como me pediu, e foi muito amável. Procurou imediatamente entre todos os processos, incluídos os de distribuição
e traslados, mas temo que não gostará de algumas das notícias que tenho a lhe dar. - pegou as listas, cada uma presa a um monte de papéis, e as pôs sobre a mesa.
- No que diz respeito aos amigos de Slade - prosseguiu -, tudo está bastante bem. A senhora Smailes foi designada a um homem que terminou sua condenação, um emancipado,
como dizem aqui. Está estabelecido em um lugar onde a terra é bastante boa, perto do rio Hawkesbury, e se casou com ela. Outros três estão em liberdade condicional
e trabalham em barcos pesqueiros. Só um, Harry Fell, fugiu e se foi com alguns baleeiros. Aqui estão os endereços dos outros.
Entregou a Stephen uma folha onde havia uma série de nomes e endereços escritos com letra muito clara e sublinhados em vermelho e passou para a lista seguinte.
- Quanto a lista de Bonden, as notícias não são tão boas. Dois homens nunca chegaram aqui, pois morreram durante a viagem; um morreu aqui de morte natural; outro
fugiu e é possível tenha morrido de fome no bosque ou que tenha sido salvo pelos aborígines; e dois foram trasladados para Norfolk.
- Onde fica isso?
- No meio do oceano, acho que a umas mil milhas. Converteram-na em um presídio com o fim de aterrorizar aos presos daqui e conseguir assim um comportamento submisso.
Receberam tão maus tratos que já não estão em seu juízo perfeito. Com relação aos demais, alguns ainda são serventes designados a alguém e outros gozam de liberdade
condicional. Mas em relação a Colman, senhor, sinto dizer que passou muito mal. Tentou fugir uma e outra vez e na última foi com outros três irlandeses. Um deles
ouvira que se um caminhasse reto um bom trecho para o norte, encontraria com um rio não muito largo nem muito profundo, e que do outro lado do rio ficava a China,
onde as pessoas eram amáveis e poderiam encontrar um barco dos que fazem o comércio com as índias que os levasse para a Inglaterra. Os aborígines os capturaram meio
mortos de fome e sede e os devolveram para obter uma recompensa. Um deles morreu em consequência da surra que lhes deram, duzentas chicotadas em dois turnos, mas
Colman sobreviveu. Iam mandá-lo para uma colônia-penal, mas não o fizeram graças à intervenção do doutor Redfern, que disse que isso seria sua morte. Vai ser designado
ao dono de uma propriedade em Parramatta junto com meia dúzia de homens mais. O senhor Painter diz que se estima que seja um pouco melhor que uma colônia-penal,
porém não muito, porque pertence ao senhor Marsden, um clérigo ao qual chamam de "Pastor Rapina", que gosta de açoitar seus homens, especialmente os irlandeses papistas.
O senhor Painter não acredita que sobreviva mais de um ano.
- Onde está Colman agora?
- No hospital do cabo Dawes, na entrada que há na parte norte desta baía.
- Quando o vão tranferir?
- Qualquer dia das próximas semanas. Os empregados se ocupam disso a medida que dispõem de tempo.
- Quem é Redfern?
- Bem, senhor, nosso doutor Redfern. O doutor Redfern que estava no Nore. Mas o senhor não se lembra porque, se me permite dizer, está a muito pouco tempo na Armada.
O capitão se recordará dele.
- Sei que houve um começo de motim no Nore em 1797, depois da revolta de Spithead.
- Sim. Pois bem, o doutor Redfern disse aos amotinados que se unissem mais, que ficassem mais unidos, e por isso um conselho de guerra o condenou a morrer na forca.
Mas pouco depois o mandaram aqui e imediatamente lhe concederam o perdão graças ao capitão King, a cujas ordens servi no Aquiles. Goza da simpatia de todos aqui
e é o médico que tem mais pacientes, mas a maioria são presos. Sempre tem uma palavra amável para um preso enfermo e passa grande parte do dia no hospital.
- Obrigado, senhor Adams. Agradeço-lhe muito que se tenha esforçado tanto e estou certo de que ninguém teria logrado tão bom resultado. Estes casos são delicados
e dar uma nota discordante pode ser fatal. - Adams fez uma inclinação de cabeça sorrindo, mas não o negou, e Stephen continuou: - Alegro-me que aqui haja um homem
como o doutor Redfern. Já viu algum lugar como este?
- Não, senhor, nem espero vê-lo deste lado do inferno. E aqui, senhor, está a relação dos gastos e aqui...
- Por favor, deixe-a para outro momento, senhor Adams. Acrescente isto para pagar o que falta - acrescentou, entregando-lhe outro johannes. - Se não lhe desagrada,
pode inclusive convidar Painter e seus mais respeitáveis companheiros para almoçar no melhor lugar de Sidney. Temos que cuidar de aliados como esses.
Quando Martin regressou para a fragata, levava um pacote que continha a esperança de Paulton se não de conseguir fama e fortuna, pelo menos de escapar, de voltar
para a Inglaterra e a um mundo que conhecia, de ter liberdade para nadar no mar da existência humana com a maré alta.
- O capitão já regressou? - perguntou.
- Não. Mandou dizer que dormiria em Parramatta. Desça e sente-se comigo e dentro de pouco poderemos jantar juntos. Não há ninguém na câmara dos oficiais. Não tenho
dúvida de que esse é o livro de seu amigo.
- Bem, esses são os três primeiros volumes e o quarto menos o último capítulo. Devo ter muito cuidado para não manchá-los nem dobrar as páginas. Pobre homem! Esforça-se
muito para escrever um final, mas acho que não o logrará se for ânimado. Seu primo pensa que todas as obras de ficção são imorais. A propósito do primo, não é um
homem como é devido. Não só é contrário às obras de ficção por serem falsas, como proibiu usar sal e pimenta na cozinha e na mesa porque excitam os sentidos. Ademais,
obriga o pobre John a levar o violino até um lugar de onde não possa ouvi-lo inclusive antes de afiná-lo. E não lhe dá dinheiro metálico... Mas estou cometendo uma
indiscrição. John nos convidou para almoçar no domingo e sugeriu que tocássemos uma peça que todos conhecêssemos bem, como o quarteto em ré menor de Mozart, do qual
estivemos falando. Aceitei o convite com receio, porque sei que minha forma de tocar é no mínimo medíocre.
- Não, em absoluto! Nenhum de nós é um Tartini. Seu senso do tempo é admirável e se tem algum defeito, o que não acho, é que às vezes parece que dá uma nota um quarto
de tom mais alta. Mas não tenho um ouvido perfeito muito pelo contrário, e um monocórdio ou um diapasão seriam infinitamente mais confiáveis.
- Espero que seja bom - disse Martin, olhando com angústia o romance. - Os falsos elogios nunca têm o valor das sinceras bajulações. Não me desagrada a primeira
página. Permite que a leia?
- Por favor.
- O matrimônio tem muitas virtudes - disse Emund -, e uma que os solteiros não notam amiúde é que ajuda o homem a convencer-se de que não é onisciente nem infalível.
Um esposo não tem mais que formular um desejo para que lhe seja negado, contrariado ou trocado imediatamente, ou para ouvir a palavra "mas" seguida de uma pausa,
geralmente muito curta, na qual se ordenam as razões por as quais esse desejo não pode se cumprir, como, por exemplo, que é produto de uma má interpretação, contrário
ao que mais lhe convém ou contrário ao que realmente lhe convém.
- Tenho ouvido dizer isso com freqüência, senhor Vernon - disse sua esposa -, mas o senhor não tem em conta que geralmente as esposas são menos educadas, mais pobres
e fisicamente mais débeis que seus esposos e que se não reafirmam sua existência correm o perigo de ser sepultadas por completo.
- Se ele não objetar, eu gostaria muito de lê-lo quando tenha a mente limpa - disse Stephen. - Mas agora não tenho a mente limpa, Martin. Já sabe como estou preocupado
com Padeen.
- Certamente! Eu também. Como recordará, eu estava lá quando o pobre Padeen subiu a bordo pela primeira vez e lhe tenho simpatia desde então. Tem notícias suas?
- Sim. Adams foi ver o homem de que John Paulton nos falou, e este é o relatório que lhe deram.
Entregou o documento, que parecia a folha de um livro de contabilidade, pois tinha quantidades postas em colunas, mas os números representavam as chicotadas, os
dias de encarceramento na cela de castigo da prisão, o peso dos grilhões que usou como castigo e o tempo que os levou.
- Oh, Meu Deus! - exclamou Martin ao dar-se conta de seu significado. - Duzentas chicotadas... Isso é inumano.
- Este é um país inumano - sentenciou Stephen. - Aqui o contrato social se rompeu e o estrago que isso pode causar a quem está muito abaixo do nível de santo é incalculável.
Mas quero que saiba, Martin, que logo vai ser designado ao pastor flagelante que conheci no palácio do Governo e que o empregado que se encarregará disso, um homem
maduro e com experiência que está em liberdade condicional, diz que não sobreviverá mais de um ano nessas circunstâncias. Pois bem, pelo que contou o senhor Paulton,
tenho a impressão de que os empregados podem mudar a distribuição. Recordo-me que ele disse que o própio Painter havia enviado a Woolloo-Woolloo experientes camponeses
em vez de ignorantes das cidades, provavelmente por uma dádiva.
- Também tenho essa impressão.
- Paulton tinha razão com respeito ao relatório secreto. E Painter foi amável, rápido e eficiente. O que agora lhe peço encarecidamente é que volte a visitar Paulton
amanhã, exponha abertamente o caso de Padeen e pergunte primeiro se Painter é realmente capaz de mudar a distribuição e depois se estaria disposto a admitir Padeen
em Woolloo-Woolloo quando regresse para supervisioná-la.
- Claro! Irei na hora mais provável de que esteja acordado. Pensa em ver Padeen?
- Estou pensando no assunto. Os sentimentos dizem que sim, naturalmente, mas a prudência diz que não por temor de que ele tenha um arrebatamento ou que isso atraia
a atenção ao que deveria passar desapercebido. Mas a prudência é às vezes como uma velha resmungona. Ainda estou indeciso.
Ficou indeciso durante grande parte da noite, às vezes lendo o romance de Paulton e outras tentando encontrar o melhor caminho. Ainda estava observando a chama da
vela, agora a ponto de extinguir-se, quando ouviu alvoroço no convés. Marinheiros arrastando os pés ou correndo e confusas vozes, e depois, claramente, a voz do
senhor Bulkeley que na distante proa gritou:
- Salid daí, demônios!
Mas como a fragata estava no porto e lhe estavam trocando a exárcia fixa e fazendo diversas reparações, sua aparência era mais desordenada e a disciplina mais relaxada,
assim que um ruído como esse não lhe perturbava. Seguiu observando a chama até que se extinguiu. Dormiu e o som das badaladas penetrou levemente em seu sono.
- Bom dia, Tom - cumprimentou, saindo da cabine na hora acostumada.
- Bom dia, doutor - respondeu-lhe Pullings, o único que estava sentado à mesa. - Ouviu os ruídos na guarda de meia?
- Muito bem. Espero que o jogo tenha sido incruento.
- Só pela graça de Deus. Suas duas meninas subiram a bordo correndo quase quando iam soar as três badaladas e assustaram os marinheiros de guarda. Chamaram Jemmy
Ducks, mas como estava bêbado como um gambá e não sentia nada, subiram para o cesto da gávea do traquete. Depois, quando Oakes, acompanhado dos outros tripulantes
de guarda, tentou pegá-las, elas jogaram no convés a maça do cesto da gávea, que quase o mata, e tudo o que tinham à mão. E não paravam de gritar que não sairiam
da fragata.
- Ouvi o contramestre falar demônios, mas não sabia que se referia a Sarah e a Emily.
- Depois tiraram seus vestidos brancos e as calcinhas e subiram para a cruzeta, onde não podiam ser vistas na escuridão da noite porque são muito negras. Ainda estão
lá, como gatinhos que subiram em uma árvore e não sabem como descer. Estendemos uma rede para pegá-las caso caiam.
Depois que Stephen digeriu isso, bebeu o café que haviam preparado na câmara dos oficiais, que não era tão bom como o que Killick fazia, e perguntou:
- O senhor Martin desceu para terra?
- Sim e acho que se foi muito cedo. Davidge o ouviu pedir água assim que amanheceu.
- Despenseiro! - gritou Stephen. - Por favor, traga-me mais torradas. O pão é uma delícia, não acha?
- Oh, sim! Quando alguém leva cinco meses comendo bolachas de barco acha pouco todo o pão. Porém, doutor, que há com as meninas?
- O que há com elas? A geléia, por favor.
- Como Jemmy Ducks ainda não se levantou e nem em seus melhores dias foi um bom gavieiro, o senhor acha que Bonden deveria subir para a cruzeta? Tem uma rara habilidade
para subir a exárcia, e o conhecem bem.
- Com respeito a isso, a fome e a sede as farão descer. Não serei eu que subirei em escadas movidas pelo vento, como fazia em minha juventude, para depois ver que
o gatinho decide descer por si mesmo quando por fim estava ao meu alcance. Que ninguém lhes faça caso nem olhe para cima.
Ao final a fome e a sede não foram as que as fizeram descer, mas uma urgente necessidade. Ainda que durante a primeira parte da guarda da manhã gritaram amiúde que
não desceriam, que ficariam na fragata para; sempre e que as meninas do orfanato eram feias e estúpidas, depois de um tempo ficaram silenciosas. Na fragata lhes
haviam ensinado a seguir estritamente as normas de asseio e sentiam um grande respeito pelo que era sagrado e tabu. Por isso foi que Emily, com voz angustiada, gritou:
- Coberta! Quero ir à proa e Sarah também! Não podemos esperar!
Os tripulantes olharam para Stephen, que gritou:
- Então desçam! E depois de ir à proa irão direto para suas macas! Não lhes voltaremos a levar à terra!
Pouco depois Martin regressou, e como havia homens trabalhando por toda a popa da fragata, Stephen sugeriu que fossem andando até o cabo Dawes e visitassem o hospital.
- Encontrei John em casa e lhe expliquei o caso claramente e acho que de forma adequada - informou Martin quando chegaram ao cais. - Eu lhe disse que Padeen era
seu ajudante na enfermaria, que devido a uma forte dor que sentia se lhe receitou um tratamento com láudano e que não nos demos conta de que tinha acesso ao estojo
de remédios e se medicava sem vigilância, pelo que se converteu em um viciado em ópio. Também lhe disse que quando o senhor se encontrava no Báltico, isto é, quando
o barco regressava dali, Padeen foi privado das doses e, como não podia expressar-se bem porque tinha um defeito na fala e sabia um inglês rudimentar, roubou um
boticário escocês, pelo que o condenaram a morte, mas pela influência do capitão Aubrey, em vez de mandar-lhe para as galeras o deportaram. Acrescentei que sempre
me havia parecido um homem bom e muito amável e que sentia devoção pelo senhor. E também que como era irlandês e católico, provavelmente sofreria muito nas mãos
de um homem como Marsden. John me escutou com grande atenção e está completamente de acordo comigo co relação ao último ponto. Quanto à troca, disse que só era questão
de deixar meio guinéu no lugar apropriado e que estava disposto a fazer a vida de Padeen menos horrível. Mas depois disse: "este pobre homem foi castigado repetidamente
por fugir. O doutor Maturin já pensou que se escapar daqui, no próximo ano minha situação será insuportável?".
- No próximo ano? - inquiriu Stephen.
- Sim. Nas atuais circunstâncias, John não pode permitir-se viajar em um barco para levar pessoalmente o manuscrito a Londres e tem que enviá-lo. Mas tanto a viagem
de ida como a de volta demoram cada uma quatro ou cinco meses e, além do mais, John tem que terminar o livro, dar tempo ao editor para que o leia e acordar com o
amigo que atuará em seu nome quais serão suas condições, assim que talvez um ano seja um cálculo bastante moderado. Por isso quer saber se o senhor lhe garante que
Padeen não voltará a escapar durante esse tempo.
Stephen seguiu refletindo enquanto passeavam, às vezes olhando o espantoso e desproporcional edifício que ficava no cabo, ainda que sua mente seguia buscando o que
havia por trás das palavras de Paulton e da forma em que Martin as tinha apresentado. Em Nova Gales do Sul quase sempre usavam a palavra "fugir", enquanto que aqui
usavam "escapar", mas era absurdo tratar de buscar a definição exata quando um desejava chegar a um acordo tácito e tinha que conformar-se com termos médios.
- Não - disse, detendo-se perto da grade do hospital. - Não posso dar garantia de que Padeen não escapará, mas entregarei ao senhor Paulton uma soma equivalente
ao preço da passagem para o caso dele escapar. Também lhe darei algo como reconhecimento, por exemplo, um presente ou uma gratificação, se dedicar o livro (que é
mais uma disquisição sobre a posição da mulher em uma sociedade ideal e um debate sobre o contrato entre os dois sexos atualmente aceito que um romance ou um conto),
ou se dedicar o livro, repito, a Lavoisier, que foi amável comigo quando era jovem. Diana e eu sentimos muito afeto por sua viúva e estou seguro de que isso lhe
produzirá uma grande satisfação. Porém, Martin, como o senhor sabe mais que eu deste tipo de coisas porque está mais familiarizado com os homens de letras, peço
que me aconselhe quanto é o mais apropriado para dar como reconhecimento. E quero que tenha em conta que não sou eu sozinho que deseja honrar a memória de Lavoisier.
Poderia mencionar pelo menos uma dúzia de membros de nossa sociedade.
A grade do hospital se abriu e um homem com casaca negra e uma peruca de médico saiu montado em uma égua. Olhou atentamente para Stephen, que vestia uniforme, e
freou a égua, mas depois seguiu adiante.
- Suponho que esse é o doutor Redfern - disse Stephen, e se pôs a pensar nas razões a favor e em contra de fazer-lhe uma visita, pelo que não escutou os comentários
de Martin sobre as dedicações, apenas a soma que mencionou em tom vacilante.
- O senhor não é muito generoso com seu amigo nem com a memória de Lavoisier - observou. - Mas casualmente tenho uma quantia similar em meu poder, em notas do Banco
da Inglaterra, que são melhores que uma promissória endossada a um distante banco. Permita-me que abuse de sua amabilidade e lhe rogue que faça estas propostas ao
seu amigo. O senhor se dará conta antes que eu do menor sinal que indique que a recusa ou se sente ofendido, o senhor não confundirá o formal com o real. Voltemos
para a fragata e porei as notas em um envelope para que as guarde. De toda forma, tenho que regressar porque devo barbear-me e pôr os sapatos de fivela para ir ao
palácio do governo. Eu lhe contei que aquelas pilantras escaparam do orfanato e voltaram para a Surprise durante a guarda de meia e assegurando que nunca mais partiriam?
- Oh, não! Pensa em devolvê-las?
- Não. Esse ato, ainda que razoável e sensato, foi um crasso erro, um erro para o qual contribuiu em certa medida meu afeto pela senhora Macquarie. Agora tenho que
ir apresentar-lhe minhas desculpas o mais dignamente possível, porque ela se mostrou muito amável.
- De que se queixaram as meninas?
- De tudo, mas especialmente do fato de que algumas das outras crianças eram negras.
Ainda que Stephen tinha a cara, que normalmente estava pálida, quase rosada devido ao barbeado e a peruca empoada, não viu a sua excelência porque não estava em
casa. Havia se preparado tanto para a entrevista com desculpas, explicações e fórmulas de agradecimento, que sofreu uma decepção e só logrou animar-se um pouco quando
descia a escadaria e viu uma cacatua que não vira até então pousar em um eucalipto e estirar a crista como a popa, que tão bem conhecia.
- Sairei alguma vez, em algum momento de minha vida, deste poço de iniquidade e viajarei ao interior do país com uma escopeta e um estojo para guardar espécimes?
- perguntou ao canguru.
A pouca distância do palácio do Governo, reapareceram as horríveis multidões de presos e soldados, às quais acrescentava certa alegria a presença dos tripulantes
da Surprise que estavam de licença em terra. Abriu passagem entre eles lentamente, chegou ao hotel Riley's e pediu um copo de uísque. Foi o própio dono que o serviu
e ao ver Stephen exclamou:
- Vá, se é sua senhoria outra vez! Bom dia, senhor. Que bom aspecto tem sua senhoria!
- Diga-me, senhor Riley, há na cidade algum negociante de cavalos honesto ou que pelo menos mereça o purgatório em lugar do inferno? - perguntou Stephen. - Vi alguns
animais em um estábulo que leva o nome de Irmãos Wilkins e não pareceram saudáveis.
- É que são dromedários roxos, senhor.
- Ah! Pareceram cavalos, mas adoentados.
- Referia-me aos irmãos Wilkins. Pelo que vejo, sua senhoria não está relacionado com os assuntos penais.
- Oh, não, em absoluto! Sou o cirurgião de uma fragata que está lá abaixo.
- E estou seguro de que será uma embarcação muito elegante. Na colônia chamamos de dromedários roxos aos ladrões desajeitados e de pouca monta, a ladrões que enviaram
aqui por ter roubado as escovas dos pobres ou os pratos dos cegos. Pensava alugar um cavalo, não é assim?
- Teremos que ficar aqui em torno de um mês, assim que seria melhor comprá-lo e depois vendê-lo.
- Oh, muito mais fácil! E assim a égua sempre estaria a sua disposição e se acostumaria ao senhor.
- Por que diz a égua?
- Porque tenho três bonitas éguas detrás do hotel e qualquer uma delas poderia percorrer cinqüenta milhas irlandesas por dia durante meses.
As três eram velhas, mas Stephen se decidiu por uma égua cinza cheia de pulgas, com gesto amável e passo agradável, o passo ao que tinha mais probabilidades de viajar,
e comprou para Martin, que não era um bom jóquei, uma égua baia muito tranqüila e um pouco mais velha.
Pegou o cinzento caminho em direção a Parramatta, e quase não tinha deixado para trás as casas, as barracas e as choças encontrou-se com Jack e o carpinteiro. Regressou
com eles e o carpinteiro lhe disse que a viagem não podia ser considerada um êxito, pois apesar dos paus estarem lá e de serem de excelente madeira, como eram propriedade
do Governo, tinha que pedir permissão aos chefes de diferentes departamentos e conseguir primeiro a autorização do senhor Jenks, que não estava.
- Obstáculos a cada maldito passo - queixou-se Jack. - Detesto os funcionários!
Mas o rosto se iluminou quando Stephen lhe disse que as meninas escaparam e haviam perguntado que se ele se incomodaria que ficassem a bordo.
- Não, em absoluto - disse. - Eu gosto de vê-las saltando daqui para ali. São melhores que os ursos australianos. A última vez que fizemos escala aqui você comprou
um wombat, recorda-se?, e ele comeu meu chapéu. Isso foi quando estávamos no Leopard. Meu Deus, que horrível era o Leopard, como resistia a se mover!
Riu ao se recordar, mas Stephen notou imediatamente que seu amigo não estava como sempre, que sentia ressentimento, e, também, que tinha a cara pálida, como se não
se estivesse bem.
Quando se separaram para deixar os cavalos em diferentes estábulos, Jack comentou:
- Sem dúvida, é surpreendente que tanto o governador como o vice-governador tenham se ausentado ao mesmo tempo. Não se pode falar razoavelmente com o coronel MacPherson.
Quanto eu gostaria de saber quando Macquarie voltará!
- Amanhã vou visitar outra vez a a senhora Macquarie e talvez ela me diga - aventurou Stephen.
Pela manhã, de novo saiu bem arrumado, mas desta vez além da cara lisa tinha uma inusual expressão satisfeita ou esperançosa, já que Martin regressara com muito
boas notícias com respeito à sua entrevista: John Paulton aceitara ambas as propostas (comovera-se muito que o doutor Maturin pensasse que seu livro era o veículo
apropriado para render tributo a Lavoisier, cuja morte ele também lamentava; ademais, dissera que receberia com prazer a Padeen e lhe atribuiria uma tarefa fácil,
como cuidar das ovelhas) e lhe mandara uma amável nota que tinha como posdata um lembrete de seu encontro do domingo, que esperava ansiosamente. Por outro lado,
três quartos de hora antes de ter deixado a fragata, Adams regressou com a notícia de que a mudança da designação já estava feita. Acrescentou que não houvera nenhuma
dificuldade e que qualquer outra petição sua seria atendida com presteza.
Cumprimentou ao guarda e depois ao sentinela, que lhe fez uma saldação porque usava uniforme, seu melhor uniforme, e subiu a escadaria. Além de onde estava o canguru
viu o doutor Redfern descendo, e quando estavam a uma distância prudente tirou seu chapéu dizendo:
- O doutor Redfern, verdade? Meu nome é Maturin, e sou o cirurgião da Surprise.
- Como está? - perguntou Redfern, e sua expressão grave deu passagem a outra sorridente quando devolveu a saldação. - Conheço seu nome por seus escritos e me alegro
muito de conhecer-lhe pessoalmente. Posso ser-lhe de alguma utilidade neste remoto canto do mundo? Conheço bem seus costumes e suas doenças.
- O senhor é muito amável, querido colega. E acredito que, de fato, poderia fazer-me um favor. Eu gostaria de ver o meu antigo ajudante, Patrick Colman. Foi deportado
para cá e parece que agora se encontra no hospital. Se o senhor dissesse ao guarda da grade que me deixe passar, eu lhe agradeceria muito.
- É um irlandês com uma complexa disfonia que sabe pouco inglês e que fugiu?
- O própio.
- Se vier comigo, eu mesmo o levarei para vê-lo. Porém, sem dúvida, o senhor ia entrar no palácio do Governo.
- Tenho que fazer uma visita para sua excelência.
- Temo que sua visita será em vão. Acabo de examiná-la e terá que ficar de cama por vários dias mais.
Desceram pelo caminho juntos, conversando quase sem pausa, e o doutor Redfern cumprimentando a cada passo.
- O que diz do fígado é muito interessante - disse Stephen em determinado momento. - O do capitão não está nada bom e eu gostaria que me desse sua opinião.
E em outro momento observou:
- Aí tem outra embarcação emitindo fumaça. É uma medida para combater pragas de insetos ou doenças?
- É de enxofre ardendo e se usa para fazer os presos que estão escondidos sairem ou se asfixiarem. Muitos desses pobres diabos tentam viajar como clandestinos. Todos
os barcos que vão zarpar se enchem de fumaça e depois são detidos por uma patrulha no cabo South.
Mas a maior parte do tempo falaram de temas como a ligadura das artérias com um fio fino, os êxitos de Abernethy e as atas da Royal Society.
Quando já estavam perto do cabo Dawes, Redfern perdeu a alegria e disse:
- Envergonha-me mostrar-lhe este hospital paupérrimo. Afortunadamente, o governador e a senhora Macquarie se comprometeram a construir um novo edifício.
Depois, quando entraram, acrescentou:
- Colman está na pequena sala da direita. As costas estão se curando, mas a depressão e a recusa dos alimentos me preocupam. Espero que sua visita o anime.
- Sabe por casualidade se há mais irlandeses na sala?
- Agora não. Perdemos os outros faz uma semana e desde então não tem companhia, pois a disfonia se agrava quando fala inglês, o pouco inglês que sabe.
- Sem dúvida. Quando tem um bom dia, pode falar com fluidez o irlandês e escrevê-lo sem erros.
- O senhor fala essa língua, né, senhor?
- Regularmente. Só o que aprendi quando era menino. Mas ele me entende.
- Eu lhes deixarei juntos enquanto examino outros enfermos com meus ajudantes. Espero que não se sinta coibido.
Passaram junto a um grupo que estava no corredor e entraram na sala, Redfern acompanhado do enfermeiro que curava as feridas e de duas enfermeiras. Padeen estava
no lado direito, junto à janela, no final de uma fila de camas bastante separadas. Estava deitado de bruços e, como estava quase adormecido, não se moveu quando
Redfern afastou o lençol que o cobria.
- Como pode ver - indicou Redfern -, as lesões da pele estão se curando, tem pouca inflamação e os ossos estão quase completamente cobertos. As chicotadas anteriores
partiram a pele coriácea. Nós o curamos com uma esponja com água morna e gordura da lã. - Então voltou-se e disse: - Senhor Herold, deixaremos Colman po enquanto
e examinaremos as amputações.
Não foi as costas esfoladas de Padeen o que mais impressionou a Stephen, que como cirurgião naval vira os resultados de muitas surras (ainda que nunca nessa escala
monstruosa), mas sua extrema magreza. Padeen era um homem alto e robusto e anteriormente pesava entre cento e oitenta e cinco e cento e noventa e cinco libras, mas
agora percebiam-se as costelas por baixo das cicatrizes, quase não pesava umas cento e quinze libras e a cabeça parecia uma caveira. Tinha a cara sobre o travesseiro,
virada para Stephen, e os olhos fechados. Stephen pôs a mão em suas costas com a firmeza e a autoridade própias de um médico e lhe sussurrou:
- Não se mova. Que Deus e a virgem Maria estejam contigo, Padeen.
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, doutor - respondeu Padeen lentamente, como se falasse em sonhos, abrindo um olho e esboçando um doce
sorriso que iluminou seu esquálido rosto, e depois apertou a mão de Stephen e acrescentou: - Sabia que viria.
- Calma Padeen - disse Stephen e esperou que as convulsões terminassem para agregar: - Escute, Padeen, meu amigo, e não diga nada a ninguém: vai para um lugar onde
lhe tratarão melhor e lá voltarei a te ver. Até então, deve comer tudo o que possa e até então que Deus te acompanhe, que Deus e a virgem Maria te acompanhem.
Stephen saiu mais emocionado do que acreditava possível e quando regressou à fragata, depois de ter uma conversa muito interessante com o doutor Redfern, notou que
ainda não estava tão sereno como desejaria. Um lourinho ou o que lhe parecia um lourinho saiu voando de um grupo de banksias{11} e atraiu sua atenção por um momento.
O mesmo ocorreu com o som da música que saía da cabine, que ouviu desde antes de passar pela prancha. Procedia de Jack e Martin, que estavam estudando algumas passagens
do quarteto em ré menor. Stephen notou que a interpretação da viola era muito mais precisa que de costume e no mesmo momento lembrou que tinha um encontro para jantar
com John Paulton. Afortunadamente, já estava arrumado.
- Acabo de ver a Padeen no hospital - disse e logo, em resposta a suas perguntas, acrescentou: - Está em boas mãos. O doutor Redfern é um homem admirável. Contou-me
uma infinidade de coisas sobre as doenças locais, muitas delas aparentemente provocadas pela poeira, e também sobre o estado de ânimo dos presos. Diz que apesar
de suas carências, sempre tratam com amabilidade e ternura aos companheiros que foram açoitados e tentam aliviar seus sofrimentos tanto como seja possível.
- Recordo que quando me degradaram - contou Jack -, sendo um garoto, vi que desde quando os marinheiros recebiam uma dúzia de açoites no gradeado, seus companheiros
lhes tratavam bem, davam-lhes grogue, untavam-lhes as costas com azeite de oliva e faziam tudo o imaginável por eles.
- O doutor Redfern também me orientou com respeito ao nosso projeto de viagem - disse Stephen, pegando o violoncelo. - E me dará cartas para alguns dos colonos mais
respeitáveis ou, pelo menos, inteligentes.
- De fato, falou-me de uma viagem antes de cruzarmos o trópico de Capricórnio - lembrou Jack -, mas me esqueci do que se tratava.
- Já que provavelmente a fragata ficará aqui em torno de um mês - continuou Stephen -, pensei que Martin e eu, com sua permissão, poderíamos fazer uma viagem de
quinze dias adentrando-nos na ilha até Blue Mountains e descendo para o sul até Botany Bay, depois subir a bordo para ver se necessitam de nossos serviços e depois
fazer um percurso para o norte, passando pela propriedade de Paulton, até que a fragata esteja pronta para zarpar.
- De todo o meu coração - disse Jack. - E espero que encontre um fênix em seu ninho.
CAPÍTULO 10
- Acho que estamos vivendo errantes, como ciganos, por toda a vida - disse Stephen. - E devo confessar que gosto muito, porque estamos sem incômodas badaladas, sem
responsabilidades, sem preocupação com o amanhã e dependemos somente da benevolência de outros ou da Providência.
- Estamos nisso há tanto tempo que quase já cheguei a gostar desta paisagem desolada - observou Martin, olhando para a planície coberta, se é que chegava a ficar
em algum lugar, de áspera erva e baixos arbustos, e salpicada de eucaliptos de vários tipos.
O conjunto, que apesar de ter faixas de pedra arenito era predominantemente de cor verde e cinza-prateado fosco, estava iluminado por uma intensa luz e o ar era
quente e seco. No princípio parecia completamente vazio, mas ao longe, a sudeste, qualquer com vista aguda ou, melhor ainda, com uma pequena luneta podia distinguir
um grupo de cangurus dos maiores e revoadas de cacatuas que se moviam entre as árvores mais altas e distantes.
- Acredito que estou me comportando como um ingrato - prosseguiu Martin -, pois além desta terra ter me dado muito bem de comer, tanto excelentes codornas como costeletas,
é uma mina de conhecimentos para os naturalistas, e só Deus sabe que quantidade de plantas desconhecidas leva esse asno em sua apreciada carga, por não falar das
peles de aves. Mas me refiro a carecer de bonitas paragens virgens e de tudo o que faz uma paisagem digna de ser contemplada, além da flora e da fauna.
- Blaxland me assegurou que havia bonitos lugares virgens perto das Blue Mountains - disse Stephen.
Comeram durante um tempo. A refeição consistiu de urso australiano grelhado (toda refeição tinha que ser forçosamente grelhada ou assada) que tinha gosto de cordeiro.
- Aí vão! - gritou Stephen. - E os dingos vão atrás!
Os cangurus desapareceram atrás de uma dobra da planície situada a meia milha de distância, correndo a grande velocidade, e os dingos, que provavelmente confiavam
no fator surpresa, abandonaram a inútil perseguição.
- É muito acertado o termo desolado - prosseguiu Stephen, olhando para o leste e o oeste. - Recordo que Banks me disse que quando viu Nova Holanda pela primeira
vez e bordejou o litoral, o país lhe lembrou uma vaca magra com os ossos das cadeiras pontiagudos e protuberantes. O senhor sabe que sinto muito afeto por sir Joseph
e um enorme respeito pelo capitão Cook, esse grande cientista e intrépido marinheiro, mas não entendo o que os impulsionou a recomendar ao Governo esta parte do
mundo como colônia. Cook criou-se em uma fazenda e Banks era propietário de terras, e ambos eram homens de talento e tinham visto grande parte desta terra desolada.
Acaso foi um capricho, uma obstinada...?
Interrompeu-se e Martin disse:
- Talvez depois de terem navegado tantas milhas acharam que tinha mais possibilidades.
Depois de um silêncio, Stephen voltou a falar da vida errante.
- Acho tanto tempo! - exclamou. - Nossa cara, e perdoe-me que o diga, Martin, está quase da cor vermelho-tijolo, essa cor tão comum em Nova Gales do Sul, e acho
que vimos tudo o que nossos predecessores viram...
- O emu! - exclamou Martin. - A equidna!
- ...exceto o ornitorrinco. Blaxland me assegurou que não se podia encontrar nesta zona, mas que se via com freqüência nos rios próximos à costa. Nunca o viu nem
sabia mais dele do que eu. É estranho que um animal tão notável seja tão pouco conhecido na Europa. Só vi o exemplar dessecado de Banks, não dissecado, pois não
foi possível, e li em Transações o estudo superficial de Home e a descrição de Shaw, nenhum dos dois baseados na observação de um animal vivo. É possível que no
próximo rio que vamos ver, o último, por desgraça, encontremos um.
- Que amável foi o senhor Blaxland e que esplêndido almoço nos ofereceu! - exclamou Martin. - Sei que falo como um homem cujo Deus é seu estômago, mas tanto cavalgar,
caminhar e buscar espécimes depois de navegar durante tantos meses torna o apetite de uma pessoa igual ao de um ogro.
- De fato, foi muito amável - concordou Stephen. - Não sei o que teria sido de nós sem ele. Neste país é perigoso perder o caminho, e provavelmente depois de vagar
durante alguns dias entre arbustos do pior tipo, se tivéssemos sobrevivido, teríamos regressado para casa docilmente.
O senhor Blaxland, um colega da Royal Society com um vasto imóvel no interior do país, a certa distância de Sidney, dispensou-lhes uma calorosa acolhida. Também
lhes advertiu que era perigoso perder-se, sobretudo porque ao sul do imóvel, onde a ressecada terra estava salpicada de ossos dos presos fugidos, havia grandes faixas
de terra cobertas de um tipo de arbusto cujas folhas se juntavam na copa, pelo que se podia perder o senso de orientação com facilidade. Emprestou-lhes um asno para
transportar a enorme quantidade de espécimes que haviam recolhido e também um aborígine chamado Ben, um homem barbudo, de meia idade e muito lento. Ben lhes mostrava
as plantas comestíveis e lhes levava até onde sua comida ficava a um tiro de pistola, como se a planície deserta e sem traços distintivos estivesse marcada com sinais,
apontava para lugares parecidos a zoológicos com poucos animais, que eles quase não podiam distinguir, e fazia fogo. Às vezes, quando tinham que esperar por uma
serpente noturna, um lagarto, um gambá, um coala ou um wombat, construía cabanas com enormes pedaços de cascas de eucaliptos que pendiam dos troncos ou estavam ao
pé deles.
Por motivos desconhecidos sentia muito afeto pelo o senhor Blaxland, mas não por Stephen nem Martin, e sua ignorância o impacientava. Como havia aprendido um pouco
de inglês com os presos procedentes de Newgate, quando eles olhavam com os olhos descomedidamente abertos o que lhes parecia um terreno deserto formado por lousa
e frisado de erva morta, pensava:
- Os sacanas não distinguem o maldito caminho. Não vêem, são cegos.
Stephen voltou a falar de Blaxland:
- De fato, foi uma excelente refeição, mas de todas às que compareci a que mais me agradou foi a que nos ofereceram antes de empreendermos a viagem. Acho que para
que uma refeição tenha mais êxito que o normal o anfitrião deve estar mais alegre que o normal, e o senhor Paulton estava pletórico de alegria. E como tocou bem!
Ele e Aubrey tocaram como se estivessem inventando a música de comum acordo. Foi uma delícia ouvi-los. - Sorriu ao se recordar e acrescentou: - Não lhe deu a impressão
de que se alegrava de não saber nada sobre a evasão de Padeen?
- E ainda mais. Ele me disse em um aparte que se fossemos discretos pensariam que havia ido se reunir com seus companheiros no bosque, onde vivem com os negros.
- Alegra-me ouvir-lhe - disse Stephen. - E falando de negros, acho que a razão pela qual nos é difícil comunicar-nos com este - continuou, assinalando para Ben,
que estava sentado a certa distância de costas para eles -, além da língua, é que nem ele nem sua gente têm noção de propriedade. Cada tribo tem suas fronteiras,
sem dúvida, mas dentro de seu território tudo é comum. Além disso, como não têm gado nem terreno cultivado e têm que ir constantemente de um lado para outro para
buscar sua subsistência, qualquer outra coisa que não sejam suas lanças e seus bumerangues seria uma carga inútil. Para nós é fundamental a propriedade, real ou
simbólica. Sua ausência significa miséria, e sua existência, felicidade. A linguagem de nossa mente é completamente diferente da sua.
Nesse momento Ben ordenou:
- Calem-se e montem a cavalo.
Selaram suas velhas e pacientes éguas, porque Ben não se ocupava de atar correias nem fivelas, já que simplesmente era seu guia e protetor para comprazer a Blaxland,
não um servente. Na realidade, em seu mundo não existia a relação amo-servente nem desejava nada do que eles podiam lhe dar. Montaram e cavalgaram devagar em direção
ao último rio.
No último rio não havia ornitorrincos nem água, assim que cruzaram o leito seco. Durante várias horas tinham observado como a monótona planície descia levemente
e agora as árvores eram muito mais abundantes e mais frondosas, pelo que podia se dizer, sem temor de exagerar, que o lugar parecia um parque, ainda que de um colorido
apagado e desatendido. Mas não carecia de encanto. Ben lhes mostrou um enorme lagarto que estava no tronco de uma das árvores mais altas, imóvel e convencido de
que não podiam vê-lo. Não permitiu que disparassem nem lançou nele nenhuma lança da meia dúzia que levava e, aparentemente, disse que o réptil era sua tia, ainda
que isso podia ter sido um erro de interpretação. Depois de observar o lagarto vinte minutos, o animal perdeu a cabeça e tratou de subir pela árvore correndo, mas
caiu junto com um enorme pedaço de casca desprendida. Então lhes olhou desafiante com a boca aberta alguns momentos e se afastou correndo pela erva, elevando seu
corpo sobre suas curtas patas.
- Era um pleurodonto - informou Martin.
- Isso mesmo. Além disso, tinha a língua em forma de forquilha e, sem dúvida, pertence a um grupo raro.
Graças a este encontro, ficaram alegres o resto da tarde. No dia seguinte, depois de explorar Botany Bay a baía descoberta por Banks, cavalgaram até Sidney. Imediatamente
as éguas se dirigiram para o estábulo junto com o asno. Ben se encontrou com um grupo de homens de sua tribo, alguns deles vestidos, em um bairro miserável dos arredores.
Foram com ele até o hotel, falando muito rapidamente, e quando chegaram, Stephen disse:
- Senhor Riley, aqui Ben, enviado pelo senhor Blaxland, nos acompanhou durante estes dez dias. Por favor, dê-lhe o que seja apropriado.
- Rum - pediu Ben com voz escandalosa.
- Não lhe permita fazer-se muito estrago, senhor Riley -recomendou Stephen, e depois de pegar o asno pela braçadeira, acrescentou: - Este asno é do senhor Blaxland
e o devolverei por um marinheiro quando venha uma de suas carroças.
- Boa noite, senhor Davidge - disse quando subiu a bordo e cumprimentou aos oficiais. - Teria a amabilidade de ordenar que desçam estes pacotes com sumo cuidado?
Senhor Martin, importar-se-ia de garantir de que coloquem as peles, sobretudo as dos emus, com muito cuidado no paiol onde o capitão guarda suas coisas? Ele não
se importará porque o odor sairá logo. Devo ir informar-lhe de nossa chegada. Ah, senhor Davidge! Poderia mandar um marinheiro sério, sóbrio e confiável, por exemplo
Plaice, levar este asno de volta ao imóvel do senhor Riley?
- Bem, doutor, acredito que poderei encontrar algum em seu juízo perfeito, mas Plaice está agora amarrado à sua maca porque se embebedou. Se aguçar o ouvido poderá
ouvir como canta Greensleeves.
Stephen também pôde ouvir na cabine a voz do capitão Aubrey, que em tom duro e formal, um tom que refletia sua autoridade, dirigia-se a alguém que indubtavelmente
não pertencia à tripulação da fragata. Ao mesmo tempo notou que a bordo havia uma tensão nervosa, olhares ansiosos e comentários furtivos, e que quase todos os tripulantes
estavam nos postos que ocupavam quando iam zarpar.
- Diga ao cavalheiro que lhe enviou que esta nota está mal dirigida e mal redigida e que não posso aceitá-la - dizia o capitão Aubrey com voz clara em meio do ar
imóvel. - Bom dia, senhor.
Várias portas se abriram e se fecharam. Um oficial do Exército com a cara vermelha como sua casaca saiu, devolveu o cumprimento de Davidge sem sorrir e atravessou
a proa. No momento em que o asno de Stephen tocou terra, começou a lançar desoladores zurros e a dar sacudidas, e os marinheiros de barcos de guerra menos respeitosos
e todos os de Shelmerston começaram a rir estrepitosamente, dando chutes no piso e palmadinhas nas costas uns dos outros, algo pouco usual.
Tom Pullings apareceu no convés como o boneco de uma caixa surpresa e gritou:
- Silêncio de proa a popa! Silêncio!, ouviram?
Gritou tão alto e com tanta indignação que os risos cessaram de repente, e em meio do silêncio Stephen foi até a cabine. Jack estava sentado atrás dos montes de
papéis que geralmente um capitão tinha na mesa quando estava no porto e era seu própio contador, mas sua expressão austera se transformou em uma alegre quando a
porta se abriu.
- Ah, está aqui, Stephen! Quanto me alegro de vê-lo! Não o esperávamos até amanhã. Espero que tenha tido uma viagem agradável.
- Muito agradável, obrigado. Blaxland foi muito amável e hospitaleiro. A propósito disso, encarregou-me de lhe apresentar seus respeitos. Vimos o emu, vários tipos
de cangurus, a equidna, oh, meu Deus, a equidna!, esse animal pequeno, gordo e de cor cinza que dorme no alto dos eucaliptos e que absurdamente acredita ser um urso,
além de muitos papagaios e um lagarto raro de nome desconhecido, ou seja, tudo o que queríamos ver e mais, exceto o ornitorrinco.
- Porém, em geral, o campo era um lugar agradável, não?
- Bem, tem grande interesse para os botânicos e produz assombro e satisfação ver seus animais, sobretudo a equidna, que é algo incrível; contudo, como paisagem não
acho que tenha visto nada tão deprimente nem tão parecido à idéia que tenho das planícies do purgatório. Talvez melhore com a chuva, mas agora tudo está seco. Inclusive
o rio que há entre Botany Bay e este lugar estava seco. Mas parece mal-humorado, Jack.
- Estou mal-humorado. Na realidade, sinto tanta raiva que quase não posso controlar minha mente e mantê-la fixa nestes papéis - reconheceu Jack.
Stephen, com o coração encolhido, notou que não compreendia as coisas.
- Quando Tom e eu estávamos fora dando uma espiada em alguns paus com Lascas - prosseguiu -, veio um grupo de soldados com dois oficiais e disseram que havia a bordo
um preso que escapara e insistiram em procurá-lo imediatamente, sem esperar que eu regressasse, porque tinham uma ordem judicial. A maioria dos tripulantes estavam
em terra de licença ou tinham ido nos botes para trazer provisões. O grupo era forte e estava encabeçado por um capitão. Já que West, como sabe, não está autorizado
oficialmente a ocupar seu posto e por temer que fizéssemos o ridículo se resistíssemos, limitou-se a protestar o mais energicamente possível diante de uma testemunha
e saiu da fragata. Revistaram-na junto com alguns velhos marinheiros da baía de Sidney que tinham trazido, encontraram o homem quase imediatamente e o levaram. O
homem soluçava de uma forma que partia o coração, conforme diz o pequeno Reade, que tropeçou com eles quando regressava da cidade. Podia ser reconhecido porque tinha
os tornozelos esfolados e ensangüentados onde antes tinha colocados os grilhões.
- Era amigo de algum dos tripulantes?
- Creio que sim, mas não sei de qual. Ninguém vai querer problema nem causar problemas para seus companheiros; por isso se um pergunta só respondem "Não sei, senhor",
com um olhar indiferente de soslaio que já vi em todos os barcos em que naveguei. Mas perceba, Stephen, que é uma monstruosidade revistar um barco do rei sem a permissão
do capitão.
- É realmente ofensivo.
- E trataram de justificar-se aduzindo como causa a categoria da Surprise. Mas lhes disse que sabiam tão pouco de leis navais como de boas maneiras, e que uma embarcação
alugada por sua majestade e sob o comando de um de seus oficiais tinha os mesmos direitos que um barco de guerra do Governo e para terminar, citei como exemplos
o Ariadne, o Beaver, o Hecate e o Fly, que é o mais significativo.
- Espero e confio em que não tenha se metido em um confusão.
- Não - respondeu tranqüilo. - Assim como o rei Carlos, não vou percorrer o mesmo caminho outra vez, porque o percurso foi muito penoso, Stephen. Eu me mantive frio
como um juiz ou, pelo menos, tão frio como deveria ser um juiz - acrescentou, recordando-se de um homem com a cara vermelha, malvado, estúpido, pomposo e de mente
tortuosa que vira em Guildhall com uma peruca e uma toga de juiz.
- Quando falava no plural se referia aos soldados?
- Não - respondeu. - Aos civis, às pessoas que vivem há bastante tempo na colônia e se entrincheiraram aqui, e também a seus aliados. Chamam-lhe de o clã MacArthur
e conseguem que o coronel MacPherson firme qualquer papel que lhe ponham na frente. O jovem que acabo de mandar passear me trouxe uma nota que dizia que, para evitar
desafortunados incidentes no futuro, as autoridades pensavam pôr sentinelas na proa, uma nota que MacPherson teve que firmar e o desgraçado tenente teve que trazer.
Essa é uma das razões pelas quais vamos soltar as amarras da proa e da popa e rebocar a fragata para a entrada da baía outra vez. Que o diabo me leve se tenho que
entrar e sair de meu própio barco passando por entre dois casacas vermelhas. Mas também há outra razão. O jovem Hopkins, um gavieiro da guarda de estibordo, o muito
tonto, ontem à noite trouxe para bordo uma jovem camareira que estava em liberdade provisória. Por sorte, West a ouviu rir na parte da coberta inferior onde se guardam
as amarras da âncora e a descemos para terra mais rápido do que subiu sem que ninguém a visse. Hopkins está preso e lhe arrancarei a pele a chicotadas tão logo termine
o reboque.
- Oh, não, Jack! Mais surras não neste espantoso lugar, eu lhe suplico.
- Como? Bem, talvez não. Entendo o que quer dizer. - Então alçou a voz e ordenou: - Entre!
Reade, com expressão grave, anunciou:
- O capitão Pullings está de guarda, senhor, e tudo está pronto.
- Obrigado, senhor Reade - respondeu Jack. - Apresente meus respeitos ao capitão Pullings e diga-lhe que proceda.
Um momento depois se ouviram as ordens própias da navegação no castelo de popa e as correspondentes respostas na proa e na popa, mescladas com os gritos do contramestre,
às vezes estridentes e outras como horríveis lamúrias; ou seja, o ritual do processo de pôr em movimento uma embarcação. Jack estava com a atenção na sucessão de
ações e enquanto isso Stephen escrutinava seu rosto. A parte branca dos olhos estava amarelada e a expressão mal-humorada não havia desaparecido ao ver Reade, como
costumava ocorrer. Além disso, ainda que tenha falado com raiva, era evidente que sentia muito mais do que havia expressado. Para Jack lhe molestava mais do que
para a maioria dos oficiais que faltassem com o respeito à Armada, e essa falta fora muito grave e era evidente que se produzira por antipatia.
Há pouco tinham colocado as barras do cabrestante e agora começaram a mover-se, mas os marinheiros não as empurraram com força nem acompanhados pelo som do pífano
nem do violino, senão pelo de seus pés descalços. O cais se deslizou lentamente pela popa, fazendo-se cada vez menor, e a vista que havia desde as escotilhas que
Stephen tinha em frente se ampliou até que o palácio do Governo ficou dentro do marco. Então a fragata virou noventa graus para estibordo e no grande janelão de
popa apareceu de novo o palácio do Governo junto com grande parte da colônia.
-Alegro-me de irmos para a entrada da baía - disse Jack. - Teremos muito mais trabalho levando e trazendo coisas, mas mesmo assim... Stephen, não pode imaginar o
quão estúpidos, imprudentes e desenfreados que os marinheiros nos portos chegam a ser. Aí tem Hopkins, que trouxe essa jovem imediatamente depois do horrível incidente
que os militares provocaram. Um momento de reflexão teria bastado para que visse que trazê-la a bordo era, em primeiro lugar, um delito, e em segundo, uma ação que
poderia acarretar problemas para todos. E creio que se a fragata tivesse seguido atracada à margem, qualquer outro jovem enlouquecido ou mesmo meia dúzia de homens,
jovens ou velhos, teriam feito o mesmo. Não pode imaginar.
Nada disso era novo para Stephen. Sabia melhor do que Jack quais eram as consequências de permanecer em um porto e até onde os marinheiros eram capazes de chegar
para satisfazer seus desejos. Também sabia que a necessidade de satisfazê-lo aumentava ao longo dos meses que passavam navegando, talvez em parte pela dieta disparatada
(seis libras de carne por semana, ainda que estivesse bem conservada, era demais). Vira que mesmo os oficiais, que tinham certa educação e presumivelmente sabiam
reprimir-se e podiam inculcar contenção, em certas ocasiões arriscavam um matrimônio feliz para fornicar estúpida, imprudente e desenfreadamente. Mas esse não era
momento para dizer a Jack o que sabia e tampouco para pedir que lhe contasse o que tinha nas entranhas. Depois de um momento exclamou:
- A propósito! Como estão as meninas? Espero que não tenham causado problemas.
- Acho que estão muito bem, e não causaram nenhum problema. Quase não as tenho visto, porque não sobem para o convés até que anoitece por medo de serem capturadas,
mas as ouvido cantar lá embaixo.
- E Paulton? Teve notícias dele enquanto estávamos de viagem?
- Oh, sim! - respondeu Jack, com o rosto radiante. - Veio despedir-se faz vários dias porque tinha que partir para o imóvel que seu primo tem na costa, perto da
ilha Bird. Espera que vamos vê-lo em um bote ou, caso não seja possível, que lhe faça uma visita quando viage para o norte. Que tarde mais agradável passamos com
ele! Que divertido é e como toca bem o violino! Alegro-me de ter insistido em ser o segundo violinista. Mesmo assim, fez-me ruborizar.
A notícia de que a fragata já estava ancorada chegou abaixo e pouco depois Stephen disse:
- Jack, amanhã tenho que ir visitar a senhora Macquarie e tentar por fim apresentar-lhe minhas desculpas, mas antes disso, antes inclusive do café da manhã, eu gostaria
examiná-lo para ver se já não tem pletora e receitar algo no caso de que não seja assim.
- Muito bem. Mas deixe-me dizer que zarparemos no dia 24, Stephen. Ainda que então o governador tenha regressado, o que é muito provável, e a situação tenha melhorado,
o que é possível, decidi renunciar a algumas das reparações e zarpar comamudança da lua. Lamento que isto possa interromper sua viagem ou interferir em seus planos.
- Oh, não, em absoluto! Começarei a viagem um pouco antes, talvez amanhã mesmo, e a menos que algum animal selvagem não descrito nos devore ou nos percamos em um
lugar povoado de arbustos do pior tipo junto ao qual o labirinto de Creta pareça um jogo de crianças e o de Hampton Court um simples brinquedo, estaremos de volta
no dia 23. Falarei com Padeen quando passarmos pela casa de Paulton.
- O que foi agora? - perguntou Jack, voltando-se para a porta.
- Há um maldito problema, senhor - anunciou Pullings. - Os guardas de South Point insistiram em revistar o cúter azul e trataram de detê-lo, mas Oakes, que estava
ao comando, disse que explodiria os miolos do primeiro que pusesse uma mão na borda.
- Muito bem feito. O bote levava a bandeira britânica?
- Sim, senhor.
- Isso converte o ato em algo ainda mais espantoso. Darei parte ao Almirantado e falarei disso no Parlamento. Maldito seja! O ato seguinte será abrir minhas cartas
e meus despachos e dormir em minha maca.
Uma vez mais, Stephen, barbeado, escovado, empoado e vestido de acordo com o alto nível estabelecido por Killick, entregou seu cartão de visita, mas desta vez, ainda
que sua excelência tivesse um compromisso, mandou dizer-lhe que lhe rogava que a esperasse porque só tardaria cinco minutos. Os cinco minutos se estenderam para
dez e quando a porta se abriu, apareceu seu primo James Fitzgerald, um homem do mundo e sacerdote da ordem portuguesa dos Padres da fé. Olharam um para o outro com
a mesma determinação que os gatos de não expressar sua surpresa, mas se cumprimentaram e se abraçaram afetuosamente. Haviam passado muitos dias felizes correndo
pelas montanhas de Galtee ao redor da casa de um tio avô comum. Trocaram as notícias que tinham da família desde a última vez que haviam se visto, que fora, como
agora, em uma ante-sala, mas naquela ocasião era a da casa do patriarca de Lisboa. Finalmente James disse:
- Stephen, perdoe-me se sou indiscreto, mas ouvi que dentro de pouco vai fazer uma viagem para o norte passando por Woolloo-Woolloo.
- Ah, foi, primo?
- Se for assim, aconselho que tenha muito cuidado porque entre este lugar e Newcastle há um bando de fugitivos pertencentes aos Irlandeses Unidos, que são tipos
muito duros, e alguns pensam que mudou de lado depois de 1798. Eles o viram no convés de um navio inglês que perseguia a Gough quando se dirigia a Solway Firth e
depois disso enforcaram ou deportaram vários de seus amigos.
- Não podem ser homens que me conheçam. Sempre me opus à violência na Irlanda e deploro o levante. Roguei ao primo Edward que não usasse a força. Inclusive agora,
a situação se resolviria com a emancipação dos católicos e a dissolução da união; ou seja, simplesmente com decretos do Parlamento. Mas a tirania de Bonaparte é
algo completamente novo, está muito mais estendida e exercida com mais inteligência, assim que a força é o único remédio. Estou disposto a ajudar a qualquer um a
derrubar-lhe e sei muito bem que você e sua ordem também. Seu êxito seria a ruína da Europa, e sua ajuda, péssimo para a Irlanda. Mas nunca, nunca, nunca em minha
vida fui um delator.
Antes que o padre Fitzgerald pudesse responder entrou um servente e disse:
- Doutor Maturin, por favor.
- Doutor Maturin - cumprimentou a senhora Macquarie -, sinto muito tê-lo feito esperar. O coronel MacPherson estava tão angustiado...
Parecia que ia seguir falando disso, mas mudou de opinião. Então pediu ao doutor Maturin que se sentasse e continuou:
- Assim que fez uma viagem entre os juncos. Espero que tenha gostado.
- Foi uma viagem muito interessante, senhora. Sobrevivemos graças a um inteligente negro e trouxemos um asno carregado de espécimes que nos manterão ocupados nos
próximos doze meses, ou mesmo mais. Mas antes de continuar, permita-me apresentar-lhe humildemente desculpas pelo comportamento dessas meninas travessas. Pagaram
realmente mal sua amabilidade e ainda me ruborizo ao recordá-lo.
- Devo confessar que não me surpreendeu. As coitadas são selvagens como crias de falcões. Mas antes de perder a cabeça, morder a governanta, romper a janela e descer
pela parede da casa, o que não entendo como conseguiram fazer sem quebrarem as pernas, disseram que não gostavam de ficar em companhia de meninas, senão que preferiam
ficar com homens. Gostaria de tentar de novo?
- Não, senhora, ainda que lhe agradeço muito. Acho que não sairia bem e, além disso, a tripulação se voltaria contra mim. Como não posso voltar a levá-las para sua
ilha, porque agora está deserta, acredito que a solução é que quando estejamos nas altas latitudes sul as mantenhamos envolvidas em um pedaço de lã e sob o convés,
e que quando cheguemos a Londres as deixemos aos cuidados de uma mulher maternal que conheço há muitos anos. É a dona de uma hospedaria no distrito independente
de Savoy, um lugar agradável que ela mantém sempre cálido.
Falaram das qualidades da senhora Broad e dos numerosos negros que haviam se aclimatado a Londres, e depois a senhora Macquarie perguntou:
- Doutor Maturin, posso falar-lhe extra-oficialmente das más relações atuais? Meu esposo chegará por fim dentro de poucos dias e lhe desgostarão inclusive mais que
a mim, assim que eu gostaria lograr que melhorassem um pouco antes que voltasse, se posso. Sei que aqui sempre houve rivalidade entre a Armada e o Exército, e o
senhor conhece melhor as razões do que eu, pois esteve aqui em tempos do almirante Bligh; mas o pobre coronel MacPherson é um recém chegado, desconhece tudo isto,
e lhe preocupa muito que lhe devolvam cartas por não estarem bem dirigidas. O conteúdo, deixa-o a cargo dos civis, mas cuida muito da forma. Com lágrimas nos olhos
me mostrou este envelope e me rogou que lhe dissesse se via algo incorreto na forma em que está dirigido.
Stephen olhou o envelope e tentou explicar:
- Bem, senhora, acho que é habitual acrescentar MP ao nome de um oficial quando também é um membro do Parlamento, por não falar de MRS quando é membro da Royal Society
e JP se é, além disso, um magistrado. Mas o capitão Aubrey não é minucioso e não teria se fixado nestes detalhes se não estivesse com raiva e frustrado por causa
do deliberado atraso e dos atos de alguns funcionários que parecem feitos com má vontade. Já se encontrou com isto antes, quando fez escala aqui com seu barco, justo
depois do desacordo do governador Bligh com o senhor MacArthur e seus amigos.
- O capitão Aubrey é membro do Parlamento? - inquiriu a senhora Macquarie com assombro, e quando se recuperou da surpresa riu baixo e acrescentou: - Oh, oh, alguns
civis vão empalidecer! Temem mais um interrogatório no Parlamento que a condenação eterna.
Quando Stephen levantou-se para se despedir, a senhora perguntou se ele gostaria de almoçar com ela informalmente no dia seguinte, pois o doutor Redfern ia estar
presente e ambos queriam saber sua opinião sobre o projeto do hospital.
- Por desgraça, senhora - respondeu Stephen -, amanhã estou comprometido, pois ao riscar a alvorada partirei para os bosques que rodeiam o rio Hunter, onde, conforme
me disseram, têm sua morada a serpente tigre e muitas aves curiosas.
- Por favor, tenham muito cuidado de não se perder - disse ela, dando-lhe a mão. - Quase todo mundo vai ali pelo mar. E avise-me quando regresse, porque quero que
conheça meu esposo, que é um grande naturalista.
Apesar da advertência da senhora Macquarie, perderam-se na primeira tarde. O caminho, que era relativamente largo porque ainda não havia se afastado dos disseminados
assentamentos, conduzia primeiro a um terreno de pedra arenito elevado e despovoado, de onde se via um complexo grupo de lagunas, e depois descia pela suave ladeira
entre arbustos e árvores dispersas, e ouviram à direita as doces notas de um canto que só podia ser de uma ave lira, uma distante ave lira.
- Sabia que nenhum anatomista competente já examinou uma até agora? - perguntou Stephen.
- Sei muito bem - respondeu Martin com seu único olho brilhando.
Deixaram o caminho e cavalgaram por entre os arbustos em direção ao lugar onde as notas se ouviam com freqüência até que chegaram a uma acácia. Lá fizeram uma inclinação
de cabeça um para o outro, desmontaram sem fazer ruído, ataram as éguas e o asno (que também haviam trazido porque anteciparam a viagem) e adentraram no bosque o
mais silenciosamente possível. Stephen levava o rifle, pois como Martin tinha um só olho e o coração muito brando, não era confiável como caçador. Ainda que se adentraram
o mais silenciosamente possível, o solo estava coberto de lixo, folhas secas, galhos e pedaços de lenha, e a medida que avançavam havia mais. Quando se encontravam
a cinqüenta jardas de onde se ouvia o canto, ele cessou repentinamente. Esperaram ali agachados uns dez minutos e no momento em que se olharam com expressão ao mesmo
tempo desencantada e resignada, outras duas aves começaram a cantar. Para aproximar-se da mais próxima, tinham que andar trabalhosamente, pois não só havia ali outro
tipo de eucalipto, como o terreno era rochoso. Mas ambos eram experientes caçadores de aves, e agora, com enormes dificuldades e acompanhados de inumeráveis mosquitos
(pois estavam na sombra), lograram aproximar-se da ave o suficiente para ouvi-la escavar a terra e emitir sons para si entre gorgeio e gorgeio. Quando por fim chegaram
a uma pequena clareira em cujo centro estava o montículo onde a ave se encontrava, só acharam suas marcas e seus excrementos. Esse foi a tentativa de aproximação
que esteve mais perto do êxito. Depois de tratar de aproximar-se da sétima ave, pensaram que era tão tarde que seria absurdo afastar-se mais das éguas e decidiram
regressar ao lugar onde estava a acácia em que as haviam atado.
- Mas este não é o caminho - observou Martin. - Tínhamos a grande laguna justo pela frente quando a deixamos.
- Aqui tenho a bússola - disse Stephen. - A bússola não mente.
Depois de seguir um tempo a indicação da bússola ou sua interpretação dela, passaram por entre alguns arbustos espinhosos que não tinham visto antes e cuja classificação
botânica não puderam determinar, e depois tomaram uma vereda que parecia formada pela passagem freqüente de animais. Martin se deteve de repente e, voltando-se,
observou:
- Aqui há um homem morto.
Era um preso que havia fugido e que fora atravessado por uma lança há uma semana ou dez dias. Pelo menos os outros, simbolicamente, haviam lhe posto por cima um
galho antes de seguir andando em zig zag, já que a vegetação em algumas partes do bosque era impenetrável, mas sempre subindo e com a esperança de encontrar campo
raso.
Quando o sol estava tão baixo como seu ânimo e pararam vacilantes onde havia aves lira cantando de ambos os lados, ouviram o zurro do asno a menos de um quarto de
milha atrás. Com tanto nervosismo tinham cruzado a vereda sem vê-la, e em quanto regressaram para ela, a paisagem voltou a ser como antes, a direção clara, e a grande
laguna, onde devia estar em relação com o restante.
Despertaram com um amanhecer precioso: era de dia ao leste, ainda de noite a oeste e entre ambos o céu variava quase imperceptivelmente desde a cor violeta até a
água-marinha. Havia muito orvalho e o ar imóvel estava cheio de aromas desconhecidos no resto do mundo. As éguas caminhavam de um lado para outro como boas companheiras,
desprendendo seu odor característico, e o asno ainda estava adormecido.
Uma coluna de fumaça; o odor do café. Então Martin perguntou:
- Já viu alguma vez um dia mais bonito?
- Não -respondeu Stephen. - Mesmo esta paisagem pouco atraente parece ter se transformado.
Em uma ladeira situada a umas vinte jardas dali uma ave lira cantou, uma ave de calda comprida parecida com o faisão, e quando iam largar as xícaras, passou voando
acima deles. Desceu do outro lado de uns arbustos e as éguas levantaram as orelhas e o asno despertou.
- Gostaria de persegui-la? - inquiriu Stephen.
- Não - respondeu Martin. - Já vimos uma e se queremos fazer a dissecação de um exemplar, estou seguro de que Paulton nos fará o favor de nos dar um. Seus homens
soltam cachorros para espantá-las e quando voam disparam. Acho que não deveríamos nos desviar do caminho, aliás dedicar toda nossa atenção às aves ancudas. Nas lagunas
deve de ter muitas revoadas, além dos poucos patos deste país, e, como Paulton disse, o caminho as beira todas.
De fato, havia nas margens muitas revoadas de aves ancudas, aves de patas compridas que andavam majestosamente pela água, e também de aves de patas curtas que corriam
pelo barro. Além disso, às vezes grupos de cerca de mil aves passavam voando e virando, com as asas desprendendo lampejos. Por todas as partes se ouviam os característicos
gritos das aves das marismas e das costas, amiúde similares aos que tinham ouvido em sua juventude, que se bem não pertenciam à mesma espécie, eram de outras muito
parecidas. Entre elas havia tringas, martinetes, avocetas e maçaricos de todo tipo.
- Aí tem um ostreiro! - exclamou Martin. - Não encontro palavras para expressar a alegria que me produz ficar deitado em um salicórnia sob o sol olhando esse ostreiro
pela luneta.
- Ele se parece tanto com o de nosso país que não sei dizer em que se diferenciam - disse Stephen -, porém, indubtavelmente, não é como ele.
- Bem, não tem nada de branco nas primeiras.
- Isso mesmo. E o bico é uma polegada mais comprido.
- Mas acho que não é a diferença, mas a semelhança o que me causa alegria.
A alegria que invadiu a ambos diminuiu um pouco quando a vereda, depois de atravessar três rios seguidos, dividiu-se em dois estreitos ramais ao descer pela ladeira
de uma colina que separava o terceiro rio do quarto, uma ladeira coberta de capim onde havia uma fonte. Desmontaram para que as éguas bebessem e pastassem e observaram
o sinuoso riacho que se estendia ante eles sob a imensa abóbada celeste, por onde passavam as nuvens empurradas pelos ventos alísios do sudeste. Não encontraram
nenhuma solução satisfatória, assim que soltaram as rédeas das éguas com a esperança de que o instinto as guiasse, mas ambas lhes olharam fixamente com cara estúpida,
esperando que eles indicassem onde ir, e o asno permaneceu indiferente. Então, jogando uma moeda para o ar, decidiram que seguiriam o ramal da direita. Decidiram
que ainda que se terminasse, como ocorria amiúde com as veredas, sob a condição de que andassem pela margem do rio não poderiam se perder em um perigoso bosque,
porque abaixo não havia nenhum, e a condição de que avançassem para a costa mais ou menos em direção norte, encontrariam Woolloo-Woolloo. Já tranqüilizados, recolheram
alguns exemplares das mais raras plantas (aquele era um hábitat excepcional), alguns insetos e o esqueleto quase completo de um marsupial da família Peramelidae,
e seguiram cavalgando. Ao chegar ao patamar da colina assustaram um grupo de cangurus.
A teoria em que se basearam era lógica, mas não tinha em conta a sinuosidade das margens das lagunas que bordejavam nem o fato de que muitas não fossem na realidade
lacunas, mas profundas marismas com numerosos braços. A vereda, naturalmente, desapareceu ao chegar a uma plataforma de pedra arenito e não voltou a aparecer. Perguntaram-se
se os cangurus a teriam formado, mas seguiram avançando alegremente, ainda que os mosquitos os perseguiam em todo momento, encantados de ver as aves, até que o tempo
e a comida já eram escassos.
Um incauto canguru que apareceu numa brumosa manhã, um canguru alto e cinzento provavelmente muito velho, serviu-lhes de alimento, mas nada podia proporcionar-lhes
tempo. Chegaram a Woolloo-Woolloo pela parte da laguna mais próxima do mar, reconheceram-no, com grande alívio (confirmaram sua teoria e se salvaram de uma ignominiosa
morte), pelo monte de pedras e a haste de bandeira que Paulton lhes havia descrito e porque a ilha Bird ficava justo ao norte, mas não puderam ficar mais de uma
noite, apesar dos rogos de Paulton, e muito menos seguir até o vale do rio Hunter.
- Estimado senhor, o senhor é muito amável, mas quase havemos superado o tempo de licença - explicou Stephen. - Prometi ao capitão que regressaríamos no dia 23,
e com as éguas neste estado e este asno tão lento, devemos partir amanhã cedo. Se é tão amável, gostaria que nos acompanhasse até um ponto do caminho em que nem
mesmo um homem sumamente estúpido possa se perder.
- Certamente que sim! - exclamou Paulton. - Neste momento seus animais estão sendo escovados e mimados por dois tratadores de cavalos do mesmíssimo Newmarket, dois
especialistas em preparar cavalos.
Para manter a discrição Stephen perguntou:
- Poderia mostrar-me as árvores frutíferas que tem diante da casa?
Quando chegaram lá, onde as macieiras, ainda desconcertados porque as estações estavam invertidas, achavam-se cheias de incongruentes cigarras, e algumas, estranhamente,
cresciam inclinadas para a esquerda, Paulton disse:
- Queria ser capaz de expressar meu agradecimento por sua amabilidade com respeito a meu romance. Isso significa liberdade para mim.
- Expressou-se muito bem em sua carta - respondeu Stephen -, muito melhor do que qualquer um poderia fazê-lo, e lhe rogo que não diga mais nada, mas que me fale
de Padeen Colman.
- Acho que lhe agradará ver como está - disse Paulton com um sorriso. - Quando chegou era só pele e ossos, mas o bondoso doutor Redfern quase já havia lhe curado
as costas. A propósito disso, chegou com outro nome, o de Padeen Walsh, uma mudança que, conforme acredito, fazem os escreventes encarregados do registro para que
se perca o rastro dos presos e se atrapalhem as coisas em grau sumo. E come desde que chegou. Fiz com que os outros soubessem que é um enfermo infeccioso e o pus
sozinho na cabana do pastor de ovelhas. Se tivesse chegado seguindo o rio desde a laguna, o teria visto. Quer que o leve lá agora?
- Sim, por favor.
Aquele era realmente um pasto, a maior extensão de terreno coberto de capim que Stephen vira em Nova Gales do Sul. Havia ali dispersas ovelhas de grossa lã, algumas
das quais ainda podiam saltar, ainda que com dificuldade. No centro havia uma cabana feita de tepes e com o teto de juncos reforçado com fileiras de pedras para
que o vento não lhe levasse. Os juncos procediam do lugar onde o rio se unia com a laguna, no extremo do pasto, formando uma pequena baía de onde se mandavam os
produtos do imóvel para Sidney. Na frente da cabana Padeen estava sentado, ele parecia mais alto e magro diante de dois jovens para quem cantava Con Céad Cathach.
- Suponho que quererá falar com ele - disse Paulton. - Regressarei para ferroar ao cozinheiro.
- Não tardarei nem cinco minutos - respondeu Stephen. - Só lhe direi que estarei em um bote na desembocadura do rio no dia 24 ou, em caso de que haja mau tempo,
dois ou três dias depois, mas nunca antes do meio-dia. Serei breve. Não quero perturbá-lo porque já há estado bastante transtornado.
Não tardou muito, mas seus companheiros notaram que esse pouco tempo bastou para alterá-lo.
- Esses jovens negros...? - perguntou em tom grave quando se sentaram para almoçar os infinitamente bem recebidos alimentos. - Esses jovens negros correram quando
me aproximei vivem neste lugar?
- Oh, não! - exclamou Paulton. - Vão e vêm quando querem porque fazem vida errante, mas quase sempre há uns poucos nas proximidades. Meu primo não permite que lhes
maltratem nem se aproveitem de suas mulheres. Simpatiza com eles e às vezes lhes dá uma ovelha ou um caldeirão de arroz doce. Está tentando reunir o vocabulário
de sua língua, mas como têm pelo menos dez sinônimos para cada palavra, a lista aumenta muito devagar.
Falaram sem ordem nem acordo das extraordinárias mariposas que tinham visto por todo o caminho, especialmente perto da última laguna, de que não tinham rede porque
havia ficado na hospedaria de Riley, do curioso pau curvo que haviam visto ali, dos aborígines... Em determinado momento Paulton perguntou:
- O senhor acredita realmente que são inteligentes?
- Se definimos a inteligência como a capacidade para resolver problemas, são inteligentes - sentenciou Stephen. - Sem dúvida, o principal problema é manter-se vivo,
e em um país deserdado como este, esse problema é grave, mas eles o resolveram. Eu não poderia.
- Eu tampouco - disse Paulton. - Porém, acha que sua definição resistiria a uma análise profunda?
- Talvez não, porém, de toda maneira, sou muito estúpido para defendê-la.
- Oh, meu Deus! - exclamou Paulton. - Os dois devem estar mortos de cansaço. Permita-me recomendar-lhes que tomem um banho quente antes de deitar. Sei por experiência
própia que não tem nada mais relaxante para o corpo. A água já deve de estar fervendo nas panelas.
- Acho que fomos hóspedes muito chatos - disse Stephen quando estavam entre os arbustos, virando-se na sela para apertar a mão de Paulton, ao qual quase não podia
ver.
Paulton escolheu o mesmo momento para olhar para trás e fazer-lhes também um gesto de despedida, e desapareceu ao pé da colina e se adentrou no bosque.
- Inclusive nesta manhã estava um pouco preocupado - acrescentou. - Queria evitar que se comprometesse para que sempre pudesse afirmar que não colaborou em meus
atos.
- Moralmente não podia fazer isso. Sabe perfeitamente o que vamos fazer.
- Quero dizer legalmente. As absurdas leis se aplicam com absurdo rigor e quero que possa firmar uma declaração jurada que diga: "Maturin nunca me disse isto" ou
"nunca disse o outro a Maturin". Acha que isso pode ser um falcão?
- Acho que sim - respondeu Martin, fazendo-se sombra no olho com a mão. - É um terzuelo. Lewin diz que podem ser encontrados em Nova Holanda.
- Essa ave me produz tanta satisfação como o ostreiro ao senhor- disse Stephen, olhando o falcão até que se perdeu de vista, e depois voltou a falar de Paulton:
- Indubtavelmente, é um homem muito amável e é um prazer estar em sua companhia. Desejaria que visse bastante bem para distinguir uma ave de um morcego. Talvez se
conseguisse um microscópio, um bom microscópio com variedade de lentes e uma ampla platina, poderia desfrutar observando as pequenas criaturas, por exemplo, os rizópodes,
os rotíferos e mesmo os piolhos... Conheci um cavalheiro, um pastor anglicano, a quem lhe encantavam os acarídeos.
Agora que seus conhecimentos eram algo supérfluo, já que a vereda se convertera quase em um caminho de carroças, as éguas puseram uma expressão inteligente e começaram
a avançar com passo firme em direção ao distante estábulo. Avançavam tão rapidamente que, apesar deles pararem várias vezes para recolher plantas ou matar papagaios
raros e aves que viviam nos arbustos, quando chegaram na hospedaria Newberry, situado em um caminho de vaqueiros, a certa distância ao norte da vereda que ia para
Woolloo-Woolloo, já era pleno dia. E assim, a pleno dia, Stephen viu por fim o bumerangue. Um negro dissoluto, que havia se corrompido pelo contato com os brancos,
mas que ainda conservava suas habilidades, jogava-o em troca de um gole de rum. O bumerangue fez tudo o que Riley disse que fazia e ainda mais. Em certo momento,
depois de regressar, elevou-se, ficou flutuando no ar sobre a cabeça do aborígine e descreveu lentamente um círculo antes de descer até sua mão. Stephen e Martin
olhavam com assombro aquele objeto girando em suas mãos.
- Não entendo o princípio disto - confessou Stephen -, mas eu gostaria de mostrá-lo ao capitão Aubrey, que sabe muito de matemática, dinâmica e navegação. Hospedeiro,
por favor, pergunte-lhe se está disposto a desfazer-se do instrumento.
- Nunca em sua maldita vida - respondeu irado o aborígine, arrebatando-lhe o bumerangue e apertando-o contra seu peito.
- Diz que não quer desfazer-se dele, sua senhoria - explicou o hospedeiro. - Mas não se preocupe porque tenho uma dúzia detrás do bar e os vendo por meio guinéu
aos viajantes engenhosos. Escolha o que queira, senhor, e Bennelong o jogará para demostrar-lhe que regressa como uma pomba mensageira, como dizemos aqui. Né Verdade?
- disse ao negro, muito mais alto que ele.
- Verdade o que?
- Que vai jogar para que o cavalheiro veja.
- Maldito seja!
- Senhor, diz que com muito prazer jogará para que o veja e espera que lhe anime com um trago de rum.
Na clara manhã, depois de se refrescarem, seguiram cavalgando. Stephen tinha sobre a parte dianteira da sela de montar uma pomba mensageira e Martin levava atadas
várias bolsas cheias de exemplares de plantas, pois o asno estava sobrecarregado.
A medida que desciam e se aproximavam de Port Jackson, aumentava a variedade de papagaios e seus gritos discordantes. Também encontraram revoadas de cacatuas, lourinhos
e periquitos. Quando por fim avistaram a baía de Sidney não viram a fragata atracada onde a tinham deixado.
- Hoje é dia 23, né? - perguntou Stephen.
- Acho que sim - respondeu Martin. - Estou quase seguro de que ontem foi 22.
Ambos conheciam o estrito que era o capitão Aubrey com relação à data de fazer-se ao mar e olharam angustiados a baía deserta.
- Ali está nosso bote, passando por South Point! - gritou Stephen, olhando pela luneta. - Leva uma bandeira na proa.
- E lá está a fragata, atracada no cais onde estava antes, ah, ah, ah! - exclamou Martin com grande alívio e alegria. - E justo detrás há outro barco muito maior
atracado.
- Tenho o pressentimento de que é o tão anunciado barco que vem de Madras - disse Stephen.
O pressentimento foi reforçado pela presença na cidade de marinheiros das Índias Orientais que usavam apertados turbantes e olhavam com satisfação para os grupos
de homens acorrentados e, pelos oficiais com estranhos uniformes que olhavam ao seu redor como recém chegados. Dirigiram-se à taberna de Riley, que agora estava
abarrotada, e enquanto Stephen esperava para fazer contas com o taberneiro, Martin foi à fragata com dois pilantrinhas que levavam um carrinho de mão carregado com
os espécimes.
Riley, que sabia de tudo, disse a Stephen que o Waverly, de fato, viera de Madras, mas que não trazia sacas de cartas oficiais da Índia e muito menos de cartas de
outros continentes para os civis, mas isso não lhe causou decepção, porque não as esperava. Contudo, sim tinha trazido para muitos oficiais, e Stephen foi sentar-se
no salão, quase cheio deles, para esperar que o senhor Riley ficasse livre e pudesse ocupar-se das éguas.
Quando estava sentado ali, olhando o bumerangue da taberna e tratando de encontrar uma razão verossímil para seu comportamento, percebeu de que um dos oficiais,
um infante de marinha perto da porta, olhava-o com mais atenção que o normal. Então começou a pensar em tudo o relacionado com a percepção dos olhares fixos em um:
que um os notava ainda que a pessoa que olhava estivesse fora de seu campo de visão, que causavam intranqüilidade a muitos, que era importante não olhar nunca para
a presa de um, que as pessoas de distinto sexo trocavam olhares com uma infinidade de significados... Ainda estava pensando quando o oficial se aproximou e perguntou:
- É o doutor Maturin, verdade?
- Sim, senhor - respondeu Stephen com reserva, mas sem descortesia.
- O senhor não me recorda, senhor, porque então estava muito ocupado, mas me salvou a perna depois da batalha sob as ordens de Saumárez no estreito de Gibraltar.
Meu nome é Hastings.
- Claro que sim! - exclamou Stephen. - Foi um problema na rótula. Lembro-me perfeitamente. Sir William Hastings, verdade? Permite-me que lhe arregace a calça? Sim,
sim, muito bem costurada! E aquele charlatão sem-vergonha queria cortá-la! Sem dúvida, uma precisa amputação sempre é um prazer, mas mesmo assim... Agora tem um
membro são em vez de uma perna de pau. Muito bem - acrescentou dando-lhe palmadinhas na panturrilha. - Eu o felicito.
- Também felicito o senhor, doutor.
- Muito amável, sir William. Fala isso pela rótula, não?
- Não, senhor, por sua filha. Mas talvez o senhor não pense que isso é motivo para receber felicitações. Sei que há preconceitos contra as filhas porque são vaidosas
e outras coisas, é preciso dar-lhes um dote e parte da herança e pagar a festa do casamento. Desculpe.
- Não estou lhe entendendo, senhor - disse Stephen, olhando-o com a cabeça inclinada, e seu coração começou a bater muito rapidamente.
- Bem, provavelmente estou equivocado. Mas quando estava em Madras chegou o Andromache e pedi emprestado um exemplar da Crônica Naval, e ao folhear as páginas onde
vêm as ascensões, os nascimentos, as mortes e os casamentos, vi um nome que achei que fosse o seu, ainda que talvez fosse o de outro cavalheiro.
- Sir William, de que mês era e o que dizia?
- Acho que era do mês de abril e dizia: "Em Ashgrove Cottage, perto de Portsmouth, a esposa do doutor Maturin, da Armada Real, teve uma menina".
- Querido sir William, não poderia ter-me dado uma notícia melhor! Riley! Riley! Ouviu? Traga uma garrafa do melhor que tenha na casa!
A garrafa do melhor que havia na casa não afetou Stephen, pois a alegria sozinha o fez percorrer a proa da fragata dando saltos até chegar ao castelo de popa, onde
havia tantos tripulantes trabalhando que achou que eram todos eles, ainda que não era possível porque muitos estavam martelando na proa em meio do eco das ordens.
Enquanto observava as grinaldas, o empavesado e os cabos perfeitamente enrolados, apareceu o capitão Aubrey acompanhado de Reade, que levava uma cinta métrica em
sua única mão. Jack parecia mais magro, mais pálido e mais preocupado, mas sorriu e perguntou:
- Já está de volta, doutor? O senhor Martin me disse que passou muito bem.
- Isso mesmo - confirmou Stephen. - Porém, Jack, não imagina quanto desejo voltar para a Inglaterra.
- Estou seguro de que muito - disse Jack. - E eu também. Senhor Oakes! - gritou projetando a voz para o mastaréu. - Vai colocar essa grinalda durante esta guarda
ou quer que lhe levem a maca para o alto da exárcia? Doutor, estamos a ponto de dar uma refeição de despedida ao qual assistirão o governador e seus subalternos,
e por isso há tanta confusão. Terá tempo de trocar-se, mas temo que Killick não poderá ajudá-lo porque está trabalhando como uma abelha em uma colméia. Senhor Reade,
mantenha a cinta exatamente aí e não se mova até que lhe dê um grito.
Depois de dizer isto, foi correndo para baixo, onde estavam transformando as três cabines em uma só e o acossado carpinteiro estava pondo uma folha mais na mesa.
Ainda que nesse momento não tinha a mente muito limpa, Stephen compreendeu a situação e observou a inusual limpeza de todos os marinheiros, o brilho extraordinário
de todas as coisas que a pedra arenito e o pó de tijolo podiam abrilhantar e a profunda angústia que costumavam sentir os marinheiros antes de qualquer ato oficial
de grande escala, para o qual, como sabia por experiência, preparavam tudo como se os convidados fossem velhos e experimentados marinheiros ou censores ou almirantes
hostis dispostos a revisar o enegrecimento das velas ou olhar se havia poeira debaixo das carretas das caronadas. Desceu para sua cabine com a mente ainda perturbada
pela felicidade e viu que, apesar de tudo, Killick havia lhe preparado toda a roupa que tinha que usar. Começou a se vestir devagar e depois de pôr a casaca com
muito cuidado saiu para a câmara dos oficiais, onde viu Pullings com seu esplêndido uniforme de capitão, com galões dourados, sentando-se cuidadosamente.
- Ah, doutor, quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou com o rosto radiante. - Parece mais alegre que uma cascavel, tão alegre como se se tivesse encontrado uma nota
de cinco libras. Espero que traga por fim um pouco de sorte para nossa querida fragata, coitada. Meu Deus, que semana!
- Parece que esteve em uma batalha entre esquadras, Tom.
- Voltarei a sorrir amanhã pela tarde, quando tenhamos zarpado e perdido de vista a terra, não antes. Qualquer um pensaria que os marinheiros conspiraram para causar-nos
problemas e dar má fama à Surprise. As "lagostas" trouxeram muitos marinheiros bêbados que não podiam se mover e nos deram conselhos para conseguir que se comportassem
bem. Davis, O Lerdo e Sanguinário o prenderam por fazer mingau de duas sentinelas e atirar seus mosquetes no mar quando trataram de impedir que pegasse uma jovem
em um bote; Jack, O Mal-encarado, em troca, pegou uma jovem, e como é tão amigo do cozinheiro, trouxe-a a bordo envolvida de maneira que parecesse uma peça de bacon.
Colocou-a na bodega de proa e a alimentava como a um galo de briga pela escotilha. Quando o descobriram disse que a jovem não era uma mulher comum e que queria casar-se
com ela porque assim conseguiria a liberdade, e perguntou se o capitão teria a amabilidade de casá-los. O capitão afirmou que não via inconveniente nisso desde que
depois pegasse seu pagamento e ficasse em terra com ela porque na fragata não viajavam esposas. Então Jack, O Mal-encarado, pensou melhor, ela desceu para terra
sozinha e agora todos o desprezam. E um pobre diabo escapou a nado... e ocorreram algumas outras coisas. Quanto roguei a Deus por uma brigada de infantes da marinha!
Quando o governador regressou, os mal-intencionados funcionários já haviam suavizado sua postura, mas os marinheiros tinham prejudicado nossa causa e nossa reputação.
Ainda que as arestas já tenham sido retiradas e a fragata esteja de novo atracada ao cais, não acredito que ela e a costa estejam unidas por fortes laços. Nunca
vi o capitão mais cansado, nem mais irritável, nem mais... como poderia dizer?, teimoso.
Soaram as quatro badaladas.
- Bem, doutor - continuou Pullings -, é hora de ir dar uma espiada em tudo e do senhor ir pôr os calções.
- Que Deus lhe bendiga, Tom - disse Stephen, olhando com angústia seus joelhos ossudos. - Me alegro de que tenha percebido. Devo de ter estado distraído e, sem dúvida,
teria prejudicado ainda mais a reputação da fragata.
Quando Stephen pôs os calções, sentou-se em sua escrivaninha dobrável e escreveu para Diana. Sua pena deslizava com extraordinária rapidez pelas folhas de papel,
que iam amontoando-se na maca.
- Com sua licença, senhor - Reade se desculpou da porta. - O capitão pensou que gostaria de saber que os convidados já saíram do palácio do Governo.
- Obrigado, senhor Reade - respondeu Stephen. - Eu me reunirei com os senhores assim que termine este parágrafo.
Chegou ao convés justo antes de que soasse a primeira salva em honra do governador e observou com satisfação, ainda que sem muito assombro, que a embarcação a meio
arrumar e com tripulantes angustiados que vira antes era agora um barco de guerra onde os marinheiros estavam sossegados e seguros de que os moitões e as braças
manteriam as vergas perpendiculares aos paus com uma margem de um oitavo de polegada e que os convidados poderiam almoçar em qualquer parte das cobertas.
Na verdade, os convidados comeram em toda a louça de prata do capitão Aubrey pois nos baús forrados de feltro só restaram umas de ferro para o açúcar quebadas. De
trás do capitão, Killick contemplava sua obra com gesto de triunfo e profunda satisfação, um gesto raro em sua cara, que costumava ter uma expressão mal-humorada.
Os convidados entraram e Stephen se informou de que ia se sentar entre o doutor Redfern e Firkins, o secretário judicial.
- Quanto me alegro de que nos sentemos juntos! - exclamou Stephen dirigindo-se a Redfern. - Temia que depois de trocar essas poucas palavras no castelo de popa fossemos
separados.
- Eu também - disse Redfern. - E se observar esta mesa poderá ver que se não fosse assim seria difícil que pudéssemos nos ouvir. Meu Deus! Nunca vira tanta magnificência
em uma fragata nem uma toalha de mesa tão grande.
- Nem eu - interveio Firkins, e em voz baixa comentou para Stephen: - O capitão Aubrey deve de ser um cavalheiro de uma fortuna considerável.
- Realmente considerável - confirmou Stephen. - Também controla não sei quantos votos na Câmara dos Lores e na dos Comuns, e é muito apreciado pelos ministros.
Acrescentou alguns detalhes mais para amargar a Firkins, mas muito poucos, porque se sentia alegre, e durante o restante da refeição, durante quase todo o período
relativamente longo em que beberam o vinho do porto e enquanto tomavam o café, esteve conversando com Redfern. O cirurgião não era um experimentado naturalista,
pois vacilou quando Stephen lhe perguntou se vira o ornitorrinco.
- Ornitorrinco é o nome mais moderno - explicou Stephen.
- Sim, sim, sei que animal é - disse Redfern. - Já ouvi falar muito dele. Não é raro. Estava tratando de recordar se o vi ou não. Provavelmente não. A propósito,
aqui o chamam de toupeira d’água e ninguém entenderia o nome científico.
Porém, por outro lado, pôde dar a Stephen muitos detalhes sobre a atitude de alguns homens com os outros em Nova Gales do Sul e na ilha Norfolk, um lugar ainda pior,
onde passara algum tempo, e contar-lhe qual era a resposta habitual, ainda que não invariável, ao poder absoluto, e, também, informou-lhe de que não havia opinião
pública. Stephen estava tão atento à conversa e tão perturbado pela alegria que quase não observou como se desenrolava o banquete, mas quando regressou de acompanhar
ao doutor Redfern ao hospital e dar-lhe sua opinião sobre uma hidrocele e viu Jack sentado na cabine reconstruída e bebendo uma jarra de água de cevada, exclamou:
- Como tudo correu bem! Foi uma excelente refeição.
- Alegro-me de que pense assim. Achei muito pesada, ainda que trabalhei como um burro, e temia que outros pensassem assim também.
- Não, em absoluto, meu amigo. Hoje, antes de subir a bordo, encontrei-me com um homem que veio no barco de Madras, ah, ah, ah! Mas antes que me esqueça, é confiável
este vento do sudeste?
- Oh, sim! Esteve soprando durante os últimos dez dias e o barômetro não se moveu.
- Então, por favor, poderia dispor de um cúter amanhã cedo?, e poderia recolher-me frente à ilha Bird?
- Sem dúvida! - exclamou Jack, movendo no ar a jarra vazia. - Gostaria de tomar um pouco disto? É água de cevada.
- Sim, por favor - respondeu Stephen.
- Killick, Killick! - gritou Jack, e quando Killick chegou, ordenou: - Duas jarras de água de cevada a mais, Killick, e diga a Ronden que o doutor quer que o cúter
esteja preparado quando soem as três badaladas na guarda da alvorada.
- Duas jarras e três badaladas, senhor - disse Killick, dirigindo-se para a porta. - Duas jarras e três badaladas.
Esbarrou-se com força com o marco da porta porque, como era habitual depois de um banquete, estava bêbado, mas a atravessou muito erguido.
- O que espera encontrar na ilha Bird?
- Provavelmente terá petréis, mas não penso descer a terra porque não me sobrará muito tempo.
- Então, a que vais?
- Não tenho que ir para recolher Padeen?
- Certamente que não tem que ir para recolher Padeen.
- Porém, Jack, eu lhe disse que ia para avisá-lo. Disse antes que Martin e eu partíssemos, quando falou que zarparíamos no dia 24. Eu lhe avisei e estará esperando
ali na praia.
- A verdade é que não entendi isso. Stephen, já tive muitos problemas por causa de presos que tentavam escapar. Por essa razão, entre outras, os funcionários me
acossaram, importunaram-me com perguntas, limitaram-me os apetrechos, as provisões e as reparações, e tive que rebocar a fragata até a entrada da baía para evitar
que ocorresse algo realmente grave, o que atrasou tudo ainda mais. Quando o governador regressou, fui vê-lo e lhe expliquei o caso o melhor que pude e admitiu que
a revista da fragata sem o meu consentimento fora inapropiada, e me perguntou se queria que me apresentassem desculpas. Respondi que não, mas que se me desse sua
palavra de que não voltaria a suceder nada parecido, eu lhe daria a minha de que nenhum preso sairia da baía de Sidney em minha fragata, e que assim ficaria concluído
o assunto. Concordou e então voltamos a rebocar a fragata para o interior da baía.
- Estamos falando de um companheiro de tripulação, Jack. Além disso, estou comprometido.
- Eu também. Mas como pode pedir ao capitão de um barco do rei que faça uma coisa assim? Farei todas as petições que seja possível em favor de Padeen, mas não colaborarei
na fuga de um preso. Já devolvi vários.
- Isso é o que tenho que dizer a Padeen?
- Estou com as mãos atadas. Dei minha palavra ao governador. Poderiam dizer que abusei de minha autoridade como capitão de navio e que me aproveitei de que tenho
imunidade por ser membro do Parlamento.
Stephen o olhou durante algum tempo enquanto pensava no que responder. Jack achou que em seu olhar havia uma mistura de lástima e desprezo e sentiu uma grande dor.
- Você gostava dele - disse Stephen, e saiu.
Então se topou com Killick, que trazia as jarras, e pegou uma.
- Obrigado, Killick - murmurou e a levou abaixo.
Davidge estava sentado na câmara dos oficiais e lhe disse que Martin estava lá embaixo, onde se achavam os espécimes, pondo as peles de aves em uma tina com água
e sal, e depois prosseguiu:
- Que almoço horrível! Estou seguro de que Jack, O Mal-encarado, estava tão desgostoso que deve ter jogado sal nas conchas. E com qualquer tema os civis ficavam
calados como se estivessem em um funeral. Fiz o possível para animá-los, mas nada lhes comprazia. Suponho que era igual no extremo da mesa onde o senhor estava.
Não me estranha que tenha esse gesto mal-humorado.
- Martin - disse Stephen quando chegou ao paiol, que cheirava a penas. - Parece que houve um mal-entendido e talvez não possa trazer Padeen a bordo. Não sei o que
devo fazer. Contudo, o cúter estará preparado quando soarem as três badaladas na guarda da alvorada. Gostaria de vir comigo? Eu lhe pergunto porque durante a refeição
o doutor Redfern me disse que na colônia chamam ao ornitorrinco de toupeira d’água, o que eu ignorava quando seu amigo Paulton nos disse que no riacho que passa
por Woolloo-Woolloo viviam toupeiras d’água. Talvez essa seja sua última oportunidade de ver um.
- Muito obrigado - respondeu Martin, aproximando-lhe a lanterna para ver seu rosto e afastando-a imediatamente. - Estarei pronto quando soarem as três badaladas.
Stephen lhe pediu ajuda para alcançar seu baú, pegou uma soma considerável em moedas de ouro e notas de banco, voltou a trancar o baú e depois disse:
- Se eu não regressar para a fragata amanhã, teria a amabilidade de mandar isto para minha esposa?
- Certamente! - disse Martin.
Quando Stephen saía de Sidney pelo caminho que ia para Parramatta pensou: "Acho que nunca em minha vida senti emoções tão fortes e contraditórias como neste momento".
Tinha a intenção de diminuir suas forças caminhando muito e rápido, pois comprovara que o cansaço físico podia eliminar aspectos secundários das coisas, como a exasperação
neste caso, e também que depois de algumas horas aparecia a forma correta de agir. Contudo, nada disso ocorreu durante as horas que caminhou. Sua mente abandonava
o assunto uma e outra vez para voltar a ocupar-se de sua felicidade presente e futura. Percorreu um grande vão na escuridão e a parte de sua mente livre para se
assombrar assombrou-se ante a grande quantidade de animais noturnos que ouviu, e ocasionalmente viu, sob pálida luz da lua perto do povoado, entre os quais havia
vários falangeros e ursos australianos e um coala.
Então disse para si: "Nelson, o herói de Jack, não teria agido como ele, mas Nelson não era um homem justo, não pensava sempre em conservar a virtude. A maturidade
finalmente alcançou Jack, para o seu bem. Pensei que nunca o alcançaria". Murmurou isto sem rancor, limitando-se a constatar um fato, e depois acrescentou: "Uma
das vantagens da riqueza é que um não tem que engulir sapos, aliás, pode fazer o que acha correto".
Ainda não estava seguro do que era correto naquelas circunstâncias quando, depois da lua se pôr, começou a regressar para a fragata. Sua análise do problema fora
interrompido frequentemente por ações de agradecimento, entre elas um canto simples para agradecer a Deus que ouvira no monastério de Montserrat antes que os franceses
o saqueassem, profanassem e destruíssem, que tardou em cantar o mesmo tempo que tardou em percorrer uma milha e meia. Tampouco estava seguro quando chegou à fragata
molhado por causa de um aguaceiro que veio do sudeste e com os pés inchados, nem quando ouviu a Bonden murmurar-lhe ao ouvido que o cúter já estava abordado com
a fragata, depois de ter passado a noite em vela e muito agitado.
A alegria se reanimou, e com ela a tristeza. Vestiu-se, passou silenciosamente pela câmara dos oficiais para não despertar aos demais, deu o bom dia a Martin em
voz baixa e tomou uma xícara de café.
Os paus do cúter já estavam colocados, e quando descia para subir a bordo, notou com satisfação que todos os tripulantes eram marinheiros de barcos de guerra e antigos
companheiros de tripulação. Bonden, que pensava que o doutor e Martin não tinham senso comum, apesar de que eram muito instruídos, forneceu-lhes capas de lona para
que se protegessem do penetrante vento da noite e depois perguntou:
- Aonde vamos, senhor?
- Conhece a ilha Bird?
- Sim, senhor. Eu a vi quando nos aproximávamos e o capitão Pullings a tomou como referência.
- Bem. Antes da ilha, a duas ou três milhas ao sul, há um cabo, e ao sul desse cabo, onde a costa é plana, fica a entrada de uma enseada marcada com uma haste de
bandeira e um monte de pedras. Ali é onde temos que ir. Quanto tempo acha que levaremos?
- Com este vento pela alheta, senhor, poderemos chegar lá antes do meio-dia. Separe a proa, Joe.
Quando terminaram de percorrer o comprido porto, amanheceu, um amanhecer de uma beleza tão excelente que até Joe Plaice, que vira dez mil no mar, contemplou-o com
um olhar aprovatório e Martin com as mãos juntas. Stephen não o viu porque estava adormecido envolto na capa. O cúter contornou os cabos, começou a atravessar as
espaçadas ondas de alto mar, avançou um pouco navegando de bolina e depois virou para nordeste, onde o balanço se converteu em um movimento parecido ao de um saca-rolhas,
um movimento capaz de causar enjôo inclusive nos marinheiros mais curtidos que acabassem de passar algum tempo em terra, mas Stephen seguiu dormindo. E seguiu dormindo
quando as ondas provocadas pela mudança da maré lançaram espuma acima do cúter. Martin lhe arrumou a capa de maneira que a cabeça ficasse coberta e como viu que
não se despertava com facilidade, em voz baixa disse a Bonden:
- Vamos a grande velocidade.
- Sim, senhor - confirmou Bonden. - E nos sobrará tempo, mas teremos que navegar um pouco afastados da costa para que o doutor não se molhe tanto, e me preocupa
que passemos pela haste da bandeira sem vê-la.
- Acha que estamos perto? - perguntou Stephen, despertando de repente.
- Bem, senhor, acredito que não podemos estar muito longe.
- Então, assim avistemos a ilha Bird, começarei a olhar a costa com a luneta. Não importa que nos molhemos porque o sol nos secará imediatamente. Está bastante mais
alto do que esperava e esquenta muito.
O cúter seguiu navegando e movendo-se com viveza. Enquanto isso, os marinheiros da proa falavam muito baixo e o sol seguiu subindo até que a fria espuma era agradável
e as capas foram deixadas de lado.
- Aí está a ilha, senhor - anunciou Bonden.
Quando o cúter subiu com o balanço, Stephen pôde vê-la claramente além do cabo, justo no horizonte.
- Ah, sim! - exclamou.
Tanto ele como Martin pegaram as lunetas. O terreno arenoso que formava o baixo litoral desfilou devagar ante eles, e pouco depois estiveram de acordo em que esta
ou aquela parte lhes eram familiares. Contudo, do mar uma duna se parece com outra, e um grupo de árvores baixas com outro, e não tiveram a certeza até que, com
o mesmo alívio que antes, voltaram a ver a haste de bandeira e o monte de pedras.
- Ainda não são nem sequer as onze - observou Stephen. - Acho que lhes tirei da maca cedo demais, marinheiros.
- Não se preocupe conosco, senhor - Plaice lhe tranqüilizou, rindo. - Se não estivéssemos aqui, a esta hora estaríamos limpando o convés. Isto é como ir a um piquenique,
como se costuma dizer.
Bonden dirigiu o cúter pela entrada e se assombrou que Stephen fosse capaz de lhe dizer que havia uma braça de profundidade acima do banco de areia na baixa-mar
e que encontrariam um canal mais profundo ao leste do lugar de onde se viam a haste da bandeira e o monte de pedras em linha. Fez o cúter passar pelo canal de entrada,
entre as moderadas ondas que rompiam no banco, e depois deslizar por entre as tranqüilas águas da enseada e deter-se junto ao cais onde carregavam as colheitas de
Woolloo-Woolloo no bergantim.
- Bonden, tem que acender uma fogueira - ordenou Stephen. - Todos hão trouxeram comida, verdade?
- Sim, senhor. E Killick pôs este pacote com sanduíches para o senhor e o senhor Martin.
- Muito bem. Então podem acender uma fogueira, comer a comida e, se quiserem, dormir ao sol. A fragata nos recolherá em frente da ilha Bird esta tarde. É possível
que eu não volte, mas o senhor Martin virá e não mais tarde das duas ou duas e meia. Não deixe que ninguém se afaste, pois é provável que tenha serpentes venenosas
entre estas canas.
O que indubtavelmente havia eram mariposas. Algumas eram de tipos que tinham visto antes e outras eram maiores e muito mais chamativas, e caçaram várias enquanto
caminhavam pela margem do rio, entre as canas e os arbustos. A contradição entre os sentimentos de Stephen, uma enorme alegria e uma enorme tristeza, era tão forte
como antes, e não se sentia muito animado. Tampouco o estava Martin. Ainda que Stephen não fosse loquaz, raras vezes estivera tão silencioso como agora e seu estado
de ânimo era contagioso.
Atravessaram o canavial e chegaram a um terreno firme, um pasto onde o ar corria e o céu parecia imenso. Agora o rio estava à sua esquerda, enquanto que na primeira
visita estava à direita. Ademais, eles o haviam cruzado por uma parte muito mais alta.
- Estamos em uma parte do pasto desconhecida - disse Stephen. - Quase não consigo ver a cabana e está aproximadamente meia milha mais longe do que esperava.
Logo viu ovelhas, uma revoada de cacatuas brancas e ao longe um pouco de fumaça.
- Poderíamos andar pela margem do rio um estádio mais ou menos, porque chegamos muito cedo.
O rio, que tinha o leito bastante profundo, alcançava em tempo de cheia dez ou quinze jardas de largura, mas fazia vários anos que não tinha uma cheia e agora o
leito estava coberto de numerosos arbustos entre os quais havia capim alto. Agora não tinha mais de um passo de largura, era simplesmente um arroio que serpenteava
pelo pasto e unia várias lagunas. Ao chegar à primeira recolheram algumas plantas interessantes e um centopéia; ao chegar à segunda, Martin, que ia na frente, parou
dizendo:
- Oh, meu Deus! - Então retrocedeu cautelosamente e sussurrou para Stephen ao ouvido: - Estão ali!
Avançaram pelo terreno alto próximo à margem muito devagar, percorrendo um pé depois do outro, e dobrados para frente. Quando levantaram a cabeça para olhar por
entre as folhas dos arbustos e das canas, quase não podiam ver a superfície da água. Os ornitorrincos não lhes prestaram atenção. Quando Martin os vira pela primeira
vez nadavam e nadavam entorno da laguna, e agora seguiram nadando e nadando um detrás do outro, descrevendo uma grande circunferência, entregues por completo ao
seu ritual. Ambos nadavam bastante submersos na água, mas devido ao ângulo que a luz formava com a superfície, os dois observadores não recebiam seus reflexos e
podiam ver tudo sob a água, desde o bico incrivelmente parecido com o de um pato até a calda larga e plana, que ficava entre as patas com quatro dedos revestidos
por uma membrana.
Pouco depois Stephen murmurou:
- Acho que podemos nos aproximar mais.
Martin assentiu com a cabeça.
Então, com muita precaução, desceram para aproximar-se à margem, e Stephen ia apoiando-se no cabo da rede. Agora avançavam polegada a polegada, detendo-se junto
a cada arbusto, cada árvore, cada vão coberto de capim e observando tudo antes de continuar. Quando chegaram ao nível da água, puderam andar mais facilmente e seguiram
movendo-se sinuosamente até a faixa de barro que havia justo à margem da laguna. Cada um se colocou atrás de um grupo de arbustos e olharam através dele para a zona
sombreada que os separava. Stephen fechou a boca para que não se ouvisse seu coração, cujas fortes batidas pareciam as graves badaladas de um velho relógio, como
fez quando era menino numa primavera ao chegar a um lugar onde tinha ao seu alcance um tetraz, que cantava e abria suas asas.
Teria dado no mesmo se a mantivesse aberta, pois os ornitorrincos tinham posta toda sua atenção na dança. Stephen e Martin sentaram-se tranqüilamente ali, no terreno
brando, e enquanto observavam os ornitorrincos e faziam comparações, os animais seguiam girando. Devido à circunferência que descreviam, passavam pelo lado oposto
da laguna, onde o sol permitia ver perfeitamente sua brilhante cor marrom, e pela parte sombreada próxima às canas.
Ouviu-se um zurro e em meio do ruído Stephen disse:
- Vou tentar pegar um.
Quando os ornitorrincos estavam na parte mais distante, meteu lentamente, muito lentamente, a rede na água; depois a empurrou devagar, muito devagar para o interior
da laguna, até o lugar por onde sempre passavam. Deixou que passassem por cima duas vezes e na terceira levantou a borda da rede diante do segundo ornitorrinco,
o qual perseguia ao primeiro. O animal se moveu para o fundo imediatamente, mas entrou na rede. Stephen se meteu entre as canas com a água na cintura, duvidando
que o cabo e o tecido resistissem a tanto peso, e depois retrocedeu para a margem a grandes passos com a cara radiante voltada para Martin e apalpando o interior
da rede. Notou que o animal tinha a pele suave, úmida e quente e que o coração batia com força.
- Não vou lhe ferir, querido - tentou sossegá-lo, e imediatamente sentiu uma espetada e logo uma horrível dor que lhe subiu pelo braço.
Avançou com dificuldade até a margem, soltou a rede e se sentou. Então olhou seu braço, que usava desnudo porque estava em mangas de camisa, e viu um pequeno orifício
e uma linha pálida em relevo que ia do pulso ao cotovelo.
- Tenha cuidado, Martin - disse. - Jogue-o aí outra vez. Uma faca... Um lenço...
Fez um corte profundo e depois um torniquete muito apertado, mas já estava com a garganta rígida e a voz pastosa. Deitou-se no barro e começou a falar de casos similares
conhecidos, de picadas de abelha, de escorpião e mesmo de uma arranha grande. Contou que alguns haviam sobrevivido e outros não, e que alguns tinham durado um dia,
tanto atendidos de uma maneira como de outra. De repente viu a cara angustiada de Padeen em cima dele e ouviu que Paulton gritava:
- Oh, querido Martin! Pensei que um naturalista saberia que o macho tem um esporão venenoso. Oh, Meu Deus! Oh, Meu Deus! Está ficando inchando! Está ficando azul!
- Um esporão venenoso? - perguntou Stephen em meio da dor com voz irreconhecível, enrouquecida. - Só o macho? Em toda a espécie de mafímeros, mamíferos...?
As palavras rápidas e mais ou menos coerentes cessaram; Stephen perdeu a capacidade de falar e pouco depois a capacidade de ver. Não obstante, seguiu presente, ainda
que a grande distância. Não estava na escuridão total, mas em um mundo de um intenso colorido violeta que lhe recordava um estado prévio, quando, surpreendido pela
tristeza e uma involuntária overdose de láudano, havia desabado no interior de uma alta torre na Suécia. Naquela ocasião também ouvia as vozes de seus amigos, mas
agora as alucinações eram benignas e quase inexistentes.
A voz que mais ouvia era a de Paulton (ainda que também ouvisse os negros, que com estrondosos sinais, aconselharam aos gritos: "Não o toquem"). Parecia atormentado
pela culpa e dizia uma e outra vez que em Woolloo-Woolloo todo mundo sabia que tinha que ter muito cuidado com os toupeiras d’água, que vira um cachorro europeu
morrer em questão de minutos, que sentia-se culpado por não ter falado do perigo, que supunha que era do domínio público...
- Como pode falar assim, Nathaniel? - perguntou Martin. - Em Londres não existe mais de dois ou três exemplares dessecados e encolhidos que não estavam em perfeito
estado, e todos eram fêmeas.
- Quanto o sinto! - exclamou Paulton. - Oh, quanto o sinto!
Havia algumas lacunas na consciência de Stephen, mas muitas mais na percepção das coisas, e após um desses espaços em branco ou pausas, ouviu Bonden dizer a Padeen:
- Levante-lhe a cabeça, companheiro, e ponha em meu ombro. Não importa o sangue.
E um tremendo vozeirão disse:
- Temos que voltar para a fragata.
Não tinha dúvida de que o estavam transportando. E com a parte de sua mente que não se ocupava da terrível dor ou do irreal mundo violeta onde era observado, notou
que para os marinheiros lhes parecia natural a presença de Padeen e tratavam de acalmar sua tristeza.
Agora notou o suave movimento do cúter, o rangido dos toletes, a suave brisa marítima que lhe acariciava o rosto, rígido e entorpecido, e os olhos, que não podiam
ver. Entre as coisas que não podia perceber bem estavam a dor e o tempo, e não pôde determinar a ordem cronológica das explicações repetidas por Jack aos oficiais
e a ordem que deu a Padeen com voz angustiada:
- Deite-o na maca, Colman, e depois desça correndo para a câmara dos oficiais e traga sua almofada de couro. Já sabe onde fica.
Mas a ordem cronológica não importava naquele incomensurável poço violeta.
Finalmente, desapareceu sua preocupação com a impossibilidade de distinguir a seqüência dos acontecimentos, e quando a luz voltou e recuperou a percepção do tempo,
a recordação dessa impossibilidade se dissipou. O tempo voltou a começar muito atrás, quando aquele vozeirão disse que tinham que voltar para a fragata e então ocuparam
o lugar correspondente os fatos que o levaram a pronunciar essas palavras e o motivo de sua atual felicidade, ainda que depois de passar por uma etapa em que lhe
pareciam imprecisos, parte de um sonho, enquanto se achava ali, muito a vontade e absorto em suas reflexões.
Voltara à fragata e, de fato, notava o familiar balanço, o rangido da maca e o suave odor do mar e do breu. Mas lhe parecia que nem tudo estava bem, pois via a cara
de Padeen acima dele, o que estava mais próximo do delírio e do sonho que da realidade, porém, na dúvida, deu-lhe o bom dia. Então Padeen se ergueu e, ao mesmo tempo
que em sua cara curtida e inexpressiva aparecia um grande sorriso, disse:
- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, sua senhoria.
Depois voltou-se para o capitão e explicou em inglês:
- Capitão, senhor, ele..., ele..., falou como quando estava em seu..., seu..., juízo perfeito.
- Meu Deus, quanto me alegro de ouvir isso! - exclamou Jack e depois, com voz suave, perguntou: - Como se sente, Stephen?
- Parece que sobrevivi - respondeu Stephen, pegando-lhe a mão. - Jack, não tenho palavras para expressar com que ânsia desejo regressar para casa.
Glossário
{1} Yugo: Mar. Cada uma das madeiras de diversas dimensões que cruzam o codaste e nele se engancha, para formar a popa.
{2} Vagara: Barra de madeira, comprida, estreita e flexível que se prega de popa à proa sobre as ligações do navio a várias distâncias verticais, para mantê-las na situação conveniente, enquanto se sujeitam os vaus e se colocam as cintas.
{3} Gambota Mar. Cada uma das madeiras curvas presas na espiga por seu pé no yugo principal, que formam a abobadilha e são como outras tantas colunas da fachada ou painel de popa.
{4} Alefrisi: Cavidade, ranhura, canal angular que se faz longitudinalmente na quilha, roda e codaste para que ela encaixem os cantos ou as cabeças das pranchas.
{5} Chapuz: Pau que se finca nas paredes para nele se pregar alguma coisa.
{6} Traca: Mar. Cada uma das três fileiras da coberta imediatas ao trancanil.
{7} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{8} Chillera: Mar. barra de ferro dobrada em ângulo reto nos extremos que se encaixam na amurada, deixando o espaço necessário para poder estivar de modo que não se movam com o balanço do navio certas munições de artilharia, como balas, sacos de metralha, etc.
{9} Cachorro com manchas: Pudim de sebo com passas.
{10} Cabillero: Mar. Peça de madeira ou metal com furos, pelos quais se atravessam as barras que servem para amarrar e dar voltas nos cabos de trabalho.
{11} Banksia é um gênero botânico pertencente à família Proteaceae.
Patrick O brian
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